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Ruth Langan - 42 Anjo

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Anjo

Ruth Langan

Clássicos Históricos nº 42

Publicado originalmente em: 1994


Título original: ANGEL
Copyright para a língua portuguesa: 1994
CIRCULO DO LIVRO LTDA.
EDITORA NOVA CULTURAL

Digitalização: Palas Atenéia


Revisão: Sueli A.

Este Livro faz parte de um projeto sem fins lucrativos.


Sua comercialização é estritamente proibida.
Desde quando os anjos do Natal usavam guarda-pós e chapéus de abas largas?

Talvez fosse esse o traje que reservavam para Montana, pois Quin McAllister parecia um deles ao surgir
naquela região selvagem e na vida de Cassie Montgomery e suas duas filhas. No entanto, ela sabia que a sua
felicidade duraria pouco. Apaixonou-se por um homem que jamais renunciaria à liberdade de não se fixar em
lugar algum.
Quin McAllister, um jogador, começara a se apaixonar por Cassie muito antes de conhecê-la, graças às cartas
do marido dela. Então, perdeu o coração quando a viu com seus próprios olhos! Cassie era a única mulher
que o levaria a arriscar todas as suas cartas a fim de conseguir tudo quanto sempre desejara…
PRÓLOGO

Ohio, 1864

O campo de prisioneiros não passava de um barracão improvisado, limitado por uma cerca mal
feita. Do lado de fora, soldados da união patrulhavam o perímetro e, no interior da prisão ao ar livre, os
confederados capturados tremiam de frio. Soprava um vento gelado e constante que, no entanto, não
conseguia dispersar o mau cheiro de carne humana em decomposição, somado ao das latrinas ao céu
aberto. A escuridão era quase completa e só se ouviam gemidos e um ocasional grito mais forte do
garoto que tivera as duas pernas amputadas.
Uma vez por semana, vinha um médico da cidade mais próxima ao campo, mas pouco podia
fazer com a escassa quantidade disponível de medicamentos e de morfina para tirar a dor. Ele passava
entre os prisioneiros, balançando a cabeça, com um olhar triste e desesperado diante do que era
obrigado a testemunhar. Então, afastava-se rapidamente em sua carroça, ansioso por retornar para o
calor e a serenidade de sua casa, grato por escapar daquela visão do inferno.
A porta do barracão se abriu, deixando entrar uma lufada de ar gélido e despertando um
selvagem coro de imprecações. Então, foi fechada e um homem deu alguns passos, com um chicote nas
mãos. Apesar do escuro que impedia os prisioneiros de distinguirem o rosto do recém chegado, todos
sabiam que era o mais cruel e sádico dos carcereiros, que sentia prazer em torturar os prisioneiros,
infligindo uma violência indiscriminada e gratuita.
Ele parou no centro do barracão, olhando ao seu redor, em busca da vítima daquela noite.
— Ei! Você, pregador.
A voz do algoz era muito baixa, mas soava como um brado, aumentando o terror dos homens
com os nervos já à flor da pele.
O prisioneiro que recebera esse nome por demonstrar estoicismo na derrota e por insistir com
os companheiros para rezarem pela liberdade, tentou levantar-se do chão, determinado a enfrentar seu
algoz com a dignidade de um cavalheiro sulino. Enfraquecido pelos ferimentos e pela falta de
alimentação adequada, ele cambaleou e quase caiu antes de finalmente se erguer.
— Agora, vamos ver se suas preces o salvam, rebelde maldito — rosnou o carcereiro, dando
uma risada cruel.
Quando seu braço se alçou num arco amplo, a risada morreu subitamente em sua garganta. Ele
enrijeceu e desabou, caindo para frente. Após alguns minutos de silêncio chocado, todos viram uma
figura surgir das sombras, curvar-se sobre o homem morto a fim de retirar um pequeno punhal
dourado que se cravara nas costas do carcereiro.
— É o Jogador!
O murmúrio correu entre os prisioneiros, seguido por um suspiro de alívio. Nenhum deles
jamais teria coragem para cometer aquele gesto alucinado e nunca, em hipótese alguma, perguntaria
onde aquele homem misterioso conseguira o punhal.
Todos suspeitavam que ele tivesse conseguido a arma durante um jogo de pôquer com algum
dos guardas pois a sua excelência nessa atividade fora o motivo de seu apelido. Era o Jogador que lhes
conseguia mais comida, cobertores e, às vezes, até um pouco de uísque para minorar a dor e o frio.
Ninguém lhe faria perguntas. Bastava a constatação da morte do torturador cruel e saber que não
haveria uma investigação rigorosa. Os soldados do norte também odiavam aquele homem violento.
— Maldito — resmungou o Jogador, passando por cima do morto e voltando a guardar a arma
dentro de sua bota. Ao se endireitar, ainda teve tempo de amparar o prisioneiro que quase se tornara
mais uma vítima.
— Jogador… Eu me chamo Ethan Montgomery — murmurou o homem conhecido como
Pregador. — Diga-me qual é o seu verdadeiro nome.
— Quin McAllister.
— Devo-lhe a vida, Quin McAllister. Algum dia, pagarei minha dívida.
— Você não me deve nada, Ethan Montgomery. Neste lugar maldito, todos nós somos
guardiões de nossos irmãos.

2
— Irmão… — Ethan ofereceu um canto de seu cobertor rasgado para que Quin se sentasse ao
seu lado. — O meu lar é em Atlanta.
— O meu também.
— Gostaria que eu lhe falasse sobre a minha família?
Quin percebeu o calor humano retornar à voz do prisioneiro, o único sinal de sensibilidade, que
encontrara naquele lugar infernal.
— Se quiser falar… — Quin se mantinha alerta aos ruídos externos — ajudará a passarmos a
noite.
— São essas lembranças que me mantém vivo, amigo. A visão de minha linda esposa e minhas
duas encantadoras filhas…
Nos meses que se seguiram, aqueles homens de naturezas completamente opostas, o pregador e
o jogador, criaram uma profunda ligação de amizade. E, enquanto o país se dilacerava durante a
sangrenta guerra civil, os dois passaram a se conhecer melhor do que se fossem verdadeiros irmãos.

3
UM

Território de Montaria — 1867

A mulher corria, atravessando o pátio entre a cabana e o estábulo, nitidamente alarmada.


Abrindo a porta pesada de madeira, ela entrou, levando consigo o vento gelado que carregava flocos de
neve.
— Cassie! Temos problemas! Vem vindo um cavaleiro em direção a nossa casa. — Ela calou-se
para recuperar o fôlego antes de prosseguir.
— Não reconheci o cavalo… Acho melhor apanhar o seu rifle, menina. A jovem mulher parou
de colocar feno na manjedoura e, deixando cair o forcado, apanhou o rifle apoiado na porta.
— Voltem todas para casa. — Ela virou-se para as duas garotas que a ajudavam. — Jennifer e
Rebecca… Acompanhem sua avó. Mantenha seu rifle carregado e apontado para o forasteiro através da
fresta da porta, mãe.
Cassie esperou até que as três estivessem seguras dentro da cabana antes de sair do estábulo
para aguardar a chegada do forasteiro. Ele descia a colina do norte, em um cavalo negro que se movia
sem esforço aparente através das lufadas de vento e neve.
O cavalheiro lhe pareceu ser uma aparição fantasmagórica, vestido de branco da cabeça aos pés.
Quando ele se aproximou mais, Cassie percebeu que a neve formara uma camada alva e brilhante sobre
o chapéu e o guarda pó do estranho, dando-lhe uma aparência de um ser de algum outro mundo.
Ele não disse uma só palavra até parar o cavalo bem junto de Cassie.
— Bom dia, madame. — Ele tocou polidamente a aba do chapéu.
— Estou procurando por Ethan Montgomery.
Com um olhar rápido, Cassie notou a sela luxuosa e as botas brilhantes e bem cuidadas do
recém chegado. Aquele forasteiro não pertencia à agreste região de Montana! Um homem tão bonito e
fascinante estaria à vontade num belo salão, jogando cartas e flertando com belas mulheres ricamente
vestidas.
— Ele não está aqui.
— Mas já ouviu falar dele?
— Pode ser… Ao notar o rifle mirando o seu coração, ele manteve as mãos imóveis e bem à
vista da mulher. Seria loucura assustá-la com um gesto brusco pois também avistara uma outra arma,
através da porta da cabana, apontada em sua direção. Os habitantes de Montana eram doentiamente
cautelosos e não pretendia ser pego no meio de um fogo cruzado.
— Por acaso, estou perto da propriedade dele?
— Está dentro dela. Disfarçando a surpresa, ele reconheceu que não prestara suficiente atenção
na fala macia e de sotaque nitidamente do sul da Geórgia ou nos caracóis ruivos escapando do enorme
capuz do casaco. Entretanto, seria impossível imaginar que aquela criatura rústica fosse a requintada
beldade de Atlanta de quem tanto ouvira falar,
— Então, você deve ser Cassie… A Sra. Montgomery.
— Exatamente. E quem é o senhor?
— Um amigo de Ethan. Seu marido me escreveu uma carta, pedindo-me que viesse juntar-me
a ele. Meu nome é Quin McAllister.
— Quin… — Sem disfarçar a surpresa e o embaraço, Cassie abaixou, o rifle. — Desculpe-me,
sr. McAllister. Eu não costumo receber amigos de meu marido dessa forma. O senhor deve estar
gelado. Por favor, venha até nossa casa para se aquecer.
Desmontando, ele puxou o cavalo, caminhando para a cabana. A porta se abriu e uma mulher
de meia idade surgiu, com o rifle ainda apontado na sua direção.
— Está tudo bem, mãe. Este homem é um amigo.
A mulher afastou-se da porta e, logo atrás dela, Quin avistou duas garotas abraçadas. A mais
velha, de aproximadamente doze anos, tremia convulsivamente e a caçula, de cinco anos, segurava com
força as mãos da irmã entre as suas. Ela não demonstrava nenhum temor e sim uma ávida curiosidade.

4
— Vocês só podem ser Jen e Becky — declarou Quin, sorrindo. — Becky… Seu pai me contou
que a sua voz é angelical, digna de um coro de igreja. Falou de uma criança e vejo que já é quase uma
mulher. Quanto a Jen… Ele me dizia que ainda era um pingo de gente!
— Como sabe? — perguntou a mais nova, examinando, boquiaberta, a figura máscula do recém
chegado. — Por acaso, é um dos anjos de meu pai?
A avó cruzou os braços e encarou a mãe das meninas.
— Eu não a avisei que era um total absurdo? Em breve, essa menina vai esperar um ser celestial
para ajudá-la com suas tarefas caseiras!
Quin notou o brilho temperamental nos olhos da mulher mais jovem, antes dela se virar de
costas e, cuidadosamente, tirar o casaco e alisar a saia.
— Este cavalheiro é Quin McAllister, mãe. Sr. McAllister, esta é minha mãe, Luella Chalmers.
Decididamente, Quin sabia envolver com seu encanto, que fluía com a espessa doçura do mel,
suavizando suas palavras.
— É um enorme prazer conhecê-la, madame.
O olhar de Luella Chalmers deixava bem claro que ela não partilhava o mesmo sentimento.
— Já conhece minhas filhas, Rebecca e Jennifer. Ele sorriu para a mais velha e piscou para a
caçula.
— Então… — Jen não disfarçava o desapontamento — não é mesmo o nosso anjo da guarda?
— Já me chamaram de muitas coisas em toda a minha vida, mas nunca de anjo, Jen. Na
verdade, alguns me chamariam de dia…
— Rebecca e Jennifer — interrompeu Cassie, rapidamente, — vocês duas ouviram seu pai falar
tão bem do sr. McAllister. Não é ótimo que ele tenha vindo nos visitar?
— Na verdade, eu estou aqui a pedido de seu marido, madame. — Quin aproximou-se mais do
fogo a fim de se aquecer. — Ele me escreveu sobre um grande veio que encontrou em sua mina e
pediu-me para vir em sua ajuda.
As duas mulheres trocaram um olhar que Quin não conseguiu interpretar.
— Esse era… Ou melhor, é um sonho de meu marido, sr. McAllister. Talvez, se tudo houvesse
corrido bem no último verão, ele realmente precisasse de seus serviços. Entretanto, a natureza não
cooperou conosco, enviando-nos uma seca que destruiu a maior parte de nossa colheita. Além disso,
Ethan não pode se dedicar, tanto quanto desejaria, à exploração da mina que, até agora, não revelou
nada de grande valor. Essa carta deve ter sido escrita há muito tempo, quando a situação parecia mais
esperançosa.
Apenas um ligeiro semicerrar dos olhos indicou a alteração dos sentimentos de Quin. Se ele
ficara frustrado, escondia muito bem essa emoção.
— Eu viajo muito. Talvez a carta de Ethan tenha custado a me alcançar. — Quin olhou ao seu
redor. — Onde está ele, madame?
— Ele… — Cassie desviou o olhar. — Meu marido está nas montanhas com o gado.
— No meio dessa nevasca?
— Foi uma mudança de tempo súbita. Agora, creio que ele terá de ficar semanas, talvez até um
mês, nas montanhas, antes de encontrar condições favoráveis para retornar. — Finalmente, ela o
encarou. — Ethan ficará triste por terem se desencontrado.
Quin disfarçou a irritação. As palavras polidas não escondiam o fato de que estava sendo
sumariamente mandado embora! Pouco importava àquela mulher que ele tivesse viajado mais de mil
milhas por um território primitivo e hostil. Ela o tratava como se fosse um visitante ocasional que viera
apenas para cumprimentar um vizinho na região mais agreste e hostil que já percorrera. Mas não a
deixaria vencer essa parada.
— Posso ir até as montanhas procurar Ethan. Talvez o ajude a cuidar do gado.
— Não! — Ela percebeu que falara brusca e precipitadamente demais. — Só quero lhe dizer
que é tolice enfrentar de novo a nevasca, Sr. McAllister. Além disso, não iria muito longe pois a neve
nas montanhas deve estar mais alta do que a cabeça de seu cavalo. Gostaríamos que jantasse conosco e
dormisse em nossa cabana, antes de partir… Amanhã cedo.

5
Antes de partir. Aquela mulher não deixava nada ao acaso. Cassie Montgomery lhe comunicava,
sem qualquer possibilidade de um mal entendido, que lhe ofereceria comida e cama por uma noite
apenas.
— Obrigado, madame. Eu ficarei, mas primeiro irei tratar de meu cavalo.
— Eu também vou! — declarou Jen. Começando a vestir o casaco.
— Não, Jennifer. — Cassie a impediu de continuar e seu tom de voz era baixo mas autoritário.
— Você e Rebecca têm de acabar com as contas de somar antes do jantar.
— Mas…
— O sr. McAllister não terá dificuldade alguma em encontrar o estábulo. Há uma corda que vai
da cabana até lá para orientá-lo, no caso da nevasca aumentar.
Colocando o chapéu, Quin saiu rapidamente da cabana e conduziu seu cavalo para o estábulo.
Depois de acomodá-lo em uma baia vazia e encher a manjedoura de feno, retirou uma garrafa de uísque
de seu alforje e tomou um longo gole.
Encostado à parede, viu a carroça velha, dois cavalos cansados e uma vaca magra. Meia dúzia de
galinhas já se acomodara num poleiro. Certamente, não era a fazenda próspera que esperara encontrar.
— O que haverá de errado por aqui, Cutter?
O cavalo ergueu a cabeça do monte de feno, apenas por um segundo, e voltou a comer.
— Por que a mulher de Ethan parece tão ansiosa por se ver livre de nós, velho amigo? Não que
eu esteja me queixando, entenda! Ficarei muito feliz de me afastar deste primitivo território de
Montana, ainda menos atraente em pleno inverno. E também de partir dessa fazenda rústica e sem o
conforto mais rudimentar. Prefiro mil vezes partir para São Francisco, onde encontrarei uma boa mesa
de jogo, um hotel elegante e todas as belas mulheres que eu quiser para esquentar minha cama.
O cavalo continuava com a cabeça enfiada no monte de feno.
— E… Você pode ficar tranqüilamente comendo, mas eu terei de voltar para aquela cabana
primitiva e enfrentar os olhares glaciais da mulher de Ethan e da sogra dele! — Quin tomou o último
gole e guardou a garrafa de uísque. — Bem, só precisarei agüentar até amanhã… Quando serei expulso.
Então, nós dois voltaremos para a estrada, amigo.
Aquecido pela bebida, Quin abriu a porta do estábulo e chocou-se com o frio, que aumentara
muito. A neve o impedia de avistar a cabana, bastante próxima, e ele teve de usar a corda para
encontrar o caminho de volta.
Ao entrar na cabana, as vozes se calaram abruptamente. Era evidente que estavam discutindo
com muito vigor, mas a sua chegada provocara um silêncio absoluto e ninguém parecia disposto a fitá-
lo nos olhos.
Corada e nitidamente constrangida, Cassie lhe mostrou os cabides ao lado da porta e uma jarra
de porcelana sobre a cômoda.
— Pode pendurar seu casaco e lavar-se, Sr. McAllister. O jantar está pronto.
— Obrigado, madame.
Enquanto Luella enchia os pratos com feijão, Cassie retirou uma forma de biscoitos do forno.
Aromas apetitosos se espalhavam pela cabana e Quin lembrou-se que não comia desde a noite anterior.
Jen correu para sentar-se ao lado do visitante, enquanto Becky acomodou-se diante dele. A mãe
e a avó ocuparam as cabeceiras da mesa.
— Jennifer — disse Cassie para a filha mais nova. — Você pode conduzir nossa prece desta
noite.
Quin espantou-se quando todos se deram as mãos e abaixaram as cabeças. De um lado,
segurava a de Jennifer, pequena e frágil. Do outro, sentia a delicadeza e a calidez da mão de Cassie… E
os calos provocados por trabalho pesado. Aparentemente, essa esguia e diminuta fazendeira tinha
deveres muito mais árduos do que simplesmente fazer biscoitos e café!
Cassie sentiu um inesperado choque quando sua mão foi envolvida pela de Quin. Num
primeiro impulso, pensou em retirá-la, mas seu orgulho e o respeito às convenções sociais não o
permitiam. Pelo canto dos olhos, examinou o homem que segurava seus dedos como se fossem feitos
de porcelana. Apesar do toque delicado, era possível perceber uma força contida e que a surpreendia.
Para sua consternação, encontrou os olhos dele, fitando-a com inesperada intensidade.
Enrubescendo, Cassie abaixou a cabeça.

6
Então, era essa mulher que Ethan descrevera com tantos detalhes e absoluta perfeição! Quin
sempre tivera certeza de que a realidade o decepcionaria mas, ainda que parecesse ser impossível, ela era
muito mais bela do que a figura que criara em sua imaginação.
Os cabelos tinham a cor das folhas de outono, longos e abundantes, formando caracóis suaves
em torno do rosto de um anjo. Os olhos, de um verde exótico, com nuanças quase douradas,
guardavam segredos em suas profundezas. Um vestido já sem forma definida, desbotado e com alguns
cuidadosos remendos, apenas disfarçava a silhueta esguia mas com curvas acentuadas.
Quin imaginou-a vestida de seda e adornada com jóias resplandecentes, descendo a longas
escadas curvas das típicas mansões sulinas para ser a anfitriã perfeita de um elegante jantar de mais de
cem pessoas… Como costumava acontecer antes da guerra.
— Papai do céu… — iniciou Jen, de olhos fechados. Ele continuava a examinar tudo ao seu
redor e viu que o vestido da garotinha fora feito de um velho uniforme de Ethan, da lã cinza dos
confederados. Pelo que pudera julgar até então, a caçula era a mais apegada ao pai e preferia usar suas
roupas às da mãe — … Abençoe a nossa comida e a todos nós reunidos em torno desta mesa. Cuide
especialmente do meu pai, lá fora, no frio…
Cassie ergueu abruptamente a cabeça.
— Eu já lhe disse que seu pai não está passando frio, Jennifer! Está em um lugar quente e
protegido de todos os perigos. — Olhando de relance para Quin, ela mudou ligeiramente as palavras
usadas para a filha. — Ele levou bastante comida e agasalhos suficientes.
— Sim, mamãe. — Jen curvou a cabeça, contrariada, e terminou sua prece. — Abençoe
também o Sr. McAllister, mesmo que ele não seja o nosso anjo da guarda.
Todos resmungaram um amém apressado, incapazes de disfarçar o inexplicável mal estar
provocado por algo que Jennifer dissera e Quin não conseguira captar o sentido.
— Muito obrigado por se lembrar de mim, Jen. — Ele sorriu para a menina e, depois de dar
uma mordida num biscoito, voltou-se para Cassie. — Estão muito bons, madame.
— E a receita mais simples de biscoitos que pode existir, Sr. McAllister — respondeu Cassie,
embaraçada.
— De modo algum! Já cruzei este país inteiro e experimentei todos os tipos possíveis de
biscoitos. Estes são os melhores que já comi.
Luella ergueu a cabeça e o fitou, sem esconder a desconfiança e um certo desafio.
— Que ocupação o leva a viajar pelo país inteiro, senhor? Qual é exatamente o seu trabalho?
— Às vezes, tenho a impressão de que já fiz todos os tipos existentes de trabalho pois era
necessário para sobreviver. Atualmente… Minha ocupação preferida é o jogo de cartas.
A mãe de Cassie engasgou e teve de tomar vários goles de café. Quando recuperou a voz, fitou-
o quase com ódio.
— É… Um jogador, sr. McAllister? Um jogador?
— Sim, madame — respondeu ele, usando seu sorriso mais sedutor para desconcertar aquela
senhora de moral rígida, embora soubesse que seria em vão.
Para disfarçar o mal estar provocado pela reação exagerada de Luella, Cassie se levantou e
colocou mais feijões no prato de Quin. Ele devia estar sentindo muita falta de comida caseira, porque
nunca provara nada mais apetitoso do que aquele ensopado banal, acompanhado por biscoitos bastante
comuns. Só estranhava a ausência de carne. Por que Ethan não as deixara bem abastecidas antes de ir
para as montanhas cuidar do gado?
— O que a sua família acha de sua ocupação, Sr. McAllister? — insistiu Luella.
— A guerra me deixou sem ninguém, madame. Fui o único a sobreviver. Entretanto, meu pai
também gostava de correr riscos. Logicamente, não com as cartas — emendou Quin, com rapidez. —
Ele se arriscava num jogo sem tréguas com a terra, mas minha mãe talvez fosse a mais aventureira de
todos nós pois enfrentou todas as oposições para se casar com um escocês teimoso que os sulistas
acreditavam ser pão duro como todos de sua raça.
Quin comeu até o último grão de feijão em seu prato e reclinou-se a cadeira, aceitando mais
uma caneca de café.
— Devo concluir que seu pai perdeu o jogo com a terra.
— Por que tirou essa conclusão, madame?

7
— Se ele tivesse tanto sucesso quanto suas palavras pareciam insinuar, você estaria vivendo de
uma fabulosa herança em vez de vagar pelo país… Arrancando dinheiro das cartas.
Ele colocou cuidadosamente a caneca de café sobre a mesa, ciente de que todos os olhos
acompanhavam seus movimentos, à espera de uma reação explosiva diante daquela provocação de
Luella.
— Quando retornei ao meu lar, após ter saído de um campo de prisioneiros, a minha fabulosa
herança estava ocupada por aventureiros vindos do norte a fim de lucrar em cima de nossa derrota.
Eles dividiram as terras entre si… E as construções erguidas por meu pai não passavam de um monte
de cinzas e madeiras calcinadas. — Quin virou-se para Cassie, muito pálido. — Agradeço-lhe o
delicioso jantar. Agora, se me der licença, irei fumar um charuto na varanda.
Num gesto impulsivo, Cassie o segurou pelo braço, mas rapidamente o soltou, chocada com
sua ousadia. Não pensara em demonstrar intimidade e sim protegê-lo da hostilidade de sua mãe.
— Não precisa sair para fumar, Sr. McAllister. Acomode-se junto da lareira e fume a vontade.
Levantando-se da mesa, Quin acendeu o charuto junto à lareira e logo o aroma doce do tabaco
se espalhou pela cabana.
— Eu tinha me esquecido como sinto falta do aroma de um charuto — murmurou Cassie,
suspirando. Então, percebendo que se traíra, emendou-se rapidamente. — Embora Ethan esteja fora de
casa há tão poucos dias, parece-me uma eternidade.
Quin não fez nenhum comentário, sentando-se na cadeira de balanço diante da lareira.
Enquanto as duas mulheres lavavam a louça, as meninas se acomodaram sobre o velho tapete aos pés
dele a fim de aproveitar melhor o calor do fogo.
Embora precisasse terminar suas somas, Jen não conseguia afastar os olhos do visitante e, do
outro lado do aposento, Cassie lutava para não fazer o mesmo. Durante o jantar, lembrara-se das
histórias que Ethan contara sobre o amigo. Se a metade fosse verdadeira, Quin McAl¬lister devia ser
um homem com poderes sobrenaturais! Agora, ao vê-lo sentado em sua sala, parecia simplesmente um
aventureiro, muito elegante e bem cuidado, mas sem grandes preocupações altruístas.
— Quanto é dois mais três? — perguntou ela à irmã.
— Trate de descobrir sozinha ou nunca aprenderá a somar.
— Já sei! — Jen contou nos dedos e sorriu. — Seis!
— Você não sabe nada — zombou Becky, com uma expressão de superioridade. — A soma dá
cinco.
Derrotada, Jen recomeçou a contar os dedos.
— Talvez eu possa ajudar — disse Quin, retirando um baralho do bolso.
Dirigindo-se para a mesa, ele colocou três cartas em uma fileira e, logo abaixo, mais duas.
Intrigada, Jen o seguiu e parou ao seu lado.
— Agora, me diga quantas cartas estão sobre a mesa?
— Cinco — murmurou Jen, fascinada com a facilidade com que as contara.
— Quando eu virar as cartas, a soma delas também será cinco.
— Como pode saber? Elas estão viradas para baixo e você não as viu.
— É que eu conheço cada uma delas sem precisar virá-las para saber qual o seu valor.
— Ninguém pode saber isso! — exclamou Jen.
— Quer apostar?
— Sr. McAllister! — A voz de Luella refletia alarme e fúria. — Não permitimos nenhum tipo
de jogatina nesta casa!
Cassie correu para junto da filha e a abraçou, num gesto instintivo de proteção.
— Minha mãe tem razão, Sr. McAllister.
— Peço-lhes que me desculpem.
Notando o brilho malicioso dos olhos de Quin, Cassie se enfureceu. Ele não parecia estar nem
um pouco arrependido e sim extremamente satisfeito com a situação que provocara.
— E se apostássemos boas ações, Jen?
— Como assim? — perguntou a menina, novamente interessada.
— Se você perder, terá de limpar a baia onde ficou meu cavalo amanhã.
— E se você estiver errado?

8
— Pode escolher qual será o meu trabalho.
— Já sei! Irá procurar os ovos para o nosso café da manhã.
— Eu aceito! Só preciso alertá-la sobre a regra principal que rege a vida dos verdadeiros
jogadores. Um cavalheiro sempre cumpre os termos da aposta e paga sua dívida. Combinado?
Ele estendeu a mão para Jen que, após uma breve hesitação, selou o compromisso.
Então, Quin abriu as três cartas da primeira fileira e a soma foi realmente cinco. Depois abriu as
duas logo abaixo revelando que eram um quatro e um ás.
— Viu só? Isso significa que ganhei a aposta, Jen. Terá que acordar mais cedo amanhã, para dar
conta de suas tarefas acumuladas.
Becky, que se mantivera distante e fingindo-se de desinteressada, aproximou-se da mesa.
— Como pode saber quais são as cartas, Sr. McAllister?
— Ah! Um jogador jamais revela seus segredos. — Ele encantou também a mais velha das
meninas com um sorriso sedutor. — Escolha você uma carta.
Quando Becky recuou, nervosa e contrafeita, Jen avançou, puxando uma das cartas abertas em
leque sobre a mesa.
— Não me mostre qual é. Apenas a coloque entre as outras e embaralhe-as novamente.
Depois de muitas tentativas desastradas, tentando imitar a destreza de Quin, Jen devolveu o
baralho a ele.
— É esta? — perguntou ele, escolhendo uma das cartas.
A garotinha negou com um gesto de cabeça. Depois de mais duas tentativas sem sucesso, ele
sorriu, desapontado.
— Devo estar perdendo meu dom, porque nunca errei antes. Talvez até o baralho tenha se
distraído com um rosto bonito. — Ele se aproximou de Cassie e tocou-lhe levemente os cabelos.
Então, abriu a mão e mostrou a carta a Jen. — É esta?
A menina soltou gritos de alegria.
— E essa mesmo! Está vendo, vovó? Mamãe! Como tirou a carta dos cabelos dela, sr.
McAllister?
— Esse é o grande mistério — murmurou ele, perturbado com a imprudência que cometera
por brincadeira.
A maciez sedosa dos cabelos de Cassie o abalara profundamente. Se não soubesse ser uma
impossibilidade absoluta, juraria que suas mãos estavam tremendo. Só não admitia tal descontrole
porque era famoso por ser o jogador que tinha as mãos mais firmes já conhecidas.
— Pode me ensinar a fazer isso, sr. McAllister? — implorou Jen, ansiosa.
— E a mim também? — pediu Becky, com menos ímpeto.
— Não se trata de um truque fácil e eu levei alguns anos para aprendê-lo. — Percebendo o
desaponto das meninas, ele acrescentou — Se ajudarem sua mãe e sua avó com a louça do jantar,
prometo lhes ensinar alguns outros, mais simples.
Becky agarrou a irmã pelo braço, arrastando-a para a cozinha.
— Vamos logo, Jen. Não podemos perder tempo.
Quando as duas terminaram de secar o último prato, correram de volta para junto de Quin.
Cassie acompanhava a cena com uma mescla de fascinação e afeto. Já não se lembrava mais da
última ocasião em que vira suas filhas tão alegres e animadas. Com alguns truques simples, um mero
estranho as convencera a realizar tarefas que odiavam.
Com relutância, ela juntou-se à mãe a fim de ajudá-la a preparar a massa do pão que seria assado
na manhã seguinte. Disfarçadamente, olhava para Quin, ladeado por Jen e Becky, e ouvia as risadas
ecoarem na cabana, provocando mais calor do que o fogo crepitante da lareira.
Momentos depois, afastando-se da mesa onde preparava a massa de pão, Luella se dirigiu às
netas, com severidade.
— Meninas! É hora de dormir.
— Oh, vovó! — protestaram as duas em uníssono. — Só mais um pouquinho! Por favor!
— Vocês me ouviram… — Ela se calou ao sentir que Cassie lhe tocava o braço.
— Apenas mais alguns minutos não fará diferença, mãe: Não as ouço rir desta forma, há anos.

9
— Por causa de jogatina e truques de cartas! — Demonstrando sua desaprovação, Luella
apanhou a cesta de costuras. — Venha enfiar o fio na agulha para mim.
— Como pode ser, vovó? — perguntou Jen, com a inocência da infância. — Mamãe diz que
você avista um gavião tão alto quanto as nuvens e não consegue enfiar a linha no buraco da agulha?
— Jennifer! — censurou Cassie.
— Está tudo bem, filha. — Voltando-se para a neta, Luella explicou-se. — Trata-se de uma das
mazelas da velhice, menina. Se meus braços fossem compridos o bastante para que eu alcançasse o
outro extremo da sala, não me seria difícil enfiar a linha na agulha. E de perto que os contornos ficam
disformes. Mas o Senhor compensou minha perda, dando a Becky visão suficiente para nós duas.
A menina mais velha obedeceu a avó e, desempenhando sua tarefa com toda a rapidez, voltou
para junto de Quin. Ele se divertia, ensinando-lhes truques simples, sempre consciente dos olhares de
Cassie em sua direção.
— Gostaria de tentar? — perguntou Quin, num momento em que percebeu o olhar dela fixo
em suas mãos.
— Nunca sequer toquei uma carta, sr. McAllister. Tenho certeza de que eu seria uma grande
desajeitada.
— Nem que se esforçasse muito conseguiria ser desajeitada, madame. Do outro lado da sala, a
mãe de Cassie ergueu a cabeça abruptamente e Quin voltou a concentrar sua atenção nas meninas.
Entretanto, todos os seus sentidos permaneciam alertas, conscientes de cada movimento da mulher que
cobria a massa de pão com uma toalha úmida. No calor da cabana, os caracóis sedosos formavam um
halo em torno ligeiramente corado. O vestido se colara em seu corpo, definindo as curvas suaves e o
avental marcava a cintura muito fina… Tão fina que ele poderia envolvê-la com as duas mãos.
Realmente, era imperativo que ele partisse na manhã seguinte. Cassie era a mulher de seu único
amigo verdadeiro e seus pensamentos a respeito dela estavam se tornando perigosos demais.

10
DOIS

— Já esteve na Califórnia, Sr. McAllister? — perguntou Becky.


— Sim.
— E como é?
— Um lugar primitivo e sem lei.
Do outro lado do aposento, Cassie acompanhava a conversa, interessada nas palavras daquele
homem que viajara por toda a parte e tinha tanto a contar.
— Alguns vilarejos começam a surgir, formados por pessoas que chegam de todas as partes do
mundo. Os vales dessa região são tão férteis que seus habitantes se vangloriam de produzir melões do
tamanho da cabeça de um homem.
As duas meninas soltavam exclamações de espanto.
— Fale sobre São Francisco — pediu novamente Becky.
— É uma cidade fascinante. O porto está sempre ocupado por uma enorme multidão que se
expressa em uma dúzia de idiomas diferentes. Num mesmo dia, você pode ter sua roupa lavada por um
chinês, a comida preparada por um francês e um terno novo feito por um inglês.
Esquecendo-se dos truques com cartas, as duas meninas o fitavam de olhos arregalados.
— Pretende voltar para lá? — perguntou Jen.
— Talvez.
— Eu gostaria muito de conhecer essa cidade… Algum dia — murmurou Becky, com uma
expressão sonhadora.
— E eu gostaria de conhecer Atlanta — acrescentou Jen.
— Mas já a conhece — disse Quin, gentilmente. — É a cidade onde você nasceu.
— Eu sei. — A menina suspirou, desanimada. — Só que não me lembro de mais nada. Mamãe
conta que havia mansões lindas, com enormes gramados verdes e mais flores do que é possível saber o
nome. Vovó afirma que nada mais disso existe porque tudo foi queimado.
— Eu não quero voltar lá… Nunca mais — declarou Becky, com uma expressão de terror.
— Atlanta renascerá das cinzas — disse Quin, com suave firmeza. — Algum dia, será ainda
mais linda do que já foi. Só é preciso tempo…
— Por falar em tempo… — Apesar de também estar interessada na conversa de Quin, Cassie
levantou-se e chamou as filhas. — É hora de ir para a cama.
Desta vez, as meninas não protestaram. Na verdade, apesar da ex-citação provocada pela
chegada de um visitante, elas dormiam muito cedo e já estavam com os olhos pesados de sono.
As duas olharam para a avó e trocaram um sorriso de conspiradoras. Luella já adormecera, com
a costura nas mãos.
Cassie retirou a peça que a mãe remendava e a acordou. Luella levantou-se da cadeira e, embora
sonolenta, manteve sua postura hostil.
— Onde o Sr. McAllister vai dormir, Cassie?
— No estábulo — apressou-se a dizer ele, percebendo a inquietação da rígida senhora, que não
disfarçou o alívio ao ouvir suas palavras.
— De modo algum — declarou Cassie. — O estábulo é frio demais e virei lhe preparar uma
cama nesta sala, tão logo coloque minhas filhas na cama e ouça suas preces noturnas.
Enquanto a mãe e as filhas se retiravam para um cômodo na parte traseira da cabana, Luella
permaneceu na sala, encarando Quin e mantendo um silêncio carregado de censura. Era evidente que
ela não con¬fiava naquele estranho e ficaria vigiando-o até Cassie retornar.
Vinha do quarto o suave murmurar de preces infantis e o tom doce de vozes que diziam boa
noite. Minutos depois, Cassie retornou, começando a reunir peles e cobertores para a cama de Quin,
sempre acompanhada pelo olhar vigilante da mãe.
— Gostaria de retribuir sua gentileza, Sra. Montgomery.
— Não será necessário. Se quiser mesmo ajudar, coloque uma outra acha na lareira, grande o
suficiente para nos fornecer calor durante toda a noite.

11
— Mas é claro. Quin curvou-se sobre a palha de achas e escolheu a maior. Parada bem perto
dele, Cassie não pode desviar os olhos do movimento dos músculos nas costas e nos ombros largos.
Por algum motivo além de sua compreensão, sentiu um incontrolável desejo de aproximar-se mais dele.
Então, notou o olhar severo da mãe que a fitava fixamente e virou-se de costas, encaminhando-se para
o quarto.
— Muito obrigada, Sr. McAllister. Boa noite.
— Boa noite, madame.
Ele viu a avó entrar no quarto das netas, mas Cassie dirigiu-se para um outro cômodo, mais ao
fundo da cabana. Apesar de estar descido o cobertor que servia de porta, o vulto feminino continuava
visível, iluminado pela chama oscilante do lampião.
Acomodando-se sobre as peles e os cobertores que lhe serviriam de cama, Quin acendeu mais
um charuto e se entregou aos seus pensamentos.
Ethan Montgomery era um homem modesto, sensível e incapaz de se gabar sem motivo. Então,
por que o convidara a participar de algo que descrevia como sendo próspero e lucrativo? Segundo sua
esposa, nunca se arrancara nada de valor daquela mina abandonada.
A esposa de Ethan. Quin franziu a testa diante de mais um enigma. Nunca tivera dúvidas que
seu amigo fosse verdadeiramente apaixonado por Cassie. Então, por que não lhe contara que havia
escrito para ele, pedindo ajuda?
A mãe de Cassie era bem mais fácil de analisar. Luella Chalmers defendia a filha como uma loba
feroz e essa atitude lhe parecia bastante normal visto que Ethan, um marido com todas as qualidade e
também confiável, não estaria em casa por tempo indeterminado.
A pergunta mais intrigante continuava sendo o motivo da carta de Ethan. Aparentemente, não
havia nada que exigisse sua ajuda ou sua cooperação naquela fazenda primitiva e sem recursos.
Quin McAllister sobrevivera porque sempre confiava em seus instintos. E, naquele momento,
eles o avisavam que nada era o que parecia ser!
Cassie virava-se na enorme cama que seu marido encomendara especialmente para ela. Um
móvel sólido e robusto… Como Ethan.
Tocando os travesseiros delicadamente bordados, lembrou-se de quando os fizera, para seu
enxoval. Tudo novo para uma noiva de quinze anos, simbolizando a pureza intocada e criado para a
vida que se iniciaria, como o vestido de gaze branca, flutuante e da fragilidade translúcida de porcelana.
Como a linda casa e as verdes plantações se estendendo a perder de vista pelos melhores cem acres das
terras que o pai de Sthan lhe dera de presente de casamento. Como as esperanças sonhadas para o
futuro antes do país se transformar num rio de sangue.
Ela colocou a mão sobre os olhos, forçando-se a dormir. Após uma jornada de trabalho
esgotante, como sempre eram as suas, devia estar exausta e incapaz de manter os olhos abertos.
Entretanto, os acontecimentos inesperados daquele dia a haviam perturbado a ponto de perder o tão
necessário repouso noturno. Sua mente continuava dominada por um turbilhão de pensamentos
contraditórios.
Por que Quin McAllister viera justamente agora? Quais seriam suas verdadeiras intenções?
Ele afirmara que Ethan lhe enviara uma carta, mas era impossível acreditar. A não ser que seu
marido já soubesse, meses atrás…
Puxando os lençóis até o queixo, Cassie tentou relaxar, sem o menor resultado. A tensão
crescia, quase impedindo-a de respirar. Quando analisava todas as situações trágicas pelas quais passara,
admitia que seu nervosismo tinha motivos válidos, por isso sempre se surpreendia, a cada nova manhã,
com sua capacidade de recomeçar a luta sem tréguas de sua vida difícil.
Ela sentou-se na cama, incapaz de suportar a ansiedade, como acontecia todas as noites. Seus
dias eram uma infindável sucessão de tarefas árduas e exaustivas a ponto de anestesiar sua mente, além
dos perigos sem conta que eram seus companheiros cotidianos naquele local primi¬tivo e agreste.
Então, tinha de enfrentar as noites, sempre intermináveis e povoada por terrores indefinidos
mas incontáveis que a mantinham acordada e tremendo até a primeira luz da madrugada.
Cassie levantou-se da cama e cobrindo-se com um xale, afastou a cortina que servia de porta
para seu quarto. Durante alguns instantes, observou a forma coberta por peles e cobertores, no canto

12
sala, para se certificar de que o visitante estava realmente adormecido. Ouvindo a respiração pausada
que indicava sono profundo, atravessou o aposento e saiu da cabana.
A tempestade de neve terminara, deixando o mundo coberto por um pesado manto branco e,
como era de se esperar, o frio aumentara muito. Suspirando, Cassie olhou para o céu onde a lua, como
um crescente de prata, brilhava de encontro ao céu de veludo negro.
— Parece tão perto que temos a impressão de poder tocá-la, não acha?
Alarmada, Cassie virou-se para trás.
— Sr. McAllister… Pensei que estivesse dormindo.
— Peço-lhe perdão pois não pretendia assustá-la. Senti que a tempestade tinha terminado e quis
ver a altura da neve.
Quin não pretendia explicar que evitava, ao máximo, ceder ao sono. Quando dormia, todos os
demônios do passado vinham atormentá-lo e, enquanto permanecesse acordado, conseguiria mantê-los
à distância.
Ela o viu pegar um charuto e a chama do fósforo brilhou por um momento na escuridão,
iluminando os olhos de Quin, escuros e misteriosos.
— Imagino que tenha perdido o sono, pensando em seu marido isolado nas montanhas.
— Sim… É claro.
— Talvez eu devesse permanecer até a volta de Ethan.
— Não seria justo atrapalhar a sua vida por nossa causa — apressou-se a dizer ela, alarmada.
— Eu não tenho ninguém à minha espera, madame. O meu tempo me pertence por completo.
Ele sorriu e Cassie sentiu ainda mais frio ao perceber, com maior nitidez o quanto aquele
homem era perigoso. Apesar da expressão quase afetuosa, ele parecia um predador que acuara sua
presa.
Quin não tirava os olhos dela, como se tentasse invadir sua mente e ler seus pensamentos.
— Acho melhor eu entrar — balbuciou ela, pressentindo um perigo indefinido.
Cassie já estava chegando à porta quando Quin a segurou pelo braço.
— Ainda não.
Perturbada com o calor que emanava da mão em seu braço, ela parou, mas não teve coragem de
fitá-lo nos olhos.
— E muito tarde, Sr. McAllister.
— Sei disso, madame. Entretanto, preciso lhe fazer umas perguntas.
— Deixe para amanhã.
Ela deu um passo e sentiu a pressão em seu braço aumentar. Sem perceber como acontecera,
estava de frente para Quinn, presa pela força misteriosa dos olhos escuros que a fitavam com uma
intensidade assustadora. Ele já não sorria mais.
— Uma das características essenciais para um jogador que pretende ter sucesso absoluto, é a sua
perícia para decifrar o que se passa na mente de seus oponentes. Por acaso, sou um dos melhores em
minha profissão porque possuo esse dom. — O tom de voz dele era de uma impessoalidade
enganadora. — Por ser assim, sinto-me profundamente intrigado, madame.
— Intrigado, Sr. McAllister? E por que motivo?
— Pelo que leio em seus olhos.
— Não tenho a menor idéia do que queira dizer com isso. O que poderia ter condições de ler
em meus olhos?
— Mentiras, madame. Uma sucessão de inverdades.
Ela tentou se livrar das mãos dele e, ao fracassar, assumiu uma postura de rígida indignação que
colocaria em seu devido lugar a maioria dos homens. Mas, Cassie devia ter previsto que Quin
McAllister pertencia a uma minoria.
Ele permanecia imóvel, fitando-a com o mesmo olhar frio e desafiador.
— Se meu marido estivesse aqui, exigiria que me pedisse imediatamente desculpas, senhor. —
Ela também sabia ser fria como Quin.
— Não me resta a menor dúvida que Ethan agiria assim, madame. — Quin notou o brilho
combativo nos olhos de Cassie e sentiu uma inesperada admiração pela mulher que o enfrentava. —

13
Entretanto, ele não se encontra aqui e é precisamente por esse motivo que estamos tendo esta
discussão.
— Eu já lhe expliquei uma vez. Ethan está…
Quin colocou o dedo sobre os lábios de Cassie a fim de silenciá-la e, imediatamente, percebeu
que cometera um grave erro. A maciez daquela boca delicada e, ao mesmo tempo sensual, despertou
uma sensação intensa demais para um gesto tão banal.
— Desculpe-me, Sra. Montgomery. — Cerrando o punho para lutar contra a tentação de tocá-
la novamente, Quin falou com mais aspereza do que pretendia. — Não tenho o direito de aceitar a sua
hospitalidade e depois questionar a sua palavra. Mas eu gostaria de saber…
Ambos se afastaram ao ouvir um tropel de cavalos vindo em direção à cabana.
— É Ethan? — perguntou Quin.
Ela balançou a cabeça num gesto de negação e apanhou o rifle apoiado à porta.
— Como pode ter certeza de que não é ele?
— Aceite a minha palavra, Sr. McAllister. Não é Ethan.
Antes que ele pudesse insistir numa explicação, três cavaleiros se tornaram visíveis em contraste
com a alvura da neve. Usavam chapéus de abas largas e empunhavam rifles.
Instintivamente, Quin sacou a pistola e empurrou Cassie para trás, protegendo-a com seu
corpo.
— É você, Ethan Montgomery? — perguntou uma voz na escuridão da noite.
— Meu marido não está em casa — respondeu Cassie, saindo de trás de Quin, com o rifle
apontado para a silhueta mais próxima da cabana.
O líder dos três, montado em um possante garanhão baio, chegou quase até a varanda da
cabana.
— Eu já imaginava que iria receber essa mesma resposta. Onde está ele agora?
— A nevasca o surpreendeu quando estava nas montanhas.
— Pois eu não acredito. Embora as suas desculpas nunca sejam iguais, a mensagem permanece
sendo invariavelmente a mesma. Parece que, por uma questão de horas ou poucos dias, sempre perco a
oportunidade de me encontrar com seu marido! Tenho certeza de que não se importará se eu entrar em
sua cabana para comprovar suas palavras… Vendo com meus próprios olhos, Sra. Montgomery.
A voz dele, imitando de forma exagerada e proposital o sotaque do sul do país, era
decididamente insultante.
O recém chegado estava descendo do cavalo quando Cassie ergueu o rifle e apontou em sua
direção. Bem perto dela, Quin mal conteve a surpresa diante da rápida transformação. Aquela dama de
fala macia e gestos elegantes escondia uma outra mulher que não aceitava desaforos ou intimidações.
— Eu me importarei e muito, Sr. Stoner. Minha mãe e minhas filhas estão dormindo na
segurança do lar. Não admito que ninguém as perturbe.
O rosto de Stoner se transformou em uma máscara de fúria.
— Não me ameace, Sra. Montgomery. Só o faça se realmente pretende cumprir o que diz.
— Esta senhora tem todas as intenções de cumprir sua ameaça — disse Quin, em um tom de
voz baixo mas que denunciava o quanto ele podia ser perigoso. — E eu também.
Quin deu dois passos a frente e, engatilhando, apontou a pistola para Stoner.
— E quem é você? — perguntou Stoner, voltando a montar rapidamente.
— Meu nome é Quin McAllister. — Embora ele continuasse a falar muito baixo, os três
homens ficaram mais alertas diante daquele estranho que tinha a aparência e o comportamento de
alguém acostumado a lutar e vencer. — Sou amigo de Ethan.
— E eu sou Cyrus Stoner, McAllister. O dono das terras de toda a região.
— Menos desta — declarou Cassie, com firmeza.
— Ainda não, mas logo o serei. O seu marido não pode continuar recusando minhas ofertas
para sempre. — Cyrus deu uma gargalhada cínica. — Está de passagem por aqui, McAllister? Ou tem
intenções de ficar?
— Não me decidi ainda. A minha presença o afeta de alguma forma?
— De modo algum. — Stoner voltou a rir. — O único afetado seria você, McAllister. Sendo
mais claro, a sua saúde poderia ser… Radicalmente alterada para pior.

14
Stoner deu uma gargalhada ainda mais insultante, divertindo-se com sua piada macabra, e os
outros dois homens o acompanharam, rindo alto.
Após poucos segundos, sua voz perdera qualquer traço de humor ao se dirigir a Cassie.
— Diga a seu marido que estou farto dessa situação grotesca. Só um homem covarde se refugia
atrás das saias de uma mulher. Quando ele voltar das montanhas ou seja lá onde quer que tenha se
escondido, espero que demonstre sua masculinidade duvidosa indo me procurar para discutirmos o
assunto das terras.
— O meu marido já ouviu a sua proposta, Sr. Stoner. Ele não pretende vender nossas terras.
— A senhora pode até se ofender, se quiser, mas quero ouvir a resposta dele cara a cara.
Quando eu lhe apresentar minha última oferta, seu marido a aceitará com uma rapidez…
Surpreendente!
Novamente os outros dois homens caíram na gargalhada.
— Não existe oferta alguma que possa convencê-lo a vender.
— Eu não teria tanta certeza disso, senhora. E, como já lhe disse, só aceitarei uma resposta
vinda dos próprios lábios dele.
Tocando displicentemente a aba do chapéu, Stoner soltou as rédeas de seu garanhão e se
afastou, seguido por seus dois companheiros, para logo desaparecer em meio a uma nuvem de neve
deslocada pelos cascos dos cavalos.
Cassie e Quin permaneceram imóveis até os três sumirem atrás da colina. Finalmente abaixando
o rifle, ela suspirou.
— Muito obrigada, Sr. McAllister. Sinto que tenha sido forçado a participar deste episódio
desagradável.
Inexplicavelmente, ele se revoltou ao ver as mãos frágeis daquela mulher empunhando um rifle
quando deviam estar segurando um delicado leque de plumas ou uma taça de champanhe feita do mais
precioso cristal.
Incapaz de conter ou sequer entender seu impulso, Quin tocou os cabelos ruivos de Cassie,
sentindo os fios deslizarem como seda entre seus dedos. Uma sensação de intensa sensualidade o
envolveu e, ao mesmo tempo, provocou-lhe um temor indefinido.
— Ethan nunca lhe falou sobre essa minha mania? Nunca resisto à tentação de participar de
uma boa briga.
Os dedos de Quin não soltavam seus cabelos e Cassie lutou para ignorar uma estranha sensação
de fraqueza.
— Mas não é sua luta, Sr. McAllister.
Embora ele continuasse sorrindo, a voz de Quin ficou mais dura.
— Perdi a conta das lutas em que me envolvi e não eram minhas.
— Ethan me contou. Por que faz isso?
— Talvez seja meu temperamento de jogador. — Ao encontrar os olhos de Cassie, ele sentiu o
desejo crescer e, sem notar, sua fala adquiriu um tom acariciante. — Gosto de equilibrar os pratos da
balança.
— Precisa comparar tudo aos jogos de cartas, Sr. McAllister? Cassie falara quase com rudeza, a
fim de esconder as emoções que se apossavam dela, mas Quin ignorou sua hostilidade repentina,
continuando a brincar com a sedosa mecha ruiva, sempre fitando-a nos olhos.
— Toda a nossa existência não passa de um jogo, madame. E, de acordo com minha visão de
vida, todos nós temos de jogar com as cartas que recebemos… Sejam elas boas ou más.
Mesmo sabendo que precisava, a qualquer custo, fugir da proximidade daquele homem
perigoso, Cassie não tinha forças para se afastar.
— Então, também acredita que o resultado final é apenas uma questão de sorte… Seja ela boa
ou má?
— Não, madame. — Ele desceu o olhar para os lábios tentadoramente entreabertos e mal
resistiu à tentação de beijá-los. — A vida, como o jogo de cartas, depende de muito mais do que apenas
da sorte. E preciso talento para vencer.

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Embora não tivesse condições de explicar, Cassie pressentiu o desejo de Quin e passou a língua
sobre os lábios secos. O que faria se ele a beijasse? Mesmo apavorada diante dessa possibilidade, não
recuou.
— E o senhor sempre vence?
— Infelizmente, nem sempre, madame. — Com muito esforço, ele soltou os cabelos de Cassie
e se afastou. — Mas costumo entrar em qualquer jogo com toda a intenção de vencer.
Finalmente livre da fraqueza que se apoderara dela, Cassie caminhou para a porta.
— Boa noite, Sr. McAllister.
— Boa noite, madame.
Ele esperou que ela entrasse na cabana e acendeu um novo charuto, notando que suas mãos
tremiam.
Maldita carta que o arrastara através do país, arrancando-o das mesas de jogo, sempre lucrativas
e, seguramente, muito menos perigosas, conduzindo-o até esse lugar primitivo e abandonado pelos
deuses! Maldito Ethan por não se encontrar a sua espera a fim de lhe explicar que diabos estava
acontecendo e, acima de tudo, por ter uma mulher tão tentadora!
Cassie Montgomery… Certamente, ela não era a primeira mulher que desejara com esse ardor
quase incontrolável. Entretanto, fora a única capaz de privá-lo da capacidade de raciocinar e de toldar
sua mente. Não tinha condições de se lembrar de uma só palavra que lhe dissera!
Soltando uma baforada, Quin sentiu-se forçado a admitir que também a admirava. Cassie
despertara uma torrente de emoções, sem deixar de ser uma perfeita dama. E ainda conseguira escapar
de todas* as suas perguntas, deixando-o sem respostas.
Ela continuava sendo um mistério absoluto.

16
TRÊS

Os sons matinais despertaram Quin, que lutava para não acordar embora seu sono tivesse sido,
como de costume, atormentado e de curta duração. Ouviu passos leves, farfalhar de saias e o ruído de
água sendo colocada em uma bacia.
Então, os barulhos que indicavam o preparo do café da manhã o despertaram por completo.
Cassie devia estar preparando seus deliciosos biscoitos.
— Bom dia, madame — disse ele, sentando-se na cama improvisada ao lado da cozinha.
— Bom dia, Sr. McAllister. Espero que tenha dormido bem.
Ela esperava que sua voz não revelasse a tensão interior. Embora tentasse evitar, não conseguira
afastar os olhos do homem que dormia, ainda mais atraente com os cabelos em desordem e a barba por
fazer.
— Dormi muito bem, obrigado.
A sua resposta era uma grande mentira pois, como sempre, se revirara na cama até o raiar da
madrugada, tentando entender aquela situação enigmática.
Do outro lado do cômodo, Cassie o viu levantar-se da cama sem camisa e com uma calça justa
que moldava suas coxas musculosas. Fascinada, examinou cada detalhe daquele corpo másculo e de
proporções perfeitas como as de uma estátua grega, enquanto Quin se lavava e barbeava.
Logicamente, Cassie acabou se censurando por ter pensamentos proibidos, uma vez que Quin
era quase um irmão de Ethan, um amigo que lhe salvara a vida durante a guerra. Não devia dar tanta
liberdade às suas fantasias, embora fosse obrigada a admitir que jamais se sentira tão atraída por um
homem em toda a sua vida.
Percebendo que Quin terminara e a encarava com um sorriso enigmático, Cassie se concentrou
em terminar suas tarefas.
— O café da manhã ainda vai demorar um pouco. Preciso cuidar de outras tarefas antes de
podermos comer.
— Eu a ajudarei.
Ela examinou a imaculada camisa branca, com abotoaduras elegantes, e as botas negras bem
engraxadas, com um olhar zombeteiro.
— Não está vestido adequadamente para nenhum tipo de trabalho, Sr. McAllister. Em especial
para limpar estábulos ou ordenhar vacas!
Mais uma vez, ele deu o sorriso sedutor, que consistia num ligeiro curvar dos lábios.
— Fui criado numa fazenda e nenhuma dessas tarefas me assusta, madame. Se me emprestar
um casaco de Ethan…
— Sim, é claro — murmurou ela, disfarçando a surpresa. Alguns minutos depois, os dois saíram
da cabana, bem agasalhados, mas Cassie parou na varanda, examinando o horizonte.
— Vamos ter mais uma tempestade de neve — declarou ela, desanimada.
Quin também sentira o frio cortante do vento vindo do norte e vira as nuvens pesadas no céu
cinzento.
— Foi muito difícil para uma dama sulina acostumar-se ao frio excessivo e tanta neve?
— Custou-me um certo esforço… E algum tempo.
Ele não se enganou com a simplicidade das palavras, sabendo que ocultavam uma intensa
emoção.
Os dois caminharam até o estábulo e, enquanto Quin colocava feno e água para os animais,
Cassie começou a ordenhar a única vaca da fazenda.
Parando por um instante, Quin a observou, entretida no trabalho. O vestido, gasto e descorado,
não chegava a cobrir as botas rústicas e pesadas de Cassie, mas o casaco de couro, de corte masculino,
apenas ressaltava a suavidade de suas curvas femininas. E os cabelos… Uma profusão desordenada de
cachos de um ruivo, quase cintilante, caiam-lhe pelas costas. Ele cerrou os punhos, lutando contra o
desejo de mergulhar as mãos nas mechas sedosas.

17
Seu devaneio foi interrompido pela chegada de Jen, que viera ajudar a mãe e Quin saiu do
estábulo, disposto a rachar lenha a fim de deixar um bom estoque para as mulheres usarem após sua
partida.
— Onde Ethan guarda a lenha de reserva? — perguntou ele, intrigado por não ver ao menos
uma pilha de achas, que deveria ter sido acumulada pelo homem responsável por tantas mulheres.
— Ele costumava colocá-las ao lado da cabana, mas não chegou a
— ela hesitou, tentando desculpar a omissão do marido. — Ocupou-se com a mina e… Não
teve tempo de nos deixar uma reserva de lenha.
Quin cerrou os lábios para se impedir de fazer qualquer comentário. Ethan teria deixado a
ilusão de um tesouro anestesiar sua mente? Não sabia que lenha significava calor e sobrevivência
naquela região hostil aos seres humanos?
Tirando o casaco, Quin se dedicou a rachar lenha com uma fúria excessiva, enquanto pensava
em Ethan Montgomery. O que teria acontecido para mudar tanto o seu velho amigo? Por que um
homem trabalhador e responsável como ele permitira que sua fazenda decaísse dessa forma? Se não se
interessava mais pela propriedade, por que não a vendia a Cyrus Stoner?
A única resposta possível tinha de ser a mina. E, no entanto, Cassie lhe afirmara que Ethan
nunca retirara uma só pepita de real valor.
Ou será que Ethan encontrara o tesouro sonhado e nada contara à esposa?
Movendo o machado com ainda maior violência, Quin avisou a si mesmo que teria de repetir
incessantemente o mesmo conceito.
Cassie era a esposa de Ethan, o seu melhor amigo! Não podia permitir sequer um pensamento
de desejo por ela. Subitamente, seu humor ficou tão sóbrio e carregado quanto o céu coberto de
nuvens quase negras.
Cassie já havia retornado à cabana e, trabalhando junto da mãe e da filha mais velha, tinha
pensamentos muito semelhantes aos de Quin. Felizmente, ele partiria em poucas horas e deixaria de ser
uma constante tentação.
Quando a pequena Jen abriu a porta, trazendo os ovos que recolhera, Cassie avistou Quin e se
imobilizou, fascinada. Os movimentos fluidos daquele homem alto e forte tinham uma graça e uma
sinuosidade inesperadas. Então, percebeu que a mãe a encarava e desviou o olhar.
— Avise o Sr. McAllister que o café da manhã está pronto, Jennifer.
Momentos depois, quando Quin entrou na cabana, ele se forçou a manter os olhos fixos no
fogão. Entretanto, sentia intensamente a presença dele na sala. Quando todos se sentaram à mesa,
notou os cabelos muito negros e despenteados pelo vento e admitiu que nunca vira tão lindos, Com
toda a certeza, todas as mulheres, nos salões onde ele jogava, queriam tocá-los!
Para sua contrariedade, imaginou-as com vestidos luxuosos e jóias cintilantes, afastando a
mecha caída na testa de Quin e depois colocando os braços em torno dele, oferecendo os lábios para
beijos apaixonados.
— Cassie! — exclamou Luella, com severidade. — Está deixando o feijão queimar!
Sobressaltada, ela puxou a panela para longe do fogo e soltou-a imediatamente, dando um grito.
— Com efeito, menina! Onde você está com a cabeça esta manhã? Empurrando a filha, Luella
enrolou a mão em um pano e tirou a panela do fogo.
— É melhor que eu veja a queimadura, madame — disse Quin, aproximando-se dela.
— Não há necessidade. — Cassie escondeu a mão atrás das costas. — Foi só uma queimadura
leve.
Ignorando a recusa dela, Quin insistiu até ser atendido.
— É bem mais do que uma queimadura leve, madame. Jen! Tenho uma pomada em minha
mochila na sela. Poderia ir buscar para mim?
— E claro!
Sempre cheia de energia, a pequena Jen correu para fora da cabana e retornou, segundos depois,
trazendo a mochila. Sem que fosse preciso pedir, abriu-a e retirou uma garrafa de uísque e a pomada.
— Qual dos dois quer, Sr. McAllister?

18
— Uísque? — gritou Luella, horrorizada. — Sr. McAllister! Sabe que não permitimos nenhuma
bebida alcoólica nesta casa! Somos pessoas decentes e seguidoras de todos os preceitos de nosso
Senhor!
— Sim, madame. — Então, ele virou-se para Cassie. — A pomada provocará uma certa dor e
talvez aceite tomar um gole de meu uísque… Para fins unicamente medicinais, é claro.
— Eu dispenso a sua coragem artificial, Sr. McAllister. — Ela endireitou os ombros, altiva. —
Pode passar a sua pomada.
Conduzindo-a até uma cadeira diante da lareira, Quin começou a espalhar a pegajosa pomada
nas mãos de Cassie. Apesar de uma ligeira dor, ela não emitiu um único som, mais perturbada com a
proximidade daquele homem fascinante do que com qualquer desconforto físico.
As mãos dele eram tão grandes e, surpreendentemente, tão gentis!
Quin também se afetava com a proximidade excessiva. Sentiu o aroma leve e sugestivo de
sabonete e água de rosas, viu o início da curva dos seios revelada pelo modesto decote do vestido e
precisou controlar o impulso de beijá-la diante de todas as mulheres daquela família!
— Onde aprendeu a fazer curativos? — perguntou ela, tentando ame¬nizar a tensão crescente
entre os dois.
— Foi durante a guerra, madame. Nossos soldados se queimavam continuamente com o fogo
dos canhões.
— Por acaso, é médico?
— Oh, não. Apenas um homem que as circunstâncias ensinaram a fazer de tudo.
Enquanto ele terminava o curativo, Cassie notou o tecido macio da elegante camisa branca, as
abotoaduras de ouro e jade, lembrando-se das roupas requintadas e finas de uma outra época e de um
outro lugar. Num passado que lhe parecia distante demais e pertencente a um mundo desaparecido, ela
também tivera tudo o que havia de melhor…
— Deixarei a pomada com você. — Ele envolveu a mão de Cassie com um fino lenço de linho,
com um monograma bordado. — Se a passar diariamente, por uma semana, não ficará com nenhuma
cicatriz.
— Muito agradecida, Sr. McAllister. Agora, vamos tomar o café da manhã. Acho que
exageramos a importância de um ferimento tão banal.
Todos se sentaram à mesa e Cassie olhou para a filha mais velha.
— Conduza a nossa prece desta manhã, Rebecca.
— Meu Deus, abençoe esta comida e todos que dela partilharão. Abençoe principalmente meu
pai… — a garota se calou, nitidamente desorientada e depois completou, quase gaguejando — e
proteja o Sr. McAllister em sua viagem.
— Amém.
Rapidamente, Luella serviu todos de feijão, enquanto Rebecca retirava o café do fogo.
— O feijão está realmente queimado — comentou Luella, fazendo uma careta.
— Acho que estão ótimos — comentou Quin, disfarçando um sorriso. — Não concorda
comigo, Jen?
A menina se surpreendeu com o comentário de Quin mas, entrando na brincadeira, elogiou a
comida, divertindo-se com o humor crescente da mãe.
— Concordo plenamente, senhor. A minha mãe é a melhor cozinheira do mundo.
— Tem toda a razão, Jen. Se quiser comer feijões realmente queimados, viaje comigo e
experimente a comida que preparo no fim da jornada diária.
As duas meninas riram da brincadeira de Quin, mas Luella o encarou, desafiadora.
— Pensei que soubesse fazer de tudo, Sr. McAllister.
— Quase tudo.
— Entre seus incontáveis talentos, não inclui a culinária?
— Bem… Tenho de admitir que sou capaz de cozinhar com uma certa perícia. Entretanto,
depois de provar os biscoitos preparados por sua filha, vou me ressentir muito quando voltar a comer
minha própria comida.
— Então coma mais um biscoito — insistiu Jen, percebendo que a fisionomia da mãe se
transformara ao ouvir os elogios de Quin.

19
— Não, obrigado. Três é mais do que suficiente. — Ele tomou o último gole do café. — Além
disso, acho de devo partir.
Luella deu um suspiro de alívio, ouvido por todos na sala.
— Não pode nos ensinar só mais um truque com cartas? — implorou Jen. — Por favor?
Ignorando a expressão enfurecida de Luella, ele retirou o baralho dó bolso.
— Está bem…
Tirando os pratos da mesa, Cassie se maravilhava com a facilidade daquele homem, um
estranho em sua família, em se entender com sua filha mais nova.
Até Becky, inicialmente relutante, se aproximara dele, rindo com o mesmo entusiasmo da irmã
caçula, sempre mais comunicativa e cheia de vida. Quin brincava com as cartas, fazendo-as desaparecer
para surgir nos lugares mais improváveis e cômicos.
Parada junto da pia, ao lado da mãe, Cassie sentiu seu coração se aquecer com o som, nos
últimos tempos tão raros, do riso alegre das filhas. Por algumas horas, breves mas preciosas, elas
haviam se esquecido de sua vida sem divertimentos ou as mais rudimentares amenidades. Por essa
dádiva sem preço, seria eternamente grata a Quin McAllister.
Finalmente, as duas terminaram de lavar a louça e Luella, sempre hostil, avistou o livro que Jen
retirara da mochila de Quin.
— Gosta de Shakespeare, Sr. McAllister?
— Sim, madame. Durante minhas longas viagens, as palavras dele me confortam.
— Eu sempre acreditei que as palavras da sagrada Bíblia fossem mais sábias e reconfortantes.
— Muitos concordariam com a senhora.
Estendo a mão, Quin esperou que Luella lhe devolvesse o livro e Cassie percebeu uma emoção
intensa mas indecifrável no rosto dele.
— É mesmo hora de partir — disse ele, novamente exibindo a costumeira expressão
irreverente. — Meu cavalo já está selado e me esperando há quase uma hora.
— Ainda não! — lamentou-se Jen, quase chorando. — Só mais um truque, por favor!
— Tive uma ótima idéia, Jen. — Quin colocou o baralho nas mãos da menina. — Vou lhe dar
as minhas cartas. Você e sua irmã podem se exercitar todas as noites, mas quero a promessa de que
completarão todas as suas lições e ajudarão sua mãe com as tarefas caseiras… Antes de praticar os
meus truques.
— De modo algum! — declarou Luella, rispidamente. Sabe a minha opinião sobre jogos de
azar, Sr. McAllister! Eu não…
Cassie colocou a mão sobre o ombro da mãe que, depois de fitá-la com indisfarçável
contrariedade, decidiu se calar.
— Eu lhe agradeço muito a intenção, Sr. McAllister. — A voz de Cassie era muito suave e
doce. — É muita gentileza sua, mas sei que precisará de suas cartas.
— Não se preocupe com isso, madame. Tenho um outro baralho na mochila.
Diante do olhar de Jen, que quase implorava pelo consentimento da mãe, Cassie cedeu.
— Então… Não posso negar esse prazer a minha filha. Permitirei que ela aceite seu presente.
— Oh! Muito obrigada, mamãe! — A garotinha pulava de alegria. — E muito, muito obrigada,
Sr. McAllister!
Sorrindo, ele abraçou Jen e despenteou com delicadeza os cachos ruivos de Becky, para então
vestir sua ampla capa de couro que ficara no cabide atrás de porta, desde sua chegada àquela casa no dia
anterior. Por que lhe parecia ter permanecido muito mais tempo no seio daquela família?
— Antes de partir… Preciso agradecer a todas vocês pela hospitalidade com que me receberam.
Num gesto inesperado e rápido, ele agarrou a mão de Luella e, sentindo que ela se enrijecia ao
seu toque, mal controlou um sorriso.
— Muito obrigado, madame. A senhora pode se orgulhar da filha e das netas que possui. —
Soltando a mão de Luella, ele aproximou-se de Cassie — Sra. Montgomery, agradeço-lhe por ter feito
um viajante cansado se sentir muito bem vindo.
No momento de se afastarem para nunca mais se ver, ambos aceitaram a intensa atração sexual
entre eles e, através de um único olhar, admitiram sua consciência do fato.

20
Cassie enrubesceu e, sentindo que a mãe e as filhas a fitavam com excessiva atenção, fugiu do
olhar de Quin.
— Tenha uma boa viagem, Sr. McAllister. Deus o acompanhe. Soltando a mão dela, ele abraçou
Jen e Becky, como se fosse o ato mais natural do mundo envolvê-las em seus braços para um
derradeiro adeus.
Quando Quin abriu a porta, a cabana foi invadida por uma lufada de vento gelado. A
tempestade recomeçara e a neve espessa formava uma cortina opaca que parecia descer dos céus e
diluir a paisagem numa imensidão branca.
Apesar do frio intenso, Cassie, Luella e as duas meninas permaneceram na varanda, vendo Quin
saltar sobre a sela. Ele tocou a aba do chapéu, numa despedida final e, em questão de segundos,
desapareceu num turbilhão de neve e vento.
Por alguns minutos, que pareceram mais longos do que horas, nenhuma delas se moveu.
Também não emitiram um único som. Então, entraram na cabana e Cassie fechou a porta, cortando a
comunicação com o mundo exterior.
Olhando ao seu redor, ela achou que aquela cabana, sempre considerada um lar, ficara menor,
mais escura e inexplicavelmente desoladora. Sentiu como toda a luz e o calor tivessem se desvanecido,
deixando um enorme vazio em sua casa… E também em suas vidas.

21
QUATRO

Após percorrer o tapete alvo de neve intocada por alguns metros, Quin notou os rastros de
algumas corças, conduzidas por um macho bastante grande, a julgar pelo tamanho de seus cascos.
Ele virou-se para trás, avistando ainda o contorno da cabana, através da cortina de neve, e
hesitou. Sabia que precisava chegar ao vilarejo mais próximo ao anoitecer, mas a tentação de caçar um
majestoso veado era difícil de resistir. Cassie e as crianças não tinham sequer uma peça de carne salgada
de reserva. Afinal, não devia retribuir a hospitalidade delas com um gesto que não lhe custaria muito e
as alimentaria melhor até o retorno de Ethan?
— Vamos caçar, Cutter! — exclamou ele, dirigindo o cavalo para o bosque, no lado oeste da
colina que ficava em frente à cabana.
As pistas eram fáceis de seguir e, em menos tempo do que previra, Quin encontrou os animais
entre um grupo de pinheiros, onde havia se refugiado para se proteger da tempestade de neve. Sabendo
que um tiro de seu rifle assustaria toda a manada, dificultando sua precisão de pontaria, retirou o
punhal da bota e a atirou, mirando o pescoço do macho.
O enorme animal cambaleou e desabou sobre a neve. Quin aproximou-se, provocando a fuga
das corças, e amarrou sua presa, prendendo-a a sela.
— Sinto muito, Cutter. Você já tem peso demais para carregar mas…
Trata-se de uma boa ação.
O tempo que ele perderia retirando a pele e as entranhas do veado o atrasaria muitas horas,
impedindo-o de chegar ao vilarejo antes do anoitecer. A idéia de acampar ao ar livre debaixo de uma
tempestade de neve não o agradava nem um pouco mas, pelo menos, a família Montgomery teria carne
para se alimentar e dar-lhes mais forças, até o retorno de Ethan.
— Espero que a satisfação por ter feito uma boa ação me aqueça, quando eu estiver me
sentindo congelado no meu saco de dormir afundado na neve!
Quin ergueu a cabeça, alerta. Teria ouvido um som? Se fosse assim, o ruído se perdera, abafado
por sua própria voz, conversando com Cutter. Ele caminhou alguns passos, em silêncio, tentando ouvir
algo, sem qualquer resultado positivo. Certamente, fora o vento assobiando entre os galhos dos
pinheiros.
Depois de retomar o caminho de volta até onde largara seu cavalo, ouviu novamente o som,
agora mais alto. Não podia ser o vento pois se parecia com o choro de uma criança… Ou de uma
mulher.
Deixando Cutter junto de um bosque de pinheiros, avançou, sem fazer ruído algum na direção
do som e, ao alcançar a fímbria da floresta, avistou Cassie Montgomery ajoelhada, ao lado de um monte
de neve um pouco maior do que os demais.
Ele praguejou em voz baixa. Cassie teria caído e se machucado? Por que se aventurara até ali em
plena nevasca? Aflito, apressou-se a socorrê-la da forma que pudesse. Então, já bem próximo,
conseguiu ouvir a voz doce falando com alguém.
— … Fiquei com medo confiar nele e confessar a verdade. Não ouso confiar em ninguém. Oh,
Ethan! O que eu devo fazer?
Ethan? Confuso, Quin se imobilizou e olhou melhor para o local onde Cassie se ajoelhara e
compreendeu. O que julgara ser apenas um monte um pouco maior de neve, era uma pequena elevação
do terreno, sobre a qual havia uma cruz rudimentar e quase invisível.

A realidade o atingiu com o impacto de uma agressão física. Ali, na fímbria da floresta,
escondido dos olhares de todos, menos das criaturas silvestres, Cassie Montgomery se ajoelhava diante
do túmulo do marido.
Subitamente percebendo uma silhueta masculina saindo do meio da cortina de neve, Cassie
entrou em pânico. As lágrimas a impediam de enxergar mas, embora sem visão, apanhou o rifle e
apontou. Antes que pudesse apertar o gatilho, sentiu que lhe arrancavam a arma das mãos.

22
Desesperada, começou a se debater, lutando contra as mãos fortes que a prendiam, de encontro
ao chão. Seus braços foram imobilizados, acima de sua cabeça, e um corpo musculoso e rijo a impedia
de mover as pernas.
— Solte-me imediatamente! Por favor… Não pode… — pediu ela, com a respiração alterada
até que, atônita, reconheceu seu assaltante.
— Sr. McAllister!
Ele também estava quase sem fôlego, mas o motivo era outro. Apesar dos casacos grossos,
sentia a maciez do corpo sob o seu.
— Acho que você me deve uma explicação.
— Como me encontrou aqui? — A voz de Cassie revelava indignação.
— Por acaso, estava me seguindo?
— É claro que não!
— Então, como explica a sua presença na minha floresta? Já devia estar muito longe daqui!
Quin sentiu-se prestes a perder totalmente a calma. Mais uma vez, aquela mulher cheia de
mistérios havia virado o jogo, fazendo perguntas, para escapar de lhe dar as respostas necessárias. Mas
sua paciência se esgotara e não aceitaria nada além de explicações que o satisfizessem por completo!
— Eu quero respostas, Sra. Montgomery. E as quero agora! Cassie sentia a respiração de Quin
aquecer seu rosto e, apesar de ansiosa por fugir daquele contato perturbador, manteve seu silêncio.
— Está bem. Eu facilitarei a situação para você, fazendo uma pergunta de cada vez.
Comecemos pela mais importante… Ethan morreu há quanto tempo?
— Mais ou menos… Há quase seis meses.
— Seis meses!
Agora ele entendia por que a fazenda estava em tão mau estado, prestes a se tornar uma ruína!
Só por um milagre aquelas mulheres tinham sobrevivido tanto tempo.
— Mas eu recebi a carta de Ethan há um mês…
Quin já perdera a conta de quantas cidades percorrera nos últimos meses. Passara por tantos
salões de jogo e cabarés que não sabia explicar como aquela carta acabara indo parar em suas mãos.
Entretanto, nada disso importava agora.
— Como ele morreu?
— Teve uma febre maligna. A guerra destruiu a energia de Ethan que voltou frágil e sem muitas
forças. Entretanto, ele se recusava a admitir qualquer fraqueza e se esgotava, ultrapassando todos os
limites até que… Seu organismo não resistiu mais.
— E ninguém ficou sabendo da morte dele?
— Só minha mãe e as crianças. Por favor, solte-me, Sr. McAllister. Está me machucando.
Rolando para o lado, Quin ajudou-a a sentar-se sobre a neve. Por um longo tempo, ambos
mantiveram seus olhares fixos na cruz que indicava o túmulo de Ethan, perdidos em seus pensamentos.
Então, ele se levantou e estendeu a mão para Cassie a fim de que ela também ficasse em pé.
— Por que julgou que devia manter a morte dele em segredo?
— Foi o último pedido de Ethan, em seu leito de morte. Ele temia que Cyrus Stoner se
aproveitasse desse fato, caso chegasse a saber. Por isso, fui obrigada a viver uma mentira durante estes
longos meses.
— Eu ainda não compreendo — murmurou Quin, acreditando que a proximidade excessiva de
Cassie o impedisse de raciocinar. — Por que não vender as terras a Stoner e ir embora deste maldito
lugar?
— Cyrus Stoner — a voz dela era glacial — é um homem sem escrúpulos.
— Em que sentido?
— Ocorreram inúmeros acidentes. Nada que se pudesse provar, mas eu não tenho dúvidas. Sei
que foram provocados por ele.
Quin ficou subitamente alerta.
— Que tipo de acidentes?
— Os bois de nosso pequeno rebanho começaram, um a um, a desaparecer misteriosamente e
suas carcaças apareciam em lugares remotos nas montanhas. Colocaram uma substância mal cheirosa
no poço ao lado da cabana. Nosso cachorro de estimação, que sempre latia para nos alertar da chegada

23
de estranhos, foi encontrado morto. Cyrus afirmava sempre que os culpados tinham sido os índios, mas
eu nunca acreditei. Ele é o maior suspeito porque cobiça nossas terras há muito tempo.
— Então, terei de lhe perguntar mais uma vez! Por que não vende este maldito lugar a Stoner?
— Aquilo a que o senhor se refere como sendo um maldito lugar é o nosso lar, Sr. McAllister!
— Então, seja mais objetiva e se analise melhor! — Ele começou a se enraivecer. — Quer
queira ou não, você é uma dama do sul, educada para uma vida de luxo e amenidades. Não pertence a
esta região inclemente e hostil… Como eu também não. Já pensou no que esta terra primitiva arrancará
de sua vida?
— Não tem a menor importância o que eu possa sofrer por causa desta região hostil. Meu
único objetivo é o que devo fazer por minhas filhas. Ethan acreditava na mina, estava convencido de
que, algum dia, produziria uma fortuna.
— E o que produziu até agora? Cassie hesitou por alguns segundos.
— Nada.
— E se nunca produzir?
— Então… Continuaremos sobrevivendo apenas.
— Sobrevivendo? — Ele deu uma gargalhada sarcástica. — E se a fazenda extrair até a sua
última gota de sangue? Ou, no pior dos casos, se matar todas vocês?
Endireitando os ombros, Cassie o encarou firmemente.
— Você acha que somos frágeis e nos vê como proprietárias de luxuosas fazendas que jamais
tiveram que usar as próprias mãos no mais leve dos trabalhos. Pois o senhor continua perdido, sem
compreender nada, Sr. McAllister. Quando nossos maridos e filhos foram lutar e morrer em defesa de
nossas tradições, as mulheres também entraram na guerra, mesmo sem o querer. Vimos nossas terras
serem destruídas, as casas e todo o tipo de construções erguidas por nossos ancestrais ardendo em
chamas e tudo o que possuíamos se transformou num monte de cinzas.
As lágrimas escorriam dos olhos muito verdes de Cassie mas, embora com os lábios trêmulos,
ela não pretendia se calar.
— Diante de nossos olhos, o único mundo que conhecíamos e era o nosso lar, se desfez em
labaredas vorazes. Depois de ter percorrido o inferno, não se tem mais medo de nada, nem da morte,
Sr. McAllister.
As palavras de Cassie tocaram o recesso mais íntimo da alma de Quin. Ele lembrava-se de ter
dito algo muito semelhante ao ser libertado daquele infernal campo de prisioneiros.
Sem pensar, ele a tomou nos braços e sentiu a fragilidade daquela mulher que demonstrava
tanta coragem e, ao mesmo tempo, tinha medo e raiva. Como nunca acontecera antes em sua vida,
desejou demonstrar ternura e oferecer-lhe conforto e segurança.
Cassie sabia que devia lutar contra aquele abraço. Mas estava sozinha há tanto tempo que
precisava, por um breve momento, esquecer-se do trabalho pesado, monótono e infindável. Tinha
necessidade de não pensar na constante preocupação de levar adiante uma vida dura demais e se
entregar ao desejo de sentir-se amparada por braços fortes. Como uma frágil mulher… Como uma
amante adorada.
— Sinto muito por Ethan — murmurou ele, entrelaçando os dedos nos cabelos sedosos, sem
perceber seu gesto íntimo. — Sinto muito por sua casa em Atlanta, pela guerra… Por todas as
injustiças em sua vida.
A voz de Quin a envolvia, acalmando os temores e apagando as mágoas. As palavras em si eram
menos importantes do que a maneira de dizê-las, com a suavidade de uma prece e a emoção da
verdadeira sinceridade vinda do fundo do coração.
— E sinto muito…
— Por favor, não diga mais nada.
Como já acontecera com Quin, Cassie colocou os dedos sobre os lábios dele para silenciá-lo e
reconheceu imediatamente seu erro.
Quin segurou a mão dela de encontro a sua boca, beijando sensualmente cada um dos dedos.
— Não continue… Por favor, pare.
A floresta silenciosa os isolava do mundo, propiciando a inevitabilidade de um beijo. Cassie
também desejava sentir os lábios de Quin se apossarem dos seus, mas tinha medo. Uma emoção

24
desconhecida crescia em seu íntimo e ela temia se entregar a uma ânsia que talvez não mais pudesse
conter.
— Tem que partir agora, Sr. McAllister.
Ela percebeu o pânico em sua própria voz e sentiu ódio de si mesma. Entretanto, sua única
salvação era mandar Quin embora.
— Madame, eu…
Naquele instante, o cavalo de Quin chegou até eles, cansado de esperar e seguindo a voz do
dono. Ao avistar o animal morto, Cassie compreendeu tudo.
— Então… Não estava mesmo me seguindo.
— Eu queria retribuir sua hospitalidade.
Pelo menos, haviam encontrado um tópico sem perigos para conversar! Soltando as mãos de
Cassie, Quin começou a puxar o cavalo pelas rédeas.
— Minha família ficará muito agradecida pela carne, Sr. McAllister. Os dois caminharam em
silêncio de volta à cabana, tomando cuidado para não se tocaram acidentalmente. Ainda estavam a uma
centena de metros quando Jen abriu a porta.
— Vovó! Becky! O Sr. McAllister voltou!
A menina mais velha também correu para a varanda.
— Agora vai ficar conosco?
— O tempo suficiente para descarnar e limpar este animal. — Notando a careta de desagrado
de Luella, ele não resistiu. — A noite cai muito cedo nesta época do ano e talvez eu tenha de adiar
minha partida para amanhã.
Satisfeito por ter provocado a sua única inimiga naquela casa, Quin voltou-se para as meninas.
— Quem quer me ajudar?
— Oh! Eu não poderia nem olhar! — exclamou Becky, repugnada pela idéia de ver sangue.
Aflita, ela correu para dentro de casa e se refugiou no quarto que dividia com a irmã e a avó.
Mas a pequena Jen não escondeu seu entusiasmo e, aproximando-se de Quin, segurou a mão dele.
Cassie os acompanhou com os olhos até que ambos desaparecessem dentro do estábulo. Então,
virou-se e viu que a mãe a fitava, analisando seu comportamento.
— O Sr. McAllister queria retribuir nossa hospitalidade, Se formos cuidadosas, teremos carne
até o fim do inverno.
— Isso é secundário. Ele voltou e acabará descobrindo a verdade sobre Ethan.
— Quin já sabe. — Cassie ignorou o franzir de testa da mãe. — Por um mero acaso,
encontrou-me ajoelhada do lado do túmulo. Fui obrigada a contar-lhe a verdade.
— E vai permitir que ele durma mais uma noite sob nosso teto?
— Eu me sentiria muito mal, mandando-o embora no meio da noite e de uma tempestade de
neve, depois de ter sido presenteada. Será a primeira vez que comeremos carne depois de mais de seis
meses.
— Não é decente que uma mulher viúva receba um homem para dormir em sua casa.
— Ele era o melhor amigo de Ethan, mãe. Pode ser também nosso amigo.
— E se esse homem não estiver procurando apenas amizade?
As duas mulheres se encararam, em silêncio, por um longo tempo.
— Você está brincando com fogo, menina — suspirou Luella, afastando-se da filha.
Ignorando as palavras da mãe, Cassie correu para o estábulo, a fim de ajudar a preparar o corte
da carne.
O jantar foi um acontecimento festivo. Na pequena cabana, espalhava-se o aroma apetitoso de
carne assando lentamente, mesclado ao do caldo preparado com os ossos e que estava há horas
fervendo em um enorme caldeirão. Cassie colocara pedaços de legumes na sopa e preparara uma receita
especial de pão.
— Eu gostaria de conduzir a prece desta noite — declarou ela, depois que todos se sentaram à
mesa.
Dando uma das mãos a Quin, ela sentiu que a emoção daquela noite ficava ainda mais intensa.
— Queremos lhe agradecer, Senhor, pela dádiva da carne em nossa mesa e por termos
encontrado um bom amigo, o Sr. McAllister. Pedimos Suas bênçãos para todos reunidos sob este teto

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e, especialmente, para aquele que já não está mais entre nós. Tenha compaixão de Ethan, servo fiel do
Senhor, e longe do mundo há tantos meses.
Os olhos das meninas se arregalaram, indo da mãe para Quin, que mantinha a cabeça abaixada.
— Você contou para ele, mamãe? — perguntou Becky, timidamente, após o final da prece.
— O Sr. McAllister descobriu o túmulo de seu pai, esta manhã.
— E você disse a ele há quanto tempo papai morreu? — indagou a menina mais nova.
— Sim, Jen. Sua mãe contou-me tudo.
As duas meninas ficaram nitidamente aliviadas ao se sentirem liberadas do peso do segredo e a
conversa adquiriu uma crescente animação porque podiam falar abertamente sobre o pai.
— Mamãe nos afirmou que papai está no céu, entre os anjos. — Jen fitou Quin, com uma
expressão solene. — Também disse que ele não sente mais dor mas… Tenho tanto medo que esteja
sentindo frio de noite!
— Não se preocupe com isso, Jen. Ele está em um lugar perfeito e por isso é chamado de
paraíso. Não seria assim se as pessoas sentissem qualquer desconforto, certo?
A menina pensou nas palavras de Quin por alguns minutos e depois sorriu, visivelmente
aliviada.
— E você acha que papai sabe o que estamos fazendo, dizendo e pensando?
— Tenho certeza que as observa de lá do céu, para ver suas queridas meninas se transformarem
em mulheres bonitas e cheias de boas qualidades.
— Então, acredita que ele esteja tomando conta de nós… Como antes de morrer?
— Sem dúvida. Apesar de estar ausente, continua sendo o mesmo pai amoroso que sempre foi.
As palavras de Quin tiveram um efeito espantoso. As duas meninas, atemorizadas desde a
morte do pai, foram ficando menos tensas a cada resposta dele.
— Uma vez, papai seguiu um leão da montanha. Já matou algum animal tão feroz assim, Sr.
McAllister?
— Nunca, Jen. O máximo que eu fiz, foi matar uma raposa no galinheiro.
— A raposa é tão malvada quanto um leão?
— Só para as galinhas — respondeu Quin, piscando para a menina que caiu na gargalhada,
acompanhada pela irmã.
Percebendo que a tímida Becky apenas acompanhava o diálogo dele com Jen, sem participar,
Quin tentou trazê-la para a conversa.
— E você, Becky? O que mais a faz lembrar de seu pai?
— Ele adorava os meus cabelos — murmurou a menina, enrubescendo.
— Concordo com ele. São tão lindos quanto os de sua mãe. Desta vez, foi Cassie que
enrubesceu.
— Ele gostava de enrolar meus cachos em torno de seus dedos. Não é verdade, mamãe?
Cassie concordou com um gesto de cabeça, desviando os olhos de Quin, que fizera o mesmo na
primeira noite, na varanda.
— Ele me contou que você cantava como um anjo. E me disse que, algum dia, teria condições
de enviá-la para o conservatório de música de Savannah, onde sua avó estudou.
O sorriso de Becky desapareceu, como num passe de mágica.
— Era apenas um sonho tolo. Eu jamais voltarei para o sul. — Empurrando a cadeira, ela se
levantou. — Peço licença para sair da mesa.
Diante da concordância materna, a garota correu para se refugiar no quarto. Após sua saída da
sala, Cassie explicou a situação a Quin.
— Rebecca nunca mais cantou depois que o pai morreu.
— Eu sinto muito. Não podia imaginar…
Todos permaneceram em silêncio até que o efervescente entusiasmo de Jen os forçasse a
retomar a conversa.
— O meu pai era capaz de fazer tudo! — declarou ela, cheia de orgulho. — Vovó disse que ele
foi um verdadeiro herói. Sabia disso, Sr. McAllister?
— Claro que sim.

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— Papai enfrentou todos os ianques, sem medo. Mesmo quando estava em uma prisão deles,
nunca perdeu as esperanças de voltar para nós. Não foi assim, vovó?
— Sem a menor dúvida, querida — respondeu a avó.
— Conheceu papai quando ele estava nessa prisão, não foi?
— Sim. Quin não estava gostando do rumo da conversa. Aquele assunto ainda era muito
penoso e preferia não relembrar o pior período de sua vida.
— Então, sabia mesmo que ele era um herói!
— Todos os homens que lutaram por seu país foram heróis, Jen.
— Ah, não! Os ianques não podiam ser!
— Até os ianques o foram. Encontrei centenas de homens corajosos e que lutavam em lados
diferentes nesta guerra.
— Mas vovó disse…
— A guerra acabou, Jen — declarou Quin, com suave firmeza. — Temos de aprender a apagá-
la de nossas mentes e principalmente de nossos corações.
Um silêncio constrangido tomou conta da sala e Luella levantou-se da mesa, começando a
retirar os pratos.
— Acho que este foi um dos jantares mais deliciosos de toda a minha vida, madame — disse
Quin, com os olhos fixos em Cassie.
— Graças ao senhor que forneceu a carne. Muito obrigada.
— Agradeça ao animal que cruzou o meu caminho — brincou ele. Rindo, Jen correu para
buscar o baralho.
— Pode nos ensinar novos truques?
— Desde que você termine suas lições e ajude sua mãe com as tarefas da casa.
Sem uma palavra de protesto, a menina apanhou sua pequena lousa e começou a fazer suas
contas. Depois que Cassie as corrigiu e se declarou satisfeita, Jen sentou-se ao lado de Quin, pronta
para se divertir com os mágicos truques de cartas.
Logo o som de suas risadas tirou Rebecca do quarto. Já era bem tarde e na pequena cabana
perdida em uma imensidão de neve ainda ecoava a alegria das duas meninas.
Sentado na cadeira de balanço, em frente à lareira, Quin viu as brasas se apagarem aos poucos,
entretido em pensamentos sombrios.
Se tivesse um mínimo de juízo, partiria assim que raiasse o dia. Afinal, o último lugar na terra
em que gostaria de estar era num canto perdido do território de Montana em pleno inverno. Quando a
guerra terminara, jurara a si mesmo que jamais sentiria frio ou fome novamente e, acima de tudo,
fugiria de locais com neve!
Ele era o melhor em sua atividade. Ganhava e gastava verdadeiras fortunas. Seu nome atraía
jogadores famosos com muito dinheiro e que perdiam com bom humor. Raramente, tivera de recorrer
a uma arma para resolver qualquer problema de pagamento. Mas, quando isso acontecia, sua rapidez no
gatilho o tornava o vencedor.
A vida de jogador o agradava. Conquistava homens e mulheres com seu encanto espontâneo.
Não dispensava charutos caros, apreciava a descontraída camaradagem masculina e um corpo feminino,
sensual e perfumado, para aquecer sua cama.
Então, o que estava fazendo neste lugar primitivo e sem qualquer conforto? Sua presença na
fazenda teria sentido se fosse partilhar da aventura de procurar o tesouro que seu amigo acreditara
existir. Mas Ethan morrera.
A morte de Ethan o abalara. Apesar de serem absolutamente diferentes, o amara como se fosse
seu irmão de sangue. Através das conversas na calada da noite, conhecera Becky e Jen a ponto de
considerá-las suas. E também Cassie.
Nunca acreditara que mulher alguma no mundo tivesse as qualidades mencionadas por Ethan,
quando descrevia sua esposa. Talvez a sua rapidez em aceitar o convite do amigo se devesse,
inconscientemente, à vontade de ver, com seus próprios olhos, aquelas criaturas maravilhosas e que não
podiam ser reais.
E agora? Ele viera, as vira e chegara a hora de partir definitivamente, transformando a realidade
constatada apenas em lembranças agradáveis.

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Tinha de ir embora antes que suas vidas se envolvessem irremediavelmente!

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CINCO

Cassie admitiu que estava demorando demais para se arrumar, ao se perfurmar com algumas
gotas de sua preciosa água de rosas. Tentava justificar seu ato, afirmando a si mesma que era muito raro
receberem um visitante. Na verdade, Quin McAllister fora o único desde que haviam se mudado para
Montana.
Não eram só as crianças que estavam excitadas com aquela mudança em suas vidas. Ela também
sentia o coração bater mais rápido.
Sua escolha de vestidos se limitava a três, todos gastos e bastante descorados, mas que ela
mantinha limpos e bem cuidados. O mais bonito era o amarelo que, no passado, tivera o tom dourado
dos lírios do campo. Por ter emagrecido muito após a morte de Ethan, amarrou uma faixa na cintura
para disfarçar o quanto estava largo e, disposta a se apresentar melhor do que habitualmente, prendeu a
magnífica cabeleira com uma fita de veludo, guardada no fundo de sua gaveta como se fosse um
tesouro.
Ao entrar na sala, surpreendeu-se por não encontrar Quin ainda adormecido. Os cobertores
estavam bem dobrados, a lareira acesa e um bule de café pronto sobre o fogão a lenha. Havia uma
xícara usada na mesa e o capa de couro já não estava mais pendurada atrás da porta.
Ele partira. Fora embora sem sequer uma palavra de despedida. Inexplicavelmente, Cassie
sentiu uma intensa mágoa.
Movendo-se pela cozinha com movimentos mecânicos, preparou o café da manhã de sua
família. Afinal, por que se sentira tão ferida? Quin era um amigo de Ethan, atraído para um lugar
primitivo sob pretextos falsos. Retribuíra a hospitalidade recebida, fornecendo-lhes carne suficiente
para todo o inverno… Se fossem bem frugais. Agora, decidira retomar sua vida.
Depois de colocar os biscoitos no forno e arrumar as roupas das filhas junto da lareira para
aquecê-las, Cassie vestiu seu pesado casaco e saiu da cabana, a fim de realizar as primeiras tarefas do
dia.
Nevara mais durante a noite e a água dos animais devia estar congelada. Suspirando diante do
trabalho pesado que a esperava, empurrou a porta do estábulo e parou, surpresa, diante de Quin,
colocando feno para os animais.
— Bom dia, madame. Decidi começar mais cedo…
— Bom dia. — Os olhos dela brilhavam de alegria. — Pensei que tivesse…
Quin custou a compreender o que se passara pela cabeça de Cassie.
— Achou que eu tinha partido?
Subitamente tímida, ela confirmou com um gesto de cabeça.
— E sem me despedir? — Ele pensara em agir assim, mas rejeitara a idéia. — Como eu poderia
partir, sem antes ajudá-la a cumprir as tarefas da manhã?
— Bem… Terei a chance de lhe devolver seu lenço. — Ela o retirou do bolso do casaco, limpo
e engomado.
— E como está a sua queimadura? —perguntou ele, guardando o lenço.
— Praticamente curada, graças a sua pomada. Estou feliz por não ter partido pois assim posso
lhe agradecer mais uma vez.
Quin aproximou-se dela e, surpreendendo-a com seu gesto, retirou a ruiva cabeleira presa sob a
gola do casaco.
— Eu seria um idiota se partisse sem antes saborear a sua deliciosa comida.
O toque ligeiro de Quin provocou-lhe uma onda de calor e subita¬mente o estábulo lhe
pareceu um lugar aconchegante e bem aquecido.
— As meninas ficariam muito desapontadas se não pudessem se despedir de você.
— Sem mencionar sua mãe — brincou ele. Cassie não controlou um riso alegre.
— Não a culpe por ser hostil. Luella sofreu tantas decepções que espera o pior de todas as
pessoas e da vida.

29
— Já encontrei dezenas de pessoas que ficaram assim. — Ele deslizou os dedos pelo rosto de
Cassie e, sem perceber, sua voz se tornou um murmúrio acariciante. — Ainda bem que ela não
contagiou você…
— Oh… Eu tenho maus dias. Entretanto, pelo bem de minhas filhas, forço-me a demonstrar
esperança no futuro.
— Elas são meninas encantadoras. Ethan jamais se cansava de falar sobre as filhas.
A voz dos dois ficava sempre mais baixa, quase um murmurar, e Cassie tentou encontrar forças
para se afastar de Quin. Ele tirava os flocos de neve de seus cabelos, num gesto que mais se
assemelhava a uma carícia e a situação logo escaparia ao controle de ambos.
— Ele também falava muito sobre a amizade entre vocês dois, no campo de prisioneiros.
Quin não disse nada, fascinado com aqueles olhos verdes como as folhas novas da Geórgia, em
plena primavera.
— Contava que você era o herói do campo. Ninguém teria cobertores suficientes ou comida
para sobreviver à fome e ao frio, se não fosse pelo seu talento nas cartas. Perdi a conta do número de
noites em que Ethan permanecia acordado, falando sobre o Jogador, o homem que salvara a sua vida.
— Eu nunca fui um herói. Era apenas um homem como os outros, lutando para sobreviver. —
Ele segurou o rosto de Cassie entre as mãos. — E, neste momento, estou tentando não cometer um
erro irreparável mas… O que quero realmente…
Curvando a cabeça, ele apenas roçou de leve os lábios de Cassie. Sua intenção era uma breve e
singela carícia mas, quando suas bocas se tocaram, suas boas intenções foram menos fortes do que o
desejo.
— Não… — murmurou ela, enquanto colocava os braços em torno de Quin, também ávida
pelo beijo esperado.
Com um suspiro, Cassie entregou seus lábios ao beijo possessivo de Quin. Sentia-se despertar
de um longo sono, descobrindo um prazer jamais imaginado. Aquele homem másculo e misterioso,
trazia à tona sensações intensas e desejos desconhecidos.
Quin pressentiu a solidão daquela linda mulher que se entregava ao seu beijo, com abandono.
Sabia que devia se afastar, fugir daquela loucura e evitar um passo sem retorno. Entretanto, queria ouvir
o coração dela bater junto do seu por muito tempo mais. .
— Mamãe? Sr. McAllister?
A voz de Jen, ainda do lado de fora, os trouxe de volta à realidade. Eles se afastaram
rapidamente, uma fração de segundo antes da menina entrar no estábulo — Cheguei em tempo de
ajudar?
— Sem dúvida — declarou Quin, desviando a atenção da menina que fitava a mãe, com
curiosidade.
— Já ordenhou a vaca, mamãe?
Cassie ainda arrumava seus cabelos, desordenados pelas carícias de Quin.
— É o que pretendo fazer agora, Jennifer.
Ela sentou-se na banqueta, encostando a testa no flanco do animal, respirando fundo para se
acalmar.
Quin ocupou-se em tratar seu cavalo, mas seus olhos procuravam pela mulher cujo toque
transformava em fogo o sangue de suas veias.
O café da manhã foi tão festivo quanto o jantar da noite anterior. Cassie fritou as tiras laterais
com vestígios de gordura do lombo que colocara para defumar e o cheiro apetitoso da carne se
espalhava pela cabana. Sobrara um pouco do ensopado do jantar e todos o saborearam mais uma vez,
para molhar os biscoitos recém saídos do fomo. As crianças tomaram o leite tirado há menos de dez
minutos e ainda momo, enquanto os adultos bebericavam o café quente a ponto de queimar a boca.
Até Luella, fortificada por uma refeição que, diante da frugalidade da dieta costumeira mais
parecia um banquete, parecia estar de ótimo humor.
— Pretende alcançar Prospect no final do dia, Sr. McAllister? — perguntou ela, num intervalo
da conversa entre Quin e suas netas.

30
Ele controlou-se para não se irritar. Ouvindo a pergunta da avó, as duas meninas ergueram a
cabeça, com a expressão tensa do primeiro dia em que as vira. Tivera esperanças de que nada
perturbasse aquela refeição agradável, a última com a família Montgomery.
— Sim, madame. E essa a cidade mais próxima daqui, certo? Era a minha intenção, ontem,
antes de ser distraído por um rebanho de corças, conduzida pelo maior veado que já encontrei.
Pelo canto dos olhos, viu que Cassie o fitava, disfarçadamente. Evitou que seus olhares se
cruzassem pois não imaginara o quanto sentiria ter de se despedir dela. Partir iria ser bem mais penoso
do que previra.
— É uma jornada bastante longa para seu cavalo — continuou Luella que, percebendo a
mudança de humor das meninas, agora silenciosas e tristes, quase se arrependia de ter feito a primeira
pergunta.
Então, sempre convencida de que as verdades, mesmo as mais desagradáveis devem ser
enfrentadas, decidira insistir no assunto. Era melhor que elas se acostumassem, com toda a rapidez, à
idéia da partida de Quin McAllister. Aquele estranho surgira em suas vidas, como se tivesse brotado da
terra, e desapareceria da mesma forma, sem expli¬cações.
— Cutter está acostumado a longas jornadas. E um grande companheiro de viagem e nós dois
já cruzamos o país, de uma ponta a outra, diversas vezes.
— O senhor acaba de confirmar algo em que sempre acreditei. Jogadores nunca criam raízes
pois não ficam por muito tempo em lugar algum, certo?
Apoiando a xícara de café sobre a mesa, Luella encarou, sucessivamente, a filha e as netas,
determinada a que todas entendessem o seu ponto de vista.
Quin entendia muito bem o jogo de Luella e se considerava com todas as condições para ganhar
aquela parada. Entretanto, não o faria porque ela estava absolutamente certa. Era a mais velha de todas
as mulheres da pequena família Montgomery e, embora talvez não tivesse nem cinqüenta anos, contava
com maior experiência de vida. Seria insensato, além de cruel, permitir que se iludissem, contando com
sua presença por muito mais tempo.
— A senhora tem razão, madame — disse ele, entrando no jogo, no mesmo lado de Luella. —
O que um jogador menos precisa é de raízes.
— Mas você acabou de voltar! — exclamou Jen, levantando-se bruscamente da mesa, com os
olhos cheios de lágrimas. — Por que não pode ficar conosco mais um pouco? Só mais um pouquinho?
— Mocinha! — esbravejou Luella, autoritária. — Onde estão seus bons modos? Por acaso,
pediu licença para se retirar da mesa?
— Por favor, mãe — murmurou Cassie, interrompendo a reprimenda e depois voltando-se para
a filha mais nova. — Venha de novo para a mesa, Jennifer.
— Não! — Sem mais conter o pranto, a pequena Jen correu para a porta e saiu da cabana.
— Eu vou atrás dela, mamãe — disse Becky, preocupada com a atitude insólita da irmã caçula.
— Não, Rebecca. — Cassie levantou-se da mesa. — Eu mesma irei. Nesse instante, a porta se
abriu, com estrondo, e Cyrus Stoner entrou na cabana, carregando Jen, que gritava e esperneava.
— Vejam só o que eu encontrei!
Quin saltou da cadeira, já empunhando a pistola. Então, avistou os homens de Stoner, parados
à porta e com as armas apontadas para as mulheres.
— Acho melhor soltar sua arma, McAllister. A não ser que queira ver as suas amigas morrerem.
Ele deixou a pistola cair ao chão.
— Agora a situação está a meu gosto. — Stoner virou-se para Cassie, sempre com a mesma
postura ofensiva. — Vou-lhe fazer mais uma vez a costumeira pergunta, senhora. Onde se encontra seu
marido?
— Ethan ainda está nas montanhas e…
Stoner interrompeu a explicação, praguejando com tal violência que Luella agarrou Becky e
cobriu-lhe as orelhas, para poupar a inocência da neta.
— E eu achei que a senhora era uma dama e das mais virtuosas — disse ele, depois do
desabafo. — Nunca lhe ensinaram que é pecado mentir, dona?
— Não sei sobre o que está falando.
— Basta! — berrou Stoner, numa explosão de fúria.

31
Jen soltou um gemido de terror, mas ele continuava a carregá-la como se fosse um saco de
batatas.
— Os meus homens descobriram algo muito interessante no lado oeste da floresta, sabe? —
Stoner sorriu maldosamente diante da expressão chocada de Cassie. — Eles estavam seguindo as
pegadas de McAllister e… É capaz de adivinhar o que encontraram, dona Montgomery?
Cassie se manteve em silêncio, aumentando a fúria de Stoner.
— Encontraram uma cova, com uma cruz em cima. Tem idéia de quem possa estar enterrado
em suas terras?
— Por favor, solte a minha filha, Sr. Stoner. — A voz de Cassie revelava um temor que ela
lutara, em vão, para ocultar.
— É o que pretendo fazer… Depois de chegarmos a um acordo. Quero que discutamos a
minha proposta de…
— Eu me recuso a discutir esse assunto com o senhor.
— Pois não lhe resta outra saída. Agora sei que seu marido morreu. Ethan Montgomery está
morto, certo?
Mais uma vez, Cassie permaneceu em silêncio e Stoner, com a displicência de quem está apenas
discutindo o tempo, prosseguiu no mesmo tom de voz insultante.
— Eu já não tinha mais dúvidas a esse respeito. Só quero que me confesse há quanto tempo
vem me ocultando a verdade. — Diante da mudez obstinada de Cassie, ele continuou — Bem… Agora
isso perdeu toda a importância para qualquer um de nós dois. Basta saber que, a partir de agora, eu irei
negociar diretamente com a senhora. Não estou certo, dona?
Engolindo em seco, Cassie concordou com um gesto de cabeça.
— Ótimo! Agora, a senhora fica bem quieta enquanto eu falo. —
Satisfeito com a admissão de Cassie, Stoner passou a falar menos agressivamente. — Pagarei
quinhentos dólares por suas terras, Sra. Montgomery. Os meus homens virão amanhã, com duas
carroças, a fim de ajudá-la a transportar sua mudança para Prospect. Lá, a diligência a levará para onde
decidir se estabelecer.
— Fazer as malas e partir? — A voz de Cassie revelava a mais completa incredulidade. —
Assim… Sem mais nem menos? Não pode acreditar que eu vá aceitar sua oferta, Sr. Stoner.
— E por que não? Vou lhe pagar um dólar por acre… Por terras improdutivas e agrestes
demais devido à excessiva proximidade das montanhas. Nenhuma pessoa de bom senso lhe ofereceria
mais do que a metade. Acredite que estou sendo extremamente generoso.
— Este é o nosso lar, Sr. Stoner. Não podemos simplesmente fazer as malas e ir viver em um
outro lugar qualquer.
— Aprendi, por experiência própria, que muito dinheiro apaga sentimentalismos idiotas. As
pessoas podem fazer o que mais lhes agrada… Se tem como pagar pelo prazer de escolher.
— Talvez seja verdade. Entretanto, não tenho intenções de vender minhas terras, nem ao
senhor nem a qualquer outra pessoa.
Virando-se abruptamente, Stoner colocou Jennifer de frente para a mãe.
— Olhe bem para a sua filha, Sra. Montgomery. Se preza a segurança dela, e também a de sua
outra menina, pense com mais boa vontade na oferta que lhe fiz.
— Está ameaçando esta família? — perguntou Quin, que permanecera em silêncio e agora se
manifestava, sem disfarçar uma cólera fria.
Dois capangas de Stoner se aproximaram, colando o cano de suas pistolas nas têmporas de
Quin. Becky soltou um gemido e Luella começou a rezar baixinho.
Quin permanecia calmo, sem demonstrar o menor receio.
— Acha que estou blefando? Então, fique sabendo que jamais me rebaixo a ameaçar as pessoas,
McAllister. Eu apenas predigo o futuro. — Stoner ergueu Jen acima de sua cabeça, como se fosse atirá-
la para longe. — E estou prevendo grandes tragédias, no caso dessa emproada dama que é dona das
terras não aceitar meu conselho de amigo, dando logo o fora daqui! Talvez as mortes não aconteçam
apenas com os animais da fazenda, sabe? Já ouviu falar como são selvagens os índios das montanhas?
Prefiro poupar estas elegantes donas sulinas, contando-lhes o que eles fazem com mulheres e crianças.

32
Finalmente, ele soltou Jennifer, que correu para os braços da mãe, chorando e tremendo de
pavor.
— Amanhã, meus homens virão com as carroças e eu com o dinheiro, Sra. Montgomery. Esteja
pronta para partir.
Os capangas continuaram com as armas apontadas para Quin até que Stoner saísse da cabana e
saltasse sobre sua montaria. Então, eles fecharam a porta e logo o tropel dos cavalos desapareceu na
distância.
Cassie sentiu que as pernas perdiam as forças e ajoelhou-se no chão, sempre abraçando
Jennifer. Luella e Becky se aproximaram, envolvendo as duas com seus braços, num gesto de proteção.
Imóvel, Quin observava a cena, com um brilho de ódio contido nos sombrios olhos negros.
— Acho que vou adiar minha partida por algum tempo.
Todas o fitaram, vendo-o apanhar a pistola que jogara ao chão para colocá-la de volta no coldre.
Cassie percebeu que, naquele momento, Quin se transformara em outro homem. O sorriso
sedutor desaparecera, e já não se via o amigo irreverente e dado a brincadeiras com as meninas.
Havia um homem em sua casa, um pistoleiro cruel e impiedoso que não recuaria diante de
perigo algum. Num piscar de olhos, Quin se transformara na figura misteriosa e ameaçadora descrita
tantas vezes por Ethan nas noites de insônia, o vingador que vagava pelo campo de prisioneiros,
protegendo seus companheiros de todas as injustiças.
— Começo a acreditar — murmurou ele, dirigindo-se para a porta, a fim de recolher seu cavalo
— que algumas guerras jamais terminam.

33
SEIS

A decisão de Quin deveria ter alegrado Cassie mas, para sua surpresa, a assustara. Por que se
sentia tão perturbada e insegura? Durante toda a manhã, enquanto realizava as tarefas cotidianas e tão
repetitivas que se tornavam mecânicas, um turbilhão de pensamentos contraditórios se cruzava em sua
mente.
Parte dela, desejava desesperadamente que Quin continuasse ao seu lado. Vira a transformação
ocorrida quando Stoner ameaçara sua família e não tinha a menor dúvida que os tiros certeiros daquele
homem de tantas facetas as ajudariam muito quando fosse necessário resistir contra a expulsão da
fazenda.
Também reconhecia a intensa atração que sentia por Quin e eram essas emoções, jamais
experimentadas, a causa de tanta preocupação e temor. Sua vida já acumulava dificuldades quase
insuperáveis e o último problema que precisava para torná-la ainda mais sem esperanças era perder o
coração para um aventureiro e um jogador.
Talvez fosse melhor pedir-lhe para ir embora. Entretanto, a presença dele significava que não
estaria sozinha em sua luta contra Stoner. Não teria de aceitar o ultimato daquele homem sem
escrúpulos.
Na verdade, não tinha muita certeza de estar tomando o caminho mais certo. Talvez devesse
aceitar a oferta pois a fortuna de quinhentos dólares lhe permitiria levar sua família para um lugar de
clima ameno. A despeito de suas bravatas diante de Quin, ela odiava e temia o clima hostil do território
de Montana. Só permaneceria por um motivo… Precisava cumprir sua promessa e, mais uma vez,
lembrou-se do apelo emocional de Ethan, já muito perto da morte.
— Prometa, Cassie! Jure que nunca desistirá destas terras.
— E como eu conseguirei sobreviver sem você, Ethan? Como pode nos pedir para
permanecermos neste lugar isolado, distante de tudo e de todos, a milhas de distância do vizinho mais
próximo?
— Você não ficará sozinha, eu juro que não! Confie em mim, Cassie. Pelo seu bem e pelo de
nossas filhas, não se deixe acovardar a ponto de desistir. Prometa!
Ela fizera uma promessa solene para o marido agonizante. No momento em que jurara
continuar lutando pelo sonho de Ethan, não tinha ainda condições de prever o preço a ser pago. Seria
justo sacrificar suas filhas por uma miragem?
— Becky? — perguntou Quin, rompendo o silêncio matinal. — Você sabe usar um rifle?
A garota não controlou um grito de medo.
Absorta na preparação da massa para o pão, Cassie foi arrancada de seus pensamentos pela
reação da filha.
— Está tudo bem, Rebecca. — Aproximando-se, ela abraçou a filha. — Pode ir para seu
quarto, se quiser.
Depois que Becky saiu da sala, Cassie voltou-se para Quin.
— A guerra a deixou aterrorizada, Sr. McAllister. Rebecca tem horror a armas e violência.
Quando partimos de Atlanta, ela começava a tremer e chorar convulsivamente só ao ouvir um tiro.
— Mas eu não tenho medo — anunciou Jen, orgulhosa. — Vai me ensinar a usar o rifle de meu
pai?
— Não, Jen. Acho que não será necessário. Só não quero que você ou sua irmã saiam desta casa
sem ter um de nós por companhia, entendeu?
— Sim, Sr. McAllister.
— Então… — Luella não escondia o horror — acredita que aquele homem possa cumprir suas
ameaças?
— Já não sei mais em que acreditar, madame. Entretanto, sempre levo muito a sério qualquer
tipo de ameaça… Por ser mais prudente.
— E acha que teremos condições de nos defender daqueles homens impiedosos?
— A única coisa que esse tipo de homens respeita é o poder de uma pistola. Ao saber que
estamos armados, pensarão duas vezes antes de nos atacar. A partir de agora, nenhum de nós deve sair

34
de casa sem a proteção de um rifle. Nem mesmo para apanhar algumas achas de lenha para a lareira.
Sabe atirar, Sra. Chalmers?
— Eu mantive um bando de ianques a distância durante dois dias quando eles nos atacaram
para roubar meu gado.
Sorrindo, Quin entregou a Luella o rifle que acabara de limpar e também uma caixa de munição.
— Mantenha-o sempre ao seu lado, mesmo quando for dormir. Luella examinou a arma e ficou
satisfeita em verificar que estava em boas condições. Depois de guardar a munição no bolso de seu
avental, ela sorriu para Quin, pela primeira vez desde que o vira entrar naquela casa.
— Meu pai dizia que um homem capaz de manter suas armas em estado de alerta, mantém sua
mente nessa mesma condição.
Quin apenas sorriu, já cruzando a sala para falar com Cassie.
— Ethan tinha alguma pistola?
— Sim.
Secando as mãos, Cassie foi até o quarto e trouxe a arma do marido. Quin a examinou e,
satisfeito por encontrá-la em condições de ser usada, entregou de volta para Cassie.
— Você não precisa usar o coldre, mas quero que a carregue consigo sempre, dia e noite.
Ela colocou a arma no bolso do vestido, tentando disfarçar seu temor.
— Tudo isso significa que… Seremos prisioneiros em nossa própria casa, Sr. McAllister?
Quin gostaria de poder reconfortá-la mas, para evitar um gesto carinhoso e inaceitável, dirigiu-
se para a porta a fim de apanhar seu casaco.
— Vou cortar mais lenha.
— Então, podemos continuar as nossas tarefas de todos os dias? — perguntou Jen.
— Desde que sejamos todos muito cuidadosos e prudentes. Durante toda a tarde, ouviu-se o
som do machado rachando a madeira.
Ao cair da noite, Quin retornou à cabana que recendia a pão caseiro. Do lado de fora, havia
uma pilha de achas que duraria por mais de duas semanas.
— Foi um jantar delicioso, madame.
— Muito obrigada, Sr. McAllister.
— Acho que vou até o estábulo e aproveitarei para fumar o meu charuto sem perturbar
ninguém.
— Posso ir também? — perguntou Jen, ansiosa.
Quin esperou que Cassie desse permissão à filha e então se voltou para Rebecca.
— Não quer vir também? Eu adoro ter companhia em meus passeios. Becky encolheu os
ombros, fingindo indiferença, embora fosse evidente o quanto se alegrara por ser incluída.
Depois da saída dos três, Luella não poupou a filha.
— Você não devia ter permitido! Não é seguro e…
— Não posso mantê-las trancadas em casa, mãe! Além disso, tenho um pressentimento em
relação ao Sr. McAllister… Acho que ele daria sua vida para salvar a delas.
— Não o transforme em algo que ele não nunca foi nem será, filha. O Sr. McAllister disse a
verdade, na sua frente e para que o entendesse sem sombra de duvida. Ele é, pura e simplesmente, um
jogador. Só alguém sem juízo confia sua vida ou seus bens mais preciosos a homens desse tipo.
Concentrada em seus pensamentos, Cassie começou a lavar a louça, mas a mãe a acompanhou,
incapaz de disfarçar sua preocupação.
— Sei muito bem que a pistola do Sr. McAllister nos ajudará a enfrentar Cyrus Stoner.
Entretanto, não acho prudente que ele continue dormindo dentro da cabana. Não é decente e, se
ficasse no estábulo…
— De modo algum, mãe. O estábulo é gelado. Ele fica onde está.
— Não se esqueça que ele é um homem jovem, viril e com certos apetites…
— Não gostaria de discutir com você, mãe. Aceite a minha decisão, sim?
— E eu espero que você aceite os meus conselhos. Está sendo permissiva demais e acabará
provocando um escândalo que destruirá a sua família se ceder aos encantos desse jogador.
Um dos pratos escapou das mãos de Cassie, caindo na água da pia.

35
— Esse homem a quem você se refere desdenhosamente como jogador, está arriscando sua
vida por nós.
— Talvez acredite que exista uma fortuna na qual poderá por as mãos.
— Céus! Que fortuna, mãe?
— A que Ethan jurava existir naquela velha mina.
— Eu já lhe disse que tudo só existia na mente de Ethan. — Cassie lutava para não perder a
paciência com a mãe. — Ele nunca encontrou nenhum sinal concreto de fortuna alguma.
— Talvez não. — Luella encolheu os ombros, deixando bem clara a sua desconfiança. — Mas,
aparentemente, o seu marido não lhe contava tudo. Guardava alguns segredos, concorda?
— Exatamente o que quer dizer com isso, mãe?
As duas mulheres se encararam, em silêncio, esforçando-se por não brigar. Finalmente, Luella
decidiu falar, ainda que com isso pudesse ofender a filha.
— Você não tinha a menor idéia sobre essa carta que Ethan enviou a Quin McAllister.
Derrotada, Cassie desviou o olhar. A afirmação da mãe a perturbava muito, mas não tinha
nenhuma resposta a dar. Por que Ethan não confiara nela e não mencionara a carta enviada a Quin?
Depois de terminadas as tarefas da cozinha, Luella sentou-se em sua cadeira predileta junto da
lareira e pegou a cesta de costura.
— Eu preciso de Becky! Como vou enfiar a linha na agulha? Sem fazer nenhum comentário,
Cassie foi até junto da mãe e enfiou a linha na agulha. Profundamente perturbada, concentrou-se
também em seu trabalho, esforçando-se para não pensar.
— Já jogou pôquer com algum homem famoso, Sr. McAllister? — perguntou Jen.
As duas meninas estavam sentadas, cada uma de um dos lados de Quin, que, apesar dos
protestos enérgico de Luella, estava lhes ensinando os princípios básicos do jogo de pôquer. Cassie
concordara, acreditando que a distração ajudaria o tempo a passar. E, embora se recusasse a participar,
não resistia a lançar-lhes olhares a cada instante, enquanto preparava a massa dos biscoitos.
— Com alguns.
— Quem? — insistiu a garota, subitamente interessada.
— James Butler Hickok, por exemplo. — As meninas não tiveram nenhuma reação até que ele
acrescentou — Wild Bill Hickok.
— Wild Bill? — Jen o fitava, boquiaberta. — Conheceu-o? Onde? Como? Quando?
— Em Deadwood.
— E jogou com ele?
— Sim.
Luella ergueu a cabeça, também interessada.
— Mas ele não é um homem da lei muito respeitado?
— Alguns diriam que sim. — Quin deu seu familiar sorriso irreverente. — Mas, na verdade, a
lei é apenas uma atividade paralela para Wild Bill. Seu primeiro amor sempre foi e será o jogo.
— Ganhou dele? — Jen estava fascinada com o relato de Quin.
— Sim… Uma verdadeira fortuna. Não é preciso dizer que saí bem depressa de Deadwood ou
o delegado encontraria um modo de reaver seu dinheiro.
— Achou que ele o convidaria para um outro jogo a fim de recuperar as perdas? — perguntou
Becky.
— Não, achei que, se eu permanecesse na cidade, ele arrumaria um motivo para me colocar
atrás das grades.
— Já desrespeitou a lei alguma vez, Sr. McAllister? — voltou a perguntar Jen.
Percebendo que Luella parará de costurar, Quin procurou uma resposta prudente.
— Algumas leis foram feitas para serem desrespeitadas.
— Que leis?
Becky devolveu o baralho a Quin, fascinando-se com a agilidade de seus dedos longos em
manipular as cartas.
— Qualquer lei que favoreça os fortes e os poderosos, desprotegendo os fracos e os oprimidos.
— Por acaso, considera-se acima da lei, Sr. McAllister? — A voz de Luella refletia uma nítida
provocação.

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— De modo algum, madame. Mas não me isento de lutar para mudar o que precisa ser
mudado!
— E acredita que mudará uma situação, desrespeitando as leis?
— Não tenho a menor dúvida, madame. É um fato da vida.
— Minha filha está criando estas meninas para obedecerem as leis. Todas as leis!
Enraivecida, Luella enfiou a agulha com tanta força no tecido que picou o dedo. Sufocando
uma exclamação de dor, voltou a concentrar-se na costura.
— Então, elas terão uma educação admirável. Minha mãe também seguia essas normas. Mas o
meu pai sempre foi um tanto rebelde e me ensinou a sempre questionar os fatos e as leis.
Algo mudara na voz de Quin. Embora ele continuasse a sorrir, enquanto distribuía as cartas
para uma nova partida com as meninas, seu olhar refletia a dureza do aço.
Jen e Becky ergueram a cabeça para fitá-lo e, na cozinha, Cassie o encarou, parando de cuidar da
massa.
— Muitas vezes, o simples ato de questionar nos leva a descobrir que ninguém sabe o porquê
das coisas. Dizem-lhe que foi sempre assim, mas isso não é uma resposta válida. Nesta vida, precisamos
desafiar, fazer indagações coerentes. E, quando vemos uma injustiça, devemos de lutar para corrigi-la…
Ainda que tenhamos de pagar o preço mais alto.
— E qual é esse preço? — perguntou Jen, sem compreender o simbolismo.
— A Bíblia nos explica isso — interferiu Cassie, fazendo com que todos se virassem para fitá-la.
— Não existe maior prova de amor de um homem do que dar a sua vida por outro ser humano.
Atravessando a sala, ela colocou o braço sobre os ombros da filha, mas seu olhar permanecia
fixo em Quin.
— O preço mais alto é arriscar sua vida, lutando por uma causa nobre, mesmo se essa causa
não for considerada popular pela maioria.
Ao erguer a cabeça, Becky notou o olhar entre sua mãe e Quin. Em seu lugar junto da lareira,
Luella também viu e seus lábios se contraíram, num ríctus de contrariedade.
Finalmente, Cassie decidiu que era a hora de encerrarem os jogos. Chamando as filhas,
acompanhou-as para o quarto e, momentos depois, ouvia-se apenas o murmurar das preces infantis que
chegavam até a sala silenciosa.
— Ela é muito bonita, não?
Sobressaltado, Quin virou-se e viu que Luella o encarava friamente.
— Percebo que é um homem sofisticado e com muita experiência — prosseguiu Luella, ao
verificar que Quin não pretendia responder sua pergunta. — Minha filha jamais conheceu ninguém
como o senhor.
Ele guardou o baralho e esperou. Era evidente que Luella vinha se contendo desde sua chegada
e decidira revelar seus sentimentos.
— Cassie está sozinha há um bom tempo. — Luella guardou a cesta de costura e se concentrou
na tarefa a que se propusera. — Os longos anos da guerra e a interminável doença de Ethan a forçaram
a assumir deveres e tarefas que não são próprias para jovens mulheres.
— E parece dar conta de tudo muito bem.
— Mas não é a vida que sonhei para ela.
— A guerra alterou muitas vidas, madame.
— Algumas mais do que outras. — Certificando-se que a filha ainda continuava no quarto das
meninas, Luella prosseguiu em voz baixa. — Cassie nem sequer imagina de que forma sua beleza afeta
os homens. Mesmo quando era quase uma menina, em Atlanta, muitos rapazes começaram a prestar
atenção demais em minha filha. Então, surgiu Ethan, que pertencia a uma das melhores famílias da
Geórgia.
Luella massageou as costas doloridas e suspirou.
— Sempre soube que Cassie, ainda poucos meses antes de seu décimo quinto aniversário, não
estava pronta para o casamento. Mas uma oportunidade como aquele não aparece duas vezes na vida de
uma mulher. Portanto, quando Ethan insistiu em se casar com ela, eu e meu marido decidimos
concordar, certos de que nossa filha seria uma esposa leal e amorosa.

37
Por um instante, os olhos de Luella brilharam e Quin teve certeza de que ela relembrava um
passado de glória.
— Ethan lhe construiu uma magnífica mansão, com dezenas de empregados. Todos os móveis
vieram da Europa… Renda belga para as cortinas, cristais irlandeses e prataria inglesa. Ah! Que bailes
gloriosos! Era uma vida digna de uma rainha. Todas as minhas amigas ficaram morrendo de inveja…
Quin imaginava que a última declaração de Luella tinha uma grande importância para ela.
— Compreendo que seja uma profunda decepção viver numa cabana primitiva e ver sua filha
lutando para salvar esta parcela de terra, perdida num local distante e hostil. Entendo que tenha uma
atitude protetora em relação a Cassie.
— Ela ainda é minha filha, Sr. McAllister. Embora eu questione a sabedoria de suas decisões, a
apoiarei no que for preciso. — Vendo que Cassie acabava de cobrir as meninas, Luella se apressou. —
Só quero que entenda um pequeno detalhe. Apesar da vida luxuosa do passado, minha filha não tem a
menor sofisticação. Uma mulher jovem como ela pode confundir solidão e gratidão com amor. Fui
bastante clara?
— Absolutamente clara, Sra. Chalmers. Levantando-se da cadeira, ela o fitou com fúria.
— Uma mulher como Cassie não tem qualquer defesa contra um homem do seu tipo.
Enquanto Luella se dirigiu para o quarto das netas, suas últimas palavras ecoavam em sua
mente. Um homem do seu ripo.
Apanhando o casaco, ele saiu da cabana, concentrado em seus pensamentos. Quando Cassie
voltou à sala, vinda do quarto das filhas, a fim de preparar a cama de Quin, não mais o encontrou.
Pela janela, avistou-o na varanda, acendendo um charuto. A luz do fósforo iluminou sua
fisionomia tensa e sombria. Cassie antecipara alguns minutos de conversa tranqüila com Quin,
perguntando-lhe quais as leis que considerava injustas e como esperava mudá-las. Entretanto, diante de
sua fisionomia carregada, decidiu que não era o momento ideal.
Desapontada, arrumou a cama de Quin e depois apagou as velas e os lampiões, deixando a sala
apenas iluminada pela luminosidade rubra das brasas da lareira.
Era nesse momento, após o longo dia de trabalho que a solidão se tornava mais difícil de
suportar. No silêncio da noite, ela sentia falta das intermináveis conversas íntimas, do partilhar de idéias
num ambiente de sereno companheirismo.
Cassie estremeceu ao lembrar que Ethan definira o casamento deles como a união de duas
almas. Embora fosse um homem sem grandes paixões, compreendia e respeitava as da esposa.
A maior paixão de Cassie sempre fora a família. O período de escola, nas mãos de freiras
francesas no convento de Notre Dame du Lac, abrira seus olhos para as maldades e os pecados do
mundo, mas, sendo uma filha e uma esposa cumpridora de seus deveres, sufocara suas dúvidas e
inquietações, devotando-se às tarefas que considerava essenciais para ser a mulher perfeita de acordo
com seus princípios.
No início de sua vida de casada, uma dessas funções era a vida social que se rivalizava com a da
realeza européia. Durante e depois da guerra, tivera de se ocupar única e exclusivamente com a
sobrevivência de sua família.
Agora, sua monótona existência sofrerá um impacto que prenunciava a mudança. A atitude de
Quin sobre a vida, tão apaixonada e participante, tocara uma emoção que sempre permanecera
escondida muito no fundo de seu coração.
— Pensei que já tivesse ido dormir.
A voz de Quin, interrompendo seus pensamentos, a sobressaltou. Estivera tão concentrada em
si mesma que não percebera a entrada dele na sala.
— Mais uma vez, conseguiu me assustar, Sr. McAllister. A luz da lareira, os cabelos de Cassie
brilhavam como chamas cintilantes e ele sentiu um desejo quase incontrolável de tocá-los. Então,
lembrou-se das palavras de Luella.
— E, mais uma vez, eu a encontro perdida em seus pensamentos, madame.
Cassie fascinou-se com o sorriso irreverente que curvava ligeiramente os cantos daquela boca
sedutoramente máscula, o brilho malicioso, sempre a atenuar o mistério de sues olhos negros. Como
poderia ter imaginado que aquele aventureiro fosse um homem de paixões tão intensas? As palavras da

38
mãe voltaram à sua mente, atormentando-a. Quin era um jogador, sem raízes, e sua única e verdadeira
paixão era vencer.
— Já é tarde, Sr. McAllister. Boa noite.
— Boa noite, madame.
Quin colocou as mãos atrás das costas para evitar o impulso incontrolável de tocá-la. Cassie
passou ao seu lado e, antes de entrar no quarto, se voltou para ele, com um sorriso meigo.
— Não tenho palavras para exprimir o quanto me sinto grata por ter ficado conosco, a fim de
nos ajudar a enfrentar um problema tão sério. i
— Eu não quero a sua gratidão, Sra. Montgomery — resmungou ele, com a voz mais agressiva
do que gostaria
Virando-se de costas para Cassie, Quin fixou os olhos nas chamas da lareira. As palavras de
Luella continuavam gravadas em sua mente como marcas indeléveis. Cassie seria mesmo tão
inexperiente a ponto de confundir gratidão com amor?
Num gesto que refletia fúria e frustração, Quin jogou o charuto entre as chamas da lareira.

39
SETE

Na completa escuridão do quarto, Cassie se esforçava para manter a distância as angústias que a
atormentavam. Logo ao adormecer, sonhara com Ethan, que insistia em lhe relembrar a promessa feita
pouco antes de sua morte. Então, a imagem do marido se desvanecera, dando lugar à de Cyrus Stoner,
com uma pistola apontada para o coração de Jennifer. Seus apelos por misericórdia tinham provocado
apenas uma gargalhada cruel. Ela acordou assustada, com o coração aos pulos e a camisola ensopada de
suor frio.
Embora a madrugasse ainda não estivesse prestes a raiar, ela não conseguiria mais continuar na
cama. Precisa se ocupar, concentrar-se em alguma tarefa doméstica a fim de não pensar nas ameaças de
Cyrus Stoner.
Aquele homem realmente acreditava que a encontraria de malas prontas e preparada para
abandonar seu lar apenas porque ele o ordenara? Cassie sentiu um arrepio de temor percorrer seu
corpo, antecipando a confrontação. Apesar das tentativas de sua família em demonstrar coragem, não
tinham armas suficientes para enfrentá-lo. Quantos capangas traria consigo? Até que limite de violência
seria capaz de exercer?
Ela sempre acreditara que, após o brutal e prolongado cerco de Atlanta, nenhuma outra
situação teria o mesmo poder de colocá-la à beira de um terror absoluto e descontrolado. Mas, naquele
momento de im¬precisão entre fim de noite e início de madrugada, sentira-se novamente sufocada
pelos antigos pânicos.
E se Stoner cumprisse as ameaças? E se a sua teimosia obstinada em permanecer naquela
fazenda primitiva acabasse por destruir um dos seres que amava? Mais uma vez, sentiu a incerteza
angustiante de não saber se a sua decisão seria a certa. Teria o direito de colocar a mãe, que já sofrerá
tanto, e também suas inocentes filhas, em uma situação de perigo iminente?
Jogando para longe as cobertas, atravessou o quarto, sem se preocupar em vestir os chinelos,
que a protegeriam do frio que emanava do chão de tábuas, e foi preciso quebrar o gelo da bacia sobre a
cômoda a fim de lavar o rosto. Cassie tremia convulsivamente, mas sabia que não se tratava apenas de
um fenômeno físico. Seus nervos estavam à flor da pele, esticados como uma corda de violino,
segundos antes de se romper por excessiva tensão.
Com movimentos rápidos e nervosos, tirou a longa camisola de flanela grossa e apanhou um
vestido de lã creme, com mangas compridas e um modesto decote. Era sua roupa melhor mas, naquele
dia que talvez significasse uma mudança radical em sua vida, precisava de algo especial para levantar sua
moral. Prendendo a longa cabeleira com duas delicadas fivelas de marfim, as únicas peças que haviam
restado de um passado de elegância e requinte, jogou um xale sobre os ombros.
O simples ato de arrumar a cama, uma tarefa diária que só aprendera a realizar após a guerra,
recuperou ligeiramente a sensação de normalidade em sua vida. Como pensar no perigo diante da
segurança de uma imutável rotina doméstica?
Segundos depois de terminar a arrumação do quarto, ergueu a cortina que servia de porta e viu
Quin, parado junto da janela, com o rifle nas mãos. Ele já se barbeara e algumas gotas de água ainda
brilhavam sobre seus cabelos negros.
— Passou a noite inteira acordado? — perguntou ela, em voz baixa para não acordar a mãe e as
meninas.
Ao virar-se de frente para Cassie, Quin prendeu a respiração, fasci¬nado com a visão de uma
beleza que não pertencia ao seu mundo e, muito menos, ao ambiente primitivo do território de
Montana. Vestida inteiramente de branco, ela parecia uma criatura etérea, quase angelical, se não fosse a
excitante cabeleira ruiva, caindo sobre suas costas numa cascata de cachos rebeldes e despertando uma
imagem de sensualidade terrena.
— Dormi algumas horas. Entretanto, decidi ficar alerta pois talvez Stoner e seus homens
tentem nos surpreender com uma visita em plena madrugada.
Cruzando a sala, Cassie parou ao lado dele, diante da janela.
— Viu algum sinal deles?
— Nenhum.

40
A proximidade de Cassie lhe permitia sentir o leve aroma da água de rosas e o calor do corpo
jovem que ele ansiava por tomar nos braços.
Assustado, percebeu-o hesitante renascer de sentimentos que julgara desaparecidos para
sempre.
— Acha que eu posso ir até o estábulo em segurança? Preciso trazer leite para as crianças.
— Acho que sim, mas prefiro ir com você.
Os dois vestiram seus pesados casacos com capuz e saíram da cabana na escuridão gelada que
precedia a aurora. A crosta endurecida da neve refletia o brilho das estrelas e um vento frio e puro
trazia os perfumes agrestes da floresta aos pés da colina.
Dentro do estábulo, o calor dos animais intensificava o aroma de estéreo, feno cortado e terra
úmida. As galinhas, acordando com a entrada dos dois, trançavam entre seus pés, esperando o farelo de
milho. A vaca mugiu suavemente e Cutter ergueu a cabeça. O dia de trabalho se iniciara.
Cassie e Quin se ocuparam de suas tarefas, num silêncio cúmplice de companheiros que
trabalhavam juntos há muito tempo. Ambos sentiam que a necessidade de usar o físico ajudava a aliviar
a crescente tensão. Uma tensão provocada pela certeza de que iriam enfrentar, em alguma hora daquele
dia, um inimigo determinado a destruí-los sem remorsos.
Foi Quin quem quebrou o silêncio.
— Pensei muito sobre o assunto e acho que você e sua mãe deviam levar as crianças consigo e
se esconder em um lugar seguro.
Ela o fitou, surpresa diante daquela sugestão absurda.
— Se eu me esconder, quem impedirá Stoner de se apoderar de minha casa, de minha
propriedade?
— Eu cuido de Stoner.
Cassie levantou-se tão abruptamente que derrubou a banqueta em que se sentara para ordenhar
a vaca.
— Não tenho a menor intenção de abandonar meu lar.
— Eu não estou sugerindo que abandone seu lar. Apenas… Que se mantenha longe da vista até
depois da partida dele.
— Acha que eu devo me esconder, como uma covarde, enquanto você fica e enfrenta Stoner e
seus capangas sozinho?
— Já me vi em situações bem piores.
Colocando as mãos na cintura, Cassie se aproximou de Quin.
— Este é o meu lar, Sr. McAllister. E também é o meu problema. Nada me convencerá a fugir,
deixando que outros lutem as minhas batalhas.
Incapaz de conter a raiva e a frustração, Quin a segurou pelas lapelas do casaco.
— Então, tenha um mínimo de sensatez e tire as crianças da linha de fogo, caso ocorra um
tiroteio!
Quin viu o brilho de medo nos olhos de Cassie e sentiu ainda mais raiva de si mesmo por ter
sido tão brusco. Por que, nos momentos de maior perigo, quando a necessidade de palavras
reconfortantes era vital, nunca havia tempo para pronunciá-las?
— Não há nenhum lugar seguro onde possamos escondê-las? — perguntou ele, num tom mais
suave.
Cassie percebeu a canhestra tentativa de Quin em ser mais gentil e sentiu sua raiva se
desvanecer.
— Talvez… A mina…
— Fica muito longe daqui?
— Venha comigo, Sr. McAllister. Acho que chegou a hora de lhe mostrar.
Empunhando o rifle e levando o pesado balde de leite, ele a seguiu para fora do estábulo.
Quando a viu caminhar na direção da cabana, ficou perplexo.
— Pensei que fosse me levar até a mina.
— E é exatamente para onde iremos.

41
Sorrindo, Cassie entrou na cabana e, cruzando a sala até perto da porta de seu quarto, removeu
um tapete de lã grossa, tecido em tear manual, e lhe mostrou um alçapão quase imperceptível para
olhos de¬satentos.
— A entrada da mina é por aqui.
Depois de apanhar um lampião, Cassie ergueu o alçapão, revelando uma tosca escada de
madeira. Quin desceu em primeiro lugar e logo se encontrou em um túnel estreito e escuro.
— Mas por que Ethan construiu sua casa bem em cima da mina? — perguntou ele, perplexo.
A voz de Cassie soava as suas costas.
— Não é isso. Na verdade, a mina fica do outro lado da montanha, perto da floresta. Ethan
escavou um outro poço para conduzi-lo até a parte principal pois, dessa forma, poderia ir e vir, sem ser
observado por ninguém.
— Então, ele realmente acreditava no potencial desta mina.
— Era uma convicção inabalável. Ethan jamais perdeu as esperanças de que iria encontrar uma
fortuna.
Subitamente, o estreito túnel se dividia em dois — Por onde devemos seguir?
— Não tenho a menor idéia. Ethan não nos deixou nenhum mapa.
Entretanto, o local em que estava trabalhando antes de morrer era por aqui.
Quin seguiu Cassie até um espaço maior de onde saía um verdadeiro labirinto de túneis.
— Ethan escavou todos estes túneis?
— A maioria deles já existia. Ao descobri-los, Ethan se convenceu que esta era a mina sobre a
qual ouvira falar quando criança. Um velho, que o pai dele recebeu em casa por piedade, contou-lhe
inúmeras histórias e, já agonizante, lhes deu um mapa.
Cassie colocou o lampião em um ressalto escavado na pedra antes de prosseguir.
— Ethan e o pai conversaram muitas vezes sobre vir à procura do tesouro mencionado pelo
velho moribundo mas… Nunca chegava o momento adequado. Para um garoto da Geórgia, o território
de Montana ficava mais longe do que o fim do mundo.
— Estou realmente impressionado — declarou Quin, olhando ao seu redor.
— Meu marido ficaria feliz em ouvir isso. Ethan considerou o advento da guerra e a amizade
entre vocês dois como sendo os elementos responsáveis por sua vinda para Montana. Diante da
destruição de nosso lar, viu-se forçado a virar as costas para o único mundo que conhecera e amara.
Então, lembrou-se das conversas no campo de prisioneiros e de suas palavras, convencendo-o de que
um homem precisa ter a coragem de arriscar tudo para lutar pelas verdades nas quais realmente
acredita. Jurou-me que, sem a sua força de pensamento, jamais encontraria a coragem necessária para
perseguir seu sonho. Como deve saber, o temperamento dele era avesso a todo o tipo de aventuras.
— Para um homem que não gostava de correr riscos, Ethan deu um passo em grande estilo. —
Quin encarou Cassie. — E você? Não teve a oportunidade de dar sua opinião sobre cruzar o país a
caminho de um território primitivo? Ou concordou em vir se estabelecer no meio desta região inóspita?
— Creio que eu conseguiria dissuadir Ethan mas… Era o sonho dele e não me julguei com o
direito de interferir. Além disso — ela enrubesceu, continuando em voz mais baixa — passei toda a
minha vida fazendo apenas o que era certo e agindo com absoluto bom senso. Fui sempre uma filha
exemplar e depois esposa ideal e mãe perfeita. Talvez, em meu íntimo, existisse essa vontade impulsiva
de tomar uma atitude completamente inesperada.
A admissão de Cassie surpreendeu Quin. De alguma forma, havia uma semelhança entre ele e
essa mulher.
— Não podia ter escolhido algo menos perigoso até satisfazer essa vontade súbita de ir contra o
sistema estabelecido? — Ele enrolou um dos sedosos cachos ruivos em seu dedo. — Como flertar com
o pregador ou tomar o uísque de Ethan?
Ela riu alegremente e o som, jamais ouvido por Quin, lhe pareceu ter a doçura do mel e o
borbulhar do champanhe, inebriando seus sentidos. Para sua surpresa, desejou ser capaz de sempre
despertar aquele brilho cativante nos olhos verdes de Cassie.
— Eu experimentei o uísque de Ethan.
— Com efeito, Sra. Montgomery! Que ousadia a sua!

42
— E descobri que detestava o gosto. — Ela riu maliciosamente. — Quanto ao pregador de
nossa igreja na Geórgia… Ele não tinha os dois dentes da frente e seu riso parecia o relinchar de uma
mula. Na verdade, as mulas são mais simpáticas do que o reverendo Poindexter.
Quin não conteve uma gargalhada e, encostando sua testa à dela, continuou a rir alegremente.
— Sem qualquer sombra de dúvida, você é a criatura mais encantadora que já tive a boa sorte
de encontrar, Sra. Montgomery.
Cassie também sorria, mas sua descontração se desvaneceu quando ele segurou-lhe o rosto
entre as mãos.
— E também a mais bonita.
— Não… — murmurou ela, pressentindo o beijo.
Mas já não havia tempo para palavras pois até seus pensamentos pareciam desaparecer,
deixando-a desorientada e entregue à força dos sentidos.
Os lábios de Quin se apossaram dos dela, suaves mas firmes, e a seduziam com a habilidade de
despertar desejos desconhecidos.
Ela percebeu o brilho de intensa paixão nos misteriosos olhos negros e, por um instante,
pensou em fugir daquela carícia perturbadora. Então, por que se sentia incapaz do menor movimento,
como se estivesse presa em uma armadilha fatal?
— Sr. McAllister…
— O meu nome é Quin, Cassie — murmurou ele, desenhando o contorno dos lábios delicados
com a ponta dos dedos. — Já ultrapassamos as formalidades.
Então, ele a tomou nos braços, revelando uma paixão assustadora. Cassie se apavorou diante de
uma realidade que desconhecia. Tinha medo da paixão contida daquele homem que acabaria por ceder
à força do desejo e medo de corresponder com igual intensidade. Com a rapidez de um raio, o temor
foi suplantado por uma emoção mais forte.
Ela também tinha desejos que não ousara admitir até aquele momento, desejos tão potentes que
a deixavam trêmula. O toque sensual de Quin despertara ânsias que exigiam ser satisfeitas.
— Nós não podemos…
— Nada nos é proibido, Cassie.
Finalmente, Quin a beijou com um ardor que anulava toda a sua capacidade de resistir. Nada
mais existia além daquele momento de intenso prazer.
Os lábios se buscavam com crescente volúpia e Quin perdera o controle de seus desejos. Queria
possuir Cassie sobre o chão de terra de um túnel perdido no centro da terra, despertando-a para um
prazer inebriante.
Cassie também sentiu que não podia mais se privar de tanto prazer. Em seu íntimo, ânsias,
desejos e a vontade de descobrir um novo mundo onde reinavam apenas os sentidos lutavam por se
libertar. Seria tão fácil esquecer-se de tudo que não fosse a felicidade de ser possuída por Quin.
Naquele mundo hostil e gelado, os beijos dele ofereciam os tesouros do verão, as delícias de um
jardim de sensualidade sem freios. Mas, apesar do desejo, ainda restava uma nuança de sensatez na
mente de Cassie e ela reagiu contra um passo que não teria mais volta.
— Não, Quin. Nós temos que sair daqui ou…
Os dois se afastaram ligeiramente e Quin não escondia sua incapacidade de recuperar o
controle. Antes que ele a beijasse de novo, Cassie se soltou de seus braços.
— Vamos voltar. Minha mãe e as meninas já devem ter acordado. O mundo que ficara na
superfície da terra desfazia a situação de mágico isolamento e os forçava a encarar os problemas
daquele dia.
— Eu irei na frente — murmurou ele, reconhecendo que Cassie tinha razão.
Erguendo o lampião, ele notou que suas mãos tremiam e culpou o terreno acidentado do túnel
por sua falta de firmeza. Entretanto, era impossível negar que ainda sentia o sabor dos lábios de Cassie.

43
OITO

Luella e as duas meninas estavam agrupadas na frente da lareira, já vestidas com as roupas que
haviam sido colocadas para aquecer junto ao fogo, e as três se voltaram ao ouvir o barulho do alçapão
se abrir.
Enquanto Cassie apagava o lampião, Quin enfrentou os olhares que lhes faziam perguntas
silenciosas.
— Por que foram até a mina? — indagou Luella.
O tom de dela era tão cheio de suspeitas que Cassie se sentiu enrubescer.
— Eu queria saber se o local oferecia segurança para as crianças — respondeu Quin,
percebendo o embaraço de Cassie. Imediatamente a expressão de Luella se suavizou.
— Então… Está esperando um tiroteio?
— Com homens do tipo de Cyrus Stoner, nunca se sabe o que esperar. É sempre mais prudente
se preparar para o pior.
— Nada mais me causa surpresa — resmungou Luella e, enrolando a mão num pano de prato,
retirou o bule de café do fogo. — Sentem-se. Vamos nos alimentar bem para enfrentar este dia.
Provavelmente, logo teremos companhia.
Cassie sentiu-se ganhar forças diante da estóica aceitação do perigo por Luella. Enquanto se
sentava à mesa, só desejou poder poupar suas filhas daquele confronto.
— Gostaria de conduzir nossas preces desta manhã, mãe? Quando todos se deram as mãos,
ouviu-se a voz de Luella ecoar na cabana, com a firmeza de um pregador.
— Abençoe esta comida, Senhor. Proteja Seus humildes servos. Neste dia, em que
enfrentaremos nossos inimigos, conceda-nos a sabedoria de Salomão e a força de Davi que venceu o
poderoso Golias.
Após o coro de améns, ela serviu bolinhos, ovos mexidos e grossas fatias de carne frita.
Cassie e Luella começavam a tirar a mesa quando se ouviram sons de cavalos se aproximando.
Seguindo a liderança de Quin, as duas mu¬lheres agarraram os rifles.
— Jennifer e Rebecca — chamou Cassie, em voz baixa. — Quero que desçam para a mina.
— Mas mamãe…
— Não há tempo para discutir, Jennifer. Apressem-se!
Quin abriu o alçapão, entregando-lhes dois cobertores e o lampião. Quando as duas meninas já
estavam na escada, Cassie ajoelhou-se no chão para beijar as filhas, tentando disfarçar a emoção.
— Não importa o que ouçam, continuem escondidas lá em baixo, entenderam? Não subam
enquanto nós não as chamarmos.
— Por quanto tempo, mamãe? —' perguntou Rebecca, apavorada.
— Esperem até a noite cair, Rebecca. Então, peguem o cavalo e vão para o vilarejo.
— Mas…
— Desçam logo — ordenou Cassie, com uma autoridade nascida do medo.
Depois de ver que as duas já haviam descido a escada, Quin fechou o alçapão e recolocou sobre
ele o pesado tapete de lã.
— Sra. Chalmers — chamou ele, num sussurro. — Não fique junto da janela. Venha colocar-se
na frente da mesa da cozinha.
— Sra. Montgomery? — A voz de Stoner vinha de bem perto da porta da cabana. — Está
pronta para partir?
Quin abriu uma fresta da porta para observar quantos inimigos teriam de enfrentar.
— Ele está sozinho, mas talvez seus capangas tenham se colocado em toda a volta da cabana.
Permitindo que Quin a protegesse, ficando na sua frente, Cassie se manifestou.
— Onde estão seus homens, Sr. Stoner?
— Dei-lhes ordens para ficarem entre as árvores da colina até que a senhora concedesse
permissão para a sua aproximação.
Surpresa, Cassie fitou Quin com um olhar de desconfiança.
— Acredita nele?

44
— Ainda não percebi bem qual é o jogo de Stoner, mas talvez ele esteja falando a verdade.
— Trouxe-lhe os quinhentos dólares — prosseguiu Stoner. — Está pronta para aceitar minha
oferta, Sra. Montgomery?
Cassie ia dar um passo à frente, quando Quin a segurou com firmeza.
— Não apareça ainda. Apenas dê sua resposta.
— Sinto muito, Sr. Stoner.
Cassie mal podia acreditar na firmeza de sua própria voz que não revelava o menor sinal do seu
pavor. Talvez fosse por causa da presença de Quin ao seu lado, silenciosa e forte, ou do toque da mão
em seu braço, transmitindo-lhe coragem.
— Eu decidi não aceitar a sua oferta. Eu e minha família nos sentimos felizes aqui e queremos
continuar vivendo na casa que meu marido construiu para nós.
— Pois eu acho que a senhora não me entendeu.
A voz de Stoner permanecia calma e persuasiva, enquanto ele desmontava do cavalo e se
aproximava da cabana. Ao empurrar a porta, viu os rifles apontados em sua direção e ergueu os braços.
— Que recepção pouco hospitaleira — zombou ele. — Não vim até sua casa para iniciar uma
batalha, apenas para torná-la uma mulher mais rica, Sra. Montgomery.
Com gestos lentos, ele retirou um maço de notas do bolso de fora do casaco e estendeu-o na
direção de Cassie.
— É dinheiro suficiente para que a senhora construa uma bela casa em Prospect, onde suas
crianças terão condições de freqüentar a escola, além de fazer amigos, e sua mãe poderá ir à igreja nos
domingos e conversar com as vizinhas todas as horas que lhe aprouver.
Será que Stoner tinha noção de haver descrito o paraíso para todas elas? Lutando para não
pensar em uma vida tão mais rica, ela voltou a repetir seu único argumento.
— Nós gostamos daqui, Sr. Stoner.
Ele olhou ao seu redor, sorrindo cinicamente.
— E quem não gostaria? E uma construção sólida e firme. Na verdade, parece menor porque
vocês são muitos para um local tão diminuto mas… Tenho certeza de que um homem como Quin
McAllister não ficará muito tempo por aqui.
Stoner percebeu que havia tocado num ponto vital. Cassie olhou para Quin, revelando temor e
insegurança.
Ela desviou logo os olhos, sabendo que aquela discussão estava acontecendo apenas por causa
da presença de Quin, com sua arma. Se não fosse assim, Cyrus Stoner já as teria expulsado da cabana
no dia em que descobrira o túmulo de Ethan.
— Logicamente, qualquer pessoa pode ver que há muito espaço para aumentar as construções
da fazenda. — Stoner continuava a falar no mesmo tom amigável, com uma leve ironia. — Desde que
se esteja disposto a rechaçar ataques de índios, derrubar florestas para abrir lavouras e sobreviver à
natureza hostil. E isso que deseja para si mesma, para uma mulher velha e duas crianças indefesas, Sra.
Montgomery?
— Como posso resistir depois de sua descrição convidativa, Sr. Stoner? — respondeu ela,
ignorando as verdades que acabara de ouvir.
— Talvez sinta que precisa de mais dinheiro. — Do outro bolso, ele retirou mais um maço de
notas. — Acrescentarei mais trezentos dólares só para lhe mostrar que sou um homem generoso.
Stoner notou o olhar de Cassie sobre o maço de notas que lhe estendia. Tinha prática suficiente
em negociar para reconhecer os sinais de fome, desespero e ânsia por uma vida melhor. Se conseguisse
que ela pegasse o dinheiro nas próprias mãos, venceria a parada.
— Não se acanhe, Sra. Montgomery. Conte o dinheiro para ter certeza de que está certo.
Durante alguns segundos, ela permaneceu imóvel, fitando as notas na mão de Stoner. Então,
endireitando o corpo, numa postura altiva, recuou dois passos.
— Não, Sr. Stoner. A minha propriedade não está a venda… Por preço algum.
Ao lado dela, Quin sentiu uma profunda admiração pela coragem de Cassie, sabendo que
poucos resistiriam a tal oferta.

45
Cerrando os punhos de fúria, Cyrus Stoner lutava para se controlar. Tivera esperanças de atingir
seu objetivo de maneira civilizada e aquela mulher teimosa o forçava a recorrer a seu segundo plano.
Encolhendo os ombros, num gesto de nítido exagero, ele guardou o dinheiro e tocou a aba do chapéu.
— Esta foi minha última oferta. Não a perturbarei mais, Sra. Montgomery.
Atônita diante da reação pouco violenta de Stoner, Cassie o viu caminhar na direção do cavalo.
Ela esperara gritos, ofensas e um tiroteio!
— Ah… Eu ia me esquecendo — disse ele, já montado. — Meus homens encontraram uma
vaca atrás de seu estábulo. Espero que não seja a sua.
— Atrás… — ela saiu da cabana, pressentindo o pior. — O que quer dizer com isso?
— A vaca estava morta, dona. — Pensando nos homens que apenas esperavam pelo seu sinal,
ele deu um sorriso maldoso. — Gostaria que a trouxessem até aqui para se certificar?
Antes que Cassie pudesse responder, Stoner deu três tiros para o ar. O som ecoou entre as
montanhas cobertas de neve e. Só depois de algum tempo, dois homens surgiram entre as arvores da
colina, arrastando um animal atrás de seus cavalos.
Quando se aproximaram, Cassie reconheceu sua vaca e, esquecendo-se de tudo o mais, correu
na direção dos cavaleiros, seguida por Quin e Luella.
Quin ajoelhou-se na neve e examinou, os ferimentos do animal que fora morto há poucos
minutos, provavelmente após os tiros de Stoner. Ainda corria sangue dos cortes no pescoço e no
ventre.
— Acho que a pobre vaca teve um encontro com algum lobo — comentou Stoner,
sarcasticamente.
— Nunca vi nenhum lobo capaz de cortar um pescoço com a precisão de uma faca — declarou
Quin, ficando novamente de pé.
— Além disso, eu a ordenhei há menos de uma hora — acrescentou Cassie, trêmula de raiva.
— Deixei-a presa em uma baia no estábulo.
— Quem sabe os índios tenham invadido seu estábulo e roubado a vaca? Ouvi dizer que os
Crow roubam de tudo!
— Acha que eles cortariam o pescoço da vaca? — perguntou Quin, num tom de voz baixo que
aumentava a sensação de perigo.
— Parece que sim.
— Índio algum desperdiçaria uma animal tão precioso quanto uma vaca. Eles reconhecem o
valor do leite e da carne. Não a deixariam para ser devorada pelos lobos.
Ignorando Quin, Stoner voltou-se para Cassie.
— Entre os lobos e os índios, a senhora vai ter muitos problemas, dona. E espero que não ache
os invernos do território de Montana impossíveis de suportar.
O cavalo de Stoner já se afastara alguns passos da cabana, quando ele o deteve e se virou, com
um sorriso de evidente satisfação.
— Avise-me se mudar de idéia e decidir aceitar minha proposta a fim de ir embora daqui, Sra.
Montgomery. Logicamente, o preço será bem menor do que lhe ofereci hoje, mas eu posso ajudá-la a se
livrar destas terras inúteis e mal localizadas. — Então, ele se virou para Quin, sorrindo. — Soube que é
um jogador, McAllister. Se quiser um companheiro amigável para algumas rodadas de pôquer, venha
até minha fazenda. Não tem como se enganar porque é a maior desta região.
Finalmente, ele partiu a galope, seguido por seus capangas, deixando Cassie e Luella paralisadas
diante do animal morto.
Com os olhos cheios de lágrimas, Cassie pensou na quantidade de leite que poderia comprar
com o dinheiro oferecido por Cyrus Stoner. Então, lembrou-se da promessa feita ao marido e passou a
mão no rosto com um gesto brusco, para secá-lo. Erguendo a barra das saias, caminhou de volta para a
cabana.
— Vou avisar as crianças que já podem sair da mina. Ao voltar, trarei facas. Precisamos
trabalhar depressa ou a vaca ficará congelada e não conseguiremos mais aproveitar a carne.
Quin a encarava, com crescente admiração. Cassie Montgomery era mais forte do que sugeria
sua frágil aparência. Iria ser preciso bem mais do que ameaças e intimidações para afastá-la de suas

46
terras. Entretanto, ele sabia que a morte da vaca fora apenas o começo. Quanto mais aquela mulher
teria de sacrificar a fim de cumprir a promessa feita a Ethan?
— Quanto leite sobrou, mamãe? — perguntou Rebecca, enquanto tirava a louça da mesa, após
o jantar.
— O suficiente para um ou dois dias.
— E depois?
Cassie fugiu do olhar da filha.
— Depois… Não sei.
— Crianças em fase de crescimento precisam de leite — acrescentou Luella, sem disfarçar uma
leve nuança de reprovação.
— Eu sei disso, mãe. — Cassie sentiu uma súbita onda de impaciência, enquanto começava a
lavar os pratos. — Ainda teremos muitos ovos e bastante carne. Daremos um jeito…
Preparando-se para secar os pratos, Luella encarou Quin, com um olhar de curiosidade.
— Como Cyrus Stoner soube que o senhor era um jogador? Quin ergueu os olhos de uma sela
que começara a consertar. A julgar pelo péssimo estado de conservação dos utensílios e ferramentas da
fazenda, a saúde de Ethan estivera em pior estado do que ele deixara Cassie perceber. Tudo, desde o
arado até a carroça, parecia prestes a se desintegrar.
— Eu também fiquei intrigado, madame. Aparentemente, Stoner se preocupou em descobrir
tudo que era possível a meu respeito.
— E por quê?
— Um pistoleiro precisa sempre conhecer, a fim de avaliar, os seus adversários. Tenho certeza
que também reuniu informações sobre vocês, procurando por um ponto fraco.
— Essa possibilidade não me agrada nem um pouco! — exclamou Luella, indignada. — Só de
pensar em alguém devassando minha vida…
— Não se preocupe com isso, mãe — interferiu Cassie, com suavidade. — A única informação
realmente importante para Stoner é saber que não desistirei de minhas terras.
— Talvez… — Luella hesitou, escolhendo as palavras mais certas e olhando para as netas,
deitadas sobre o tapete em frente da lareira. — Não acha que deveria pensar melhor na proposta dele?
A expressão horrorizada de Cassie apenas aumentou a determinação da mãe.
— Você não é tola e, certamente, já percebeu a determinação de Stoner. Um homem capaz de
matar nossa única vaca, sabendo que temos duas crianças para alimentar, não pensará duas vezes antes
de recorrer a outras formas de derramamento de sangue.
Controlando o tremor das mãos, Luella evitou olhar para a mancha rubra sobre a neve em
frente da cabana.
— Eu sei disso, mãe — murmurou Cassie, lutando contra as lágrimas. — Mas recuso-me a ser
expulsa de meu lar… Mais uma vez. Já fugi demais.
— Nós duas não queremos mais continuar fugindo, filha. — Com maior suavidade, Luella
abraçou Cassie. — Só quero que pense bem nas possíveis conseqüências de sua decisão.
Controlando rapidamente a emoção, Luella aproximou-se das netas, com um sorriso.
— Foi um dia longo demais para todos nós. Acho que está na hora de irmos para a cama,
crianças.
As meninas, sonolentas pelo calor do fogo, nem sequer protestaram contra a ordem e seguiram
a avó para o quarto.
Quin continuou remendando a sela, à espera de Cassie que sempre acompanhava as preces das
filhas antes de retornar para a sala.
Momentos depois, ela voltou e, enchendo uma caneca de café, ofereceu-a a Quin.
— É tudo o que restou.
— Então vamos dividir.
Surpresa e satisfeita, Cassie tomou um gole e a passou para Quin. Abandonando o conserto da
sela, ele aproximou-se da mesa da cozinha.
— Sente-se, Cassie. Você precisa de um plano.
— Um plano… — a voz dela poderia ser uma risada ou um gemido.
— Meu único plano é permanecer nas minhas terras e sobreviver até a chegada da primavera.

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— Quando a primavera vier, todos os seus problemas desaparecerão, como num passe de
mágica?
Ela cruzou os braços, tremendo apesar do calor do fogo bem próximo.
— Na primavera… Farei uma horta e, se ela produzir bem, trocarei verduras e legumes por
uma vaca. Então…
— Então, o quê? — interferiu ele, enraivecido. — Agüentará um novo inverno de privações?
Acha que Ethan queria isso para você e as meninas quando lhe exigiu aquela absurda promessa?
— Não sei! — Ela massageou as têmporas, desesperada. — Já não sei mais nada! A única coisa
realmente importante é que… Sobrevivemos mais um dia.
Com a cabeça baixa, ela levantou-se da mesa e se dirigiu para o quarto.
— Estou cansada demais… Preciso dormir…
Quin a segurou pelo braço, sem qualquer delicadeza, forçando-a a encará-lo.
— Maldição! Não entendeu que precisa planejar, mulher?
— Sr. McAllister! — Ela ergueu a cabeça, indignada. — Nesta casa, ninguém pragueja!
Em outras circunstâncias, Quin teria rido do tom puritano de Cassie, mas estava preocupado
demais com a segurança dela, a ponto de mal controlar suas reações.
— Se você continuar apenas sobrevivendo dia a dia, logo não haverá mais casa nenhuma para
praguejar ou não!
— Tire sua mão do meu braço.
Ele puxou-a para mais perto ainda, até seus rostos quase se tocarem.
— Não a soltarei enquanto não ouvir o que tenho a dizer. Esta situação brutal é apenas um
jogo para Cyrus Stoner e você está deixando-o estabelecer todas as regras.
Soltando-se, Cassie o empurrou, recuando alguns passos.
— Eu nunca soube jogar muito bem, Sr. McAllister.
— Então, está mais do que na hora de aprender!
— E suponho que pretenda ser o meu professor?
Quin a examinou por alguns instantes, admirando a postura altiva e os olhos brilhantes de
desafio daquela mulher de aparência frágil. Sem dúvida, ele gostaria muito de ensiná-la a descobrir a
paixão e, todos os minutos do dia e da noite, precisava controlar o desejo de tomá-la nos braços.
Entretanto, não ousava tocá-la com mais intimidade ou não seria capaz de se conter.
— Começaremos com as lições… Amanhã cedo. Sugiro que descanse bem esta noite, madame.
Apanhando o casaco e a sela que estivera consertando, Quin saiu da cabana, batendo a porta.
Cassie ouviu o som da neve rangendo sob as botas dele e o barulho de sua entrada no estábulo.
Depois, o silêncio voltou a reinar na cabana isolada numa imensidão branca, interrompido
apenas pelos ocasionais suspiros do vento no telhado.

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NOVE

O céu tinha uma coloração acinzentada que prenunciava um dia inteiro de neve fraca. Uma
camada fina e fofa já cobrira a crosta congelada diante da cabana, apagando as manchas de sangue no
local onde a vaca fora deixada pelos homens de Stoner.
Ao sair do quarto, Cassie já encontrou as filhas se vestindo diante da lareira e a mãe terminando
de preparar o café cujo aroma se espalhava pela cabana, um convite para se iniciar o dia com mais
energia e es¬perança.
No canto da sala, a cama de Quin já fora arrumada e na lareira queimava uma acha de lenha
recém colocada.
— Onde está o Sr. McAllister? — perguntou Jen.
— Acho que foi para o estábulo — respondeu Cassie, despreocupada.
— Será seguro sairmos de casa? — indagou Becky, com a testa encostada no vidro da janela,
ainda coberto de gelo.
Cassie apanhou o rifle e chamou a filha mais velha, sabendo que a caçula não precisava de
encorajamento.
— Vamos, Rebecca. Você recolhe os ovos enquanto eu e Jennifer limpamos as baías.
As três começavam a cruzar o espaço entre a cabana e o estábulo quando Jennifer parou,
perplexa.
— Olhem! São marcas de cascos e bem recentes. Parece que o Sr. McAllister saiu, cavalgando
Cutter. Para onde acha que ele foi, mamãe?
— Não tenho a menor idéia — respondeu Cassie, tentando enxergar algum ponto escuro na
imensidão branca que as rodeava até o horizonte mais longínquo.
— Talvez, ele tenha ido embora de vez — sugeriu Becky.
— Oh, não! — exclamou Jen, com uma expressão de surpresa e mágoa. — Ele não teria ido
embora sem nos dizer adeus. Não é verdade, mamãe?
— Claro que não, Jennifer. — Cassie empurrou a porta do estábulo.
— Não creio que ele agisse dessa forma conosco.
— E como pode saber? — insistiu Becky. — Vovó disse que ele não passa de um jogador e
esse tipo não merece confiança. Nunca ficam por muito tempo num lugar só e precisam de excitação
de enfrentar riscos e aventuras. — A voz dela revelava um profundo desdém. — O que há de excitante
neste lugar onde moramos?
— Milhares de coisas! — gritou Jen, na defensiva. — O Sr. McAllister nos ensina truques com
cartas e isso é excitante. E não se esqueça do Sr. Stoner e seus pistoleiros. Eles também…
— Você não sabe nada, Jen. Ainda não aprendeu nem quando deve ter medo.
— Pois o Sr. McAllister não tem medo de Stoner. E nem mamãe! — declarou Jen, com a
confiança dos muito jovens.
— Está vendo como eu tenho razão? Você não sabe mesmo de nada!
— Sei sim! O Sr. McAllister disse que nós teríamos sentido muito orgulho de mamãe se
víssemos como ela enfrentou Cyrus Stoner, ontem.
— Verdade? — Surpresa com o raro elogio, Cassie parou de trabalhar.
— E o que mais ele disse?
— Mais nada de importante. Só que você é muito bonita. Distraindo-se com as galinhas, Jen
não viu o súbito rubor da mãe mas Becky, mais atenta, notou o embaraço materno.
Logicamente, os pensamentos de Cassie, enquanto trabalhava, concentravam-se em Quin e nas
palavras de Luella sobre ele. Não podia culpar a mãe por exprimir suas opiniões, mas começava a não
aceitá-las mais.
A primeira impressão causada por Quin era a de um jogador preocupado apenas consigo
mesmo, sempre pensando onde seria e como venceria sua próxima rodada de cartas. Entretanto, Cassie
pressentia que essa reputação, voluntária mas falsa, apenas escondia o verdadeiro Quin. Um homem
egoísta e voltado apenas para seus próprios prazeres e confortos pessoais, não atrasaria uma longa e

49
penosa viagem a fim de perseguir e caçar um veado para suprir a despensa de estranhos. Nem
permaneceria para ajudar, correndo o risco de morrer nas mãos de Cyrus Stoner.
Ela se lembrava bem das histórias contadas por Ethan depois do final da guerra. O homem que
todos chamavam de Jogador se tornara uma lenda entre os soldados do campo de prisioneiros.
De acordo com Ethan, Quin sempre fora um solitário que nunca se abria com ninguém. Um
homem misterioso que conseguia comida, remédios e cobertores para quem mais precisava… Um
homem duro e capaz de matar sem hesitações.
Alguns o consideravam um espião do norte, enviado para o campo a fim de lhes extrair
segredos sobre as táticas de guerra do sul. Outros o julgavam um traidor, por jogar cartas com o
inimigo. Mas, segundo Ethan, Quin jamais fizera nada para tornar sua própria vida mais fácil. Todos os
seus esforços tinham sido pelo benefício dos prisioneiros menos afortunados.
E agora ele estava no território de Montana, provavelmente a contragosto, e reconhecendo o
perigo de permanecer naquela região primitiva e de se envolver em problemas alheios. No entanto, não
fora embora e a sua presença ameaçadora tinha sido o fator decisivo no confronto com Cyrus Stoner.
Ouvindo o tropel de um cavalo, Cassie apanhou o rifle e espreitou por uma rachadura da rústica
porta do estábulo. Sentiu um intenso alívio ao avistar Quin, aproximando-se em meio a uma nuvem de
flocos de neve.
Ao abrir a porta do estábulo, surpreendeu-se ao ver dois enormes veados mortos na garupa do
cavalo.
— Achou que precisávamos de mais carne ainda? — brincou ela — Já temos um veado e uma
vaca! Você deve ser um verdadeiro carnívoro.
Quin conduziu seu cavalo para dentro do estábulo, satisfeito por encontrar Cassie recuperada
das tensões e novamente de bom humor. Ele a fitou, encantado com o frescor matinal da pele
acetinada, dos cabelos brilhantes e, diante de tanta beleza, não conteve um sorriso.
Cassie desviou os olhos, admitindo a si mesma, mais uma vez, que nunca encontrara um
homem tão sedutor.
— Acho que acordei faminto — declarou ele, rindo misteriosamente.
— Pois ficará feliz por saber que temos uma peça inteira assando na grelha, além de pão fresco,
biscoitos e bolinhos. Minha mãe e eu preparamos comida suficiente para meia dúzia de homens
famintos!
— Você sabe como agradar um homem.
Ele virou-se, sem perceber o rubor causado por seu elogio. Precisava cuidar de seu cavalo e
depois se reunir à família que o esperava para iniciar a refeição matinal.
Momentos depois. Quin entrou na cabana e lavou-se enquanto as duas mulheres colocavam a
comida na mesa. Após a prece, Cassie voltou-se para a mãe.
— O Sr. McAllister nos trouxe mais dois veados enormes, mãe.
— Bem… Eles não são exatamente para vocês.
A caçada lhe despertara o apetite e Quin não continuou a falar, deixando-as curiosas.
— Como assim? Não compreendo.
— Esta será a primeira lição, madame — disse ele, após esvaziar a caneca de café. — Ao
enfrentar um inimigo, descubra os amigos.
— Amigos, Sr. McAllister?
— Exatamente. Amigos, aliados, vizinhos, não importa o nome. Enfim, pessoas em que se
pode confiar e dispostas a vir em nosso auxílio no caso de ocorrer um embate.
— Mas nós não temos vizinhos! — protestou Luella.
— Se realmente acredita nisso, é porque não olhou ao seu redor, madame.
A comida foi esquecida por todas, menos por Quin que devorava tudo o que havia sobre a
mesa, demonstrando um apetite fora do normal. Ao terminar, ele aceitou mais uma caneca de café e,
recostando-se na cadeira, decidiu acabar com o suspense que as impedia de tocar nos pratos.
— Vocês não pretendem comer? — perguntou ele, rindo maliciosamente.
— Dentro de um minuto, Sr. McAllister. Estamos apenas esperando que nos dê uma explicação
sobre os nossos vizinhos invisíveis.

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— Na verdade, foi uma observação de Stoner que me fez pensar na enorme quantidade de
vizinhos ao redor de vocês. — Acendendo um charuto, ele ergueu a caneca, indicando que gostaria de
tomar mais um café.
— Já lhe dissemos várias vezes que não temos…
— São os índios Crow — interrompeu ele. — Existem centenas nesta região de Montana.
— Se acha que os índios são nossos amigos, deve estar louco!
— Talvez ainda não o sejam. Entretanto, são seus vizinhos mais próximos e, se forem tratados
com justiça e hospitalidade, aposto que se tornarão amigos confiáveis.
— Mas como…
Quin ergueu a mão, pedindo silêncio.
— Eu encontrei sinais da passagem deles e deduzi que estavam caçando em suas terras. E fácil
saber que não se tratava de um grupo de homens brancos porque os Crow não colocam ferraduras em
seus pôneis. As pegadas ficam ainda mais nítidas sobre neve recém caída, concordam? Ele olhou para
as mulheres daquela casa, todas presas às suas palavras, e sorriu.
— Como eu tinha visto onde um rebanho de veados se escondera da nevasca, decidi caçar um
ou dois. Depois enviei uma mensagem ao líder dos Crow, pedindo-lhe para vir até a sua cabana.
— E como enviou essa mensagem?
— Também não foi nada difícil. Chamei os dois guerreiros que vinham me seguindo,
escondidos entre as árvores, e lhes pedi para comunicarem meu convite ao seu chefe.
— E por que tudo isso?
— Para que possa lhes oferecer dois veados como um presente para cimentar essa nova
amizade, Sra. Montgomery.
— E a mais absoluta loucura! — exclamou Cassie, confusa. — Nunca sequer vi um índio de
perto, sr. McAllister. Não sei falar a língua deles!
— Não se preocupe com esse detalhe, madame. Os missionários chegaram bem antes de você
nesta região. Os Crow falam inglês.
— Então, eles são civilizados? — perguntou Luella, nitidamente intrigada.
O sorriso de Quin se tornou menos expansivo. A Sra. Chalmers era o tipo de mulher que
prezava, acima de tudo, as boas maneiras e tradições morais de origem cristã.
— Eles não nos consideram civilizados, de acordo com seus costumes.
— Temos de lhes dar uma recepção que os faça se sentirem bem vindos. — Luella voltou para
perto do fogão. — Acha que gostam de ovos mexidos ou preferem…
— Não se preocupe em preparar nada, Sra. Chalmers. Eles não estão acostumados com a nossa
comida.
— Oh, que pena. — Seu desapontamento logo deu lugar a uma expectativa quase alegre. —
Acha que trarão suas mulheres e crianças?
— Não desta vez. Hoje, virá apenas o líder, talvez acompanhado por dois ou três de seus
melhores guerreiros, os bravos da tribo.
— E como devemos recebê-los? — perguntou Cassie, começando a se animar com a visita.
— Da mesma forma que receberiam qualquer vizinho de pele branca. — Quin levantou-se da
mesa, ouvindo antes de todos, o som de cavalos se aproximando. — Devem ser eles!
Apanhando o rifle de Cassie, apoiado no batente de porta, escondeu-o no quarto dela.
— Não queremos que eles se sintam ameaçados, certo? Não podem pensar que os convidamos
para participar de um tiroteio. — Depois de um olhar final de inspeção, Quin encarou Cassie e depois
Luella. — Estão prontas?
Respirando fundo para criar mais coragem, Cassie abriu a porta da cabana. Diante dela, estavam
seis guerreiros índios em seus pôneis. Controlando o pavor instintivo, encarou-os com firmeza e
percebeu que estava senso igualmente analisada.
— Sejam bem vindos a minha casa. Por favor, entrem.
Nitidamente confusos, os bravos da tribo desmontaram e se encaminharam para a varanda. Ao
entrar na cabana, pararam, olhando ao seu redor, fascinados com o que viam. A não ser por alguns lares
abandonados por seus habitantes, eles nunca haviam tido a oportunidade de conhecer o estilo de vida
dos brancos.

51
— Vocês devem estar com frio. Por favor, sentem-se junto da lareira para se aquecer.
Seguindo a liderança de seu chefe, os bravos se aproximaram do fogo, ainda sem retirar as mãos
do cabo dos punhais que carregavam na cintura. Um deles esbarrou na cadeira de balanço e seu
movimento chamou a atenção de todos que a rodearam, tocando-a com curiosidade e rindo ao ver que
oscilava para frente e para trás.
— Talvez o chefe gostasse de se sentar nessa cadeira — sugeriu Quin.
O chefe não perdeu tempo em aceitar a sugestão e riu, encantado com o balanço misterioso
daquela cadeira estranha.
Retirando um charuto do bolso, Quin o ofereceu ao chefe e o acendeu com um fósforo. Os
outros acompanhavam a cena, maravilhados.
O chefe deu algumas baforada e, inesperadamente, quis devolvê-lo a Quin. Ele recusou,
mostrando que tinha mais um e o acendeu para fazer companhia ao hóspede de honra.
— Café? — perguntou Cassie, aflita e sem saber como agir. Diante do gesto de cabeça
afirmativo de Quin, ela e Luella encheram as canecas, adoçaram com mel e as entregaram aos índios.
Atendendo a uma ordem sussurrada por Cassie, Becky adiantou-se para servir-lhes biscoitos.
Todos aceitaram e enchendo a boca, tomaram o café, que estava quente demais. Um deles,
queimando a língua, cuspiu tudo sobre o fogo da lareira.
Luella estava horrorizada com a falta de boas maneiras daqueles selvagens, mas as meninas os
fitavam, fascinadas, pois nunca haviam visto um índio a não ser a distância. Encantaram-se com seus
longos cabelos, brilhantes e entrelaçados com penas coloridas, com o bordado em contas delicadas,
minucioso e de desenho complexo, com as calças de couro fino como tecido e orladas de franjas.
O mais jovem deles era esguio mas musculoso e tinha uma postura majestosa, como se
pertencesse à realeza de seu povo.
O chefe esperou que todos terminassem de comer e tomar o café e aceitou mais uma caneca,
conseguindo alimentar-se como qualquer homem branco, sem nenhum incidente.
— E hora de dar-lhes o seu presente, madame — avisou Quin, com medo que Luella perdesse
a paciência e os expulsasse da cabana.
As duas mulheres, colocando xales sobre os ombros, se encaminharam para o estábulo,
seguidas por Quin e pelos índios. Ao entrarem, Cassie lhes mostrou os dois veados mortos.
— Gostaríamos que aceitassem este presente em sinal de nossa amizade.
O chefe não demonstrou nenhuma emoção em seu rosto impassível, mas os mais jovens não
esconderam a surpresa diante de um presente tão generoso.
Ignorando Cassie, o chefe voltou-se para Quin.
— Por que deseja a nossa amizade?
Quin demorou a responder, escolhendo com extremo cuidado as suas palavras.
— Como pôde ver, nós somos poucos e vivemos muito longe de nosso povo. Existem alguns
que nos querem causar danos.
— O meu povo jamais fez nada de mal contra vocês.
— Nós sabemos que não. Por favor, entenda que não estamos acusando o seu povo. Tratam-se
de homens brancos que querem nos expulsar de nossas terras. Só desejamos uma chance para viver em
sem causar problemas a ninguém mas, como o chefe deve saber, é preciso lutar contra quem nos
ameaça antes de alcançar a paz.
— Está pedindo que meu povo se una a vocês para lutar suas batalhas?
— Não.
— Então, o que pede para meu povo?
— Apenas queremos que nos avise quando avistarem homens estranhos entrando em nossas
terras.
O chefe permaneceu em silêncio por algum tempo, digerindo as explicações de Quin e
finalmente sorriu.
— Em nome de meu povo, eu aceito este presente. — Voltando para seus companheiros, deu
uma ordem rápida.
Imediatamente, os veados foram retirados do estábulo e colocados sobre os pôneis.
Com toda a calma, o chefe juntou-se a eles e, já montado, voltou a dirigir-se a Quin.

52
— Ela é sua mulher? — perguntou ele, apontando para Cassie. Pelo canto dos olhos, Quin
percebeu que Cassie abria a boca para protestar.
— Sim — respondeu ele, apressadamente.
— E a mais velha?
— Também é minha.
Então, o chefe fitou Becky, percebendo os contornos de uma mulher prestes a desabrochar.
— E ela? É sua filha?
— Sim.
— Eu também tenho um filho. — O chefe apontou para o jovem guerreiro de postura
majestosa. — E ele precisa de uma mulher.
As três mulheres prenderam a respiração, chocadas demais para reagir. Até a pequena Jen
pareceu perceber o significado do que fora dito.
Quin teve o cuidado de manter o olhar firme e sem se desviar do rosto do chefe.
— Ela ainda é muito criança para sair do lado da mãe.
O chefe vira o interesse no olhar do filho que se fascinara com os cabelos ruivos. Era seu
primogênito e, um dia, ocuparia seu lugar na liderança da tribo. A jovem era ainda menina demais e
muito magra para seu gosto mas, se o interesse perdurasse…
— Conversaremos de novo quando as neves se forem e a terra ficar verde outra vez. Ela será
uma digna esposa de um bravo.
A um sinal seu, os bravos se afastaram e o chefe ergueu a mão numa saudação ritual que foi
imitada por Quin.
— O meu povo sempre se lembrará da bondade das pessoas que moram aqui. — Sem fitar os
companheiros, ele partiu a galope.
Quando o grupo desapareceu atrás da colina, a cólera de Luella, contida com muito esforço,
veio a tona.
— Você mentiu para aquele índio. Disse que Cassie e eu… Éramos suas mulheres! — Ela
falava como se estivesse pronunciando uma obscenidade.
— Era a única maneira de impedi-lo de levar vocês.
— Isto o teria impedido de nos levar — explodiu Cassie, retirando a pistola de Quin, do bolso
de seu avental.
— Sem dúvida, madame! — declarou ele, igualmente irritado. — E os bravos da tribo iriam
ostentar o meu escalpo em seus cintos, hoje a noite, enquanto assassem os veados que você, sua mãe e
suas filhas ajudariam a servir, antes de…
— Está dizendo que aqueles infiéis nos raptariam?
— Eles não considerariam um roubo. De acordo com seus costumes, é seu direito e dever levar
para a tribo qualquer mulher sem um homem que a defenda.
— E o que me diz de Rebecca? — prosseguiu Cassie, revoltada. — Aquele selvagem afirmou
que voltará na primavera a fim de levá-la para ser esposa de seu filho!
— O chefe considera uma honra…
— Honra? — berrou Luella, descontrolada.
— Sim, madame. — Quin lutava arduamente para não perder a paciência. — Ser parte da
família do chefe da tribo é uma honra cobiçada pela maioria das jovens índias.
— Oh, Cassie! — choramingou Luella, inconformada. — O que fomos fazer? Por darmos
ouvido a esse homem sem princípios familiares, recebemos um bando de selvagens em nosso lar,
expusemos a inocência das meninas a um perigo maior do que o apresentado por Cyrus Stoner.
Becky se manifestou subitamente, após ter permanecido num silêncio pensativo durante a
conversa exaltada dos adultos.
— Não acho que eles sejam selvagens, vovó. Talvez sejam diferentes de nós mas… — a voz
dela assumiu um tom sonhador — parecem muito menos repulsivos do que Cyrus Stoner.
Cassie viu a filha se afastar em direção da cabana e estremeceu. Becky caminhava com a cabeça
mais erguida do que de costume, e seus passos lentos deixavam perceber uma ligeira ondulação dos
quadris. Um andar que já revelava a inconfundível sinuosidade de uma mulher.

53
Embora tentasse se convencer de que nada mudara, Cassie tinha plena consciência da completa
reviravolta de seu mundo. Nada mais seria igual ao que fora antes. Os Crow consideravam Quin
McAllister a cabeça daquela família. Como se não bastasse, num piscar de olhos, sua filha, ainda uma
menina, se vira refletida nos olhos de um homem como uma mulher e não mais a criança que ainda era.
Ela sentiu a dor de perceber que uma parte da infância de sua filha se perdera e para sempre.

54
DEZ

Quin acordou, sobressaltado. Apesar do raciocínio ainda toldado pelo sono, seu instinto o
alertava de algum perigo iminente e ele sentou-se na cama, já com a pistola na mão.
O que perturbara seu sono?
Do lado de fora da cabana, o vento aumentava, assobiando por entre as frestas do telhado e
jogando a neve de encontro às janelas. Mas, além desse ruído da natureza, ele não distinguia nenhum
outro que pudesse tê-lo acordado. Entretanto, a sensação de perigo persistia. Algo ou alguém estava
por perto, oculto pela escuridão da noite.
Confiando em seus instintos, vestiu as botas e se esgueirou, com a rapidez silenciosa de um
gato, até a janela ao lado da porta.
Inicialmente, ele não conseguiu distinguir formas humanas entre as árvores da floresta. Após
acostumar os olhos à escuridão, viu que as sombras se moviam e, ao tentar contá-las, perdeu-as de vista
com a passagem de uma nuvem em frente da lua.
Praguejando furiosamente, foi até o quarto de Cassie.
— Acorde! Depressa, Cassie. E vá logo acordar as outras.
— Como? O que está…
Antes mesmo de terminar a pergunta, Cassie saltou da cama e correu para o quarto das filhas.
— Acorde, mãe! — Cassie sacudiu Luella e depois correu para a cama das filhas. — Rebecca!
Jennifer! Vocês precisam se esconder.
Sem perder tempo em perguntas ou protestos, Luella correu para uma das janelas dos fundos da
cabana, enquanto Jen espreitava por uma fresta entre as toras da parede. Rebecca encolheu-se num
canto, de olhos fechados e com as mãos sobre as orelhas, revivendo os horrores da guerra que destruíra
seu lar.
Cassie correu para o lado de Quin, já empunhando a pistola de Ethan.
— Eu não vejo ninguém!
— Estão ali… Acostumando a vista à escuridão, Cassie finalmente avistou duas formas que se
esgueiravam junto do estábulo. Então, percebeu várias outras figuras que se moviam como se fossem
formar um círculo em torno da cabana.
— O que eles pretendem fazer? — perguntou ela, chocada e confusa.
— O que você faria se quisesse tirar pessoas de uma casa… Contra a vontade delas?
Ela não teve tempo de responder. Um clarão súbito iluminou seus olhos apavorados.
— Oh, meu Deus, Quin! Fogo!
Esse sempre fora o maior terror de Cassie. Agora, ela via os homens com maior clareza,
empunhando tochas e caminhando na direção da cabana.
— Há um outro grupo atrás de casa — gritou Luella, postada junto da janela dos fundos. — E
carregam tochas acesas!
— Vou ajudar você, mãe.
— Não se exponham! — ordenou Quin, engatilhando o rifle.
Ele sentiu um suor frio cobrir-lhe a testa. Sabia que conseguiria atingir os dois bem a frente dos
demais. Entretanto, quantos homens estariam espalhados ao redor da cabana, chegando por todos os
lados? Seria impossível mantê-los a distância! Vários já tinham se aproximado o suficiente para atirar as
tochas com certeira precisão.
Com disparos em rápida sucessão, ele derrubou os dois homens que vinham pela frente. Então,
correndo para a janela dos fundos, juntou-se às mulheres a fim de ajudá-las. Para sua surpresa, viu as
tochas caídas na neve, se apagando aos poucos, e um semicírculo de homens largados no chão.
— Você conseguiu atingir todos, Cassie? — Ele a fitou, admirado. Luella e Cassie estavam tão
surpresas quanto Quin.
— Eu não entendo! Eles caíram antes que disparássemos um único tiro!
Nesse instante, o tropel de muitos cavalos rompeu o silêncio da noite. Ao retomarem sua
posição para atirar, viram os bravos Crow, liderados pelo chefe e seu filho. Vários guerreiros desceram
de pôneis e exami¬naram os homens caídos antes de fazerem sinais afirmativos ao seu líder.

55
— Ordenei a meus bravos que impedissem esses homens de usaram os paus com fogo contra
vocês — avisou o chefe, em voz alta, de sua montaria.
— Vocês… Os mataram? — perguntou Cassie, olhando para o pai e depois para o filho. —
Mas eles não são seus inimigos. Esta não é a sua luta.
— Quando o meu povo oferece sua mão num gesto de amizade, os inimigos de seus amigos se
tornam nossos inimigos também.
— Nós lhe somos muitos gratos — declarou Quin. — Não posso nem pensar no que teria
acontecido conosco, sem a ajuda de vocês.
O chefe dos Crow ergueu a mão, num gesto majestoso.
— Palavras de agradecimento nunca são necessárias entre verdadeiros amigos.
Soltando as rédeas de sua montaria, ele começou a se afastar, seguido por seus guerreiros.
Todos se movimentaram, menos o filho que continuava com os olhos fixos em Becky. Numa virginal
camisola branca, ela permanecia ao lado da mãe, ainda pálida de terror por causa do tiroteio. Então,
sem dizer nada, o herdeiro da liderança dos Crow seguiu atrás de seu povo.
— Mamãe! Vovó! — Jen gritava, correndo do estábulo para a cabana. — O Sr. McAllister viu
os índios se aproximando.
Cassie enxugou as mãos na toalha e fitou a mãe que, instintivamente, estendera a mão para
apanhar o rifle. Então, lembrando-se que aqueles selvagens as haviam ajudado, Luella optou por uma
faca de cozinha, pequena mas afiada, escondendo-a no bolso de seu avental.
Para uma mulher como Luella, que sofrerá tanto na vida, era muito difícil ter confiança em
qualquer pessoa… Quanto mais em selvagens sem religião!
Seguidas pelas duas crianças, as mulheres abriram a porta, no instante em que Quin chegava à
varanda da cabana.
Cerca de vinte guerreiros, em fila indiana, seguiam o chefe que liderava a coluna de bravos. Ao
seu lado, no lugar de honra, cavalgava seu filho. Embora suas expressões fossem indecifráveis, o líder
dos Crow dirigiu-se a Quin com orgulho na voz.
— Os meus bravos viram mais homens brancos. Quin ficou imediatamente alerta.
— Onde?
— Aqui… Em suas terras.
— Quando?
— Enquanto o sol repousava e a lua com suas estrelas tomava conta do céu.
Cassie sentiu um profundo desânimo. Agora seriam privados do descanso do sono, todas as
noites? Sua segurança estava sendo ameaçada vinte e quatro horas por dia!
— E o que esses homens brancos estavam fazendo? — continuou Quin a indagar.
O chefe voltou-se para o filho que assumiu a narrativa, com uma voz inesperadamente grave e
uma pronúncia quase perfeita.
— Eles carregavam paus com fogo para o seu estábulo.
— Outra vez! — explodiu Quin, com uma expressão feroz. — Terei que dormir no estábulo
agora!
— Eles não virão mais — declarou o chefe, sem expressão no rosto ou na voz.
— Como assim?
— Meu filho comandou seus bravos para impedir os homens brancos de causar qualquer dano
aos animais de nossos amigos. Seus corpos foram deixados onde os outros pudessem ver e
compreender. Se forem espertos, os deixarão em paz.
Atendendo a um sinal do chefe, um dos guerreiros se aproximou em seu pônei, puxando uma
vaca, presa a uma corda cuja ponta entregou ao filho do líder que, por sua vez, a ofereceu a Cassie.
— Vocês deram comida ao meu povo, durante o inverno quando é tão difícil encontrar boa
caça — explicou o chefe. — Agora meu povo retribui o favor.
Por alguns segundos, Cassie permaneceu imóvel e sem fala, sentindo que seus olhos se enchiam
de lágrimas.
— Não tenho palavras para lhe agradecer — murmurou ela, recu¬perando a voz. — Muito
obrigada…
— Como já lhes disse antes, a amizade verdadeira não precisa de palavras.

56
Com a mesma expressão de orgulho altivo, o chefe partiu seguido pelos guerreiros, com
exceção do filho. Mais uma vez, o imponente jovem fitou Becky, antes de também partir.
Ninguém se moveu ou falou até os índios desaparecerem atrás da colina. Depois que Luella e as
meninas entraram em casa, Cassie conduziu a vaca para o estábulo onde, após examiná-la
detalhadamente, olhou para Quin.
— Onde acha que eles a encontraram?
Com uma expressão de quem estava se divertindo muito com a situação, Quin encolheu os
ombros, num gesto de despreocupação.
— Provavelmente a roubaram.
— Roubaram! — Já indignada, Cassie quase perdeu a calma ao notar o riso solto de Quin. — E
você ainda acha engraçado?
— Não, madame. Só me parece ser uma ato de justiça poética se a vaca tiver sido roubada do
rebanho de Cyrus Stoner. Você disse que ele é o único proprietário de terras entre a sua fazenda e o
vilarejo, correto?
Sem disfarçar a impaciência com a incompreensão de Quin, Cassie afastou-se do animal.
— E o que eu vou fazer com uma vaca roubada?
Apanhando o forcado para suprir as baias com feno, ele a fitou com uma expressão da mais
completa seriedade.
— Em primeiro lugar, eu a ordenharia. Depois, trataria de encher sua manjedoura com feno.
— Mamãe — berrou Jen, afastando-se da janela. — Vem vindo alguém a cavalo!
Agarrando o rifle, Cassie foi até a varanda onde encontrou Quin que correra do estábulo para a
casa, com a pistola na mão. Ambos acompanharam o progresso do cavaleiro que vinha em sua direção.
Quando ele se aproximou mais, Cassie largou o rifle e começou a rir, nitidamente aliviada.
— E Jedediah Taylor. Ele mora em Prospect e vem nos visitar algumas vezes por ano. —
Cassie ergueu o braço, numa saudação cordial. — Bom dia, amigo!
— Bom dia, dona Cassie — resmungou o velho, sem retirar o cachimbo da boca.
O velho Jedediah, de longos cabelos e barbas brancas, tinha a pele curtida de quem gastou sua
vida expondo-se aos elementos da natureza. Num gesto inesperadamente polido, ele retirou o enorme
chapéu de abas largas e se curvou diante de Cassie.
— Este é Quin McAllister, Jedediah.
Os dois homens se cumprimentaram e Quin surpreendeu-se com o ; olhar vivaz e alerta, como
o de uma criança, no rosto enrugado daquele velho de cabelos alvos.
— Entre, por favor — convidou Cassie.
Ao entrar na cabana, Jedediah cumprimentou Luella e as meninas. Então, com um sorriso
alegre, retirou um saco com pedaços de açúcar cristal e o entregou às duas que o agarraram, gritando de
alegria.
— Eu não ia fazer essa viagem toda sem lhes trazer seu doce favorito, não é?
— Muito obrigada, Jedediah — exclamaram as duas, enchendo a boca com pedaços de açúcar.
Com a costumeira hospitalidade, Luella o serviu de café e o velho, bem acomodado diante da
lareira, aceitou o ensopado com biscoitos oferecidos por Cassie. Ele repetiu três vezes antes de se
declarar satisfeito e suspirou. Viera com um propósito definido e nada agradável, mas teria que falar e
logo, pois as mulheres o fitavam, com uma curiosidade incontida.
— Bem… — Ele encarou Quin, escolhendo bem as palavras antes de se dirigir a Cassie. —
Tem havido alguns comentários na vila… — Sobre o que, Jedediah?
— Cyrus Stoner disse que encontrou o túmulo de Ethan. E verdade, dona Cassie?
Com relutância, ela concordou com um gesto de cabeça.
— Há quanto tempo ele morreu?
— Cerca de seis meses.
— Por que não me contou nada em minha última visita, dona? Seis meses é muito tempo para
duas mulheres e duas crianças sobreviverem sozinhas neste isolamento!
— Agradeço por se preocupar conosco, mas conseguimos dar um jeito.
— A última vez que vi Ethan, ele me pareceu pálido demais.
— E quando foi isso?

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— Há pouco mais de seis meses. Ele me pediu para levar uma sacola de camurça à oficina do
avaliador de minérios em seu lugar. Lembro-me que precisava…
Quin notou a expressão de surpresa chocada no rosto de Cassie.
— Uma sacola de camurça?
O velho terminou de encher seu cachimbo e a encarou, intrigado.
— Isso mesmo, dona. Ele não lhe disse nada?
— Não. E qual foi o relatório do avaliador?
— Não sei. Estava em um envelope selado que entreguei a Ethan. Cassie mal continha a
excitação.
— Ethan lhe pareceu alegre ou triste ao ler o relatório?
— Nenhum dos dois — respondeu o velho, depois de pensar um pouco. — Ele me pareceu…
Muito preocupado. Como um homem que decidiu ir para a guerra, entende?
As esperanças de Cassie desmoronaram.
— Lembro-me de suas palavras… Algo sobre abutres devorando sua carcaça. Faz sentido agora
que ele morreu.
— Como?
— Ora, dona Cassie! Ethan deve ter pressentido que ia morrer e estava preocupado em deixar
vocês sem proteção. — Jedediah inspirou, criando coragem para continuar. — Isso me faz lembrar dos
outros comentários…
Cassie notou que ele olhara para as crianças antes de prossegur, em voz bem mais baixa.
— Cyrus Stoner está dizendo que a senhora se juntou com um pistoleiro, madame. — O velho
olhou de relance para Quin. — E que esse homem também é um jogador.
— Viu só! — exclamou Luella, furiosa. — Eu disse que esse homem atrairia o escândalo sobre
nós!
— Cyrus também diz que vocês dois estão… Seguindo suas naturezas em tudo pois a senhora é
viúva e… — fitando Luella, o velho enrubesceu. — Peço-lhe perdão pelo que disse mas… Precisava
avisá-la sobre os comentários espalhados por Cyrus Stoner.
Por alguns instantes, Luella permaneceu imóvel, como uma estátua-. Então, levantou-se de sua
cadeira e foi para a cozinha esquentar o café, mantendo-se de costas para todos.
— Ele também disse que, depois da chegada desse jogador, coisas muito estranhas tem
acontecido pela região.
— Que tipo de coisas? — perguntou Cassie, deixando de se preocupar com a reação da mãe.
— Vários vaqueiros de Stoner foram encontrados mortos na entrada da cidade. Três de seus
homens apareceram, também sem vida, em um estábulo abandonado no limite das terras dele. O
capataz estava flutuando no rio, afogado.
— Quantos homens morreram?
— Na última vez que contaram, eram dez, dona.
Olhando por cima da cabeça de Jedediah, Cassie encarou Quin. Os índios tinham aparecido
mais duas vezes depois do dia em que haviam lhe dado a vaca. Vira-os conversarem com ele, notara sua
expressão sombria.
Entretanto, ao lhe perguntar o que tinham vindo fazer, Quin fora evasivo. Dissera que apenas
queriam lhe comunicar as atividades dos homens de Stoner.
Embora admitisse que Quin só tentara encontrar um modo de proteger a ela e a sua família dos
fatos brutais, Cassie se enfureceu por não ter sido informada.
— Então, você veio nos contar o que estão falando a nosso respeito na vila, Jedediah?
— Não, dona Cassie. Vim ver com meus próprios olhos como estavam passando, depois de
terem perdido Ethan. — Mais uma vez, o velho olhou para Quin. — E agora que já vi, posso ir
embora.
— Muito obrigada por sua visita, Jedediah, e por ter feito uma viagem tão longa para ficar
pouco tempo.
— Estou acostumado a andar por ai, dona Cassie. — Levantando-se da cadeira de balanço, ele
amassou o chapéu entre as mãos. — Se não se importar, gostaria de ir até o túmulo de Ethan.

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— Mas é claro! Apanhando o casaco e o rifle, Cassie saiu da cabana ao lado de Jedediah,
ignorando Quin que os seguia. Os três caminharam até a floresta em silêncio. Depois de passarem
alguns minutos junto do túmulo, o pequeno grupo retornou, ainda sem trocar uma só palavra.
Finalmente, Jedediah aproximou-se de sua montaria e deu um jeito de falar com Quin, sem ser
ouvido por Cassie.
— Não quis assustar dona Cassie ou a mãe dela mas… Eu vi os corpos dos vaqueiros mortos.
Não me pareceu um trabalho feito por homens brancos. Acho que foram os Crow.
Os dois homens se entreolharam num silêncio carregado de significação. Então, o velho deu
um sorriso.
— Não sei por que tenho a impressão de que não está surpreso. Quin simplesmente encolheu
os ombros.
— Você parece ser um homem bem capaz de manejar sua pistola, McAllister. Acho que dona
Cassie e a família dela estão em boas mãos.
— Obrigado pela confiança, Jedediah. — Antes que o velho partisse, Quin segurou as rédeas
do cavalo. — Há algo que preciso saber. Quando entregou o relatório a Ethan, ele lhe pediu para
colocar uma carta no correio?
— Não… Ele não me entregou carta alguma. — Disfarçando, o velho olhou para Cassie,
parada na varanda. — Não se incomode com os comentários de Cyrus Stoner, dona. A gente boa de
Prospect não costuma julgar ninguém pelo que ouvem dizer no bar!
— Obrigada, Jedediah. Adeus.
Ela mal esperou que o velho se afastasse para encarar Quin com fúria.
— Dez homens, Sr. McAllister! Todos mortos… Executados por nossos amigáveis vizinhos!
— Preferia que os corpos encontrados fossem o da sua mãe e os de suas filhas?
Cassie estremeceu, chocada com a rudeza de Quin. Arrependido por ter sido tão brutal, ele
tentou suavizar seu tom de voz.
— Estou convencido de que Ethan teve provas positivas sobre seu tesouro. Ele só lhe pediria
para ficar neste lugar miserável por esse motivo. E, de alguma forma, Cyrus Stoner também foi
informado e quer as terras a qualquer custo.
— Não há tesouro algum — explodiu ela, ainda enfurecida. — Ouviu Jedediah dizer que Ethan
só ficou preocupado ao ler o relatório. Por acaso, acha que é essa a reação de um homem feliz por
receber a confirmação sobre o tesouro sonhado? Não quero mais nenhuma morte por causa de algo
que possivelmente jamais existiu!
Quin segurou-a pelo braço e sua expressão refletia raiva.
— Um homem como Stoner não se deterá diante de nada a fim de obter o que deseja. Sem a
ajuda dos Crow, nós seríamos os corpos sem vida. É isso que realmente quer?
— Não sei… — murmurou ela, contendo as lágrimas e soltando-se da mão de Quin. — Não
quero mais sangue e violência em nossas mãos. Não quero comentários destruindo a reputação de
minha família. Só desejo que me permitam viver em paz.
— Então, venda a Stoner e vá embora daqui.
Por um longo tempo, os dois se fitaram em silêncio. Finalmente, Cassie curvou a cabeça,
derrotada.
— Como posso vender o sonho de Ethan?
Quin a segurou pelo queixo, forçando-a a erguer o rosto.
— Acaba de resolver o assunto, madame. A partir de amanhã, devotaremos algumas horas à
mina.
Sem disfarçar a incredulidade e a relutância, Cassie concordou, entrando na cabana sem olhar
mais para trás.
Ao caminhar para o estábulo, Cassie avistou Quin cortando lenha. Ele tirara o casaco e enrolara
as mangas da camisa, revelando a musculatura bem desenvolvida em cada movimento seu.
Ao pressentir a aproximação de Cassie, ele parou de trabalhar e a fitou com intensidade.
Nos últimos dias, haviam cessado os ataques de Stoner e a vida retomara a rotina de dias de
tarefas infindáveis e exaustivas, jantares rápidos para iniciar uma noite de mais trabalho.

59
Ao terminar as tarefas matinais, todos desciam para trabalhar na mina. Depois do jantar, tão
logo as meninas iam dormir, Cassie e Quin passavam mais algumas horas, percorrendo o labirinto de
túneis a procura do lugar onde Ethan procurara, mais recentemente, o seu tesouro.
Apesar do cansaço, Quin conseguia tornar aquele trabalho monótono em algo divertido. Era
um dom que ele recebera pois transformava até as tarefas mais árduas em uma atividade bem
humorada.
E depois de todo o trabalho do dia, ele ainda encontrava tempo de se sentar diante da lareira,
para ensinar truques de cartas para as meninas e provocar Luella, convidando-a para uma partida de
pôquer.
Mas Cassie percebera uma intensa mágoa disfarçada pelo sorriso encantador, uma tristeza
profunda que Quin escondia de todos. Às vezes, em momentos de abstração, ela notava a dor nos
olhos muito negros, principalmente quando brincava com as meninas.
Dia a dia, sentia mais vontade de descobrir como fora a vida dele antes da guerra.
Quin viu quando Cassie entrou no estábulo e suspirou. A primeira visão daquela mulher, ao
raiar do dia, sempre renovava o mesmo impacto de surpresa e desejo. O vestido gasto e sem forma, as
botas masculinas e grandes demais para seus pés delicados, não diminuíam sua beleza de tirar o fôlego
de qualquer homem. O rosto de um anjo e o corpo de uma sereia tentadora. Pele alva como porcelana
e cabelos que evocavam as chamas de uma paixão desenfreada.
O mais difícil era trabalhar bem junto dela sem poder tocá-la. Entretanto, sabia que o mais leve
contato desencadearia um desejo sem volta. Não conseguiria se conter e Cassie, decente e educada
dentro de rígidos padrões morais, acabaria com ódio dele.
Com dores nas costas e em todos os músculos, Quin carregou a lenha para junto da porta da
cabana, onde já havia uma pilha enorme. Teriam como se aquecer por mais de um inverno!
Carregando mais uma braçada, ele praguejou contra si mesmo, admitindo que era o mais idiota
dos homens. Que diabos estava fazendo naquele lugar miserável?
Talvez tivesse enganado a família Montgomery, mas não tinha condições de esconder a verdade
de si mesmo. Estava naquela fazenda primitiva por causa dos mais sedutores olhos verdes que já
encontrara pois, ao fitá-los, sentira uma emoção devastadora.
Podia dizer aos outros que rachava tanta lenha porque queria estar preparado para os rigores do
inverno. Só ele sabia que aquele trabalho exaustivo era um modo de esgotar sua forças e não pensar no
desejo crescente. A cada dia que passava, ficava mais difícil resistir à sedução de Cassie Montgomery.

60
ONZE

Quando eu crescer — declarou Jen, enquan to recolhia os ovos — não vou ter medo
— Não banque a boba — replicou Becky, do outro lado do estábulo.
— Todas as pessoas têm medo de alguma coisa, alguma vez!
— O Sr. McAllister não tem! Diga para ela! — pediu Jen a Quin.
— Conte para Becky que não sente medo de nada.
Cassie ergueu a cabeça, alarmada, e parou de tirar leite. Antes que pudesse interferir, ouviu a
voz de Quin, séria e controlada.
— Não posso dizer isso, porque não seria verdade, Jen. Becky tem razão, sabe? Todas as
pessoas sentem medo de alguma coisa, em algum período de suas vidas.
— Até você? — perguntou a menina, atônita.
— Senti medo muitas vezes, Jen.
— Então, por que ficou conosco para enfrentar uma luta?
Becky aproximou-se dos dois, prendendo a respiração, à espera da resposta de Quin.
— Porque existem valores e princípios mais importantes do que o medo. — Notando a atenção
de Becky, parou de colocar feno nas baias.
— Não há nada errado em sentir medo, porque é um sentimento natural como todos os outros.
Entretanto, avaliamos uma pessoa pela forma como ela reage sob essa emoção. Se algo precisa ser
realizado, devemos assumir a responsabilidade.
Fechando os olhos, Cassie murmurou uma prece de gratidão. Depois, apanhou o balde de leite
e preparou-se para retornar à cabana.
— Traga a cesta com os ovos, Jennifer. Sua avó os está esperando para preparar os biscoitos.
— Sim, senhora.
Uma lufada de vento gelado anunciou a saída delas e o estábulo voltou a ficar silencioso. Ouvia-
se apenas o som do forcado manejado por Quin, levantando o feno e raspando levemente sobre o chão
de terra.
— Acha que eu sou bonita, Sr. McAllister? Quin ergueu a cabeça, surpreso. Não percebera que
Becky tinha ficado no estábulo em vez de acompanhar a mãe e a irmã.
— Você é muito bonita, Becky. Ela aproximou-se mais, apoiando-se na porteira que fechava a
baia onde Quin trabalhava.
— Tão bonita quanto minha mãe? Interrompendo o trabalho, ele enxugou o suor da testa. A
conversa com Becky não seria tão banal quanto imaginara.
— Qualquer pessoa pode ver que você será linda como ela, quando crescer.
— Eu já cresci! — exclamou ela, entrando na baia e parando bem perto de Quin. — Mamãe e
vovó se recusam a admitir, mas vi que o chefe dos Crow e seu filho me consideram uma mulher feita!
Apanhando uma flanela velha, Quin começou a esfregar as costas de seu cavalo, preocupado
com o rumo dos pensamentos de Becky. Então, sentiu que ela lhe segurava o braço.
— Eu nunca fui beijada por um homem, Sr. McAllister. Queria saber… Controlando a
surpresa, Quin parou de cuidar de Cutter e virou-se de frente para Becky. Segurou-a pelos ombros, a
uma certa distância, para que ela o fitasse nos olhos.
— Não quer me beijar, Sr. McAllister?
Ele tentava pensar com a maior rapidez possível, procurando as palavras certas para recusar
aquela oferta, sem magoá-la ou humilhá-la com a rejeição. Becky estava passando por uma idade difícil,
em circunstâncias quase trágicas, e não queria piorar ainda mais a confusão mental, típica da
adolescência.
— Ah, lembro-me tão bem de como me sentia quando tinha a sua idade, Becky! O meu corpo
estava sempre adiante de minha cabeça, sabe? Eu falava sem pensar e fazia o que bem entendia, sem me
importar com as conseqüências. Vivia insatisfeito, querendo coisas que reconhecia não estarem ao meu
alcance e, mesmo assim, continuava desejando-as de qualquer forma.
Becky abriu a boca para protestar, mas Quin segurou-lhe a mão, sorrindo afetuosamente.

61
— Acredite em mim, querida. Sei o quanto pode ser difícil e penosa a passagem para o mundo
adulto, ainda mais neste lugar distante, completamente isolada de companheiras de sua idade com quem
poderia discutir as dúvidas e as inquietações de seus sentimentos. Não sou cego e percebo que você é
quase uma mulher, Becky. Mas também prevejo uma longa estrada a sua frente e peço-lhe para não se
apressar. Evite os meus erros por precipitação e procure pensar antes de agir, mas não deixe de
experimentar o que a vida tem para lhe oferecer. Acima de tudo, seja parcimoniosa com seus beijos.
Reserve-os para alguém muito especial. Se o fizer, quando enfim entregar seu coração, será para a
pessoa certa e que merece o seu amor.
— Entendi — murmurou ela, rubra de vergonha. — Acha que eu não passo de uma criança
tola, não é?
— De maneira alguma, Becky. Admiro as suas qualidades e a considero uma jovem, jamais uma
criança, muito especial.
— Mas bem menos especial do que a minha mãe!
Becky ergueu o queixo, num gesto de desafio tão idêntico ao de Cassie que Quin mal controlou
um sorriso.
— Por que tirou essa conclusão?
— Eu já vi o seu modo de olhar para minha mãe quando pensa que ninguém o está
observando, Sr. McAllister! Se ela estivesse aqui, em meu lugar, lhe oferecendo um beijo, duvido que o
recusasse!
Para a surpresa de Becky que esperava negativas categóricas, aliadas a uma reação de raiva
diante de sua ousadia ofensiva, Quin deu uma gargalhada.
— Tem toda a razão, Becky! Eu adoraria que sua mãe viesse me oferecer um beijo. — Ele
parou de rir, mas continuava sorrindo de leve. — Por favor, lembre-se sempre disso. Sua mãe é uma
mulher experiente e aprendeu a ser sábia. Sábia o bastante para não desperdiçar beijos e espero que
aprenda com ela, querida.
Abalada pela honestidade de Quin, Becky sentiu-se ainda mais aborrecida por tê-lo colocado
naquela situação ridícula.
— Está zangado comigo por causa do que eu lhe pedi?
— Zangado? Céus, Becky! Sinto-me muito honrado, sabia? — Ele a beijou ternamente na testa
e a empurrou para fora da baia, com toda a delicadeza. — Trate de voltar para casa afim de ajudar sua
avó na cozinha, jovem mulher.
Antes de sair do estábulo, Becky lançou um derradeiro olhar na direção de Quin, que já
retomara o trabalho. Aquele homem, a quem pouco conheciam, não expressara censura ou condenação
diante de sua atitude. Na verdade, ela vira algo que a deixara profundamente abalada… Os olhos negros
revelavam o afeto de um pai.
— Rebecca! Como não viu estes ovos? — irritada, Luella apontava um ninho ainda cheio.
— Não vi, vovó. Acho que…
— Não há desculpa para tanto descuido, criança. Abra mais os olhos!
— Prefiro não ser tratada como uma criança! Sou quase uma mulher!
— Então, aja como se fosse. Sinta orgulho de suas tarefas caseiras, até das mais humildes. —
Luella apontou para a porta do estábulo, que não fora trancada. — Esqueceu-se das regras? Você deve
tomar certas precauções sempre. A sua falta de cuidado poderia nos colocar em perigo, em especial Jen,
que depende de você.
— Sim, senhora. — Nitidamente ofendida e com raiva, Becky passou a tranca na porta.
— Esse é um dos mais importantes motivos de minha insistência em enviá-la para o
conservatório em Savannah. A música exige disciplina. Você tem o dom, mas lhe falta a força de
vontade. Sob o comando da Srta. Atherton, aprenderá a ficar preparada para enfrentar as lições mais
duras que a vida nos reserva.
— Já lhe disse o que decidi, vovó. Não tenho a menor intenção de voltar para o sul. Quanto ao
canto… — a voz de Becky estava trêmula. — Eu só cantava para papai e, agora que ele se foi…
Trabalhando no outro extremo do estábulo, Quin acompanhava a cena, tentando encontrar
uma forma de aliviar a tensão generalizada.

62
Aquela situação absurda, uma verdadeira guerra de nervos, começava a afetar a todos na casa.
Proibidas de brincar fora de casa, sem a companhia de algum dos adultos, as meninas não gastavam
suas energias e discutiam por banalidades. Brigavam para decidir quem se sentaria mais perto da lareira
ou qual das duas merecia comer o último biscoito.
Nas horas menos apropriadas, Becky ficava com o olhar perdido nas chamas da lareira, sem se
lembrar de ajudar nas tarefas caseiras, ou se refugiava no estábulo, fugindo da companhia de todos.
Muitas vezes, após o jantar, expulsava Jen do quarto que partilhavam, reclamando de invasão de sua
privacidade.
A caçula, sentindo-se rejeitada, procurava todos os modos de irritar a irmã, chamando a atenção
de todos quando a pilhava escrevendo poesias na lousa ou se olhando no espelho.
Por sua vez, Luella conseguia colocar defeitos em tudo que a filha e as netas faziam. Como se
não bastassem suas recriminações constantes, começara a se alarmar com a rápida diminuição dos
mantimentos na despensa. A farinha e o açúcar estavam quase no fim e ela se desesperava. A guerra e o
terrível período que se seguira haviam deixado cicatrizes indeléveis em sua alma. Lembrando-se da falta
de comida que os forçara a comer apenas batatas, vivia num constante pânico de passar fome
novamente.
As brincadeiras com cartas entre Quin e as meninas era uma constante fonte de irritação. Luella
as considerava instrumentos do demônio e ameaçara queimar o baralho, caso o encontrasse espalhado
no tapete mais uma vez.
Só Cassie lutava, desesperadamente, para acalmar os ânimos exal¬tados e alegrar o ambiente.
Entretanto, as longas horas de trabalho na mina, depois que todos já estavam repousando, somada às
tensões diárias, começava a afetá-la. Realizava as tarefas costumeiras com mais lentidão, esquecendo-se
de preparar o café ou deixando queimar os biscoitos.
Sempre que isso acontecia, a mãe a lembrava que sua falta desatenção lhes custaria muito.
Uma noite, após o jantar, Luella iniciou seu habitual rosário de queixas.
— Já não temos quase mais nada de farinha. E o açúcar também está no fim. Minhas linhas de
costura não durarão nem uma semana. Se não tomarmos logo uma providência…
— Por favor, mãe!
Nervosa, Cassie virou-se rapidamente e o prato ensaboado escapou-lhe das mãos. Embora
tentasse segurá-lo, caiu ao chão, partindo-se em mil pedaços.
— Veja só o que você fez! — gritou Luella, quase em lágrimas. —
Como pôde ser tão desastrada? Esse era o último dos pratos que herdei de minha mãe. Era
tudo que eu tinha para lembrar-me dela!
Lutando para controlar o pranto, Cassie abaixou-se para recolher os cacos.
— Eu cuidarei disso! — declarou Quin, apanhando uma vassoura e empurrando delicadamente
as duas mulheres para fora da cozinha. — Por que não costura um pouco, Sra. Chalmers? E você,
Cassie, sente-se perto do fogo. Precisa descansar os pés.
— Não é preciso…
— Nunca discuta com alguém maior do que você, madame.
As duas meninas acompanhavam a cena, fascinadas. Quin notou o interesse delas e não perdeu
a oportunidade.
— Vão ficar me olhando, bem acomodadas em seus lugares? O que acham de vir secar os
pratos?
Rindo, elas correram até a cozinha e pegaram os panos de prato.
— Há quanto tempo não vão até a cidade? — perguntou ele, começando a ensaboar os pratos.
— Acho que já se passou… Mais de um ano — murmurou Becky. — A última vez que estive
em Prospect, foi com meu pai.
— E eu nunca fui — declarou Jen.
Ela estava sendo extremamente cuidadosa com os pratos, para evitar que a cólera da avó
recaísse sobre sua cabeça. Além disso, percebera que a mãe quase chorara.
— Papai achou que eu ainda era muito pequena e fiquei com mamãe e vovó.
— Está me dizendo que… Nunca foram todos juntos para uma visita à cidade?
— Não podíamos fazer isso. Papai dizia que alguém precisava ficar para cuidar dos animais.

63
— Então, está decidido! — Enxugando as mãos, ele voltou-se para as duas mulheres sentadas
diante da lareira. — Amanhã… Iremos todos para Prospect!
Todas as mulheres da casa, adultas e crianças, o fitaram num silêncio chocado.
— Vamos… Todos? — perguntou Cassie, perplexa.
— Exatamente!
— E quem cuidará dos animais?
— Pediremos aos nossos vizinhos que venham alimentar a vaca e as galinhas.
— Está se referindo aos nossos vizinhos… Selvagens? — perguntou Luella.
— Por acaso, existem outros? Eles poderiam ficar com o leite e os ovos retirados nos dias de
nossa ausência. Seria uma troca justa.
— E os homens de Cyrus Stoner? — insistiu Cassie.
— Eles não aparecem por aqui, há mais de uma semana.
— Se souberem que fomos para a vila, aproveitarão a oportunidade de invadir nossa casa, não
acha? Na verdade, o que os impedirá de atear fogo em tudo durante nossa ausência?
— O mesmo fator que os impediu até agora — respondeu Quin. — Não foram as nossas
armas que afastaram os homens de Stoner e sim os nossos vizinhos, os Crow. Além do mais, isso faz
parte do jogo. Tem de mostrar a Cyrus que não teme se afastar de sua casa ou acabará se tornando
prisioneira de seu próprio medo.
— Acha mesmo seguro irmos até a vila? É quase um dia de viagem.
— Não só acho seguro como tenho certeza de que fará bem para todos nós.
— E o dinheiro? — Sempre prática, Luella encontrara um problema que julgava insolúvel. —
Além dos suprimentos, precisaremos pagar nossa estadia e as refeições durante o tempo que
permanecermos na vila. Não temos um centavo para desperdiçar com futilidades.
— Eu caçarei mais alguns veados ou os animais que conseguir encontrar. — Quin levantou-se e
apanhou o rifle. — Trocaremos a carne e as peles pelo que precisarmos comprar. Então? Está
decidido?
Cassie olhou para as filhas e estremeceu. Becky unira as mãos num instintivo gesto de súplica e
Jen a fitava, implorando por uma resposta positiva.
— Sei que vou me arrepender mas… — ela deu um suspiro vindo do fundo da alma — está
decidido.
Sorrindo, Quin saiu da cabana e Cassie, voltando para a cozinha, recomeçou a trabalhar.
— Precisamos assar vários pães. Passaremos o dia todo na estrada… Soltando gritos de alegria,
Becky começou a dançar pala sala, seguida por Jen que ria sem parar. Só Luella parecia estar ainda mais
tensa do que de costume quando se aproximou de Cassie.
— Se realmente vamos para Prospect, é hora de ter aquela conversa com Becky.
Cassie ergueu a cabeça e Luella, prevendo uma negativa, segurou-a pelo braço.
— Se é verdade o que Jedediah nos contou, Cyrus Stoner espalhou boatos maldosos sobre a
nossa família e Becky tem de ser preparada.
— Mas…
— Não adianta fugir, filha — insistiu Luella, sem disfarçar a urgência. — Não pode mais adiar
o que é inevitável.
Contrariada e relutante, Cassie enxugou as mãos e chamou a filha mais velha.
— Preciso de sua ajuda no estábulo, Rebecca.
Enquanto caminhava até o estábulo, Cassie tentava prever todas as perguntas da filha. Ao
entrarem, fechou a porta com a tranca e encarou Rebecca, em silêncio.
— Por que viemos para cá? Não há nada que se possa fazer agora, só amanhã cedo…
— Eu queria conversar com você… Longe dos outros.
— Conversar? Sobre o quê?
— Sobre… Sobre ficar adulta.
— Ainda bem que você percebeu! — Rebecca sorriu, aliviada. — Quantos anos você tinha
quando se casou com papai?
— Quatorze… Quase quinze.
— Céus! — Rebecca ficou boquiaberta. — Não era muito mais velha do que eu!

64
— Você só tem doze.
— Farei treze em menos de um mês, mamãe.
— Mas ainda é uma menina.
— Jen é uma menina, mamãe. Eu sou quase uma mulher. Não notou que estou mais alta do que
você?
Cassie sentiu uma profunda tristeza diante do fim da infância de Rebecca, tão diferente da sua.
— Eu quero tantas coisas para você, filha. Uma bela casa, escolas boas e a oportunidade de ser
jovem e despreocupada… Uma chance de experimentar a vida antes de se acomodar e formar uma
família.
— Não pensou sobre o que eu quero?
— Mas… — Cassie não disfarçava a surpresa diante daquela pergunta. — O que você quer?
— Sabe que é a primeira vez que me faz esta pergunta? Sem controlar as lágrimas, Cassie
aproximou-se da filha.
— Eu sinto muito, querida. Depois da morte de seu pai, tenho passado todos os momentos do
dia tentando não deixar que nada lhes falte e me esqueci de pensar em seus anseios e sonhos para o
futuro. Nos seus e nos de Jennifer. — Ela segurou a mão de Becky, que a puxou, soltando-se da mãe.
— Por que não me conta o que quer da vida, Rebecca?
— É esse o problema. Eu não sei! A cada dia, descubro novos sen¬timentos que não consigo
entender e desejo algo impreciso. Só tenho certeza de um fato. Não me conformo de ser apenas a sua
filhinha ou a irmã mais velha de Jen ou os olhos da vovó, na hora de enfiar a linha na agulha. Gostaria
de ser tratada como uma pessoa capaz de tomar suas próprias decisões, mesmo se forem as mais
erradas! — Ela fitou a mãe, com um olhar de desafio. — Imagino que o Sr. McAllister tenha lhe
contado tudo.
— Contado o quê? — perguntou Cassie, imediatamente tensa.
— Que eu lhe pedi para me beijar.
— Não, Becky. — Cassie conseguiu, com muito esforço, disfarçar o choque. — O Sr.
McAllister não me disse uma só palavra sobre esse assunto.
Enrubescendo, Becky admitiu que não tinha outra escolha a não ser confessar tudo à mãe.
— Eu fiquei no estábulo, numa dessas manhãs depois que você e Jen saíram, e lhe pedi para me
beijar. Então, ele disse que eu devia reservar meus beijos para alguém especial.
Cassie sentiu um profundo alívio diante da sabedoria e da gentileza com que Quin tratara sua
filha, diante de uma atitude tão insensata.
— Ele lhe deu um bom conselho.
— Eu até posso concordar mas… Como vou encontrar alguém especial neste fim de mundo,
mamãe?
Durante longos minutos, Cassie esperou até que a filha esgotasse as lágrimas. Rebecca soluçava,
enquanto a mãe se preparava para o que precisava falar.
— Talvez nem perceba a minha preocupação, mas sei como está se sentindo, Rebecca. Lembro-
me de ter dito aproximadamente essas mesmas palavras a minha mãe, quando estava com sua idade.
Um sorriso sonhador suavizou as feições de Cassie ao relembrar um passado feliz.
— Foram dias de sonho, antes da guerra e de toda a loucura que destruiu o país. Eu era jovem,
bonita… Não tanto quanto você, querida — corrigiu Cassie, poupando o orgulho de Rebecca. — Os
rapazes começavam a se interessar por mim e fiquei fascinada com tanta atenção. Só pensava em festas
e bailes, mas minha mãe se preocupava, como costuma acontecer com todas as mães, que temem essa
vida fútil e de vaidades sociais. E ela sabia muito bem o que podia acontecer para uma jovem bonita,
fascinada com o efeito de sua beleza sobre os homens e ainda descuidada por imaturidade.
Tensa, Cassie sentou-se sobre um monte de feno e chamou a filha para junto dela.
— Embora talvez seja difícil de perceber agora, a sua avó foi excepcionalmente bonita,
considerada uma beldade sem rival em sua época. E ela teve o infortúnio de se apaixonar por alguém…
Que a magoou de forma irreparável. — Cassie e respirou fundo, criando coragem para continuar. —
Ele não a amava e só queria se gabar de mais uma conquista diante dos amigos. Existem muitos rapazes
que agem assim, aproveitan¬do-se da inocência de uma jovem ingênua e depois… A abandonam,
como um objeto usado e sem valor.

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— Vovó passou por isso? — perguntou Rebecca, sem disfarçar o choque.
— Ele jurou amá-la e, ao descobrir que estava grávida, a abandonou, sem qualquer escrúpulo.
Pela primeira vez em sua vida de pouca experiência, Becky conseguiu ver a avó, que considerava
uma velha rabugenta e sem qualquer beleza, como uma jovem bonita e requestada.
— E o que ela fez?
— Foi um período muito trágico na vida de Luella. Seus pais a repudiaram, os amigos a
rejeitaram e só uma pessoa lhe estendeu a mão. Esse homem via apenas o lado bom e as inúmeras
qualidades de sua avó e lhe ofereceu amor e proteção. Você não se lembra bem de seu avô, mas era
uma pessoa magnífica. Os dois se casaram e a criança por nascer teve um pai maravilhoso que a amou
como se fosse sangue de seu sangue.
— O que aconteceu com a criança?
Absorvida pelo lado emocionante da história, Becky deixara de raciocinar.
— Essa criança era eu, Rebecca.
— Você?
— Sim. Por esse motivo, cresci com uma responsabilidade especial, uma carga pesada demais
para meus ombros juvenis. Sempre me senti obrigada a provar para minha mãe que não repetiria seu
erro. Quando os rapazes começaram a me rodear e não pude esconder o quanto isso me encantava, ela
decidiu que chegara a hora de me escolher um marido ou seria tarde demais para evitar a tragédia
sempre presente em sua mente. Um dia, avisou-me que encontrara o homem perfeito e, apesar de meus
protestos, crises de choro e todas as súplicas, não me restou outra saída a não ser obedecer. Casei-me
com seu pai, a quem vi pela primeira vez a minha espera no altar.
— Oh, mamãe! — Becky abraçou Cassie, recomeçando a chorar. Por alguns instantes, Cassie
reviveu o sofrimento daqueles dias de um passado distante e sentiu a mesma dor intensa de se
encontrar presa em uma armadilha fatal.
— Seu pai era um bom homem — murmurou ela, recuperando a serenidade. — Ele realmente
me amava muito e adorava vocês duas.
Secando as lágrimas da filha, Cassie segurou-lhe as mãos.
— Eu lhe dou a minha palavra que você jamais precisará pagar pelos erros de outros, Rebecca.
Não importam quais sejam as suas escolhas, apoiarei a sua decisão de corpo e alma.
— Eu amo você, mamãe — soluçou Rebecca, comovida.
— Eu também a amo, filha querida.
As duas permaneceram abraçadas por um longo tempo, até que Cassie lembrou-se do motivo
principal de sua vinda até o estábulo.
— Sua avó pediu-me para lhe contar tudo, a fim de prepará-la para o que possa ouvir em
Prospect. Cyrus Stoner espalhou boatos maldosos sobre nossa família por toda a vila.
— Saber a verdade não muda em nada o que sinto por vovó. Dando a mão para a filha, Cassie
se encaminhou para a porta do estábulo. Então, Rebecca se deteve, forçando a mãe a também parar.
— Mamãe? Só mais uma pergunta… Você amava meu pai? Cassie jamais quisera fazer aquela
pergunta a si mesma, durante os anos de seu casamento com Ethan. Agora, já não temia encontrar a
resposta.
— Sim, Rebecca. O seu pai era um homem de infinita bondade e guardarei a imagem dele em
meu coração, para sempre.
As duas saíram, de mãos dadas. Quando a porta se fechou, Quin saiu da baia onde entrara para
selar Cutter. Não tivera intenção de ouvir segredos alheios, mas não fora possível revelar sua presença
sem provocar uma situação constrangedora.
Todas as pessoas guardavam um segredo e, quando se vive bastante, aprende-se a não se chocar
com mais nada. Entretanto, ao saber de toda a história daquelas duas mulheres, Quin reconhecia que se
encontrava diante de um dilema insolúvel. Teria de controlar com muito mais disciplina o desejo
crescente por Cassie.
Quando Quin retornou da floresta, já passava da meia noite. Ele caçara dois veados, um urso e
dez coelhos. Só as peles lhe forneceriam dinheiro suficiente para pagar pela estadia de todos na vila.

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Ele entrou na cabana e sentiu o aroma da comida que fora preparada para a viagem da manhã
seguinte, mesclado ao de sabão caseiro. Então, viu que havia roupas penduradas em uma corda diante
da lareira.
Luella e as meninas já haviam se retirado, mas Cassie adormecera, sentada na cadeira de
balanço. Quin ajoelhou-se ao lado dela, fascinado com o rosto angelical em perfeito repouso. Estava
prestes a ceder ao desejo de beijá-la quando ela abriu os olhos, sobressaltada.
— Sinto muito mas… Eu pretendia ficar acordada até a sua volta. Reservei um balde de água
para lavar suas roupas.
— Você já trabalhou demais.
— Mas… As suas roupas…
— Eu mesmo as lavarei.
— De modo algum. Quando chegou a nossa casa, parecia um príncipe e…
— E agora pareço um fazendeiro cansado e sujo, certo?
Rindo, Quin a carregou nos braços, disposto a levá-la para o quarto, o único modo de impedi-la
de se levantar e lavar suas roupas.
Sem coragem de resistir à sensação de conforto e felicidade, Cassie passou os braços em torno
do pescoço dele.
— Não conseguirei dormir — murmurou ela. — Estou tão excitada… Com a viagem, é claro.
Quin não respondeu, imóvel no meio do quarto e desejando continuar com Cassie nos braços
pelo resto da noite. Então, lembrou-se dos segredos que ouvira e a colocou na cama.
— Você conseguirá dormir. Acredite em mim.
Ao cobri-la com o cobertor, ele quase perdeu a luta contra o avolumar da paixão. Nunca
desejara nada mais do que deitar-se ao lado de Cassie e amá-la até o dia raiar!
— Boa noite, Cassie.
Ele deslizou os dedos pelo rosto delicado e, com um esforço que julgara além de suas forças,
saiu do quarto. Cassie adormeceu antes de se fechar o cobertor que servia para garantir a privacidade de
seu sono.

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DOZE

O dia amanheceu nublado, com um vento gelado vindo do norte que soprava sem cessar,
deixando as faces vermelhas e os olhos lacrimejantes. Mas o pequeno grupo na velha carroça, envolvido
em peles, estava festivo como se estivesse indo para um piquenique de verão.
Os dois cavalos de arado puxavam com facilidade a carroça sobre o solo congelado. Quin
montava Cutter, que mal continha a energia, tendo de acompanhar as marcha mais lenta dos outros
animais.
— Não estou vendo nenhum índio, Sr. McAllister — comentou Luella.
— Não os vê, mas eles estão bem perto, madame.
Quin sentia a inconfundível sensação de alerta, uma espécie de arrepio no couro cabeludo, que
sempre o avisara de um imprevisto ou algum perigo. Sabia que os Crow estavam nas proximidades,
observando-os partir. Também tinha certeza de que, embora fossem deixar cada peça em seu exato
lugar, iriam entrar na cabana a fim de satisfazer sua curiosidade sobre seus moradores.
Ele sorriu, divertindo-se com a situação, que as mulheres continuariam a ignorar. Prevendo a
visita dos índios, deixara um charuto para o chefe, sobre a mesa da cozinha.
— Estamos entrando nas terras de Cyrus Stoner — avisou Cassie. — Daqui até Prospect, tudo
pertence a ele.
Vendo as planícies ondulantes que se estendiam até o horizonte longínquo, a expressão de Quin
se tornou mais pensativa.
— Se o valor de um homem pode ser calculado pela quantidade de terras que possui, eu diria
que Stoner é um homem muito rico. Por que ele precisaria de suas terras?
Cassie desviou o olhar, sem responder. Aquele mesmo pensamento já lhe passara pela mente
inúmeras vezes.
— Quanto tempo demoraremos para chegar? — perguntou Jen, impaciente.
— Temos muitas horas de viagem a nossa frente, Jen.
Soltando as rédeas de Cutter, Quin galopou até o alto de uma colina e observou a imensidão
sem qualquer presença humana a sua frente. Ao olhar para trás, sentiu pena de Jen, sentada entre a irmã
e a avó e retornou até a carroça.
— Gostaria de cavalgar na minha garupa, Jen? Iremos na frente, como batedores.
Os olhos da menina brilharam de alegria e excitação.
— Por favor, mamãe?
Cassie examinou Quin, montado em seu magnífico garanhão, com um chapéu de abas largas
que sombreavam seus olhos negros. Naquela madrugada, antes do nascer do dia, decidira passar a
camisa dele não resistira ao desejo de encostar no rosto o tecido fino que ainda guardava um leve
vestígio de perfume masculino.
Em outros tempos, ela vivera rodeada de objetos de luxo a ponto de mal notar o quanto eram
preciosos. Agora, seu vestido de algodão parecia ainda mais rústico e deselegante em contraste com as
roupas caras de Quin.
— Ele deve ficar conosco na carroça — declarou Luella, com a habitual severidade.
— Não há perigo algum, mãe. Pode ir com o Sr. McAllister, Jennifer. Eufórica com a permissão
da mãe, Jen ergueu os braços para Quin, que a colocou na garupa do cavalo.
— Acha que conseguirá se segurar com firmeza? — perguntou ele. Passando os braços finos
em torno da cintura dele, a menina mal continha a alegria.
— Talvez tenhamos de passar por alguns locais bastante acidentados e você precisará se segurar
com mais força. Avise-me quando estiver cansada, sim?
— Eu nunca vou me cansar desta maravilha! — exclamou a menina, encantada com o passo
suave do cavalo.
— Olhe!
Jen perdeu a fala ao voltar os olhos para a direção apontada por Quin. Milhares de búfalos
ocupavam a planície abaixo da colina que percorriam. Suas formas sólidas se moviam lentamente,
enquanto escavavam a neve com seus cascos possantes, buscando o capim sob o gelo.

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— Vai caçar alguns? — perguntou ela, ao recuperar a voz.
— Nós já temos carne suficiente na carroça. Deixaremos os búfalos para nossos amigos, os
Crow. A sobrevivência deles depende desses animais.
— Por quê?
— Comem sua carne e usam suas peles para fazer roupas e também suas tendas. Além disso,
prefiro outro tipo de caça.
— Eu também!
Naquele momento, Jen concordaria com qualquer opinião de Quin, mesmo se não soubesse a
que se referia. Cavalgando na garupa daquele homem, ela se sentia segura e protegida de tudo, como
quando seu pai ainda vivia. Mas, pela primeira vez, descobria o prazer da aventura.
Ao contrário da irmã mais velha, Jennifer não se lembrava do local onde nascera. As mansões
opulentas, o estilo de vida requintado e luxuoso, o ritmo gentil e gracioso do sul tinha se apagado de
sua mente. Ela admirava a amplidão da paisagem de Montana, sentindo que amava aquela região.
As altas montanhas com picos sempre cobertos de neve, as florestas onde se encontravam ursos
e pumas, as planícies abertas com rebanhos de búfalos, as cascatas e os lagos transparentes formavam
essa região hostil mas de beleza primitiva que tinha se tornado seu lar.
No alto do céu, um gavião voava em amplos círculos até descer com a velocidade de uma bala,
e depois voltar a subir, levando nas garras um coelho.
— Será o café da manhã do gavião — brincou Quin. — Por falar em comida, já está com
fome?
— Ainda não.
— Ótimo. Segure-se bem que vamos galopar a fim de verificar como está o caminho a nossa
frente.
Cutter disparou a galope e a menina agarrou-se mais, fascinada com o prazer da velocidade e
sem se importar com o vento frio em seu rosto.
Horas mais tarde, Quin sentiu a pressão da cabeça de Jen em suas costas e percebeu que ela
adormecera. Antes que a menina soltasse completamente os braços já frouxos, retornou até a carroça e
a entregou à mãe. Cobrindo-a com peles, Cassie notou que a filha nem acordara ao ser transportada de
volta, mas seu sono era sereno como há muito não acontecia.
A tarde começava a cair, quando Quin parou no alto de uma colina e apontou o vilarejo ainda a
distância.
— Ai está Prospect!
Depois de terem passado tanto tempo em uma cabana pequena e apertada demais, em
completo isolamento em meio a natureza, todas elas ficaram boquiabertas ao avistar o aglomerado de
construções. Mas, ao se aproximarem mais, perceberam que era realmente um vilarejo bastante
reduzido.
Enquanto a carroça percorria a via principal que, na verdade, não passava de uma estreita rua de
terra, os olhares de todos se fixaram em pontos diferentes.
Para Luella, a única construção importante era a igreja, com sua tosca cruz de madeira. Já se
passara tempo demais desde que ouvira, pela última vez, o tom rico e ressonante de um pregador
exortando seus fiéis a viverem de acordo com os elevados ideais do espírito, ou as vozes da
congregação se unindo para cantar os hinos, tocando o íntimo de sua alma e alegrando seu coração.
Mais do que qualquer outra das inúmeras privações de sua vida atual, ela sentia falta do conforto da
religião.
O olhar de Becky foi atraído pela vitrine do armazém Sutter. Através do vidro, viu as peças de
fazenda, de coloridos vivos, e as toucas graciosas, enfeitadas de rendas ou bordados. Tinha idade para
se lembrar de Atlanta que, segundo seu pai, comparava-se a Nova York e Boston. Consciente de seu
vestido mal feito, recortado de uma antiga capa da avó, ela não podia imaginar nada mais maravilhoso
do que entrar naquela loja onde poderia sonhar e se esquecer da realidade.
Jen fitava a pequena escola, com a expressão de uma criança faminta. Como seria ouvir as vozes
de outras crianças, falando, brincando, rindo… E acumulando conhecimentos? Havia tanto que ela não
sabia! Seu maior sonho era aprender tudo. Talvez por isso, adorasse ouvir as histórias de Quin
McAllister que vira o mundo, se aventurara em busca de novas emoções e não deixara de experimentar

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nada. Algum dia, seguiria os passos desse homem, partindo numa viagem sem fim a procura de
conhecimento e excitação.
Cassie olhava para as casas, lado a lado, com fumaça saindo de suas chaminés e cortinas nas
janelas. Não se deu conta da expressão de doce inveja em seu rosto, ao ver as mulheres preparando o
jantar. Como sentia falta do conforto de um lar de verdade! No passado, dava ordens a dezenas de
criados quando recebia centenas de convidados, escolhidos entre a aristocracia dourada de Atlanta. Seus
jantares eram os mais comentados por todos na cidade, seus vestidos vinham de Paris… E agora?
Ela olhou para as mãos, ásperas e calejadas pelo duro trabalho da fazenda e suspirou. Agora, a
medida de seu sucesso era sobreviver mais um dia.
Cavalgando ao lado da carroça, a atenção de Quin se voltou para o cabaré da cidade, com suas
luzes fortes, vozes altas e risadas femininas. O som de um piano desafinado chegava até a rua,
lembrando de tantas noites passadas em locais semelhantes. Sorrindo, ele virou-se para Cassie.
— Vamos procurar uma pensão. Depois de acharmos, eu cuidarei dos cavalos.
Ao prosseguirem pela rua de terra, Quin já não sorria. Em outros tempos, jurara, a quem
quisesse ouvir, que nada podia ser tão excitante quanto uma partida de pôquer. Agora, descobrira algo,
ou melhor, alguém que superava todos os prazeres antigos.
Ao avistar a carroça que entrava na cidade, o ferreiro saiu de sua oficina, examinando os recém
chegados.
— Boa noite. Pretendem pernoitar na cidade?
— Sim — respondeu Quin. — Há alguma pensão onde possamos nos hospedar?
— A da viúva Claxton é muito boa. Limpa, bem cuidada e, além disso, ela cozinha muito bem.
Os homens que não tem uma esposa para preparar suas refeições, costumam almoçar e jantar lá. Fica
logo adiante…
— Muito obrigado. — Quin dirigiu-se a Cassie. — Levarei vocês até a pensão e, quando
estiverem acomodadas, retornarei com a carroça e os cavalos.
Depois de acertar o preço da estadia dos animais com o ferreiro, ele as conduziu até o final da
rua onde ficava uma das maiores casas do vilarejo, com dois andares e várias construções no fundo do
amplo terreno que a cercava.
Antes mesmo das mulheres descerem da carroça, a porta se abriu diante de Quin. Uma senhora
rechonchuda, com um coque impecável, enxugava as mãos no avental muito branco.
— Sejam bem vindos. Querem apenas quartos ou pensão completa?
— Pensão completa. — Quin apontou para as passageiras da carroça. — Tem lugar para todos
nós?
— Sem dúvida. — Ela olhou para a pistola na cintura de Quin e depois para o rifle. — Eu exijo
que se cumpram duas regras em minha casa. Não permito a entrada de armas nem de uísque. Aceita
essas imposições?
— Sim, madame.
— Já tomou providências a respeito dos cavalos e da carroça?
— Parei na cocheira e já paguei o ferreiro.
— Ótimo. Meu filho Willy se encarregará de levá-los para o senhor. Ela afastou-se da porta
para dar passagem a um garoto de quinze anos, que saiu de casa, ainda vestindo o casaco.
O garoto, de cabelos muito loiros e olhos azuis, apanhou as rédeas da mão de Quin e segurou
os outros dois cavalos enquanto as mulheres desciam da carroça. Sua expressão se transformou ao
avistar Becky, sentada entre a mãe e a avó.
Ele sorriu, demonstrando admiração e Becky, que não estava acostumada a conviver com
jovens da sua idade, enrubesceu e desviou os olhos.
— Por favor, entrem — chamou a viúva Claxton, da porta de sua casa.
— Antes, eu gostaria de acertar o pagamento com a senhora. — Quin apontou para os dois
veados que caçara. — Espero que sejam suficientes para pagar por nossa estadia e refeições. Preciso
dos outros animais para comprar suprimentos.
A bem fornida senhora os examinou com a atenção de uma perita em caça e admirou o
tamanho e a qualidade da pele dos dois animais.

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— É mais do que suficiente, inclusive pela a água quente para os banhos, que costumo cobrar à
parte. Agora… Entrem em minha casa.
Entregando-lhe o cinto com o coldre e a pistola, Quin foi o último a entrar.
A sala de estar era aconchegante, com um sofá e diversas poltronas estofadas e convidativas,
colocadas em um semicírculo diante da lareira acesa.
— Sentem-se e se aqueçam um pouco pois o jantar só será servido dentro de uma hora. Vou
lhes trazer um chá e biscoitos e depois lhes mostrarei seus quartos. — Ela estendeu a mão a Quin. —
Sou Florence Claxton.
— Quin McAllister.
— Seja bem vindo, Sr. McAllister. — Florence Claxton voltou-se para Cassie. — Sra.
McAllister…
Cassie enrubesceu, embaraçada.
— Meu nome é Cassie Montgomery. Estas são minhas filhas, Rebecca e Jennifer. Esta senhora
é minha mãe, Luella Chalmers.
— Perdão. Eu pensei… — Florence franziu a testa, intrigada. — O Sr. McAllister é seu…
— Capataz — interferiu ele, rapidamente.
— Ah! Entendo…
Nesse instante, um rapaz alto, de cerca de dezoito anos entrou na sala, carregando mais lenha
para a lareira.
— Já encontraram meu filho Willy, a quem entregaram os cavalos. Este é Zack, o mais velho.
Depois de colocar a lenha na cesta junto da lareira, o jovem cumprimentou a todos. Ele tinha os
mesmos cabelos louros e olhos azuis do irmão, mas já era quase um homem, de ombros largos e apenas
alguns centímetros mais baixo do que Quin. Como acontecera com Willy, seu sorriso se ampliou ao
estender a mão para Becky.
— Vou precisar que leve lenha para os quartos, Zack. E também as banheiras e muita água
quente. Eles vão se hospedar em nossa casa.
— Sim, mãe.
Momentos depois, ouviram-se seus passos subindo a escada e Florence, satisfeita com o
andamento das preparações, foi buscar o prometido chá.
Ela logo retornou, trazendo uma bandeja de prata, com xícaras e bules de porcelana, além de
uma travessa de biscoitos com geléia.
Para Jen, havia uma caneca de leite morno e a menina, encantada com o sabor da geléia,
devorava um biscoito após o outro. Já comera quatro quando a avó se deu conta de sua gulodice.
— É mais do que suficiente, Jen— murmurou Luella, rispidamente. — Deixe que os outros se
sirvam também.
— Sim, vovó.
A menina se manteve de cabeça por alguns instantes, até que um garoto de seis ou sete anos
entrou na sala. Ele era uma miniatura dos dois irmãos mais velhos e tinha um sorriso contagiante.
— O meu nome é Oren. E o seu?
— Jennifer… Mas todos me chamam de Jen.
O garoto não disfarçou a surpresa, pois o macacão de Jen o levara a julgar que se tratava de um
menino. Então, com a facilidade de adaptação das crianças, voltou a sorrir.
— Quer ver os cachorrinhos? A nossa cadela deu cria…
Os olhos de Jen brilhavam de entusiasmo. Ela levantou-se da poltrona e só superou a ansiedade
quando percebeu que a mãe lhe sorria, dando consentimento para sair da sala com o garoto.
Ao terminarem o chá, Florence os chamou para lhes mostrar os quartos que ficavam no
segundo andar.
— Reservei o maior para as mulheres…
Ela abriu a porta de um amplo aposento, claro e arejado, onde se viam duas camas de casal,
cobertas por colchas de retalhos coloridos.
Havia uma cômoda junto da janela e um espelho alto ao lado do armário. Tapetes tecidos a mão
davam mais vida às tábuas escuras do chão e o fogo crepitante da lareira iluminava a enorme banheira
de madeira de onde subia o vapor de água muito quente.

71
— Deixarei que se preparem para o jantar. Agora levarei o Sr. McAl-lister para o quarto dele.
— Muito obrigado, Sra. Claxton.
— Por favor, me chame de Florence.
— Obrigado, Florence.
Tão logo ela saiu, fechando a porta, Quin se despiu, num piscar de olhos e entrou na banheira
quente, com um suspiro de prazer.
Ele acendeu um charuto e se recostou na beirada alta da banheira, sentindo que seu cansaço
logo se desfaria com a água quente, quando alguém bateu à porta.
— Pode entrar. A porta não está trancada.
— Sr. McAllister, eu…
Cassie já havia fechado a porta trás de si quando percebeu que Quin estava dentro da banheira.
Enrubescendo, ela recuou um passo.
— Devia ter me avisado… Que não estava decente.
— Não há nada de indecente na nudez… Que aliás, está bem coberta pela água, madame. Deus
nos criou assim.
— Pois eu não pretendo…
Ela se virou para sair do quarto, quando sentiu que Quin a segurava pelo pulso.
— Eu estava imaginando se surgiria um anjo para esfregar minhas costas e… Você apareceu.
Puxando-a para mais perto, Quin a forçou a ficar de joelhos do lado da banheira e, com um
sorriso indolente, lhe colocou a esponja ensaboada nas mãos.
Mais uma vez, Cassie se surpreendia com a força de Quin. Embora sempre desse a impressão
de ser um homem indolente e fácil de levar, ela percebia que a aparência superficial apenas disfarçava
uma vontade de ferro. A pressão dos dedos em seu pulso indicava que de nada adiantaria lutar pois não
teria condição alguma de se soltar.
— É ousado demais, sr. McAllister.
— Nunca lhe passou pela cabeça que você pode ser tímida demais?
— Tímida? — Ela tentou se afastar, mas Quin a segurava com firmeza. Então, ergueu o queixo
no costumeiro gesto de combativo desafio. — Se considera timidez a minha recusa em agir como uma
mulher de cabaré, sou mesmo tímida! E se acha que meu rubor diante de um homem desconhecido e
nu um sinal de timidez, confirmo que sou tímida! De qualquer forma, não jogarei seu jogo, Sr.
McAllister.
Cassie ergueu a esponja molhada, demonstrando a intenção de atirá-la em Quin, mas ele
segurou-lhe a outra mão.
— Você seria capaz de um gesto tão agressivo? — zombou ele, puxando-a para mais perto. —
Terei de lhe ensinar uma lição…
O ar de riso desaparecera da expressão de Quin e seus olhos revelavam um desejo tão intenso
que Cassie estremeceu, atemorizada. Antes que pudesse fugir daquela situação perigosa, sentiu-se
envolvida por dois braços musculosos e lábios ávidos se apoderaram dos seus.
O beijo apenas indicava a intensidade da paixão desenfreada e apenas contida, mas prestes a vir
à tona.
Perdendo a noção da realidade, Cassie mal percebeu que suas mãos tinham se apoiado no peito
musculoso e molhado, permitindo que Quin aumentasse o ardor de seu abraço.
— Ah, Cassie…
A voz acariciante foi a última gota necessária para apagar de sua mente qualquer desejo de
resistir ao prazer. Entreabrindo os lábios, Cassie se entregou à volúpia de um beijo inesquecível.
Por um instante, Quin interrompeu a carícia, ansioso por ver o rosto de Cassie transfigurado
pelo prazer.
No breve intervalo, Cassie sentiu o renascer de um temor que, aos poucos, perdia as forças.
Como ousara ir tão longe? Ao entrar no quarto de Quin, não imaginara que fosse encontrá-lo nu. Na
verdade, a idéia da nudez chocava seu puritanismo, mas os beijos haviam despertado uma outra mulher
em seu íntimo e essa criatura sem inibições a impedia de resistir.
Ela não queria tomar consciência de nada que não fosse o prazer de sentir aqueles lábios e
aquelas mãos tocarem seu corpo, envolvendo-a num sortilégio do qual não queria jamais se privar.

72
Quin examinou o rosto corado de paixão, os olhos brilhantes e os lábios entreabertos à espera
de mais beijos, e reconheceu que mulher alguma jamais o excitara tanto. O tecido gasto do vestido se
molhara com a água do banho e moldava os seios rijos, deixando-os tão visíveis quanto se ela estivesse
nua.
— Eu não quero mais conter minha paixão, Cassie. Quero seus beijos…
Antes que ela pudesse protestar, Quin a beijou, com uma ternura infinita. Cassie suspirou
baixinho, sentindo os lábios percorrerem seu rosto, buscarem a pele macia do pescoço, para novamente
retornarem à boca, agora mais exigentes e possessivos.
Inebriada de prazer, Cassie descobria sensações jamais experimentadas antes. Queria ousar,
tocando Quin com a mesma ternura mesclada de paixão, mas o medo a impedia de se mover.
Quando sentiu os lábios dele no decote de seu vestido, soltou uma exclamação de susto.
Embora o tecido molhado cobrisse seus seios, os mamilos rijos se desenhavam com nitidez e Quin os
tocou, intensificando um desejo que Cassie nunca sonhara ser possível.

Todos os anos de experiência como esposa, não a haviam preparado para a volúpia despertada
pelo toque de Quin. Preocupado com sua excessiva juventude, Ethan fora um amante muito diferente.
Respeitava sua modéstia e a possuía apenas no escuro do quarto, sob as cobertas e sem revelar sua
nudez.
Cassie jamais experimentara um prazer que exigisse toda a sua sensibilidade de mulher, nem
sentira um desejo tão devorador. E em um quarto iluminado pela suave luminosidade da lareira e pelo
brilho rubro dos lampiões!
Mas Cassie não era tão inexperiente a ponto de ignorar o perigo que corria. Por quanto tempo
mais ambos se contentariam apenas com beijos e carícias leves, antes de perder a lucidez? Ela gostaria
de ter uma amiga com quem pudesse conversar! Se sua mãe soubesse do que acontecia naquele quarto,
ficaria escandalizada.
Reunindo toda a sua força de vontade, ela se soltou dos braços de Quin. Ainda sem condições
de se manter em pé, permaneceu ajoelhada junto da banheira, mas sem olhar para ele e com o rosto
rubro de vergonha.
— Olhe para mim, Cassie. — Ele a segurou pelo queixo, forçando-a a erguer a cabeça. — Você
é uma mulher bonita, desejável e é perfeitamente natural que sinta desejo.
A fim de encobrir seu profundo embaraço, Cassie recorreu ao único recurso ao seu alcance, a
raiva.
— Solte-me!
Ignorando-a, ele se curvou para beijá-la novamente.
— Eu lhe disse para me soltar, Quin McAllister!
Com uma rapidez inesperada, ela a soltou e Cassie caiu sentada na poça de água que se formara
no chão.
Surpresa, ela permaneceu imóvel por um momento mas, ao notar o sorriso malicioso de Quin,
ergueu-se num salto. Olhando para baixo, deu-se conta que seu vestido estava ensopado de cima a
baixo.
— Você fez de propósito!
— Acho que fiz mesmo — murmurou ele, com um sorriso provoador. — Também a beijei de
propósito e, se não tomar cuidado, repetirei quantas vezes me for possível.
Enfurecida, Cassie saiu correndo do quarto, tentando manter a dignidade apesar das saias
molhadas e que moldavam cada movimento seu.
Ao sair da banheira, Quin começou a se enxugar, praguejando baixinho. Aquele banho não o
relaxara, como sempre.
Subitamente, ele ficou imóvel, chocado com sua falta de lucidez. Estaria apaixonado por Cassie?
No início, aceitara a atração entre eles, sabendo que não passava de um desejo físico, natural em
um homem saudável diante de uma bela mulher. Agora, percebia que seus sentimentos já não eram tão
superficiais ou fáceis de entender.
Sem se preocupar em se vestir, ele aproximou-se da janela e avistou as luzes já acesas do cabaré.
Viu os homens que entravam, com o entusiasmo de quem espera uma noite de diversão.

73
Sempre que chegava a uma cidade, Quin se hospedava no melhor hotel e, após um longo e
relaxante banho quente, mal continha a vontade de correr para aquele mundo de luzes brilhantes para
se encontrar com os homens e as mulheres que viviam para a noite.
Por que não tinha o menor desejo de reunir-se a todos agora? Até o irresistível jogo de pôquer
perdera a costumeira atração. O que aquela mulher fizera com ele?
Maldita região coberta de neve! Como ele gostaria de nunca ter encontrado a mulher que o
convencera a ficar naquele fim de mundo, primitivo e longe de qualquer sinal de civilização!
Sem se importar com quem o ouvisse, ele se vestiu, praguejando em voz alta.

74
TREZE

Cassie se sentiu profundamente aliviada pelos momentos de solidão no quarto, um luxo muito
especial para quem vivia em uma cabana diminuta e um prazer que pretendia aproveitar ao máximo.
Por sorte, Luella e as meninas já haviam descido e podiam-se ouvir suas vozes na sala do andar de
baixo, conversando e rindo, enquanto ajudavam a arrumar a mesa para o jantar.
Se as tivesse encontrado no quarto, como explicaria o vestido ensopado e sua evidente
perturbação? Diante do rubor de seu rosto, saberiam quem fora o responsável por sua falta de
compostura.
Após sair do banho mais longo que tomava há anos, começou a se enxugar lentamente. O que
Quin veria ao fitá-la? Aproveitando o espelho grande, um luxo que nunca mais tivera depois de perder
sua casa em Atlanta, ela deixou cair a toalha e se surpreendeu com a imagem refletida.
Perdera as formas arredondadas da juventude e se tornara uma mulher, magra demais para seu
gosto. Os seios tinham aumentado de tamanho, mas a cintura ficara mais fina. As pernas esguias
pareceriam as de uma adolescente se não fosse o acentuado contorno dos quadris.
Na verdade, se considerava sem nenhuma beleza especial. As maças do rosto eram
pronunciadas demais, os lábios muito cheios e os olhos… Ela nunca conseguira decidir se eram verdes
ou amarelos, como os de um gato, pois mudavam de cor de acordo com as alterações de seu
temperamento.
E os cabelos sempre tinham sido seu maior desgosto. Adolescente, sonhava com uma longa e
lisa cabeleira negra ou cachos loiros e sedosos. Odiava os caracóis rebeldes e cor de folhas no outono!
Então, Cassie olhou para as mãos, calejadas e gastas pelo trabalho duro. Num impulso,
escondeu-as atrás das costas. Como gostaria que Quin a tivesse conhecido antes da guerra! Jovem,
despreocupada e bonita… Não! Ela nunca fora realmente uma pessoa despreocupada pois, desde a
mais tenra infância, percebera a necessidade de sua mãe pela perfeição em tudo. Vivera tentando
alcançar padrões quase inatingíveis mas, comparando o passado com os dias atuais, tivera a existência
privilegiada de uma princesa.
Suspirando, ela voltou a examinar as mãos. Não adiantava fugir da verdade ou ignorar a
realidade. Não era mais uma jovem, completara vinte e oito anos e tinha uma filha quase moça.
Entretanto, em momentos como esse, sentia a perplexidade ignorante de uma adolescente que se
assusta com desejos e necessidades de uma mulher adulta.
Sabia que precisava abafar essas emoções proibidas, tentando-a sem cessar. Acabaria indo
contra tudo em que sempre acreditara! No entanto, bastava o toque do homem no quarto ao lado para,
com uma simples carícia, roubar a lucidez de sua mente e levá-la a se esquecer da pru¬dência,
convencendo-a, por alguns momentos, de que ainda era jovem e bonita.
A ousadia de Quin despertava um eco inesperado no fundo de sua alma. Apesar da costumeira
sensatez, ansiava por correr riscos, provando e saboreando, até a última gota, as experiências,
sentimentos e emoções que descobrira nas mãos dele. Esse desejo descontrolado de viver a levava a se
comportar como uma mulher sem decência ou moral.
Subitamente, Cassie caiu em si. Se continuasse a pensar em Quin, acabaria como Rebecca,
sonhando pelos cantos e desejando o que não podia ter! Vestindo-se com rapidez e sem perder tempo
em se enfeitar para Quin, apenas escovou os cabelos e os prendeu com uma fita branca. Então, virou-se
de costas para o espelho, censurando-se por ser tão vaidosa.
Mas, ao descer as escadas, ouviu a voz grave de Quin e desejou, por mais uma vez, ser jovem,
bonita e livre das amarguras da vida.
— Ah! Finalmente, você chegou! — exclamou Florence.
Parada à porta, Cassie enrubesceu diante do olhar admirativo de Quin. Então, viu que haviam
outras pessoas na sala e forçou-se a agir com naturalidade.
— Eu estava aproveitando o luxo raro de tomar um banho quente.
— Foi exatamente isso que o Sr. McAllister nos disse. Boquiaberta, Cassie o fitou, à espera de
uma explicação. O que aquele homem imprevisível poderia ter revelado sobre o episódio no quarto
dele?

75
— Ele disse que há muito tempo não tomava um banho tão quente — prosseguiu Florence,
sem perceber o olhar trocado entre Cassie e Quin. — Não é verdade?
— Sem dúvida alguma, Sra. Claxton.
— Florence — corrigiu ela, sorrindo.
Cassie cerrou os lábios, contrariada. Era evidente que Quin já conseguira seduzir a viúva
Claxton com seu encanto irresistível!
— Creio que já conhece Jedediah Taylor, Cassie.
— Sim… — Ela sorriu para o velho que se aquecia de costas para a lareira. — Jedediah se
tornou nosso amigo logo que chegamos em Montana.
— E este é o delegado Clayton Wilson.
Florence sorriu para o homem de enormes bigodes e uma igualmente grande barriga que
mantivera o cinturão, mas com o coldre vazio. Em deferência à dona da casa, até o delegado fora
obrigado a deixar sua arma na prateleira do lado de fora da porta da casa.
— Estou surpreso por saber que uma cidade tão pequena como esta tem um delegado —
comentou Quin.
— Realmente, nós somos poucos — comentou Florence. — Mas alguns, como Cyrus Stoner
tem muita terra valiosa para ser defendida.
— Então… Você foi contratado por Stones.
O delegado virou-se para Quin, sem esconder o desagrado.
— Fui contratado pelos cidadãos de Prospect a fim de manter a paz da cidade e proteger seus
interesses.
Nesse instante, a porta se abriu e um vento frio percorreu a sala. O recém chegado era um
homem alto, grisalho e com uma longa capa de couro.
— Desculpe minha demora, Florence. — Ele sorriu para a dona da casa. — Não queria atrasar
seu jantar.
— De modo algum, reverendo Townsend. Ainda estávamos nos preparando para ir jantar.
Conduzindo-o para o centro da sala, ela o apresentou aos que não o conheciam.
— Esta é a Sra. Montgomery e sua filha Rebecca. E a mãe dela, Luella Chalmers. E o sr. Quin
McAllister, o capataz.
A aparência do reverendo era de causar impacto. Alto, forte e de traços regulares, ele mais
parecia um próspero fazendeiro do que um pregador em uma cidade pequena e pobre como Prospect.
— É um prazer conhecê-los.
— Por que se atrasou, reverendo? — perguntou Florence.
— Eu estava enterrando o pai de Lester Cleaf.
— Então, o Senhor finalmente o chamou.
— Não sei se foi mesmo o Senhor, mas alguém acertou uma bala nas costas dele enquanto
roubava um rebanho ainda sem sua marca — explicou o reverendo, seguindo a viúva para a sala de
jantar.
— Tem alguma idéia de quem possa ter sido, delegado? — perguntou Florence.
— Ainda estou investigando. — O delegado não sorria. — Provavelmente foram os índios.
Naquele instante, Oren e Jen entraram correndo na sala e viram que todos os adultos já estavam
sentados.
— Vocês dois estão bem sujos, não? — comentou Florence, rindo.
— Oren me mostrou os cachorrinhos! — A voz de Jen estava quase estridente de tanto
entusiasmo. — E deixou-me carregar um deles, mamãe. Ele lambeu meu rosto e depois dormiu nos
meus braços!
— Que bom — murmurou Cassie, encantada com a alegria da filha.
— Acho que ele gostou de mim! — Agora, Jen falava mais baixo._ Oren me disse que o Sr.
Sutter quer comprá-lo por um dólar. Será que podemos…
— Basta, Jennifer! — ordenou Luella, com rispidez. — Cumprimente o delegado Wilson e o
reverendo Townsend.
— Boa noite. — Ela sorriu para os dois homens e, sem perder um só segundo, voltou sua
atenção novamente para a mãe. — Até achei um nome para o cãozinho, sabe?

76
Então, Florence ergueu a mão e pediu que o reverendo conduzisse a prece noturna. Ao
terminarem de rezar, ela e os dois filhos mais velhos, começaram a servir a comida. Enquanto todos se
deliciavam com a carne assada e as batatas com creme, Jennifer voltou ao assunto.
— Se o cachorrinho fosse meu, eu o chamaria de Uísque! — continuou ela, como se não tivesse
havido nenhuma interrupção. — Ele é da cor do uísque do Sr. McAllister.
— Jennifer! — Luella estava claramente horrorizada com o comportamento da neta. — Nós
não permitimos que se pronuncie o nome de qualquer bebida em nossa casa!
— Está bem. Então, ele poderia se chamar Biscoito porque também é da cor dos biscoitos da
Sra. Claxton.
— Não há o menor sentido em prolongar esta discussão — declarou Luella, encarando Cassie à
espera de apoio. — O cachorro pertence a Oren e só ele tem o direito de escolher o nome.
Quando Jen abriu a boca para contestar a avó, Cassie tocou-lhe levemente o braço, sem
disfarçar sua própria angústia.
— A sua avó tem razão, Jennifer.
Abaixando a cabeça, a menina se calou e não abriu mais a boca durante todo o jantar.
— Florence me contou que sua família vive além das planícies, perto das montanhas. — O
delegado encarou Cassie. — O que os trouxe até Prospect?
— Precisávamos de suprimentos. Açúcar, farinha…
— E minhas linhas de costura — interferiu Luella.
— É uma viagem longa demais para comprar tão pouco.
Sem saber por que motivo, Cassie se ofendeu com o comentário e com o excessivo interesse do
delegado. Ele a examinava como um ho¬mem da lei que mede um adversário.
— Talvez seja pouco, mas são suprimentos necessários para nossa sobrevivência. —
Abruptamente, ela mudou o rumo da conversa. — Chegou a conhecer meu marido, reverendo
Townsend?
— Infelizmente, não o conheci, madame.
— E o senhor, delegado?
— Também não. Cheguei há apenas alguns meses, mas Florence me contou que ele morreu. O
que aconteceu?
— Ele estava doente há muito tempo. Depois da guerra, nunca mais recuperou o vigor e a
saúde de antes.
— Foi uma pena não ter chamado o reverendo para lhe dar um funeral decente.
Mais uma vez, Cassie percebeu o olhar penetrante do delegado. Ele teria ouvido, por alguém na
cidade, que mantivera a morte de Ethan em segredo durante quase seis meses?
— Eu não poderia lhe pedir que fizesse uma viagem de um dia inteiro apenas para isso.
— Mas eu teria ido, com todo o prazer, minha cara. Já fiz viagens bem mais longas para levar a
palavra divina a pessoas que se casam ou são enterradas.
— Por falar em enterros… — o delegado voltou sua atenção para Quin. — Estamos tendo
cerimônias desse tipo em excesso, nos últimos meses. Muitos dos vaqueiros de Cyrus Stoner
apareceram mortos, sem motivo ou explicação.
Quin tornou a encher o prato de carne assada e batatas, antes de se dirigir ao delegado.
— Algumas pessoas passam por períodos de má sorte. — Quin virou-se para Florence, com
um sorriso sedutor. — O ferreiro não mentiu quando disse que você era uma excelente cozinheira.
— Oh! Muito obrigada mas… Não posso aceitar todas as glórias. Luella me ajudou a preparar o
jantar de hoje.
O delegado não pretendia ser desviado do assunto por conversas sociais sem interesse e
persistiu na mesma tecla.
— Temos ouvido muitos rumores na cidade, McAllister. Alguns dizem que você se aliou aos
Crow.
— E quem diria uma coisa dessas? — exclamou Quin, encarando o delegado, com uma
expressão determinada.
— Cyrus Stoner é um homem muito poderoso nesta região. Ele não gosta que matem seus
homens e roubem seu gado.

77
— Gado roubado? — Quin tomou um gole de café, sem desviar os olhos do delegado. —
Então, é esse o problema?
— Durante o inverno, os Crow precisam de carne para sobreviver. E eles não sentem o menor
escrúpulo em avançar nas propriedades alheias.
— Eles têm mais alimento do que podem comer. Ao vir para cá, cruzei com um dos maiores
rebanhos de búfalos que já vi em toda a minha vida.
— Segundo Stoner, eles acham menos trabalhoso roubar o gado dos homens brancos do que
sair atrás dos búfalos pelas planícies nevadas.
Embora a expressão de Quin continuasse branda e adequada ao am¬biente descontraído de um
jantar entre amigos, sua voz se tornara dura, revelando a frieza do aço.
— Segundo Stoner… Suponho que tenha sido ele quem considerou os índios como sendo
responsáveis pela morte desse homem enterrado pelo reverendo ainda hoje.
— Realmente, creio que tenha sido ele. Permita-me lhe relembrar um detalhe importante,
McAllister. Neste território, roubo de gado é um crime punido com a forca.
— Tentarei não esquecer. — Aparentemente desinteressado, Quin voltou-se, mais uma vez,
para a dona da casa. — Seu café é delicioso, Florence.
— Espere até experimentar a torta de maçã da minha mãe — declarou Willy.
— Com muita canela e creme de leite batido — acrescentou Oren.
— Já estou imaginando!
A indiferença de Quin enfureceu o delegado, que mal disfarçava a irritação.
— Você me pareceu ser um homem inteligente, McAllister. Só um tolo se aliaria a índios, que
não se importam de roubar, contra os homens brancos. Especialmente quando um desses brancos é tão
poderoso quanto Cyrus Stoner.
— Já me chamaram de coisas bem piores do que de tolo, delegado — disse Quin, com um tom
de voz enganadoramente brando.
Nesse instante, Florence serviu a torta, ajudada por Becky e Zack, provocando exclamações
deliciadas de todos à mesa.
— A minha esposa também fazia torta de maçãs — comentou o reverendo. — Ainda me
lembro do sabor…
— Há quanto tempo perdeu sua esposa? — perguntou Luella.
— Há cinco anos. E seu marido?
Luella lembrou-se do homem com quem vivera por vinte anos. Seu marido tinha o melhor dos
humores e sempre conseguia abrandá-la, brincando e rindo de seu temperamento explosivo.
— Ele morreu há nove anos.
— É tempo demais para viver em solidão.
— Certamente é mas… Por sorte, conto com milha filha e duas netas para preencherem o vazio
de minha vida. O senhor tem família, reverendo?
— Por favor, me chame de Matthew, Luella. Respondendo à sua pergunta, infelizmente não
tenho ninguém. Embora desejássemos muito, eu e minha esposa nunca fomos abençoados pelo
Senhor, com a dádiva divina de filhos. É uma mulher de sorte por contar com filha e netas tão
encantadoras. — Ele olhou ao redor da mesa. — E vocês são felizes por possuírem uma avó com
tantas qualidades.
Corando de alegria diante das palavras do reverendo, Luella provou a torta e deu um suspiro
deliciado.
— Que maravilha! Não provo um doce tão magnífico desde antes do início da guerra.
— Bem… É que se trata de uma ocasião festiva, certo? Florence dava uma volta na mesa,
tornando a encher as canecas de café.
— Uma ocasião festiva? — perguntou Luella, intrigada.
— Crianças! Comecem a tirar a mesa, sim? — Depois de dar sua ordem, Florence voltou-se
para Luella. — Estou preparando bolos e doces há mais de uma semana pois o natal está muito
perto… Faltam só três dias.
Zack, Willy e Oren estavam tirando os pratos da mesa, ajudados por Becky e Jen que se
imobilizaram ao ouvir o comentário de Florence.

78
— Natal!
— Mas é claro! Não me digam que tinham esquecido — brincou Florence e, depois de sorrir
para as meninas, voltou-se para Luella. — Quando os vi chegar, soube por que tinham vindo.
Pretendem encher a carroça com tudo o que precisam para celebrar a festa mais importante da
cristandade.
— Natal… É claro — murmurou Luella, concentrando sua atenção em dobrar o guardanapo.
— Vamos tomar mais um café na sala — disse Florence, liderando o grupo.
Quin olhou para Cassie que emudecera repentinamente e ficou surpreso com a expressão
chocada em seu rosto delicado.
Sentindo o olhar de Quin sobre ela, Cassie se levantou e seguiu os demais para a sala de estar.
Depois de despir a camisa, Quin permaneceu à janela de seu quarto, ouvindo os sons do piano e
as risadas que vinham do cabaré. Era uma sensação muito estranha não sentir a costumeira e quase
sempre irresistível tentação de reunir-se aos boêmios da cidade. Afinal, estava absolutamente sem sono,
queria fumar um charuto e, acima de tudo, tomar uma boa dose de uísque. Com toda certeza, se
decidisse jogar, venceria todos pois, sem perder tempo com modéstias supérfluas, era o melhor.
Então… Por que não fora para o cabaré?
A resposta era fácil de encontrar, mas difícil de absorver.
A idéia de vencer um jogo já não fazia o sangue corre mais rápido em suas veias. A vontade de
saborear um bom charuto e algumas doses de uísque já não excitava seus apetites.
Ele queria Cassie.
No mesmo instante em que admitiu o desejo, afastou-o de sua mente. Cassie Montgomery não
era o tipo de mulher com quem se vive algumas horas, dias ou semanas de prazer e depois abandona.
Ela fazia um homem pensar em lar e família. Raízes e permanência, conceitos que Quin sempre
desprezara.
Sabia que não seria possível ter uma mulher como Cassie e depois retomar uma vida errante
pois as lembranças dela o acompanhariam, suaves mas insistentes, como o sabor de um vinho especial
ou a essência de um perfume francês, atormentando-o até seu último suspiro.
Afastando-se da janela, ele voltou a vestir a camisa, decidido a ir fumar seu charuto na varanda
da casa. Ao cruzar o vestíbulo escuro, um som o fez parar. Na sala vazia, iluminada apenas pelas poucas
brasas restantes, havia alguém, encolhido na poltrona mais próxima da lareira.
Ao se aproximar, reconheceu Cassie, com o rosto escondido nas mãos e soluçando, como se
seu coração estivesse partido.
— O que houve com você? Quem a fez chorar assim?
— Quin…
As lágrimas corriam sem cessar e Cassie tinha dificuldades para conter os soluços e falar.
— Foi o delegado? Se aquele bastardo…
— Não…
A crise de choro voltou a aumentar e Quin, sem saber como reconfortá-la, tomou-a nos braços.
Chocado, admitiu que nunca sentira antes uma sensação de sensualidade tão primitiva, mesclada a uma
ternura desconhecida. O corpo colado ao seu era extremamente frágil e indefeso. Ele mataria quem a
fizera sofrer!
Então, ao reconhecer que o desejo crescia e naquele momento Cassie precisava apenas de
ternura, forçou-se a manter o controle, oferecendo-lhe sua força.
No entanto, os soluços descontrolados de Cassie provocaram-lhe um pânico crescente. Aquela
mulher estóica suportara os mais terríveis perigos com coragem. Só algo dramático provocaria essa
reação de as¬sustadora intensidade.
— Conte-me o que aconteceu, Cassie — murmurou ele, secando as lágrimas do rosto delicado,
com seu fino lenço de linho. — Fique calma e fale, porque preciso saber e…
— É o natal…
Quin esperou, aguardando uma explicação. Diante do silêncio de Cassie, fitou-a com um olhar
de completa perplexidade.
— O natal? Mas…
Ela confirmou com um gesto de cabeça, lutando para não ceder novamente ao pranto.

79
— Não percebe? Florence disse que a véspera de natal é daqui a dois dias e nós nem sabíamos.
Essa data se transformou em mais um dia de trabalho duro e de privação e miséria para minha mãe e
minhas filhas. Oh, Quin! O que este lugar está fazendo de nós? Em que nos tornamos?
Prevendo uma terrível desgraça, Quin só podia sentir um alívio profundo diante do problema
de Cassie. Segurando-a pelo queixo, percebeu que nunca tratara mulher alguma com ternura, como
estava acontecendo agora.
— Não seja tão dura consigo mesma, Cassie. Você sobreviveu a uma guerra que arrasou nosso
país, perdeu o marido, a casa onde sempre viveu e está criando uma nova existência para sua família em
um lugar primitivo e hostil. Como se não bastasse, conservou sua capacidade de rir, amar e ter
esperanças num futuro melhor. Julga tão trágico assim se esquecer do natal?
— E terrível… Desespero-me ao pensar que minhas filhas não poderão celebrar essa festa
como eu o fazia quando era criança.
— Bem… — Embora ainda não sorrisse, os olhos de Quin refletiam um riso contido. — Terei
que tomar providências a esse respeito.
— Será que ainda não entendeu? Nada pode ser feito! — Subitamente, Cassie recuperou a
costumeira postura combativa e encarou Quin. — Sinto muito. Não tenho o direito de sobrecarregá-lo
com nossos problemas. Estou bem agora e isso não tornará a acontecer. Acho que precisava de um
ombro amigo para chorar um pouco.
— O meu está sempre a sua disposição.
Agora que a crise de choro findara, Cassie deu-se conta de outras emoções igualmente intensas.
O conforto oferecido por Quin a ajudara a se recuperar e, subitamente, reacendera o desejo.
— Eu preciso voltar para meu quarto — murmurou ela, sem a menor vontade de se privar do
abraço de Quin.
— Verdade? — Ele não fez nenhum movimento para soltá-la de seus braços.
— Luella pode acordar e perceber minha ausência. Ou Jennifer… Ou Rebecca…
— Podem mesmo.
Cassie desejava, mais do que tudo, um outro beijo. Vendo que Quin a fitava, sem tomar a
iniciativa, criou coragem para pedir.
— Eu… Realmente não quero voltar para o quarto.
— E por que não?
Quin decidira não forçar nada, esperando que Cassie assumisse seu desejo.
— Quero que… Dê-me um beijo…
Por uma fração de segundo, os dois se fitaram, admitindo a paixão recíproca. Então, Quin a
beijou com ardor, despertando uma inesperada volúpia naquela mulher sempre tão contida.
— Ah, Cassie… Eu quero você…
As palavras escaparam dos lábios de Quin, antes que ele tivesse tempo de pensar e não havia
como apagá-las mais.
Cassie sentiu uma inesperada exaltação ao ouvi-las. Ela também desejava aquele homem como
jamais julgara possível desejar um outro ser humano.
Ela se entregou ao prazer do beijo, despindo-se de todas as suas defesas e a liberação de sua
paixão descontrolou Quin.
Mais experiente, sabia que precisava encontrar forças para se afastar ou a possuiria no chão da
varanda, como um selvagem. Ambos haviam alcançado um ponto máximo e, se as carícias se
intensificassem, não haveria mais retorno.
Com um esforço sobre-humano, ele a afastou quase com rudeza. Cassie entreabriu os olhos,
percebendo que estivera tentando o destino e se aproximara demais de um precipício fatal. Teria
continuado, cedendo à paixão? Ou recuaria, como sempre, no último minuto?
— Eu vou… Para o quarto.
Quin apenas balançou a cabeça, sem confiar na firmeza de sua própria voz.
— Você não vai subir?
— Ainda não — murmurou ele, tenso.
— Então, boa noite.
— Boa noite, Cassie.

80
Com as pernas ainda trêmulas, Cassie se aproximou da porta e parou.
— Quin…
— Sim?
— Muito obrigada. Por me ouvir e… Por tudo.
Virando-se rapidamente, Cassie entrou em casa, com medo de dizer algo mais íntimo de que
fosse se arrepender na manhã seguinte.
No silêncio absoluto da casa adormecida, Quin ouviu os passos dela subindo a escada e depois
o som da porta do quarto se fechar.
Por algum tempo, ele permaneceu imóvel, pensando. Ao se decidir, vestiu o casaco e apanhou o
chapéu, notando que suas mãos tremiam. Não eram mais as mão firmes de um jogador frio e sem
emoções mas, quem sabe, uma caminhada pela noite gelada o ajudasse a recuperar o controle.
Com uma expressão de férrea determinação, saiu da varanda da pensão da viúva Claxton e, com
passos firmes, caminhou diretamente para o cabaré.

81
CATORZE

Aromas apetitosos vinham da cozinha da pensão da viúva Claxton, que se orgulhava de


preparar um café especial para seus hóspedes nas manhãs de domingo. Em uma pesada frigideira de
ferro, grossas fatias de toucinho, já douradas, emprestavam seu sabor aos ovos mexidos e às batatas
assadas. Biscoitos amanteigados para serem mergulhados no molho do ensopado e várias formas de
bolinhos de aveia, recheados com geléia de framboesa, já estavam em suas vasilhas, prontos para irem
para a mesa.
Jen e seu novo amigo, Oren, não disfarçavam a gula, enquanto esperavam que as mulheres
acabassem de arrumar a mesa. Quando finalmente elas terminaram, os dois não tiravam os olhos dos
bolinhos de aveia, calculando quantos poderiam comer antes que se acabassem.
O delegado, que vivia num pequeno quarto atrás da delegacia, fazia todas as refeições na
pensão. Ele foi o primeiro a chegar, seguido de perto pelo reverendo que também não dispensava a
comida excepcional de Florence Claxton.
— Agora que todos chegaram, acho que podemos nos sentar — declarou a dona da casa,
pedindo ao reverendo que conduzisse a prece matinal.
Só depois de terminarem de rezar, Florence se deu conta de que havia uma cadeira vazia.
— Acho que o Sr. McAllister dormiu demais. Pode ir chamá-lo para se unir a nós a fim de
tomar o café da manhã, Jen?
A menina concordou, embora estivesse com medo que os apetitosos bolinhos de aveia
acabassem antes de sua volta. Aflita, ela subiu correndo as escadas e, depois de chamá-lo sem obter
nenhuma resposta, entreabriu a porta e viu o quarto vazio. Com idêntica rapidez, retornou à sala.
— Ele não está no quarto — declarou ela, enquanto enchia o prato com os sonhados bolinhos.
— Não está? — Florence olhou para Cassie e depois para Luella.
— Não disse para onde pretendia ir?
— Eu não o vi esta manhã — respondeu Cassie, — Deduziu que estivesse em seu quarto.
— E, por acaso, alguém o viu ontem à noite?
— Eu… — Cassie enrubesceu — o encontrei pouco antes de subir para meu quarto ontem.
Entretanto, ele não mencionou nada sobre esta manhã.
Notando o olhar severo da mãe, ela abaixou a cabeça, concentrando-se na comida em seu prato.
Não tinha a menor dúvida de que ouviria as censuras e recriminações maternas, tão logo surgisse a
primeira oportunidade.
— Não há nenhum lugar para se ir a noite, a não ser o salão de Lottie — resmungou o
delegado, devorando mais um biscoito.
— O que é o salão de Lottie? — perguntou Jen.
— Nada que você precise saber — declarou Cassie, ansiosa por evitar aquele assunto.
De qualquer forma, ela e todas as outras pessoas em torno da mesa sabiam bem demais o que
era o salão de Lottie. Quin cedera ao hábito de beber, jogar e… Fazer tudo que atraía os homens à
mistura de cabaré, cassino e bordel das pequenas vilas do interior.
— Era de se esperar! — comentou Luella, com a costumeira necessidade de criticar Quin. —
Um leopardo nunca perde as manchas.
— Há quanto tempo o Sr. McAllister é seu capataz, Sra. Montgomery?
— perguntou o delegado, sem disfarçar a desconfiança.
— Só algumas semanas — respondeu Luella, antes da filha, exprimindo todo o seu desdém.
— E o que sabem a respeito dele?
— Apenas que é um jogador.
— Ele foi um grande amigo do meu marido — interferiu Cassie, decidida a defender Quin.
Embora se sentisse magoada por saber que Quin passara a noite no bordel da cidade, não
permitiria que os outros enlameassem seu nome.
— Não quero alarmar vocês duas — prosseguiu o delegado — mas um homem do tipo do Sr.
McAllister sabe muito bem que estão longe de qualquer vizinho e praticamente nas mãos dele…

82
Indefesas, caso ele decida tomar alguma atitude reprovável. Nunca se pode prever como agirá alguém
que é viciado em jogo.
Becky e Jen olharam para a mãe e a avó, nitidamente perplexas com o comentário do delegado.
Ele estava nitidamente satisfeito por ter atraído a atenção de todos à mesa e continuou a falar,
com um tom de voz ainda mais autoritário.
— Muitos acontecimentos estranhos começaram a ocorrer depois que esse jogador chegou ao
território de Montana.
— O que exatamente está insinuando, delegado? — perguntou Cassie, perdendo a fome.
— Só quero sugerir que sejam muito prudentes e cautelosas, madame. É o que faria se estivesse
no lugar de vocês.
— Eu confio no Sr. McAllister — disse Cassie, com toda a suavidade. — Até que se prove o
contrário, continuarei considerando-o um amigo.
— Com quiser, madame. — O delegado a encarou com um sorriso sarcástico. — O seu amigo
deve ter boas razões para passar a noite toda com… Lottie.
Cassie tentou afastar as imagens que a atormentavam. Via Quin fumando um charuto, com um
copo de uísque sobre a mesa e as cartas na mão, rodeado por belas mulheres cuja especialidade era
satisfazer os desejos de um homem. Mulheres com vestidos de seda, cheirando a perfume francês e
mãos macias.
Involuntariamente, ela olhou para as próprias mãos e estremeceu.
Tentando aliviar a tensão, Florence pediu que o filhos começassem a tirar a mesa pois todos
teriam de se apressar a fim de se vestir para ir à igreja.
— Vocês também irão, não? — perguntou ela à família Montgomery.
— Eu não perderia o serviço de domingo por nada — respondeu Luella, em nome de todas.
— E o Sr. McAllister? — perguntou Jen, aflita. — Acha que ele também irá à igreja, mamãe?
— Não sei, mas espero que sim, Jennifer.
— Não nutra esperanças impossíveis, menina — esbravejou Luella. — Um homem como o Sr.
McAllister nunca põe os pés dentro de uma igreja.
— Não seja injusta, mãe — disse Cassie. — Ele…
— E você sabe que não deve encorajar essa menina a desejar o impossível — prosseguiu Luella,
ignorando a interrupção da filha. — Francamente, Cassie! Quando vai parar de defender esse jogador?
Quer que as suas crianças acabem por admirar um homem desse tipo?
Enquanto os outros levantavam-se da mesa, Cassie permaneceu sentada, profundamente
perturbada.
Ela e sua família acompanharam Florence e os.filhos até a igreja, percebendo os olhares
curiosos da congregação à entrada delas.
Zack e Willy conseguiram colocar Becky entre os dois e disputavam sua atenção, oferecendo-
lhe o livro de hinos. Ela não disfarçava o quanto lhe agradava ser o centro das atenções dos dois
irmãos.
Cassie colocou Jen ao seu lado, para evitar que ela se juntasse a Oren e os dois não parassem de
conversar e brincar, perturbando o serviço dominical.
— O Sr. McAllister virá — murmurou a menina, no ouvido da mãe. — Você vai ver!
Cassie colocou a mão sobre o ombro da filha, como se seu gesto pudesse protegê-la de uma
inevitável decepção. Luella tinha toda a razão. Quanto mais encorajasse as fantasias de Jennifer, maior
seria o desapontamento quando Quin falhasse diante de seus olhos infantis.
— Não deve esperar muito do Sr. McAllister, Jennifer. Ele é apenas…
Perplexa, Cassie reconheceu que era muito difícil encontrar as palavras para definir Quin. O que
poderia dizer à filha? Que ele era um amigo de Ethan e fora atraído, sob falsos pretextos e a
contragosto, para uma região hostil e primitiva? Que sempre fora um jogador, preferindo passar suas
noites em bares, salões, cassinos e até bordéis?
— Ele é apenas um homem que pode não ter crenças semelhantes às nossas.
— Mas ele virá — insistiu Jen, categórica.
À frente da congregação, o reverendo Matthew Townsend dava as boas vindas aos fiéis. Com
uma austera casaca preta, ele era uma presença atraente e que exigia respeito.

83
Percebendo que o lugar diante do órgão continuava vazio, Luella voltou-se para Florence.
— Onde está o organista?
— Ainda não encontramos ninguém que saiba tocar. A congregação comprou este órgão há
mais de um ano mas, até agora, o Senhor não nos enviou um músico.
— Eu poderia tentar — murmurou Luella.
— Você? — Sem perda de tempo, Florence ficou em pé. — Reverendo! Nossas preces foram
atendidas! A Sra. Chalmers sabe tocar órgão!
Todos os olhares se voltaram para Florence e para a desconhecida ao lado dela.
— É verdade, Sra. Chalmers? — perguntou o reverendo.
— Sim, mas não tenho a oportunidade de tocar há muito tempo. —
Luella também ficou em pé. — Estudei piano por muitos anos em um famoso conservatório de
Savannah, na Geórgia.
— Deus seja louvado. Por favor, Sra. Chalmers. Toque para nós. Luella caminhou até a frente
da igreja e flexionou os dedos antes de tocar levemente as teclas. Então, ergueu a cabeça e encarou a
congregação que a fitava com curiosidade.
— Eu me sentiria muito orgulhosa se minha neta Rebecca, viesse se juntar a mim…
Oferecendo a todos uma canção.
Rubra de vergonha, Becky queria se esconder dos olhares de toda as pessoas reunidas na igreja.
Entretanto, o orgulho presente na voz da avó a impedia de recusar. Tensa, ela caminhou até a frente da
igreja e postou-se ao lado do órgão.
Às primeiras notas do hino, Becky sentiu-se envolvida por um pânico intenso, provocado pela
grande quantidade de pessoas que a encaravam. Então, quando o som do órgão se ampliou, ela
lembrou-se do pai, que sempre se orgulhara tanto de seu talento.
— É por você, papai — murmurou ela, em voz quase inaudível, antes de cantar a primeira nota.
Então, segura e rica, sua voz se ergueu e, esquecendo-se do nervosismo, Becky se entregou à
música, a sua primeira paixão.
Ouvindo a voz magnífica da neta, Luella foi envolvida por uma onda de pura alegria. Suas
preces tinham sido atendidas! Como lhe fizera falta o conforto da igreja e da música. Como sentira não
ter a segurança das seculares tradições.
Após a primeira estrofe do hino, todos os fiéis também cantaram e suas vozes emocionadas
transformaram a rústica igreja. O reverendo, com uma expressão de intensa felicidade, não tirava os
olhos de Luella, que se transformara em uma outra mulher, muito mais suave e doce, enquanto tocava.
— Deus realmente nos abençoou — disse ele, após o final do hino. — É um milagre divino
receber o dom de um talento musical e vê-lo usado para louvar o Criador. Temos de rezar, pedindo que
essas duas artistas voltem a nos honrar com sua presença no futuro.

Finalmente, o reverendo conduziu a congregação nas preces habituais, até o momento do


sermão.
Cassie percebia a inquietação de Jen ao seu lado e teve de repreendê-la por se virar
continuamente para a porta.
— Meus queridos irmãos…
Nesse instante, a porta se abriu e o reverendo interrompeu o início de seu sermão, enquanto
todos se viravam para trás para ver quem ousara chegar num momento tão inadequado.
Com o chapéu na mão, Quin percorreu a nave até chegar ao banco onde estava Cassie e sua
pequena família. Todos se apertaram mais para lhe dar lugar e Jen, com um sorriso triunfante, encarou
a mãe.
— Meus queridos irmãos, lembrei-me de algo ao acordar esta manhã e será a base de meu
sermão. Nós fomos abençoados por termos nos encontrado nesta terra esplêndida e ainda indomada.
Nossas bênçãos são múltiplas. Basta olhar esta igreja, vendo os rostos de pessoas que podemos chamar
de amigos e não conhecíamos sequer há um ano ou mesmo há um mês. Pensem em como nossas vidas
ficaram mais ricas por causa desses desconhecidos que agora são a representação da verdadeira
amizade!

84
Inquieta, Cassie recuou mais para a ponta do banco, afastando-se de Quin. Amigos, com efeito!
Os cabelos e as roupas dele cheiravam tabaco e uísque. Os olhos estavam vermelhos e sonolentos. Ela
sentiu-se enfurecida diante do culpado pela humilhação sofrida por sua família.
Ao seu lado, a filha caçula refletia uma intensa alegria. De alguma forma, a chegada de Quin
deixava sua pequena família… Menos solitária, mais completa. Se ao menos sua mãe não estivesse tão
brava!
Percebendo o olhar de Cassie sobre ele, Quin a encarou e piscou maliciosamente.
Rubra de vergonha e raiva, concentrou o olhar nas mãos, crispadas sobre seu colo. Quando se
convenceria de que Quin não passava de um atraente mas irresponsável aventureiro, sem eira nem
beira? Embora fosse óbvio pouco se que pouco se importava com as leis divinas, com portava-se na
igreja com uma absoluta espontaneidade… Como se ainda estivesse naquele antro de perdição onde
perdera a noite!
Ela viu a expressão furiosa de Luella no outro extremo da igreja. Para uma mulher como a mãe,
a imagem correta e convencional era importante ao extremo. Ela aprendera uma lição penosa demais
em sua juventude: as regras foram feitas para não serem quebradas. Pobre de quem ultrapassasse as
linhas demarcadas pela sociedade pois a censura alheia podia ser uma tortura sem fim.
E agora, num momento em que Luella fora escolhida para representar a honra de toda a família
diante de estranhos, era forçada a suportar mais uma humilhação pública.
A irritação de Cassie crescia ao ouvir o pregador lembrar a todos de seus deveres para com
Deus, com a pátria e com o próximo. Agora que Quin revelara sua grande fraqueza, ela seria obrigada a
encarar certas verdades!
Quin McAllister não era um galante cavalheiro que cruzara o mundo para vir em sua defesa.
Não passava de um simples mortal, um homem que as circunstâncias haviam forçado a se deter, a
contragosto, num casebre isolado em meio a uma imensidão coberta de neve. Ele devia ter se sentido
em uma verdadeira prisão da qual ansiava por escapar. E, tão logo conseguisse, ele o faria!
Desapareceria, abruptamente como chegara, deixando-as sós para enfrentar o futuro.
A congregação se erguera para cantar mais um hino e Cassie, perturbada por seus pensamentos,
não conseguia encontrar a página certa em seu livro. Para sua surpresa e indignação, Quin o retirou de
suas mãos e, abrindo-a no lugar correto, acompanhou a todos com sua rica voz de barítono.
Por um instante, esqueceu-se da raiva, percebendo que suas duas vozes se casavam com
perfeição. Logo voltou a sentir o perfume feminino que exalava das roupas dele e conteve-se para não
mudar de lugar. Se Quin não se preocupava com a própria moral, devia ao menos respeitar a igreja,
tomando um banho antes de entrar naquele recinto onde as pessoas não viviam em pecado.
Infelizmente, sua filha mais nova o fitava, como se o considerasse um verdadeiro herói. E, por
quanto mais tempo Quin permanecesse entre elas, mais sérias seriam as conseqüências. Não queria que
Jennifer crescesse, achando normal jogar cartas para ganhar a vida.
O mais dolorido aconteceria no dia em que ele desaparecesse, abandonando a menina que o
idolatrava. Jennifer já perdera o pai. Como se sentiria quando Quin, o único outro homem em sua vida
isolada entre mulheres, sumisse de sua existência, definitivamente?
Cassie mal conteve a sensação de culpa ao perceber que todos se erguiam. O serviço terminara e
ela não ouvira uma só palavra!
Parado à porta de sua pequena igreja, o reverendo chamava os fiéis para lhes apresentar as duas
artistas que os haviam agraciado com a bênção dá música.
Quase todos já haviam saído da igreja quando finalmente Cassie se levantou e, seguida por Jen e
por Quin, caminhou na direção da porta. O reverendo os esperava no pequeno jardim dianteiro e ela ia
agradecer pelas preces quando Jen se adiantou.
— Eu não disse que ele vinha, mamãe? — Virando para Quin, ela insistiu. — Vovó disse que o
senhor não poria os pés numa igreja, mas eu sabia que viria!
— Como podia saber se nem mesmo eu sabia, Jen?
— Eu pedi para o meu pai.
— Seu… Pai?
Mais adiante, Cassie e Luella se imobilizaram ao ouvir as palavras de Jen.

85
— Mamãe sempre me diz que papai está no céu agora, com os anjos. Se eu rezo, pedindo
favores ao meu anjo da guarda, por que não posso pedir a papai? Sempre peço!
— E lhe pediu para que viesse à igreja. Satisfeita com a compreensão de Quin, Jen sorriu. Mas
Luella estava lívida de raiva.
— Está percebendo que espécie de idéias anda colocando na cabeça dessa menina? Ela já não
sabe a diferença entre o pai e o Senhor! Quanto a você… — Voltando-se para Quin, Luella liberou a
fúria que crescera durante o serviço. — Como pôde nos embaraçar dessa forma? Não lhe ocorreu que
ninguém na igreja ignoraria onde você passou toda a noite? Veja a sua aparência! — Ela fez uma careta
de nojo. — Sem se banhar ou se barbear e fedendo a uísque e tabaco!
— Tem razão, madame. — Ele deu um sorriso indolente. — Acho que o cheiro deve ser
mesmo esse…
A ausência total de arrependimento por parte de Quin aumentou a cólera de Luella, que liberou
seu temperamento explosivo.
— Eu queria morrer de humilhação quando o vi entrar na igreja, interrompendo o sermão do
reverendo, se exibindo diante de todos e atraindo a vergonha sobre nossa família. Não parou para
pensar o que o povo de Prospect iria nos considerar, em vista da sua falta de educação e moral?
Notando a expressão chocada de Jen, o reverendo Townsend colocou-se entre Quin e Luella,
com um sorriso conciliador dirigido à menina.
— Não pude deixar de ouvir o que disse para o Sr. McAllister, Jennifer. Fico feliz por saber que
sua mãe a ensinou a rezar de verdade.
— Reverendo! — Luella não disfarçava o quanto estava chocada. — Não considera um pecado
que ela reze para pedir favores ao pai falecido?
— De modo algum. Eu acredito muito no poder da oração. Também creio que nosso Pai ouve
essas preces e as atende, às vezes de formas estranhas e inesperadas. Quanto ao Sr. McAllister — o
reverendo deu um amplo sorriso. — Eu costumava levar esse tipo de vida… Antes de encontrar a
minha vocação. Ainda considero um grande prazer fumar um bom charuto, tomar uma bebida de
qualidade e… — ele fitou Quin, bem nos olhos — poder contar com o amor de uma mulher.
Quin deu um sorriso sereno enquanto Luella erguia as mãos, horrorizada.
— Reverendo Townsend!
— Muitas vezes, esquecemos de um fato deveras importante. — Ele segurou a mão de Luella
entre as suas. — Somos uma congregação de pecadores e não de santos. Até que, como Ethan, sejamos
chamados a nos reunir aos anjos, temos de reconhecer nossas falhas.
Voltando-se novamente para Quin, ele lhe ofereceu a mão, num gesto amizade.
— Pessoalmente, eu prefiro a companhia de homens que admitem estarem longe da perfeição.
Espero que volte a nossa igreja, sempre que vier a Prospect, Quin.
— Muito obrigado pelo convite, Matthew. — Depois de apertar a mão do reverendo, Quin lhe
deu um charuto de qualidade. — Espero que o saboreie após o serviço do dia de natal.
— Eu o farei, lembrando-me de quem me presenteou.
Então, Matthew Townsend se dirigiu até Cassie e viu a mágoa e a raiva nos olhos dela. Quin
teria que se esforçar muito para se redimir diante daquela bela mulher.
— Espero que volte a participar de nossa igreja, acompanhada por sua encantadora família, Sra.
Montgomery.
— Eu também? — perguntou Jen.
— Especialmente você, Jennifer. Espero que todas as suas preces sejam atendidas neste natal.
— Obrigada. Vamos, Oren! — Agarrando a mão do amigo, ela correu para a rua. O dia
adquirira um novo brilho. — Vamos olhar as vitrines do armazém!
Cassie viu a filha mais nova desaparecer na rua e procurou por Becky. Ela estava com Willy e
Zack que se exibiam, numa pretensa guerra com bolas de neve. Os três pareciam tão jovens,
despreocupados e sem problemas! Se pudesse poupar essas crianças do sofrimento e das agruras da
vida…
A voz de Florence interrompeu seu devaneio.
— Vocês vão ficar para o almoço, não é?

86
— Não podemos permanecer por mais tempo longe de casa — murmurou ela, sem esconder a
relutância em partir.
Caminhando entre Willy e Zack, Becky ouviu a resposta da mãe e se aproximou.
— Por favor, mamãe! Só mais um dia?
— Sinto muito, querida. Eu gostaria que fosse possível.
Cassie virou-se rapidamente para fugir do olhar da filha, onde se mesclavam reprovação e
tristeza.
— Vamos logo! — ordenou Luella. Apesar das palavras do reverendo, não deixaria Quin se
esquecer de seu mau passo. — Precisamos carregar imediatamente a carroça com os suprimentos, ou
não chegaremos em casa ao anoitecer. Contamos com sua ajuda… Se não estiver esgotado após sua
noite de devassidão, Sr. McAllister.
— Acho que darei conta do recado, madame — brincou Quin, determinado a ignorar as
provocações de Luella. — Levarei a carroça para a casa da Sra. Claxton, depois que apanhar os
suprimentos no armazém.
Ao cruzar a rua, Quin sentia a força dos olhares de censura e raiva das duas mulheres. A julgar
pela reação delas, a viagem de volta prometia ser incrivelmente longa.

87
QUINZE

Suspirando, Florence preparava o molho dos frangos que serviria no almoço de domingo.
— Como eu gostaria que vocês não tivessem de partir hoje! — Ela sorriu para Luella. — Passei
toda a minha vida rodeada de homens. Não apenas meu marido, que Deus tenha sua alma, mas
também meus três endiabrados filhos, além dos que se hospedam ou apenas fazem as refeições em
minha pensão.
Florence fitou o reverendo que, apesar de sempre participar do almoço dominical, nunca vinha
até a cozinha, como naquela manhã.
— Não tenho nada contra o senhor, reverendo. Simplesmente adoramos a sua presença em
nossa casa.
— Obrigado, Florence, Sinto-me grato por ter um lar onde me sinto tão bem vindo.
— Espero que continue a ocupar seu lugar entre nós, mesmo depois de terminar a construção
da casa paroquial. — Começando a fechar uma das tortas de carne, Florence voltou a encarar Luella. —
Você é a primeira mulher a se hospedar em minha casa que se ofereceu para me ajudar na cozinha…
Porque realmente gosta desse tipo de trabalho. Não tenho palavras para lhe dizer o quanto adorei a sua
visita.
— Eu também gostei muito — declarou Luella, pingando a massa de biscoitos na forma
untada.
Depois de terminar, ela colocou a forma no forno e, ao se voltar para trás, viu que o reverendo
retirava o resto da massa da vasilha com a ponta dos dedos, lambendo-os com uma expressão deliciada.
— Ora, Matthew! O meu marido tinha essa mesma mania!
— E eu sei bem o motivo. Acho que você faz os melhores biscoitos do mundo, Luella. Minha
esposa também tinha boa mão para a cozinha e eu considerava perfeitos os que ela me preparava.
Mas… Há algo muito especial nos seus e…
Guloso, ele voltou a passar os dedos na vasilha da massa até deixá-la absolutamente limpa.
Luella culpou a alta temperatura do forno por estar sentindo tanto calor.
— Tenho a impressão de que você sente prazer com os trabalhos na cozinha e… Parece que se
diverte aqui — comentou ele.
— Na verdade, acho que este foi o período mais feliz de minha vida, nos últimos tempos. Há
algo tranqüilizante e, ao mesmo tempo gratificante, em cortar, picar legumes ou em mexer um
ensopado dentro da panela. — Luella respirou fundo, aspirando os convidativos aromas que se
espalhavam pela cozinha. — A rica variedade de comida nesta casa revigorou minha alma, quase tanto
como ter estado na igreja, nesta manhã.
Ao perceber o quanto revelara, Luella fitou o reverendo com um olhar de arrependimento.
— Desculpe-me, Matthew. Nada deveria ser mais inspirador do que a fé, eu sei…
— De modo algum — interrompeu ele. — Entendo que você sinta uma grande alegria ao ver
as pessoas se nutrindo e saboreando com apetite a comida feita por suas mãos. Também sinto-me
assim quando vejo algum membro da congregação recuperar a serenidade perdida ao ouvir minhas
palavras. E preciso alimentar o espírito como o corpo.
Ele intuíra uma verdade. Luella adorava observar as pessoas saboreando seus pratos especiais.
Especialmente alguém como Matthew Townsend que revelava uma alegria real e expansiva em todos os
seus gestos e atitudes… Até ao comer.
Do andar de cima, vinham as vozes da filha e da neta mais velha, conversando enquanto
arrumavam as camas e o quarto. Ela olhou ao seu redor, admirando a clara e espaçosa cozinha, com
inegável prazer.
— É um aposento tão alegre e, ao mesmo tempo, aconchegante. Não imagina como vou sentir
saudades de tudo. Foram dias maravilhosos para todas nós.
— Acha que conseguiria viver numa casa semelhante a esta, aqui em Prospect?
— Eu adoraria mas… Não poderia abandonar minha filha. Ela precisa de minha ajuda. Além
disso, depois da guerra, nenhum lugar me parece ser realmente um lar, embora tenha de admitir que
este lugar foi o mais próximo…

88
Os dois se voltaram para a janela, ao ouvir o som da carroça se aproximando. Luella tentou
disfarçar a relutância que sentia em partir, mas chegara a hora de retornar à cabana rústica e despida de
qualquer conforto e à vida de trabalho infindável e desgastante.
Retirando o avental, Luella foi até o pé da escada, chamar a filha e a neta.
— Venham, meninas. O Sr. McAllister chegou.
Assim que mãe e filha desceram as escadas, ela dirigiu-se à neta mais velha.
— Como sempre, você terá de ir atrás de sua irmã, Rebecca.
— Ela deve estar no galpão com Oren — declarou Florence, saindo da cozinha para se reunir
às hóspedes que se preparavam para deixar sua casa. — Zack! Vá com Becky buscar esses dois
moleques travessos.
Sem disfarçar o entusiasmo, o rapaz obedeceu e, tão logo os dois ficaram fora do alcance dos
olhares da família, Zack segurou a mão de Becky.
— Precisa tomar cuidado — murmurou ele, timidamente. — O chão está coberto de neve
congelada e escorregadia.
Becky o olhou de relance e, retribuindo o sorriso hesitante de Zack, caminhou ao lado dele, em
silêncio. Embora fosse agradável sentir o contato de suas mãos, não sabia se devia permitir essa
intimidade. Após um breve momento de inquietação, decidiu que se tratava apenas de um gesto
necessário para a sua segurança.
Eles prolongaram o percurso até o galpão, pelo maior tempo possível. Ouviam as vozes infantis
e as risadas dos dois menores mas, em vez de entrar, foram até a parte traseira da construção nos fundo
do terreno onde ficava a casa dos Claxton e permanecerem imóveis e se fitando, por um longo tempo.
— Eu gostaria que você não tivesse de ir embora — declarou Zack, espalhando um monte de
neve a sua frente, com a ponta da bota.
— Eu voltarei… Um dia qualquer.
— Quando?
— Na próxima vez que precisarmos renovar os suprimentos. — Ela encolheu os ombros,
demonstrando sua impotência diante dos fatos de sua vida. — Creio que… Será na primavera.
— Na primavera… — Ele olhou para suas mãos entrelaçadas. — Eu gostaria…
Zack se calou, embaraçado e sem coragem de prosseguir. Fascinada, Becky admirava os sedosos
cabelos louros que teimavam em cair sobre a testa dele.
— Gostaria do que, Zack?
— Que você fosse um pouco mais velha.
Erguendo a cabeça, ele a encarou, com seriedade.
— Eu logo serei… Você esperará por mim?
Ao ouvir o pedido de Becky, as feições de Zack se transformaram, como se seu sorriso de
felicidade as iluminasse com uma claridade radiante. Era o sorriso dos jovens, ainda puros e inocentes,
que acabam de descobrir o maior dos segredos do universo.
— Eu não pretendo ir para lugar nenhum longe daqui… E de você. Estarei em Prospect…
Esperando.
Com um sorriso igualmente maravilhado, Becky o puxou pela mão.
— Vamos, Zack. Temos de chamar Jen antes que minha avó comece a perder sua escassa
paciência.
— Espere. — Ele continuava a segurá-la pela mão, impedindo-a de seguir. — Eu queria…
Beijar você.
— Eu também queria ser beijada mas… — ela lembrou-se do conselho de Quin e recuou —
ainda não me sinto pronta para isso… Ainda não.
A súbita aparição de Willy interrompeu a conversa dos dois que se afastaram rapidamente, com
uma expressão culpada.
— Então, era aqui que vocês estavam! Mamãe precisa de sua ajuda, Zack.
Com a percepção de um garoto de quatorze anos que se fascinara, pela primeira vez na vida por
uma garota, Willy notou que nenhum dos dois o encarava e soube que havia perdido aquela partida
para o irmão mais velho.

89
— Oren! Jen! — Tentando esconder a decepção, ele gritou, chamando os dois menores. —
Está na hora de ir!
A porta do galpão se abriu e duas crianças cheias de entusiasmo e alegria, correram para o pátio
coberto de neve. Momentos depois, precedidos por Willy, Oren e Jen, Zack e Becky caminharam
também para a casa, tomando todo o cuidado para não se tocarem, nem mesmo acidentalmente, ou
olharem um para o outro, com medo de revelar suas emoções ainda em botão.
— Voltem logo, por favor! — gritou Florence, da porta de sua casa, sem disfarçar a emoção
causada pela partida da família Montgomery.
Zack segurava os cavalos enquanto as mulheres subiam. Ao ver Becky se acomodar no duro
banco da carroça, endireitou os ombros, querendo que ela levasse uma imagem perfeita do momento
da despedida. Não queria que nada de mal lhes acontecesse, mas rezava por um milagre que os
impedisse de partir. A primavera levaria uma eternidade para chegar!
O reverendo Townsend observava Luella que lançava um último olhar à sala de estar, tão bem
cuidada e confortável.
— A nossa cidade precisa de pessoas decentes e finas como vocês. — Inesperadamente, ele se
aproximou, colocando a mão sobre o ombro de Luella.
Ela virou-se, surpresa e tensa. Disposto a afastar qualquer possibilidade de um mal entendido, o
reverendo retirou a mão, mas permaneceu bem perto, sorrindo.
— Cuide-se bem, Luella. Algum dia, espero ouvir novamente a sua música maravilhosa em
minha igreja. — A voz dele se transformou num murmúrio. — Quando você começou a tocar, achei
que estava ouvindo uma melodia vinda do céu.
Luella enrubesceu de prazer diante do elogio maravilhoso, tão raro em sua vida atual.
— Sentirei muita falta de seu serviço dominical, Matthew.
— E eu sentirei falta de seus biscoitos especiais. — Ele se calou por um segundo, criando
coragem para prosseguir. — Um homem que vive sozinho, como eu, se consideraria abençoado com as
maravilhas do paraíso se tivesse uma mulher como você, esperando-o todas as noites e alegrando a casa
com a dádiva divina da boa comida e da beleza da música.
Luella estava chocada demais para emitir um único som.
— Admito que não sabe quase nada sobre mim e me conheceu há muito pouco tempo.
Entretanto, já vivo sozinho por mais de cinco anos e esta é a primeira vez que pensei em preencher o
vazio de minha existência. Você também perdeu seu companheiro e…
— E você quem não me conhece, Matthew. — Recuando, Luella voltou a refletir a costumeira
severidade que mantinha as pessoas a distância. — Tenho certeza de que ouviu comentários sobre
mim, nesta cidade. Existem alguns fatos vergonhosos em meu passado… dos quais me arrependo
mas…
Ele tocou a face de Luella, sorrindo com serenidade.
— Não fale mais… O que já aconteceu não apresenta o menor interesse ou tem qualquer
importância para mim. Além disso, sempre me recusei a ouvir fofocas ou comentários que revelem más
intenções. Se fossemos trocar confidencias, a minha história faria a sua parecer brincadeira de criança.
Duas pessoas com a nossa idade não conseguem viver sem se arrepender de muitos dos atos cometidos
em outros tempos. Mas tudo muda e quero que se lembre de algo essencial, Luella. Nós não seríamos o
que somos hoje, se não tivéssemos cometido os erros do passado.
— Mas…
— Eu me importo apenas com a mulher que você é hoje, Luella. Ambos se assustaram com a
voz de Florence, chamando-os da porta.
— E é essa mulher que quero conhecer melhor. Espero que me conceda essa oportunidade,
Luella.
Oferecendo-lhe o braço, Matthew Townsend a conduziu até a carroça e a ajudou a subir. Então
recuou, juntando-se aos outros, sempre sem desviar os olhos dela.
Só Jen ainda não se acomodara, apostando corrida com Oren, em volta da carroça.
— Jennifer! — chamou Cassie, com inesperada severidade.
Ela arrependeu-se, imediatamente, de ter sido tão dura com a filha, mas suas emoções a
impediam de agir com o habitual equilíbrio. Estava angustiada por deixar aquela casa aconchegante,

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onde conhecera pessoas tão amigáveis e afetuosas. Como se não bastasse essa inesperada me¬lancolia,
continuava enfurecida com Quin, que as embaraçara diante de toda a comunidade. Todos, inclusive os
Claxton e o reverendo, sabiam que ele passara a noite num bordel. Se ao menos, conseguisse afastar
esse pensamento de sua mente!
— Suba na carroça, Jennifer.
Ela admitia que a culpa por estarem se ressentindo tanto em partir não podia ser jogada sobre
Jennifer. Todos se sentiam angustiados por deixar o conforto e o aconchego daquela casa a fim de
retornar para uma cabana primitiva e sem condições básicas para uma vida das mais simples. Também
não era nada reconfortante pensar que a festa mais doce do ano seria apenas mais um dia de trabalho
duro.
Cassie não era cega e percebia a relutância de seu pequeno grupo em partir e deixar os novos
amigos. Luella tratara Florence e o reverendo Townsend com mais ternura e carinho do que
demonstrava à sua própria família, nos últimos anos.
Becky florescera com a atenção dos dois jovens Claxton e a pequena Jennifer nunca tivera antes
alguém de sua idade com quem brincar. Era torturante arrancá-los de um ambiente que os tornara tão
felizes.
Rindo, Jen subiu na carroça, seguida por Oren, que foi retirado por Willy.
— Agora chega! — ordenou Florence, para o garoto que se debatia nos braços do irmão.
Finalmente, Quin se aproximou, entregando as rédeas nas mãos de Cassie.
— Você demorou demais para carregar a carroça — comentou ela, secamente.
— Não queria me esquecer de nenhum os suprimentos da lista que você me deu.
Os cavalos esticaram os arreios e a carroça começou a se mover.
— Adeus! Deus os acompanhe! Voltem logo!
Luella mantinha os olhos fixos na rua de terra, a sua frente, sentindo os olhos úmidos e culpou
o vento frio pelo inesperado lacrimejar.
Becky, sentada entre a mãe e a avó, virou-se para lançar um último olhar a Zack. Ao encontrar
os olhos dele, enrubesceu e virou-se novamente para a frente.
Quando já se afastavam mais, ela criou coragem e virou-se novamente, acenando com as duas
mãos, até que a casa da pensão e seus moradores se transformou num borrão indistinto a distância.
Então, envolvendo-se num cobertor, entregou-se aos seus pensamentos, como se não existisse mais
ninguém na carroça.
Cassie também permanecia em seu mundo particular e seus pensamentos se voltavam para o
homem que cavalgava na frente da carroça. A imagem de Quin rodeado de mulheres no salão do bordel
a atormentou durante toda a viagem, acrescentando-se à idéia penosa de saber que a véspera do natal
seria no dia seguinte e sua família passaria essa festa como todos os outros dias de sua vida difícil,
trabalhando e lutando para sobreviver.
— Oren contou que o Sr. Sutter o contratou para varrer o armazém e ele já guardou vinte e
cinco centavos e vai comprar um vidro de água de rosas para dar de presente de natal para a mãe.
Jen olhava ansiosamente para a mãe, que não falara nem sorrira desde o início da viagem de
volta. Na verdade, nem sua avó nem Becky também haviam aberto a boca. Sua irmã fora para o fundo
da carroça, abarrotada com sacos de farinha, açúcar e todo o tipo de grãos, e passara a ignorar a
existência de todos.
— Você gostaria de ganhar um vidro de água de rosas no natal, mamãe?
— Não, Jennifer. Nós não temos vinte e cinco centavos.
— Eu sei. Mas, se eu morasse na cidade e trabalhasse no armazém e guardasse meu dinheiro…
Gostaria desse presente?
— Sim, filha. — Cassie deu um sorriso sem alegria.
— E você, vovó? Também gostaria de ganhar um vidro de água de rosas?
— Fique quieta, criança. Pare de falar sobre o que não pode ter.
— Algum dia, quando eu for maior e tiver dinheiro, talvez até um dólar, gostaria de ganhar,
vovó?
Luella cerrou os dentes, lutando para não perder a paciência.
— Gostaria muito, Jennifer. Água de rosas tem um perfume delicioso.

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— E você, Becky? Gostaria…
— Cale a boca, Jen! — berrou a irmã mais velha. — Já estou farta de ouvir você dizer o que vai
comprar de presente de natal, algum dial Será que ainda não entendeu? Nós não vamos ter natal este
ano!
— Não é verdade! — exclamou Jen, com lágrimas nos olhos. — Teremos uma natal! Diga para
ela, mamãe. Diga que está muito errada!
Cassie mantinha os olhos nos cavalos que se esforçavam para subir uma ladeira excessivamente
íngreme.
— Mamãe? — insistiu Jen, com a impaciência de uma criança de cinco anos, mas sem conseguir
nenhuma resposta de Cassie.
— Rebecca tem razão, Jennifer.
Cassie estremeceu ao ouvir a dureza presente na voz de Luella. As palavras pareciam explodir
no ar frio como o estalar de um chicote. Às vezes, o único modo de enfrentar a dor é encarando-a de
frente e de olhos abertos.
— Os tempos estão difíceis, menina. Embora sua mãe não concorde comigo, acho que você já
tem idade suficiente para compreender…
— Jen?
Sem que elas percebessem, Quin cavalgava ao lado da carroça.
— Eu pretendia esperar até amanhã, que é a véspera de natal mas… Nunca consegui guardar
nenhum segredo desse tipo. Poderia segurar uma coisa para mim, só para me ajudar?
— O quê? — A menina nem ergueu a cabeça, tal era seu desespero. Quin abriu a ampla capa e
retirou uma bolinha de pelo macio, que se movia sem parar.
— Biscoito! — Jen soltou um grito de intensa felicidade. — Mamãe! Olhem! Vovó! É o meu
Biscoito, Becky!
Eufórica, a menina beijava o cãozinho que retribuiu a carícia, lambendo-lhe o rosto.
— Terá que mantê-lo bem aquecido — disse Quin, sorrindo diante de tanta alegria.
— Ele pode dormir no meu cobertor!
— E levá-lo passear várias vezes por dia. — Ele retirou do bolso o seu fino lenço no qual
envolver os pedaços de carne dados por Florence para alimentar o animal durante a viagem e o
entregou a Jen.
A raiva de Cassie se desfez por completo e ela lançou a Quin um olhar de profunda gratidão.
Com gritos de alegria, Jen pulou para o fundo da carroça e acomodou-se ao lado de Becky, que
saiu de sua profunda apatia. As duas riam diante das brincadeiras do cãozinho e a tensão de momentos
atrás desapareceu, como se não tivesse jamais ocorrido.
Sem dizer mais nada, Quin voltou a galopar, colocando-se bem na frente da carroça a fim de
certificar-se da segurança de todos. Cassie o observava, tentando ordenar seus sentimentos. Alegrava-se
pela filha, que fora poupada, por mais algum tempo, e não seria ainda forçada a encarar a dura realidade
de suas vidas. E também se entristecia porque, apesar da euforia do momento, sua mãe estava certa.
Naquele natal, elas não teriam nada para celebrar.
Começara a nevar logo depois do meio dia e a noite já caíra, aumentando o frio.
Com o chapéu afundado na cabeça, Quin cavalgava ao lado da carroça, em silêncio. Becky e Jen
dormiam, debaixo de várias peles e cobertores, com Biscoito acomodado entre as duas. Cassie sentia os
dedos enregelados enquanto mantinha as rédeas firmes e Luella cabeceava.
— Mãe… No mesmo instante, Luella endireitou o corpo.
— Vá para o fundo da carroça, com as meninas, e descanse um pouco.
— Não estou cansada e não deixarei você sozinha.
— Eu não me incomodo e me sentiria bem melhor se soubesse que você está descansando.
— Prefiro ficar aqui.
Cassie suspirou diante da teimosia da mãe. Luella sempre fora obstinada e ela supunha ter
herdado esse traço materno. Se não fosse assim, por que teria arrastado sua família para aquela região
hostil e primitiva?
— Eu sinto muito, mãe.
— E por quê?

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— Pelas complicações que provoquei em nossas vidas. Não devia ter concordado com Ethan,
seguindo-o por causa de um sonho ridículo. Podia insistir que ficássemos em Atlanta para recomeçar
num lugar conhecido. Pelo menos, não estaríamos enfrentando um homem perigoso como Cyrus
Stoner ou rodeadas por tanto frio e neve. Lá era quente e…
A voz de Cassie ficou tremula e baixa até desaparecer.
— E o que mais, filha?
— Eu me torturo pensando que Ethan poderia estar vivo ainda se tivéssemos permanecido em
Atlanta.
— Agora, trate de me escutar, menina! — declarou Luella, indignada. — É verdade que, em
Atlanta, não estaríamos enfrentando Cyrus Stoner mas, com toda a certeza, precisaríamos lutar contra
outros vilões. A cidade se tornou um antro de saqueadores e bandidos, abutres dispostos a devorar a
carcaça dos derrotados. Quanto à neve…
Luella olhou ao seu redor, observando a amplidão branca que os cercava até se perder de vista,
brilhando como um oceano sob a luz das estrelas.
— Admito que essa neve constante é uma cruz a se carregar. Entretanto, torna a primavera
ainda mais preciosa quando chega. Agora, falemos sobre Ethan. Nunca pense que este lugar provocou
a morte dele porque o verdadeiro motivo foi a guerra.
— Mas mãe…
— Eu sei que Ethan sobreviveu a ultima batalha mas, da mesma forma, foi a guerra que o
matou, tão fatalmente como uma bala de mosquete no meio do peito. Você deve se sentir reconfortada
por ele estar em casa quando o Senhor o chamou, rodeado pelos entes queridos e nesta imensidão
intocada e pura, longe das trincheiras e de uma morte sem glória.
— Oh, mãe… — Cassie estava à beira das lágrimas. Abraçando a filha, num gesto raro de
carinho, Luella beijou-lhe o rosto frio.
— Vamos deixar esse assunto triste de lado, pensando no que poderia ter acontecido em vez de
nos concentrarmos em como arrumar um modo de celebrar o nosso natal.
— Que celebração? Você mesma disse que não teríamos um natal.
— É verdade. E, graças ao generoso presente do Sr. McAllister, teremos mais uma boca para
alimentar. Entretanto… Não podemos nos desesperar. Não será uma festa digna desse nome, mas não
passaremos fome.
Cassie lutou para conter as lágrimas diante do inesperado apoio da mãe.
— Florence me deu uma cesta de maçãs e um pouco de canela em pó. Farei uma torta com as
maçãs e acrescentarei a canela à massa dos biscoitos. Não acha que o perfume da cabana ficará
ligeiramente… Natalino?
— Sem dúvida.
— Faremos um rosbife e um ensopado com batatas…
Apesar do escuro da noite, Quin viu a silhueta das duas mulheres, muito próximas, curvadas
para suportar melhor o frio. Embora não demonstrassem afeto físico, elas se amavam profundamente.
E, apesar de sua existência sombria e sem nenhum prazer, estavam determinadas a vislumbrar um
mínimo raio de esperança, a encontrar uma pequena dose de alegria para enriquecer a vida de seus entes
queridos.
Ele balançou a cabeça, num gesto de franca admiração. Eram duas mulheres notáveis e, sem a
menor sombra de dúvida, estava perdidamente apaixonado por uma delas!

93
DEZESSEIS

Os contornos vagos da cabana se delineavam contra a brancura da neve, na escuridão da noite.


Ao se aproximarem mais, Quin verificou que a pequena e rústica construção de grossas toras de
madeira permanecera intocada e sem dano algum.
Por algum motivo obscuro, que Quin preferia ignorar, a visão lhe despertou uma sensação de
segurança. Então, seu lado racional foi mais forte e ele estremeceu. Por acaso, aquela cabana, que não
passava do mais rudimentar abrigo contra os elementos da natureza, estava assumindo as características
de um lar?
Essa possibilidade era perigosa demais! Certamente, se apegara ao lugar porque passara ali
algumas semanas e assumira grandes riscos de vida para defendê-la. Ainda e sempre se sentiria muito
mais a vontade em um salão de jogos, com uma rodada de cartas vencedoras na mão do que limpando
estábulos ou empunhando uma pá ou um ancinho!
A carroça parou diante da varanda da cabana e Quin, saltando do cavalo, ajudou Cassie e Luella
a descerem. As duas se moviam com dificuldade, sentindo os músculos doloridos da longa viagem
debaixo de neve.
— Não acordem as meninas — disse ele, em voz baixa. — Eu as carregarei para dentro e já
acenderei a lareira.
Luella abriu a porta e acendeu um lampião. Enquanto Cassie abria o quarto das meninas, Quin
chegou carregando Jen que, mesmo profundamente adormecida, mantinha o cãozinho nos braços.
Depois, ele retornou com Becky e, após colocá-la na cama junto da irmã, voltou à sala para cuidar do
fogo. Em questão de minutos, chamas brilhantes davam maior aconchego à cabana rústica.
— Eu o ajudarei a descarregar a carroça — declarou Cassie, acom-panhando-o até a porta.
— Não — recusou Quin, secamente. Ao perceber o olhar magoado de Cassie, suavizou seu
tom de voz. — Você já trabalhou demais. Foi uma viagem longa e muito dura. Eu cuidarei dos
suprimentos.
Ele gastou mais de uma hora, sob a neve e o vento gelado, para descarregar a carroça,
arrastando para dentro da cabana os pesados barris e levando nas costas, um a um, os sacos de
mantimentos. Depois, conduziu os cavalos para o estábulo para dar-lhes água e feno antes de colocá-
los em suas baias.
Bastou um olhara para perceber que os Crow haviam cuidado de tudo muito bem. Esperava
que as crianças da tribo tivessem apreciado o leite retirado da vaca, um alimento raro para os índios
daquela região gelada.
Já passava da meia noite quando Quin retornou à cabana e encontrou um prato feito ao lado do
fogão, onde também o esperava um bule de café fresco. Cassie e a mãe haviam se retirado pois os
cobertores, que serviam de porta para seus quartos, estavam descidos.
Depois de se alimentar, ele acomodou-se na cadeira de balanço em frente à lareira, com uma
caneca de café quente aquecendo-lhe as mãos. Só então, acendeu o charuto, que significava o fim do
trabalho e o ajudava a relaxar.
Subitamente, Quin sentiu a presença de Cassie na sala. Virando-se para trás, viu-a caminhar em
sua direção até parar bem diante dele. Uma singela camisola de flanela branca encobria suas formas
delicadas, mas a longa cabeleira solta e caída sobre os ombros acentuava a sensualidade inconsciente
daquele mulher que ignorava o poder de sua sedução.
— Eu queria lhe agradecer por ter nos levado até Prospect e nos trazido de volta ao lar com
toda a segurança.
— Não é necessário…
— E especialmente pelo que fez por Jennifer — prosseguiu Cassie, como se não tivesse sido
interrompida por Quin. — Ela jamais o esquecerá… E eu também não.
Respirando fundo e endireitando os ombros, Cassie se preparou para dizer o que precisava ser
dito.
— Acho que agora… É hora de pensar em sua partida.
— Partir? Agora? Antes do natal? Cassie estremeceu, mas recusou-se a ceder.

94
— Talvez no dia seguinte ao do natal.
— Entendo. — Ele deu uma tragada funda no charuto e soltou lentamente a fumaça. — Pode
me dizer se há algum motivo especial que explique essa urgência?
— Creio que você sabe o motivo.
— Não sei, mas tenho certeza que você me explicará com todos os detalhes.
— Não é apenas porque você passou a noite no bordel, embaraçando-nos publicamente,
embora esse motivo já fosse suficiente. A razão de sua atitude é o problema.
— A razão?
Ele observava a postura ereta de Cassie, rígida e tensa como se não ousasse relaxar nem por um
segundo.
— Não posso culpá-lo por jogar cartas, é claro. Desde o início, você não escondeu ser um
jogador, sem vontade ou capacidade de permanecer por muito tempo era um só lugar. Não devíamos
ter nos surpreendido com sua atitude em Prospect. Minha mãe acertou ao afirmar que as pessoas não
mudam. Então, seu comportamento na cidade demonstrou claramente que cansou-se de ficar
confinado e está ansioso por recuperar sua liberdade. Não temos o direito de prendê-lo mais.
— Eu não sabia que estava preso — brincou ele, levantando-se da cadeira de balanço.
Embora temerosa de uma maior proximidade, Cassie não recuou.
— Você sente que deve uma obrigação à memória de Ethan. Eu compreendo e admiro sua
atitude.
— Uma obrigação — murmurou Quin, apanhando uma mecha dos sedosos cabelos ruivos e
deixando-os deslizar entre os dedos.
— Não estaríamos sendo justas se esperássemos que você renunciasse ao seu modo de vida por
nós. Temos de aceitar o fato de que chegou sua hora de partir.
Quin continuava a tocar os cabelos de Cassie e sabia que seu toque a descontrolava, mas não se
afastou nem soltou os cachos que pareciam fios de seda brilhante.
— É muito nobre de sua parte. E o que pretende fazer com Cyrus Stoner?
— Ele é um problema nosso, não seu. Tem que continuar com a sua vida, Sr. McAllister. E…
— Ela afastou-se abruptamente, rompendo o contato e encerrando a conversa. — E nós temos de
continuar com a nossa. Boa noite.
Durante um longo tempo, um sorriso permaneceu nos lábios de Quin. Como Cassie teria
reagido se ele a tomasse nos braços, beijando com paixão, até ouvi-la ronronar como um gatinho?
Não, Cassie era mais parecida com uma bela pantera, a mais linda que já encontrara. Uma
mulher de paixões intensas, guardadas como um tesouro sob o exterior puritano de uma dama
impecável.
Ele jogou o charuto na lareira e sentiu uma súbita onda de frio. Sem dúvida, o ar frígido se
devia à atitude de Cassie que se esforçara ao máximo para agir como se realmente o desejasse fora de
sua vida.
E como ele poderia partir quando ainda tinha tanto a fazer?
Mais uma vez, ele sorriu ao lembrar-se da expressão severa de Cassie. Há muito tempo,
convencera-se que se sentia atraído apenas pelas mu¬lheres dos bordéis, com sua sensualidade terrena
e seu talento em dar prazer a um homem. Agora, sabia que nenhuma delas chegava aos pés daquela
jovem delicada e quase ingênua… Que não o queria por perto!
Acomodando-se em sua cama improvisada, Quin adormeceu, pensando em Cassie.
Um pesadelo acordou Cassie. Embora não se lembrasse do sonho, sentia-se perturbada demais
e, por mais de uma hora, permaneceu acor¬dada, com as palavras de alerta da mãe ecoando em sua
mente.
— Quin McAllister é um jogador, filha. Se não conseguia aceitar esse fato antes, agora já não
pode ignorar a realidade. Em Prospect e diante de todos, ele provou que jamais resistirá à atração de
bordéis, salões ou cassinos. Esse tipo de homem nunca se acomoda na vida, nem assume
responsabilidades pois apenas se preocupa em satisfazer seus prazeres onde os encontram para depois
seguir adiante em busca de novidade. Se não criar coragem e o mandar embora logo, acabará se
magoando profundamente. E não será a única pois suas filhas também sofrerão. Só um cego não veria
que ele já se tornou importante demais para Jen."

95
Sua mãe não dissera uma só palavra que não fosse verdadeira. Nada permanecera igual após a
entrada de Quin em suas vidas. Tinham começado a depender e a confiar cada vez mais nele e isso era
perigoso. Não aprendera nada com os erros de Luella?
Inquieta, Cassie levantou-se da cama e, cobrindo-se com um xale, foi até a sala. O vento
soprava mais forte, indicando que o tempo ia piorar muito.
Tentando não fazer nenhum ruído, ela foi até o fogão e encheu uma caneca com o café ainda
quente pois ficara bem perto das brasas. Então, sentou-se na cadeira de balanço, esperando que a
madrugada chegasse.
— Nada pode ser tão trágico assim.
Ao ouvir a voz grave de Quin, ela ergueu a cabeça, tensa.
— Pensei que estivesse dormindo.
— Eu estava mesmo, mas sempre acordo ao ouvir passos. E, por hábito, minha primeira reação
é apanhar minha pistola.
— Sinto muito. Volte a dormir.
— Não vai ser nada fácil.
Jogando para longe as cobertas, ele vestiu as botas e aproximou-se da lareira para reavivar o
fogo. Quando as chamas se ergueram, crepitantes, ele encarou Cassie.
— Agora, conte-me o que a fez sair da cama antes da madrugada chegar.
— Tenho de tomar algumas decisões.
— Quer discuti-las comigo?
— Estou pensando em aceitar a oferta de Cyrus Stoner.
— O quê? Depois que os homens dele tentaram atear fogo a sua casa?
— É verdade mas… — A voz de Cassie refletia uma profunda angústia — já pensou no que
poderíamos fazer com quinhentos dólares?
Quin sentiu-se envergonhado. Arriscava dez vezes essa quantia em uma única cartada.
Interpretando o silêncio dele como censura, Cassie ficou ainda mais tensa.
— Sei que não lhe parece muito dinheiro, mas seria suficiente para que eu levasse minha família
para a cidade. Elas viveriam entre outros seres humanos, Luella teria a igreja e sua música, e as meninas
precisam de amigos.
— E você, Cassie? O que você teria?
Sem conter a agitação, Cassie levantou-se e começou a caminhar pela sala.
— Não sei. Às vezes, penso que ficarei por aqui, continuando a buscar o tesouro sonhado por
Ethan. Outra vezes, considero-me uma tola por ter sacrificado tudo por uma ilusão. Na verdade, isso
não é importante para mim, mas não é justo pedir que minha família se sacrifique mais.
— Nunca as ouvi se queixando de nada.
— Pois é justamente esse o problema! Elas nunca dizem uma só palavra. Entretanto, meu
coração se aperta quando vejo no que estão se tornando!
Apesar do calor do fogo, Cassie sentia ainda mais frio.
— Você viu a alegria de minha mãe na igreja, enquanto tocava e o prazer que demonstrou em
poder preparar seus pratos na cozinha de Florence? Minhas filhas desabrocharam ao conviverem com
os meninos Claxton. Elas precisam de amigos, do conforto de uma igreja e de uma escola. E eu estou
me interpondo em seu caminho.
— Não seja tão dura consigo mesma, Cassie.
— Fui egoísta demais — prosseguiu ela, agoniada. — Agora basta! Chegou a hora de tomar
decisões.
— Você vai se arrepender disso.
— Talvez. Entretanto, tem de ser feito.
Os dedos de Quin rodearam o pulso de Cassie, impedindo-a de cruzar a sala.
— Cassie…
Ao ouvir o som de seu nome nos lábios de Quin, Cassie sentiu o coração disparar.
— Preciso voltar para meu quarto e me vestir. — Ela não o fitava, com medo que Quin lesse as
emoções refletidas em seus olhos. — Logo amanhecerá e tenho de iniciar as tarefas do dia.

96
— Por que está sempre fugindo de mim, Cassie? Imediatamente tensa, ela se virou, encarando-o
com uma expressão de raiva.
— Não me confunda com as mulheres que encontra nos bordéis, Sr. McAllister. Passou uma
noite com elas e deve ter saciado seus desejos o bastante para ter condições de esperar até sua chegada
à próxima cidade.
— Então… É disso que se trata?
Rindo, Quin a segurou pelos ombros. Cassie tentou escapar, mas ele a manteve presa com suas
mãos fortes.
— Se eu a conhecesse melhor, diria que está morrendo de ciúme, Sra. Montgomery.
— Ciúme! De você e de uma mulher do bordel de Lottie?
— Estou impressionado, Sra. Montgomery! — O sorriso dele se alargou. — Sabe até o nome
do bordel? Parece que andou ouvindo os mexericos das comadres de Prospect!
— E achou que ninguém faria comentários? A cidade inteira o viu entrar na igreja, cheirando a
uísque e tabaco, com a expressão satisfeita de quem se divertiu a valer. Ninguém ignorava como e com
quem você passou a noite.
— E mesmo? E o que eu estive fazendo? Poderia me contar?
— Bebendo, jogando e forni… — ela calou-se, com o rosto rubro de vergonha.
— A palavra é fornicando, Sra. Montgomery! — Ele deu uma gargalhada. — Pois eu gostaria
realmente de ter feito tudo isso já que fui julgado e condenado por você, e por todos na cidade.
— Não estou interessada em sua culpa ou inocência.
A expressão amuada de Cassie a tornava ainda mais atraente. Seus lábios, curvados para
demonstrar reprovação, se tomavam sedutoramente cheios e Quin não conteve mais o desejo de beijá-
los.
— E no que está interessada? Por acaso, é nisto?
Ele a beijou tão repentinamente que Cassie não teve tempo de esboçar uma reação.
Calor. Força. Paixão contida e desejo intenso. Cassie descobria o verdadeiro sentido dessas
palavras sempre que Quin a beijava e, diante do vigor de suas próprias emoções, não conseguia resistir.
Esquecendo-se da lógica, da razão e até das possíveis conseqüências desastrosas, se entregava ao prazer
das carícias.
Enquanto estava nos braços de Quin, tudo lhe parecia tão fácil e livre de culpas. As mãos em
seu corpo, buscando suas curvas com um ardor que quase chegavam a machucá-la, não a assustavam.
Não conhecia aquele homem e parecia-lhe tê-lo conhecido por toda a eternidade!
E os desejos sufocados por tanto tempo vinham para a superfície, roubando-a da capacidade de
raciocinar. Queria ser amada com paixão, descobrir a intensidade do prazer, saber que podia levar um
homem à loucura e se perder na mesma volúpia.
Quin já não acreditava mais em sua própria sanidade mental. Há poucas horas, aquela mulher o
mandara embora e ele decidira ir. Agora, sentindo os lábios frementes sob os seus, pensava em ficar
para sempre.
Ele já não controlava mais as próprias mãos que abriam a camisola de Cassie, para tocar a pele
nua do corpo que o enlouquecia de desejo.
Sem dúvida, era a mais completa loucura! Ele afastara a camisola dos ombros de Cassie e, em
segundos, a deixaria nua naquela sala onde, a qualquer momento, a mãe ou as filhas poderiam entrar.
Mas nada importava. Queria possuir o corpo, a alma e a mente daquela mulher e já não podia mais
esperar.
— Ainda quer que eu vá embora — murmurou ele, acariciando os seios de Cassie, que
suspirava de prazer.
O som da voz dele a trouxe de volta à realidade. Tentando cobrir a nudez parcial e recuperar a
dignidade, ela o encarou.
— Acho que seria melhor.
— Melhor para mim? — Quin também lutava para sufocar o desejo. — Ou para você?
— Para nós dois. É pelo bem de ambos que lhe peço para partir.
Mas só depois de amanhã. Seria dolorido demais para as meninas se você se fosse antes do dia
de natal.

97
— Está bem —— disse ele, com voz dura. — Depois de amanhã. Vendo-a retornar para o
quarto, Quin lutou contra a maior frustração que já sentira. Aquela era a mulher mais teimosa do
mundo! Não podia ficar depois de ter sido expulso daquela casa e não podia partir, deixando-a em uma
situação desesperadora!
Como poderia ir se tudo o que mais desejava estava naquela cabana rústica?
A pequenina figura junto da porta permanecia imóvel, vendo a mãe entrar no quarto. Então,
voltou-se para observar Quin, que vestia o casaco antes de abrir a porta e sair da cabana, pisando duro.
Abraçada ao cãozinho, ela cruzou a sala correndo e se deitou na cama de Quin, envolvendo-se
nos cobertores ainda quentes. Sentiu o cheiro de tabaco que sempre associara à presença do pai e lutou
contra as lágrimas. Não queria contrariar a mãe mas…
— Por favor — pediu ela, baixinho — não deixe mamãe mandar o sr. McAllister embora de
nossas vidas.

98
DEZESSETE

A neve começou a cair forte no início da manhã da véspera da natal. Cassie e as meninas
usaram a corda para chegar ao estábulo e encontraram Quin, limpando as baias.
— Achei melhor começar cedo — explicou ele, sem interromper o trabalho. — Parece que
vamos ter um noroeste.
Cassie apanhou o balde, evitando olhar para ele. Enquanto ordenhava a vaca, ouvia a conversa
das meninas com Quin, sem prestar muita atenção.
— O que é um noroeste? — perguntou Jen, soltando o cãozinho para brincar entre as galinhas.
— E uma grande tempestade de neve que vem do Canadá.
— Muito grande mesmo?
— Às vezes, cai tanta neve que chega quase até o telhado dos celeiros. Quin começou a encher
as manjedouras com feno.
— Quer dizer que… Poderia cobrir nossa cabana?
— Sim — resmungou Quin, terminando de encher de água os bebedouros dos animais.
— Então… — em vez de alarmada, Jen parecia estar bastante satisfeita. — se nevar tanto
assim, levaríamos muitos dias até conseguir cavar um túnel para sair da cabana.
Preocupado, Quin guardou o forcado num canto do estábulo.
— Vou calafetar os vãos entre os troncos da cabana antes que a neve fique muito alta. Não
podemos deixar que se escape nem um fiapo de calor.
— Eu vou ajudar! — exclamou Jen, carregando o cãozinho.
— Eu também — declarou Becky, agarrando seu casaco.
Quin estava prestes a recusar a oferta das duas visto que o dia estava frio demais para
permanecer por mais tempo fora de casa. Então, viu a expressão ansiosa nos rostinhos à espera de sua
resposta e não teve coragem de negar.
— Está bem. Eu preciso mesmo de ajuda.
— Meu pai odiava o frio — disse Becky, trabalhando ao lado de Quin. — Ele dizia que o
lembrava do terrível campo de prisioneiros.
— E verdade.
Levantando a gola do casaco, Quin se concentrou no trabalho e em seus pensamentos. Não era
da sua conta se Cassie decidisse vender a propriedade dela a Cyrus Stoner. Não lhe cabia o dever e a
responsa¬bilidade de fazer o que julgasse necessário para proteger as filhas e a mãe? Ele não tinha o
direito de influenciá-la nessa decisão.
— Por que nunca fala sobre isso? — perguntou Becky.
— Sobre o quê? — Sobressaltado, ele saiu de seu devaneio.
— Sobre o campo de prisioneiros onde você e meu pai ficaram durante a guerra.
— Não é um assunto sobre o qual eu goste de falar.
— Os ianques eram perversos com você também?
— Alguns eram. A guerra muda alguns homens, transformando-os em animais.
— E você não sentia medo — insistiu Becky.
— Às vezes. Como todas as pessoas, eu também sinto medo, mas lembre-se sempre de um
fato, Becky. Mesmo o pânico não deve nos impedir de agir. Por mais que tenhamos pavor de algo ou
de alguém, temos de fazer o que precisa ser feito.
— Foi por isso que salvou a vida de meu pai? — perguntou Jen. Quin se imobilizou, tenso e
preocupado.
— Por que acha que salvei a vida de seu pai?
— Ouvi minha mãe contar para vovó. Ela disse que devíamos a você pela vida de papai. Como
fez isso?
As palavras de Jen perturbaram Quin. Não queria que Cassie lhe devesse nada!
— Não foi nada de especial — resmungou ele, começando a calafetar a fileira final de troncos.
— Aposto que matou um homem — declarou Jen, repentinamente.

99
— Matou mesmo um homem, Sr. McAllister? — insistiu Becky. As duas meninas o encaravam
com total atenção.
— Sim. Eu matei um homem.
— Ele era muito mau? Maltratava meu pai? Abaixando-se, Quin ficou na mesma altura de Jen.
— Ele maltratava seu pai e muitos outros homens inocentes.
— Então, fico contente que você o tenha matado. Ele passou o braço nos ombros da caçula e a
forçou a fitá-lo bem nos olhos.
— Lembre-se sempre do que vou lhe dizer agora, len. Tirar a vida de alguém não é algo que se
faça com facilidade. Jamais se sinta contente pela morte de ninguém.
— Mesmo se for de alguém muito mau, como Cyrus Stoner?
— Nem mesmo nesse caso.
— Você sente vergonha por ter matado esse homem mau?
— Não me arrependo do que fiz, mas também não sinto orgulho. Era preciso matá-lo para
sobreviver.
— Então… O que você realmente é? — perguntou Jen, sem disfarçar a perplexidade. — Vovó
diz que não passa de um jogador sem eira nem beira. Mamãe acha que é um herói por ter salvo a vida
de papai.
Eu fico sem saber…
— Sou apenas um homem, Jen. Nem o melhor, nem o pior.
Antes que as meninas pudessem fazer mais perguntas, Quin se levantou e, ao virar-se, viu-se
diante Cassie. Pela expressão em seu rosto, percebeu que ela ouvira grande parte da conversa.
Os dois se fitaram por alguns segundos, em silêncio.
— Acho que precisam tomar algo bem quente — disse ela, finalmente. — Entrem que há uma
panela de sopa no fogo.
— Ótimo! — exclamou ele, entrando rapidamente na cabana.
Cassie e as filhas o seguiram, mais lentamente, as três tentando ordenar pensamentos tão
tumultuados quanto a tempestade que caía, trazida pelo vento forte.
— Algo está cheirando bem demais nesta casa! — brincou Quin.
— Por acaso, é torta de maçãs?
— Exatamente. — Luella enchia as gamelas com sopa, enquanto Cassie cortava o pão. — Fiz
duas com as maçãs que Florence me deu.
O cãozinho, que dormia diante da lareira, acordou e correu para Jen. Ela, Becky e Quin
penduraram seus casacos atrás da porta e foram para a mesa.
— Cassie e eu vamos passar o resto do dia cozinhando — anunciou Luella. — Se já tiverem
terminado suas tarefas, quero que nos ajudem meninas.
— Ajudar fazendo o quê? — perguntou Becky, intrigada.
— Vamos descascar nozes e picar frutas secas.
Becky se interessou, mas Jen ficou nitidamente infeliz com a perspectiva de passar o resto do
dia na cozinha.
— Se a tempestade continuar, eu pretendo trabalhar na mina — disse Quin. — E talvez precise
de auxílio.
Com os olhos brilhando, Jen ergueu a cabeça.
— Posso ajudar?
— Eu bem que gostaria mas… — Quin olhou para Cassie — Precisa mesmo da ajuda de Jen na
cozinha?
— Não… Acho que podemos dispensar Jen. Três mulheres são mais do que suficientes numa
cozinha.
Jen lançou um olhar de verdadeira adoração a Quin. De alguma forma, a simples presença
daquele homem forte e silencioso a fazia se esquecer do isolamento e da solidão em que viviam.
No início da tarde, estava escuro como se fosse noite fechada e a neve já alcançava o beirai das
janelas.
— Não adianta nem pensar em sair de casa — resmungou Quin, afastando-se da janela. —
Acho que vou trabalhar na mina.

100
Imitando Quin, Jen também vestiu o casaco e, agarrando seu adorado cãozinho o seguiu. Os
dois desceram a escada tosca e foram até o túnel em que ele trabalhara antes de irem até a cidade.
— Quero que me prometa obedecer uma única regra, Jen — declarou ele, quase com
severidade. — Você e Biscoito tem de ficar sempre bem perto de mim. Não podem se afastar porque,
caso se percam nesse labirinto, só Deus sabe quando serão encontrados. Entendeu bem?
A garota concordou com um gesto de cabeça, sentindo-se ainda mais importante por participar
daquela aventura.
Quin colocou o lampião sobre um ressalto entre as pedras e começou a abrir mais um rombo
na parede de rocha nua. Ao lado dele, Jen se divertia fazendo sombras com as mãos, mas sempre
mantendo-se atenta a Biscoito que cheirava cada canto do túnel.
O irrequieto cãozinho logo esgotou as descobertas a serem feitas naquele local e se afastou,
seguido por Jen. Quin ainda os avistava, mas não queria nenhum risco e chamou a menina de volta.
— Só estou acompanhado Biscoito.
— Pois o traga de volta já. Quero que fique do meu lado, esqueceu-se?
— Está bem. Jen abaixou-se para pegar o cãozinho, mas suas boas intenções a abandonaram
quando ele disparou a correr pelo túnel. Aflita, correu também e o viu desaparecer numa pequena
abertura bem rente ao chão de pedra.
— Biscoito! Volte aqui!
Desesperada, a menina o seguiu, mergulhando atrás dele, sem pensar no medo do escuro.
Quin ouviu o grito de Jen e largou imediatamente a picareta. Num primeiro instante, irritou-se
com a falta de responsabilidade de Jen que prometera cumprir suas ordens e não o fizera. Então,
imaginou o terror da menina no escuro e sem seu adorado cãozinho.
A beira do pânico, ele começou a correr pelo túnel, chamando por Jen.
— Sr. McAllister!
Ele parou, ouvindo a voz que vinha de algum ponto da parede de pedra.
— Jen? Onde está você?
— Aqui!
— Continue gritando bem alto para que eu possa localizar o som! Só depois de longos e
intermináveis minutos de desespero, Quin enxergou a abertura rente ao chão e, ajoelhando-se, chamou
novamente por Jen.
— Você saiu do túnel, Jen? Entrou em alguma abertura?
— Estou aqui dentro! — gritou ela, sem qualquer sinal de medo na voz. — Venha logo! Não
vai acreditar!
— Mas você está bem?
— Estou! Ande depressa!
Deitando-se no chão, Quin colocou o lampião na sua frente e se arrastou através da abertura.
Ao chegar do outro lado, encontrou Jen com o cãozinho no colo e, antes que pudesse censurá-la pela
imprudência, olhou ao seu redor e quase perdeu a fala.
Estavam em uma imensa caverna de cujo teto, muito alto, vinham alguns raios de luz, banhando
as paredes rochosas de um colorido sobrenatural. Por toda a parte, viam-se evidências de que alguém já
trabalhara naquele local, deixando picaretas e pás espalhadas. Também havia várias sacolas de couro
presas em ganchos numa das paredes.
— Céus! — exclamou Quin. — E uma verdadeira cidade debaixo da terra! Como encontrou
esse lugar?
— Foi Biscoito quem encontrou. Onde acha que estamos?
— Não tenho muita certeza, mas vamos pesquisar. Siga-me bem de perto.
Erguendo o lampião, ele percorreu a ampla caverna e depois examinou o teto a distância.
— Deve haver uma abertura para a superfície que talvez tenha sido bloqueada ou apenas
encoberta com o passar do tempo. Este lugar me parece ser o poço original desta mina, que acabou
sendo abandonado e depois esquecido por todos.
Quin continuou a examinar o local, apanhando várias lascas de rocha e colocando-as em um
dos sacos de couro que alguém largara na mina. Sua expressão foi se tornando mais pensativa à medida
que caminhava ao redor da caverna.

101
— Vamos embora, Jen — disse ele, num tom de voz grave. — Já ficamos tempo demais
debaixo da terra para um dia só.
Os dois se arrastaram pela abertura rente ao chão e, depois de marcar bem a sua localização,
percorreram de volta o labirinto de túneis até encontrar a escada.
Ele segurou a lanterna para que Jen subisse, carregando seu adorado Biscoito, e depois os
seguiu.
— Eu estava prestes a descer para chamar vocês dois! — exclamou Cassie, numa mescla de
preocupação e raiva. — Já passa da hora que costumamos jantar! Vão se lavar e…
Então, ela viu que Quin prendera um saco de couro na cintura e fez uma careta.
— Trouxe algumas pedras para enfeitar nossa cabana, Sr. McAllister?
— Não são apenas pedras — murmurou ele, ainda impressionado com o que vira. — Tenho
um pressentimento, bastante forte, de que se trata do mesmo tipo de amostras enviadas por Ethan para
serem avaliadas pelo analista de minérios.
Do outro lado da sala, Luella e Becky pararam de arrumar a mesa se voltaram para Quin.
Ninguém se moveu ou falou, por alguns instantes, até que Cassie recuperou a fala.
— Por que tirou essa conclusão?
— Jen encontrou uma caverna enorme, maior do que a cabana e o estábulo juntos! Então, vi as
ferramentas, várias sacolas de couro e suspeito que tenham sido levados por Ethan e deixados por ele,
em sua última incursão na mina.
— Oh, Jen! Você encontrou o local onde seu pai estava trabalhando?
— Bem… Não fui eu — confessou ela, embaraçada. — Foi Biscoito. Apenas o segui.
— Então, Biscoito merece uma recompensa — brincou Cassie, para disfarçar a emoção.
— Está vendo, vovó? — Jen fitava Luella, com uma inocência cheia de malícia. — E você
achava que ele seria só mais uma boca para alimentar!
Esquecendo-se de sua severidade, Luella riu, partilhando da alegria geral.
— Era isso que Ethan estava procurando? — Cassie olhou para as pedras que Quin colocara
sobre a mesa, com um olhar de incredulidade. — Não me parece ser ouro.
— E não é mesmo. Na verdade, só saberemos qual é o minério contido nestas pedras depois de
receber o relatório de um especialista mas, se meu palpite estiver certo, Ethan realmente encontrou seu
sonhado tesouro antes de morrer.
— Deus seja louvado! — exclamou Luella, abraçando a filha e depois as netas, surpreendendo-
as com sua demonstração física de afeto.
Cassie continuava atordoada, como se ainda não tivesse coragem de acreditar que algo de muito
bom iria acontecer em sua vida.
— Agora, chega de perder tempo! — ordenou Luella, assumindo o comando. — Tratem de se
lavar e vamos nos preparar para o nosso jantar de natal.
— Quer dizer que… Vamos mesmo ter um natal este ano? — perguntou
Jen, sem acreditar no que ouvira.
— Amanhã será o dia de natal, quer o celebremos quer não! — Luella jamais perdia seu lado
racional. — As boas e esperançosas notícias do Sr. McAllister aumentarão o aspecto festivo de nossa
noite, embora não possamos ir à igreja nem trocar presentes.
— Presentes! — Com a expressão de quem volta subitamente à realidade após ter estado muito
longe, ele correu para a porta da cabana. — Voltarei num minuto!
Perplexas, elas o viram desaparecer num verdadeiro mar de neve, agarrado à corda que ligava a
cabana ao estábulo. Muitos minutos depois, ele regressou, com os cabelos e as roupas completamente
brancas de neve. Debaixo do braço, Quin trazia vários pacotes.

— Eu ia esperar até amanhã para entregar os presentes… Que comprei na cidade. Entretanto,
detesto guardar esse tipo de segredo e acho que, como já tivemos uma ótima notícia, a comemoração
deve começar hoje.
Feliz Natal!
Com gestos rápidos, Quin entregou um pacote para cada uma delas.
— Mas por que…

102
Enquanto Cassie e Luella apenas olhavam para seus pacotes, Jen e Becky os abriam, aflitas e
sem se preocupar em não rasgar o papel.
Jen foi a primeira a conseguir e se imobilizou, incapaz de acreditar no que via.
— O que você ganhou? — perguntou Luella, espantada com a atitude inesperada da neta
caçula, sempre irrequieta e expansiva.
— É uma corrente com um medalhão de ouro — murmurou a menina, num fio de voz.
— Abra-o — pediu Quin, num tom de voz muito suave. Quando os dedos infantis
conseguiram abrir o medalhão, a menina soltou uma exclamação de surpresa. Em um dos lados, havia
uma pintura em miniatura de Cassie com as duas filhas no colo. Do outro, viam-se dois soldados
confederados.
— E meu pai! — Jen jogou-se nos braços de Quin. — E você!
— Exatamente. — Colocando-a no colo, ele prendeu a corrente no pescoço da menina. —
Ethan me deu este medalhão quando fomos libertados daquele campo de prisioneiros. Pediu-me para
tê-lo sempre comigo, a fim de não me esquecer dele nem da família a quem tanto amava. Achei que era
a hora de devolvê-lo para seus verdadeiros donos.
— Muito obrigada! — Impulsiva, Jen o beijou no rosto.
Quin disfarçou a emoção e retribuiu beijo infantil, abraçando Jen com muito carinho.
Do outro lado da sala, Cassie acompanhava a cena em silêncio, tentando controlar as lágrimas.
— Não vai abrir o seu, Becky? — perguntou Jen, curiosa.
— Oh, Sr. McAllister! — exclamou Becky ao encontrar um conjunto de pente, escova e
espelho, revestidos de prata. — Nunca vi nada tão lindo!
— Ainda bem que você gostou, Becky. Como está se tornando uma jovem mulher, achei que
seria um presente muito útil.
— E maravilhoso!
Rindo, Becky dançava pela sala, com o espelho na mão, parando apenas para apreciar o reflexo
de sua imagem.
Então, Jen correu para junto da avó e pegou o pacote que Luella ainda não tocara.
— Não vai abrir, vovó?
— Claro que vou.
Ao desembrulhar o pequeno pacote, Luella permaneceu alguns instantes sem fala e depois
ergueu o presente para que todos vissem.
— São… Óculos. — Aflita, ela os colocou e não conteve um grito de alegria. — Céus! Eu
consigo ver todos os pontos do meu vestido e… Vou poder até enfiar a linha na agulha!
Para surpresa de todos na casa e principalmente de Quin, ela agradeceu, beijando-o no rosto.
— Muito obrigado, Sr. McAllister. Não posso imaginar algo que eu gostasse mais de ganhar!
— Fico feliz por ter acertado, madame. Então, todos se voltaram para Cassie.
— Bem, mamãe — declarou Becky, com inesperada firmeza. — Agora é sua vez. Abra logo o
seu presente.
— Sim… É claro…
Sentindo que enrubescia, ela afastou o papel de seda da caixa e não conteve um suspiro de
alegria. Em suas mãos, estava um lindo vestido de seda rosa.
— Vista-o agora, mamãe! — pediu Becky.
— Oh! Eu não ousaria! É lindo demais para usar. — Ela voltou-se para Quin. — Não posso
aceitar um presente tão…
— Mas é véspera de natal — insistiu Becky. — Como saberemos se é realmente bonito
enquanto você não o vestir?
Cassie olhou para a mãe, certa de que encontraria uma expressão de censura. Para sua surpresa,
Luella sorria, encorajando-a.
— Concordo com Rebecca. Não terá outra oportunidade de usar esse vestido lindo tão cedo se
não aproveitar que hoje é véspera de natal. Vamos, menina!
Correndo para o quarto, Cassie desceu o cobertor e, momentos depois retornou à sala, com o
rosto enrubescido e acanhada por estar se expondo aos olhares de todos, em especial dos de Quin, com
um vestido tão lindo mas um tanto ousado.

103
Na verdade, o decote não era profundo demais e um delicado babado de renda apenas deixava
entrever a curva dos seios altos. Entretanto, a seda muito leve, moldava a cintura fina, acentuando a
curva dos quadris e o contorno esguio das pernas.
Cassie prendera os cabelos para cima, num coque improvisado, com dois pentes de tartaruga,
mas as mechas escapavam, caindo ao redor de seu rosto e formando uma moldura provocante para os
traços perfeitos.
— Oh, mamãe — suspirou Becky. — Você está…
— Linda — completou Luella. — Linda como a mais bela das músicas!
— Eu me sinto… Realmente bonita — admitiu Cassie, num fio devoz.
— E qual é a sua opinião, Sr. McAllister? — perguntou Becky, assustando-se com a expressão
chocada do rosto dele.
Pela primeira vez na vida, Quin perdera a fala. Aquela mulher, que ele já achava bonita em seus
vestidos gastos e quase sem forma, se transformara em uma beldade sem par.
— Você… Está… É a essência da beleza do natal.
Ela abaixou a cabeça, com medo de encontrar os olhos de Quin. Nervosa e embaraçada, tentou
afastar os cachos que caíam sobre sua testa para disfarçar a profunda alegria daquele momento.
— Obrigada pelo presente mais lindo que já recebi mas… Não sei como pode comprá-lo. E
todos os outros também! Só tinha algumas peles…
O jogo de cartasl Com a força de um raio, a verdade atingiu Cassie que ficou subitamente pálida
de emoção.
Quin passara a noite jogando no bordel porque a encontrara chorando! Não fora satisfazer seu
vício ou seus desejos carnais. Arriscara-se a enfrentar a reprovação e a raiva dela, os comentários
maldosos de todos na cidade para alegrar-lhes o natal, com os presentes que ela jamais poderia
comprar.
Mal contendo o pranto, ela se virou de costas para todos na sala. Como pudera ser tão cega?
— Está chorando, mamãe? — perguntou Jen.
— Não… Estou apenas comovida com este natal. — Ela voltou a encarar a família. — Poderia
conduzir as nossas preces desta noite especial, Sr. McAllister?
Todos permaneceram em pé, ao redor da mesa, deram-se as mãos, curvando as cabeças.
Enquanto Quin pedia as bênçãos divinas para aquela data única para a cristandade, Cassie o
observava através dos cílios semicerrados. Naquele instante, lembrou-se das palavras que ele dissera às
meninas, afirmando não ser o melhor nem o pior, mas apenas um homem.
Quin McAllister jamais seria apenas um homem! Ele surgira inesperadamente em suas vidas,
salvara-as do perigo e, com seu encanto irreverente, trouxera calor humano, ternura e alegria para
aquela casa.
E era esse homem que ela amava! Já não podia mais negar ou ignorar a verdade. Amava-o mais
do que jamais julgara ser possível.

104
DEZOITO

Só mais uma partida, vovó. Por favor! Surpreendendo a todos, inclusive a si mesma, Luella
concordou. Com os óculos bem colocados sobre o nariz, ela parecia estar se divertindo muito ao
aprender o jogo.
— Esta será a última — declarou Quin.
— Está se cansando de perder, Sr. McAllister? — perguntou Luella, examinando suas cartas.
— Tem toda a razão, madame. Ainda bem que não estamos jogando a dinheiro.
— Quer dizer que não está contente com a quantidade de tarefas acumuladas em suas costas…
Por causa de suas cartas? São só dois dias de trabalho na cozinha.
— Sem mencionar que terei de ordenhar a vaca.
Quin olhou para Cassie que abaixou rapidamente a cabeça, para esconder o riso.
— Não disse que sempre vencia, Sr. McAllister?
— Isso era verdade, até eu encontrar a gangue Montgomery! Como em todas as outras partidas,
Quin mantinha uma expressão de compenetrada seriedade, enquanto distribuía as cartas. Também se
mostrava adequadamente surpreso quando uma das meninas vencia a rodada.
Desta vez, foi Luella a vencedora.
— Ainda não entendi como duas cartas com um mero três e três de cinco podem ter mais valor
do que esses lindos ases!
Todos riram da última observação de Luella, que os surpreendera com seu senso de humor
inesperado naquela noite especial.
— Agora, vamos tomar um leite quentinho — declarou ela, chamando as netas. — E depois, é
hora de dormir, ainda que seja véspera de natal.
Quando as três se afastaram, Cassie olhou para Quin, sem disfarçar a curiosidade.
— Você roubou, não foi? — murmurou ela.
— Como pode me dizer algo tão ofensivo? — respondeu Quin, contendo o riso. — Por acaso,
me viu trapaceando?
— Claro que não. Você é bom demais para ser pego em flagrante. Mas sei que perdeu a fim de
assumir todas as tarefas matinais do dia de natal, como mais um presente para todas nós. Deixou-nos
ganhar.
— Um cavalheiro jamais rouba no jogo — afirmou ele, com um sorriso sedutor.
Naquele instante, as meninas retornaram e Jen, sem a menor cerimônia, acomodou-se no colo
de Quin. Becky encostou-se nas pernas da mãe e Luella voltou a sua cadeira de balanço. Aquecidas
pelas chamas da lareira, com uma bandeja cheia de canecas com leite quente e um enorme prato de
biscoitos, elas podiam ouvir o vento que uivava do lado de fora da cabana, sem sentir medo.
— Mamãe! Conte-nos como eram os natais antes da guerra — pediu Jen.
Quin estremeceu ao pensar nos milhares de pessoas que tomavam a guerra como um marco de
referência. Antes da tragédia… Depois da derrocada…
— Todos os amigos vinham para o nosso jantar de natal, mesmo se morassem muito longe. O
general Lee era um dos que nunca perdiam essa festa. E era preciso preparar tanta comida! Matávamos
gansos, patos, carneiros e novilhos. Ethan caçava perdizes, codornas e faisões. O governador sempre
enviava vários leitões para serem assados em nossa cozinha que se tornou famosa por sua excelência. E
a mesa de doces…
— Eu quase consigo lembrar — murmurou Becky.
— E eu estava lá? — perguntou Jen.
— Mas é claro! Seu pai se orgulhava muito de você, que não passava de um lindo bebê, e a
mostrava a todos os convidados. Estava sempre perto das crianças, cuidando para que se divertissem
sem correr risco algum. E à meia-noite, chegava o Papai Noel com os presentes.
— Agora vem a melhor parte — suspirou Becky.
— Eu já não sei mais. — Jen acomodou-se melhor no colo de Quin. — Acho que este foi o
melhor de todos os natais!
Por alguns instantes, todos permaneceram em silêncio.

105
— Você tem razão, Jennifer — disse Cassie, finalmente. — Este foi um natal maravilhoso e
podemos nos considerar abençoadas. Nossa cabana é quente e segura, não nos falta comida e, acima de
tudo, somos uma família unida e amorosa.
— Não se esqueça do Sr. McAllister — interferiu Jen, apesar de sonolenta.
— Sem dúvida. Nós temos muito para agradecer ao sr. McAllister.
— Lembra-se das canções que cantávamos, Cassie? — perguntou subitamente Luella.
— Sim.
— Então, cante conosco, Becky.
Com a voz pura e cristalina, Becky acompanhou a mãe e a avó e foram cantando todas as
canções que celebravam a vinda do Salvador.
Quando as canções terminaram, Cassie viu que a filha mais nova, embora lutasse para continuar
acordada, mal podia manter os olhos abertos. Ela levantou-se para conduzir Jen para o quarto, mas foi
impedida por Quin.
— Deixe que eu a carregarei para a cama.
Quando ele retornou, Luella e Becky agradeceram novamente os presentes e também se
retiraram.
Quin estava preparando a lareira para que o fogo perdurasse pelo resto da noite, quando viu que
Cassie voltara para a sala.
— No que você pensa quando fica com o olhar perdido nas chamas da lareira? — perguntou
ela, lutando contra a timidez.
Como Quin não lhe respondia, Cassie criou coragem para insistir.
— Nunca fala sobre sua família ou sobre sua vida antes da guerra. Subitamente percebendo o
quanto fora intrometida, Cassie atravessou a sala e pousou a mão no braço de Quin.
— Desculpe-me. Eu não tinha o direito…
Ela sentiu que Quin se enrijecera ao seu toque e a expressão em seu rosto másculo era quase
ameaçadora.
— Boa noite, madame. — Ele afastou-se, rompendo o leve contato da mão de Cassie em seu
braço. — Decidi trabalhar um pouco na mina.
— Mas é tão tarde!
Cassie sentiu-se indefesa diante da incompreensível fúria de Quin. Fora impulsiva demais com
suas perguntas indiscretas e ele se transformara em um estranho frio e indiferente.
— Já passa da meia-noite. Depois de um dia tão longo e trabalhoso, não pode pensar em voltar
para a mina.
— Não estou com sono. Além disso, preciso de exercício para digerir tudo o que eu comi. —
Quin vestiu o casaco, sem olhar mais para Cassie. — Boa noite, madame. E feliz natal…
— Obrigada. Feliz…
Antes que Cassie terminasse de falar, Quin já havia erguido o alçapão e desaparecido, como se o
chão realmente o tivesse tragado.
Quin colocou o lampião numa saliência da rocha e, retirando o casaco, enrolou as mangas da
camisa. Ele manejava a picareta com eficiência, mas cada movimento seu representava a necessidade de
se esgotar através de um trabalho físico. Talvez assim, apagasse de sua mente a imagem de uma menina
adormecida em seus braços e da bela mulher ao seu lado.
Ele trabalhou, sem se conceder um minuto de descanso, até sentir que seus músculos já não
mais o obedeciam. Felizmente, isso só aconteceu depois de ter aumentado a estreita abertura até que
permitisse a passagem de um homem com um carrinho de mão.
Satisfeito com o que conseguira em poucas horas, largou a picareta e virou-se para apanhar o
lampião.
Então, ele a viu, parada à entrada do túnel. Com um leve xale sobre o vestido de seda rosa,
Cassie o encarava, com a expressão temerosa de uma gazela prestes a fugir diante de um simples gesto
brusco.
— Pensei que já estivesse dormindo há muito tempo — murmurou ele, sentindo a voz pouco
firme.

106
— Eu perdi o sono. — Ela umedeceu os lábios ressecados e deu mais um passo, hesitante e
tímida. — Não me conformava por não ter agradecido como devia pelo meu presente e por tudo mais
que você vem dando a nós…
Criando coragem, Cassie tocou-lhe o braço, mas Quin afastou-se bruscamente.
— Vocês me agradeceram até demais. Vá dormir. Este não é o lugar ideal para alguém com um
vestido tão claro e delicado.
Cassie não pretendia ser ignorada depois de ter lutado muito para criar a coragem necessária.
Erguendo o queixo, voltou a segurá-lo pelo braço.
— O que aconteceu? O que fiz para lhe aborrecer tanto?
— Você não fez nada.
— Pois não sairei daqui enquanto não me disser o que há de errado. Quin aproximou seu rosto
do dela, esforçando-se por falar com dureza e indiferença.
— O que há de errado? Quer mesmo saber? Pois a senhora está sedutora demais com esse
vestido e é esse o grande problema. Acho melhor desistir dessa conversa sem sentido, antes que eu o
tire e a tome nos braços, sem pensar em mais nada além da minha ânsia de possuí-la. Fui honesto o
bastante para sue gosto, Sra. Montgomery?
Ignorando a expressão chocada de Cassie, ele a empurrou na direção da saída do túnel.
— Vá logo embora e se esconda em seu quarto ou… Cometerei um ato imperdoável… Do
qual ambos nos arrependeremos.
Sem esperar pela reação dela, Quin apanhou novamente a picareta e entrou na enorme caverna.
Se trabalhasse a noite toda, teria amostras suficientes para encher uma carroça e pretendia atingir esse
objetivo.
— Agora eu entendi…
A voz suave e ofegante descontrolou Quin. Cassie estava brincando com fogo e ia se
arrepender.
— Você me deseja, Quin. E tem medo de me magoar de alguma forma que escapa ao meu
entendimento.
— Por Deus, mulher! Vá embora, deixe-me em paz… Antes que seja tarde demais!
Ela deixou cair o xale, que flutuou até pousar no chão da caverna.
— Você não entende, Quin? Já é tarde demais.
Cerrando os punhos, ele usou toda a sua determinação para não ceder.
— Maldição! Você está confundindo amor com uma simples gratidão.
— Não sou uma pessoa dada a confundir emoções e sei que não estou sentindo nenhuma
gratidão.
Ele ainda resistia.
— Mas também não é amor. Uma mulher como você… Não pode ter esse tipo de sentimento
por um homem como eu.
— Só eu tenho o direito de julgar meus sentimentos.
— Acabarei magoando você, Cassie.
Num gesto de irresistível ternura, ela o abraçou, apoiando o rosto no peito amplo de Quin.
— Oh, não. Você jamais me magoaria.
As suas palavras ainda ecoavam no ar e Cassie admitiu que Quin seria o único homem capaz de
magoá-la… Se realmente lhe entregasse seu coração. Entretanto, aquela era uma noite especial e
recusava-se a pensar no futuro. Queria apenas sentir…
— Por que não me abraça, Quin?
— Se eu der esse passo, não a soltarei mais de meus braços. E, quando chegar o dia de amanhã,
nada mais será como antes.
— Eu sei e é isso que quero.
Quando Cassie ficou na ponta dos pés e encostou seus lábios nos de Quin, ele soube que havia
perdido. Os seus braços a envolveram quase com violência e o beijo exigiu uma entrega total e
imediata.

107
O isolamento da caverna transformava-os em amantes sem limitações de tempo. As bocas se
buscavam, saboreando o prazer que se intensificava, e o prolongavam, adiando o momento de
realizarem o desejo contido.
Ele beijou o rosto e os cabelos de Cassie, ansioso por demonstrar o quanto a considerava
preciosa e frágil.
— Ah, Cassie. Tem idéia de quanto é doce e sedutora? Entretanto, ainda há tempo de mudar de
idéia.
Na verdade, Quin não suportava pensar que ela pudesse desistir.
— Eu já lhe dei minha resposta, Quin.
— Mas sabe que não posso lhe fazer nenhuma promessa?
— Não lhe pedirei para me prometer nada.
Apesar da voz firme, Quin percebeu o quanto aquelas palavras haviam custado a Cassie. Sabia
que ela lhe oferecia algo precioso demais, um tesouro raro e encontrado apenas pelos privilegiados pelo
destino.
Do teto muito alto, vinha apenas o murmurar do vento que rugia do lado de fora de seu
refúgio. Na caverna, o silêncio era apenas rompido pelos suspiros e gemidos de paixão. A luz do
lampião os banhava com sua luz cor de âmbar, criando sombras mágicas em torno de seus corpos
unidos.
Não havia mais nada além daquele momento. O tempo parará de seguir seu curso e não existia
mais o passado nem o futuro.
Finalmente, Quin sentiu que Cassie se entregava sem medo aos seus beijos. Conquistara a
confiança daquela mulher que parecia tremer como uma virgem em seus braços. Agora podiam dar
mais um passo, juntos.
Com gestos lentos e pacientes, ele abriu os delicados botões do vestido até que a seda
escorregou sobre a pele nua e caiu ao chão. Um singelo corpete de algodão ainda encobria a perfeição
do corpo cujas curvas o enlouqueciam de desejo.
As mãos de Quin já haviam perdido a firmeza e tremiam quando ele desfez o laço do corpete,
afastando a última barreira que o impedia de admirar a nudez de Cassie.
Ele não teve a mesma paciência para se livrar das próprias roupas. O desejo crescia demais e
não seria fácil contê-lo por mais tempo.
Deitando-a sobre a capa estendida no chão, Quin admitiu que a realidade podia superar a
imaginação. Desde que a vira, desejara possuí-la em uma ampla cama de dossel, entre lençóis de cetim e
sobre um colchão de plumas. Agora, quando o desejo crescia a ponto se tornar uma obsessão, a teria
sobre um cobertor rústico, em uma caverna de pedra nua.
Não havia mais necessidade de viver fantasias diante de uma realidade inebriante.
Sentindo a força do desejo de Quin, Cassie compreendeu por que ele se esforçara por resistir.
Sempre se mostrara sedutor e irreverente, para ocultar o homem primitivo em suas ânsias, um
desconhecido perigoso e irresistível que a tomaria para si.
Privados há muito tempo de prazer, ambos se entregaram a uma orgia de sensações.
Enlouquecidos pelo mesmo desejo, exigiram e retribuíram com toda a intensidade até perderam a
noção de si próprios.
Quin decidira conduzir Cassie ao delírio com exasperante lentidão, mas seu corpo já não
obedecia o mesmo ritmo de sua mente. Ela estremeceu ao sentir que as peles se tocavam e se
entreabriu, como uma flor desabrochando sob o calor ardente do sol.
Cassie existia agora através das sensações provocadas por Quin. Seu toque, seu perfume, sua
voz, sempre demonstrando mais urgência e paixão. Ele a conduziu para um mundo em que não havia
jamais estado, onde o delírio se prolongava em busca de algo ainda mais completo.
Ao mergulhar na maciez daquele corpo de mulher, Quin soube que jamais se esqueceria desse
momento perfeito. A lembrança da vibração de Cassie, enquanto ele se movia num ritmo primitivo,
buscando o êxtase, permaneceria sempre como a mais preciosa de suas recordações.
Então, seus corpos encontraram o mesmo ritmo e num mesmo movimento, alçaram vôo.
Cassie ouviu seu nome ecoar na caverna, seguido por sua própria voz, momentos antes do mundo se
desfazer em partículas de luz e calor.

108
109
DEZENOVE

Os dois permaneciam enlaçados, ouvindo as batidas de seus corações, ainda no mesmo ritmo,
voltarem ao normal. A perfeição daquele momento partilhado trouxe lágrimas aos olhos de Cassie.
Quin roçou as pálpebras delicadas com os lábios e, sentindo a umidade do pranto, ergueu o
tronco, apoiando-se no cotovelo para examinar o rosto adorado.
— Sei que mal contive o desejo, querida. Prometo ser mais gentil…
— Não seja tolo. — Ela o beijou levemente nos lábios. — São lágrimas de felicidade.
— Tem certeza? Não está arrependida?
— Estou feliz demais, Quin. Não há lugar para arrependimentos. Agora, não importava mais
que rumos tomassem suas vidas pois ela teria sempre essa lembrança de momentos de perfeição e
também um elo que jamais se romperia. Mesmo sem uma troca de promessas, não haveria lugar para
outro homem no coração de Cassie.
Sentindo uma inesperada onda de orgulho possessivo, ela admirou o homem sempre que seria
seu, mesmo quando não mais lhe pertencesse. O seu amor por Quin a manteria viva e aquecida ao
longo dos longos invernos de solidão.
Ele voltou a beijar o rosto, cujo delicadeza etérea o fazia lembrar-se de um anjo, e abraçou mais
forte, como se jamais quisesse soltá-la.
— Sinto muito, Cassie. Eu não planejei nenhuma sedução…
— Sei disso. — Ela começou a rir, suavemente. — Quem planejou… Fui eu! Na verdade, que
outra escolha me restava? De um momento para o outro, você se transformou num austero cavalheiro,
nobre e quase puritano.
— Se eu suspeitasse sequer de suas intenções pecaminosas, teria me poupado inúmeras
caminhadas na neve! — Então, o tom de Quin se tornou mais sério. — Você é muito especial, Cassie.
Sabe há quanto tempo a desejo, não?
Curiosa, ela sentou-se e sua exuberante cabeleira cobriu parte de sua nudez, como um manto de
seda rubra.
— Não sei. Conte-me…
— Desde o minuto em que a vi pela primeira vez. Você tinha um ar combativo e quase
ameaçador, apontando um rifle para o meu coração.
— Ora, Sr. McAllister — murmurou ela, imitando o indolente falar arrastado das beldades
sulinas. — Se eu soubesse, teria conseguido o que queria com você há muitos dias. Bastava usar minha
velha pistola e… Mirar seu coração.
Deliciado com o senso de humor de Cassie, Quin caiu na gargalhada.
— Sra. Montgomery… Nunca pensei que guardasse tantas surpresas atrás de sua postura de
dama recatada.
— Ainda bem que não me censura, por que… Tenho ainda algumas surpresas a revelar.
Encorajada pela sensação de poder que tinha sobre aquele homem, ela ousou tomar a iniciativa
de acariciá-lo. Queria tocar e descobrir cada centímetro do corpo másculo que a fascinara com sua
virilidade.
O riso de Quin se transformou num suspiro de intenso prazer.
— Tem alguma idéia do que está fazendo comigo?
— Espero que sim. Tive um bom professor, mas não me conformarei com apenas uma aula.
O desejo retornava com maior intensidade. Quin surpreendeu-se com a volúpia despertada por
um simples toque dos lábios ou das mãos de Cassie e soube que jamais se saciaria. Uma vida toda de
paixão não seria suficiente.
E Cassie deixou vir à tona uma sensualidade que ignorava possuir, colando seu corpo ao de
Quin, ávida por se entregar novamente ao delírio da paixão.
— As suas surpresas me seduzem — murmurou ele, penetrando-a com um movimento rápido.
Um gemido de intenso prazer escapou dos lábios de Cassie, ecoando na caverna silenciosa.
Longe do mundo, eles se transformaram no primeiro casal a descobrir a paixão e se perderam num
universo onde só existiam sensações intensas, volúpia sem barreiras e muito amor.

110
Quin examinava a perfeição de cada detalhe da mulher adormecida em seus braços. As horas
haviam passado com excessiva rapidez, enquanto eles se amavam. Cada fusão de seus corpos revelava o
desespero ávido de quem sabe que o tempo será curto demais.
Em um dos momentos de lânguido repouso, Quin comunicara a Cassie que partiria naquela
mesma manhã para Virgínia City, a capital do território, a fim de levar as amostras de minério
pessoalmente para serem analisadas.
E cada posse fora única e especial, ora devastadora em sua intensidade, ora plena da ternura de
amantes que já se conhecem há muito, talvez de outras vidas passadas.
A caverna estava úmida e fria demais. Quin sabia que Cassie repousaria melhor em sua cama na
cabana, mas nenhum dos dois sequer pensava em se afastar daquela gruta mágica que se tornara seu
santuário.
Apesar do frio, sentiam-se aquecidos pela proximidade de seus corpos e pelo amor.
Amor. Quin não saberia dizer quando o desejo apenas físico se transformara em um sentimento
mais profundo. Só tinha certeza de que era parte de sua natureza amar aquela mulher especial.
Ao abrir os olhos, Cassie sorriu para Quin, sem a menor noção do tempo e suspirou.
— Já é madrugada?
— Quase.
— É tão bom despertar nos seus braços…
— Eu estava pensando exatamente nisso e, ao ouvir as suas palavras, concluo que ambos
perdemos o juízo. Na cabana, a lareira aquece e reconforta, mas preferimos ficar nesta caverna gelada,
com um simples cobertor… Além do calor gerado por nossos corpos.
— Talvez seja mesmo uma forma de loucura mas… Percebeu a quantidade de calor gerada por nossos
corpos?
Rindo, Cassie deslizou as mãos pelo torso de Quin e se deteve ao tocar a longa cicatriz que ia
do ombro à cintura.
— O que foi isso, Quin?
— Apenas um velho ferimento.
Ela sentiu que Quin se distanciava, como acontecera na noite anterior e, mais uma vez, sentiu-
se sem armas contra aquela barreira intransponível.
— Oh, como eu odeio o que a guerra fez com você!
— Por que, amor? Você nem sabe o que passei.
Ao ouvir a palavra carinhosa nos lábios de Quin, Cassie criou coragem de insistir.
— Deve ter sido algo terrível pois sua dor é profunda demais. Machuca tanto que você nem
consegue falar sobre o assunto.
Quin a abraçou mais forte e eles permaneceram unidos e em silêncio, por um longo tempo.
Quando Cassie já se resignara a não partilhar do passado daquele homem calado e misterioso, ele
suspirou, começando a falar num tom de voz que refletia uma intensa angústia.
— Você tem o direito de saber, Cassie. Eu e Ethan tínhamos muito em comum, talvez por
nossas origens parecidas. Eu era o filho único de um fazendeiro rico, com terras a perder de vista.
Adorava e era idolatrado por duas irmãs menores… E quando me lembro desse tempo perdido no
passado, percebo o quanto era jovem, imaturo e inconsciente. Achava que todo o mundo
compartilhava as mesmas características de minha família, com a mesma sinceridade aberta, o mesmo
amor infinito e uma generosidade sem limites.
Cassie notou uma mudança sensível no tom de voz de Quin.
— Quando fui escolhido por uma jovem de excepcional beleza, desejada por todos mas que
demonstrava me amar loucamente, fiquei lisonjeado. Em poucos meses, estava casado e com um filho a
caminho.
A revelação chocou Cassie que forçou-se a não fazer nenhum comentário. Temia que Quin
voltasse a se refugiar atrás de sua muralha de silêncio.
— Deveria ser o período mais feliz de nossas vidas, mas a realidade se tornou muito clara em
pouco tempo. Ela não me amava. Na verdade, era incapaz de amar! Casara-se com um homem rico
porque seu pai tinha enormes dívidas de jogo e, depois que eu as paguei, ela se tornou mais distante,

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fria e com crises sempre crescentes de nostalgia e depressão. Quando nossa linda filha nasceu, o nosso
casamento já não existia. E ela jamais demonstrou sequer interesse pelo bebê.
Pensando em suas filhas e no amor infinito que sentia por elas, Cassie teve pena de Quin. Sem
perceber, acariciou-lhe o rosto, num gesto de conforto.
— Então, veio a guerra e vi um modo de escapar da minha infelicidade pessoal. Admito que só
pensei em me lançar em uma aventura, decerto breve e certamente divertida. Não me preocupei com os
ideais que haviam provocado a secessão de nosso país, colocando irmão contra irmão. Eu só queria
participar de toda a excitação reinante, que existiu no início apenas. Deixando minha esposa e minha
filha aos cuidados de meus pais, aceitei uma missão que ninguém mais queria, para ser correio entre o
general Lee e o general Longstreet. Passei a cruzar, com excessiva freqüência, o território inimigo.
— Deve ter sido aterrorizante — murmurou Cassie, repousando a cabeça no ombro de Quin.
— Não o foi, no início. Eu continuava achando que tudo não passava de um excitante desafio e
satisfazia minha necessidade de correr grandes riscos. Mas as batalhas se prolongaram e pude
testemunhar o resultado dos combates sangrentos. A euforia da aventura foi substituída por um horror
chocado. Vi jovens despedaçados, sem pernas, braços e rasgados ao meio. Subitamente, fui capturado e
tive de passar os últimos anos da guerra em um campo de prisioneiros.
— Onde encontrou Ethan…
— Exatamente.
Quin ficou em silêncio por um longo tempo e Cassie percebeu que ele revivia cada trágico
minuto de seu passado.
— No campo, descobri que meu talento nas cartas poderia ser útil para conseguir mais comida,
agasalhos, remédios e tudo que precisávamos desesperadamente a fim de sobreviver naquele local
sórdido. A não ser por alguns incidentes… Fatais, o tratamento chegava a ser tolerável.
Ele suspirou, como se a angústia crescesse em vez de diminuir.
— Lembro-me de estar voltando para casa, certo de que conseguiria apagar as recordações
dessa guerra maldita. Então, cheguei a Atlanta… E todos a quem eu amava e tudo que me pertencia
havia deixado de existir. Alguns me contaram que minha família fora morta pelos bandos de desertores
do sul ou pelos invasores do norte. Mas outros murmuravam que uma mulher enlouquecida os matara
com suas próprias mãos.
Cassie lutou contra uma súbita onda de náuseas.
— Está dizendo que… Sua esposa matou toda a sua família?
— Eu jamais saberei. Se foi assim, a morte deles mancha as minhas mãos com seu sangue.
Meus pais, minhas irmãs, minha linda filha… Todos morreram por culpa de minha arrogância.
— Você não pode assumir essa culpa! — exclamou Cassie, sentan¬do-se para encará-lo de
frente. — O que poderia ter feito para impedir?
— Oh, Cassie! Será que não entende? Não fui para a guerra por motivos nobres. Só queria fugir
de um casamento infeliz e abandonei ao sofrimento todos os membros da minha família. Se eu
estivesse com eles…
— Nunca poderia estar. Você se apresentou como voluntário, mas seria convocado mais tarde.
— Ela o tocou com carinho. — Não se culpe pela morte deles, Quin. Todos, inclusive Ethan, foram
vítimas da guerra.
Embora sentisse seus lábios tremerem, Cassie forçou-se a prosseguir.
— Ethan também se sentiu culpado ao retornar. Não se conformava pelo que havíamos sofrido
durante sua ausência. Creia em mim! Ele se torturava por termos ficado sem a sua proteção e… Eu
pensei que essa reação exagerada fosse apenas o efeito da guerra e da febre. Só mais tarde percebi que
era uma doença da alma. Apesar de muito fraco fisicamente, ainda insistia em nos defender. Meu
marido acreditava, sem a menor sombra de dúvida, que continuaria a nos proteger mesmo depois de
sua morte.
Ela beijou o rosto de Quin, com toda a suavidade.
— Foi essa preocupação obsessiva que realmente o matou e não a febre contraída durante a
guerra. Eu vi o mesmo olhar alucinado nos olhos dele e nos seus. Para livrar-se desses pesadelos, tem
que perdoar a si mesmo, Quin.

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— E como esquecer que falhei diante de todos? Que não mereci a confiança depositada em
mim?
— A responsabilidade não foi sua. A morte ou a vida de seus entes queridos dependia de um
poder mais alto. Aceite e acredite que estão em paz, sem os nossos terrores e sofrimentos.
Comovido, Quin a beijou e, subitamente, seus lábios se tornaram ávidos; como se precisassem
esquecer a dor e a angústia do passado através de uma carícia.
Logo o beijo se transformou em uma onda de desejo quase sombrio, violento e sem limites.
Os dois atingiram o êxtase juntos, numa explosão de pura emoção. E, no mesmo instante, os
primeiros raios da aurora nascente, se filtraram através das rochas da caverna, iluminando os corpos
que partilhavam a mesma dor do passado e buscavam a felicidade do futuro.
— Seja franco — pediu Cassie, repousando nos braços de Quin. — Ethan realmente falava
sobre mim?
— Ele não falava de mais nada. Você era sua razão de viver. Subitamente, Quin se deu conta de
que Cassie se tornara sua razão de viver. As conversas de Ethan sobre a esposa e as filhas tinham sido o
motivo de ambos manterem a sanidade mental naquele campo infernal. E agora, percebia que se
apaixonara por ela há anos.
Essa mulher magnífica se entregara a ele, sem falsos pudores, e lhe dera o maior de todos os
prazeres. Como se não bastasse, o ajudara a entender melhor as dores do passado e encontrar a paz.
Então, ele viu que os raios de luz tinham se tornado mais fortes e estremeceu.
— E hora de ir, Cassie.
— Já? — Ela começou a vestir-se, rapidamente. — Não suporto pensar que você passará o dia
de natal debaixo da neve, viajando para tão longe!
— Tente não pensar no assunto. Lembre-se apenas que, quando eu estiver chegando em
Virgínia City, o natal terá terminado e, tão logo abra o escritório do avaliador, saberei a resposta e
voltarei para casa.
Voltar para casa… Cassie não sabia se Quin se apercebera de quanto revelara com aquelas
palavras banais.

Cassie entregou um pacote com carne seca e biscoitos a Quin, que o guardou em sua mochila.
Então, ele se despediu, abraçando as duas meninas, beijando a mão de Luella e simplesmente tocando o
rosto de Cassie com a ponta dos dedos.
O gesto alarmou Luella que pressentiu algo diferente no comportamento dos dois. Recuando,
observou-os ao se encaminharem para a porta e sentiu um choque diante da revelação. Não havia como
ignorar que seus corpos se buscavam, mesmo mantendo distância.
Eles tinham se tornado amantes.
Embora angustiada e tensa, Luella entendia o que acontecera. Duas criaturas solitárias, jovens e
cheias de vigor sensual. Ambas ansiando por contatos físicos, paixão e ternura. Ela também não sentira
as mesmas emoções? E por ter vivido essa penosa experiência, rezava para que o destino da filha fosse
diferente do seu. Sabia o quanto pode acontecer com uma mulher, tola e impulsiva o bastante para
permitir que a paixão supere o bom senso.
— Esperem pela minha chegada amanhã — disse Quin, saltando sobre o cavalo. — Ao
anoitecer.
— Mas é impossível vir de Virgínia City até aqui em apenas um dia — protestou Cassie. — A
não ser que não durma…
— Amanhã, ao cair da noite — repetiu ele, acenando um adeus. — Cuidem-se enquanto estou
longe… Até breve.
Cavalo e cavaleiro desapareceram sob a neve espessa que continuava a cair. Todas entraram na
cabana, menos Cassie, que permaneceu na varanda fria, com a cabeça erguida.
Pela janela, Luella viu quando os ombros da filha se curvaram e ela cedeu ao pranto.
O solo estava escorregadio demais e Cutter escolhia onde pisar, diminuindo a velocidade da
marcha.
Quin inclinou-se sobre o pescoço do cavalo, murmurando palavras de encorajamento enquanto
subiam a última colina. Apesar da exaustão e do frio cortante, ele não conteve um riso alto de alegria ao

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avistar os contornos, ainda distantes, da cabana de Cassie. Feliz, tocou o envelope com o relatório do
analista em seu bolso e decidiu que as convenceria a celebrar o natal por mais um dia. Quem sabe, pelo
resto dá vida!
Ao iniciarem a longa descida da colina, Quin sentiu o costumeiro calafrio que o alertava do
perigo. O que haveria de errado na cena diante de seus olhos?
A cabana estava sem luzes acesas, mas já era tarde. Luella e as meninas dormiam mais cedo e já
teriam se retirado para o quarto. Ele imaginara que Cassie manteria um lampião à sua espera, mas…
A sensação de angústia aumentou à medida que se aproximava da cabana. Não se tratava apenas
da falta de qualquer iluminação. Não saia nenhum fio de fumaça da chaminé!
O cavalo, sentindo a urgência do cavaleiro, disparou num galope desenfreado. Ao se acercarem
do estábulo, o coração de Quin quase parou de bater ao avistar um vulto caído sobre a neve.
— Cassie! Meu Deus…
Ele se calou ao se ajoelhar junto do corpo caído. Era o belo filho do chefe dos Crow. Uma
onda de fúria o envolveu ao pensar que aquele jovem em pleno vigor fora morto para defender algo
que não lhe pertencia. Lembrou-se da guerra, do desperdício de vidas e sua cólera cresceu.
No caminho entre o estábulo e a cabana, ele encontrou muitos outros corpos. Examinando
cada um dos bravos índios caídos sobre a neve, Quin encontrou marcas de tiros. Havia uma trilha de
sangue até a porta da cabana.
Desesperado de medo do que iria encontrar, ele empunhou a pistola e empurrou a porta
entreaberta. O interior da cabana revelava sinais de luta, com a mesa caída, as cadeiras fora de seus
lugares e cobertores jogados pelo chão.
Então, a cabeça de Biscoito surgiu entre os cobertores onde se escondera.
— Biscoito — murmurou Quin, carregando o cãozinho que tremia de frio e medo.
Jen jamais teria se separado voluntariamente de seu adorado companheiro, mas ainda restava
uma esperança. Agasalhando o cãozinho dentro de seu casaco, Quin levantou o alçapão da mina. Havia
um lampião ainda aceso junto da escada e, com toda a cautela, ele desceu até o solo do túnel.
Como previra, não havia ninguém na caverna.
Ele voltou a subir e correu para fora da cabana, saltando sobre a sela do cavalo. Não havia
dúvidas de que teria de ir ao encontro de Cyrus Stoner e seu olhar refletia a fúria calma mas letal de
quem não perdoa uma ofensa.

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VINTE

A fúria de Quin se avolumava a cada milha percorrida. Não tinha como saber se Cassie e sua
pequena família ainda estavam vivas e também não formulara nem um plano de resgate. Só havia uma
certeza. Cyrus Stoner pagaria com a vida se alguma delas fosse ferida de alguma forma.
Em toda a sua vida, Qüin nunca chegara realmente a sentir tanto medo quanto seus
companheiros e só agora descobria a intensidade do pânico. Temia por Cassie, por Luella e pelas duas
meninas, tão jovens e doces. Como um jogador, sempre vivera obedecendo aos impulsos e aceitara
derrotas e vitórias com a mesma naturalidade. Agora, lembrando-se da profunda fé religiosa de Ethan,
começou a rezar, pedindo a Deus que lhe desse tempo de chegar antes de uma tragédia.
Antes de cruzar os limites das terras de Stoner, Quin avistou a silhueta de inúmeras sentinelas
recortadas de encontro à neve. Mantendo-se na parte alta do terreno, onde a floresta mais densa lhe
fornecia a proteção das sombras, ele seguiu sem ser visto.
Sempre buscando a sombra, rodeou o celeiro e o alojamento dos vaqueiros, até chegar junto da
casa principal. Deixando Cutter bem escondido entre as árvores e agasalhando o cãozinho dentro do
casaco que prendeu na sela, continuou a avançar na direção da casa, agora a pé e se esgueirando sem
qualquer ruído.
Colado à parede da casa, Quin olhava em cada uma das janelas e logo se alarmou com a falta de
movimento em seu interior. A cozinha estava escura e só uma sala parecia iluminada. Aproximando-se
silenciosamente, viu que era o escritório de Stoner. Através da cortina entreaberta, avistou Cassie e
Luella, amarradas e amordaçadas em cadeiras perto da lareira.
Pela primeira vez nas últimas horas, Quin sentiu que voltava a respirar normalmente. Elas
estavam vivas! Ainda restava a esperança de salvá-las sem que ocorresse nenhuma tragédia.
Então, ele olhou para os outros pontos da sala e avistou Stoner, sentado atrás de uma enorme
escrivaninha, arrumando seus papéis, como se nada estivesse fora de sua rotina.
Quin continuou a dar a volta na casa, preocupado por encontrar apenas salas vazias e escuras.
Onde estavam as meninas? Recuando até uma moita mais distante da parede, ergueu a cabeça e notou
uma vaga luminosidade vinda de um quarto no andar superior.
Prendendo melhor o rifle no ombro, ele pendurou-se nas colunas do terraço do andar de cima
e, silencioso como um felino, avançou até o único quarto iluminado. Jen e Becky estavam sobre uma
cama, com os pés e as mãos amarradas.
Ao abrir a janela, o vento levantou as cortinas e as meninas soltaram um grito de pavor.
Avançando com maior rapidez, ele lhes fez um sinal e ambas se calaram imediatamente. Em poucos
minutos, soltou as duas que o abraçaram, apavoradas.
— O Sr. Stoner pegou mamãe e vovó — choramingou Becky.
— Eu sei e logo Cuidarei delas. Antes, preciso ter certeza de que vocês duas estarão em
segurança.
— Por que não podemos ficar com você? — pediu Jen.
— Porque Cyrus Stoner não se entregará sem luta e não quero que vocês duas fiquem na linha
de fogo. — Ele as conduziu até o terraço que rodeava todo o andar superior da casa. — Cutter e
Biscoito estão escondidos entre aquelas árvores.
As duas meninas olharam na direção indicada por Quin e viram apenas as sombras das árvores
se movendo ao vento. Embora estivessem nitidamente apavoradas, não emitiram um único som de
protesto.
— Quero que fiquem junto de Cutter, não importa o que ouçam, entenderam? — Ele entregou
o rifle nas mãos de Becky. — Sei como se sente em relação a armas, querida, mas se algum dos homens
de Stoner se aproximar de vocês, lembre-se do que eu lhe disse um dia. Faça o que tem de ser feito.
A menina mais velha deu a mão para a irmã caçula e concordou com um gesto de cabeça. Quin
esperou até que as duas descessem pelo pilar do terraço e alcançassem a proteção das árvores onde
deixara Cutter. Só então, saiu do quarto e se encaminhou para a escada.

115
Cassie ainda continuava atordoada com os acontecimentos das últimas horas. Inicialmente, ao
ver Stoner se aproximar de sua cabana, acreditara que conseguiria lidar com ele como o fizera até então.
Afinal, sempre tivera condições de mantê-lo a distância com seu rifle em riste e palavras austeras.
Desta vez porém, ele viera acompanhado por um verdadeiro exército que cercara a cabana.
Embora ela e todas as mulheres de sua família tivessem lutado com desespero e até o limite de suas
forças, haviam sido dominadas pela violência dos homens de Stoner.
Os índios Crow, que como sempre vigiavam e protegiam seus novos amigos, tinham lutado
corajosamente para defendê-las. Superados em número, haviam sido massacrados e Cassie jamais
conseguiria apagar da mente o morticínio pelo qual se culparia pelo resto da vida.
O percurso até a fazenda de Stoner fora um pesadelo confuso. Ouvira a voz de Luella,
protestando com raiva e indignação, ao ser colocada sobre uma sela. Ouvira o choro das meninas
quando foram jogadas em uma carroça. Esperto como uma raposa, Stoner as separara a fim de impedir
que se confortassem mutuamente ou elaborassem um plano de fuga.
Ela tivera de suportar a humilhação de fazer o longo percurso através das planícies congeladas
com os braços de Stoner em tomo de sua cintura. E o pior fora ouvir, repetidamente, que ele
conseguira o que desejava!
Agora, estavam no escritório e Cyrus as fitava com um olhar de confiança suprema.
— Não acha que estamos bem aconchegados, Sra. Montgomery? Vendo o brilho de raiva nos
olhos de Cassie, ele deu uma gargalhada.
— Que situação irônica e divertida! Quando penso por quanto tempo me enganou, mentindo
para mim ao esconder a verdade sobre a morte de seu marido, acredito que este é o meu momento… A
hora doce da vingança.
Cassie fechou os olhos, tentando dominar a onda de pânico que ameaçava cortar-lhe a
respiração. Quando se lembrava dos momentos de suprema felicidade da noite anterior, sentia vontade
de chorar. Há menos de vinte e quatro horas, acreditara ter alcançado tudo o que sempre desejara. O
amor de Quin, segurança para sua família e talvez até a realização do sonho de Ethan.
Como podia estar agora no mais profundo dos desesperos? Ela lutou contra o terror que
habitava os recessos menos conhecidos de sua mente. Todo o trabalho exaustivo, todos os sacrifícios
tinham sido em vão. O sonho querido de Ethan caíra nas mãos de um monstro.
Quin ouviu a gargalhada de Stoner e seu dedo quase apertou o gatilho. Ao pensar naquele
miserável tocando Cassie, sentia uma raiva cega que acabaria impedindo-o de agir racionalmente.
Tinha planejado mover-se com toda a cautela, esperar escondido até se certificar de que não
havia nenhum homem de guarda dentro da casa. O som da voz de Stoner mudara seus planos e, sem se
preocupar com a própria segurança, colocou o ombro na porta e invadiu o escritório.
Cyrus começou a se levantar da cadeira mas, ao ver a pistola de Quin apontando para sua
cabeça, voltou a sentar-se.
Por uma fração de segundo, Quin pressentiu algo de muito errado. O sorriso de Stoner não
desaparecera de seus lábios cruéis. Na verdade, até se ampliara!
Entretanto, a sua preocupação era com Cassie e Luella e voltou-se para certificar-se de que não
tinham sido machucadas. Embora não pudessem emitir um som, elas o fitavam com olhares alarmados,
como se o quisessem alertar.
Ao virar-se novamente para Stoner, percebeu que realmente cometera um grave erro.
Uma voz dura soou às suas costas, vinda da porta.
— Largue a arma, McAllister.
Ele se virou rapidamente e viu-se diante de meia dúzia de homens, os pistoleiros de Cyrus
Stoner. Todos tinham as armas apontadas na sua direção.
— Seja bem vindo à pequena armadilha que lhe preparamos, McAllister — zombou Stoner. —
Como pode perceber, esperávamos por você.
Quin sentiu a coronha de um rifle atingir sua cabeça e, titubeando, caiu de joelhos, ainda sem
largar a arma. Ouviu um gemido de terror e reconhecendo a voz de Cassie, lutou para não perder a
consciência. Precisava chegar até ela, protegê-la de toda a violência desses homens. Antes que pudesse
se mover, recebeu um segundo golpe e foi envolvido por uma dor violenta que o arrastou para um
poço profundo e escuro.

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— Façam o que for preciso!
A voz de Stoner parecia vir de algum lugar muito distante.
— Quero que ele esteja acordado para ser testemunha de tudo!
O cheiro forte do uísque penetrou através da barreira de incompreensão que envolvia Quin.
Alguém o forçava a beber e, depois de engasgar e tossir, ele acabou engolindo a bebida forte. Aos
poucos, foi voltando a si e se deu conta da intensidade da dor em sua cabeça.
— Ele está acordando!
Quin abriu os olhos e ficou tonto com as luzes, muito fortes e que pareciam dançar ao seu
redor. Depois de piscar várias vezes, firmou a visão e percebeu que estava amarrado em uma cadeira. A
tira de couro que prendia seus pulsos fora atada com tal força que já cortara sua pele. Ainda assim, ele
tentava rompê-las e seus movimentos provocaram um sorriso satisfeito de Stoner.
— Ah! Estou vendo que você realmente voltou a si.
Alguém empurrou sua cabeça de forma que pudesse ver Cassie, agora em pé e ao lado da
escrivaninha de Stoner.
— Agora, Sra. Montgomery — Cyrus Stoner tinha um sorriso de vitória nos lábios cruéis —
libertarei toda a sua família, assim que assinar o acordo de venda de sua propriedade para mim.
— Também libertará Quin? — Apesar de ainda estar com as mãos amarradas nas costas, a
atitude de Cassie não revelava o menor sinal de derrota ou medo. Seus olhos brilhavam, desafiantes e
combativos.
— O que é o Sr. McAllister além de um pistoleiro contratado? — zombou Stoner, fingindo-se
de desinteressado. — Ao assinar este papel, nunca mais precisará da proteção das armas dele.
— Não assinarei enquanto não concordar em libertá-lo junto com minha família.
— A senhora é um osso duro de roer quando faz negócios, não? — O sorriso de Stoner mais
parecia um esgar de raiva. — Já que insiste, Sra. Montgomery…
— Não concorde, Cassie. — Quin esforçava-se para falar com clareza pois seus lábios partidos
e inchados tornavam sua voz em um estranho grunhido. — Se o fizer, estará assinando sua sentença de
morte. Stoner não pode se permitir o luxo de deixar vivo qualquer um de nós.
— E por que eu mancharia minhas mãos com o sangue de vocês? — perguntou Stoner, num
tom de voz paciente e calmo. — Só quero as terras.
Mudando completamente de atitude, ele puxou Cassie para junto da escrivaninha e forçou-a a
curvar a cabeça.
— Vamos logo! Leia e depois assine. Quin procurava uma saída de urgência.
— Vá em frente, Cassie — disse ele, inesperadamente. — Não tem mesmo a menor
importância.
Stoner e Cassie se voltaram para ele, perplexos.
— Pode assinar — resmungou Quin. — Não passa de um pedaço de terra sem qualquer valor.
Não merece o tempo perdido em trabalhar nela. Você desperdiçou suas forças…
— Sem valor? O que quer dizer com isso? — bradou Stoner, enfurecido. — É mais uma de
suas brincadeiras idiotas?
— Veja com seus próprios olhos. — Quin sabia que capturara a atenção total de Stoner. — O
relatório do avaliador está em meu bolso.
Cyrus cruzou a sala e começou a remexer nos bolsos de seu prisioneiro até encontrar o papel.
Quando estava prestes a retirá-lo, Quin ergueu o joelho e acertou Stoner no meio das pernas.
A pancada foi tão violenta que Stoner caiu, rolando e gritando de dor. Imediatamente, os
pistoleiros apontaram suas armas para a cabeça de Quin, esperando uma ordem para apertarem os
gatilhos.
— Não — balbuciou Stoner, ainda se retorcendo de dor. — Não o matem ainda por que… Eu
quero ter esse prazer.
Finalmente, Stoner conseguiu se arrastar até a cadeira da escrivaninha e sentou-se pára ler o
documento que arrancara do bolso de Quin. Quando terminou, sua expressão refletia o mais alto grau
de ganância.
— Bastardo mentiroso! Eu tinha certeza que estava mentindo!
— E por quê? — perguntou Quin, sem saber por que motivo seria bom ganhar tempo.

117
— Todos ridicularizavam um velho louco que gastara a maior parte de sua vida abrindo túneis
na rocha nua da montanha, procurando por um tesouro inexistente. Embora eu e meus homens
tivéssemos explorado cada centímetro de terreno, buscando a entrada dessa mina tão falada, nada
encontramos e deduzi que tudo não passava de uma lenda. Então, a família Montgomery se mudou
para a região, vindo da distante Atlanta, para se estabelecer justamente no mesmo lugar. Achei melhor
esperar e ver se existia mesmo algo de verdadeiro naquela história antiga.
Um sorriso diabólico se formou nos lábios de Stoner quando ele ergueu o papel do relatório.
— Aqui está a confirmação. E prata pura! A mais pura jamais testado pelos avaliadores de
Virgínia City!
— Então, é verdade, Quin? — Cassie o fitava, com lágrimas nos olhos. — O tesouro de Ethan
não era apenas uma fantasia insensata?
— O sonho dele era real.
Quin se enfurecia ao lembrar da euforia com que se afastara de Virgínia City para voltar à
cabana. Imaginar a alegria de Cassie e de toda a família o impelia a galopar com a velocidade do vento.
Agora, daria tudo para ter recebido um relatório negativo, afirmando que as amostras não passavam de
pedras sem valor algum. A fortuna pela qual haviam trabalhado e lutado tanto, seria sua sentença de
morte.
— E no momento em que passar para as mãos de Stoner — prosseguiu Quin, com uma
expressão sombria — nossos destinos serão selados… Com a morte.
— Está se metendo em um assunto que não é da sua conta, McAllister. — Abrindo uma gaveta
da escrivaninha, Stoner retirou uma pasta. — Recebi uma enorme quantidade de informações a seu
respeito e todas insistem que você não tinha rival em sua especialidade durante a guerra. Era o herói
que levava informações secretas através do território inimigo.
— Como soube disso?
— Ah! Eu sempre procuro descobrir o mais possível sobre as pessoas que possam me
apresentar algum perigo e, com dinheiro, chovem in¬formações. Seu apelido era Jogador e dizem que
assumia qualquer risco, sem medo. O general Lee afirmava que você seria capaz de enganar o próprio
satanás, se o encontrasse em seu caminho. Então, em Gettysburg, encontrou alguém à altura de seu
talento, foi superado e afastado da ação para passar o resto da guerra num campo de prisioneiros.
Os olhos de Quin se estreitaram e Stoner sentiu que acertara o ponto mais sensível.
— Corre um rumor de que matou um guarda no campo, McAllister. Nunca se conseguiram
provas, mas eu não preciso delas. Por uma dessas incríveis coincidências, eu conhecia o homem
assassinado e, apenas por esta noite, vamos fingir que a guerra não acabou. Vou sentir o enorme prazer
de executar um soldado rebelde!
Quin ficou ligeiramente mais aliviado. Ele pouco se importava com a própria existência e se
preparara para morrer, centenas de vezes durante a guerra. Se pudesse trocar a sua vida pela de Cassie,
morreria feliz.
— Está bem. Se ainda deseja executar confederados, encontrou o homem certo. Entretanto,
não há a menor necessidade de matar as mulheres. A mina de prata o transformará no homem mais
rico de Montana e talvez de todo o país. Dê algum dinheiro para Cassie, deixe-a ir embora com a
família e garanto-lhe que nunca mais ouvirá falar delas. .
— Ah! Agora ela é Cassie? A Sra. Montgomery já se transformou em apenas Cassie? — Stoner
deu uma gargalhada maldosa. — Sabe o que eu acho, McAllister? Você tem um caso com a bela
viuvinha!
Stoner percebeu o olhar trocado entre Cassie e Quin e sua gargalhada voltou a ecoar na sala.
— É bom demais para ser verdade! Agora eu sei como realmente atingir você, rebelde maldito!
Descobri seu ponto fraco!
Saindo de trás da escrivaninha, Stoner agarrou Cassie pelo braço, com brutalidade.
— Eu e meus homens vamos nos divertir um pouco com essa dama emproada que deve ficar
menos altiva depois de ser possuída por todos os meus pistoleiros. Quando terminarmos, adivinhe
quem será julgado o culpado de um crime tão brutal contra uma frágil mulher? Você e seus amigos
índios, é claro! Os rumores que espalhei em Prospect confirmarão a minha história e ninguém ousará
duvidar da verdade.

118
A euforia de Stoner crescia, revelando novas dimensões de sua crueldade. Ele virou-se para seus
homens, sorrindo.
— Esta noite, vamos celebrar a minha boa sorte. Teremos bebida à vontade e depois essa bela
mulher para nos dar prazer pois não há nenhuma no bordel de Lottie que chegue aos pés de dona
Cassie, uma dama acostumada a ser beijada na mão por aristocratas sulinos! Para aumentar a nossa
satisfação, forçaremos o nosso jogador a acompanhar toda a orgia e então… O mataremos. Amanhã, o
Sr. McAllister e seus amigos Crow serão odiados pelos decentes cidadãos de Prospect. Não é um plano
perfeito?
Agarrando Cassie pelos braços, ele cortou a tira de couro que lhe prendia os pulsos. Enquanto
seus homens riam e gritavam com entusiasmo e Luella chorava silenciosamente, Stoner empurrou
Cassie para o sofá e, deitando-se sobre ela, beijou-a com brutalidade.
Embora forçado a presenciar a degradação de Cassie, Quin jurou que escaparia e Cyrus Stoner
iria se arrepender de ter nascido!

119
VINTE E UM

Lutando com todas as suas forças, Cassie conseguiu livrar-se de Stoner e, correndo para longe
do sofá, esfregou a mão para limpar a boca, com uma expressão de profunda repulsa.
— Comecem a servir o uísque! — berrou Stoner. Imediatamente, um de seus homens guardou
a pistola no coldre e, apanhando a garrafa, começou a encher os copos. Depois que todos haviam sido
servidos, ele decidiu fazer um brinde.
— A minha boa fortuna! — Ele virou-se para Cassie e curvou-se numa reverência exagerada.
— Quando terminarmos de usar você, não só assinará o papel e vendendo suas terras, como me
implorará para que eu ponha um fim definitivo em seu sofrimento.
Sem conter alegria, Stoner ergueu o copo, rindo para seus homens.
— A partir de hoje, serei o dono do território de Montana. Quem se colocar em meu caminho,
terá de enfrentar o exército que pretendo formar e vocês serão os meus oficiais graduados.
Enquanto os homens esvaziavam a primeira garrafa, Quin tentava soltar a tira de couro que
prendia seus pulsos. A dor era tão intensa que o levava muito perto do desmaio, mas ele prosseguia,
sentindo o sangue escorrer em suas mãos.
De frente para Quin, Luella via sua expressão transfigurada por uma dor intensa e arrependeu-
se de tê-lo julgado tão mal. Ele seria capaz de morrer para salvá-las e, rezando, pediu que todos fossem
poupados, por algum milagre divino.
— Abram mais uma garrafa — ordenou Stoner.
Os homens se descontraíam, felizes por estar dentro de uma casa quente e não como sentinelas
sob a neve, tomando uísque e convivendo com o seu poderoso chefe.
— Venha cá, Sra. Montgomery. Chegou a hora de darmos um espetáculo para o seu herói.
Cassie não se moveu. Com os ombros eretos, a cabeça erguida e o queixo levantado numa
postura de desafio, ela não perdia a altivez nem mesmo na derradeira derrota.
— Eu disse para vir até aqui — repetiu Stoner, num tom de voz que alarmaria os homens mais
corajosos.
Ela se recusava a dar um passo.
— Acho que está na hora de aprender uma lição, dona! Nesta casa…
— Não ponha as mãos nela!
Atônitos, todos se viraram para a porta, que se abrira sem ruído, e viram Becky, com o rifle de
Quin apoiado ao ombro, apontando para Cyrus Stoner. Ao seu lado, estava Jen.
— Não esqueci o que nos disse, Sr. McAllister. — A voz trêmula de Becky revelava seu
nervosismo. — Mas sabíamos que devia estar aqui, salvando mamãe e vovó. Por isso, decidimos vir
também. Agimos certo?
— Claro que sim.
— Agora… Solte vovó e o Sr. McAllister, Jen.
Enquanto a garotinha corria através da sala, Cyrus Stoner teve um acesso de fúria.
— Vamos ser dominados por duas meninas?
— Ela está com o rifle apontado bem para a sua cabeça, chefe — avisou um dos homens.
— E daí? Duvido que tenha coragem de apertar o gatilho! — Stoner deu um passo na direção
de Becky.
— Pare! — gritou ela mas, embora se esforçasse ao máximo para demonstrar coragem, suas
mãos tremiam. — Não dê mais nem um passo!
— Eu não disse, rapazes? A menina está tremendo como varas verdes! Ele avançou mais alguns
passos. Quando começou a erguer o braço para arrancar o rifle de Becky, Quin, que fora libertado por
Jen, saltou sobre Cyrus, derrubando-o ao chão.
Aproveitando o momento de confusão, Cassie correu para junto de Becky e, retirando o rifle de
suas mãos trêmulas, o apontou para o semicírculo de homens no centro da sala.
— Se algum de vocês fizer o menor movimento para pegar a arma, ficarei mais do que feliz em
atirar. E se pensam que acabaremos vencidos porque estamos em desvantagem numérica, lembrem-se

120
que mataremos muitos antes de morrer. Acham que um homem como Cyrus Stoner merece qüe
percam a vida por ele?
Os homens se entreolharam, mas continuaram imóveis enquanto seu chefe e Quin lutavam,
rolando pelo chão da sala.
— Jennifer! — chamou Cassie, com firmeza. — Retire as armas de todos eles.
A garotinha saiu pela sala, recolhendo as pistolas que ia empilhando na escrivaninha de Stoner.
Luella e Becky empunharam dois outros rifles e se colocaram ao lado de Cassie.
Quin e Cyrus não tomavam conhecimento de nada além da fúria que crescera a ponto de
transformar a luta num combate mortal.
Então, num momento de descuido de Quin, Cyrus conseguiu retirar o punhal que guardava na
bota.
Quin já estava ferido e só a determinação de defender Cassie e sua família lhe dava forças para
prosseguir lutando. Ele acertou um golpe violento em Stoner e aproveitou para respirar, enquanto o
outro se esforçava para levantar-se do chão.
Nesse instante, todos ouviram o tropel de cavalos que se aproximava a galope. Cyrus,
subitamente satisfeito apesar da surra que levara, esperou pela chegada dos homens cujos passos já
ecoavam no corredor.
— Ainda acha que conseguirá dominar todo o restante de meus homens, McAllister?
Erguendo-se do chão com esforço, Stoner voltou-se para Cassie, sem disfarçar o ódio.
— O jogo acabou, dona. Suas armas não servirão para nada assim que o resto de meus homens
entrar nesta sala. Assine o papel ou prepare-se para morrer.
A porta se abriu com estrondo e Cyrus, sorrindo triunfalmente, empalideceu ao reconhecer o
delegado Clayton Wilson, que chegava com a pistola na mão.
Por alguns segundos, Stoner revelou uma intensa perplexidade. Depois, recuperando a voz,
decidiu assumir o papel de vítima e não de carrasco.
— Ainda bem que veio me procurar, delegado. Esse homem atacou-me dentro de minha
própria casa!
— Então… Quer que eu o prenda — afirmou o delegado, sem se mover.
— Talvez não seja necessário. Como já deve saber, não passa de um reles jogador que se
insinuou na família da Sra. Montgomery como uma doença maligna. Eu e meus homens cuidaremos
delas, evitando que sejam molestadas novamente.
O delegado olhou para Cassie e para as outras duas, empunhando seus rifles com firmeza e riu.
— Parece-me que elas sabem se cuidar muito bem sem sua ajuda. — Ele estendeu a mão para
Cassie. — Poderia me entregar sua arma, madame?
— Não, delegado. — Ela mantinha os olhos fixos em Stoner. — Esse homem matou dezenas
de índios Crow e forçou minha família a vir para a casa dele. Estamos aqui contra a nossa vontade.
— E por que ele faria algo assim, madame?
O delegado continuava a examinar cada uma das mulheres da família Montgomery, voltando
sempre a encarar Cassie.
— Ele quer que eu assine um contrato de venda da minha propriedade.
— Está me dizendo que um homem tão rico como Cyrus Stoner teria esse trabalho todo para
roubar seu pequeno pedaço de terra, madame?
— Exatamente, delegado.
— E por quê?
— Porque nós encontramos um tesouro.
— É verdade? — O delegado não disfarçou o riso incrédulo. — Talvez um pote de ouro?
— Não, senhor. Foi uma mina de prata!
O representante da lei na pequenina cidade de Prospect arqueou as sobrancelhas, numa nítida
demonstração de surpresa.
— Prata? Então, é esse o problema! — Ele virou-se para Cyrus. — Se o que esta dama acaba de
me contar é verdade, terei de levá-lo comigo para a cidade, Sr. Stoner.

121
— Com que direito me diz isso? — Ultrajado, Stoner levantou-se, endireitando os ombros e
enchendo o peito de ar. — Vai acreditar na palavra dessa mulher contra a minha? Esqueceu-se quem
foi que o contratou?
— Não, Sr. Stoner. Eu não me esqueceria, em hipótese alguma. Ainda tive a esperança,
enquanto me dirigia para sua casa, de que pudesse me dar uma explicação satisfatória para a enorme
quantidade de corpos nas proximidades da cabana da Sra. Montgomery.
— O senhor esteve lá? — perguntou Cassie, surpresa.
— Sim. Jedediah me pediu para ir.
Com um sorriso tenso, o delegado olhou para a porta que se abria para o vestíbulo e Jedediah
entrou, igualmente pouco à vontade.
— Fui até lá a fim de levar o açúcar cristal que as meninas tanto adoram, como meu presente de
natal — explicou o velho Jedediah. —
Então, vi-me diante de um verdadeiro massacre. Voltei correndo para a cidade e chamei o
delegado.
— Mas o que o trouxe até a casa de Stoner? — perguntou Quin, intrigado.
Jedediah encolheu os ombros, mas Quin notou, pelo brilho vivaz dos olhos do velho, que ele já
havia compreendido toda a situação.
— O sr. Jedediah me sugeriu que o sr. Stoner, por ser o visinho mais próximo, talvez soubesse
algo sobre os acontecimentos na propriedade da sra. Montgomery. — A expressão do delegado tornou-
se mais dura ao encarar Stoner. — Você e seus homens irão para a cadeia da cidade por terem
assassinado seis índios da tribo dos Crow. Além disso, mantiveram esta família em sua casa por força e
contra a vontade deles. — Ele voltou-se para Quin. — Poderia me ajudar a algemar estes homens, sr.
McAllister?
— Com todo o prazer.
Como não havia algemas suficientes, Quin usou a mesma tira de couro ensangüentada que fora
colocada nele, para prender os pulsos de Stoner. Embora ainda se sentisse enfurecido, sabia que a
justiça seria a vingança mais perfeita para aquele homem ambicioso demais.
— Agora tudo está bem com vocês? — perguntou o delegado a Cassie.
Juntando a mãe e as filhas num grupo unido, Cassie soltou um longo suspiro de satisfação.
— Acho que agora estaremos muito bem, delegado. Muito obrigada.

Quin acordou, sobressaltado e, sem saber onde se encontrava, olhou ao seu redor. Estava em
sua aconchegante cama feita de peles e cobertores, no canto da cabana. As achas estalavam na lareira.
Ouvia-se o frigir do toucinho na frigideira e o aroma convidativo do café e de biscoitos terminando de
assar se espalhava pela casa.
Cassie e a mãe não interromperem seus afazeres quando Becky e Jen retornaram do estábulo,
trazendo o leite e os ovos. Estavam ocupadas demais na preparação de um café da manhã digno de
uma celebração.
— Bom dia, sr. McAllister! — chamou Jen, com voz alegre. — É melhor levantar-se logo ou
perderá o café da manhã.
Ainda com os músculos doloridos e tensos, ele se levantou lentamente da cama e colocou as
botas. Da cozinha, Cassie o via de costas, lavando o rosto, e não conteve um sorriso amoroso.
Retirando a camisa pendurada atrás da porta, ele a vestiu com dificuldade. Então, viu o curativo
em seus pulsos, que Cassie insistira em fazer antes de se retiraram para dormir, na noite anterior.
Ela o beijara com uma infinita ternura, sabendo que despertaria o desejo de Quin. Embora ele
mal tivesse forças para se manter em pé, após o desgaste sofrido por uma longa viagem e a luta na casa
de Stoner, gostaria de adormecer nos braços de Cassie.
Para sua surpresa, deixou-a ir para o quarto sem fazer nenhum movimento para detê-la.
Foi nesse momento que se deu conta da urgência de tomar decisões muito graves. Ele passara a
maior parte da noite acordado, tentando organizar seus pensamentos. Pouco antes da madrugada,
quando o sono chegou, tinha conseguido definir os pontos mais importantes.
Enchendo uma caneca de café, Luella a entregou a Quin.
— Bom dia, Sr. McAllister. Tome um pouco pois acho que está precisando…

122
— A minha aparência está tão terrível assim?
— Bem… Já o vi em melhores condições — brincou Luella, para surpresa de todos.
Esvaziando rapidamente a caneca, Quin vestiu o casaco e foi para o estábulo.
Do lado de fora da cabana, o mundo brilhava em sua brancura in-vernal. A neve que caíra
durante a noite apagara todos os vestígios do massacre do dia anterior e a natureza recuperara sua
virgindade pura.
Os Crow tinham vindo retirar seus mortos e receberam a promessa de que os assassinos de seus
bravos guerreiros receberiam a punição adequada. A tribo, famosa por seu amor pelas planícies, se
refugiara nas montanhas, a fim de chorar os entes queridos e ficaria entre os picos nevados até o fim do
inverno, procurando aceitar a tragédia e reencontrar a serenidade.
No estábulo, Quin lançou-se às tarefas cotidianas, sentindo-se grato pelo alívio provocado pela
repetição de gestos banais e costumeiros. Entretanto, sobrava-lhe tempo para pensar e, agora que a
ameaça representada por Cyrus Stoner deixara de existir, ele era obrigado a enfrentar uma realidade
bastante desagradável.
Sua missão terminara.
Cassie e a família ficariam mais ricas do que jamais teriam imaginado, nem em seus momentos
de maior fantasia. Com tanto dinheiro, poderiam contratar o melhor dos capatazes e uma equipe de
mineradores com experiência. Então, estariam livres para viver em Prospect ou até mesmo retornar a
Atlanta, se o desejassem.
Ele deu um sorriso amargo. Se o relatório do avaliador fosse correto, a família Montgomery
poderia viver na Europa, em meio da nobreza mais alta!
A porta do estábulo se abriu, deixando entrar uma lufada de vento e neve, e Jen entrou,
correndo.
— Vovó pediu… — Os olhos alegres de Jen pousaram sobre Cutter, já selado, e ela
empalideceu. — O que está fazendo, Sr. McAllister? Parece que se prepara para nos deixar…
— É isso mesmo, Jen. — Desviando o olhar da menina, ele examinou o joelho de Cutter e se
certificou de que seu cavalo suportaria uma nova jornada bastante longa. — Acho que chegou mesmo a
hora de retomar meu caminho.
— E… Para onde vai?
— Ainda não sei.
— É para São Francisco?
— Talvez.
Quin quase sorriu diante da estranheza da vida. Em outros tempos, o simples nome daquela
cidade o excitava, despertando em sua imaginação as mais tentadoras visões. Jogos de apostas
assustadoramente altas, que duravam por dias e noites, mulheres fascinantes e quartos de hotel de um
luxo opulento.
Agora, só pensava nas centenas de milhas formadas por imensas planícies cobertas de neve que
o separariam de uma pequena família em uma cabana quase primitiva em sua simplicidade.
— Você dizia algo sobre sua avó?
— Ele pediu para voltar logo ou irá servir o café da manhã — disse a menina, com um tom de
voz desprovido de emoção.
Ele seguiu a menina de volta para a cabana e ainda se sentava à mesa, quando ouviu a voz
infantil ecoar na sala, nitidamente abalada.
— O Sr. McAllister está indo embora.
Todas as mulheres da casa se imobilizaram, com os olhos fixos em Quin. Diante da surpresa
magoada de Cassie, ele abaixou a cabeça, concentrando-se em cortar ao meio um biscoito.
— Por quê? — perguntou Cassie, incapaz de disfarçar o choque e o sofrimento em sua voz.
— Já não precisa mais de mim, madame. — As palavras soavam como um toque de finados aos
seus próprios ouvidos. — E hora de seguir adiante…
— Entendo. — Cassie falava com excessiva rispidez para ocultar a dor que sentia. — Nós
ficamos em seu caminho, impedindo-o de prosseguir… Por tempo demais. Deve sentir falta da
excitante vida que sempre levou.
— Imagino que ainda deseje vencer muitos jogos de pôquer — comentou Luella.

123
— Imagino que sim — murmurou Quin, afastando o prato que continuava intocado. Ele
tomou um gole de café e sentiu a boca ainda mais amarga.
Tentando aliviar a tensão, ele olhou ao seu redor, com um sorriso forçado.
— Por que tantos rostos tristes? Ainda não perceberam que poderão realizar todos os caprichos
de sua imaginação, até os mais inatingíveis? Estão muito ricas, livres de Stoner e terão a liberdade de
escolher onde desejam morar. Certamente, já não precisam mais ficar nesta região hostil e isolada de
qualquer sinal de civilização. Será maravilhoso viver novamente entre seres humanos, não concordam?
Ninguém disse uma só palavra.
Levantando-se abruptamente, Quin decidiu partir, sem perder mais um minuto. Despedidas
longas sempre são mais penosas e, se ele permanecesse por mais tempo, acabaria sendo convencido a
mudar de idéia.
Indo até a porta, ele apanhou sua capa de couro e, retirando um livro do bolso, entregou-o a
Becky.
— Percebi o quanto você gostou da poesia de Shakespeare. As palavras dele tem o poder de
tocar nossos corações.
— Não posso aceitar — protestou Becky, com lágrimas nos olhos. — Você disse que era um
livro especial…
— Pertenceu a meu pai e é por isso que quero dá-lo a você. Retirando seu baralho mais novo
de um outro bolso da capa, ofereceu-o a Jen.
— Este é para você. Não se esqueça de praticar sempre os truques que lhe ensinei.
A garotinha recusou-se a aceitar o presente. Colocando o baralho sobre a mesa, Quin afastou-se
de Jen, fugindo de seu olhar acusador e triste.
— Então… Adeus.
Ele despediu-se de Luella e depois deu a mão a Cassie, sentindo a centelha de desejo que nascia
do contato de seus dedos.
— Adeus, Quin.
Cassie estava determinada a manter a compostura e conter as lágrimas. Sempre soubera que,
algum dia, o perderia. O próprio Quin não a alertara, desde o início, que sempre seria um jogador, um
viajante sem parada certa e desprovido de raízes?
Ao menos, por uma única mas inesquecível noite, os dois haviam vivido momentos de infinita
beleza. Teria de se contentar com as horas de prazer partilhadas e não ser egoísta, prendendo-o quando
percebia seu anseio de se libertar.
Entretanto, a certeza das longas noites de solidão que a esperavam, provocou um intenso
tremor nos lábios e ela mordeu o interior da boca até a dor física afastar o sofrimento de seu coração.
— Precisará de comida para a viagem — disse Luella, embrulhando biscoitos e carne seca em
uma toalha, mas quando ele estendeu a mão para pegar o pacote, não o entregou. — Irei acompanhá-lo
até o estábulo, Sr. McAllister.
— Sim, madame.
Ele abriu a porta para Luella e ainda lançou um último olhar na direção de Cassie e das
meninas, antes de sair da cabana.
Os dois caminharam até o estábulo, em silêncio. Ao entrarem, ela lhe entregou o pacote de
comida e o fitou seriamente.
— Eu me enganei a seu respeito, Sr. McAllister. Acusei-o de ser apenas um jogador, um errante
sem vontade de criar raízes em lugar algum. Pensei que fosse um homem incapaz de assumir
responsabilidades. Incapaz de se importar com os sentimentos das outras pessoas. — Ela abaixou o
tom de voz, emocionada. — Sei por que está indo embora.
— Sim? — Ele a encarou, embaraçado.
— Você não me engana. Está partindo porque acha que, por algum motivo insensato, assim
será melhor para a minha filha.
Quando Quin permaneceu calado, sem dizer nada em defesa própria, ela decidiu insistir.
— E está errado por pensar dessa forma.

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— Não, madame. Pela primeira vez na vida, estou tendo a atitude correta. A senhora mesma me
disse, um dia, que Cassie poderia confundir gratidão com amor. Pois foi exatamente o que aconteceu. A
melhor solução é partir, permitindo que ela possa construir um belo futuro.
— Ah, Sr. McAllister! — Luella virou o rosto para esconder as lágrimas. — Eu sentia tanto
medo que partisse o coração de minha filha! É o que fará se a deixar agora.
— A senhora não compreendeu. — Quin a tocou levemente no braço e suavizou seu tom de
voz. — Há muitos anos, eu me apaixonei pela esposa do melhor amigo que já tive. Quando recebi uma
carta dele, pedindo-me para vir até sua casa, não hesitei nem por um segundo. Sabe por quê? Queria
ver, com os meus próprios olhos, essa mulher linda e perfeita, um verdadeiro modelo de todas as
virtudes femininas, que Ethan elogiava com tanto ardor. Talvez eu achasse que ela não estaria à altura
das descrições do marido. Quem sabe, eu esperava que não estivesse…
— E o que concluiu?
— Cassie era tudo que Ethan descrevia e muito mais. Mas as minhas intenções não tinham
qualquer nobreza, meus motivos eram egoístas. Na verdade, esta é a primeira vez que decido agir de
acordo com a ética de meus ancestrais. Por favor, não me negue a oportunidade de ser correto. A sua
filha e também as meninas estarão muito melhor sem mim. Quando ela conseguir superar os
sofrimentos, será cortejada por cavalheiros de boa família e com as qualidades ideais para um marido. ,
Luella o viu puxar o cavalo na direção da porta e ainda tentou mais uma vez.
— Não seja tão severo consigo mesmo! — Ela segurou-o pelo braço, emocionada. — Não sei o
que vê quando olha para seu próprio coração, mas eu vejo um homem íntegro, amoroso e que mudou
as nossas vidas para melhor. Peço a Deus que o acompanhe nessa viagem.
— Obrigado, madame.
Tocando levemente a aba do chapéu, Quin abriu a porta do estábulo e saltou sobre a sela.
Cassie e as meninas estavam paradas à porta da cabana e aquela visão provocava uma sensação
intolerável de perda. Antes de liberar Cutter, que batia os cascos no chão em sua ânsia de galopar, ele
lançou um último olhar aos cabelos ruivos como chamas cálidas, às sardas delicadas e aos olhos tristes
das três.
O desejo de ficar foi tão intenso que Quin se assustou. Elas poderiam ser a sua família. Se não
tivesse sempre seguido caminhos errados, permaneceria para sempre com elas. Com sua esposa. Com
suas filhas.
Dando rédeas livres ao cavalo, ele se afastou, desaparecendo no meio da neve que continuava a
cair.

125
VINTE E DOIS

A decoração opulenta daquele vagão de trem quase convencia Quin de que ele realmente estava
em um dos salões luxuosos dos melhores hotéis de São Francisco. As paredes eram revestidas por
lambris de madeiras preciosas, as cortinas feitas do mais espesso veludo vermelho e todos os móveis
tinham o mesmo brilho espelhado de peças únicas.
No centro do vagão, fora colocada a mesa de jogo, com cadeiras para seis participantes e, logo
ao lado havia um bufê auxiliar, com caixas de charutos cubanos. Um garçom de luvas brancas servia
uísque em copos de cristal lapidado.
— Não há nada melhor do que isto! — declarou o corpulento senhor ao lado de Quin. — Já
joguei no fundo de bares enfumaçados e mal cheirosos, em exclusivos clubes para cavalheiros em
Londres, Paris e Nova York mas… Um trem luxuoso e em movimento é o mais perfeito cenário para
um jogo.
Ele era o mais rico dos participantes daquele jogo especial e o dono de todo o trem.
— Já ganhei e perdi milhões de dólares numa única noite mas o jogo… Ah, Sr. McAllister! É o
jogo que mantém homens como nós livres de cair na armadilha de vidas monótonas, como a da maioria
das pessoas comuns.
Homens como nós. Quin estremeceu, lembrando-se da provocação de Luella, há tanto tempo e
que ainda o incomodava. Um homem como ele.
As rodadas se sucediam, cartas eram distribuídas, trocadas e novamente embaralhadas.
Ocasionalmente, uma bela mulher com um vestido de seda, cujo decote ousado era um artifício para
expor a perfeição dos seios volumosos, se aproximava de Quin e curvando-se, deixava que sua longa
cabeleira dourada lhe tocasse o ombro, como que por descuido.
Sentindo o perfume caro e doce demais, Quin apanhou um charuto, que ela acendeu, revelando
mãos alvas e de unhas pintadas de vermelho. Então, a mulher voltou a se posicionar em uma poltrona,
logo atrás da mesa de jogo.
Os homens jogavam em silêncio. Alguns haviam atingido seu limite de perdas e se retirado da
mesa, mas continuavam por perto, com copos de bebida nas mãos, esperando pelo desenlace de um
jogo de apostas tão altas que já durava há mais de vinte horas.
Ninguém se surpreendeu quando Quin finalmente venceu. Ele foi cumprimentado, recebeu
alguns cheques, muito dinheiro e, aos poucos, os participantes foram se retirando para os vagões onde
ficavam seus quartos, tão luxuosos quanto o salão de jogo.
A bela loira permaneceu, esperando que o vencedor notasse sua presença. Quando se deu conta
que ela ainda não se retirara, Quin a dispensou com um gesto de indiferença.
Inquieto, ele foi até o extremo do vagão, onde ficava o bar e o garçom, disfarçando um bocejo,
serviu-o de mais um uísque. Ainda sem sono, Quin parou diante da janela, vendo a paisagem passar
rapidamente, colorida pela luz acinzentada da aurora.
O inverno terminara e já não se via mais a brancura da neve uniformizando a natureza. Logo o
verde retornaria, trazido pela primavera.
Onde Cassie teria decidido morar, depois de sua partida há quatro meses? Como estaria
vivendo? Ela saberia usufruir a riqueza e o sucesso com a mesma graciosidade serena e a dignidade com
que suportara a miséria.
Quin tentou imaginá-la com um vestido sofisticado, descendo uma escadaria de mármore, mas
a única imagem que vinha-lhe a mente era a da véspera de natal, quando ela saíra do quarto usando o
vestido que fora seu presente de natal. O rosto corado de emoção, as mãos tocando os cabelos, os
lábios se curvando num sorriso de intensa alegria e os olhos brilhando de prazer.
Ele cerrou os dentes, agoniado. Se continuasse a se torturar com as lembranças, acabaria
enlouquecendo!
O garçom aproximou-se, para servir-lhe mais bebida e Quin assustou-se com a presença de
alguém ainda no salão.
— Eu não percebi que você continuava aqui. Por favor, vá dormir.

126
— De modo algum, senhor. Ficarei para servi-lo até… Sem dizer mais nada, Quin saiu
rapidamente do salão.
No meio da manhã, o trem chegou a uma estação, onde permaneceria por muito pouco tempo.
Quando o camareiro bateu à porta, Quin custou a acordar. Finalmente desperto, recebeu a bandeja de
prata com seu desjejum e uma carta.
Sem muita pressa ou curiosidade, Quin rasgou o envelope e leu a carta. Então, ergueu a cabeça
e encarou o camareiro, com uma expressão de urgência.
— Tenho um cavalo no último vagão do trem. Peça que o selem e o mantenham pronto para o
meu uso imediato.
— Sim, senhor.
Em sua pressa de se vestir, Quin esqueceu-se de tomar o café. Quando o trem começou a se
afastar da estação, Quin já estava montado em Cutter. Parado junto dos trilhos, via os luxuosos vagões
desfilarem à sua frente. Então, ele e seu cavalo se afastaram da estação, para longe da agitação das
grandes cidades, da atração do dinheiro fácil e dos confortos da civilização. Em muito pouco tempo,
foram envolvidos pela natureza ainda não domada pelas mãos dos homens.
— Por quanto tempo pretende ficar na mina? — perguntou Luella. Ela e Cassie ainda estavam
sentadas à mesa, na sala de jantar de Florence, tomando um último café, depois que todos já haviam se
retirado para iniciar o dia de trabalho ou de escola.
— Só uma noite.
Cassie virou-se ao ouvir as risadas altas de Jen e Oren, que desciam as escadas e pegavam suas
lancheiras, seguidos por Biscoito, já quase da altura dos dois.
O cachorro se tornara o companheiro constante de Jen, seguindo-a até à escola, onde
permanecia dormindo sob a escada de madeira da entrada, a fim de acompanhá-la de volta para casa.
— Obedeça sua avó enquanto eu estiver fora, Jennifer.
— Sim, mamãe. Mas eu gostaria mesmo é de ir com você!
— Talvez em uma outra ocasião, filha. Tem de esperar pelas férias escolares e então, prometo-
lhe que passaremos uma semana inteira na cabana.
— Oren pode ir também?
— Eu não vejo nenhum problema na ida de Oren… Desde que a mãe dele dê permissão.
Dando um beijo apressado na mão, Jen correu para a porta. Então, cedendo a um impulso,
voltou para junto de Cassie.
— Você não precisa mais ficar triste, mamãe.
Cassie olhou para a filha, sem compreender aquela súbita declaração.
— Papai conversou comigo, ontem à noite — explicou Jen, em seu tom de voz direto e que
não admitia qualquer dúvida, já conhecido por toda a família. — Ele me disse que estava mandando o
Sr. McAllister de volta para nós.
Sem esperar por qualquer comentário da mãe, Jen voltou a correr para a porta e, desta vez, saiu
de casa, acompanhada por Biscoito.
— Estou ficando preocupada demais com essa menina! — exclamou Luella, transtornada. —
Preciso conversar com Matthew a respeito dessa mania de Jennifer.
— Mamãe?
Becky entrou na sala, com um envelope nas mãos.
— Ainda bem que a encontrei também, vovó. Gostaria que lesse e me dissesse se acha bom o
bastante.
— Bom o bastante para que, Rebecca? — perguntou Luella, perplexa.
— Para que eu seja aceita no conservatório de música da srta. Atherton — murmurou Becky,
mantendo o olhar fixo na ponta de seus sapatos.
Luella e Cassie se entreolharam, surpresas.
— Eu pensei que você tivesse rejeitado definitivamente a idéia de voltar para o sul.
— Eu já disse tantas coisas! O Sr. McAllister contou-me, um dia, que sua boca trabalhava muito
mais depressa do que a sua cabeça e ele falava sem pensar, quando era muito jovem. — Agora Becky
mexia na faixa em sua cintura, ainda sem encarar a mãe ou a avó e sem disfarçar o embaraço. — É
verdade que Savannah fica realmente muito longe daqui. Mas, como mamãe mencionou, existem

127
barcos a vapor e diligências em grande quantidade. Além disso, dizem que a estrada de ferro logo
chegará ao território de Montana.
Disposta a ter certeza da nova determinação da neta, Luella continuou a apresentar argumentos
contrários.
— Não afirmou que mal podia esperar pelo dia de mudar para a casa nova? Ou o quanto
desejava muito morar nesse palácio que sua mãe está construindo aqui em Prospect? Terei entendido
mal?
— Eu só estava brincando quando disse que era um palácio, mas quero mesmo morar na casa
nova. Ainda tenho um ano de espera antes de ir para o conservatório… Se me aceitarem como aluna, é
claro!
Cassie acompanhava a conversa entre avó e neta, sem interferir, mas com muito interesse.
— E Zack? Se não me falha a memória, jurou que nunca mais sairia de perto dele!
Ao ouvir o nome de Zack, Becky sorriu e, finalmente, ergueu a cabeça, olhando para a avó e
para a mãe.
— Ele é muito especial para mim e disse que me esperará por quanto tempo for necessário.
Mas a ida para o conservatório tem um significado muito importante, trata-se de algo que preciso fazer
por mim mesma. Sei que o canto representa uma parte essencial de minha vida. Acho que gostaria
demais de ensinar música aqui em Prospect.
— E quando você chegou a conclusões tão importantes? — perguntou ainda Luella, com um
sorriso suave.
— Acho que aprendi um pouco ao conviver com algumas pessoas. O Sr. McAllister sempre
dizia que se deve enfrentar qualquer risco quando se acredita realmente em alguma coisa. E,
observando a minha mãe, descobri que a vida tem de continuar. — Becky deu um sorriso tímido para
Cassie. — Eu me orgulho muito de você, mamãe, por assumir o comando da mina, contratando os
homens que precisa para explorá-la e por… — apesar de embaraçada, ela não conteve a ânsia de se
comunicar — por não desistir de tudo só porque o Sr. McAllister foi embora.
Enrubescendo, Becky beijou o rosto da mãe, o da avó e, aflita por sair da sala, apanhou sua
lancheira. Já nã porta da sala, parou para terminar o que viera dizer.
— Escrevi três páginas, expondo ao diretor do conservatório porque acho que ele deve me
aceitar como aluna. Por favor, leia e me diga se está bom ou precisa ser melhorada, vovó.
Com um farfalhar de saias engomadas, Becky sumiu da sala.
— Três páginas! — murmurou Luella, impressionada. — Sinto muito orgulho dessa menina! E
mais ainda de você, filha. Sei que não está sendo nada fácil.
— Eu tive uma boa professora, mãe.
As duas mulheres se fitavam em silêncio, demonstrando seu amor mútuo com um sorriso
afetuoso, quando o reverendo Townsend entrou na sala, apressado. Ao avistar Luella, o rosto dele se
abriu num sorriso de felicidade.
— Felizmente, a encontrei — Ele beijou o rosto de Luella e depois o de Cassie. — Eu vim até
aqui, com a esperança de que possa me dedicar uma hora ou duas para ir à igreja comigo. Queria que
ouvisse o meu sermão para o próximo domingo a fim de escolher os hinos mais apropriados para o
tema escolhido.
— Eu adoraria ir, Matthew. Só me prometa que estaremos de volta ao meio dia. Prometi a
Florence que a ajudaria a preparar as tortas para o jantar de hoje.
— Tomara que sejam de maçã! Sempre foram as minhas favoritas, desde menino. Eu a trarei na
hora certa, se me prometer mais algumas horas de seu tempo depois do almoço. Precisamos ir juntos
até a casa paroquial. Quero que você decida como deve ser a sala principal.
— Eu andei pensando bastante nesse assunto, Matthew. Embora seja uma sala aberta ao
público, onde você receberá as pessoas que o procuram para lhe pedir conselhos, deveria refletir um
ambiente aconchegante e familiar. Assim, quem precisar de consolo e ajuda poderá se sentir
completamente à vontade. Existem tantos jovens, vagando sem rumo e com medo de criar raízes,
desde o final da guerra. São criaturas que perderam tudo, lar e família, e vivem com medo e na solidão,
necessitando demais de uma figura paterna, capaz de amar e perdoar…

128
Disfarçadamente, Cassie dirigiu-se até a porta da sala, que se abria para o vestíbulo, a fim de dar
maior privacidade a Luella e Matthew. Então, lembrou-se de avisar a mãe sobre sua partida.
— Jedediah deve chegar em breve, com a carroça. Avise-o que descerei num minuto.
Ainda antes que Cassie saísse da sala, Matthew segurou o rosto de Luella entre suas mãos.
— Deus realmente derramou Suas bênçãos sobre mim. Estou contando os dias até nosso
casamento.
— Muito obrigado por ter concordado em esperar até que a casa nova de Cassie fique pronta.
— Ela cobriu as mãos de Matthew com as suas, num gesto carinhoso. — Eu não poderia deixá-la
sozinha para cuidar da mina e também da construção.
— Eu compreendo e concordo plenamente. Mas, muito em breve, seremos marido e mulher,
meu amor.
Cassie correu para as escadas, embaraçada por ter ouvido aquela conversa íntima entre duas
pessoas que se amam. Mal fechara a porta do quarto quando ouviu a voz da mãe, avisando-a da
chegada da carroça. Minutos depois, entregou sua sacola de lona a Jedediah e sentou-se ao lado dele,
acenando um adeus para Luella e para o reverendo, parados na varanda da casa de Florence.
Rapidamente, a pequena Prospect se tornou apenas uma mancha colorida na paisagem e, diante
deles, abriam-se as imensas planícies que se estendiam até o sopé das montanhas.
A mina era um lugar de atividade quase frenética. A abertura original, do outro lado da colina,
parecia uma diminuta cidade, com ruas de terra se cruzando por toda a parte, carroças e pequenos
vagões sobre trilhos estreitos carregando minério e espalhando nuvens de poeira.
Vários alojamentos haviam sido construídos para abrigar os mineiros e, num prédio separado,
ficava o escritório de administração, onde o capataz, contratado em Virgínia City, trabalhava com três
jovens aprendizes, um dos quais era Zack. Nos outros galpões mais distantes guardavam-se os
explosivos, as ferramentas e todo o equipamento necessário para a exploração de uma mina.
Um novo poço fora aberto diretamente sobre a caverna em que se descobrira o primeiro veio
de prata e desse ponto, saíam enumeros túneis, todos levando as reservas desse minério precioso,
aparentemente inesgotáveis.
Comentava-se que era a maior reserva de prata de todo o território de Montana.
Depois de se reunir com o capataz e seus assistentes, a fim de planejar a abertura de um novo
poço, além de outros detalhes administrativos, Jedediah levou Cassie de volta para a cabana. Ao avistar
a fumaça saindo da chaminé, ela deduziu que Zack enviara um dos homens para acender a lareira,
preparando a casa para sua chegada.
Jedediah parou a carroça diante da varanda e, depois de ajudar Cassie a descer, levou a sacola de
lona para dentro da sala.
A cabana continuava absolutamente igual. Nada fora mudado desde os dias em que ela, a mãe e
as filhas tinham vivido naqueles aposentos acanhados e sem conforto.
As cadeiras de balanço permaneciam diante da lareira, o bule de café escurecido estava ao lado
do fogão a lenha e a mesa da cozinha se mantinha sólida e toda arranhada.
— Vou deixar sua mala aqui, dona Cassie.
— Obrigada, Jedediah.
Ele notou que o olhar de Cassie permanecia fixo num canto da sala mas, por mais que tentasse,
não via nada de diferente.
— Virei amanhã cedo para buscá-la.
Ela confirmou com um gesto de cabeça, sem ter ouvido o que o velho lhe dissera antes de sair.
Forçando-se a agir, Cassie retirou a coberta que protegia sua cama do pó vindo da mina,
retornou à cozinha, onde preparou um bule de café e, finalmente, sentou-se na cadeira de balanço na
frente da lareira, com uma caneca nas mãos.
A solidão absoluta a ajudava a pensar e ela rememorou a comunicação de Becky, naquela
manhã. Sentia-se extremamente feliz pela filha que conseguira superar as mágoas e os terrores
provocados pela guerra e começava a se transformar em uma jovem esperançosa, determinada e com
alegria de viver. Jen também desabrochava entre os amigos de escola e a felicidade de Luella encantava
a todos.

129
Embalada pelo suave balanço da cadeira, Cassie acompanhava a mudança da luminosidade no
interior da cabana. A claridade dourada do sol dera lugar ao colorido alaranjado do crepúsculo e agora a
noite descia. Aos poucos, o som das vozes dos homens e o barulho dos equipamentos começava a
diminuir, até cessar por completo, quando todos se reuniam nos alojamentos.
Uma estranha sensação de paz a envolveu. Era estranho que aquela cabana tivesse se
transformado em seu refugio, pois lhe parecera uma prisão até Quin entrar em sua vida, libertando-a de
cargas tão pesadas de suportar.
Liberdade… Uma palavra que continha tantos significados! Quando jovem, desejara, mais do
que tudo, ter a liberdade de tomar suas próprias decisões, seguir um caminho e viver uma vida
escolhida por ela. Não fora esse o seu destino.
Escolhas feitas sem sua participação tinham alterado, para sempre, o rumo de sua vida.
Adulta e madura, tivera uma nova oportunidade e escolhera, livremente, entregar seu coração a
um homem. Nunca ignorara que não houvera troca de promessas e se jogara nos braços dele, de olhos
abertos, sem pedir nada além de uma noite de amor.
E, para sua surpresa, a liberdade escolhida por ela deixara um imenso vazio que nenhum outro
homem poderia preencher.
Seguindo o mesmo rumo, seus pensamentos se voltaram novamente para Jennifer. Cassie
acreditara que, com o passar do tempo, as conversas da menina com o pai morto acabariam cessando,
mas isso não acontecera.
Como pedir à filha que parasse de acreditar na possibilidade de se comunicar em pensamento
com o pai, se ela mesma tinha dúvidas a esse respeito? Após a morte de Ethan, perdera a conta do
número de vezes em que sentira a presença do marido, como uma espécie de força bastante próxima e
real, para lhe dar mais coragem de prosseguir lutando. Mesmo quando entregara seu coração a um
outro homem, tivera a certeza de que ele estava por perto, compreendendo e aprovando.
Os pensamentos de Cassie estavam tão longe que ela custou a ouvir o galope de um cavalo
rompendo o silêncio da noite. Suspirando, ela levantou-se da cadeira e se dirigiu para a porta. Os
trabalhadores da mina a defendiam da chegada de intrusos e raramente a incomodavam pois sabiam o
quanto apreciava àquelas horas de solidão e privacidade.
Pela fresta da porta entreaberta, Cassie avistou um cavaleiro se aproximando da cabana. Por
uma fração de segundo, seu coração parou de bater, ao se lembrar de um outro visitante que chegara
em sua casa, com o chapéu e a capa cobertos de neve. Então, censurou-se pelo excesso de imaginação
que reprovava em sua filha e, apanhando o rifle, saiu da cabana e postou-se na varanda.
A luminosidade da lareira delineava a silhueta feminina parada diante da porta da cabana. Quin
teve a impressão de que o tempo se imobilizou por alguns minutos, enquanto ele absorvia aquela visão,
com a ânsia de um prisioneiro a poucos passos da liberdade sonhada.
Durante a longa viagem, ele imaginara as piores tragédias e, pela primeira vez desde que deixara
o trem, sentia-se relaxar. Então, lembrando-se do motivo de sua vinda, recuperou a voz.
— Como vai, Cassie? Está com uma ótima aparência.
Ela ergueu o queixo e, ainda que sentisse seu coração bater descontroladamente, forçou-se a
demonstrar uma calma fria idêntica a de Quin.
— Obrigada. Você também parece estar bem.
— Não esperava encontrá-la aqui. — Ele saltou do cavalo e se encaminhou para a varanda. —
Achei que iria usar sua fortuna para construir uma bela casa para sua família em algum lugar mais
civilizado.
— Então, por que veio até aqui?
— Não sabia por onde começar a procurar você, a não ser por esta cabana.
De perto, Quin parecia mais alto e, se fosse possível, mais atraente.
Apesar de precisar fazer a barba, dos olhos fundos de cansaço, ele ainda a seduzia com seu
encanto másculo.
— E por que precisava me procurar?
— Para ajudá-la a sair do problema em que se envolveu desta vez.
— Problema?

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Ao fitar os olhos negros e misteriosos de Quin, Cassie sentia que suas mãos tremiam e ele,
interpretando mal essa reação, insistiu para saírem do vento frio.
— Entre logo, ou acabará ficando doente.
Cassie entrou na frente, evitando qualquer proximidade, e parou junto da lareira. Quin a seguiu,
examinando cada detalhe da cabana que, para sua inesperada felicidade, continuava exatamente como
nas suas recordações.
— Acho melhor se explicar logo — declarou Cassie, inquieta e com medo de suas próprias
reações. — Por que veio?
Quin retirou um envelope do bolso do casaco.
— Por causa de sua carta, pedindo-me ajuda porque estava com problemas, é claro.
— E como eu poderia lhe escrever uma carta se nem sequer me deixou um endereço para
correspondência?
Ele percebeu o sofrimento oculto pelo tom de voz altivo e admitiu que merecia a raiva e o
desdém de Cassie. Entretanto, nada se comparava ao desprezo que sentia por si mesmo. Depois das
breves semanas que passara ao lado dela e daquela encantadora família, descobrira o quanto sua vida
sempre fora vazia e sem futuro.
— Não sei quem a enviou — murmurou ele, embaraçado. — Para ser franco, nem pensei nesse
detalhe pois tinha pressa de chegar até você… Por saber que estava com problemas sérios.
— Que nobreza de sua parte — zombou ela, esticando a mão para Quin. — Importa-se que eu
a veja com meus próprios olhos esse misterioso pedido de auxílio?
— Claro que não.
Quin atravessou a sala e entregou a carta na mão de Cassie que a apanhou com a ponta dos
dedos, evitando até o mais banal dos contatos. Ela leu por alguns segundos e o fitou, descontrolada e
com lágrimas nos olhos.
— Como pôde fazer isso? Como teve coragem de ser tão cruel? Eu não esperava isso de você!
— Mas… Sobre o que está falando? — Ele a fitava, atônito. — O que aconteceu, Cassie?
— Esta carta! — Erguendo o papel, ela o sacudia diante do rosto de Quin. — Sei que rouba no
jogo mas… Jamais esperei algo mais sério, Sr. McAllister.
A perplexidade de Quin se transformou em raiva e, segurando com força a mão de Cassie,
exigiu que ela se explicasse.
— Esta letra é de Ethan! De alguma forma, você a falsificou e me escreveu a carta, fingindo que
era ele!
Ele custou a compreender o absurdo daquela situação.
— Tem certeza absoluta? A letra é mesmo de Ethan?
Cassie percebeu o choque e o horror no rosto de Quin quando ele soltou-lhe a mão e recuou
alguns passos, como se tivesse sido agredido fisicamente. Esse tipo de reação seria impossível de fingir!
— Explique-se, Sr. McAllister.
— Eu… Não tenho explicação nenhuma para esse mistério. Até você me comunicar o fato, não
me ocorreu prestar atenção na letra desta carta ou compará-la com a da outra. Nos dois casos, fiquei
bastante curioso por saber como haviam chegado em minhas mãos pois não tenho um endereço fixo.
Além disso, a urgência presente nas palavras das duas mensagens não permitia que eu perdesse tempo
pensando em detalhes. Até agora…
— Até agora? — murmurou ela, tensa.
— Agora que confirmou ser mesmo a letra de Ethan nas duas cartas, sou forçado a acreditar
em Jen. Ela me contou que o pai está junto com os anjos e continua a cuidar de quem ama.
— Que tolice é essa?
Descontrolada pelas palavras de Quin, Cassie assustou-se ao perceber que uma profunda
sensação de paz tomava conta da cabana.
— E impossível. Acha que Ethan… Mesmo de um outro mundo, quis nos unir de novo?
— Já não sei mais no que acreditar, Cassie. Só existe um fato muito claro para mim…
Ele tocou levemente o rosto de Cassie, apesar de sentir medo de ser rejeitado.
— Você é que aconteceu de melhor em toda a minha vida, Cassie. Tentei me manter a distância
porque queria lhe dar a oportunidade de ter uma vida perfeita e por achar que eu não a merecia.

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— Oh, Quin. Como pode pensar assim? Não percebeu a diferença que fez em nossas vidas?
Para melhor?
As palavras de Cassie derretiam a barreira de gelo que se erguera em torno do coração de Quin,
depois de ter se afastado daquela cabana singela. O sangue voltava a correr em suas veias, aquecendo
sua alma e despertando o mesmo desejo intenso.
— Não tenho nada a lhe oferecer a não ser o meu amor, Cassie. Mas sei que a amarei para
sempre…
Ele a beijou levemente, contendo ainda o desejo que crescia.
— Eu também te amo muito, Quin. Mas, desta vez, quero mais de você. Quero promessas,
juras de amor eterno, casamento… Quero que minhas filhas tenham um pai…
— É o que também quero, amor. Na verdade, sempre quis e só agora recebi essa dádiva. Minha
vida foi tão vazia, solitária e…
— Chega de falar, amor. Quero que me mostre o quanto sentiu minha falta.
Carregando-a nos braços, Quin se encaminhou para o quarto de Cassie. A carta escapou das
mãos dela e, levada pelo vento, flutuou sobre a lareira. Apesar do intenso calor, o papel não escureceu,
desfazendo-se rapidamente e deixando apenas uma cinza fina e branca.
Na pequena escola de Prospect, Jennifer Montgomery, com toda a fantasia de seus seis anos,
sonhava com o verão na cabana. Em sua mente, sabia que Quin também estaria lá e nada nem ninguém
a convenceria do contrário.
Então, ao olhar pela janela, viu uma nuvem clara e de formas acentuadas que se parecia com o
rosto afetuoso de seu pai. Ela sorriu, lembrando-se das palavras de Quin. Como passar do tempo,
talvez os detalhes se esmaecessem, mas jamais esqueceria o amor paterno porque fora gravado para
sempre em seu coração.
Ele estaria sempre presente em suas vidas…

RUTH LANGAN possui ancestrais na Escócia e na Irlanda, e por isso sente uma enorme
empatia pelos personagens de seus romances históricos. Casada com um amigo de infância, criou cinco
filhos e vive em Michigan, o Estado onde nasceu e foi criada.

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