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Contos para Se Ler Sozinho Impressão

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Enzo Quinalha
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Contos

Para
Se Ler
Sozinho

Maico Antony
Encosto
“Para quando se sentir sozinho... ”

Aquela coisa, ainda me olha. Não sei há quanto tempo ela está
comigo, apenas sei que ela me segue para qualquer canto que eu vá.
Independente do ambiente, ela sempre está comigo, parada me
observando.
Me refiro a uma forma humanoide, bem parecida com o ser
humano, mas seu corpo é preto, como um borrão. Não sei como a
descrever, não consigo a observar durante muito tempo para analisar
os detalhes. Diferente dela, que não se cansa de me encarar.
É torturante, mas parece que ela insiste em me importunar, já
cansei de me assustar com sua presença perturbadora. Fora que eu não
me atrevo a me aproximar, não sei o que diabos essa coisa pode fazer,
e não quero tentar a sorte.
Qual a opinião dos outros em relação a isso? Nenhuma, apenas
eu a enxergo. Tenho certeza que ela realmente existe, mas ninguém
me leva a sério quando comento sobre. É melhor manter essa
informação apenas comigo, assim não terei fama de louca.
No escritório essa coisa fica parada no canto do cômodo,
sempre no canto, por isso evito elevadores, tenho medo de me deparar
com ela dentro de um espaço tão apertado. Não sei mais o que fazer,
já perdi minhas esperanças em me livrar disso.

5
De manhã acordei com o Nino, meu gato cinza de estimação,
assustado correndo pela casa devido uma borboleta que entrou pela
janela. Pensei que animais vissem coisas como essa criatura, mas o
Nino nem se importa com a coisa, e ambos nunca interagiram entre si.
Saí do quarto e observei a mesma criatura medonha ao fim do
corredor, me virei de costas e fui preparar meu café.
Depois de tanto tempo a vendo, a enxergar pode ser tornar algo
normal, ainda que seja cada vez mais bizarro. Em comparação as
primeiras vezes que a vi, era apenas como uma sombra, sem realmente
ter uma forma física, até que ao decorrer dos dias foi lentamente se
materializando.
De qualquer forma, tenho que continuar em minha rotina,
preparo minha marmita, coloco água e ração para o Nino, e dou um
belo abraço nele. Saio de casa, vou para o escritório, trabalho por
algumas horas, escuto meu supervisor reclamar de sua própria vida
durante toda a manhã enquanto aquele ser medonho continua me
olhando aonde quer que eu vá, e finalmente volto para casa, exausta,
mas tudo vale a pena quando posso ser recebida todos os dias com o
miado do Nino.
Reponho sua ração e água, e vou direto para a cama, necessito
repor minhas energias com uma boa soneca a tarde, e para conferir,
espio de canto de olho para a porta, e vejo que aquilo ainda continua
lá parado.
Abro meus olhos, já é quase a noite, dormi durante algumas
horinhas, e serviu bem para descansar, estou satisfeita com isso. Me
levanto e por um momento esqueci que aquele bicho ainda me
observava. Dessa vez ele está no outro canto do quarto, próximo a
cama.
Não posso me deixar amedrontar com isso, tenho fé de que em
algum momento essa coisa apenas sumirá, e poderei voltar para minha
vida normal.

6
Sinto fome, melhor comer algo. Preparo um sanduiche com
queijo, me alimento, tudo está normal, porém, estou sentindo a falta
de algo: Onde está meu gato?
A ração nem foi mexida, tudo está organizado, mesmo normal
está tudo tão... estranho.

Miau
Um miado fino e familiar vem do corredor.
Mas meu gato não está em casa.

Um arrepio toma conta do meu corpo, eu juro ter escutado um


miado. Procurei meu gato pela casa toda e não achei, talvez tivesse
fugido, mas para onde? Não tem saída. E se aquilo tiver pego o Nino?
Isso não pode acontecer, me recuso a acreditar, devo estar
realmente ficando maluca, preciso de ajuda. Lembro-me que comentei
isso com um dos meus vizinhos do andar de baixo durante uma
reunião de prédio, ele me recomendou uma benzedeira, disse que
poderia funcionar, e até que não é tão longe, estou cansada disso,
talvez possa ser uma alternativa.
Dito e feito, fui para a casa citada. A experiência foi ainda
mais assustadora. A benzedeira era uma senhora que cheirava a ervas,
ela me fez perguntas especificas, sobre quem eu era, e o que buscava.
Fui benzida com folhas de louro, ela me sentou ao chão e realizou
rezas. Esse processo durou cerca de duas horas, e durante todo o
tempo, eu pude enxergar a criatura me olhando, mas a senhora
prometeu que essa coisa sumiria no dia seguinte.
Retornei para casa, e no caminho pude enxergar a criatura do
outro lado da rua parada me acompanhando, uma verdadeira presença
onipresente.
Nessa noite eu fui dormir rezando, esperançosa de que pela
manhã a figura teria desaparecido, misteriosamente da mesma forma

7
que passou a aparecer para mim. Para a minha surpresa hoje quando
acordei, com os raios de luz entrando pela janela, não a vi pelo quarto,
um ótimo sinal de que tudo poderia ter acabado, eu achava.
Ao me levantar, caminhei pelo corredor, observando o
ambiente, sem achar o Nino, mas também sem me encontrar com a
coisa, um sorriso lindo se abriu em meu rosto. Foi como se um
encosto tivesse sido expurgado de dentro de mim.
Feliz, liguei a televisão, sentei-me no sofá e rapidamente meu
corpo se esfriou, um arrepio pude sentir, de todo o lado direito do meu
corpo, minhas articulações enrijeceram-se devido ao medo e pavor, a
ponto de minha cabeça não conseguir virar-se para ao lado.
Em minha visão periférica enxergo a presença medonha da
criatura, dessa vez sentada ao meu lado, nunca antes tão perto de mim,
é como se ela estivesse prestes a me tocar. Mesmo trêmula, tento me
levantar vagarosamente, olhando para o lado oposto do sofá, mas
acabo por deslizar meu pé pelo tapete, caindo sentada aos pés da
criatura.
Lágrimas escorreram pelo meu rosto, essa droga de ser voltou
a me atazanar, logo quando pensei estar em paz. Não resisto e começo
a chorar, soltando soluços de angústia, por mais quanto tempo estarei
fadada a este ser?
Me arrasto para o corredor, e me encolho em posição fetal,
fecho os meus olhos e tento a esquecer, talvez funcione assim. Fico
me balançando de um lado para o outro, ainda de olhos fechados e
abraçando minhas pernas. A perturbação gerada pela criatura parece
passar momentaneamente, entretanto, de forma brusca cessa, quando
sinto que encostei em algo no corredor, que antes estava vazio.
Eu apenas levanto minha cabeça e abro meus olhos, e lá está
ela, ajoelhada assim como eu, me encarando. Pela primeira vez pude
observar seu rosto, que não apresenta uma real feição, mas consigo
distinguir seus olhos e boca. Ela está parada, nossos rostos estão a

8
centímetros de distância, eu a encaro e não consigo entender o que
realmente estou vendo.
Me encontro paralisada, sem qualquer reação, meu corpo deve
estar mais gelado e pálido do que o de um cadáver. Já faz um tempo
que estamos na mesma posição, quem se moverá primeiro? O que virá
depois disso? Eu tenho medo. Penso em tudo que já vivi, 26 anos
apenas, tenho muito para vivenciar ainda. Todos esses pensamentos
percorrem minha cabeça, até que meus olhos se fecham e abrem
novamente, e em minha frente, consigo me enxergar...

Mary?
Uma voz ecoa pela minha mente, e por todos os cantos do meu ser.
Correr! A única coisa que preciso fazer. Apenas fugir, para algum
lugar, seja qual for.

Me levanto e parto desesperadamente para a porta, procurando


minhas chaves, pelo sofá, pelo armário, pelo balcão, não consigo as
achar, minhas pernas estão bambas, meu corpo parece ter entrado num
estado catastrófico de medo e pavor. É como se eu me movimentasse
apenas por puro extinto, nem sei se realmente estou ciente do que
faço.
Olho para o chaveiro, e lá estão as chaves, corro batendo em
todas as paredes e móveis que têm pelo caminho. Pego as chaves, e
tento as encaixar na fechadura, minhas mãos me impedem de acertar,
fazendo-me apoiar contra a parede, me debatendo em pavor. Dou uma
olhada para trás e não vejo a criatura em canto algum, então me viro e
a chave finalmente encaixa, e a maçaneta gira, mas nem sequer
encostei na maçaneta, minha mão não é minha mão.

9
Permaneça.
Eu não preciso mais fugir.
Tem alguém do outro lado da porta, mas eu não posso sair, eu não
quero sair.

Estou sentada a mesa em meu quarto em algum momento,


minha visão está turva, não consigo distinguir direito o que estou
escrevendo nesse caderno, mas estou tentando. Ela está comigo,
debruçada sobre meu corpo, sua presença se mesclando e decompondo
em meu ser. Ela que dita minhas vontades, ela foi quem escreveu isso.
Me sinto confortável com sua presença, ela cuidará de mim. Não sinto
nada, afinal, não sou eu.

Desde então Mary Collen nunca mais foi a mesma diante de seus
poucos amigos e familiares.

Fim
10
Resquício
“Quando a morte não for o bastante para encerrar o amor... ”

Nolan foi o homem mais doce e gentil que conheci, sempre me


lembrarei dele. No tempo que estivemos juntos, ele sempre se mostrou
um verdadeiro homem e acima de tudo um grande pai para nossa
filha, tenho certeza que ele continuará nos protegendo e cuidando
todos os dias de onde quer que esteja. Serei eternamente grata por
tudo que você pôde me proporcionar, meu eterno amor.
Foi isso que disse em seu funeral. Ainda que Nolan tenha
falecido há dias, recordo das palavras que falei durante o velório, e
isso sempre me faz desabar em lágrimas. Por sinal, nem pude terminar
meu discurso, as palavras começaram a se misturar com soluços,
apenas me agarrei ao seu caixão sem dizer mais nada.
Muitos se opuseram a minha ideia de continuar morando em
nossa casa, devido todas as memórias que aqui criamos. Ultimamente
tenho passado mais tempo na varanda, apenas observando o lago. É
confortante a amarga sensação de que ele finalmente se foi de seu
sofrimento, e que pude aproveitar cada segundo ao seu lado.
Ainda me lembro como se fosse ontem das vezes em que eu
era recebida por brownies feitos por ele, das vezes em que passávamos
horas deitados na beira do lago, olhando para as nuvens, de toda a
barulheira que ele fazia quando passava horas na garagem arrumando
o nosso fusca.

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O pior de tudo é saber que nossa filha não conhecerá tão bem o
pai. Lise tem apenas 4 anos, Nolan não desgrudava dela, seu olho
chega brilhava ao vê-la. Ela se parece tanto com ele, em cada detalhe,
seus olhos verdes, o cabelo loiro, as covinhas, tudo, uma verdadeira
xerox do pai.
Ela tem ficado mais quieta ultimamente, é provável que tenha
sentindo a falta dele, não sei como trazer conforto para ela, mas tento
distraí-la, e acabo por me distrair junto.
Estou afastada do meu emprego, trabalho home-office, devido
a distância entre nossa casa e a cidade. Estou com muito tempo livre,
então estou tentando me aventurar na cozinha, assim como Nolan
fazia.
Nessa noite fiz uma macarronada com ervilha e milho, Lise
detesta vegetais então reservo uma parte sem eles. Nolan insistia
muito para Lise comê-los, já que ele era vegetariano, e gostaria que
Lise fosse da mesma forma, mas ela ama carne.
Quando fomos para a cama, de madrugada peguei-me
refletindo sobre minha vida, você tinha que partir justo agora, Nolan?
Desde que você se foi sinto uma pertinente dor de cabeça. Tantos
planos que ainda tínhamos, por que você tinha que ser tão teimoso?
Ele aparentemente tinha uma doença especifica que se despertava
quando ele pegava gripe ou algo do tipo, ainda não sei direito o que
era, pois ele nunca me contou mesmo com anos de casados.
Sua família sempre teve ciência da doença, sempre estranhei
suas saídas, mas nunca levei em consideração que poderia ser isso. Há
quatro meses ele piorou da gripe, acompanhada de tosses, dores no
corpo, e febre. Isso deveria ter sido uma doença passageira, mas por
causa de sua teimosia, negando medicamentos e ajuda, se tornou um
inferno.
Ao buscarmos ajuda, já era tarde demais, a doença havia
piorado, ele havia desenvolvido pneumonia. O pulmão estava muito
comprometido, era um caminho sem volta, assim tive que ver o amor

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da minha vida lentamente sucumbir. Por isso também digo que foi um
alivio sua partida, já que seu sofrimento foi cessado.
Acordei cedo pela manhã, preparei torradas com bacon, Lise as
adora. Para não perder o costume, procuro a receita dos brownies que
Nolan costumava fazer, vejo os ingredientes, e os anoto em um papel.
Mais tarde encomendarei tudo, pois moramos pouco longe da cidade,
o suficiente para ser mais viável que alguém nos traga as compras, até
porque não tenho total confiança em mim mesma para dirigir o fusca,
ainda mais com a Lise.
Após o café vou para o banheiro, tomo banho, e dou um belo
banho em Lise, deixo ela brincando na banheira, com a espuma e
patinhos de borracha, durante alguns minutos. Enquanto isso dou uma
hidratada no meu cabelo, passo alguns cremes, que por sinal, Nolan os
comprou para mim em meu aniversário.
Assim que acabo de arrumar Lise, decido que hoje o dia será
produtivo, faz tempo que não arrumo a casa, ela está precisando de
uma faxina urgente, então durante a manhã toda me ocuparei de
limpar a casa.
Longas horas se passaram, já preparei o almoço, estava uma
delícia. Já é de tarde, Lise costuma dormir em torno dessa hora, então
é um bom momento para eu aproveitar e descansar. Assim me deito e
ponho de fundo uma musiquinha calma e tranquila.
Minha mente estava se distanciando da realidade, até que
abruptamente me desperto ao escutar um forte barulho de motor
similar ao de um fusca, rapidamente me levanto. Recentemente perdi
meu marido, moro em um local afastado da cidade, sou uma mulher
sozinha com minha filha, estou numa situação de vulnerabilidade, e
alguém poderia estar tentando roubar nosso carro.
Nolan tinha um revólver dentro do guarda roupa, ele me
ensinou a como atirar, caso preciso, claro. Assim fiz, peguei o
revólver, Lise continuava dormindo, então a deixei no quarto, apenas

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certifiquei-me de trancar a porta, para que ninguém pudesse encontrá-
la.
O sol estava quase se pondo, minhas mãos tremiam muito, a
cada passo que eu dava a madeira rangia, e o som de motor continuava
dentro da garagem. Desço as escadas vagarosamente, com toda a
certeza têm alguém nessa casa, um fusca não se ligaria sozinho do
nada.
Verifico as portas, todas estão trancadas, vejo que as chaves do
fusca estão no chaveiro, sendo assim, talvez alguém tenha feito
ligação direta, de qualquer forma, a pego. Me aproximo da garagem,
abaixo a persiana, espio pela janela da porta, o fusca está lá, e tudo
está fechado. Passo um tempo olhando e nenhum sinal de vida, então
tomo coragem e destranco a porta, ainda segurando o revólver.
Dou uma vasculhada na garagem, e realmente não há ninguém
ali, nem mesmo dentro do fusca. Abro a porta do carro e o desligo,
pode ter sido apenas um curto, esse carro já é um pouco velho e
sempre apresentou problemas, ainda que Nolan se estressasse, ele
passava horas aqui dentro mexendo em uma coisa e outra nesse fusca.
Pelo jeito foi tudo um alarme falso, entretanto, assim que
começo a subir as escadas, escuto um barulho de buzina vindo da
garagem, não há como isso ser normal. É compreensível o fusca ligar
sozinho, mas até buzinar? Não escuto barulho de motor e as chaves
estão penduradas no chaveiro. Sem muito enrolar, vou de uma vez
para a garagem.
Ao chegar, vejo que tudo continua vazio, novamente dou uma
olhada e nada. Quando estou prestes a sair, escuto outra buzina, dessa
vez, escutando com mais atenção, vejo que na realidade as buzinadas
eram do lado de fora da casa. Vou para a porta da frente, encostado a
garagem, e vejo que do lado de fora há um homem parado, ao lado de
uma moto, com uma carroça presa junto a ela. Que alivio, eram apenas
as encomendas que eu havia feito.

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Escondi o revólver na gaveta da cozinha e saí para o exterior,
me desculpei com o rapaz pela demora, ele disse que tinha acabado de
chegar, ele também me ajudou a carregar as compras, e prestou seu
respeito ao falecimento do meu marido, ambos se conheciam há muito
tempo, mas não tinham tanto contato um com o outro.
Aliviada, lembrei que havia deixado Lise sozinha no andar de
cima, rapidamente corri para lá e a menina ainda estava dormindo
graciosamente. Deixei ela descansar, e fui arrumar as compras, bem
como preparar a janta.
A noite se passou, acordei cedo com a mesma dor de cabeça
que venho sentido após a partida de Nolan. A sensação de estar
vivendo um pesadelo, é horrível. Continuo a vê-lo por todos os
cômodos da casa, é torturante, mas tenho fé que uma hora me
acostumarei, afinal, essa casa nos pertence, e não sairei dela.
De café da manhã, farei os brownies que Nolan fazia, sigo a
receita passo a passo, misturo todos os ingredientes, reservo tudo
numa forma e coloco para assar, e pronto, brownies prontos. Como
um pouco e ofereço para Lise, eles não ficaram tão bons quanto os de
Nolan, mas até que dá para o gasto.
A manhã se resumiu em brincar com a Lise, correr e pular é o
que ela mais gosta. Passando para a tarde, após o almoço, assim como
anteontem eu a coloco na banheira, e brinco com ela durante alguns
minutos, depois de um tempo a retiro da banheira e a seco, coloco
uma roupinha confortável e a levo para a sala, enquanto termino de
secar o cabelo e escovar meus dentes.
Escuto barulhos de madeira rangendo e Lise está rindo, chego
de fininho e espio pela lateral da porta, consigo vê-la pulando de um
lado para o outro na sala, semelhante a como fazia com Nolan, ambos
passavam horas correndo por toda a sala, brincando de coelhinho.
Talvez ela esteja relembrando das brincadeiras que fazia com seu pai,
deixo um sorriso escapar no canto da boca, me viro e volto para o
banheiro.

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Mais um dia se passou, e a dor de cabeça apenas piorou,
comecei a tomar remédios para aliviar, e até que têm funcionado, mas
durante as noites não tenho conseguido dormir, nem mesmo um
soninho a tarde. Assim tenho passado a observar o pôr do sol pela
janela do quarto
Lise está dormindo como de costume, então novamente me
posicionei sentada na cama com uma bela vista para o lago, assim eu
esperava... depois de tanto tempo sem dormir, minha mente já estava
cansada, então finalmente consegui pegar no sono, meu corpo caiu
para trás como se eu estivesse numa nuvem, uma sensação
verdadeiramente boa.
Entretanto minha felicidade durou pouco tempo, ainda de
olhos fechados, ao fundo pude escutar risadas vindo do lago, risadas
familiares, eram risadas de Lise. Abro meus olhos rapidamente e vejo
que seu berço está vazio, minhas mãos congelaram.
Virei-me para a janela, eu conseguia observar um homem
sentado à beira do lago junto de Lise, ele estava olhando para o
horizonte, Lise pula de um lado para o outro, chamando sua atenção, o
homem se levanta e segura a mão de Lise, ele se vira para mim, e dá
um sorriso familiar, me senti abraçada por ele, tento focar a visão, mas
o reflexo forte do sol em conjunto da água me impede.
Desço as escadas o mais rápido que consigo, meu coração
parecia que ia saltar para fora do meu peito, eu estava repleta de
adrenalina. Minha dor de cabeça simplesmente sumiu, eu não sei se
tinha certeza do que havia visto, apenas sabia que aquilo era um sinal.
Saindo de casa, corro pelo campo, ainda encandeada pelo
clareado do sol, me aproximando mais de perto, vejo Lise sentada
brincando com a terra. Observo ao redor e ela está sozinha, não há
ninguém além de nós duas. Pego-a no colo e pergunto onde estava o
homem, ela apenas me abraça, e diz com uma voz doce e delicada “Eu
estava brincando com o papai”.

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Isso foi o suficiente para me fazer desabar em lágrimas, tenho
certeza que vi Nolan, ele esteve aqui, ou melhor, ele ainda está aqui,
tudo que vem acontecendo ultimamente, deve ser por causa dele, até
mesmo depois de partir ainda cuida de nós. Eu o amo, e sempre o
amarei, obrigado por tudo Nolan, descanse em paz.

Fim
17
Carapuça
“Quando a carapuça não serve... ”

Mais um dia, passando horas numa sala de aula. Antes eu fosse


um aluno, entretanto, sou o professor, e tenho que repetir o mesmo
roteiro diário de aula diversas vezes, para mais de seis turmas
diferentes. A parte legal é que cada turma tem sua própria
personalidade, bem como os alunos que as compõe.
Nesses últimos dias tenho ficado até de madrugada na escola,
minha operadora de rede de internet está em manutenção, assim seus
serviços estão paralisados, e eu estou trabalhando em um projeto de
um aplicativo mobile, assim tenho que aproveitar os intervalos entre
as aulas, e usufruir da internet da escola o máximo que posso.
Terminando os trabalhos, arrumo a sala e vou para casa a pé,
para economizar dinheiro, já que pretendo trocar de empresa de
serviço de internet, para que problemas como esses não ocorram mais.
Além de que, gasto no máximo 20 minutos indo da escola para casa.
Chegando, posso finalmente ser recebido com os finos e
delicados miados da minha gata, vulgo FF. Agora que estou em casa,
largo minhas roupas e mochila pela sala e vou direto para o banheiro.
Tomo um bom banho, e vou para a cozinha preparar algo para comer.
FF me segue para todo canto com seu caminhar elegante, ela é
bem ativa para uma gata de 7 anos de idade, ouvi dizer que eles vivem
em torno de 12 anos, então ela já passou da metade, mas não é bom

18
pensar dessa maneira, quero que FF seja eterna, e fique comigo para
sempre.
Faz tempo que minha gata não toma banho, amanhã acordarei
mais cedo do que de costume, e darei um banho nela. Dito e feito, FF
não gosta de banhos, mas também não faz tanto drama quanto alguns
gatos por aí, ela apenas não se diverte, e colabora para que termine o
mais rápido possível.
Sua pelagem meio cinza tricolor se torna escura quando em
contato com a água, ela fica toda tremula, parece voltar a ser um
filhotinho, é extremamente fofo. Ainda que eu passe o dia fora, tenho
tentado dar mais atenção e cuidado para ela. Assim que o banho
termina, eu a seco e passo alguns cremes, para que sua pelagem fique
macia e aconchegante. Troco sua areia, a água e a ração. Agora posso
partir para mais um longo dia de trabalho.
Depois de aturar crianças gritando no meu ouvido durante
horas, corrigir mais de cem simulados, e tomar mais de quatro xicaras
de café, pude finalmente dizer adeus para a escola, pelo menos por
hoje.
Chegando em casa, esperava me deparar com a FF deitada na
rede, mas estranhamente tudo estava quieto, então quebrei o silêncio
chamando-a, e para minha surpresa, nem sinal da FF.
A FF costumava brincar no arranhador, e com uma bolinha
cuja tem um sino dentro, que faz barulho toda vez que arremessada.
Peguei-a e joguei pelo corredor, esperando que FF pulasse em cima e
saísse rolando junto da bolinha, mas isso não aconteceu.
Saí pela casa procurando a gata, mas sem sucesso. Continuei a
chamando, até que lentamente do quintal vejo algo se aproximando
com um caminhar desengonçado. Ufa, era a FF, ela estava mais
quieta, apenas chegou aos meus pés e levantou a cabeça me
encarando.
Seus olhos estavam com as pupilas dilatadas, isso significava
que ela está confortável, ou com medo. Não sei, mas algo está errado.

19
A gata estava fedendo, sendo que eu havia dado banho nela
ontem, por onde que essa gata andou? Na realidade, como que ela saiu
de casa? Eu sempre deixo tudo trancado, todas as janelas têm redes de
proteção, justamente por que esse bairro tem muitos gatos
abandonados, e tenho medo de que possam fazer algum mal para a FF.
Aproveitei que estava com tempo livre e a peguei para banhar.
Estranhamente ela resistiu, saltando das minhas mãos, e correu pela
casa, se escondendo atrás do sofá. Talvez algo tenha acontecido com
ela, no tempo que ficou fora, então o melhor é deixa-la à vontade,
amanhã verei o que faço.
Mais um dia se passou, hoje consegui terminar a interface
principal do aplicativo, um grande passo para o projeto. Retornando
para casa, novamente não fui recebido pela FF, então tive de chama-
la, e mais uma vez a casa estava vazia.
Continuei a procurando, até que escutei um leve grunhido,
similar a um miado, só que completamente distorcido e estranho. Esse
som veio de cima da casa, então fui ao quintal e observei o telhado,
que com nenhuma novidade estava vazio.
Juro ter escutado algum barulho vindo de cima, talvez pudesse
ser a FF, de alguma forma ela poderia ter se enfiado dentro do forro. A
única entrada possível para lá seria através de um buraco que tem no
teto no interior da casa, entretanto essa passagem fica presa por
pregos, não tendo chance de ela ter passado por ali.
Mesmo assim, escutei novamente outro miado abafado e
medonho vindo do teto. Tentei chamar pela FF, mas nenhum barulho
fora feito, então peguei uma escada e um martelo, me aproximei,
retirei os pregos e abri a passagem para o forro da casa.
Com uma lanterna pude ver que o lugar estava completamente
sujo e bagunçado, o teto era baixo devido as telhas da casa, o piso era
frágil, pois não foi um lugar feito para locomoção humana, ainda que
o local tenha essas características, acima de tudo o que chama a
atenção, é um cheiro podre, que tomou conta do meu nariz.

20
Era como se algo estivesse morto lá em cima a dias. Segurei a
respiração para não vomitar, e dei mais uma olhada rápida, vi que ao
fundo havia uma pequena brecha de luz, devido algumas telhas que
estavam afastadas, e mais ao lado, encolhido, vi um pequeno ser se
mexendo em silêncio. Deduzi que fosse a FF, então tentei a chamar, e
após alguns minutos de insistência, lentamente a criaturinha foi se
aproximando, e pude ver que realmente era a FF.
Após ela chegar perto, pude notar que o odor vinha de seu
corpo, o cheiro era insuportável. Ela pulou para o chão da casa, e por
minha vez rapidamente fechei a passagem para o forro e corri para o
quintal, o ar puro deu uma aliviada na ânsia, mas ainda assim
conseguia sentir o cheiro podre vindo da FF.
Tomei coragem e entrei na casa. FF estava parada na cozinha,
olhando para o teto imóvel. Sua ração estava intacta, bem como sua
água e sua areia, ela nem sequer havia mexido. O que estava
acontecendo com essa gata? Por que ela estava agindo dessa maneira
tão incomum? E principalmente, por que ela está fedendo tanto?
Moscas surgem ao seu redor, provavelmente atraídas pelo
cheiro, elas ficam rodopiando pela cozinha, algumas até sentam sem
seu focinho, mas FF nem se importa. Novamente tomei coragem e me
aproximei lentamente, tentando chamar sua atenção, parecia uma boa
ideia.
Sigo a chamando, até que, algo acontece, algo que me fez
sentir um verdadeiro medo. Sem abrir a boca, um miado abafado e
desafinado posso escutar vindo do corpo da gata, ela nem se mexeu.
Mais uma vez, escuto o mesmo miado vindo do seu corpo, dessa vez
ela abre a boca, mas o som parece sair com atraso, sendo emitido
muito depois de ela fechar a boca.
Estou sem dormir direito, e isso talvez esteja afetando o meu
psicológico, ficar horas planejando aulas e trabalhando nesse projeto
de aplicativo, pode não ter sido uma boa ideia, ainda assim, acredito

21
que isso não seja apenas uma coisa da minha cabeça, isso tudo que
está acontecendo é real, e existe.
Sendo ateu, não me deixo abalar tão facilmente, sou cético
quanto a isso, mas dessa vez é diferente, nunca havia sentindo tanto
medo em toda a minha vida. É perturbadora a sensação, o que diabos é
isso que está em minha frente? Ainda que eu esteja vendo minha gata,
é como se não fosse ela.
Ela finalmente se mexeu, virando-se para mim, e lentamente
foi caminhando de costas, um passo após o outro, com sua calda que
antes se balançava, agora era arrastada pelo chão, junto de seu olhar
vazio que penetrava em minha alma. Sem miados, sem barulhos,
apenas o silêncio gritava durante essa noite. Continuei a encara-la,
enquanto cada vez mais ela se afastava, até que na penumbra da noite,
seus olhos pararam de brilhar, e assim a perdi de vista.
Desde então ela nunca mais voltou, e sinceramente, acho
melhor que seja assim, tenho certeza que aquela coisa não era mais a
FF, não havia mais dúvidas, seja lá o que for, a coisa se fantasiou da
minha gata, usando-a como uma carapuça.

Fim
22

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