DOCUMENTO, MEMÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA
WASHINGTON TOURINHO JÚNIOR*.
Introdução
O historiador, enquanto pesquisador possui um posicionamento social e
institucional e um conjunto de condicionamentos que constroem a peculiaridade do seu
discurso e a concreticidade de seu objeto. Enquanto intelectual está articulado a um tempo, a
um espaço e a um saber institucional, enquanto sujeito social a uma ideologia e a uma visão
de mundo e enquanto profissional a um conjunto de regras que limitam e dão força a seu
discurso.
O historiador tem “o tempo” como “material de analise” ou como objeto
específico. Trabalha de acordo com os seus métodos, os objetos físicos (papeis,
pedras, imagens, sons, etc.), que distinguem no continuum do percebido, a
organização de uma sociedade e as pertinências próprias de uma ciência. Trabalha
sobre um material para transformá-lo em História. Empreende uma manipulação
que como as outras obedece a regras. (CERTEAU, 1982: 79)
A escrita histórica é, portanto, uma escrita que se define por suas próprias
necessidades e seus métodos próprios. O historiador parte de um referencial teórico que é
próprio de sua disciplina e, por mais que transite em outros espaços teóricos e institucionais1,
seus marcos referenciais acabam determinando a estética e os objetivos de sua escrita. Como
nos aponta Certeau fazer História é uma prática e por este motivo ela deve servir-se de um
conjunto de técnicas de produção, de conceitos e de fontes que possibilitem a construção dos
seus resultados de forma articulada. A pesquisa histórica, enquanto espaço de ação do
historiador, deve ser sempre entendida como um elemento de mediação entre a teoria e a
prática, possibilitando a ligação entre o historiador e a sociedade da qual faz parte enquanto
sujeito.
* Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Maranhão, doutorando do programa de
pós-graduação em História da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista, Campus de
Assis e Bolsista CAPES.
1
Este trânsito teórico e institucional que relatamos apóia-se na noção de interdisciplinaridade do conhecimento
histórico. Esta noção permite à História ampliar os seus campos de abordagem, mas não remete a uma
descaracterização do conhecimento Histórico, tanto no nível acadêmico, quanto no nível escolar.
Enquanto sujeito social o profissional de história transita em níveis diferenciados
que se definem entre a pesquisa e o ensino2. Estes níveis estabelecem características próprias
para cada tipo de escrita, ou seja, mesmo internamente a produção histórica segue padrões
diferenciados, dependendo do espaço institucional em que se encontra. Um bom exemplo
desta questão pode ser observado nas produções didáticas, que obedecem a regras
diferenciadas das regras adotadas para a produção historiográfica, não impedindo com isto
que um mesmo profissional possa transitar nos dois espaços, dependendo é claro, do processo
de formação e de sua base teórica e metodológica. O autor de livros didáticos toma como
referência as noções esboçadas no meio acadêmico, reinterpretando-as e dando as mesmas
concepções mais de acordo com a conjuntura sociocultural da qual faz parte como
profissional. Esta dinâmica, ampliada no final dos anos 1970, consiste hoje em um elemento
importante na formação da cultura escolar3.
No final dos anos 70 e início dos 80 o movimento de ampliação das pesquisas e do
repensar do ensino é acompanhado por um processo de mudanças nas relações
entre o conjunto da Indústria Cultural e as instituições educacionais produtoras de
conhecimento. A Indústria Cultural passa a participar ativamente do debate
acadêmico, adequando e renovando os materiais, aliando-se aos setores intelectuais
que cada vez mais dependem da mídia para se estabelecerem na carreira acadêmica
(FONSECA, 1993: 142).
Apesar do exposto, deve-se levar em conta que esta aproximação não conduziu
a um rompimento dos critérios de validação e caracterização de cada espaço. Mesmo com a
participação cada vez mais freqüente de profissionais oriundos do meio acadêmico na
confecção didática do texto histórico as regras e técnicas de produção textual mantiveram-se,
uma vez que os condicionamentos sócio-culturais, que levam a elaboração do texto histórico
em cada espaço determinado, obedecem a critérios relacionais diferenciados existentes em
cada espaço específico.
2
Espaços de ação tradicionais do profissional em História. Optamos por restringir nossas analises a estes dois
espaços dando ênfase à escrita didática da História, para manter as conexões necessárias com a pesquisa que
desenvolvemos.
3
Segundo Kátia Aboud: “Em quase dois séculos de existência da escola secundária, constituiu-se uma tradição
quanto ao ensino de História e os conteúdos que a compõem, na qual intervém a produção historiográfica, os
documentos legais, a formação de professores, a produção de materiais didáticos, todos os componentes
assentados no contexto em que se desenvolve a prática escolar.” (ABOUD, Kátia. A história Nossa de cada dia,
saber escolar e saber acadêmico na sala de aula, In MONTEIRO, Ana Maria et. All. (org). Ensino de História:
sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro. Mauad X: FAPÈRJ. 2007. p107). Esta afirmação remete ao que se
convencionou chamar de História Escolar, produto direto da Cultura Escolar.
O Historiador (síntese das dimensões ensino/pesquisa), enquanto produtor, deve
ser entendido como um agente de mediação e transformação que transita entre o “dado e o
criado”, manipulando elementos da natureza e transformando-os em objetos interpretativos
fundamentais na construção de suas certezas e na afirmação de seus pontos de vista. A escrita
histórica, produto direto deste sujeito deve ser entendida como um ofício com normas e
técnicas próprias – tanto a nível interno quanto externo – que ajudam a manter a História
enquanto uma disciplina que dialoga com as demais sem perder a sua autonomia e seus
padrões de referência, tanto em relação à pesquisa, quanto em relação ao ensino.
As discussões existentes no meio acadêmico acabaram por fornecer o material
necessário para as transformações ocorridas na História Escolar. O alargamento das noções de
fonte e de escrita e a valorização das produções ligadas ao ensino de História abriram espaço
para que profissionais ligados as instituições de ensino superior passassem a transitar no
espaço escolar, tanto como referência teórico metodológica, quanto como autor de obras de
grande difusão no meio escolar.
A história escolar é uma configuração própria da cultura escolar, oriunda de
processos com dinâmica e expressões diferenciadas, mantendo na atualidade,
relações e diálogos com o conhecimento histórico stricto sensu e com a história
viva, o contexto das práticas e representações sociais. Fonte de saberes e
legitimação o conhecimento histórico “acadêmico” permanece como a referência
daquilo que é dito na escola, embora sua produção siga trajetórias bem específicas,
com uma dinâmica que responde a interesses e demandas do campo científico e que
são diferentes daquelas oriundas da escola, onde a dimensão educativa expressa as
mediações com o contexto social. (MONTEIRO, 2007: 123)
Tais mudanças legaram ao ensino de história novas formas de interpretação e
utilização da massa documental existente no campo da pesquisa histórica, o que possibilitou a
inclusão de um conjunto diferenciado de temáticas e metodologias, além da quebra do
monopólio exercido pela história de cunho macro interpretativo e linear, abrindo espaço para
analises que levassem em conta os diversos sujeitos e tempos existentes na construção do
conhecimento histórico.
Circe Bittencourt, ao citar uma pesquisa realizada por alunos estagiários do curso
de Prática de Ensino em História da FE/USP no ano de 1997, demonstra como a utilização de
documentos por professores da educação básica, vinha se diversificando e transformando a
prática pedagógica dos professores em sala de aula e as formas de abordagem dos assuntos
nos livros didáticos de História. Segundo a referida pesquisa, realizada com 50 professores da
rede estadual e municipal de São Paulo, 83,8% dos professores entrevistados, utilizavam
como materiais pedagógicos as notícias de Jornais; 80,6% utilizavam filmes e 77,4%
musicas4(2008: 337). Mesmo restrita ao município de São Paulo a pesquisa demonstra como
as discussões existentes no meio acadêmico, a respeito do sentido e da utilização dos
documentos na construção do conhecimento histórico, transpõem-se para a história escolar
seguindo uma lógica própria da cultura escolar, aumentando o raio de ação dos profissionais
ligados a área do ensino de História.
Como vemos a ampliação dos sentidos de documento e fonte histórica e a
valorização dos documentos não escritos, como depoimentos orais e imagens, para a
construção do conhecimento histórico, foram pouco a pouco se imiscuindo na história escolar
através da transformação dos mesmos em materiais de ensino e objeto de análise, pelos
professores de História da educação básica.
As fontes de pesquisa e as opções metodológicas do ensino de História
As fontes de pesquisa consistem no instrumento de trabalho do historiador. Ele –
o Historiador – apropria-se delas por meio de diferentes abordagens e metodologias5. Ao
selecionar, separar e dar novo sentido aos materiais da memória o historiador, como um
coletor de vestígios, apropria-se das informações e transforma os “monumentos da memória”,
– expressão utilizada por Jacques Le Goff – em documentos utilizáveis para a construção do
seu objeto.
Em História, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar
em “documentos” certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova
distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade, ela consiste em produzir
tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar esses
objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu estatuto. (CERTEAU, 1982:
81)
4
Esta pesquisa direcionou-se ao estudo da História recente do Brasil, mas precisamente ao período da ditadura
militar de 1964 a 1985.
5
Para Fernando Seffner a inclusão de novos aportes teóricos e metodológicos no ensino de história ocasionou
uma reinterpretação da área de abrangência do conhecimento histórico no âmbito escolar, passando a ser
observado como constituído a partir de quatro campos: 1) o conhecimento da disciplina – no caso a História, 2)
os problemas contemporâneos, 3) as concepções dos alunos e 4) os interesses dos alunos, numa articulação em
que nenhum dos termos pode ser considerado “mais importante” que qualquer dos outros. (SEFFNER, Fernando.
Teoria, metodologia e ensino de História. In GUAZZELLI, Cesar Augusto. Questões de teoria e metodologia da
História. Porto Alegre. Ed Universidade/UFRGS. 2000. p 258).
A transformação dos vestígios em documentos comprobatórios da pesquisa torna-
se, então, a atitude primeira do historiador. Ao realizar tal operação o profissional de História
produz um corpo documental a partir de uma base teórica que antecede e que propicia a visão
destes vestígios de forma bem peculiar. Os vestígios utilizados para a pesquisa seguem uma
única lógica, imposta a partir do espaço de ação do historiador. Tal lógica impede que, em
História, o termo fonte seja entendido como algo fechado e restrito ao âmbito da legalidade
(como produto do corpo institucional do Estado Nação). Para além desta perspectiva o
conjunto das fontes adotadas pelo historiador segue, em linhas gerais, as suas próprias
concepções teórico-metodológicas, mais objetivamente, é o campo de abordagem escolhido
pelo historiador que determina, de forma antecipada, a concepção de fonte e o volume de
vestígios adotados como documentos.
Mas, afinal, qual o traço comum que permite chamar de fontes para o
conhecimento histórico coisas tão díspares como uma estátua grega do séc. V a. C.,
uma máscara Maia, uma carta do Marques de Pombal, um concerto de Mozart, uma
película cinematográfica, um artigo de jornal sobre os perigos do desmatamento,
uma entrevista gravada de um trabalhador em greve, uma fotografia, uma
telenovela? A resposta está no interesse do historiador em inquirir o que essas
coisas revelam sobre as sociedades às quais elas pertencem e na criação de uma
natureza explicativa sobre o resultado de suas análises. (JANOTTI, 2006: 10)
A concepção de fonte de pesquisa alargou-se consideravelmente durante o
séc.XX, passando a compor o campo das escolhas inerentes ao historiador, adquirindo, desta
forma, o estatuto de documento, objeto sem o qual a pesquisa histórica não atinge seus
objetivos pretendidos. De início a concepção de documento restringia-se à concepção de
texto, ou seja, o documento era, sobretudo um texto, geralmente produzido dentro da
legalidade institucional. O papel do historiador seria “retirar dos documentos tudo o que eles
contem e em não lhes acrescentar nada do que eles não contem. O melhor historiador seria
aquele que se mantém o mais próximo possível dos textos” (LE GOFF, 1992: 536). Esta
concepção alterou-se consideravelmente a partir da segunda metade do séc. XX como
resultado direto da revolução historiográfica ocasionada pelo movimento dos Annales e da
redefinição dos conceitos de pesquisa histórica e de História nos circuitos responsáveis pela
produção do conhecimento.
A cada nova geração de historiadores novas concepções de fontes e novas
posturas metodológicas iam tomando forma na História. O contato cada vez mais freqüente
com outras áreas do conhecimento, a adoção de novas posturas interpretativas, a inclusão de
novas técnicas de análise e o advento da computação e da internet, trouxeram para história o
alargamento de suas possibilidades e a inclusão de novos objetos de estudo – como citado
anteriormente.
A concepção de fonte histórica herdada do séc. XIX teve seu primeiro grande
abalo com a modificação da relação da História com as demais ciências humanas. A interface
com a geografia, a economia, a sociologia, a psicologia e a linguística, trouxeram para
História novas concepções referentes às fontes de pesquisa. Passou-se a admitir como fonte
documentos oriundos de setores exteriores ao círculo oficial do Estado Nacional, como os
documentos paroquiais, os censos demográficos, as listas notariais, romances, cartas, artigos
jornalísticos, etc. O campo de observação do historiador alargou-se consideravelmente
trazendo consigo duas necessidades: uma ressignificação do conceito de fonte e a adoção de
novas posturas metodológicas.
Com a adoção destas novas posturas interpretativas a primazia do documento
escrito passou a ser contestada, principalmente com a inclusão as fontes orais no conjunto
documental utilizado pelo historiador. A utilização de depoimentos dos mais diversos matizes
e a construção de todo um corpo metodológico próprio para a realização das análises levou a
pesquisa histórica a um campo de abordagem antes restrito à sociologia e ao jornalismo. Ao
abrir espaços para as falas e depoimentos dos mais diversos sujeitos sociais a História Oral
possibilitou a inclusão de todo um conjunto de invisibilizados existentes na sociedade.
A força da história Oral, todos sabemos, é dar voz àqueles que normalmente
não a tem: os esquecidos, os excluídos, ou, retomando a bela expressão de um
pioneiro da história oral, Nuno Revelli, os “derrotados”. Que ela continue a fazê-lo
amplamente, mostrando que cada indivíduo é ator da história. (…) Dar a palavra –
amplamente – aos analfabetos e ao mundo da pobreza estrema; todos os que
tiveram esta experiência conhecem a qualidade de certos diálogos, a justeza do tom
e a riqueza dos testemunhos. (JOUTARD, 2000: 33)
A história oral trouxe, para o centro das discussões, sujeitos históricos
“desconsiderados” do ponto de vista de sua individualidade: imigrantes, mulheres, minorias
sociais, minorias étnicas, etc. Este movimento metodológico fez com que todo um conjunto
de regras e técnicas próprias da coleta e análise de testemunhos fosse incorporado ao discurso
histórico. As análises de Pierre Bourdieu, Maurice Halbwachs, Michel Pollak, entre outros,
passaram a transitar, com bastante freqüência, no campo da História6. Este movimento
provocou uma ampliação dos objetos e das temáticas ligadas à pesquisa histórica.
Outro movimento importante para a ampliação do conceito de fontes foi a
reorganização interpretativa do conceito de memória. Apoiada na idéia de que, apesar de
História e Memória ocuparem lugares diferenciados, ambas não perdem seus vínculos e suas
semelhanças, estes autores passaram a incorporar a suas pesquisas novos universos de análise.
Rompendo com análises macro estruturais, apoiadas na “velha” História Quantitativa e serial
de caráter meramente sócio-econômico, passaram a postular novas visões de objetos e campos
de ação, deste movimento surgem linhas como: A micro-história, apoiada na exploração
meticulosa de fontes lacunares e na redução das escalas interpretativas; a Ego-história com a
análise do papel da subjetividade e das histórias de vida, tendo como fonte e objeto o próprio
depoimento do sujeito; a História do Tempo presente que provocou toda uma ressignificação
da história política, reaproveitando fontes ditas tradicionais e dando a elas uma nova
concepção interpretativa.
A ressignificação do conceito de memória durante o séc. XX ocasionou fortes
mudanças na História escolar, as discussões sobre os “lugares da memória”, expressão
cunhada por Pierre Nora, e sobre a relação de interdependência entre História e memória,
possibilitaram um redimensionamento da postura do profissional ligado a área de ensino. O
professor de História ligado à História escolar passou a levar em conta não apenas o aspecto
informativo do conceito de memória, mas e, sobretudo, o aspecto identitário do referido
conceito.
A História alimenta a memória coletiva, não apenas da foram manipulatória
imposta pelos Estados, mas a contrapelo, compondo memórias de grupos e
coletividades que possam resistir, se opor a dominações políticas exteriores. Assim,
a História ensinada – que é uma das versões disponíveis do passado – contribui
para fazer os jovens compartilharem da memória atual dos adultos, tal como eles a
6
Segundo Roger Chartier foi o caso da introdução das técnicas de análise lingüística e semântica, dos meios
estatísticos utilizados pela sociologia ou de alguns modelos da antropologia. CHARTIER, Roger. História
Cultural: entre práticas e representações. Lisboa. DIFEL. Sd. p 15. Não se pode deixar de observar que a
introdução de técnicas e métodos advindos destas disciplinas não significaram uma descaracterização da
disciplina com relação a seus padrões e normas de produção, ao contrário, além de reforçar a História no campo
institucional, propiciaram um enriquecimento dos seus objetos de pesquisa e a inclusão de temáticas novas e
instigantes para o seu corpo de intelectuais.
reelaboram hoje e que, por sua vez, é objeto de disputas e conflitos entre diferentes
versões existentes no cotidiano e na cultura. (MONTEIRO, 2007: 109)
A utilização do conceito de memória de forma mais abrangente e autônoma em
relação à História teve como consequência a reorganização dos princípios de análise do texto
histórico, tanto a nível acadêmico, quanto a nível escolar, ampliando o sentido e as formas de
utilização do mesmo no ensino de História.
A este quadro ampliado de fontes e métodos juntou-se o estudo das práticas de
leitura, tal como postulada por Roger Chartier e Robert Darnton. Esta postura metodológica
abriu espaço para o estudo das formas de manuseio, de apropriação e de leituras dos materiais
impressos, fossem eles textos isolados, jornais, livros, manuais didáticos, etc. O estudo das
práticas de leitura conduziu á certeza de que a análise dos textos, impressos, ou não, não
poderia reduzir-se a um único método, ou a uma única perspectiva, ao contrário, a cada texto
analisado, dependendo da sua origem e do seu destino final, observava-se a necessidade de
um conjunto de técnicas e procedimentos diferenciados. Um texto jornalístico não poderia ser
analisado sob o mesmo prisma de um texto memorialista e este não poderia ser analisado sob
o prisma de um texto técnico. O estudo destas práticas de leitura evidenciaria outra questão,
os elementos plurais que envolvem a construção do sentido textual e impedem uma trajetória
lógica e um destino predeterminado para um mesmo texto.
De fato, hoje estão bem atestados tanto o manuseio de textos eruditos pelos
leitores que não o são, quanto a circulação, nem exclusiva, nem majoritariamente
popular, dos impressos de grande difusão. Os mesmos textos e livros são objeto de
múltiplas decifrações, socialmente contrastantes – o que deve levar,
necessariamente, a completar o estudo estatístico de suas distribuições com aqueles
de seus usos e empregos. (CHARTIER, 1996: 79)
Um exemplo desta questão está na análise da mídia impressa, que cada vez mais
vem servindo de base para as pesquisas históricas, tanto como fonte, quanto como objeto. O
estudo desta forma textual levou os historiadores que transitavam neste campo a adotar
formas específicas de analise e entendimentos do papel e do raio de ação deste conjunto de
fontes e objetos da pesquisa histórica. Tânia de Luca, ao analisar a revista do Brasil produzida
na era Vargas dá uma idéia da necessidade desta nova postura interpretativa.
O enfretamento deste objeto apresentou uma série de questões de ordem
teórico-metodológica, que antecederam a própria análise do material publicado.
Tratou-se de refletir acerca das múltiplas decorrências de se tomar os impressos e
periódicos como fonte e objeto, o que engloba não apenas a forma como eles se
apresentam aos leitores, mas também outros elementos, não imediata e
necessariamente patentes àqueles que percorrem suas páginas. Assim, o conteúdo
de jornais e revistas não pode ser dissociado das condições materiais e/ou técnicas
que presidiram o seu lançamento, os objetivos propostos, o público a que se
destinava e as relações estabelecidas com o mercado. (DE LUCA, 2008: 118)
O que se observa é que a ampliação do corpo de fontes levou a uma diversificação
das metodologias adotadas pelos historiadores, fazendo com que o caráter interdisciplinar da
História se tornasse cada vez mais determinante para a ação prática do historiador, trazendo
mudanças significativas para as produções ligadas ao ensino de História.
A História escolar, vista como produto específico da cultura escolar
(MONTEIRO, 2007: 123), passa a incorporar ao seu meio estas ampliações, transformando
estes documentos em materiais didáticos e possibilitando a adoção de novas metodologias no
ensino da disciplina.
Uma concepção mais ampla e atual parte do princípio de que os materiais didáticos
são mediadores do processo de aquisição do conhecimento, bem como facilitadores
da apreensão de conceitos, do domínio de informações e de uma linguagem
específica da área de cada disciplina – no nosso caso específico a História.
(BITTENCOURT, 2008:296)
Esta concepção de material didático abriu espaço para a utilização de documentos
produzidos sem intenção didática, porém de grande importância para as discussões existentes
no ensino de História. Estes documentos possibilitaram pouco a pouco a quebra do monopólio
exercido pela visão de tempo linear da história e a ampliação do universo de análise, que
deixou de restringir-se ao aspecto meramente informativo do documento, como se esse fosse
apenas um reflexo das ações materiais narradas nos livros didáticos.
A perspectiva ilustrativa dos documentos e a primazia dos suportes informativos7
como única forma de construção do conhecimento histórico, foram postas em xeque. A
observação do contexto dialógico em que se produz o documento, aliada a adoção de métodos
analíticos que tentam identificar os diversos sujeitos presentes na produção e interpretação
documental, produziu reflexos diretos na escrita didática da História e na postura adotada pelo
professor em sala de aula.
7
Os suportes informativos diferenciam-se dos documentos por constituírem-se em instrumentos produzidos
especialmente para as escolas, com uma linguagem própria e com um tipo de construção técnica que obedece a
critérios de idade, como vocabulários, extensão e formatação de acordo com princípios pedagógicos.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2ª Ed. São Paulo. Cortez.
2008. p 296
Os livros didáticos – materiais principais do professor e em muitos casos o único
instrumento de pesquisa para o aluno – refinaram-se e passaram a incorporar no seu texto –
tanto imagético, quanto narrativo – perspectiva de análise e interpretação que levassem em
conta o universo de produção, o contexto histórico e o espaço relacional de produção de toda
uma massa documental produzida fora dos espaços “tradicionais” de construção do saber
escolar.
A introdução de estudos que buscam desvendar as múltiplas relações dialógicas
incorporadas às obras humanas amplia a oportunidade dos alunos conhecerem
contextos históricos complexos, que se expandem em ressonâncias no tempo e que
se materializam em obras e acontecimentos. Possibilitam ainda escaparem a
explicações causais e simplistas, indo de encontro a olhares substanciosos,
recheados de referencias culturais, contextos e Histórias. (TERRA, 2002: 103)
As análises construídas direcionam-se então para o sentido de alteridade do
documento, permitindo a entrada em cena de fontes outras manufaturadas pelo professor de
acordo com o universo em que transitam os seus alunos, observando desta forma, o complexo
campo relacional em que transitam: a escrita didática, o conjunto documental adotado – tanto
na produção dos livros didáticos, quanto na confecção das aulas –, a capacidade cognitiva dos
alunos, o contexto sociocultural onde vivem alunos e professor e as normas protocolares
diversas que ajudam a construir a cultura escolar.
Estas questões, de forma prática, além de ecoarem na prática pedagógica adotada
pelo professor de História, refletiram, diretamente, na escrita didática da história, que, a partir
destas discussões, através de um imbricado processo de releitura destas novas tendências,
passaram a incluir em seus textos novos temas e novas abordagens8, demonstrando o papel
desempenhado pelo produtor do livro didático, transformando, tanto o autor, quanto o seu
texto em fonte e objeto da pesquisa histórica, demonstrando como a concepção de documento
e fontes de pesquisa tornaram-se conceitos abrangentes também para a História Escolar.
A análise dos livros didáticos de História passou a levar em conta não apenas o
conteúdo existente, mas os seus condicionamentos, as suas estratégias e a forma como a
8
Deve-se deixar claro que as modificações ocorridas na escrita didática da História foram fruto de um conjunto
de influências que se estenderam pelas novas posturas teórico-metodológicas do campo acadêmico, pelas
transformações ocorridas no mercado editorial e pelas normas protocolares adotadas pelo sistema educacional
brasileiro.
comunidade de autores/leitores9 apropriam-se de determinados tópicos teóricos e o
reproduzem em suas obras.
Todos os livros didáticos corporificam determinado projeto pedagógico. A
concepção de história ou de ensino de cada autor é fruto de uma opção teórica que,
implícita ou explicitamente, está presente na obra; o autor de livros didáticos, assim
como o historiador, é essencialmente um selecionador. Enquanto este seleciona,
dentre incontáveis manifestações humanas, aquelas que julga mais importantes
para o processo histórico, o primeiro privilegia, entre os já consagrados fatos
históricos, aqueles que julga dignos de serem repassados através do ensino
fundamental e médio. (CAIMI, 1999: 78)
A produção didática, como vemos, transita em um universo difuso, mas de vital
importância no processo de reprodução social e seus autores, tal como os historiadores de
nível acadêmico, desempenham uma ação institucional e social que, cada vez mais, afirma as
especificidades do discurso histórico e de seus condicionamentos, independendo do nível de
ação em que se encontra.
A História Escolar, resultado direto destas transformações e concepções, passa a
ser observada não mais como algo ligado apenas ao campo da educação, mas como um campo
específico que mantém íntimas conexões com a História acadêmica. Neste sentido a utilização
de fontes históricas “não tradicionais” e de uma metodologia diversificada que tente entender
e desmistificar o uso dos documentos no ensino e na escrita didática da História consiste no
principal desafio do profissional ligado a esta área.
Os documentos tronam-se importantes como um investimento ao mesmo tempo
afetivo e intelectual no processo de aprendizagem. (…) Um documento pode ser
usado simplesmente como ilustração, para servir como instrumento de reforço de
uma idéia expressa na aula pelo professor ou pelo texto do livro didático. Pode
também servir como fonte de informação, explicitando uma situação histórica,
reforçando a ação de determinados sujeitos, etc., ou pode servir ainda para
introduzir o tema de estudo, assumindo neste caso a condição de situação-
problema, para que o aluno identifique o objeto de estudo ou o tema histórico a ser
pesquisado. (…) Um desafio para o professor é exatamente ter critérios para a
seleção deste recurso. (BITTENCOURT, 2008: 328; 330)
9
Hoje em dia a separação entre o autor de livros didáticos e os historiadores não pode ser tomada em seu sentido
literal, uma vez que vários autores de livros didáticos são também membros ativos da comunidade acadêmica
nacional, é caso de Jobson Arruda e José Geraldo Vinci, da USP, Luiz Koshiba da UNESP, Ronaldo Vainfas da
UFF, Antonio Paulo Rezende da UFPE, entre outros.
As formas de utilização dos documentos na História escolar, conforme observado,
não podem seguir uma lógica predeterminada, imposta de cima para baixo, ou seja, os
métodos utilizados pelo professor de História na Educação básica e os métodos utilizados pelo
historiador – tomado aqui no sentido acadêmico – ocupam espaços e níveis interdependentes,
porém diferenciados, fazendo com que o mesmo documento tenha interpretações e análises
diferenciadas, o que não significa, em hipótese alguma, a perda dos referenciais teóricos que
caracterizam o campo da História, tanto em relação a pesquisa, quanto em relação ao ensino.
Conclusão
Como podemos observar, analisar o conhecimento histórico e seus materiais de
concretização significa, na realidade, realizar uma operação em que se articulam os múltiplos
níveis de atuação do discurso histórico, em nosso caso o nível acadêmico e o nível escolar, e
os diversos aspectos que compõem o mundo do historiador. Tal analise deverá levar em
questão não apenas o aspecto conteudista das fontes documentais utilizadas na construção das
interpretações e das certezas discursivas do profissional ligado a área do ensino de história,
mas os diversos aspectos e condicionamentos que perpassam a obra histórica e seus materiais,
tais como: afiliação teórica e metodológica dos autores dos diversos textos, inclusive o texto
didático; o tempo e o espaço de produção dos documentos utilizados como materiais didáticos
no ensino de História; o espaço institucional e a construção do monopólio discursivo em torno
das estratégias informativas adotadas; as concepções de fonte de pesquisa e de documento,
existentes no momento da utilização destes materiais pelas diversas escolas de pensamento; o
diálogo historiográfico existente em torno da utilização ou não de determinada categoria, ou
grupo de documentos; e, por fim, os diversos níveis e métodos de utilização dos documentos e
textos históricos existentes.
Estas discussões não podem deixar de levar em conta, como vimos, outro conceito
fundamental para construção do conhecimento histórico, tanto a nível acadêmico, quanto
escolar, o conceito de memória. O entendimento do conceito de memória e de suas diversas
significações, dentro e fora do campo da História, consiste, hoje, num dos principais pontos
de apoio das mudanças ocorridas na escrita didática da história e na história escolar, vista em
seu conjunto, com todos os componentes que lhe são peculiares e possibilitam a
intermediação com a História acadêmica.
Transitando em um campo distinto do campo estrito do profissional de história e
relacionando-se com um público de natureza difusa, o profissional ligado a área do ensino de
História tem como desafio adequar as normas protocolares próprias da cultura escolar, ao
contexto sociocultural dos alunos e ao conhecimento adquirido nos anos de formação
acadêmica e na sua vida profissional, possibilitando, desta forma, uma renovação constante
dos instrumentos de pesquisa ligados a área do ensino e das concepções identitárias da
disciplina História.
Bibliografia:
ABOUD, Kátia. A história nossa de cada dia, saber escolar e saber acadêmico na sala de
aula. In MONTEIRO, Ana Maria et. All. (org). Ensino de História: sujeitos, saberes e
práticas. Rio de Janeiro. Mauad X: FAPÈRJ. 2007. P 107-117.
BITTENCOURT, Circe Maria F. Ensino de História: fundamentos e métodos. 2ª Ed. São
Paulo. Cortez. 2008
CAIMI, Eloísa Flávia et al. O livro didático e o currículo de história em transição. Passo
Fundo: EDUPF, 1999.
CHARTIER, Roger. Do livro à leitura. In. CHARTIER, Roger (org). Práticas de leituras.
Tradução Cristiane Nascimento. São Paulo: Estação Liberdade, 1996. p 77-105.
____________. História cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manoela
Galhardo. Lisboa: DIFEL; SD.
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