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Do Corpo e Da Causa

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Do corpo e da causa:

pontuações sobre a
práxis psicanalítica

Ana Paula Lacorte Gianesi


O seminário Mais, ainda de Lacan nos auxilia a pensar o corpo
em seus registros real, simbólico e imaginário. Ele relacionou ali o
corpo às vestes — o corpo imaginário; à corpse (cadáver) — o corpo
simbólico; e apresentou-nos o real do corpo enquanto o mistério, o
mistério do corpo falante. Conforme Lacan: “o real é o mistério do
corpo falante”.1 O corpo fora posto, então, enquanto sede de gozo. 1 Lacan, O Seminário,
E o corpo esteve e está fortemente em causa na clínica psicanalítica. livro 20: Mais, ainda (1972-
Percorrendo a obra lacaniana, podemos acompanhar que em seu 73/1985, p.178).
texto Estádio do espelho como formador da função do eu, Lacan2 nos
havia indicado o que seria o corpo enquanto imaginário. O corpo 2 Lacan (1949/1998).
imagem, o eu-imagem, aquele apreendido no movimento que vai da
insuficiência à precipitação. E, mais tarde em sua obra, notamos os
desdobramentos deste corpo imaginário em denominações como:
o corpo vestes, o corpo pele, o corpo casca, o corpo saco, o corpo
pote. Em O Seminário, livro 10: A angústia3 ele teceu articulações e 3 Lacan (1962-63/2005).
contraposições entre este corpo imaginário e o real do corpo, a car-
ne, o objeto a. Novamente em seu Mais, ainda Lacan estabeleceu
correlação entre o hábito, a vestimenta e o resto, o objeto pequeno
a causa de desejo. Ele asseverou: “o que há sob o hábito, e que cha-
mamos de corpo, talvez seja apenas esse resto que chamo de objeto
a”, e “o que faz aguentar-se a imagem é um resto”.4 No seminário 4 Lacan (1962-63/2005).
sobre o Sinthoma, Lacan retomou a articulação entre o imaginário
e o real e nos apontou a homogeneidade existente entre os dois re-
gistros, afirmando-nos que o corpo enquanto saco, enquanto saco
vazio “só é imaginável pela ex-sistência e pela consistência que o
corpo tem, de ser pote”. E, ainda, que seria preciso uma apreensão
tanto da consistência como da ex-sistência como reais, afinal, diz
ele, “apreendê-las é o real”.5 5 Lacan, O Seminário,
No que toca justamente corpo e clínica, já no seminário so- livro 23: O sinthoma (1975-
bre a A angústia, Lacan nos trouxe uma importante passagem para 76/2007, p.19).
pensarmos as implicações, em nossa práxis, de um ponto clínico
bastante preciso: quando se desliga do corpo a imagem, a imagem
especular, e assiste-se sua redução a um estado cedível, a pedaços
de corpo. Do corpo imagem, invólucro e pele ao corpo real, carne,

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objeto a. Isso conota o choque e o horror diante do aparecimento
repentino do objeto a lá onde se poderia esperar i(a), ou onde habi-
tualmente encontrava-se -j (objeto do desejo, objeto imaginário).
Do corpo imagem ao real do corpo, muitas vezes não sem uma
bordadura simbólica. No lugar das vestes, da casca, do corpo pele,
de i(a), têm-se o osso, a carne. No lugar do corpo imaginário, o cor-
po real. Eis a abertura da angústia. Localizaríamo-nos, desta feita,
diante do Unheimlich, do estranho freudiano. Diante de um ponto
da estranheza, ponto no qual tantas vezes assistimos a oscilação
da série fálica e a emergência de significantes enigmáticos. E isto,
Lacan asseverou, possuiria uma estreita relação com a causa. Ele
ainda afirmou que se quisermos procurar a causa devemos situá-la
na abertura da angústia. Haveria, portanto, uma íntima articulação
entre a angústia, a causa e o real do corpo. Mais tarde, em A tercei-
ra, Lacan nos diz, sobre a angústia — “esse sentimento que surge da
6 Lacan, A terceira (1974). suspeita que nos ocorre de nos reduzirmos ao nosso corpo”.6
Ainda sobre o corpo e seus registros, Lacan, em Radiofonia, dis-
correu sobre o corpo do simbólico e nos deixou pistas sobre o corpo
enquanto real. Ele o afirmou claramente: o corpo do simbólico é
um primeiro corpo. É um corpo levado a sério, à série significante,
e que comporta “a marca adequada para situá-lo numa sequência de
7 Lacan, Radiofonia significantes”.7 É um corpo incorpóreo, um corpo que se incorpora.
(1970/2003, p.407). E então ele diz sobre aquilo que poderíamos designar como o real
do corpo: “mas é incorporada que a estrutura faz o afeto (…) afeto
8 Ibid., p. 406. a ser tomado apenas a partir do que se articula do ser”.8 E sabemos
que o afeto de que se trata é a angústia. Igualmente, dizemos que a
referência ao ser aponta o objeto. Aproximar-nos-íamos, enfim, do
corpo real e articularíamos este corpo à carne e ao conjunto vazio
das ossadas. Carne e osso nos trazem de volta o objeto a enquanto
este irredutível, esvaziado e evacuado em uma análise. Conforme
9 O Seminário, livro 23: O Lacan dissera em O Sinthoma, o objeto a é um “ossobjeto”.9
sinthoma, op. cit., p. 141. Uma importante consideração sobre a causa pode aqui ser evo-
cada, isto com o intuito de elucidarmos o que Lacan designou por
corpo do simbólico. Note-se que esta remonta-nos aos estoicos. Em
uma revisão crítica da lógica aristotélica, os estoicos propuseram,
por seu materialismo, uma lógica que comportasse uma “lacuna
10 Zizek, Le devenir-laca- radical entre o processo gerador e seu sentido-efeito imaterial”.10
nien de Deleuze (2004, p. 21). Para os estoicos a causa é material, corpo. A matéria referir-se-ia,
justamente, a uma ligação coesa de causas. Uma ligação coesa en-
tre corpos, portanto. Os efeitos, porém, seriam incorpóreos e não
possuiriam relação direta (ou mecânica) com tais causas. Tal rela-
ção causal seria, então, estéril, causalmente estéril. Os incorpóreos,
que aparecem ainda como predicados — os exemplos relativos ao
Lékton (o significado, o dizível) são muitos —, não seriam causados
mecanicamente por uma entidade corporal.

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Pois bem, Lacan, em Radiofonia foi bastante preciso quando
fez referência a este incorpóreo. Ali, ele sustentou que o incorpó-
reo seria o modo como o simbólico teria “a ver com o corpo”.11 O 11 Radiofonia, op. cit., p.
incorpóreo, o primeiro corpo, o corpo como Outro, o corpo do 406.
simbólico, é o que funda o corpo pela incorporação. E desde esta
incorporação, o incorpóreo não cessa de ficar marcando este Outro.
Acompanhemos Lacan:

Nada senão ele isola o corpo, a ser tomado no sentido ingênuo, isto é,
aquele sobre o qual o ser que nele se apoia não sabe que é a linguagem
que lho confere, a tal ponto que ele não existiria, se não pudesse falar.12 12 Ibid., p. 406.

Lacan segue dizendo que “o primeiro corpo faz o segundo, por


se incorporar nele”.13 E parece ser neste sentido que Colette Soler 13 Ibid., p. 406.
afirma que o corpo incorpóreo do simbólico dá aos sujeitos um
corpo, fabrica-o para eles. Ela ainda justifica o uso do termo corpo
para designar o simbólico indicando-nos que “o simbólico é corpo
na medida em que seus elementos estão coordenados num sistema
de relações internas”.14 14 Soler, A psicanálise e o
Ainda em relação ao incorpóreo, então tomado como Lékton corpo no ensino de Jacques
(significado – efeito), não deixa de ser interessante a retomada que Lacan (2010, p.71).
Lacan faz da linguística em seu Mais, ainda no ponto em que pro-
põe uma distinção entre o que se lê e o que se ouve. Ele o diz:

O significado não tem nada a ver com os ouvidos, mas somente


com a leitura, com a leitura do que se ouve de significante. O signifi-
cado não é aquilo que se ouve. O que se ouve é significante. O signifi-
cado é efeito do significante.15 15 O seminário, livro 20:
Mais ainda, op. cit., p.47.
Seguindo com nosso incorpóreo, podemos reafirmar que o cor-
po colonizado pelo significante é um corpo corpsificado pela lingua-
gem e, nesta direção, voltarmos ao texto de Soler, quando ela afirma
que a tomada significante “captura o vivente ao inscrevê-lo como
já morto”,16 ou, conforme asseverou Lacan, no ser falante, quanto 16 A psicanálise e o corpo no
ao corpo, “é secundário que ele esteja vivo ou morto”.17 O cadáver ensino de Jacques Lacan, op.
(corpse), na sepultura, preserva este corpo habitado pela linguagem cit., p.73.
e nos mostra a dimensão desta linguagem em um além da vida. A
dimensão de um corpo falado. 17 Radiofonia, op. cit.,
Pois bem, deste efeito, vale lembrar, o corpo do simbólico, te- p.406.
mos o corpo marcado e a marca nos traz para a discussão o Um do
significante. O traço que, como bem disse Colette Soler, permitirá
distinguir o corpo “quer seja para contá-lo, quer seja para erotizá-
lo”.18 Lacan não cessou de insistir que a causa primeira do sujeito 18 A psicanálise e o corpo no
é o significante. Teríamos conosco, em uma série invertida efeito e ensino de Jacques Lacan, op.
causa, respectivamente, A e S1. cit., p.75.

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Caso nos lembremos da articulação que Lacan fez entre S1 e
S2 no par ordenado em seu seminário De um Outro ao outro, com
19 Lacan, O Seminário, livro a seguinte escrita: {{S1},{S1, S2}}19, bem como de sua retomada no
16: De um Outro ao outro final de Mais, ainda, S1 (S1 (S1 (S1 – S2)))20, diríamos, enfim, que
(1968-69/2008, p.71). o corpo do simbólico, este efeito, é isto que ao se incorporar fica
marcando, enquanto o S2 do par ({S1, S2} que Lacan substitui por
20 O Seminário, livro 20: A), fica marcando enquanto este incorpóreo, enquanto isso que se
Mais ainda, op. cit., p.196. incorpora. Outrossim, permaneceríamos com a asserção segundo a
qual a causa primeira do sujeito é mesmo o S1.
Uma lacuna entre a causa e o efeito já havia sido apresentada a
nós, por Lacan, no seminário sobre A angústia. Ao conceber o objeto
a e seu resgate de uma noção de causa para a psicanálise ele afirmou
que o objeto a é causa de desejo. O efeito seria, então, o desejo. Po-
rém, o desejo, enquanto efeito, é um efeito que em nada se efetuou.
O desejo situar-se-ia como uma falta de efeito. A causa pressupõe
efeitos, mas é justamente neste ponto em que o efeito lhe falta, que
poderíamos situá-la. Outra torção em relação às clássicas concepções
de causalidade pode ser encontrada em seu seminário seguinte, so-
bre Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Ali ele retomou
a frase aristotélica ablata causa tollitur efectus, manteve a causa no
singular (a ausência da causa, a causa enquanto ausência) e colocou
a extinção do efeito no plural para dizer-nos, por uma subversão, que
21 Lacan, O Seminário, “os efeitos só se comportam bem na ausência da causa”.21
livro 11: Os quatro conceitos Neste Seminário – livro 11 Lacan voltou à sua concepção de
fundamentais da psicanálise causa para enfim depurá-la. Ele fez algumas referências, por vezes
(1964/1985, p.124). malogradas, mas sempre embaraçosas tentativas filosóficas de con-
ceitualizar a causa. Remeteu-nos aos textos kantianos Ensaio para
introduzir a noção de grandeza negativa em filosofia e aos Prolegô-
menos para mostrar-nos que ali Kant deparou-se com o inanalisável
do conceito e seu caráter de sobra, de hiância. Afirmou, igualmente,
que por mais que Aristóteles tenha tentado equilibrar suas quatro
causas, a saber, material, eficiente, formal e final e que o mesmo
Kant a tenha inscrito nas categorias da razão pura, a causa não
poderia ser daquele modo racionalizada.
A causa se distingue, com Lacan, da lei. Consequência imediata,
a causalidade se distingue do determinismo. Fenda, buraco, trope-
ço, surpresa, rachadura, vacilação, descontinuidade, eis alguns dos
termos escolhidos por ele para referir-se à causa. Conforme Lacan
nos propôs, a causa seria justamente uma função. Apontou-nos, da
mesma feita, que sobraria, nesta função, uma hiância. Ele o disse
hiância causal e ainda acrescentou: a função de que se trata é uma
função do impossível.
Lacan já havia afirmado que para continuar existindo causalida-
de (e não determinismo) seria preciso sustentar a hiância aberta en-
tre a causa e o efeito. Onde essa hiância fosse preenchida, isso faria

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desaparecer a função de causa. Ele deixou claro, conforme aponta-
mos, que não existiria causa que não implicasse hiância.22 A causa 22 Lacan. O Seminário –
seria, então, aquilo que aparece no espaço aberto entre a fala e o que livro 10: A angústia (1962-
ela afeta, no que faz o sujeito saltar em um ponto inesperado, mas 63/2005, p.310).
que se situa até antes do momento de seu pouso. Nas formações do
inconsciente, é aquilo que se estatela desde uma frase pronunciada.
Na repetição, é o que instaura a dimensão da perda. Daí afirmar-
mos, com Lacan, que só “há causa para o que manca” ou que “entre
a causa e o que ela afeta há, sempre, claudicação”.23 23 O Seminário – livro
Em sua incursão pela definição do que seria a causa real, do 11: Os quatro conceitos
campo da indeterminação do sujeito, portanto, Lacan, outrossim, fundamentais da psicanálise,
nos deixou pistas do que denominou de introdução do significante op. cit., p.27.
no domínio da causa. Pois bem, em Posição do inconsciente, Lacan24
deslizara sua pena para a questão da causa. Utilizando aquela re- 24 Lacan, Posição do incons-
ferência às quatro causas da física aristotélica ele ali afirmou que o ciente (1960-64/1998).
significante é a causa material do sujeito. Estabeleceu, então, uma
relação entre esta materialidade significante e o modo de sua apa-
rição em cadeia. Eis o que designou por autômaton, qual seja, um
jogo combinatório que opera espontaneamente, não obstante se-
guindo a lei de determinação simbólica. Insistiu, quanto à causali-
dade, na assertiva que o Outro é, para o sujeito, o lugar de sua causa
significante. Donde resulta que nenhum sujeito possa ser causa de
si mesmo. O significante, desde o Outro, é a causa da divisão do
sujeito, uma causa primeira. Dizemos S1, esta causa primeira.
Em A ciência e a verdade Lacan25 nos mostrou que a sua teori- 25 Lacan, A ciência e a
zação sobre o significante como causa material é compatível com o verdade (1966/1998).
materialismo histórico e que ali restaria um furo. A teoria do objeto
a encontraria, deste modo, seu lugar e tornar-se-ia necessária para
uma integração correta da função da causa. Note-se que o objeto
a enquanto causa é chamado para que seja possível uma articulação
sobre a causação do sujeito. Por isso afirmamos que a causação do
sujeito se dá por duas vias — uma material, o significante; outra
real, o objeto a. O Falo (S1), enquanto o primeiro significante, e o
objeto a estão ambos implicados nestas operações. Estão implicados,
possuem certa homologia quanto a seu não-senso, mas, adiantemos,
não são o mesmo e sustenta-se a disjunção de ambos como uma
operação analítica. Em Mais, ainda, Lacan enfatizou, também, a
importância de se sustentar a lacuna que há entre o Um do signifi-
cante e “algo que se prende ao ser e, por trás do ser, ao gozo”.26 26 O Seminário, livro 20:
A localização do significante (em sua separação de qualquer sig- Mais, ainda, op. cit., p. 14.
nificação) enquanto causa material do sujeito igualmente representa
um importante passo de Lacan em relação ao determinismo. Des-
ta feita, parece-nos relevante pontuarmos as elucubrações de Lacan
em seus avanços acerca do significante enquanto causa de gozo, isto
em seu Seminário – livro 20. Ele afirmou, nesse seminário, que não

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haveria realidade pré-discursiva e que a causa do gozo seria o sig-
nificante. Retomou, para isso, as mesmas quatro causas da Física
aristotélica. Conforme já havia proposto, principalmente em seu
artigo Posição do inconsciente, situou o significante enquanto causa
material. Não haveria gozo, não haveria parte do corpo sem o signi-
ficante. Enquanto causa final, o significante seria, também, aquilo
27 Ibid, p.36. que põe termo, “aquilo que faz alto ao gozo”.27 O significante seria,
a um só tempo, a causa material do gozo e aquilo que limita o gozo.
Limitar o gozo, diz-nos Lacan, eis a eficiência significante. A causa
formal relativa ao significante, Lacan a articulou à gramática, àquilo
28 Ibid, p.37. “que faz a passagem de um sujeito à sua própria divisão no gozo”.28
Gramática que estaria diretamente ligada à forma, à letra, à sintaxe.
Permanecendo em seu Mais, ainda, podemos lembrar o que La-
can disse sobre a relação entre o corpo, o simbólico e o real: “o
29 Ibid, p.35. gozar de um corpo, de um corpo que, o Outro, o simboliza”.29 Ele
estava então introduzindo a noção de substância gozante, a subs-
tância do corpo vivo, de um corpo que comporta um isso goza. E
então, ele continuou, “isso só se goza por corporizá-la de maneira
30 Ibid. significante”.30 Enfim, ele situa o significante, causa de gozo, “no
nível da substância gozante”.31 O significante, no nível da substân-
31 Ibid., p.36. cia gozante, causa a divisão no gozo, qual seja, a divisão: gozo fálico
– gozo Outro. Deste modo, poderíamos nos arriscar a dizer que o
significante em suas quatro dimensões (material, eficiente, formal e
final) funda o mistério do corpo falante.
Quanto ao objeto a, isto que faz buraco na causação do sujeito,
Lacan, em seu seminário sobre A angústia, havia proposto o termo
objetalidade para tratá-lo. Ele ali formalizou o objeto a e sua rela-
ção com o corpo, ou mais precisamente com os pedaços de corpo
e com a carne. Neste seminário, para designar o que seria o corpo
enquanto objeto a, o real do corpo, não redutível à imagem ou ao
significante, Lacan se refere à libra de carne, à tripa causal, aos pe-
daços de corpo cedidos.
Ora, a libra de carne parece bem situar esse pedaço de corpo
indiscernível que é o objeto a. Lembremos que no Mercador de Ve-
neza, de Shakespeare, deparamo-nos com uma impossibilidade ló-
gica posta pela dívida condicionada ao pagamento de uma libra de
32 O Seminário, livro 10: carne.32 Shylock empresta dinheiro a Antônio a fim de ganhar com
A angústia, op. cit., p.139; o pagamento de juros, sobretudo, a fim de cobrar-lhe uma libra de
Shakespeare, O mercador de sua própria carne caso aquele (Antônio) atrasasse seu pagamento.
Veneza (1990). Em júri os juízes decidem que Shylock poderia cobrar o que lhe era
devido com a condição de retirar exatamente uma libra da carne de
Antônio, nem mais, nem menos, e sem derrubar uma única gota de
sangue. O valor, uma libra de carne, tem peso preciso, entretanto,
como contá-lo? Como mensurar isso que se torna indistinguível?
A libra de carne é, justamente, um pedaço de real, um impossível.

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Podemos, então, resgatar uma referência de Lacan que encon-
tramos em O Sinthoma, e que nos permite cernir algo do corpo
enquanto real. Ele ali deixou marcado que o real “é sempre um
pedaço, um caroço”.33 33 O Seminário, livro 23: O
Como vimos, Lacan frisou, em sua noção de causa real, a im- sinthoma, op. cit., p.119.
portância da lacuna, da hiância, daquilo que claudica. Em Os qua-
tro conceitos fundamentais da psicanálise ele localizou nesta mesma
hiância causal o núcleo da estrutura inconsciente, marcando uma
diferença em relação ao inconsciente freudiano. Posteriormente
ele iniciou seu Prefácio à edição inglesa do Seminário 11, de 1976,
com uma preciosa asserção que pode muito bem nos reenviar ao
âmbito dessa causa real. Escreveu Lacan34 que, quando o espaço 34 Lacan, Prefácio à edição
de um lapso não produzir mais qualquer efeito de sentido, apenas inglesa do Seminário 11
então ter-se-á a certeza de se estar no inconsciente, ou seja, consi- (1976/2003).
go. A causa real, pertinente ao objeto real, objeto a, encontra-se,
justamente, nos intervalos esburacados entre os significantes. Nos
inter-ditos. No ponto de non-sense que separa uma manifestação do
inconsciente (sonhos, lapsos etc.) de seu sentido. A causa real, posta
no objeto a, implica o vazio de sentido, em uma negação que subsis-
te, conforme Lacan nos sugere em Mais, ainda, pela “apreensão ex-
perimentada da inexistência”.35 Consubstancialmente, implica algo 35 O Seminário, livro 20:
do ser, do consigo. Dizemos, então, que na hiância há algo do ser. Mais, ainda, op. cit., p.198.
E é por isso que Lacan marca, desde seu Seminário 11, que haveria
algo ali da função do ser, ainda que, como ele mesmo destacou, o
“estatuto do inconsciente, no plano ôntico, seja ético”.36 36 O Seminário, livro 11: Os
O consigo, este “estar aí” do objeto real nos traz a discussão em quatro conceitos fundamentais
relação a certo “ser-aí” do objeto a que, por sua vez, contrapõe-se da psicanálise, op. cit., p.37.
à evanescência do sujeito (sujeito este que não é causa de si). O ser
de que se trata, quando falamos deste objeto real que é o objeto
pequeno a, é um parecer, um vazio de ser. E isso marca um ser sem
“ontotautologia”, conforme destacou Lacan37 em seu Posfácio ao 37 Lacan, Posfácio ao Semi-
Seminário 11. O ser de que se trata não é, portanto, um ser do “ser nário 11 (1973/2003).
enquanto ser” da ontologia aristotélica. Este ser-aí, esvaziado em
uma análise, este vazio de ser, portanto, é absolutamente singular.
Conforme ele havia anunciado em Radiofonia, o objeto a é somente
“dedutível conforme a psicanálise de cada um”.38 38 Radiofonia, op. cit.,
E por fim, para realizarmos algum enodamento entre o corpo, a p.412.
causa e nossa práxis, articulemos os dois primeiros termos às cate-
gorias modais que Lacan subverte de Aristóteles, a saber, o necessá-
rio, o contingente, o possível e o impossível, o que nos encaminha
diretamente àquilo que nos orienta na clínica.
Pois bem, se S1, essa marca material extraída do corpo incorpó-
reo e que é fundamental à causação do sujeito, se S1 é esse não senso
que pela contingência se escreve (que cessa de não se escrever) e, ao
se escrever, não mais cessa de se escrever (vide necessário), desse

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modo podemos seguir um trecho do Seminário 23 em que Lacan
afirmou que o Um é mesmo aquilo que não cessa de se escrever do
sinthoma. Haveria, portanto, nesse S1, neste S índice 1 como Lacan
o designa em O Sinthoma, uma articulação entre o contingente e
o necessário. Ora, é também fundamental podermos notar que no
fim de uma análise a extração desse escrito dá-se justamente por sua
redução ao não-senso. E isso via contingência.
Em Mais, ainda, Lacan disse que o necessário está conjugado
com o impossível. E o impossível nos traz de volta a causa real, real
que, sublinhemos, é irredutível à simbolização. Afirmamos, assim,
que o real diz respeito a um tipo de ausência que o simbólico não
supre. O simbólico o bordeia. O imaginário faz vestes, faz casca,
faz saco, faz o “corpo pele”. Mas o real não é o corpo imagem,
nem surge como representação: “o real como tal consiste em não se
39 O Seminário, livro 23: O ligar a nada”.39 Conforme Lacan relembra em O Sinthoma, o real
sinthoma, op. cit., p.119. é sempre um pedaço, um caroço: o objeto a, este corpo real. O im-
possível, por não cessar de não se escrever, abre-nos uma apreensão
experimentada da inexistência. A presença de um vazio, de uma
ausência irredutível. E isso indica-nos uma orientação, conforme
Lacan sustentou novamente em O Sinthoma, uma orientação que
40 O Seminário, livro 23: O “não é um sentido”,40 mas uma “orientação do real”.41
sinthoma, op. cit., p.117. O sentido, por sua vez, pode referir-se ao possível. Recordemos,
neste ponto, três passagens de Lacan. A primeira, em Radiofonia,
41 Ibid., p.118. quando ele afirma que não há universal que não seja possível. A se-
gunda, em O Sinthoma, quando se refere à castração como possível.
E a terceira, em seu Seminário 24, quando Lacan nos diz sobre a
relação entre o significado e o possível, afirmado que o significado
42 Lacan, O Seminário, livro cessará de se escrever.42
24: L’ insu que sait de l’une- Em relação à castração e à lei do desejo dizemos, em certo con-
bévue s’aile à mourre (1976- senso, que a falta-a-ser não é condição suficiente para fazer girar um
77, aula de 14 de dezembro tratamento analítico até sua conclusão. Não obstante, este possível
de 1976). não está fora do final de uma análise. Mesmo porque servimo-nos
dele justamente para podermos ir mais além.
Enfim, situamos S1 em uma contingência que se enlaça ao ne-
cessário. Poderíamos, nesta toada, indicar um caminho conjuga-
do àquele: do possível da castração ao impossível, a um impossível
acuado de tal forma que a impotência (da fantasia) possa mudar de
modalidade. No final de uma análise: algo não-todo escrito. S1 e a
e toda claudicação que entre um e outro se mostra.

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Referências bibliográficas
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função do eu. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
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Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
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LACAN, Jacques. O Seminário, livro 23: O sinthoma (1975-76).
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Stylus Rio de Janeiro nº 20 p. 1-156 abril 2010 105


Resumo
Este texto busca articular corpo, causa e clínica. O corpo
é tratado desde os seus registros real, simbólico e ima-
ginário. A causa, em contraposição à determinação, é
abordada por sua vertente significante (material, eficien-
te, final e formal) e por sua vertente real, aquela do obje-
to pequeno a. Estes dois primeiros termos se encontram
desde o início de uma análise marcando uma orientação
que, conforme Lacan enfatizou em seu ensino, é uma
orientação do real. Desta feita, procura-se mostrar a im-
portância da hiância causal, do corpo real e do fora de
sentido na práxis psicanalítica.

Palavras-chave
Causa, corpo, real, significante, objeto a.

Abstract
This work articulates the notions of body and cause
in psychoanalytical expirience. The body is treated
from its orders of the real, the symbolic and the
imaginary. The cause, in contrast to the determi-
nation, is approached by the signifier (material,
efficient, final and formal) and its real part (object
little-a). As Lacan has given much emphasis in
his teaching, the body and the cause indicate the
psychoanalytical expience direction to the real.
This paper attempts to show the importance of cau-
sal gap and the real body in psychoanalytic praxis.

Keywords
Cause, body, real, signifier, object little-a

recebido
08/07/2010

aprovado
08/09/2010

106 Do corpo e da causa: pontuações sobre a práxis psicanalítica

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