Contágio: Infecções de origem animal e a evolução das
pandemias (Portuguese Edition)
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Sumário
Prefácio: Nós criamos a epidemia do coronavírus
1. O cavaleiro da Morte
2. Treze gorilas
3. Tudo vem de algum lugar
4. Jantar na fazenda de ratos
5. O veado, o papagaio e o cabrito do vizinho
6. Viralizando
7. Hospedeiros celestiais
8. O chimpanzé e o rio
9. Tudo depende
Notas
Referências bibliográ cas
Agradecimentos
Sobre o autor
Créditos
para Betsy,
hoje e sempre
Vi aparecer um cavalo esverdeado. Seu
cavaleiro era a Morte. E vinha acompanhado
com o mundo dos mortos. Deram para ele
poder sobre a quarta parte da terra, para que
matasse pela espada, pela fome, pela peste e
pelas feras da terra.
Apocalipse 6,8
Nós criamos a epidemia do
coronavírus1
Ela pode ter começado com um morcego numa caverna, mas
foi a atividade humana que a desencadeou
O mais recente e assustador vírus que captou a atenção
horrorizada do mundo, causou o isolamento de 56 milhões de
pessoas na China, interrompeu os planos de viagem ao redor do
mundo e provocou uma corrida por máscaras de proteção é
conhecido provisoriamente como “nCoV-2019”. É um apelido
desajeitado para uma ameaça sinistra.
O nome escolhido pela equipe de cientistas chineses que
isolaram e identi caram o vírus, depois de ele ter infectado seres
humanos no nal de 2019 em um mercado de frutos do mar e
animais vivos de Wuhan, na província de Hubei, é uma abreviação
de “novo coronavírus de 2019”. Isso signi ca que ele pertence à
família dos coronavírus, um grupo conhecido por sua má
reputação. A epidemia de SARS de 2002-2003, que infectou 8098
pessoas em todo o mundo, matando 774 delas, foi causada por um
coronavírus, assim como o surto de MERS que começou na
península Arábica em 2012 e ainda está ativo (2494 pessoas
infectadas e 858 mortes até novembro de 2019).
Apesar do nome do novo vírus, e como bem sabem as pessoas
que o batizaram, o nCoV-2019 não é tão novo quanto se imagina.
Algo muito parecido com ele foi encontrado há vários anos em uma
caverna de Yunnan, uma província distante cerca de 1,6 mil
quilômetros de Wuhan, por uma equipe de pesquisadores
perspicazes, que notaram sua existência com preocupação. A
disseminação rápida do nCoV-2019 — mais de 4500 casos
con rmados, com pelo menos 106 mortes até a manhã do dia 14 de
janeiro, e os números terão aumentado quando você ler este texto
— é espantosa, mas não imprevisível. Que o vírus tenha vindo de
um animal, provavelmente um morcego, e possivelmente depois de
ter passado por outra criatura, pode parecer esquisito, mas não
surpreende de forma alguma os cientistas que estudam essas coisas.
Uma dessas cientistas é Zheng-Li Shi, do Instituto de Virologia
de Wuhan, autora principal do artigo (disponível até o momento
somente em versão preliminar, não revisada pelos pares) que deu
ao nCoV-2019 sua identidade e nome. Foram Shi e seus
colaboradores que, em 2005, mostraram que o patógeno da SARS era
um vírus de morcego que se transmitia para os seres humanos. Ela
e os colegas têm rastreado o coronavírus em morcegos desde então,
alertando que alguns deles são particularmente adequados para
causar pandemias humanas.
Em um artigo de 2017, depois de quase cinco anos coletando
amostras fecais de morcegos na caverna de Yunnan, eles
informaram que haviam encontrado coronavírus em vários
indivíduos de quatro espécies diferentes de morcegos, entre eles um
chamado morcego-de-ferradura intermediário, devido à aba
semioval de pele que se projeta como um pires ao redor de suas
narinas. Shi e seus colegas anunciaram agora que o genoma desse
vírus é 96% idêntico ao vírus de Wuhan encontrado recentemente
em seres humanos. E os dois constituem um par distinto de todos
os outros coronavírus conhecidos, inclusive daquele que causa a
SARS . Nesse sentido, o nCoV-2019 é novo, e possivelmente ainda
mais perigoso para os seres humanos do que os outros coronavírus.
Digo “possivelmente” porque, até agora, não só não sabemos
quão perigoso ele é, como também não temos como saber. Surtos
de doenças virais novas são como as bolinhas de aço de uma
máquina de pinball: você pode dar um tapa nelas com as palhetas,
sacudir a máquina e bater nas bolinhas para ouvir o tilintar do
iperama, mas onde elas acabam caindo depende de onze
variáveis, bem como de qualquer coisa que você faça. Isso ocorre
principalmente com os coronavírus: eles sofrem frequentes
mutações à medida que se replicam, e podem evoluir tão rápido
quanto um espírito maligno saído de um pesadelo.
Peter Daszak, presidente da EcoHealth Alliance, uma
organização privada de pesquisa com sede em Nova York que
estuda as conexões entre saúde humana e vida selvagem, é um dos
parceiros de longa data de Shi. “Faz quinze anos que estamos
avisando sobre esses vírus”, ele me disse na sexta-feira, 17 de
janeiro, com uma frustração tranquila. “Desde o SARS.” Ele foi
coautor do estudo sobre morcegos e SARS de 2005 e também do
artigo de 2017 sobre os múltiplos coronavírus do tipo SARS da
caverna de Yunnan.
Daszak contou-me que, durante o segundo estudo, a equipe de
campo coletou amostras de sangue de 2 mil habitantes de Yunnan;
cerca de quatrocentos viviam perto da caverna. Aproximadamente
3% deles tinham anticorpos contra coronavírus relacionados à SARS .
“Não sabemos se eles caram doentes. Não sabemos se foram
expostos quando crianças ou adultos”, disse Daszak. “Mas o que isso
nos diz é que esses vírus estão se transmitindo repetidamente de
morcegos para seres humanos.” Em outras palavras, o surto em
Wuhan não é uma novidade. Ele faz parte de uma sequência de
contingências correlatas que remontam ao passado e avançam para
o futuro, enquanto as atuais circunstâncias persistirem. Então,
quando você terminar de se preocupar com esse surto, preocupe-se
com o próximo. Ou faça algo a respeito das atuais circunstâncias.
Entre as circunstâncias atuais está o perigoso comércio de
animais selvagens para alimentação, com cadeias de suprimento
espalhadas pela Ásia, África e, em menor grau, Estados Unidos e
outros lugares. Esse comércio foi agora proibido na China,
temporariamente, mas também foi proibido durante o SARS, e
depois teve permissão para retornar, e morcegos, civetas, porcos-
espinhos, tartarugas, ratos-do-bambu, muitos tipos de aves e outros
animais voltaram a ser empilhados juntos em mercados como o de
Wuhan.
As circunstâncias atuais também incluem 7,6 bilhões de seres
humanos famintos: alguns pobres e desesperados por proteínas;
alguns abastados, perdulários e com recursos para viajar de avião
para todos os lugares. Esses fatores não têm precedentes no planeta
Terra: sabemos pelo registro fóssil, pela ausência de evidências, que
nenhum animal de grande porte jamais esteve perto de ser tão
abundante quanto os seres humanos são agora, sem falar da sua
e cácia em apropriar-se de recursos naturais. E uma consequência
dessa abundância, desse poder e dos consequentes distúrbios
ecológicos é o aumento das trocas virais — primeiro de animal para
ser humano, depois de humano para humano, às vezes em escala
pandêmica.
Invadimos orestas tropicais e outras paisagens selvagens, que
abrigam tantas espécies de animais e plantas — e dentro dessas
criaturas, tantos vírus desconhecidos. Cortamos as árvores;
matamos os animais ou os engaiolamos e os enviamos aos
mercados. Destruímos os ecossistemas e liberamos os vírus de seus
hospedeiros naturais. Quando isso acontece, eles precisam de um
novo hospedeiro. Muitas vezes, somos nós.
A lista desses vírus que aparecem em seres humanos soa como
uma batida de tambor fúnebre: vírus Machupo, Bolívia, 1961; vírus
Marburg, Alemanha, 1967; vírus Ebola, Zaire e Sudão, 1976; HIV ,
identi cado em Nova York e na Califórnia, 1981; uma forma de
hantavírus (agora conhecida como Sin Nombre), sudoeste dos
Estados Unidos, 1993; vírus Hendra, Austrália, 1994; gripe aviária,
Hong Kong, 1997; vírus Nipah, Malásia, 1998; vírus do Nilo
Ocidental, Nova York, 1999; SARS , China, 2002-3; MERS , Arábia
Saudita, 2012; Ebola novamente, África Ocidental, 2014. E isso é
apenas uma seleção. Agora temos o nCoV-2019, a mais recente
batida do tambor.
As circunstâncias atuais também incluem burocratas que
mentem e ocultam más notícias e autoridades eleitas que se gabam
de cortar orestas para criar empregos na indústria madeireira e na
agricultura ou de cortar orçamentos para saúde pública e pesquisa.
A distância de Wuhan ou da Amazônia para Paris, Toronto ou
Washington é curta para alguns vírus, medida em horas, tendo em
vista que eles se dão muito bem pegando carona em aviões de
passageiros. E se você acha que nanciar a preparação para uma
pandemia é caro, espere até ver o custo nal do nCoV-2019.
Felizmente, as circunstâncias atuais também incluem cientistas
brilhantes e dedicados e pessoal médico de resposta a surtos, como
tantos no Instituto de Virologia de Wuhan, na EcoHealth Alliance,
no Centro de Controle e Prevenção de Doenças ( CDC ) dos Estados
Unidos, no CDC chinês e em inúmeras outras instituições. São
pessoas que entram em cavernas de morcegos, pântanos e
laboratórios de contenção de alta segurança, muitas vezes
arriscando a vida, para extrair fezes, sangue e outros indícios
preciosos de morcegos, a m de estudar sequências genômicas e
responder às principais perguntas.
Enquanto aumentava o número de casos de nCoV-2019 e de
mortos, a taxa de mortalidade de casos permanece bastante estável
até agora: em torno de ou abaixo de 3%. Até 21 de janeiro, menos
de três pessoas em cada cem casos con rmados havia morrido. Isso
é relativamente boa sorte — pior que na maioria das cepas de gripe,
melhor que no SARS . Essa boa sorte pode não durar. Ninguém sabe
onde a bolinha do iperama irá parar. Daqui a quatro dias, o
número de casos pode estar na casa das dezenas de milhares. Daqui
a seis meses, a pneumonia Wuhan pode estar desaparecendo da
memória. Ou não.
Estamos diante de dois desa os mortais, a curto e longo prazo.
Curto prazo: devemos fazer tudo o que pudermos, com
inteligência, calma e total comprometimento de recursos, para
conter e extinguir este surto de nCoV-2019 antes que ele se torne,
como é possível, uma pandemia global devastadora. A longo prazo:
devemos lembrar, quando a poeira baixar, que o nCoV-2019 não foi
um acontecimento novo ou um infortúnio que nos aconteceu. Era
— e é — parte de um padrão de escolhas que nós, os seres
humanos, estamos fazendo.
1. O cavaleiro da Morte
O vírus hoje conhecido como Hendra não foi o primeiro dos
novos micróbios apavorantes. Não foi o pior. Comparado a alguns
outros, ele parece relativamente desimportante. Seu impacto letal,
em termos numéricos, foi baixo no início e assim permanece; seu
alcance geográ co restringiu-se a uma área pequena, e os episódios
posteriores não o propagaram para muito mais longe. Ele fez sua
estreia em 1994 nas imediações de Brisbane, na Austrália.
Começou com dois casos, um deles fatal. Não — corrigindo: houve
dois casos humanos, uma morte humana. Outras vítimas também
sofreram e morreram, mais de uma dúzia — vítimas equinas — e
sua história é parte deste relato. O tema da doença animal e o tema
da doença humana são, como veremos, os de uma mesma corda.
A emergência original do vírus Hendra não pareceu muito
amedrontadora nem digna de menção em noticiário, exceto para
quem morava no leste da Austrália. Não foi páreo para um
terremoto, uma guerra, um massacre a tiros em escola, um
tsunami. Mas foi estranha. Sinistra. Hoje, mesmo sendo um pouco
mais conhecido, ao menos pelos infectologistas e pelos australianos,
o vírus Hendra ainda parece estranho. Ele é paradoxal: marginal,
esporádico, mas, em um sentido mais amplo, representativo.
Exatamente por isso ele serve como um bom ponto de partida para
começarmos a compreender a emergência de certas realidades
virulentas neste planeta — realidades que incluem a morte de mais
de 30 milhões de pessoas desde 1981. Essas realidades envolvem
um fenômeno chamado zoonose.
Zoonose é uma infecção animal transmissível a humanos.
Existem mais doenças desse tipo do que você pensa. A aids é uma
delas. A in uenza é toda uma categoria delas. Quando as avaliamos
como um grupo, tendemos a rea rmar a antiga verdade darwiniana
(a mais desoladora de todas as verdades de Darwin, bem conhecida
e com frequência esquecida) de que o ser humano é um tipo de
animal, inextricavelmente ligado a outros animais, na origem e na
ascendência, na saúde e na doença. Quando as avaliamos caso a
caso — começando por esse relativamente obscuro da Austrália —
deparamos com um salutar lembrete de que tudo, inclusive a
pestilência, vem de algum lugar.
Em setembro de 1994 uma doença devastadora irrompeu entre
os cavalos de uma área na orla norte de Brisbane. Eram cavalos
puro-sangue, animais bem cuidados e em excelente forma física,
criados para correr. O lugar chamava-se Hendra, um bairro
tranquilo com hipódromos, pessoas do ramo do turfe, casas de
madeira com quintais convertidos em estábulos, bancas de jornal
que vendiam folhetos com dicas de aposta, lanchonetes com nomes
como The Feed Bin [silo de ração]. A primeira vítima foi uma égua
baia chamada Drama Series, aposentada das corridas e agora em
fase avançada de gestação. Drama Series começou a apresentar
sinais de doença em um pasto de descanso, uma campina de
terreno rústico a vários quilômetros a sudoeste de Hendra, onde os
cavalos de corrida eram deixados quando não estavam em
competições. Ela fora posta ali como reprodutora e teria
permanecido até a fase nal da gestação se não houvesse adoecido.
Não demonstrava ter nenhum problema muito grave — pelo
menos até então. Simplesmente não parecia bem, e seu treinador,
Vic Rail, achou melhor recolhê-la. Ele era um homenzinho
perspicaz e cativante, de cabelos castanhos repuxados até a nuca e
com reputação de grande perícia no círculo turfístico da região.
“Sujeito durão, mas simpático”, como o quali caram por lá. Alguns
se irritavam com ele, mas ninguém lhe negava a fama de
conhecedor de cavalos.
Foi a namorada de Rail, Lisa Symons, quem veio buscar Drama
Series em um reboque de cavalos. A égua relutava para mover-se.
Parecia ter dor nas patas. Seus lábios, pálpebras e mandíbula
estavam inchados. De volta ao modesto estábulo de Rail em
Hendra, Drama Series suava em profusão e continuava lerda. Para
nutri-la e salvar a cria, Rail tentou forçá-la a comer cenoura ralada
com melaço, mas ela recusou. Depois dessa tentativa, ele lavou as
mãos e os braços, porém, agora sabemos, talvez não com atenção
su ciente.
Era 7 de setembro de 1994, uma quarta-feira. Rail telefonou ao
veterinário, Peter Reid, homem alto, de postura séria e pro ssional,
que veio examinar a égua. Agora ela estava em sua baia no
estábulo, um compartimento com paredes de blocos de cimento e
piso de areia, próximo dos outros cavalos de Rail. O dr. Reid não
viu secreções no nariz e nos olhos do animal, nem sinais de dor,
mas ela parecia uma pálida imagem da égua robusta de antes.
“Apática”, ele declarou, referindo-se, no jargão veterinário, a um
problema físico, não psicológico. A temperatura e o ritmo cardíaco
da égua estavam elevados. Reid notou o inchaço facial. Abriu a
boca de Drama Series para examinar as gengivas e notou restos de
cenoura ralada que ela não quisera ou não conseguira engolir.
Aplicou-lhe injeções de antibiótico e analgésico, depois foi para
casa. Passava das quatro da manhã quando ele recebeu um
telefonema. Drama Series tinha saído da baia, caído no quintal, e
estava morrendo.
Quando Reid chegou correndo ao estábulo, ela já tinha morrido.
Fora rápido e terrível. Sua condição piorou, ela cou agitada e saiu
cambaleante pela porta aberta da baia, caindo várias vezes e ferindo
a perna a ponto de expor o osso; levantou-se e, no pátio da frente,
tornou a cair. Um cavalariço segurou-a no chão para protegê-la.
Desesperada, ela se libertou, chocou-se com uma pilha de tijolos e
foi pega novamente pelo cavalariço e por Rail, que limpou uma
secreção espumosa de suas narinas, tentando ajudá-la a respirar,
pouco antes de ela morrer. Reid examinou o corpo e notou um
vestígio de espuma clara ainda nas narinas, mas não fez a necrópsia
porque Vic Rail não tinha recursos para matar essa curiosidade e,
de modo mais geral, porque ninguém previa uma emergência de
saúde na qual cada dado seria crucial. A carcaça de Drama Series
foi levada despreocupadamente pelo rebocador de costume e
deixada no depósito de lixo onde eram descartados os cavalos
mortos de Brisbane.
A causa da morte permanecia desconhecida. Picada de cobra,
talvez? Teria comido alguma erva venenosa naquele pasto
malcuidado e cheio de mato? Essas hipóteses ruíram abruptamente
treze dias mais tarde, quando outros cavalos do estábulo
começaram a adoecer. Foram tombando feito peças de dominó.
Não era picada de cobra nem planta tóxica. Era algo contagioso.
Os outros cavalos apresentaram febre, desconforto respiratório,
olhos injetados, espasmos e movimentos descoordenados; alguns
expeliram uma espuma ensanguentada pelas narinas e pela boca;
alguns tiveram inchaço facial. Reid viu um cavalo enxaguando
freneticamente a boca em um balde de água. Outro bateu a cabeça
na parede de concreto como se tivesse enlouquecido. Apesar de
esforços heroicos de Reid e outros, mais doze animais pereceram ao
longo de vários dias, em mortes medonhas ou por eutanásia. Reid
declarou mais tarde que “foi inacreditável a velocidade com que
aquilo atacou os cavalos”, mas naquela fase inicial ninguém
identi cou “aquilo”. Alguma coisa acometera aqueles cavalos. No
auge da crise, sete animais sucumbiram à agonia ou precisaram ser
sacri cados no decorrer de apenas doze horas. Sete cavalos mortos
em doze horas — uma carni cina, mesmo para um veterinário
calejado. Um dos animais, a égua chamada Celestial Charm,
morreu debatendo-se e arquejando tão desesperadamente que Reid
não conseguiu aproximar-se dela para aplicar a injeção de
misericórdia. Outro, um cavalo castrado de cinco anos, tinha sido
mandado por Rail para outro pasto de descanso ao norte, adoeceu
assim que chegou e precisou ser sacri cado. Um veterinário local
fez a necrópsia e constatou hemorragia em todos os órgãos. Ao
mesmo tempo, em um estábulo vizinho do de Rail em Hendra,
outro cavalo castrado passou mal com sinais clínicos similares e
teve de ser sacri cado.
Qual seria a causa desse massacre? Como o mal se propagou de
um cavalo a outro, ou, se não isso, como afetou tantos deles
simultaneamente? Uma possibilidade era alguma contaminação
tóxica na ração. Ou, quem sabe, veneno, introduzido
perversamente. Reid começou a pensar em outra possibilidade:
talvez algum vírus exótico, como o causador da peste equina
africana. O vírus dessa doença afeta mulas, burros e zebras além de
cavalos, mas não há relatos sobre ele na Austrália e o contágio não
se dá de equino para equino. Além disso, em Queensland os
mosquitos-pólvora pestíferos não costumam picar em setembro,
quando o tempo é fresco. Portanto, a peste equina africana não
servia como hipótese. Talvez então algum outro germe estranho?
“Eu nunca tinha visto um vírus fazer nada parecido”, disse Reid.
Até ele, homem de fala comedida, conta que foi “um período bem
traumático”. Ele continuou a tratar os animais afetados com os
recursos e as opções de que dispunha diante do diagnóstico
inconclusivo: antibióticos, soro, medicamentos antichoque.
Nesse meio-tempo, Vic Rail adoeceu. E o cavalariço também.
De início pareceu que tinham sintomas de gripe — uma gripe
forte. Rail foi internado, seu estado piorou no hospital e, depois de
uma semana em tratamento intensivo, morreu. Seus órgãos
deixaram de funcionar e ele parou de respirar. A autópsia mostrou
que seus pulmões estavam cheios de sangue, outro uido e (visto ao
microscópio eletrônico) algum tipo de vírus. O cavalariço, um
homem generoso chamado Ray Unwin, que se limitou a ir para
casa e suportar a febre sozinho, sobreviveu. Peter Reid, embora
houvesse trabalhado com os mesmos cavalos doentes e tido contato
com a mesma espuma sanguinolenta, manteve-se sadio. Ele e
Unwin me contaram suas histórias anos mais tarde, quando os
encontrei depois de fazer perguntas e dar telefonemas em Hendra.
Na lanchonete Feed Bin, por exemplo, alguém disse: Ray
Unwin? Ah, deve estar lá no estábulo do Bob Bradshaw. Segui as
indicações até o estábulo e, na entrada da garagem, dei de cara com
um homem carregando um balde: Unwin. Era agora um
trabalhador de meia-idade, rabo de cavalo loiro acinzentado, olhar
triste e cansado. Ele se mostrou um tanto esquivo com aquela
atenção de um estranho; estava farto de indagações de médicos,
autoridades de saúde pública e repórteres locais. Assim que nos
sentamos para conversar, ele declarou que não era um “chorão”,
mas que sua saúde andava “estropiada” desde o acontecido.
O número de cavalos mortos passou a crescer velozmente, e o
governo de Queensland interveio, enviando veterinários e outros
pro ssionais do DPA (sigla em inglês para Departamento de
Atividades Primárias, responsável pela pecuária, vida selvagem e
agricultura em todo o estado) e funcionários do Departamento de
Saúde de Queensland. Os veterinários do DPA começaram a fazer
necrópsias — dissecar os cavalos em busca de pistas — no próprio
quintal de Vic Rail. Logo o lugar cou juncado de cabeças,
membros decepados, sangue e outros uidos de cavalo escorrendo
pela sarjeta, sacos com órgãos e tecidos suspeitos. Outro vizinho de
Rail, um criador de cavalos chamado Peter Hulbert, enquanto me
servia café solúvel, recordou a cena horripilante vista na casa ao
lado. Com a água posta para ferver na chaleira, Hulbert lembrou os
contêineres de lixo usados pelo Departamento de Atividades
Primárias. “Aquelas lixeiras de rodinhas ali na rua, com pernas,
cabeças de cavalo… — quer açúcar?”
Não, obrigado, pre ro puro, respondi.
“… pernas, cabeças, tripas e tudo quanto é pedaço de cavalo ia
para aquelas lixeiras de rodinhas. Foi um horror.” No meio daquela
tarde, ele acrescentou, a notícia tinha se espalhado, e o pessoal da
televisão apareceu com as câmeras. “Nossa, foi terrível, cara.” E
veio a polícia e passou um cordão de isolamento em volta da casa
de Rail, como se fosse uma cena de crime. Será que algum inimigo
dele tinha feito aquilo? O mundo do turfe tinha sua banda podre,
como qualquer negócio, e provavelmente mais do que a maioria.
Peter Hulbert chegou até a cogitar a possibilidade de Vic ter
envenenado seus próprios cavalos e depois a si mesmo.
Enquanto a polícia investigava possível sabotagem ou golpe em
seguradora, as autoridades sanitárias tinham outras hipóteses com
que se preocupar. Uma era o hantavírus — que, na verdade, é um
grupo de vírus conhecido havia já um bom tempo pelos virologistas
depois de surtos na Rússia, na Escandinávia e em outros lugares,
mas que retornara aos holofotes desde o ano anterior, 1993, quando
um novo hantavírus emergira de maneira impressionante e matara
dez pessoas na área de Four Corners, no sudoeste dos Estados
Unidos. A Austrália, justi cadamente, vive em guarda contra a
invasão de suas fronteiras por doenças exóticas, e hantavírus no país
seria uma notícia ainda pior (exceto para os cavalos) do que a peste
equina africana. Por isso, os veterinários doDPA enviaram amostras
de sangue e tecido dos cavalos mortos preservadas em gelo para o
Laboratório de Saúde Animal da Austrália, uma instituição de alta
segurança conhecida por sua sigla, AAHL , na cidade de Geelong, ao
sul de Melbourne. Uma equipe de microbiologistas e veterinários
do instituto realizou uma série de testes com o material das
amostras, tentando cultivar e identi car algum micróbio e
con rmar que ele causara a doença nos cavalos.
Encontraram um vírus. Não era hantavírus. Não era o vírus da
peste equina africana. Era algo novo, que o microscopista do AAHL
nunca tinha visto e que, por seu tamanho e forma, parecia ser
membro de um grupo especí co de vírus, os paramixovírus. Esse
novo vírus diferia dos paramixovírus conhecidos no detalhe de que
cada partícula possuía uma orla dupla de espículas. Outros
pesquisadores do AAHL sequenciaram um trecho do genoma viral,
submeteram essa sequência a um vasto banco de dados e
descobriram baixa similaridade com um subgrupo desses vírus. Isso
pareceu con rmar a avaliação visual do microscopista. O subgrupo
comparado era o dos morbilivírus, que inclui o vírus da peste
bovina e o vírus da cinomose canina (que infectam animais não
humanos) e do sarampo (em humanos). Assim, a criatura de
Hendra foi classi cada e recebeu um nome com base naquelas
identi cações provisórias: morbilivírus equino (conhecido pela
siglaEMV ). Em termos grosseiros, sarampo equino.
Mais ou menos nessa época, os pesquisadores do AAHL testaram
uma amostra de tecido que fora extraída do rim de Vic Rail durante
a autópsia. A amostra também continha um vírus, idêntico ao dos
cavalos, con rmando que esse morbilivírus equino não afetava
apenas essa família de animais. Tempos depois, quando se percebeu
melhor o grau de sua singularidade, a designação “ EMV ” foi
abandonada, e o vírus foi rebatizado com o nome do lugar onde ele
emergiu: Hendra.
Identi car o novo vírus era apenas o primeiro passo para resolver
o mistério imediato de Hendra, que dirá para compreender a
doença em um contexto mais amplo. O segundo passo envolveria
descobrir o caminho até o esconderijo do vírus. Onde ele existia
quando não estava matando cavalos e pessoas? O terceiro passo
implicava um novo conjunto de questões. Como o vírus emergiu
de seu refúgio secreto, e por que aqui, por que agora?
Depois da nossa primeira conversa naquela lanchonete de
Hendra, Peter Reid me levou de carro ao local onde Drama Series
adoeceu, Cannon Hill. Ficava do outro lado do rio Brisbane, vários
quilômetros a sudoeste. Fora uma pastagem cercada pela cidade
grande e agora era um orescente bairro residencial à margem da
rodovia M1. Um condomínio de casas com gramados bem
cuidados tinha sido construído no lugar do pasto original. Quase
nada mais se via da antiga paisagem. Mas no nal de uma rua havia
um círculo, chamado Circuito de Calíope, no meio do qual havia
uma única árvore madura, uma gueira-da-austrália, debaixo da
qual a égua talvez se abrigasse do feroz sol tropical do leste da
Austrália.
“É aí”, disse Reid. “Essa é a árvore maldita.” Era ali que os
morcegos se reuniam, ele queria dizer.
Doenças infecciosas estão por toda parte. A doença infecciosa é
uma espécie de cimento natural que liga uma criatura a outra, uma
espécie a outra, nos elaborados edifícios biofísicos que chamamos
de ecossistemas. É um dos processos básicos que os ecologistas
estudam, entre os quais estão também a predação, a competição, a
decomposição e a fotossíntese. Predadores são animais
relativamente grandes que comem suas presas de fora para dentro.
Patógenos (agentes causadores de doença, como os vírus) são
criaturas relativamente pequenas que comem suas presas de dentro
para fora. Embora a doença infecciosa possa parecer repulsiva e
medonha, em condições usuais ela é tão natural quanto o que os
leões fazem com gnus e zebras ou o que as corujas fazem com os
camundongos.
Acontece que nem sempre as condições são usuais.
Assim como os predadores têm presas a que estão acostumados,
seus alvos favoritos, o mesmo se dá com os patógenos. E assim
como um leão pode ocasionalmente afastar-se de seu
comportamento normal — matar uma vaca em vez de um gnu,
uma pessoa em vez de uma zebra —, um patógeno também pode
mudar para um novo alvo. Acidentes acontecem. Aberrações
ocorrem. Circunstâncias mudam e, com elas, as exigências e as
oportunidades. Quando um patógeno passa de algum animal não
humano para uma pessoa e consegue se estabelecer ali como uma
presença infecciosa, às vezes causando doença ou morte, o
resultado é uma zoonose.
Esse termo — zoonose — é um tanto técnico, desconhecido pela
maioria das pessoas, mas ajuda a elucidar as complexidades
biológicas por trás das agourentas manchetes sobre gripe suína,
gripe aviária,
SARS , doenças emergentes em geral e a ameaça de
uma pandemia global. Ajuda-nos a compreender por que a ciência
médica e as campanhas de saúde pública foram capazes de vencer
algumas doenças pavorosas, como a varíola e a pólio, mas não
conseguem prevalecer sobre outras, como a dengue e a febre
amarela. E diz algo essencial sobre as origens da aids. É uma
palavra do futuro, destinada a um uso intensivo no século .
XXI
Ebola é uma zoonose. A peste bubônica é outra. E também foi
uma zoonose a chamada gripe espanhola de 1918-9, que teve como
fonte, em última análise, uma ave aquática e que, depois de passar
por alguma combinação de animais domésticos (um pato no sul da
China, uma leitoa em Iowa?), emergiu e matou nada menos do que
50 milhões de pessoas antes de recair na obscuridade. Todas as
in uenzas humanas são zoonoses. E o mesmo se pode dizer da
varíola dos macacos, da tuberculose bovina, da doença de Lyme, da
febre do Nilo Ocidental, da doença de Marburg, da raiva, da
síndrome cardiopulmonar por hantavírus, do antraz, da febre de
Lassa, da febre do Vale do Rift, da larva migrans ocular, do tifo
rural, da febre hemorrágica boliviana, da doença da oresta de
Kyanasur e de uma nova moléstia esquisita chamada encefalite de
Nipah, que matou suínos e suinocultores na Malásia. Cada uma
dessas zoonoses re ete a ação de um patógeno que pode passar de
outros animais para as pessoas. A aids é uma doença de origem
zoonótica causada por um vírus que, depois de chegar a seres
humanos em razão de uns poucos eventos acidentais na África
Ocidental e Central, agora se transmite de humano para humano
aos milhões. Essa forma de salto interespécies é comum, não rara;
cerca de 60% de todas as doenças infecciosas humanas hoje
conhecidas passam rotineiramente ou passaram há pouco tempo
entre outros animais e nós. Algumas delas — notavelmente a raiva
— são bem conhecidas e disseminadas e continuam a ser
pavorosamente letais, matando pessoas aos milhares apesar de
séculos de esforços para combater seus efeitos, de tentativas
internacionais conjuntas de controle ou erradicação e de uma
compreensão cientí ca razoavelmente clara de como elas
funcionam. Outras são novas e inexplicavelmente esporádicas:
fazem umas poucas vítimas (como o Hendra) ou algumas centenas
(Ebola) em um lugar ou outro e então desaparecem por anos.
A varíola, para citar um contraexemplo, não é uma zoonose. É
causada pelo vírus da varíola que, em condições naturais, infecta
apenas seres humanos. (Condições laboratoriais são outra questão;
o vírus foi algumas vezes inoculado experimentalmente em
primatas não humanos ou outros animais, em geral no contexto de
pesquisas para vacinas.) Isso ajuda a explicar por que uma
campanha global lançada pela Organização Mundial de Saúde
(
OMS ) para erradicar a varíola foi bem-sucedida a partir de 1980. A
varíola pôde ser erradicada porque esse vírus, que é incapaz de
habitar e se reproduzir em outras partes além do corpo humano (ou
de animais cuidadosamente observados), não pôde se esconder.
Analogamente, a poliomielite, uma doença viral que atacou pessoas
por milênios mas (por razões contrárias à intuição ligadas a melhor
higiene e adiamento da exposição de crianças ao vírus) tornou-se
uma ameaça epidêmica terrível na primeira metade do século , XX
sobretudo na Europa e América do Norte. Nos Estados Unidos o
problema da pólio culminou em 1952 com um surto que fez mais
de 3 mil vítimas fatais, muitas delas crianças, e deixou 21 mil
paralíticas ao menos parcialmente. Pouco depois, vacinas
desenvolvidas por Jonas Salk, Albert Sabin e um virologista
chamado Hilary Koprowski (adiante veremos mais sobre sua
carreira controvertida) passaram a ser usadas de modo abrangente
até, por m, eliminarem a poliomielite na maior parte do mundo.
Em 1988 a OMS e várias instituições parceiras lançaram uma
campanha internacional para a erradicação que, até o presente,
reduziu em 99% o número de casos de pólio. As Américas foram
declaradas livres da pólio, assim como a Europa e a Austrália.
Apenas cinco países, desde os últimos informes em 2011, ainda
parecem ter uma presença menor e espasmódica de pólio: Nigéria,
Índia, Paquistão, Afeganistão e China. A campanha de erradicação
da poliomielite, em contraste com outras iniciativas globais de
saúde bem-intencionadas e dispendiosas, pode ser bem-sucedida.
Por quê? Porque vacinar milhões de pessoas é barato, fácil e tem
efeitos permanentes e porque, exceto quando infecta seres
humanos, o poliovírus não tem onde se esconder. Ele não é
zoonótico.
Patógenos zoonóticos conseguem se esconder. É isso que os torna
tão interessantes, tão complicados e tão problemáticos.
A varíola dos macacos é uma doença similar à varíola, causada
por um vírus de parentesco próximo com o desta segunda doença.
Ela é uma ameaça contínua a habitantes da África Central e
Ocidental. A varíola dos macacos difere da varíola em um aspecto
crucial: a capacidade de seu vírus para infectar primatas não
humanos (daí seu nome) e alguns outros tipos de mamífero, como
ratos, camundongos, esquilos, coelhos e os cães-da-pradaria
americanos. A febre amarela, também infecciosa para macacos e
humanos, resulta de um vírus que passa de uma vítima a outra e, às
vezes, de macaco para humano, através da picada de certos
mosquitos. Essa é uma situação mais complexa. Um resultado disso
é que a febre amarela provavelmente continuará a afetar pessoas —
a menos que a OMS mate todos os mosquitos vetores ou todos os
macacos suscetíveis na África tropical e na América do Sul. O
agente da doença de Lyme, um tipo de bactéria, esconde-se
e cazmente em camundongos da espécie Peromyscus leucopus e
outros pequenos mamíferos. Esses patógenos não se escondem
conscientemente, é claro. Residem onde residem e transmitem
como transmitem porque essas opções fortuitas funcionaram para
eles no passado, criando oportunidades de sobrevivência e
reprodução. Pela fria lógica darwiniana da seleção natural, a
evolução codi ca o acaso em estratégia.
A mais discreta de todas as estratégias é ocultar-se no que
chamamos de hospedeiro reservatório. Um hospedeiro reservatório
(alguns cientistas preferem dizer “hospedeiro natural”) é um
organismo vivo que abriga cronicamente o patógeno mas adoece
pouco ou não adoece. Quando uma doença dá a impressão de