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Maitê Paixão Garcez Soares Da Silva - Maite Paixao Garcez

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE

CURSO DE PSICOLOGIA

Maitê Paixão Garcez Soares da Silva

O SER OBSESSIVO E O SER MULHER PARA A PSICANÁLISE:


UMA LEITURA LACANIANA A RESPEITO DAS PARTICULARIDADES
REFERENTES À NEUROSE OBSESSIVA FEMININA

SÃO PAULO
2022
MAITÊ PAIXÃO GARCEZ SOARES DA SILVA

O SER OBSESSIVO E O SER MULHER PARA A PSICANÁLISE:


UMA LEITURA LACANIANA A RESPEITO DAS PARTICULARIDADES
REFERENTES À NEUROSE OBSESSIVA FEMININA

Trabalho de conclusão de curso como exigência


parcial para a graduação no curso de Psicologia da
Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob
orientação da Profa. Me. Carla Regina Calderoni.

SÃO PAULO
2022
À memória de meu tio, Marcos Paixão Garcez, cuja
curiosidade, determinação e, sobretudo, paixão me
inspiraram na realização deste trabalho e em todo o
meu percurso acadêmico.
AGRADECIMENTOS

Aos meus pais, Marianne e Antonio Carlos, por todo o apoio, incentivo e amor, os quais
me possibilitaram construir, frente a uma nova cidade, uma base sólida na qual pude me firmar.
Agradeço-os também pela confiança e atenção, sem as quais eu não estaria onde estou hoje.
Ao meu companheiro diário, Paulo, pelo carinho e pela presença, sejam nos momentos
corriqueiros da semana, sejam naqueles mais significativos dos últimos quatro anos. Gostaria
de agradecê-lo também pelo encorajamento e interesse, tão importantes durante a escrita deste
trabalho.
À minha prima, Malu, pela presença e pelo apoio, não somente nestes anos de
graduação, mas nos vinte dois de minha existência. Aqui, deixo também meu agradecimento ao
seu companheiro, Gabriel, pelo acolhimento e pelos conselhos dados ao longo de minha vida
universitária.
Aos meus avós, Fausto e Ercília, pelo carinho, apoio e pela recepção calorosa e alegre
em suas casas.
Aos meus queridos amigos, Isadora F. e Inácio, pela presença tão ativa e significativa
em minha vida.
À minha orientadora, Carla, pelo incentivo, pelas leituras atenciosas e pela pertinência
nas pontuações feitas a este trabalho.
Ao professor Pedro, por aceitar o meu convite para ser o parecerista deste trabalho e
também pelo auxílio na delimitação de seu esboço quando este ainda configurava um projeto
de pesquisa.
Aos amigos que a vida universitária me trouxe: Caio, Raíssa, Daniel, Joaquim, Juliana
e Isadora M.; os quais tornaram meus dias mais alegres. E também aos amigos que, apesar da
distância, continuaram se fazendo presentes em minha vida: Vitor A., Victor K. e Rafael.
Aos meus tios e familiares: Marcelo, Fátima, Vinicius, Maristela e Demi; pelo apoio e
acolhimento.
E, por fim, um agradecimento especial à memória dos que já se foram e deixam imensa
saudade. Agradeço, assim, à minha avó Myrian e ao meu tio Marcos, que, sendo os ótimos
professores que eram, tanto me ensinaram sobre a vida.
RESUMO

SOARES DA SILVA, M. P. G. O ser obsessivo e o ser mulher para a psicanálise: uma


leitura lacaniana a respeito das particularidades referentes à neurose obsessiva feminina.
Orientadora: Carla Regina Calderoni. Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde — Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, 2022, pp. 68.

A presente pesquisa teve como objetivo realizar uma leitura psicanalítica de viés lacaniano a
respeito das particularidades do entrelaçamento das questões concernentes à feminilidade,
conforme vista por Freud e Lacan, com o diagnóstico estrutural da neurose obsessiva,
percorrendo as relações que as mulheres assim estruturadas estabelecem com o desejo, com o
Outro e com o gozo. Desse modo, foi realizada uma revisão teórica acerca das temáticas da
neurose obsessiva e da feminilidade, de modo a conceitualizá-las a partir das elaborações de
Freud e do ensino de Lacan. Feito isso, foi empreendida uma leitura a respeito da estrutura
obsessiva em mulheres, fundamentada em teorizações e considerações referentes ao tema
realizadas até o presente momento por autores de orientação psicanalítica lacaniana, para que,
assim, fossem compreendidas as especificidades da associação entre o ser mulher e o ser
obsessivo. A partir dessa leitura, constatou-se a possibilidade de vislumbrar diferentes modos
pelos quais a feminilidade pode atravessar a estrutura obsessiva, atribuindo a esta última traços
particulares.

Palavras-chave:
Feminilidade; Freud; Lacan; Neurose obsessiva; Neurose obsessiva feminina; Psicanálise.
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Tábuas da sexuação ................................................................................................... 40


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7

2 MÉTODO ..................................................................................................................... 12

3 A NEUROSE OBSESSIVA EM FREUD .................................................................. 14

4 CONSIDERAÇÕES DE LACAN A RESPEITO DA NEUROSE OBSESSIVA ... 22

4.1 A neurose obsessiva como estrutura ................................................................... 22

4.2 O obsessivo para Lacan ....................................................................................... 23

5 SER MULHER: A FEMINILIDADE PARA FREUD E LACAN .......................... 30

5.1 A mulher freudiana .............................................................................................. 30

5.2 Ⱥ Mulher lacaniana.............................................................................................. 37

6 A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA ................................................................... 45

6.1 A mulher obsessiva entre o sintoma, a estrutura e o caráter ........................... 45

6.2 Uma posição particular: a obsessiva enquanto mulher .................................... 53

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 62

REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 66
7

1 INTRODUÇÃO

Ao longo do desenvolvimento teórico da psicanálise, a neurose obsessiva é concebida e


elaborada por Sigmund Freud (1856-1939), primeiramente, a partir de uma desvinculação entre
representação e afeto, na qual este último, como retorno do recalcado, se ligaria a uma
representação diferente da original, gerando uma ideia obsessiva (FREUD, [1896a] 2018).
Desse modo, ao comparar-se histeria e obsessão como categorias clínicas da neurose, nota-se
que enquanto o afeto é deslocado para o corpo na primeira, através de uma conversão, na
neurose obsessiva ele permanece na esfera psíquica, relacionando-se a uma representação;
remetendo, desse modo, ao âmbito do pensamento (FREUD, [1894b] 1986).
Ao aprofundar o estudo dessa neurose em Observações sobre um caso de neurose
obsessiva ([1909] 2013), através do caso paradigmático do Homem dos Ratos, Freud parte das
ideias obsessivas do paciente Ernst Lanzer – o qual recebe o pseudônimo a partir de uma ideia
obsessiva envolvendo uma tortura com um rato –, para destacar alguns elementos que já havia
constatado na clínica dos obsessivos. Ressalta, assim, a onipotência atribuída pelo obsessivo
aos seus pensamentos, a constância da incerteza e da dúvida em situações nas quais ele tem de
tomar uma decisão, o sentimento exacerbado de culpa que permeia essa neurose e, também,
uma relação particular que o obsessivo estabelece com a morte e que se reflete na necessidade
que ele possui de conceber a morte de pessoas queridas, apontando para uma ambivalência entre
o amor e o ódio como um traço significativo dessa neurose. Neste momento, também afirma
que a neurose obsessiva seria um dialeto da “língua” da histeria, estabelecendo, assim, uma
aproximação entre estas duas categorias clínicas.
Posteriormente, Jacques Lacan (1901-1981), ao propor um retorno às primeiras obras
freudianas, se volta para a neurose obsessiva e para a histeria compreendendo-as através da
noção de estrutura, de modo que, para além da manifestação sintomática da neurose, uma
estrutura obsessiva remeteria, em última instância, a uma resposta do sujeito à questão de sua
existência, ao desejo que gerou seu nascimento. Sendo assim, corroborando a possibilidade de
convergência de sintomas histéricos e obsessivos em uma única pessoa, postula-se que a
estrutura histérica e a estrutura obsessiva, ambas neuróticas, não deveriam ser definidas a partir
de sua fenomenologia, mas enquanto correspondem a diferentes posições do sujeito em sua
relação com o Outro1, com o desejo, com o objeto e com o gozo.

1
A noção de Outro, conceito fundamental na teoria lacaniana, recebe diferentes conotações ao longo do ensino de
Lacan. Inicialmente empregado como análogo da ordem simbólica, compreendendo, assim, os elementos
significantes da língua, o Outro representa o discurso do inconsciente. Para além desta acepção, trata-se também
8

Sendo assim, a concepção lacaniana da estrutura obsessiva é atravessada, sobretudo, por


uma relação particular que o sujeito assim estruturado estabelece com o Outro e com o seu
desejo, e que se evidencia, de modo geral, a partir de uma tentativa de anulação de sua dimensão
desejante à medida em que ela aponta para o desejo do Outro. Com isso, enquanto é possível
compreender a histérica como um sujeito que visa constantemente ser a causa do desejo do
Outro, a partir de uma estratégia que busca desvelar sua falta e seu âmbito desejante, o obsessivo
é o sujeito que se recusa a reconhecer a existência do Outro e de seu desejo. Sendo assim, a
estrutura obsessiva se destaca por um esforço em manter o desejo na ordem do impossível –
como demonstram as constantes dúvidas e incertezas obsessivas frente à uma decisão –, visto
que “[...] quanto mais o obsessivo se aproxima de reconhecer seu desejo [...], mais o Outro
começa a ter precedência sobre ele, eclipsando-o como sujeito” (FINK, 2018, p. 140).
É nesse sentido também que, em suas formulações, Lacan retoma a ideia freudiana que
situa o ser do obsessivo no âmbito do pensamento consciente, uma vez que o obsessivo somente
pode afirmar sua existência enquanto sujeito pensante e inteiro, anulando a esfera desejante e
inconsciente que foge ao seu controle, ou seja, sua posição como sujeito dividido e faltante. A
partir disso, compreendem-se as tentativas obsessivas de racionalizar e de encaixar todas as
falas em uma lógica, em um discurso bem organizado que se propõe a um todo saber e que,
sendo assim, não suporta um furo, algo que escape à sua lógica.
Entre essas tantas teorizações psicanalíticas e avanços no estudo da neurose obsessiva,
nota-se um detalhe curioso que permanece: o obsessivo como sujeito no masculino. Na
realidade, no artigo Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa ([1896b] 1986),
Freud já comentava sobre uma inclinação de sujeitos do sexo masculino para a neurose
obsessiva, tendo afirmado também, em 1926, que “[...] é indubitável que a histeria tem maior
afinidade com as mulheres, assim como a neurose obsessiva tem com os homens [...]” (FREUD,
[1926] 2018, p. 87), afirmação raramente descartada por Lacan ao longo de seu ensino
(ALVARENGA, 2019). É nesse sentido que Fink (2018) opta por utilizar os nomes “obsessivo”
e “histérica”, flexionados, respectivamente, no masculino e no feminino, para se referir aos
sujeitos estruturados a partir de cada neurose, apesar de assinalar que existem mulheres
obsessivas e homens histéricos, assim como Lacan. Entretanto, nota-se que tais casos costumam

de um lugar passível de ser ocupado por determinadas figuras que exercem um papel importante na vida do sujeito,
sendo a mãe entendida, aqui, como o Outro primordial. É o lugar a partir do qual o sujeito recebe sua mensagem
de maneira invertida e a partir da qual desenvolverá seus ideais, formando-se como sujeito. Sendo assim, o Outro
é aquilo que vocifera, carrega um dizer, sendo também portador de um desejo do qual o sujeito se interroga.
Posteriormente, como será elucidado neste trabalho, será designado para representar uma alteridade radical,
excluída do campo do simbólico (cf. item 5.2).
9

causar perturbações ou, no mínimo, reflexões, seja para a psiquiatria que, muitas vezes, as
enquadra por sua sintomatologia no diagnóstico médico de borderline (FINK, 2018); seja para
a psicanálise que, considerando a distinção lacaniana entre posição masculina e posição
feminina – representantes de diferentes modos de se situar frente à linguagem –, apresenta
perspectivas divergentes a respeito da neurose obsessiva em mulheres.
Retomando um apontamento feito por Elisa Alvarenga em seu livro A neurose obsessiva
no feminino (2019), é inegável a presença de um certo número de exemplos de mulheres com
sintomas obsessivos na clínica freudiana, como os casos relatados nas Conferências
introdutórias à psicanálise ([1916-1917] 2014), mais especificamente na Conferência XVII
denominada O sentido dos sintomas (1917). No entanto, a autora afirma que, na maioria das
vezes, estes apenas recobrem uma estrutura que, ao ser analisada a partir da relação do sujeito
com o Outro e com o objeto, revela-se histérica. A partir de questões como essa, há diferentes
posicionamentos na psicanálise frente a possibilidade de uma estrutura obsessiva em mulheres:
enquanto alguns psicanalistas enquadram radicalmente toda mulher como histérica, sendo os
sintomas obsessivos sobrepostos a esta, outros discordam dizendo que há casos de mulheres
obsessivas, os quais, entretanto, seriam considerados graves, demandando um diagnóstico
diferencial com a psicose. Além destes, estão aqueles que, não se detendo tanto à noção de
estrutura clínica, destacam os casos de neurose obsessiva em seu estatuto de sintoma, utilizado
pela mulher para se haver com a sua feminilidade (ALVARENGA, 2019).
Diante de tantas perspectivas e posicionamentos acerca da compreensão da neurose
obsessiva feminina, demonstra-se válido refletir sobre os motivos a partir dos quais o obsessivo
é referenciado como um sujeito masculino pela psicanálise. Nesse sentido, seria possível
associar esta concepção à relação que sujeito obsessivo estabelece com o objeto amoroso e que,
conforme será elucidado posteriormente no trabalho2, se assemelha ao modo de amar do
homem, descrito por Freud em Contribuições para a psicologia da vida amorosa ([1910-1918]
2020). Além disso, há também a estratégia utilizada pelo obsessivo para tamponar a falta do
Outro e que é compreendida, pela psicanálise, como uma estratégia, sobretudo, masculina
(RIBEIRO, 2011a). Isso porque ela consiste em preencher o Outro com objetos que, por serem
atribuídos de um valor fálico, o obsessivo acredita serem capazes de camuflar a sua falta. Essa
evidente submissão à lógica fálica, a partir da qual ele pode anular a dimensão faltante e
desejante, poderia ser pensada, assim, como um dos aspectos que permitiria aproximar a
neurose obsessiva de uma estratégia masculina, uma vez que a posição masculina, conforme

2
Cf. item 5.1
10

compreendida pela psicanálise, comporta aqueles sujeitos que são totalmente regidos pela
norma fálica e que, por compreenderem uma totalidade, podem ser agrupados pelo conjunto
“homens” (FINK, 1998).
Por outro lado, a posição feminina abarca os sujeitos que não são totalmente submetidos
pela lógica fálica, de modo que há para a mulher um “para além” do terreno fálico, o qual não
está acessível à posição masculina. No entanto, na medida em que a mulher não é totalmente
regida por esta lógica, a qual o homem e o obsessivo são tão aferrados, não haveria a
possibilidade de compreender todas as mulheres em um conjunto, como o que é representado
pelos “homens”. Sendo assim, a feminilidade, a posição feminina, longe de compreender uma
generalização, indica que cada mulher deve ser tomada em sua particularidade e singularidade,
uma vez que não haveria um traço próprio que a caracterizasse e a definisse enquanto mulher.
Diante dessas considerações, uma questão de particular interesse frente à temática da
neurose obsessiva feminina diz respeito à reflexão de que enquanto a estrutura obsessiva se
aproxima e apresenta semelhanças com a estratégia e o amor da posição masculina, a mulher,
tal como é compreendida pela psicanálise, apresenta uma posição particular que compreende
justamente um “para além” do âmbito fálico e que, ao se defrontar com a estrutura obsessiva,
poderia produzir algumas especificidades nestes sujeitos. Sendo assim, quais seriam as
implicações dos atravessamentos da posição feminina em uma estrutura obsessiva, estando esta
última tão arraigada ao terreno fálico? Quais particularidades poderiam ser constatadas a partir
da associação entre o ser obsessivo e o ser mulher? Tendo estes questionamentos em vista, a
presente pesquisa teve como objetivo realizar uma leitura lacaniana a respeito do
entrelaçamento das questões concernentes à feminilidade, conforme vista por Freud e Lacan,
com o diagnóstico estrutural da neurose obsessiva, perpassando as relações que as mulheres
assim estruturadas estabelecem com o desejo, com o Outro e com o gozo.
Compreende-se a escolha por uma fundamentação teórica psicanalítica orientada pelo
ensino de Lacan, uma vez que a discussão que o trabalho se dispõe a realizar encontra um
terreno fértil na concepção de neurose obsessiva como estrutura clínica e no entendimento da
feminilidade como uma posição ocupada pela mulher na linguagem. Nesse sentido,
considerando a noção de estrutura clínica e de posição feminina como releituras lacanianas de
ideias freudianas, optou-se por uma orientação pelas principais obras de Freud e considerações
de Lacan em seus seminários e escritos, que abordassem a neurose obsessiva e a feminilidade,
de modo a compreender o desenvolvimento de ambos os conceitos na teoria psicanalítica. E,
no intuito de entrelaçar ambas as noções e empreender uma leitura a respeito das
11

particularidades da estruturação obsessiva em mulheres, privilegiou-se o assentamento no


ensino de Lacan e nas considerações de outros teóricos que se debruçaram sobre a questão e
cujo estudo é norteado pela perspectiva lacaniana.
Justifica-se a relevância de aprofundamentos e esclarecimentos a respeito da temática
em questão, uma vez que, conforme destacado por Peres (2021), demonstrando-se inacabado,
o estudo dessa neurose exige novas considerações e desenvolvimentos, assim como o
“continente negro da feminilidade” ressaltado por Ribeiro (2011a) em relação ao enigma que
permeia o tema do feminino na psicanálise. Além disso, a manifestação de problemáticas
referentes ao entendimento da neurose obsessiva feminina dentro da própria psicanálise,
evidencia-a, assim, como um terreno que se mostra passível de ser investigado e estudado a
fundo, de modo a contribuir para maiores elucidações.
Outra justificativa se encontra no apagamento de diagnósticos de base psicanalítica pela
psiquiatria, conforme demonstrado desde a publicação pela Associação Americana de
Psiquiatria da 3ª versão do Manual Diagnóstico e Estatístico de Distúrbios Mentais (DSM-III),
associado à difusão generalizada do chamado Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC).
Evidencia-se, a partir disso, um movimento reducionista que vem sendo realizado pelo
pensamento médico, o qual limita o entendimento de uma estrutura clínica a meros sintomas;
fazendo-se necessário, mediante os avanços da teoria psicanalítica, resgatar a ideia de estrutura
e a importância de afirmá-la.
Considerando, assim, o objetivo do presente trabalho e as justificativas que o embasam,
optou-se por organizar, em diferentes itens, os assuntos que compõem a temática escolhida,
sendo estes a neurose obsessiva, a feminilidade e a neurose obsessiva feminina. Desse modo,
no item três, é apresentado, primeiramente, o conceito freudiano de neurose obsessiva. No item
quatro, são trabalhadas as principais considerações de Lacan a respeito da neurose obsessiva,
incluindo a releitura desta como uma estrutura clínica. No item cinco, há um percurso pela
noção psicanalítica de feminilidade, conforme as perspectivas de Freud e Lacan. E, no item
seis, é empreendida uma leitura lacaniana acerca da neurose obsessiva feminina, embasada
pelas considerações de autores contemporâneos e articulada às teorizações trabalhadas nos itens
anteriores. Por fim, no item sete, são apresentadas as considerações finais da pesquisadora
frente ao estudo realizado pelo presente trabalho.
12

2 MÉTODO

O método da pesquisa consistiu na realização de uma revisão teórica em bibliografias


de viés psicanalítico freudiano e lacaniano que abordassem o tema da neurose obsessiva, da
feminilidade e da neurose obsessiva feminina, abrangendo tantos as obras originais de Freud e
os escritos e seminários de Lacan, quanto textos e livros de psicanalistas comentadores de tais
assuntos. Nesse sentido, a partir de obras orientadoras do desenvolvimento freudiano e
lacaniano dos temas citados, foram selecionados os principais textos de Freud e lições dos
escritos e seminários de Lacan, concernentes ao objetivo da pesquisa.
A fim de conceitualizar a neurose obsessiva para Freud e Lacan, a pesquisadora se
norteou por livros escritos por psicanalistas comentadores do percurso freudiano e lacaniano
diante do estudo desta neurose, a fim de traçar historicamente a elaboração desta nosografia por
Freud e apresentar as principais contribuições de Lacan a respeito desta em seu ensino. Desse
modo, foi realizada a leitura dos textos fundamentais de Freud acerca da temática em questão,
tais como o Manuscrito K: as neuroses de defesa (conto de fadas natalino) ([1896a] 2018), as
Observações sobre um caso de neurose obsessiva ([1909] 2013), referente ao caso do Homem
dos Ratos, A predisposição à neurose obsessiva ([1913] 2010), a conferência O sentido dos
sintomas ([1917] 2018), entre outros. Em relação ao ensino de Lacan, foram lidas as passagens
referentes ao tema presentes em O Seminário, livro 5: as formações do inconsciente ([1957-
1958] 1999), O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise ([1954-
1955] 1987), em seus Escritos (1998), entre outros.
Para conceitualizar e apresentar o desenvolvimento da ideia de feminilidade para Freud
e Lacan, analisando as implicações do ser mulher para ambos os autores, foi realizado o mesmo
procedimento em relação à temática da neurose obsessiva. Com isso, a pesquisadora fez a
revisão dos principais textos de Freud que abordam o tema da feminilidade, como A
feminilidade ([1933] 2020), Sobre a sexualidade feminina ([1931] 2020), Contribuições para
a psicologia da vida amorosa ([1910-1918] 2020), O declínio do complexo de Édipo ([1924]
2020), entre outros. E, com relação ao ensino de Lacan, pautou-se, principalmente, pela obra O
que Lacan dizia das mulheres (2005), da psicanalista Colette Soler, por capítulos presentes em
O seminário, livro 20: mais, ainda ([1972-1973]) e passagens de O sujeito lacaniano: entre a
linguagem e o gozo (1998) de Bruce Fink, de modo a abordar os principais trechos e
considerações importantes que tratam da compreensão do ser mulher na psicanálise lacaniana.
13

Feito isso, foi efetuada uma leitura de viés lacaniano a respeito da estruturação
obsessiva em mulheres, pautando-se por teorizações e considerações referentes ao tema,
propostas até o presente momento por psicanalistas de orientação teórica lacaniana, e
articulando-as com a revisão teórica realizada anteriormente acerca da temática da neurose
obsessiva e da feminilidade em Freud e Lacan. Sendo assim, foram selecionados livros, artigos
em revistas de psicanálise e teses de mestrado que abordassem o tema da neurose obsessiva
feminina. Entretanto, considerando o período de tempo disposto à realização do trabalho, foram
priorizadas para discussão as obras de duas autoras psicanalistas, sendo estas A neurose
obsessiva no feminino (2019), de Elisa Alvarenga, e Um certo tipo de mulher (2011a), de Maria
Anita Carneiro Ribeiro. Optou-se por abordar, articular e discutir o pensamento dessas duas
autoras considerando o caráter minucioso e rigoroso da construção teórica propostas por elas
em seus respectivos livros, os quais possibilitaram uma base sólida para uma leitura
psicanalítica de orientação lacaniana que levantasse as especificidades da associação entre o ser
mulher e o ser obsessivo para a psicanálise.
14

3 A NEUROSE OBSESSIVA EM FREUD

A expressão “neurose obsessiva”, tradução portuguesa da palavra alemã


Zwangsneurose, data de 1894, já sendo utilizada pelo fundador da psicanálise, Sigmund Freud,
em seu Rascunho D: sobre a etiologia e a teoria das principais neuroses ([1894a] 1996), o qual
acompanha uma correspondência enviada à Fliess (RIBEIRO, 2011a). Primeiramente estudadas
em relação às fobias, pelo autor, e vinculadas às psicoses, pela psiquiatria, as obsessões são
logo concebidas e enquadradas, no desenvolvimento da teoria psicanalítica, a partir da ordem
de uma neurose, de modo que esta nova concepção nosográfica é aprofundada e aproximada às
elaborações até então realizadas sobre a histeria (PERES, 2021).
Na correspondência enviada à Fliess em 1º de janeiro de 1896, na qual anexa o
Manuscrito K: as neuroses de defesa (um conto de fadas natalino) ([1896a] 2018), Freud parte
da histeria, da neurose obsessiva e de uma forma de paranoia para conceitualizar as chamadas
neuroses de defesa como “aberrações patológicas de estados afetivos psíquicos normais” (p.
23), cujo desencadeamento, no caso da neurose obsessiva, se relacionaria com o âmbito da
recriminação. Nesse sentido, a recriminação, como um estado afetivo comum ao sujeito,
tomaria proporções patológicas na neurose obsessiva na medida em que haveria uma “irritação
sexual significativa” (FREUD, [1896a] 2018, p. 24) no período da infância.
Entendendo a especificidade de cada neurose a partir do modo como se empreende o
recalque em cada caso, Freud descreve os processos de defesa referentes à neurose obsessiva
partindo do pressuposto de que haveria uma experiência sexual primária vivenciada
prazerosamente que, ao ser rememorada em idade mais avançada, produziria um desprazer e,
consequentemente, geraria uma recriminação consciente. Este desprazer, cabe ressaltar,
ocorreria na medida em que, originalmente, haveria uma experiência sexual vivida de modo
passivo, sendo a passividade o motivo do posterior desprazer; ideia que, entretanto, é
modificada posteriormente pelo autor, de modo que a culpa – e não a passividade – seria o fator
responsável pela atribuição de um desprazer retroativamente (RIBEIRO, 2011a).
Em suma, na tese demonstrada no Manuscrito K, a lembrança e a consequente
autorrecriminação seriam recalcadas e, o retorno do recalcado como um afeto – sentimento
puro de culpa, não havendo conteúdo – se ligaria a uma nova representação, dando origem à
ideia obsessiva, a qual é combatida como estranha ao eu. Desse modo, a ideia obsessiva é
compreendida por Freud como fruto de um compromisso, no qual retorna o mesmo afeto de
15

recriminação, enquanto há uma substituição do conteúdo original pela via do deslocamento


temporal e pela substituição analógica.
Na correspondência de 22 de dezembro de 1897, Freud ([1897] 1986) também
acrescenta um aspecto interessante referente à neurose obsessiva e seu mecanismo, o qual se
ligaria com a posterior compreensão lacaniana do inconsciente. Aproximando essa neurose ao
campo da linguagem, Freud afirma que, para o obsessivo, seria na representação de palavras, e
não em seu conceito, que o recalcado irromperia, de modo que seria possível compreender a
união dos mais diversos sentidos em apenas uma ideia obsessiva. Desse modo, destaca a
importância do significante e de sua ambiguidade para as formações de tal neurose, apontando
para um inconsciente que se apresenta de modo verbal no sujeito obsessivo (PERES, 2021).
Posteriormente, contribuindo para a compreensão teórica e outras elucidações da
neurose obsessiva, Freud publica o artigo Atos obsessivos e práticas religiosas ([1907] 2015),
empreendendo uma aproximação entre as ações e rituais realizados por religiosos e aqueles
demonstrados pelos neuróticos. Compreende, assim, os atos obsessivos como provenientes dos
cerimoniais neuróticos, nos quais o sujeito segue, como se fossem leis, uma série de medidas e
restrições cotidianas para se defender de uma angústia insuportável que poderia invadi-lo caso
o cerimonial não fosse seguido ou para se proteger de um castigo em forma de infortúnio. A
questão da defesa é, desse modo, aproximada por Freud do ato sagrado, uma vez que ambos,
obsessivos e religiosos, utilizam seus respectivos atos e práticas como medidas protetoras frente
ao sentimento de culpa, culpa que é inconsciente para neurótico e atribuída ao religioso em sua
posição de pecador.
No artigo, o autor também ressalta a falha no recalque característica da neurose
obsessiva, a partir da qual se evidenciam os constantes esforços psíquicos em forma de medidas
que visam impedir o retorno do recalcado, e também chama a atenção para o mecanismo de
deslocamento, já evidenciado por ele na formação de sonhos, como preponderante nos
processos psíquicos da neurose obsessiva. Além disso, Freud traz o relevante apontamento de
que a obsessão não se demonstra como critério distintivo da referida neurose, uma vez que tal
fenômeno é passível de ser encontrado, por exemplo, em um caráter obsessivo3.
É no ano de 1909 que, entretanto, a neurose obsessiva recebe um realce particular na
obra freudiana, através da publicação pelo autor das Observações sobre um caso de neurose
obsessiva ([1909] 2013), nas quais aborda o caso do chamado Homem dos Ratos. Este caso

3
Essa concepção, que não equipara o sintoma à neurose, demonstra-se relevante na medida em que aponta para a
noção de estrutura clínica que será introduzida posteriormente por Lacan.
16

clínico se funda, desse modo, como o paradigma para a compreensão da neurose obsessiva,
havendo maior definição e descrição para o funcionamento obsessivo, além da introdução de
novas considerações teóricas e práticas ao estudo que havia se iniciado anteriormente sobre o
tema, as quais permitem a Freud afirmar que a neurose obsessiva seria um dialeto da histeria.
Freud inicia suas observações dizendo que o paciente em questão o procura queixando-
se da presença de ideias obsessivas, entre as quais se destaca uma em que tanto seu pai quanto
a mulher amada sofrem de uma tortura com ratos. A ideia se inicia após certos acontecimentos
durante a prática de exercícios militares. Um dia, enquanto os realizava, o paciente perde seu
pincenê e encomenda um novo de seu óptico em Viena. Feito isso, escuta de um capitão que,
segundo ele, aparentava gostar de crueldades, o relato de um castigo no qual o condenado é
imobilizado enquanto um rato, preso a um recipiente contra o seu traseiro, perfura o seu ânus.
Segundo Freud, o analisando prossegue dizendo que logo lhe veio a ideia de que a tortura estaria
sendo aplicada a uma pessoa importante para ele que, posteriormente, se evidencia ser a dama
que adora e, após certa resistência, o pai, que já havia falecido.
Esse pensamento, entretanto, se vincula a outro acontecimento: o capitão cruel, ao lhe
entregar o novo pincenê que havia chegado do correio, diz que ele deveria pagar ao primeiro-
tenente A a taxa do reembolso. Nesse momento, aparece uma “sanção” para evitar que a ideia
evidenciada anteriormente se realizasse: não dar o dinheiro; e, logo em seguida, uma outra para
combatê-la, que se apresenta como uma ordem oposta: pagar a quantia ao primeiro-tenente A.
Frente a isso, decorre-se um longo percurso no qual se mostra impossível realizar o tal
juramento, uma vez que, na realidade, o capitão havia cometido um engano e, desse modo, o
pagamento não deveria ser feito ao primeiro-tenente A, mas à funcionária do correio;
informação esta que o Homem dos Ratos já tinha conhecimento antes daquela errônea dada
pelo capitão cruel.
Nesse sentido, evidencia-se o caráter ilógico de uma ideia obsessiva, uma vez que,
apesar de saber a quem deveria realmente pagar a referida taxa, a ordem que fora construída
pelo obsessivo após a fala do capitão teve prevalecimento, de modo que, mesmo após ter
reembolsado o valor à funcionária do correio, o homem continuou sendo atormentado pela ideia
de que deveria pagar a determinada quantia ao primeiro-tenente A. Do mesmo modo, observa-
se um escape à razão na medida em que o pai do paciente já havia falecido, não sendo possível
aplicar-lhe o castigo e, com isso, não havendo motivo lógico para tal temor.
Essa impotência da lógica frente à obsessão é justificada por Freud ao se referir também
às autoacusações do paciente diante da morte de seu pai: considerava-se um criminoso, uma
17

vez que, tendo dormido, não esteve junto dele no momento em que faleceu. Desse modo,
comentando a disparidade entre conteúdo ideativo e afetivo refletido no caráter exagerado que
as recriminações aparentam aos olhos do outro, Freud ([1909] 2013) reitera o mecanismo da
neurose obsessiva:

[...] o afeto é justificado, a consciência de culpa não deve ser criticada, mas liga-se a
outro conteúdo, que não é conhecido (inconsciente), e que deve antes ser procurado.
O conteúdo ideativo conhecido chegou a esse lugar devido a um nexo errado. Mas
não estamos habituados a ver em nós afetos poderosos sem conteúdo ideativo e por
isso, na falta de conteúdo, tomamos algum outro aceitável como substituto [...] (p. 35).

O autor também destaca os seus mecanismos secundários, uma vez que muitos
obsessivos chegam a relatar a causa para o seu adoecimento sem saber que o fazem. Tal feito é
explicado pela subtração do afeto, de modo que o trauma vivido se encontra presente na
memória, porém desinvestido de seu caráter afetivo. Sendo assim, a ocasião é percebida com
indiferença pelo obsessivo, uma vez que a significação original fora destituída.
Além disso, evidencia-se a presença de uma ambivalência entre amor e ódio como
tradução das ideias e atos obsessivos. O frequente temor de que algo terrível ocorra ao pai e à
amada, objetos de amor do paciente, e as medidas protetoras que realiza para evitá-lo seriam
decorrentes de impulsos hostis dirigidos a ambos. Nesse sentido, Freud comenta o caráter
compulsivo de certas ações obsessivas que consistem em realizar determinado ato e logo em
seguida desfazê-lo: enquanto na histeria haveria compromisso entre amor e ódio em uma única
representação, na neurose obsessiva os opostos são satisfeitos em dois tempos, no qual o
segundo anula o primeiro.
Ao fim do relato da história clínica, Freud chama a atenção para a relevância da
linguagem na construção obsessiva do Homem dos Ratos, uma vez que “ratos” se traduz para
o alemão como ratten que, nas associações do paciente, se ligaram a raten (“prestações”) e
spielratte (“rato de jogo”). Este último é utilizado para definir seu pai que, ao perder dinheiro
em um jogo de cartas, pede a um amigo que lhe adiante a quantia e acaba por não acertar a
dívida que tinha com este; de modo que são estabelecidas relações com o percurso obsessivo
do paciente em sua busca do pagamento ao primeiro-tenente A. Com isso, Freud reitera a
relação da neurose obsessiva com o campo da linguagem, que já havia apontado na
correspondência enviada a Fliess em dezembro de 1897, servindo de demonstração para a
posterior definição de inconsciente estruturado como linguagem, realizada por Lacan.
Segundo Peres (2021), um aspecto que se destaca neste caso é que Freud se propõe a
analisar o discurso de seu paciente a partir dos estudos construídos em sua obra A interpretação
18

dos sonhos ([1900] 2019), de modo que a escuta do dizer obsessivo poderia ser orientada da
mesma maneira que aquela direcionada ao relato dos sonhos. Tal postura frente às ideias
obsessivas é evidenciada primeiramente pelo autor quando diz que tanto os pensamentos
obsessivos quanto as construções oníricas carecem, à primeira vista, de uma causa e de um
sentido evidente, devendo a significação ser construída a partir do texto de ambos (FREUD,
[1909] 2013). Além disso, os mecanismos próprios dos sonhos, condensação e deslocamento,
também seriam responsáveis pela transformação das ideias e representações obsessivas, visto
que, para além do deslocamento do afeto de seu conteúdo original, a condensação pode ser
evidenciada na manifestação de múltiplas representações obsessivas, as quais, entretanto, são
referentes a uma única.
Em diálogo com o caso clínico, Freud também destaca algumas peculiaridades psíquicas
que pôde constatar na análise de outros pacientes obsessivos. Entre elas, está a
supersticiosidade, a qual se encontra em relação com o caráter onipotente atribuído pelos
obsessivos aos seus pensamentos e sentimentos; a necessidade da incerteza e da dúvida,
utilizada pela neurose para isolar o doente da realidade; e uma relação particular com a morte,
uma vez que, para solucionar conflitos que demandam uma decisão, o obsessivo precisa
conceber a possibilidade da morte de uma pessoa importante para ele. Esta última estaria
relacionada ao sentimento de culpa apresentado por esses pacientes, conforme reitera Peres
(2021):

A consciência de culpa acaba por ocupar um lugar preponderante na estrutura,


gerando um sentimento de culpa cujo fundamento se baseia em intensos e frequentes
desejos de morte inconscientes, em relação ao próximo. A morte é uma companheira
inseparável desses pacientes e a expectativa de desgraça está, sempre, ligada a ela. A
onipotência do pensamento gravita em torno desses pensamentos (p. 68).

Posteriormente, avançando nos estudos da neurose obsessiva, Freud publica o artigo A


predisposição à neurose obsessiva ([1913] 2010), no qual busca resolver o “problema da
escolha da neurose” (p. 325), compreendendo, assim, as razões que levariam uma pessoa a
manifestar uma determinada neurose e não outra. A partir disso, chama a atenção para as causas
constitucionais envolvidas, ou seja, para a predisposição do sujeito a um certo tipo de neurose,
e para as causas acidentais referentes às circunstâncias da vida; sendo a confluência de ambas
responsável pela doença. No entanto, na medida em que a questão da escolha corresponderia
ao âmbito da predisposição, Freud busca a origem daquela referente à neurose obsessiva no
período em que os seus sintomas começam a surgir no sujeito, entre os seus seis e oitos anos, e
na fixação, sobretudo, da função sexual em um estágio de organização pré-genital, no qual
19

prevalece o sadismo e o erotismo anal. Nesse sentido, diferencia neurose de caráter, uma vez
que este último, apesar de estar sujeito às mesmas forças libidinais sádicas e erótico-anais que
a primeira, não apresenta, em sua formação, recalque ou falha no recalque como a neurose. E,
além disso, aponta para o impulso de saber do obsessivo como uma transformação sublimatória
do sadismo, ao afirmar que:

[...] quanto ao impulso de saber, temos a impressão frequente de que poderia mesmo
substituir o sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Pois ele é, no fundo, um
rebento sublimado, elevado ao plano intelectual, do instinto de apoderamento; sua
rejeição na forma de dúvida tem grande papel no quadro da neurose obsessiva
(FREUD, [1913] 2010, p. 334-335).

Alguns anos após a publicação deste artigo, Freud se debruça novamente sobre a
neurose obsessiva, através da conferência introdutória à psicanálise denominada O sentido dos
sintomas ([1917] 2014), visando, desta vez, analisar minuciosamente dois casos de mulheres
obsessivas, de maneira a evidenciar o sentido particular que é guardado pelos sintomas das
pacientes, uma vez que, tal como os sonhos e atos falhos, o sintoma possui íntima relação com
as vivências do sujeito. Antes de se deter aos casos, Freud ([1917] 2014) propõe a seguinte
descrição para a neurose em questão:

a neurose obsessiva se manifesta quando os doentes são tomados por pensamentos


nos quais eles próprios não têm nenhum interesse, quando sentem impulsos que lhes
parecem muito estranhos e são levados a ações cuja execução não lhes propicia
nenhum prazer, mas que é impossível deixarem de fazer (p. 345).

A partir disso, enfatiza, novamente, o mecanismo de deslocamento presente no sintoma


como característica central da neurose obsessiva, assim como a forte separação entre opostos
na vida psíquica do obsessivo; além de destacar as constantes dúvidas e indecisões que assaltam
o neurótico, mesmo quando este já estaria em posse de uma certeza. Entretanto, ao se voltar
para os dois casos, Freud visa descrever a ação obsessiva e o cerimonial obsessivo que são
manifestados, respectivamente, por duas pacientes, decifrando o sentido que os acompanha e
que se relaciona com as situações e vivências individuais de cada uma delas.
Quase uma década após a realização desta importante conferência, o estudo freudiano
da neurose obsessiva recebe novo destaque a partir da publicação de Inibição, sintoma e
angústia ([1926] 2018). No artigo, Freud chama a atenção para a formação de sintomas na
neurose obsessiva, configurando-os a partir de dois tipos, cujas tendências se mostram
contrárias. Sendo assim são apontados aqueles que compreendem interdições, penitências e
20

medidas de precaução, caracterizados pelo autor como negativos, e outros nos quais se
sobressaem as satisfações obtidas, de modo que: “A formação de sintomas obtém um triunfo
quando consegue mesclar a proibição e a satisfação, de forma que o mandamento ou proibição
originalmente defensivo adquire também o significado de uma satisfação [...]” (FREUD, [1926]
2018, p. 48). Nesse sentido, ressalta-se a relevância da luta contra o recalcado e a participação
do Eu e do Supereu na formação dos sintomas da neurose obsessiva.
Outro aspecto relevante que é retomado por Freud com relação a essa neurose é a
regressão parcial ou total ao estágio sádico-anal, a qual é explicada a partir de um afastamento
dos componentes eróticos pulsionais daqueles investimentos destrutivos, referentes à fase
sádica. Através da associação entre essa regressão e o declínio do complexo de Édipo,
compreende-se a consolidação de um Supereu particularmente severo e rigoroso na neurose
obsessiva. O Eu também é enfatizado pelo autor, a partir de duas técnicas auxiliares das quais
se utiliza como variações do recalque, sendo estas a anulação do acontecido e o isolamento.
Segundo Freud ([1926] 2018):

Tais variações talvez se tornem mais compreensíveis se tivermos em conta que na


neurose obsessiva o Eu é cenário da formação de sintomas muito mais do que na
histeria, que esse Eu se apega tenazmente à sua relação com a realidade e com a
consciência, empregando para isso todos os seus recursos intelectuais, e que a
atividade mesma do pensamento aparece superinvestida, erotizada (p. 56-57).

Desse modo, tendo ressaltado a aproximação da neurose obsessiva com o âmbito da


consciência e do pensamento, o autor se volta, primeiramente, à técnica de anulação do
acontecido, compreendendo-a a partir dos sintomas de dois tempos, já descritos no caso do
Homem dos Ratos, e que são caracterizados pela presença de uma ação irracional que advém
para anular uma primeira que é exercida pelo sujeito como medida preventiva. Já a técnica do
isolamento, entendida como particular à neurose obsessiva, refere-se à subtração do afeto e à
supressão das relações associativas que acompanham determinada vivência desagradável,
através de um isolamento motor, de modo que o nexo no pensamento do sujeito é interrompido.
As elucidações propostas por Freud neste último trabalho aparecem, dessa forma,
retomando alguns aspectos que já haviam sido apontados em outros artigos do autor referentes
à neurose obsessiva, mas, sobretudo, demonstram o percurso minucioso e árduo iniciado por
Freud na construção teórica dessa categoria clínica que, tendo sido enquadrada no âmbito das
psicoses pela psiquiatria, é realocada por ele como pertencente ao terreno das neuroses; o que,
na opinião de Ribeiro (2011a), compreende a grande “invenção” freudiana no estudo da neurose
obsessiva. É este mesmo entendimento que, posteriormente, oferece ao psicanalista francês
21

Jacques Lacan a base para a leitura da categoria clínica da neurose obsessiva a partir da noção
de estrutura obsessiva e para o avanço nas teorizações propostas por Freud ao longo do
desenvolvimento teórico da psicanálise.
22

4 CONSIDERAÇÕES DE LACAN A RESPEITO DA NEUROSE OBSESSIVA

4.1 A neurose obsessiva como estrutura

A leitura lacaniana da neurose obsessiva resgata a concepção e as contribuições


elaboradas por Freud ao longo de sua teorização, de modo a articulá-las com noções de outras
ciências, tais como a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure (1857-1913) e os avanços
de Claude Lévi-Strauss (1908-2009) no terreno da antropologia, fundamentais à compreensão
do inconsciente estruturado como linguagem.
Essa leitura empreendida por Lacan das obras de Freud à luz de tais conceitos permite
que este se volte à neurose obsessiva, introduzindo a concepção desta como estrutura clínica.
A noção de estrutura clínica remete às três principais categorias diagnósticas freudianas:
neurose, perversão e psicose. Ao abordá-las atentando-se aos seus mecanismos distintos de
negação da castração – o recalcamento, no caso da neurose; o desmentido, da perversão; e a
foraclusão, da psicose – Lacan se encontra em consonância com os esforços realizados por
Freud na conceitualização e diferenciação das estruturas psíquicas encontradas na clínica, as
quais não poderiam ser compreendidas apenas por meio de um mero agrupamento de sintomas,
visto que a mesma fenomenologia pode ser encontrada em mais de uma estrutura (FINK, 2018).
A concepção lacaniana de diagnóstico estrutural, no entanto, não se define unicamente
pelos mecanismos de negação, conforme demonstram, por exemplo, as subcategorias da
neurose: histeria e neurose obsessiva; nas quais se opera o recalcamento. Para Dor (1991):

É em função dos amores edipianos que se constitui, para todos, a entrada em cena de
uma estrutura psíquica, ou, como assinalava Freud, a ‘escolha’ da sua própria neurose.
Esses amores edipianos nada mais são que o desenvolvimento, com estardalhaço, da
relação que o sujeito trava com a função fálica, ou seja, com a função paterna. Se esta
relação for vetor de ordem – no sentido de organização –, é, igualmente, portador de
desordem, pois a estrutura psíquica apresenta a particularidade essencial de ser
determinada uma vez por todas (p. 24).

Nesse sentido, a estrutura psíquica representa uma “organização definitiva” (p. 25), que
se inscreve no sujeito a partir de momentos fundamentais edipianos, os quais constituem a sua
relação com o falo4, culminando em um perfil da economia do seu desejo. No que tange à

4
O falo, para Lacan, denota o significante encarregado da distribuição de papéis no drama vital do sujeito,
respondendo pela posição do ser na linguagem e na partilha dos sexos. Objeto metonímico, é compreendido como
significante tanto da falta quanto do desejo, na medida em que a primeira possibilita a existência do segundo.
Representa o significante excepcional, visto que é o único possuidor de uma significação fixa, ou seja, que fixa a
significação do desejo materno no inconsciente, a qual fica inacessível ao sujeito.
23

estrutura neurótica, Fink (2018) afirma que ser histérica ou ser obsessivo remeteria a diferentes
posições do sujeito. Sendo assim, a compreensão lacaniana da neurose obsessiva é concebida,
de modo geral, a partir de uma posição – ou resposta – particular frente à questão da existência,
atravessada pelas relações que o sujeito estabelece com o Outro, o desejo, o objeto, e o gozo;
as quais serão elucidadas adiante.

4.2 O obsessivo para Lacan

Em 1953, ao retomar o caso do Homem dos Ratos na conferência O mito individual do


neurótico ou Poesia e verdade na neurose ([1953a] 2007), Lacan aponta para o encontro direto
do que foi relatado por Freud neste caso com o que se costuma observar na clínica da neurose
obsessiva, e destaca as relações que o obsessivo constitui com o pai, com a dívida e com o que
posteriormente teorizaria como o campo do gozo como imprescindíveis para a compreensão
desta neurose (PERES, 2021).
No mesmo ano, no texto Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise
([1953b] 1998), baseado em uma exposição realizada em um congresso em Roma, Lacan
estabelece uma importante analogia da neurose obsessiva com a dialética hegeliana do senhor
e do escravo, mais especificamente com a posição do último. Para Hegel, a origem do
pensamento humano estaria em uma disputa permeada pelo desejo de reconhecimento entre
dois sujeitos: o senhor e o escravo. Ao confrontarem-se, em uma luta de prestígio e
reconhecimento, o primeiro, por haver se arriscado e abdicado do gozo da vida, encontra-se
livre, tornando-se o vencedor; ao contrário do segundo que, preferindo ater-se à segurança de
sua posição, abre mão de sua liberdade, relegando-se ao lugar submisso de trabalhador. Em
suma: “[...] o senhor, ganha a contenda mas passa a depender do outro, o escravo perdedor, para
gozar a vida. O escravo, que é aparentemente o derrotado, detém os meios de fazer gozar o
senhor” (RIBEIRO, 2011b, p. 48).
Segundo a releitura de Lacan ([1953b] 1998):

O obsessivo manifesta, com efeito, uma das atitudes que Hegel não desenvolveu em
sua dialética do senhor e do escravo. O escravo esquivou-se ante o risco da morte,
onde a oportunidade de dominação lhe foi oferecida numa luta de puro prestígio. Mas,
como sabe ser mortal, ele também sabe que o mestre/senhor pode morrer. Por
conseguinte, pode concordar em trabalhar para o mestre/senhor e em renunciar ao
gozo nesse meio tempo: e, na incerteza do momento em que chegará a morte do
mestre/senhor, ele aguarda (p. 315).
24

Desse modo, na aproximação lacaniana da dialética de Hegel, o obsessivo, na posição


de escravo, aguarda a morte do senhor, ou seja, do Outro, para, enfim, ser livre e se tornar o
mestre, renunciando, em sua espera, o gozo, o qual passa a ser garantido ao mestre às suas
custas. Entretanto, sabe-se que a tal espera é interminável, uma vez que “a história fundamental
do obsessivo é ele estar inteiramente alienado num mestre, num senhor, cuja morte espera, sem
saber que ele já está morto, de maneira que ele não pode dar um passo” (LACAN, [1954-1955]
1987, p. 273), tal qual o Homem dos Ratos que, apesar do falecimento do pai, mantinha-o vivo
em seus sintomas obsessivos.
Esta analogia à dialética também é retomada ao fim do seminário realizado por Lacan
entre os anos de 1953 e 1954, publicado como O Seminário, livro 1: os escritos técnicos de
Freud ([1953-1954] 2009):

O mestre no estado puro está aí numa posição desesperada, porque não tem nada a
esperar senão a sua morte, porque não tem nada a esperar da morte de seu escravo
senão alguns inconvenientes. Ao contrário, o escravo tem muito que esperar da morte
do mestre. Para além da morte do mestre, será preciso que se afronte à morte, como
todo ser plenamente realizado, e que assuma, no sentido heideggeriano, o seu ser para
a morte (p. 373).

Nesse sentido, na neurose obsessiva, o sujeito se encontra em um impasse frente ao


Outro, uma vez que, ao mesmo tempo que aguarda e anseia pela sua morte, também precisa de
sua existência para não se defrontar com o risco da própria mortalidade caso ascenda a tal
posição e, nesse sentido, busca mantê-lo vivo. Essa prisão na qual tranca a si próprio
representaria a razão intersubjetiva das dúvidas e procrastinações, dimensões essenciais do
caráter obsessivo (LACAN, [1953b] 1998).
Essa relação que os sujeitos assim estruturados estabelecem com o Outro aponta
diretamente para aquela constituída com o pai, uma vez que o obsessivo é, por excelência, o
funcionário deste (MELMAN, 2004). Entretanto, é na medida em que ocupa a posição de servo
leal do pai, de garantir sua virilidade, que o filho também pode almejar ocupar seu lugar um
dia, o que não poderia ocorrer de outra forma senão através da morte deste, apontando para a
ambivalência entre amor e ódio dirigida ao pai, tão bem demonstrada pelo Homem dos Ratos.
Nesse sentido, ao entrar nessa relação especular, a qual permite a emergência tanto do
amor quanto da agressividade, o obsessivo se posiciona em um lugar de inferioridade frente ao
lugar ideal que ocupa o pai, de modo a garantir a virilidade deste último às custas de sua própria.
Desse modo, conforme demonstrada pela relação entre o senhor e o escravo, o obsessivo
25

[...] aceita uma certa feminilização para assegurar a virilidade do pai. Mas, é como se
fosse o seu sacrifício que permite a seu pai ser viril; ele sempre toma cuidado em não
ultrapassar o pai porque, se ele ultrapassasse o pai, isso seria sua própria queda, sua
própria perda. Mas, ao mesmo tempo, ele espera que seu pai morra, por considerar
que, neste momento, possa tomar seu lugar (MELMAN, 2004, p. 118).

Desse modo, é possível afirmar que uma das características da relação do obsessivo com
alteridade se refere a este sacrifício que ele faz tanto de sua virilidade quanto de seus desejos,
resultando em sua anulação como sujeito. Além disso, a questão particular da neurose obsessiva
com a morte, já constatada por Freud frente ao caso do Homem dos Ratos, aponta para esse
impasse frente ao lugar do pai que o obsessivo tanto almeja e que, no entanto, só poderá ocupá-
lo após a sua morte. Com isso, há uma constante postergação de seus afazeres e deveres, uma
vez que se defrontar com o fim é se defrontar com o assassinato deste que ocupa a posição de
autoridade, pelo qual ele seria culpado, uma vez que desejaria tomar seu lugar.
A partir disso, é possível compreender a presença marcante da culpa e da indecisão na
neurose obsessiva, essa última como tentativa de procrastinar o encontro com o desejo que lhe
é próprio como sujeito e com a renúncia que implica toda escolha, a qual evidenciaria o furo e
a falta que o obsessivo visa negar a todo custo e que implicaria em se defrontar com a castração
do Outro e com a sua própria.
A relação mortal que o obsessivo estabelece consigo mesmo se apresenta como uma
questão essencial para a compreensão da busca que empreende pela anulação de seu desejo e
do seu gozo. Conforme afirma Lacan ([1953b] 1998): “[...] ele próprio ‘não está ali’, está no
momento antecipado da morte do mestre/senhor, a partir da qual viverá, mas à espera da qual
se identifica com ele como morto, mediante o que ele mesmo já está morto” (p. 315-316). Ou
seja, enquanto espera pela morte do mestre, o obsessivo, ao se fazer de morto, apaga seu gozo
e se anula como sujeito desejante, evitando, desse modo, que o Outro deseje; uma vez que,
segundo a máxima lacaniana, o desejo é o desejo do Outro, “na medida em que este é o lugar
onde o significante ordena o desejo” (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 417).
Nesse ponto é possível introduzir a fantasia fundamental do obsessivo, a qual se
configura como resposta à questão do ser na neurose obsessiva: “Estou vivo ou estou morto?”.
A fantasia fundamental do sujeito diz respeito, em suma, à relação que ele estabelece com o
objeto, ou como Lacan se refere, objeto a. Fink (2018) aborda essa questão tomando como
referência o exemplo freudiano e lacaniano da relação do bebê com o seio da mãe. O seio,
enquanto a primeira fonte de satisfação do ser humano, nos primórdios, não é percebido pelo
bebê como um objeto separado de si. No entanto, na medida em que se constitui uma separação
entre o sujeito e o outro – o bebê e a mãe –, entre sujeito e objeto – o bebê e o seio –, a relação
26

com o seio, do modo como era estabelecida, é perdida, de modo que esse objeto de prazer nunca
mais pode ser encontrado da mesma maneira.
Essa relação com o objeto a, que opera como causa de seu desejo, se reflete na fantasia
fundamental do sujeito que, no caso do obsessivo, se configura pela recusa em reconhecer que
o objeto possui alguma relação com o Outro e, consequentemente, na retenção deste para si, a
qual pode ser remetida à questão da analidade na neurose obsessiva. Desse modo, “[...] a
unidade ou inteireza é devolvida ao sujeito pela soma do objeto. Mas o obsessivo se recusa a
reconhecer que o seio provém da mãe/Outro materno, ou tem qualquer relação com a mulher
real que se torna parceira sexual dele” (FINK, 2018, p. 135).
A partir disso, entende-se a particularidade na relação do obsessivo com seus parceiros
sexuais. Há uma tentativa de destruir o parceiro enquanto este se configura como a causa de sua
excitação sexual, encarnando o objeto a, a partir da separação radical entre o amado e o desejado
que, na neurose obsessiva, se apresenta comumente pela criação de duas categorias de
mulheres: a mulher idealizada que, aproximada à figura da mãe, é concebida como imaculada
e se apresenta como objeto de um amor puro; e, por outro lado, a mulher “impura”, que
representa o objeto a, causa de desejo (FINK, 2018). Essa distinção pode ser ilustrada pelo caso
do Homem dos Ratos, uma vez que em oposição à dama amada e venerada, com quem haveria
de se casar, o desejo do paciente era direcionado àquela outra mulher mencionada por ele,
pertencente à uma classe menos favorecida em termos financeiros, e com quem ele não poderia
se casar.
Nesse sentido, ao recusar o reconhecimento da relação do Outro com o objeto, o
obsessivo também busca aniquilar a dimensão do Outro e de seu desejo. Com relação ao desejo
na neurose obsessiva, Peres (2021) afirma:

Para Lacan, o que se evidencia no obsessivo é um desejo forte, e, exatamente porque


a força do desejo o atemoriza, ele faz o movimento para tudo transformar em
demanda, obtendo, assim, proteção. Porém, se seu desejo é forte, o desejo do Outro
também se apresenta como onipotente e, consequentemente, ameaçador. É daí que
vem o movimento de destruição, como medida de proteção, e a colocação do desejo
dentro da condição de impossibilidade, resultante de uma série de medidas de evitação
e escapatórias que impedem o confronto com o desejo (p. 96-97).

Com isso, ao visar a destruição da dimensão do Outro, dialeticamente, o obsessivo evita


o próprio desejo, movimento que se evidencia na colocação deste último a partir da ordem do
impossível, o que se reflete em suas típicas indecisões e procrastinações. É nesse mesmo sentido
que o obsessivo, ao falar de si, está sempre se referindo a um outro, se deslocando da posição
na qual poderia ser encontrado, ou seja, assim como o escravo, “sempre num lugar diferente de
27

lá onde se corre o risco” (LACAN, [1957] 1998, p. 454). No seminário realizado entre os anos
1954 e 1955, publicado sob o título de O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na
técnica da psicanálise ([1954-1955] 1987), Lacan afirma:

[...] o obsessivo é sempre um outro. Seja o que for que ele contar para vocês, sejam
quais forem os sentimentos que ele lhes trouxer é sempre os de um outro que não ele
mesmo. Essa objetalização de si mesmo não é devida a uma tendência ou a um dom
introspectivo. É na medida em que evita seu próprio desejo que todo desejo pelo qual,
enveredar, nem que seja aparentemente, ele o apresentará como sendo o desejo deste
outro ele mesmo que é o seu eu (p. 336-337).

Conforme reiterado por Ribeiro (2011a), o obsessivo se camufla, desloca, nega, duvida;
procurando a análise apenas quando algo fora desencadeado no mundo de estabilidade em que
almeja se manter, em seu discurso cartesiano e organizado. Entretanto, apesar da intensa
resistência ao inconsciente e às suas formações, o obsessivo, ao entrar em processo analítico,
torna-se o melhor “funcionário” da análise e de seu analista, o que demanda uma postura
cuidadosa deste último frente às incessantes associações e deslizamentos metonímicos que o
analisando faz em busca do “sentido, do sentido, do sentido...” (RIBEIRO, 2011a, p. 81).
A resistência ao sujeito do inconsciente, aquele Outro que habita e fala em todo ser que
está na linguagem, revela a tentativa – sempre falha – do obsessivo de evitar o confronto com
o furo em seu discurso, com o fato de que se constitui como sujeito dividido e não como
indivíduo sempre consciente que detém total controle de suas atitudes, falas e pensamentos, e
com a constatação da falha na onipotência do pensamento, esta última tão cara ao obsessivo na
construção de suas ideias e atos. Desse modo, na neurose obsessiva, a dimensão do Outro e de
seu desejo é negada a todo custo:

A estratégia obsessiva divide-se em duas partes: em primeiro lugar, trata-se de fazer


calar o desejo do outro reduzindo-o aos pedidos que o outro lhe faz. Assim um
obsessivo pode ser muito solícito, muito gentil, atendendo da melhor maneira a tudo
que lhe pedem para não deixar espaço para o desejo, que está oculto para além do que
se pede explicitamente. Ou então pode ser um sujeito ‘do contra’, que se opõe aos
pedidos dos outros, mantendo assim a ilusão de que anula o desejo (RIBEIRO, 2011b,
p. 25).

Entretanto, conforme já ressaltado na aproximação com o escravo de Hegel, apesar de


suas tentativas de aniquilá-lo, o lugar do Outro é sempre preservado e mantido pelo obsessivo,
o que se reflete em sua adesão constante ao regime do cálculo, do significante. Nesse sentido,
a conduta na neurose obsessiva tem como objetivo principal a manutenção do Outro, do qual o
28

obsessivo depende para ter acesso ao seu desejo, ainda que tente negá-lo constantemente
(LACAN, [1957-1958] 1999).
Melman (2004) chama a atenção para o âmbito da fala na neurose obsessiva. Segundo
o autor, a fala do obsessivo assemelha-se muito a uma mera leitura de algo já escrito. Observa-
se nele um discurso quase mecânico, uma vez que, como é próprio da neurose obsessiva a
negação daquilo que escapa ao discurso consciente, a tentativa de anular qualquer rastro de
desejo, o obsessivo visa apagar o sujeito da frase, de modo a prevalecer apenas no nível do
enunciado em si e não naquele da enunciação, o qual pressupõe que há um sujeito que fala,
sujeito que, estando na linguagem, é detentor de um desejo.
Nesse sentido, para o obsessivo, a autoridade de uma determinada frase está na
consistência e coerência lógica desta e não naquele que a está proferindo. E, é por ficar apenas
nesse âmbito que surge a dúvida característica da neurose obsessiva, uma vez que a frase,
mesmo em sua consistência lógica, poderia estar embasada em uma prerrogativa falsa e, assim,
o obsessivo acaba por repassá-la inúmeras vezes, a fim de garantir que ela esteja totalmente
correta, sem algo que lhe escape, algo que faça um furo em sua consistência.
A relação do obsessivo com o âmbito da enunciação também se aproxima da relação
que ele estabelece com a ordem, com o comando. Característica da neurose obsessiva, os
sujeitos assim estruturados estão sempre agindo por meio de ordens, tal qual o Homem dos
Ratos que, diante do imperativo de que deveria reembolsar o frete de seu pincenê a determinado
tenente, elaborou um percurso mirabolante para conseguir realizar tal ordem mesmo sabendo
que, na realidade, deveria pagar a outra pessoa. Entretanto, o obsessivo não segue apenas os
comandos emitidos pelas pessoas que ocupam o lugar do Outro para ele, mas aqueles que são
construídos dentro dele e que o invadem.
Segundo Melman (2004), essas ordens que se produzem no obsessivo dialogam com a
sua relação com a enunciação e, desse modo, com a voz, uma vez que que não há enunciação
sem que haja uma voz por trás. Para o autor:

[...] o obsessivo quer suprimir toda enunciação, quer dizer, o que se sustenta da voz,
ou seja, que, com a enunciação que ele forclui, ele forclui também a voz. Quando o
obsessivo recusa a enunciação por este mecanismo que lhe é próprio – o da forclusão
– ele não admite, ele a recusa no simbólico. Com a enunciação, ele forclui da mesma
maneira a voz, porque a enunciação não é separável de seu suporte, que é sua
referência ao falo e à voz. E, portanto, por este mecanismo, também tem um retorno
ao real sob a forma destes comandos que são quase vocalizados (p. 75).
29

Ademais, Melman (2004) aponta que, nessa relação que o obsessivo estabelece com a
voz e com as ordens provenientes desta, há um gozo que é “ao mesmo tempo, o maior gozo e a
maior dor” (p. 75). Desse modo, uma vez que o sujeito goza com a voz, a ordem adquire, na
neurose obsessiva, esse caráter invasivo e repetitivo, no qual o obsessivo sofre constantemente
com bombardeios de comandos e mais comandos.
Uma última questão que cabe ser destacada neste capítulo é que, para Lacan, a neurose
obsessiva se configura como uma estratégia masculina. Enquanto a estratégia feminina da
histérica se desenvolve em relação à indagação sobre o sexo – sou homem ou mulher? –, a
estratégia do obsessivo se desenrola na questão sobre a morte, a qual, conforme já elucidado,
ele tenta enganar se fazendo de morto, colocando seu desejo como impossível. A concepção
dessa neurose como uma estratégia alinhada à posição masculina também se refere ao fato de
que o obsessivo se encontra fortemente submetido à norma fálica:

Na neurose obsessiva, o sujeito é totalmente regido pela lógica fálica. O obsessivo é


o sujeito que precisa ter: ter dinheiro, mulheres, carro do ano, computadores e mil
bugigangas às quais ele atribui um valor fálico e que, no entanto, não recobrem a falta,
que é de estrutura. Através dos objetos de valor fálico, o obsessivo tenta fazer calar o
desejo, insistente, demoníaco, indestrutível que o habita. Por estar totalmente
submetida à lógica fálica, podemos dizer que a neurose obsessiva é uma estratégia
masculina (RIBEIRO, 2011b, p. 29).

Com isso, compreende-se que o obsessivo está totalmente submetido à castração, ou


seja, totalmente regido pela norma fálica, tal qual demonstra o lado masculino das fórmulas da
sexuação de Lacan. Por outro lado, como será visto adiante, o lado feminino é operado de modo
diferente, referindo-se a uma posição singular frente à castração e à lógica fálica, de modo que
é possível conceber a mulher como “não-toda”: “não-toda” castrada, “não-toda” referida ao
falo. Desse modo, tratando-se da problemática da mulher obsessiva, faz-se necessário
aprofundar a compreensão de feminilidade para a psicanálise.
30

5 SER MULHER: A FEMINILIDADE PARA FREUD E LACAN

As questões concernentes à feminilidade apresentam-se, desde Freud, como um terreno


intrigante e enigmático para a psicanálise. Os furos na precisão de sua compreensão aparecem
nas explicações hesitantes que o autor propõe à constituição da mulher, as quais constantemente
afirmou serem insuficientes e lacunares, e que se encontram remetidas ao complexo de Édipo
e ao complexo de castração, principalmente através do que ele chamou de “inveja do pênis”.
Anos depois, Lacan também se volta para o tema, dessa vez ultrapassando o Édipo e propondo
um entendimento da mulher como o Outro sexo, que estaria para além da referência ao falo na
qual estão situados os homens, de modo que o feminino se evidencia como aquilo que seria
representante de uma outra lógica (SOLER, 2005).
O desenvolvimento teórico psicanalítico acerca deste tema também não se deu sem que
surgissem polêmicas a seu respeito, sejam em passagens nas quais Freud discorda das
feministas de seu tempo, seja a partir da conhecida afirmação de Lacan: “Ⱥ Mulher não existe”.
Para os fins do trabalho, entende-se a importância de trespassar tais controvérsias e as diferentes
formulações e reformulações na compreensão da feminilidade para ambos os autores para que
se torne possível adentrar na compreensão do ser mulher para a psicanálise, uma vez que, sendo
elucidada através do Édipo ou para além do Édipo, a mulher não deixa de aludir àquilo que toca
ao desconhecimento.

5.1 A mulher freudiana

Freud, no conjunto de artigos denominado Contribuições para a psicologia da vida


amorosa ([1910-1918] 2020), busca desenvolver e apontar para a constituição da vida amorosa
do homem e da mulher, propondo diferenças nas relações estabelecidas no âmbito masculino e
feminino. No primeiro desses artigos, Sobre um tipo particular de escolha de objeto nos homens
([1910] 2020), Freud destaca algumas condições particulares para a escolha objetal dos homens,
articulando-as com a relação que estes estabelecem com a mãe como primeiro objeto de amor.
Entre essas condições, se destacam: a escolha por uma mulher que esteja comprometida, ou
seja, seu interesse amoroso se volta para aquelas que estariam impedidas por um outro homem;
e, como outra condição, a de que a mulher que o atrai sexualmente, passível de ser elevada à
objeto amoroso, não seria a mulher pura e casta, mas aquela de reputação rebaixada,
desvalorizada frente a ele e à sociedade.
31

Dois anos após este primeiro texto, Freud publica Sobre a mais geral degradação da
vida amorosa ([1912] 2020), artigo no qual se ocupa de um aspecto geral da vida amorosa
masculina: a cisão entre a corrente terna e a corrente sensual. Haveria então, no homem, uma
radical distinção entre o amar e o desejar, originada a partir da interdição do incesto, de modo
que a mulher amada e supervalorizada como objeto de amor, que retoma a relação edípica com
a mãe, não é desejada; e a mulher desejada, à qual não é direcionada ternura, se apresenta a
partir de um objeto degradado, concebida como inferior pelo homem.
Apresenta-se relevante ressaltar, considerando a temática deste trabalho, que em ambos
os artigos evidenciam-se características da neurose obsessiva. Desse modo, é possível
identificar uma afinidade na concepção freudiana do modo como o homem se relaciona
amorosamente com a compreensão lacaniana do sujeito obsessivo, visto que este último,
apresentando um desejo da ordem do impossível, costuma almejar mulheres inalcançáveis,
como as que se encontram comprometidas com outro homem, tal como fora observado por
Freud. Ademais, tratando-se da característica geral masculina que se traduz na separação entre
ternura e sensualidade, torna-se evidente a degradação obsessiva do objeto enquanto este
encarna a causa de seu desejo, de modo que a mulher idealizada e imaculada, aproximada à
mãe, é amada pelo sujeito enquanto o seu desejo se volta para a mulher que, como no caso do
Homem dos Ratos, encontra-se em uma posição inferiorizada.
Por outro lado, a vida amorosa feminina é brevemente examinada por Freud em O tabu
da virgindade ([1918] 2020), artigo no qual se propõe a entender o motivo de certos povos
primitivos considerarem a virgindade um tabu. A partir disso, levanta como hipótese para o
afastamento do feminino o caso de mulheres que, após a relação sexual, agem de maneira hostil
para com seus parceiros, insultando-os. Desse modo, chama a atenção para a fixação da libido
na figura paterna como um motivo para insatisfação com a relação conjugal, uma vez que o
marido não é tido como suficiente quando comparado ao pai, o que poderia resultar em
agressividade; mas destaca que a hostilidade voltada ao homem poderia ser melhor
compreendida quando remetida à inveja do pênis, sentida pela menina ao constatar a diferença
entre os sexos.
Assim como a afinidade entre o homem freudiano e o obsessivo lacaniano, é possível
estabelecer uma aproximação entre este aspecto da vida amorosa feminina e a relação que a
histérica estabelece com o Outro, visto que esta última visa constantemente escancarar sua
inconsistência e impotência. Ribeiro (2011a) acrescenta que, em 1960, Lacan destaca nas Notas
diretivas para um congresso sobre a sexualidade feminina ([1960] 1998) que a mulher, para
32

amar e desejar um homem, precisa desvelar sua castração, uma vez que, nesse sentido, poderia
se oferecer como aquilo que tamponaria sua falta constitutiva. Entende-se, assim, uma
necessidade de degradação do homem e de se oferecer como objeto a – causa de seu desejo –
tanto na mulher quanto na histérica.
Alguns anos depois, em A organização genital infantil ([1923] 2020), Freud se volta
para o tema da sexualidade, afirmando que a principal característica da organização genital
infantil, que a diferencia da organização do adulto, é o que ele chama de “primado do falo” (p.
239), ou seja, que apenas o genital masculino apresenta um papel, tanto no caso do menino
quanto no caso da menina. A partir disso, Freud descreve como o menino acredita na
universalidade do pênis e como, ao se defrontar com uma figura feminina que não o tem,
entende essa falta como consequência de uma castração, a qual, nesse momento, pode não ser
estendida a todas as mulheres, como é o caso da mãe que, para o filho, pode se apresentar como
possuidora do falo por mais tempo. Nesse sentido, ressalta que na fase posterior a da
organização genital infantil, a oposição diz respeito a “masculino” e “castrado”, enquanto a
diferenciação entre “masculino” e “feminino” só se dará na fase da puberdade, na qual a
compreensão de “feminino” passa a ser relacionada ao objeto e à passividade. Cabe ressaltar
que, enquanto há uma descrição do que ocorre na criança do sexo masculino, Freud afirma que
“falta-nos o conhecimento dos processos correspondentes no caso da menininha” (p. 239).
No ano seguinte, ao publicar O declínio do complexo de Édipo ([1924] 2020), Freud
refere-se ao complexo de Édipo como "fenômeno central do período sexual da primeira
infância" (p. 247) e, descrevendo duas possibilidades distintas para a sua dissolução, aponta
para os rumos da sexualidade masculina e da sexualidade feminina. Com isso, primeiramente,
se detém a explicar como ocorre esse processo no menino. O ponto principal, nesse caso,
constitui-se pelo conflito de interesses edípicos e narcísicos, uma vez que, diante da ameaça de
castração caso o Édipo seja levado adiante, a criança opta pela opção narcísica de manter o
pênis, abrindo mão da relação com a mãe e investindo sua libido em objetos substitutos.
Por outro lado, ao tratar da saída feminina, Freud logo se adianta a dizer que "o nosso
material se torna – incompreensivelmente – muito mais obscuro e lacunar" (p. 252). Entretanto,
dá continuidade ao seu pensamento apontando que, para a menina, o clitóris seria
compreendido, de início, como um pequeno pênis quando comparado ao do menino, de modo
que ela se percebe inferiorizada e prejudicada em relação a ele, havendo um consolo temporário
a partir da esperança de que seu órgão, um dia, será do mesmo tamanho daquele pertencente ao
menino.
33

Posteriormente, a menina passaria a compreender a falta do pênis a partir da ordem de


uma castração: ela já possuiu um pênis, o qual, no entanto, fora castrado. Para Freud, a aceitação
da castração na menina faz com que o desejo de ter o pênis seja deslocado para o de receber um
filho do pai e, para o autor, esses dois desejos permanecem investidos no inconsciente da
mulher, auxiliando no seu "futuro papel sexual" (p. 253). Apesar da breve descrição, Freud
admite que a compreensão do declínio do complexo de Édipo na mulher possui lacunas,
apresentando-se, ainda, como um entendimento insatisfatório.
Esse entendimento, entretanto, é retomado a partir de novas contribuições em Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos ([1925] 2020). No artigo, Freud
chama a atenção para a distinção do complexo de Édipo no menino e na menina, buscando
elucidar que ponto do processo seria decisivo na constituição de tais diferenças. Com isso, ao
abordar o Édipo na mulher, ressalta que, para ambos os sexos, a mãe se configura como primeiro
objeto de amor, o qual permanece para o menino mas, por outro lado, é substituído
posteriormente pelo pai, para a menina. Desse modo, Freud conclui que, tratando-se do caso
feminino, o complexo de Édipo representaria uma formação secundária, que seria antecedida
por uma pré-história edípica.
Nesse sentido, retoma o primeiro contato da menina frente ao órgão genital masculino,
a partir do qual ela se torna refém da inveja do pênis, e diferencia as reações em ambos os sexos.
Desse modo, explicita que a reação masculina seria, primeiramente, de descaso e recusa daquilo
que foi visto nesse primeiro contato; no entanto, a partir da ameaça de castração, essa percepção
é ressignificada retroativamente, culminando na compreensão de que a menina haveria sido
castrada. Por outro lado, a menina aceita aquilo que viu, percebe essa falta em si e almeja ter o
pênis:

Neste ponto, bifurca-se o assim chamado complexo de masculinidade da mulher, o


qual, eventualmente, trará grandes dificuldades ao desenvolvimento predeterminado
da feminilidade, caso a mulher não consiga logo superá-lo (FREUD, [1925] 2020, p.
265).

Segundo Freud, a inveja do pênis produziria múltiplas consequências psíquicas na vida


da menina, entre as quais é possível citar um sentimento de inferioridade frente ao homem. Ao
compreender a falta do pênis a partir da ordem de uma generalidade e não como produto de
uma punição justificada a determinadas mulheres, a menina passaria a depreciar o seu sexo de
modo a se igualar aos homens. Outras duas consequências seriam o deslocamento da inveja do
pênis para o ciúme, de modo que o pênis é abdicado e o ciúme emerge dirigido a outros objetos;
34

e um enfraquecimento da terna relação de objeto com a mãe, uma vez que essa seria vista, pela
menina, como culpada pela falta do pênis.
Ademais, há o destaque para uma consequência que, na perspectiva de Freud, seria a
mais significativa e que, em suma, é resumida pelo abandono da masturbação na menina e o
consequente desenrolar de sua feminilidade. Para o autor, apesar do conhecimento de que as
reações dos indivíduos compartilham traços tanto femininos quanto masculinos, a natureza
feminina se encontraria mais distante da masturbação, de modo que essa poderia ser
compreendida como uma atividade masculina e, com isso, sua renúncia seria uma das condições
para o desenvolvimento da feminilidade. Sendo assim, Freud afirma que a menina perceberia a
impossibilidade de competir com o menino no que tange ao desejo de ter o pênis e abandonaria
a manipulação do clitóris como um afastamento da masculinidade:

[...] a ofensa narcísica ligada à inveja do pênis poderia ser a advertência de que nesse
ponto ela não pode, de fato, competir com o menino e que seria melhor abandonar a
concorrência com ele. Desse modo, o conhecimento da diferença anatômica entre os
sexos força a menininha a afastar-se da masculinidade e do onanismo masculino por
novas vias, que levam ao desdobramento da feminilidade” (FREUD, [1925] 2020, p.
268).

A partir deste ponto, haveria o já mencionado deslocamento do desejo de ter o pênis


para o desejo de ter um filho e, com esse intuito, o pai é tomado como objeto de amor, enquanto
a mãe ocupa a posição de objeto de ciúme, culminando, assim, na constituição da feminilidade
na menina. Com isso, Freud ([1925] 2020) propõe que a diferença fundamental do complexo
de Édipo na mulher e no homem se traduz pela oposição: “[...] enquanto o complexo de Édipo
do menino cai por terra através do complexo de castração, o da menina é possibilitado e
introduzido pelo complexo de castração” (p. 269). Desse modo, a distinção anatômica entre os
sexos e a situação psíquica a ela relacionada seria responsável pelas diferenças no
desenvolvimento sexual do homem e da mulher.
Ao fim do artigo, Freud deixa entendido que o motivo do declínio do Édipo na mulher
ainda se encontraria desconhecido, podendo ser sucumbido por um abandono ou recalcamento;
e propõe que, na medida em que o Supereu se constitui como herdeiro do complexo de Édipo
no menino, a constituição deste na menina se apresentaria de forma diferente, o que explicaria
supostas distinções éticas e as atitudes contrastantes do homem e da mulher. Entretanto, conclui
admitindo que

[...] todos os indivíduos humanos, em razão de sua constituição bissexual e da herança


cruzada, reúnem em si características masculinas e femininas, de maneira que a pura
35

masculinidade e a pura feminilidade são construções teóricas de conteúdo incerto


(FREUD, [1925] 2020, p. 271).

Muitas das contribuições teóricas deste artigo são retomadas e reafirmadas em Sobre a
sexualidade feminina ([1931] 2020), texto no qual Freud inclui um novo elemento para a
compreensão da feminilidade: a relação pré-edípica entre a mãe e a filha. Com isso, inicia
destacando que o desenvolvimento da sexualidade feminina implicaria a renúncia do clitóris e
sua consequente substituição pela vagina e o abandono da mãe como objeto de amor, enquanto
o pai passa a ocupar tal posição. Sobre este último ponto, diz que a experiência de análise com
mulheres evidenciou que a relação pré-edípica com a mãe seria caracterizada por uma ligação
intensa e que essa fase teria perdurado por mais tempo do que ele havia imaginado. Antes de
desenvolver suas elucidações sobre o tema, cabe ressaltar um apontamento de Freud que se
encontra na possibilidade de que a fase pré-edípica com a mãe teria uma íntima relação com a
etiologia da histeria, o que não o surpreende, uma vez que tanto essa fase quanto essa neurose
pertenceriam ao “caráter singular da feminilidade” (p. 288).
Ao retomar os efeitos do complexo de castração na mulher, Freud destaca três caminhos
de desenvolvimento: 1) a menina pode desistir de sua atividade masculina, abandonando a
sexualidade de modo geral; ou 2) ela se recusa a aceitar que não pode possuir o pênis, nutrindo
a esperança de que um dia possa voltar a tê-lo; ou, por fim, 3) ela pode substituir a mãe como
objeto de amor pelo pai, direcionando as ligações afetivas estabelecidas na fase pré-edípica para
a relação edípica. Para o autor, esse último caminho seria o único que levaria ao
desenvolvimento da feminilidade propriamente dita, evidenciando a relevância da relação
anterior estabelecida com a mãe, uma vez que muitos dos fenômenos da vida sexual feminina
remeteriam a essa fase.
A partir disso, Freud chama a atenção para os motivos e mecanismos que propiciariam
o afastamento da mãe como objeto de amor da menina. Entre eles, haveria o ciúme da mãe nas
relações que esta estabelece com outras pessoas, como um irmãozinho e o pai; a proibição que
a mãe pode efetuar na atividade masturbatória, de modo que se produz um rancor voltado à sua
figura; a desvalorização da feminilidade e, com isso, da mãe, a partir da compreensão da
generalidade da castração nas mulheres; e, por fim, o principal motivo estaria na recriminação
da mãe na medida em que esta seria responsável pela sua falta de pênis, por ter lhe trazido ao
mundo como uma mulher. Essa ambivalência que caracteriza a relação com a mãe, na qual há
um amor intenso e também um ódio voltado à sua figura, também é suposta por Freud como
um dos fatores para o próprio afastamento.
36

Um outro ponto destacado por Freud no artigo concerne às metas sexuais da menina em
relação à mãe, as quais possuiriam natureza tanto ativa quanto passiva e seriam determinadas
pela fases da libido. Com isso, durante as fases oral, sádica e fálica, houveram moções passivas
e ativas voltadas à sua figura; entretanto, no desenvolvimento da sexualidade feminina, as
moções sexuais ativas são rebaixadas enquanto as passivas se sobressaem, auxiliando na
substituição da mãe como objeto de amor pelo pai. Por fim, ao fazer uma breve comparação
com o direcionamento dessas mesmas moções no menino, as quais percorrem o mesmo
caminho por determinado período, afirma que “[...] são, então, fatores biológicos que as
desviam de suas metas iniciais, inclusive conduzindo os anseios ativos e, em todo sentido,
masculinos, para os trilhamentos da feminilidade” (FREUD, [1931] 2020, p. 303).
Em A feminilidade ([1933] 2020), Freud, já no início do texto, afirma que “sobre o
enigma da feminilidade, ruminaram os seres humanos de todos os tempos [...]” (p. 314),
apontando para a obscuridade, ou melhor, para o furo que tem permeado a compreensão deste
tema. O escrito, em sua maior parte, retoma tudo aquilo que fora elucidado no artigo Sobre a
sexualidade feminina ([1931] 2020), de modo que cabe ressaltar aqui os pontos que não foram
abordados explicitamente por ele no anterior.
Com isso, destaca-se a afirmação de que aquilo que constitui a masculinidade e a
feminilidade não se encontra na anatomia, se apresentando como um questionamento cuja
resposta é desconhecida. E, com relação à caracterização psicológica de uma suposta
preferência por metas passivas na mulher, as quais podem ser significativas ou discretas de
acordo com as limitações do modelo de vida sexual, Freud ([1933] 2020) chama a atenção para
a relevância do âmbito social, ao salientar que

[...] devemos, contudo, atentar para que a influência das normas sociais não seja
subestimada, normas que, de forma semelhante, forçam a mulher para situações
passivas [...] A repressão à sua agressividade, que é prescrita constitucionalmente e
imposta à mulher socialmente, favorece a formação de intensas moções masoquistas,
que conseguem vincular eroticamente as tendências destrutivas voltadas para dentro
[...] (p. 317-318).

No texto, há também um esclarecimento com relação à posição da psicanálise frente ao


enigma da feminilidade, uma vez que, em seu caráter singular, não deveria buscar descrever o
que é a mulher, mas se ater à pesquisa de como essa se torna mulher, considerando-se a
disposição bissexual de toda criança. Por fim, próximo à conclusão do texto, Freud ([1933]
2020) faz um apontamento teórico importante através da afirmação de que “[...] só existe uma
37

libido, que está a serviço tanto da função sexual masculina quanto da feminina” (p. 337), de
modo que a força pulsional da vida sexual é a mesma para todos os seres humanos.

5.2 Ⱥ Mulher lacaniana

A compreensão de Lacan acerca da feminilidade retoma em parte o desenvolvimento


teórico freudiano a respeito do tema, a partir da reformulação e da adaptação à sua lógica das
teses e concepções elaboradas anteriormente pelo pai da psicanálise. Entretanto, a teoria
lacaniana também promove um passo adiante: ao buscar um entendimento da mulher para além
do Édipo, âmbito no qual Freud se pautou para explicar a sexualidade feminina, Lacan se alça
em uma compreensão da mulher que não a reduz apenas à parceira do homem ou à mãe, mas,
para além disso, visa sua singularidade e seu acesso a um gozo que ultrapassa o referencial
fálico. É nesse sentido que, conforme será elucidado adiante, o psicanalista situa uma barra no
artigo que lhe definiria um conjunto, uma generalização, compreendendo que não se trata de
mulheres, na psicanálise, mas d’Ⱥ Mulher.
Com isso, conforme aponta Colette Soler em O que dizia Lacan sobre as mulheres
(2005), há dois momentos no desenvolvimento teórico lacaniano a respeito da feminilidade: um
que, apresentando-se nas produções de Lacan durante o fim da década de 1950, caminha na
estrada traçada por Freud, apesar de eventuais discordâncias, e o outro de caráter
revolucionário, que se presentifica a partir das fórmulas da sexuação do seminário Mais, ainda
([1972-1973] 2008), concebendo a mulher, além de sua parceria com o homem no sexo, em sua
relação com o gozo suplementar, o qual será melhor explicado adiante.
No que tange à compreensão da feminilidade atravessada pelo Édipo, Lacan se encontra
em concordância com os ditos de Freud, ao abordar a questão da identidade sexuada partindo
do primado do falo; no entanto, ainda assim, observam-se algumas diferenças na concepção de
ambos os autores. Por um lado, Freud compreende o falo como o significante da diferença
sexual no inconsciente e, além disso, toma-o em termos anatômicos, sendo equivalente ao pênis,
de modo que a questão relativa ao ser homem ou ser mulher se encontra no binarismo do ter ou
não ter o falo, entre medo de perdê-lo e desejo de tê-lo. Lacan, por outro lado, compreende o
falo, para além da diferença sexual, como significante da falta, a qual constitui todo sujeito que
se encontra inserido na linguagem. Ademais, para o autor, a identidade sexual poderia ser
encontrada na oposição entre ter o falo, representado pelo homem, e o ser o falo, posição
ocupada pela mulher, propondo uma modificação na questão freudiana do ter fálico.
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Soler (2005), retomando as diferentes saídas do Édipo para a mulher, explicitadas em


Sobre a sexualidade feminina ([1931] 2020) e A feminilidade ([1933] 2020) de Freud, destaca
que o caminho proposto pelo autor como o único que levaria ao desenvolvimento da
sexualidade feminina, no qual a passagem para a escolha objetal do pai pauta posteriormente a
escolha dos parceiros, aponta para a mulher em seu “ser o falo” de um homem: ela abdica do
desejo de tê-lo para sê-lo, para ser aquilo que falta ao homem. Nesse sentido, apesar de Freud
se ater à questão do ter fálico, a possibilidade de sê-lo, na mulher, é depreendida de suas
elaborações, uma vez que

[...] na relação dos desejos sexuados, a falta fálica da mulher vê-se convertida no
benefício de ser o falo, isto é, aquilo que falta ao Outro. Esse ‘ser o falo’ designa a
mulher como aquela que, na relação sexuada, é convocada ao lugar de objeto (SOLER,
2005, p. 28-29).

Desse modo, no que se refere ao terreno dessa parceria, há uma “dissimetria”, nas
palavras de Soler (2005); ou seja, no que perpassa o semblante fálico, há uma distinção entre o
masculino e o feminino: o homem se apresenta como desejante enquanto a mulher se molda
como desejável. Com isso, no par sexual, a mulher não ocupa a posição de sujeito desejante,
mas se mascara com aquilo que faz o homem, o Outro, desejar. Desse modo, a mascarada
feminina consistiria em um despertar o desejo do parceiro ostentando sua falta ou encarnando
o significante desta, o falo (RIBEIRO, 2011a).
Cabe ressaltar que essa primeira dissimetria, segundo Soler (2005), desemboca em uma
outra. O consentimento da mulher em ocupar a posição de desejada poderia ser atribuído à
fetichização do órgão masculino pelo significante fálico. Assim, a mulher se relaciona com o
homem na medida em que este é castrado, enquanto o homem, relacionando-se com a parceira
através da fantasia e situando-a como objeto a, causa de seu desejo, posiciona a mulher no lugar
do Outro absoluto.
Retomando o entendimento da mulher enquanto falo, é relevante destacar que este pode
ser concebido como um dos responsáveis pela confusão que comumente se faz da feminilidade
com a histeria, repercutindo em afirmações de que toda mulher seria histérica, uma vez que,
além de sua referência flexionada no feminino, ambas almejam ser o falo. Entretanto, há uma
distinção entre a identificação com o falo, uma dentre outras que constituem a histeria, e a
posição de falo na qual a mulher está situada na relação sexual, encontrando-se como objeto
em referência ao desejo masculino, complementar à falta fálica do homem.
39

Ao visar ser o falo do Outro, a histérica advém como aquilo que o falta, ou seja, toma
como referência o desejo do Outro, buscando deixá-lo insatisfeito. Por outro lado, a mulher tem
como referência o gozo, caracterizando-se por um querer gozar, ao invés de um querer ser, e
um querer fazer o Outro gozar, já que este último vem como causa de seu desejo (SOLER,
2005). No entanto, cabe ressaltar que essa proposta de gozo ao Outro não se relaciona com o
gozo Outro da mulher, suplementar, já citado e que será elucidado posteriormente no presente
trabalho.
Outra diferenciação que pode ser atribuída à histérica e à mulher se refere a uma
elaboração desenvolvida posteriormente por Lacan que ao invés de se referir à diferença sexual
pela questão fálica, o faz pelo sintoma: ter ou ser sintoma. Nesse sentido, uma vez que a mulher
ocupa a posição de sintoma do homem, ela se diferencia da histérica, visto que enquanto a
última se identifica ao falo, o qual remete ao âmbito da falta, o sintoma alude ao gozo; enquanto
a mulher é o sintoma, a histérica revela um interesse por este.
Sobre a aproximação entre feminilidade e histeria, conclui-se então que

[...] podemos compreender por que a histeria se presta a uma confusão com a posição
feminina, e por que é mais frequente nas mulheres. A feminilidade implica a relação
com o Outro, o homem, para se realizar como sintoma. O fato de ela acentuar o ‘fazer
gozar’ [...] não impede o ‘fazer desejar’ que é condição dele. Daí [...] a acentuação do
núcleo histérico nas mulheres. A histérica passa pela mesma mediação do Outro, mas
com fins diferentes, e não para se realizar como seu sintoma (SOLER, 2005, p. 55).

A mulher, na psicanálise, também é referenciada ao amor, tendo sido a demanda deste


reiterada por Freud como algo precisamente feminino. Nesse sentido, poder-se-ia compreender
que se ater ao amor vislumbra a possibilidade da mulher encontrar um reconhecimento, uma
identificação, tão custosa quando se está no terreno da feminilidade. O gozo fálico, na medida
em que é tomado em seu âmbito identificatório por todos os homens, não é passível de
identificar a mulher em sua feminilidade; e, uma vez que o gozo próprio da mulher,
suplementar, não lhe identifica como uma, posto que é indizível, convém a ela buscar seu
reconhecimento através da mediação por um homem.
Sendo assim, não havendo a possibilidade de caracterizar a feminilidade por um
referencial, um desejo próprio que a definisse, a mulher se identifica como uma mulher de um
homem. A partir disso, compreende-se também a relação que se faz da feminilidade com a
melancolia, uma vez que, em seu ser fálico como sinônimo do ser amada e, para além deste, em
seu gozo suplementar que não a identifica, a mulher se revela como Outra para ela mesma. Com
40

isso, a perda do amor, através do qual ela pode se referenciar, indica, em última instância, a
perda de si mesma, decorrendo daí seu traço melancólico.
Entretanto, cabe ressaltar que a concepção de mulher enquanto aquela que ocupa a
posição de falo, de objeto causa do desejo e de sintoma do homem, na identidade sexuada, é
válida somente enquanto esta se insere no par sexual, ou seja, enquanto se configura como uma
mulher em sua relação com um homem. Desse modo, essa compreensão lacaniana de
feminilidade constitui-se pela mediação do masculino, detendo-se à mulher enquanto parceira
na relação sexual. Por consequência, esse entendimento deixa em suspenso a questão de seu
desejo e do que ela é para além de sua referência ao homem. Frente a este questionamento,
referente à indagação freudiana sobre o que quer a mulher, Soler (2005) responde:

Aí está, portanto, a resposta à famosa pergunta [...] um desejo bem alheio a qualquer
busca do ter, e que tampouco é a aspiração a ser que é a demanda de amor. Ela se
define como o equivalente, se não de uma vontade, pelo menos de uma visada de
gozo. Mas trata-se de um gozo específico, que se excetua do caráter ‘discreto’ e,
portanto, limitado do gozo propriamente fálico (p. 36).

É neste ponto que, direcionando-se para uma possibilidade que transcorre para além do
referencial fálico, cabe situar as parcerias de gozo que a mulher estabelece enquanto
posicionada no sexo, as quais foram precisamente elucidadas por Lacan em suas fórmulas da
sexuação no seminário Mais, ainda ([1972-1973] 2008). Para explicitá-las, ele apresenta as
seguintes tábuas:

Figura 1: Tábuas da sexuação (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 84).

Conforme demonstra o esquema, encontram-se dois lados na definição dos sexos: o lado
homem, à esquerda, e o lado mulher, à direita. Estes não se referem à definição biológica de
masculino e de feminino, mas indicam as diferentes formas pelas quais os sujeitos situados de
41

um lado ou de outro se dividem pela linguagem (FINK, 1998). Com relação àqueles que se
encontram no lado homem, há duas funções localizadas na parte superior do quadro, sendo que
aquela situada na parte inferior, ∀x𝚽x, “[...] indica que é pela função fálica que o homem como
todo toma inscrição [...]” (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 85), podendo ser lida como “todo x
(∀x) está submetido à função fálica (𝚽x)”. Desse modo, compreende-se que os homens
representam os sujeitos que são totalmente regidos pela norma fálica, ou seja, todos os homens
são submetidos à castração.
Conforme explicita Melman (2004), estando todos estes referenciados ao falo, tais
sujeitos são passíveis de serem agrupados em um conjunto: “homens”; o qual, como qualquer
conjunto, se define por uma exceção, ou seja, por aquilo que não pertence ao agrupamento e
que, por essa razão, o caracteriza. Encontrando-se no lado masculino, a exceção, o ao-menos-
um, é representado pelo mítico pai da horda primitiva, demonstrado por Freud em Totem e Tabu
([1912-1913] 2012). Este não está submetido à castração e nem à lei da interdição do incesto e,
por isso, faz limite com seus descendentes castrados, referenciados pela função fálica, sendo
___
representado pela fórmula localizada na parte superior, ∃x𝚽x, que pode ser lida como “existe
___
um x (∃x) que nega a função fálica (𝚽x)”.
Ainda na estrutura masculina, no âmbito inferior do esquema, Lacan ([1972-1973]
2008) explica:

[...] inscrevi aqui, não certamente para privilegiá-lo de modo algum, o $, e o 𝚽 que o
suporta como significante, o que bem se encarna também no S1, que é, entre todos os
significantes, esse significante do qual não há significado, e que, quanto ao sentido,
simboliza seu fracasso. [...] esse $ só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a
inscrito do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro,
por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. [...] isto não é outra coisa senão
a fantasia (p. 86).

Com isso, compreende-se que, com exceção do pai originário, os homens não gozam de
seus parceiros em si, mas somente do objeto a, através da fantasia, sendo a mulher apenas um
suporte, uma encarnação deste objeto a que é a causa do desejo e parceiro de gozo do homem.
Por sua vez, no lado feminino há outras duas funções localizadas no setor superior.
___ ___
Através daquela expressada por ∀x𝚽x, lida como “não todo x (∀x) está submetido ou
referenciado à função fálica (𝚽x)”, compreende-se que não toda pessoa inscrita deste lado é
determinada pela função fálica, logo não toda mulher está sujeita à castração. Nas palavras de
Lacan ([1972-1973] 2008):
42

[...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá
a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto que
define... a o quê? – a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever
barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há
A mulher pois [...] por sua essência ela não é toda (p. 78-79).

___ ___ ___


Já a outra fórmula do lado feminino, ∃x𝚽x, lida como “não existe um x (∃x) que negue
___
a função fálica (𝚽x)”, indica que “[...] não é possível encontrar nem mesmo uma mulher para
quem a função fálica seja totalmente inoperante: cada mulher é pelo menos em parte
determinada pela função fálica [...]” (FINK, 1998, p. 140). Ou seja, uma vez que os sujeitos
situados no lado feminino não estão inteiramente submetidos à norma fálica e, não havendo
uma exceção que especificaria aqueles que ocupam este lugar nas fórmulas, compreende-se que
não há o conjunto “mulheres”, apenas cada mulher em sua singularidade e particularidade,
fazendo-se entender, assim, a máxima lacaniana “Ⱥ Mulher não existe” (MELMAN, 2004).
Dessas funções depreende-se então que, para aqueles sujeitos situados no lado feminino, há um
para além do referencial fálico, de modo que apresenta dois parceiros de gozo: o falo,
representado pelo 𝚽, e o S(Ⱥ), significante da falta no Outro.
A parceria com o falo se encontra alinhada ao acesso da mulher ao significante do desejo
pela mediação do homem (FINK, 1998), possibilitando a experimentação do gozo fálico, ou
seja, daquele gozo limitado que a castração relega ao sujeito que habita a linguagem. Conforme
reiterado por Ambra (2013):

O falo aponta para o fato de que a mulher está necessariamente em relação com 𝚽
como significante do desejo, colocado – de acordo com Fink – ao lado do homem
apenas para demonstrar que, em geral, em nossa cultura, este gozo fálico é obtido com
base em uma instância tida como masculina (p. 50).

Já a parceria com o S(Ⱥ) está associada ao chamado gozo específico da mulher, a saber,
aquele que Lacan ([1972-1973] 2008) denomina suplementar – uma vez que, caso fosse
chamado de complementar, encontrar-se-ia no âmbito do todo. Este gozo, também chamado de
gozo do Outro por estar foracluído do simbólico, por permanecer opaco e indizível, por
configurar “[...] um Outro que é o impedimento no gozo masculino” (AMBRA, 2013, p. 50), é
o gozo furtado pela feminilidade (SOLER, 2005).
Sobre este gozo, Lacan ([1972-1973] 2008) diz que talvez a mulher “[...] não saiba nada
a não ser que o experimenta [...] Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não
acontece a elas todas” (p. 80); demonstrando, assim, o caráter avassalador deste gozo que não
é limitado e localizado tal qual o gozo fálico, mas que se soma a esse último, ultrapassando a
43

mulher que o experimenta. Como exemplo, cita as jaculações místicas como a observada na
imagem de Santa Tereza:

[...] basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem
logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é que ela goza? É claro que o
testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam,
mas não sabem nada dele (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 82).

É este gozo suplementar que, por ser radicalmente Outro, aproxima-a de Deus e do real,
e também faz da mulher o Outro absoluto para o homem e Outra para ela mesma, visto que seu
gozo está para além daquele acessado pelos sujeitos inscritos no lado masculino e que, por ser
indizível, não possibilita uma definição para a mulher, algo a que possa se referenciar. É
partindo dessa alteridade que Lacan ([1972] 2003) chama de “[...] heterossexual, por definição,
aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (p. 467). Nesse sentido, Fink
(1998) reitera:

O pouco que Lacan afirma diretamente sobre S(Ⱥ) propõe que o gozo do Outro,
simbolizado por este, tem a ver com a radicalidade ou alteridade absoluta do Outro
[...] O Outro não é apenas um exterior relativo a um interior específico, determinado;
ele é sempre e inescapavelmente Outro, ‘exterior’ a todo e qualquer sistema (p. 149).

A partir disso, entende-se a não existência da relação sexual proposta por Lacan e já
notada por Freud, uma vez que não haveria complementaridade tanto nas definições de sexo
quanto nas relações de gozo do homem e da mulher. Enquanto o homem se relaciona com o
objeto a, a mulher se relaciona com o falo, podendo o homem servir como seu suporte,
corporificando-o; e havendo, para além deste, a possibilidade de se relacionar com um Outro
parceiro, que se traduz pelo acesso ao gozo específico da posição feminina.
Esse gozo, conforme já citado anteriormente, encontra-se foracluído do simbólico, fora
do inconsciente, sendo “o gozo real que se oculta por definição” (SOLER, 2005, p. 38). Essa
possível aproximação da feminilidade com o registro do real também é encontrada em um
apontamento realizado por Fink (1998) sobre a composição das tábuas da sexuação, no qual o
autor destaca a relação entre os elementos encontrados no lado masculino com o campo do
simbólico, enquanto aqueles que constituem o lado feminino remetem ao campo do real.
Nesse rumo, Ribeiro (2011a) faz um questionamento relevante acerca da estrutura
obsessiva na mulher, uma vez que, estando próxima ao real no que toca à posição feminina,
apresenta-se válida a interrogação sobre essa mulher que se encontra tão fixada ao significante,
ao pai, ao falo. Tendo isso em vista, quais seriam os desdobramentos de uma neurose obsessiva
44

atravessada pelo não-todo fálico, pelo acesso ao gozo do Outro, pelo indizível que desvela o
furo da feminilidade?
45

6 A NEUROSE OBSESSIVA FEMININA

Para desbravar o terreno no qual se encontram as chamadas obsessivas, o presente


capítulo apresenta como referência o pensamento de duas autoras e psicanalistas, cujos estudos,
de viés lacaniano, se direcionaram à temática da neurose obsessiva feminina, cada qual com
sua perspectiva original para a questão, apesar de demonstrarem concordâncias em seu percurso
teórico. Com isso, a partir da leitura e revisão das obras A neurose obsessiva no feminino (2019),
de Elisa Alvarenga, e Um certo tipo de mulher (2011a), de Maria Anita Carneiro Ribeiro,
buscou-se reunir as principais contribuições e articulações das autoras no que tange ao
entrelaçamento da neurose obsessiva com as questões concernentes à feminilidade, as quais
possibilitam a realização de uma leitura a respeito das particularidades que decorrem da
associação entre o ser mulher e o ser obsessivo, conforme compreendidos pela psicanálise.

6.1 A mulher obsessiva entre o sintoma, a estrutura e o caráter

Em seu livro A neurose obsessiva no feminino (2019), Elisa Alvarenga aponta para as
diferentes perspectivas na psicanálise acerca das mulheres obsessivas. Nesse sentido, enquanto
algumas se demonstram radicais em identificar histeria à feminilidade, outras salientam a
delicada margem que diferencia uma mulher obsessiva de casos graves de psicose, reforçando
a importância de um cuidadoso diagnóstico diferencial. Para além dessas concepções, há
também aquelas que compreendem a neurose obsessiva feminina como uma resposta
sintomática frente ao confronto da mulher com o seu ser, sua identidade, sua posição no desejo
do Outro.
Apesar de se encontrar mais alinhada a essa última perspectiva, a autora ressalta a
necessidade de se diferenciar os casos nos quais sintomas obsessivos recobrem algo de uma
estrutura histérica, referindo-se à maioria das pacientes de Freud que apresentavam este tipo de
sintoma, daqueles casos nos quais se sobressai a estratégia obsessiva de anulação do Outro e de
seu desejo e, além destes, daqueles outros que se referem a algo do caráter obsessivo que,
aproximado à estrutura da fantasia, permanece como um resto de sua travessia.
Ao adentrar, primeiramente, na temática de mulheres com sintomas obsessivos, a autora
não parece se ater tão fortemente à noção de estrutura clínica, ou seja, à uma leitura norteada
pelos termos de estrutura obsessiva ou histérica, para desenvolver sua tese. Mas, adotando um
rumo diferente, orienta-se por uma concepção de neurose obsessiva a partir da qual esta se
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constituiria como uma resposta sintomática frente às exigências da contemporaneidade, na


medida em que haveria um possível declínio da função paterna enquanto autoridade, e também
frente às questões relativas ao ser mulher.
Com isso, Alvarenga (2019) retoma uma ideia levantada por Lacan no Congresso da
Escola Freudiana de Paris, em 1978, na qual o psicanalista se apresenta incerto quanto a
relevância da histeria na atualidade, reiterando a neurose obsessiva como a neurose
contemporânea por excelência. Partindo dessa concepção, a autora se sustenta na hipótese de
que a função paterna não ocuparia mais o lugar privilegiado que antes representara, culminando
em um Outro inconsistente e insuficiente para barrar o imperativo de gozo que se produz pelo
discurso capitalista. Sendo assim, na medida em que Freud haveria atribuído à neurose
obsessiva o estatuto de dialeto da histeria, a primeira passa a ser compreendida como uma
resposta sintomática que faz a amarração do gozo mesmo para sujeitos histéricos, como aponta
Alvarenga (2019):

[...] os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1, que nomeiam modos de
gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço
que tampa a sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão:
amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de
gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens
para a neurose (p. 27)

Desse modo, a autora chama a atenção para uma clínica para além daquela elaborada
por Freud e desenvolvida no primeiro ensino de Lacan, a qual se orientava pela decifração do
sintoma em seu caráter metafórico, pela associação entre um significante e outro.
Aproximando-se das ideias sustentadas ao fim do ensino de Lacan, reitera uma clínica voltada
para o uso do sintoma, na medida em que este opera em uma amarração do gozo, atuando,
assim, como algo que recobre e veste a neurose, sobrepondo-se a esta.
Para além das exigências do contexto atual, Alvarenga (2019) também destaca a
relevância do uso do sintoma, que não necessariamente se associa à estrutura do sujeito, para o
caso de certas mulheres, como o de uma das pacientes de Freud apresentadas na conferência O
sentido dos sintomas ([1917] 2014), nos quais se aponta o desencadeamento tardio de uma
neurose obsessiva “[...] por ocasião de momentos cruciais da história da neurose em uma
mulher” (ALVARENGA, 2019, p. 29).
Este caso relatado por Freud se refere, de modo geral, a uma mulher de quase trinta anos
que apresenta um ritual obsessivo, repetindo-o diversas vezes ao dia. Seu ritual consiste em sair
de seu quarto, postar-se diante de uma mesa coberta por uma toalha manchada, chamar a
47

empregada e, atribuindo-lhe uma ordem ou dispensando-a em seguida, retornar ao seu quarto.


Partindo dos ditos dessa paciente, esse ato obsessivo é interpretado por Freud como repetição,
ou melhor, correção de uma situação vivida por ela em sua noite de núpcias, na qual o marido
se demonstrou impotente sexualmente. Após se dirigir de seu quarto ao quarto da esposa
repetidas vezes durante aquela noite, exercendo novas tentativas sem sucesso, ele mancha o
lençol com um frasco de tinta vermelha no dia seguinte, de modo a substituir o sangramento
produzido pelo rompimento do hímen durante a relação sexual, para evitar que a empregada
testemunhasse seu fracasso quando fosse arrumar a cama. No entanto, a mancha fica localizada
em uma área do lençol que não se esperaria encontrá-la, caso a relação tivesse sido consumada.
Nesse sentido, convocando a empregada a se dirigir à mesa na qual se encontra a toalha
manchada e a testemunhá-la, a paciente busca corrigir a cena através da identificação com o
marido, de modo a garantir a potência deste. Sobre este caso, Solano-Suarez (1993 apud
ALVARENGA, 2019) compreende o ato da paciente obsessiva a partir de uma solidariedade
fálica com o marido, fazendo Um com ele; enquanto o apelo à empregada convoca esta última
a ocupar o lugar do Outro que testemunharia a ausência da falta, falta essa que a impotência
sexual do marido revela à mulher, já que: “[...] a mancha vela o recuo do marido diante do
Outro sexo, tomando um valor de quase fetiche, que restitui ao marido o seu ter para que ela
possa assegurar, do seu lado, o ser” (ALVARENGA, 2019, p. 37).
Outro modo de compreender esse ato obsessivo, segundo Solano-Suarez (1993 apud
ALVARENGA, 2019), está na convocação da empregada de modo a representar o duplo da
paciente enquanto mulher, enquanto não-toda na castração. Sendo assim, o sintoma é utilizado
para suturar a falta revelada pela impotência do marido, uma vez que, como já ressaltado no
capítulo anterior, resta à mulher uma identificação pelas vias do desejo do homem, visto que
seu gozo propriamente feminino não lhe dá segurança quanto ao seu ser. Com isso, diante da
impotência do marido, a paciente, que não pode ser referenciada nem nomeada, busca pela via
sintomática recompor a potência do homem, a função fálica; tentativa que se demonstra falha,
culminando em sua repetição compulsiva. Esse ato obsessivo, conforme aponta Alvarenga
(2019):

[...] se inscreve no oposto do ato de uma verdadeira mulher, aquela que, tal Medeia
ou Madeleine, desfaliciza ao máximo seu parceiro dando um golpe mortal no seu ter.
A obsessiva não sacrifica seu objeto patológico, ela se agarra a ele. Ela se agarra a seu
único e insubstituível marido, a ponto de sediar-se aí (p. 38).
48

Desse modo, o que se destaca neste caso de neurose obsessiva feminina é o uso que a
mulher pode fazer dos sintomas obsessivos como um instrumento para lidar com as questões
concernentes à sua feminilidade. Essa paciente, cuja neurose obsessiva fora desencadeada
tardiamente em função de uma situação que desestabilizou sua referência pelas vias de seu
parceiro, utiliza o ato obsessivo para assegurar seu ser fálico no par sexual e para evitar a
absorção e esmagamento pelo furo do Outro, por seu outro parceiro que não lhe oferece um
nome: S(Ⱥ).
Conforme reiterado por Solano-Suarez (1993 apud ALVARENGA, 2019), a obsessiva
convoca a empregada como a Outra mulher não para interrogá-la sobre os enigmas da
feminilidade, como demonstra a estratégia histérica, mas para situá-la na posição de Outro que
testemunharia a potência do marido e, com isso, sua posição no desejo do parceiro, indicados
pela mancha. Além disso, enquanto o ato de uma verdadeira mulher – que se assemelha à
estratégia feminina utilizada pela histérica – visaria desvelar a falta do parceiro, o ato da
obsessiva evidencia a lealdade com que ela se propõe a garantir a potência fálica do homem, de
modo a tamponar sua falta. É o que aponta Ribeiro (2011a) ao sublinhar que, enquanto a
histérica almeja denunciar a impotência do pai em dar à mulher um significante que contenha
o seu gozo, de modo que escancara a falha do homem, a obsessiva acredita em uma salvação
proveniente do pai e, nesse sentido, busca sustentar o homem ideal.
Para além da paciente obsessiva de Freud, Alvarenga (2019) ressalta também um
famoso caso de neurose obsessiva feminina que fora analisado por Maurice Bouvet no artigo,
de 1950, denominado Incidências terapêuticas da conscientização da inveja do pênis na
neurose obsessiva. Lacan, no seminário As formações do inconsciente ([1957-1958] 1999),
destaca a relevância deste trabalho, considerando a raridade de observações como esta a respeito
da neurose obsessiva na mulher. Sobre o caso, trata-se de uma mulher de cinquenta anos, mãe
de dois filhos, que busca a análise a partir da manifestação de obsessões como, por exemplo, a
de haver contraído sífilis, outras de cunho infanticida – através da qual a paciente é levada a
interditar o casamento do filho mais velho – e, recebendo destaque por parte do analista,
obsessões de temática religiosa.
Enquanto católica, tendo recebido tal educação religiosa por intermédio da mãe, a
paciente se vê atormentada por obsessões permeadas por blasfêmias, como uma que associa a
hóstia ao órgão sexual masculino e outra na qual, ao olhar quatro crucifixos enquanto passava
em frente a uma funerária, tem a sensação de estar andando sobre o pênis de Cristo com um
salto alto. Apesar de seus sintomas terem se iniciado a partir do casamento e haverem se
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agravado diante da tentativa de evitar a gravidez, a paciente relata a presença de manifestações


obsessivas desde os sete anos, como ideias de envenenamento dos pais e, na puberdade, de
estrangulamento do pai e de colocar alfinetes no local onde sua mãe dorme.
Diante dessas e outras manifestações obsessivas, Bouvet coloca a questão da neurose
obsessiva feminina em torno da inveja do pênis, retomando o conceito freudiano, na medida
em que há um direcionamento de agressividade para os representantes da potência masculina,
para aquilo que ela almeja possuir mas não o pode; e também para a mãe, a qual seria
responsável pela sua falta fálica, por tê-la feito mulher. Após constatar que a paciente deseja
possuir o falo e conscientizá-la disso, o analista aponta para uma melhora na relação
transferencial e, por outro lado, para o surgimento de uma agressividade por parte da mulher
contra seu marido, seu pai e, para além destes, contra ele próprio. Entretanto, na medida em que
Bouvet passa a encarnar uma figura maternal, os sintomas da paciente são suavizados e, a partir
disso, o analista conclui que o tratamento de uma neurose obsessiva feminina deveria envolver
a transformação de uma identificação masculina sádica em uma identificação feminina passiva,
por meio da apropriação da personalidade do analista enquanto este representa uma mãe
compreensiva (ALVARENGA, 2019).
Em oposição a essa interpretação de caráter imaginário, Lacan ([1957-1958] 1999)
situa a problemática do caso em torno do desejo materno e da significação do falo enquanto
significante do desejo, deslocando a interpretação do ter fálico para o ser fálico. Com isso,
entende-se que a questão não se refere ao desejo que a mulher teria de possuir o falo, o qual
resultaria na inveja do pênis; mas no ponto em que esta, como todo sujeito que se insere na
linguagem, pode vir a ser o falo, a ocupar o lugar de objeto de desejo da mãe. Nesse sentido,
Alvarenga (2019) destaca a posição privilegiada que a paciente ocupou no desejo da mãe,
enquanto identificada ao falo. No entanto, na medida em que outra pessoa poderia vir a ocupar
este lugar – como o pai e a irmã mais nova, os quais já foram alvos de desejo de morte pela
obsessiva –, a rivalidade da paciente não está direcionada especificamente aos homens enquanto
aqueles que possuem o falo, mas ao falo como significante do desejo. É neste ponto que, para
Lacan ([1957-1958] 1999), se insere a estratégia obsessiva de destruição do desejo: ao visar
destruir o que fora compreendido como insígnias de potência por Bouvet, decorrente da inveja
do pênis, o que ela realmente busca é destruir o desejo do Outro e, dialeticamente, seu desejo.
Com isso, a obsessiva busca a aniquilação do âmbito do desejo reduzindo suas relações
ao redor da demanda, degradando o Outro em pequeno outro. É o que se observa na posição
que Bouvet assume no processo analítico, na medida em que ele acata a demanda da paciente
50

ao lhe entregar uma resposta que tampona o intervalo significante no qual se situa o seu desejo:
ela quer o falo. Desse modo, Alvarenga (2019) aponta, a partir da paciente de Bouvet, para os
casos de neurose obsessiva feminina nos quais se sobressai a estratégia mesma desta neurose
em relação ao Outro, a saber, a destruição obsessiva. Conforme reiterado pela autora:

Ela destrói a imagem fálica em uma derrisão obscena. O determinante na neurose


obsessiva não é a identificação ao falo, mas a estratégia em relação ao desejo do Outro:
ela se caracteriza pelo esvaecimento e a afânise do desejo do Outro, é o seu próprio
desejo que o sujeito ataca (ALVARENGA, 2019, p. 44).

Nesse sentido, é possível contrapor casos como este àqueles em que, como demonstra a
paciente de Freud, há um destaque para o uso do sintoma obsessivo como instrumento frente
aos impasses próprios da feminilidade. Enquanto este último se refere a uma neurose
desencadeada tardiamente diante da impotência sexual de um homem, a partir da qual é retirada
a possibilidade de uma mulher se referenciar pelo seu desejo, observa-se no caso de Bouvet o
enfoque da estratégia obsessiva enquanto aquilo que refletiria essa estrutura neurótica, tendo
suas manifestações datadas, assim como no caso do Homem dos Ratos, da infância da paciente.
Entretanto, para além destes casos de neurose obsessiva feminina nos quais há um
destaque para o uso do sintoma ou para a estratégia de anulação do desejo, Alvarenga (2019)
também aponta para aqueles nos quais se sobressai o caráter obsessivo da mulher, como aquilo
que permanece mesmo após o desaparecimento dos sintomas. Para isso, retoma dois casos
clínicos de Helen Deutsch (1992a; 1992b apud ALVARENGA, 2019), em que o desejo de
morte e a vivência de perda de um objeto de amor atravessam a neurose obsessiva feminina.
O primeiro deles se refere a uma mulher cuja sintomatologia grave evocava a
possibilidade de uma psicose: a paciente, paralisada no leito, com as pernas fechadas e as mãos
estáticas e distantes do corpo, não permitia que fosse tocada devido a uma obsessão com o risco
de contaminação por sujeira, havendo também desenvolvido atos compulsivos por lavagens.
Entretanto, no período da infância, a paciente parecia se comportar de modo oposto àquilo que
caracteriza seus atuais sintomas de limpeza: até os doze anos de idade demonstrava um interesse
específico por fezes, sentindo prazer pelo ato de defecação, e não tinha o hábito de se lavar.
Além disso, nessa época, costumava importunar seus irmãos mais novos e ser cruel em
brincadeiras com outras crianças. Após essa idade, há uma radical transformação em seu
caráter, de modo que a paciente se apresenta extremamente meticulosa; no entanto, é somente
aos dezessete anos, a partir do falecimento de seu pai, que a neurose se deixa evidenciar com
seus sintomas. Com isso, opondo-se aos seus comportamentos de se sujar, a paciente se torna
51

extremamente intolerante a qualquer poeira; e, ao invés de atormentar os irmãos, volta-se a eles


com zelo e proteção excessivos. Essa última atitude emerge na paciente como uma
responsabilidade pelo cuidado de seus irmãos diante da perda do pai, o que resulta em um
noivado com um homem rico, para lhes assegurar uma nova figura paterna, e em um sintoma
no qual verifica compulsivamente se seus irmãos estão bem.
Sobre o caso exposto acima, Alvarenga (2019) ressalta que, antes da manifestação
sintomática, já havia se constituído um forte caráter obsessivo na paciente, o qual vem se opor
ao seu caráter sádico-anal infantil. Com isso, enquanto a adolescência traz essa mudança de
caráter, a morte do pai se apresenta como fator desencadeador da neurose obsessiva e de seus
sintomas. Além disso, a autora também destaca que os cuidados e proteções constantes voltados
aos irmãos seriam uma defesa encontrada pela paciente diante do desejo recalcado de que estes
morressem.
Esses três elementos – caráter obsessivo, o desejo de morte e a perda do objeto de amor
– também são evidenciados no outro caso de neurose obsessiva feminina tratada por Deutsch
(1992a; 1992b apud ALVARENGA, 2019). Este último remete à uma paciente que, como
reitera Alvarenga (2019), havia sido marcada precocemente pela perda da mãe, aos dois anos,
e por um desejo de morte em relação ao pai, relacionado pela analista a uma decepção amorosa
edipiana. De modo geral, o caso apresenta uma neurose desencadeada um ano após o
rompimento do noivado da paciente por parte do noivo, para quem é deslocado o desejo de
morte que ela sente em relação ao pai; e seus sintomas envolvem, principalmente,
representações obsessivas ligadas ao órgão sexual masculino. Para evitar o sentimento de culpa
relacionado a esse ódio ao ex-noivo e às representações obsessivas, a paciente leva uma vida
de renúncias e dúvidas.
Alvarenga (2019) destaca que, em ambos os casos, o caráter obsessivo permanece
apesar do alívio dos sintomas que a análise propicia. No primeiro caso, a obsessiva se torna
freira, utilizando a religião como meio de sublimação, o que remete, em última instância, à
aproximação realizada por Freud em relação à neurose obsessiva e os atos religiosos; enquanto,
no segundo, a analista considera os sintomas curados após o período curto no qual se constituiu
sua análise. No entanto, conforme reitera a autora: “A capacidade de amar, a liberdade dos
movimentos e a libido permanecem pobres nessas pessoas, pois uma grande parte de sua energia
psíquica é utilizada para manter a formação reativa e impedir o retorno do recalcado”
(ALVARENGA, 2019, p. 73).
52

Na concepção freudiana, o caráter se encontra na medida em que a defesa é exitosa em


afastar o retorno do recalcado, enquanto a sua falha desencadearia a neurose e seus sintomas. É
a partir dessa defesa que se compreende a pobreza nas formações inconscientes de certos
obsessivos, os quais não sonham, nem apresentam atos falhos e sintomas. Esse entendimento
de caráter – que pode ser compreendido como pré-analítico – difere daquele sustentado por
Jacques-Alain Miller em sua leitura do ensino final de Lacan, a partir do qual o caráter remete
à identificação ao sintoma. Nessa última concepção, o caráter é um fechamento do inconsciente
como aquilo que resta ao fim da análise, algo que, como defesa contra o gozo, produz uma
suplência de amarração dos registros que compõem a realidade do falasser5 (ALVARENGA,
2019).
A compreensão de caráter como um resto da travessia pela fantasia é explicitada por
Alvarenga (2019) através do testemunho da análise de uma mulher de estrutura obsessiva. A
partir de seu processo de análise e de sua conclusão, torna-se evidente uma possível
diferenciação frente ao fim de análise para homens obsessivos e mulheres obsessivas. Enquanto
o fim de análise para homens obsessivos, conforme demonstra Alvarenga (2019) através de
outros dois casos, se direciona para um além da compulsão fálica, da fantasia de ser funcionário
do pai e de oferecer sua imagem para tamponar a falta do Outro, estabelecendo um confronto
com o Outro gozo; o caso dessa mulher obsessiva aponta para uma relação com o gozo
suplementar que esteve acessível, não como aquilo que é possibilitado pelo fim da análise, mas
pelas vias de sua feminilidade. Conforme reitera a autora:

Se o homem obsessivo parece encontrar uma maneira de se haver com o gozo


feminino no final, passando por uma mulher, para a mulher obsessiva, por hipótese,
esse gozo está lá desde sempre. Ao contrário da histérica que se queixa de uma falta
de gozo, para a obsessiva há um excesso. Trata-se portanto de consentir com o que
resta e itera, e inventar um saber fazer aí com o gozo não-todo, impossível de
negativizar (ALVARENGA, 2019, p. 114).

Desse modo, compreende-se que a leitura realizada por Alvarenga (2019) reflete não
uma, mas diferentes possibilidades para a compreensão da neurose obsessiva feminina.
Enquanto algumas mulheres são concebidas como obsessivas na medida em que buscam
responder às demandas da feminilidade através de sintomas obsessivos, a estrutura obsessiva,
propriamente dita, em uma mulher se revela por meio da estratégia que visa a anulação do

5
Noção atualizada de sujeito empreendida por Lacan a partir da conceitualização de um inconsciente Real. Lugar
não mais da ficção de sentido, mas que comporta lalíngua, ordem precedente à linguagem e que remeteria aos
dizeres mais particulares de cada um.
53

desejo do Outro e de seu próprio desejo. Conforme demonstra o caso de Bouvet, a paciente
buscava constantemente reduzir o desejo à demanda, degradar o falo simbólico – significante
do desejo – em falo imaginário – representante de potência e poder –; sendo um paradigma, tal
qual o caso do Homem dos Ratos, de uma estrutura obsessiva. E, por fim, entende-se o caráter
obsessivo como um resto para certas mulheres que, atravessando a fantasia fálica e a estratégia
de degradação do desejo do Outro, lidaram com o excesso de gozo que sempre esteve presente
e acessível a elas enquanto situadas no lado feminino.

6.2 Uma posição particular: a obsessiva enquanto mulher

O gozo excessivo que as mulheres obsessivas experimentam também é destacado por


Maria Anita Carneiro Ribeiro em seu livro Um certo tipo de mulher (2011a) como uma das
particularidades da neurose obsessiva feminina. Debruçando-se sobre o estudo desta última, a
autora assume a perspectiva de que a existência de mulheres obsessivas é algo inquestionável,
uma vez que, sendo a neurose obsessiva uma categoria clínica cunhada por Freud, este não
poderia ter cometido um equívoco ao se referir a diversos casos de neurose obsessiva em
mulheres em sua clínica. Sendo assim, para Ribeiro (2011a), a neurose obsessiva é aquilo que
o pai da psicanálise diz ser e, a partir de sua estruturação em mulheres, vislumbra-se a
possibilidade de estudo daquilo que ela permite ensinar e contribuir à psicanálise no terreno
enigmático da feminilidade.
Desse modo, referindo-se aos casos de mulheres obsessivas na clínica freudiana, a
autora chama a atenção para um elemento que se repete em vários deles: o sintoma obsessivo
como um instrumento de defesa contra as tentações sexuais das quais as pacientes são reféns.
Essas tentações são compreendidas por Ribeiro (2011a) como consequência de uma
hiperestesia sexual que caracterizaria as mulheres obsessivas e que a autora entende como um
excesso de gozo experienciado na neurose obsessiva feminina. Retoma, assim, dois casos
clínicos de jovens obsessivas, sendo um de Freud e outro de sua própria clínica, de modo que,
apesar da distância temporal, social e histórica que separa os dois contextos, torna-se evidente
algumas particularidades que articulam e delineiam a neurose obsessiva em mulheres.
O primeiro caso, assim como aquele destacado por Alvarenga (2019), é relatado por
Freud na conferência O sentido dos sintomas ([1917] 2014). No entanto, o referido por Ribeiro
(2011a) diz respeito a uma jovem de dezenove anos que, entre outros sintomas obsessivos de
dúvidas e indecisões, apresenta um ritual para dormir. Com receio de despertar de seu sono
54

durante a noite, a paciente desliga todos os relógios da casa, incluindo aqueles que não emitem
barulho algum, e posiciona todos os vasos em sua mesa para que não haja risco de caírem; o
que se contrapõe à necessidade que a jovem possui de manter abertas as portas de seu quarto e
do quarto de seus pais, uma vez que estes últimos poderiam despertá-la com algum som. Além
disso, para dormir, o travesseiro não deve encostar na cabeceira e a cabeça da jovem deve
repousar em um pequeno travesseiro que ela posiciona em uma cavidade que é feita no maior.
Durante a análise, os componentes do ritual são interpretados pela paciente. A questão
referente aos relógios é remetida ao âmbito sexual, sendo o marcar exato das horas associado
às regras femininas e o som emitido pelo relógio relacionado ao pulsar excitado do clitóris, o
qual já acordara a paciente de seu sono algumas vezes e fora sentido com desprazer. Do mesmo
modo, o risco de que os vasos fossem quebrados é associado, a partir de uma experiência infantil
que envolvia um sangramento por ocasião de uma jarra quebrada, à ideia obsessiva que a jovem
possuía de não sangrar na noite de núpcias. Além disso, o ato de se deitar no travesseiro menor,
tampando a cavidade produzida no maior – este último associado à mãe e, mais
especificamente, ao formato do genital feminino –, remeteria à tentativa realizada pela paciente
de substituição, com sua cabeça, do membro viril; bancando, desse modo, o pai.
Essa falicização da cabeça e um certo temor do âmbito sexual também é evidenciado no
outro caso de uma jovem obsessiva relatado por Ribeiro (2011a) e que é proveniente de sua
própria clínica. A autora conta que se trata de uma paciente que, descrita pela mãe como “uma
cabecinha de ouro” (p. 84), é uma ótima aluna que estuda obsessivamente. Para além da
obsessão com o estudo, apresenta também, assim como a paciente de Freud, sintomas de dúvida,
rituais para dormir e questões com relógios. Sobre este último elemento, observa-se que a jovem
dispõe de dois relógios para demarcar o tempo necessário à sua tarefa, os quais, no entanto,
esquece de consultar, delongando-se em sua atividade e se autorrecriminando por isso; o que
possibilita, aqui, uma associação com a procrastinação típica dos obsessivos.
Por sua vez, o temor relacionado ao âmbito sexual, referente ao gozo excessivo, é
evidenciado neste caso a partir de uma compulsão a se atirar pela janela. Segundo Ribeiro
(2011a), essa compulsão já havia sido decifrada por Freud como um importante elemento da
neurose obsessiva feminina, sendo demonstrada por uma de suas pacientes obsessivas no artigo
As neuropsicoses de defesa ([1894b] 1986). No caso da analisanda da autora, a ideia obsessiva
de pular da janela emerge pela primeira vez quando a jovem está se preparando para estudar e,
ao olhar para a praia pela janela de seu apartamento, lhe ocorre que, ao longe, todos parecem
nus; ideia que lhe provoca angústia intensa e a partir da qual surge a ideia obsessiva relacionada
55

à janela. A compreensão desta última é construída, em análise, a partir da relação com um temor
de engravidar que a paciente revela apresentar, sendo o “atirar-se da janela” compreendido por
Ribeiro (2011a) como uma substituição da ideia de estar nua na praia, relacionando-se
sexualmente com os outros indivíduos nus.
Com isso, torna-se evidente que, em ambos os casos, o que se observa na mulher
obsessiva é um temor frente ao gozo excessivo e que, enquanto o primeiro caso revela uma
defesa por meio de rituais obsessivos, o que se sobressai, no último caso, é o combate do gozo
através da transformação da fantasia sexual em uma ideia obsessiva de ameaça de morte. Sendo
assim, verifica-se que a típica aproximação entre extremos na neurose obsessiva emerge, aqui,
entrelaçada às questões da feminilidade, produzindo uma peculiaridade da neurose obsessiva
feminina:

[...] as oscilações do obsessivo entre o ouro e a merda, entre o tudo ou nada, ganham,
no caso das mulheres, uma conotação particular. A dor de existir própria da mulher
aparece sob uma máscara extremamente trágica, por vezes, na neurose obsessiva,
levando à confusão com a melancolia se esquecermos a referência à estrutura e nos
ativermos apenas ao fenômeno (RIBEIRO, 2011a, p. 88)

Desse modo, compreendem-se os casos de mulheres obsessivas, já salientados por


Alvarenga (2019), nos quais se faz necessário um cuidadoso e atento diagnóstico diferencial,
para que não sejam confundidos com uma estrutura psicótica; conforme demonstra a paciente
de Ribeiro (2011a) que, antes de ser analisada, havia recebido um diagnóstico médico errôneo
de psicose maníaco-depressiva. Nesse sentido, ambas as autoras demonstram que, no âmbito
da neurose obsessiva feminina, há um equívoco diagnóstico recorrente com a estrutura clínica
da psicose.
Em seu estudo, Ribeiro (2011a) também comenta os efeitos do entrelaçamento da
neurose obsessiva com a questão da máscara feminina, noção introduzida pela psicanalista Joan
Riviere ([1929] 2005), e que Soler (2005) se utiliza para apontar uma dissimetria no par sexual:
enquanto o homem se apresenta como desejante, a mulher se mascara com aquilo que a tornaria
desejável perante os olhos deste. Essa parceria, cabe ressaltar, remeteria àquilo que ocorre no
âmbito fálico, de modo que a relação da mulher com o gozo Outro, que está para além do gozo
limitado pela linguagem, se encontra em suspenso. Para percorrer a questão da mascarada em
sua interface com a neurose obsessiva, Ribeiro (2011a) aponta que, apesar de experienciar um
gozo que é indizível, uma vez que se encontra foracluído do simbólico, a mulher precisa se
utilizar da linguagem, precisa dizer, enquanto sujeito do desejo e do inconsciente. Esse dizer,
56

que se refere ao fálico e não ao gozo suplementar, só lhe é possível enquanto ela se valeria do
uso da mascarada feminina.
Nesse sentido, articulando a máscara como aquilo que a mulher utilizaria para tocar em
sua feminilidade, a autora salienta que, enquanto a interrogação sobre o ser mulher perpassa a
histeria, de modo que a pergunta nunca encontra sua resposta, a obsessiva encerra a questão
afirmando que uma mulher é a mulher de um homem. Compreendem-se, assim, os casos de
neurose obsessiva feminina demonstrados até o momento, como o da paciente da toalha
retomada por Alvarenga (2019), nos quais se verifica o empenho de certas mulheres em sua
tentativa de sustentar o Outro, garantindo sua potência enquanto vela sua falta.
Contrapondo o uso da máscara pela histérica e pela obsessiva, Ribeiro (2011a) retoma
o caso da “cabecinha de ouro”, destacando uma passagem na qual a paciente dizia que não vai
à praia por se achar feia, identificando-se com uma “tábua”, e outros momentos em que a jovem
compartilha suas técnicas para fugir dos meninos. Segundo a autora, a jovem lidava de maneira
peculiar com os instrumentos da mascarada feminina. Dizendo-se feia, uma “tábua”, a paciente
se vestia com o uniforme “jeans e camiseta”, no entanto, a cada escolha, era assaltada por
intensas dúvidas e hesitações, principalmente diante de festas, frente as quais a situação tomava
proporções dramáticas. Sendo assim, Ribeiro (2011a) aponta que, enquanto uma histérica
revelaria a insatisfação com relação às suas roupas, de modo que nenhuma lhe serviria, para
essa adolescente obsessiva o tormento se referia à impossibilidade de escolher, entre dúvidas e
incertezas, uma roupa para se apresentar e se mascarar aos olhos do Outro, produzindo intenso
sofrimento e culminando na desistência de ir à festa. Com isso, a autora reitera:

As vestimentas, os véus que recobrem o vazio d’mulher são, também para a mulher
obsessiva, um tormento. Digo também, pois que para as histéricas eles o são de outra
forma, porém na mesma intensidade. Saber-se presa ao artifício da máscara leva as
mulheres aos mais curiosos extremos (RIBEIRO, 2011a, p. 122).

Nesse sentido, a máscara, assim como os sintomas obsessivos destacados por Alvarenga
(2019), emerge como um instrumento utilizado pela mulher para lidar com as questões
concernentes à sua feminilidade, a qual não lhe confere uma especificidade que lhe definiria
em seu ser. No entanto, aqui, o uso da máscara como aquilo que a mulher se vale para caminhar
no terreno fálico, na parceria sexual, se entrelaça com âmbito da estrutura clínica, seja da
histérica ou da obsessiva. No caso desta última, conforme salienta Ribeiro (2011a), a estratégia
obsessiva de manter o desejo na ordem do impossível faz com que a jovem não consiga realizar
uma escolha referente à máscara utilizada para se portar frente ao Outro, demonstrando que o
57

sofrimento que subjaz a mulher em sua mascarada recebe traços particulares na medida em que
toca a neurose obsessiva.
Neste ponto, o caso de Bouvet também é retomado pela autora, que destaca a fixação
da paciente por sapatos enquanto indicativa da relação da mulher com os apetrechos da
mascarada e com o falo. Desse modo, compreendendo os sapatos como aquilo que, tal como a
máscara, vestiria a mulher com o que ele evoca de feminilidade, Ribeiro (2011a) também chama
a atenção para associação dos calçados com o falo, significante do desejo, conforme é possível
observar na atitude da paciente de Bouvet frente aos homens. A mulher, que dizia se comprazer
ao provocar o desejo dos homens à sua volta somente para frustrá-lo, uma vez que estes sujeitos
não a possuem como parceira sexual, aponta os sapatos como um dos apetrechos que a
compõem como desejável. Nesse sentido, a autora destaca que, a partir dos sapatos, a mulher
constitui sua aparência de falo, apresentando-se como aquilo que o Outro desejaria e, logo em
seguida, frustrando-o. Desse modo, ressalta-se que, neste caso de neurose obsessiva feminina,
a mulher se mascara encarnando o significante do desejo; desejo este que, conforme apontado
por Alvarenga (2019), é mantido, pelo próprio ato de frustrá-lo, na ordem do impossível.
Tratando da clínica da neurose obsessiva feminina, Ribeiro (2011a) também evoca uma
particularidade que se encontra presente no caso de Bouvet assim como em outros casos de
pacientes obsessivas relatados por Freud: a obsessão filicida. Partindo de um caso freudiano no
qual uma paciente sofria de uma ideia obsessiva de esfaquear o único filho, a autora aponta que
sintomas como este podem apresentar variações na clínica, remetendo à relação mãe-filho.
Sendo assim, a obsessão filicida pode se traduzir em uma preocupação excessiva com relação
a segurança do filho, a partir da ideia obsessiva de que ele possa ser vítima de uma tragédia ou
de que, caso não haja um pensamento obsessivo concebendo a morte do filho, este realmente
morrerá. Outra variação da obsessão filicida na clínica se encontraria em uma cautela demasiada
com a saúde física do filho, de modo que a mãe passa a administrar medicações desnecessárias
ao filho, podendo induzir um adoecimento real àquele que fica como objeto dos cuidados
maternos.
Contudo, segundo a autora, há um aspecto que subjaz em todos os casos de neurose
obsessiva feminina nos quais se evidenciam este sintoma e que se refere à privação sexual da
paciente obsessiva em sua vida conjugal, como consequência da perda do interesse sexual por
parte dos maridos em relação às esposas. Nesse sentido, poder-se-ia pensar em um nexo causal
entre o nascimento do filho e o declínio da vida sexual do casal que levaria ao entendimento da
obsessão filicida. Entretanto, não havendo este elo em todos os casos, Ribeiro (2011a) reitera a
58

necessidade de se considerar a estratégia obsessiva de anulação do desejo do Outro e de seu


próprio desejo como o elemento preponderante na compreensão de tal privação sexual. Com
isso, a escassez na vida sexual e a perda de interesse do cônjuge, das quais se queixam, poderia
ser decorrente justamente da tentativa dessas obsessivas de manter seu desejo como impossível,
de modo que, aguardando a iniciativa e a demanda do parceiro para furtar seu desejo, a
obsessiva favorece uma vida sexual conjugal que tende ao tédio e que se resume a ocasiões
esporádicas.
A partir disso, Ribeiro (2011a) busca compreender o que poderia estar no cerne da
obsessão filicida que se evidencia tão recorrente nos casos de neurose obsessiva feminina,
entendendo os constantes cuidados e preocupações das obsessivas com relação à segurança e à
saúde de seus filhos como uma tentativa de proteção contra um ato que denunciaria que o filho
não é o falo. Traçando uma relação entre as mulheres obsessivas e a lenda de Medeia, na qual
esta personagem assassina seus próprios filhos após ser abandonada pelo pai das crianças, que
se casa com outra mulher, a autora diz que: “Despojadas do investimento fálico que lhes outorga
o desejo que despertam no homem, estas mulheres são lançadas no abismo da pulsão de morte
[...]” (RIBEIRO, 2011a, p. 156-157); de modo que o assassinato de um filho se revela como um
ato próprio da mulher frente à perda da referência pelo desejo de um homem, sem o qual ela
fica submetida à possibilidade de absorção e esmagamento pelo furo do Outro. É desse ato que
as obsessivas visam se proteger através das preocupações e cuidados excessivos para com seus
filhos e que compõem a sua obsessão filicida.
Essa possibilidade de perda do referencial pelo homem que, em última instância, aponta
para a perda de si mesma, já havia sido elucidada por Soler (2005) e é aqui retomada por Ribeiro
(2011a) para tratar do incremento de angústia do lado feminino que, segundo a autora, “pode
assumir um viés particularmente trágico na neurose obsessiva” (RIBEIRO, 2011a, p. 163).
Nesse sentido, resgatando os ditos de Freud contidos em Inibição, Sintoma e Angústia ([1926]
2018), a respeito da angústia no homem e na mulher e da posição frente à castração, destaca
que enquanto o menino sofre da angústia de castração, a menina teme a angústia da perda do
amor que deixaria seu ser em desamparo; apontando, assim, para a condição feminina de não-
toda que, considerando o risco constante e iminente da perda de si, contribui para que haja um
acréscimo de angústia nos mecanismos obsessivos e no que é particular à essa estrutura clínica,
conforme demonstra a relação das mulheres obsessivas com a morte.
59

A questão da morte6, particular à neurose obsessiva, se apresenta com certas


particularidades em sua associação com o ser mulher, de modo que “a mulher obsessiva joga
com a morte, tenta trapaceá-la com os mil ardis de seu tipo clínico, porém ao mesmo tempo a
encarna, poço de angústia e de culpa, abismo da pulsão de morte” (RIBEIRO, 2011a, p. 164).
Desse modo, compreende-se que a mortificação própria da neurose obsessiva, que se revela na
posição de escravo que os sujeitos assim estruturados ocupam frente ao Outro e no apagamento
de sua esfera desejante, é potencializada no terreno feminino devido à ameaça que a mulher
sofre de perder seu nome como “a mulher de um homem”, enquanto referenciada em parte ao
âmbito fálico, e de ser aspirada pelo gozo Outro, indizível.
Cabe ressaltar que, aqui, a temática da mortificação na neurose obsessiva também é
associada por Ribeiro (2011a) à distinção entre o discurso dos homens obsessivos e das
mulheres obsessivas, a partir do que se observa na clínica. Apesar da fala ser, em ambos os
casos, marcada pelo deslizamento metonímico, através de uma associação livre que se desloca
e foge de um dito sobre o desejo, a autora diz que o homem o faz através de uma fala escassa e
sucinta enquanto a mulher apresenta uma fala longa, porém vazia. Com isso, verifica-se que,
enquanto o homem profere um discurso curto a fim de evitar o escape daquilo que revelaria
algo sobre seu desejo, a mulher evita este último por meio de um discurso supérfluo e
exacerbado que, praticamente “morto”, carece de um dizer.
Retornando à questão concernente à possibilidade que a mulher encontra de se
referenciar e de garantir o seu ser, Ribeiro (2011a), ao fim de seu livro, apresenta a perspectiva
de que a possibilidade de habitar a linguagem só é conferida à mulher, não-toda, na medida em
que esta concede em frequentar o lado masculino das fórmulas da sexuação. Nesse sentido,
afirma que

Para se sustentar como sujeito de linguagem e do desejo, uma mulher não tem outra
saída do que ‘bancar o homem’ e, como homem, amar e desejar. O sujeito do
inconsciente é sempre masculino, obsessivo ou histérico. A neurose é masculina
porque ela fala. Isto não impede que haja uma estratégia feminina, onde na fala a falta
é desvelada, e uma masculina onde a falta na fala é camuflada (RIBEIRO, 2011a, p.
174)

Com isso, o que a autora reitera é que, frente ao recurso histérico de “bancar o homem”,
ao qual a mulher deve recorrer para poder usufruir da condição de ser falante, cada uma –
obsessiva e histérica – utilizará de uma estratégia em relação à falta no Outro. Desse modo,
partindo da estratégia masculina que se propõe a camuflar a falta, a mulher obsessiva – como

6
Cf. item 4.2
60

bem demonstra a paciente da toalha – assume a posição de escravo na dialética hegeliana, de


modo que, às suas custas, busca garantir o gozo do Outro e torná-lo onipotente. Sendo assim,
ela “crê no significante, crê na palavra de amor e é a partir desta crença que pode sustentar,
bancar seu homem, por impotente e combalido que seja [...]” (RIBEIRO, 2011a, p. 175). Sendo
assim, na posição de escrava, a obsessiva busca tamponar a falta do senhor – o homem –,
preenchendo-a com os objetos fálicos que ela acredita estar em posse.
Outro ponto destacado por Ribeiro (2011a), referente à distinção que se opera entre a
histérica e a obsessiva, diz respeito à posição que esta última, como mulher, ocupa e a partir da
qual sustenta seu ser. Assim, conforme já reiterado por Alvarenga (2019), a obsessiva se
distingue da histérica por não se voltar para a Outra mulher de modo a interrogá-la acerca do
mistério de sua feminilidade; mas, para assegurar seu ser de mulher, a obsessiva se pauta pelo
significante, pela palavra de amor proferida pelo homem. Entretanto, diante da perda do amor,
ou melhor, da palavra que o atestaria, a mulher obsessiva pode experienciar uma profunda dor
de existir. De acordo com Ribeiro (2011a):

A dor de existir das mulheres obsessivas, privadas da palavra de amor e do brilho


fálico que lhes é supostamente atribuído pelo desejo do Outro, faz com que algumas
destas mulheres cheguem à análise diagnosticadas pela psiquiatria como
melancólicas. É como se, mais de cem anos depois de Freud ter separado a neurose
obsessiva da melancolia, voltássemos na clínica, justamente pela via das mulheres, à
estaca zero (p. 176-177).

Com isso, evidencia-se, novamente, a recorrência de confusões diagnósticas baseadas


na fenomenologia sintomática quando se está no terreno da neurose obsessiva feminina, de
modo que, mais uma vez, é reiterada a importância de um diagnóstico estrutural preciso e
cauteloso que saiba diferenciar este traço melancólico da mulher obsessiva, revelado a partir do
entrelaçamento da feminilidade com a neurose obsessiva, com um diagnóstico estrutural de
melancolia.
Além disso, o que se observa no apontamento da autora com relação à distinção da
histérica e da obsessiva frente ao seu ser de mulher é a desconstrução da perspectiva de que
todas as mulheres seriam histéricas que, como já afirmara Alvarenga (2019), é assumida por
muitos na psicanálise. A existência de diferentes possibilidades para uma mulher – adotar uma
estratégia que desvela ou uma que camufla a falta no Outro, interrogar a Outra mulher sobre
sua feminilidade ou se assegurar enquanto mulher na palavra de amor do Outro – demonstra a
impossibilidade de que todas as mulheres sejam estruturadas como histéricas; concepção que
61

se revela inviável também a partir do momento em que a mulher não pode ser tomada por um
conjunto, mas como cada mulher em sua particularidade.
62

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A apresentação e discussão, realizadas no último capítulo, acerca das concepções


propostas por Alvarenga (2019) e Ribeiro (2011a) em seus respectivos estudos apontam para a
possibilidade de entrelaçamento das questões concernentes à feminilidade com o diagnóstico
estrutural da neurose obsessiva, suscitando articulações e reflexões a respeito das
particularidades referentes à neurose obsessiva feminina, sobre as quais é possível realizar uma
leitura de viés lacaniano.
Nesse sentido, verifica-se que ambas as autoras destacam o gozo excessivo que
atravessa a mulher obsessiva, apesar do modo particular pelo qual cada uma ressalta essa
especificidade. Assim, enquanto Alvarenga (2019) o associa à possibilidade que a mulher
possui, estando situada no lado feminino, de acessar o gozo Outro, Ribeiro (2011a) destaca o
excesso de gozo a partir de uma ideia freudiana de hiperestesia sexual que a obsessiva, de modo
geral, experimenta e a partir da qual decorrem as constantes tentações sexuais das quais ela visa
se proteger em seus atos obsessivos.
Com relação a estes atos obsessivos, observa-se também que as autoras alçam o sintoma
ao estatuto de instrumento, atribuindo-lhe funções. Sendo assim, Alvarenga (2019) compreende
o sintoma obsessivo como um meio utilizado pela mulher para lidar com as questões
concernentes à sua feminilidade, lhe garantindo a possibilidade de se referenciar pelo desejo
masculino, de modo a não ser aspirada e esmagada pelo gozo suplementar. Já Ribeiro (2011a),
como fora apontado, entende os sintomas como um instrumento de defesa frente ao gozo
excessivo mas destaca também o ato da obsessiva que, em sua posição de escrava, busca
exaustivamente camuflar a falta do Outro, conforme a estratégia masculina evidenciada na
estrutura obsessiva, e garantir a potência do homem para através dele se referenciar enquanto
mulher.
A concepção que propõe o uso do sintoma como um meio de haver com a questão do
ser mulher também se assemelha, em última instância, à outra percepção de Ribeiro (2011a)
com relação ao recurso da mascarada feminina, a qual, segundo a autora, a mulher utiliza para
lidar com sua feminilidade e para que seja possível transitar pelo terreno fálico enquanto sujeito
desejante. Entretanto, a máscara, em seu entrelaçamento com a estrutura obsessiva, recebe uma
caracterização particular no caso da neurose obsessiva feminina: articulada à estratégia desta
estrutura, que visa manter o desejo como impossível, os apetrechos da mascarada se tornam um
tormento para a mulher obsessiva, conforme demonstra a “cabecinha de ouro” que, diante de
63

uma situação na qual deve escolher uma roupa para se mascarar frente ao Outro, é assaltada por
dúvidas e incertezas que, para além de trazer intenso sofrimento à obsessiva, corroboram para
a impossibilidade de seu desejo. Nesse sentido, também é possível citar a paciente de Bouvet
que, utilizando seus sapatos como um apetrecho da mascarada, busca provocar o desejo dos
homens apenas para mantê-lo como impossível.
Uma outra particularidade referente à neurose obsessiva feminina que é constatada no
pensamento de ambas as autoras diz respeito à obsessão filicida. Segundo Ribeiro (2011a), que
melhor elucida este aspecto, tal obsessão estaria associada à perda, por parte da mulher, do
investimento fálico do homem; perda da qual decorre a impossibilidade de se referenciar pelas
vias do desejo masculino. Esse ponto também alude ao traço melancólico particular à mulher
obsessiva que, por crer no significante e na palavra de amor do Outro, pode cair no abismo da
pulsão de morte ao ser privada de seu lugar no desejo do parceiro, refletindo-se na perda de si
mesma. A partir deste traço – que costuma ocasionar confusões entre casos de neurose
obsessiva feminina com aqueles de melancolia e de psicose maníaco-depressiva –, reitera-se,
aqui, o cuidado com que deve ser feito o diagnóstico diferencial no terreno da obsessão em
mulheres e, também, reafirma-se a importância da noção de estrutura clínica e do diagnóstico
estrutural de base psicanalítica que, diferente daquele oferecido pelo discurso psiquiátrico, não
reduz toda uma estrutura a meros sintomas7.
Em suma, através do percurso pelo pensamento de Alvarenga (2019) e Ribeiro (2011a)
foi possível vislumbrar diferentes modos pelos quais o ser mulher se entrelaça ao ser obsessivo.
Obviamente, estes não são os únicos meios nem as únicas concepções, pelos quais a
feminilidade pode atravessar a estrutura obsessiva, entretanto, diante do curto período de tempo
que foi disposto à realização deste trabalho, optou-se pela restrição ao estudo dessas duas
autoras como base para a discussão da neurose obsessiva feminina.
É relevante pincelar, aqui, alguns aspectos da trajetória que envolveu o aprofundamento
nesta temática e que corroboram a importância de uma continuidade no estudo deste terreno tão
fértil que aborda os atravessamentos da feminilidade na neurose obsessiva. Diante do desejo e
da proposta de estudo da neurose obsessiva feminina como tema deste trabalho de conclusão
de curso, decorreu-se um primeiro contato com a literatura atual sobre o assunto através do livro

7
Cabe ressaltar que, longe de estigmatizar o sujeito em conceitos fixos como faz o discurso psiquiátrico, o
diagnóstico estrutural tem como objetivo a orientação do analista frente ao processo analítico. Atendo-se à
investigação das relações que o sujeito estabelece com o Outro, com o desejo e com o gozo, o analista se encontra
menos suscetível aos erros dos diagnósticos médicos, pautados pela fenomenologia sintomática, podendo, assim,
orientar o processo analítico do paciente em consonância com sua estrutura clínica, implicando-o como sujeito
desejante, determinado pelo significante.
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de Alvarenga (2019) e, posteriormente, por meio da obra de Ribeiro (2011a). Entretanto, como
ainda não havia sido construída, por parte da pesquisadora, uma base teórica sólida acerca dos
objetos de estudo que constituem a temática, a saber, a neurose obsessiva e a feminilidade,
obteve-se uma primeira perspectiva imatura sobre a discussões propostas pelas autoras.
Contudo, na medida em que fora efetuada uma releitura de ambos os livros, após a finalização
da revisão bibliográfica e da escrita referente aos capítulos que tratam da neurose obsessiva e
da feminilidade, obteve-se uma compreensão mais amadurecida e rica, em termos de reflexões
e diálogo entre estes dois conceitos.
Neste ponto, cabe ressaltar uma perspectiva em particular de Alvarenga (2019) que, ao
ser encontrada novamente na construção do capítulo de neurose obsessiva feminina,
possibilitou o enriquecimento das discussões que o presente trabalho se dispôs a realizar.
Considerando que o objetivo deste último visa entrelaçar as questões concernentes à
feminilidade com a estrutura obsessiva, a proposição na qual Alvarenga (2019) não se atém tão
fortemente ao âmbito da estrutura clínica, em determinados casos tratados por Freud, permite
inspirar reflexões acerca dos diferentes caminhos a serem seguidos na compreensão da neurose
obsessiva feminina, os quais podem se alçar para além dos termos estruturais. Destacando uma
entre outras saídas para os atravessamentos da feminilidade nesta neurose, a autora suscita
questionamentos acerca da presença e relevância de casos nos quais se faz necessário conceber
a neurose obsessiva em sua resposta sintomática quanto ao ser mulher. Trata-se de um
pensamento que, apesar de não corresponder à leitura estrutural que o presente trabalho realiza
acerca da neurose obsessiva, revela uma perspectiva interessante e que demonstra à sua maneira
que, enquanto mulher, a obsessiva não é passível de ser alocada em um conjunto – nem mesmo
um que compreenderia “mulheres de estrutura obsessiva” –, devendo, assim, ser analisada no
caso a caso que lhe é próprio enquanto sujeito não-todo.
No entanto, apesar das imensas contribuições da autora, assim como as fornecidas por
Ribeiro (2011a), o caminho percorrido por suas teorizações, articulações e concepções não foi
efetuado sem que houvessem impasses, angústias e escapes em sua compreensão, assim como
o percurso de revisão dos outros autores que foram estudados durante a realização deste
trabalho. A neurose obsessiva e a feminilidade – como todos os temas na psicanálise – têm o
furo que, como bem demonstra Lacan, é próprio da existência: há sempre algo que escapa.
Desse modo, tanto no esforço de entendimento dos conceitos quanto na tentativa de traduzir em
palavras o que fora compreendido, sem que fosse efetuada uma redução na complexidade dos
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termos, algo, inevitavelmente, escapou; justamente, porque palavras não são capazes de
englobar tudo o que a psicanálise se propõe a estudar.
No entanto, este furo, essa falta que permeou o presente estudo foi, como é próprio da
falta, o que manteve o desejo de saber em movimento durante todo o percurso e também o que
permitiu o mergulho, exaustivo mas excitante, neste tema tão esburacado e, de certo modo, tão
novo na psicanálise e que é compreendido por neurose obsessiva feminina. Desse modo, é
evidente que este tema pôde receber uma leitura a partir do presente trabalho, entretanto, reitera-
se que longe de ser esgotado – ou melhor, considerando que nunca o será completamente –, a
neurose obsessiva feminina constitui um terreno fértil para futuros estudos, sendo necessário
novas leituras, elucidações e contribuições referentes ao entrelaçamento do ser obsessivo e o
do ser mulher.
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