Maitê Paixão Garcez Soares Da Silva - Maite Paixao Garcez
Maitê Paixão Garcez Soares Da Silva - Maite Paixao Garcez
CURSO DE PSICOLOGIA
SÃO PAULO
2022
MAITÊ PAIXÃO GARCEZ SOARES DA SILVA
SÃO PAULO
2022
À memória de meu tio, Marcos Paixão Garcez, cuja
curiosidade, determinação e, sobretudo, paixão me
inspiraram na realização deste trabalho e em todo o
meu percurso acadêmico.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Marianne e Antonio Carlos, por todo o apoio, incentivo e amor, os quais
me possibilitaram construir, frente a uma nova cidade, uma base sólida na qual pude me firmar.
Agradeço-os também pela confiança e atenção, sem as quais eu não estaria onde estou hoje.
Ao meu companheiro diário, Paulo, pelo carinho e pela presença, sejam nos momentos
corriqueiros da semana, sejam naqueles mais significativos dos últimos quatro anos. Gostaria
de agradecê-lo também pelo encorajamento e interesse, tão importantes durante a escrita deste
trabalho.
À minha prima, Malu, pela presença e pelo apoio, não somente nestes anos de
graduação, mas nos vinte dois de minha existência. Aqui, deixo também meu agradecimento ao
seu companheiro, Gabriel, pelo acolhimento e pelos conselhos dados ao longo de minha vida
universitária.
Aos meus avós, Fausto e Ercília, pelo carinho, apoio e pela recepção calorosa e alegre
em suas casas.
Aos meus queridos amigos, Isadora F. e Inácio, pela presença tão ativa e significativa
em minha vida.
À minha orientadora, Carla, pelo incentivo, pelas leituras atenciosas e pela pertinência
nas pontuações feitas a este trabalho.
Ao professor Pedro, por aceitar o meu convite para ser o parecerista deste trabalho e
também pelo auxílio na delimitação de seu esboço quando este ainda configurava um projeto
de pesquisa.
Aos amigos que a vida universitária me trouxe: Caio, Raíssa, Daniel, Joaquim, Juliana
e Isadora M.; os quais tornaram meus dias mais alegres. E também aos amigos que, apesar da
distância, continuaram se fazendo presentes em minha vida: Vitor A., Victor K. e Rafael.
Aos meus tios e familiares: Marcelo, Fátima, Vinicius, Maristela e Demi; pelo apoio e
acolhimento.
E, por fim, um agradecimento especial à memória dos que já se foram e deixam imensa
saudade. Agradeço, assim, à minha avó Myrian e ao meu tio Marcos, que, sendo os ótimos
professores que eram, tanto me ensinaram sobre a vida.
RESUMO
A presente pesquisa teve como objetivo realizar uma leitura psicanalítica de viés lacaniano a
respeito das particularidades do entrelaçamento das questões concernentes à feminilidade,
conforme vista por Freud e Lacan, com o diagnóstico estrutural da neurose obsessiva,
percorrendo as relações que as mulheres assim estruturadas estabelecem com o desejo, com o
Outro e com o gozo. Desse modo, foi realizada uma revisão teórica acerca das temáticas da
neurose obsessiva e da feminilidade, de modo a conceitualizá-las a partir das elaborações de
Freud e do ensino de Lacan. Feito isso, foi empreendida uma leitura a respeito da estrutura
obsessiva em mulheres, fundamentada em teorizações e considerações referentes ao tema
realizadas até o presente momento por autores de orientação psicanalítica lacaniana, para que,
assim, fossem compreendidas as especificidades da associação entre o ser mulher e o ser
obsessivo. A partir dessa leitura, constatou-se a possibilidade de vislumbrar diferentes modos
pelos quais a feminilidade pode atravessar a estrutura obsessiva, atribuindo a esta última traços
particulares.
Palavras-chave:
Feminilidade; Freud; Lacan; Neurose obsessiva; Neurose obsessiva feminina; Psicanálise.
LISTA DE FIGURAS
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 7
2 MÉTODO ..................................................................................................................... 12
REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 66
7
1 INTRODUÇÃO
1
A noção de Outro, conceito fundamental na teoria lacaniana, recebe diferentes conotações ao longo do ensino de
Lacan. Inicialmente empregado como análogo da ordem simbólica, compreendendo, assim, os elementos
significantes da língua, o Outro representa o discurso do inconsciente. Para além desta acepção, trata-se também
8
de um lugar passível de ser ocupado por determinadas figuras que exercem um papel importante na vida do sujeito,
sendo a mãe entendida, aqui, como o Outro primordial. É o lugar a partir do qual o sujeito recebe sua mensagem
de maneira invertida e a partir da qual desenvolverá seus ideais, formando-se como sujeito. Sendo assim, o Outro
é aquilo que vocifera, carrega um dizer, sendo também portador de um desejo do qual o sujeito se interroga.
Posteriormente, como será elucidado neste trabalho, será designado para representar uma alteridade radical,
excluída do campo do simbólico (cf. item 5.2).
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causar perturbações ou, no mínimo, reflexões, seja para a psiquiatria que, muitas vezes, as
enquadra por sua sintomatologia no diagnóstico médico de borderline (FINK, 2018); seja para
a psicanálise que, considerando a distinção lacaniana entre posição masculina e posição
feminina – representantes de diferentes modos de se situar frente à linguagem –, apresenta
perspectivas divergentes a respeito da neurose obsessiva em mulheres.
Retomando um apontamento feito por Elisa Alvarenga em seu livro A neurose obsessiva
no feminino (2019), é inegável a presença de um certo número de exemplos de mulheres com
sintomas obsessivos na clínica freudiana, como os casos relatados nas Conferências
introdutórias à psicanálise ([1916-1917] 2014), mais especificamente na Conferência XVII
denominada O sentido dos sintomas (1917). No entanto, a autora afirma que, na maioria das
vezes, estes apenas recobrem uma estrutura que, ao ser analisada a partir da relação do sujeito
com o Outro e com o objeto, revela-se histérica. A partir de questões como essa, há diferentes
posicionamentos na psicanálise frente a possibilidade de uma estrutura obsessiva em mulheres:
enquanto alguns psicanalistas enquadram radicalmente toda mulher como histérica, sendo os
sintomas obsessivos sobrepostos a esta, outros discordam dizendo que há casos de mulheres
obsessivas, os quais, entretanto, seriam considerados graves, demandando um diagnóstico
diferencial com a psicose. Além destes, estão aqueles que, não se detendo tanto à noção de
estrutura clínica, destacam os casos de neurose obsessiva em seu estatuto de sintoma, utilizado
pela mulher para se haver com a sua feminilidade (ALVARENGA, 2019).
Diante de tantas perspectivas e posicionamentos acerca da compreensão da neurose
obsessiva feminina, demonstra-se válido refletir sobre os motivos a partir dos quais o obsessivo
é referenciado como um sujeito masculino pela psicanálise. Nesse sentido, seria possível
associar esta concepção à relação que sujeito obsessivo estabelece com o objeto amoroso e que,
conforme será elucidado posteriormente no trabalho2, se assemelha ao modo de amar do
homem, descrito por Freud em Contribuições para a psicologia da vida amorosa ([1910-1918]
2020). Além disso, há também a estratégia utilizada pelo obsessivo para tamponar a falta do
Outro e que é compreendida, pela psicanálise, como uma estratégia, sobretudo, masculina
(RIBEIRO, 2011a). Isso porque ela consiste em preencher o Outro com objetos que, por serem
atribuídos de um valor fálico, o obsessivo acredita serem capazes de camuflar a sua falta. Essa
evidente submissão à lógica fálica, a partir da qual ele pode anular a dimensão faltante e
desejante, poderia ser pensada, assim, como um dos aspectos que permitiria aproximar a
neurose obsessiva de uma estratégia masculina, uma vez que a posição masculina, conforme
2
Cf. item 5.1
10
compreendida pela psicanálise, comporta aqueles sujeitos que são totalmente regidos pela
norma fálica e que, por compreenderem uma totalidade, podem ser agrupados pelo conjunto
“homens” (FINK, 1998).
Por outro lado, a posição feminina abarca os sujeitos que não são totalmente submetidos
pela lógica fálica, de modo que há para a mulher um “para além” do terreno fálico, o qual não
está acessível à posição masculina. No entanto, na medida em que a mulher não é totalmente
regida por esta lógica, a qual o homem e o obsessivo são tão aferrados, não haveria a
possibilidade de compreender todas as mulheres em um conjunto, como o que é representado
pelos “homens”. Sendo assim, a feminilidade, a posição feminina, longe de compreender uma
generalização, indica que cada mulher deve ser tomada em sua particularidade e singularidade,
uma vez que não haveria um traço próprio que a caracterizasse e a definisse enquanto mulher.
Diante dessas considerações, uma questão de particular interesse frente à temática da
neurose obsessiva feminina diz respeito à reflexão de que enquanto a estrutura obsessiva se
aproxima e apresenta semelhanças com a estratégia e o amor da posição masculina, a mulher,
tal como é compreendida pela psicanálise, apresenta uma posição particular que compreende
justamente um “para além” do âmbito fálico e que, ao se defrontar com a estrutura obsessiva,
poderia produzir algumas especificidades nestes sujeitos. Sendo assim, quais seriam as
implicações dos atravessamentos da posição feminina em uma estrutura obsessiva, estando esta
última tão arraigada ao terreno fálico? Quais particularidades poderiam ser constatadas a partir
da associação entre o ser obsessivo e o ser mulher? Tendo estes questionamentos em vista, a
presente pesquisa teve como objetivo realizar uma leitura lacaniana a respeito do
entrelaçamento das questões concernentes à feminilidade, conforme vista por Freud e Lacan,
com o diagnóstico estrutural da neurose obsessiva, perpassando as relações que as mulheres
assim estruturadas estabelecem com o desejo, com o Outro e com o gozo.
Compreende-se a escolha por uma fundamentação teórica psicanalítica orientada pelo
ensino de Lacan, uma vez que a discussão que o trabalho se dispõe a realizar encontra um
terreno fértil na concepção de neurose obsessiva como estrutura clínica e no entendimento da
feminilidade como uma posição ocupada pela mulher na linguagem. Nesse sentido,
considerando a noção de estrutura clínica e de posição feminina como releituras lacanianas de
ideias freudianas, optou-se por uma orientação pelas principais obras de Freud e considerações
de Lacan em seus seminários e escritos, que abordassem a neurose obsessiva e a feminilidade,
de modo a compreender o desenvolvimento de ambos os conceitos na teoria psicanalítica. E,
no intuito de entrelaçar ambas as noções e empreender uma leitura a respeito das
11
2 MÉTODO
Feito isso, foi efetuada uma leitura de viés lacaniano a respeito da estruturação
obsessiva em mulheres, pautando-se por teorizações e considerações referentes ao tema,
propostas até o presente momento por psicanalistas de orientação teórica lacaniana, e
articulando-as com a revisão teórica realizada anteriormente acerca da temática da neurose
obsessiva e da feminilidade em Freud e Lacan. Sendo assim, foram selecionados livros, artigos
em revistas de psicanálise e teses de mestrado que abordassem o tema da neurose obsessiva
feminina. Entretanto, considerando o período de tempo disposto à realização do trabalho, foram
priorizadas para discussão as obras de duas autoras psicanalistas, sendo estas A neurose
obsessiva no feminino (2019), de Elisa Alvarenga, e Um certo tipo de mulher (2011a), de Maria
Anita Carneiro Ribeiro. Optou-se por abordar, articular e discutir o pensamento dessas duas
autoras considerando o caráter minucioso e rigoroso da construção teórica propostas por elas
em seus respectivos livros, os quais possibilitaram uma base sólida para uma leitura
psicanalítica de orientação lacaniana que levantasse as especificidades da associação entre o ser
mulher e o ser obsessivo para a psicanálise.
14
3
Essa concepção, que não equipara o sintoma à neurose, demonstra-se relevante na medida em que aponta para a
noção de estrutura clínica que será introduzida posteriormente por Lacan.
16
clínico se funda, desse modo, como o paradigma para a compreensão da neurose obsessiva,
havendo maior definição e descrição para o funcionamento obsessivo, além da introdução de
novas considerações teóricas e práticas ao estudo que havia se iniciado anteriormente sobre o
tema, as quais permitem a Freud afirmar que a neurose obsessiva seria um dialeto da histeria.
Freud inicia suas observações dizendo que o paciente em questão o procura queixando-
se da presença de ideias obsessivas, entre as quais se destaca uma em que tanto seu pai quanto
a mulher amada sofrem de uma tortura com ratos. A ideia se inicia após certos acontecimentos
durante a prática de exercícios militares. Um dia, enquanto os realizava, o paciente perde seu
pincenê e encomenda um novo de seu óptico em Viena. Feito isso, escuta de um capitão que,
segundo ele, aparentava gostar de crueldades, o relato de um castigo no qual o condenado é
imobilizado enquanto um rato, preso a um recipiente contra o seu traseiro, perfura o seu ânus.
Segundo Freud, o analisando prossegue dizendo que logo lhe veio a ideia de que a tortura estaria
sendo aplicada a uma pessoa importante para ele que, posteriormente, se evidencia ser a dama
que adora e, após certa resistência, o pai, que já havia falecido.
Esse pensamento, entretanto, se vincula a outro acontecimento: o capitão cruel, ao lhe
entregar o novo pincenê que havia chegado do correio, diz que ele deveria pagar ao primeiro-
tenente A a taxa do reembolso. Nesse momento, aparece uma “sanção” para evitar que a ideia
evidenciada anteriormente se realizasse: não dar o dinheiro; e, logo em seguida, uma outra para
combatê-la, que se apresenta como uma ordem oposta: pagar a quantia ao primeiro-tenente A.
Frente a isso, decorre-se um longo percurso no qual se mostra impossível realizar o tal
juramento, uma vez que, na realidade, o capitão havia cometido um engano e, desse modo, o
pagamento não deveria ser feito ao primeiro-tenente A, mas à funcionária do correio;
informação esta que o Homem dos Ratos já tinha conhecimento antes daquela errônea dada
pelo capitão cruel.
Nesse sentido, evidencia-se o caráter ilógico de uma ideia obsessiva, uma vez que,
apesar de saber a quem deveria realmente pagar a referida taxa, a ordem que fora construída
pelo obsessivo após a fala do capitão teve prevalecimento, de modo que, mesmo após ter
reembolsado o valor à funcionária do correio, o homem continuou sendo atormentado pela ideia
de que deveria pagar a determinada quantia ao primeiro-tenente A. Do mesmo modo, observa-
se um escape à razão na medida em que o pai do paciente já havia falecido, não sendo possível
aplicar-lhe o castigo e, com isso, não havendo motivo lógico para tal temor.
Essa impotência da lógica frente à obsessão é justificada por Freud ao se referir também
às autoacusações do paciente diante da morte de seu pai: considerava-se um criminoso, uma
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vez que, tendo dormido, não esteve junto dele no momento em que faleceu. Desse modo,
comentando a disparidade entre conteúdo ideativo e afetivo refletido no caráter exagerado que
as recriminações aparentam aos olhos do outro, Freud ([1909] 2013) reitera o mecanismo da
neurose obsessiva:
[...] o afeto é justificado, a consciência de culpa não deve ser criticada, mas liga-se a
outro conteúdo, que não é conhecido (inconsciente), e que deve antes ser procurado.
O conteúdo ideativo conhecido chegou a esse lugar devido a um nexo errado. Mas
não estamos habituados a ver em nós afetos poderosos sem conteúdo ideativo e por
isso, na falta de conteúdo, tomamos algum outro aceitável como substituto [...] (p. 35).
O autor também destaca os seus mecanismos secundários, uma vez que muitos
obsessivos chegam a relatar a causa para o seu adoecimento sem saber que o fazem. Tal feito é
explicado pela subtração do afeto, de modo que o trauma vivido se encontra presente na
memória, porém desinvestido de seu caráter afetivo. Sendo assim, a ocasião é percebida com
indiferença pelo obsessivo, uma vez que a significação original fora destituída.
Além disso, evidencia-se a presença de uma ambivalência entre amor e ódio como
tradução das ideias e atos obsessivos. O frequente temor de que algo terrível ocorra ao pai e à
amada, objetos de amor do paciente, e as medidas protetoras que realiza para evitá-lo seriam
decorrentes de impulsos hostis dirigidos a ambos. Nesse sentido, Freud comenta o caráter
compulsivo de certas ações obsessivas que consistem em realizar determinado ato e logo em
seguida desfazê-lo: enquanto na histeria haveria compromisso entre amor e ódio em uma única
representação, na neurose obsessiva os opostos são satisfeitos em dois tempos, no qual o
segundo anula o primeiro.
Ao fim do relato da história clínica, Freud chama a atenção para a relevância da
linguagem na construção obsessiva do Homem dos Ratos, uma vez que “ratos” se traduz para
o alemão como ratten que, nas associações do paciente, se ligaram a raten (“prestações”) e
spielratte (“rato de jogo”). Este último é utilizado para definir seu pai que, ao perder dinheiro
em um jogo de cartas, pede a um amigo que lhe adiante a quantia e acaba por não acertar a
dívida que tinha com este; de modo que são estabelecidas relações com o percurso obsessivo
do paciente em sua busca do pagamento ao primeiro-tenente A. Com isso, Freud reitera a
relação da neurose obsessiva com o campo da linguagem, que já havia apontado na
correspondência enviada a Fliess em dezembro de 1897, servindo de demonstração para a
posterior definição de inconsciente estruturado como linguagem, realizada por Lacan.
Segundo Peres (2021), um aspecto que se destaca neste caso é que Freud se propõe a
analisar o discurso de seu paciente a partir dos estudos construídos em sua obra A interpretação
18
dos sonhos ([1900] 2019), de modo que a escuta do dizer obsessivo poderia ser orientada da
mesma maneira que aquela direcionada ao relato dos sonhos. Tal postura frente às ideias
obsessivas é evidenciada primeiramente pelo autor quando diz que tanto os pensamentos
obsessivos quanto as construções oníricas carecem, à primeira vista, de uma causa e de um
sentido evidente, devendo a significação ser construída a partir do texto de ambos (FREUD,
[1909] 2013). Além disso, os mecanismos próprios dos sonhos, condensação e deslocamento,
também seriam responsáveis pela transformação das ideias e representações obsessivas, visto
que, para além do deslocamento do afeto de seu conteúdo original, a condensação pode ser
evidenciada na manifestação de múltiplas representações obsessivas, as quais, entretanto, são
referentes a uma única.
Em diálogo com o caso clínico, Freud também destaca algumas peculiaridades psíquicas
que pôde constatar na análise de outros pacientes obsessivos. Entre elas, está a
supersticiosidade, a qual se encontra em relação com o caráter onipotente atribuído pelos
obsessivos aos seus pensamentos e sentimentos; a necessidade da incerteza e da dúvida,
utilizada pela neurose para isolar o doente da realidade; e uma relação particular com a morte,
uma vez que, para solucionar conflitos que demandam uma decisão, o obsessivo precisa
conceber a possibilidade da morte de uma pessoa importante para ele. Esta última estaria
relacionada ao sentimento de culpa apresentado por esses pacientes, conforme reitera Peres
(2021):
prevalece o sadismo e o erotismo anal. Nesse sentido, diferencia neurose de caráter, uma vez
que este último, apesar de estar sujeito às mesmas forças libidinais sádicas e erótico-anais que
a primeira, não apresenta, em sua formação, recalque ou falha no recalque como a neurose. E,
além disso, aponta para o impulso de saber do obsessivo como uma transformação sublimatória
do sadismo, ao afirmar que:
[...] quanto ao impulso de saber, temos a impressão frequente de que poderia mesmo
substituir o sadismo no mecanismo da neurose obsessiva. Pois ele é, no fundo, um
rebento sublimado, elevado ao plano intelectual, do instinto de apoderamento; sua
rejeição na forma de dúvida tem grande papel no quadro da neurose obsessiva
(FREUD, [1913] 2010, p. 334-335).
Alguns anos após a publicação deste artigo, Freud se debruça novamente sobre a
neurose obsessiva, através da conferência introdutória à psicanálise denominada O sentido dos
sintomas ([1917] 2014), visando, desta vez, analisar minuciosamente dois casos de mulheres
obsessivas, de maneira a evidenciar o sentido particular que é guardado pelos sintomas das
pacientes, uma vez que, tal como os sonhos e atos falhos, o sintoma possui íntima relação com
as vivências do sujeito. Antes de se deter aos casos, Freud ([1917] 2014) propõe a seguinte
descrição para a neurose em questão:
medidas de precaução, caracterizados pelo autor como negativos, e outros nos quais se
sobressaem as satisfações obtidas, de modo que: “A formação de sintomas obtém um triunfo
quando consegue mesclar a proibição e a satisfação, de forma que o mandamento ou proibição
originalmente defensivo adquire também o significado de uma satisfação [...]” (FREUD, [1926]
2018, p. 48). Nesse sentido, ressalta-se a relevância da luta contra o recalcado e a participação
do Eu e do Supereu na formação dos sintomas da neurose obsessiva.
Outro aspecto relevante que é retomado por Freud com relação a essa neurose é a
regressão parcial ou total ao estágio sádico-anal, a qual é explicada a partir de um afastamento
dos componentes eróticos pulsionais daqueles investimentos destrutivos, referentes à fase
sádica. Através da associação entre essa regressão e o declínio do complexo de Édipo,
compreende-se a consolidação de um Supereu particularmente severo e rigoroso na neurose
obsessiva. O Eu também é enfatizado pelo autor, a partir de duas técnicas auxiliares das quais
se utiliza como variações do recalque, sendo estas a anulação do acontecido e o isolamento.
Segundo Freud ([1926] 2018):
Jacques Lacan a base para a leitura da categoria clínica da neurose obsessiva a partir da noção
de estrutura obsessiva e para o avanço nas teorizações propostas por Freud ao longo do
desenvolvimento teórico da psicanálise.
22
É em função dos amores edipianos que se constitui, para todos, a entrada em cena de
uma estrutura psíquica, ou, como assinalava Freud, a ‘escolha’ da sua própria neurose.
Esses amores edipianos nada mais são que o desenvolvimento, com estardalhaço, da
relação que o sujeito trava com a função fálica, ou seja, com a função paterna. Se esta
relação for vetor de ordem – no sentido de organização –, é, igualmente, portador de
desordem, pois a estrutura psíquica apresenta a particularidade essencial de ser
determinada uma vez por todas (p. 24).
Nesse sentido, a estrutura psíquica representa uma “organização definitiva” (p. 25), que
se inscreve no sujeito a partir de momentos fundamentais edipianos, os quais constituem a sua
relação com o falo4, culminando em um perfil da economia do seu desejo. No que tange à
4
O falo, para Lacan, denota o significante encarregado da distribuição de papéis no drama vital do sujeito,
respondendo pela posição do ser na linguagem e na partilha dos sexos. Objeto metonímico, é compreendido como
significante tanto da falta quanto do desejo, na medida em que a primeira possibilita a existência do segundo.
Representa o significante excepcional, visto que é o único possuidor de uma significação fixa, ou seja, que fixa a
significação do desejo materno no inconsciente, a qual fica inacessível ao sujeito.
23
estrutura neurótica, Fink (2018) afirma que ser histérica ou ser obsessivo remeteria a diferentes
posições do sujeito. Sendo assim, a compreensão lacaniana da neurose obsessiva é concebida,
de modo geral, a partir de uma posição – ou resposta – particular frente à questão da existência,
atravessada pelas relações que o sujeito estabelece com o Outro, o desejo, o objeto, e o gozo;
as quais serão elucidadas adiante.
O obsessivo manifesta, com efeito, uma das atitudes que Hegel não desenvolveu em
sua dialética do senhor e do escravo. O escravo esquivou-se ante o risco da morte,
onde a oportunidade de dominação lhe foi oferecida numa luta de puro prestígio. Mas,
como sabe ser mortal, ele também sabe que o mestre/senhor pode morrer. Por
conseguinte, pode concordar em trabalhar para o mestre/senhor e em renunciar ao
gozo nesse meio tempo: e, na incerteza do momento em que chegará a morte do
mestre/senhor, ele aguarda (p. 315).
24
O mestre no estado puro está aí numa posição desesperada, porque não tem nada a
esperar senão a sua morte, porque não tem nada a esperar da morte de seu escravo
senão alguns inconvenientes. Ao contrário, o escravo tem muito que esperar da morte
do mestre. Para além da morte do mestre, será preciso que se afronte à morte, como
todo ser plenamente realizado, e que assuma, no sentido heideggeriano, o seu ser para
a morte (p. 373).
[...] aceita uma certa feminilização para assegurar a virilidade do pai. Mas, é como se
fosse o seu sacrifício que permite a seu pai ser viril; ele sempre toma cuidado em não
ultrapassar o pai porque, se ele ultrapassasse o pai, isso seria sua própria queda, sua
própria perda. Mas, ao mesmo tempo, ele espera que seu pai morra, por considerar
que, neste momento, possa tomar seu lugar (MELMAN, 2004, p. 118).
Desse modo, é possível afirmar que uma das características da relação do obsessivo com
alteridade se refere a este sacrifício que ele faz tanto de sua virilidade quanto de seus desejos,
resultando em sua anulação como sujeito. Além disso, a questão particular da neurose obsessiva
com a morte, já constatada por Freud frente ao caso do Homem dos Ratos, aponta para esse
impasse frente ao lugar do pai que o obsessivo tanto almeja e que, no entanto, só poderá ocupá-
lo após a sua morte. Com isso, há uma constante postergação de seus afazeres e deveres, uma
vez que se defrontar com o fim é se defrontar com o assassinato deste que ocupa a posição de
autoridade, pelo qual ele seria culpado, uma vez que desejaria tomar seu lugar.
A partir disso, é possível compreender a presença marcante da culpa e da indecisão na
neurose obsessiva, essa última como tentativa de procrastinar o encontro com o desejo que lhe
é próprio como sujeito e com a renúncia que implica toda escolha, a qual evidenciaria o furo e
a falta que o obsessivo visa negar a todo custo e que implicaria em se defrontar com a castração
do Outro e com a sua própria.
A relação mortal que o obsessivo estabelece consigo mesmo se apresenta como uma
questão essencial para a compreensão da busca que empreende pela anulação de seu desejo e
do seu gozo. Conforme afirma Lacan ([1953b] 1998): “[...] ele próprio ‘não está ali’, está no
momento antecipado da morte do mestre/senhor, a partir da qual viverá, mas à espera da qual
se identifica com ele como morto, mediante o que ele mesmo já está morto” (p. 315-316). Ou
seja, enquanto espera pela morte do mestre, o obsessivo, ao se fazer de morto, apaga seu gozo
e se anula como sujeito desejante, evitando, desse modo, que o Outro deseje; uma vez que,
segundo a máxima lacaniana, o desejo é o desejo do Outro, “na medida em que este é o lugar
onde o significante ordena o desejo” (LACAN, [1957-1958] 1999, p. 417).
Nesse ponto é possível introduzir a fantasia fundamental do obsessivo, a qual se
configura como resposta à questão do ser na neurose obsessiva: “Estou vivo ou estou morto?”.
A fantasia fundamental do sujeito diz respeito, em suma, à relação que ele estabelece com o
objeto, ou como Lacan se refere, objeto a. Fink (2018) aborda essa questão tomando como
referência o exemplo freudiano e lacaniano da relação do bebê com o seio da mãe. O seio,
enquanto a primeira fonte de satisfação do ser humano, nos primórdios, não é percebido pelo
bebê como um objeto separado de si. No entanto, na medida em que se constitui uma separação
entre o sujeito e o outro – o bebê e a mãe –, entre sujeito e objeto – o bebê e o seio –, a relação
26
com o seio, do modo como era estabelecida, é perdida, de modo que esse objeto de prazer nunca
mais pode ser encontrado da mesma maneira.
Essa relação com o objeto a, que opera como causa de seu desejo, se reflete na fantasia
fundamental do sujeito que, no caso do obsessivo, se configura pela recusa em reconhecer que
o objeto possui alguma relação com o Outro e, consequentemente, na retenção deste para si, a
qual pode ser remetida à questão da analidade na neurose obsessiva. Desse modo, “[...] a
unidade ou inteireza é devolvida ao sujeito pela soma do objeto. Mas o obsessivo se recusa a
reconhecer que o seio provém da mãe/Outro materno, ou tem qualquer relação com a mulher
real que se torna parceira sexual dele” (FINK, 2018, p. 135).
A partir disso, entende-se a particularidade na relação do obsessivo com seus parceiros
sexuais. Há uma tentativa de destruir o parceiro enquanto este se configura como a causa de sua
excitação sexual, encarnando o objeto a, a partir da separação radical entre o amado e o desejado
que, na neurose obsessiva, se apresenta comumente pela criação de duas categorias de
mulheres: a mulher idealizada que, aproximada à figura da mãe, é concebida como imaculada
e se apresenta como objeto de um amor puro; e, por outro lado, a mulher “impura”, que
representa o objeto a, causa de desejo (FINK, 2018). Essa distinção pode ser ilustrada pelo caso
do Homem dos Ratos, uma vez que em oposição à dama amada e venerada, com quem haveria
de se casar, o desejo do paciente era direcionado àquela outra mulher mencionada por ele,
pertencente à uma classe menos favorecida em termos financeiros, e com quem ele não poderia
se casar.
Nesse sentido, ao recusar o reconhecimento da relação do Outro com o objeto, o
obsessivo também busca aniquilar a dimensão do Outro e de seu desejo. Com relação ao desejo
na neurose obsessiva, Peres (2021) afirma:
lá onde se corre o risco” (LACAN, [1957] 1998, p. 454). No seminário realizado entre os anos
1954 e 1955, publicado sob o título de O Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na
técnica da psicanálise ([1954-1955] 1987), Lacan afirma:
[...] o obsessivo é sempre um outro. Seja o que for que ele contar para vocês, sejam
quais forem os sentimentos que ele lhes trouxer é sempre os de um outro que não ele
mesmo. Essa objetalização de si mesmo não é devida a uma tendência ou a um dom
introspectivo. É na medida em que evita seu próprio desejo que todo desejo pelo qual,
enveredar, nem que seja aparentemente, ele o apresentará como sendo o desejo deste
outro ele mesmo que é o seu eu (p. 336-337).
Conforme reiterado por Ribeiro (2011a), o obsessivo se camufla, desloca, nega, duvida;
procurando a análise apenas quando algo fora desencadeado no mundo de estabilidade em que
almeja se manter, em seu discurso cartesiano e organizado. Entretanto, apesar da intensa
resistência ao inconsciente e às suas formações, o obsessivo, ao entrar em processo analítico,
torna-se o melhor “funcionário” da análise e de seu analista, o que demanda uma postura
cuidadosa deste último frente às incessantes associações e deslizamentos metonímicos que o
analisando faz em busca do “sentido, do sentido, do sentido...” (RIBEIRO, 2011a, p. 81).
A resistência ao sujeito do inconsciente, aquele Outro que habita e fala em todo ser que
está na linguagem, revela a tentativa – sempre falha – do obsessivo de evitar o confronto com
o furo em seu discurso, com o fato de que se constitui como sujeito dividido e não como
indivíduo sempre consciente que detém total controle de suas atitudes, falas e pensamentos, e
com a constatação da falha na onipotência do pensamento, esta última tão cara ao obsessivo na
construção de suas ideias e atos. Desse modo, na neurose obsessiva, a dimensão do Outro e de
seu desejo é negada a todo custo:
obsessivo depende para ter acesso ao seu desejo, ainda que tente negá-lo constantemente
(LACAN, [1957-1958] 1999).
Melman (2004) chama a atenção para o âmbito da fala na neurose obsessiva. Segundo
o autor, a fala do obsessivo assemelha-se muito a uma mera leitura de algo já escrito. Observa-
se nele um discurso quase mecânico, uma vez que, como é próprio da neurose obsessiva a
negação daquilo que escapa ao discurso consciente, a tentativa de anular qualquer rastro de
desejo, o obsessivo visa apagar o sujeito da frase, de modo a prevalecer apenas no nível do
enunciado em si e não naquele da enunciação, o qual pressupõe que há um sujeito que fala,
sujeito que, estando na linguagem, é detentor de um desejo.
Nesse sentido, para o obsessivo, a autoridade de uma determinada frase está na
consistência e coerência lógica desta e não naquele que a está proferindo. E, é por ficar apenas
nesse âmbito que surge a dúvida característica da neurose obsessiva, uma vez que a frase,
mesmo em sua consistência lógica, poderia estar embasada em uma prerrogativa falsa e, assim,
o obsessivo acaba por repassá-la inúmeras vezes, a fim de garantir que ela esteja totalmente
correta, sem algo que lhe escape, algo que faça um furo em sua consistência.
A relação do obsessivo com o âmbito da enunciação também se aproxima da relação
que ele estabelece com a ordem, com o comando. Característica da neurose obsessiva, os
sujeitos assim estruturados estão sempre agindo por meio de ordens, tal qual o Homem dos
Ratos que, diante do imperativo de que deveria reembolsar o frete de seu pincenê a determinado
tenente, elaborou um percurso mirabolante para conseguir realizar tal ordem mesmo sabendo
que, na realidade, deveria pagar a outra pessoa. Entretanto, o obsessivo não segue apenas os
comandos emitidos pelas pessoas que ocupam o lugar do Outro para ele, mas aqueles que são
construídos dentro dele e que o invadem.
Segundo Melman (2004), essas ordens que se produzem no obsessivo dialogam com a
sua relação com a enunciação e, desse modo, com a voz, uma vez que que não há enunciação
sem que haja uma voz por trás. Para o autor:
[...] o obsessivo quer suprimir toda enunciação, quer dizer, o que se sustenta da voz,
ou seja, que, com a enunciação que ele forclui, ele forclui também a voz. Quando o
obsessivo recusa a enunciação por este mecanismo que lhe é próprio – o da forclusão
– ele não admite, ele a recusa no simbólico. Com a enunciação, ele forclui da mesma
maneira a voz, porque a enunciação não é separável de seu suporte, que é sua
referência ao falo e à voz. E, portanto, por este mecanismo, também tem um retorno
ao real sob a forma destes comandos que são quase vocalizados (p. 75).
29
Ademais, Melman (2004) aponta que, nessa relação que o obsessivo estabelece com a
voz e com as ordens provenientes desta, há um gozo que é “ao mesmo tempo, o maior gozo e a
maior dor” (p. 75). Desse modo, uma vez que o sujeito goza com a voz, a ordem adquire, na
neurose obsessiva, esse caráter invasivo e repetitivo, no qual o obsessivo sofre constantemente
com bombardeios de comandos e mais comandos.
Uma última questão que cabe ser destacada neste capítulo é que, para Lacan, a neurose
obsessiva se configura como uma estratégia masculina. Enquanto a estratégia feminina da
histérica se desenvolve em relação à indagação sobre o sexo – sou homem ou mulher? –, a
estratégia do obsessivo se desenrola na questão sobre a morte, a qual, conforme já elucidado,
ele tenta enganar se fazendo de morto, colocando seu desejo como impossível. A concepção
dessa neurose como uma estratégia alinhada à posição masculina também se refere ao fato de
que o obsessivo se encontra fortemente submetido à norma fálica:
Dois anos após este primeiro texto, Freud publica Sobre a mais geral degradação da
vida amorosa ([1912] 2020), artigo no qual se ocupa de um aspecto geral da vida amorosa
masculina: a cisão entre a corrente terna e a corrente sensual. Haveria então, no homem, uma
radical distinção entre o amar e o desejar, originada a partir da interdição do incesto, de modo
que a mulher amada e supervalorizada como objeto de amor, que retoma a relação edípica com
a mãe, não é desejada; e a mulher desejada, à qual não é direcionada ternura, se apresenta a
partir de um objeto degradado, concebida como inferior pelo homem.
Apresenta-se relevante ressaltar, considerando a temática deste trabalho, que em ambos
os artigos evidenciam-se características da neurose obsessiva. Desse modo, é possível
identificar uma afinidade na concepção freudiana do modo como o homem se relaciona
amorosamente com a compreensão lacaniana do sujeito obsessivo, visto que este último,
apresentando um desejo da ordem do impossível, costuma almejar mulheres inalcançáveis,
como as que se encontram comprometidas com outro homem, tal como fora observado por
Freud. Ademais, tratando-se da característica geral masculina que se traduz na separação entre
ternura e sensualidade, torna-se evidente a degradação obsessiva do objeto enquanto este
encarna a causa de seu desejo, de modo que a mulher idealizada e imaculada, aproximada à
mãe, é amada pelo sujeito enquanto o seu desejo se volta para a mulher que, como no caso do
Homem dos Ratos, encontra-se em uma posição inferiorizada.
Por outro lado, a vida amorosa feminina é brevemente examinada por Freud em O tabu
da virgindade ([1918] 2020), artigo no qual se propõe a entender o motivo de certos povos
primitivos considerarem a virgindade um tabu. A partir disso, levanta como hipótese para o
afastamento do feminino o caso de mulheres que, após a relação sexual, agem de maneira hostil
para com seus parceiros, insultando-os. Desse modo, chama a atenção para a fixação da libido
na figura paterna como um motivo para insatisfação com a relação conjugal, uma vez que o
marido não é tido como suficiente quando comparado ao pai, o que poderia resultar em
agressividade; mas destaca que a hostilidade voltada ao homem poderia ser melhor
compreendida quando remetida à inveja do pênis, sentida pela menina ao constatar a diferença
entre os sexos.
Assim como a afinidade entre o homem freudiano e o obsessivo lacaniano, é possível
estabelecer uma aproximação entre este aspecto da vida amorosa feminina e a relação que a
histérica estabelece com o Outro, visto que esta última visa constantemente escancarar sua
inconsistência e impotência. Ribeiro (2011a) acrescenta que, em 1960, Lacan destaca nas Notas
diretivas para um congresso sobre a sexualidade feminina ([1960] 1998) que a mulher, para
32
amar e desejar um homem, precisa desvelar sua castração, uma vez que, nesse sentido, poderia
se oferecer como aquilo que tamponaria sua falta constitutiva. Entende-se, assim, uma
necessidade de degradação do homem e de se oferecer como objeto a – causa de seu desejo –
tanto na mulher quanto na histérica.
Alguns anos depois, em A organização genital infantil ([1923] 2020), Freud se volta
para o tema da sexualidade, afirmando que a principal característica da organização genital
infantil, que a diferencia da organização do adulto, é o que ele chama de “primado do falo” (p.
239), ou seja, que apenas o genital masculino apresenta um papel, tanto no caso do menino
quanto no caso da menina. A partir disso, Freud descreve como o menino acredita na
universalidade do pênis e como, ao se defrontar com uma figura feminina que não o tem,
entende essa falta como consequência de uma castração, a qual, nesse momento, pode não ser
estendida a todas as mulheres, como é o caso da mãe que, para o filho, pode se apresentar como
possuidora do falo por mais tempo. Nesse sentido, ressalta que na fase posterior a da
organização genital infantil, a oposição diz respeito a “masculino” e “castrado”, enquanto a
diferenciação entre “masculino” e “feminino” só se dará na fase da puberdade, na qual a
compreensão de “feminino” passa a ser relacionada ao objeto e à passividade. Cabe ressaltar
que, enquanto há uma descrição do que ocorre na criança do sexo masculino, Freud afirma que
“falta-nos o conhecimento dos processos correspondentes no caso da menininha” (p. 239).
No ano seguinte, ao publicar O declínio do complexo de Édipo ([1924] 2020), Freud
refere-se ao complexo de Édipo como "fenômeno central do período sexual da primeira
infância" (p. 247) e, descrevendo duas possibilidades distintas para a sua dissolução, aponta
para os rumos da sexualidade masculina e da sexualidade feminina. Com isso, primeiramente,
se detém a explicar como ocorre esse processo no menino. O ponto principal, nesse caso,
constitui-se pelo conflito de interesses edípicos e narcísicos, uma vez que, diante da ameaça de
castração caso o Édipo seja levado adiante, a criança opta pela opção narcísica de manter o
pênis, abrindo mão da relação com a mãe e investindo sua libido em objetos substitutos.
Por outro lado, ao tratar da saída feminina, Freud logo se adianta a dizer que "o nosso
material se torna – incompreensivelmente – muito mais obscuro e lacunar" (p. 252). Entretanto,
dá continuidade ao seu pensamento apontando que, para a menina, o clitóris seria
compreendido, de início, como um pequeno pênis quando comparado ao do menino, de modo
que ela se percebe inferiorizada e prejudicada em relação a ele, havendo um consolo temporário
a partir da esperança de que seu órgão, um dia, será do mesmo tamanho daquele pertencente ao
menino.
33
e um enfraquecimento da terna relação de objeto com a mãe, uma vez que essa seria vista, pela
menina, como culpada pela falta do pênis.
Ademais, há o destaque para uma consequência que, na perspectiva de Freud, seria a
mais significativa e que, em suma, é resumida pelo abandono da masturbação na menina e o
consequente desenrolar de sua feminilidade. Para o autor, apesar do conhecimento de que as
reações dos indivíduos compartilham traços tanto femininos quanto masculinos, a natureza
feminina se encontraria mais distante da masturbação, de modo que essa poderia ser
compreendida como uma atividade masculina e, com isso, sua renúncia seria uma das condições
para o desenvolvimento da feminilidade. Sendo assim, Freud afirma que a menina perceberia a
impossibilidade de competir com o menino no que tange ao desejo de ter o pênis e abandonaria
a manipulação do clitóris como um afastamento da masculinidade:
[...] a ofensa narcísica ligada à inveja do pênis poderia ser a advertência de que nesse
ponto ela não pode, de fato, competir com o menino e que seria melhor abandonar a
concorrência com ele. Desse modo, o conhecimento da diferença anatômica entre os
sexos força a menininha a afastar-se da masculinidade e do onanismo masculino por
novas vias, que levam ao desdobramento da feminilidade” (FREUD, [1925] 2020, p.
268).
Muitas das contribuições teóricas deste artigo são retomadas e reafirmadas em Sobre a
sexualidade feminina ([1931] 2020), texto no qual Freud inclui um novo elemento para a
compreensão da feminilidade: a relação pré-edípica entre a mãe e a filha. Com isso, inicia
destacando que o desenvolvimento da sexualidade feminina implicaria a renúncia do clitóris e
sua consequente substituição pela vagina e o abandono da mãe como objeto de amor, enquanto
o pai passa a ocupar tal posição. Sobre este último ponto, diz que a experiência de análise com
mulheres evidenciou que a relação pré-edípica com a mãe seria caracterizada por uma ligação
intensa e que essa fase teria perdurado por mais tempo do que ele havia imaginado. Antes de
desenvolver suas elucidações sobre o tema, cabe ressaltar um apontamento de Freud que se
encontra na possibilidade de que a fase pré-edípica com a mãe teria uma íntima relação com a
etiologia da histeria, o que não o surpreende, uma vez que tanto essa fase quanto essa neurose
pertenceriam ao “caráter singular da feminilidade” (p. 288).
Ao retomar os efeitos do complexo de castração na mulher, Freud destaca três caminhos
de desenvolvimento: 1) a menina pode desistir de sua atividade masculina, abandonando a
sexualidade de modo geral; ou 2) ela se recusa a aceitar que não pode possuir o pênis, nutrindo
a esperança de que um dia possa voltar a tê-lo; ou, por fim, 3) ela pode substituir a mãe como
objeto de amor pelo pai, direcionando as ligações afetivas estabelecidas na fase pré-edípica para
a relação edípica. Para o autor, esse último caminho seria o único que levaria ao
desenvolvimento da feminilidade propriamente dita, evidenciando a relevância da relação
anterior estabelecida com a mãe, uma vez que muitos dos fenômenos da vida sexual feminina
remeteriam a essa fase.
A partir disso, Freud chama a atenção para os motivos e mecanismos que propiciariam
o afastamento da mãe como objeto de amor da menina. Entre eles, haveria o ciúme da mãe nas
relações que esta estabelece com outras pessoas, como um irmãozinho e o pai; a proibição que
a mãe pode efetuar na atividade masturbatória, de modo que se produz um rancor voltado à sua
figura; a desvalorização da feminilidade e, com isso, da mãe, a partir da compreensão da
generalidade da castração nas mulheres; e, por fim, o principal motivo estaria na recriminação
da mãe na medida em que esta seria responsável pela sua falta de pênis, por ter lhe trazido ao
mundo como uma mulher. Essa ambivalência que caracteriza a relação com a mãe, na qual há
um amor intenso e também um ódio voltado à sua figura, também é suposta por Freud como
um dos fatores para o próprio afastamento.
36
Um outro ponto destacado por Freud no artigo concerne às metas sexuais da menina em
relação à mãe, as quais possuiriam natureza tanto ativa quanto passiva e seriam determinadas
pela fases da libido. Com isso, durante as fases oral, sádica e fálica, houveram moções passivas
e ativas voltadas à sua figura; entretanto, no desenvolvimento da sexualidade feminina, as
moções sexuais ativas são rebaixadas enquanto as passivas se sobressaem, auxiliando na
substituição da mãe como objeto de amor pelo pai. Por fim, ao fazer uma breve comparação
com o direcionamento dessas mesmas moções no menino, as quais percorrem o mesmo
caminho por determinado período, afirma que “[...] são, então, fatores biológicos que as
desviam de suas metas iniciais, inclusive conduzindo os anseios ativos e, em todo sentido,
masculinos, para os trilhamentos da feminilidade” (FREUD, [1931] 2020, p. 303).
Em A feminilidade ([1933] 2020), Freud, já no início do texto, afirma que “sobre o
enigma da feminilidade, ruminaram os seres humanos de todos os tempos [...]” (p. 314),
apontando para a obscuridade, ou melhor, para o furo que tem permeado a compreensão deste
tema. O escrito, em sua maior parte, retoma tudo aquilo que fora elucidado no artigo Sobre a
sexualidade feminina ([1931] 2020), de modo que cabe ressaltar aqui os pontos que não foram
abordados explicitamente por ele no anterior.
Com isso, destaca-se a afirmação de que aquilo que constitui a masculinidade e a
feminilidade não se encontra na anatomia, se apresentando como um questionamento cuja
resposta é desconhecida. E, com relação à caracterização psicológica de uma suposta
preferência por metas passivas na mulher, as quais podem ser significativas ou discretas de
acordo com as limitações do modelo de vida sexual, Freud ([1933] 2020) chama a atenção para
a relevância do âmbito social, ao salientar que
[...] devemos, contudo, atentar para que a influência das normas sociais não seja
subestimada, normas que, de forma semelhante, forçam a mulher para situações
passivas [...] A repressão à sua agressividade, que é prescrita constitucionalmente e
imposta à mulher socialmente, favorece a formação de intensas moções masoquistas,
que conseguem vincular eroticamente as tendências destrutivas voltadas para dentro
[...] (p. 317-318).
libido, que está a serviço tanto da função sexual masculina quanto da feminina” (p. 337), de
modo que a força pulsional da vida sexual é a mesma para todos os seres humanos.
[...] na relação dos desejos sexuados, a falta fálica da mulher vê-se convertida no
benefício de ser o falo, isto é, aquilo que falta ao Outro. Esse ‘ser o falo’ designa a
mulher como aquela que, na relação sexuada, é convocada ao lugar de objeto (SOLER,
2005, p. 28-29).
Desse modo, no que se refere ao terreno dessa parceria, há uma “dissimetria”, nas
palavras de Soler (2005); ou seja, no que perpassa o semblante fálico, há uma distinção entre o
masculino e o feminino: o homem se apresenta como desejante enquanto a mulher se molda
como desejável. Com isso, no par sexual, a mulher não ocupa a posição de sujeito desejante,
mas se mascara com aquilo que faz o homem, o Outro, desejar. Desse modo, a mascarada
feminina consistiria em um despertar o desejo do parceiro ostentando sua falta ou encarnando
o significante desta, o falo (RIBEIRO, 2011a).
Cabe ressaltar que essa primeira dissimetria, segundo Soler (2005), desemboca em uma
outra. O consentimento da mulher em ocupar a posição de desejada poderia ser atribuído à
fetichização do órgão masculino pelo significante fálico. Assim, a mulher se relaciona com o
homem na medida em que este é castrado, enquanto o homem, relacionando-se com a parceira
através da fantasia e situando-a como objeto a, causa de seu desejo, posiciona a mulher no lugar
do Outro absoluto.
Retomando o entendimento da mulher enquanto falo, é relevante destacar que este pode
ser concebido como um dos responsáveis pela confusão que comumente se faz da feminilidade
com a histeria, repercutindo em afirmações de que toda mulher seria histérica, uma vez que,
além de sua referência flexionada no feminino, ambas almejam ser o falo. Entretanto, há uma
distinção entre a identificação com o falo, uma dentre outras que constituem a histeria, e a
posição de falo na qual a mulher está situada na relação sexual, encontrando-se como objeto
em referência ao desejo masculino, complementar à falta fálica do homem.
39
Ao visar ser o falo do Outro, a histérica advém como aquilo que o falta, ou seja, toma
como referência o desejo do Outro, buscando deixá-lo insatisfeito. Por outro lado, a mulher tem
como referência o gozo, caracterizando-se por um querer gozar, ao invés de um querer ser, e
um querer fazer o Outro gozar, já que este último vem como causa de seu desejo (SOLER,
2005). No entanto, cabe ressaltar que essa proposta de gozo ao Outro não se relaciona com o
gozo Outro da mulher, suplementar, já citado e que será elucidado posteriormente no presente
trabalho.
Outra diferenciação que pode ser atribuída à histérica e à mulher se refere a uma
elaboração desenvolvida posteriormente por Lacan que ao invés de se referir à diferença sexual
pela questão fálica, o faz pelo sintoma: ter ou ser sintoma. Nesse sentido, uma vez que a mulher
ocupa a posição de sintoma do homem, ela se diferencia da histérica, visto que enquanto a
última se identifica ao falo, o qual remete ao âmbito da falta, o sintoma alude ao gozo; enquanto
a mulher é o sintoma, a histérica revela um interesse por este.
Sobre a aproximação entre feminilidade e histeria, conclui-se então que
[...] podemos compreender por que a histeria se presta a uma confusão com a posição
feminina, e por que é mais frequente nas mulheres. A feminilidade implica a relação
com o Outro, o homem, para se realizar como sintoma. O fato de ela acentuar o ‘fazer
gozar’ [...] não impede o ‘fazer desejar’ que é condição dele. Daí [...] a acentuação do
núcleo histérico nas mulheres. A histérica passa pela mesma mediação do Outro, mas
com fins diferentes, e não para se realizar como seu sintoma (SOLER, 2005, p. 55).
isso, a perda do amor, através do qual ela pode se referenciar, indica, em última instância, a
perda de si mesma, decorrendo daí seu traço melancólico.
Entretanto, cabe ressaltar que a concepção de mulher enquanto aquela que ocupa a
posição de falo, de objeto causa do desejo e de sintoma do homem, na identidade sexuada, é
válida somente enquanto esta se insere no par sexual, ou seja, enquanto se configura como uma
mulher em sua relação com um homem. Desse modo, essa compreensão lacaniana de
feminilidade constitui-se pela mediação do masculino, detendo-se à mulher enquanto parceira
na relação sexual. Por consequência, esse entendimento deixa em suspenso a questão de seu
desejo e do que ela é para além de sua referência ao homem. Frente a este questionamento,
referente à indagação freudiana sobre o que quer a mulher, Soler (2005) responde:
Aí está, portanto, a resposta à famosa pergunta [...] um desejo bem alheio a qualquer
busca do ter, e que tampouco é a aspiração a ser que é a demanda de amor. Ela se
define como o equivalente, se não de uma vontade, pelo menos de uma visada de
gozo. Mas trata-se de um gozo específico, que se excetua do caráter ‘discreto’ e,
portanto, limitado do gozo propriamente fálico (p. 36).
É neste ponto que, direcionando-se para uma possibilidade que transcorre para além do
referencial fálico, cabe situar as parcerias de gozo que a mulher estabelece enquanto
posicionada no sexo, as quais foram precisamente elucidadas por Lacan em suas fórmulas da
sexuação no seminário Mais, ainda ([1972-1973] 2008). Para explicitá-las, ele apresenta as
seguintes tábuas:
Conforme demonstra o esquema, encontram-se dois lados na definição dos sexos: o lado
homem, à esquerda, e o lado mulher, à direita. Estes não se referem à definição biológica de
masculino e de feminino, mas indicam as diferentes formas pelas quais os sujeitos situados de
41
um lado ou de outro se dividem pela linguagem (FINK, 1998). Com relação àqueles que se
encontram no lado homem, há duas funções localizadas na parte superior do quadro, sendo que
aquela situada na parte inferior, ∀x𝚽x, “[...] indica que é pela função fálica que o homem como
todo toma inscrição [...]” (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 85), podendo ser lida como “todo x
(∀x) está submetido à função fálica (𝚽x)”. Desse modo, compreende-se que os homens
representam os sujeitos que são totalmente regidos pela norma fálica, ou seja, todos os homens
são submetidos à castração.
Conforme explicita Melman (2004), estando todos estes referenciados ao falo, tais
sujeitos são passíveis de serem agrupados em um conjunto: “homens”; o qual, como qualquer
conjunto, se define por uma exceção, ou seja, por aquilo que não pertence ao agrupamento e
que, por essa razão, o caracteriza. Encontrando-se no lado masculino, a exceção, o ao-menos-
um, é representado pelo mítico pai da horda primitiva, demonstrado por Freud em Totem e Tabu
([1912-1913] 2012). Este não está submetido à castração e nem à lei da interdição do incesto e,
por isso, faz limite com seus descendentes castrados, referenciados pela função fálica, sendo
___
representado pela fórmula localizada na parte superior, ∃x𝚽x, que pode ser lida como “existe
___
um x (∃x) que nega a função fálica (𝚽x)”.
Ainda na estrutura masculina, no âmbito inferior do esquema, Lacan ([1972-1973]
2008) explica:
[...] inscrevi aqui, não certamente para privilegiá-lo de modo algum, o $, e o 𝚽 que o
suporta como significante, o que bem se encarna também no S1, que é, entre todos os
significantes, esse significante do qual não há significado, e que, quanto ao sentido,
simboliza seu fracasso. [...] esse $ só tem a ver, enquanto parceiro, com o objeto a
inscrito do outro lado da barra. Só lhe é dado atingir seu parceiro sexual, que é o Outro,
por intermédio disto, de ele ser a causa de seu desejo. [...] isto não é outra coisa senão
a fantasia (p. 86).
Com isso, compreende-se que, com exceção do pai originário, os homens não gozam de
seus parceiros em si, mas somente do objeto a, através da fantasia, sendo a mulher apenas um
suporte, uma encarnação deste objeto a que é a causa do desejo e parceiro de gozo do homem.
Por sua vez, no lado feminino há outras duas funções localizadas no setor superior.
___ ___
Através daquela expressada por ∀x𝚽x, lida como “não todo x (∀x) está submetido ou
referenciado à função fálica (𝚽x)”, compreende-se que não toda pessoa inscrita deste lado é
determinada pela função fálica, logo não toda mulher está sujeita à castração. Nas palavras de
Lacan ([1972-1973] 2008):
42
[...] quando um ser falante qualquer se alinha sob a bandeira das mulheres, isto se dá
a partir de que ele se funda por ser não-todo a se situar na função fálica. É isto que
define... a o quê? – a mulher justamente, só que A mulher, isto só se pode escrever
barrando-se o A. Não há A mulher, artigo definido para designar o universal. Não há
A mulher pois [...] por sua essência ela não é toda (p. 78-79).
O falo aponta para o fato de que a mulher está necessariamente em relação com 𝚽
como significante do desejo, colocado – de acordo com Fink – ao lado do homem
apenas para demonstrar que, em geral, em nossa cultura, este gozo fálico é obtido com
base em uma instância tida como masculina (p. 50).
Já a parceria com o S(Ⱥ) está associada ao chamado gozo específico da mulher, a saber,
aquele que Lacan ([1972-1973] 2008) denomina suplementar – uma vez que, caso fosse
chamado de complementar, encontrar-se-ia no âmbito do todo. Este gozo, também chamado de
gozo do Outro por estar foracluído do simbólico, por permanecer opaco e indizível, por
configurar “[...] um Outro que é o impedimento no gozo masculino” (AMBRA, 2013, p. 50), é
o gozo furtado pela feminilidade (SOLER, 2005).
Sobre este gozo, Lacan ([1972-1973] 2008) diz que talvez a mulher “[...] não saiba nada
a não ser que o experimenta [...] Ela sabe disso, certamente, quando isso acontece. Isso não
acontece a elas todas” (p. 80); demonstrando, assim, o caráter avassalador deste gozo que não
é limitado e localizado tal qual o gozo fálico, mas que se soma a esse último, ultrapassando a
43
mulher que o experimenta. Como exemplo, cita as jaculações místicas como a observada na
imagem de Santa Tereza:
[...] basta que vocês vão olhar em Roma a estátua de Bernini para compreenderem
logo que ela está gozando, não há dúvida. E do que é que ela goza? É claro que o
testemunho essencial dos místicos é justamente o de dizer que eles o experimentam,
mas não sabem nada dele (LACAN, [1972-1973] 2008, p. 82).
É este gozo suplementar que, por ser radicalmente Outro, aproxima-a de Deus e do real,
e também faz da mulher o Outro absoluto para o homem e Outra para ela mesma, visto que seu
gozo está para além daquele acessado pelos sujeitos inscritos no lado masculino e que, por ser
indizível, não possibilita uma definição para a mulher, algo a que possa se referenciar. É
partindo dessa alteridade que Lacan ([1972] 2003) chama de “[...] heterossexual, por definição,
aquele que ama as mulheres, qualquer que seja seu sexo próprio” (p. 467). Nesse sentido, Fink
(1998) reitera:
O pouco que Lacan afirma diretamente sobre S(Ⱥ) propõe que o gozo do Outro,
simbolizado por este, tem a ver com a radicalidade ou alteridade absoluta do Outro
[...] O Outro não é apenas um exterior relativo a um interior específico, determinado;
ele é sempre e inescapavelmente Outro, ‘exterior’ a todo e qualquer sistema (p. 149).
A partir disso, entende-se a não existência da relação sexual proposta por Lacan e já
notada por Freud, uma vez que não haveria complementaridade tanto nas definições de sexo
quanto nas relações de gozo do homem e da mulher. Enquanto o homem se relaciona com o
objeto a, a mulher se relaciona com o falo, podendo o homem servir como seu suporte,
corporificando-o; e havendo, para além deste, a possibilidade de se relacionar com um Outro
parceiro, que se traduz pelo acesso ao gozo específico da posição feminina.
Esse gozo, conforme já citado anteriormente, encontra-se foracluído do simbólico, fora
do inconsciente, sendo “o gozo real que se oculta por definição” (SOLER, 2005, p. 38). Essa
possível aproximação da feminilidade com o registro do real também é encontrada em um
apontamento realizado por Fink (1998) sobre a composição das tábuas da sexuação, no qual o
autor destaca a relação entre os elementos encontrados no lado masculino com o campo do
simbólico, enquanto aqueles que constituem o lado feminino remetem ao campo do real.
Nesse rumo, Ribeiro (2011a) faz um questionamento relevante acerca da estrutura
obsessiva na mulher, uma vez que, estando próxima ao real no que toca à posição feminina,
apresenta-se válida a interrogação sobre essa mulher que se encontra tão fixada ao significante,
ao pai, ao falo. Tendo isso em vista, quais seriam os desdobramentos de uma neurose obsessiva
44
atravessada pelo não-todo fálico, pelo acesso ao gozo do Outro, pelo indizível que desvela o
furo da feminilidade?
45
Em seu livro A neurose obsessiva no feminino (2019), Elisa Alvarenga aponta para as
diferentes perspectivas na psicanálise acerca das mulheres obsessivas. Nesse sentido, enquanto
algumas se demonstram radicais em identificar histeria à feminilidade, outras salientam a
delicada margem que diferencia uma mulher obsessiva de casos graves de psicose, reforçando
a importância de um cuidadoso diagnóstico diferencial. Para além dessas concepções, há
também aquelas que compreendem a neurose obsessiva feminina como uma resposta
sintomática frente ao confronto da mulher com o seu ser, sua identidade, sua posição no desejo
do Outro.
Apesar de se encontrar mais alinhada a essa última perspectiva, a autora ressalta a
necessidade de se diferenciar os casos nos quais sintomas obsessivos recobrem algo de uma
estrutura histérica, referindo-se à maioria das pacientes de Freud que apresentavam este tipo de
sintoma, daqueles casos nos quais se sobressai a estratégia obsessiva de anulação do Outro e de
seu desejo e, além destes, daqueles outros que se referem a algo do caráter obsessivo que,
aproximado à estrutura da fantasia, permanece como um resto de sua travessia.
Ao adentrar, primeiramente, na temática de mulheres com sintomas obsessivos, a autora
não parece se ater tão fortemente à noção de estrutura clínica, ou seja, à uma leitura norteada
pelos termos de estrutura obsessiva ou histérica, para desenvolver sua tese. Mas, adotando um
rumo diferente, orienta-se por uma concepção de neurose obsessiva a partir da qual esta se
46
[...] os sujeitos se identificam e se coletivizam sob certos S1, que nomeiam modos de
gozo sob os quais sujeitos histéricos, divididos, se alojam, identificando-se a um traço
que tampa a sua divisão subjetiva e lhes impõe diversas formas de compulsão:
amorosa, toxicômana, alimentar, para comprar, endividar-se, etc. O imperativo de
gozo leva a novas formas sintomáticas que podem ser pensadas como novas roupagens
para a neurose (p. 27)
Desse modo, a autora chama a atenção para uma clínica para além daquela elaborada
por Freud e desenvolvida no primeiro ensino de Lacan, a qual se orientava pela decifração do
sintoma em seu caráter metafórico, pela associação entre um significante e outro.
Aproximando-se das ideias sustentadas ao fim do ensino de Lacan, reitera uma clínica voltada
para o uso do sintoma, na medida em que este opera em uma amarração do gozo, atuando,
assim, como algo que recobre e veste a neurose, sobrepondo-se a esta.
Para além das exigências do contexto atual, Alvarenga (2019) também destaca a
relevância do uso do sintoma, que não necessariamente se associa à estrutura do sujeito, para o
caso de certas mulheres, como o de uma das pacientes de Freud apresentadas na conferência O
sentido dos sintomas ([1917] 2014), nos quais se aponta o desencadeamento tardio de uma
neurose obsessiva “[...] por ocasião de momentos cruciais da história da neurose em uma
mulher” (ALVARENGA, 2019, p. 29).
Este caso relatado por Freud se refere, de modo geral, a uma mulher de quase trinta anos
que apresenta um ritual obsessivo, repetindo-o diversas vezes ao dia. Seu ritual consiste em sair
de seu quarto, postar-se diante de uma mesa coberta por uma toalha manchada, chamar a
47
[...] se inscreve no oposto do ato de uma verdadeira mulher, aquela que, tal Medeia
ou Madeleine, desfaliciza ao máximo seu parceiro dando um golpe mortal no seu ter.
A obsessiva não sacrifica seu objeto patológico, ela se agarra a ele. Ela se agarra a seu
único e insubstituível marido, a ponto de sediar-se aí (p. 38).
48
Desse modo, o que se destaca neste caso de neurose obsessiva feminina é o uso que a
mulher pode fazer dos sintomas obsessivos como um instrumento para lidar com as questões
concernentes à sua feminilidade. Essa paciente, cuja neurose obsessiva fora desencadeada
tardiamente em função de uma situação que desestabilizou sua referência pelas vias de seu
parceiro, utiliza o ato obsessivo para assegurar seu ser fálico no par sexual e para evitar a
absorção e esmagamento pelo furo do Outro, por seu outro parceiro que não lhe oferece um
nome: S(Ⱥ).
Conforme reiterado por Solano-Suarez (1993 apud ALVARENGA, 2019), a obsessiva
convoca a empregada como a Outra mulher não para interrogá-la sobre os enigmas da
feminilidade, como demonstra a estratégia histérica, mas para situá-la na posição de Outro que
testemunharia a potência do marido e, com isso, sua posição no desejo do parceiro, indicados
pela mancha. Além disso, enquanto o ato de uma verdadeira mulher – que se assemelha à
estratégia feminina utilizada pela histérica – visaria desvelar a falta do parceiro, o ato da
obsessiva evidencia a lealdade com que ela se propõe a garantir a potência fálica do homem, de
modo a tamponar sua falta. É o que aponta Ribeiro (2011a) ao sublinhar que, enquanto a
histérica almeja denunciar a impotência do pai em dar à mulher um significante que contenha
o seu gozo, de modo que escancara a falha do homem, a obsessiva acredita em uma salvação
proveniente do pai e, nesse sentido, busca sustentar o homem ideal.
Para além da paciente obsessiva de Freud, Alvarenga (2019) ressalta também um
famoso caso de neurose obsessiva feminina que fora analisado por Maurice Bouvet no artigo,
de 1950, denominado Incidências terapêuticas da conscientização da inveja do pênis na
neurose obsessiva. Lacan, no seminário As formações do inconsciente ([1957-1958] 1999),
destaca a relevância deste trabalho, considerando a raridade de observações como esta a respeito
da neurose obsessiva na mulher. Sobre o caso, trata-se de uma mulher de cinquenta anos, mãe
de dois filhos, que busca a análise a partir da manifestação de obsessões como, por exemplo, a
de haver contraído sífilis, outras de cunho infanticida – através da qual a paciente é levada a
interditar o casamento do filho mais velho – e, recebendo destaque por parte do analista,
obsessões de temática religiosa.
Enquanto católica, tendo recebido tal educação religiosa por intermédio da mãe, a
paciente se vê atormentada por obsessões permeadas por blasfêmias, como uma que associa a
hóstia ao órgão sexual masculino e outra na qual, ao olhar quatro crucifixos enquanto passava
em frente a uma funerária, tem a sensação de estar andando sobre o pênis de Cristo com um
salto alto. Apesar de seus sintomas terem se iniciado a partir do casamento e haverem se
49
ao lhe entregar uma resposta que tampona o intervalo significante no qual se situa o seu desejo:
ela quer o falo. Desse modo, Alvarenga (2019) aponta, a partir da paciente de Bouvet, para os
casos de neurose obsessiva feminina nos quais se sobressai a estratégia mesma desta neurose
em relação ao Outro, a saber, a destruição obsessiva. Conforme reiterado pela autora:
Nesse sentido, é possível contrapor casos como este àqueles em que, como demonstra a
paciente de Freud, há um destaque para o uso do sintoma obsessivo como instrumento frente
aos impasses próprios da feminilidade. Enquanto este último se refere a uma neurose
desencadeada tardiamente diante da impotência sexual de um homem, a partir da qual é retirada
a possibilidade de uma mulher se referenciar pelo seu desejo, observa-se no caso de Bouvet o
enfoque da estratégia obsessiva enquanto aquilo que refletiria essa estrutura neurótica, tendo
suas manifestações datadas, assim como no caso do Homem dos Ratos, da infância da paciente.
Entretanto, para além destes casos de neurose obsessiva feminina nos quais há um
destaque para o uso do sintoma ou para a estratégia de anulação do desejo, Alvarenga (2019)
também aponta para aqueles nos quais se sobressai o caráter obsessivo da mulher, como aquilo
que permanece mesmo após o desaparecimento dos sintomas. Para isso, retoma dois casos
clínicos de Helen Deutsch (1992a; 1992b apud ALVARENGA, 2019), em que o desejo de
morte e a vivência de perda de um objeto de amor atravessam a neurose obsessiva feminina.
O primeiro deles se refere a uma mulher cuja sintomatologia grave evocava a
possibilidade de uma psicose: a paciente, paralisada no leito, com as pernas fechadas e as mãos
estáticas e distantes do corpo, não permitia que fosse tocada devido a uma obsessão com o risco
de contaminação por sujeira, havendo também desenvolvido atos compulsivos por lavagens.
Entretanto, no período da infância, a paciente parecia se comportar de modo oposto àquilo que
caracteriza seus atuais sintomas de limpeza: até os doze anos de idade demonstrava um interesse
específico por fezes, sentindo prazer pelo ato de defecação, e não tinha o hábito de se lavar.
Além disso, nessa época, costumava importunar seus irmãos mais novos e ser cruel em
brincadeiras com outras crianças. Após essa idade, há uma radical transformação em seu
caráter, de modo que a paciente se apresenta extremamente meticulosa; no entanto, é somente
aos dezessete anos, a partir do falecimento de seu pai, que a neurose se deixa evidenciar com
seus sintomas. Com isso, opondo-se aos seus comportamentos de se sujar, a paciente se torna
51
Desse modo, compreende-se que a leitura realizada por Alvarenga (2019) reflete não
uma, mas diferentes possibilidades para a compreensão da neurose obsessiva feminina.
Enquanto algumas mulheres são concebidas como obsessivas na medida em que buscam
responder às demandas da feminilidade através de sintomas obsessivos, a estrutura obsessiva,
propriamente dita, em uma mulher se revela por meio da estratégia que visa a anulação do
5
Noção atualizada de sujeito empreendida por Lacan a partir da conceitualização de um inconsciente Real. Lugar
não mais da ficção de sentido, mas que comporta lalíngua, ordem precedente à linguagem e que remeteria aos
dizeres mais particulares de cada um.
53
desejo do Outro e de seu próprio desejo. Conforme demonstra o caso de Bouvet, a paciente
buscava constantemente reduzir o desejo à demanda, degradar o falo simbólico – significante
do desejo – em falo imaginário – representante de potência e poder –; sendo um paradigma, tal
qual o caso do Homem dos Ratos, de uma estrutura obsessiva. E, por fim, entende-se o caráter
obsessivo como um resto para certas mulheres que, atravessando a fantasia fálica e a estratégia
de degradação do desejo do Outro, lidaram com o excesso de gozo que sempre esteve presente
e acessível a elas enquanto situadas no lado feminino.
durante a noite, a paciente desliga todos os relógios da casa, incluindo aqueles que não emitem
barulho algum, e posiciona todos os vasos em sua mesa para que não haja risco de caírem; o
que se contrapõe à necessidade que a jovem possui de manter abertas as portas de seu quarto e
do quarto de seus pais, uma vez que estes últimos poderiam despertá-la com algum som. Além
disso, para dormir, o travesseiro não deve encostar na cabeceira e a cabeça da jovem deve
repousar em um pequeno travesseiro que ela posiciona em uma cavidade que é feita no maior.
Durante a análise, os componentes do ritual são interpretados pela paciente. A questão
referente aos relógios é remetida ao âmbito sexual, sendo o marcar exato das horas associado
às regras femininas e o som emitido pelo relógio relacionado ao pulsar excitado do clitóris, o
qual já acordara a paciente de seu sono algumas vezes e fora sentido com desprazer. Do mesmo
modo, o risco de que os vasos fossem quebrados é associado, a partir de uma experiência infantil
que envolvia um sangramento por ocasião de uma jarra quebrada, à ideia obsessiva que a jovem
possuía de não sangrar na noite de núpcias. Além disso, o ato de se deitar no travesseiro menor,
tampando a cavidade produzida no maior – este último associado à mãe e, mais
especificamente, ao formato do genital feminino –, remeteria à tentativa realizada pela paciente
de substituição, com sua cabeça, do membro viril; bancando, desse modo, o pai.
Essa falicização da cabeça e um certo temor do âmbito sexual também é evidenciado no
outro caso de uma jovem obsessiva relatado por Ribeiro (2011a) e que é proveniente de sua
própria clínica. A autora conta que se trata de uma paciente que, descrita pela mãe como “uma
cabecinha de ouro” (p. 84), é uma ótima aluna que estuda obsessivamente. Para além da
obsessão com o estudo, apresenta também, assim como a paciente de Freud, sintomas de dúvida,
rituais para dormir e questões com relógios. Sobre este último elemento, observa-se que a jovem
dispõe de dois relógios para demarcar o tempo necessário à sua tarefa, os quais, no entanto,
esquece de consultar, delongando-se em sua atividade e se autorrecriminando por isso; o que
possibilita, aqui, uma associação com a procrastinação típica dos obsessivos.
Por sua vez, o temor relacionado ao âmbito sexual, referente ao gozo excessivo, é
evidenciado neste caso a partir de uma compulsão a se atirar pela janela. Segundo Ribeiro
(2011a), essa compulsão já havia sido decifrada por Freud como um importante elemento da
neurose obsessiva feminina, sendo demonstrada por uma de suas pacientes obsessivas no artigo
As neuropsicoses de defesa ([1894b] 1986). No caso da analisanda da autora, a ideia obsessiva
de pular da janela emerge pela primeira vez quando a jovem está se preparando para estudar e,
ao olhar para a praia pela janela de seu apartamento, lhe ocorre que, ao longe, todos parecem
nus; ideia que lhe provoca angústia intensa e a partir da qual surge a ideia obsessiva relacionada
55
à janela. A compreensão desta última é construída, em análise, a partir da relação com um temor
de engravidar que a paciente revela apresentar, sendo o “atirar-se da janela” compreendido por
Ribeiro (2011a) como uma substituição da ideia de estar nua na praia, relacionando-se
sexualmente com os outros indivíduos nus.
Com isso, torna-se evidente que, em ambos os casos, o que se observa na mulher
obsessiva é um temor frente ao gozo excessivo e que, enquanto o primeiro caso revela uma
defesa por meio de rituais obsessivos, o que se sobressai, no último caso, é o combate do gozo
através da transformação da fantasia sexual em uma ideia obsessiva de ameaça de morte. Sendo
assim, verifica-se que a típica aproximação entre extremos na neurose obsessiva emerge, aqui,
entrelaçada às questões da feminilidade, produzindo uma peculiaridade da neurose obsessiva
feminina:
[...] as oscilações do obsessivo entre o ouro e a merda, entre o tudo ou nada, ganham,
no caso das mulheres, uma conotação particular. A dor de existir própria da mulher
aparece sob uma máscara extremamente trágica, por vezes, na neurose obsessiva,
levando à confusão com a melancolia se esquecermos a referência à estrutura e nos
ativermos apenas ao fenômeno (RIBEIRO, 2011a, p. 88)
que se refere ao fálico e não ao gozo suplementar, só lhe é possível enquanto ela se valeria do
uso da mascarada feminina.
Nesse sentido, articulando a máscara como aquilo que a mulher utilizaria para tocar em
sua feminilidade, a autora salienta que, enquanto a interrogação sobre o ser mulher perpassa a
histeria, de modo que a pergunta nunca encontra sua resposta, a obsessiva encerra a questão
afirmando que uma mulher é a mulher de um homem. Compreendem-se, assim, os casos de
neurose obsessiva feminina demonstrados até o momento, como o da paciente da toalha
retomada por Alvarenga (2019), nos quais se verifica o empenho de certas mulheres em sua
tentativa de sustentar o Outro, garantindo sua potência enquanto vela sua falta.
Contrapondo o uso da máscara pela histérica e pela obsessiva, Ribeiro (2011a) retoma
o caso da “cabecinha de ouro”, destacando uma passagem na qual a paciente dizia que não vai
à praia por se achar feia, identificando-se com uma “tábua”, e outros momentos em que a jovem
compartilha suas técnicas para fugir dos meninos. Segundo a autora, a jovem lidava de maneira
peculiar com os instrumentos da mascarada feminina. Dizendo-se feia, uma “tábua”, a paciente
se vestia com o uniforme “jeans e camiseta”, no entanto, a cada escolha, era assaltada por
intensas dúvidas e hesitações, principalmente diante de festas, frente as quais a situação tomava
proporções dramáticas. Sendo assim, Ribeiro (2011a) aponta que, enquanto uma histérica
revelaria a insatisfação com relação às suas roupas, de modo que nenhuma lhe serviria, para
essa adolescente obsessiva o tormento se referia à impossibilidade de escolher, entre dúvidas e
incertezas, uma roupa para se apresentar e se mascarar aos olhos do Outro, produzindo intenso
sofrimento e culminando na desistência de ir à festa. Com isso, a autora reitera:
As vestimentas, os véus que recobrem o vazio d’mulher são, também para a mulher
obsessiva, um tormento. Digo também, pois que para as histéricas eles o são de outra
forma, porém na mesma intensidade. Saber-se presa ao artifício da máscara leva as
mulheres aos mais curiosos extremos (RIBEIRO, 2011a, p. 122).
Nesse sentido, a máscara, assim como os sintomas obsessivos destacados por Alvarenga
(2019), emerge como um instrumento utilizado pela mulher para lidar com as questões
concernentes à sua feminilidade, a qual não lhe confere uma especificidade que lhe definiria
em seu ser. No entanto, aqui, o uso da máscara como aquilo que a mulher se vale para caminhar
no terreno fálico, na parceria sexual, se entrelaça com âmbito da estrutura clínica, seja da
histérica ou da obsessiva. No caso desta última, conforme salienta Ribeiro (2011a), a estratégia
obsessiva de manter o desejo na ordem do impossível faz com que a jovem não consiga realizar
uma escolha referente à máscara utilizada para se portar frente ao Outro, demonstrando que o
57
sofrimento que subjaz a mulher em sua mascarada recebe traços particulares na medida em que
toca a neurose obsessiva.
Neste ponto, o caso de Bouvet também é retomado pela autora, que destaca a fixação
da paciente por sapatos enquanto indicativa da relação da mulher com os apetrechos da
mascarada e com o falo. Desse modo, compreendendo os sapatos como aquilo que, tal como a
máscara, vestiria a mulher com o que ele evoca de feminilidade, Ribeiro (2011a) também chama
a atenção para associação dos calçados com o falo, significante do desejo, conforme é possível
observar na atitude da paciente de Bouvet frente aos homens. A mulher, que dizia se comprazer
ao provocar o desejo dos homens à sua volta somente para frustrá-lo, uma vez que estes sujeitos
não a possuem como parceira sexual, aponta os sapatos como um dos apetrechos que a
compõem como desejável. Nesse sentido, a autora destaca que, a partir dos sapatos, a mulher
constitui sua aparência de falo, apresentando-se como aquilo que o Outro desejaria e, logo em
seguida, frustrando-o. Desse modo, ressalta-se que, neste caso de neurose obsessiva feminina,
a mulher se mascara encarnando o significante do desejo; desejo este que, conforme apontado
por Alvarenga (2019), é mantido, pelo próprio ato de frustrá-lo, na ordem do impossível.
Tratando da clínica da neurose obsessiva feminina, Ribeiro (2011a) também evoca uma
particularidade que se encontra presente no caso de Bouvet assim como em outros casos de
pacientes obsessivas relatados por Freud: a obsessão filicida. Partindo de um caso freudiano no
qual uma paciente sofria de uma ideia obsessiva de esfaquear o único filho, a autora aponta que
sintomas como este podem apresentar variações na clínica, remetendo à relação mãe-filho.
Sendo assim, a obsessão filicida pode se traduzir em uma preocupação excessiva com relação
a segurança do filho, a partir da ideia obsessiva de que ele possa ser vítima de uma tragédia ou
de que, caso não haja um pensamento obsessivo concebendo a morte do filho, este realmente
morrerá. Outra variação da obsessão filicida na clínica se encontraria em uma cautela demasiada
com a saúde física do filho, de modo que a mãe passa a administrar medicações desnecessárias
ao filho, podendo induzir um adoecimento real àquele que fica como objeto dos cuidados
maternos.
Contudo, segundo a autora, há um aspecto que subjaz em todos os casos de neurose
obsessiva feminina nos quais se evidenciam este sintoma e que se refere à privação sexual da
paciente obsessiva em sua vida conjugal, como consequência da perda do interesse sexual por
parte dos maridos em relação às esposas. Nesse sentido, poder-se-ia pensar em um nexo causal
entre o nascimento do filho e o declínio da vida sexual do casal que levaria ao entendimento da
obsessão filicida. Entretanto, não havendo este elo em todos os casos, Ribeiro (2011a) reitera a
58
Para se sustentar como sujeito de linguagem e do desejo, uma mulher não tem outra
saída do que ‘bancar o homem’ e, como homem, amar e desejar. O sujeito do
inconsciente é sempre masculino, obsessivo ou histérico. A neurose é masculina
porque ela fala. Isto não impede que haja uma estratégia feminina, onde na fala a falta
é desvelada, e uma masculina onde a falta na fala é camuflada (RIBEIRO, 2011a, p.
174)
Com isso, o que a autora reitera é que, frente ao recurso histérico de “bancar o homem”,
ao qual a mulher deve recorrer para poder usufruir da condição de ser falante, cada uma –
obsessiva e histérica – utilizará de uma estratégia em relação à falta no Outro. Desse modo,
partindo da estratégia masculina que se propõe a camuflar a falta, a mulher obsessiva – como
6
Cf. item 4.2
60
se revela inviável também a partir do momento em que a mulher não pode ser tomada por um
conjunto, mas como cada mulher em sua particularidade.
62
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
uma situação na qual deve escolher uma roupa para se mascarar frente ao Outro, é assaltada por
dúvidas e incertezas que, para além de trazer intenso sofrimento à obsessiva, corroboram para
a impossibilidade de seu desejo. Nesse sentido, também é possível citar a paciente de Bouvet
que, utilizando seus sapatos como um apetrecho da mascarada, busca provocar o desejo dos
homens apenas para mantê-lo como impossível.
Uma outra particularidade referente à neurose obsessiva feminina que é constatada no
pensamento de ambas as autoras diz respeito à obsessão filicida. Segundo Ribeiro (2011a), que
melhor elucida este aspecto, tal obsessão estaria associada à perda, por parte da mulher, do
investimento fálico do homem; perda da qual decorre a impossibilidade de se referenciar pelas
vias do desejo masculino. Esse ponto também alude ao traço melancólico particular à mulher
obsessiva que, por crer no significante e na palavra de amor do Outro, pode cair no abismo da
pulsão de morte ao ser privada de seu lugar no desejo do parceiro, refletindo-se na perda de si
mesma. A partir deste traço – que costuma ocasionar confusões entre casos de neurose
obsessiva feminina com aqueles de melancolia e de psicose maníaco-depressiva –, reitera-se,
aqui, o cuidado com que deve ser feito o diagnóstico diferencial no terreno da obsessão em
mulheres e, também, reafirma-se a importância da noção de estrutura clínica e do diagnóstico
estrutural de base psicanalítica que, diferente daquele oferecido pelo discurso psiquiátrico, não
reduz toda uma estrutura a meros sintomas7.
Em suma, através do percurso pelo pensamento de Alvarenga (2019) e Ribeiro (2011a)
foi possível vislumbrar diferentes modos pelos quais o ser mulher se entrelaça ao ser obsessivo.
Obviamente, estes não são os únicos meios nem as únicas concepções, pelos quais a
feminilidade pode atravessar a estrutura obsessiva, entretanto, diante do curto período de tempo
que foi disposto à realização deste trabalho, optou-se pela restrição ao estudo dessas duas
autoras como base para a discussão da neurose obsessiva feminina.
É relevante pincelar, aqui, alguns aspectos da trajetória que envolveu o aprofundamento
nesta temática e que corroboram a importância de uma continuidade no estudo deste terreno tão
fértil que aborda os atravessamentos da feminilidade na neurose obsessiva. Diante do desejo e
da proposta de estudo da neurose obsessiva feminina como tema deste trabalho de conclusão
de curso, decorreu-se um primeiro contato com a literatura atual sobre o assunto através do livro
7
Cabe ressaltar que, longe de estigmatizar o sujeito em conceitos fixos como faz o discurso psiquiátrico, o
diagnóstico estrutural tem como objetivo a orientação do analista frente ao processo analítico. Atendo-se à
investigação das relações que o sujeito estabelece com o Outro, com o desejo e com o gozo, o analista se encontra
menos suscetível aos erros dos diagnósticos médicos, pautados pela fenomenologia sintomática, podendo, assim,
orientar o processo analítico do paciente em consonância com sua estrutura clínica, implicando-o como sujeito
desejante, determinado pelo significante.
64
de Alvarenga (2019) e, posteriormente, por meio da obra de Ribeiro (2011a). Entretanto, como
ainda não havia sido construída, por parte da pesquisadora, uma base teórica sólida acerca dos
objetos de estudo que constituem a temática, a saber, a neurose obsessiva e a feminilidade,
obteve-se uma primeira perspectiva imatura sobre a discussões propostas pelas autoras.
Contudo, na medida em que fora efetuada uma releitura de ambos os livros, após a finalização
da revisão bibliográfica e da escrita referente aos capítulos que tratam da neurose obsessiva e
da feminilidade, obteve-se uma compreensão mais amadurecida e rica, em termos de reflexões
e diálogo entre estes dois conceitos.
Neste ponto, cabe ressaltar uma perspectiva em particular de Alvarenga (2019) que, ao
ser encontrada novamente na construção do capítulo de neurose obsessiva feminina,
possibilitou o enriquecimento das discussões que o presente trabalho se dispôs a realizar.
Considerando que o objetivo deste último visa entrelaçar as questões concernentes à
feminilidade com a estrutura obsessiva, a proposição na qual Alvarenga (2019) não se atém tão
fortemente ao âmbito da estrutura clínica, em determinados casos tratados por Freud, permite
inspirar reflexões acerca dos diferentes caminhos a serem seguidos na compreensão da neurose
obsessiva feminina, os quais podem se alçar para além dos termos estruturais. Destacando uma
entre outras saídas para os atravessamentos da feminilidade nesta neurose, a autora suscita
questionamentos acerca da presença e relevância de casos nos quais se faz necessário conceber
a neurose obsessiva em sua resposta sintomática quanto ao ser mulher. Trata-se de um
pensamento que, apesar de não corresponder à leitura estrutural que o presente trabalho realiza
acerca da neurose obsessiva, revela uma perspectiva interessante e que demonstra à sua maneira
que, enquanto mulher, a obsessiva não é passível de ser alocada em um conjunto – nem mesmo
um que compreenderia “mulheres de estrutura obsessiva” –, devendo, assim, ser analisada no
caso a caso que lhe é próprio enquanto sujeito não-todo.
No entanto, apesar das imensas contribuições da autora, assim como as fornecidas por
Ribeiro (2011a), o caminho percorrido por suas teorizações, articulações e concepções não foi
efetuado sem que houvessem impasses, angústias e escapes em sua compreensão, assim como
o percurso de revisão dos outros autores que foram estudados durante a realização deste
trabalho. A neurose obsessiva e a feminilidade – como todos os temas na psicanálise – têm o
furo que, como bem demonstra Lacan, é próprio da existência: há sempre algo que escapa.
Desse modo, tanto no esforço de entendimento dos conceitos quanto na tentativa de traduzir em
palavras o que fora compreendido, sem que fosse efetuada uma redução na complexidade dos
65
termos, algo, inevitavelmente, escapou; justamente, porque palavras não são capazes de
englobar tudo o que a psicanálise se propõe a estudar.
No entanto, este furo, essa falta que permeou o presente estudo foi, como é próprio da
falta, o que manteve o desejo de saber em movimento durante todo o percurso e também o que
permitiu o mergulho, exaustivo mas excitante, neste tema tão esburacado e, de certo modo, tão
novo na psicanálise e que é compreendido por neurose obsessiva feminina. Desse modo, é
evidente que este tema pôde receber uma leitura a partir do presente trabalho, entretanto, reitera-
se que longe de ser esgotado – ou melhor, considerando que nunca o será completamente –, a
neurose obsessiva feminina constitui um terreno fértil para futuros estudos, sendo necessário
novas leituras, elucidações e contribuições referentes ao entrelaçamento do ser obsessivo e o
do ser mulher.
66
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