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Inquisicao Portuguesa 200 Anos

Inquisicao portuguesa 200 anos livro

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ANGELO ADRIANO FARIA DE ASSIS

BRUNO FEITLER
DANIELA BUONO CALAINHO
RONALDO VAINFAS
SUSANA BASTOS MATEUS
YLLAN DE MATTOS
(Orgs.)

Lisboa • 2023
Copyright © by 2023 Angelo Adriano Faria de Assis / Bruno Feitler / Daniela Buono Calainho / Ronaldo
Vainfas / Susana Bastos Mateus / Yllan de Mattos

Apoio
Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste
Companhia das Índias: Núcleo de História Ibérica e Colonial na Época Moderna
Grupo de Investigação História das Inquisições
LAMI: Laboratório de Mundos Ibéricos
Mundus Novus: Núcleo de Estudos sobre História Moderna e Contemporânea
NEI: Núcleo de Estudos Inquisitoriais

Todos os capítulos foram avaliados e receberam pareceres para aprovação.

A848h
A Inquisição Portuguesa: 200 anos depois / organização Angelo Adriano Faria de Assis,
Bruno Feitler, Daniela Buono Calainho, Ronaldo Vainfas, Susana Bastos Mateus e Yllan de
Mattos. – 1ª ed. Lisboa: Edições da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste –
Faculdade de Letras. Universidade de Lisboa, 2023.
414p. 14cm x 21cm
Inclui identificação dos autores e conselho editorial
ISBN: 978-989-53567-6-8 (objeto digital)
1. Inquisição. 11. Igreja Católica. 111. Época Moderna. 1v. História. I. ASSIS, Angelo Adriano
Faria de. II. FEITLER, Bruno. III. CALAINHO, Daniela Buono. IV. VAINFAS, Ronaldo.
V. MATEUS, Susana Bastos. VI. MATTOS, Yllan de.
CDU: 94(469)(81).

© Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste


Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa
Alameda da Universidade – 1600-214 Lisboa
[email protected]
www.catedra-alberto-benveniste.org

Edições da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste


Comissão Científica
ANTÓNIO ANDRADE
BÉATRICE PEREZ
BRUNO FEITLER
CLAUDE STUCZYNSKI
FERNANDA OLIVAL
FILIPA RIBEIRO DA SILVA
FRANCESCO GUIDI-BRUSCOLI
FRANÇOIS SOYER
JAQUELINE VASSALO
Comissão Editorial
CARLA VIEIRA
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO
SUSANA BASTOS MATEUS

Foi feito Depósito Legal

Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja
total ou parcial, constitui violação da Lei n. 9.610/98.
Sumário

Apresentação 1

PARTE 1: HISTÓRIA E DOCUMENTAÇÃO

Fontes inquisitoriais e historiografia brasileira sobre o período


colonial 9
Angelo Adriano Faria de Assis & Ronaldo Vainfas

A memória no arquivo: registos dos primeiros anos da Inquisição


em Portugal 25
Susana Bastos Mateus

Aspetti dell’Inquisizione portoghese nelle carte del Sant’Ufficio


romano. Fonti e prospettive di ricerca per il secolo XVIII 43
Andrea Cicerchia

Declínio e Abolição da Inquisição Portuguesa 63


James E. Wadsworth

PARTE 2: DIREITOS E PRÁTICAS JUDICIÁRIAS INQUISITORIAIS

Evoluções da práxis inquisitorial portuguesa: os processos por


heresia (1536-1774) 79
Bruno Feitler

A heresia nas malhas do Concílio de Trento: questões de 91


jurisdição e vias alternativas ao procedimento inquisitorial
Juliana Torres Rodrigues Pereira
O “defeito da prova” e a defesa dos réus da Primeira Visitação do
Santo Ofício ao Brasil (1591-1595) 109
Alécio Nunes Fernandes

Lascívia transatlântica. Do Tribunal de Coimbra ao Tribunal de 123


Lisboa. Os processos de Padre Francisco de Santa Tereza e Paiva
Lana Lage da Gama Lima

O início da rede de familiares do Santo Ofício português:


elementos para o seu estudo 137
Fernanda Olival

Sob o peso do despacho. O projecto de um perdão geral para as 153


cristandades locais na Inquisição de Goa (século XVIII)
Miguel Rodrigues Lourenço

PARTE 3: PERSEGUIDOS, RÉUS E DELITOS

Na Casa do Tormento: A tortura de Sodomitas na Inquisição


Portuguesa 179
Luiz Mott

Um xamã no Santo Ofício português? Revisitando o processo de 197


Amaro Fernandes (1659-1660)
Philippe Delfino Sartin

Pajés denunciados à Inquisição portuguesa: apresentação das


fontes históricas (Amazônia e Nordeste do Brasil, século XVIII) 215
Carlos Henrique Cruz

Os cristãos-novos do Rio de Janeiro 233


Lina Gorenstein

Sonhos, êxtases, viagens encantadas. Mulheres visionárias diante


do Tribunal do Santo Ofício português, séculos XVI-XVII 245
Jacqueline Hermann

Abuso do sacramento da ordem: os ‘falsos’ padres na América


Portuguesa 265
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz
Das partes da Índia aos Estaus: escravos e forros asiáticos 277
processados pela Inquisição de Lisboa (séculos XVI e XVII)
Patricia Souza de Faria

PARTE 4: COMUNICAÇÃO E ECONOMIA DO SANTO OFÍCIO

El sustento económico de los ministros de la Inquisición y la


creación de una élite eclesiástica en el Portugal moderno 295
Ana Isabel López-Salazar

Pensões para a Inquisição portuguesa: um projeto de alargamento


das receitas inquisitoriais no século XVIII 311
Bruno Lopes

Brasil e Goa: algumas notas sobre a correspondência inquisitorial


portuguesa no Império português 331
Daniela Buono Calainho & Célia Tavares

PARTE 5: REPRESENTAÇÕES DA INQUISIÇÃO

Arte e História – a correlação entre o fato histórico e o registro 349


imagético: Gregório Lopes e o auto de fé.
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

Notícias contra a Inquisição: a história do principal livro crítico ao


Santo Ofício português (1674-1821) 361
Yllan de Mattos

The Inquisition and Judaism. Porquê publicar um sermão de auto-


da-fé em Filadélfia em 1860? 381
Carla Vieira

ANEXO
Programação do Seminário Internacional A Inquisição portuguesa 200 anos
depois 401

SOBRE OS AUTORES 411


Siglas e Abreviaturas

AAV – Archivio Apostolico Vaticano, Vaticano


ADDF – Archivio del Dicastero per la Dottrina della Fede, Vaticano
ADE – Arquivo Distrital de Évora
AGS – Archivo General de Simancas
AHU – Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa
ANTT – Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa
ARSI – Archivum Romanum Societatis Iesu, Roma
BPE – Biblioteca Pública de Évora
BNP – Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro
CGSO – Conselho Geral do Santo Ofício
cód. – códice
cx. – caixa
doc. / docs. – documento(s)
fl/fls – fólio(s)
HI – Habilitações Incompletas
HSO – Habilitações do Santo Ofício
IC – Inquisição de Coimbra
IE – Inquisição de Évora
IL – Inquisição de Lisboa
leg. – legajo
liv. – livro
MNEJ – Ministério dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça
MR – Ministério do Reino
NT – Número de Transferência
p. – página
proc. – processo
RAH - Real Academia de la Historia, Madrid
s/f – sem foliação
S.O. – Santo Oficio
St. St. – Stanza Storica
TSO – Tribunal do Santo Ofício
APRESENTAÇÃO
A Inquisição Portuguesa: 200 anos depois

O ano de 2021 marcou a celebração dos duzentos anos do encerramento


das atividades e da extinção de uma das mais poderosas e controversas institui-
ções que atuaram em Portugal e seus domínios, o Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição, decretado pelas Cortes Constituintes no desenrolar da Revolução Li-
beral ocorrida em 1820.
Criada em 1536, durante o reinado de Dom João III, como um dos desdo-
bramentos da implementação do monopólio religioso católico ocorrido em fins
do século XV, a Inquisição portuguesa atuou durante duzentos e oitenta e cinco
anos com o intuito de zelar pela pureza da fé católica, julgando aqueles que man-
tivessem quaisquer tipos de comportamentos considerados desviantes ou que
ameaçassem os preceitos e o poder da Igreja. Dentre suas vítimas, o grupo mais
perseguido seria o dos cristãos-novos – razão primeira para a própria criação do
Tribunal –, suspeitos de continuarem, ocultamente, a praticar o judaísmo. Mas
a Inquisição também voltou seus olhares sobre outros tipos de culpas: isla-
mismo, protestantismo, homossexualidade, comportamentos sexuais desvian-
tes, bigamias, blasfêmias, gentilidades, práticas mágico-religiosas, leituras proi-
bidas, e mais um leque variado de desvios de fé... Ainda hoje, o impacto da ação
inquisitorial pode ser percebido, direta ou indiretamente, nas sociedades que
estiveram sob sua vigilância, como preconceitos e intolerâncias religiosas de
todo o tipo.
Com o intuito de marcar a data e refletir sobre os estudos históricos acerca
da Inquisição e seu mundo, um grupo de pesquisadores de renomadas
instituições brasileiras e portuguesas reuniu-se com a proposta de organizar um
evento, A Inquisição portuguesa: 200 anos depois, que contou com a participação
de especialistas da temática inquisitorial do Brasil, Portugal, Espanha, Itália,
França, Holanda, Inglaterra, Estados Unidos, México e Israel. A proposta envol-
via não apenas um balanço dos estudos clássicos sobre o Santo Ofício, seus re-
presentantes, formas de atuação e vítimas, mas também um panorama dos avan-
ços da historiografia sobre a Inquisição nas últimas décadas, dos estudos atuais,
dos novos rumos e possibilidades de análise, do muito que ainda falta por fazer.
Por conta do momento pandêmico (2020-2022), toda a estrutura do evento
foi pensada para ocorrer em formato remoto, dividido em cinco módulos, cada
qual com um recorte específico, composto de conferências e mesas-redondas re-
alizadas online. Cada módulo, por outro lado, contou com a participação dos
demais membros do evento como público ouvinte e crítico que, ao final, levan-
tava questões à apresentação da vez. As atividades foram gravadas e posterior-
mente editadas para disponibilização ao público geral ao longo do ano, de abril
a dezembro, na página do evento no Youtube1. Até o momento, os vídeos contam
com quase dez mil visualizações.
Ao todo, o evento reuniu mais de cinquenta convidados divididos em qua-
tro conferências e dezesseis mesas-redondas, abordando a riqueza e as diversi-
dades dos estudos num amplo painel – da fundação e termo do Santo Ofício,
estrutura e funcionamento do Tribunal, ação na metrópole e no ultramar, prin-
cipais delitos e perseguidos, imaginários, críticas e representações da Inquisição.
Os resumos das apresentações realizadas no evento são disponibilizados ao lei-
tor deste livro, assim como as próprias conferências e seus riquíssimos debates
podem ser acompanhada pelo leitor ao ler o QR-CODE que segue ao final de
cada sessão.
Na arquitetura deste livro, optámos por manter uma estrutura que refle-
tisse o evento originário que antecedeu a elaboração dos textos. Assim, exceptu-
ando alguns ajustes que visaram proporcionar uma maior coerência à obra final,
encontram-se os temas que consideramos fundamentais num balanço sobre a
historiografia recente sobre o Santo Ofício português, seja por serem os temas
mais trabalhados pelos investigadores, seja por corresponderem a novas tendên-
cias dos estudos inquisitoriais. As cinco partes que compõem este livro procuram

1
Todas as conferências e mesas-redondas podem ser assistidas a partir dos links presentes em
https://www.even3.com.br/inquisicaoportuguesa200anos/
[2]
APRESENTAÇÃO

ser uma aproximação às tendências de pesquisa atuais, levantando pistas para o


que podem ser perspectivas futuras de investigação.
Assim, a primeira parte é dedicada a “História e documentação”, desta-
cando-se a importância de se compreender como se fez a história do tribunal na
longa duração, tendo, sobretudo, em linha de conta os contributos recentes.
Nesse sentido, Ronaldo Vainfas e Angelo Assis traçam um panorama de fôlego
em torno da historiografia brasileira, com o enfoque das novas metodologias em
torno do uso da documentação inquisitorial. Susana Bastos Mateus olha para o
cartório da Inquisição portuguesa para – através de um livro utilizado no quoti-
diano do tribunal nos primeiros anos de funcionamento – compreender as dinâ-
micas e práticas da primeira Inquisição em Portugal. Pensando nas possibilida-
des de ampliação das fontes à disposição dos investigadores que queiram dedi-
car-se ao estudo dos tribunais ibéricos, Andrea Cicerchia debruça-se sobre os
fundos contidos no Archivio del Dicastero per la Dottrina della Fede (Cidade do
Vaticano) na senda de pistas e materiais com interesse para o estudo da Inquisi-
ção Portuguesa. Por fim, nesta secção, James Wadsworth traz um contributo em
que se dedica ao contexto histórico do ocaso do tribunal inquisitorial, seguindo
os passos de uma figura, Joaquim Marques de Araújo.
A segunda parte do livro, “Direitos e práticas judiciárias inquisitoriais” é
composta por 6 artigos que abordam várias dimensões do procedimento inqui-
sitorial português, no reino e nos seus espaços coloniais, destacando os aspectos
jurídicos, a atuação dos agentes e a definição da jurisdição sobre alguns delitos.
Assim, Bruno Feitler oferece uma análise da prática do tribunal português em
relação aos casos de heresia, pensando a longa duração da prática da instituição
e dos seus juízes entre permanências e polémicas internas. Juliana Torres Pe-
reira, tendo como pano de fundo o Concílio de Trento, analisa as vias alternati-
vas à Inquisição debatidas e afirmadas nas reuniões conciliares e os seus impac-
tos no modus operandi dos tribunais ibéricos. Alécio Nunes Fernandes apresenta
uma reflexão sobre a importância do conceito de “defeito de prova” na defesa
dos réus da Primeira Visitação ao Brasil. Lana Lage da Gama Lima estuda o crime
de solicitação numa macro geografia atlântica, através do estudo do caso do pa-
dre Francisco de Santa Tereza e Paiva. Com o capítulo da autoria de Fernanda
Olival surge um quadro sobre a constituição de uma rede de familiares em Por-
tugal, analisando-se os seus privilégios, as estratégias de recrutamento e a circu-
lação no espaço. Por fim, Miguel Rodrigues Lourenço traz uma análise sobre as
especificidades da Inquisição de Goa – o único tribunal português estabelecido

[3]
no espaço imperial – que permitiram a apresentação de uma proposta de um
perdão geral, algo que era contrário aos princípios do tribunal.
A terceira parte do livro, “Perseguidos, réus e delitos” dedica-se a uma aná-
lise variada de distintas tipologias de delitos que foram alvo da Inquisição por-
tuguesa, apresentado casos de vítimas e de réus oriundos de diferentes geogra-
fias. Luiz Mott estuda a forma como a Inquisição portuguesa aplicou a tortura
em réus acusados do delito de sodomia. Philippe Sartin, através do caso do pro-
cesso inquisitorial contra Amaro Fernandes, apresenta uma reflexão sobre a ca-
tegoria de xamã e a possibilidade da sua utilização para os réus inquisitoriais.
Carlos Henrique Cruz dedica-se às denúncias contra pajés da zona da Amazónia
e do Nordeste do Brasil, durante o século XVIII. Lina Gorenstein estuda o con-
texto da perseguição e das prisões de cristãos-novos do Rio de Janeiro nos sécu-
los XVII e XVIII. Jacqueline Hermann traz os casos de mulheres visionárias per-
seguidas pela Inquisição e as dimensões do delito de “falsa santidade” no mundo
ibérico da Época Moderna. Pollyanna Muniz analisa a existência de “falsos pa-
dres” no contexto da América portuguesa e a atuação inquisitorial em relação a
estes casos. O último texto desta parte, da autoria de Patrícia Souza de Faria,
reporta-se ao estudo dos processos inquisitoriais contra asiáticos escravizados
processados pela Inquisição de Lisboa.
A quarta parte do livro é dedicada a “Comunicação e economia do Santo
Ofício” com contributos dedicados às formas de sustentação financeira do tribu-
nal e aos mecanismos de circulação de informação e de correspondência entre
os vários espaços que compunham os distritos inquisitoriais do Santo Ofício por-
tuguês. Ana Isabel López-Salazar dedica-se ao estudo da importância dos ingres-
sos obtidos com os benefícios eclesiásticos no sustento dos ministros inquisito-
riais. Bruno Lopes, centrando-se num eixo temporal de meados do século XVIII,
analisa as propostas de alargamento dos rendimentos da Inquisição portuguesa.
Por seu turno, Daniela Calainho e Célia Tavares, servindo-se de uma metodolo-
gia comparativa, estudam a circulação da correspondência inquisitorial, focando
nos casos do Brasil e de Goa.
A quinta e última parte desta obra dedica-se às “Representações da Inqui-
sição”, tendo em análise iconografia e a produção literária relativas à instituição
ainda durante o período do seu funcionamento, entre o imaginário e as críticas
coevas e as reminiscências da memória da Inquisição após as abolições. O pri-
meiro contributo, da autoria de Benair Ribeiro, debruça-se sobre o uso de fontes
visuais para o estudo da Inquisição portuguesa, centrando-se no caso do pintor

[4]
APRESENTAÇÃO

Gregório Lopes. Yllan de Mattos analisa a principal obra de literatura crítica da


Inquisição, as Notícias recônditas e póstumas do procedimento da Inquisição de
Espanha e Portugal com seus presos. Por fim, Carla Vieira, apresenta uma análise
da obra The Inquisition and Judaism de Moses Mocatta, publicada em 1860,
em Filadélfia.
Inquisição portuguesa: 200 anos depois é obra, portanto, que nos traz
variados aspectos da história do tribunal inquisitorial português, congregando
estudiosos de várias gerações que celebraram, nesta publicação, a extinção do
Santo Ofício, brindando os leitores com grandes contribuições para os estudos
inquisitoriais. Apresenta-se, assim, um amplo retrato da historiografia atual so-
bre a Inquisição portuguesa, com textos condensados, no intuito de instigar no-
vos pesquisadores a trilhar o caminho dos arquivos e das fontes.

OS ORGANIZADORES
Angelo Adriano Faria de Assis
Bruno Feitler
Daniela Buono Calainho
Ronaldo Vainfas
Susana Bastos Mateus
Yllan de Mattos

[5]
PARTE 1

História e documentação
Fontes inquisitoriais e historiografia brasileira
sobre o período colonial
Angelo Adriano Faria de Assis
Ronaldo Vainfas

Comentando, nos anos 1960, a potencialidade das fontes inquisitoriais


para a história do Brasil Colonial, Eduardo d’Oliveira França sugeriu tratar-se de
um acervo quase ilimitado, um mundo “a desafiar gerações e gerações de pes-
quisadores”. O tempo provou que o saudoso Professor França estava coberto de
razão, considerada a enormidade do acervo e o crescente interesse que a docu-
mentação do Santo Ofício e a própria história da Inquisição têm despertado nos
pesquisadores brasileiros e portugueses nos últimos 30 anos.
No caso do Brasil, vale dizer, tardou muito para que tomassem corpo o
interesse pela história do Santo Ofício e a valorização da documentação inquisi-
torial em estudos específicos, não obstante parte dela estivesse divulgada desde
a década de 1920. Referimo-nos, aqui, à documentação relacionada às duas pri-
meiras visitações do Santo Ofício ao Brasil, a começar pelas Confissões e as
Denunciações da Bahia (1591-1593), organizadas por Capistrano de Abreu, livros
publicados entre 1922 (reeditada em 1925)1 e 19352. Em 1929, apareceram as De-
nunciações de Pernambuco (1593-1595), organizadas por Rodolfo Garcia, ele que,
dois anos antes, publicara as Denunciações da Segunda Visitação do Santo Ofício
à Bahia (1618-1621) nos Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro3. As
1
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Denunciações da Bahia, 1591-1593, intro. de Capistrano de Abreu (São Paulo: Eduardo Prado, 1925).
2
Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça.
Confissões da Bahia, 1591-1592, prefácio de Capistrano de Abreu (Rio de Janeiro: F. Briguet: 1935).
3
“Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil — Denunciações da Bahia (1618-1621 pelo in-
quisidor e visitador o licenciado Marcos Teixeira Teixeira)”, introdução de Rodolfo Garcia, Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro 49 (1927).
confissões da Visitação de Heitor Furtado de Mendonça a Pernambuco só viriam
à luz em 1970, obra de Gonsalves de Mello4, e o Livro das Confissões da Segunda
Visitação apareceriam no tomo XVII dos Anais do Museu Paulista, em 1963, com
introdução de Eduardo d’Oliveira França e Sônia Siqueira5.
Documentação incompleta, poder-se-ia com razão dizer, já que, no caso
da Primeira Visitação, nove livros foram produzidos e somente quatro foram ao
todo localizados e publicados, sem falar na tardia Visitação ao Grão-Pará, ocor-
rida no tempo de Pombal (1763-1769), publicada por José Roberto do Amaral
Lapa em 19786. Trata-se, de todo modo, de documentação riquíssima, como in-
dicaremos adiante, seja para rastrear a ação do Santo Ofício na América
Portuguesa, seja para basear pesquisas sobre a sociedade colonial nas regiões
devassadas pelo Santo Ofício. Além de constituírem importante manancial de
informações, os livros das visitações abrem caminho para a investigação dos pro-
cessos completos, quando os houve, depositados no Arquivo Nacional da Torre
do Tombo, dos quais se tem valido muitos pesquisadores contemporâneos.
Nos anos 1990, com o ânimo de incentivar os estudos sobre a Inquisição
Portuguesa no Brasil, um dos autores deste artigo republicou as Confissões da
Bahia relativas à Primeira Visitação7 e, muito recentemente, os dois autores do
texto em curso reeditaram as Denunciações da Bahia relativas à Segunda Visita-
ção, baseados no que coligiu Rodolfo Garcia em 19278. Em meio ao cotejo do
material publicado por Garcia e os manuscritos originais, descobrimos muitos
documentos que ficaram de fora na edição dos anos 1920 e mesmo nesta, de 2022,
quase 100 anos depois da primeira edição. Prometemos para breve o livro com-
pleto das referidas denunciações para deleite e proveito dos pesquisadores.
Em todo caso, tardou muito, como mencionamos no início, para que os
estudiosos brasileiros percebessem a riqueza do acervo inquisitorial para o es-
tudo do Brasil Colônia. No caso português, já em 1852, o grande Alexandre

4
“Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Men-
donça”, in Confissões de Pernambuco, J. A. Gonsalves de Mello, org. (Recife: Universidade Federal de
Pernambuco, 1970).
5
“Segunda visitação do Santo Ofício às partes do Brasil pelo inquisidor e visitador o licenciado Marcos
Teixeira. Livro das Confissões e Ratificações da Bahia — 1618-1620”, introdução de Eduardo d’Oliveira
França e Sônia Siqueira, Anais do Museu Paulista 17 (1963).
6
Livro da visitação do Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará, 1763-1769, organização e
apresentação de José Roberto Amaral Lapa (Petrópolis: Vozes, 1978).
7
Santo Ofício. Confissões da Bahia (1591-1593), organização e apresentação de Ronaldo Vainfas (São
Paulo: Companhia das Letras, 1997).
8
A Santa inquisição em Portugal. Denunciações da Segunda Visitação do Santo ofício à Bahia, século
XVII, organização e apresentação de Angelo de Assis e Ronaldo Vainfas (Leiria: Proprietas, 2022).
[10]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

Herculano publicara sua História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em


Portugal9 e, nas primeiras décadas do século XX, surgiriam as obras de João Lú-
cio de Azevedo, História dos Cristãos Novos Portugueses (1921)10 e de António
Baião, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa (1936)11, para citar apenas
três clássicos que apontaram, quando menos, a importância crucial da questão
judaica em Portugal e seus domínios ultramarinos.
No caso do Brasil, praticamente nenhuma pesquisa monográfica sobre a
Inquisição ou baseada nas fontes do Santo Ofício seria realizada até o meado do
século passado. Mas justiça seja feita, no entanto, a Francisco Adolpho de Var-
nhagen, que, se não chegou a estudar a Inquisição, publicou na Revista do
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, muito antes de conhecidas as Visita-
ções dos séculos XVI e XVII, preciosos “Excertos de várias listas de condenados
pela Inquisição de Lisboa desde o ano de 1711 ao de 1767, compreendendo só bra-
sileiros ou colonos estabelecidos no Brasil”12. Publicação valiosa porque
indicativa da ação silenciosa e permanente da Inquisição, sem o alarde das visi-
tações enviadas em momentos especiais da história luso-brasileira.
Por outro lado, dentre os autores das três grandes sínteses da historiografia
brasileira produzidas nos anos 1930 e 1940, Casa Grande e Senzala, Raízes do Bra-
sil e Formação do Brasil Contemporâneo, somente Gilberto Freyre mostrou-se
sensível à potencialidade das fontes inquisitoriais para o estudo da sociedade
colonial. É o que se percebe logo no prefácio à primeira edição de Casa Grande e
Senzala, de 1933, onde, com sua linguagem libérrima escreveu:
A Inquisição escancarou sobre nossa vida íntima da era colonial (...) seu
olho enorme, indagador. As confissões e denúncias reunidas pela Visi-
tação do Santo Ofício às partes do Brasil indicam-nos a idade das moças
casarem - doze, quatorze anos; o principal regalo e passatempo dos co-
lonos - o jogo de gamão; a pompa dramática das procissões... Deixam-
nos surpreender, entre as heresias dos cristãos novos e das santidades,
entre os bruxedos e as festas gaiatas dentro das igrejas, com gente ale-
gre sentada pelos altares, entoando trovas e tocando viola,
irregularidades da vida doméstica e moral da família - homens casados
casando-se outra vez com mulatas, outros pecando contra a natureza

9
Alexandre Herculano, História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal, 3 vols. (Lisboa:
Europa-América, s/d).
10
J. Lúcio de Azevedo, História dos cristãos-novos portugueses, 3ª ed. (Lisboa: Clássica, 1989).
11
António Baião, Episódios Dramáticos da Inquisição Portuguesa, 2ª ed. (Lisboa: Seara Nova, 1936).
12
Francisco Adolfo de Varnhagen, “Excerptos de varias listas de condemnados pela Inquisição de Lis-
boa, desde o anno de 1711 ao de 1767 compreendendo só os Brasileiros, ou colonos estabelecidos no
Brasil”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro 7 (1845), 54-86.
[11]
com efebos da terra ou da Guiné, ainda outros cometendo com mulhe-
res a torpeza que em moderna linguagem científica se chama, como nos
livros clássicos, de felação e que nas denúncias vem descrita com todos
os ff e rr; desbocados jurando pelo pentelho da Virgem; sogras plane-
jando envenenar os genros; crucifixos por baixo do corpo das mulheres
no momento da cópula ou deitando-os nos urinóis; senhores man-
dando queimar vivas, em fornalhas de engenho, escravas prenhes, as
crianças estourando ao calor das chamas13.

Gilberto Freyre intuiu, com sua perícia de antropólogo-historiador, e seu


apego pelas sexualidades brasílicas, a riqueza das fontes inquisitoriais para o es-
tudo do cotidiano, das moralidades, sensualidades, devoções, conflitos da
sociedade colonial. Intuiu tudo isto nos anos 1930, o que reputamos como grande
mérito deste autor polêmico. Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Jr. – para
completar a tríade clássica – passaram ao largo da Inquisição, seja como institui-
ção, seja enquanto repositório de fontes preciosas sobre o passado brasileiro.
Somente décadas depois, os historiadores brasileiros realizariam pesquisas se-
guindo o rastro documental do Santo Ofício.
Foi o problema dos cristãos-novos e da própria instituição inquisitorial o que
então mais chamou a atenção de nossos historiadores a partir dos anos 1960, antes
das mentalidades e da história cultural despertarem como campos de investigação
na pesquisa universitária mundial. É o caso de Elias Lipiner, autor de vários estudos
específicos, como Os judaizantes nas capitanias de cima, a biografia de Isaque de
Castro e Baptizados em pé, para dar apenas alguns exemplos14. Também José Antô-
nio Gonsalves de Mello, um dos grandes historiadores do país, escreveu Gente da
nação, em 1989, tratando dos cristãos-novos nas capitanias do açúcar nos séculos
XVI e XVII, inclusive a extraordinária experiência dos judeus portugueses, apósta-
tas do catolicismo no Brasil holandês15. É o caso, ainda, de José Gonçalves Salvador,
com seu Cristãos Novos, Jesuítas e Inquisição, livro de 1969 que incursiona, entre
outros temas, na ação inquisitorial pelas capitanias do sul16. É o caso,

13
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal, 49a ed. (São Paulo: Global, 2004).
14
Elias Lipiner, Os judaizantes nas capitanias de cima (estudos sobre os cristãos-novos do Brasil nos
séculos XVI e XVII) (São Paulo: Brasiliense, 1969); Izaque de Castro: o mancebo que veio preso do Brasil
(Recife: Editora Massangana, 1992) e Os Baptizados em Pé. Estudos acerca da origem e da luta dos
Cristãos-Novos em Portugal (Lisboa: Vega, 1998).
15
José Antônio Gonsalves de Mello, Gente da nação — cristãos-novos e judeus em Pernambuco, 1542-
1654, 2ª ed. (Recife: Massangana, 1996).
16
José Gonçalves Salvador, Cristãos Novos, Jesuítas e Inquisição (Aspectos de sua atuação nas capita-
nias do Sul, 1530-1680) (São Paulo: Pioneira/EDUSP, 1969).
[12]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

especialmente, de Anita Novinsky, no clássico Cristãos Novos na Bahia17, livro de


1972 sobre os conversos, e seu possível judaísmo secreto, no século XVII, ancorada
em manuscritos inéditos, dentre os quais a “grande inquirição” de 1646. Sônia Si-
queira também figura entre os autores renovadores da segunda metade do século
XX, com seu A Inquisição Portuguesa e a sociedade colonial18, publicado em 1978,
livro-chave sobre a ação do Santo Ofício no Brasil entre a Visitação de 1591 e a Visi-
tação de 1618, com ênfase nos aspectos sociais e institucionais.
O tema dos cristãos novos, desde os anos 1980, e sobretudo na década se-
guinte, tem sido estudado em várias dissertações e teses universitárias do país
(muitas delas publicadas posteriormente em livro), a exemplo de Preconceito ra-
cial no Brasil Colônia, de Maria Luiza Tucci Carneiro, pioneiro na pesquisa sobre
os estatutos racistas de “limpeza de sangue”19; Hereges e impuros, de Lina Gorens-
tein, texto sobre os cristãos-novos do Rio de Janeiro na primeiras décadas do
século XVIII20; À sombra do medo, de Angela Maia, livro sobre os cristãos-novos
nas capitanias do açúcar21; Um rabi escatológico na Nova Lusitânia de Angelo Faria
de Assis22, trabalho sobre o cristão-novo João Nunes, poderoso mercador qui-
nhentista, talvez judaizante, homem que colocava seu crucifixo, já notara Gilberto
Freyre, perto do urinol onde fazia suas necessidades naturais. O mesmo autor pu-
blicou Macabéias da Colônia, livro sobre o criptojudaísmo feminino em poderosa
família de cristãos-novos na Bahia quinhentista23; Yllan de Mattos publicou, em
sequência, dois livros importantes: o primeiro sobre a Visitação ao Grão-Pará, no
século XVIII, e o segundo sobre a crise da Inquisição Portuguesa na segunda me-
tade do século24. Suzana Severs publicou Além da exclusão, em que analisa a
participação e convívio entre cristãos velhos e novos na Bahia durante o século
XVIII25. Pollyanna Gouveia Muniz, por sua vez, em Réus de Batina e Padres e
17
Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia: 1624-1654 (São Paulo: Perspectiva/EDUSP, 1972).
18
Sônia Siqueira, A Inquisição portuguesa e a sociedade colonial (São Paulo: Ática, 1978).
19
Maria Luiza Tucci Carneiro, Preconceito racial no Brasil Colônia (São Paulo: Brasiliense, 1983).
20
Lina Gorenstein, Heréticos e Impuros. Inquisição e cristãos-novos no Rio de Janeiro, séc. XVIII (Rio de Ja-
neiro: Secretaria Municipal da Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação cultural, 1995).
21
Angela Vieira Maia, À Sombra do Medo. Cristãos Velhos e Cristãos Novos nas Capitanias do Açúcar
(Rio de Janeiro: Cadernos de Poesia, 1995).
22
Angelo A. Faria de Assis, João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitânia: sociedade colonial e
inquisição no nordeste quinhentista (São Paulo: Alameda, 2011).
23
Angelo A. Faria de Assis, Macabeias da colônia. Criptojudaísmo feminino na Bahia (São Paulo:
Alameda, 2012).
24
Yllan de Mattos. A última Inquisição. Os meios de ação e funcionamento do Santo Ofício no Grão-
Pará pombalino (1750-1774) (Jundiaí: Paco Editorial, 2021), e A Inquisição Contestada. Críticos e críticas
ao Santo Ofício português (1605-1681) (Rio de Janeiro: Mauad, 2014).
25
Suzana M. S. Severs, Além da exclusão: a convivência entre cristãos-novos e cristãos-velhos na Bahia
colonial (Salvador: Eduneb, 2016).
[13]
concubinas analisa os membros do clero — alguns deles de origem cristã-nova —
acusados dos mais variados tipos de comportamento desviante26.
Um dos pioneiros da nova geração, que citamos à parte por ter feito sua
formação universitária na França, é Bruno Feitler, com destaque para a sua tese
de doutorado (já publicada)27. Feitler publicou diversos livros e artigos sobre a
estrutura, funcionamento e representantes da Inquisição, seja em Portugal ou
no Brasil, tornando-se autor de referência neste campo de estudos, como Nas
malhas da consciência e A fé dos juízes28.
Até aqui limitamo-nos a citar autores lusófonos, portugueses e brasileiros,
e sobretudo, quanto ao último quarto do século passado, aos trabalhos universi-
tários. Mas não podemos omitir, fora deste âmbito, Vínculos de Fogo29, do
falecido Alberto Dines, livro sobre a comunidade cristã nova do Rio de Janeiro
setecentista, que trata inclusive do célebre dramaturgo Antônio José da Silva, de
codinome “O judeu”. Nem se poderia omitir O nome e o sangue30, de Evaldo Ca-
bral de Melo, livro que cruza fontes da Inquisição com as da Mesa da Consciência
e Ordens, no rastro da genealogia de poderoso senhor pernambucano do XVIII.
“Branca Dias e outras sombras” é capítulo modelar sobre o tema que a história
de Fernão Paes Barreto permite conhecer.
Não estamos sendo exaustivos neste balanço, nem o poderíamos, mas muito
se fez e ainda resta por fazer neste campo, se considerarmos o amplo predomínio
de acusados de judaísmo nos processos da Inquisição Portuguesa, os quais perfize-
ram, no mínimo, cerca de 80% dos casos julgados pelo tribunal inquisitorial de
Lisboa, que tinha alçada sobre o Brasil. O papel dos cristãos-novos na sociedade
colonial e a ocorrência do judaísmo secreto entre os conversos são temas que sem-
pre merecerão novos estudos, tamanha é a documentação sobre eles existente na
Torre do Tombo e imensa, como foi, a importância da questão judaica no império
colonial português até a ascensão do conde de Oeiras – futuro marquês de Pombal.

26
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz, Réus de Batina: Justiça Eclesiástica e clero secular no bispado
do Maranhão colonial (São Paulo, São Luís: Alameda/EDUFMA, 2017), e Padres e Concubinas: sacríle-
gas famílias no bispado do Maranhão no século XVIII (São Luís: EdUFMA/Café&Lápis, 2022).
27
Bruno Feitler, Inquisition, juifs et nouveaux chrétiens au Brésil (Leuven: Leuven University Press, 2003).
28
Bruno Feitler, Nas malhas da consciência. Igreja e Inquisição no Brasil: Nordeste 1640-1750 (São Paulo:
Alameda/Phoebus, 2007), e A fé dos Juízes: Inquisidores e processos por heresia em Portugal (1536-1774)
(Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022).
29
Alberto Dines, Vínculos de Fogo: Antônio José da Silva, o Judeu, e outras histórias da Inquisiçãoem
Portugal e no Brasil (São Paulo: Companhia das Letras, 1992).
30
Evaldo Cabral de Mello, O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial (São
Paulo: Companhia das Letras, 1989).
[14]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

A redescoberta da Inquisição privilegiou, neste período, os processos cri-


minais contra hereges ou acusados de outros delitos assimiláveis à heresia. É no
campo da história cultural, porém, que as fontes inquisitoriais têm sido mais
utilizadas na pesquisa contemporânea, para além dos cristãos-novos de que já
falei. O marco desta linha de pesquisa encontra-se certamente em O Diabo e A
terra de Santa Cruz, de Laura de Mello e Souza31, livro de 1986 várias vezes ree-
ditado e traduzido, obra que tratou, pela primeira vez, da religiosidade popular,
magias e feitiçarias da colônia com base nos processos do Santo Ofício. Livro
que, não obstante inspirado no Visão do Paraíso de Sérgio Buarque, recuperou an-
tes de tudo a visão do inferno e as experiências infernais que, na nossa bibliografia,
foram temas insinuados por Gilberto Freyre quando citou os bruxedos, sacrilégios
e incontinências por ele percebidos nos papéis da Visitação quinhentista. Laura
inaugurou esta trilha e vários lhe seguiram os passos: o Trópico dos Pecados, de
1989, foi um deles32; A Heresia dos índios33 foi outro, dedicado ao estudo da Santi-
dade indígena na Bahia quinhentista, a um só tempo revolta anti-escravista e
repositório das tradições tupis. Paralelamente Luiz Mott que, enquanto debulhava
processos de sodomitas na Torre do Tombo, preparava o seu Rosa Egipcíaca, livro
sobre uma visionária negra processada pelo Santo Ofício34; Lana Lage escreveu, no
seu A Confissão pelo Avesso, acerca dos processos dos solicitantes, padres mal afei-
tos à castidade que seduziam mulheres no ato da confissão35; Plínio Gomes, no seu
Um herege vai ao Paraíso36, tratou de Pedro Rattes Henequim, sujeito que ousou
dizer e tentar demonstrar que o Paraíso ficava no Brasil, talvez em Minas Gerais e,
por isso mesmo acabou na fogueira do Santo Ofício.
Menos estudada durante muito tempo, embora as fontes sejam numero-
sas, foi a instituição inquisitorial no Brasil, o ritmo das perseguições no tempo e
nos diversos espaços coloniais. Não temos, ainda, uma obra de conjunto como a
História das Inquisições37, de Francisco Bethencourt, livro que compara a

31
Laura de Mello e Souza, O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular no Brasil
colonial (São Paulo: Companhia das Letras, 1986).
32
Ronaldo Vainfas, Trópico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil (Rio de Janeiro:
Campus, 1989).
33
Ronaldo Vainfas, A heresia dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil colonial (São Paulo: Companhia
das Letras, 1995).
34
Luiz Mott, Rosa Egipcíaca: Uma Santa Africana No Brasil (Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1993).
35
Lana Lage da Gama Lima, A Confissão pelo Avesso: sacramento da penitência e assédio sexual a mu-
lheres no Brasil setecentista (Leiria: Proprietas, 2022).
36
Plínio Freire Gomes, Um herege vai ao paraíso: cosmologia de um ex-colono condenado pela Inqui-
sição (1680-1774) (São Paulo: Companhia das Letras, 1997).
37
Francisco Bethencourt, História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália (Lisboa: Temas e
Debates, 1996).
[15]
instituição inquisitorial portuguesa com a espanhola e a italiana na longa dura-
ção, o qual fornece chaves importantes para estudar a instituição no Brasil
Colônia, terra que sofreu a ação do Santo Ofício sem jamais ter possuído um
tribunal próprio. Tampouco temos uma síntese como a de Giuseppe Marcocci e
José Pedro Paiva38. Há, porém, alguns trabalhos específicos de grande importân-
cia, sobretudo porque abrem caminhos de investigação. É o caso dos vários
textos de Luiz Mott, sobre a ação inquisitorial em diversas capitanias, como Ba-
hia, Sergipe e Maranhão39; é o caso do importante artigo de Caio Boschi
publicado na Revista Brasileira de História, “As visitas diocesanas e a Inquisição
na colônia”40, texto que ilumina questão-chave, a saber: a intensa cooperação
estabelecida, sobretudo no século XVIII, entre as visitas ordenadas pelos bispos
e a ação inquisitorial, funcionando a vara eclesiástica, por meio de sua “inquisi-
ção volante”, como mecanismo ancilar do Santo Ofício e sorvedouro de hereges
para o distante tribunal lisboeta; é o caso de Daniela Calainho, Agentes da Fé41,
trabalho sobre a ação dos Familiares da Inquisição no Brasil nos séculos XVII e
XVIII. Este trabalho inaugurou uma linha de investigação importante sobre o
modus faciendi inquisitorial no Brasil, como comprovam os livros posteriores de
Aldair Rodrigues42, Grayce Souza43, Luiz F. Rodrigues Lopes44, Alécio Fernan-
des45. Bruno Feitler, já citado, talvez seja o principal historiador brasileiro sobre
os ritos, instituições e práticas judiciárias da Inquisição no Brasil.
Haveria muito o que citar, entre os trabalhos sobre a vida cotidiana, reli-
giosidades, costumes e mores da colônia que se construíram com base nos papéis
do Santo Ofício. Não o faremos aqui, por razões óbvias, assumindo a responsa-
bilidade pelas omissões. Mas vale insistir que tais fontes são inesgotáveis, e não

38
Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 1536 -1821 (Lisboa: A Esfera
dos Livros, 2013).
39
Luiz Mott, A Inquisição em Sergipe (Aracajú: Sercore, 1989); A Inquisição no Maranhão (São Luís,
EDUFMA, 1995), e Bahia: Inquisição & Sociedade (Salvador: EDUFBA, 2010).
40
Caio Boschi, “As visitas diocesanas e a Inquisição na Colônia”, Revista Brasileira de História 7,
n.° 14 (mar/ago 1987).
41
Daniela Buono Calainho, Agentes da fé: familiares da Inquisição portuguesa no Brasil Colonial
(Bauru: EDUSC, 2006).
42
Aldair Carlos Rodrigues, Limpos de Sangue: Familiares do Santo Ofício, Inquisição e Sociedade em
Minas Colonial (São Paulo: Alameda, 2011), e Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanis-
mos de promoção social – século XVIII (São Paulo: Alameda, 2014).
43
Grayce Mayre Bonfim Souza, Para remédio das almas: comissários, qualificadores e notários da In-
quisição portuguesa na Bahia Colonial (Vitória da Conquista: Edições UESB, 2014).
44
Luiz Fernando Rodrigues Lopes, Vigilância, Distinção e Honra: Inquisição e dinâmica dos poderes
locais nos sertões das Minas Setecentistas (Curitiba: Prismas, 2014).
45
Alécio Nunes Fernandes, A defesa dos réus: processos judiciais e práticas de justiça da Primeira Visi-
tação do Santo Ofício ao Brasil (1591-1595) (Belo Horizonte: Fino Traço, 2022).
[16]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

se limitam às Visitações, nem mesmo à variadíssima cópia de processos deposi-


tados no Tombo sobre crimes diversos: judaísmo, sodomia, bigamia, elogios à
fornicação, feitiçaria, solicitações ad turpia, blasfêmias escancaradas, profana-
ções desabridas, visões escatológicas e até mesmo heresias formais. Processos
que, vale dizer, são superiores, no tipo e na qualidade das informações, à docu-
mentação da Inquisição espanhola, na grande maioria composta de “relaciones
de causas”, isto é, resumos de processos, já que a maioria deles foi destruída no
início do século XIX. Já os processos portugueses estão completos: abolida a In-
quisição, em 1821, foram transferidos para a Torre do Tombo onde até hoje se
encontram, à disposição dos pesquisadores, e neles se pode ver não só a Inquisi-
ção, mas a fala dos réus, suas sociabilidades e crenças, enfim, a própria sociedade
que os produziu: denunciados e denunciantes, réus e inquisidores; colonizado-
res, colonos, colonizados.
Sobre esta plêiade de atitudes cotidianas, transformadas em erros de fé, ou
suspeita deles, existem, além dos processos, os Cadernos do Promotor, os Cader-
nos e Repertórios do Nefando, processos vários de Habilitação, regimentos,
receituários acerca de como processar e julgar, discussões internas ao próprio
tribunal sobre dúvidas espinhosas. Discussões que hoje nos soariam estranhas,
como a do Tribunal de Évora, no século XVII, sobre se as mulheres podiam ou
não cometer sodomia umas com as outras, sendo por natureza desprovidas de
pênis, e apesar de poderem usar instrumentos à guisa de falo.
Não é o caso, aqui, de inventariar os tipos de fontes que há sobre a colônia
na Torre do Tombo — inúmeros —, bastando para tanto mencionar o Roteiro-
sumário dos arquivos portugueses de interesse para o pesquisador de história do
Brasil46, de Caio Boschi, ou Os Arquivos da Inquisição47, de Maria do Carmo Dias
Farinha. É documentação copiosíssima e muito diversificada. Serve à história
econômica, como no caso dos inventários feitos nos crimes passíveis de confisco
de bens; serve à história social, pois recupera hierarquias, sociabilidades, estra-
tificações, status, conflitos; serve à história do poder, pois ilumina mecanismos
de controle, ritos de governo, relações entre Igreja, Inquisição, Monarquia e po-
deres locais; serve à história cultural em seus múltiplos aspectos. Serve à história
colonial, em suma, sem compartimentações, pois retrata, entre o registro dos

46
Caio Boschi, Roteiro sumário dos arquivos portugueses de interesse para o pesquisador de História do
Brasil (São Paulo: Arquivo do Estado, 1986).
47
Maria do Carmo Jasmins Dias Farinha, Os Arquivos da Inquisição (Lisboa: Serviço de Publicações e
Divulgação do ANTT, 1990).
[17]
notários, a curiosidade do inquisidor e a angústia dos depoentes e réus, o uni-
verso possível de modos de viver, crenças, sentimentos, relações sociais.
Nestas primeiras décadas do atual século, as transformações vivenciadas
pela historiografia brasileira permitiram que temas até então desconhecidos ou
pouquíssimo visitados ganhassem nova atenção por parte dos pesquisadores e
admiradores de Clio. Um conjunto de motivos tem colaborado para estas mu-
danças, como o crescimento da oferta de cursos de História; o surgimento e a
consolidação dos Programas de pós-graduação em todas as regiões do país; po-
líticas educacionais de intercâmbio e treinamento que permitiram que
estudantes e professores brasileiros pudessem conferir in loco centros documen-
tais internacionais, bem como, reciprocamente, a vinda ao país de alunos e
pesquisadores estrangeiros, aumentando o compartilhamento de experiências; a
multiplicação de revistas científicas e a facilidade à consulta; o aumento do mer-
cado editorial e a publicação de livros até então difíceis de serem encontrados
nas livrarias nacionais; a valorização do diálogo da História como outros campos
do conhecimento; a realização de eventos científicos de História e áreas afins, a
permitir a intensificação dos diálogos entre especialistas; o avanço tecnológico e
a democratização do acesso à informação; os contatos entre pesquisadores espa-
lhados por instituições e centros de pesquisa das mais diversas regiões e países;
a digitalização e disponibilização de acervos documentais de arquivos e biblio-
tecas. Somados a outros elementos, estes acontecimentos acabaram por
revolucionar a noção de fonte e, principalmente, a facilidade de pesquisa com
documentos e o modo como trabalhá-los, abrindo ao historiador uma infinidade
de possibilidades de análise impensáveis no século passado.
Tomando como cenário os últimos vinte e anos, muitas dissertações de
mestrado e teses de doutorado confirmam a consolidação da Inquisição e de suas
fontes como eixo de pesquisas inovadoras no campo da história luso-brasileira
praticada no Brasil. Vários desses trabalhos já foram publicados, alguns dos
quais mencionamos anteriormente. Outros permanecem inéditos.
Longe estamos, pelo próprio limite deste texto, de querer citar todos os
trabalhos, mas apenas pretendemos dar uma dimensão de como os estudos so-
bre a Inquisição e seu mundo são tema recorrente, variado e vasto, desenvolvido
em programas de pós-graduação espalhados por todo o país. Assim, entre dis-
sertações e teses, podemos citar: Ana Yulica Hoshi, “A inquisição e o clero
judaizante: heterodoxia religiosa na Igreja Colonial – Século XVIII” (Mestrado,
USP, 2001); Carlos André Macedo Cavalcanti, “O Imaginário da Inquisição:

[18]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

desmitologização de valores no Tribunal do Santo Ofício no Direito Inquisitorial


e nas Narrativas do Medo de Bruxa (Portugal e Brasil, 1536-1821)” (Doutorado,
UFPE, 2001); Pedro Marcelo Pasche de Campos, “Entre a cruz e a Coroa: as rela-
ções entre Inquisição e Estado em Portugal na Época Moderna” (Doutorado,
UFF, 2001); Célia Cristina da Silva Tavares, “A cristandade insular: jesuítas e in-
quisidores em Goa (1540-1682)” (Doutorado, UFF, 2002); Marco Antonio Nunes
da Silva, “O Brasil holandês nos cadernos do Promotor: Inquisição de Lisboa,
século XVII” (Doutorado, USP, 2003); Patrícia Enciso Patiño, “Inquisição e He-
resia Mística em Nova Granada Século XVII” (Doutorado, UFF, 2003); Paulo
Valadares Ribeiro dos Santos, “A presença oculta: genealogia, identidade e cul-
tura cristã-nova brasileira nos séculos XIX e XX” (Mestrado, USP, 2004); Alex
Silva Monteiro, “A heresia dos anjos: a infância na Inquisição portuguesa nos
séculos XVI, XVII e XVIII” (Mestrado, UFF, 2005); Marcelo Meira Amaral Boga-
ciovas, “Tribulações do Povo de Israel na São Paulo colonial” (Mestrado, USP,
2006); Marcos Antonio Lopes Veiga, “A Inquisição e o Labirinto Marrano: cul-
tura, poder e opressão na Galiza (séculos XVI e XVII)” (Mestrado, USP, 2006);
Fernando Gil Portela Vieira, “O Santo Ofício da Inquisição na colônia e nas le-
tras: as apropriações da cristã-nova Branca Dias na literatura” (Mestrado, UFF,
2007); Janaína Guimarães da Fonseca e Silva, “Modos de pensar, maneiras de
viver: cristãos-novos em Pernambuco no século XVI” (Mestrado, UFPE, 2007);
Salomão Pontes Alves, “O paladino dos hereges: Vieira e a Inquisição” (Mes-
trado, UFF, 2007); Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, “Arte e Inquisição na
Península Ibérica. A Arte, os Artistas e a Inquisição” (Doutorado, USP, 2007);
Eneida Beraldi Ribeiro, “Bento Teixeira e a ‘Escola de Satanás’: o poeta que teve
a ‘prisão por recreação, a solidão por companhia e a tristeza por prazer’” (Dou-
torado, USP, 2007); Tarso Oliveira Tavares Vicente, “Profeta, visionário e
sonhador: Manuel Lopes de Carvalho e a Inquisição Portuguesa (1682-1726)”
(Mestrado, UFF, 2008); Bruno de Souza Machado, “A economia da Inquisição de
Goa” (Mestrado, UERJ, 2008); Maria Carolina Scudeler, “Inocentes e Culpados:
Repensando o Julgamento Inquisitorial” (Mestrado, USP, 2009); Ana Luiza de
Oliveira Silva, “A Inquisição portuguesa entre iluminados e iluministas” (Mes-
trado, USP, 2009); Maria Olindina Andrade de Oliveira, “Olhares inquisitoriais
na Amazônia portuguesa: o Tribunal do Santo Ofício e o disciplinamento dos
costumes (XVII-XVIII)” (Mestrado, UFAM, 2010); Veronica de Jesus Gomes, “Ví-
cio dos Clérigos: Sodomia e Inquisição na Bahia Colonial” (Mestrado, UFF, 2010);
Michelle Trugilho Assumpção, “Transgressores do matrimônio: Bigamia e Inqui-
sição no Brasil quinhentista” (Mestrado, UERJ, 2010); Emãnuel Luiz Souza e
[19]
Silva, “‘Juntos à Forca’: A Família Lopes e a Visitação do Santo Oficio à Bahia
(1591-1593)” (Mestrado, UEFS, 2010); Lucas Maximiliano Monteiro, “A Inquisição
não está aqui: a presença do Tribunal do Santo Ofício no extremo-sul da América
Portuguesa (1680-1821)” (Mestrado, UFRGS, 2011); Alex Silva Monteiro, “Conven-
tículo Herético’: cristãs-novas, criptojudaísmo e Inquisição na Leiria
seiscentista” (Doutorado, UFF, 2011); Halyson Rodrygo Silva de Oliveira, “Mundo
de Medo: Inquisição e cristãos-novos nos espaços coloniais. Capitanias de Per-
nambuco, Itamaracá e Paraíba (1593-1595)” (Mestrado, UFRN, 2012); Jaqueline
Souza Gomes de Melo, “Relações sociais e práticas mágicas na capitania da Bahia
durante as visitações inquisitoriais” (Mestrado, UNEB, 2012); Juliana Torres Ro-
drigues Pereira, “Bruxas e demônios no Arcebispado de Braga: uma análise da
Visitação Inquisitorial de 1565” (Mestrado, UFRJ, 2012); Janaína Guimarães da
Fonseca e Silva, “Cristãos-novos nos negócios da capitania de Pernambuco: re-
lacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de
1580 e 1630. 2012” (Doutorado, UFPE, 2012); Suzana do Nascimento Veiga, “Se-
gundo as judias costumavam fazer: As Dias-Fernandes e o Criptojudaísmo
Feminino no Pernambuco do Século XVI” (Mestrado, UFRPE, 2013); Mayara
Amando Januário, “Dos clérigos que se casam tendo ordens sacras: O Santo Ofí-
cio Português e os Padres Bígamos no Brasil Setecentista” (Mestrado, UFSJ, 2013);
Carlos Henrique Alves Cruz, “Inquéritos nativos: os pajés frente à Inquisição”
(Mestrado, UFF, 2013); Igor Guedes de Carvalho, “Lavras enfeitiçadas – curado-
res, benzedores, adivinhos e feiticeiros nas Minas Setecentistas” (Mestrado,
UFJF, 2013); Marcus Vinícius Reis, “Descendentes de Eva: religiosidade colonial
e condição feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício à América portuguesa
(1591-1595)” (Mestrado, UERJ, 2014); Cássio Bruno de Araújo Rocha, “A ação das
visitações do Tribunal do Santo Ofício na defesa da masculinidade na América
portuguesa do Antigo Regime (XVI-XVIII)” (Mestrado, UFMG, 2014); Aline Cer-
queira, “Dos processos aos poderes delegados. Inquisição e jurisdição
eclesiástica no sertão da Bahia colonial” (Mestrado, UFBA, 2014); Daniela Levy,
“Cristãos novos e o comércio internacional de diamantes” (Doutorado, USP,
2014); Juarlyson Jhones Santos de Souza, “O Mestre de Moços: Bento Teixeira e
a cultura letrada na América Portuguesa em fins do século XVI (c. 1566 - c. 1595)”
(Mestrado, UFRPE, 2015); Sarah dos Santos Araújo, “À Espreita do Sentimento:
rastros do medo e cotidiano no contexto da ação inquisitorial no Grão-Pará
(1760-1772)” (Mestrado, UFAM, 2015); Igor Tadeu Camilo Rocha, “Libertinos, To-
lerância religiosa e Inquisição sob o Reformismo Ilustrado: formulações, difusão
e representações (1757-1807)” (Mestrado, UFMG, 2015); Natália Ribeiro Martins,
[20]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

“De Portugal às Minas do Ouro: a trajetória do cristão-novo Diogo Nunes Hen-


riques (1760-1727)” (Mestrado, UFJF, 2015); José Runivaldo Marques Pascoal,
“Estratégias e Táticas nas Visitações da Inquisição Portuguesa ao Brasil: o imagi-
nário da teatralização da fé, Primeiros Regimentos e Direito Inquisitorial (1552 -
1620)” (Mestrado, UFPB, 2015); Cássia da Silva Dias, “Ser Criança Perante a In-
quisição Portuguesa: Legislações e Comportamentos” (Mestrado, UNEB, 2015);
Erick Tsarbopoulos Graziani, “Inspecionando o Coração do Império: as Visitas
da Inquisição à Cidade de Lisboa em 1587” (Mestrado, UNIFESP, 2015); Fernando
Gil Portela, “Os Calaças: quatro gerações de uma família de cristãos-novos na
Inquisição (séculos XVII-XVIII)” (Doutorado, USP, 2015); Monique da Silva Oli-
veira, “Inquisição e cristãos-novos no Rio de Janeiro: o caso da família Azeredo
na primeira metade do século XVIII” (Mestrado, UFF, 2016); Anderson Cordeiro
de Moura, “Hereges e heresias na Goiana colonial: Análise da religiosidade po-
pular brasileira na primeira visitação do Santo Ofício” (Mestrado, UFPB, 2016);
Arthur Narciso Bulcão da Silva, “Magia e Inquisição – O ‘Mundo Mágico’ do
Grão-Pará e Maranhão (1763-1769)”. (Mestrado, UFAM, 2016); Gislaine Gonçal-
ves Dias, “Perseguição, notabilização e mácula de sangue cristãos-novos: a
trajetória da família Pessoa Tavares (1706-1816)” (Mestrado, UFMG, 2016); Leo-
nardo Coutinho Lourenço, “Palavras que o Vento Leva: A parenética inquisitorial
portuguesa dos Áustrias aos Braganças (1605-1673)” (Mestrado, UFF, 2016); Elle
Beethoven dos Santos Resende, “A construção clerical do mito histórico da
bruxa: Da historiografia às fontes inquisitoriais” (Mestrado, UFPB, 2017); Érica
Ferreira “‘Servir ao Santo Tribunal’: trajetórias e atuação dos oficiais da Inquisi-
ção no termo de São João del-Rei (século XVIII)” (Mestrado, UFSJ, 2017); Diogo
Tomaz Pereira, “Falas Nefandas: Inquisição, Blasfêmias e proposições heréticas
no Brasil colonial (XVI-XVIII)” (Mestrado, UFJF, 2017); Sheila Mendes Caval-
cante, “Por trás da práxis inquisitorial: o erário do tribunal da Inquisição de
Lisboa (1539-1580)” (Mestrado, UNIFESP, 2017); Priscila Gusmão Andrade, “As
criptojudias e suas práticas culturais no final do século XVI (Pernambuco, Ita-
maracá e Paraíba)” (Mestrado, UFCG, 2017); Luis Rafael Araújo Corrêa, “Feitiço
caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição” (Doutorado, UFF,
2017); Luís Antônio de Castro Morais, “Das cousas reservadas ao Inquisidor-Ge-
ral e ao Conselho: Uma análise da atuação do Conselho Geral do Tribunal da
Inquisição de Portugal - Séc. XVIII” (Mestrado, UFSJ, 2018); Daniela Cristina Na-
lon, “A fé e o fogo: Trajetória, relapsia e herança imaterial no caso do cristão-
novo Félix Nunes de Miranda (1670-1731)” (Mestrado, UFV, 2018); Thaís Tanure
de Oliveira Costa, “‘Nas terras remotas o diabo anda solto’: Degredo, Inquisição
[21]
e escravidão no mundo atlântico português (séculos XVI a XVIII)” (Mestrado,
UFMG, 2018); Ademir Schetini Júnior, “Cristãs-novas e criptojudaísmo na Bahia
setecentista” (Mestrado, UFF, 2018); Ferdinand Almeida de Moura Filho, “Inqui-
sição no Sertão: organização, funcionamento e estudo de caso no Piauí colonial
(1748-1821)” (Mestrado, UFMA, 2018); Daniele Stéfani da Silva Corado, “‘Bem-
me-quer’: histórias de sobrevivência e feitiçaria durante Primeira Visitação do
Santo Ofício à Bahia (1591-1593)” (Mestrado, UNEB, 2018); Emãnuel Luiz de
Souza e Silva, “Sem remo e sem soldo: o degredo para as galés” (Doutorado, UFF
2018); Marcus Vinícius Reis, “Mulheres de seus corpos e de suas crenças: relações
de gênero, práticas mágico-religiosas e Inquisição no mundo português (1541-
1595)” (Doutorado, UFMG, 2018); Aluska Wanderleya Gomes da Costa, “Fé e
transgressões no espaço do confessionário sobre o olhar inquisitorial: casos de
padres solicitantes na capitania da Paraíba e Pernambuco – séc. XVIII” (Mes-
trado, UFCG, 2019); Fernando José Lopes, “Pecado indigno de ser nomeado: delito
inquisitorial de sodomia nas Minas Gerais (1700-1821)” (Mestrado, UFSJ, 2019); Ve-
ronica de Jesus Gomes, “‘Com temerária ousadia e pouco temor de Deus e da
Justiça’: clérigos sodomitas na Inquisição de Lisboa (1610-1699)” (Doutorado, UFF,
2019); Juliana Aparecida Leopoldino Lúcio, “‘Não me levo de paixão em dar estas
denúncias’: O vigilante padre Saião a serviço do Tribunal do Santo Ofício nas Mi-
nas” (Mestrado, UFSJ, 2020); Patrick Geraldo Salomão Oliveira Ávila, “Guarde a
mim e a todo o povo de Israel: João Rodrigues da Costa, um cristão-novo nas Mi-
nas setecentistas” (Mestrado, UFSJ, 2020); Bruno Fernando Silva Matos Ribeiro,
“A Inquisição no espelho: A representação do Santo Ofício português pelos inqui-
sidores (1605-1643)” (Mestrado, UFRRJ, 2021); Felipe dos Santos, “Familiaturas
recusadas pelo Tribunal do Santo Ofício na Vila de Cachoeira (1681-1750)” (Mes-
trado, UNEB, 2021); Leonardo Coutinho Lourenço, “A serviço do Santo Ofício: o
clero regular e a Inquisição portuguesa (1605-1681)” (Doutorado, UFF, 2021); Bruna
Souza Diniz, “Judaísmo (im)possível? Ressignificação das práticas judaicas sob a
ótica feminina na Primeira Visitação do Santo Ofício a Pernambuco colonial
(1593-1595)” (Mestrado, UNIFAL, 2021); Halyson de Oliveira, “Por uma História
social dos medos e resistências” (Doutorado, UFC, 2022)”.
Trata-se, sem dúvida, de uma lista extensa, porém limitada, como disse-
mos, de investigações produzidas nos primeiros anos do século XXI. Boa parte
destas pesquisas, vale dizer, encontra-se publicada em livros ou disponibilizada
para consulta online em plataformas variadas, como a da CAPES, e sites dos pro-
gramas de pós-graduação em que foram desenvolvidas, acessíveis rapidamente

[22]
FONTES INQUISITORIAIS E HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA SOBRE O PERÍODO COLONIAL
Angelo de Assis & Ronaldo Vainfas

através de busca na internet. Algumas editoras, inclusive, têm criado linhas edi-
toriais ou coleções temáticas que permitam a publicação destas obras,
facilitando o acesso aos interessados. Vários dos autores que se aventuraram em
tais pesquisas, no início do século, são hoje professores de universidades públi-
cas e historiadores consolidados.
Há, sem dúvida, e não são poucos, os que duvidam da confiabilidade das
fontes inquisitoriais para o estudo da sociedade e das mentalidades, se nos per-
mitem usar a expressão. Afinal, sendo fontes tendenciosas de um poder
repressivo, espelhariam muito mais o olhar do Santo Ofício, as heresias, reais ou
fictícias, que buscavam decifrar os inquisidores por dever de ofício. Isto é ver-
dade, em parte, e compreende-se muito a instituição e seus estilos por meio
desses papéis – o que não deixa de ser óbvio. Mas Carlo Ginzburg demonstrou
muito bem, as potencialidades etnográficas das fontes inquisitoriais e os filtros
necessários ao trabalho com este tipo de documentação em artigo clássico, inti-
tulado “O Inquisidor como antropólogo”: “Devem ser lidos como o produto de
uma inter-relação especial, e que há um desequilíbrio total das partes nela en-
volvidas. Para a decifrar, temos de aprender a captar, para lá da superfície
aveludada do texto, a interacção subtil de ameaças e medos, de ataques e re-
cuos”48. E o conclui dizendo que:
Para bem ou para mal, os historiadores que estudam as sociedades do
passado não podem apresentar o mesmo tipo de elementos de prova
que os antropólogos apresentam, ou que os inquisidores apresentavam.
Mas, para a interpretação desses elementos, eles (os historiadores) têm
algo a aprender com ambos49.

Aprender com os antropólogos, com os inquisidores e seus documentos. Não


temos dúvida em concordar com o historiador italiano, que bem conhece o Santo
Ofício, em afirmar o parentesco que paradoxalmente há entre antropólogos, histo-
riadores e inquisidores, cada um no seu papel. Afinal, já dizia Gilberto Freyre, sem
rodeios, em 1933, ele que já na altura conjugava esses papéis: “A inquisição escan-
carou sobre nossa vida íntima da era colonial (...) seu olho enorme, indagador”.

48
Carlo Ginzburg, “O Inquisidor como Antropólogo”, in A Micro-História e outros ensaios (Lisboa:
DIFEL, 1991), 209.
49
Ibid., 214.
[23]
A memória no arquivo: registos dos primeiros
anos da Inquisição em Portugal1
Susana Bastos Mateus

I’m unpacking my library. (…) I must ask you to imag-


ine yourselves with me, amid the disorder of torn-open
packing cases, breathing in the sawdust-laden air, the
floor around me littered with scraps of paper, eyeing
piles of books that have only now, after two years of
darkness, been returned to the light of day; I want you,
from the outset, to share a little of the mood (not a
mournful mood by any means, rather one of anticipa-
tion) that they awaken in a true collector2.

Arquivos inquisitoriais e legado documental


O arquivo tem um papel central na nossa contemporaneidade. A lógica de
aproximação dos historiadores aos arquivos mudou substancialmente nas últi-
mas décadas e começaram a surgir projectos e resultados que partem de um
esforço comum, embora, por vezes, os olhares sobre o(s) documento(s) sejam
tão divergentes que dificultam o diálogo. Mas, tal como os museus, e num perí-
odo que tenta reflectir sobre o doloroso passado colonial e o seu impacto, o
questionamento do arquivo e as revisitações e novos usos para os documentos
de arquivo têm originado importantes reflexões que estão longe – para o caso
português – de serem consensuais3. Nesta discussão, o arquivo passa de ser

1
O presente estudo constitui uma primeira versão de um trabalho em curso. Uma parte dessa investi-
gação prende-se com a edição e análise de documentação fundamental relativa aos primeiros anos do
funcionamento da Inquisição em Portugal. Em primeiro lugar, quero agradecer ao Pedro Pinto o traba-
lho meticuloso nos arquivos que tem permitido recolher tanta informação nova. Temos em mãos, neste
momento, a edição crítica de um dos códices que serviu de base a este trabalho e que estamos a desen-
volver dentro das actividades do grupo de investigação “História das Inquisições”. Durante a conferência
que serviu de base a este trabalho beneficiámos dos comentários instigantes de José Pedro Paiva e de
Bruno Feitler, aos quais agradeço. Por fim, agradeço também a leitura atenta de Miguel Rodrigues Lou-
renço e as suas sugestões.
2
Citamos aqui o que começou por ser um ensaio radiofónico proferido em 1931. Walter Benjamin, “Un-
packing my Library. A talk about collecting”, in One-Way Street and Other Writings (Londres: Penguin
Books, 2009), 161.
3
Veja-se as reflexões apresentadas em Leonor Calvão Borges, Ana Margarida Dias da Silva e Sílvia Maria
do Espírito Santo, “Arquivos como fontes de poder, marginalização e silêncios em Portugal e no Brasil”,
apenas fonte para ser sujeito. Já Michel Foucault alertara para a sua complexi-
dade enquanto lugar de poder, como sistema de formação e de transformação
de enunciados:
Entre a língua que define o sistema de construção das frases possíveis,
e o corpus que recolhe passivamente as palavras pronunciadas, o ar-
quivo define um nível particular: o de uma prática que faz surgir uma
multiplicidade de enunciados como outros tantos acontecimentos re-
gulares, como outras tantas coisas que se propiciam a ser tratadas e
manipuladas. Não tem o peso da tradição; e não constitui a biblioteca
sem tempo nem lugar de todas as bibliotecas; mas também não é o es-
quecimento acolhedor que abre a qualquer nova fala o campo de
exercício da sua liberdade; entre a tradição e o esquecimento faz apa-
recer as regras de uma prática que permite aos enunciados, ao mesmo
tempo, subsistirem e modificarem-se regularmente. É o sistema geral
da formação e da transformação dos enunciados4.

O movimento que se designa por “archival turn” que, embora recente, tem
raízes em trabalhos historiográficos mais antigos, tem levado um olhar etnográfico
para material arquivístico e, muitas vezes, para os arquivos coloniais5. Por outro
lado, representa uma mudança em relação à forma de pensar os arquivos e de ques-
tionar os tipos de verdades que neles residem6. O investigador actualmente deve

in Comunicação 14º Congresso Nacional de Bibliotecários, Arquivistas e Documentalistas, Faro, 2023.


Disponível online em:
https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/106980/1/Borges_Silva-Santos_2984.pdf . Consultado a 05-
01-2024. Também é importante para este debate acompanhar o papel da produção artística na aborda-
gem a uma perspectiva descolonizadora dos arquivos. Veja-se o caso da exposição patente em Lisboa “O
impulso fotográfico: (des)arrumar o arquivo colonial. Para mais informações: https://www.museus.ulis-
boa.pt/exposicao-impulso-fotografico .
4
Michel Foucault, A Arqueologia do Saber (Coimbra: Almedina, 2005), 175.
5
Já contamos com muitos estudos sobre o conceito de polifonia da documentação inquisitorial, ou de
outras instituições repressivas e policiais e sobre esse olhar antropológico e etnográfico sobre a documen-
tação. São clássicos os trabalhos de Carlo Ginzburg, O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela inquisição (São Paulo: Companhia das Letras, 1987) e Carlo Ginzburg, “O inquisi-
dor como antropólogo: uma analogia e as suas implicações”, in A Micro-História e outros ensaios (Lisboa:
DIFEL, 1991), 203-214. Para uma revisão crítica e debate sobre os limites éticos de procurar resgatar a voz
dos “subalternos”, veja-se John H. Arnold, “The Historian as Inquisitor: the ethics of interrogating subal-
tern voices”, Rethinking History: The Journal of Theory and Practice 2, 3 (1998): 379-386.
6
Ann Laura Stoler, “Colonial Archives and the Arts of Governance”, Archival Science 2 (2002): 94. “From
whichever vantage point – and there are more than these – the “archival turn” registers a rethinking of
the materiality and imaginary of collections and what kinds of truth claims lie in documentation”.
[26]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

ter presente os vários níveis de subjectividades, seja as que derivam do seu próprio
ser, sejam as que derivam da construção específica dos documentos7.
Neste rico e conflituoso panorama, como se integram as reflexões sobre os
arquivos das Inquisições? E, acrescentamos, como podemos pensar a própria
gestão do aparelho burocrático feita pelos tribunais e como a devemos incluir
nas “formas de governo” definidas e teorizadas por Foucault? A historiadora
Irene Silverblatt, no prólogo ao seu livro sobre a Inquisição de Lima, reflecte
sobre os conceitos de burocracias modernas utilizados por Foucault e por Pierre
Bourdieu, mas considerando que as Inquisições, apesar de terem uma génese
mais antiga, já integram este sistema moderno. Escreve Silverblatt:
I would add the Spanish Inquisition to any list of modern bureaucra-
cies. As an institution it was developing a structure and logic apart from
dynastic boundaries; it was formally organized according to the princi-
ples of rationality; it was imagined as being greater than the sum of its
individual officeholders; and it was careful to legitimate its practices
through an appeal to public welfare. In sum, the Inquisition was a bu-
reaucracy that typified the evolving institutions of the emerging
modern world: it was a state structure in the making8.

A historiografia sobre as Inquisições tem dado algum destaque ao estudo


das fontes, mas, nos últimos anos, em virtude de alguns estudos sobre os mo-
mentos finais dos tribunais inquisitoriais foi possível pensar nas lógicas de
conservação dos cartórios das inquisições e nos legados documentais e de me-
mória destas instituições. Os historiadores têm individuado diversos factores
que condicionam a sobrevivência dos cartórios dos tribunais. De facto, traçando
uma comparação entre os tribunais, ibéricos (incluindo os coloniais) e romanos,
encontramos grandes discrepâncias em relação à conservação dos documentos
inquisitoriais. Para o caso português, o exemplo mais gritante é o do cartório da
Inquisição de Goa. Por uma conjugação de factores de natureza diversa, o ar-
quivo foi perdendo os seus papéis em diferentes momentos. As causas para estas
perdas, no caso indiano, chegam de factores naturais – como a humidade e o
clima das monções que deteriorava os documentos –, mas também das tensões
políticas externas ao tribunal, no século XVIII. Já no momento da abolição desta
sede, em 1812, as causas para a destruição do arquivo parecem ser de dois níveis:

7
Veja-se o interessante trabalho para o caso do Peru colonial, especialmente o capítulo 5 “Archives as
Chessboards”, de Kathryn Burns, Into the Archive. Writing and Power in Colonial Peru (Durham, Lon-
don: Duke University Press, 2010), 124-147.
8
Irene Silverblatt, Modern Inquisitions. Peru and the Colonial Origins of the Civilized World (Durham,
London: Duke University Press, 2004), 10-11.
[27]
por um lado, o “estorvo” que o volume documental apresenta para ser armaze-
nado e, sobretudo, o perigo que o conteúdo da informação trazia caso fosse
tornada pública, com a possibilidade de manchar a honra e a memória das famí-
lias goesas9. Casos de destruição activa ou perda por incúria estão também
presentes nos tribunais americanos, como foi analisado por Gabriel Torres Puga
em estudos recentes10.
Os inícios da Inquisição em Portugal correspondem a um momento de
produção documental significativo, uma vez que era necessário dar enquadra-
mento normativo e humano a uma instituição que acabava de nascer. Por outro
lado, também por este motivo, tratava-se de uma instituição em que se come-
çava a ensaiar a constituição de um arquivo, alimentando um esforço de
organização documental que não se destinava, neste primeiro momento, a cons-
tituir a memória da instituição, mas sim um arquivo vivo e activo para ser
consultado quotidianamente por aqueles que a ele podiam ter acesso. A boa ges-
tão do arquivo e da documentação são pontos fundamentais para contribuir para
uma eficiência do funcionamento do tribunal. A boa gestão da informação, per-
mitindo o cruzamento de dados e a recuperação dos assuntos a qualquer
momento, era de grande importância para o sucesso da actuação da instituição.
Para o historiador hodierno, que navega, muitas vezes, entre vazios e si-
lêncios de informação, o conhecimento dos fundos documentais do Santo Ofício
permite perceber o modo como as instituições funcionavam e se articulavam.
Possibilita, também, ter uma visão sobre como as instituições escolhiam organi-
zar e preservar a sua memória e como, na longa duração, foram mudando as
formas de conceber o seu próprio cartório.
O presente estudo propõe uma reflexão que cruza o património documen-
tal das Inquisições e as suas práticas, procurando, através de uma primeira
abordagem a um livro que pertenceu ao cartório da Inquisição portuguesa, olhar
para as dinâmicas que estiveram presentes nos momentos iniciais do Santo

9
Seguimos aqui a análise de Bruno Feitler sobre a história custodial do tribunal de Goa em “O Secreto
do tribunal indiano da Inquisição Portuguesa: entre Goa, Lisboa e o Rio de Janeiro”, Revista de Fontes 9,
2 (2018): 36-50, consultado a 10 de Março de 2023, https://periodicos.unifesp.br/index.php/fontes/arti-
cle/view/9139/6672.
10
Veja-se Gabriel Torres Puga, “Conservación y pérdida de los archivos de la Inquisición en la América
española: México, Cartagena y Lima”, in Inquisiciones. Dimensiones comparadas (siglos XVI-XIX), ed.
Jaqueline Vassallo, Miguel Rodrigues Lourenço e Susana Bastos Mateus (Córdoba: Editorial Brujas,
2017), 45-62 e “¿Resguardar el archivo o proteger el secreto? Conservación y destrucción de expedientes
inquisitoriales”, Revista de Fontes 9 (2018): 98-114, consultado a 18 de Março de 2023, Disponível online
em: https://periodicos.unifesp.br/index.php/fontes/article/view/9142/6675.
[28]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

Ofício em Portugal. Seguindo as imagens suscitadas por Walter Benjamin, ao


desempacotar a sua biblioteca, no seu entusiasmo a cada caixa e a cada livro11,
queremos olhar para este objecto que esteve nas estantes que constituíam o ar-
quivo do secreto do tribunal para, com esse movimento, convocar alguns dos
aspectos da vida do tribunal nos seus primeiros tempos de funcionamento.
Este códice12, que aqui nos servirá de guia, seria um livro de mão usado
pela instituição para registar documentos fundamentais. Nele foram copiados,
em primeiro lugar, as bulas e os decretos pontifícios que conferiam a validade à
instituição, depois, as comissões e nomeações, bem como os éditos e os primei-
ros textos de cariz normativo, os esboços dos regimentos que serão,
posteriormente, edificados no regimento mais articulado de 1552.
A preocupação com o bom estado de conservação e de organização dos
arquivos é comum aos vários sistemas inquisitoriais. Para a Inquisição espa-
nhola, encontramos uma clara preocupação com esta organização e cuidado nas
Instrucciones do cardeal Espinosa, datadas de 18 de Maio de 157013. Para o caso
das Ilhas Canárias, a título de exemplo, deram-se várias indicações aos inquisi-
dores que chegavam ao arquipélago para organizar os registos14. Também no
mundo colonial, de Goa até à Cidade do México, encontramos correspondência
e instruções diversas que mostram como as cúpulas inquisitoriais se preocupa-
vam com o estado dos arquivos15. Como já referimos, a consciência era clara de
que um arquivo bem organizado, por exemplo com índices alfabetizados de cau-
sas, permitia uma maior eficiência do tribunal e da prática quotidiana dos
inquisidores16. O arquivo da Inquisição cumpria, assim, várias funções. Por um

11
“The memories that come flooding in, each time one digs into the mound of packing cases in order to
extract the books by a process of open-pit or should I say deep-pit mining! Nothing could better high-
light the fascination of such unpacking than how hard it is to stop”, Benjamin, “Unpacking my Lib.”, 169.
12
Trata-se do códice 1596 do fundo de manuscritos da Biblioteca Nacional de Portugal. Apesar de não
ter identificação clara, num dos treslados refere-se que este códice seria um "liuro das creacões dos offi-
cios desta sancta Jnquisiçam". Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 109.
13
“Instrucciones del cardenal Espinosa acerca de los libros de que debe componerse el Arch. Secreto de
las Inquisiciones”, in Introducción a la Inquisición Española (Madrid: Editorial Nacional, 1980), 285-290.
14
Manuela Ronquillo Rubio, Los orígenes de la Inquisición en Canarias, 1488-1526 (Las Palmas: Ediciones
del Cabildo Insular, 1991), 86-87.
15
São claros os exemplos sobre a preocupação na organização do tribunal indiano que ficam espelhados
na criação do Reportório pelo promotor João Delgado Figueira, em 1623. Veja-se Feitler, “O Secreto do
tribunal indiano”, 36-41. Para os tribunais americanos de México e Lima, veja-se as considerações de
Torres Puga, “Conservación y pérdida de los archivos”, 45.
16
Torres Puga, “Conservación y pérdida de los archivos”, 46. Jaqueline Vassallo, “Los archivos de la
Inquisición Hispanoamericana como instrumentos de control y eficiencia”, Revista del Archivo Nacional
[29]
lado, detinha, quando bem cuidado e organizado , uma capacidade de indexação
e de classificação da realidade. Como afirmou Doris Moreno, com este zelo
“podía cumplirse el objectivo de clasificar herejías, de identificar la realidade
sobre la cual actuaba judicialmente y de intervenir en la comunidad”17. Por outro
lado, a existência do secreto e as restrições de acesso à própria sala do arquivo e
à documentação nela conservada eram mecanismos que espelhavam simbolica-
mente o poder do próprio tribunal18.
No caso português, assistimos às mesmas preocupações quanto à conser-
vação dos papéis no cartório do Santo Ofício, a sua manutenção e organização.
No Regimento de 1552, nos itens relacionados com a funções do promotor, faz-
se referência ao bom estado dos papéis e à sua organização, bem como aos cui-
dados e restrições de acesso aos documentos19. Mas, já nos primeiros esboços de
textos regimentais, estas directivas encontravam-se enunciadas. No breve texto
de “forma de proceder”, uma espécie de articulado de normativas essenciais para
o funcionamento da Inquisição, datado de 1536, não se faz alusão clara à gestão
dos papéis, mas sim aos dias de expediente e à comunicação entre o solicitador
e promotor20. No entanto, o que ficou incipiente neste apontamento de 1536,
viria a ter mais expressão nas instruções de Setembro de 1541, elaboradas no con-
texto de ampliação territorial do tribunal e criação de tribunais de distrito, onde
já se dedica um espaço mais claro aos livros que devem existir e à preocupação
com a boa manutenção dos papéis inquisitoriais21. Uma tabela comparativa entre
as Instruções de 1541 e o Regimento de 1552 permite ver como evoluiu a normativa
sobre a organização do cartório, sendo que alguns dos apartados estavam já

(San José de Costa Rica), 72 (2008): 187-198, consultado a 9 de Março de 2023, https://core.ac.uk/down-
load/pdf/159291699.pdf.
17
Doris Moreno, “La Inquisición vista desde dentro. La visita del licenciado Cervantes al tribunal del
Santo Oficio en Barcelona (1560)”, Historia Social 32 (1998): 80.
18
Ibid., 80.
19
António Baião, A Inquisição em Portugal e no Brazil. Subsídios para a sua história (Lisboa: Arquivo
Histórico Português, 1921), 68-70.
20
Veja-se “Regimento da forma de proceder do Santo Ofício, 1536”, in A Santa Inquisição em Portugal,
dir. Angelo de Assis e Ronaldo Vainfas, livro 4, Fundação e Extinção do Santo Ofício Português, org. Su-
sana Bastos Mateus e Lúcia Bastos Pereira das Neves (Leiria: Editora Proprietas, 2022), 78-80.
21
“Primeiras instruções do Infante D. Henrique para o funcionamento da Inquisição, 1541”, in A Santa
Inquisição em Portugal, 86-97. Veja-se I.-S. Révah, “L’installation de l’Inquisition à Coimbra en 1541 et le
premier règlement du Saint-Office portugais”, in Études Portugaises (Paris: Fundação Calouste
Gulbenkian – Centro Cultural Português, 1975), 136-153. Também se debruça sobre estas instruções e a
sua ampliação no Regimento de 1552 Giuseppe Marcocci, I Custodi dell’Ortodossia. Inquisizione e Chiesa
nel Portogallo del Cinquecento (Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004), 90-92.
[30]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

contemplados no primeiro texto, mas, como seria expectável, o Regimento veio


trazer maior densidade ao tema.
Síntese comparativa dos capítulos das Instruções de 1541 e do Regimento de
1552, referentes ao secreto e aos livros do Santo Ofício
Primeiras Instruções do Infante D. Henrique
Regimento de 1552
para o funcionamento da Inquisição, 1541
O promotor terá grande cuidado e diligência em passar os livros e
[o promotor] terá uma arca sobre si em muito
papéis que houver do Santo Ofício da Inquisição para não somente
recado, onde estarão as culpas por onde se farão
estarem em ordem, mas também para se perguntarem as testemu-
os libelos e todos os mais papéis da Inquisição.
nhas que estiverem referidas por outras para se fazerem diligências…
Terá cuidado de requerer quando lhe parecer necessário que se po-
nham em ordem os registos e originais dos negócios dos feitos e
papeis que houver na câmara do secreto da Inquisição por seus re-
portórios, de modo que se ache cada coisa brevemente.
Em cada uma das Inquisições haverá uma câmara do secreto onde
estarão todos os livros e registos e papéis pertencentes ao Santo Ofí-
cio, a qual câmara terá portas fortes e firmes e na porta haverá três
fechaduras com chaves diversas. E as duas delas terão os dois notá-
rios (…) e a outra o Promotor (…) para que nenhum só possa tirar
escritura alguma sem que todos três estejam presentes.
Na câmara do secreto não entrarão senão os inquisidores e os notá-
rios do secreto e o Promotor, e não entrarão nela outros oficiais
Um dos notários estará sempre com o Promotor enquanto vir os li-
vros e papéis que lhe cumpre para requerer sua justiça.
Haverá na câmara do secreto do Santo Ofício três livros (…) em que
escreverão as criações e juramentos dos oficiais e inquisidores e tras-
e as criações se escreverão em um livro que para
ladarão suas provisões; e outros dois, convém a saber, um em que se
isso se ordenará, e receberão juramento em
escrevam as denunciações das testemunhas e outro em que se es-
forma, de seus ofícios.
crevam as reconciliações secretas e confissões que se fizerem antes
das pessoas serem presas.
e acabados os processos, parece que se deve or-
denar um livro, que esteja em muito recado e Na casa do secreto haverá estantes postas em boa ordem e nelas es-
secreto, que sirva de Repertorio por A. B. C. de tarão todos os feitos findos e que se processarem por sua ordem, dos
todos os feitos despachados e de todos os culpa- quais haverá um reportório para se saber de quem são e em que
dos que houver, declarando-os por seus nomes tempo se tratarão, e o caso que é, de maneira que facilmente se pos-
e sinais, para se poderem conhecer em todo o sam achar quando cumprir.
tempo.
Na mesma casa do secreto estarão os livros das denunciações e re-
conciliações em arcas ou armários fechados.
[Nesses livros] haverá reportório abecedário de todas as pessoas que
estiverem culpadas nos ditos livros, declaradas por seus nomes e so-
brenomes e circunstâncias por onde se possa saber quem são. E
assim haverá outro reportório mais geral (…) e o escrivão que escre-
ver a denunciação ou reconciliação terá cuidado de logo lançar a tal
pessoa culpada no reportório sem que aí haja mais dilação.
Nenhuns papéis, nem processos se tirarão nunca da casa do secreto,
nem traslado deles, nem traslado algum de autos que pertençam ao
Santo Ofício, sem especial mandado dos Inquisidores, os quais o não
permitirão, senão com causa muito urgente, pelos inconvenientes
que disso se pode seguir.
E os notários não escreverão nenhuma coisa que toque a este Santo
Ofício da Inquisição assim nos livros e papéis do secreto como nos
processos que se processarem senão na casa do despacho deputada
para isso, e logo ficarão postos no lugar onde devem estar ordinari-
amente, e não se levarão a outra parte nenhuma.
Haverá um livro apartado dos outros em que ordinariamente se re-
gistem os mandatos e diligências para fora.

[31]
Anatomia de um livro: uma imagem do início da Inquisição portuguesa
Um livro procura sempre instaurar uma ordem, quer
seja a ordem da sua decifração, a ordem segundo a qual
deve ser entendido, ou a ordem determinada pela auto-
ridade que o encomendou ou o autorizou22.

A investigação de Pedro Pinto permitiu ampliar o conhecimento sobre os


fundos documentais sobreviventes do Santo Ofício português23. O autor inven-
tariou documentação produzida pela instituição que se encontra, actualmente,
conservada em bibliotecas e arquivos portugueses, sendo o seu trabalho um im-
portante complemento ao catálogo descritivo dos fundos conservados na Torre
do Tombo24. Apesar de, exceptuando o caso de Goa, encontrarmos cartórios
muito bem conservados para a Inquisição portuguesa – ainda para mais quando
comparado com alguns tribunais da Inquisição espanhola – não deixamos de ve-
rificar que também em Portugal ocorreu uma dispersão documental.
Uma das análises de Pedro Pinto, no seguimento do que já fora sistemati-
zado no catálogo de Maria do Carmo Dias Farinha, procurou reconstituir a
correspondência de alguns livros do Conselho Geral do Santo Ofício que se en-
contram, hoje, nos fundos de manuscritos da Biblioteca Nacional de Portugal. E,
em nosso entender, é precisamente neste conjunto de códices que integraram o
conteúdo do arquivo do Conselho Geral, ou da Inquisição de Lisboa25, que se
encontra o caso de estudo que servirá como âncora para as reflexões que aqui
apresentamos. Como já mencionámos, seguimos o olhar através de um livro para
o período inicial da Inquisição portuguesa, integrante de uma cultura adminis-
trativa de identificação, tal como a definiu Francisco Bethencourt26. Pedro Pinto,
no seu catálogo, refere tratar-se de um códice que contém muitos documentos

22
Roger Chartier, A ordem dos livros (Lisboa: Vega, 1997), 6.
23
Pedro Pinto, Fora do Secreto. Um contributo para o conhecimento do Tribunal do Santo Ofício em ar-
quivos e bibliotecas de Portugal (Lisboa: CEHR, 2020).
24
Esta inventariação foi feita em 1990 por Maria do Carmo Dias Farinha, Os arquivos da Inquisição (Lis-
boa: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 1990).
25
Para uma análise sobre as indefinições e equívocos de identificação entre o que pertencia ao Conselho
Geral e à Inquisição de Lisboa, atendendo a que partilhavam os mesmos espaços e, por vezes, os mesmos
oficiais, veja-se Daniel Norte Giebels, “Quando foi criada a Inquisição de Lisboa? – explorando hipóte-
ses”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 19 (2019): 379-397, consultado a 22 de Março de 2023,
https://impactum-journals.uc.pt/rhsc/article/view/1645-2259_19_16/5879.
26
Veja-se sobre este conceito de uma cultura manuscrita administrativa da Inquisição, em que os docu-
mentos eram também mantidos num segredo apenas acessível a poucos, Francisco Bethencourt,
História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália (Lisboa: Círculo de Leitores, 1994), 43.
[32]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

fundacionais do Santo Ofício português, com uma quantidade significativa de


documentos originais – como nomeações e autos de juramento – contendo as
respectivas assinaturas27. O arco cronológico compreendido por este documento
situa-se entre 1536 e 159128. No entanto, para este estudo iremos analisar apenas
os documentos que correspondem ao primeiro momento da Inquisição portu-
guesa, balizando-se, grosso modo, entre 1536 e 154829.
Neste livro, encontramos elementos fundamentais para o dia a dia de fun-
cionamento da instituição e parece-nos que esse aspecto reveste esta peça
documental de grande interesse, uma vez que tem esse carácter de imediatismo
e de construção ao sabor das necessidades e dos desafios que se impunham a um
tribunal recém estabelecido30. Esta exigência de corresponder às necessidades
práticas dos inquisidores é visível nos acrescentos que se fazem de peças docu-
mentais que não pertencem ao núcleo original, mas que são introduzidas no
livro quando passam a ser peças fundamentais para o procedimento do tribu-
nal31. Estes acrescentos, feitos em diferentes momentos, espelham os usos do
códice ainda para além dos anos iniciais da Inquisição em Portugal.

27
Quero deixar aqui um caloroso agradecimento ao Pedro Pinto que nos sinalizou a existência desta
fonte e alertou para o interesse no âmbito do trabalho que realizávamos.
28
Pinto, Fora do Secreto, 200-202.
29
Estamos a considerar o período compreendido entre a publicação da bula Cum ad nil magis, nos finais
de 1536 e a implementação da bula Meditatio cordis, considerado o momento de refundação do tribunal.
Veja-se Marcocci, I Custodi dell’Ortodossia, 87-91.
30
Sobre as dificuldades de implementação da estrutura administrativa do tribunal, veja-se algumas con-
siderações que elaborámos em Susana Bastos Mateus, “Los orígenes inciertos de la Inquisición en Lisboa
(1536-1548): Geografía penitencial y estratégias de defensa de los Cristãos-Novos”, Tiempos Modernos 7,
n.º 20 (2010): 1-23, consultado a 16 de Março de 2023, http://www.tiemposmodernos.org/tm3/in-
dex.php/tm/article/view/212/277; e também Susana Bastos Mateus, “La primera Inquisición:
oposiciones y resistencias en la construcción del Santo Oficio en Portugal (1531-1548)”, in Las Razones
del Santo Oficio, ed. Anita Gonzalez-Raymond e Rafael Carrasco (Montpellier: Presses universitaires de
la Méditerranée, 2017), 199-212.
31
Um bom exemplo encontra-se logo no início do códice em que foi apenso um documento, uma cons-
tituição do papa Pio V a favor do Santo Ofício e contra os que ofendem o seu “estado, negócios e
pessoas”. Neste caso, trata-se de um texto emanado de Roma a 1 de Abril de 1569 e colocado aqui numa
cópia feita em Lisboa a 20 de Março de 1591, no seu original latino e numa tradução portuguesa. Para
além deste documento, apensou-se também um traslado do breve de Gregório XIII, de 13 de Agosto de
1574, cuja execução D. Henrique ordenou a 1 de Outubro de 1574, e um traslado da provisão de D. Hen-
rique de execução do breve, datada de 7 desse mesmo mês, feito em Fevereiro de 1587. Lisboa, BNP, cód.
1596, fls. 1-11v. Esta interpolação de documentos volta a acontecer a com um treslado de uma carta apos-
tólica de Pio V a D. Sebastião, felicitando-o por não ter perdoado o confisco de fazenda aos cristãos-
novos que cometessem delitos, datado de 10 de Julho de 1568. Ibid., s.f. Veja-se a listagem destes docu-
mentos na descrição oferecida por Pinto, Fora do Secreto, 200-201.
[33]
Fazendo uma leitura global da sua estrutura, verificamos que este livro tem
concomitância com os livros de provimentos e de nomeações que encontramos
noutros fundos32. Uma parte significativa dos documentos que o compõem são
comissões e nomeações, com os respectivos termos de aceitação e juramento,
atestados pelas assinaturas dos nomeados. Esta pluralidade de “vozes” trazidas
pelas diferentes letras e mãos que escreveram no códice, é espelho, mais uma
vez, do seu uso quotidiano, dentro da práxis burocrática da instituição. Esta ti-
pologia de livros era, em nosso entender, fundamental para o funcionamento
regular do tribunal, uma vez que ela continha informações basilares para a sua
orgânica. Como referimos, na sua maior parte, este livro corresponde ao mo-
mento inicial de implantação do Santo Ofício em território português, ainda
antes de um período de organização que, sobretudo durante a presidência de D.
Henrique, foi empreendido e antes dos primeiros esforços de regulamentação
como o do Regimento de 155233. Não pretendemos, neste espaço, apresentar uma
detalhada análise deste códice, mas, no estado atual da nossa investigação, po-
demos apresentar algumas considerações, mormente uma primeira divisão da
tipologia de documentos que aqui podemos encontrar: bulas, breves e documen-
tos pontifícios; regimentos, cartas régias e outros documentos normativos;
éditos; nomeações, comissões e autos de juramento.

“Para de presente se proçeder”. Entre as regras e os homens da Inquisição


L’écriture acumule, stocke, résiste au temps par
l’établissement d’un lieu et multiplie sa production par
l’expansionnisme de la reproduction34.

Uma parte dos documentos que encontramos no livro que estamos a ana-
lisar mantiveram a sua importância para a interpretação da acção inquisitorial
porque se reproduziram e foram copiados em muitos outros papéis inquisitori-
ais. Logo no início do códice encontramos o documento que dá sentido e que
orienta a actuação da Inquisição nos primeiros tempos, a bula fundacional Cum
ad nil magis de 23 de Maio de 1536. A sua importância pode ser aferida pela

32
Veja-se para Lisboa, Lisboa, ANTT, TSO, IL, livs. 103 e 104; Para Coimbra, Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv.
252; Para Évora, Lisboa, ANTT, TSO, IE, liv. 146.
33
Veja-se Marcocci, I Custodi, 89-100; Susana Bastos Mateus, “A reorganização do Santo Ofício portu-
guês (1548-1570)”, in Historia imperial del Santo Oficio (siglos XV-XIX), Fernando Ciaramitaro e Miguel
Rodrigues Lourenço, coord. (México: Bonilla Artigas Editores, 2022), 883-900.
34
Michel de Certeau, “Lire: un braconnage”, in L’invention du quotidien, vol. 1 – arts de faire (Paris:
Gallimard, 2014), 251.
[34]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

quantidade de cópias que se podem encontrar na documentação inquisitorial da


primeira década35. Como pudemos verificar em outras investigações, a impor-
tância da bula era tão grande que servia também os próprios réus que a
utilizavam para a argumentação jurídica em sua defesa, anexando-a aos seus
processos e sublinhando – através dos seus procuradores – as passagens que os
inquisidores desrespeitavam36. Para além do texto da bula, encontramos também
uma vasta documentação relacionada com a sua publicação, aceitação por D.
Diogo da Silva, e leitura pública. A entrada da Inquisição foi feita, como podemos
ver, com grande solenidade37.
Como referido anteriormente, este livro contém, também, um primeiro e
brevíssimo “Regimento da Sancta Inquisiçam para de presente se proçeder”, no
qual se podem ler alguns princípios básicos sobre como deveria funcionar o tri-
bunal nos primeiros momentos da sua instalação. Num primeiro parágrafo,
alude-se ao inquisidor e aos deputados do Conselho Geral, seguindo-se uma re-
ferência ao solicitador e à clarificação das suas funções38. Mostrando que, de
acordo com o que se estabelecia na bula fundacional, estas entidades deviam
entrar em funções de imediato, em relação às tarefas do inquisidor-geral e dos
deputados do Conselho, oferece-se um esquema organizativo semanal que resu-
mimos na tabela seguinte.

Funções semanais do inquisidor-geral e deputados do Conselho Geral


Funções 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª sábado
Inquirição quotidiana x x x
Audiência e inquirições dos feitos que ordinariamente
x x
se processam
Dúvidas que ocorrerem e provisão de todas as coisas
x
necessárias
Despacho de agravos e apelações x
Fonte: Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 13.

35
Um exemplo é o treslado que surge nos fundos da Inquisição do Porto, copiado para servir na comarca
de Entre-Douro-e-Minho, em 1546. Lisboa, ANTT, TSO, Inquisição do Porto, mç. 4, n.º 4
36
Veja-se Mateus, “Los orígenes inciertos”, 17.
37
Lisboa. BNP, cód. 1596, fls. Na sua História da Inquisição Portuguesa, Giuseppe Marcocci e José Pedro
Paiva reconstituem os momentos iniciais da Inquisição portuguesa, em Évora – onde se encontrava a
Corte – no ano de 1536. Os dois autores afirmam mesmo que “[a] Inquisição nasceu no coração do Re-
nascimento português. Era um dia de início de Outubro de 1536”. Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva,
História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) (Lisboa: A esfera dos livros, 2013), 23. Para a reconstrução
dos vários eventos que enformaram o estabelecimento da Inquisição em Portugal, vejam-se as páginas
23-25.
38
Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 13-13v. Publicado em Mateus e Neves, A Santa Inquisição, 78-80.
[35]
Os homens são figuras de grande relevo nesta primeira fase, pensado que
estamos perante uma instituição que necessita de quadros humanos especiali-
zados e que, muitas vezes, vai tentar recrutá-los junto de outras instituições,
como os oficiais nas fileiras diocesanas ou da justiça civil, por exemplo. À cabeça
encontramos os dois primeiros Inquisidores-mores, aqui espelhados nos seus
respectivos momentos de nomeação39. A presença de D. Diogo da Silva é, no en-
tanto, muito breve ao longo do livro, reflexo do que, na realidade, é
representativo do seu papel no comando do Santo Ofício português, com um
certo afastamento e por um tempo não muito longo40. Pelo contrário, D. Henri-
que será, sem dúvida, a figura-chave da Inquisição portuguesa ao longo de quase
todo o século XVI. Destaca-se também o percurso do inquisidor João de Melo,
um homem fundamental para o aparelho inquisitorial desde os seus primeiros
tempos que foi crucial no período inicial, dada a pouca determinação com que
D. Diogo da Silva se dedicava aos assuntos da Inquisição41. A preponderância de
João de Melo era tão significativa que foi chamado a ocupar o lugar destinado ao
Inquisidor-geral no despacho quotidiano do tribunal42.
Para além destas figuras cimeiras, outros indivíduos desfilam nas páginas
deste livro. Encontramos, comissões, nomeações e autos de juramento de dife-
rentes oficiais. Se olharmos para o livro de forma diacrónica podemos
reconstruir a estruturação de um “edifício” inquisitorial em que os oficiais vão
sendo nomeados de acordo com as necessidades que a realidade vai impondo.
Ainda no ano de 1536, aos poucos dias de começar a funcionar, encontramos a
nomeação de um notário, figura central para o registo dos autos, e dos quatro
conselheiros que deveriam compor o Conselho Geral43.
É precisamente este um dos aspectos relevantes que este códice permite
compreender de forma mais minuciosa: a forma como se criou e compôs esse
Conselho Geral do Santo Ofício, nos anos iniciais44. A bula fundacional era, neste

39
Veja-se Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 14 e 77-79.
40
Sobre D. Diogo da Silva, veja-se Susana Bastos Mateus, “Silva, Diogo da”, in Dizionario Storico dell’In-
quisizione, Adriano Prosperi, dir., vol. 3 (Pisa: Edizioni della Normale, 2010), 1428.
41
Sobre João de Melo, veja-se Ana Cristina Costa Gomes, “Castro, João de Melo e”, in Dizionario Storico
dell’Inquisizione, vol. 1, 304; Daniel Giebels, A Inquisição de Lisboa (1537-1579) (Lisboa: Gradiva, 2018), 74-79.
42
A confiança que D. Henrique depositava em João de Melo pode ser apreciada pelo teor das comissões
passadas ao inquisidor. A primeira delas é datada de 13 de Janeiro de 1537, revogada a 26 de Setembro de
1538, seguindo-se nova comissão a 11 de Outubro de 1538. BNP, cód. 1596, fls. 67v, 69v.
43
Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 24 e 22, respectivamente.
44
Veja-se, sobre este momento do Conselho Geral, visto como “embrião” do que seria constituído a
partir de 1569, Marcocci e Paiva, História da Inquisição, 24.
[36]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

aspecto, bastante clara, prevendo a constituição imediata do conselho, “Consi-


lium Generale Inquisitionis”45. D. Diogo da Silva terá seguido esta instrução de
forma escrupulosa, constituindo assim, o primeiro Conselho com quatro conse-
lheiros, a 10 de Outubro de 153646. O quadro seguinte procura mostrar as várias
nomeações que aparecem no livro:
Lista de deputados do Conselho Geral com as datas de nomeação (1536-1565)
Nome Data de nomeação Fonte
Rui Lopes de Carvalho 10-10-1536; 16-07-1539 BNP, cód. 1596, fl. 22, 80v
João de Melo 10-10-1536; 16-07-1539 BNP, Ibid., fl. 22, 80v
Gonçalo Pinheiro 10-10-1536 BNP, Ibid., fl. 22
António Rodrigues 10-10-1536 BNP, Ibid., fl. 22
Frei João Soares 16-07-1539 BNP, Ibid., fl. 80v
Rui Gomes Pinheiro 16-07-1539 BNP, Ibid., fl. 80v
António de Leão 16-12-1541 BNP, Ibid., fl. 110
Manuel Falcão 03-07-1542 BNP, Ibid., fl. 112
Ambrósio Campelo ??-05-1545 BNP, Ibid., fl. 124
Jorge Gonçalves Ribeiro ??-08-1546 BNP, Ibid., fl. 127
Mestre frei Gaspar dos Reis47 Antes de 1556 BNP, Ibid., fl. 137v
Manuel de Almada Antes de 1556 BNP, Ibid., fl. 137v
Martim Lopes Lobo 25-01-1550 BNP, Ibid., fl. 137v
Simão de Sá Pereira 11-03-1559 BNP, Ibid., fl. 163
Martim Pinheiro 16-03-1565 BNP, Ibid., fl. 203
Fonte: Lisboa, BNP, cód. 1596
(destaque para os deputados nomeados num período cronológico que transcende aquele que temos
aqui em apreço).
Com a passagem do tribunal de Évora para Lisboa, em 1537, a presença do
Conselho Geral na cidade de Lisboa terá provocado alguma confusão entre os
limites de uns e de outros, sobretudo quando se engrossaram os quadros huma-
nos da mesa distrital de Lisboa48. De facto, muitos dos conselheiros foram
deputados da mesa de Lisboa e as funções nem sempre se encontravam bem

45
Na tradução da bula Cum ad nil magis: “ou ao Conselho Geral da mesma Inquisição, a constituir por
vós, por autoridade nossa”, in Documentos para a História da Inquisição em Portugal, ed. Isaías da Rosa
Pereira (Porto: Arquivo Histórico Dominicano Português, 1984), 26. Sobre o Conselho Geral, desde os
primeiros tempos, bem como as suas funções e dinâmicas, deve ler-se a entrada redigida por Bruno
Feitler, “Consiglio Generale dell’Inquisizione portoghese”, Dizionario Storico dell'Inquisizione, vol. 1,,
395-398. Veja-se também Baião, A Inquisição, 29-51.
46
Lisboa, BNP, códice 1596, fl. 22.
47
Veja-se as indicações em fr. Pedro Monteiro, “Catalogo dos Revedores dos Livros e Qualificadores do
Santo Officio que tem servido nas tres Inquisiçoens deste Reyno, Religiosos da Sagrada Ordem dos Pré-
gadores, primeira das Mendicantes”, Collecçam dos Documentos e Memorias da Academia Real da
Historia Portugueza (Lisboa Ocidental: Na Officina de Pascoal da Sylva, 1724), 7: “Deputado do Conse-
lho em Lisboa, sendo Inquisidor geral o Cardeal Infante, pelos annos de 1556 (do que não demos noticia
no Catalogo, que sahio a luz dos Deputados deste Conselho pela não termos não termos ainda então.
Depois se nos communicou por Ministro do mesmo Tribunal, que vio nos livros delle este acento)”.
48
Giebels, A Inquisição de Lisboa, 121.
[37]
definidas. Sem dúvida, a partir do ano de 1569, as funções e a orgânica do Con-
selho Geral passam a ser mais delimitadas e organizadas. Precisamente, o “Livro
da Creação do Conselho Geral do sancto officio da Jnquisiçam e dos senhores
conselheiros e demais officiaes delle” refere inclusivamente que o Conselho foi
criado e instituído por D. Henrique, a 14 de Junho de 156949. Neste esforço de
regulamentação do organismo será preparado um regimento próprio que se co-
nhece para o ano de 157050. Vários historiadores se têm debruçado sobre o
funcionamento deste órgão51. Ana Isabel López-Salazar Codes, por exemplo, de-
dicou-se ao estudo dos laços de parentesco e das estratégias familiares para
compreender as nomeações para os cargos de conselheiros-deputados52.
Na sua arquitectura, o cód. 1596 contém uma parte significativa de docu-
mentos que correspondem a nomeações para os mais diversos cargos que
compunham o aparelho inquisitorial. Desta forma, desfilam diante dos nossos
olhos os nomes dos agentes que compunham a instituição como pequenos re-
tratos tirados em momentos concretos, os momentos de nomeação e de
aceitação e o juramento, com as formalidades e o cerimonial necessários ao de-
sempenho dos ofícios. As assinaturas que permeiam os fólios são como selos que
marcam as muitas vozes que se escondem debaixo da configuração mais coesa
da instituição inquisitorial53. Encontramos também as cartas régias ou os docu-
mentos pontifícios que conferem os privilégios e a protecção que devem ter estes
oficiais na sua prática54.
Num outro sentido, com as nomeações dos agentes, o leitor deste códice
pode acompanhar também a expansão territorial do tribunal, com o

49
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 136.
50
“Regimento do Conselho Geral do Santo Ofício”, in Documentos para a História da Inquisição em
Portugal, 99-105. Marcocci e Paiva, História da Inquisição, 45-46; Mateus, “A reorganização do Santo
Ofício”, 889-890.
51
Veja-se, recentemente, o trabalho que Bruno Lopes dedicou aos salários dos ministros do Conselho
Geral no período posterior à Restauração. Bruno Lopes, “O Conselho Geral do Santo Ofício visto através
dos salários (Portugal, 1640-1773)”, Librosdelacorte.Es, n.º 6 (2017): 82-109, consultado a 12 de Maio de
2023, https://doi.org/10.15366/ldc2017.9.m6.004.
52
Ana Isabel López-Salazar Codes, “Familia y parentesco en la Inquisición portuguesa: el caso del Con-
sejo General (1569-1821)”, in Honra e Sociedade no mundo ibérico e ultramarino: Inquisição e Ordens
Militares – séculos XVI-XIX, coord. Ana Isabel López-Salazar, Fernanda Olival, João Figueirôa-Rêgo (Ca-
sal de Cambra: Caleidoscópio, 2013), 129-154.
53
Alguns dos agentes que surgem nos fólios deste códice nos momentos de nomeação e juramento,
podem ser encontrados também no primeiro livro de provisões de nomeação e autos de juramento da
Inquisição de Lisboa. Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 103.
54
É o caso do traslado do breve de 12 de Fevereiro de 1539 em favor dos oficiais da Inquisição, Lisboa,
BNP, cód. 1596, fls. 73-76v.
[38]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

preenchimento de quadros em diferentes territórios. Isso é muito visível através


do mecanismo de criação de tribunais em outras localidades, com a nomeação
dos respectivos inquisidores, a partir de 154155. No fundo, esta acção correspondia
a uma manutenção da lógica itinerante do tribunal nos seus primórdios, tal
como vários investigadores já analisaram para o caso castelhano-aragonês56.
Trata-se da obrigação de se “fazer inquisição” com frequência regular nas áreas
de jurisdição do tribunal, isto é, promover o mecanismo de visitação. As instru-
ções de 1541 previam esse mecanismo como se pode ler no seu articulado:
“quando o inquisidor sair a fazer visitação”57. Tal como já verificou I.-S. Révah,
em 1541 foram emanadas de Lisboa várias missivas com nomeações de oficiais
para estabelecer e organizar inquisições locais, o que haveria de corresponder ao
quadro que iria vigorar até cerca de 1548, com os tribunais de Coimbra, Évora,
Lamego, Porto e Tomar, a juntar-se ao de Lisboa58.
Um outro elemento fundamental na constituição e fortalecimento destes
primórdios da Inquisição portuguesa é a expressão pública da matéria que cons-
tituía delito59. Estes “crimes” estão já expressos de forma enfática na bula
fundacional, Cum ad nil magis. No entanto, à referência mais genérica da bula,
justapunha-se um elenco mais detalhado de práticas que se espelhavam no
“Edito do tempo da graça” que foi lido logo na sequência da publicação da pró-
pria Inquisição ou, de forma bem notória, no documento que ficou conhecido
como “Monitório” do Inquisidor-geral que data também do ano de 153660.

55
Sobre esta criação de efémeros tribunais de distrito, veja-se Marcocci, I Custodi, 69-74; Susana Bastos
Mateus, “A evolução do Santo Ofício em Portugal (1536-1548), in Historia Imperial del Santo Oficio, 875-
880. No livro que estamos a analisar veja-se o exemplo da comissão para o Porto e Braga, datada de 30
de Julho de 1541, Lisboa, BNP, cód. 1596, fls. 103v-104.
56
Cf. Jaime Contreras, “La regulación de la visita de distrito”, in História de la Inquisición en España y
America, dir. Joaquin Perez Villanueva y Bartolomé Escandell Bonet, vol. 1, El Conocimiento científico y
el proceso histórico de la Institución (1478-1834) (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, Centro de
Estudios Inquisitoriales, 1984), 752-753.
57
Mateus e Neves, A Santa Inquisição, 87.
58
Révah, “L’installation de l’Inquisition à Coimbra”, 123. Baião, A Inquisição, 62-65 e docs. xxvi, xxvii,
xxviii.
59
Uma completa análise sobre o conteúdo e a importância dos diferentes tipos de éditos utilizados pelas
Inquisições modernas encontra-se em Bethencourt, História das Inquisições, 135-165.
60
Esta carta monitória, datada de 18 de Novembro de 1536, encontra-se em Lisboa, BNP, cód. 1596, fls.
33v-37v. Sobre o texto e as suas fontes, veja-se Herman Prins Salomon, “The «Monitorio do Inquisidor
Geral» of 1536. Background and sources of some «judaic» custos listed therein”, Arquivos do Centro Cul-
tural Português 17 (1982): 41-64. O “Monitório”encontra-se publicado no Collectorio de diversas letras
apostolicas, provisões reaes e outros papeis em que se contem a Instituyção, & primeiro progresso do
Sancto Officio em Portugal… (Em Lisboa: nas casas da Sancta Inquisição, 1596), fl. 4-6v.
[39]
Este édito do tempo da graça era datado de 20 de Outubro de 1536 e da sua
importância já se apercebeu António Baião quando o designa como “melhor do
que a bulla, nos dá a primitiva medida da competencia inquisitorial”61. Quando
lemos o seu articulado verificamos que esta publicação de um tempo da graça
de 30 dias está directamente associada ao momento de implantação do Santo
Ofício em Portugal, centrando-se na cidade de Évora, local de residência da
Corte nesse período. A carta monitória e de édito e tempo da graça destina-se a
todos os que virem, lerem e ouvirem o seu conteúdo. A circunscrição territorial
é a de Évora e seus termos, onde se cometem ou cometeram crimes de heresia62.
Segue-se o elenco dos crimes considerados de natureza herética. À cabeça, como
não podia deixar de ser, a guarda da lei de Moisés. Seguem-se os luteranos e os
da “muy damnada seyta de mafamede”, para além dos que cometem crimes de
sortilégios e feitiçarias que “conthem em si heresia”. O alcance e objectivo da
carta é que todos os residentes na cidade e no termo de Évora, culpados de deli-
tos de heresia se apresentem voluntariamente, “com puro coraçam e fee não
fingida”, a pedir penitência pelos seus erros63. Para serem tratados com mais be-
nignidade, os que se consideram culpados devem comparecer no prazo máximo
de 30 dias – dez por cada admoestação canónica – perante os inquisidores e con-
fessar os seus crimes64. Os que cumprirem estas determinações e se
apresentarem voluntariamente nos ditos 30 dias, com sinais evidentes de arre-
pendimento, serão absolvidos e receberão penitencias espirituais saudáveis para
a sua alma. Aos que, pelo contrário, não se apresentarem, contra si será aplicado
o procedimento que toca ao ofício da Santa Inquisição65. Como já referimos, este
texto deveria ser amplamente difundido nas pregações e afixado nas igrejas da
região.
Passado este período inicial, é notório como D. Henrique, a nova figura
principal do Santo Ofício português, sublinha a importância do instrumento do
tempo da graça. Assim, no “Trellado do edito de graça que se pubrycou na Visi-
tação que se fez em certos lugares o ano de 1554” reitera-se a benignidade e
misericórdia, afirmando-se mesmo que o objectivo da Inquisição era mais o da
salvação das almas e não o do rigor da justiça. Por outro lado, defende-se a pu-
blicação do édito, como forma de “que daquy em diante nenhuma das pessoas

61
António Baião, A Inquisição, 16.
62
Lisboa, BNP, cód. 1596, fl. 25.
63
Ibid., fl. 25v.
64
Ibid., fls. 26-26v.
65
Ibid., fl. 26v-27.
[40]
A MEMÓRIA NO ARQUIVO: REGISTOS DOS PRIMEIROS ANOS DA INQUISIÇÃO EM PORTUGAL
Susana Bastos Mateus

culpadas do delicto de heresia e apostasia possa pretender ignorância antes se


compreenda que por sua propia malicia e obstinação deixaram de ser reduzidos
ao e União da santa madre Igreja”66.
Ainda nesta primeira metade de Quinhentos, surgem outros éditos da fé,
destinados a ser lidos publicamente em várias igrejas de Lisboa. Por exemplo, a
18 de Dezembro de 1551, D. Henrique ordenava a leitura de éditos na sé de Lisboa,
na mosteiro de Nossa Senhor da Graça, no mosteiro do Carmo, no mosteiro de
São Domingos e na igreja de São Julião. As instruções do Inquisidor previam que
após a leitura nos púlpitos, se afixasse o texto nas portas das igrejas. No livro é
registado um treslado do respectivo texto, com o título de “Edicto geral pera
denunciarem dos que andarem apartados da fee”67.

Considerações finais
Un libro es más que una estructura verbal, o una serie
de estructuras verbales; es el diálogo que entabla con su
lector y la entonación que impone a su voz y las
cambiantes y durables imágenes que deja en su
memoria. Ese diálogo es infinito…68

Desde a sua fundação, a Inquisição Portuguesa sempre teve no seu perfil


uma preocupação com a gestão da informação e um cuidado com o segredo que
o ofício exigia. O arquivo que estava reservado na sala do secreto deveria obede-
cer a várias normas, de forma que mantivesse, por um lado a discrição
necessária, e, por outro lado, que fosse funcional, de forma a que a informação
fosse facilmente recuperável e que pudesse ser cruzada e confrontada a qualquer
momento. A existência de livros de registo diversos e que conservavam as regras
estruturantes da instituição era uma condição essencial para o dia a dia do tri-
bunal. Estes objectos permitiam que se mantivesse o “modo de proceder” da
Inquisição, como aparece mencionado por diversas vezes na documentação co-
eva. Como referimos, este trabalho constitui uma primeira aproximação a um
objecto. O códice 1596 dos fundos manuscritos da Biblioteca Nacional de Portu-
gal esteve, sem dúvida, arrumado nas estantes da sala do secreto onde seria
consultado com frequência pelos inquisidores deste primeiro momento da ins-
tituição. As várias letras que compõem o livro e os acrescentos de documentos

66
Ibid., fl. 155.
67
Ibid., fls. 151-153v.
68
Jorge Luis Borges, “Notas sobre (hacia) Bernard Shawn”, in Otras Inquisiciones (Buenos Aires: Emecé,
1960), 201.
[41]
de outras cronologias espelham um objecto “vivo” que se modifica consoante os
usos que lhe são dados pelos homens do tribunal. Por outro lado, um livro des-
tinado a servir de registo dos principais elementos que compõe o tribunal na sua
configuração primordial, serve agora aos investigadores como guia para um
olhar mais atento às etapas que levaram à evolução da Inquisição portuguesa no
seu primeiro decénio de funcionamento. Cada registo, mesmo na sua linguagem
seca da burocracia, contém as possibilidades de abrir novas perguntas, cujas res-
postas talvez estejam em outros livros conservados nos arquivos.

[42]
Aspetti dell’Inquisizione portoghese nelle carte
del Sant’Ufficio romano: Fonti e prospettive di ri-
cerca per il secolo XVIII
Andrea Cicerchia

Il tribunale del Santo Uffizio a Lisbona […] fu sempre


composto di uomini di sana coscienza e dottrina, ed il
signore Inquisitore generale n’era uno di quelli che
compiutamente l’accreditava e rispettabile ne rendeva
colla sua regia persona, incorrotto procedimento ed
eguale rettitudine1

Ancora nel Settecento, tra i giuristi della curia romana, era ben viva la eco
delle vicende seicentesche che avevano contrapposto la Santa Sede all’Inquisi-
zione portoghese, soprattutto in materia procedurale2. Eppure da quelle stanze
proveniva anche un giudizio anonimo –chissà sommario e semplicistico– ri-
spetto alla incorruttibilità e rettitudine che avrebbe sempre contraddistinto il
tribunale lusitano ed il suo inquisitore generale. Un giudizio, questo, chiara-
mente formulato col fine di screditare l’ascesa al potere di Sebastião José de
Carvalho e Melo –futuro segretario del regno e marchese di Pombal– e l’im-
pronta regalista data da questi all’Inquisizione, nella seconda metà del secolo3.
Il citato libello polemico non rappresenta certo un unicum archivistico, in
quanto –come è ben conosciuto dagli studiosi– l’intera storia dell’Inquisizione
portoghese trova particolare riflesso in molteplici documenti vaticani e romani.
Tale presenza testimonia la lunga e complessa relazione che dovette intercorrere
tra Santa Sede e Portogallo durante i secoli dell’età moderna, ma soprattutto

1
Citato da Città del Vaticano, ADDF, Santo Oficio (=S.O.), Stanza Storica (=St. St.), Q 4 k, Manoscritto
anonimo sugli avvenimenti in Portogallo e sulla presunta congiura ai danni del re Giuseppe Emanuele
(1750-1766), fols. 33r-33v.
2
Cfr. Ana Isabel López-Salazar Codes, “«Che si riduca al modo di procedere di Castiglia». El debate
sobre el procedimiento inquisitorial portugués en tiempos de los Austrias”, Hispania Sacra 59, n.º 119
(2007): 243-268.
3
Cfr. Pedro Vilas Boas Tavares, “Da reforma a extinção: a Inquisição perante as «luzes» (dados e reflexões)”,
Revista da Facultade de Letras – Línguas e Literatura 19 (2002): 171-208, e Giuseppe Marcocci e José Pedro
Paiva, História da Inquisição portuguesa (1536-1821) (Lisbona: A Esfera dos livros, 2013), 333-357.
propone una valida prospettiva d’indagine sulla plurisecolare collaborazione e
conflittualità tra Roma e Lisbona4.
Ciononostante, fra le numerose carte inquisitoriali, quelle conservate
presso l’archivio storico del Sant’Ufficio romano rappresentano, per molti stu-
diosi, un terreno ancora nuovo o quantomeno poco sondato. Per tale ragione, le
pagine che seguono vogliono presentarsi come un approccio a tali fonti, relati-
vamente all’Inquisizione portoghese e al Portogallo. Nello specifico si è scelto di
porre attenzione alle decadi settecentesche, proponendo alcune concrete esem-
plificazioni e prospettive d’indagine.

Le carte “portoghesi” nello scrinium inquisitoriale romano


All’interno del ricco e variegato patrimonio che costituisce l’attuale archivio
storico del Sant’Ufficio romano, è possibile individuare alcune importanti raccolte,
con materiale che interessa le principali questioni portoghesi dell’età moderna5.
Seppur la nostra analisi avrà come focus cronologico il Settecento, sarebbe
tuttavia inevitabile ricordare –pur con brevi cenni– le presenze cinque-seicente-
sche, senza dubbio le più note agli storici, vuoi per l’utilizzo che se n’è fatto in
alcuni importanti lavori, vuoi per l’attenta descrizione propostane alcuni anni fa
da Giuseppe Marcocci6. In particolare mi riferisco ad una sotto serie –composta
di sei unità distinte, raccolte sotto il titolo di Iudaizantes Lusitaniae– e a nume-
rosi documenti riconducibili alla stessa tematica e conservati in altre unità
denominate più in generale Iudaeizantium [Cfr. tabella 1].
In questi faldoni si raccolgono numerose fonti provenienti dal contesto porto-
ghese e prodotte a margine della questione dei cristiani nuovi. Si tratta di carte

4
In generale si veda Giovanni Pizzorusso, Gaetano Platania e Matteo Sanfilippo, a cura di, Gli archivi
della Santa Sede come fonte per la storia del Portogallo in età moderna: Studi in memoria di Carmen
Radulet (Viterbo: Ed. Sette Città, 2012).
5
Attualmente, l’archivio storico del Sant’Ufficio romano, è uno dei tre fondi conservati presso l’ar-
chivio del Dicastero per la Dottrina della Fede, assieme a quelli della congregazione dell’Indice e del
tribunale inquisitoriale di Siena. Cfr. Alejandro Cifres, “L’archivio storico della Congregazione per la
Dottrina della Fede”, in L’apertura degli archivi del Sant’Uffizio romano (Accademia Nazionale dei Lin-
cei: Roma, 1998), 73-84; Francesco Beretta, “L’archivio della Congregazione del Sant’Ufficio: bilancio
provvisorio della storia e natura dei fondi di antico regime”, in L’Inquisizione romana: metodologia
delle fonti e storia istituzionale, a cura di Andrea Del Col e Giovanna Paoli (Trieste: Ed. EUT; Monte-
reale Valcellina: Circolo Culturale Menocchio, 2000), 119-144.
6
Cfr. Giuseppe Marcocci, “«Hanno con tutto ciò nelle occorrenze ubbidito»: l’Inquisizione portoghese
nelle carte della Congregazione del Sant’Uffizio (1555-1821)”, in Gli archivi della Santa Sede, 121-138. In
particolare penso agli studi di Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y política: El gobierno del
Santo Oficio en el Portugal de los Austrias (Lisbona: CEHR, UCP, 2011) e al testo di Marcocci e Paiva,
História da Inquisição portuguesa, 129-211.
[44]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

delle più diverse tipologie: lettere indirizzate a personalità curiali, copie di brevi
apostolici, informazioni sulla vita e costumi di alcuni inquisitori di Portogallo,
etc. In particolare si conservano due processi, inviati a Roma a seguito della ri-
chiesta fattane, nel 1680, dall’allora pontefice Innocenzo XI7.

Archivo Sancti Offitii Romani

División: Stanza Storica

Fondo: Haebreos

Serie: Iudaeizantium

Sub serie: Iudaizantes Lusitaniae (6 unidades archivísticas 1539-1683)

Signaturas:
St. St. BB 5 a. Iudaizantes Lusitaniae. 1536 ad 1678

St. St. BB 5 b. Iudaizantes Lusitaniae. 1594 ad 1614

St. St. BB 5 c. Iudaizantes Lusitaniae. 1611 ad 1649

St. St. BB 5 d. Iudaizantes Lusitaniae. 1673 ad 1674 (794 cc)

St. St. BB 5 e. Iudaizantes Lusitaniae. 1675 ad 1683 (876 cc)

St. St. BB 5 f. Iudaizantes Lusitania. 1674-1683 (325 cc)

Tabella 1 - Albero archivistico della sub serie Iudaizantes Lusitaniae

Tali fascicoli sono relativi a due sentenze di consegna al braccio secolare,


emanate in Portogallo nella prima metà del secolo, ed in cui si sarebbero rinve-
nute alcune incongruenze rispetto lo stile procedurale applicato dagli inquisitori
lusitani. Mi riferisco al processo istruito contro Zuzarte Lopes (1611) –descritto
come “christao Novo que vive por sua fazenda e nuqua casou, natural da villa de
Tomar e nella morador, preso no carcere da Inquisiçao de Lisboa”8– e al succes-
sivo, contro Pedro Rodrigues Bandajo (1629), anch’egli qualificato come
“christiano novo solteyro, avogado, fisso de Diego Rodriguez defunto e de Perpetua

7
Cfr. quanto ricordato in Marcocci, Paiva. Historia da Inquisição portuguesa, cit., p. 208, dove si fa
esplicito riferimento a questa spedizione. I processi sono stati citati anche in Marcocci, “«Hanno con
tutto ciò nelle occorrenze ubbidito»”, 115 e Yllan de Mattos. A Inquisição contestada. Críticos e críticas
ao Santo Ofício português (1605-1681) (Rio de Janeiro: Mauad Editora – Faperj, 2014), 206-207.
8
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St., BB 5 a. Iudaizantes Lusitaniae, 1536 ad 1678. L’espediente è com-
posto di circa 200 fogli. In data 31 luglio 1611 il reo venne rilasciato al braccio secolare, secondo quanto
consta dallo stesso processo. Con molta probabilità Zuzarte proveniva da una famiglia di cristãos novos,
che contava già con un riconciliato nel secolo XVI, secondo quanto attestato nel primo auto da fé cele-
brato a Tomar il 6 maggio del 1543. In questa occasione, tra i riconciliati figurava un “Pedro Zuzarte,
cristão novo, filho de Zuzarte Lopes, o Cabeça de Vaca, morador nesta Vila”. Isaías da Rosa Pereira, “Notas
sobre a Inquisição em Portugal no século XVI”, Lusitania Sacra 10 (1978): 259-300, cit. p. 298.
[45]
Lopez Bandaja, natural morador na villa de Castello Branco, prezo nos carceres
desta Inquisizao de Lisboa. Relaxado. Queymado vivo. 1629”9.
In generale, la documentazione procede –come accennato– da un contesto
specifico, cioè, il braccio di ferro stabilitosi durante le decadi centrali del Sei-
cento tra Roma e Portogallo, sostanzialmente determinato dagli appelli romani
alle sentenze emanate dagli inquisitori portoghesi contro i cristãos novos, accu-
sati di tornare nuovamente alla loro antica religione. Un conflitto, com’è noto,
che determinerà una profonda revisione procedurale nell’attività degli inquisi-
tori portoghesi, provocandone la sospensione per parte del pontefice Clemente
X (1674), e la seguente restaurazione nel 1681 per decisione del suo successore,
Innocenzo XI10.
Quello che è interessante sottolineare, relativamente a questa documen-
tazione, è come ancora a metà Ottocento fosse indicata con il medesimo titolo
odierno, Iudaizantes Lusitaniae. Tuttavia, la sotto serie era ancora conservata
autonomamente, in un fondo distinto, –indicato come Lusitaniae et Hispa-
niarum– secondo quanto è stato possibile determinare a margine di una minuta
di inventario, rinvenuta presso l’Archivio di Stato di Roma e redatta dalle auto-
rità della Repubblica Romana nel 1849. Nell’occasione, infatti, la temporanea
soppressione dell’Inquisizione, decisa dagli organi repubblicani, aveva previsto
anche l’incameramento dei suoi archivi, la cui disposizione e contenuto venne
descritto nella minuta succitata11. Con la restaurazione di Pio IX nel 1850, l’archi-
vio del Sant’Ufficio rimase custodito per molti anni nel palazzo apostolico,
rientrando nella sua sede originaria solo agli inizi del XX secolo. Fu allora che la
documentazione, provvisoriamente sistemata nella denominata Stanza Quarta
–di cui ancora si rinviene la segnatura sul dorso dei faldoni e volumi– è stata

9
Ibid. Costituito da 263 fogli. Anche in questo caso, le relazioni inter parentali ci testimoniano una
costante attenzione inquisitoriale: una nipote di Bandajo, Perpétua Lopes da Costa, alcuni anni più
tardi (1638) verrà “condenada a penitencias e habito perpetuo” mentre suo padre, il medico Pedro Lopes
da Costa era già stato condannato nell’auto da fé del 1636. Cfr. Manuel da Silva Castelo Branco, “Notas
e documentos para a história dos judeus e cristãos-novos de Castelo Branco”, Estudos de Castelo
Branco 10 (1963): 32.
10
Cfr. Marcocci, “«Hanno con tutto ciò nelle occorrenze ubbidito»”, 111-116; Marcocci e Paiva, História
da Inquisição portuguesa, 202-209.
11
Si veda Andrea Cicerchia, “El archivo del Santo Oficio a los ojos de la República romana del 1849. Algunas
reflexiones a través de un inventario manuscrito conservado en el Archivio di Stato di Roma”, Revista de
fontes 9, n.º 2 (2018): 70-97. La minuta di inventario è conservata in Roma, Archivio di Stato di Roma,
Repubblica Romana (1849), Miscellanea, 73, n. 128, Inventario del Palazzo del Sant’Ufficio, fols. 74-112.
[46]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

riorganizzata nella forma miscellanea attuale, secondo l’ordinamento della


sezione Stanza Storica12.
Ed è proprio a seguito di tali vicende archivistiche che diversa documen-
tazione, appartenente con molta probabilità al Sant’Ufficio romano, può oggi
essere rinvenuta presso numerosi fondi che compongono l’Archivio Apostolico
Vaticano. Per quanto ci riguarda, ciò potrebbe essere valido anche per diverse
carte “portoghesi”, se si considera che –secondo la minuta del 1849– sarebbero
ascese a circa ottanta le unità documentarie che componevano l’antica serie
Lusitaniae et Hispaniarum13.
Ma volendo rivolgere l’attenzione al secolo dei Lumi, oggetto specifico della
nostra analisi, dobbiamo indicare la presenza di almeno una trentina di unità ar-
chivistiche riconducibili a questioni portoghesi [Cfr. tabella 2]. Tenuta presente, ad
ogni modo, l’eccezione della serie dei Decreta, i cui registri devono essere intesi
quale strumento propedeutico alla ricostruzione generale degli interventi attuati
dalla congregazione14. D’altronde sarebbe utile ricordare, per fare un semplice
esempio, come le facoltà del Sant’Ufficio romano si estendessero anche all’ambito
di controllo e abilitazione dei religiosi che venivano inviati nei territori di missione,
in stretta connessione –a partire dal 1622– con l’attività svolta dalla nascente con-
gregazione de Propaganda Fide. Seppur tale dicastero romano presiedesse
l’organizzazione e gestione delle missioni ultramarine, spettava di fatto al Sant’Uf-
ficio dichiarare –in ultima istanza– l’idoneità dei missionari. Per tanto, non è raro

12
Cfr. Marco Pizzo, “La Stanza Storica dell’Archivio del Sant’Uffizio come fonte per la storia dell’Inqui-
sizione. Una ricognizione archivistica e un metodo di intervento”, in Verbotene Bücher. Zur Geschichte
des Index im 18. und 19. Jahrhundert, ed. Hubert Wolf (Leiden: Brill-Schöningh, 2008), 209-218. L’analisi
della formazione di questa sezione permette di rinvenire le tracce di appartenenza dei documenti a
serie che precedentemente formavano l’archivio, e non più rinvenibili nell’ordinamento attuale.
13
Cfr. Cicerchia, “El archivo del Santo Oficio”. Sarebbe sufficiente ricordare quanto sia numerosa la
documentazione prodotta a margine dell’attività inquisitoriale lusitana oppure, in tali materie, vinco-
lata con quella prodotta da alcuni cardinali, membri del Sant’Ufficio romano. Si veda, ad esempio, oltre
i fondi della Segreteria di Stato e quello miscellaneo degli Armaria, i rispettivi fondi Carpegna, Otto-
boni, Albizzi, Azzolini, Altieri, Odescalchi, Casanate. Cfr. Gianni Venditti, “Archivi di famiglia, fondi e
carte personali in Archivio Segreto: materiali per una possibile guida”, in Religiosa Archivorum Custo-
dia. IV Centenario della Fondazione dell’Archivio Segreto Vaticano (1612-2012) (Città del Vaticano:
Archivio Segreto Vaticano, 2015), 469-496. Per quanto riguarda il fondo Casanate, oltre a connettersi
con numerosa documentazione dell’ADDF, andrebbe anche valorizzata alla luce di quanto si conserva
oggi –per l’Inquisizione portoghese– presso la Biblioteca Casanatense. Un primo orientamento in Ada
Corongiu, a cura di, Le cinquecentine della Biblioteca Casanatense, vol 1, Spagna e Portogallo (Roma:
Poligrafico e Zecca dello Stato, 1994).
14
La serie Decreta è l’unica ad essersi conservata quasi nella sua totalità. È quindi di fondamentale
importanza la sua consultazione. Da un punto di vista archivistico si veda quanto scritto in Beretta,
“L’archivio della Congregazione del Sant’Ufficio”, 121-126.
[47]
rinvenire nella documentazione inquisitoriale romana anche le petizioni missiona-
rie provenienti dal mondo ecclesiastico portoghese15.
Altra tipologia di carte relazionata con il contesto coloniale è quella pro-
dotta dal sorgere di diversi dubbi sugli ordini sacri e le questioni sacramentali,
così come –per il Portogallo– attorno a problematiche relative all’applicazione
del diritto di patronato, soprattutto dopo la fine dell’età filippina (1580-1640) e
l’affermarsi della nuova dinastia dei Bragança16.
Al di là di tali accenni, ciò che più interessa richiamare in questa sede è la
presenza di documenti direttamente collegabili con l’Inquisizione portoghese.
Sotto tale aspetto –tornando alle circa trenta unità segnalate– possiamo notare
come la loro cronologia si estenda ad abbracciare l’intero arco temporale del
secolo.
La gran parte del materiale archivistico trova ancora una volta la sua col-
locazione nell’ampia sezione, già citata, della Stanza Storica, anche se occorre
segnalare il non meno interessate corpus documentario conservato in altre serie,
quali Censura Librorum, Dubia Ordinationem sacram, Doctrinalia, Materiae Di-
versae, etc. Ad esempio, è possibile incontrare qui –oltre ai già citati dubbi sul
conferimento di ordini sacri– anche numerose richieste di indulto, avanzate sia
dall’inquisitore generale come dal sovrano portoghese, generalmente vincolate
con pratiche quaresimali17. E ancora, documenti relativi a concessioni di lettura
o di censura libraria.

15
Su tale aspetto e sulle numerose conflittualità e sinergie che, a partire dalla istituzione di Propaganda
Fide (1622), dovettero sorgere tra le due congregazioni romane, si veda quanto scritto in Giovanni
Pizzorusso, Propaganda Fide. La Congregazione e la giurisdizione sulle missioni (Roma: Edizioni di Sto-
ria e Letteratura, 2022), 157-190 e nel più recente Dennj Solera, “Coordinate del mondo moderno: i
rapporti tra Inquisizione romana e Propaganda Fide”, in Bernard Ardura, Leonardo Sileo, Flavio
Belluomini, a cura di, Euntes in mundum universum: IV centenario dell’istituzione della Congregazione
di Propaganda Fide, 1622-2022 (Città del Vaticano: Urbaniana University Press, 2023), 457-472.
16
Mi limito a richiamare Giovanni Pizzorusso, “Il padroado regio portoghese nella dimensione “glo-
bale” della Chiesa romana. Note storico-documentarie con particolare riferimento al Seicento”, in Gli
archivi della Santa Sede, 177-219.
17
Pur relativamente al periodo precedente, di grande utilità lo studio di Oliver Poncet, “La politica
dell’indulto. Diplomazia pontificia, rivoluzione portoghese e designazioni episcopali (1640-1668)”, in
Gli archivi della Santa Sede, 63-88.
[48]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

ADDF - Secolo XVIII

[St. St. 23 UU 01 (7)] 1757.


Affare sopra l’Inquisizione di Portogallo [St. St. Q 2 d (10)] 1741-1854 – Formulari di cancelleria
e principalmente se debba essere almeno per uso di Camillo Sparziani (tra cui viene indicato
insignito della tonsura clericale anche materia relativa a Portogallo)

[St. St. D 3 k] 1740-1758. [St. St. UU 02 (27)] 1728. Circa un furto sacrilego della
De confessori di Portogallo sotto Benedetto XIV) pisside con particole consacrate in Portogallo

[St. St. D 4 e (3)] 1749. [St. St. UV 22] 1700-1705. Dispense matrimoniali
Relazione dell’Inquisizione di Portogallo e dubbi relativi ai matrimoni. Per il Portogallo cc. 61-82.
e sua dipendenza dalla S. Sede presentata
a N.ro Signore Benedetto XIV da [St. St. UV UV 51 (18)] 1708.
mons. Guglielmi Assessore del S. O. Un ebreo portoghese comparso sponte nel Sant’Ufficio
Lì 16 aprile 1749. di Pisa

[St. St. F 7 c (1)] 1717. ***


Acta ab Universitate Conimbricensis
in causa Constitutionis Unigenitus (Iansenismus) [C(ensura) L(ibrorum) 1755-1756 (13)] 1756.
Breve censura dell’assessore del S.O. sul libro
[St. St. H 7 c] (tra cui alcuni casi dal S.O. portoghese) “Lettera dommatica politica scritta a S. M. Portoghese
Giuseppe I – autore il sacerdote João Moutinho
[St. St. I 5 d (6)] 1793-1800.
Carte relative all’unione di cinque vescovati del [D(ubia) O(rdinationem Sacram) 1735-1779 (19)] 1777.
Portogallo al Gran Priorato di Crato dell’Ordine Si dubita di certe dimissoriali date dai vescovi di
Gerosolimitano Portogallo in tempo di terremoto di farsi ordinare anche
fuori del regno;
[St. St. I 7 a (19 e 35)]. 1768.
Censura del libro di padre Pereira, portoghese [D(ubia) O(rdinationem Sacram), 1781-1793 (3)].
Vescovo di Evora dubbi sul conferimento degli ordini
[St. St. II 2 d.] 1701-1801. sacri;
Portogallo. Istanze de’ penitenziati in quelle inquisizioni
fatte a questo S. Offitio di Roma. [D(ubia) O(rdinationem Sacram), 1781-1793 (5)] 1793.
Altre carte riguardanti le inquisizioni di Portogallo Dubbio sull’ordinazione del diacono di Braga José
Teixeira;
[St. St. II 2 e] 1754-1757.
Memoriale del capitolo di Evora per ottenere che [Doctrinalia S.O. 1711-1714 (17)] 1712.
i suoi canonici siano obbligati alla residenza Lisbona circa l’indulto richiesto dal re di Portogallo,
quantunque ministri o deputati del S. Officio. perché potessero i suoi eserciti senza scrupolo mangiar
a questa controversia. carne tanto nella Quaresima, che negli altri giorni
proibiti;
[St. St. M 2 e] 1701.
Portugalliensis. Dispensationem in primo affinitatis [M(ateriae) D(iversae) 1701-1724 (15)] 1712.
gradu inter principissam Aloysiam filiam naturalem Decreto di espulsione dalla Compagnia di Gesù del
legitimam ser.mi Lusitania Regis, et padre Juan Ribero, portoghese;
Jacobum Pereyra de Cadaval eius defuncti mariti
fratrem germanum, concessam a Clemente XI [M. D. 1725-1743 (5)] 1725.
Indulto all’Inquisitore di Portogallo di poter assolvere li
[St. St. O 1 h (17)] 1707-1729. neofiti relassi sino alla terza volta;
Censura delle proposizioni sostenute dall’arcivescovo di
Goa, Ignacio di S. Teresa, denunciato all’inquisitore di [M. D. 1750-1772 A (4)] 1750.
Portogallo da cui Goa dipende e successivamente Portogallo e Spagna. Licenza di leggere libri proibiti
trasferito nella diocesi di Faro, in Algarve
[M. D. 1750-1772 B (26)] 1752-1759.
[St. St. Q 1 t (22)] 1770-1814. Spagna, Portogallo, Sicilia e Sardegna. Istanze de’
Ricorsi alla S. Sede, di carattere sostanzialmente penitenziati in quelle inquisizioni fatte a questo S.O. di
ecclesiastico e non inquisitoriale (Portogallo-Brasile) Roma

Tabella 2 - Prospetto unità archivistiche (secolo XVIII)

Riguardo tale attività, infatti, le facoltà erano distribuite, sia pur con al-
cune confusioni procedurali –che il pontificato di Benedetto XIV cercherà di
risolvere– tra i due dicasteri romani dell’Inquisizione e della congregazione

[49]
dell’Indice18. In un piano generale, tali compiti erano ripartiti secondo le tema-
tiche contenute nei libri stessi, cioè le materie filosofiche, letterarie e
storiografiche rientravano nelle competenze dell’Indice, mentre quelle dottri-
nali, sacramentali e dogmatiche afferivano normalmente all’attività censoria del
maestro del Sacro Palazzo e del Sant’Ufficio19. Un documento prodotto in tale
ambito, ad esempio, è la censura firmata nel 1756 –un anno dopo il terribile ter-
remoto di Lisbona– dall’allora assessore del Sant’Ufficio Ludovico Valenti (1753-
1759), sulla celebre Carta Dogmática-Politica, escrita a sua magestade fidelissima
o senhor D. José primeiro, del padre João Moutinho20.
Altri fascicoli ci raccontano vicende differenti, più o meno note agli storici,
che vale la pena richiamare. All’anno 1728, ad esempio, appartiene un incarta-
mento giudiziario relativo ad un caso abbastanza delicato: il furto sacrilego di
una pisside con particole consacrate, avvenuto nella terra di Monforte, diocesi
di Elvas. Da tale caso dovette scaturirne ben presto un acceso confronto tra la
giurisdizione laica e quella dell’Inquisizione, che pretendeva godere il diritto alla
privativa per il carattere sacrilego del crimine21.
A una datazione compresa tra il 1707 e il 1729, è invece riconducibile il caso
ben noto dell’arcivescovo di Goa, Inácio de Santa Teresa (1682-1751). Questi, de-
nunciato all’Inquisizione e condannato a causa di proposizioni vicine al
giansenismo, era infine ricorso a Roma per ottenere la riabilitazione, e successi-
vamente trasferito a Faro, nella diocesi di Algarve22.

18
Su Benedetto XIV e la riforma della censura si veda Patrizia Del Piano, Church and Censorship in
Eighteenth-Century Italy. Governing Reading in the Age of Enlightenment (Londra: Routledge, 2017 [ed.
or. Bologna, 2007]).
19
Per le origini di tali distinzioni e il ruolo svolto nel Cinquecento anche dal maestro del Sacro Palazzo vedi
Gigliola Fragnito, “La censura libraria tra Congregazione dell’Indice, Congregazione dell’Inquisizione e Ma-
estro del Sacro Palazzo (1571-1596)”, in Censura libraria nell’Europa del secolo XVI, a cura di Ugo Rozzo
(Udine: Forum Editrice Universitaria Udinese, 1997), 163-176. Per il Settecento si veda Patrizia Del Piano,
Liberi di scrivere: La battaglia per la stampa nell’età dei Lumi (Roma, Bari: Laterza, 2015).
20
Città del Vaticano, ADDF, Censura Librorum, 1755-1756 (13). 1756. Breve censura dell’assessore del
S.O. sul libro “Lettera dommatica politica scritta a S. M. Portoghese Giuseppe I – autore il sacerdote João
Moutinho, 1756, ff. n.n. Si veda in tal senso il lavoro di edizione curato da Carlos Moreira Azevedo. Ter-
ramoto doutrinal. A 'Carta dogmático-política' (1755) do Padre João Moutinho contra a Inquisição.
Temas e Debates (Lisboa: Círculo de Leitores, 2015), dove viene citata la suddetta censura e pareri
raccolti previamente dai qualificatori del Sant’Ufficio romano.
21
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St. UU 02 (27), Circa un furto sacrilego della pisside con particole
consacrate in Portogallo, 1728, ff. n.n.
22
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St. O 1 h (17)] 1707-1729. Censura delle proposizioni sostenute
dall’arcivescovo di Goa, Ignacio di S. Teresa, denunciato all’inquisitore di Portogallo da cui Goa dipende
e successivamente trasferito nella diocesi di Faro, in Algarve. Cfr. Ana Maria Mendes Ruas Alves, “O
reyno de Deos e a sua justiça: Dom Frei Inácio de Santa Teresa (1682-1751)” (Tese de doutoramento,
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, 2012). Disponibile in
[50]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

D’altra parte –rimanendo all’interno della conflittualità sorta tra vescovi e


inquisitori portoghesi– appare ben documentato il caso del “sigilismo”, cioè la
pratica intrapresa da alcuni confessori di chiedere ai penitenti il nome e la di-
mora dei loro complici, forzando e infrangendo il sigillo sacramentale. Un
problema, questo, che sotto il pontificato di Benedetto XIV, negli anni Quaranta,
avrebbe condotto ad un fervente confronto tra l’inquisitore generale, Nuno da
Cunha (1707-1750), assieme al patriarca di Lisbona, Tomas Almeida (1670-1754),
da un lato, e alcuni vescovi –variamente legati ad un movimento chiamato Jaco-
beia– dove tornò a ricoprire un ruolo di primo piano il già citato vescovo di
Algarve, Santa Teresa23.
Tale conflitto, generatosi in Portogallo, aveva sin da subito suscitato
grande preoccupazione presso gli ambienti curiali romani, come attestano nu-
merosi documenti conservati, non solo presso il Sant’Ufficio ma anche in diversi
fondi dell’archivio apostolico24. Soprattutto furono i reiterati interventi papali,
tra 1745 e 1749, che cercarono di mediare e risolvere la divisione canonica e giu-
risdizionale alla base del confronto25.

All’ombra del confessionale. Un clero inquieto nel Portogallo del Settecento


Nelle decadi successive alla restaurazione dell’attività inquisitoriale (1681)
i tribunali portoghesi registrarono una sensibile diminuzione nel numero dei
condannati, dovuta essenzialmente alla moderazione richiesta dal breve papale,
soprattutto in materia procedurale. Sotto questo punto di vista, seppur una ra-
diografia di reati e penitenziati ci restituisce il dato di una certa diminuzione
nella persecuzione contro i giudaizzanti, occorrerebbe non dimenticare come il

http://hdl.handle.net/10316/23062; Evergton Sales Souza, “D. Ignácio de Santa Thereza, arcebispo de


Goa: um prelado às voltas com a Inquisição portuguesa”, in A Inquisição em Xeque. Temas, Controvér-
sias, Estudos de Caso, org. Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler e Lana Lage (Rio de Janeiro: Eduerj, 2006),
61-74; José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Por-
tugal (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011), 397-418.
23
Per un quadro sintetico sul Sigilismo e il movimento spirituale della Jacobeia, si veda Zulmira Santos,
“Sigilismo”, in Dizionario Storico dell’Inquisizione, t. 3 (Pisa: Edizione della Scuola Normale di Pisa,
2010), 1423-1425.
24
Penso in particolare a quanto conservato presso il fondo Benedetto XIV Lambertini, dove numerosi
sono i documenti relazionati con tale questione. Coordinate storiografiche indispensabili sono: Antó-
nio Pereira da Silva, A questão do sigilismo em Portugal no século XVIII. História, religião e política nos
reinados de D. João V e D. José I (Braga: Tip. Editorial Franciscana, 1964); Adriano Prosperi, ‘Il sigillo
infranto: confessione e Inquisizione in Portogallo nel ‘700’, in L’Inquisizione romana. Letture e ricerche
(Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2003), 413-434.
25
António Pereira da Silva, “Documentos sobre a Jacobeia, o sigilismo e as constituições de Bento XIV que
têm por objecto a indagação dos cúmplices dos penitentes na confissão”, Itinerarium 7 (1961): 279-340.
[51]
tradizionale “nemico” dell’Inquisizione portoghese continuasse ancora a popo-
lare maggioritariamente gli elenchi di autos da fé inviati a Roma durante il corso
del Settecento26.
Ad ogni modo sarebbe anche necessario evidenziare come a partire dalla
fine del XVII secolo il Sant’Uffizio dovette rivolgere sempre più la propria atten-
zione verso nuove forme di devianza ereticale27. Se per un lato il giansenismo
non ebbe in Portogallo quell’impatto paventato inizialmente, dall’altro il moli-
nismo e quietismo avevano sin da subito fatto alzare l’asticella dell’allarme
all’autorità inquisitoriale. Furono essenzialmente le pratiche collegate a queste
nuove sensibilità ad essere viste con sospetto, soprattutto in relazione a movi-
menti che –in varia misura– si facevano portatori di un profondo rinnovamento
spirituale, come la già citata Jacobeia28.
Secondo i dati forniti dagli storici, e riproposti più di recente da Marcocci
e Paiva, l’attenzione ai comportamenti del clero, soprattutto quelli vicini ad una
spiritualità di carattere ambiguo, ripropose una problematica di lungo corso, de-
terminata dalla percezione e utilizzo del sacramento della confessione da parte
di ecclesiastici secolari e regolari29. Un tale panorama gode di un certo riscontro
nelle carte romane, popolate per la maggior parte di casi di sacerdoti, i cui cri-
mini appaiono circoscritti alla sollecitazione in confessione, ad abusi
sacramentali e celebrazioni senza ordinazione30.

26
Si conservano in ADDF, St. St. II 2 d. Portogallo. Istanze de’ penitenziati in quelle inquisizioni fatte a
questo S. Offitio di Roma (1701-1801). Come spiegato in Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portu-
guesa, 271, tali liste contenevano un breve profilo identificativo del penitenziato, la sua età e il reato
commesso, e servivano come “guia para assistir ao espetáculo”, per lo più a beneficio del popolo che
seguiva la ritualità degli autos. Di grande interesse per comprendere la “logica” di tali spettacoli ed il suo
simbolismo, quanto scritto in Nathan Wachtel, La logique des bûchers (Paris: Éditions du Seuil, 2009).
27
Un più preciso quadro se ne può trarre dallo spoglio di tali liste o “noticias”, conservate in Lisbona,
ANTT, TSO, IL, livros 6-8 (Listas ou “Noticias”, 1563-1750; maço 5, nn. 3-4, 60; maço 68 n. 42 (1723-
1798); IE, livros 2-5 (1633-1797); IC, livros 1-2 (1567-1729); CGSO, livros 118, 225, 369, 433-436, 504.
28
Cfr. Pedro Vilas Boas Tavares, Beatas, Inquisidores e Teólogos. Reacção Portuguesa a Miguel de Mo-
linos (Porto: Centro Interuniversitário de História da Espiritualidade, 2005. Sul giansenismo nella
prospettiva portoghese si veda Evergton Sales Souza, Jansénisme et réforme de l’Église dans l’empire
portugais. 1640 à 1790 (Paris: Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 2004).
29
Cfr. Marcocci e Paiva, História da Inquisição portuguesa, 281-304.
30
Si vedano in generale gli studi di Jaime Ricardo Gouveia, O Sagrado e o Profano em Choque no Con-
fessionário. O Delito de Solicitação no Tribunal da Inquisição. Portugal 1555-1700 (Coimbra: Palimage,
2011); A quarta porta do Inferno. A vigilância e disciplinamento da luxuria clerical no espaço luso-ame-
ricano (1640-1750) (Lisboa: Chiado Editora: 2015); “A jurisdição privativa da Inquisição portuguesa
sobre o delito de solicitação: De facto ou de iure?” Investigaciones históricas. Época moderna y contem-
poránea 42 (2022): 507-548.
[52]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

Un primo fascicolo che vale la pena segnalare –all’interno di un volume


della serie Materiae Diversae– raccoglie numerosi casi di penitenziati presso le
inquisizioni di Spagna, Portogallo, Sicilia e Sardegna, che ricorsero successiva-
mente al Sant’Ufficio di Roma31. Seppur datati al 1759, in realtà gli appelli si
riferiscono alla seconda parte del lungo pontificato di Benedetto XIV, mentre gli
stessi casi sono anche di molto anteriormente datati. Cioè risulta chiaro per la
presenza di sentenze appellate dai tribunali di Sicilia e Sardegna, che all’altezza
del pontificato di Lambertini erano stati, quello di Sicilia riformato e dotato di
piena autonomia –sia dalla Spagna che dal Sant’Ufficio romano– quello sardo
definitivamente abolito dal 1720, con il passaggio dell’isola alla corona sabauda32.
Il primo caso proveniente dal tribunale portoghese ci narra le vicende del
sacerdote José Furtado di Coimbra che, perseguitato dagli inquisitori conimbri-
censi, nel 1742 si era presentato dinanzi al papa, rilasciando una confessione
spontanea riguardo alcuni delitti di sollecitazione in confessione. Pur ottenendo
l’assoluzione papale, nel timore che l’inquisitore di Coimbra potesse continuare
a perseguitarlo, nel 1753 tornò ad esporre a Roma la necessità di ottenere una
carta ufficiale di assoluzione che avrebbe dovuto concedere l’inquisitore gene-
rale con approvazione della congregazione romana33. Vitorino de San José,
invece, era un religioso appartenente all’ordine di San Paolo primo eremita, di-
morante nel convento di Serra de Ossa. Aveva subito una condanna nel tribunale
di Evora nel 1732 “por culpas de solicitar no acto da confissão sacramental pessoas
do sexo feminino, para actos torpes e dehonestos”, ed era stato inibito in perpetuo
dall’esercizio della confessione, privato della voce attiva e passiva, sospeso dagli
ordini sacri e all’esilio per otto anni, dopo aver trascorso un anno di carcere
presso il proprio convento34. Il suo caso, vent’anni più tardi, avrebbe raggiunto
le stanze romane, a seguito di una richiesta avanzata dal medesimo religioso al
pontefice, al fine di ottenere la reintegrazione alla voce attiva e passiva. Egli giu-
stificava il suo ricorso a Roma sulla base di quanto stabilito in un antico breve di

31
Città del Vaticano, ADDF, S.O., Materiae Diversae, 1750-1772, fasc. B (26) Spagna, Portogallo, Sicilia e
Sardegna. Istanze de’ penitenziati in quelle inquisizioni fatte a questo S(anto) O(fizio) di Roma [1752-1759].
32
Riguardo l’ultima tappa del tribunale siciliano si veda Vittorio Sciuti Russi, Inquisizione spagnola e
riformismo borbonico fra Sette e Ottocento. Il dibattito europeo sulla soppressione del «terrible monstre»
(Firenze: Leo S. Olschki Editore, 2009), 91-125, e Marina Torres Arce, “Inquisición, jurisdiccionalismo
y reformismo borbónico. El tribunal de Sicilia en el siglo XVIII”, Hispania, 68, n.º 229 (2008): 375-406.
Sull’Inquisizione di Sardegna rimando a Salvatore Loi, Storia dell’Inquisizione in Sardegna (Cagliari:
AM&D, 2013).
33
Città del Vaticano, ADDF, S.O., Materiae Diversae, 1750-1772, fasc. B (26), anno 1753, ff. sn.
34
Città del Vaticano, ANTT, TSO, IE, liv. 2, fol. 438. La condanna era stata comminata in auto privato
presso la sala del tribunale inquisitoriale di Evora, il 6 marzo 1732.
[53]
Urbano VIII del 1628. Ciononostante da Roma si decise di rimettere la richiesta
all’inquisitore di Lisbona, con l’invito, però, ad avvalersi di tutte le facoltà neces-
sarie al fine di reintegrare il religioso35.
Un altro ricorso simile appare quello del sacerdote José de Assunção, na-
turale di Lisbona, religioso professo dell’ordine di San Francesco della provincia
di Arrábida, il quale, –per il medesimo delitto– era stato penitenziato nel 1748 e,
oltre alla privazione perpetua alla confessione, gli era stata anche proibita la ce-
lebrazione della messa36. Nel 1751 egli chiese al pontefice la reintegrazione,
almeno, da quest’ultimo divieto. Il 23 agosto del 1753 il papa approvava benigna-
mente la supplica, inviando le facoltà necessarie, anche in questo caso,
all’inquisitore generale portoghese37. Del resto, in data 13 luglio dello stesso
anno, il pontefice aveva rimesso all’inquisitorie portoghese le medesime facoltà
anche per un altro caso simile, quello di João Neto, sacerdote secolare e bacca-
laureato, formatosi all’Università di Coimbra. Questi, a suo dire “per ignoranza”,
sarebbe ricaduto nel medesimo delitto di sollecitazione e quindi esiliato a Castro
Marin, in Algarve, dove, ormai privato “di ogni possibilità di sostentarsi e vivere”,
decise di ricorrere anch’egli alla clemenza papale, affinché si potessero trasmet-
tere all’inquisitore generale le medesime facoltà per il suo reintegro, benché si
trattasse di un recidivo38.
Altri casi più o meno simili ricorrono fra le carte di questo fascicolo, tutti
penitenziati come sollecitantes ad turbia dal Sant’Ufficio portoghese attorno agli
anni Quaranta del secolo, e per le cui suppliche successive il pontefice non aveva
mai dubitato il da farsi, rimettendole cioè all’arbitrio dell’inquisitore portoghese,
pregandolo ad ogni modo per una soluzione positiva delle richieste. Del resto
questo modo di procedere si riscontra anche per le decadi più avanzate del

35
Città del Vaticano, ADDF, S.O., Materiae Diversae, 1750-1772, fasc. B (26), anno 1751, ff. sn. Egli sos-
teneva che “per esser passati 20 anni che ha havuto dette penitenze, ne quali ha vissuto poi con notorio
procedere e religiosa osservanza, e perché per decreto della Santa Memoria di Urbano VIII emanato
nel primo di ottobre 1626 non puol esser reintegrato della voce attiva e passiva senza ricorrere alla sede
apostolica, prostrato detto oratore a piedi della Santità Vostra humilmente la supplica degnarsi di gra-
ziarlo”. Ibid.
36
Il religioso aveva abiurato de leve nell’auto da fé celebratosi a Lisbona il 30 dicembre 1748. Per il suo
processo si veda Lisbona, ANTT, TSO, IL, proc. 7401.
37
Città del Vaticano, ADDF, S.O., Materiae Diversae, 1750-1772, fasc. B (26), anno 1753.
38
Originario di Minde, al tempo del primo processo Neto era parroco nella chiesa di Santa Cruz de
Batalha. Nell’auto da fé privato tenutosi a Lisbona il 20 novembre 1742, aveva abiurato de leve per il
crimine di sollecitazione in confessione e privato in perpetuo dall’esercizio di tale sacramento (Lis-
bona, ANTT, TSO, IL, proc. 4856). Dieci anni più tardi, mentre la sua dimora era presso Torres Novas,
venne nuovamente incarcerato con la stessa accusa, ed infine penitenziato a Lisbona –sempre in auto
privato– il 30 ottobre 1752 (Ibid., proc. 4856-1).
[54]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

secolo. Per portare solo un esempio, per l’anno 1777 recuperiamo l’istanza di
Jerónimo da Silva Barbosa, sacerdote della diocesi di Porto, che in precedenza
aveva militato nell’ordine dei domenicani, esercitando come confessore, fun-
zione nella quale era stato condannato per sollecitante. Nella sua istanza al papa
Pio VI, egli chiedeva la sospensione del divieto di confessare, ma nella consulta
prestata dai qualificatori del Sant’Ufficio appariva chiara quale dovesse essere la
posizione della Santa Sede, cioè che “ai sollicitanti non si restituisce mai la con-
fessione” e che la supplica dovesse essere semplicemente archiviata con un
“Lectum”. Così che il supplicante avrebbe di fatto limitato la sua successiva ri-
chiesta ad un reintegro, almeno, nelle funzioni di celebrante39.
Come abbiamo già notato, la norma generale in tale assunto era rimettere
la supplica all’arbitrio dell’inquisitore generale di Portogallo. Nel caso di Barbosa
ciò avviene il 29 marzo dello stesso anno, attraverso l’invio di una lettera com-
mendatizia al nunzio a Lisbona, firmata dall’assessore del Sant’Ufficio. Tale
lettera ci permette di comprendere quanto tale remissione, in realtà, solo appa-
rentasse una concessione all’arbitrio dell’inquisitore portoghese, poiché in più
riprese si sottolineava come:
Anchorché, seguendo la prattica in altri simili casi tenuta da questo sa-
gro tribunale, già siasi consegnata all’Agente del padre Girolamo da
Silva Barbosa portoghese, una supplica di esso religioso, la quale con
pontificio rescritto è stata rimessa all’arbitrio di codesto Eminentissimo
Inquisitore generale di Lisbona, nulla di meno, per atto di sua clemenza
verso il ricorrente, ha voluto Sua Beatitudine, ch’io lo raccomandi di-
stintamente, e con lettera particolare al detto E.mo Inquisitore […]
desiderando la Santità Sua, che tal remissione abbia effetto, e dia luogo
alla grazia, s’è degnata ordinarmi ch’io raccomandi particolarmente
tanto l’istanza che la persona del ricorrente40.

Si tratta di pochi esempi, tuttavia significativi del modo di procedere di


Roma e della percezione che dell’appello a Roma avessero i penitenziati dal
Sant’Ufficio portoghese. Una linea rossa che appare correre senza soluzione di
continuità attraverso tutte le decadi del Settecento.

39
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St. II 2 d. (1701-1801), f. sn. Portogallo. Istanze de’ penitenziati in
quelle inquisizioni fatte a questo S. Offitio di Roma, f. s.n.
40
Ibid. Il corsivo è mio.
[55]
“Dal zelo indiscreto di quel re”. L’Inquisizione portoghese nelle carte di un as-
sessore romano (1750)
Di grande interesse per la storia della relazione tra Santa Sede e Inquisi-
zione portoghese sono infine due testi, redatti all’ombra della curia romana tra
la metà del secolo e le decadi pombaline. Entrambi inediti –seppur maggior-
mente conosciuto dagli storici il primo– tali testi ci restituiscono la prospettiva
con cui da Roma si concepiva il vincolo inquisitoriale con Lisbona e si osservava
alle vicende portoghesi in un momento di forte cambio politico41.
Negli anni centrali del secolo, con lo svilupparsi del confronto già richia-
mato attorno al sigilismo, presso gli ambienti curiali romani vennero
raccogliendosi, ad opera dell’assessore del Sant’Ufficio, Girolamo Guglielmi
(1743-1753), una serie di informazioni –tra cui un testo intitolato Relazione
dell’Inquisizione di Portogallo e sua dipendenza dalla S. Sede– che furono succes-
sivamente presentate nel 1750, sotto forma di relazione, al pontefice Benedetto
XIV42.
Riguardo al tribunale portoghese, Guglielmi affermava esser stato intro-
dotto “dal zelo indiscreto di quel re”, facendone risalire le origini al ben noto
contesto dei battesimi forzati degli ebrei e al pericolo rappresentato dai giudaiz-
zanti43. Nel procedere del suo testo il prelato sosteneva un percorso normativo
basato sulle costituzioni di Clemente VII e Paolo III, e specificando che dovette
essere solo con il breve inviato da quest’ultimo il 12 ottobre 1539 che da Roma si
prescrivesse in maniera definitiva –per il tribunale lusitano– “il modo e la forma
di procedere nelle cause di fede, e particolarmente in quelle di giudaismo”44. Egli
finiva così per compendiare tali norme in dieci punti distinti:

41
In generale, sul Portogallo pombalino mi limito a rinviare a João Lúcio de Azevedo, O Marquês de
Pombal e a sua Época (Lisbona: Livraria Clássica Editora, 1990 [ed. originale 1909]); Francisco José
Calazans Falcon, A época pombalina. Política económica e monarquia ilustrada (São Paulo: Editora
Atica, 1982) y Rui Tavares, O Censor Iluminado. Ensaio sobre o pombalismo e a revolução cultural do
século XVIII (Lisbona: Tinta da China, 2018).
42
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St. D 4 e. Relazione dell’Inquisizione di Portogallo e sua dipendenza
dalla S. Sede, ff. sn. Su Girolamo Guglielmi (1694-1773) vedi il profilo biografico in Herman H. Schwedt
e Hubert Wolf (coord.), Prosopographie von Römischer Inquisition und Indexkongregation 1701-1813,
(A-L) (Paderborn, München, Wien, Zürich: Ferdinand Schöningh, 2010), 655-657.
43
Cfr. Susana Bastos Mateus, “Los orígenes inciertos de la Inquisición en Lisboa (1536-1548). Geografía
penitencial y estrategias de defensa de los Cristãos-novos”, Tiempos Modernos 7, n.º 20 (2010): 1-23.
Accessibile in http://www.tiemposmodernos.org/tm3/index.php/tm/article/view/212/277.
44
Cfr. Giuseppe Marcocci, “A fundação da Inquisição em Portugal. Um novo olhar” Lusitania Sacra 23
(2011): 17-40; Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 23-48. Riguardo le origini del tribu-
nale, si vedano i testi più recenti di: Daniel Norte Giebels, A Inquisição de Lisboa (1537-1579) (Lisbona:
Gradiva, 2018), in particolare, 29-112.
[56]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

Primo che l’inquisitore maggiore, potesse deputare altri inquisitori mi-


nori, alli quali non si dovesse dare né salario né altro emolumento da
beni de condannati, ma si provedesse altrove; 2° che procedesse contro
i falsari iuxta iuris dispositione; 3° che non si procedesse alla cattura de
rei se non per indizii sufficienti; 4° Che non si venisse alla tortura del
reo se non fosse restato gravato da sufficienti indizii […]; 5° che non si
propalassero i nomi dei testimoni, né si procedesse contro altre persone
dalle confessioni fatte da carcerati en tortura ma si considerassero at-
tentamente le qualità de detti denuncianti o confitenti, incaricandosi
in questa parte la coscienza degli inquisitori; 6° Che potessero allegarsi
sospetti gl’Inquisitori, Promotori dell’Inquisizione, Notari ed altri offi-
ciali dell’Inquisizione per quelle cause nelle quali il Ius Commune
ammette simile recusazione; 7° che si procedesse contro i nuovi, come
contro i cristiani vecchi trattandoli tutti ugualmente, e che si condan-
nassero i rei nelle pene giuridiche senza permutarle in pene pecuniarie;
8° Che appellandosi dalla sentenza interlocutoria dell’Inquisitore o da
altro gravame alla Sede Apostolica, rimanessero la causa e il processo
nello stato in cui si trovavano in tempo dell’Appellazione, sin tanto che
dalla medesima Santa Sede si fosse presa l’opportuna deliberazione; 9°
che da parroci e da altri non potesse predicarsi per incitare il popolo
contro li cristiani nuovi sotto pena della privazione da loro offici e be-
nefici; 10° che procedendosi contro i cristiani nuovi non si praeterisse
in modo alcuno la forma come sopra prescritta e se occorrendo qualche
dubbio se recorresse alla Santa Sede per la dichiarazione45.

Pur nella sua lunghezza, credo sia importante considerare tale citazione,
poiché sembra possa darci la misura della distanza, soprattutto in materia pro-
cedurale, che da Roma si percepisse tra le norme prescrittive che erano state
fissate nelle costituzioni apostoliche, e l’effettiva applicazione che “la coscienza”
personale dei singoli inquisitori e i contesti politici avevano di volta in volta ge-
nerato. Chiaramente il richiamo a distinte bolle e a distinte prescrizioni pone in
ombra altre misure che per noi oggi diventano fondamentali per capire l’evol-
versi di quelle prime decadi dell’Inquisizione in Portogallo. Tuttavia possiamo
valutare come venissero scelti da parte dell’assessore i punti normativi necessari
a sostenere la sua intenzione di ricondurre quell’Inquisizione sotto l’ombra della
Santa Sede –come appunto recitava il titolo posto alla relazione– senza dover
suscitare problematiche giurisdizionali che su altri fronti il papato, in quegli

45
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St. D 4 e.
[57]
anni –non solo nei confronti dell’altra inquisizione iberica ma anche all’interno
del sistema del Sant’Ufficio romano– si trovava ad affrontare46.

Del resto, quanto le stesse affermazioni e posizione fossero magmatiche in


quegli anni, sarebbe opportuno evidenziare come, con datazione all’anno prece-
dente, si conosca una copia della stessa relazione, in cui, chissà forse per
prudenza, Guglielmi epurava dal titolo qualsiasi riferimento alla dipendenza dalla
Santa Sede, seppur il corpo del testo si presentasse sostanzialmente speculare47.

L’Inquisizione portoghese di fronte a un “terremoto politico”: un dialogo ano-


nimo sulla congiura dei Távora e il rogo di Malagrida
Con la salita al potere del futuro marchese di Pombal, quelle che abbiamo
visto essere relazioni moderatamente tranquille tra Roma e Lisbona in materia
inquisitoriale, verranno a subire un forte cambio48. Non è necessario ricordare i
caratteri della riforma pombalina nella direzione di trasformare pienamente l’In-
quisizione in un tribunale regio, ma richiamarsi a tale “terremoto politico”, ci
permette presentare, come ultima esemplificazione documentaria, un mano-
scritto ancora inedito, conservato presso l’archivio inquisitoriale romano49.

Si tratta di uno scritto in lingua italiana, la cui paternità rimane anonima,


e attraverso il quale, sotto forma di dialogo, vengono contrapposte due opinioni
divergenti sugli avvenimenti accaduti in Portogallo a partire dalla metà del se-
colo. In particolare i riferimenti sono alla congiura ordita ai danni del re José I

46
In particolare ci si riferisce all’abolizione del metodo inquisitoriale a Napoli e alla riforma dell’Inqui-
sizione nel Granducato di Toscana. Su tali vicende mi permetto rinviare a Andrea Cicerchia, “La
Inquisición romana entre reformas, cambios dinásticos y aboliciones: los casos de Nápoles y Toscana
(1746-1754)” Hispania. Revista de Historia Moderna 83, n.º 273 (2023): 1-19.
47
L’intera raccolta delle relazione si conserva in due copie in tre distinti volumi in Città del Vaticano,
ADDF, S. O., St. St., D 2-f; g; h, y en Ivi, LL 5-d; e; f. La relazione sull’Inquisizione portoghese in Città
del Vaticano, ADDF, S. O., St. St. D 2 – h, ff. 188r-187; 221r-233v. Ho avuto modo di trattare tale questi-
one, fortemente connessa con la scelta di uno studiato linguaggio inquisitoriale, in Andrea Cicerchia,
‘‘¿Universalismo inquisitorial o Inquisición Universal? La búsqueda de un lenguaje común en la obra
del asesor del Santo Oficio romano Pier Girolamo Guglielmi (1743-1753)”, in Inquisición y Lenguaje,
siglos XVI-XIX, ed. Gabriel Torres Puga, Gerardo Lara Cisneros, Miguel Rodrigues Lourenço e Susana
Bastos Mateus (Messico: Instituto de Investigaciones Históricas, Universidad Autónoma Nacional de
México, in stampa).
48
Un rapido quadro ancora una volta in Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 333-357.
49
Mi riferisco al manoscritto già citato in incipit e conservato in Città del Vaticano, ADDF, S.O., St.
St., Q 4 k, ed indicato come: Manoscritto anonimo sugli avvenimenti in Portogallo e sulla presunta
congiura ai danni del re Giuseppe Emanuele (1750-1766).
[58]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

(1750-1766), ed alla successiva condanna della famiglia dei marchesi di Távora e


del padre Gabriele Malagrida (1761)50.

Come precisato, l’autore sceglie la forma letteraria del dialogo al fine di


rispondere –come spiega nel preambolo– agli scritti di Frei José de Santa Rita
Durão51, al tempo dimorante presso Santo Spirito, a Roma. In riferimento a que-
sti, l’autore confessa al lettore che “per quanti mezzi ne’ adoperassi a questo fine
mai mi riuscì di ridurre al buon partito di confessare sinceramente la verità”52.
Nel concreto, Santa Rita Durão (1722-1784), religioso brasiliano, appartenente
all’ordine degli eremitani di Sant’Agostino –noto più che altro per il poema epico
Caramuru53–sotto la protezione dell’allora vescovo di Leira, João Cosme de Cu-
nha (1715-1783)54, accusò apertamente la Compagnia di essere coinvolta, assieme
ai Távora, nel complotto che, la notte del 3 settembre 1758, avrebbe dovuto ter-
minare con la vita del sovrano portoghese55.

L’anonimo autore del testo si oppone chiaramente a tali teorie accusatrici,


affidando il proprio pensiero ad un interlocutore, anch’egli agostiniano e indi-
cato come priore Evangelista56. In contrasto con le posizioni di Santa Rita Durão,
questo non ben chiaro personaggio –formatosi come il suo antagonista presso
l’Università conimbricense57– afferma:

50
Cfr. Manuel João Gomes, ed., O processo dos Távoras: a expulsão dos jesuítas (Lisbona: Editora Afro-
dite, 1974); Cfr. Nuno Gonçalo F. Monteiro, D. José I: na sombra de Pombal (Lisbona: Temas e Debates,
2008); Célia Cristina da Silva Tavares, “O martírio dos Jesuítas: Malagrida e a «idade da razão»” Revista
de Estudos de Cultura 5 (2016): 90-102
51
Cfr. Arthur Viegas, O poeta Santa Rita Durão. Revelações históricas da sua vida e do seu século (Bru-
xelles, Paris: L’Edition d’Art Gaudio, 1914).
52
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St., Q 4 k, f. sn.
53
Cfr. Frei José de Santa Rita Durão, Caramuru. Poema Épico do Descobrimento da Bahia (Lisbona: Na
Regia Officina Typografica, 1781).
54
In seguito inquisitore generale (1770-1783). Cfr. Ricardo Pessa de Oliveira, “Inquisição Portuguesa
durante o Governo de D. João Cosme da Cunha (1770-1783)”, Libros de la corte, Monográfico 6 (2017).
A nome di Cosme da Cunha, José de Santa Rita Durão redasse una celebre pastorale, in data 28 febbraio
1759. Cfr. Ronald Polito, ed., A pastoral de Santa Rita Durão (Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui
Barbosa, 2007).
55
Si veda anche il recente José Eduardo Franco e Paula Carrera, “Conspiracy Theory as a Vehicle for a Jesuit-
Free Portugal under the Pombaline Government (1750-77)”, Journal of Jesuit Studies 10 (2023): 83-101.
56
Le nostre conoscenze attuali non ci permettono ancora di identificare questo personaggio, anch’egli
portoghese ed appartenente all’ordine agostiniano. Inoltre non possiamo affermare con certezza se si
tratti dell’autore del testo oppure di un personaggio di cui si fa specchio l’autore stesso.
57
Santa Rita Durão, dopo essere entrato nell’ordine agostiniano a Lisbona, dal 1737 al 1744 seguì i corsi
di Filosofia e Teologia presso l’Università di Coimbra, poi rientrò ancora presso lo studio
[59]
[…] che mai vi fu congiura contro della persona del mio Re e Signore D.
Giuseppe I citando in ripruova di ciò testimoni della maggior autorità
e per nobiltà di sangue, e per scienza e per coscienza. Fò palese l’intre-
ccio in cui cotanto s’adoperò Carvaglio affine d’inviluppare i signori di
Tavora, con insieme i gesuiti e nominatamente il padre Malagrida, della
di cui vita e morte racconto alcune circostanze più ammirabili58.

Senza poterci soffermare sulle tese ed ambigue relazioni che dovettero ve-
nirsi a creare tra Santa Rita Durão e il governo pombalino, sarà sufficiente
ricordare che a partire dagli anni Sessanta del secolo il religioso dovette lasciare
il Portogallo, per infine approdare alla corte romana (1763). Qui ritratterà le pro-
prie posizioni –chissà, forse grazie alle motivazioni fornitegli dal priore
Evangelista– dinanzi l’allora pontefice Clemente XIII, e permanendo a Roma al-
meno sino al 1774, quando a seguito della caduta di Pombal deciderà riprendere
la via portoghese59.

Tali considerazioni ci permettono dunque di collocare il presente testo tra


il 1763 e il 1774, e ciò per due motivi specifici: in primo luogo perché appare
chiaro che il tentativo di tale dialogo è convincere Santa Rita Durão a ritrattare
la sua posizione, dal momento che si trova a Roma, il che non avviene prima del
1763; in secondo luogo perché a partire dal 1774 Santa Rita Durão già non si tro-
verebbe più presso la curia romana.

Volendo ora concludere questo nostro percorso attraverso le fonti porto-


ghesi-romane, una ultima osservazione –con la quale vogliamo ricollegarci alla
citazione posta in incipit– la dedicheremo ancora una volta al documento ap-
pena descritto. Infatti, al di là del suo interesse letterario, tale testo rappresenta
un’interessante prospettiva sugli eventi che caratterizzarono la politica porto-
ghese di quegli anni. Ce ne restituisce una doppia visione, insieme alla
percezione che da Roma –nel pensiero dell’autore/Evangelista– si aveva dell’In-
quisizione portoghese, prima –come riportato nell’incipit– e dopo l’ascesa di
Sebastião José de Carvalho e Melo:

conimbricense nel 1754 per partirvi solo nel 1758, quando si pose sotto la tutela del vescovo di Leira.
Cfr. Viegas, O poeta Santa Rita Durão, XLV-XLVI.
58
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St., Q 4 k, f. sn.
59
Per il testo della ritrattazione si veda Viegas, O poeta Santa Rita Durão, 5-74.
[60]
ASPETTI DELL’INQUISIZIONE PORTOGHESE NELLE CARTE DEL SANT’UFFICIO ROMANO
Andrea Cicerchia

Carvaglio adunque, il quale risoluto aveva di far morire ad ogni costo il


Malagrida per mezzo di cotesto tribunale ecclesiastico [l’Inquisizione],
giacché per via del secolare e regio non glien’era riuscita l’impresa,
stimò confacente, anzi necessario al meditato disegno, il far carcerare
il padre Inquisitore Generale, esiliare in Angola il santo inquisitore fra
Francesco di S. Tomaso, ed aspettare che Nuno da Silva Telles, il quale
si trovava in età avanzata, ed assai cagionevole, finisse di vivere. Il che
tutto seguì, restando solamente nel generale Consiglio dell’Inquisi-
zione Paolo di Carvaglio, fratello di detto segretario di Stato e Nuno
Alvarez Pereira, figliuolo bastardo del fu duca di Cadaval, ed uomo per
altro di cattivi costumi e d’animo peggiore. Quest’era tutto il tribunale
del Santo Uffizio allorché fu condannato Malagrida60.

60
Città del Vaticano, ADDF, S.O., St. St., Q 4 k, p., fol. 15r.
[61]
Declínio e Abolição da Inquisição Portuguesa
James E. Wadsworth

Em 3 de maio de 1812, o comissário Joaquim Marques de Araújo escreveu a


Cipriano José de Amorim, secretário do tribunal de Lisboa, sobre
as horrorozas culpas, e nenhum arrependimento delas que cada vez se
acham mais obstinados, e querem pizar aos pes a nossa religião, eses
libertinos, e malvados homens, que para toda parte tem semeado [o
discórdio] e a heresia, sem haver quem a isto acaba [porque] os gran-
des apoiam e a fomentam os mesmos libertinos1.

Joaquim Marques serviu fielmente à Inquisição durante cinquenta anos,


entre 1770 e 1820. Os últimos vinte e quatro anos do seu serviço ativo (1789-1813)
foram consumidos pelas disputas locais com os outros comissários e pela hierar-
quia eclesiástica e política. Esses conflitos se tornaram tão intensos que ele
declarou na mesma carta de 1812 que previu que o fim do mundo seria iminente.
Sua batalha com os libertinos em seus últimos anos de serviço serve como
uma metáfora para a abolição da Inquisição portuguesa. Para encontrar as ori-
gens dos conflitos de Joaquim Marques, no entanto, precisamos olhar no longo
prazo, das décadas de 1690 até 1820. Esta perspectiva longa revela que a Inquisi-
ção portuguesa enfrentou uma série de crises que a obrigava a reinventar-se num
esforço de ultrapassar aqueles que procuravam privar a Inquisição de mão-de-
obra, jurisdição e rendimentos necessários ao desempenho das suas operações.
Esses esforços mostraram-se eficazes no curto prazo, mas não conseguiram

1
Lisboa, ANTT, TSO, IL, NT 2126.
superar o lento estrangulamento que lhes era imposto pelas forças realistas e
iluminadas do governo português.
A primeira crise envolveu uma longa e acalorada disputa jurisdicional com
o papado que resultou na suspensão papal da atividade inquisitorial em Portugal
entre agosto de 1679 e agosto de 1681.2 A Inquisição respondeu com uma estra-
tégia em duas frentes: primeira, reafirmar sua autoridade sobre a heresia3 e
segundo, ampliar sua base de apoio popular.4
Consequentemente, ao longo dos próximos sessenta anos (1681-1740), e es-
pecialmente na década de 1735 até 1745, vemos um aumento na atividade
inquisitorial contra os cristãos-novos, como se os inquisidores esperassem de-
monstrar sua relevância contínua.5 Eles também assumiram responsabilidade
das novas heresias do molinismo, maçonaria, e sigilismo e se interessaram mais
por casos de bigamia e bruxaria.6
Mesmo assim, o trabalho reprimido da Inquisição nunca se recuperou da
suspensão papal, porque a Inquisição já havia passado por um ajuste fundamen-
tal em sua atividade, passando da repressão para a promoção social. A Inquisição
portuguesa permaneceu relativamente ativa, mas depois de 1690, grande parte
de sua mão-de-obra e recursos foram orientados para a qualificação de candida-
tos a habilitar como familiares, comissários, notários, e qualificadores em vez de
perseguir hereges.7 A partir da década de 1760, a nomeação de funcionários

2
Giuseppe Marcocci, José Pedro Paiva. História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) (Lisboa:
A Esfera dos Livros, 2013), 204-209.
3
João Lúcio de Azevedo, História dos Cristãos-Novos Portugueses, 3ª ed. (Lisboa: Clássica Edi-
tora, 1989), 312-326; Lisboa, ANTT, Armário Jesuítico, mç. 30, n.º 74, 76-80, 85.
4
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 41; Marcocci e Paiva, História da Inquisição, 245, 253-259.
5
Marcocci e Paiva, História da Inquisição, 239-242; Francisco Bethencourt, The Inquisition: A
Global History (Cambridge: Cambridge University Press, 2009), 340-342, 353.
6
Marcocci e Paiva, História da Inquisição, 281-304; Alexandre Mansur Barata, Maçonaria, So-
ciabilidade Ilustrada & Independência do Brasil (1790-1822) (Juiz de Fora, Minas Gerais: Editora
UFJF, 2006), 127-162; Laura de Mello e Souza, The Devil and the Land of the Holy Cross: Wit-
chcraft, Slavery, and Popular Religion in Colonial Brazil (Austin: University of Texas Press,
2003), 32–35; James E. Wadsworth, “Jurema and batuque: Indians, Africans, and the Inquisi-
tion in Colonial Northeastern Brazil”, History of Religion 46, n.º 2 (2006): 140-161.
7
José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social: A Inquisição como instân-
cia legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências
Sociais 4 (1994): 133-135.
[64]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

dominou a atividade inquisitorial em Portugal e no Brasil até que a própria ins-


tituição foi extinta em 1821.8

Sentenças e Habilitações de Familiares no Império português, 1580-1820

Fonte: Torres, “Da repressão religiosa”, 135.

Por exemplo, em cinquenta anos de serviço entre 1770-1820, o comissário


Joaquim Marques realizou apenas 21 investigações de crimes contra a fé. No
mesmo período, realizou 349 processos de habilitação de familiares, comissários,
notários, e qualificadores. Para concluir todo esse novo trabalho a Inquisição

8
Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social”, 133-135; Bethencourt. The Inquisition,
p. 342; José Veiga Torres, “Uma longa guerra social: Os ritmos da repressão inquisitorial em
Portugal”, RHES 1 (1978): 55-68; Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social”;
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 45-46; Lisboa, BNP, cód. 166-169; Lisboa, ANTT, TSO,
CGSO, liv. 435; IL, livs. 30, 31, 32, 159, 327; procs. 56, 111, 112, 306, 436, 514, 720, 1324, 1335, 1480,
2304, 5306, 5534, 5546, 5579, 5674, 6344, 8657, 8675, 11035; Lina Gorenstein Ferreira da Silva,
Heréticos e impuros: A Inquisição e os cristãos-novos no Rio de Janeiro século XVIII (Rio de
Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informa-
ção Cultural, Divisão de Editoração, 1995); Fernanda Mayer Lustosa, “Raízes judaicas na
Paraíba colonial: Séculos XVI-XVIII”, (Tese de Mestrado, Universidade de São Paulo, 2000),
84-109 e Bruno Feitler, Inquisition, Juifs et Nouveaux-Chrétiens au Brésil: le Nordeste XVIIe et
XVIIIe Siècles (Leuven: Leuven University Press, 2003).
[65]
precisava habilitar um número maior de comissários como podemos ver na Fi-
gura 2 abaixo.

Habilitações de Comissários no Bispado de Pernambuco, 1690-1820

Fontes: Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Habilitações do Santo Ofício; Habilitações Novas; Habilitações Incomple-
tas; Lisboa, ANTT, TSO, IL, livs. 105-114.

Uma consequência deste desejo de ganhar a familiatura foi o aumento da


nomeação de jovens menores para o cargo de familiar. Como demonstrado na
Figura 3, mais jovens abaixo de vinte e quatro anos de idade foram habilitados
como familiares em números crescentes entre 1761 e 1800 (198 em Pernambuco,
muitos somente dez ou onzes anos de idade). Os regimentos nunca estipularam
uma limitação de idade para o cargo e, consequentemente, dos 536 familiares
(80,8%) em Pernambuco por quem temos uma estimativa de idade, 225, ou
41,9%, eram menores de idade de vinte e cinco. Mas eles não eram permitidos
realizar quaisquer responsabilidades do cargo até atingir a maioridade. Conse-
quentemente, a Inquisição estava habilitando jovens que não poderiam
funcionar como familiares.9

9
James E. Wadsworth, “Children of the Inquisition: Minors as Familiares of the Inquisition in
Pernambuco, Brazil, 1613-1821”, Luso-Brazilian Review 42, n.º 1 (2005): 21-43.
[66]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

Comparação de Menores e Todos os Familiares Habilitados em Pernambuco,


Brasil, 1690-1820

Fonte: Processos de Habilitação de Pernambuco, 1611-1820 [Lisboa, ANTT].

Assim, a Inquisição seguiu uma estratégia clara de fortalecer seu apoio po-
pular entre a aristocracia e as classes em ascensão social em vez de fortalecer sua
capacidade reprimida. Assim, abriram as portas do ofício inquisitório. Ao fazer
isso, eles responderam ao impulso de baixo feito pelos comerciantes, funcioná-
rios públicos e outros setores ascendentes da população que estavam dispostos
a pagar por nomeações que lhes dariam acesso a privilégios e prestígio em uma
sociedade altamente sintonizada com as questões de pureza de sangue e honra
pública. Este feliz arranjo tornou a Inquisição mais relevante para um setor
muito mais amplo da população, aumentou a visibilidade da Inquisição, trouxe
receitas muitas necessárias, e deu à Inquisição um novo sopro de vida.10

10
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 37-42.
[67]
O próximo grande golpe para a Inquisição portuguesa veio na década de
1740, embora seus resultados não fossem sentidos por algumas décadas. O mo-
vimento conservador jacobino lutou contra as tentativas da Inquisição de
aumentar sua autoridade, fazendo com que os bispos retirassem seu apoio à In-
quisição e recuperassem sua autoridade para policiar a ortodoxia de seus
rebanhos.11 Esta tendência de reafirmação da autoridade dos Bispos sobre a he-
resia coincidiu com as reformas introduzidas pelo regalista Ministro do rei D.
José I, Sebastião José de Carvalho e Melo, posteriormente o Marquês de Pombal,
que assumiu o cargo em 1750.
Pombal reformou a administração e economia colonial e procurou limitar
o poder da Igreja. Suas políticas em relação à Igreja e à Inquisição tinham menos
a ver com anticlericalismo ou antagonismo em relação a qualquer uma das ins-
tituições do que com uma agenda política específica que era uma combinação
de regalismo, secularização e nacionalismo econômico misturado com senti-
mentos antipapistas e antijesuítas.12
Pombal brigou com o núncio papal por causa do casamento do herdeiro
aparente em junho de 1760. O cisma que se seguiu durou até 1770. Pombal usou
esta década para subordinar firmemente a igreja à coroa sem interferência papal.
Em 1768, ele retirou o poder de censura da Inquisição, investindo-o em uma nova
instituição chamada a Real Mesa Censória (embora um inquisidor devesse sen-
tar-se na nova mesa).13 No mesmo ano, ele começou uma campanha social contra
os dogmas da pureza de sangue. Ele mandou a destruição de todas as listas de
fintados (daqueles que pagaram o imposto judaico) e ordenando que todas as
referências à infâmia fossem apagadas dos livros de genealogia.14 Em janeiro de
1771, Pombal também eliminou a distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos

11
José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina: O enlace entre a Inquisição e os bispos em
Portugal (1536–1750) (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011), 425-426, 429.
12
Kenneth Maxwell, Pombal: Paradox of the Enlightenment (Cambridge: Cambridge University
Press, 1995), 9; Jordão de Freitas, O Marquez de Pombal e o Santo Officio da Inquisição: Memo-
ria enriquecida com documentos inéditos e facsimiles de assignaturas do benemerito da cidade
de Lisboa (Lisboa: Sociedade Editora «José Bastos», 1916), 9, 16-17, 25-43; Marcocci e Paiva,
História da Inquisição, 333-357.
13
Entre os papéis soltos da Caixa 33 das Novas Habilitações na ANTT está uma carta da Inqui-
sição reclamando que a Real Mesa Censória não incluiu na Mesa um Inquisidor do Santo
Ofício como estipulado em lei.
14
Lisboa, ANTT, TSO, IL, NT 2158; Veja-se Lisboa, ANTT, TSO, IL, mç. 24, n.º 18; Elias Lipiner,
Terror e Linguagem: Um dicionário da Santa Inquisição (Lisboa, Círculo de Leitores, 1999), 114.
[68]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

que serviu como base das ideias da pureza de sangue. Esta estipulação entrou
em vigor em maio de 1773.15
Estas reduções na autoridade inquisitorial e mudanças nos estatutos legais
significaram que o regimento de 1640 que regia a Inquisição precisava ser revi-
sado.16 Ainda assim, o novo Regimento de 1774 manteve muita da linguagem
original do Regimento de 1640.17 Colocou novos limites, mas não alterou funda-
mentalmente os procedimentos da inquisição ou sua capacidade de perseguir
hereges. De fato, pode-se argumentar que os inquisidores manipularam com su-
cesso o ambiente político por meio de atos estratégicos de submissão à reforma,
preservando e até mesmo expandindo seus poderes. O novo regimento prova-
velmente ajudou a inquisição conformar com as ideias filosóficas e políticas
iluminadas atuais, que lhe deram pelo menos a fachada de legitimidade e talvez
mais cinquenta anos de vida.18
Em 1774, a Inquisição de Goa também foi vítima da política pombalina. O
Inquisidor Geral argumentou que Portugal havia perdido a maior parte de seu
império asiático, deixando Goa com apenas uma pequena jurisdição, o que sig-
nificava que era supérflua.19
As Inquisições em Portugal tentaram reinventar-se como bastiões de con-
servadorismo social e religioso no último quartel do século XVIII, colocando-se
em rota de colisão com a maré das mudanças políticas. Mas os oficiais das inqui-
sições nunca abraçaram totalmente a estratégia anti-iluminista. Em suas fileiras,
de cima a baixo, reinava a desunião. Alguns, como Joaquim Marques, ficaram
fiéis aos ideais do antigo regime. Outros, como o Comissário Bernardo Luíz Fer-
reira Portugal, abraçaram o iluminismo e até participaram nas conspirações
políticas do final do século XVIII e início do século XIX, incluindo a rebelião de
1817 em Pernambuco.20 Infelizmente, os conflitos dentro da Inquisição durante
aquele último meio século de sua vida não foram bem estudados. Ainda assim,
algumas evidências tentadoras sugerem que lutas internas estavam ocorrendo e

15
Candido Mendes de Almeida (ed.), Ordenações Filipinas (Rio de Janeiro: Typ. do Instituto
Philomathico, 1870), 1218; Azevedo, História dos Cristãos-Novos, 351; Lisboa, ANTT, Série Preta
2242.
16
Lisboa, ANTT, MNEJ, liv. 4, fls. 90-115v.
17
Sonia A. Siqueira, “Os Regimentos da Inquisição”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro 157, n.º 392 (1996): 495-1020; Bethencourt, The Inquisition, 66-67; Fortunato de Al-
meida, História da Igreja em Portugal (Porto: Livraria Civilização, 1971), 287-317.
18
Bethencourt. The Inquisition, 353.
19
Lisboa, ANTT, MNEJ, liv. 4, fls. 88-89v, 116-121.
20
Wadsworth, In Defence of the Faith, 131-134.
[69]
que elas enfraqueceram a capacidade das instituições de responder a tempos de
rápida mudança.
Tanto dentro quanto fora do edifício inquisicional, uma reação cultural
contra a Inquisição começou a se formar no final do século XVIII. Manifesta-se
no declínio do interesse em obter habilitação na inquisição, na recusa de honrar
o privilégio da inquisição ou respeitar a autoridade da inquisição e na falta de
vitalidade no procedimento inquisitorial.
A resposta à abolição das exigências de pureza do sangue em 1774 foi quase
imediata em Portugal, embora atrasada por quase vinte anos no Brasil. O nú-
mero de inscrições para cargos de inquisição dispensou. As crescentes classes
médias da sociedade descobriram que o custo de uma habilitação para a inqui-
sição não poderia mais ser justificado, uma vez que não poderia mais produzir o
prestígio e a honra que outrora produziu.21
Por exemplo, em 1784, o Comissário Frei José de Maria Souza relatou o
‘deplorável estado do Santo Ofício’ em Pernambuco, onde tantos procuraram
habilitação em esperança de adquirir os privilégios. Uma vez que eles descobri-
ram a verdadeira limitação desses privilégios, eles se tornam menos inclinados e
menos dispostos a servir. Quando pediu ao familiar Antonio José de Sedrim para
recolher os registros paroquiais da Igreja Corpo Santo em Recife, o pároco se
recusou a fazê-los. Antonio José tentou adquirir a ajuda de outro familiar quem
se recusou dizendo que estava ocupado. No final, Antonio José escreveu ao co-
missário José de Jesus o seguinte:
Rogo a Vossa Reverendissima que pelo amor de Deus me despence de
notificar a pessoa alguma para o serviço do Santo Tribunal para não
levar desconfeios impolíticas se muito como me tem sucedido muitas
vezes que na verdade isto está perdido todos as vezes que o Rma quiser
que lhe atesta os destorteios e palavras que tenho recebido de varias,
principalmente dos mesmos familiars, eu o farei, e o jurarei aos Santos
Evangelhos se necessario22.

As Inquisições permaneceram profundamente divididas sobre as ideias e


políticas liberais, o que significava que nunca poderiam formular uma agenda
coerente. Stephen Haliczer observa sobre a Espanha que podemos ver essas di-
visões e o poder da opinião liberal dentro da Inquisição no grande número de

21
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 37-42; Bethencourt. The Inquisition, 169-173.
22
Lisboa, ANTT, TSO, IL, livs. 319 e 320.
[70]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

licenças emitidas pela Inquisição para a leitura de livros proibidos.23 O mesmo é


verdadeiro para Portugal, embora a censura tenha sido em grande parte retirada
da Inquisição entre 1768 e 1787. A comissão de censura concedeu muitas licenças
para ler livros proibidos. Os livreiros também evitaram a censura inquisitorial
importando livros proibidos em capas falsas. Na verdade, a maioria das publica-
ções liberais que circulavam no Brasil eram contrabandeadas.24 O vasto número
de licenças minou os esforços da Inquisição na censura e facilitou a difusão das
ideias liberais. Conseqüentemente, o fracasso da inquisição em evitar que as no-
vas ideias se instalassem surgiu, pelo menos em parte, de divisões e
inconsistências internas
Funcionários enérgicos, como Joaquim Marques, que procuravam cumprir
suas responsabilidades, continuaram a trabalhar para a Inquisição. Mas eles fre-
quentemente se achavam enfrentados no final do século XVIII e no início do
século XIX com ataques ferozes que prejudicavam sua capacidade de desempe-
nhar suas funções.25
Em Portugal e no Brasil, os líderes locais se recusaram a honrar o privilégio
da inquisição.26 Os governadores no Brasil forçaram familiares a servir nas milí-
cias locais, embora eles tivessem o direito de ingressar na Companhia dos
Familiares.27 Os padres recusaram-se a permitir o acesso aos seus registros para
investigações.28 Familiares recusaram-se a cumprir suas obrigações.29 Os párocos

23
Stephen Haliczer, “Inquisition Myth and Inquisition History: The Abolition of the Holy Of-
fice and the Development of Spanish Political Ideology”, in The Spanish Inquisition and the
Inquisitorial Mind. ed. Angel Alcalá (Boulder, CO: Columbia University Press, 1987), 541-542.
24
Veja-se Luiz Carlos Villalta, “As licenças para posse e leitura de livros proibidos”, in De Ca-
bral a Pedro I: Aspectos da colonização portuguesa no Brasil, ed. Maria Beatriz Nizza da Silva
(Porto: Humbertipo, 2001), 235-45; E. Bradford Burns, “The Intellectuals as Agents of Change
and the Independence of Brazil, 1724-1822”, in From Colony to Nation: Essays on the Independ-
ence of Brazil, ed. A.J.R. Russell-Wood (Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1975), 219-
20; Maria Beatriz Nizza da Silva, Cultura no Brasil Colônia (Petrópolis: Vozes, 1981), 144-60.
25
Haliczer, “Inquisition Myth and Inquisition History”, 540.
26
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 4, n.º 12; Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, NT 4156; CGSO, mç.
28, n.º. 98, 99; Lisboa, ANTT, NT 4156 e CGSO, mç. 53. Veja-se também, Lisboa, ANTT, TSO,
CGSO, NT 4188; Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 17, n.º 3 e IL, NT 2133; Lisboa, ANTT, MR, mç.
362; Lisboa, AHU, Bahia, cx. 52, docs. 10021-27;
27
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 381, fl. 168; Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, NT 4152; Lisboa, AHU,
Pernambuco, cx. 62, doc. 5347.
28
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Habilitações do Santo Ofício, José, mç. 57, n.º 885; Lisboa, ANTT,
TSO, IL, 319 e 320.
29
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 6, n.º 27; ANTT, TSO, CGSO, Habilitações Incompletas, Luís,
mç. 26, n.º 130.
[71]
se recusaram a publicar os Éditos de Fé, argumentando que isso contradizia o
direito do povo ao livre arbítrio.30 E Joaquim Marques entrou em conflito com a
Bispo José Joaquim de Cunha de Azeredo Coutinho e os membros do cabildo da
Catedral de Olinda (muitos deles eram comissários) sobre a autoridade e os pri-
vilégios do Santo Ofício.31
Do mesmo jeito, famílias que uma vez buscaram uma nomeação para a
Inquisição retiraram seus pedidos. Por exemplo Antônio de Souza Barroso reti-
rou o pedido de seus três filhos para se tornarem familiares em 1810 dizendo que
não queria mais continuar as diligências e pediu que eles devolvessem seu depó-
sito não gasto de 100$000 porque não queria mais que seus filhos se tornassem
familiares.32
As Inquisições também se tornaram mais relaxadas em suas investigações.
Em vez de proceder a investigações tanto no local de nascimento como no local
de residência, como era a prática, os inquisidores portugueses começaram a or-
denar investigações rápidas feitas somente em Lisboa, mesmo que os habilitados
morassem no Brasil. Em 1820, o inquisidor geral José Joaquim de Cunha de Aze-
redo Coutinho simplesmente dispensou um candidato de qualquer investigação
e deu-lhe uma nomeação.33
A história financeira da Inquisição, que permaneceu pouco estudada até
muito recentemente, mostra que a vitalidade fiscal dos tribunais foi um desafio
constante. Bruno Lopes mostrou que as receitas da venda dos bens de reclusos
condenados diminuíram ao longo do século XVIII ao mesmo tempo que aumen-
tou os depósitos dos que procuravam se habilitar como familiares, comissários,
notários, e qualificadores, e as esmolas da Irmandade de São Pedro Mártir.34 É
muito cedo para dizer se esse impulso para aumentar o acesso as habilitações foi
um esforço intencional para compensar as receitas perdidas, mas é sugestivo.
Embora os cristãos-novos tenham continuado a ser o foco principal da In-
quisição Portuguesa até o final do século XVIII, ela também estendeu seus
processos de bigamia, sodomia e feitiçaria. Embora não se limitassem às classes

30
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 14321. Veja-se Wadsworth, In Defence of the Faith.
31
Wadsworth, In Defense of the Faith, 111-128.
32
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Habilitações Incompletas, mç. 27, n.º 131.
33
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Habilitações do Santo Ofício, Francisco, mç. 95, n.º 1572;
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 221-222.
34
Bruno Lopes, “As Contas da Inquisição Portuguesa: O Exemplo dos Tribunais de Évora e
Lisboa (1701-1755)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura, 16 (2016): 195, 201-210.
[72]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

mais baixas, esses crimes estavam amplamente concentrados ali. 35 Menos con-
fiscos e confiscos de menos valor significam menos receita para os cofres da
Inquisição. Isso significava que a prática de fazer o acusado pagar por sua prisão
simplesmente não funcionava bem e gerava muitas poucas receitas.

Casos de Bigamia em Pernambuco 1711-1810

Fontes: Lisboa, ANTT, TSO, IL, procs. 1890, 5546, 2686, 1462, 4516, 936, 13400, 3127, 5579, 9110, 11164, 111, 112,
2650, 514, 2452, 2453, 8657, 6269, 4999, 4337, 14938, 3460, 10427, 3449, 6274, 9690, 7133, 8605, 5844, 9804, 4367,
4397, 9803, , 4367, 4397, 9803, 05674, 14194, 13413, 01480, 13330, 14662, 14944, 13249, 13451, 12954, 06696, 13264,
06247, 7039, 07032, 03759, 06357, 56, 11511, 06692, 2148, 13328, 06685, 16877, 02823, 07040, 402, 7045, 16066,
06861, 7050, 223, 14222, 720, 226, 2776; Lisboa, ANTT, TSO, CGSO mç. 8, n.º 4.

O grande número de habilitações de cargos de inquisição pode ter ajudado


a compensar essa crise fiscal durante uma grande parte do século XVIII. Cada
candidato teve que pagar por cada detalhe de sua investigação. Da mesma forma,
uma vez nomeados, eles deveriam pagar a esmola de admissão à Irmandade de
São Pedro Mártir, bem como as esmolas anuais.36 Bruno Lopes mostra ainda que
as Inquisições de Évora e de Lisboa recorreram a empréstimos de dinheiro das

35
Wadsworth, In Defence of the Faith, 51-71.
36
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 163-164; James E. Wadsworth, “Celebrating St. Peter Mar-
tyr: The Inquisitional Brotherhood in Colonial Brazil”, Colonial Latin American Historical
Review 12, n.º 2 (2003): 173-227.
[73]
esmolas da Irmandade de São Pedro Mártir.37 Ainda assim, Lopes demonstra que
embora as receitas dos confiscos fossem importantes para a vitalidade fiscal da
Inquisição, nunca foram cruciais. As Inquisições de Portugal dependiam mais
fortemente dos rendimentos eclesiásticos e receitas das tenças de tabaco.38
Ainda assim, a falta de receitas dos confiscos poderia ser uma das motivações
que encorajou a Inquisição aumentar os números dos habilitados.
A queda de Pombal em 1777 retardou o assalto à autonomia inquisitorial.
A Inquisição de Goa foi restabelecida em 1778, embora finalmente abolida em
1812. Em 1807, a coroa fugiu para o Brasil para evitar a invasão francesa. Embora
os franceses não tenham agido contra a Inquisição portuguesa, o período da ocu-
pação francesa interrompeu os negócios da inquisição com as colônias.
Em 1820, uma rebelião constitucionalista ocorreu em Portugal quando rei
D. João VI ainda estava no Brasil. Os líderes da rebelião formaram um conselho
e começaram a esboçar uma constituição liberal. Em outubro de 1820, a junta
liberal exigiu que o Conselho Geral e os inquisidores fizessem um juramento de
lealdade e obediência ao novo governo e à futura constituição.39
Em 8 de fevereiro de 1821, Francisco Simões Margiocchi apresentou uma
moção para abolir a Inquisição. O inquisidor presente no debate declarou que a
Inquisição surgiu de uma cultura de intolerância e persistiu por causa das ‘causas
morais que retardavam o progresso da compreensão humana’.40 Os delegados
aprovaram a moção em 24 de março de 1821 e a ordem tornou-se pública em 5
de abril do mesmo ano. A ordem aboliu toda a burocracia, leis, regulamentos,
etc. que regiam a Inquisição. Toda autoridade para crimes espirituais foi rever-
tida para os bispos e o resto para as autoridades civis. Todas as propriedades da
inquisição foram entregues ao tesouro nacional. Todos os documentos

37
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 154, fl. 113. Alguns registos financeiros podem ser encontrados
em “Receita e despeza do Conselho Geral”, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 63, e mç. 64; Lis-
boa, ANTT, TSO, IL, NT 2126, 2142-2144, 2148, 2157, 2159, e várias caixas não numeradas; Lisboa,
ANTT, TSO, IL, liv. 158, fls. 158, 161, 169, 219, 226, 233; e Lisboa, ANTT, TSO, IL, mçs. 1, 6, 7, 11,
14, 29, 35, 41-42. Lopes, “As Contas da Inquisição Portuguesa”, 195, 200, 205.
38
Lopes, “As Contas da Inquisição Portuguesa”, 212; Bruno Lopes, “Sustentar a Inquisição com
Rendimentos Eclesiásticos: Uma Aproximação ao Tema (séculos XVI-XVIII)”, in Família, Cul-
tura Material y Formas de Poder en la España Moderna, ed. Máximo García Fernández (Madrid:
Fundación Española de Historia Moderna, 2016), 737-749.
39
Bethencourt, The Inquisition, 426-427. António Baião, A Inquisição de Goa: Tentativa de his-
tória de sua origem, estabelecimento, evolução, e extinção, vol. 1 (Lisboa: Academia das
Ciências de Lisboa, 1949), 370-71.
40
Wadsworth, Agents of Orthodoxy, 222.
[74]
DECLÍNIO E ABOLIÇÃO DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
James E. Wadsworth

inquisitivos foram enviados à biblioteca nacional para serem inventariados. Fi-


nalmente, as portas do palácio inquisicional foram abertas e o público ganhou
acesso pela primeira vez aos recintos sagrados, incluindo as prisões secretas.
Como vimos, a abolição da Inquisição em Portugal deve ser vista no con-
texto de uma série de grandes mudanças estruturais que começaram antes do
Iluminismo, mas que se fundiram e alimentaram as novas críticas políticas, eco-
nómicas e sociais produzidas pelo Iluminismo. A Reforma abriu as portas para o
questionamento intelectual e religioso. Atitudes populares de tolerância ressurgi-
ram e se tornaram mais públicas, encontrando suas vozes na linguagem do
Iluminismo.41 As nações europeias não precisavam mais da religião para legitimar
o poder. Guerreiros sagrados de qualquer tipo passaram a ser vistos cada vez mais
irrelevantes nos assuntos nacionais e internacionais da Europa. Os bispos em Por-
tugal retiraram o seu apoio à Inquisição.42 Os conflitos papais exacerbaram a
instabilidade política e inspiraram reformas internas. Os ministros principais uti-
lizaram as ideias do Iluminismo para avançar seus esforços para subordinar a
igreja. Os fiéis acharam a Inquisição cada vez mais irrelevante à medida que ela
perdia sua capacidade de fornecer honra e prestígio. As idéias de tolerância pas-
saram a dominar o discurso público. Com o amanhecer da Inquisição, surgiram
novas formas de controle social distintas da disciplina da igreja.43
Joaquim Marques de Araújo passou as últimas duas décadas de sua vida
atolado nesses conflitos, lutando desesperadamente para se defender dos ventos
da mudança histórica. Ele travou contínuas batalhas jurisdicionais com os arce-
bispos de Pernambuco e com o cabildo liberal da Catedral de Olinda, que
buscava expulsá-lo de suas fileiras. Protestou contra familiares e comissários que
se recusaram a cumprir suas funções por medo de represálias ou simples desin-
teresse. Os seus apelos de ajuda e protecção dos deputados do conselho geral
caíram em surdos e ele morreu sozinho e derrotado um ano antes da abolição
da Inquisição portuguesa.
Nesta visão histórica mais ampla, podemos ver tanto os esforços persisten-
tes dos funcionários do governo para reduzir a autonomia e o poder dos
tribunais da fé quanto as rupturas políticas, culturais e internas que

41
Stuart Schwartz, All Can Be Saved: Religious Tolerance and Salvation in the Iberian Atlantic
World (New Haven: Yale University Press, 2008).
42
Paiva, Baluartes da Fé, 213-260.
43
Haliczer, “Inquisition Myth and Inquisition History”, 534-535; Francisco Bethencourt, “In-
quisição e controle social”, História e crítica 14 (1987): 5-18.
[75]
contribuíram para a instabilidade e o declínio institucional. As autoridades se-
culares empregaram a lenta estrangulamento das Inquisições de mão de obra,
jurisdição e receitas que forçaram os líderes da Inquisição responder através da
reinvenção, o que, por um tempo, lhes deu um novo sopro de vida. Atos de sub-
missão estratégica e sobrevivência discreta só poderiam impedir a mudança por
algumas décadas.
As palavras de Joaquim Marques sobre os desafios que enfrentava, escritas
em 30 de janeiro de 1796, revelaram-se proféticas:
Ele diz,
Sendo por nos chamados para [o serviço do S.O.], [os familiares] não
obedecem, dando por pretexto que como o general desta capitania não
cumprem os seus privilégios, elles não podem arder em dois fogos, fa-
zerem as obrigações de familiares, e as obrigações de soldados
auxiliares. Mas não hé esta so a cauza se não pela rebeldia dos ditos
familiares, testemunhas escrivães e todos aquelles que são chamados
para o serviço do S.O. Está tudo isto tão abandonado que chegam al-
guns a proferir, que está para se acabar o Tribunal, e que os Francezes
só convem na paz com Portugal sendo que haja de se abolir o Tribunal
do S.O. E a vista de tanta rebeldia, como bem poderé ir executar as or-
dens que por Vossas Illmas me forem enviadas?44

Joaquim Marques de Araújo previu a abolição da Inquisição 25 anos antes


que as portas do sagrado edifício fossem abertas para o público. Talvez era ine-
vitável, mas ele resistiu e lutou para preservar a Inquisição daqueles que
chamava libertinos. Num desenvolvimento histórico muito irônico foi um da-
queles libertinos com quem lutava, o Bispo José Joaquim da Cunha de Azeredo
Coutinho que foi o último Inquisidor Geral da Inquisição. Ele simplesmente dei-
xou a Inquisição morrer sem levantar a mão para detê-la.

44
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 402.
[76]
PARTE 2

Direitos e Práticas Judiciárias


Inquisitoriais
Evoluções da práxis inquisitorial portuguesa: os
processos por heresia (1536-1774)
Bruno Feitler

Ao se estudar a documentação inquisitorial, ou quando utilizamos proces-


sos, denúncias ou outros documentos de teor judicial para entender questões
que não se originam diretamente do âmbito legal, é preciso tomar certos cuida-
dos. Faz-se necessário lembrar que a linguagem e os formatos desses
documentos são altamente limitados tendo em vista as suas funções específicas
dentro do procedimento para o qual foram criados. No caso que aqui nos inte-
ressa, o processo inquisitorial português, que teve vigência, com variações (de
acordo com o delito julgado, mas também de acordo com o tempo, os juízes ou
o tribunal em questão) entre 1536 e 1821. Essa questão deve ser levantada quando
se sabe que os campos da História social e da História Cultural são muito impor-
tantes nos trabalhos acadêmicos no Brasil, são mesmo preponderantes quando
se debruçam sobre a Inquisição e sobre sua ação.
Sigo aqui o historiador italiano Andrea Del Col, que ao tratar do uso da
documentação inquisitorial para a história de fenômenos culturais, chama a
atenção para a institucionalidade da fonte inquisitorial, que permitiria, sobre-
tudo, a compreensão do funcionamento dos tribunais e da mentalidade dos seus
ministros. Assim, os documentos inquisitoriais devem ser usados com extremo
cuidado, levando em conta esse aspecto quando são usados de maneira “indi-
reta”, sendo uma fonte “direta” apenas para a história institucional. Faz-se
necessário um enorme trabalho de contextualização para uma boa compreensão
e um bom uso desses processos1.
De modo mais específico, e de modo a contextualizar culturalmente essa
documentação, também é essencial lembrar que o sistema de provas do Antigo
Regime, ou seja, o sistema de provas legais vigente no direito comum (o ius
commune), ao criar todo um método aritmético de qualificação das testemunhas
e dos seus dizeres, fazia com que fosse necessário tipificar os relatos de modo a
que esses relatos pudessem ser somados uns aos outros (ou subtraídos) de
acordo com:1) o teor do que era dito, 2) a origem do conhecimento do fato (de
visu ou de auditu), 3) o estatuto social da testemunha e do réu2. Os processos
que lemos são o resultado disto. Mas também da necessidade dos juízes de en-
quadrar o discurso dos réus e das testemunhas ao seu próprio conhecimento,
como apontado já a tempos por Ginzburg3. Apesar da dialética entre cultura le-
trada e cultura popular ser muito mais complexa do que a simples dicotomia
pode deixar a pensar, não se tratava simplesmente de trazer o discurso “popular”
aos moldes letrados do que era feitiçaria, pacto com o diabo, luteranismo ou
heresia judaizante. Deve-se ir além: tratava-se de moldá-lo a um discurso jurí-
dico que fosse útil aos juízes na hora de se lavrar uma sentença ou na hora de
comparar o que havia sido dito por uma testemunha com os dizeres de outra.
Estas são, me parece, as verdadeiras razões do discurso indireto que lemos nos
processos inquisitoriais.

1
Andrea Del Col, “I Criteri dello storico nell’uso delle fonti inquisitoriali moderne”, in dir.
Andrea del Col e Giovanna Paolin, L’Inquisizione romana: metodologia delle fonti e storia isti-
tuzionale. Atti del Seminario internazionale, Montereale Valcellina, 23-24 settembre 1999,
(Trieste: Università di Trieste, 2000), 51-72; Andrea Del Col, “I documenti del Sant’Ufficio
come fonti per la storia istituzionale e la storia degli inquisiti”, Cromohs 11 (2006): 1-6. Dispo-
nível em: http://www.cromohs.unifi.it/11_2006/delcol_docsantuff.html. Ver também Jean-
Pierre Dedieu e René Millar Carvacho, “Entre histoire et mémoire. L’Inquisition à l’époque
moderne: dix ans d’historiographie”, Annales HSS 57 (2002): 353-360.
2
Sobre o sistema de provas legais inter alii John Gilissen, Introdução Histórica ao Direito (Lis-
boa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011), 716-719 [1ª ed. em francês: 1979]. Um estudo
aprofundado em Giorgia Alessi Palazzolo, Prova legale e pena. La crisi del sistema tra evo medio
e moderno (Nápoles: Jovene Editore, 1979).
3
Carlo Ginzburg, Le juge et l’historien. Considérations en marge du procès Sofri (Lagrasse: Ver-
dier, 2007) [ed. em italiano: 1991] e “O inquisidor como antropólogo”, in O fio e os rastros.
Verdadeiro, falso, fictício (São Paulo: Cia. das Letras, 2007), 280-293 [ed. em italiano: 2006,
mas o texto foi apresentado oralmente em 1985 e 1988].
[80]
EVOLUÇÕES DA PRÁXIS INQUISITORIAL PORTUGUESA: OS PROCESSOS POR HERESIA (1536-1774)
Bruno Feitler

O corolário dessa questão metodológica é que: sem estudarmos os proces-


sos e os procedimentos inquisitoriais, as variações e os debates internos surgidos
de tempos em tempos em torno deles no seio do próprio corpo inquisitorial, não
teremos uma boa compreensão da própria instituição. E sem entender a Inqui-
sição, e as fontes que ela produziu, não será possível compreender bem os grupos
que por ela foram perseguidos, sobretudo quando as fontes inquisitoriais são
praticamente as únicas disponíveis para se estudar esses grupos.
Pode-se perguntar porque os estudos sobre esses debates internos à insti-
tuição e de modo mais amplo sobre a história dos procedimentos legais da
Inquisição portuguesa eram pouco expressivos até não muito tempo. Felizmente
mais recentemente estudos têm se debruçado, tanto em Portugal, quanto no
Brasil, quando em outros lugares, sobre o funcionamento e a práxis judicial do
Santo Ofício português, analisando a documentação da Inquisição portuguesa
enquanto processos judiciais em si. Esses estudos são essenciais pois tornam pro-
cessos e outros documentos inquisitoriais mais inteligíveis e fazem com que
compreendamos melhor o lugar do tribunal por entre as instituições legais do
Antigo Regime Português e o impacto que teve nas sociedades sobre as quais sua
ação incidiu.
Quanto às razões desse déficit de conhecimento: para além das tendências
historiográficas das últimas décadas do século passado, que desvalorizavam a
história institucional, me parece que podemos identificar o peso da imagem que
a própria instituição quis passar de si de homogeneidade e constância de práti-
cas, mas também a inegável tendência (literária, para não dizer popular, filhas
da “lenda negra”, mas que certamente influencia a academia) de ver a Inquisição
como uma máquina, seja completamente arbitrária e sem regras, seja à frente do
seu tempo em sua eficiência de métodos persecutórios (duas imagens – claro
está – que não condizem com a realidade). As reedições e traduções de textos de
manuais inquisitoriais medievais não ajudou a desfazer essa imagem. A conse-
quência dessa tendência é aquilo que Julio Caro Baroja chamou de uma
“Inquisição sem inquisidores”4, ou uma inquisição sem rosto, que inevitavel-
mente leva a se pensar que teria uma práxis judicial constante e inabalável,

4
Julio Caro Baroja, El Señor Inquisidor y otras vidas por oficio (Madrid: Alianza Editorial, 1997)
[1ª ed.: 1968].
[81]
quando as ações inquisitoriais, como muito bem diz Kimberly Lynn, “não eram
inevitáveis”. Muito pelo contrário, “o correr dos processos e as decisões de ins-
taurá-los e encerrá-los estavam profundamente marcadas por dinâmicas
políticas, sociais, legais econômicas e religiosas, que aconteciam em múltiplas e
intercaladas camadas”5.
É bem conhecida a controvérsia em torno da validade dos processos inqui-
sitoriais travada a partir do debate iniciado entre António José Saraiva e Israel S.
Révah em 19696, mas algo a que pouco se chama a atenção é que esse debate é
fruto de discussões semelhantes em torno da validade (obviamente jurídica e
não enquanto fonte histórica) dos processos julgados por heresia nos tribunais
inquisitoriais portugueses que aconteceram durante praticamente todo o tempo
de funcionamento do tribunal. A Inquisição não era tão monolítica quanto sua
propaganda queria dar a parecer. Não só por ter sempre havido debate nas mesas
inquisitoriais (perceber isso no Conselho Geral, a instância suprema do tribunal,
é bem mais difícil), mas também pela prática inquisitorial ter variado e evoluído
ao longo de sua história por conta desses debates, e é claro, pelo direito inquisi-
torial estar plenamente inserido no sistema do ius commune7.
O Santo Ofício não era um corpo isolado por entre as instituições do An-
tigo Regime português. Muito pelo contrário, inseria-se organicamente no
conjunto de tribunais eclesiásticos e civis, altos conselhos régios, à Universi-
dade em Coimbra e no universo dos cabidos catedralícios. Aqui é importante
chamar a atenção para os cargos de deputados (do Conselho Geral, mas sobre-
tudo dos tribunais de distrito), quase sempre vistos como meros coadjuvantes,
quando na verdade tinham funções judiciais e políticas muito importantes para
o Santo Ofício. Eram indispensáveis para se lavrar sentenças e foram os ele-
mentos vivos das ligações orgânicas que existiam entre o tribunal e outros
corpos institucionais portugueses. Os deputados mostram perfeitamente esse

5
Kimberly Lynn, Between Court and Confessional. The Politics of Spanish Inquisitors (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2013), 341.
6
António José Saraiva, Inquisição e Cristãos-Novos (Lisboa: Inova, 1969). A controvérsia foi
reproduzida em anexo à quinta edição do livro de Saraiva, pela Editorial Estampa, de 1985.
7
O que se segue é uma apresentação do meu livro, Bruno Feitler, A fé dos juízes. Inquisidores
e processos por heresia em Portugal (1536-1774) (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coim-
bra, 2022). Disponível em acesso aberto em: http://monographs.uc.pt/iuc/catalog/book/274
[82]
EVOLUÇÕES DA PRÁXIS INQUISITORIAL PORTUGUESA: OS PROCESSOS POR HERESIA (1536-1774)
Bruno Feitler

entrosamento, já que podiam ocupar duas ou mais dessas posições ao mesmo


tempo. O perfil dos ministros inquisitoriais era reflexo dessa organicidade e é
assim uma parte importante de qualquer estudo que se queira fazer das evolu-
ções da práxis inquisitorial.
O ministro inquisitorial-tipo era um clérigo secular formado na Universi-
dade de Coimbra em Direito Canônico. Os teólogos foram minoria, mas isso não
os impedia de ser presença constante, ao menos enquanto deputados e deputa-
dos do Conselho Geral. Tendo em vista a principal matéria tratada na Inquisição
(a heresia), essa presença de teólogos era essencial, e o seu ponto de vista, apesar
de minoritário, tinha meios de se sobrepor àquele dos juristas. Foi numa des-
sas disputas, ocorrida em torno de algo que hoje em dia pode parecer um mero
detalhe dos julgamentos por heresia – a imposição de diferentes penas espiritu-
ais aos réus reconciliados com a Igreja – que podemos identificar um importante
sintoma do que vemos como uma ‘mecanização’ dos procedimentos inquisitori-
ais e também claramente uma tomada de consciência pelos ministros da
fragilidade e das contradições contidas nos métodos legais postos em prática no
julgamento dos casos de heresia, particularmente nos casos de judaísmo, mesmo
se documentos da época do inquisidor geral cardeal d. Henrique (1539-1578) in-
diretamente também apontam para essa consciência.
As questões que me pareceram mais importantes, mais debatidas entre os
inquisidores de Portugal, e que melhor mostram essa ‘mecanização’ foram es-
sencialmente duas. Nesses debates internos, foram questões derivadas do
julgamento do delito de judaísmo que provocavam as mais importantes contro-
vérsias. Não é segredo que o judaísmo (ou o criptojudaísmo) foi o principal delito
pelo qual as Inquisições ibéricas foram criadas e o delito mais comum no tribu-
nal português. No cotidiano dos ministros inquisitoriais lusos foram essas
controvérsias que causaram, se não a maior parte, ao menos as mais impactantes
das contendas que a literatura jurídica e moral tanto temia: as que causavam
discordâncias e até cisões no corpo de juízes. Essas duas questões foram: o de-
bate surgido por volta de 1640 sobre as penitências espirituais a impor aos réus
reconciliados por judaísmo, e a clamorosa controvérsia sobre o acúmulo de tes-
temunhos singulares para a condenação desses mesmos réus.

[83]
É claro que a Inquisição esteve envolta em inúmeras polêmicas, algumas
mais clamorosas do que as que vamos ver aqui, como em relação ao confisco dos
bens ou o sigilismo, mas interessa ver os debates internos, aqueles que dividiram
claramente a opinião do próprio corpo inquisitorial, sendo sintomas daquilo que
fez evoluir o modo pelo qual julgavam os casos sob sua alçada, ou sintomas dos
bloqueios que existiam a essa evolução.
A polêmica em torno da questão da proibição da administração da euca-
ristia aos réus que haviam abjurado por judaísmo (quando antes ela era
preconizada), que surgiu no delicado momento de implementação do regimento
de 1640 e quando o inquisidor geral d. Francisco de Castro se encontrava preso
por alta traição na torre de Belém, reflete a enorme suspeita que pairava sobre a
sinceridade do catolicismo dos cristãos-novos em geral e dos reconciliados pelo
Santo Ofício por judaísmo em particular. Mas do ponto de vista da evolução da
práxis inquisitorial, essa disputa, proposta e vencida pelo poderoso deputado do
Conselho Geral o dominicano fr. João de Vasconcelos, preocupado sobretudo
com os possíveis sacrilégios que eram cometidos por esses falsos arrependidos
(que sacrilégios seriam esses? Simplesmente receber a eucaristia sem a intenção
de recebê-la enquanto corpo de Cristo), pôs a nu a renúncia dos juízes em buscar
nas provas jurídicas as marcas do real arrependimento dos réus. Ao não confiar
nas confissões e denúncias que recebia (na maior parte dos casos oriundas de
confissões), a Inquisição decidiu institucionalmente deixar a verdadeira reinte-
gração dos réus à comunidade de fiéis – e assim à comunidade do reino –, para
a fase pós-processual. A marca disso foi a proibição aos cristãos-novos reconci-
liados por judaísmo que abjurassem in forma, mas também de vehementi, de
comungar sem a autorização dos inquisidores, que para a conceder colheriam
testemunhos de bom comportamento do penitente de seu pároco e confessores.
A grande maioria do corpo inquisitorial do tempo tentou demover o Conselho
Geral de implementar essa regra, demonstrando o quanto ela entrava em con-
tradição com o fato do tribunal ter aceito as confissões desses reconciliados. Mas
esses alertas não deram resultado.
Do estudo da aplicação dessa nova diretiva foi possível constatar como as
questões e os métodos legais pensados para combater e julgar os casos de juda-
ísmo tinham repercussões imprevistas, sendo também aplicados a outros delitos.

[84]
EVOLUÇÕES DA PRÁXIS INQUISITORIAL PORTUGUESA: OS PROCESSOS POR HERESIA (1536-1774)
Bruno Feitler

Com efeito, mesmo se na prática o problema relacionava-se aos cristãos-novos,


do ponto de vista legal ele foi generalizado, sendo aplicado em todos os julga-
mentos de heresia em que havia abjuração in forma ou de vehementi (como em
processos por “luteranismo”). Estávamos, na cronologia inquisitorial, em pleno
‘tempo dos cristãos-novos’, e os métodos de perseguição ao judaísmo contami-
nava o modo como outros delitos eram julgados. Isso também ocorreu após a
gigantesca polêmica em torno dos testemunhos singulares dos anos 1670, encer-
rada por um breve papal cujas determinações repercutiram também no
julgamento de outros delitos em que se empregavam esse tipo de testemunho,
como a solicitação ad turpia.
O que eram os testemunhos singulares? Não se tratava da prisão ou con-
denação por uma única testemunha, mas do acúmulo de testemunhos mais ou
menos discordantes contra uma mesma pessoa. Os desacordos existentes entre
juízes da fé em torno da questão da validade ou não dos testemunhos singulares,
ao serem publicizados a partir do debate provocado por Gastão de Abrunhosa
mostraram qual poderia ser o calcanhar de Aquiles da Inquisição. Esse método,
visto como tipicamente português de se acumular testemunhos em casos de he-
resia fez correr muita tinta e começou por servir de justificativa para a concessão
pelo papa Clemente VIII de um perdão geral aos cristãos-novos em janeiro de
1605. Estes, em 1628, conseguiram até que Felipe IV publicasse uma carta régia
contra o uso dos testemunhos singulares, mas que ficou, por vício de forma, sem
efeito. A publicação dos Aphorismi inquisitorum do deputado do Conselho Geral
fr. Antonio de Sousa em 1633 tinha como um dos principais objetivos mostrar
interna e externamente à instituição que os testemunhos singulares, de modo
geral, deviam ser tidos como válidos nos processos por heresia8. Mas os dissensos
continuaram a existir internamente, e foram em boa parte os argumentos contra
o uso das testemunhas singulares que estiveram por trás da paralização das ati-
vidades inquisitoriais ordenada por breve de Clemente X em 1674, já que não
havia clima político para a concessão de mais um perdão geral. Não houve autos-
da-fé em Portugal por praticamente sete anos, durante parte dos quais a

8
Fr. Antonio de Sousa, Aphorismi inquisitorum in quatuor libros distributi. Cum vera historia
de origine S. Inquisitionis Lusitanae, & quaestione de testibus singularibus in causis fidei (Lis-
boa: Petrum Craesbeeck, 1630).
[85]
Congregação do Santo Ofício, em Roma, analisou as queixas dos cristãos-novos
e os procedimentos legais da Inquisição portuguesa. O breve de Inocêncio XI de
agosto de 1681, que restituiu a ela seu pleno funcionamento, foi visto como o
triunfo da Inquisição, já que reconhecia, entre outros procedimentos, os teste-
munhos singulares como “costume antigo de Portugal”, e por isso válido. No
entanto, algumas parcas atitudes foram impostas aos inquisidores, já que antes
de se lavrar sentença de relaxação fazia-se agora necessário repetir os testemu-
nhos de acusação, o que alongou os processos e sem dúvida evitou que vários,
senão muitos, fossem mandados para a fogueira (mas não para a tortura). No
entanto, rapidamente várias dúvidas surgiram quanto à aplicação do breve. Al-
gumas foram prontamente solucionadas pelo Conselho Geral, mas outras, mais
capciosas, surgiram mais para frente: como saber se era possível acumular teste-
munhos singulares nos casos de fautoria.
A fautoria era um delito que apesar de fazer pesar sobre a pessoa alguma
suspeita de heresia, não podia ser julgada do mesmo modo que ela. Uma pessoa
que ajudava um herege a fugir, ou que deixava de o denunciar, certamente “fau-
torizava” a heresia, mas não era necessariamente herética ele mesma. O modo
como as provas eram acumuladas nos casos de fautoria não podia assim ser o
mesmo que valia nos casos de heresia.
Outra dúvida surgiu em relação à diferenciação que se devia ou não fazer
entre as provas da própria heresia e as provas dos fatos heréticos (quando a tes-
temunha apenas tinha conhecimento, e não participação, nos atos heréticos).
Ou ainda, finalmente, na questão de saber se os ditos das testemunhas defuntas
ou ausentes eram válidos ou não para a condenação por heresia, já que não po-
diam ser reperguntados. Enfim: temas para outros breves papais caso os debates
tivessem transpirado para fora dos muros dos palácios inquisitoriais.
Mas não foi pelos debates permanecerem dentro dos limites do pequeno
mundo dos inquisidores que eles deixaram de continuar a influenciar a evolução
da práxis inquisitorial. Com efeito, as principais teses que sustento no livro A fé
dos juízes são não só que sempre houve dissensões dentro do corpo inquisitorial
e que bastante rapidamente muitos de seus membros, geração após geração, dei-
xaram de acreditar na eficácia dos métodos empregados no julgamento dos casos
de heresia, mas também que as insatisfações dos ministros inquisitoriais para

[86]
EVOLUÇÕES DA PRÁXIS INQUISITORIAL PORTUGUESA: OS PROCESSOS POR HERESIA (1536-1774)
Bruno Feitler

com os procedimentos legais em uso foram um importante elemento propulsor


das reformas que resultaram no regimento inquisitorial de 1774. De onde vinham
essas insatisfações? Segundo o urgente relado do deputado do Conselho Geral
Antonio Ribeiro de Abreu de 1743, tudo seria culpa das más leituras dos minis-
tros da Inquisição, sobretudo daqueles do tribunal de Lisboa a partir dos anos
17209. Inquisidores e deputados sem dúvida leram as Notícias recônditas do modo
de proceder a Inquisição portuguesa com seus presos à época atribuídas ao p. An-
tonio Vieira, mas elas não faziam mais do que condensar todo um conjunto de
questionamentos e argumentos contra o modo como a Inquisição julgava seus
presos por judaísmo, na esteira de outros textos, manuscritos, como os Gravames
dos cristãos novos que as precederam.
Internamente, esses questionamentos e insatisfações se materializavam
em discussões entre colegas sobre o tipo de delito a ser tratado (heresia ou falso
testemunho?), e também num tratamento mais expeditivo dos processos. Esse
tipo de problema não era novidade e o próprio Ribeiro de Abreu cita casos simi-
lares ocorridos no tribunal de Coimbra nos anos 1620. A diferença é que em
começos e meados do século XVIII, os argumentos sistematizados e fundamen-
tados que já uma vez conseguiram paralisar a Inquisição, agora se adicionavam
à crítica ilustrada, racionalista e galicana. Os ministros inquisitoriais, ou boa
parte deles, estariam deixando de ver na heresia a gravidade que lhe impingiam
anteriormente, tendendo à opinião de que ela poderia ser julgada em parâmetros
similares aos crimes comuns. Já nos anos 1710 a “seita dos rigoristas” era minoria
em Coimbra, e o mesmo parece se verificar em Lisboa na década seguinte. Aque-
les que chamei de ‘laxistas’, na falta de alternativas (ou quem sabe de ânimo ou
articulação política) para alterar oficialmente os procedimentos em uso, sobre-
tudo a validade dos testemunhos singulares, chancelado por bula papal, longe
de qualquer simpatia pelos réus, tornaram o julgamento nos casos de judaísmo
mais expeditivo. As reformas pombalinas serão, pelo menos teoricamente, o an-
tídoto à essa paralisia. E o resultado mais visível dessas reformas dentro da
Inquisição é a promulgação de um novo regimento em 1774.
Ao se contextualizar a redação do regimento inquisitorial de 1774 não se
pode deixar de reafirmar a importância dos fundamentos ilustrados da sua

9
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 396.
[87]
formulação e redação, algo sempre identificado pela historiografia. Apesar disso,
tanto nos fundamentos quanto na redação do novo regimento surge claramente
a influência dos debates travados interna e externamente à instituição havia ao
menos um século. O novo regimento sem dúvida é pombalino, mas ele também
respondeu a demandas internas à instituição e a evolução dos modos como seus
ministros identificavam os principais alvos a perseguir. Com efeito, ao analisar-
mos de perto alguns dos pontos originais do novo regimento, percebemos que
para além da evidente raiz ilustrada, outras origens mais discretas apontam para
a própria história do tribunal, e que começaram a surgir na prática antes mesmo
da promulgação do novo regimento. As reformas pombalinas foram assim uma
resposta às necessidades internas da instituição, o que igualmente podemos per-
ceber a partir da análise de processos julgados nos anos que imediatamente
precedem a entrada em vigor do novo regimento. Contrariamente ao que acon-
tecia antes de meados do século XVIII, quando se lavraram os decretos de prisão
dos réus sem nenhuma justificação específica da parte dos inquisidores, agora,
esses decretos eram largamente circunstanciados. Não só isso, mas também
aprovados pelo Conselho Geral.
Do texto do próprio regimento trago aqui um exemplo que deixa essas ori-
gens muito claras: afirmando com grandiloquência a necessidade de se obter uma
prova “legalíssima, ainda mais clara que a luz do meio-dia” para se condenar os
réus negativos e diminutos, o regimento relembra com horror a prática anterior e
o infindável número de réus processados e relaxados em base no segredo do nome
das testemunhas e do acúmulo de testemunhos singulares “expostos por esse
modo os réus à defesa improvável de uma negativa vaga e genérica ou à conster-
nação de deporem às cegas que se declararam com todas quantas pessoas lhes
fornece sua memória para verem se, por esse modo, dão ou tocam nas pessoas
que os acusaram”. Como se dizia já há muito tempo, “o medo da morte lhes fazia
fingir declarações que nunca houve”. Esses terríveis danos tinham por origem o
segredo que pairava sobre a publicação da prova da justiça, à qual nem o réu nem
seu advogado tinham acesso, problema já resolvido pelo regimento no tít. I, § 10
desse mesmo livro, e aquilo que havia sido homologado pela “bula denominada
Innocenciana”, ou seja, o uso como prova de “testemunhas singulares, inábeis e

[88]
EVOLUÇÕES DA PRÁXIS INQUISITORIAL PORTUGUESA: OS PROCESSOS POR HERESIA (1536-1774)
Bruno Feitler

defeituosas”10. No regimento, esses tipos de testemunhas são tachados, como nas


Notícias recônditas, de “contrárias às leis divinas e humanas”.
Assim, a partir de 1774 era necessário “o mesmo número de testemunhas
(sendo legais, idôneas e sem defeito jurídico) que os convencem nos mais crimes
que se processam nos juízos seculares”11. Deste modo, também é bom salientar
que apesar do delito herético ter sido equiparado “aos crimes que se processam
nos juízos seculares”, nunca entrou em discussão – nem na Inquisição nem fora
dela, seja em Portugal ou em outros domínios – uma mudança total de sistema
legal. O que ainda vigia era o sistema de provas legais (e não o de prova livre,
baseado na convicção íntima), e que permanecerá em vigor ainda bem entrado,
pelo menos em Portugal, o regime liberal oitocentista12. Mesmo assim podemos
dizer que se instaura um novo paradigma de funcionamento para o tribunal; co-
meça então o ‘tempo dos libertinos’, durante o qual o rótulo herético passou a
libertinos, livre-pensadores e maçons, convertidos em principais inimigos da
monarquia e da religião (apesar de ainda serem instruídos uns pouquíssimos
processos por judaísmo13). Como correram os processos nestes casos, quais de-
bates que surgiram em torno dos procedimentos legais a instaurar, são temas
que ficarão para outro momento.

10
Regimento do Santo Officio da Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado com o Real Bene-
placito, e Regio Auxilio pelo Eminentissimo e Reverendissimo Senhor Cardeal da Cunha [...].
Impresso em Lisboa: Na Officina de Miguel Manescal da Costa, 1774, in As metamorfoses de
um polvo. Religião e política nos regimentos da Inquisição portuguesa (séc. XVI-XIX), ed. José
Eduardo Franco e Paulo de Assunção. (Lisboa: Prefácio, 2004), liv. II, tít. IV, “d”.
11
Ibid., § 6.
12
O Código Civil português, de 1867 ainda mantinha o regime das provas, “abolindo, no entanto,
a distinção entre prova plena e semiplena e reforçando os poderes de livre apreciação do juiz”.
Ver a nota de António M. Hespanha a Gilissen, Introdução Histórica ao Direito, 720-721.
13
Bruno Feitler, “Crypto-Judaism in Post-Pombaline Portugal: Legal and Social Remnants”,
Journal of Levantine Studies 6 (2016): 405-418; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História
da Inquisição portuguesa. 1536-1821 (Lisboa: Esfera dos Livros, 2013), 401.
[89]
A heresia nas malhas do Concílio de Trento:
questões de jurisdição e vias alternativas ao
procedimento inquisitorial1
Juliana Torres Rodrigues Pereira

Debruçando-se tanto sobre questões doutrinárias quanto sobre problemas


de reforma disciplinar, o Concílio de Trento foi atravessado por disputas em
torno de privilégios e por diversas concepções acerca do próprio significado da
reforma da Igreja e do papel do episcopado no governo das almas. Embora tais
querelas e divergências tenham convivido com a impossibilidade de composição
com as confissões ditas dissidentes, a polarização acabava por evidenciar tam-
bém o afinco dos defensores da via da reintegração, ainda numerosos entre as
fileiras do corpo eclesiástico. Animada por esses choques, a assembleia aprofun-
dou-se em debates acerca da jurisdição sobre delitos heréticos em diversos
momentos, exercendo o ofício de juiz e assegurando aos bispos privilégios que
lhes permitiam contornar a jurisdição inquisitorial em suas últimas sessões. Tais
tensões entre a assembleia e os tribunais inquisitoriais modernos foram objeto
de trabalhos focados, em geral, na atuação do corpo eclesiástico da Península
Itálica, sujeito ao tribunal romano2. Menor atenção se deu às delegações ibéri-
cas3, especialmente à portuguesa, menos numerosa e provinda de um cenário

1
Este texto é fruto de pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Cien-
tífico e Tecnológico (CNPq) - 432623/2018-3.
2
Adriano Prosperi, Tribunais da consciência: inquisidores, confessores, missionários (São
Paulo: EDUSP, 2013), 157-172; Alain Tallon, “Le concile de Trente et l’Inquisition romaine. À
propos des procès en matière de foi au concile”, Mélanges de l'Ecole française de Rome. Italie
et Méditerranée 106, n.° 1 (1994): 129-159.
3
Sobre Trento e a Inquisição de Castela, ver: Stefania Pastore, “Roma, il Concilio di Trento, la
nuova Inquisizione: alcune considerazioni sui rapporti tra vescovi e inquisitori nella Spagna
dotado de menos indícios de conflitos entre aqueles com jurisdição sobre as ma-
térias de fé4. O fortalecimento do episcopado em Trento ladeava, nos momentos
finais da reunião, uma inquisição portuguesa ainda jovem, em permanente cons-
trução e ânimo de alargamento de sua competência, quadro que permitia espaço
para dúvidas, sobreposições e contendas, fortalecidas pela coesão que se origi-
nava entre os grupos que compunham a assembleia.
Assim, este texto tratará das tramas em que o Concílio, mais que deliberar
sobre questões dogmáticas, concentradas nas primeiras fases, investiu sobre a
jurisdição inquisitorial, exercendo o julgamento de suspeitos ou condenados por
heresia, bem como a função de juízes e censores, ou atravessando os anseios
expansionistas inquisitoriais com os capítulos de reforma que garantiam prerro-
gativas episcopais, com especial atenção à atuação dos clérigos ibéricos,
fundamentalmente os portugueses.
Não obstante a distinção dos cenários de atuação e dos focos de atenção
dos tribunais inquisitoriais modernos, entender a atuação do Concílio em maté-
ria de heresias importa não apenas para se compreender como ele atuou sobre a
normativa canônica que regularia a jurisdição episcopal nesse campo e, por-
tanto, as sobreposições entre as instâncias de justiça, mas sobretudo para
compreender a partir de que debates e alianças a assembleia forjou um determi-
nado perfil de episcopado-pastorado que poderia atuar nos estados em que havia
tribunais instalados. O foco recairá sobre a última fase da assembleia, a mais
numerosa, marcada pelas decisões sobre questões disciplinares e que permite
refletir sobre os imbricamentos entre Concílio e Inquisição que tocavam direta-
mente os tribunais ibéricos, especialmente no caso português. Um momento que
parece de grande interesse por ter proporcionado à congregação de religiosos,
provenientes de distintos cenários de repressão conduzida por tribunais mais ou
menos jovens e mais ou menos centralizadores em termos de jurisdição, herdei-
ros de tradições eclesiásticas distintas, mas com percepções convergentes a
respeito da grandeza da dignidade episcopal, a possibilidade de reintegrar ove-
lhas – e mesmo pastores – desencaminhadas por meio do exercício da
misericórdia no âmbito individual.

del Cinquecento”, L’Inquisizione e gli storici: un cantiere aperto. Tavola rotonda nell’ambito
della conferenza annuale della ricerca (Roma: Accademia Nazionale dei Lincei, 2000), 109-148.
4
Sobre a relação colaborativa entre episcopado e Inquisição em Portugal, ver: José Pedro
Paiva. Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal (1536-
1750) (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011).
[92]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

Cedo sobressaía um grupo heterogêneo, entre ibéricos, italianos, imperiais


e posteriormente franceses, agregados por percepções convergentes sobre a
grandeza da dignidade episcopal e de seu lugar na cristandade, que se refletiam
na insistência do grupo na afirmação da instituição divinal episcopal nos câno-
nes, em oposição à mais numerosa, mas nem por isso mais barulhenta, ala dos
prelados ligados à cúria. A demanda pela afirmação do ius divinum arrastou-se
por meses, quase paralisando os trabalhos, e conferiu coesão ao conjunto, cujos
líderes, não coincidentemente, foram aqueles que tiveram destaque nos episó-
dios que serão analisados aqui: o arcebispo de Granada Pedro Guerrero, o
arcebispo de Braga Bartolomeu dos Mártires e o bispo de Modena Egidio Fosca-
rari5. Suas atuações em Trento podem nos oferecer uma perspectiva acerca da
forma como o episcopado, em pleno desfrute da importância de sua dignidade e
da função decisória sobre os rumos da cristandade a que a assembleia os alçava,
encontrou oportunidades para marcar sua perspectiva sobre a reconciliação dos
hereges, fazendo frente às instituições inquisitoriais. Apesar da colisão na ques-
tão do ius divinum, nas matérias relacionadas à Inquisição o grupo contou com
o apoio dos legados, dentre os quais havia nomes com ligações com o círculo dos
spirituali6, o que agravava a situação. Seguirei aqui uma denominação para o
grupo conferida pelas fontes: bispos teólogos. O desagrado que a postura do
grupo causava, como afronta à Inquisição e a toda hierarquia estabelecida, era

5
Pedro Guerrero, arcebispo de Granada (1546-1576), fez amplo uso da absolvição no foro da
consciência no trato das heresias em sua diocese, valendo-se das prerrogativas asseguradas
em Trento, de privilégio papal a ele concedido e de colaboração com os jesuítas. Foscarari,
bispo de Modena (1550-1564), dominicano, também fez uso de privilégio papal para reconciliar
hereges em segredo em sua diocese, destacado foco protestante. A amabilidade na reconcili-
ação seguia ainda os princípios de seu predecessor na mitra, Giovanni Morone, com quem
Foscarari manteve estreitos laços. Tal proximidade esteve provavelmente na raiz de sua prisão
pelo Santo Ofício nos tempos do duro pontificado de Carafa, em janeiro de 1559. Absolvido
por Pio IV, participou do Concílio e foi um dos componentes da Comissão do Index que se
formou com o encerramento da assembleia. O arcebispo de Braga (1559-1581) Bartolomeu dos
Mártires, também dominicano, gozou de ótimas relações com a coroa e com o inquisidor-
geral d. Henrique. De tal lugar de distinção, salvaguardou sua jurisdição sobre seu território e
suas ovelhas, movido pela ideia de correção benevolente e acolhedora, especialmente nos ca-
sos de ignorância. Ver, respectivamente: Stefania Pastore, Il vangelo e la spada. L´Inquisizione
di Castiglia e i suoi critici. (1460-1598). (Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2009); Matteo
Al Kalak, Il riformatore dimenticato. Egidio Foscarari tra Inquisizione, concilio e governo pa-
storale (1512-1564) (Bologna: Il Mulino, 2016); Juliana Pereira, Batalha fraterna: D. Frei
Bartolmeu dos Mártires e a defesa da autoridade episcopal na Reforma Católica (1559-1582)
(Jundiaí: Paco, 2018).
6
Sobre o assunto, ver: Massimo Firpo, Juan de Valdés e la Riforma nell’Italia del Cinquecento
(Roma; Bari: Laterza, 2016).
[93]
assunto comentado. A coesão entre eles e o peso que exerciam sobre os refor-
mistas da assembleia, que seguiam seus votos, afligiam não apenas os defensores
dos interesses dos curialistas; a preocupação alastrava-se até Castela. Os cardeais
Crivelli e Odescalchi descreviam a Borromeo a fúria de Felipe II e do inquisidor
geral: “se estivessem aqui, creio que a inquisição já teria posto as mãos neles”7.
Em maio de 1563, Pedro Zumel, procurador no Concílio do arcebispo de Sevilha
e inquisidor-geral Valdés, advertia para o perigo que o grupo representava: “lhes
parece que com o Concílio podem tomar a residência ao papa e aos príncipes,
quanto mais à Inquisição de Espanha”8.
O problema será tratado a partir de três pontos: a absolvição dos que acor-
reram a Trento amparados por um salvo-conduto; a leitura, censura ou
aprovação de obras suspeitas ou condenadas pelos índices proibitivos; o debate
sobre a jurisdição inquisitorial nas discussões sobre a reforma disciplinar.

Juízes: Julgamento e absolvição de hereges pelo Concílio


Desde sua primeira fase, o Concílio foi marcado pela emissão de salvo-
condutos. Já com a convocação do Concílio, teve lugar o primeiro deles, atraindo
para Trento nomes sobre os quais pairavam grandes suspeitas, especialmente
membros do círculo dos spirituali. Posteriormente, na fase bolonhesa, a domi-
nância papal sobre a assembleia acirrou a perseguição do Santo Ofício romano
ao corpo eclesiástico, em perfeita integração entre a Congregação do Santo Ofí-
cio e o secretário conciliar Massarelli. No retorno a Trento em 1551, os dois salvo-
condutos promulgados limitavam-se aos imperiais. Na última fase, no entanto,
uma conjunção de fatores permitiria à assembleia uma atuação significativa no
que dizia respeito à reconciliação. Como ressaltou Tallon, a evolução do tribunal
italiano desencorajava, cada vez mais, que os penitentes o procurassem para ob-
ter a absolvição, e a postura nicodemista era cada vez mais difícil de se sustentar
diante de uma perseguição sempre mais eficiente9. A conjuntura de um papado

7
“se fossero qui, crederei che l’inquisitione haveria loro posto le mani adosso.” Em: José No-
valín, El inquisidor general Fernando de Valdés (1483-1568). Su vida y su obra (Oviedo:
Universidad de Oviedo, 1968), 368; Pastore, “Roma, il Concilio di Trento, la nuova Inquisi-
zione”, 122.
8
“Les parece que con el Concilio pueden tomar la residencia al Papa y a los príncipes del
mundo, quanto más a la Inquisición de España”. Carta do Dr. Zumel ao licenciado Guzmán.
Trento, 6 de maio de 1563. Madri, RAH, Processo Carranza, XVIII, fl. 1-2. Todas as traduções
são de minha autoria.
9
Tallon, “Le concile de Trente et l’Inquisition romaine”, 133.
[94]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

menos agressivo em matéria de vigilância em comparação ao antecessor Carafa,


dado que se somava a uma assembleia muito numerosa e heterogênea, reforçava
as possibilidades de absolvição pelo Concílio. A assembleia fez uso da delegação
papal do poder de absolver em casos de heresia concedida aos legados em agosto
de 1561, e que foi delegada a prelados que atuaram nas comissões julgadoras,
como foi o caso do bispo de Modena em outubro daquele mesmo ano10.
Tal demonstração de maleabilidade encontrou forte oposição por parte
dos embaixadores das coroas ibéricas, temendo prejuízos à jurisdição dos tribu-
nais inquisitoriais. A questão foi proposta paralelamente à revisão do Index de
Paulo IV, estratégia dos legados para dar início aos trabalhos minimizando as
polêmicas dogmáticas. Diversas fórmulas foram preparadas pela comissão de-
signada para elaborar o texto. As ordens recebidas de Castela eram de
constranger os prelados que haviam votado favoravelmente ao salvo-conduto a
mudarem seus votos, por ser contra a vontade do rei11, mas Felipe II não contou
com a absoluta aderência de seus súditos. O arcebispo de Granada Pedro Guer-
rero chegou a entrar em discussão acirrada com outros prelados em defesa da
aprovação. Uma das propostas chegava a explicitar a ampliação da medida aos
submetidos à jurisdição dos tribunais romano e espanhol, o que imediatamente
levantou a oposição dos embaixadores do monarca, sendo posteriormente des-
cartada. Diante da dificuldade de se chagar a um consenso, optou-se pela decisão
de acatar ou não os recursos, caso a caso, confiando-os a comissões12. As requi-
sições dos legados a Borromeo evidenciavam o temor causado pelo tribunal –
“muitos inquiridos em Roma prefeririam morrer condenados a se reduzirem
àquele tribunal” – e a esperança de um concílio que fosse regulado por “aquela
misericórdia e clemência que a Santa Igreja promete aos penitentes, e que é
digna de tal Concílio, congregado para a saúde de todos”13, indício da inclinação

10
Ibid., 148.
11
Carta do bispo de Modena ao Cardeal Morone. Trento, 22 de fevereiro de 1562. Cidade do
Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 218r-219v.
12
Carta do bispo de Modena ao Cardeal Morone. Trento, 19 de março de 1562. Cidade do Va-
ticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 244r-244v. Os componentes das comissões eram escolhidos
pelos legados ou pela própria assembleia, respeitando sua heterogeneidade em termos de pro-
veniência e posicionamento sobre os pontos em debate.
13
“molti inquisiti a Roma si lascerianno più tosto morire dannati che ridursi a quel tribunale”;
“quella misericordia et clemenza che la Santa Chiesa promette a penitenti, et ch'è degna d'un
cosi fatto concilio, congregato per la salute di tutti”. Carta dos legados a Borromeo. Trento, 5
de março de 1562. Josef Susta (ed.), Die römische Kurie und das Konzil von Trient unter Pius
IV. Actenstücke zur Geschichte des Konzils von Trient, vol. 1 (Viena : Alfred Hölder, 1904), 42-
43.
[95]
de parte da assembleia à composição benevolente ou à sustentação de uma ima-
gem da misericórdia conciliar que se contrapunha à intransigência inquisitorial,
mas também, como indicou Tallon, evidência de um conciliarismo latente14.
Da comissão que julgou o célebre caso do patriarca de Aquleia Giovanni
Grimani, nomeada em julho de 1563, fizeram parte muitos do grupo dos bispos
teólogos: Pedro Guerrero, Egidio Foscarari, Bartolomeu dos Mártires, os bispos
de Évora, Leiria, Segóvia, Tortosa, Vármia, Cinquechiese, o geral dos agostinia-
nos, o abade de Claraval, além do suspeito Andrija Dudić, bispo de Knin, e dos
líderes dos partidos francês e imperial, os cardeais de Lorena e Madruzzo. Gri-
mani havia caído nas malhas da Inquisição por acusações de luteranismo,
agravadas por uma instrução sobre a predestinação que teria enviado a seu vigá-
rio em 1549 e mais tarde chegaria às mãos dos inquisidores. Com a abertura do
processo em 1561, Grimani optou por refugiar-se em Veneza e de lá apelou à mi-
sericórdia conciliar. O aceite do julgamento em Trento foi resultado da queda
de braço entre o Santo Ofício, por um lado, e a República de Veneza, por outro,
cuja requisição acabou sendo acomodada pela habilidade e disposição de Mo-
rone15, que conseguiu que Grimani fosse ouvido não pela assembleia toda, mas
por uma comissão nomeada pelos legados16.
A absolvição de qualquer suspeita de heresia, pronunciada em setembro,
e os votos de que os escritos de Grimani não continham qualquer erro (Braga e
Modena) eram uma amostra da tendência da assembleia ao uso da misericórdia
com os que se apresentavam em penitência e da proteção aos pares17.

14
Tallon, “Le concile de Trente et l’Inquisition romaine”, 138.
15
Alçado à posição de legado conciliar no início de 1563, a capacidade diplomática de Morone
foi fundamental para o andamento dos trabalhos com um desfecho favorável ao papado na
questão do ius divinum. Tal demonstração de fidelidade, no entanto, esbarrava em sua atuação
nos episódios relativos à jurisdição em matérias de fé, a favor da reconciliação não infamante.
Uma atuação legalista que se seguia a seu controverso processo inquisitorial, cujas raízes se
encontram entre um anseio de mediação irenista para o dissenso e pressupostos espirituais
que entrariam na mira de um Tribunal mais agressivo sob o comando de Ghislieri. Ver: Mas-
simo Firpo, Inquisizione romana e Controriforma. Studi sul cardinal Giovanne Morone (1509-
1580) (Bolonha: Morcelliana, 2005); Massimo Firpo e Germano Maifreda, L’eretico che salvò la
Chiesa. Il cardinale Giovanni Morone e le origini della Controriforma (Torino: Einaudi, 2019).
16
Prosperi, Tribunais da consciência, 167-168. Os imbróglios na atuação do Concílio em maté-
ria de absolvição não podem ser descolados do desejo romano de afirmação da centralidade
papal em relação ao concílio ou ao cenário mais amplo da Península Itálica, onde o tribunal
inquisitorial tornava palpável o alargamento de sua capacidade. Para Tallon, Pio IV optava
por não confrontar a demanda veneziana, ver: Tallon, “Le concile de Trente et l’Inquisition
romaine”, 139-140.
17
Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 10, fls. 351-354.
[96]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

Particularmente interessante é o julgamento de Gaspare Fanti, o Fantino.


Foscarari foi o principal juiz da causa, que se desenrolou em apenas uma sessão18.
Fantino afirmou seu processo ter sido conduzido de forma brusca pelo inquisi-
dor de Faenza, território pontifício, para condená-lo como confesso,
acrescentando que sua situação teria se agravado pelo testemunho de “infames
inimigos”19. Tendo fugido do cárcere anos após sua abjuração, foi condenado
como relapso, e pedia a reconciliação ao Concílio, pois, em suas palavras, não
queria mais estar “segregado da Igreja”20, e nem desejava abjurar publicamente
de seus erros, pois já o havia feito privadamente21. Palavras que vão ao encontro
da ideia de que a mais terrível das penas impostas pelo tribunal era infâmia, a
segregação22.
O rito de absolvição performado pelo bispo em abril de 1562, como obser-
vou Matteo Al Kalak23, dava indícios de suas tendências irenistas, o que se pode
somar ao próprio tipo de reconciliação que o Concílio como assembleia episco-
pal desejava pronunciar. Após o canto do salmo Misere mei Deus, durante o qual
Foscarari e os prelados presentes pousavam o báculo sobre Fantino, o bispo pro-
nunciou sua sentença calcada na ideia de misericórdia e acolhimento dos que
desejassem voltar de coração aberto:
Tendo especialmente diante dos olhos a piedade e a misericórdia de
Deus, uma vez que pregou repetidamente que fôssemos misericordio-
sos como é misericordioso o Nosso Pai, e uma vez que ele não rejeita os
corações contritos e humilhados mas dá graças a quem se arrepende,
[...] te absolvemos e liberamos de todas as penas espirituais e tempo-
rais24.

18
Auxiliou a julgar a causa Camillo Campeggi, doutor em Teologia, também dominicano, e
que seria o primeiro secretário da Comissão do Index, depois substituído por Foreiro – se-
quência que denota a atuação da Ordem dos Pregadores na matéria. Cidade do Vaticano,
AAV, Conc. Trid., 72, fl. 352.
19
Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 72, fls. 122r-122v.
20
Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 72, fls. 154r-154v.
21
Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 72, fl. 155r.
22
Ideia trabalhada por Bartolomé Bennassar, “La Inquisición o la pedagogia del miedo”, in
Inquisición Española: poder político y control social, org. Bartolomé Bennassar (Barcelona: Crí-
tica, 1981), 94-125.
23
Al Kalak, Il riformatore dimenticato, 195-196.
24
“Avendo specialmente davanti agli occhi la pietà e la miseriocrdia di Dio, poiché ci hai pre-
gato ripetutamente di essere misericordiosi come è miseriocrdioso il Padre Nostro, e poiché
egli non respinge i cuori contriti e umiliati ma dà grazia a chi si pente, [...] ti assolviamo e
liberiamo da tutte le pene spirituali e temporali”. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 72,
fls. 159r-159v.
[97]
O julgamento de Agostino Centurione, mercador genovês que aderiu ao
calvinismo, traz também alguns dados interessantes. Como nos outros casos, o
aceite do Concílio gerou algum conflito com a Congregação em Roma. Os lega-
dos tomavam como argumento que havia um desagrado por parte dos prelados
arrolados para a tarefa que o Santo Ofício discordasse do arranjo e confiasse mais
no inquisidor de Gênova que neles, especialmente quando a decisão já havia sido
comunicada a Borromeo e aceita. Alegavam, além disso, que os prelados já ha-
viam iniciado a tarefa25. O direcionamento para uma imagem de benevolência
conciliar desenhava-se nas missivas dos legados a Borromeo, que afirmavam não
ser sábio usar de rigor nesses julgamentos, “mas com doces e amáveis modos
mostrar o desejo de que os desviados retornassem à boa vida, e se reunissem à
Igreja santa, dando-lhes a conhecer que ela como benigna e piedosa Mãe estava
com os braços abertos para recebê-los a todos com caridade”26. Insistiam em
como tal “exemplo de misericórdia às ovelhas perdidas”27 podia significar mais
reingressos ao corpo da Igreja, lugar de perdão ao qual muitos retornariam28.
Centurione chegou a Trento em janeiro de 1563, mas seu julgamento teria
início apenas em março. A comissão que atuaria no caso foi cuidadosamente se-
lecionada pelos legados: era liderada pelo arcebispo de Gênova, uma forma de
salvaguardar a jurisdição da comissão, uma vez que o penitente era seu dioce-
sano, e composta ainda – mais uma vez – pelo bispo de Modena e Ugo
Buoncompagni, recebendo depois o arcebispo de Lanciano, os dois últimos da

25
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 8 de março de 1563 (Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fl. 200). Publicada em: Luigi Carcereri, “Agostino Centurione mercante genovese
processato per eresia e assolto dal concilio di Trento (1563)”, Archivio Trentino, ano 21, fasc. 2
(1906): 78. Tal argumento dava sustentação canônica aos legados, pois, de acordo com a nor-
mativa, a precedência caberia então aos prelados, que já estavam julgando a causa.
26
“anzi che fosse necessario con dolci et amorevoli maniere mostrare desiderio che gli sviati
ritornassero sulla buona via, et si reunissero alla Chiesa santa, dando loro a conoscere ch’ella
come benigna et pietosa Madre stava colle braccia aperte per riceverli tutti com carità.” Ibid.,
p. 78.
27
“esempio di misericordia alle percore smarrite”. Carta dos legados a Borromeo. Trento, 28
de outubro de 1563 (Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 61, fl. 247). Publicada em: Luigi
Carcereri, “Appunti e documenti sull’opera inquisitoriale del concilio di Trento nell'ultimo
periodo (1561-1563)”, Rivista Tridentina 10 (1910): 93.
28
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 19 de agosto de 1563 (Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fl. 373). Publicada em: Ibid., 91.
[98]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

inquisição de Roma29. É evidente neste caso uma tendência verificável em outros


dos pontos aqui tratados: dentre quatro padres, três eram dominicanos.
Seu longo interrogatório do dia 30 de março evidencia como a imagem de
um concílio clemente que se oporia a um tribunal inquisitorial alargava-se para
além de Trento. Centurione afirmou estar ali porque sabia “que o Padre Inquisi-
dor podia fazer justiça mas não graça”30. A combinação estava reservada, mesmo
aos olhos dos suspeitos e heterodoxos, aos padres reunidos em concílio, único
remédio por eles considerado para a recomposição. À longa sessão do dia 30,
seguiram-se mais duas, focadas em suas crenças contra o Papa, a Igreja, seu an-
ticlericalismo, suas relações com supostos hereges e a posse de livros proibidos,
mas também nos motivos de não ter comparecido diante do tribunal romano e
na sinceridade de seu arrependimento, afirmação que pareceu suficiente para
seus juízes. Sua abjuração, que elencava pontos fundamentais do combate às
ideias protestantes – que curiosamente pouco apareceram nos interrogatórios –
, como a indubitabilidade dos sacramentos, o culto aos santos e às imagens, foi
também seguida, tal como a absolvição de Fantino, pelo ritual com o canto do
Misere, e evidenciava que a excomunhão havia sido levantada31.
Os casos aqui analisados evidenciam como o objetivo dos que defendiam
o salvo-conduto era a absolvição e, fundamentalmente, a reintegração daqueles
que pediam misericórdia a suas igrejas, sendo o procedimento das comissões
muito distinto daquele da Inquisição. Como destacou Prosperi, “a sentença não
depende tanto da análise feita pelos votos individuais, mas preexiste de certo
modo ao julgamento dos indivíduos”32.

Censores: a reabilitação dos pares


Ainda em 1561, quando aqueles já chegados a Trento aguardavam o início
das sessões, alguns dos mais próximos às ideias irenistas atuaram na tentativa
de reabilitar nomes de homens da Igreja manchados pela suspeita de heresia.

29
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 8 de março de 1563 (Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fl. 200). Publicada em: Carcereri, “Agostino Centurione mercante genovese proces-
sato per eresia e assolto dal concilio di Trento”, 78.
30
“sapeva ch’il Padre Inquisitore poteva fare giustitia ma non gratia”. Processo de Agostino
Centurione (Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 12, fls. 129-142) publicado em: Ibid., 84.
31
Processo de Agostino Centurione (Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 12, fls. 129-142)
publicado em: Ibid., 79-99. Quando Centurione pronunciou sua absolvição, Foscarari estava
ausente, tendo ido a Modena.
32
Prosperi, Tribunais da consciência, 169.
[99]
Dentre eles, o cardeal Reginald Pole teve sua ortodoxia assegurada por prelados
que insistiram que seu texto sobre o concílio, o De Concilio Liber, deveria ser
impresso e lido pelos padres reunidos em Trento. Particularmente envolvidos na
questão estiveram o bispo de Modena33 e o arcebispo de Ragusa, Ludovico Bec-
cadelli, que deram indícios em suas missivas sobre o apoio dos legados,
especialmente Seripando, para o projeto de impressão. Este último teria dito in-
clusive que não se deveria fazer nenhuma modificação ou comentário ao texto34,
pois “aos cínicos ninguém pode satisfazer”35. Já em fevereiro de 1562, com o livro
publicado por Paolo Manuzio, o legado Gonzaga insistia que se devia enviar mui-
tas cópias para Trento36. Os comentários de Foscarari foram mesmo além,
indicando que a Igreja deveria ser governada da forma descrita no livro37. Em
missiva a Morone, na qual afirmava sentir-se à vontade para com ele tratar mais
livremente, defendia que se o Concílio fosse realizado como descrito por Pole,
os protestantes o aceitariam, sendo a difusão do livro ocasião para divulgar o
formato distinto da assembleia e persuadir os adversários. Ciente de que o tom
da obra, “mais eclesiástica do que escolástica”, poderia gerar questionamentos
por parte do Tribunal, Foscarari almejava garantir um atestado conciliar para
Pole:
Porque esta maneira dulcíssima de escrever é diferente daquela espi-
nhosa que usam as escolas, é de se temer se este livro for dado a algum
escolástico para censurá-lo (sendo costume de quem é censor interpre-
tar cada coisa da pior maneira possível) que veja ambiguidades em
muitas coisas, embora sejam santíssimas38.

33
Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 18 de agosto de 1561. Cidade do Vati-
cano, AAV, Conc. Trid., 42, fl. 135r; Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 11
de setembro de 1561. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 141r-142v; Carta do bispo
de Modena ao cardeal Morone. Trento, 16 de fevereiro de 1562. Cidade do Vaticano, AAV,
Conc. Trid., 42, fl. 212r.
34
Foram realizados, naturalmente, diversos cortes para a publicação, o que desapontou muito
o bispo de Modena. Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 16 de fevereiro de
1562. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fl. 212r.
35
“a cinici nessuno li può sodisfare”. Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento,
29 de setembro de 1561. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 149-150.
36
Carta do cardeal Gonzaga ao cardeal Morone. Trento 2 de fevereiro de 1562. Cidade do Va-
ticano, AAV, Conc. Trid., fls. 205r-206v.
37
Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 18 de agosto de 1561. Cidade do Vati-
cano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 135r.
38
“Perché questa maniera dolcissima di scrivere è diversa da quella spinosa che usano le
schole, è da temere se questo libro si dà per censurare a qualche scholastico (essendo costume
di chi è censore di interpretare ogni cosa al peggio che può) che non cavilla molte cose anchora
[100]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

Parece clara a leitura de Foscarari de uma oposição entre censores e teólo-


gos, entre a doçura dos últimos e a dureza dos primeiros, que personificavam,
provavelmente, os chegados ao Tribunal e imputavam suspeitas heterodoxas a
qualquer escrito que saísse dos moldes escolásticos. Uma oposição, portanto,
entre Concílio e Inquisição, confiada a seu mentor? O bispo encorajava que os
legados, especialmente Seripando, acrescentassem à publicação algumas linhas
de recomendação assinadas, como uma espécie de atestado de ortodoxia à
obra39.
O arcebispo de Ragusa foi outro nome ativo na empresa de reabilitação
dos spirituali e irenistas. Escreveu uma biografia de Pole para compor a publica-
ção, exaltada por Morone, e foi o intermediário da comunicação entre este
último e os legados Gonzaga e Seripando ao tratarem da publicação dos escritos
do cardeal inglês, difundindo ainda a Reformatio Anglie entre os padres concili-
ares40. Além disso, teve papel importante na condução das conversas acerca da
preparação para publicação da obra de Gaspare Contarini com familiares do car-
deal que se dirigiram a Trento – tarefa para a qual, como seu antigo secretário,
já havia sido designado pela família, e que a espera pelo início dos trabalhos con-
ciliares possibilitou retomar, embora o destaque na condução do projeto tenha
sido conferido a Morone e Foscarari41.
Exerciam uma espécie de censura inquisitorial às avessas, examinando a
obra de seus pares e atestando sua ortodoxia, para, quem sabe, permitir que eles
retornassem ao estado da boa fama, e que suas palavras conciliadoras, transfor-
madas em palavras da Igreja, alcançassem os corações acolhedores.
Maior polêmica, especialmente para a Inquisição de Castela, teve lugar em
meados de 1563, quando a Comissão do Index aprovou os Comentarios sobre el
Catechismo christiano do arcebispo de Toledo Bartolomé Carranza. A decisão de
revisar o rigoroso Index de Paulo IV foi tomada logo no início de 156242, como já

che siano santissime.” Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 11 de setembro
de 1561. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 141r-142v.
39
Carta do bispo de Modena ao cardeal Morone. Trento, 11 de setembro de 1561. Cidade do
Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 141r-142v.
40
Carta do arcebispo de Ragusa ao cardeal Morone. Trento, 29 de setembro de 1561. Cidade
do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 42, fls. 151r-152v.
41
Gigliola Fragnito, “Aspetti della censura ecclesiastica nell’Europa della Controriforma. L’edi-
zione parigina delle opere di Gasparo Contarini”, Rivista di Storia e Letteratura religiosa 21, n.º
1 (1995): 3-48, em especial p. 21-26.
42
Nomeada em fevereiro, a comissão era composta pelo arcebispo de Praga na presidência;
pelo patriarca de Veneza; pelos arcebispos de Nasso, de Ragusa, de Sorrento, de Braga e de
[101]
indicado, e desde cedo encontrou a oposição da coroa e do Santo Ofício em Cas-
tela, que tratavam o assunto como de grande importância, “muito perigoso, e de
ocasião para tocar-se em coisas que não convêm”43. A coroa insistia com seu em-
baixador em Trento, o conde de Luna, no enorme perigo que isso representava
para a autoridade do Tribunal. A notícia de que a publicação havia sido conside-
rada ortodoxa pela comissão surpreendeu a todos44. Antes mesmo que a
comissão aceitasse avaliar o texto, a importância do processo para a definição do
poder dos novos tribunais sobre o episcopado fazia-se sentir na insistência dos
bispos teólogos para o envio ao papa de um memorial por eles preparado que
demandava a transferência do processo a Roma, sob o argumento de que, de
acordo com a tradição apostólica, somente ao pontífice cabia julgar os bispos45.
Como processo exemplar, que mostrava a todo corpo de fiéis e ao corpo eclesiás-
tico o poder e o rigor do tribunal de Castela, o caso revela a importância que o
avanço da assembleia sobre a autoridade inquisitorial tinha àquela altura, como
fica evidente nas instruções de Felipe II enviadas ao conde de Luna, cuja fama
entre os bispos mais fiéis ao Tribunal passava então a oscilar entre a incompe-
tência e a infidelidade46:
neste efeito se conhece bem o que desde o princípio se suspeitou nisto
do Índice, como se viu por um capítulo de vossa instrução, que querer
tratar disto no Concílio havia sido com fins particulares, um dos quais
e muito principal deveu de ser este [...], estareis muito advertido de que

Palermo; pelos bispos de Cava, de Modena, de Senigallia, de Lérida, de Brixen, de Cremona e


de Verona; e pelos gerais franciscano e agostiniano. Ver: Concilium Tridentinum. Diariorum,
Actorum, Epistolarum Nova Collectio, vol. 8 (Friburgi: Gorresiana, 1901-1906), 328-329 (dora-
vante abreviado como CT). O trabalho era dividido em grupos de três ou quatro deputados
encarregados de examinar um livro, debatê-lo e votar com a Comissão sua aprovação. O re-
sultado devia ser apresentado à congregação geral. Cidade do Vaticano, ADDF, St., St, R1 (e),
fls. 562v-563.
43
“muy peligroso, y de ocasión para tocarse en cosas que no convienen”. Carta de Felipe II ao
conde de Luna. Madri, 10 de agosto de 1563. Simancas, AGS, Estado, Leg. 652, doc. 94.
44
O relato dos legados a Borromeo de 29 de julho afirma apenas que as cédulas de aprovação
foram assinadas por onze membros da comissão. Carta dos legados a Borromeo. Trento, 29
de julho de 1563. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 61, fls. 434r-436v.
45
Copia del Memorial que se dio a los legados del Concilio por algunos prelados en favor de
la causa del Arçobispo de Toledo. Madri, RAH, Processo Carranza, XXI, fls. 608-609. Carta
dos legados a Borromeo. Trento, 5 de novembro de 1562. Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 53, fls. 284v-285v; Carta dos legados a Borromeo. Trento, 1º. de abril de 1563. Cidade do
Vaticano, AAV, Conc. Trid., 61, fls. 174r-175v; Carta dos legados a Borromeo. Trento, 27 de maio
de 1563. Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 61, fls. 264r-264v.
46
Carta do Dr. Zumel ao licenciado Guzmán. Trento, 25 de julho de 1563. Madri, RAH, Pro-
cesso Carranza, XVIII, fl. 35.
[102]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

a isso de nenhuma maneira se deve dar lugar nem permitir, e que este é
ponto de maior importância e substância que aí se poderia nos oferecer47.

O arcebispo de Braga Bartolomeu dos Mártires, o bispo de Coimbra e um


terceiro não nomeado nas fontes foram incumbidos de analisar o livro pelo pre-
sidente da comissão, o arcebispo de Praga. A aprovação ocorreu em reunião de
2 de junho de 1563, cuja validade foi contestada pelo conde de Luna e por outros
prelados ligados ao Tribunal: sem quórum suficiente, sem a presença do secre-
tário da comissão, o arranjo teria sido impulsionado por Bartolomeu dos
Mártires, com a colaboração de seu confrade também português e dominicano
Francisco Foreiro.
A organização do contra-ataque, arranjando sessões com a comissão para
tentar reverter o feito, ficou a cargo de Zumel, alarmando a corte contra os pre-
lados teólogos: “Esteja Vossa Majestade advertido de que os que daqui vão
estragados, se não se tiver grandíssima conta deles, hão de infeccionar a
Espanha, porque são muitos e podem muito”48.
Foi justamente em uma das reuniões organizadas para remediar o feito que
teve lugar uma fala diretamente contra o tribunal de Castela. Incomodado com
os comentários do bispo de Lérida, que criticou duramente a aprovação49, Bar-
tolomeu dos Mártires o alfinetava, sugerindo que seu voto sobre a heterodoxia
da obra havia sido comprado50. No entanto, este não foi o ponto final da discus-
são. Os agentes de Castela avisavam que o arcebispo de Braga teria falado com
muita liberdade contra o tribunal51. Infelizmente, o conteúdo desta fala perma-
nece incógnito, mas, mesmo considerando a possível tendência dos que

47
“y en ese efecto se conoce bien lo que desde el principio se sospechó en eso del Índice, como
hubo visto por uno de los capítulos de vuestra instrucción, que querer tratar de eso en el
concílio, había sido con fines particulares, uno de los quales y muy principal debió de ser éste
[...], estaréis muy advertido que a eso en ninguna manera se debe dar lugar ni permitir, y que
éste es el punto de mayor importancia y sustancia que ahí se nos podría ofrecer”. Carta de
Felipe II ao conde de Luna. Madri, 10 de agosto de 1563. Simancas, AGS, Estado, Leg. 652, doc.
95. Grifo meu.
48
“Esté V.M. advertido, que los que de aquí van estragados, sy no se tiene grandíssima cuenta
con ellos, an de inficionar a España, porque son muchos e pueden mucho”. Carta do Dr. Zumel
ao licenciado Guzmán. Trento, 19 de julho de 1563. Madri, RAH, Processo Carranza, XVIII, fls.
31r-32v.
49
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 29 de julho de 1563. Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fls. 434r-436v.
50
Trento 26 de junho de 1563. Madri, RAH, Processo Carranza, XVIII, fl. 357v.
51
Carta do licenciado Guzmán ao arcebispo de Santiago. Roma, 4 de agosto de 1563. Madri,
RAH, Processo Carranza, XVIII, fls. 359r-361v.
[103]
relatavam o episódio a intensificar a oposição feita pelos bispos teólogos, é de
grande importância para que se possa considerar posturas mais frontais de ques-
tionamento à Inquisição durante a assembleia.
Em resposta a este fato, Felipe II pedia castigo exemplar a todos que ha-
viam participado da aprovação, mas carregava as tintas ao falar sobre
Bartolomeu dos Mártires, demandando que o papa o punisse, “pois não se con-
tentou com ser o solicitador e tratador de todo o feito, mas se alargou tanto em
palavras contra o Santo Ofício destes reinos, que é necessário que Sua Santidade
faça demonstração nisto que sua insolência pede”52.
E se nos fica o desejo de mais fontes sobre as discussões, possivelmente tal
escassez deve-se também à recusa de Francisco Foreiro, que atuava como notário
desde a sessão de aprovação do texto, a registrar o que se passava53. Mais uma
vez, emerge a coesão entre dominicanos: Carranza era defendido não apenas por
seus pares, bispos que temiam os tentáculos da Inquisição, mas também por seus
confrades, ligados pela profissão dominicana e desejosos de verem reconhecida
a ortodoxia de proeminente membro da Ordem. Soma-se a isso ainda a aprova-
ção do Guia de Pecadores de Luis de Granada em novembro pelos arcebispos de
Palermo e Taranto e pelo português Diego Paiva de Andrade, teólogo de
D. Sebastião54.

Questões de jurisdição
Mal abafada a questão Carranza, inconclusa sem jamais ter sido apresen-
tada à assembleia geral, o sentimento de que uma espécie de complô contra o
tribunal espanhol, que teria arregimentado do embaixador de Felipe II ao papa,
atropelaria definitivamente a ala filo-inquisitorial. Sensação consumada a partir
da discussão de dois cânones de reforma na Sessão XXIV e da plena recusa dos
prelados à instalação de um tribunal que seguisse os moldes castelhanos em
Milão.
Datam de agosto as primeiras notícias sobre a questão, e o principal argu-
mento de oposição era que qualquer inquisição naquelas partes deveria

52
“pues no se a contentado de ser el solicitador y tractador de todo lo hecho, pero se a alargado
tanto en palabras contra el Sto. Officio destos reynos, que es necessario Su Sd. haga la demos-
tración en esto que su insolencia pide.” Instrução para o licenciado Guzmán. Madri, RAH,
Processo Carranza, XVII, fl. 25r.
53
Trento, 19 de agosto de 1563. Madri, RAH, Processo Carranza, XVIII, fls. 62r-63v.
54
Cidade do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 146, fls. 403r-404v.
[104]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

obedecer ao arcebispo de Milão, sob o princípio da superioridade da Sé Apostó-


lica55. O grande medo que nutriam os prelados lombardos (mas também
napolitanos) da Inquisição e de Felipe II chegou a ser objeto de preocupação dos
legados relatado a Roma, o que evidencia como o avanço da Inquisição sobre o
episcopado era um temor compartilhado56. O problema de jurisdição que a ins-
talação do tribunal colocava, sobrepondo-se à autoridade ordinária, reforçava a
oposição à proposta. A questão acabou por unir grupos antes rivais ao longo da
discussão sobre a origem do poder episcopal. Os bispos teólogos apoiavam os
lombardos em sua negativa; a favor da proposta restavam apenas os prelados
mais ligados aos tribunais inquisitoriais57. União que parece ter sido um impulso
para o encaminhamento do decreto de reforma da Sessão XXIV. Pio IV optou
por apoiar os prelados, fazendo frente a Felipe II, decidindo-se por um tribunal
de ius comuni, sem ministros castelhanos58; pouco depois, o monarca desistiu da
decisão.
Em meio às polêmicas sobre Carranza e a inquisição de Milão, no início de
setembro foram apresentadas as versões dos capítulos de reforma para debate,
que incluíam duas pautas relativas à jurisdição sobre delitos heréticos: o poder
episcopal de absolver delitos ocultos, inclusive heresias, no foro da consciência59
e a jurisdição exclusivamente papal sobre bispos suspeitos de heresia60. Se o se-
gundo ponto constituía uma tentativa de livrar os bispos das malhas
inquisitoriais, além de marcar a grandeza e a autoridade do ofício como inferior
apenas ao pontífice, questionando o poder dos agentes dos tribunais, o ponto
sobre a absolvição atacava as pretensões inquisitoriais de hegemonia no trato da
heresia, ao passo que ressaltava o poder episcopal de atuar nestas matérias, pri-
vilégio jamais subtraído pelo estabelecimento dos tribunais modernos, não
obstante a insistência das coroas ibéricas; além disso, ao possibilitar absolvição
secreta, a proposta atacava a pedra angular da máquina inquisitorial: a denúncia.

55
Carta dos legados e Borromeo. Trento, 16 de agosto de 1563. Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fls. 470r-471v.
56
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 19 de agosto de 1563. Cidade do Vaticano, AAV, Conc.
Trid., 61, fls. 472r-474v; Carta dos legados e Borromeo. Trento, 23 de agosto de 1563. Cidade
do Vaticano, AAV, Conc. Trid., 61, fls. 481r-482v.
57
Copia de un capitulo de una carta de Trento del doctor Villalpando. Trento, 26 de agosto de
1563. Madri, RAH, Processo Carranza, XVIII, fl. 41r.
58
Carta dos legados a Borromeo. Trento, 9 de setembro de 1563. Cidade do Vaticano, AAV,
Conc. Trid., 61, fls. 520r-521v.
59
CT, vol. 9, 752.
60
CT, vol. 9, 751.
[105]
Mais uma vez, esses pontos desencadearam ampla mobilização dos agentes de
Castela. Prevalecia a sensação de que a assembleia movia todo tipo de oposição
ao Santo Ofício. As tentativas de demover os legados não tiveram qualquer su-
cesso, que se diziam de mãos amarradas, pela grande mobilização em torno da
questão (em suas palavras: “todos os Prelados do Concílio o pediam”)61. Os pre-
lados teólogos, especialmente Guerrero e Bartolomeu dos Mártires, tentavam
mesmo avançar sobre a questão da absolvição no foro da consciência para am-
pliar a faculdade concedida. Uma outra versão do decreto de reforma,
reelaborada por uma comissão distinta da inicial, acrescentava, por pressão do
embaixador português junto ao bispo de Coimbra62, uma restrição à aplicação do
cânone nos reinos em que houvesse tribunais inquisitoriais63. O adendo sobrevi-
veu por pouco tempo, eliminado por votação massiva, com incentivo de
Guerrero e Mártires64. Em sua justificativa a Felipe II, o conde de Luna apontava-
os como os grandes articuladores da virada, tendo manipulado a todos – ele in-
cluído, ao que parece – para que considerassem o ponto como de enorme
importância e sem qualquer relação com a Inquisição:
Dizem que os arcebispos de Granada e Braga e outros italianos que fo-
ram os que contradisseram, alegando razões para isso, foram a causa,
aos quais seguiram os outros, e acredito nisto porque o de Granada vi
defender que não prejudica em nada a Inquisição, e que é muito neces-
sária65.

A missiva do embaixador português não minimizava a derrota, indicando


que em tudo que dizia respeito à Inquisição, italianos e ibéricos estavam afina-
dos em objetivos e estratégias após terem rechaçado juntos o tribunal milanês:
A nação italiana de boa mente se aplica contra toda coisa de inquisição
mormente nesta conjunção em que el Rei de Castela intentou meter em
Milão. Os bispos castelhanos exceto alguns que foram inquisidores fo-
ram contra a cláusula e a mesma opinião dos Castelhanos que foram
contra a dita cláusula teve o arcebispo de Braga. [...] Depois da dita

61
“todos los Prelados del Concílio lo pedían”. Carta do conde de Luna para Felipe II. Trento,
17 de novembro de 1563. Simancas, AGS, Estado, Leg. 652, doc. 116, fl. 1.
62
Pastore, “Roma, il Concilio di Trento, la nuova Inquisizione”, 216.
63
CT, vol. 9, 908.
64
CT, vol. 9, 915.
65
“Dicen que los Arzobispos de Granada y Braga y otros Italianos que fueron los que contra-
dijeron alegando razones para ello, fueron la causa, a los quales siguieron los otros, y creolo
por que el de Granada le he visto porfiar que no perjudica nada a la inquisición, y que es muy
necesaria”. Carta do conde de Luna para Felipe II. Trento, 17 de novembro de 1563. Simancas,
AGS, Estado, Leg. 652, doc. 116, fl. 1v.
[106]
A HERESIA NAS MALHAS DO CONCÍLIO DE TRENTO
Juliana Torres Rodrigues Pereira

cláusula posta votaram os Padres nela duas ou três vezes e sempre com
grande número de vantagem foi aprovada até a véspera da sessão. Na
sessão a reprovaram com indignos modos de tal auto66.

O poder episcopal de absolver causas ocultas no foro da consciência estava


garantido, assim como a jurisdição soberana papal sobre os mitrados em casos
de delitos maiores (os menores ficavam sob autoridade do Concílio Provincial)
– ou seja, o julgamento dos bispos permanecia entre os pastores. Privilégio que
não duraria muito, visto que em 1568 Pio V reservava a si a absolvição dos casos
de heresia no foro da consciência.
Diante da primeira batalha contra o Tribunal, se não haviam triunfado
completamente, confirmando a ortodoxia de Carranza, seus defensores podiam
se considerar longe da derrota. Avançaram e falaram contra o Santo Ofício sem
qualquer represália. Vitória parcial que precedia aquela que selaria a união da
assembleia em torno de questões relativas à Inquisição, isolando um grupo mi-
noritário cujos laços com a instituição e fidelidade à coroa e ao Tribunal falavam
mais alto. Percebendo as oportunidades, exaltavam o poder episcopal à medida
que se viam respaldados pela autoridade do Concílio que a coesão de objetivos
reforçava. Como colocou Tallon, a reunião conciliar submissa apenas ao papa
era como um espaço de misericórdia, mas restrito no tempo e no espaço67. Cada
pequena vitória em uma comissão, em uma votação, ou em negociação infla-
mava a percepção da autoridade que emanava do conjunto, e os permitia
avançar. Cada desafio aos tribunais inquisitoriais era possível apenas pelo lugar
excepcional em que haviam sido colocados, encorajados por percepções conver-
gentes sobre o papel do episcopado no desafio de reconstrução da cristandade e
especialmente sobre o congraçamento como pedra fundamental dessa recons-
trução, apresentando a Igreja como lugar de reintegração misericordiosa.
Embora, como destacou Prosperi, essas fossem batalhas de uma guerra já per-
dida no plano estratégico da Inquisição, restando aos bispos possibilidades
pontuais de reconciliação68, é interessante observar como exploravam as oportu-
nidades que se abriram para proteção de seu próprio estatuto: fosse na forma de
ampliação de sua jurisdição diante de uma instituição que avançava sem freios

66
Carta de D. Fernão Martins Mascarenhas a el-Rei. Trento, 15 de novembro de 1563. Lisboa,
ANTT, Gaveta 2, mç. 3, n.º 10.
67
Tallon, “Le concile de Trente et l’Inquisition romaine”, 158-159.
68
Prosperi, Tribunais da consciência, 163.
[107]
sobre seus privilégios, fosse para assegurar cobertura aos pares ou confrades,
dando-lhes a chance de evitar o perigo de serem lançados em um cárcere.
Se no caso da Península Itálica as interseções entre espirituais, irenismo e
nicodemismo sobreviventes criavam uma espécie de área cinza favorável à ama-
bilidade integradora, diante dos tribunais ibéricos havia ainda os prelados e
teólogos que sustentavam outras possibilidades de correção e readequação, e
Trento foi o palco de encontro entre linhas tão singulares mas com percepções
comuns sobre a melhor forma de guiar o rebanho, e foi propriamente esse en-
contro que permitiu as pequenas vitórias antes do apagar do Concílio. Como se
fez uso delas é questão que estudos dedicados ao período que se seguiu podem
responder.

[108]
O “defeito da prova” e a defesa dos réus da
Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil
(1591-1595)
Alécio Nunes Fernandes

Fosse para fundamentar a instauração dos processos, a prisão dos suspei-


tos ou a condenação dos réus, sobretudo a penas mais gravosas, a existência de
provas era o que permitia aos juízes proceder contra os incriminados: a noção
de prova era elemento fundamental para orientar a condução dos processos in-
quisitoriais. Dos vários termos e expressões jurídicas constantes nas denúncias,
confissões e nos processos instaurados pela Mesa da Primeira Visitação, ne-
nhum deles era tão revelador da dimensão judicial da ação inquisitorial quanto
a expressão “defeito da prova”. Tribunal da fé: o Santo Ofício era um tribunal
religioso de justiça criminal, e, como tal, julgava crimes, delitos, culpas e pecados
contra a “santa fé católica”. Para tanto, a Inquisição precisava de provas. A quan-
tidade e a qualidade delas condicionavam a cadência dos atos judiciais (abertura
de processo, intimação de testemunhas, prisão, diligências, sentença). Ao lado
das circunstâncias atenuantes das culpas1, as provas acostadas aos autos eram
elementos fundamentais para justificar a gravidade maior ou menor das penas
impostas aos incriminados. Em vários processos da Primeira Visitação as provas
foram consideradas insuficientes ou defeituosas, sendo que os principais

1
Sobre as circunstâncias atenuantes, ver Enrique Gacto Fernández, “Las circunstancias atenu-
antes de la responsabilidad criminal em la doctrina jurídica de la Inquisicion”, in Estudios
jurídicos sobre la Inquisición española (Madrid: Dykinson, 2012), 101-144; e Alécio Nunes Fer-
nandes, “A justiça além das provas: as circunstâncias atenuantes das culpas nos processos da
Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil (1591-1595)”, Contraponto - Revista do Departa-
mento de História e do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil da UFPI, v. 9, n.º 1
(2020): 61-92.
responsáveis por atestar o defeito da prova foram os próprios juízes inquisitori-
ais, tanto os da Mesa do Brasil quanto os deputados do Conselho Geral. Ainda
que indiretamente e mesmo que esse não fosse o efeito desejado, a preocupação
institucional com questões relacionadas às provas dos autos acabaria por ter im-
plicações diretas na defesa dos réus, sobretudo por garantir a parte considerável
dos incriminados o abrandamento das penas que lhes foram impostas.
Neste texto, pretendo justamente discutir o quanto a constatação de “de-
feito da prova” pelos juízes inquisitoriais contribuiu para a defesa dos réus da
Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil.
Concordando com Sonia Siqueira, acredito que, de forma geral, “o Santo
Ofício só procedia contra alguém após opinião convicta da existência da here-
sia”2 ou de algum outro crime de sua jurisdição: o cuidado que os inquisidores
tinham na busca por indícios mínimos de que as causas pudessem prosperar era
um dos motivos para que o número de efetivamente processados fosse bem me-
nor que o de denunciados. Tal cuidado acabava por lançar sobre os réus o que
poderíamos chamar de presunção de culpa3. Isso porque, via de regra, os proces-
sos só eram instaurados pelo Santo Ofício havendo provas minimamente
suficientes contra aqueles acusados de cometer os crimes de sua jurisdição4. A
prova era, pois, peça fundamental para se iniciar o processo inquisitorial.

2
Sonia Siqueira, “A disciplina da vida colonial: os Regimentos da Inquisição”, Revista do Ins-
tituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a. 157, n. 392 (1996): 541-542.
3
Gretchen Star-Lebeau e Kimberly Lynn afirmam que “it is [...] important to note that inquisi-
torial procedure rested on a presumption of guilt; the burden lay with the accused to prove
innocence”. Gretchen Star-Lebeau; Kimberly Lynn, “Inquisitions”, in ed. Charles H. Parker,
Gretchen Star-Lebeau, Judging Faith, Punishing Sin. Inquisitions and Consistories in the Early
Modern World (New York: Cambridge University Press, 2017), 57. Já Enrique Gacto Fernández
chama a atenção para o fato de que a presunção de culpabilidade era própria do direito penal
do Antigo Regime: “el estilo del Santo Oficio terminó por consolidar un tipo de proceso en el
que la presunción de culpabilidad, característica de todo el Derecho penal del Antiguo Régimen,
resultaría […] extraordinariamente intensificada”. Enrique Gacto Fernández, “Reflexiones sobre
el estilo judicial de la Inquisición española”, in ed. José Antonio Escudero, Intolerancia e Inqui-
sición, tomo 1 (Madrid: Sociedad Estatal de Conmemoraciones Culturales, 2005), 440.
4
Mesmo alguns casos em que a instituição foi instrumentalizada de forma mais marcada-
mente política contra seus desafetos confirmam tal afirmação. Como foro ao qual competiam
crimes de natureza religiosa, mas que abarcava também questões de ordem moral, sexual e
comportamental, o Santo Ofício português só podia atuar contra qualquer indivíduo no limite
de sua jurisdição, o que não quer dizer que a Inquisição portuguesa não se inserisse em dis-
putas políticas. Muito pelo contrário. Exemplo emblemático de tal afirmação é o processo
movido contra o padre Antônio Vieira, analisado por Ronaldo Vainfas: “o ressentimento do
Santo Ofício contra as posições políticas de Vieira, embora fortíssimo, não constituía motivo
legal para processá-lo por heresia. Vieira nem sequer chegou a propor, explicitamente, a
[110]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

Das linhas gerais que orientaram a ação judicial da Inquisição no Brasil,


durante a Primeira Visitação, uma delas foi a necessidade de provas para a ins-
tauração dos processos. É o que se depreende do alerta de Heitor Furtado a um
réu que relutava em confessar sua culpa: “foi-lhe logo declarado que ele entenda
que não se chama a esta Mesa nenhumas pessoas como Réus senão havendo
bastantes culpas e bastante prova”5. No entanto, o fato de haver prova suficiente
para a abertura de processo e mesmo para a prisão dos réus não redundou, ne-
cessariamente, na certeza de condenações mais gravosas.
Tanto a doutrina quanto a prática criminal de fins do século XVI apontam
no sentido de que, em termos jurídicos, a gravidade das decisões estava condici-
onada àquilo que os juízes entendiam por “prova bastante”, fosse para autorizar
a instauração dos processos ou eventual prisão dos suspeitos como também para
justificar a aplicação de penas mais duras. Em outras palavras, para cada etapa
judicial era necessário um mínimo de prova, de tal forma que, para embasar uma
condenação mais gravosa, aos indícios e/ou provas suficientes para abertura de
determinado processo deviam ser acrescidas outras provas6.
Assim como as circunstâncias atenuantes das culpas, o defeito da prova
desautorizava a aplicação das “penas ordinárias” que o direito da época reco-
mendava impor àqueles considerados mais gravemente culpados. Em tal
situação, os juízes deveriam condenar os réus a punições mais brandas, também
previstas pelo direito penal, ou mesmo absolvê-los, no caso de falta de provas7.
Com efeito, era justamente a observância do que previam a doutrina e a legisla-
ção o que ensejava uma não-equivalência entre as penas com que eram

abolição do tribunal quando defendeu os cristãos-novos, embora seus planos implicassem o


natural esvaziamento da Inquisição. O Santo Ofício, enquanto tribunal de fé, precisava de
alguma heresia para poder atuar contra qualquer indivíduo. No caso de Vieira a heresia residia
nos seus escritos proféticos, esses sim, eivados de ideias heterodoxas. De modo que o motivo
da carga inquisitorial contra Vieira podia ser de ordem política, mas a razão do processo foi a
heresia contida no profetismo do réu”. Ronaldo Vainfas, Antônio Vieira: jesuíta do rei (São
Paulo: Companhia das Letras, 2011), 227. Grifo meu.
5
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12.927, fl. 25v.
6
Embora ambos concordassem com tal premissa, os deputados do Conselho nem sempre esti-
veram de acordo com o que os juízes da Visitação entendiam por “prova bastante”, e,
consequentemente, houve casos em que aqueles discordaram das punições aplicadas por estes.
7
Referindo-se a outro contexto e tendo por base considerável número de processos, José Sán-
chez-Arcilla Bernal afirma que “cuando el juez carecía de indicios suficientes para proceder a
una condena del reo o absolvía o acudía a la simple amonestación o apercibimiento”. José
Sánchez-Arcilla Bernal, “¿Arbitrariedad o arbitrio? El otro derecho penal de la otra monarquía
[no] absoluta”, in El Arbitrio Judicial en el Antiguo Régimen (España e Indias, siglos XVI-XVIII)
(Madrid: Dykinson, 2013), 18-19.
[111]
ameaçados os incriminados e aquelas efetivamente cominadas, nos casos con-
cretos, aos condenados.
Sob o argumento de usar “de muita misericórdia” para com os réus, os ju-
ízes sopesavam as provas acostadas aos autos à luz das circunstâncias atenuantes
das culpas. E nos casos em que os réus contestavam as acusações, ou naqueles
em que fossem considerados diminutos ou negativos, os juízes avaliavam se nos
autos havia ou não defeito da prova, o que, na prática, poderia atenuar a gravi-
dade das condenações.
Especificamente no que se refere aos processos instaurados pela Mesa do
Brasil, em vários deles, em razão de os juízes constatarem a existência de provas
defeituosas e/ou de circunstâncias atenuantes das culpas ou, também, por acre-
ditarem não haver prova suficiente para maior condenação, a “muita
misericórdia” do Santo Ofício se materializou na aplicação de penas mais bran-
das do que aquelas que, “conforme a direito”8, os réus mereceriam caso fossem
considerados plenamente culpados.

O defeito da prova na perspectiva do Conselho Geral


Dos processos instaurados por Heitor Furtado, alguns foram julgados não
apenas no Brasil, passando também pelo crivo dos juízes do Tribunal de Lisboa
e dos deputados do Conselho Geral. A troca de correspondência entre o visitador
e a alta cúpula inquisitorial registrou, em parte, as impressões que ambos os la-
dos tinham dos casos em julgamento.
Na brevíssima introdução que antecede as cartas enviadas pelo inquisidor
geral e pelo Conselho Geral para Heitor Furtado – documentos inéditos na oca-
sião em que foram publicados –, António Baião afirma que tais cartas “bem
demonstram a prudência com que as altas esferas do Santo Ofício procediam”.
Para Baião, a prudência do inquisidor geral e dos deputados do Conselho era
compreensível: eles “viam os casos a distância, viam-nos mais fria e imparcial-
mente”9. Seja como for, um dos temas mais importantes das cartas era relativo à
qualidade das provas necessárias para se proceder no Santo Ofício, especial-
mente em crimes graves, como o luteranismo e o judaísmo:

8
A expressão “conforme a direito” é uma das mais recorrentes nos processos judiciais da Pri-
meira Visitação, além de aparecer também, com bastante frequência, no Regimento de 1552 e
nas cartas enviadas pelo Conselho Geral e pelo inquisidor geral ao visitador.
9
António Baião, “Correspondência inédita do inquisidor geral e Conselho Geral do Santo Ofí-
cio para o primeiro visitador da Inquisição no Brasil”, Brasília 1 (1942): 543.
[112]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

E como esta matéria de prisão seja de tanta importância, assim pelo que
toca à reputação do Santo Ofício como à honra e fazenda dos mesmos
presos, deve V. M. guardar o Regimento da Inquisição e o seu particular
que levou e não proceder à prisão de pessoa alguma sem ter pelo menos
uma testemunha legal e digna de crédito e que deponha ato de juda-
ísmo ou luteranismo formal. E não sendo a prova desta qualidade, não
proceda à prisão em nenhuma forma sem enviar primeiro as culpas para
cá se verem e se lhe dar a ordem que parecer10.

As cartas citam alguns dos processados enviados presos para o Reino, mas
que, “por não serem as culpas bastantes para se proceder” contra eles no Santo
Ofício, acabaram sendo soltos por decisões da Mesa de Lisboa, as quais foram
confirmadas pelo Conselho Geral. Uma delas é datada de 24 de outubro de 1592:
Recebemos a carta de V. M. de 30 de maio [de 1592] passado com o rol
das pessoas que saíram no auto que se fez, e foi entregue na Inquisição
desta cidade [de Lisboa] Gaspar Afonso Castanho, e suas culpas, e as de
Salvador da Maia e [as de] Luís Álvares, que no ano passado vieram
presos. E sendo vistas [as culpas] se assentou que fossem soltos os ditos
Salvador da Maia e Luís Álvares. E porque dos autos de Salvador da
Maia constou que se andava livrando ante o ordinário lho tornam os
inquisidores remeter para que lá se acabe de livrar. Com Gaspar Afonso
Castanho se vai correndo e parece que também o soltarão breve-
mente11.

Na carta seguinte, com data de 1º de abril de 1593, confirma-se a decisão


favorável a Gaspar Afonso Castanho e justifica-se a soltura de João Nunes, cujas
culpas “não eram bastantes para estar preso, por defeito da prova”:
Gaspar Afonso Castanho, que veio preso, foi solto por as culpas não se-
rem bastantes e as testemunhas inimigas sobre a qual inimizade se
houvera de tomar informação primeiro que o prendessem, pois ele as-
sim o pediu em uma petição que fez à mesa da visitação. As culpas de
João Nunes foram vistas pelos inquisidores e deputados e pareceu a to-
dos os votos que não eram bastantes para estar preso, por defeito da
prova, e no Conselho se confirmou este despacho, e foi solto sob fiança
[...]12.

10
Ibid., 546.
11
Ibid., 545-546.
12
Ibid., 547, grifos meus. Angelo Adriano Faria de Assis tem razão ao afirmar que “a absolvição
de [João] Nunes parece [...] não ter obedecido unicamente à crença do Tribunal em sua ino-
cência, mas também aos interesses econômicos ligados à colonização e controle da luso-
América. Não faltavam suspeitas para incriminá-lo de práticas judaizantes ou, quando menos,
de pouco apego à fé cristã, como também não eram poucas as razões para que seus inimigos
fizessem de tudo para se verem livres do temível onzeneiro malevolente. O Santo Ofício,
[113]
Afora esses réus, as cartas também citam a cristã-nova Maria de Peralta. O
caso dela foi usado pelos deputados do Conselho para “lembrar” a Heitor Fur-
tado dos cuidados que deveria ter com o trato das testemunhas – segundo a
avaliação dos experientes juízes do Conselho Geral, as denúncias comumente
eram suspeitosas e, muitas vezes, falsas... Ainda que não apareça a expressão
“defeito da prova” é disso que se trata no trecho a seguir. A qualidade e o crédito
das testemunhas, bem como a possível relação de inimizade delas com os réus,
eventualmente poderia caracterizar uma prova como defeituosa. Evitar o defeito
da prova passava necessariamente pelas precauções a tomar com as testemunhas
de acusação:
Lembramos-lhe que, posto que é possível dizerem as testemunhas ver-
dade, contudo, por experiência se acha no Santo Ofício que as tais
denunciações comumente são suspeitosas e, as mais das vezes, são fal-
sas. E assim é necessário para prender e proceder contra os
denunciados fazerem-se primeiro todas as diligências possíveis com as
testemunhas, conforme a qualidade delas e das pessoas de que denun-
ciam, e do lugar e tempo de que depõem, maiormente não tendo a tal
pessoa denunciada outras culpas contra a fé. E assim se deve informar
do crédito que se pode dar às testemunhas que denunciam, e se têm
algumas inimizades e ódios com as pessoas denunciadas13.

Além das cartas, as preocupações dos deputados do Conselho Geral relati-


vas à qualidade das provas das causas julgadas pela Mesa do Brasil também
foram registradas diretamente em parte dos processos da Primeira Visitação. Há
pelo menos cinquenta e seis anotações nas folhas de rosto dos processos, boa
parte delas criticando o rigor adotado pelos juízes da Visitação. Cito dois exem-
plos. No caso da cristã-velha Catarina Viegas, processada por revelar segredos
do Santo Ofício, registrou-se a seguinte anotação na folha de rosto de seu pro-
cesso: “rigorosa prisão e rigorosa sentença de cousa que não se devia fazer caso,
e mais não havendo mais prova que a confissão da Ré”14. Outro exemplo refere-
se ao caso do mameluco Manoel de Oliveira, acusado de ter cometido o crime

contudo – talvez fazendo valer seu lema, de Misericórdia e Justiça –, preferiu considerar insu-
ficiente e falha a documentação reunida por Heitor Furtado durante a visitação que este
comandara”. Angelo Adriano Faria de Assis, João Nunes, um rabi escatológico na Nova Lusitâ-
nia: sociedade colonial e Inquisição no nordeste quinhentista (São Paulo: Alameda, 2011), 269.
13
Baião, “Correspondência inédita”, 549-550. Grifo meu.
14
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 1.277, folha de rosto.
[114]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

de blasfêmia heretical. Na folha de rosto dos seus autos consta o seguinte regis-
tro: “parece que há pouca prova e muito rigor na sentença”15.
Pelos processos de Catarina Viegas e de Manoel de Oliveira, percebe-se
que, no entender do Conselho Geral, a prova acostada aos autos não era compa-
tível com as penas impostas: os réus foram punidos com “muito rigor”, como
ficou consignado na folha de rosto do processo de Manoel. Embora o termo
“prova” apareça expressamente apenas nestes dois casos, há outras manifesta-
ções do Conselho Geral em processos da Primeira Visitação indicando o quanto
questões ligadas à qualidade da prova preocupavam os deputados-conselheiros.
Vistas as considerações em conjunto, sua leitura sugere que, na perspectiva dos
deputados-conselheiros, o que configurava o “rigor” ou “muito rigor” de uma
decisão era o desequilíbrio entre a gravidade da punição e a qualidade das provas
do crime supostamente cometido, sobretudo nos casos em que o Conselho con-
siderou serem leves as condutas investigadas.

O defeito da prova no parecer dos juízes da Primeira Visitação


Afora os casos em que, direta ou indiretamente, o Conselho Geral foi a
instituição responsável por atestar o defeito da prova, houve situações em que
os próprios juízes da Mesa do Brasil manifestaram expressamente tal problema
jurídico, o qual, em tais situações, resultou no abrandamento das penas impostas
aos incriminados. Cito alguns exemplos.
Um deles refere-se ao processo do cristão-velho Francisco Nunes, acusado
por uma testemunha de dizer “que dormir [carnalmente] um homem com mu-
lher não era pecado”16, conduta que configurava uma das variantes do que se
entendia ser proposição herética. Os seis juízes que julgaram a causa, dentre eles
o bispo da Bahia, dom Antônio Barreiros, decidiram que, “visto o defeito da
prova”, o réu fosse repreendido na Mesa e cumprisse penitências espirituais:
Foram vistos estes autos em Mesa e pareceu a todos os votos que visto
o defeito da prova, que não basta contra o Réu, o qual nega ter dito não
ser pecado dormir carnalmente com mulher, que se pode escusar libelo
contra ele, e que seja repreendido nesta Mesa e se lhe imponham peni-
tências espirituais17.

15
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2.528, folha de rosto.
16
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 7.297, fl. 2v.
17
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 7.927, fl. 9r, grifo meu. O processo não tem sentença formal.
O assento não estabelece o pagamento de custas, nem consta o cálculo destas nos autos.
[115]
Outro exemplo é o caso do cristão-velho Antônio Pires Brandão, proces-
sado por supostamente ter dito que “o estado do bom casado era melhor que o
dos religiosos”18. Em seu processo foram ouvidas três testemunhas, uma de acu-
sação e duas referidas19. Mesmo ameaçado por pelo menos três vezes de se vir
com libelo contra ele, o réu permaneceu negativo, levando o visitador a reper-
guntar duas testemunhas, dentre elas o denunciante20. Os sete juízes da causa
preferiram não condenar o réu mais duramente porque, na percepção do colegi-
ado, a prova não era bastante. Em razão do defeito da prova, a Mesa decidiu que,
para “tirar a suspeita” que pesava sobre ele, Antônio teria de abjurar de levi, na

18
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6.361, fl. 21r.
19
Como sugere a expressão, as testemunhas referidas eram aquelas citadas tanto por denun-
ciantes e confitentes quanto por outros declarantes ouvidos no processo. Elas eram intimadas
a depor na expectativa de que soubessem de algo que pudesse contribuir para elucidar os fatos
em apuração.
20
A “reperguntação” era um sinal evidente de que o principal juiz da Mesa, Heitor Furtado de
Mendoça, não raramente teve dúvidas quanto à robustez das provas dos processos que ele
conduziu. Em alguns casos, por vontade própria e sem provocação das partes, o visitador
achou por bem inquirir novamente testemunhas e denunciantes – ou reperguntá-los, como
ficou registrado em vários processos –, prática prevista no Regimento de 1552 e nos posterio-
res: “Quando quer que alguma pessoa for acusada e sempre insistir em sua negativa até
sentença, afirmando e confessando a fé católica e que sempre foi e é cristã e que é inocente e
condenado injustamente, sendo o delito contra o réu cumpridamente provado, o poderão os
inquisidores declarar e condenar, pois juridicamente consta do delito de que é acusado e o
réu não satisfaz devidamente para que com ele se possa usar de misericórdia, pois não con-
fessa. E, porém, em tal caso os inquisidores devem muito atentar e advertir nisso e, se for
necessário, reperguntar as testemunhas que contra o réu há e torná-las a examinar, procurando
de saber mui miudamente que pessoas são, informando-se de outras testemunhas acerca da
dita fama e costumes e consciência das testemunhas da justiça, como dito é, inquirindo e
esquadrinhando se as tais testemunhas contra o réu, ou seu padre e madre e ascendentes e
descendentes e outros devidos e pessoas a quem tivessem muita afeição, tivessem inimizade
com o réu e assim mesmo enfermassem por algum ódio secreto e malquerença, ou, sendo as
tais testemunhas corrompidas por dádivas e promessas, testemunharam contra o réu. E feita
esta diligência com as mais que lhe parecer que cumprem, se lhes constar que as testemunhas
falam verdade contra o réu, em tal caso, farão os inquisidores o que for justiça, conformando-
se com o direito e Bula do Santo Ofício”. Regimento de 1552, Capítulo 50, grifo meu. Já o Regi-
mento de 1640 estabelecia que: “se dos ditos das testemunhas ou da prova das contraditas
resultar alguma presunção de falsidade contra as testemunhas da justiça, os inquisidores, para
maior justificação do procedimento do Santo Ofício e para se saber melhor a verdade e se intei-
rarem do crédito que elas merecem, as mandarão vir à Mesa e por si as reperguntarão, ainda
que pelas partes lhe não seja requerido. E posto que esta diligência se deve fazer em todos os
processos em que houver a dita presunção de falsidade, contudo se tratará dela com particular
advertência aonde parecer que os réus estão em termos de serem julgados por convictos, pois
nestes é o perigo maior”. Regimento de 1640, Livro II, Da ordem judicial do Santo Ofício, Título
XI, Das mais diligências que se devem fazer antes de final despacho, § 3, Em que casos serão
reperguntadas as testemunhas da justiça, grifo meu.
[116]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

Mesa, em secreto, bem como cumprir penitências espirituais e pagar cinco cru-
zados para as despesas do Santo Ofício, quantia que eliminava a necessidade de
se apresentar libelo contra o réu:
[...] o que tudo visto e o mais que dos autos consta, e o defeito da prova,
que não é bastante contra ele, [e] respeitando a algumas considerações
que se tiveram, mandam que o Réu, para tirar a suspeita que contra ele
destes autos resulta, faça abjuração de leve suspeito na fé nesta Mesa
em secreto, e o condenam em cinco cruzados para as despesas do Santo
Ofício e com isto o hão por escuso [de] vir-se com libelo contra ele, e
cumprirá mais as penitências espirituais seguintes [...]21.

Há também o caso do meirinho cristão-velho Brás Fernandes, que se apre-


sentou no tempo da graça em fevereiro de 1594, quando confessou ter dito que
as “bulas [papais] se passavam para ajuntar dinheiro e fazer algumas esmolas, e
que para isto as passavam os papas”. Confessou também que, por graça, costu-
mava chamar de “bulas” as sentenças e mandados da justiça que, por dever de
ofício, ele tinha de fazer cumprir, bem como que, quando as partes lhe pediam
que fizesse alguma diligência, ele lhes perguntava se traziam “salmo”, referindo-
se a dinheiro. Justificou sua culpa afirmando dizer tais palavras “de parvoíce, sem
advertir o que dizia nelas, nem ter intenção ruim nelas contra o papa nem seu
poder, nem contra nossa santa fé católica”.22 A confissão no tempo da graça, a
“boa informação” que as testemunhas deram do réu, os pedidos de perdão, a
alegação de que não tinha intenção ruim em seus ditos e graças, e, por fim, o
defeito da prova foram os argumentos registrados na sentença para justificar a
pena:
Acordam o visitador apostólico do Santo Ofício, o ordinário e assesso-
res que, vistos estes autos, libelo da justiça, contrariedade do Réu, Brás
Fernandes, cristão-velho, natural de Guimarães, meirinho de Igarassu,
que presente está, artigos recebidos, prova de testemunhas a todo dada,
confissão que o Réu fez na graça, mais informações e diligências feitas,
mostra-se que o Réu no tempo da graça veio a esta Mesa confessar que,
lendo-se perante ele uma bula, ele dissera que aquelas bulas se passa-
vam para ajuntar dinheiro e fazer algumas esmolas, e que para isso as
passavam os papas, e que ele mais por modo de graça chamava [de]
bulas as sentenças e mandados das justiças por que lhe mandavam fazer
algumas execuções, e assim chamava [de] salmo ao dinheiro, pergun-
tando às partes se traziam salmo, das quais culpas pediu perdão,
dizendo que nelas não advertia o que dizia, nem tinha intenção ruim

21
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6.361, fl. 22v, grifo meu.
22
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6.362, fls. 1r-2v.
[117]
contra o papa nem seu poder, nem contra Nossa Santa Fé, nem contra
a virtude das bulas, nem [por] desprezar e desautorizar as bulas e sal-
mos, mas que simplesmente dizia as ditas palavras. Mostra-se mais ser
o Réu acusado pela justiça que ele dissera que aquelas graças que se
declaravam na bula que perante ele se lia as não podia conceder o sumo
pontífice, e que não se passavam aquelas bulas senão para enganar os
homens e ajuntar dinheiro, o qual libelo da justiça ele Réu contrariou
negando a dita culpa por que nele era acusado. O que tudo visto e o
mais que dos autos consta e resulta, e visto o defeito da prova da justiça,
a qual não é bastantemente concludente contra o Réu acerca das pala-
vras de que é acusado, e respeitando-se também à boa informação que
há do Réu e a ele vir na graça, pelo que parece que confessaria o que
lembrasse, e [respeitando-se] a outros mais respeitos justos e pios que
se tiveram, mandam que o Réu somente nesta Mesa seja gravissima-
mente admoestado e repreendido, e que nas quatro festas seguintes do
Natal, Páscoa, Espírito Santo e Nossa Senhora de agosto se confesse e
comungue de conselho de seu confessor, e que tome bulas e que pague
somente cinco cruzados para as despesas do Santo Ofício. E pague as
custas. Dada na Mesa da Visitação do Santo Ofício, em Olinda de Per-
nambuco, ao derradeiro [dia] de julho de mil e quinhentos e noventa e
cinco anos. Manoel Francisco, notário do Santo Ofício nesta Visitação,
a escrevi23.

Por fim, um dos mais interessantes casos para se dimensionar a importân-


cia que a qualidade da prova tinha para os juízes da Mesa da Visitação é o do
cristão-novo Manoel de Paredes, acusado por nada menos que onze denuncian-
tes, parte dos quais eram testemunhas de “ouvir dizer”24. Dentre outras
acusações, foram-lhe atribuídas as seguintes culpas: dizer “que Nossa Senhora
não era virgem ou não podia ser virgem”25; e que “Nossa Senhora fora uma mu-
lher baixa, e seu filho outro tal que andara enganando o mundo naquele tempo,
e que os judeus eram gente nobre e fidalga”26. Em decisão interlocutória, seis
juízes da Mesa do Brasil concluíram pela continuação do processo, mas que não
havia provas suficientes para justificar a prisão do réu, em razão dos “defeitos da
prova”: “[...] vistas estas culpas em Mesa pareceu a todos os votos que não bastam

23
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6.362, fls. 53r-54v, grifo meu.
24
Figuram como denunciantes: 1. Ciprião Velho, cunhado, testemunha de ouvida; 2. Gaspar
Dias Figueroa; 3. Jerônimo de Bairros, cunhado e principal acusador; 4. Pero Novais, testemu-
nha de ouvida; 5. Bartolomeu Madeira; 6. Felícia Loba, cunhada; 7. Catarina Loba, testemunha
de ouvida; 8. André Monteiro, “dos da governança” da terra, testemunha de ouvida; 9. Vitória
de Bairros, cunhada, testemunha de ouvida; 10. Jerônimo Moniz, vizinho da fazenda de Ma-
noel; 11. Inês de Bairros, cunhada, testemunha de ouvida.
25
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 3r.
26
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 12r.
[118]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

para prisão, pelos defeitos da prova, porém, que seja chamado o Réu e se lhe
façam as sessões ordinárias [de interrogatório], e que delas resultará o como con-
tra ele se procederá”27.
Ao longo de todo o processo, Manoel de Paredes alegou que não tinha
culpa alguma a confessar no foro inquisitorial, afirmando que era “muito bom
cristão”28. Perguntado por sua genealogia, o réu informou ao visitador que uma
tia sua, Branca da Costa, irmã de sua mãe, “foi presa pela Inquisição e morreu
dentro no cárcere, e despois de ela morta tem ele Réu que ela foi sentenciada
solta e livre, e que por isso sua ossada foi levada a enterrar com pompa ao mos-
teiro do Carmo”29. Como o réu se recusava a confessar – talvez pela simples razão
de não ser culpado das acusações –, o visitador achou por bem apontar-lhe “a
substância de suas culpas especificamente”30, para que ele confessasse a verdade.
Mas nem mesmo ao ter conhecimento das acusações contra si Manoel mudou

27
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 45r. É importante ressaltar que, mesmo se tratando
de um réu cristão-novo, e a despeito da gravidade das denúncias apresentadas em juízo, a
Mesa preferiu agir com prudência ao não determinar a prisão de Manoel de Paredes: as provas
não eram suficientes para tanto. No belíssimo livro “Páscoa Vieira diante da Inquisição”, Char-
lotte de Castelnau-L’Estoile afirma que “foi surpreendente descobrir [...] a prudência do
tribunal” em relação aos cuidados que os juízes inquisitoriais tiveram no processo de Páscoa
Vieira, por exemplo, em relação à prisão da incriminada. Reunidos em colegiado, os juízes
“consideraram por unanimidade que era preciso continuar investigando legalmente o pri-
meiro casamento de Páscoa e Aleixo, uma vez que os documentos que tinham em mãos não
apontavam testemunhas que os tivessem visto se casar ou dessem razão suficiente para provar
que o casamento fora legítimo. Sem essa prova jurídica, os juízes concluíram que não havia
provas suficientes para decretar o encarceramento da mulher denunciada”. Charlotte de
Castelnau-L’Estoile, Páscoa Vieira diante da inquisição: uma escrava entre Angola, Brasil e Por-
tugal no século XVII (Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020), 102-103, grifo meu. Ressalte-se
que a mulher denunciada em questão era uma escrava. É interessante notar: assim como o
fizera em relação ao cristão-novo Manoel de Paredes, o Santo Ofício também agiu com pru-
dência no processo da escrava Páscoa Vieira, acusada de bigamia, cujas investigações judiciais
se estenderiam por mais de sete anos, até que ela fosse finalmente sentenciada.
28
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 47r.
29
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 48v. Encontrei o processo de Branca Costa, tia de Ma-
noel. A leitura dos autos confirma a veracidade das informações prestadas por ele. Sua tia
faleceu “da vida presente de sua morte” no cárcere do Santo Ofício de Lisboa, em janeiro de
1591, um mês depois da leitura do libelo acusatório, antes que ela pudesse apresentar sua defesa
formal. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6.412, fl. 24r. O “foram vistos” da Mesa de Lisboa foi taxa-
tivo: não havia prova bastante para que a ré fosse tida por culpada (convencida é o termo que
aparece no original), razão pela qual foi determinado que se passasse certidão aos herdeiros
“para lhe entregarem seus bens e corpo da Ré para sua sepultura entre os fiéis”. Ibid., fl. 25r.
30
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 49r.
[119]
sua versão, identificando um dos denunciantes como seu inimigo capital31. Por
ser réu negativo, foi ameaçado em pelo menos uma ocasião de se vir com libelo
contra ele – ameaça esta que não se concretizou.
Em resumo, Manoel de Paredes era cristão-novo, foi denunciado por con-
siderável número de testemunhas e tinha uma parenta processada por culpas de
judaísmo, em período próximo àquele em que corriam seus autos. Além do mais,
Manoel recusou-se a confessar ao longo de todo o processo, o que fazia dele réu
negativo. Em tese, o quadro apontava para uma pena duríssima, caso o colegiado
que julgou a causa acreditasse que a prova acostada aos autos era bastante para
tanto. Contudo, os sete juízes da causa entenderam que a prova tinha defeito.
No caso do processo de Manoel, o defeito da prova consistia sobretudo na ini-
mizade entre o réu e seu cunhado, bem como no pouco crédito que se podia dar
a este último, o que foi ressaltado tanto pelas testemunhas de acusação quanto
pelo próprio réu.
Manoel recebeu apenas repreensão e admoestação na Mesa, e cumpriu pe-
nitências espirituais, o que, na visão dos juízes da Visitação não era
propriamente uma pena, a julgar pela frase “não haver cousa bastante para con-
denação”. De todo modo, o defeito da prova constituiu o principal motivo a
justificar a decisão tomada:
Foram vistos estes autos em Mesa e pareceu a todos os votos que vista
a falta da prova e entre as testemunhas e o Réu haver inimizades como
é notório, e não haver cousa bastante para condenação, visto também a
testemunha Jerônimo de Bairros ser de pouco crédito, e as mais consi-
derações que se tiveram, [que] o Réu seja repreendido e admoestado
nesta Mesa, e se lhe imponham penitências espirituais [...]32.

31
Manoel de Paredes foi preciso ao acertar o nome do principal acusador, Jerônimo de Bairros,
seu cunhado. Na terceira sessão de interrogatório, ao ser advertido mais uma vez “com muita
caridade” que usasse “de bom conselho” e confessasse suas culpas, respondeu que “não tem
culpa que confessar que ele tenha feito nem dito, mas que seu cunhado Jerônimo de Bairros,
homem que costuma embebedar[-se] e de má consciência, é seu inimigo, e andaram já às
cutiladas, e ele Réu o feriu em uma perna, o qual tem lançado fama de muitas falsidades contra
ele Réu. E perguntado que coisas são essas dessa fama respondeu que lhe alevantou que ele
Réu dissera que a Virgem Nossa Senhora não ficara virgem despois do parto ou outra cousa
semelhante, e que ele Réu dissera à sua mulher, Paula de Bairros, que não rezasse a Nossa
Senhora que fora mulher baixa ou outras coisas semelhantes, e que todas e outras tais lhe
foram alevantadas falsamente pelo dito seu parente, digo, cunhado, Jerônimo de Bairros e por
outros parentes e parentas de sua mulher, que todos lhe querem mal”. Lisboa, ANTT, TSO, IL,
proc. 11.071, fls. 50v-51r.
32
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11.071, fl. 60r, grifos meus. O processo não teve sentença formal.
[120]
O “DEFEITO DA PROVA” E A DEFESA DOS RÉUS DA PRIMEIRA VISITAÇÃO DO SANTO OFÍCIO AO BRASIL
Alécio Nunes Fernandes

Além dos listados até aqui, há outros exemplos que permitem entrever as
preocupações dos juízes com a qualidade da prova que deveria fundamentar os
processos inquisitoriais, preocupações estas também constantes na doutrina e
na legislação da época, como, por exemplo, no Regimento de 1552.
***
À luz dos casos analisados, é possível afirmar: um elemento fundamental
orientava a condução dos processos na Mesa da Visitação: a noção de prova. Ins-
titucionalmente, a despeito de divergências pontuais, tanto os juízes da
Visitação quanto os deputados do Conselho Geral concordavam num ponto: a
qualidade das provas condicionava a gravidade das sentenças. Fosse para auto-
rizar a abertura dos processos, a prisão dos suspeitos ou a condenação dos réus,
sobretudo a penas mais gravosas, a existência de provas era o que permitia aos
juízes inquisitoriais proceder contra os incriminados.
Em vários processos, a constatação de defeito da prova contribuiu decisi-
vamente para a defesa dos réus, permitindo-lhes receber penas que estavam
entre as menos gravosas que o direito da época previa para os sentenciados por
crimes da alçada inquisitorial. É interessante notar: os principais responsáveis
por atestar o defeito da prova nos processos instaurados pela Mesa da Primeira
Visitação foram justamente os próprios juízes inquisitoriais. Aos olhos da insti-
tuição, a imagem de um tribunal justo e misericordioso dependia
profundamente da qualidade das provas produzidas em juízo. Ainda que indire-
tamente, tal entendimento acabaria por beneficiar a defesa de parte considerável
dos réus da Primeira Visitação do Santo Ofício ao Brasil.
É importante frisar um ponto: o esforço de se tentar entender como a In-
quisição se estruturava judicialmente não constitui, por parte do historiador,
uma tentativa de defesa do Tribunal. Analisar historicamente a imagem que a
Inquisição pretendeu construir de si mesma não significa, em absoluto, compac-
tuar com seus valores e ideias, muito menos diminuir o sofrimento de todos
aqueles que foram alcançados direta ou indiretamente pela instituição. Isso por-
que, mesmo o drama humano de milhares de homens e mulheres que sofreram
duramente as consequências da ação inquisitorial somente será entendido de
forma mais completa – naquilo que a aproximação histórica possibilita – com o
conhecimento da estrutura institucional que foi criada e mantida, durante sécu-
los, em diferentes lugares, contextos e sociedades para processar e julgar pessoas
por práticas e pensamentos que, à época, configuravam o que os juristas coevos

[121]
definiam como crime33. Imbricadas entre si, a história do Tribunal é complemen-
tar à história de suas vítimas.
Instituição complexa e sofisticada, a Inquisição pretendia ser reconhecida
como um tribunal cujos processos eram conduzidos à luz do que previam a dou-
trina e a legislação de seu tempo – o que também passava, necessariamente, pelo
controle da qualidade das provas acostadas aos autos. Nesse sentido, oferecer
um mínimo de defesa aos réus fazia parte da construção da imagem que a insti-
tuição queria projetar. Apresentar-se como um tribunal justo e misericordioso
foi uma das estratégias políticas que permitiram que a Inquisição portuguesa
perdurasse no tempo por longos 285 anos, impactando negativamente de forma
significativa as diferentes sociedades em que a instituição atuou.

33
Em instigante texto sobre as noções de delito e pecado na Europa moderna, Bartolomé Cla-
vero ressalta a necessidade de se compreender os conceitos com os quais lida o historiador na
acepção dada pelos coevos: “no voy a construir unos conceptos que no nos rinde la historia.
[…] Sus propias construcciones, las ideas de su sociedad y no de otra, espero que, como
entonces servían para gobernar las cosas, lo hagan hoy para comprenderlas”. Bartolomé
Clavero, “Delito y pecado. Noción y escala de transgresiones”, in Francisco Tomás y Valiente
et alii, Sexo barroco y otras transgresiones premodernas (Madrid: Alianza Univ., 1990), 58.
[122]
Lascívia transatlântica. Do Tribunal de Coimbra ao
Tribunal de Lisboa: os processos de Padre
Francisco de Santa Tereza e Paiva
Lana Lage da Gama Lima

Inquisição e solicitação
Os processos do Pe. Francisco de Santa Tereza e Paiva, totalizando cerca
de 700 folhas, permitem acompanhar sua peregrinação pelos cárceres inquisito-
riais de Coimbra e Lisboa, fornecendo informações sobre quase 30 anos de sua
vida1. Solicitante contumaz, Pe. Francisco de Santa Tereza e Paiva passara boa
parte de sua vida debatendo-se entre duas poderosas forças: uma sensualidade
desenfreada, incompatível com o estado clerical que escolhera, e o Tribunal do
Santo Ofício, encarregado de vigiar e punir os confessores lascivos. Sua história
constitui um caso exemplar, por reunir muitas das situações narradas na docu-
mentação relativa aos 425 clérigos denunciados por solicitação no Brasil, que
consegui encontrar no Arquivo Nacional da Torre do Tombo2. Mas, por outro
lado, revelam uma personalidade ímpar, marcada por um caráter arrogante, iras-
cível e intimorato, em que a lascívia sem freios era acompanhada por uma
resistência tenaz a se curvar ao poder do Santo Ofício.
A solicitação nem sempre foi da alçada inquisitorial, pertencendo antes à
Justiça Eclesiástica, exercida pelo bispo e seus vigários. Mas, progressivamente,
esse e outros delitos foram sendo deslocados para o novo tribunal, instalado em
Portugal no ano de 1536, pela bula Cum ad nil magis, do Papa Paulo III. Foi so-
mente sessenta e três anos após o seu estabelecimento, isto é, em 1599, que a

1
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 9166.
2
Lana Lage da Gama Lima, A Confissão pelo avesso. Sacramento da penitência e assédio sexual
a mulheres no Brasil setecentista (Niterói, RJ: Editora Proprietas, 2022).
Inquisição portuguesa recebeu, através de um breve papal, jurisdição para pro-
ceder contra os clérigos que solicitassem mulheres durante a confissão
sacramental.
Como ocorreu com outros delitos, a prática da jurisdição inquisitorial so-
bre a solicitação deu margem a uma série de indagações, que incluíram até a
própria definição do ato, já que as propostas amorosas feitas por clérigos fora da
ocasião da confissão fugiam à alçada do Tribunal. Estariam incluídas as solicita-
ções feitas antes ou depois do ato sacramental ou somente as ocorridas
estritamente durante a confissão? Para dirimir as dúvidas, Gregório XV, em 1622,
esclarece quais situações deveriam ser enquadradas como crime de solicitação,
ampliando bastante o campo de delito3.
Visando melhor difundir as determinações de Gregório XV, que daí em
diante passariam a definir o crime, os inquisidores do Tribunal de Lisboa publi-
caram, em 1634, um monitório dedicado especificamente à solicitação. Um prazo
de trinta dias era dado para que fossem denunciados, sob pena de excomunhão
maior ipso facto incurrenda,
todos os confessores seculares ou regulares, de qualquer dignidade,
grau, ordem, condição ou preeminência, que sejam, quer no ato da con-
fissão sacramental, antes ou depois dele imediatamente, ou com
ocasião ou pretexto de ouvir de confissão, inda que a dita confissão se
não siga, ou fora da ocasião da confissão no confessionário, ou lugar
deputado para ouvir de confissão, ou eleito para esse efeito, fingindo
que ouvem de confissão, tiverem cometido, solicitado, ou provocado,
cometerem, solicitarem ou provocarem de qualquer maneira, por si ou
por outrem, os penitentes, assim homens, como mulheres, a atos deso-
nestos, e ilícitos...4

A definição do crime tal como aparece no breve de 1622, prevalecerá no


regimento de 1640, em que, ao contrário do anterior, as penas são

3
A Cronologia da Inquisição em Portugal, apresentada no Catálogo da exposição organizadas
por ocasião do I Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição (Lisboa: Biblioteca Nacional, 1987)
cita a data de 1632 para o breve, devendo-se tratar de um erro gráfico, já que o pontificado de
Gregório XV foi de 1621 a 1623. Conforme o Collectório das bulas e breves apostólicos, cartas,
alvarás e provisões reais que contêm a instituição e progresso do Santo Ofício em Portugal,
publicado por Francisco Castro (Lisboa: Lourenço Craesbeeck, Impressor d’ El Rey, 1634), o
breve data de 30 de agosto de 1622.
4
Monitório que os inquisidores de Lisboa mandaram publicar em virtude dos breves contra os
solicitantes, publicado no citado Collectório de 1634.
[124]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

minuciosamente estabelecidas, refletindo sem dúvida, uma jurisprudência fir-


mada ao longo do tempo.

A caça aos solicitantes no Brasil colonial


Ao defender a expressão “caça às bruxas” para designar a perseguição mo-
vida contra a bruxaria na Europa Moderna, Brian P. Levack justifica seu uso pelo
fato de todos os julgamentos desse crime implicarem na procura dos delinquen-
tes, isto é, na “identificação dos indivíduos que se acreditava estarem envolvidos
numa atividade secreta” 5. É também nesse sentido que se pode afirmar que a
Igreja Católica promoveu no Brasil de meados do século XVIII uma verdadeira
caça aos solicitantes, pois, devido ao caráter secreto do delito, encoberto pelo
sigilo que protegia a confissão, era preciso em primeiro lugar descobrir quais
sacerdotes conspurcavam com ações e palavras libidinosas o sacramento da pe-
nitência. Essa caça somente foi possível graças à conjugação dos esforços de
vários agentes, entre os quais se destacou o próprio clero paroquial, que, ao
mesmo tempo, constituía o principal alvo da perseguição.
No processo de evangelização do Brasil, apesar de o espírito tridentino es-
tar presente desde o século XVI, sobretudo pela atuação dos jesuítas, somente
no século XVIII os bispos realizariam um esforço sistemático para implantar as
determinações do Concílio de Trento, cujo marco inicial foi o sínodo reunido na
Bahia, em 1707, do qual resultou a publicação das Constituições primeiras do Ar-
cebispado da Bahia, primeira legislação eclesiástica destinada especificamente à
Colônia6. A partir de então, o episcopado da primeira metade do século XVIII
envidaria esforços para reformar a religiosidade e os costumes coloniais, não
apenas da população, mas também do próprio clero, por meio de diversas ações:
a disseminação de visitas diocesanas para controle e punição dos desvios, cujos
visitadores comunicavam ao Santo Ofício os delitos de foro inquisitorial; a ins-
tituição de Conferências de Moral para educação do clero; a fundação de
seminários diocesanos; o controle das ordenações, da pregação e da confissão; a
vigilância sobre o cumprimento da desobriga ou confissão anual na quaresma; o
reforço da hierarquia eclesiástica; a multiplicação de bispados, prelazias e

5
Brian P. Levack, A Caça às bruxas na Europa Moderna (Rio de Janeiro: Campus, 1988), 2.
6
Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia (Coimbra: Real Colégio das Artes, 1720). Ver
também Lana Lage da Gama Lima, “As Constituições da Bahia e a reforma tridentina do clero
no Brasil”, in A Igreja no Brasil durante a vigência das Constituições primeiras do Arcebispado
da Bahia, Bruno Feitler e Evergton Sales Souza, org. (São Paulo: Unifesp, 2011), 147-177.
[125]
paróquias de modo a consolidar uma rede paroquial que viabilizasse a ação pas-
toral; o combate ao absenteísmo, à simonia e ao nicolaísmo7.
Entre as medidas destinadas à reforma dos costumes do clero colonial, es-
tava a preocupação em descobrir os solicitantes e denunciá-los ao Santo Ofício,
tarefa que, dado o segredo da confissão, implicava na colaboração dos próprios
confessores para descobrir os colegas que usavam o sacramento da penitência
para fins torpes. Pois, apesar do sigilo obrigatório sobre o que era ouvido em
confissão, no caso de saber que algum penitente havia sido solicitado por outro
confessor, havia também a obrigatoriedade de exigir que o fato fosse denunciado
ao Santo Ofício, sob pena de ser-lhe negada a absolvição. Essa determinação
transformava o clero paroquial ao mesmo tempo em caça e caçador na persegui-
ção aos solicitantes.
Entre as denúncias compiladas na documentação do tribunal de Lisboa
referente ao Brasil, 228 trazem interessantes dados sobre a intervenção de outros
confessores. De início, temos 80 denúncias em que essa intervenção é colocada
explicitamente. Dessas, 48, isto é, 60%, são feitas através de cartas escritas e en-
viadas aos comissários do Santo Ofício ou aos seus substitutos pelos próprios
confessores que alertaram as penitentes para a obrigação de denunciar. Em ou-
tras 32, que representam 40% das denúncias feitas a mando de outros
confessores, as mulheres se apresentaram diretamente aos comissários.
Entre as restantes das 228 denúncias que fornecem informações sobre
quem alertou para o dever de denunciar, quatro foram feitas por escravas, acon-
selhadas por seus senhores, um deles padre; em três casos, as solicitadas
esclarecem apenas ter “ouvido dizer” que eram obrigadas a procurar o Santo Ofí-
cio, e somente 3 demonstram conhecimento do edital sobre a solicitação, o que
mostra que sua divulgação foi insuficiente ou ineficaz. As outras 138 denúncias,
desse universo de 228, apesar de não esclarecerem os motivos que levaram as
penitentes a denunciar, apresentam outros dados significativos: 76, ou seja, 55%
delas, foram escritas e encaminhadas por clérigos e, embora não se explicite que

7
Simonia é a compra e venda de bens espirituais, como os sacramentos, ou materiais ligados
às primeiras, como as como prebendas e benefícios. Esse termo provém do oferecimento de
dinheiro feito a São Pedro por Simão, o Mago. O Nicolaísmo foi uma seita surgida em meio
ao cristianismo primitivo, que teria sido fundada por Nicolau, prosélito de Antioquia, que
defendia as relações sexuais sem restrições e praticava orgias rituais. No século XI, os defen-
sores do celibato clerical, decretado universalmente no IV Concílio de Latrão, em 1215,
aplicaram o termo aos sacerdotes casados. Edgar Royston Pike, Diccionario de religiones
(México: Fondo de Cultura, 1991).
[126]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

eram confessores, pode-se supor que sim, pois dificilmente matéria tão delicada
seria tratada com um padre fora da confissão. É válido afirmar, portanto, que
entre as 228 denúncias selecionadas, 156, ou seja, 68,42%, se deveram à interven-
ção de outro confessor.
Entre as denúncias que não especificam por quem as denunciantes foram
aconselhadas, 40 foram feitas pelas próprias solicitadas e 21 por pessoas laicas,
em sua maioria homens, entre os quais encontra-se o único familiar envolvido.
Mesmo nesses casos, a ação de outro confessor pode se fazer sentir. Ao denun-
ciar, em 1746, no Piauí, o Pe. Valentim Tavares de Lima de haver solicitado Joana
de Souza, Francisco Félix Xavier explica que a solicitação ocorrera havia dois
anos e que não denunciara antes por inadvertência, até que “dando conta” ao
seu confessor, soube da obrigação de fazê-lo8.
Os principais agentes da caça aos solicitantes, portanto, foram os próprios
confessores, estimulados pelos bispos por meio de suas cartas pastorais9. Por ve-
zes, esses confessores, através de perguntas específicas, conseguiam desencavar
solicitações ocorridas muitos anos atrás, pois para muitas mulheres, a solicita-
ção, por não constituírem uma falta sua e sim do clérigo, não precisava ser
espontaneamente mencionada em confissão. Das 65 denúncias que fornecem
essa informação, 15 foram feitas menos de um ano após a solicitação; 21 entre um
e quatro anos; 12 entre cinco e nove anos; nove entre nove e 12 anos e três entre
13 e 16 anos. Encontrei, ainda, três denúncias feitas 20 anos após o delito e mais
três ocorridas 30 anos depois. Em outras duas, as mulheres informam terem sido
solicitadas havia muito tempo, sem especificar quanto.
Entre os confessores que atuaram na perseguição aos solicitantes desta-
cam-se os missionários. As missões proporcionavam às mulheres a oportunidade
de confessar com outro sacerdote que não o pároco ou capelão que as havia so-
licitado. A denúncia que permitiu ao Santo Ofício recuperar a pista de Pe.
Francisco de Santa Tereza e Paiva, escondido em São João do Carahy, no Rio de
Janeiro, após ter fugido do degredo, foi encaminhada por um missionário. E o
curioso é que ele a encaminhou ad cautelam, por não saber ao certo se o ocorrido

8
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Caderno dos solicitantes nº 26, fl. 119.
9
Analisando um universo de 120 cartas pastorais do bispado do Rio de janeiro, Fernando Tor-
res Lodoño concluiu que a formação e moralização do clero e a difusão dos sacramentos
constituíram a principal preocupação dos bispos na primeira metade do século XVIII.
Fernando Torres Lodoño, “El concubinato y la Iglesia en el Brasil Colonial”, Estudos
CEDHAL/USP 2 (1988). É preciso lembrar que, até 1745, o bispado do Rio de Janeiro incluía as
terras mineiras e paulistas.
[127]
configurava ou não solicitação, pois, ao confessar Margarida da Costa, o padre
lhe dissera apenas que fosse a sua casa buscar uma esmola e lá chegando, não a
quis entregar sem que a mulher se submetesse aos seus desejos. Pondera, então,
o missionário ter sido possível que Pe. Francisco não tivesse essa intenção torpe
no confessionário, quando ofereceu a esmola, só despertando para a luxúria
quando se viu a sós com a mulher, dúvida que certamente não teria se conhe-
cesse a vida pregressa do solicitante.

Um caso exemplar
A personalidade explosiva de Pe. Francisco fica patente pela agressão à Iza-
bel Botelha, em maio de 1735. Na vila de Sampaio de Gouveia, Bispado da Guarda,
onde era pároco, o acontecimento, apesar de não ser inesperado, considerando-
se os maus bofes do sacerdote, causou escândalo por sua extrema violência. Aga-
chada, a moça lavava roupas na ribeira que cortava o povoado e, distraída, não
viu o vulto negro que se aproximava, trazendo na mão um porrete levantado em
atitude ameaçadora. Na verdade, mal pode ouvir as palavras proferidas em altos
brados na hora do golpe que a derrubou ao chão: “Esta é a raiz que eu dei a você”!
Desacordada, Izabel foi socorrida por outras lavadeiras, que se indignaram ao
ver a enorme ferida que sangrava atrás de uma orelha, lhe ensopando roupas e
cabelos. O terrível agressor, furioso, não se contentara com o primeiro golpe. O
corpo de Izabel estava moído “com nódoas e pisaduras, pois foram bastantes as
pancadas e com força tal, que se ouviram longe do lugar donde se fazia o delito”.
Tamanha fúria acontecera quando caiu nos ouvidos do clérigo que Izabel o havia
denunciado ao Santo Ofício.
Tudo começara quando o padre dera a Izabel uma “raiz retorcida de cor
parda”, recomendando que tocasse com ela certo moço, de quem estava grávida,
e com quem queria se casar. As virtudes mágicas do toque de certos objetos fa-
ziam parte do vasto arsenal dos sortilégios amorosos do mundo ibérico. A raiz
fora entregue por uma menina com o seguinte recado: se não fizesse efeito é
porque não tinha fé. Precavido, Pe. Francisco também oferecera abortivos à
moça, no caso de a raiz não funcionar. Ao que tudo indica, o padre e a moça, que
assim como ele ostentava no povoado fama de mau procedimento, mantinham
uma relação de cumplicidade, interrompida com a denúncia.
A onda de murmurações que teve início a partir das inconfidências de Iza-
bel, chegou aos ouvidos do prior da igreja de Sampaio, que viu no caso uma
oportunidade de mostrar serviços ao Santo Ofício, enviando várias denúncias ao
[128]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

Tribunal de Coimbra e chamando testemunhas para depor “na forma do Edito”,


como ele mesmo explicou. A movimentação do prior indica que procurava talvez
conseguir o cargo de comissário do Santo Ofício em Sampaio, com todas as van-
tagens e privilégios que o acompanhavam. Para completar suas informações,
acrescentava, com uma pitada de maldade, que Pe. Francisco tinha “alguma nota
no sangue”, pois alguns de seus ascendentes tinham fama de serem
cristãos-novos.
Além das cartas do prior, os inquisidores de Coimbra receberam uma do
comissário do Santo Ofício de Nabainhos, distante meia légua de Sampaio, tam-
bém com acusações contra o padre. Em vista de tantas denúncias, em 20 de
março de 1735, o comissário recebia instruções para a realização dos inquéritos
de praxe, o que procurava fazer do modo mais sigiloso possível. Mas, como ele
próprio reclamava, em Sampaio, todo o povo sabia que o prior tinha denunciado
Pe. Francisco. O fato era divulgado inclusive pelo próprio acusado que, em alto
e bom som, queixava-se do delator para quem quisesse ouvir e, exaltado, andara
a gritar pelas ruas que todas as chamadas a depor “eram umas putas”. Além disso,
procurara o prior para queixar-se de que ele estava se deixando levar por seus
inimigos. A guerra estava declarada, Pe. Francisco exibia seu ódio pelas ruas aos
gritos de que “fosse tudo pelos ares”, que já não se importava com mais nada,
talvez fiando-se na proteção das autoridades locais. Tanto que, durante os in-
quéritos sobre o crédito das testemunhas, o comissário observou que alguns
depoentes pareciam inclinados ao acusado, fato que atribuiu às boas relações do
pároco com os “principais” daquele lugar.
Com o intuito de atenuar suas culpas e dar a sua versão dos fatos, Pe. Fran-
cisco se apresentou à Mesa do Santo Ofício, em 11 de maio, para uma
autodenúncia. Tem início, então, a série de desculpas esfarrapadas com que pro-
curaria se esquivar das acusações. Quanto às perguntas sobre a “purgação
menstrua” que fazia às penitentes, explicou ter ouvido “que elas cometiam culpa
pelo grave perigo a que se expunham ao se pentearem e molharem os pés na-
quele estado”. Sobre o convite que fizera à D. Maria Thomásia de Melo e à Izabel
Botelha para irem à sua casa, disse que fora “sem ânimo algum mau” e que Izabel
assim o interpretara “por ser mal procedida”. Que dissera à sua parenta Mariana
“que ninguém lhe queria mais do que ele” porque queria a sua salvação. Que, ao
revelar a gravidez de Euzébia, não advertira estar quebrando o sigilo confessio-
nal. Que, após a confissão de Catherina, “lhe meteu uma mão nos peitos tão
transitoriamente que nem por espaço de uma Ave-Maria se dilatou, sem ânimo

[129]
bom, nem mau, e só por ser coisa indiferente”. Que, por galhofa, dera à Izabel
uma raiz de gengibre, para que tocasse o moço com quem queria casar. Que
procurara socorrer Ângela, moça solteira, de “certa vexação que padecia”, cha-
mando-a à sua casa, onde pretendia remediá-la, “sem ânimo mal algum”. E,
finalizando, declarara saber que as referidas pessoas levaram a mal as coisas que
fizera e se conjuraram contra ele, indo denunciá-lo ao prior, e por isso resolvera
dar conta ao Santo Ofício. Não revelara, obviamente, que já sabia das diligências
do comissário.
Quatro meses depois da primeira denúncia, o promotor requereu à Mesa
a prisão do pároco como solicitante, antes mesmo de ocorrerem os inquéritos de
praxe sobre a fama do acusado, levando em conta, além dos indícios, a informa-
ção do comissário de que Pe. Francisco era de “má opinião” e vida lasciva. Aos
21 dias do mês de julho, o padre foi encontrado escondido na casa de um parente,
e preso. O inquérito sobre a “opinião do delato”, realizado em agosto, confirmava
o que havia dito o comissário.
Em 3 de setembro de 1735, na audiência da manhã, o inquisidor mandou
vir à sua presença o clérigo, para lhe tomar a confissão. O pouco tempo de prisão
já surtira seus efeitos. Pe. Francisco desistira das fanfarronices e resolvera modi-
ficar a primeira versão que dera aos fatos, quando se apresentara à Mesa.
Reconheceu que “as cousas que então declarou as fizera sem ânimo mau, a ver-
dade era que, muitas delas, obrara com malícia”, mas tudo inspirado por seu
ânimo lascivo, fragilidade e miséria, e nunca “por sentir mal” da santa fé católica
nem do sacramento da penitência. Quanto aos abortivos, disse que oferecera à
Ângela pó de artemísia, por ser bom para as dores no estômago de que ela pade-
cia. E quanto à raiz, insistia que era apenas gengibre, e que a dera por zombaria.
À tarde, pediu para ser novamente ouvido. Como dera a tal raiz à Izabel,
se persuadira que ela o denunciara por isso, e daí a referência ao fato na hora das
pancadas, que haviam sido motivadas por más palavras que a moça havia profe-
rido contra ele e não por causa da denúncia, da qual nem se lembrara na hora
do atentado.
Após o exame de Genealogia, em nova sessão de inquirição, Pe. Francisco
foi acusado de, antes de se apresentar à Mesa, ter procurado um notário e um
deputado do tribunal, com quem tentara “palear e encobrir” seus erros, o que
demonstra a rede de relações do padre entre as esferas de poder, já observada
pelo comissário de Nabainhos. Pe. Francisco ainda tentou desculpar-se, mas aca-
bou reconhecendo que procurara essas pessoas por “malícia”, para inocentar-se.
[130]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

Pacientemente, o inquisidor passou a desmascarar as mentiras do réu. No


caso de Ângela, perguntou: “Como podia ... dizer sem malícia, nem ânimo de
solicitação a uma mulher tão moça com quem não tinha conhecimento algum,
que fosse à sua casa... e logo um homem que além de ser moço é sumamente
infamado de lascivo”? O padre manteve a versão do pó de artemísia, mas reco-
nheceu “que obrara de mau ânimo”. Sobre o caso de Catherina, o inquisidor
perguntou “se entendeu em algum tempo que o meter as mãos aos peitos a uma
mulher não era ação pecaminosa, e podia reputar-se por indiferente”? Sentindo-
se vencido, o padre reconheceu sua malícia, e confessou também que chamara
D. Maria Thomásia e Izabel à sua casa com fins lascivos.
Feitos os exames In genere e In specie, o resultado foi fulminante: diante
das “diligências e subterfúgios de que usou para encobrir a sua malícia”, presu-
mia-se, por direito, que o réu “sentia-se mal” da santa fé católica, ainda que
reafirmasse ter agido apenas por “fragilidade do corpo”. Em 13 de outubro de
1735, menos de três meses após sua prisão, estavam concluídos os autos que con-
denavam o réu como solicitante.
Passou, então, o inquisidor a tratar do caso das pancadas em Izabel: não
sabia o réu ser esse crime da competência do Santo Ofício? O temperamento
arrogante do padre levou-o a desafiar o inquisidor, ao responder, ironicamente,
nunca ter “ouvido que o crime de dar pancadas pertencia ao Santo Ofício”. Foi a
gota d’água, o inquisidor explodiu: era óbvio que o réu bem sabia a diferença
entre “dar pancadas” pura e simplesmente e agredir uma testemunha do Tribu-
nal. Pe. Francisco ainda tentou se esquivar, mas estava perdido. Em 8 de maio
de 1736, o promotor requeria abertura de novo processo. Feitos os inquéritos de
praxe, em 21 de maio de 1737, Pe. Francisco era condenado por haver tentado
impedir o justo e reto procedimento do Santo Ofício.
Os delitos do réu dividiram os inquisidores. Como solicitante, deveria ou-
vir sua sentença em sala e, por agredir uma testemunha, deveria ir a auto da fé
público. Consultado, o Conselho Geral optou por esta última forma: Pe. Fran-
cisco desfilaria suas faltas em auto da fé público, onde receberia as penas
regimentais destinadas aos solicitantes e, por sua agressão à Izabel, seria conde-
nado a cinco anos a serviço das galés d’El Rei.
Seis meses depois, as condições de saúde do réu atestavam os horrores so-
fridos por esses homens em meio aos tormentos do mar, dos ferros e dos açoites.

[131]
Pe. Francisco tivera icterícia e costumava lançar sangue pela boca, uma febre
maligna lhe deixara um “estupor” na parte direita do corpo, acometendo braço
e perna de violentos tremores. Tinha ainda problemas nos rins e grande dificul-
dade de urinar. Esses padecimentos, atestados pelos médicos do Tribunal, foram
alegados num pedido de comutação de pena.
Convencidos de que o réu não podia mais trabalhar, os inquisidores prati-
caram sua misericórdia. Em 23 de abril de 1738, no Algarve, o tesoureiro do Santo
Ofício, recebia em sua casa um homem aparentando uns quarenta anos de idade.
Vestia casaca preta e capote pardo, o cabelo castanho escuro lhe escorria pelo
rosto trigueiro, tinha o nariz afilado e os olhos azuis. Passou-lhe então a certidão
de cumprimento da pena, ritual que deveria repetir-se anualmente.
O degredo de Pe. Francisco só deveria terminar em meados de 1742, mas
ele não era homem de se conformar com a sorte. Dois anos antes do fim da pena,
fugiu para o Rio de Janeiro, conseguindo do Bispo D. João da Cruz a capelania
de Nossa Senhora da Glória, extramuros da cidade, onde, apesar de suspenso das
ordens e proibido de confessar, permaneceu durante dois anos dizendo missas e
ministrando a penitência. Transferiu-se, então, para a capela da Fortaleza de
Santa Cruz da Barra, na entrada da Baía de Guanabara, aí permanecendo por um
ano, até mudar-se para a freguesia de São João do Carahy (hoje bairro de Icaraí,
na cidade de Niterói) contígua à dita fortaleza, onde, na quaresma de 1747, auxi-
liando como coadjutor o pároco nas confissões da desobriga, solicitou
Margarida, mulher do pescador Antônio Nunes de Mendonça.
Nesse meio tempo, o Tribunal de Coimbra havia recebido denúncias de
solicitação contra Pe. Francisco, datadas de 1731 e 1732, e encontradas entre os
papéis do vigário da Vila de São Vicente, na Beira Baixa, que falecera antes de
encaminhá-las. Em maio de 1736, foram feitos os primeiros inquéritos. Entre as
quatro mulheres solicitadas, chama a atenção o depoimento de Tereza de Jesus,
que se declarara inclinada pelo padre a ponto de lhe dizer em meio à confissão
“que era sujeitinho muito do seu gosto, e que o namorava muito mais que sua
irmã”. Mas, ao chegarem à Mesa os resultados desses inquéritos, o padre já havia
abandonado o degredo no Algarve e foi tido como sumido.
Assim, o dossiê do padre crescia paralelamente à desesperança em encon-
trá-lo, até chegar ao Tribunal de Lisboa, em 1748, a carta que desvendaria o

[132]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

mistério: Pe. Francisco estava bem vivo e continuava a fazer das suas no Brasil,
como denunciava o franciscano Frei Agostinho de Jesus.
Juntamente com as instruções para averiguar a denúncia de Margarida, o
comissário recebera ordem, datada de 12 de agosto de 1748, para prender Pe.
Francisco, com base nas inquirições realizadas em 1736 na Vila de São Vicente.
Ao mesmo tempo, novas denúncias surgiam sobre o comportamento lascivo do
sacerdote na Freguesia de Itaboraí, onde solicitara quatro mulheres, entre moças
de boa qualidade social e escravas.
À Maria, preta angola, solteira, escrava, que se acusava de pecados no sexto
mandamento cometidos com outros pretos, Pe. Francisco retrucara: “se os tais
pecados fossem cometidos com brancos ainda assim: porém com pretos era o
diabo”. E, ao ouvi-la dizer que não queria pecar contra Deus pois acabara de se
confessar, afirmara que “Deus estava no céu, e ele estava como homem sem em-
bargo de ser padre”, puxando-a para a cama onde pecaram carnalmente. Como
recompensa deu-lhe 2 vinténs e um pedaço de pão. Valiam pouco as escravas na
tabela de Pe. Francisco, menos que brancas pobres e infinitamente menos que
as filhas das boas famílias da terra, a quem também costumava oferecer dinheiro
e presentes.
Em 24 de dezembro de 1748, o réu era entregue por dois familiares do
Santo Ofício à custódia do Colégio dos Padres da Companhia de Jesus no Rio de
Janeiro, onde deveria ficar preso, aguardando a partida da frota que o levaria aos
estaus de Lisboa. Mas, Pe. Francisco conseguiu convencer um dos jesuítas a for-
necer-lhe uma verruma, um vidrinho de água forte, isto é, ácido nítrico, e uma
lima, com o que conseguiu dobrar as grades de ferro da janela da cela e cortar a
tranca que atravessava a portinhola que a fechava, safando-se da prisão. Só de-
ram por sua falta quando foram levar comida aos presos e, então, Pe. Francisco
já estava longe.
Ao saber da fuga, o comissário do Rio de Janeiro deu início às buscas para
prendê-lo. O padre foi encontrado na região sul, na Nova Colônia do Sacra-
mento, de onde pretendia passar a Buenos Aires. Resolveu então o comissário
mandá-lo à Bahia, para daí seguir para Lisboa, aproveitando a nau que sairia da-
quele porto.
Em 7 de novembro de 1749, Pe. Francisco via-se novamente face a face com
a Inquisição. Desse terceiro processo, o primeiro depoimento data de 13 de

[133]
novembro de 1750, um ano após seu encarceramento. Nos inquéritos é rememo-
rada toda a sua história, do Algarve a Itaboraí. Pe. Francisco foi logo
reconhecendo seus ilícitos propósitos, mencionando também as duas cópulas
carnais cometidas com a mulher do pescador e com a escrava. Contou da fuga e
entregou o nome de seu cúmplice, que aliás, já enviara à Mesa a sua confissão.
Finalizou seu depoimento, como sempre, dizendo que tudo obrara por fragili-
dade e miséria e não por sentir mal da santa fé católica. Enfim, não tentou
embromar os inquisidores, mas confessou secamente, sem dar mostras de arre-
pendimento. Parece que, havia tempos, resolvera o conflito entre o voto de
castidade e a luxúria, separando em si, como ele próprio afirmara, o homem e o
sacerdote.
O processo correu rápido. Em 20 de novembro de 1750, uma semana após
seu primeiro depoimento, Pe. Francisco ouvia sua sentença na sala de despachos
do Santo Ofício. Além das penas de costume para a solicitação, seria degredado
por 10 anos para as galés de Sua Majestade.
Por cerca de dois anos o padre suportara de novo o terror das galés. No
início de fevereiro de 1753, apelava mais uma vez à misericórdia do Tribunal, em
razão das muitas moléstias de que padecia, atestadas pelo médico. Sofria de “fe-
bre catarral com sintomas graves, por cuja causa fora muitas vezes sangrado e
com uma inflamação e decúbito em um olho”, que corria o risco de ficar cego. A
Mesa, então, lhe concedeu “dois meses de licença para melhor se poder curar
fora da prisão e sob fiança”.
Em julho do mesmo ano, o padre fez nova petição alegando várias enfer-
midades, atestadas pelo cirurgião da enfermaria das galés. Sem obter resultado,
fez outra apelação em janeiro do ano seguinte. Estava cego, surdo, com fístula
aberta na fronte, tinha o lado direito do corpo paralisado, padecia dores intensas.
Pedia que lhe perdoassem ou comutassem a pena, e sugeria a seus algozes que o
deixassem livre para esmolar durante o dia, ainda que à noite tivesse que se re-
colher às galés.
Tamanha desgraça amolecera o coração dos inquisidores. Em 4 de abril de
1754, o Tesoureiro-Mor da Santa Sé da cidade de Faro, no Algarve, abria a porta
de sua casa a um senhor de estatura mediana, seco de corpo e cabelo acasta-
nhado já embranquecendo. Com 55 anos de idade, cego e alquebrado, nem de
longe lembrava o homem arrogante e destemido que fora.

[134]
LASCÍVIA TRANSATLÂNTICA. DO TRIBUNAL DE COIMBRA AO TRIBUNAL DE LISBOA
Lana Lage da Gama Lima

Quase três anos depois do início desse segundo degredo, em 24 de setem-


bro de 1756, Pe. Francisco apelava novamente ao Santo Ofício. Despojado de suas
ordens, não tinha como sobreviver, os “ares úmidos e austrais que predomina-
vam no Algarve” agravavam a pleuris que tivera. Pedia que lhe perdoassem o
tempo que faltava para o cumprimento da pena e, para reforçar o apelo, apre-
sentava carta do bispo local intercedendo em seu favor, o que mostra que ainda
conseguia obter benesses das autoridades da terra. Finalmente, em primeiro de
setembro de 1758, os inquisidores de Lisboa exibiam sua misericórdia, conce-
dendo perdão a um réu que muito trabalho dera ao Santo Ofício, mas que agora
– vergado sob o peso dos anos e de grandes padecimentos – não oferecia mais
perigo.

[135]
O início da rede de familiares do Santo Ofício por-
tuguês: elementos para o seu estudo 1

Fernanda Olival

Introdução
Jaime Contreras definiu o familiar como “un intermediario entre el Tribu-
nal y el reo. Su labor es de pesquisa. Detecta la herejía, pero no la juzga”2. Os
agentes locais do Santo Ofício, como os familiares, revelaram-se vitais na im-
plantação do tribunal no território, na longa duração; contribuíram para a sua
eficácia na vigilância da ortodoxia e para assegurar a longevidade da instituição.
Fazer um exercício contra factual permitiria dimensionar o seu peso e este
– seguramente - terá sido muito significativo. No entanto, não é isso que aqui
será estudado. Far-se-á tão só um ponto de situação sobre o início da rede por-
tuguesa de familiares, nos três tribunais do Reino: Lisboa, Évora e Coimbra. Com
a investigação disponível, que se conhece sobre a criação dos primeiros familia-
res em Portugal? Quando começou esta rede? Que tipo de pessoas integrava?
Em que direções se expandiu e por que motivos?
A bibliografia sobre familiares é abundante, tanto para a Inquisição caste-
lhana, como para a portuguesa; revisitam-se estes tópicos para os aprofundar.
Considera-se que conhecer o arranque da rede é essencial para perspetivar o seu
perfil sociológico e o modo como se moldou o seu papel na instituição.
Para responder às questões enunciadas cruzar-se-ão aproximações quali-
tativas com quantitativas, com recurso a uma documentação muito variada. Por

1
Trabalho desenvolvido no âmbito dos seguintes projetos, FCT – Portugal: UIDB/00057/2020;
PTDC/HIS-HIS/118227/2010.
2
Jaime Contreras, “La infraestructura social de la Inquisición: comisarios y familiares”, in In-
quisición y mentalidad inquisitorial, ed. Ángel Alcalá (Barcelona: Ariel, 1984), 128.
vezes, optar-se-á pela comparação com a Inquisição castelhana, com uma função
heurística, analítica e até como meio para identificar especificidades da portu-
guesa3. Com efeito, as duas instituições eram muito semelhantes e a portuguesa
inspirava-se muito na sua congénere do outro lado da fronteira.
No entanto, os resultados aqui apontados – convém advertir – devem ser
entendidos como não definitivos, pois a documentação das fases iniciais do
Santo Ofício não é muita e parte dela poderá estar em maços e códices ainda
pouco desbravados. Por fim, neste texto emprega-se a palavra “rede” sem com
isso querer indiciar que haja ligações entre os indivíduos aqui tratados; designa
apenas elementos criados por uma mesma entidade e com funções e papéis idên-
ticos, em diferentes pontos do território.

Na génese do qualificativo “familiar”


Os familiares eram servidores laicos, que auxiliavam a Inquisição. Muitas
outras instituições, aliás, dispunham deste género de ajudantes, assim intitula-
dos, em documentação que sobreviveu até aos dias de hoje. Numa breve
sondagem, citem-se os colégios maiores4, conventos tão diversos como o de To-
mar, pelo menos cerca de 1554 e nos anos imediatamente subsequentes5, ou o
Mosteiro de S. Bento de Cástris, em Évora. O mesmo ocorria nas grandes casas
senhoriais, de modo evidente a partir do final da Idade Média.
Importa fazer notar que, em matéria de casas, durante o Antigo Regime se
distinguia com clareza a parentela, ou seja, os indivíduos biologicamente con-
sanguíneos e de vínculo por afinidade, da família. Num catecismo de 1504 ainda
se recomendava que em caso de extrema miséria “avemos primeiro de soccorrer,
e sendo a miseria igual, proveeremos aos padres e parentes mais chegados e de-
pois aa familia”6. Esta última vinha em segundo lugar e abarcava os criados, no
sentido do conjunto dos dependentes. Os grandes senhores de casas, frequente-
mente referiam-se a estes indicando que eram os “seus criados”, e em alguns
casos como aos “seus familiares”, como fez o Infante D. Henrique, numa súplica

3
Heinz-Gerhard Haupt, “Comparative History”, in International Encyclopedia of the Social &
Behavioral Sciences, vol. 4 (Amsterdam: Elsevier, 2001), 2397-2403.
4
Mário Brandão, O Colégio de S. Paulo: colectânea de documentos, Supl. ao vol. 1 ([Coimbra]:
[s.n.], 1973), cap. 3, 6, 68, 87, passim.
5
Lisboa, ANTT, Ordem de Cristo, Convento de Tomar, liv. 246, fl. 137v; liv. 247, fl. 6v.
6
Elsa Maria Branco da Silva, ed., O Cathecismo Pequeno de Dom Diogo Ortiz Bispo de Viseu
(Lisboa: Colibri, 2001), cap. 23, liv. 2.
[138]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

destinada ao papado, em 14527. Assim, em muitos destes contextos ser familiar


significava que se fazia parte da clientela de alguém, que se coabitaria ou não na
mesma casa, dependendo em grau muito variável de quem a ela superintendia.
Aliás, esta definição, associada a casa, também está presente no Repertorium In-
quisitorum prauitatis haereticae, publicado em Veneza, em 15758. A noção tinha,
assim, fronteiras alargadas.
Em 1655, o jesuíta Bento Pereira (1606-1681) ainda registava como uma
frase portuguesa recorrente: “Fazerse familiar de alguem. In alicujus familiarita-
tem venire, intrare, se dare, se applicare”9. Como se pode ver pela tradução latina,
o sentido da expressão não era fingir-se da parentela de alguém, mas sim entrar
para o número de dependentes ou coadjuvantes dessa pessoa.
Outro contexto: o Colégio de S. Paulo, em Coimbra, tinha pelo menos, em
1559-1566, colegiais, familiares (estes com o estatuto de servidores), e ainda ou-
tros serviçais domésticos (varredor, moço de cozinha, barbeiro, padeira, etc) e
eventualmente terá adquirido pelo menos um escravo, para ser cozinheiro10. É
de assinalar que os familiares invocados eram estudantes universitários mais ve-
lhos do que o padrão dominante (pelos estatutos deviam ter pelo menos 27
anos), que deviam ser selecionados pela sua ciência; ocupavam-se de tarefas não
plenamente subalternas, como ser despenseiro, comprador, encarregado do re-
feitório, sacristão da capela, administrador da cozinha; deviam, contudo, servir
à mesa, descalçar os colegiais e na rua eram obrigados a cumprimentar os cole-
giais (“tirar o barrete”), mas estes últimos seriam punidos se fizessem o mesmo
a eles11. A desigualdade de estatuto estava claramente demarcada. Nas horas li-
vres, os familiares estudavam. A chegada de quatro porcionistas ao colégio, em
1563, implicou a exigência de aumentar mais um familiar ao número existente
porque os novos hóspedes elevavam o volume de trabalho a enfrentar. Tais

7
Monumenta Henricina, vol. 11 (Coimbra: Com. Exec. Comem. Morte Infante D. Henrique,
1970), 156-157.
8
Q. Mandosio; P. Vendramini, Repertorium Inquisitorum prauitatis haereticae: in quo omnia,
quae ad haeresum cognitionem ac S. Inquisitionis forum pertinent, continentur (Venetijs: apud
Damianum Zenarum, 1575), s.v. «Familiaris».
9
Bento Pereira, Florilegio dos modos de fallar, e adagios da lingoa portuguesa: dividido em duas
partes : em a primeira das quaes se poem pella ordem do alphabeto as frases portuguesas, a que
correspondem as mais puras, & elegantes latinas : na segunda se poem os principaes adagios
portugueses, com seu latim prouerbial correspondente : pera se aiuntar a Prosodia, & Thesouro
portugues, como appendiz, ou complemento (Lisboa: Por Paulo Craesbeeck, & à sua custa,
1655), s.v. familiaridade.
10
Brandão, O Colégio de S. Paulo, 174-179.
11
Ibid., 184, 214–215, 227.
[139]
familiares não seriam criados de nenhum colegial ou porcionista em particular,
embora o fossem da comunidade12. Ou seja, os familiares eram efetivos servido-
res, mas não exatamente da base da pirâmide de ocupações. Em 1567, o regente
D. Henrique mandava dar de porção diária, nos dias de carne, 2 arráteis a cada
colegial e 1,5 a cada familiar13. Esta hierarquia também ajudava a definir o seu
lugar na estrutura institucional, embora se desconheça o montante atribuído aos
restantes serviçais e se o tinham desta forma.
Em 1588, em conventos, como o feminino eborense de S. Bento de Cástris,
é possível encontrar familiares no papel de procuradores das monjas e com perfis
sócio-ocupacionais ainda mais baixos, como hortelão ou maioral das carretas14.
Estes últimos serviam de testemunhas em escrituras. Numa sondagem comple-
tamente aleatória, perto do final do século XVIII, em diversos instrumentos
notariais de 1783, o Convento de Santa Clara de Évora ainda recorria a um fami-
liar para servir de testemunha dos acordos negociados e estabelecidos15. Pela
onomástica e pelo modo como um deles, selecionado ao acaso e de nome João
Joaquim, assinava não seria pessoa muito letrada, o que não significava que não
fosse experiente. Nos registos de 1783 do tabelião eborense Faustino Xavier Rosa,
a palavra “familiar” também aparecia a qualificar testemunhas de diversas figu-
ras das elites nobiliárquicas da terra16. Seriam criados. É bem possível que com o
caráter socialmente desconsiderado que adquirira o designativo “criado” no final
do Antigo Regime17, familiar conquistasse algum terreno ou pelo menos manti-
vesse o alcançado. Seria menos vexatório.
Um dado parece indubitável: com os referentes que temos vindo a analisar,
ser familiar implicava obrigações, trabalho em favor da instituição. Como se
verá, esta ideia também estaria presente nos familiares do Santo Ofício.

12
Sebastián de Covarrubias Orozco, Tesoro de la lengua castellana, o española (Madrid: Luis
Sanchez, 1611), s.v. familiar.
13
Brandão, O Colégio de S. Paulo, 244-245.
14
Évora, ADE, Notarial de Évora, liv. 263, fls. 140-141v. Agradeço à Prof.ª Doutora Antónia
Conde esta referência.
15
Évora, ADE, Notarial de Évora, liv. 1443, fls. 34v-35, 35v-36, 38-39, 43-44, 46-46v.
16
Joaquim José, familiar de D. Luísa Jacinta de Mira Vidigal – Évora, ADE, Notarial de Évora,
liv. 1443, fl. 48v-49; António José e João de Deus, familiares de D. Francisca Antónia de Aze-
redo Corte Real – Évora, ADE, Notarial de Évora, liv. 1443, fls. 49-50.
17
Nuno Gonçalo Monteiro, “A casa dos Senhores de Gouveia, Condes de Redondo e Marqueses
de Borba na primeira dinastia de Bragança (1640-1834): algumas notas”, in Palácio dos Condes
de Redondo, coord. Miguel Figueira de Faria, Nuno Gonçalo Monteiro e José de Monterroso
Teixeira (Lisboa: Scribe, 2022), 104-105.
[140]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

Para além da genealogia indicada, a introdução dos familiares também de-


correu da experiência da Inquisição castelhana e, antes disso, da Inquisição
medieval que existiu nalgumas regiões da Europa, incluindo as parcelas leste da
Península Ibérica. Juan Antonio Llorente (1756-1823) refere que ao ser instituída
a Inquisição em França, no início do séc. XIII, fora criada uma espécie de ordem
de cavalaria chamada, milícia de Cristo, cujos membros traziam consigo armas
para defender os inquisidores, quando necessário. Nas palavras daquele histo-
riador, “Los inquisidores de Francia, Italia, Alemania y demas partes llevaban
siempre consigo algunos de esta órden armados, de á pie y de á caballo, y los
daban á conocer como individuos de la familia de la Inquisición; y de aquí les
vino el nombre de familiares del Santo Oficio; aunque despues de canonizado el
inquisidor S. Pedro de Verona, religioso dominico del siglo XIII, comenzaron á
nombrarse congregantes de S. Pedro mártir”18. Estes auxiliares também teriam
existido nas unidades políticas da Península Ibérica onde houve Inquisição na
Idade Média. Como nestas regiões os Dominicanos controlavam a instituição,
recrutavam estas clientelas nas suas ordens terceiras.
De acordo o manual de Nicolau Eimeric, escrito cerca de 1376, glosado e
acrescentado pelo canonista do séc. XVI, Francisco Peña, desde o Concílio de
Viena (cerca de 1310), e com confirmação de João XXII, em 1321, os inquisidores
tinham direito a uma força de proteção. Esta também devia dar segurança aos
oficiais da instituição e servia para perseguir e prender os hereges. Tais agentes
podiam andar armados, de dia e de noite, não obstante qualquer regulamenta-
ção em sentido contrário e cabia aos inquisidores zelar para que não
exorbitassem os seus poderes. Como se explicava no referido manual, estes ele-
mentos eram designados pelos italianos “crosesignati” e pelos espanhóis
“familiares”19. O vínculo era muito pessoal, clientelar (cliente-vassalo a defen-
der), com um inquisidor em particular20. Em Aragão, os familiares chegaram
mesmo a ser referidos como “comensais de um inquisidor”21.

18
José Antonio Llorente, Historia crítica de la Inquisición de España, vol. 2 (Barcelona: [s. n.],
1835), 86.
19
N. Eimeric, Francisco Peña, El manual de los inquisidores, 1a ed. en la colección Atajos (Bar-
celona: Muchnik, 1996), 235-236.
20
Jaime Contreras, “Clientelismo y parentela en los familiares del Santo Oficio”, in Les paren-
tés fictives en Espagne (XVIe-XVII siècles), ed. Augustin Redondo (Paris: Université de la
Sorbonne Nouvelle, 1988), 52-53.
21
Ibid., 55, 59.
[141]
No entanto, servir de “seguranças” dos inquisidores não foi a função dos
primeiros familiares das Inquisições Modernas, tanto mais que estes agentes es-
tavam adstritos não às pessoas dos inquisidores em concreto, mas aos tribunais.
O seu papel seria, no longo prazo, outro: exercia-se no plano informacional, su-
perando as distâncias e sem intervir no funcionamento interno dos tribunais22,
o que representava uma vantagem para o Santo Ofício. Para esta instituição, o
controlo da informação e o domínio das distâncias eram cruciais e estas seriam
as principais funções dos familiares, a par com os comissários, que seriam cria-
dos um pouco mais tarde. No caso português, só a partir da década de 1580, com
os dados hoje disponíveis.
Em suma, para perspetivar o estatuto e o papel dos familiares da Inquisição
portuguesa, importa ter presente todo este legado histórico-administrativo.
Contribuiu para dar contornos ao seu papel social e institucional, mesmo num
território como o português, onde não houve Inquisição na Idade Média.

Os primeiros familiares
Comece-se por analisar os decénios iniciais ou a primeira centúria dos fa-
miliares na Inquisição castelhana-aragonesa da Época Moderna, porque ali
foram criados muito antes de existir Inquisição em Portugal.
Os primeiros familiares das Inquisições de Castela e Aragão seriam nome-
ados sem grande controlo e sem prestar grande atenção ao perfil dos
contemplados. Por vezes, teria sido suficiente a assinatura de um só inquisidor
e por isso o número de efetivos cresceu rapidamente, gerando protestos, desig-
nadamente das cortes; havia muitos abusos pela forma como atuavam23. As
tensões sobre o estatuto jurídico destes elementos do Santo Ofício, designada-
mente sobre a isenção de foro, já se discutiam na primeira década do séc. XVI24.
Nos reinos aragoneses, as Cortes de Monzón de 1510-1512 tentaram limitar
o número de familiares, mas o problema também estava presente em Castela.

22
Juan Meseguer Fernández, “El período fundacional (1478-1517)”, in Historia de la Inquisición
en España y América, vol. 1 (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos; Centro de Estudios In-
quisitoriales, 1984), 378-379.
23
Roberto López Vela, “Sociología de los cuadros inquisitoriales”, in Historia de la Inquisición
en España y América, vol. 2 (Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos; Centro de Estudios
Inquisitoriales, 1993), 806.
24
Jaime Contreras, El Santo Oficio de la Inquisición en Galicia: poder, sociedad y cultura (Ma-
drid: Akal, 1982), 68.
[142]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

Entre 1510 e 1514 registaram-se tentativas para circunscrever o número destes


agentes. Além de fixar quantitativos por localidade, datam de 1514 as primeiras
diretivas do Consejo de la Inquisición para estabelecer mais dois itens: um perfil
social (cristãos-velhos, casados, tranquilos e pacíficos); impor a posse de um do-
cumento subscrito por um coletivo de inquisidores e emitido por um secretário
do Santo Ofício, a viabilizar o título de familiar. Além disso, era recomendado
que se desse conta de quem era nomeado às justiças seculares e apostava-se na
indigitação de pessoas dos grupos intermédios25.
Apesar das queixas das Cortes, o número excessivo de familiares manteve-
se nos vários tribunais da Inquisição sob a tutela dos Áustria castelhanos, em
toda a primeira metade do século XVI e continuou na segunda.
Em relação à Inquisição de Valência, desde 1551, e nos anos subsequentes,
houve muita insistência da parte da Suprema e até da realeza para circunscrever
o número de familiares a um determinado número, fixado por localidade. Houve
mesmo um acordo para o efeito, a chamada Concórdia de Valência de 1554, ne-
gociada com o Conselho de Aragão. Um ano antes, a Concórdia de Castela de
1553, feita com o Consejo de Castilla, tentara combater o número excessivo destes
agentes, ao mesmo tempo que estabelecera que os não registados e não apresen-
tados às autoridades seriam destituídos26. Tanto em 1560, como em 1573
recomendava-se que fossem casados, homens seculares modestos, pacíficos e
limpos27. Em 1566, porfiou-se na entrega de listas às autoridades seculares e os que
não tivessem ali o nome não podiam usufruir da imunidade. Em 1586, uma carta
acordada tentou que o número de efetivos não ultrapassasse os da concórdia.
Em Navarra, nas Cortes de Pamplona de 1566, seguiram-se também orien-
tações tendentes à redução dos familiares, conforme mais tarde se registou28.
Em síntese, a realidade castelhano-aragonesa e navarra do século XVI pa-
rece ser esta: a Suprema e a Coroa a querer reduzir o número de familiares, cuja
rede se formou ainda no século XV; os tribunais inquisitoriais, porque mais in-
seridos nas dinâmicas locais, a pouco cooperarem. Segundo, Lea “se puso de
manifiesto que los tribunales ni siquiera llevaban registros de los nombramien-
tos, pues en 1566 se les ordenó que hiciesen recuento de todas las comisiones

25
López Vela, “Sociología de los cuadros inquisitoriales”, 807.
26
Henry Charles Lea, Historia de la Inquisición española, vol. 2 (Madrid: Fundación Universi-
taria Española, 2020), 139.
27
Ibid., 139.
28
Novíssima recopilación de las leyes del Reino de Navarra (1735), t. 2, tít. XXXII, Lei III.
[143]
conferidas y formasen listas de ellas, advirtiendo que quien no estuviera incluido
no podría disfrutar del fuero”29. Jaime Contreras fez notar que até à década de
1550 e às Concórdias de 1553 e 1568, o familiar era essencialmente um “cliente-
familiar del Inquisidor”, embora este modelo coexistisse com familiares reconhe-
cidos pela Suprema. Nesta fase os familiares ainda não constituíam “os olhos e
ouvidos” do Inquisidor30. A mudança ocorreu em meados do séc. XVI, tendo em
vista criar um tipo ideal de familiar mais funcional, mais apto a servir a institui-
ção e os seus comissários, e mais controlável pela realeza.
Não foi por acaso que em 1567, quando foi outorgada a Nueva Recopilación,
a Lei XVIII do Lº 4, tít. I (vol. I), ao tratar das questões da isenção de foro, inclu-
íram-se os parâmetros acima referidos dos familiares, na Coroa de Castela. Eram
eles: número máximo por localidade (variava com o estatuto da terra e o volume
da população), perfil social assente nos grupos intermédios (“hombres llanos, i
pacificos, i quales conviene para Ministros de oficio tan santo”) e a necessidade
de entregar a lista dos familiares às justiças seculares castelhanas. Era este o pa-
drão pretendido que se almejava que vingasse, para suscitar eficácia na vigilância
da heterodoxia e evitar a conflituosidade social.
A referência mais antiga a familiares, que se conhece hoje na Inquisição
Portuguesa, data de Outubro de 1561, e dizia respeito à Inquisição de Lisboa.
Num regimento da visitação das naus, publicado por Isaías da Rosa Pereira,
registou-se:
“10. Item dos familiares que houver no Santo Ofício da Inquisição se esco-
lherão os que forem necessários para saberem das naus e navios estrangeiros que
vierem de fora, como dito é. E um deles terá cuidado de saber das naus e navios
que vierem de Inglaterra e outro dos que vierem da Alemanha e Flandres, e outro
para os que vierem de França. E os tais familiares terão muito particular cuidado
tanto que os navios entrarem da Torre de Belém para dentro de o fazerem logo
saber aos inquisidores e assim à dita pessoa que houver de fazer as diligências
nas naus (…)”31. Note-se que eram dadas incumbências não a um, mas a três fa-
miliares distintos. Assim, esta passagem indicia que estes colaboradores já
estavam plenamente em exercício em 1561 e certamente que já os haveria antes,
apesar de se desconhecer a sua identidade. Seriam ajudantes regulares da

29
Lea, Historia de la Inquisición española, 141.
30
Contreras, “Clientelismo y parentela en los familiares del Santo Oficio”, 56-57.
31
Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a história da Inquisição em Portugal (Porto: Arquivo
Histórico Dominicano Português, 1984), doc. XXXIII, § 10.
[144]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

instituição, eventualmente criados do Santo Ofício, mas sem um documento que


sancionasse a sua função de familiar, como mais tarde ficou conhecida. Não é de
descartar a hipótese de serem criados do inquisidor-geral, uma vez que o Cardeal
D. Henrique arregimentou muitos clientes seus para o serviço na instituição.
Tudo iria mudar a partir de 14 de Dezembro de 1562, quando se publicaram
em Portugal os primeiros privilégios dos familiares. A micro conjuntura desta
outorga é muito esclarecedora: ocorreu dois dias depois da abertura das Cortes
de Lisboa desse ano, nas quais D. Catarina surpreendeu todos ao renunciar ao
seu papel de regente, através de carta subscrita meses antes, a 8 de Outubro.
Nem 10 dias volvidos, a 23 de Dezembro, as mesmas Cortes juravam o Cardeal
como regedor do Reino, conforme D. Catarina recomendara e havia cerca de dois
anos era expectável que acontecesse, se a rainha desistisse da governação32.
Pelo leque alargado dos privilégios referidos (sociais, isenções, direitos),
emitidos em nome de D. Sebastião, tudo indica que o documento já estaria pre-
parado, que não fora obra do momento. É de notar que tais regalias não aludiam
a qualquer isenção de foro, assunto que havia muito tempo era objeto de con-
trovérsia do outro lado da fronteira. O conjunto dos privilégios constituiria um
meio de compensar o muito trabalho dos oficiais e familiares, conforme se es-
clarecia para justificar a atribuição: “havendo respeito ao serviço, que os
officiaes, & FamiIiares do S. Officio da Inquisiçaõ fazem a nosso Senhor em seus
officios, & à muita occupaçaõ, que nelles tem, & para que com melhor vontade
folguem de os servir”33. Através desta concessão, a Coroa teria em vista fortalecer
o tribunal, enraizando-o no território, quando o seu responsável máximo passou
a assumir os encargos governativos do Reino. Possivelmente estaria a preparar o
Santo Ofício para ter mais ajudantes que os seus criados. É importante frisar que
o familiar era um agente não remunerado, por isso importava tornar o cargo
mais atrativo, até porque dele se esperava trabalho efetivo.
Pelo menos nos anos de 1550-1560, a Inquisição quando necessitava de in-
teração com as periferias, recorria copiosamente aos meirinhos e solicitadores,
como aliás se previa no seu regimento de 1552, nos títulos daqueles oficiais. Há
diversas provas documentais nesse sentido. Eram muitas vezes incumbidos de

32
Ana Isabel Carvalhão Buescu, Catarina de Áustria (1507-1578): infanta de Tordesilhas, rainha
de Portugal (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2007), 343-347.
33
Carta de D. Sebastião de Dezembro de 1562, in Traslado autentico de todos os privilegios
concedidos pelos Reys destes Reynos, & Senhorios de Portugal aos Officiaes, & Familiares do
Santo Officio da Inquisição (Lisboa: na Officina de Miguel Manescal, impressor do Santo Of-
ficio, 1691).
[145]
prisões. Veja-se um exemplo de cerca de 1558: “O padre Mestre Frei Jerónimo da
Azambuja, Mestre em a Sagrada Teologia e o Doutor Ambrósio Campelo do De-
sembargo d’El-Rei Nosso Senhor inquisidores apostólicos contra a herética
pravidade e apostasia em este arcebispado de Lisboa e sua comarca e etc man-
damos a vós Pedro Fernandes solicitador do Santo Ofício que vades a Vila Nova
de Portimão no Reino do Algarve e aí ou em qualquer outra parte que forem
achadas as pessoas seguintes e as prendareis por culpas de heresia que neste
Santo Ofício há contra elas (...)”34. E não era caso único. Podiam ter de notificar
alguém, prender ou/e trazer uma pessoa presa35. O meirinho também podia ter
de fazer deslocações para longe, como neste caso de Novembro de 1560: “Aos
quatro de Novembro de mil quinhentos e sessenta anos se passou mandado pera
o provisor do Algarve prender as pessoas seguintes e foi lá Brício Camelo [talvez
meirinho da Inquisição de Lisboa] para as ajudar a prender e trazer ao cárcere”36.
Tudo indica que estas deslocações frequentes desguarneciam os tribunais e cau-
sariam perturbação, embora os meirinhos pudessem ter homens para os ajudar.
Terá sido a partir das décadas de 1570-1580 que os familiares começaram a tratar
pontualmente de todas estas funções nas periferias, aliviando os oficiais assala-
riados. Como se comprova pelo quadro da Fig. 1, mesmo assim estes últimos
continuavam a fazê-las em zonas afastadas, tanto mais que o número de famili-
ares era extremamente reduzido, nos primeiros decénios. Em muitos processos-
crime deste período ou não se indicava quem entregara o preso ao alcaide dos
cárceres ou apontava-se o meirinho ou o solicitador.
A citada carta sebástica dos privilégios de 1562 obrigava a registar os fami-
liares e só esses podiam usufruir dos mesmos: “hei por bem, & me praz de lhes
conceder os privilégios, & liberdades abaxo declaradas, das quaes usarão, &
gosarão em quanto assi forem Officiaes, & Familiares do S. Officio, aquelles que
tiverem, & mostrarem provisões dos ditos officios, & cargos, assinadas pelo
Inquisidor Mòr de meus Reynos, & Senhorios”. Face ao que ocorrera em Espa-
nha, aqui desde logo traçara-se um modelo mais centralizador, pois só o
Inquisidor-geral podia autorizar, com a sua assinatura, o exercício do cargo. Mais
tarde, quando o lugar de inquisidor-mor ficava vacante seria o Conselho Geral a
fazê-lo.

34
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 840, fl. 26v. Itálico nosso.
35
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 840, fls. 33v, 34v, 37, 37v.
36
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 840, fl. 32.
[146]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

Inquisição de Évora: deslocações de oficiais diretamente registadas


ANTT,
Ano Mês Dia Agente Cargo Local Objetivo IE, L14, Observações
f.
Prender. Entregar
1570 2 14 Estêvão Correia Meirinho da IE Elvas 2v
doc.
Solicitador da
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IE
6 12 Damião Mendes Meirinho da IL Lisboa Entregar doc. 3v
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6 19 Estêvão Correia Meirinho da IE Elvas 3v
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Meirinho SA; veio a 3.Fev
Solicitador da Cartas p/ Car-
2 7 Álvaro Calvino Lisboa Entregar doc. 5
IE deal
Homem do Montemor-o- Voltou na Terça
2 25 João Dias Entregar doc. 5
Meirinho Novo seguinte
António da Fon- Entregar doc. Le-
5 13 Notário da IE Lisboa 5v-7
seca var preso
8 9 Meirinho da IL Lisboa Leva doc. 7v
Solicitador da
9 21 Rui Fernandes Lisboa Leva doc. 8
IL
Legenda: doc. – documentação; IE – Inquisição de Évora; IL – Inquisição de Lisboa; p/ - para; SA –
Sua Alteza; SO – Santo Ofício.

Os privilégios de 1562 foram alargados com o tempo: em 1566 e sobretudo


em Janeiro de 1580, quando finalmente os familiares portugueses foram contem-
plados com isenção de foro nas causas crimes, fossem eles autores ou réus. Ou
seja, foi sempre no tempo de D. Henrique no poder (ou muito próximo disso),
que os familiares ganharam formalmente isenções. Tudo isto seria sinal da im-
portância que este atribuía a estes agentes seculares. Aliás, D. Henrique como
rei alegou o seu conhecimento na matéria, quando outorgou tal regalia: “pela
experiencia, que tenho dos negocios do Sãto Officio da Inquisição, em que por
muitos annos entendi, sendo Inquisidor geral (…) antes de succeder na Coroa
delles, me pareceo muito importante para cõservação de sua authoridade, & do
respeito, que se lhe deve ter”37. Onze dias depois desta carta, o Cardeal-rei morria
em Almeirim. Este seria um dos seus últimos contributos, senão mesmo o

37
Alvará de 20 de Janeiro de 1580, in Traslado autentico de todos os privilegios...
[147]
derradeiro, para o tribunal da fé. A isenção de foro ajudava a aumentar o capital
simbólico da instituição, num tempo em que o Santo Ofício ainda dispunha de
poucos familiares, ao invés do que acontecia na Inquisição vizinha e quando se
sabia que havia risco de união de coroas no espaço peninsular.
No começo, tudo aponta para menor atratividade das familiaturas em Por-
tugal. Pela visitação à Inquisição de Lisboa de 1578 nota-se que a falta de sediados
nas periferias entravava o funcionamento do Santo Ofício: “por sermos infor-
mado que indo os ministros do Santo Ofício fazer algumas [dili]gências a lugares
do distrito, por não conhecerem a gente da terra as não [po]dem fazer com a
segurança que é necessário, os inquisidores se informarão [pelas] pessoas que
lhes parecer em cada um dos lugares e terras grossas e de muita po[pulação] de
seu distrito quem poderá servir nelas de familiar, assentando-se o número que
bastará em cada lugar (…) e com a informação que se tirar da vida, [costu]mes e
limpeza dos que assim ordenarem (…), nos escre[verão] para lhes mandarmos
passar suas cartas”38.
A isenção de foro, nos moldes castelhanos, seria uma adjuvante. Para a
concretizar, D. Henrique terá mandado analisar o assunto “por pessoas de vir-
tude, letras, & experiencia” e terá servido como referencial “o que em algumas
partes de outros Reinos se usa, & guarda”.
Desde os anos de 1539 que a Inquisição de Lisboa tinha livro de provisões
para assentar os seus novos ministros e oficiais39. A de Évora desde 154140. No
entanto, pondo de lado os oficiais, é de admitir que os primeiros familiares en-
cartados não tenham tido as suas provisões tresladadas para estes livros. Tanto
quanto hoje é possível comprovar, os mais antigos familiares registados foram
os da Inquisição de Coimbra, tribunal que reabriu portas em 1565, quando o
Santo Ofício já estava havia vários anos em “fase de organização (1548-1572)”, de
acordo com a classificação de J. Romero Magalhães41. Assim, sabe-se que Cristó-
vão Lourenço, morador em Lamego, efetuou juramento do cargo em 2 de
Outubro de 1568 e que o seleiro, Francisco Fernandes, morador em Braga, obteve
provisão em Dezembro de 157142, tal como o lavrador Pedro Afonso, natural e

38
Isaías da Rosa Pereira, Documentos para a história da Inquisição em Portugal (século XVI)
(Lisboa: Edição de autor, 1987), 108.
39
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 103.
40
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 146.
41
Joaquim Romero Magalhães, “Em busca dos “tempos” da Inquisição (1573-1615)”, Revista de
História das Ideias 9 (1987): 193-194.
42
Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 252, fls. 71, 82v-84.
[148]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

morador em Celorico da Beira, em Fevereiro de 157943. Ou seja, ter-se-á dado


primazia a locais muito distantes, num distrito onde o relevo não facilitava a
interação. Provavelmente a instituição teria quem a auxiliasse em Coimbra ou
haveria outros familiares, cujo registo se perdeu. Em 1592, por exemplo, teria
pelo menos dois homens que não eram familiares, nem oficiais, e ajudavam nos
autos da fé44. Ao invés, aparentemente nas Inquisições de Lisboa e Évora ter-se-
ia começado por indivíduos moradores nas próprias cidades e o tribunal man-
dava-os fazer deslocações, quando necessário. Só em 1587, a Inquisição de Évora
registou o seu primeiro familiar fora da urbe, um escrivão e notário apostólico
morador em Beja e, no ano seguinte, um familiar de ocupação desconhecida, em
Montemor-o-Novo45. Por sua vez, a Inquisição de Lisboa só em 1588, e não obs-
tante as recomendações da visita de 1578, listou um mercador de panos do
Alentejo e ferro, natural e morador em Leiria46, e um homem rico, que vivia da
sua fazenda, em Santarém47. No entanto, todos estes dados devem ser interpre-
tados com extrema cautela, pois é bem provável que estes não fossem os
primeiros familiares, pelas razões já várias vezes aduzidas neste texto. Um dado
era, todavia, inequívoco: os familiares das fases iniciais teriam muito trabalho,
tendo muitos deles de efetuar deslocações longas e frequentemente de propó-
sito, ao serviço da instituição. Transportar documentação, prender e conduzir o
preso até ao cárcere inquisitorial seriam das tarefas mais solicitadas. No entanto,
o leque de desempenhos exigidos tendeu a aumentar com o passar do tempo,
mesmo em cidades como Lisboa. Por exemplo, na visita à Inquisição olisipo-
nense de 1591-1592 recomendava-se que os familiares servissem de guarda aos
judeus de sinal, “que vierem de África ou de outras partes”, para evitar que alar-
gassem o âmbito das pessoas com quem comunicavam, para além dos seus
negócios. À noite esses judeus deviam estar recolhidos e vigiados pelos familiares48.
Esta mesma visitação também os incumbia, junto com o meirinho do tri-
bunal, de recolher os livros e papéis que se vendiam em lugares públicos fora das
livrarias e lojas de livreiros, “como na feira do Rossio na porta da Misericórdia,
no pátio do Paço, e em outras partes”, para os fazerem chegar aos censores49.

43
Lisboa, ANTT, CGSO, Habilitação do Santo Ofício, Pedro, mç. 1, doc. 29.
44
Magalhães, “Em busca dos “tempos” da Inquisição (1573-1615)”, 219.
45
Lisboa, ANTT, TSO, IE, livro 146, fls. 159 e 162.
46
Lisboa, ANTT, CGSO, Habilitação do Santo Ofício, André, mç. 1, doc. 20.
47
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 104, fls. 102v-103
48
Évora, BPE, Códice CVI/1-33, fls. 59v-60.
49
Évora, BPE, Códice CVI/1-33, fls. 61-61v.
[149]
Um pouco à semelhança da Inquisição vizinha, a portuguesa nesta pri-
meira fase apostou essencialmente em homens mais próximos da base da
pirâmide social do que ao topo, mas dotados de recursos, pois teriam de estar
aptos a servi-la, no sentido mais literal do termo. Era quase como se fossem cri-
ados, mas sem receberem salário, salvo pequenos quantitativos em condições
excecionais50. Quando a instituição, abonada com privilégios, deu mostras de
começar a resvalar no seu recrutamento social, atraindo também gente dos gru-
pos intermédios ou pouco acima, a referida visita de 1591-1592 introduziu um
ponto de ordem. Marca uma viragem, um afinamento. Como a inspeção foi feita
aos três tribunais do Reino, facilitou os resultados. Aliás, antes de divulgadas as
determinações finais ter-se-ão suspendido os provimentos de familiares durante
algum tempo, pois controlar esta rede terá sido uma das preocupações desta vi-
sita51.Quem a fazia tinha espaço para isso, uma vez que em Portugal todas as
habilitações para os cargos eram resolvidas de forma centralizada, no Conselho
Geral, e era um membro deste, Martim Gonçalves da Câmara, quem efetuou a
visitação. Hoje embora ainda não se tenham localizado as diretivas finais da In-
quisição de Évora, as de Coimbra e Lisboa são muito claras a este respeito.
Vejam-se as desta última: “Os familiares da Inquisição serão mecânicos, e não
de maior condição e se ao presente há alguns que não sejão mecânicos, sejam
logo despedidos, porque se tem visto que não servem as inquisições e somente
o querem ser por razão dos privilégios”52. O texto de Coimbra era em tudo igual,
apresentando apenas as variantes formais, recorrentes no registo manuscrito53.
E houve de facto despedimento, até porque ter os familiares encartados e lista-
dos permitia essa tarefa54.
Se na Inquisição vizinha, na segunda metade de quinhentos, se apostava
nos sectores intermédios, aqui era nos artesãos e outros mecânicos. Tentava-se
escolher pessoas que não enjeitassem o trabalho braçal e que não rejeitassem
incumbências em nome do tribunal da fé. Nesta fase, queria-se um mecânico
abonado, cristão-velho, que soubesse ler e escrever, e com “capacidade, pessoa e
fazenda para servirem em cousas de confiança”55. Aparentemente, só na
50
Veja-se um exemplo em: Lisboa, ANTT, TSO, IL, mç. 3, n.º 5, fl. 5.
51
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 368, fl. 56
52
Évora, BPE, Códice CVI/1-33, fl. 64.
53
Magalhães, “Em busca dos “tempos” da Inquisição (1573-1615)”, 219.
54
Fernanda Olival, “Familiares de la inquisición portuguesa (siglos XVI-XVII): los números, la
demanda y los grupos sociales intermedios”, Estudis: Revista de historia moderna 47 (2021):
326, 328.
55
Évora, BPE, Códice CVI/1-33, fl. 64v.
[150]
O INÍCIO DA REDE DE FAMILIARES DO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS: ELEMENTOS PARA O SEU ESTUDO
Fernanda Olival

Inquisição de Lisboa se recomendou uma assinalável redução do número de efe-


tivos de 50 para 2056 e num lugar ou outro, como Braga, que devia passar de dois
para um57. Efetivamente, em Lisboa o número de familiares crescera muito e re-
pentinamente. Num evento isolado e num só dia, em 1587, o tribunal recebeu o
juramento de 33 novos familiares, quase só artesãos58.
Mesmo assim, mais do que os números, até porque estes não eram com-
paráveis aos da Inquisição castelhana, o que preocupava o visitador era
sobretudo o perfil social dos agentes. Queria-se manter a obrigação de serviço
efetivo, mas este em nada se assemelhava ao dos grupos de topo: era meramente
trabalho, sem grandes hipóteses de solicitar recompensas à Coroa ou ao Santo
Ofício. Aqui o retorno era apenas o prestígio de apoiar o tribunal que zelava pela
ortodoxia e a garantia dos privilégios.
Em resumo, a Inquisição portuguesa implantou-se no território através
dos familiares numa cronologia mais tardia e com um modelo mais centralizado
do que a castelhana. Quase desde o início terá tido ajudantes, que hoje são do-
cumentalmente identificados como familiares apenas a partir de 1561, mas há
razões para crer que eram assim designados muito antes.
Até aos primeiros anos do século XVII, apostou em recrutar mecânicos
para garantir um volume de trabalho manual, indispensável à sua sobrevivência,
por parte de agentes laicos não remunerados. Apesar das exigências das tarefas
para superar as distâncias, o custo desta rede era muito reduzido para o Santo
Ofício, assente em capital simbólico e privilégios que a Coroa outorgara. Acresce
que estes últimos não geraram grandes tensões, a ponto de despoletarem muitas
queixas em cortes, embora a sua aplicação não esteja estudada. Certamente não
terá sido indiferente ao caso, terem sido lançados paulatinamente e acompanha-
dos do registo dos familiares, beneficiando da experiência castelhana, que havia
muito tempo advogava essa formalidade. Pelo contrário, o retorno da rede para
a instituição seria grande. O próprio Santo Ofício criou mecanismos de conten-
ção da mesma, no século XVI, quer impondo critérios de recrutamento e seleção,
quer através das visitações aos tribunais.

56
Évora, BPE, Códice CVI/1-33, fl. 64v.
57
Magalhães, “Em busca dos “tempos” da Inquisição (1573-1615)”, 219.
58
Olival, “Familiares de la inquisición portuguesa”, 320.
[151]
Os dois tribunais mais antigos durante muito tempo no século XVI foram
ainda mais cautelosos e centralizadores; talvez receassem aventurar-se pelas pe-
riferias. Assim, no começo, só proviam no cargo pessoas da sua confiança, quase
sempre artesãos, moradores na cidade-sede. Cabia a estes fazer as deslocações
necessárias. Era o modelo do criado-serviçal a perdurar, porque readaptado. Se-
ria o peso simbólico do rigor do tribunal, a que se somaria a crescente
importância dos certificados de limpeza de sangue a dar um novo lustre ao cargo
de familiar do Santo Ofício e a contribuir torná-lo verdadeiramente distintivo
mais tarde, já na segunda metade do século XVII, a ponto da nobreza e a aristo-
cracia o cobiçarem59. No entanto, essas são histórias posteriores. Note-se,
todavia, que a raiz assente em trabalho braçal irá também ela perdurar ao longo
do tempo. Estava inscrita no historial do cargo.

59
Ibid.
[152]
Sob o peso do despacho. O projecto de um perdão
geral para as cristandades locais na Inquisição de
Goa (século XVIII)1
Miguel Rodrigues Lourenço

Estabelecida em 1536, a Inquisição portuguesa atravessou um primeiro de-


cénio conturbado, enfrentando críticas ao seu procedimento e a ingerência da
Santa Sé no funcionamento da instituição. A bula Meditatio cordis, obtida em
1547, no seguimento de uma efectiva paralisação da actividade inquisitorial e da
implosão da maior parte das sedes judiciais criadas nos anos anteriores (Coim-
bra, Lamego, Porto e Tomar), significou, ao nível do procedimento e da
configuração, uma refundação da Inquisição portuguesa2. A essa fase seguiu-se
um período de reorganização territorial que terminou em 1565 com a decisão de
voltar a instalar um tribunal em Coimbra. Por conseguinte, a abertura de uma
sede inquisitorial em Goa, tentada em 1554, mas lograda apenas em 1560, ocorreu
num período ainda de juventude da instituição, em que o Santo Ofício benefici-
ava de uma experiência institucional reduzida, desde a prática judicial à
inscrição espacial3. Do mesmo modo, o único tribunal português criado fora do

1
This article has received funding from the European Union’s Horizon 2020 research and in-
novation programme under the Marie Skłodowska-Curie Grant Agreement No 823998
(Failure. Reversing the genealogies of unsuccess, 16th-19th centuries).
2
Giuseppe Marcocci, I Custodi dell’Ortodossia. Inquisizione e Chiesa nel Portogallo del Cinque-
cento (Roma: Edizioni di Storia e Letteratura, 2004), 59-86; José Pedro Paiva, Baluartes da fé
e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os bispos em Portugal: 1536-1750 (Coimbra: Im-
prensa da Universidade de Coimbra, 2011), 214-216; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva,
História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) (Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013), 23-48.
3
Miguel Rodrigues Lourenço, “Uma Inquisição diferente. Para uma leitura institucional do
Santo Ofício de Goa e do seu distrito (séculos XVI e XVII)”, Lusitania Sacra, n.o 31 (2015): 138;
território europeu não contava com antecedentes que pudessem servir de refe-
rência para gerir as características únicas do novo distrito4. Por estes motivos, é
pouco provável que os primeiros inquisidores de Goa tivessem consciência de
quão singulares poderiam vir a ser os desafios de instalar um tribunal inquisito-
rial num espaço político em construção como o Estado da Índia5.
Nas décadas anteriores ao começo da actividade da Inquisição em Goa, a
complexificação das estruturas diocesanas e o incremento da presença de ordens
religiosas no Estado da Índia fez-se a par da assunção de uma política régia que
conferia à cristianização e à erradicação da idolatria uma predominância que até
então não tivera6. Da destruição dos templos e dos ídolos à expulsão dos chama-
dos “ministros da gentilidade” e à promulgação de legislação discriminatória
para com os não católicos, a promoção da “conversão” ganhou sistematicidade,
acompanhando, de resto, a maior racionalização da missionação. Não por acaso,
o debate em torno da possível fundação do tribunal em Goa procurou antecipar
o impacto que o novo organismo poderia ter sobre as populações cristianizadas
e o sucesso das missões. Se, em 1545 e em 1546, Francisco Xavier sustentava que o

José Pedro Paiva, “The Inquisition Tribunal in Goa: Why and for What Purpose?”, Journal of
Early Modern History, n.o 21 (2017): 565-593.
4
O exemplo anterior do exercício de poderes inquisitoriais pelas autoridades diocesanas na
Nova Espanha pouco terá aproveitado à Inquisição portuguesa enquanto modelo institucio-
nal. Neste domínio, os territórios “indianos” dos Habsburgo foram palco de diversas
experiências até à criação de um distrito inquisitorial com sede na Cidade do México em 1569.
De um tribunal “de Indias” sediado em Puerto Rico, à realização de juízos pela audiência epis-
copal da diocese do México em matérias pertencentes ao Santo Ofício, à concessão de um
título de inquisidor a D. frei Juan de Zumárraga para o seu bispado, a regulação do exercício
da jurisdição inquisitorial no continente americano apenas viria a ocorrer após a fundação da
Inquisição de Goa. A configuração e estrutura institucionais desta última, de resto, parecem
seguir os modelos praticados na Inquisição portuguesa e não a experiência americana da In-
quisição espanhola. Gabriel Torres Puga, “¿Inquisición formal o Inquisición de obispos? Un
dilema presente en Nueva España en la primera mitad del siglo XVI”, in Iglesia y Conquista.
Los procesos fundacionales, ed. María del Pilar Martínez López-Cano e Francisco Javier
Cervantes Bello (México: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, Instituto de Ciencias
Sociales y Humanidades Alfonso Vélez Pliego; Universidad Nacional Autónoma de México,
Instituto de Investigaciones Históricas, 2022), 113-50.
5
Veja-se, a este respeito, Jorge Borges de Macedo, “Uma opinião em forma de prefácio», in
Ana Cannas da Cunha, A Inquisição no Estado da Índia. Origens (1539-1560) (Lisboa: Arquivos
Nacionais/Torre do Tombo, 1995), 7-14.
6
Délio de Mendonça, Conversions and Citizenry. Goa under Portugal, 1510-1610 (Nova Deli:
Concept Publishing Company, 2002); Ângela Barreto Xavier, A invenção de Goa: poder imperial
e conversões culturais nos séculos XVI e XVII (Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais, 2008);
José Pedro Paiva, “The First Catholic Diocese in Asia and the Spread of Catholicism: Juan de
Albuquerque, Bishop of Goa, 1538-1553”, Church History 90, n.º 4 (December 2021): 776-798.
[154]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

Estado da Índia necessitava da acção conjunta de pregadores e da Inquisição e que


esta poderia, concretamente, punir aqueles que perseguiam os que convertiam à
fé, figuras como os também jesuítas Belchior Carneiro ou Baltazar Dias temiam
pelo futuro das conversões se o tribunal viesse a agir sobre as populações locais7.
As reservas levantadas por estes e outros religiosos envolvidos nas missões
asiáticas são pouco visíveis nos anos inaugurais da Inquisição de Goa, muito por
força da escassez da documentação. A única carta sobrevivente que se reporta ao
começo da actividade dos inquisidores não dedica uma palavra a este respeito.
Sem surpresas, os juízes centraram a sua atenção no número de causas de fé ge-
radas pelas visitações a Goa e a Cochim e naquela que constituía a principal
preocupação das autoridades inquisitoriais em Lisboa: a potencial disseminação
do judaísmo entre os cristãos-novos8. Notoriamente, o maior grupo populacional
sob a jurisdição do recém-fundado tribunal, composto pelos chamados “cristãos da
terra”, não formava, ainda, um horizonte de preocupação junto dos inquisidores.
Num momento tão inicial do Santo Ofício de Goa, os juízes dificilmente
poderiam deixar de avaliar o arranque do seu ministério segundo os parâmetros
do reino e, menos, antecipar as mudanças profundas que o tribunal viria a sofrer.
Em 1562, alertaram o monarca sobre o baixo número de casos, acreditando, no
futuro, bastar apenas um inquisidor e um notário em funções9. A previsão, con-
forme os seus sucessores puderam constatar, revelou-se equivocada. Pouco
tardou até a correspondência começar a revelar as fortes dificuldades dos juízes
em responder adequadamente às diversas facetas da actividade do tribunal com
o pouco oficialato disponível. Em paralelo, o peso do judaísmo diminuiu no es-
paço de três décadas de funcionamento, passando os “cristãos da terra” a
constituir o perfil predominante dos processados. Progressivamente, o número
de portugueses decaiu até a sua expressão entre os condenados se tornar residual

7
Cartas do padre Francisco Xavier, SJ, ao padre Francisco Mansilhas, SJ, de Negapatão, a 7 de
Abril de 1545, e a D. João III, de 16 de Maio de 1546, de Amboino, Monumenta Xaveriana, vol.
1 (Madrid: Typis Agusti Avrial: 1899-1900), 380 e 421-422; Ana Cannas da Cunha, A Inquisição
no Estado da Índia. Origens (1539-1560) (Lisboa: Arquivos Nacionais/Torre do Tombo, 1995),
130-131.
8
Carta dos inquisidores de Goa a D. Sebastião, rei de Portugal, de 23 de Dezembro de 1562,
em Goa, Gavetas da Torre do Tombo, vol. 1 (Lisboa: Centro de Estudos Históricos Ultramari-
nos, 1960), 155-159.
9
Em Lisboa, o inquisidor-geral D. Henrique, desde esse ano regente do reino, foi sensível aos
“poucos negocios na Mesa” referidos por Aleixo Dias Falcão e Francisco Marques Botelho e ao
argumento de que seria possível poupar 400.000 réis à Fazenda Real no ordenado de um in-
quisidor. Com efeito, em poucos anos, o Santo Ofício de Goa passou a funcionar com um
único inquisidor, situação que se arrastou por quase duas décadas. Ibid., 156.
[155]
já em finais do século XVII, ao passo que os casos dos católicos naturais aumen-
taram exponencialmente10. Por exemplo, nos 10 anos entre 1644 e 1654, os
inquisidores de Goa reportaram apresentações na ordem das 2.500 pessoas só na
ilha de Juá11. A morosidade a que os procedimentos obrigavam foi motivo de de-
bate na comunicação com Lisboa durante este período e justificou a ampliação do
corpo de juízes com a nomeação de um terceiro inquisidor para o tribunal12. Na
primeira metade do século XVIII, a experiência reportada pelos inquisidores não
poderia deixar de ser mais díspar em relação aos anos de fundação do tribunal.
A este respeito, o ano de 1734 foi marcado por um caso singular na história
da Inquisição portuguesa. Na correspondência dessa monção, os inquisidores de
Goa admitiram a sua incapacidade para lidar com um número tão elevado de
processos, a tal ponto que o despacho se via prejudicado13. Notoriamente exas-
perados pelo peso de tantas causas de fé, o colectivo de juízes protagonizou uma
iniciativa desconcertante: diante da falta de meios para conduzir os procedimen-
tos judiciais com as formalidades exigidas pelo Direito, recomendaram às
instâncias superiores de Lisboa a concessão de um perdão geral às populações
cristianizadas do Estado da Índia para obviar ao prejuízo espiritual dos réus14.
Cabe dizer que o perdão geral não se tratava de um dispositivo jurídico
desconhecido ao Santo Ofício, pelo contrário. De facto, este procedimento, que
estabelecia uma absolvição dos delitos de heresia e apostasia cometidos até ao
momento da sua concessão (1533, 1535, 1547), marcou a actividade judicial do
tribunal nos momentos fundantes do seu estabelecimento, assim como nos iní-
cios do século XVII (1604-1605)15. A proposta de 1734, contudo, diferencia-se das

10
Luiza Tonon da Silva, “A Inquisição na Ásia: idolatria e gentilidade no Mundo Índico portu-
guês (1560-1700)” (Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da
como requisito para a obtenção do título de Doutora em História Social, São Gonçalo, Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro, 2022), 190-191.
11
Consulta do Conselho Geral do Santo Ofício a D. João IV, rei de Portugal, de 12 de Março de
1654, em Lisboa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 101, fls. 153-153v.
12
Bruno Feitler, “A Inquisição de Goa e os nativos: achegas à originalidade da ação inquisitorial
no oriente”, in Justiças, Governo e Bem Comum na administração dos Impérios Ibéricos de An-
tigo Regime (séculos XV-XVIII), ed. Júnia Ferreira Furtado, Cláudia C. Azeredo Atallah e
Patrícia Ferreira dos Santos (Curitiba: Editora Prismas, 2016), 107.
13
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Janeiro de 1734, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 15, s/f.
14
Ibid. Enfatizando o inusitado da iniciativa, Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva classifica-
ram-na como uma “nunca vista proposta”. Marcocci e Paiva, História da Inquisição
Portuguesa, 326.
15
Dentro da vasta bibliografia sobre os perdões gerais concedidos aos cristãos-novos portu-
gueses, leia-se Marcocci, I Custodi dell’Ortodossia, 48-100; Paiva, Baluartes da fé e da disciplina,
[156]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

concessões anteriores em dois aspectos. Por um lado, não se destinava aos cris-
tãos-novos baptizados ou descendentes da população judaica convertida ao
catolicismo nos finais do século XV, mas sim às populações católicas locais, por-
tanto, não descendentes de europeus. Por outro lado, contrariamente ao
sucedido com os perdões-gerais dirigidos aos cristãos-novos, a nova proposta foi
formulada, não por um conjunto de elementos exteriores à instituição, em re-
presentação dos seus futuros beneficiários, dos quais eram parte, mas no seio da
estrutura inquisitorial, pelos próprios inquisidores.
Nos séculos anteriores, o perdão geral foi encarado pela instituição como
um dispositivo contrário à efectivação da justiça, pois não só impedia aos inqui-
sidores a abertura de causas com base em indícios anteriores à concessão do
diploma, como outorgava a reintegração do suspeito ou réu na comunidade
cristã sem a contrição do visado no tribunal: portanto, mediante uma confissão
que, sendo feita diante de um confessor e não como consequência da acção dos
juízes, não dava garantias de ser fruto de verdadeiro arrependimento, além de
não ser realizada no foro externo, prerrogativa do Santo Ofício16. Assim sendo, a
formulação de uma proposta tão intrinsecamente oposta ao espírito do seu mu-
nus institucional pelos mesmíssimos inquisidores sugere, à primeira vista, um
abandono do desígnio institucional do tribunal, o renunciar à sua missão en-
quanto organismo de combate à heresia e apostasia. Ao invés, neste estudo
mostraremos que, por detrás deste projecto residia, não uma disposição derro-
tista por parte dos seus autores, mas uma solução destinada a reforçar a
autoridade e a eficácia da Inquisição de Goa no Estado da Índia.

Uma missão diferente: a Inquisição de Goa face ao problema da conversão


O enquadramento judicial das populações cristianizadas não foi uma
questão indiferente às autoridades inquisitoriais em Lisboa. Desde o início, o
inquisidor-geral manifestou uma atenção particular aos neófitos, mais

214-226; Juan Ignacio Pulido, Os Judeus e a Inquisição no Tempo dos Filipes (Lisboa: Campo da
Comunicação, 2007); Ana Isabel López Salazar-Codes, Inquisición Portuguesa y Monarquía
Hispánica en tiempos del perdón general de 1605 (Lisboa: Edições Colibri; CIDEHUS-Universi-
dade de Évora, 2010).
16
Marcocci, I Custodi dell’Ortodossia, 52-56; López Salazar-Codes, Inquisición Portuguesa y
Monarquía Hispánica, 21-23.
[157]
vulgarmente mencionados na documentação como “novamente convertidos”17.
As instruções por si preparadas em 1560 previam um tratamento menos rigoroso
“aos cristãos da terra que depois de terem vso de rezam se conuerteram a fee ou
ao diamte de conuerterem”, descrição que corresponde à de um indivíduo bap-
tizado já adulto – juridicamente, um neófito18. Esta categoria, não sendo oposta
à de “cristão da terra”, tampouco se confunde com ela, conforme se pode apre-
ciar pelo debate mantido no interior da instituição. Um parecer de João Duarte
Ribeiro de 1707 estabelece que era necessário ocorrer uma conversão a partir de
uma religião reprovada para se poder aplicar essa categoria jurídica. Os baptiza-
dos na infância, ao não terem tido contacto com os erros dessa religião, não
poderiam ser considerados neófitos19. Esta doutrina, de resto, reflecte-se na pra-
xis da Inquisição de Goa, como o evidenciam as categorias de classificação dos
seus réus elencadas por João Delgado Figueira, no Reportorio de 1623, ao dife-
renciar entre “baptizado de oito dias”, “baptizado adulto”, “cristão da terra” e
ainda “cristão da terra baptizado adulto”. Em particular, as duas últimas atestam
que a distinção detinha operacionalidade e que “cristão da terra” corresponderia
a uma categoria maior na qual os neófitos se inseriam20.
Ainda que, nos decénios iniciais da actuação do tribunal em Goa, a atenção
dos inquisidores tenha sido fortemente polarizada pelo delito de judaísmo, os
“novamente convertidos” mantiveram-se como uma preocupação continuada na
mente do inquisidor-geral D. Henrique que, até abandonar o cargo, procurou
encontrar uma solução que atendesse às insuficiências no conhecimento do ca-
tolicismo que lhe eram reportadas pelos inquisidores21. A prová-lo está o facto
de, em 1579, ter concedido faculdades judiciais em matéria de fé sobre os “nova-
mente convertidos” aos prelados das dioceses mais distantes das cidades-sede
dos distritos de Lisboa e Goa para as missões do Brasil e do Japão, respectiva-
mente, e, em paralelo, de ter procurado obter cópias dos diplomas pontifícios de
17
Sobre o emprego e as implicações políticas e sociais desta categoria, leia-se Ângela Barreto
Xavier, “De converso a novamente convertido. Identidade política e alteridade no reino e no
império”, Cultura 22 (2006): 245-274.
18
Eximia-os, ainda, do confisco de bens nos casos de heresia. Cf. “Diploma através do qual o
infante D. Henrique, inquisidor-geral, criou e regulamentou o Tribunal do Santo Ofício de
Goa”, de 2 de Março de 1560, em Lisboa, in Cunha, A Inquisição no Estado da Índia, 299.
19
Parecer de João Duarte Ribeiro, deputado do Conselho Geral do Santo Ofício, de 14 de Março
de 1707, em Lisboa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 40, n.º 8, §§. 6 e 15.
20
Lisboa, BNP, cód. 203, passim.
21
Veja-se, por exemplo, a carta de Aleixo Dias Falcão, inquisidor de Goa, de 3 de Janeiro de
1569, em Goa, António Baião, A Inquisição de Goa. Correspondencia dos Inquisidores da Índia
(1569-1630), vol. 2 (Coimbra: Imprensa da Universidade, 1930), 4.
[158]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

que a Inquisição espanhola beneficiava no tocante aos “moriscos” para poder


avaliar a questão22.
Em Goa, num momento em que se começava a sentir o peso dos cristãos
da terra entre os processados, os inquisidores passaram a conceder faculdades
de absolvição nos diferentes foros – com prevalência para o foro da consciência
– a bispos, a comissários do Santo Ofício, a reitores da Companhia de Jesus e,
mais tarde, aos missionários em actividade fora dos domínios do Estado da Índia.
Tais soluções eram justificadas, tanto pela “mesquinhez”, ou seja, a pobreza dos
indiciados, bem como pela sua ignorância e, por fim, pela distância ou contin-
gências de mobilidade desde o seu espaço de residência à sede do tribunal23.
Mas, ulteriormente, a obtenção do breve Sedes Apostolica em 1599, que
dispensava aos neófitos a aplicação da pena de relaxamento ao braço secular em
caso de reincidência até ao terceiro lapso, pode ser considerado o culminar de
um desígnio institucional que procurava evitar a aplicação do rigor do direito
sobre populações que, por vezes, beneficiavam apenas de uma instrução incipi-
ente dos preceitos do catolicismo24. Com a duração de 5 anos, o breve
possibilitava
absolver e livrar em ambos os foros, na forma habitual da Igreja, da
sentença de excomunhão e de outras censuras e penas eclesiásticas [...]
todos e quaisquer neófitos, de ambos os sexos, desses Reinos, Provín-
cias e Ilhas, descendentes de gentios e infiéis que, depois de terem
recebido a fé de Cristo, caírem no crime de apostasia da fé, ou em outras

22
António Baião, A Inquisição de Goa. Tentativa de História da sua origem, estabelecimento,
evolução e extinção (Introdução á Correspondencia dos Inquisidores da Índia 1569-1630), vol. 1
(Lisboa: Academia das Ciências, 1945), 267; Giuseppe Marcocci, “A fé de um império: a Inqui-
sição no mundo português de Quinhentos”, Revista de História, n.o 164 (2011): 87; Miguel
Rodrigues Lourenço, “Bispo da China e Inquisidor Apostólico: D. Leonardo de Sá e os inícios
da representação inquisitorial em Macau”, Revista de Cultura, n.o 48 (2014): 49-67; Miguel
Rodrigues Lourenço, “Uma Inquisição para o Estado da Índia (1560-1640)”, in Historia imperial
del Santo Oficio (siglos XV-XIX), ed. Fernando Ciaramitaro e Miguel Rodrigues Lourenço (Mé-
xico; Lisboa: Bonilla Artigas Editores; Universidad Autónoma de la Ciudad de México; Cátedra
de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, 2022), 1016-1017.
23
Carta dos inquisidores de Goa a D. Pedro de Castilho, inquisidor-geral de Portugal, de 24 de
Dezembro de 1607, em Goa, Baião, A Inquisição de Goa, vol. 2, 349-350; Carta dos Inquisidores
de Goa a D. Veríssimo de Lencastre, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de Janeiro de 1688,
em Goa, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 1, s/f; Miguel Rodrigues Lourenço, “Distância,
conversão e episcopado. Raízes da especificidade dos comissários do Santo Ofício no Estado
da Índia”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 22, n.o 2 (2022): 63-89,
https://doi.org/10.14195/1645-2259_22-2_3.
24
Giuseppe Marcocci, “A fé de um império”, 87-88; Marcocci e Paiva, História da Inquisição
Portuguesa, 115.
[159]
heresias condenadas e reprovadas, e em erros, primeira, segunda e até
terceira vez, mas não mais”25.

As autoridades inquisitoriais solicitaram, regularmente, a renovação do di-


ploma, um claro reflexo de que o privilégio não permitia debelar o problema. De
facto, o predomínio dos “cristãos da terra” entre os condenados pelo Santo Ofí-
cio de Goa a partir do século XVII não se deverá ter invertido até à abolição do
tribunal, apesar das limitações documentais existentes para reconstituir a sua
actividade in extenso.
Em 1734, as palavras dos inquisidores sugerem que o tribunal tinha atin-
gido um ponto de rotura:
devemos propor a V. Eminencia que he tão grande o numero de pes-
soas, que se achão delatas, prezas, e aprezentadas; que segundo nos
pareçe, passão de tres mil, e com indiçios de serem muito mais; e seria
hum grande seruisso de Deus, e vtilidade para esta christandade con-
çeder-lhe hum perdão geral; porque de outra sorte se não poderão
despachar, nem correrem as coizas do Santo Officio com a formalidade
que devem ter, nem repararse a lamentavel ruina de tantas almas, que
infaliuelmente se perdem26.

Importa enfatizar que os beneficiários deste perdão geral seriam aqueles


compreendidos pelo que os inquisidores designam de “esta christandade”. Ora,
este termo, sendo preciso, é genérico no que diz respeito à praxis da Inquisição
de Goa, na medida em que, desde o último quartel do século XVI, se houve uma
categoria jurídica a que o Santo Ofício previu um tratamento diferenciado, foi a
de “neófito” ou “novamente convertido”. Dois anos depois, os inquisidores foram
mais claros, precisando que o perdão geral deveria beneficiar “todos os naturais
da Jndia” (entenda-se, todos os católicos de origem local) e não apenas os neófi-
tos27. Verificamos, pois, um consenso entre os três juízes que nem sempre foi
atingido quanto à forma de processar os “cristãos da terra”28.

25
Leia-se o enunciado no original latino em Collectorio das Bullas, & Breves Apostolicos, Car-
tas, Aluarás & Prouisões Reaes que contem a instituição, & progresso do Santo officio em
Portugal, Uarios Indultos, & Priuilegios, que os Summos Pontifices, & Reys destes Reynos, lhe
concederão (Lisboa: Por Lourenço Craesbeeck, 1634), 88v. Agradeço ao Professor Arnaldo do
Espírito Santo a tradução do breve.
26
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Janeiro de 1734, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 15, s/f.
27
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Janeiro de 1736, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 17, s/f.
28
Miguel Rodrigues Lourenço, “On Gentilidade as a Religious Offence: A Specificity of the
Portuguese Inquisition in Asia?”, in Norms Beyond Empire. Law-Making and Local
[160]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

A carta de 1734 foi, também, enfática quanto às dificuldades de procedi-


mento que estes casos colocavam: entre denunciados, presos e apresentados, o
número de réus ultrapassava os três mil, reportavam os inquisidores. Infeliz-
mente, não temos forma de aferir a exactidão destes números. As listas de réus
que o Santo Ofício de Goa enviava anualmente ao inquisidor-geral mostram que
o número de processos nunca atingiu tais dimensões, mas que oscilou entre as
duas centenas e os cinquenta casos nas décadas anteriores à proposta. No en-
tanto, estas listas, divididas entre processados que participaram na cerimónia do
auto-da-fé, despachados em Mesa e apresentados, não formam séries completas,
pois as de autos-da-fé conservam-se em número superior às demais.

Totais de processados pela Inquisição de Goa (1710-1741)


250

200

150

100

50

0
1705 1710 1715 1720 1725 1730 1735 1740 1745

Fontes: Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. n.º 11; Lisboa, BNP, cód. 201.

Ao mesmo tempo, sabemos que muitas das denúncias não evoluíam no


sentido de um processo formal, por motivos que deveriam oscilar entre a falta
de substância e a incapacidade de o tribunal investigar tudo o que lhe era repor-
tado. Abandonadas, interrompidas ou desconsideradas, tais delações eram
reunidas em volumes que vieram a ficar conhecidos como “cadernos do promo-
tor”, os quais, no Reino, chegaram a ultrapassar as cinco centenas de fólios cada
um. À data da primeira abolição do tribunal, em 1774, a Inquisição de Goa con-
tava com 31 cadernos de denúncias e de apresentações organizados

Normativities in Iberian Asia, 1500-1800, ed. Manuel Bastías Saavedra, vol. 3, Max Planck Stud-
ies in Global Legal History of the Iberian Worlds (Leiden; Boston: Brill, 2021), 230-232.
[161]
geograficamente29. Lamentavelmente, nunca poderemos determinar a quanti-
dade de denúncias por ano com que os promotores do tribunal eram
confrontados, mas acreditamos que a acumulação de delações inconsequentes
deverá ter sido uma realidade tão habitual em Goa como no Reino. As listas de
réus reflectem, portanto, uma imagem pálida e muito insuficiente do que foi o
quotidiano dos inquisidores e do promotor. O que parece claro é que os inquisi-
dores de Goa se sentiam assoberbados e que o despacho se encontrava à beira
do colapso. A solução do perdão geral foi, por isso, mas não só, consequência do
avultado número de casos nos anos anteriores.

As cumplicidades das aldeias e o combate à gentilidade


Na década de 1720, um acontecimento parece ter contribuído para o avo-
lumar do expediente da Inquisição, já identificado por Giuseppe Marcocci e José
Pedro Paiva30. Trata-se das denúncias endereçadas ao tribunal em 1722 “contra
todos os moradores de Coculy terra do Conde, e Assolna (...) por culpas de gen-
tilidade”31.
A correspondência dos inquisidores de Goa neste período não se encontra
completa e não proporciona senão uma descrição fragmentária do sucedido. De
acordo com inquisidores, o comissário do Santo Ofício de Salcete fora confron-
tado com inúmeras apresentações e denúncias que implicaram os cristãos das
castas baixas, pobres, dessas localidades, os quais, no entanto, se recusaram a vir
à Mesa conforme aquele os admoestara a fazer. Alegando a sua pobreza e a dis-
tância à cidade de Goa, os moradores das duas aldeias solicitaram, então, uma
visita32. Iniciada em 1728 após ter sido consultado o inquisidor-geral, a visita
ainda não tinha sido dada por terminada em 173033.

29
Inventário do cartório e arquivo da Inquisição de Goa, de 1774. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO,
liv. 462, fls. 240-241v.
30
Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 326.
31
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Dezembro de 1724, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 6, s/f.
32
Ibid.: “pedindo se cometessem ao dito comissario a discizam de sua causa ou se lhe conce-
dessem visita”.
33
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 3 de Ja-
neiro de 1730, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 11, s/f.
[162]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

Mapa da Província de Salcete e ilha de Tiswadi (século XVIII), com localização


das aldeias de Assolná e Cuncolim

Relatos conservados entre os papéis do arcebispo D. frei Inácio de Santa


Teresa (1721-1740) apresentam uma narrativa distinta, não necessariamente in-
conciliável com o reportado pelos inquisidores. De acordo com testemunhos
proporcionados por clérigos naturais, em Maio de 1722, no seguimento de uma
visita pastoral em Assolná, o próprio arcebispo teria mobilizado os moradores
da aldeia a rumar a Fatorpá, então localizada além dos limites do Estado da Ín-
dia, para trazer os ídolos de “Bettalo, Mhamay, e Mhadeo” (Vetala, Mahamaya,

[163]
Mahādeva)34. Os ídolos teriam sido trazidos até Assolná e destruídos em de-
monstração de público arrependimento, motivando o arcebispo a escrever ao
tribunal para “hauer Meza na Aldea”35. A informação assinala, deste modo, um
protagonismo do arcebispo no requerimento da visita, iniciativa que a corres-
pondência inquisitorial coloca nos moradores das aldeias de Assolná e Cuncolim
no seu diálogo com o comissário do Santo Ofício de Salcete, o jesuíta António
de Betancourt. A realização da visita não estará, assim, inteiramente dissociada
da controvérsia que, em 1722, eclodiu entre o arcebispo D. frei Inácio de Santa
Teresa e a Companhia de Jesus da Província de Goa a propósito do desempenho
dos seus religiosos como párocos das freguesias de Salcete e que motivou o pro-
vincial a ordenar o abandono das paróquias em Setembro desse mesmo ano36.
Precisamente, na década e meia seguinte, a qualidade da cristianização de Sal-
cete seria um dos campos nos quais se jogava a batalha de legitimação das
posições do arcebispo e dos jesuítas, evocando-se os autos-da-fé e a expressivi-
dade dos moradores daquela província entre os condenados como,
alternativamente, prova do fracasso da missão jesuítica ou da incompetência dos
sacerdotes seculares que os substituíram37.

34
Certidão de dez testemunhas sobre a ida a Fatorpá, de 31 de Maio de 1722, em Assolná.
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 85, s/f.
35
Certidão do padre Atanásio Xavier, vigário de Assolná, Ambelim e Velim, e dos principais
de Assolná, de 17 de Outubro de 1725, em Assolná. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 85, s/f.
36
Sobre a evolução do confronto que opôs o arcebispo D. frei Inácio de Santa Teresa à provín-
cia de Goa da Companhia de Jesus, leia-se Evergton Sales Souza, Jansénisme et réforme de
l’Église dans l’empire portugais, 1640 à 1790, Publications du centre culturel Calouste Gulben-
kian (Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, Centre culturel Calouste Gulbenkian, 2004),
146-153; Ana Maria Mendes Ruas Alves, “‘O Reyno de Deos e a sua Justiça’. Dom frei Inácio de
Santa Teresa (1682-1751)” (Dissertação de Doutoramento em História da Época Moderna,
Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2012), 162-175; José Maria Mendes,
“Inácio de Santa Teresa: construindo a biografia de um arcebispo” (Dissertação de Mestrado
em História dos Descobrimentos e da Expansão Portuguesa, Lisboa, Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa, 2012), 67-90; José Maria Mendes, “Inácio de Santa Teresa: o percurso
de um arcebispo polémico”, vol. 1 (Dissertação de Doutoramento em História dos Descobri-
mentos e da Expansão Portuguesa, Lisboa, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,
2015), 113-130.
37
A apreciação da qualidade da cristandade de Salcete a partir da composição dos réus pre-
sentes nos autos-da-fé foi realizada em, pelo menos, dois textos apologéticos preparados em
defesa das posições do arcebispo Santa Teresa. Em 1723 ou 1724, o autor de uma contestação
a uma carta do vice-rei a D. João V notou que, no auto-da-fé de 1723, 8 dos 15 réus originários
do que viria a ficar conhecido como “Velhas Conquistas” eram provenientes de Salcete e que
“o principal zelador, e propagador do pagode Mamay” havia sido criado dos jesuítas. Segundo
outro documento, durante o ano de 1736, o protagonismo dos relaxados com origem em Sal-
cete ou educados pelos jesuítas (cinco em carne, três deles clérigos, e dois em estátua), teria
[164]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

Qualquer que tenha sido a sequência de acontecimentos, o fluxo de de-


núncias que inundou o tribunal logo em 1722 deixou os inquisidores sem
capacidade de resposta, forçando-os a solicitar autorização ao inquisidor-geral
para proceder a uma visita às duas aldeias. O pedido faz eco de uma estratégia
ainda pouco conhecida nos seus contornos precisos, mas que dir-se-ia remontar
aos inícios do século XVII, de conceder éditos da graça a aldeias específicas38.
Assim sucedeu em Bambolim antes de 1611, sem que saibamos se o Conselho Ge-
ral ou o inquisidor-geral foram consultados a esse respeito39. A medida viria a
ser seguida em anos posteriores por motivos similares. Conforme já notado por
Bruno Feitler, em 1654, após alguma relutância, o Conselho Geral do Santo Ofí-
cio solicitou e obteve do monarca o perdão do confisco de bens para os
moradores de Juá que se apresentassem e instruiu o tribunal de Goa para os re-
conciliar numa igreja40. No ano seguinte, a decisão do Conselho de ordenar que
a mesma solução fosse adoptada em Bardez, onde os inquisidores se defronta-
vam com um problema similar, resultou, seguramente, nos três autos-da-fé que,
de acordo com António Joaquim Moreira, foram realizados em Aldoná, Sirulá e
Juá em 1655 e 165641. O facto de dois outros autos-da-fé terem sido realizados em
Baçaim em 1661 e um outro em Assolná em 1686, faz crer que a prática de visitas
a aldeias a culminar neste cerimonial teria adquirido regularidade42. Assim

sido motivo de vexação para a Companhia de Jesus, movendo os seus religiosos a alegar que
as idolatrias aumentaram a partir do momento em que se retiraram das paróquias. Cf. “Con-
vecemse brevemente as ficçoens da Carta do Vice Rey Francisco Jozeph de Sampayo de 20 de
Novembro de 1722 para Sua Magestade que Deos guarde contra o Arcebispo de Goa, a qual
começa = Chegou a minhas mãos hum Manifesto &ª”, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 85, s/f;
“Noticias da Jndia da monção de 1736 para 737”, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 276, s/f.
38
Pode considerar-se como antecedente desta prática a concessão, em 1576 e em 1585, de um
édito da graça pelos inquisidores-gerais D. Henrique e D. Jorge de Almeida a todos aqueles
que haviam apostatado e se encontravam fora dos domínios do Estado. Veja-se, Marcocci, “A
fé de um império”, 85; Lourenço, “Uma Inquisição para o Estado da Índia”, 1015-1016.
39
Lista das pessoas despachadas em Mesa pela Inquisição de Goa relativa aos anos de 1609 e
1610, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 369, fl. 34.
40
Carta do Conselho Geral do Santo Ofício aos inquisidores de Goa, de 17 de Março de 1654,
em Lisboa. Rio de Janeiro, BNRJ, Inquisição de Goa, 25,1,004, n.177, fls. 419-419v; Feitler, “A
Inquisição de Goa e os nativos”, 107-108.
41
Carta do Conselho Geral do Santo Ofício aos inquisidores de Goa, de 15 de Março de 1655,
em Lisboa. Rio de Janeiro, BNRJ, Inquisição de Goa, 25,1,004, n.177, fl. 433; Registo de António
Joaquim Moreira referente aos autos-da-fé de 1654. Lisboa, BNP, Cod. 866, fl. 45v.
42
Carta do Conselho Geral do Santo Ofício aos inquisidores de Goa, de 30 de Março de 1665,
em Lisboa. Rio de Janeiro, BNRJ, Inquisição de Goa, 25,1,006, n.073, fl. 100; “Lista das pessoas
que abjurar [sic] no auto da fé que se celebrou na Igreja de N. S. dos Mártires das terras de
Salcete aos 21 de Julho de 1686”, Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 31, doc. 3.
[165]
deverá ter ocorrido também em Assagão em 1687 ou 1688, pois D. Pedro II passou
um alvará dirigido aos moradores desta aldeia e de outras do seu termo isen-
tando de confisco de bens aqueles que se apresentassem e confessassem as suas
culpas43. E sabemos que foram designadas de visitas a ida do inquisidor Manuel
João Vieira a Cuncolim e Assolná e em Juá em 1693-4, assim como à Província do
Norte em 170144. Dir-se-ia que, ao longo do século XVII, no distrito da Inquisição
de Goa se abandonou uma lógica de visitas às fortalezas em favor de visitas a
aldeias, uma resposta institucional que procurava gerir a frequência com que os
cristãos naturais retomavam ritos tradicionais, voltavam a venerar divindades
locais ou apostatavam.
A crer no reportado pelos inquisidores de Goa em 1724, o pedido de visita
endereçado pelos moradores das duas aldeias ao tribunal situa-se em linha de
continuidade com comportamentos registados no século anterior, nomeada-
mente a apresentação massiva dos moradores das aldeias ou o seu abandono
para além dos limites do Estado da Índia45. Já em 1680, o jesuíta Manuel do Vale
se queixara do abatimento nas rendas que a Companhia tinha na aldeia de As-
solná devido ao “leuantamento, e auzencia que fizerão seus moradores por
entender com elles a Jnquizição” no ano anterior46. E os próprios inquisidores
mencionaram que os moradores de Assolná e Cuncolim tinham solicitado uma
visita em 1693 sob pena de se retirarem47. Como assinalou Bruno Feitler, para os
“cristãos da terra” a Inquisição ter-se-ia tornado numa realidade familiar, sufici-
entemente conhecida ao ponto de criarem estratégias de resistência que
dificultavam ou paralisavam o procedimento inquisitorial, obrigando o tribunal
a abrir espaço a soluções que concediam um perdão com um mínimo de

43
Alvará de D. Pedro II de 15 de Março de 1687, em Lisboa. Rio de Janeiro, BNRJ, Inquisição de
Goa, 25,1,005 n.036, fol. 73.
44
“Lista das pessoas que abjuraram em forma por culpas de gentilidade no auto-da-fé que se
fez aos 15 de Junho de 1694 na igreja de Nossa Senhora da Saúde de Coculim, terra de Salcete,
presente o inquisidor Manuel João Vieira”, Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 10, fls. 26-29v; Carta da
Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 26 de Janeiro de 1728,
em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 9, s/f; Feitler, “A Inquisição de Goa e os
nativos”, 108.
45
Carta dos inquisidores de Goa a D. Francisco de Castro, inquisidor-geral de Portugal, de 16
de Janeiro de 1649, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 31, doc. 32, fls. 5-5v.
46
Carta do padre Manuel do Vale, SJ, ao padre Giovanni Paolo Oliva, SJ, superior-geral da
Companhia de Jesus, de 26 de Novembro de 1680, em Goa. Roma, ARSI, Goa 9-II, fl. 319v.
47
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Dezembro de 1724, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 6, s/f.
[166]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

constrangimentos financeiros e sociais, como era o caso das visitas e do édito da


graça que a precedia48.
É de notar que os inquisidores, na sua carta de 1724, se referem a que os
moradores das duas aldeias se achavam denunciados por “culpas de gentili-
dade”49. Precisamente, o emprego da categoria no singular revela
intencionalidade por parte do tribunal, pois “gentilidade”, na documentação in-
quisitorial entre o segundo quartel do século XVII e os meados do século XVIII,
expressa um acto que implica um abandono da fé católica em favor da “seita dos
gentios”50. Isto mesmo nos reforçam os inquisidores de Goa em 1735, quando
assinalam que “quazi todas as aldeas da Prouincia de Salçete, Jlhas de Goa,
Prouincias de Bardes, e Norte se achão indiciadas de Complicidades em obseru-
ancia de ritos gentilicos, que continuão desde o tempo em que aparentemente
se conuerterão a feé de Jezus Christo”51. A definição dos comportamentos dos
naturais como “cumplicidades” mantém a sua interpretação no campo semân-
tico da dissidência em matéria de fé, na medida em que o termo remete para o
carácter colectivo e dissimulado das sociabilidades heréticas, que é o retrato que
os inquisidores de Goa nos proporcionam nesta década de 1730. Os inquisidores
afirmam explicitamente que esta cumplicidade era o resultado de um “conselho”
dos culpados que se reunira para denunciar os habitantes de castas inferiores,
salientando que “estão todos consselhados, unidos, e comminados huns de ou-
tros para não confessarem suas culpas, e tão graues, nem descubrirem os
complices, que são abonados, e principais pellos não destruirem, e somente os
pobres que nam tiuerão que perder”52. Imputa-se, aqui, a responsabilidade da
cumplicidade aos gancares, isto é, às principais linhagens responsáveis pela ad-
ministração das aldeias, de casta brâmane ou charodó53. Os inquisidores
diferenciavam os delitos cometidos pelos cristãos de casta inferior dos que eram
perpetrados pelos gancares, sugerindo que a gravidade dos primeiros era menor

48
Feitler, “A Inquisição de Goa e os nativos”, 107-108.
49
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Dezembro de 1724, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 6. s/f.
50
Lourenço, “On Gentilidade as a Religious Offence”, 207-248.
51
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de
Janeiro de 1735, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 16, s/f.
52
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 23 de
Dezembro de 1724, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34,doc. 6; Carta da Inquisição de
Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de Janeiro de 1727, em Goa.
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 8, s/f.
53
Ibid.
[167]
que a dos segundos. Conforme declaravam os juízes em outra carta, a “rostica
malicia” dos réus fazia com que falseassem a declaração dos factos e dos cúmpli-
ces, tornando-se-lhes difícil apurar a verdade54.
O perdão geral entende-se, por isso, como uma tentativa de debelar um
problema de grandes proporções, designadamente, o da renúncia concertada
dos moradores de várias aldeias a uma escala massiva. Por esse motivo, os inqui-
sidores clarificam que os naturais da terra “deprehendidos no crime de hæresia
e appostasia” deveriam ser os beneficiários do perdão geral, o qual, de entre to-
dos os meios considerados, era o único considerado como verdadeiramente
eficaz. Além do mais, asseguravam, não haveria espaços para manter sob prisão
tanta gente, nem meios para a sustentar55.
Nesta exposição dos inquisidores ao inquisidor-geral, o que deve ser sali-
entado é, precisamente, o facto de a proposta ser acompanhada de uma posição
acerca da eficácia do ministério inquisitorial que, apesar de incidir sobre um pe-
ríodo concreto – os cerca de quinze anos desde a recepção das primeiras
denúncias sobre as aldeias da Assolná e Cuncolim – transporta um juízo de
fundo sobre a conversão. Ora, este balanço – profundamente negativo – coloca
a natureza do problema a montante do munus inquisitorial. Isto é, a falta de
eficácia do procedimento inquisitorial deixou de ser vista como uma questão que
pudesse ser resolvida por via de um ajuste desse mesmo proceder, mas exigia
uma regularização que dispensasse o juízo do tribunal. Os inquisidores, com
efeito, parecem reservar a sua actuação para um momento posterior, ao explici-
tarem que “teremos nós tambem tempo oportuno de prohibir muitos costumes
gentilicos, que por parecerem politicos se permitirão aos christãos, e agora te-
mos descuberto que muitos delles com o pretexto dos tais costumes obseruão os
ritos da gentilidade com repetidas Jdolatrias”56. Isso mesmo, de resto, levaram a
cabo em 1736, com a promulgação de um edital que Joaquim Heliodoro da Cunha
Rivara tornou famoso no século XIX, quando publicou as 52 proibições dos vá-
rios costumes “proprios da observancia dos ritos da seita gentilica” nele
contidas57. Mais de um século depois de João Delgado Figueira ter mantido uma
posição intransigente quanto à natureza “protestativa” dos sinais gentílicos na

54
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de
Janeiro de 1735, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 16, s/f.
55
Ibid.
56
Ibid.
57
Edital da Inquisição de Goa de 14 de Abril de 1736, em Goa, Joaquim Heliodoro da Cunha
Rivara, Ensaio Historico da Lingua Concanim (Nova Goa: Imprensa Nacional, 1858), 370.
[168]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

primeira metade do século XVII, os inquisidores de Goa promoviam, agora uma


leitura da saúde espiritual das cristandades locais segundo a qual as práticas ri-
tuais ou costumes tradicionais identificados como políticos ou civis, por terem
origem na “gentilidade”, não poderiam nunca ser verdadeiramente dissociados
desta e eram passíveis de reconduzirem o “cristão da terra” de volta ao universo
do gentilismo58.
No entanto, a consciência dos limites da missionação não foi encarada, na
estratégia dos juízes, como um argumento para diminuir a pressão inquisitorial.
Antes, a própria elaboração do edital atesta a necessidade de um incremento das
restrições, bem como da vigilância sobre as populações locais. De resto, os desa-
fios colocados pelo arrastar da visita de Assolná e Cuncolim já haviam motivado
os inquisidores a procurar soluções que obviassem, no futuro, problemas simi-
lares. Em 1727, a vontade de promover uma maior racionalização da actividade
dos naiques, quer pelo aumento do seu número, como pela sua distribuição ge-
ográfica, foi encarada como uma medida de prevenção. Estes elementos,
católicos locais que serviam como intérpretes e a quem se confiavam funções de
vigilância sobre as populações e diligências a mando dos comissários do Santo
Ofício, haviam visto o seu estatuto de oficiais privilegiados do tribunal ser reco-
nhecido em 1714-15, passando a existir um número delimitado destes elementos
nas províncias de Bardez e Salcete a partir de então59. Precisamente, no contexto
das visitas a Assolná e Cuncolim, os inquisidores defenderam a existência de
naiques extranumerários,
pois nos tem mostrado a experiençia que nenhũa das aldeas em que há
naique tem sido comprehendida toda em commum, mas somente em
particular algumas pessoas [...]; o que não uemos nas mais que não tem
naiques, porque todas estas em commum tem sido comprehendidas

58
Célia Cristina da Silva Tavares, “Inquisição ao avesso: a trajetória de um inquisidor a partir
dos registros da Visitação ao Tribunal de Goa”, Topoi 10, n.o 19 (2009): 20-21; Giuseppe Marcocci,
“Rites and Inquisition: Ethnographies of Error in Portuguese India (1560-1625)”, in The Rites
Controversies in the Early Modern World, ed. Ines G. Županov e Pierre-Antoine Fabre (Leiden;
Boston: Brill, 2018), 159-161; Lourenço, “On Gentilidade as a Religious Offence”, 224-232.
59
A 21 de Março de 1714, D. João V reconheceu o estatuto de oficial do Santo Ofício dos naiques
– e, por conseguinte, dos respectivos privilégios – que o inquisidor-geral propunha em oposi-
ção à tentativa de o ouvidor-geral do Crime, Miguel Monteiro Bravo, ter procurado avocar a
si a causa da agressão do naique Manuel Colaço a dois moradores de Salcete. Consulta de D.
Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, a D. João V, de 14 de Março de 1715. Lisboa,
ANTT, TSO, CGSO, liv. 381, fl. 29v, publ. in Angela Zampone, “O Santo Ofício na Cidade do
Nome de Deus na China” (Tesi di Laurea in Storia Moderna, Viterbo, Università degli Studi
della Tuscia, Facoltà di Lingue e Letterature Straniere Moderne, 2010).
[169]
como são Concullim, Assolná, Sarzora, Juá, Aldona, Reuorá, e Nadorá,
e outras mais uiuendo todos como gentios60.

A imagem negativa da cristianização das aldeias mantida pelos inquisido-


res nesta carta não se alterou nos anos seguintes, ressurgindo em conexão com
a proposta do perdão geral. As considerações em torno desta solução represen-
tam, possivelmente, o ponto de chegada ou o balanço de mais de um século e
meio de prática judicial contra “cristãos da terra”. Com efeito, os inquisidores
sustentavam a convicção que os cristãos naturais mantinham uma observância
contínua dos ritos gentílicos desde a sua conversão. Deste modo, o procedi-
mento judicial revelava-se insuficiente, sendo necessário, em conjunção com o
perdão geral, um esforço de instrução por meio de “pregadores idonios”, que os
deveriam absolver por via da confissão sacramental61. Com esta solução, os in-
quisidores ajustavam, na prática, dois procedimentos com trajectórias próprias:
por um lado, a forma anterior prevista pelos perdões-gerais de se conceder a
absolvição a uma pessoa que tivesse cometido delitos de heresia ou apostasia por
via da confissão sacramental; por outro lado, o estilo praticado em Goa, em que
os inquisidores concediam faculdades de absolvição no foro da consciência a al-
guns comissários (primeira metade do século XVII), bem como aos clérigos e
religiosos que iam em missão62.
Conforme podemos apreciar, a solução apresentada pelos inquisidores de
Goa previa um procedimento pensado em estreita articulação com a actividade
missionária. É de admitir que, no interior do Palácio do Sabaio, a maturação da
ideia tenha sido realizada em diálogo com os missionários das “Velhas Conquis-
tas” e, em especial, da Companhia de Jesus. Com efeito, o autor anónimo de um
parecer elaborado, possivelmente, por um dos deputados do Conselho Geral, re-
fere-se – com notório desprazer, deve notar-se – a uma “carta do Padre da
Companhia” que leu a par da exposição dos inquisidores de Goa63. Este jesuíta
teria proposto a concessão de um édito da graça, ideia igualmente rejeitada pelo
autor do parecer que, com indisfarçado agastamento, recomendou que o

60
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de
Janeiro de 1727, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 8, s/f.
61
Carta da Inquisição de Goa a D. Nuno da Cunha, inquisidor-geral de Portugal, de 22 de
Janeiro de 1735, em Goa. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 34, doc. 16, s/f.
62
Vd., supra, nota 22.
63
De acordo com o secretário do Conselho, as diferentes inquisições do Reino teriam sido
chamadas a pronunciar-se sobre esta proposta. No entanto, apenas me foi possível localizar
este que apresentamos em anexo. Cópia de parecer sobre a concessão de um perdão geral às
cristandades da Índia (sem data). Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 12, n.º 21. Cf. Anexo.
[170]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

missionário se dedicasse ao labor que lhe competia64. O envio simultâneo das


duas propostas – perdão geral e édito da fé –, somada às dificuldades sentidas
com a gestão das confissões dos moradores de Assolná e Cuncolim e à instru-
mentalização dos autos-da-fé como espaço de crítica missionária, deixa entrever
a possibilidade de as tensões em torno da cristianização de Salcete terem desem-
penhado um papel de relevo nas discussões sobre aplicação de um perdão geral
no Estado da Índia65.
O projecto não mereceu um acolhimento favorável por parte das autori-
dades inquisitoriais, tendo sido liminarmente rejeitado por D. Nuno da Cunha.
Sem surpresas, o parecer considerou a proposta como a matéria “de mais preju-
diciaes consequencias para o Santo Officio como bem o tem mostrado a
experiencia”66. Em Lisboa, onde o excesso de casos reportado pela Inquisição de
Goa pouca empatia gerou a este anónimo autor, que considerou o argumento
meramente temporal e pouco jurídico, a solução para as aflições dos inquisidores
do Estado da Índia residia nos princípios que, no Regimento, norteavam o modo
de o Santo Ofício lidar com o delito de heresia: a visita. A visita e as exortações
que deveriam ser feitas no sermão que a inaugurava constituíam remédio sufici-
entemente suave para aqueles que poderiam ter receio do castigo e que, ao não
se apresentarem, se mostravam, ipso facto, indignos de serem agraciados por um
perdão geral. Não obstante, admitia que a gravidade do delito poderia autorizar
a não-concessão de um édito da graça numa visita67.
Mas, sobretudo, o que causou desagrado ao autor do parecer foi a ausência
de qualquer penitência prevista para os delinquentes, perdendo-se deste modo
a esperança da sua emenda. Assim, o nosso autor recomendava duas vias para se
remediar a situação. Por um lado, devolver a administração das paróquias aos
religiosos, considerando-se que a sua entrega aos sacerdotes naturais da terra
tinha sido causa do aumento dos notórios erros da população, crítica esta que
denota um acolhimento do argumento jesuítico a respeito da qualidade dos no-
vos párocos de Salcete. Por outro lado, defendia o aumento do número de

64
Ibid.
65
Uma tal possibilidade reforça a proposta de Giuseppe Marcocci em anos recentes de que
uma reflexão acerca da Inquisição de Goa será tanto mais profícua quanto se procurar com-
preender as dimensões de complementaridade entre missões e Inquisição. Marcocci, a “A fé
de um império”, 82.
66
Cópia de parecer sobre a concessão de um perdão geral às cristandades da Índia (sem data).
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 12, n.º 21. Cf. Anexo.
67
Ibid.
[171]
missionários e de párocos para ensinarem “não sò a verdadeira doutrina, mas
tambem a mizericordia, com que a Santa Madre Jgreja por meyo do Santo Officio
recebe, e recebeu sempre os bons, e verdadeiros confitentes”68. Foi esta a reco-
mendação – de resto sensível a carências identificadas pelos inquisidores de Goa
– que, em sucessivas cartas entre 1736 e 1739, o secretário do Conselho Geral co-
municou ao seu distante tribunal, manifestando que o inquisidor-geral havia já
instado junto do monarca que reforçasse o envio de missionários para o Estado
da Índia.

Considerações finais
Desde os inícios do século XVII, a viragem a que se assistiu na tendência
judicial e repressiva da Inquisição de Goa, com uma maior expressividade das
populações locais entre os seus condenados, gerou um quotidiano institucional
que, a longo prazo, se revelou de difícil gestão para os inquisidores. A apostasia
de aldeias inteiras e o acumular de casos culminou, na primeira metade do sé-
culo XVIII, com uma proposta tradicionalmente entendida como a antítese do
ofício inquisitorial, quando os inquisidores de Goa apontaram a conveniência de
se conceder um perdão geral a essa maioria de réus que o corpo de juízes despa-
chava com evidente desgaste. O despacho colocava em evidência os limites da
cristianização, tema este em debate crescente nas décadas anteriores69.
Na década de 1730, com o conflito entre a Companhia de Jesus e o arce-
bispo frei Inácio de Santa Teresa e o renovar das resistências locais em Assolná
e Cuncolim como pano de fundo, a gestão destes acontecimentos acabou por
conduzir a discussão sobre as insuficiências da cristianização aos canais formais
de comunicação do Santo Ofício. É significativo que uma tão controversa pro-
posta tenha surgido precisamente no distrito onde, mais que qualquer outro,
essa questão se colocava de forma central e onde os missionários detinham uma
presença assídua na mesa inquisitorial.

68
Ibid.
69
Conforme noticiaram Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, em 1730, o Pai dos Cristãos de
Goa chegou mesmo a dirigir um memorial a D. Nuno da Cunha, solicitando ao inquisidor-
geral que o tribunal se mostrasse menos rigoroso para com os que se convertiam, como forma
de motivar os demais a receber o baptismo. A decisão de enviar o memorial sugere que, no
debate sobre a conversão, o procedimento do Santo Ofício seria uma questão que não estaria
a gerar consenso entre os diferentes agentes da cristianização. Marcocci e Paiva, História da
Inquisição Portuguesa, 327.
[172]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

Nascida do contacto directo com esta realidade, a ideia de um perdão geral


a ser concedido às cristandades da Índia expressa uma leitura pragmática da cir-
cunstância de um tribunal que detinha jurisdição sobre uma maioria de
população em permanente contacto com a fonte dos seus “erros” – o “gentilismo”
–; um tribunal cuja prática judicial seria, muito provavelmente, motivo de ten-
sões sociais e religiosas nas aldeias das “Velhas Conquistas”.
A necessidade de um perdão geral para o Estado da Índia, para além dos
efeitos práticos que daí poderiam advir – pacificação social, alívio procedimental
–, foi o sintoma de um problema maior relacionado com o impacto societário da
cristianização nas aldeias. A simultaneidade das propostas dos inquisidores e a
do jesuíta – mais modesta, talvez dirigida apenas a Salcete – sugere que a pro-
blemática das missões deverá ter sido uma questão abordada com maior
assiduidade no interior do Santo Ofício do que se poderia crer. Nesse sentido, a
inusitada e desconcertante iniciativa dos inquisidores de Goa alerta para a im-
portância de considerar uma mais estreita análise entre as estratégias
institucionais do tribunal e os desafios colocados às missões do Estado da Índia.
Não é crível que a formulação de uma proposta considerada, na história
do Santo Ofício, tão essencialmente contrária ao seu ministério, tenha sido le-
vada a cabo de ânimo leve. A sua recomendação pelos inquisidores é, em si
mesma, prova de que os desafios a que procurava responder eram sentidos com
uma gravidade que exigia medidas de grande impacto. O facto de, em paralelo,
as autoridades inquisitoriais em Lisboa terem recebido uma outra proposta des-
tinada a regular a vivência da fé pelos moradores das “Velhas Conquistas”,
apresentada por um missionário, coloca em evidência que o problema ultrapas-
sava as questões de procedimento inquisitorial e que as ordens religiosas – ou,
pelo menos, a Companhia de Jesus – se mostravam empenhadas na sua resolu-
ção.
Ulteriormente, a via idealizada pelos inquisidores de Goa para a superação
dos constrangimentos de funcionamento com que se confrontavam esbarrou em
outra realidade não menos custosa que a do próprio despacho: os fundamentos
ideológicos do ofício inquisitorial que, no limite, a proposta contrariava, colo-
cando em causa o seu propósito e autoridade. Tal entendimento inviabilizou
qualquer possibilidade de um debate profundo sobre a questão. No entanto, ao
contrário do que possivelmente se acreditava em Lisboa, a proposta não foi for-
mulada sob o espírito da resignação, mas antes animada pela convicção de que
se exigia um reforço das formas de controlo e de vigilância da gentilidade.

[173]
Para o inquisidor-geral, os problemas estruturais do Santo Ofício de Goa
não poderiam, de forma alguma, ter uma solução em detrimento da função in-
quisitorial. Seguramente sem dar-se conta, D. Nuno da Cunha aventava aos
inquisidores de Goa um caminho proposto quase dois séculos antes por Fran-
cisco Xavier, quando a empresa missionária sob os auspícios do padroado régio
se encontrava nos seus inícios: a actuação paralela de missionários e inquisidores
em apoio à saúde espiritual dos novos cristãos. Uma diversidade de experiências
sobre a cristianização separava as expectativas de Xavier, há escassos anos na
Ásia, dos anos de prática judicial acumulada pelos juízes. Que, em Lisboa, se
propugnasse uma solução que ecoava propostas formuladas nas etapas iniciais
da missionação no Estado da Índia mostra como, no diálogo com a longínqua
sede, a distância era insuperável. Estreita como possa ter sido a comunicação
entre o longínquo tribunal e o seu inquisidor-geral, a correspondência não foi
nunca capaz de trazer aos Estaus o mundo da Inquisição de Goa.

Anexo: Cópia de parecer sobre a concessão de um perdão geral às cristandades


da Índia (sem data). Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, mç. 12, n.º 21.
A &.ª pareceu, que a materia dos Perdões Geraes foi sempre a de mais pre-
judiciaes consequencias para o santo Officio como bem o tem mostrado a
experiencia; e na occazião prezente serà mais prejudicial, que nunca pello muito
que tem grassado o Judaismo; e assim para que se trate de semelhante materia
não pode haver fundamento ou rezão algũa, que o persuada, nem ainda as que
consideraram para os Perdões Geraes antecedentes, e as que se ponderão em
hum papel, que sobre esta mesma materia fez o Bispo de Leyria que então era.
As que reprezentão os Jnquisidores de Goa de serem muitos os prezos, e os
carceres, e rendas poucos, são totalmente inattendiveis para o cazo prezente não
sò por serem meramente temporaes, e pouco juridicas; maz tambem por haver
outros remedios mais proprios; e devemos suppor, que sobre esta materia se
darà, ou terà dado a providencia necessaria sobre a qual se não manda, que a
Meza interponha o seu parecer.
Para o serviço de Deos e proveito dos culpados nos crimes de herezia o
remedio mais prompto, e importante que reconheceu o nosso Regimento lb. 1.º
tt.º 4. in principio he o das Vizitas, como nelle se declara. Por meio dellas se faz
certa àos culpados a mizericordia do santo Officio exhortãose os delinquentes à
que se aprezentem sem medo do castigo; e por esta cauza cessa o receio, que se
[174]
O PROJECTO DE UM PERDÃO GERAL PARA AS CRISTANDADES LOCAIS NA INQUISIÇÃO DE GOA
Miguel Rodrigues Lourenço

diz, terem da confiscação, e mais penas; e nem ainda os relapsos nos crimes de
que se trata podem temer a ultima pena pella rezão de noviter ad fidem conversi.
E para que tudo isto se faça publico, e notorio àos mesmos delinquentes teve o
mesmo Regimento a providencia de mandar que no sermão da Visita se fação
todas estas declarações, que constão do § 10 e 11.
Nestes termos provendo a nossa ley no70 cazo prezente de remedio tão su-
ave, e importante, não parece justo recorrerse à hum tão extraordinario como o
do Perdão geral que se julgou sempre de tão prejudiciaes consequencias; e
quando muito attendendo às circunstancias prezentes poderà S. Eminencia ac-
crescentar ào remedio das Vizitas todas aquellas graças, que couberem no seu
justo poder. //
E se os delinquentes forem tão obstinados, que se não queirão aproveitar
de tão suave, e saudavel conselho; por isso mesmo se fazem indignos de Perdão
Geral.
Nem tambem lhes parece justo nas circunstancias prezentes o remedio do
Edicto da Graça; porquanto ainda que alguns Doutores digão, que os senhores
Jnquisidores Geraes o podem conceder, muitos e gravissimos seguem, e compro-
vão a opinião contraria71 e nestes termos não parece rezão, que mandado
publicar se exponha à censura dos emulos do santo Officio se for por ordem de
S. Eminencia e para se recorrer à Sè Apostolica não são bastantes as rezões, que
se referem nesta proposta, e talvez serà de prejudiciaes consequencias para o
santo Officio.
Fazse muito digno de reparo, que assim pella conta dos Jnquisidores como
pella carta do Padre da Companhia se não propoem petição, ou signal algum de
penitençia, nem esperança provavel de emenda dos delinquentes, antes tudo hè
exagerar a sua pertinacia nos crimes, fazendose por ella mesma muito mais in-
dignos de qualquer perdão.
A enormidade dos crimes à que recorreo o Padre da Companhia tão longe
esta de o facilitar, que o dificulta; assim o rezolve Carena72 affirmando, que ainda
que para os edictos da Graca seja cauza sufficiente o delinquir todo hum povo,
isto se deve limitar quando o crime he gravissimo.

70
Corrigido de: “por”.
71
À margem: “Carena 2.ª p.e de Sponte comparentibus tt.º 18 § 4 n.º 17”.
72
À margem: “Carena secunda § 5 & 6.º videtur”.
[175]
Alem das rezões ponderadas se faz tambem muito digno de reparo, que
estes erros sò crescerão e se augmentarão tanto despoiz que as Parochias se tira-
rão da administração dos religiozos entregandose à canarins; do que tudo se
pode muito bem entender, que o milhor, e mais natural remedio serà, buscàlo
pellas mesmas cauzas por que se introduzirão os erros, restituindose as Jgrejas à
milhores Parochos, que preguem, e destruão as falsas doutrinas dos Canarins.
Procuremse para os culpados o maior numero, que poder ser de Missiona-
rios; e para isso se deve dirigir mais propriamente o Zelo deste Padre da
Companhia. Estes mesmos Missionarios, e Parochos lhes ensinarão // não sò a
Verdadeira doutrina, maz tambem a mizericordia, com que a Santa Madre Jgreja
por meyo do santo Officio recebe, e recebeu sempre os bons, e Verdadeiros con-
fitentes; e para as boas, e Verdadeiras confissões hè mais adequado o remedio
das Missões, que o das temporalidades à que recorrem os Jnquisidores de Goa, e
as insinuações do Padre que bem podia, e devia não querer fazer seu, ou da sua
religião este negocio pella conta, que diz tem dado ào seu Geral. E athè por esta
Via se faz muito mais sospeitozo o Perdão Geral, que se pertende; e que pella
mesma Via o queirão tambem procurar os christãos novos. Cumpra este, e os
maes Padres da Companhia a obrigação, e instituto da sua religião, que hè o de
pregar, e ensinar a doutrina Christãa, e não se intrometa nas materias perten-
centes ào santo Officio a quem Deos Nosso senhor inspirarà os meyos para [sic]
efficazes para o seu santo serviço e exaltação de nossa santa Fè Catholica.

[176]
PARTE 3

Perseguidos, Réus e Delitos


Na Casa do Tormento: A tortura de Sodomitas na
Inquisição Portuguesa1
Luiz Mott

O tormento não é pena, mas um meio que o direito


aprovou para se averiguar a verdade.
D. Afonso Manoel de Menezes, Deputado do Santo
Ofício, Lisboa, 17052

Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento


ou castigo cruel, desumano ou degradante.
Declaração Universal dos Direitos Humanos, artigo
5º, ONU, 19483

Dentre os delitos sexuais perseguidos pela Inquisição Portuguesa - biga-


mia, solicitação e sodomia - a abominável e nefanda cópula anal, além de ser “o
mais torpe, sujo e desonesto pecado”, era o único a ser tão severamente punido
quanto as heresias, passível de sequestro, tortura e fogueira. Não implicava con-
tudo a obrigatoriedade da abjuração de leve suspeito na fé, o atestado definidor
dos crimes contra a fé, o que descarta ad limine, qualquer hipótese da sodomia
ser considerada heresia pela casuística teológica e inquisitorial.
Sodomitas e fanchonos eram criminosos perseguidos pelos tribunais do
Rei, Bispo e Inquisição, além de serem alvo de cruel homofobia estrutural, bodes
expiatórios sempre responsabilizados pelas calamidades supostamente desclan-
chadas no presente ou no futuro pela ira divina.
Esse artigo tem como background a análise de aproximadamente 500 pro-
cessos de sodomia dos Tribunais da Inquisição de Lisboa, Coimbra, Évora e Goa,
onde localizamos 101 sodomitas (20%) que foram efetivamente torturados. Re-
constituímos a partir desse corpus documental o perfil demográfico desses réus,

1
Agradeço aos professores Daniela Calainho, Yllan de Mattos pela generosa indicação de do-
cumentos para esse artigo e ao professor Wallas Jeferson de Lima pela atenta revisão e
sugestões.
2
Processo de António de Matos, 1705 (20-6-1705). Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 5106, fl. 111.
3
https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
os violentos procedimentos regimentais de que foram vítimas, suas reações na
casa de tormentos e o desfecho desses cruéis suplícios. Tortura, nunca mais!

Definições: “Tormento: é a pena corporal que se dá ao preso, contra o qual


haja prova semiplena e indícios bastantes da culpa, que se lhe imputa.” (Dicio-
nário Bluteau, 1712)4.
“Tortura judicial (quaestio rigorosa) quer dizer aqueles meios de coação
física utilizados para obter do réu a confissão de um crime – prova mestra do
processo inquisitorial – e de pessoas suspeitas ou informações de testemunhos
reticentes e detalhes particulares relativos a um evento criminoso ou aos cúm-
plices” (Dizionario Storico dell’Inquisizione, 2010)5.
“Tortura: imposição deliberada, sistemática e desconsiderada de sofri-
mento físico ou mental por parte de uma ou mais pessoas, atuando por própria
conta ou seguindo ordens de qualquer tipo de poder, com o fim de forçar uma
outra pessoa a dar informações, confessar, ou por outra razão qualquer” (Asso-
ciação Médica Mundial, 1975)6.

Antiguidade e universalidade da tortura: Lastimavelmente, a antiguidade


e a universalização da prática da tortura confirmam e dão razão à máxima latina
homo homini lupus, sentença original do dramaturgo Plautus (254-184 a.C.), re-
cuperada nos tempos modernos por T. Hobbes (1588-1679), “o homem é o lobo
do homem”. De fato, tanto o Código de Hamurabi (Sec. 18 a.C.), ao consagrar a
Lei de Talião, “dente por dente, olho por olho” 7, como no Antigo Testamento,
ao determinar "torturas e interrogatório dobram o mau escravo”8, naturalizaram
o uso da violência física por parte dos donos do poder, seja como castigo peda-
gógico aos delinquentes, seja como estratégia para obter a confissão de supostos
delinquentes. A paixão e morte de Cristo são o exemplo mais conhecido dessa
crueldade praticada legalmente pelas autoridades contra um fora da lei. A tor-
tura praticada pelos romanos contra os santos mártires cristãos nos primeiros

4
Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico,
botânico (Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu; Lisboa, Officina de Pascoal da
Sylva, 1712-1728).
5
Dizionario Storico dell'Inquisizione, dir. Adriano Prosperi (Pisa: Edizioni della Normale,
2010), vol. 3.
6
http://www.dhnet.org.br/dados/projetos/dh/br/tnmais/historia.html
7
Christopher Einolf, “The Fall and Rise of Torture: A Comparative and Historical Analysis”,
Sociological Theory 25, n.º 2 (Jun., 2007): 101-121.
8
Eclesiástico, Cap.33:28.
[180]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

séculos ultrapassa a imaginação até do próprio diabo. Calvinistas holandeses no


Rio Grande do Norte seiscentista (1645) martirizaram 30 católicos luso-brasilei-
ros recentemente beatificados, arrancando-lhes ainda vivos o coração e as
vísceras, descarnando o corpo até os ossos, um horror!9 Nas prisões durante a
Ditadura Militar, subversivos eram mortalmente espancados, passavam horas a
fio dependurados no ‘pau de arara’, eletrocutados na genitália, atirados de avião
em alto mar. A tortura foi combatida com veemência no século XVIII por Mon-
tesquieu e Cesare Beccaria, sendo abolida, pioneiramente, por Frederico II da
Prússia (1740) e problematizada inclusive no último Regimento da Inquisição
Portuguesa de 1774: “Sendo a tortura uma cruelíssima espécie de averiguação de
delitos, inteiramente estranha aos pios e misericordiosos sentimentos da Igreja
Mãe, a mais segura invenção para castigar um inocente fraco e para salvar um
culpado robusto ou para extorquir a mentira de ambos, a mais exorbitante das
regras do Direito”10. Não obstante tais críticas tão esclarecidas, o Santo Ofício
continuou torturando em casos especiais.

Tortura e pena de morte contra os sodomitas: No caso específico da tortura


e punição aos sodomitas, a história registra, há dois milênios antes de Cristo, a
mítica destruição incendiária de Sodoma e Gomorra, a pena de morte por ape-
drejamento determinada pelo Levítico, o afogamento e degola durante a Idade
Média, a queima nas fogueiras inquisitoriais, o enforcamento na Idade Moderna
e ainda hoje, dentre os 71 países africanos e orientais que persistem nesse terceiro
milênio em criminalizar a população LGBT, 7 mantêm a pena de morte11.
A tortura praticada pelos Tribunais do Santo Ofício da Inquisição em toda
Cristandade - do século XIII ao XIX – é herdeira e se insere nesse contexto de
extrema violência legalmente praticada pelas Autoridades Civis, Religiosas e Mi-
litares. Tortura praticada inclusive dentro das famílias, onde cabia aos machos
disciplinar as mulheres de sua casa e aos adultos espancar crianças, adolescentes
e escravos. Palmatórias, chicotes, varas de marmelo, correias e chinelos eram
instrumentos de castigo corporal indispensáveis nas casas de nossos antepassa-
dos. Como lembrava no início dos setecentos o jesuíta Antonil, reitor do Colégio
da Bahia, “no Brasil, costumam dizer que para o escravo são necessários três PPP:

9
Jose Freitas Campos, O sangue dos mártires: A história dos primeiros mártires do Brasil (São
Paulo: Edições Loyola, 2017).
10
Regimento do Santo Ofício da Inquisição dos Reinos de Portugal (Lisboa: Oficina de Miguel
Manescal da Costa, 1774), liv. II, título III, Dos Tormentos.
11
Wayne Dynes (ed.), Encyclopedia of Homosexuality (New York: Routledge, 1990).
[181]
Pau, Pão e Pano”12. Aliás, opinião totalmente de acordo com o ensinamento bí-
blico: “O que não faz uso da vara, odeia seu filho, mas o que o ama, desde cedo
o castiga”13.
No caso de Portugal, a tortura praticada pela Santa Inquisição, a que cha-
mava de “tormento”, se apropriou da milenar tradição punitiva europeia,
manifesta nas Ordenações do Reino (Afonsina, Manuelina e Filipina), no Direito
Canônico e na Jurisprudência. Data de 1252 a Bula Ad extirpanda, do papa Ino-
cêncio IV, autorizando à Inquisição praticar a tortura como meio para forçar a
confissão dos suspeitos. No Medievo o uso da tortura esteve intimamente ligado
à busca da verdade, como corretamente demonstrou Foucault14, sendo a confis-
são a rainha das provas, a probatio probatissima. Tal prática teve como
inspiração e modelo sobretudo três obras católicas basilares, reeditadas dezenas
de vezes, com presença obrigatória nas bibliotecas dos tribunais: a Practica In-
quisitionis haereticae pravitatis, (Manual do Inquisidor), de Bernard Gui, escrito
entre 1319 e 1323, o Directorium inquisitorium, de Nicolás Eymeric (Manual dos
Inquisidores), original de 1376, adaptado em 1578 por Francisco Peña, e a Com-
pilacion de las Instrucciones del Oficio de la Santa Inquisicion, de Thomas de
Torquemada (1484), coincidentemente, todos inquisidores da Ordem dos Domi-
nicanos, esse último, descendente de conversos judeus. Podemos dizer que a
Inquisição aperfeiçoou e profissionalizou os antigos métodos de aplicação a tor-
tura, procurando evitar derramamento de sangue – “Ecclesia abhorret
sanguinem”, assim como marcas corporais de sua execução, criando minuciosa
contabilidade de equivalência entre diferentes instrumentos punitivos e relaci-
onando a maior ou menor intensidade dos castigos à qualidade estamental dos
acusantes. Os quatro Regimentos da Inquisição Portuguesa, datados de 1552,
1613, 1640 e 1774, legislam detalhadamente sobre a organização judiciária e a pro-
cessualística do Santo Ofício, todos eles dedicando ao menos um capítulo ao
tormento, sendo o mais minucioso o terceiro, Regimento do Santo Ofício da
Inquisição dos Reinos de Portugal, ordenado por mandado do ilustríssimo e reve-
rendíssimo senhor Bispo, Dom Francisco de Castro, Inquisidor-Geral do Conselho
de Estado de Sua Majestade, 164015. Importante salientar que os Inquisidores

12
André João Antonil, Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e minas (1711) (Brasília:
Senado Federal, Conselho Editorial, 2011).
13
Provérbios, Cap.13:24.
14
Michel Foucault, Vigiar e Punir: nascimento da prisão (São Paulo: Edições 70, 2013).
15
Tormento nos Regimentos: 1552, cap. 46; 1613, cap. 51\52; 1640, título 14;1774, livro II, título
3.
[182]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

faziam o uso da tortura apenas quando o réu não confessava ao ser denunciado
pelo Promotor na Prova de Justiça e após as insistentes admoestações que lhe
davam nas sessões In Genere e In Specie e mesmo assim, continuava negando as
denúncias. Jamais torturavam logo que o réu chegava nos cárceres e apenas em
caso de forte presunção de culpa, quando na ausência de outras “provas legais”,
seriam forçados a absolver o réu. Os condenados à morte não eram torturados.

Tormentos aplicados pela Inquisição: Nos citados manuais da Inquisição


medieval são referidos até uma dezena de instrumentos de tormento, diversa-
mente do Santo Ofício de Portugal, onde eram aplicados três modos de tortura:
a polé, o potro e a água. Tormento com fogo, empalamento, as horripilantes ro-
das com lâminas, etc., foram sim usados pela justiça civil medieval, não pela
Igreja Católica e muito menos pelas Inquisições modernas. Diz o citado Regi-
mento de D. Francisco de Castro: “O tormento será ordinariamente de polé; e
quando o médico e o cirurgião entenderem, que os homens por fraqueza, ou
indisposição o não poderão sofrer de polé, lhe será dado no potro”.
A “polé de tormento” é assim descrita pelo dicionarista Bluteau (1712):
“madeiro comprido e direito e na parte superior feito a moda de forca
e na extremidade dela guarnecida de uma polé (roldana) com corda,
com a qual se levanta no ar o paciente com as mãos atadas detrás das
costas e se deixava cair até perto do chão com grande ímpeto que se lhe
deslocavam os braços”.

O potro, referido no Dicionário Moraes (1789)16 como “cavalete de ator-


mentar”, era uma espécie de estrado ou catre de madeira e ferro onde deitava-se
o réu que era atado com correias de couro em oito partes das pernas e braços e
de acordo com a gravidade das acusações e eventuais omissões na confissão, iam
os carrascos apertando o torniquete de 1/4 de volta até três voltas completas.
Ambas torturas doloridíssimas que arrancavam urros das vítimas e graves lesões
corporais.

Estatísticas e Demografia: Dentre mais de 500 processos de sodomitas que


pesquisamos nos Arquivos do Santo Ofício na Torre do Tombo, tendo como
marco cronológico 1572-1705, localizamos um total de 101 (20%) sodomitas su-
pliciados dentro dos cárceres. Como de praxe, predominou também com este
segmento, o tormento da polé (63%), seguido do potro (37%) e apenas um

16
Antonio Moraes Silva, Diccionario da lingua portuguesa (Lisboa: Na Officina de Simão
Thaddeo Ferreira, 1789).
[183]
suplício com água. Nenhuma referência ao tormento de fogo. Portanto, como
antecipamos, 1/5 dos réus presos e processados foram efetivamente torturados,
cifra que contesta as exageradas fake news divulgadas notadamente pelos raivo-
sos protestantes e libertinos logo após a extinção desse Tribunal da Fé. Nossos
dados discordam de outros “estudos disponíveis (onde) constata-se que a tortura
foi aplicada em cerca de 11% dos processos e, quando imposta, 83% dos que a
sofreram foram cristãos-novos judaizantes e 12% agentes de práticas mágicas17.
Apenas 4% dos sodomitas torturados eram cristãos-novos entre 25% dos 500
processados foram efetivamente torturados. Salvo erro, depois cristãos-novos,
foram os sodomitas os mais vitimados com pela Inquisição com tortura e pena
de morte18.

Cronologia dos sodomitas torturados: O século XVII, sobretudo durante o


período filipino, foi quando o Santo Ofício português mais prendeu, torturou e
queimou fanchonos e sodomitas, certamente por influência do maior rigor ho-
mofóbico das inquisições espanholas. Sodomitas torturados – Século XVI: 17
(17%); Século XVII: 83 (82%); Século XVIII: 1 (0,9%); Total:101.

Cor\etnia dos sodomitas torturados: Branco: 84 (84%); Mulato: 8 (8%);


Cristão-Novo: 4 (4%); Mouro: 2 (2%); Italiano: 1 (1%); Hindu: 1 (1%). Como se
observa, 91% dos sodomitas torturados eram brancos e cristãos-velhos, en-
quanto dos 11% “de cor”, 6% eram escravos. Ao criminalizar a sodomia em 1571,
D. Sebastião atribuía a expansão do nefando pecado no Reino ao contato com
estrangeiros...19

Idade dos sodomitas torturados: 10-19 anos: 18 (19%); 20-29 anos: 36 (38%);
30-39 anos: 13 (14%); 40-49 anos: 14 (15%); 50-59 anos: 6 (6%); 60-82: 7 (7%).
Brás Nunes, 1666, foi o mais jovem fanchono torturado: tinha apenas 10 anos
quando os inquisidores de Évora dependuraram-no na polé. Era tão magrinho que

17
Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) (Lisboa:
A Esfera dos Livros, 2013), 200.
18
Luiz Mott, “Justitia et Misericordia: a Inquisição Portuguesa e a repressão ao nefando pecado
de sodomia”, in Inquisição: Ensaios sobre mentalidade, heresias e arte, org. A. Novinsky e M.
L. Tucci Carneiro (São Paulo: Edusp, 1992), 703-738.
19
“Vendo eu como de algum tempo a esta parte foram algumas pessoas de meus reinos e
senhorios culpadas no pecado nefando, de que eu recebi grande sentimento pela graveza de
pecado tão abominável e de que meus reinos pela bondade de Deus tanto tempo estiveram
limpos...” Lisboa, ANTT, Chancelaria de D. Sebastião e D. Henrique, liv. 2 (1571).
[184]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

entrava no calabouço passando por entre as grades: “posto no calavre, se lhe deu
um solavanco, com o que foi mandado desatar para ser curado”20.
Segundo praxe judiciária consuetudinária, eram isentos de tortura mulhe-
res grávidas, crianças e idosos, embora nem sempre tais isenções tenham sido
observadas. Três sodomitas passavam dos 60 anos quando atormentados: entre
eles, o frade Mínimo Francisco Manrique (1610), que mesmo alegando ser muito
idoso e ter uma virilha quebrada, não foi poupado. Examinado pelos médicos,
atestaram que de fato apresentava “uma fratura muito grande na virilha direita,
abaixo da bolsa dos testículos, pelo que usa funda de couro”. Deliberaram então
os reverendos carrascos que posto não poder suportar a polé, que fosse torturado
no potro, vestido como fazem com as mulheres, em respeito à sua dignidade
sacerdotal. No tormento, ouviram-no gritar: “Virgem Madre de Deus, lembrai-
vos de mim! Vós sabeis que não cometi tal pecado. Misericordias Domini, in ae-
ternum cantabo tibi! Deus verdadeiro, valei-me! Senhores Inquisidores, que são
sacerdotes como eu, tenham piedade de mim! ” Tais clamores foram em vão,
assim como a sugestão cautelosa dos médicos: foi levantado até a roldana da
polé. Vendo porém que “era muito velho e quebrado, e corria muito risco se le-
vantado de novo”, estancaram aí o castigo21. Responderia a maior severidade na
aplicação dos suplícios a impulsos sádicos desses carrascos assalariados pelo re-
verendo tribunal e a casa de tormento espaço privilegiado dos psicopatas do
Antigo Regime?

Tribunal do Santo Ofício de Coimbra: 2246 sentenciados entre 1567-1605;


420 sentenças de tormento (18% do total de processados); até 1595 somente polé,
introduzindo-se depois o garrote de água; 51% dos réus confessaram logo após a
sentença de tormentos22.

Tribunal do Santo Ofício de Évora: A sala de tormento ficava no térreo do


edifício, próximo ao açougue no Templo de Diana. De 5463 processos da Inqui-
sição de Évora, em 570 aplicou-se a tortura (10,4%). Desses, 57,8% eram
mulheres e 42,2% homens. Idade das vítimas, de 14 a 80 anos. Maior frequência

20
Luiz Mott, “Desventuras de um sodomita português no Brasil seiscentista”, in O Sexo Proi-
bido: Gays, Virgens e Escravos nas garras da Inquisição (Campinas: Editora Papirus, 1988), 75-
129.
21
Processo de Frei Francisco Manrique, 1610. Lisboa, ANTT, TSO, IC, proc. 169.
22
Elvira Cunha de Azevedo Mea, A inquisição de Coimbra no século XVI: a instituição, os ho-
mens e a sociedade (Porto: Fundação Eng.º António de Almeida, 1997).
[185]
dos tormentos, entre 1660-69 e 1740-59, predominando o crime de feitiçaria
(30,1%), sodomia (13,3%) e Judaísmo (10,7%)23.

Ocupação, profissão e categoria social dos sodomitas torturados: O “mau


pecado” sempre grassou em todos estamentos e grupos sociais, embora pela sua
maior frequência, foi chamado ocasionalmente de “vício dos clérigos” ou “vício
dos nobres”. Dentre os supliciados, 26 sodomitas se distribuíam nesses misteres:
oficial mecânico, alfaiate, sapateiro, merceeiro, pedreiro, engomador, fiador,
costureiro, negociante, fiador, músico, dançarino; 25 eram professor, estudante,
escrivão, moço do coro, cirurgião, médico, boticário, advogado, soldado, músico;
16 eclesiásticos: padre, frade, sacristão: 14: pajem, criado; 9: escravo; 7: lavrador,
guarda gado, trabalhador; 3: esmoler, sem profissão; 2: nobre. Como se constata,
também eclesiásticos e nobres, detentores de tantos privilégios legais no antigo
regime, apesar de argumentarem contra, eram passíveis de sofrerem tortura, as-
sim como a pena vil dos açoites e serem relaxados ao braço secular.

Sentença dos sodomitas torturados: Um total de 50 réus foram condena-


dos ao degredo para Angola, Brasil, Mazagão, fronteiras do Reino, São Tomé,
Príncipe, Castro Marim; 33 para as galés, perpétuas ou de 3 a 10 anos; 7 relaxados
(queimados na fogueira); 2 condenados a cárcere, convento.

Primeiros sodomitas torturados: Em 1572 o Tribunal de Évora torturou o


primeiro sodomita, Aleixo da Rosa, 26 anos, mulato, casado, diminuto, tormento
na polé – “dando grandes gritos”, condenado a 10 anos de galés; em 1586, em
Lisboa, Osmão Turco foi torturado com água, o primeiro sodomita a ser relaxado
pela Inquisição em Portugal; em 1610 é vez de Coimbra: Frei Francisco Manrique,
castelhano, 60 anos, da Ordem dos Mínimos, após ser levantado até à roldana,
foi condenado a 10 anos de galés.

Últimos sodomitas torturados: 1654, Coimbra, Padre Gregório Martins Fer-


reira, 47 anos, Deão da Sé do Porto, Doutor em cânones por Salamanca e
Coimbra, atado perfeitamente por ½ hora no potro; 1686, Évora, Estevão Luís, o
Cobra, mulato, 82 anos, ex-escravo, “vive de esmolas, no tormento levou dois
tratos espertos na polé, 6 anos degredado para o Brasil, mais açoites e abjuração
veemente por feitiçaria”; no ano de 1705, em Lisboa, Antônio de Matos, 36 anos,

23
Michèle Janin-Thivos Tailland, Inquisition et société au Portugal: Le cas du tribunal d'Évora
1660–1821 (Paris: Centre Cultural Calouste Gulbenkian; Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. 2001).
[186]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

sapateiro, “atado nas oito partes dos braços e pernas e dada meia volta, confessou
15 atos de sodomia”, foi torturado duas vezes e degredado a 7 anos de galés.

Sentença do tormento e termo de admoestação: Ainda na sala de audiên-


cias, todos os réus deviam postar-se de joelhos, voltados para a mesa de
despachos, onde era lido o termo de admoestação antes da sentença do tor-
mento: assim se passou com um tal João Dias ou João Cabra24, indiano de Chaul,
50 anos, “escravo alvo que pinta de branco e que esteve na Armanda que lançou
os holandeses fora da Bahia”, preso em 1626 acusado de diversas copulas sodo-
míticas dentro de um pombal em Lisboa. Eis seu termo de admoestação antes
da sentença do tormento:
Dizem os Inquisidores que ele, réu, fora muitas vezes admoestado para
se confessar, (mas) fazendo de mau conselho não quis confessar a ver-
dade de suas culpas como era obrigado então se fará com ele certa
diligência que mal poderá receber porque trabalhosa e perigosa, por-
tanto, que aproveite da última oportunidade para confessar
inteiramente suas culpas.

Como a maioria dos réus, também esse nada acrescentou nesse momento,
sendo então conduzido à casa dos tormentos.

Casa de tormento: Reza o Regimento de 1640:


Terão as Inquisições cárceres secretos, seguros, bem fechados, & dis-
postos de maneira, que haja nelles corredores separados; hus que sirvão
para os homes, & e outros para molheres, & se atalhe a comunicação
entre os prezos, para maior observancia do segredo, pelo grande preju-
ízo do contrario se seguiria ao Santo Officio. Cada hum dos carceres
terà portas fortes, & seguras... que estarão sempre fechadas. Haverá
neste carcere outra caza mais, no lugar que parecer conveniente, com
os instrumetos necessarios para nella se dar tormento aos prezos, que
a ele forem condenados25.

Esse mesmo Inquisidor, D. Francisco de Castro determinou que fossem


feitas plantas detalhadas dos quatro tribunais, Lisboa, Coimbra, Évora e Goa,
permitindo-nos visualizar que a Casa de Tormento do Tribunal de Lisboa ficava
no andar térreo, identificada na dita Planta sob o número 15, “onde dão tor-
mento”. Seu tamanho equivalia aproximadamente ao dobro do espaço das celas

24
Processo de João Dias, 1626. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2545.
25
REGIMENTO do Santo Officio da Inquisição dos reynos de Portugal: ordenado por mandado
do Illmo & Revmo. Snor Bispo Dom Francisco de Castro, Inquisidor Geral do Conselho d’Estado
de S. Magde (Lisboa: Manoel da Sylva, 1640), título 14.
[187]
onde eram mantidos trancafiados três ou mais réus; dispunha tal casa de três
portas: a principal, por onde se entrava, cita num ângulo do corredor das celas
para a dita casa do tormento; uma porta menor, interna, na extremidade es-
querda desse salão, que se comunicava com um cômodo pequenino (n.16), “onde
estão os ministros nesse tempo”, saleta essa com uma saída para um espaço ex-
terno (n.17), referido como “descoberto”, fechado por duas portas externas e
finalmente uma terceira porta, à extrema direita “onde dão tormento”, direcio-
nada às “escadas que sobem aos cárceres altos” (n.11). 26 Consta, outrossim, que
a sala de tormento de Évora ficava igualmente no térreo do edifício do Santo
Ofício, próximo ao açougue no Templo de Diana.
Não encontramos informação sobre o tamanho da casa do tormento, a não
ser um dos castigados que disse ser “pequena”. Além das citadas portas com
trancas, pela gravura da dita “planta”, tudo leva a crer que não havia janelas,
certamente para evitar que os altos clamores e gritos dos supliciados fossem ou-
vidos por terceiros. Não obstante, o certo é que dos cárceres mais próximos os
presos ouviam os gritos dos torturados. Na Casa de Tormento, conforme se de-
duz pela leitura de centenas de documentos e processos dos réus torturados,
assim como pelas gravuras da época, entre o solo e o alto da roldana, no teto,
provavelmente bem mais elevado que os 3 metros de nosso atual “pé direito
alto”, talvez chegasse a mais de 5 metros de altura, havendo contíguo à polé, um
uma espécie de degrau como um estrado mais elevado ou mesmo balcão, cha-
mado “lugar do libelo”, onde ficava uma mesa com um notário e deputado a
postos, afim de ouvir a confissão do réu dependurado no ar, que premido pela
insuportável dor, se decidisse a confessar a meio caminho antes de chegar ao
teto onde estava encravada a roldana. Também tais espaços são referidos na do-
cumentação como “primeiro sobrado” e “segundo sobrado” (“sobrado: o
assoalhado de um dos andares da casa”).

Na Casa do tormento: Ultrapassada a porta principal de entrada, que devia


estar sempre fechada,
logo na casa e lugar dos tormentos estando ali os Senhores Inquisido-
res, deu-se ao réu o Livro dos Santos Evangelhos em que pôs sua mão
direita para jurar, pelo que foi dito que pelo lugar em que estava e

26
Livro das plantas e monteas de todas as Fábricas das Inquisições deste Reino e India, orde-
nado por mandado do Illustríssimo e Reverendíssimo Senhor Dom Francisco de Castro, Bispo
Inquisidor Geral e do Conselho de Estado de Sua Majestade [...] Por Matheus do Couto, Ar-
quitecto das Inquisições deste Reino, 1634. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 470, fl. 4.
[188]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

instrumentos que nele se via, podia entender qual era a diligência que
com ele estava mandado fazer, portanto admoestam da parte de Cristo
Nosso Senhor e com muita caridade compadeça de si e não se queira
arriscar a tão manifesto perigo, como se lhe pode seguir do tormento
que ia em diante dos olhos por não querer confessar a verdade de suas
culpas. E por dizer que não tinha que confessar, oram chamados os
ministros e o réu mandado ir a tormento. E sendo despido dos vestidos,
foi assentado no banco, onde pelo Sr. Inquisidor, foi feito o protesto na
forma ordinária do Santo Ofício, a saber, que se ele neste tormento que-
brasse algum membro ou morresse a culpa seria sua e não dele
Inquisidor e mais ministros de tão Santa Inquisição, pois eles fazem
justiça e ele com tanto atrevimento se quer arriscar a tão grande pe-
rigo27.

Instrumentos e objetos presentes na Casa do Tormento: Através dos pro-


cessos e outros documentos, inclusive depurando gravuras da época,
conseguimos fazer o inventário dos instrumentos, objetos e mobiliário presentes
na Casa do Tormento, descrição inédita que não encontramos alhures tão deta-
lhada. Primeiramente, a polé com sua roldana e o potro, instrumentos principais
de tortura; são referidos banco, cadeira e escabelo onde os réus, despojados de
suas vestes, eram primeiramente acorrentados e fortemente atados antes de se-
rem içados na polé; aos que eram sentenciados para sofrer o tormento no potro,
já deitados sobre o estrado, colocava-se um colar de ferro no pescoço para im-
pedir que movimentasse a cabeça e o tronco quando supliciados. Para se prender
o réu na cadeira antes de ter suas mãos e braços amarrados, usava-se uma cor-
rente de ferro, certamente com um gancho que servia de fecho para impedi-lo
de levantar-se ou escapar, começando por enrolar os braços com uma correia
(tira de couro) para proteger e dar mais sustentação à munheca e parte inferior
do punho, em seguida seus pulsos e braços eram fortemente atados com cordas
mais grossas (de cânhamo, linho, etc.) e cordéis (mais finos). O calabre ou cala-
vre era uma corda grossa como as que são amarradas as naus no ancoradouro,
sendo através dele que o réu era alçado na polé. Arrocho é o nome do pau de dar
voltas na corda. Além desses instrumentos de suplício, constava na Casa do Tor-
mento mesa com tinteiro e penas, o livro dos Evangelhos, o processo do réu e
folhas em branco para incluir detalhes dos procedimentos e novas declarações
do torturado, cadeiras para o Inquisidor e notário. Talvez jarrões de água para
saciar a sede dos oficiais ou jogar na cara e reanimar os réus desfalecidos ou
desmaiados.

27
Processo de João Dias, 1626. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2545.
[189]
Despido de seus vestidos: Como acabamos de ver, o primeiro procedi-
mento dos oficiais era despir ou despojar o réu de seus vestidos, na época,
sinônimo de roupa em geral. Não há notícia que ficassem completamente nus,
devendo conservar alguma faixa de pano (perizônio) escondendo suas partes pu-
dendas, como parece ter sucedido com o Cristo ao ser atormentado. Diversas
gravuras da época confirmam tal detalhe, com exceção de algumas raras pinturas
fantasiosas mostrando mulher jovem completamente nua, sofrendo o tormento
da água sob o olhar libidinoso de velhos algozes. Protesto fake de protestantes...
Repetidas vezes informam os processos inquisitoriais: “Despojado de seus vesti-
dos o réu foi acorrentado no escabelo”: nova admoestação para que confessasse,
afim de evitar tantas dores. Nenhum detalhe como era essa corrente, com cer-
teza argolas de ferro, talvez com algum gancho que atasse perfeitamente o réu
imobilizando-o no escabelo ou num banco: “E sendo despido dos vestidos, foi
assentado no banco”. Nesse momento, antes de ter início a tortura, a praxe in-
quisitorial exige que os algozes confirmem sua inabalável disposição para
executar sentença tão cruel: O guarda Bernardo João (1644) jurou nos Santos
Evangelhos que “verdadeiramente ia atormentar o réu e logo o réu foi despojado
de seus vestidos se sentando na cadeira”; nesse momento, tomava-se então o
juramento do ministro, ordenando “fazer seu ofício atormentado o réu sem ódio
nem afeição alguma, e despojado de seus vestidos, foi posto no potro e metido o
colar de ferro no pescoço e posto o cordel nas partes costumadas de seu corpo”.

Dos tormentos: Dezenove quesitos são especificados na processualística


inquisitorial de como deviam ser executados os tormentos: “1)Ad faciem: sentar
o réu no banco, pondo-lhe as mãos atrás sem apertar, metendo-lhe um calabre
no braço (corda grossa); 2) Começar a atar as mãos com uma correia de couro;
3) Atar com a 1ª correia toda; 4) Atar com a 2ª correia toda; 5) Atar perfeitamente
com toda a correia e pregar no calabre; 6) Começar a levantar até o1º sobrado; 7)
Levantar até o libelo 2º sobrado; 8) Levantar até a roldana e vir descendo sem
tornar a levantar; 9) Trato corrido é descerem-no depois de chegar à roldana,
brandamente e chegando a baixo o tornam a levantar até o 1º sobrado; 10) Trato
corrido igual, levantando até o 2º sobrado; 11) Trato corrido, igual, levantando
até a roldana; 12) Trato experto; 13. Trato experto levantar até o libelo 14) 1 Trato
experto e 1 corrido; 15) 2 Tratos expertos; 16) 2 Tratos expertos, levantar até a

[190]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

roldana; 17) 2 Tratos expertos e 1 corrido; 18) 3 Tratos expertos; 19) Todo tor-
mento”28.

Ordem de sequência dos procedimentos e equiparação da polé ao potro:


Quando os oficiais decidiam na casa do tormento, alterar a sentença do tor-
mento, devido a algum problema de saúde do réu ou acidente inesperado,
deliberação devidamente indicada pelo médico e cirurgião e ratificada pelo In-
quisidor, havia uma tabela de conversão minuciosamente prevista que
equiparava os graus de suplícios da polé ao potro, a saber: “1) Assentar na polé =
Assentar no potro; 2) Começar a atar = Atar em 8 partes sem apertar; 3) 1ª correia
= Meter os arrochos nas 4 partes; 4) 2ª correia = Meter os arrochos nas 8 partes;
5) Atado perfeitamente = Começar a apertar 4 partes; 6) Começar levantar = Me-
ter os arrochos nas 8 partes; 7) Até o libelo = 1\4 de volta em 4 partes; 8) Até a
roldana = 1\4 de volta em 8 partes; 9) Trato corrido = 1\2 volta em 8 partes; 10.)
Trato esperto = Uma volta inteira em 8 partes”29. Certamente devia constar na
casa de tormentos cadernos disponíveis com tais equivalências para nortear os
oficiais na execução dos suplícios.

Prova para ser relaxado em relação à qualidade das testemunhas: A palavra


e acusações tinham valores distintos na jurisprudência da época em relação à
“qualidade” dos delatores e testemunhas. Assim, por exemplo, crianças, pessoas
de cor, escravos, mulheres, tinham menor credibilidade do que sacerdotes, no-
bres e letrados. Determinava a casuística inquisitorial que para confirmar a pena
de morte “são necessárias 9 testemunhas sem qualidade; 3 testemunhas de qua-
lidade de 1º grau; 6 testemunhas de 2º grau; 7 testemunhas de 1º,2º,3º grau; 8
testemunhas de 1º,2º.3º.4º grau”30. Não se especifica se esse “grau” se referia à
proximidade consanguínea entre acusantes e suposto réu. No caso dos cristãos-
novos, não raramente parentes próximos delatavam-se reciprocamente.

Tempo do tormento: Para evitar vômitos ou estupor, sempre cautelosos,


os inquisidores assim prescreveram num manuscrito destinado a orientar a tor-
tura: “O tormento se dará de manhã, estando os réus em jejum e que não tenham
comido nove ou dez horas antes de se lhe executar os tratos, e não durará mais
que uma hora, e será menos que mais”31. Eis alguns registros relativos ao tempo

28
Objetos do Santo Ofício. Lisboa, ANTT, IL, Manuscritos da Livraria, n.º 1392.
29
Norma dos tormentos. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13805.
30
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Apartados, n.º 16255, 1624.
31
ANTT, IL, Manuscritos da Livraria, n° 1392, fl. 165, s/d (séc. XVII).
[191]
do tormento extraídos dos processos: “meio quarto de hora até o libelo” – nega-
tivo; “foi atado perfeitamente e começado a levantar na polé, o que durou um
quarto de hora, gritou muito e chamou por Jesus e pela Virgem Nossa Senhora”;
“atado perfeitamente por meio quarto de hora até o libelo, chamando por Santo
Cristo do Carmo e da Trindade que lhe valessem”, negativo. Em 1698, Francisco
Manuel, 19 anos, o já citado cirurgião morador em Lisboa, ao ser-lhe atada a 1ª
correia, pediu mesa para agora dizer a verdade, confessando que nas 38 cópulas
anais passivas que teve com seu cúmplice, um Padre natural das Ilhas, houve
sim derramamento de semente dentro de seu vaso traseiro, matéria prima para
caracterizar o crime de “sodomia perfeita”. Seu tormento teve duração de uma
hora, demonstrando que os inquisidores podiam atrasar o máximo possível o
tempo da tortura visando prolongar a agonia. Dias depois ratificou sua confissão,
às 9 horas da manhã “ad bancem” (sentado no banco), seguramente acorrentado,
dizendo agora que o dito clérigo “meteu entre as suas pernas e testículos” e que
no tormento confessou a ejaculação “intra vas” (dentro do vaso traseiro) premido
pela dor e enganado pelo demônio por ter ouvido de outros presos que “quem
quisesse sair livre de suas culpas que as negasse”. Esse é um relato particular-
mente esclarecedor pois evidencia como a tortura é controversa não apenas em
seu princípio cruel, mas em sua própria finalidade, bem como em sua eficácia.
Muitos confessavam o que não cometiam por medo de continuarem sendo tor-
turados. Foi condenado a 5 anos de galés32.

Médico e cirurgião interrompem o tormento: em vários processos encon-


tramos a interferência do médico e cirurgião opinando sobre a maior ou menor
resistência e estado físico dos réus, muitas vezes mandando interromper a tor-
tura afim de evitar a morte ou lesão dos membros desses indefesos fanchonos.
No entanto”, são muitos os casos que tais doutores vacilaram, deixando produzir
muitas sequelas nos torturados: mutilações, ossos quebrados, lesões musculares incuráveis,
sem falar nos traumas psicológicos. Também opinavam quando julgavam que o réu po-
dia suportar ainda maior castigo. Nenhum sodomita morreu na casa de
tormentos, embora haja notícia de mortes e suicídios em outras inquisições. Ma-
teus Fontes, 21 anos, morador em Lisboa,1620, culpado de cinco atos
sodomíticos: sentado no banco, começaram a atar a 1ª correia,

32
Processo de Francisco Manuel, 1698. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 10028.
[192]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

dizendo sempre que não havia de confessar o que não tinha cometido
e atado perfeitamente, foi levantado até o libelo, gritando sempre que
não havia de confessar o que não tinha feito e foi levantado até à rol-
dana e por dizer o médico e cirurgião que era muito fraco, que poderia
haver perigo lhe dessem tormento esperto, lhe foi dado um trato cor-
rido e outra vez levantado até à roldana e por lhe sobrevir um acidente,
foi mandado descer e levar ao cárcere.

Domingos Godinho Lima, 20 anos, pajem de importantes funcionários da


realeza, ao ser atado perfeitamente durante quinze minutos antes de ser suspen-
dido no ar para sofrer o tormento da polé, “por achar o médico e cirurgião que
as mãos se inchavam e as unhas se começavam a fazer negras e que lhe podia
correr tanto humor que se lhe mortificassem, e que era mais seguro e conveni-
ente que fosse desatado e levado para seu cárcere, dilatando o tormento para
outro dia33. Como esse infeliz, diversos outros sodomitas sofreram dose dupla de
tortura. Também o soldado António Lopes Saavedra, 22 anos, sofreu um aci-
dente ao ser torturado: durante a meia hora que teve seus membros arrochados
com os cordéis de fibra, gritava pedindo que um sacerdote o confessasse, pois
sentia-se moribundo e “por desatento dos oficiais que executavam o tormento,
teve uma perna quebrada”34. Penoso erro humano!

Desacato do réu aos oficiais: A maioria dos homossexuais supliciados, além


dos gritos ensurdecedores, pediam a proteção aos santos de sua devoção e mise-
ricórdia aos algozes. Localizamos apenas dois gays que enfrentaram seus
torturadores com insultos, destacando-se o lavrador Digo Fernandes Carneiro,
30 anos, morador na Ilha da Graciosa, preso em 1593:
Foi atado pelos colos das mãos aos cotovelos dos braços e estando as-
sim, foi admoestado que confessasse e dito que se quebrasse algum
membro ou morresse no tormento, a culpa era sua, e respondendo com
soberba e muita cólera, disse que não tinha o que confessar e que o
matassem já, e acabariam seus trabalhos. Aí pelos Inquisidores lhe foi
dito que não falasse tão soberbo e que olhasse que estava diante de seu
Juiz que o admoestava com caridade, que falasse a verdade e por o dito
réu dizer que não tinha o que confessar, foi-lhe dado duas vezes meia
volta nas seis partes dos braços e pernas e admoestado que confessasse,
ou o tormento ia adiante, disse o réu que o matassem já e tomassem
uma navalha e o retalhassem, que não tinha mais o que dizer. E dadas
três voltas inteiras, perguntado ao cirurgião Pedro Gomes que dissesse
se o réu estava para poder levar mais tormento e por dizer que ainda se

33
Processo de Domingos Godinho de Lima, 1620. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 9466.
34
Processo de António Lopes Saavedra, 1648. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4005.
[193]
lhe podia dar mais meia volta, e não confessando, perguntou-se ao ci-
rurgião se podia levar mais, e respondendo que não, foi levado para se
curar no cárcere35. [Gay retado!]

Tempo dos tormentos: “os tormentos deveriam cessar aproximadamente


quinze dias antes da aparição do condenado no auto-de-fé, para não gerar com-
padecimento da multidão expectadora ou revolta desta para com os
inquisidores. Os réus deveriam se apresentar à multidão demonstrando o mí-
nimo possível de suas chagas e agruras sofridas durante o período de
encarceramento, para isso até um barbeiro era contratado pelo tribunal. Caso
fosse necessário o tormento dias antes do auto-de-fé, o Regimento indicava o
potro, menos arriscado que a polé”36. Há mesmo um sodomita que por ser alei-
jado, foi açoitado a caminho do auto de fé amarrado em um asno e consta que
os que ainda encontravam-se estropiados devido ao suplício, era carregados em
cadeira até o local da leitura das sentenças37.

Locais onde apertavam as correias no potro: perna direita e perna es-


querda: coxa, canela, cana e barriga da perna, alto das pernas; braço direito e
braço esquerdo; bucho, colo, cana, junta da mão, junta do braço; no pescoço
colar de ferro.

Clamor pela Virgem e santos: no desespero da insuportável dor provocada


pelo aperto das correias, cordas, correntes e colar de ferro, ou pelo deslocamento
das juntas dos braços, escápulas e punhos, não havia como conter o choro, gritos
e pedido de socorro aos poderes celestiais. Eis algumas anotações constantes
nesses processos: “Gritando, gritando sempre, gritando forte, gritando por Je-
sus”, “começou a bradar com a dor”, “chamou por Jesus e pela Virgem Nossa
Senhora”, “gritou que ajudasse a Virgem mãe de Deus”, “chamava por São Jacinto
e Nossa Senhora” , “gritou muito e chamou por Jesus e pela Virgem Nossa Se-
nhora” , “começou a chamar por N S da Piedade da Sé”, “gritando Virgem da Luz
e chamando por Jesus e pela Virgem do Desterro”, “gritava que ajudasse a Virgem
mãe de Deus, chamando por Jesus”, “que lhe valesse a Virgem do Rosário”, “foi
chamando pela Virgem da Atocha que lhe valesse e pela Virgem de Nazaré que
lhe valesse”.

35
Processo de Diogo Fernandes Carneiro de Melo, 1593. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 3208.
36
Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 200.
37
Processo de Francisco do Porto, 1629. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 17707.
[194]
NA CASA DO TORMENTO: A TORTURA DE SODOMITAS NA INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Luiz Mott

Correções sobre supostos procedimentos e equipamentos da Casa de Tor-


mento: não encontramos qualquer referência na documentação original que
fossem colocados pesos de ferro ou pedra amarrados nos pés dos réus levantados
na polé; nenhuma indicação sobre o uso do tormento com fogo, tão presente
nas gravuras contrárias à Inquisição; não localizamos igualmente o emprego do
potro com catracas que esticavam doloridamente os braços e pernas do réu em
sentido vertical; nenhum auto de tormento refere que o réu ficou completa-
mente nu, mas sim, “despido” ou “despojado” de seus vestidos”, provavelmente
tapando sua genitália com alguma faixa de pano.

Dúvidas e diversidade de opinião os Inquisidores na sentença de tormento:


Rarissimamente os juízes inquisitoriais manifestavam unanimidade na atribui-
ção de penas aos réus sodomitas. São muitos os processos como esse onde os
pareceres são bastante diversos e a decisão última do Conselho Geral, imprevi-
sível.
Foram vistos na mesa do Santo Ofício, estes autos e culpas de Manuel
Luís, solteiro de 17 anos, natural e morador nesta cidade, réu preso ne-
les conteúdo. E pareceu aos inquisidores Luís Álvares da Rocha e Pedro
de Castilho e deputados João Delgado Figueira, Dom Leão de Noronha,
Martim Afonso de Melo e Manuel Corte Real de Abranches, que visto
ter o réu contra si quatro testemunhas, duas de sodomia por atos con-
sumados pelo vaso traseiro e uma de penetração e outra de ato
consumado pela boca, e conatus pelo traseiro, era a Prova muito grave,
e dela resultava presunção violenta dele cometer o dito crime e que por
não ter idade para pena ordinária e estar negativo e convir que descu-
bram cúmplices, e ser provável que haverá outros além das ditas
testemunhas, fosse antes de outro despacho posto a tormento. E aos
inquisidores e deputados D. Leão e Manuel Corte Real, que nele tivesse
tudo o que pudesse sofrer. E aos ditos João Delgado e Martim Afonso
que visto darem duas das testemunhas a culpa ao réu antes de ser de 14
anos, e as outras duas de 15, e que o tormento em pessoas de tão pouca
idade deve ser menor, tivesse nele um trato esperto, e outro corrido, e
a todos os ditos votos que podendo sofrer a juízo do médico e cirurgião
ao arbítrio dos inquisidores, e que com o que resultar desta diligência,
se tornasse este processo a ver em mesa para se despachar em final. E
ao Inquisidor Belchior Dias Preto e deputado Antônio de Mendonça,
pareceu que por não haver que esperar do tormento, havida que o réu
nele confesse, por se não poder executar a pena ordinária em razão da
idade, e poder com o medo, que ainda nos maiores se pode temer, dizer
de pessoas inocentes, se devia despachar em final. E ao dito inquisidor
que fosse o réu açoitado e degradado para o Maranhão por tempo de 10
anos. E ao dito Antônio de Mendonça que tivesse açoites e 6 anos de
[195]
degredo para as galés”38. O acórdão do Conselho Geral tendeu foi mise-
ricordioso: “tendo em vista o réu ser pouca idade e havendo esperança
de emenda, deixou de usar do castigo merecido.

Foi isento dos tormentos e degredado para o Maranhão. Sorte grande para
esse jovem sodomita, sobrinho de um dos sodomitas mais devassos da história
gay lusitana, Padre Santos Almeida, queimado na fogueira em 164539.

Palavras finais: A prática da tortura é uma das páginas mais tristes e horri-
pilantes da história humana. Infelizmente, barbárie ainda não de todo apagada
de nosso entorno, haja vista sua persistência nos recônditos das delegacias, pri-
sões, praticada por sequestradores, milicianos, dentro de casa. Deve ser
severamente penalizada no mundo inteiro como crime hediondo, inafiançável e
imprescritível. Inclusive investigando e punindo exemplarmente quantos a de-
fendem.
Esperamos que as dores e sofrimentos dessa centena de gays\sodomitas
vítimas de tão cruéis torturas culpados de amarem o mesmo sexo, tenham pro-
vocado profunda indignação em quantos leram essas páginas, além do
compromisso de apoiar efetivamente a luta contra a homofobia cultural e insti-
tucional ainda tão presente na atualidade em nosso país, onde todo dia um LGBT
é vítima de morte violenta ou se suicida. Façamos nosso o ensinamento do pai
das ciências sociais, Émile Durkhein: “a sociologia não valeria meia hora de re-
flexão se não colaborar na construção da felicidade humana!”
Inquisição e tortura, nunca mais!

38
Processo de Manuel Luís, 1644. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 10332, fl. 56v.
39
Wallas Jeferson Lima, “A Sodoma de Santos de Almeida: narrativas escandalosas de um
clérigo homossexual na Inquisição de Lisboa (1630-1645)” (Tese de Doutorado, Universidade
Federal do Paraná, Irati, 2021). Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/han-
dle/1884/72628
[196]
Um xamã no Santo Ofício português? Revisitando
o processo de Amaro Fernandes (1659-1660)1
Philippe Delfino Sartin

1. Escrever sobre processos inquisitoriais, desde as pesquisas de Carlo Ginz-


burg , é almejar um delicado equilíbrio entre virtudes intelectuais conflitantes3. De
2

um lado, a disposição para apostar em interpretações fulminantes, baseadas em


indícios dispersos, capazes de subverter o senso comum a respeito de determinada
fonte ou objeto e, sobretudo, de trazer à tona o universo das vítimas4. De outro

1
Gostaria de agradecer à querida Juliana Torres (UFBA), pela amizade e boa vontade de sem-
pre. Agradeço também ao Angelo Assis pela generosidade do convite e pelo apoio ao longo do
processo. Agradeço, por fim, pelas importantes perguntas feitas, durante a comunicação no
evento, a Bruno Feitler, Susana Mateus e Claude Stuczynski. Espero conseguir respondê-las,
ao menos parcialmente, no presente texto.
2
Se Ernesto de Martino, grande inspiração do historiador italiano, foi o autor de uma “trilogia
meridionalista” que lhe deu muita fama (Morte e pianto rituale, de 1958; Sud e Magia, de 1959;
La terra del rimorso, de 1961), Ginzburg é autor de uma trilogia inquisitorial que o tornou
célebre (I benandanti, de 1966; Il formaggio e i vermi, de 1976; Storia notturna, de 1989 – mas
nesse último a pesquisa com material inquisitorial é extrapolada em muitos níveis).
3
Ou epistêmicas, isto é, distintas das virtudes morais e atreladas a objetivos cognitivos diver-
sos – para o que nos interessa – conforme a diversidade da historiografia (o cuidado com as
fontes, a atenção aos detalhes, a busca por razões explicativas, a honestidade intelectual etc.).
O importante debate sobre virtudes epistêmicas é imprescindível, creio eu, para compreender
as escolhas de historiadores influentes como Carlo Ginzburg. O expoente dessa abordagem é
Herman Paul. Cf. Herman Paul, “Historicismo fraco: sobre hierarquias de virtudes e de metas
intelectuais”, História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Histo-
riography 9, n.º 21 (2016): 25-42. Disponível em: 10.15848/hh.v0i21.1071; Herman Paul, Key
Issues in Historical Theory (London: Routledge, 2015), 151-155.
4
O tom impressionista do raciocínio indiciário transparece num indício lexical: em Spie, a
interpretação é fulminante, ocorre como num relâmpago (o “fulmineo lavoro mentale” de
Sherlock Holmes; a “rapidità fulminea” do caçador pré-histórico; as “diagnosi fulminee” do
lado, num gesto de recusa, a prudência epistemológica ao abordar a documentação
e o foco em conexões “tradicionais”, tais como o contexto social ou as relações de
poder entre réus e inquisidores5. O próprio Ginzburg, refletindo sobre suas esco-
lhas em História Noturna – um livro cheio de apostas documentais e metodológicas
– definiu tal equilíbrio como um dilema entre escrever um texto que seria um
“grande fracasso” ou buscar um “pequeno sucesso” por meio de uma interpretação
convencional. E acrescentou: dada “minha forte atração pelo jogo [...] tinha consci-
ência do que estava em risco, de que talvez minha ambição fosse grande demais”6.
O caso que se irá abordar nas linhas seguintes permite acompanhar algumas
das implicações historiográficas de se optar pela prudência ou pelo risco. Trata-se
de uma divergência interpretativa entre dois especialistas – José Pedro Paiva7 e
António Vítor Ribeiro8 – a propósito de um processo inquisitorial do século XVII,
movido contra um lavrador açoriano, Amaro Fernandes Jácome9, condenado à
pena de cinco anos de degredo para o Brasil, por “curar com bençõens e supersti-
çõens e dizer que tinha virtude sobrenatural para isso”10. A divergência – que não

médico Giulio Mancini; a “ricapitulazione fulminea di processi razionali” como sentido para a
intuição), Carlo Ginzburg, “Spie. Radici di un paradigma indiziario”, in Miti, emblemi e spie.
Morfologia e storia (Torino: Einaudi, 2000), 114-148.
5
A propósito da ausência de reflexão sobre o contexto social e cultural, veja-se Franco Nardon,
Benandanti e inquisitori nel Friuli del Seicento (Trieste: Edizioni Università di Trieste, 1999),
140-221, bem como o prefácio de Andrea Del Col (p. 5-15). Andrea Del Col, aliás, é um dos
historiadores que mais polemizaram com Ginzburg a propósito das potencialidades da docu-
mentação inquisitorial, ressaltando o seu caráter de “interrogatório” contra o aspecto
dialógico posto em relevo pelo autor de I benandanti. Cf. a longuíssima “Introduzione” em
Andrea Del Col (org.), Domenico Scandella detto Menocchio. I processi dell’Inquisizione (1583-
1599) (Pordenone: Edizioni Biblioteca dell’Immagine, 1990), xi-ci (agradeço ao querido César
Cruz e sua amiga Caterina Maggi por me conseguirem este livro, de tão difícil acesso no Bra-
sil). Cf. ainda Andrea Del Col, “I Criteri dello storico nell’uso delle fonti inquisitoriali
moderne”, in L’Inquisizione romana: metodologia delle fonti e storia istituzionale. Atti del Se-
minario internazionale, Montereale Valcellina, 23-24 settembre 1999, dir. Andrea Del Col e
Giovanna Paolin (Trieste: Università di Trieste, 2000), 51-72; tratando da inquisição portu-
guesa, em diálogo com Del Col, cf. Bruno Feitler, “Processos e práxis inquisitoriais: problemas
de método e de interpretação”, Revista de fontes 2, n.º 1 (2014): 55-64. Disponível em:
https://doi.org/10.34024/fontes.2014.v1.9184.
6
Maria Lúcia Pallares-Burke, As muitas faces da História. Nove entrevistas (São Paulo: Editora
da UNESP, 2011), 234.
7
José Pedro Paiva, “O Inferno e o Paraíso em duas versões marginais de origem popular”, Ler
História, n.º 33 (1997): 53-66.
8
António Vítor Ribeiro, O auto dos místicos. Mística, religião popular e inquisição (Lisboa:
Chiado Editora, 2015), 483-542.
9
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782.
10
Lisboa, BNP, “Lista das pessoas que sahirão no Auto publico da Fé que se celebrou no Ter-
reiro do Paço desta Cidade de Lisboa em Domingo 17 de Outubro de 1660”, in Colecção de
[198]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

chegou a ser um verdadeiro debate – reside no sentido histórico que se deve atri-
buir às experiências sobrenaturais e, sobretudo, às visões relatadas pelo lavrador,
nas quais dizia ter ido ao paraíso e falado com as almas dos mortos. A meu ver,
entretanto – e é o que pretendo mostrar após discutir os argumentos em conflito
–, o recorte promovido pelos autores fez com que as análises ficassem incompletas
e, pelo menos uma delas, se levada às últimas conclusões, insustentável. Não
posso, entretanto, nos limites deste capítulo, apresentar minhas hipóteses senão
de modo sumário.

2. Natural de Agualva, termo de Vila da Praia, na Ilha Terceira, bispado de


Angra, o lavrador Amaro Fernandes Jácome foi denunciado ao Santo Ofício, pela
primeira vez, em julho de 1657, pelo padre Domingos Cardoso Froes (da freguesia
das Quatro Ribeiras) e em setembro do ano seguinte por outro padre, António de
Figueiredo, pároco da igreja de Nossa Senhora de Guadalupe, em Agualva. Nas duas
denúncias, foi acusado de realizar cerimônias supersticiosas para “lança[r] os de-
mónios fora dos endemoninhados” e curar de outras enfermidades e ainda por
dizer que “por sonhos ia a gloria”11, ou ainda que “o levavão a hum valle, onde via
muitas almas que lhe revelavão as enfermidades dos consultantes”12.
Na visita pastoral realizada no local, em dezembro de 1658, pelo mestre-es-
cola António da Rocha Ferraz, da Sé de Angra, várias pessoas testemunharam a
respeito do lavrador e este chegou a fazer uma confissão de suas culpas. Em nova
visita pastoral, agora em janeiro de 1659, à Vila da Praia, novos depoimentos. Em
maio do mesmo ano, os inquisidores de Lisboa comissionaram o inquérito das tes-
temunhas já apresentadas pelo visitador do bispado, o que se deu em julho. Preso
em agosto e entregue em setembro à Inquisição, Amaro Fernandes foi interrogado
entre outubro de 1659 e outubro de 1660, tendo sido inclusive torturado. Saiu no
auto da fé do dia 17 desse mês e foi, como se disse, degredado para o Brasil.
Suas visões, narradas de modos diferentes e com detalhes variados – nas de-
núncias dos sacerdotes, nos testemunhos de seus vizinhos e nas confissões diante
dos inquisidores – reduzem-se, essencialmente, a duas experiências distintas. A pri-
meira delas ocorreu ainda em sua infância, por volta dos seis ou sete anos, enquanto
cuidava do gado para seus pais. Na ocasião, um touro lhe deu uma chifrada que lhe

listas impressas e manuscriptas dos autos de fé publicos e particulares da Inquisição de Lisboa,


corrigida e annotada por António Joaquim Moreira, 1863, fl. 203. Disponível em:
https://purl.pt/15393
11
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl. 4v.
12
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl. 6v.
[199]
rasgou “a perna e virilha ate as partes pudendas”. Achando-se gravemente ferido
(“muito mal e julgado à morte”) vivenciou uma experiência extraordinária:
Seu spirito foi levado, a gloria e çeo celestial, aonde vio as portas della
abertas com hum homem velho encostado a ellas, com humas chaves na
mão e dentro muitas tochas acesas em forma que se lhe não alcansava
principio, nem fim, mas que ninguem lhe falou, nem advertio qual era o
caminho, nem vio mais outra cousa que estarem muitas mulheres assen-
tadas por detras das ditas tochas e muitas mesas levantadas e redondas,
com muitos homens postos nellas13.

Detalhe importante: essa história não se encontrava nos testemunhos ou nas


denúncias que fundamentaram a sua prisão, mas foi narrada por Amaro apenas em
1660, quando já se encontrava preso no Santo Ofício. É curioso que assim tenha
sido: pois, como narra, tão logo recobrou os sentidos – após a chifrada –, contou o
que vira a seus pais e a várias pessoas, e o fez “por espaço de dez anos continuos”14.
Nas denúncias dos padres e nos testemunhos de seus vizinhos, todavia, aparece
outro episódio, ocorrido muitos anos depois do primeiro, quando Amaro Fernan-
des já realizava suas curas. José Pedro Paiva, no primeiro estudo que se fez deste
caso, seleciona o seguinte trecho de sua confissão aos inquisidores, no qual relata
como conseguiu expulsar o demônio de uma vizinha, atormentada havia mais de
três décadas:
Em spirito e em sonhos [era] levado a hum prado muito alegre com arvo-
redos, aonde vio muitas luzes e claridade que o fasião resplandeser; e em
roda, postas muitas mesas de pão, merendeiras e bolos, com alguns ho-
mens postos nellas, e entrando elle declarante pello dito prado, se chegou
para huma das ditas mesas, donde lhe disse hum dos homens que nellas
estavão as palavras seguintes: querieis saber o mal da Fagunda [a sua vizi-
nha] [?] [É] que tem dito que se lhe não da ja de ser mais de huns que de
outros [de Deus ou do diabo]; disselhe que pella grande misericordia de
Deos e fé tornace para Nosso Senhor com grande fee, que lhe acudice e
que logo teria saúde e se iria o demonio do seu corpo15

Tais são, em substância, as visões narradas por Amaro Fernandes em seu pro-
cesso. Embora ligeiramente diferentes quanto às circunstâncias em que se deram –
a primeira ocorrida durante uma “experiência de quase morte” (ou algo do gênero),
a segunda durante um sonho – elas possuem, à primeira vista, um elemento

13
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fls. 129-129v; o mesmo trecho é transcrito em Paiva, “O
Inferno e o Paraíso”, 61. Ao contrário do que escreve Paiva (p. 53; 58), o relato desta visão só
foi feito por Fernandes em 1660, embora suas confissões tenham-se iniciado no ano anterior.
14
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl. 132.
15
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl.130; Paiva, “O Inferno e o Paraíso”, 61.
[200]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

comum. Segundo Paiva, resultam de “colagens evidentes de discursos que ouviu,


ou de imagens que viu” – o jardim paradisíaco, a fartura de comida, as luzes, a mul-
tidão de pessoas, São Pedro à porta do céu – “às quais deu depois uma sequência e
organização pessoal”16. Não haveria mistério, portanto, sobre a origem das visões
(no sentido filológico do termo): em sua dimensão imagética, pertenceriam de di-
reito ao acervo geral do cristianismo antigo e medieval (como se constata, por
exemplo, lendo os trabalhos clássicos de Jean Delumeau sobre o Paraíso)17. É pos-
sível argumentar ainda, como faz Paiva, que as visões de Amaro Fernandes
demonstram como “a assimilação das mensagens que vinham do alto nem sempre
se fez sem distorções”18. Em outras palavras, o processo movido contra Amaro Fer-
nandes comprovaria que o imaginário religioso das populações humildes, embora
baseado nas mensagens que lhes eram fornecidas pela cultura letrada, resultava de
filtragens e apropriações particulares, diferindo em muitos pontos da doutrina
“mais pura”19.
Em sua tese de doutoramento defendida em 2005, e publicada dez anos de-
pois, António Vítor Ribeiro percebe algo muito diferente nas visões de Amaro
Fernandes. Lançando mão de farta documentação inquisitorial – sobretudo a série
conhecida como Cadernos do Promotor –, Ribeiro julga ter encontrado, na figura
do açoriano, “o mais perfeito xamã português”. Ao afirmar que a interpretação de
José Pedro Paiva precisava ser “matizada” – mas com isto entenda-se: completa-
mente reformulada – Ribeiro aprofunda sua linha de pensamento: “O caso de
Amaro é, para o panorama português, um dos casos em que melhor se reproduz o
modelo xamânico eurasiático” (grifo meu)20. Ribeiro enxerga na chifrada recebida
pelo lavrador açoriano um indício de sua “vocação xamânica”: “O chamamento po-
dia ser feito através de uma ‘doença iniciática’, como que uma morte simbólica que
abria as portas a um renascimento”21. Em outras palavras, precisamente como con-
sequência da “experiência de quase morte” resultante do acidente com o boi – a
qual, em sua interpretação, adquire um caráter “iniciático” –, é que Amaro

16
Paiva, “O Inferno e o Paraíso”, 63.
17
Jean Delumeau, Quel che resta del Paradiso (Milano: Mondadori, 2001); Jean Delumeau, Uma
história do Paraíso. O jardim das delícias (Lisboa: Terramar, 1992) (os seis primeiros capítulos).
18
Paiva, “O Inferno e o Paraíso”, 53.
19
Ibid., 63.
20
Ribeiro, O Auto dos Místicos, 510.
21
Ibid., 511.
[201]
Fernandes “foi levado ao Céu, entrou em contato com os espíritos e estes o ensina-
ram a curar”22.

3. Confrontando tais interpretações, percebem-se modos distintos de abor-


dar a documentação. O modelo proposto por Paiva baseia-se na explicitação de um
longo processo de doutrinamento e disciplinamento das populações portuguesas,
posto em prática pelos poderes episcopal e inquisitorial entre os séculos XVI e XVIII
e centrado na repressão às práticas mágicas e supersticiosas (diferindo de outras
regiões da Europa pela ausência de uma efetiva “caça às bruxas”)23. Individuando-
se os centros difusores de práticas e doutrinas ortodoxas – os cleros secular e regu-
lar, os sínodos e visitas diocesanas, a atuação da rede inquisitorial – e, a seguir,
examinando-se a farta documentação resultante do confronto entre as instituições
difusoras e as populações iletradas, é possível aferir a penetração de um discurso
douto e a sua respectiva recepção, evidenciando as acomodações, apropriações,
desvios, filtragens e distorções. No artigo em que estuda as visões celestiais de
Amaro Fernandes – em paralelo às visões infernais de um João Luís, da diocese de
Leiria – tal modelo permite ao autor classificar tais concepções do além como “mar-
ginais”, isto é, como “distorções” de ideias cujas fontes são imediatamente
conhecidas: o discurso teológico e espiritual dos doutos.
Para apontar Amaro Fernandes como “o mais perfeito xamã português”, a
análise da documentação inquisitorial deve, necessariamente, extrapolar o modelo
parcimonioso apresentado por Paiva. Não basta, para tanto, abordar as relações
culturais bem documentadas entre doutos e rústicos em Portugal; é preciso desco-
brir conexões insuspeitas, reveladas a partir de indícios e fragmentos
negligenciados que remetem a contextos geográficos mais vastos e a longuíssimas
durações (afinal, o xamanismo não é, à primeira vista, um elemento cultural por-
tuguês). E é precisamente o que faz António Ribeiro. Seu estudo pretende abordar
o “complexo mundo da cultura popular, através do óculo inquisitorial”, buscando
“relações e solidariedades entre diferentes estratos cronológicos”. A premissa sub-
jacente – e aqui se percebe a influência de Carlo Ginzburg – é a de que “uma
afirmação aparentemente incompreensível de um indivíduo condenado por here-
sia” – e a galeria, colhida nos Cadernos do Promotor, é vastíssima, incluindo

22
Ibid.
23
Tal processo é pacientemente descrito em dois importantes trabalhos. Cf. José Pedro Paiva,
Bruxaria e superstição num país sem “caça às bruxas”. 1600-1774, 2ª edição (Lisboa: Editorial
Notícias, 2002); José Pedro Paiva, Práticas e crenças mágicas. O medo e a necessidade dos má-
gicos na diocese de Coimbra (1650-1740) (Coimbra: Minerva, 1992).
[202]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

sebastianistas, santas fingidas, curandeiros e lobisomens – “pode permitir entrever


um passado recente, talvez um século ou dois. Talvez ontem. Ou pode espelhar
uma remotíssima sobrevivência, de dois mil anos, talvez mais”24. É a partir da ten-
tativa, portanto, de relacionar a cultura popular portuguesa a um “ancestral
complexo eurasiático”, ou a “um fundo cultural indo-europeu” que o xamanismo
de Amaro Fernandes aparece.

4. Examinemos alguns dos pormenores de tal hipótese. Segundo Ribeiro,


existe uma continuidade entre as crenças e práticas espirituais difundidas em Por-
tugal a partir do século XVI e elementos “arcaicos” da cultura popular que ecoam
um substrato xamânico eurasiático25. Em outras palavras, a busca pelo êxtase, as
visões (místicas ou proféticas), o desejo de entrar em contato com o sobrenatural
por meio da solidão – elementos do modelo “alumbrado” de espiritualidade, im-
portado da Espanha26 – fundiram-se, na Época Moderna, devido a afinidades
morfológicas, com práticas e crenças folclóricas portuguesas de caráter xamânico –
incluindo os sonhos incubatórios, as viagens ao mundo dos mortos e a possessão
por espírito, presentes na documentação inquisitorial, embora já misturadas a um
catolicismo popular.
A hipótese é fascinante. A base para a definição do que seria xamânico, toda-
via, é essencialmente a obra de Eliade27. A publicação, em 1951, de Le chamanisme
et les techniques archaïques de l’extase alterou profundamente o campo de estudos
relacionados ao xamanismo, popularizando um modelo teórico baseado no transe
e convertendo em categoria analítica/etnológica uma interpretação, hoje refutável,
de instituições religiosas circunscritas a determinados povos e regiões da Ásia Cen-
tral e da Sibéria28. Segundo Eliade, uma definição sumária de tal realidade
consistiria na simples equação “chamanisme = technique de l’extase”, acrescentando

24
Ribeiro, O Auto dos Místicos, 10.
25
Ibid., 115.
26
Sobre os alumbrados, a referência essencial são os volumes de Álvaro Huerga. Cf., por exe-
mplo, Álvaro Huerga, História de los alumbrados, vol. 5 – Tema y personajes. 1570-1630
(Madrid: Fundación Universitária Española, 1978), 23-44; Ribeiro, O Auto dos Místicos.
27
Mircea Eliade, Le chamanisme et les techniques archaïques de l’extase (Paris: Payot, 1968),
sobretudo o capítulo inicial, “Généralités. Méthode de recrutement. Chamanisme et vocation
mystique”, p. 21-43 e o segundo, “Maladies et rêves initiatiques”, p. 69. Embora Ribeiro refira-
se a outros autores, a ideia de xamanismo permanece eliadiana, pois aceita como dada a rea-
lidade do transe/êxtase como traço definidor de tais fenômenos (e esta palavra não é gratuita).
28
Cf. O estudo imprescindível de Sergio Botta sobre a construção histórica e a validade atual
da categoria do xamanismo, Sergio Botta, Dagli sciamani allo sciamanesimo. Discorsi, cre-
denze, pratiche (Roma: Carocci Editore, 2018).
[203]
a essa formulação uma série de elementos característicos de uma estrutura todavia
difundida na maior parte do mundo (com exceção do continente africano): “rela-
ções especiais com os espíritos, capacidades extáticas que tornam o possível o ‘voo
mágico’, a subida aos céus, a descida aos infernos, a maestria do fogo etc.”29.
Tal xamanismo, cujo núcleo fundamental, no modelo proposto por Eliade,
era composto pelo êxtase e por suas técnicas, tem sido confrontado de duas formas
distintas. A primeira consiste em negar a pertinência do modelo extático para os
operadores rituais nas práticas tunguses e mongólico-siberianas, como as pesquisas
de Roberte Hamayon tem demonstrado, enfatizando, ao contrário, a dimensão ri-
tual (e teatral, por extensão) das cerimônias xamânicas30. A segunda perspectiva é
a da desconstrução da categoria histórico-religiosa e etnológica do “xamanismo”
pelo desvelamento de suas origens ideológicas e etnocêntricas ocidentais31. Forjado
em expedições européias e russas à Sibéria e às estepes da Ásia central nos séculos
XVI e XVII, o xamanismo é uma generalização do termo šamān, utilizado para de-
signar determinados operadores rituais entre os povos tunguses da Sibéria, ao cabo
de um processo que produziu os vocábulos vernáculos modernos e a sua elevação
à categoria religiosa nos séculos XVIII e XIX32. Segundo Sergio Botta, não é possível
afirmar, fora deste construto ideológico ocidental, que um xamanismo enquanto
instituição religiosa similar, por exemplo, ao cristianismo ou ao budismo tenha
existido originalmente entre povos siberianos33.
Apesar das observações acima, seria inapropriado censurar a interpretação
de António Ribeiro tão somente pelo uso da palavra xamã, importante em seu mo-
delo explicativo. Pode-se simplesmente argumentar que, afinal, a maioria das
categorias analíticas (etic, portanto) foram, em algum momento, conceitos “nati-
vos”, emic. A etnologia americanista – mas isto desde a obra de Franz Boas – tem
usado expressões como “xamã”, “xamânico” ou “xamanismo” de um modo pura-
mente pragmático, como sinônimo, por exemplo, de “pajé”, ou “curandeiro”, ou

29
Eliade, Le chamanisme, 22-23.
30
Roberte Hamayon, “Are “Trance”, “Ecstasy” and similar concepts appropriate in the study
of shamanism?”, Shaman 1, n.º 2 (1993): 17-40; cf. o comentário de Botta, Dagli sciamani allo
sciamanesimo, 21-22.
31
Botta, Dagli sciamani allo sciamanesimo. Cf. ainda o livro essencial Ronald Hutton, Sha-
mans. Siberian spirituality and the western imagination (London: Hambledon and London,
2019), 3-43.
32
Botta, Dagli sciamani allo sciamanesimo, 16-66, reconstrói de modo cristalino esse processo,
individuando suas diversas etapas e registros documentais, o que não posso referir, no pre-
sente texto, senão sumariamente.
33
Ibid., 19.
[204]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

ainda medicine-man e assim por diante34. Este xamanismo entre aspas, analógico,
puramente formal, consciente de sua precariedade ontológica, seria apenas inade-
quado ou impreciso se fosse atribuído a Amaro Fernandes ou a curandeiros
semelhantes no mundo português da Época Moderna. Mas não é disso que se trata
a interpretação de António Ribeiro: o xamanismo ao qual se refere, presente no
mundo rural português, baseia-se em conexões reais e não meramente analógicas
com o xamanismo siberiano. A referência deixa de ser, momentaneamente, o mo-
delo de Eliade e passa às obras de Ginzburg.
O método utilizado para coleta das evidências – a classificação politética35 –
é aquele de História Noturna. Ribeiro reconstrói, segundo suas palavras, um “com-
plexo cultural [...] perfeitamente perceptível” a partir das semelhanças de família
identificadas a) entre elementos dispersos na documentação inquisitorial portu-
guesa e b) entre o conjunto de tais elementos (que formariam o referido “complexo
cultural”) e o xamanismo eurasiático. A gravidez e o parto “místicos”, o simbolismo
do mar como o além-vida, a relação dos mortos com animais como os lobos, as
serpentes e os pássaros (mediadores das visões, êxtases e possessões) são signos
dispersos nas trajetórias de indivíduos denunciados à inquisição e que, uma vez
recolhidos pelo autor, unificados por uma “mitologia solar” e pela ideia de “chama-
mento” ou vocação – caracterizada por metáforas de separação e por um
simbolismo uterino – permitem delinear um xamanismo propriamente português
e, todavia, filiado ao sistema mágico-religioso de origem eurasiática36. A passagem
do ponto A ao ponto B é explicada recorrendo-se às hipóteses de Ginzburg:

34
O termo persiste desde a década de 1950, tratando grupos indígenas americanos. Cf. clássi-
cos como Claude Lévi-Strauss, Antropologia estrutural (São Paulo: CosacNaify, 2008); Pierre
Clastres, A Sociedade contra o Estado (São Paulo: CosacNaify, 2014); Eduardo Viveiros de Cas-
tro, A inconstância da alma selvagem (São Paulo: CosacNaify, 2014). Sobre a vulgarização do
termo xamanismo a partir da obra de Franz Boas, cf. Sergio Botta, “‘I Desired to Learn the
Ways of the Shaman’. Il contributo dalla scuola boasiana alla generalizzazione dello sciama-
nesimo”, in Sciamanesimo e sciamanesimi. Un problema storiografico, org. Luca Arcari e
Alessandro Saggioro (Roma: Edizioni Nuova Cultura, 2015), 27-56.
35
A principal referência acerca deste método encontra-se em Rodney Needham, “Polythetic
classification: converge and consequences”, Man 10, n.º 3 (1975): 349-369. Disponível em:
http://www.jstor.org/stable/2799807. Ginzburg, em sua grande introdução a História No-
turna, escreve a propósito do experimento politético do capítulo 2 da terceira parte do livro:
“Tendo como ponto de partida um detalhe enigmático, surgido em alguns documentos já dis-
cutidos, reuni um conjunto – certamente incompleto – de mitos, lendas, fábulas, ritos tantas
vezes encontrados num âmbito cronológico e espacial muito vasto e, apesar disso, caracteri-
zados por elevado grau de “semelhanças de família”, Carlo Ginzburg, História noturna.
Decifrando o sabá (São Paulo: Companhia das Letras, 2012), 32.
36
Ribeiro, O Auto dos Místicos, 483-541.
[205]
“caçadores siberianos, pastores nômades da Ásia central, citas, trácios, celtas”37,
apontando, inclusive, a centralidade do velho Thiess, o lobisomem da Livonia,
como elemento de conexão Oriente-Ocidente38. A presença de elementos xamâni-
cos nas regiões centrais da Europa e a coincidência entre essa difusão e a geografia
da hipótese indo-europeia bastariam para desvendar, segundo o autor, “uma base
religiosa em Portugal que comporte elementos de carácter xamânico”39. O xama-
nismo em O Auto dos Místicos remete a um “complexo simbólico” historicamente
configurado cuja base, no entanto, ressoa o “núcleo fundamental” do sabá xamâ-
nico de História Noturna – o êxtase e as batalhas pela fertilidade –, interpretação
esta cuja originalidade e cujas relações nunca admitidas com a obra fundamental
de Eliade foram recentemente sublinhadas40.
O curto-circuito da classificação politética, já apontado para o grande afresco
de História Noturna41, reside na ausência de critérios empíricos para a sustentação
da tensão entre morfologia e história – esta última termina derrotada quando se
chega à “matriz de todos os contos possíveis”42. A estrutura documental das pes-
quisas de Ginzburg e de Ribeiro pode ser alcançada por uma metáfora. Imagine-se
um grande álbum de família, ordenado segundo uma árvore genealógica, numa
parede da sala de jantar. As linhas que conectam primos, filhos, bisavôs, irmãos (e
assim por diante) estão traçadas na parede unindo cada fotografia num todo de
semelhanças visuais não lineares: primos em terceiro grau possuem os mesmos na-
rizes, avô e neto tem a mesma boca, tia e sobrinha os mesmos olhos. As conexões
históricas (as linhas traçadas na parede) e morfológicas (as semelhanças visuais)
tornam tal álbum um todo coerente. Imagine-se, agora, que um incêndio atingiu
tal casa e a parede foi danificada. As linhas foram apagadas; as fotos, perdidas em
sua maioria. Restam quatro ou cinco imagens de parentes sem ligação direta, com
distante grau de parentesco. Um observador sem relações com tal família adentra
o imóvel em ruínas e observa atentamente a parede. Poderia deduzir que as fotos
no alto da parede são as dos parentes mais velhos; mas seria legítimo afirmar que

37
Ginzburg, História noturna, 228.
38
Ribeiro, O Auto dos Místicos, 499.
39
Ribeiro, O Auto dos Místicos, 493.
40
Sergio Botta, “Lo sciamanesimo di Storia notturna e le tecniche arcaiche dell’estasi. Sul dia-
logo a distanza tra Carlo Ginzburg e Mircea Eliade”, in Streghe, sciamani, visionari. In margine
a Storia Notturna di Carlo Ginzburg, ed. Cora Presezzi (Roma: Viella, 2020), 404-447.
41
Carlo Severi, “Le Chamanisme et la dame du Bon Jeu, suivi d’une réponse de Carlo
Ginzburg”, L’Homme 32 (1992): 165-177; Perry Anderson, “Witchcraft”, London Review of Books
12, nº 21 (8 November 1990): 6-11.
42
Ginzburg, História noturna, 311.
[206]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

os olhos, bocas, narizes e cabelos das fotografias mais baixas tem necessariamente
origem naqueles que não desapareceram? Quando passamos à história do xama-
nismo, tal como aparece em nossos autores, a situação é ainda mais incerta: pois a
parede onde estão as formas familiares não apenas foi danificada; ela não é, para o
que interessa, mais que uma suposição.
Tal modelo explicativo – aqui apenas resumido em detrimento de um traba-
lho cuidadoso e erudito de pesquisa documental e bibliográfica – possui algumas
fragilidades. A exemplo de História Noturna – obra muito discutida e duramente
criticada43 –, a escolha consciente do autor em abrir mão da história social revela,
para além da arbitrariedade da classificação politética, a impossibilidade de expli-
car a transmissão efetiva de práticas e crenças xamânicas44. Não se sabe, por
exemplo, como determinados mitos – cuja origem supostamente xamânica os por-
tugueses ignoravam em absoluto – puderam produzir comportamentos análogos
ao xamanismo fora de algum tipo de ritualidade ou sociabilidade, isto é, nos tran-
ses, sonhos e delírios de indivíduos isolados. A separação artificial entre mitos e
ritos45, proposta por Ginzburg, termina por ir além da máxima lévi-straussiana de
que os mitos pensam as pessoas (e a si mesmos): os mitos, no contexto da constru-
ção teórica em questão, produziriam por si mesmos – sem que se fale em
aprendizado cultural ou iniciação “profissional” – comportamentos coerentes com
aqueles verificados nas sociedades siberianas, nas quais eram instituições culturais
e não ocorriam fora de um nexo mítico-ritual. Se existiu algum xamanismo origi-
nário, siberiano, ele foi um conjunto de práticas, antes de ter sido uma coleção de
narrativas.
Assim sendo, Amaro Fernandes, o lavrador açoriano, não deixaria de ser, se-
gundo tal hipótese, o ator involuntário de um substrato cultural que ele
essencialmente ignora; um citador inconsciente de mitos antigos e símbolos arca-
nizados; o agente cultural de um sistema cuja totalidade permanece inacessível ao
seu horizonte, mas que pode ser filologicamente reconstruída pela pesquisa

43
Um inventário das críticas recebidas por História noturna pode ser acessado no ótimo artigo
de Davide Ermacora, “Invariant cultural forms in Carlo Ginzburg’s «Ecstasies»: A thirty-year
retrospective”, Historia religionum 9 (2007): 69-94. A publicação mais completa sobre o livro
é a obra coletiva recente, fruto de seminários realizados entre 2014 e 2015, Presezzi (ed.), Stre-
ghe, sciamani, visionari.
44
Aspecto já posto em relevo no famoso artigo de Anderson, “Witchcraft”.
45
Este é um ponto muito complicado e, na realidade, mal explicado do livro; para afastar-se
da acusação de ser um seguidor de Murray – que confundiria mitos com ritos realmente ocor-
ridos – Ginzburg acaba por defender a possibilidade de fazer história apenas a partir dos
mitos, alegando ser este o caso dos benandanti. Cf. Ginzburg. História noturna, 22-29.
[207]
indiciária do historiador. Mais do que um momento heurístico, “fora do tempo e
do espaço”, utilizado para fundar a pesquisa histórica pela via da comparação46, a
morfologia corre o risco de se converter numa realidade de fato, e as formas – o
êxtase, o chamamento, a incubação etc. – em fenômenos presentes, no sentido da
fenomenologia da religião47. Revela-se, deste modo, na tese de António Ribeiro, o
mesmo círculo hermenêutico da tese de Ginzburg: a compreensão a priori de uma
série de elementos sub specie xamânica48 é o que funda a interpretação do mar de
informações presentes nos Cadernos do Promotor.

5. Comparada com a interpretação parcimoniosa de José Pedro Paiva, na qual


Amaro Fernandes figura nos quadros de uma cultura camponesa tradicional, len-
tamente conquistada pelo discurso religioso das elites, a versão xamânica do
lavrador açoriano, proposta por António Ribeiro a partir de uma base documental
necessariamente fragmentária, soa grandiloquente e arriscada – assim como o são,
a seu modo, as conjeturas de Ginzburg em História Noturna. Cada interpretação
possui seus méritos e suas limitações; diferenças a parte, entretanto, as duas con-
vergem numa radicalidade determinante: buscando desvendar as visões de Amaro
Fernandes, suas viagens – oníricas ou extáticas – e, de algum modo, os mitos que
compõem sua visão de mundo, os autores acabaram por deixar de lado as práticas
concretas pelas quais o lavrador foi denunciado e condenado, e em função das
quais, como entendiam os inquisidores, ele comunicava aos seus vizinhos o conte-
údo de suas visões, para “fazer-se virtuoso”. Amaro Fernandes, é preciso lembrar,
era uma espécie de curador, especializado, pelo que consta, em identificar a pre-
sença das almas dos mortos nos corpos dos doentes e a dar-lhes um destino

46
Cf. a intervenção de Marcello Musté, “La “via alla storia” di Carlo Ginzburg”, in Streghe,
sciamani, visionari, 461.
47
A despeito do que Ginzburg, um crítico ferrenho de Eliade, gostaria de admitir. Mas não tão
a despeito do texto de Ribeiro, que trata sempre de estruturas “arcaicas”, modelos “arcaicos”
e cujo pressuposto ao interpretar o xamanismo é tomá-lo como um “paradigma arcaico” – um
vocabulário muito usado por Eliade em seus muitos trabalhos; ou ainda, pela metáfora em-
prestada de Rudolf Otto, ao enfatizar a busca pelo “Absolutamente Outro” na religiosidade
popular portuguesa, Ribeiro, O Auto dos Místicos, 10-14. A respeito dos problemas dessa abor-
dagem para a historiografia, cf. Ernesto de Martino, “Storicismo e irrazionalismo nella storia
delle religioni”, Studi e Materiali di Storia delle Religioni 28, n.º 1 (1957): 89-107.
48
Botta, “Lo sciamanesimo di Storia notturna”, 421-425.
[208]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

adequado. Não se pode dizer que não tenha sido, à sua própria maneira, um exor-
cista do povo49.

Logo na primeira confissão aos inquisidores, o açoriano revelou como teria


começado a realizar suas curas, de caráter exorcístico. Dez ou onze anos antes de
ser preso, sua filha Maria teve uma espécie de crise convulsiva enquanto a família
semeava favas no campo. Nessa ocasião, “cahio no chão a ditta menina Maria e logo
comessou a fazer grandes forças com os brassos e pez, fazendo esgares com a boca
[...] lançando muita escuma pella mesma boca, como pessoa endemoninhada”. Du-
rante a crise, a menina dizia, entre muitos gritos, ver o espírito de um homem,
falecido havia mais de um ano. Amaro Fernandes, diante deste episódio, “com
grande sentimento, e dor de seu coração”, disse as seguintes palavras, que lhe vie-
ram à cabeça: “Menina, não he nada, o demonio não está aqui, está debaixo do pee
de Deus Verdadeiro [...] tem grande confiança em Deus verdadeiro que está co-
nosco”50. E logo a menina ficou curada e voltou a trabalhar. Poucas horas depois,
sobreveio nova crise. Segundo a versão de Amaro, foi nesse momento que uma ins-
piração lhe veio à mente e realizou a cura por meio de uma oração.
Logo se chegou a hum banco dizendo sobre elle estas palavras: Sobre ty
assento obre a palavra como quando Deus se assentou no mundo para
tirar o endemoninhado do corpo do homem, pondo a mão sobre o mesmo
banco, e logo chamou para par de sy a ditta menina e pegando lhe com a
mão direita na mão esquerda da menina em forma que com ella e com seu
dedo polegar lhe ficou fazendo huma cruz pella parte de sima; disse as
seguintes pallavras: Menina, queres ser sã; e respondendo lhe que sim, lhe
disse elle declarante, Menina tem grandes desejos e grande fee em Deus,
porque elle he o que faz esse misterio que ninguem outrem pode fazer: e
lhe disse essas palavras: Sobre ty arca (entendendo pella ditta menina a
palavra arca) obre a palavra como quando Deus andou pello mundo, que
tirou o endemoninhado do corpo do homem, obre sobre ty arca com Mi-
sericordia Senhor, e isto feito melhorou a ditta menina [...] e continuando
nisso por mais sete vezes nos dias seguintes, ficou a menina de todo sam51.

Passagens como essa, abundantes em seu processo inquisitorial, revelam ou-


tra dimensão da figura de Amaro Fernandes. Como se lê acima, diante de um caso
de possessão pelo espírito de um morto, ou algo que o valha, o lavrador, sem entrar

49
Ou, nas palavras de Ribeiro, em um artigo interessantíssimo, um exorcista popular. António
Vítor Ribeiro, “O demónio em carne viva: a pele e a anatomia simbólica da possessão”, Lusi-
tania Sacra 23 (2011): 95-120.
50
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fls. 86-88.
51
Ibid., fls. 88v-89.
[209]
em transe, recorreu a um ritual exorcístico muito específico, a ser repetido ao longo
de alguns dias: “abençoou” o banco em que ia sentar, tocou uma parte específica (a
mão) do corpo do cliente (sua filha, no exemplo), e pronunciou uma oração de ca-
ráter tradicional, mágico (a fórmula da historiola está presente52). Tal ritual era
utilizado pelo lavrador em diversas ocasiões, sendo procurado por muitas pessoas,
dentro e fora de sua freguesia, às quais agasalhava e alimentava, deixando de cuidar
de seus próprios afazeres no campo53. Curava homens, mulheres e crianças “assom-
brados do demônio”54, atormentados por almas de enforcados55, ou que padeciam
de “ar de excomungado”56. Era requisitado até mesmo por sacerdotes quando os
exorcismos destes últimos não logravam resultado57. No primeiro exame diante dos
inquisidores, já em 1660, Amaro resumiu os sintomas das pessoas que o procura-
vam: diziam ver “sombras e figuras do outro mundo” ou sentir “que o demônio
estava em seu corpo”, ficando “pasmadas, tolhidas e aleijadas, e quando não podião
falar, o dizião em seu nome outras pessoas que as trazião”58.
Na versão dada por Amaro aos inquisidores, o ritual de que se valia – breve-
mente resumido nos parágrafos acima – teria sido improvisado/inspirado por Deus
e os gestos e palavras que utilizava lhe teriam vindo à mente, sem que o mesmo
pudesse evitá-lo59. Sabemos, contudo, que dificilmente esta versão corresponde à
realidade: em mais de uma ocasião, os que o denunciam afirmam que o lavrador
possuía uma oração secreta, ensinada por sua mãe e que seria por ele transmitida
ao seu filho apenas quando se avizinhasse a sua morte60. Mencionam ainda que o
mesmo teria se inspirado num missal61. Dizia-se de Amaro que curava em voz baixa,
usando palavras ininteligíveis62, que o mal do doente passava para seu corpo63, e
que após muitas curas se sentia cansado64. Por fim, o próprio Amaro disse aos

52
Sobre o tema cf. David Frankfurter, “Narrating Power: The Theory and Practice of the Mag-
ical Historiola in Ritual Spells”, in Ancient Magic and Ritual Power, org. Marvin Meyer, Paul
Mirecki (London: Brill, 1995), 455-476.
53
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl. 94.
54
Ibid., fl. 97.
55
Ibid., fl. 97.
56
Ibid., fls. 103-103v.
57
Ibid., fl. 100.
58
Ibid., fl. 113v.
59
Ibid., fl. 120 v.
60
Ibid., fl. 6v.
61
Ibid., fl. 43v.
62
Ibid., fl. 4.
63
Ibid., fl. 6v.
64
Ibid., fl. 13v.
[210]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

inquisidores ter uma virtude especial para realizar suas curas, além da inspiração
divina, acrescentando espelhar-se num exorcista franciscano do “Convento de
Santo António da cidade de Angra, o qual tinha semelhante virtude para dar saúde
aos enfermos do dito mal”65. Amaro afirmou ainda ter chorado no ventre de sua
mãe e ter curado um homem quando tinha dez anos de idade66. Em outras palavras,
seja por aprendizado ou vocação, seja ainda por imitação, fato é que as práticas e
as representações mágico-religiosas de Amaro Fernandes se encaixam perfeita-
mente nos horizontes rituais dos curadores portugueses de sua época, realidade
conhecida há muito tempo pela historiografia67.
Compreende-se que, mudando por um instante o foco da análise – isto é,
direcionando o olhar para as práticas rituais de Amaro Fernandes – as visões do
açoriano adquirem novo sentido. Melhor dizendo: configuram-se num problema
distinto da busca pela origem histórica (ou histórico-morfológica), seja esta a re-
ligião pós-tridentina pregada nas índias interiores de Portugal, seja o xamanismo
de matriz eurasiática e de longa duração. O problema passa a ser o da função, isto
é, o do papel prático, efetivo – dir-se-ia, técnico68 – que tais visões desempenha-
vam nas atividades de um operador ritual tão requisitado quanto o lavrador-
exorcista de Agualva.
Segundo as denúncias e testemunhos, as visões e sonhos de Amaro cum-
priam um papel divinatório determinante em suas práticas de cura: “hia a hum
campo levado em spirito aonde via a hum senhor de grande Magestade em hum
trono, e muntas almas a roda, assi de homens como mulheres, e que huma delas
lhe vinha descobrir a infirmidade do doente que com elle se vinha curar”69. Tais
expressões, sempre no pretérito imperfeito, dão a ideia de uma prática recorrente:

65
Ibid., fl. 84v.
66
Ibid., fl. 109.
67
Cf. por exemplo, para o tema da vocação e dos poderes mágicos, Paiva, Bruxaria e supersti-
ção, 164-168; Paiva, Práticas e crenças mágicas, 194-205; Francisco Bethencourt, O imaginário
da magia. Feiticeiras, adivinhos e curandeiros em Portugal no século XVI (São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 2004), 208-210; Timothy Walker, Médicos, medicina popular e inquisição. A
repressão das curas mágicas em Portugal durante o Iluminismo (Rio de Janeiro: Editora da
Fiocruz, 2013), 53-58.
68
A este respeito, cf. Silvia Mancini, “La religione come “tecnica”. Riflessioni storico-religiose
sull’efficacia di alcune pratiche psicocorporee che utilizzano la dissociazione psichica in si-
tuazione rituale”, Studi e materiali di Storia delle Religioni 84 (2018): 254-271.
69
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 4782, fl. 9.
[211]
“por sonhos ia a Gloria”70; “ia ao outro mundo”71; “por sonhos era levado”72; “ia a um
campo”73 e assim sucessivamente. Nas primeiras denúncias, feitas por sacerdotes –
cujo olhar parecia ter o condão de dar ordem às práticas de que eram testemunhas
– o ritual parece muito coerente. Antes de executar a sua oração sobre o consul-
tante, Amaro Fernandes recolhia-se em seu quarto, com o rosto voltado para um
armário que lá havia, “as mãos levantadas, o gesto humilde, e dis palavras que se
não ouvem [...] e parecia que se lhe transfigurava o rosto” e logo conhecia o mal do
consultante, dando início à cerimônia de cura já descrita74. O outro sacerdote relata
algo parecido ao afirmar que Amaro “se punha em oração e o levavam a hum valle,
aonde via muitas almas, e [estas] lhe revelavam as infirmidades dos consultantes”75.
Não é possível avaliar a acuidade destas descrições, isto é, não há base teórica
para afirmar categoricamente que os sonhos e visões de Amaro Fernandes desem-
penhavam um papel técnico definido em suas práticas de cura. Diante dos
inquisidores, o lavrador o negaria definitivamente, afirmando ter sido levado ao
paraíso, e em sonhos, uma única vez76 - ao contrário do que diziam os testemunhos
– e que de modo algum adivinhava os males dos consultantes por meio de visões,
limitando-se a fazer perguntas sobre seus sintomas e a acertar, vez ou outra, a ori-
gem de seu sofrimento77. Claro está que a negativa possa ser uma estratégia para se
defender das acusações.

6. Gostaria de encerrar esta rápida intervenção – e, a bem da verdade, esta


primeira aproximação, ainda provisória, da trajetória de Amaro Fernandes – com
um retorno ao Auto dos Místicos, ao xamanismo e à História Noturna. A pergunta
no título, como deve estar claro aos leitores, é retórica: não creio ser possível afir-
mar, a partir das premissas expostas, que Amaro Fernandes seja um xamã, nem em
sentido lato (o que seria banal), nem em sentido estrito. Creio, inclusive, que a hi-
pótese xamânica/eurasiática utilizada para levantar problemas históricos sobre a
documentação inquisitorial portuguesa não faz justiça nem aos documentos nem
às importantes pesquisas de António Ribeiro. No entanto, se abrirmos mão da es-
cala comparativa transnacional e da classificação politética, um tema caro a Carlo

70
Ibid., fl. 4v.
71
Ibid., fl. 10.
72
Ibid., fl. 10v.
73
Ibid., fl. 11.
74
Ibid., fl. 4.
75
Ibid., fl. 6v.
76
Ibid., fl. 131v.
77
Ibid., fl. 127v.
[212]
UM XAMÃ NO SANTO OFÍCIO PORTUGUÊS? REVISITANDO O PROCESSO DE AMARO FERNANDES
Philippe Delfino Sartin

Ginzburg pode adquirir novo interesse quando se confronta a documentação in-


quisitorial (parte dela, inclusive, presente nas pesquisas de Ribeiro).
Num de seus capítulos mais controversos – e igualmente mais fascinantes –
Ginzburg propôs que uma aproximação insuspeita entre Édipo e Cinderela punha
a claro uma conexão de longuíssima duração entre monossandalismo/coxeadura
ritual e a viagem ao mundo dos mortos78. Aquele que retorna do mundo dos mor-
tos, para contar o que lá testemunhou, carregará consigo – o que se vê em diversos
mitos, ritos e instituições culturais – alguma marca no corpo que o distinguirá, para
sempre, das pessoas comuns. O defeito físico num dos pés ou o ato de mancar as-
sinala a capacidade “xamânica” de acessar frequentemente os mortos. Tentaremos,
a seguir, e de modo o mais breve possível, esboçar uma hipótese de pesquisa a partir
do processo de Amaro Fernandes que contemple esse tema. Sabe-se que, quando
era criança, ele sofreu uma forte chifrada de um boi, que lhe rasgou a perna. Na
mesma ocasião, teve uma visão em que entrava em contato com o mundo celestial.
Em 1753, um José Teixeira, de Grijó, contou aos inquisidores que, seis anos
antes, “andando elle em huma regada junto da sua terra, estando so, lhe dera huma
dor grande em huma perna [...] e dahi em diante se principiara achar mal, agoniado
do coração”. Tempos depois, “lhe principiara a dar hum mal que o deixara fora de
seus sentidos” e no “tempo em que estava desacordado, tinha fallado muito e tinha
dito que era alma de muitas pessoas que havia fallecido no seu povo, assim de ho-
mens como de mulheres”79. Manuel José de Várzea de Trovões (termo de Pinhel),
em 1738, dizia possuir virtudes curativas que ele atribuía a um de seus pés. Certa
vez, “lhe levou sua may, a caza de Mariana Borges [...] a qual estava muito apertada
com as dores do parto, e tocando-lhe o ventre com o pé direito, logo se vio livre das
dores e pario com bom sossego”. Tempos depois, “sua may o levou [...] a caza de
Ignes Lopes, que tinha huma besta com huma dor sem esperança de escapar, e
tocandolhe elle declarante com o pe direito na barriga, ficou logo livre e capas de
comer80. Terceiro e último exemplo. Em 1722, Manuel Gonçalves, da aldeia de Lor-
delo, termo de Barcelos, contou que enquanto trabalhava “se levantou um pe de
vento munto forte e o derrubou no chao, deixandoo dezacordado e sem centidos,
e de tal sorte que [...] ficou manquo”. Desde então “como pella boca delle

78
“Ossos e peles”, in Carlo Ginzburg. História noturna, 234-293.
79
Lisboa, ANTT, TSO, IC, proc. 7005.
80
Lisboa, ANTT, TSO, IC, proc. 9807.
[213]
confitente, fallava o espirito de seo primeiro sogro, Bento Pires, entendendo que se
lhe tinha metido no corpo e que viera naquelle pe de vento81.
Nos quatro casos acima – incluindo Amaro Fernandes – homens assinalados
em um de seus pés (ou pernas) possuem habilidades especiais, seja curar enfermi-
dades, seja entrar em contato com os mortos (transe?), seja as duas coisas. A
classificação, entretanto, deixou de ser politética e o conjunto passou a incluir, de
maneira mais uniforme, características comuns entre os seus elementos. Tempo e
espaço estão ainda mais restritos e uma dimensão social – pois comparam-se prá-
ticas concretas, históricas, e não narrativas – figura-se inescapável. As perguntas,
entretanto, surgem: tais elementos (pés assinalados-contato com os mortos-curas)
indicam instituições mágico-religiosas no mundo rústico português? Novas com-
parações se oferecem: estariam tais indivíduos mais próximos do saludadores
(localizados ao sul do Tejo)82 ou das corpo-aberto, da região do Minho (e que cu-
ravam os possuídos e assombrados recorrendo ao transe83)? E uma pergunta fica
no ar: existe comunicação possível entre tais documentos e aqueles utilizados por
Carlo Ginzburg? Pesquisas futuras deverão explorar os registros, ainda latentes, das
práticas de contato com as almas dos mortos na documentação portuguesa.
O modelo explicativo de O auto dos místicos e de História Noturna, a esta
altura, encontra-se diluído, despojado de seus riscos, dominado pela prudência.
Produzirá bons frutos?

81
Lisboa, ANTT, TSO, IC, proc. 7186.
82
Sobre este tema, confira-se, para além dos trabalhos já citados de Paiva e Bethencourt, Fa-
bián Alejandro Campagne, “Charismatic Healers on Iberian Soil: An Autopsy of a Mythical
Complex of Early Modern Spain”, Folklore 118 (April 2007): 44–64.
83
Paiva, Bruxaria e superstição, 137-144; Miguel Montenegro, Les bruxos: des thérapeutes
traditionnelles et leur clientèle au Portugal (Paris: L’Harmattan, 2005).
[214]
Pajés denunciados à Inquisição portuguesa:
apresentação das fontes históricas
(Amazônia e Nordeste do Brasil, século XVIII)
Carlos Henrique Cruz

“Paîe – pajé, curandeiro, feiticeiro indígena”. “Manda


chuva, benzedor”1.

Para os leitores ou estudiosos interessados nas experiências cotidianas dos


povos nativos americanos no período colonial, os processos e denúncias inqui-
sitoriais são fontes notáveis pela quantidade e qualidade de suas informações
históricas. Abrangem grande parte do território da América portuguesa regis-
trando grupos e sujeitos indígenas em diversos lugares e situações variadas, que
conflitaram e interagiram com missionários de diferentes ordens; escravizados
de origens africanas; militares; fazendeiros ou colonos “cristãos velhos” e “cris-
tãos novos”. Segundo números reunidos em pesquisas de referência2, entre os
séculos XVI ao XIX, o Santo Ofício de Lisboa registrou 531 acusações envolvendo
indígenas ou seus descendentes mestiços, sendo 431 somente no século XVIII.
Há 371 delações sobre comportamentos enquadrados como “feitiçaria”, “adivi-
nhação” ou outras práticas mágicas, entre essas, 32 citam o título ou podem ser
associadas aos rituais de “pajé”3.

1
Eduardo de Almeida Navarro, Dicionário de Tupi antigo: a língua indígena clássica do Brasil (São
Paulo: Global, 2013), 368.
2
Maria Leônia Chaves de Resende, “‘Da Ignorância e Rusticidade’: os indígenas e a Inquisição na
América portuguesa (séculos XVI-XIX)”, in Os Indígenas e as Justiças no Mundo Ibero-Americano
(séculos. XVI-XIX), org. Ângela Domingues, Maria Leônia Chaves de Resende e Pedro Cardim
(Lisboa: Centro de História da Universidade de Lisboa, 2019), 87-128.
3
Iniciei a pesquisa sobre os pajés denunciados à Inquisição em conjunto aos trabalhos de Inicia-
ção Científica e de monografia orientado, e incentivado, pela professora Maria Leônia Chaves de
Resende na Universidade Federal de São João del-Rei. Ampliei a análise na dissertação de mes-
trado, sob orientação de Ronaldo Vainfas, e, posteriormente, na tese de doutorado orientada pela
professora Elisa Frühauf Garcia. Carlos Henrique Cruz, “Inquéritos nativos: os pajés frente à In-
quisição” (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Este capítulo tem como objetivo apresentar um panorama geral das de-
núncias no século XVIII, seguindo o termo “pajé” anotado em 12 acusações, como
também cerimônias semelhantes comandadas por “feiticeiros” e “mestres” indí-
genas ou mestiços, em 20 relatos. Estão inseridas no final do texto duas tabelas
contendo a localização e informações resumidas sobre os documentos, uma para
a região Norte amazônica, e a outra para a região Nordeste do Brasil. Os tópicos
finais estão dedicados a uma breve descrição das fontes, citando estudos já de-
senvolvidos ou questões que podem ser ainda melhor trabalhadas. Esperamos,
assim, incentivar diálogos e facilitar pesquisas sobre o tema.

Pajés, mestres e feiticeiros indígenas acusados no Brasil colonial


Os “pajés” despertaram maior preocupação e violência entre os catequiza-
dores católicos4, quando comparada à reação dos agentes da Inquisição que
receberam as denúncias. Certamente, porque a jurisdição inquisitorial sobre os
indígenas era uma questão delicada incluída em debates teológicos sobre as for-
mas de julgamento cristão e punição “justa” para os povos ainda ignorantes da
“Verdade” do Evangelho. Como notado por Resende, os nativos do Brasil eram
classificados como “gentios”, “neófitos” e “rústicos”, ou seja, merecedores da
compaixão do Santo Tribunal e necessitados de uma especial proteção, tanto
judicial quanto espiritual5.
Nos episódios de cura, malefícios ou de outras misteriosas cerimônias co-
muns no interior das missões, fazendas ou de outros espaços coloniais habitados
pelos indígenas, as formas consideradas adequadas e eficazes de punição aos
“feiticeiros” também despertaram dúvidas no convívio cotidiano. Ao que parece,
o procedimento indicado pela Santa Sé era que os missionários deveriam

Federal Fluminense, Niterói, 2013). A tese foi publicada: A escola do diabo: indígenas e capuchi-
nhos italianos nos sertões da América (1680-1761) (Firenze: Firenze University Press, 2019)
(Premio Istituto Sangalli per la storia religiosa, 7).
4
No século XVI, o jesuíta Manoel da Nóbrega descreveu os profetas ou feiticeiros indígenas como
os “maiores contrários” dos padres na tarefa de conversão dos “gentios”. Para o capuchinho
Claude D’Abeville, entre os tupinambás no maranhão, no início do século XVII, os “curandeiros”
eram “embusteiros de que serve o diabo para ter os índios sempre supersticiosos”. “São muitos
estimados pelos bárbaros que neles muito creem. Dão-lhe o nome de pajé curandeiro ou feiti-
ceiro”. Manoel da Nóbrega, “Informação das terras do Brasil” (1549), in Serafim Leite, Cartas dos
primeiros jesuítas do Brasil, vol. 1 (São Paulo: Comissão do IV Centenário, São Paulo, 1954), 93.
Claude D’Abeville, História da missão dos padres capuchinhos na ilha do Maranhão e suas circun-
vizinhanças (1614) (Maranhão: Typographia do Frias, 1874), 374.
5
Resende, “‘Da Ignorância e Rusticidade’”, 102.
[216]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

analisar os casos e considerar a melhor forma de justiça no aldeamento, podendo


até mesmo negociar com as lideranças nativas as ações; quando não fosse possí-
vel contar com a intervenção dos bispos, o que era preferencial, ou do Santo
Ofício6, que evitavam julgar os “neófitos”. Desta forma, como é visível nas tabe-
las, há mais denúncias do que processos contra os “pajés” ou “mestres” e, ainda,
não foi encontrado nenhum inquérito completo, com confissão e sentença anun-
ciada em Auto da Fé em Lisboa. Poucos indígenas foram condenados como
“feiticeiros”, entre eles, o “índio caboclo” Miguel Ferreira Pestana, em 1744, que
não era reconhecido como pajé por ter tomado parte em outros contextos sociais
e saberes místicos, especialmente no uso de “mandingas”7.
No final do século XVI, quando a Inquisição instalou a Mesa da Visitação
na Bahia (1591-1595), o licenciado Heitor Furtado de Mendonça ouviu diversos
depoimentos sobre a “Santidade do Jaguaribe” comandada pelo “caraíba” Antô-
nio, que havia fugido do aldeamento jesuítico de Tinharé, e uma de suas
mulheres, a indígena “Santa Maria”. Primeiramente no sertão e depois protegi-
dos nas terras do engenho de Fernão Cabral Taíde, combinaram símbolos e
mitos das cosmologias tupinambás com os ensinamentos católicos dos coloni-
zadores, liderando celebrações de “batismo às avessas” intensificadas pelo
tabaco entre orações a ídolos e “bailes” ritmados pelos maracás8.
Apesar da agitação provocada pela “igreja dos índios” entre os moradores
da Bahia e de sua posterior e violenta repressão a mando das autoridades secu-
lares, poucos sujeitos indígenas foram processados pela Visitação e nenhum
líder do movimento. No entanto, 48 mamelucos foram incriminados por terem
participado da “abusão dos gentios”. Segundo Ronaldo Vainfas, muitos eram fi-
lhos de pais nascidos na Europa e de mães nativas do Brasil, que, no convívio
junto ao núcleo materno, herdavam saberes como “o conhecimento da geografia,
o modo prático de abrir trilhas nas florestas, de contornar os perigos das feras e

6
Pietro Vittorino Regni, Os Capuchinhos na Bahia: uma contribuição para a História da Igreja no
Brasil, vol. 2 (Porto Alegre: Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes, 1988), 182-183;
585; James Wadsworth, “Uma nova invenção da bruxaria diabólica: a Jurema e a Inquisição”, in
Travessias inquisitoriais: das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício, ed. Maria Leônia Chaves
de Resende, Júnia Furtado (Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2013), 375.
7
Luís Rafael Araújo Corrêa, Feitiço caboclo: um índio mandingueiro condenado pela Inquisição
(Jundiaí: Paco Editorial, 2018).
8
Ronaldo Vainfas, A Heresia dos Índios. Catolicismo e Rebeldia no Brasil colonial (São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1995), 119-138; Ronaldo Vainfas, org., Confissões da Bahia (São Paulo:
Companhia das Letras, 1997). João Capistrano de Abreu, org., Primeira Visitação do Santo ofício
às partes do Brasil. Denunciações da Bahia – 1591-1593 (São Paulo: Paulo Prado, 1925).
[217]
das cobras, de utilizar ervas terapêuticas com a desenvoltura de curandeiros (pe-
quenos pajés)”9. O mameluco Domingos Nobre Tomacaúna, entre os
desbravadores mais experientes da Bahia e frequentador assíduo da Santidade,
para se livrar de alguns nativos que nas matas o ameaçaram certa vez, confessou
ter fingido ser um “feiticeiro” da “maneira como os gentios costumam ser” di-
zendo que havia de “lançar a morte para todos morrerem”, e fazendo algumas
“invenções e fingimentos” conseguiu se salvar10.
É no século XVIII que o volume de denúncias aumenta, com 435 indígenas
ou mestiços acusados11. Não por que a inquisição portuguesa tenha finalmente
resolvido a sua jurisdição sobre os nativos, mas em consonância ao aumento do
número de seus agentes ou espiões, acompanhado da expansão e controle colo-
nial lusitano sobre o Estado do Grão-Pará e sobre os sertões do Nordeste do
Brasil. Os territórios foram rapidamente incluídos no escopo de vigilância de
comissários, familiares ou de outros eventuais colaboradores do Santo Ofício,
como alguns missionários, que denunciaram indígenas de seus aldeamentos12. A
partir de 1714, começam a ser registradas nos Cadernos do Promotor da Inquisi-
ção de Lisboa diferentes relatos sobre as “visagens” de “pajés” ou “feiticeiros da
terra”, sobretudo entre os moradores da Amazônia, com 20 acusações reunidas.
O termo “pajé” aparece poucas vezes nos documentos inquisitoriais sobre
outras regiões do Brasil. Deve-se levar em conta que, apesar da popularidade
assinalada entre os nativos tupis, e de sua difusão no período colonial pelo uso
da língua geral (nheengatu), o título não era único e universal para os diferentes
povos. No interior do Nordeste habitaram diversos grupos étnicos diferenciados
do padrão tupi e que foram genericamente classificados pelos seus inimigos, lu-
sitanos e seus aliados tupinambás, como “bárbaros” ou “tapuias de língua
travada”13. Nas fontes coloniais predominou o estereótipo da selvageria e um de-
sinteresse comum, entre os próprios missionários, pelos seus costumes e
tradições cosmológicas ao ponto de serem considerados “menos espirituais que
os tupis”14. Por outro lado, as 12 denúncias relacionadas citam “feiticeiros” ou

9
Vainfas, A Heresia dos Índios, 142.
10
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 10776, fl. 6.
11
Resende, “‘Da Ignorância e Rusticidade’”, 94.
12
O capuchinho João Francisco de Palermo, “como comissário eleito pela Inquisição” no século
XVIII, conduziu investigações contra os nativos Coremas, na Paraíba, e na Missão de Miranda, no
Ceará. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 14848 e liv. 311 (Cadernos do Promotor n.º 119), fl. 375.
13
Cristina Pompa, Religião como Tradução: Missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial (São
Paulo: SEDUSC, 2003).
14
John Hemming, Ouro vermelho: a conquista dos índios brasileiros (São Paulo: EDUSP, 2007), 498.
[218]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

“mestres” especialistas em malefícios ou ganhando fama pelos rituais de defu-


mação e contato com os espíritos através dos maracás, com destaque para as
danças coletivas acompanhadas da ingestão da bebida de jurema.
Embora o número de denúncias contra indígenas no Nordeste seja menor,
há outros registros históricos sobre uma justiça local exercida no interior dos
aldeamentos, especialmente em acusações contra os capuchinos italianos que,
nas missões do rio São Francisco entre 1717 a 1756, “faziam queimar a muitas
pessoas com o título de feiticeiros”. Em Pambu, no dia 12 de agosto de 1753, uma
“índia velha” chamada Grimaneza morreu no tronco após ser açoitada e impe-
dida de beber água e se alimentar. O “seu cadáver, como o de algum irracional,
foi arrastado, queimado e lançadas as cinzas no monturo por entender o padre
[Barnabé de Tedaldi] que era feiticeira”15. Outras moradoras da missão, Thedósia,
Narciza, Maria Madalena e Joana de Oliveira, foram também chicoteadas e exe-
cutadas a golpe de porrete e os seus corpos foram arrastados e incendiados em
uma cova com lenha. Quando não eram incinerados, os cadáveres eram enterra-
dos in saltu (no mato), sendo negada a sepultura cristã nos cemitérios das aldeias.
Por outro lado, os barbadinhos italianos se defenderam das acusações exa-
geradas ou “caluniosas” enviadas ao Conselho Ultramarino, apontando uma
séria imprecisão de justiça nos casos de “atos diabólicos” comuns entre os indí-
genas batizados, uma vez que o bispado e até mesmo a Inquisição não
controlavam os “feiticeiros”, transferindo o juízo para os padres e autoridades
nativas nos aldeamentos. As execuções foram então atribuídas aos capitães indí-
genas que agiam com excessiva crueldade16; como acontecido com o suspeito
Antônio Barbosa, encaminhado pelo capuchinho Possidônio de Mirândola ao
“governador dos índios chamado Matarauhá, que diziam os padres tinha juris-
dição para degolar e esquartejar quantos índios lhe parecesse, e entre o Pambu
e Aracapá foi degolado e esquartejado”17.

15
“Teor de vários termos e assentos dos óbitos dos Índios da Missão do Pambu” e “Parallelos dos
Missionários Capuxinhos e Jesuítas do Bispado e Capitania de Pernambuco”. Lisboa, AHU (Bahia
– Eduardo de Castro Almeida), doc. 5352.
16
Cristina Pompa, “História de um desaparecimento anunciado”, in A presença indígena no Nor-
deste: processos de territorialização, modos de reconhecimento e regimes de memória, org. João.
Pacheco de Oliveira (Rio de Janeiro: Contra Capa, 2011), 267-294 (279). Regni, Os Capuchinhos na
Bahia, 185.
17
“Parallelos dos Missionários Capuxinhos e Jesuítas do Bispado e Capitania de Pernambuco. Ar-
quivo Histórico Ultramarino (Bahia – Eduardo de Castro Almeida), Documento 5352, p. 2. A
patente de “Governador dos índios do Cabelo Corredio do Rio São Francisco de Baixo e de Cima”
ou “Governador dos índios de todas as aldeias do São Francisco”, entre os anos de 1680 a 1733, com
[219]
As vítimas citadas não estão incluídas nas tabelas restritas às acusações do
Santo Ofício contra “pajés”, “mestres” ou “feiticeiros”. Assim como outros nati-
vos americanos também denunciados ao Conselho Ultramarino ou à Junta das
Missões de Pernambuco por beberem jurema nos aldeamentos18. Portanto, mui-
tos outros relatos coloniais citam os nossos protagonistas em fazendas, vilas e
missões. E as fontes da Inquisição devem ser dialogadas com essas outras narra-
tivas para uma análise mais completa, sobretudo do cotidiano regional onde as
cerimônias aconteciam, podendo ser aceitas ou violentamente reprimidas.

Os pajés na região amazônica: os rituais de “descer demônios”


O familiar do Santo Ofício, Antônio Figueira do Santos, iniciou a primeira
investigação contra um “pajé”, em 22 de outubro de 1714, interrogando sete tes-
temunhas sobre as atividades suspeitas de Angélico, “índio da terra feiticeiro” do
serviço de Manoel Álvares de Lima19. Os relatos concordaram que, dona Cathe-
rina Pinheira, natural da cidade de Belém e esposa de Paulo Ferreira, padecendo
de um “grande achaque” e “desejosa de recobrar sua saúde para poder lograr de
uns vestidos que mandara fazer”, teria recorrido ao acusado. Em cerimônia reali-
zada a noite e às escuras, em um “tejupar” ou cabana construída no mato
exclusivamente para a ocasião, Angélico teria orientado a mulher que se despisse
e untado o seu corpo com o caldo de certas frutas, “na língua dos índios, periperi-
baca”. Catherina e sua acompanhante, uma nativa de sua casa chamada Lucrécia,
se deitaram de bruços em uma rede com os olhos fechados e com medo, enquanto
o “feiticeiro” fez descer do teto de palha, entre cantos, danças e estrondos, doze

soldo concedido pelo rei em reconhecimento aos serviços militares, foi dada a Francisco Dias
Mataroã e, após sua morte, ao seu filho, Jorge Dias Carvalho Mataroã, de “nação Porcaze” do ser-
tão de Rodelas. David Barbuda, “Nas malhas do sertão do São Francisco: a família indígena
Mataroã e os espaços de poder na américa portuguesa”, in Cadernos de Resumo do II Congresso
Internacional Mundos Indígenas, org. Juciene Ricarte Apolinário e Ofélia Maria de Marros (Cam-
pina Grande, 2018). Ver também, “Carta para o Governador de Pernambuco sobre as missões e
acerca do Governador Mataroã” in Documentos Históricos da Biblioteca Nacional, vol. 86, p. 21.
Ricardo Pinto de Medeiros, “Capa, espada, hábito e tença: concessão de títulos nobiliárquicos às
lideranças indígenas na luta contra invasores estrangeiros na América portuguesa (séc. XVII)”, in
Congresso Internacional Pequena Nobreza nos Impérios Ibéricos de Antigo Regime (Lisboa: Insti-
tuto de Investigação Científica e Tropical, 2011), 7.
18
Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba,
Pedro Monteiro de Macedo, informando da necessidade de estabelecer na capitania nova Junta
das Missões, 09/07/1740. Lisboa, AHU, Paraíba, doc. 920, fl. 04v.
19
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor, liv. 276, fls. 166-172.
[220]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

ou treze diabos para a realização da “cura” e todos açoitaram a enferma com ga-
lhos e “folhas de maniçoba” (mandioca), que logo recuperou a saúde.
As testemunhas falaram pouco sobre o indígena Angélico, e muito mais
sobre a senhora Catherina, que tinha o hábito de consultar “feiticeiros” da loca-
lidade e depois comentar suas experiências sobrenaturais. Segundo a mulata
Adriana Mendes, ela já “tinha posto na cara unto de gente para se não fazer ve-
lha”. E a informação foi confirmada por dona Vitória de Melo: a dita senhora
“andava assombrada”, justamente por uma “índia pagã” que a noite não a deixava
dormir murmurando “dá-me cá minha gordura”. Disse mais, “aquela gordura lhe
dera em um cabaço uma negra da casa de João Botelho desta cidade, por nome
Bonifácia cabra”. O capitão João Campelo, entre todos os depoentes, foi o único
a afirmar que Catherina “se curara estando doente com um pajé ou feiticeiro” e
com a ajuda de “diabos camaradas”.
De acordo com as pesquisas pioneiras de Almir Diniz de Carvalho Júnior,
as denúncias aumentaram ao longo da primeira metade do século XVIII entre os
“índios cristãos” e os colonos em contato, descrevendo a cidade de Belém, vilas
e aldeias vizinhas “infeccionadas” de “feiticeiros” semelhantes. O ritual de “des-
cer demônios”, conforme o historiador, estaria profundamente ligado “ao papel
que os ‘feiticeiros’ (ou melhor – pajés) tinham no cotidiano destas populações”20.
Ainda destacando semelhanças notáveis entre essas cerimônias expostas, no sé-
culo XVIII, com às celebrações de cura e evocação de espíritos narradas entre os
povos tupis contatados no litoral do Brasil, nos séculos XVI e XVII.
As informações reunidas em nossas pesquisas confirmam a hipótese do
historiador: todas as 12 denúncias em que aparecem as palavras “pajé” ou “paje-
arias” relatam o ritual de “descer demônios”, com as suas diferenças locais. As
outras acusações, indicadas na tabela sobre a região amazônica, descrevem prá-
ticas semelhantes, embora não mencionem “pajés”, apenas “feiticeiros(as)”, com
diferentes pessoas denunciadas. Portanto, num universo maior de investigações
envolvendo o uso de amuletos, mandingas, cantigas e ervas pelos indígenas co-
loniais; nem todo índio acusado como “feiticeiro” é um “pajé”, embora os “pajés”
fossem sempre denunciados como “feiticeiros” por colonos, eclesiásticos e, até
mesmo, pelos nativos cristianizados.

20
Almir Diniz de Carvalho Júnior, Índios Cristãos: poder, magia e religião na Amazônia colonial
(Curitiba: CRV, 2017), 293, 304.
[221]
Em 1752, na vila de Gurupá, o “índio forro” José pajé foi acusado pela reali-
zação de “diabruras”. Citando informações dos cinco testemunhos arrolados:
“todos os índios que se acham doentes vão curar-se com ele com remédios su-
persticiosos”. As medicinas eram efetivadas com bênçãos, fumaças, “chupações
de boca” e “outras coisas semelhantes e já por continuação lhe chamam Pajé que
é o mesmo que feiticeiro”. Jose Pajé ainda fazia “descer os demônios com grandes
terremotos”21.
Quando queria “saber alguma coisa” oculta, o ajudante de ordenança An-
tônio das Neves invocava demônios fechado em uma casa, “a que os tapuias
chamam de tocaia”. Os depoentes afirmaram o comportamento como “público”
na vila da Vigia em 1740, onde o dito “mestre”, provavelmente um homem
branco, instruía outros “feiticeiros”. Maria “Azeda” havia aprendido “benzer com
palavras e fazer seus encantos no que faz descer anjos”; e pode ter repassado o
conhecimento para o seu escravo, um mameluco chamado José, que fazia “as
mesmas virtudes ou diabruras”. Segundo um morador da vila, o acusado Antônio
das Neves “faz pajés que é uma diabrura que semelhantes pessoas usam para
fazer aparecer objetos, diferentes vozes e por esta razão já lhe chamam o pajé”22.
Os documentos comprovam a popularidade dos rituais de “descer demô-
nios” associados aos “pajés” entre indígenas, mestiços e colonos brancos na
cidade de Belém, vilas e aldeamentos do Grão-Pará. Carvalho Júnior ressalta que
muitos senhores propagandeavam os talentos curativos de seus escravizados,
dando-lhes permissão para este ofício paralelo que lhes rendia fama local e ga-
nhos23. Delações como a de Antônio das Neves nos permitem considerar uma
participação mais ativa dos indivíduos não indígenas, que, além de consultarem
os “feiticeiros da terra”, podem ter iniciado “práticas mágicas” ou heterodoxas ao
catolicismo com os nativos. Homens mestiços também podiam conquistar o res-
peito atribuído aos “pajés”, em 1763 o mameluco ou mulato Pedro Rodrigues era
celebrado como “principal mestre e oráculo” entre os indígenas na vila de
Boim24.
De toda forma, segundo o comissário Manoel de Almeida, responsável pelo
envio de diferentes denúncias contra os “feiticeiros” paraenses, “essas

21
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 112, liv. 304, fl. 256v; Carvalho Júnior, Índios Cris-
tãos, 284.
22
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 110, liv. 302, fls. 190-194.
23
Carvalho Júnior, Índios Cristãos, 284.
24
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12895.
[222]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

semelhantes diabruras a que chamam descimentos está esta terra infeccionada


assim entre a gentilidade como anda gente branca”25. Em 1732, acusou Sebastião
Rodrigues Barbarosa, “um negro com título de pajé”, que “faz curas, e faz vir o
Padre Eterno e nosso senhor Jesus Cristo e Anjos e Almas de defuntos e também
as almas dos que ainda estão vivos e diz se há de salvar ou perder”. E o “dito pajé
ou espírito que ele ali faz vir dizem que nós [cristãos] andamos errados na fé que
temos e que o que lemos nos livros é mentira”26. Em outra oportunidade, o co-
missário registrou que o indígena Salvador Capitão, na aldeia de Itá Crucá do rio
Xingu, em 11 de agosto de 1743, “fazia falar gente no ar e na água e tirar dos corpos
de gente viva bichos ou um modo de mechas sem ter buraco”. Já o nativo Fran-
cisco, que assistia em casa de Manoel David, em Gurupá, “cantava umas certas
cantigas e com elas fazia descer o que não via, porém falava como gente, por várias
vezes, que seriam dez ou doze vezes”. E quando curiosos lhe perguntavam o que
eram, dizia ser “Deus, anjos que desceu do céu, uns diziam vinham de Cametá,
outros do Maranhão, outros de Gurupá, outros de várias partes do mundo”27.
Manuel de Almeida, entre outros agentes da Inquisição, também emitiu
um alerta contra a temida e impune “feiticeira” Ludovina Ferreira, que, entre os
anos de 1733 e 1769, descobria malefícios, praticava curas e descia do teto das
casas, fumando o seu taquari (cigarro de casca de pau com tabaco), ao som dos
maracás e cantigas em língua da terra, “demônios”, “feiticeiros”, “pajés” ou “de-
mônios” em “trajes ferozes de onças, outros de jacarés”, que com ela bailavam e
cantavam28. Em alguns documentos, Ludovina foi descrita como uma mulher
branca, viúva e moradora na cidade de Belém, onde treinava discipulas e contava
com dois assistentes, os indígenas Antonino e Gregório29. Segundo testemunhas,
a “feiticeira” Ludovina cantava “por língua incógnita que sabem e com que cos-
tumam os Pajés ou Mestres das feitiçarias”.
Nenhuma mulher foi apontada como “pajé” nas acusações, mesmo aquelas
publicamente reconhecidas por comportamentos análogos, como envenena-
mentos e remédios com folhas, cascas e raízes ou por meio de sopros, “chupações

25
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor, liv. 324, fl. 187.
26
Ibid., fl. 188. Ver também a denúncia contra o indígena Lourenço, que fazia “descer dos céus
nosso primeiro pai Adão, diz ele, com coros de anjos, trazendo espíritos a falar com o nosso San-
tíssimo Padre Santo Inácio”. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 16288.
27
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 104, liv. 296, fl. 340.
28
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor liv. 324, fl. 261; liv. 312, fls. 336-341; Processos
16743; 16747 e 13325. Carvalho Júnior, Índios Cristãos, 297-301.
29
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13325 e José Roberto do Amaral Lapa (org.), Livro da Visitação do
Santo Ofício da Inquisição ao Estado do Grão-Pará 1763-1769 (Petrópolis: Vozes, 1978), 159.
[223]
de boca” ou por intermédio das entidades espirituais. Portanto, muitos outros
indígenas e mestiços foram reconhecidos como especialistas em ervas e cerimô-
nias de cura no Grão-Pará, ainda que, nas fontes inquisitoriais, não tenham sido
identificados como “pajés”. É importante considerar que as personagens não no-
meadas dessa forma, por exemplo, os nativos Domingos Açu, Vitória, Firmiano,
Hylário e a famosa curandeira Sabina, também acusadas ao Santo Ofício30, não
estavam impossibilitadas de obterem este reconhecimento em outras situações
ou por outros agentes históricos. E as que foram reconhecidas como “pajés”, tal-
vez não o fossem em outras circunstâncias e locais31.

Feitiços de morte, defumações e bebidas de jurema no Nordeste do Brasil


Partindo das informações narradas nas fontes do Santo Ofício, somadas às
de outros informes do período colonial, é possível afirmar a coexistência de di-
ferentes práticas “mágicas”, rituais ou devoções entre os indígenas aldeados, que
entravam e saiam das missões compartilhando conhecimentos com colonos, ho-
mens pretos e mestiços próximos. Em Ibiapaba, o maior aldeamento missionário
localizado no Nordeste do Brasil, numa região serrana do Ceará, em 1720 a nativa
Antônia Guiragassu “tomava umas grandes fumaças de tabaco de cachimbo até
ficar como fora de si e logo se levanta aos ares saindo pelo teto da casa que é de
palha sem a destruir, e nos ares dá um grande assobio e logo cai outra vez na
mesma casa e com ela o demônio”, algumas vezes visível “na forma de índio”, ou
a “alma” de uma parenta defunta32.
Os familiares da delatada detinham uma importante posição em Ibiapaba,
o irmão possuía título, Dom Simão [Piodovaiba], e o pai era proprietário de gado
e contava com o serviço de vaqueiros, testemunhas das “visagens” e aparições. E
ainda que na região outras personagens desfrutassem da fama de “pajés” ou de

30
Ver Carvalho Júnior, Índios Cristãos; Lidiane Vicentina dos Santos, ““Terra Inficcionada”: as
práticas mágico-religiosas indígenas e a Inquisição na Amazônia Portuguesa Setecentista” (Dis-
sertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de São
João del-Rei, 2016).
31
Como afirmado por Jean Langdon, “os atributos do papel do xamã mudam de uma sociedade
para outra. Também é possível que os membros da sociedade reconheçam mais de um tipo de
xamã. É preciso explorar as definições nativas para descobrir quem é um xamã”. E. Jean Matteson
Langdon (org), Xamanismo no Brasil: Novas Perspectivas (Florianópolis: Editora da Universidade
Federal de Santa Catarina, 1996), 29. Ver também, Renato Sztutman, O Profeta e o Principal. A
Ação Política Ameríndia e Seus Personagens (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
Fapesp, 2012).
32
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 93, liv. 286, fls. 585-593.
[224]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

“feiticeiros”, não parecia “tão certa” como à de Antônia Guiragassu, segundo a


opinião do principal da nação dos Tabajaras, Dom Jacobo de Souza e Castro, que
realizou a denúncia em Lisboa. Conforme o padre que serviu de intérprete ao
dito líder, na capitania do Ceará muitos indivíduos invocavam o demônio e adi-
vinhavam o futuro realizando “cerimônias supersticiosas”. Os mais temidos
seriam dois, “que não são índios, mas filhos de índia com mulatos, criados fora da
aldeia”, Pedro Mendonça, “do ofício de feiticeiro que, na língua do gentio, se
chama pajé”, e Bento Coelho, “que quando vai a guerra com os índios manda fazer
aquelas superstições para adivinharem onde estão os tapuias que buscam e o que
há de suceder, e que tudo se fala naquela capitania comum e publicamente”.
A partir da década de 1730, as autoridades seculares, missionárias e inquisi-
toriais, notaram um misterioso ritual entre os nativos aldeados nas capitanias do
Nordeste: “o diabo andava a fazer representações aos ditos índios, provocando-
lhes a desobediência aos princípios catequéticos, através de certa bebida chamada
jurema”. Segundo as informações do capitão-mor Pedro Monteiro de Macedo, no
aldeamento de Boa Vista, região de Manguape, litoral da Paraíba, “os feiticeiros
índios usam de uma bebida de uma raiz chamada jurema, que, transportando-os
dos seus sentidos, ficam como mortos e, quando entram em si da bebedeira, con-
tam visões que o Diabo lhes apresenta”33. Em um intervalo de trinta anos,
diferentes cerimônias com bebidas ou beberagens “diabólicas” foram então noti-
ciadas dos sertões ao litoral do Nordeste, sobretudo entre a diversidade “tapuia”34.
Um dos registros mais detalhados foi escrito pelo capuchinho italiano José de Cal-
vatam, em 1743, entre os nativos coremas nos sertões da Paraíba. Denunciou ao
Santo Ofício todos os moradores da missão por seguirem os “mestres da jurema”
em cerimônias coletivas de cura e danças com os maracás.
Todos os que bebem jurema tem seu maracá e quem não tem maracá o
pede emprestado porque sem ele não pode beber jurema [...]. Ninguém
pode beber jurema sem primeiro ser curado. A cura consiste em fazer
um buraco no chão, fazer nele fogo, ou brasas, e depois botam no fogo
certas raízes de pau, que não lhe sei o nome. Deita-se o que há de ser

33
Consulta do Conselho Ultramarino, ao rei D. João V, sobre a carta do capitão-mor da Paraíba,
Pedro Monteiro de Macedo, informando da necessidade de estabelecer na capitania nova Junta
das Missões, 09/07/1740. Lisboa, AHU, Paraíba, Documento 920, fl. 4v.
34
E. Paliot e R. de Azeredo Grünewald, “O país da jurema: revisitando as fontes históricas a partir
do ritual atikum”, Acervo Revista do Arquivo Nacional 34, n.º 2 (2021): 1-21; Guilherme Medeiros,
“O uso ritual da Jurema entre os indígenas do Brasil colonial e as dinâmicas das fronteiras terri-
toriais do Nordeste no século XVIII”, in Clio Arqueológica, nº 20 – vol. 1 (Universidade Federal de
Pernambuco, Recife-PE, 2006), 123-150.
[225]
curado em cima daquele buraco para receber no corpo o fumo que sai
daquelas raízes e assim fica curado para sempre. Quem bebe a jurema
sem primeiro se fazer curar, dizem que morre35.

Aparentemente, todos os indígenas tinham conhecimento de como preparar


a bebida, porém, “estando junto com o mestre toca a ele fazê-la”, descreveu o mis-
sionário capuchinho. O papel dos “mestres da jurema” e do segredo ritual é
destacado, entoavam as palavras e cantigas sagradas e se comunicavam com os es-
píritos dos mortos. Analisando a denúncia, o historiador James Wadsworth sugere
que as personagens cumpriam o papel tradicionalmente realizado pelos pajés, ou
seja, “preservar as tradições” e difundir o culto às outras comunidades indígenas36.
Os embriagados de jurema relatavam visões assustadoras: segundo o na-
tivo Agostinho, enxergavam o diabo em figura de bode, fazendo-lhe cortesia,
tocando e dançando com o maracá, “e o bode fala com o mestre e só ele entende”.
Declarou “que todos os que bebem a jurema caem como mortos, porém tocando-
os o mestre com os maracás e cantando uma cantiga, se levantam de repente,
sem isso não se podem levantar”. Conforme Calvatam, “o céu aberto” era a vista
mais comum; também diziam encontrar “com os seus defuntos que se põem as-
sentados perto deles sem dizerem palavras”.
No aldeamento do Apody, no Rio Grande do Norte, o nativo payacu Gau-
dencio teria assassinado a quarenta e nove pessoas por meio de “feitiços”, cujos
nomes e as motivações individuais de cada morte estão listadas no documento
da Inquisição, em 1756. Ele ainda confessou que “todas as vezes que bebia jurema
ou angico lhe apareciam muitas e várias figuras horrendas” com pés de pato,
cabelos grosseiros e chifres de bode. Declarou, ainda, que voava quando queria,
untando o peito com um unguento “e logo encolhia os pés e lhes saíam penas e
se queria carregar outros untava as costas”37.
Já Domingos Correia foi incriminado pelo capuchinho Fidelis da Partana,
superior no Apodi, pelo “comércio que tinha com o Diabo”, cujo mestre foi o pai
Amaro, cativo de Antônio Correia, morador na vila do Grassu [Açu?]. Após o
pacto, recebeu um papel com a figura demoníaca e um carvão com o qual esfre-
gara as mãos quanto queria dar feitiços ou curar deles, e quando queria dar
feitiços esfregava as mãos com uma pedra ou osso”. Talvez por insistência do

35
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 107, liv. 299, fls. 381-382.
36
James E. Wadsworth, “Jurema and Batuque: Indians, Africans, and the Inquisition in colonial
northeastern Brazil”, History of Religions 46, n.º 2 (2006): 140-161.
37
Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 118, liv. 310, fls. 55-56.
[226]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

missionário, acrescentou que, quando queria “falar com o Diabo”, tocava o seu
maracá, “e com isso só lhe aparecia e falava com ele a sua vontade”. No “tempo
de noite escura, tocando o seu maracá, principiava a falar com gente do outro
mundo, chamados gentios pagãos, ouvindo todos conversando”. No tempo das
“primeiras chuvas”, convidava os moradores do aldeamento para o mato, onde
ia “pedir frutas a gente do outro mundo para comerem aquele ano”. Apartando-
se do grupo, Domingos dizia buscar as frutas que os “gentios pagãos” lhe davam,
e depois de breve tempo, voltava com maris, carnaúbas ou juás, adiantando-se
ao tempo delas estarem maduras. Recomendava que se repartissem especial-
mente entre os meninos, “alcançando com esta diabrura muitos mimos aos seus
parentes”38.

Considerações Finais
Para finalizar o capítulo, entre as diversas e instigantes questões que po-
dem ser ainda melhor investigadas a partir das fontes inquisitoriais, anunciamos
três de interesse histórico e antropológico.

1. A diversidade de seres que os “pajés” ou “feiticeiros” fazia descer em seus rituais.


Embora em muitas delações, numa tradução católica e inquisitorial, as ce-
rimônias de cura tenham sido rotuladas como “diabruras” ou “descer demônios”;
há outras descrições de “feiticeiros”, “pajés”, “anjos”, santos e espíritos travesti-
dos de animais que desciam do teto das casas e interagiam com os acusados na
região amazônica. Algumas testemunhas reconheceram almas ou vozes de pa-
rentes mortos e, até mesmo, o “demônio em forma visível de índio”. Outras
falaram de “feiticeiros” ou “pajés” de cabelos longos como os indígenas, que “pe-
lejavam” com os seus conjuradores e anunciavam, em “língua da terra”, o
tratamento adequado aos enfermos. E certos “feiticeiros” declaravam chamar os
“seus pajés” ou “feiticeiros camaradas”. Tais declarações deixam uma certa

38
Também o indígena Bento foi incriminado na mesma ocasião por invocar o diabo e consultar
os “gentios pagãos” instruído pelo seu irmão Domingos Correia. Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos
do Promotor 117, liv. 309, fls. 452-453. Entre os tupis, também era função dos pajés encantar os
maracás e prover alimentos de forma miraculosa aos seus seguidores, como no caso das frutas
apanhadas antes da época de maturação, o que lhes garantia favores e presentes. Alfred Métraux,
A Religião dos Tupinambás (São Paulo: Cia. Editora Nacional, Brasiliana, 1979), 77.
[227]
impressão de posse ou de semelhança entre eles e os “feiticeiros” ou “pajés” que
pulavam, após estrondos e terremotos, para dentro das tocaias39.
Em dois documentos há menção a Jurupary: o ajudante de ordenança An-
tônio das Neves, em 1740 na vila da Vigia, em sua roça e na companhia de seus
“servos”, descia demônios que “tapuias chamam pela sua língua Jurupory emouy-
gyo”40. Já no instigante processo contra o indígena Domingos de Souza, de 1764,
há menção a seguinte cantiga: Iurupari re te te o mondeio se pe sepepena evara
pupe o modonque varame sereterna41. No catecismo missionário, adaptado do idi-
oma e dos signos culturais dos indígenas tupinambás, Jurupari foi traduzido
como o diabo cristão, nublando, mas convivendo como muitos outros significa-
dos ancestrais presentes entre os diferentes grupos étnicos que habitaram a
Amazônia setecentista. Nos rituais de pajés, como ressalta Carvalho Júnior, in-
teragia com santos, anjos e outras figuras do catolicismo, persistindo “no
imaginário indígena, mestiço e cristão”42.
Podemos cogitar, assim, se nos espaços de dominação e convívio colonial,
o exercício das pajelanças estaria relacionado a uma série de potencialidades
cosmológicas que foram e seguiam sendo reprimidas pela catequização cristã,
mas que ainda se mantinham presentes como forças possíveis de serem realiza-
das43. Quem acionava estas potências e as combinava com imaginários e
símbolos diversificados, principalmente da mitologia cristã reconhecida pelo pú-
blico frequentador das cerimônias, eram os “pajés” e outros “feiticeiros” locais.

39
Segundo o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, entre certos povos indígenas os “xamãs se
concebem como de mesma natureza que os espíritos auxiliares que eles trazem à terra em seu
transe alucinógeno”. Aspecto comum nas diversas culturas amazônicas, “no Alto Xingu, por
exemplo, os grandes xamãs são chamados ‘espíritos’ pelos leigos, enquanto eles próprios se refe-
rem a seus espíritos associados como ‘meus xamãs’”. Eduardo Viveiros de Castro, “A floresta de
cristal: notas sobre a ontologia dos espíritos amazônicos”, Cadernos de campo, n.º 14/15 (2006):
319-338 (321).
40
A Lisboa, ANTT, TSO, IL, Cadernos do Promotor 101, liv. 294, fl. 206.
41
Os versos foram traduzidos no inquérito: “o verdadeiro diabo metera o meio pé no olho d’água
para não cortar a perna”. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12893, fl. 9.
42
Almir Diniz de Carvalho Júnior, “Ritual Mestiço nas malhas da Inquisição na Amazônia Colo-
nial”, in XXVII Simpósio Nacional de História (Natal: 2013).
43
Na concepção de Marck Harris, “seguindo a linha da história das mentalidades, cada complexo
de práticas e crenças carrega uma bagagem não articulada. Essa bagagem são os traços que foram
reprimidos ou rejeitados no passado, porém continuam no presente como potências que podem
ser realizadas”. Marck Harrris, “O lobisomem entre índios e brancos: o trabalho da imaginação
no Grão-Pará no final do século XVIII”, Revista IEB, n.º 47 (set. 2008): 51. Ver também, Alcida
Ramos e Bruce Albert (orgs.), Pacificando o branco: cosmologias de contato no Norte Amazônico
(São Paulo: Editora Unesp, 2000).
[228]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz

2. As relações e vantagens sociais conseguidas por meio dos rituais ou do título


de “pajé”
Na região amazônica, em suas interações locais, os “pajés” eram chamados
para convocar as almas dos parentes mortos; para anunciar o tratamento dos
doentes ou revelar o paradeiro de objetos perdidos ou furtados. Atendiam pes-
soas entre indígenas, mestiços e brancos, sendo remunerados pelos seus
serviços. E alguns indígenas realizaram suas “curas” com autorização de seus se-
nhores, usando das pajelanças como atividade paralela. Desta forma, no
cotidiano dos indivíduos acusados, as práticas assumiram não só significados
cosmológicos ou metafísicos, mas percorrendo dilemas e tramas cotidianas.
O melhor exemplo é o processo do nativo Marçal Agostinho, morador da
vila de Boim que, em 1764, confessou ter aprendido a ser “pajé” movido pela am-
bição de ser respeitado e temido44. As testemunhas alegaram uma violenta
perseguição do novo “profeta” ou “curador” contra as mulheres indígenas, acon-
selhadas ou coagidas pelas almas de seus parentes defuntos descidas nos
“congressos” de feitiçaria a se deitarem com ele. A confissão de Marçal Agostinho
é um documento singular pelas motivações pessoais alegadas para o exercício
das pajelanças, como também de alguns truques e estratagemas utilizados para
impressionar o público. Portanto, no interior dos espaços coloniais habitados
pelos indígenas cristianizados e outros grupos, ser identificado como “pajé” con-
tinuava trazendo benefícios a determinados indivíduos, que, apesar das possíveis
perseguições do clero local e da Inquisição portuguesa, se empenharam para ob-
ter o reconhecimento.

3. Práticas religiosas entre mudanças históricas e o surgimento de novas identi-


dades étnicas
Atualmente, os rituais de Jurema são considerados símbolos de identida-
des e religiões indígenas, afirmados como um traço cultural distintivo destas
populações no Nordeste do Brasil45. As acusações inquisitoriais revelam um pro-
cesso histórico complexo de construção de rituais mestiços dotados de
horizontes simbólicos compartilhados entre diferentes grupos étnicos que con-
viveram e se “misturaram”46 no interior de aldeamentos missionários, fazendas
e sertões conectados, trocando experiencias com os colonos e escravizados de

44
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2701.
45
Rodrigo de Azeredo Grünewald, Jurema (Campinas: Mercado de Letras, 2020).
46
João Pacheco de Oliveira, “Uma etnologia dos “índios misturados”? Situação colonial, territori-
alização e fluxos culturais”, Mana. Estudos de Antropologia Social 4, n.º 1 (1998).
[229]
origem africanas inovando comportamentos e tradições47. Articular as acusações
do século XVIII com os movimentos de etnogênese contemporâneos, de certa
forma, nos permite acompanhar permanências e transformações em cerimônias
de origens nativo-americanas diante das tentativas frequentes de demonização
e de silenciamento por parte da igreja católica ou das forças governamentais.
Num processo de “longa duração”, a bebida de jurema tomou parte em um saber
misterioso e místico, atualmente também compartilhada em cerimônias de ca-
racterísticas africanas como o catimbó ou no Candomblé, sempre associada à
figura mítica e ancestral do indígena ou do Caboclo. E, após imensos desafios
vivenciados pelos diversos grupos éticos no Nordeste do Brasil, com destaque
para a perseguição católica e colonial lusitana, no século XXI a bebida de jurema
segue viva e celebrada entre os povos indígenas como um segredo dos “pajés” 48.

Anexo 1: Pajés Denunciados na Região Amazônica

Denúncias inquisitoriais contra “pajés” e “feiticeiros” na região norte


amazônica, século XVIII
Local, ano e fonte das de- Nome, descrição étnica e ocupa- Síntese dos comportamentos descri-
núncias ção dos denunciados tos

Belém (PA), 1714. Cadernos Cerimônias de cura com ervas e rituais de


Angélico, índio do serviço de Manoel
do Promotor 83, Livro 276, f. “descer demônios” em um tejupar. Des-
Álvares de Lima.
166-172. crito como pajé.
Belém (PA), 1732. Cadernos Cerimônias de cura convocando Jesus
Sebastião Rodrigues Barbarosa, “ne-
do Promotor, Livro 324, f. Cristo, Padre Eterno, anjos, almas e espíri-
gro com título de pajé”, índio.
188. tos. Descrito como pajé.
Vila da Vigia (PA), 1750.
Fazia “feitiçarias, vulgo pajés”, conjurando
Cadernos do Promotor 101, Antônio das Neves (branco ou mes-
anjos e o demônio, “ao que os tapuias cha-
Livro 302, f. 166-172. Livro tiço), ajudante de ordenança.
mam pela sua língua jurupary”.
294, f. 206.
Curas com “benção, fumaça e chupação de
Vila de Gurupá (PA), 1752. José, índio “forro” que foi “perten-
boca” e “já por continuação lhe chamam
Cadernos do Promotor 112, cente às aldeias dos padres do
pajé”. Fazia “descer os demônios com
Livro 304, f. 256v. Carmo”.
grandes terremotos”.
“Pajé que faz várias feitiçarias”; ministrava
Vila de Portel (PA), 1758. Raimundo Antônio de Belém, índio, “remédios para sarar os enfermos” tocava
Processo 12886. morador na vila de Pinhel. o seu maracá fazendo “descer demônios”
ou “coisas do fundo do mar”.
Fazenda de Utinga, Belém “Curas por meios insólitos. Invocava “pa-
Domingos de Souza, índio “do ser-
(PA), 1764. Processo 12893. jés” enfeitado de penas de ave e tangia
viço” da fazenda de Utinga.
Livro da Visitação do Santo uma canção dedicada a jurupary. O

47
Cruz, “Inquéritos nativos”.
48
Clarice Novaes da Mota, “Sob as ordens da jurema: o xamã kariri-Xoco”, in Xamanismo no Bra-
sil: Novas Perspectivas, org. E. Jean Matteson Langdon (Florianópolis: Editora da Universidade
Federal de Santa Catarina, 1996), 267-296; Grünewald, Jurema.
[230]
PAJÉS DENUNCIADOS À INQUISIÇÃO PORTUGUESA: APRESENTAÇÃO DAS FONTES HISTÓRICAS
Carlos Henrique Cruz
Ofício da Inquisição ao Es- processo descreve várias e diferentes situa-
tado do Grão-Pará (1763- ções.
1769). p. 222.
Vila de Boim (PA). Processo
Em seus “ajuntamentos” conjurava almas
12895. Livro da Visitação do
Pedro Rodrigues, mameluco ou mu- de crianças abortadas, com vozes desco-
Santo Ofício da Inquisição
lato, carpinteiro. nhecidas. Cerimônias de cura seguidas da
ao Estado do Grão-Pará
recomendação de penitencias e jejuns.
(1763-1769). p. 224.
Organizava “congressos” onde dizia descer
Vila de Boim (PA). Processo Marçal Agostinho, índio, carpinteiro as almas das crianças abortadas. Era reco-
2701. e Capitão dos Índios da Vila de Boim. nhecido como “pajé” e “curador”. No
processo consta a sua confissão.
Belém (PA), 1764. Livro da Cantando “pela sua língua” consultava “os
Visitação do Santo Ofício da seus pajés” que pulavam do teto. Realizava
Antônio, índio, oleiro.
Inquisição ao Estado do curas com “purgas” de cascas e raízes de
Grão-Pará (1763-1769). p. 211. árvores.
Conseguia “descer do céu nosso primeiro
Sem localização,1731. Pro-
Lourenço, índio. pai Adão com coros de anjos” e fazer os es-
cesso 16288.
píritos falarem.
Com certas palavras “fazia falar gente no
Aldeia de Itá, rio Xingu, 1743.
ar e na água”. Exercícios de cura onde reti-
Cadernos do Promotor 104, Salvador, índio.
rava dos corpos dos enfermos bichos e
Livro 296, f. 340.
cabelos.
Gurupá (PA), 1743. Cadernos
Francisco, Índio “que assistia em casa Cantava umas cantigas e fazia descer anjos
do Promotor 104, Livro 296,
de Manuel David em Gurupá”. do céu, que falavam como gente.
f. 339-342.
Pará, 1749. Cadernos do Pro- Raymundo, Symão e Cyprianno, “ne- Cantando e dançando desciam “figuras di-
motor 108, Livro 300, f. 160. gros do gentio da terra e escravos”. abólicas”.
Pará, 1749. Cadernos do Pro- Cryspin, índio, Paula, cafuza e seus fi-
“Desciam às escuras demônios”.
motor 109, Livro 301, f. 11. lhos
Francisco, homem natural de Tapui-
Pará, 1749. Cadernos do Pro-
tapera, e Ignácio, “negro gentio” “Desciam às escuras demônios”.
motor 109, Livro 301, f. 11.
forro.
Tapuitapera (MA), Cadernos Usava de “feitiçaria diabólica” armando to-
Brás, índio, escravo dos padres das
do Promotor 114, Livro 306, f. caias e convocando publicamente o
Mercês.
03. demônio para curar.
Aldeia do São Francisco das
Desciam do teto “outros feiticeiros”, que
Mangabeiras (PA), 1753. Ca- Afonso, “índio ancião” da aldeia do
foram interpretados pelas testemunhas
dernos do Promotor 114, Maracanã, e Ignácio “escravo fugido”.
como demônios.
Livro 306, f. 255.
Belém, 1733-1769 Cadernos
Curas, defumes e previsões do futuro. Des-
do Promotor 120, Livro 312, f.
cia dos tetos das casas, “feiticeiros”,
336-341. Livro 324, f. 261. Pro-
“pajés”, seres do mar e espíritos travestidos
cessos 16743; 16747 e 13325. Ludovina Ferreira, mulher branca ou
de onça e jacaré que com ela bailavam e
Livro da Visitação do Santo mestiça.
cantavam. As testemunhas descrevem,
Ofício da Inquisição ao Es-
muitas outras situações envolvendo a te-
tado do Grão-Pará (1763-
mida “feiticeira”.
1769). p. 159.
Belém, 1751. Cadernos do Orações de “descer demônios” e o uso de
Cecília, índia, escrava no sítio da Boa
Promotor, Livro 304, f. 244- feitiços, remédios, simpatias ou bebidas de
Vista.
247. ervas para matar.
Sem local e datação. Cader- José do Amaral e seus filhos, brancos Realizavam “pagearias” fazendo “descer di-
nos do Promotor 109, livro ou mestiços e Temotio, “mulato que abos”. Uso do maracá para localizar
301, f. 74. foi escravo”. pessoas desaparecidas.

[231]
Anexo 2: Pajés Denunciados no Nordeste

Denúncias inquisitoriais contra “pajés”, “mestres” e “feiticeiros” na região nordeste,


século XVIII
Local, ano e fonte das Nome, descrição étnica e ocupa-
Síntese dos comportamentos descritos
denúncias ção dos denunciados
Sob o efeito de fumaça de tabaco ou ca-
Aldeamento de Ibiapaba
chimbo, voava pelo teto da casa e trazia o
(CE), 1720. Cadernos do Pro-
Antônia Guiragassu, índia. Diabo, algumas vezes “visível na forma de
motor 93, Livro 286, f. 585-
índio”, ou outra “alma defunta”. Celebrava
593.
curas.
Respeitados como pajés, “fazem crer aos
Aldeamento de Ibiapaba
mais que fazem chover, matar, e são causa
(CE) 1720. Cadernos do Pro- Pedro Mendonça e Bento Coelho,
de todo o bem e mal”. Na guerra contra os
motor 93, Livro 286, f. 585- “filhos de índias com mulatos”.
“tapuias”, realizavam rituais para localizar os
593.
inimigos.
Sertão do Cariri (PB), 1746.
Salvador Correia, pardo casado com Esterilizava as mulheres com bençãos e re-
Cadernos do Promotor 108,
“uma índia tapuia”. zas.
Livro 298. f. 135.
Aldeamento do Apodi (RN), Confessou ter assassinado a 49 pessoas por
1756. Cadernos do Promotor Gaudencio, índio payacu. meio de “feitiçaria”. Convocava o diabo em
118, Livro 310, f. 55-56. rituais com bebidas de jurema ou angico.
Aldeamento do Apodi (RN), Pacto com o diabo e a realização de assassi-
Domingos Correia e Bento, índios
1756. Cadernos do Promotor natos. Tocavam o maracá e consultavam
payacu.
117, Livro 309, f. 452-453. espíritos, chamados de “gentios pagãos”.
Aldeamento dos Coremas Diferentes indígenas “tapuias” co-
(PB), 1743. Cadernos do Pro- nhecidos como “mestres da jurema” Celebrações coletivas de cura, defumação e
motor 107, Livro 299, f. 381- nas missões dos Coremas, Panatis, danças com maracás e bebidas de jurema.
382. Icós e Pegas.
Bebiam jurema em cerimônias com danças
Missão dos Cariris (CE), Indígenas ‘tapuias” aldeados na e cantorias comandas pelos mestres, onde o
1759. Maço 40. missão dos cariris. diabo lhes aparecia “em forma de anjo” e
lhes revelava coisas ocultas.
Missão dos Cariris Novos
Instruía discípulas indígenas a terem “tratos
(CE), 1748. Cadernos do Pro-
Polucência, parda. torpes” com demônios. Usava “uma bebida
motor 119, Livro 311, f. 464-
de sangue” em seus rituais.
476.
Sobral (CE), 1779. Cadernos José Pereira; Manoel de Lira Cabral, Práticas de cura com ossos de cavalos, bebi-
do Promotor 130, Livro 319. f. mameluco, e Dom Francisco, cabo- das de jurema e orações. Também
162-162ª. clo e “mestre escola” “fechavam o corpo” dos criadores de gado.
Danças e o uso da bebida de jurema com
Lugar de camaleão (PE), Francisco Pessoa, índio, capitão-
uma imagem de Cristo “muito deformada”.
1782. Processo 6238. mor. E outros indígenas e pardos.
Enxergavam o “diabo ou outras coisas”.
Celebrações preservativas de veneno, co-
Vila de mocha (PI), 1760. Ca-
bras, chumbo e ferro. Consumo da bebida
dernos do Promotor 211, “Feiticeiro”, “homem vermelho”
de jurema entre “negros”, “vermelhos” e
Livro 313. f. 224v.
“brancos”.
Vila do Conde (PB), 1779. Curadores de “feitiços”, “dançando e can-
Francisco Álvares, índio, sua esposa
Cadernos do Promotor 130, tando despropósitos e profanidades,
Adriana, e José Rodrigues, índio.
Livro 319. f.166. tomando e dando bebidas aos enfeitiçados”.

[232]
Os cristãos-novos do Rio de Janeiro
Lina Gorenstein

Desde o final do século XVI famílias cristãs-novas estabeleceram-se no Rio


de Janeiro, e entre elas havia tanto os que fugiam da Inquisição, que começava a
investigar o comportamento e a fé dos colonos no Nordeste, como aqueles que
chegavam de Portugal, alguns já julgados, hereges confirmados aos olhos do Tri-
bunal. Degredo para o Brasil era parte da sentença que haviam recebido pelo
crime da heresia judaizante.
O Rio de Janeiro do século XVII era considerado pelos cristãos-novos como
um porto seguro. Nesse período, vários vieram para cá, vindos de outras regiões
do Brasil, da América espanhola e de Portugal, formando os núcleos familiares
que no século seguinte foram dizimados pela Inquisição. Porto seguro, mas não
livre da discriminação: os cristãos-novos estavam sujeitos aos Estatutos de Pu-
reza de Sangue, que na cidade eram constantemente invocados.
Inúmeras denúncias contra a fé dessa nova comunidade foram encaminha-
das à Inquisição. Logo nos primeiros tempos, notícias do comportamento dos
cristãos-novos na cidade chegaram ao tribunal.
O subprior do convento do Carmo, Frei Diogo do Espírito Santo, enviou
um relatório ao Inquisidor Mor do Reino, Dom Fernão Martins Mascarenhas, no
qual pedia que o Santo Ofício pusesse cobro em muita dissolução que há da gente
da nação nesta capitania e autorizasse a formação de uma Mesa inquisitorial no
Rio de Janeiro, formada por um religioso do Carmo, um de São Bento, um de São
Francisco e um jesuíta, para investigar as heresias. E escreveu ainda sobre vários
casos atrozes que se passaram na Cidade, sem castigo (...) pelo que deve Vossa
Ilustríssima Senhoria poros olhos em Deus e mandar por cobro nestas cousas1.
Entre os hereges, encontrava-se Manoel Babintão, boticário, filho de Maria
Peralta (cristã-nova, denunciada na Bahia no final do século XVI) e do inglês
Tomas Babintão, todas as sextas-feiras à noite juntava cristãos-novos em sua
casa e nela faziam esnoga, sob o pretexto de jogarem cartas. No quintal de sua
casa havia um calvário onde se deitavam imundícies2.
Em 1627 o licenciado Luis Pires da Veiga, nomeado visitador, aportou no Rio
de Janeiro, vindo de Angola, para dar continuidade à ação do Tribunal do Santo
Ofício da Inquisição de Lisboa, inaugurando a Terceira Visitação à colônia3.
O visitador seguiu o mesmo ritual das visitações à Bahia e a Pernambuco,
com a fixação do monitório, o Édito da Fé e a concessão dos 30 dias de graça.
Recebeu várias denúncias, porém não prendeu nem sequer investigou a maioria
dos acusados.
Enviou para Lisboa duas cristãs-novas para serem julgadas como hereges
judaizantes. Em carta ao padre inquisidor Diogo da Silva, datada de 19 de agosto
de 1627, Luis Pires da Veiga relata que mandou duas presas de raiz infecta (ou
seja, com antepassados judeus) e que tinham muitos parentes na cidade, o que
certamente forneceria muitos nomes ao tribunal quando fizessem suas confis-
sões. Uma presa foi Izabel Mendes e a outra, Beatriz Cardosa, reincidente no
crime de judaísmo.
Na segunda metade do século XVII, somente duas pessoas foram presas na
comunidade cristã-nova fluminense. Um, foi Miguel Cardoso, filho da mesma
Beatriz presa em 1627, penitenciado como judaizante em 1666. O outro, Diogo
da Costa, mercador e funcionário da alfândega da cidade4.
Nessa época, encontramos cristãos-novos letrados ocupando cargos de
prestígio na burocracia colonial, como almoxarifes da fazenda, procuradores da
Câmara, alcaide-mor, tesoureiros da Câmara, meirinhos, escrivães da Câmara e
juiz da alfândega – embora fosse proibida por lei a participação dos cristãos-
novos na burocracia. Apesar da legislação restritiva durante o século XVII vários
deles fizeram parte dos homens bons e participaram da burocracia colonial, das

1
Lina Gorenstein, A Inquisição contra as mulheres (São Paulo: Humanitas, 2005), 60.
2
Ibid., 63.
3
Lina Gorenstein, “A terceira Visitação do Santo Ofício”, in A Inquisição em Xeque,org. Bruno
Feitler, Lana Lage, Ronaldo Vainfas (Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006), 25-32.
4
Gorenstein, A Inquisição contra as mulheres, 63.
[234]
OS CRISTÃOS-NOVOS DO RIO DE JANEIRO
Lina Gorenstein

atividades da Câmara Municipal, adquiriram e negociaram propriedades e escra-


vos, estabeleceram-se na cidade como médicos, advogados, homens de negócios
e no campo como senhores de engenho, donos de partido dos e lavradores de
cana e mandioca5.
Um Alvará Régio, de 12 de novembro de 1611, dizia que os eleitores para os
ofícios municipais deveriam ser selecionados entre os mais nobres e da gover-
nança da terra(...) sem raça alguma. (entenda-se sem sangue judeu) Outro
Alvará de 29 de junho de 1643 reiterou essa discriminação: nas eleições que se
fizerem d´aqui em adiante na dita Cidade (São Sebastião do Rio de Janeiro), se
não elejam pessoas mechanicas, nem da nação, para haverem de servir nella os
cargos de governança6. Embora vigorassem os estatutos discriminatórios contra
os descendentes de judeus, essas discriminações foram frequentemente negli-
genciadas, inclusive as que intervinham nos relacionamentos pessoais, como as
leis que impediam os casamentos entre cristãos-novos e cristãos-velhos. No Rio
de Janeiro, apuramos que entre os cristãos novos que foram presos pela Inquisi-
ção, cerca de 64% dos casamentos realizados entre 1670 e 1720 foram
endogâmicos A endogamia não era uma característica exclusiva dos cristãos no-
vos, mas frequente em famílias da mesma classe social7.
A região começava a ocupar um lugar importante na economia colonial. A
população aumentava e o número de cristãos-novos que fixaram residência nas
capitanias do Sul cresceu nesse período; vinham da Bahia, de Pernambuco, do
Espírito Santo, de Portugal, alguns de Buenos Aires, Espanha e outros lugares da
Europa, constituindo um atrativo para o Tribunal do Santo Ofício. No entanto,
os dados demográficos para o período são muito falhos, o que dificulta o cálculo
sobre a proporção de cristãos-novos no Rio de Janeiro na época.
A importância dessa comunidade fluminense foi marcante, e o viajante
francês François Froger, que ali esteve no final do século XVII, atestou que mais
de ¾ da população branca do Rio de Janeiro eram compostos por judeus. A po-
pulação da capitania do Rio de Janeiro, no início do século XVIII, foi calculada
pelo cronista Rocha Pita, no ano de 1713, em cerca de 20 mil habitantes, sendo 10
mil na cidade e 10 mil no recôncavo. Outros cronistas, como Beauchamp,

5
Lina Gorenstein, Heréticos e Impuros (Rio de Janeiro, sec. Mun. De Cultura, Depto. geral de
documentação e informação cultural, divisão de editoração, 1995).
6
Gorenstein, A Inquisição contra as mulheres, 86.
7
Ibid., 242.
[235]
indicaram números semelhantes. As pesquisas recentes sobre o tema indicam
que ao menos 25% eram cristãos-novos8.
O Rio de Janeiro começava a ocupar um lugar importante na economia
colonial e o número de cristãos-novos que fixaram residência nas Capitanias do
Sul cresceu, chegando a superar as capitanias da Bahia e de Pernambuco, mas
também de Portugal, de Buenos Aires, Espanha e outras regiões da Europa Os
dados demográficos que possuímos sobre o Rio de Janeiro são falhos, o que difi-
culta o cálculo sobre a proporção exata de cristãos-novos residentes na cidade.
No início do século XVIII, o Recôncavo fluminense era uma região predo-
minantemente agrícola, plantava-se mandioca, milho, hortaliças, frutas e criava-
se gado; havia olarias e fábricas de aguardente, além de engenhos de açúcar. Em
1710, o cronista Antonil notou uma queda na produção do açúcar fluminense,
mas que não chegou afetar o desenvolvimento da província, pois a exportação
do açúcar foi substituída pelo comércio com as Minas e a região do Prata, desvi-
ando os capitais para o mais lucrativo comércio do ouro, escravos e couro.9
A Inquisição fez o maior número de prisões no Rio de Janeiro nos anos
entre 1703 e 1740. Foram presos 325 cristãos-novos, os réus acusados de judaísmo,
Mateus de Moura Fogaça e Teresa Paes de Jesus, foram condenados à morte na
fogueira (garroteados e depois queimados caso declarassem que desejavam mor-
rer como cristãos).10
Parte dessa comunidade cristã-nova morava na cidade, exercendo ativida-
des urbanas. Havia homens de negócios, médicos e advogados, artesãos, mestre-
escola, militares, caixeiros, alfaiates, dois músicos, dois carpinteiros e diversos
padres, porém mais da metade dos cristãos novos estava ligada à agricultura,
principalmente ao cultivo da cana de açúcar e ao fabrico do açúcar.
Os cristãos novos residiam nas mesmas ruas que a elite colonial. Ocupa-
vam casas no centro do Rio de Janeiro, dentro do quadrilátero das freguesias da
Sé, Candelária e São José, as zonas mais populosas da cidade. Viviam próximos
ao governador e ao bispo e também moravam na rua Direita, (atual 1º de março)
uma das principais ruas do Rio de Janeiro colonial.

8
Gorenstein, Heréticos e Impuros, 35, 41.
9
Ibid., 33.
10
Gorenstein, A Inquisição contra as mulheres, cap.1.
[236]
OS CRISTÃOS-NOVOS DO RIO DE JANEIRO
Lina Gorenstein

Imóveis, engenhos e todos os bens dos cristãos novos foram confiscados


pela Inquisição e nunca foram restituídos, mesmo se os réus fossem reconcilia-
dos e recebessem permissão de voltar ao Rio de Janeiro.
Como nas Minas Gerais, podemos notar a erudição dos marranos do Rio
de Janeiro através de suas bibliotecas, uma delas possuía cerca de 510 volumes,
sendo que 350 tratavam de direito; o restante eram livros de “conto, estórias e
curiosidades”, livros sacros, de sermões e vidas de santos.
Todos os cristãos-novos fluminenses do sexo masculino, eram alfabetizados,
mesmo aqueles que exerciam as atividades mais humildes, como sapateiros ou pes-
cadores, e cerca da metade das mulheres também sabiam ler e escrever, o que era
incomum entre a massa da população do Brasil. Um dos Tabelionatos mais movi-
mentados da cidade pertencia a um cristão-novo – João Correia Ximenes.11
Além das relações comerciais, os cristãos novos e cristãos velhos mantinham
relações de amizade, frequentavam suas casas, iam juntos à missa, pertenciam às
mesmas irmandades e frequentavam reuniões comuns. Apesar dessa convivência,
a sociedade ampla sabia perfeitamente qual a origem de cada um.
Os principais engenhos e partidos de cana de açúcar dos cristãos-novos
localizavam-se ao redor da cidade do Rio de Janeiro, nas freguesias de Irajá, Ja-
carepaguá, São Gonçalo, São João do Meriti e Jacutinga. Eram terras boas para o
cultivo, banhadas por vários rios. Entre os cerca de 101 engenhos que existiam na
região, 21 pertenciam a cristãos-novos, representando assim, pelo menos, cerca
de 20% dos engenhos da região. Em todas as propriedades a mão de obra utili-
zada era a escrava, predominantemente negra. Havia engenhos que possuíam
mais de 100 escravos.
Importante família do Rio de Janeiro foram os Vale12, uma das mais antigas
famílias cristãs-novas, ali radicados há mais de um século. Os primeiros mem-
bros da família provavelmente chegaram ao Brasil fugindo do Santo Ofício.
Inicialmente dedicaram-se ao comércio, porém logo passaram para a ati-
vidade agrícola, tornando-se proprietários de quatro grandes engenhos, dentre
os quais um de grandes proporções, localizado na freguesia de São Gonçalo, o
“Golambandé da Invocação de Nossa Senhora de Montesserate”, além de possu-
írem mais de 11 partidos de cana de açúcar.

11
Ibid.
12
Ibid., 74.
[237]
A família Vale foi uma das mais atingidas pela ação do Santo Ofício da
Inquisição. Uma das mulheres dessa família foi presa no século XVII, mas a
maior parte foi perseguida e penitenciada no século XVIII. No total, foram presos
mais de quarenta membros da família Vale, dezessete mulheres, todos condena-
dos como judaizantes.
A primeira mulher dessa família foi presa no século XVII, em 1627, chamava-
se Izabel Mendes13. Ao chegar em Lisboa, ficou internada por quatro anos no Hos-
pital de Todos os Santos por ser considerada insana. Consta que sofria de “gota
coral” (provavelmente uma espécie de epilepsia). Quando voltou para os cárceres
da Inquisição, foi submetida a longos inquéritos e tortura. Izabel fugia ao comum
das mulheres ibéricas. Sabia ler e escrever, e em sua confissão afirma conhecer la-
tim e hebraico. Quando a prenderam, encontraram escondido em seu travesseiro
papel e pena e um texto escrito de seu próprio punho – as “contraditas “(defesa do
réu negativo - que negava ser culpado- afirmando que as testemunhas que contra
ele depuseram eram falsas por serem seus inimigos). Possuía alguns livros e conhe-
cia diversas passagens da história judaica. Considerava a Lei de Moises a mais
perfeita. Contou que no tempo em que vivia no Rio de Janeiro costumava se reunir
com outros cristãos-novos todas as sextas feiras, sob o pretexto de um jogo de car-
tas, mas que na verdade faziam a celebração do Shabat (sábado).
Sua sentença tornada pública em Auto de Fé de 2 de abril de 1634, conde-
nou-a a cárcere e hábito penitencial a arbítrio dos Inquisidores, ou seja,
permanecer residindo em bairro determinado pelo Tribunal e vestindo uma tú-
nica com os desenhos que lembravam sua passagem pelos cárceres.
Descendentes de Izabel Mendes foram presos no século XVIII. Notamos
então quão pálidas se tornaram as lembranças do judaísmo. Izabel Gomes da
Costa, sua sobrinha-neta, confessou conhecer duas orações judaicas, que lhe fo-
ram ensinadas por sua avó, irmã de Izabel Mendes, quando tinha 13 anos.
Em uma das orações, Izabel fazia uma enorme confusão com personagens
bíblicos, mostrando sua confusão mental. Nomeava o Faraó, David, Sansão, Lot,
Amão entre outros. Os ensinamentos que recebeu da avó sobre história judaica
e toda a crítica ao cristianismo haviam desaparecido depois de três gerações. O
fato de ser uma das poucas cristãs-novas a conhecer orações, embora muito mo-
dificadas, revela que a memória na família continuava presente.

13
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 5436 (Izabel Mendes).
[238]
OS CRISTÃOS-NOVOS DO RIO DE JANEIRO
Lina Gorenstein

Foram 167 as mulheres presas pela Inquisição no Rio de Janeiro nas três
primeiras décadas do século XVIII (cerca de metade do total dos 325 presos).
As mulheres cristãs novas no Brasil colonial se destacaram por uma rela-
tiva autonomia em um contexto de desigualdade e domínio masculinos. A
documentação deixada pela Inquisição, especialmente os processos – em milha-
res de páginas manuscritas – são fonte riquíssima, praticamente única, na qual
a voz dessas mulheres pode ser ouvida.
O fato de grande parte ser alfabetizada, em contraponto às portuguesas e
luso brasileiras, facilitava à mulher o controle do patrimônio familiar e sua ad-
ministração já que sabiam das dívidas contraídas e acompanhavam os negócios
pendentes. Algumas, alcançaram papel importante na administração das finan-
ças familiares e chegaram a dirigir engenhos, especialmente em caso de viuvez,
mas também como auxiliares do marido, quando este se ausentava em viagens
de negócios.
Contratavam serviços para a manutenção dos engenhos, compravam e
vendiam escravos, negociavam a venda da produção do açúcar e comerciavam
com a região das minas.
Houve mulheres que atuaram como empresárias. Dona Esperança de Aze-
redo, por exemplo, foi proprietária e administradora de um grande engenho no
Rio de Janeiro, onde ao lado do marido, que cuidava do negócio do açúcar, pro-
duzia doces com as frutas de sua fazenda que eram vendidos pelas escravas. A
nora de Esperança, a viúva Izabel de Barros Silva, mantinha em seu engenho,
uma oficina de costura com escravos especializados em rendas e bordados, que
eram vendidos a casas especializadas14.
Com a descoberta de ouro e pedras preciosas na região das Gerais, inaugu-
rou-se um novo período na economia colonial. Os cristãos-novos fluminenses
não deixaram de participar dessa nova atividade, atuando principalmente como
comerciantes, ou seja, parte deles participaram da nova conjuntura como forne-
cedores de bens necessários aos que estavam nas Minas, como chapéus, camisas,
panos de linho, roupas em geral, aguardente, sal, açúcar, queijos e peixe seco,
além de cavalos e escravos.
Mulheres também se envolveram nestes negócios, como por exemplo Isa-
bel Maria de Azeredo, que mantinha nas Minas quatro escravos, além de joias

14
Gorenstein, A Inquisição contra as mulheres, cap.I
[239]
que deixara na região, e tinha enviado, junto com seu marido, cinco cargas de
açúcar, sal, queijos e outras coisas.
Os bens dos processados eram sequestrados no momento da prisão. Algu-
mas prisioneiras, como o caso da cristã nova Izabel de Paredes, reclamaram que
o Juiz do Fisco havia retirado até a fivela dos sapatos de seus filhos. Diversos são
os exemplos de cônjuges e crianças colocados na rua.
Ao desembarcar em Portugal, as presas eram encaminhadas para os cárce-
res dos Estaus, que era a sede da Inquisição em Lisboa. Geralmente ficavam
alojadas em celas com duas ou três companheiras. Eram espaços pequenos, es-
curos, úmidos, com uma janela no alto, os dejetos eram retirados somente uma
vez por semana, o que piorava a condição de higiene e aumentava o mau cheiro.
As mulheres só saiam da cela quando eram chamadas para prestar depoimentos.
Entretanto, houve raras exceções em que algumas prisioneiras chegaram a cir-
cular nos Estaus, indo até a cozinha ou a outras dependências.
No tempo em que estavam presas, algumas cristãs novas, contaram com a
colaboração de alguns guardas responsáveis por cuidar dos cárceres, que traziam
bilhetes escondidos no meio do pão e levavam recados para parentes e amigos
da cidade. Temos notícias de algumas prisioneiras que tiveram relações ilícitas
com guardas, que as instruíam quanto à dinâmica dos interrogatórios. Esse foi o
caso de Isabel Barros da Silva, que seguiu as instruções e mandou avisar seus
filhos e sobrinhos que estavam no Rio de Janeiro para se apresentarem e denun-
ciar a todos que conheciam, assim teriam pena menor. Essa informação chegou
até o ouvido dos inquisidores, que acabaram anulando a confissão da ré, consi-
derando-a falsa e dissimulada15.
No século XVIII, os cristãos-novos estavam inseridos na sociedade colo-
nial. Assemelhavam-se aos cristãos-velhos em todos os aspectos; viviam como
eles, vestiam-se, comportavam-se da mesma maneira. Conviviam com eles, eram
padrinhos de seus filhos, faziam negócios, frequentavam suas casas.
Porém, eram diferentes.
Quando o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição investiu contra os cris-
tãos-novos fluminenses, mostrou sua vulnerabilidade. Os cristãos-novos sabiam
que eram cristãos-novos. Sabiam por que via eram cristãos-novos – porque sua
mãe, sua avó, ou seu pai e seu avô o eram.

15
Ibid.
[240]
OS CRISTÃOS-NOVOS DO RIO DE JANEIRO
Lina Gorenstein

Conviviam em uma sociedade preconceituosa, que os considerava “impu-


ros” e com “sangue infecto”, e onde reiteradamente eram emitidas leis que
procuravam manter sua exclusão.
Em seu cotidiano o cristianismo imperava. Todos tinham que ser muito
católicos16, indo as igrejas, confessando, fazendo tudo o que os cristãos-velhos
faziam. Porém o judaísmo, ou o criptojudaismo17 também era fundamental.
Mesmo para aquelas mulheres que não eram criptojudias, o conhecimento
de algumas práticas e do Judaísmo dos inquisidores, ou seja, salvação por conta
da Lei de Moises e algumas cerimonias para sua observação e, principalmente,
sua comunicação com outros cristãos-novos, era fundamental.
As mulheres eram consideradas pelos inquisidores uma ameaça a conti-
nuidade do catolicismo, pois sabiam que eram responsáveis pela transmissão da
religião. O judaísmo, de acordo com os Estatutos de Pureza de Sangue era trans-
mitido pelo sangue e pelo leite materno.
A família desempenhou um papel importante na manutenção da identi-
dade judaica. Os casamentos endogâmicos eram praticados como uma estratégia
de preservação do segredo do judaísmo e proteção das tradições familiares e da
fortuna, também representaram uma rejeição aos valores culturais cristãos que
os conversos eram obrigados a seguir.
Vivendo entre dois mundos, o judaico secreto e o católico oficial, sem li-
vros, sem mestres, sem o conhecimento da língua hebraica – apenas algumas
tradições se mantiveram, principalmente as de domínio doméstico: os hábitos
alimentares, a higiene, o shabbat (sábado). As práticas tinham todas que ser re-
alizadas no interior das casas “a portas fechadas”. O Judaísmo era praticada no
lar. Era uma religião secreta, e em grande parte uma religião feminina.
Essa religião “marrana”18 não foi uniforme nem no tempo nem no espaço.
Sua essência pode ser resumida na crença em único Deus – Criador do Universo
– e em uma lei – a que Moises recebeu no Sinai.
Assim, todas disseram “crer na lei de Moises para salvação de sua alma” e
por conta dela fizeram práticas e cerimonias e se comunicaram com outros de
sua nação.

16
Ibid., parte III, cap. 1.
17
Ibid., parte III, cap. 2.
18
Ibid., 322.
[241]
Devemos ver que o conceito de salvação individual é católico, e não ju-
daico. O conceito de salvação no judaísmo é coletivo de toda a humanidade
Judaísmo dos inquisidores, ou especialmente, o que os inquisidores consi-
deravam judaísmo
Em algumas práticas judaicas encontramos elementos sincréticos. O juda-
ísmo foi se transformando com o passar do tempo, adquirindo uma condição
fundamental – o segredo.
É preciso entender a importância do “segredo”
O regime totalitário, a repressão e o medo obrigaram toda a população a
esconder seus pensamentos, sua crítica, seus sentimentos
Ainda o segredo era a mola mestra da Inquisição, sendo proibido a todos
revelarem o que se passava no seu interior.
O segredo também estava no processo: o réu não era informado sobre as
razões de sua prisão ou quem eram seus denunciantes. Em contrapartida, era
obrigado a acertar todas as pessoas que o tinham delatado e delatar todas as
pessoas de seu convívio.
Após vários interrogatórios e seções, o réu tinha que confessar seus crimes,
fossem ou não verdadeiros. Tinha que confessar que praticara o judaísmo em
algum tempo de sua vida, confessar práticas e cerimonias, dizer quem o tinha
ensinado no judaísmo.
O criptojudaísmo era praticado no lar, era uma religião secreta, e também
uma religião de domínio feminino, ao contrário do judaísmo tradicional, prati-
cado e transmitido principalmente nas sinagogas, e de domínio masculino. Foi
um dos elementos que constituiu, manteve e reforçou a identidade dos cristãos-
novos. O fenômeno cristão-novo, como bem o mostrou Anita Novinsky, não foi
homogêneo, nem no tempo nem no espaço.
A preservação do judaísmo se deu especialmente pelas mulheres, pois as
sinagogas eram proibidas
A maioria das cristãs-novas cujos processos examinamos, eram casadas
com cristãos-novos. Tinham um papel primordial na família, com responsabili-
dade na educação dos filhos. Foram, em grande parte, responsáveis pela
transmissão do Judaísmo de geração em geração.
Os inquisidores perguntavam: quem te ensinou?

[242]
OS CRISTÃOS-NOVOS DO RIO DE JANEIRO
Lina Gorenstein

Depondo diante dos inquisidores, as cristãs-novas do Rio de Janeiro con-


fessavam terem sido incitadas a abandonar a Lei de Cristo pela mãe, pai, parente
ou amigo.
Os Inquisidores desconfiavam das mulheres portuguesas de origem judaica,
considerando-as uma ameaça para a religião católica, por serem elas as transmis-
soras e responsáveis por educar seus filhos nas tradições de seus antepassados.
O Tribunal estava sempre interessado nas denúncias, pois estas lhes tra-
riam novos réus. Por isso era necessário que os presos confessassem e
incriminassem todos aqueles que conheciam, pais, mães, avós, filhos, primos,
tios e amigos.
Aqueles que deixavam de citar algum parente mesmo que distante, ou já
defunto era levado ao tormento. Para as mulheres a tortura era ainda maior, pois
antes do início, eram despidas da cintura para cima para que as roupas não atra-
palhassem a execução do tormento. Em alguns casos, as mulheres, quando
torturadas, gritavam invocando Jesus e os Santos católicos e não Moisés, na ten-
tativa de fugir á suspeita dos inquisidores. Como exemplo, podemos citar a cristã
nova fluminense Catarina da Silva Pereira, que ao ser atada ao potro (instru-
mento de tortura), gritou por Jesus e por Nossa Senhora do Rosário e do Amparo.
É muito difícil precisar a veracidade das confissões. Nenhuma generaliza-
ção é possível: havia aqueles que eram fiéis católicos, os que eram criptojudeus
e ainda os que assumiam com orgulho sua nova categoria sociorreligiosa, eram
cristãos-novos. A maioria tinha um comportamento dúbio - praticavam, de um
lado, a religião que haviam aprendido em segredo, e, de outro, o catolicismo.
Como muitas vezes as práticas judaicas e católicas se confundiam, podemos di-
zer que emergiu uma simbiose que caracterizou uma nova prática religiosa,
marcada pelo segredo.
O comportamento do converso não foi uniforme nem no tempo nem no
espaço. Sua essência pode ser resumida na crença em um único Deus e na salva-
ção, que na mentalidade do cristão novo, só poderia ser alcançada através da Lei
de Moisés, o que fugiu completamente a religião judaica, onde a salvação é sem-
pre coletiva, nunca individual.
É possível afirmar que o mais persistente modo de resistência à ação inqui-
sitorial era o conhecimento que as mulheres cristãs-novas tinham do
funcionamento do Tribunal. Presas, ao chegar em Lisboa, pediam para serem ou-
vidas e confessavam o que os Inquisidores esperavam ouvir, denunciando todos

[243]
que conheciam. As que demoravam para confessar seus crimes, ou aquelas que
negavam ter cometido algum crime, ficavam na prisão por mais tempo. Muitas
foram torturadas e terminaram suas vidas no degredo, na miséria ou na fogueira.
As mulheres criptojudias se inserem no universo secreto marrano, po-
dendo ser consideradas o baluarte da resistência ao catolicismo, imposto por
violência a todos portugueses que tiveram antepassados judeus. O judaísmo e o
povo judeu, vistos pela ótica da Igreja, foram o motivo central da criação do Tri-
bunal da Inquisição e seu motor principal durante os três séculos de história
colonial do Brasil. Os bens e riquezas sequestrados a todos os cristãos-novos no
momento da prisão, serviram como o fundamental combustível deste motor.
A distinção entre cristãos-novos e cristãos-velhos existiu até 1773, quando
o Marques de Pombal aboliu essa distinção através de uma lei. A Inquisição, en-
tretanto, continuou ativa, embora agora se interessando por outros réus,
especialmente aqueles que discordavam da ordem estabelecida. Somente no sé-
culo XIX, em 1821. foi extinto o tribunal do Santo ofício de Portugal.
A memória judaica, após o final da distinção entre cristãos-novos e velhos
então foi-se dissolvendo, até praticamente desaparecer do consciente dos anti-
gos cristãos-novos e seus descendentes.
Porém, alguns traços da cultura cristã-nova permaneceram vivos na men-
talidade e mesmo em nosso cotidiano, especialmente no Nordeste. Exatamente
porque foi no Nordeste que os primeiros cristãos-novos se estabeleceram e trou-
xeram de Portugal uma memória mais forte e mais recente do Judaísmo.
Câmara Cascudo19, um de nossos maiores folcloristas, conta que uma das re-
miniscências da benção judaica é a frase que ainda hoje usamos “passar a mão pela
cabeça”, ou seja, desculpar, concordar, abençoar, absolvendo pecados e culpas.
Algumas dessas lembranças também recordam o martírio dos cristãos-no-
vos. O mesmo estudioso ouvia sua mãe dizer “tem fogo para assar um judeu” –
associando às chamas os cristãos-novos que eram queimados pelo Tribunal da
Inquisição.

19
Luis da Câmara Cascudo, Mouros, Franceses e Judeus – Três presenças no Brasil (São Paulo:
Perspectiva, 1984), 94.
[244]
Sonhos, êxtases, viagens encantadas.
Mulheres visionárias diante do Tribunal do Santo
Ofício português, séculos XVI-XVII1
Jacqueline Hermann

Entre a falsa e a verdadeira santidade: o discernimento dos espíritos


Criado com o foco voltado para a comunidade de recém conversos de ju-
deus, o Tribunal do Santo Ofício português teve sob sua alçada o controle de
inúmeras outras práticas e comportamentos associados a desvios de fé. Em meio
à aguda crise da cristandade vivenciada a partir da Reforma e aos novos questi-
onamentos enfrentados pela Igreja, as formas assumidas pela relação direta ou
mediada com o divino se disseminaram na esteira de medos e expectativas pro-
féticas que marcaram a passagem do século XVI para o XVII na Europa Católica.
Jean Delumeau, no clássico A História do Medo no Ocidente2, analisou
como a onipresença do medo que atravessou a cristandade entre o período me-
dieval e moderno – ameaçada pela peste, pela fome, pelo iminente assalto
demoníaco-, produziu seus vilões e antídotos, vivenciou a proliferação de candi-
datos a santos e profetas, desafiou a Igreja e seus métodos de contenção das
práticas heterodoxas. No conjunto de “agentes do Satã” enumerados por Delu-
meau, a mulher foi desde sempre associada ao erro e afeita ao engano e
artimanhas do “príncipe das mil faces”. E foi por isso objeto de preocupação de
teólogos a médicos, juristas e literatos, autores de tratados, leis e escritos de todo

1
Esta pesquisa conta com apoio do CNPq. Sou grata a Ronaldo Vainfas pela leitura e sugestões
à versão anterior deste texto.
2
Jean Delumeau, História do Medo no Ocidente, 1300-1800. Uma cidade sitiada (São Paulo:
Companhia das Letras, 1993), especialmente, na segunda parte, Cap.6: A espera de Deus, p.
205-238, e cap.10: Os agentes de Satã: A mulher, p. 310-349.
tipo para identificar, das escrituras à ciência, os instintos equívocos e perniciosos
“inerentes” à parcela feminina do mundo.
O tema deste capítulo se insere nesse amplo quadro e analisa uma das
muitas vertentes das ações voltadas especialmente para o perigo representado
pelas mulheres que ousaram estabelecer contato direto com o insondável dom
da graça de Deus. Em sonho, tomadas por visões ou em êxtase, muitas mulheres
foram denunciadas, presas, processadas e condenadas pelo Tribunal do Santo
Ofício, suspeitas de falsa santidade e deliberado embuste.
A santidade era o “ponto de definição máxima da religião e da fé” e, se-
gundo Adriano Prosperi, as manifestações e comportamentos nada ortodoxos –
busca de sinais “visíveis” de Deus, milagres, poderes como levitação, voos e apa-
rições - levaram a intervenções específicas do Santo Ofício na Itália a partir do
século XVI. À santidade heroica masculina alcançada pelo martírio em missões
fora da Europa, restou às mulheres o mundo interior, das casas aos conventos, a
partir dos quais os supostos poderes sobrenaturais ultrapassavam muros, reu-
niam adeptos e despertavam a desconfiança das autoridades religiosas. A
proliferação de candidatas a santas, estimulada indiretamente pelo contexto da
Contrarreforma, produziu a inesperada dissidência feminina que passou a con-
centrar esforços dos inquisidores para identificar e separar as eventuais
manifestações verdadeiras das falsas3.
O esforço para delimitar essa fronteira era antigo e produziu um verda-
deiro dispositivo teológico voltado para o “discernimento dos espíritos”,
expressão já presente na Primeira Carta aos Coríntios e definida como a mila-
grosa capacidade alcançar os pensamentos ocultos dos homens, seus estados de
alma e pecados. Habilidade cultivada e adaptada aos diferentes contextos, pas-
sou por mudanças profundas entre a Baixa Idade Média e o início da Época
Moderna, quando o cenário inaugurado pela Reforma operou a passagem do ca-
risma milagroso “arbitrariamente concedido pelo Espírito Santo” a matéria de
avaliação probabilística e conjuntural. A partir de então, o ajuizamento passou a
ser dominado pelos “discretores”, os responsáveis pelo discernimento em maté-
ria religiosa4.

3
Adriano Prosperi, Tribunais da Consciência. Inquisidores, Confessores, Missionários (São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2013), segunda parte, cap. 21: Santidade verda-
deira e falsa, p. 433-461.
4
É vasta a bibliografia sobre os debates que envolveram “o discernimento dos espíritos” entre
a Idade Média e a Época Moderna, a exemplo de Rosalyn Voaden, God’s Words, Women's
[246]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

Com a difusão da mística feminina a partir do século XIII-XIV, a Igreja


passou a implementar um processo de clericalização dos carismas sobrenaturais,
com vistas à domesticação da prática visionária. Coube a Jean Gerson a “reinven-
ção” da discretio spirituum, cuja trilogia foi escrita entre 1401 e 1423 e estabeleceu
o “paradigma gersoniano”, com 9 proposições fundamentais, das quais destaco
quatro: a) a instituição eclesiástica, em todas as suas instâncias, era a responsável
máxima pelo exame dos espíritos e doutrina, começando pelo concílio universal,
continuando pelo papa, prelados e corporação teologal; b) o discretor spirituum
por excelência era o teólogo de sólida formação acadêmica e acumulada experi-
ência místico contemplativa; c) o carisma paulino, dom extraordinário do
Espírito Santo, passou a ocupar lugar secundário, subordinado ao examinadores
oficiais autorizados; d) o exercício dos poderes extraordinários só se exerceria
depois do exame da instituição eclesiástica5.
Com os imprevistos desdobramentos da Reforma e as determinações do
Concílio de Trento (1545-1563), a explosão místico-profética provocou mudanças
na ars dicernendi e nos protocolos de canonização, assim como nas formas de
avaliação de sonhadores, profetas, santos fingidos, extáticos. Surgiu então um
novo “ethos anti-visionário” e “anti-místico”, do que resultaram duas posições
bem marcadas entre os séculos XVI e XVII: de um lado, a adoção do “paradigma
gersoniano” admitia a dificuldade intrínseca ao discernimento dos espíritos, mas
podia aceitar formas tácitas de revelação privada, desde que “comprovadas” e
avalizadas institucionalmente; no outro extremo, uma corrente passou a desqua-
lificar completamente a maioria das formas extraordinárias de comunicação
transcendente, advogando a incapacidade para distinguir as verdadeiras das

Voices. The Discernment of Spirits in the Writing of Late-Medieval Women Visionaries (York:
York Medieval Press/ Boydell and Brewer and the Centre for Medieval Studies, University of
York, 1999); Moshe Sluhovsky, Believe Not Every Spirit. Possession, Mysticism, & Discernment
in Early Modern Catholicism (Chicago: The University of Chicago Press, 2007); Nancy Caciola
e Moshe Sluhovsky, “Spiritual Physiologies: The Discernment of Spirits in Medieval and Early
Modern Europe”, Preternature: Critical and Historical Studies on the Preternatural 1, n.º 1
(2012): 1-48; Stuart Clark, “The Discernment of Spirits: vision and knowledge in an Early Mod-
ern religious context”, texto inédito da Conferência ‘Vision and Knowledge in the Seventeenth
and Eighteenth Centuries’, proferida no William Andrews Clark Library, Los Angeles, 2011,
revisado em 2014; Fabián Alejandro Campagne, “Crisis y reinvención del discernimiento de
espíritus en la era confessional: análisis comparado de los modelos de Jerónimo Planes, Juan
de la Cruz y Próspero Lambertini”, Revista de História Comparada 8, n.º 2 (2014): 60-107.
5
Cf. Campagne, “Crisis y reinvención del discernimento de espíritus”, 62-65. A trilogia do
teólogo Jean Charlier de Gerson (1363-1429), Doctor christianissimus e chanceler da Universi-
dade de Paris, analisada no texto foi composta por: Distinctione Verarum Visionum a Falsis de
1401, De Probatione Spirituum de 1415, e De Examinatione Doctrinarum de 1423.
[247]
falsas manifestações sobrenaturais – do que dava inúmeros exemplos a prolife-
ração de místicos de todo tipo.
Foi este o contexto ampliado no qual visionárias e Inquisidores se confron-
taram em Portugal nos séculos XVI e XVII, quadro agravado pelo contexto
político ibérico, como veremos a seguir.

Profecia e política
As diferentes conjunturas históricas acrescentaram ingredientes políticos
aos preceitos estritamente religiosos para “discernir” não só a falsa santidade,
mas também “aliados” e inimigos em momentos especialmente delicados das re-
lações de Portugal com a Monarquia Hispânica. Esse cenário se estendeu à
península itálica e Adriano Prosperi encontrou também na Itália do final do sé-
culo XVI e início do XVII casos em que os limites entre profecia e política podiam
resultar em previsões potencialmente perigosas para a ordem política e religiosa,
especialmente nos anos finais do reinado de Felipe II6, que também em Castela
enfrentou manifestações semelhantes.7
Em Portugal, as duas últimas décadas do século foram dramáticas: depois
da derrota em Alcácer Quibir, em 1578, na qual o rei D. Sebastião desapareceu
sem deixar herdeiros, o último dos Avis, o já idoso Cardeal D. Henrique, assumiu
o trono até morrer em janeiro de 1580. No seu breve reinado, D. Henrique tentou
de toda forma impedir a potencial submissão do reino à Monarquia Hispânica,
então comandada pelo sobrinho, o poderoso Felipe II. Das tratativas em Roma
para se liberar dos votos religiosos e se casar, visando a continuidade dos Avis,

6
Filho de Carlos V, Imperador do Sacro Império Romano Germânico, o Príncipe Felipe nasceu
em 1527 e tornou-se rei da Monarquia Hispânica em 1556, depois da abdicação do pai. Herdou,
além de Castela, os territórios italianos que integravam o Império e as possessões na América.
Com a anexação de Portugal aos seus domínios em 1580, tornou-se o mais poderoso rei da
Europa continental da segunda metade do século XVI até sua morte, em 1598. As duas últimas
décadas do século foram de afirmação do poder de Felipe II, mas também de inúmeros en-
frentamentos políticos e militares, muitos destes travados em sonhos e projeções
escatológicas que previam a derrota de Felipe II e de seu império.
7
Sobre o contexto religioso em Espanha no tempo de Felipe II ver Notas para un analisis de
la problemática religiosa en la España de Felipe II, de Antonio Irigoyen López y José Jesús
García Hourcade, Universidad Católica de Murcia in http://www.hottopos.com/mirand
12/antjos.htm, e ainda, María Jordán Arroyo, Sonhar a História. Risco, criatividade e religião
nas profecias de Lucrécia de León (Bauru: Edusc, 2011); Richard Kagan, Los sueños de Lucrecia.
Política e profecia en la España del siglo XVI, traducción de Francisco Carpio (San Sebastián:
Nerea, 2004).
[248]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

ao apoio à duquesa de Bragança para a sucessão, enfrentou a determinação do


Rei Católico para herdar Portugal – era neto de D. Manuel I e tio de D. Sebastião
– e a inesperada candidatura de outro sobrinho, D. Antônio, Prior do Crato, filho
natural do Infante D. Luís8. Depois da morte de D. Henrique, D. Antônio foi
aclamado rei de Portugal em junho de 1580, até ser vencido na batalha de Alcân-
tara, dois meses depois, pelas tropas de Felipe II. D. Antônio e parte de seus
seguidores fugiram de Portugal e buscaram abrigo nas cortes inglesa e francesa,
das quais esperavam apoio financeiro e militar para derrotar o rei castelhano,
apoio jamais concretizado oficialmente.
As duas primeiras visionárias processadas pela Inquisição portuguesa cu-
jos processos analiso neste texto foram contemporâneas desses graves
acontecimentos políticos. A primeira delas, Maria da Visitação, chamada monja
de Lisboa, permite vislumbrar um conjunto de aspectos que, da política aos li-
mites impostos às mulheres, traduz bem os muitos cruzamentos que a vivência
religiosa conheceu no período. Filha de Francisco Lobo e Branca de Meneses,
Maria da Visitação nasceu Maria de Meneses em 1551, e tomou o nome pelo qual
ficou conhecida quando ingressou no mosteiro de Nossa Senhora da Anunciada
da ordem de São Domingos de Lisboa, em 1562. O pai foi embaixador de D. João
III junto à corte de Carlos V e acompanhou o Infante D. Luis, pai do Prior do
Crato, na expedição católica e vitoriosa em Túnis, em 1535. Foi muito favorecido
por D. João III, e segundo frei Luís de Granada, Maria da Anunciada era de famí-
lia “muy principal” de Portugal. Um dos irmãos, Manoel Lobo, morreu com o
filho em Alcácer Quibir; o outro, Afonso, serviu na Índia; o terceiro, Antônio
Lobo, lutou no Norte da África; a outra irmã, Isabel de Meneses, tornou-se Sóror

8
Assim que as notícias da derrota portuguesa em Alcácer Quibir chegaram a Portugal, uma
acirrada disputa sucessória confrontou, na península ibérica, o rei castelhano Felipe II, a por-
tuguesa D. Catarina, duquesa de Bragança e o inesperado D. Antônio, Prior do Crato. Todos
eram netos de D. Manuel I, sendo o prior, filho natural, considerado ilegítimo. Entre fins de
1578 e janeiro de 1580, o então rei D. Henrique, com 67 anos e Cardeal, tentou obter do papa
Gregório XIII dispensa dos votos religiosos para casar, e D. Antônio o reconhecimento do
improvável casamento dos pais, visando suspender o obstáculo a sua candidatura. Felipe II
atuou junto ao papa para inviabilizar os dois pedidos, enquanto tentava convencer D. Henri-
que de seu direito à herança de Portugal, ao mesmo tempo em que cercava o reino e preparava
a invasão de Portugal. Com a morte do Cardeal em janeiro e a inusitada “aclamação” de D.
Antônio em junho de 1580, as tropas castelhanas invadiram o reino. O Prior do Crato e alguns
de seus partidários fugiram, Felipe II foi jurado rei de Portugal nas Cortes realizadas em To-
mar, em abril de 1581, dando início à chamada União Ibérica e ao período da dinastia
Habsburgo. Sobre as negociações do rei D. Henrique e do Prior do Crato junto a Roma, ver
Jacqueline Hermann, “Um papa entre dois casamentos: Gregório XIII e a sucessão de Portugal
(1578-1580)”, Portuguese Studies Review 22, n.º 2 (2014): 3-38.
[249]
Clemência no convento da Madre de Deus depois de viúva. Vemos, assim, o an-
tigo comprometimento dos homens da família Lobo com os negócios do Estado
e das armas e das mulheres, destino inescapável, com a vida devota.
Maria de Meneses entrou para o monastério da Anunciada depois da
morte dos pais, professou com 16 anos e aos 32 anos, 1583, tornou-se prioresa do
convento de Lisboa. Apesar da vida confinada, era conhecida e admirada por
grandes do reino, tanto entre religiosos como homens grados da corte, entre eles
o Arquiduque Alberto, então Inquisidor-mor e Vice-rei de Portugal9. A partir de
1575 Sóror Maria da Visitação teria começado a falar de visões e revelações mila-
grosas, experimentar raptos e êxtases místicos. O Senhor teria se revelado a ela
com uma coroa de espinhos banhada em sangue, posta na cabeça de Maria e
provocando estigmas dolorosos, dos quais também manava sangue. As aparições
se repetiram, novos estigmas no peito, mãos e pés, provocando a curiosidade
sobre a prioresa da Anunciada, a indicar o vazamento de informações sobre o
que se passava no convento. Valorizada por seus confessores, frei Pedro Romero
e frei Antônio de Lacerda, Maria teve seus poderes místicos divulgados por vá-
rios reinos europeus, com o apoio do famoso frei Luís de Granada, que a visitou
no mosteiro em 1584. Admirado e convencido dos poderes sobrenaturais da pri-
oresa, escreveu sobre ela a amigos importantes, como o Cardeal Carlos
Borromeu e o arcebispo de Valencia. Rumores sobre a possível “santidade” da
prioresa chegaram à corte castelhana, onde foi considerada “mujer tan santa, en
cuya persona resplandece tan inauditas maravillas”10.
A fama não demorou a cobrar seu preço, atiçando rivalidades antigas no
convento, e depois de muitas denúncias, dois teólogos foram convocados para
atestar a veracidade dos estigmas. Os primeiros pareceres, em fins de 1587, foram
favoráveis à prioresa, assim como o de frei Sixto Fabri, Mestre da Ordem de São

9
O resumo da história e do processo de Maria da Visitação baseia-se em Fray Luis de Granada,
O.P., Historia de Sor María de la Visitación y Sermon de las caídas públicas, estudio preliminar
de Alvaro Huerga, O.P., prólogo de Sister John Emmanuel Schuyler, edición de Bernardo Ve-
lado Graña (Barcelona: Juan Flors, Editor, 1962), 3-112. Do mesmo autor, “La vida seudomística
y el Proceso Inquisitorial de Sor Maria de la Visitación (“La monja de Lisboa”)”, Hispania Sacra
12 (1959): 35-96 e “La monja de Lisboa y Fray Luis de Granada”, Hispania Sacra 23 (1959): 333-
356. O Cardeal Arquiduque Alberto de Áustria era sobrinho de Felipe II e foi nomeado Vice-
rei de Portugal em 1583, ano em que o Rei Católico voltou para Castela depois de dois anos no
reino recém conquistado. O Vice-rei Alberto acumulou o cargo de Inquisidor-mor e esteve à
frente da direção do governo e da Inquisição portuguesa entre 1583 e 1593.
10
Estudio preliminar de Alvaro Huerga em Granada, Historia de Sor María de la Visitación y
Sermon de las caídas públicas, 31.
[250]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

Domingos, à qual o convento estava subordinado. Em Portugal “a monja” foi


submetida a novo exame das chagas, mais uma vez confirmadas. A apreciação
desta vez foi longa – de novembro de 1587 a abril de 1588 -, e terminou com
recomendações para que se evitasse a exposição pública dos estigmas, do mos-
teiro e dos dominicanos: o momento político era delicado e muitos dominicanos
estiveram envolvidos na defesa dos direitos de D. Antônio à sucessão de Portu-
gal, contrários, portanto, à legitimidade do novo rei português, Felipe II de
Espanha, Felipe I de Portugal11.
A confirmação dos dons especiais de Maria da Visitação aumentou seu po-
der dentro e fora do convento, assim como as tensões com as companheiras no
mosteiro. Os boatos e murmurações não deram trégua, mas é difícil precisar a
razão exata para o início do processo inquisitorial, 9 de agosto de 1588, depois
das muitas e importantes avaliações favoráveis. O maior estudioso do processo
de Maria da Visitação, Álvaro Huerga, não encontrou relação direta da prioresa
com a defesa do Prior do Crato. Ela teria sido usada pelos partidários de D. An-
tônio, entusiasmados com a derrota espanhola na Invencível Armada, em julho
de 1588, momento de grande otimismo na expansão imperial da Monarquia His-
pânica. A prioresa, tão valorizada por seus dons milagrosos, teria abençoado a
bandeira que seguiu com a frota portuguesa dois meses antes: a derrota da In-
vencível Armada selou também o destino Maria, acusada de sonhar ora com a
volta de D. Sebastião, ora com D. Antônio, a essa altura exilado na Inglaterra.
Em qualquer dos casos, a acusação agora era política, e o que fora glória tornou-
se rapidamente suspeita herética.
O processo inquisitorial contra Maria da Visitação, já muito estudado, in-
forma sobre a linha tênue que separava os possíveis dons divinos das candidatas
a santas e as arriscadas previsões de caráter político nesses primeiros anos da
União Ibérica. Dez anos haviam se passado desde a derrota em Alcácer Quibir e
os boatos e esperanças de que D. Sebastião ainda estivesse vivo e pudesse voltar
se mantiveram no horizonte da época, com o aparecimento, inclusive, de dois

11
Frei Luís de Granada, ao assumir a direção da Ordem dos Dominicanos em janeiro de 1581,
advertiu e determinou punições graves para os muitos religiosos que haviam ajudado e parti-
cipado da “aclamação” de D.Antônio: “son mas culpados los que mas autoridade tenian,
porque con ellas persuadian D. Antonio, que él era verdadeiro rey de Portugal, y tambien lo
persuadiana al pueblo, diciéndole ser licito y obligatorio tomar armas y pelear por él, de donde
se siguieron todos los estragos y desventuras que el reyno ha padescido y padesce”. Apud João
Francisco Marques. A Parenética Portuguesa e a Dominação Filipina (Porto: Instituto Nacional
de Investigação Científica, 1986), 406.
[251]
falsos reis entre 1582 e 158512. O mesmo valia para os que apostavam no apoio
estrangeiro para fazer de D. Antônio rei de Portugal, tentativa ensaiada em 1589,
como veremos a seguir. A questão aqui é realçar a ação do Tribunal da Inquisição
nas décadas de 1580-90 comprometida com a defesa política da nova dinastia
castelhana13.
As interpretações sobre a relação da monja de Lisboa com a causa de D.
Antônio e D. Sebastião foram sempre controversas: para Álvaro Huerga, como
já vimos, não é possível afirmar a ligação da monja à defesa do Prior do Crato;
Diogo Ramada Curto concorda e defende que a imagem de “redentora” de Por-
tugal, contrária ao domínio estrangeiro, foi uma construção posterior ao
processo inquisitorial. Richard Kagan, estudando outra famosa processada espa-
nhola, contemporânea da prioresa, e igualmente envolvida em assuntos políticos
graves da época, Lucrécia de León, acreditou no envolvimento da prioresa com
a causa antonista14.
Fosse sebastianista ou defensora de D. Antônio, a cronologia permite con-
jecturar que o processo de Maria da Visitação, iniciado logo depois da derrota
espanhola, teve motivação política. Foi rápido e implacável: depois da remoção
das chagas com água e sabão, a prioresa confessou que fez tudo por vaidade e

12
Entre 1584 e 1598, quatro candidatos pretenderam se passar pelo rei D. Sebastião. Até o final
dos anos de 1580, dois já haviam se apresentado: o primeiro em 1584, na região de Penamacor,
fronteira com Espanha; o segundo na região de Ericeira, no ano seguinte, ambos de caráter
mais local e rapidamente debelados. Na década de 1590 seria a vez do chamado falso de Ma-
drigal, desta vez em Castela, ardil arquitetado por um ex-antonista e agostiniano Frei Miguel
dos Santos – mais um religioso envolvido na resistência política a Felipe II – em um convento
de Madrigal. Nele contou com o apoio de uma sobrinha do rei, D. Ana de Áustria para tentar
fazer do pasteleiro Gabriel de Espinosa rei de Portugal, em 1594. Em 1598 foi a vez do falso de
Veneza, conspiração de maior repercussão internacional, reuniu diversos antonistas espalha-
dos pela Europa e teve desfecho trágico para o rei-impostor, o calabrês Marco Tulio Catizone,
morto em 1603. Sobre os falsos D.Sebastião, ver Miguel D’Antas. Os falsos D.Sebastião, 2.ª
edição revista, introdução e notas de Sales Loureiro (Odivelas: Europress, 1988); para um re-
sumo dos 4 casos, ver Jacqueline Hermann, No reino do Desejado (São Paulo: Companhia das
Letras, 1998), cap.5.: A volta do Encoberto: entre farsas e encantamentos, p. 249-303.
13
Para um estudo aprofundado das relações do Tribunal da Inquisição português com as mu-
danças políticas vividas no reino depois da incorporação de Portugal à Monarquia Hispânica,
ver Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y política. El gobierno del Santo Ofício en el
Portugal de los Austrias (1578-1653) (Lisboa: Universidade Católica Portuguesa, Centro de Es-
tudos de História Religiosa), 2011.
14 Diogo Ramada Curto, “O rústico, a freira, o louco”, in Cultura política no tempo dos Filipes
(1580-1640) (Lisboa: Edições 70, 2011), 70. O depoimento da testemunha está na p. 68; Kagan,
Los sueños de Lucrecia, 205. Para uma análise mais recente do caso, ver Jordán Arroyo, Sonhar
a História.
[252]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

soberba, querendo parecer santa, ser respeitada e honrada. A sentença foi lida
solenemente na catedral de Lisboa, no capítulo de São Domingos, em 6 de de-
zembro de 1588 – apenas 4 meses depois de iniciado - e divulgada em todas as
igrejas lisboetas. Maria da Visitação foi transferida de convento, privada de voz
ativa e passiva, condenada a cárcere perpétuo em mosteiro de sua ordem, fora
de Lisboa. Em 21 de janeiro de 1589 foi transferida para o mosteiro das domini-
canas, em Abrantes15. A notícia correu a Europa e deixou mal os ilustres
religiosos que haviam confirmado os dons de santidade da prioresa. Sixto Fabri
perdeu o cargo na Cúria Romana; frei Luís de Granada, que já tinha pronta a
História de Sór María de La Visitación iniciada em 1584, escreveu o Sermón de las
caídas públicas, atacando os embustes; até mesmo o Cardeal Alberto, Vice-rei de
Portugal, teve que se explicar em Roma sobre a veracidade das chagas.16 Como a
validade dos possíveis dons místicos dependia sempre de confirmações mascu-
linas, o discretor spirituum do “paradigma gersoniano” acima indicado, neste
caso, raro, também estes foram “maculados” pelas chagas inventadas da monja
lisboeta.
Um mês depois da sentença da monja de Lisboa, o bispo de Coimbra, D.
Afonso de Castelo Branco, começou a colher depoimentos contra outra Maria,
de extração social oposta à Maria da Visitação: entregava frutas no Mosteiro de
Santo Antônio de Coimbra, analfabeta, era conhecida como a “beata de Celas”.
Em abril de 1589, quando Maria Dias foi entregue aos inquisidores, D. Afonso
escreveu aos deputados do Santo Ofício:
Prendi hua Maria Dias que também era da seita da Prioresa que foi d'A-
nunciada, e cuido certo que se fora este fingimento por diante se vieram
a fazer outras cousas ainda piores, e para se remediarem como convém
e castigarem exemplarmente, e de modo que os bons se edifiquem e os
maus hajam medo, parece-me que devia o Santo Ofício de lançar mão
de toda esta gente por que assim não se deixava coisa alguma da Cari-
dade e da Justiça por fazer17.

15 Em junho de 1591 o Cardeal Alberto suspendeu a pena de cárcere perpétuo, permitindo a


circulação pelo monastério, mantendo a clausura; em 1592 foi autorizada a voltar a comungar.
Em 1602 voltou a ter voz ativa e passiva; em 1603 obteve clemência. Cf. Estudio preliminar de
Alvaro Huerga em Granada, Historia de Sor María de la Visitación y Sermon de las caídas
públicas, 64.
16 Ibid., 61.
17 Carta de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, aos deputados do Conselho Geral,
29 de abril de 1589. Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv. 91, fl. 35. A ortografia foi atualizada.
[253]
O bispo temia que as duas integrassem algum tipo de seita e fossem parti-
dárias de D. Antônio, apesar da relação da prioresa de Lisboa com a causa com
o Prior do Crato nunca ter sido comprovada. A especulação parece revelar mais
o temor das autoridades fiéis ao rei castelhano do que ameaça concreta ou
mesmo provável. O processo contra Maria Dias foi mais longo do que o da prio-
resa: os depoimentos começaram em janeiro de 1589 – a sentença de Maria da
Visitação saiu em dezembro de 1588 – e a condenação decretada em 22 de agosto
de 1590. Há semelhança no caráter místico dos dois casos, mas não é óbvio ver
na chamada “beata de Celas” uma espécie de cópia tardia da famosa prioresa.
Cristã velha, natural de Soveral, distrito de Beja, morava em Celas, Coimbra,
desde 1585.
As principais acusações: entrava em êxtase depois de receber a comunhão
na Igreja do Mosteiro de Santo Antônio, deixando-se cair amparada por duas
mulheres que a levavam ao confessionário fora da Igreja, onde permanecia de-
sacordada por horas; fazia revelações sobre as coisas do inferno e do purgatório;
dava a entender que o Senhor se comunicava com ela, revelando coisas da outra
vida e das almas, as quais via sair do purgatório e entrar na glória. Dizia, ou di-
ziam, que se comunicava em espírito com a prioresa da Anunciada, previa o
futuro e era procurada em casa por pregadores e sacerdotes. Quando chegou a
Celas era pobre, andava descalça e com uma mantilha preta; depois de se fingir
de santa passou a andar bem vestida e calçada, fazendo suspeitar que recebia
pelos serviços de “adivinhação” que prestava.
O cristão velho João de Mattos foi um dos 19 depoentes do processo e ou-
vira dizer que a beata se comunicava com a prioresa de Lisboa, de quem teria
“algumas contas”, possivelmente o rosário e as cruzes que circulavam como pos-
síveis relíquias de Maria da Visitação. D. Afonso faz menção a esses objetos em
carta de 2 de janeiro de 1589 ao Cardeal Alberto, preocupado com a quantidade
de “cruzes de pau”, “que cuido que não as dava ela, mas se compravam”, podiam
ser bentas pela prioresa e pedia atenção aos inquisidores.18 João de Mattos afir-
mou ainda sobre outro perigo: “todos os que nesta terra são da parcialidade de
D. Antônio e o alevantaram eram seus amigos e tratavam com ela”. Boatos afir-
mavam que a casa onde a beata morava havia sido presente dos antonistas e por

18 Carta de Afonso de Castelo Branco, Bispo de Coimbra, ao Inquisidor Geral, 2 de janeiro de


1589. Lisboa, ANTT, ANTT, TSO, CGSO, liv. 91, fl. 32.
[254]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

isso “era tão servida e mimosa”, com muitos vestidos e calçados, “comia galinha
e todos os bons manjares que lhe mandavam...”19.
Em 28 março foi ouvido Pantaleão Barbosa, que mencionou um certo Fran-
cisco Correa interessado em saber de Maria se D. Antônio havia de voltar a este
reino, recebendo da beata a resposta: “em paz e pacífico”, dali a “3 anos pouco
mais ou menos”20. Este Francisco não aparece entre os depoentes, mas vemos
aqui perguntas diretas relacionadas a D. Antônio, portanto sem qualquer sentido
religioso ou relacionado a eventual desvio de fé, mas sim a fidelidade política. É
certo ainda que o nome de D. Antônio era não só conhecido como podia ser
esperado, e aqui refiro-me aos possíveis rumores sobre a volta do Prior do Crato
a Portugal, em junho de 1589, protegido pelo inglês Francis Drake, mas que, ao
contrário dos temores de D. Afonso de Castelo Branco, não teve a adesão e apoio
esperado por D. Antônio21.
O primeiro depoimento de Maria Dias aconteceu em março de 1589 e pa-
recia indicar a brevidade do caso: tudo havia sido obra do demônio, nunca ouvira
a voz do Senhor, “visões e arrebatamentos foram inventados”. Era sempre pro-
curada para prever o futuro, fosse de um casamento ou cura de enfermos, mas
não citou ou foi perguntada sobre D. Antônio neste dia. Pedia perdão à mãe, a
Deus e aos inquisidores, arrependida, aceitaria a penitência merecida e “com
muitas lágrimas e sinais de arrependimento foi mandada a seu cárcere.22” Dois
meses depois, no entanto, voltou atrás, arrependeu-se do arrependimento, numa
reviravolta que se repetiu, entre negativas e confirmações, até final de agosto de
1589: todos os transes místicos eram verdadeiros, relatou sonhos e encontros

19 ANTT, TSO, IL, proc. 11894, fl. 14.


20 Ibid., fl. 11.
21
Sobre os acontecimentos de 1589, ver Harry Kelsey, Sir Francis Drake. El pirata de la Reina,
trad. Aurora Alcaraz (Barcelona: Ariel, 2002), especialmente capítulo 12: Expedición a Lisboa,
pp. 413-437; F. Ribeiro da Silva, “O corso inglês e as populações do litoral lusitano (1580-1640)”,
in Actas do Colóquio “Santos Graça” de Etnografia Marítima, vol. 3 (Lisboa: Junta de Investi-
gação do Ultramar, 1985), 311-339; María Jordán Arroyo, “La invasion de Portugal en 1589 y el
sueño del ocaso de la España de los Austrias”, in Portugal na Monarquia Hispânica. Dinâmicas
de integração e conflito, org. P. Cardim, L. F. Costa e M. S. da Cunha (Lisboa: Centro de His-
tória de Além-Mar, 2013), 391-411. Para uma análise mais detida dos processos de Maria da
Visitação e Maria Dias e deste contexto político, ver Jacqueline Hermann, “Between Prophecy
and Politics: the return to Portugal of Dom Antonio, Prior of Crato, and the early years of the
Iberian Union”, in Visions, Prophecies and Divinations. Early Modern Messianism and Mile-
narianism in Iberian America, Spain and Portugal, ed. Luís Filipe Silverio Lima; Ana Paula
Megiani (Leiden: Brill, 2016), 112-135.
22 ANTT, TSO, IL, proc. 11894, fls. 49v-52.
[255]
espirituais, vivenciados havia 10 anos. Viu as portas do céu se abrirem; as chagas
do Senhor; sofria raptos depois da comunhão, caía em êxtase e via lugares for-
mosos; “nunca fora fingida”, tudo se dava pela força do espírito, ao qual “não
podia resistir”23. Em 18 de agosto a confissão final: havia fingido tudo por vaidade
e soberba, confessando por sua vontade, “espontaneamente”, “sem medo ou
constrangimento algum”24.
Do interrogatório de maio vale destacar a menção a D. Antônio, sempre
provocada pelos inquisidores: “perguntada se havia Dom Antônio de vir com es-
peranças”, disse Maria ter sido procurada por um padre de nome Hieronimo para
saber “se havia Dom Antônio de tornar, disse que não buscava outras certezas
(..) que bem pudera cruzar o caminho de vir...”25. Antes mesmo deste depoi-
mento o bispo de Coimbra escrevera ao Cardeal Alberto, Inquisidor Geral e Vice-
rei, preocupado com a gravidade do caso, destacou, depois de ouvir 10 testemu-
nhas: “(...) dava a entender que tinha espírito de profecia na vinda de D. Antônio
a estes reinos, e pô-lo que tenho visto nela, a tenho por mais diabólica e artifici-
osa que a prioresa que foi da Anunciada, porque sem religiosos que autorizassem
suas mentiras”26. Em 22 de agosto de 1590 Maria Dias foi considerada culpada e
punida severamente: “pena pública em um domingo” com uma vela acesa em
lugar a ser determinado, 50 açoites pelas ruas desta cidade citra sanguinis effu-
sionem, degredo de 10 anos no Brasil, sem que saibamos se, de fato, veio para a
América27.
Os dois casos analisados demonstram o uso político da repressão inquisi-
torial a supostos dons místicos nos primeiros anos dos Habsburgos em
Portugal28. O momento era delicado, e apesar de jurado e apoiado pela alta no-
breza e pelo alto clero, Felipe II enfrentou resistências no novo reino anexado:
familiares de desaparecidos em Alcácer Quibir esperavam os parentes que

23 Ibid., fls. 16-18v.


24 Ibid., fl. 60v.
25 Ibid., fl. 20.
26 Carta de 14/05/1589, fl. 36.
27
Geraldo Pieroni, estudioso dos degredados pela Inquisição enviados para o Brasil, menciona
o caso, mas não confirma se, de fato, ela veio para a América. Cf. Geraldo Pieroni, Os excluídos
do reino. A Inquisição portuguesa e o degredo para o Brasil colônia (Brasília: Editora da
Universidade de Brasília, 2000).
28
D. Afonso de Castelo Branco foi sempre um fiel defensor da legitimidade do rei espanhol e
neste processo as preocupações com o apoio a D. Antônio foram sempre explícitas. Para uma
análise da relação dos bispos portugueses com a transição dinástica em Portuga, ver José Pe-
dro Paiva, “Bishop and Politics: the Portuguese Episcopacy during the Dinastic Crises of 1580”,
E-journal os Portuguese History 4 (2006).
[256]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

podiam voltar com D. Sebastião; os partidários de D. Antônio tinham esperança


na ação do Prior do Crato junto a cortes inimigas de Castela para fazer-se rei de
Portugal; “os padecimentos do reino” eram assunto que tocava a todos, apoias-
sem Felipe II, esperassem D. Sebastião ou D. Antônio. Os processos de Maria da
Visitação e Maria Dias demonstram a ação comprometida do Tribunal português
com a nova dinastia, sem descurar dos aspectos místicos e desviantes presentes
no anseio de santidade de tantas mulheres desse período.
Os outros dois casos aqui analisados são de contexto bastante distinto, não
menos difícil do ponto de vista político e especialmente delicado para o Tribunal
português. Ambos são posteriores à morte de D. João IV, ocorrida em 1656, pri-
meiro rei da nova dinastia de Bragança que restabeleceu a soberania de Portugal
depois de sessenta anos subordinado à Monarquia Hispânica. A Inquisição por-
tuguesa havia conquistado a duras penas sua autonomia frente à ofensiva do
Tribunal espanhol de subordiná-la depois da União Ibérica, tendo inclusive ela-
borado dois regimentos estabelecendo suas competências de atuação29. Quando
em 1 de dezembro de 1640 o então duque D. João de Bragança se tornou rei de
Portugal, o inquisidor-geral, D. Francisco de Castro, reagiu com cautela e man-
dou mensagem a Coimbra para que “se conformem Vossas Merces com o que
per cá passa e não haja cousa ou ação em contrario”30. A indicação de possível
resistência ao novo rei indica uma das muitas dificuldades enfrentadas por D.
João IV nos primeiros anos da Restauração31. Mas há controvérsias sobre a ade-
são ou rejeição do Tribunal da Inquisição português à Restauração da autonomia
política do reino. Segundo José Pedro Paiva e Giuseppe Marcocci, a relação entre
a Inquisição portuguesa e o rei foi sempre tensa, ora de aproximação, ora de

29
Sobre as difíceis relações entre os Tribunais de Portugal e Espanha depois da União Ibérica,
ver Ana Isabel López-Salazar Codes, “‘Che si riduca al modo di procedere di Castiglia’. El de-
bate sobre el procedimento inquisitorial português en tempos de los Austrias”, Hispania Sacra
59, n.º 119 (2007): 243-268; “La relación entre las Inquisiciones de España y Portugal en los
siglos XVI y XVII: objetivos, estrategias y tensiones”, Espacio, Tiempo y Forma, Serie IV, His-
toria Moderna 25 (2012): 223-252. Os dois regimentos datam de 1613 e 1640, este último no ano
da Restauração, em vigor até 1774, quando o último regimento da Inquisição portuguesa deu
fim à distinção entre cristãos novos e velhos.
30
Apud Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição Portuguesa, 1536-1821
(Lisboa: A Esfera dos Livros, 2013), 182-183.
31
A mais grave delas a conspiração de 1641, com a qual pretendiam derrubar o novo rei. Ver a
respeito, Mafalda Soares da Cunha, “Elites e mudança política. O caso da conspiração de 1641”,
in Brasil-Portugal. Sociedades, culturas e modos de governar no mundo português (séculos XVI-
XVIII), org. Eduardo França (São Paulo; Annablume, 2006), 325-343; Mafalda de Noronha Wag-
ner, A casa de Vila Real e a conspiração de 1641 contra D. João IV (Lisboa: Edições Colibri, 2007).
[257]
enfrentamento, e o Tribunal nunca teria agido de forma homogênea no vasto
complexo inquisitorial de meados do século XVII32.
Foi em meio a esse cenário tenso que novas candidaturas de santas e santos
ocuparam o Tribunal português. Os dois casos selecionados indicam cruzamen-
tos peculiares entre religião e política, difundidos em sonhos, visões e revelações
partilhados, por anos, pelo entorno de duas mulheres, Joana da Cruz e Maria de
Macedo, até serem denunciadas e processadas pelo Santo Ofício. Os dois pro-
cessos apresentam aspectos semelhantes, de improváveis registros escritos
deixados por elas à fabulação sobre os encontros com o rei D. Sebastião, desapa-
recido havia mais de meio século no Norte da África.
Joana da Cruz era porteira do Recolhimento das Convertidas às Chagas de
Lisboa, solteira e professa da Ordem Terceira de São Francisco, “monja domés-
tica”, portanto de origem social modesta. Foi denunciada pelo padre Gaspar
Ferreira, capelão do Recolhimento, em maio de 1659, e presa em agosto. Respon-
deu a processo ao longo de mais de um ano. Filha de lavrador e natural de Torres
Vedras, é possível que tenha ouvido falar do “rei de Ericeira”, um dos falsos D.
Sebastião aparecido na região nos anos de 158033, hipótese para a menção ao de-
safortunado monarca português em suas visões. Como de costume, Joana foi
denunciada por um padre, o capelão do recolhimento onde vivia, sem que sai-
bamos há quanto tempo o padre “ouvia dizer” sobre seus arroubos místicos até
a decisão de denunciá-la. Padre Gaspar Ferreira foi municiado ao Tribunal: apre-
sentou, por escrito, não só um conjunto expressivo de indícios heréticos de
Joana, como uma lista com mais de 10 testemunhas. Chama atenção o número e
a “qualidade” das indicadas – a maior parte mulheres – que viviam fora do reco-
lhimento, a demonstrar inusitada circulação e comunicação além dos muros e
dos limites institucionais autorizados.
De forma resumida, dentre as muitas revelações que Joana da Cruz recebia
diretamente de “Deus Nosso Senhor”, que a tinha “como a mais perfeita criatura
de quantas descendem de Adão”, afirmava que “Roma se há de abrasar, um clé-
rigo que ela conhece há ser Papa e há de canonizar El Rey D. Sebastião”34. Na
disputa celeste, “os Santos de Castela, França, Itália, e todos mais da Igreja que
estão no céu, se ajuntarão, de sua parte, e os de Portugal da outra, e que sendo

32
Para uma análise desse contexto, ver Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa,
especialmente capítulo 7: Em torno de um processo emblemático: Antônio Vieira, p. 181-209.
33
Vide nota 12.
34
ANTT, TSO, IL, proc. 557, fl. 20.
[258]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

muito inferiores em número, vencerão os mais (demais) em certas matérias”.


Joana vira ainda ajuntar-se “no céu os anjos e levarem cada um a sua província
diante do Tribunal da Santíssima Trindade, para ver qual delas se havia de ser a
cabeça do império”, concluindo que “ainda que uma delas tinha mais santos ca-
nonizados, outra tinha mais justos na terra, e havia de ser cabeça (do império)”35.
São muitos os temas relacionados à história portuguesa presentes nessas
declarações de Joana da Cruz. A menção à canonização de D. Sebastião e à bata-
lha celeste a ser vencida pelos santos portugueses, apesar da inferioridade
numérica, remete a um dos chamados “mitos fundadores” de Portugal, a batalha
de Ourique, na qual o primeiro rei português, Afonso Henriques, venceu os
mouros apesar, exatamente, do desfavorável contingente militar. Cristo teria
aparecido em sonho ao futuro rei e sagrado o destino glorioso de Portugal36. Já o
tema do “império” indica outra chave interpretativa, esta voltada para a dissemi-
nação dos debates sobre a consumação futura de um Quinto Império do Mundo,
a ser governado por um rei português, um dos pontos centrais de outro processo
inquisitorial contemporâneo ao de Joana da Cruz e Maria de Macedo, sofrido
pelo jesuíta Antônio Vieira37. Nestes três casos, formas particulares de crença e
espera na volta messiânica de um rei português para retomar a grandeza do reino
aparecem de forma já amadurecida, diferentemente das menções, um tanto va-
gas, aos processos de fins do século XVI. O rei de Joana e Maria era D. Sebastião;
o de Vieira, D. João IV ressuscitado, todos imbuídos da missão de fazer de Por-
tugal o centro do futuro Quinto Império do Mundo.
Voltando ao caso de Joana, se ela era capaz de “revelar” futuro tão auspici-
oso para todo o reino, muito podia fazer pelos conhecidos e vizinhos, de
interceder pelo perdão de condenados ao inferno a assegurar a alguns que “no
céu não havia de faltar lugar para elas, nem pão na terra”38. Depois de longa in-
quirição de testemunhas e vários depoimentos da ré, a sentença foi promulgada

35
Ibid., fl. 289.
36
Sobre a batalha que se tornou milagrosa, ver Ana Isabel Buescu, “Vínculos da memória:
Ourique e a fundação do reino”, Portugal: Mitos revisitados, ed. Yvette Kace Centeno (Lisboa:
Edições Salamandra, 1993), 9-50.
37
É vasta a historiografia sobre o processo inquisitorial sofrido por Antônio Vieira, a exemplo
de Os Autos do Processo de Vieira na Inquisição, edição, transcrição, glossário e notas de Adma
Muhama (São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista; Salvador, Fundação Cultural
do Estado da Bahia, 1995), e José Pedro Paiva, Padre António Vieira, 1608-1697: bibliografia
(Lisboa: Biblioteca Nacional de Portugal, 1999) e “Revisitar o processo de António Veira”, Lu-
sitania Sacra 23 (2011): 151-168.
38
ANTT, TSO, IL, proc. 557, fl. 289v.
[259]
em outubro de 1660: Joana fingiu revelações, visões e “outros favores de Deus”39
e reconheceu que “não podiam proceder de Deus, mas de ilusão e engano do
Demônio”, tendo feito tudo com consciência do erro, apesar dos apelos dos con-
fessores. Devia ouvir a sentença em público, ser açoitada “pelas ruas públicas
desta cidade”, degredada para o Brasil pelo prazo de cinco anos, jamais podendo
voltar a Lisboa40.
Cerca de cinco anos depois, Maria de Macedo foi denunciada por um fa-
miliar do Santo Ofício e membro do Conselho da Fazenda, Antônio de Sousa
Macedo, acusada de falar e divulgar suas idas e vindas a uma certa Ilha Enco-
berta. Era este assunto que muito se falava “principalmente entre os padres da
Companhia”, acusou Macedo, indicando precisamente o jesuíta Manoel da
Costa. Nesta breve apresentação muitas questões do grave quadro político da
época se cruzam, sendo o pano de fundo principal as disputas entre os herdeiros
de D. João IV, D. Afonso VI, aclamado em 1656, rei em exercício a partir de 1662,
até ser afastado pelo irmão, o Infante D. Pedro, em 166741. Foi em meio esse con-
turbado momento que Antônio de Sousa Macedo, antigo e fiel servidor de D.
João IV, ativo também nos reinados dos dois irmãos em confronto, viu-se enre-
dado nas disputas palacianas. A oposição e denúncia de um jesuíta como
potencial responsável pela disseminação de práticas heréticas expõe outra di-
mensão desse complexo quadro político, do qual a denunciada Maria de Macedo
foi, diante do Santo Ofício, a maior vítima. Não se trata aqui de minimizar as
presumidas culpas de Maria diante da Inquisição, mas de perceber outras cama-
das de disputas que envolviam os variados focos de ação do Tribunal ao longo
de seu longo período de funcionamento. A segunda metade do século XVII foi

39
Ibid., fls. 296v e 297.
40
Para uma análise do caso de Joana da Cruz ver Laura de Mello e Souza, “Religião popular e
política Entre o êxtase e o combate”, in Inferno Atlântico. Demonologia e colonização, séculos
XVI-XVIII (São Paulo: Companhia das Letras, 1993), 105-124, e Hermann, No reino do Desejado.
41
Com a morte de D. João IV, em 1656, e na minoridade do herdeiro D. Afonso VI, a rainha D.
Luiza de Gusmão assumiu a regência do reino até renunciar em 1662, em momento de intrigas
e disputas na corte. D. Afonso VI comandou um conturbado reinado, com forte influência do
Conde de Castelo Melhor, Luís de Vasconcelos e Sousa, até ser afastado por um golpe do ir-
mão, o Infante D. Pedro, em 1667. D. Pedro foi regente até a morte do irmão, em 1683, quando
foi aclamado rei de Portugal como D. Pedro II. Todas as instituições do reino foram atingidas
por essa crise política, momento em que a oposição entre a Companhia de Jesus e a Inquisição
se radicalizou. Antônio de Sousa Macedo (1606-1682), serviu a D. João IV, foi embaixador na
Holanda e redator do Mercúrio Portuguez entre 1663 e 1666, auge da crise política portuguesa.
Foi um defensor da dinastia bragantina, autor dentre outros, de Lusitania Liberata, de 1645. A
associação entre os jesuítas e a resistência sebastianista foi um dos fatores que levou Antônio
de Sousa Macedo a denunciar Maria de Macedo e seus confessores inacianos.
[260]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

de forte perseguição aos disseminados arroubos místicos, muitos de suspeitosas


colorações políticas, como o de Joana da Cruz, e agora de Maria de Macedo. Fo-
ram, senão sempre, na maioria dos casos, as disputas entre confessores, que
avalizavam os possíveis dons milagrosos, e padres denunciantes que enredaram
essas mulheres com os inquisidores, e com Maria não foi diferente.
Antônio de Souza Macedo, depois de ouvir sobre as viagens que uma certa
mulher dizia fazer a uma ilha Encoberta, foi pessoalmente conferir a história na
casa de Maria de Macedo, casada com Feliciano Machado, oficial de um escrivão
da Fazenda. Sem medo de esconder suas visões, há muito partilhada com vizi-
nhos, familiares e religiosos, contou que desde os 9 anos de idade lhe aparecia
um homem vestido à moda de Turco e com ele, passando por uma porta ou pa-
rede, chegava a uma bela e bem ordenada ilha. O cenário era detalhadamente
descrito: das Igrejas ao palácio, das embarcações às plantações e fartura de frutas
e animais. No palácio vivia o rei D. Sebastião, desaparecido havia mais de 80
anos, casado com uma senhora da Dinamarca de nome D. Valeriana, com quem
tivera 6 filhos. Segundo o denunciante, “era mui desatada no falar e desproposi-
tada em muitas coisas”, e com certeza “era embusteira, finge todas aquelas
coisas”, mas “representa mais simplicidade que entendimento”, e não parecia
está “fora de seu juízo”42.Vale recordar que D. Sebastião nunca se casou ou teve
filhos, tendo desaparecido no Norte da África aos 24 anos. Nas visões de Maria
de Macedo o tempo havia passado para o rei e sua família imaginária: o Desejado
tinha cabelos brancos e filhos adultos, reunia corte numerosa e preparava frota
para voltar a Portugal.
Os jesuítas ouvidos pela Inquisição, os padres Pedro Peixoto e Manoel da
Costa, confirmaram e acrescentaram detalhes aos relatos, dentre as quais as vi-
agens noturnas que partiam do Paço da Ribeira, as transformações de humanos
em bichos na Ilha Encantada – o turco que levava Maria à ilha virava lagarto -,
as embarcações que aguardavam no porto as ordens de D. Sebastião para voltar
a Portugal. O rei havia de voltar ao reino para reformar o mundo, converter os
hereges e se tornar Imperador do Mundo43.
O processo de Maria foi longo: iniciado em fevereiro de 1665 estendeu-se
até novembro de 1667 e coincidiu com outro caso rumoroso e no qual a oposição
entre o Tribunal da Inquisição e a Companhia de Jesus também foi evidente: o

42
ANTT, TSO, IL, proc. 4404, fl. 5v.
43
Ibid., fl. 11v.
[261]
já citado inquérito movido contra Antônio Vieira, entre 1663 e 166744. Se para
Maria de Macedo e para os inacianos Pedro Peixoto e Manuel da Costa o rei
esperado era D. Sebastião, para Vieira, como vimos, era D. João IV ressuscitado,
a indicar tópicos específicos disseminados entre religiosos e populares, dos con-
ventos às ruas.
Apesar da suspeita de pacto demoníaco, Maria foi condenada como em-
busteira, “convencida no crime de fingir aparecimentos, transportações e
visões”, obrigada a sair em auto público de fé, devendo ser açoitada pelas ruas
da cidade e degredada por 5 anos em Angola, conforme sentença de abril de
1666. Por alegada origem nobre reivindicada pelo marido da ré, Maria foi dis-
pensada dos açoites públicos e obteve perdão do degredo, depois de viúva, sob
o argumento do desamparo das 3 filhas donzelas, com idade entre 12 e 16 anos (e
um menino de 7).
Tal como no processo de Joana da Cruz, as referências a escritos deixados
pelas acusadas devem ser consideradas com cuidado. Em mais um dos aspectos
que ficará aqui apenas enunciado, estudo mais detido dos textos atribuídos a
Maria de Macedo45 permite vislumbrar cenário bem mais complexo e sempre
masculino quanto à valorização da fixação de visões e expectativas de teor expli-
citamente político. Se não há dúvida quanto ao caráter herético dos hibridismos
entre religião e política presentes nos sonhos e viagens encantadas de Maria de
Macedo, tampouco se pode menosprezar o alcance desses escritos em debates
masculinos travados fora do ambiente doméstico, ao qual a ré sempre esteve
confinada. Foi a partir da circulação e discussão das visões atribuídas a Maria de
Macedo, em conventículos masculinos, que o Santo Ofício chegou às viagens
encantadas da ré. A denúncia de um servidor do Estado e familiar do Santo Ofí-
cio, Antônio de Sousa Macedo, parece inicialmente voltada para suspeitos de
alguma trama política orientada pelos jesuítas, mas que terminou com a conde-
nação desta outra Maria. Assim foi também com Joana da Cruz e, guardadas as
devidas especificidades, Antônio Vieira. Momento de crise política, de crise na

44
Ver nota 37 e Marcocci e Paiva, História da Inquisição Portuguesa, capítulo 7: Em torno de
um processo emblemático: António Vieira.
45
Sobre o caso de Maria de Macedo ver também Brian Givens. Judging Maria de Macedo. A
female visionary and the Inquisition in Early Modern Portugal (Baton Rouge: Louisiana State
University Press, 2010). Sobre os textos atribuídos a Maria de Macedo, ver Victoria Rodrigues,
“O “sebastianismo popular” e o fenômeno visionário na análise dos relatos manuscritos de
Maria de Macedo (1650-1658)” (Monografia de Final de Curso de Graduação em História, Gua-
rulhos, Unifesp, 2021).
[262]
SONHOS, ÊXTASES, VIAGENS ENCANTADAS
Jacqueline Hermann

monarquia, com a disputa entre os herdeiros, e de renovadas expectativas sobre


a volta de um rei Encoberto.

À guisa de conclusão
Os quatro casos analisados, dois de fins do século XVI e dois de meados
do século XVII, permitem vislumbrar dois cenários específicos de perseguição e
punição de mulheres acusadas e condenadas como embusteiras e falsa santi-
dade. Nos primeiros casos, o contexto da “explosão mística” combinou-se à
particularidade das profundas transformações políticas que atravessavam o
mundo ibérico, e das quais a mais grave para Portugal foi a subordinação do
reino à Monarquia Hispânica. Em meados do século XVII Portugal vivia os pri-
meiros anos da nova dinastia e os desafios impostos para estabilizar e consolidar
a recuperação da soberania.
As mulheres aqui apresentadas46, através das quais analisei indícios de es-
pera messiânica a partir de suas visões, sonhos e viagens imaginárias, foram
alcançadas e punidas pelo Tribunal Inquisitorial português, igualmente atraves-
sado por conjunturas diversas e sempre confrontado por disputas de poder,
dentro e fora de seus muros. Joana e Marias pagaram caro pela ousadia de fugir
aos controles que as vigiavam por todo lado, mas jamais estiveram sozinhas na
divulgação e especulação de suas visões, e para isso contaram sempre com pa-
dres, confessores e familiares. Como procurei indicar, entendo que para melhor
entendermos a ação da Inquisição nesses casos particulares é preciso ir além dos
relatos que nos legaram os processos, buscar outras tensões e conflitos que os
engendraram, muitas vezes tecidos antes ou mesmo sem relação direta com as
viagens que essas mulheres ousaram sonhar.

46
Sobre a santidade das mulheres em Portugal ver, dentre outros, Pedro Vilas Boas Tavares,
“Caminhos e invenções da santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e XVIII (Alguns
dados, problemas e sugestões)”, Via Spiritus 3 (1996): 163-215; José Pedro Paiva, “Missões, di-
retores de consciência e simulações de santidade: o caso de Arcângela do Sacramento (1697-
1701)”, in A cidade e o campo. Colectânea de Estudos, coord. Maria Helena da Cruz Coelho
(Coimbra: Centro de História da Sociedade e da Cultura, 2000), 243-265. Sobre o cenário am-
pliado da religiosidade em Portugal no período, ver Sebastião José da Silva Dias, Correntes do
sentimento religioso em Portugal (séculos XVI a XVIII), t. 1 (Coimbra: Universidade de
Coimbra, 1960).
[263]
Abuso do sacramento da ordem: os ‘falsos’ padres
na América Portuguesa1
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

Pello procelloso mar do mundo navegamos os Catholi-


cos embarcados na nau da Igreja, guiada pellos
espirituaes pilotos: se estes não cuidadosos, diligentes,
e experimentados conduzirem os passageiros; desvi-
ando-os do baixo dos peccados, em que se dá a costa, e
navegando pellos rumos da ley de Deos levando-a por
norte sempre, certo he que farão naufrágio, Pillotos, e
passageiros.
Antonio Moreira Camelo, 1675.

Aquele que sacrifica o corpo do Senhor chama-se sacerdote. Eis as palavras


usadas por Antônio Moreira Camelo, autor da obra Parocho perfeito deduzido do
texto sancto e sagrados doutores para a pratica de reger e curar almas, de 16752.
Camelo destaca, dentre outros pontos, que cabia ao sacerdote ministrar, dar, en-
sinar e tratar de coisas sagradas e deveria viver dedicado a elas3. No prelúdio da
obra, ele se dirige àqueles que “procuram e aceitam o grave cargo de curar al-
mas”4 e destaca longamente a grandeza dessa tarefa e a necessidade de encontrar
homens com qualidades suficientes que possam levar adiante tão nobre função.
Segundo Camelo, os prelados e pastores “da eminência de seus cargos hão
de vigiar incançaveis, e velar na guarda de seu rebanho”. Alertava, no entanto,
que “do muito descuido, e pouco vigiar dos Ecclesiasticos, e Parochos, se há de
aproveitar muito o Antichristo para perseguir a Igreja”5. As autoridades eclesiás-
ticas deveriam, dessa maneira, zelar pelo bom governo das almas e afastar os
fiéis das incontinências do pecado. Aos padres cabia a tarefa de administrar os
sacramentos que garantiriam aos que os recebessem uma boa comunhão com

1
Esta pesquisa conta com financiamento concedido pela Fundação de Amparo à Pesquisa,
Ciência e Tecnologia do Estado do Maranhão - FAPEMA (Edital Universal-01310/18).
2
Antonio Moreira Camelo, Parocho perfeito Deduzido do Texto Sancto, e Sagrados Doutores
para a pratica de reger e curar almas (Lisboa: João da Costa, 1675).
3
Ibid., Tratado Primeiro, Capítulo I.
4
Ibid., Prelúdio.
5
Ibid., Capítulo Quarto, fl. 25.
Deus e a esperança de ascese da alma. Batismo, confirmação (ou Crisma), euca-
ristia, reconciliação (ou penitência), unção dos enfermos e matrimônio seriam
pilares de sustentação da Igreja reformista pós-Trento6. Acrescente-se aqui
ainda, o sacramento da ordem que obviamente era condição sine qua non para
administração dos demais sacramentos aos fiéis. Os cura d‟almas, sacerdotes
que poderiam administrar tais sacramentos, tinham um conjunto de obrigações
cotidianas que caracterizavam o reto exercício do ministério.
Outro ponto fundamental do sacerdócio era dar o exemplo aos fiéis.
Antonio Moreira Camelo, a esse respeito, diz que se os curas “por ignorantes
forem cegos, desatinados, e sem juízo, e se em fim não sabem, não podem, ou
não querem guiar os caminhantes... Aonde irão dar os guias, e caminhantes?”
Enfatizava que “nem basta ensinar vocalmente o caminho, porque he necessário
mostrallo, e ainda andallo, e discorrelo com a vida, como exemplo”7. Mais adi-
ante ajuíza: “impossivel parecera, pella pouquidade de nossa natureza,
acharemse muitos em que concorra isto”8. Segundo esse autor, se o candidato a
ordenação não se despisse dos seus vícios e abraçasse a vida sacerdotal com
grande respeito as consequências seriam perigosas9.
Para ter o direito de exercer essa função o candidato deveria passar por
uma longa preparação, ou melhor, deveria passar por vários graus, as ordens sa-
cras. Tais ordens só lhes podiam ser conferidas pelo bispo ou, em casos
excepcionais, pelo vigário capitular. Inicialmente era preciso receber a tonsura,
que embora não fosse um sacramento ou qualquer grau da ordem, era o mo-
mento em que o indivíduo aceitava deixar seu estado laico para ingressar no
estado clerical. Segundo as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, de
1707, as ordens eram divididas em quatro menores e três ordens sacras. As or-
dens menores eram ostiário, leitor, exorcista e acólito. O candidato às ordens
menores deveria saber ler e escrever, saber da doutrina cristã e ser crismado10.

6
Consultar António Camões Gouveia, David Sampaio Barbosa, José Pedro Paiva (coord.), O
Concílio de Trento em Portugal e nas suas conquistas: novos olhares (Lisboa: CEHR/Universi-
dade Católica Portuguesa, 2014).
7
TRATADO PRIMEIRO, CAPÍTULO II, § III.
8
Ibid., Sessão III, § TERCEIRO, AVISO I.
9
Ibid., Sessão III, § TERCEIRO, AVISO II e AVISO III.
10
Sebastião Monteiro da Vide, Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia, Bruno Feitler
e Evergton Sales Souza, eds. (São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2010), 216.
[266]
ABUSO DO SACRAMENTO DA ORDEM: OS ‘FALSOS’ PADRES NA AMÉRICA PORTUGUESA
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

Em se tratando das ordens sacras, estas se dividiam em Subdiácono, Diá-


cono, e Presbítero ou Sacerdote11, o que correspondia, respectivamente a três
graus, “epístola”, “evangelho” e “missa”. As mesmas constituições afirmam que
os candidatos deveriam ser examinados com rigor no latim, moral, canto e reza.
Para alcançar as ordens sacras havia mais exigências e a cada avanço na carreira
era necessário apresentar certidão que comprovasse que o candidato tinha já a
ordem anterior. Para o estado de subdiácono exigia-se a idade mínima de vinte
dois anos, a primeira tonsura e os quatro graus menores. Eles deveriam saber
ainda latim, moral, canto, reza e conhecer da doutrina cristã.
Alcançar o grau de diácono dependia do desempenho como subdiácono e
exigia-se a idade mínima de vinte e três anos. O candidato deveria ter sido apro-
vado em exames de latim, canto, reza e casos de consciência. Entre as suas
atribuições estava a de ler o Evangelho publicamente e auxiliar o sacerdote du-
rante a missa. Já era uma preparação para o que viria a seguir: a ordem de
presbítero. A idade mínima para ingresso nessa ordem era de vinte e cinco anos,
e não era admitido senão passado um ano depois de receber a de diácono. O
presbítero era responsável por administrar os sacramentos, instruir os fiéis e
guiá-los no caminho da salvação, requeria-se que fosse “de exemplar vida, e cos-
tumes, e que tenha tal sciencia, que possa ensinar aos fiéis os Mistérios da Fé, e
os Divinos preceitos”12.
Para o caso dos presbíteros, o texto informa que além da obrigatoriedade
do latim, do canto e da reza, o ordinando deveria ser investigado quanto à sua
consciência, vida e costumes, o que era necessário para todas as ordens sacras.
A legislação trata da existência de examinadores que, no caso de conferir as or-
dens sacras, deveriam avaliar intelectualmente os candidatos13. Para tanto, era
necessário passar pelos processos de Habilitação de genere, em que se investi-
gava sua ascendência e a limpeza de seu sangue; e pela investigação Vitae et
Moribus, a inquirição sobre a vida e os costumes14. Estas eram, pois, as exigências
para se alcançar o estado eclesiástico. Entretanto, havia sempre um fosso entre
o ideal e o vivido. Alguns homens transgrediram essas normas e se fingiram de
sacerdotes sem terem passado por todas essas etapas de preparação. A vigilância
e o controle pretendidos pela Igreja conseguiu capturar alguns desses indivíduos

11
Ibid., 219-221: TÍTULO LI: Das Ordens de Subdiacono, Diacono, e Presbítero.
12
Ibid.
13
Ibid., 221-227.
14
Ibid., 218-277.
[267]
que foram denunciados e sentenciados pela Inquisição por fingirem-se de pa-
dres. Este é o tema da investigação que segue.

Os falsos padres na América Portuguesa


Se a normativa era exigente, a realidade das vicissitudes do viver em colô-
nias pode apontar adaptabilidades. A ausência de bispos residentes fez das
longas vacâncias uma marca em muitas dioceses no ultramar. Isso dificultava a
ordenação de pretensos candidatos. Além disso, a malha paroquial era muito
deficiente e núcleos populacionais muito dispersos, o que facilitava a atuação de
falsos padres. Em 1730, por exemplo, Feliciano Pinheiro, corista da ordem de
Nossa Senhora do Carmo na Vigararia do Maranhão, natural de Lisboa, disse ter
iniciado sua viagem no interior dos sertões da Amazônia com destino à Paraíba.
Contou aos inquisidores, um ano depois, quando já estava nos cárceres que
vendose pobre e miserável, e na afliçam de o terem roubado os seus
escravos que lhe fugirão por tentaçam do demônio e para ter como pas-
sar a vida no sertão do Brasil por onde andava se resolveu a principiarse
na culpa de dizer muitas missas sem ter ordens algumas, porque nem
as menores teve ocasião de a formar15.

A peregrinação desse homem de 26 anos teria começado nas terras do bis-


pado do Pará, atravessado o do Maranhão, até chegar no convento dos religiosos
das mercês na Paraíba. Confessou à mesa que até o dia de todos os santos da-
quele ano de 1730 rezou missa “setenta vezes, a maior parte delas nas terras do
certam, que correm do Maranhão ate a Paraíba por donde caminhava setecentas
e sincoenta legoas (750)”. Disse também que “confessou nas matas do Pará, e no
sertão da Parahiba, os religiosos das Merces” e que “no sertam do Parnahiba bis-
pado do Maranham confessou o capitam Francisco Vaz e a tres Tapuyas seus e
no Engenho de Santo Andre confessou duas mulheres”16.
Deu muitos detalhes aos inquisidores sobre sua atuação como um falso
padre. A razão que o teria levado a agir assim, em suas palavras, foi “grande ne-
cessidade em que se vio”, já que não tinha “outra couza de que se valer pelo
terem roubado os Tapuyas”. Disse que “lhe davam esmolas várias pessoas que
habitavam no certão, por onde elle Reo fazia jornada e outras na Cidade da Pa-
rahiba”17. Mesmo chegando em segurança ao convento que era seu destino, teria

15
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 8169, fl. 4.
16
Ibid., fl. 4 e fl 4v, respectivamente.
17
Ibid., fl 13 v, respectivamente.
[268]
ABUSO DO SACRAMENTO DA ORDEM: OS ‘FALSOS’ PADRES NA AMÉRICA PORTUGUESA
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

continuado no erro e disse mais dez ou doze missas lá, o que fez, segundo con-
tou, porque o “Demonio o tentou”. Questionado pelos inquisidores sobre como
continuou atuando, disse “que ouvio de confissão as pessoas… para continuar o
seu fingimento, movido da mesma fragilidade e tentação do Demonio”18. As acu-
sações que lhe foram imputadas no libelo foram de “sentir mal” dos sacramentos
da penitência, da confissão e da ordem. O exemplo de Feliciano Pinheiro é ape-
nas um entre os casos categorizados na Inquisição de Lisboa como “abuso do
sacramento da Ordem”.
O objetivo desta investigação é alcançar os perfis sociais e as motivações
dos homens que fingiram ser padres na América Portuguesa19. Isso permite apro-
fundar o modo de agir dos verdadeiros padres e a recepção dada a esses
comportamentos desviantes nas comunidades em que os impostores aturam.
Aqui pretende-se analisar a natureza do delito que cometeram, como fizeram a
apropriação do sacerdócio, qual era a incidência desse delito e o que os motivava
a agir como impostores.
Quanto a natureza dessa transgressão, no livro II, título X, das Constitui-
ções da Bahia, por exemplo, é possível acompanhar que
se houver alguém tão temerário e atrevido que não sendo sacerdote, se
resolva a celebrar o santo sacrifício da missa, e der com isso ocasião aos
fiéis para crerem que ele é sacerdote, e que verdadeiramente consagra,
e também para cometerem ignorantemente o crime de idolatria, ado-
rando puro pão como verdadeiro corpo e sangue de Cristo Nosso
Senhor, seja remetido ao Tribunal do Santo Ofício20.

Sobre o sacramento da penitência, o mesmo sínodo, esclarece que se um


sacerdote não aprovado para ouvir confissão, o fizer, além de cometer grave

18
Ibid., fl 15.
19
Fernanda Olival e também Daniela Calainho analisaram casos de falsos comissários da In-
quisição de Lisboa e suas respectivas investigações ofereceram direcionamentos
metodológicos para a pesquisa sobre os falsos padres que ora apresento. Fernanda Olival, “Ser
comissário na Inquisição portuguesa e fingir sê-lo (séculos XVII-XVIII)”, in Travessias inqui-
sitoriais das Minas Gerais aos cárceres do Santo Ofício: diálogos e trânsitos religiosos no
Império luso-brasileiro (sécs. XVI-XVIII), org. Júnia Ferreira Furtado e Maria Leônia Chaves de
Resende (Belo Horizonte: Fino Traço, 2013), 81-104 e Daniela Calainho, “Pelo reto ministério
do Santo Ofício: falsos agentes inquisitoriais no Brasil colonial”, in A Inquisição em xeque: te-
mas, controvérsias, estudos de caso, org. Ronaldo Vainfas, et al. (Rio de Janeiro: Editora da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2006), 87-96.
20
Vide, Constituições Primeiras, 279.
[269]
pecado, as confissões seriam nulas e o infrator deveria ser “preso, suspenso e
castigado”21.
Sendo infração de alçada inquisitorial, o que podia justificar o risco de se
passar por sacerdote sem sê-lo? José Pedro Paiva ao analisar o clero como “um
corpo entre outros corpos sociais” já afirmava que desde as Ordenações Manue-
linas “o clero era a ordem mais prestigiada”22 e os membros do clero paroquial
“que tinham a cargo os fiéis nas paróquias, eram figuras proeminente da vida
local, relacionando-se com quem na comunidade tinham estatutos mais honra-
dos”23. Entre os privilégios que gozavam estavam o que Paiva chamou de
“honoríficos” que “se manifestavam nas modalidades de tratamento, no uso de
vestuário próprio, e noutras formas de distinção expressas na habitação, nos
meios de transporte, no corte de cabelo, no uso de brasões”24.
Se assim o era na metrópole, temos de refletir sobre como a condição de
sacerdote pode ter significados mais complexos nos espaços da América Portu-
guesa. Com a análise desses casos desviantes, como os que aqui seguem, é
também possível chegar mais próximo da realidade em que esses homens de ba-
tina viveram nos espaços ultramarinos e investigar como a população recebia
esse comportamento desviante.
Trinta e oito processos foram categorizados como “abusos do sacramento
ordem” e apenas dois deles não estão digitalizados no site do Arquivo Nacional
da Torre do Tombo em Portugal. Para a América Portuguesa consta um total de
nove casos sob essa catalogação. Para esta pesquisa iremos verticalizar apenas
nos casos em que os denunciados fingiram ser sacerdotes. Assim, vamos excluir
da análise três casos. Primeiro, o processo de exorcismo de uma escrava com
quem teve cópula, cujo denunciado foi o fr. Luís de Nazaré, na Bahia em 1738.
Segundo, o processo contra João de Valadares que, professo na ordem de São
Francisco, se casou no Espírito Santo em 1637. O terceiro, a denúncia contra An-
tonio de Araújo Passos que na freguesia das Congonhas do Campo, bispado de
Mariana, fingiu ser sacerdote, administrou unção a enfermos e confissão em
1782, mas a denúncia não gerou processo.

21
Ibid., Tit 41, n. 166, 200.
22
José Pedro Paiva, “Um corpo entre os outros corpos sociais: o clero”, Revista de História das
Ideias 33 (2012): 165.
23
Ibid.: 166.
24
Ibid.: 168.
[270]
ABUSO DO SACRAMENTO DA ORDEM: OS ‘FALSOS’ PADRES NA AMÉRICA PORTUGUESA
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

Assim, entre os seis processos que serão analisados a seguir, o desviante


mais novo tinha 21 anos e o mais velho, 33 anos. Apesar de ser um número pe-
queno de processos e de estarem sujeitos a oscilações longas de temporalidade
(1676-1797) são casos que podem ajudar a clarificar o cotidiano dos sacerdotes
nas dioceses, especialmente as de grandes dimensões, como na América Portu-
guesa que sofriam com longas vacâncias. Os seis casos analisados constam na
tabela abaixo:

Processos contra padres desviantes


Ano da
Falso Local da
denún- Idade Estatuto Acusação Mobilidade territorial
padre prisão
cia
Dizer missa, dar
Regular (or- comunhão e con-
Antonio Sergipe de El Rey até a
1676 Bahia 29 anos dens fessar sem ter
Vasconcelos Bahia
menores) ordem de presbí-
tero
Dizer missa, dar
Campos dos Goitacazes
comunhão e con-
João Pinto Secular (in (Bispado do Rio de Ja-
1727 Bahia 30 anos fessar sem ter
Coelho minoribus) neiro) até Maragogipe
ordem de presbí-
(Arcebispado da Bahia)
tero
Sertão do Amazonas,
Dizer mais de se-
Feliciano Pi- Regular (co- passando pelo Bispado
1732 Pará 26 anos tenta missas e
nheiro rista) do Maranhão até a Para-
confessar
íba (mais de 750 léguas)
João Rodri- Secular (or- Bispado do Rio de Ja-
Minas Ge-
gues de 1733 21 anos dens Confessar neiro até Vila Rica,
rais
Morais menores) Minas Gerais
Francisco da Regular (di- Confessar indíge- Missões no sertão do
1757 Pará 24 anos
Conceição ácono) nas e religiosos Pará e Maranhão
Arcebispado da Bahia
Alexandre Dizer missas e ad-
Pernam- até o interior dos bispa-
José de Ara- 1797 33 anos Leigo ministrar
buco dos de Pernambuco e
gão Cabral sacramentos
Maranhão
Fonte: Elaborada pela autora a partir dos dados dos processos inquisitoriais

Nesta análise iremos levar em consideração aspectos importantes como


mobilidade territorial que disseram ter percorrido, as áreas em que ocorrem as
denúncias (sertões e zonas de conquista), observar o período em que a concen-
tração de casos é mais expressiva, apontar se os denunciados eram seculares,
regulares ou mesmo leigos, se eram conhecidos onde foram denunciados e se
conseguiam “enganar” a comunidade.
Pelos dados compulsados nos processos pode-se perceber uma mobilidade
territorial considerável. É interessante notar que quase todos eles disseram ter
estado em mais de um bispado. Esses impostores tinham motivações e objetivos.

[271]
Não agiam ao acaso, mesmo quando estavam sertões adentro. O que os moti-
vava? Seria o pagamento pelos ofícios eclesiásticos ou apenas a necessidade de
honras e respeito?
João Rodrigues de Morais de 21 anos, “in minoribus”, por exemplo, foi acu-
sado de confessar escravos e lhes impor pesadas penas como açoites, jejum a pão
e água e, principalmente “disciplinas com aplicação de cilicio”. Ele contou aos
inquisidores que saiu de Lisboa em direção ao Rio de Janeiro “com o desejo e
esperança de tirar algumas esmolas para efeito de se ordenar de ordens sacras
por não ter senão as menores e de continuar na Universidade de Coimbra em
que tinha so hum ano, e por falta de meios e assistências”. Chegando lá em 1732
“foi ter com o Bispo daquela Diocese Dom Frey Antonio de Aguadalupe, pedindo
uma provisão para com ella passar as Minas e tirar algumas esmollas como pre-
tendia”, o que o bispo lhe concedeu por tempo de um ano, pelo que “passou para
as Minas de Vila Rica do Ouro Preto principiando a pedir assim pelo caminho
como pelas povoações”25.
A região só teria uma diocese em 1745, ou seja, treze anos depois. Não é de
estranhar que a vigilância fosse mais frouxa e que fosse possível transgredir com
mais facilidade em espaços como esse. João Rodrigues de Morais contou que no
seu trajeto deu a confissão e absolveu várias pessoas, todas escravizadas. Dizia-
lhes que “trazia Breves do Sumo Pontífice para conceder as ditas indulgên-
cias…”26. Encontrando uma escrava na freguesia de Itabira
pos de joelhos e principiando a exortala, examinando-a ao mesmo
tempo se tinha trato ilícito com seu senhor, respondedolhe a mesma
escrava que sim, lhedisse então elle confidente que se tirasse daquela
ocasião próxima em que andava, por ser muyto maior pecado exerci-
tada de portas adentro, e que jejuasse a pão e agoa hum dia… elle lhe
mandou levantar os fatos e lhe deu com humas disciplinas que levava,
alguns açoutes e lhe pos cilicio por baixo dos peitos; e que isto mesmo
passou com mais duas escravas da mesma caza27.

João Pinto Coelho, por sua vez, foi denunciado e processado em 1727 e
também alegou questões materiais para se fingir de padre. Ele contou que antes
de chegar em Maragogi, no Arcebispado da Bahia, tinha desbravado os Campos
dos Goitacazes no interior do recôncavo do Rio de Janeiro. Contou aos inquisi-
dores que “pela grande necessidade em que se encontrava despojado assim de

25
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 423, fl 136.
26
Ibid., fl. 138.
27
Ibid., fl 136 v.
[272]
ABUSO DO SACRAMENTO DA ORDEM: OS ‘FALSOS’ PADRES NA AMÉRICA PORTUGUESA
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

seu fato… se meteu pelos matos adentro e se foy parar em ha fazenda que se
chamava das Crivas, donde se achava hu frade sendo chamado Frey Joseph ad-
ministrador daquela fazenda”. Este lhe ofereceu ajuda e perguntou se ele era
“clérigo por levar coroa aberta”, o que ele respondeu que sim. Omitiu que só
tinha as ordens menores e passou a rezar missa e confessar quem encontrasse
pelo caminho. Contou que imitava a “missa na forma que o fazem os sacerdotes…
levantando a hostia e o calis mostrando aos ouvintes, que se achavam na dita
capella e fingindo de antes que havia dito as palavras da consagração usando das
genuflexões… ”28. Chegou a administrar o sacramento da eucaristia, o que reafir-
mou ter feito “pela extrema necessidade em que se vio”29.
Se João Rodrigues de Morais e João Pinto Coelho alegaram que objetivaram
ganhar esmolas ao fingirem-se de padres, outro impostor, Antonio Vasconcelos,
de 29 anos, alegou que ser padre dava segurança pelos caminhos do interior da
América Portuguesa. Nos cárceres da Inquisição em 1682, confessou culpas do
ano de 1672, quando disse ter fugido do convento de Sergipe de El’Rey se me-
tendo “pelo sertão e pera lhe ser mais fácil a jornada para a Bahia, lhe fez
necessário fingisse sacerdote, porque so assim o tratarião com mais respeito, e
causaria menos reparo nos que o vissem”. Contou que fazia tudo como
acostumavam dizer os Sacerdotes revestido nas vestimentas sacerdo-
tais se poz no altar disse as orações, e se sagrou hóstia, e a levantouse,
e fez tudo o mais que os sacerdotes costumavam fazer naquele sacrifí-
cio, e quando consagrou o fez de toda a devoção sem embargo de saber
que elle o não podia fazer30.

Disse ter rezado missas nas capelas nos meios dos matos até chegar à Ba-
hia. Embora seja período bem anterior às Constituições da Bahia, o rapaz
demonstrava conhecer bem os seus crimes, já que disse que lhe faltava “jurisdi-
ção que elle confidente não tinha, porquanto não era sacerdote, nem confessor
e se achava somente com as ordens menores”31.
A segurança contra os perigos numa terra de incertezas, também foi usada
como desculpa por Alexandre José de Aragão Cabral, de 33 anos, em 1797. Ele
contou que saiu de Pernambuco em direção à Bahia por estar vacante aquele
bispado. Ele pretendia entrar para o estado eclesiástico, mas disse que teve

28
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 8573, fl 41 v, respectivamente.
29
Ibid., fl. 42 v.
30
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11278, fl 30.
31
Ibid., fl 31.
[273]
muitos problemas no caminho e quase morreu afogado. Tendo ajudado numa
fuga, foi interceptado por oficiais de justiça. Só encontrou uma solução: arrumou
com um amigo carmelita “hum habito… para que vestido com elle, e dizendo ser
Religioso, pudesse obstar a prisão, por ser feita por Jurisdição competente, e na
realidade vestindo o sobredito habito na ocasião em que foi cercado pelos sobre-
ditos oficiais de Justiça, os fez vacilar na execução da deligencia”32. A partir daí,
para sustentar a suposta mentira disse que se viu obrigado a celebrar três missas,
cujo objetivo era, segundo ele, convencer os oficiais que queriam lhe prender de
que era um sacerdote, mas eles ainda achavam “que ele entendia mais de negó-
cios de cavalo do que de celebrar missas”33.
A carência de clérigos, assunto já discutido pela historiografia, também
apareceu como o motivo para alguns se “fingirem” de sacerdotes e, especial-
mente, poderem confessar. Foi o que alegou o diácono frei Francisco da
Conceição. Como estava em uma das “Aldeas da Missão do Carmo chamada Tapê
nos Certõens do Bispado do Pará, junto a margem do Rio Solimões” e não tinha
outro presbítero nas proximidades, disse que “ouviu de confissão o religioso (Frei
Manoel de Santo Elias Lobão) e o absolveu sacramentalmente”. Fez isso por mais
duas vezes. Só alguns dias depois que “se dezenganou do mal que tinha obrado,
conhecendo que o poder da absolvição se recebe com a ordem de Presbitero e
que sem esta não podia ouvir confissão”34.
Além do perfil desses desviantes e das razões que alegavam para justificar
suas transgressões é importante também analisar as penas aplicadas pela Inqui-
sição e os impactos que poderiam ter nos planos de manter uma vida em estado
eclesiástico. Antonio Vasconcelos teve como sentença a abjuração de leve, ina-
bilitação da promoção nas ordens sacerdotais, degredo para as galés por seis
anos, açoite público e penitencias espirituais. Foi-lhe comutado o degredo das
galés para o reino do Algarve35. João Pinto Coelho foi sentenciado a abjuração de
leve, inabilitação da promoção para qualquer ordem, degredo para as galés por
oito anos, açoite público, instrução na fé católica e penitencias espirituais36. Fe-
liciano Pinheiro teve que fazer abjuração de leve, instrução na fé católica e
penitencias espirituais37.

32
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12949, fl. 60.
33
Ibid., fl 61 v e fl 62.
34
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11724, fl. 28 v, respectivamente.
35
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11278.
36
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 8573.
37
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 8169.
[274]
ABUSO DO SACRAMENTO DA ORDEM: OS ‘FALSOS’ PADRES NA AMÉRICA PORTUGUESA
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz

João Rodrigues de Morais, por sua vez, foi condenado a abjuração de leve,
suspenso para sempre do exercício de suas ordens, açoite público, degredo para
as galés por seis anos e penitência espirituais38. Francisco da Conceição foi con-
denado a abjuração de leve suspeita na fé, instrução na fé católica, penas e
penitências espirituais39. Finalmente, Alexandre José de Aragão Cabral teve ab-
juração de leve suspeito na fé, foi inabilitado para sempre de receber ordens
eclesiásticas, degredo de seis anos para as galés, instrução na fé católica, penas e
penitências espirituais.40 As penas demonstram, entre outras coisas, que o maior
interesse desses homens que se fingiram de padres foi-lhes negado: não pode-
riam receber ordens. Além disso, degredo, açoite e instrução espiritual foi
comum a todos os sentenciados. Não foram casos para uso do tormento ou de
penas mais severas que a Inquisição determinava para outras heresias, como re-
laxar os condenados ao braço secular, por exemplo.

Considerações finais
Os motivos que levavam os indivíduos a ingressarem na carreira eclesiás-
tica eram muitos. Não há dúvidas. Em Portugal, aponta José Pedro Paiva, não se
pode excluir que muitos ingressassem no estado eclesiástico “no contexto de es-
tratégias pessoais ou familiares de ascensão social”, já que o estado sacerdotal
representava naquele momento um mecanismo privilegiado de promoção social,
no caso dos setores intermediários da sociedade, e de confirmação de poder e
prestígio, para os setores mais abastados41. Se assim o era no Reino, nas colônias,
terras de conquista, espaço de vicissitudes e incertezas, havia motivos, inclusive,
para que se fingissem de padre, como aqui demonstrado.
Antonio Moreira Camelo já afirmava no século XVII que era “veneno,
quase irremediável; contagiosa e mortífera peste, a dissolução, erros, e mao
exemplo do superior”. Padres transgressores deveriam ser punidos pelos exces-
sos, já que “o Parocho ignorante, ou vicioso, e depravado he laço, ruína, e pello
conseguinte, gravíssimo castigo a fregueses maos. Parocho descuidado, não me-
nor castigo”42 . O que diria ele sobre os que eram falsos padres? É certo, pelos

38
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 423.
39
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 11724.
40
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12949.
41
José Pedro Paiva, “Os mentores”, in História Religiosa de Portugal, Carlos Moreira Azevedo,
dir., vol. 2, (Lisboa: Círculo de Leitores, 2000), 212.
42
Antonio Moreira Camelo, Parocho perfeito Deduzido do Texto Sancto, e Sagrados Doutores
para a pratica de reger e curar almas (Lisboa: João da Costa, 1675), Prelúdio.
[275]
exemplos aqui apresentados, que a Inquisição não deixou de punir aqueles que
se fingiram de sacerdotes, mas a gradação das penas variou.
O que há de comum nesses processos, além da juventude desses imposto-
res, é a grande capacidade deles de se movimentarem no território dos sertões
da América Portuguesa. Isso é sintomático porque demonstra que sertões aden-
tro, eram sempre recebidos por pessoas que careciam de sacramentos e não
questionavam se esses homens, muitas vezes sem terem idade mínima para o
grau de presbítero, eram na realidade sacerdotes. Estavam sempre de passagem.
Não eram conhecidos dos fiéis. Eram povoações sempre a espera de alguém para
lhes administrar os sacramentos, o que não os fez desconfiar desses impostores.
Se os falsos padres eram assim recebidos, temos ideia de como acontecia com os
“padres verdadeiros”.
Esses falsos presbíteros rezaram missas e confessaram pessoas que se quei-
xaram de não verem sacerdotes com frequência. Isso é um retrato das
dificuldades de fazer funcionar uma malha paroquial eficiente, especialmente na
primeira metade do século em que se concentra o maior número de casos. Além
das vacâncias que marcaram os bispados e que apareceram nas falas desses per-
sonagens, os grandes territórios a desbravar e a falta de clérigos suficientes para
atender a crescente população facilitou que esse comportamento desviante
acontecesse. Seja pela segurança que alguns disseram sentir ao trajar a batina,
seja pela facilidade de serem atendidos em suas necessidades durante as viagens
ou mesmo pelo respeito que disseram usufruir mesmo sendo sacerdotes fingi-
dos, esses casos confirmam que o clero com todos os seus limites era ainda um
corpo privilegiado naquela sociedade. Ser padre podia ser muito vantajoso. Até
para os que não eram.

[276]
Das partes da Índia aos Estaus: escravos e forros
asiáticos processados pela Inquisição de Lisboa
(séculos XVI e XVII)
Patricia Souza de Faria

O objetivo deste capítulo é analisar um grupo de réus formado por escravos


e forros nascidos na Ásia, levados para Portugal e processados pelo Tribunal da In-
quisição de Lisboa nos séculos XVI e XVII. A presença de mulheres e de homens
escravizados de origem asiática em Lisboa explica-se, sobretudo, pelas viagens ma-
rítimas regulares que ligavam Portugal e a Ásia. Nas naus da Carreira da Índia,
capitães, marinheiros, eclesiásticos e funcionários coloniais que regressavam ao
reino de Portugal transportavam cativos provenientes de diferentes sociedades do
Índico1. Ao chegarem à cidade de Lisboa, tais cativos poderiam continuar como es-
cravos dos mesmos senhores, serem revendidos a novos proprietários ou serem
alforriados. Uma parcela de tais cativos de origem asiática tornou-se alvo do tribu-
nal do Santo Ofício de Lisboa.
A historiografia desenvolveu expressivos estudos sobre a Inquisição portu-
guesa e a perseguição de populações escravizadas2. A ênfase de tais estudos incidiu

1
Sobre o transporte de asiáticos escravizados para Portugal, consultar: C. M. Saunders, História
social dos escravos e libertos negros em Portugal:1441-1555 (Lisboa: Imprensa Nacional: Casa da
Moeda, 1994); Marco Oliveira Borges, “Escravos na torna-viagem da Carreira da Índia (1504-1610):
da permissão limitada ao transporte descontrolado e à difusão pelo Atlântico”, Global Journal of
Human-Social Science (D): History, Archaeology & Anthropology 20, 1 (2020): 21-36; Filipa Ribeiro
da Silva, “O Tráfico de Escravos para o Portugal Setecentista: Uma visão a partir do “Despacho dos
Negros da Índia, de Cacheo e de Angola” na Casa da Índia de Lisboa”, Sæculum – Revista De His-
tória 29 (2013): 47-73.
2
Entre as produções, citam-se: Didier Lahon, “Les archives de l’Inquisition Portugaise. Sources
pour une approche anthropologique et historique de la condition des esclaves”, Revista Portu-
guesa de Ciência das Religiões 5, n.º 6 (2014): 29-45; Daniela Calainho, Metrópole das mandingas:
religiosidade negra e Inquisição portuguesa no Antigo Regime (Rio de Janeiro: Garamond, 2008);
sobre os escravizados de origem africana, que formavam a maioria da população
cativa no reino português. Este estudo concentra-se em casos de homens e mulhe-
res escravizados oriundos de regiões da Ásia e que foram levadas para Lisboa e seus
arredores. Tais populações levadas da Ásia para Portugal foram geralmente descri-
tas na documentação produzida pelo Tribunal da Inquisição de Lisboa como
“índios”, isto é, como pessoas provenientes “das partes da Índia”, expressão que de-
signava a procedência associada a uma região muito mais ampla que a Índia atual,
por se referir a populações de diferentes origens, trazidas do subcontinente indi-
ano, do Ceilão, de Malaca, Java, Pegu, China, Japão. A expressão também era
utilizada para se referir a populações provenientes da África Oriental, na medida
em algumas regiões da África voltadas para o Índico – como era o caso de Moçam-
bique – integravam o “Estado da Índia”3.
Esta investigação incide sobre um conjunto formado por 41 casos referentes
a réus de origem asiática que foram processados pelo Tribunal do Santo Ofício de
Lisboa nos séculos XVI e XVII. Nestes 41 casos não foram incluídos os escravos pro-
venientes de Moçambique, ainda que eles tenham sido classificados como “índios”
nas fontes documentais, pois a amostra se concentrou em réus oriundos do sub-
continente indiano, do Ceilão, do Sudeste Asiático e do Extremo Oriente, de modo
que, com essa delimitação, foram localizados processos datados entre 1552 e 1654.
As fontes analisadas encontram-se no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, no
fundo Tribunal do Santo Ofício e correspondem aos processos (completos ou par-
ciais), confissões e sentenças da Inquisição de Lisboa.
Inicialmente, pretende-se apresentar neste capítulo, de forma sintética, al-
guns estudos que trataram de escravos de origem asiática em Lisboa nos séculos
XVI e XVII. A segunda parte do capítulo trata da amostra de 41 casos de asiáticos
(escravizados e forros) sentenciados pela Inquisição de Lisboa. Com base na amos-
tra, o propósito é apresentar um perfil aproximado desse grupo humano e que
delitos lhe foram imputados pelos inquisidores de Lisboa.

James H. Sweet, Recriar África: cultura, parentesco e religião no mundo afro-português.1441-1770


(Lisboa: Edições 70, 2007); Jorge Fonseca, Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista (Lisboa:
Colibri, 2010); Arlindo Manuel Caldeira, Escravos em Portugal: das origens ao século XIX (Lisboa:
A esfera dos livros, 2017).
3
Em relação ao “Estado da Índia”, trata-se de expressão usada para se referir ao conjunto de con-
quistas, feitorias, fortalezas administradas pelos portugueses desde a costa oriental africana até
Macau. Luís Filipe Thomaz, De Ceuta a Timor (Lisboa: Difel, 1998).
[278]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
Patricia Souza de Faria

A presença de asiáticos escravizados em Lisboa: alguns estudos


De modo geral, a presença de escravos asiáticos em Lisboa é mencionada
em algumas pesquisas que abordam a população escrava local4, sem que os de
procedência asiática tenham recebido algum estudo específico relativo aos sé-
culos XVI e XVII.
Jorge Fonseca, autor de detalhados estudos empíricos sobre os escravos em
Portugal, apresentou, em “Escravos e senhores na Lisboa Quinhentista”, exemplos
de escravos de origem asiática no bojo das análises sobre a população escrava em
geral, ao contemplar temas como as suas formas de ingresso em Portugal, as ativi-
dades laborais desempenhadas, as relações afetivas, as formas de resistência e a
conquista da alforria. Explicou que nem sempre identificou detalhes que permitis-
sem assegurar a origem dos escravos. Todavia, ao perscrutar um conjunto de fontes
notariais, paroquiais, municipais, entre outras, conseguiu identificar a procedência
de 707 escravos na Lisboa quinhentistas, dos quais 72,13% foram trazidos da África
subsaariana; 22,63% da Ásia e 5,23% do norte da África ou da Península Ibérica5.
Em uma seção do livro dedicada à condição social dos escravos, Fonseca tra-
tou das relações entre o Santo Ofício e os escravos. Concluiu que, dos 4.282
processos movidos pela Inquisição de Lisboa no século XVI, 364 deles (8,5%) foram
contra escravos, libertos e seus descendentes, dos quais, 273 viviam em Lisboa. Do
conjunto de processos consultados pelo autor, a maioria das acusações consistia
em retroceder ao islamismo6.
Em alguns estudos que abordaram a ação do Tribunal do Santo Ofício contra
populações mouriscas também são encontradas referências a processos movidos
contra escravos asiáticos. Mourisco foi o termo empregado em Portugal aos muçul-
manos convertidos independente de sua origem. Até o início do século XVI, os
escravos mouriscos foram os cativos mais numerosos em Portugal e, no contexto
da expansão ultramarina, tais mouriscos eram provenientes de diferentes regiões.
Segundo Arlindo Caldeira, tais escravos mouriscos foram “trazidos da Índia ou da

4
A presença de escravos de origem asiática em Lisboa é indicada por: Alessandro Stella, His-
toire d’esclaves dans la Péninsule Ibérique (Paris: Éditions EHESS, 2000); Vitorino Magalhães
Godinho, Descobrimentos e a economia mundial, 2.ª ed., v. 2 (Lisboa: Arcádia, 1965). Acerca de
período posterior: Didier Lahon, “O escravo africano na vida econômica e social Portuguesa
do Antigo Regime”, Africana Studia 7 (2004): 73-100; Silva, “O Tráfico de Escravos para o
Portugal Setecentista”, 47-73.
5
Fonseca, Escravos e Senhores na Lisboa Quinhentista, 104.
6
Ibid., 377-378.
[279]
África negra. Outros chegaram da Espanha ou do Império Otomano. Mas vieram,
principalmente, do Norte da África e, em particular, de Marrocos”7.
Os mouriscos de origem marroquina foram objeto de estudo de Ahmed Bou-
charb em sua tese de doutorado, cujos resultados foram posteriormente publicados
no livro “Os pseudo-mouriscos de Portugal no século XVI”. Boucharb investigou o
que denominou de “problema mourisco em Portugal”. Considerou que, enquanto
na Espanha essa comunidade descendia dos mouros instalados no território, em
Portugal a origem dessas pessoas era sobretudo estrangeira, especialmente do Mar-
rocos. Em seu livro, Boucharb apresentou uma relação de processos inquisitoriais
quinhentistas cujos réus foram “indianos muçulmanos”, conquanto ele não tenha
dado ênfase aos asiáticos, visto que o seu objetivo foi investigar os mouriscos de
procedência marroquina8.
Com base em vultosa pesquisa documental, Rogério Ribas desenvolveu em
tese de doutorado defendida em 1994, publicada recentemente, uma investigação
sobre a comunidade mourisca portuguesa quinhentista e, contrapondo interpreta-
ções anteriores, buscou demonstrar que tais mouriscos mantiveram crenças e
práticas “cripto-islâmicas”, a despeito da diáspora e de suas consequências9. Em seu
trabalho de reconstrução dessa população mourisca, captou a diversidade de ori-
gens que a caracterizou e, no que interessa particularmente a este capítulo,
apresentou dados quantitativos relativos aos mouriscos de origem asiática, de
modo que localizou 33 processos de “mouriscos da Índia” (incluindo os provenien-
tes da Pérsia e de Jerusalém) processados no século XVI pelos tribunais
inquisitoriais de Lisboa, Évora e Coimbra10. Além disso, inseriu tais “mouriscos da
Índia” na vida cotidiana da comunidade mourisca portuguesa, em contextos como
os de planos de fuga para terras de muçulmanos em grupo (com participação de
mouriscos africanos, indianos e turcos) ou em performances de rituais muçulma-
nos11.
Em obra que apresenta uma síntese atualizada sobre os escravos em Portugal,
o especialista em história do tráfico e da escravidão Arlindo Manuel Caldeira

7
Caldeira, Escravos em Portugal, 31-32.
8
Ahmed Boucharb, Os pseudo-mouriscos de Portugal no século XVI (Lisboa: Hugin, 2004), 222-223.
9
Rogério Ribas, Filhos de Mafoma: Mouriscos, cripto-islamismo e Inquisição no Portugal Quinhen-
tista (Niterói: EDUFF, 2021), 23, 350-351.
10
Ribas, Filhos de Mafoma, 94.
11
Um dos interessantes exemplos fornecidos por Rogério Ribas é o caso de Baltazar, mourisco da
Índia, escravo de um fidalgo da Casa Real, que em suas orações fazia abluções, que os muçulmanos
chamavam de algodoch. Ribas, Filhos de Mafoma, 205.
[280]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
Patricia Souza de Faria

dedicou seções de seu livro à questão dos escravos de origem asiática. Situou o lei-
tor a respeito da diversidade de origens dos escravizados levados para Portugal, de
modo a contemplar os escravos “japões”, “chinas”, “índios”, além de apresentar aná-
lise de casos com base em documentação inquisitorial12.

Réus e delitos: o perfil de asiáticos escravizados e forros sentenciados pela Inquisi-


ção de Lisboa
No conjunto de 41 casos relativos a escravos e forros de origem asiática pro-
cessados pela Inquisição de Lisboa, que compõem a amostra analisada,
predominam réus do sexo masculino, 38 casos, ou seja, 92,6% do total. O principal
delito atribuído aos escravos e forros de origem asiática foi o de culpas de isla-
mismo, que correspondem a 78% dos casos (Quadro 1).

Quadro 1. Delitos atribuídos a escravos e forros de origem asiática pela


Inquisição de Goa (1552-1654)

Em relação ao perfil de gênero, as três mulheres de origem asiática processa-


das pela Inquisição de Goa no período analisado foram Catarina de Aguiar, Valéria
de Figueiredo e Vitória Dias, acusadas de delitos distintos.
O caso mais antigo é o do Catarina de Aguiar, descrita na documentação
como “índia” mourisca, que aos nove dias de fevereiro de 1556 confessou aos inqui-
sidores os diálogos e acordos com outros mouriscos, que planejavam fugir para de
terras de mouros. Catarina de Aguiar, que foi objeto de um estudo de nossa auto-
ria13, nasceu na Índia, filha de pais gentios, foi batizada e crismada na Índia. Levada
para Lisboa, vivia na freguesia de Santa Justa como escrava doméstica de Cristóvão
Fernandes. Com cerca de trinta anos de idade envolveu-se em um plano de fuga

12
Caldeira, Escravos em Portugal, 47-65.
13
Patricia Souza Faria, “Do Índico ao Coração do Império: Cotidiano e Religiosidades de Escravos”,
in Difusão da fé por entre povos e lugares: instituições, religião e religiosidades no Império Portu-
guês (Séculos XVI-XIX), org. Grayce Bonfim, Maria de Deus Beites Manso (Vitória da Conquista,
BA: Edições UESB, 2020), 167-196.
[281]
para terra de mouros, em razão do qual homens e mulheres mouriscos, escravos e
forros, tornaram-se alvo dos inquisidores. Catarina de Aguiar, por sua vez, negou a
intenção de partir para terra de mouros e procurou se desvencilhar de qualquer
associação com as tradições e crenças muçulmanas. Os inquisidores determinaram
que Cristóvão Fernandes, o senhor de Catarina de Aguiar, pagasse fiança de cem
cruzados à Inquisição, para que ela fosse solta dos cárceres do Santo Ofício14.
O segundo caso de escrava asiática sentenciada pela Inquisição de Lisboa é o
de Valéria de Figueiredo, estudada por Arlindo Caldeira15. Valéria de Figueiredo era
originária do Sudeste Asiático, possivelmente da região denominada de Pegu pelos
portugueses, onde fora furtada e estivera em posse de um gentio malaio. Vivera por
aproximadamente um ano em Malaca, como escrava de um amo galego, depois foi
levada para Cochim e de lá enviada para Lisboa, onde vivia há cerca de doze anos
quando foi processada pela Inquisição de Lisboa por culpas de bigamia, em 1592,
aos 40 anos de idade16.
Em 27 de outubro de 1592, Valéria de Figueiredo apareceu diante dos inqui-
sidores “sem ser chamada”, ocasião em que mencionou que era escrava de Antônio
de Figueiredo e de dona Mécia de Noronha. Quando chegou em Lisboa, em torno
do ano 1580, Valéria de Figueiredo casou-se com “um moço de casta china” cha-
mado Simão, escravo de Antônio Moniz Barreto – governador do Estado da Índia
– que o levara para a Ásia17. A escrava conseguiu reunir duas mulheres nascidas nas
partes da Índia, que testemunharam que Valéria de Figueiredo nunca havia contra-
ído o matrimônio, o que lhe garantiu a autorização para se casar com Antônio,
também nascido na Ásia – que havia sido escravo de Tristão Vaz da Veiga e no
presente era cativo de uma mulher que vivia na freguesia de Santana18. O nome
“Margarida de Figueiredo” é o que consta no registro de casamento com Antônio,
ou seja, o seu nome foi alterado, algo que foi posteriormente questionado pelos

14
O instrumento de fiança foi elaborado em 29 de fevereiro de 1556. Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc.
3556, fls. 11-11v.
15
Caldeira, Escravos em Portugal, 64-65.
16
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13230. Sobre a jurisdição dos tribunais para julgar o delito de biga-
mia, consultar: Bruno Feitler, “Poder episcopal e ação inquisitorial no Brasil”, in A Inquisição em
xeque: temas, controvérsias, estudos de caso, org. Ronaldo Vainfas, Bruno Feitler, Lana Lage (org.),
(Rio de Janeiro: EDUER, 2006), 36; Gustavo César Machado Cabral, Ana Luiza F. Gomes Silva,
Victor Alves Magalhães, “Inquisição e jurisdição: o conflito sobre o crime de bigamia”, REJUR -
Revista Jurídica da UFERSA 3, n.º 5 (2019): 96; Isabel M. R. Drumond Braga, A bigamia em Portugal
na época moderna. Sentir mal do sacramento do matrimónio? (Lisboa: Hugin, 2003), 35.
17
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13230, fl. 7v.
18
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13230, fls. 7-7v.
[282]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
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inquisidores19. Contudo, o primeiro marido de Valéria de Figueiredo ainda estava


vivo, de modo que a sua sentença foi de abjuração de levi suspeita na fé na Mesa do
Santo Ofício, por sentir mal do sacramento do matrimônio, além de pena de açoites
no cárcere e de ser obrigada a voltar a ter vida marital com o seu primeiro marido20.
O terceiro caso refere-se à Vitória Dias, que nasceu na China, foi capturada
quando menina, batizada no Japão, levada para Cochim, Goa e depois para Lisboa,
onde foi presa pela Inquisição em 1606 por denúncias de judaísmo21. O caso de Vi-
tória Dias foi abordado em estudos que tratam da perseguição inquisitorial a redes
mercantis formadas por cristãos-novos, o que levou a ação do Santo Ofício contra
a escrava de um importante agente de tais redes, Henrique Dias Milão, a quem
Vitória Dias serviu por muitos anos22. As denúncias contra Vitória Dias consistiam
em participar de rituais de natureza judaica, sobretudo os jejuns, que eram prati-
cados na residência da família Milão. Como Vitória Dias era cozinheira da
supracitada família, muitas das perguntas feitas pelos inquisidores à chinesa ti-
nham relação com os hábitos alimentares da família, a fim de procurar indícios de
dieta associada aos judaizantes23.
Vitória Dias negou aos inquisidores ter visto ou praticado cerimônias judai-
cas, contudo, em oito de maio de 1607 confessou e disse ter se arrependido de suas
culpas. Mencionou rituais relacionadas à Páscoa que estavam de acordo com “a lei
de Moisés”, além de mencionar que a sua senhora (Guiomar Gomes) lhe ensinara
as crenças judaicas e de se referir a algumas minúcias relacionadas aos rituais pra-
ticados pela família Milão24. Vitória Dias foi absolvida da excomunhão maior, pois
se confessou, pediu perdão e demonstrou arrependimento, sendo reconciliada com

19
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13230, fl. 5.
20
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13230, fls. 14-14v. A sentença foi publicada em 25 de fevereiro de 1594.
21
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 3331.
22
Algumas referências a Vitória Dias em: Silvia Carvalho Ricardo, Expoentes mercantis e dinâmica de
negócios: a família Dias Milão (1580-1624) (Tese de doutorado em História Econômica, Universidade
de São Paulo, 2014), 110, 114. Mais informações encontram-se em obra de Lúcio de Sousa que, além de
Vitória Dias, compilou abundantes exemplos de outros asiáticos escravizados e de sua circulação por
regiões de influência ibérica. The Portuguese Slave Trade in Early Modern Japan (Leiden: Brill, 2019),
303-312. Uma apresentação sobre a escrava e o seu processo encontra-se em: Caldeira, Escravos em
Portugal, 54-58. Ver também: Patricia Souza de Faria, “Gabriel e Vitória Dias: fragmentos de vida de
escravos do Oriente Português processados pela Inquisição (séculos XVI e XVII)”, in A Inquisição Re-
visitada, org. Lina Gorenstein et al (Rio de Janeiro: Jaguatirica, 2015), 190-198.
23
Faria, “Gabriel e Vitória Dias”, 190-198.
24
“[…] jejuou o dia grande, guardando o dito dia como de festa com toucados lavados, e melhores
vestidos, e jejuava em segundas e quintas feiras e guardava os sábados de trabalho vestindo nelles
camisas lavadas, e guardava a paschoa do pão asmo comendo nella bollos asmos”. Lisboa, ANTT,
TSO, IL, proc. 3331, fl. 68v.
[283]
a Igreja, com sentença – proferida em 1609 – de abjuração em auto-de-fé, cárcere
e hábito penitencial a arbítrio dos inquisidores e penas espirituais25.
Em suma, os casos de asiáticas escravizadas sentenciadas pela Inquisição de
Lisboa correspondem a cerca de 7% do conjunto analisado (três casos em um uni-
verso de 41). Os três casos de asiáticas escravizadas são distintos tanto no que
concerne à tipologia do delito quanto nas redes de relações sociais tecidas em Lis-
boa pelas sentenciadas. Das três, Valéria de Figueiredo parece ter sido a que mais
manteve vínculos com outras pessoas de origem asiática em Lisboa, seja por ter se
casado com homens asiáticos (Simão e Antônio), seja por ter conseguido reunir
testemunhas (duas mulheres asiáticas) que confirmaram a versão dela de que era
solteira. Catarina de Aguiar era percebida como mulher “índia” pelos vários envol-
vidos na planejada fuga para terra de mouros, enquanto a sua rede de relações era
formada por escravos e forros mouriscos, sobretudo do norte da África, alguns de
convívio mais íntimo (como os mouriscos forros João Fernandes e Cosme Gonçal-
ves, este jalofo de nação) 26. O caso de Catarina de Aguiar remete aos planos de fuga
em grupo para terra de mouros, que envolviam mouriscos africanos, turcos e indi-
anos, que foram estudados de forma alentada por Rogério Ribas27. Em menor
número, até em função da baixa expressão numérica deles em Lisboa, participavam
também dessas fugas os “jaos” (“java”), expressão que sugere uma procedência im-
precisa associada ao Sudeste Asiático28.
O processo de Vitória Dias é o que menos revela ligações da chinesa com
pessoas de origem asiática na cidade de Lisboa, visto que os vínculos da ex-escrava
com a família Milão, ou seja, com cristãos-novos portugueses, parecem ter sido os
mais significativos dela, mesmo após a conquista da alforria. Com efeito, Vitória
Dias acompanhou a família Milão em uma tentativa de fuga em 1606, quando foram
presos. Depois da sentença de 1609 e de ter sido solta pelos inquisidores, a chinesa
acompanhou membros da mencionada família em fuga para Antuérpia, em 1610,
quando foi novamente presa pela Inquisição. Dois meses depois foi solta, mas com
proibição de sair de Portugal, no entanto, em 1611 partiu com Guiomar Gomes e

25
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 3331, fl. 69.
26
Faria, “Do Índico ao coração do império”, 184.
27
Ribas, Filhos de Mafoma, passim. Arlindo Caldeira também produziu a análise de um caso rela-
tivo a um plano de fuga de indianos e mouriscos (de possível origem africana). Caldeira, Escravos
em Portugal, 268-272.
28
Faria, “Do Índico ao coração do império”, 175-177.
[284]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
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outros membros da família Milão para Flandres, além de posteriormente prosse-


guir com eles para Hamburgo29.
O delito de judaísmo e de bigamia só foi identificado entre réus do sexo fe-
minino na amostra investigada. Em relação aos homens de origem asiática
processados pela Inquisição de Lisboa, há um caso referente à blasfêmia, de Sebas-
tião, escravo de Antônio Ferreira, dourador d’el rei. Nascido na Índia, batizado em
Cochim com doze ou treze anos de idade, Sebastião alegou que teria dito algumas
palavras (blasfemas) por estar irado com o senhor dele, as quais teria dito para que
o "tirassem de casa de seu senhor". O documento, formado por poucos fólios, não
tem sentença, pois aparentemente Sebastião foi reconciliado com a Igreja, após ter
confessado aos inquisidores, em julho de 1576, prometido segredo e pedido perdão
por suas culpas30.
Em relação aos delitos ligados à sexualidade, três foram acusados de sodomia
(7% da amostra), além de dois réus sentenciados por culpas de bestialidade (quase
5% dos casos analisados), que somados correspondem a 12% dos asiáticos do con-
junto investigado31. Um dos acusados por bestialidade foi Aleixo, “índio” cativo de
Francisco Pedrosa (tesoureiro da infanta Dona Maria), que em 1563 foi confessar
aos inquisidores que teria ido à estrabaria, onde teve ajuntamento carnal com uma
mula32. O documento relativo a Aleixo consiste na sua confissão, formada por qua-
tro fólios em que não há detalhes sobre a origem de Aleixo, apenas menciona que
se trata de um “índio”, isto é, de um homem trazido das partes da Índia33.
Outro sentenciado por bestialidade foi Francisco, em cuja confissão há su-
cintas informações sobre a sua origem. Descrito como “índio mourisco”, Francisco
disse que havia sido muçulmano, mas que fora batizado na fé católica na Índia, em
Baçaim, porém, ainda não havia sido crismado34. Em Portugal, Francisco vivia
como cativo de Martim Coelho (morador na rua das Mudas), em Lisboa. Em oito
de fevereiro de 1560, Francisco confessou as suas culpas aos inquisidores, ocasião
em que disse que tivera ajuntamento carnal com animais, antes de ser levado da
Ásia para Portugal. A associação entre bestialidade e costumes adotados na Índia

29
Florbela Veiga Frade, “O ilustre humanista Fernão Lopes Milão e as tentativas de fuga da sua
família para Hamburgo”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 10, n.º 1 (2010): 215-217.
30
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 12916.
31
A bestialidade foi retirada do Regimento do Santo Ofício de 1613. Feitler, “Poder episcopal e ação
inquisitorial no Brasil”, 36.
32
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13014, fls. 2-2v.
33
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 13014, fls. 2-2v.
34
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2241, fls. 5-5v.
[285]
(em particular, pelos “mouros da Índia”) foi repetida em algumas partes do docu-
mento inquisitorial. Com efeito, há relatos em que se menciona que “assim o
costumava em sua terra” ou que “havia fama que o dito índio era acostumado a
estas bestialidades” 35. Francisco, “índio cativo”, alegou aos inquisidores que “os
mouros da Índia algumas vezes tinham parte com alimárias”, de modo que ele tam-
bém fizera o mesmo em terras asiáticas. Todavia, Francisco disse que também
tivera ajuntamento com uma burra quando já estava a viver em Portugal. Com “co-
missão ordinária e real”, os inquisidores condenaram Francisco, “índio cativo
mourisco de nação”, a dez anos de degredo em galés, por cometer o “abominável e
nefando pecado da bestialidade”, conhecendo “carnalmente uma alimária” nos ar-
redores de Lisboa36.
No tocante aos acusados de sodomia, é interessante destacar que a “natureza”
de ser “índio”, associada à ideia de ser “rude” e “ignorante”, foi um dos argumentos
da defesa de Manuel37, que foi entregue ao Santo Ofício em 1610. Três homens, que
passavam por baixo dos arcos do Rossio à noite, ouviram vozes de um “moço” e de
um “cabra”, que pareciam estar em vias de praticar o pecado nefando. Um deles
tentou fugir com os “calções na mão desatados”, mas ambos foram pegos e levados
para o Santo Ofício38. Três denunciantes relataram aos inquisidores o episódio no-
turno, em que um “cabra” de 25 anos de idade forçava um “moço” a praticar a
sodomia, que por sua vez gritava que não era mulher.
O moço era Domingos, natural de Torres Vedras, que estava na casa do clé-
rigo de missa Manuel Gil de Andrade, que confirmou a versão dos três
denunciantes, de que estava sendo forçado por um homem a ter relações sexuais
com ele. Ao passo que o cabra era Manuel, natural do Ceilão, escravo de Luís Álva-
res, ferrador e familiar do Santo Ofício. Na primeira sessão, “por não dizer cousas
que se entendesse”, os inquisidores pararam de fazer perguntas a Manuel. A defesa
de Manuel argumentou que o réu era “índio”, ignorante, rude e ouvia muito mal,
além de ter pensado que Domingos fosse uma mulher, pois aquele local do Rossio
era frequentado por “mulheres de vida ruim”. À noite, sem supostamente ter en-
xergado que se tratava de um homem, ofereceu dinheiro à pessoa que esta próximo
de si, que acreditava ser uma meretriz. O fato é que os três denunciantes não ates-
taram que tivessem visto Miguel e Domingos (que tinha apenas doze anos de

35
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2241, 2v.
36
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2241, fls. 8-8v. A sentença foi publicada em 20 de abril de 1560.
37
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 315.
38
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 315, fls. 1-1v
[286]
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idade) a praticar a sodomia, já que teriam fugido quando os três homens se aproxi-
maram deles. Em 28 de março de 1611, Manuel foi admoestado, mandado soltar dos
cárceres e entregue ao seu senhor, Luís Álvares39.
Ao passo que contra Inácio Tostado foram reunidos depoimentos que refor-
çavam a versão de que era sodomita, com denúncias sobre o que causara ao jovem
João, que saiu chorando e ferido depois de ter sido forçado por Inácio Tostado a
praticar o pecado nefando próximo às escadas do Carmo. João chegou a ser exami-
nado pelo barbeiro Valentim Ferreira, cirurgião do Santo Ofício. Inácio Tostado
confessou essas e outras culpas, mas por demonstrar arrependimento e por ser me-
nor (19 anos), os inquisidores deixaram de aplicar o “rigoroso castigo que merecia”,
devendo o réu ir a auto-de-fé, ser açoitado publicamente nas ruas, ser degredado
para as galés por seis anos, além de penas e penitências espirituais. Sua sentença
foi publicada em 20 de maio de 163540.
Conquanto a preocupação dos inquisidores fosse o delito cometido, as inqui-
rições realizadas permitiram registrar informações sobre quem foi o escravo Inácio
Tostado, que se descreveu como um cristão-velho, isto é, nascido em uma família
já cristã, o que era um diferencial entre vários cativos trazidos da Ásia, geralmente
filhos de pais gentios ou muçulmanos e alguns deles batizados já adultos. Inácio
Tostado nasceu em Onor, na Índia, sua mãe era uma “índia e christã” chamada
Joana Tostada, porém, não conheceu o pai, apenas sabia que “era índio christão”,
nem os avós, conquanto soubesse que eram todos da Índia. O seu irmão Domingos
falecera em tenra idade, já a sua meia-irmã, Maria Pereira, vivia com ele na casa de
seu amo, José M. Tostado, em Lisboa.
Informações genealógicas similares as de Inácio Tostado são disponíveis no
processo da Inquisição de Lisboa contra João Dias por culpas de sodomia. João Dias
nasceu em Chaul, na Índia, porém, não se recordava dos nomes dos pais e dos avós,
só sabiam que eram gentios do reino de Cambaia. Tinha irmãos “que eram muito
pequenos quando os conheceu”. Foi batizado aos dez anos de idade e crismado em
sua terra natal. Aos 17 anos de idade, foi levado para Portugal pelo piloto da Nau
Salvação, seu senhor, que faleceu. Foi vendido ao tanoeiro Simão Vaz, a quem ser-
viu em Santarém por dezesseis anos e após a sua morte foi alforriado. Com mais de
50 anos de idade, João Dias foi “para o Brasil na armada que foi lançar os holandeses
da Bahia e daí veio com o Conde de São João a quem estava servindo de

39
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 315, fl. 34.
40
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 6497, fl. 47v.
[287]
cozinheiro”41. Quando retornou a Portugal, ele foi preso pelo Santo Ofício acusado
de ser sodomita. Em março de 1627, a sua sentença estabeleceu que sairia em auto-
da-fé, impunha o degredo para as galés por dois anos, além de penitências espiri-
tuais e pagamento de custas.
Acerca do islamismo, delito que teve maior incidência entre réus de origem
asiática processados pela Inquisição (80,4% da amostra), além do caso da escrava
Catarina de Aguiar, 32 homens foram inquiridos por suspeitas de islamismo. Na
amostra analisada neste estudo, os primeiros casos são do ano 1552. Um deles é o
processo de Domingos, mourisco “de nação índio”, cativo de Afonso Lopes, copeiro
pequeno d’el rei que, questionado pelos inquisidores do Santo Ofício de Lisboa,
confessou que falava mal da lei de cristão e bem da dos muçulmanos, que praticava
rituais muçulmanos, fazia jejuns e guardava as sextas-feiras, além de degolar ani-
mais ao modo dos muçulmanos42. O outro caso de 1552 é o índio mourisco Antônio,
cativo de mestre Gil, cirurgião-mor d’el rei, que, mesmo após o batismo, teria re-
tornado à “crença da secta de Mafamede” por lhe “parecer boa”, praticado ritos e
cerimônias muçulmanas, como o “Remedão que he o jejum dos mouros que dura
por trinta dias”. Todavia, ele não jejuava mais que uma semana “por ser cativo e
não poder com o trabalho que tinha”, mas “quando jejuava não comia todo o dia
senão à noite” como fazem os mouros. Quando jejuava, rezava as orações de
mouro, que tinham “Mafamede por homem sancto” 43.
Os processos seguintes movidos contra asiáticos escravos e forros suspeitos
de islamismo foram produzidos a partir de 1555 e tiveram maior frequência entre
os anos 1555 e 1558 e depois entre 1560 e 1565, conforme o gráfico 1. Em parte, pode-
mos considerar que a maior incidência de perseguição aos asiáticos escravos e
forros nos supracitados períodos (conforme a amostra analisada neste estudo)44
coincidiu com as conjunturas em que o ritmo repressivo da Inquisição de Lisboa
foi maior em relação aos mouriscos de um modo geral, isto é, entre 1541 e 1565, mas
com o pico em 1551 e 1565, tornando-se pouco expressiva a perseguição após essa
data, de acordo com as cifras apresentadas por Boucharb45.

41
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 2545, fls. 119-19v.
42
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 5831.
43
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 10851.
44
Cabe destacar que as frequências são baixas em números absolutos, pois no ano com maior
frequência o registro foi de sete casos (em 1564).
45
Boucharb, Os pseudo-mouriscos de Portugal no século XVI, 171-185.
[288]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
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Gráfico 1: Processos da Inquisição de Lisboa contra escravos forros acusados de is-


lamismo (1552-1654)

De acordo com Rogério Ribas, a perseguição aos suspeitos de islamismo atin-


giu o seu ápice nas décadas de 1550 e 1560, quando processou cerca de 80% dos
mouriscos penitenciados pelo Santo Ofício no século XVI. Uma das razões aponta-
das para esse número elevado de perseguições, conforme Ribas, seria o “desbarate
da criptomesquita de Lisboa”, visto que a queda do marabuto Duarte Fernandes
(em 1553) e os processos que se seguiram teriam proporcionado a elevação expres-
siva do número de réus acusados de islamismo46.
Nas conjuntura supramencionada, os processos movidos contra asiáticos (es-
cravos ou forros) acusados de islamismo estavam geralmente associados a planos
de fuga para terra de mouros, que envolviam mouriscos de diferentes procedências,
como o foi o caso citado da indiana Catarina de Aguiar47. Em alguns desses proces-
sos, réus confessaram ter praticado rituais islâmicos em regiões sob a jurisdição do
Tribunal da Inquisição de Lisboa48, ao passo que outros foram acusados da intenção
de fugir para terra de mouros e lá passariam a viver como muçulmanos. Este foi o
caso de Estevão, mourisco que nasceu na Índia, foi batizado em Goa, escravo de
Nicolau de Castro, morador em Lisboa na rua da Amizade e que foi preso pelo
Santo Ofício de Lisboa em janeiro de 1564. Estevão confessou que pela comunica-
ção com “hum mourisco errado na fée” foi induzido a ir para terra de mouros, para
46
Ribas, Filhos de Mafoma, 352.
47
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 3556.
48
A maioria dos réus asiáticos processados pela Inquisição de Lisboa por culpas de islamismo
residia em Lisboa, mas havia um morador em Setúbal, outro em Tavira e três casos de escravos
indianos que foram levados de Lisboa para Mazagão por seus respectivos senhores e de lá fugiram
para terra de muçulmanos e retornaram a suas antigas crenças. Sobre estes três casos: Patricia
Souza de Faria. “Cativos indianos nas malhas da Inquisição: mobilidades culturais entre Goa, Lis-
boa e Mazagão (século XVII)”, in Religião e linguagem nos mundos ibéricos: identidades, vínculos
sociais e instituições, org. Patricia Souza de Faria, Margareth de Almeida Gonçalves, Luciana Men-
des Gandelman (Seropédica, RJ: EDUR -Ed. da UFRRJ, 2015), 99-122.
[289]
lá se fazer mouro, “como dantes era”. Com efeito, em conversas com o escravo mou-
risco Tomé, falavam sobre como conseguir dinheiro e uma barca para fugirem. O
motivo da fuga era que o seu senhor lhe dava “muita má vida”, de sorte que vivia
“roto e maltratado” 49.
Na medida em que parte dessas fugas eram planejadas por grupos, as denún-
cias e confissões feitas em um processo levavam à perseguição de outros suspeitos,
de modo a expandir o número de presos e inquiridos pela Inquisição. Um exemplo
interessante foi o relato de Miguel, cativo de Francisco de Medeiros, que denunciou
aos inquisidores “um índio chamado Manuel que anda em um barco” de seu res-
pectivo amo, que era um pescador. Miguel contou que conversou algumas vezes
com o escravo Manuel sobre a ida para terra de mouros50. Em abril 1561, um homem
chamado Manuel, nascido na Índia, escravo de Catarina Lopes, morador em Lisboa,
foi preso pelo Santo Ofício. Manuel foi interrogado pelos inquisidores que busca-
vam os indícios da intenção deste cativo indiano em partir para terra de mouros e
realizar os rituais muçulmanos, a fim de confirmar as denúncias feitas por Miguel.
Contudo, Manuel disse não tivera intenção de ir para terra de mouros, que
nascera no reino de Bisnaga e que fora gentio até se batizar com cerca de 20 anos
de idade. Apesar de ter sido preso por suspeitas de islamismo, Manuel acabou por
confessar aos inquisidores que, na Índia, depois de batizado, acompanhou um cu-
nhado gentio em viagem, cujo propósito de Manuel era viver:
conforme os costumes dos gentios e assy como ele vivia antes que se
bautizasse e que nos ditos quatro meses que lá andou foi ao pagode51 qua-
tro ou cinco vezes e alevantava as mãos para cima e lhe faziam [veneração]
como faziam os outros gentios/ e dizia estas palavras [ulavayana/ go-
vinda/] que quer dizer senhor Deus e o adorava como seu Deus e que
também adorava o sol quando nascia e asy a lua nova da maneira que os
gentios faziam.

Manuel apresentou detalhes sobre os jejuns, as interdições alimentares dos


gentios, a segregação que viveu entre os gentios por ele ter se convertido anterior-
mente ao catolicismo, o que o tornava impuro conforme o sistema de castas: “lá os
gentios não queriam comer com elle por ele se fazer christão e o faziam comer
apartado” deles52. Depois desses relatos minuciosos sobre o retorno às práticas re-
ligiosas e sociais de gentios, o cativo (Miguel) que denunciara Manuel aos

49
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 351.
50
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 1117.
51
Pagode era usado para se referir tanto a um templo ou imagem de culto “hindu”.
52
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 1117, fl. 5v
[290]
DAS PARTES DA ÍNDIA AOS ESTAUS: ESCRAVOS E FORROS ASIÁTICOS PROCESSADOS PELA INQUISIÇÃO
Patricia Souza de Faria

inquisidores não o reconheceu como sendo o “índio” que ele havia denunciado ao
Santo Ofício por desejar fugir para terra de mouros. Assim, os inquisidores chega-
ram a Manuel por acaso, por ele ter sido preso por engano por causa de suspeitas
envolvendo outros “índios”, em culpas de islamismo. Todavia, Manuel já havia con-
fessado que vivera em terra de gentios na Índia, onde reverenciou pagodes e
realizou cerimônias de gentios. No conjunto da amostra analisada, o processo de
Manuel adquire singularidade, na medida que em suas culpas confessadas consis-
tiram no “propósito de viver como os gentios”, transgressão que não era a
originalmente buscada pelos inquisidores, mas a intenção de partir para terras de
mouros e de retornar ao islamismo, que, com efeito, foi o delito frequentemente
associado pelos inquisidores aos réus cativos e forros de origem asiática, como de-
monstramos com a amostra analisada (referente a 78% dos casos) 53.
O objetivo desse capítulo foi apresentar um panorama sobre os casos anali-
sados de escravos e forros de origem asiático processados pela Inquisição de Lisboa.
O propósito foi identificar algumas informações que permitisse desvendar um
pouco mais sobre quem foram esses homens e mulheres trazidos da Ásia, que em
função de se tratar de uma minoria que viveu em Lisboa, tendia, por um lado, a ser
reconhecida como “diferente” (isto é, “índios” das partes da Índia) do restante da
população, mesmo em relação à população escrava local (predominantemente de
origem africana) 54. Por outro lado, a baixa expressão demográfica dos escravos e
forros asiáticos em Lisboa fazia com que se enredassem na dinâmica da cidade e de
seus vários grupos sociais e étnicos, partilhando com esses outros grupos uma série
de experiências ligadas à sobrevivência, às religiosidades e, junto com cativos de
outras procedências, participavam de planos de fuga e buscavam o abrandamento
da condição escrava.

53
Na amostra formada pelos 41 casos analisados, apenas o de Manuel consiste em propósito de
viver como os gentios. Na base do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, o delito está cadastrado
como “judaísmo”, mas não se trata desta tipologia. Acerca de sua sentença, Manuel incorreu em
excomunhão maior, porém, como confessou as culpas e pediu perdão foi reconciliado com a
Igreja, deveria abjurar de seus erros, ser instruída na doutrina católica e não poderia sair de
Portugal sem licença.
54
Grosso modo, em meados do século XVI, Lisboa possuía cerca de 10% de sua população formada
por escravos, algo em torno de 10.000 pessoas. O percentual de escravos variou ao longo do tempo
e em cada freguesia. De acordo com Alessandro Stella, escravos de origem asiática correspondiam
a cerca de 10% a 20% da população escrava da freguesia da Sé de Lisboa. Arlindo Caldeira coligiu
dados acerca da variação da população de Lisboa ao longo do tempo. Stella, Histoire d’esclaves
dans la Péninsule Ibérique, 65; Caldeira, Escravos em Portugal, 119-140.
[291]
PARTE 4

Comunicação e Economia do
Santo Ofício
El sustento económico de los ministros de la
Inquisición y la creación de una élite eclesiástica
en el Portugal moderno1
Ana Isabel López-Salazar

Introducción
Tras la Revolución de 1974 y sobre todo a partir de la década de 1980, los
estudios sobre la Inquisición portuguesa han experimentado un extraordinario
avance2. A día de hoy, contamos con trabajos que, desde diferentes puntos de
vista y metodologías, permiten conocer relativamente bien el funcionamiento
de los tres tribunales peninsulares, así como del ultramarino de Goa. Se ha am-
pliado el estudio de los reos del tribunal: junto a los trabajos sobre los cristianos
nuevos, se han desarrollado amplias investigaciones sobre otros delitos como el
criptoislamismo, la hechicería, la bigamia, la solicitación, la sodomía, las ten-
dencias y corrientes pseudomísticas, etc. Se ha avanzado en el conocimiento de
los agentes inquisitoriales, tanto de los que formaban parte de la cúspide de la
jerarquía como de aquellos que actuaban en las sedes de los tribunales y en los
distritos. Finalmente, faltaba por conocer en profundidad la economía del tribu-
nal y el papel que desempeñaron las confiscaciones en su sostenimiento, una de
las cuestiones que más debate generó desde el mismo siglo XVI y que más difícil
resultaba de estudiar. Ahora, estos aspectos han sido revelados para el amplio

1
Este trabajo se integra en los proyectos de investigación HAR2017-84627-P, PGC2018-093833-B-
I00 y PID2019-109168GB-I00 financiados por el Ministerio de Ciencia e Innovación de España.
2
La mejor prueba de ello es la magna História da Inquisição Portuguesa (1536-1821) de Giuseppe
Marcocci y José Pedro Paiva, (Lisboa: A esfera dos livros, 2013).
período comprendido entre 1640 y 1773 gracias a la tesis doctoral de Bruno Lopes
defendida en 20213.
A partir de la década de 1990, la historiografía pudo avanzar en una doble
dirección. En primer lugar, la obra de Francisco Bethencourt História das Inqui-
sições. Espanha, Portugal e Itália supuso una inflexión en los estudios sobre la
Inquisición portuguesa que pasó a ser analizada en su contexto internacional, en
un magnífico y no superado análisis comparado de los tribunales del Santo Ofi-
cio ibéricos e italianos. En segundo lugar, se empezó a estudiar el tribunal
portugués en relación con otras instituciones coetáneas. No se trataba de una
cuestión totalmente nueva, ya que tanto Alexandre Herculano como Lúcio de
Azevedo habían analizado sus relaciones con la monarquía en el ámbito de la
política de la Corona con respecto a los cristianos nuevos. A partir de finales del
siglo XX, el campo de análisis se amplió y ahora se conocen cuáles fueron los
vínculos, las conexiones y las tensiones entre el tribunal y sus ministros y otras
instituciones eclesiásticas y los suyos – obispos, religiosos de las diferentes órde-
nes, canónigos y clero en general–, por otro. Para fechas concretas, se han
analizado también las relaciones entre el Santo Oficio y otras instituciones de la
monarquía, como los tribunales regios, los consejos y la propia Universidad de
Coimbra. Además, las conexiones entre el tribunal y la Corona han sido analiza-
das más allá de la cuestión de los cristianos nuevos, y se han abordado también
las relaciones entre la Inquisición portuguesa y la española y entre la primera y
la Congregación Romana del Santo Oficio.
A nuestro juicio, la experiencia de tan extraordinario avance ha demos-
trado que los estudios sobre el tribunal resultan mucho más fructíferos y
permiten un conocimiento más profundo de las estructuras y tendencias socia-
les, políticas e institucionales de la Edad Moderna si rompen los límites de la
propia institución inquisitorial y de las fuentes producidas por ella misma. Es
cierto que resulta fundamental conocer el funcionamiento del tribunal, sus mi-
nistros y sus ritmos represivos, y que los documentos inquisitoriales suponen un
fondo absolutamente fundamental e insustituible para la investigación. Sin em-
bargo, la Inquisición no era una institución asilada y sus ministros se
encontraban plenamente integrados en la sociedad portuguesa de la Edad
3
Cf. Giuseppe Marcocci, “Trent’anni di storiografia sull’Inquisizione portoghese. Quesiti aperti,
reticenze, prospettive di ricerca (1978-2008)”, Cromohs 14 (2009): 1-9. Francisco Bethencourt,
“The Inquisition in the Early Modern World: Thirty Years of Exchange”, Ler História 80 (2022):
251-264. Bruno Lopes, “Os pilares financeiros da Inquisição portuguesa (1640-1773)” (Évora: Tese
de Doutoramento apresentada à Universidade de Évora, 2021).
[296]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

Moderna, como ha subrayado recientemente Bruno Feitler en su magnífico tra-


bajo sobre los eclesiásticos que componían el tribunal. De hecho, estos
eclesiásticos casi nunca fueron solamente miembros de la Inquisición durante
toda su vida. A veces, incluso, ésta no fue ni su actividad esencial ni su principal
fuente de ingresos. El caso más evidente es el de los comisarios y los notarios
que servían con ellos fuera de las sedes de los distritos. Por su parte, los dipu-
tados eran, en palabras de Feitler, cargos “de ligação” entre el Santo Oficio, los
altos tribunales de justicia –Casa da Suplicação y Relação do Porto–, los Consejos
–Desembargo do Paço y Mesa da Consciência– y la Universidad de Coimbra4.
Por lo tanto, para comprender el sustento económico de los ministros de
la fe, es decir, sus fuentes de ingresos, es necesario tener en cuenta obviamente
los sueldos, mercedes, propinas y ayudas de costa que recibían del tribunal. Si
embargo, ello no basta en muchas ocasiones, pues los ministros del Santo Oficio
disponían de las rentas derivadas de sus beneficios y de otras pensiones eclesiás-
ticas. Además, en algunos casos como el de los diputados de los tribunales de
distrito o de los diputados del Consejo General, podían percibir salarios de otras
instituciones y tribunales a los que perteneciesen, así como de la Universidad de
Coimbra si impartían clase en calidad de profesores, sustitutos o interinos.
En las páginas que siguen intentaremos analizar el peso que supusieron
los beneficios eclesiásticos entre los ingresos de los ministros del Santo Oficio.
El estudio de esta cuestión nos permitirá reconsiderar en un sentido más amplio
la tesis clásica del profesor José Veiga Torres expuesta en su magnífico artículo
“Da repressão religiosa para a promoção social. A inquisição como instância le-
gitimadora da promoção social da burguesia mercantil portuguesa”. En su
opinión, una vez superado el período de mayor represión de los cristianos nue-
vos, el Santo Oficio fue utilizado como un instrumento de promoción por grupos
en proceso de ascenso social, procedentes sobre todo del mundo agrario y del
comercio. Estas gentes recurrieron a las familiaturas del tribunal como un ele-
mento de consolidación social en la medida en que servían para probar sobre el
papel la limpieza de sangre de quienes las obtenían. Es decir, el oficio de familiar
del Santo Oficio fue utilizado para fines diferentes de los originales y, en parte,
ello permitió la perpetuación del tribunal y de su apoyo social cuando sus fun-
ciones represivas se habían agotado prácticamente. Nuestra hipótesis es que, si

4
Bruno Feitler, A fé dos juízes. Inquisidores e processos por heresia em Portugal (1536-1774) (Coim-
bra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022), 49, 55 y 60.
[297]
tal ocurrió con las familiaturas, lo mismo pudo suceder con otros oficios más
elevados en la jerarquía inquisitorial, especialmente el de diputado5.

El sustento del Tribunal de la Fe


Para comprender la estructura de la hacienda inquisitorial y los ingresos
de los ministros del tribunal es necesario partir de un hecho: los bienes confis-
cados nunca pertenecieron de jure al Santo Oficio. El inquisidor general se
encargaba de su administración, pero la Corona siempre mantuvo la propiedad.
Por ello, los monarcas podían conceder exenciones de confiscaciones y utilizar-
las –como de hecho hicieron– para sufragar otros gastos además de los
inquisitoriales. Por otra parte, en los primeros tiempos la Inquisición no pudo
recurrir a los bienes confiscados para costear sus gastos y los sueldos de sus mi-
nistros. La exención de confiscaciones concedida a los cristianos nuevos en 1536
fue renovada en 1546 y en 1547. En 1559, la regente D.ª Catalina la confirmó por
otros diez años, aunque esta disposición quedó anulada en 1568 con efecto re-
troactivo. Independientemente de la eficacia con la que se aplicase esta medida,
el hecho es que la Inquisición no pudo contar con ingresos considerables proce-
dentes de los bienes confiscados a los herejes hasta la década de 1570. Es cierto
que, en ausencia de confiscaciones a los conversos, podía obtener otros ingresos
de su actividad judicial, gracias a las multas y tal vez a los bienes confiscados a
los herejes que no fuesen cristianos nuevos, pero por sí solos no servían para
sostener el edificio inquisitorial. Por ello, en los primeros años resultaron fun-
damentales las mercedes puntuales concedidas por la Corona. Además, en 1545
D. João III asignó al tribunal el dinero procedente de las mercancías que se in-
tentasen exportar ilegalmente del reino por los puertos de Lisboa y Setúbal6.

5
José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social. A Inquisição como instância
legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciencias Sociais 40
(1994): 109-135. Los datos presentados en este capítulo forman parte de la investigación en curso
de publicación Canónigos del Santo Oficio: cabildos e Inquisición en Portugal en la Edad Moderna.
6
Los primeros datos sobre la hacienda de la Inquisición portuguesa fueron publicados por Antó-
nio Baião en 1907 en uno de los artículos que constituyeron la serie A Inquisição em Portugal e no
Brasil del Arquivo Histórico Português. Informaciones más precisas fueron proporcionadas por
Lúcio de Azevedo en su História dos cristãos-novos portugueses, publicada en 1921. Por su parte,
Elvira Mea suministró algunos datos sobre los ingresos del tribunal de Coimbra en el siglo XVI en
A Inquisição de Coimbra no século XVI. A instituição, os homens e a sociedade (Porto: Fundação
Eng. António de Almeida, 1997), 154-155. En 2010, Giuseppe Marcocci y yo misma intentamos pre-
sentar una visión general de la evolución de las fuentes de ingresos del Santo Oficio en “Struttura
economica: Inquisizione portoghese”, in Dizionario Storico dell’Inquisizione, dir. Adriano Prosperi
con la colaboración de Vincenzo Lavenia y John Tedeschi, vol. 2 (Pisa: Edizioni della Normale,
[298]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

La creación de unas fuentes de renta propias, al margen de las confiscacio-


nes, fue un proceso que duró décadas y que se basó en tres pilares: las pensiones
sobre las rentas de los obispados del reino, un porcentaje de una canonjía en
cada cabildo de Portugal y rentas perpetuas pagadas por la Corona. Desde luego,
los ingresos procedentes de rentas eclesiásticas tuvieron una importancia cre-
ciente en la lenta configuración de una hacienda inquisitorial propia. Así, entre
1555 y 1579, los papas fueron otorgando a la Inquisición diferentes pensiones so-
bre todos los obispados del reino hasta alcanzar la suma nominal de 9.675
cruzados anuales. Además, en 1575, Gregorio XIII concedió al Santo Oficio dos
tercios de una canonjía de Lisboa, Évora y Coimbra y la mitad de una prebenda
en los demás cabildos del reino. Sin embargo, en 1583, esta merced fue reducida.
El Santo Oficio pasó a percibir la mitad de una prebenda de los cabildos de Lis-
boa, Évora y Coimbra y un tercio en el caso de las demás catedrales. A principios
del XVII, en el contexto de las negociaciones que concluyeron en el perdón ge-
neral de 1604, el inquisidor general D. Pedro de Castilho solicitó al monarca que
se otorgase al Santo Oficio una canonjía entera en cada cabildo del reino, como
poseía la Inquisición española. Sin embargo, esta instancia no surtió efecto y el
tribunal continuó percibiendo siempre los porcentajes establecidos en 1583.
Finalmente, las mercedes puntuales de la Corona fueron transformadas en
una renta fija durante el reinado de D. Henrique. En 1580, poco antes de morir,
el cardenal concedió al tribunal una merced de 1.200.000 réis anuales, a los que
Felipe II sumó 1.118.000 réis en 1583, lo que hacía un total de 2.318.000 réis al año.
El problema radicaba en que la Corona no siempre cumplía con estos pagos. Si
aceptamos la información proporcionada por el propio Consejo General, el tri-
bunal únicamente había recibido 4.636.000 réis entre 1583 y 15937. Por ello y por
la pérdida de las confiscaciones como consecuencia del perdón general de 1604,
en 1607 la Corona decidió transformar estas pensiones en un juro de 6.930.000
réis situado en el estanco de los naipes y del solimán. Sin embargo, la Inquisición
tampoco logró recibir íntegramente esta renta anual, en parte porque la Corona

2010), 1537-1541. Para el período de gobierno del cardenal D. Henrique, este estudio fue amplia-
mente superado por Daniel Giebels en su excelente libro sobre A Inquisição de Lisboa (1537-1579)
(Lisboa: Gradiva, 2019), 211-248. Para fechas posteriores, desde 1640 hasta el fin de las confiscaci-
ones, contamos con la magnífica tesis doctoral recientemente defendida por Bruno Lopes, Os
pilares financeiros da Inquisição portuguesa. Con respecto al período final del tribunal, Marcocci
y Paiva proporcionan sustanciales datos económicos en su História da Inquisição portuguesa, 377-
380, 391 y 437.
7
António Baião, A Inquisição em Portugal e no Brasil. Subsídios para a sua história (Lisboa: Ar-
quivo Histórico Português, 1920), 54.
[299]
no siempre conseguía arrendar el estanco por la cantidad deseada y en parte por
las quiebras de los propios financieros que lo adquirían. Así por ejemplo, en
agosto de 1610 el inquisidor general aseguraba que sólo había recibido 3.400.000
réis del dinero del juro desde el momento de su concesión en 16078. Debido a
estos problemas, en 1641 D. João IV modificó el juro y lo situó en el estanco del
tabaco, a pesar de lo cual la Inquisición siguió teniendo a veces algunos proble-
mas para percibir íntegramente el dinero prometido9.
Gracias a los estudios de Bruno Lopes sabemos que la dependencia econó-
mica del Santo Oficio con respecto a la Corona se incrementó cada vez más
durante el siglo XVIII. Durante su reinado, D. João V le concedió dos rentas
anuales más procedentes ambas del estanco del tabaco y las destinó específica-
mente al incremento de los sueldos de los ministros del tribunal. En 1718 le
otorgó la llamada “nova tença”, de 1.500.000 réis anuales, y en 1742 la “nova con-
signação”, de 4.800.000 réis anuales, ambas para el pago de los salarios. Además,
también durante el reinado de D. João V, el tribunal recibió otras sumas de la
Corona procedentes asimismo del estanco del tabaco, pero puntuales y destina-
das al pago de los gastos de funcionamiento del tribunal, especialmente con los
presos pobres10.

La manutención de los ministros de la fe: la centralidad de los beneficios eclesiásticos


De lo dicho hasta ahora se pueden extraer algunas conclusiones. Hasta
muy avanzado el período de gobierno del cardenal D. Henrique, el tribunal ca-
reció de una estructura económica mínimamente sólida. Hasta mediados de la
década de 1550 las pensiones sobre los obispados no comenzaron a fijarse, pero
sólo alcanzaron todas las diócesis en 1579. De hecho, antes de la década de 1590,
la red de pensiones sobre todos los obispados del reino y sobre todos los cabildos
catedralicios no fue completamente establecida. Por su parte, las confiscaciones
eran casi inexistentes o muy exiguas antes de la década de 1570 y siempre plan-
tearon el problema de su falta de regularidad.
Por lo tanto, resulta necesario responder a la pregunta de cómo se susten-
taba el tribunal y cómo se mantenían los ministros de la fe en esos treinta o

8
Ana Isabel López-Salazar, Inquisición portuguesa y Monarquía Hispánica en tiempos del perdón
general de 1605 (Lisboa: Edições Colibri-CIDEHUS/UE, 2010), 198-199.
9
Según Bruno Lopes, los pagos a la Inquisición no se regularizaron totalmente hasta 1740. Lopes,
Os pilares financeiros, 141-142.
10
Lopes, Os pilares financeiros, 143-149. Cf. Marcocci y Paiva, História da Inquisição portuguesa,
378.
[300]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

cincuenta primeros años de funcionamiento del Santo Oficio. Por un lado, la


Inquisición contaba con las mercedes concretas de la Corona –con las cuantías
variables expuestas por Giebels–, con las multas y con las mercancías confiscadas
por no haber sido registradas para salir del reino11. Por otro lado, se sirvió de los
propios obispos y de los oficiales de las instituciones diocesanas, como los jueces
(desembargadores) de los tribunales eclesiásticos, los vicarios generales y los
provisores12. Sin embargo, a largo plazo resultaría más relevante el hecho de que
D. Henrique consiguiese que el Sumo Pontífice otorgase a los ministros de la fe
la percepción de los frutos de sus beneficios eclesiásticos sin residir en ellos, es
decir in absentia. El privilegio fue concedido por primera vez en 1539, cuando la
Inquisición contaba con apenas tres años de funcionamiento, y se mantuvo en
vigor durante toda la existencia del tribunal. Es cierto que experimentó algunas
modificaciones durante el siglo XVI de las que no vamos a ocuparnos ahora.
Basta solamente señalar que, en su configuración definitiva, el privilegio de non
residendo abarcaba todos los beneficios eclesiásticos, con la excepción de los
obispados, los beneficios curados y las canonjías magistrales (es decir, las de
Teología). El breve debía renovarse cada cinco años y por eso se llamaba privile-
gio del quinquenio. No se convirtió en una concesión perpetua hasta 1787, por
lo tanto en las décadas finales del tribunal.
El privilegio del quinquenio constituyó una vía absolutamente fundamen-
tal para garantizar el sustento económico de los inquisidores, promotores,
diputados, notarios y miembros del Consejo General. Fue claramente esencial
en los primeros años de funcionamiento del Santo Oficio, cuando ni las confis-
caciones, ni las rentas sobre los obispados, ni las canonjías aplicadas a la
Inquisición sostenían el incipiente edificio. Así ocurrió, por ejemplo, en el caso
de la figura más relevante de estos primeros años de funcionamiento del tribu-
nal. El inquisidor João de Melo, capellán del infante D. Afonso, disfrutó de las
rentas de dos canonjías, una de ellas en la riquísima catedral de Évora13. De he-
cho, ante los problemas financieros de la Inquisición de Lisboa, D. Henrique
determinó en 1578 que los diputados de este tribunal no percibiesen salario pero
que siguiesen disfrutando del privilegio de recibir las rentas de sus beneficios in
absentia. Como es evidente, se trataba de una manera de descargar de gastos a

11
Giebels, A Inquisição de Lisboa, 218-221 y 223.
12
José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina. O enlace entre a Inquisição e os bispos em Por-
tugal (1536-1750) (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011), 150 y 171-174. Giebels, A
Inquisição de Lisboa, 78-79 y 135 (nota 328).
13
Giebels, A Inquisição de Lisboa, 76.
[301]
la hacienda inquisitorial y de mantener al mismo tiempo un cuerpo de ministros
sufragado por rentas eclesiásticas y por los sueldos que pudiesen percibir por el
desempeño del oficio de desembargador de los altos tribunales de justicia regia14.
Una vez superado el período de mayor debilidad financiera, el privilegio
del quinquenio continuó siendo fundamental para el mantenimiento y decoro
de los ministros eclesiásticos del Santo Oficio ya que sus sueldos y mercedes
ordinarias permanecieron congelados durante un siglo o siglo y medio en fun-
ción de los casos. En 1583, el inquisidor general D. Jorge de Almeida decretó un
incremento general de los sueldos de todos los ministros del Santo Oficio15. Esta
medida se integraba en el contexto de incremento de los salarios de los desem-
bargadores y oficiales de la justicia regia dispuesto por Felipe II. En 1603 y 1604,
las juntas que se reunieron en Valladolid para la reforma del Santo Oficio portu-
gués aconsejaron a Felipe III el acrecentamiento de los sueldos. Sin embargo, la
medida no se aplicó hasta 1614 y, además, con exclusión de los diputados de los
tribunales de distrito16. A partir de ese momento, los sueldos y mercedes se man-
tuvieron estables hasta el incremento decretado por el inquisidor general D.
Nuno da Cunha en 1718. Esta vez, además de los diputados de los tribunales de
distrito, también quedaron excluidos los miembros del Consejo General. Ambos
grupos serían, ahora sí, comprendidos en el nuevo incremento general de los
sueldos ordenado por el mismo inquisidor general en 174217. Finalmente, en la
década de 1770 y en 1795 se dispusieron otros acrecentamientos, aunque en estos
casos quedaron excluidos de nuevo los miembros del Consejo General.
Por lo tanto, durante el largo período comprendido entre 1614 y 1718, los
sueldos de los ministros eclesiásticos del Santo Oficio no experimentaron modi-
ficación. En el caso de los diputados de los tribunales de distrito, la estabilidad
de los sueldos fue aún mayor, pues se mantuvo desde 1583 hasta 1742. Por ello,
en ese siglo –en el caso de inquisidores y notarios– o siglo y medio –en el de los
diputados–, las rentas de los beneficios eclesiásticos resultaron fundamentales
entre los ingresos de los ministros del Santo Oficio. Resulta muy complicado

14
En un primer momento, en febrero de 1578, D. Henrique había decretado que no percibiesen
sueldo del Santo Oficio los diputados que desempeñasen el oficio de desembargador con salario
pagado por la Corona. En mayo de ese año, la prohibición se amplió a todos los diputados.
15
Baião, A Inquisição em Portugal, 55.
16
Ana Isabel López-Salazar, Inquisición y política. El gobierno del Santo Oficio en el Portugal de los
Austrias (1578-1653) (Lisboa, CEHR-UCP, 2011), 155-156.
17
Lopes, Os pilares financeiros, 412-416.
[302]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

evaluar cuantitativamente esta cuestión, debido a la diversidad de las prebendas.


Sin embargo, podemos presentar algunos ejemplos significativos18.
El primero es de 1608. En ese momento, Gaspar Pereira, que llegaría a dipu-
tado del Consejo General, desempeñaba el oficio de inquisidor del tribunal de
Coimbra. Como tal, percibía un sueldo de 120.000 réis anuales. A esa cuantía
habría que sumar algunas propinas, recibidas con ocasión de los autos de fe,
además de algunas mercedes puntuales concedidas en caso de enfermedad. Si
sumamos el sueldo con la propina del auto de fe celebrado en Coimbra en
agosto, Pereira recibió 140.000 réis del Santo Oficio en 1608. Al mismo tiempo,
era canónigo doctoral en la catedral de Braga y su prebenda estaba evaluada en
unos 200.000 réis. Obviamente, se trata de una mera evaluación y de una cifra
aproximada y redondeada. No obstante, dado que no parece que estuviese pen-
sionada –al tratarse de una canonjía de oficio– la conclusión es clara: los ingresos
de Pereira procedentes de su beneficio eclesiástico eran un 43% superiores a los
recibidos del tribunal inquisitorial en conceptos ordinarios (sueldo y propina)19.
El segundo ejemplo data de una época posterior al incremento de los suel-
dos que tuvo lugar en 1614. En 1616, D. Francisco de Meneses desempeñaba el
oficio de inquisidor del tribunal de Coimbra. Ese año, sumando el sueldo y la
propina del auto de fe de agosto, debió recibir 220.000 réis del Santo Oficio.
Además, Meneses era chantre de la catedral de Oporto desde finales del siglo
XVI. Se trataba de una rica dignidad que, ocho años más tarde, proporcionaba
unas rentas anuales de alrededor de 386.000 réis. Es cierto que de ellos había
que descontar 16.000 réis para el pago del sochantre y las demás pensiones si-
tuadas en ella. Dependiendo de este último aspecto, Meneses recibiría entre
257.300 y 370.000 réis de su chantría, de nuevo una cantidad superior a sus in-
gresos procedentes de la Inquisición.
El último caso que hemos seleccionado data ya de mediados del siglo
XVIII, cuando los sueldos de los ministros del Santo Oficio habían experimen-
tado las subidas salariales de 1718 y 1742. En 1750 era inquisidor del tribunal de
Lisboa Simão José Silveiro Lobo. En concepto de sueldo, propina por auto de fe
y mercedes para hacer frente a la subida de los precios, recibía del tribunal unos

18
Los ejemplos aquí presentados están extraídos de una investigación más amplia sobre las rela-
ciones entre la Inquisición y los cabildos que esperamos publicar próximamente y en la que
abordamos la cuestión de los sueldos, mercedes y propinas de los miembros del Santo Oficio y
las rentas de sus beneficios eclesiásticos.
19
López-Salazar, Inquisición y política, 159.
[303]
380.000 réis anuales. Resulta sumamente complicado averiguar cuánto rendía su
canonjía de Évora a mediados del siglo XVIII, en un momento en que la Santa
Sede había aplicado un tercio de las rentas de buena parte de las prebendas de
dicha catedral a la iglesia patriarcal de Lisboa. Sin embargo, algunos datos nos
permiten evaluar su prebenda en unos 800.000 réis anuales, descontada ya la
pensión para la Patriarcal. Por lo tanto, y a pesar de lo redondeado de las cifras,
una vez más y en este caso en un porcentaje mucho mayor, se pone de manifiesto
que los ingresos del beneficio resultaban muy superiores a los del sueldo, mer-
cedes y propinas recibidas del Santo Oficio. En este caso concreto, José Silveiro
Lobo podía recibir de la catedral de Évora el doble de réis que de la Inquisición.
La relevancia de los beneficios eclesiásticos para el sustento de los ministros
del Santo Oficio era aún mayor en el caso de los comisarios y de los notarios que
con ellos servían fuera de las sedes del tribunal, pues ni unos ni otros percibían
sueldo pagado por la Inquisición. En el reino, los trabajos de Nelson Vaquinhas,
Leonor Días y Bruno Lopes han demostrado la importancia de los beneficios ecle-
siásticos en el acceso a los oficios de comisarios y notarios del tribunal, ya que
garantizaban un sustento digno a estos agentes inquisitoriales en el ámbito regio-
nal20. En Brasil, según Bruno Feitler, entre los once eclesiásticos nombrados
comisarios en el obispado de Pernambuco desde finales del XVII hasta mediados
del XVIII, hubo cuatro miembros del cabildo de Olinda, un vicario general y otros
presbíteros21. Con respecto al siglo XVIII, Aldair Rodrigues ha corroborado la es-
trecha conexión entre el servicio a la Inquisición y las estructuras de la Iglesia
diocesana en Brasil. Así, de los 198 comisarios de la colonia en dicho siglo, 165 eran
miembros del clero secular; de ellos, 55 pertenecían a diferentes cabildos catedra-
licios mientras que 60 estaban vinculados a la red parroquial22.

20
Nelson Vaquinhas, Da Comunicação ao Sistema de Informação: o Santo Ofício e o Algarve (1700-
1750) (Évora: CIDEHUS-UE, 2010), 64-65. Leonor Dias Garcia, “Comissários e notários do Santo
Ofício naturais e moradores em Braga (1700-1773): perfil social”, Cadernos de Estudos Sefarditas 17
(2017): 101-137. Bruno Lopes, “A Inquisição nas Terras Periféricas: Comissários, Notários e Famili-
ares do Santo Ofício em Montemor-o-Novo (sécs. XVI-XIX)”, Almansor. Revista de Cultura 2
(2016): 95-153.
21
Bruno Feitler, Nas malhas da consciência. Igreja e Inquisição no Brasil (São Paulo: Alameda-
Phoebus, 2007), 92-93.
22
Aldair Rodrigues, Igreja e Inquisição no Brasil: agentes, carreiras e mecanismos de promoção
social (São Paulo: Alameda, 2014), 181-182. Aldair Rodrigues, “Os Comissários do Santo Ofício no
Brasil: Perfil Sociológico e Inserção Institucional (século XVIII)”, in Honra e sociedade no mundo
ibérico e ultramarino: Inquisição e Ordens Militares, séculos XVI-XIX, Ana Isabel López-Salazar,
Fernanda Olival y João Figueirôa-Rêgo, coords. (Lisboa: Caleidoscópio, 2013), 183-205.
[304]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

La desvirtuación del privilegio del quinquenio


Como se ha señalado, desde 1539 los ministros del Santo Oficio, gracias al
privilegio del quinquenio, podía disfrutar de sus prebendas sin cumplir con la
obligación de residencia. El privilegio permitió a los miembros eclesiásticos del
tribunal disponer de un nivel de ingresos superior al que les proporcionaban sus
sueldos. De acuerdo con los breves papales, el incumplimiento de la obligación
de residencia se encontraba justificado ya que estos eclesiásticos estaban ocupa-
dos en la Inquisición, en la defensa de la fe y en la persecución de la herejía.
Además, el privilegio de non residendo permitió al tribunal contar con una red
de comisarios que recibían los frutos de sus beneficios mientras llevaban a cabo
las diligencias que les había encomendado el Tribunal de la Fe.
Sin embargo, el uso que se dio al privilegio papal concedido al tribunal
comenzó a cambiar a partir de finales del siglo XVI y, como consecuencia, tam-
bién se modificó el perfil de los que se beneficiaban de él. Esta desnaturalización
estuvo relacionada con una transformación institucional que alteró la composi-
ción de buena parte de los cabildos portugueses, concretamente de aquellos
creados en la Edad Media antes de las reformas de D. João III. Se trataba, por lo
tanto, de los cabildos más importantes, más prestigiosos y con mayores rentas.
Tal transformación institucional se debió al establecimiento definitivo de las ca-
nonjías de oficio –magistral y doctoral– en la década de 156023.
La creación de las canonjías magistrales y doctorales en Portugal se remon-
taba a finales del siglo XV. En 1496, Alejandro VI ordenó que las dos primeras
canonjías que quedasen vacantes en cada cabildo se reservasen para un maestro
o licenciado en Teología y para un doctor o licenciado en Derecho. De acuerdo
con esta bula, el obispo junto con el cabildo se encargaría de la provisión de los
nuevos prebendados. Además, el papa estableció que los canónigos magistrales
y doctorales debían residir personalmente en sus beneficios so pena de privación
de la prebenda. Sin embargo, la disposición papal de 1496 apenas tuvo efecto en
uno o dos cabildos. Por ello, en 1560, Pío IV, a petición de D. Sebastião, renovó
la disposición anterior de creación de las canonjías de oficio. El papa concedió
al rey el patronato de estas prebendas en las diócesis de Braga, Lisboa, Évora,
Oporto, Coimbra, Lamego, Viseu y Silves, de decir, en las diócesis antiguas. Los

23
Sobre los cabildos catedralicios portugueses, el mejor trabajo es el de Hugo Ribeiro da Silva, O
clero catedralício português e os equilíbrios sociais do poder (1564-1670) (Lisboa: UCP-CEHR, 2013).
También se debe al mismo autor el mejor trabajo sobre un cabildo concreto: Hugo Ribeiro da
Silva, O cabido da Sé de Coimbra. Os homens e a instituição. 1620-1670 (Lisboa: ICS, 2010).
[305]
provistos debían tener grados en Teología o Cánones concedidos por la Univer-
sidad de Coimbra y realizar una oposición en esta misma institución. El
eclesiástico que venciese en el concurso sería presentado por el monarca al
obispo de la diócesis para recibir la colación canónica.
En lo que atañe al Santo Oficio y sus ministros, las canonjías de oficio más
relevantes fueron las doctorales, dado que la mayoría de los inquisidores, pro-
motores y diputados tenían formación en Derecho. Además, las magistrales
pronto quedaron excluidas de jure del privilegio del quinquenio. Por ello, en
principio, los canónigos magistrales debían residir en sus beneficios eclesiásti-
cos, aunque en la práctica no siempre fue así. Por el contrario, los canónigos
doctorales siempre tuvieron la posibilidad de eximirse de la obligación de resi-
dencia si se integraban en el Santo Oficio. Además, todo parece indicar que, en
un primer momento, el propio cardenal D. Henrique consideró que las preben-
das doctorales podían servir para complementar los ingresos de los ministros de
la fe y, en la década de 1570, algunos inquisidores las consiguieron sin realizar
primero el concurso en la Universidad. Por ejemplo, en 1571 el rey D. Sebastião
presentó al inquisidor Sebastião Vaz para la canonjía doctoral de Coimbra sin
que Vaz hubiese hecho el concurso previo. Poco después, en 1579, D. Henrique,
ya entonces rey, presentó al inquisidor António de Mendonça para la canonjía
doctoral de Lisboa, de nuevo sin que mediase concurso24.
Por lo tanto, cuando falleció D. Henrique en 1580, la Inquisición quedaba
provista de un privilegio que permitía a sus ministros recibir las rentas de sus
beneficios sin residir en ellos. Y los cabildos de las sedes antiguas contaban con
una bula papal que instituía las prebendas doctorales y magistrales y decretaba
el estricto cumplimiento de la obligación de residencia en ellas. Sin embargo, a
lo largo de las décadas siguientes, ambos privilegios serían desvirtuados en la
práctica.
En primer lugar, las canonjías doctorales prácticamente se convirtieron en
un monopolio de los ministros del Santo Oficio. Dado que la mayoría tenía for-
mación en Derecho, podía presentarse a los concursos para la provisión de
dichas prebendas, celebrados en la Universidad de Coimbra. De hecho, durante
los siglos XVII y XVIII, al menos hasta la década de 1770, alrededor del 70% de
los eclesiásticos que se presentaron a los concursos para la provisión de las pre-
bendas doctorales eran ministros del Santo Oficio o se integrarían en el tribunal

24
Ana Isabel López-Salazar, “Una oligarquía eclesiástica en Portugal durante el Antiguo Régimen:
catedráticos, canónigos e inquisidores”, Libros de la Corte 6 (2017), 174.
[306]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

inmediatamente después. Además, estos eclesiásticos no sólo se presentaban,


sino que vencían en tales oposiciones. Si tenían muchas posibilidades de triunfar
no era únicamente por sus conocimientos de Derecho, sino también por las pro-
pias características del mundo en que vivían. De manera cada vez más frecuente,
los profesores que votaban en los concursos y los ministros del Santo Oficio que
se presentaban a ellos compartían años de convivencia como alumnos y profe-
sores de la Facultad de Cánones de la Universidad de Coimbra, asiento en el
tribunal del Santo Oficio y espacio vital en los colegios mayores de San Pedro y
San Pablo de dicha Universidad. De hecho, desde principios del siglo XVII, las
doctorales fueron quedando prácticamente monopolizadas por los ministros del
Santo Oficio que disfrutaban de estas prebendas sin cumplir con la obligación
de residencia. En la primera mitad del siglo XVII, los ministros de la Inquisición
suponían ya más del 80% de los canónigos doctorales y alcanzarían la totalidad
en la primera mitad del XVIII.
Como vemos, durante la primera mitad del siglo XVII se fue produciendo
una desnaturalización del privilegio papal de creación de las canonjías doctora-
les, pues habían sido instituidas para que los cabildos contasen con expertos en
Derecho obligados a residir en sus beneficios. Sin embargo, un análisis más pro-
fundo permite percibir que no hubo solamente una corrupción del privilegio de
los cabildos, sino también una desvirtuación del privilegio inquisitorial de non
residendo, concedido para garantizar el sustento de los ministros del tribunal
con la justificación de que se encontraban ocupados en la defensa de la fe. A lo
largo del siglo XVII, las doctorales quedaron cada vez más en manos de ministros
del Santo Oficio que sólo ingresaban en él como diputados de los tribunales de
distrito para gozar de sus privilegios y prestigio, pero que no hacían carrera den-
tro del tribunal ni ascendían a los oficios de inquisidor o diputado del Consejo
General. En el siglo XVII, de los 58 canónigos doctorales que hubo, 50 fueron
ministros de la Inquisición, pero 30 no pasaron de diputados, sin ascender nunca
a inquisidores o miembros del Consejo. En el siglo XVIII, la tendencia se inten-
sificó: hubo 49 canónigos doctorales, de los cuales 46 fueron miembros de la
Inquisición, pero 43 permanecieron siempre como meros diputados25.
Por lo tanto, en el siglo XVII y mucho más en el XVIII, hubo numerosos
eclesiásticos que se sirvieron del privilegio inquisitorial del quinquenio para po-
der percibir los frutos de sus prebendas doctorales sin residir en ellas, pero
también sin servir demasiado a la Inquisición, más allá de asistir al despacho de
25
López-Salazar, “Una oligarquía eclesiástica”, 164-184.
[307]
los procesos las pocas veces al año que tenía lugar. Provistos del privilegio inqui-
sitorial y de las rentas de sus canonjías doctorales, podían hacer carrera en la
Universidad o, menos frecuentemente, en los altos tribunales de justicia del
reino como la Casa da Suplicação o la Relação do Porto. Así, las canonjías docto-
rales y el privilegio del quinquenio permitieron la aparición de una élite
eclesiástica que se valió de estas prebendas sin residir en ellas y de los privilegios
inquisitoriales sin tampoco servir continuamente al Santo Oficio.

Conclusiones
El privilegio de non residendo fue concedido en 1539 en un momento en el
que la Inquisición carecía de otras fuentes de ingresos seguras: ni confiscaciones,
ni pensiones sobre los obispados, ni porcentajes de canonjías, ni juros situados
en estancos de la Corona. En ese momento dependía totalmente de las mercedes
regias, de las multas a los procesados y del recurso a los obispos y miembros de
la administración diocesana. Por ello, a lo largo del período de establecimiento
y configuración del tribunal bajo el gobierno de D. Henrique, las rentas de los
beneficios eclesiásticos resultaron absolutamente esenciales para mantener a los
ministros de la fe. Desde finales del siglo XVI, cuando el tribunal pasó a contar
con otras fuentes de ingresos regulares, continuaron siendo fundamentales por-
que garantizaban un sustento digno de los ministros del Santo Oficio y, en
algunos casos, les permitían casi duplicar los ingresos que recibían del tribunal
en concepto de sueldo, propinas y mercedes. De hecho, los ministros de la In-
quisición siempre intentaron completar sus ingresos procedentes del Santo
Oficio con rentas beneficiales, fuese en forma de prebendas fuese por medio de
pensiones.
Sin embargo, el atractivo de los privilegios inquisitoriales y el poder del
tribunal y de la Universidad de Coimbra acabaron por permitir la aparición de
una élite que, más que servir a la Inquisición, se sirvió de ella y como consecuen-
cia de los cabildos para impulsar sus propios procesos de promoción y
consolidación social. Para entender este grupo es necesario situar a los ministros
del Santo Oficio en el cuadro institucional del Portugal moderno y comprender
las características de la sociedad contemporánea. Los ministros de la Inquisición
casi nunca fueron únicamente miembros del tribunal, pues desempeñaron otros
oficios eclesiásticos y seculares a lo largo de sus vidas: provisores y vicarios ge-
nerales, jueces de los tribunales eclesiásticos, canónigos, profesores de la
Universidad, beneficiados, oidores (desembargadores) de los altos tribunales de

[308]
EL SUSTENTO ECONÓMICO DE LOS MINISTROS DE LA INQUISICIÓN Y LA CREACIÓN DE UNA ÉLITE
Ana Isabel López-Salazar

justicia regia, miembros de los Consejos de la monarquía, obispos, etc.26. Ade-


más, se trataba de personas integradas en redes familiares, corporativas y
clientelares en un mundo en el que la familia tenía más importancia que el indi-
viduo para determinar las estrategias vitales de cada uno. Eran personas, en fin,
con ambiciones de promoción social, personal y familiar, pero también con ne-
cesidades –y entendamos “necesidades” en un sentido amplio– a las cuales
habían de dar respuesta27.
Estudiar los grupos sociales que sirven y se sirven de las instituciones, de
varias instituciones al mismo tiempo, constituye pues un requisito indispensable
para comprenderlas profundamente y, sobre todo, para entender la sociedad en
la que estaban radicadas. La supervivencia de la Inquisición durante tanto
tiempo, incluso después de desaparecer el motivo por el que fue creada, se ex-
plica en parte porque fue utilizada para fines diferentes de los originales en lo
que atañe a la vigilancia de la pureza de la fe, pero también porque resultó útil a
determinados grupos sociales y personas en sus estrategias de promoción y con-
solidación social.

26
Feitler, A fé dos juízes, 49.
27
Cf. Ana Isabel López-Salazar, “Los canónigos doctorales en Portugal: orígenes sociales y carreras
de una élite eclesiástica (siglos XVI y XVII)” Cuadernos de Historia Moderna 46, 2 (2021): 697-727.
[309]
Pensões para a Inquisição portuguesa:
um projeto de alargamento das receitas
inquisitoriais no século XVIII1
Bruno Lopes

Introdução
Este texto questiona as relações financeiras entre a Inquisição e a Igreja,
que, contando com a intervenção da Monarquia, tiveram por objetivo o alarga-
mento dos esteios de financiamento do tribunal do Santo Ofício. Centra-se na
década de 1740-70, momento em que a Coroa diligenciou junto da Sé Apostólica,
em Roma, mecanismos que visavam a atribuição de uma, então, nova dotação
orçamental. Caberia à Monarquia assegurar o pagamento da nova verba aos co-
fres inquisitoriais, enquanto não se concluíssem os trabalhos de negociação em
Roma. Explora a hipótese de que as estruturas locais da Igreja não foram coope-
rantes e, por isso, a Inquisição viu goradas as expetativas de crescimento das suas
bases de financiamento, cabendo à fazenda régia a manutenção deste encargo.
No final, conclui que o insucesso se deveu à resistência dos párocos das igrejas
escolhidas para onerarem este novo contributo para os cofres da Inquisição. Os
eclesiásticos resistiram aos ditames da Coroa com base em dois argumentos. De
um lado, evocando a incapacidade financeira do orçamento das suas igrejas e,
de outro, fundamentando que o papa não tinha direito de padroado sobre essas
paróquias, por serem de fundação secular e não eclesiástica, e, por isso, se escu-
davam deste novo contributo.

1
Agradece-se a preciosa ajuda de Ana Isabel López-Salazar Codes na leitura deste texto com
comentários e sugestões de melhoria.
O estudo das relações entre a Igreja e a Inquisição tem ocupado os histo-
riadores e constitui um filão de investigação que tem demonstrado, por exemplo,
a relevância que a Inquisição teve na divisão jurisdicional das matérias de Fé. No
campo religioso2 estavam presentes muitas forças que, em muitas conjunturas,
se opuseram, mas que também trabalharam em conjunto3. A Inquisição teve de
saber ocupar a sua posição, quer em matéria dos delitos que tinha sob a sua al-
çada, quer na afirmação de uma nova categoria de eclesiásticos – os inquisidores4
– que tinham um perfil diferente daquele que as instâncias da Igreja conheciam,
até ao século XVI5. Para José Pedro Paiva, uma análise global destas relações re-
vela um cenário de harmonia e de cooperação, mais do que de antítese entre
ambas as instâncias6.
Contudo, a hipótese da existência de confrontos também tem ocupado os
investigadores, nomeadamente em matéria de jurisdição de delitos ou de recru-
tamento de servidores para a Inquisição, por exemplo, para os cargos de
inquisidor, de deputado ou de promotor (todos exercidos por eclesiásticos). Por
vezes, esta coincidência de tarefas resultava em incumprimento de funções nas
outras instituições nas quais o indivíduo exercia funções, como os cabidos, ori-
ginando atritos entre ambas as instâncias7.
Outras estruturas da Igreja também foram espaços onde a Inquisição pro-
curou indivíduos para servirem os cargos inquisitoriais, de que são exemplo as

2
Francisco Bethencourt, “Campo religioso e Inquisição em Portugal no século XVI”, Estudos
Contemporâneos 6 (1984): 43-60.
3
Josival Nascimento dos Santos, “A relação entre D. João de Melo, bispo de Coimbra (1684-
1704), e a Inquisição” (Dissertação de mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Co-
imbra, 2010); José Pedro Paiva, Baluartes da fé e da disciplina: o enlace entre a Inquisição e os
bispos em Portugal: 1536-1750 (Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011), 7-9, 46-
48; Juliana Pereira, “Um arcebispo em defesa do poder episcopal: as relações entre D. Frei
Bartolomeu dos Mártires e o Santo Ofício português (1559-1582)” (Tese de doutoramento, Uni-
versidade de São Paulo, 2017).
4
Bruno Feitler, A Fé dos Juízes: inquisidores e processos por heresia em Portugal (1536-1774)
(Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2022).
5
Paiva, Baluartes da fé, 15.
6
Ibid., 139-140.
7
Manuel Augusto Rodrigues, A Inquisição e o Cabido da Sé de Coimbra (1580-1640) (Coimbra:
Coimbra Editora, 1979); Hugo Ribeiro da Silva, “Rezar na Sé, despachar no Santo Ofício: capi-
tulares de Coimbra ao serviço da Inquisição (1620-1670)”, in Em torno dos espaços religiosos-
monásticos e eclesiásticos (Porto: IHM-UP, 2005), 95-110; Ana Isabel López-Salazar Codes, “El
conflicto entre los cabildos catedralicios y las Inquisiciones ibéricas en la Edad Moderna”,
Estudis: Revista de historia moderna 47 (2021): 159-180; Ana Isabel López-Salazar Codes, “Los
canónigos doctorales en Portugal: orígenes sociales y carreras de una élite eclesiástica (siglos
XVI y XVII)”, Cuadernos de Historia Moderna 46, 2 (2021): 697-727.
[312]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

ordens religiosas, que forneciam clérigos, por exemplo, para a tarefa de censura
dos livros (os designados qualificadores8), mas também sacerdotes locais, com
posições de destaque, e que ocupavam os lugares de comissário ou de notário9.
Este tópico tem vindo a ser desenvolvido sob diferentes escalas de análise e pon-
tos de vista, quer para Portugal metropolitano, como para o império, incluindo,
entre os espaços observados, o Brasil10, o continente africano11 ou a Ásia portu-
guesa12. Há que notar que esta bibliografia tem operado, sobretudo, a dois níveis.
Por um lado, destaca a ideia de que a Inquisição se suportou nas redes instituci-
onais da Igreja para se enraizar no território, quer numa fase mais inicial da sua
existência, quer em regiões onde a implementação das suas redes de agentes lo-
cais próprias foi menos bem-sucedida. Por outro, dá ênfase à contínua
aproximação que fez com níveis distintos das hierarquias eclesiásticas, que

8
José Eduardo Franco e Célia Tavares, Jesuítas e Inquisição: cumplicidades e confrontações
(Lisboa: Sinais de Fogo, 2012); Grayce Mayre Bonfim Souza, Para remédio das almas: comissá-
rios, qualificadores e notários da inquisição portuguesa na Bahia colonial (Vitória da
Conquista: Edições UESB, 2014).
9
Nelson Vaquinhas, “Os comissários do Santo Ofício em Loulé na primeira metade do século
XVIII: percursos, parentelas e fluxos de correspondência”, Al-Úlyá – Revista do Arquivo Muni-
cipal de Loulé 13 (2009): 131-143; Fernanda Olival, “Clero e família: os notários e comissários do
Santo Ofício no Sul de Portugal (o caso de Beja na primeira metade do século XVIII)”, in:
Familia, jerarquización y movilidad social, ed. Giovanni Levi e Raimundo A. Rodríguez Pérez
(Murcia: Universidad de Murcia, 2010), 101-13; Leonor Dias Garcia, “Comissários e notários do
Santo Ofício naturais e moradores em Braga (1700-1773): perfil social”, Cadernos de Estudos
Sefarditas 17 (2017): 101-137.
10
Bruno Feitler, “Poder episcopal e ação inquisitorial no Brasil”, in. A Inquisição em xeque: te-
mas, controvérsias, estudos de caso (Rio de Janeiro: EdUERJ, 2006), 33-45; Pollyanna Mendonça
Muniz e Yllan de Mattos, “Vigiar a ortodoxia: limites e complementaridade entre a justiça ecle-
siástica e a Inquisição na América Portuguesa”, Revista de História 171 (2014): 287-316; Luiz
Fernando R. Lopes, “Ascensão no clero, obstrução na Inquisição: a elite eclesiástica colonial
reprovada no Tribunal do Santo Ofício português”, História Unisinos 26, 3 (2022): 435-447.
11
Filipa Ribeiro da Silva, “A Inquisição em Cabo Verde, Guiné e S. Tomé e Príncipe (1536 a
1821): contributo para o estudo da política do Santo Ofício nos territórios africanos” (Disser-
tação de mestrado, Universidade Nova de Lisboa, 2002); Filipa Ribeiro da Silva, “A Inquisição
na Guiné, nas ilhas de Cabo Verde e São Tomé e Príncipe”, Revista Lusófona de Ciência das
Religiões 5-6 (2004): 157-173; Matilde Mendonça dos Santos, “Os Bispos e o Tribunal do Santo
Ofício no arquipélago de Cabo Verde (1538-1646)” (Dissertação de mestrado, Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra, 2010).
12
Célia Tavares, “A cristandade insular: jesuítas e inquisidores em Goa (1540-1682)” (Tese de dou-
toramento, Universidade Federal Fluminense, 2002); Célia Tavares, “Inquisição ao avesso: a
trajetória de um inquisidor a partir dos registros da Visitação ao Tribunal de Goa”, Topoi 10, 19
(2009): 17-30; Ana Paula Sena Gomide, “Inquisidores e jesuítas em defesa do catolicismo: a expe-
riência imperial portuguesa na Índia (séculos XVI-XVII)”, Revista 7 Mares 1 (2012): 42-50; Miguel
Rodrigues Lourenço, “Bispo da China e inquisidor apostólico. D. Leonardo de Sá e os inícios da
representação inquisitorial em Macau”, Historiografia: Revista de Cultura 48 (2014), p. 49-67.
[313]
viram nos estatutos de limpeza de sangue aplicados pelo Santo Ofício13 um me-
canismo de mobilidade social ascendente.
Menos estudado tem sido o tema das relações financeiras que constituíam
uma tríade institucional da qual faziam parte a Coroa, a Igreja e o Santo Ofício.
Conhece-se, por exemplo, o esforço da Monarquia, na segunda metade do século
XVI, no sentido de obter dividendos dos rendimentos da Igreja que desemboca-
ram nas primeiras fontes de receita da Inquisição, na longa duração14, seguindo-
se, de perto, o que sucedia em Espanha15. Também se conhecem detalhes das
tentativas de alargamento destas receitas, da primeira metade de seiscentos, to-
davia infrutíferas, devido à incapacidade de obter da Coroa a aprovação para
aumento das receitas a partir dos cofres da Igreja16. Carlos Moreira Azevedo deu
outro contributo ao perceber que, no século XVIII, no contexto de averiguação
do quadro financeiro do bispado do Porto, pelo, então, novo prelado, tinha ha-
vido uma tentativa de alargamento das receitas da Inquisição17, tema
mencionado, brevemente, por José Pedro Paiva18.
Este trabalho segue as pistas de Azevedo ao analisar o contexto em que D.
João V (r. 1706-50) estabeleceu contactos com o papado com o intuito de conce-
der à Inquisição um novo sustentáculo financeiro, a partir dos rendimentos de
um conjunto de igrejas paroquiais de Portugal continental. Tinha por base a ex-
periência quinhentista, quando cabidos e bispados foram chamados a contribuir
com prebendas e pensões para os cofres inquisitoriais. No século XVIII, a solução
desenhada passou por um nível hierárquico mais baixo na escala das instituições

13
José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como instân-
cia legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista Crítica de Ciências
Sociais 40 (1994): 109-135.
14
Ana Isabel López-Salazar Codes e Giuseppe Marcocci, “Struttura economica: Inquisizione
portoghese”, in Dizionario Storico dell’Inquisizione, ed. Adriano Prosperi, Vincenzo Lavenia,
e John Tedeschi, vol. 2, (Pisa: Edizioni della Normale, 2010). 1537-1541; Bruno Lopes, “Os pilares
financeiros da Inquisição portuguesa (1640-1773)” (Tese de doutoramento: Universidade de
Évora, 2021), 104-120.
15
José Martínez Millán, “Las canonjías inquisitoriales: un problema de jurisdicción entre la
Iglesia y la Monarquía (1480-1700)”, Hispania Sacra 34, 69 (1982): 9-63.
16
Ana Isabel López-Salazar Codes, Inquisición y política: el gobierno del Santo Oficio en el Por-
tugal de los Austrias (1578-1653) (Lisboa: Centro de Estudos de História Religiosa da
Universidade Católica Portuguesa, 2011), 201, 226; Lopes, “Os pilares financeiros da
Inquisição”, 120-123.
17
Carlos A. Moreira Azevedo, Rendimentos eclesiásticos e sustento da Inquisição, no episco-
pado portucalense de Fonseca e Évora (1741-1752) (Porto: Editora Ecclesialis, 2016).
18
Paiva, Baluartes da fé, 403.
[314]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

eclesiásticas, recaindo sobre as paróquias, talvez, almejando-se um nível menor


de resistência das estruturas eclesiásticas.
O texto está estruturado em quatro partes. Na primeira analisa-se o con-
texto do projeto de alargamento das receitas do Santo Ofício, que envolveu a
Monarquia, a Igreja e o Tribunal. Demonstra-se que, enquanto a Inquisição não
conseguiu obter financiamento a partir desta nova fonte de receita, coube à fa-
zenda régia assegurar um pagamento anual. Em seguida, estuda-se a
aplicabilidade no terreno dos documentos emanados de Roma e sancionados
pelo rei de Portugal. Para esse efeito, a Inquisição contou com o apoio do bispo
do Porto e foi na sua jurisdição que se ensaiou o alargamento do financiamento
do Tribunal, a partir de pensões alocadas aos rendimentos de igrejas paroquiais
a favor da Inquisição de Coimbra. Na terceira parte, demonstra-se como o pro-
jeto teve dificuldades de implementação, já que os párocos das igrejas escolhidas
para o efeito se recusaram pagar as pensões alegando quer o direito de padroado,
quer a incapacidade financeira dos rendimentos da sua paróquia. No final, dese-
nha-se a hipótese de insucesso deste projeto, já que, pelos anos de 1770, a
Inquisição, praticamente, não recebia nenhum dos montantes definidos, quer
pelos documentos pontifícios, quer pela Coroa.

Da “nova consignação” de 1742 à bula papal de 1743


Nos anos de 1740, o projeto que D. João V punha em marcha, e que tinha
por objetivo a atribuição de uma nova dotação financeira ao Santo Ofício, a par-
tir da fazenda régia, não constituía uma novidade. Desde o século XVI, ou seja,
desde a instalação do Tribunal em Portugal, em 1536, que a Coroa teve um papel
central na estruturação da fazenda inquisitorial19. Fosse por meio de mecanismos
conjunturais ou com perspetivas de longo prazo, foram os cofres régios que per-
mitiram a manutenção das finanças inquisitoriais saudáveis, não obstante poder
dispor dos réditos gerados pela sua atividade repressora e da aplicação dos esta-
tutos de limpeza de sangue aos candidatos a cargos inquisitoriais20. O papel do
financiamento régio foi central e permitiu ao Tribunal consolidar-se e

19
López-Salazar Codes e Marcocci, “Struttura económica”; López-Salazar Codes. Inquisición y
política; Giuseppe Marcocci e José Pedro Paiva, História da Inquisição portuguesa (1536-1821)
(Lisboa: Esfera dos Livros, 2013); Lopes, “Os pilares financeiros da Inquisição”.
20
Cátia Antunes e Filipa Ribeiro da Silva, “In Nomine Domini et In Nomine Rex Regis: Inqui-
sition, Persecution and Royal Finances in Portugal, 1580-1715”, Religione e Istituzioni Religiose
nell’Economia Europea: 1000-1800, ed. Francesco Ammannati (Firenze: Firenze University
Press, 2012), 377-410; Lopes, “Os pilares financeiros da Inquisição”, 90-181.
[315]
desenvolver a sua missão sociopolítica. Nos bastidores de muitas destas diligên-
cias estiveram preocupações com o pagamento de salários, ou seja, com as
estruturas hierárquicas, mais do que a manutenção dos presos ou a perseguição
das heresias.
Em meados do século XVIII, o cenário não era diferente e as remunerações
estiveram no cerne dos argumentos que o cardeal D. Nuno da Cunha de Ataíde
e Melo21 (doravante cardeal da Cunha), inquisidor-geral (1707-50), apresentou a
D. João V quando solicitou o aumento das rendas do Santo Ofício. Considerava-
as insuficientes, uma vez que “os ministros, e outros oficiais do tribunal do Santo
Ofício da Inquisição pela tenuidade dos seus ordenados não podiam subsistir
com a decência competente aos lugares que ocupavam”22. Em 1741, o monarca
autorizou a realização de diligências junto da Sé Apostólica23, a fim de se conse-
guir aumentar as receitas inquisitoriais a partir dos rendimentos da Igreja
portuguesa e alcançar a melhoria financeira desejada pelo cardeal da Cunha. Em
fevereiro de 1742, o monarca saberia que o papado estaria favorável: “a qual graça
me consta estar Sua Santidade inclinado a conceder”24. Ao revés do que tinha
sucedido no século XVI, quando se atribuíram pensões nos bispados e arcebis-
pados e conezias nos cabidos catedralícios25, nesta conjuntura, o financiamento
do Santo Ofício seria suportado pelo rendimento de igrejas paroquiais, o que
conferia novidade ao modelo que se procurava introduzir.
No entanto, o rei antecipava a morosidade dos trabalhos, em Roma26, por
um lado, e, por outro, o ser necessário aguardar que os benefícios ficassem va-
gos27, e decidiu atribuir ao Santo Ofício uma renda conjuntural – como já tinha
sucedido no passado – cujo pagamento caberia à fazenda régia. Era conjuntural

21
Maria Luísa Braga, A Inquisição em Portugal: primeira metade do séc. XVIII: o inquisidor geral
D. Nuno da Cunha de Athayde e Mello (Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica,
1992); Afrânio Carneiro Jácome, O inquisidor como político: a trajetória política do cardeal D.
Nuno da Cunha de Ataíde e Melo (1664-1750). Tese de doutoramento. Recife: Universidade Fe-
deral de Pernambuco, 2020.
22
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 817, fls. 92-92v.
23
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 9.
24
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 817, fls. 92-92v.
25
Bruno Lopes, “Sustentar a Inquisição com rendimentos eclesiásticos: uma aproximação ao tema
(séculos XVI-XVIII)”, Familia, Cultura Material y Formas de Poder en la España Moderna, ed. Má-
ximo García Fernández (Madrid: Fundación Española de Historia Moderna, 2016), 737-749.
26
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 10.
27
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 817, fls. 92-92v.
[316]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

porque o rei esperava que, à medida que se fosse conseguindo obter mais bene-
fícios, o valor atribuído pela Coroa fosse diminuindo.
Tal medida tinha acoplada algumas regras que lhe atribuíam particula-
rismo. Desde logo, apesar de ter como finalidade o aumento de salários, o seu
pagamento aos ministros e oficiais poderia não ser efetuado todos os anos, ga-
nhando contornos de uma mercê anual, cuja liquidação ficava a arbítrio do
inquisidor-geral. Por outro lado, era um pagamento suplementar e, por isso, não
estava incluído nas habituais folhas de salários redigidas por cada tesoureiro do
tribunal, cabendo ao secretário do Conselho Geral, em Lisboa, a sua elaboração
e envio para os tribunais de distrito28. Com esta nova fonte de receita, o Conselho
Geral passou, igualmente, a dispor de uma fonte de financiamento direta para
os seus cofres29, o que, até aí, não sucedia, já que, financeiramente, dependia dos
excedentes dos tribunais de distrito30. Para distinguir esta nova renda de outras
anteriormente atribuídas, seria designada, contabilisticamente, de “nova consig-
nação”31.
Definidas as regras, a 19 de fevereiro de 1742, D. João V fez sair o decreto
que atribuía à Inquisição 4 800 000 réis anuais32, a serem pagos pela Junta da
Administração do Tabaco, a partir de janeiro anterior, e “que se despenderão à
ordem, e arbítrio do dito Cardeal inquisidor-geral em favor dos ditos ministros,
e oficiais, que lhe parecer”33. A documentação permite deduzir que, na maioria
dos anos seguintes34, o pagamento do valor ao Santo Ofício terá ocorrido, em-
bora não se saiba qual a regularidade com que se pagou esta mercê extraordinária
aos ministros e oficiais. Onerar o tabaco também não era novo35 e não constituía
um encargo grande para o contrato do estanco, que nos anos de 1741-43 estaria
arrendado por 764 000 000 réis36, ou seja, o valor que se atribuía à Inquisição
representava 0,6%.

28
Veja-se, a título de exemplo aleatório: Lisboa, ANTT, TSO, IC, mç. 64, doc. 1, fl. não numerados.
29
Lopes, “Os pilares financeiros da Inquisição”, 557.
30
Ibid., 560-561.
31
Lisboa, ANTT, CGSO, Livros e papéis de contas, mç. 10, cx. 22, n.º 1367, fls. 88-89.
32
Para se ter uma ideia de grandeza, este valor corresponderia a cerca de um quarto do rendimento
do arcebispado de Évora, em 1738-39, situado em 22 765 776 réis. Évora, BPE, cód. C-IX/2-12.
33
Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 817, fls. 92-92v.
34
Pelo menos até 1773. Ver: Lopes, “Os pilares financeiros da Inquisição”, 521.
35
Ibid., 140–55.
36
João Paulo Salvado, “O estanco do tabaco em Portugal: contrato-geral e consórcios mercan-
tis (1702-1755)”, in Política y hacienda del tabaco en los Imperios Ibéricos (siglos XVII-XIX), ed.
Santiago de Luxán Meléndez (Madrid: Luxán, 2014), 153.
[317]
Paralelamente, avançavam as negociações em Roma37 a fim de se obter a
autorização do papa para o Santo Ofício levar a bom porto o alargamento das
suas fontes de receita que, teoricamente, recairiam sobre os três tribunais distri-
tais, a partir dos rendimentos das igrejas paroquiais38. É provável que a presença
de D. Frei José Maria da Fonseca e Évora (1690-1752, doravante frei José Maria)39,
em Roma, desde 1712 e que, em 1739-41, o rei agraciou com o lugar de bispo do
Porto, vacante desde 171740, tenha contribuído para o sucesso das diligências.
Sendo uma figura conhecedora dos meandros políticos da capital da cristan-
dade41, é provável que tenha intercedido junto da Cúria Romana em apoio do rei
e da Inquisição42. Também se deve considerar que o contexto seria favorável às
pretensões da Coroa de Portugal. Recorde-se, por exemplo, a elevação da Sé de
Lisboa a capela patriarcal, em 1716, e a subsequente construção da nova Patriar-
cal43. O próprio inquisidor-geral era uma figura de destaque no panorama
internacional, tendo assistido à eleição do papa Inocêncio XIII, em 172144, o qual
lhe atribuíra, em seguida, a dignidade de cardeal de Santa Anastácia45.
O breve papal foi, assim, promulgado a 6 de abril de 174346, estipulando-se
o valor de 6 000 000 réis anuais (1 200 000 réis acima do montante atribuído pela
Coroa), que o Santo Ofício poderia vir a coletar através das dioceses do território
metropolitano47, a partir dos rendimentos das igrejas paroquiais. Nesta fase, não
se definiu o montante que caberia a cada igreja, nem que parcela se esperava
obter para cada um dos tribunais distritais. Quiçá se equacionasse a hipótese de
caberem 2 000 000 réis a cada um, ou que o de Lisboa, pela sua centralidade,
viesse a arrecadar um pouco mais, mas a documentação é omissa quanto a este
detalhe. Parece, todavia, claro que o bispado do Porto serviu de experiência à

37
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 9–10.
38
Ibid., 33.
39
José Pedro Paiva, Os bispos de Portugal e do Império: 1495-1777 (Coimbra: Imprensa da Uni-
versidade de Coimbra, 2006), 522; Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 13-31.
40
Paiva, Os bispos de Portugal e do Império, 585.
41
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 21.
42
Ibid., 9.
43
A este propósito vejam-se: Eduardo Brazão, Subsídios para a História do Patriarcado de Lis-
boa (1716-1740) (Porto: Livraria Civilização, 1943); André Duarte Martins da Silva, “A Basílica
Patriarcal de D. João V (1716-1755)” (Dissertação de mestrado, Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2018).
44
Braga, A Inquisição em Portugal, 18.
45
Braga, A Inquisição em Portugal, 68.
46
Publ. Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 153-59.
47
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 9.
[318]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

aplicação do diploma, para o que, tanto a Coroa como a Inquisição, contaram


com o apoio de frei José Maria, não havendo indícios da inclusão de outras dio-
ceses neste projeto.

A ação do bispo do Porto


Para a operacionalidade do breve papal no terreno, a Inquisição contava –
como já tinha sucedido noutras situações do passado – com o apoio das estrutu-
ras eclesiásticas, nomeadamente dos bispos48. Neste episódio, o seu papel seria
de intermediário entre a Inquisição e os clérigos das paróquias escolhidas para
financiar o Tribunal49. Antevia-se a possibilidade de resistência dos eclesiásticos
locais, como, de resto, tinha sucedido com os prelados no século XVI50, por isso,
o papel dos bispos seria de mediador entre ambas as instâncias. A implementa-
ção seria negociada pelo núncio, em Lisboa, e pelo próprio inquisidor-geral51. Ao
que parece, o bispo de Miranda, D. Diogo Marques Morato (1740-49)52, estaria
favorável a cooperar53, mas não se sabe mais nada acerca deste assunto, já que
não há vestígios documentais. Talvez o falecimento do prelado, em 1749, tenha
alterado o andamento dos trabalhos.
No caso do bispado do Porto, como frei José Maria tinha acompanhado de
perto todas as diligências em Roma, não foram necessárias demasiadas negocia-
ções. Logo que assumiu a sua diocese, em 1741, deu início a solicitudes para pôr
o breve em execução. A 2 de julho de 1743, dirigiu uma carta a todos os eclesiás-
ticos do seu bispado, que poderiam vir a ser incluídos no, então, novo esforço de
financiamento da Inquisição54, excluindo-se os dos padroados régio e secular55,
detalhe que não seria cumprido, como se verá. O facto de o bispado do Porto
estar na jurisdição da Inquisição de Coimbra determinou que os proventos obti-
dos com as novas pensões revertessem para os seus cofres.
A carta que o prelado dirigiu aos padres das suas paróquias estipulava di-
versas regras para a forma como se deveriam operacionalizar os trabalhos. O
objetivo máximo era averiguar qual o rendimento das paróquias a fim de se

48
Paiva, Baluartes da fé, 139-196, 322-324.
49
Ibid., 162, 403.
50
Ibid., 324, 345; Lopes, Os pilares financeiros da Inquisição, 106-109.
51
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos e sustento da Inquisição, 35.
52
Paiva, Os bispos de Portugal e do Império, 583.
53
Paiva, Baluartes da fé, 403.
54
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 33-35.
55
Ibid., 9, 33.
[319]
estipular o valor que cada uma poderia dispor para financiamento do Santo Ofí-
cio. Frei José Maria fazia, assim, saber aos seus eclesiásticos que:

A fim de se poder impor a sobredita taxa perpétua com justiça e equidade se


faz preciso saber por inteiro o rendimento de cada benefício, ordena também
Sua Santidade que cada um dos que gozam os ditos benefícios eclesiásticos
excetuando somente os do Padroado Real e de pessoas seculares […], mani-
festem e declarem logo por escrito ao pé desta com seu juramento o
rendimento total e integral de cada benefício […], regulando a este ofício as
mesmas rendas na dita deposição que hão de fazer por escrito pelo valor e
importância dos cinco anos precedentes os que no dito tempo os tiverem já
gerados e os que forem do mesmo tempo providos pelo tempo da sua posse56.

Acrescentava que os incumpridores recairiam em pena de excomunhão,


para além das de perjúrio, que se aplicariam por juramento falso. A ameaça si-
nalizava a importância do negócio e, de facto, reuniram-se muitas respostas57.
Na resposta, dever-se-ia referir, com clareza, qual o rendimento total da
paróquia, para, posteriormente, se definir o valor da pensão, que seria pago em
duas tranches (São João e Natal58). A expectativa era a de atribuir um encargo de
100 000 réis/ano a cada igreja59, mas é possível que nem todas fossem taxadas da
mesma forma, até porque os rendimentos eram desiguais. Talvez seja esta a
génese da primeira lista de igrejas que seriam alvo da aplicação do breve papal,
o que não terá sido transmitido ao Santo Ofício, antes de 1750 (ver infra Tab. 1).
O resultado destes trabalhos ocorreu em maio de 1750, quando foi emitido o
diploma papal no qual se determinava que doze igrejas do bispado do Porto fos-
sem pensionadas a favor da Inquisição de Coimbra60.
Desconhece-se o critério que presidiu à escolha destas paróquias, distribu-
ídas por seis concelhos, totalizando doze igrejas, mas sabe-se que os trabalhos
de inquirição acerca dos rendimentos destas paróquias foram mais amplos61.
Pretendia-se averiguar o que poderia ser atribuído ao financiamento do Santo
Ofício, mas também apurar a situação financeira do bispado do Porto, despro-
vido de prelado (1717-41)62.

56
Ibid., 33-34.
57
Ibid., 35, 81-139.
58
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2506.
59
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 33.
60
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2510.
61
Azevedo, Rendimentos eclesiásticos, 9.
62
Ibid., 33-36.
[320]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

A Inquisição de Coimbra estimava, assim, arrecadar 900 000 réis anuais


para os seus cofres, o que significava 15% do valor mencionado na bula papal de
1750 (6 000 000 réis). Para se ter uma ordem de grandeza, tal valor, em termos
relativos, corresponderia a cerca de 4500 dias de trabalho consecutivo de um
oficial de pedreiro, a preço diário de Coimbra de 200 réis, em 173963.

Pensões das igrejas paroquiais do bispado do Porto a favor da Inquisição de Coimbra


– valores nominais em réis e deflacionados com base em salários de pedreiro

Fontes: Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2518; mç. 6, cx. 12, n.º 2520; mç. 6, cx. 12, n.º 2523.
Notas: 1 média; 2 preços de Coimbra de 1739 (200 réis/dia do salário de um oficial de pedreiro).

Há que notar que o encargo previsto de 100 000 réis/ano não seria idêntico
para todas as paróquias, como se previra, o que terá tido que ver, provavelmente,
com o rendimento apurado. Contudo, pode evidenciar-se a tendência para o es-
tabelecimento de um valor que rondaria cerca de 10% do total do rendimento
anual de cada paróquia e que representaria, em média, 12,5% de despesa às mãos
dos párocos destas paróquias. A esta hipótese escapavam as igrejas de Bougado
(22%) e Penha Longa (20%).
Em fevereiro de 1751, o Conselho Geral escrevia à Inquisição de Coimbra,
porque queria “saber o que se tem passado com a bula das pensões nas igrejas
do bispado do Porto; se Vossas Mercês mandaram notificar os abades, ou em que

63
Valor retirado da base de dados do projeto PWR – Prices, Wages and Rents in Portugal, 1300-
1910, disponível em: http://pwr-portugal.ics.ul.pt/ [consultado em 2023-01-31]
[321]
termos se acha este negócio”64, indiciando que, apesar das diligências levadas a
cabo, ainda não teria havido lugar a qualquer tipo de pagamento. A carta do
Conselho Geral terá, assim, exercido pressão sobre o tribunal distrital para que
atuasse no sentido de dar cumprimento à bula papal. Dispõe-se de uma declara-
ção do notário apostólico do bispado do Porto, padre Carlos Manuel Coutinho,
confirmando que, em março de 1751, já se tinham notificado os párocos: “certi-
fico, e faço certo que em observância desta sentença apostólica retro aos
reverendos abades, e reitor das doze igrejas nela mencionadas intimei, e notifi-
quei”65.

Resistências: da incapacidade financeira ao direito de padroado


Definidos os caminhos a seguir e obtidas as autorizações do papado para
colocar o projeto em marcha, a Inquisição podia dar início à coleta das pensões.
Resta saber de que modo foram recebidas estas determinações pelos clérigos das
paróquias às quais tocavam estes pagamentos ao Santo Ofício.
Logo em outubro de 1751, o reitor da igreja de São Félix da Marinha, na
Feira, Manuel Pinto Sobreira, embargou a aplicação do documento alegando que
o novo encargo não cabia na repartição dos rendimentos da sua paróquia. O
Conselho Geral ordenou que a Inquisição de Coimbra encomendasse diligência
a um comissário do Santo Ofício, para se “saber com exação o rendimento indi-
vidual da dita igreja”66. Esta informação seria fundamental para que o agente
pudesse trabalhar nos embargos que o reitor apresentara.
Em abril de 1752, era o padre Nicolau Clamoux, da paróquia de São Miguel
de Paredes, em Penafiel, quem corria com outros embargos contra a Inquisição
sob o mesmo pretexto: não reconhecia a imposição da pensão de 50 000 réis na
sua paróquia. Igualmente, o Conselho Geral ordenou à Inquisição de Coimbra
que mandasse averiguar o valor do rendimento da igreja67, cujo resultado se des-
conhece.
Em novembro de 1754, o abade de São Veríssimo de Nevogilde, no conce-
lho de Lousada, tinha falecido e esperava-se que a mudança de eclesiástico viesse
a ser benéfica para o Santo Ofício. O comissário daquela região informava, então,
que tinha instruído o novo clérigo acerca da necessidade de pagar a pensão: “ele

64
Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 34, fl. 122.
65
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2518.
66
Carta de 2 de outubro de 1751. Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 34, fls. 158-159.
67
Carta de 1 de abril de 1752. Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 34, fls. 186-186v.
[322]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

me respondeu que não duvidava com dar cumprimento à bula de Sua Santidade,
e pagar a dita pensão, a este santo Tribunal”68. Todavia, o novo abade ripostava
elencando os diversos encargos financeiros que a sua igreja tinha e que obstavam
a que pudesse onerar o que era devido à Inquisição. Naquele momento, situava
o rendimento anual da igreja em 500 000 réis – valor superior ao que tinha sido
averiguado, em 1750 (ver supra Tab. 1). Alegava que, após proceder aos referidos
pagamentos, o que lhe sobrava era pouco “para poder pagar a este santo tribunal,
e poder-se sustentar”69.
O falecimento dos párocos figurava-se como uma oportunidade para se
impor o pagamento das pensões e conhecem-se vários exemplos que o atestam70.
No entanto, nem sempre a estratégia colheu bons frutos. Apesar de novos no
cargo, os párocos perpetuaram a oposição dos seus antecessores e nem a ameaça
de perda do lugar de pároco daquela igreja os demoveria71. Talvez porque ten-
tassem, entretanto, informar-se da real situação financeira da sua nova paróquia
e, de facto, não fosse favorável a suportar este encargo.
A resistência destes párocos não se esgotou, todavia, na argumentação da
incapacidade financeira. Noutros casos alegava-se o direito de padroado. No
exemplo das paróquias de Perafita (Maia) e Duas Igrejas (Aguiar de Sousa), os
clérigos evocavam que “as tais igrejas não são insolidum do Ordinário, porque
em cada uma delas tem quatro meses de alternativa, na primeira o mosteiro dos
cónegos regrantes de Moreira e na segunda o de Vilela; e que sem licença destes,
se não podiam impor as tais pensões”72. Para verificar a validade dos motivos
evocados, a Inquisição ordenou que se averiguasse “se com efeito são padroeiros,
e por que título, ou se têm alguma particular razão, ou direito para isentarem
aos ditos párocos de pagarem as referidas pensões, ou se eles buscam este pre-
texto para verem se podem livrar-se de as pagar?”73 e nomeou, em fevereiro de
1759, dois comissários para efetuarem aqueles trabalhos74. O Santo Ofício duvi-
dava da veracidade dos motivos assinalados pelos párocos, mas as averiguações

68
Carta de 7 de novembro de 1754. Lisboa, ANTT, TSO, IC, mç. 95.
69
Pagava 300 240 réis a um abade reservatário anterior ao seu predecessor; 60 000 réis a dois
sobrinhos do mesmo abade reservatário; todo o azeite da lâmpada do Santíssimo Sacramento
da sua igreja e vinte medidas de milho à mitra do bispado do Porto. Lisboa, ANTT, TSO, IC,
mç. 95.
70
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2499; IC, mç. 57; mç. 96.
71
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2506.
72
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2499.
73
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2499.
74
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2498.
[323]
ordenadas pelo Tribunal revelaram que os argumentos dos eclesiásticos tinham
fundamento.
Uma paróquia cujo padroado pertencesse à Igreja ou aos ordinários pode-
ria ser onerada com o pagamento de pensões sob a ordem do papa, sem que os
eclesiásticos se pudessem opor, segundo se dizia num memorial sobre este as-
sunto75. Haveria, portanto, que procurar os fundamentos no padroado secular
para legitimar a escusa ao pagamento. No caso das citadas paróquias de Perafita
e de Duas Igrejas, o padroado pertencia, respetivamente, aos mosteiros de Sal-
vador de Moreira e de Santo Agostinho da Serra, anexo ao de Vilela, de acordo
com a informação apurada pelos comissários, “e que sem licença destes, se não
podiam impor as tais pensões”76, sendo que os seus padroeiros tinham sido pes-
soas singulares e não a Igreja, por isso o padroado era dos cenóbios e não do
papa. Fizeram-se treslados de autos beneficiais pelos quais se comprovava que
ambas as igrejas eram do padroado destes conventos77. Além disso, os comissá-
rios procuraram nos cartórios eclesiásticos documentos que atestavam a sua
fundação secular e não eclesiástica. De tudo se deu informação ao Santo Ofício.
Significava, pois, que, na perspetiva dos párocos, o diploma papal não tinha exe-
cução sobre as suas igrejas, por serem ambas de fundação secular e não papal,
ficando, por isso, o sumo pontífice impedido de definir o destino do rendimento
destas paróquias.
Em dezembro de 1759, a Inquisição de Coimbra sumariava a atribuição
destas pensões a favor do tribunal, salientando a ideia de que, na bula papal, não
havia menção ao padroado das igrejas, ou seja, não se tinha referido “a Sua San-
tidade a natureza das ditas igrejas”78. Neste caso, parecia-lhe que “está nos
termos de se verificarem as pensões, e se proceder contra os dois abades [de
Perafita e Duas Igrejas], que recusam pagá-las, pelo juiz executor da mesma bula,
vista a concessão de Sua Santidade, senhor dos ditos benefícios”79. Para tentar
resolver o problema solicitaram-se três pareceres.
O primeiro foi redigido pelo deputado da Inquisição de Lisboa, João de
Oliveira Leite de Barros, em fevereiro de 176080. Opinava que as diligências, em

75
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2500.
76
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2501.
77
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2501; mç. 6, cx. 12, n.º 2516.
78
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2502.
79
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2505.
80
Juiz-geral das ordens militares e deputado da Inquisição de Lisboa, a partir de 1753. Lisboa,
ANTT, TSO, CGSO, Habilitações do Santo Ofício, João, mç. 98, doc. 1646.
[324]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

Roma, tinham negligenciado informação relevante junto do papa, nomeada-


mente que as igrejas de Perafita e de Duas Igrejas pertenciam ao padroado de
conventos e, por isso, os clérigos tinham razão ao recusarem proceder ao paga-
mento. Acrescentava que o bispo do Porto não podia impor este encargo sobre
paróquias que não estivessem sob a sua alçada. Barros rematava apelando que se
fornecesse informação mais precisa ao papado, procurando ultrapassar este im-
bróglio de jurisdições.
Em março de 1760, foi redigido novo parecer, do punho de José Elias do
Vale, de quem nada se sabe, que se fundava no Direito Canónico, evocando a
tratadística, para justificar os seus argumentos. Para Vale, o papa “é senhor ab-
soluto de todas as igrejas do orbe cristão, e de todos os seus bens, e os ordinários
são uns meros administradores”81. Portanto, era necessário averiguar se, em
Roma, tinha havido ou não conhecimento do padroado secular afeto às igrejas
em questão. Em caso afirmativo, era legítimo a Inquisição proceder contra os
párocos e requerer os pagamentos em falta, ainda que não houvesse autorização
dos mosteiros a quem pertencia o padroado.
No mesmo sentido do parecer de Vale ia o de Francisco Velho de Azevedo,
de quem também nada de sabe, redigido em junho de 1760. Socorria-se, igual-
mente, da tratadística para fundamentar a obrigatoriedade de os eclesiásticos
pagarem as pensões e alegava que a bula não tinha sido convenientemente inter-
pretada. Azevedo concluía o voto referindo que “insistindo os párocos na sua
repugnância, se pode tratar da execução das pensões vencidas por via de monitório,
e procedimento de censuras na forma da dita bula, sentença do arcebispo de Lace-
demónia, e estilo requerendo-se com este título perante o mesmo arcebispo”82.
Em suma, os pareceres eram favoráveis aos interesses do Santo Ofício, pre-
ocupando-se menos com a proteção do direito de padroado, mas, em 1762,
nenhuma das duas paróquias tinha procedido a qualquer pagamento à Inquisi-
ção de Coimbra83.
Em 1763, falecera o abade da igreja de Duas Igrejas, haveria perto de um
ano84, sendo substituído por Matias Pinto Torres. O Santo Ofício aproveitou a
ocasião e ordenou a um seu comissário que procedesse à execução da bula. Ao

81
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2504.
82
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2503.
83
Cf. Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 449.
84
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2509.
[325]
efetuar a referida ordem, o agente deparou-se com a recusa de Torres85. O argu-
mento evocado era o mesmo: o direito de padroado.
Em carta de 23 de julho de 1763, a Inquisição de Coimbra queixava-se ao
Conselho Geral de que ainda não tinha obtido resposta do bispo do Porto no
sentido da resolução de todos estes problemas. Acrescentava que tinha proce-
dido a todas as diligências para que os dois abades, de Perafita e Duas Igrejas,
efetuassem o pagamento, mas sem sucesso86. Entretanto, o problema do incum-
primento do pagamento estendia-se a mais paróquias87 e as perspetivas de vir a
cobrar o valor dos rendimentos definidos no documento papal começavam a es-
cassear.
Em outubro de 1763, o comissário do Santo Ofício, José António de Abreu,
escrevia para Coimbra referindo que o abade da igreja de São Lourenço do
Douro, no concelho de Bem Viver, Luís Gonçalves Valério, se recusava proceder
ao pagamento da metade de 50 000 réis em que se tinha fixado a pensão. Alegava
estar doente, mas o comissário via nessa alegação um motivo para se escusar ao
pagamento. Assinalava, na carta, que o tinha aconselhado a evitar litígios com o
Santo Ofício, ao que ele teria retorquido que “a igreja é de pouco rendimento
que não pode com as pensões”88. Com esta informação, o tribunal de Coimbra
apelou ao Conselho Geral, apontando que já se tinha obtido uma sentença contra
o antecessor de Valério, acerca do pagamento e que, então, “sucede não querer o
novo abade continuar no pagamento da mesma pensão […], pretendendo espoliar
esta Inquisição [de Coimbra] da posse, em que se acha há uns poucos de anos”89.
Era, apenas, mais um exemplo da resistência dos clérigos locais.
Nos primeiros meses de 1764, a Inquisição de Coimbra decidiu mudar de
estratégia. Começou por, em março, solicitar ao referido Francisco Velho de Aze-
vedo outro parecer acerca da obrigatoriedade de as igrejas pagarem as pensões.
À semelhança do redigido quatro anos antes, Azevedo era favorável ao Santo
Ofício, mas desta feita considerava importante que se suplicasse “a providência
a Sua Majestade fidelíssima para em conservação da posse, e direito do Santo
Ofício se lhe fazer pronto, e inteiro pagamento das pensões”90. Quiçá para exe-
cutar os conselhos de Azevedo, o tribunal de Coimbra ordenou, em abril,

85
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2533.
86
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2531.
87
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2519; mç. 6, cx. 12, n.º 2521.
88
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2521.
89
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2519.
90
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2517.
[326]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

diligências aos seus comissários91 “com todo o disfarce, cautela, e segredo” se


informassem “não só aos frutos certos, mas também aos incertos, e mais prós, e
percalços, que direitamente competirem a cada um dos abades das referidas
igrejas”92. O objetivo destes trabalhos era averiguar o rendimento de cada igreja
com o intuito de validar as justificações apresentadas pelos clérigos (ver supra
Tab. 1, coluna de 1764). Ao que parece – apesar da falta de informação – os tra-
balhos levados a cabo pelos comissários foram ao encontro dos do bispo do
Porto, de 1750. Ou seja, a Inquisição confirmou que o argumento dos eclesiásti-
cos relativamente ao rendimento anual das suas paróquias e à sua exiguidade,
que impossibilitava o pagamento estipulado, tinha validade.
Em julho de 1771, o pároco de Santa Maria de Ul, no concelho da Feira,
Manuel José Pereira, referia ter sido notificado por um comissário do Santo Ofí-
cio para pagar ao tribunal de Coimbra 40 000 réis, mas alegava ser
desconhecedor de tal obrigação93. Perante a resposta negativa de Pereira, a In-
quisição de Coimbra seguiu os procedimentos, então, já habituais: notificar os
seus comissários para averiguarem o rendimento anual da paróquia94. Em outu-
bro de 1773, o clérigo redigiu uma carta extensa ao tribunal de Coimbra na qual
expunha os motivos pelos quais se recusava pagar e que passavam – sem novi-
dade – pelo excesso de encargos financeiros sobre o rendimento da paróquia
(que situava nos 300 000 réis/ano), que o impediam de proceder à liquidação da
pensão95.
Pode, assim, supor-se que, concluídos estes inquéritos e obtida a atestação
da veracidade das declarações dos eclesiásticos, o tribunal de Coimbra se resignou
à incapacidade de os párocos efetuarem os pagamentos, quer tenha sido por falta
de capacidade financeira, quer com base no argumento do direito de padroado.

“Me disseram que ele nunca tal pensão pagara”


Entretanto, D. José I (r.1750-77) dava continuidade ao apoio da Coroa ao
financiamento da Inquisição. Em 1764, fez sair um decreto que atestava a manu-
tenção do pagamento dos 4 800 000 réis anuais ao Santo Ofício, iniciado por D.
João V, em 1742, ordenando ao Erário Régio que providenciasse os pagamentos:

91
Veja-se as cartas enviadas pela Inquisição de Coimbra e a resposta de cada comissário: Lis-
boa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2522; mç. 6, cx. 12, n.º 2524-2529.
92
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2522.
93
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2508.
94
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2512-2513.
95
Lisboa, ANTT, TSO, IL, mç. 39, n.º 21.
[327]
“e que daqui em diante se fique continuando a mesma assistência aos quartéis
debaixo das cláusulas determinadas no referido decreto”96. A determinação do
rei ia no sentido de manter o apoio financeiro da Coroa ao Tribunal, prática que
advinha, como explicitado, desde o século XVI.
É provável que seja dos anos de 1770 o memorial que traça um ponto de
situação relativamente aos pagamentos devidos pelas doze paróquias do bispado
do Porto à Inquisição de Coimbra97.

Pagamento das pensões das igrejas paroquiais à Inquisição de Coimbra (c.1770)

Fonte: Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 6, cx. 12, n.º 2511.

Deste projeto, ficam por esclarecer vários aspetos. Como se viu, o breve
papal de 1743 previa o estabelecimento do pagamento de pensões nos rendimen-
tos das igrejas paroquiais para os três tribunais do Santo Ofício. Mas, entre 1743-
73, só se assistiu a diligências nas paróquias do bispado do Porto oneradas a favor
da Inquisição de Coimbra. Não se sabe se, a partir de 1773, o Santo Ofício conse-
guiu fazer-se valer de outras ferramentas e conquistar terreno nesta luta com a
Igreja, plasmada nos párocos locais. Por exemplo, uma sondagem aos livros de
receita e despesa do tribunal de Lisboa aponta que não98.

96
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, Papéis avulsos, mç. 5, n.º 2205.
97
Considerou-se que o documento, plasmado na Tab. 2, seria desta data, porque o livro de
receita e despesa da Inquisição de Coimbra assinala o único recebimento de pensões no valor
de 50 000 réis proveniente da igreja de São Jorge sendo aquela que “é a única, que hoje paga”.
Lisboa, ANTT, TSO, IC, liv. 450.
98
Cf. por exemplo: Lisboa, ANTT, TSO, IL, liv. 372 (1790); 416 (1776); 419 (1780) e 434 (1800).
[328]
PENSÕES PARA A INQUISIÇÃO PORTUGUESA
Bruno Lopes

Os dados recolhidos sugerem a ineficácia de três décadas de diligências


levadas a cabo pelo Santo Ofício na tentativa de executar as determinações pa-
pais. Tal hipótese é corroborada pela documentação relativa à cobrança dos
rendimentos eclesiásticos, após a extinção do Tribunal, em 1821, que recaíram
sobre o Tesouro Público. Para além das dotações financeiras, estabelecidas na
segunda metade do século XVI, no rol realizado nos anos de 1820, apenas se
elenca outra verba paga pelo Mosteiro de São Vicente de Fora de Lisboa99 de
8 000 000 réis100, mas cuja origem se desconhece. Talvez este pagamento seja um
resquício do projeto inicial da Coroa, em articulação com o Santo Ofício e a
Igreja, que visava o alargamento das estruturas de financiamento do Tribunal.

Considerações finais
Este trabalho pretendeu contribuir para o conhecimento acerca das rela-
ções financeiras entre a Monarquia, o Santo Ofício e a Igreja. Se para outras
cronologias já se tinha maior entendimento relativamente a este assunto, este
texto alargou o saber para o século XVIII. Demonstra que, para o contexto ana-
lisado, as estruturas da Igreja não foram cooperantes com o Santo Ofício.
Acrescenta, igualmente, substância ao argumento do papel central da Coroa na
consolidação das finanças da Inquisição.
O projeto analisado demonstrou como as pretensões da Inquisição – vali-
dadas pela Coroa e pela Sé Apostólica – resultaram em insucesso, uma vez que a
aplicabilidade dos documentos papais sancionados pela Coroa, esbarrou na von-
tade dos párocos das igrejas às quais se pedia que contribuíssem para o
financiamento do Santo Ofício, mesmo sob ameaça de excomunhão ou de perda
do lugar que ocupavam na igreja.
Ao contrário do que sucedeu na segunda metade de quinhentos, nos anos
de 1740, procurou-se não o apoio dos cabidos e dos bispos, mas antes estender
as estruturas de financiamento da organização inquisitorial a níveis mais baixos
da hierarquia eclesiástica; talvez se considerasse que a obtenção de rendimento
a partir daí estivesse facilitada. Se assim se pensou, tal não chegou a acontecer,
pois a Inquisição deparou-se com a resistência dos clérigos locais. Ora argumen-
tavam que o papado não tinha direito de padroado sobre aquelas igrejas, ora que

99
Cf. Lisboa, Arquivo Histórico do Tribunal de Contas, Tesouro Público, TP 533.
100
José Veiga Torres, “A vida financeira do Conselho Geral do Santo Ofício da Inquisição”,
Notas económicas – Revista da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra 2 (1993):
34.
[329]
os seus rendimentos eram insuficientes para onerarem novas pensões para o
Santo Ofício. Estas negociações arrastaram-se e consumiram energias de ambos
os lados da barricada, e a Inquisição não conseguiu impor estes pagamentos,
pelo menos durante as três décadas seguintes.
Talvez seja de equacionar a hipótese de que a Inquisição da segunda me-
tade de setecentos já não tinha a força do passado e representaria um receio
menor, quando comparado com os séculos anteriores, facilitando, assim, atitu-
des de resistência à autoridade inquisitorial.

[330]
Brasil e Goa: algumas notas sobre a correspondência
inquisitorial portuguesa no Império português
Daniela Buono Calainho
Célia Tavares

A extinção do Tribunal do Santo Ofício foi tema amplamente debatido


nas cortes constituintes portuguesas de 1821. Aprovado o projeto, surgiu uma
última proposta, de autoria do deputado José Mendonça, sugerindo a queima
de todos os processos inquisitoriais em pleno Rossio, praça onde se localizava
o Palácio da Inquisição. Mas por unanimidade, não foi aprovada, impedindo
prejuízo incalculável ao estudo de manancial tão imenso de fontes produzidas
pelo Santo Tribunal ao longo de toda sua história.
A Inquisição foi uma das maiores produtoras e detentoras de fontes so-
bre sua atuação, se comparada ao conjunto das instituições portuguesas no
Antigo Regime: extensa, diversificada, sistematicamente organizada e classi-
ficada em cada um dos tribunais locais. Desse enorme conjunto, constam todo
o corpus legal do tribunal, os inúmeros processos, denúncias, visitações, lista-
gens de condenados, documentos vários sobre as habilitações dos candidatos
aos cargos da administração inquisitorial, livros de presos, registros de cor-
respondência, dentre outros fundos. Cada um dos tribunais regionais tinha
uma sistemática de guarda dos documentos, fundamental para o sucesso da
ação inquisitorial, a ponto dessas informações estarem dispostas nos regimen-
tos do Santo Ofício.
O Conselho Geral do Santo Ofício, órgão máximo da Inquisição portu-
guesa, centralizava decisões importantes e deliberava sobre consultas não
somente sobre os processos, sentenças, mas também instruções sobre prepa-
ração dos autos de fé, conflitos de jurisdição, situação financeira dos tribunais,
visitações locais e a própria vida cotidiana dos tribunais, seus membros e a
relação com outras potências europeias e o Papado1. Assim sendo, a gerência
da documentação administrativa inquisitorial também foi marcada pela cen-
tralização, organização e classificação.
Logo no Regimento de 1552, fica evidente a preocupação com a guarda
da documentação, dispondo que seria na “câmara do secreto” o local onde
deveriam estar, os “livros e registros e papéis pertencentes ao Santo Ofício”2.
No Regimento de 1640, já estavam definidos núcleos documentais, como os
livros específicos para delatados, decretos de prisão, listas de autos de fé, re-
gistros de diligências, livros de correspondências, dentre outros, bem como os
locais de guarda 3.
A eficiência do tribunal inquisitorial em organizar e estruturar um cir-
cuito de comunicação foi um dos mecanismos fundamentais para o controle
dos habitantes no Império português e para fazer valer a justiça inquisitorial.
A troca de cartas era elemento imprescindível, sem a qual o trabalho dos in-
quisidores não seria possível. O Conselho Geral do Santo Ofício mantinha
constante correspondência com os tribunais regionais de Lisboa, Coimbra,
Évora e Goa, e ainda com outras instâncias eclesiásticas, seculares e com os
tribunais espanhóis. As temáticas eram as mais variadas, indo desde questões
administrativas internas até discussões teológicas sobre casos específicos re-
lacionados aos delitos do foro inquisitorial. Isso tudo demonstra a riqueza
imensa dessa documentação para se entender melhor o funcionamento do tri-
bunal, a lógica e a dinâmica das perseguições inquisitoriais no Reino e nas
colônias, e ainda suas relações com a Igreja de Roma e com outras potências
europeias.
Historiadores que se dedicaram ao tribunal espanhol e seus congêneres
americanos foram fontes de inspiração analítica e metodológica para pensar a
dinâmica do fluxo de comunicação que moveram as inquisições ibéricas4.

1
Francisco Bethencourt, História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV–
XIX (São Paulo: Companhia das Letras, 2000), 40.
2
“Regimento do Santo Ofício – 1552”, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
n.º 392 (1996): 599.
3
“Regimento do Santo Ofício – 1640”, Ibid. liv. I, tit. II.
4
Isabel Nuñez e Rocío Rubio, “‘Por mares de olvidos’. Correspondencia privada e Inquisición
em Nueva España. Siglos XVI-XVIII”, in Escritas das mobilidades (Funchal: Centro de Estu-
dos de História do Atlântico, 2011), 46-80; Susana Fontanilla, “Las secretarias del Consejo
del Inquisición y su sistema de producción documental. Siglos XV-XVII”, Boletín de la
[332]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

Também para os arquivos inquisitoriais portugueses, destacaríamos José Pe-


dro Paiva e Fernanda Olival5, que se preocuparam com os circuitos
documentais envolvendo a Inquisição e os poderes eclesiásticos. E o Tribunal
de Évora, entre 1700 e 1750, ganhou importante trabalho de autoria de Nelson
Vaquinhas, que examinou o fluxo de correspondência entre este tribunal e o
Algarve, desvendando a organização dos arquivos inquisitoriais na região,
seus agentes e o controle social que o Santo Ofício ali estabeleceu6. O último
destaque fica para a tese de doutorado de Lucas Monteiro, que examinou as
relações de cooperação entre as inquisições portuguesa e espanhola através
de farta correspondência em que informações de réus eram trocadas por am-
bas as instituições7.
No presente capítulo, será feito um balanço sobre a correspondência
adstrita ao Tribunal de Lisboa (cuja jurisdição alcançava o Brasil), a Inquisição
de Goa e o Conselho Geral do Santo Ofício. A proposta é também refletir sobre
as potencialidades de pesquisa que este tipo de documentação proporciona
aos estudiosos sobre as inquisições em Portugal.

O Brasil na correspondência inquisitorial


Os sete livros relativos à correspondência expedida pelo Tribunal de Lis-
boa para as capitanias do Brasil são na verdade códices de registros, não
estando ali contidas propriamente as cartas ou outros documentos adminis-
trativos enviados junto a elas. Também a maneira como os notários
inquisitoriais registraram as informações variou: por vezes eram transcritas
na íntegra, mas em outras, de modo resumido, e era frequente ainda que um

Sociedad Española de Ciencias y Tecnicas Historiograficas, n.º 3 (2005); José M. Millán, “La
burocracia del Santo Oficio em Valencia durante el siglo XVII”, Miscellanea Comillas 40
(1982); Jaqueline Vassallo, “Gestionar la distancia através de documentos: cartas que van y
vienen entre la Inquisición de Madrid, Lima, Cordoba y Buenos Aires”, in Inquisiciones: di-
mensiones comparadas (siglos XVI-XIX), ed. Jaqueline Vassallo, Miguel Rodrigues Lourenço
e Susana Bastos Mateus (Córdoba, Editorial Brujas, 2017).
5
José Pedro Paiva, “As comunicações no âmbito da Igreja e da Inquisição”, in As comunica-
ções na Idade Moderna, org. Margarida Sobral Neto (Lisboa: Fundação Portuguesa das
Comunicações, 2005); Fernanda Olival, “Mercês, serviços e circuitos documentais no Impé-
rio português”, in O domínio da distância: comunicação e cartografia, ed. M.E. Madeira
Santos e Manuel Lobato (Lisboa: Instituto de Investigação Científica e Tropical, 2006).
6
Nelson Vaquinhas, Da comunicação ao sistema de informação. O Santo Ofício e o Algarve
(1700-1750). (Lisboa: Colibri; Évora: CIDEHUS/EU, 2010).
7
Lucas Monteiro. “Comunicação e cooperação. A Inquisição Ibérica no espaço ibero-ameri-
cano (séculos XVI-XVIII)” (Tese de doutorado apresentada à Universidade de Évora, 2019).
[333]
mesmo registro mencionasse mais de uma solicitação que o Tribunal fazia a
um agente ou a alguma autoridade eclesiástica ou secular no Brasil.
Os resultados apresentados aqui se referem aos registros do século XVII,
arrolados em três livros, que correspondem aos anos de 1600 a 1605 e 1677 a
1698, pois o livro referente a 1606 a 1676 não foi encontrado8. Primeiramente,
as regiões que tiveram o maior número de correspondência enviada foram as
capitanias do Nordeste açucareiro, Bahia e Pernambuco, pois o foco das ações
inquisitoriais tendeu a acompanhar, ao longo dos séculos, o crescimento das
capitanias a medida em que foram se configurando como polos econômicos
importantes na colônia.

Localidades dos registros relativos ao Brasil


Correspondência expedida do Tribunal de Lisboa, 1600/1605 e 1678/1698

Localidade Número de registros %


Bahia 55 40
Pernambuco 40 29
Rio de Janeiro 29 21
Maranhão 8 6
Pará 5 3
Brasil * 1 1
TOTAL 138 100
* Sem especificação da capitania
Fonte: Lisboa, ANTT, IL, Correspondência expedida, liv. 18, 19 e 20.

Os temas encontrados nos registros, de um modo geral, foram inúmeros,


relacionados tanto a questões administrativas inerentes ao próprio tribunal,
como relacionados aos réus e também aos poderes monárquicos e eclesiásti-
cos, tanto em Portugal com em outras potências europeias. Diligências para
averiguar candidatos aos cargos inquisitoriais; informes sobre número de
agentes em diversas localidades; investigações de denúncias; diligências as
mais variadas; busca de testemunhas; mandatos de prisão e remessa de presos;
requerimentos de documentos a serem anexados aos processos; envio de edi-
tais da fé; listas de livros proibidos e até formulários de como processar e
inquirir os réus são os vários exemplos das demandas encontradas nas
8
Maria do Carmo Dias Farinha, Os arquivos da Inquisição (Lisboa: Arquivo Nacional da
Torre do Tombo, 1990), 63.
[334]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

missivas. Nos dados relativos ao Brasil para o século XVII, dos 186 temas ar-
rolados, o que mais apareceu nessa amostragem foram solicitações para a
realização dos juramentos dos candidatos aprovados ao cargo de Familiar, se-
guido de outros procedimentos como inquirições sobre genealogias,
diligências, mandados de prisão, envio de editais da fé, dentre outros norma-
tivos ou consultivos.
Conforme consta nos Livros de Habilitações do Santo Ofício, o total de
familiares habilitados no século XVII foi de apenas 101 indivíduos9. Estudos
específicos para as diversas capitanias, com outros núcleos documentais mais
ampliados, também apontam para números baixos, revelando um movimento
de crescimento dessa rede de agentes, a exemplo da capitania da Bahia, onde
o número de familiares salta de 88 para 685 no século XVII, conforme apontou
Grayce Souza, em importante trabalho sobre os comissários, qualificadores e
notários da Inquisição na Bahia10. José Veiga Torres, numa avaliação de con-
junto para o Brasil, contabilizou, entre 1621 e 1670, 25 familiares11.
Muitos delitos aparecem em meio aos procedimentos inquisitoriais en-
viados ao Brasil através das cartas. Vários mandados de prisão e diligências
para investigar cristãos novos, bígamos e feiticeiros aparecem nesses registros.
Mas além deles também sodomitas, blasfemos e outros hereges tiveram suas
histórias sacramentadas nos papéis inquisitoriais que circulavam no ir e vir da
correspondência do Santo Tribunal.

9
Lisboa, ANTT, Livros das Habilitações ao Santo Ofício, s/d, vols 1 a 25.
10
Grayce Mayre Bonfim Souza, “Para remédio das almas: Comissários, qualificadores e no-
tários da Inquisição portuguesa na Bahia (1692-1804)” (Tese de Doutorado em História
Social, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2009).
11
José Veiga Torres, “Da repressão religiosa para a promoção social: a Inquisição como ins-
tância legitimadora da promoção social da burguesia mercantil”, Revista crítica de Ciências
Sociais 40 (1994): 109-135.
[335]
Temas dos registros relativos ao Brasil na correspondência expedida do
Tribunal de Lisboa – 1600/1605 e 1678/1698

Fonte: Lisboa, ANTT, IL, Correspondência expedida, liv. 18, 19 e 20.

Em relação aos destinatários desta correspondência enviada ao Brasil, os


dados para o século XVII corroboram o que outras fontes já demonstraram: foi
[336]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

sobretudo aos clérigos não habilitados no Santo Ofício a quem o tribunal confiou
inicialmente suas ações na colônia, em especial ao clero regular, sendo enviada
a eles maioria das missivas. E nesta amostragem, as maiores demandas do Santo
Ofício foram dirigidas aos clérigos carmelitas, em especial o Frei Domingos das
Chagas e Frei Cosme do Desterro, ambos na capitania da Bahia, sendo os mais
requisitados na década de 1680.

Condição dos destinatários da correspondência expedida pelo Tribunal de.


Lisboa ao Brasil 1600/1605 e 1678/1698

Fonte: Lisboa, ANTT, IL, Correspondência expedida, liv. 18, 19 e 20.

[337]
Nome dos destinatários da correspondência expedida pelo Tribunal de Lisboa
ao Brasil 1600/1605 e 1678/1698

Fonte: Lisboa, ANTT, IL, Correspondência expedida, liv. 18, 19 e 20.

O número de vezes que a Inquisição se comunicou com o Brasil através de


seus próprios agentes no século XVII, comparativamente ao clero regular e se-
cular, espelha o movimento de organização da rede de comissários e familiares
ainda insipiente neste período, com poucas candidaturas. Isso não quer dizer,
no entanto, que alguns deles não tivessem se sobressaído na sua ação. Em fins
de 1645, o Santo Ofício lisboeta recebia farta correspondência vinda da Bahia
denunciando a “escandalosa soltura” e os “terríveis pecados” que vinham se alas-
trando pela colônia. Não tardou para que se enviasse uma inquirição no ano
seguinte, em 1646, onde um dos maiores protagonistas foi Antonio Teles da
Silva, governador da capitania e Familiar do Santo Ofício. Segundo Anita No-
vinsky, foi a maior intervenção inquisitorial realizada na Bahia no século XVII,
[338]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

tendo atuado este personagem de modo implacável na perseguição e denúncia de


vários importantes mercadores cristãos-novos, além de sodomitas e feiticeiros.
Mandava espionar suspeitos, vasculhava toda a correspondência que chegava à Ba-
hia e chegou a sugerir o estabelecimento de um tribunal na colônia12.
No século XVIII, no entanto, outro cenário se apresentou, pois as ordens
do Tribunal de Lisboa para o Brasil mandadas cumprir através das cartas, na
imensa maioria das vezes, couberam aos próprios agentes do Santo Ofício na
colônia, demonstrando uma estrutura já bem mais consolidada da atuação des-
ses agentes. De acordo com Aldair Rodrigues, foram direcionadas sobretudo aos
Comissários inquisitoriais, correspondendo a um total em torno de 80%, con-
centrados nas capitanias da Bahia, Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro13.
Na Bahia, por exemplo, enquanto se registraram três deles no século XVII, no
XVIII, receberam patente 54 candidatos, de acordo com levantamento nos livros
de registro de habilitações do Conselho Geral do Santo Ofício, livros de provisões
de nomeação e termos de juramentos do Tribunal de Lisboa. Em Pernambuco,
um pouco mais tardiamente, a rede de Comissários só se adensou a partir de
1740, tendo sido somente em 1692 o primeiro comissário nomeado na região14.
Um dado importante levantado nessa documentação foi a concentração
de tarefas em alguns desses comissários por parte do Tribunal de Lisboa, signi-
ficando que o Santo Ofício acionou certos agentes várias vezes, em relação ao
conjunto. Segundo Aldair Rodrigues, em torno de 70% dos registros tiveram
como alvo 42 comissários, significando que foram requisitados mais de uma vez.
A lógica da Inquisição era investir nos agentes que estavam no topo do oficialato
episcopal, pois possuíam cargos importantes e tinham formação na Universi-
dade de Coimbra, sendo assim considerados mais aptos a servir ao Santo Ofício15.

A importância da Correspondência da Inquisição de Goa


Por outro lado, o caso da documentação produzida pela Inquisição de Goa,
especialmente sua correspondência com o Conselho Geral, é digno de destaque

12
Anita Novinsky, Cristãos-novos na Bahia: a Inquisição (São Paulo: Perspectiva, 1992).
13
Aldair Rodrigues, “Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro: agentes,
carreiras e mecanismos de promoção social” (Tese de Doutorado em História, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2012), 23.
14
Bruno Feitler, Nas malhas da consciência: Igreja e Inquisição no Brasil. Nordeste, 1640-1750
(São Paulo: Alameda, 2007), 119, 148.
15
Rodrigues, “Poder eclesiástico e Inquisição no século XVIII luso-brasileiro”, 220-221.
[339]
por suas especificidades. Fundado em 1560, único tribunal inquisitorial portu-
guês que funcionou fora dos limites territoriais do próprio reino de Portugal,
neste caso na capital do Estado da Índia – referência criada pela historiografia
para designar o amplo espaço de domínio colonial lusitano além do cabo da Boa
Esperança desde o século XVI –, ele foi responsável pelo registro de mais de 13
mil processos, sendo assim considerado o tribunal lusitano de maior atividade.
No entanto, a maior parte deste material provavelmente foi destruído no século
XIX. Segundo Bruno Feitler, antes mesmo desta provável e sistemática destrui-
ção, haveria um descaso e um descuido com os papéis produzidos pelo Tribunal
de Goa, somados a problemas de preservação por conta dos cercos militares de
reinos inimigos que a cidade sofreu no século XVIII, que teriam sido responsá-
veis por considerável perda de registros16.
Em relação ao ocorrido no século XIX, Antônio Baião informa que o Vice-
rei, conde de Sarzedas, em ofício para a Corte datado de 20 de dezembro de 1812
(que então se encontrava na cidade do Rio de Janeiro), escrevia:
como se achou ser uma cousa imensa os papéis que compunham o ar-
quivo daquele tribunal, e que na secretaria do estado não havia lugar
onde eles pudessem ser arrecadados, como eu tinha determinado, or-
denei que ficassem em uma casa do arsenal real, metidos em grandes
sacos, signetados com armas reais por um inquisidor e fechada a casa
com três chaves, das quais eu fiquei com uma, outra na secretaria e ou-
tra na mão do intendente da Marinha; pareceu-me justo tomar todas
estas providências de cautela com estes papéis, porque existindo neles,
segundo me dizem, todos os autos do Santo Ofício de Goa, desde a sua
criação, se acaso não se guardassem com todo o cuidado, poderia haver
motivo para se difamarem, ainda mesmo que falsamente, todas as fa-
mílias do Estado, e cevarem por esta ocasião inimizades e intrigas de
que o país tanto abunda. [...] Será justo que S. A. R. determine o que
quer se faça destes imensos processos e papéis, e como estou persua-
dido que não é conveniente que eles tornem a ser vistos por pessoa
alguma, parece-me que seria justo mandá-los queimar17.

16
Bruno Feitler, “O Secreto do tribunal indiano da Inquisição portuguesa: entre Goa, Lisboa
e Rio de Janeiro”, Revista de Fontes 5, n.o 9 (2018): 37. https://doi.org/10.34024/fon-
tes.2018.v5.9139.
17
Conde de Sarzedas, Ofício de 20 de dezembro de 1812, Apud Antônio Baião, A Inquisição
de Goa: tentativa de história da sua origem, estabelecimento, evolução e extinção (introdução
à correspondência dos Inquisidores da Índia 1569-1630), vol. 1 (Lisboa: Academia das Ciências,
1945), 15.
[340]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

Manuel Cadafaz de Matos informa que a Corte portuguesa não autorizou


a queima dos papéis; mesmo assim, parece ter sido este o destino de boa parte
dessa documentação, sobrevivendo apenas os documentos remetidos ao Reino,
e que se encontram na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro18.
Aprofundando a pesquisa, Bruno Feitler tem interpretação diferente. Para
ele, apesar de não haver prova cabal da destruição encomendada, ao localizar
algumas cartas do conde de Sarzedas datadas de 1814, é possível detectar as pro-
vidências que foram tomadas para separar uma parte da documentação do
tribunal goês, organizá-la para, em seguida, enviar para a Corte o material sele-
cionado. Por esta razão, Feitler demonstra que o acervo de cerca de 1500
documentos. Organizado em 9 códices, existente na seção de manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BNRJ), denominado “Coleção de cartas,
provisões, ordens, etc., mandadas de Lisboa para as diferentes partes do Reino e
colônias, relativas à Inquisição de Goa, séculos XVII e XVIII” – que doravante
será referida como "Inquisição de Goa" – é resultado desta inciativa. Em sua mai-
oria, estes documentos foram originados em Lisboa, havendo também alguma
documentação enviada da capital do Estado da Índia, fruto de solicitações e de-
mandas oriundas de Goa. Com certeza quando a Corte voltou para Lisboa,
deixou para trás este material, assim como outros livros e manuscritos que per-
tenciam à biblioteca que o príncipe regente D. João havia trazido para o Rio de
Janeiro, em 1808.
Em que pese a importância deste acervo da BNRJ, não se pode deixar de
indicar que há outros núcleos documentais que possuem material relacionado à
Inquisição de Goa.
Se o objetivo for conhecer o conteúdo de milhares de processos dos réus
acusados e sentenciados pelo santo ofício goês, infelizmente sobraram alguns
poucos exemplos. Por uma questão de prática burocrática, quando um conde-
nado da Inquisição de Goa era enviado ao reino (ou porque era um caso
escandaloso ou porque a pena tinha sido definida para ser cumprida em Lisboa),
ia acompanhado do traslado de seu processo ou pelo menos de parte dele –

18
Manuel Cadafaz de Matos “Um voto de peregrinar a Santiago de Compostela feito nos
cárceres de Goa – as desventuras de Pyrard de Laval e de Dellon ante os inquisidores na
Índia portuguesa do século XVII (Um estudo de mentalidades)”, in Comunicações apresen-
tadas ao 1º Congresso Luso-Brasileiro sobre Inquisição, coord. Maria Helena Carvalho dos
Santos, vol. 2 (Lisboa: Sociedade Portuguesa de Estudos do Século XVIII/Universitária Edi-
tora, 1989), 601. Cita a carta de resposta ao Conde de Sarzedas, datada de 27 de dezembro
de 1813.
[341]
sempre com cópias em embarcações diferentes, uma vez que a viagem de Goa a
Lisboa tinha grandes dificuldades e naufrágios não eram incomuns. Assim,
quando chegava à capital do reino, o documento era absorvido pelo arquivo da
Inquisição de Lisboa e recebia então uma nova numeração daquele tribunal.
Dessa forma, é possível acessar algum material da volumosa produção do tribu-
nal inquisitorial mais ativo de Portugal e seus domínios no Arquivo Nacional da
Torre do Tombo. Dos mais de 13 mil processos contabilizados em diversos regis-
tros pela Inquisição de Goa, cerca de duzentos sobreviveram dessa forma: alguns
são cópias de processos completos, outros incompletos ou sumariados e, ainda,
apenas as sentenças e autos de inquirições19. Apesar de ser uma amostragem
muito pequena do total de processos, cada um desses documentos sobreviventes
possibilita estudos muito ricos sobre a realidade do tribunal goês.
No entanto, isto não inviabiliza o estudo das atividades do santo ofício
goês. Ao contrário do que muitos imaginam, há uma grande quantidade de fon-
tes que podem ser utilizadas na pesquisa e no desenvolvimento de temáticas de
estudo referentes àquele tribunal. Por exemplo, temos as listas de autos de fé,
muito úteis para contabilizar os casos e distinguir os padrões persecutórios que
o Tribunal de Goa desenvolveu ao longo de seus anos de existência. A mais no-
tável destas listas é a que foi produzida pelo promotor do santo ofício goês, à
época, João Delgado Figueira, o Reportório geral de tres mil oito centos processos,
que sam todos os despachados neste sancto Officio de Goa & mais partes da India,
do anno de Mil & quinhentos & secenta & huum , que começou o dito sancto Of-
ficio atè o anno de Mil & seis centos & e vinte & tres, com a lista dos Inquisitores
que tem sido nelle, & dos autos públicos da Fee, que se tem celebrado na dita Ci-
dade de Goa, documento este que se encontra sob a guarda da Biblioteca
Nacional de Portugal.
No Arquivo Nacional da Torre do Tombo, além das já mencionadas cópias
de alguns processos oriundos de Goa, existem outras listas de autos de fé que
extrapolam o período do documento produzido por Delgado Figueira, alcan-
çando o século XVIII. É possível, ainda, pesquisar no Arquivo Secreto do Santo
Oficio da Índia (Manuscrito da Livraria, n.° 2273, de 1774); no núcleo do Conse-
lho Geral do Santo Oficio, o livro de Consultas da Inquisição de Goa, o livro de

19
Miguel Rodrigues Lourenço, Susana Bastos Mateus e Carla Vieira, O processo de Catarina
da Orta na Inquisição de Goa (1568-1569), transcrição de Miguel Lourenço, estudo introdu-
tório de Miguel Rodrigues Lourenço, Susana Bastos Mateus e Carla Vieira (Lisboa: Cátedra
de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste, 2019), 16.
[342]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

Despesa da Inquisição de Goa e dois livros de Visitas da Inquisição de Goa; já no


núcleo da Inquisição de Lisboa, as Provisões que vão para fora (livro n.° 840)
também possibilitam alguns achados. Uma outra possibilidade de encontrar ma-
terial sobre o Tribunal de Goa é investigar os Cadernos do Promotor, mas neste
caso, é trabalho que requer muito tempo, uma vez que não há índices para estes
cadernos, que são organizados por lógica cronológica20.
No mesmo núcleo do Conselho Geral da Torre do Tombo, encontram-se
dois livros de Correspondência expedida para a Inquisição de Goa, que contem-
plam, grosso modo, o período de 1580 a 1671, com algumas lacunas temporais, e
o livro da Correspondência recebida da Inquisição de Goa (15691630), que foi
transcrito e publicado por Antônio Baião21. Como é possível constatar, são trocas
de mensagens que ocorreram entre a Inquisição de Goa e o Conselho Geral da In-
quisição em Lisboa, abrangendo meados do século XVI até terceiro quartel do XVII.
Para alcançar o século XVIII, é possível encontrar correspondência entre
eles no acervo “Inquisição de Goa”, da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Mas
como já foi explicado, os critérios que levaram a seleção deste último material
não são claros, muitas vezes ocorrendo o registro das consultas, sem necessari-
amente haver as respostas correspondentes. Ainda assim, é massa documental
muito interessante para se explorar. Existe um catálogo, elaborado pela BNRJ22,
que dá a indicação dos temas tratados em cada documento e todo o acervo está
digitalizado e disponível no site de busca da instituição. Neste acervo, além da
correspondência originada da Mesa do Conselho Geral do Santo Ofício, também
há cartas por parte do Inquisidor Geral, de Bispos, dos Reis de Portugal (con-
tendo leis e ordens), dos Inquisidores de Goa, além de cópias de bulas papais.
Outro interessante tipo de documento presente nesta coleção são as solicitações
de investigação sobre casamento de pessoas acusadas de bigamia. Há ainda re-
gistros sobre os usos e costumes das populações locais asiáticas que
proporcionam informações sobre o olhar das autoridades eclesiásticas e civis
portuguesas em relação a uma cultura tão diferente da ocidental.

20
José Alberto Rodrigues da Silva Tavim, “A Inquisição no Oriente (século XVI e primeira
metade do século XVII) algumas perspectivas”, Mare Liberum, n.o 15 (1998): 20-21.
21
António Baião. A Inquisição de Goa. Correspondência dos inquisidores da Índia (1569-1630)
(Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 1930). Trata-se do Volume 2 que contém
a correspondência, que é muito difícil de ser encontrado em bibliotecas no Brasil. Há exem-
plares na Biblioteca Nacional de Portugal.
22
Carmen Tereza Coelho Moreno, “Inquisição de Goa: Inventário Analítico”, Anais da Bibli-
oteca Nacional 120 (2000): 7-272.
[343]
Mas o que é possível aproveitar da troca de cartas entre os inquisidores de
Goa e as autoridades do reino? Para responder esta pergunta, é importante res-
saltar alguns aspectos das razões da fundação do Tribunal em Goa e das
contradições que a prática persecutória inquisitorial gerou na região.
A despeito do santo ofício goês ter como razão de origem de sua fundação,
em 1560, a mesma motivação que provocou o surgimento dos tribunais do reino
de Portugal, ou seja, a repressão às práticas judaizantes da população cristã-
nova, muito rapidamente, o ponto central das preocupações dos inquisidores em
Goa passou a ser a perseguição aos hindus recentemente convertidos ao cristia-
nismo. Ao analisar a tipologia dos crimes perseguidos pelo Tribunal de Goa,
Francisco Bethencourt informa que:
embora o judaísmo seja o “delito” com percentagem mais importante
no número de detidos até 1582 – 261 num total de 761, ou seja, 34 por
cento –, nunca chegou a ser maioritário. O islamismo já nessa época
representava uma percentagem importante das acusações – 214, ou seja,
28 por cento do total –, encontrando-se valores significativos para pro-
posições heréticas (11 por cento), atos contra o Santo Ofício (9 por
cento), gentilidade (6 por cento), protestantismo (4 por cento) e biga-
mia (4 por cento), sendo os restantes “delitos” residuais. O judaísmo
desaparece praticamente desde 1583, mantendo-se com valores percen-
tuais muito baixos durante as primeiras décadas do século XVII. O
islamismo manteve-se estável durante a segunda fase, enquanto a “gen-
tilidade” cresceu extraordinariamente, passando os hindus convertidos
a ser o alvo preferido da atividade inquisitorial nos séculos XVII e
XVIII23.

O contato com a realidade indiana gerava dúvidas e perplexidades e pela


correspondência é possível identificar as questões mais recorrentes. Algumas das
consultas dos inquisidores de Goa para o Conselho Geral do Santo Ofício são
muito ilustrativas das dificuldades por eles enfrentadas: se um infiel que estava
preso pedia para se converter à fé católica devia ser posto em liberdade? O que
se deve fazer diante de um convertido casado cujo cônjuge não quisesse se con-
verter? Será que os lavatórios e outras práticas dos hindus eram sinais de
idolatria ou apenas hábitos sem significado religioso?24 Esta última questão,
aliás, está na base das discussões entre a Inquisição de Goa e a Companhia de
Jesus sobre a famosa Querela dos Ritos Malabares.

23
Francisco Bethencourt, “A Igreja”, in História da expansão portuguesa, dir. Francisco Bet-
hencourt e Kirti Chaudhuri, vol. 1 (Lisboa: Círculo de Leitores, 1998-99), 384.
24
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO (Consultas da Inquisição de Goa), liv. 207 (1572-1620), fl. 28-52.
[344]
BRASIL E GOA: ALGUMAS NOTAS SOBRE A CORRESPONDÊNCIA INQUISITORIAL
Daniela Buono Calainho e Célia Tavares

Também havia muita preocupação com a questão dos casamentos dos gen-
tios. As festas que os hindus comumente faziam relacionadas a esse evento
social, além de durarem muitos dias, reproduziam uma série de ritos considera-
dos ameaçadores à fé católica. Algumas denúncias chegavam ao Conselho Geral
do Santo Ofício prometendo detalhes, pois “com que vai nestes papéis poderá V.
Ilma. ter plena notícia dos ditos casamentos que se fazem com as maiores inde-
cências e escândalo da cristandade, que até hoje se viram além das muitas
idolatrias que neles cometem”25. Esse interessante documento registra, entre ou-
tras coisas, a questão dos casamentos, assim como demonstra que a vizinhança
com o “outro mundo”, ou seja, com as terras onde habitavam os infiéis, trazia
também grande desconforto àqueles que se preocupavam com as questões da fé.
Nesse sentido, faz o seguinte alerta:
E quando dizerem que é prejuízo dos ditos gentios virem a terra de
Mouros fazer os ditos casamentos é falso, porque eles comumente lá
nadam com fazendas e seus pagodes e contratos e a distância de passa-
rem não é mais que passar um rio, e o muito que lhe custa é seis ou sete
tostões por cada cabeça. E nessa Ilha de Goa tudo são cristãos mistura-
dos com gentios, nem nela há lugar acomodado para se poderem fazer
sem escândalo e perversão de cristandade os tais casamentos e a muita
gente que se ajunta as festas e gritos que nelas fazem26.

Fronteiras frouxas e muito próximas a reinos muçulmanos e hindus, circu-


lação intensa, numerosa, ou seja, um verdadeiro universo de dificuldades para
manter a unidade da fé católica, justificando a ação do Tribunal de Goa, de onde
provinha a recorrente queixa dos inquisidores de que experimentavam uma
grande quantidade de trabalho, sendo que muitos pediam para retornar ao
reino. Um bom exemplo pode-se encontrar em carta que o inquisidor Jorge Fer-
reira escreveu ao Conselho Geral do Santo Ofício, onde dizia: “[..] confesso assim
que me causa já estudar e mandar a memória semelhantes coisas e tão compridas;
que são mais próprias para mancebos, que para velho e tão enfermo quanto eu”27.
Com estes exemplos, é possível afirmar que a correspondência da Inquisi-
ção de Goa é uma importante fonte documental para desenvolver a análise de
muitos aspectos do funcionamento do Tribunal do Santo Ofício de Goa. Na falta
do volumoso número de processos produzidos, o historiador consegue, através

25
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO (Pareceres em matéria do Santo Ofício), liv. 213 (1622-1623), fl. 281.
26
Ibid., fl. 281.
27
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO (Consultas da Inquisição de Goa), liv. 207 (1572-1620), fl. 8.
[345]
deste tipo de fonte, alcançar muitas das questões que povoavam o dia a dia dos
inquisidores de Goa.

Considerações finais
Ainda que o caso de Goa ganhe muita importância por conta da escassez
de processos que sobreviveram até nós, a troca de correspondência produzida
no âmbito inquisitorial também para o caso do Tribunal de Lisboa não deve ser
negligenciada apenas porque seus processos foram preservados e, atualmente,
são de fácil acesso para a pesquisa. Investigar os temas e assuntos de interesse
que circulavam nas consultas e debates entre os agentes inquisitoriais e, até
mesmo, autoridades eclesiásticas e outras ligadas ao rei, proporciona o aprofun-
damento do conhecimento sobre esta instituição.
Estudar os fluxos de informação na Inquisição portuguesa através da cor-
respondência do Santo Ofício nos remete, por fim, a um campo mais amplo de
reflexão relacionado aos circuitos da comunicação escrita no mundo ibérico mo-
derno nas suas mais variadas dimensões28. A circulação e transmissão de normas,
ideias, valores, costumes e saberes entre os centros imperiais e as periferias co-
loniais sustentou relações de poder e instituições, ao mesmo tempo em que
também difundiu condutas heterodoxas aos parâmetros religiosos da Europa
cristã29. O movimento constate de pessoas, de mercadorias, de papéis e docu-
mentos diversos, de hábitos, de culturas distintas imprimiu uma dinâmica sem
precedentes no mundo moderno30.

28
Leila Mezan Algranti e Ana Paula Megiani (orgs.), O Império por escrito. Formas de trans-
missão da cultura letrada no mundo ibérico. Séculos XVI-XIX (São Paulo: Alameda, 2009).
29
António Manuel Hespanha, “A constituição do Império português. Revisão de alguns envie-
samentos correntes”, in O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica imperial portuguesa. Séculos
XVI-XVIII, ed. Maria Fernanda Bicalho et alii (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001).
30
A. J. R. Russel-Wood, Um mundo em movimento. Os portugueses na África, Ásia e América
(1415-1808) (Algés: Difel, 1998).
[346]
PARTE 5

Representações da Inquisição
Arte e História
A correlação entre o fato histórico e o registro
imagético: Gregório Lopes e o auto de fé
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

É comum encontrar a afirmação, entre os historiadores de Arte, que as pro-


duções artísticas surgem seguindo os fatos históricos. Entretanto essa é uma
discussão delicada e não tão fácil de explicar.
Quando tratamos do imaginário criado em relação aos feitos do Tribunal do
Santo Ofício em Portugal o problema torna-se mais complexo.
Ninguém nega que as ações do Tribunal do Santo Ofício, nos seus mais de
trezentos anos de existência, geraram uma memória construída através de textos e
imagens. Acredito que nenhum dos ilustres participantes deste colóquio tenha sido
testemunha ocular dos fatos.
Na construção da memória o historiador lança mão de testemunhos docu-
mentais (escritos ou materiais) produzidos ao tempo dos fatos que pretende analisar.
As ações e os métodos do Tribunal eram divulgados pelos meios de comuni-
cação existentes ao longo de sua duração através de vastíssimo conjunto de escritos
e imagens. Mesmo que se levante a questão da censura exercida pelo próprio Tri-
bunal sobre esse “corpus textual e imagético” à época de sua criação, hoje o
historiador tem diante de si esse corpus preservado à espera dos investigadores que
se apresenta quase inesgotável.
As fontes textuais tiveram ao longo tempo a preferência dos historiadores. As
fontes imagéticas tiveram menor apreciação.
Ambas serviram como instrumento de persuasão das “verdades”, da “justiça”
e da validade de seus procedimentos. Em minhas pesquisas pude distinguir
diferentes tipologias de textos e imagens que se modificaram ao longo de mais de
300 anos.
Aventurei-me pelo mundo das obras de arte, buscando compreender através
da imagem o conjunto de feitos inquisitoriais no intuito de conhecer campo quase
inexplorado, como uma singela contribuição à pesquisa.
As questões teórico-metodológicas dessa abordagem são amplas, mas creio
que aqui não caberia me estender sobre tão fascinante desafio.
A imagem, em especial a obra de arte, é vista atualmente como DOCU-
MENTO HISTÓRICO de indiscutível valor. Cabe ao historiador estabelecer sua
historicidade através da análise de sua natureza, atributos e condições de docu-
mento, procurando penetrar na compreensão do meio produtor, partindo do
estudo e análise da sociedade, da instituição e da ação retratada, representada ou
captada pela imagem.
Serge Gruzinski assinala que o historiador “consegue ampliar seu campo de
compreensão quando deixa de buscar somente nos documentos escritos evidências
históricas de uma sociedade, aliando sua busca às outras formas de expressão que
constroem a memória e a história – ou seja, pelas imagens” 1.
Quando o historiador trabalha com imagens, não é apropriado usá-las ape-
nas como ilustrações. Há que se ir mais fundo na busca do alcance que as imagens
produzidas ao longo do tempo inquisitorial possam oferecer. Qual o impacto que
as imagens poderiam produzir no espectador quando foram criadas ou divulgadas?
No processo histórico as formas de recepção e percepção das obras de arte se
transformaram do mesmo modo que as coletividades ou sociedades nas suas for-
mas de existência. Torna-se necessário, portanto, que o historiador busque
descobrir como se recepcionava determinada obra, em determinado tempo, e em
determinada sociedade.
A escolha da imagem como fonte visa analisar e entender em que medida as
obras de arte responderam às circunstâncias históricas específicas. É necessário si-
tuar a obra de arte dentro de um esquema de referências histórico-ideológicas do
momento de sua criação, procurando-se salientar o modo como consegue expres-
sar ideias através de uma linguagem plástica. É prudente se buscar o conhecimento
das sociedades e das estruturas mentais o que implica em conhecer as forças sociais
que as moldaram, inquirindo-se sobre as razões da criação artística.

1
Serge Gruzinski, La colonisation de l´imaginaire: Société Indigènes et occidentalisacion dans le
Mexique Español – XVI –XVIII siècle (Paris: Editions Gallimard, 1988), 7.
[350]
ARTE E HISTÓRIA – A CORRELAÇÃO ENTRE O FATO HISTÓRICO E O REGISTRO IMAGÉTICO
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

Segundo Ernst Gombrich o que o historiador deve buscar para estabelecer a


historicidade da obra de arte e seus significados deve ser em primeiro lugar desco-
brir para quem era destinada determinada pintura2.
A grande maioria das pinturas que hoje compõem o imaginário criado sobre
a Inquisição, está agora alocada nos grandes museus. Quem não se impressiona
com as fortes imagens das salas especiais de Goya que criaram um imaginário ter-
rificante sobre a Inquisição. É preciso salientar que essas imagens foram deslocadas
do seu lugar de origem e transpostas para o grande Museu do Prado em fins do
século XIX. A recepção atual não teria sido a mesma do momento da ação pictórica
e sua divulgação.
Francis Haskell chama a atenção do historiador dizendo que não é sufici-
ente apresentar as imagens e usá-las de forma imediatista (ilustrativa). É
necessário que haja uma preocupação com sua natureza, com o complexo pro-
cesso de criação e de representação.
Pierre Francastel, afirma que para conhecermos dada sociedade é necessário
estudar as obras de pinturas como um sistema de signos, aplicando métodos rigo-
rosos de interpretação que deram progresso a tantas outras ciências. Não basta,
continua o autor, ver numa pintura o tema, a historieta. Há que se analisar o me-
canismo individual e social que o fez legível e eficaz3.
As questões teóricas são fascinantes. Foram por mim exploradas com maior
atenção em Simbologias de um Poder – Arte e Inquisição na Península Ibérica4.
Por ora quero destacar a preocupação em investigar as obras de arte em
seus locais originais, quem as criou, quem as patrocinou e as relações com os
fatos históricos.
O impacto de uma obra de arte vista em original tanto de feitura como loca-
lização é totalmente diferente daquele que o público e mesmo o historiador
contemporâneo experimenta.
Tentarei exemplificar meu pensamento com a apresentação do trabalho de
Gregório Lopes.

2
Ernst Gombrich, Arte e Ilusão (São Paulo: Martins Fontes, 1986), 12-24.
3
Pierre Francastel, Pintura e Sociedade (São Paulo: Martins Fontes, 1990), 29.
4
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro, Simbologias de um Poder. Arte e Inquisição na Península Ibé-
rica (São Paulo: Editora ANNABLUME, 2010), 18-26.
[351]
Aqui faço um parêntese para apontar as dificuldades encontradas durante
minha pesquisa em busca de pinturas em Portugal que pudessem alimentar minha
compreensão do fenômeno inquisitorial.
Quero também fazer menção à valiosa cooperação e ajuda que recebi de pro-
fessores que gentilmente me mostraram caminhos e preciosas informações como
o diretor do Departamento de História da Arte da Universidade de Évora – o Dr.
José Alberto Gomes Machado. Em nosso estimulante diálogo alertou-me sobre a
dificuldade maior em encontrar pinturas portuguesas relacionadas com as ações
do Tribunal, simplesmente porque, afirmava ele, na fúria contra o terrível instituto
e na ânsia de destruir tudo que envolvia os trágicos eventos, foram apagadas ou
queimadas as imagens relacionadas. Assim como grande parte da documentação
textual foi dizimada, as pinturas por ventura existentes em Igrejas foram recobertas
por tinta preta, muitas e assim deixadas até hoje. Outras foram recobertas por no-
vas imagens aprovadas pelos senhores detentores do poder. Poucas restaram para
que se possa analisar e relacionar com os feitos inquisitoriais.
Registro ainda as preciosas informações do Prof. Dr Dagoberto Markl (in me-
morian) do Museu Nacional de Arte Antiga de quem obtive dados preciosos da obra
de Gregório Lopes e a análise que o mesmo fazia desse trabalho. Minha estada no
MNAA foi uma experiência gratificante em que tive oportunidade de contato e
troca de ideias com Dr. Anísio Franco, Dr. Vitor Serrão. Muitos outros estudiosos
de Arte e museólogos também fizeram parte da minha busca, como Dra. Maria de
Aires Silveira e Dr. Carlos Gonçalves do Museu de Arte Contemporânea de Lisboa,
além de técnicos, bibliotecários que me acompanharam em visitas a locais fora de
circuito dos museus e suas reservas técnicas. Só para exemplificar: a preciosa pin-
tura de Antony Serres retratando uma família de hereges sendo julgada pelos
inquisidores. Obra sobre a qual nunca tinha visto qualquer referência na bibliogra-
fia inquisitorial. Se encontra muito bem preservada e exposta na antessala da
Presidência do Tribunal Constitucional de Lisboa. (fig. 1)5. Nessa obra, do século
XIX o artista usa o imaginário já estabelecido sobre o Tribunal do Santo Ofício. O
autor capta com maestria e precisão o drama vivido pelas famílias de origem

5
Antony Serres, pintor prestigiado (participou de inúmeras mostras do Salão de Belas Artes de
Paris nos finais do século XIX) nascido em Bordéus em 1828, coincidentemente a cidade e o ano
da morte de Goya. Museu do Prado exibe em salas especiais a sequência de pinturas magníficas
de registro imagético da ação do Tribunal do Santo Ofício. Essas imagens impactam os historia-
dores e púbico em geral desde o século XIX. Informações no setor científico do Museu de Arte
Contemporânea de Lisboa indicam que a pintura fazia parte da Real Academia de Belas Artes de
Lisboa.
[352]
ARTE E HISTÓRIA – A CORRELAÇÃO ENTRE O FATO HISTÓRICO E O REGISTRO IMAGÉTICO
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

judaica, principal alvo dos inquisidores. Candentes expressões de sofrimento e de-


sespero diante dos inquisidores. Ambientação tenebrosa, objetos indicativos da
origem dos personagens; riqueza das vestimentas. Tudo toca profundamente o es-
pectador. O artista produziu, mesmo que extemporaneamente, uma visão
contundente do que fora a realidade dos julgamentos inquisitoriais.
Voltando ao tema propriamente desta apresentação é instigante para o pes-
quisador analisar a pintura de Gregório Lopes, hoje no MNAA cujo tema maior é o
Martírio de São Sebastião, uma das poucas que podem proporcionar alguma con-
sideração sobre as formas de atuar do Tribunal do Santo Ofício em Portugal.
Sem entrar nos meandros da vasta história da Inquisição Portuguesa, já so-
berbamente analisada e esclarecida em participações anteriores por especialistas
que por aqui se apresentaram, deter-me-ei, em minhas reflexões, sobre essa pintura
específica tendo em mente o que explanei como teoria e metodologia para uso da
imagem como fonte histórica.
Sabido é que a instalação do Tribunal do Santo Ofício em Portugal foi um
processo complexo com marchas e contra marchas pela disputa de poder entre o
rei e a igreja. D. João III solicitou ao Papa a instalação do Tribunal do Santo Ofício
(à moda de Castela) visando atender a crescente insatisfação da população em re-
lação à heresia. A Bula Papal de Paulo III - Cum ad nil magis, de 23 de maio de 1536
deu início a formação do Tribunal em Portugal. A publicação da Bula oficialmente
se deu em Outubro na Sé de Évora onde o rei mantinha a corte. A vivência entre o
rei e as autoridades inquisitoriais foi sempre marcada pelos conflitos e disputa de
poder. Francisco Bethencourt analisa detalhadamente os percalços da instalação
do Santo Ofício em Portugal6.
Os resultados da ação inquisitorial só se fizeram sentir concretamente em
1540 com o primeiro auto de fé realizado em Lisboa. Nessa altura a inquisição es-
panhola já realizara inúmeros autos de fé e ação do Tribunal se alargava. Só para
recordar os primeiros autos de fé em Castela-Aragão são datados de 1481/1482 em
Sevilha. Sisto IV nomeando frei Tomás de Torquemada como Inquisidor Geral une
a monarquia à Inquisição.
Em Portugal escasseiam as imagens pictóricas em contraposição às espanho-
las. Segundo Flávio Gonçalves estas encontradas nas inúmeras igrejas tem um
sentido devocional revelando-se como ilustrações didáticas profundamente ligadas

6
Francisco Bethencourt, História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – séculos XV-XIX (São
Paulo: Companhia das Letras, 2000).
[353]
a uma presença maciça da circulação de livros religiosos na esteira da “lenda Dou-
rada” de Jacques de la Voragine.
A pintura devocional encontrada nas igrejas, de feitura simples, talvez se
deva ao pouco apreço pela arte da pintura manifestada em Portugal. Era diminuta
a consideração que tinham os pintores no conjunto da sociedade com pouca valo-
rização do trabalho de pintura Esta não era tida como uma das artes liberais, mas
sim como oficio artesanal. Nesse sentido concordam os historiadores de Arte como
Flavio Gonçalves e Vitor Serrão7.
Mais presentes em Portugal são trabalhos de mestres flamengos que acabariam
por estimular um vocabulário iconográfico entre os poucos pintores portugueses lide-
rados em suas oficinas. A série de pinturas que adornariam os inúmeros templos
construídos nos inícios do séc. XVI seguiram os padrões flamengos que visavam co-
mover com cenas da natividade e infância de Jesus e cenas da paixão. A maioria das
obras desse período tem caráter coletivo, resultado de oficinas corporativas que impe-
diam liberdades criativas. A exceção parece ser o trabalho proveniente da Oficina de
Viseu - Vasco Fernandes (1475-1541) que não cabe aqui analisar.
Esgotadas as forças culturais e estéticas renascentistas uma nova resposta
plástica começa a despontar – o Maneirismo.
É no contexto do Maneirismo que se insere a obra de Gregório Lopes. Pri-
meiro trabalho de pintura portuguesa que se pode enquadrar na nova estética é
datada de 1538. (Data duvidosa – 2 anos após a Instalação do Tribunal do Santo
ofício). Dados do MNAA apontam 1536/1537 em seus registros técnicos, ou melhor,
de forma genérica, século XVI (Fig 2).
Gregório Lopes foi discípulo de Jorge Afonso, pintor oficial da Corte de D.
Manuel. Sua atividade aparece registrada a partir de 1513, com intensa produção até
1550, ano provável de sua morte. Assim como seu sogro (Jorge Afonso) ascendeu ao
cargo de pintor régio na Corte de D. Manuel, sendo confirmado nesse status em
1522 por D. João III. Foi- lhe outorgada a Ordem de Santiago de Espada, elevando
sua condição social. Trabalhou em inúmeros conjuntos pictóricos das Igrejas de
Lisboa, Setúbal, Évora e Tomar.

7
Flávio Gonçalves, História da Arte. Iconografia e Crítica (Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Mo-
eda, 1990). Victor Serrão, O Maneirismo e o Estatuto Social dos Pintores Portugueses (Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda; Edição do Comissariado para a XVII Exposição Europeia de
Arte, Ciência e Cultura, 1983).
[354]
ARTE E HISTÓRIA – A CORRELAÇÃO ENTRE O FATO HISTÓRICO E O REGISTRO IMAGÉTICO
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

Para o Convento de Cristo em Tomar, Gregório Lopes pintou várias obras das
quais restam apenas quatro: O Martírio de São Sebastião, Virgem com os Anjos
(MNAA) Santo Antônio pregando aos peixes e São Bernardo (in situ). Essas quatro
obras marcam a evolução estética do pintor no caminho de uma expressão anti-
renascentista (maneirista). Utiliza uma técnica segura no modo como modela a
forma, tirando partido das manchas de cor, iluminadas por fortes contrastes. Seus
esquemas compositivos são inusitados, tornando o primeiro plano impositivo, con-
firmando-o pela colocação de cenas secundárias que completam a narrativa. Com
sentido de unidade, o pintor cria percursos de leitura através da escala dos perso-
nagens ou cenas, criando profundidade espacial. A preferência pela torsão da figura
e as manchas de cor alternadas e sombrias marcam a passagem do Renascimento
já esgotado para a nova estética.
O espectador atual ao contemplar hoje no MNAA essa pintura pode achá-la
estranha: óleo sobre madeira retangular medindo 1,19 x 2,44 cm. A composição co-
loca a figura em torsão no centro da pintura - São Sebastião. Duas figuras
colocadas quase nas extremidades laterais ampliam o campo de visão. Os ângulos
possíveis das trajetórias das armas são estranhos e perturbadores. Tudo se ajusta
quando se explica a origem. A obra foi pintada para a Charola do Convento de
Cristo em Tomar, não para o MNAA. Essa pintura é exemplo crucial para o enten-
dimento do que ocorre quando uma obra de arte deslocada do seu destino original.
Para a charola (espaço circular) o artista vai adequar as leis da perspectiva ao
local de destino.
A marca maneirista surge na colocação à direita do edifício circular.
Vários estágios de observação são oferecidos a quem presente na cena, numa clara
referência à “maniera” de um Rosso Fiorentino ou de um Pontormo.
No inventário do Museu Nacional de Arte Antiga no 80 se encontra a seguinte
informação sobre a tela em questão: “Martírio de São Sebastião. Autor Gregório
Lopes. Datação: 1536-1538. Matéria: Óleo suporte: Madeira de carvalho. Técnica:
Pintura a óleo sobre madeira de carvalho. Dimensões (cm) 119; largura: 244,6.
Descrição: São Sebastião nimbado e preso a uma coluna com os pés atados
por uma corda que enlaça um punhal surge representado no centro da composição.
Dois archeiros, um de cada lado, vestidos com ricas indumentárias e manejando
suas armas, visam o corpo do santo. O martírio do santo romano é, fundamental-
mente, um pretexto para a realização de uma grande composição paisagista
povoada de inúmeras figuras e marcada por apontamentos que remetem para vida
cotidiana de uma urbe no século XVI. A cena decorre numa cidade de que se pode
[355]
vislumbrar em segundo plano o casario e um templo circular “italianizante” ras-
gado por balcões e arcadas decoradas por enormes estátuas, a que se tem acesso
através de uma escadaria. À sua frente uma multidão assiste a um auto-de-fé, com
dois corpos consumidos numa grande fogueira.
O painel retabular pertencia a um dos altares pequenos da Charola do Con-
vento de Cristo em Tomar, destinando-se provavelmente ao altar de São Sebastião
conforme consta no manuscrito de Frei Jerónimo de S. Romão, havendo documen-
tação que atesta a sua realização, nomeadamente verbas de despesa pelo trabalho do
pintor régio Gregório Lopes nos anos de 1536 e 1537 (ANTT, Convento de Cristo, 23,fls
187v; 188 e 196). A obra se encontra sob proteção: interesse nacional; Acautelamento
de especiais medidas sobre o patrimônio cultural móvel de particular relevância para
a Nação, designadamente os bens ou conjuntos de bens sobre os quais devam cair
severas restrições de circulação no território nacional e internacional, nos termos da
lei 107/2001, devido ao fato da sua exemplaridade única, raridade, valor testemunhal
de cultura ou civilização, relevância patrimonial e qualidade artística no contexto de
uma época e estado de conservação que torne imprescindível a sua permanência em
condições ambientais e de segurança específica e adequadas”. Incorporação: Trans-
ferência: Charola do Convento de Cristo (Tomar).
Ainda à direita da pintura está representada uma cena de execução de pes-
soas pela fogueira. São várias estacas em que estão presos (possíveis) condenados e
das quais se eleva um grosso rolo de fumaça de formas sinuosas (serpentinato) que
se desloca em direção ao centro da pintura, quase atingindo a cabeça do mártir em
primeiro plano.
Há uma forte mensagem simbólica em que o martírio do primeiro plano São
Sebastião – mártir do Cristianismo se liga ao martírio em segundo plano. Sugere
que o martírio sofrido pelo Cristianismo deva ser seguido pelo martírio dos hereges
conforme o entendimento corrente na época!
No segundo plano à esquerda, em escala bem menor do que a figura do plano
principal surge um grupo que parece se confrontar. Dois soldados e dois homens
vestidos à maneira dos judeus (identificáveis pelos turbantes à moda oriental). Dis-
cutem a verdade do martírio de São Sebastião ou o martírio que ocorria a direita?
Nenhum deles tem o olhar dirigido às fogueiras. Estas são contempladas pelos com-
ponentes da procissão que corre ao largo do edifício circular (uma procissão de
auto de fé?). O cenário não parece português, bem como os arqueiros em suas
vestimentas. Esses dois arqueiros são figuras insólitas e representam uma nova ico-
nografia neste tipo de cena. Só a presença dos dois homens vestidos à maneira dos
[356]
ARTE E HISTÓRIA – A CORRELAÇÃO ENTRE O FATO HISTÓRICO E O REGISTRO IMAGÉTICO
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

judeus nos remete á problemática do período: o criptojudaísmo que estaria sendo


punido na cena da fogueira.
O painel retabular pertencia a um dos altares pequenos da Charola do Con-
vento de Cristo em Tomar, destinando-se provavelmente ao altar de São Sebastião
conforme consta no manuscrito de Frei Jerónimo de S. Romão, havendo documen-
tação que atesta a sua realização, nomeadamente verbas de despesa pelo trabalho
do pintor régio Gregório Lopes nos anos de 1536 e 15378. A obra se encontra sob
proteção: interesse nacional; Acautelamento de especiais medidas sobre o patrimô-
nio cultural móvel de particular relevância para a Nação, designadamente os bens
ou conjuntos de bens sobre os quais devam cair severas restrições de circulação no
território nacional e internacional, nos termos da lei 107/2001, devido ao fato da sua
exemplaridade única, raridade, valor testemunhal de cultura ou civilização, rele-
vância patrimonial e qualidade artística no contexto de uma época e estado de
conservação que torne imprescindível a sua permanência em condições ambientais
e de segurança específica e adequadas”.
Justificada está a transposição da obra para o MNAA.
Vítor Serrão afirma:
num dos fundos, uma cena dramática de um auto de fé, pintada com ex-
tremo realismo e em agitadas e sinuosas gradações cromáticas....o quadro
é coevo da introdução do Tribunal do Santo Ofício, com o nascimento de
um poder-outro, tentacular, que exerce a repressão de minorias, o terro-
rismo das denúncias, o controlo da produção intelectual, através do Índex
e a vigilância pela boa conduta doutrinária.

O autor afirma com toda veemência que o quadro é coevo do primeiro auto
de fé realizado em Portugal9.
Data maxima venia ouso discordar do mestre Vítor Serrão. A questão é deli-
cada, cheia de lacunas e dúvidas. Tudo indica que a obra foi encomendada em 1536.
Ano da bula oficializando a instalação do Tribunal do Santo Ofício. Entretanto o
efetivo funcionamento do Tribunal levou um bom tempo até se concretizar. Os
registros inquisitoriais apontam a existência de um auto de fé só em 1540. Teria o
artista intuído o que viria a acontecer nos anos subsequentes a feitura da obra para
o Convento de Cristo ou se inspirado nas inúmeras pinturas castelhanas como por

8
Lisboa, ANTT, Convento de Cristo, liv. 23, fls 187v; 188 e 196.
9
Vítor Serrão, “A pintura maneirista em Portugal”, in História da Arte Portuguesa, ed. Paulo Pe-
reira (Lisboa: Atividades Editoriais, 1999), 432.
[357]
exemplo “Auto da fé presidido por São Domingos”, tão magistralmente analisado
por Francisco Bethencourt10.
Segundo Dagoberto Markl, responsável pelo setor de gravuras de desenhos
do MNAA (infelizmente já falecido) crítico e historiador de arte, em trabalho de
1980 levantava a hipótese sobre a pintura de Gregório Lopes, ser o registro do pri-
meiro auto de fé em Portugal num opúsculo publicado pelo Boletim Cultural da
Assembleia Distrital de Lisboa em 1980.
Numa atualização de suas pesquisas, informou-me pessoalmente Dr. Dago-
berto sobre a sua interpretação da pintura em tela. Para ele, em função da data da
feitura da obra e seu local de destino, seria mais provável que o artista tenha regis-
trado em cores e dramaticidade outro evento terrível ocorrido em Lisboa em 1506.
Na ocasião foram presas, espancadas, torturadas e finalmente mortas em fogueiras
pessoas acusadas de heresia (evidentemente maioria de origem judaica). O grande
massacre de Lisboa. Aqui a questão temporal estaria ajustada. O fato ocorre em
1506, sensibiliza o artista que o registra a posteriori. Registro artístico antecipado
parece-me não cabível. Artistas e historiadores não são futurólogos. Os registros
pictóricos surgem muito depois do fato histórico ocorrido. Existem exemplos na
história da pintura de registros realizados por encomendas precisas que na maioria
das vezes se aproximam do evento a ser registrado. Entretanto é muito mais co-
mum uma defasagem temporal enorme.
Ficando no âmbito da pintura portuguesa, por exemplo, imagens relaciona-
das com os feitos da Inquisição aparecem muitas décadas depois do Tribunal já não
existir. Felizmente.
As imagens mesmo deslocadas no tempo continuam marcando a memória
construída do imaginário inquisitorial: – José de Brito – Mártir do Fanatismo – pin-
tura apresentada ao concurso do Salão de Paris de 1895 (fig. 3).
Um imaginário romântico de mártires e heróis como a obra de Antony Serres
(fig. 1 já citado).
As pinturas de cunho histórico, românticas, cheias de dramaticidade são ca-
racterísticas do século XIX e bem recepcionadas pelos espectadores do período. O
enfraquecimento do Santo Ofício e sua extinção (Portugal 1821; Espanha 1834) fo-
ram acompanhadas pelos artistas atentos ao desenrolar da História. Reitero a
observação de que obras deslocadas dos seus lugares de origem em geral mudam
de significado dando origem a interpretações variadas. Caso pungente são as obras

10
Bethencourt, História das Inquisições, 190 e segs.
[358]
ARTE E HISTÓRIA – A CORRELAÇÃO ENTRE O FATO HISTÓRICO E O REGISTRO IMAGÉTICO
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro

de Francisco de Goya realizadas para a Quinta Del Sordo (residência particular do


artista) – Série Negra. As pinturas murais foram transpostas para tela e passaram a
fazer parte do acervo do Museu Nacional Del Prado - Madrid somente em finais do
século XIX quando o Tribunal do Santo Ofício não mais existia em Espanha. Qual
o alcance dessas obras no recanto intimista do artista? No espaço institucional do
Museu são bem conhecidas as interpretações e impacto que criaram!

Anexo 1: Julgamento de hereges do século XV pelo Tribunal da Inquisição na


cripta de uma igreja

Anthony Serres, Julgamento de hereges do século XV pelo Tribuna da Inquisição na cripta de uma igreja. Óleo
sobre tela 100 x 153 cm. Século XIX. Museu do Chiado. Reprodução a partir de foto oficial de José Pessoa,
cedida pela Divisão de documentação Fotográfica – Instituto dos Museus e da Conservação. Autorização;
Proc. 029/06/08.

[359]
Anexo 2: Martírio de São Sebastião

Gregório Lopes, Martírio de São Sebastião. Óleo sobre madeira de Carvalho. Século XVI – 119 x 244 cm. Museu
Nacional de Arte Antiga. Reprodução a partir de foto oficial cedida pela Divisão de Documentação Fotográfica
– Instituto Português de Museus. Foto de José Pessoa. Proc 029/06.

Anexo 3: Mártir do Fanatismo

José de Brito, Mártir do Fanatismo. Óleo sobre tela. Século XIX (1895); 239 x 295 cm. Museu do Chiado – Museu
de Arte Contemporânea de Lisboa. Reprodução a partir de foto oficial cedida pela Divisão de Documentação
Fotográfica – Instituto Português de Museus. Proc 29/06-08.

[360]
Notícias contra a Inquisição: a história do
principal livro crítico ao Santo Ofício português
(1674-1821)1
Yllan de Mattos

À prof.ª Anita Novinsky, pioneira nos estudos sobre a


Inquisição e os cristãos-novos no Brasil.

Em 1708, vinha à público a primeira edição impressa do principal livro crí-


tico à Inquisição portuguesa e à forma como eram tratados os presos de origem
judaica naquele tribunal. Impresso em Londres, o livro fora traduzido para o in-
glês sob o título de An account of the cruelties exercised by the Inquisition in
Portugal2, com autoria atribuída a um “secretário da inquisição” sem nome. Seu
texto trazia informações internas sobre o procedimento inquisitorial com base
em quinze casos de pessoas que sofreram processos reais e dos mais iníquos.
Histórias e nomes verdadeiros tornavam mais que legítima a narrativa. E para os
possíveis incrédulos, o livro frequentemente indicava: “vejam os processos” e “se
encontrará a verdade”.
A segunda edição veio em 1722, impressa em Londres e na língua original
do texto: em português. Com pequenas diferenças, tal como a incorporação das
notas ao texto único e um leve acréscimo ao final, a edição seguia o mesmo con-
teúdo daquela de 1708 e dos manuscritos mais antigos. O título escolhido foi
Notícias recônditas e póstumas do procedimento da Inquisição de Espanha e

1
Esta pesquisa foi apoiada pela Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (FBN) e pela
Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ,
proc. E-26/211.624/2019), as quais agradeço.
2
An Account of the cruelties exercised by the Inquisition in Portugal to which is added: a Rela-
tion of the detention of Mr. Louis Ramè in the Prisons of the Inquisition in the Kingdoms of
Mexico and Spain, and his happy Deliverance. London: Printed for Burrough and F. Baker at
the Sun and Moon, 1708.
Portugal com seus presos3. “Notícia”, no sentido de “coisa que vem ao conheci-
mento”; e “recôndita”, como algo “oculto” ou “escondido” – explica o grande
lexicógrafo da língua portuguesa Raphael Bluteau (1728)4. Imposto pelo editor,
o título expressava uma função de sedução5, atiçando a curiosidade dos leitores
para conhecer o oculto procedimento do tribunal que performava a intolerância
católica (papista e ibérica) nos escritos protestantes.
Por que Londres? Afinal, é no mínimo intrigante que a primeira edição
impressa seja de língua inglesa (1708), e, sobretudo, que a segunda (em portu-
guês, 1722) compartilhe a cidade de impressão com a primeira. Se os casos
relatados são realmente verdadeiros – e o são – a questão é mais grave. De onde
vinha este conjunto de informações? E como chegaram a Londres? Quem teve a
responsabilidade de submeter o texto ao prelo? Quem foi seu público leitor? To-
das questões ligadas ao universo do impresso. O problema é que os arquivos
tipográficos são infrequentes neste tempo e nada sobrou para consultarmos so-
bre a produção da obra ou do que já foi chamado de “manuscrito original”.
Também não há informações sobre a autoria, para além do tal “secretario da
Inquisição”, ou sobre seu publicador, no caso da edição em português (1722) na
qual até o local de impressão é falso – ainda que “Vila Franca” seja o não-lugar
utópico da verdade.
Por outro lado, é preciso considerar que, particularmente no que se refere
às Notícias recônditas, o universo do impresso não foi compartilhado pelo ma-
nuscrito – ao menos antes dele ganhar outras vidas fora da tipografia. O texto
manuscrito e suas primeiras versões tiveram circulação palaciana, correndo

3
Noticias reconditas y posthumas del procedimientos delas Inquisiciones de España y Portugal
com sus presos (Vila Franca: S/Ed, 1722). Existiram outras edições impressas das Notícias, as
mais importantes foram as de 1750 (Veneza) e 1821 (Portugal). Como resultado deste estudo,
publicamos também uma nova edição em 2022, em comemoração aos 300 anos da principal
publicação (Notícias recônditas sobre o procedimento da inquisição portuguesa com seus presos.
Org. e apresentação de Yllan de Mattos (Leiria: Proprietas, 2022). É preciso destacar que as re-
ferências às Notícias impressas são feitas sob a seguinte forma: NRI1722, ou seja, a edição de
1722; ou NRI1821 para a de 1821 e assim sucessivamente. Quanto às cópias manuscritas, é adotada
fórmula parecida (instituição com três letras e referência com quatro): BNP1531 e BNP0799, tra-
tando da Biblioteca Nacional de Portugal, códices 1531 e 799, respectivamente; ATT0244,
BAJ4918, IHS0072 e FBN3161– isto é, na ordem: Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Portugal),
Biblioteca da Ajuda (Portugal), Archivum Romanum Societatis Iesu (Roma) e Biblioteca Nacio-
nal do Rio de Janeiro, cuja numeração faz referência à cota dos códices.
4
Rafael Bluteau, Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico, bellico,
botanico. Coimbra, Colégio das Artes da Companhia de Jesus; Lisboa, Oficina de Pascoal da
Sylva, 1712-1728. Vol. 5, p. 754; vol. 7, p. 160.
5
Gérard Genette, Paratextos Editoriais (São Paulo; Ateliê editorial, 2009), 86-88.
[362]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

cópias entre os inquisidores de Lisboa, os cristãos-novos litigantes e seus procu-


radores, além dos cardeais membros da Congregação do Santo Ofício, em Roma,
e o próprio papado. Roma fora seu palco, não Londres. Procuraremos recuperar
as duas trajetórias do texto, embora algumas vezes apoiados em indícios ligeira-
mente frágeis, mas que, justapostos, fornecem plausabilidade às possibilidades
narrativas. Junto ao método indiciário de Carlo Ginzburg6, foi preciso recorrer
ao uso da sociologia dos textos de Donald McKenzie7 e das análises de Roger
Chartier8 acerca da História do Livro e da Leitura a fim de interpretar significa-
dos só alcançáveis por meio da materialidade do texto.
Quem editou este livro crítico à Inquisição conhecia apenas seu conteúdo.
Nada de autor, data, título ou contexto. Imaginou-o, assim, escrito por um se-
cretário do tribunal; atribuiu o ano de 1672 como de sua publicação; chamou-o
de Notícias recônditas e escreveu um prefácio que situa o livro no universo da
batalha dos cristãos-novos contra o Santo Ofício em Roma (1672-1681). Teve ra-
zão? Parcialmente; e vamos descobrir seus porquês. A primeira questão,
entretanto, é tirar do recôndito quem escreveu o manuscrito e quando.

O legado de uma batalha


Ao deixar Roma e o posto de “procurador dos cristãos de sangue hebreu
do reino de Portugal”, o abade Francisco de Azevedo foi informado sobre res-
posta à proposta feita aos antigos representados9. A carta, de janeiro de 1681,
exalta e agradece todos os serviços prestados à causa e contra a Inquisição, sus-
pensa havia seis anos, e conclui com a tão esperada resolução:
(...) muito acertado, nos parece, preciso e conveniente, o que vossa
mercê aponta que se escreva e faça memória de todos os acidentes dessa
causa e de todas as escrituras, memoriais, cartas e breves com todos os
sucessos e circunstâncias que tem havido neste negócio, para que os vin-
douros tenham estas notícias e sirvam de justificação da causa; assim,
aprovamos, tome, vossa mercê, logo um moço na forma que (...) aponta
para oferecer; agradecemos muito a vossa mercê querer esse trabalho; e

6
Carlo Ginzburg, “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, in Mito, emblemas, sinais: mor-
fologia. e história (São Paulo: Companhia das Letras, 2007).
7
Donald McKenzie, Bibliografia e a sociologia dos textos (São Paulo: Edusp, 2018).
8
Entre outras obras: Roger Chartier, A mão do autor e a mente do editor (São Paulo: Editora
Unesp, 2014).
9
Para o episódio da suspensão da Inquisição (1674-1681), ver o quarto capítulo de quem es-
creve: Yllan de Mattos, A Inquisição contestada: críticos e críticas ao Santo Ofício Português
(1605-1681) (Rio de Janeiro: Mauad-x/Faperj, 2014).
[363]
sem esperar esse nosso consentimento, o poderá (...) haver feito na cer-
teza do que tudo o que vossa mercê dispõe, aprovamos.10

Além de autorizado, o abade fora incentivado a escrever as “memórias” e


divulgar os “memoriais” da causa cristã-nova para que servisse de alicerce à lide
contra a Inquisição. E assim fez. Francisco de Azevedo utilizou diversos textos
entregues à Santa Sé, a maior parte deles com forte embasamento jurídico e pro-
vas tiradas de histórias de cristãos-novos que foram verdadeiramente
processados; forneceu-lhe um eixo narrativo que teve como ponto de partida a
prisão do réu e finaliza com sua morte e pobreza familiar. O resultado foi um ma-
nuscrito sem título e autor, iniciado pela interessante sentença: “manda-me a quem
devo obedecer, lhe refira a forma das prisões do Santo Ofício de Portugal e trata-
mento dos presos naqueles cárceres”11. Ou seja, o texto das Notícias recônditas.
A carta, entretanto, foi o último registro encontrado do abade, quando se-
guiu para o norte da Itália confiado à importante tarefa. Antes disso, na Santa
Sé, prestou enorme serviço ao grupo litigante dos “cristãos de sangue hebreu”,
saindo de sua pena parte significativa dos textos escritos neste período. Sem dú-
vida, seu mais importante fora os Gravami (1674), ou seja: Explicações e provas
dos 31 agravos dos quais se queixam à Sé Apostólica os cristãos descendentes de
sangue hebreu no reino de Portugal contra os estilos, uso e modo de proceder dos
inquisidores daquele reino12. Não é coincidência que dos quinze casos narrados
nas Notícias, apenas quatro não tenha sido aproveitados dos Gravami.
O caso de Maria da Conceição, cristã-nova natural da vila de Estremoz
presa logo nos primeiros dias de 1654 pela Inquisição de Évora, é exemplar13. Ob-
serve como o mesmo caso fora contado nos dois escritos:

10
Lisboa, ANTT, Armário Jesuítico, mç. 30, doc. 82. Carta dos homens da nação Antônio Ro-
drigues Marques, d. José de Castro e Pedro Álvares Caldas para Francisco de Azevedo, seu
Procurador (22/01/1681).
11
NRI1722, p. 1.
12
Cidade do Vaticano, ADDF, St. St., BB 5-d. Gravamina. Original em italiano. A cópia reme-
tida ao papa encontra-se em: Cidade do Vaticano, AAV, Fondo Carpegna, nº 169 (parte
segunda) e 168 (parte primeira). Original em italiano. Há cópias dos gravames também no
fundo Tribunal do Santo Ofício, da Torre do Tombo, na Biblioteca da Ajuda e na Biblioteca
Nacional de Portugal.
13
Lisboa, ANTT, TSO, IE, proc. 1369.
[364]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Comparação entre os Gravami e as Notícias recônditas (fragmento)


Gravami (1674) Notícias recônditas (1722)
Maria da Conceição, natural da vila de Estre- Maria da Conceição, natural da vila de Estre-
moz, filha de Manuel Soares de Pereira, que moz, filha de Manoel Soares Pereira, que, ainda
mora em Lisboa em casa de um seu irmão cha- hoje, vive na cidade de Lisboa em casa de um
mado Álvaro Pereira, a qual juntamente com irmão seu (que se chama Álvaro Pereira); foi
duas suas irmãs tidas em boa reputação saíram presa ela e duas irmãs suas (todas três donzelas
em um auto-de-fé livres abjurando de vee- bem reputadas) e saíram no dito Auto livres, ab-
mente; a qual, havendo já quase junto o jurando de veemente. Esta Maria da Conceição,
tormento do cavalete (espécie de tormento que tendo vencido já quase o tormento (assim o de-
se usa), confessou. Tiraram-lhe os cordéis, rece- clarava a sentença), confessou; tiram-lhe os
beram a sua confissão e a mandaram para a cordéis; levantou-se, vestiu-se e mandaram-na
prisão. Depois de estar curada, foi chamada a ra- para o cárcere curada daquele rigoroso tor-
tificar a dita confissão. E respondeu que tudo o mento; estando para isto, foi levada diante das
que tinha dito era falso, porque ela era, e sempre duas testemunhas costumadas para ratificar
fora, boa cristã, e que só por força do tormento, aquela confissão. Respondeu que tudo quanto
vendo-se nele morrer, tinha confessado tais fal- havia declarado e confessado era falso, porque
sidades. Foi mandada à prisão e logo outra vez ela era e sempre fora cristã; que só por força do
lhe deram o tormento. E no fim dele tornou a tormento, vendo-se nele morrer, confessara fal-
confessar e foi recebida a sua confissão. Depois sidades. Mandaram-na para o cárcere e, logo
de curada, a chamaram outra vez para ratificar outra vez, (puseram) ao tormento; no fim dele,
a primeira e segunda confissão em presença de tornou a confessar e, no mesmo potro, lhe to-
duas testemunhas. Como é sólido, tornou a di- maram a confissão; a qual feita, voltou para o
zer o mesmo, e que se desenganassem, que se cárcere e, curada, tornou à Mesa para ratificar a
cem vezes a mandassem ao tormento, outras primeira e segunda confissão diante das mes-
tantas fazia o mesmo, até que morresse ou que mas testemunhas; tornou a dizer o mesmo e que
Nosso Senhor Jesus Cristo lhe desse valor para se desenganassem porque, se cem vezes a levas-
sofrer até o fim. (...)14 sem ao tormento, havia de fazer o mesmo até
morrer, ou Deus lhe dar valor para o levar até o
fim (...)15.

14
Lisboa, ANTT, TSO, CGSO, liv.158. Explicações e provas dos 31 gravames (traduzido).
15
NRI1722, p. 64.
[365]
Com ínfimas diferenças, vê-se a nítida relação de um texto com o outro.
Além desse, mais onze relatos seguiam o texto dos Gravami, de modo que co-
nhecer um é conhecer todos.

O caminho encoberto até Londres


Os vestígios sobre a trajetória de Francisco de Azevedo desapareceram as-
sim que o abade deixou Roma, tornando bastante difícil o mapeamento de como
o texto chegou a Londres para ser publicado. É possível que Lisboa tenha sido
seu primeiro destino e há alguns indícios que indicam esta possibilidade. Existe,
hoje, diversas cópias nos arquivos portugueses e algumas são anteriores à edição
de 1722 (BNP 1531, 1532; ANTT 244, 410). Também porque Portugal seria o destino
natural do texto, uma vez que seu conteúdo tratava da Inquisição e dos perse-
guidos daquele reino. Outro indício vem das anotações feitas por dois anônimos
em um dos primeiros manuscritos (BNP1531), tão significativa quanto curiosa:

Fragmentos de anotações BNP1531 (detalhe)

Fonte: BNP, Reservados, cód. 1531.

[366]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Este papel se fez depois que saiu Pedro Alvares Caldas do Santo Ofício
dando os termos particulares do que nele se trata; e dizem que [e não
falta quem diga que] é fabricado pelo [com a pena] do padre António
Vieira, Outros diziam que por Manuel Lopes de Oliveira que é hoje do
desembargo do paço e então era advogado, e por outro também cristão-
novo; [também, depois de sair do Santo Ofício.
E as notas marginais são de Diogo Lopez Castro, cristão-novo, advogado
da casa de suplicação e grande letrado, o qual depois de acotar com tanto
trabalho, piedade e erudição, se apresentou por judaísmo no Santo Ofício
da Inquisição de Lisboa]16.

A página revela certa mobilidade de atribuições (inclusive apontando


quem escrevera o texto e lhe dera as notas): a primeira anotação destacou Pedro
Alvares Caldas e Manuel Lopes de Oliveira; a segunda escrita rasurou o nome de
Manoel Lopes, preservou Pedro Alvares e introduziu o de Antônio Vieira, o fa-
moso padre jesuíta17. Alvares Caldas fora consenso. Havia sido processado pela
Inquisição entre 1655 e 166018, ao que se deve a desconfiança de que “os termos
particulares”, ou seja, os detalhes do relato, foram fornecidos por ele. Também é
preciso salientar que Caldas fora nada menos que um dos outorgantes das pro-
curações para o abade Azevedo e, por isso mesmo, um dos principais
financiadores da batalha que levou à suspensão da Inquisição. É inegável seu
envolvimento com o texto e não seria errado supor que tivesse alguma cópia em
sua posse, assim como de outros cristãos-novos apoiantes da causa19, e que parte
deles ainda residisse na península ibérica.
Portugal fora o primeiro destino do manuscrito, mas era arriscado manter
qualquer papel desta natureza quando a Inquisição estava por perto. É possível
que, por este motivo, alguma cópia tenha ido parar em Londres. O historiador
Cecil Roth argumentou que o texto teria chegado ao Haham da comunidade de
judeus sefarditas em Londres (Shaar haSamayim), David Nieto, pela mão de

16
Lisboa, BNP, Reservados, cód. 1531, fl. 60. Manda-me a quem devo obedecer. Repare que a
primeira anotação está identificada com a letra regular; a segunda anotação ao manuscrito
está em itálico; e o trecho rasurado está taxado. Portanto, os grifos são para destacar as partes
do texto. Acotar é o mesmo que cotar; segundo Raphael Bluteau (Vocabulário português e
latino, 1728), significa “por cotas na margem. Cotar um livro”; ou seja, dar-lhe notas.
17
A impossibilidade de Vieira como autor das Notícias foi discutida em Yllan de Mattos, “As
Notícias recônditas e os escritos contra o Santo Ofício português na época Moderna (1670-
1821)”, Topoi 20, n.º 40 (2019): 84-110.
18
Lisboa, ANTT, TSO, IE, proc. 1022.
19
Entre os apoiantes estão importantes comerciantes como Antônio Rodrigues Marques, Ma-
nuel da Gama e Pádua, Pedro Fragoso Lemos, d. José de Castro e Duarte Gouveia.
[367]
David Machado de Sequeira, quando “passou a divulgar os ataques de Vieira à
Inquisição”20. Sequeira foi um importante integrante da comunidade judaica de
Dublin, na Irlanda. Amigo do comerciante Alexander Felix [David Penso], suas
famílias foram das principais apoiadoras da causa em Roma. Ao que consta, Se-
queira foi a Londres em 1707 para tratar de uma proposta que objetivava ajudar
os cristãos-novos que padeciam na Inquisição, além de dar ao prelo um livro
crítico ao tribunal. No ano seguinte, foi publicada pelos impressores Richard
Burrough e John Baker, para a Sun and Moon, a primeira edição das Notícias,
posto que traduzida para o inglês (An account of the cruelties).
Não há muitos detalhes sobre a tal proposta e é provável que Cecil Roth
tenha compartilhado estas informações de outro historiador: Lucien Wolf21. O
historiador irlandês faz referência à proposta em texto sobre o cemitério dos ju-
deus em Dublin, de 1924, embora não trate de nenhuma informação sobre seu
conteúdo. Qual o vínculo entre os dois textos? Ficamos sem saber e o desapareci-
mento dos rastros deste documento impossibilitam sua análise. A proposta,
conforme Wolf, integrava a coleção de David Henriques de Castro (1832-1898),
judeu, colecionador e membro do conselho de administração da sinagoga portu-
guesa em Amsterdã. Sabe-se que, após sua morte, toda a coleção foi à leilão (1899)
e o manuscrito estava arrolado como uma de suas peças22. A historiadora Carla
Vieira, em estudo sobre as Notícias, também se baseou em Wolf para justificar a
chegada do texto em Londres, alcançando o mesmo beco sem saída: o leilão23.
Afogado em catálogos, foi possível descobrir o destino de muitos docu-
mentos desta coleção, completamente pulverizada no leilão. Segundo a curadora
do Museu Histórico Judaico de Amsterdã, Julie-Marthe Cohen24, as peças do
acervo de Henrique de Castro Sarmiento foram adquiridas por pelo menos 85
indivíduos particulares, instituições públicas e comerciantes. É praticamente im-
possível rastrear as compras feitas por livreiros, como as de Joachimsthal, um
dos principais compradores. Apenas ele adquiriu cerca de 300 itens da coleção.

20
Cecil Roth, A History of the Jews in England (Oxford: At the Clarendon Press, 1941), 185.
21
Lucien Wolf e Bernard Shillman, “The Jewish Cemetery at Ballybough in Dublin”, Transac-
tions of the Jewish Historical Society of England 11 (1924): 165.
22
Catalogue de vente de la succession de feu M. D. Henriques de Castro Mz, ed. Vita Israel e
Jacques Lamed (Amsterdam, 1899), 52, doc. nº 499.
23
Carla Vieira, “The Puzzling Path of a Recondite Text: The Composition, Circulation, and
Reception of the Notícias Recônditas in Eighteenth-Century England”, Church History 88,
n.º 2 (2019): 345–380.
24
Julie-Marthe Cohen, “David Henriques de Castro Mzn: a Collector in Nineteenth-Century
Amsterdam” Studia Rosenthaliana 33, n.º 1 (1999): 42.
[368]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Bernard Quaritch, renomado livreiro de Londres, comprou dois livros de horas,


os quais foram enviados para os Estados Unidos, além do Mahzor iluminado do
século XII em nome do Museu Britânico, em maio de 1899 (lote 484). Portanto,
verdadeiro beco sem saída.
De fato, não há prova (sob o critério historiográfico da validação) sobre o
caminho feito pelo texto das Notícias recônditas até chegar a Londres, quando
fora impresso em 1708. As pistas são fragmentárias, contudo, indicam alguma
coisa. O primeiro indício é a posse do manuscrito por cristãos-novos envolvidos
na causa em Roma (depois de 1681 e antes de 1700) e sua presença nos arquivos
contemporâneos (como BNP e ANTT). O leilão é nosso segundo indício. Ainda
que não saibamos do conteúdo da proposta ou se ela é verdadeira, o Catálogo,
quando menos, indica sua existência; conquanto não demonstre quaisquer vin-
culações entre a tal proposta e An account of the cruelties25 e mesmo da
participação de Sequeira na impressão.
Será que o próprio texto das Notícias não traz evidências de sua trajetória?
Se compararmos as edições de 1708 e 1722, há diferenças interessantes. Os nomes
de alguns indivíduos, sobretudo dois relativos à família de Sequeira, foram deli-
beradamente modificados: João de Sequeira e sua tia, d. Brites de Sequeira,
figuram, na edição de 1708, como João de Figueira e Beatriz de Sequeiro. A ques-
tão poderia ser apenas mero lapso, não fossem os citados parentes diretos de
David Machado de Sequeira, responsável pelo documento e possível interessado
na alteração. O sobrenome de Jorge Fernandes Mesas também foi modificado
para Firmoza, provavelmente em atenção ao amigo e parceiro David Penso. To-
dos os outros nomes seguiram idênticos em uma e outra edição, o que ajuda a
corroborar a hipótese de que o texto tenha chegado a Londres por meio de David
Sequeira quando, em 1707 ou 1708, vinha da Irlanda. Vale salientar, por fim, (re-
forçando o argumento) que os processos de João de Sequeira26 e Maria
Rodrigues27, viúva de Antônio Rodrigues, entre outros, foram escolhidos para
conferência da Congregação romana da Inquisição, em 1680.

25
Carla Vieira aponta uma questão importante: “se o seu alvo [da tal proposta] era de fato a
Coroa portuguesa, não havia motivo para uma tradução em inglês do texto”, Vieira, “The
Puzzling Path”, 364.
26
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 5427.
27
Lisboa, ANTT, TSO, IL, proc. 244.
[369]
Coincidências? Decerto que não. Pistas, indícios e fragmentos: o diabo vive
nos detalhes. A adaptação do texto das Notícias é a evidência que confirma nossa
hipótese.

A construção do texto
As informações sobre os participantes da causa são quase sempre opacas
ou cifradas na documentação. O jesuíta Antônio Vieira (que auxiliava a causa
cristã-nova em Roma) explicava ao confessor do rei, o também Jesuíta Manuel
Fernandes, esta razão de ser: “procede-se até agora com todo o segredo e as-
sim importa que seja sempre, veem-se os movimentos do céu, mas não a
inteligência que os move”28. O segredo e alguma discrição eram questões fun-
damentais na batalha de Roma (1674-1681), porque presumia-se (com certa
razão) que a Inquisição não perdoaria a afronta. Aliás, esta é a razão apontada
no prefácio das Notícias para o anonimato do secretário: “o autor (...) consi-
derou não lhe convir, por nenhum modo, voltar a Portugal, tendo como
infalível que, por ter exposta os inquisidores, o haviam de sacrificar à sua
vingança”29.
Em todo caso, mesmo sabendo que foram utilizados os casos dos Gra-
vami, é preciso compreender como se chegou até eles. Como foi construído o
texto das Notícias e, consequentemente, dos próprios Gravami? Rastreando as
procurações e a correspondência, foi possível montar um quadro da rede de
apoio e comunicação dos cristãos-novos: cada família dos presos de 1672 (Mo-
gadouro, Chaves e Pestana) era representada por um Procurador que falava
em seu nome e, também, coletivamente, em nome de todos os “cristãos de
sangue hebreu”. Em julho de 1673, assinam a procuração Antônio Rodrigues
Marques, Manuel da Gama e Pádua, Pedro Fragoso Lemos, d. José de Castro,
Pedro Álvares Caldas e Duarte Gouveia, representando os outorgantes de po-
deres. Cada qual responsável por trazer à luz relatos de familiares e amigos
perseguidos a fim de conferir legitimidade e verdade ao pleito – uso também
observado nas Notícias –, mas também (importante) financiar toda a luta em

28
Carta do padre Antônio Vieira ao confessor Manoel Fernandes (9 de setembro de 1673). Cartas do
padre Antônio Vieira, coord. João Lúcio de Azevedo, tomo 2 (Lisboa, Imprensa Nacional, 1971), 431.
29
NRI1722, prólogo.
[370]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Roma. Manuel da Gama e Pádua, por exemplo, trouxe as experiências de pa-


rentes seus, como Manuel Rodrigues da Costa e os Sequeira; já Pedro Álvares
Caldas ofereceu o relato da prisão de sua irmã, Joana Maria. O conhecimento,
portanto, vinha desta recolha artesanal, compilada pelo abade Francisco de
Azevedo e entregue à Santa Sé – na forma dos Gravami.
Quanto à estrutura do texto e de sua materialidade, é preciso destacar
que apenas a edição de 1708 possui notas marginais, em conformidade com a
grande parte dos manuscritos mais antigos, como ANTT0244, BNP1531 e
BNP1532. A edição de 1722 foi a primeira a incorporar as notas ao texto único,
assim como a edição de 175030 e outras cópias manuscritas, como BAJ4918 e
IHS0072; outras, embora também se tenha optado pela incorporação, como
BNP0799, tenham feito tal e qual a edição de 1821. É possível estabelecer a
cronologia e as filiações a partir destas escolhas e também, assim como fez
Carla Vieira31, perceber as etapas de sua composição.
A hipótese aqui sustentada é a de que este texto foi produzido somente
depois de agosto de 1681, quando a batalha travada pelos “cristãos de sangue
hebreu” contra os procedimentos jurídicos da Inquisição portuguesa chegava
ao fim pelo Breve de Inocêncio XI (que restaurou o funcionamento do Tribu-
nal). Seu texto não foi pensado para o público restrito dos palácios e tribunais,
quer inquisitoriais de Roma ou Lisboa, quer daqueles soberanos de Portugal
ou da Santa Sé. As Notícias incorporaram relatos e argumentos dos Gravami e
de outros textos, criando, porém, sua própria estrutura e narrativa. Portanto,
foram ambos resultado e ponto de chegada das críticas que fizeram suspender
a Inquisição em todo mundo português, mas também representaram uma ou-
tra etapa da batalha: as esferas do debate e da opinião pública; e o Haham
David Nieto, teve grande participação nesta empreitada.

30
Relaçaõ exactissima instructiva, curioza, e noticioza, do procedimento das Inquisições de Por-
tugal. Prezentada ao Papa Ignocencio XI. Pello P. Antonio Vieyra D. F. M. da Companhia de
Jesus. Tirada da pella experiencia do que passou na de Coimbra em tres annos que nella esteve
preso. Juntos por um anônimo (Veneza: Na Oficina de João Moretin, 1750).
31
Vieira, “The Puzzling Path”, 358.
[371]
A publicação e a congregação Shaar haSamayim
Retrato de David Nieto (1728)

Este é o único retrato de David Nieto (1654-1728). Foi gravado com a téc-
nica maniera nera por James McArdell e concluído por David Estevens,
provavelmente em 1728 – logo após a sua morte, a 10 de janeiro deste mesmo
ano. O haham é representado de peruca e traje sóbrio em seu ambiente de tra-
balho; no fundo, apertam-se os livros na estante, dois deles desordenados; à
mesa, um globo, um tinteiro com pena, três códices e um bilhete anotado. A
cena é apresentada como se o retrato interrompesse o trabalho cotidiano de Ni-
eto, afinal ele sequer retira a pena da folha e segura a página como se a quisesse
virar com brevidade, sugerindo a escrita de alguma obra. Na verdade, como
pode-se perceber no detalhe, ele copia um livro de título Notícias, ao alto, e apoia
a pena em Matteh Dan (‫)מטה דן‬, escrito em hebraico e com a dupla coluna com-
pondo a mancha gráfica daquela edição bilíngue32.

32
David Nieto, Matteh Dan y segunda parte del cuzari, donde se prueva con razones naturales,
irefragables, demonstraciones y reales consequencias, la verdad dela Ley Mental, recebida por
nuestros sabios autores de la Misnàh y Guemarà (Londres: Thomas Ilive, 1714).
[372]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Interessante notar que Matteh Dan (1714) e Notícias recônditas (1722) fa-
zem parte da construção alegórica do retrato de Nieto, justamente por
representarem os escritos religioso e político mais importantes e longevos; am-
bos de combate. Seu retrato é póstumo, mas a escolha dos livros sob sua mesa
não foi aleatória, mas representativa.
Matteh Dan foi escrito para os bene anusim, ou seja, para os descendentes
dos convertidos à força que viveram como cristãos em Espanha e Portugal após
sua expulsão (em 1492 e 1496, respectivamente) e que ora retornavam ao judaísmo
– os judeus-novos de Yosef Kaplan e Ronaldo Vainfas33. Seu conhecimento sobre
o judaísmo era mínimo, acessado muitas vezes por textos clandestinos e através
da própria Bíblia cristã, conforme pode-se colher alguns casos nos processos in-
quisitoriais. O texto fora escrito em forma de diálogos (entre um rabino e um czar)
e inspirado no livro O Cuzari (1140), do rabino Yehuda Halevi (1075-1141). Nieto
procurou defender a validade da lei oral para se entender a lei escrita e da autori-
dade rabínica. O livro pode ser lido como um guia de “retorno” ao judaísmo para
aqueles que chegavam das “terras de idolatria” – os “vindos de Portugal”34, con-
forme era anotado ao lado do nome dos ingressantes na Congregação.
Nieto buscava a instrução e o conforto da comunidade, por isso, procurou
explicar como ficariam as almas daqueles indivíduos que nunca conheceram ou
serviram ao judaísmo: “ainda que padeça [de] tormentos atrozes na morte, os
sofre com alegria e bom coração” porque “se entrega à morte para santificar a
Deus”. E continua: “como fizeram nossos pais e fazem hoje nossos irmãos e pa-
rentes [judeus] na Espanha e em Portugal, porque sabem que serão perdoados
de todos seus pecados [e] as suas almas ficam puras como as dos anjos e serafins,
e que gozará perpetuamente do infinito bem e regozijo”35.
David Nieto fora o primeiro líder espiritual da recém-criada (1701) sagrada
Congregação Shaar haSamayim [Portão do Céu] dos judeus de origem ibérica
radicados em Londres. Liderou-a deste ano até sua morte, em 1728. Porém, sua
função era muito mais ligada aos assuntos religiosos que ao governo dos ho-
mens; era um sábio que, frequentemente, emitia pareceres, produzia análises
teológicas e arbitrava (ou enfrentava) pendengas religiosas. Publicou muito

33
Yosef Kaplan, Judíos nuevos en Amsterdam (Barcelona: Gedisa, 1996). Ronaldo Vainfas, Jerusa-
lém colonial: judeus portugueses no Brasil holandês (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010).
34
Lioneld Barnett, ed., Bevis Marks Records: being contributions to the History of the spanish
and portuguese Congregation of London, illustrated by facsimiles of documents, parte 2 (Ox-
ford: Printed at the University Press, 1949).
35
Nieto, Matteh Dan, 136.
[373]
enquanto esteve na Congregação e, como era de se esperar, a Inquisição fora um
tema forte em seus escritos e até dos ritos e cerimônias judaicas que liderou.
Anualmente, a sagrada congregação dedicava uma oração à véspera do Yom
Kippur [dia do perdão] aos “nossos irmãos presos nas masmorras da Inquisi-
ção”36. Nesse sentido, parte das preces e do jejum eram destinados àqueles que,
tal como os hebreus no Egito, viviam no “cativeiro” da idolatra, proibidos de
professar sua verdadeira fé.
Entretanto, se os judeus sefaradim viviam em liberdade na Londres do sé-
culo XVIII, por que publicar textos encobertos sob o véu do anonimato? A
problemática era interna. Enquanto o haham cuidava dos assuntos de fé e dou-
trina, os senhores do Mahamad eram responsáveis pelo governo da comunidade
e formavam um conselho de notáveis eleitos periodicamente. Cabia ao Maha-
mad a autorização para a publicação de qualquer texto e sua censura, ambos
regulamentados pelo Ashkamot – os estatutos que tratavam da vida em comuni-
dade. Embora recente, a comunidade dos judeus de Londres era mais antiga que
a Shaar haSamayim, remontando à autorização do Lorde Protetor Oliver Cro-
mwell ao rabino de Amsterdã, Menassah Ben Israel, em 1656. Partilharam a
primeira comunidade com os judeus vindos do leste europeu, chamados de as-
kenazin, e a primeira sinagoga em Creechurch Lane. O crescimento dos dois
grupos e o acirramento das diferenças culturais mostrou a necessidade do esta-
belecimento de um novo templo, a sinagoga Bevis Marks (inspirada na Grande
Sinagoga de Amsterdã). Uma das principais polêmicas doutrinárias foi causada
pela descoberta da filiação do rabino Solomon Ayllon (1665-1728) às ideias de
Shabbetai Tzvi (1626-1676). O shabbethaiano é originário da crença de que o ra-
bino sefardita de Esmirna (Tzvi) seria o próprio messias profetizado. O
movimento atingiu seu auge em 1666, quando cristãos e judeus experimentaram
uma onda de milenarismos. O Mahamad chegou a queimar um texto conside-
rado heterodoxo de Ayllon e os escândalos públicos poderiam ameaçar a
delicada paz dos judeus em Londres.
Ayllon foi haham em Londres de 1689 a 1700. Sua ação trouxe “risco evi-
dente a nossa preservação, tranquilidade e preciosa paz”, como apontaram os
senhores do Mahamad37. A chegada de Nieto, em 1701, estava profundamente
marcada por este episódio e ele mesmo enfrentou acusações de espinosismo e

36
Roth, A History of the Jews, 200. Derek Taylor, British chief rabbis (1664-2006) (Londres:
Vallentine Mitchell, 2007), 96.
37
Taylor, British chief rabbis, 65-78.
[374]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

deísmo logo nos primeiros anos de sua atuação. Pois bem, a opção pelo anoni-
mato das publicações que polemizavam com a Inquisição, portanto, foi feita
porque o Mahamad desejava evitar qualquer escândalo ou discussão pública, fa-
zendo com que todos os escritos publicados tivessem sua aprovação.
Ao tratar de uma questão interna à comunidade judaica de Londres, Nieto
explica claramente este ponto no prefácio de Esh Dat (1715):
Eu poderia dizer muito mais sobre as consequências perniciosas desse
cisma [...]. Mas, para não decepcionar minha nação [por não escrever]
sobre o que é tão preocupante, mantenho [o que tenho a dizer] como
manuscrito em minha posse; oferecendo-lhes o mais íntimo carinho a
quem gostaria de lê-lo ou traduzi-lo38.

A autorização dos senhores do Mahamad para a publicação do já mencio-


nado Matteh Dan é, neste sentido, bem significativa:
Havendo David Netto, servido de nosso hahan nesta Congregação,
composto um livro intitulado Matteh Dan, ou segunda parte del Cuzary
dedicado a um e a toda esta Congregação [...]; desejando lhe por à es-
tampa para provar a verdadeira lei mental [oral, neste caso] para [a
re]vindicação da honra de nossos sábios e para beneficio comum, su-
plica a vossas mercês [que] sejam servidos conceder-lhe a licença
necessária para a qual mercê rogara aos senhores. Essa, em 2 de Adar
segundo 5472 [10/03/1712], apresentou o senhor Hahan David Netto aos
senhores do Mahamad a súplica que acima há cópia e se resolveu dar-
lhe a resposta seguinte: os senhores do Mahamad resolveram que se
remeta à revista do livro intitulado Matteh Dan a seu superior, supli-
cando-lhe que tornasse a rever o dito livro com toda atenção; feito o
que, se lhe permite podê-lo imprimir39.

O Mahamed acompanhava de perto cada publicação, solicitando altera-


ções e revisões. A preocupação de Nieto em atrair os cristãos-novos que viviam
no mundo Ibérico era um curto pavio que, se aceso, poderia causar danos irre-
versíveis à comunidade. E o controle exercido por aqueles senhores procurava
evitar exatamente isso.

38
David Nieto, Es Dat o fuego leal compuesto en ydioma hebraico y traduzido en romance
(Londres: Thomas Illive, 1715). xii.
39
Londres, London Metropolitan Archives, Bevis Marks, Ata do Mahamad, 5442-5484 (1681-
1723), fl. 85. Alex Kerner citou o documento com outra cota a partir do Central Archives for
the History of the Jewish People, no livro: Lost in translation, found in transliteration: books,
censorship, and the evolution of the spanish and portuguese jews’ congregation of london as a
linguistic community, 1663–1810 (Leiden; Boston: Brill, 2018).
[375]
Entre outros textos publicados anonimamente por Nieto (e não necessaria-
mente escritos pela pena do haham), um deles chama bastante a atenção. Trata-
se da réplica a um sermão proferido no auto da fé de Lisboa, em setembro de 1705,
de autoria de Diogo da Anunciação Justiniano40. Duas informações chamam aten-
ção na capa desta obra: a primeira é que a Respuesta foi escrita “pelo autor das
Noticias reconditas de la Inquisición”. Na parte “Al lector”, diz-se que a obra é pós-
tuma e atribuída a um tal Carlos Vero – um provável pseudônimo de David Nieto.
A segunda, é o local da impressão, Villa-Franca, assim como a edição em portu-
guês das Notícias (1722), conforme pode-se observar na capa do livro:

Comparação entre as capas das Notícias recônditas e da Respuesta ao sermon

Respuesta ao sermon (1729) Notícias recônditas (1722)

40
Carlos Vero [David Nieto], Respuesta al sermon, predicado por el arçobispo de Cangranor,
en el auto de fé celebrado en Lisboa, en 6. setiembre anno 1705. Por el author de las Noticias
reconditas de la Inquisicion. Obra posthuma (Villa Franca: A la insignia de la Verdad, [1729]).
Encontramos dois exemplares, um na British Library e outro na National Library of Autralia
desta obra.
[376]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

Vale apontar que a autoria de David Nieto a este livro é atribuída, mas não
explícita. O livro contou com duas edições, a primeira de 1709 e a segunda pós-
tuma (como aponta seu frontispício), provavelmente impressa em 1729 e que
traz as informações acima. Mas póstuma, por que foi publicada após a morte de
Nieto, em 1728? Parece que sim, sugerindo, então, esta atribuição. A teologia que
da base à Respuesta confirma a relação: a) a ideia de que o judaísmo é legitimado
pelas Escrituras e pela tradição rabínica é o tema de Matteh Dan, sobretudo
quanto da polêmica com os karaitas (que somente admitem a Torá); b) a defesa
de que Deus é uma causa eterna, também presente em Esh Dat e no texto Refle-
xiones theológicas políticas y morales sobre el execrable systema de Nehemya
Hiya Hayon, ambos de 1715; c) a condenação aos papistas, presente em Ante-
exortio (1706); d) o caráter pedagógico do texto, preocupado em fornecer argu-
mentos para fortalecer a fé judaica para aqueles que viviam sob o signo da
intolerância, ou seja, da Inquisição.
Como defende Alex Kerner (ao argumentar sobre outra obra anônima, a
Pascalogia, de 1702), “ao disfarçar o real local da impressão, Nieto, de fato, se
isentou da licença exigida pelo Mahamad antes da publicação de um livro, como
ditado no Ascamot”41. A mesma hipótese pode ser ampliada para as demais im-
pressões, tais como as Notícias recônditas (1722) e a Respuesta al sermón (1729).
A dissimulação do local de impressão, assim, preservava a comunidade judaica
das possíveis polêmicas com os cristãos ingleses, mas também evitava agravar as
perseguições inquisitoriais na Península Ibérica, ao mesmo tempo em que tor-
nava desnecessária a licença dos senhores do Mahamad. A estratégia deu certo,
ao menos no que tange ao conhecimento sobre o envolvimento de qualquer ju-
deu na publicação das Notícias. No século XVIII, mesmo entre inquisidores, era
consensual que Vieira fora seu ator. O inquisidor de Coimbra, Antônio Ribeiro
de Abreu, por exemplo escreveu em 1738-40, texto assim intitulado: Resposta ao
livro Notícias recônditas e póstumas do padre Antônio Vieira (1738-40). Vê-se os
astros, mas não as forças que o movem – apontou linhas antes o jesuíta.
Por fim e mais uma vez, é o próprio texto das Notícias que nos fornece im-
portante evidência sobre a vinculação da comunidade judaica com a sua publicação
– caso ainda não esteja convencido. Se o leitor retornar à leitura da comparação
entre os Gravami e o texto das Notícias, destacadas páginas antes, mas agora pro-
curando suas diferenças terá uma surpresa. Observa-se, ao fim de ambos os
fragmentos, a substituição da invocação à divindade de “Jesus Cristo”, sobretudo
41
Kerner, Lost in translation, 157.
[377]
em expressões e clamores de misericórdia, por menções diretas a “Deus”. Todas as
referências foram substituídas e a forte veia judaica se materializa no detalhe das
escolhas e omissões feitas pelo haham. A edição de 1722 foi única neste aspecto;
Nieto fora seu editor, fornecendo-lhe forma, título e contexto.

Anonimato
O anônimo estampado na capa também foi uma das escolhas do editor. A
impressão criou o anonimato (comum em livros polêmicos e críticos), mas não
aceitou seu desconhecimento. O tal secretário forneceu a autoridade sem, con-
tudo, fornecer seu nome e o motivo explica-se no Prólogo comum as duas
edições:
o autor dessa relação foi um secretário da Inquisição em Portugal, que
são as pessoas que podem dar o melhor e a mais exata conta dos proce-
dimentos deste Tribunal contra aqueles que são acusados, ou suspeitos
de heresia42.

Interpreto que o anonimato estabeleça, a um só tempo, a “função do autor”


(e não sua ausência) e as conexões que expandem os traços de coerência com
outras obras. Como apontou Foucault43, o autor é uma função que permite a
organização do universo dos discursos, empregando distinção e individualidade
ao texto. É possível perceber que o autor anônimo também comporte uma fun-
ção e ofereça elementos discursivos, ainda mais se considerarmos ser o autor
pessoa experimentada nas engrenagens do tribunal – como se leu há pouco. O
anonimato, entretanto, não era absoluto; um autor era indicado, pois o secretá-
rio, ignoto do nome, seria alguém que preferiu ocultar-se na publicação,
possivelmente por temer represálias ao tornar pública uma “verdade recôndita”.
A ocultação da identidade não promovia, necessariamente, a perda de autori-
dade. Ao contrário, o anonimato ampliava os poderes autorais do autor.
A autoria anônima das Notícias poderia forjar, assim, uma conexão com
outros textos críticos à Inquisição, estabelecendo os contornos dessa literatura
anti-inquisitorial. Havia, nesse sentido, dois conjuntos possíveis de obras suge-
ridas pelo anonimato: a) a unidade de suas próprias edições impressas, com as
respectivas traduções e adaptações, e suas cópias manuscritas; b) a relação pos-
sível destas edições e cópias com outras obras de autores críticos ao Santo Ofício,

42
NRI1722, p. 1; NRI1708, p. 1.
43
Michel Foucault, “O que é um autor?”, in Ditos e escritos: estética – literatura e pintura,
música e cinema (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001).
[378]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

tal como Charles Delon, Philip van Limbotch e Claude Pierre Goujet. Sobre este
último grupo, as Notícias recônditas compunham, já no século XVIII, um con-
junto agigantado de textos que encontrava em escritos protestantes, como
Sanctae inquisitionis hispanicae artes44 (primeira edição de 1567), os modelos
fundamentais de forma e conteúdo à escrita contra o Santo Ofício.
O anonimato do secretário era uma forma de reestabelecer a autoria, pois
representava a autoridade do autor. A composição das Notícias recônditas ob-
servava a retórica como regra elementar da construção do discurso, sobretudo
quanto ao uso do recurso da autoridade. Era essa a função da atribuição autoral
ao tal “secretário da Inquisição em Portugal”. O prestígio que garantia a autori-
dade ao autor não era a fama de seu nome, mas a sua experiência no Tribunal e
o seu verdadeiro sentimento de indignação contra suas “bárbaras crueldades e
injusto proceder”. Este sentimento expresso no Prólogo conferia veracidade às
notícias (informações, relatos) e provocava uma disposição de honestidade às
críticas, mobilizando nos leitores – também críticos, ou mesmo inclinados a sê-
lo – certa empatia de ideias e opiniões. Claro que, para isso, seus leitores teriam
que validar a opinião do editor de que o autor do texto era a pessoa que pode
“melhor e mais exatamente [dar] conta dos procedimentos” do Santo Ofício.
O texto das Notícias recônditas era um texto político, de combate, e nada
melhor que a autoridade do secretário capaz de conhecer os pormenores do pro-
cesso inquisitorial para narrá-lo. Se o anonimato ampliou os poderes autorais, a
atribuição ao secretário anônimo os multiplicou. É assim que houve uma tradi-
ção de escritos contra a Inquisição, formada por uma série de impressos
propagandísticos que continham cuidadosa descrição de sua forma processual,
desde as prisões, perseguições, até detalhes da ação dos juízes, embargos morais
e jurídicos, apelos à misericórdia etc. O mais surpreendente era o conhecimento,
em minúcia, do nome e sobrenome dos réus, seus castigos e argumentações mais
detalhadas. Tais conhecimentos, narrados com agudeza, conferiam autoridade
ao texto, mesmo que seu autor “preferisse” o anonimato. A relação, portanto, era
dialética: o anonimato permitia ao “autor” promover a “verdade” sobre o proce-
dimento das inquisições com seus presos e esta “conformidade” com a “verdade”,
afiançada pela experiência dos tempos de secretário, fornecia autoridade para
dizê-lo. O personagem-autor “secretário da Inquisição”, indignado e pronto para

44
Para Nicolás Castrillo Benito, este é o primeiro livro polêmico contra a Inquisição espanhola. El
“Reginaldo Montano” Primer Libro Polemico Contra la Inquisición Española (Madrid: Editorial
Consejo Superior de Investigaciones Científicas – Centro de Estudios Inquisitoriales Press, 1991).
[379]
“descarregar a consciência”, inventado pela edição de 1708 (e seguida em 1722),
era perfeita para o livro e para os apelos narrativos, intrigas e segredos recônditos
abordados. Eles funcionaram como uma forma de atrair o interesse de um leitor
em potencial que, ao nosso ver, era, preferencialmente, protestante (antipa-
pista), ibérico e judaico.

Polifonia e literatura anti-inquisitorial


O rei dom José I lançou um edital em que condenava a leitura e posse de
“escritores malignos e colericamente apaixonados”. Em dezembro de 1769, data
de sua publicação, o Tribunal do Santo Ofício estava a tornar-se régio e, no ano
anterior, havia perdido a censura dos livros para a recém-criada Real Mesa Cen-
sória. A Coroa deixava claro, através deste edital, que o segredo fora o principal
motivador dos livros críticos à Inquisição – tal e qual é apontado no primeiro
parágrafo das Notícias. O desconhecimento, mas também as paixões, foram res-
ponsáveis pelas “calúnias atrozes” sofridas “injustamente” pelo Tribunal. Sob
essa perspectiva, os livros e os autores citados formaram um interessante con-
junto de obras assim listadas45:
1) Anônimo, Modas inquirendi haereticos ad usum Romanae Curia le-
ctu dignissimus (1519);
2) Reginaldus Gonsalvius Montanus, Sanctae inquisitionis hispanicae
artes detectae (1567);
3) Anônimo, L’Inquisiotione processata (1681);
4) Charles Dellon, Relation de l'Inquisition de Goa (1687);
5) Antonio Gavino, Le passé par tout de l'Eglise Romaine (1726-27);
6) Memoires Historiques pour servir a l'Histoire des inquisitions (1716);
7) Philipp van Limborch, Historia inquisitionis (1692);
8) Jacques Marsollier, De l'Origine de l'Inquisition (1693);
9) Gilbert Burnet, Histoire de la Reformation de l'Eglise d'Angleterre (1683);
10) Claude-Pierre Goujet, Histoire des Inquisitions (1759);
11) Marci Zuerii Boxhornii, Historia universalis sacra et profana (1652);
12) Jacques Basnage, Histoire de l'église depuis Jesus-Christ jusqu'à pre-
sente (1699);
13) James Ussher, Gravissimae quaestionis de christianarum ecclesi-
arum in Occidentis (1613);
14) Pierre Bayle, Dictionaire historique et critique (1697);

45
É bem interessante notar (em comparação com o texto original do Edital) os diversos erros
e desconhecimentos sobre os livros listados, como datas de publicação, cidades, autorias, etc.
Porto, Biblioteca Municipal do Porto, doc. 1248. Edital de dom José de 12 de dezembro de 1769.
[380]
NOTÍCIAS CONTRA A INQUISIÇÃO: A HISTÓRIA DO PRINCIPAL LIVRO CRÍTICO AO SANTO OFÍCIO
Yllan de Mattos

15) Josué Rousseau, L'histoire de Portugal et des Algarves (1714);


16) Anonimo, Noticias recônditas (1722).

O edital reconhece as Notícias como importante texto crítico à Inquisição


e percebe sua identificação com as demais obras também críticas. Este é o pri-
meiro ponto da ideia de uma literatura anti-inquisitorial, ou seja, a conexão com
outros textos críticos à Inquisição e a unidade de suas próprias edições impressas
e suas cópias manuscritas. No caso das Notícias, era o anonimato que fomentava
a múltipla ligação entre estas obras.
A relação filial das Notícias com os Gravami produziu outra conexão, agora
com uma série de manuscritos que esgrimaram com a Inquisição entre 1605, data
de um perdão-geral aos cristãos-novos, e 1681, quando terminava a batalha que
levou à suspensão da Inquisição portuguesa. As Notícias foram o ponto de che-
gada dos vários opúsculos, sistematizando uma série de temas abordados nesta
multiplicidade de memoriais. Os Gravami tinham por objetivo a reforma dos es-
tilos da Inquisição portuguesa, pautando-se no discurso jurídico como
fundamento de suas apelações. Esta postura se consolidava e seria, neste mo-
mento, a força de toda argumentação dos cristãos-novos, compondo um
manancial de memoriais e cópias que tentavam dar cabo da ação do inquisitorial
no reino, propondo, inclusive, a observância aos estilos da Inquisição romana ou
espanhola – vistas, idilicamente, como mais equânimes.
Nesse sentido, livros, panfletos e/ou opúsculos compunham uma imagem
literária do Santo Ofício que foi amplamente utilizada por diversos de seus crí-
ticos. Fato é que estes escritos ganhavam certa unidade dentro de uma
diversidade de personagens que ocupavam lugares díspares ou mesmo tinham
intenções diversas com suas palavras. No conjunto, chamaremos tais textos de
literatura anti-inquisitorial, embora a maior parte dos autores fosse crítico ape-
nas do procedimento e dos estilos, sem a intenção de abolir o Tribunal. Ou seja,
alguns autores – não todos, vale ressaltar – leram os escritos que os precederam
(mesmo sem conhecerem uns aos outros), acumulando e produzindo escritos
sucessivos que tiveram como resultado, em Portugal, as Notícias recônditas so-
bre o modo de proceder a Inquisição com seus presos, publicada em 1708 (inglês)
e 1722 (português).
Finalmente, à multiplicidade de textos manuscritos e suas conexões com ou-
tras obras impressas somou-se a própria pluralidade autoral da publicação de 1722.
O abade Francisco de Azevedo e os demais indivíduos participantes da causa, como
os próprios “cristãos de sangue hebreu”, que forneceram os casos verdadeiros de
[381]
processados, o padre Antônio Vieira e o ex-secretário Lupina Freire46 , além do
haham David Nieto, seu editor, e tantas outras pessoas quase invisíveis, como tipó-
grafos e comentadores, contribuíram e forneceram sentido especial ao livro. Uma
polifonia realizada no impresso por meio da pluralidade de autores.

Conclusão
Assim, concluo. O livro Notícias recônditas (as cópias manuscritas e as edi-
ções impressas) apresentou-se como ponto de chegada dos opúsculos e
memoriais críticos ao Santo Ofício português produzidos, sobretudo, na batalha
pelo perdão-geral e reforma jurídica do tribunal. Seu texto apoiou-se nos argu-
mentos e, por vezes, nos casos contidos nos escritos que lhe antecederam. Para
além desta polifonia textual, a materialidade também nos forneceu elementos
para compreender o anonimato. A necessidade de atribuição de autoria das edi-
ções impressas estabeleceu, de uma só vez, o autor-anônimo secretário da
Inquisição e o ano em que foi escrita: 1672. Ambas foram inventadas pelo seu
editor, David Nieto. Forjava-se uma identidade com outros autores críticos e, ao
mesmo tempo, se a suprimia, construindo conjuntos identitários possíveis de
obras sugeridas pelo anonimato. Assim, a imagem do secretário da Inquisição
ignoto, indignado e preparado para fazer justiça e “descarregar sua consciência”
era perfeita. Autoridade, anonimato e polifonia imiscuíam-se a fim de estabele-
cer a autoria (e suas “funções” ampliadas) das Notícias recônditas e a verdade de
seu conteúdo.

46
Sobre a participações destes indivíduos, ver o já citado: Mattos, “As Notícias recônditas e os
escritos contra o Santo Ofício”.
[382]
The Inquisition and Judaism. Porquê publicar um
sermão de auto-da-fé em Filadélfia em 1860?
Carla Vieira

Introdução
Em 1860, o livro The Inquisition and Judaism de Moses Mocatta, original-
mente publicado em Londres, foi alvo de uma nova edição em Filadélfia por
iniciativa de Isaac Leeser, rabi e responsável pelo projecto editorial Jewish Publi-
cations of America. A obra consistia na tradução para inglês do sermão
pronunciado por D. Diogo da Anunciação Justiniano (1654-1713), arcebispo de
Cranganor, no auto-da-fé ocorrido em Lisboa a 6 de Setembro de 1705, e da res-
pectiva réplica de autoria anónima (mas seguramente escrita pelo rabi David
Nieto) publicada em Londres mais de vinte anos depois. Olhando para o per-
curso algo insólito deste texto, composto no início do século XVIII em Lisboa,
traduzido em meados da centúria seguinte em Londres e republicado em 1860
em Filadélfia, uma questão aflora: Porquê? Que motivações levaram Mocatta a
traduzi-lo e Leeser a republicá-lo nos Estados Unidos? Estas são as questões que
irão nortear o presente texto, exploradas à luz das representações das Inquisi-
ções ibéricas construídas e difundidas em Inglaterra e nos Estados Unidos da
América de oitocentos e do modo como estas serviram de resposta a novos de-
safios e novas agendas.

A segunda vida do sermão do Arcebispo de Cranganor


Há relativamente pouco tempo, num artigo publicado na revista Lusitania
Sacra, tive a oportunidade de explorar a jornada única vivida pela prédica do
arcebispo de Cranganor desde a sua primeira apresentação em Lisboa até à
publicação da sua tradução em Filadélfia em 18601. O que se segue é um breve
resumo do que o leitor poderá encontrar mais detalhadamente nesse artigo.
Em 1705, era impresso em Lisboa o sermão proferido por D. Diogo da
Anunciação Justiniano no auto-da-fé realizado em Setembro daquele ano2. Cedo,
este sermão ganhou particular notoriedade, expressa na menção ao seu conte-
údo encontrada em processos inquisitoriais, na inspiração que o mesmo exerceu
junto de outros oradores e, sobretudo, na forma como o texto circulou para lá
das fronteiras portuguesas. Embora não seja conhecida a via pela qual o sermão
chegou a Inglaterra por volta da década de 20 do século XVIII, é muito provável
que a sua deriva tenha acompanhado o movimento migratório de cristãos-novos
portugueses e castelhanos rumo a Londres durante aqueles anos, uma vaga sem
precedentes e directamente relacionada com o recrudescer da perseguição in-
quisitorial em Portugal3. Em data incerta, mas seguramente após 1728, os prelos
ingleses davam à luz uma nova edição do sermão do Arcebispo de Cranganor,
desta vez a acompanhar uma réplica escrita em castelhano e intitulada Respueta
al Sermon Predicado por el Arçobispo de Cangranor4. O local de edição mencio-
nado na folha de rosto – Vila-Franca – é fictício, encobrindo a verdadeira origem
do impresso, ou seja, Londres. Também a identidade do autor aparece dissimu-
lada, limitando-se à referência: ‘Por el Author de las Noticias Reconditas de la
Inquisicion’. O conteúdo da Respuesta, o local de edição e o papel desempenhado
por David Nieto (1654-1728) na edição da obra Noticias Reconditas de la Inquisi-
cion em Londres no ano de 17225 associam a autoria ao rabi da congregação de
judeus espanhóis e portugueses de Londres, a Sha’ar Hashamayim. A referência

1
Carla Vieira, “A graça e a desgraça das relíquias do judaísmo. O sermão de Frei Diogo da Anunciação
Justiniano, arcebispo de Cranganor e as suas respostas”, Lusitania Sacra 38 (2018): 183-204.
2
Diogo da Anunciação Justiniano, Sermam do Auto da Fe, Que se celebrou na Praça do Rocio
desta Cidade de Lisboa, junto dos Paços da Inquisiçaõ, em 6. de Setembro do Anno de 1705….
(Lisboa: Officina de Antonio Pedrozo Galrão, 1705).
3
Sobre este movimento migratório, veja-se A. S. Diamond, “Problems of the London Sephardi
Community, 1720-1733: Philip Carteret Webb’s Notebooks”, Transactions of the Jewish Historical
Society of England 21 (1962-1967): 39-63; Richard D. Barnett, “Diplomatic Aspects of the Sephardic
Influx from Portugal in the Early Eighteenth Century”, Transactions & Miscellanies (Jewish
Historical Society of England) 25 (1973-75): 210-221; Carla Vieira. Nação entre Impérios: Judeus
Portugueses e a Aliança Luso-Britânica (Século XVIII) (Famalicão: Húmus, 2022).
4
Respueta al Sermon Predicado por el Arçobispo de Cangranor enel Auto da Fé Celebrado en Lisboa,
en 6. Setiembre Anno 1705. Por el Author de las Noticias Reconditas de la Inquisicion. Obra Posthuma.
Impresso en Villa-Franca por Carlos Vero. A la Insignia de la Verdad. [Londres, depois de 1728].
5
Veja-se Carla Vieira, “The Puzzling Path of a Recondite Text: The Composition, Circulation
and Reception of the Notícias Recônditas in Eighteenth-Century England”, Church History 88,
n.º 2 (2019): 345-380.
[384]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

na folha de rosto de que se trata de uma ‘Obra Posthuma’ permite datar a edição
depois de 1728, ano da morte de Nieto.
O sermão de D. Diogo da Anunciação seria alvo de uma segunda resposta
escrita em português por um outro autor anónimo (cuja identidade ainda não
foi possível esclarecer), intitulada Ante exordio â Resposta do Sermam que o Ar-
çobispo de Cranganor. Provavelmente, esta segunda réplica foi igualmente
publicada em Londres, apesar da folha de rosto indicar Turim como o local de
edição6. A história do Ante Exordio terminou nesta primeira edição, mas a Res-
puesta de Nieto acabaria por ter uma vida bem mais longa, regressando aos
prelos mais de um século depois.
Uma nova impressão da Respuesta e do sermão do arcebispo de Cranga-
nor, ambos nas línguas originais, surgiu em 1848, integrada no oitavo volume da
obra monumental Antiquities of Mexico. Esta colectânea de textos e gravuras re-
ferentes aos povos meso-americanos fora iniciada por Lord Kingsborough (1795-
1837) e continuou a ser publicada mesmo após a sua morte. Os textos de Nieto e
Cranganor surgem reproduzidos num suplemento, lado a lado com extractos de
obras de autores espanhóis como Juan de Torquemada ou José de Acosta. O ob-
jectivo consistia em documentar a tese de que os povos meso-americanos
descendiam de uma das tribos perdidas de Israel7. A forma como o sermão e a
resposta de Nieto poderiam contribuir para esse propósito não é clara, bem
como as intenções do compilador em incluí-los nesta colectânea. Só numa longa
nota de rodapé referente a um excerto de Ezequiel (17, 3) citado por Nieto, no
qual o povo judeu é comparado com uma águia, o compilador disserta sobre o
simbolismo da águia representada nas armas do México e as interpretações em

6
Ante exordio â Resposta do Sermam que o Arçobispo de Cranganor, Pregou no Auto da Fé.
Que fes em Lisboa, em 6 de Septembro de 1705. Feyta por hum Anonimo Só por Gloria de Deos,
a quem toda a dedica, para que a ampare; Por Credito da Verdade em que toda a funda, para que
claramente se veja; e por desengano de Superstiçoens, a todos os Papistas para que se
arrependam e desenganem dos Erros, e Enganos, com que este seo Pregador, e todos os mais
lastimosamente os trazem enganados. Impresso em Turim, Na Officina de Jorge de Cervantes.
Com todas as Licencas necessarias. Anno 1709. [Londres, depois de 1728]. Sobre esta obra, veja-
se: Herman Prins Salomon, “New Light on the Portuguese Inquisition: the second reply to the
Archbishop of Cranganor”, Studia Rosenthaliana 5, n.º 2 (1971): 178-186.
7
“to show the correspondence which exists between many of the Mexican and Hebrew laws”.
Lord Kingsborough, Antiquities of Mexico: comprising fac-similes of Ancient Mexican paintings
and hieroglyphics…, vol. VIII (Londres: Henry G. Bohn, 1848), página não numerada. Sobre esta
obra, veja-se Sylvia D. Whitmore, “Lord Kingsborough and his Contribution to Ancient
Mesoamerican Scholarship: The Antiquities of Mexico”, The PARI Journal 9, n.º 4 (2009): 8-16.
[385]
torno desta divisa8. As outras parcas notas que acompanham os dois textos ser-
vem apenas para evidenciar a crueldade exercida pela Inquisição contra os
‘judeus’ ou para comentar criticamente, sob um olhar cristão, alguns dos argu-
mentos apresentados por Nieto na sua Respuesta.
Quando esta nova edição dos dois textos saiu em Londres, ambos já ha-
viam sido traduzidos para inglês por Moses Mocatta (1768-1857) e publicados
três anos antes, em 1845. Mocatta era um reconhecido estudioso da língua he-
braica e liturgia judaica e tradutor de obras de polémica, entre as mais
conhecidas Ḥizuḳ emunah de Isaac ben Abraham Troki, impressa em 1851 a título
privado e com uma distribuição limitada9. A tradução do sermão do arcebispo e
da resposta de Nieto enquadra-se neste interesse direccionado para obras de
controvérsia cujo conteúdo potenciasse uma reflexão sobre os desafios contem-
porâneos enfrentados pelos judeus em Inglaterra. Esta ideia surge perfeitamente
expressa na introdução de The Inquisition and Judaism. Mocatta adverte que,
embora o ‘satânico tribunal de Torquemada’ (the Satanic tribunal of Torquemado
(sic)) já não fosse tolerável em nenhuma ‘nação civilizada’,
we have nevertheless to deplore that the privileges of conscience are not
yet respected, and that the morbid craving for apostatizing still continues
to mar domestic and social peace, and to keep alive the flame of civil and
sectarian strife which ought long since to have been extinguished. In
many parts of the Old and New World, but more especially in Great Brit-
ain, the conversion of the Jews has become an organized system.10

Mocatta refere-se especificamente ao avanço do proselitismo cristão na


Grã-Bretanha, institucionalizado por organizações vocacionadas para a conver-
são dos judeus, das quais The London Society for Promoting Christianity among
the Jews, fundada em 1809, é o exemplo mais notório. A actuação da London
Society centrava-se na pregação, educação (estabelecimento de uma escola gra-
tuita para crianças e jovens judeus, especialmente os mais pobres), promoção de

8
“Reference to the first painting of the collection of Mendoza will show that the arms of the
Mexican empire were a large eagle with rich plumage, perched upon a tunal tree, with one leg
extended as of to pluck off a branch. The reason which the Mexicans alleged for taking those
arms was, that Huitzilopuchtli commanded them to found the city of Mexico on the spot
where the appearance of such an eagle signified to them the accomplishment of the oracle”.
Kingsborough, Antiquities of Mexico, 121.
9
Isaac ben Abrahan of Troki, Ḥizuḳ emunah, or, Faith strengthened, translated by Moses
Mocatta (Londres, 1851) [nova edição: (Nova Iorque: KTAV Publishing House, 1970)].
10
Moses Mocatta (trad.), The Inquisition and Judaism: a sermon addressed to Jewish martyrs,
on the occasion of an Auto da Fé at Lisbon, 1705 by the Archbishop of Cranganor, also a reply
to the sermon (Philadelphia: Barnard & Jones Printers, 1861), vi.
[386]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

emprego (House of Industry for Indigent Converted Jews, incluindo uma fábrica
de pavios de velas e uma tipografia que empregavam judeus convertidos) e pu-
blicação de bíblias cristãs em hebraico e obras de teor propagandista11. Segundo
Mocatta, os jovens e as mulheres constituíam dois dos grupos potencialmente
mais sensíveis aos métodos aplicados pela London Society e outras organizações
evangelizadoras. A instrução religiosa deficitária e o desconhecimento da língua
hebraica afastavam-nos da sinagoga, tornando-os permeáveis aos argumentos
dos missionários. Por isso, foi sobretudo aos jovens e às mulheres que Mocatta
dirigiu The Inquisition and Judaism, acreditando que o confronto da ‘sofística
jesuíta’ (‘Jesuitical sophistry’) de D. Diogo da Anunciação com a ‘lógica desapai-
xonada’ (‘unimpassioned logic of the latter’) do autor da resposta poderia ter
uma valência pedagógica e oferecer uma resposta às investidas evangelizadoras.
Apesar da aparente diferença entre os métodos de conversão aplicados pela In-
quisição, defendidos nas palavras do arcebispo, e aqueles então usados pelos
missionários junto dos judeus ingleses, na óptica de Mocatta, tratavam-se de ar-
mas do mesmo arsenal (‘must be aware that the weapons employed have been
invariably taken from the same armory’)12.
A primeira edição de The Inquisition and Judaism enquadra-se, assim, nas
estratégias reactivas das comunidades judaicas em Inglaterra – em particular, a
sefardita – face às acções prosélitas cristãs. Essas estratégias seguiram o modelo
do programa missionário da London Society e outras organizações evangeliza-
doras, focando-se no incremento da oferta assistencial aos elementos mais
fragilizados e da educação religiosa. A imprensa tornou-se num veículo privile-
giado para a materialização destes objectivos. Nos anos 40 do século XIX, a
imprensa judaica inglesa sofreu um crescimento nunca antes registado, com o
surgimento de novos periódicos – The Voice of Jacob e Jewish Chronicle, ambos
iniciados em 1841 – e a publicação de obras visando a instrução dos leitores e a
promoção de uma nova imagem do judeu na sociedade britânica. Um bom
exemplo é o projecto editorial Cheap Jewish Library, iniciado em 1841 por Char-
lotte Montefiore (1818-1854), coadjuvada pelo rabi David de Aaron Sola (1796-
1860) e pela escritora Grace Aguilar (1816-1847), cujo objectivo consistia na

11
R. H. Martin, “United Conversionist Activities Among the Jews in Great Britain, 1795-1815:
Pan-Evagelicalism and the London Society for Promoting Christianity Amongst the Jews”,
Church History 46, n.º 4 (1977): 437-452; Robert Michael Smith, “‘The London Jews’ Society
and Patterns of Jewish Conversion in England, 1801-1859”, Jewish Social Studies 43, n.º 3-4
(1981): 275-290.
12
Mocatta, The Inquisition and Judaism, ix.
[387]
disponibilização a baixo custo de livros de ficção especificamente destinados a
leitores judeus13. The Inquisition and Judaism nunca atingiu uma audiência tão
alargada quanto os pequenos livros da Cheap Jewish Library. Afinal, o livro fora
impresso a título privado, com uma tiragem reduzida mas, ainda assim, distri-
buído gratuitamente para chegar mais facilmente à ‘youthful portion of his
Jewish brethren’14. Não obstante, uma dessas raras cópias gratuitas acabaria por
viajar até Filadélfia e dar origem a uma reedição do outro lado do Atlântico.

Filadélfia e a ‘República das Letras Judaico-Atlântica’


A reedição de The Inquisition and Judaism em Filadélfia, 25 anos após a
publicação original, deve ser enquadrada numa rede autores, tradutores e edito-
res de língua inglesa e tradição sefardita que formava o que Arthur Kiron apelida
de ‘Atlantic Jewish republic of letters’15. Londres e Kingston (Jamaica) constitu-
íam dois vértices desta ‘República das Letras’ alimentada pela produção impressa
e pela circulação de livros e notícias através do Atlântico. O terceiro vértice era
Filadélfia, o principal polo editorial judaico nos Estados Unidos da América em
meados de oitocentos.
Em 1852, a cidade albergava cinco sinagogas. Ao longo do século XIX, a
população judaica crescera exponencialmente, dos cerca de dois milhares em
1840 para perto de quinze mil em 188016. Porém, a história do judaísmo em Fila-
délfia começara bem antes. Os registos da existência de um local de culto na
cidade, mais exactamente em Sterling Alley, remontam aos anos 40 do século
XVIII. Contudo, seria durante a Guerra da Independência, quando Filadélfia se
tornou num reduto das forças patriotas, que a comunidade judaica sofreu um
acentuado crescimento. Judeus simpatizantes da causa patriota vindos de Nova
Iorque, Newport e Charleston refugiaram-se então em Filadélfia e, com as suas
contribuições e empenho, deram origem à primeira sinagoga da cidade, a Mi-
kveh Israel, inaugurada em 1782 e ainda hoje conhecida como ‘a sinagoga da

13
Michal Shahaf, “Charlotte Montefiore’s Secret: The Cheap Jewish Library – An Educational
Philanthropic Mission”, Nashim: A Journal of Jewish Women’s Studies & Gender Issues, n.º 30
(2016): 48-73.
14
Mocatta, The Inquisition and Judaism, xi.
15
Arthur Kiron, “An Atlantic Jewish Republic of Letters?”, Jewish History 20 (2006): 171-211.
16
Arthur Kiron, “A Renaissance of Jewish Readers in Victorian Philadelphia”, in Jewish
Renaissance and Revival in America, ed. Eitan P. Fishbane and Jonathan D. Sarna (Waltham,
MA: Brandeis University Press, 2011), 73.
[388]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

Revolução Americana’17. O seu primeiro líder espiritual foi Gershom Mendes Sei-
xas (1746-1816), antigo hazzan da congregação Shearith Israel em Nova Iorque,
entretanto encerrada na sequência da ocupação da cidade pelas forças britâni-
cas. A tradição e o ritual sefardita prevaleceram na nova congregação, apesar dos
judeus asquenazitas constituírem já então uma maioria demográfica na comu-
nidade. Tal situação manteve-se no século XIX e é a identidade sefardita que
enforma o papel cultural desempenhado por Filadélfia nesta ‘República das Le-
tras Judaico-Atlântica’, partilhada mesmo por quem não comungava dessa
herança ibérica. Aliás, seria um judeu alemão que abraçou a tradição sefardita a
alavancar o eclodir da imprensa judaica na cidade.
Natural de Neuenkirchen, na Vestefália, Isaac Leeser (1806-1868)18 emi-
grou para os Estados Unidos da América aos 18 anos de idade. Inicialmente,
estabeleceu-se em Richmond, Virgínia, onde começou a frequentar a sinagoga
Beth Shalome e encontrou no hazzan Isaac B. Seixas (1781-1839), sobrinho de
Gershom Mendes Seixas, um primeiro mestre no ritual sefardita. Anos mais
tarde, em 1829, mudou-se para Filadélfia, convidado para assumir as funções de
hazzan da Mikveh Israel. Esta experiência inspirou-o a compor a primeira tra-
dução para inglês do ritual sefardita publicada na América, The Form of Prayers:
The Custom of the Spanish and Portuguese Jews (Filadélfia, 1837).
Leeser acumulava as funções ministeriais com a carreira de jornalista. No
mês de Abril de 1843, lançou o primeiro número de um periódico mensal que, ao
longo dos dezasseis anos de publicação, procurou a difusão do conhecimento
sobre a literatura e a religião judaicas (‘diffusion of knowledge on Jewish Litera-
ture and Religion’) por todo o Atlântico judaico, com assinantes espalhados
pelos Estados Unidos, Caraíbas e Europa Ocidental19. The Occident and Ameri-
can Jewish Advocate teve como modelo o inglês Voice of Jacob e surgiu em
resposta ao jornal de teor conversionista Jewish Chronicle, publicado pela Ame-
rican Society for Meliorating the Condition of the Jews (ASMCJ), a congénere

17
‘Synagogue of the American Revolution’ é o epítome que surge nas insígnias da sinagoga
Mikveh Israel (http://www.mikvehisrael.org/). Para uma perspectiva geral sobre a história da
comunidade judaica de Filadélfia no século XVIII e inícios da centúria seguinte, veja-se Edwin
Wolf e Maxwell Whiteman, The History of the Jews of Philadelphia from Colonial Times to the
Age of Jackson (Filadélfia: Jewish Publication Society of America, 1957).
18
Sobre Isaac Leeser, veja-se a biografia Lance J. Sussman, Isaac Leeser and the Making of
American Judaism (Detroit: Wayne State University Press, 1996).
19
The Occident and American Jewish Advocate, vol. 1, n.º 1. Filadélfia, Abril 1843.
[389]
americana da London Society20. Fundada em Nova Iorque no ano de 1820, a AS-
MCJ sucedeu a uma série de organizações que visavam a evangelização dos
judeus. Tal como acontecera em Inglaterra, as investidas missionárias suscita-
ram uma resposta à medida, focada nas mesmas áreas que as alavancavam: a
educação, a imprensa e a assistência. Segundo Jonathan Sarna, o evangelismo
cristão acabou por ter um efeito inverso ao pretendido pelos seus mentores, ao
contribuir decisivamente para a consolidação do judaísmo americano e para o
fomento da sua oferta educacional e caritativa, bem como da sua produção es-
crita21. Particularmente notável foi o progresso da literatura de polémica,
inspirada em modelos europeus de séculos anteriores, sobretudo oriundos do
universo sefardita.
Isaac Leeser, porém, não era um polemista. Os seus objectivos centravam-
se antes em contribuir para a consolidação da identidade judaica na América e
para a promoção dos valores do Judaísmo através da educação e da imprensa, vi-
sando dotar os judeus americanos de recursos e argumentos para resistirem aos
esforços dos missionários cristãos22. Nesta senda, Leeser procurava difundir exem-
plos da excepcionalidade e da resiliência do povo judaico. Foi por esse motivo que
a tradução de Mocatta lhe cativou o olhar. Ele próprio o exprime nas páginas do
The Occident, em Agosto de 1846, numa recensão a The Inquisition and Judaism,
após um dos raros exemplares lhe ter chegado às mãos por via das redes que te-
ciam a ‘República das Letras Judaico-Atlântica’. Leeser contrasta as tiradas do
arcebispo de Cranganor, a voz da máxima barbárie humana encarnada na Inqui-
sição, com a coragem dos ‘mártires judeus’ (‘Jewish martyrs’, expressão usada no
título do livro) que as ouviram naquele dia, não tão distante assim, de 6 de Setem-
bro de 1705. Apesar de não conhecerem a língua hebraica e da sua familiaridade
com a liturgia judaica ser muito rudimentar, aqueles cristãos-novos
had in secret treasured up the traditional religion of their fathers, cling-
ing with unshaken ardour to the belief in the doctrine of the unity of
God and the practice of such commandments as lay in their power,
whilst ostensibly they exhibited a compulsory conformity with the
dominant church, which all along was hateful in their eyes [...] Their

20
Jonathan D. Sarna, “The Impact of the Nineteenth-Century Christian Missions on American
Jews”, in Jewish Apostasy in the Modern World, ed. Todd M. Endelman (New York, London:
Holmes & Meier, 1987), 243.
21
Jonathan D. Sarna, “The American Jewish Response to Nineteenth-Century Christian
Missions”, The Journal of American History 68, n.º 1 (1981): 35-51.
22
Veja-se Brandon Katzir, “Walking the Even Tenor of Our Ways: Liberty and Tradition in
Isaac Leeser’s Claims of the Jews to an Equality of Rights”, Jewish History 35 (2021): 135-151.
[390]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

love for the faith of their forefathers must accordingly have been more
of an heirloom than any thing else; still, behold!23

Para Leeser, estes ‘mártires judeus’ representavam um exemplo máximo de


resiliência, capazes de preservar em segredo a fé dos ancestrais num ambiente
profundamente adverso e sem acesso aos textos sagrados ou a qualquer instrução
religiosa judaica. Embora com uma intenção obviamente oposta, Leeser abraçava
assim a identificação entre cristão-novo e judeu que servira de argumento à actu-
ação das inquisições ibéricas. A ‘oposição silenciosa que os judeus de Espanha e
Portugal ofereceram aos seus opressores ao longo de tantos séculos’ merecia, na
perspectiva de Leeser, uma mais ampla difusão na literatura judaica, em particular
daquela produzida pelos seus descendentes24. Como excepção, cita os contos de
Grace Aguilar publicados dois anos antes em Records of Israel25.
A tradução de Mocatta evocava esse passado de opressão mas também de
heroísmo, encorajando paralelismos com a situação vivida em Inglaterra dos
anos de 1840. Não é por acaso que, nesta recensão, Leeser cita a passagem do
prefácio em que Mocatta compara os métodos dos conversionistas com os da
Inquisição. O mesmo arsenal estava a ser usado junto dos judeus americanos e
Leeser queria consciencializar os leitores do The Occident para essa situação. Por
isso, termina a recensão prometendo que voltaria a abordar os conteúdos de The
Inquisition and Judaism noutra ocasião (‘We may perhaps recur to it hereafter’).
Demoraria, porém, 24 anos a fazê-lo.
Por esta altura, Leeser havia já abraçado um novo projecto editorial. Em
1845, criava a American Jewish Publication Society (AJPS), uma sociedade edito-
rial com três objectivos: encorajar a leitura entre os judeus, oferecer bons livros
a quem não tinha condições para os comprar e incentivar o ‘talento judeu’ a de-
dicar-se a temas relacionados com a religião e história judaicas26. Em particular,

23
Isaac Leeser, “The Inquisition and Judaism…”, The Occident and American Jewish Advocate
4, n.º 5 (1846).
24
“To us there is something so holy in the silent opposition the Jews of Spain and Portugal
offered to their oppressors for so many centuries, that we wonder that their descendants, of
whom Mr. M. is one, have never yet collected the legends which are no doubt afloat in their
families, and given them to the world.” Ibid.
25
Grace Aguilar, Records of Israel (Londres: John Mortimer, 1844).
26
‘A threefold object would be thereby secured; first, the encouragement of reading among
Israelites; secondly, the supplying of good books to those who cannot afford to buy them; and,
thirdly, to incite Jewish talent to devote itself to the development of subjects connected with
our religion and history’. Isaac Leeser, “Formation of the American Jewish Publication
Society”, The Occident 3, n.º 9 (Dezembro 1845).
[391]
Leeser tinha em mente as massas de imigrantes judeus, vindos sobretudo da Eu-
ropa do Leste, que chegavam aos Estados Unidos com muito poucos recursos e
ainda menos instrução religiosa. Apesar da sua subsistência e assistência médica
ser já assegurada pelas comunidades locais, faltava quem lhes providenciasse ali-
mento para as almas. Essa era a principal missão da AJPS através da edição de
livros leves (‘light reading’) mas capazes de transmitir valores e despertar o gosto
pela leitura. Tal foi o critério para a escolha dos primeiros dois volumes da série
inaugural Jewish Miscellany, editados ainda antes da formalização da AJPS: Caleb
Asher, uma sátira anti-missionária de Charlotte Montefiore, e Hebrew Tales, uma
selecção de contos judeus coligida por Hyman Hurwitz. Nos cinco anos seguin-
tes, seriam editados mais doze números da Jewish Miscellany, com um especial
domínio de autores ingleses contemporâneos e, sobretudo, de escritoras judias
como Grace Aguilar (The Perez Family, em 1847, e The Spirit of Judaism, em 1849)
ou Marion Moss Hartog (The Prophet’s Daughter, A Tale, em 1846), mas também
cristãs, entre as quais Charlotte Elizabeth Tonna (Days of Old, em 1847) e Ade-
laide O’Keefe (Patriarchal Times; or, The Land of Canaan, em 1848). Esta
prevalência da literatura escrita por mulheres seria provavelmente uma escolha
deliberada, visando atrair o público feminino, uma das audiências alvo dos es-
forços anti-conversionistas, como vimos atrás nas palavras de Moses Mocatta. A
vitalidade da AJPS seria interrompida de modo abrupto em 1851, após um incên-
dio ter atingido as suas instalações e destruído grande parte do seu stock27.
Não obstante este fatídico contratempo, Isaac Leeser prosseguiu com a sua
missão editorial. Em 1853, publicou A Series of Letters on the Evidences of Chris-
tianity de Benjamin Dias Fernandes. Esta obra reunia as chamadas ‘Dias’ Letters’,
anteriormente publicadas em vários números do periódico de The Jew, impresso
em Nova Iorque por iniciativa de Solomon Henry Jackson entre 1823 e 1825, e
depois no The Occident. Então, a autoria e a proveniência deste manuscrito eram
ainda uma incógnita. Mais tarde, Grace Aguilar viria a desvendar o mistério: o
autor era o seu bisavô Benjamin Dias Fernandes, um mercador judeu português
que vivera na Jamaica e em Inglaterra e que redigira aquelas cartas em Londres28.

27
Jonathan D. Sarna, “The Jewish Publication Society 1888-1988”, Jewish Book Annual 45
(Nova Iorque: Jewish Book Council, 1987-1988), 43.
28
Isaac Leeser, “Preface”, in A Series of Letters on the Evidences of Christianity, (as they first
appeared in The Occident) by Benjamin Dias Fernandes (Filadélfia, 5614 [1853]), iv-v. Benjamin
Dias Fernandes era filho de Daniel Dias Fernandes, um cristão-novo português que, nos anos
20 do século XVIII, se estabeleceu em Londres, onde se converteu ao Judaísmo. A sua mãe era
Sarah Aguilar, irmã de de Diogo Lopes Pereira, o Barão de Aguilar.
[392]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

A edição de A Series of Letters já não se enquadrou no âmbito da AJPS, provavel-


mente extinta após o incêndio de 1851. Então, Leeser encontrava-se a planear um
novo projecto editorial: ‘I trust that I shall meet with so much encouragement
as to induce me to issue hereafter more works of the kind, so that this maybe
‘The Jewish Controversial Library, No. 1’29.
A Series of Letters foi reeditado em 1859 e, logo no ano seguinte, saía The
Inquisition and Judaism, talvez pensado para ser o segundo volume dessa colec-
ção dedicada à literatura de polémica. Aliás, as duas obras partilham algumas
características em comum. Além do contexto judaico-português de Londres que
moldou ambos os textos, o ‘tom persuasivo e cordial’ (‘cogency and gentlemanly
tone’) do discurso de Dias Fernandes equiparava-se com a argumentação racio-
nal e desapaixonada de David Nieto. Era esse o registo que Leeser entendia ser
o mais eficaz para fazer face aos ataques desferidos pelos missionários cristãos.
Leeser não dotou a reedição de The Inquisition and Judaism em 1860 de um
novo prefácio, limitando-se a reproduzir as palavras como que Moses Mocatta
introduziu a sua tradução. Aliás, a nova edição reproduz quase fielmente a ori-
ginal, apenas com uma pequena observação correctiva numa nota de rodapé30 e
a omissão de um apêndice final, incluído na edição de 1845, com as traduções
para inglês das passagens em latim31. Leeser acrescentou ainda uma breve nota
introdutória de uma página em que aborda as circunstâncias da primeira edição
londrina, exprime as expectativas de que o texto atinja uma audiência ampla e
se distancia das posições de Mocatta face às autoridades rabínicas – ‘Hence his
allusion in the Preface which is not very complimentary to our old teachers’32.
No prefácio, Mocatta responsabilizava os ‘rabinos de outros tempos’ de terem
descurado a educação dos mais jovens e das mulheres e de resistirem a converter
as escrituras em língua vernácula para as tornar mais acessíveis a todos os fiéis33.

29
Ibid., viii.
30
‘“Serecie” is not Hebrew, and probably was intended for Ehyeh meaning I am, - see Ex. Iii,
14. “I AM hath sent me unto you.” [Or more correctly “I will be,” as Ehyeh is the future, first
person singular of hayah, to be.]’. Mocatta, Inquisition and Judaism, 44.
31
“Appendix to the Inquisition and Judaism, presenting a faithful translation of the several
Latin passages occurring throughout the work; with the exception only of such as are
immediately followed or preceded by an English version”. Mocatta, The Inquisition and
Judaism (1845).
32
Isaac Leeser, “Note”, in The Inquisition and Judaism, página não numerada.
33
“For better would it have been for the moral and spiritual welfare of Israel, if the Rabbis of
other times had manifested less concern for every title of outward ceremonies, and had
displayed more earnestness for the development of the exalted principles which constitute
the basis and the glory of the Jewish faith. Had they but imitated the example of the [Chaldee]
[393]
Apesar de Leeser seguramente concordar com a necessidade da tradução dos
textos sagrados – aliás, ele foi responsável pela primeira tradução para inglês da
Bíblia hebraica publicada nos Estados Unidos da América34 –, ele não partilhava
com Mocatta a responsabilização das autoridades rabínicas pelos sucessos dos
esforços missionários cristãos.

Outros olhares sobre as Inquisições ibéricas


A 28 de Maio de 1818, Thomas Jefferson escrevia a Mordecai Manuel Noah
(1785-1851)35, congratulando-o pelo discurso proferido na inauguração da nova
sinagoga da congregação Shearith Israel em Nova Iorque. Havia-o lido e ficado
sensibilizado com a menção aos sofrimentos infligidos ao povo judaico ao longo
da sua história, ‘prova do espírito universal da intolerância religiosa inerente a
todas as seitas’ contra o qual ‘as nossas leis têm aplicado o único antídoto’, ao
protegerem todas as religiões e os direitos civis dos cidadãos. Porém, Jefferson
admitia que uma coisa era a lei, outra a prática. Acrescentava assim que ‘a opi-
nião pública ergue-se numa Inquisição e exerce o seu ofício com tamanho
fanatismo como se atiçasse as chamas de um Auto-de-fé’36. Esta evocação de Jef-
ferson não se encontra muito distante das razões que levaram Mocatta a traduzir
o sermão do Arcebispo de Cranganor e Leeser a republicá-lo em Filadélfia. Por
um lado, as velhas Inquisições ibéricas eram a expressão máxima de um

in the days of Ezra, had they stoof forth like him to expound the law in the vernacular tongue,
instead of spending their lives in subtle speculations, and in fine hair drawn disquistions
which exercise no moral or religious influence over the minds of youth, how many would,
even at the present day, be worshipping the God of Israel as an absolute Unity, instead of
bowing at the shrine of apostacy”. Mocatta, “Preface”, in The Inquisition and Judaism, xi.
34
Isaac Leeser, The Twenty-four books of the Holy Scriptures (Filadélfia, 1853). Uma segunda
edição em formato mais pequeno foi publicada em 1857.
35
Diplomata, dramaturgo e jornalista norte-americano, Mordecai M. Noah era descendente
de judeus portugueses. A sua bisavó, Zipporah Nunes (alias Maria Caetana Nunes Ribeiro),
era natural de Lisboa e chegou a Savannah, Geórgia, em 1733, vinda de Londres, na companhia
do pai, o Dr. Samuel Nunes Ribeiro (alias Diogo Nunes Ribeiro). Sobre Mordecai M. Noah,
veja-se Jonathan Sarna, Jacksonian Jew: The Two Worlds of Mordecai Noah (Nova Iorque:
Holmes & Meier Publishers, Inc. 1981).
36
“Your sect by its sufferings has furnished a remarkable proof of the universal spirit of
religious intolerance inherent in every sect, disclaimed by all while feeble, and practiced by
all when in power. Our laws have applied the only antidote to this vice, protecting our
religions, as they do our civil rights, by putting all on an equal footing. But more remains to
be done, for although we are free by the law, we are not so in practice; public opinion erects
itself into an Inquisition, and exercises its office with as much fanaticism as fans the flames of
an Auto-de-fe”. Mordecai M. Noah, Travels in England, France, Spain, and the Barbary States
in the years 1813-14 and 15 (New York, London: Kirk and Mercein, John Miller, 1819), xxv.
[394]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

fanatismo religioso inaceitável nos Estados Unidos, ou, como diria George Wa-
shington em 1790, ao responder a uma carta endereçada pela comunidade
judaica de Newport, na nova nação que ‘gives bigotry no sanction’37. Por outro
lado, na prática, essa intolerância era ainda persistente e inspirava movimentos
que, na perspetiva de Mocatta e Leeser, subtilmente recorriam a armas do
mesmo arsenal da velha Inquisição.
Nos Estados Unidos de oitocentos, a Inquisição e a perseguição religiosa
nos reinos ibéricos eram tópicos evocados dentro e fora das comunidades judai-
cas. Tal é patente ao analisar-se a bibliografia, organizada por Robert Singerman,
de livros, panfletos e periódicos relacionados com a temática judaica publicados
nos Estados Unidos da América até ao século XX38. O peso no total das edições
não é significativo, limitando-se a alguns itens dispersos, a maioria reedições ou
traduções de obras originalmente publicadas na Europa. De facto, uma pequena
parte destes títulos são de autores judeus e, em particular, sefarditas. Além da
tradução de Mocatta, destacam-se as reedições das obras de Grace Aguilar The
Vale of Cedars (1850) e Essays and Miscellanies (1853): o primeiro, um romance
ambientado no tempo da expulsão dos judeus de Espanha; o segundo, uma co-
lectânea de textos que inclui o ensaio ‘History of the Jews of England’, o qual
dedica algumas páginas à perseguição inquisitorial e, em particular, à investida
que conduziu à vaga migratória para Londres dos anos 1720s-1730s39. Curiosa-
mente, os dois contos de Aguilar baseados neste episódio determinante da
diáspora sefardita para a Inglaterra – ‘The Escape’ e ‘The Fugitive’, originalmente
publicados em Records of Israel (Londres, 1844) e Home Scenes and Heart Studies
(Londres, 1852) – nunca chegaram a ser reeditados nos Estados Unidos no século
XIX, apesar da entusiástica crítica que Records of Israel recebeu no The Occi-
dent40. Outro autor sefardita contemplado na bibliografia organizada por

37
A 17 de Agosto de 1790, Moses Seixas (1744-1809), irmão de Gershom Mendes Seixas,
endereçou uma carta a George Washington em nome da comunidade judaica de Newport,
dando-lhe as boas-vindas à cidade. A resposta de Washington a esta missiva ficaria célebre
enquanto expressão do compromisso do novo governo na defesa da liberdade religiosa.
George Washington, “Letter to the Hebrew Congregation of Newport”, 1790,
https://tourosynagogue.org/history/george-washington-letter/.
38
Robert Singerman, “Judaica Americana: A Bibliography of Publications to 1900”, Judaica
Americana, n.º 1 (2019). Disponível em: https://repository.upenn.edu/judaica_americana/1
39
Grace Aguilar, The Vale of Cedars, or The Martyr (Nova Iorque, Filadélfia: D. Appleton, Geo.
S. Appleton, 1850). Grace Aguilar, Essays and Miscellanies (Filadélfia: A. Hart, 1853).
40
Isaac Leeser, “Literary Notices: Records of Israel, by Grace Aguilar”, The Occident 2, n.º 4-5
(1844). Sobre estes dois contos, veja-se Carla Vieira, “The prisoner, the fugitive, and the
[395]
Singerman é Isaac da Costa (1798-1860), cuja obra Israël en de volken, original-
mente publicada em Haarlem (1849), foi traduzida e publicada em Nova Iorque
no ano de 1855. Israel and the Gentiles enfatiza a superioridade da herança sefar-
dita, conferindo uma especial atenção à história dos judeus ibéricos, à diáspora
e à perseguição inquisitorial41.
Mais numerosos são os títulos de autores cristãos que encontraram na In-
quisição e na perseguição religiosa contra os judeus ibéricos um motivo literário.
A popularidade na Europa (e sobretudo na Inglaterra vitoriana) de romances e
peças de teatro ambientadas no período da expulsão dos judeus de Espanha em
1492 e centrados em personagens judaicas femininas estendeu-se aos Estados
Unidos42. Exemplar é a novela do inglês Edward Bulwer-Lytton (1803-1873), Leila,
or, The Siege of Granada, publicada em Nova Iorque em 1838 e convertida em
peça de teatro pelo poeta e dramaturgo norte-americano William Ross Wallace
(1819-1881) nesse mesmo ano43. O mesmo tópico serviu de inspiração ao conto
‘The Iberian Exodus’ de Fanny Green, bem como à novela anónima The Marra-
nos, tradução inglesa de um original castelhano, ambos enquadrando no enredo
a figura de Isaac Abarbanel44. Ao mesmo tempo que a expulsão de Espanha ofe-
recia um tópico literário repleto de dramatismo e actos heróicos, premissas
capazes de atrair o interesse de um espectro amplo de leitores, a crueldade e a
intolerância que envolveram este episódio histórico permitiam enaltecer dife-
renças entre os métodos de conversão usados no passado e aqueles aplicados no
presente. ‘Knees may be bent, or spirits broken down, by cruel and oppressive
acts; but only by kindness can the heart be moved, or the affections won’ – Fanny
Green abraça assim a retórica dos missionários cristãos, advogando a eficácia da

returnee: three portrayals of the eighteenth-century Sephardi diaspora to England”, Jewish


Historical Studies 52, n.º 1 (2021): 118-144.
41
Isaac da Costa, Israel and the Gentiles. Contributions to the History of the Jews, from the
Earliest Times to the Present Day... (Nova Iorque: Robert Carter and Brothers, 1855).
42
Sobre as abordagens da literatura inglesa vitoriana, veja-se Michael Ragussis, “Writing
Spanish History: The Inquisition and «Secret Race»”, in Figures of Conversion: ‘The Jewish
Question’ and English National Identity (Durham, Londres: Duke University Press, 1995), 127-
173.
43
Edward Bulwer-Lytton, Leila; or, The Siege of Grenada. By the Author of "Pelham," "Eugene
Aram," "Rienzi," &c. Complete in One Volume (Nova Iorque: Harper & Brothers, 1838). William
Ross Wallace, Leila; or, The Siege of Grenada. A Melodrama, in Three Acts from E. L. Bulwer's
Novel of That Title (Lexington, Kentucky: J. C. Noble, 1838).
44
Fanny Green, “The Iberian Exodus”, in The Odd-Fellows’ Offering for 1851 (Nova Iorque:
Edward Walker, 1851), 209-29. The Marannos. A Tale of the Inquisition, during the Reign of
Ferdinand and Isabella: (Spain’s Most Eventful Era). Translated from the Spanish (São
Francisco, Califórnia: M. Weiss, 1875).
[396]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

conversão ‘suave’ ao Cristianismo através de ‘free principles, free thought, and,


above all, of a generous literature, deeply imbued with the soothing and balmy
essence of Christianity’45.
A Inquisição é tendencialmente retratada na literatura anglófona cristã oi-
tocentista como uma instituição distante no tempo e na geografia, pertencente
a um tempo e um local longínquos, onde o medo, a repressão e a violência eram
os instrumentos usados pela Igreja Católica para quebrar os ‘restos de Israel’. No
conto ‘Diamond Star’, o escritor norte-americano Francis Alexander Durivage
(1814-1881) narra a história de Clarence Landon, um londrino a viver nos arredo-
res de Valência na segunda metade do século XVII, condenado pela Inquisição
por ter ajudado na fuga de uma jovem procurada pelo tribunal46. No momento
da execução da pena, Landon conhece o velho Isaac, também ele sujeito à sanção
máxima. Já na ‘pira sacrificial’, Isaac grita: ‘Spaniards! Christians! are ye men, or
are ye brutes? Fear ye not the vengeance of Heaven, when ye enact deeds that
would make the savage blush?’. A vingança dos Céus manifesta-se então numa
tempestade violenta que apaga as chamas prontas a devorar os dois condenados
e lança o caos entre o povo que se reunira para assistir a tão selvático espectá-
culo47. Landon aproveita a confusão para escapar. Depois de várias peripécias, o
inglês consegue finalmente regressar à sua terra natal, beneficiando de um in-
dulto concedido por Don Rodrigo d’Almonte, o tirano governador de Valência,
em recompensa por (acidentalmente) lhe ter salvo a vida. A última frase do
conto prima pela ironia: ‘When Don Rodrigo died, he was buried with all the
honors due to a soldier, a governor, and an eminent member of that mild and
benevolent institution, the Spanish Inquisition’48. Afinal, todo o conto demons-
tra como a Inquisição espanhola se encontrava nos antípodas do que era brando
ou benevolente, e em pleno contraste com a Inglaterra natal de Lanton, onde ele
encontrou finalmente a paz e a felicidade.
A católica Espanha, ninho do ‘satânico tribunal de Torquemada’ (usur-
pando a expressão a Moses Mocatta), surge em oposição a um outro refúgio
europeu na obra The Martyrs of Spain and The Liberators of Holland da inglesa

45
Green, “The Iberian Exodus”, 211.
46
Francis Alexander Durivage, “Diamond Star”, in Life Scenes, sketched in Light and Shadow
from the World around us (Boston: Benjamin B. Mussey, 1853), 355-371.
47
A execução de inocentes interrompida por um cataclismo natural é também um motivo
usado por Grace Aguilar no enredo de “The Escape” – neste caso, o cataclismo é o Terramoto
de Lisboa de 1755.
48
Durivage, “Diamond Star”, 372.
[397]
Elizabeth Rundle Charles (1828-1896)49. Se o conto de Durivage é sobretudo uma
obra de entretenimento, a novela de Charles revela um programa anti-católico
claro. Uma família cristã-nova de Valladolid, os Cazalla-Ortiz, protagonizam
esta história narrada na primeira pessoa. Ao invés de se terem mantido fiéis à fé
dos ancestrais judeus, os Cazalla-Ortiz eram verdadeiros cristãos. Tinham, po-
rém, encontrado a essência do Cristianismo na Bíblia interpretada por Martinho
Lutero e não nas fogueiras dos autos-da-fé – uma dicotomia constantemente en-
fatizada ao longo da narrativa. Tendencialmente, a literatura que aborda a
temática inquisitorial, tanto de autores judeus como cristãos, retrata o cristão-
novo como um judeu secreto. Por exemplo, as personagens de ‘Diamond Star’
até chegam a envergar nomes judeus (Isaac, Miriam). No caso de autores judeus
como Grace Aguilar, essa identificação permite eliminar a brecha histórica cri-
ada pela conversão ao Cristianismo e justificar a reclamação de uma herança
sefardita que remontava à era dourada do Judaísmo ibérico medieval50. Porém,
The Martyrs of Spain rejeita essa identificação e apresenta os Cazalla-Ortiz como
um exemplo do potencial de conversão dos judeus, se por via do protestantismo.
O enfoque é assim colocado não no binómio Judaísmo-Cristianismo, mas sim na
oposição entre as duas facetas do Cristianismo, a Católica e a Protestante.

Conclusão
Autores como Elizabeth Rundle Charles ou Fanny Green certamente não
concordariam com a leitura de Moses Mocatta sobre os argumentos usados pelo
arcebispo de Cranganor no seu sermão de 1705, interpretando-os como armas do
mesmo arsenal que munia os missionários cristãos na Grã-Bretanha e nos Esta-
dos Unidos da América oitocentistas. Aliás, esta é talvez a maior diferença entre
as representações das Inquisições ibéricas oferecidas por judeus e cristãos/pro-
testantes. Mocatta, Leeser e mesmo Aguilar enfatizam os paralelismos entre as
circunstâncias dramáticas vividas pelos antepassados ‘judeus’ na Península Ibé-
rica e os desafios que as comunidades judaicas inglesas e norte-americanas
experienciavam em meados do século XIX, sujeitas às investidas da agenda evan-
gelizadora de organizações como a The London Society for Promoting
Christianity among the Jews ou a American Society for Meliorating the Condi-
tion of the Jews. Por outro lado, a literatura cristã tendia a oferecer um retrato

49
Elizabeth Rundle Charles, The Martyrs of Spain and The Liberators of Holland (Nova Iorque:
Robert Carter and Brothers, 1865).
50
Carla Vieira, “The motivations behind E. H. Lindo's The History of the Jews of Spain and
Portugal (London, 1848)”, in Journal of Jewish Studies 74, n.º 1 (2023): 92-116.
[398]
THE INQUISITION AND JUDAISM. PORQUÊ PUBLICAR UM SERMÃO DE AUTO-DA-FÉ
Carla Vieira

da Inquisição e da perseguição católica contra os judeus em Portugal e Espanha


que marcava as diferenças entre a conversão pela força nos reinos ibéricos cató-
licos e a conversão ‘suave’ promovida no ambiente protestante.
Apesar desta distinção marcante, a recorrência do tópico da Inquisição na
literatura oitocentista dos dois lados do Atlântico contribuiu para justificar a re-
edição de The Inquisition and Judaism em 1860, enquadrada na reacção às
investidas conversionistas e na expansão da imprensa judaica na ‘Atlantic Jewish
Republic of Letters’. Quando Leeser publicou a tradução de Mocatta, os leitores
judeus e cristãos já se encontravam plenamente familiarizados com o que fora a
Inquisição e a sua acção opressiva, o que ajudou na difusão da obra e na maxi-
mização do seu impacto. Afinal, apesar do número limitado de obras abordando
o tema editadas nos Estados Unidos, a ideia da Inquisição encontrava-se já bem
implantada no imaginário dos norte-americanos. Se não, vejamos como, numa
reedição das Fábulas de Esopo publicada em Nova Iorque em 1865, é interpre-
tada a história do castor acossado. Recordando: o castor, ao ver-se perseguido e
sabendo o que procurava o caçador – o castóreo, extraído dos seus genitais –,
arranca os próprios testículos e consegue assim salvar-se da morte quase certa.
À curta fábula, segue-se a interpretação:
However it is among beasts, there are few human creatures but what
are hunted for something eles beside either their lives or the pleasure
of hunting them. The Inquisition would hardly be so keen against the
Jews, if they had not something belonging to them which their perse-
cutors esteem more valuable than their souls – which, whenever that
wise, but obstinate people, can prevail with themselves to part with,
there is an end of the chase for that time.51

Os testículos do castor são aqui equiparados aos bens desse ‘sábio mas
obstinado povo’ (obviamente, o autor destas linhas era cristão) cujo valor aos
olhos da Inquisição superava o das suas almas. Uma comparação deveras insó-
lita, mas que demonstra como a longínqua e velha Inquisição se encontrava
ainda bem viva na mente de alguns.

51
The Fables of Æsop with a Life of the Author (Nova Iorque: Hurd and Houghton, 1869), 86-87.
[399]
ANEXO
A Inquisição Portuguesa: 200 anos depois
Programação e link das mesas do Evento

MÓDULO I
Inquisição portuguesa: historiografia e documentação

CONFERÊNCIA
A historiografia inquisitorial 200 anos após a extinção do Santo Ofício em Por-
tugal: O acervo documental do Tribunal e futuras tendências de pesquisa
JOSÉ PEDRO PAIVA (UC)

MESA 1 - Gênese da Inquisição Portuguesa


Oponiéndose a la Inquisición: la crítica ibérica desde una perspectiva romana
STEFANIA PASTORE (SNS)
Os primeiros passos do Santo Ofício em Portugal: uma releitura dos documen-
tos fundacionais (1531-1548)
SUSANA BASTOS MATEUS (CESAB / UL)
A heresia nas malhas do Concílio de Trento: questões de jurisdição e vias alter-
nativas ao procedimento inquisitorial
JULIANA TORRES RODRIGUES PEREIRA (UFBA)
MESA II - A extinção da Inquisição Portuguesa
Inquisição: uma das “Fúrias destruidoras da espécie humana” – 1821
LÚCIA BASTOS PEREIRA DAS NEVES (UERJ)
1820: La supresión negociada de la Inquisición de México
GABRIEL TORRES PUGA e JOSÉ LUIS QUEZADA (Col. Mex.)
Decline and Abolition of the Portuguese Inquisition
JAMES WADSWORTH (Stonehill College)

MESA III - A documentação inquisitorial


Arquivos da Inquisição Portuguesa: vozes e silêncios
ANA CANAS (AHU)
Fora do Secreto: a documentação do Tribunal do Santo Ofício fora da
Torre do Tombo em Portugal
PEDRO PINTO (CHAM)
A Inquisição portuguesa no espelho romano: fontes e perspectivas de in-
vestigação sobre o século XVIII
ANDREA CICERCHIA (CEHR / UCP)

[402]
ANEXO: PROGRAMAÇÃO A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: 200 ANOS DEPOIS

MÓDULO II
Direito e práticas judiciárias inquisitoriais

CONFERÊNCIA
Evoluções da práxis inquisitorial portuguesa: os processos por heresia
BRUNO FEITLER (UNIFESP)

MESA 1 - Inquisição portuguesa, leis e sociedade


O “defeito da prova” e a defesa dos réus da Primeira Visitação do Santo Ofício
ao Brasil (1591-1595)
ALÉCIO NUNES FERNANDES (UNB)
Consolidar a implantação no território: o início da rede de familiares do Santo
Ofício Português
FERNANDA OLIVAL (UNIV. ÉVORA)

[403]
MESA II - Inquisição portuguesa, sociedade e Justiças
A jurisdição privativa da Inquisição Portuguesa sobre o delito de solicitação
JAIME GOUVEIA (UNIVERSIDADE DE COIMBRA)
Os mecanismos da exclusão: a rejeição e os rejeitados na carreira inquisitorial
portuguesa
LUIZ FERNANDO RODRIGUES LOPES (IF-BRASÍLIA)
Inquisição, lascívia e misoginia
RONALDO VAINFAS (UERJ-FFP/UFRN)
Lascívia transatlântica. Do Tribunal de Coimbra ao Tribunal de Lisboa. Os pro-
cessos de Padre Francisco de Santa Tereza e Paiva
LANA LAGE DA GAMA LIMA (IECAC / UFF)

MESA III - Inquisição portuguesa no ultramar


Religiosidades africanas na mira da Inquisição
LAURA DE MELLO E SOUZA (Sorbonne, USP)
Justiça eclesiástica e militarização da repressão religiosa no Brasil pós-Palmares
ALDAIR CARLOS RODRIGUES (UNICAMP)
Sob o peso do despacho. O projecto de um perdão-geral para as cristandades
locais na Inquisição de Goa (século XVIII)
MIGUEL RODRIGUES LOURENÇO (CHAM)

[404]
ANEXO: PROGRAMAÇÃO A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: 200 ANOS DEPOIS

MÓDULO III
Perseguidos, réus e delitos

CONFERÊNCIA
A tortura dos sodomitas nos tribunais da Inquisição portuguesa
LUIZ MOTT (UFBA)

MESA I - Feitiçaria na mira no Santo ofício português


Um “país sem caça às bruxas” ou um fenômeno misógino no Império portu-
guês? O processo de generificação das práticas de feitiçaria (1541-1595)
MARCUS VINÍCIUS REIS (UNIFESSPA)
Um xamã no Santo Ofício português? Revisitando o processo de Amaro Fernan-
des (1659-1660)
PHILIPPE SARTIN (USP)
Pajés e “índios feiticeiros” nos documentos inquisitoriais: perseguições e circu-
laridade cultural no cotidiano colonial interétnico
CARLOS HENRIQUE CRUZ (IF-MG)

[405]
MESA II - O alvo da Inquisição Portuguesa: cristãos-novos
Cristãos novos no Rio de Janeiro (século. XVI-XVIII)
LINA GORENSTEIN (CRIAN-USP)
O labirinto de Joseph Carreras y Coligo aliás Daniel de Ribera (ca. 1616-1694):
um estudo de caso sobre a conversão religiosa no período moderno e o mito da
modernidade marrana
VICTOR COUTO TIRIBÁS (SNS)
Cripto-judaísmo nas fontes inquisitoriais: hibridação ou contra-cultura?
CLAUDE STUCZYNSKI (BAR-ILAN UNIVERSITY)

MESA III - Freiras, visionárias e sacerdócio


Conversas, visionárias e feiticeiras: as freiras nas malhas da Inquisição no
século XVIII
GEORGINA SILVA DOS SANTOS (UFF)
As visões do poder: visionárias diante do Tribunal do Santo Ofício português,
séculos XVI-XVII
JACQUELINE HERMANN (UFRJ)
Abuso do sacramento da ordem: os ‘falsos’ padres na América portuguesa
POLLYANNA GOUVEIA MENDONÇA MUNIZ (UFMA)

[406]
ANEXO: PROGRAMAÇÃO A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: 200 ANOS DEPOIS

MESA IV - Povos nativos e mestiçagens culturais perseguidas no ultramar


“Serão recebidos com muita misericórdia”: análise da resposta do Inquisidor
Geral à Inquisição de Goa sobre práticas de gentilidades, em 1584
CÉLIA TAVARES (UERJ)
Um processo à escala do Atlântico: a persecução pela Inquisição de Lisboa da
bígama Páscoa Vieira, angolana escravizada em Salvador da Bahia (1693-1703)
CHARLOTTE DE CASTELNAU-L’ESTOILE (UNIVERSITÉ DE PARIS)
Das partes da Índia aos Estaus: escravos e forros asiáticos processados pela In-
quisição de Lisboa (séculos XVI e XVII)
PATRICIA SOUZA DE FARIA (UFRRJ)

MÓDULO IV
Comunicação e economia do Santo Ofício

CONFERÊNCIA
Para além das finanças do Santo Ofício: o sustento dos ministros da fé e a cria-
ção de uma elite eclesiástica no Portugal Moderno)
ANA ISABEL LOPEZ-SALAZAR (UNIV. COMPLUTENSE)

[407]
MESA I - As contas das Inquisições
L’economia dell’Inquisizione papale in età Moderna
GERMANO MAIFREDA (UNIV. MILANO)
Financiar a repressão: a sustentabilidade financeira da Inquisição portuguesa
(séculos XVI-XVIII)
BRUNO LOPES (CIDEHUS-UE)
Quando a erva do diabo se faz renda. A Inquisição e o tabaco
JOÃO FIGUEIRÔA-REGO (CHAM; CIDEHUS)

MESA II - Inquisição e economia


O mundo laboral na documentação do Santo Ofício da Inquisição (Portugal,
século XVI)
ISABEL DRUMOND BRAGA (UL)
Inquisição e finanças reais em Portugal, 1580-1715
CÁTIA ANTUNES (UNIVERSITEIT LEIDEN)
FILIPA RIBEIRO DA SILVA (INTERNATIONAL INSTITUTE OF SOCIAL HISTORY, HOLANDA)
Guerra, capital e dívida soberana: como a Inquisição portuguesa incentivou
uma inovação financeira
LEONOR FREIRE COSTA (ISEG/ GHES- UNIVERSIDADE DE LISBOA)
BRUNO LOPES (GHES E CIDEHUS-UE)
“Uma grande sangria”: a condenação à Inquisição no pensamento de Dom Luís
da Cunha e Antônio Ribeiro Sanches
JÚNIA FURTADO (UNIFESP/ UFMG)

[408]
ANEXO: PROGRAMAÇÃO A INQUISIÇÃO PORTUGUESA: 200 ANOS DEPOIS

MESA III - Comunicação e circulação de informações


A correspondência entre os tribunais inquisitoriais ibéricos
LUCAS MAXIMILIANO (IFFAR)
O Brasil na correspondência inquisitorial seiscentista
DANIELA CALAINHO (UERJ-FFP)
Calcorrear léguas com informação numa bolsa: a comunicação entre a Inquisi-
ção de Évora e o Algarve (séc. XVIII)
NELSON VAQUINHAS (CIDEHUS-UE)

MÓDULO V
Representações da Inquisição

MESA 1 - O imaginário da Inquisição


Notícias contra a Inquisição: a história do principal livro crítico ao Santo Ofício
português (1674-1821)
YLLAN DE MATTOS (UFRRJ)
Testemunhos artísticos da atuação do Santo Ofício em Portugal: o primeiro
auto da fé na obra de Gregório Lopes
BENAIR ALCARAZ FERNANDES RIBEIRO (PUC-SP)

[409]
MESA II - Censura e controle de livros
Ambiguidades na defesa da Fé. Apologética e censura. Barros e Sá ao espelho
de Vives?
CRISTINA COSTA GOMES (UL)
A Real Mesa Censória, o Santo Ofício e o catolicismo ilustrado em Portugal
EVERGTON SALES SOUZA (UFBA)

MESA III - A Inquisição na literatura


“E porque nesta santa casa se trata de se saber e apurar a verdade, de maneira
que os culpados não fiquem sem castigo e os inocentes não sejam sem culpas
punidos”: olhares literários sobre a Inquisição e suas vítimas
ANGELO ASSIS (UFV)
“Seria tão bom, rezar sem medo”: representações da Inquisição em obras lite-
rárias contemporâneas em Portugal e no Brasil
FERNANDO GIL PORTELA VIEIRA (IF-FLUMINENSE)
The Inquisition and Judaism. Porquê publicar um sermão de auto-da-fé em Fi-
ladélfia em 1860?
CARLA VIEIRA (CÁTEDRA DE ESTUDOS SEFARDITAS / UL)

[410]
Sobre os autores

Alécio Nunes Fernandes. Doutor pela Universidade de Brasília (UNB).


Ana Isabel López-Salazar. Doutora pela Universidad de Castilla-La Mancha.
Professora da Universidad Complutense de Madrid.
Andrea Cicerchia. Doutor pela Universidade de Urbino “Carlo Bo”. Investiga-
dor do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica
Portuguesa.
Angelo Adriano Faria de Assis. Doutor em História pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Professor da Universidade Federal de Viçosa (UFV).
Benair Alcaraz Fernandes Ribeiro. Doutora pela Universidade de São Paulo
(USP). Professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
Bruno Feitler. Doutor pela École des Hautes Études en Sciences Sociales
(EHESS). Professor da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP).
Bruno Lopes. Doutor pela Universidade de Évora. Investigador do CIDEHUS –
Universidade de Évora.
Carla Vieira. Doutora pela Universidade NOVA de Lisboa. Investigadora do
CHAM e da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste da Universidade
de Lisboa.
Carlos Henrique Cruz. Doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Instituto Federal de Minas Gerais Campus Conselheiro Lafaiete, IFMG.
Célia Cristina da Silva Tavares. Doutora em História pela Universidade Fede-
ral Fluminense (UFF). Professora da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ).
Daniela Buono Calainho. Doutora em História pela Universidade Federal Flu-
minense (UFF). Professora da Faculdade de Formação de Professores da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ).
Fernanda Olival. Doutora pela Universidade de Évora. Professora da Universi-
dade de Évora.
Jacqueline Hermann. Doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
James Wadsworth. Doutor pela Universidade do Arizona. Professor do Stone-
hill College.
Juliana Torres Pereira. Doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Profes-
sora da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Lana Lage da Gama Lima. Doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Pro-
fessora Aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF).
Lina Gorenstein. Doutora pela Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora
do departamento de documentação do Museu da Tolerância da Universidade de
São Paulo (USP).
Luiz Mott. Doutor pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pro-
fessor Aposentado da Universidade Federal da Bahia (UFBA).
Miguel Rodrigues Lourenço. Investigador do CHAM, FCSH, Universidade
NOVA de Lisboa, do Centro de Estudos de História Religiosa (UCP) e da Cátedra
de Estudos Sefarditas Alberto Benveniste da Universidade de Lisboa.
Patrícia Souza de Faria. Doutora pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Philippe Delfino Sartin. Doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Pro-
fessor da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC/GO) e da Secretaria
Municipal de Educação (SME/Goiânia).
Pollyanna Gouveia Mendonça Muniz. Doutora pela Universidade Federal
Fluminense (UFF). Professora da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).
Ronaldo Vainfas. Doutor pela Universidade de São Paulo. Professor Titular
Aponsentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor da Facul-
dade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(FFP-UERJ).
Susana Bastos Mateus. Investigadora da Cátedra de Estudos Sefarditas Alberto
Benveniste da Universidade de Lisboa e do CIDEHUS – Universidade de Évora.
Yllan de Mattos. Doutor pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Profes-
sor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).

[412]
Título A Inquisição Portuguesa: 200 anos depois
Organizadores Angelo Adriano Faria de Assis
Bruno Feitler
Daniela Buono Calainho
Ronaldo Vainfas
Susana Bastos Mateus
Yllan de Mattos
Coordenação Editorial Angelo Adriano Faria de Assis
Susana Bastos Mateus
Yllan de Mattos
Capa Tayrah de Mattos
Thaís Brum
Formato 14 x 21cm
Número de Páginas 414
Tipografia Constantia
Papel Impressão Alta Alvura Alcalino 75g/m2 Psi7
1a Edição dezembro de 2023 (digital)
Tiragem 500 exemp.

Imagem da capa
Bernard Picart (1673-1733), ableau des principales religions du monde.
In: Cérémonies et coutumes religieuses de tous les peuples du monde (detalhe), 1723.
BnF, Estampes, SNR-3 (água forte, 37,5 x 22,5cm)
Fonte: https://essentiels.bnf.fr/fr/image/0bcae684-3346-4e7e-b9ea-21c48df72eb9-tableau-principa-
les-religions-monde

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