João Moreira Salles - A Floresta Amazônica
João Moreira Salles - A Floresta Amazônica
Machado de Assis
Telefones
Geral +(55-21) 3974 2500
Setor de Publicações +(55-21) 3974 2525
[email protected]
www.academia.org.br
ISSN 0103707-2
Editorial
Rosiska Darcy de Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 6
Mensagem do Presidente da ABL
Merval Pereira
Uma trincheira em favor da Arte, da Ciência e da Paz . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8
Amazônias
Sebastião Salgado: Entrevista a Rosiska Darcy de Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
João Moreira Salles
A floresta como pirâmide . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22
Eduardo Giannetti
Meditações catastróficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Izabella Teixeira
Amazônia e o Brasil: o futuro que seja futuro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
Márcio Souza
Amazônia, população e modernidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
Paulo Nunes
O rapto da Amazônia na literatura brasileira ou o rio comanda a vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60
Ricardo Piquet e Leonardo Menezes
A Amazônia no museu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74
Poesia cantada
Gilberto Gil: Entrevista a Rosiska Darcy de Oliveira. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81
Antonio Cicero
Letra de canção . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92
Regina Zappa
Paredes, portas e janelas da “Construção” de Chico Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Ficções
Paulo Coelho
Em busca da minha ilha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103
João Almino
Por que escrever mais um romance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105
Ignácio de Loyola Brandão
Os 40 anos de uma distopia que se tornou realidade:
Não verás país nenhum, o romance com dois finais. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Antônio Torres
Notícias do sertão no imaginário contemporâneo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118
Ciência
Paulo Niemeyer Filho
A criatividade e o cérebro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126
J. J. Camargo
Um transplante de esperança . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130
Luiz Alberto Oliveira
Ecologia Política e Literatura‑Mundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137
José Luiz Alquéres
O pensar holístico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Amazônias
a conhecida passagem em que Hobbes descreve a vida ali onde “cada homem é
inimigo de cada homem”, onde “todos estão em guerra contra todos”:
Numa tal situação não há lugar para indústria, pois seu fruto é incerto; consequente-
mente não há cultivo da terra (...) não há conhecimento da face da Terra, nem cômputo
do tempo, nem artes, nem letras; não há sociedade; e, o que é pior do que tudo, um
constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sór-
dida, embrutecida e curta.
A maior prova disso é o (...) fato de que, atualmente, grande parte das terras indígenas
da região está localizada em áreas distantes do rio Amazonas (...) Paradoxalmente, áreas
próximas aos rios Amazonas e Solimões, ou mesmo a ilha de Marajó, que não são hoje
ocupadas por grupos indígenas numerosos, mas sim por seus descendentes caboclos,
estão repletas de sítios arqueológicos, alguns deles de grande porte. A explicação mais
simples para essa questão é que muitos dos grupos que viviam nessas áreas à época do
descobrimento foram exterminados pela transmissão de doenças contra as quais não
tinham imunidade, pela guerra e pela escravidão.
Para Neves, o golpe final talvez tenha sido dado pelo ciclo da borracha das
últimas décadas do século XIX e início do XX, “uma época de extrema violência
contra os índios e ao mesmo tempo de forte ocupação da Amazônia por famílias
empobrecidas de migrantes nordestinos”. Os efeitos desse conjunto nefasto de
circunstâncias históricas levaram ao equívoco de supor que a região sempre se
caracterizara por uma baixíssima densidade demográfica:
1 É uma concepção da História que se fecha à possibilidade de estar no mundo de outras formas.
Por essa régua, civilizações são medidas apenas pela casa que ocupam no tabuleiro do progresso.
“O índio mudou, tá evoluindo, cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”, disse famosamente
Jair Bolsonaro. Foi o melhor resumo de como ele enxerga os povos indígenas. Curiosamente, esse
enunciado sobre a evolução dos povos, vocalização rudimentar de ideias surgidas no século XVII,
não serve para descrever seu autor. O presidente do Brasil não evolui. É e será sempre um contem-
porâneo de Hobbes e Locke.
Foi também nessa época que se iniciaram as pesquisas antropológicas na região. Tal-
vez por isso a imagem consolidada entre cientistas e o público em geral seja a de que a
Amazônia foi sempre esparsamente povoada. Atualmente, a arqueologia contribui para
modificar essa visão, trazendo evidências de uma rica história pré-colonial.
Havia, contudo, um elemento comum à vida de todos esses povos, e esse ele-
mento era a floresta. Fossem eles coletores, caçadores ou agricultores, fossem exí-
mios cesteiros ou exímios ceramistas, fossem de cultura pacífica ou mais propensa
à beligerância, o que definia sua imaginação era o mundo aquático, botânico, ani-
mal de que faziam parte. Eram filhos, todos eles, de civilizações orgânicas. A floresta
era o almoxarifado onde recolhiam os materiais para erguer suas obras. A pedra
fica, o metal fica; a madeira, o cipó, a palma retornam ao solo e são reabsorvidos
pelo que nasce e vive. Ruínas de civilizações orgânicas são mais difíceis de serem
reconhecidas porque se confundem com a paisagem natural. Mais até: em certos
casos elas são a própria paisagem natural, como se verá adiante.
As civilizações amazônidas precisam ser compreendidas nos seus próprios ter-
mos, sem tomar como referência padrões exteriores à floresta, construídos como
representação de cidades, palácios, templos e estátuas. Aqui, coisas diferentes
importam; coisas que, tomadas em seu conjunto, configuram uma complexidade de
outro tipo. Na falta de expressão melhor, pode-se chamá-la de inteligência ecológica.
Exemplo dessa inteligência é a manipulação de espécies vegetais. “Uma das
maiores contribuições dos índios das Américas para a humanidade foi a domes-
ticação de uma série de plantas que atualmente são consumidas de diferentes
modos por todo o planeta”, diz Eduardo Neves. A Amazônia é um dos quatro
centros de domesticação das Américas, ao lado dos Andes Centrais, da Mesoamé-
rica e de uma pequena região no Leste dos Estados Unidos. Heckenberger fala
em 83 plantas domesticadas, o que supera, por exemplo, o legado da antiga civi-
lização chinesa nesse campo. Abacaxi, amendoim, mamão, mandioca, pupunha,
cacau, guaraná e açaí estão entre as plantas selvagens que, submetidas a um lento
processo de manipulação, resultaram em variedades resistentes, mais dóceis ao
cultivo e de frutos maiores. A Amazônia é um dos berços da agrobiodiversidade.
Essa obra se revela ainda mais notável se levarmos em conta as condições em
que se desenvolveu. A região é formada por terrenos geologicamente muito anti-
gos, que há milênios vêm sendo fustigados pelas condições extremas do clima
equatorial. No correr dos séculos, chuvas torrenciais e a evaporação provocada
por um sol inclemente varreram os nutrientes do solo, deixando-o ácido e pouco
propício à lavoura. Apenas 6% dos solos da Amazônia são naturalmente férteis;
segundo uma interpretação hoje predominante entre arqueólogos e endossada por
alguns ecólogos (mas contestada por outros), todas as terras ricas que excedem
esses 6% resultam de ação humana.
Ninguém nega a excepcionalidade dessas terras manejadas, que se classificam
entre as de maior fertilidade no mundo. Ao longo de milênios, os habitantes da flo-
resta alteraram a composição do solo, enriquecendo-o com resíduos de fogueira, frag-
mentos de cerâmica, sepultamentos e descarte de matéria orgânica. Sobre esse chão
modificado, as populações originárias selecionaram plantas, domesticaram seu plan-
tio e redesenharam a paisagem, aumentando a oferta de alimento animal e vegetal.
As terras pretas mais antigas da Amazônia, com até 5 500 anos, foram encon-
tradas no sítio arqueológico Teotônio, localizado no alto rio Madeira, em Rondô-
nia. Na região de Berbice, na Guiana, escavações revelaram estratos desses solos
manipulados com 5 mil anos de idade – as camadas chegam a 5 metros de pro-
fundidade, os sedimentos da base e os do solo separados por mais de 100 anos,
uma geração passando para a seguinte o trabalho de construção da fertilidade.
Nas áreas adjacentes aos rios Solimões e Amazonas, “tais tipos de solo – bastante
férteis e com grande importância econômica – são mais recentes, tendo mais ou
menos 2 mil anos de idade”.
açaí-do-mato. Além dele, nós temos açaí-do-pará, bacaba, paxiúba, paxiubão, cacau,
seringueira... Carolina Levis, uma ecóloga brasileira brilhante, fez um estudo sobre
essas espécies. Pois bem, grande parte das plantas que hoje compõem o panorama
das árvores na Amazônia tem uma importância econômica e simbólica fundamen-
tal para os povos indígenas. Como arqueólogo, penso que não se pode separar a
dimensão da presença humana do padrão representado por esses dados.”
A floresta manipulada é, assim, também uma floresta cultural. É simultanea-
mente natureza e artefato.2 Dotada dessa dupla condição, pode ser lida como docu-
mento que registra a existência de determinada civilização no tempo histórico.
A vegetação é o pergaminho. Ou, como diz lindamente Eduardo Neves: “A flo-
resta são as nossas pirâmides.”
[Este artigo é um excerto de Arrabalde, livro que a Companhia das Letras publi-
cará no segundo semestre de 2022. Arrabalde tem origem numa série de reporta-
gens publicadas na revista piauí de novembro de 2020 a abril de 2021. Este trecho
é original e foi escrito para o livro.]
Referências
FAUSTO, Carlos. The Makings of the Forest: Ecologies of Knowledges in Amazonia. A Brazil LAB
event with Carlos Fausto (Museu Nacional & Princeton) and Anne McClintock (Princeton).
Brazil LAB at Princeton University. 28 October 2021. https://brazillab.princeton.edu/news/
carlos-fausto-and-anne-mcclintock-ecologies-knowledges-amazonia
HECKENBERGER, Michael J. [informação pessoal] Natureza 360o. Seminário privado via Zoom
sobre arqueologia na Amazônia. Coord. Adalberto Veríssimo (Imazon). 26 junho 2021.
HECKENBERGER, Michael J. The Ecology of Power: Culture, Place and Personhood in the Southern
Amazon, AD 1000-2000. Illustrated edition. London: Routledge: 2005. 430p.
HECKENBERGER, Michael J.; KUIKURO, Afukaka; URISSAPÁ, Tabata Kuikuro; RUSSELL,
J. Christian; SCHMIDT, Morgan J.; FAUSTO, Carlos; FRANCHETTO, Bruna. “Amazonia 1492:
Pristine Forest or Cultural Parkland?” Science 19 Sep 2003. Vol. 301, Issue 5640. pp. 1710-1714.
DOI: 10.1126/science.1086112
HECKENBERGER, Michael J.; RUSSELL, J. Christian; FAUSTO, Carlos; TONEY, Joshua R.;
SCHMIDT, Morgan J.; PEREIRA, Edithe; FRANCHETTO, Bruna; KUIKURO, Afukaka.
“Pre-Columbian Urbanism, Anthropogenic Landscapes, and the Future of the Amazon”. Science
28 August 2008. Vol. 321, Issue 5893. pp.1214-1217. DOI: 10.1126/science.1159769
HÜNEMEIER, Tábita. “A terra (preta) de índio na Amazônia”. Darwinianas: A Ciência em movimento.
27 agosto 2019. https://darwinianas.com/2019/08/27/a-terra-preta-de-indio-na-amazonia/
NEVES, Eduardo Góes. [informação pessoal] Natureza 360o. Seminário privado via Zoom sobre
arqueologia na Amazônia. Coord. Adalberto Veríssimo (Imazon). 5 fevereiro 2022.
NEVES, Eduardo Góes. Arqueologia da Amazônia. Rio de Janeiro: Zahar, 2006. 88p.
RAISG – Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada. Atlas Amazônia sob Pressão
2020. https://www.amazoniasocioambiental.org/pt-br/publicacao/amazonia-sob-pressao-2020/
ter STEEGE, H. et al. (+120 Authors). “Hyperdominance in the Amazonian Tree Flora”. Science 18
Octobre 2013. Vol 342, Issue 6156. DOI: 10.1126/science.1243092
2 Veja-se o título de um trabalho seminal publicado em 2003 por Heckenberger e colegas na re-
vista Science: “Amazonia 1492: Pristine Forest or Cultural Parkland?” [Amazônia 1492: Floresta into-
cada ou sítio cultural?].