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Olhos D'água - Conceição Evaristo

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Tertúlia Literária

Olhos D’Água

Conto: Olhos D’Água


Autora: Conceição Evaristo
Obra completa: Olhos D’Água
Editora: Pallas
Ano da publicação: 2022
EVARISTO, Conceição. Olhos D’Água. In: EVARISTO,
Conceição. Olhos D’Água. Rio de Janeiro, 2022, p. 15-19.

Olhos D’Água
Conceição Evaristo

Uma noite, há anos, acordei bruscamente e uma estranha pergunta explodiu de minha
boca. De que cor eram os olhos de minha mãe? Atordoada, custei reconhecer o quarto
da nova casa em que eu estava morando e não conseguia me lembrar de como havia
chegado até ali. E a insistente pergunta martelando, martelando. De que cor eram os
olhos de minha mãe? Aquela indagação havia surgido há dias, há meses, posso dizer.
Entre um afazer e outro, eu me pegava pensando de que cor seriam os olhos de minha
mãe. E o que a princípio tinha sido um mero pensamento interrogativo, naquela noite,
se transformou em uma dolorosa pergunta carregada de um tom acusativo. Então eu
não sabia de que cor eram os olhos de minha mãe?
Sendo a primeira de sete filhas, desde cedo busquei dar conta de minhas próprias
dificuldades, cresci rápido, passando por uma breve adolescência. Sempre ao lado de
minha mãe, aprendi a conhecê-la. Decifrava o seu silêncio nas horas de dificuldades,
como também sabia reconhecer, em seus gestos, prenúncios de possíveis alegrias.
Naquele momento, entretanto, me descobria cheia de culpa, por não recordar de que cor
seriam os seus olhos. Eu achava tudo muito estranho, pois me lembrava nitidamente de
vários detalhes do corpo dela. Da unha encravada do dedo mindinho do pé

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esquerdo... da verruga que se perdia no meio de uma cabeleira crespa e bela... Um
dia, brincando de pentear boneca, alegria que a mãe nos dava quando, deixando por
uns momentos o lava-lava, o passa-passa das roupagens alheias e se tornava uma
grande boneca negra para as filhas, descobrimos uma bolinha escondida bem no
couro cabeludo dela. Pensamos que fosse carrapato. A mãe cochilava e uma de minhas
irmãs, aflita, querendo livrar a boneca-mãe daquele padecer, puxou rápido o bichinho.
A mãe e nós rimos e rimos e rimos de nosso engano. A mãe riu tanto, das lágrimas
escorrerem. Mas de que cor eram os olhos dela?
Eu me lembrava também de algumas histórias da infância de minha mãe. Ela
havia nascido em um lugar perdido no interior de Minas. Ali, as crianças andavam nuas
até bem grandinhas. As meninas, assim que os seios começavam a brotar, ganhavam
roupas antes dos meninos. Às vezes, as histórias da infância de minha mãe
confundiam-se com as de minha própria infância. Lembro-me de que muitas vezes,
quando a mãe cozinhava, da panela subia cheiro algum. Era como se cozinhasse, ali,
apenas o nosso desesperado desejo de alimento. As labaredas, sob a água solitária
que fervia na panela cheia de fome, pareciam debochar do vazio do nosso estômago,
ignorando nossas bocas infantis em que as línguas brincavam a salivar sonho de
comida. E era justamente nesses dias de parco ou nenhum alimento que ela mais
brincava com as filhas. Nessas ocasiões, a brincadeira preferida era aquela em que a
mãe era a Senhora, a Rainha. Ela se assentava em seu trono, um pequeno banquinho
de madeira. Felizes, colhíamos flores cultivadas em um pequeno pedaço de terra que
circundava o nosso barraco. As flores eram depois solenemente distribuídas por seus
cabelos, braços e colo. E diante dela fazíamos reverências à Senhora. Postávamos
deitadas no chão e batíamos cabeça para a Rainha. Nós, princesas, em volta dela,
cantávamos, dançávamos, sorríamos. A mãe só ria de uma maneira triste e com um
sorriso molhado... Mas de que cor eram os olhos de minha mãe? Eu sabia, desde
aquela época, que a mãe inventava esse e outros jogos para distrair a nossa fome. E a
nossa fome se distraía.
Às vezes, no final da tarde, antes que a noite tomasse conta do tempo, ela se
sentava na soleira da porta e, juntas, ficávamos contemplando as artes das nuvens no
céu. Umas viravam carneirinhos; outras, cachorrinhos; algumas, gigantes
adormecidos, e havia quelas que eram só nuvens, algodão doce. A mãe, então,
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espichava o braço, que ia até o céu, colhia aquela nuvem, repartia em pedacinhos e
enfiava rápido na boca de cada uma de nós. Tudo tinha de ser muito rápido, antes que
a nuvem derretesse e com ela os nossos sonhos se esvaecessem também. Mas de que
cor eram os olhos de minha mãe?
Lembro-me ainda do temor de minha mãe nos dias de fortes chuvas. Em cima
da cama, agarrada a nós, ela nos protegia com seu abraço. E com os olhos alagados
de prantos balbuciava rezas a Santa Bárbara, temendo que o nosso frágil barraco
desabasse sobre nós. E eu não sei se o lamento-pranto de minha mãe, se o barulho
da chuva... Sei que tudo me causava a sensação de que a nossa casa balançava ao
vento. Nesses momentos os olhos de minha mãe se confundiam com os olhos da
natureza. Chovia, chorava! Chorava, chovia! Então, por que eu não conseguia lembrar
a cor dos olhos dela?
E naquela noite a pergunta continuava me atormentando. Havia anos que eu
estava fora de minha cidade natal. Saíra de minha casa em busca de melhor condição
de vida para mim e para minha família: ela e minhas irmãs tinham ficado para trás.
Mas eu nunca esquecera a minha mãe. Reconhecia a importância dela na minha vida,
não só dela, mas de minhas tias e de todas as mulheres de minha família. E também,
já naquela época, eu entoava cantos de louvor a todas as nossas ancestrais, que desde
a África vinham arando a terra da vida com as suas próprias mãos, palavras e sangue.
Não, eu não esqueço essas Senhoras, nossas Yabás, donas de tantas sabedorias. Mas
de que cor eram os olhos de minha mãe?
E foi então que, tomada pelo desespero por não me lembrar de que cor seriam
os olhos de minha mãe, naquele momento resolvi deixar tudo e, no dia seguinte, voltar
à cidade em que nasci. Eu precisava buscar o rosto de minha mãe, fixar o meu olhar no
dela, para nunca mais esquecer a cor de seus olhos.
Assim fiz. Voltei, aflita, mas satisfeita. Vivia a sensação de estar cumprindo um
ritual, em que a oferenda aos Orixás deveria ser a descoberta da cor dos olhos de
minha mãe. E quando, após longos dias de viagem para chegar à minha terra, pude
contemplar extasiada os olhos de minha mãe, sabem o que vi? Sabem o que vi?
Vi só lágrimas e lágrimas. Entretanto, ela sorria feliz. Mas eram tantas lágrimas,
que eu me perguntei se minha mãe tinha olhos ou rios caudalosos sobre a face. E só
então compreendi. Minha mãe trazia, serenamente em si, águas correntezas. Por isso,

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prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de minha mãe era cor de
olhos d’água. Águas de Mamãe Oxum! Rios calmos, mas profundos e enganosos para
quem contempla a vida apenas pela superfície. Sim, águas de Mamãe Oxum.
Abracei a mãe, encostei meu rosto no dela e pedi proteção. Senti as lágrimas
delas se misturarem às minhas. Hoje, quando já alcancei a cor dos olhos de minha
mãe, tento descobrir a cor dos olhos de minha filha. Faço a brincadeira em que os
olhos de uma se tornam o espelho para os olhos da outra. E um dia desses me
surpreendi com um gesto de minha menina. Quando nós duas estávamos nesse doce
jogo, ela tocou suavemente no meu rosto, me contemplando intensamente. E,
enquanto jogava o olhar dela no meu, perguntou baixinho, mas tão baixinho, como se
fosse uma pergunta para ela mesma, ou como estivesse buscando e encontrando a
revelação de um mistério ou de um grande segredo. Eu escutei quando, sussurrando,
minha filha falou:
— Mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?

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