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Yume - Kamile Girão

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“Ler é aprimorar seus conhecimentos e compreender a

vida ao seu redor.”


~ e-Livros.SITE, e-Livros.XYZ, e-Livros.WIN ~
Yume
Kamile Girão

Para Sebastiana Gláucia Saraiva Girão.


In Memoriam
Que mais, senão um sonho, és tu, ó vida?

Lewis Caroll
— Maldito! Por que fez isso?

A raiva dele enegrecia o ambiente, enchendo-o de ódio. Seus olhos escarlates brilhavam
furiosos, mostrando o que todo o seu corpo sentia. Seus dentes pontudos e afiados estavam
prontos para atacar uma presa inexistente– embora nunca fossem capazes de atingir o seu
adversário, o responsável por aquela raiva descontrolada. O causador da sua desgraça não se
importava com o acesso de ódio que se desencadeava à sua frente. Mesmo que houvesse
inúmeros ataques, nada o faria reverter a situação.

— Se eu não o fizesse, você colocaria o mundo em risco!— proferiu firmemente.— Não


percebe o mal que causaria? Não pode quebrar a ordem já existente!

Nojento.

— Pois saiba que, se preciso, irei até o inferno à procura do escolhido!— ameaçou o Maldito,
colérico.— E tenha certeza que irei encontrá-lo!

— Tente! Atravessará séculos, milênios, mas nunca irá desfazer o que já foi lançado. E não
ponha a sua esperança em umser que provavelmente nunca existirá.

— Espere para ver, então. Espere e verá.

O Maldito se levantou com dificuldade, saindo da sala assim que conseguiu se manter em pé.
Desapareceu desde então, perdendo-se na imensidão dos séculos. Talvez sempre à procura
daquele que quebraria a maldição que lhe fora lançada.
Sonho

1.
As folhas secas e caídas no chão faziam um barulho ensurdecedor quando eram pisadas.
Era estranho ainda existirem folhas naquele lugar quando o inverno já estava tão avançado
e rigoroso. A neve não parava de cair, e o frio era tão intenso que a garota sentia cada parte
do seu corpo congelar. Onde realmente estava?

A única coisa que se via eram árvores secas, brancas por causa da neve e espalhadas por
todo lado. O céu estava cinza devido à intensa névoa, e o lugar deserto. Estava com medo e
confusa. O silêncio sepulcral era cortado unicamente pelo barulho do seu coração– não se
ouvia nenhum outro ruído. Um súbito desespero se apoderou dela.“O que era tudo aquilo?
Onde estava a saída?”

Andar tornou-se uma difícil atividade naquele instante. O cansaço e a neve no chão a
impediam de caminhar direito, fazendo-a tropeçar várias vezes. O frio aumentava e o fino
vestido que a cobria não protegia contra o vento. “Não dá mais para continuar!” Até ali, só
havia andado sem rumo, sem achar ninguém ou alguma saída.

Quando o cansaço chegou ao seu ápice, a queda foi certa e pesada – caiu de joelhos no
chão. Os pulmões congelados dificultavam a sua respiração e ela perdia a capacidade de
falar. Desejava gritar, pedir ajuda, mas suas cordas vocais não produziam nenhum som,
embora se esforçasse para fazê-lo– estava muda.“O que eu faço?” Tinha de sair dali!

Foi então que sentiu uma grande mão pousar sobre a sua cabeça. Aquilo a assustou, mas o
toque era de tal doçura que parte do seu medo desapareceu. A pessoa se abaixou, ficando de
joelhos à sua frente para poder vê-la melhor. Ela levantou o rosto molhado e percebeu,
estática, um rapaz de

cabelos dourados. Não conseguia ver perfeitamente as suas feições, mas ele ainda estava
com a mão sob seus cabelos, deslizando-a em direção ao seu rosto. Pôde, então, acalmar-se
um pouco. Fechou os olhos e sentiu aquele singelo gesto, uma sensação de paz invadindo o
seu peito.

Do rosto ao braço, a mão do jovem deslizou por sua pele, alcançando sua pequena mão e
segurando-a com força. Ainda de mãos dadas, ele puxou-a levemente ao levantar. Ela
obedeceu e eles ficaram frente a frente, somente se observando. Era estranha a sensação de
tranquilidade que agora pairava entre os dois.

Numa ação inesperada e inconsciente, a jovem se jogou nos braços do rapaz, envolvendo-o
com força. Tudo sumiu. Agora só existiam ele e ela, unidos em um doce, longo e caloroso
abraço. Agora tudo estava bem.

— Nadia! Nadia, acorde, meu bem!

Berlim– Alemanha

Quando Nadia abriu os olhos, não havia mais floresta, nem neve e nem cabelos dourados.
Tudo o que via era apenas o teto com infiltrações e o rosto aflito da sua mãe. Então não havia
passado de um mero sonho?

Suspirou.
— Ok, ok, sem repreensões. Já estou indo.
Nadia pulou da cama e se dirigiu ao banheiro. Olhou-se no espelho, deslizando a mão pelo
rosto

e pelos cabelos. De fato, sua fisionomia não estava muito boa. Olheiras se formaram por
causa da noite mal dormida, o cabelo bagunçado a igualava à Medusa, os olhos continuavam
apertados de sono e sua expressão facial não era das mais agradáveis. Espreguiçou-se,
soltando um gritinho. Ligou o pequeno toca-fitas– herança que seu pai lhe deixara– e pôs a
cassete do Bon Jovi. Deixou tocando, jogou o pijama no chão e foi para o chuveiro.

Passou alguns segundos ainda cochilando debaixo da água gelada, esperando ser despertada
pela frieza. Sentindo as gotas caírem sobre seu rosto, repassou, ao som de Livin’ On a Prayer
, as inúmeras atividades que teria de fazer naquele dia. Precisava terminar cinco desenhos,
estudar Química para a prova da semana seguinte, lavar suas roupas e pegar as calças
rasgadas que tinha mandado costurar. Muita coisa, talvez não desse tempo. Poderia deixar
algo para a manhã seguinte, quem sabe. A Química? Não, tinha de estudar, perigava ficar
com nota baixa no boletim. Os desenhos também não poderiam esperar, os clientes sempre
deveriam vir primeiro– nada de perder clientela. É, iria sobrar para as calças.

Seus pensamentos, contudo, não se fixaram em somente repassar os futuros feitos do dia,
mas em imaginar vários fatos aleatórios e sem sentido– tinha a grave mania de não
permanecer presa à realidade por muito tempo. Um deles fora o sonho da noite anterior.
Parou de lavar os cabelos quando sua memória a levou ao estranho ambiente branco onde a
aventura onírica houvera sido encenada. Fato esquisito, não costumava rememorar com
facilidade o que havia sonhado– exceto raros pesadelos. Até que fora um sonho feliz –
desesperador inicialmente, mas feliz. Esforçou-se para tentar recordar alguns pontos cruciais,
mas a sua falha memória só lhe mostrava um rapaz de longos cabelos louros, pele clara e
porte físico magro. Quem seria?

— O café está na mesa!

Talvez fosse um daqueles integrantes de banda oitentista que compunham a imagem dos
vinis de Otto. Ou então, simplesmente, alguém com quem cruzou na rua ou no metrô.
Poderia até ser uma pessoa em quem esbarrou quando corria para chegar a tempo na escola–
sempre se atrasava e esbarrava em alguém– ou uma imagem da televisão, qualquer coisa que
seu inconsciente gravara despercebidamente. Havia uma infinidade de possibilidades.

— Nadia Lima Kant, está me escutando?

A voz de Laura cortou todos os pensamentos de Nadia – de qualquer modo, não havia razão
para se prender a sonhos de noites passadas, era algo inútil. A menina suspirou, saiu do
banho e se arrumou de maneira apressada, correndo em seguida para a minúscula cozinha. O
cheiro das panquecas semifeitas contorceu seu estômago.

— Posso tomar Coca-Cola?— perguntou, puxando a cadeira para se sentar.


— Não quero seu fígado destruído antes dos quarenta, mocinha.— disse a mãe, pondo o
prato da filha na mesa.— Devore logo, está atrasada para a aula novamente. Até quando,
Nadia, você vai continuar sem hora para chegar ao colégio?

— Se fosse pontual, iria perder a minha marca registrada, então eu não seria eu.— a menina
dera uma mordida na panqueca.— Além do que, a Senhora Dörr gosta de conversar comigo,
não posso deprimi-la. Batemos um longo papo sobre truco enquanto eu espero a primeira
aula acabar. Trago alegria a uma pessoa logo de manhã cedo! É uma boa ação, não acha?

Laura suspirou, os cabelos louros, longos e ondulados balançando. Às vezes, se perguntava


qual seria a única ideia normal na cabeça de Nadia.

— Termine logo com isso.

Após terminar de comer, a menina deu um beijo na mãe e saiu para a escola, correndo com
seus surrados All Star para conseguir pegar o metrô a tempo. Com quinze anos, beirando os
dezesseis, Nadia Lima fugia ao estereótipo comum– ou incomum– às meninas da sua idade.
Classificava-se como sui generis, com suas roupas masculinas, velhas e feias– doações dos
amigos; seus tênis sujos e usados; os jeans rasgados; o cabelo de cor vermelha desbotada,
misturando-se com o castanho natural dos seus fios; os olhos verde ocre; uma argola presa na
extrema cartilagem da sua orelha direita; as unhas sempre por fazer, com a cor preta
descascando; pulseiras de plástico barato no pulso; anéis de aço espalhados pelos dedos.
Normalmente, costumava ser calada quando em meio desconhecido, o que não acontecia
entre amigos íntimos. Tinha falas satíricas, sempre prontas para fazer uma brincadeira, e um
humor ácido e não prejudicial. Era boa desenhista e gastava a maior parte do seu tempo nessa
atividade. Contudo, quando nada tinha para ocupar a sua incansável mente e o tédio gritava
com eco, encontrava como refúgio um mundo fantástico, criado por sua imaginação fértil.

Sempre que se sentia consumida pelo ócio, desligava-se da realidade e entrava no país das
maravilhas que construíra como uma válvula de escape para si mesma. Lá, não precisava
fazer desenhos diários para vender e ajudar na precária renda familiar, como também não
recebia olhares reprovadores por suas vestes antiquadas. No seu mundinho particular, vivia
em uma casa própria– atrasos de aluguéis não existiam– e possuía uma família completa –
pai, mãe e avós. Não precisava estudar Física e Química, tinha acesso fácil aos ídolos que
estavam pregados na parede do seu quarto – Audrey Hepburn, por exemplo, costumava
tomar chá com ela às tardes de quarta-feira, enquanto Johnny Depp, como Edward Mãos de
Tesoura , fazia o corte mensal dos seus cabelos – e, toda vez que estava cansada, repousava
em uma floresta verdejante e ensolarada, longe da poluição e da destruição típicas de cidades
grandes. Às vezes, com um pouco mais de esforço, conseguia dar vida também ao inanimado
e passava horas conversando sobre filosofia com os animais abandonados que encontrava
pelas ruas. Adorava abrir a passagem que lhe levava ao seu universo alternativo e assim vivia
toda vez que sentia a dura realidade pesar em seus ombros ou quando o tédio importunava a
sua paciência.

Um momento adequado para entrar de vez em seu mundo paralelo era durante a espera
dentro de um metrô, hora perfeita para se desligar do real. Porém, naquele dia, ela não sentiu
vontade de fazer uma visita ao seu mundo maravilhoso.

Durante o trajeto, mesmo que mantivesse o olhar fixo nos inúmeros corpos que ocupavam
um mesmo espaço, fora-lhe inevitável não voltar a pensar no sonho. Sua imaginação
fervilhava e, quando isso acontecia, sua mente não parava de trabalhar. O fato havia mexido
com suas ideias, embora não soubesse exatamente por qual razão. Talvez porque fosse uma
das primeiras vezes que se lembrava de um bom sonho ou então por ter sido deveras
inspirador. O cenário– uma mistura do belo com o macabro –, onde a história ocorrera, era
perfeito para ser retratado, assim como a solidão desesperadora em que, de início, se
encontrava. Ambos os elementos unidos originariam um lindo quadro, um bonito e caro
retrato.

Porém, nada a havia intrigado tanto como o surgimento do rapaz. A lembrança dele– da sua
fisionomia excêntrica e da sua atitude incomum– fez Nadia corar por alguns instantes.
Entretanto, não se ligou somente às recordações vagas que tinha do jovem. Uma pergunta
surgiu em sua mente, gritando em sua cabeça, confundindo-a.
Sonhar com quem não conhecia significava o quê? Presságio, visão do futuro, aviso dos
céus? Quem sabe intuição? Premonição? Ou então...

O metrô freou bruscamente, fazendo Nadia se desequilibrar e quase cair. Apenas assim, a
menina conseguiu parar a sua mente inquieta e incansável. Voltando à realidade, olhou para
o velho relógio da Barbie que estava em seu pulso. Exclamou, estava atrasada quase vinte
minutos. Saiu correndo da estação, rezando para ainda conseguir entrar em sala de aula a
tempo. Não se pensaria mais no assunto sonho, e ponto final.

— E aí, doce Moranguinho? O que faz aqui ao invés de estar se afundando em teoremas de
física?

Os cachos ruivos e longos do rapaz balançaram com a chegada da menina e a sua face
adquiriu a mesma tonalidade dos seus fios. Encabulado, respondeu:

— Quis variar. Às vezes, cálculos doem a cabeça. E você, não vai jogar?

— Ah, não, não.— respondeu a garota sorridente, sentando-se ao lado do companheiro.—


Muitos desenhos a serem feitos, nada de basquete hoje.— e, olhando para o menino magrelo
de cabelos louros em forma de tigela que corria atrás da bola, a mocinha gritou.— Anda,
Dieter, sua gazela saltitante! Pegue isso logo e faça a cesta do jeito que te ensinei, alte
schlampe!

— Ah... Nadia?

— Oi.

Precisava apenas dar um único recado a ela, algo inofensivo e sem muita importância.
Porém, toda vez que se aproximava da menina, sentia que sua voz travava, as falas sumiam
de seus pensamentos e tudo que via era apenas o rosto dela o olhando, esperando alguma
reação. Desconcertante.

— Você...— diga algo, algo, algo!— estudou para a prova de Biologia?

A menina suspirou.

— Não.

— Quer ajuda?

— E te atrapalhar o fazendo rever todo o conteúdo do ano? Não, Karl, não vou mais te
explorar. É injusto. Deixa eu me ferrar sozinha, tá?— ela sorriu e, mudando repentinamente
de assunto, perguntou, oferecendo o tablete de chocolate que estava na sua mão:— Quer um
pedaço?

Nadia o perturbava. Quando iria alcançá-la?

— Não, obrigado. Acho que vou indo.— ele falou, sentindo cada parte do corpo tremer. Mas,
antes que pudesse escutar um“já vai?” da amiga, completou com o aviso que tinha de dar
desde o início: — O Otto mandou uma mensagem, disse que quer que você vá à casa dele.

— Para...?

— Ele não falou. Até mais tarde, Nadia.

Karl saiu, calado, cabeça afundada no peito, cachos ruivos se remexendo. Nadia suspirou,
inconformada. Quando iria fazê-lo superar a severa timidez?

— Até que enfim!

A voz da menina se propagava abafada pelo pequeno quarto por conta das várias estantes de
livros amarelados e vinis velhos e pelo timbre de Elvis Presley. O aposento era totalmente
ocupado e a madeira dos móveis– todos velhos e já atacados pelos cupins– não permitia uma
melhor propagação do som.

— Você chegou antes de mim?— perguntou o rapaz, sorridente, enquanto retirava os


sapatos. — É miragem, não é?
— Não, não. Quis vir antes para dar uma olhada na sua coleção de vinis. E já vi seus novos
volumes, rapaz, nem tente esconder.— o olhar estava fixo nos bolachões em suas mãos.—
Por que não me falou que tinha comprado mais doze vinis, traíra? E ainda conseguiu o
primeiro do Elvis, edição original! Se eu não viesse aqui, nunca saberia, porque você, ó
ingrato amigo, não me chama para escutálos!

Otto riu, sentando-se ao lado da amiga. Desligou a vitrola e voltou os olhos para Nadia, não
sem antes dar um leve puxão naquelas longas tranças pseudovermelhas.

— Preciso falar com você.— disse, sério, ainda brincando com uma das tranças da amiga.

— Eu sei, o jovem Karl me avisou.— Nadia sorria, marota.— Queria me fazer inveja, não é?
Ela esperou uma resposta animada vinda de Otto, algo que condissesse com a sua brincadeira
provocativa. Entretanto, o rapaz robusto de quase dois metros de altura continuou sério, com
a fisionomia preocupada e apreensiva.

— Está tudo bem?— perguntou a menina, desconfiada.

Otto levou a mão à cabeça, deslizando os dedos pelos minúsculos fios louros que, de tão
pequenos, tornavam-se quase imperceptíveis aos olhos. O rapaz era incrivelmente
desajeitado quando estava preocupado ou com algum problema, embora o seu típico físico
não demonstrasse isso.

— Pode-se dizer que sim.

Nadia franziu o cenho.

— Com os meus desenhos?— arriscou, o coração começando a palpitar mais rápido.

— Não exatamente com eles, mas tem relação.

A menina sentiu os batimentos cardíacos mais fortes.

— O que houve, Otto?— sua voz saiu apreensiva. A palavra“desenho” sempre a deixava
aflita. — Não me diga que caiu água e eles mo...

— Não, nada disso!— cortou o rapaz.— É que...— ele riu, nervosamente.— Você recebeu
uma proposta bastante... digamos... pertinente.
Menos preocupação para Nadia. Saber que sua arte não sofrera com os efeitos da água já a
aliviava.
— E isso é ruim?— perguntou, expirando com calma.
— Nem tanto...

— Então para que o desespero? Recebo uma proposta e você fica com essa cara de
preocupação, quer me matar de ataque fulminante? Pode falar, o que foi que mandaram dessa
vez?

O rapaz suspirou.

— Não prefere saber primeiro quanto ofereceram?

Ela deu de ombros. Otto riu novamente– estava nervoso.

— Você não vai acreditar...

— Sem rodeios, Otto.— cortou a menina severamente.— Detesto isso.

— Minha cara amiga, você ficará milionária! Mil euros é a oferta da vez!

Nadia sentiu sua respiração cessar por alguns instantes, uma repentina vertigem passou por
seus olhos. Em pouco tempo, seu sorriso desapareceu e seu queixo caiu– não sabia se ria de
felicidade ou se continuava paralisada, sem acreditar no que havia escutado.

— Quanto?!— perguntou outra vez, somente para ter a certeza de que não havia se
enganado. — Mil euros.

— Tá brincando, né? Olha, eu sei que gosto muito de brincadeiras, mas essa é um pouco...
pesada demais, não acha?

— Acha mesmo que eu iria brincar com isso, Nadia Kant?

Nadia arquejou, espantada, jogando-se incrédula contra a cama. Não conseguia acreditar. Mil
euros? Nunca houvera pedido ou recebido tamanho valor por nenhum desenho!
Normalmente, cobrava em torno de dois a, no máximo, dez euros, nada além. Mas mil euros
era mais do que ela, uma amadora, receberia. Sua arte ainda não valia tanto– era apenas mais
uma artista de rua espalhada pelos esconderijos de Berlim.

— Me diz uma coisa, Otto,— perguntou com o olhar perdido, o impacto da notícia sendo
absorvido—a pessoa que propôs isso viu algum dos meus desenhos?

— Viu e elogiou todos.

— E, mesmo assim, disse que quer dar mil euros para mim?

— Disse. Por um desenho encomendado, é claro.

Nadia respirou fundo. Não sabia se tinha coragem suficiente para fazer a pergunta seguinte e
se estava preparada para descobrir a resposta. Coisa boa não vinha, tinha certeza.

— E o que foi que este ser bilionário propôs?

Agora era a vez de Otto ter coragem de falar.

— De todas as propostas que recebeu, esta foi a mais louca que já escutei.

— Condiz com o preço que o cara ofereceu.

— Não posso afirmar o contrário. Ele quer que você desenhe com perfeição algum
personagem de um sonho seu. Se ficar idêntico, recebe o dinheiro. Se não, apenas mérito.

Nadia riu. Agora sim, só poderia ser piada.

— Repita.— pediu, tentando acreditar que não estava tendo alucinações.

— É, é isso mesmo. Ele quer que você desenhe perfeitamente um personagem de algum
sonho seu. E ainda por cima: humano.

Outro baque.

— E como ele vai saber se ficou idêntico ou não? Ele tem superpoderes por acaso? É um tipo
de Sandman ou Freddy Krueger?

— Sei lá! Tô só transmitindo informação.— o jovem se aproximou ainda mais da menina.—


Mas e aí? Convenhamos, é uma ótima proposta. Você aceita?

— É claro... que não!— Nadia se levantou do chão, passando a andar em círculos.— Como
ele acha que eu vou conseguir fazer isso? Relembrar um personagem de um sonho e
transcrevê-lo para o papel? Impossível! Nem Da Vinci, Renoir ou Van Gogh conseguiriam!
Recuse. — falou a menina, decidida.— O preço é muito bom, resolveria parte dos meus
problemas, mas não vou fazer esse desenho. Minha memória é péssima e seletiva.

— Invente um personagem!— rebateu o jovem.— Não há como saber se o desenho é


baseado ou não em um sonho, ele não vai entrar em sua cabeça para ver!

— Recuse do mesmo jeito.— repetiu Nadia.— Não vou fazer isso, não sei criar pessoas e
gosto de trabalhar de forma honesta. Mentir assim vai me fazer ficar mal comigo mesma. —
Não faça isso, Nadia.— falou Otto, posicionando-se em pé e segurando os ombros da
menina.— Droga, por que eu sabia que você iria falar isso? Olhe, pense que é um bom
dinheiro e que você e sua mãe precisam! Nessas horas, a honestidade não vale nada, só se
lembre de você e da Laura! Vocês irão, pelo menos, conseguir quitar as dívidas da casa e vão
poder comprar algumas roupas novas se sobrar dinheiro! Ou será que você vai querer sempre
usar essas roupas velhas e feias? — Não, não e não! Não vou conseguir fazer um
personagem e não quero ser desonesta! Meu trabalho pode ser desvalorizado, sabia? E se
alguém descobre?

Otto respirou fundo.

— O seu maior problema, Nadia, é ser sonhadora demais. Acha mesmo que ele iria descobrir
se está mentindo ou não? E outra: você sabe que tem capacidade para desenhar qualquer
coisa e que essa proposta é fichinha perto do tanto que faz. Olha só quantos desenhos bons já
fez! E sabe que irá receber mais do que a sua mãe ganha na floricultura. Lembre-se, também,
dos inúmeros meses que a Laura está devendo de aluguel. Quer melhorar parcialmente a
situação de vida de vocês, não quer? Quer quitar essa dívida, não quer? Quer deixar também
de usar somente roupas dadas pelos seus amigos, não é? Então aceite!

Nadia mordeu o lábio. Sabia que, no fundo, Otto tinha razão. Laura ganhava muito pouco
trabalhando na floricultura e há tempos que as roupas de ambas eram presentes dos vizinhos,
além da casa estar cheia de goteiras e o aluguel estar atrasado. A proposta era irrecusável,
mas não poderia ser aceita por uma pessoa honesta. A menina também não sabia como
inventar um personagem, ainda por cima um ser humano. Não possuía criatividade para
tanto, seus desenhos eram somente reproduções que, p o r sorte, ficavam bem feitas. De que
maneira imaginar alguém inexistente e com determinadas características? Não, sem
possibilidades. Não iria mentir, era um desrespeito consigo própria e com a mãe, que, desde
cedo, ensinou-a a ser sempre verdadeira. Ah, se ao menos conseguisse ter a capacidade de
sonhar com um personagem irreal e se lembrar dele na manhã seguinte...

Sonhar?

— Espere, Otto.— pediu, o rosto pensativo. Um surto de luz lhe invadiu a mente.— Quando
o homem quer falar com você para saber a minha resposta?

— Ele disse que amanhã iria me procurar, precisa do desenho o quanto antes.

— E falou o prazo para receber o desenho?

— Isso ele irá me falar amanhã, caso a resposta seja afirmativa.

Nadia sorriu novamente, de forma marota.

— Pensando bem, diga a ele que eu aceito a proposta. Acho que sei o que fazer.
2.
Havia somente dois momentos em que a tonalidade do céu se tornava a mesma e era
impossível determinar as horas. Estava amanhecendo ou anoitecendo? Ele não sabia. A
única coisa da qual tinha certeza era que a parcial escuridão não cessava, como se o tempo
houvesse congelado.

Somente a fraca chama de uma vela iluminava o caminho por onde passava. A floresta era
densa; as árvores, longas e negras; o trajeto, difícil, tortuoso; e a umidade local se fazia
sentir com facilidade. Por quanto tempo estava andando? O que procurava? Por que estava
ali? Não possuía a resposta para nenhuma dessas perguntas. Sentia apenas que deveria
continuar caminhando.

Por fim, encontrou a possível saída da floresta. Logo ele se viu em um campo aberto,
ladeado por imensas árvores. E, no meio do campo, estava ela, sentada em cima de uma
grande pedra, olhando fixamente para ele. Durante alguns instantes, ele hesitou em se
aproximar, mas algo no olhar firme daquela menina o atraía. Não percebeu quando suas
pernas começaram a caminhar em direção à jovem, só vindo a notar quando já estavam
frente a frente.

Ela o observava, como se analisasse seus traços e estudasse suas feições. Levou sua pequena
mão até o rosto dele, deslizando os dedos suavemente pela sua face. Tocou-lhe a cavidade
dos olhos, cenho, fronte, nariz, lábios, alisou-lhe os cabelos. Fora inevitável fechar os olhos
para melhor sentir a delicadeza do toque dela. Então, a chama da vela apagou e uma luz
maior surgiu.

Mesmo que estivesse de olhos fechados, ele descobriu, por fim, as horas.
Estava amanhecendo.

— Vamos, Adrien! Acorde para cuspir, vagabundo!

São Paulo - Brasil

A voz ensurdecedora de Arashi tirou Adrien de seu sono profundo. Não tinha convicção das
horas – o camarim não possuía nem janelas e nem relógio, o que o alienava em relação ao
tempo. Porém, tinha certeza de que não era cedo– já estava no bar, afinal. Passou a mão pelo
cabelo e, em seguida, esfregou o rosto.
— Alguém já te disse que você tem a voz mais aguda da face da Terra e que acordar te
ouvindo gritar é o pior castigo possível?— perguntou, irritado. Adrien costumava não ser
simpático quando era acordado.

—Talvez sim, mas obrigado por lembrar.—falou Arashi, fazendo pouca conta da estupidez
do amigo. Estava visivelmente nervoso.— E agradeça a mim por ter lhe tirado do seu sono
de beleza, princesa! Caso não se lembre, temos show daqui a alguns minutos! Vá terminar de
se ajeitar, vadia.

Adrien se levantou, desencorajado, do sofá, não sem antes jogar uma almofada na cabeça de
Arashi. No fundo, estava cansado demais para ainda se ater a tocar nas noites paulistanas. A
faculdade extorquia todas as suas forças– o último semestre do ano sempre requeria mais
tempo e determinação, talvez fosse melhor parar por um tempo com a banda. Porém, não
tinha como se sustentar – a parte mais proveitosa do seu salário vinha quase inteiramente dos
pequenos shows que realizava. Não ganhava praticamente nada como monitor, apenas um
pagamento tão insuficiente que não lhe permitia ir além das compras alimentícias mensais.

Defronte ao espelho do camarim, Adrien olhou a sua aparência. Normal, como sempre.
Deixou os cabelos soltos e resolveu ficar sem blusa– Rida houvera dito que as mulheres
preferiam assim, mas o rapaz acatou a ideia por achar que o ambiente era calorento demais
para ousar ficar completamente vestido. Não tinha problemas em ficar parcialmente despido
em palco, porém sentiu um pouco de vergonha após ver que seu contínuo estresse estava lhe
ocasionando uma intensa perda de peso. Lembrou-se, um tanto desanimado, que, em tempos
remotos, fora um pouco mais gordinho– agora, não restava nenhum resquício de gordura,
tampouco de músculos. Estava meio pálido também. Resolveu ignorar– ninguém iria notar
mesmo o seu cansaço. Tudo o que a plateia desejava saber era do show e não da situação de
vida dos integrantes de uma banda.

Adrien não imaginava que, aos vinte e dois anos, estivesse sofrendo de cansaço extremo,
enquanto vários outros da sua idade se divertiam ininterruptamente. Às vezes, batia uma
saudade do colegial e dos tempos em que suas preocupações restringiam-se apenas a com
quantas garotas iria transar no final de semana.

— Vocês estão prontos?— perguntou, parando de se analisar no espelho e de divagar. —


Quase!— respondeu um dos rapazes, esse de porte pequeno e franzino, que ganhava um
aspecto ainda menor por conta do volume do cabelo cacheado caído nos olhos.— Calçando
os sapatos. — Isaac?

— Tudo no lugar comigo.— disse o outro de cabelos longos, ondulados e negros, altura
mediana, pele parda.

— Ande logo, Arashi!— comentou o quinto moço, cabelos quase brancos, altos e cheios;
dando umtapa na cabeça do companheiro.

— Estou terminando, pare de me encher, Max!— retrucou o jovem rapaz de fios bicolores,
enquantose apressavapara colocar as últimaspulseiras.

— Andem logo, donzelas.— a voz de Adrien saía arrastada, sonolenta.

Depois de prontos, os rapazes se abraçaram e fizeram uma pequena prece. Um típico desejo
de boa sorte, quase um ritual, sempre repetido antes de qualquer apresentação.

Havia mais de três anos que a Reticências existia. Começara apenas como um passatempo
elaborado por dois garotos – Arashi e Adrien – que, desde os tempos das reuniões colegiais,
encontravam-se para tocar nos horários vagos. Gostavam de música e, mais ainda, de
compartilhar este sentimento. Com o advento de Adrien na faculdade, conheceram outros
três jovens, também amantes da música e talentosos no ramo. Convidaram os rapazes, e esses
entraram no pequeno conjunto.

Após algum tempo de formação, já faziam um pequeno sucesso entre os estudantes


universitários e conhecidos, sempre realizando minúsculas apresentações em festinhas de
velhos amigos ou em calouradas. Aos poucos, foram ganhando certa popularidade e não
tardou para serem convidados a tocar em bares de rock e festivais. Gostaram da ideia– seriam
pagos por fazerem algo de que gostavam. Aceitaram os convites, solidificaram uma
simplória carreira. Tocavam em apresentações próprias, aberturas de shows de bandas de
garagem, festas e eventos, sempre alternando entre alguns covers de bandas famosas– desde
o rock clássico até o rock japonês tão idolatrado por Arashi– e músicas de autoria própria.
Onde houvesse propostas, eles estariam lá.

Entretanto, não era desejo da Reticências se restringir apenas a pequenos concertos. Os


rapazes desejavam crescer ainda mais. Talvez até lançar um álbum–se o dinheiro permitisse.

Naquela noite, foram chamados para relembrar os bons momentos do rock nacional dos anos
oitenta. O repertório estava bom: Cazuza, Legião Urbana, Camisa de Vênus, Titãs, Raul
Seixas, entre vários outros gênios do rock brasileiro. Apresentações desse tipo eram as que
mais reuniam público, mais emocionavam e mais rendiam no pagamento. Os rapazes
procuravam incorporar o sentimento da década, reviver os momentos patrióticos, as
revoluções, o fim da ditadura, tudo para causar um maior impacto nas emoções de quem
assistia. Esforçavam-se ao máximo para retroceder no tempo, encarnar os ilustres
personagens da música oitentista brasileira, emocionar, levar o público à loucura. Suavam
para isso, calejavam os dedos, perdiam o sono, mas o resultado era sempre o mesmo: ao
término do show, eram ovacionados por uma plateia que, comovida, rememorava momentos
marcantes de uma vida da qual eles, na época crianças, mal participaram. Ali também não
fora diferente.

Eram uma Geração Coca-Cola recente.

Na volta ao camarim, receberam elogios, abraços, apertos de mão, convites para mais
apresentações e todas as congratulações por mais uma noite de sucesso. Sorrisos satisfeitos,
risos, alegria em geral. Pelo menos, para a maioria dos que ali estavam presentes– com
Adrien, porém, as coisas tomavam proporções diferentes.

O guitarrista entrou no camarim somente para pegar suas coisas e vestir a camisa, saindo
com pressa depois, carregando a mochila em apenas um dos ombros. Em cerca de segundos,
estava fora do bar. Já na garagem, amarrou a mochila na garupa da moto e colocou o
capacete, tudo rapidamente. Desejava apenas chegar em casa, tomar um banho e dormir –
atividade que não realizava com regularidade há algumas semanas. Seu corpo não aguentava
mais, estava no limite das suas forças. Porém, antes de acelerar e partir, escutou um grito por
seu nome, apressado e agoniado:

— Ei, Adrien! Está esquecendo a minha carona, filho da puta?

Adrien suspirou outra vez. Esquecera Arashi completamente.

— Suba aí.— falou, jogando o outro capacete ao amigo.

— Vamos jantar? Estou com fome, não como há um tempo.

Franziu o cenho. Não gostava daquela ideia.

— Tem certeza?— perguntou, desanimado.

— É lógico! Qual parte do estou com fome você não entendeu?

— Você só me dá prejuízo. Aonde quer ir?— não estava com muita vontade de sair para
comer, mas, fazendo-o, servir-se-ia de uma refeição melhor do que os congelados que
costumava fazer quando não tinha paciência para cozinhar.
— No Iguarias da China. É mais perto da minha casa e mais barato. Por favor?

— Tá, tá. Se segura.

Mas, antes que pudessem dar partida, outro barulho chamou a atenção de ambos os rapazes.
Gemidos altos foram escutados, suspiros intensos, pedidos quentes. Os jovens se
entreolharam, intrigados. Saltando da moto, a dupla caminhou para o local de onde o irritante
som se originava, próximo às latas de lixo. Encostados à parede, um casal praticava atos
impudicos, movimentos rápidos e frenéticos, suor escorrendo, mais e mais gemidos. Em
outra ocasião, os dois amigos que assistiam à cena poderiam ter simplesmente ignorado–
quantas vezes já não presenciaram instantes desconcertantes como aquele?–, mas não
puderam ser indiferentes ao ocorrido. Arashi, impaciente, beliscou o braço de Adrien,
esperando alguma atitude por parte do amigo. Esse, contudo, mantivera-se calmo e
relativamente imparcial, esperando o momento certo para se pronunciar. Quando perceberam
que o casal houvera chegado ao seu ápice, o guitarrista, com a voz tranquila, cumprimentou:

— Boa noite, Malu.

A reação do casal fora a esperada, principalmente por parte da moça de boca borrada de
vermelho. O homem com quem ela mantinha relações, assustado, saiu de dentro da jovem
rapidamente, tentando, em seguida, fechar o zíper da calça jeans, atrapalhado. A jovem,
empalidecida, quis fazer o mesmo, subindo, afoita, as peças íntimas.

— O que faz aqui, Adrien?— ela perguntou, a respiração falhando.

— Sabe, hoje era o show da minha banda, então acho que tenho motivos suficientes para
estar aqui. Ou estou errado?

Ela não falava nada, sentia-se deveras envergonhada – e assustada– para pronunciar alguma
palavra. Adrien, contudo, mantinha a inabalável calma, atendo-se até a fumar um cigarro,
tranquilamente, enquanto a observava se vestir. Arashi preferia continuar calado, não era
assunto seu.

— Vou embora.— disse o rapaz que encenara o ato abjeto.— Boa noite, gata. Arashi ainda
se manifestou para tentar conter o jovem, porém fora previamente impedido por Adrien.
Quando a moça já havia recuperado a postura e organizado parcialmente suas roupas
amarrotadas– uma calça jeans clara, corpete e blazer pretos, botas de salto agulha– e o cabelo
despenteado, resolveu se retirar, mas acabou sendo impedida pelo guitarrista, que, segurando
seu braço, fizera-a retroceder os passos.

— Espera aí, aonde pensa que vai?— perguntou Adrien, ainda segurando o braço da garota,
com força.

— Me largue, Adrien!— ordenou a jovem, com o olhar sério.— Está machucando! — Eu


não o faria se não tivesse essa intenção.— havia um sorriso sádico no rosto do guitarrista.

Enfurecida, a moça se desvencilhou da mão grande e forte do rapaz. Rindo de modo


sarcástico, perguntou:

— Está olhando o quê? Vai me chamar de puta agora?

— É uma opção, mas não estou com vontade para isso. Você só me dá...

— Nojo? Repugnância?— ela riu.— Ah, Adrien, se enxergue! Quem é você para falar de
mim? É tão podre quanto eu! Vive reclamando da vida, não dá para o gasto e ainda me traía
como uma cadela! Acha mesmo que tem esse direito?

— Não, não tenho esse direito. Vamos ser benevolentes, você trouxe alegria a um pobre
diabo, fez uma boa ação. Ao menos, ele conseguiu ser satisfeito por seus dotes na cama.

— Está querendo dizendo o que com isso?

— Que há muito você não conseguia me acender como fez com ele.

O impacto em seu rosto fora doloroso, forte, deixou uma marca vermelha.

— Idiota!— ela gritou, enfurecida. Adrien havia atacado o seu ponto fraco.

— Entenda como quiser, não tenho mais nada a falar.— e, dando as costas para a moça,
completou, ainda sorrindo:— Mas, como eu sei que em breve você estará me ligando, não se
preocupe: o número do celular vai continuar o mesmo.

Os dois amigos se retiraram, deixando a moça a gritar ensandecida, amaldiçoando e


maldizendo o guitarrista.
*
— Itadakimasu![1]

O restaurante pequeno– uma casinha que dava apenas para a cozinha e para o caixa– estava
lotado, mesmo que já fosse quase uma da manhã. Não havia uma mesinha de plástico, todas
do lado de fora da construção, que não estivesse ocupada com clientes felizes, alguns até
embriagados, comendo e conversando em alto tom. Um carro tocava a música da noite–
Unchained Melody, dos The Righteous Brothers, ocasionando um clima nostálgico e, ao
mesmo tempo, brega. Por sorte, o estabelecimento tinha permissão de prosseguir suas
atividades até, no máximo, duas da manhã– os donos só precisariam mandar seus clientes
diminuírem o volume da caixa de som e das vozes, antes de qualquer reclamação chegar via
telefone. Porém, nada disso importava para a mais estranha dupla do local. Enlouquecido de
fome, Arashi tomou nas mãos a tigela de yakissoba chinês e começou a comer com
velocidade, sujando a boca e os arredores dos lábios com o molho. Em contrapartida, Adrien
olhava, perdido em uma imensidão de pensamentos, a rua ainda bastante movimentada,
esquecendo o seu prato em cima da mesa. Não reclamava pela falta de comida em seu
estômago, já estava acostumado a passar muito tempo sem se alimentar. Estava mais
preocupado em organizar suas ideias. — Ei, em que planeta você está?— perguntou Arashi,
parando um pouco de degustar a sua refeição. Não costumava ver Adrien tão quieto e
abatido.

— Na Terra, não saí daqui.— respondeu Adrien, ainda com o olhar fixo na rua.— E se eu
fosse você, limparia a minha boca.

— Engraçadinho.— resmungou Arashi, esfregando a mão nos lábios.— Sem brincadeira,


você está estranho desde cedo, antes mesmo do... Bom, você sabe. Posso saber o que está
acontecendo?

— Nada demais.— respondeu o outro.

— Mas realmente não foi o episódio com a Malu, foi?

— Não, não foi ela.— respondeu, sorrindo, agora com o olhar no seu prato.— Não ficaria
assim por causa de mulher, você sabe.

— Você não é normal, Adrien. Viu a traição da sua namorada, saiu como se nada tivesse
acontecido e ainda humilhou a garota. Como consegue...?
Adrien riu.

— Mulher nesse mundo é o que não falta para mim, Arashi. Mais uma, menos uma, que
diferença faz? E, além do mais, conheço a Malu. Não vai tardar para ela me ligar, aos
prantos, pedindo perdão. — Wow! Depois me ensine a ser como você. Essa confiança toda e
esse apelo sexual estão em falta no meu estoque.— e, levando à boca mais um pouco de
yakissoba, o vocalista continuou:— Enfim, não esconda. O que está te perturbando?

Adrien voltou os olhos para Arashi, fitando com certo carinho aquele estranho garoto de
cabelo bicolor e olhos miúdos, pintados de negro. Arashi era o único que o entendia por
completo. Era o seu melhor amigo desde o Ensino Fundamental, como um irmão que nascera
de pais diferentes. Sabia que, a qualquer momento, seria ele quem reconheceria seus
problemas.

— É só cansaço, Arashi.— falou.— A faculdade está pesando, o final do semestre está


chegando, tem os trabalhos da monitoria, tenho que ensaiar com vocês, temos que fazer esses
shows, tenho que procurar um emprego fixo... E, além de tudo, estou tendo insônia todas as
noites. Há razões piores que essas para se ficar mal?

— Insônia por quê? Se está tão cansado assim, não seria mais óbvio chegar em casa e
simplesmente cair na cama?

Adrien riu, debochando da própria situação.

— É ridículo.— falou.— Ando tendo sonhos estranhos e é isso que está piorando a minha
exaustão, porque tira o meu sono.

— Mas você nunca foi de sonhar!— exclamou Arashi.— Como são esses sonhos? —
Nonsense. Todos têm a mesma temática: estou em um lugar bastante esquisito e deserto,
perdido e louco para achar uma saída. De repente, encontro uma menina que nunca vi na
vida, parada no meio do nada. Pouco tempo depois, ela vem para mim, fica me analisando e
deslizando a mão pelo meu rosto. Quando menos espero, acordo no meio da noite e não
consigo mais dormir. Fico rolando na cama até amanhecer ou, às vezes, invento alguma coisa
para passar o tempo. Simples assim.

— Há quanto tempo?

— Duas semanas, eu acho.


— Estranho... Seria um espírito que tenta se comunicar?

— E eu que vou saber?— sorriu, irônico.— Mas sabe o que é pior? A criaturinha é uma
graça. Pequenininha, cabelão castanho, igual a uma boneca de porcelana, daquelas que você
tem medo de chegar perto, achando que quebra fácil. Só que eu nunca, nunca consigo tocá-la.
É como se ela quisesse apenas me estudar e nada mais. Bem diferente das mulheres da
realidade.

— Ah... Entendi o problema, então. Você está querendo experiências novas com garotinhas.
Um seco que precisa de um cabresto, só isso.

Ambos riram. Nesse momento, a garçonete bonitinha, vestida com trajes chineses, entregou
outra tigela aos rapazes, dessa vez recheada de biscoitos da sorte. Os dois agradeceram e
Arashi, sorrindo de maneira marota, perguntou:

— Por que não tira a sua sorte neste biscoitinho, querido? Encontre aqui as respostas para
suas dúvidas!

— Estúpido.— comentou Adrien, pegando o biscoito da mão de Arashi. Deu uma mordida e,
em seguida, retirou o papelzinho que ali dentro estava. Abriu-o e a mensagem logo se fez
visível.

Você acredita em destino?


Nada é por acaso! Dê uma olhada ao seu redor
e verá que, para tudo, existe uma explicação.

— E aí?— perguntou Arashi, curioso.— O que diz?

— Nada demais.— respondeu Adrien, dobrando o papel mais uma vez e jogando-o na mesa.

Superstição boba. E o seu?

— Eu não gostei.— falou o outro, com a voz chorosa.— Está na hora de ser menos covarde
e correr atrás do seu objetivo. Fui chamado de covarde!

— Então o seu acertou!— havia ironia em sua voz.— Nossa, essas coisas realmente dão
certo! Precisamos encontrar a Rida agora mesmo!
Riram e terminaram de comer, pagando a conta em seguida. Depois, subiram na moto e
rumaram às suas respectivas casas, percorrendo as ruas paulistanas ainda movimentadas.
Durante o trajeto, Adrien recordou-se dos estranhos sonhos que lhe causavam insônia. Não
costumava pensar neles, mas tocar no assunto o fez se lembrar. Tentava ignorá-los sem
sucesso, não sabia explicar o motivo pelo qual ainda permanecia tão ligado aos devaneios
noturnos. Achava-se um estúpido por estar dando tamanha importância ao fato, todavia se
sentia feliz ao sonhar com a garota imaginária. Ela trazia paz, inocência, mostrava um mundo
menos cruel que a realidade nua e crua com a qual estava acostumado. Porém, era apenas
ficção, fluxo de inconsciência. Para quê, então, se ligar ao irreal? Por que pensar em uma
pessoa que nunca existiria? A vida não era um sonho bom– e ele só poderia se contentar com
o fato. Com vinte e dois anos, Adrien Guerra não sabia o que era sonhar e desejar– só
conseguia ver o lado negro da sua medíocre e nada grandiosa vida. Entretanto, também não
tinha noção de que era apenas mais um subordinado do destino– seu futuro, quisesse ou não,
estava inteiramente trançado por pontas coloridas. As mesmas que seus olhos castanhos não
conseguiam ver no dia-a-dia.
3.
Berlim– Alemanha
Só faltava mais uma semana e Nadia já entrava em desespero crônico. O prazo estava
vencendo, tinha somente mais sete dias. Um mês não precisava passar tão depressa! Bem que
um dia poderia ter trinta horas, ao invés de vinte e quatro– doze para manhã e dezoito para a
noite. Essa sim deveria ser mais longa.

— Desencane, ogrinha! Esse cara nunca vai sair do papel! É mais fácil esperar o Karl virar
homem!

A voz de Maik era irônica e provocativa – não valia a pena rebater a brincadeira. Desse
modo, Nadia preferiu apenas lhe mostrar o dedo médio da sua mão esquerda, perfeito para
ser usado em momentos como aquele. Ainda assim, escutou risinhos por parte dos amigos–
Dieter havia se juntado ao outro rapaz. Crianças.

Cansada, Nadia se levantou, limpando o jeans sujo pelos farelos da borracha. Estava exausta,
não iria aguentar assistir ao treino dos meninos. Guardou os desenhos na pasta e desceu da
arquibancada. — Já vai, Nadia? Ainda nem começamos!

O treinador era acostumado à sua presença – toda noite de quarta ela estava lá, assistindo ao
treino de basquete dos amigos por pura adoração ao esporte.

— Ando meio cansada.— ela respondeu, esfregando o rosto.— Digamos que não estou nos
meus melhores dias. Preciso de ducha, uísque e cama.

— Estimo suas melhoras.— disse o treinador, ignorando seu comentário sobre a bebida.—
De qualquer modo, isso é só treino. O jogo do mês que vem será melhor e mais emocionante!
— Tenho absoluta certeza.

Despediu-se do treinador e saiu, chutando as pedrinhas que estavam em seu caminho. Estava
sendo o mês mais preocupante da sua vida, tinha de admitir. Quando acordada, dedicava todo
o seu tempo à elaboração do desenho. Deixou, várias vezes, de comer, de estudar, de fazer
outros retratos e vender os mesmos. Esqueceu até mesmo de respirar, se é que isso era
possível. Só não largou a necessidade de dormir. Era dormindo que Nadia o encontrava. E,
sempre antes de adormecer, rezava para poder sonhar com ele mais uma noite– noites essas
que já totalizavam vinte e quatro. Quando chegou em casa, deparou-se com as luzes
apagadas– a mãe continuava no trabalho. Ainda no escuro, Nadia abriu a porta e trancou-a
logo em seguida. Passou algum tempo encostada à madeira, até reunir coragem o suficiente
para tomar um banho. Dirigiu-se ao quarto, jogou a bolsa na cama e retrocedeu o caminho,
indo para o banheiro em seguida.

Depois do longo banho, voltou ao seu quarto, vestida apenas com a toalha que enrolava seu
corpo molhado. Sentada no colchão velho, puxou a bolsa para si, retirando a pasta verde e,
logo após, o desenho. Olhou a reprodução do rapaz mais uma vez, analisando todos os
detalhes que havia conseguido desenhar. Não lembrava exatamente quais roupas ele
costumava usar, então o fizera com uma camisa social branca, desabotoada até a altura do
peito e uma calça negra. Os cabelos longos, ao contrário, eram como nos sonhos, quase
alcançavam sua cintura, e uma franja desarrumada insistia em cair sobre seu rosto. No
entanto, o essencial ainda lhe faltava: a face e a expressão que Nadia não gravara com
fidelidade na memória.

Mesmo assim, não poderia negar– mesmo sem rosto, ele ainda era muito bonito. A menina se
levantou, terminando de enxugar a água que corria por sua pele. Vestiu as peças íntimas, um
blusão cinza do Pateta e um par de meias coloridas antes de se jogar na cama e prosseguir a
atividade de observar o desenho. Ficou a olhar o rapaz ainda sem face e voltou a se
questionar sobre como seria a vida do personagem. Desde o início do seu trabalho, várias
vezes se encontrou fantasiando com o rapaz inexistente. Bem diferente dos seus amigos, o
jovem dos seus sonhos não era mais um mero adolescente– já era um homem. Nadia não
tinha contato com homens de verdade, apenas com garotos. Provavelmente, esse seria o
motivo para aquele sujeito fictício a intrigar tanto.
Porém, ele tinha um defeito: não a permitia imaginar sua vida.

Nadia não sabia explicar – de todos os personagens que já desenhara, apenas com ele não
conseguia construir suas características temperamentais, seus gostos, seus desejos, sua
existência. Até mesmo retratos encomendados de pessoas reais eram mais suscetíveis à
formulação de personalidades– muitas vezes, completamente avessas ao que aqueles rostos
eram, de fato, na realidade. Por que justamente ele, um produto da sua mente, não lhe dava o
aval da criação?

Porque ele nunca existiria.

A constatação apertou o coração de Nadia. A razão era tão óbvia! Como ela mesma pensava,
era apenas ficção. Mas imaginar também não matava ninguém. Por que ele não a permitia
desvendar os mistérios escondidos atrás da sua pose firme e de seus gestos brandos e gentis?
— Apaixonada pelo irreal, menina Nadia?

Nadia voltou os olhos para o ursinho velho e feio que tinha desde criança– a única
recordação que restara da sua infância. Condenando sua atitude, ele a olhava
repreensivamente, com os braços cruzados e a pose reprovadora. A menina suspirou – muito
bom, a loucura havia começado novamente. Costumava acontecer quando ela
menosesperava.

— Ah, você de novo? Me poupe!— exclamou a jovem, mal humorada.— O que te faz pensar
que eu estaria apaixonada por isso? Só estou... admirada.

— Espero tudo de você.— ele continuou.— Quem consegue ver o que não existe, também
tem a capacidade de o amar.

— Ah, cale a boca! Você é um urso, não sabe de nada! Seja bonzinho e volte a ser o que era
antes, sim? Fica até mais bonitinho quando está quieto.

O urso suspirou. Não adiantava falar com a garota.

— Só não se magoe, menina. Amar e viver o irreal pode ser mais doloroso do que se
consegue imaginar.

O urso voltou à sua pose de antes– inerte, sem vida. Nadia desviou o olhar, odiava quando
aquilo acontecia– maldita imaginação incontrolável. Porém, estava intrigada. Por que o
bichinho de pelúcia achava que ela amava alguém imaginário? Ou melhor, por que o seu
inconsciente acreditava em tal hipótese? Era estupidez, masoquismo sentimental. Só estava
envolvida com o mistério, apenas isso– e, em sua mente, só prevalecia a figura desengonçada
do jovem Karl.

Entretanto, não conseguiu segurar o sorriso ao imaginar se, por acaso, o rapaz viesse a ser
real, possuindo o mesmo jeito cavalheiro, a mesma beleza de anjo e as nobres atitudes.
Fantasiou um encontro, soltando um riso abafado. Como ele iria reagir ao vê-la?
Pessoalmente, Nadia mais parecia um menino com longas tranças, um moleque
desengonçado. Com certeza, passaria vergonha na frente dele. Contudo, ele seria delicado o
suficiente e tratá-la-ia como uma dama. Conversariam uma tarde inteira, ririam dos causos
impossíveis, ela descobriria todo o suspense da sua personalidade. E seria um dia feliz e
agradável.
Sorriu com a ideia maluca e, deitada, colocou o retrato dentro da pasta. Seu corpo estava
fraco, cansado de tanta exaustão. O desenho sugava as suas forças, até mesmo aquelas que
jurava não ter. Na intenção de descansar um pouco, fechou os olhos, com a imagem do rapaz
ainda fixa em sua mente. E, sem que percebesse, acabou por adormecer.

Agora ela não estava mais em nenhum ambiente estranho, vazio, sombrio. Reconhecia o
lugar em que se encontrava naquele momento, mas não lembrava exatamente onde era.
Acordava e, por isso, as imagens estavam embaçadas e as ideias, confusas. A única
sensação que tinha era a de estar sobre uma superfície visíveis, e ela dura e fria.
Lentamente, levantou-se. As imagens foram se organizando, ficando olhou para frente.
Deparou-se com um imenso muro, de proporção quilométrica e completamente pichado.
Forçou as lembranças para tentar reconhecer o lugar, mas a sua memória estava fraca
demais.

Enquanto tentava organizar fatos e datas, viu um homem correndo em direção à barreira de
concreto. Algo gritou dentro dela para impedir que aquele desconhecido fosse até lá –
instintivamente, ela sabia que aquilo era perigoso. Não sabia explicar, apenas sentia.
Entretanto, mais uma vez, estava sem voz - não conseguia emitir nenhum ruído. Não sabia o
que fazer para chamar a atenção dele. Impotente, escutava-o gritar coisas ininteligíveis. À
beira da agonia, intentou aproximar-se do louco, porém sentiu uma mão em seu ombro,
impedindo-a e indicando que não deveria. Virou-se para a pessoa que estava atrás dela – o
mesmo rapaz. Seu rosto expressava tranquilidade e seu sorriso a acalmava. Não adiantaria
discutir com os olhos castanhos que a encaravam com firmeza. Ela segurou a mão dele,
contrita, e ambos se voltaram para ver a cena do homem que corria.

Agora, ele já havia chegado ao muro, estava defronte à quilométrica barreira. Pulou
algumas vezes, sem, contudo, alcançar o topo. Tentou escalar uma vez, mas caiu. Tentou
outra, também sem sucesso. Na terceira vez, quase ia ao chão novamente, mas já estava
conseguindo subir. Um lampejo de memória a acometeu e, apenas assim, ela descobriu que
local era aquele e qual a intenção do homem. Em pouco, tudo fez sentido– Alemanha
Oriental, Muro de Berlim, ultrapassagem da barreira proibida. O homem estava a um passo
da morte, precisava salvá-lo. Milagrosamente, sua voz foi recuperada e ela gritou:

— NÃO!

Era tarde. Alguém que estava do outro lado do muro o atingira com um tiro certeiro no
peito. Os olhos da garota se inundaram de lágrimas e o rapaz que estava com ela a abraçou
fortemente. Porém, em meio ao pranto insistente e violento, conseguiu escutar o homem
murmurar aquele nome. Suas palavras não passavam de fracos sussurros de um moribundo,
mas que, aos ouvidos dela, ecoavam em níveis de gritos. Aterrorizada, a menina reconheceu
quem era o desconhecido que jazia no asfalto frio. Não poderia ser, não, não, não! Aquele
era seu...

— PAI!

Nadia se levantou bruscamente da cama. Havia sido o pior sonho de todos os últimos que já
tivera, embora costumasse ter frequentes pesadelos com o pai e com a Alemanha pré-1989.
Respirou fundo e, enxugando o suor do rosto, saiu do quarto. Olhou o relógio– vinte e uma
horas. Por sorte, Laura ainda não havia chegado do trabalho. Agradeceu a Deus por estar
sozinha na casa, não queria que a mãe soubesse dos seus esquisitos sonhos e, principalmente,
do recente pesadelo. Ela iria chorar, como sempre fazia quando Nadia mencionava Theodor.

Ofegante, dirigiu-se até a cozinha e abriu a geladeira, retirando um copo d ’água e bebendo-o
em seguida, tentando se recuperar do susto. Enquanto sentia o gelado líquido descer pela sua
garganta, congelando-a, uma vasta e importante lembrança passou por sua mente.

Pela primeira vez, Nadia se lembrou, com riqueza de detalhes, da face do rapaz.

— Nadia? O que faz aqui a essa hora?

— Acabei!

Otto olhou para Nadia, surpreso por receber sua visita àquela hora. Reconheceu o surrado
casaco que a amiga usava– fora seu uma vez, embora, agora, estivesse em tamanho
reduzido–, mas ele não era suficiente para a proteger do frio da madrugada. Agarrada à pasta
verde, Nadia tremia, mas seus expressivos e esverdeados olhos brilhavam de maneira
ofuscante, e sua voz estava animada, além da sua expressão ser da mais intensa e pura
felicidade.

— Melhor você entrar.— disse Otto, passando o braço pelos ombros da menina e
empurrando-a delicadamente para dentro da casa.— Um pouco mais aqui fora e você
congela.

A casa de Otto era pequena e sem muitos utensílios domésticos, tal qual a casa de Nadia. Os
móveis e os eletrodomésticos eram antigos, alguns já bem gastos e a desorganização era
visível. Ao entrar, Nadia jogou-se no sofá, afundando-o com o seu peso. Otto fora buscar um
cobertor para ela, que, ainda agarrada à pasta, continuava a tremer de frio. Quando voltou, a
menina tornou a falar:

— Quatro palavras: eu sou um gênio!— dizia rapidamente, atropelando as palavras e


gesticulando muito, como sempre fazia quando estava empolgada.— Preciso de um busto em
minha homenagem!

— O quê, Nadia?— perguntou o rapaz, cobrindo a amiga.— Que parafernália você criou
dessa vez? Não é um projeto de Ffísica, né? O último quase explodiu a sala, Dieter me
contou.

— Ia explodindo porque nosso caro e inteligente amigo Dieter colocou papel onde não
deveria. Mas não, não é trabalho de escola. Simplesmente acabei de fazer o desenho de mil
euros.— disse Nadia rapidamente, sorrindo satisfeita.

— Ainda falta uma semana para o prazo acabar, por que se apressou tanto em vir? Podia
fazer isso depois. E não são horas para uma senhorita estar na rua.

— Você fala como se eu fosse muito frágil! Ah, Otto, não seja incompreensível! Precisava
mostrar para alguém... Depois dessa, posso ir para o Museu do Louvre e ter uma exposição
exclusivamente minha lá! Terminei há pouco tempo, ainda tá cheirando a grafite. Dê uma
olhada aí.

E, apressada, Nadia abriu a pasta e retirou o papel, entregando-o ao amigo. — Aqui está.—
disse, sorrindo de modo triunfante.— A arte de Nadia Da Vinci!

Sorrindo, Otto recebeu o desenho e, assim que pousou os olhos sobre ele, não conteve sua
reação de espanto. Seu sorriso esmoreceu, assim como seu olhar brincalhão perante as
atitudes entusiasmadas de Nadia. Não existiam palavras exatas para descrever a imagem que
via, mesmo que termos como perfeito ou fantástico fossem apropriados. O rapaz observava o
traço elegante e seguro de Nadia, incrédulo. O que ali estava representado não era um
simples desenho de um homem, mas sim a reprodução inegável de um homem. Algo tão
incrível e extraordinário que fez Otto acreditar, por alguns instantes, que o personagem
retratado era real.

— E aí?— questionou Nadia, ansiosa.

— É magnífico! Seu monstrinho maldito, foi você que o inventou?

Um sorriso maroto escapou dos lábios da menina.


— A proposta não era bem essa.— comentou.

— Está dizendo que isso aqui foi mesmo um produto de um sonho?

Só bastou que o sorriso de Nadia ficasse mais resplandecente para a confirmação vir. —
Você não existe, Nadia!— comentou o jovem, dando pequenos safanões na cabeça da amiga.

— Ele é incrível, até parece que realmente existe! O rosto lembra um pouco o Sebastian
Bach no início da carreira, mas dá para perceber que são duas pessoas distintas. Há suas
diferenças. Não sou de achar homem bonito, só que esse cara... Está espetacular. — Otto
sorriu, entregando novamente o retrato à jovem.

— Né?— comentou Nadia, mordendo o lábio enquanto analisava sua obra.— Pena que há
algo nele que me desagrada.

— O quê, pelo amor de Deus? Ele está sensacional!

— A expressão dos seus olhos.— respondeu, com o olhar fixo no rapaz reproduzido no
papel. — É triste, não acha?

Otto sentou-se ao lado da amiga, passando a estudar o desenho com ela.

— E por que ele é assim?— perguntou.

— Sei lá. Eu o vi desse jeito, com esses olhos tristes, com essa fisionomia cansada. Não acha
que ele parece ser sem expectativas?

— Talvez. Quemsabe esteja faltando algo na vida dele.

— Como o quê?

— Isso quem tem de dizer é você. Ele só está aqui por sua causa.

Ela riu, desconcertada.

— É apenas um personagem, Otto.— concluiu, o sorriso esmorecendo em seus lábios, os


olhos passando a fitar o nada.— E personagens não passam de arquétipos da nossa cabeça.
Eles não são reais.

— Você queria que ele fosse de verdade?

Nadia se virou para o amigo, olhando-o curiosa.

— Aparenta isso?— perguntou.

— Um pouco.

Ela riu, voltando à sanidade e percebendo o que havia falado.

— Que ideia, Otto!— exclamou, mudando a expressão.— Sei que não bato muito bem da
cabeça, mas meu juízo ainda está no lugar! O que eu queria com um cara que vi por sonhos?
Isso é... ridículo!— e, novamente mais animada, a menina questionou:— Se eu te pedir um
favor, você faz?

— Claro!— respondeu o rapaz, sorridente.

— Tira uma cópia dele para mim?

Não era costume de Nadia fazer cópias dos desenhos que vendia. Porém, diferente de todas
as outras vezes, a menina teve o desejo de continuar com aquele retrato, mesmo que não
fosse o original. O desenho possuía um significado especial. Representava não só o esforço e
o empenho que tivera para fazê-lo, mas também a única lembrança de um ser que, com
certeza, nunca veria na realidade.

Uma imagem à qual Nadia, secreta e inconscientemente, se apegara.

— Tudo bem, pequena ogra.— respondeu Otto, com seu terno sorriso.

Nadia sorriu novamente, da linda maneira marota com a qual sempre demonstrava a sua
felicidade.

Já era noite alta e Otto era o único funcionário ainda presente na loja de conveniência – seria
o encarregado do fechamento dela. Olhou para o relógio que marcava quase vinte e duas
horas. Logo ele chega, pensou. Ligou a televisão, comeu o pequeno sanduíche frio e ficou a
esperar. Em cima do balcão, a pasta verde que continha o desenho de Nadia descansava.

Ficou a ver os programas inúteis sem prestar atenção. Forçava a memória para lembrar como
ele era. Da primeira e única vez que o vira, ele fumava um cigarro. Era alto, pálido, usava um
chapéu de abas e sobretudo negros, e seus olhos eram escondidos pelos óculos-escuros
retangulares. Do seu corpo, só conseguia enxergar as mãos e uma minúscula parte do seu
rosto. De fato, um sujeito extremamente estranho–chegando a ser aterrorizador.

Teve medo do homem não ir ao seu encontro. Otto desejava veementemente que ele não lhe
enganasse, ou melhor, que não enganasse Nadia. A garota havia se esforçado para ajudar a
mãe, merecia ser recompensada pelo árduo trabalho. Conhecia a situação de ambas, sabia o
quão difícil estava sendo para Laura sustentar, sozinha, uma casa e uma filha adolescente. O
dinheiro cairia como uma salvação para a minúscula família. No entanto, Otto desconfiava
daquele sujeito cujo rosto era um mistério e a proposta uma loucura– não dava para dar tanto
crédito a uma pessoa daquelas.

O tempo passou devagar e já era quase meia noite quando Otto avistou um ser estranho, de
chapéu e sobretudo pretos, entrar na lojinha, indo em sua direção. Sentiu o coração disparar,
perguntandose várias vezes se o homem realmente estava com o dinheiro. O sujeito se
aproximou e, educadamente, cumprimentou:

— Boa noite, meu jovem.

Sua voz rouca era fria, cortante e causava arrepios.

— Boa.

— E então?— perguntou o homem, sorrindo.— A pequena artista fez o que pedi?

— Sim.— respondeu Otto, retirando o papel de dentro da pasta.— Aqui está.— falou,
entregando-o.

O homem recebeu a folha e passou alguns instantes observando o desenho. Ele estava
gostando? Odiando? Achou bonito ou feio? Era impossível determinar, seu rosto não
expressava nada e seus olhos continuavam cobertos pelos óculos-escuros. Calafrios
percorreram o corpo de Otto. Estava nervoso, tinha medo de que o homem desaprovasse o
trabalho de Nadia e não quisesse pagar por ele. Porém, para sua felicidade, o estranho sorriu.

— Magnífico.— falou.— Somente uma verdadeira artista seria capaz de desenhar com
tamanha perfeição. Talento incrível. É realmente um personagem de um sonho?

— E por que não seria? Ela é bastante honesta com seus trabalhos.

— Qual o nome da menina?

— Nadia Kant.

— Senhorita Kant, certo? Diga-lhe que é preciosa e agradeça.— e, guardando com cuidado o
desenho em seu sobretudo, finalizou.— Uma inegável e talentosa desenhista merece
reconhecimento. Desejo sorte. Até mais.

O homem já se retirava quando Otto gritou.

— Espere!

— Algum problema?— questionou, voltando-se ao comerciante. Sua voz exprimia surpresa.

— O dinheiro.— e estendeu a mão.

— Ah, claro.— falou o homem, enfiando a mão em seu sobretudo.— Como eu poderia me
esquecer disso? Perdoe a minha falha.— e entregou um pequeno envelope branco a Otto. O
rapaz pegou o envelope e abriu. Logo, várias cédulas surgiram e Otto as retirou, contando-as
em seguida. Tudo certo, lá estavam os mil euros.

— Muito obr...

Não dera tempo de Otto terminar seu agradecimento. Além dele, não existia outro homem
presente na lojinha. Encontrava-se só no departamento, como se não houvesse recebido
ninguém. E a televisão continuava a mostrar suas inutilidades.
4.
São Paulo - Brasil

— Pois não?
— Bom dia, senhora. Eu sou Adrien Guerra, o estudante universitário do curso de Letras que
agendou uma entrevista com a professora Maria Adelaide para um seminário. Por gentileza,
ela se encontra?

— Ah, sim, o estudante universitário... Me perdoe por não o reconhecer logo. Entre, por
favor.

Adrien agradeceu e, pedindo licença, entrou na mansão da requisitada psicopedagoga.


Sentiu-se envergonhado, demasiadamente humilde para estar em uma casa de tal elegância e
dimensão. Havia sido muita sorte conseguir uma entrevista com a professora, sabia o quão
ela era importante– fato percebido principalmente pela rica arquitetura do seu lar. Respirando
fundo e expirando rapidamente, preferiu não ficar analisando maiores detalhes da casa. Mais
um pouco e ficaria completamente desconcertado.

— Por aqui.

A governanta era simpática e amigável, recebera-o com amabilidade, o que o deixava mais
confortável. Internamente, riu ao se questionar se seria tratado com a mesma delicadeza caso
a velha senhora o visse no dia-a-dia. Adrien havia trabalhado o visual a fim de ganhar um
aspecto de moço sério e requintado, um ar bem longe daquele que costumava ter diariamente.
Retirou os inúmeros brincos que existiam em suas orelhas, prendeu os longos cabelos em um
rabo de cavalo, vestiu a camisa polo azul que seu pai lhe dera dois anos antes – e que, até
então, permanecera praticamente sem uso–, uma calça jeans e tênis branco. Não ficara feio,
mas não simpatizava com o aspecto de rapaz bem comportado que estava demonstrando.
Contudo, não poderia reclamar– afinal, era trabalho.

Acompanhou a velha governanta, caminhando pelos corredores da casa e parando em um


jardim de grandes proporções, com uma mesa branca próxima à porta de vidro por onde eles
saíram. Ficava cada vez mais encabulado com a riqueza da mansão– nunca fora acostumado
a luxos, sempre vivendo no ambiente simples que seu pai, um mecânico, lhe oferecera.
Procurou não demonstrar o seu desconserto. Precisava passar uma impressão forte e
determinada, de um estudante empenhado, e não de um moçoilo que se diminui com riquezas
arquitetônicas e materiais.

— Espere aqui, certo?— disse a governanta, sorrindo.— Vou chamá-la, descerá em


breve. Você gostaria de um suco de laranja?

— Sim, obrigado.— respondeu, sorrindo e sentando em uma das cadeiras que contornavam
a mesa.

A governanta se retirou e Adrien ficou sozinho no jardim, observando as plantas que ali eram
cultivadas. Conhecia pouco de flores, mas reconheceu as rosas, as margaridas, as violetas e
as primaveras. Também existiam outras espécies coloridas, entretanto preferiu não tentar
identificá-las– nunca fora suficientemente bom em botânica. Voltou os olhos para a mesa,
depositando nela a bolsa que trouxera. Resolveu dar mais uma olhada em seu trabalho,
retirando a pasta que continha o projeto. Releu o objetivo do seminário e as perguntas que
faria à professora– sabia exatamente como fazê-las, sempre fora bom de lábia. Estava,
contudo, um pouco nervoso, mas conseguia não passar isto aos outros, o que era uma ótima
característica sua. Depois, retirou o velho gravador que um de seus colegas emprestara.
Tinha de testar as pilhas mais uma vez– não costumava confiar facilmente em baterias.
Apertou o REC, mas, antes que pudesse falar um“alô” de teste, outra voz surgiu, sendo
gravada na fita cassete: — Você gosta de olhos verdes?

Assustado, Adrien pausou a gravação e virou-se para ver quem havia falado. Era uma
bonita moça: negra; de olhos escuros, brilhantes e desafiadores; nariz pequeno; lábios
carnudos; corpo escultural; pés descalços e vestido branco de alças e rendas. Os cabelos
longos, volumosos e cacheados, completavam o charme e a beleza do seu rosto oval. Olhava-
o sorrindo, um pouco irônica, o nariz empinado. Muito bonita. A filha da professora, talvez?
Provável. O fato era que, em momento algum, Adrien notara a chegada da moça. Não ouviu
passos.

— Como?— perguntou, educadamente, disfarçando o susto e o embaraço.

A mulher sorriu, puxou uma cadeira e sentou, voltando os olhos para o jardim. — Sabe, não
gosto muito de olhos verdes, os acho muito comuns.— ela tornou a falar, apoiando os
cotovelos nas costas da cadeira.— Mas tem um caso em que eu realmente os acharia lindos.
Adrien não entendeu, mas preferiu manter-se quieto. Não poderia destratar os que estavam
na casa.

— Você sabe o que dá beleza aos olhos?— perguntou a mulher, voltando os orbes negros
para o jovem.

— Não.— respondeu o rapaz, tentando deixar-se levar pelo assunto aparentemente sem
sentido que a moça desenvolvia.

— O brilho que eles têm.— a moça sorriu.— Você não tem muito o hábito de olhar
primeiro para os olhos de alguém, não é?

— Por que pergunta isso?

Ela mordiscou sensualmente o lábio, enquanto sorria do seu modo sarcástico. — Ao invés de
olhar para os meus olhos, você olhou para o meu decote. Estou enganada? Caso Adrien não
fosse tão seguro de si, teria ficado completamente encabulado. — Você é bem observadora.
— comentou, retribuindo o sorriso perigoso.

— Eu me esforço.— ela se vangloriou, ainda sorridente.— Mas voltemos ao assunto


inicial: por que não costuma olhar para os olhos das pessoas se são eles que mostram quem
realmente são? — Costume, talvez.— Adrien não estava com muita vontade de levar a
conversa adiante. Já estava se convencendo de que a moça não tinha as ideias muito
regulares e o rumo que o assunto tomava começava a desagradá-lo.

— Deveria perder esse costume então. Caso fosse mais atento aos que te rodeiam, poderia
aniquilar com grande parte das suas dúvidas.

Em vinte e dois anos de vida, Adrien já se debatera com vários loucos, pessoas que falavam
coisas sem conexão ou sentido algum. Contudo, até aquele momento, nenhuma delas dissera-
lhe algo que o incomodasse tanto. A moça, porém, começava a quebrar o padrão.

— Dúvidas sobre o quê?

A moça se aproximou mais, falando em um tom que tornava sua voz audível apenas para o
guitarrista:

— Conheço uma menina muito bonita, de olhos expressivos e verdes. De longe, você já
percebe que se trata de uma sonhadora convicta, parece nunca estar fixa na terra. Essa é a
maior beleza dela. Deveria vê-la, tenho certeza de que apenas essa mocinha iria acabar com
sua pose de machão. A conversa tomava rumos cada vez mais confusos.
— Desculpa moça, mas... Não estou entendendo nada do que fala.— Adrien estava
começando a se irritar com os assuntos abordados pela jovem. Nada parecia fazer sentido.

Ela sorriu, como quem se divertisse com a confusão que causava.

— Não é para entender agora, deixe esse trabalho para mais tarde. Não tenha pressa, você vai
conhecê-la.

Adrien fitou-a por alguns segundos. Precisava raciocinar e digerir todas as informações que
lhe foram jogadas. Se, por um momento, acreditava piamente que as ideias da moça estavam
sob efeito de drogas pesadas, por outro via uma completa lucidez e firmeza naqueles olhos
escuros. — Do que está falando...?

E, agora séria, a mulher o olhou, com o olhar penetrante e profundo, de tal modo que
deixou Adrien, por instantes, intimidado.

— Você é cético demais e isso é, de certo modo, prejudicial. Eu sei que sonhos
parecem besteira, mas nem sempre são. Dê um pouco mais de atenção aos seus, eles querem
te mostrar algo. E, quando compreender a mensagem que seu inconsciente quer te passar,
ganhará uma missão, um dever do qual não pode fugir. Por isso, meu bom rapaz, quando o
seu presente chegar, receba-o de braços e mente abertos. Lembre-se de que nem tudo é
apenas“de verdade”. Há muito além daquilo que chamamos de “mundo real”.

O coração de Adrien acelerou de modo incompreensível, inesperado. Escutar a


palavra“sonho” não lhe fez bem– não o fazia há quase um mês. Todos os dias, sofria as
consequências das noites mal dormidas– tudo por conta do seu inconsciente que gostava de
trabalhar quando não estava na hora.

Embora estivesse, de fato, intrigado com os sonhos que tinha, tentava não dar-lhes extrema
importância–afinal, eram apenas devaneios da sua mente cansada de um mundo leviano, nem
ao menos faziam sentido. Mas não gostou de escutar o que a mulher falou, mesmo tendo
convicção de que ela não era normal. Teve a impressão de que a fantasia, de certo modo,
estava ligada à realidade.

— Como assim?— perguntou, já não mais aparentando a calma de antes.

— Aqui está o seu suco, rapaz.


Adrien voltou os olhos para a porta e viu a simpática governanta trazendo um copo de
laranjada em uma bandeja prateada. Agradeceu e, quando voltou novamente o olhar para o
local onde a jovem estava, não viu ninguém– o lugar estava vazio. Um arrepio lhe
transpassou a espinha e, com o coração batendo cada vez mais rápido, perguntou à
governanta:

— Por favor, onde está a moça que estava aqui?

A boa mulher franziu o cenho, sem compreender.

— Moça? Que moça?— questionou, intrigada.

— Uma moça jovem, de roupa branca de renda. Ela estava bem aqui, na minha frente. O
rosto da governanta se tornou surpreso, indecifrável.

— Mas você estava sozinho o tempo todo. Não tinha ninguém aqui com você. A fita que
rodava na cassete, gravando as falas do ambiente, parou, indicando o fim da gravação do
primeiro lado. Adrien preferiu ficar calado, mais uma palavra e seria chamado de louco.
Porém, não estava satisfeito. Deu um sorriso amarelo para a governanta e a esperou sair.
Assim que se vira novamente só, rodou a fita, procurando escutar o que fora registrado, algo
para comprovar que não tivera uma ilusão. Ansioso, aproximou a orelha do aparelho, mas
tudo que ouvira não fora nada além da sua própria voz.

Cerrou os olhos com força, um tremor percorrendo o seu corpo. Em seus pensamentos,
pairava apenas o medo e as dúvidas.

Berlim– Alemanha
O dinheiro agora descansava em suas mãos, dentro de um envelope branco e rechonchudo.
Contara e recontara as cédulas diversas vezes para se certificar de que a quantia estava
correta e, para sua felicidade, não havia nada errado. Nadia sorriu e, sorrateiramente,
adentrou o quarto da mãe adormecida. Com cuidado, abriu a porta do antigo guarda-roupa e
guardou o envelope dentro de uma caixa de fotos antigas que lá estava. Deixaria que Laura o
descobrisse. Seria uma ótima surpresa.

Voltando ao seu quarto, sentou-se na cama e ficou a olhar o nada iluminado pela fraca luz do
abajur. Ainda não tinha sono, poderia ficar acordada mais um pouco, fazendo não sabia o
quê. A televisão estava defeituosa, mostrando as imagens em preto e branco; não havia livros
novos para ler– poderia até reler, pela milésima vez, a antiga versão de Alice no País das
Maravilhas que ganhara quando criança, mas não tinha vontade. Desenhar? Uma boa pedida,
quando se tinha paciência para tal. Não, não queria desenhar. A pasta, contudo, estava acima
da sua cabeceira, apenas esperando ser pegada. De fato, pegou o objeto– os papéis ali dentro
a chamavam para dar vida a uma nova obra-prima. É, poderia até ser. Ligou a cassete do seu
pai em um volume baixo, deixando tocar algumas músicas flashback presentes na fita que
Otto lhe dera– a nostalgia a inspirava. Abriu a pasta, porém não se deparou logo com uma
folha em branco pronta para ser usada. A cópia do seu desenho estava ali, e o rapaz a olhava
com os seus olhos tristes.

Aquele olhar a incomodava. Nadia retirou o papel e ficou a analisar o desenho com mais
proximidade. Não conseguia entender o porquê da tristeza do jovem, da expressão deprimida
e do aspecto cansado– como se ele tivesse nojo do ambiente onde vivia. Nadia sabia, não era
da sua imaginação. Ele não era fruto da sua mente, tinha quase plena certeza. Havia saído de
outro lugar, de outros sonhos, não dos seus. Mas fora para ela que ele aparecera. Deveria
haver algum motivo, alguma razão convicta, mesmo que, aparentemente, não existisse
nenhuma.

Duran Duran, com o seu Ordinary World, preenchia o vazio do ambiente– o único barulho
que era escutado dentro do pequeno quarto. Entretanto, era como se a música não ressoasse,
servindo apenas como trilha sonora para um filme do qual Nadia não sabia que participava.
A menina ainda permanecia entretida com o desenho, com as características peculiares do
jovem retratado. Gostaria de entendê-lo, se ele lhe permitisse. Porém, sentia que, em partes, o
compreendia. Poderia supor que a sua tristeza vinha da falta– aquela vida parecia ser seca.
Por que ele a escolhera? Existia uma razão, isso era perceptível, mas Nadia não sabia o que
poderia fazer se nem ao menos conhecia a sua existência.

Piscou os olhos rapidamente e várias vezes, irritada consigo mesma. Em que diabos estava
pensando? Preocupando-se com alguém que não existia... Estaria maluca? Enfurecida com as
próprias atitudes, colocou o desenho novamente dentro da pasta, por trás dos inúmeros
papéis limpos e guardou-a na gaveta do criado-mudo. Às vezes, perguntava-se por que
precisava ser tão estupidamente sonhadora. Iria acabar em um manicômio daquela maneira.
Pensando nisso, desligou a cassete e a luz, iria dormir.

Viver o irreal doía. Amá-lo também.

Laura deixou a emoção tomar conta de si e caiu sobre o sofá, arrasada. A carta ainda estava
em suas mãos e ela não possuía forças para reler. Tremia, o suor frio lhe escorria pela face,
juntamente com as lágrimas. Por sorte, Nadia estava no colégio, não gostava de chorar na
frente da filha. A garota sempre se preocupava demais com ela, não seria bom para Nadia, já
bastava Laura chorando. Duas seriam demais.

Mas Laura sabia que Nadia também iria sofrer. Seria inevitável. Precisava de uma solução
urgente para seu problema. Mais precisamente, uma solução para Nadia. Não poderia deixar
a filha sair prejudicada, tampouco intensificar a dor que a menina iria sentir. Pensou no que
fazer, mas o nervosismo a impedia de ter qualquer ideia que fosse inteligente o suficiente
para resolver sua maior preocupação.

Tentou se acalmar. Respirou fundo e enxugou as lágrimas. Chorar não resolveria nada – não
havia volta, precisava se conformar. Justamente quando achava que sua vida se resolvera,
aquilo tinha de acontecer para mostrar que não dava para fugir do seu destino. Estava
determinado e confirmado, para quê se lamentar? Laura se lembrou de todos os fatos de sua
vida nos últimos dezoito anos. Havia sido difícil, sofrera muito, suportara tudo calada. Perdas
seguidas, desilusões, predestinação. Questionara o porquê de tudo aquilo e isso intensificara
a dor do seu emocional, piorando a sua crise de choro. Sentia falta de um amigo verdadeiro
para abraçar, coisa que não tinha desde que chegara à Alemanha.

Laura parou de pensar por um instante ao perceber o que havia lhe passado pela cabeça. Era
a sua chance! Tentou se acalmar e correu em direção ao telefone público que ficava próximo
à sua casa. Levou um cartão telefônico ainda carregado desesperadamente o número que iria
salvar a vida e a agenda. Com as trêmulas mãos, procurou de Nadia. Sabia o quão cara era
uma ligação para outro país, mas agora ela não se importava com o preço. Digitou
rapidamente os números e rezou para que a pessoa atendesse do outro lado da linha. Para sua
sorte, sua prece fora deferida. — Alô?

— Yooki!— Laura suspirou um pouco aliviada.— É a Laura. Necessito de um favor. Só


você pode me ajudar agora.

Iria doer de modo insuportável, mas seria o melhor.

A animação estava visível no rosto de Nadia. Seus olhos brilhavam, sua alegria era
contagiante e a menina achava motivos para sorrir até mesmo em coisas insignificantes.
Sentia-se incrivelmente bem, como há um bom tempo não se sentia. Perguntava-se se a mãe
já teria encontrado o dinheiro e imaginava a surpresa que ela teria. Sorria só com a imagem
satisfeita e emocionada de Laura projetada em sua mente. E toda essa alegria graças ao seu
árduo trabalho! Estava deveras satisfeita.
Ao voltar da escola, Nadia entrou em casa apressada, esperando veementemente encontrar a
mãe estática e com o dinheiro nas mãos. Já podia ver seu rosto surpreso e as lágrimas de
felicidade brotando de seus olhos.

No entanto, não fora essa imagem feliz da mãe que Nadia viu ao entrar na pequena sala.
Laura estava sentada no sofá, com as mãos cruzadas apoiando a cabeça, os olhos marejados
por lágrimas, mas não por algum motivo aparentemente bom. Seu rosto vermelho estava
visivelmente preocupado, percebido também pelas intensas olheiras que, há poucas horas,
não existiam.

Olheiras essas que foram resultado de um dia inteiro aos prantos.

— Ei, Dona Laura!— Nadia correu para onde a mãe estava, ficando de joelhos à sua frente,
preocupada.— O que aconteceu?— perguntou, passando a mão pelo rosto da mãe.

— Nadia!— Laura assustou-se ao ver a filha ali. Enxugou o rosto rapidamente, tirando a mão
da menina e sorrindo em seguida.— Não é nada, querida!

— Como nada? Eu chego aqui, te encontro num rio de lágrimas e isso não é nada?

— Só estava pensando no seu pai, só isso. Me lembrei dos nossos momentos felizes e acabei
me emocionando.— foi a melhor desculpa que Laura encontrou. Não poderia contar a Nadia
ainda. — Agora vá tomar um banho, que eu só vou ao quarto e já volto para nós jantarmos.

Laura saiu da sala e correu para o quarto, deixando uma Nadia sozinha, confusa e sem
explicações convincentes.

Entrou na sala com relevos em vinho e preto, satisfeito, feliz, sorridente como não era há
muito tempo. Carregava consigo um rolo de papel na mão, pegando tudo de maneira
cuidadosa, para não amassar ou danificar. Assim que chegou, colocou-o em cima de uma
mesa, sentando-se logo em seguida na poltrona vermelha e pedindo vinho. A criada, a sua
fiel criada– uma pequena menina, cabelos longos e ruivos, pele sardenta, olhos opacos–,
antes mesmo de atender a vontade de seu amo, notou o conteúdo da mesa, assim como
percebeu o estranho humor do seu senhor. Não conseguiu segurar a pergunta:

— Outro, senhor?
— Outro, Claire. Mas deu certo, dessa vez deu certo.

— Tem certeza, senhor? O senhor o encontrou? Não é mais um engano?— embora a sua voz
tentasse demonstrarespanto,sua expressão e suaspalavras eramvazias.

— Absoluta, Claire!— e ele sorriu, deixando à mostra os seus pontudos dentes.— E não é
ele.

É uma menina, e uma menina na flor da idade.

— Como o senhor sabe, amo?

E o sorriso tornou-se mais perigoso.

— Por causa do nosso contrato.


*

São Paulo, Brasil

Arfando, Adrien se levantou bruscamente da cama. Outro sonho, sendo esse, dessa vez, ruim.
A menina agora estava sozinha, chorava incessantemente, e ele nada poderia fazer para
ajudá-la: estavam separados por uma barreira invisível, a qual Adrien não conseguiria
atravessar. Ele tentava chamar sua atenção, batendo ininterruptamente contra uma espécie de
vidro, mas, contudo, ela parecia não o escutar. O seu sofrimento em demasia e a sua dor a
impediam de ver o jovem tentando se comunicar.

Perturbado com o pesadelo, Adrien cambaleou até a cozinha para beber um copo de água.
Olhou para o relógio. Eram três horas da manhã, em ponto. Engoliu o líquido de uma só vez
e se dirigiu à janela para pegar um pouco de ar fresco. Usava somente uma bermuda, odiava
dormir com blusa quando estava calor.

Ao sentir o vento tocar seu rosto suado, teve uma sensação ruim. Lembrou-se da visão que
tivera horas antes, com a mulher-fantasma na casa da professora.“Eu sei que sonhos parecem
ser besteira para você, mas nem sempre são. Dê um pouco mais de atenção aos seus, eles
querem te mostrar algo”. A frase não saía da sua mente, atormentava-lhe os pensamentos,
agonizava-o. No entanto, talvez ela estivesse certa. No fundo, mesmo tentando se convencer
do contrário, algo lhe dizia que a moça dos seus sonhos, de fato, existia, e que ele deveria
correr atrás dela o mais rápido possível. Como se ela fosse passar por um terrível sofrimento,
uma decepção inevitável.
Queria fazer algo por aquela menina, mesmo sem saber o que e sem acreditar fielmente em
sua existência. Por hora, preferia apenas não pensar.
5.

Berlim- Alemanha

O comunicado chegou seco, frio e inesperado.

— Precisamos conversar, Nadia.

Nadia sabia que algo estava errado. Uma semana se passara desde a venda do desenho e
Laura ainda não havia encontrado o dinheiro. Além disso, andava estranha, triste, com uma
expressão aflita que nunca lhe pertencera e agindo de modo igualmente sem nexo.
Costumava passar o dia fora e voltava para casa quase de madrugada. Nadia já havia
perguntado várias vezes o que estava acontecendo de anormal, mas a mãe nunca respondia.
Dizia que tudo estava bem, sorria e logo mudava de assunto. Porém, Laura não convencia e
tampouco enganava a filha. Nadia ainda tentou, várias vezes, descobrir a anomalia, porém
não conseguiu nenhuma desculpa, por mais absurda que fosse. A solução era ter de se
contentar com o silêncio– insuportável– da mãe.

Até que, finalmente, iria saber.

— Diga.— falou, sentindo um diferente amargar na boca e se controlando para prosseguir


calma.

A mãe, umedecendo o lábio, sentou-se no sofá, ao lado da filha, afastando os inúmeros


papéis que rodeavam Nadia. Sentiu o seu coração doer ao ver as inúmeras dúvidas explícitas
no rosto da menina. Será que Nadia suportaria?

— Nadia...— começou, sentindo que a voz saía com dificuldade e tomando cuidado para não
inundar os olhos com as lágrimas.— Você se imagina morando fora de Berlim?

Um minuto de silêncio que, para Laura, durara uma eternidade. Nadia não tinha expressão no
rosto– não conseguia entender o motivo para tal pergunta. Após alguns segundos, soltou um
sorriso bobo e, sem jeito, perguntou:

— Para que isso, mãe?


— Responda, querida.

A menina riu, nervosamente.

— O que eu iria fazer fora de Berlim? Minha vida é aqui, oras!

Seria difícil.

— Nem tampouco fora da Alemanha?— ela temia a resposta da filha.

As perguntas ficavam cada vez mais esquisitas. Nadia franziu o cenho.

— Muito menos! Não há o que fazer em outro país, mãe! Por quê?

A mãe não conseguia responder ao questionamento da filha. Todavia, apenas o seu silêncio
bastou para Nadia tentar compreender o interrogatório.

— Não me diga que a senhora quer voltar para o Brasil?!— exclamou a menina, alterando
um pouco a tonalidade da voz.

Laura respirou fundo, Nadia chegara ao que desejava. Doía. Como falar aquilo para uma
garota como a filha? Sabia que a menina não aceitava mudanças drásticas com facilidade,
sofrendo calada quando estas aconteciam– detestava expor suas fraquezas, trancando tudo
dentro de si e escondendo-se atrás de um mundo imaginário, a única fuga que possuía. Não
segurou as lágrimas que, há tempos, queriam descer.

— Não, não, não...— Nadia exclamou, cerrando os olhos e mordendo o lábio. — Estamos
sem casa.— Laura soltou, sem se preocupar em diminuir o impacto da notícia. Outro longo
instante de silêncio– necessário para Laura se recompor e para Nadia compreender as
palavras proferidas pela mãe. O coração da menina acelerou, fazendo doer o peito; a
respiração a falhar.

— Quê?— perguntou Nadia, sem entender, sentindo o corpo tremer e os músculos


congelarem. — Como assim sem casa? E essa não está valendo? Ela não é nossa? Nós não
moramos nela? Que merda é essa?— a cada pergunta, o tom de voz de Nadia se elevava.

— Nós a perdemos.— falou, sem conseguir fitar os olhos da filha. — O aluguel estava
atrasado há mais de três meses, recebemos o ultimato mandando nos retirar. Só temos quinze
dias para irmos embora daqui.
A menina silenciou – era uma informação forte demais.

— E é por isso que você quer que nos mudemos para o Brasil?

Pela primeira vez, Nadia temeu uma resposta.

— Quanto a mim, não sei. Mas você é destino certo: vai morar lá com o meu primo Yooki.

O ar faltou para os seus pulmões. Nadia levou a mão à boca, confusa, perdida.
Primeiramente, achou estar sonhando. Contudo, com os instantes decorridos, convenceu-se
de que nada ali era irreal– era a mais pura e cruel realidade. Não sabia o que falar ou que
atitude tomar. Levantou-se do sofá, passou a andar em círculos pela sala. O coração batia
forte, acelerado. Sua expressão era do mais profundo e intenso assombro – não conseguia
acreditar. A ardência nos olhos começava a surgir por conta da água que, aos poucos, ia se
acumulando, mas ela não iria deixar que a mesma escorresse por sua face. Odiava chorar–
sentia-se fraca e vulnerável, o que não era. E, naquele caso, qualquer lágrima machucaria
ainda mais a mãe. Tinha de segurar e de conter as próprias emoções.

— Eu já tenho a sua passagem.—continuou Laura.— Você embarca daqui a uma semana.

— E você?— perguntou a menina, automaticamente, sem ter noção das palavras que saíam
da sua boca.

— Já disse. Vou ficar.

Nadia olhou para a mãe, incrédula. Estaria revoltada, caso não estivesse tão entorpecida.

— Você é louca?— gritou, sentindo a raiva pulsar dentro do seu peito.— Quer dizer que eu
vou para o Brasil sozinha e você vai ficar aqui, sem ninguém?

— Eu não tinha dinheiro para duas passagens, Nadia! Era eu, ou você! Minha vida está
irregular, mas posso organizá-la. Mas você... Olhe para si mesma e se enxergue, não passa de
uma menina! Precisa estudar, se divertir, namorar, coisas que, ficando aqui na Alemanha,
nunca conseguiria no estado em que estamos! Se ficar, vai querer trabalhar, como eu sei que
você faria por mim, e eu não quero isso! Não vou condená-la a uma vida instável e a um
péssimo futuro como o meu!

— Mas...
— Mas nada! Você vai!

Nadia se jogou no sofá, sem força, aniquilada pela notícia. Sentia-se fraca e inconformada.
Ainda lhe parecia inacreditável, um susto inesperado que lhe trouxera bruscamente à
realidade da qual sempre tentara fugir. Não tinha como ir contra a decisão da mãe ou dos
proprietários da casa, tampouco conseguiria protestar– estavam fadadas à rua. Não conseguia
assimilar– muito menos aceitar. Mereciam aquela casa, moravam nela antes mesmo de
nascer, quando seu pai ainda era vivo. Por que expulsá-las de um local onde estavam há
quase vinte anos? Não era justo, não era admissível. Pertenciam à humilde construção, assim
como o lar pertencia a elas. Para que sair?

Entretanto, o susto que a notícia lhe causou a fizera esquecer um pequeno detalhe, a
oportunidade que poderia impedir tamanha desgraça.

— Ei, ainda temos chance!— disse, com uma voz mais animada, tentando se agarrar ao seu
último fio de esperança.— Como não pensei nisso antes?! Podemos pagar o aluguel e ficar
com a casa! — Com que dinheiro, Nadia?— perguntou Laura, sôfrega.— Não temos mais
nem para a comida, praticamente!

— Com os meus desenhos!— exclamou a menina, apressada.— Vendi um por mil euros! É a
nossa chance! Com esse dinheiro, a senhora quita as dívidas e podemos continuar aqui, na
nossa casa!

O rosto de Laura ficou surpreso, desacreditado.

— Quem deu tudo isso para você?

— Foi um homem, nem sei quem era! O Otto que vendeu o desenho. De qualquer forma, não
importa! Eu estou com o dinheiro aqui, na sua caixinha de fotos! Espere um instante.

Correu para o quarto de Laura, tropeçando nos próprios pés, enxugando algumas lágrimas
insistentes que rolavam por seu rosto contra a sua vontade. Tremendo, a menina abriu o
guarda-roupa com pressa, pegando a velha caixa com cuidado, vendo nela a salvação para a
sua situação. Voltou à sala já com um pequenino sorriso nos lábios, rezando para que o
dinheiro ali dentro pudesse resolver o momento que mãe e filha enfrentavam.

— Aqui.— disse, entregando a caixa para a mãe.— Pode ver com seus próprios olhos. Era
pra ser uma surpresa, mas você nemse tocou.
Laura pegou a caixa sem esperanças, desacreditando nas palavras de Nadia. Não conseguia
admitir que a filha tivesse conseguido vender um desenho por uma grande quantia, sabia que
era demais para uma amadora– o fato poderia ter sido mais uma peça pregada pelos sonhos
constantes da menina. Levantou a tampa e vasculhou por entre as fotos, cena essa que Nadia
assistia com o coração saltando dentro do peito. Esperava ver a mãe pegar o dinheiro e sorrir,
já conseguia visualizar a cena.

Porém, para seu completo espanto, o desejo não fora concretizado.

— Dinheiro, Nadia?— perguntou Laura, voltando a chorar de maneira frenética e jogando a


caixa no sofá.— Aqui não tem nada a não ser as fotos velhas!

— Mas ele está aí!— exclamou Nadia, assustada, agoniada.— Eu mesma coloquei! — Pois
olhe com seus olhos e tire suas conclusões.— falou Laura, fria, entregando a caixa para a
filha.

Cada vez mais trêmula, Nadia segurou o pequeno depósito de papelão com dificuldade.
Colocou-o entre as pernas, procurando as cédulas que, há uma semana, houvera guardado.
Vira o envelope branco, mas, de fato, não havia nada ali dentro. O gosto amargo formou-se
em sua boca. Tirou todas as fotos, esvaziara a caixa. Nada, nenhum sinal do dinheiro. O
coração doía cada vez mais, as lágrimas queriam descer. Em desespero, falou, com a voz
embargada:

— Não pode! Otto sabe que eu vendi este desenho, o dinheiro estava aqui! Deve ter caído...
Vou ao quarto olhar, vou pôr o guarda-roupa abaixo, mas vou encontrar a droga desse
dinheiro! Eu sei que ele está em algum lugar, eu mesma o guardei!

— Filha...— murmurou Laura, inconsolada, tentando acalmar a menina. Tinha plena certeza
de que Nadia vivera mais uma das suas incontroláveis fantasias. Aquele problema tornava-se
cada vez mais sério.

Nadia voltou para o quarto, desesperada, em completa angústia. Abriu o guarda-roupa, puxou
as roupas, jogou fora todo o pouco que ali estava, procurando freneticamente o pagamento do
desenho. Não via nada, não havia dinheiro algum. Esfregou o rosto, expulsando o suor gélido
da face. Roeu as unhas e as películas dos dedos, observou o guarda-roupa praticamente
vazio. Nenhum sinal. Com o coração saltando, foi até a sala, cada vez mais nervosa.

— Vou à casa do Otto, ele vai comprovar isto para você e a gente vai achar! — Nadia, não!
E levantou-se, cambaleando, indo em direção à porta. Deixando a mãe sozinha, saiu de casa
apressada, correndo, chorando abertamente agora. Não se incomodou com os pingos de
chuva que caíam do céu e molhavam o seu rosto– confundindo-se com as lágrimas que
escorriam de seus olhos– e a sua roupa, tampouco com o frio avassalador do outono alemão.
Sentia apenas as fortes pontadas no peito que o seu coração ferido causava e uma angústia
terrível. O ar falhava, respirava com dificuldade. Tinha a capacidade de apenas correr. Suas
pernas logo começaram a doer, mas não importava– o seu coração doía mais. Otto morava
longe, quase cinco quarteirões da sua casa. Era mais viável ir de ônibus ou metrô, porém
Nadia não tinha dinheiro, nem lógica para cogitar tal hipótese. Tinha pernas, o essencial.
Chegou à casa de Otto, tremendo– de frio e de agonia. Bateu na porta com desespero– era
sua últimaesperança. Nenhumsinal da presença do amigo. Resolveu gritar, bater de
novo,qualquercoisa que pudesse chamar a atenção de quem ali morava. Após muita
insistência, finalmente a porta abriu, fazendo umOttosonolentoe perturbadosurgir.

— O que está fazendo aqui?— perguntou o rapaz, confuso, voltando a raciocinar direito após
ver o estado da amiga.— Aconteceu algo? Está toda molhada!

— O dinheiro, Otto!— cuspiu Nadia, apressada, atropelando as próprias palavras.— Onde


ele está, onde?

— Que dinheiro? Você nunca mais me deu desenho algum para vender, o último que vendi
foi há mais de um mês. Está tudo bem?

— Não!— gritou a menina.— Você não lembra? O desenho do sonho que custava mil euros!
Do homem estranho que você falou!— lágrimas incessantes escorriam pelo rosto de Nadia.
Já não tinha mais forças para esconder o que sentia.

— Do que você está falando?— Otto permanecia sem nada entender.— Você está alterada, o
que aconteceu?

Mas ela não percebia.

— Otto, por tudo que é mais sagrado, onde está a merda desse pagamento? Você vendeu para
o homem da proposta, lembra? Foi um mês para eu fazer o desenho e o homem me pagou,
você me entregou o dinheiro, lembra? Por favor, me ajude, por favor...

— Nadia, você não faz desenhos para eu vender há mais de um mês. Não recebi proposta
alguma de homem nenhum e não recebi mil euros de ninguém. Estou falando a verdade,
minha querida. Você deve ter fantasiado essa história, é apenas coisa da sua cabeça. Volte
para a casa, certo? Está tarde, você vai se gripar assim.
Até ele?

— Não acredita em mim, não é?— a revolta se alastrava pelo seu corpo.— Acha que estou
doida, não é?

— Espere, eu não disse isso...

— Não, tudo bem.— com força, enxugou algumas das lágrimas que caiam por seu rosto.—
Sei que sou meio biruta da cabeça mesmo. Foi só mais uma fantasia.

Sendo finalmente vencida pela realidade, deixou-se abater, correndo para sair de onde se
encontrava. Otto ainda tentou ir atrás de Nadia, mas a menina fugiu– não queria consolos. O
dinheiro sumira e o amigo não se lembrava de nada, como se tudo não houvesse passado de
mais umdelírio da sua cabeça. Então era tudo mentira? Não recebera dinheiro algum, não
fizera desenho algum, não sonhara com rapaz algum? Estava apenas delirando, confundindo
a realidade com o imaginário? Fora presa dentro de algum pesadelo para acreditar com
veracidade em tais fatos?

Não fora sonho, tinha certeza. Poderia ter a fama de louca, até reconhecia que não era muito
normal, mas sabia que não fora loucura e nem tampouco invenção da sua psicodélica mente.
Havia desenhado, havia recebido o dinheiro. Então por que não encontrava a droga do
pagamento e por que Otto não se lembrava de nada?

Derrotada, era assim que estava. Uma imbecil perdedora, vítima das suas próprias
alucinações– definitivamente, perdera o senso. Não conseguia mais diferenciar o irreal do
real. Uma hora isso iria acontecer, tinha certeza. Porém, não importava mais. Sentia apenas o
seu coração doer de maneira insuportável e o frio congelar seus pulmões, assim como o ar
que entrava dentro deles. Iria encarar a vida real agora, fora vencida. Por um ultimato e por
um delírio da sua insana mente.

São Paulo– Brasil

— Adrien, você está bem? Adrien? Adrien?

Puxando o ar com força, sentiu o oxigênio entrar em seus pulmões, mas não conseguia voltar
direito à vida. Tirou a guitarra que estava pendurada em seu ombro e a colocou longe de si–
pesava muito e ele estava sem forças. As vozes dos amigos pareciam distantes, além de não
conseguir ver ninguém– todas as imagens estavam embaçadas.

— Rápido, Arashi, Max e Isaac! Peguem-no e o levem à sala! Precisamos deitá-lo no sofá.
Gustavo, traga o álcool!

Não sentia mais a dureza do chão e nem a maciez do tapete a roçar sua pele. Tinha a
impressão de estar flutuando, sendo carregado por várias mãos. Seriam anjos? Não tinha
mais convicção da realidade– o que era isso mesmo? Seus olhos estariam abertos ou
fechados? Impossível saber estando com uma vista tão turva.

— Peguem o álcool.

— Onde tem álcool aqui?

— Procurem! Anda! Vamos, vamos!

Um cheiro forte e enjoativo invadiu as suas narinas, trazendo-o parcialmente à vida.


Escutava, agora com mais coerência, vozes falando algo como inale, inale. Não queria sentir
aquele cheiro que o incomodava, mas ele o perseguia. Não tinha como fugir do odor. Abriu
os olhos. Já conseguia enxergar um pouco melhor, assim como ver as cores. Preferiu ficar de
olhos abertos, esperando voltar a ver tudo com mais clareza. Em pouco tempo, pôde observar
com perfeição a jovem que estava à sua frente e notou rapidamente a cor vermelha viva do
batom da garota. Logo, a imagem da moça estava perfeitamente formada diante dos seus
orbes castanhos– a pele branquíssima contrastando com o negro dos curtos e repicados
cabelos lisos, o macaquinho jeans que ela vestia acima da blusinha de mangas negras e as
várias pulseiras que estavam em seu pulso.

A jovem sorriu, um riso aliviado.

— Está melhor?— perguntou, com a voz firme e grave.

— Um pouco.— respondeu Adrien, ainda vagamente zonzo.— Obrigado, Rida.

— Seu moleque, o que aconteceu para você ter esse mal-estar?— perguntou Gustavo.—
Quase nos mata de preocupação, maldito!

— Há quanto tempo você não come, Adrien?— a voz de Max possuía um tom repreensivo.
Não seria necessário Adrien falar o motivo, ele já sabia.

O guitarrista solo silenciou perante todos os olhares curiosos e prontos para passarem uma
repreensão.

— Desde a janta da noite passada.— respondeu.

— Ficou maluco, seu débil?!— gritou Isaac, enfurecido, sua voz superando as outras.—
Quer ficar doente e precisar ser internado?

Adrien preferiu permanecer quieto. Estava errado, melhor prosseguir calado.

— Ok, vamos dar uma pausa no ensaio.— e, voltando-se para Arashi, Max completou:—
Leveo para almoçar em qualquer restaurantezinho por aqui. Ao menos ele vai ter alguma
pessoa para segurálo se por acaso desmaiar.

— Está melhor agora?

— Meu estômago dói.

— Pudera! Há algumas horas ele estava vazio, lembra? E olha o prato que você comeu, seu
animal!

Adrien soltou um riso torto.

— Está na hora de você se cuidar mais, irmãozinho— disse o vocalista.— Não quero te ver
numa cama de hospital, tomando soro e com uma sonda no pinto.

— Ok, mamãe patinha. Seguirei as suas ordens.— disse Adrien, debochando da preocupação
de Arashi.

— Vá para o inferno! Não vou ser pai de um marmanjo de um metro e oitenta! Riram e
ficaram em silêncio por algum tempo, até Arashi tomar a iniciativa. — Vou lá pagar o teu
almoço.— avisou.

— Ei, espere!— chamou o guitarrista, em um sobressalto.


— Que foi?

Adrien mordeu o lábio.

— Se eu te contar uma coisa... Ah, esquece.

— Fale logo, vadia! Começou, termina!

— Se me chamar de maluco, apanha.

— Sim, vá direto ao assunto.

O guitarrista baixou os olhos, voltando-os para o copo.

— Enquanto eu perdia os sentidos— começou—, vi uma cena.

Arashi franziu o cenho.

— Não dá pra explicar muito bem.— prosseguiu Adrien.— Mas se você compreender em
partes o que vou falar, então já dá para ter uma noção do que aconteceu. Bom, foram só
alguns segundos. — ele suspirou antes de dar continuidade.— Por esse tempo, não vi mais
vocês e senti que não estava no estúdio. Questão de piscada de olho, entende? Tudo
desapareceu e, por instantes, era como se eu estivesse em outro local. Foi... Foi bizarro,
Arashi.

— E o que viu?

— Uma noite chuvosa e fria... E uma menina chorando.


6.

Berlim- Alemanha

— Acho melhor você ir atrás dele, Nadia.

Nadia olhou mais uma vez os rostos presentes na pequena e fúnebre sala. Otto tinha os olhos
fixos em sua figura, tentando lhe transmitir força; os de Dieter, ao contrário, estavam
molhados e sem foco– e seu nariz, vermelho. Maik, com a cabeça baixa, escondia a tristeza
por detrás dos fios negros do seu cabelo liso. Nunca pudera imaginar encontrá-los em tão
intensa melancolia.

— Acho que ele não está a fim de falar comigo.— falou, mordendo o lábio, tentando recuar
da tarefa.

— É agora que ele mais te quer perto.— Otto pousou a mão gigante no ombro da amiga.

Ela lançou o último olhar e, ainda incerta, saiu do pequenino cômodo, rumo à noite fria. Fora
da casa, viu pessoas conversando animadas e algumas crianças ainda brincando na rua, todos
alheios aos últimos acontecimentos da sua vida insignificante. Próximo à cerca que ladeava a
humilde residência da menina, ele estava a olhar a rua. Aproximou-se, calada– seria uma
conversa difícil.

— Eu não vou à sua despedida no aeroporto.— ele falou, após minutos de silêncio.

— Nunca disse que teria uma despedida no aeroporto!— Nadia cortou, enfurecida.— Você é
quem está tendo essa ideia idiota!

— Mesmo se tiver, não irei.

— Alguém disse que preciso da sua presença?

Karl ficava irritante quando com raiva ou magoado— e aquilo a enfurecia. Normalmente,
Nadia perdia a paciência quando esses surtos de estupidez apareciam.

— Desculpa.— pediu, mais calmo, depois de alguns instantes calado. Não adiantava
descontar a sua frustração em Nadia.— É porque não quero que você vá.

— Ah, e você acha que eu quero?— ela perguntou em tom de deboche.— Acha mesmo
que olhei para a minha mãe e pedi: Oi, mamãe, estou curiosa para conhecer o Brasil! Quero
morar lá, você deixa?

— Fique aqui, Nadia.— Karl virou-se para ela, segurando a sua mão.

O simples toque dos dedos gélidos dele a fizera corar. Constrangida com aquela
proximidade inesperada e sentindo a sua pele queimar, Nadia retirou a mão, levando-a ao
peito. Karl mexia com ela, isso era fato inegável. Não importava quanto tempo transcorrera
desde o fatídico dia em que encerraram brutalmente qualquer possibilidade de romance, nada
havia mudado para ela. Aquele sentimento pulsante continuava vivo.

— Não dá.— ela disse, voltando as costas para o rapaz. Não queria que Karl a visse
ruborizada.— Não tem volta, já tenho a passagem e estou terminando de arrumar as malas.—
e, quando se sentiu recomposta, virou-se para fitar o amigo mais uma vez.— Mas é como
falei, vou ficar enviando cartas. Também tem a internet, posso acessar na casa do meu primo
e mando alguma coisa para vocês. Não quero e não vou perder o contato.

— Ainda assim, não é a mesma coisa.

— Melhor do que nada.

Silenciaram-se. Um bolo de palavras se formou em sua garganta e, mesmo que fizesse força,
Nadia sabia que não iria conseguir expelir. Aquele era o momento exato para falar tudo o que
fazia questão de esconder– embora já fosse algo extremamente óbvio, mas a trava em suas
cordas vocais a impedia de fazer qualquer ruído. Nervosamente, começou a estalar os dedos–
um sinal que indicava quando estava aflita. Karl não falaria, ela tampouco. Ah, droga.

— Quer dizer... que tudo entre nós acabou?

Escutar a voz dele a assustara– ainda mais com a pergunta que lhe fora feita. Olhou-o, o
cenho franzido.

— Acabou o quê?— perguntou, insegura.

— Nunca decidimos se ainda éramos ou não... Bem, você sabe.— ele enfiou as mãos
nos bolsos, virando o rosto para a rua.— Você lembra muito bem do que aconteceu depois.
— Por que está desenterrando essa história depois de tanto tempo?— Nadia suspirou.
Por dentro, uma avalanche em seu estômago.

— Porque você vai embora e quero finalizar isso.

— Nós tínhamos onze anos na época, isso não conta para você?

O menino ruivo voltou os orbes claros para a amiga. Havia um brilho aquoso que queria
saltitar dos seus olhos.

— Conta! Claro que conta!— ele gritou.— Conta tanto que, até hoje, eu ainda sinto a
mesma coisa e você não tem noção de como é ruim saber que a garota de quem eu gosto
nunca mais vai me ver!

A superação da timidez de Karl a surpreendeu, assustou-a. Porém, simultaneamente, fez o


seu coração acelerar– estava demasiadamente emocionada para poder falar. Então ele
também sentia o mesmo que ela? Então, para ele, tudo continuava igual há anos, sem que o
tempo tivesse alterado nada?

Então ele continuava a amá-la, mesmo depois do soco que levara e que lhe ocasionara a
perda de um dente?

— Tome.— o menino retirou um cordão negro com um pingente do símbolo matemático


infinito e entregou a Nadia.— Isso simboliza o que sinto, que é infinito. Mesmo que a gente
não se veja mais, ainda continuarei a gostar de você como sempre gostei. E eu juro, Nadia,
que nenhuma outra menina ocupará o seu posto. Nunca!

A primeira declaração da vida de Nadia tinha um gosto amargo de despedida e um sabor


doce de satisfação. Sua lábia não era boa o suficiente para retribuir todas as palavras
românticas e sinceras– e bregas– ditas por aquele nerd apaixonado a quem, secretamente,
amava. Sendo assim, preferiu que seu ímpeto carnal expressasse tudo que escondera por
anos– desde o dia em que ele lhe roubara um beijo e ela lhe retribuíra o gesto com um soco,
aos onze anos. Enlaçando o pescoço de Karl com os braços, procurou por seus lábios,
selando-os com os seus próprios. A promessa feita pelo rapaz adorador de Física era
recíproca e seria cumprida: nunca amaria outro além do menino ruivo.

*
Eram diversos panfletos espalhados sobre a mesa, todos com fotos demasiadamente coloridas
e alegres. Limitava-se apenas a visualizar as imagens e observar os nomes– não entendia a
maioria das palavras que ali estavam escritas. Com dificuldade, tentava pronunciar o nome
da cidade aonde iria residir dali a algumas horas: SÃO PAULO . Saía um som engraçado,
diferente daquele produzido pelo único idioma que sabia falar. Em seguida, mudou o foco
para o cartaz de papelão que sua mãe fizera para que o primo pudesse identifica-la quando a
menina chegasse ao aeroporto brasileiro. Outra vez, quis ler, mas não conseguiu pronunciar
de maneira correta, enrolando a língua ao dizer a estranha palavrinha que iniciava a
frase:“PROCURO YOOKI SAKURAI”. Suspirou, chateada. Tinha certeza de que iria travar
uma dura batalha com a língua do seu futuro país. O português não parecia ser muito
amistoso de se aprender.

Largou os papéis e deitou a cabeça nos braços cruzados em cima da mesa. O que conhecia
sobre o Brasil? A mãe, brasileira, falava maravilhas da terra natal– embora soltasse severas
críticas à política local e a alguns costumes do povo. Porém, o conhecimento de Nadia não ia
além de fotografias e informações perdidas. Nunca se interessou muito em saber mais sobre o
país de origem da mãe – falar no Brasil causava uma nostalgia dolorosa a Laura. Idiotice sua.
Se soubesse com antecedência que moraria lá, teria pegado mais informações. De qualquer
maneira, para que lamentar? Agora, iria descobrir as terras brasileiras sem prévias. Bem
feito.

Fechou os olhos. Sentia o coração doer de maneira insuportável, mas não poderia
demonstrar. Qualquer lamentação iria piorar o estado da mãe. Laura estava sofrendo mais do
que ela, isso era evidente. Não lhe fora fácil decidir mandar a filha para um país tão longe,
localizado em outro continente. Sempre foram muito amigas e unidas, a separação era brusca
demais e, dali por diante, mal se comunicariam. Estariam prontas?

Nadia não queria deixar a mãe. Mas era preciso.

— Querida, que horas são?

Nadia levantou a cabeça assim que escutou a voz de Laura. Olhou para o antigo relógio róseo
da Barbie que estava em seu pulso – embora velho e brega, era o único que ela possuía,
ganhado quando tinha apenas cinco anos de idade.

— Quase uma e meia.— respondeu a menina, voltando a se deitar em cima dos seus braços.
— Volte cinco horas.— determinou Laura.

— Para quê?
— Fuso-horário, Nadia. Esqueceu?

— Vou ficar desorientada com essas horas a menos, mãe.

— Pior será quando chegar lá. Mude agora.

A menina suspirou, vencida. Puxou o pino do relógio e deu cinco voltas com os ponteiros no
sentido anti-horário. Olhou o resultado: agora eram oito e meia da manhã.

— Pronto.— falou.— Estamos no horário do Brasil.

— A foto de Yooki está aí?

— No meu bolso.

— Repetindo: ele vai se comunicar com você em alemão, ele sabe falar fluentemente. Então
não há o que temer.

— Ok, ok. E também não vou confiar em estranhos e sei que não vou permanecer muda.
Conheço as regras, chefa.

— Você vai chegar lá mais ou menos quando o crepúsculo estiver no céu. Ansiosa?—
Laura tentava, inutilmente, ser otimista, demonstrando um entusiasmo inexistente. Seu
sorriso não era natural e a todo tempo era possível ver lágrimas nos vales dos seus olhos.

— Bastante.—respondeu Nadia, sem ânimo.

Mãe e filha se calaram, sem mais nada a falar uma a outra. Nenhuma palavra positiva
iria apaziguar a dor que sentiam– precisavam ficar quietas para não sofrerem mais.
Prosseguiram em silêncio até escutarem a chamada para os viajantes com rumo ao Brasil
mostrarem suas malas ao revisor – o voo sairia em meia hora. Levantaram-se e caminharam
até o local onde a máquina estava. Nadia levaria poucas coisas à sua nova morada– apenas
uma mochila surrada e uma mala velha, ambas lotadas somente por roupas, dois porta-
retratos e o ursinho marrom da sua infância.

Enquanto a bagagem era revistada, um barulho de violão foi escutado no aeroporto,


fazendo ressoar uma melodia conhecida por Nadia. Voltou o olhar para a fonte do som. Vira
o grupo dos três rapazes, munidos por seus instrumentos, pelos seus assobios e por suas
vozes. Um sorriso emocionado e surpreso se projetou em seus lábios. Confirmado, realmente
os conhecia.

Todos seus amigos de infância. Seus melhores amigos, exceto Karl.

Otto, Maik e Dieter faziam uma serenata de despedida, cantando Wind of Change, do
Scorpions, uma das músicas favoritas de Nadia, em um quase afinado, porém não menos
belo, coro. O aeroporto parara diante da homenagem realizada pelos amigos, inicialmente
sobressaltado pelo inesperado, mas se comovendo após perceber o intuito dos ousados
rapazes. Nadia sentia as lágrimas se acumularem, aos poucos, em seus olhos, mesmo que
lutasse veementemente para não deixar as mesmas surgirem. Parecia impossível e não
conseguiu impedir que a primeira rolasse por sua face– fazendo questão de enxugá-la
rapidamente com a barra da blusa. Não imaginava que os seus velhos companheiros de
brincadeiras fossem ao aeroporto se despedir, tampouco de maneira tão inusitada e linda.
Ficou sem palavras, limitando-se apenas a observar o quarteto tocar a música da sua vida.

Mais do que a sua música favorita, era a música predileta do seu pai.

Uma e cinquenta e cinco.

— Nos mande fotos das praias brasileiras, por favor!— pediu Maik, entusiasmado.—
Também quero fotos do carnaval de lá, dizem que é o melhor do mundo.

— Vou lembrar disso.

— E eu quero foto das morenas!— exclamou Dieter, com um sorriso maroto nos lábios.— A
cor do pecado é a melhor!

— Pervertido! Só Deus sabe o que aconteceria com essas fotos. Poderiam ficar molhadas e
estragadas e o meu dinheiro seria em vão.

Risos.

— Você sabe o que eu quero, Nadia. — falou Otto, segurando as mãos da menina. — Quero
a sua felicidade, seja aqui, seja lá. Jure para mim que você vai ser feliz, tá?
Nadia sorriu, tristemente, e abraçou o rapaz, perdendo-se da imensidão dos braços fortes de
Otto. Saber que a segurança do amigo não estaria mais diariamente com ela era torturante,
assim como lembrar que todos os seus melhores amigos iriam permanecer na Alemanha. Os
outros dois garotos se juntaram ao abraço, prometendo nunca se distanciar. Mesmo que
houvesse um oceano os separando, os quatro estariam sempre juntos– Karl também fora
incluso nesse juramento, mesmo não estando presente. Separaram-se, dolorosamente. Nadia,
esforçando-se para não cair em lágrimas novamente, voltou-se para Laura, que não reprimia
mais as suas lágrimas. Abraçou a mãe, sentindo o coração apertar cada vez mais.

— Eu vou para lá, querida.— prometeu Laura, entre lágrimas.— Espere apenas eu estabilizar
a minha vida. Nós vamos ficar juntas novamente.

Nadia apenas assentiu, silenciosa.

Laura soltou a filha, empurrando-a em direção ao embarque. Nenhuma palavra mais fora
dita– a confirmação da partida.

Nadia respirou fundo, acenou para mãe e amigos e se voltou para o embarque. Carregando a
sua pouca bagagem, adentrou no avião. Apenas quando já se encontrava sentada, sozinha,
longe de todas as pessoas que mais amava, abaixou a cabeça e permitiu que suas lágrimas
descessem por completo, inundando o seu rosto.

Era um lugar imenso, de dimensões incomensuráveis. Fitas brancas caíam do céu e se


acumulavam no chão, dificultando a passagem e impedindo a visão. Além disso, existia um
eco forte no ambiente, o que complicava ainda mais alcançá-la. Seu riso alto– lindo e
divertido– partia-se em milhares de fagulhas, indeterminando a sua posição real.
Entretanto, não a incomodava estar perdida. Ao contrário, ela fugia propositalmente,
distraindo-se com a falta de capacidade dele para encontrála. Mas ele não desistia. Iria
atrás dela aonde quer que ela estivesse, para onde quer que ela fosse.

Procurara por tempo indeterminado, sem sucesso. Acreditava às vezes vê-la, porém a
imagem dela logo fugia de seus olhos, perdendo-a outra vez. Ficava louco com as fugas que
ela realizava, sem, todavia, ficar realmente bravo. Despercebido, começava a participar da
brincadeira, passando a se divertir com o desafio de achá-la. Ela o fazia sentir-se criança
novamente, fazia-o rir por pequenos incidentes, animava-o, alegrava-o, realizando tudo de
maneira inconsciente.
A última fita que ele afastou da sua direção lhe deu passagem para uma imensa porta de
madeira entreaberta. Já não escutava mais a voz da menina formando os ecos no ambiente.
Resolveu, então, ir para o caminho que a porta fornecia. Empurrou-a e uma forte luz se
projetou, sendo, aos poucos, controlada por seu globo ocular.

Quando já conseguia enxergar, visualizou o imenso campo, assim como escutou a estranha e
alegre música sendo projetada no ar. Ao centro dele, estava ela, idêntica a uma pequenina
fada, vestida com uma saia branca até os pés; uma blusa de mangas compridas da mesma
cor, que deixava à mostra os ombros e o abdome; e uma coroa de flores coloridas posta na
cabeça. Ela dançava ao som da melodia, feliz, pulando, brincando com as rosas que estavam
em seu caminho. Era lindo observá-la se divertir de maneira tão pura e inocente, ele poderia
dispor do tempo que fosse necessário apenas a continuar vislumbrando tal cena.

Ela, perspicaz, percebeu a chegada dele. Projetando um largo sorriso nos lábios, estendeu a
mão, convidando-o a participar do seu baile improvisado. E ele foi atender ao seu pedido,
segurandolhe a pequenina mão, sendo prontamente puxado por ela. E dançaram, dançaram,
dançaram...

São Paulo - Brasil

Adrien abriu os olhos, pesarosos. Um sorriso brotava dos seus lábios. Não queria ter
acordado, preferia continuar dormindo, sonhando. Daquela vez, fora um sonho
verdadeiramente bom, capaz de fazêlo despertar com um ânimo melhor e com boas
sensações. Sorriu ao se lembrar da menina. Ela estava linda, transparecendo uma pureza e
uma inocência incomuns no dia-a-dia do rapaz. Talvez fosse isso que o encantasse mais na
garota– e o fizesse pensar tanto nela. Esfregou o rosto, tentando acordar. Sonhar era bom,
mas a realidade ainda existia.

Sentou-se na cama e olhou para o lado, vendo a moça de cabelos roxos, deitada próxima a si,
enrolada por um lençol branco que deixava exposta parte de seu corpo nu. Quem era ela
mesmo? Ah, uma menina que conhecera na noite anterior. Não lembrava de terem transado,
porém eles estavam ali, despidos em uma cama. Suspirou. Outra besteira cometida por conta
do alto nível de álcool em sua cabeça.

Levantou-se cuidadosamente, não querendo acordar a garota – não recordava nem mesmo o
seu nome e preferia que ela não o visse. Apanhou as roupas no chão, vestiu-as
apressadamente e olhou o relógio– quase cinco horas da tarde. Amaldiçoou-se, perdera aula.
Sorrateiramente, saiu do quarto e, em instantes, já não estava mais na casa da jovem.

Procurou a moto no estacionamento, entretanto não a viu. Deveria tê-la entregado a Arashi,
então não se preocupou – seu veículo estava seguro. Vasculhou os bolsos a procura de
trocados que o permitissem pagar o metrô. Ainda tinha algum dinheiro. Caminhou até a
estação mais próxima, com os olhos baixos, lembrando que, ainda naquela noite, teria de
realizar mais um show.

Enquanto esperava o metrô, pensou nos episódios que vinham se repetindo com frequência
em sua vida, nas besteiras que andava cometendo. Divertia-se com mulheres – o que não lhe
trazia felicidade, apenas satisfação sexual momentânea; trabalhava sem sentir prazer;
estudava sem vontade– nunca soubera o que realmente queria fazer profissionalmente,
optando por uma faculdade que o agradava em partes; não tinha certeza sobre o seu futuro;
tampouco ânimo e razão para continuar a prosseguir com aquela monotonia. No fundo, era
um homem sem grandes objetivos, que esperava soluções caídas do céu e que seguia os
caminhos de portas abertas– não importava se maus ou bons.

Umapessoa frustrada.

Não queria ser assim, mas não tinha nenhum entusiasmo ou incentivo para mudar. Nada o
animava verdadeiramente, nem o fazia ficar, de fato, feliz. Era tudo repetitivo, monótono,
sem expectativas. Comum demais. Já amanhecia o dia sabendo que seria idêntico ao
anterior– assim como com todos os outros que iriam vir. Sem perceber, Adrien se tornava,
aos poucos, uma pessoa triste, sem esperanças, cuja única felicidade era dormir e vivenciar
uma realidade às avessas, encontrando nas escapatórias oníricas um pequeno rastro de
alegria. A menina dos sonhos o animava, não poderia negar.

Gostava de relembrar os momentos ficcionais que vivera no mundo imaginário, assim como
adorava rememorar o rosto sorridente que a garota tinha. Mas eram apenas sonhos. Somente
isso.

Sonhos vinham, sonhos iam e ele continuava sozinho, seguindo caminhos errados.

Estava solitária em uma praça verdejante, sentada em um banco de madeira localizado


abaixo de uma grande árvore. O mesmo vento que balançava os seus cabelos de maneira
delicada e levava as folhas para o seu colo, tentava, inutilmente, enxugar as lágrimas que
escorriam dos seus olhos. Ela se sentia terrivelmente sozinha, sendo incomodada por uma
tristeza avassaladora. Não havia nada que a alegrasse ou que pudesse, ao menos
parcialmente, anuviar a sua mágoa. Não poderia mudar o curso das coisas, não poderia
impedir nada. Tinha apenas de se conformar.

— Por que chora?

Voltou os olhos para a direção de onde a voz se propagava. Um rapaz alto, de pele clara,
cabelos bagunçados e quase louros, a analisava, observando atentamente aquela expressão
tão deprimida– a mesma que lhe pertencia. Ela teve um sobressalto– não esperava aquela
aparição.

— Não é nada.— respondeu, enxugando rapidamente as lágrimas que desciam pelo seu
rosto.

Ele sentou ao seu lado, mas seus olhos não a visualizavam – estavam voltados à paisagem
verde que estava à frente de ambos.

— É a primeira vez que escuto a sua voz.— ele comentou, ainda sem a encarar. Ela se
manteve calada.

— Não é justo que, logo agora, quando posso te escutar, você continue em silêncio, não
acha?
Voltou seus olhos para ele, que já a olhava novamente. Não sabia exatamente o que falar,
apenas se sentia estúpida por estar chorando.

— Não tenho muito a dizer.— disse, apenas.

Ele sorriu. Retirando um lenço de seda branco do bolso, passou, levemente, o delicado pano
pelo rosto ainda úmido da menina.

— Não chore.— disse.— Você fica mais bonita sorrindo. Lágrimas não ajudam quando o
assunto é encarar uma nova situação. E lembre-se: eu estarei com você em qualquer
ocasião, assim como você está comigo.

E depositou um beijo demorado em sua face. Um pequeno gesto que aliviou parte daquela
insuportável dor.

*
São Paulo - Brasil

Quando Nadia foi acordada pela antipática aeromoça, teve vontade de continuar dormindo.

Sonhar, às vezes, era melhor do que viver – sabia bem disso, mesmo que houvesse prometido
para si mesma não ser mais vítima das suas próprias fantasias. Ao descer do avião e pisar em
solo brasileiro, sentiu o seu coração pulsar forte, descompassado. Terra de estranhos, vida
nova. Uma onda de medo invadiu o seu corpo– temia. Estava sozinha em um país cuja língua
lhe era completamente desconhecida. A quem pediria ajuda caso precisasse? Sentiu uma leve
tontura lhe atingir, mas desconsiderou. Era um caminho sem volta, precisava enfrentar os
desafios que a vida lhe impunha– os sonhos haviam acabado.

Espantou-se com a diversidade de raças que via no aeroporto. Brancos, negros, pardos,
orientais, mestiços, tudo junto. Gostou do que enxergava – a Alemanha era igual demais,
chegava a enjoar. As diferenças a agradavam profundamente, faziam-na se sentir mais
tranquila– não era a única estranha. Sorriu, um ponto para o Brasil.

Olhou o relógio da Barbie que ainda estava em seu pulso – havia parado. A raiva a dominou,
como encontraria o primo estando desorientada em relação ao horário? Poderia perguntar a
alguém as horas, mas em que língua? Só sabia alemão, inglês era apenas o básico e
desconhecia completamente o português. Respirou fundo, precisaria ficar calma. Possuía
uma placa, afinal. Sabia que, provavelmente, o primo a procuraria na ala de desembarque,
então ficaria por ali mesmo. Temia que ele não a encontrasse, já que não tinha celular ou
qualquer outro aparelho que lhe permitisse comunicação, entretanto resolveu afastar os
pensamentos negativos da sua cabeça– eles atraíam energias igualmente negativas. Preferiu
se sentar em um dos bancos que ali havia e esperar.

O tempo passava lento e arrastado, arranhava a calma e a paciência de quem também


estivesse em estado de espera. Entediada, Nadia retirou a pasta que se encontrava na mochila
e a cassete com a fita do AC/DC – precisava desenhar e escutar músicas antes que o tédio a
consumisse. Caso o primo demorasse mais um pouco, faria desenhos que identificassem suas
intenções e os mostraria aos seguranças do aeroporto– eles não negariam ajudá-la, assim
esperava. Até lá, rabiscaria apenas por prazer, para não ser engolida pelo ócio.

Pegou o lápis e a borracha que também estavam guardados dentro da pasta verde e apertou o
play. Entre os papéis que ainda se encontravam ali, procurou aqueles que prosseguiam
brancos – e prontos para dar adeus à sua limpeza. Entre eles, vira a cópia. O rapaz ainda
estava ali, projetado artificialmente pela tinta de alguma máquina xerográfica desconhecida,
lembrando a Nadia que ela, possivelmente, ainda não estava louca. O desenho era a prova
impressa de que tudo o que vivera não foram somente delírios da sua mente cansada e
imaginativa. Ainda não conseguia compreender o episódio e até preferiria continuar sem
entendê-lo– mais um pouco pensando naquele assunto e iria novamente sentir o peito doer.
Queria esquecer o ocorrido, talvez até colocar um fim naquele desenho, mas não tinha forças.
Apegara-se à imagem do rapaz com quem convivera por trinta noites. Não desejava tirá-lo da
sua memória.

Ele também não a deixaria. Estava impregnado em seus sonhos, aparecendo para ela até
mesmo quando não mais queria vê-lo. Uma estranha relação de cooperação. Eu estarei
ocasião, como você está comigo. A frase não saía de sua mente. Então ela o com você em
qualquer ajudava em algo? Prova, talvez, da existência daquele ser misterioso e, até ali,
fictício. Segundo suas palavras, estaria sempre com ela. Riu de si mesma. E ainda acreditava
naquilo? Bateu na cabeça.“É só sonho, sua perturbada!” — disse, mentalmente. Precisava
parar urgentemente de pensar em tantas baboseiras. Vira o resultado de ser excessivamente
preocupada com o que não existia. Para que insistir?

Soltou o ar com força e guardou o desenho outra vez na pasta. Pegou um dos papéis limpos
e, quando já dava início a outro retrato, escutou a voz:

— Nadia Lima?

Quando levantou os olhos, Highway to Hell saía da pequena cassete, servindo de tema para a
cena que prosseguia. Um homem de calças jeans rasgadas à altura dos joelhos, camisa polo
vermelha, jaqueta escura e All Star preto surrado a olhava por debaixo do boné que escondia
seus olhos. Ela sentiu a boca entreabrir– que tipo de cara mais cool era aquele? Em estado de
transe, apenas confirmou com a cabeça. O homem sorriu. Empurrando um pouco o boné para
cima, falou, com os miúdos e puxados olhos brilhando:

— Willkommen in Brazil, Nadia Lima.

Terra Nova
7.
Não teve dúvidas quando avistou a menina de longas e pseudovermelhas tranças sentada no
banco da ala de desembarque. Embora a placa indicasse que era realmente ela, nada seria
mais confirmador do que as roupas masculinas e surradas que vestia– uma calça jeans
recheada por bolsos e uma blusa listrada escondida por um casaco negro, o conjunto
incrivelmente maior que o seu aparente corpo franzino. Pegou a foto que guardava no bolso
da jaqueta, gostava de ter certeza sobre tudo. De fato, era ela– mesmo que em uma versão
mais crescida do que aquela apresentada na fotografia. Aproximouse, ela não o notou –
estava entretida olhando desenhos. Chamou-a, sendo prontamente respondido pelo gesto com
a cabeça.

Era tão bonitinha! Mesmo vestida com roupas que não condiziam com o seu rosto delicado,
ainda possuía uma fisionomia angelical. Tal e qual Laura quando mais jovem.

— Willkommen in Brasil, Nadia Lima.— falou, sorrindo, feliz por tê-la ali.

Yooki conheceu Nadia muito pequena, em uma de suas idas à Alemanha para visitar a prima
viúva. Naquele tempo, a menina ainda era criança, tendo por volta de sete ou oito anos, e
usava roupas realmente femininas. Nadia cresceu bastante, sem nunca perder a expressão
doce da sua face, ressaltada pelas tranças castanhas que caíam sobre seus ombros e atingiam
sua cintura. Duas mechas que não participavam do seu penteado– prováveis resquícios de
uma franja– ladeavam seu rosto delicadamente redondo. Seus lábios, o superior mais fino do
que o inferior, eram vermelhos, compondo uma boca pequena; e seus olhos estavam entre o
verde e o castanho claro. Nadia herdara os traços delicados de Laura, mas a maior parte da
sua fisionomia viera de Theodor– fato confirmado pela cor mista dos seus olhos. Era uma
garota de beleza incrível, porém opaca por conta do seu estranho e velho vestuário e da falta
de cuidados consigo mesma.

— Valeu.— agradeceu a menina, organizando os pertences espalhados.— Foi difícil me


encontrar?

Pegou a bagagem de Nadia que estava nos bancos – tudo se resumia a apenas uma mala e
uma mochila.

— Não muito. Reconheci pelas roupas, depois pelo cartaz.

Ela apenas riu.


— Peculiares?— arriscou.

— Um pouco. Vamos?— perguntou à prima.

Nadia, ainda sorrindo, concordou, balançando a cabeça em gesto afirmativo. Guardou os


papéis e o lápis na pasta e se levantou, atravessando o aeroporto ao lado de Yooki. Sentia que
iria gostar dele– já o idolatrava pelas vestimentas e pelo perfume que usava.

— E aí, a viagem foi muito cansativa?— ele continuava com as perguntas, sempre sorridente
— Você deve estar exausta, só o período dentro do avião e essa espera aqui no aeroporto já
são de matar.

Estava impressionada com a fluidez com a qual ele falava alemão.

— Um pouco.— ela respondeu.— Nada que eu não pudesse suportar.

— Escutando AC/DC, acho difícil não ter se sentido um pouco melhor.

— Você gosta?— aquela afirmação parecia meio estranha aos seus ouvidos. — Acha que só
vocês jovens gostam de rock clássico? Nasci primeiro, menina!— ele riu.— Conheço e gosto
de AC/DC antes mesmo de você sonhar em usar fraldas.

É, com certeza iria gostar do primo Yooki.

— Assim que chegarmos em casa, você toma um banho, janta e aí a gente conversa um
pouco mais. Claro, se você não estiver muito cansada, é óbvio.

— Estou bem, pode acreditar! Pronta para outra, até! Se quiser me mandar para a China
agora, eu vou e ainda ficarei em perfeito estado.

— Que bom, então!

Atravessaram o aeroporto ainda conversando algumas coisas sobre a viagem. Chegando ao


estacionamento, Yooki desativou a tranca do Honda Civic Si preto, pôs a bagagem da
menina no portamalas e deu passagem para a prima entrar no automóvel. Já dentro do carro,
deu partida e ambos saíram, percorrendo a cidade rumo à nova moradia.
— Quer escutar algo?— ele perguntou, solícito.

— Por mim tanto faz. Contanto que não seja qualquer lixo pop americano...

A risada de Yooki tinha algo de fantástico. Era um som bom de escutar, assim como seu
sorriso era agradável aos olhos.

— Deu para perceber que você gosta de rock clássico, não é?

— Qual o arsenal que você esconde aí?— Nadia se apoiou nos bancos dianteiros, levando o
copo para a ponta do assento, a fim de ver o aparelho de som do carro.

— Aceita Skid Row?

— Manda a ver.

Big Guns entrou em seus tímpanos sem que percebesse, enquanto o trajeto até a nova casa
era realizado. Ela voltou a se escorar no banco traseiro, observando as imagens que passavam
rapidamente diante seus olhos. Pela janela, percebia que São Paulo não diferia muito de
Berlim, era grande tal e qual a capital alemã. Poucos eram os pontos divergentes. Encostou a
cabeça na vidraça do carro e, por instantes, visualizou a sua vida a partir daquele momento:
nova casa, nova língua, nova escola, novos amigos, tudo novo.

O coração palpitou mais rápido e perguntou-se se iria conseguir se adaptar bem ao futuro
cotidiano. Tinha consciência de que a adaptação era o pior momento. Mas seria melhor não
imaginar– não adiantaria antecipar fatos, preferia apenas vivê-los no momento exato. Até lá,
iria somente se ater a lembrar das brincadeiras com os amigos, das partidas de basquete, das
reuniões na calçada, do rosto sorridente da mãe, dos abraços, dos carões e das vezes em que
ela, preocupada, acordava-a para ir ao colégio, rezando para que a filha não chegasse
atrasada à aula. Ah, que saudades já estava sentindo da sua calma vida, dos amigos e de
Laura...
Não percebeu quando caiu no mais profundo sono.

Tivera que carregar a menina nos braços para levá-la até a casa, agora de ambos. Não quisera
acordá-la, sabia o quanto estava cansada – seria covardia tirá-la de um sono que tinha por
direito. Abriu a porta com dificuldade e a levou até o quarto que lhe houvera preparado com
trabalho e carinho. Colocou-a cuidadosamente na cama, tirando, depois, os seus surrados
tênis. Pegou o cobertor, cobriu-a, ligou o ar condicionado e depositou as malas em algumas
cadeiras.

Ficou alguns minutos contemplando a imagem da menina adormecida – sua face não
mostrava as dificuldades que a jovem enfrentava. Seu rosto estava sereno demais para quem
fora mandada à força a um país completamente desconhecido. Não suportaria estar no lugar
dela.

Resolveu deixá-la descansar em paz. Retirou-se do quarto, fechou a porta e foi em direção à
cozinha depois. Havia pedido uma pizza horas antes para ambos, entretanto iria fazer a
refeição sozinho. Partiu algumas fatias, deixaria outras para ela comer no dia seguinte.
Depositou a sua porção em um prato e seguiu para a sala, ligando a TV enquanto mordia um
pedaço.

Durante a sua refeição, escutou o celular tocar, vibrando em cima da mesa de jantar. Correu
para atender o telefonema– não poderia permitir tamanho barulho, iria acordá-la. Em voz
baixa, murmurou:

— Alô?

— E aí, grande Yooki? Está a fim de dar um rolé?

Sorriu.

— Filho da mãe. Só agora me chama para sair, né? Me prometeu uma cerveja há um mês,
mas só agora, quando eu não posso, você cria coragem para me convidar.

— Ué, não pode por quê? Está com meninas aí?

— Meninas não, menina sim. A filha da minha prima veio morar temporariamente comigo.
Virei um pseudopai.

Gargalhadas do outro lado da linha.

— Está rindo de quê, sua putinha? Está achando que eu não tenho capacidade para criar uma
adolescente?— perguntou, rindo.

— Menina e ainda por cima adolescente? Essa eu pago para ver! Quero ver como vai se
sair no desafio. Te prepara, pegou o pior período de uma mulher para cuidar.
— Irei me sair muito bem, tenha certeza.

— Enfim, a mocinha não poderia vir também? Não estou em nenhum lugar inapropriado
para menores. Pergunta se ela está com vontade de sair.

— Ela está dormindo, por isso mesmo não vou. Chegou hoje de viagem, está acabada. Onde
você está?

— Em um desses rock bares pequenininhos. Estava vendo umas bandinhas...

— Ah, ah, entendi. Está caçando talentos de novo. Por isso quer que eu vá, não é?

— Mais ou menos. Vim hoje mais para me divertir, só que fiquei encantado com uma banda.
Pensei em promovê-la, mas queria a sua opinião. Hoje eles estão fazendo um show cover,
mas já mostraram capacidade de destruir um palco. Você sabe como eu gosto disso.

— Incansável mestre do trabalho. Se informe com os caras, então. Marque um dia para eles
fazerem um show com músicas de cunho próprio, prometo que nesse eu vou e ainda levo a
Nadia. Acho que ela não vai recusar sair comigo. Qual o nome da banda?

— Ouvi falar que é Reticências. São realmente bons, Yooki. Mais da metade da plateia está
alvoroçada.

— Faça o que eu disse e, depois, me ligue informando data e hora, ok? Prometo não furar.

— Certo, então. Não esqueça nosso compromisso. Tchauzinho,“papai”!

— Tchau, vadia.

Desligou o celular, sorrindo.

A primeira coisa que eles enxergaram ao chegarem no camarim foi o estranho homem louro
vestido com calça preta, blusa social vermelha e blazer negro. Fumava um cigarro
tranquilamente, despercebido da chegada deles. Seus cabelos, longos e desgrenhados,
atingiam a altura das suas maçãs do rosto. A barba era rala, dando-lhe expressão e fisionomia
de cafajeste. Estranharam, nunca o viram.
— Com licença.— pediu Isaac, educadamente.

O homem voltou os verdes olhos para eles, sorrindo em seguida.

— Ah, olá!— falou, animado.— Me perdoem a intromissão, mas consegui permissão de


entrar aqui. Gostaria de conversar com vocês, poderia ser?

Os rapazes se entreolharam, desconfiados. Por fim, concordaram.

— Claro.— falou Max.

O homem retirou um cartão do bolso, entregando-o a Arashi.

— Sei que é meio estranha a minha aparição, mas realmente quero falar com vocês. Prazer
em conhecê-los, sou Fernando Morais, produtor da gravadora Star News.— disse, sorridente,
estendendo a mão.— Estava aqui por acaso e assisti ao show de vocês. Devo ser sincero,
fiquei encantado com o que vi. O desempenho de vocês no palco é muito bom, o carisma e a
energia são perfeitos. Mesmo vendo apenas um show cover, preciso admitir que a banda me
conquistou. Estão de parabéns por isso.

— O-obrigado.— a cor da face de Arashi atingiu a tonalidade dos seus fios vermelhos. —
Mas meu intuito não é somente este.— continuou o homem.— Não vim aqui apenas para
elogiá-los, isso vocês escutam o tempo todo. Gostaria, na verdade, de lhes fazer um convite.
Caso não aceitem, tudo bem, eu entenderei. Entretanto, se aceitarem, ficarei realmente
empolgado.

Silêncio.

— E qual seria?— perguntou Adrien, depois de alguns instantes calado e pensativo.

— Digam-me: vocês têm composições?

— Temos.—confirmouGustavo.

— Gostaria de ver um show de vocês com músicas de autoria própria. É um teste. Queria
examiná-los no quesito de compositores e como as melodias atingem o público. Claro, se
quiserem.
— Para que isso?— perguntou Isaac.

— Minha real intenção não é somente testá-los, e sim levá-los à fama: pensei em gravar um
CD de vocês.

Os rapazes petrificaram. Olhavam para o homem, incrédulos, estupefatos.

— C-como?— a voz de Gustavo falhava.

— Bom, é o meu desejo. Tenho certeza de que farão muito sucesso, vocês realmente têm
talento. Mas se não quiserem...

— Lógico que nós vamos querer!

Todos os olhares se voltaram para Arashi. O vocalista tinha um brilho incrível nos olhos,
uma expressão sonhadora, da mais plena e explícita felicidade.

— Ah, mas não precisam dar a resposta agora.— disse, sorrindo.— Podem pensar com
calma, tranquilidade, depois me avisam. É uma decisão que tem de ser tomada com seriedade
e certeza. Meu telefone está aí no cartão, liguem a hora que quiserem, ok? Só peço que não
seja de manhã muito cedo, nem muito tarde da noite. Bom, vou ficando por aqui. Foi
realmente muito bom assistir ao show de vocês e conhecê-los pessoalmente, espero, de
coração, que possamos trabalhar juntos. Não esqueçam, ok? Boa noite.

Quando Fernando Morais saiu sorrindo do camarim, gritos histéricos foram escutados do
quartinho.

Abriu os olhos aos poucos, saindo dos estranhos sonhos que a noite lhe provocara. Não sabia
realmente se havia sido um sonho, parecia verídico demais. Havia um avião, um aeroporto,
pessoas estranhas, serenata, choro. Cerrou as pálpebras, mais uma vez, para tentar descobrir
que imagens eram aquelas que passavam em sua mente. Não, não fora sonho. Fora real. Mas
bem que poderia não ter sido.

Quando seus olhos já estavam bem abertos, deparou-se com o ambiente onde se encontrava,
algo totalmente diferente do que já vira. Resolveu se sentar para analisar melhor. O aposento
era pequeno, pintado a branco e laranja. À sua frente, havia um guarda-roupa também
branco, no qual uma das portas possuía um espelho de aproximadamente um metro de altura.
Ao seu lado, uma escrivaninha com um abajur de pequenas estrelas, alguns cadernos e um
estojo, tudo abaixo da janela de cortinas com detalhes de margaridas e de um ar
condicionado– um ar condicionado só para ela! Voltou o olhar para cima e viu o teto de
pintura abstrata, inteiramente colorida; assim como as duas estantes de madeira branca
abarrotadas por ursinhos de pelúcia e bonecas cabeçudas de olhos esquisitos– as quais, mais
tarde, descobriria serem do tipo Blythe[2], algo bastante diferente das Barbies que conhecia.
Na outra extremidade, a porta com um pôster em grande dimensão da Audrey Hepburn como
Holly Golightly e, ao seu lado, um longo cabide também branco.

Nadia não tinha palavras. Esfregou os olhos mais uma vez, apenas para confirmar que estava
plenamente acordada. O quarto continuava ali, todo pronto para ela.

Incrível.

Curiosa, levantou-se para dar mais uma checada. Abrindo a porta do guarda-roupa, sentiu o
cheiro da madeira nova– era bom. Cheio de compartimentos, dava para guardar todos os seus
poucos pertences e ainda sobraria espaço– bem diferente da velharia que tinha na antiga casa.
Vasculhou a estante; mexeu nas bonecas estranhas que estavam nas prateleiras– elas
piscavam os olhos!; apertou os ursos. Sorriu. Era inacreditável.

Jogou-se na cama fofa com força, ainda incrédula, ficando a pular no colchão, rindo consigo
mesma. Tinha de admitir, fora uma transformação e tanto. No dia anterior, era uma simples
plebeia e, agora, poderia ser chamada de princesa– mesmo que abominasse esse termo.
Cruzando os braços por debaixo da cabeça, raciocinou um pouco. Talvez a felicidade que
sentia, tão supérflua e passageira, pudesse ser maior caso a mãe também estivesse ali. Pensou
no tempo que esperaria para ter Laura novamente consigo – aquilo iria demorar. Mordeu o
lábio, uma súbita tristeza invadindo o seu peito.

Preferiu retirar o pensamento da cabeça, mais um pouco e iria chorar. Tinha uma certeza pelo
menos: Laura iria reencontrá-la, cedo ou tarde.

Espreguiçou-se, afastando as ideias melancólicas que surgiam em sua mente. Precisava


agradecer a Yooki pelo simbólico– e caro– presente. Levantou-se e abriu a porta
apressadamente e de modo desajeitado. Andando pelo corredor, ficou a observar a estrutura
do apartamento. Além da porta do seu quarto, existiam outras quatro ali, algumas fechadas e
outras abertas. Assim, pôde visualizar o provável aposento do primo e uma sala lotada por
instrumentos musicais e estantes. Por muito pouco, não adentrou nesta última– precisou de
muito controle para tal. Não queria parecer uma bisbilhoteira. Focou nas paredes e analisou
alguns dos quadros ali presos, esses com fotografias, pinturas e certificados. Elegância
extrema.

Ao fim do corredor, teve uma relativa visão da sala, esta toda montada com móveis de design
moderno e cores variadas. Mais quadros estavam presos às paredes claras. Indo em direção
ao cômodo principal, deparou-se com a imensa porta que dava passagem para a varanda e
fornecia uma mágica visão da cidade. Uau.

— Bom dia, Nadia!

Na outra extremidade da sala, encontrou o primo sentado diante a mesa de jantar, um jornal
em uma das mãos e, na outra, uma xícara. Pôde analisá-lo com mais detalhes. Os cabelos
negros e lisos estavam despenteados, atingindo todas as direções possíveis. Os olhos eram
miúdos e puxados; a boca de lábios finos, rosados, desenhados; o nariz pequeno e afilado; a
expressão jovial; alguns sinais em seus braços e rosto. Não que Yooki fosse o principal
estereótipo da beleza máxima, mas, com certeza, era o da fofura extrema.

— Bom.— ela respondeu, sorrindo torto.

— Sente aí! Quer comer algo agora? Deixei um pedaço de pizza na geladeira para você. Ela
franziu o cenho.

— Eu posso?— perguntou, incrédula.

— Lógico! Já viu o que eu estou comendo?

Nadia sorriu. Ainda sem acreditar, esquentou a sua refeição matutina e excêntrica. — Com
Coca?— ela perguntou, desconfiada.

— Com Coca.

Com prato e copo nas mãos, a menina sentou ao lado do primo. Nunca a mãe a permitiria se
alimentar daquela maneira– e que ela jamais visse tal cena.

— Dormiu bem?— ele quis saber, baixando o jornal para fitá-la.

— Uhum.— respondeu com a boca cheia.— Muito bem para falar a verdade. Aquela cama é
sem noção.

— E gostou mesmo do quarto?


— Cara, você não existe!— disse, enfática, após uma pausa demorada para que acabasse de
mastigar.— Está fantástico, foi muito caro?

Yooki riu.

— Não se preocupe com o preço, o que vale é a intenção e o carinho com que foi feito.
Desculpa se errei em alguma coisa, quase não consegui extorquir informações da Laura sobre
o seu gosto – sua mãe é bem difícil. Ainda bem que tive ajuda da Jane, se não... Sou um
desastre para essas coisas.

— Ficou ótimo, no tamanho certo para mim. Pode ficar tranquilo, adorei. Nem sei como
agradecer.

— Irá agradecer se aceitar dar uma volta comigo daqui a... uma hora!

— Serei castigada se recusar?— perguntou com o tom divertido.

— Talvez.— Yooki sorriu.— Quero que você conheça um lugar. Infelizmente, não posso te
levar a muitos lugares divertidos por enquanto porque meu tempo está corrido, mas como
tirei folga hoje para a senhorita... Ficaria aborrecido se não aceitasse a minha oferta.

— Já que o senhor pediu sem pressão emocional, ok, vamos dar um rolé por aí e saber o que
o Brasil tem de bom.

Apertando delicadamente o nariz de Nadia, Yooki se levantou, deixando-a só à mesa.


Quando se viu sozinha, Nadia sorriu. Talvez fosse divertido viver naquela terra de
desconhecidos.

Olhava para o celular com o coração palpitando no peito. Uma única ligação e o seu futuro
estaria parcialmente decidido– não só o seu, mas o de todos os outros que também estavam
envolvidos. Entretanto, não tinha certeza– nunca tivera certeza para nada em sua vida. Sabia
que iria dar um passo muito grande, talvez até perigoso, e não tinha convicção de que era
realmente aquilo que queria. Iria ter de fazer escolhas e não estava preparado para nenhuma.
Tinha medo de arriscar, de se arrepender, de desistir e decepcionar aqueles que dependiam
dele para construírem o sucesso. Amava coisas confusas, por isso não se decidia– às vezes,
desconhecia até o seu amor. Sabia que era uma antítese personificada e que não deveria ser
assim, mas, infelizmente, não podia negar sua alma dualista e confusa.
E sabia que tinha de ter certeza pelo menos em algo.

Preferiu não pensar em si mesmo, nos seus desejos e nos seus projetos inexistentes. Havia
gente precisando dele agora, da sua firmeza e da sua seriedade. Precisava passar uma aura de
homem decidido, era um dos mais velhos, portanto o exemplo. Não deixaria que os outros
abdicassem de seus sonhos por suas dúvidas constantes e inexplicáveis. Dependiam dele, por
isso o encarregaram desta missão. Respirou fundo, fosse o que Deus desejasse. Pegou o
celular e o cartão, já pensara muito por uma noite, os outros tinham convicção do que
queriam. Faria isto por eles.

Discou o número. Escutou o toque de espera, o coração batendo mais rápido no peito, a
ligação sendo atendida, a voz do outro lado da linha. Fechou os olhos, estava na hora:

— Alô, Fernando Morais? Aqui é o Adrien, o guitarrista da Reticências. Sim, sim, tudo bem
comigo. E com você? Graças a Deus. Bom, queria te dar a resposta do convite. Sim, nós já
decidimos. É, somos meio rápidos mesmo. O que a gente decidiu? É, isso. Isso mesmo. Nós
vamos aceitar seu convite. Pode marcar o show.
8.
Observando o panfleto, Nadia tentava pronunciar o nome do bairro para o qual se
encaminhavam: LIBERDADE. Não se incomodava com os olhares curiosos e repreensivos
que alguns dos presentes no metrô lotado lhe jogavam– ninguém ali participava da sua vida
ou conhecia as suas necessidades para repreendê-la de algo. Yooki a observava, divertindo-se
com o seu sotaque cômico e com a sua dificuldade em falar o português. Nada dizia sobre a
atitude da prima, nem mesmo a ajudava a falar a palavra. Limitava-se apenas a dar um largo
sorriso, a menina era empenhada. Preferiu continuar quieto. Acreditava ser importante Nadia
ir treinando, sozinha, a nova língua.

— Não consigo falar.— disse a menina, exausta.

— Calma, tudo é questão de prática. Você chegou ontem, esqueceu? Não dá para aprender
português da noite para o dia.

— Isso é desanimador.— ela mordeu o lábio, emburrada.— O que a gente vai ver nesse lugar
de nome difícil?

— Já, já você descobre.

O metrô parou abruptamente, encerrando a conversa. Arrastados pelo número incontável de


pessoas que saíam do transporte, os primos entraram na estação que lhes daria acesso ao
bairro, atravessando-a com pressa, imersos no silêncio das suas próprias palavras– já que
Yooki não queria falar nada, Nadia também não ficaria enchendo-o com perguntas. Limitou-
se apenas a segurar a mão do primo para não correr o risco de se perder. Subiram a escadaria,
ainda calados e no mesmo ritmo rápido. Apenas quando já alcançavam o topo, Yooki ousou
falar:

— Não se assuste com o que vai ver agora, ok?

— Por que eu me assustaria? Tem monstros devoradores de criancinha por acaso? — ela
questionou, sarcástica.
— Vai ver.

E, de fato, viu. Inúmeros jovens como ela estavam reunidos em pequenos grupos, trajando
vestes
excêntricas e criativas – desde as mais coloridas às mais darks– e fazendo uso de acessórios
estranhos. Tinham cabelos penteados de modo esquisito e alguns portavam maquiagens
pesadas. Atraíam olhares, mas pareciam não se importar com eles. Estavam mais
preocupados com suas conversas interessantes.

— Mas o que é isso?— Nadia perguntou, espantada, mas, ao mesmo tempo, maravilhada.
Era como se vários dos personagens que acreditava só existirem em sua mente houvessem
saído das suas fantasias e povoado o mundo real.

Yooki riu.

— Já ouviu falar de cosplay[3], decora[4], Lolita[5], visual kei [6]ou qualquer outra coisa
parecida?

Nadia negou, ainda com os olhos voltados para os jovens.

— Pelo visto, ainda terei muito a lhe ensinar.— comentou o primo, enlaçando os ombros da
menina com o braço esquerdo.

E saíram.

O Liberdade era um bairro grande, povoado por japoneses, descendentes ou apreciadores da


cultura oriental, por isso Yooki o escolheu como primeiro ponto a ser apresentado a Nadia.
Entusiasmava-se ao mostrar à prima as feirinhas ao ar livre; os shoppings; a estrutura das
ruas lotadas– sempre com um toque oriental; contava as histórias do bairro, dos moradores e
de quem o frequentava aos fins de semana. Paravam em várias lojinhas, compravam
bugigangas, tiravam algumas fotos, divertiam-se como conseguiam. Nadia vivenciava tudo
encantada. Aos poucos, ia adentrando no mundo de Yooki, conhecendo-o, desvendando-o.

Caminharam por cerca de uma hora e meia. Já estava perto das treze horas quando, cansada,
Nadia arguiu:
— Aonde nós vamos agora? Tem mais coisa a se ver?— por mais que seus pés estivessem
doloridos, a menina estava sedenta por conhecer novos lugares.
— Almoçar, é claro. Olhe as horas! Ou você ainda tem estômago para continuar andando? —
Ainda não estou com fome.— mas seu estômago faminto desmentia a afirmação,
contorcendo-se dentro do seu corpo.
— Mas eu estou.— disse o primo, sorrindo.— A gente volta a andar depois.
Ainda caminharam alguns quarteirões até chegarem ao pequeno sobrado localizado ao fim de
uma rua escondida. Adentraram. O tamanho do restaurante condizia com a dimensão da
construção, que se tornava ainda menor por conta dos vários clientes que se ali estavam.
Demoraram a achar uma mesa livre, mas conseguiram se estabelecer em uma que ficava
próxima à porta por onde entraram. Os olhos de Nadia passeavam por todos os pontos do
local, analisando cuidadosamente as paredes pintadas de vermelho, os pequenos quadros
orientais ali pendurados, as janelinhas e suas cortinas cor de marfim e as luminárias
tipicamente japonesas. A maravilha parecia nunca acabar: quanto mais conhecia, mais queria
conhecer e admirar.

Os olhos desceram para os clientes. Nadia observava, agora, todos os presentes, estudando o
modo como cada um mastigava e as expressões estranhas que surgiam em suas faces ao fazê-
lo. Desviava o olhar com frequência e rapidamente, sempre à procura de novos detalhes, mas
terminou por fixá-los nos dois jovens japoneses que discutiam em português incompreensível
por trás da bancada do caixa.
Sentiu-se incapaz de não os olhar– ambos pareciam com os jovens da estação do metrô por
conta da sua excentricidade. O rapaz– que aparentava ter entre dezenove e vinte anos–
possuía o cabelo arrumado em um penteado desorganizado e bicolor– enquanto a parte
próxima à sua nuca era negra, a outra, que abrangia a maior parte dos seus fios, era de um
vermelho intenso, beirando o róseo. Inúmeros brincos e piercings povoavam as suas orelhas,
assim como outros apetrechos de metal que estavam espalhados por suas mãos e roupas–
essas, um pouco menos expressivas que o próprio dono. Seu rosto também era exótico– tinha
feições femininas, embora sua voz tivesse um timbre grave e másculo.

Já a menina com quem discutia tinha um visual menos exuberante. Estava por volta dos treze
anos e tinha cabelos castanhos e cheios, que quase batiam em seus ombros; além de franja
que mal cobria as suas sobrancelhas. Era pequena e trajava-se com roupas pomposas e
negras, lotadas de babados e tachas de metal. Usava meias alvinegras três quartos e sapatos
pretos de boneca, igualando-se a uma. — Quem são?— curiosa, Nadia perguntou a Yooki,
observando a dupla atentamente.

— Quem?— o primo abaixou o cardápio, procurando com o olhar as pessoas indicadas pela
menina.
— Aqueles ali, os dois que estão brigando.
— Ah, eles. São os irmãos Hikari, filhos dos donos. Trabalham às vezes como garçons,
geralmente aos fins de semana. Sei muito pouco sobre os dois.— e, dando pouca importância
ao assunto, logo o encerrou.— O que vai querer?
— Hm?— Nadia voltou os olhos ao primo, encerrando a minuciosa análise que fazia sobre
os irmãos.— Bom... pode escolher para mim.
Yooki sorriu. Levantou o braço e estalou os dedos. Os Hikari se viraram para olhar quem
chamava e, assim que viram, o rapaz empurrou a irmã mais nova para ir atender os clientes.
A menina ainda recuou, mas acabou indo, enfurecida. Pegou um cardápio e se dirigiu à mesa
de Yooki e Nadia. — Boa tarde!— cumprimentou ao chegar, estendendo o cardápio e
esboçando um sorriso infantil que há tempos atrás não existia.— O que vão querer?
Nadia observou a menina, não apenas para admirar a beleza que tinha– de perto, ela
aparentava ser ainda mais bonita–, mas para tentar compreender o que dizia.

— Hum... Um tonkatsu[7], por favor.— ele voltou os olhos para a prima— Und du, Nadia?
A jovem garçonete, esperando pela resposta, olhava para Nadia. A alemã, saindo do transe,
tentou dizer, desajeitada, que queria o mesmo prato– embora nem soubesse o que iria
comer–, fazendo o seu pedido em alemão e deixando a garota confusa.
— Você precisa aprender português urgentemente.— disse Yooki após a saída da garçonete.
— Dessa eu sei.— Nadia suspirou.— Mais alguma novidade?
— Vamos pelo básico primeiro. Vou comprar um dicionário alemão/português e vai ter de ir
aprendendo com a prática, escutando o que os outros falam, essas coisas. Seria melhor ter
aulas, mas não sei onde e se existem escolas especializadas para alemães aqui.— ele lhe
sorriu de maneira encorajadora.— Está preparada para, pelo menos por enquanto, ir
aprendendo com o dicionário e com a oratória?
Nadia suspirou.
— Isso não vai ser fácil!— reclamou, jogando o corpo para cima da mesa.
— Difícil sim, impossível não. Quando cheguei aqui, também não sabia nada de português, e
olhe como estou hoje!
A menina franziu o cenho.
— Quer dizer que você não é brasileiro?— perguntou, desconfiada.
Ele sorriu.
— Sua mãe nunca te contou?
— Não!— ela exclamou, espantada, voltando a se encostar na cadeira.— Ela falava muito
das aventuras de vocês quando jovens, mas nunca disse que você não nasceu no Brasil. O
que te trouxe aqui, então?
— Rebeldia. É aquela coisa: surgiu a oportunidade, vamos sair da proteção dos pais. —
Verdade?
Yooki assentiu. Olhando para cima, tentou rememorar fatos da sua vida. Um largo sorriso se
projetou em seus lábios.
— Para explicar isso, preciso falar da história do meu pai. O meu velho, irmão do seu avô,
era médico e conheceu uma menina japonesa exatamente aqui, no Liba. Ela veio visitar uma
parente que, por coincidência, era paciente do meu pai. Aí você já pode imaginar as
peripécias do destino. Ele acabou se mudando para lá, eu nasci e a gente sempre vinha para o
Brasil nas férias.
— E o que realmente te trouxe até aqui? Só o fato de seu pai ser brasileiro?
— Na verdade, foi tudo culpa dos vinis que a sua mãe me fazia escutar quando eu ia visitá-la.
Nadia riu.
— Quer dizer que foi induzido pela música brasileira?— perguntou, sorridente. — Exato. Foi
quando eu descobri o meu amor pela música , principalmente a brasileira. Larguei tudo lá:
amigos, namorada, pais, colégio... Foi uma luta conseguir vir e convencer os velhos a me
deixarem morar aqui, mas deu certo. Arrumei minhas coisas e, com quinze anos, aportei no
Brasil diretamente para a casa dos meus tios, ou seus avós no caso. Tinha fixo na minha
cabeça que iria viver de música custasse o que custasse. Trabalharia com os grandes, tipo os
Mutantes, Chico, Caetano, Gil, Legião... Mas aí começou o período complicado: adaptação.
Esse foi difícil, escola e inferno eram sinônimos pra mim.
— Posso imaginar.— Nadia comentou.
— Relaxe. Como eu falei, isso é com o tempo. Em um ano, eu já era praticamente brasileiro.
— Mas você realizou seu sonho no fim das contas?
— Se ser professor de Música de uma universidade e de um dos mais importantes
conservatórios da cidade for realizar um sonho, posso dizer que sim, estou realizado.
Os olhos de Nadia brilhavam do mesmo modo quando alguma ideia psicodélica invadia-lhe a
mente.
— Você existe mesmo?— perguntou, sorridente e empolgada.— Não sei se teria a mesma
coragem de largar tudo e partir para outro lugar atrás de um sonho.
— Mas você teve coragem. Ou será que também não deixou uma vida para trás? A menina
abaixou a cabeça, soltando um sorriso triste, conformado, sem o mesmo brilho costumeiro
dos seus olhos, e que tentava esconder, sem sucesso, o sofrimento pelo qual passava. — A
diferença era que você queria vir, lutou por um sonho. Não estou aqui porque quero. Yooki
ficou sério. Pegou a mão da menina e segurou-a com relativa força.
— Não se pode fugir do destino, Nadia, mas se pode mudar o futuro.— falou, soltando um
pequeno sorriso.— Se o destino te dá um único caminho, cabe a você percorrê-lo da melhor
maneira. Se for a pé ou de trem, isso é uma escolha sua. Lá na frente, você poderá optar por
outras estradas, construir prédios, mas isso depende unicamente das suas escolhas e dos seus
sonhos.
— Mesmo quando se perde o sonho que se tinha?
— Outros vão aparecer.
Ficaram em silêncio, olhando-se. A menina tentava absorver as palavras do primo– palavras
de alguém experiente. Sentia vergonha por se mostrar tão fraca, mas sabia que não
conseguiria fingir estar indiferente às drásticas mudanças pelas quais passava. A dor da
separação recente doía em seu peito. Ainda achava estar vivendo apenas um pesadelo– um
pouco mais do que um mês imersa em sonhos reais e ruins. Quando iria acordar, não sabia.
Desejava somente que fosse logo.
— Aqui está!— falou a menina japonesa de roupa pomposa, ao entregar os pratos.— Bom
apetite!

Agradeceram. Antes de comer, porém, Nadia ainda encarou a bancada do caixa, procurando
o irmão Hikari de cabelo bicolor. Encontrou-o falando ao telefone e se distraiu novamente,
observando-o conversar com a pessoa do outro lado da linha. Acabou esquecendo o prato em
cima da mesa, entretendo se apenas na atividade de analisar o rapaz. O jovem encerrou o
telefonema com um sorriso e, instintivamente, voltou os olhos para a mocinha que o fitava.
Quando os olhares de ambos se encontraram, Nadia sentiu todo o seu corpo se petrificar e as
faces arderem, sensações que foram intensificados após Hikari sorrir e lhe mandar uma
piscada de olho. A menina virou o rosto abruptamente, espantada e sem ar. Não costumava
receber piscadelas de garotos com frequência. Voltou a olhar discretamente, escondendo o
rosto por detrás dos cabelos soltos. O moço ainda a olhava, sorrindo. Embora envergonhada,
não resistiu ao instinto de retribuir o sorriso – embora de maneira ridícula e inexperiente. Era
incomum para Nadia ser olhada por rapazes– sua estranha aparência masculina afastava
qualquer flerte, por menor que fosse, exceto o interesse perceptível de Karl. O jovem soltou
um beijo, o que a deixou extremamente encabulada e sem saber o que fazer. Virou a face
outra vez, com o coração disparando. Detestava ser tímida e desengonçada para aquele tipo
de coisa. — Por que ainda não comeu?— perguntou Yooki.

Somente a voz do primo fizera Nadia voltar à realidade.

— Como?— ela questionou, assustada.


Yooki voltou-se para a direção que Nadia antes olhava. Sorriu, maroto.
— É o jovem Hikari?— arriscou.
A menina sentiu as faces arderem ainda mais.
— Não!— respondeu rapidamente, desesperada e com os olhos arregalados.— O que te faz
pensar que ele... que ele...?
— Não sou cego, tenho o dobro da sua idade e estou vendo o olhar fixo dele para esta mesa.
Isso responde?
O embaraço de Nadia triplicou. Ela tentou contra-argumentar, mas as palavras morreram em
sua boca.
— Não vai corresponder?— a pergunta de Yooki saiu em tom cômico. Estava explícito que o
primo se divertia às custas daquele flagra.
— Não! Lógico que não!— a defesa da alemã caíra. Fora pega desprevenida.— Não posso,
tem alguém esperando por mim na Alemanha.— disse, levando uma porção do almoço à
boca e encerrando o assunto. Em seguida, completou:— A comida está boa, né? Esse
negócio é gostoso. Yooki apenas sorria.

— Alô?

— Ei, Arashi! Está onde?

— No restaurante, é óbvio! Hoje é sábado, a mãe prendeu a Alice e eu para trabalharmos.

Dia de lotação, lembra?


— Encontrei todas as composições. Tem como eu dar uma passada aí para fazermos a
seleção? — Sim, sim. Fico livre à uma e meia, duas horas. Que horas são agora?
— Está perto de uma. Liga para os outros?

— Ok, ok.

— Até.
Desligou o celular, pegou a pasta e rumou ao Bairro da Liberdade.

— Me conte mais sobre você.

Nadia descansou o hashi sobre a mesa e esperou terminar de mastigar antes de iniciar outra
conversa com Yooki.

— Precisamente o quê?— perguntou.

— Ah, sei lá. Seus hobbies, suas bandas favoritas, o que você faz... Sua mãe me deu uma
ficha meio incompleta.

— O que ela disse?


— Disse que você desenhava muito bem e que vendia desenhos para ajudar em casa.
Também falou que é uma menina muito sonhadora, passa mais tempo no mundo da Lua do
que na Terra. Estaria ela exagerando?

— Não, não.— Nadia riu.— Ela está certa. Mas não sou uma mestra do desenho, apenas me
esforço.

— Desde quando você sabe desenhar? Aprendeu sozinha?


— Foi. Depois que meu pai morreu, eu ficava meio só e sem ter com quem conversar. Nessa
época, li Alice no País das Maravilhas pelo menos umas cem vezes e aí decidi desenhar os
personagens da história do jeito que eu achava que eram.— ela riu, relembrando.— Ficava
um horror! Aí acabei preferindo começar copiando com aquelas folhas transparentes e
passando para o papel. Depois, só no olho. Depois, com a mente. E é assim até hoje.

— E esse seu vestuário tão... Peculiar? Qual a razão dele?


— Nos últimos tempos, não tínhamos dinheiro para comprar roupas novas constantemente.
Acho que isso faz cerca de dois anos no máximo. A maioria das minhas calças e blusas
estava ficando velha e perdida e não uso vestidos. Comecei a pedir emprestado algumas
roupas dos meus amigos, principalmente as que eles não usavam mais. Eles acabaram me
presenteando. Meu guarda-roupa atual é inteiramente“de presente”, se é que me entende.
O sorriso de Yooki desapareceu.
— E isso nunca te incomodou? Se vestir como um menino?
— Não.— Nadia respondeu com naturalidade.— Até gostava, me fazia ser igual a eles. Só
tinha amigos homens, então me sentiria meio deslocada se usasse saias perto deles. Chegaria
a ser ridículo. Mas sempre tentei tornar as roupas que ganhava um pouco mais“femininas”.
Quase nunca conseguia, mas isso só é um detalhe.

O som estridente do celular de Yooki quebrou a conversa entre os primos. O professor


suspirou, retirou o aparelho e olhou no visor quem telefonava.

— Só um momento.— falou, atendendo a ligação.


— Vou ao banheiro agora.— decretou a menina, levantando-se.
— Não vai querer mais nada?— perguntou o primo, tapando o fone do celular.
— Não, obrigada.
— Ok. Já vou pagar a conta e nós vamos embora.
Voltou à ligação, enquanto a menina se dirigia ao toalete.

Chegou rapidamente ao pequeno e escondido sobrado, carregando a mochila pesada em


apenas um ombro. Dirigiu-se à bancada vazia, tocou o sininho, chamando alguém. Olhou ao
redor. Grande parte dos clientes já havia ido embora, sobrando apenas um casal com o
filhinho– aparentemente, estavam de saída– e um homem de boné azul falando ao celular.
Baixou a cabeça, voltando os olhos para os próprios pés. Esperou, esperou.

— Adrien-chan[8]!
A estridente vozinha feminina o fez levantar a cabeça e olhar a menina trajada com roupas
pretas de boneca. Sorriu e abraçou a garota.

— E aí, brinquedinho do demônio? Está indo encontrar a sua gangue no metrô?— perguntou,
acariciando os cabelos curtos da menina.

— Hen, hen, engraçadinho. Vou daqui a pouco. Só estou esperando aquele cara ali pedir a
conta para me mandar. Mas tenho que aguardar também a acompanhante dele que foi ao
banheiro.
— Ué, por quê?
— Arashi.— suspirou.— Aquele idiota! Ficou secando a menina e quer que eu entregue um
bilhete para ela com o número do celular dele. Aí estou aqui, de tocaia.
— Cobiçando a mulher do próximo... Tsc, tsc. Que feio...— disse, irônico.
— Mulher dele só se o cara for pedófilo!
— Por que você simplesmente não ignora o seu irmão e não manda o bilhete? — Acho que
vou cobrar remessa depois. O Arashi tem cada gosto, eu heim. Menina estranha. Usa roupas
de homem e fala esquisito. Acho que não é daqui. Mas... se o Arashi quer, não é? Eu nem
deveria fazer isso. Ou melhor, nem sei por que estou fazendo!
— Falando no demônio, cadê ele?
— Lá dentro.— a jovem Hikari indicou o caminho com o polegar.
— Vou lá, então.

Adrien deu um beijo na fronte da garota e entrou pela portinha que dava para o andar mais
alto do sobrado, onde estava fixa a casa da família Hikari. Enquanto isso, a garçonete
continuou presa ao seu trabalho, esperando impacientemente o pedido da conta pela mesa
onde estava o homem com boné azul, fato este que só aconteceu depois da chegada da
menina de roupas estranhas. Após ser chamada, foi com alegria calcular o pagamento de
ambos– finalmente livre!– e, assim que recebera o dinheiro, entregou à outra garota,
disfarçadamente, o bilhete escrito pelo irmão. A menina jogou-lhe um olhar confuso, que
fora respondido com um sorriso amarelo.

Nadia abriu o bilhete apenas quando já estava fora do sobrado. Enxergou o número e o
recado: “Me liga, gata. Arashi”. Soltou umriso debochado.
— O que é isso?— perguntou Yooki ao ver a menina sorrindo.
— O cara me deu o número dele.— disse, ainda com os olhos fixos nas letras escritas. Não
compreendia o significado das palavras, mas conhecia o dos números.
— E você vai ligar?
— Para falar alemão?
Sorriam e saíram. O bilhete ficou guardado. Para outra vez, quem sabe.
*

— Vai procurá-la, senhor?

Voltou o olhar para a serva de olhos opacos, inerte, próxima à porta, parecendo uma estátua
renascentista ao invés de uma simples criada.

— Vou.— respondeu, indiferente.— Já está na hora.


— Passou muito tempo?
— Tempo suficiente para ir atrás dela.
— Mas não seria mais fácil contatá-la por outros meios?
Ele sorriu, divertido, sempre perigoso.

— Não ainda. A brincadeira perde a graça assim.— colocou o chapéu negro sobre a cabeça,
cobrindo o brilho vermelho dos seus olhos.— Vou me divertir um pouco antes de fazê-la
aceitar as minhas condições.

— E o senhor irá conseguir, patrão?


— Inevitavelmente.
E desapareceu da sala.
9.
Esfregou os olhos e acendeu mais um cigarro – o terceiro em uma hora e meia. O papel
estava em uma das mãos, o cigarro na outra, mas seus olhos estavam voltados unicamente
para a letra garranchada que sujava a brancura da folha. Releu, em voz alta:

Noites em claro vislumbro o luar Sua imagem vem a me tocar Posso te sentir
Vê-la sorrir é uma ilusão
Quem sabe até possa te ter aqui Para sempre aqui

Continuava na estaca zero, não havia nenhuma melodia que ficasse boa naquela letra. Por
que o poema estava incompleto? Arashi não deixou nada que o ajudasse nessa tarefa, dizendo
apenas um Termina aí a nossa balada . Como se fosse fácil! Além de obrigá-lo a construir a
sonoridade melódica, ainda lhe impunha terminar a letra. Aquele maldito sabia o quão difícil
era para ele escrever uma música de amor– já que Adrien não o conhecera como deveria.

Pousou o papel sobre a mesa e foi para a minúscula varanda, observar a noite – um dos raros
sábados em que ficava em casa àquela hora. Deu uma longa tragada, focalizou os carros em
movimento, pensou em todas as mulheres que passaram por sua vida. Foram muitas, tantas
que não conseguia ao menos lembrar seus nomes– conheceu a maioria em noites de
bebedeira forte. Vasculhou a memória à procura de alguma que não surgira unicamente para
o sexo. Lembrou-se de uma menina com quem estudou no primeiro ano do ensino médio, a
pioneira em mexer com seu coração. Chamava-se Germana e era do tipo“garota popular”.
Fazia sucesso entre os meninos por conta do seu corpo avantajado para a idade, pela beleza
incomum do seu rosto, pelo brilho dos seus louros e sedosos cabelos, pelo seu andar
requebrado e pelos seus olhos negros e intimidadores. Adrien não lembrava exatamente o
motivo pelo qual se apaixonara por ela. Mas que havia se apaixonado, disso tinha certeza.

Entretanto, seus sonhos foram destruídos. Não gosto de garotinhos de cabelos longos e que
tocam guitarras, dissera ela a ele quando este se declarara. Com uma recusa como aquela, o
rapaz poderia ter apenas saído do local com os olhos marejados por lágrimas e um
sentimento terrível no coração, igual a todos os outros rejeitados por Germana. Todavia, não
agira desta maneira. Enchera o peito de ar, ignorara as risadinhas dos boyzinhos e das
patricinhas presentes e disse: Antes cabeludo e guitarrista a vadia que trepa com todo o
colégio. Os amigos se calaram, a escola parou. O que está dizendo?— perguntaram. E ele
falou: A verdade! Você não estava dando em cima do professor de química e dos meninos do
terceiro ano, Germana?
Olhares surpresos, exclamações assustadas. A garota atingida ficou petrificada, saiu correndo
e chorando, arrastando uma multidão atrás dela. Riu ao se lembrar, principalmente, da surra
que levara de todos os fãs da menina. Fora realmente um capeta que não tinha medo das
consequências dos seus atos.

Não, Germana não era a melhor lembrança e inspiração para uma música romântica. Outra?
Não havia. Quer dizer... Sim, existia uma, mas ainda não estava insano o suficiente para usá-
la como fator inspirador. Ou realmente iria terminar uma letra para uma garota inexistente
quando tantas mulheres já passaram por sua vida? Odiou-se. Que tipo de besteira estava
fazendo?

Porém, embora lutasse contra a ideia surgida, sua mente já formulava o resto da poesia.
Bastou apenas lembrar a menina dos sonhos para o seu cérebro trabalhar. Respirou fundo. É,
não havia outro jeito. Levantou-se, depositou o cigarro no cinzeiro, bebeu um gole de vinho,
pegou o papel e o lápis e escreveu ininterruptamente.

Sonhos vêm, sonhos vão

E eu aqui sozinho no meu caminho

Olho pra você, não é real

Penso em você, mas é fatal

Não me apaixonar assim

Eu tentei fugir dos meus sonhos


Calar minhas respostas,
Mas não consegui.
Eu tentei mudar o meu destino
E não pensar mais em ti

Não pensar mais em ti,

Noites em claro vislumbro o luar

Sua imagem vem a me tocar


Posso te sentir
Vê-la sorrir é uma ilusão
Quem sabe até possa te ter aqui
Para sempre aqui

Continuo tentando ter a solução

Pra quem sabe algum dia ter teu coração,

Em qualquer lugar, eu vou te encontrar.

A história não vai acabar

Cansado, não conseguiu mais imaginar a melodia da poesia. Deixaria para outro dia. Já fizera
o bastante.

Berlim, Alemanha

Olhou para o relógio, impaciente. Já estava ali há mais de duas horas, nenhum sinal do
jovenzinho. Sabia a rotina do rapaz, aquele era o horário em que saía do trabalho. Porém,
naquela noite, o jovem não se encontrava, desobedecendo à costumeira rotina. Algo estava
errado. Podia sentir.

Desistiu de esperar e saiu andando pelas ruas iluminadas e lotadas de Berlim. Não tinha tanta
pressa, a noite era sua – sempre fora. Poderia caminhar tranquilamente por um longo período,
tinha conhecimento do lugar para onde iria– ou dos lugares. Um momento, iria encontrá-lo.

Atravessou a cidade inteiramente a pé, indo parar na periferia de Berlim ao fim da sua
caminhada. Ah... como era agradável sentir aquele vento bater à sua face, ver as reles pessoas
atravessarem as ruas apressadas, ignorantes quanto à sua mediocridade! Esperava ser assim
em breve, estar entre os insignificantes. Não estava cansado, tampouco suado pelo intenso
exercício físico– amava sentir-se vivo.

Caminhou por quase duas horas, parando na entrada de um dos quase miseráveis conjuntos
habitacionais – resquícios do regime comunista, aparentemente. Tirou um cigarro do bolso,
acendeu-o, deu uma tragada– o fumo fazia bem aos seus quase vazios pulmões. Analisou a
pobreza das casas– os homens realmente conseguiam superar a si mesmos, plantando
governos ditos igualitários e semeando a desigualdade. Suspirou. Não sabia o porquê de
ainda se espantar com situações como aquela, justamente ele, que conhecia tão bem os
pensamentos e os desejos dos humanos– eram todos a mesma coisa, porém não menos
intrigantes. De qualquer forma, aquilo não era mais preocupação sua. Consultou o relógio –
quase onze horas. Estava na hora.

Dirigiu-se à casa de número 74. Dentro da pequena residência, a escuridão reinava na maior
parte, tendo luz apenas em um dos minúsculos cômodos. Deu algumas batidinhas na porta e
esperou. Escutou calmamente o barulho dos passos se aproximando, assim como a tranca
sendo aberta. A figura grande e desengonçada de um rapaz louro, de cabelos curtos e olhos
sonolentos surgiu no vão da porta entreaberta. Sorriu.

— Boa noite, meu jovem!— cumprimentou em tom amistoso.


— Eu te conheço?
Ele não lembrava. Ótimo, acertara o tempo.
— Creio que não.— disse, sorrindo.— Vim aqui te contatar para que me faça um favor. O
rapaz lhe jogou um olhar desconfiado.

— Sei que é estranho aparecer aqui a essa hora em sua residência, mas venho de muito longe
para lhe pedir algo.
— E o que seria?— o jovem cruzou os braços sobre o peito, arqueando uma sobrancelha. —
Soube por boca de terceiros que você vende desenhos de uma jovem chamada Nadia Kant.
Vi as obras dessa menina e fiquei encantado. Uma artista de muito talento, sem dúvidas.
Gostaria demasiadamente de falar com ela para encomendar um retrato, teria como você me
fornecer o endereço da jovem?

— Ela não mora mais aqui.


Por aquela nãoesperava.
— Perdão?
— Faz quase um mês que ela se mudou pro Brasil.
Um golpe para aumentar os seus problemas, mas que respondia a muitas dúvidas. — E você
não sabe onde ela está?— insistia com perguntas.

— Olha, cara, nem se eu soubesse te diria. Primeiro porque você é um estranho que surge do
nada à minha porta de madrugada. E, depois, porque quero dormir. Então, passar bem,
amigão.

O rapaz bateu a porta, ignorando a sua presença. Sentiu a raiva pulsar em suas veias ocas,
mas sabia que teria de manter o controle. Respirou fundo e se voltou para o caminho por
onde havia chegado. Por isso não conseguira encontrá-la, ela partira. Realmente, não deveria
ter esperado tanto tempo. E agora, como a contataria? Fechou os olhos, tentando recuperar a
calma. Brasil, não é? Poderia não ser como antes, porém tinha força de vontade. Iria
encontrá-la e isso era um fato predestinado.

7 de dezembro de 2007

Homens da minha vida (que coisa mais brega, não?),

Desculpa estar escrevendo um único e-mail para quatro, mas não há muito a contar ainda (e
estou fazendo isso mais para vocês saberem que continuo viva). Quer dizer, ter até tem, mas
não são novidades grandiosas e que mereçam devida atenção. Sim, São Paulo é legal, lembra
Berlim, e eu já visitei alguns locais realmente divertidos (como a Galeria do Rock, por
exemplo). O grande problema é que só saio com Yooki aos sábados e domingos e, durante a
semana, fico reclusa em casa, sozinha, conversando com as paredes. Ah, falando em Yooki,
preciso afirmar: ele é o cara. Professor de música de conservatório e universidade, manja
muito e tem amigos também sem noção (um dia desses, reuniu um grupo aqui, e ficamos
tocando música brasileira até tarde). Só tem um defeito: nunca para em casa. Sai bem
cedinho, chega muito tarde. Por isso eu digo: as paredes são minhas amigas, pelo menos elas
entendem o que eu falo e o que tento falar (Como diz a diva Hepburn:“Mais de quatro mil
verbos irregulares”. Não é fácil aprender o português).

Semana que vem é o meu aniversário – o primeiro que passo longe de vocês. Dezesseis anos
e o meu presente é uma vida completamente mudada. Não sei como irei comemorar, parece
que vai ter um festival de bandas no dia, e Yooki quer me levar– o que não recusarei, vai ser
o meu primeiro show no Brasil! Porém, tenho certeza apenas de algo: não será tão divertido
quanto os outros aniversários que comemorava com vocês e com o bolo de cenoura da
mamãe. Ok, parei com a nostalgia.

Não vou mentir, tenho medo. Temo o meu futuro, o que ainda terei de enfrentar, quem irei
conhecer, quem fará parte do meu dia-a-dia, a vida brasileira como um todo. Se pudesse,
queria estar aí, com vocês, com a mãe, longe de toda essa mudança infernal. Ainda estou em
transe.

Fico por aqui. Como disse, não tenho novidades a contar. Peço apenas duas coisas: a
primeira é que me respondam com máxima urgência, quero algo para me animar. A segunda
é que, se tiverem notícias da mãe, me avisem, por favor. Desde a minha partida, não sei nada
sobre ela.
Com saudades,

Nadia.

Assim que enviou o e-mail, Nadia espreguiçou-se na cadeira, soltando um gritinho agudo.
Estava entediada, sem saber o que faria exatamente naquela tarde– se não fosse desenhar,
talvez pudesse ir tocar um pouco. Ficar no computador lhe era insuportável, as configurações
do idioma a impediam de manuseá-lo corretamente– além do que, não era muito adepta às
parafernálias tecnológicas, apenas ao Playstation.

A cassete havia quebrado; os objetos inanimados voltaram a se comunicar com ela; a


televisão falava em bom português; não sabia mais o que retratar em seus papéis. Sentia
saudade, sentia-se reclusa, sentia-se entediada, sentia-se solitária; queria dar umas voltas sem
se perder, conversar com algo que fosse além dos amigos projetados por sua imaginação, não
estava a fim de estudar línguas àquela hora. O ócio estava começando a irritá-la, assim como
a solidão.

Sem ânimo, arrastou-se até o escritório musical de Yooki. Nos últimos dias, gastava a maior
parte do seu tempo ali dentro, tentando aprender cifras e português com as músicas que
escutava nos vinis. Estava apaixonada por algumas bandas brasileiras que conhecera–
Mutantes estava sendo o seu vício naqueles dias– e por uma cantora de voz incrível– uma
moça que se chamava Elis Regina. Com os vinis no aparelho, deitava-se no chão e sentia as
notas entrarem em seus ouvidos e alcançarem os locais mais profundos do seu inconsciente,
isso quando não estava entretida demais com o violão e as cifras. Precisava apenas manter
sua cabeça ocupada, longe dos pensamentos nostálgicos e fantasiosos que, vez por outra,
voltavam à mente.

Naquele dia, porém, seu tempo fora do violão. Tentou algumas músicas, procurou traduzir
outras e pegar as notas. Até que era divertido.
— Tão concentrada...
Virou-se. Encostado no umbral, Yooki mantinha os braços cruzados, olhando-a sorridente.
— Chegou cedo.— ela comentou, pousando o violão em uma almofada.
— Não tive aula hoje no conservatório. E, além do mais, trouxe uma pessoa para você
conhecer.
Nadia franziu o cenho. Afastando-se do umbral, o primo deu passagem para uma bonita
moça de pele morena e cabelos volumosos.
— Nadia, Jane.— havia empolgação na voz de Yooki.— E, Jane, esta é a famosa Nadia!
A moça, com um sorriso resplandecente, aproximou-se, pegando a mão da menina e
apertando-a com força.
— Estou muito feliz por conhecê-la, Nadia! Você é linda!
De todas as palavras ditas por Jane, Nadia entendeu apenas duas palavras: feliz e linda.
Como é quese agradeciamesmo?
— Já está arrumada, Nadia?
Nadia olhou curiosa para Yooki.
— Vamos sair, por acaso?— questionou a alemã.
Yooki sorrira para a amiga, jogando um olhar cúmplice.

— Sim, e nós estamos aqui a fim de quê?

Adrien parou de andar assim que chegaram à livraria.

— Comprar livros, o óbvio.— respondeu, entusiasmado.— Preciso de uma gramática nova e


volumes sobre educação.

Entraram na loja.

— Você fala como se quisesse realmente ser professor e não como se isso fosse a segunda
opção.— ironizou Arashi.

— Estou só garantindo a minha profissão no futuro. Se esse negócio de banda não der certo,
morrer de fome eu sei que não morro. — explicou, dirigindo-se à prateleira com nomeação
PORTUGUÊS.

— Mas vai dar! E você vai ver que foi gasto em vão.

Adrien apenas suspirou. Não adiantava discutir com Arashi, ele não compreenderia a sua
visão pessimista e precavida—até preferia que não compreendesse.

— Ei, vou dar um pulo na loja de música, esse cheiro de livro não combina comigo. Te
encontro aqui?
— Encontra, encontra. Vai logo.

— Espere, mas eu não preciso de roupas novas! Estou bem com as minhas, de verdade! Elas
têm valor sentimental, pra que iria querer outras?

Nadia relutava, não queria entrar na loja de vestimentas femininas.

— Por favor...— pediu o primo, segurando a mão da menina.— Você vai ficar tão linda com
umaroupa mais alinhada,menosvelha e maisfeminina.
— Vou ficar ridícula! Saias, cor rosa, decotes...
— Não precisa necessariamente ser modelos assim. É só saber escolher.— e, beijando as
mãos de Nadia, Yooki continuou. — Vai, por favor... Só alguns modelinhos.

— Até parece que você tem vergonha de mim por eu me vestir assim.— a menina arqueou
uma
das sobrancelhas.
— Não, não é isso! Você só vai ficar mais arrumada e bonita com roupas novas! Diga sim,
vamos lá...
— Mas...
— Por favor...

A menina suspirou. No fundo, precisava admitir que Yooki estava certo. Suas roupas
eram velhas, feias e antiquadas.

— Tá, tudo bem, eu me rendo!— declarou, vencida.— Estou me sentindo Eliza


Doolittle[9]... Yooki abraçou e beijou a prima.
— Vai ficar ainda mais linda do que já é!— e, virando para Jane, perguntou:— Ajuda ela a
escolher, Jane?
Jane sorria
— Vamos, Nadia?

E, acompanhada por Jane, Nadia entrou na loja, não sem antes sinalizar um decepamento
de cabeças para Yooki.

Escutava o lançamento em um dos fones disponíveis para audição, perguntando-se o motivo


pelo qual a música decaía tanto. Talvez porque, atualmente, o que importava não era tocar
por amor, mas sim por dinheiro. Retirou os fones, não iria aguentar escutar por muito tempo
aquele tipo de porcaria. Por isso amava tanto as composições das décadas passadas–
pareciam ter um gosto a mais, uma mágica por trás de cada acorde de guitarra, de cada
palavra cantada. Desejava ser assim, como os antecessores. Eles sim faziam o trabalho bem
feito.

Com as mãos nos bolsos, saiu da loja de música – mais um pouco ali e sua cabeça iria
explodir. Foi quando viu a cena. A menina discutindo com o acompanhante, ele tentando
convencê-la de algo que ela recusava a aceitar. Parou de caminhar apenas para analisar o
ocorrido. Aquela garota... Por que tinha a sensação de conhecê-la de algum lugar?

Observou. Parecia que ela havia aceitado o que o homem lhe pedira. Uma moça morena e
bonita colocou as mãos em seus ombros, sorriu para ela. A menina, por sua vez, não
demonstrava a mesma alegria. Olhara para seu acompanhante como se o fuzilasse, fazendo
um gesto de que, brevemente, iria cortar a sua cabeça. Pôde observar o rosto da mocinha,
sabia que o conhecia. Forçou a memória. Lembrou-se. Um sorriso se projetou em seus lábios,
o seu coração disparou. Puxando o capuz negro do seu casaco, entrou discretamente na loja,
seguindo as duas.

Finalmente, iria conversar com a menina das roupas esquisitas.

Era um amontoado de blusas, vestidos e calças. Saias não queria, mas, ainda assim, Jane a
obrigava a pegar algumas. Não sabia por onde começar, como combinar as inúmeras peças
que estavam dispostas no minúsculo cabide que mal comportava as várias cruzetas. Uma de
cada vez, quem sabe.

A primeira blusa, a primeira aprovação por parte de Jane. A segunda. A terceira. Estava
detestando, achava que nenhuma daquelas peças combinava com o seu estilo ou ficava bem
em seu corpo. Pode ver os seios bem visíveis debaixo do tecido que a cobria, o que antes não
acontecia por conta da imensa largura das suas blusas. A cintura tímida ficou definida– não
lembrava nem de ter cintura! As pernas finas e brancas apareceram quando colocou alguns
dos singelos vestidos. Céus, há quanto tempo estava se escondendo do sol? Sentiu vergonha
da sua cor pálida, mais parecia uma vampira.

Achava-se terrivelmente feia.

Ela era tão bonitinha! Já a achava linda com aquelas vestes masculinas surradas, mas com as
roupas da loja... Pôde ver o corpo franzino que se escondia atrás dos trapos que costumava
usar, o desenho das suas formas tímidas– formas de uma adolescente que dizia adeus à
infância. Quantos anos teria? Não deveria ser muito velha, assim como muito nova. Por volta
dos catorze, quinze talvez. De qualquer forma, logo iria descobrir. Estava disposto a falar
com ela.

A leitura sobre Psicologia Infantil o agradava, tirava sorrisos bobos dos seus lábios. Gostava
de saber como as crianças se comportavam, suas manhas, as maneiras que utilizavam para
chamar a atenção dos adultos. Deliciava-se descobrindo os segredos da infância. Não sabia
explicar, adorava crianças– e seria extremamente prazeroso trabalhar com elas em uma sala
de aula. Mas também gostaria de trabalhar comos adolescentes. Os extremos o agradavam.

Pegou os quatro livros que escolhera no chão. Se pudesse, levaria mais, mas sua renda
mínima só o permitiu ficar com aqueles volumes– no próximo mês, compraria outros. Levou
as encadernações ao caixa, passou o cartão, efetuou o pagamento, e agradeceu à vendedora.
Porém, antes de sair, outro livro em exposição chamou sua atenção. Caminhou até ele, olhou
o título. Um dicionário sobre sonhos, dizendo conter significados para os mesmos. Pegou-o
nas mãos, leu a sinopse no verso. Só após perceber o tipo de obra que estava segurando,
resolveu colocá-lo no local. Para que diabos olhava aquilo? Riu de si mesmo, agia como um
idiota.

— Mas olha se não é o grande Adrien!

Virou-se, inicialmente assustado, mas, logo em seguida, sorriu. Um casal amigo seu, do
colegial, olhava-o, animado. Não imaginava encontrá-los ali.

— Ei, vou demorar um pouco.

— Por quê?

— Se lembra da Débora e do Ricardo, aqueles meus amigos do segundo ano? Acabei de


encontrá-los, vou tomar uma cerveja com eles. Você não está com pressa, tá?

— Não, não mesmo! Fica relaxado, pode ir tomar sua cerveja com seus amigos, vou ficar
rondando por aqui.
— Ok, te ligo depois.
E desligou o celular. Boa, nada para atrapalhar.

*
Portava inúmeras sacolas, não acreditava que havia comprado tanta roupa – uma quantidade
exorbitante que valia por todo o tempo que passara sem ganhar vestimentas novas. Jane ainda
parecia insaciável, queria que Nadia trocasse o guarda-roupa por completo. A comunicação
entre elas não estava tão ruim, a menina conseguia entender considerável parte das palavras
em inglês que a sua acompanhante falava. As que não compreendia, Jane trocava por
sinônimos simples, facilitando seu entendimento. Ainda assim, era uma conversação sôfrega.
Ainda foram a lojas de calçados, bijuterias, cosméticos e lingeries– esta última ocasionou um
constrangimento maior na menina. Nadia sentia-se exausta, igual a uma boneca cuja dona
brincava incessantemente de vesti-la. Já não aguentando mais, pediu a Jane para ambas
descansarem um pouco. A acompanhante aproveitou o tempo para dar uma olhada em outras
lojas que lhe interessaram, deixando a menina sentada em um banco próximo à praça de
alimentação. Tempo necessário para Nadia se recuperar daincansável sessão de mudanças.

— Sabia que foi destino te encontrar aqui?

Nadia deu um pulo na cadeira, deixando cair no chão parte das compras que fizera. Não
esperava escutar uma voz tão próxima ao seu ouvido de maneira tão repentina.

— Ah, me desculpe!— a voz pediu— Não era minha intenção assustá-la.

Um rapaz de casaco negro se abaixou para pegar os sacos que haviam caído. Quando se
levantou, seu rosto delicado e oriental se abriu em um sorriso infantil.

— Aqui estão.— disse, oferecendo-lhes as embalagens.

Nadia sentiu o coração disparar. O rapaz Hikari... Que droga! O que falar, o que falar?
Pensou em agradecer, mas havia esquecido como se falava. Preferiu assentir com a cabeça,
soltando um sorriso amarelo. Será que ele a compreenderia?

Ele continuou sorridente.


— Então, o que você está fazendo aqui?
O que ele disse mesmo?
— Moça...?
— Amar!
O Hikari franziu o cenho.
— Como...?
— Não!— Nadia bateu a mão na cabeça.— Perdoar! Perdoar... perdoar...
Droga, como ela iria pedir perdão por não entender o que ele falava?
— Você está bem...?
— Entschuldigung. Ich verstehe nicht, wovon er spricht.

Não conseguindo falar em português, acabou por, inconscientemente, desculpar-se em


alemão. E, por puro nervosismo, também esqueceu o artifício até então bastante eficaz de se
comunicar em inglês. O rapaz mordiscou o lábio, o rosto confuso. Suspirou, algum desânimo
pairando no ambiente.

— Acho que errei de menina.— falou, apenas.— Me desculpe, não vou mais te incomodar.

Hikari se levantou, deixando uma Nadia frustrada no banco. A alemã ainda tentou pronunciar
algo para se redimir do grave erro, porém nenhuma palavra saiu de seus lábios. Enquanto via
o rapaz sair, Jane chegou, cada vez mais entusiasmada em modificar o lindo rostinho que se
escondia atrás de trapos.

— E aí, Nadia? Pronta para o cabeleireiro?

— A que horas você vai sair daí?


— Ué, por quê? Aconteceu algo?
— Só me diga que horas. Meu ânimo para shopping acabou. — Daqui a pouco. Quer vir
tomar uma cerveja?
— Peça uma torre só para mim, então.

Arashi desligou sem mais explicações, a voz cheia de frustração. Confuso, Adrien olhou para
o celular. Guri maluco.
10.
Olhava-se com estranheza no espelho. Deslizou mais uma vez a mão pelos seus lisos fios –
que antes acabava em sua cintura e agora estava um pouco acima dos seus ombros–, o
castanho natural de volta, nenhum resquício do vermelho desbotado. Sorriu. Era estranho
passar a mão por algo tão curto. Uma larga faixa de cabelo corria por seu cenho, em direção
a seus olhos, quase os cobrindo. A franja que ali estava até que ficara bonitinha, assim como
a permanência de duas mechas finas que ladeavam seu rosto e que se destacavam pelo
comprimento intermediário. No final, não estava tão feia. Sentia-se nova, embora, às vezes,
pensasse que a imagem refletida não era ela mesma. Porém, saber que estava enganada
lhedava segurança.

Deitou-se na cama. Todos os músculos do seu corpo doíam e suas pálpebras pesavam.
Apagando a luz do abajur, virou-se para o outro lado e adormeceu.

Estava sentado no palco. Suas pernas, cruzadas, apoiavam a guitarra. Ele tentava afiná-la,
mesmo que a corda Mi insistisse em continuar desafinada. Estava tão concentrado que não a
notou chegando. Somente quando ela estava bem perto, ele conseguiu finalmente vê-la.
Sorriu ao se deparar com aquela imagem tão serena, observando-o com ar de curiosidade,
tentando entender o que ele fazia. Os cabelos estavam escorridos em seus ombros, como
sempre, e vestia um simples vestido rosa e de mangas.

— Por que não sobe?— ele perguntou

Ela pareceu meio surpresa com a pergunta, e ele, ainda sorridente, a ajudou a subir.
Timidamente, ela se sentou próxima a ele. Os únicos barulhos que se podiam escutar ali
eram o da guitarra tentando ser afinada e o da respiração nervosa dela.

— Sabe...— falou ele, sem tirar os olhos do que fazia.— Estou feliz por você estar aqui. Não
seibem explicar, massua presença mefaz bem. Me sinto melhor quando estou pertode você.

Ela enrubesceu e baixou a cabeça, envergonhada. Os cabelos lhe caíram nos olhos,
escondendo parcialmente sua face.
— Você sabe...— ela começou, incerta.— Por que só agora posso escutar a sua voz? — É
uma das coisas que eu mais gostaria de saber.
Calaram-se.
— Tem muita coisa sobre nós que ainda precisamos descobrir.— ele se pronunciou, após
longos instantes quieto.— Não sei se temos algum tipo de relação especial ou qualquer
coisa assim, nada me vem à cabeça. Mas... devo admitir que você me traz calma e
segurança. Bem mais do que qualquer pessoa da realidade.

Ele largou a guitarra e se aproximou mais dela. Em poucos instantes, sentiram suas
respirações se cruzando. Cerraram os olhos e, sem perceber, acabaram se tocando nos
lábios. Um primeiro beijo.

Adrien se levantou em um sobressalto, sendo acordado pelo despertador afoito que tocava.
Esfregou o rosto, olhou o relógio. Treze horas, como ele havia programado. Descansara o
suficiente, mesmo sonhando com ela outra vez– e sendo este sonho o mais íntimo e
impossível de todos. Preferiria, entretanto, não ligar para isso. Tinha outras coisas mais
importantes para se preocupar, pelo menos naquele dia.

Em poucas horas, tocaria o primeiro dos mais importantes shows da sua vida.

— Acorde, aniversariante, acorde!

Nadia abriu lentamente os olhos. Ainda sentia sono, mas aquelas vozinhas agudas não a
deixariam mais dormir. Como em uma alucinação psicodélica, todos os objetos do seu quarto
se mexiam, causando uma imensa bagunça e gritaria.

— Parabéns para você, nessa data querida, muitas felicidades, muitos anos de vida!— eles
cantavam,emcoro.

Fechando as pálpebras rapidamente, disse a si mesma que toda a cena que prosseguia era
apenas mais uma alucinação, só mais um devaneio. Quando o barulho parou, voltara a ficar
de olhos abertos. Espreguiçou-se, sem coragem. Que horas seriam? Levantou-se, analisou-se
pela imagem que o espelho refletia – a primeira visão de uma Nadia com dezesseis anos. Não
parecia muito mudada, embora estivesse. Ajeitou o cabelo, esfregou o rosto. E se lembrou do
sonho, com um sorriso maroto. Levou a mão aos lábios, um leve rubor se apoderou de sua
face.

Havia recebido o primeiro presente de aniversário.

*
Mais um ensaio antes da esperada hora. Embora sua aparência fosse deveras calma, sentia,
por dentro, uma onda avassaladora de medo e nervosismo. Podia ver, com certo
divertimento, a ansiedade manifestada nos seus colegas– Arashi tremia e fazia perguntas
incoerentes; Gustavo roía as unhas; Isaac, de instante em instante, chupava uma pastilha de
menta, acabando com um pacote em pouco tempo; Max estalava os dedos. No fundo, não
diferia muito deles– apenas guardava para si os seus incontroláveis sentimentos. Resolveu
descontar a ânsia no violão, repassando as músicas da noite. Somente assim, iria se acalmar.

— Ok, Yooki, se você rir, juro que parto sua cabeça em duas e jogo para os cães! — Tá bom,
tá bom, eu juro que não irei rir!

Nadia respirou fundo. Há quanto tempo não vestia uma saia socialmente? Preferia ter
colocado outro conjunto, mas não sabia combinar peças– era um desastre quando o assunto
era moda. Acabou vestindo o vestido preto de mangas e saia em xadrez vermelho e a bota
preta. Saiu do quarto com a cabeça baixa, tentando esconder– inutilmente– a face corada com
o pequeno cabelo. Olhou desconfiada para Yooki e viu o sorriso se projetar em seus lábios,
assim como escutou a risadinha que o primo dera.

— Ei! Eu avisei que, se você risse, partiria a sua cabeça!— gritou, revoltada. — Não estou
rindo.— disse o primo, ainda sorrindo.— Você está linda, é só isso. A menina franziu o
cenho, desconfiada.
—Você mente descaradamente.— afirmou, cruzando os braços.
— Então pergunte para o espelho. Não há nada mais sincero do que ele.
A conversa foi interrompida pelo som estridente do telefone tocando.
— Por que não atende?— perguntou Yooki.— Vai que é algum admirador secreto querendo
lhe dar os parabéns... Talvez o rapaz Hikari!

— Estou chorando de rir. — comentou a menina, irônica, dirigindo-se ao telefone. Olhou


para o
aparelho com receio. E se não fosse mesmo para ela? E se errasse a saudação típica das
ligações?
Tentou afastar os pensamentos negativos da cabeça. Respirou fundo e com empenho,
perguntou:— Alô? — Ora, ora, como não é agradável escutar essa voz falar português...
Nadia petrificou. Seu corpo, antes calmo, começou a tremer; e já ia brotando água de seus
olhos.
Puxou ar para os pulmões e, com uma alegria descomedida, disse, quase cantando:
— Mamãe?
Ouviu com delícia a risada de Laura do outro lado da linha.

— E quem mais poderia ser, querida?


Nadia sorriu. Segurou-se para as lágrimas não molharem seu rosto.
— Klaus Meine16, talvez.— brincou.— Estou feliz por ter ligado. Como a senhora vai?
Onde
está ficando esses dias? Por que não me dá notícias?
— E eu iria esquecer o seu aniversário, Nadia Lima? Me poupe. Estou bem. Levando, para
ser sincera. Hospedada em uma pensãozinha de quinta no interior, mas é a única coisa que
pude e que
posso pagar. Ao menos eles foram delicados o suficiente para me permitirem fazer uma
ligação
internacional, está um pouco difícil de ter esse tipo de sorte. Queria muito lhe dar um
abraço hoje, filha. — Só a ligação basta. Fiquei feliz com isso.

— Desculpa não poder te presentear com nada. Espero que Deus lhe dê hoje o que não
posso
dar.

— Ele vai dar... Em breve, você estará aqui comigo e vamos ficar juntar mais uma vez. —
Não posso passar muito tempo, querida, o telefone não é meu. Mas é basicamente isso que
eu queria te dizer. Mande um beijo para o Yooki. Amo você, amor. Feliz aniversário. —
Também te amo, mãe.
E escutou, com dor, o barulho da ligação sendo encerrada. Respirou fundo, enxugou todas as
lágrimas que ainda ousaram cair dos seus olhos. Contou até dez para recuperar a calma.
Sentindo que já
estava mais tranquila, voltou-se para Yooki e, sorridente, perguntou:
— Estamos atrasados, não estamos?

— Tudo bem, senhora?

A mulher abaixou a cabeça, contendo todo o sofrimento assolado em seu peito. Tentando
controlar o pranto que se iniciava, olhou para a enfermeira, sorridente, tentando esconder, de
maneira inútil, a interminável tristeza. Entregou-lhe o celular.
— Muito obrigada.— disse.— Você realmente me ajudou a fazer minha filha feliz. A
enfermeira sorriu. Pegando o aparelho, saiu do pequeno apartamento, deixando a enferma
sozinha, a chorar a saudade que sentia.

— Deixe-me ver como vocês ficaram.

Os cinco rapazes se viraram para a moça sentada na cadeira giratória — naquela posição,
Rida parecia uma rainha, enquanto eles, meros súditos esperando por suas vontades. A jovem
estilista deu uma longa tragada em seu cigarro, sem, contudo, tirar os olhos dos seus
subordinados. Levantou-se, examinando cada integrante mais de perto. Começara por Isaac,
passando por Gustavo, indo para Adrien, Max em seguida e finalizando em Arashi. Demorou
mais tempo neste último e, descendo delicadamente o seu indicador pelas costas do jovem,
chegou ao início da sua calça, gesto esse que causou um calafrio no vocalista. Com força,
puxou o jeans que Arashi usava.

— O que eu falei sobre calças largas, Arashi?— perguntou, assumindo a postura de uma
rainha furiosa prestes a condenar o criminoso à forca.

— Mas Rida...— murmurou o vocalista, tímido, sentindo o membro doer.

— Mas nada! Tire a-go-ra essa coisa ridícula que está usando! Já disse, não há coisas largas
no visual glam! Além do mais, quero testículos fazendo volume sob suas calças!
— Se bem que, com ou sem calça larga, vai ter volume do mesmo jeito...— concluiu
Gustavo.
— Vai me questionar, Gustavo?— o olhar da jovem estilista fuzilava o baixista.
— Não, a senhora que manda!
Risos abafados saíram das bocas de Max, Adrien e Isaac. Enquanto Arashi se trocava no
pequeno banheiro do camarim, o rosto contraído de ódio, um dos responsáveis pela
organização do show entrou no quartinho, avisando faltar vinte minutos para o início da
apresentação. Após a saída deste, Rida se voltou para os três rapazes presentes.
— Nervosos?— perguntou, mais calma.
— Ainda se fosse um show só nosso, quem sabe. Mas é só mais um festival, que graça tem
nisso?—disse Isaac.
— Acho que já é um grande passo.— a estilista deu mais uma tragada.— Vocês já têm
alguns fãs e um cara interessado no trabalho que fazem. Ah, e não podemos esquecer: vocês
são a banda anunciada da noite. Então, creio que é uma boa situação para o início.
— Isso dá medo.— disse Gustavo.
— Sabe, agradar os outros não tem tanta importância se vocês agradarem a si mesmos. Tá,
não vamos ser radicais, é importante conquistar público, mas acho que a satisfação pessoal
conta mais. Não é mesmo, rapazes?
— Hm?—os guitarristas murmuraram, desatentos.
— Credo, que falta de ânimo por parte de vocês!— Rida depositou o cigarro no cinzeiro,
sentando-se ao lado dos dois rapazes.— Vamos lá, ambos fazem sucesso com as
groupies[10]! Podem, por favor, colocar um sorriso nesses rostos fechados?
— Groupies não são tudo...— comentou Max.
— E trazem problemas, na maioria das vezes.— Adrien complementou.
— É, vocês realmente são as pessoas indicadas para falar isso— e, dando um selinho
nos lábios de cada um, Rida finalizou: — Fiquem animados, ok? Quero um show quente e
excitante. O mesmo organizador fora mais uma vez ao camarim. Dez minutos para o início
da apresentação.

— Eu disse que nós íamos chegar atrasados, não disse?

— Relaxe, menina. Aprenda: essas coisas nunca começam na hora. Foi marcado para as dez
horas, são dez e meia, e deveríamos ter chegado um pouco mais tarde.

De mãos dadas, Nadia e Yooki entraram por um portão especial da casa de show. O caminho
por onde passavam era escuro e seguranças ladeavam a estreita passagem. Em poucos
segundos, chegaram a um grande e lotado compartimento, recheado por portas e corredores,
cujo trânsito de gente era continuo.

— O que é isso?— perguntou ao primo, olhando-o desconfiada.


— Os bastidores. Vamos encontrar o meu amigo na sala da diretoria.
— E ele é o diretor do local, por acaso?
— Apenas o organizador do festival.

Atravessando o incontável número de pessoas e cortando alguns dos vários corredores,


dirigiram-se à porta com o cartão em letras garrafais: DIRETORIA. Dando rápidas
batidinhas, Yooki baixou o trinco e empurrou a madeira, abrindo passagem para a saleta em
que o amigo estava.

— Achei que não viesse mais, putinha.

O olhar de Nadia se voltou para o homem alto e magro que estava sentado no sofá vermelho.
Embora fosse bonito, possuía um aspecto meio malandro– quase de gigolô barato–,
acentuado por sua roupa social– um blazer e uma calça negros e uma blusa verde– e sua
aparência desleixada– barba por fazer e cabelos desgrenhados.

— Acha mesmo que eu iria furar?— Yooki sorria.

Abraçaram-se, dando tapinhas nas costas um do outro. Após se separarem, o homem olhou a
menina que observava a cena. Sorriu.

— E essa é a famosa prima?— perguntou, sorrindo.

— É, é.— o primo envolveu os ombros da menina com o braço.— Nadia, esse é o Fernando,
amigo de faculdade e cabeça do evento. E, Fernando, essa é a Nadia.

— Beleza?— utilizando um dos poucos cumprimentos que aprendera em português, Nadia


bateu e apertou a mão de Fernando.

— Beleza.— disse o outro, pegando a mão de Nadia e depositando nela um beijo, gesto
recebido com um leve rubor na face da alemã.
Conquistador barato!

A porta se abrira novamente, mostrando uma moça pequena e rechonchuda.


— Com licença, senhor, mas as apresentações já vão ter início.

Subir ao palco era uma sensação anestésica. Podiam sentir um calafrio percorrer seus corpos,
os batimentos acelerados do coração, um frio esquisito, vários olhares para eles – o triplo do
que costumavam ter. Tinham convicção de que aquele era apenas mais um show para a
plateia presente, de que outros melhores haviam tocado há poucas horas. Ainda assim,
sabiam que aquela era a sua chance, um pequeno passo para o futuro. Por isso, precisavam
dar o melhor de si mesmos e, se fosse o caso, dar a alma por tal. A música que tocavam não
era apenas uma união de acordes com letras, mas sim o amor que sentiam por todas as
incríveis reações manifestadas por seus corpos quando ressoavam uma única nota.

Estavam nervosos, isso era evidente. Arashi ainda demorou alguns segundos para iniciar,
mesmo que os seus companheiros já tivessem repetido a introdução de Cum on Feel The
Noize– música escolhida para o início da apresentação–, mas, quando o fez, conseguiu calar
todos os presentes. Não, não era o melhor cantor, nem talvez se tornasse um destaque no
mundo da música. No entanto, apenas por colocar todo o seu sentimento na sua voz
estridente, já se tornava único e maravilhoso. Naquele momento, não eram apenas cinco
rapazes em cima de um palco. Eram uma única alma de nome Reticências.

A maioria da plateia vibrava incansavelmente, mesmo que muitos dos que estivessem ali não
conhecessem a banda. A euforia era grande. A excitação que atravessava seus corpos era
indescritível. Eles podiam sentir a energia do momento os possuindo, podiam sentir a
vibração da música, a animação das pessoas, os batimentos ritmados de seus corações.
Emoção tamanha que viviam naquele instante. Amavam a música e as sensações que ela lhes
trazia, acima de tudo. E desejavam que pudessem sempre viver horas e minutos como esses,
que seguissem o caminho musical, que nunca saíssem dele.

Estavam certos: encontram seu destino.

— Uma banda de hard, que faz um mash-up das suas músicas com um dos clássicos do rock,
Fernando? Não posso acreditar nessa sua achada!

— Que foi? Não gostou?— um princípio de preocupação se manifestou em seu rosto. — Não
é bem isso. Só estou meio surpreso, faz muito tempo que não vejo uma banda assim. É uma
ideia bem“inovadora” se levarmos em conta o período em que estamos. Mas... Ei, ei, ei! Qual
o nome do vocalista?

— Arashi Hikari. Por quê?


Yooki riu.

— Eu sabia, aquele cabelo não nega! Nunca desconfiei que o jovem Hikari tivesse uma
banda. — Você o conhece?

— Costumo, às vezes, ir almoçar no restaurante da família dele. Como se chamam os outros?

Fernando tirou um panfleto com os nomes das bandas e seus respectivos integrantes.
Colocando os óculos, leu, em pausas:

— O baixista se chama Gustavo Abreu; o guitarrista solo, Adrien Guerra; o guitarrista base,
Max Alencar e o baterista, Isaac Macedo. Eles são bons, não são?— e sorriu largamente. —
Pelo que vi até agora, maus é que não são. Mas o show mal começou. No final, dou o meu
veredicto.
*

Penúltima música. Prepararam-se. Um público sedento os esperava, ansiosos. Todavia, antes


de Max dar início à introdução no segundo violão, Adrien sentiu uma estranha onda
trespassar o seu corpo. Não era como todas as outras que houveram lhe atingido desde o
começo da apresentação, mas idêntica a uma que sentira ainda no camarim. Algo diferente,
esquisito. Como se alguém especial demais pudesse vê-lo tocar ali, naquele momento e
aquela música. Não conseguiu identificar quem poderia ser – não esperava por ninguém–
tampouco explicar o porquê de estar sentindo tal sensação. Porém, mesmo que tudo não
pudesse ser nada além de imaginação, mentalmente, dedicou a música para essa pessoa.
Talvez ela pudesse estar ali.

Não era a música mais bonita que eles tocavam desde o início do show, mas fora a que mais
lhe chamou a atenção. Assim que o guitarrista base fizera a introdução no violão, Nadia teve
um leve sobressalto. Um arrepio inexplicável lhe atravessava a espinha, deixando eriçados os
pelos do braço. Até seu coração batia mais rápido. Alguma coisa naquela melodia lhe
chamava a atenção, já que ainda não compreendia grande parte da letra.

Até aquele momento, ainda não havia observado atentamente todos os integrantes da banda –
tinha o péssimo hábito de focar apenas o vocalista. Durante todo o show, mantivera-se
olhando somente para a figura embaçada– à tamanha distância, não conseguia ver nada além
de silhuetas– do rapaz de cabelos excêntricos– que logo reconheceu, envergonhada, ser o
jovem Hikari–, mas, em instantes, sentira a necessidade de ver os outros rapazes. Viu o
baixista, o baterista e os guitarristas. Olhou-os rapidamente mais uma vez, porém, agora,
mantivera, fixo, o olhar no guitarra-solo.

Era um homem desprovido de camisa, trajando unicamente uma calça preta e botas da
mesma cor.

Os cabelos dourados e longos brilhavam à luz do holofote, grudando, às vezes, em seu corpo
suado. Embora não conseguisse enxergar a sua fisionomia, poderia imaginar a emoção
expressa em seu rosto, o empenho que demonstrava ter ao estar ali, tão compenetrado em
tocar. Foi nesse momento que, sem razão óbvia, desejou estar mais próxima ao palco.
Somente um pouco mais perto, o suficiente para ver a expressão do guitarrista.

Ele lembra alguém.


Eu tentei fugir dos meus sonhos Calar minhas respostas, Mas não consegui.
Eu tentei mudar o meu destino E não mais pensar em ti

Não pensar mais em ti, Mas não consegui.

Tentou desviar o olhar rapidamente, embora não conseguisse. Não poderia começar a
fantasiar, não ali e daquele modo. O que estava pensando? Respirou fundo, não iria confundir
realidade e imaginação mais uma vez. Nem que quisesse muito. Queria realmente sofrer?
Sonhos eram apenas sonhos, por que ainda não compreendia isso? Havia uma ponte que
dividia a ficção do real, não poderia continuar no meio do caminho. Por que ainda insistia?

Encostou a cabeça no ombro de Yooki e segurou sua mão com força. Precisava de algo que a
mantivesse na realidade, mesmo que a intimidação da música não saísse da sua mente.

Em qualquer lugar, eu vou te encontrar. A história não vai acabar.

Não era um aviso para ela, embora a tivesse atingido. De qualquer maneira, esperaria ser
encontrada.

Caminharam pelo corredor parcialmente lotado. O trânsito de pessoas ali ainda era
insuportável
– embora, àquela hora, estivesse ameno. Os gritos da plateia continuavam a ser escutados a
longa distância. Porém, não eram as outras bandas que os interessavam agora. O verdadeiro
motivo para estarem ali se encontrava no menor e menos destacado quarto, ao fim de um dos
vários corredores. Pararam perante a porta branca.

— Quer vê-los agora?— perguntou Fernando.

— Não é óbvio? Aproveito e digo a minha opinião tanto a eles quanto a você.— e, olhando
para Nadia, perguntou:— Vai entrar?

— Para olhar uma conversa extremamente formal que eu não vou entender? Não, obrigada.
Prefiro ficar aqui, sentada nesse banquinho jogando Guitar Hero.

Ela estendeu a mão, um sorriso torto em seus lábios. Yooki suspirou. Vasculhou os bolsos
antes de lhe entregar o celular.
— Nada de sair daqui, entendeu?— orientou a alemã.
— Aham, papai.— os olhos dela já focavam o jogo que aparecia diante a tela do aparelho. E
abriram a porta.
11.
Os dois homens que adentraram o camarim puseram fim aos abraços, congratulações e às
comemorações que a banda, a estilista e os amigos faziam. O grupo se voltou para a dupla
recémchegada. O nervosismo predominava. O homem louro sorriu.

— Podemos entrar?— perguntou.

Não houve discordância por parte de ninguém. O mesmo homem fechou a porta.

— Pessoal— começou, animado—, antes de dar quaisquer parabéns pela excelente


apresentação, gostaria muito que escutassem algumas palavras do meu amigo Yooki. Ele é
professor de música e a pessoa em quem mais confio. Por isso, o trouxe até aqui. — ele se
voltara para o acompanhante.— Yooki?

O outro homem deu um passo à frente. A ansiedade do grupo piorou.


— Em primeiro lugar— disse, após cumprimentar o grupo—, devo dizer que vocês possuem
uma energia em cima do palco que é indescritível. Levar um público que os desconhecem,
em sua maioria, a gritar daquele modo é habilidade rara. Então, meus parabéns por isso.

Agradeceram.
— Também gostei muito dos mash-ups que fizeram com músicas clássicas do rock e com as
de vocês. As suas letras possuem poesia, algo que é pouco preservado atualmente. Chegou a
me lembrar do próprio Barão Vermelho. Devo dizer, porém, que essa coisa de fazer uma
banda de hard aos moldes oitenta é uma ideia visionária e arriscada se formos levar em conta
o período em que vivemos. Não que isso seja um empecilho, claro que não! Vocês têm total
talento para alcançarem paradas de sucesso. O solo é magnífico, o baixo dá o peso sutil e
perfeito para que a guitarra possa desenvolver as músicas, a utilização da escala de ré menor
com quarta e nona é esplendida, as letras se encaixam bem com o instrumental. Para que
mais?

O grupo sorriu, tímido.

— Mas eu encontro dois graves erros.— completou Yooki.— Um deles está nas roupas.

Acreditem, não vão conseguir muita coisa nesse estilo glam.

— Ei!— a voz de Rida se fizera presente pela primeira vez, revoltada.— Eu que sou
a responsável pelas roupas deles, não há nada de errado com o nosso vestuário!

— Para festivais é ótimo, minha querida, mas para a fama, péssimo. Estou errado ou você
ainda
conhece algumabanda recente que faça sucesso assim?
Adrien puxou o braço de Rida, obrigando-a a se sentar ao lado dele.
— Quieta.— ordenou à prima, entre dentes.
— E o outro erro?— perguntou Max, cortando o assunto da estilista.
— No Arashi.
Arashi teve um sobressalto. Seu coração disparou e o rapaz começou a suar frio. — O que eu
fiz?— perguntou, trêmulo.
— Sua voz, Arashi, esse é o problema. Você tem presença marcante em palco e isso é ótimo,
mas a sua voz ainda não está no pódio. Ela contrasta com os instrumentos de maneira
estridente e incômoda, além de haver falhas na afinação. Posso falar que o que está
estragando a impressionante capacidade da banda agradar é exatamente a sua voz.
Fora como levar um tiro certeiro no peito. Os miúdos olhos do vocalista ficaram marejados,
prestes a derramar uma lágrima a qualquer instante.
— Contudo, ainda há uma chance se...— Yooki fora interrompido por um estridente barulho
de celular tocando.
— Com licença.— pediu Adrien, atendendo o telefonema e se distanciando um pouco do
grupo. — Enfim, como eu dizia...
— O quê?!

O olhar dos presentes se voltou para Adrien mais uma vez. O rapaz estava sério, com uma
fisionomia assustada.
— Adrien...—iniciou Isaac, curioso.
— Ok, estou indo para aí. Fique calma, tá? Me espere, já estou indo. Beijo.— e, finalizando a
ligação, o guitarrista disse, atônito.— Meu pai passou mal, preciso ir agora! Minha irmã mais
nova que ligou. Desculpa, pessoal.
— Fique tranquilo, cara.— Yooki disse.— Arrume suas coisas e vá. Não se prenda a nós.
Cuidar do seu pai é mais importante, não é mesmo? Melhoras para ele.
Adrien agradeceu. Vestindo rapidamente uma camisa branca e uma jaqueta, pegou a mochila
e saiu correndo, em questão de segundos. Poucos instantes depois, Yooki deu continuidade
ao seu discurso a Arashi:
— Como eu falava, há uma maneira de se corrigir isso. Não estou mentindo, acredito no
futuro dessa banda e acho que este empecilho poderá facilmente ser superado caso você faça
aulas de canto e treine mais um pouco.
— Não tenho dinheiro e nem sei onde se faz aulas assim.

— Bom, se o problema for dinheiro e local, eu posso resolver.

Errou novamente a versão de I Love Rockn’ Roll . Merda, sabia jogar aquilo no Playstation,
por que estava falhando no celular? Tentou mais uma vez, uma hora iria conseguir. Reiniciou
o jogo, contudo, antes mesmo de fazer as primeiras notas, um calafrio diferente percorreu o
seu corpo. Estranhou, embora não tirasse os olhos da tela do aparelho– os corredores não
eram climatizados para sentir frio.

Abra a porta.

A voz ressoou inesperadamente em sua mente. Cancelando o jogo, olhou ao redor. Pessoas
passavam pelo corredor, nenhuma a olhava ou falava algo.

Vamos lá, menina... É só se levantar e empurrar o trinco.


Mas que droga era aquela? Havia perdido completamente o juízo? Levando as mãos às
orelhas, pediu mentalmente para que a voz cessasse, que a sua imaginação tivesse, pelo
menos uma única vez, controle.

Fugir não irá resolver nada. Abra a porta.


O que infernos iria fazer abrindo aquela porta e entrando no camarim da banda? Conhecer os
integrantes? Falar com Yooki? Interromper uma conversa importante e ficar sem entender
grande parte do que era dito?

—Não!

Sabia que, mais idiotice do que escutar vozes, era responder à sua própria imaginação como
se esta fosse outra pessoa. Todavia, surtira efeito– nenhum som além do toque do jogo
importunou sua audição. Pegando o celular, deu início novamente à música.

Concentrada, não escutou a porta sendo aberta.

O sonzinho baixo o desconcentrou por segundos. Instintivamente, voltou o olhar para a


propagação de um instrumental meramente eletrônico de I Love Rockn’ Roll e seus olhos se
depararam com uma menina sentada confortavelmente no banco, pernas brancas cruzadas, os
pés comportados por botas. Concentrada no celular, não o viu, e seus cabelos curtos e
castanhos lhe caíam pela face. Jogava Guitar Hero? Provavelmente. Caso não estivesse
apressado, sentaria e conversaria com a garota– amava aquele jogo. Ficaria para uma
próxima.

Andando a passos rápidos e ininterruptos, fora bruscamente parado pela loura fatal que se
jogara à sua frente, mostrando, de maneira clara e direta, que precisava de uma conversa. —
Você não sai daqui sem falar comigo.— ela disse, fria.

Adrien suspirou.

— Boa noite para você também, Malu, mas não posso te dar atenção.— e, baixando os olhos
para a menina que a acompanhava, completou.— E oi, Alice.

— Se você não falar comigo, eu vou gritar e te fazer passar vergonha!— retrucou Malu.
Mentalmente, Adrien se perguntou o que diabos vira naquela mulher para manter um
relacionamento de dois anos com ela.

— Grite.— falou, simplesmente.— A vergonha vai ser sua, não minha. Não serei eu quem
irá se expor ao ridículo.

Dando as costas à dupla, saiu, carregando a sua mochila. Enquanto isso, Malu cumpria a sua
promessa:

— Adrien Guerra, estou falando com você! Quer que todos saibam que tipo baixo de homem
é? Quer que eu fale pra todos o que você faz com as mulheres? Então tá, eu faço isso!

Eram gritos insuportáveis, irritantes e exageradamente agudos. Agoniada, Nadia desligou o


celular e o jogou no bolso do vestido. Olhando para a extensão do corredor, enxergou uma
bonita mulher
– alta, magra, corpo escultural, cabelos lisos e louros, roupa devassa– gritando
freneticamente, falando baixarias– entendeu algumas das poucas que aprendera–, e uma
menina de roupas de bonecas tentando, agoniada, dizer-lhe algo. Aquilo desconcentrava
qualquer um. Inicialmente, preferiu apenas ignorar, mas a sua paciência se esgotava a cada
oitava que a mulher conseguia alcançar. Tudo bem, não sabia falar o português mais correto,
e daí? Poderia se expressar de maneira pelo menos clara e evitar maiores constrangimentos–
dali a pouco, os seguranças chegariam e a situação iria se agravar. Aproximou-se, cutucou-
lhe as costas.
— Hey!

A moça voltou seu rosto maquiado pesadamente para a franzina figura, assim como a sua
acompanhante– a irmã Hikari.

— Eu não ser surda!— disse, apontando para os ouvidos.— Voz— apontou para ela— doer!
— e apontou, mais uma vez, para as orelhas.

— Eu por acaso te chamei para a conversa, pirralha? Acho que não.


— Irritar.— e, indicando novamente suas orelhas, tentou falar mais uma vez.— Doer, irritar!

— E eu com isso? Aprende a falar, menina, depois vem me perturbar!— a moça deu-lhe as
costas.

— É isso que tô tentando dizer a ela!— a Hikari concordara com a recém-chegada,


exasperada. E, dirigindo-se à moça, completou— Malu, chega, né? A garota tem razão, você,
além de estar passando vergonha, está me fazendo ter dor de cabeça! De que adianta gritar se
o Adrien nem está mais aqui?

A moça olhou para as duas meninas, relutando reconhecer que ambas, praticamente duas
crianças, estavam certas. Quando seus olhos bateram nas outras pessoas que também a
olhavam, ela se retirou apressadamente, bufando ódio e frustração. A acompanhante
suspirou, cansada.

— Ignore. Ela é escandalosa, sem noção e vadia desse jeito mesmo.

Nadia não entendera as palavras da menina, concordando apenas com um meneio de cabeça–
fosse lá o que a garota tenha lhe dito.

— Ainda me pergunto como ela conseguiu o Adrien e vice-versa. Sabe aquele tipo de garota
que abre as pernas facilmente? De qualquer forma, não posso falar só dela, o Adrien também
não é santo. Cachorro que só ele, sempre está com uma diferente. Acho que até combinam,
né? Dois vadios juntos.— e ela olhou para Nadia, sorrindo.— Enfim, não é assunto meu.

— Seus amigos?— reconheceu outro nome nas falas da menina.


— Ele sim, mas ela é apenas conhecida. Tive a infelicidade de encontrá-la aqui, procurando
pelo camarim dos rapazes. Não achei que nada disso aconteceria, senão nem teria ajudado.
Bom, passou. — e, observando Nadia, mudou de assunto.— Ei... Eu te conheço, né? Do
restaurante da minha família... Bilhetinho que o meu irmão idiota te mandou...
Nadia franziu o cenho. A jovenzinha suspirou.

— Meu irmão.— repetiu.— Cabelo colorido, Arashi...

— Ah, sim, sim, sim!— o que ela queria falar mesmo? Nadia só entendeu o nome do
rapaz Hikari.

— E você não ligou pra ele, certo?— a menina fizera um sinal de telefonema. — Não, não.

— Sem querer parecer chata, mas... você não é daqui do Brasil, é? Sei lá, você fala estranho
e tem um sotaque desconhecido. De onde é?
— Alemanha.— aquela pergunta ela conseguiu entender sem o auxílio da mímica. — Veio
para morar?
— Sim, sim.

Era irritante conversar apenas por monossílabas e mímicas, Nadia sabia disso. Porém, a
menina Hikari parecia não se importar– continuava a falar muito do mesmo jeito.
— Então não tem muitos amigos aqui?
— Não. Eu chegar há um mês, não conhecer ninguém.

— Me passa seu telefone, então!— a menina Hikari retirou um aparelho cor-de-rosa e cheio
de apetrechos coloridos de dentro da bolsinha pomposa de renda.— Sei lá, posso te
apresentar algumas pessoas, mostrar uns lugares legais, dar uma esperança ao lerdo do meu
irmão– se você sentir interesse, claro. Gosto muito de conhecer pessoas novas e fazer essas
pessoas novas conhecerem outras pessoas novas. Pode me passar o número?

Vasculhando o celular de Yooki, Nadia ditou o número da casa dos primos à Hikari –
acreditava que a menina pedia seu telefone. Logo em seguida, a mocinha pediu o celular que
Nadia tinha em mãos e, rapidamente, digitou o seu número.

— Me chamo Alice, mas pode me chamar de Cassis também– é o meu nick, sabe?— ela
sorria. — Quando quiser conversar, pode ligar à vontade. Também quero o seu MSN, Orkut
verdadeiro e fake, blog, conta no Fanfiction.Net e fotolog. Claro, se não se importar.

Nadia concordou com a cabeça, um sorriso amarelado em seus lábios. Onde era o botão de
liga/desliga daquela menina?
— Ei, Nadia!
As duas se voltaram para a porta que fora aberta. Yooki e Fernando sorriam, satisfeitos. —
Oi.— ela respondeu, apenas.
— Vamos?— Yooki olhou para Alice.— Boa noite.
— Boa.— e, olhando mais uma vez para Nadia, ela finalizou:— Não se esqueça de me ligar,
viu? See ya.

Alice saiu em direção ao camarim, andando a passos rápidos e saltitantes.

Quando chegou à pequena casa, a ambulância com o pai já havia saído. Retirou o bilhete que
Mariana, a madrasta, deixara preso à porta e destrancou a fechadura.

— Clarinha? Lucas? Cheguei.

Uma minúscula figura de camisola cor-de-rosa apareceu por cima do sofá, olhos grandes e
amedrontados fixos em sua imagem pósshow, a televisão ligada para distraí-la do medo da
solidão. — O Lucas está dormindo... Ele não acordou quando o papai passou mal.

Jogando a mochila em cima da mesinha de jantar, Adrien caminhou até o sofá, sentando-se
ao lado da irmã, em seguida.

— Você está bem?

A menina apenas aquiesceu com a cabeça. O cabelo liso, longo e preto lhe escorria pelos
ombros, ressaltando o seu pavor.

— Pois vamos fazer um trato: você vai para o seu quarto, vai se deitar na cama e fechar os
olhinhos, combinado?
— Estou com medo. Dorme comigo?

Ah, é. Ainda havia o temor que Clarinha tinha de ficar sozinha.

— Então vou apenas tomar um banho e te encontro no seu quarto, tá bom?

A irmãzinha concordou, saindo em direção ao corredor que dava para o seu quartinho.
Quando se vira sozinho, Adrien respirou fundo. Esperava somente que o pai ficasse bem e
escapasse. Em sua mente cansada, pairava a imagem de uma menina que jogava Guitar Hero
no celular.

Depois do incidente com o pai, Adrien só voltou a vê-lo no dia do Natal, quando a sua
família organizava a tradicional festa. Acabou comprando apenas lembrancinhas– o seu
salário naquele mês não lhe permitiu ir além. Ao chegar à casa paterna, fora prontamente
recepcionado pelos irmãos mais novos. Clarinha, a caçula, jogara-se nos seus braços,
abraçando-o e depositando inúmeros beijos em sua face. Lucas, ao contrário, chamava o
irmão mais velho para uma partida do Playstation que ganhara do Papai Noel. Entretanto,
não pudera satisfazer a vontade dos pequenos sem antes cumprimentar todos os parentes que
estavam no local e ir falar com o patriarca da casa.

— Como você está?— perguntou ao pai.

— Acho que temos algumas coisas a conversar, não é mesmo?

O pai puxou Adrien para o quarto do casal. Sentando-se na cama, falou ao filho: — Desculpa
por aquele dia. Te tirei da sua apresentação e nem pude dar os parabéns. — Besteira.—
Adrien sentou ao lado do pai.— O show já tinha acabado.

— E como foi?
— Legal. Parece que vamos ser promovidos, tudo depende do Arashi.

— O que aquele japonês safado fez?— o pai riu. Conhecia Arashi desde pequeno e sempre o
chamava por“japonês safado”.

— Precisa de aulas de canto. Anda meio desafinado, fora do tom. Mas responda a minha
pergunta: está melhor?

Paulo suspirou. Aos 56 anos, o corpo franzino escondia inúmeras doenças cardiovasculares e
respiratórias, o que não era percebido por conta da vivacidade da sua face e pelos cabelos
claros que, às vezes, lhe caíam aos olhos.

— Estou fodido.— falou, rindo.— Alguma vez eu já lhe ensinei os malefícios do cigarro e
das carnes vermelhas?
Adrien riu.
— Creio que não.— respondeu.

— Largue seu vício pelo cigarro, escute o seu pai. Não escutei a minha mãe e olhe como
estou hoje: um velho entupido de problemas. — propósito, não disse que você está bonito
hoje. e, com os orbes claros fixos no filho, comentou:— A propósito, não disse que você está
bonito hoje.
— Fiz o que pude.— de fato, estava vestido melhor do que de costume, com a camisa social
bege de mangas dobradas até o cotovelo, calça jeans, sapatos pretos e cabelo preso em um
rabo de cavalo.

— Mas você é bonito, esse é o problema. Puxou à sua mãe.

— Sem comparações, por favor.— Adrien ficou sério. Detestava escutar a palavra“mãe” e
lembrar de que, um dia, já teve uma.

— Certo, sem comparações.— o velho suspirou.— Sabe, filho, ando te achando um tanto
abatido. É por causa de mulher?
— Acha mesmo que seria por isso?—Adrien franziu o cenho.
— Não, é só para confirmar se estou enganado. Então seria pelo quê?

— Cansaço, só. Trabalhei o ano inteiro feito um condenado, ando tendo insônia e sinto que
foi mais um período inútil para mim. Sabe, sem muitas mudanças ou crescimentos.

O pai riu, como quem se divertia com as perturbações do filho. Após se controlar, pegou uma
caixa e a mostrou a Adrien. O rapaz olhou, desconfiado.
— Antes de todo mundo?— perguntou.
— É. Antes de todo mundo.— respondeu o pai.— Pegue logo esse papel.

A brincadeira da “Palavra Chave” era antiga, idealizada quando Adrien ainda era apenas um
garoto e feita em todos os Natais. Consistia em pegar um cartão com uma determinada
palavra dentro de uma caixa lacrada. O que saísse, seria o principal objetivo do ano que viria.

— O que saiu?— Paulo olhava com curiosidade para o filho.

Adrien retirou um papel, abrindo-o. Não se espantou com o que vira, mesmo sentindo todos
os pelos do seu braço se eriçarem.

— Sonho.— falou, mostrando ao pai o cartão.


— Então sonhe mais ano que vem e viva menos.— Paulo parecia menos divertido.— Esse
foi sempre o seu problema, Adrien, viver demais a realidade nua e crua sem se dar o luxo de
sonhar um pouco. Desde... bom, desde você sabe quando, você é desse jeito... desacreditado.
Não estaria na hora de parar um pouco?

Adrien riu.

— Você me falando isso parece um pouco irônico, não acha?


— Não muito. Já faz um tempinho que estou menos azedo que naquela época. Mas você...
até quando vai insistir em viver escondido nessa armadura? Até quando vai lutar contra os
seus desejos e sonhos, Adrien?

O guitarrista mordiscou o lábio.

— Não acha que está na hora de você encontrar alguém que te faça sair dessa realidade?
Sabe, uma companhia ajuda muito.
Falar ou não falar? Falar.
— Pai.— começou, incerto.— Vem acontecendo umas coisas que...
O barulho da porta abrindo cortara o assunto de ambos. Mariana surgira e, sorridente, avisou:
— Hora da ceia.

O pai, pousando a mão no ombro do filho, disse:

— Depois a gente termina esse assunto. Mas tenha em mente aquilo que te falei, certo?— e
deu uma piscadela.

Adrien suspirou. Por que sempre tinha a sensação de estar sendo um completo idiota?

— Tem certeza de que você não está se sentindo mal em não passar o Natal com eles? A
menina encarava o primo receosa. Seus olhos já grandes estavam arregalados, assustados.

— Acha mesmo que gosto desse tipo de data? Não, não, prefiro estar aqui, aproveitando com
você.— Yooki soltou-lhe um sorriso reconfortante, cúmplice.
— Me sinto culpada por isso.

— Não se sinta assim, sempre acho essas reuniões familiares um saco e completamente
falsas. É mais legal estar na sua companhia. Além do que, você tem o total direito de não
querer vê-los. Na sua situação, também não quereria.

Ambos rodavam pela cidade noturna, iluminada pelos pequenos pontos de luz natalinos.
Procuravam por algum lugar em que pudessem estacionar o carro e tinham a intenção de
perambular por locais onde a magia do Natal pudesse se manifestar de maneira grandiosa.
Acabaram indo para o Ibirapuera.

— O que é isso, Yooki?— perguntou Nadia, ansiosa, vendo a massa de água do lago à sua
frente.
— Hm, chegamos quase que em cima do horário.— o primo analisava o relógio.—
Diga, Nadia, você, como desenhista, obviamente gosta de cores, não é?

— Mas é claro.— ela sorriu, desconfiada.


— Então acho que viemos ao local exato.

Nadia ainda permaneceu sem entender por algum tempo, até a música alta se propagar no ar
e inúmeros jatos de água serem expelidos para cima, em um espetáculo de cor e som. O susto
e a surpresa foram grandes, mas a emoção de ver as belezas que a água poderia fazer
acompanhada de uma melodia fizeram seu coração disparar. Olhou para Yooki petrificada,
um sorriso sem tamanho projetado nos lábios. O primo continuava sorrindo.

— Feliz Natal, Nadia.


12.
A vista para a praia era indescritível. Podia calmamente escutar o barulho das ondas com os
olhos fechados e ter a certeza de que não estava sonhando. Ansiava pela tarde; desejava
veementemente descer e pisar, de pés descalços, a areia; correr propositalmente da água do
mar; ver o pôr-do-sol. Não conseguia sair daquela varanda, por mais que quisesse– a praia
tinha força para mantê-la presa ali.

— Vamos almoçar?

O convite era irrecusável, visto que estava com o estômago contorcido de fome. Saíram
todos que estavam na casa para um restaurante perto da praia. Depois de tanto tempo,
finalmente veria o mar! A ansiedade era praticamente incontrolável. Três dias com a praia. E,
o mais especial: o primeiro ano novo ali, sentada na areia, vendo os fogos queimarem no céu
e refletirem o brilho na massa de água do oceano. Precisava agradecer a Yooki o quanto
pudesse, por ele ter aceitado passar o réveillon em Santos, na casa de Jane e família.

Uma sensação boa passava por seu corpo. Estava feliz.

Ainda não entendia bem o porquê de ter aceitado o convite de uma das fãs da Reticências
para ir comemorar o ano novo na praia. Poderia muito bem suportar o réveillon em casa,
tomando um bom vinho e dedilhando notas no seu violão, atividades que realizaria muito
bem estando só. Detestava a agitação que as pessoas faziam por mais uma mudança de ano.
De qualquer maneira, não havia volta: dentro de uma Besta antiga, estava a caminho de
Santos, com mais nove jovens, todos completamente desvairados. Por uma sensação estranha
de que deveria ir, arriscava a própria vida nas mãos dos seus companheiros bêbados e
inconsequentes.

Esperava apenas voltar vivo para casa.

O bolo no estômago se formava, assim como um azedume sem motivos atingia sua língua.
Lágrimas começavam a brotar em seus olhos e ela respirou fundo para não deixá-las cair.
Engasgada, esfregou a manga comprida da blusa que usava contra o rosto, tentando espantar
o pranto que estava para romper. Olhou a foto mais uma vez apenas para confirmar que não
havia se enganado.

E, por mais que quisesse, não estava errada. Era Karl mesmo, o rapaz que naquela foto
abraçava a moça alta e magrela. Ele sorria, parecia estar feliz. A garota– que era
completamente desprovida de beleza e graciosidade– também exibia um sorriso metálico
descomunal. Tinha um rosto alongado, dentes grandes, lábios finos, nariz comprido e
adunco, e cabelos lisos, louros e macios. Não, de fato não era uma jovem bonita, muito pelo
contrário. Mas, pelo menos, usava roupas de menina– um vestido rosa floral– e tinha um
Karl enlaçando a sua cintura com o braço.

Nadia não podia ficar com raiva de Dieter por isso. Ele, ao contrário de Karl, havia se
mostrado um amigo honesto. Mandou a foto para o e-mail da alemã alegando estar farto de
manter aquela história por debaixo dos panos. Teve a coragem que Maik não tinha e narrou
todos os acontecimentos envolvendo Karl e a moça magrela e dentuça– desde os momentos
em que se conheceram na Feira de Ciências da escola até o inesperado namoro. Mas, apesar
de estar arrasada e furiosa, ao menos Nadia estava aliviada. Por um lado, finalmente sabia a
razão pela qual o ex-namorado não lhe dava mais notícias.

Sem coragem para responder ao e-mail, levantou-se da frente do laptop, caminhou a passos
rápidos para a cozinha, dirigindo-se a um Yooki que comia pão com café, despreocupado.
Pediu para ir até à praia e alegou que não iria passar muito tempo– queria apenas arejar a
cabeça. Agradeceu aos céus pelo primo permitir sem ter encarado o rosto vermelho da alemã.
Nadia desceu as escadas com pressa e correu para a areia, indo cada vez mais rápido ao mar.

A água molhava seus pés enquanto, sem mais forças para se conter, Nadia permitia que as
lágrimas lavassem sua face. Fungou várias vezes, sentindo-se pequena, miserável e ridícula.
Havia acreditado piamente no juramento de Karl e nas declarações que ele lhe fez. Trouxera
aquela certeza da Alemanha, alimentava-se dela quando se sentia sozinha, amargurada. E, no
entanto, depositara suas crenças em palavras ditas em momentos de tensão. Era mais
provável que o sentimento que Karl julgava sentir desde a infância houvesse morrido há
muito. Contudo, para Nadia, aquilo continuava vivo.

E precisava morrer.
A alemã levou a mão ao colo, deixando seus dedos deslizarem sobre o aço frio da corrente
que não abandonara seu pescoço em momento algum. Umedeceu os lábios antes de puxar
com força o colar, machucando a sua pele. Fitou o pingente de infinito mais uma vez e,
quando se sentiu pronta, lançou-o ao mar. Observou o arco que a peça fez no ar, o ruído
baixo que causou quando bateu na massa d’água. As ondas bateram contra as penas finas de
Nadia, e o seu corpo amoleceu, perdendo a rigidez de instantes antes. Enxugou mais algumas
lágrimas, mordiscou o lábio inferior com força e saiu.

O primeiro dia na casa de praia alugada pelos amigos da mocinha fora uma completa
bagunça. Cerveja, cigarro, alguns puxavam outros tipos de fumo, sexo liberado. Não sentia
alegria por estar ali– tampouco arrependimento. Para ele, era apenas mais um dia, mais uma
experiência sem graça, como todas as outras daquele tipo. Pelo que via, era a única pessoa
com consciência ali. Sentia-se só, mesmo com aquela garota ao seu lado, beijando-o quando
queria, excitando-o quando queria, transando com ele quando queria. Entretanto, não o
satisfazia. Não havia emoção nenhuma.

Inexplicavelmente, desejava que a virada chegasse logo, não apenas para se livrar do
ambiente de libertinagem em que estava inserido– e que, de certa maneira, lhe causava
náuseas–, mas porque ainda tinha a mesma sensação de alguma coisa boa indescritível.
Como se fosse uma esperança, ou uma realização. Não sabia o que era.

— Já comeu, Nadia?
— Já, já. Estou perfeitamente bem. As lombrigas agradeceram.
— Você está um arraso!

Os olhos de Jane brilhavam ao visualizar Nadia. A moça se sentia orgulhosa pelo trabalho
feito com a garota– conseguira, parcialmente, dar à alemã a aparência feminina e delicada
que sempre esteve escondida por trás das vestes surradas, exposta na blusa branca, de
boneca– com mangas curtas e botões
–; no cabelo preso em um rabo de cavalo, com as mechas mais destacadas soltas; e na boca
levemente pintada de vermelho. As únicas coisas que, de certo modo, estragavam sua
aparência angelical eram a bermuda velha, surrada e rasgada que usava e os All Stars. Porém,
não podia falar nada. Nadia já apresentava sensíveis melhoras na sua maneira de se vestir.

— Obrigada. Nós vamos descer a que horas?

— Próximo à meia-noite. Não há pressa.

Nadia desviou o olhar para o relógio, ainda eram dez e vinte. Infelizmente, já não estava tão
ansiosa quanto antes.

*
Os jovens não desceriam à praia tão cedo – alguns, provavelmente, nem iriam, tamanho o
estado de embriaguez em que se encontravam. Tentou se manter lúcido até a meia-noite,
precisava sair daquela casa o quanto antes. A fã dormia em seu colo, convicta de uma
segurança que não possuía. Não se incomodava por tê-la tão próxima, mas tinha certeza de
que não iria atravessar os anos com ela. Precisava estar sozinho, ter um tempo para si
mesmo, necessitava de reflexão.

O alto teor alcoólico em sua cabeça já ultrapassava os limites normais, fazendo-o pensar
idiotices. Resolveu parar de beber, por enquanto. Tinha de guardar um pouco de consciência.

Sentada sobre uma canga, Nadia observava o mar, sem expectativas. Faltava pouco para a
mudança de ano, cerca de minutos. Yooki, Jane e o marido, e alguns amigos deles estavam
um pouco mais distantes, sentados em uma mesa, sem, contudo, desviar a atenção dela– praia
lotada, precisavam cuidar da garota estrangeira. Fechou os olhos, rememorando todos os
acontecimentos da sua vida naquele período de 365 dias. A escola antiga, os amigos, as
brincadeiras, a mãe, o costume de vender desenhos, Berlim, a Alemanha. A notícia, o baque,
a mudança, a adaptação. O primo, a amiga do primo, as roupas novas, o aniversário, o show,
Alice e Arashi Hikari, a decepção com Karl. Os sonhos. O desenho.

Respirou fundo, cerrou os olhos com força, apertou os próprios braços. Estava cansada de
muitos dos acontecimentos da sua vida. Em menos de seis meses, tudo mudara de maneira
drástica e inimaginável. Agora se encontrava longe da sua mãe, longe dos seus amigos,
largada pelo protótipo de namorado, tentando não escapar da realidade e relutando em dar
uma passeada pelos seus sonhos por medo de enlouquecer mais uma vez. Riu da sua própria
contradição. Evitava perder a razão em sua imaginação, mas já estava ficando louca na sua
vidinha real e sem brilho. Então qual seria a melhor maneira de perder completamente o
juízo: no que acreditava ser de verdade ou em suas ilusões?

Cansara de pensar, cansara de tentar acreditar em boas energias para um novo ano.
Simplesmente cansara de fazer sua cabeça raciocinar. Levantou-se da areia, pegou a canga e
caminhou em direção à mesa divertida, pedindo licença.

— Voltar para casa.— avisou, sem rodeios.

— Vai perder os fogos, Nadia? Tem certeza?— Jane franziu o cenho.


— Sabe ir sozinha?— completara Yooki.

— Não ter ânimo. Cheiro ruim, barulho ruim. Ver fogos da varanda.

— Quer que eu vá com você?— Yooki já se levantava da cadeira.

— Não. Sozinha.

— Ok.— Jane entregou as chaves à garota— Feliz ano novo, Nadia.

— Feliz.

Deu outro gole. A vodca já descia cortando por sua garganta e os efeitos se faziam visíveis.
Podia sentir a lucidez se despedindo, ficava embriagado aos poucos. Largou a garrafa na
lixeira da rua, não suportava mais beber – e não queria ter ressaca no outro dia. Pretendia ir
embora o mais cedo possível. Parando de andar, cerrou os olhos com força para tentar se
restabelecer, tinha medo das imagens começarem a ficar embaçadas– o pior sinal para um
bêbado. Abrira-os devagar, e uma figura, aos poucos, foi se fazendo visível. Uma única
figura em meio a tantas. Uma única silhueta que poderia ser a mais simples e comum
possível entre as várias que percorriam o local, mas que, por algum motivo, tornava-se a
mais atraente e eletrizante.

Fixou o olhar vacilante naquela pessoa parada em frente a um portão, olhando firmemente
para ele– estava olhando, não estava? A blusa branca que mostrava, fracamente, o desenho
de um sutiã; o cabelo preso em grampos; a pose firme, olhos indecifráveis. O seu coração
disparou. O que aquela garota tinha de mais? Por que deixava de olhar os outros para se fixar
apenas naquela figura franzina?

O efeito da bebida, naqueles míseros instantes, parecia querer cessar – ou se agravar. Agora
era ele que estava estático. A fisionomia daquela garota... Lembranças. Trêmulo– não mais
pela bebida forte –, tentou caminhar até ela– será que a alcançaria? Sentia medo. Seria
apenas uma loucura inventada por sua mente ébria?

Quando parou diante da figura, seus orbes negros a fitaram, incrédulos. Ela parecia muito
real, materializara-se muito bem. Ainda assim, não conseguia acreditar na vivacidade da sua
face, do seu corpo. Aquele momento parecia não existir.
*

Então resolveu aceitar enlouquecer no irreal e, por isso mesmo, ele lhe surgira? Pois bem,
que fosse. Encheu o peito– um estranho cheiro de bebida alcoólica invadiu as suas narinas.
Descendo os olhos pelo corpo dele, procurou a sua mão, apertando-a em seguida. Era gélida
e calejada, mas grande, firme e lhe trazia segurança– parecia real. Voltando o olhar para ele,
percebeu que aqueles olhos escuros a observavam, tentando compreender aqueles instantes.
Embora lutasse contra, sabia que, no fundo, era apegada àquela imagem que, praticamente,
lhe rendera um atestado de insanidade crônica. Às noites, era aquele rapaz misterioso e de
expressão triste que predominava em seus sonhos, tentando deixá-los menos insuportáveis.
Pensar nele, observar o desenho... Divertimentos que lhe tiravam parcialmente da realidade
sem graça. Ocupavam a sua mente, pelo menos.

Amar o irreal doía. Porém, bem menos do que a realidade.

Cinco segundos para a entrada no ano.

Ele continuava a olhá-la, como se maravilhado. Levando a outra mão ao rosto dela, deslizou
os dedos pela sua face, estudando as cavidades que compunham aquela fisionomia. Nadia
fechou os olhos. Esperava apenas não estar sonhando.

Três segundos.

O cheiro de bebida ficava cada vez mais forte em suas narinas, assim como o leve sopro de
uma respiração. Não estava louca, estava?

Um segundo.

Quando sentiu a maciez de lábios gelados se aproximarem dos seus, os fogos já queimavam
no céu, as pessoas se abraçavam, comemorando a entrada de 2008, fazendo simpatias à beira
do mar. Risos, música, bebida, promessas, tudo isso ao redor acontecia, mas era como se não
existisse nada– assim como todos ignoravam sua experiência relativamente sobrenatural.
Vivenciava apenas o estranho instante em que o sonho saíra da sua cabeça e se manifestava
corporalmente. Não sabia explicar com coerência o ocorrido. Poderia ter acontecido
exatamente o contrário, ela que entrara de vez nas suas próprias fantasias. Como iria voltar
ao mundo real? O que pensariam preocupados, onde estaria Nadia? E não saberiam nunca a
Yooki, Jane e os outros? Ficariam resposta: presa dentro de sonhos, acompanhada de um
jovem que sempre lhe visitava no período noturno, quando ninguém via. Ele a apertava
contra seu corpo, com força. Havia algo a mais naquela sensação estranhamente real, naquele
beijo que não parecia ser apenas fantasia, nos braços que a envolviam, na língua que
penetrava em sua boca com voracidade. Se fosse apenas insanidade, será que aquela
intensidade era normal? Quando os lábios se distanciaram, prevalecia a vontade de ter mais,
mas o desejo e o dever de se manter sã também. Ainda abraçada a ele, olhou mais uma vez
para a sua figura de jeans rasgados, pulseiras de couro e fivelas, blusa do Skid Row e tênis.
Abaixou a cabeça e o empurrou gentilmente, indo para a entrada do condomínio e abrindo o
portão que dava para o apartamento. Precisava ficar só para restabelecer o seu juízo afetado.

Adrien não compreendia. Primeiro, viu a garota dos seus sonhos à sua frente, em carne e
osso. Depois, em uma inesperada vontade, abraçou-a e a beijou, sendo prontamente
retribuído. Embora acreditasse estar louco, não conseguiu resistir àquele corpo pequeno que
cheirava à lavanda, àqueles lábios vermelhos e delicados. Quando se separaram, ela apenas o
olhou e saiu, como se nenhum momento fantástico houvesse ocorrido. A confusão se alastrou
por sua cabeça. Era ela, não era? Ou não? Seria efeito da bebida? E se não fosse... Talvez
tivesse assustado a garota com o seu estado embriagado, era um desconhecido ébrio, afinal. E
se houvesse sido apenas um devaneio? Estava bêbado, ridículo. Há tempos não se encontrava
tão perturbado pelo álcool. Mas havia sido tão real... Não, não fora. Fora efeito da sua
bebedeira.

Resolveu voltar para a casa onde estava hospedado – mais um pouco naquela praia e perderia
completamente a sanidade. Acreditava que não iria se perder. Mesmo estando bêbado, ainda
não estava em estado crítico. Caminhou a passos lentos pela avenida, constantemente
esbarrando em outras pessoas, sendo abraçado por outros ébrios, recebendo beijos de
algumas garotas. Tentou manter sua mente limpa de qualquer pensamento até chegar ao seu
destino – preferia não encher sua cabeça com dúvidas e lembranças.

Quando chegou em casa, os poucos jovens que ainda se mantinham em pé o abraçaram,


desejaram feliz Ano Novo. Respondeu pouco amistoso. Queria apenas ir até o seu quarto,
ficar por lá, trancado e sozinho. Subiu as escadas, uma sensação estranha no estômago. Abriu
a porta, a garota que o chamara estava lá. Merda.

— Adrien!— ela gritou quando o viu entrar.— O que deu em você? Por que sumiu? Ele não
respondeu nada. Olhava para baixo, como se ela não estivesse falando com ele. A sensação
subia do seu estômago para o peito. Do peito, para a garganta. Da garganta, para os olhos. —
Pode me responder?— as perguntas dela eram insistentes.

Não, ele não iria segurar. Mas que diabos! Odiava quando isso acontecia na frente dos
outros, mas burlar a moça seria impossível. Encostou-se com força na porta e escorregou
pela madeira fria rapidamente, sentando no chão e apoiando a cabeça nos braços encostados
nas pernas. Mantivera-se em silêncio, não queria olhar para a sua acompanhante– preferia
que ela não estivesse lá.

— O que é que você tem?

A garota se aproximou, desconfiada. Tocou em seu ombro e, em poucos instantes, escutou os


baixos soluços que saíam da sua boca. Sobressaltou-se.

— Ei, ei, ei!— gritou, afastando os braços de Adrien do seu rosto.— Por que está chorando?
O que foi que aconteceu?
— Me deixe só.— falou, apenas.
— Mas...
— Me deixe!— ele gritou, em explícito estado de embriaguez.
A moça não mais contestou. Empurrando-o, saiu, deixando-o só e satisfazendo a sua
vontade. Quando se viu na solidão, Adrien deitou-se sobre o chão duro e frio, enquanto as
cenas de momentos antes passavam por seus olhos como em um filme.

A claridade fazia seus olhos arderem, incomodando-o. A memória fraca o impedia de pensar,
de rememorar e organizar fatos. Uma insuportável dor de cabeça o atingira – um remédio o
mais rápido possível! Levando as mãos às têmporas, tentou abrir os olhos pesados, desejando
fugir daquela luz dolorosa. As imagens embaçadas, aos poucos, iam fazendo uma
composição, inicialmente desconhecida. Pele negra, sedosa, bonita, coberta por um vestido
branco de renda. Pernas cruzadas, braço apoiado na coxa, esse que, por sua vez, apoiava o
rosto enfadado. De onde conhecia aquela moça?

— Sinceramente, você me causa tédio.

Fazendo força para se sentar, continuou com a mão na cabeça, sofrendo pela incontrolável
dor.

— O que está fazendo aqui?— perguntou, pouco amistoso e ignorando o comentário ferino
da jovem.
— Vendo o completo idiota que você é.
Acordar sendo criticado não era uma boa maneira de começar o dia.

— Se é para insultar, é preferível que saía. Não estou muito a fim de receber críticas e nem
de escutar qualquer tipo de repreensão.

— Não vim aqui para te ofender, isso eu faço em todos os instantes nos quais tenho o
desprazer de presenciar a sua falta de atitude! Vim aqui para ser bem franca e direta.

— Mais do que já está sendo?

— Bem mais.— ela franziu o cenho.— Não está assustado por eu estar aqui, por ter
aparecido do nada em seu quartinho?
— Francamente, tem tanta coisa maluca acontecendo que, mais uma ou menos uma, não vai
fazer diferença.
Segurando o queixo de Adrien com força, obrigou-o a olhar em seus olhos.
— Escuta aqui, garoto: perdi a minha paciência com você. Sejamos bem diretos: para um
rapaz que estuda Literatura, você está péssimo em descobrir o que há nas entrelinhas.
Quem era aquela mulher para agir como se ele fosse uma moçoila? Enfurecido, Adrien
afastou a mão da moça, não medindo a força que impusera.
— Pode ser menos abusiva, por favor? Já me basta a sua desagradável presença.
A moça se levantou, mostrando, assim, a sua superioridade.
— Por três vezes— começou—, você teve a oportunidade de encontrar a garotinha que está
te fazendo perder o juízo, percebeu?
— Se estiver se referindo a ontem, saiba que eu estava bêbado. E bem bêbado.
— Não somente a ontem, mas também às outras duas vezes em que ela praticamente passou
por debaixo do seu nariz.
— Mas que porr...
— Shh, calado.— a moça lhe apontou o indicador.— Quando os mais velhos falam, as
crianças precisam ficar quietas.— ela começou a dar voltas em torno do quarto.— Ando te
observando há algum tempo, desde o dia em que tivemos o nosso primeiro encontro. Sei
exatamente quais lugares frequenta, o que faz neles... Tenho um relativo conhecimento sobre
sua vida, Adrien Guerra. Caso você não fosse tão cético, irresponsável e pessimista, e tivesse
escutado o que alertei desde o início, acredite: não estaria com todas essas dúvidas entupindo
a sua cabecinha!
— Quem é você para falar algo sobre mim?— só a voz dessa determinada mulher já fazia a
raiva pulsar.— Eu nem te conheço, louca!

— Não, realmente você não me conhece, mas eu, querido Adrien, sei muita coisa sobre você.
Quer um exemplo? Eu sei que, nesse exato momento, você ainda pensa nos momentos que
vivenciou na praia e ainda se pergunta se estava apenas tendo uma ilusão típica de bêbados
ou se, por alguma inútil razão, vivia um momento real. Estou enganada?
Adrien virou o rosto. Odiava quando uma pessoa estava certa sobre algo que tentava negar.
— Dá para dizer logo o que você quer e, finalmente, dar o fora daqui?— foi a única coisa
que conseguira dizer.

A mulher riu, um sorriso de triunfo e vitória. Sentou-se novamente ao lado de Adrien. — É


desse jeito que eu gosto... Pouca contestação e muita submissão. Até que você aprende
rápido, garoto.— ela suspirou, ainda sorridente. — Me diga, querido Adrien, qual sua
preferência: saber das suas tarefas antes de começá-las ou conhecê-las aos poucos, enquanto
as está cumprindo? — Faça o que achar melhor.

— Embora insuportável, ainda assim você é uma delícia.


— Agradeceria se não fizesse tantos rodeios.
Ela inspirou com força, todavia expirando rápido.
— São três tarefas bem simples: encontrá-la, prendê-la e impedi-la de chegar ao Yume.
Adrien franziu o cenho.
— Onde?
— Menos perguntas e mais ação, menino.— o tom de voz da moça mudou mais uma vez,
abandonando a brandura e empregando a autoridade.— Não gosto de interrogações.
— Como acha que eu vou conseguir tudo isso? Já viu o tamanho de São Paulo? Ah, ainda
por cima, quem me garante que essa guria é paulistana?— Adrien baixou a cabeça, passando
a murmurar para si mesmo.— E que tipo de merda eu estou falando...?

Com o dedo indicador, a mulher levantou o queixo do guitarrista, obrigando-o a encará-la


mais uma vez.
— Se quiser esclarecer suas dúvidas e parar de viver nessa dualidade de real e de irreal,
aprenda uma coisa: só conseguirá cumprir suas tarefas se, por acaso, deixar de ser tão cético.
— ela deslizou os dedos pelo rosto do rapaz, o tom novamente doce.— E eu sei, meu bom
menino, que você sempre quis deixar um pouco de ver as coisas tão pragmaticamente. Está
na hora de superar esse medo e, tenha plena certeza, isso não é uma opção. Mas,
respondendo à sua pergunta: para realizar a sua obrigação, apenas acredite. Só acreditando
irá conseguir obter o resultado final.
— E como eu faço para contatá-la?
Ela sorriu novamente.

— Vocês não se comunicam por sonhos? Então, aproveite essa facilidade enquanto o dono
dos sonhos dela ainda não chega. Eu mesma já tentei falar com ela e não consegui, acho que
você seria mais vitorioso nessa tarefa.
— Você não vai me ajudar?— havia incredulidade na voz do rapaz.
— Isso é tarefa sua, meu bem, não minha. A garota não me permite encontrá-la, pertence a
outro. E, na vez em que tentei um contato, além de ela não ter me visto, ainda pensou que
estava doida. Não é uma pessoa muito normal, coitadinha...

E, antes que Adrien pudesse fazer qualquer outra pergunta ou comentário, a moça
pronunciou-se:

— A propósito, você precisará disso. Levando a mão ao pescoço do rapaz, a encontro das
clavículas do guitarrista. Impondo uma mulher agarrou um pedaço invisível localizado no
força demasiadamente grande para quem nada segurava, a moça gesticulava como se puxasse
uma corda imaginária, atos esses que foram recebidos com desconfiança por parte de Adrien.
Não sentira algo saindo de si em momento algum.
— Não se preocupe.— ela falou, quando terminou o seu estranho ritual.— Na hora exata,
você vai conseguir enxergar isso. Por agora, somente espere. Faça a primeira tarefa, depois
aguarde a próxima. É apenas questão de tempo. Boa sorte.

Ela se levantou, como se já houvesse dito o suficiente. Contudo, antes que desse o primeiro
passo a caminho da saída do quarto, sentiu a mão de Adrien segurar o seu tornozelo. Olhou-
o, curiosa.
— Por que eu?— ele perguntou, sem encará-la.— E o que é esse Yume?
— Por quê?— sua voz saíra menos ácida e irônica do que o costumeiro.— Porque foi
escolha dela que fosse você. E o Yume— ela abriu a porta, afastando-o delicadamente— é o
lugar que nunca poderá ser visitado. Nem por vocês, nem por ninguém. Recupere-se da
ressaca, Adrien. Tenha um bom resto de tarde.
A mulher desapareceu. Sozinho, Adrien olhou para o teto com infiltrações. Ainda estava
lúcido, não estava?
13.
3 DE JANEIRO, 2008

Quando a quarta-feira chegou, ainda sentia os sintomas da viagem. O corpo continuava


dolorido, a cabeça latejava– embora com menor intensidade. As ideias também estavam
confusas, mas ele preferia simplesmente não lembrar nada e não tentar entender o fato
ocorrido na virada do ano. Corria o risco de ficar mais louco do que já achava estar.

— Até que enfim! Achei que não viria mais!

Arashi estava sentado no chão, olhando para ele impaciente. Já havia ligado mais de sete
vezes para o seu celular, esquecendo completamente o fato de que Adrien ainda dirigia uma
moto e não havia como atendê-lo.

— Você está com uma cara boa.— comentou o guitarrista com amargura, quando o amigo
subiu na moto.

— E você com uma cara péssima.— completou o vocalista, ajustando o capacete.—Ainda


está de ressaca?
— É, creio que sim.
— Ah, fica frio. Numa hora essa ressaca passa, você vai ensinar a minha futura gata. Mas,
olha! Nada de dar em cima dela, ela já é minha!
Adrien fitou Arashi por detrás da lente de proteção do capacete.
— Ensinar?— questionou, confuso.— Ensinar a quem?

— Ah, tudo bem então. Eu fico no aguardo. Valeu, cara.

Nadia encarou um Yooki desanimado desligar o telefone. Observou o primo bagunçar os


cabelos enquanto a expressão de frustração e preocupação surgia em seus olhos miúdos. —
Algum problema?— perguntou, curiosa.
O primo suspirou.
— Eu tinha conseguido um cara para te ensinar português. É o guitarrista da Reticências, ele
está perto de se formar em Letras e pensei que seria uma boa opção para nós. Mas parece que
ele não vai conseguir, tem outros compromissos. — Yooki suspirou novamente — E
também, acredito que combinamos essas aulas em um momento bastante inoportuno. Acho
que ele estava em uma festa, sei lá. Foi um dia antes da virada.

— E agora?— Nadia sabia que Yooki estava cogitando aulas particulares de português
para ela. Ansiava por aquilo, não aguentava mais continuar sem entender o que as pessoas
que a rodeavam falavam. Também não lhe agradava a ideia de começar a escola dali a alguns
meses sem saber se comunicar direito.

— O lado bom é que ele conhece alguém que é da Letras-Alemão e que está com tempo
disponível nesse mês. Então ainda temos chances, não é? Até lá, vamos tentando por nós
mesmos.— Yooki se dirigiu a Nadia e bagunçou os cabelos da menina.— Não vou mais falar
em alemão com você, certo?

— Yooki!— Nadia resmungou. Aquilo já era um pouco demais, não? — É um mal


necessário, Nadia.— o primo sorriu.— Vá se acostumando, sim? A alemã bufou. E com uma
careta no rosto, assentiu.

SEGUNDA SEMANA DE JANEIRO - 2008

— Você não vai conseguir...


— Cale a boca e me deixe trabalhar.
— Se eu estou dizendo que você não vai conseguir, é porque não vai e pronto. — Ouviu que
mandei você ficar quieto?
— Convenhamos, quem te disse que só porque conseguiu uma vez, vai ter de conseguir
outra?

A sorte muda, sabia?

— Três palavras: vá se danar.

— Talvez fosse melhor você ir ler aqueles livrinhos infantis que seu primo te emprestou,
aqueles do Sítio do Pica-Pau Amarelo! Não é para aprender português? Bem mais útil que
ficar tentando desenhar essas porcarias que você sonha!

— Suma logo!

Em instantes, o monstro de forma ameboide e colorido por um dégradé roxo sumiu, deixando
a mente de Nadia silenciosa. A menina suspirou e, em seguida, voltou a olhar o protótipo de
loja à sua frente. Já estava ficando experiente em transferir visões oníricas para o papel, mas
ainda não conseguia captar as imagens com perfeição, com apenas um ou dois sonhos.
Todavia, o tempo era curto– dessa vez, não se tratava apenas de um mês, e sim uma semana.
Precisava correr.

— Só um instante, Arashi. Vou pegar a calculadora, acho que a deixei em meu quarto...

Yooki se retirou do escritório musical, deixando Arashi Hikari sentado na poltrona vermelha,
a cabeça baixa, os braços presos pelas pernas que, constantemente, balançavam. Timidez
crônica, severa e aguçada– em momento algum, Arashi encarou Nadia, mantendo-se sempre
de olhos baixos e voz inaudível. Um pequeno sorriso se formou nos lábios da alemã– era
cômico ver alguém com desenvoltura contagiante em palco ser demasiadamente retraído na
vida comum, principalmente no quesito mulher.

Puxando outro papel de dentro da pasta, observou bem os traços do rapaz: cabelo bicolor,
orelhas com piercings, blusa azul clara, calças jeans, tênis, um pequeno e charmoso sinal na
maçã do rosto, lábios finos e pequenos, olhos miúdos e repuxados, nariz afilado – feições
tipicamente femininas. Não seria difícil, em cerca de uma hora estaria pronto. Tinha tempo
suficiente, já havia estudado as suas lições de português do dia – o professor que Yooki
contratara era do tipo que quatro horas de aula diárias, além de dez páginas de exercícios
complicados, pegava pesado. Eram contando traduções e conversações. Nadia estava exausta
depois de seis dias de estudos intensos, merecia um descanso– e nada melhor do que
desenhar para tal.

— Pronto, vamos fazer as contas.

— Hey.

Arashi se virou, as faces começando a adquirir o tom rosáceo dos seus cabelos. A voz travou,
fora pego desprevenido. Todos os músculos pararam ao ver a figura pequena, de vestes
largas e nada femininas, indo em sua direção. Precisava dizer muitas coisas àquela menina,
tantas que não conseguia pronunciar nem a primeira palavra. Sentia vergonha por todos os
constrangimentos aos quais a submetera.

— Olha,— começou, vacilante— eu sei que fui meio abusivo e idiota com você, por isso
quero que saiba que estou muito arrependido. Eu não sabia que você era alem...
— Toma.
Ela não o permitiu que ele falasse todas aquelas desculpas inúteis, entregando rapidamente o
envelope branco. Surpreso, Arashi olhou o pequeno amontoado de papel, voltando a observar
a face da garota.

— É para mim?— perguntou, desconsertado.

Nadia apenas aquiesceu com a cabeça. O vocalista tomou o envelope nas mãos, abriu-o,
retirou o papel cuidadosamente dobrado. Em segundos, um retrato perfeito seu surgira em
uma folha branca. Engasgou-se.
— Tudo bem?— ela perguntou, o cenho franzido, provavelmente pensando que Arashi era
perceptivelmente perturbado.

— Desculpa.— o vocalista pediu, tentando se recompor— É que... eu não esperava.

Um sorriso apareceu em seus lábios estrangeiros. Droga, por que ela era tão fofa mesmo
vestida como um pequeno homem?

— M-muito obrigado.— até para agradecer parecia estúpido.— Mesmo, está... incrível.
Arashi já dava um passo para fora do limite da casa de Yooki quando, mais uma vez, aquela
voz feminina, grave e recheada por um forte sotaque o chamou:
— Hey!
Arashi virou-se, o corpo ainda trêmulo, os pequenos olhos arregalados.
— Poder... Me ajudar?— havia um olhar de súplica no rosto da alemã.
O vocalista respirou fundo. Ó céus!
— Claro.

Entrou no apartamento mais uma vez, desajeitado, as mãos socadas nos bolsos, seguindo
Nadia. Acompanhando-a até o quarto, visualizou-a abrir uma pasta verde– a mesma que
estava com ela horas antes – e retirar outro papel, que lhe entregou, em seguida. Um pequeno
esboço – simples, mas incrivelmente bem feito.

— Saber onde fica?— ela perguntou, curiosa.


Arashi levou a mão ao queixo, observando a imagem incompleta estampada no papel.
— Pode me emprestar um lápis, por favor?

Nadia não recusou. Enquanto pegava o material de desenho, o rapaz se acomodava no birô
do quarto, ainda com os olhos fixos no desenho. Recebidos lápis e borracha, iniciou a sua
participação na construção da imagem, fazendo alguns ajustes e acréscimos e sendo
observado por Nadia. Em poucos segundos, tudo completo.
— Essa aqui— ele lhe entregou o papel— é uma loja de vinis que fica na Galeria do Rock.
Só isso?
Outro sorriso se formou nos lábios de Nadia quando recebeu o desenho terminado.
— Obrigado.— agradeceu, empolgada.— Você ir muito lá?
Arashi levou a mão à cabeça, passando os dedos pelos fios e despenteando o cabelo já
bagunçado.
— Às vezes. Só quando alguns amigos me acompanham. Por quê? Quer comprar algo? —
Não. Eu precisar ir lá.— ela abriu a porta do guarda-roupa, retirando uma
blusa quadriculada, com botões e mangas compridas. — E agradeceria se me acompanhasse.

Por segundos, os pulmões do cantor pararam de mandar oxigênio para as suas veias.
— M-mas eu...
— Tem compromisso?— Nadia já calçava os seus tênis.
— O Yooki vai deixar?
— Por que não?— ela se levantou, indo olhar a sua imagem no espelho grudado no
guardaroupa, bagunçando a franja longa que caía por sua fronte e alcançava os olhos— Eu
sair muito na Alemanha, Yooki não poder me tirar isso.— dirigindo-se, agora, a uma das
gavetas do birô bagunçado, retirou as moedas de uma das caixas guardadas, socando-as nos
bolsos—E aí? Poder ir?

Poderia ter dito qualquer coisa, algo como não, desculpa, tenho um compromisso inadiável,
ou o velho e nada convincente estou passando mal, mas não conseguiu proferir nenhuma
palavra de recusa. Quando aqueles grandes olhos– de um verde ocre devastador– o
encararam, uma hipnose muito bem elaborada fora jogada sobre si, fazendo-o perder o
controle sobre suas ações. Ainda gostaria de entender o que aquela menina de péssimo gosto
para vestuário tinha de tão atraente a ponto de torná-lo um mero soldado de suas vontades.

Talvez estivesse exagerando – como normalmente o fazia. Era só um favor, que mal tinha
nisso? Sentada ao seu lado, as pernas e os braços cruzados, rosto virado para a janela, pé
balançando, ela não notava o seu crônico estado de nervosismo – o que era até agradável, não
queria aumentar a sua vergonha. Tirando o MP4 do bolso, colocou os fones nos ouvidos,
procurou qualquer pasta, apertou o play em uma faixa aleatória e abaixou a cabeça. Situação
extremamente constrangedora– caso os seus companheiros de banda o vissem em tal estado,
certamente já estariam tirando sarro com sua timidez aguçada.

— Hey.
Escutar aquela chamada não era tão tranquilizador.
— Eu poder escutar?— ela perguntou, direta.
Balançou a cabeça em gesto afirmativo, entregando-lhe um dos fones.
— Qual banda?
— Grand Slam. Já ouviu falar?
— Não.— ela passou alguns segundos escutando o refrão da música.— Mas é legal! Nett.

O resto do trajeto foi realizado com o compartilhamento das músicas que tocavam no
aparelho. Nadia não parecia se importar com aquela aproximação, agia de forma normal– o
que não era para Arashi. Quando chegaram ao ponto, desceram do ônibus, entraram na
galeria e caminharam em direção à loja.

Fale com ela! Anda, seu idiota!

— Você está... hm... falando melhor o português, não é?


Que assunto estúpido.

— Mesmo?— ela ficou animada.— Eu achar que foi livros. Ganhei alguns. Mas também ser
meu professor, o Átila. Ele ser muito bom.
— Livros?— Arashi se mostrou interessado. Nadia já estava lendo?— Quais? Nadia
suspirou, um surto de constrangimento.
— Sítio do Pica-Pau Amarelo.— o sotaque carregado da alemã tornou sua resposta cômica.

Caso fosse outra pessoa que tivesse dito aquilo, provavelmente Arashi estaria desabando em
risadas frenéticas naquele instante.

— É uma coleção muito boa!— foi a única coisa que pudera falar.— Eu gostava de ler,
quando era criança.
— Isso não ajudar muito.
É, realmente não ajudava. Melhor continuar calado e só falar quando chegassem à loja.
— Por que seu cabelo ser dessa cor?

A pergunta o surpreendeu. Constrangido, levou a mão aos fios, passando os dedos por eles,
bagunçando-os mais uma vez.
— Ah, por causa do Hide.— respondeu, levemente ruborizado.
— Hide?
— Sim. É o antigo guitarrista do X-Japan. Conhece?
— Eu achar que a Alice falar algo.
Ele sabia que a irmã e Nadia estavam amigas. Até demais.
— Ele era foda, a banda era foda, as músicas eram foda... Putz, você precisa escutar os
álbuns deles, são divinos, obras primas!— aos poucos, a timidez de Arashi desaparecia. Um
entusiasmo diferente surgia em suas palavras.— Sempre foi a minha banda favorita, acho que
pintar o cabelo como o do Hide foi a única maneira que encontrei para conseguir mostrar
toda a minha gratidão e admiração por eles. Se hoje sou assim, devo tudo ao X. Aqueles
caras foram e são a minha inspiração!

Nadia sorriu, e aquele sorriso deixou Arashi constrangido mais uma vez.

— Desculpa.— pediu, ainda mais ruborizado.— É que eu sempre me empolgo com X.


— Sem problema. Você não precisar se desculpar por isso. Se você gostar, você precisar
falar e não esconder. É meio ridículo, não achar? Se a gente gostar, ter mais é de admitir.
Um sorriso tímido apareceu nos lábios de Arashi. Encabulado, abaixou a cabeça,
continuando a andar ao lado de Nadia, mantendo-se quieto até encontrarem a loja.
— Bom, isso aqui condiz com o que você desenhou?

Ela cruzou os braços, parada em frente à vitrine, olhando o interior e o letreiro. Mordiscou o
lábio e, apressada, entrou no estabelecimento, atravessando, ao lado de Arashi, as inúmeras
prateleiras de bolachões e CDs antigos, o cheiro da poeira pairando. Chegando à bancada
onde a vendedora– ruiva, tatuada e demasiadamente bonita – assistia a um show de alguma
banda de Death Metal, estendeu o papel dobrado que estava guardado no bolso da sua calça.
A moça a olhou antes de voltar a atenção para o que lhe era mostrado.

— Por favor, ter esse vinil?


A vendedora desdobrou o papel, observou o desenho e sorriu com deboche para Nadia.
— Está reservado.— disse.— Mas creio que seja para você, menina de olhos verdes. Arashi
apenas observou a cena que se seguira: o álbum The Dark Side of The Moon, do Pink Floyd,
sendo entregue à Nadia; ela saindo da loja alheia aos acontecimentos ao seu redor, soltando o
plástico que encapava o bolachão. Quando a alcançou, um envelope estava em uma das mãos
da alemã, enquanto a outra comportava uma folha de caderno.
— Nadia?

Inicialmente, ela não deu atenção ao chamado, ainda entretida com as prováveis palavras
escritas no pequeno bilhete mal feito. Observou-a ler, curioso quando aquele sorriso
resplandecente saiu de seus lábios. Guardando o papel no envelope e colocando o mesmo
dentro da capa do vinil, Nadia voltou seus grandes olhos para Arashi. Havia um brilho a mais
neles.
*

Uma semana depois, voltou à loja, o coração apertado. Se por um lado achava estar agindo
como um estúpido utópico, por outro se sentia ansioso. E se realmente fosse verdade? Os
últimos estranhos acontecimentos da sua vida pareciam reais demais para ainda estar
duvidando. Eram dois lados contrastando: o que desacreditava e o que insistia em acreditar.
De qualquer forma, o que iria perder? Minutos?

Esperava que ela tivesse entendido as mensagens que tentou passar pelos sonhos. — Oi.—
disse à vendedora assim que adentrou a loja e alcançou a bancada.— A pessoa para
quemreservei o vinil...—o coração disparou.—Ela já veio pegar?

A ruiva arqueou uma das sobrancelhas.


— Cara, vocês são doidos.— ela puxou uma gaveta que se localizava abaixo do balcão.— Se
eu tiver entregado mesmo à pessoa certa, ela deixou isso.— a moça entregou um envelope a
Adrien .— Mas as características que você me deu bateram com a garota, então acho que
acertei.

— Ela deixou o nome?

— Não que eu tenha visto ou escutado.

Adrien agradeceu e saiu. Caminhando pela galeria, subiu alguns andares e foi até uma
lanchonete. Sentou-se em uma mesa qualquer, rasgou uma das laterais do envelope, retirou a
folha de ofício que estava lá. Em instantes, uma letra parcialmente garranchada e ilegível
apareceu.

Não sei se realmente estou mandando esse bilhete à pessoa certa, mesmo que todas as
características e fatos batam. Caso você não seja quem eu penso, desde já peço desculpas
por incomodar, por ter lido a sua carta e por ter levado o vinil do Pink Floyd (posso
devolver, eu juro). Mas se, por acaso, eu realmente estiver certa quanto a quem acho que
seja, então desejo que continue a ler estas poucas e mal feitas palavras (embora eu bem
saiba que você iria ler do mesmo jeito, sendo ou não o cara que espero).

Eu poderia acreditar que peguei algo destinado a outra pessoa, porém há dois detalhes que
não pude ignorar, e que, por consequência, associei a alguns fatos:

1ª – A loja e o vinil eu vi em sonho.


2ª– Algumas das coisas que vivi estão relatadas naquela carta.
Tenho totais motivos para acreditar que sou louca, perturbada, precisando urgentemente me
internar, tomar comprimidos e ser acompanhada por um médico, tenha plena certeza. Passei
por coisas bem desagradáveis nos últimos tempos, uma delas envolvendo a sua imagem, pela
qual procurei todas as noites. A sua aparição em meus sonhos me fez pensar, por vários
dias, que meu estado de insanidade era grave e irreversível. Porém, isso foi quando eu ainda
estava lá. Agora estou aqui e ainda não consegui me livrar da sua figura. Achei que
conseguiria me curar desse“singelo” mal, caso ficasse distante de tudo que pudesse me
lembrar de você– mesmo que eu tenha guardado em uma pasta um retrato seu–, mas vi que
as coisas não caminharam bem por esse lado. Continuo sonhando à noite– e não mais me
forço a ter esses sonhos–; presenciei “aquele” momento na praia, como você bem
mencionou em sua carta; e, puxa, a maioria dos meus sonhos estão relatados em sua carta–
e acho que não estou conversando com o Sandman! Eu vivo isso, você vive isso. Então nós
dois existimos e desconhecemos nossas existências?
Ainda ando meio assustada com tudo que vem ocorrendo, custando a acreditar que não
estou sendo vítima da minha pobre e afetada mente. De qualquer forma, tenho um resquício
de esperança– ao que parece, tudo está sendo bem real. Se realmente estivermos certos de
quem somos e você quiser me contatar, acho mais viável nos comunicarmos por e-mail
(segue o endereço no rodapé). E, caso tenha dúvidas se sou mesmo quem procura, há como
provar.
Aguardo respostas.
N.

Inevitavelmente, um sorriso se formou em seus lábios.

— Você é louca!

— Isso eu saber, ter outra novidade?

— Hm... Ah, tem sim! Você é louca!— Alice se jogou na cama, agarrando um dos coelhos
macabros de pelúcia que costurou.— Quem te garante que esse cara é quem você pensa que
ele é? — O cara dele, talvez?
— É, mas ele não te mandou uma foto sequer!
— Pessoalmente a gente descobrir se ele ser ou não.
Alice suspirou, virando o coelho para a sua frente e ficando a olhá-lo.
— Definitivamente, te falta juízo, Nadia.
— Eu nunca dizer que tinha.

— E se ele for um maníaco, estuprador de menininhas, que assiste pornô aos sábados e lê
romancezinhos de banca?

— Calma, Alice! Nós estar juntas e ser na galeria. Não ser você quem gostar de conhecer
amigos da Internet?

— É diferente...

— Eu não ver diferença.— e, virando-se para a amiga, perguntou— Por que você não me
deixar colocar meu nome na carta e colocar um e-mail fake para contato?

— Porque a gente não conhece a pessoa? Prevenção, querida, prevenção! A gente nem tem a
certeza se o cara é realmente o cara! E acho que já fiz muito escrevendo aquela carta para
você. Ainda estou me condenando por isso.

— Mas não ser você a escritora da história?

— Desculpe-me, amada, mas eu escrevo apenas fanfics [11]homossexuais, não cartinhas para
desconhecidos!

Alice suspirou antes das duas garotas entrarem em silêncio.


— Essa sua história... não parece ser meio maluca?— perguntou a mais nova, enrolando uma
das orelhas da pelúcia em sua mão.— Sei lá, sonhar com um cara por tanto tempo e, do nada,
encontrá-lo onde menos se espera.

Nadia jogou a cabeça para trás, girando a cadeira rotatória.

— Muita coisa da minha vida não ser normal. Eu mesma ser meio maluca. Achar que estar
acostumada com isso.

— Ok, eu me rendo e admito: pode ser perigoso, podemos estar nos envolvendo com um
maníaco, você pode ser maluca, mas essa é a história de amor mais excitante que eu já vi!
Digna de uma fanfic!

— Isso não ser um história de amor, Alice. Ser história de loucura.

Alice saltou da cama, largando o coelho e pegando a carta que estava acima da mesinha do
computador. Releu a mensagem.

Espero não estar cometendo um engano, mas, se você recebeu este vinil antecipadamente
reservado, então é você a pessoa por quem procuro.
Creio que não devo relatar a minha vida e as minhas experiências aqui antes de ter a
certeza de que não estou enganado. Contudo, é minha obrigação, pelo menos, dar-lhe algum
sinal que comprove algo do que partilhamos: sonhos.

Se você é, realmente, a pessoa que encontrei na praia e que me perturba os sonhos


diariamente, por favor, dê-me um sinal de sua existência, mostre-me que pude lhe achar
neste palheiro. Porém, se não for, peço apenas que ignore e queime este singelo bilhete: não
almejo ser motivo para chacota. Aproveite seu vinil.

Agradecido. A.

— Não sei por que ainda acho que conheço essa caligrafia... Me lembra a letra de alguém, só
não consigo saber de quem.— ela colocou o papel de volta.— De qualquer maneira, quando
iremos ver o“muso” dos seus sonhos?

— Segundo o e-mail, semana que vem, na sexta.

— E ele falou algo sobre o final da carta, quando dissemos que você poderia comprovar que
sim, que é a pessoa por quem ele procura?
— Apenas“Não precisa comprovar nada. Eu já sei”.
— Hm... Ok, então. Vamos conhecer o senhor onírico. Leve as armas se precisar.

— Então é por isso que ela está aqui?


Yooki tirou os óculos, depositando-os em cima da mesa. Esfregou os olhos, cansado. —
Principalmente.

O velho se levantou, dirigiu-se à janela e se manteve calado. Embora não falasse e tentasse
preservar a pose, Yooki sabia perfeitamente que ele reconhecia o seu erro e estava
preocupado. Não eram necessárias palavras, apenas o seu silêncio.

— E o que você está fazendo?— o velho perguntou, sem olhar para o sobrinho. — Além de
cuidar da menina?
— É.

— Às vezes pago os remédios, as consultas, alguma coisa que ajude no tratamento. Contra a
vontade dela, é claro.

— Ela não aceita a sua ajuda?


— Não. Nem a pensão quer que eu pague, então fiz um trato: o tratamento médico comigo, a
pensão com ela. Foi o único modo.

— E cirurgia?

— É muito arriscado, ela não quer fazer. Prefere definhar lentamente, diz que está perto. Os
meses estão passando rapidamente.

— E a menina?

— Fica comigo.— e, caminhando em direção ao tio, Yooki perguntou.— E então? Vai


continuar com essa birra ou vai reconhecer a doença da sua filha?

A luz do sol incidia sobre ele no momento em que pisou na areia. Odiava sentir aqueles raios
tocarem sua pele, era como se tivesse alergia a eles. Porém, detestava ainda mais o seu erro–
poderia ter escolhido outro lugar para aportar, qualquer um pelo qual valesse a pena ter
realizado aquela exaustiva viagem onírica. Ajustou o chapéu na cabeça de maneira graciosa e
saiu, ignorando os olhares curiosos das pessoas para suas vestes pretas e compridas.

Seus pensamentos vagavam, perguntando-se onde ela se escondia. Estaria ela naquela cidade
chamada Salvador, escondida pelos raios solares que incidiam fortemente, ou pelas estruturas
históricas bem trabalhadas? Precisava encontrá-la o quanto antes, mas sabia que uma hora
conseguiria. Pisavam o mesmo solo, estavam na mesma pátria. Aonde quer que estivesse,
seria achada. Facilmente encontrada.
14.
SEGUNDA SEMANA DE FEVEREIRO, 2008

— E você não sabe o que fazer?

Arashi estava retraído, como um pequeno menino esperando a repreensão dos pais. Abaixou
a cabeça, apoiou os braços nas coxas e levou as mãos aos cabelos, despenteando-os.
— Não!— disse, em uma voz chorosa.— E continuo sem saber! Ela é tão única, linda e... e...
e...

— Gostosa?

— Também! Quero dizer, não!— o nervosismo o fazia confundir as palavras.— Ah, droga,
Adrien! Dá para ser menos interrogativo e me dizer o que raios eu preciso fazer?
— Ah, vai dizer que nunca teve vontade de segurá-la pelos cabelos?!— o guitarrista
depositou o cigarro no cinzeiro.— Mulher não gosta de firula, quer decisão. É pôr o seu
corpo contra o dela, sentir sua coxa em sua mão, pegá-la pela nuca e dar uns bons chupões
para deixar a marca!— ele riu, divertindo-se com o constrangimento do amigo. Dissera tais
palavras propositalmente, apenas para ver as faces do vocalista adquirirem o mesmo tom de
seus cabelos róseos.

— Sem sacanagem, Adrien!— Arashi suspirou.— Não estou falando de sexo! — Quer dizer
que envolve sentimento?

— Obviamente, sim.— ele bagunçou os cabelos mais uma vez.— A gente anda conversando
muito nesses últimos dias e eu venho descobrindo mais e mais sobre ela... Porra, ela é
incrível! A única garota que conseguiu me aturar falando de X-Japan por uma hora seguida e
que gosta de grande parte do que eu gosto! Só que eu não consigo ultrapassar a faixa da
amizade e isso é uma merda! As aulas do Yooki vão acabar e eu não falei nada! Um cara de
vinte anos não conseguir uma garota é ridículo! Até as minhas cantadas são horríveis!

— De fato, são. Mas você leva uma vantagem em relação a mim:— Adrien pousou a mão no
ombro de Arashi— consegue amar quem é real, de carne e osso. Então, meu bom amigo,
prenda a garota com unhas e dentes e não seja um masoquista sentimental que nem eu.— ele
se levantou, olhando o relógio do celular.— Preciso ir agora, Arashi. Tenho um
compromisso à tarde e milhares de coisas a fazer agora pela manhã.
— Envolve garotas?
Adrien suspirou.
— É, pode-se dizer que sim.

O corredor longo e largo não tinha início e nem final. Parada na metade do caminho, era
ladeada por paredes cheias de portas, distantes por centímetros umas das outras. A
escuridão predominava, assim como o silêncio. Gritava, clamando por alguém, porém não
obtinha respostas. Não sentia medo, apenas desconforto. Abraçou-se, tinha frio. Continuou a
caminhar.

Não havia saída, a passagem era infindável. Se havia alguma chance para ela, tinha de ser
nas portas que via. Tentou abrir a primeira na qual pusera os olhos, todavia estava
trancada. Foi à outra, continuou sem obter sucessos. Mantivera-se nessa atividade por um
tempo indeterminado, indo de um lugar a outro, de uma parede a outra. Não pretendia
voltar, só desejava seguir em frente– dar um passo para trás seria um problema, tinha
certeza disso.

Cansada, sentou-se no chão. Queria apenas pegar um pouco de ar antes de voltar à procura
pela saída. Cruzou as pernas, espreguiçou-se, fechou os olhos. Escutou um barulho de porta
abrindo. Tomou um susto e passou a olhar para todos os lados, procurando o caminho que
acabava de lhe ser fornecido. Não encontrou certeza, havia ouvido algo! nada, todas as
aberturas das paredes continuavam trancadas. Mas tinha

As extremidades do local eram completamente escuras, sombrias, não havia meios de


enxergar o que os horizontes lhe forneciam. Voltou o olhar para cima. Existiam mais portas
no teto, uma delas, a mais distante, estava aberta.

— Princesa?

Uma voz masculina, doce e melodiosa, propagou-se no ar, saindo pelo único caminho
mostrado. Parecia chamá-la.
— Fala comigo?— ela perguntou, em dúvidas.
Escutou um barulho de risada.
— Com quem mais seria?

Algo dentro de si mandou-a não prosseguir, não procurar aquela passagem. Porém, o
ímpeto e a vontade de sair do corredor falavam mais alto. Pusera-se de pé, caminhando
vagarosamente, ainda receosa. A voz tornava-se mais audível. Entretanto, enquanto andava,
subitamente parou, como se houvesse uma força maior a segurando. Desesperou-se, tentou
sair do local, continuar o seu trajeto, mas estava presa por algo invisível. A voz continuava
a chamá-la, todavia se tornava mais distante, assim como a porta que lhe permitia a
propagação, assim como o corredor, assim como tudo.

— Estou chegando, princesa...

— Bom dia, flor do dia!

Nadia se escondeu atrás do travesseiro assim que a cortina foi aberta. Com a voz arrastada,
pedia:
— Me deixar dormir mais, Alice...
— Jura!— a mais nova pulou em cima da amiga, puxando o lençol e sentando em suas
coxas.— Acorde logo, coisa! É quase uma da tarde e precisamos ficar divas para ir ver o seu
gatinho imaginário. Nadia retirou o travesseiro do rosto.

— Ser hoje?— perguntou, forçando a memória para tentar lembrar. Em sua mente, apenas a
imagem do último sonho prevalecia.

— Não, Nadia! Vim dormir aqui na sua casa apenas para desfrutar da beleza dos seus cabelos
bagunçados quando acorda.— Alice roubou o travesseiro e o jogou na mais velha.— Vá logo
para o banheiro e coloque o seu lado tigresa para fora!

— Pai?

O velho acordou, desnorteado, o sono leve o suficiente para ser quebrado por uma fina e
fraca voz. Ajeitando-se na pequena e desconfortável poltrona, voltou o corpo para a enferma
estendida no leito. Sorrindo, deslizou a grande e enrugada mão direita pelos cabelos dourados
espalhados no travesseiro, descendo os dedos para a pele pálida e sem brilho, enquanto a
outra segurava a pequena mão da paciente.

— Oi, querida.— falou, tentando demonstrar ânimo na voz.

— Trouxe o que pedi?

O velho confirmou com a cabeça. Puxando a jaqueta de couro, retirou o papel especial de um
dos bolsos internos, entregando-o à filha.
— Aqui.— disse.

A mulher pegou, levando a fotografia aos olhos, de maneira que conseguisse enxergar
perfeitamente a imagem reproduzida no papel. Sentiu os lábios repuxarem quando pôde
visualizar a garota impressa. Os cabelos lisos, curtos, castanhos, uma franja escorrendo pelos
olhos. Uma blusa branca de mangas fofas, botões na frente, bermuda rasgada. Uma foto
surpresa, percebida pela expressão espontânea da menina, não menos bonita. Levando os
dedos, tocou o contorno da face da garota, como se a quisesse sentir pessoalmente. A água ia
se acumulando em seus olhos, a saudade apertando.

— Quando foi isso?— perguntou, a primeira lágrima rolando por seu rosto.

— No Ano Novo. Disse o Yooki que só conseguiu essa foto porque, enfim, foi tirada de
surpresa. Dáparaperceber?

— Lógico.— ela falou, rindo fracamente.— A Nadia odeia fotografias, só uma foto assim
para ela aparecer em uma.
A filha voltou os olhos para o pai, o sorriso ainda predominando em seus lábios. — O
senhor... já a conhece?

O velho entristeceu.
— Não.— respondeu.
— Deveria. Ela é uma figura.
Voltaram a ficar em silêncio, Laura perdida em seus pensamentos e Feliciano apenas
alisando os cabelos longos e ondulados da filha.

— Eu sinto tanta falta da minha menina.— comentou, as lágrimas escorrendo. — Você, em


breve, irá vê-la, querida.— disse o velho, tentando conter a própria emoção. Era cortante
presenciar o estado decadente de Laura.

— Prometa a mim que, se eu não puder, você e Yooki irão cuidar dela como eu sempre
cuidei.

— Shhh... Não fale essas coisas, meu bem. Você vai ficar boa, vai rever a sua filha e ambas
voltarão a ter a vida que sempre tiveram.
— Por favor, papai.

Feliciano suspirou. Não adiantava contestá-la.


— Tudo bem, querida. Eu prometo.

Laura sorriu, os lábios embranquecidos. Fechou os olhos, agarrando-se ainda mais à mão do
seu pai.

— Eu sempre soube... O senhor iria retroceder algum dia. Obrigada, pai.

O velho depositou um beijo sobre a testa da filha, agora sentindo o próprio rosto molhado.
Evitou falar por alguns segundos.

— Vou pegar uma garrafinha de água. Venho já.

Deixando a filha adormecida, saiu do quarto. Enquanto esteve fora do pequeno apartamento,
conseguiu desabar todo o pranto contido.

Adrien entrou apressado em casa, tremendo ao destrancar a porta. Uma ansiedade diferente
estava instalada em seu estômago, algo que não sentia há muito. Sorria largamente, sem
motivo algum, apenas por pensar no possível encontro que teria dali a uma hora. Naquela
semana, havia esquecido todas as suas teorias contra sonhos, ilusões, utopias ou qualquer
coisa que contradissesse os instantes peculiares que vivia. Não sentia ânimo para ficar
questionando se seus atos eram ou não estúpidos – estava sendo mais interessante vivê-los.

Jogando a mochila no minúsculo sofá rasgado, seguiu para o quarto. Precisava ser rápido,
tinha apenas meia hora. Entrou no pequeno aposento já tirando a blusa e, antes que a largasse
no chão, teve uma surpresa:

— Oi, Adrien.

Espantou-se, retrocedendo um pouco os seus passos. A moça de vestido hippie vermelho


estava sentada na cama, as pernas cruzadas, o cabelo louro preso em um rabo de cavalo,
maquiada apenas por um batom rosado nos lábios. Em suas mãos, descansava o controle da
TV ligada– a única distração que estava tendo há duas horas.

— O que está fazendo aqui?— não havia raiva ou surpresa na voz de Adrien, apenas vazio.
— Eu disse que precisávamos conversar, lembra?— ela estava serena, um estado totalmente
contrário ao seu comum.— Acho que é um bom momento.

— Não, não é um bom momento.— Adrien abriu as portas do guarda-roupa, procurando


alguma camisa que o agradasse.—Tenho umcompromisso.
Ela se levantou, segurando-o pelo braço e virando-o para si:
— Ou é agora, ou não acontece mais.
— Malu...
— Prometo não tomar muito do seu tempo. Por favor, são apenas alguns minutos.

— Quanto?

— Vinte e cinco minutos.

Nadia cruzou os braços em cima da mesa, descansando a cabeça neles em seguida. Precisava
esperar. Apenas esperar.

— Quer dizer que você vai... embora?

Malu rodava o controle nas mãos, o olhar fixo nele.

— Em suma, é isso mesmo.— ela disse, calma.— As chances aqui não estão muito legais pra
mim e ter encontrado esse“emprego” foi uma boa.

— Trabalhar em uma boate como DJ em Minas Gerais... Não imaginei que você fosse
escolher esse caminho, Malu. De rock bar para casa de festa eletrônica é uma mudança bem
significativa. Ela sorriu.
— Preciso fazer escolhas mais corretas na minha vida. Não dá para viver na utopia de ser
conhecida em um meio no qual eu sei que não conseguiria. E outra, sempre trabalhei com
mixagem. Vai ser uma boa para mim, vou poder crescer e construir a minha vida.
— Desejo que seja feliz. Sinceramente.
Ambos se calaram diante a ausência de palavras. Adrien, de cabeça baixa, mexia na blusa
que estava em suas mãos, um misto de pensamentos em sua mente. Malu, ao contrário,
enchia o peito de ar para conseguir falar, embora nada saísse de sua boca. Controlava os
olhos para não chorar. — Você não vai me dizer nada?— perguntou a moça, esforçando-se
para não cair em suas emoções.
— Além de estimar sua vitória?
— É. Além.
Adrien suspirou.
— Não há muito a dizer, Malu. Acho que as coisas entre nós sempre foram bem claras.
Éramos dois filhos da puta, dois vadios que não se respeitavam. Eu errei, você errou. Não era
para acontecer, talvez. Relacionamentos assim nunca dão certo.
— Mas... eu tenho a certeza de que te amei, e muito!— ela voltou os olhos para ele, as
lágrimas já correndo por sua face.— E você? Tem a mesma certeza?
O guitarrista baixou os olhos, um bolo se formando em seu estômago.
— Eu nunca tive certeza sobre muitas coisas da minha vida.— falou, apenas. Malu mordeu o
lábio.
— Tem outra garota na história?
— Acho que não. Quero dizer, talvez sim, mas é meio improvável.
— Desde quando?
— Desde o dia em que eu resolvi sonhar.
A moça respirou fundo, enxugando o rosto molhado.
— Então você pode, por favor, me dar um presente de despedida? Apenas para eu ir embora
acreditando que já existiu algo de verdade entre nós?
— Não acho que seja o mais correto a fazer, Malu.
— Por favor. Somente para eu ir embora guardando uma boa lembrança sua.
Ela mudou a posição, aproximando-se mais de Adrien, enlaçando-o com os braços. — Por
favor...
Ele não percebeu quando caiu na cama.

— Ah, vamos lá, o que são apenas duas horas e meia de atraso, Nana-chan?

Nadia não olhava a amiga. O braço apoiado na mesa sustentava a sua cabeça, enquanto o
outro realizava os rabiscos no caderno. Alice, apreensiva, estalava arrancava as películas dos
dedos, olhava para os lados. Estava os dedos, balançava a perna direita, mais desesperada do
que a própria Nadia. — Então, você me perguntou naquele dia como eu fazia minhas roupas
lolitas, né?— Alice riu, nervosamente. Estava há quase duas horas tentando animar e distrair
a amiga.– Pois é, eu aprendi a costurar quando tinha dez anos, aí, com o advento da internet
na minha vida, fui conhecendo a moda Lolita. Peguei alguns moldes e pus a mão na massa!
Hoje tenho um guarda-roupa inteiro de punk lolita, sweet lolita, visual kei, gothic lolita,
visual fruits e outros! Você gosta das minhas roupas, né? Nadia continuou calada.

— Nadia-chan, mon petit, fale alguma coisa... Você está me deixando nervosa! — Eu acabar.
— com a mesma expressão fechada, Nadia entregou o caderno a Alice.— Ver se estar legal.

A Hikari pegou o objeto e analisou o desenho impresso na página. A árvore macabra estava
fixa na folha branca de traços azuis. Os galhos eram longos, retorcidos, cheios de
ramificações finas que desciam ao chão. Não existiam folhas nela, mas algumas trepadeiras
que nasciam do chão lamacento a envolviam, impedindo que o tronco da árvore pudesse ser
visualizado. Entretanto, existia uma pequena brecha entre as folhagens da outra planta, algo
que deixava visível uma possível passagem. — O que você achar?— a voz de Nadia não saía
amigável.

— Está... muito bonita.


A alemã se levantou, pegando a bolsa largada na mesa.
— Pronto, agora nós ir para casa.
— Espera aí, como assim casa?— Alice segurou o pulso de Nadia.— A gente ficou
plantada aqui por quase três horas para nada? E a sua vontade de encontrar o cara?

— E que garantias eu ter de que ele ser o cara do meu sonho? — As coincidências?
As cartas? Os e-mails?

— Isso não garantir nada, Alice! Não poder ser uma pessoa que estar a brincar comigo?
Alguém que achar engraçado eu ser um dumm e querer rir de mim?

— Ei, a sonhadora aqui não era você?— o tom da Hikari se alterava.— Não era você
quem acreditava com absoluta certeza que iria encontrar o cara dos seus sonhos,
literalmente? Nadia respirou fundo, tentando restabelecer a calma perdida. Apoiou as mãos
na cintura, abaixou a cabeça, ficou pensativa. Mordeu o lábio e deu de ombros.

— O problema ser que o sonho acabar.— disse, um sorriso triste nos lábios.— Acabar
haver muito tempo, desde que eu ser taxada de louca lá na Alemanha. Eu resolver insistir
nisso porque ser idiota. Agora acabar, — Não é um motivo muito convincente.

Houve uma pausa.


— Muitas coisas aqui não ser convincente.
— Você... bem... o ama?
Nadia ficou muda, apenas observando o miúdo olhar da Hikari. Amar o irreal doía. —
Também não saber.— ela suspirou.— Não saber explicar se eu me apegar a garoto do sonho
porque ser único consolo. Meu vida estar uma completa confusão. Não saber explicar se
haver sentimento ou não.

— É compreensível, fique tranquila.— Alice sorriu, pegando e apertando a mão de Nadia.—


E, se você realmente estiver se sentindo desconfortável, podemos ir embora.
— Não sem você escrever uma coisa para mim.
*

Adrien chegou à galeria apressado, arfando. Olhou o relógio, sete horas em ponto. Merda,
por que havia cedido ao desejo de Malu se tinha compromisso? Esperava fervorosamente que
a menina ainda estivesse lá–caso houvesse ido.

Subiu os andares quase correndo, fazendo preces mentais e pensando em inúmeras maneiras
de pedir perdão ao imperdoável atraso– não sabia nem como se explicar. Com a mesma
pressa, entrou na lanchonete e desviou os olhos para a mesa marcada que ficava ao lado da
vitrine.

Como imaginava: vazia.


Respirou fundo, cerrou os olhos. Chamou um dos garçons, perguntou se alguma menina
pequena, cabelos castanhos e olhos verdes– as poucas características dela das quais
lembrava– estivera na determinada mesa. O garçom ficou pensativo por alguns minutos antes
de confirmar.

— É você a pessoa que ela esperava?— perguntou.


— Creio que sim.
— Então ela lhe deixou isto.

Uma folha de caderno dobrada. Pegou-a, desdobrou-a, o coração palpitando. Em letras


garrafais, a mensagem nada amigável: VÁ SE DANAR. Baixou a cabeça, amassou o papel.
Não sabia de quem sentia mais ódio: dela ou de si próprio. Contudo, a última alternativa
parecia-lhe mais viável. Ao que aparentava, não houvera sido enganado – todas as
características que deu ao garçom eram compatíveis. Logo, a culpa era toda sua.

Um castigo por não se dar ao respeito, por ter o sexo vulnerável a desejos, por não ter sido
homem o suficiente quando deveria. Um castigo que decepava toda a esperança que
alimentara por aquele extenso mês.

Quando o velho voltou para o quarto, um pouco mais calmo, a filha continuava na mesma
posição, imersa em sono profundo. Era agonizante ver Laura em tal estado de saúde,
passando por tamanho sofrimento, mas estava mais tranquilo ao saber que estava ao seu lado,
compartilhando a dor pela qual ela passava. Sentou-se na poltrona, pegou o celular– não
recebera nenhuma ligação provinda do Brasil. Passou alguns segundos observando as antigas
mensagens de texto recebidas pela esposa e pelo sobrinho, sendo retirado da atividade assim
que ouviu o contínuo apitar da máquina de batimentos cardíacos. Alarmado, olhou a
máquina, sentindo o coração travar ao ver a linha reta que era apresentada com o som
irritante e fúnebre. Em estado de choque, saiu correndo pela porta, gritando por um médico
com urgência. Não iria perder a filha, não ali!

— E agora, o que você vai fazer?

As duas garotas caminhavam juntas pelos corredores do condomínio, chutando as pedrinhas


que encontravam pelo trajeto e andando a passos lentos– não tinham pressa para chegar em
casa. A diferença entre ambas era visível: enquanto Alice era mais feminina, com sua blusa
de boneca preta com bolinhas brancas, sapatilha com lacinho, calça jeans clara e bolsinha de
mão vermelha; Nadia usava uma camisa listrada vermelha com branco, tênis sujos, calça
rasgada no joelho, bolsa de nylon preta usada de lado.

— Não saber.— a alemã disse, simplesmente.— Talvez queimar o desenho. Talvez assim, eu
conseguir tirar ele da minha cabeça.
— Isso não parece meio trágico?
— Um pouco.
— Por que não me dá o desenho e as cartas?— Alice sorriu.
— Para...?

— Acho que posso descobrir algo. Ah, tenho influências na internet, você sabe! Minhas
fanfics são bastante lidas, tenho um blog famoso e muita gente me conhece. Logo...
Nadia riu.
— Ok, pop star. Eu pensar no seu caso.

— Hora da morte: dez horas.— o médico se voltou para o homem que, atônito, olhava a
cena. — Eu sinto muito, senhor. Não há nada que possa ser feito.

Nadia destrancou a porta enquanto Alice ria de alguns fatos que a alemã contava. Abrindo-a,
porém, notou a estranha cena à sua frente: Yooki, sentado no sofá, debulhava-se em
lágrimas, as mãos no rosto, o soluço alto. Jane e outros amigos estavam ao seu lado,
acalentando-o. Não conseguiu compreender o que diziam, mas sentiu um aperto no peito.
Apreensiva, entrou no apartamento, Alice trancando a porta em seu lugar.
— O que acontecer aqui?
Todos os olhares se voltaram para ela– inclusive os olhos inchados de Yooki. — Nadia— ele
disse, tentando controlar os soluços—, você precisa ser forte.

Muito bom esse capítulo!


Fiquei com vontade de trucidar o Adrien. E quer saber?! Vou torcer pelo Arashi...
Provavelmente não vai dar certo, mas ainda assim não vou torcer para esse garoto que só faz
besteiras...
15.
Berlim, Alemanha

O problema é que o sonho acabou.

A frase de um dia atrás ecoava em sua mente de maneira ininterrupta. O olhar perdido
tentava se fixar no trajeto que o carro percorria, sem, contudo, conseguir. O caminho já lhe
era conhecido. Há algum tempo, sua maior vontade seria o rever, segui-lo mais uma vez.
Agora, todavia, não possuía mais o mesmo desejo. Era apenas outra estrada comum.

Mama, oh
Didn't mean to makeyou cry
If I'm not back again this time tomorrow
Carry on, carry on
Asif nothing really matters

Bohemian Rhapsody , do Queen, saía com potência baixa do som do carro alugado por
Yooki. Nadia se arriscava a cantar, baixinho, como se aquilo pudesse espantar a tristeza de
ter uma mãe morta– uma mãe que não via há quase dois meses e de quem não pôde se
despedir. Cantava como se aquilo pudesse ajudar em alguma coisa.

Mas não estava ajudando em nada.

O carro estacionou quando menos esperava. Yooki abriu a porta do veículo.

— Vamos ficar aqui até a hora do funeral.— disse, logo após Nadia ter saído do automóvel.
— Aproveitamos e descansamos um pouco, principalmente você, que mal dormiu ontem à
noite. Nadia jogou um olhar cansado para o local onde se encontrava. Não sabia se era
agradável ou não estar novamente no conjunto habitacional em que residira por quinze anos.

Em um instinto guardado há tempos, deu passos, distanciando-se do carro e de Yooki. O


primo não a impediu, sabia que aquele território lhe era conhecido. Poucos instantes depois, a
caminhada virou uma corrida, o ar gélido entrava em seus pulmões, congelando-os. As
lágrimas voltaram a cair sobre seu rosto já inchado, uma mistura de saudade, tristeza, mágoa,
raiva e decepção instalada em seu peito. Correu, trôpega, até a casa de número 74. Bateu na
porta, as mãos tremendo. E, quando avistou a grande figura, de cabelos quase brancos, pele
rosada e olhos claros, não soube distinguir ao certo o que sentia. Apenas se jogou contra
aquele corpo que tinha total condição de consolá-la, aquecer e abrigar.

— Nadia...— ele lhe afagou os cabelos.

Otto já sabia, era perceptível. Melhor. Suas palavras poderiam ser poupadas– não tinha
condições para falar.

Era apenas mais uma porta. Podia sentir, ela já conseguia, aos poucos, ter acesso a ele.
Contudo, ainda estava longe, o contato continuava fraco. Não importava. Mais um pouco e,
em breve, estariam juntos, em uma protocooperação. Realizaria todos os seus desejos, estes
que, aos poucos, ia descobrindo, entendendo. E ela... Colocaria em prática o plano
esquematizado por todos aqueles séculos.

Ela seria dele. Porém, ela seria a rainha do mundo que sempre quis. Bastava apenas dizer
sim.

— Como assim desistir? É assim tão fácil para você?

— Fácil?— Adrien riu, irônico.— Estou passando por uma pressão psicológica, perto de
perder o meu juízo há mais de dois meses e você ainda me vem com essa de fácil?

— E não é exatamente esse o motivo pelo qual você deveria continuar a insistir? Resolveria
logo todos os seus problemas de uma só vez e acabaria com suas dúvidas! O que te faz
querer abandonar tudo assim, depois de quase conseguir encontrá-la?

O rapaz se levantou da cadeira, cruzando os braços e encarando a moça negra que o olhava
de maneira intimidadora.

— Tem certeza de que realmente quer saber? Ok, eu falo. Acha mesmo que eu tenho saco
suficiente para ficar correndo como um demente atrás de uma mina que não sei se é real ou
não? Mostrei a ela por sonhos o vinil do Pink Floyd, coloquei a carta lá dentro, me expus
feito um retardado para ganhar um vai se danar? Desculpa, gata, mas não gosto muito de
desaforos.

— Eu preciso, realmente, falar de quem foi a culpa?


— Não, não precisa. Mas bem que poderia me dar uma garantia se aquilo ali estava ou não
nas mãos certas, ou se tudo que vivi é realidade ou ficção. Melhor, poderia muito bem me
ajudar a encontrar a tal menina ao invés de ficar montando esquemas malucos de encontro!
Além do que, não consigo mais distinguir quando estou sonhando ou quando estou vivendo!
Nem sei se você é de verdade!

A moça umedeceu o lábio, uma expressão visivelmente irritada.


— Tudo bem, então, Adrien Guerra. Viva em seu mundo sem esperanças, cheio de tristezas e
conflitos, que tentarei salvar o meu! Já vi que foi em vão depositar minhas fichas em alguém
tão frio e desacreditado como você. Mas, ok, também estou sujeita a erros. — ela deu alguns
passos, parando perante Adrien e encarando-o nos olhos. — Espero que viva com o mais
profundo e irreversível peso na consciência por não ter ido atrás da mulher que ama.

Ela caminhou em direção à porta e já a destrancava quando escutou a pergunta crucial: —


Espere aí, quem falou de amor?
Virando a cabeça graciosamente, arqueou uma das sobrancelhas e disse:
— Não é preciso falar. Apenas vejo o que está exposto em seus olhos.— ela soltou um
pequeno e irônico riso.— Sua frustração é tamanha que você prefere amar o irreal a quem
está na realidade... É deprimente. Adeus, Adrien.

Ela saiu, deixando-o solitário e perdido em pensamentos. Quando se viu só, Adrien suspirou,
fechando os olhos e controlando a quase invencível vontade de chorar. Para não deixar as
lágrimas caírem, deu incontáveis socos na mesa, machucando o punho firmemente cerrado.
Somente após não aguentar mais a dor instalada em seus dedos, parou. Que tipo de vida
estava levando?

Berlim–Alemanha

Poucas eram as pessoas presentes no cemitério para o funeral de Laura Lima, das quais
apenas uma parcela era conhecida por Nadia. Uma bonita senhora estava debruçada sobre o
caixão, que comportava a moça loura vestida de branco, chorando em demasia. Ao seu lado,
algumas mulheres tentavam ampará-la. Outros homens olhavam a cena, rostos pesarosos.
Inconscientemente, Nadia apertou a mão de Maik com força– quem seriam aquelas pessoas?

— São seus parentes, Nadia?

Os olhos da menina continuaram fixos nas desconhecidas faces que estavam ali. — Não
tenho parentes.— disse, seca, nenhuma expressão em seu rosto.— Minha família é apenas
Yooki.

Os rapazes se calaram. Conheciam a história de Nadia suficientemente bem para tentarem


contestar algo.
Quando entraram na pequena construção onde era realizado o velório, todos os olhares se
voltaram para a menina de vestido preto– a órfã da vez.
— Menina?
O timbre grave não lhe era familiar. Virou-se e precisou de muita força para não cair. Um
velho robusto, sério, de cabelos claros; expressão ainda jovial, mesmo com os sinais do
tempo fixos em sua face; olhos escuros observando-a atentamente; olhar indecifrável. Nadia
se ajeitou, sentiu seus músculos endurecerem, o coração disparou. Nada falou, apenas o
encarava. Poderia não o conhecer, mas tinha absoluta certeza de que sabia quem era.
E praticamente igual ao que imaginava.
— Meus pêsames.—ele falou, tonalidade mansa e pesarosa.
O intuito parecia ser de paz, mas Nadia não queria aproximações. O velho Feliciano... O que
sentia por ele? Não saberia exprimir. Fria, somente balançou a cabeça – não possuía vontade
de manter qualquer contato verbal ou físico. Deu-lhe as costas e se voltou para os amigos,
abraçando-os no desejo de procurar conforto e aniquilar a saudade de meses.
— Não vai querer conhecer a sua avó? Ela desejava isso.— ele ainda queria escutar a sua
voz, era perceptível.
Nadia cerrou os olhos. Puxou ar para os seus pulmões, agarrou a blusa de Maik. Sem virar
para trás, falou:
— Desculpe-me, senhor. Não tenho avós.
E saiu.

A tarde nunca fora tão longa e dolorosa. O trajeto para a cova se fez em silêncio, quebrado
apenas pelos soluços fortes da bonita senhora loura e pelo fungar constante de vários dos
presentes. Nadia já não conseguia mais chorar, o peito doía, a cabeça latejava, faltava ar e as
pernas bambas não conseguiam dar passos. Seus pensamentos não estavam conectados, não
enxergava os inúmeros olhares que lhe eram jogados e sentia estar à beira de um transe,
como se houvesse um motorista automático para os seus poucos movimentos. Assim sendo,
assistiu a cena do enterro inexpressiva, agarrada a Yooki e ao lado dos amigos alemães.
Sabia, não estava bem, as coisas ainda não faziam sentido em sua perturbada cabeça. Voltara
a ver objetos falando, dinossauros andando pela cidade e comendo prédios, OVNI’s voando
pelo céu, fantasmas rondando por cômodos, ilusões não paravam de enlouquecer a sua mente
em menos de vinte e quatro horas. Apenas mais um passo e entraria por completo no mundo
da loucura.
O caixão descia lentamente para o buraco. Rosas eram jogadas, a cerimônia inteira assistida
sem conformação, murmúrios de piedade pela mais nova órfã. Os coveiros se aproximaram,
começavam a jogar terra na grande abertura– era a despedida. Apenas naquele momento, a
razão voltou a pulsar mais forte e ela pôde compreender, finalmente, que sua mãe fora
embora para não mais voltar. A insana vontade de pedir para parar com aquela ação, descer
até o final, retirar a tampa e salvar a bela dama que dormia levemente se fez mais forte.
Quase ousou pôr em prática a ideia até perceber que seria uma completa demente caso o
fizesse. Preferiu outra ação, mais fácil e menos perturbadora: enterrar a cabeça no peito de
Yooki e cerrar os olhos com a máxima força.

Tapada a cova, aos poucos as pessoas foram saindo, deixando a princesa adormecida no seu
túmulo fresco. Nadia ainda permaneceu algum tempo ali, parada, apenas olhando as duas
lápides de nomes comuns: LAURA LIMA KANT e THEODOR KANT. As datas eram
diferentes, havia uma distância de quase dez anos entre os dois. Contudo, os mortos estavam
unidos novamente, compartilhando o mesmo chão. Talvez não existissem tantos motivos
para tristeza, afinal. Ambos estavam bem, juntos outra vez, mesmo que não houvesse vida
para comemorar tal fato. Limpou mais uma lágrima que correu pela sua face.

— Hey, pessoas.—disse, ajoelhando-se na grama.—Espero que estejam bem. Nenhuma


resposta, apenas o barulho do vento.
— Mama, viu como fico estranha de vestido?— ela riu, enxugando a outra lágrima que
escorreu

por seu rosto.— Não combina comigo. Viu como eu estava certa?

O silêncio prosseguia.

— Acho que esse não é o melhor assunto para conversar com vocês agora, se estamos nos
despedindo.— Nadia umedeceu o lábio, tentando encontrar forças.— Eu não sei quando irei
voltar, então... Só posso pedir, por favor, que tenham paciência. Algum dia, eu voltarei para
vê-los.— ela se levantou, ajeitando a barra do vestido.— Para visitá-los e para ficar. Até
breve. Amo vocês.

A casa vazia acendia todos os fantasmas de Nadia. Para qualquer ponto que olhasse,
conseguia ver momentos seus e da sua mãe. Podia enxergar perfeitamente as manhãs com
panquecas que apenas Laura fazia, as noites de TV, as brincadeiras infantis de ambas quando
ainda era uma criança, as brigas por causa das notas escolares, as visitas dos amigos mais
íntimos, os finais de tarde em que todos se reuniam para tocar violão na saleta, o cinzeiro que
sempre comportava os cigarrinhos de Laura. A mobília estava intacta, mas o ar abafado do
ambiente mostrava que as cenas da sua mente não passavam apenas de recordações, instantes
que nunca mais seriam vividos. Viraram passado, lembranças, nada mais do que isso.

Não sabia o que era pior: estar na Alemanha para ter presenciado o enterro da sua mãe ou
rever o local em que viveram por quinze anos juntas.

— Nadia, telefone.

A menina se virou desanimada, os olhos pesarosos. Pegou o celular da mão de Yooki sem
olhar para o visor.

— Oi?

— Nadia-chan?
Um pequeno surto.
— Arashi?— ela perguntou, a voz recuperando parte do ânimo.
— Desculpa só ligar a essa hora, mas essa história de fuso horário é meio complicada...
Está muito tarde aí?

— N-não. Ser início de noite.

— Olha, eu sei que essas coisas a gente não deve falar por telefone, mas a Alice me avisou
hoje pela manhã e não havia como eu te ver, então... Eu sinto muito, Nadia.

Pequenos soluços escaparam da boca da menina. Ela aquiesceu com um murmúrio, evitando
falar com a voz trêmula.

— Para o que você precisar, estarei aqui, certo? Se quiser que eu pegue um avião agora
para bater aí na Alemanha, eu vou, tá? É só você dizer sim.
Nadia respirou fundo.
— Muito obrigado.
— Fique bem, ok? Ah, e mais uma coisa:— ela conseguiu escutá-lo puxar o ar da mesma
maneira que o ouviu esmorecer— estou te esperando.
Ela sorriu, tímida.
— Até mais, Arashi.
— Até, Nana-chan.
Por que raios queria tanto um abraço provindo somente de Arashi naquele momento?
*

— Desculpa a visita inesperada. Sei que está meio tarde, mas quero saber a sua decisão sobre
os assuntos.
Yooki se jogou sobre a cama, o corpo inteiramente dolorido, os músculos tensos, o rosto
ainda jovial cheio olheiras. Necessitava descansar o mais rápido possível.
— Semproblemas.—disse, apenas.

— Onde está a menina?

— Pegou no sono, finalmente. Não dormia desde que recebeu a notícia.— o professor levou
um copo de uísque aos lábios. Precisava de alguma coisa que lhe fornecesse forças para
continuar em pé.— Enfim, sobre o que quer conversar?
— Sobre como será a partir de agora.
— Bom, se estiver se relacionando a esta casa, já a quitei. Amanhã, vendo os móveis para
lojas de materiais usados. Mas, se for sobre aquele assunto, já falei para o senhor o que
penso. Não sou nada além de um primo, você é o avô. Não há o que eu possa fazer.
— A menina me odeia, Yooki. Vira o rosto toda vez que passo perto dela, não me dirige a
palavra. Como acha que ela ficaria vivendo na minha casa?

— Repito: você é avô. É mais do que óbvio com quem a custódia dela precisa ficar. Agora eu
acho que era preciso ter uma conversa com ela, mostrar os prós e os contras e saber a sua
decisão. Enquanto a Nadia ficar fugindo e você ignorando, nada vai ser resolvido. Quando
vai dar entrada no processo?
— Amanhã mesmo já estarei me dirigindo à vara da criança e do adolescente e vou pedir
para transferir os documentos para o Brasil. Não posso ficar aqui para resolver esse assunto.
— É o mais correto. E quando irá falar com ela?
— Prefiro que você fale.
— Não, senhor, isso é tarefa sua! Só peço para que não seja agora porque... enfim... Deixe-a
respirar um pouco, mais uma dessa e a Nadia fica completamente arrasada.— Yooki suspirou
— Era só isso?
— Só.— e, antes que abrisse a porta, o velho perguntou:— Quando posso ir à sua casa? —
Quando quiser. As portas estarão abertas.
— Obrigado, filho.

A escuridão reinava silenciosa no espaço. Andava por instinto, mas tinha medo de dar
passos
– sempre esbarrava em algo. Com os braços estendidos, procurava por qualquer coisa que
pudesse iluminar aquele ambiente e dissipar as trevas que impediam a sua perfeita visão.
Entretanto, por mais que tateasse, não encontrava nada– apenas o vazio.

Não queria desistir, não estava com medo. Talvez mais embaixo, quem sabe. Desceu os
braços, permitindo apenas que suas mãos ficassem ávidas para a caça. Aos poucos, formas
foram tomando vida por debaixo dos seus dedos. Sentiu um anel grande e extenso, que ia
ficando cada vez mais largo com o descer da sua mão. Algo semelhante à renda o
acobertava. Com cuidado, pegou o objeto e, examinando mais um pouco, percebeu que o
reconhecia. Assim que encontrou o botão, ligou a luz do abajur.

Quando a luz se fez no ambiente, pode perceber as inúmeras prateleiras e mesas, todas
recheadas de pequenos objetos de madeira, pelúcia, porcelana. Voltou os olhos para si
mesma e viu o collant com detalhes em dourado que estava grudado em seu corpo, o tutu, as
meias e as sapatilhas, o conjunto inteiro de cor preta. Levando as mãos à cabeça, sentiu o
cabelo preso em um coque e uma coroa dava o detalhe final. Estranhou, não era uma
bailarina para estar vestida de tal maneira. Porém, sua tese estava errada, o que viera a
entender apenas depois. Era apenas mais uma peça de uma loja de brinquedos.

Caminhou involuntariamente por entre as bonecas, os ursos e os carrinhos, procurando a


caixinha de onde houvera saído. Sentia-se grande demais no meio de todos os seus
companheiros, queria voltar a ser miudinha e dançar no centro da pequena caixa. Procurou,
procurou, procurou. Os amigos a olhavam, silenciosos, repreensivos. Fora ela quem
aceitara fugir da sua casinha; se continuasse lá, não estaria passando por tamanha aflição.
Todavia, tentou não se importar, pretendia apenas encontrar o lugar de onde havia saído.

Cansada, sentou-se no chão. Sabia ter corrido atrás da caixinha há horas, mas não
conseguia encontrá-la em canto nenhum. Deitando-se no meio de todos os companheiros,
fechou os olhos. O barulho de um cuco a despertou. Assustada, olhou para o pássaro preto
que entrava e saía do relógio e notou que o bicho carregava algo em seu bico. Curiosa,
levantou-se e caminhou em direção ao brinquedo. Ficou a olhar mais de perto o pássaro
entrar e sair, entrar e sair. Em determinado momento, o cuco soltou a pequena embalagem
branca, e esta viera pousar em sua mão. A curiosidade aumentava. Abriu o pacote, deixando
cair o lenço branco que o envolvia.

Uma chave dourada surgiu em sua palma. Pequena, cheia de desenhos em sua extremidade,
pesada. Ficou a olhá-la de perto, cada vez mais intrigada. E, em dado instante, percebeu
que as prateleiras recheadas iam desaparecendo aos poucos, assim como as mesas e todos
os outros brinquedos. Desesperou-se. Segurando a chave firmemente, saiu à procura da sua
caixinha– ela não poderia sumir. Porém, não havia nada que pudesse ser feito. A loja inteira
fora apagada, sobrando apenas duas coisas: a bailarina fugida e a sua chave.

Acordando em um sobressalto, assustada, Nadia sentou na cama, os olhos fixos na antiga


cômoda que, aos poucos, ia sendo esvaziada. O pesadelo lhe remetia à mais arcaica das suas
lembranças infantis: a de ser a bailarina que dançava sobre o espelho da caixinha musical de
sua mãe. Respirando fundo, levantou-se e foi até lá. Puxando as gavetas, retirou as outras
tralhas que estavam espalhadas dentro do compartimento, procurando rapidamente pelo
delicado recipiente. Ao encontrá-lo, pegou-o e levantou a tampa.

Junto com a bailarina vestida de preto, uma chave dourada.

São Paulo - Brasil

A noite inteira estava sendo insone para Adrien. Por mais que se esforçasse em fechar os
olhos e cair em sono profundo, não conseguia. Não havia mais razão para dormir – há noites,
ela não lhe aparecia.

As palavras da moça negra continuavam a lhe atormentar. Sua frustração é tamanha que
você prefere amar o irreal a quem está na realidade . Ficou em dúvida, não conseguia
responder ou muito menos contradizer a afirmação. Lembrou-se de todos os seus
relacionamentos, os duradouros e os efêmeros. Em nenhum deles sentiu o que sentia quando
estava com os olhos fechados. Provavelmente porque todos eram fáceis, explícitos, e não
havia nenhuma que o compreendesse da maneira como desejava. De algum inexplicável e
parvo modo, a menina irreal era tudo o que sempre quis: envolta por mistério, delicadeza,
difícil, compreensível.

Já não adiantava mais procurar a felicidade por sonhos, tinha absoluta certeza. Por isso
desistira de todos, mesmo os amando profundamente.
Mesmo tendo se apaixonado.
16.
Três semanas se passaram e Nadia não sabia mais em que mundo estava vivendo.
Acreditava, às vezes, estar na vida real, com todos os professores chatos, com as notas
baixas, com os inúmeros trabalhos, com os jogos de basquete– entrara no clube assim que
começou o colégio– e as várias aulas. Outras, porém, supunha viver num país abaixo dos
continentes terrestres. Tudo à sua volta criava vida, monstros coloridos a seguiam pela rua,
bonecos falantes a paravam para comentar os motivos pelos quais não cometiam suicídio,
notícias na TV informavam que os dinossauros morriam por inanição em determinada região
da China, sua mãe surgia em seu quarto à noite para dançar músicas medievais. Pensava,
várias vezes, ser uma Alice num País dos Horrores– ao contrário da sua heroína favorita, não
vivia um sonho.

Quando não se perdia nos delírios da sua mente, expressava-os em papéis. Nunca desenhara
tanto em toda a sua vida, com uma média de dez desenhos por dia. A maioria deles, porém,
eram retratos da sua mãe, várias expressões faciais de Laura, movimentos que apenas Nadia
via. Um artefato raro para uma órfã com tantas saudades da sua progenitora.

Não conseguia mais manter a sua lucidez, embora os poucos instantes com Arashi e Alice
Hikari conseguissem trazê-la, nem que fosse um pouco, para o mundo real, mostrando que
todas as suas visões não passavam precisava de de peripécias da sua mente perturbada. No
entanto, não era suficiente. Nadia ainda algo mais forte, talvez um convívio de vinte e quatro
horas com os irmãos. Ou, alternativamente, um sanatório como refúgio. Necessitava de
qualquer coisa, só tinha de estar lúcida. — Nadia?

A menina se levantou da cama, sonolenta. Esfregou os olhos para poder melhor visualizar
Yooki — a vista estava embaçada, os pensamentos perdidos. Ainda no mesmo estado de
sonolência, perguntou o que era.

— Tem alguém querendo conversar com você.

Tateando o criado-mudo para encontrar o despertador, olhou as horas. Nove e meia da manhã
de sábado.
— Quem é?— perguntou, sem sentir curiosidade.
— Apenas se vista e venha. Chegando aqui, você vê.
Sem coragem, Nadia caminhou para o banheiro, arrastando algumas roupas jogadas na
cadeira do birô. Tomou um rápido banho, escovou os dentes, penteou o cabelo e saiu, da
mesma maneira lenta e arrastada, em direção à sala. Todavia, ao ver a figura do velho
robusto e louro sentado no sofá, sentiu que o sono fora relativamente dissipado.
— Ele veio conversar com você, Nadia.— falou Yooki antes que a menina pudesse fugir.
Feliciano, no seu modo sério e introspectivo, desejou um bom dia.
— Vou deixá-los a sós.— finalizou o primo, retirando-se da sala.
Nadia ainda permaneceu em pé por alguns minutos, receosa. Temia o velho, menosprezava-
o. Entretanto, precisava escutar o que seria dito. corajoso, dirigiu a palavra à neta:
— Sente-se, menina.

Na mesma posição de defesa, Nadia se Feliciano continuou calado e impenetrável até


que, sentou próxima ao velho, mantendo alguns centímetros de distância – podia esperar
qualquer coisa dele. Olhava-o incessantemente, esperando que, em algum instante, fosse
atacada por demônios por ele comandados. Porém, não vira nada anormal, apenas um
homem robusto procurando palavras certas para iniciar uma conversa.

A primeira conversa que teriam.


— Yooki já... Te contou?— ele perguntou, quebrando o silêncio.
— O quê?

O velho respirou fundo.


— Sobre a sua custódia?

Nadia franziu o cenho.


— Como assim?
O velho respirou fundo.

— Demos início a um processo na justiça para saber nas mãos de quem você irá ficar.—
disse, sério.— Conversei com Yooki e entramos num acordo: irei ser seu tutor de agora em
diante, até o dia em que você for maior de idade, o que não está muito longe.

O coração disparou com mais força no peito. Ainda mais aquela?

— Eu não querer morar com você!— pela primeira vez em três semanas, Nadia sentiu que
havia firmeza e decisão em suas palavras.

— Não estou falando quem vai morar com quem, menina! Me refiro a processos judiciais, o
resto é consequência!— o tom, embora não fosse a intenção, saiu áspero e grosso. Feliciano
suspirou, arrependido.— Desculpa. Não era o meu intuito falar assim com você. Não tenho
direito para isso.
— Ainda bem que reconhecer.

— Voltando ao assunto.— embora a frase de Nadia ferisse o seu orgulho de coronel,


Feliciano sabia que precisava se controlar. Mais alguma grosseria e nada seria feito.— Vim
aqui te avisar sobre isso, mas estou te dando duas opções e acho que já sei o que você irá
querer.

— Quer mandar eu de volta para a Alemanha para eu viver em internato?

O jeito arisco da menina o fez rir pela primeira vez. Nadia estranhou tal reação.

— Você é que nem a sua mãe...— comentou o velho, um sorriso bonito nos lábios.— Já
supõe alternativas que nunca passaram pela minha cabeça. Mas, respondendo a sua pergunta,
não, não vou mandá-la para lá. E a minha alternativa é bem mais simples.

Nadia franziu o cenho. O velho continuou a sorrir.


— Você não precisa morar comigo se não quiser e creio que tem todos os motivos para não o
querer. Mas...— seria uma das poucas vezes que Feliciano iria romper a barreira do seu
orgulho— eu iria ficar feliz se você fosse visitar este velho rabugento às vezes.

O pedido era amistoso, mas Nadia ainda mantinha suas desconfianças. definhar aos poucos e
saber que passei tanto tempo a condenando ao invés de — Ver a sua mãe aproveitar o
restinho de vida que ela ainda tinha foi muito pesado pra mim.— o sorriso de Feliciano ficou
triste.— Você ainda é nova, menina, não tem noção exata do peso que esse fato tem, mas,
quando tiver seus filhos, nunca cometa o mesmo erro que eu cometi.

Era uma declaração forte e inesperada. Surpresa, Nadia preferiu ficar calada. Contudo, seus
músculos estavam mais relaxados e sua guarda, baixa.

— Eu sei que fui um estúpido para com você e sua mãe, menina. E sei também que nem me
dei ao trabalho de conhecer Theodor quando deveria. Queria que você entendesse, porém,
que, para mim, era meio difícil ver a minha filha, minha futura bacharel em Direito, largando
tudo para viver num país desconhecido e com um rapaz que não tinha dinheiro nem para
comer.— a expressão do velho Feliciano entristeceu.— Eu vi muitas meninas tomando o
mesmo caminho, sempre pensei que nunca aconteceria comigo. E foi umbelo baque quando
aconteceu. Consegue me compreender?

Nadia nada disse – era preferível ficar calada.


— Também teve quando o Theodor morreu, a culpa é maior. Quantos anos você tinha na
época? — Seis.
O velho abaixou a cabeça, os lábios contraídos de culpa.
— E você estava com ele no acidente de carro que o matou, não estava?
Nadia balançou a cabeça em gesto afirmativo.

— Eu e o mãe.— completou.— Mas eu não me lembrar de nada do que acontecer. Os meus


memórias antes do acidente ser perdidos.
— A gente só percebe a besteira que faz em momentos como esses, menina. Nunca cometa
os erros que eu cometi. Se eu tivesse sido menos cabeça dura, menos orgulhoso e severo, se
tivesse apoiado a sua mãe nos momentos em que ela precisou, se tivesse dado apoio... — ele
silenciou. Estava visivelmente comovido, lágrimas caindo de seus olhos.— Provavelmente
não estaria sentindo a culpa que sinto agora.

Em toda sua vida, Nadia nunca pudera imaginar que, um dia, presenciaria Feliciano Lima aos
prantos, lamentando a morte da filha, praticamente pedindo perdão por todos os erros
cometidos. Aquilo era surreal demais para ser verdade– até seus delírios costumeiros
pareciam mais normais. — Quando... quando você descobrir que ela estar doente?

O velho voltou os olhos para a neta. Muito da sua filha amada estava naquela garota ainda
desconhecida.

— Recentemente.— ele respondeu.— Você sabe que o coágulo se formou no dia do


acidente, não sabe?
Nadia aquiesceu. Sua mãe estava doente, Nadia— foi o que Yooki dissera no dia da morte de
Laura. Lembrar como descobriu aquilo lhe causava náuseas.

— Na época, os médicos achavam que foi realmente um milagre vocês duas terem escapado
ilesas, principalmente a Laura, que havia sido a mais exposta. Muito tempo depois foi que
descobrimos o coágulo, mas ele estivera controlado e não ocasionava nenhum dano. Só que,
nesses últimos tempos, por causa das enxaquecas que se tornaram mais severas, os médicos
resolveram drenar antes que estourasse. Infelizmente, não deu tempo.

— E como ela inventar o história do casa? Por que ela inventar um mentira ao invés de
contar? — Sua mãe não queria que presenciasse o sofrimento dela. Foi a melhor alternativa
que encontrou. Pensemos bem: em uma cidade“desconhecida”, sozinha, com quem contar a
não ser consigo mesma? Pode ter sido uma atitude infantil, mas compreensível. A Laura te
amava demais, menina. Só assim nós percebemos.
Nadia silenciou, respirando fundo para controlar as suas próprias lágrimas. Não sabia até
quando iria conseguir reprimir os seus sentimentos.
— Me diga uma coisa, menina: quantos anos você tem?
— Dezesseis.
— Olhe só...— o velho sorriu.— Minha única neta tem dezesseis anos e nunca lhe pus
fraldas! — ele ria. Risada gostosa.— É uma vergonha! Lembro que sempre falava para a
Laura: Quando você tiver seus filhos, traga todos para minha casa! Quero limpar cocô dos
molequinhos. Não cumpri minha meta por extrema arrogância.— suspirou, cansado.— Só
que, se você permitir, é claro... Eu gostaria de compensar esse tempo perdido. Sabe, na
fazenda tem muitos animais, não sei se meninas como você gostamde ver gado e galinhas,
mas se sentir interesse é só...
— Ser interessante. Eu gostar de bichos.
Feliciano voltou o olhar surpreso para a menina. Um alívio inexplicável passou por seu corpo
quando viu a neta menos arisca e de guarda baixa, dando-lhe o prazer de visualizar um
pequeno sorriso. Sentiu-se desconcertado.

— Que bom. Então, quando quiser, é só avisar ao Yooki e pedir para combinar comigo. Nas
próximas férias, quem sabe?

— Eu avisar.

Se a intimidade o permitisse, provavelmente Feliciano já teria enlaçado o franzino corpo da


menina à sua frente. Porém, sabia que ainda era cedo demais para aproximações – errara
muito, precisava de tempo para que a mágoa da neta se anuviasse. Todavia, apenas por ter
recebido um único sorriso, já se sentia mais aliviado e feliz. Era um passo.
— Preciso ir.— disse, levantando-se do sofá, tentando recuperar a compostura de machão
que sempre ostentava.— A velha está me esperando, tenho que voltar hoje à fazenda.— e,
dando tapinhas no ombro da menina, completou:— Espero uma ligação sua.
— Ei.
O velho abria a porta da casa quando a voz o chamando interrompeu seu ato. Virou-se,
curioso. — Diga.
— Ser estranho... não saber como chamar você.
Fora o ultimato. O sorriso do seu rosto era sem dimensão.
— Tente“avô”, “vô” ou“vovô”. Pelo nosso parentesco, isso é o mais correto. Ela sorriu, os
olhos brilhando– um brilho que Laura tinha.

— Ponte de safena?
— Foi isso que o médico disse. Não posso fazer nada.

Adrien apertou o copo de água com força, um aperto no coração.

— É necessário mesmo?— sabia que aquela pergunta era infantil, agia como uma criança
que não queria aceitar um fato. Contudo, a notícia era pesada demais para ser aceita.

— Tem certeza de que eu faria uma coisa dessas se não fosse preciso? Parece que não é meu
filho, Adrien!

— Tá, desculpa, eu sei que é preciso, mas...— ele suspirou.— Não gosto dessa ideia,
principalmente pelo fato de você se operar logo no período em que eu estarei fora. Quer que
eu cance...

— Você não é nem louco de fazer isso, garoto!— o pai deu um tapa na cabeça do filho.—
Qual é?! É a sua chance de divulgar o trabalho da sua banda, algo que vocês querem,
praticamente, desde crianças! Vai desistir de tudo por um velho ranzinza que está perto de
morrer?

— Não gosto quando fala assim.

— Também não, mas estou sendo realista. Aceite isso, Adrien.

O guitarrista cruzou os braços em cima da mesa, o olhar fixo no copo vazio. Observar Adrien
naquele estado era cruel, Paulo sabia. Tinha pleno conhecimento de que era o único familiar
restante do filho, a única família que Adrien possuía. Nem mãe, nem avós, nem tios, nem
primos, nem madrasta e nem irmãos– apenas o pai. Deveria ter feito mais por aquele rapaz.

— Vamos lá, não vou morrer agora.— disse, dando tapinhas no ombro do filho, na inútil
tentativa de consolá-lo.— Nós dois sabemos que ainda preciso ir a um show seu e daquele
japonês safado! Não vou me render antes de ver meu primogênito fazendo sucesso. Então vá
para essa viagem, divulgueo trabalhode vocês e botetodas essas novasbandinhasde
merdanolixo!

Não surtira muito efeito – Adrien continuava desanimado, a preocupação estampada em seus
orbes castanhos. Por dentro, o aperto prosseguia, uma sensação ruim que tentava não
demonstrar, mesmo que parecesse impossível.
— Ok, vou tentar acreditar que vai ficar tudo bem com você.— falou, levantando-se
para encher o copo mais uma vez.
Calaram-se, o silêncio do momento quebrado somente pelo barulho da água caindo na
superfície de vidro. Observando Adrien, Paulo desejou, mentalmente, que o filho ainda fosse
o mesmo menininho franzino e sorridente, de cabelos cortados em formato de cuia, lisos e
extremamente louros. Poderia ser mais fácil.

— Ei, Adrien.

O rapaz se virou, a borda do copo em seus lábios, a água descendo pela garganta. Encostado
na geladeira, pernas cruzadas, calça jeans, blusa verde, cabelos presos.

— Desculpa por ter sido um completo filho da puta com você.


Adrien franziu o cenho.
— Não faça essa cara de desentendido, moleque.— o pai pediu, uma expressão diferente e
uma tonalidade de ordem. — Você sabe do que falo.

— Sinceramente, não. Talvez o gelo da água tenha congelado o meu cérebro.

Ele sabia, não era tão bom no disfarce.


— Quer mesmo que fale sobre a Margot agora?
O guitarrista colocou o copo na mesinha de madeira com toalha quadriculada. — Não
precisa. Nem quando quiser muito.

— Não tem como não te pedir desculpas sem ter de mencioná-la.— o velho descansou as
costas na cadeira, as mãos postas na mesa.
— Que é?! Vai me pedir perdão por um erro que não foi seu? Acho que não foi você
que abandonou o filho de doze anos e o marido sem causa nenhuma para viver um amor
francês! Espero, sinceramente, que ela esteja bem fodida agora.

— É, mas por minha causa você é assim, frustrado e deprimido.


— Me poupe, nunca fui assim.
— Quer enganar seu próprio pai?

Adrien lhe jogou um olhar severo. Paulo não precisava, realmente, apelar.

— Tá legal, qual a sua intenção?— perguntou, sentando-se à mesa mais uma vez. — Quando
foi a última vez que conversamos sobre a sua mãe?

— Há onze anos, mais precisamente no dia em que ela saiu de casa. Depois disso, nem eu e
nem você tocamos no assunto. E então, aonde quer chegar?
— Olha, Adrien, sei que não fui um bom pai para você. Nem tente me cortar e falar coisas
como vá se danar, porque sabe que tenho razão. Sei que, no momento em que precisou, eu
não estive presente porque preferia ir para um bar e encher a cara, tentando esquecer sua
mãe. Sei que, bom, fechei os olhos muitas vezes sobre suas expulsões de colégio, sobre suas
notas baixas, sobre o fato de você ter virado fumante aos dezesseis anos, sobre sua
adolescência rebelde. E eu não conseguia perceber que isso nada mais era um reflexo da sua
revolta, você descontando sua frustração por ter sido abandonado pela mãe. — Sim, e onde
está a sua culpa nisso tudo?

— Exatamente no fato de não ter te dado atenção, de não ter te apoiado ou de não ter te dado
os puxões de orelha certos, de ter arrumado uma mulher com quem você nunca se entendeu e
ter ocasionado a sua saída de casa... Preferi a mim a você, isso não é atitude de pai.

— Não vejo erro. Você foi chifrado por uma esposa a quem amava e jurava fidelidade, qual o
mal em descontar suas desilusões?

— O mal foi ter esquecido o filho.


— Ah, pare com isso.— certa fúria fora percebida na voz de Adrien.— Primeiro porque,
como falei, você não tem culpa de nada, foi ela quem resolveu ir embora, prometeu voltar e
nunca cumpriu. E outra: esse assunto já está me incomodando.— pretendeu falar que parecia
uma despedida, mas se controlou. Aquilo não era e não seria um adeus.

— Essa foi a nossa primeira conversa sobre a Margot. Não poderia ser diferente. Silêncio
mais uma vez. Em cerca de minutos, Adrien reviveu todo o seu passado. Pôde ver
perfeitamente a porta sendo aberta, o abraço que deixara um perfume forte e doce em sua
roupa, a marca de batom em sua face, a promessa. Eu vou voltar— ela disse. No entanto,
nunca apareceu. Lembrou-se do cheiro do álcool, da fumaça entrando em seus pulmões e
sendo expelida, das primeiras vezes que fora excitado por mulheres mais velhas, do descaso
do pai, de quando saíra de casa. Um gosto amargo se formou em sua boca.

— Quando vocês irão voltar, Adrien?


— Vamos passar apenas uma semana e meia, é só para divulgação mesmo. A irmã do Arashi,
a Alice, também fez um blog para ajudar. Estamos um pouco apressados.
— E como fica a faculdade?
— Estou tentando dar o meu jeito para conciliar as duas coisas. Quero terminá-la logo. —
Meio do ano, né?
— É.
— Tenho orgulho de você, moleque.

— Eu sei.

O barulho de crianças gritando encerrou qualquer tipo de desejo de conversa. Pai e filho
voltaram os olhos para o corredor, os dois filhos mais novos correndo para a cozinha. —
Adrien!— a menininha se jogou nos braços do irmão mais velho.

— Ei, Adrien, você está me devendo uma partida no Playstation de novo!— o garoto largou
os sacos que carregava, correndo para exigir os seus direitos.
— Os dois, agora, para o banheiro!

As crianças se viraram para a mãe, revoltadas. Adrien nunca os visitava e, quando o fazia,
passava pouco tempo. Por que não poderiam ficar com ele? Ainda assim, Mariana continuou
irredutível– era hora dos filhos tomarem banho.

— Olá, Adrien.— disse, apenas, um meio sorriso nos lábios.

O guitarrista voltou os olhos para a madrasta– aquela mulher de estatura pequena,


cabelos alisados artificialmente, negros; pele parda; corpo fora de forma. Nunca conseguiu
simpatizar com ela, o que era recíproco.

— Tudo bem?— perguntou, a velha tentativa de ser amistoso sem conseguir. — Tudo.— e
ela saiu, carregando os filhos para os outros compartimentos da casa. O rapaz olhou o
relógio– já estava na sua hora. Ainda precisava arrumar algumas malas, ajeitar trabalhos e
ensaiar com os companheiros da banda. Levantou-se.

— Preciso ir.— disse, caminhando para a sala e pegando a mochila jogada no sofá. — Não te
vejo mais nessa semana, não é?— o pai o seguiu, indo, depois, em direção à
porta, destrancando-a.

— Não. Vai ser tudo muito corrido e na quarta-feira estaremos viajando.

— Cuide-se, rapaz.— o pai o abraçou, uma intensidade diferente. Quando foi a última vez
que recebera um abraço dele assim?

— Você também. Me ligue dizendo como foi a cirurgia.


Despediu-se do pai e deu a partida na moto. Enquanto andava pelas ruas e avenidas
paulistanas, o vento, batendo em sua face escondida parcialmente pelo capacete, carregava as
lágrimas que rolavam de seus olhos.

Tratava-se de amontoados de papéis, envelopes e afins, espalhados pelo quarto. Ainda assim,
Alice não se incomodava. Gostava de reler as delicadas palavras escritas por amigos,
familiares e conhecidos. Sorrisos bobos eram roubados dos seus lábios, memórias voltavam à
sua mente. Não que fosse a melhor coisa do mundo organizar o quarto, porém, com certeza,
arrumar a caixa de cartas era uma atividade deliciosa.

Cassis , do The Gazette– a música que lhe dera o nickname–, saía do seu pequeno aparelho
de som, aumentando o clima nostálgico em que se encontrava. Abria todos os envelopes que
encontrava, olhava todos os papéis. Contudo, dentre aquele enorme monte que se acumulava
diante dos seus pés, um lhe chamou a atenção. Um pequeno bilhete que recebera em seu
penúltimo aniversário, visivelmente feito às pressas e com uma mensagem igualmente
rápida:

Parabéns, protótipo de bonequinha! Felicidades e juízo! Do amigo, Adrien

— Ah não...— murmurou.

Com pressa, pegou o caderno colegial onde guardava a carta que pedira a Nadia. Sentia as
mãos trêmulas, o coração disparava dentro do peito.

Releu a mensagem destinada à amiga. Depois, colocou ambos os papéis juntos, um ao lado
do outro. Para conter o espanto, levou a mão à boca.

A mesma caligrafia.
17.
— Então... você ir amanhã?

— Bom, é.— Arashi levou a mão aos cabelos, bagunçando-os.— Estamos muito
empolgados, Nadia-chan! Acho que hoje à noite nem conseguirei dormir!

Nadia sorriu.

— Eu estar orgulhoso de você. De verdade.


E pôde notar a mudança na tonalidade facial de Arashi.
— Mas... e você? Como têm sido esses seus últimos dias? Ainda continua tendo aquelas
visões? — ele perguntou, tímido.

Pela primeira vez em sua vida, Nadia sentiu vontade de desabafar com alguém os seus
delírios costumeiros. Arashi apareceu no momento certo– a proximidade que surgiu entre
eles a fez contar todas as imagens surreais que apareciam diante dos seus olhos.

— Às vezes. Acontecer mais quando estar sozinho.

— Posso te fazer uma pergunta?


— Por que não?
— Quando começou a visualizar o que não existia?

Nadia mordeu o lábio e semicerrou os olhos.

— Ser após o morte do meu pai. Quando eu ser mais novo, ele costumar me contar um lenda
antiga... É um dos poucos memórias que eu guardar depois do acidente.— ela sorriu ao
relembrar.— É interessante. — e, para melhor se lembrar da história, fechou os olhos. —
Dois irmãos ser os responsáveis por um mundo fantástico, meio que o “Sonho Maior”. Um
faz os bons ilusões, outro os ruins. Um dia eles brigar porque o responsável pelos ilusões
“ruins” quer virar gente. Então, o outro irmão lançar um maldição nele: ele só conseguir ser
isso se, por acaso, encontrar um pessoa compatível com o Mundo Irreal, alguém que ter um
grande capacidade de sonhar e poder substituir ele.— ela abriu os olhos.— Na época, eu quer
muito ser esse pessoa escolhido e o meu pai sempre dizer: Sonhar muito, sonhar demais.
Quando você visualizar um mundo mais bonito e diferente, você alcançar ele. E, depois que
ele morrer, eu começar a botar em prática isso. É um costume velho que eu nunca me livrar.
Meio idiota, né?
— Não acho. Francamente.

Ela lhe lançou um olhar tímido, enquanto ele continuava a observá-la, sorrindo. Era um clima
estranho. Agradável, mas estranho.
— Você voltar logo?— Nadia perguntou, mordendo o lábio.
— Uma semana e meia não é um tempo muito longo, é?— Arashi riu.
— Para mim, talvez.

O desconserto de Arashi aumentou.


— Você tem certeza de que ficará bem?
— Claro! Melhor impossível!— ela sorriu largamente.— Eu não é derrotada tão fácil! —
Tem certeza?
— Não.— Nadia suspirou, o sorriso desfeito.— Mas eu poder tentar.

Arashi se levantou da cadeira. Puxando a alemã pelas mãos, levantou-a, abraçando-a em


seguida.

— Se cuide, coisinha. Quero te ver bem quando voltar.


— Ah! Eu precisar te dizer uma coisa.
— O quê?

Nadia afundou a cabeça no peito de Arashi, apertando o rapaz levemente e fechando os


olhos. — Você ter um abraço bom. Confortável.

Ele riu.

— Um magricela com um abraço bom?— sua voz era divertida.— Isso é novidade! —Eu
gostar do mesmo jeito.

Ela não iria soltar, ele sabia – e aquele era o momento certo. Reunindo toda a pouca coragem
que tinha, Arashi se distanciou um pouco de Nadia, tocando o seu queixo e levantando
carinhosamente a sua cabeça. Transcorreu-se uma fração de segundos até que os lábios dele
estivessem colados aos seus. Nadia não soube exatamente distinguir a sensação de beijar o
rapaz que virara seu melhor amigo brasileiro, mas precisava admitir que adorou o gosto de
morango que a boca de Arashi tinha.

Amigos íntimos também poderiam trocar aquele tipo de carícia, não poderiam?

*
Alice mordia os nós dos dedos, ansiosa. Passou a semana inteira se perguntando se não havia
se enganado, se não estava apenas nervosa. Aquela seria a prova geral se cometera apenas
um erro ou se obtivera a confirmação.

Por causa da sua péssima nota em Geografia, a mãe a deixou de castigo – uma semana sem
telefone ou internet. Aquilo dificultou as coisas: falou com Nadia tardiamente. Não
mencionou o assunto, preferia que conversassem pessoalmente. Queria lhe mostrar provas
concretas, não apenas suposições. Queria que Nadia acreditasse em suas palavras.

— Alice?
O coração disparou no peito. Bom, vamos lá.
— Entra aqui!
A amiga entrou. Vestia um jeans, uma camisa azul sobre uma blusa de mangas compridas
preta, a bolsa de nylon jogada ao lado, meias coloridas, cabelos soltos.

— E aí?— perguntou a alemã.— Tudo bem?


— Comigo?— por mais que tentasse, Alice não conseguia disfarçar seu nervosismo.—
Comigo sim e com você?
— Acontecer algo, Alice?

É, não dava para esconder.


— Acho que sim.— suspirou a oriental.— Você trouxe o desenho?
Os lábios de Nadia se contraíram.

— Você saber que isso ser desagradável para mim, não? Eu não ver esse desenho há muito
tempo.

— Por favor.

Nadia suspirou. Abrindo a bolsa, retirou a pasta verde, entregando-a a Alice e sentando na
cadeira giratória, em seguida.

— Ser a última de todas as folhas.

A Hikari retirou todo o conteúdo que estava guardado na pasta. Respirou fundo e, com as
mãos tremendo, puxou a última folha. Não conseguiu reprimir seu espanto.
— Meu Deus!
Nadia franziu o cenho.
— Que é?— a voz se alterou.— Oh mein Gott, você estar pálida!
Alice continuava estática. Colocando o desenho sobre a cama, dirigiu-se ao computador,
ligando-o. Calada, tentava recuperar a calma. Quando o Windows iniciou, procurou a pasta
onde guardava as suas e as fotos de Arashi. Abriu, em seguida, a pasta de nome
RETICÊNCIAS, buscando a melhor foto. Encontrando-a, clicou, exibindo-a em seguida para
a amiga.

— É esse o cara dos seus sonhos, Nadia?

Foi com espanto que Alice vira a boca de Nadia abrir, os seus olhos ficarem arregalados, a
sua expressão mudar, ela puxar o ar e a interjeição de espanto.

— Q-quem é es-esse...?—a voz da alemã saía trêmula.

— Adrien Guerra, quase 23 anos, geminiano, guitarrista da Reticências e melhor amigo do


meu irmão.

— E-esse é o Adrien?— a voz falhava ainda mais.— O Adrien que você falar no dia do
show? O Adrien que o Arashi falar?

— Ele mesmo. Reconhece, agora, o cara dos seus sonhos? O cara por quem está apaixonada,
Nadia?

O metrô andava rápido, as pessoas alheias à sua preocupação. Em suas mãos, uma impressão
da foto que vira horas antes, os seus olhos fixos na imagem exposta no papel.

Reconhece, agora, o cara dos seus sonhos? O cara por quem está apaixonada, Nadia? A
quem amava? Ao homem ou à imagem? Não conseguia responder. De qualquer maneira,
havia naquele rapaz uma característica do personagem onírico: os olhos tristes.

Como ele é? Ah, um cara legal, tranquilo, mas reservado e sério. É bem ligado à família,
mesmo que não seja daqueles que vão todos os dias na casa dos pais. E, acima de tudo, é um
completo cachorro. Garanhão, pega qualquer uma que queira dar para ele. Seria a minha
última opção de homem.

Mentalmente, perguntou-se se era assim que imaginava o jovem que lhe surgia à noite em
sonhos. Lembrou-se de que nunca conseguira imaginar a sua vida, tinha apenas a certeza de
que era alguém vazio, sem grandes expectativas, com olhos pesarosos. Nunca chegou a
imaginar um“príncipe encantado”, não sabia nem mesmo explicar o porquê de ter se apegado
ao que não existia– ou ao que existia, não conseguia mais definir. Surgira, apenas.

Qual é, Nadia? Como assim não quer encontrá-lo? Vocês já se viram, se beijaram, trocaram
correspondências e você simplesmente quer fugir? Há quanto tempo deseja encontrá-lo? Há
quanto tempo sonha com ele? Justamente agora, quando ele está mais perto do que se possa
imaginar! Você precisa ir atrás do Adrien!

Estava confusa, com medo, sentindo-se tola. Não sabia o que falar a Adrien quando o
encontrasse, não sabia como seria sua reação. Além do quê, sentia-se culpada por tudo de
mais íntimo que aconteceu com Arashi– como o vocalista iria reagir se descobrisse a
estranha relação entre o melhor amigo e a garota de quem gostava? Havia coisas demais para
serem pensadas e decididas.

Lembrava-se do primeiro show da Reticências, quando o primeira vislumbre daquele


guitarrista lhe rememorou o personagem onírico. Lembrava-se daquele nome sendo dito
inúmeras vezes por Arashi. Perguntou-se como, em momento algum, conseguiu cruzar com
ele por entre os corredores da casa dos Hikari, como nunca escutou a sua voz, como nunca
desconfiou. Mordeu o lábio, cerrou o punho. Que sensação era aquela que apertava o seu
coração?

Você tem apenas uma semana para se preparar, Nadia. Tenha em mente o que precisa e
deseja falar. Eu não vou te deixar perder essa chance.

Fechou os olhos, guardando a fotografia dentro da pasta. No fundo, não importava quem ele
fosse na realidade ou o que acontecesse dali por diante. Para Nadia, apenas uma coisa valia:
toda a esquisita relação que acontecera em sonhos. E ela sabia: no mundo irreal, ele pertencia
a ela, assim como o contrário. A realidade não poderia interferir.

Entrou em surdina no quarto. A casa inteira estava escura, porém, mesmo que não estivesse,
nada o faria ser visto. Fechou a porta com cuidado, não poderia fazer nenhum barulho. A
cortina cobria a luz da lua, nada o faria enxergar a pessoa adormecida na cama. Não
precisava, afinal. Sabia muito bem se movimentar no breu.

Puxou a cadeira com a mesma cautela, colocando-a próxima à cama. Retirou o chapéu e os
óculos escuros. Ela continuava adormecida, não percebeu a presença a mais no recinto.
Sentiu os próprios lábios repuxarem, um prazer e uma ânsia sádicos em sua face. Pousou
delicadamente a mão sobre a cabeça dela, passando a deslizar os dedos por seus cabelos.
Sentiu-a arquear, mudar de posição e voltar ao mesmo estado de antes. Agora, o pequeno
rosto estava voltado para ele. Por quanto tempo a esperou? Sabia, era ela, não haveria como
não ser. Muitos outros vieram anteriormente, mas nenhum possuía a força e a fragilidade que
esta possuía. A satisfação cresceu. Pegando a pequena mão abandonada na cama, colocou a
chave naquela palma, fechando-a em seguida com os delicados dedos. Um êxtase passou por
seu corpo, ansiava. Depositou um beijo na fronte quente, estava na hora de dar a partida.
Desceu a boca para o ouvido dela e sussurrou melodicamente:

— Venha para mim, princesa.

Fora questão de segundos. Ela se levantou da cama, como se estivesse em seu mais visível
estado de lucidez. No entanto, seus olhos estavam fechados. A brincadeira havia começado.

Desesperada, a bailarina tateava o nada à procura de algo que pudesse encerrar os


instantes de agonia que passava naquela infinita solidão. Precisava voltar para a sua
caixinha musical. A única coisa que possuía era uma chave, não via utilidade naquele
utensílio– não existiam portas que pudessem ser abertas. Correu pelo espaço inexistente,
pelo nada branco, acreditando, às vezes, estar cega. As mãos procuravam avidamente por
alguma superfície sólida, necessitava sentir algo debaixo das suas palmas– algo que não
fosse somente a pequena chave. Continuou nessa atividade por tempo indeterminado, não
poderia parar.

Ela abriu lentamente a porta para a saída da casa, os pés cobertos pela meia andavam pelo
piso frio. Às vezes, sua caminhada se tornava falha, e ela vacilava, sendo prontamente
amparada por ele. — Calma, princesa. Eu a ajudo a caminhar.

Contudo, um forte impacto com algo de extrema dureza a fez voar longe. Não sabia se
lamentava a intensa dor no pulso ou comemorava pela descoberta. Prendendo a chave
dentro do collant, tateou a superfície, empurrando-a. Inicialmente, nada de anormal
aconteceu, porém, em poucos instantes, sentiu que afastou algo e um contorno quadrangular
e colorido surgiu no meio branco.

O coração pulsou mais forte, o sorriso se formou inevitavelmente em sua face. Imprimindo
uma força maior, empurrou o bloco duro e pesado. O esforço foi grande e precisou de vários
minutos para conseguir afastar o concreto totalmente. Quando o fez, viu apenas uma
passagem escura e tapada por galhos mortos e folhas no chão. Respirou fundo e, vencendo o
asco e o receio, adentrou no pequeno caminho, engatinhando para encontrar o outro lado.

Ela desceu a escadas, os pés pisando no gramado molhado do condomínio, as meias ficando
sujas. Seus olhos continuavam cerrados, ninguém via a sua estranha caminhada e nem o
sujeito que a acobertava.

O trajeto era lamacento, desconfortável e longo. Suas costas doíam por conta do modo pelo
qual tentava atravessar a passagem; as mãos, as meias e as sapatilhas se sujavam de lodo;
insetos– aos quais preferia ignorar– subiam por suas mãos; o tutu era amassado e rasgado
pelos galhos; a iluminação impedia uma perfeita visão; o cheiro era repugnante. Contudo, a
ansiedade para encontrar a saída a fazia superar as dificuldades que encontrava. E, quando
avistou a luz mais forte, apressou-se. Engatinhando cada vez mais rápido, dirigiu-se à saída,
até ser ofuscada completamente pela iluminação.

Estava deitada em cima de uma superfície que não conseguia identificar. O incômodo
provocado a fez abrir os olhos. O céu branco trazia tranquilidade, nada se via além da
brancura. Levantou-se, com cuidado, descobrindo estar deitada sobre inúmeras folhas
envelhecidas. Os olhos percorreram o local e nada viu além de inúmeras árvores negras,
cujos galhos deixavam cair os últimos vestígios de neve. Sabia conhecer aquele lugar,
embora a memória falhasse ao tentar lembrar.

Voltou os olhos para si. Agora não havia mais collant, tutu rasgado, meias e sapatilhas
sujas. Um bonito vestido branco com laço e bordados azul a vestia. Uma fina tira metálica,
similar a uma coroa, estava em sua cabeça e seus cabelos, longos e castanhos, estavam mais
ondulados do que o comum. Sapatinhos brancos a calçavam. O seu ego inflou. Sentia-se
uma princesa.

Levantou-se, uma sensação estranha no peito. Sabia que teria de encontrar alguém, uma
pessoa desconhecida. Levantando a saia de modo que não atrapalhasse sua caminhada, pôs-
se a andar, olhando atentamente para as árvores negras e para a neve que desaparecia.
Cada vez mais, tinha plena certeza de já ter passado pelo excêntrico bosque, mesmo que sua
falha memória não lhe mostrasse nada. Cortando espaços pelas frestas entre as plantas, não
tinha a certeza do que procurava – apenas corria atrás. A solidão já não a assustava,
conseguia enfrentá-la bem mais tranquila. Por algum motivo desconhecido, acreditava antes
ter sido medrosa, assustada. Contudo, nada sentia. Apenas desejo ardente por procura.

Em determinado ponto, certa imagem encerrou a sua caminhada. Deparou-se com a maior
árvore do bosque, larga demais e extremamente comprida. Os galhos, longos e retorcidos,
possuíam finas ramificações que alcançavam o chão. Não havia folhas, não havia neve,
apenas trepadeiras que subiam pelo tronco e contornavam todo o caule que, aos poucos, ia
perdendo a sua madeira protetora. Porém, mesmo com a forte proteção, havia uma fresta,
algo que deixava visível um meio quadrante.

Movida pela curiosidade, caminhou até a árvore, passando o dedo pela falha. Intrigada,
quebrou as trepadeiras mortas, esforçando-se para descobrir o que significava aquela
forma. Após extenso trabalho, a árvore já não estava mais coberta por nenhum outro galho
e a forma de uma porta com ponta arredondada se fez visível na madeira.

O porteiro do condomínio acabara por adormecer, não chegando a ver, portanto, a menina
que andava àquelas horas, guiada por algo invisível aos olhos comuns. A grade que dava
saída para a rua continuava trancada. Contudo, a mesma força que fazia aquela garota
caminhar destrancou o portão, permitindo a saída da menina.

— Estamos quase lá.— sussurrou aos seus ouvidos.

Todavia, estava trancada. Cada vez mais ansiosa, lembrou-se da chave que carregava
consigo, presa ao collant. Rapidamente, tateou o corpo e percebeu um cordão em seu
pescoço, cujo pingente era exatamente a chave. Satisfeita com o feito, destrancou a porta e,
em seguida, girou o trinco de estranhas formas de madeira podre.

Ela saiu, indo em direção à rua.

O outro caminho, igual ao anterior, era escuro, mas permitia uma perfeita passagem.
Abaixando-se um pouco, adentrou.
*

A garota parou no meio da rua, como se esperasse algo. O seu estado de letargia não cessou
nem mesmo quando a luz mais forte se formou, quando o asfalto tremeu com aquela nova
aproximação ou quando os pneus do carro cantaram.

Uma luz mais forte iluminou o ambiente.

— Cuidado!

A mulher que estava dentro do carro gritou, mas o marido não tivera tempo suficiente para
desviar o automóvel daquela mocinha insana, vestida com um pijama colorido, inerte na rua.
Não houve meios. Atingiu-a em cheio, jogando o pequeno e franzino corpo a certa distância.
O porteiro adormecido acordou com o alarde, com os gritos da passageira, com o alarme do
motorista do carro. Afoito, correu em direção à moça largada em uma poça de sangue no
asfalto.

— Santo Deus!— exclamou, trêmulo.

Correu para a portaria. Precisava avisar a Yooki Sakurai que sua prima, a menina Nadia,
sofrera um grave acidente.

O violão de Adrien desafinou de modo ensurdecedor. Espantado e pego desprevenido, o


guitarrista lançou um olhar desesperado para os companheiros. Com um meneio de cabeça,
Max lhe avisou para afinar– não estavam solando afinal. Desligando o cabo, Adrien tentou
ajeitar o instrumento.

E Sonhos precisou ficar sem o solo naquele momento constrangedor.

A sala era extensa, com muitos móveis antigos e elegantes, algo aproximadamente do
período neoclássico francês. As paredes eram cobertas por papéis vermelhos, o que permitia
uma perfeita acústica, além de serem decoradas por pinturas clássicas. Bustos horrendos
estavam espalhados pelo local, o que, de certo modo, não influía na beleza arquitetônica.
Toda a cor ambiente se resumia a rubro e dourado, trazendo um ambiente sofisticado e
sério.

— Princesa!

A voz lhe despertou a atenção. Ao fundo da sala, um homem sentado em uma grande
poltrona a chamava, acompanhado por uma bela moça com roupas de criada. Intrigada,
aproximou-se. Acabou se assustando com o jovem, não imaginava que um rapaz tão novo
pudesse se interessar veementemente por arte velha. No entanto, nada a tocou mais do que a
bela face do moço: os cabelos, negros e lisos, corriam por sua fronte e, em um corte
irregular e belo, iam até o fim da sua nuca– um charmoso penteado. Os lábios eram finos,
bem desenhados e vermelhos; o nariz bem feito; os olhos de um azul claro, porém intenso,
formando um olhar intimidador e predatório. A roupa, igual ao ambiente, era da mais
extrema elegância e bom gosto: a jaqueta preta de couro cobria um bonito suéter também
preto; as botas, igualmente negras, eram escondidas pela calça jeans escura. A pose era,
todavia, relaxada. Um cotovelo estava apoiado no braço da poltrona, servindo de apoio,
também, para a sua cabeça. O corpo todo estava virado para um lado, as pernas cruzadas,
um sorriso pequeno nos lábios. Estonteante.

— Conheço você?— ela perguntou, confusa.

O sorriso tornou-se maior – e mais encantador. Ele se levantou, dirigiu-se a ela,


ajoelhandose à sua frente. Pegando a sua pequena mão, depositou um beijo cálido em sua
pele, falando em seguida:

— Sou seu servo, alteza. Um humilde escravo às suas ordens.

— Ei, ei, ei!— desconcertada, ela afastou a mão.— Espere aí, não sou princesa! E onde é
que estou? Por que me trata assim?

— Porque você é uma princesa! A princesa por quem nosso reino sempre esperou. Agora,
minha bela dama — e, enlaçando o seu braço nos dela, perguntou, no mesmo charme —, me
concederia a honra de uma dança?

Antes que ela pudesse negar, a música se propagou no ambiente. E, sem que pudesse
perceber, o local onde estavam desapareceu, dando lugar a um imenso salão iluminado por
velas e recheado de rostos escondidos atrás de vistosas máscaras sem expressão. O rapaz,
enlaçando a sua cintura, puxou-a para si com um braço, enquanto a mão do outro pegava
delicadamente os dedos da garota, levantando o braço da menina como um todo. Ele era
charmoso e sensual, isso era inegável. Seu olhar penetrante e perigoso a desconcertava e
não havia como recusar a proposta de uma dança. Logo, sentiu o corpo acompanhar os
movimentos dele, obedecendo à melodia escutada. Os passos eram delicados, inicialmente,
ganhando velocidade e complexidade com o tempo. Inúmeros olhares escondidos se
voltaram para o casal principal. Sentia-se incrível, não conhecia o prazer de uma valsa.

Quando menos retraída, sorriu.


— Está gostando, alteza?— ele perguntou, também sorridente.
— Você dança muito bem.— ela comentou, incerta.

— Quem, eu?— uma discreta e charmosa gargalhada veio da sua boca.— Não, alteza. É
você quem está dando graça a este momento, quem conduz essa dança. Sou apenas um mero
instrumento à sua mercê.

Ele falava bonito.

— Olha, não quero te decepcionar— menos empolgada, ela começou—, mas eu não sou
uma princesa. Acho que você está me confundindo.
— Tenho a plena certeza de que não. Vê todos esses rostos que aqui estão? Eles ansiaram
por sua chegada e, de tão miseráveis que são, escondem a face diante da sua grandeza. Para
que tanta modéstia, alteza? Não tenha vergonha de assumir o seu posto, a cadeira real
sempre esperou por esse momento.
— Sério mesmo, cara, não sou princesa. Não tenho nem postura, nem coroa, nem nada.
Entrei aqui por acaso.
— Tem certeza? Acho que a porta não estava aberta para isso. Quem entra ou foi convidado
ou possui a chave.
— E onde estou? Pode me dizer que local é esse? Uma casa na árvore?

O rapaz parou de dançar, o sorriso cada vez mais perigoso e excitante.


— Este... é o seu reino.
Ela sentiu os músculos travarem, os movimentos serem perdidos. A música se tornava
rápida, o ambiente rodava sem motivos e ela apenas conseguia olhar para os olhos azuis
incríveis do jovem. Viu as pálpebras dele se fechando, a respiração acariciando o seu rosto,
o abraço ficando mais apertado. Sem resistência, ela pendeu, entrando em um grave estado
de letargia. Uma quentura forte foi sentida em seu pescoço, como lábios percorrendo um
caminho perigoso, subindo até o seu queixo. Sua respiração cessou, os pulmões não
conseguiam mais bombear oxigênio. O outro hálito se tornou o aroma mais próximo a ser
sentido e o ar quente dos outros lábios fervia os seus próprios. Sem reação, continuou
parada, apenas esperando o que não deveria esperar. Em instantes, sentiu sua boca sendo
um instrumento para o jovem, que a invadira com a sua língua. O vestido, antes branco,
tornou-se vermelho escuro, a fita azul e os sapatinhos claros, pretos. Um frio maior, os
rostos sumiram. E, sem perceber, havia entrado no lugar onde nunca deveria ter ido.

— Nadia! Nadia, meu amor, não feche seus olhinhos... Por favor, Nadia, não feche os olhos!

A menina parecia o encarar, embora seus olhos estivessem distantes. Piscava lentamente,
respirando do mesmo modo e de maneira longa e profunda, o rosto com uma expressão de
espanto e medo. Yooki segurava a sua mão, em desespero, rosto molhado por incessantes
lágrimas. Dentro da ambulância, os enfermeiros tentavam manter a jovem vida que estava em
risco.

Não havia mais realidade, não havia mais irrealidade. E ela não era mais uma garota sem
nome. Lembrou-se do seu nome e o pronunciamento dele ecoava em sua cabeça. Estava
lúcida.

Ela fechouos olhos.


18.
O barulho ininterrupto do telefone obrigou Adrien a acordar. Sonolento, não se preocupou
em olhar pela tela do celular para saber quem o chamava, apenas atendeu. Esfregando os
olhos, pronunciou um“alô” desanimado e sem vida.

— Adrien?
Reconhecia aquela voz. Mariana. E ela chorava.
Péssimo sinal.
— O que aconteceu?— ele sentiu a voz falhar. Já imaginava o que estava por vir.

— Ele sofreu um ataque por causa do efeito da anestesia e entrou em coma. Você entendeu,
Adrien? Seu pai está em coma!

Foi preciso muito controle para Adrien não exprimir qualquer emoção que a notícia poderia
ter lhe causado. Respirou fundo, apertou o travesseiro com força, tentando descontar nele a
dor que passava por seu corpo. Velho maldito, o que Adrien havia falado sobre não morrer?
— A que horas, isso?— perguntou, forçando-se a manter o controle a tranquilidade. —
Agora pela manhã. Às sete.
O guitarrista afastou um pouco o celular para ver as horas. Dez e meia.
— Preciso que você volte agora, Adrien. Não posso suportar essa barra sozinha com as
crianças.
— Mas agora?
— É, agora.
— Não dá, Mariana. Só volto depois de amanhã, ainda temos um show hoje à noite. Não tem
como voltar agora, mas, assim que tudo isso passar, a primeira coisa que farei é ir ao
hospital, ficar responsável por ele. Pode ser assim?
— Como é, garoto? Você entendeu o que falei? O seu pai está em coma, você precisa voltar
agora! Tem de pegar um ônibus e vir urgentemente! Não pode ficar aí vagabundando com
sua bandinha! Estou falando de um assunto sério!

Muito bem, péssima hora para pegar brigas. Foi necessário uma dose extra de calma. — Em
primeiro, não estou vagabundando, Mariana. Não sei se você sabe, mas eu tenho um trabalho
e vivo disso. Logo, não há como satisfazer a sua vontade agora, mas estou dando a minha
palavra que...
— Palavra? E você tem palavra?— ela riu ironicamente do outro lado da linha— Menino,
você é um perdido! Por isso seu pai deu esses ataques e está prostrado na cama! Você
sempre foi um estorvo na vida dele! Um problema! E, na hora em que ele mais precisa, dá as
costas! Que beleza de filho, heim?

Adrien respirou fundo outra vez. Poderia até tentar se controlar, mas não iria aguentar aquela.
— Escuta aqui, sua puta escrota— sentiu a sua voz se alterar algumas oitavas, acordando,
assim, os companheiros de quarto—, quem você pensa que é para sair aí disparando críticas a
mim e se metendo na minha relação com o meu pai? O que deveria fazer agora é largar de ser
uma vadia fofoqueira que passa metade do tempo conversando lorota com as vizinhas e criar
coragem para cuidar dos filhos e do marido! Então, deixe de ser uma imbecil que ama falar
do que não sabe e vá resolver os seus problemas! E, se não quiser cuidar do pai, não se
preocupe. Volto depois de amanhã e abarco essa tarefa tão difícil!

A fúria se manifestou por completo quando Adrien jogou o celular contra a parede. Resolveu
não olhar os companheiros de quarto que haviam acordado com seus gritos e o observavam,
não tinha vontade de encarar ninguém. Apertando com uma força maior o travesseiro,
levando junto parte dos lençóis da cama, não conseguiu segurar as lágrimas e os soluços.

Empurrou-o com força logo após ter voltado ao seu estado de consciência. Assustada, olhou
para si mesma e para o mundo que a cercava. Não existiam mais máscaras escondendo
faces, um salão galante, música clássica, uma cena de livro infantil. Não, o ambiente que
agora via ultrapassava a reta do mágico e perfeito. O céu estava negro, sem estrelas e sem
lua. As árvores, todas brancas, possuíam folhas alvas e rubras, que pingavam gotículas
vermelho-escarlate no chão, este pintado por sangue e restos de folhas. Levou a mão à boca,
tentando conter o espanto.

— Quem é você?— perguntou, aos gritos, assim que se sentiu mais preparada para falar. —
Ora, ora...— não havia nenhum resquício angelical naquela face de pintura clássica.— A
menina voltou à lucidez. Que bom saber disso, embora eu ache que serei um pouco
prejudicado com essa sua volta.
— Eu quero saber quem é você!— fúria saía na sua voz.

— Ah, não, não, não!— ao contrário dela, ele se mantinha tranquilo e irônico.— Ainda
não é o momento de saber quem sou, vai estragar a diversão assim.
— Não há diversão aqui, porco imundo! Quer me explicar que inferno é você e esse maldito
lugar?
— Lave essa boca, menina.— as duras palavras dela, entretanto, não o atingiram.—
Ofensas são deselegantes e creio que não a tratei com grosseria para ser retribuído de
maneira tão indelicada. Porém... se isso te fizer feliz, posso, pelo menos, revelar a você parte
das suas dúvidas.— ele deu alguns passos, voltando a se aproximar da moça. O sorriso
irreversível no rosto, a voz melódica, o andar elegante, a postura fina, o charme exalando.
— Estamos eu e você no mundo que sempre foi seu sonho conhecer.
— Nunca tive esse tipo de desejo.
— Nos seus sonhos mais secretos, sim.— ele se posicionou atrás da menina, levando os
dedos ao seu queixo, acariciando a sua pele, enquanto falava em sussurros ao seu ouvido.—
Eu sempre soube dos seus desejos, menina. Você assinou um contrato comigo, me deu
permissão para entrar em seu mundo.— e, retirando um papel enrolado de dentro do bolso,
estendeu-o à jovem. — Ou não reconhece o nosso acordo?
O papel enrolado estava à sua frente, esperando. Receosa desenrolando em seguida. A
imagem de um belo e conhecido jovem surgiu. e enfurecida, pegou-o, Postura firme, blusa
branca e aberta, cabelos esvoaçantes, fisionomia triste. Virando-se, em um misto de espanto
e fúria, para o rapaz, gritou:
— Onde conseguiu isto?
O sorriso dele se tornou mais sádico.
— Não se lembra, artista?— perguntou, deliciando-se com a confusão da menina.— Era a
proposta.“Desenhe com fidelidade algum personagem de um sonho seu por mil euros”. Ah,
não faz tanto tempo, então não me diga que esqueceu! Vai me magoar se já tiver apagado
esse fato da sua memória.
— Ah não...— murmurou mais para si mesma.
— Bom, é a verdade. Fui eu quem lhe fez a proposta e quem lhe pagou. Mas, infelizmente,
como o dinheiro era imaginário, creio que não durou por muito tempo, assim como a
lembrança que o seu amigo tinha de mim. Acho que não te avisei, mas, quem comigo se
envolve, esquece o meu ser em pouco tempo.
— Se é assim, por que eu não?— sua voz saía sôfrega, mesmo imersa em ódio. O fato ainda
era uma ferida aberta.
— Porque, como eu disse, você tem um contrato comigo.— ele sorriu, virando-a para si e
segurando o rosto molhado. — Sinta-se orgulhosa, menina! Você é uma das poucas que tem
o privilégio de estar comigo e de guardar minha imagem na lembrança!

— Que privilégios há nisso se nem sei quem você é?— ela tentou conter o ódio. Não era
hora para demonstrar suas mágoas.— Além do mais, você me enganou! Me fez pensar que
estava louca, me fez duvidar da minha própria sanidade! Sabe o quanto isso doeu?

— Mas essa dúvida sempre esteve presente em sua consciência, menina. Não pode me
culpar por isso.
Ignorando-o, ela levou as mãos à cabeça, como se sentisse uma forte dor nas têmporas.
— Eu quero acordar. Só posso estar sonhando...— murmurou, tentando se controlar.
— Ah, princesa...— ele se aproximou novamente, envolvendo-a nos braços e acariciando-
lhe os cabelos.— Sinto informar, mas você vai continuar aqui comigo... Esse é o seu reino,
não pode abandoná-lo agora. Se quiser um conselho, passeie por ele e descubra os seus
simplórios servos. Vai te acalentar, tenha certeza. E você vai gostar, aqui não é tão ruim.
— E onde eu estou?— ela repetiu a pergunta, não controlando a raiva que exalava da sua
voz.
O rapaz se distanciou, dando voltas em torno dela. Ficando às suas costas, aproximou a
boca da sua orelha e disse, após ter dado uma pequena mordida:
— No seu doce pesadelo.
Ela se voltou para trás, a fim de encará-lo nos olhos. Contudo, nada mais viu. O rapaz
sumira, deixando-a só em um local totalmente imprevisível e desconhecido. Sem esperanças
e com medo, pôs-se a andar, sem rumo. Precisava encontrar a saída, algo que a fizesse
acordar. Para isso, deu os primeiros passos.

Inerte naquela cama, ele aparentava estar apenas tendo outro sono tranquilo, daqueles que
qualquer ruído poderia interromper. Adrien respirou fundo. O que sabia sobre coma? Apenas
que a pessoa ainda tinha chances de despertar– naquele momento ou dali a vários anos– ou
de morrer. Cerrou os olhos. Queria desconsiderar a última alternativa.

Sentia-se cansado, com a respiração falha e os ombros tensos. Não repousava há noites e a
briga com a madrasta complicou ainda mais a sua já difícil situação. Além de tudo, tinha
medo. Temia perder o pai, temia ter a solidão, mais uma vez, perturbando-lhe o sono, temia o
que iria enfrentar. Muitas preocupações, poucas soluções.

Esfregou os olhos pesarosos. Perdeu a noção do tempo, não sabia há quantas horas estava ali,
velando um possível sono eterno– não sabia nem quando fora a última vez que descansara.
Puxando o ar para os pulmões, levantou-se– necessitava de um café ou qualquer outra coisa
que o deixasse mais animado. Abriu e fechou a porta do apartamento olhando as mensagens
no celular– as últimas foram de Arashi, desejando sorte, força e oferecendo ajuda. Talvez
precisasse mesmo.

Andou pelos corredores do hospital à procura da máquina de café instantâneo. Depositou


uma moeda, esperou, pegou o copo de plástico fervente. Enquanto assoprava um pouco para
deixar o líquido menos quente, deparou-se com a figura magra e de olhos abatidos que
conversava com uma das enfermeiras. Franziu o cenho, aproximou-se mais para ter certeza
se estava ou não enganado, conseguindo, assim, escutar algumas palavras ditas pela
enfermeira:

— Não, senhor. Infelizmente, ela ainda não apresentou nenhum sinal.


Ouviu o suspiro dolorido.
— Muito obrigado.

Aquela voz realmente não enganava. Assim que o viu liberto do pequeno diálogo com a
enfermeira, arriscou:
— Yooki? Yooki Sakurai?
O professor se virou para ele, a expressão cansada adquirindo uma forma de dúvida. — Você
é...?
— Adrien Guerra, guitarrista da Reticências, banda que está sendo divulgada pela Star
News...

Yooki franziu o cenho, esforçando-se para lembrar tais nomes. Alguns segundos após, seu
rosto se iluminou.

— Ah, claro! Me lembro de você sim, rapaz! Amigos do Arashi.— ele riu, um riso triste.
— Desculpe-me a memória falha, mas ando passando por momentos difíceis agora.

— Não, sem problemas! Fica frio.— Adrien mordeu o lábio.— E o que te traz aqui? A face
de Yooki retomou a expressão deprimida e cansada.
— Arashi não te contou?
Adrien balançou a cabeça em gesto negativo.
— Quer dar uma passada na lanchonete comigo?

— Eu... não sabia.

Adrien mantinha os olhos fixos no sanduíche. Um bolo em seu estômago o impedia de


continuar a deglutir.

— Talvez Arashi não tenha lhe contado para não preocupá-lo mais. Seu pai também está na
mesma situação, não é?

— É, mas... Era uma coisa previsível, se é que pode se dizer.— ele levou a mão ao pescoço,
desconcertado.— E foi assim, sem razão nenhuma? Ela apenas acordou à noite e desceu à
rua?
— Sim, sim. — o professor depositou a latinha de chá gelado na mesa.— Foi muito estranho,
Adrien. A Nadia nunca tinha dado ataques de sonambulismo. Nos três, quatro meses em que
estive com ela, isso jamais aconteceu. E pelas informações que a Laura me deu antes dela vir,
a Nadia não tem um histórico de sonambulismo.

— Mas o que aconteceu realmente para ela ter...?

— Bateu a cabeça, simplesmente.— Yooki riu mais uma vez, com a mesma sonoridade
deprimida.— Sabe o que é o mais estranho? A pancada que ela levou não era forte o bastante
para fazêla entrar em coma. Ela não sofreu traumatismo, derrame, nem nada. Teve alguns
ferimentos um pouco feios, mas, para o coma... Ela só... bateu a cabeça.

Os olhos de Yooki se perderam. A dor era visível naqueles olhos escuros.

— Cara, está sendo um inferno.— ele prosseguiu, levando a mão aos cabelos, bagunçando os
fios.— Primeiro a Laura, agora a Nadia. Qual é?! Ela é só uma criança de dezesseis anos!
Deveria estar acordada, estudando, desenhando, fazendo as coisas que gosta, não inerte em
uma cama como se estivesse morta!
Adrien escutou um suspiro mais forte. Yooki se controlava para não cair em prantos– mais
uma vez.
— Sei como isso é difícil.— disse o guitarrista, levando a mão ao ombro do professor, em
sinal de amizade.— E sei que nenhuma palavra vai te fazer se sentir melhor, mas... Desejo
forças a você. Yooki assentiu.
— A nós, rapaz, a nós.
E, após uma pausa, fez a pergunta:
— Gostaria de vê-la?

Perdida, não sabia há quanto tempo caminhava. Achava, às vezes, estar andando em
círculos, tendo a impressão de sempre voltar ao mesmo lugar. Não existia saída, não existia
nada além das árvores, do silêncio cortado pelo barulho do vento frio, das folhas secas e
meladas por sangue caídas no chão, do que ela própria andando sem rumo e sem direção.
Não sentia medo ou agonia, ainda possuía a esperança de conseguir se libertar de tal
floresta maldita.

Cortou caminhos tortuosos, atravessou pontes de madeira velha e caquética e tudo que
conseguia ver eram rios de líquidos vermelhos e plantas mortas no chão. Continuou na
atividade por instantes intermináveis até encontrar, em determinado ponto, uma vila perdida
em escombros, de casas tortas e plena escuridão. Suspirou, levemente aliviada– não estava
como um todo por causa do péssimo e assustador aspecto do local. Engoliu em seco e se
dirigiu até lá, passando pelo portão sem vigias.

O silêncio predominava, devastador. Algumas casas possuíam iluminação, mas nenhum


sinal de vida era observado. Pensou em gritar, mas se conteve. Não conhecia o espaço em
que estava inserida, não sabia quais perigos se escondiam por trás da quietude e da pouca
luz. Preferiu continuar andando, observando, torcendo para encontrar alguém que a
pudesse ajudar. Todavia, nada enxergava além de vultos e mais vultos contornando-a. Não
sentia medo, apenas desconforto.

Próxima ao moinho caquético, avistou uma menina de cabelos louros e sardas no rosto, que,
com ursinho velho na mão e vestindo trajes de camponesa medieval rasgados, olhava-a
fixamente. Não gostava de crianças com aquele aspecto aparentemente infantil. Sabia que,
por trás do rostinho angelical, algum tipo de demônio se escondia. Porém, não havia outra
opção. Aproximou-se, desconfiada, da garotinha. Pigarreou e, puxando ar para os pulmões,
disse, tentando ser amistosa:

— Bonito local esse daqui, não é?


A menina nada respondeu, apenas continuou a observá-la, silenciosa.
— Gostei do ursinho. Ele é muito... charmoso.

Nada.

— Então, hãn...— estava desajeitada graças ao medo, isso era perceptível.— Você sabe
onde eu encontro a saída daqui?

Agora, a garotinha apontava algo atrás da moça, o indicador bastante esticado.


Estranhando, voltou o olhar para trás e sentiu os batimentos cardíacos ultrapassarem os
limites normais. Um enorme cão negro de três cabeças a olhava, furioso, com baba
descendo por suas bocarras. Em dado instante, viu o cão se dividir em três e, no lugar do
primeiro, um trio grotesco surgiu, cabeça de cachorro e corpo de homem, totalmente
coberto por pelugem preta. Deu passos para trás, os cães a observando, prontos para
atacar. Quando voltou o olhar para a garotinha, percebeu que o rostinho de boneca sumiu,
dando espaço a uma feição distorcida e tenebrosa. Prendendo o ar, resolveu não mais se
importar com a pequena menina demônio, havia coisa pior do que ela ali.

Levantando bruscamente a barra do vestido, manteve a cautela ao observar os três cães –


todos exalando raiva e desejo de carne fresca. Os próprios músculos não respondiam às
suas chamadas, estava visivelmente abalada. Precisava fugir o mais rápido que pudesse,
contudo não tinha impulso para tal. A garotinha atrás soltou um grito cortante, algo que fez
o trio canino uivar e ter o primeiro passo para uma corrida de predador e presa. Assustada,
sabia que não tinha mais jeito– ou corria ou seria morta. E, inevitavelmente, pôs-se a fugir
com toda a rapidez que possuía.

Voltava agora para os bosques, mas, diferente dos outros, esses possuíam mais escuridão –
as árvores não eram alvas e existiam inúmeras armadilhas promovidas pelos galhos secos
misturados no chão. Conseguia sentir perfeitamente o cheiro de sangue que pairava no ar, o
desejo de carne rasgada, o instinto feroz das bestas das quais fugia. Caso perdesse um
pouco o ritmo, sabia que estaria assinando o tratado com a morte. Portanto, continuou a
correr, correr, correr, correr, topar, correr, quase escorregar, correr, correr, correr e parar
a corrida quando chegou ao campo aberto e sem saída. À sua frente, apenas um precipício.
Ou pulava e morria ou ficava e virava comida de cachorro.

Parada de frente ao abismo, olhou para trás. Os cães mantinham certa distância,
preparados para qualquer atividade inesperada. Não havia maneiras de fugir, estava sem
alternativas para se salvar. Respirando fundo, abriu os braços, fechou os olhos e pulou. O
que a esperava não fazia importância agora– só não queria ter uma morte extremamente
dolorosa.

Foi como levar uma facada acima da boca do estômago. Os pulmões interromperam suas
atividades, o oxigênio não entrava mais por suas narinas. Os músculos não reagiam, a cabeça
não conseguia pensar. Estava tudo confuso demais e a única certeza que tinha era de que
havia entrado em estado de transe.
— E essa é a minha Bela Adormecida. A minha menina.

Ele continuou calado, no ápice da estupefação. Duvidou tanto, desacreditou, achou ser
somente ilusão da sua mente cansada, mesmo agarrando-se àqueles míseros cinco minutos
dormindo com toda a força que possuía, vivenciando, neles, os momentos de felicidade que o
seu cotidiano não trazia. Acreditou estar doente, chegou a sentir sua sanidade fugindo.
Descobrir que não era apenas fantasia fez o seu espírito se engrandecer, inflar. Não estava
sob efeito de álcool nenhum, não estava com os olhos fechados. Estava lúcido, acordado.

Porém, agora, em um pesadelo real.

— Adrien?
Um chamado de volta à realidade. Adrien cerrou os olhos, desconcertado, controlando-se
para não exprimir as emoções do momento. Respirou fundo, em nítido estado de comoção.

— Desculpe-me.— disse, pego de surpresa.— É que... ela me fez pensar no meu pai. No
motivo pelo qual ambos estão assim.

Era mentira, sabia. Mas como dizer a Yooki que a prima adormecida fazia parte da sua vida
imaginária? Como falar que amava descontroladamente aquela figura que só lhe aparecia em
sonhos? Como relatar todos os últimos acontecimentos que envolviam ele e a enferma?

Melhor ficar calado.

— Linda, né?

A confirmação veio silenciosa. Não conseguia exprimir nada e, caso pudesse, talvez
houvesse desabado em lágrimas, pedido perdão por ter demorado tanto, exigido à menina
que voltasse à vida, que fizesse parte do seu dia-a-dia. Ou então, que lhe desse notícias via
sonho, falasse estar bem, dando uma previsão de volta. Entretanto, continuou parado, absorto
em seus pensamentos confusos e atitudes reprimidas, calado, estático.

Viu Yooki se aproximar dela, deslizar a mão por seus cabelos castanhos e curtos – menores
do que apareciam em sonho. Ela estava bem diferente da imagem mostrada pelo inconsciente
– principalmente pelo fato de estar imóvel em uma cama, sem apresentar qualquer sinal de
vida. Ainda assim, seus traços eram os mesmos, o rosto delicado. Por que demorou tanto?

— Acho melhor deixá-los sozinhos.— Adrien se dirigiu à porta, abrindo-a.— Você deve
estar com saudades dela. Foi um prazer encontrá-lo, Yooki.

— Obrigado.— ele agradeceu, sorrindo e segurando uma das mãos petrificadas de Nadia.—
Melhoras ao seu pai.

O guitarrista assentiu. Já nos corredores, tentou puxar o ar mais uma vez. E não reprimiu a
lágrima que rolou por sua face.
19.

Não sabia mais se estava viva ou se já havia conhecido a passagem para a morte. Nada via,
nada sentia, mas, caso se remexesse um pouco, conseguia sentir uma forte pontada nas
costas. Até sua respiração doía.

Com muito esforço, tentou se levantar, contorcendo-se de dor. Quando já sentada, pôde
perceber: continuava viva.

Desconhecia a altura da qual pulara, mas, pelo que notava, não havia sido pequena.
Olhando para a superfície onde estava sentada, vira que era uma mistura de feno e tijolos de
barro. Certamente, encontrava-se sobre o teto de uma casa. Tomando cuidado, observou até
onde iam as dimensões do telhado, contudo não obteve êxito– parecia ser extenso demais.
Também não conseguira ver que altura media a construção, o que a preocupava ainda mais.
Como iria sair dali?

Cautelosamente, começou a caminhar pelo telhado – temia que pudesse levar outra queda.
Precisava encontrar alguma saída, ficar a uma grande altura não era confortável–
tampouco seguro. Porém, sem que percebesse, pisou em uma parte onde o feno cobria uma
falha dos tijolos e, inevitavelmente, caiu, mais uma vez desconhecendo os metros que a
separavam do chão.

Quando sentiu que a queda terminou, percebeu estar emaranhada em inúmeros cipós que
pendiam do teto, amortecendo, assim, o impacto de outro encontro com o chão. Dessa vez,
estava mais próxima do solo, o que permitia chegar até ele sem precisar se estatelar. Com
cuidado, foi se desvencilhando dos nós, segurando-se nos caules das plantas para conseguir
chegar ilesa à superfície. Contudo, não conseguira impedir outra queda, sendo essa, porém,
menos dolorosa.

Levantou-se. Limpando o vestido, analisou o lugar onde entrara. Pelo que conseguia
perceber, tratava-se de um escuro porão– inúmeras velharias estavam ali. Um barulho mais
alto era escutado de fora, algo parecido a algum show de rock pesado. Curiosa, procurou a
porta que daria caminho para a apresentação. Tateando as paredes com a pouca iluminação
fornecida pela fenda do telhado, encontrou o trinco, girou-o e saiu.

Ao contrário do porão, o outro ambiente era bem mais iluminado. Várias pessoas
compareciam à apresentação, lotando o local onde ocorria e impedindo que a menina
tivesse uma boa visualização da banda que tocava. Todavia, a música escutada, embora de
grande peso, conseguia causar ilusões psicodélicas. Em questão de segundos, as pessoas
que via desapareciam, dando lugar a inúmeros corpos em estado avançado de putrefação,
olhos saltitando das cavidades, músculos e tendões expostos. Uma forte vertigem passou por
seu corpo, distorcendo a sua visão e confundindo-a – ora via pessoas, ora cadáveres. Aos
poucos, foi perdendo a noção do caminho que trilhava e, sem notar, andava em direção ao
palco, sendo empurrada pela plateia frenética.

Sua razão voltou parcialmente quando sentiu a mão do vocalista pegar o seu braço, puxá-la
para o palco e segurá-la por alguns instantes, cantando a música para ela. A tontura ficava
cada vez mais forte. Ele era um bonito rapaz? Um asqueroso zumbi? Não diferenciava,
estava tudo muito turvo. Em minutos, tivera a sensação de ser jogada para a plateia, sendo
por eles aparada e levada, pelas inúmeras mãos suspensas que a seguravam e empurravam.
No fundo, era uma sensação boa, de leveza. Levitava, de olhos fechados, escutando a música
que ainda era tocada. Às vezes, sentia algo frio roçar a pele, como línguas molhadas que a
lambiam, ou então pequenas dores que pareciam mordidas. No fundo, não se importava. A
sensação de gravitar compensava a dor.

Parado diante da cama, os braços cruzados sobre o peito, continuava a fitá-la. Agora, sempre
que conseguia, arrumava um tempo para ir vê-la, nem que fosse apenas uma fração mísera de
minutos. Esperava que ficasse sozinha, que o apartamento estivesse destituído de pessoas a
vigiar seu sono, e entrava sorrateiramente, apenas para poder visualizá-la. Não era, contudo,
a imagem que queria, porém precisava dela. Precisava da confirmação de que ela era real.

Incontáveis vezes, repetiu o seu nome. Pegava-se formulando questionamentos, suposições.


E se eu tivesse ido ao seu encontro? Seria ela mesma? Como ela era quando acordada? Quais
seus gostos, desejos, sonhos? E Arashi? O que Arashi pensaria quando soubesse da verdade?
Ficaria com raiva, magoar-se-ia? Inúmeras perguntas que continuavam sem resposta– e,
mesmo que as encontrasse, seriam inúteis com ela naquele estado letárgico.

Não se preocupe. Na hora exata você vai conseguir enxergar isso.


A voz da moça de branco se repetia sem interrupção em sua mente. Lembrou-se, por um
acaso, que possuía tarefas a cumprir– deveres esses que, por tanto tempo, tentou e ignorou.
Todavia, de que adiantava ostentar a pose cética, seu pensamento calculista, se, à sua frente,
estava a mais real– e cruel– prova de que seu lado sonhador nunca estivera errado?

São três tarefas bem simples: encontrá-la, prendê-la e impedi-la de chegar ao Yume.
Cumprira a primeira – da pior forma, mas cumprira. Não sabia o que era Yume– talvez
aquilo nem importasse agora, mas tentaria concluir a segunda tarefa. A memória lhe trouxe a
visão da moça puxando algo que saía de seu pescoço, uma corda invisível e de extrema força.
Fechou os olhos, a mão sendo levada inconscientemente à garganta.

Não se preocupe. Na hora exata você vai conseguir enxergar isso.

— Vamos lá, sei que você consegue...

Os dedos roçaram em algo rígido, gélido, disforme. Conseguira? Abriu os olhos, assustado
inicialmente. Uma corrente pendia de uma coleira de ferro em sua garganta, escondida pela
roupa. Mas que diabos...? Puxou-a de dentro da blusa, a corrente ganhando comprimento.
Em seu fim, um pequeno cadeado prateado destrancado. Aquilo era real?

Voltou o olhar para a menina adormecida. Ela também possuía uma coleira de ferro no
pescoço
– que não estava ali quando ele chegara–, sendo a sua destituída de correntes, mas com uma
espécie de cupilha extremamente grande para o comum.

Prenda-a.

Caminhou em direção à enferma, olhando-a fixamente. Aproximou-se, incerto. — Não sei se


isso irá servir.— falou, como se ela pudesse escutá-lo.— Mas eu tentei. Espero que me
perdoe pela demora.

Ele trancou o cadeado na cupilha. Em instantes, as coleiras e a corrente esvaneceram,


lentamente, como se aquilo não fosse nada além de produtos imaginários. Suspirou e saiu do
quarto, um gosto amargo de dever tardiamente cumprido.

A ilusão foi interrompida quando um barulho mais intenso ressoou no ar. Abriu os olhos
assustada, a vertigem dissipada. Uma mão maior e com mais força a puxou brutalmente
para o chão, ato que quase fissurou seu braço. Ainda sem delicadeza, a pessoa a colocou de
pé e saiu, segurando-a pela mão, indo para longe da plateia. O susto de ser puxada, no
entanto, não fora maior do que ver o amontoado de cadáveres a olhando, desejosos de sua
carne fresca. Com a ilusão finalizada, conseguiu enxergar que os presentes não eram
humanos, apenas monstros. Ânsias de vômito se formaram em seu estômago e precisou de
muito controle para não desmaiar de enjoos. Preferiu fechar os olhos e ser levada pela mão
forte.
— Chegamos.

Abriu os olhos, assustada. O local, agora, diferia do de antes. Temerosa, olhou para a
pessoa que a tirara do âmbito mortuário onde antes estava inserida. Tratava-se de um
homem feito, entre trinta e quarenta anos, cabelos curtos e prateados, pele amorenada,
corpo robusto e forte. Segurando o pulso dolorido, perguntou:

— O que era aquilo?

— Um show de zumbis.— respondeu o homem.— Eles utilizam a música para atrair presas
e, depois, devorá-las. Não são seres muito inteligentes, exceto pela genial ideia de
apresentações para financiar o canibalismo. Até me surpreendi, não achei que fossem
capazes de tanto.

— O... O-obrigada?— ela não sabia se deveria agradecer. Seu pulso ainda doía. — Se
mantenha viva apenas. O chefe não iria gostar se você fosse devorada. Por mim, você
poderia ser. Não faria diferença.
O homem já se retirava, porém plantara dúvidas na cabeça da moça.

— Ei, ei!— gritou, correndo atrás dele.— Quem é ele, o seu chefe? Onde posso encontrálo?

— Não estou autorizado a dar essas informações a você, garota.— respondeu o homem,
caminhando, sem olhá-la.— Nem a você e nem a mais ninguém.

— Por quê? O que ele quer de mim? E quem é você?


Ele parou. Voltando-se para ela, olhou-a com ferocidade. Os seus olhos, antes negros,
adquiriram uma tonalidade vermelho escarlate.

— Faça-me um favor, menina: fique longe de mim. É desagradável demais saber que está
aqui para roubar o que seria o meu posto. Então se mantenha longe ou drenarei todo o seu
sangue, desagradando ou não o chefe.

O vampiro se retirou, deixando-a sozinha, surpresa e imersa em dúvidas. Confusa,


perguntouse se todas as criaturas que encontraria seriam anormais e aterrorizantes– e o que
as palavras ditas significariam. A cabeça girava. Dando uma olhada no local, notou que não
existiam muitas diferenças do outro onde antes estava. Continuava em um ambiente que
mais parecia uma casa de show, com apresentações de Heavy Metal e lotação completa.
Analisando melhor, percebeu que apenas seres estranhos habitavam o lugar– monstros de
todos os tipos; gigantes de quase quatro metros de altura; bruxas de feiura extrema. As
ânsias, aos poucos, voltavam.

Receosa, andava por entre os presentes, procurando não olhá-los muito, tampouco sentir o
aroma que emanavam– mais um pouco e desmaiaria. Procurou um melhor local para ficar,
encontrando, por fim, algo que poderia ser assemelhado a um pequeno bar. Puxou uma
cadeira e sentou-se, os olhos baixos, a respiração acelerada.

— O que vai querer, jovenzinha?

Levantou a cabeça e, em seguida, sentiu vontade de não tê-lo feito. A caveira que com ela
falava era deveras perturbadora com aquele brilho verde nas fendas onde deveriam existir
olhos e roupa de garçom.

— Acho que nada.— respondeu, nervosa, tentando esconder o desconforto. — Já deu uma
olhada no cardápio?— o barman cadavérico continuava com as perguntas, demonstrando
uma simpatia inimaginável.

— Não, estou bem, de verdade.— disse, sem muita vontade de continuar a conversa. —
Bom, tá legal então.— concluiu o barman.— Se precisar de algo, é só chamar. Gosto de
atender garotas bonitas, elas são raras por aqui.

Apenas assentiu com a cabeça, vendo o esqueleto se distanciar e ir atender outro cliente.
Apoiando os cotovelos na mesa, levou as mãos à cabeça. Tinha a impressão de estar
completamente louca, mas sabia que tudo que via era da mais extrema realidade. Uma
prisão reunindo todos os seus pesadelos.

— Um drink completo, por favor.

A voz grossa e distorcida chamou sua atenção. Voltando o olhar, percebeu outro monstro,
sendo este, entretanto, mais familiar. O porte era gigante; pelugem alta, grossa e de forte
tonalidade laranja; olhos totalmente negros, grandes e fundos; bocarra com dentes afiados e
saltitantes. O coração disparou e, por instantes, não sentiu medo, mas sim felicidade.

— Você!— exclamou, empolgada.


O monstro a olhou sem demonstrar o mesmo entusiasmo.
— Eu te conheço?— perguntou.

— Fui eu quem te desenhou!— ela falou, sorridente.— Quando eu tinha sete anos, ainda
lembro! Seu nome era Jauh, foi para um trabalho do colégio! Tá, era para desenhar algo
feliz, mas... Ah, não consigo acreditar que você está...
— Shhhh!— o monstro tentou tapar a boca da menina, porém, por conta do tamanho
desproporcional de sua pata, acabou cobrindo grande parte do rosto da garota e do seu
colo.— Não fale isso alto, quer que saibam que você é uma humana? E se você desenhou
alguém daqui é porque... — a estranha face se contorceu em incredulidade.— Não pode ser!

— Não pode ser o quê?— as dúvidas pioraram.— Quem não sabe que sou humana? O que
diabos está acontecendo?
— Humanos aparecem aqui de séculos em séculos, talvez até em menos tempo. A maioria de
nós nunca sabe, apenas escolhidos de extrema confiança. Não era nem para eu saber da sua
presença! — ele parecia aturdido.
— E por que isso?
— Porque sim!— o monstro recebeu o drink, dando um gole e ignorando a menina.
Todavia, estava visivelmente perturbado com aquela presença.
— Então... Você também não sabe o porquê de eu estar aqui. Mas... não é o que aparenta.
— Posso supor. O chefe só trás humanos aqui com um intuito e, se for o que eu estou
pensando... De qualquer forma, depende muito de você.
— O que tenho a ver com isso? Sabia que estou a um passo da loucura? Tudo que vejo aqui
é irreal e eu poderia ter morrido duas vezes e não morri! Que tipo de casa da mãe Joana
é...? — Jauh, seu maldito, você me prometeu uma bebida, infeliz!

A outra voz chamou sua atenção. Diferentemente de todas as outras que escutara, essa
era incrivelmente doce e suave. Virando-se, deparou-se com uma bela mulher, vestida com
um vestido aparentemente medieval, longos cabelos louros e ondulados, seios fartos, boca
carnuda e vermelha. Era tão linda que fez a menina perder as palavras.
— Você é traiçoeira, Súcubo.— disse Jauh, dando pouca atenção à mulher.— Não fez o
serviço, então não será recompensada.
— Ah é?— a mulher parecia enfurecida.— E por que você está com outra Súcubo aí? Posso
fazê-lo, se quiser, e bem melhor do que essa!
— Ela não é Súcubo! É uma menina e só.
O rosto da mulher se tornou maravilhado, como se aquilo fosse algo fantástico. A garota
não entendeu.
— Mas é incrível!— disse Súcubo, admirando a companhia do monstro.— É a primeira vez
que vejo uma garota! Estou tão honrada!
A menina não compreendeu a maravilha.
— É para eu me sentir assim também?— perguntou.
— Depende.— disse Súcubo, sorridente.— Se eu for a primeira demônio que você vê na sua
vida, então quem sabe?
Ah, claro.
— Enfim, Jauh, seu ingrato, estou indo. Me procure, ok? Prometo que tiro o seu atraso — e,
voltando-se para a menina, completou:— Foi um prazer te conhecer, garotinha. Apareça de
vez em quando, posso te ensinar uns truques para lidar com homens.
Apenas quando a Súcubo estava distante, a jovem fez a pergunta que entalara em sua
garganta:
— Que tipo de demônio ela é?
— Demônio dos sonhos.— respondeu Jauh.— Entra nos sonhos dos homens, tem relações
sexuais com eles e, depois, se alimenta da energia deles. Espero que você não encontre o
Íncubo. — Ele é...?
— O inverso da Súcubo.
A menina mordeu o lábio. As náuseas aumentavam.
— Enfim, o que faço para sair daqui?— perguntou, esfregando o rosto.— Esse lugar me
deixa enjoada.
— Nada.— a voz de Jauh era calma.
— Como assim nada? Não há saídas?
— Não.
— Está de brincadeira, né?

— Não estou. Não conheço nenhuma maneira de você sair daqui. E, se quiser saber mais—
o monstro se voltou para a garota, intimidando-a—, em breve você esquecerá tudo sobre a
sua antiga vida. Vai esquecer seu nome, seus amigos, seus gostos, seus desejos e, quando
tiver a memória vazia, vai esquecer também a pessoa mais importante da sua vida. Não há
saídas, não há escapatória. Só há a aceitação.

As palavras morreram em sua boca, assim como o medo crescera em seu peito. Um instante
de silêncio se formou entre ambos e prosseguiu até o monstro desviar o olhar.
— Mas pode haver uma chance para você.— completou Jauh, voltando-se para o bar. —
Qual?
— Se quiser responder todas as suas perguntas, talvez Lady Liberté possa ajudá-la. Ela é a
única que conseguiu manter a consciência e não se transformou em algo bizarro.
— Como faço para encontrá-la?
— As coordenadas são confusas, mas se você encontrar um cocheiro público, talvez ele
consiga levá-la em segurança. Ela mora na divisa, é quem coordena a passagem de um lado
para o outro, entre outras habilidades. E, se quiser mais um conselho, saia daqui agora.
Outros monstros irão chegar e isso poderá te prejudicar. Humanos atraem criaturas, com
esse cheiro de sangue puro. Ela apenas aquiesceu, séria– não havia como contestar, era
inexperiente naquele submundo. Abaixando a cabeça– o que fez todo o seu longo cabelo
ondulado cair sobre sua face–, atravessou o salão, desviando-se cuidadosamente das
inúmeras criaturas, evitando olhá-las. Quando sentiu o ar mais gelado, soube ter chegado
ao lado de fora. Respirou fundo e correu– era a única coisa que poderia fazer.

— O que você faz aqui?

Assustado, Adrien voltou os olhos para a porta, o coração saltitando dentro do peito. Poderia
ter respirado mais aliviado ao ver a pequena figura de Alice, mas o tom de repreensão em sua
voz o desconcertou– e não havia nenhuma desculpa aceitável em sua mente.

— Alice, eu...

Ela fechou a porta, passando direto por sua cadeira e depositando o buquê de flores coloridas
em um vaso que já estava ali. Olhou a amiga adormecida, enquanto exprimia tristeza e
melancolia.

— Ela deveria estar acordada agora para te ver.— comentou a oriental, enquanto sua mão
pequena segurava os dedos da enferma.
Adrien umedeceu o lábio.
— Você quer que eu saia?

— Não.— Alice foi direta e incisiva.— Você precisa ficar!

A menina o olhava de maneira estranha, de um modo que nunca houvera feito. — Sabe de
algo que eu não sei, Alice?— perguntou Adrien, receoso.

A Hikari baixou os olhos. Com aquelas roupa– uma calça jeans e uma camisa rosa lisa, ela
aparentava ser mais velha e séria.

— Adrien, eu tenho algumas coisas a te dizer.

— Muito bem, por onde você quer que eu comece? Sentado na cadeira giratória, Adrien
encarava Alice. — Ninguém vai chegar?— perguntou, temeroso. — O pai está no restaurante
e Arashi foi acompanhar a mãe ao médico. Então estamos seguros, pode ficar tranquilo. E no
meu quarto ninguém entra se não bater na porta.

Adrien estalou os dedos. Tentava organizar as inúmeras perguntas em sua cabeça. — O que
você soube... com relação aos sonhos dela?

Foram poucos instantes em silêncio. Em seguida, Alice se levantou da cama, indo em direção
ao guarda-roupa. Retirando uma caixa de madeira cuidadosamente trabalhada, abriu-a,
tirando um papel de dentro e entregando-o a Adrien. Ele a olhou com curiosidade.

— Tudo começou por causa desse desenho.— Alice respondeu, voltando à cama.
Adrien desdobrou a folha.
— Espera, mas esse aqui sou eu!— exclamou, espantado, após ver a imagem.
— Feito pela Nadia em outubro de 2007, quando ela nem sabia que você existia.
O rapaz olhou para Alice mais uma vez, sem compreender.
— Ela é desenhista.— continuou a menina.— Quando vivia na Alemanha, fazia desenhos
por encomenda para ganhar um dinheirinho e ajudar nas despesas. E, em uma noite qualquer,
ela sonhou com você, aquele tipo de sonho em que aparece gente que nem conhecemos.
Então... No dia seguinte, ela recebeu uma proposta para desenhar um personagem de um
sonho. Chuta qual foi o escolhido.
— E por que eu sonho com ela?— perguntou o guitarrista, ignorando a charada de Alice. —
Sinceramente, eu não sei. Mas, até onde meu conhecimento me permite ir, vocês
estabeleceram uma comunicação bem forte. Me responda uma coisa, Adrien: naquele dia em
que combinaram de se encontrar, onde você estava?
Primeira confirmação: era Nadia a pessoa que o esperara na lanchonete. Merda.
— Resolvendo assuntos com a Malu.— ele suspirou, cerrando os olhos e abaixando a
cabeça. — Passamos três horas esperando por você.— suspirou Alice.— Enfim, passou.—
ela segurou a mão dele.— E quando ela acordar? O que vai fazer?
O guitarrista apertou a mão da menina.

— Não faço ideia.— respondeu, encarando os dedos da oriental com um olhar vago.

— Você... ainda sonha com ela?


Adrien apenas balançou a cabeça de modo negativo.
— Se você sonhar com a Nadia... Peça para ela voltar? Por favor?
Os miúdos olhos de Alice estavam molhados. Dando um pequeno sorriso, Adrien deslizou a
mão pelos cabelos da menina Hikari, puxando-a para si e abraçando-a.
Também queria sonhar com ela mais uma vez, Alice.
20.
— Casa de Lady Liberté. Quem desce?
Esforçando-se para conseguir libertar-se do imprensado de braços e corpos, estendeu o
bilhete e gritou:

— Aqui, aqui!

Outras duas criaturas também estenderam seus bilhetes, escondendo seu braço pequeno e
humano. Resolvendo abandonar a educação, empurrou alguns dos seres que a impediam de
passar e de ficar visível, abrindo, finalmente, a porta da desproporcional carruagem,
entregando a passagem fora do veículo.

— Aqui!— repetiu, obrigando o cocheiro a receber o pequeno papel.

Contudo, não existia propriamente um cocheiro ali, apenas as roupas de cavalheiro


que vestiam um ser invisível aos olhos, perceptível somente pelas formas que suas
vestimentas ganhavam. A luva lhe tomou o bilhete.

— Sabe como chegar até lá, menina? — o timbre gutural do cocheiro ainda continuava a
espantá-la.

— Tenho uma vaga noção. — disse. — Muito obrigada.

Os outros dois seres, que também queriam estacionar naquele ponto, desceram da
carruagem. A luva levou a mão à cartola e, retirando-a, desejou uma boa viagem
àqueles que procuravam acalento na casa de Lady Liberté. A garota ainda passou
incontáveis minutos vendo o veículo gigante, negro, de desenhos abstratos em prata
se distanciar, obrigando os unicórnios pretos e de tamanho descomunal a correrem.
Suspirou. Visões como aquela estavam se tornando bem típicas.

Virando-se para o sul, observou o local onde estava. O céu já não mais era negro, possuía
uma tonalidade que variava entre o laranja, o salmão e o dourado. Algumas nuvens
róseas passeavam por aquele curioso dégradé. À sua frente, um mar sereno largava
suas ondas contra a fileira de madeira, um protótipo de porto, cujo
fim possuía uma bonita casa de arquitetura clássica. A
construção tinha cores leves e delicados detalhes e design. Emanava uma aura feliz.
As duas criaturas que a acompanhavam corriam em desespero em direção à porta,
gritando exageradamente. Franziu o cenho e caminhou até lá, com menos desespero,
perguntando-se o que raios seria aquela Lady Liberté.

— Lady, Lady! Atenda-nos, por favor!

— Tenha misericórdia!

Os monstros se debatiam, imploravam, choravam. Preferiu manter certa distância –


tinha medo de ser atingida por aquelas mãos descomunais. Ansiosa, esperou que a
tão exaltada Lady atendesse aos que por ela esperavam.

— Vocês não conseguem esperar nem cinco minutos? Por que fazem tamanho estardalhaço
se sabem que, uma hora, irei atendê-los?

Ela abriu a porta, um semblante enfurecido. Por instantes, a garota não sabia se respirava
aliviada ou não. Lady Liberté – ou o que parecia ser ela – tratava-se de uma
mulher exageradamente alta e magra, vestida com um corpete bege, calçolas curtas e
brancas, sandálias roxas e um robe lilás claro. Sua pele era demasiadamente branca,
alcançando uma tonalidade cinza. Os cabelos, roxos, formavam um estranho penteado,
com algumas mechas presas e outras desordeiramente soltas. Seus lábios estavam
pintados com uma tonalidade vermelha intensa, destacando-se
em sua pele excessivamente pálida. Os olhos possuíam uma bonita maquiagem
preta, o que destacava seus traços, ressaltando a cor violeta dos seus orbes. E, para
completar seu visual peculiar, havia uma pequena tatuagem do naipe de espadas na sua
maçã direita do rosto.

Estranha.

— Mas o que vejo?

A garota parou o estudo quando viu a mulher dirigindo seu olhar a ela, assim como os
outros dois seres. Não era uma ideia muito feliz ser objeto de observação.

— Pois não? — perguntou a menina, intimidada.

A mulher afastou as duas criaturas, caminhando em direção à menina. Colocando o dedo


indicador em seu queixo, fazendo a unha gigantesca roçar sua pele, levantou o rosto
da garota para que melhor pudesse vê-la.
E sorriu em seguida.

— Saiam, saiam! — ordenou, empurrando os monstros e puxando a menina pelo braço. —


Hoje farei apenas um atendimento particular, não quero ninguém além desta distinta jovem!

— Isso não é justo! — reclamou um.

— Chegamos primeiro! Não deveria atender a esta criaturinha se estamos com maiores e
piores problemas!

A menina já se preparava para responder às duras críticas, quando a mulher falou, ríspida:

— Mas eu estou dizendo que não irei atendê-los hoje, então precisam aceitar a
minha decisão! Vamos, estão esperando o quê? Saiam, saiam!

As criaturas se entreolharam e, assumindo uma expressão de descontentamento,


saíram, revoltadas com a atitude da mulher. Esta, porém, não deu muita importância
àquela frustração e, com certo ânimo, tornou a puxar a garota pela mão, fazendo-a
entrar na elegante casa.

— Não poderia imaginar que seria tão rápido! — dizia, com a voz doce e delicada. —
Aquele maldito Phobeto é mais veloz do que se possa imaginar!

A menina franziu o cenho, confusa.

— Phobeto? — repetiu. — E você? É você mesmo a Lady Liberté?

— Quem mais seria eu, menina? — ela sorriu largamente. — Sinto, mas não tenho criados.
Posso cuidar de tudo sozinha.

Sendo carregada, a garota olhava, admirada, a casa de Lady Liberté. Montada com
móveis em estilo rococó francês, tinha suas paredes cobertas por um papel vermelho com
desenhos de rosas em vinho – lembrando excessivamente a sala onde vira primeiro o
estranho rapaz. Os outros detalhes eram todos em cor dourada, e algumas porcelanas
de pintura delicada espalhavam-se naquelas estantes de madeira.

Caminharam até um protótipo de quintal, que dava visão para o mar sereno, que
contornava a casa. A Lady lhe deu passagem para sentar à mesa, onde uma garrafa
ricamente pintada estava acompanhada por duas taças e um suporte para cigarros
feito em cobre bem trabalhado. Agradecendo, a menina sentou-se, gesto repetido por
sua companheira.

— Então... — Lady Liberté depositou o líquido verde que estava na garrafa em uma das
taças —, o que a traz até mim, menina?

Ela lhe ofereceu a taça, entusiasmada. A garota olhou a bebida, desconfiada. Não
sabia se aceitava ou não – contudo, caso recusasse, seria completamente mal
educada. Tomou-a nas mãos e, antes que desse o primeiro gole, respondeu à pergunta:

— Quero que me ajude. Ouvi falar que você poderia fazer isso.

— É o que dizem por aí, mas não sou nada além de uma simples...

Lady Liberté interrompeu sua explicação quando a menina cuspiu a bebida. Fez uma
expressão penalizada.

— Muito forte? — perguntou.

— O que raios é isso? — a jovenzinha levou a mão à boca, limpando-a


apressadamente.

— Fada Verde. É o que eles gostam.

A menina umedeceu os lábios, como se toda aquela delicada região estivesse sofrendo
graves queimaduras.

— Como eu dizia — retornava, a Lady, ignorando o recente fato —, não sou nada além de
uma simples passagem para o outro lado. Por isso me chamam de Liberté. Liberdade.
Francês porque gosto.

— Outro lado?

Uma expressão de dúvida se formou no rosto da garota.

— Diga-me, minha jovem — o semblante divertido da Lady desapareceu, dando espaço à


seriedade, percebida pelo rosto inexpressivo apoiado nas mãos cruzadas —, onde
você pensa que está?

— É isso que quero que me diga. Onde estou e como faço para voltar para a minha casa.
Lady Liberté levou sua taça aos lábios.

— Lembra-se, ao menos, de como era a sua casa?

A menina riu, irônica.

— Claro! Como poderia me esquecer?

— E o nome de quem morava lá?

Houve um instante de silêncio.

— Diga-me, então, menina, qual o seu nome?

A garota abaixou a cabeça, o cabelo longo e ondulado lhe caindo pela face.
Enquanto se esforçava para sua mente trabalhar, a Lady falava:

— É assim que começa. Nomes. Depois, fatos. Por último, imagens. E então, au revoir,
vida passada.

— Não quero que isso aconteça, não pode! — a menina se desesperou, batendo na mesa com
força. — Preciso sair daqui!

A Lady sorriu e, voltando-se para o seu lado direito, deixou que uma diferente
criatura subisse por seu braço. Era um ser demasiadamente
asqueroso, contudo menos assustador e, aparentemente, perigoso do que os
outros seres que vira. Tinha o tamanho de um esquilo, patas longas e com garras
desproporcionais ao seu minúsculo corpo. A cabeça possuía dimensões normais de
um bicho daquele comprimento, porém os olhos eram maiores, um deles saltando da
cavidade ocular. A boca era arredondada, preenchida por dentes pontudos. O pelo
era relativamente longo, de cor amarronzada. Não possuía focinho e só havia uma
orelha – e um chifre. Contudo, sua medonha aparência não incomodava Lady
Liberté, que, ao contrário, fazia-lhe carinhos.

— Tem um jeito para você. — disse a Lady, sorridente.

— Qual?

* As palavras de Alice prosseguiam em sua mente. Já tentou conversar com ela?


Talvez, se o fizesse, quem sabe ela não voltasse para nós? Ou para você. Naquele
longo mês em que o pai e a menina prosseguiam adormecidos, nunca se preocupou
em estabelecer uma comunicação com ambos, qualquer coisa que fizesse com que
eles, onde quer que estivessem, soubessem a falta que faziam. Provavelmente, com
Nadia, isto já deveria ter ocorrido, mas se sentia na obrigação de demonstrar a sua saudade a
ela.

Entrou no quarto, uma dor no peito. Novamente, Nadia estava solitária, o mesmo tom
pálido coloria sua face. As lembranças do dia em que a vira e acreditara que era apenas um
delírio da sua mente ébria voltaram à sua mente. Odiou-se e, embora tentasse dizer a si
mesmo que não havia como desconfiar da veracidade o fato, continuava a sentir aquela
culpa insuportável. Respirou fundo e expirou rapidamente. Que se danasse. Não havia volta.

Olhou para trás mais uma vez, nenhum sinal de visita. Depositando a bolsa na bancada,
sentou-s

e na cama da enferma, tomando cuidado para não mexer em nenhum dos canos que
transferiam o soro às suas veias. Olhando-a mais de perto, pensou ser ela uma boneca,
tão imóvel e inexpressiva estava. Deslizou os dedos por sua face macia e alva,
contornando, em seguida, todos os declives de seu rosto. Real, muito real. Desceu o
indicador para os lábios dela, agora tão pálidos. Lembrou-se do gosto deles, de como eram
vermelhos e convidativos. Deliciosos.

— Procure o seu aliado. — Quem?

O pequeno ser que estava no ombro de Lady Liberté desceu de seu corpo, indo ao
chão, o olhar assustado.

— Opa! — a Lady exclamou, observando o bicho.

— O que há?

Uma transformação bizarra ocorria no bicho. Aos poucos, a criatura possuía o


esqueleto saindo do seu corpo, tentando ser, inutilmente, coberto por sua pele. Os
ossos aumentavam de tamanho, assim como a sua epiderme tentava acompanhar o
crescimento. O olho saltitante, aos poucos, voltava para o local onde deveria ficar; as
garras cresciam e as patas viravam mãos e pés. Em cerca de minutos, assumiu a
silhueta de um homem, sem, todavia, perder as características de antes: boca
arredondada e lotada de dentes, um único chifre, cor marrom, falta de focinho.
Agora era um protótipo de humano excessivamente magro, aparência monstruosa e
cadavérica, produzindo um som semelhante a um baixo gemido.

— Alguém a chama. — proferiu a Lady, séria.

Não sabia se era correto fazer aquilo, considerando o estado em que a menina se encontrava.
Respirou fundo, fechou os olhos, debruçou-se sobre o corpo dela, esforçando-se para
não machucá-la. Não conseguia sentir a respiração provinda da boca dela, o aparelho
em seu nariz tentava fazer o trabalho que o pulmão de Nadia estava impossibilitado
de realizar. E, recheado de cuidados, tocou-lhe os lábios com os próprios, dando um
simples e emocionado beijo.

Estática com a inesperada – e pavorosa – transformação, não conseguia mexer os músculos


para tentar dali fugir – agora sim, sentia medo. Visualizou com certo asco o monstro se
aproximar.

— O que ele vai fazer comigo? — perguntou, apavorada.

— Deixe-o realizar o trabalho. Alguém a chama. Não tenha medo!

Em seguida, sentiu que ele a pegava nos braços e percebeu que estava sendo carregada. O
horror quase dominara o seu corpo, aumentando ainda mais quando vira estar sendo
levada em direção ao mar. Jogou um olhar de súplica à Lady, mas esta apenas dizia
para ir, deixar-se levar. Cerrou os olhos – preferia esperar os próximos instantes sem
nada enxergar.

Agora a criatura estendia os braços – em cima deles, ela. E, dessa maneira, a menina foi
jogada para cima, sentindo o vento bater com fúria em seu rosto e, em seguida, a
pesada massa de água. De olhos abertos, começou a nadar para a profundidade. Ao
final dela, uma luz mais forte. Seguiria para lá.

— Ei, Nadia... — ele disse, sorrindo. — Descobri o seu nome. Não canso de repeti-lo.
*

Atravessando a barreira de luz, chegou a um quarto branco. Ainda conseguia sentir


o peso da água, sua saia balançava como se o líquido a levasse. Com certo esforço,
chegou ao chão e logo a sensação de estar imersa no mar sumiu. Contudo, ainda
prevalecia o sinal de que continuava dentro da água: o teto do local balançava em um
calmo movimento de pequenas ondas.

Voltou o olhar para o aposento e logo o coração bateu com mais força. Estendida sobre uma
cama, estava ela: vestia uma bata sem graça e simplória, os olhos cerrados, a
respiração sendo auxiliada por um aparelho dentro das suas narinas. Olhou para si
mesma, em pé, viva. Se estava bem, por que se via como uma quase morta? As
dúvidas aumentaram em sua mente, a confusão foi plenamente instalada. Estava viva?
Morta? Sonhando? O que estava se passando que, por mais que se esforçasse, não
conseguia compreender?

Debruçado sobre ela, estava um homem de longos cabelos dourados, blusa xadrez sobre
uma camiseta branca. Ele falava, segurando uma de suas mãos inerte e alisando os seus
cabelos.

— E aqui estamos nós dois, frente um ao outro, depois de tanto tempo querendo nos
encontrar. Infelizmente, não sei se você pode me ouvir.

Ela respirou com mais força, sentia uma dor no estômago. Ah não, não poderia ser ele.

— Eu posso te ouvir sim! — disse, na inútil esperança de ser escutada.

— Por que não aparece mais em meus sonhos? Sei que deve ter ficado com raiva
por eu ter faltado ao nosso encontro, mas... É difícil ficar sem vê-la e, justamente
agora, quando a vejo a minha frente e não posso conversar com você, escutar sua
risada... É torturante.

Ela sentou na cama, próxima a ele, arrasada.

— Também quero entender. Sinto a sua falta

— Sinto a sua falta.


Ambos falaram ao mesmo tempo. Ela arquejou, intrigada. Olhando-o fixamente, deslizou
sua mão por aqueles fios louros, afagando-os.

— Por favor, me tire daqui...

— Diga-me onde está. Quem sabe eu não possa, de alguma maneira, te encontrar.

— Eu não sei... Só sei que virei vapor imaginário, apenas isso.

Ele se calou. Largando a sua mão – ou a do corpo inerte na cama –, virou as costas para a
garota que dormia, ficando ao seu lado.

Ela conseguia sentir o roçar do braço dele no tecido vermelho que cobria o seu – ele,
contudo, não tinha a mesma sensação.

— Prometo a você que irei achar uma maneira de resolver esse problema. Tenho
uma vaga noção de quem possa me ajudar.

— Mesmo? — a voz dela parecia esperançosa.

— Tentarei. Não sei se conseguirei, mas irei tentar. É uma promessa.

Ele se levantou, caminhando em direção à porta de saída do quarto.

Em uma reação de desespero, ela correu atrás dele e enlaçou a sua cintura com os
braços, abraçando-o pelas costas. Sentiu-o, então, parar e, milagrosamente, os dedos dele
em sua pele.

— Sabe o que é engraçado? Nunca tinha me apegado a ninguém antes. E acho que, por ser
tão ligado a você, sei que se eu fechar os olhos posso te sentir aqui comigo, me abraçando,
me impedindo de ir. Não se preocupe, eu voltarei. Não vou te deixar e não tenho medo de te
perder. Sei que voltará.

E ele escapuliu de seus braços, lançando-se para fora do quarto, deixando a


projeção da menina adormecida completamente abalada. Mesmo sabendo que poucas
seriam suas chances de se comunicar com ele, iria tentar. Existia uma ligação forte
ali, então seria por meio dela que adquiriria a sua liberdade. Pensando nisso, abriu a
porta em um estrondo e se jogou nos corredores do hospital.

Atravessar o corredor hospitalar foi tarefa árdua. Inúmeras pessoas lotavam o


pequeno espaço, a maioria perdida em conflitos silenciosos – perguntavam-se,
constantemente, em que local se encontravam, sem, contudo, obterem respostas. Ela
conseguia vê-los, eles conseguiam vê-la. Porém, não importava ser notada por outros.
Só precisava segui-lo, saber até onde ele iria, correr atrás dele. Para isso, afastava
todos que atrapalhavam seu caminho. Não o perderia de vista.

Vira-o entrar em outro quarto hospitalar e não hesitou em acompanhá-lo. A porta se fechou
atrás de si. Enquanto o rapaz ia para o leito do homem adormecido, seus olhos se
fixaram na outra pessoa que também estava presente naquele momento. Os olhares se
encontraram, perdidos, cheios de dúvida e medo.

— Conheço você? — o homem perguntou, seus olhos claros na menina trajada de vermelho.

Era um bonito senhor. Cabelos dourados – tais quais os do rapaz – e vestes


brancas, uma camisa e uma calça social, tênis também alvos. Seu rosto não demonstrava
nada, apenas seus olhos transmitiam uma infindável tristeza.

— Acho que não. – respondeu, ansiosa.

O homem balançou a cabeça, a dor que sentia sendo transmitida por seus poucos gestos.

— Se você consegue me ver, então é porque está na mesma situação que eu. — ele disse, os
olhos fixos, agora, no rapaz que conversava com o enfermo adormecido. — Sabe aquele
ali que está na cama? Dá para acreditar que sou eu? Justamente eu, que sempre tive
uma saúde de ferro quando jovem?

A menina suspirou. Caminhou em direção ao homem, sentando-se ao seu lado.

— Olha... Eu não sei bem o que dizer a você, mas... Entendo perfeitamente o que está
passando. — ela disse, desconcertada.

— É você quem irá me levar?

Ela franziu o cenho.

— Para onde? — perguntou, curiosa.

— Estou escutando um chamado há algum tempo, menina. Sei que devo ir, fico aqui apenas
esperando aquele que irá me levar. — havia um brilho diferente naqueles olhos. Algo como
lágrimas.
— Não! — ela decretou, sem muita convicção, segurando a mão dele. — Você não pode ir!
Não pode deixá-lo!

O homem abaixou a cabeça, pesaroso.

— Ele é seu filho, não é? — ela perguntou.

Balançou a cabeça, afirmativamente.

— Mas eu não tenho sido um bom pai. — completou, deprimido. — Nunca dei a atenção que
ele merecia, nunca fui bom o suficiente. É uma das coisas que mais me arrependo de não ter
feito.

— Por isso mesmo que você deve ficar! — ela apertou a mão dele, com força. —
Para demonstrar todo o seu amor, para ele saber que o ama!

O homem sorriu, tristemente. Levando a mão livre ao rosto da menina, acariciou a pele
macia da sua face, segurando-a com delicadeza depois.

— Você parece ser uma boa menina. — comentou. — Conhece o meu filho?

— Sim. — ela respondeu com um aperto no peito. — Não da forma como queria, mas sim,
eu o conheço.

— Então faça o trabalho que não fiz. Ame-o, cuide dele como eu deveria ter cuidado, preze-
o, estime-o. Se você veio até mim, sei que tem um motivo. Faria isso?

A menina estava surpresa – e horrorizada. Receosa, assentiu.

O homem sorriu e, em instantes, seu sorriso desapareceu.

— Está escutando? — seu olhar agora estava voltado para o teto, como se procurasse algo.

Ela balançou a cabeça, assustada.

— Estão me chamando. — ele fechou os olhos. — É maravilhoso.

Um ímpeto diferente a consumiu. Sentiu seus olhos ficarem marejados.

— Não! — exclamou.
Ele sorriu mais uma vez. Dando-lhe um beijo na fronte, disse:

— Cuide-se, menina. E cumpra o que prometeu.

Ele se levantou e caminhou em direção ao local onde o rapaz estava. Abaixando-se,


sussurrou ao seu ouvido:

— Amo você.

A menina não teve forças. Algo demasiadamente pesado apertava seu coração, fazia-
a transpirar, tremer. Voltando o olhar para onde o homem estava, soltou sua última
tentativa:

— Não!

A silhueta do homem foi desaparecendo aos poucos, sendo substituída por uma
intensa luz branca. A garota estendeu o braço, como se quisesse alcançar aquele
ofuscante brilho, querendo prender em sua realidade o simpático senhor com
quem conversara. Contudo, foi em vão. Ele desapareceu sem lhe dar a chance de
segurá-lo. Enquanto isso, uma série de acontecimentos preenchia o quarto, sem que ela
pudesse fazer nada: o barulho contínuo de uma máquina que media os batimentos cardíacos
daquele corpo, o rapaz se enrijecendo na cadeira, seus olhos assustados e sôfregos,
uma chamada por médicos, a sala se enchendo de pessoas trajadas de branco e
verde, tentativas para reviver o coração inerte, alvoroço.

Novamente, a sensação de flutuar no espaço voltou. A saia balançava, uma força maior a
puxava para o teto de ondas. Não lutava contra, não possuía forças e não havia meios para
fugir do que lhe fora imposto. Por mais que não desejasse partir, precisava voltar à sua
nova realidade irreal.
21.

Uma mão decididamente forte a puxou da massa de água gélida e pesada.


— Venha, querida! Venha comigo!
Quando voltou à bonita sala de Lady Liberté, sentia-se mal, deprimida. Estava molhada, com
frio, os cabelos pesados pingando e, mesmo assim, não hesitou em se jogar nos
braços da Lady, abraçando-a e caindo em lágrimas.

— Shh, querida. —dizia a bruxa, enquanto afagava seus cabelos molhados. — Não precisa
ficar assim, podemos reverter esse quadro. — ela a forçou a se levantar. — Venha, vamos
enxugá-la. Você descansará e aí poderemos conversar sem interrupção.

E, ainda agarrada a Lady, a menina aquiesceu, pesarosa e assustada.

— Quer?
Adrien olhou para o copo de café que Rida lhe estendia. Pensou se aceitava ou não e, ainda
sem a convicção de que desejava a bebida, tomou-lhe o copo descartável, ficando a olhar o
líquido preto que estava ali dentro.
— Sinto muito, Adrien. — ela disse, sentando-se ao seu lado. — Sei como você era
ligado ao tio, sei ainda mais como você deve estar se sentindo.
O rapaz continuou calado. A prima, contudo, não se incomodou com seu silêncio.
Retirou um cigarro da bolsa, acendeu-o e deu uma longa tragada.
— E aí? O que vai fazer agora? — perguntou, dando pequenas batidinhas no cigarro para as
cinzas caírem.
— Não sei. — ele deu de ombros. — Não parei para pensar em muita coisa.
— E a Mariana? E as crianças?
— Não falo com a Mariana desde que soube do coma do pai. E não estou com vontade de ser
amistoso. É capaz de acabar voando no pescoço dela. Mas as crianças... essas sim me
preocupam.
— Não me preocupam tanto quanto você. — Rida voltou os olhos negros para o
primo, encarando-o fixamente. — Ao menos, elas têm mãe.
Adrien riu, um riso pesado e irônico. Roubando o cigarro da prima, tragou, devolvendo
em seguida.
— Quer saber mesmo o que vou fazer? — perguntou, após dar o último gole no café. — Vou
fazer o que ele mandou. Vou enfiar a minha cara nos projetos da banda, levar a Reticências
ao sucesso, me formar, fazer shows, ficar famoso e só. É só o que posso fazer. Minha vida
não para.
— E a família?
— Se reduziu a pó. Talvez dê notícias aos meus irmãos, vou continuar falando com você e
só. O resto é apenas resto.
O guitarrista voltou o olhar para a moça trajada de preto. Ela sorriu, estendendo-lhe os
braços. E ele apenas a abraçou, tendo seus cabelos afagados por aquelas unhas escarlates.
— Eu cuido de você, priminho. Faço direito o serviço.
— Você? — ele riu, irônico. — É capaz de jogar um secador na minha cabeça de novo.
— Qual é?! Sou sua pseudomãe desde os treze anos e você estava me desobedecendo.
— a estilista riu. — Mas sou a mãe dos seus sonhos, o que a dona lá não
conseguiu.

Adrien se levantou. Lembranças passaram por sua cabeça.

— Que foi? — Rida perguntou.


— Preciso fazer algo. — decretou o rapaz com um semblante preocupado e, ao mesmo
tempo, ansioso.
— Quer ajuda?
Ele balançou a cabeça, negando.
— Que horas será o funeral? — Adrien questionou.
— Às duas.
— Sabe que não irei, não é?
— Tem certeza? É a última vez que você vai ver o seu pai.
— Sim. — o guitarrista assentiu, firme.
— Ok, então. Eu disfarço para o pessoal e salvo sua pele. Só não faça besteira, certo?
O rapaz sorriu. Depositando um beijo na testa da moça, saiu da casa da prima, deixando-a
sozinha com seus cigarros, sentada no sofá.

A noite estava quente e silenciosa. Olhando a cidade pela pequena e miserável


varanda, inúmeras perguntas pairavam na cabeça de Adrien. Fechou os olhos, cerrando-os
fortemente. Lá embaixo, as pessoas não poderiam escutá-lo. E, quase gritando, pedia:
— Vamos, eu sei que está aí... Apareça!
O silêncio dentro da sua casa prosseguia. Ainda assim, ele não desistia.
— Anda logo, posso sentir seu cheiro à distância. Apareça!
— É um prazer ser convidada à sua residência e poder revê-lo, Adrien.
Ele se virou, sem demonstrar nenhuma emoção. A moça estava ali, sentada confortavelmente
em seu sofá, as pernas cruzadas sobre a velha mesinha de centro, o vestido branco
contrastando com sua pele.

negra e brilhante, o sorriso divertido de sempre. — Está pronto para saber de toda a verdade,
meu querido?

Ela já havia parado de tremer. Olhava agora para as inúmeras bonecas organizadas
nas prateleiras à sua frente, bonecas de todos os tempos, retratos de uma humanidade. Ao
lado da gigante e confortável cama, vários potes com doces coloridos e chocolate. Um
verdadeiro quarto de criança.
Mas não era.
— Quer conversar agora? Sente-se preparada?

A menina voltou seus olhos para a Lady. Aquiesceu.


— Qual a primeira pergunta? — a Lady quis saber.
— Onde estou?

— O que quer saber sobre o Yume?


— Tudo o que você sempre quis deixar debaixo dos panos. Ah, mas, por favor, antes de
começar, me diga primeiro quem você é.
— Referese a nomeações, a cargos...? Ao quê, precisamente?
— A tudo e sobre tudo.
— Chame-me de Zorah, então. É assim que alguns gostam de me chamar.
— E esse é seu nome verdadeiro?
— Não, mas é o que eu uso.
Adrien puxou um pequeno banco, pondo-se de frente para a moça.
— E o Yume? — quis saber.
— É o sonho maior.

— Como assim?
— São três divisões. — a Lady puxou três pequenos blocos de montar. Colocando
sobre a mesinha ao lado o primeiro, de cor vermelha, explicou: — O Pensamento — em
seguida, sobrepôs um verde —, o Sonho — depois, outro, roxo — e o Yume. Nomeamos
assim apenas para se tornar mais fácil identificar, foi o nome escolhido por Phobeto
quando ele teve contato com lendas japonesas. Alguns também gostam de chamá-lo de
Irreal, varia muito de preferência para preferência.

— Sim, e o que acontece nesse mundo?


— É lá onde todas as suas ilusões são produzidas. É a fábrica de sonhos, pensamentos,
ideias, desejos, tudo que habita a mente dos humanos. Um reino devidamente vasto,
gigantesco, povoado pelo esboço de toda a criatividade dos homens.
— Quer dizer que lá estão, por exemplo, personagens de livros?
— Não exatamente. Esses são aperfeiçoados pelos humanos, o que está lá é apenas a matéria-
prima. Apenas elementos soltos. Os homens são meio independentes, sabe? Porém,
caso uma ideia aperfeiçoada seja devidamente esquecida, será lá a sua próxima casa, ou
cemitério, se preferir.

— Isso vale para todas as criaturas estranhas com as quais já esbarrei?


— Pode-se dizer que sim. Filhos de mentes brilhantes ou não.
— Mas também encontrei um demônio! O que significa?
A Lady riu.
— E demônios não habitam o imaginário das pessoas? E os anjos também não?
— Eles realmente existem?
— Ninguém aqui tem convicção do que existe ou não. Peguemos, por exemplo, um daqueles
monstros nos quais você esbarrou: já viu algum deles andando pela rua, visíveis a todos?
A menina mordeu o lábio, gesto esse recebido pela Lady como uma confirmação.
— Apenas aquele que quer consegue ver ao vivo o produto da sua imaginação. Ainda assim,
isso não significa a existência. Não temos certeza de nada, somente de uma coisa.
— Qual?
— Que há humanos aqui.

— Está fazendo uma alusão de que Nadia pode estar lá?


— Não estou aludindo a nada. Isso é uma afirmação.
Zorah estava séria. Seus olhos eram frios.
— Diga-me, Adrien: — ela começou — o que você sabe sobre essa menina?
— O básico da vida dela.
— Mas chegou a ver o desenho, não chegou?

Ele afirmou com um meneio de cabeça.

— Então deve saber que ela vendeu a alma para o carinha que controla a facção menos
agradável do Yume, não é?

O rapaz franziu o cenho, causando um longo suspiro em Zorah.

— Ah, meu caro... — começou a mulata. — Sério mesmo que você não sabia desse
pequeno contrato que a sua amada fez?
— O que quer dizer com tudo isso?
— Quer que eu conte toda a minha história com meu adorável e estúpido irmãozinho?
— ela sorria graciosamente, o braço apoiado no sofá, apoiando, por sua vez, a cabeça lotada
de belos cachos negros.
— Se isso interessar...
— Tem total relação, meu amor. — Zorah se levantou do sofá, caminhando em direção
à varandinha. — Você sabe, Adrien, o que é trabalhar sem recompensa? Ser escravo,
deixar tudo pronto para alguém vir e pegar e não poder tirar nenhum proveito disso?
Utilizando o seu linguajar mundano: não ganhar salários. Então, foi mais ou menos
assim que aconteceu com o meu irmãozinho, meu pobre Phobeto. Não que ele seja
um rapaz mau – para ser sincera, nós temos poucas emoções e poucos objetivos.
Somos o que somos, fazemos o que tem de ser feito e acabou por aí. Mas o Phobeto...
Tadinho, entrou em profundo estado de depressão por não conseguir ganhar nada em troca
do nosso árduo trabalho, por não ter seu nome estampado nos livros, nas pinturas, em
tudo que fez para ajudar estes "artistas". E foi aí que aconteceu.

— Aconteceu o quê?
Zorah voltou seu olhar severo para Adrien.
— A maldição. — seu tom era frio.
Adrien apenas franziu o cenho.
— Ele quis ser humano. — ela continuou, cruzando os braços.

Foi inevitável o guitarrista rir.


— O cara é praticamente um deus e quer largar tudo para ser um mero humano? — o tom
de Adrien era recheado de descarado escárnio. — Me poupe.
— Você fala isso porque não controla um mundo de fantasias, menino. Sabe o que é
ser responsável por cada ilusão de toda a população deste planeta? Sabe o que é conhecer
perfeitamente bem os mais íntimos desejos e temores de cada um de vocês, reles mortais?
Não, não sabe. Então não ouse falar de nós.
Adrien se calou. É, havia sido inconveniente com as palavras. — Eu compreendo o meu
irmão, mesmo sendo ele apenas um ingênuo, uma criança tola. — Zorah continuou,
ignorando o guitarrista. — Ele havia se cansado de ser desprezado, de ter seu
trabalho de milênios ignorado por aqueles pelos quais sempre trabalhou. Não era de
se admirar que ele quisesse veementemente saber e conhecer o mundo dos homens
por não aguentar mais ser capacho da sua especiezinha.
— E a maldição consistia em quê?

Zorah cravou as unhas nos próprios braços. Era visível que sentia dor ao falar daquilo.
— Era algo para prendê-lo no Yume, foi lançada por mim e girava em torno de algo
simples demais. Ele só iria conseguir entrar no mundo Real se, por acaso, encontrasse uma
alma que quisesse trocar de lugar. Para isso, precisaria ser uma pessoa extremamente ligada
ao Irreal, tanto ao ponto de ter a incrível habilidade de transferir um humano que viu em
sonhos para um simples desenho. — ela sorriu, irônica. — Isso te lembra alguém, meu
caro Adrien?

— Por que ela? — ele perguntou, a raiva surgindo no peito.

— A menina Nadia era tão pobre que não resistiu à proposta feita pelo meu
irmãozinho: mil euros por um desenho de um personagem de um sonho. E você sabe muito
bem quem foi o escolhido. — Zorah suspirou. — Por isso você, Adrien, sonhava
diariamente com Nadia: porque ela se forçava para sonhar com você, tudo para
conseguir pegar todas as suas características e transferi-las para um papel. É uma lei da ação
e reação, compreende?
— E por que eu fui a pessoa escolhida por ela?

— Acaso. Nos sonhos, é muito fácil se deparar com quem não se conhece, são inúmeras
almas rondando pelo mesmo lugar. Você, naquela noite, entrou nos sonhos dela e, por
infelicidade do destino, o meu irmão também entrou na vida daquela menina.
Coincidência em relação ao encontro de vocês, suspeita, no caso do meu irmãozinho. Ele
conhece as pessoas com forte ligação fictícia, esse canal é bem visível para nós. Nadia seria
presa fácil e, como está comprovado, ela caiu direitinho na arapuca.
— E o que vai acontecer?
— A Nadia está a um passo da morte. Se meu irmão a convencer a trocar de lugar e se tornar
a Princesa das Ilusões Negras, ela morre. Se não, vai passar a eternidade presa lá e, quando o
corpo vier a falhar no Real, ela vai virar apenas mais uma alma perdida em sua
coleção de tentativas frustradas. Porém, não acho que seja o que vai acontecer.
— Por quê?
— Porque, de todos que o Phobeto já conseguiu, a Nadia é a única que realmente me
preocupou. Porque ela sim pode substituí-lo.

— E esses humanos? O que ainda fazem aqui?


— Foram pegos do mesmo modo que você foi caçada. Acreditaram em Phobeto, em
suas promessas vazias. Tinham a plena convicção de que, quando terminassem o desenho,
seriam recompensados.

Foi assim com você, foi assim comigo.


Os olhos da menina ficaram arregalados.
— Quer dizer que você...?

A Lady balançou a cabeça.


— Minha alma se conserva humana porque eu escolhi assim. Quando coloquei meus pés
aqui e não recebi a ajuda que deveria ter recebido, soube logo que não haveria
escapatória: meu corpo morreria, minha alma ficaria perdida e eu nunca ocuparia o
lugar de Phobeto. Ainda pensei em lutar contra, mas, como falei, não existiam chances
para mim. Resolvi fazer um acordo com ele depois de muito estudar o Yume: eu
ficaria aqui, meu corpo padeceria, e me tornaria um dos personagens do Irreal, desde
que mantivesse minha memória intacta. Desde então, sou eu quem consola os seres que aqui
vivem, enviando-os ou não para os sonhos e pensamentos humanos.

— Há outros aqui além de você que tenham se mantido "intactos"?


— Não. A pobre e lendária Claire teve a mesma sorte que eu, mas, ao contrário de mim, não
quis se tornar um personagem. Lutou com vigor para sair do Irreal, até que o seu corpo
pereceu no Real, tornando-se apenas um ser opaco no Yume. Acabou como serva de
Phobeto. Temos também o famoso caso de Tímulus: esse recebeu a ajuda necessária, seguiu
o protocolo recomendado e estava pronto para tomar o lugar do Phobeto... Mas era fraco
demais para assumir o posto, sendo prontamente descartado, e agora é apenas um vampiro
perdido. Ainda há outros, só que são muitos para eu lembrar agora.

"Faça-me um favor, menina: fique longe de mim. É desagradável demais saber que está aqui
para roubar o que seria o meu posto, então se mantenha longe ou drenarei todo o seu sangue,
desagradando ou não o chefe." —as palavras voltaram com força a sua mente. É, achava já
ter cruzado com aquele Tímulus.
— Mas, espere: você vem falando de ajuda, ajuda... O que é isso?
A Lady sorriu.
— É o seu aliado.

— Você tem certeza? — perguntou, indecifrável.


Os olhos de Adrien estavam voltados para a varanda, observando a noite.
— Você não vem tentando tanto que eu faça o diabo a quatro para prendê-la no mundo Real
e impedi-la de chegar ao Yume? Então!

— Sim, isto quando ela estava no Real, compartilhando o mesmo mundo que o seu! Mas se
jogar no Yume para tentar salvá-la pode ser extremamente perigoso. O tempo passa
rapidamente no Irreal, Adrien. A Nadia é muito fraca, principalmente porque não superou a
morte da mãe, o que a torna presa fácil para Phobeto. Cedo ou tarde, ela vai entrar na
conversa do meu irmão e poderá ceder facilmente à imposição de ser Princesa. Voltar ou não,
é escolha dela. Você não irá conseguir raptá-la e trazê-la de volta sem mais nem menos, não
vai surtir efeito. Porém...
— Porém o quê? — os nervos de Adrien se alteravam. Foi preciso ingerir um copo de vodca
para se sentir mais tranquilo.

— Se quiser realmente ir, terá de lutar contra ela. Se vencer a luta, ela voltará ilesa ao Real,
mas ambos pagarão uma pena por entrar em um mundo proibido. Se não vencer, você morre
e sua alma será destruída.
Não era a melhor opção.
— E quanto à Nadia? — ele perguntou. Naquele momento, preocupava-se unicamente com a
jovem alemã.
— Será avaliada por Phobeto e, se for digna o suficiente para assumir o seu posto, morrerá
no Real. Se não for, pode se tornar mais uma criatura do Yume, o que eu não acredito que
aconteça. Se você não for, acredite: ela morrerá do mesmo jeito. Vou logo avisando, é
arriscado e tem 50% de chances de dar errado, assim como 50% de dar certo. A escolha é
toda sua.
O que iria perder? A vida? Vivera vinte e três anos sem expectativas, sendo levado por
qualquer coisa que o impulsionasse, para o bem ou para o mal. Não importaria se morresse
fazendo a primeira coisa boa da sua inútil existência, o primeiro ato benevolente. Ainda mais
sendo levado por um sentimento que jurou nunca alimentar.
— Faria isso pela mulher de quem escolheu ser o aliado, Adrien?

— Ele é a pessoa com quem você sonhou. Quando a relação entre vocês é estabelecida
através dos sonhos, ela os alimenta. Ele passa a sonhar com você e se torna definitivamente o
seu aliado, aquele que deverá prendê-la no Real e lutar por você no Yume. Mas tenha a
certeza: são poucos os aliados que resolvem lutar por quem sonham, as chances são mínimas,
principalmente porque o normal é vocês nunca se encontrarem por causa da distância entre
ambos.
— Então... Não há mesmo garantia para eu sair daqui?

Lady Liberté balançou a cabeça negativamente.


— A menos que a relação de vocês seja suficientemente forte para isso. Ela é, menina?
A garota baixou os olhos, pesarosa.
— Eu não sei... — murmurou, triste.
Neste instante a porta se abriu. O rapaz de horas atrás surgira, trajado elegantemente com
aquelas vestes pretas – botas, calças, jaqueta de couro, suéter –, o rosto bem feito, os olhos
demasiadamente azuis, um sorriso nos lábios.
— Lady.
Ele se curvou diante da mulher sentada, pegando uma das suas mãos e depositando um beijo
nela.
— Estou ocupada, Phobeto querido. — Lady Liberté não demonstrava a mesma cordialidade.
— Por que entrou?
Como a garota imaginara: ele era o Phobeto.
— Sinto, estimada Lady, mas esta senhorita está em minha companhia. Infelizmente, não a
acompanhei em seu passeio. — ele se dirigira à jovem, pondo-se atrás dela e depositando a
mão em seu ombro. — Não é mesmo, minha querida?
A menina abaixou a cabeça – não havia o que ser feito. Levantou-se da cadeira.
— Obrigada por tudo. — disse à Lady, os olhos ainda baixos.
A Lady apenas assentiu. Oferecendo o braço para a sua acompanhante, Phobeto se lançou
para fora da casa com a menina, levando-a cordialmente. Acenou para a mulher e agradeceu.

— Absoluta certeza, não é?


— Total.
Zorah sorria. Caminhando até Adrien, montou em seu colo e, enlaçando o seu pescoço com
os braços, disse:
— Bem-vindo ao Yume, Adrien Guerra.
Ela depositou um beijo em seus lábios, um ardente beijo que o fez perder o ar. Em instantes,
Adrien sentiu o corpo pesado, entrava em estado letárgico. O preto, então, cobriu sua visão.
Estava feito.
22.
Abriu os olhos rapidamente, assustado, como se saísse de um pesadelo. Olhando o ambiente
que o cercava, continuou no mesmo estado de alerta. Ao que conseguia distinguir, parecia
uma cabine ricamente detalhada, com suas paredes de madeira e decoração dourada. Havia
ali um pequeno beliche, além da mesinha de centro e do banco acolchoado e vermelho, onde
estava sentado. Levou a mão aos olhos, esfregando-os e tentando recuperar a memória. Logo
visualizou a bem trabalhada manga do seu sobretudo negro, bordado com linha azul, e da
blusa branca que usava por baixo. Tocando em si mesmo, notou a presença do colete azul
marinho e do relógio de bolso banhado a ouro. Trajava, também, uma calça preta cuja barra
era escondida pela bota escura. Que raio era aquilo?Encostando-se na parede, voltou a cabeça
para a janela de vidro. Uma imagem desconhecida passava por seus olhos, a velocidade tão
rápida que não conseguia distinguir os elementos que compunham aquela paisagem. Estaria
em um trem? Era o que parecia.

Levantou-se e abriu a porta, confuso, saindo para um grande e vazio corredor. Fechou a porta
da sua cabine e se pôs a andar pelo caminho silencioso e sem vestígio de vida. Caminhou por
alguns minutos, sempre falando "Olá?", em busca de outras presenças. Contudo, a única
coisa que encontrou foi um ponto brilhante rondando pelo corredor, passando apressado por
seus olhos e em alta velocidade. Espantou-se e virou para trás, mas já não mais conseguia
enxergar o brilhinho.

Ignorou e continuou a sua caminhada. Chegou ao final do vagão e não achou ninguém que
pudesse responder às suas questões. Suspirou, frustrado, e, quando se virava para voltar à
cabine, deparou-se com o mesmo ponto brilhante com quem cruzara.
— Em que posso servi-lo? — a voz fina não passava de um simples sussurro.

O pequeno brilho estava perante seus olhos. Pequenas asinhas se destacavam, um corpinho
semelhante ao de uma mulher era perceptível, contudo não havia características próprias –
apenas um dégradé de cores rosa e roxo e vários outros minúsculos pontinhos brilhantes. Era
a primeira vez que via uma fadinha, não imaginava que seria daquela forma.

— Ahn... — não sabia o que falar. Ainda estava espantado com o inesperado encontro. —
Você trabalha aqui?

— Sim, sim. Na cozinha. — ela dava pequenas voltas em torno de si mesma. — Então, o que
quer? Está com fome?
— Não, não. Só... queria saber para onde nós vamos.

— Ah... — a fadinha levou a minúscula mão ao queixo, a cabeça voltada para cima,
pensativa. — Você não deu uma olhada no seu bilhete?

Ele teve um discreto sobressalto. Apalpando-se, procurou por algum bolso naquela roupa
estranha, sorrindo desconcertadamente para a fada. Quando encontrou o papel
cuidadosamente dobrado,
abriu-o, ansioso. Contudo, para a sua frustração, nada de extraordinário surgiu, somente um
nome aparentemente sem sentido algum:

Estação Beira do Nada.

— Mas que p...

Quando levantou o olhar, a fada não estava mais ali.

O trajeto foi percorrido no mais profundo e mortal silêncio. A garota não sabia o que dizer,
tampouco qual atitude tomar, preferindo, assim, apenas seguir os passos do homem que a
puxava delicadamente pelo braço. Olhou para Phobeto, viu que seu rosto estava desprovido
de qualquer emoção. Mordiscou o lábio, receosa. Não sabia se iniciava ou não um diálogo.—
Se quer falar algo comigo, Princesa, é bom que o faça.

Seu peito arfou levemente. Phobeto não a encarava, preocupado unicamente em continuar
sua silenciosa caminhada.

— Não vai brigar comigo por eu ter ido atrás das respostas que você não me deu? —
perguntou em tom amistoso.

— Não, creio que teria feito o mesmo. Além do mais, isso é típico. Todos que possuem
dúvidas correm para Liberté. Precisam de consolos e, como você mesma disse, de respostas.
Não sou um livro que se pode consultar e acabar com as dúvidas.

Ela abaixou o olhar, focando em sua bonita sapatilha preta.


— Mas sei que você tem outras inúmeras perguntas. — ele completou — Por que não as
faz?

— Quem me dará a garantia de que você irá me responder?

Phobeto riu encantadoramente.

— Eu mesmo. Dependendo da intensidade, pensarei se poderei ou não responder.

A garota pausou a caminhada, obrigando o seu acompanhante a encará-la.

— Muito bem. — disse, cruzando os braços sobre o peito. — Primeiro me diga se há como
eu sair daqui por livre e espontânea vontade.

— Sinto. — ele disse, ainda com um sorriso nos lábios. — Isso é impossível.

— Por quê?

— Porque eu não permito que os meus escolhidos saiam facilmente. Dá muito trabalho
encontrar vocês, sabia? Não faz ideia dos lugares em que os procuro.
— E o que é necessário para tomar o seu incrível reinado?

— Mostrar-se digno de recebê-lo. — Phobeto deu alguns passos, dirigindo-se às costas da


garota. — Ah, menina... Quando te encontrei, pude logo perceber que era um achado raro.
Sabia que nem todos que já trouxe aqui possuíam essa sua incrível capacidade de
visualização? Ah, sejamos mais
corretos com os dados. Nenhum possuía.
— Como você...?

— Muito fácil. — ele afastou os cabelos da menina, fazendo com que sua respiração roçasse
na pele delicada do pescoço dela. — Você me deu livre acesso para entrar em sua mente, ver
o que você via, conhecer todos os segredos escondidos na sua cabecinha. — ele se
distanciou, permitindo a ela respirar com mais facilidade. — Logicamente, nosso contato
ficou bem mais fraco quando você fugiu para aquele outro país. E, obviamente, foi um erro
ter demorado tanto para ir pegá-la.
— Por quê?
— Você não estava pronta. Precisava de um tempo para caçá-la desprevenida, suscetível a
cair em suas mais profundas ilusões. Ou seja, momento perfeito. Sem contar que encontrá-la
foi um sacrifício, você se escondeu muito bem. — ele riu. — Quer dizer, nem tanto.
— Como me encontrou?

— Meio complicado. Precisei ir viajando na cabeça de qualquer pessoa com quem você tinha
cruzado. Comecei com aquele seu amigo através do qual comprei a sua alma e, a partir das
lembranças dele, fui procurando por pessoas que pudessem me levar até você. Acredite, foi
um martírio.

— E por que não veio direto até mim?

O rosto dele adquiriu um semblante triste e cansado.

— Porque estou fraco. — Phobeto suspirou. — Desde que reneguei o meu cargo, meus
poderes se reduziram consideravelmente. Por exemplo, agora preciso esperar para que
alguém esqueça a minha imagem e tudo depende da intensidade com que a pessoa a gravou
na mente. Só quando a lembrança está muito fraca, eu completo o serviço e a apago. Depois,
corro atrás da pessoa.

— O que explica o meu amigo ter esquecido tudo.

— Exatamente! — ele riu. — E objetos criados por mim também seguem quase a mesma
regra.

A garota bufou de ódio.

— Você é um sádico! — ela suspirou com força. Pondo as mãos na cintura, perguntou
novamente. — Sério, o que você espera de mim? Estou ficando de saco cheio disso tudo.

A distância que os separava se tornou mínima. Olhar fixamente naqueles olhos intensos e
azuis era perigoso, assustador e anestesiante.

— Que diga "sim" — ele levou a mão ao seu rosto, ficando a segurar seu queixo — na hora
certa. — mais uma vez, sorriu. — E acredite, ela está chegando.

Phobeto largou-a, indo para o caminho oposto, solitário. Parou apenas quando o outro
questionamento veio:

— E o seu irmão? Onde está?


Ele se virou para observar a garota mais uma vez.
— O que sabe sobre a nossa história?
— Tudo o que a ficção e a Liberté me disseram. — a menina andou até ele. — Sei sobre a
maldição, sobre o desejo de você virar humano, sobre a briga que vocês dois, irmãos,
tiveram. Estou enganada?
Phobeto suspirou.
— Não, não está. Mas está sendo intrometida. Esse é um assunto sobre o qual não
posso falar.
— Mas eu exijo falar com seu irmão! Até onde eu sei, ele sempre foi contra essa sua
vontade insana.
— Sinto, mas ela não se encontra aqui. — seu semblante era sério e frio.
— Vocês brigaram, não é? E você se perdeu na imensidão dos séculos.
Ele riu novamente, irônico.
— A ficção realmente não lhe dá as respostas como elas são, minha cara. Para início,
não tenho um irmão e sim uma irmã. Segundo, é verdade que nós brigamos, mas não tenho
aonde ir, por isso continuo perambulando por aqui. Infelizmente, ainda sou poeira
imaginária, não posso ficar no seu mundinho por mais de cinco horas. Por último, o Yume é
grande demais para nos esbarrarmos assim tão facilmente. Cada um tem a sua casa, se é que
me entende.
— O que explica o fato de eu ter apenas desagradáveis encontros com seres monstruosos?
— É, pode-se dizer que sim. — ele voltou a lhe dar as costas. — De qualquer modo,
esteja preparada. Sua prova está chegando.
— O que quer dizer?
E ela estava sozinha.

— Estação Beira do Nada.


O aviso prévio veio por um alto-falante invisível. Ele respirou fundo antes de levantar
e se dirigir à saída da cabine. Reparou que não carregava nenhum tipo de bagagem além do
elegante relógio de bolso. Poucos eram os passageiros – e todos estes demasiadamente
estranhos, em comparação ao que estava acostumado a ver. Tratava-se de pequenos pontos
brilhantes – outras fadas –, gnomos, centauros. Muito perturbador.
Contudo, nada mais assustador do que o local onde descera, ambiente que muito
condizia com o nome que carregava. Tratava-se de uma floresta densa, colorida com o verde
das plantas que irradiava o brilho da possível manhã. Além disso, havia uma aura diferente
ali, algo que nenhum bosque comum – ou real – possuía.
Respirou fundo e observou os outros passageiros se dirigindo à extensão de árvores à
sua frente. Uma leve vertigem passou por seu corpo – ainda estava meio incrédulo e enjoado
com todos aqueles acontecimentos. Pisou a mata virgem, diferentes sensações percorrendo
suas veias. Não sabia por onde começar a procurar ou que fazer exatamente – Zorah não fora
clara o suficiente para lhe dar dicas proveitosas. Talvez, andar à caça de algo que o ajudasse
pudesse ser a melhor alternativa.
Caminhou por instantes intermináveis, sem conseguir encontrála ou encontrar a saída
para a floresta. Em determinados locais, acabou cruzando com diferentes e incríveis seres –
por muito pouco não fora atropelado por um centauro que corria atrás da sua presa, ou então
fora abordado por um grupo de duendes exigindo impostos atrasados. Até onde lembrava,
todos os habitantes dali moravam em sua mente quando possuía doze anos. Apenas em seus
sonhos e em sua imaginação.
Sabia, porém, que o Yume não era um dos locais mais seguros para se andar. Fora alertado
disso previamente, conseguia escutar a voz de Zorah alertando-lhe em seus pensamentos.
Todavia, mesmo que se mantivesse atento, sabia que poderia cair em uma armadilha a
qualquer instante. E percebeu isso com mais vivacidade quando observou os inúmeros
vultos.
Teve a impressão de escutar risadinhas, ver corridas, panos ao vento, imagens que
fugiam da sua visão ainda despreparada. Procurou não se importar, não era hora de ficar
apenas observando o sobrenatural. Deveriam ser ninfas, também recebera avisos sobre elas.
Caso apenas ignorasse e continuasse o seu trajeto, elas reconheceriam a sua falta de
importância no meio. Precisava somente relevar.
Em dado momento, percebeu que o solo ganhara viscosidade. Alarmado, voltou os
olhos para o chão e foi quando sentiu o forte aperto em seu tornozelo. Sem que pudesse lutar
contra, foi puxado para o interior da grande massa líquida recém-surgida. Tentando
combater, esperneou, chutando inúmeras vezes a mão que ainda o prendia. Abriu os olhos e
viu o que não queria – uma espécie de peixe, metade humano, sem face definida,
completamente verde: sereias! Caíra em suas armadilhas. Eram mais fortes que ele,
conseguiam imprimir mais força. Não iria suportar muito tempo ali dentro, em pouco seus
pulmões necessitariam de oxigênio. E, sem que pudesse ir contra, foi perdendo a capacidade
de se manter debaixo d'água, a resistência se esgotando.
Outra força o puxou pelos braços, um grunhido vindo de baixo. Fraco, não viu a sereia
sendo estraçalhada pela luz forte que a atingiu, somente conseguia sentir o seu corpo sendo
levado. A mente parou de trabalhar, confusa, cansada. No entanto, pôde notar as forças
voltando quando o ar entrou em seus pulmões mais uma vez.
— Você está bem?
Após cuspir toda a água que entrara involuntariamente em sua traqueia, conseguiu
observar o seu salvador. Tratava-se de um menino pequeno, por volta dos onze ou doze anos;
cabelos louros e caídos sobre a face; olhar escuro distante; o corpo franzino, roupas sujas de
moleque oitocentista. O peito doía.
— Mas que... — começou, sem ter a capacidade de continuar.
— Acredite, aqueles serezinhos bonitos que você lia nos contos de fada não são
equivalentes com a maioria dos que encontramos aqui. Essas sereias são bem desprezíveis e
assustadoras, mas são fortes pra burro.
Ele, todavia, continuava a olhar o garoto, aterrorizado e sem palavras.
— Sei que me conhece. — prosseguiu o menino em um suspiro. — Acho que fui você
há algum tempo atrás, não fui?
Era inacreditável. Tenebroso, até.
— Por que...? — não existiam palavras que se encaixassem.
— Porque você sempre viveu de mim, do seu passado. — era uma expressão séria
demais para uma criança.
— E por que me salvou?
— Porque você está no último estágio da sua superação. Quando você encontrar a menina,
irá me enterrar, finalmente. E é para isso que estou aqui: para você me mandar ir embora. —
o menino levou a mão ao ombro do rapaz. — Precisa me deixar ir... Prendendo-se a mim,
lamentando o fato que aconteceu há tantos anos, continuará matando seus sonhos, sua
capacidade de criar. Você é tão digno de entrar aqui quanto ela, é tão forte e capaz que não
faz nem ideia. Precisa apagar o seu passado para poder voltar a sonhar!
O jovem respirou fundo. Necessitava de ar – a cabeça doía.
— Eu sei que você está assustado. Tem medo, posso ver em seus olhos. Mas isso é o
melhor que iremos fazer a você.
— Você está dizendo que... eu sou assim porque me prendo ao meu passado?
— E não estou certo? Não foi por causa da sua desilusão com sua mãe, pelo fato dela
nunca ter voltado, que você resolveu parar de sonhar, com medo de se iludir e se machucar
novamente? Não foi por causa disso que prossegue até hoje em dia assim, desacreditado, frio,
amargurado, relutando em ter expectativas e sonhos? — o menino pousou a mão em seu
ombro. Parecia uma criança muito madura para seus aparentes poucos anos. — Eu sei que
nós acreditamos nela, em suas promessas vazias, mas não precisamos negar nossa felicidade
por sua causa. — ele sorriu. — E essa é a sua prova para podermos superar nosso trauma.
— Sabe que poderei morrer, não sabe?
O menino abaixou a cabeça, os cabelos balançando.
— Você tem chances. Sabe disso. Lembra-se do que fez no hospital, não lembra?
O rapaz assentiu.
— E eu estarei com você. — concluiu o garoto.
— Isso implica que vai me ajudar a encontrá-la?
O menino estendeu a mão.
— Depende da sua decisão.
E, olhando fixamente para a mão do menino, segurou-a com força. Levantando-se,
pôs-se a caminhar com o moleque que, um dia, fora a sua imagem.

O tempo parecia passar vagarosamente, arranhando sua paciência. As dúvidas


enlouqueciam sua mente. Iria ele entender e vir atrás? Ou ignoraria? Ou não entenderia? Ou
a deixaria ali? A demora a matava aos poucos, desejava algo mais imediato. De qualquer
maneira, nada poderia fazer além de esperar.
Caminhar por entre as árvores era a única coisa capaz de distraí-la naqueles instantes
vagarosos. Não tinha rumo ou direção certa, só precisava ocupar seus pensamentos. Olhava
para o chão, observando com vontade as folhas caídas que preenchiam o solo. Entediante.
Contudo, algo reluzente, por entre as plantas alvirrubras, chamou sua atenção. Curiosa,
abaixou- se e logo se viu refletida na superfície – uma folha de espelho, com todas as
nervuras expostas em sua pequena forma. Sorriu, era lindo. Levantando os olhos para cima,
notou uma árvore também constituída por espelhos e, mais à frente, uma verdadeira floresta.
Alguma coisa de boa ali, pelo menos.
Maravilhada, caminhou para a floresta de espelhos. Sua figura estava exposta em
todos os troncos e folhas, formando inúmeras imagens no infinito. De certo modo, era
assustador – estava tão diferente que apavorava. Igual a uma princesa, com direito a uma fina
tira de couro em sua cabeça – a sua coroa.
— Então já está se reconhecendo como dama disso aqui, não é mesmo?
Reconhecia aquela voz, sabia exatamente que timbre era aquele. Assustada, virou-se.
Uma menina com a sua estatura impressa em uma das árvores; longos cabelos lisos e
levemente tingidos de vermelho; rosto relativamente redondo; lábios vermelhos; um brinco
na extrema cartilagem da orelha; roupas masculinas – blusa quadriculada de mangas
compridas por cima de uma camiseta branca, tênis velhos, calça frouxa. A pose era firme, o
olhar repreensivo, braços cruzados. Aterrorizante.
— Você... — foi a única coisa que saíra de seus lábios.
A menina sorria. Como por mágica, saiu do espelho, indo em sua direção.
— Nunca te imaginei nesse estado. É lamentável. — falou a outra, com descaso.
— Em qual estado?
— Nesse. Dá para perceber claramente a que ponto você chegou. Foi dominada de vez
pela loucura.
— Não estou louca! — gritou.
— Ah, não? — a menina possuía um sorriso maldoso nos lábios. — Então me explique
por que está aqui! Se você não estivesse louca, ainda continuaria na Terra, no meu corpo.
Mas não... Você o deixou lá, naquele hospital, prontinho para pegar qualquer infecção e
pipocar! Ou estou mentindo?
Era um filme de terror.
— Não caí aqui porque quis!
— Não, lógico que não. Suas intenções eram nobres, não eram? Ajudar a mamãe
vendendo um desenho. Você sabe que assinou o seu tratado com a morte, não sabe? Você
está me condenando à morte
antes do tempo e tudo porque é uma lunática!
— Não estou condenando ninguém! — a menina a enlouquecia. — Você sou eu, só vai
para onde eu for!
A outra moça gargalhou.
— Me poupe desses destinos infantis. Olhe para você, está se entregando de vez a esse
mundo. Acha mesmo que vai conseguir sair daqui? Vai esquecer seu nome, seus amigos, sua
família, vai esquecer tudo! E sabe por quê? Porque aqui é outra vida!
Doía, doía muito.
— Ah... — prosseguiu a intrusa. — Já entendi... Está achando que o guitarrista vai te salvar...
Realmente, você me dá pena! Pobre lunática, deveria estar internada em um sanatório!
Em uma reação de autodefesa, ela socou o espelho do qual a sua antiga imagem saíra.
O sangue corria por suas mãos, o reflexo desaparecera. Ódio... Não suportava estar ali, não
aguentava ser chamada de louca. Não era e nunca fora doida, lunática, sem a mente correta.
Apenas... Incompreendida. Isso, era incompreendida. Mas não insana. Não era, não era, não
era!
— Princesa?
A voz doce não foi o suficiente para tirá-la da dor que sentia. Amargurava tanto que
seus movimentos eram mecânicos, não conseguia perceber nenhum deles. Não notou quando
ele a virou, puxando o seu corpo para si e envolvendo-a em seus braços. As lágrimas corriam
por seus olhos, a mão sangrava, mas ela não percebia.
— Não há motivos para chorar. — ele falou, acariciando os seus cabelos. — Estou aqui
e esse reino espera a sua alegria e o seu governo, não as suas lágrimas.
Alguém esperava por ela? Alguém a queria?
Uma forte de dor de cabeça surgiu, atingindo um de seus olhos. Cerrando fortemente
as pálpebras, agarrou-se ainda mais àquele corpo forte que a envolvia, enterrando a cabeça
no peito de Phobeto. Não percebeu em nenhum instante que a dor era compartilhada.
— Venha... — ele disse, delicado e sorridente. — Vou levá-la para descansar.
E, colocando-a nos braços, caminhou com ela por entre a mata.

*
— Acha que ela tem chances?
— Chances de quê?
— De se libertar?
O menino mordiscou o lábio.
— Depende do grau em que ela está.
— É grave, então?
— O cara tem suas manhas para prender as almas com forte canal aqui. Às vezes,
abusa das emoções mais profundas, depende muito da força da pessoa. Mas, se você
conseguir impedir que os olhos dela fiquem vermelhos, então há muitas chances.
— Vermelhos?
— Quando se aceita passar para o lado de cá de maneira consciente e tendo o corpo
ainda vivo, os olhos ficam vermelhos. Se o escolhido já estiver, aos poucos, aceitando a
condição, os olhos ficam amarelados – é a troca com os verdadeiros olhos de Phobeto.
— O que quer dizer?
— Espero que você tenha sorte.
As batidas cardíacas aceleraram.
— Mas tem consciência de que irão lutar, não é? E feio.
Ele apenas aquiesceu.
23.
— Sinto que você está triste, Princesa. O que este servo pode fazer para deixá-la feliz?

Deitada em cima de uma cama de folhas, ela sentia as lágrimas quentes correrem por seu
rosto. Enfim, estava começando a aceitar sua condição. Não sabia como sair, encontrava-se
completamente só e sem chances, apoiada apenas pelo belo e sarcástico Phobeto. Contentar-
se? Continuou calada.
— Acho que sei o que passa por sua cabecinha... Não se preocupe, vou trazer essa felicidade
a você.

Não, ela não sabia. Não tinha lucidez, logo não possuía cabeça e desejos. Era uma louca
confinada em uma prisão para lunáticos sem cura, presa em um mundo paralelo àquele que
sempre chamou de real. Cavara a sua própria cova, escrevera o seu destino. Para que se
lamentar agora? Mas, no fundo, sabia que não houvera meios de impedi-lo. Lembrou-se da
vida medíocre e miserável de há alguns anos. Só queria melhorar a situação, trabalhou para
isso. E, para tanto, enclausurou-se na prisão de sonhos e agradáveis delírios. Quem não faria
o mesmo estando sem expectativas? Por isso precisava ser considerada louca? O peito doía
de modo insuportável, nunca sentira a verdade com tanta intensidade.
Era doida, maluca, uma porra louca. Então, que aguentasse o fardo.

Ao longe, escutou uma voz suave que entoava uma canção conhecida. Esquecendo as suas
lamúrias, levantou-se – queria reconhecer aquela melodia distante. O som choroso do piano
tentava acender memórias que, até então, mantiveram-se escondidas em locais inatingíveis da
sua mente. Deu alguns passos e começou a caminhar em direção ao som.

Andou durante infinitos instantes por uma construção que se assemelhava a um castelo
erguido por pedras. À medida que avançava, a música se tornava mais audível. Percorreu
longos caminhos atrás daquela voz doce que a acalentava. Abriu portas gigantescas,
encontrou salões dignos de nobreza europeia, mas não achou o cantor e o seu piano
melancólico. Ao final de um corredor cinza e escuro, deu-se de cara com uma passagem não
tão suntuosa quanto as outras. Encostou o ouvido na madeira podre e confirmou: a música
saía dali.

Ao abrir a porta, deparou-se com Phobeto defronte a um piano de cauda, cantando e tocando.
Espantou-se – não imaginava que ele possuísse tais habilidades. Aproximou-se lentamente,
tentando não ser notada e ainda querendo reconhecer a triste música que instrumento e cantor
choravam. Entretanto, antes mesmo de alcançar Phobeto, ele voltou-se para ela, encarando-a
com aqueles olhos azuis ameaçadores, fitando-a com uma aparente fúria. Seus dedos pararam
de passear pelas teclas do instrumento, mas, como se por milagre, outros sonos começaram
se propagar pelo ambiente, assim como outras vozes fizeram coro à música cantada pelo
senhor do Yume.

Em questão de instantes, uma infinidade de personagens vestidos como se estivessem em


uma magnífica ópera começaram a surgir diante os seus olhos. Usavam roupas de época,
cheias de brilho e tecidos pesados. Maquiagens sombrias cobriam seus rostos sem piedade e,
tais como Phobeto, eles cantavam, num coro perfeito e inacreditável. Conforme a progressão
da música se intensificava, os aparentes coralistas passaram a cercá-la, incluindo-a naquele
mundo de ilusão da arte.
Ela começou a se retrair, o encantado transformando-se lentamente em desagrado. Abraçava-
se, os olhos assustados percorrendo cada uma daquelas fisionomias distorcidas. À primeira
vista, acreditou que os rostos que a encaravam eram desconhecidos, mas, à medida que o
cerco se fechava prendendo-a naquela peça, passou a acreditar conhecer cada um dos atores
fantasiados. Pensou ter visto o primo, os amigos de outrora, os parentes distantes, o amor que
nunca vingou, o amor que jamais saiu do plano onírico. A música tornou-se conhecida –
Bohemian Rapsody –, escutara-a no dia em que a pessoa mais importante da sua via cruzou o
limiar da morte. Assustada, foi dando lentamente passos para trás. As coisas começavam a
fazer sentido e o desespero crescia descomedido.

Quanto mais corria, mais os personagens a seguiam, tentando encurralá-la e trazê-la


novamente àquela peça macabra. Lágrimas quentes começaram a correr por seu rosto e ela se
sentia fragilizada e desprotegida. Com esforço, alcançou a porta pela qual entrou,
empurrando-a desesperadamente. Mãos e pés a seguravam, querendo impedir a fuga – um
personagem importante não poderia abandonar a cena daquela maneira, sem que isso
estivesse no roteiro. Ela, a todo custo, tentava desvencilhar-se daqueles abraços infernais.
Quando conseguiu, passou a correr sem freios, tropeçando nos próprios pés e desejando
nunca ter saído do local onde estava. A música, porém, continuava a acompanhá-la, como se
fizesse parte dela mesma.

Ao chegar ao quarto, trancou a porta. Arfando muito, passou a chorar descompassada,


largando- se em cima da cama de folhas. Em posição fetal, deixou seus soluços tomarem
conta do ambiente, invadindo-o.
— Querida?

Ela não conseguia escutar o chamado cálido e convidativo. Ainda estava em choque com a
cena recém-presenciada.
— Olhe para mim, meu amor.

Inconsolável, virou-se para a origem do chamado. O peito apertou, a respiração falhou.


Quase sem reação, perguntou, incrédula, as lágrimas ainda brotando de seus olhos:
— Ma-mamãe?

O sorriso lindo e resplandecente que sempre aparecia quando a filha falava alguma besteira
cômica. Os cabelos louros, ondulados e brilhantes; os olhos escuros e meigos; a roupa branca
que se assemelhava à sua pele. Tão linda...

— Olá, meu bem.

A surpresa era grande demais. Tanto que confundira a sua cabeça mais uma vez.

— Não estou tendo alucinações, estou?

A mulher se aproximou e envolveu com seus braços a jovenzinha que, por sua vez,
continuava sem reação.

— É alucinação este abraço, minha menina? Você está me sentindo, não está? Está escutando
a minha voz também, não é?

Incrível demais, perfeito demais. As lágrimas voltaram a cair dos seus olhos e, imersa na
saudade que assolava o seu peito há tempos, abraçou com força a mulher loura e especial.

— Certo, como faremos para encontrá-la?

O menino olhava para o pequeno e confuso mapa. O rosto continuava sério, em dúvida.
Segurava o queixo com o polegar e o indicador, enquanto o outro braço estava apoiado na
mesa. Seus pés balançavam, a distância que o separava do chão era grande demais em
comparação ao seu pequeno tamanho.

— Sinceramente? — ele fez uma careta. — Ainda não sei.

O rapaz jogou a cabeça contra os braços apoiados na bancada. Estaca zero.


— Tem certeza de que Zorah não lhe deu nenhuma dica? — perguntou a criança.

— Aquela mulher é uma doida varrida! Me mandou para cá sem me dar nenhum auxílio. Não
disse onde posso encontrá-la, o que fazer... Nada!
Houve um instante de silêncio, até o momento em que o menino suspirou com força.

— Estamos sendo idiotas! — afirmou, surpreso, como se tivesse descoberto um detalhe


importante.
— Ah, isso não é novidade!

— Não, não falo nesse sentido! Droga, nós estamos procurando no lugar errado! A menina
não está aqui! Ela foi trazida por Phobeto e não por Zorah!

— Ótima constatação, pequeno gênio! — o rapaz deu um peteleco no garoto. —– Sabe há


quanto tempo estamos procurando em vão? Isso desconsiderando o meu corpo jogado no
meu mundo! Sabe-se lá o quanto aguento daquele jeito!

— Eu sei, eu sei... Erro meu, assumo! Precisamos ser rápidos! Temos de chegar à residência
de Lady Liberté, ela pode nos ajudar!

— Quem?

— É a bruxa que fica na divisa dos reinos das Ilusões Resplandecentes e das Ilusões Negras,
ou, se preferir, dos reinos de Zorah e de Phobeto, respectivamente. É a solução para os
nossos problemas! Entramos em outro território e, de quebra, ainda podemos encontrar a
garota!

— Sim, e como chegamos até lá?

— Pelo cocheiro público.


*

— Você está tão bonita vestida de princesa, querida.


De frente ao espelho de um possível castelo, a menina se olhava, sorridente. Pela primeira
vez, pôde observar com clareza os detalhes do bonito vestido que usava. A gola era alta,
possuindo, em seu início, uma delicada fita negra. Os ombros eram cobertos, porém uma
parte de seus braços ficava à mostra, já que havia uma manga separada do vestido, presa por
outras fitas negras, e de boca larga, tal qual uma indumentária medieval. Bordados pretos em
formato de flores cobriam a roupa por inteiro.

— Acha que estou bem?

— Totalmente.

Ambas riram.

— Sinto muito a sua falta, mamãe. — comentou a menina em um sorriso triste, voltando-se
para a mulher mais velha, sentada na cama.

A mãe abriu os braços, em nítido chamado. A filha se dirigiu a ela, jogando-se em seu abraço
em seguida, enquanto seus cabelos eram afagados.

— Eu também, meu amor. Mas, se quisermos, poderemos ficar juntas assim, para sempre.

A menina franziu o cenho.

— Como assim?

— Se você quiser, poderemos ficar aqui. — a mãe sorriu. — Não te agrada esse lugar? Paz,
tranquilidade... Para que melhor?

— Mas... — ela se levantou, em dúvida. — Sinto que tenho pessoas à minha espera lá. — um
riso nervoso. — Lembro-me de um primo, um avô, alguns amigos...

— Poderemos ver todos com frequência. — a mãe sorriu. — E o seu pai também está nessa
lista.

A menina ficou visivelmente perturbada.

— Para isso, eu precisaria abdicar de tudo que vivi até hoje? Amigos, família...

— Existem melhores amigos do que eu? E quem é a sua família? Não sou eu?

A garota riu nervosamente mais uma vez.


— Mas é que... Nossa...

— Querida... — ela tocou sua mão. — Estaremos juntas, não há nada a perder. Não era o seu
sonho? Ficarmos unidas e bem?

A menina mordiscou o lábio inferior.

— Você é uma princesa, amada. Não deixe o seu reino assim.

Antes que a menina pudesse falar qualquer coisa, a mãe se levantou, caminhando até ela e
tomando as suas mãos.
— Vamos! Está pronta? — Para quê?
— Para a grande festa aonde vocês irão se encontrar!
— Quem?
— Ele!

— Ela não está?

A criada mantinha seus braços cruzados, os olhos cinza perdidos e os cabelos ruivos
organizados em uma bonita trança.

— Sinto, mas não. — ela disse, a voz desprovida de emoções.

Tanto o menino quanto o jovem suspiraram, frustrados.

— E para onde ela foi? — perguntou o mais velho, ainda munido de esperanças.

— Para o Baile de Máscaras do meu senhor. — a criada possuía a mesma expressão vazia.

— E quem é o seu senhor?

— Chega. — o menino puxou o braço do companheiro. — Temos informações demais. — e,


voltando-se para a moça, disse: — Obrigado, Claire.

Ela apenas fez um meneio com a cabeça.


— Quem era aquela menina? — o rapaz perguntou após algum tempo de caminhada
silenciosa.

— Claire, criada de Phobeto. Também foi uma humana, há outras tantas como ela aqui.

— É assim que ela vai ficar?

O menino interrompeu os seus passos para olhar o jovem de expressão deprimida.

— Há possibilidade, mas depende muito. Se você não estivesse aqui, provavelmente isso
aconteceria. Ainda bem que não é o nosso caso.
— Ninguém me garante que irei vencer essa batalha. Zorah já me avisou que ela é forte. Se
eu...

— Você não vai padecer! — o menino gritou. — Não antecipe uma morte incerta! Ao
contrário, ande! Não, não ande! Corra! Quanto mais rápido, melhor!
Ao ver o garoto correr, ele seguiu os seus movimentos.

*
Inúmeras e incontáveis máscaras, idênticas àquelas vistas na primeira vez que tivera contato
com Phobeto, estavam presentes no imenso recinto. Sentia-se em uma festa da mais alta e
requintada nobreza europeia do século XVII. Ali, até onde pudera perceber, não existiam
seres demasiadamente estranhos e asquerosos se comparados aos que tinha visto durante toda
aquela viagem assustadora – ou então, estavam escondidos por debaixo de alguma das
mantas negras presentes. E, claro, por detrás das máscaras.
— Tome, meu bem. Esta é a sua.
A mãe lhe entregou uma máscara. Olhou para o rosto desfigurado à sua frente, a
expressão deprimida de quem muito havia chorado. Havia brilho, certa beleza, mas a tristeza
era presente – e incômoda.
— Obrigada. — disse, colocando-a no rosto.
Agora era uma princesa. Uma soberana linda e amargurada.

— Cara, corra mais!


— Desculpe-me, rapazinho, mas não tenho mais o fulgor dos doze anos de idade.
— Você fala como um velho ranzinza...
— Tá, correr vai me ajudar em quê?
— Vai te ajudar a se manter no Yume! Lembra que a sua carcaça está abandonada sem
água e comida?
— Merda. Há quanto tempo estou aqui?
— Impossível determinar, meu bom amigo. Não há equivalência entre os dias irreais e
os dias reais.
Parou a corrida quando o menino repentinamente parou. Observou de relance a
imensa construção de pedra, aos moldes do que deveria ser um castelo. As árvores, ao
contrário das que viu, não eram verdejantes, e sim alvirrubras. O céu era negro, a tonalidade
mais escura que já alcançara. Misturado a isso, o edifício.
— Preciso ficar. — disse o menino.
— Não vai entrar comigo? — a voz do rapaz saiu incrédula.
— Minha missão era apenas levá-lo até ela. — o garoto sorriu. — Agora é preciso que
me deixe para que possa fazer o que te foi destinado. É necessário que supere o seu passado e
se permita sonhar.
Foi um rápido instante de silêncio.
— E o que eu preciso fazer agora? — ele perguntou, sentindo uma emoção diferente.
— Te dar um abraço e agradecer?
— Apenas me deixe ir e faça o que tem de ser feito.
O moço apenas assentiu com a cabeça.
— E antes que eu me esqueça! — avisou o menino. — Saiba de uma coisa: os mortos
nunca vêm ao Yume e nunca virão. Esteja preparado.
Despediram-se com um sorriso e, em instantes, o menino desapareceu.

A música era animada, mas, por mais que tentasse dançar a sua melodia agradável e
seguir os passos de Phobeto, não conseguia se entusiasmar por completo. Embora começasse
a gostar da presença daquele estranho – e insano – homem, ainda se sentia incomodada,
como se algo estivesse fora dos padrões normais. Para ser mais franca consigo mesma, nada
ali era normal. Porém, não tinha o que fazer – somente sorrir e continuar a ser guiada.

Vê-lo sem máscara foi o sinal certo. Um sorriso saiu de sua boca, algo divertido
estava se aproximando. Pousou a taça com a bebida na bandeja de um dos maîtres e se
dirigiu até ele. A confusão naquele rosto era explícita, o olhar atento, à procura da pessoa que
o interessava. Pegou delicadamente a sua mão, o que lhe fez arquejar de susto. Afastou a
própria máscara, permitindo-lhe ver o rosto sorridente.
— Não se assuste, meu querido. — disse, pegando suas mãos e colocando-as na
posição de dança. — Eu o levo até ela.
Ele franziu o cenho enquanto a conduzia pelo salão.
— É você a Lady Liberté?
Ela sorriu.
— É assim como eles me chamam, então é assim como sou conhecida.
— Onde a encontro?
— Aqui mesmo, eu deixei a passagem aberta entre esses mundos apenas para você
encontrá-la. Fique tranquilo.
— Vai me levar por meio de uma dança?
A Lady nada mais respondeu – somente sorriu. Abraçando-o, depositou uma espécie
de adaga em sua roupa.
— Faça o que tem de ser feito — sussurrou em seu ouvido, rindo em seguida e
tornando a dançar.

Foi rápido demais o modo como a troca de pares ocorrera. Em questão de


segundos, sentiu Phobeto sendo tomado de seus braços e outro parceiro de dança entrando
em seu lugar. O seu rosto também estava coberto por outra máscara – essa que mostrava uma
face satírica e cruel, tenebrosa até. Contudo, sua identidade não estava oculta. Conseguiu
sentir o seu cheiro, reconheceu o toque das suas mãos, o calor que emanava do seu corpo.
Não esperava encontrá-lo daquela forma, não estava pronta. Assustada, correu, perdendo-se
no salão de dança e procurando freneticamente a saída.

Vê-la fugir não foi agradável – não poderia deixá-la escapar. Correu bruscamente, afastando
com fúria os que cruzavam seu caminho. Deveria mantê-la à sua vista, lutou demais para
conseguir encontrá-la.
O salão parecia não ter fim, pelo que demorou bastante para que pudesse alcançá-la. Quando
isto aconteceu, porém, já não estavam na construção. Folhas secas estavam esparramadas
pelo chão, fazendo um intenso barulho quando pisadas. As árvores eram alvas, extremamente
brancas por causa do acúmulo de neve. O céu, cinza. Um silêncio mortal. — Quê...?
— Foi aqui onde tudo começou. — ela o interrompeu, ainda de costas. — Acho que o baile
não passou de uma ilusão para nos trazer até aqui.
Ele caminhou até ela, pisando as folhas e ocasionando o barulho irritante. Quando já
estava próximo, pousou as mãos em seus ombros.
— Por que veio? — ela perguntou, ainda sem encará-lo.
— Preciso realmente falar os meus motivos? Eles já não são claros o suficiente?
A garota foi se virando lentamente, o seu rosto ainda coberto pela máscara.
— Você sabe o que precisamos fazer para dar fim a isso. — ela disse, a voz abafada.
O rapaz sorriu. Retirou com cuidado a horrível face que insistia em esconder a doce
fisionomia que amava.
— Sim, eu sei. — disse, calmo.
Ela se afastou bruscamente, dando alguns passos para longe dele.
— Você é louco? — perguntou, um misto de revolta e ódio em seu tom. — Isso aqui é
o próprio inferno! Não há escapatória, um de nós precisará morrer para o outro conseguir a
ascensão! E, mesmo que consigamos nos safar, iremos esquecer nossos nomes, nossas
famílias, nossos amigos, nossas vidas! — ela riu, irônica, pousando as mãos na cintura. —
Eu me sinto completamente fraca, sem saber o que fazer e que atitude tomar! Não sei que
caminho seguir, não sei para onde ir e ainda esqueci como me chamo!
— Mas você não esqueceu o que sente!
Ele a pegou desprevenida, fazendo com que baixasse a guarda. A menina abaixou a
cabeça, o que lhe permitiu se aproximar mais uma vez. Ele tocou em seu rosto, obrigando-a a
olhá-lo. — Esqueceu?
Ela baixou os olhos.
— Não. — respondeu, relutante. — E é por isso que eu não queria que tivesse vindo.
— Se eu pedisse para confiar em mim, você confiaria?
A garota levantou o olhar, uma dúvida explícita em sua face.
— Eu sei que errei com você várias e várias vezes. — ele explicou, os olhos escuros fixos
nos dela. — Sei que a deixei esperando quando deveria estar lá, que não estava lúcido o
suficiente para perceber a sua presença, que não corri no momento certo e que relutei contra
essa nossa estranha relação, mas... Mas, se eu estou aqui, é para pagar por todos os meus
erros, trazê-la de volta e ter a chance de conhecer quem você é na vida real. — o rapaz largou
o rosto dela, pegando a sua mão. — Me dê essa chance, por favor. Confie em mim.
Ela sentiu o corpo esmorecer, algumas lágrimas acumuladas em seus olhos. Virou-se
mais uma vez para ele, encostando as costas em seu corpo, voltando a cabeça para o seu
peito.
— Promete sair vivo? — perguntou, lutando contra a água que corria por seu rosto.
Ele levou a mão ao seu abdome, deixando-a descer para a sua cintura, puxando algo
feito de aço, bem trabalhado.
— Faça o que deve ser feito. — sussurrou em seus ouvidos a mesma frase que,
instantes atrás, a Lady lhe dissera e do mesmo modo que ela fez, obrigando a menina a
segurar a espada. — Me enfrente, me vença e me mate.
24.
Ela o olhou, receosa, amedrontada com a espada que estava em suas mãos. Tremia
incontrolavelmente, nunca empunhara uma daquelas. E não se sentia segura.

— Vamos lá, querida, use isto.

A jovem voltou o olhar para trás, a mulher loura encarando-a severamente.

— Mãe... — murmurou.
Ele escutou seu sussurro e visualizou a bonita mulher.

Os mortos nunca vêm ao Yume e nunca virão.

É claro! Phobeto a pegara em sua fraqueza, utilizava a imagem da mãe morta para fazer a
menina ceder facilmente. Um gosto amargo se formou em sua boca.

— Espere! — tentou gritar, sentindo náuseas. — Essa... Isso... Não é a sua mãe! Aos
poucos, ele percebeu que a imagem da bonita mulher se desfazia, dando vazão à outra figura,
dessa vez, asquerosa. Tudo que via agora era apenas uma criatura gosmenta e acinzentada.
Não existiam olhos, apenas pele e uma boca de enormes proporções, lotada de presas afiadas.
O corpo assumia silhuetas de mulher, mas nada ali era humano. Um espectro.

A menina virou para ele, uma aparência febril em sua face. E, pela primeira vez, o rapaz
prestou atenção em seus olhos bicolores.

Um deles estava amarelado.

— Como ela não é a minha mãe? — a garota começou a arfar. Seu corpo tremia e uma
angustia aterrorizante estava expressa em seus olhos — Você não consegue ver? Olhe bem!
— Eu já olhei e tudo que existe ali apenas um monstro cinzento.

A menina deu um passo para trás, uma fisionomia de repulsa surgia em seu rosto. Franziu o
cenho.
— Como não consegue ver? É a minha mãe!

— Ataque-o, menina! — gritou o ser disforme, com uma voz gutural. — Ele que impede
nosso reencontro, ele nos impede de ficarmos juntas!

Sem perceber que a criatura macabra não era, de fato, a sua mãe, a menina cedia às ordens
que lhe eram dadas. O monstro servia como uma eficaz lavagem cerebral, interferindo com
sucesso no discernimento da jovem, deixando-a cada vez mais perturbada com os polos
divergentes que lhe eram explicitados. De um lado, o rapaz a quem amava tentava fazer-lhe
perceber algo que lhe era impossível notar. De outro, a mãe recém-morta parecia ter
retornado para levar consigo a filha amada e, portanto, o intruso que tentava impedir seus
intuitos precisava ser eliminado.

Apreensivo, encarava ora o monstro, ora a menina. Com desespero, viu-a sofrer com a dor de
cabeça que a influência da criatura lhe ocasionava e que se intensificava. Ela levou as mãos
às têmporas e, formando conchas, gritou. O desespero dele aumentou. Precisava fazer algo e
cessar a maldita magia que se exercia sobre a jovem antes que a situação ficasse ainda mais
crítica.
Lembrou-se da adaga que a Lady misteriosa depositara em sua roupa. Tateou-se à procura do
artefato. Sentindo o objeto por debaixo do seu sobretudo, preso ao cós da calça, retirou-o,
ignorando a maneira como a arma fora depositada ali. Encarou o punhal por alguns
segundos, analisando com rapidez o cabo envolto por tiras de couro negras e a lâmina
prateada dupla. Depois, voltou o olhar para a cena. A menina continuava a gritar de dor
enquanto o monstro prosseguia encantando-a com suas palavras amargas. Respirou fundo,
procurando coragem e fazendo uma pequena prece. Quando se sentiu pronto, mirou no ser e
lançou a adaga. Foram segundos longos e agonizantes em que ele, ansioso, viu a arma cortar
o ar e ser parada pela mão esquerda da criatura, em um reflexo inacreditável. A adaga ainda
pairou alguns instantes no nada, sua lâmina mirando a besta e impedida de acertá-la.
Momentos depois, seu cabo curto e preto caiu no chão, como se obedecesse a uma ordem
silenciosa. O rapaz bufou, cerrando os dentes. Atacar de surpresa não surtiria efeito – não se
o alvo em questão tivesse alguma forma de poder psíquico. Sem pensar em nada mais eficaz
e induzido pelo desespero e pela raiva, lançou-se contra o ser gosmento, em um ataque
corporal.
Imobilizado, o espectro não conseguiu fazer nada contra a força exercida pelo seu desafiante
e os dois voaram a uma distância grande, seus corpos passando rapidamente por entre as
árvores do bosque. Quando perderam a força, chocaram-se contra um tronco largo. A criatura
urrou de dor quando sua frágil
constituição se encontrou bruscamente com a madeira. O rapaz conseguiu escutar alguns dos
ossos do monstro quebrando-se por debaixo do seu corpo. Zonzo e machucado, ele se pôs de
pé, deixando a besta no chão, gemendo e incapaz de se levantar, enquanto um líquido negro e
viscoso saía de feridas abertas em seu tórax, braços e cabeça.
Fatigado, ele procurou a adaga com o olhar, preparando-se para aplicar o golpe
misericordioso no espectro. O brilho da lâmina a alguns metros atraiu a sua visão embaçada.
Cambaleando, o rapaz dirigiu-se até a arma, esforçando-se para caminhar o mais rápido o
possível. Por mais enfraquecida que a criatura estivesse, ele ainda estava temeroso. Sabia que
a qualquer momento poderia ocorrer uma revanche – não dava para cantar vitória sobre um
ser como aquele. Ele agarrou o punhal e girou nos calcanhares. De fato, o monstro estava de
pé – machucado e enfurecido.
Movimentou-se lateralmente, seu coração batendo forte e sua mão tremendo. Sabia que teria
de matar o espectro – ou então, seria morto pelo mesmo. Olhou rapidamente para a menina e
viu que ela ainda estava no mesmo local, com as mãos na cabeça. Voltou-se para o monstro
que, ao rugir de ódio, correu em sua direção. Respirando fundo, o jovem segurou o punhal
com força, convergindo seus pensamentos para a arma.
Por debaixo dos seus dedos, a adaga começou brilhar. Surpreso, encarou o objeto e espantou-
se
ao perceber que a então pequena lâmina crescia, atingindo cerca de um metro e meio de
comprimento. O cabo formigava sua mão, conforme suas dimensões aumentavam. A dor que
a transformação lhe causava era, porém, menor do que a surpresa de ver uma espada no lugar
do punhal que carregava há instantes. Contudo, não se permitiu contemplar a mudança
quando essa findou. Levantando a arma, bradou, inferindo um golpe em seu oponente.
Na primeira investida, a criatura desviou e, em seu estado de fúria, atingiu o jovem com suas
garras, arranhando-lhe o braço direito. O rapaz reprimiu um grito de dor, concentrando-se em
tentar acertar o espectro. O peso da arma o fazia movimentar-se de forma desajeitada, mas,
ainda assim, ele se esforçava. A ambição de matar a besta e libertar a sua amada sobrepujava
sua pouca habilidade em manusear a espada. Investiu mais algumas vezes, obtendo pouco
êxito. Conseguiu de maneira árdua ocasionar dois ou três cortes profundos no corpo do
adversário, porém saiu-se melhor em adquirir arranhões em seus braços e coxas. A roupa
formal que trajava desfazia-se perante as garras do monstro, virando farrapos.
Em um golpe surpresa, o rapaz foi lançado ao chão, soltando a espada no momento da queda.
Três arranhões profundos faziam sangue verter do seu tórax. Ele cerrou os dentes, contendo a
dor. A criatura preparava-se para lançar-se sobre seu corpo, pronta para destroçá-lo. Deixou
que o ser corresse em sua
direção, enquanto sua cabeça maquinava a melhor alternativa para matar o espectro. Quando
percebeu que o monstro saltara, virou-se para o lado, estendendo o braço para pegar a espada
abandonada no chão. Em segundos que transcorriam de forma lenta, a besta caiu e o jovem
aproveitou para recuperar sua arma. Movendo-se rapidamente, postou-se de pé e,
empunhando a espada, fincou-a no peito do oponente. O espectro soltou um urro agudo
quando a ferida recém-aberta expeliu jatos do líquido negro e viscoso. Demorou pouco para
que suas forças acabassem e os gritos estridentes de dor cessassem por total. Ao perceber a
morte iminente do monstro, o jovem retirou a espada do peito do seu então oponente. A
adrenalina que perpassava o seu corpo não o permitiu desfrutar do alívio por ver a criatura
morta. Cansado e machucado, permanecia em estado de alerta e apreensivo. Arrastando a
lâmina da arma pelo chão, retornou ao local onde deixara a menina. Esperava que o
padecimento da besta a fizesse recuperar a sanidade. No entanto, percebeu uma situação
completamente divergente à que ansiava. A jovenzinha, estática, encarava a cena com um
assombro descomunal. Dos seus olhos arregalados, lágrimas jorravam incessantemente.

— Você... Matou... A minha... Mãe. — ela murmurou, enquanto soluços doloridos


escapavam dos seus lábios.

Ele suspirou, cerrando os olhos. Fora um esforço completamente em vão.

— Ela não era a sua mãe. — informou, duro e frio.

— Você matou a minha mãe! — a menina tornou a gritar, ensandecida e colérica.


O olho amarelo brilhava, exibindo toda a fúria que ela sentia, toda a revolta por ter perdido a
genitora mais uma vez. O ódio que a corroía prolongava os seus violentos ataques de raiva.
Os seus gritos doloridos e revoltados ressoavam em ecos por entre as árvores e lamentos
sofridos surgiram quando, rouca, já não mais conseguia gritar. Ela caiu de joelhos no chão,
esgotada. Seus longos cabelos cobriram-lhe a face molhada e, por longos instantes, a menina
permaneceu ali, gemendo baixinho e tremendo, a espada que antes segurava largada ao seu
lado.

Penalizado, intentou se aproximar. Talvez, agora, ela recobrasse a consciência e a situação


voltasse ao controle. Contudo, ao fazê-lo, não mais escutou os soluços que, até então, a
menina emitia. Um risinho sarcástico rompia dos seus lábios. Ela levantou a face, encarando-
o.

— Tem razão, mamãe. É realmente necessário atacá-lo.


O olho amarelo agora estava vermelho.

O rapaz prendeu a respiração. Era agora.

Durou milésimos de segundos. Por muito pouco, ele não escapava do primeiro golpe que ela
lhe infligiu. Não sabia exatamente como se defender das investidas da menina, que se
mostrava uma habilidosa espadachim. Por mais que ele ainda estivesse com a posse da sua
própria espada, temia que pudesse machucá-la, o que o deixava receoso em investir contra a
sua nova adversária. Ele precisaria cansá-la para poder pôr seu plano em prática, mas fugir
daquela fisionomia sarcástica e maldosa parecia difícil. Não restava nenhum resquício da
expressão de fraqueza e fragilidade de antes.

— Por que não me ataca, seu bastardo de merda? — o jeito de falar dela também se
modificara. Ela empunhava a espada, mas não atacava. Ria, divertindo-se com suas próprias
ofensas. — Hein? Você não quer me matar? A menina desferiu outro golpe, atingindo o
braço dele de raspão.

— Não acho atraentes mulheres violentas e agressivas. — ele falou em resposta. Tentava
manter-se calmo e inalterável, ainda segurando o cabo da espada. O novo ferimento doía,
porém com menos intensidade que os outros espalhados pelo seu corpo.

Ela infligiu outro golpe. Ele se esquivou, fugindo da espadada. Precisava reagir o quanto
antes, embora não quisesse machucá-la. Na segunda vez em que foi atacado, ergueu a espada
que ainda segurava e defendeu-se da investida. O encontro entre as lâminas gerou pequenas
fagulhas. A menina, ligeiramente surpresa, acabou baixando a sua guarda, momento esse em
que o jovem aproveitou para empurrá-la e desarmá-la. Encarou-a no chão e permitiu-se sorrir
pela primeira vez:
— Se quer me matar, por que não o faz? — atiçou.

As poucas palavras que disse foram suficientes para enfurecê-la. Ela se levantou e,
empunhando novamente a espada, correu até ele, mirando o seu coração. Contudo, foi
enganada pela destreza do rapaz que, imediatamente, esquivou-se, indo para detrás da
menina e colocando a sua arma no pescoço dela, pegando-a desprevenida.

— Não tão fácil assim. — ele disse, a sua espada a milímetros da garganta da garota. — Não
vou deixar me vencer.

— Então você veio?

Zorah se aproximou com um sorriso, afastando os galhos que impediam a sua passagem.
Ficou ao lado do irmão.
— Sabe que eu não perco nenhuma dessas lutinhas que você promove. — disse, fria.
— Não são lutinhas. Você sabe que essa menina tem todo o potencial para me substituir. — a
voz de Phobeto saía tranquila, certa da vitória.
— Você me envergonha, irmãozinho. A menina vive de alucinações porque tem o
psicológico afetado pela vida, como pode dizer que ela tem potencial? Ingênuo e tolo como
sempre! Você não iria suportar um dia no mundo dos humanos e, ainda por cima, vai perder
os direitos que tem quebrando a ordem milenar.
Ele riu.

— Você está assustada, Zorah querida. Se não estivesse, não teria corrido atrás desse aliado.
Pelo que eu me lembro, o último deles que veio precisou me procurar para poder entrar no
campo de batalha. Nunca, Zorah, você participou efetivamente das minhas lutas, apenas
quando me jogou a maldição!
Os olhos de Zorah estavam cheios de ódio.

— Irá se dar muito mal, Phobeto. — avisou, colérica. — Essa menina em seu lugar irá
estragar toda a nossa criação de milênios, qualquer humano estragaria!

— Estou cheio de trabalhar para esses seres! — a voz de Phobeto se alterou. — E a única
maneira que tenho para me livrar dessa tarefa é me tornando um deles! Não é assim, a sua
maldição?

Zorah bufou. Era difícil lidar com o irmão mais novo – sentia-se, no fundo, culpada pelo
sofrimento de Phobeto.
O Rei das Ilusões Negras passou a mão pelos cabelos, respirando fundo para recuperar a
calma.

— Mas, querida irmãzinha, diga-me: — ele tentou rir — como trouxe esse aliado aqui?
Lembro que faz quase dois séculos que um aliado veio para a luta.

— Amor, Phobeto. Amor.

O irmão riu, irônico.

— Amor? Poupe-me! Isto é impossível!

— Era o que eu pensava até conhecer este rapaz. — o rosto de Zorah estava sério. — Por que
acha que nenhuma das suas lutas deu certo? Porque não havia amor nelas! Isso é a única
coisa que liga um aliado.
— Não foi assim com o último.

— Porque aquele não era um amor verdadeiro.

A expressão divertida de Phobeto se esvaneceu.


— E você realmente acha que seu soldadinho sairá vencedor? — Eu não sei.

— Então... — tentar conversar talvez a deixasse vulnerável. — O que te prende a esse lugar?

Não era mais a menina que lhe surgia em sonhos, aquela por quem guardava um sentimento
em segredo.
— Poder, talvez. A capacidade de não ser considerada louca, de ser vista como alguém
normal, superior até.

— Então é isso que veio fazer aqui? — ele prosseguiu, o cheiro dos cabelos dela inebriando-
o. — Reger um mundo de terror? Condenar a sua alma para governar pesadelos e acabar
esquecendo quem realmente você era? É isso?
— Não há chances para mim. — havia dor em sua voz.

— Você pensou em seus amigos ao tomar esta decisão? Se lembra do seu primo? Sinto
informá- la, mas todo dia é um sofrimento para ele porque vê-la confinada naquela cama lhe
é torturante. E acho que você tem uma melhor amiga também, não estou certo? Ela chora
todos os dias, leva flores para você. E os seus pais? Pense neles também! Acha mesmo que
eles ficariam contentes se vissem você largar a vida pela qual eles tanto lutaram, apenas para
viver em fantasias? Acha que a sua mãe ficaria feliz se vendo trocada por aquele ser terrível?
— Não me fale deles! — a dor era substituída pelo ódio.

— Não querer mencioná-los é um sinal de que reconhece a sua culpa! E eu, querida, como
você acha que fico nessa arapuca que armou? Acha que não sinto sua falta? Acha que não
torço para vê-la em sonho? Ah, me desculpe, me esqueci de dizer: eu te encontrei na
realidade e não posso fazê-la acordar porque você não quer!
Ela fechou os olhos, encostando a cabeça em seu peito. Arfava.

— E, se lhe serve de consolo, sei muito bem como a realidade é dura, difícil, mas é a vida. Se
viver fosse fácil, não teria graça. Parou para pensar como seria se tudo fosse tal como nas
ilusões que você tem, que graça teria quebrar a cara para sorrir depois? O que se pode fazer é
apenas enfrentar, e não se refugiar em mundos paralelos. É ser forte, e não ser fraca! Você
está sucumbindo, está largando quem ama, está me largando para viver esse seu sonho
frívolo!

A raiva que a menina sentia a fez escapar dele, não sem antes ocasionar um arranhão em seu
rosto. Sua respiração saía acelerada, seus olhos estavam mais perigosos – porém, a cor do
outro orbe já ficava amarelada.

— Nada mal. — ele falou, enxugando o sangue que escorreu por aquele arranhão.

Ela voltou a atacá-lo, e foi a primeira vez que o rapaz utilizava realmente a sua destreza. Até
ali,
lutara como um completo amador. Agora, porém, movia-se de maneira diferente, como se já
fosse um espadachim experiente, hábil como um profissional, tal qual a garota, que também
combatia com agilidade. Aquilo invalidava os seus planos – não sabia como colocá-los em
prática, principalmente com os olhos dela alcançando a tonalidade vermelha. Precisava ser
rápido, ágil, impedir a completa transformação.
Lembrou-se, contudo, que isso só ocorreria quando ele padecesse em campo. Afinal, era ele
quem a prendia no mundo real, era ele o único elo entre a menina e a vida que possuía antes
do Yume. E nada ocorreria enquanto não lhe desse uma brecha, enquanto não entrasse em
seu jogo e a fizesse acreditar na vitória.

Chegou à conclusão no mesmo instante em que sentiu a dor. Alguma coisa acontecia com
seu corpo no mundo Real.

Soltando a espada, caiu de joelhos, contorcendo-se por causa da intensa sensação de que algo
o cortava. Momento inapropriado, tinha consciência. Contudo, não havia meios de fugir.
Pôde ver, pelas sombras formadas no chão, quando a garota levantou a espada, preparando-se
para desferir seu último e certeiro golpe – a chance que tinha para conseguir sua passagem.

Phobeto olhava a cena, admirado.

— Eu não disse, irmãzinha?! Eu não disse?! — exclamava, empolgado. — Ela era a minha
rainha nesse jogo! Ela era meu achado perfeito! Ela quem irá me substituir! Ela!
— Não cante vitória, Phobeto. — a voz de Zorah, porém, não tinha a mesma empolgação. —
Acho que você não gostaria de ver esta cena.

A expressão de felicidade de Phobeto se desfez, duvidosa. E, quando ele enxergou o


acontecido, sentiu sua animação desaparecer.

Por mais forte que a garota fosse, a vitória de um Aliado tinha mais poder.
25.
Parar a espada com as mãos foi a única atitude que ele conseguiu tomar. Sangue jorrava de
seus
dedos feridos, ocasionando mais dores em seu corpo já flagelado pela batalha anterior. A
menina, por sua vez, ainda impunha força na arma, mas estava atordoada o suficiente para
tentar atacá-lo de outra forma – não esperava aquela reação. Encarava-o com dúvida,
tentando compreender que tipo de defesa era aquela. A surpresa, porém, baixou a sua guarda.
O rapaz, aproveitando o momento, segurou a lâmina e jogou-a ao longe. Desarmada e
assustada, a garota estava vulnerável, pronta para ser vencida a qualquer instante.

E com aquelas mãos feridas, banhadas por vermelho vivo, ele segurou algo que pendia da
sua garganta, invisível até ali. Tão logo seus dedos o tocaram, uma extensa corrente começou
a surgir lentamente, como se por encanto. Ainda assustada, a menina fitou a cadeia de ferro
que aparecia sobre o chão e que, de forma impressionante, subia por seu corpo, findando o
trajeto em sua garganta. Atônita, ela levou a mão à amarra que a prendia ao jovem
ensanguentado, ao passo que seus olhos o encaravam, tentando compreender o que acontecia.

— Você... Não vai... A lugar nenhum. — ele decretou.

O rapaz a puxou pela corrente, fazendo-a cair em cima de si. Ela ainda o encarava atordoada.
Os seus olhos, porém, aos poucos voltavam à tonalidade verde-ocre costumeira. A
transformação fora interrompida.

— O... Quê...? — era visível que ela não conseguia compreender a sucessão de fatos até ali.
Inúmeras perguntas surgiam em seus orbes claros, porém nenhuma delas saiu do plano
mental.
Ele, por sua vez, conseguiu ler cada um daqueles questionamentos.

— Eu a prendi. — explicou, fazendo força para conseguir falar. Sentia fortes dores – não
havia uma parte do seu corpo que não estivesse castigada por ferimentos. — Eu a prendi a
mim para que não pudesse ir ao Yume e para que não cedesse à magia de Phobeto. Mas agi
tarde. Era para ter feito isso antes, e falhei. Só pude fazer algo quando a encontrei no
hospital. — ele suspirou. — Eu sinto muito.
Algumas lágrimas correram pelo rosto dela, agora com a mesma expressão doce que
lhe era costumeira – o perigo havia passado. O jovem levou os dedos à face da menina,
limpando-lhe o pranto – e tingindo suas maçãs com o sangue.
— O que acontecerá conosco? — ela perguntou, acariciando o rosto dele.

O rapaz pegou a mão dela, levando-a aos lábios e depositando-lhe beijos.

— Há um preço que temos de pagar por ter profanado o solo proibido. A entrada de humanos
no Yume é algo que merece punição. — ele disse. Ergueu-se um pouco e depositou um beijo
na testa da
menina. — Mas, não importa o que aconteça, estamos ligados um ao outro. Você consegue
compreender?
Ela o olhou, duvidosa.
— E o quê...?
— Pagarão uma pena equivalente ao fato dos seus olhos terem mudado a tonalidade.

Eles voltaram o olhar para os irmãos que se aproximaram. Zorah estava séria, com os braços
cruzados sobre o peito, tal qual uma juíza severa que observava os réus. Phobeto, por sua
vez, sustentava uma expressão de profundo amargor. Seus lábios contraíam-se em uma linha
rígida e seus olhos exibiam uma desilusão severa.
— E tenham certeza: — completou a irmã — não será algo leve.

A garota sentiu a respiração cessar. Eles sentaram-se, de forma que pudessem encarar os
irmãos e uma maneira melhor. A jovenzinha agarrou-se ao rapaz, trêmula. Temia a sua
punição.

— Vocês se esquecerão um do outro. — decretou Zorah, inexpressiva. Em desespero, a


menina agarrou-se ainda mais ao seu amado, afundando o rosto e seu peito, e os olhos
inundados por lágrimas.

— Não! — protestou, sôfrega. — Eu... Eu preciso encontrá-lo no Real! Fiz uma promessa!

A moça negra tinha o rosto severo, frio, ao contrário do irmão, cuja face continuava a
exprimir derrota e decepção.

— Não há o que fazer. — Zorah falou, irredutível. — É o preço a se pagar. Vocês serão
banidos do Yume e, consequentemente, se esquecerão de tudo o que viram aqui, de tudo que
vivenciaram e de todas as experiências que trocaram. Não há volta.
A menina olhou o rapaz em desespero crônico. Ele, todavia, mantinha-se sereno, embora o
sofrimento estivesse expresso em seus olhos.

— Qual promessa você fez? — ele perguntou, acariciando a face da mocinha mais uma vez.

— Cuidar de você, prezar e estimar. Preciso cumprir.

— Para quem prometeu?

— Para o homem de branco do hospital que partiu.

Ele pegou a face dela com ambas as mãos. Encarando-a, disse, com a voz firme e
determinada:

— Então você cumprirá! Você confiou em mim, então peço que continue a fazê-lo! Eu irei
atrás de você no Real e não irá me escapar outra vez.

A menina o encarou com vivacidade, acreditando nas palavras que lhes foram ditas. Beijou
as mãos sangrentas – era a confirmação de que continuaria a depositar a sua confiança nele.
E seguida, levantou-se, dirigindo-se a Phobeto.

— O que acontecerá a você? — perguntou, penalizada. Não conseguia odiá-lo, apesar de


todos os horrores que ele a fez sofrer.

Phobeto baixou os olhos.

— Eu não sei. — respondeu, deprimido.

— Não irá acontecer nada. — Zorah se voltou para o irmão. — Eu o declaro definitivamente
preso ao Yume. Cansei de lhe dar chances para te mostrar o quão ridículo era esse seu desejo,
Phobeto. Não há mais maldição, nem tampouco escapatória. Você irá assumir o seu cargo
sem chances de renegá- lo. Acabou a brincadeira, irmãozinho.

O Príncipe fechou os olhos. Virando-se para os presentes, avisou com a voz trêmula – voz de
quem chorava:
— Vocês não têm muito tempo. Precisam ir.
A garota depositou a mão no ombro do príncipe. Quando ele virou-se para ela, o rosto
inundado por lágrimas, a menina o abraçou.
— O mundo real é infeliz. — disse, envolvendo-o ternamente. — Por isso, continue a
trabalhar aqui, trazendo a felicidade que os humanos não possuem. Reconhecendo ou não,
eles sempre lhe serão gratos.

Phobeto a olhou de relance. Afastando-a com cuidado, apenas lhe tocou o braço.

— Vá. — disse, voltando-se de costas e caminhando para a escuridão.

A menina retornou ao seu lugar. Tomando a mão do amado, encarou Zorah.

— Boa sorte. — desejou a moça, abrindo um sorriso tenro. — Eu cuido dele. É sobre o meu
irmão caçula que falamos.

Tanto a garota quanto o rapaz assentiram. Quando terminaram, ela o enlaçou com os braços,
sentindo o peito explodir. Não havia nada que os irmãos pudessem fazer. Tudo sumiu. Agora
só existiam ele e ela, unidos em um doce, longo e caloroso abraço. Somente agora tudo
estava bem.
26.
Ao abrir os olhos, sentiu a forte luz, ficando parcialmente cega por sua causa. Rapidamente,
cerrou as pálpebras, a fim de tentar conter a luminosidade que prejudicava a sua visão. Após
se acostumar, resolveu ficar de olhos abertos novamente.
As imagens estavam embaçadas, como se houvesse ficado muito tempo em estado de
dormência. Sentia o corpo fraco, um estranho som de bip, bip, bip era contínuo e
insuportável, assim como o cheiro que entrava por suas narinas, invadidas por algum objeto
desconhecido. Piscou os olhos, tentando recuperar a visão perfeita. Um teto branco acima do
seu corpo. Voltando o olhar para o lado, conseguiu enxergar a janela aberta, a forte luz do sol
entrando no quarto. Mais abaixo, um homem dormia, tranquilo, apoiado nos braços cruzados
em sua cama, os cabelos muito escuros e bagunçados. Esforçando-se ao máximo, tentou
levar a mão até ele. Queria tocá-lo, descobrir o motivo pelo qual estava ali.

A pouca força que conseguiu reunir lhe permitiu somente encostar os dedos no antebraço do
homem, não pudera ir além. Contudo, foi o suficiente para ele despertar.
— Hã...? — ele perguntou, sonolento.

Ela arfava rapidamente, o esforço havia sido muito grande. O homem, todavia, pareceu não
se importar.

— Nadia?

Ela estava se mexendo!

— Nadia!

Um sorriso brotou em seus lábios e, afoito, ele correu atrás de alguma enfermeira ou médico
que pudesse comprovar que aquilo não era ilusão.

O barulho ininterrupto do celular tocando o fez abrir os olhos, sonolento, uma dor no
estômago. Enjoado, precisou se esforçar muito para conseguir ir ao banheiro. Chegando lá,
despejou no sanitário tudo que seu estômago ingerira na noite anterior. Apenas quando se
sentiu mais aliviado, voltou ao quarto.
A luz ainda estava ligada. Ele não havia desligado antes de dormir?
O celular voltou a tocar. Ainda sentindo as fortes náuseas, atendeu.
— Alô...? — cumprimentou, sonolento e enjoado.

— Adrien, sua bicha maldita que não atende a porra do celular! Onde você está, filho da
puta?
Era uma voz muito esganiçada e irritante.
— Bom dia para você também, Arashi. — falou, apenas.

— Bom dia o cacete! Você está meia hora atrasado para a coletiva de bandas! Sabe o que
isso implica?
E ele tinha compromissos naquele dia?

— Estou me sentindo mal, e você? Acho que bebi ontem à noite. Está tudo rodando e sinto
enjoos. Dormi no chão e esqueci a luz ligada.

— A culpa é sua se você é um viciado em vinho! Sem delongas, vá agora para o banheiro,
tome remédio e nem pense muito! Esteja aqui em cinco minutos!

Agora era o som de ligação finalizada. Olhando para o celular, Adrien se perguntou onde
estava sua pontualidade. Respirou fundo. Precisava correr.
Epílogo
OUTUBRO, 2008

— E uma homenagem à minha amiga Nadia, por estar fazendo um ano da chegada dela da
Alemanha!

Os olhares dos outros convidados se voltaram para a menina de blusa branca, coletinho azul
escuro, calça de brim preta, sapatilhas vermelhas, cabelo preso em um coque, a pequena
franja jogada para o lado e os lábios pintados de vermelho claro. Tímida, Nadia apenas
estendeu a latinha de Coca que bebia, não sem antes gritar:

— É só em novembro, Arashi!

— Daqui a um mês não iremos estar em uma festa como essa! Vamos comemorar hoje e
agora!

Palmas vieram dos outros presentes. Um dos guitarristas da Reticências começou, no violão,
a introdução de Garota de Berlim, sendo seguido pelos companheiros. Entretanto, Nadia não
conseguira manter o olhar fixo em Arashi quando Adrien, o guitarrista-solo, olhava-a
atentamente, um sorriso convidativo em seus lábios– e que lábios. Nadia não conseguia
explicar, mas se sentia totalmente atraída pelo jovem, como se o conhecesse há muito
tempo– embora quase nunca tivessem trocado palavras, apenas olhares carregados de
significados.

A primeira coisa que fez quando deram o intervalo na apresentação acústica foi procurar a
bonitinha amiga de Alice e Arashi – a mesma que mantivera com o guitarrista da Reticências
uma amizade-colorida que não vingou. A festa organizada em comemoração ao aniversário
do primogênito da família Hikari estava lotada de amigos, conhecidos de bandas e parentes
brasileiros. Encontrá-la seria um pouco complicado.

Esbarrou em Dona Fumiko enquanto caminhava. Ela lhe sorriu e perguntou se não havia sido
uma boca ideia reunir os colegas do filho no restaurante da família. Adrien concordou e
procurou saber onde estavam Alice e a amiga. Após receber a resposta, deu um sorriso e
depositou um beijo na fronte da senhora, saindo à procura das duas meninas.
Em qualquer lugar, eu vou te encontrar.

Encontrou ambas sentadas à mesa, conversando distraidamente. Reconheceu Alice pelas


roupas pomposas, cheias de babados e laços– dessa vez, porém, a Hikari trajava vestes
claras, que se constituíam em uma jardineira azul bebê e uma blusa branca de mangas fofas.
Aproximou-se, entusiasmado.

— E as ladies desistiram mesmo do Guitar Hero?

A alemã se virou para poder vê-lo– Adrien estava atrás da sua cadeira, o que era a maior
aproximação entre ambos. Ele conseguiu perceber a mudança de tonalidade em suas faces.
— Meus dedos doem.—Alice protestou.— A Nadia aí ainda conseguiu jogar mais algumas
partidas, mas eu entreguei meus pontos.

— Está a fim de jogar?

Quantas vezes eles se falaram? Pouquíssimas. Adrien não lembrava o tom grave e recheado
de sotaque que a voz de Nadia tinha– e que era extremamente agradável aos seus ouvidos. —
Não, obrigado, querida.— disse, pousando a mão sobre o ombro da alemã.— Estou fora de
forma, não jogo há muito tempo e não pretendo perder de lavada.

Eles ainda ficaram se encarando por um tempo, até Alice perceber.


— Pois é!— exclamou a lolita, batendo na mesa e pondo-se de pé.— Preciso urgentemente
de um daqueles cupcakes que eu e a mãe fizemos, então acho que vou deixá-los a sós por
enquanto.— ela deu uma piscada de olho para Nadia, sendo prontamente percebida por
Adrien.— Volto já.

Desejara veementemente prender Alice com correntes na cadeira, embora sua vontade não
pudesse ser realizada. Quando Adrien se sentou no lugar deixado pela amiga, sentiu todos os
seus músculos se petrificarem.

— Nadia, não é? A“Garota de Berlim”.

Ela sorriu, tentando mudar o foco. Observar atentamente o rapaz vestido pela camiseta
laranja, de cabelos louros e presos, com a pulseira de cintos e os brincos na orelha, era
desconcertante.

— Até onde me consta, sim.— ela apoiou o rosto na mão.— E você é o Adrien, guitarrista da
Reticências.

— É uma classificação também.

Nadia depositara a latinha que bebia na mesa.

— E o que o trás até mim?— perguntou, tentando transparecer sensualidade, mesmo com a
insegurança que lhe corroía.

— O verde dos seus olhos, talvez.— ele a olhou, fixamente.

Adrien era charmoso e conseguia desconcertá-la de modo muito fácil. Nadia apenas abaixou
os olhos, mirando o canudinho com o qual brincava.

— E aí?— ele perguntou, puxando um assunto— Um ano que você chegou ao Brasil. Sente
saudades da Alemanha?

— Já senti mais.— em um ano, Nadia falava um português quase perfeito. Poderia passar-se
perfeitamente por brasileira, se seu sotaque não fosse tão evidente— Ainda falo com os meus
amigos de lá, nós trocamos e-mails. Pretendo ir a Berlim para visitar em breve, mas... Não
acredito que queira morar lá de novo.

— Já está acostumada com a vida brasileira, então?— Adrien arriscou.

— Também.— ela disse, sorrindo— Há pessoas aqui que não me fariam querer voltar para
lá. Ela gostaria de acrescentar que Adrien seria uma boa razão para ela querer ficar no Brasil,
mas preferiu permanecer quieta. Balançou a cabeça e sorriu, mudando de assunto:

— Posso fazer uma pergunta que há muito tempo queria fazer?

— E que já deveria ter feito...

Ela sorriu e passou a encarar os orbes escuros à sua frente.

— Arashi me disse que foi você quem fez aquela música Sonhos. Aquela que vocês tocaram
logo depois de Garota de Berlim... E, sei lá, eu a acho tão... Tão carregada de sentimentos e
tão sincera e profunda. E...— ela riu, nervosa.
— E eu queria saber para quem você a fez. Sei que isso pode parecer intromissão, mas é uma
curiosidade antiga! Então, se não quiser responder, eu entendo! Ele riu.

— Relaxe, isso não é intromissão nenhuma. Mas, sinceramente, não sei para quem ela foi
escrita. Não consigo lembrar, então prefiro acreditar que deve ter sido para alguém especial.
— ele sorriu malicioso.— Por quê? Você se identifica com a música?

Ela sorriu, despretensiosa.

— Acho que sim.


E Nadia sentiu as mãos dele sobre as suas. Havia seriedade nos olhos de Adrien. — Então ela
foi feita para você.

A história não vai acabar.


Notas
[1] Itadakimasu: é uma expressão japonesa utilizada antes das refeições, como uma forma de
agradecimento pela comida.
[2]– Blythes: boneca criada em 1972, pelo designer Allison Katzman, saiu de linha um ano
após o seu lançamento, voltando a ser comercializada em 1999. Atualmente, as blythes são
bonecas destinadas a colecionadores.

[3] - Cosplay: abreviação do termo costume play, refere-se à prática de caracterizar-se de


determinado personagem, seja de filme, jogos, animes ou mangás.

[4]– Decora: também conhecido por visual fruits, é um estilo da moda japonesa, que consiste
em usar cores exageradas e sobreposição de vários acessórios.
[5]– Lolita: estilo também japonês, teve suas primeiras manifestações no final dos anos
setenta. A moda Lolita consiste em parecer fofa, adorável, ostentando uma aparência pura e
infantil o suficiente. É um estilo com várias subdivisões.
[6]– Visual Kei: também conhecido por visual j-rock, é um movimento musical japonês,
nascido na década de oitenta. Nesse contexto, o visual kei é tratado como outra vertente da
moda nipônica, com uso de cores pesadas, maquiagens exageradas e sobreposições.
[7]– Tonkatsu: prato da culinária japonesa, consiste em uma costeleta de porco frita ou
empanada e fatiada, geralmente servida com repolho picado e/ou sopa de missô.
[8] Chan: diminuitivo para nomes. Geralmente usado para crianças ou para demonstrar afeto.
[9] Eliza Dolittle: personagem do musical My Fair Lady, de 1964, interpretado por Audrey
Hepburn. Eliza é uma mendiga vendedora de flores que, em uma noite, conhece um
renomado professor de fonética. Esse, intrigado com o modo de falar brusco da moça,
resolve apostar com um amigo que transformaria a então jovem de rua em uma aclamada
dama, no espaço de seis meses.
[10] Groupies: fãs que se relacionam com os ídolos de suas bandas favoritas.
[11] Fanfic: abreviação do termo fan fiction. Trata-se de histórias paralelas criadas por fãs e
que não estão no roteiro original da obra em questão.
Agradecimentos
À minha querida mãe, que sempre me deu o apoio necessário e depositou a confiança em
mim. À Isolda Colaço, por ter me dado o impulso necessário para tirar Yume da gaveta. Ao
meu querido Diego Pereira, por sempre permanecer ao meu lado.

Aos amigos Marina Monteiro, Lucyellen Lima, Fabrízia Sampaio, Alberto Mitchu, Rustênio
Dore, Giulian de Almeida, Otania Freire, Ticiana Dias, Thamiris de Oliveira, Rodrigo
Mesquita, Flávio Costa, Amanda Sombra, Ren Deville, Renato Alves, Letícia Braz, Lorena
Vasconcelos, Bruna Vasconcelos, Manu Campos, Marina Rossi, Karol Frota, Karol
Rodrigues, Amanda Girão, Bruno Souza, Artur Paiva, Patrícia Camargo e Sarah Fortes:
obrigada por todo o apoio incondicional que vocês me deram e pelo incentivo.

E a todos que leram! Meu muito obrigada, de coração!

Kamile Girão
Playlist
Listei aqui algumas músicas que me serviram de inspiração na escrita deste livro. Espero que
vocês apreciem tanto quanto eu.

1. Cum on Feel the Noise– Quiet Riot

2. Janta– Malu Magalhães e Marcelo Camelo

3. I’ll be There for You– Bon Jovi

4. Bad Seamstress Blues - Fallin' Apart At The Seams– Cinderella

5. Menino Bonito– Rita Lee

6. Heartbreak Station– Cinderella

7. Coming Home– Cinderella

8. Tell Me– Grand Slam

9. You are All That I Need– Twisted Sister

10. Garota de Berlim– Tokyo

11. I Remember You– Skid Row

12. I Know Where You Sleep– Emilie Autumn

13. You Shook me All Night Long AC/DC

14. Back in Black– AC/DC

15. Highway to Hell– AC/DC

16. Why– Avril Lavigne

17. Elephant Gun– Beirut

18. Livin’ on a Prayer– Bon Jovi


19. Nothing to Lose– Bret Michaels e Miley Cirus

20. AnthemsFor A Seventeen Year-Old Girl–Broken Social Scene

21. Ordinary World– Duran Duran

22. La Folia– Corelli

23. Girls Just Wanna Have a Fun– Cyndi Lauper

24. Black Dog– Led Zeppelin

25. A Minha Menina– Os Mutantes

26. Every Rose has a Torn– Poison

27. Talk Dirty to Me– Poison

28. Silent Lucidity– Queensriche

29. Wind of Change– Scorpions

30. In a Darkened Room– Skid Row

31. Love Song– Tesla

32. We’re not Gonna Take It–Twisted Sister

33. Kurenai–X Japan

34. Ready to Love - Yui


Contato
Para entrar em contato comigo, acesse o meu blog ( http://www.kamilegirao.com) ou me
mande um email: [email protected]

Desde já, muito obrigada!

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