Copyright © Gabrieli C.
Buhrer
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98.
Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia e comprovada da autora, poderá ser
reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos,
fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
Leitura crítica: Aline Tavares
Revisão: GB design editorial, Aline Tavares
Diagramação: C Oliveira
Mapa: Hellen.artee
Ilustração personagens: Moon Draw_s
Capa: Artes Medusa
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro,
SP, Brasil)
Índices para catálogo sistemático:
1.Ficção: Literatura brasileira B869.3
Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-1/3129
Prólogo
PARTE I: SOU PRISIONEIRA DAS MINHAS PRÓPRIAS PALAVRAS
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
PARTE II: ESTOU PRESA COM ELE
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
PARTE III: ALGO ME CHAMA
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
PARTE IV: EU SOU A RAINHA
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Epílogo
Agradecimentos
Para minha mãe que sempre acreditou que eu conseguiria e para meu
pai que me ajudou a conseguir o que ela acreditava.
A alvorada no céu indicava que em poucos instantes o sol acordaria.
Muitos moradores se alarmavam para que, quando o primeiro raio de
sol aparecesse no horizonte eles pudessem começar suas atividades no
pacato reino de Helinor, no qual a única preocupação era manter a paz e a
harmonia entre as ruas estreitas.
A claridade começa a bater nas janelas de vidros tão polidas quanto
espelhos. As portas se abrem e as pessoas começam a movimentar a rua... é
definitivamente um reino que desperta cedo.
As madames com vestidos volumosos e penteados minimalistas param
em frente as vitrines com roupas glamorosas e o sorriso no rosto de cada
uma não disfarça a vaidade.
Comerciantes começam a abrir suas lojas, padarias exalam o cheiro de
pão quentinho e atraem famílias reunidas para tomarem o café da manhã.
Guardas patrulham o centro da cidade abarrotado de pessoas como
sempre. O general comanda as missões do dia enquanto cumprimenta uma
das figuras mais importantes da cidade.
Em alguns instantes as moças próximas ao chafariz colocam as mãos
nos braços tentando espantar o frio, as madames fecham os leques pelo ar
gélido que começa a parecer.
O general olha para o céu acima, e percebe as nuvens se fechando,
antes que alguém percebesse ele ergue levemente a máscara que cobre o
rosto e assopra um apito. Os guardas logo passam pelos comércios com
cavalos e pedem para que os comerciantes fechem as portas e janelas e se
protejam.
Em um piscar de olhos uma rajada de vento surge espalhando folhas
por todas as ruas.
Poderia ser uma tempestade, e de fato era, mas não de chuva.
Dessa vez eles não teriam que enfrentar trovões e as lágrimas dos
deuses... eles teriam que enfrentar a neve, o frio e a maldição.
Não gosto do frio. Nunca gostei, embora isso não me impedisse de
fazer anjinhos de neve quando criança. Talvez porque o ar gélido queima
meus pulmões e faz parecer que meu nariz está pegando fogo, ou só pelo
vazio que o inverno costuma trazer. Não sei dizer.
A neve que cai no solo ao lado de fora do pequeno chalé onde moro
me faz revirar os olhos antes de sair da cama.
“Essa é a estação para o renascimento”, alguém na praça me disse
quando mencionei minha raiva pelo clima gelado.
O frio congela os meus braços quando desço as escadas e vou até a
cozinha que está com a janela aberta. Caminho até ela e a fecho com raiva.
Abro o armário à minha frente e pego uma fatia de pão, passando o
resto de geleia de amora que sobrou. Mordo um pedaço e logo o jogo fora,
o gosto extremamente forte me causa ânsia. A amargura da geleia apenas
constatou que seu prazo de validade se passou há um bom tempo.
Volto ao meu quarto, visto um vestido verde de mangas longas e
coloco um manto branco por cima. Desço novamente as escadas e caminho
até a sala onde encontro duas pessoas sentadas, minha prima e minha tia. As
duas estão no sofá em frente à lareira, comendo biscoitos e rindo.
— Posso saber o motivo das risadas? — pergunto, me aproximando.
Elas me olham e param de sorrir. As expressões se fecham e minha
prima pega os pratos que estavam em seu colo e os leva para a cozinha.
— Estávamos conversando — a minha tia responde, limpando a boca
com um guardanapo.
Me sento na poltrona ao lado do sofá e encaro a janela. Segundos
depois a minha prima retorna e se senta no mesmo lugar que estava antes de
eu chegar. E, novamente, escuto o silêncio mais alto que alguém poderia
ouvir. Nenhuma das duas diz nada, apenas me ignoram, e eu também não
faço menção de perguntar algo.
— Precisamos de mais lenha para a lareira. O inverno será rigoroso
este ano.
Minha tia solta essas palavras no ar e, de novo, o silêncio se torna
presente. É sempre a mesma coisa.
É claro que o inverno será rigoroso, esse é o ano da maldição.
Se passaram 100 anos desde o último inverno como esse, isso quer
dizer que o monstro da montanha Ilite acordou e nos amaldiçoou com um
frio que mata nossas plantações e nos traz miséria.
Para resolver esse problema os moradores escolhem uma jovem moça
para ser levada até o monstro, para acalmar sua ira e sua fome. Isso se
tornou uma tradição em Helinor, um dos maiores reinos do continente de
Hesper.
Meu coração se aperta ao pensar na pobre moça que será escolhida.
Me levanto da poltrona e coloco as botas velhas que ficam perto da
porta de entrada.
— Orianna, aproveita e me traz um café bem quente — Irene pede
quando me coloco em frente a porta, pronta para sair.
— Estarei com as mãos ocupadas, Irene — Olho para ela, que está
sentada com as pernas em cima do sofá. — Por que você mesma não
busca?
Saio antes que ela tenha tempo de responder. Do lado de fora, a neve
toma conta de tudo. Os cidadãos tentam colher aquilo que resta das
plantações ou tentam limpar as fachadas de suas casas ou comércios. A
neve criou uma camada grossa no solo apenas 2 horas depois que começou
a cair.
O vapor sai da minha boca quando suspiro e começo andar. Enquanto
ando pelas ruas, todos me observam, então desvio o olhar ao caminhar. Isso
me coloca numa situação desconfortável. Cruzo os braços, me encolhendo
um pouco e paro de fitar o chão apenas quando chego à loja de penhores.
Um sininho toca assim que entro na loja, quando ergo o olhar não vejo
a atendente, acima do balcão há uma plaquinha com uma letra torta que
mais parecem rabiscos; nela fala que a pessoa está tomando café e já
retorna, mas para quem não tem paciência é só pegar o que quiser e deixar o
dinheiro no potinho ao lado da placa. Caminho até o local onde ficam as
lenhas e pego um pacote, meus braços doem, aperto os lábios para poder
suportar o peso. Quando me aproximo do caixa, apoio o pacote na bancada
e deixo o dinheiro no pote, aperto novamente os lábios e, com o pacote
pesado nos braços, saio da loja.
Enquanto caminho pelas ruas, sinto algo correndo em minha direção e
logo um rapaz alto, de cabelos marrons avermelhados, olhos cor de mel,
pele bronzeada e um rosto que faria todas as mulheres do reino se
interessarem para ao meu lado, sorrindo.
— Por que a donzela está carregando um pacote de lenha?
Meu olhar continua fixo à frente e não respondo nada.
— Para de ser rabugenta, Orianna!
Reviro os olhos e então paro bruscamente, me virando para ele.
— Eu consigo carregá-lo sozinha, Tanner, mas muito obrigada. — Eu
sei que se eu aceitar a ajuda dele, serei vista pelas jovens que nos observam,
de algumas calçadas, como a pobre e pequena donzela do Tanner, que
precisa dele até para carregar um mísero pacote de lenha. Sendo que elas
pediriam para ele carregar até um lencinho.
Continuo andando, mas ele não para de me acompanhar por todo
caminho.
Tanner é filho do homem mais rico de Helinor e, por algum motivo, há
um bom tempo atrás eu me tornei a presa preferida dele quando nos vimos
pela primeira vez em uma festa que aconteceu no centro do reino.
Quando estou quase em casa, ele para na minha frente e sempre que
tento desviar, Tanner impede a minha passagem.
— Me diz, donzela, por que nunca me deixa ajudá-la?
Meus olhos vão de um lado para o outro e se erguem até os dele. A
cada hora que passa meus dedos congelam pelo frio.
— Por favor, me deixe passar.
Quando tento seguir em frente, ele me impede outra vez.
Meus braços doem com o peso das lenhas e tenho vontade de gritar
para ele sair da frente, mas isso só atrairá mais olhares.
— Tem algum amante que ninguém saiba? Porque, para me recusar, só
pode estar com alguém...
Esse é o tipo de homem que se acha o último gole de água do deserto.
— Não tenho amante, eu só não preciso da sua ajuda, agora me deixe
passar.
Tento sair e ele se coloca à minha frente, barrando a minha passagem
novamente.
Já chega, minha mente grita.
Deixo o pacote de lenha cair nos pés dele, que logo grita, retirando o
pacote e se abaixando para massagear os dedos. Pego as lenhas e, com a
minha melhor atuação, falo:
— Me desculpe, estava ficando pesado, não vi que seus pés estavam
aí.
Dou um sorriso sem mostrar os dentes. Me levanto e, finalmente, ando
sem alguém estar me impedindo.
Chego em casa, abro a porta e coloco o pacote perto da sapateira
empoeirada.
Escuto murmúrios vindo da cozinha e caminho até o cômodo. Percebo
uma voz estranha falando no meio de duas familiares. Três pessoas estão
sentadas à mesa, a minha tia, prima e o general do reino. Ele usa uma
máscara preta sobre o rosto e nunca vimos sua face, dizem que os
escolhidos para serem generais fazem um juramento de nunca mostrar o
rosto, assim não esconderiam somente a aparência, mas também segredos.
O corpo também é coberto por roupas pretas especificas de soldados e
guardas. Me pergunto do porquê de ele estar aqui, então me aproximo, me
escondendo atrás da parede.
— Então está tudo certo? — pergunta o general.
— Tudo certo! — responde a minha tia, com um sorriso no rosto.
O general aperta as mãos das duas e se levanta da cadeira.
— Agradeço a vocês por ajudarem Helinor, com esse sacrifício os
nossos dias se tornaram melhores. Agradeça a Orianna por concordar com
isso, foi muita generosidade da parte dela concordar em ser um sacrifício
para salvar o nosso povo.
Meus olhos se arregalam. Minha mente para de funcionar por alguns
segundos. A confusão toma conta de mim e o desespero vem de brinde.
Por um longo momento sinto meu coração disparar de uma forma
assustadora, meu pulmão doe por conta da dificuldade em puxar o ar,
minhas pernas começam a tremer tanto que eu tenho certeza de que se não
as firmar no chão vou acabar colidindo com ele.
Eu fui a escolhida para ser levada até o monstro.
— Eu não concordei com nada — sussurro — como me escolheram?
Minhas mãos começam a suar mesmo com o ar frio que passa pelas
paredes, e meu estômago se revira.
Quando vejo o general se movendo em direção a porta, corro para o
lado oposto e subo as escadas depressa. Chego ao meu quarto e tranco a
porta.
Meu corpo desliza pela madeira e me sento no chão, a adrenalina toma
conta de meus ossos. Olho ao meu redor e cravo minhas unhas de leve
sobre a pele, a dor percorre meu corpo e uma lágrima escorre por meu
rosto. Não é um pesadelo.
Me levanto rápido, corro até a janela e vejo o general saindo. Minha
tia e prima dão “tchau” a ele e entram na casa. Alguns minutos depois, uma
batida ressoa na porta. Me forço a sair da janela para girar a maçaneta.
Na minha frente, Irene está me olhando surpresa.
Os olhos da minha prima me observam de cima a baixo, pousando no
meu rosto quando pergunta:
— Orianna, quando chegou?
Penso em perguntar do que se tratava aquela conversa, mas
provavelmente serei punida por escutar as conversas dos outros sem ser
chamada. Como das outras vezes. Quando escutei que elas comprariam
vestidos e perguntei se poderia ir junto, minha tia se irritou e disse que
quando eu escutasse alguém conversando era para fingir que não ouvi nada
e então me deixou sem comida por um dia. Ou então quando ela falou que
enganaria algumas pessoas para pegar dinheiro e eu lhe disse que era
errado, a reação dela foi dizer que eu levaria chicotadas se contasse a
alguém... e acabei apanhando por tê-la repreendido, eu só tinha 10 anos.
Elas me punem por qualquer coisa. Se eu não lavar a louça que as duas
sujam, sou punida. Se eu escutar alguma conversa e for comentar, sou
punida. E até mesmo se demorar muito no banho...
— Há um tempinho. Deixei a lenha na porta e subi. Por quê?
Ela me olha, arqueando a sobrancelha, e diz:
— Não trouxe o meu café?
— Eu disse que não conseguiria trazer.
Ela revira os olhos e sai batendo os pés.
Dou de ombros para a raiva dela e fecho a porta, olho para o meu
quarto e tento me distrair com qualquer coisa que eu possa encontrar, retiro
alguns livros de uma gaveta quase esquecida por mim e começo a lê-los. A
leitura é entediante, são livros velhos que ganhei de alguém em algum
momento da minha vida e os guardei na gaveta de uma cômoda. A verdade
é que eu sempre adiava a leitura, mas era ler ou ficar martelando o que ouvi
em minha cabeça.
Termino com eles quando o sol já está se pondo. Me levanto do chão,
faço uma pilha com os livros e desço as escadas até a cozinha, reviro os
armários em busca de algo para comer e encontro apenas bolachas
mofadas.
Nosso chalé sempre foi assim, elas comem o que presta e eu fico com
os restos.
Não é um lugar grande, mas para as duas parece algo infinito e que
não dá para limpar. Cansada da poeira que me causa alergia, vou até um
pequeno cômodo e pego um balde e um pano, coloco água e sabão,
aproveitando a casa vazia para limpá-la.
Começo pelo andar de cima, onde ficam os quartos e o banheiro,
limpo tudo o que posso e a mesma coisa se repete no andar de baixo, onde
fica a sala, a cozinha e a entrada. Por fim, arrumo as coisas que usei em
seus devidos lugares e penso que finalmente acabei.
Quando estou subindo para poder tomar um banho, escuto a porta se
abrindo e vejo a minha tia e prima entrando. Elas chegam rindo, retirando
os sapatos e os colocando na sapateira.
— Olha a casa está limpa — a minha tia diz.
— Eu a limpei — respondo. — Aproveitei que vocês estavam se
divertindo e fiz o trabalho.
As duas se olham e vão para lados opostos.
Antes de subir e tomar banho grito:
— Irene, o cesto de roupas está quase cheio. Lave-as e as coloque no
varal, por favor.
Ela aparece, da cozinha, com uma expressão estranha e me olha como
se fosse errado o que eu pedi.
— Eu faço tudo aqui, nem roupa você pode lavar?! — demanda.
— Tudo? Se não fosse eu, esse chalé estaria soterrado por poeira, você
tem que ajudar nas tarefas também. Lave as roupas e as coloque no varal,
por favor! — repito.
Ela bufa e se vira em direção ao cômodo para pegar os baldes e lavar
as roupas. Vou até o banheiro e tomo o meu banho, visto um vestido e um
manto quente, e saio para comprar algo para comer. Já que,
milagrosamente, achei algumas moedas perdidas enquanto limpava a
sujeira. Mas as duas não podem nem sonhar com isso.
Entro em uma padaria com um cheiro divino de massa sendo aquecida
no forno, o aroma de café no ar deixa o ambiente ligeiramente confortável.
Meu estômago reclama por causa da fome e acabo comprando um pão
com gergelim e um copo de leite quente. Pago pelos alimentos e me sento
em uma mesinha próxima para comer. Meu pedido se acaba em instantes e
o calor da padaria me faz querer ficar, mas me levanto e encaro o gelo da
noite até chegar em casa.
Quando retorno à casa encontro Irene indo em direção a sala.
— Pronto, já fiz o seu trabalho — diz ela sem me olhar.
— Obrigada! — respondo.
Ela vai até a sala e se joga no sofá.
Minha tia está na cozinha, separando comidas velhas e repondo com
algumas novas. Vou até ela e observo enquanto arruma os alimentos.
— Vamos ter visitas, então comprei algumas coisinhas para poder
fazer o jantar.
Entendi o motivo de estar tirando os restos que elas deixam. Curiosa
para saber quem virá nos visitar, me sento na cadeira e pergunto:
— Deixe-me adivinhar... A Irene tem um pretendente?
— Não — minha tia responde, terminando de arrumar as comidas. —
Quem virá nos visitar é o Tanner e o pai dele.
Com tais palavras, a pouca animação que eu tinha se vai. Por que eles?
Tem tantas pessoas para se convidar.
Minha tia pega um livro de receitas em cima da mesa e começa a ler.
— Que dia será isso? — pergunto, assim posso fingir que já tenho
compromisso, nem que eu tenha que ficar sentada na calçada fria até eles
irem embora.
— Amanhã à noite, Tanner e você são bons amigos então ele propôs
para que nos juntássemos em um jantar.
Algo na voz dela me diz que não será somente um jantar, mas como eu
sei que ela não vai me responder, decido nem perguntar.
— Desculpa, mas eu não vou poder me juntar. Combinei de ajudar
uma pessoa e...
Minha tia me impede de terminar minha fala quando fecha o livro com
força.
— Nem pense nisso, mocinha. São as pessoas mais ricas do reino,
podemos conseguir um pouco de dinheiro, então não me faça perder essa
oportunidade. Amanhã você se juntará a nós e comerá nessa mesa — diz,
batendo o dedo na madeira.
Ela retorna à atenção ao livro e caminha de um lado para o outro na
cozinha. Me levanto da cadeira tentando esconder a frustração, bebo um
pouco de água e, quando estou quase saindo, recebo o mesmo recado de
todas as vezes.
— E lembre-se, não fale nada a menos que alguém lhe pergunte. Se
comporte e seja a donzela que o Tanner tanto adora.
Suspiro e balanço a cabeça.
— Como se eu tivesse outra opção — sussurro antes de sair.
No dia seguinte, acordo apavorada.
Tento recuperar o ar que saiu de meus pulmões. Outro pesadelo me faz
companhia a noite, eles estão aparecendo com mais frequência e depois que
escutei a conversa com o general, eles provavelmente se tornarão mais
presentes.
Neles eu fico em um lugar escuro, escuto vozes distantes, cobras
parecem rastejar pelo chão e subir por minhas pernas. Quando acordo,
sempre estou com falta de ar e sinto o meu corpo cansado.
Me arrumo como de costume e desço as escadas.
A minha prima não está no chalé, minha tia se encontra preparando as
comidas e o meu estômago se aperta com o cheiro. Quando chego mais
perto, ela me olha de um jeito estranho.
— Tire essa tarde para se arrumar, você está horrível.
Observo a comida e sinto que ela me olha por todo o tempo em que
meus olhos ficam vidrados nas panelas. O cheiro me lembra as sopas que
minha mãe fazia quando eu era criança e isso me traz lembranças tão boas...
— Pegue um prato e coma um pouco. Isso é apenas para treinar.
Assinto com a cabeça e pego um prato no armário, retiro um pouco da
comida e me sento na mesa..., finalmente acabando com a fome que me
acompanhava. Quase não tenho tempo de terminar a comida quando a
minha tia me manda depressa para o banho, ela pede que eu vista a minha
melhor roupa e penteie o cabelo para que ela possa me transformar em uma
“obra de arte”.
Queria poder falar que não quero participar do jantar, mas não tenho
escolha. Ou eu participo, ou eu participo.
O frio da tarde está mais rigoroso do que o da manhã.
Helinor é um reino com grandes florestas, então as árvores ajudam a
trazer o ar gelado para a cidade.
É incrível como os dias parecem todos iguais. Helinor é um reino
tranquilo, então não tem nada para se fazer entre as ruas com casas
minimalistas. Mas hoje o dia não será tão tranquilo como os outros.
Terei que ficar sentada em uma mesa por horas, escutando conversas
irritantes sem poder dizer nada a menos que o meu nome esteja envolvido.
A água da banheira se esfria em instantes, o que me faz estremecer.
Sinto um arrepio de frio tomar conta de meu corpo e decido sair
imediatamente dali.
Termino o banho e visto um vestido azul de mangas longas, o tecido
tradicional de veludo deixa a minha pele quente, mas como sempre tem que
ter algo errado, meus ombros ficam amostra. Vou até o guarda-roupa e vejo
que todos meus mantos estão molhados e que não secaram por conta do
clima.
— Ótimo, vou ter que enfrentar o frio nos ombros — digo em voz
alta.
Penteio meu cabelo desfazendo os nós e coloco botas em meus pés.
Vou em direção a sala e, no caminho, encontro Irene subindo as escadas,
logo vejo que ela tem algo de pelos brancos e detalhes dourados nos
braços.
— Por que está com o meu manto? — pergunto.
Ela para no meio das escadas e se vira para mim. A expressão sem
paciência que expressa todos os dias fica mais evidente com a minha
pergunta.
— Os meus estão velhos, peguei um seu que já estava seco.
Franzo a testa e caminho até ela, retiro o manto de suas mãos e digo:
— Seus mantos estão velhos? Comprou um novo dias atrás.
Heliorianos são pessoas vaidosas, e que, umas das coisas mais
importantes é a beleza e elegância. Se usam uma roupa mais de 2 vezes, já a
consideram velha e desgastada.
Irene me olha com raiva e desce um degrau, parando na minha frente.
Ela me olha no fundo dos olhos e diz:
— Escute, não pense que pode tirar as coisas de mim tão fácil. Eu
quero esse, e eu terei esse.
Ela retira o manto das minhas mãos e o coloca sobre o ombro e nem
tenho tempo de dizer algo quando suas mãos vão até meus braços e me
viram, me empurrando escada abaixo.
A queda é de uns 7 degraus e sinto uma dor forte quando colido com o
chão. Ela sobe as escadas e fecha a porta do banheiro. Minha tia escuta o
barulho e quando me vê no chão, anda até mim e me ajuda a levantar.
— O que aconteceu? — pergunta ela, olhando meu vestido. — O
Tanner e o pai dele estão quase chegando e você cai da escada? Sabe que
poderia ter estragado esse vestido?
Meu corpo dói com a pancada, o local perto de meu ombro direito arde
e minha tia se preocupa somente com o vestido. Ela então retira os olhos da
roupa e seu olhar recai em meu rosto. Uma expressão de espanto estampa
sua face e então ela me puxa escada acima, me levando até o quarto e me
fazendo sentar na penteadeira.
O espelho reflete meu rosto com algumas partes vermelhas, perto de
meu ombro tem um corte e meu cabelo está com farpas da escada. Minha
tia pega uma toalha úmida, e limpa o corte, depois ela cobre as partes
vermelhas em meu rosto com maquiagem.
Ela penteia meu cabelo e coloca uma tiara com pedras que parecem
cristais. Mas, na verdade, é algo barato que ela comprou especialmente para
mim em uma loja de artefatos usados.
— Tem que estar deslumbrante. E não deixe o acidente aparente. Você
sabe como os Heliorianos são exigentes com a aparência.
Levanto meu olhar para encará-la através do espelho, mas ela está de
costas para mim. Respiro fundo, tentando deixar a última frase de lado.
— Irene que me empurrou, eu apenas queria o meu manto...
Minha tia franze a testa e ri antes de eu terminar a frase.
— Manto? Homens se atraem quando os vestidos têm decotes... Nem
ouse por um manto — repreende ela.
Reviro os olhos e me levanto da cadeira.
Escutamos uma batida na porta assim que estou preste a sair do
quarto. Minha tia sorri e quando está perto de mim, me diz:
— Lembre-se, agradeça todos os elogios, não diga nada a não ser
que te perguntem e seja a donzela que o Tanner tanto adora. Vamos.
Tanner e o pai entram na casa com presentes nas mãos. O povo de
Helinor adotou o costume de presentear o anfitrião sempre que são
convidados para qualquer tipo de evento, e eles nunca quebram esse hábito.
São apenas os dois como sempre, eu nunca vi a mãe de Tanner, e eles
também nunca falaram dela. Tanner se parece tanto com o pai que não
consigo nem separar algumas características para saber como ela era.
Sorrindo, eles me cumprimentam ao beijarem as minhas mãos. Minha tia
parece mais empolgada do que tudo, e Irene não retira os olhos do rapaz
alto a sua frente.
Minha tia os chama para a cozinha, onde a mesa de jantar de seis
lugares está arrumada como nunca tinha sido. Eles se acomodam nas
cadeiras de madeiras velhas e minha tia me força a sentar de frente para o
Tanner. Ela serve o jantar e se senta junto a nós. Começamos a comer e, até
o momento ninguém diz nada, mas quando estamos quase no meio da
refeição, a minha tia fala:
— Estamos muito felizes com a presença de vocês.
— Nós que agradecemos o convite — o senhor Adam diz.
Irene elogia as roupas e eles agradecem a gentileza e, em uma fração
de segundos, Tanner se vira para mim, sorrindo.
— Está belíssima, minha donzela.
Em algum momento ele começou a me chamar de donzela, e segue
assim até hoje.
Olho para ele e não digo nada, mas logo me forço a sorrir e respondê-
lo quando minha tia pisa no meu pé por baixo da mesa.
— Obrigada.
O pai dele se vira, me entregando uma caixa e pede que eu a abra, já
que dentro tem um presente para mim.
Abro a caixa e encontro um anel, a pedra de safira tem um formato de
gota d’água e brilha como se tivesse sido polida o dia inteiro.
— Obrigada, senhor Adam. É lindo.
Eles se entreolham com um sorriso e pedem que eu o coloque no dedo.
Penso em recusá-lo, mas antes que eu abra a boca, sinto o olhar da minha
tia sobre mim. Solto um suspiro forte e retiro o anel da caixa, coloco-o em
meu dedo e sinto que Irene está me olhando com raiva.
— Ficou lindíssimo — a minha tia elogia.
— Bom... — o senhor Adam diz. — Esse anel é um lindo presente que
nós escolhemos para Orianna. Ele é único e valioso, peço que cuide muito
bem dele.
Faço que “sim” com a cabeça e olho para o anel.
— Mas não é somente um presente — diz Tanner. — Como
conversamos Dandara — ele se vira para a minha tia e sorri — também é
um anel de noivado.
Meus olhos se arregalam com as palavras. Irene aperta os talheres com
força em suas mãos e minha tia me olha com medo de que eu fale algo.
Eu sabia que ela estava me escondendo alguma coisa, mas não sabia
que era nesse nível.
Casamentos arranjados deixaram de ser um costume em Helinor a
décadas. Por algumas pessoas é visto como interesse da parte de um dos
dois.
— Exatamente. — Adam começa a falar — A Orianna é perfeita para
o Tanner. Nunca vimos uma moça tão bela como ela, os cabelos brancos
como a neve dão tanta beleza, o rosto delicado e os olhos azuis como o céu
a deixa ainda mais como o inverno.
E mais uma vez, as pessoas me vem só como algo bonito.
— Orianna é realmente uma joia de inverno, eles darão um
belo casal — minha tia conclui, apertando a minha mão.
Ela segura minhas mãos tão forte que meus dedos começam a ficar
vermelhos.
Quando menos percebo arrasto a cadeira e me ponho de pé.
Quando me levanto todos na mesa me olham. A minha tia tenta me
puxar para baixo, mas me afasto.
— Está tudo bem? — o senhor Adam questiona.
Olho para a minha tia, que está me observando com fogo nos olhos,
certamente está me ameaçando através do olhar.
— Não! — exclamo. — Não está tudo bem, eu não aceitei me casar.
— Orianna! — minha tia repreende. — Sente-se.
Eu a ignoro e continuo falando:
— Não lembro de terem conversado comigo sobre isso e mesmo que
tivessem, eu não aceitaria.
Tanner e o pai me olham incrédulos. Minha tia tenta me puxar e me
fazer sentar na cadeira novamente, para que ela tente consertar a situação,
mas a impeço.
Me fazer responder perguntas ou agradecer elogios até vai, mas fazer
eu aceitar um casamento? Jamais.
— Orianna, como assim não quer se casar comigo? — Tanner
pergunta em um tom furioso.
Respiro fundo e respondo à pergunta.
— Por que me casaria com alguém que não amo? Casamentos
arranjados nunca funcionam, não depende apenas de uma pessoa e, sim, das
duas... Não quero uma vida infeliz.
O pai dele bate a mão na mesa e começa a gritar e apontar o dedo para
mim.
— Como se atreve garota? O meu filho é o mais desejado do reino e
ele escolheu você, sua ingrata.
— Senhor Adam, acha mesmo que eu cobiçaria seu filho? Ele foi
criado pelo senhor, nem se enlouquecesse eu o escolheria.
Minha tia grita o meu nome e dá um tapa no meu rosto.
— Cala a boca, Orianna.
Coloco a mão sobre o rosto, e tento fazer com que minha voz não
falhe quando digo:
— Não tente me calar, tia.
Sua expressão se torna furiosa.
— Eu terei que lhe ensinar boas maneiras? Será que 10 chicotadas
serão o suficiente?
— Aumente para 20 — diz o maldito.
Eu cansei disso. Cansei de ser prisioneira de minhas próprias palavras,
dessa vez não vou esconder minha voz.
— Ninguém tocará em mim — digo, quase gritando. — E é por essas
atitudes que eu nunca escolheria o seu filho... Ele foi criado por alguém que
gosta do sofrimento alheio, por que me casaria com alguém igual? Para ter
dezenas de filhos e ter que cuidar de todos sozinha apenas por que meu
marido estaria em uma taverna ficando bêbado? Ou então para sofrer nas
mãos de um marido que acha que me comprou e pode fazer o que bem
entender?
— Você sabe que eu não faria isso, donzela. — Ele se levanta da mesa
e caminha até mim.
Olho no fundo dos olhos dele e uma lágrima de frustração escorre por
minha pele.
— Desculpa... — peço, mas não pelo que acabei de falar, mas, sim,
por demonstrar fraqueza... eu pedi desculpas para mim mesma. — Mas
mesmo se eu quisesse, não poderia me casar com você.
Tanner franze a testa e pergunta:
— Por quê? Por que não poderia?
Eu olho para minha tia que, claramente, está zangada.
— Porque eu serei o sacrifício.
Irene arregala os olhos e se levanta bruscamente da cadeira. Os olhos
de Tanner ficam parados nos meus. As mãos dele escorregam até os meus
ombros e ele se vira para o pai.
— Como assim? — Depois se vira novamente para mim. — Como
assim você vai ser o sacrifício?
Minha tia tenta discordar do que falei, dizendo que é um mal-
entendido, mas ela não consegue negar depois que Irene pergunta:
— Como você descobriu?
Me viro para ela, vendo que os olhos estão vidrados no chão.
Pela forma com ela me pergunta, provavelmente já estava
desconfiando que eu tivesse escutado.
— Eu escutei quando o general estava aqui.
Todos ficam em silêncio, minha tia caminha até mim e agarra o meu
pulso.
— Por que não disse que tinha descoberto? Onde queria chegar
escondendo que sabia?
— Eu que deveria fazer essas perguntas. Por que não me contou? Por
que mentiu para o general dizendo que eu tinha aceitado isso?
Minha tia não diz nada. Desvia os olhos dos meus e solta meu pulso
devagar.
Assim que ela se afasta massageio onde sua mão estava, e a cada vez
que passo os dedos em meu pulso a dor parece aumentar.
Eu não sou a culpada para ela querer discutir comigo. Eu sou a vítima
que seria enganada até o fim se essa brecha não fosse aberta hoje.
Elas não me contariam sobre nada, não me dariam sequer uma simples
explicação.
Meu coração dispara quando me lembro que eu fui a escolhida. A
ideia de ser levada para acalmar a ira de um monstro faminto faz meu
estômago se embrulhar e minha mente girar.
— Por que ela foi escolhida? — Tanner pergunta, me fazendo sair de
meus pensamentos.
— Porque precisa ser a moça mais bela do reino — responde minha
tia. — Orianna é a escolha perfeita.
Ele olha para o pai e respira fundo. As mãos estão fechadas tão fortes,
que os nós dos dedos começam a ficar brancos.
— O senhor sabia? — ele direciona a pergunta para o pai.
Adam afirma com a cabeça.
— Por que não me contou que tinham decidido isso?
— Eu sabia que você faria de tudo para escolherem outra jovem, mas
tem que ser ela, Tanner.
Ele dá uma leve risada. Como se aquela resposta não fosse uma
resposta convincente. Como se Adam tivesse respondido a primeira coisa
que lhe veio à mente.
— E o casamento? Vocês sabiam disso e mesmo assim concordaram
com o casamento? — a voz apresenta indignação.
Adam e minha tia não falam nada. Um silêncio perturbador se torna
presente na sala.
— Não vão responder nada? — pergunta ele impaciente.
Dou um passo para frente.
— Não — respondo — eles não vão.
Recebo olhares de raiva quando falo.
Quando minha tia não tem nenhuma palavra na ponta da língua para se
defender ela usa uma expressão que eu conheço muito bem, a mesma
expressão que ela faz quando ela age por impulso para se aproveitar de
alguma situação, mas depois perceber que foi uma ideia ruim.
Tanner balança a cabeça e passa por mim, parecendo irritado com
aquela situação. Em alguns segundo ouvimos a porta sendo fechada
bruscamente.
Irene faz menção de ir para fora junto com ele, mas reluta contra o
próprio coração.
Eu fico no mesmo lugar enquanto minha tia e o senhor Adam
sussurram coisas e Irene me olha sem expressão alguma.
O ponteiro do relógio faz um som alto no silêncio obscuro e a cada
segundo que passa quero fugir desse lugar, mas eu correria para onde? Não
tenho um lugar para ir, eu ficarei presa onde quer que eu vá.
Eles me caçariam, seria punida, passarei a ter o título de egoísta pelas
pessoas, por não querer “ajudar” o reino.
Rumores se espalhariam rapidamente e eu receberia olhares raivosos,
o mais engraçado nisso tudo é que se outra pessoa fosse escolhida, ela
fugiria, mas ninguém se coloca no lugar do outro. É algo como: “dane-se;
não fui eu a escolhida.”
Minhas mãos e pernas tremem enquanto espero a conversa dos dois
chegar ao fim.
De vez ou outra eles me lançam alguns olhares, como se eu tivesse me
tornado uma aberração na visão deles.
Fixo meus olhos no chão, tentando desviar os olhares que surgem de
todos os cantos daquela cozinha.
— Certo. — Levanto o olhar rapidamente quando o senhor Adam
anda em direção a porta do cômodo. — Vamos embora.
Ele me olha pela última vez, o fogo em seus olhos parece queimar a
minha pele.
Minha tia o acompanha até a porta, e quando a abrem Tanner está de
costas para a entrada. Eles seguem o caminho pela rua sem ao menos se
despedir. Quando estão a uma boa distância, ela fecha a porta com força.
Ela caminha até a cozinha, com um cinto de couro nas mãos.
Sinto um arrepio percorrer minha espinha quando ela se aproxima
mais de mim.
Sufoco um grito quando minhas costas são atingidas pelo cinto. Ela
chicoteia minhas costas três vezes até eu cair no chão.
Depois que lágrimas de dor molham meu rosto e sangue respinga no
chão é que ela para.
— O que eu te disse? Você causou raiva em Adam e ainda teve que
descobrir sobre o sacrifício?
Irene apenas observa a cena.
— Você prometeu cuidar de mim — minha voz falha em meio as
lágrimas — mas nunca cumpriu. Cuidou apenas da Irene e me deixou de
lado. Agora decidiu acabar comigo de vez?
— Não fala assim — Irene se aproxima — você sempre teve o que eu
queria, você que é a donzela de Tanner.
Ela sempre fala que eu consegui tudo, mas não é ela que tem que
suportar a pele queimando.
— Ainda tem coragem de falar que eu sempre consegui tudo? —
pergunto, enquanto tento me levantar do chão frio — A preferida sempre
foi você, agora que eu não estarei no seu caminho, tente conquistá-lo, já que
é esse o motivo de sua raiva de mim.
Me viro e saio da cozinha sem dizer mais nada. Subo as escadas com
dificuldade, mas sem ninguém me impedir e vou até meu quarto.
Me deito na cama com cuidado, sentindo a pele repuxar,
provavelmente meus lençóis ficarão manchados, mas o que eu posso fazer?
Não tenho coragem de entrar na água e não consigo limpar esses
machucados sozinha.
Quando estou deitada reparo no anel em meu dedo. Retiro ele e o jogo
pela janela enquanto choro pela dor em minhas costas, espero que seja
soterrado pela neve.
Minhas costas ardem intensamente enquanto estou deitada. A cada vez
que respiro a dor aumenta, qualquer movimento que eu faço já é o bastante
para outras lágrimas escaparem.
— Aquele que me escuta — sussurro para a solidão em meu quarto —
qualquer um dos Deuses que possa me escutar. Por favor, me salve. Me dê
liberdade, me dê salvação, por favor — imploro para que o espírito bondoso
que me escuta possa me ajudar.
Fecho meus olhos e me encolho levemente na pequena coberta que
está em minha cama.
Sinto um alívio na dor.
Meu corpo parece ficar dormente, e um vento gélido toca minhas
costas, como se alguém estivesse assoprando os ferimentos para eles não
arderem, o que funciona.
Uma única lágrima termina de escorre por meu rosto antes de eu ser
puxada meu sono.
O sol entra pela janela e me faz acordar. Quando abro os olhos vejo
Irene mexendo nas minhas coisas.
Me sento na cama, cerrando os dentes pelo puxar das feridas na pele.
Ela logo se vira quando escuta a madeira rangendo.
— Por que está aqui?
Ela caminha até mim e se senta lentamente na ponta do colchão. Os
olhos vão de um lado para o outro até encontrarem os meus, parece que ela
está tentando tomar coragem para me olhar.
— Eu já imaginava que você tinha descoberto.
— Não foi isso o que eu perguntei.
Ela me olha com raiva e bufa antes de continuar:
— Eu sei, estava procurando uma roupa para usar, mas, continuando,
eu escutava seus gritos de manhã e faz muito tempo que não os escuto,
então imaginei que eles voltaram e o incentivo foi a conversa que você
ouviu.
Olho para a janela e o meu olhar fica parado nos cidadãos caminhando
na neve ao lado de fora.
Agora eles usam roupas grossas. Trocaram os tecidos leves por tecidos
felpudos, e as sandálias por botas de cano longo. Nas mãos das moças, que
antes seguravam leques agora estão vazias e cobertas por luvas.
Minha mente volta para dentro do quarto e me lembro da minha prima
sentada na cama. Essa é a hora de ela te dar algumas explicações, algo
dentro de mim fala.
— Por que me escolheram?
— Eles levam a moça mais bela. A moça mais bela é você.
E é nessas horas que a sua beleza se torna a sua ruína.
— Até agora foi a única resposta que eu ouvi.
Ela respira fundo. Sua voz transmite calma enquanto diz.
— O general estava nos contando que logo ele começaria a seleção da
beldade que salvaria nosso reino esse ano, mas minha mãe perguntou se
você não era uma ótima opção — ela faz uma pausa — ele concordou,
então ela disse que você aceitava salvar Helinor.
Me levanto da cama tão rápido que nem meu corpo espera isso.
— Como tiveram coragem de mentir?
Ela suspira e os olhos percorrem meu quarto novamente.
— Foi minha mãe quem mentiu, eu não disse uma palavra sequer.
Desvio os olhos dela quando termina sua justificativa, e olho
novamente para a janela, tentando de todo jeito mandar meus pensamentos
para outro lugar.
O céu borrado de azul e branco parece deixar o ambiente ainda mais
frio, a madeira do chalé não consegue segurar muito bem o calor. Além do
ambiente úmido, é congelante.
Logo me lembro de outras perguntas, minha mente diz que esses
questionamentos são necessários, já o meu coração não tem tanta certeza.
— Quando me contariam sobre isso?
— Eu queria te contar, mas acharam melhor não, para que não tentasse
fugir. Eles te dariam ervas para dormir e quando acordasse já seria tarde.
Engulo em seco.
— Que dia será? — essa é a última pergunta.
Ela me olha com o que parece ser dó, mas sei que não passa de
fingimento.
— Amanhã. — Algo dentro de mim dói com as palavras. — Como
você descobriu, eles decidiram adiantar para que não tenha tempo de
escapar ou pensar em algo.
Quando saio do chalé, o frio parece estar nervoso. O vento joga os fios
brancos do meu cabelo para trás. O manto que uso parece não ser o
suficiente, minha pele congela e minhas costas ardem por causa das
chicotadas. Minhas mãos começam a ficar vermelhas pela falta de luvas.
Coloco o capuz e aperto o manto no corpo, minhas pegadas
permanecem na neve até que mais neve as cubram. Entro na cafeteria e o
cheiro me conforta. A atendente me olha com um sorriso no rosto e me
serve o que sempre peço.
O café forte aquece o meu corpo e as torradas preenchem o meu
estômago faminto. Assim que termino de comer, ando em direção a bancada
e retiro algumas moedas que sobraram de um bolso do vestido, mas antes
que eu possa colocá-las no pote, a atendente me impede.
Ela diz que não precisa, que será um presente. Antes eu não entenderia
a gentileza, mas agora estou ciente. Dou um sorriso de leve para ela,
devolvo as moedas para o bolso do vestido e saio da loja.
Caminho pelas ruas onde crianças correm, fazem bolas de neves e
jogam em seus colegas, o sorriso inocente em seus rostos me faz sorrir
também. Passo em frente ao chafariz de pedra que está com a água
congelada. Atrás dele encontro Tanner conversando com uma moça de
cabelos loiros ondulados, a pele não muito clara e os olhos verdes. A
reconheço pela aparência e pelas roupas que costumam ser minhas. Irene
entrelaça o braço no de Tanner e sorri para ele.
Quando dou alguns passos para trás, para poder continuar por outro
caminho, os olhos de Tanner me encontram, mas logo ele os abaixa e sorri
novamente para Irene segurando a mão da jovem que pousa em seu braço.
É incrível como os dias passam rápidos nesse lugar. Eu gostaria que
passassem devagar, como as folhas na neve. Eles deslizariam sobre o solo
escorregadio e, em certos momentos, se prenderiam na camada branca.
A tristeza estampada no meu rosto, é visível mesmo de longe. Minha
tia escolhe um vestido de veludo branco e um manto azul como o céu
escuro nas noites que você não vê os pequenos corpos celestes nele.
Ela faz uma trança escama de peixe no meu cabelo e coloca um enfeite
em forma de pavão. Ela esconde os pontinhos vermelhos que ainda
permanecem em meu rosto. Agarra meu braço e me levanta.
— Está belíssima. Esse inverno terrível acabará logo.
A pessoa à minha frente se torna completamente diferente na minha
visão. Os cabelos amarelos quebrados, o rosto com excesso de maquiagem,
os dedos finos e quentes que pousam no meu braço e os olhos verdes me
lembram de tudo, menos da minha tia.
Aquela que os meus pais acreditavam ser a melhor pessoa para cuidar
de mim, mas eu não os culpo, na frente deles ela era, sim, a melhor pessoa,
mas eles não sabiam que ela poderia apunhalá-los pelas costas quando
quisesse.
A porta se abre e Irene entra, ela se encosta na parede e cruza os
braços. Os olhos percorrem o meu corpo. Minha tia pergunta a ela se minha
aparência está agradável e ela apenas concorda com a cabeça.
Sou arrastada escada abaixo e há dezenas de moradores na entrada do
chalé. Eles me olham como um troféu e os pais explicam as crianças.
“Ela nos salvará.”
O general está do lado de fora, apenas esperando a minha chegada.
Quando a minha tia se aproxima, me puxando pelo braço, o general dá um
passo à frente e me cumprimenta.
— Olá, Orianna, gostaria de parabenizá-la pela coragem e
generosidade. Você salvará o povo de Helinor. Agradecemos por isso.
Dou um sorriso fraco e faço uma leve reverência com a cabeça. Minha
tia me põe ao lado dela e de frente para as pessoas presentes ali...
— Povo de Helinor, é com muita alegria que anuncio que a nossa
salvação está próxima. A minha sobrinha Orianna nos salvará.
As pessoas aplaudem a fala da minha tia. Ergo o olhar para ver as
pessoas ao meu redor e reconheço muitas delas. A moça da cafeteria, a
senhora da loja de penhores, colegas que brincavam comigo na neve
congelante e apenas iam embora quando os dedos ficavam vermelhos por
causa das bolas de neve que fazíamos.
No final da multidão vejo olhos me observando, Tanner está ali. Mas
não parece se importar com o que acontece.
Dois guardas chegam ao local em cavalos, o general me chama para
mais perto e, com as pernas trêmulas, caminho até ele.
Ele me ajuda a montar no animal que logo fica inquieto. Passo a mão
por sua crina e peço que se acalme.
A multidão acompanha os cavalos a uma longa caminhada. Passamos
por dentro de uma floresta coberta por gelo. As corujas do inverno fazem
um som que pode ser assustador se alguém caminhar pela mata de gelo
sozinha.
Quando finalmente saímos da floresta das almas perdidas,
encontramos um lago congelado. A água se transformou em um espelho.
Segundo o general, há um atalho, mas teríamos que caminhar mais,
então eles decidem passar por cima da água congelada. Os cavalos passam
primeiro, nos levando até o outro lado, a multidão se aglomera e o gelo
começa a rachar. Eles se desesperam e começam a correr, o gelo trinca
ainda mais e a água por baixo da camada congelada começa a aparecer.
Antes que as últimas pessoas possam passar, o gelo cede em uma
parte. Um homem cai nas águas e as pessoas presentes se assustam com o
barulho de seus braços se debatendo.
Ninguém o ajuda, eles apenas o olham, horrorizados, quando estou
quase me soltando do cavalo, alguém aperta a mão do homem.
Tanner o puxa para cima e o leva para o solo firme. Os guardas correm
para fornecer um cobertor para o homem que treme de frio e medo ao
mesmo tempo.
O cavalo do general anda mais alguns passos, então ele diz:
— Estamos quase chegando, em alguns minutos conseguiremos subir
a montanha e assim encerraremos esse inverno.
Subimos a montanha que possui uma trilha até o topo. Quanto mais
alto subimos, mais o frio se torna agressivo.
Tento apertar o manto sobre o corpo, mas a subida um tanto quanto
íngreme não deixa o tecido me aquecer; e como tenho que me segurar para
não cair do cavalo, não posso usar as mãos para manter o manto no lugar.
Quando finalmente conseguimos chegar no topo da montanha,
encontramos grades, a cor preta é tão forte que eu nunca tinha visto nada
comparado àquilo. Os cavalos começam a se agitar quando chegamos perto
do enorme portão com grades grossas e pontas afiadas. O cavalo que estou
dá alguns passos para trás e começa a se movimentar bruscamente.
Eu começo a sentir o mesmo desespero do animal, minha mente
percebe que não é uma ilusão. O meu corpo desperta e me faz perceber
onde estou. Minha respiração fica ofegante demais, pesada demais.
Os guardas seguram o cavalo e me tiram de cima dele. Meus braços
são presos pelas mãos do general e ele me empurra para perto das grades.
Olho para trás e vejo as pessoas com olhos vidrados na paisagem, a
aparência do castelo pode ser assustadora, mas não me causa medo, por
algum motivo ele tem uma beleza que me atrai, na verdade que atrai todos.
No fundo do meu coração eu sinto conforto.
Afasto aquele sentimento da minha mente quando me lembro que o
que mora ali dentro não me trará conforto.
As paredes parecem envoltas por sombras, nem sequer o cenário
branco da neve cobre a escuridão.
O general se distrai e afrouxa as mãos. “Corra”, grita a minha mente.
Corra e peça ajuda. Retiro os pulsos dos dedos dele e corro, derrapando na
neve, desvio da multidão e os guardas correm atrás de mim, mas paro
quando chego em Tanner.
Seguro as roupas dele. Meu desespero me faz pedir ajuda a ele,
lágrimas escorrem dos meus olhos. Ele segura os meus ombros e arqueia a
sobrancelha.
— Me ajude! — peço, desesperada, as pessoas em volta observam.
Tanner solta meus ombros e me sinto sem equilíbrio. Minhas pernas
parecem ceder, mas forço meus pés a firmarem no solo.
— Não posso — diz, se afastando. — Seria egoísmo salvar apenas
você e deixar o reino nesta situação. E depois de me dizer tudo aquilo, eu
não tenho piedade de você.
A lágrima que desce pelo meu olho seca com o vento. Sinto mãos
agarrando meus braços e me arrastando como se eu fosse uma folha na
correnteza de um riacho. Eles abrem o enorme portão à nossa frente com
chutes e pedem para que ninguém além dos guardas entrem. Meu corpo
trava, não consigo me mexer.
O arco e flecha nas costas de um e o revolver nas mãos de outro me
faz temer ainda mais o que me espera lá dentro. Eles me arrastam por um
enorme jardim e meus gritos se perdem na distância do portão até a porta do
enorme castelo.
Cabeças de leões estão desenhadas na porta de ferro. As maçanetas são
em forma de serpentes e os galhos das folhas congeladas parecem fazer
parte da decoração, mas apenas não são tirados há um bom tempo.
Um guarda destranca a porta tão rápido que não tenho tempo nem
sequer de pensar quando o outro, que me segurava, me joga dentro da
escuridão. Antes que eu possa me levantar e correr na direção dos mesmos,
a única fresta de luz que havia desaparece com o ranger que a porta faz
depois de ser fechada.
Me rastejo no chão úmido até minhas mãos encostarem no ferro frio.
Grito, grito e grito. Meu desespero fica trancado comigo, bato minhas
mãos na porta e a cada soco sinto uma dor diferente.
— ME TIREM DAQUI! — grito o mais alto que a minha voz pode
aguentar.
Na hora nem penso na criatura, nem nos perigos que posso ter perto de
mim.
Se bem que sempre estive rodeada de “perigos”.
Minha mão dá um último soco na porta e escuto um estalo. Meu dedo
se quebrou. Lágrimas de dor escorrem dos meus olhos e a minha respiração
se torna irregular. Minhas mãos ficam quentes, mas logo o meu corpo
inteiro congela quando escuto a madeira do chão ranger.
Algo se move nas sombras. As pequenas luzes que ultrapassam as
camadas de cortinas revelam algumas coisas velhas.
A madeira range novamente. Me encosto na porta. Espero.
Uma respiração forte preenche o silêncio. Algo caminha mais perto. O
meu coração acelera.
As sombras se movem e um cheiro de suor e mel preenche o local.
Meus olhos se acostumam um pouco com a densa nuvem preta. Sons
de penas passam pelo chão. Um som agudo faz meus ouvidos doerem,
unhas afiadas raspam no ferro.
— Novamente... — diz uma voz forte, grave...
Me encolho no canto e tampo a boca com a mão.
— Não adianta tapar a boca, eu consigo te ver. Sinto seu cheiro.
Meus olhos se arregalam quando escuto algo perto. Tão perto.
Sombras se acumulam ao meu redor e logo me sinto sendo puxada para
cima, mas nenhuma mão me toca.
Meus pés estão pendendo e minha cabeça sendo forçada a olhar para
cima. Uma pequena fresta de luz me permite ver olhos verdes. E uma
mecha de cabelo extremamente preta. Os olhos da criatura vão de um lado
para outro. Me examinando, me observando, me conferindo.
Engulo em seco e aquilo à minha frente ri com escárnio. Sinto a coisa
me soltando e encosto os meus pés no chão. A criatura se vira e sai de
perto. Meu corpo treme, minha boca treme, meus olhos... Meus joelhos
encontram o chão e logo começo a sentir dor por causa da fratura.
Tento dobrar meus dedos, mas estão travados. Tento levantar-me, mas
o meu corpo não obedece ao comando.
Quando finalmente me levanto, encosto-me na parede e caminho,
sempre conferindo se tem algo na frente.
Encosto em um tecido que, na minha mente, pode ser uma cortina.
Puxo o pano e a poeira do lugar se misturam no ar denso. Consigo puxar
um pouco do tecido e uma fresta maior de luz ilumina o cômodo.
Sofás, lustres e a lareira todos estão cobertos com teias de aranhas.
Olho para minhas mãos e vejo três dedos quebrados, toco em um e a dor
invade o meu corpo. Rasgo pedaços de tecidos que encontro e tomo
coragem para puxar os ossos, tudo se torna um rio de lágrimas e notas
furiosas de gritos.
Com os pedaços de pano, enfaixo os dedos e os amarro com o auxílio
da boca.
Minhas mãos tremem a cada vez que levo o tecido para os dedos. O
sangue se acumula no paninho mais rápido que posso ver.
Prestando mais atenção no local, percebo marcas de garras nas
paredes, sofás, cortinas. Algumas são maiores que outras, e a única coisa
que consigo imaginar são elas rasgando minha pele. Corro até a janela e
coloco minha mão no vidro, tento encontrar algo para abrir, mas não tem
nenhuma alavanca ou trava.
Pego um pedaço de madeira e jogo na janela, mas o vidro não sofre
nenhum arranhão. Jogo a madeira mais uma vez, mas nada acontece.
— Estão enfeitiçadas — a criatura diz, de longe.
Me viro rapidamente quando não percebo que se aproximou, abaixo a
cabeça e fixo o meu olhar no chão.
— Sabe..., gostei da sua coragem.
Não digo nada.
— Pare com isso, respire normalmente e me diga o que a trouxe até
aqui.
Abro a boca, mas a fecho novamente.
— Vamos! — apressa a criatura. — Diga-me.
Dou um passo para frente e olho para cima, para onde imagino estar
vindo o som.
— Vim salvar o meu reino — minto.
Um vento forte invade o lugar e pés tocam o chão com força.
— Interessante, veio por que quis? ou por que a arrastaram?
Me arrastaram é óbvio. É isso que eu tenho vontade de dizer, mas
penso antes de falar.
Verdade ou mentira? Ele acabará comigo mais rápido se eu contar a
mentira? Ou me jogará no frio, sem roupas, se eu disser a verdade?
Acredito que ele não gostaria de algo que não veio por vontade
própria.
— Vim porque quis.
Outra risada, desta vez com humor, ele se afasta novamente e logo
não sinto mais a presença. Tento decifrar qual criatura ele é. A fala é
humana, possui asas e garras longas, seria uma mistura de vários animais?
Por isso consideram ele um monstro?
Há algo estranho aqui e eu não falo apenas da criatura.
As coisas parecem se mover. A casa parece estar acordada. Algo
parece me observar, mas não consigo sentir nada junto a mim. As cortinas
são pesadas como se fossem cobertas grossas, as janelas estão sujas e quase
tomadas pelas plantas que crescem nelas. O breu do lugar não deixa meus
olhos se acostumarem com a extrema escuridão para que eu possa caminhar
e tentar achar uma saída.
Para me mover, tenho que andar com as mãos nas paredes e quanto
mais eu ando, mais o cômodo parece aumentar. Escuto um barulho de algo
caindo no chão, o som do metal ecoa alto pela sala e me faz dar um passo
para trás. Retiro as mãos da parede e me viro para frente, tento forçar meus
olhos a enxergar algo, mas de nada adianta.
Algo mexe no meu cabelo. Uma agonia invade o meu corpo. Um
vento parece me empurrar e eu cambaleio para frente, me seguro no braço
do sofá. Sinto que passa ao meu lado. Aquilo brinca com as cortinas. Chega
mais perto e me empurra mais uma vez.
Desta vez caio no chão e o barulho me faz lembrar do “acidente” da
escada.
Minhas pernas tentam pegar força de algum lugar para se levantarem.
Meus braços tremem quando os coloco no chão para conseguir empurrar o
corpo para cima. Me apoio em outro sofá e caminho mais alguns passos,
antes daquilo me empurrar novamente.
— Chega! — grito.
Se alguém estivesse comigo pensaria que enlouqueci.
Eu enlouqueci?
Me viro, tentando achar algum espaço em que o ar não esteja tão
denso. Ou algum lugar mais quente. Quando dou mais um passo à frente,
tropeço.
— Que coisa... — falo em voz alta.
Franzo a testa quando percebo que não é um móvel e, sim, uma
escada. Seguro no corrimão e, tomando cuidado, subo degrau por degrau.
Quando chego no final da escada, sinto mais um empurrão para a direita.
Olho em direção do corredor e vejo um ponto de luz no final dele.
Caminho até lá e uma porta de ferro é a única coisa que encontro no
corredor. O único símbolo nela são desenhos de galhos com folhas, ela está
entreaberta e a curiosidade fala mais alto, a oportunidade de ver um pouco
de luz me atiça. Empurro a porta, tentando não fazer barulho e vejo que é
um quarto.
Três paredes e uma janela enorme de vidro que não está aberta, mas as
cortinas não escondem o pôr do sol, e eu nem acredito que se passou tanto
tempo.
E então percebo algo em frente a janela.
A criatura está observando o sol se escondendo no horizonte. Por um
momento, o analiso e quase não consigo desviar o olhar.
O corpo é humano com músculos definidos, a pele é um marrom claro,
cabelos pretos quase na altura dos ombros largos, ele possui asas de corvos
pretas como o céu noturno. Eu nunca tinha visto algo assim... Os homens do
reino o invejariam. E as mulheres que tanto almejam Tanner teriam um
novo homem preferido.
— Por que está aqui? — Me assusto quando ele se vira e me olha com
aqueles olhos verdes.
Sinto a respiração dele se tornar mais pesada e percebo a expressão
frustrada, dando-me conta de que devo sair.
— Desculpe eu... eu não queria te...
Antes que eu possa me desculpar e sair, ele caminha até mim. Percebo
que o cabelo tem uma única mecha branca que se destaca nos fios escuros.
Ele para na minha frente — é claramente muito mais alto que eu — e
olha por cima da minha cabeça.
— Minhas sombras a trouxeram até aqui? — pergunta em um tom
irritado.
Aquilo que brincou comigo e que me derrubou eram sombras? Que
estão vivas?
— Responda-me! — a voz ficou mais forte.
Meus olhos vão de um lado para outro e meu corpo se movimenta sem
ter permissão. Minhas pernas se mexem sem eu querer. E corro pelo
corredor.
PARTE
Corro sem me importar se vou cair, tropeçar em algo ou quebrar
alguma parte. Peço que as sombras me ajudem a encontrar outro caminho.
Sinto os passos dele se aproximando, pela intensidade deve estar com
raiva. Eu não deveria ter ido até lá.
Amaldiçoou as sombras por terem me levado. Elas queriam acabar
comigo de vez?
Acabo derrapando no último degrau. Me forço a continuar e consigo
encontrar uma maçaneta perto da escada enquanto me segurava na parede.
Sem pensar duas vezes, abro a porta e entro.
Me encosto na madeira e peço que ele não tente abrir. E assim
brincamos de esconde-esconde.
Encosto a cabeça na porta e fecho os olhos tentando escutar algo.
Os passos se aproximam ainda mais e, com um simples empurrão, a
porta se abre.
Assim ele me encontra. Fim de jogo.
— Por favor — peço. — Não me machuque.
Penso que o meu pedido na verdade serão as minhas últimas palavras,
mas, ele chega mais perto, se abaixa e diz:
— Tudo bem, pode ficar aqui. — A voz dele não demostra compaixão.
Ele se levanta e bate à porta com força. Meus ossos tremem com a
batida. Eu mesma me prendi aqui, eu deveria ter fugido do reino, poderia
ter sido devorada pelos lobos, mas pelo menos não estaria congelando aos
poucos com a umidade e os pequenos flocos de neve que entram pela janela
quebrada.
Minha mente desperta... Tem uma janela quebrada!
Os vidros estilhaçados no chão me dão um pouco de esperança. Tento
abrir a porta, mas está trancada, o cômodo possui apenas um tapete e uma
estante com objetos antigos. Meus olhos vão novamente para a janela que é
a minha única chance. Me aproximo e olho para minha mão, tento fechá-la
mais a dor percorre o meu corpo gelado e percebo que não conseguirei
quebrar o restante da janela para passar.
Me encolho em um canto e tento cobrir meu corpo com o manto, mas
não adianta, o cômodo é congelante. Meus olhos começam a ficar pesados,
meu corpo não me obedece mais. Tento me levantar, mas caio no chão
mesmo antes de poder me segurar na maçaneta. Minha respiração começa a
ficar fraca e não sinto mais nada. A última coisa que escuto antes de meus
olhos se fecharem por completo é a porta se abrindo.
Acordo em um quarto grande com joias encrustadas em quase todos os
moveis, que não são poucos. Me levanto, forçando as mãos na cama e logo
aperto os olhos por causa da dor.
Duas sombras se afastam um pouco. Elas têm formas de pássaros,
mais especificamente de corvos, são densas, mas se movem com tanta
leveza que parecem fumaça. Observo ao meu redor e as duas cores que vejo
no cômodo é branco e dourado, a enorme janela de vidro mostra o céu azul
claro com o sol bem no alto dele.
— Por que estou aqui? — pergunto para a densa nuvem escura.
Ela se aproxima e me empurra.
— Quer que eu desça da cama?
Ela me empurra novamente e vai até a porta.
Saio e a acompanho pelo corredor. O breu ainda permanece no lugar,
mas parece mais claro que antes.
Desço as escadas e paro em frente a uma porta. A sombra entra e
quando não a sigo, ela volta e me empurra novamente.
— Empurrar é o único jeito que sabe de dizer “vem”?
Ela me empurra novamente e levo isso como um “sim”.
A sala de jantar é o único lugar iluminado fora o quarto.
Uma enorme mesa com frutas está no meio do cômodo com enormes
lustres que iluminam a sala. Na ponta da mesa está a criatura me encarando.
Dou um passo para trás e a porta se fecha. Olho e as sombras estão tomando
conta dela.
— Pode se aproximar — ele diz, sentado na cadeira.
Olho na direção dele, porém não me movo. Meus pés tentam
caminhar, mas eu os forço a continuar onde estão.
— Vamos, venha cá. — Insiste ele fazendo sinal com os dedos para
que eu me aproxime.
Suspiro e caminho. Paro a uma distância razoável e me preparo para
que ele crave a faca que segura em mim.
Ele arqueia a sobrancelha e revira os olhos. Faz um sinal com a mão e,
em alguns segundos, uma das sombras me empurra até uma cadeira ao lado
de onde a criatura está sentada.
— Sente-se! — ordena.
O medo está sobre mim, então olho para a cadeira e a puxo para me
sentar. Ele acompanha meus movimentos enquanto me ponho à mesa. A
sombra arrasta um prato com frutas até mim e agradeço com um sorriso
fraco.
Quando coloco um pedaço de maçã na boca, a voz forte dele me faz
parar:
— Por que não fala?
Abaixo o garfo.
— Porque acho melhor ficar quieta.
Ele me observa por alguns segundos e demora a desviar os olhos de
mim.
— Nem sequer agradeceu por ter salvado você.
— Você me trancou, não entendo o motivo de ter voltado.
Ele ri e apoia a faca no prato.
— Voltei por causa delas. — Ele aponta para as sombras que estão ao
meu lado. — Elas me perseguiram e me empurraram até eu abrir a porta.
Quando entrei, você já tinha desmaiado.
Olho para ele, que volta a comer uma espécie de pãozinho.
— Obrigada — agradeço as sombras.
Ele me olha com raiva.
— Agradeça a mim, não a elas.
— Se não fosse por elas, você não teria me salvado — confronto.
A expressão relaxa, ele respira fundo e termina de comer. A criatura se
levanta da mesa e caminha até a porta. O meu corpo se levanta também,
sem eu querer, e corre atrás dele. Meus olhos doem quando tento ver na
escuridão, bato em algo quando caminho mais à frente.
— Por que me seguiu? — a voz me causa calafrios.
Se eu disser que também não sei... será que ele acreditará? Não,
provavelmente não.
Dou um passo para trás e cambaleio até a janela. Me seguro na cortina
e acabo rasgando um pedaço do tecido. Um pouco de claridade invade o
lugar e ele se irrita.
— Quer destruir a minha casa? Não basta ter entrado no meu quarto
sem permissão, ou então ter quase morrido porque entrou em um cômodo
no qual não foi chamada, ainda tem que destruir o pouco que ainda presta?
— Me desculpe.
Ele anda até mim, mas as sombras entram na frente.
— SAIAM DAQUI — ele grita, mas as sombras não se movem, então
me olha com raiva. — Você acha que tudo se resolve com uma simples
desculpa? Essa palavra sempre foi a resolução dos seus problemas?
Pelos Deuses, alguém me tira daqui, por favor.
Meu estômago se embrulha, minhas pernas tremem, mas os meus
olhos encontram os dele e minha voz se ergue.
— Por que está tão irritado? Ficar assim também sempre foi a
resolução dos seus problemas? Olha, eu não queria estar aqui, ainda mais
com um monstro estupido e raivoso que nem você. Por que manda esse
maldito inverno e faz com que os moradores estraguem a vida de outras
pessoas?
As sombras saem da frente e, antes que eu perceba, ele me prende na
parede. Não tenho coragem de olhar para cima, sinto o peito dele chegar
mais perto de mim, sinto os olhos acima da minha cabeça. A mão com as
garras coloca o meu cabelo atrás de orelha, ele se abaixa um pouco e
consigo sentir a boca extremamente perto quando ele sussurra no meu
ouvido.
— Já me disseram isso. Eu sabia que não veio até aqui porque quis.
Ninguém vem.
Um arrepio percorre o meu corpo quando a mão segura o meu rosto e
ele vai até meu pescoço. O toque é tão delicado que poderia enganar
qualquer um.
— Está com medo? — sinto ele suspirar contra minha pele — Consigo
sentir o cheiro dele.
Seguro a mão dele com os dedos trêmulos e a retiro de meu rosto.
Com a voz falhando, digo:
— Me deixe ir, por favor.
Ele se afasta e me olha. Eu penso que vai rir, falar que nunca deixaria
seu sacrifício ir embora, mas me surpreendo com a palavra.
— Vá.
Meus olhos se arregalam e sinto a porta abrir, ele me olha com uma
expressão diferente e, sem pensar muito, ando até a entrada e saio correndo
quando percebo que é verdade, quando vejo o céu e percebo que realmente
posso ir. As sombras tentam me impedir, mas ele grita de dentro do castelo.
“Ela pediu para ir, deixem-na”.
O ar frio que invade os meus pulmões faz eu me sentir viva. Tão
viva...
Não me importo com o ar frio que sopra em mim, não sinto minhas
pernas correndo, apenas sinto o momento em que posso ser livre.
Corro pelo jardim com flores e lagos congelados. Chego até o portão e
ele se abre quando eu me aproximo. Do lado de fora, as pegadas ainda
permanecem como se tivessem passado por aqui há pouco tempo. Percebo
os tamanhos diferentes de sapatos, o caminho que fiz quando corri até
Tanner... elas ainda estão aqui, a neve que caiu esses dias não cobriu as
pegadas.
Os flocos de neve começam a cair e sou obrigada a puxar o capuz do
manto. Desço a montanha tomando cuidado para não escorregar no gelo.
O dia parece mais curto do que de costume, o céu começa a escurecer
quando fico em frente ao lago que está com a metade do gelo quebrada. Ele
não possui ponte, apenas água e gelo. Meus pés se pressionam na camada
de água congelada e peço para que não quebre quando coloco o outro.
Ando a passadas curtas e lentas, tentando pisar nas partes mais firmes
do gelo. Passo pelo lago e fico feliz por já estar longe daquele lugar, por já
estar quase perto de casa, mas eu não voltarei.
Claro que eu não voltarei, eles me jogaram novamente nas paredes
obscuras e me trancarão na escuridão. Eu vou para um lugar bem longe, um
lugar tão longe que nunca me encontraram.
A noite cai rapidamente sobre Helinor, mas não parece ter passado
tanto tempo.
O som dos animais na floresta das almas perdidas é mais forte à noite
do que de manhã, as árvores com galhos e folhas congeladas batem um nos
outros quando o vento os mexe. O tim-tim que as folhas fazem parece com
o som de alguém batendo o garfo na taça para propor um brinde.
A neve faz um som irritante enquanto caminho por ela, minhas
pegadas ficam para trás na camada branca enquanto sigo meu caminho
andando em meio as árvores cobertas por gelo. Aperto o manto no corpo
quando o frio começa a me incomodar, um vento gélido passa por mim,
jogando alguns fios de cabelo para trás, meu rosto parece congelar naquele
momento e minha garganta começa a doer.
Antes que possa cruzar a floresta por completo, escuto algo se
mexendo nas árvores, assustada, olho para cima, sem parar de andar. À
minha frente tem uma ladeira que faz o meu corpo perder equilíbrio quando
piso em falso. Caio e rolo morro abaixo e apenas quando colido em uma
árvore, o ar do meu corpo sai e sinto uma dor terrível nas costas, a pancada
faz com que o barulho do gelo nos galhos aumente.
Levanto com a mão sobre o quadril e limpo a neve da roupa, meu
corpo congela, não pelo frio, mas, sim, pelos uivos de coiotes. Escuto
passos na neve, os uivos ficam mais altos e o meu corpo se move.
Me seguro nas árvores quando pego embalo para frente, nas pequenas
montanhas de neve, tentando ao máximo firmar os pés no solo. Escuto os
animais se aproximarem e quando olho para trás, um deles me ataca.
A matilha segue em frente enquanto tento escapar das garras do que
está em cima de mim, as presas afiadas estão a poucos centímetros de meu
rosto. Minhas mãos vão até os olhos dele, pressiono os dedos até o animal
se distrair com a dor e eu conseguir jogá-lo para o lado.
Minhas mãos tateiam o gelo e consigo pegar um pedaço de madeira
que encontro no meio da neve, seguro forte e bato com força na cabeça do
animal. Tento me levantar, mas as minhas pernas fraquejam pela adrenalina
e caio de joelhos na neve. Logo estou com o rosto na camada branca e sinto
garras rasgando minhas roupas e arranhando minhas costas.
Algo se aproxima, o coiote grita e aquilo arremessa o animal em uma
árvore, vejo botas pretas na minha frente. A voz que eu escuto..., a voz me
causa arrepios.
— Você está bem? Ajudem-na a se levantar.
As sombras se desfazem de suas formas e se enrolas em volta de mim.
Elas me apoiam no chão e sustentam o meu corpo. A criatura dá um passo à
frente com as asas semiabertas atrás das costas. O coiote rosna e, com mais
um passo da criatura, o animal se vira e corre. Ele mostrou que é mais forte,
e eu deveria ter feito isso também. Até parece que iria lembrar disso, nessas
horas só queremos correr, não importa o quão corajoso você é, no desespero
o medo sempre fala mais alto.
A criatura anda até mim e me observa, o olhar vai até os pedaços de
tecidos rasgados e com manchas de sangue.
— Venha, vamos sair daqui — diz ele, me estendendo a mão.
Eu não consigo respondê-lo, a dor e o medo não me deixam pensar em
quase nada. Por desespero e exaustão, apenas seguro sua mão e aceito a
ajuda.
Mais uma vez eu vou parar naquele buraco negro.
Minhas costas doem, minha cabeça gira e o meu estômago se
embrulha. As sombras me guiam escada acima e a criatura me acompanha
por trás. Quando me dou conta, estou em frente ao quarto dele, firmo os pés
e impeço que as sombras me levem para dentro.
— Pode entrar — ele diz atrás de mim, com a voz firme e gélida.
Não respondo e nem faço movimento para entrar.
— Não precisa ter medo, eu vou te ajudar com os ferimentos... se
forem limpos corretamente a dor diminuirá.
Me viro e o olho com uma expressão vazia.
— Eu não estou sentindo dor — minto, mas querendo que fosse uma
verdade.
Pela expressão, percebo que ele sabe que estou mentindo.
— Se não quiser que eu cuide deles, fique à vontade para pedir as
sombras, elas parecem gostar muito de você.
Minhas mãos começam a suar frio e as minhas pernas tremerem. Sem
me dar conta, entro no quarto, ele me acompanha e me pede para deitar de
bruços. A criatura usa algumas plantas medicinais e panos para limpar as
feridas.
A cada vez que ele passava os paninhos molhados e aplicava o
remédio as reclamações queriam se tornar gritos.
Quando finalmente termina, ele se levanta e caminha até uma cômoda
e me entrega uma roupa. Uma calça, camisa e um casaco.
— Levante-se com cuidado. Eu vou tentar fazer algo para você comer.
Ele sai do quarto enquanto tento me levantar da cama, fecho os olhos
com força quando consigo sentar e reclamo ainda mais quando tento
levantar os braços. Passo os dedos com cuidado pelo meu cabelo, que está
com neve e galhos presos nos fios embolados. A trança se desfez por
completo, tento soltar os nós e, quando finalmente consigo, retiro o
enfeite.
O pavão era o animal favorito da minha mãe e esse era um dos enfeites
de cabelo preferidos dela. Não faço ideia de onde minha tia o achou, mas
fico feliz por não ter perdido.
Retiro o manto e o vestido rasgado, vestindo as roupas que ele me deu.
Elas ficam largas, mas é melhor do que as roupas estragadas. Guardo o
enfeite em um dos bolsos e respiro fundo quando saio do quarto.
Desço até a cozinha e o vejo na mesa. Ao lado tem um prato que está
tão quente que o vapor é visível a uma boa distância.
— É sopa — diz, fazendo sinal para eu me sentar. — Mas não tem
muita coisa.
Me sento na cadeira, tentando não me importar com a ardência, minha
mão pega a colher e levo até o prato, assopro e coloco na boca.
Ele me observa enquanto como o que poderia ser tudo, menos uma
sopa.
Levanto o olhar para ele e pergunto:
— É você que faz a comida?
Ele faz um sinal positivo com a cabeça e olha para o prato.
— Normalmente, mas não como muito, apenas quando a fome aperta
o estômago. Está ruim?
Ele me pergunta de um jeito tão inocente que provavelmente a culpa
me invadira se eu disser a verdade.
Mas é nesse momento que eu encontro um jeito para provocá-lo.
Qual seria a reação dele se eu falasse...
— Está — digo, colocando outra colher na boca.
Ele me olha e fica parado por um tempo parecendo incrédulo com a
resposta, mas logo depois pressiona os lábios.
— Ingrata, eu faço algo para você comer e ainda reclama.
Escondo um sorriso.
— Dá para comer — mostro a colher e a levo até a boca novamente.
Ele bufa e eu acabo dando um sorrisinho, mas escondo com a mão.
Ele cruza os braços e franze a sobrancelha. Desvio o olhar para o outro
lado da sala e ficamos em silêncio até eu terminar a comida.
Me sento no sofá do lugar que imagino ser a sala.
A noite domina o mundo lá fora. O frio invade as paredes e faz o meu
corpo tremer. A única luz que invade o lugar vem dos pedaços de cortinas
rasgadas que permitem que a luz da lua entre. As sombras ficam por perto
enquanto estou sentada, observando o vazio.
Será que ele me “salvou” por que percebeu que tinha deixado seu
sacrifício ir embora e não queria perdê-lo por animais? Bom, não sei se
preferiria ser devorada pelos coiotes ou esperar o meu fim tão demorado.
O vento que joga as mechas do meu cabelo para frente também
enrijece o meu corpo. Os passos dele me causam frio na barriga e parece
que irei dormir para sempre a cada vez que se aproxima.
Ele coloca um cobertor nos meus ombros e caminha até ficar à minha
frente. Os olhos verdes observando o meu rosto e as mãos ajeitando a
coberta me fazem ficar imóvel. Tento retirar aquilo de mim, mas ele enrola
ainda mais quando faço menção de jogar a coberta para o lado.
— Se cubra, os seus lábios estão ficando roxos.
Ele se levanta e pede que as sombras o tragam lenha, elas buscam
alguns pedaços e jogam na lareira a minha frente, com alguma coisa ele faz
um borrão de vermelho e laranja aparecerem. Há quanto tempo eu não via
algumas chamas de fogo?
— Por que ainda está comigo aqui? — As palavras escapam para fora
da boca.
Ele se senta em uma poltrona ao lado da lareira.
— Eu não a deixei no frio porque assim como a outra moça, você teve
o azar de nascer em um reino em que as pessoas vivem uma ilusão.
O olho confusa, e ele parece perceber.
— Posso contar uma história?
Faço um sinal de sim com a cabeça, ele se encosta ainda mais na
poltrona e respira fundo
— Helinor era um reino que tinha fortuna, os moradores eram felizes,
não existia miséria... até que em certo dia invernos rigorosos chegaram
matando plantações e trazendo a fome. A última colheita não foi o
suficiente até o fim da estação. O rei desesperado foi atrás de reforços.
Viajou até o reino mais próximo, que estava no verão. Chegando lá ele foi
ignorado pelo governante e voltou para casa com as mãos vazias. O povo
decepcionado foi até a feiticeira que habitava a montanha na floresta dos
corvos, os moradores pediram ajuda a ela, mas ela recusou. Com raiva,
pensando ser egoísmo ameaçaram atacar a feiticeira, dizendo ser ordens do
rei. Ela, ao se sentir ameaçada lançou uma maldição, transformando o rei de
Helinor em algo medonho. A mente de seus súditos foi alterada fazendo-os
acreditar que seu rei era quem amaldiçoava as terras. Desesperados, eles
mandaram uma moça até seu castelo, pensando que seu sacrifício acalmaria
a ira do monstro, dias depois o inverno chegou ao fim — ele encosta a
cabeça na poltrona e faz uma pausa longa — Eles concordaram que de 100
em 100 anos trariam uma jovem até mim acreditando que acalmaria a ira
que nunca tive...transformando Helinor em um reino de mentiras.
Meu olhar se fixou nos olhos dele.
A lenha estala com as chamas altas do fogo, o barulho me faz perceber
o que ele acabou de falar.
— O que você fez com a outra?
— A deixei ir. Você até que ficou um bom tempo aqui.
Minha testa se franze.
— Por que não me deixou ir assim que entrei?
— Porque não podia fazer isso se você não me pedisse, a casa não
obedece. Por isso tentei fazer com que suplicasse para que eu deixasse-a ir.
A tranquei naquele cômodo porque pensei que pediria por liberdade.
Aperto o cobertor em volta do corpo e observo as cinzas que são
formadas na lareira.
— Então os sacrifícios não resolvem o tempo lá fora?
Ele balança a cabeça de forma negativa.
— Esse inverno acontece de forma natural; acaba quando quer,
ninguém pode mudar o ciclo.
— Está aqui há muito tempo? Não pode sair?
Ele ri baixinho e olha em direção a janela.
— Posso, mas não é sempre. O portão se abre as vezes, mas o espaço
que tenho permissão para caminhar é limitado. Sorte sua ele ter aberto
hoje.
— E por que foi atrás de mim?
Ele não tinha motivos para ir atrás de mim, ou tinha?
— Quando saiu, eu a observei voltar pela floresta das almas perdidas e
então escutei os uivos dos coiotes. Embora possa achar o contrário, não sou
malvado a ponto de deixar uma pessoa inocente ser rasgada e devorada por
animais.
Ele se levanta da poltrona e para na minha frente, meus olhos
encontram os dele, as asas se ajeitam atrás das costas e as garras são
escondidas dentro dos bolsos da calça.
— Amanhã, me peça para ir novamente.
Observo a neve rigorosa caindo do lado de fora por uma brecha na
cortina, só de olhar para o horizonte além da janela já sinto o frio cortando a
minha pele. As noites no inverno costumam ser perigosas pelos animais que
saem caçar e eu aprendi isso do pior jeito.
— Ninguém em casa espera minha volta — digo, colocando os pés no
sofá e os cobrindo. — Não tenho para onde ir.
Penso nos momentos que passei fome ou então nos quais eu vomitava
durante longos minutos por conta da comida vencida. Lembro das vezes
que escutei coisas absurdas e tive que ficar calada para não ser punida.
Lembro de todas as vezes que quis gritar até os meus gritos ecoarem,
lembro de cada lágrima que derramei.
Meus pensamentos são interrompidos quando ele diz:
— Eu vi... as cicatrizes. Você sofreu não é mesmo?
Quando ele me lembra das chicotadas, a raiva se incendeia dentro de
mim.
— Confrontar alguém que se acha superior a você nunca é a melhor
escolha.
Ele se senta no sofá ao meu lado e, por instinto, quase me afasto
quando o sinto perto. Mas não movo o corpo. Algo dentro de mim me faz
ficar...
— Pensei que queria voltar para a casa. Não sabia que era assim que
passava seus dias.
Ele está sendo gentil? E por que sinto um pouco de pena dele?
— Eu prometi que seria forte, falei que ninguém tocaria em mim sem
a minha permissão, mas fracassei quando deixei me chicotearem — um
gosto amargo emerge na minha boca quando falo isso.
Parece que ainda sinto o cheiro do sangue que escorria por minhas
costas, parece que ainda sinto e ouço cada estalo do cinto, a dor que fazia
minha voz sair cada vez mais quebrada parece me sufocar.
— Eu quero recomeçar a minha vida — concluo.
Ele cruza os braços e um sorriso malicioso surge em meu rosto.
— Como é o seu nome, pequena?
Encontro os olhos verdes e dessa vez não sinto medo.
— Orianna Ekihan — respondo com um leve sorriso. — E o seu,
senhor das trevas?
— Callen Henliner — responde, revirando os olhos e sorrindo.
Ele parece não se sentir muito confortável com a minha presença,
nunca me olha por muito tempo. Embora me ajude em algumas coisas,
quem me guia e me acompanham são as sombras. Eu até entendo, passar
tanto tempo sem ver alguém deve ser difícil e desconfortável quando
finalmente tem um corpo de carne e ossos por perto. E ainda mais
desconfortável quando jogaram o corpo sem ele ter pedido.
As sombras me levam até o corredor do quarto dele e me empurram
porta adentro. Encontro-o tirando a camisa quando sou atirada para dentro
do cômodo, ele se vira e me olha, confuso.
— O que foi?
As sombras vão até ele e o empurram até tirarem-no do quarto.
— O que está acontecendo? Ficaram malucas?
Ele me olha quando elas o tiram para fora.
— Não me olha assim, elas que me empurraram aqui — me defendo.
Ele olha na direção da cama e eu também olho, as sombras se
aconchegam nos travesseiros e cobertores.
— Ah, elas querem que eu a leve a algum lugar para dormir. Venha.
Caminhamos pelo corredor até chegarmos a uma porta, ele a abre e
entra. Dentro do cômodo tem uma janela não muito grande, mas que
também não está escondida pelas cortinas.
Uma cama grande fica ao lado de uma penteadeira e um tapete felpudo
cobre metade do chão.
— Pode ficar aqui — ele diz, se virando e saindo.
As sombras invadem o cômodo e se ajeitam na cama. Vasculho o
armário pequeno que fica próximo a janela e encontro um cobertor, me
deito no colchão e tomo cuidado com as feridas. Me concentro na maciez
da cama e dos travesseiros. É bom dormir em algo que se parece com penas
do que na madeira sendo devorada pelos cupins. É bom não ter que se
encolher no pedaço de cobertor que me restava para não acabar
congelando.
Os machucados ardem, mas não deixo me incomodarem. As cobertas
felpudas e quentinhas tiram minha mente da ardência e fazem eu me
concentrar apenas no conforto até eu ser puxada pelo sono.
Encontro pares de olhos me encarando quando acordo. Me levanto
rápido e minha cabeça parece o mar em dias de tempestades.
Callen não diz nada quando eu o olho com raiva, ele me encara como
se eu fosse uma presa distraída. Os olhos vão de um lado para o outro
quando me mexo, as sombras continuam emboladas nas cobertas, mesmo
quando eu saio da cama.
— Eu posso saber o motivo de estar me encarando enquanto durmo?
— Se aceitar o fato de ter dormido por 3 dias seguidos — ele responde
com um tom de voz casual.
Meus olhos se arregalam e observo o sol no topo do céu.
— Eu perdi 3 dias? — pergunto, indignada, olhando fixamente para a
cama.
Ele apenas se vira e sai do quarto, corro atrás dele sem saber ao certo
do porquê eu corri.
— Será que poderia devolver o meu vestido? — pergunto assim que
me lembro das minhas roupas.
As asas se movem e parece ficarem rígidas.
— Por que eu não percebi você se aproximando?
Minha testa se franze, não é normal, às vezes, você não sentir a pessoa
se aproximando?
— Eu não sei, mas eu queria o meu vestido de volta.
Ele me olha de cima a baixo, até os olhos pararem nos meus.
— Não gostou das roupas? Seu vestido estava rasgado demais, o
joguei fora.
— Ei, eu não posso ficar com essas roupas para sempre.
Ele se vira e me deixa falando sozinha, tento ir atrás, mas as sombras
me impedem. Elas me levam até o quarto novamente e vão até o pequeno
armário, onde seguro nos puxadores da porta e a abro. Dentro dele tem um
vestido e um manto, ambos na cor azul marinho. O vestido tem mangas
longas, um decote discreto na frente e a saia longa possui bordados no
formato de flocos de neve. O manto também possui os mesmos bordados.
— Desde quando isso está aqui?
Retiro-os do armário e visto, penteio o cabelo e fico com as mesmas
botas nos pés.
Me recordo do enfeite e logo tateio o bolso da calça que usava e o
encontro, aperto-o na mão e o guardo em uma gaveta.
Desço as escadas e o encontro na frente da lareira, observando o fogo
estralar a madeira. Os olhos estão fixos nas chamas que crescem aos poucos
e deixam cinzas no chão.
Me aproximo e as sombras me trazem uma travessa com frutas. Me
sento no sofá de frente a lareira e começo a comer.
— Apenas não exagere, os alimentos estão acabando.
Coloco a travessa de lado e assinto com a cabeça.
— Não sai todo dia para pegar comida, né?
Ele ri baixinho sem tirar os olhos do fogo.
— Não. Posso sair às vezes, mas tenho tempo.
Menina boba, ele já tinha dito isso.
Quando você não tem assunto e não quer ficar no silêncio
constrangedor, você acaba fazendo perguntas desnecessárias...
Uma dúvida vem à minha mente, mas por um momento hesito em
perguntar. Só que as palavras parecem ter vida própria e elas acabam saindo
de minha boca.
— E se tentar escapar? Se sair e ficar o tempo em que não é
permitido?
Ele finalmente tira os olhos do borrão vermelho. O fogo reflete nos
olhos verdes e, no momento, sinto medo.
Ele tem um olhar poderoso, que emana grandeza, Callen pode causar
medo quando bem entender.
— Uma barreira surge, como se fosse uma névoa densa que não me
permite passar, além de causar dor se eu tentar seguir. — Ele respira e
morde a parte interna da bochecha. — Aqui é como uma prisão, não tenho
liberdade e quando tenho é limitada, a única diferença é que não fiz nada
para ser preso. Tudo isso é por causa de um inverno e um povo que não
soube esperar outra solução.
Sua voz denuncia uma mescla de tristeza e inconformidade. Ele tem
sede de liberdade. Assim como eu.
Dias se passam...
As manhãs quase nem existem, as tardes são curtas e as noites passam
como se fossem a correnteza de um rio.
Faz mais de uma semana que estou aqui, quase não vi Callen e as
sombras sempre me acompanham nos cômodos escuros. Minhas mãos
coçam de vontade de arrancar as cortinas das janelas, os panos dos moveis,
deixar o lugar um pouco menos abandonado.
Sempre que tento abrir a porta, as minhas mãos parecem queimar, o
ferro fica em uma temperatura tão alta que parece ser aquecido por horas.
Meu vestido está sujo com a poeira e não tive a oportunidade de tomar
banho. Os livros que encontrei estão escritos em outros idiomas e tudo o
que posso fazer é conversar comigo mesma ou com as sombras, me
iludindo com a ideia de que algum dia elas vão me responder.
O som das penas se arrastando no chão me dão um pouco de ânimo, o
meu corpo implora por um pouco de água.
— Onde tem banheiro aqui? Preciso de água — pergunto, seguindo até
a cozinha.
Ele caminha até um armário retira um copo e vai até a pia, ele se vira e
me entrega um copo de água.
— Obrigada. Mas é para tomar banho.
— Terceira porta à esquerda do seu quarto. Deve ter algum roupão em
um cabideiro, pode usá-lo e lavar o vestido que, pelo que percebi, você
gostou.
Observo o tecido que cobre o meu corpo.
— Quem o fez?
Ele coloca algumas uvas na boca e quando termina de comer me
responde:
— Minha mãe — os olhos que encaravam o chão se erguem e
percorrem meu corpo até alcançarem os meus — inclusive, como achou
ele?
Aponto para as sombras atrás de mim e ele as encara.
— Por que gostaram tanto de você?
Balanço a cabeça, também não sabendo a resposta.
Quando ele está quase saindo do cômodo eu o impeço.
— Quando a porta e o portão se abrirem novamente, quer dar uma
volta?
Ele para bruscamente, e me olha por cima do ombro com uma
expressão vazia. Consigo observar um sorrisinho em sua boca antes de virar
a cabeça para frente novamente e assentir.
Ele desaparece na escuridão sem dizer nada. É como se não tivesse
esperança de poder sair...
A cada floco que cai, a temperatura diminui mais do que deveria e a
presença dos animais invernais aumenta mais do que o normal, monstros
decidem sair de seus cantos e revelar as faces assustadoras. Esses monstros
parecem viver em minha mente, pode ser a face desconfigurada de pessoas
que me fizeram sofrer e agora me causam medo.
A água da banheira esfria assim que coloco os pés dentro, as
rachaduras nas paredes não deixam o calor se manter dentro dos cômodos.
Me forço a entrar na água mesmo não estando na temperatura ideal, mesmo
que meus membros se congelem. Retiro as faixas da mão e percebo que
meus dedos já estão bem melhor, ainda não consigo dobrá-los como antes,
mas forço minhas articulações a se fecharem em um punho.
Lavo o vestido e o manto na pia do banheiro e consigo ouvir os estalos
das gotas de água que caem no chão.
A água logo fica densa por causa da sujeira do meu corpo, a espuma
que o sabão faz sobre minha pele se torna um pouco mais escura do que eu
costumava a ver.
Os fios brancos flutuam pela água e inclino a cabeça para trás até
molhar a minha testa.
Assim que saio da banheira, procuro imediatamente pelo roupão e me
enrolo no tecido de algodão quando o acho. Penteio o cabelo com os dedos
e esvazio a banheira.
Paro em frente ao espelho e vejo o meu rosto limpo, ainda tem alguns
pontos vermelhos pelas quedas. Abaixo um pouco o roupão até meus
ombros e meu colo ficarem à mostra, o machucado de quando caí da escada
no chalé ainda permanece ali, passo os dedos por cima e agradeço por não
doer, abaixo mais um pouco até a metade das minhas costas ficarem nuas e
observo os dois cortes que começaram a cicatrizar no reflexo do espelho; as
garras do coiote ficaram desenhadas na horizontal e cada uma vai dos
ombros até o final da cintura, as outras marcas são das chicotadas de
tempos atrás ou as recentes que já estão cicatrizadas, mas a forma com que
o chicote atingia a minha pele continuam, essas cicatrizes nunca vão
desaparecer.
A escuridão dos cômodos está me deixando louca, a cada dia tenho
vontade de arrancar as cortinas e deixar a luz entrar. Desço as escadas e
vou, novamente, até a porta. No momento que as pontas de meus dedos
encostam no ferro, a ardência toma conta de minha mão.
— Perca a esperança de sair daqui essa semana. — Ele se aproxima,
também encostando na porta, mas as mãos também se queimam.
Caminho até o sofá e me sento, tentando não sentir a poeira se
levantar.
— Você poderia ter ido embora há um bom tempo.
— Claro, porque da última vez deu muito certo, não é?
Ele ri.
Ele caminha até a janela mais próxima e segura a cortina, com um
movimento brusco ele a coloca de lado, deixando a claridade entrar através
do vidro.
— Bom, da primeira vez você só pensou na liberdade. Mas não a
culpo. Também fugiria daqui se tivesse esse poder.
Levanto e caminho até ele, seguro a outra parte da cortina e a empurro
um pouquinho.
— Vamos dar liberdade para esse lugar, mantê-lo preso no escuro não
o deixará andar para se soltar das correntes.
Ele retira a cortina de minha mão e, com outro movimento brusco, a
empurra de lado.
— Tudo bem, liberte a minha casa se isso a fará se sentir melhor.
Me viro para observá-lo, mas os olhos dele já estão sobre mim, dou
um leve sorriso e ele retribui a expressão.
Ele abre as cortinas que escondem o mundo lá fora.
— Conseguem me trazer um pouco de palha? — pergunto para as
sombras.
Elas se desfazem de suas formas e passam pelas rachaduras das
paredes e depois de um tempo retornam com o que pedi. Junto todas e
amarro com um pedaço de tecido.
Molho outro paninho e começo a limpeza.
Retiro todos os lençóis que cobrem os móveis e tento limpar tudo o
que consigo. A sala do trono fica atrás de uma enorme porta de vidro ao
lado das escadas, o salão é enorme, com lustres no teto, janelas grandes,
mesas vazias e o trono no final dele. Entro na sala e sou atraída pela beleza
do lugar.
Pilares de vidros ficam ao lado do trono negro e em um deles a coroa
fica guardada. Ela brilha como se tivesse milhares de pedras preciosas e o
salão é o único cômodo que está completamente limpo. Me afasto e fecho
as portas quando saio, mas meus olhos são atraídos pela coroa que parece
me chamar, forço os olhos a encarar outras coisas e me afasto do cômodo.
Continuo a limpeza e a cada vez que eu abaixo algumas mechas de
cabelos caem sobre meu rosto, não importa quantas vezes eu as jogue para
trás, elas sempre caem novamente.
— Está irritada com os fios de cabelo?
Olho ao redor e encontro uma tira de tecido, pego e levo para ele. A
testa dele se franze ao me olhar sem entender o porquê estou lhe entregando
aquilo.
— Faz uma trança em mim?
— Não sei fazer isso — conclui ele, abrindo a minha mão e me
devolvendo a tira.
Abro a mão dele e coloco o pedaço de tecido na palma e a fecho
novamente.
— Eu ensino, vem.
Caminho e logo percebo que ele está parado.
— Anda!
Ele balança a cabeça de forma negativa e volta a arrastar os móveis
para limpar.
— Ai! Ai! Ai! — reclama quando pego nas asas e as puxo.
Me sento na cadeira mais próxima e faço com que ele fique atrás, com
meu cabelo nas mãos.
— Separe-o em três partes.
Ele hesita por um momento, mas separa as mechas.
— Agora você pega a mecha direita e passa por cima da mecha do
meio, depois a mecha da esquerda você passa novamente pela mecha que
está no meio e assim vai até acabar.
Ele embola as mechas nas primeiras tentativas. Depois de soltar e
recomeçar umas três vezes, ele consegue terminar.
— Agora você enrola a tira e dá um nó, como se estivesse amarrando
os cadarços das botas.
As garras parecem dificultar na hora de amarrar o tecido, mas sinto-o
apertando a tira.
Meu olhar vai até a janela, e pelo reflexo o vejo olhando fixamente
para meu cabelo, ele parece ter ficado orgulhoso por ter conseguido. Tanto
que quase consigo ver um sorriso vindo dele.
Callen percebe meu olhar e encontra meus olhos no reflexo da janela.
Ele pigarreia e diz:
— Pronto! — Ele se vira e continua o que estava fazendo.
— Obrigada — agradeço, sorrindo por como ele ficou depois que
percebeu que eu o observava.
Quando terminamos, o castelo parece outro lugar, o ar denso ficou
mais leve e meus olhos agradecem por conseguir enxergar.
Callen bufa e anda até as escadas, provavelmente cansado de empurrar
móveis e limpar os cômodos.
— Fraquinho você, né? — pergunto, atraindo o olhar dele.
— Esse castelo tinha mais de 50 funcionários, queria que eu estivesse
como depois de limpar todos os 25 cômodos dele?
— Eu fazia isso todo dia em cas... — paro no meio da palavra. Aquela
nunca foi minha casa. — Enfim, estou acostumada a trabalhar arduamente.
Ele dá de ombros, se vira e começa a subir os degraus da escada.
Suspiro e dou alguns passos para trás, e sem perceber a porta atrás de
mim acabo esbarrando nela. Minhas mãos vão até o ferro, mas dessa vez
elas não ardem, não queimam... por curiosidade, seguro a maçaneta com
força e a puxo. Sinto o vento frio cortante entrar pela abertura, respiro
fundo, tentando levar o ar gélido para meus pulmões, apenas para saber se
realmente é verdade.
— Callen, a porta! — É tudo que consigo dizer.
Ele para no alto da escada e se vira. Os olhos reluzem vendo o mundo
lá fora, vejo os músculos relaxarem e as pontas das asas tocarem o chão.
Me volto para a porta aberta, mas antes que meus pés possam correr para
fora e tocarem o chão coberto pela neve ele me segura pelo ombro.
Ele arruma as asas, e desprende uma fivela atrás do sobretudo que usa.
Callen o retira do corpo e o entrega para mim.
— Vai congelar se sair assim, fique com isso.
É um sobretudo diferente, por contas das asas ele possui duas partes
que se juntam através da fivela. Quando o coloco ele fica grande e o espaço
das asas ficam amostra.
Me pergunto se foi ele quem adaptou a roupa para poder usar.
— E você, não vai vir? — pergunto.
Ele olha para fora e observa a noite que cobre o céu há um tempo.
— Vou, sim.
A neve me irrita, eu não gosto dela, mas nesse momento ela significa
liberdade para mim, poder pisar sobre ela me mostra que posso ser livre.
Nunca pensei que sentiria saudades da camada branca debaixo de
minhas botas.
Callen olha para o céu e quando menos percebo suas asas batem e ele
sobrevoa as árvores como se fosse um pássaro que fugiu da gaiola.
Caminho até o portão e ele se abre sem eu ter que tocá-lo, olho para o
horizonte e consigo observar as pequenas casinhas e fumaças de chaminés,
o reino deve achar que eu não fui o suficiente para acabar com o inverno.
Callen retorna com algumas coisas nas mãos e leva para dentro do
castelo, mas não demora muito para ele voltar e se atirar céu acima. Eu
poderia correr e me sentir livre das grades, paredes e janelas, mas por algum
motivo eu faço meus pés voltarem para dentro do portão.
O jardim que ronda o castelo é composto por diversas árvores de
todos os jeitos, umas com troncos retorcidos, outras com folhas grandes, a
maioria são frutíferas e bancos de ferro são encontrados a cada 10 metros.
E estátuas de animais selvagens estão espalhadas pelo jardim assim
como pedras que fazem uma trilha entre as árvores. Flores de vidros são
espalhadas ao lado das pedras, enfeitando ainda mais o jardim.
— Eu gostava de observar os vagalumes que apareciam nesse horário
— Callen diz, se aproximando e arrumando as asas atrás das costas.
— É um lugar bonito. — Observo as marcas de garras no tronco de
uma árvore.
— Mas ele vai ser destruído com o tempo.
Ele olha em direção ao reino e dá um passo à frente.
— Está assim há quase 220 anos, o feitiço preserva metade das coisas
aqui.
Outra pergunta surge em minha mente, na verdade é mais uma dúvida.
— Você é imortal... como? É por causa da maldição?
Ele pensa por um bom tempo
— Não, nasci assim. Meu pai era um mortal, minha mãe não.
Então a mãe dele não era Helioriana.
— Ela era de qual reino?
— Trânia, ela era Trâniana. — Ele responde com um leve sorrisinho,
como se a lembrança da mãe o acalmasse.
Trânia...Um dos reinos cristalizados.
Aprendemos desde cedo que os reinos cristalizados são diferentes...,
mas ninguém sabe ao certo o que isso significa, já que as pessoas que
foram, jamais voltaram.
Os habitantes de cada reino também têm condições especiais, dizem
que uns tem cores de peles diferentes, outros são imortais, outros possuem
dons...
Mas até hoje não sabem explicar o porquê de cada um ser assim. Já
que sempre que alguém tenta desvendar o mistério, algo acontece e a pessoa
não volta.
— O que aconteceu com seus pais? — pergunto receosa.
— Minha mãe foi apunhalada pelas costas, a imortalidade não
funciona quando se tem uma estaca no coração. — Ele responde com a voz
melancólica.
— Eu sinto muito — digo com a voz baixa.
— Está tudo bem... meu pai, sinceramente eu não sei. Ele queria viver
uma vida tranquila, então passou o título de rei para mim e foi embora com
meu irmão. Não sei o que aconteceu com eles.
Fico de cabeça baixa até que ele me faz a pergunta:
— E os seus?
— Morreram em um acidente, uma avalanche de neve.
Ele suspira e abaixa a cabeça.
— Você cresceu sozinha.
— Você também — me aproximo dele e toco levemente seu braço,
mas me afasto quando ele me olha.
— Está tudo bem, pode se aproximar — ele arruma as asas e estende o
braço — partilhamos a mesma dor.
Me aproximo e assim que chego perto ele me abraça. É um abraço
caloroso e quentinho... confortável. E eu retribuo.
Ele passa a mão por meu cabelo e se afasta devagar.
Ele aponta o jardim a frente com a cabeça e então me viro e tento pisar
na pedra a minha frente para continuar andando, mas assim que dou
impulso para começar a caminhar, bato em algo, mas não existe nada no
meu caminho além de árvores, tento de novo e meu corpo colide com
alguma coisa novamente.
— Desculpe. Temos que voltar. — Callen coloca as mãos nos meus
ombros e me vira para entrar no castelo. — Acabou o tempo.
O tempo é realmente curto. Fico impressionada com o quanto ele se
mostra forte nesta situação. Ficar preso por um tempo longo e ter minutos
para sair...
Assim que entramos a porta se fecha violentamente, o barulho que
ecoa nos cômodos silenciosos faz o meu corpo gelar, meu coração se aperta
e minhas pernas perdem as forças.
— O que aconteceu? — ele pergunta, olhando para trás e caminhando
até mim.
— Quando me jogaram aqui o barulho foi o mesmo, forte e assustador
desse jeito. — Às vezes, no silêncio da noite eu conseguia ouvir a porta se
fechando, eu sentia um arrepio subir por minhas costas, formigar minha
nuca e doer minha cabeça. Eu me enrolava nas cobertas tentando não
escutar o barulho novamente.
Ele aperta os lábios e me ajuda a levantar. Callen me leva até um sofá
e coloca mais lenha na lareira. As sombras ficam nos braços do sofá
enquanto ele me entrega uma xicara.
— Pode beber, é camomila. Ajuda a acalmar.
Levo a bebida até a boca e bebo um bom gole, a quentura aquece o
meu corpo e ele parece ficar mais leve.
A lembrança das árvores no jardim vem à tona.
Fico receosa de perguntar sobre as marcas das garras. Elas não estão
apenas nas árvores, mas estão nas cortinas, nas portas, nas paredes... em
praticamente tudo.
— Posso perguntar algo?
Os olhos verdes encontram os meus. Ele faz uma pequena
confirmação com a cabeça e então pergunto:
— Eu percebi algumas marcas de garras em algumas coisas, foi você
quem as fez?
Ele abaixa o olhar, fica em silêncio por um longo momento até dar um
sorrisinho e responder com a voz suave.
— Às vezes você tem que lutar consigo mesmo — ele diz me olhando
com um leve sorriso.
Eu nunca o vi sorrindo de verdade, a não ser aqueles sorrisinhos de
deboche que ele faz quando termina uma frase óbvia, mas esse parece
automático, não intencional.
Ele se vira e caminha em direção a cozinha. Tomo outro gole do chá e
grito enquanto ele caminha até o outro cômodo:
— Já tentou ir até a feiticeira? Talvez ela poderia escutar a sua versão
e...
— Eu estou destinado a isso — responde ele me interrompendo — não
vai adiantar, eu posso implorar o quanto eu quiser nada disso vai mudar, e já
se esqueceu que eu não posso ir longe?
— Mas... e se eu...
Ele para de caminhar e me olha de um jeito estranho.
— Eu disse que não, a maldição está sobre mim, não sobre você.
— Por isso mesmo, você está há 2 séculos preso por causa do que
outras pessoas fizeram, quem sabe isso não pode ser concertado. — Me
levanto e vou até ele, parando ao ficarmos frente a frente.
As sombras tentam me puxar para outro cômodo, mas firmo os pés no
chão. Callen se aproxima de mim com aquele olhar assustador e, pela
primeira vez, minhas pernas não tremem nem um pouco.
A diferença de altura me causa um leve calafrio, mas os olhos me
confortam. Alguns fios de cabelo caem sobre o rosto dele e eu tenho
vontade de tirá-los.
— Não preciso de sua pena. Se quer ir, apenas vá e não volte mais,
mas não se arrisque pelo monstro que você teme.
— Quem disse que eu tenho medo de você? — pergunto com a voz
firme. Antes eu poderia estar mentindo ao pronunciar a frase, mas agora é
estranhamente verdade.
Ele ri baixinho e balança a cabeça.
— Ainda sinto o cheiro do medo, pequena.
Ele passa por mim e um frio invade a sala. Aperto as unhas nas palmas
das mãos e a vontade de gritar invade minha garganta.
— Parado aí — a minha voz ecoa. — Sabe quantas noites eu implorei
para que alguns dos deuses me desse liberdade? — Me viro e o vejo parado
com as asas rígidas. — Desde meus 10 anos eu vivi presa dentro de uma
casa, servindo a minha prima e obedecendo a minha tia em qualquer coisa,
era punida se falasse quando não era permitido, me tratavam como um
objeto e eu tinha que aguentar a estupidez das pessoas em silêncio. 8 anos
depois, decidiram tudo isso sem o meu consentimento, eu só queria ser
livre, poder falar quando quisesse, poder tomar minhas próprias atitudes. Os
deuses não me ouviram e se ouviram me concederam apenas a metade do
que pedi. Eu tive que gritar por mim mesma. Eu não sou livre como queria,
mas a cada passo que dou consigo quebrar as malditas correntes que estão
me prendendo. Eu quero te ajudar para você não ter que fazer tudo isso
sozinho. Mas por que não me deixa fazer isso?
Ele não se move e parece não ter escutado nada do que eu disse, por
um momento penso que fui ignorada, mas logo ele solta um suspiro forte.
— Você me irrita — as palavras me fazem sorrir.
— E eu vou te irritar muito mais.
A energia que ele irradiava quando estava lá fora me faz ter ainda mais
vontade de libertá-lo. Nas noites em eu não consegui dormir, os gritos dele
eram as únicas coisas que eu escutava, mas sempre que me levantava para
ajudá-lo os gritos paravam e o escutava andar pelos corredores.
Desde que cheguei aqui, os sonhos que invadiam minha mente
pararam, as vezes eles aparecem para me avisar que não foram embora, mas
que vão me deixar em paz por um tempo. Mas os sonhos dele não parecem
do tipo bonzinhos que vão embora por pouco tempo.
As sombras estão ao meu lado na cama e forço os olhos a ficarem
abertos. Algo dentro de mim decide que, se ele gritar, eu vou atrás da
feiticeira.
Com a lua alta no céu, me levanto da cama e coloco uma roupa nova
que eu encontrei jogada no armário. Calça e blusa pretas e um casaco azul
que vai até meus joelhos. Coloco as botas nos pés e penteio o cabelo com o
pente que encontrei perdido na penteadeira. Sento-me na cama e alguns
minutos depois os gritos começam.
Vou até o quarto dele e abro a porta com cuidado. Ele aperta os lençóis
com uma mão e as garras da outra estão arranhando a cabeceira da cama
enquanto ele arqueia as costas. Entro no quarto e vou até ele, solto a mão do
lençol e retiro a que está na cabeceira. Seguro as duas e acaricio o cabelo
longo. Ele passa dos gritos a uma respiração pesada, sinto a pele quente e
pego um paninho no criado mudo ao lado da cama e o molho na água,
coloco-a sobre a testa quente e sinto que ele se acalma mais. Sem acordá-lo,
desço da cama e saio do quarto em silêncio.
Quando penso em como vou sair, me lembro da janela quebrada e
antes que eu possa pensar em outra coisa, ouço a porta do quarto se abrindo.
Vou até a cozinha rapidamente e encontro um punhal em uma gaveta, assim
que saio do cômodo ouço a voz de Callen.
— Orianna, está aqui?
Vou até a porta perto da escada e assim que ele desce até a sala, eu
seguro no trinco velho e a puxo. Coloco o punhal na maçaneta e logo depois
ouço as leves batidas.
— Você vai embora?
Quebro uma parte da janela, depois outra e outra até conseguir passar.
Retiro o punhal da porta e digo:
— Eu volto, mas só depois que você puder sair.
— Está louca? Por que se arrisca tanto, se pode simplesmente me
deixar aqui para ser livre?
Passo pela janela e assim que percebo que a barreira não está no
caminho, um pouco de esperança surge dentro de mim.
— Eu vou procurar pela minha liberdade também, mas você vem
comigo — grito antes de ir.
Meus pés deslizam sobre a neve e torço para que as barreiras
realmente não apareçam.
Corro entre as árvores do jardim do castelo e chego até o final dele,
onde as grades me impedem de prosseguir. Observo os detalhes e percebo
que consigo subir por elas, só que a queda não será pequena se eu deslizar.
Coloco o punhal dentro da bota e preparo minhas mãos para tocar o
ferro frio. Minha pele parece esquentar por causa do frio que se instala no
metal, seguro com firmeza e posiciono meus pés nas grades, dou impulso
para cima e meus pés quase escorregam. Seguro com mais força e continuo
subindo, sempre verificado se as grades estão firmes para me aguentar.
No topo, as grades possuem pontas extremamente afiadas, como se
fossem pontas de flechas, mas para minha sorte o espaço entre uma e outra
é perfeito para passar. Por outro lado, para o meu azar, um único erro, um
único desequilíbrio pode ser fatal, ou me causar mais algum ferimento que
terei que levar para o resto da vida.
Consigo por um pé do outro lado. Quando levanto o outro para passar,
uma parte do casaco acaba enroscando na ponta e rasgando, me fazendo
escorregar e bater com força nas grades, mas antes de cair consigo me
segurar no ferro e descer sem colidir com a neve.
Observo o longo caminho que terei que seguir abaixo da montanha e
meus olhos param em um ponto no meio da floresta dos corvos...
Firmo meus pés na neve, respiro fundo e sigo o caminho.
O lago está com o gelo que o cobria quase quebrado por completo, a
água toma conta novamente, o único pedaço que ainda é seguro para passar
exige coragem, pois ele está apenas na metade do lago.
Observo a distância e dou alguns passos para trás, corro e pulo sobre a
camada de gelo que se quebra, metade do meu corpo cai na água, mas cravo
as unhas no gelo e forço meu corpo a subir. Me arrasto até sair do lago e
faço minhas pernas terem forças para me levantar, tentando não me
importar com o frio que piora com as roupas molhadas.
O sol começa a nascer no horizonte e o clima começa a se tornar um
pouco mais quente. Sozinha em uma floresta apenas com um punhal, o
medo não me consome por completo, mas ele anda ao meu lado. Todos os
dias foram assim, a coragem tentava aparecer, mas o medo a jogava longe.
Mas hoje não, hoje eu não deixarei que ele me acompanhe... a minha mente
grita e o medo parece se afastar aos poucos, sinto-o se afastar a cada grito
de silêncio e quem me acompanha é aquela que ficou na escuridão até que a
sua luz chegasse.
Lembro de todas as vezes que eu quis gritar. Falar livremente. Dizer o
que eu tinha vontade de dizer.
“Eu não sou um animal para ser domado”.
A frase que eu sempre quis dizer, mas não podia. Ou eu me orgulharia
de dizê-las para sentir as costas arderem dia e noite, ou eu guardava a minha
voz.
Algo invade o meu corpo e eu não sinto as cicatrizes que cobrem
minha pele, eu sinto que posso dizer aquilo que sempre quis... e eu vou .
Eu quero trazer honra para mim e somente para mim.
Eu cansei ficar trancada obedecendo regras absurdas.
“Homens gostam de mulheres obedientes”, disseram aqueles que me
queriam noiva de alguém.
“Seja a donzela que ele tanto adora”, disse a minha tia envolvida pela
ganância.
“Adoro mulheres caladas, aquelas que não reclamam, sabe?”, disse
um homem para mim quando minha tia fez uma festa no chalé.
“Para se trazer honra a sua família deve casar-se com um homem
rico”, disse uma senhora na praça quando eu falei que queria viver
livremente.
Eu detestava essas frases, nunca podia escolher o que eu queria, não
podia decidir o meu destino, não podia comandar a minha vida... Eu estava
presa a desconhecidos querendo que eu fosse como eles fantasiaram.
E agora, sozinha em uma floresta, livre e sem medo, eu não trago
honra para mais ninguém além de mim mesma. Eu me orgulho de quem me
tornei e ninguém pode me salvar de quem eu sou.
O tempo parece voar a cada passo que dou. Não sei se é a paisagem
que permanece igual que faz a minha mente pensar que não andei nada ou o
frio que já está alterando o meu senso de tempo. Não é apenas as horas que
me incomodam, mas também a preocupação de achar um lugar para ficar
quando escurecer.
Não importa por onde os meus olhos percorrem, em todos eles as
árvores são as únicas coisas que observam. A montanha é a única coisa que
existe na floresta dos corvos, além das plantas e do rio do esquecimento.
Meus dedos estão dormentes e minhas mãos congeladas, minhas
pernas doem e meu estômago se aperta. Cerro os dentes quando uma rajada
de vento frio percorre a floresta. Assim que ele diminui, sinto o cheiro de
sangue. Os rastros vermelhos que a neve não esconde rodeiam algumas
árvores, nos troncos de outras as garras deixaram um desenho que indica
que o animal estava faminto e desesperado pela presa.
Ando tentando deixar o silêncio que habita o lugar, meus pés fazem
movimentos leves e a neve quase não deixa as marcas. As folhas
congeladas batem umas nas outras e me viro quando percebo o barulho
estranho; os meus olhos param em um coiote, com os caninos e os pelos em
volta da boca sujos, a cor vermelha é tão vibrante que dá a entender que ele
acabou uma refeição, mas não foi o suficiente, ele me observa como se eu
fosse o próximo banquete perfeito...
Não faço nenhum movimento, apenas o encaro e observo os pelos
sujos, as garras afiadas e os olhos vidrados. Levo a mão devagar até a bota e
assim que seguro o punhal, o animal corre, raivoso. Ele não terá pena de
mim.
Antes que eu possa pensar, minhas mãos agem e a lâmina da faca se
crava no pescoço peludo quando arremesso o punhal. Paro por um segundo
e sinto o meu coração se apertar dentro do peito.
Caminho até ele e retiro a lâmina com as mãos trêmulas, mas assim
que dou um passo para trás o animal se transforma em uma fumaça
esbranquiçada e uma risadinha se expande pelo ar. E nesse momento um
arrepio imenso percorre meu corpo.
Não era um coiote, era um Tenksi — um ser místico nativo de Calix.
Eles são criaturinhas feitas de uma espécie de fumaça quase invisível, que
adoram pregar peças em pessoas distraídas. São raras às vezes em que eles
aparecem e dizem que se aparecerem mais de uma vez é um sinal de azar.
Com o corpo congelado pelo susto sigo o caminho, fazendo as minhas
pernas andarem mais rápido.
A noite chega ligeira e isso faz com que eu pense em algum lugar para
ficar. A montanha ainda está longe e deve levar mais um dia de caminhada.
Se eu tivesse a oportunidade de trazer um cavalo, provavelmente já estaria
quase chegando. Não importa o quanto eu ande, parece que nunca saio do
lugar. Parece que estou andando em círculos o dia todo, a paisagem é igual
e não dá para saber se estou passando pelos mesmos lugares.
Os corvos começaram a se agitar no final da tarde e logo, logo a
floresta fará jus ao nome.
Me sento embaixo de uma árvore que tem as raízes fora da neve,
aperto o casaco sobre meu corpo e coloco o cabelo para frente para tentar
proteger as orelhas e guardo o punhal no cano da bota. Apoio a cabeça no
tronco da árvore e meus olhos não conseguem se fechar por muito tempo,
observo o nada à minha frente, sempre vigiando o meu redor quando um
barulho estranho é percebido nas redondezas. Antes que a noite acabe e eu
quase a passe em claro, me sinto sendo puxada pelo sono e minha visão se
torna escura.
Sinto os raios do sol passando pelas pálpebras de meus olhos, assim
que os abro coloco as mãos para cima, tampando o sol até me acostumar
com a claridade, à minha frente consigo ver um pássaro. Me ponho de pé e
ele parece não se assustar com o levantar brusco, apenas observa aquilo que
está na frente. As penas brancas como a neve o tornam o animal mais
bonito que já vi.
— Pensei que a criatura mais bonita que eu já tinha visto fosse Callen,
mas você o supera — digo em voz alta e logo depois dou risada. — Eu
espero que ele nunca saiba dessa frase.
Faço um sinal com a mão para que ele chegue mais perto e o animal
não parece ter medo, pois ele pousa em meu antebraço assim que suas
penas tocam minhas mãos.
— O que faz aqui? — pergunto, acariciando sua cabeça.
Ele se afasta e levanta voo, passando pelas árvores e seguindo um
caminho aleatório.
Penso que foi embora, mas antes que eu possa pensar em segui-lo,
vejo as penas passando entre os galhos. Ele para na minha frente e segue o
mesmo caminho de antes.
Meus pés se movem e eu o acompanho pela floresta que começa a
ficar mais aberta. Caminho por longos minutos, tentando não o perder de
vista. A floresta começa a se abrir mais e assim que percebo a montanha
está à minha frente, na verdade ainda leva mais alguns minutos
caminhando, mas está mais perto do que antes.
Percebo, pelo desenho da floresta, que o pássaro me guiou por um
atalho, um que é menos sufocante. Um que os raios de sol conseguem
atingir o solo sem dificuldade, já que as árvores são bem separadas umas
das outras, minhas pernas tentam suportar o peso do meu corpo depois de
andar tanto. A neve quase corta os meus joelhos quando o peso do meu
corpo se torna maior e minhas pernas cedem. Respiro fundo e me levanto,
abanando a neve do casaco ao colocar um pé na frente do outro, me
aproximando ainda mais da montanha.
O rio do esquecimento é a única coisa que não congelou, as águas
parecem ferver por não terem se tornado um espelho como os outros.
O fluxo de água é temido pelos caçadores que passam pela floresta dos
corvos, ele é enfeitiçado para que todos que olhem seus reflexos sejam
esquecidos por seus familiares ou conhecidos, apenas um olhar de sua
própria imagem pode levar a pessoa ao esquecimento eterno.
As águas cristalinas chamam a atenção de pessoas desavisadas, eu
diria que é uma ótima armadilha.
Avisto a montanha logo à frente e caminho em sua direção. Algo
dentro de mim questiona se realmente devo continuar. O pássaro para em
frente à entrada como se dissesse “aqui está” quando subimos uma pequena
trilha.
Entro, temerosa, e meus olhos demoram a se acostumar com o escuro
que se dissipa assim que viro para um corredor à direita. Velas iluminam o
local quase vazio, com apenas um sofá e livros espalhados pelo chão. No
canto da parede, revirando uma pilha de livros, consigo ver a silhueta de
alguém.
Assim que dou um passo à frente a silhueta diz:
— Orianna Ekihan, filha de Morringan e Eros Ekihan. — Ela se vira
para mim e observo os olhos amarelos como os de gatos, cabelos laranjas
ondulados na altura dos ombros e a pele extremamente branca, dentes
afiados e unhas grandes. Vestida com pouco tecido e a pele com joias
envolta do pescoço, pulsos e dedos. — Ande, entre, não usarei sua pele
como vestimenta, pode ficar tranquila.
Ando até chegar próximo ao sofá, meus olhos estão fixos nos dela e
assim que sorri vejo as presas afiadas. Ela passa as unhas pela parede até se
aproximar mais de mim.
— Qual o motivo da sua visita?
Sinto que minha voz será sufocada quando eu tentar falar, mas
pigarreio e então respondo:
— Me disseram que a feiticeira poderia me ajudar com algo...
O olhar parece ser de interesse e a forma com a qual a expressão muda
me dá quase certeza que se animou com a frase.
— A liberdade do rei — concluo.
Ela apenas me olha; sem riso nem questionamento.
— Está dizendo que não deseja o fim do monstro, mas sua liberdade?
Balanço a cabeça de forma positiva, apertando o punhal na mão, que,
por instinto, retirei da bota antes de entrar.
— Me diga qual a diferença entre uma bruxa e uma feiticeira?
Fico em silêncio e ela me olha, não esperando uma resposta, então
explica:
— Feiticeiras são seres com poderes fortes que podem destruir o que
quiserem, elas carregam o poder em si e escolhem se querem usá-lo para o
bem ou para o mau.
O olhar cai sobre mim e desliza sobre minha mão, que segura o
punhal.
— Já as bruxas são mulheres normais que não aceitam serem
manipuladas, mulheres que não se calam mesmo se costurarem suas bocas.
Elas são aquelas que dizem “não” e são atiradas a fogueira... Essas são as
verdadeiras bruxas, aquelas que querem ser livres, mas não são
compreendidas.
As mãos voltam aos livros no chão, meus pés se movem e paro na
frente dela. Um ar frio percorre meu corpo assim que me aproximo e meus
membros se enrijecem quando pergunto:
— Por que me deu essa explicação?
O olhar se ergue, os olhos amarelos me olham com interesse, mas logo
voltam as páginas manchadas.
— Percebi que não se reconhece como uma bruxa, expliquei para ver
se você sente a semelhança. Eu sinto a sua vontade de viver.
A fala me faz morder a parte interna da bochecha, ela deixa um leve
sorriso parecer no rosto quando percebe a minha inquietude. Algo dentro de
mim empurra a resposta para fora da boca, seguida de um leve arrepio.
— Obrigada por isso, mas não vim até aqui para essa explicação.
Ela se levanta e me encara.
— Não foi eu quem o amaldiçoei, eu não sou a única feiticeira entre
vocês. — Revela — Não sou eu quem dará a liberdade a ele, e nem mesmo
desfarei a maldição, somente o próprio Callen pode fazer isso. Maldições
não são quebradas pela pessoa que a fez e, sim, por aquela que recebeu.
— E como ele fará isso?
— Quando as chamas dançarem e as cinzas voarem.
Franzo a testa e espero algo a mais, espero uma explicação completa,
não somente uma frase que nem sentido faz, mas ela apenas se senta no
chão e observa as páginas velhas novamente.
— Ele deixará de ser um monstro quando for atrás da própria
liberdade — diz, quebrando o silêncio.
— Mas como ele irá atrás de liberdade se não pode sair daquelas
malditas paredes?
Ela ergue o olhar e diz:
— É a mente dele que cria essas situações. É só ele pensar na porta
fechada, e a casa a fecha. Quando você começa a acreditar que ilusões são
reais, em algum momento se torna impossível diferenciar o que é real ou
não. Callen precisa controlar sua mente, ele viveu preso por tanto tempo,
que acredita que está preso para sempre!
Então quando as barreiras não estavam lá é porque todas as vezes ele
não pensou nelas, ele pensou que era dia delas desaparecerem. Quando me
salvou, não pensou na porta trancada, pensou apenas que tinha que sair. O
quente do ferro não existe.
— Realmente vieram até mim, mas existia alguém diferente, um poder
grande irradiava de alguém no meio das pessoas que estavam juntas, olhos
sedentos por vingança e sangue observavam tudo, mas não sei dizer de onde
vinha, mas pertencia a alguém que queria uma maldição, não somente para
o rei, mas para o reino todo. Eu poderia tê-los amaldiçoado para descobrir
de quem era o poder com cheiro enjoativo, mas percebi que as coisas
ficariam mais divertidas se eu deixasse. Mas mesmo não os amaldiçoando,
as histórias foram sendo contadas e eu me tornei a vilã. Se eu soubesse que
a culpa cairia sobre mim...Ah, você pode ter certeza de que eu teria feito
muito pior... — Ela sorri. — Bom, se era isso que queria... já sabe. Desculpe
por não poder ajudá-la.
“Tudo isso foi em vão?”, é a única pergunta que minha mente faz.
Eu não quero acreditar que tudo foi em vão. Que perdi tempo vindo
até aqui para nada, eu não quero voltar sem algo positivo. Não quero chegar
e dizer a ele que não poderá fazer nada, que foi inútil eu ter vindo até aqui.
Provavelmente ele vai dizer que me avisou, que era para eu ter ficado
quieta no meu canto e não me intrometer, que apenas passei frio, medo e
perigo por ser teimosa e não ter conseguido nada com minha persistência.
— Ajude-o — ela responde, interrompendo os meus pensamentos e
me trazendo de volta a realidade. — Eu sei que você é capaz de tudo, faça o
feiticeiro cair e liberte o rei.
A frase me traz um pouco de confiança, algo parece me dar um tapa
no rosto e dizer para pensar em algo, achar um jeito de tornar as poucas
informações em algo positivo e relevante.
— Obrigada por isso — agradeço com o resto de esperança que existe
em mim.
Me afasto, desvio do sofá e das pilhas de livros negros espalhados pelo
chão. Sem olhar para traz, saio do cômodo e volto ao corredor onde a luz da
entrada me recebe, coloco o punhal no cano da bota e arrumo o casaco.
Depois, arrumo os fios de cabelos para frente para proteger as orelhas e um
pouco do rosto. Quando estou quase saindo da montanha, ela chama por
meu nome, meus ossos parecem tremer com a voz.
Me viro e a vejo sorrindo.
— Vou te acompanhar até a saída da floresta.
Às vezes eu sentia o ar dos meus pulmões sendo drenado para fora. Os
sonhos eram horríveis e, mesmo acordada, eu sentia a tortura. O cinto
estalando nas minhas costas fazia o ar sair junto com os gritos de dor, o
couro machucava minha pele e deixava o sangue escorrer e manchar o chão.
Logo depois eu tinha que limpar meu próprio líquido vermelho, sentindo as
feridas repuxarem a pele a cada vez que levava o braço para frente e para
trás para tirar o sangue seco da madeira.
Paro de pensar no passado quando o silêncio do presente estala os
dedos e me faz voltar para o agora.
A feiticeira ficou quieta quando saímos da montanha, ela apenas olha
o que está à frente não diz nada. Quando passamos pelo rio, ela para
bruscamente e olha a água que mais parece um espelho.
— Feiticeira... — chamo-a.
— Nanrá — diz ela. — Me chame de Nanrá.
Olho para ela e repito o nome, a boca se curva e um sorriso aparece
em seu rosto.
— Faz muito tempo que não escuto meu nome vindo de uma pessoa, a
não ser de mim mesma para não acabar esquecendo-o.
Ela caminha até o rio e me apresso a ir atrás.
— Não se preocupe, eu não posso ser atingida por ele. — Ela se olha
na água e arruma os fios bagunçados do cabelo com ondas.
Ela faz uma concha com a mão e pega a água e leva até o rosto, as
gotas se derramam por sua pele e caem na neve, ela se levanta e segue o
caminho.
— A água é quente — diz, se referindo ao rio.
Eu detesto o silêncio que se instala depois de alguns minutos, então
decido quebrá-lo.
— Há quanto tempo está lá?
Ela olha para o céu e faz uma expressão de dúvida
— Acredito que faz uns 330 anos, mas não tenho certeza.
Não me surpreendo com a quantidade enorme de anos. Feiticeiros são
imortais por causa da magia.
— Nasceu ali?
Ela ri e balança a cabeça.
— Não. Nasci no reino vizinho... Calix. Aquele lugar é como a terra
dos feiticeiros, parece que a natureza gosta de escolher pessoas de lá. Vim
parar aqui porque queria um pouco de paz, minha família é bem complicada
e eu tenho responsabilidade em cima de mim.
— Eu posso imaginar.
Algo chama a atenção e ela se vira para olhar para trás, observa o nada
por alguns segundos e então se volta para mim franzindo a testa.
— Por que tem uma fênix nos seguindo?
Olho em direção ao pássaro que nos acompanha de longe.
— Não sei de onde veio, me mostrou um atalho para chegar até a
montanha.
Ela ignora o pássaro e volta a caminhar, as suas pegadas desaparecem
na neve assim que ela dá o próximo passo.
Andamos pelo mesmo atalho que fiz e o silêncio nos acompanha até
que a noite nos surpreende. E, desta vez, não o afasto, ela parece precisar
disso para se concentrar no que for que estiver pensando.
Quando se torna quase impossível andar pela escuridão, nós paramos.
Nanrá pega alguns galhos congelados de uma árvore próxima e os joga
no chão, com um simples estalo de dedos os galhos pegam fogo. Ela abaixa
e as mãos tocam a neve, a feiticeira faz um sinal com a mão para que eu me
sente. Encosto a palma na neve e percebo que está quente, como se fosse
um tapete felpudo. Me sento e logo ela está ao meu lado, olhando o pássaro
voar pelas árvores.
— Faz muito tempo que não vejo um animal dessa espécie... eles
normalmente aparecem pelas terras de Calix, mas aqui é raro.
O pássaro pousa em um galho de uma árvore à nossa frente e o olhar
de Nanrá se torna fixo na ave.
Me encosto no tronco da árvore e meus olhos só conseguem enxergar
o céu azul escuro com pontinhos que o cobrem.
É engraçado olhar as estrelas e pensar que os corpos minúsculos
somos nós.
— Eu te admiro. — Nanrá retira os olhos amarelos da ave e os pousa
em mim. — Ninguém nunca cruzou essa floresta para pedir a liberdade de
alguém, sempre queriam algo para eles mesmos, mas nunca para outra
pessoa.
Abaixo o olhar e observo a neve.
— Eu estava presa. Assim como ele, eu tinha que encontrar a
liberdade... sei como dói querer dançar na chuva, mas não poder nem
sequer sentir uma gota de água.
Ela solta um suspiro forte e observa o fogo.
— Sua mãe ficaria orgulhosa disso — ela apenas solta as palavras no
ar, que dançam rapidamente nos meus pensamentos.
Meu corpo se aquece com a frase.
— A minha mãe?
Os olhos se arregalam e ela tampa a boca com a mão.
— Ah, eu quis dizer...
— Como assim a minha mãe? Conheceu ela? — pergunto, a
interrompendo.
Ela balança a cabeça com um sinal positivo. A tensão no olhar mostra
que falou sem ter a intenção.
— Ela nasceu em Calix, era a guerreira mais forte e mais cobiçada nos
exércitos, fugiu com um homem e teve uma filha, sofreu um acidente com
ele e, infelizmente, os dois não resistiram.
Ela me olha e percebe meu olhar de choque.
Eu sabia que minha mãe não era Helioriana, e eu também sabia que ela
era mais velha do que aparentava, mas nunca imaginei que tivesse mais de
300 anos...
Por que será que ela nunca mencionou que era imortal? Bom, talvez
ela escondeu para que rumores não surgissem e ninguém nos olhasse torto
nas ruas.
— Nos duas fomos criadas praticamente juntas, mas de maneiras
diferentes — conclui.
Uma lágrima escorre pelo meu rosto, mas eu a seco com a mão antes
que o frio a congele.
— Então todas as histórias de feiticeiros, monstros e guerras não eram
coisas da cabeça dela.
— Vocês se parecem, não só na aparência, mas também na
personalidade.
Rio e me lembro de todas as vezes em que ela me colocou na cama,
me contou as histórias e, principalmente, me alertou de como os feiticeiros
são perigosos. Todas as vezes que me ensinou o que ela mais sabia...
— Eu deixei que fizessem o que quisessem comigo, ela não ficaria
orgulhosa disso.
— Na verdade, ficaria, sim. É como ela mesma dizia: “As bruxas
sempre escondem que são perigosas”. Elas fingem que não se importam
com que fazem com elas, mas apenas guardam a ira para que um dia mostre
do que elas realmente são capazes.
Adormeço sem perceber e acordo quando a neve começa a ficar
gelada. Nanrá está acariciando a cabeça da ave e a neve parece estar mais
escorregadia do que de costume.
— Mais um tempo e a neve derreterá. — Ela se aproxima e me entrega
uma fruta. Retiro a neve das roupas, observando o caminho que ainda
temos.
Sem demorar muito, seguimos estrada, ela corta por outra trilha que
segundo ela é o jeito mais rápido de chegar até o castelo. Andamos por
longos minutos que mais se parecem horas e não trocamos uma palavra
sequer nesse tempo.
Ela parece encantada com a fênix e acho melhor não estragar o
momento dela com o animal pertencente ao lugar que não vê há séculos.
Quando estamos quase chegando, o pássaro vai na frente, ela segura o
meu braço e me faz olhar para ela.
— Antes de chegarmos, eu queria te dar algo.
Franzo a testa e logo ela me explica:
— Você é maior que seus ossos, então precisa de algo único.
Fico curiosa com o que ela está planejando.
— Tudo bem, o que seria?
Ela me pede para fechar os olhos, hesito por um instante, mas os
fechos. Ela coloca as mãos sobre meu rosto e pede que eu abra os olhos
novamente.
Uma sensação estranha invade meu corpo e me sinto mais confiante
do que nunca me senti. O medo parece não existir.
— Pronto, agora sim, foram feitos um para o outro.
— O que aconteceu? — tento achar algo de diferente em minha
aparência, mas não encontro nada.
Ela sorri e diz:
— Vai saber quando for a hora. Continuando...?
Quando chegamos na montanha do castelo, ela o olha e fala:
— Sua casa.
Por um momento, o meu corpo trava e a única coisa que penso é “essa
não é minha casa”, mas quando vou repetir a frase, eu acabo pronunciando:
— É a minha casa.
Nanrá encosta as mãos nos meus ombros e antes de se virar e voltar
para dentro da floresta, ela sussurra:
— Liberte-o, mostre para todos que você pode executar o mundo se
quiser.
O portão se abre e ouço uma pancada na porta assim que meus pés
encostam no solo do jardim, corro. As minhas mãos não se queimam
quando toco o ferro. Depois que empurro a porta e a abro, vejo Callen com
as mãos quase sangrando.
Os olhos dele pousam em mim e antes que eu perceba, os braços me
envolvem. As asas parecem me embrulhar e fico sem reação diante do
toque.
Ele se afasta e coloca as mãos no meu rosto, a testa se franze e a
primeira coisa que ele diz me deixa confusa.
— Por que a mecha preta?
Me desvencilho dele e vou até um espelho que fica na sala e vejo uma
única mecha preta despontando no meu cabelo.
— Eu não sei... será que ela deixou isso? — pergunto baixinho para
mim mesma.
— Pensei que estava morta. — A voz de Callen está mais grave, mas
no fundo percebo um tom mais rouco, como se ele tivesse gritado por muito
tempo.
— Eu estou bem. — Falo, dando intervalos entre uma palavra e outra,
para que ele escute bem a frase.
— Por quê? — faz uma pausa. — Por que foi?
— Eu precisava fazer algo, e acredito que foi uma boa decisão.
Percebo as sombras atrás de Callen e sorrio para elas, logo lembro-me
da fênix que me acompanhou.
— A fênix... — pronuncio as palavras olhando para trás, tentando
achar o pássaro.
— Ela achou você? — ele pergunta.
Fico confusa e assim que assobia, a ave vem até ele.
— Pedi que lhe fizesse companhia, ela aparece às vezes.
— Eu já deveria ter desconfiado.
Me viro e olho novamente no espelho, uma sensação estranha invade o
meu corpo. Meus olhos deixam o reflexo destorcido. O meu estômago se
aperta e a pele fica fria, minha cabeça dói e logo sinto meu corpo mais
pesado do que posso aguentar; alguns segundos depois, sinto meus ossos
colidindo com o chão.
Meu corpo dói.
Callen está torcendo uma toalha e, assim que se vira, um sorriso leve
surge no rosto bonito quando percebe que eu acordei, logo ele coloca o
paninho na minha testa.
O frio da água em que a tolha foi mergulhada faz a minha cabeça girar,
mas a sensação ruim no meu corpo desaparece.
Aperto os lençóis com as mãos quando uma dor atinge as minhas
costas, Callen me ajuda a levantar e a me sentar na cama, logo depois me
entrega uma xícara de chá e aproveito o calor que invade o meu corpo. Ele
se senta na cama ao meu lado e espera até eu terminar a bebida.
— O que a feiticeira te disse? — pergunta com a voz baixa.
Tomo o último gole e apoio as mãos no colo, junto com a xícara, antes
de olhar para ele.
— Que ela não pode tirar a maldição... — Ele solta um suspiro que dá
a entender que perdeu as esperanças, mas antes que aquela única migalha
seja tirada dele, eu continuo. — Quem tem que se libertar é você.
Ele me olha com confusão.
— Você é o único que pode se libertar. Ela também disse que o
responsável pela sua maldição não é ela.
— Como assim? — Franze a testa.
Por um segundo, consigo ver uma expressão um tanto quanto estranha,
como se ele estivesse montando um quebra cabeça em que uma das peças
não se encaixa, até ele descobrir que estava colocando-a no lugar errado.
— Ela me disse que não é a única. Quando os moradores foram até a
montanha, ela conseguiu sentir o cheiro de magia.
Ele desvia os olhos de mim, balança a cabeça com uma expressão dura
no rosto e logo depois se levanta da cama e retira a xicara das minhas mãos
e a coloca na mesa de cabeceira à frente, depois se senta na cama
novamente e se aproxima mais.
Meus olhos encontram os dele e termino de falar.
— A sua mente cria as barreiras, tem que controlar seus pensamentos.
Se sempre pensar que quando sair as barreiras vão aparecer, a casa fará
aquilo que pensa. Então, vamos trabalhar nisso... nos dois juntos.
Um sorriso surge na boca dele.
Callen pega as minhas mãos e as leva até a boca, beijando as costas
delas. Ele ergue o olhar para mim e os olhos verdes reluzem com o brilho
que surge ali. Os olhos parecem esconder algo que não me contou e que,
provavelmente, nem vai me contar.
Antes de abrir a boca para perguntar o que aconteceu depois que saí e
o que aconteceu depois que voltei, a voz dele me impede.
— Obrigado por isso.
Os olhos me atentam. É como se eles me prendessem em um
sentimento confortável e eu quisesse me prender ainda mais.
Deslizo meus dedos até os cruzar com os dele, o puxando levemente
até mim.
Os olhos verdes deslizam até a minha boca.
Ele se inclina e solta minhas mãos, depois as leva até o meu rosto logo
que os meus lábios são tomados pelos dele e meus braços dão a volta no
pescoço forte. As mãos passam pelos fios do meu cabelo enquanto o puxo
para mais perto.
Ele me levanta levemente para que eu me aproxime mais, as mãos
deslizam por minha cintura e consigo sentir os dedos brincando com o
tecido das roupas.
Ele me beija como se precisasse daquilo para viver. É como se eu
fosse o oxigênio que ele precisa desesperadamente.
Minhas mãos passam pelo cabelo macio e meus dedos se enrolam nos
fios lisos.
A boca dele traça linhas quando beija o meu pescoço. E não seria
surpresa se agora fosse eu que precisasse de oxigênio.
Ele se fasta devagar e me olha, analisando o meu rosto. Uma das mãos
afasta meu cabelo do rosto e ele diz:
— As mechas... elas são uma parte do outro.
Franzo o cenho para ele, sem entender suas palavras, até que tudo
clareia em minha mente. Nossas mechas se completam.
Aquele considerado mal teria o bem, e aquele considerado bom teria o
mal.
“Agora, sim... foram feitos um para o outro”, assim consegui entender
o que Nanrá tinha dito antes de chegarmos.
Três dia se passam e alguma coisa estranha está acontecendo entre
mim e Callen. Ele parece estar se fechando, não fala muito comigo, quase
não me olha. E sempre está com uma expressão de raiva.
Parece preocupado com alguma coisa... E acredito que seja por isso
que nesses dias ele esteja se afastando. E provavelmente não comentou
nada comigo por não ser da minha conta.
Eu sei como é ruim você ter um problema e alguma pessoa forçar você
a contá-lo.
Ando pela casa, tentando encontrar algo para fazer e quando vejo a
porta do quarto aberta, entro e o vejo observando a vista do lado de fora da
janela.
Dou tapinhas nas asas e ele me olha sem expressão.
— Aconteceu alguma coisa? — pergunto, atraindo ainda mais o olhar
dele.
Callen se vira e anda até uma cômoda, onde pega uma taça e coloca
um pouco de água na mesma. Ele a estica para mim, mas recuso. Caminho
até ele novamente e espero até que termine de beber a água, assim que dá o
último gole, eu digo:
— Comece.
Ele me olha e pede que eu me sente na cama.
— Não aconteceu nada — diz, passando a mão no meu cabelo. — Só
não estou me sentindo muito bem. Mas não se preocupe.
Eu finjo que acredito na mentira. Fixo meu olhar no dele e sorrio.
— Tudo bem, descanse um pouco. — Me levanto da cama e o deixo
sozinho no quarto.
Desço as escadas e as sombras me acompanham até a cozinha, pego
algumas plantas medicinais e tento fazer um chá, coloco o líquido em uma
xícara e subo as escadas para levar até ele. Quando chego ao quarto, o vejo
rasgando os lençóis da cama.
As garras afiadas perfuram facilmente o algodão. Entro e coloco a
xicara na cômoda e seguro as mãos dele. O olhar parece sem vida, o corpo
parece pesado por conta da rigidez das mãos.
— O que pensa que está fazendo?
Ele engole em seco e retira as mãos das minhas. A respiração fica forte
e ele sai do quarto, corro atrás dele pelo corredor e paro logo à frente.
— Pare com isso. O que está acontecendo? Fale comigo! — insisto.
Antes que eu possa perceber, sinto o corpo dele contra o meu, ele
enterra o nariz no meu pescoço e a respiração me traz calafrios.
Callen me aperta contra o peito. Me segura tão forte nos braços que é
como se ele tivesse medo de alguém entrar pela porta e me arrastar para
fora.
— Às vezes o monstro em mim desperta, mas não se preocupe... eu
vou controlá-lo.
Eu tento acreditar, mas às vezes parece que ele não consegue dizer
“silêncio” para os monstros que o atormentam.
Algo aconteceu no tempo que eu estava fora, mas sei que ele não me
dirá mesmo se eu o ameaçar.
— Está bem... — é a única coisa que digo.
Ele me solta, dá tapinhas no meu ombro e desce as escadas; desta vez
não o acompanho, apenas observo a silhueta e escuto o chão rangendo.
Uma sensação estranha percorre o meu corpo, o inverno irá embora
logo, logo, mas parece que está levando uma parte minha junto com ele.
A minha única companhia nesses 2 dias que se passaram são as
sombras, a Fênix fica com Callen, que por sinal não sai do quarto há um
bom tempo. Ele não me ignora, mas não fala muito. As únicas coisas que
fala ou faz são, normalmente, um “oi” ou então beija a minha testa.
As sombras brincam com os fios de meu cabelo enquanto tento
acender a lareira. Quando uma chama começa a crescer na lenha, a porta
principal se abre bruscamente, fazendo aquele único ponto vermelho
desaparecer.
Penso que ela abriu porque era para ser aberta naquela hora. Talvez
Callen esteja fortalecendo a mente e pensando na porta aberta, mas então
toda a minha especulação se vai como a neve no verão quando escuto
passos.
Me levando rápido e logo sinto Callen pousando no chão. Os olhos
estão fixos na porta, pela qual dois guardas e um homem entram, logo
reconheço a voz de Tanner vindo da silhueta escurecida pelo sol.
Os olhos percorrem e caem diretamente em mim.
Ando até Callen, que segura o meu braço, mas assim que Tanner estica
as mãos, Callen me joga para ele.
Meu corpo colide com o chão e o olho sem entender o porquê fez
aquilo.
Tanner me levanta, mas os olhos não saem de Callen, que me olha
com uma expressão de raiva. Tento andar até ele, mas Tanner me puxa
novamente para trás.
— Me solta! — digo, cerrando os dentes.
— Não vou te soltar, vamos para casa — Tanner diz.
Tento puxar o meu braço, mas ele o aperta com força.
Eu não voltarei. Foram eles que me colocaram aqui, agora me querem
de volta?
Não sou um objeto para ser abandonado e depois servir para algo
novamente.
— Essa é minha casa — digo sem nem pensar.
Assim que termino de falar, escuto uma risada sarcástica, me viro e
vejo Callen gargalhando e balançando a cabeça.
— Quem te disse que essa é a sua casa?
Meu coração se quebra, meus ossos parecem não existir para suportar
o peso.
— Callen, me ajuda, por favor. Eu não quero ir! — peço.
As palavras tocam uma ferida quase curada, me lembram de quando
eu corri deslizando meus pés pela neve e pedindo para que Tanner me
ajudasse.
Callen revira os olhos.
— Orianna — meu nome saindo da boca dele faz o meu coração doer.
— Acha mesmo que vou impedi-los de te levarem?
Uma lágrima escorre.
— O que eu te fiz? — pergunto, esperando que me responda.
Ele dá um passo para frente e os guardas preparam as flechas.
— Monstros não se importam com ninguém. Você não me fez nada,
mas eu nunca daria minha vida por uma mortal.
As palavras entram ásperas por meus ouvidos e caem pesadas demais
no coração. — Tudo que eu... — a voz vacila. — Tudo que você...
— Foi tudo em vão — responde em um tom seco. — Eu disse para
não se arriscar, e eu não sei o que me deu em todas as vezes que te ajudei...
Foi perda de tempo... todas as vezes que te salvei.
Tanner me puxa em direção à porta.
— Vamos, Orianna, rápido.
O olhar de Callen continua fixo no meu.
‘’Por quê? Por que ele está fazendo isso?
Essa é a única pergunta que tenho em minha mente.
Tanner me tira para fora do castelo e me arrasta pelo jardim como se
eu fosse uma boneca na mão de uma criança. Quando estamos na metade do
caminho, olho para trás e antes da porta se fechar, consigo ler as palavras
que saem da boca dele.
“Eu te odeio”.
Uma flechada doeria menos.
De certa forma, as minhas feridas doeram menos...
Durante todo o caminho até a cidade, eu não consigo pensar em nada
além da dor dentro de mim.
Reviso pensamentos, tentando achar uma explicação, mas nada
justifica.
Penso em como ele foi um ótimo mentiroso, como fingiu em todos os
momentos.
Você foi idiota Orianna, ele é o rei de um reino de mentiras. Minha
mente protesta.
Por que eu pensei que podia confiar nele?
Pensei que ele estava sendo gentil, mas era mentira...
Mas por que ele estava fingindo? O que ele ganhou com isso? Qual
vantagem ele terá de me enganar?
Quando avisto as primeiras casas do reino, uma preocupação invade o
meu corpo.
Já faz mais de dois meses que me jogaram naquele lugar, que me iludi
pensando que aquela era a minha casa, e o inverno ainda não foi embora.
Será que me buscaram por que acharam que eu não era boa? E agora sou
uma decepção para todos?
Os olhares de julgamento atormentam a minha mente, todos me olham
com expressões estranhas. Julgando até minha alma.
Assim que paramos na praça do reino, exatamente onde está a maior
parte das pessoas, Tanner diz:
— Orianna está de volta, viva... — da forma que ele pronuncia a frase
parece ser algo ruim eu ainda ter vida. — Ela não serviu, não salvou o
nosso reino, mas não iremos condená-la por isso. Temos que ficar felizes
por ela ter voltado com vida, mesmo que o inverno ainda esteja presente
entre nós.
Eles me condenariam apenas por não acabar com uma estação, na qual
eu nem culpa tenho? Eu não sou a mãe natureza para parar um inverno
quando bem entender.
A expressão das pessoas se relaxa quando ele terminar de falar outras
palavras, que nem fiz questão de escutar e entender.
— Esperaremos o dia certo, não se preocupem — conclui Tanner.
O dia certo? Vão sacrificar outra pobre moça? Qual é o problema
dessas pessoas?
Sou arrancada dos meus pensamentos quando sinto mãos segurando os
meus braços. Me sobressalteio quando encostam em mim.
Os guardas me tiram de cima do cavalo e penso que me levarão para o
chalé, mas me levam para uma casa grande, para um lugar muito pior, onde
encontro pares de olhos incendiados, com raiva. O modo como Irene morde
a parte interna da bochecha me diz que ela está muito “feliz” em me ver de
volta.
Me recuso a entrar na casa. Luto com todas as minhas forças contra os
guardas, mesmo sabendo que será uma luta vã.
Irene está em frente à porta com os braços cruzados e os olhos
vidrados em mim. Tanner chega por trás e coloca as mãos em minhas costas
e dá um pequeno impulso para frente.
— Entre! — ele diz, sem simpatia na voz.
Quando não me mexo, Tanner agarra o meu braço e me força a
entrar.
A casa é enorme, mas a energia que tem nela, escondida nos cômodos,
é quase palpável.
Tanner me arrasta até uma porta escondida na parede, o som de meu
corpo sendo jogado no chão invade os meus ouvidos, a última coisa que
consigo ver são os olhos de Irene antes da mesma fechar a porta e eu
escutar o som de seus passos ficando mais distantes.
Observo o quarto em que fui jogada, o cômodo é ocupado por um
colchão simples no chão, uma janela empoeirada e uma mesa que possui
uma jarra de água e um copo sobre a superfície.
Cerro os punhos e a vontade de gritar invade eu corpo. Presa
novamente.
Me levanto e tento abrir a porta, minha tentativa é falha.
Não tenho nada comigo que possa me ajudar a quebrar a janela ou
para me ajudar a sair.
Alguns minutos depois, a porta se abre e uma mão empurra uma
bandeja para dentro do quarto.
— Coma! — Ordena uma voz masculina — A senhorita Irene disse
que não quer ver as sobras desta comida.
Eu ignoro o que a voz diz, continuo sentada no colchão sem me mexer.
As quatro paredes parecem diminuir. A cada minuto elas me prendem mais
e mais.
Continuo em silêncio, apenas observando o cômodo que
carinhosamente apelidei de “prisão”, escutando o silêncio agoniante. As
palavras de Callen fazem uma bagunça na minha mente, os pensamentos
colidem uns com os outros. Eu pensei que poderia ficar no castelo, eu me
senti em casa como nunca antes, aquele lugar tinha luzes escondidas que eu
pensei estar vendo.
A boca dele pressionada na minha... ah, como isso dói. As garras do
coiote rasgando a minha pele doeram menos do que pensar que aquele beijo
foi mentira. As mãos tocando o meu pescoço e deslizando por minha
cintura era mentira. Todos as vezes que ele me ajudou... ou me salvou, foi
mentira.
Meu coração sente repulsa. Eu sinto as mãos tocando o meu cabelo e o
prendendo em uma trança, mas antes que eu possa pensar em outra coisa,
balanço a cabeça quando escuto a porta se abrindo, só então percebo que
enquanto eu me perdia no passado o presente estava passando, e aqui
estamos nós...no futuro. Com o coração doendo e com os momentos sendo
apenas lembranças. As lembranças que eu não queria ter, as lembranças que
eu não sinto felicidade quando lembro, mas, sim, o ódio misturado com a
decepção.
A porta se abre por completo e Irene entra na minha pequena “prisão”,
tropeçando na bandeja perto da porta. O olhar dela para no chão, onde vê o
suco e a comida espalhadas, ela levanta o olhar e os olhos descansam em
mim.
— Por que não comeu?
— Estou sem fome.
Ela dá mais um passo para dentro e fecha a porta.
Os pés deslizam até pararem à minha frente.
— O que é isso no seu cabelo?
Pego a mecha com a mão e a ergo.
— Uma mecha preta, não está vendo?
Seus lábios se contorcem em um meio sorriso forçado, então revira os
olhos.
— Deve estar pensando que é uma verdadeira heroína por sobreviver
ao monstro, não é?
Passo os dedos pelo cabelo e me ajeito no colchão, me apoio na janela
e observo a sujeira por fora. Balanço a cabeça de forma positiva e continuo
olhando a vista embaçada.
— Me diga, — começa ela novamente. — Você é tão desagradável
que nem a criatura quis você?
Retiro os olhos na janela e a encaro, sem responder à pergunta.
— Acho que não — supõe. — Sabe, eu sempre desconfiei e agora
estou certa... Agora eu entendo o porquê Tanner sempre amou você, ou
então como sempre teve uma beleza extraordinária e fazia com que todos os
homens sempre te olhassem com desejo. Sobreviveu ao monstro e fez tudo
isso com forças sobrenaturais, é magia..., sua bruxa maldita — ela fala,
quase cuspindo as palavras.
Uma risada escapa da minha garganta, apenas consigo balançar a
cabeça e rir enquanto o meu olhar sabrecai nos olhos dela.
— Você ainda não me viu sendo a bruxa.
Os olhos parecem perder a cor com as palavras. Ela se abaixa, segura
meu rosto e o aperta. Quando minhas bochechas começam a doer e a
vermelhidão pela pressão de seus dedos começa a parecer, ela o solta e sai
do cômodo batendo os pés.
Quando a porta se fecha, atiro um par das botas em direção a porta e
o barulho da madeira sendo atingida é forte. Meu rosto doí, mas a dor
parece atenuar a fúria que contamina cada fibra do meu corpo. Essa não é a
pior coisa que já fizeram comigo, nem de longe.
Não faço ideia de quanto tempo se passou, a única coisa que consigo
pensar é na fome me perseguindo e apertando o meu estômago. Assim que
Irene pediu que retirassem a bandeja do quarto, eu não tive a opção de
comer ou não.
Uma batida ressoa na porta e assim que ela se abre, Tanner entra, se
juntando a mim nas paredes que me prendem.
— Vamos jantar — ele diz.
— Eu não quero!
— Isso não é um pedido, é uma ordem! — retruca.
Eu poderia dizer que não recebo ordens de ninguém, mas acredito que
esse jantar vai me divertir nem que seja um pouco, não há nada melhor do
que um jantar de família sendo um caos.
Me levanto do fino colchão e caminho até a porta, ele me guia até
chegarmos à sala de jantar.
A expressão de insatisfação da minha prima está clara em seu rosto.
Tanner pede para eu me sentar ao lado dele e à frente de Irene enquanto ele
busca os pratos, me ajeito no assento e observo as taças à nossa frente.
— O que é isso? — pergunto para Irene, que está completamente
infeliz comigo sentada à mesa, junto dela.
— Suco de maçã — responde, dando um sorriso falso.
— O que aconteceu com a minha tia? — pergunto, curiosa por não a
ter visto.
Irene levanta o olhar.
— Encontrou um amante... e se mudou com ele para outro reino.
Penso em perguntar o porquê ela não foi junto, mas prendo a pergunta
na minha voz.
Reparo nas taças e o líquido é o mesmo. Minha mão bate no garfo ao
meu lado direito na mesa e cai no chão, olho para o objeto e me abaixo para
pegá-lo.
— Pode trocar? — pergunto para Irene.
Ela franze o cenho, se levanta e retira o talher de minha mão.
— Vou trocar porque não confio em você andando pela casa.
Ela se vira e vai em direção a cozinha, me deixando sozinha na mesa
enorme, os líquidos se agitam nas taças e logo depois ela volta com o garfo
em uma mão e um prato na outra, acompanhada de Tanner que, ao contrário
dela, está com pratos nas duas mãos.
Irene me entrega o garfo e se senta em seu lugar, Tanner por sua vez
coloca meu prato na mesa junto ao dele e se senta na ponta da mesma.
A comida parece boa, mas antes de começar a comer, Tanner pigarreia
e propõem um brinde.
— Vamos bater as nossas taças por Orianna, que sobreviveu ao
monstro da montanha Ilite.
Quase reviro os olhos com a frase, mas aceito. As taças tintilham uma
na outra e assim nós três bebemos.
Colocamos as taças na mesa e Tanner ri.
— Como está o suco, Orianna? Gostou do veneno?
Meus olhos param nos dele. Demoro alguns segundos para falar, mas
assim que um sorriso aparece na minha boca, pergunto:
— Veneno? — me faço de desentendida. — Ah, está falando daquele
que estava na taça que troquei com a sua?
Irene se levanta bruscamente da mesa e os olhos de Tanner são
tomados por pavor.
— O quê? — pergunto. — Pensou que eu tinha derrubado o garfo por
acidente? Achou mesmo que eu não veria os pontinhos brilhantes no meu
suco? Ah, que dó! — lamento friamente. — Vocês têm ideias ótimas, mas
lhes faltam inteligência.
Tanner se levanta e corre até a cozinha, mas antes que chegue até ela,
o corpo perde as forças e cai, fazendo um estrondo. Irene corre até ele e os
outros funcionários fazem o mesmo para ajudá-lo.
Meus olhos vão até a porta e me levanto sem fazer barulho, mas Irene
me olha antes que eu possa sair da sala.
— Orianna! — grita ela.
Corro em direção a porta, meus pés quase tropeçam nos inúmeros
tapetes espalhados pela casa, mas consigo chegar até a entrada principal,
que não fica longe de onde eu estava. Antes que eu possa girar a maçaneta,
dois guardas me alcançam, forço meu braço para baixo e retiro a faca que
escondi na bota quando me levantei da mesa.
Faço cortes nas mãos do guarda que segura o meu braço, os cortes não
são fundos, mas são o suficiente para o sangue manchar o piso branco. O
outro tenta retirar a faca da minha mão, mas a cravo na lateral do corpo
dele, o fazendo cair.
Seguro a maçaneta e agradeço aos Deuses pela porta estar aberta. Não
existem portões ou grades rodeando a casa, então corro rua afora.
Percorro diversas ruas até estar longe da casa, longe o suficiente para
que eles passem uns bons minutos me procurando. Não sei para onde vou,
mas não ficarei aqui. Prefiro ser perseguida por lobos do que por eles.
Escuto o som de cavalos percorrendo as ruas, seguidos de vozes
dizendo para seguirem direções opostas, me aproximo de uma casa com a
respiração ofegante e apenas sinto algo agarrando o meu braço e me
puxando para dentro.
Há apenas uma vela acessa na casa.
— Onde... — tento perguntar.
—Sh, por favor não fale — diz uma voz feminina.
Quando os meus olhos se acostumam, vejo uma pessoa com a pele em
um lindo tom de marrom escuro, com algumas partes claras, os olhos em
um tom de âmbar vivo, os cabelos marrons claro com leves cachos.
Belíssima.
— Desculpa por ter puxado você assim — continua uma voz
masculina.
E, no escuro, percebo um rapaz, um pouco mais alto que a jovem ao
lado, com a pele clara e os cabelos ruivos, olhos marrons e sardas
espalhadas pelo rosto.
— Sem problemas — sussurro.
Ela caminha até a janela e abre apenas uma pequena parte da cortina.
— Desculpe não nos apresentarmos — diz o rapaz. — Eu me chamo
Ash, e aquela é a Ivana, minha esposa.
— Prazer — cumprimento os dois, sorrindo — me chamo Orianna.
Ivana se afasta da janela depois que o barulho de uma arma disparando
corta o silêncio, Ash pergunta se ela viu alguma coisa e ela apenas balança
a cabeça de forma negativa.
— O que está acontecendo? — pergunto.
— A caça vermelha — ela responde, se sentando em um sofá de dois
lugares.
— Como? — pergunto, ainda sem entender.
Ash me olha e se aproxima, para olhar através de outra janela.
— Algum fugitivo está vagando pelo reino — com as palavras, os
meus olhos se arregalam. — A Imperatriz proclamou que aquele que fizer
algo que desrespeite ao reino, ela ou ao marido dela, deve ser caçado e ter
seu sangue derramado.
— Imperatriz? — pergunto em voz alta para mim mesma.
Desde quando o reino tem Imperatriz? Helinor é um reino, não um
império.
— Sim, o reino se transformará em um império. É a primeira vez que
está aqui? — Pergunta Ash com uma expressão estranha.
— Sim — minto.
Ivana se levanta do sofá e se aproxima do marido perto da vidraça,
observa a rua, se afasta da janela e se vira para mim. O olhar para no meu
rosto por alguns segundo e logo ela se apresa a explicar:
— Há quase um mês, o imperador Tanner descobriu que vinha de uma
linhagem real, o pai dele deu a vez para o filho antes de partir já que não
queria essa responsabilidade, então ele se tornou o imperador de Helinor e
escolheu a imperatriz Irene como sua esposa.
Engulo em seco e quase me engasgo com o ar que se torna seco até
demais para mim.
Adam morreu?
E deixou Tanner no controle de tudo?
Eu imaginava que os dois acabariam juntos, mas não que
comandariam um reino que, por sinal ainda, tem seu verdadeiro rei vivo,
embora esquecido.
Eles parecem não saber que o “fugitivo” na verdade sou eu, e isso me
deixa um pouco mais tranquila.
— Escutaram falar da moça que foi levada como sacrifício para o
monstro da montanha Ilite? — pergunto sem ter noção do que virá depois
das palavras saírem de minha boca.
Eu e minha grande boca...
Eles se entreolham e uma tenção ronda o lugar.
— A gente sabe que é você —ambos revelam.
Meu corpo congela.
— Ah, vocês sabem.... — Minha tranquilidade se vai depois disso.
— Eles estão atrás de você, não estão? — pergunta Ash.
Assinto com a cabeça e eles me olham como se tivessem... dó?
— Você não foi um bom sacrifício, por isso te trouxeram de volta. —
Ivana abaixa o olhar quando diz isso.
— Ele não quer sacrifícios — essa frase me dói, ele não é um monstro,
mas o meu coração não diz o mesmo que a minha mente.
Ivana arqueia a sobrancelha, Ash me olha como se eu estivesse louca...
quem sabe eu esteja. Não... eu sei que não estou.
— Feitiço... ele nunca quis um sacrifício, não é ele que manda o
inverno...
— Está falando do monstro? — Ivana pergunta apenas para
confirmar.
— Estou falando do verdadeiro rei de Helinor, que acabou sendo
transformado em um monstro pelo egoísmo das outras pessoas. — Após
dizer isso, a frase “eu nunca daria minha vida por uma mortal” vem com
tudo à minha mente e dói como uma ferida recém-aberta.
Dói como se meu coração fosse dilacerado, esmagado, cortado...
— O monstro é o nosso rei? — Ash parece não acreditar.
— Espera... — interrompe Ivana. — Então... se for verdade, o
imperador irá matá-lo.
Me levanto bruscamente.
— Como assim?
E por que você se importa, Orianna? Menina boba, a minha mente
protesta.
Porque eu não acredito nas coisas que ele fez, rebate o meu coração.
Ash me puxa para baixo e coloca a mão em minha boca.
— Quieta.
— O monstro deu a vida por você — revela Ivana. — Acharam que
você não foi o suficiente, por isso o inverno continua até agora, eles foram
até o castelo e se você ainda estivesse viva, te matariam e entregariam outra
pessoa.
O som dos cavalos correndo pelas ruas se tornam mais fortes.
— O imperador foi até o castelo e você não estava lá, o monstro disse
que você tinha fugido, então o Imperador disse que acabariam com você
assim que te encontrassem, por ter a ousadia de fugir e deixar o reino na
miséria. O monstro disse que se encostassem um dedo em você, o reino
seria destruído. O Imperador disse que ele não saberia quando você não
estaria mais aqui, então o monstro disse que daria a vida dele em troca da
sua... Já que ele era o culpado de tudo isso. Tanner contou isso para todos
que conseguiu... Com orgulho na voz — termina.
— Como sabiam que eu tinha voltado?
— Não sabíamos — Ash conclui. — Foram para buscar ele, não
você... Te trouxeram para que o assistisse ser destruído. Eu acredito que ele
te entregou para te salvar, talvez tenha pensado que Tanner cuidaria de
você, se ele se rendesse.
Um barulho soa não muito longe, o silêncio se instala na casa e olhos
com medos percorrem todas as janelas para ver se alguma silhueta passa
por elas.
A porta é arrombada, um guarda entra e aponta uma arma em nossa
direção, na minha direção . Como Ivana e Ash estava ao meu lado, eles se
tornam as vítimas também.
Ele dá um leve sorriso, como se tivesse achado a mina de ouro, a mão
segura a arma com força enquanto ele diz:
— Peço que venha comigo, seja boazinha, comporte-se e não
machucarei os seus amiguinhos. Eles sabem que terão problemas por te
esconderem.
Dou um passo para frente, me aproximando lentamente, observo como
a arma está posicionada entre os dedos e assim que me aproximo, a ponto
de estar ao lado dele, percebo que o mesmo abaixa a arma e então consigo
retirá-la de sua mão, um dedo no gatilho e um disparo.
O casal logo atrás se sobressalteia com o barulho extremamente fino e
agudo causado pela arma.
Meu estômago se revira com a poça de sangue se formando no chão,
mas não deixo que me impeça de sair.
— Por favor, me acompanhem... Se quiserem.
Eles observam o chão e, por um momento, penso que vão recusar, mas
então me seguem para fora. Escuto mais guardas se aproximando enquanto
faço com que meus pés se movam mais rápidos.
Corremos por algumas ruas, passando entre um labirinto de casas,
quase colidindo com árvores quando olhamos para trás, apenas para ter a
certeza de que ainda estamos sozinhos. O meu dedo está no gatilho e meus
ouvidos sempre atentos aos passos.
Passamos por um estábulo e vemos dois cavalos presos. Nos
entreolhamos e, sem falarmos nada, continuamos na direção dos animais e
os soltamos, Ivana e Ash ficam com um mais dócil e eu fico com o outro
que parece ser um pouco mais complicado de lidar, porque assim que subo
em suas costas, ele começa a se agitar. Mas depois de alguns segundos
tentando acalmar o equino, ele finalmente se acostuma comigo.
Depois de alguns minutos, conseguimos sair da cidade e adentrar à
floresta. Cortamos caminho para não ter que cruzar o lago, depois de longos
minutos conseguimos chegar à montanha e, em pouco tempo, me pego
parada em frente as grades, essa cena me faz lembrar de quando fui forçada
a entrar, mas agora não penso duas vezes antes de correr pelo jardim, não
fugindo do castelo, mas, sim, voltando para ele. Voltando para casa.
Subo os degraus da entrada, colocando as mãos na porta e a
empurrando. Meu corpo se embala para frente assim que ela se abre e a casa
me recebe. Subo as escadas, avançando para o lado esquerdo do corredor.
A porta do quarto parece tão pequena agora, me lembro de como ela
parecia gigantesca quando fiquei em frente a ela pela primeira vez.
Minhas mãos se aproximam da maçaneta, mas antes que meus dedos
as toquem, Callen a abre.
— O que pensa que está fazendo aqui? — pergunta, assustado.
Minha voz está presa, eu quero falar, mas não consigo. Meu corpo se
move e, antes que eu perceba, eu estou abraçando-o.
— Orianna! — ele chama.
Me afasto, mesmo não querendo, mesmo que meu corpo se recuse a
soltá-lo. Eu tenho medo de ser levada novamente. De me prenderem
novamente.
— O que faz aqui? — pergunta.
— Idiota! — é o que consigo falar — Por quê? Por que dar a sua vida
por uma mortal? — demando, tentando conter a intensidade da voz.
Ele não diz nada, apenas olha para baixo.
— Me diz... por quê? — insisto.
As sombras nos encontram e se põem ao meu lado.
— Eu poderia dizer qualquer coisa... que eu estava cansado. Que eu
tenho pena de você. Que eu queria me libertar. — Sua respiração irregular
me encontra e sinto seu hálito bom e quente em minha pele. Seus olhos me
encaram, parecendo ver minha alma. — Mas eu estaria mentindo. A
verdade é que fiz isso porquê amo você.
A dor parece se desfazer, mas logo ela volta.
— Disse que me odiava.
Os olhos verdes me olham com um certo tipo de espanto.
— Eu nunca disse isso.
Levanto o olhar.
— Quando eu estava sendo arrastada para fora, antes da porta se
fechar... — ele franze a testa, fica confuso por um longo momento, mas
logo desfaz a expressão.
— Pelos deuses — diz ele em um tom de indignação — não era isso,
eu disse “eu te amo”.
Não me mexo.
— Eu não podia contar o que estava acontecendo, pensei que nunca
mais a veria novamente — ele respira fundo, como se aquelas palavras
fossem sua destruição — foi a minha despedida.
Um arrepio sobe por meu corpo. Meu coração se aperta dentro do
peito, sinto minha visão ficando turva quando abaixo o olhar para o chão.
— Eu amo você! — repete. — Mas não espero que retribua o
sentimento.
As palavras me impressionam, ergo o olhar rapidamente e não ligo se
uma lágrima cair.
— Eu te guiei para o lugar que eu deveria ter a tirado. Eu acabei te
levando para a escuridão novamente, fui tolo o suficiente para cair em uma
mentira e acreditar que estava te salvando. Me perdoe por isso.
Eu estava na escuridão há muito tempo, desde que fui adotada pela
minha tia, que, claramente, assinou os papéis com desgosto. Desde que fui
calada. Desde que tentaram me comprar e quase conseguiram. Desde que
me disseram que eu seria uma esposa perfeita porque ficava quieta e
obedecia às ordens...
Eu estava na escuridão por anos, até chegar aqui. Quando fui arrastada
porta adentro, algo dentro de mim disse que aqui eu encontraria a minha
luz, que aqui eu encontraria a felicidade, que aqui eu encontraria alguém
que não me forçaria a fazer coisas absurdas, nem que tentaria me comprar e
muito menos que me calaria.
— Você me deixou falar, deixou eu ser quem eu sempre quis ser. Foi
você que me tirou daquele buraco negro no qual eu vivia, então por favor,
não fale isso — uma lágrima escorre por meu rosto, ele se aproxima para
limpá-la e eu pressiono a sua mão em minha bochecha — eu te amo —
digo, erguendo meus olhos até encontrar os dele.
Ele ri e me abraça, os braços e as asas me envolvendo, o conforto, a
segurança que sinto e o quente do corpo dele contra o meu me faz perceber
que é real. Que não irei acordar no quarto, deitada no chão, para perceber
que tudo foi ilusão. Eu sei que é real.
Ele se afasta e percebe as duas pessoas paradas atrás de mim,
observando as sombras voarem entorno delas.
— Quem são eles?
Me viro e vou até o casal.
— Ivana e Ash. Me ajudaram muito a chegar até aqui.
Os dois parecem tranquilos diante de Callen, eles dão um passo à
frente e se curvam, surpreendendo tanto a mim quanto a ele.
Eles se levantam e se entreolham sorrindo.
— Sentimos que é o verdadeiro rei — Ivana diz, empolgada.
— O que podemos fazer vossa majestade? — Ash pergunta.
Callen me olha e arqueia a sobrancelha.
— Responda a eles — diz, sorrindo para mim.
— Eu não sou a majestade deles. — Aponto para o mesmo.
A boca se curva em um sorriso. E então nos chama para que o
acompanhamos até a sala. Nós quatro nos sentamos em sofás e o fogo da
lareira queima a lenha.
Callen se acomoda no encosto da poltrona e olha para o casal, mas
logo seu olhar cai sobre mim.
— O que está acontecendo lá fora?
— Minha prima se casou com o homem que veio até aqui — conto a
ele. — Eles se proclamaram imperador e imperatriz do reino, porque... de
algum jeito, Tanner descobriu que tem uma linhagem real, o que eu acredito
não ser verdade.
Ele se mexe na poltrona parecendo estar desconfortável e arruma as
asas.
— É verdade — afirma com um tom rouco na voz. — Tanner é o meu
irmão.
O espanto toma conta de minhas expressões.
Franzo a testa e quase repito o gesto com o nariz.
— Ele é seu irmão? — pergunto, tentando esconder a indignação.
Ivana e Ash não dizem nada, mas também estão com expressão de
surpresa.
— Sim. O nosso pai não queria ser rei, ele não se preocupava com
nada além dele mesmo, então achou melhor passar a vez. Assim que o meu
avô se foi, ele começou a me treinar e eu assumi o trono, mas meu irmão
não concordou com a ideia, segundo ele eu não merecia — Callen faz uma
pausa um pouco longa. — Eu fiquei sabendo sobre o meu pai.
O silêncio recai sobre a sala. Fico em silêncio por um bom tempo
processando a frase “meu irmão não concordou com a ideia, segundo ele eu
não merecia”, mas logo dou conta de algo...
— Você foi amaldiçoado por alguém que queria vingança, que queria
o reino em suas mãos. Tanner ainda está vivo, então ele não é um simples
humano, isso quer dizer que... — Todas as peças se encaixam — Tanner é o
feiticeiro que vive entre nós.
— Ele te amaldiçoou — Ivana conclui.
Nossos olhares recaem sobre Callen, que demora um pouco para
demonstrar qualquer tipo de expressão. Ele arruma as asas atrás da poltrona,
cruza os braços e solta um suspiro seguido de uma confirmação com a
cabeça.
Me encosto no sofá e todos mergulhamos em um silêncio profundo.
Pela reação de Callen, eu acredito que ele já desconfiava do irmão,
provavelmente a realidade veio à tona quando eu mencionei que Nanrá
tinha dito que outro feiticeiro era responsável pela maldição. Deve ter
acontecido muitas coisas quando eram crianças para Tanner amaldiçoar
Callen, seu próprio irmão.
As expressões de mágoa e dor percorrem seu rosto de uma forma tão
visível que eu consigo sentir o coração apertado.
Eu o entendo, nunca desconfiaremos de um parente, ainda mais um
irmão, mas eu cresci com parentes abusivos, então, para mim, ninguém
pode confiar em ninguém, mesmo que tenha o mesmo sangue, você não
pode acreditar que aquela pessoa é boa e que nunca te faria mal... Até
porque... a bondade não vem no sangue como um brinde, ela é a escolha
que a vida te dá. E muitas vezes as pessoas sorteiam as suas escolhas.
— Ele amaldiçoou o reino junto, para esquecerem de você e criar um
monstro no lugar, mas porque vocês dois ainda sentem que ele é o
verdadeiro rei? Como não tiveram a mente afetada como os outros? —
pergunto.
— Pessoas de mente fortes são difíceis de se enfeitiçar — Callen
explica. — Meu irmão tentou isso comigo muitas vezes, até conseguir. Ele
esperou até que eu estivesse com a mente fraca, vulnerável. Tenho certeza
de que não são somente eles que discordam com algumas coisas...outras
pessoas também não foram enfeitiçadas por completo.
Já que a mãe era Trâniana, Tanner nasceu já possuindo dons para que
desenvolvesse quando crescesse, foi capaz de amaldiçoar o próprio irmão
para que, algum dia, pudesse tomar o trono, amaldiçoou o reino para que
ninguém fosse contra, para que ninguém lembrasse que ele não era o
herdeiro e se voltasse contra o seu reinado.
Callen mantém o olhar fixo no chão. Ivana e Ash ficam em silêncio
enquanto eu digo:
— Precisamos acordar o reino. Talvez o Imperador não esteja mais
vivo... — jogo as palavras no ar.
— Como? — pergunta Ash, atraindo o olhar de Callen para mim.
— Troquei a minha taça envenenada com a dele.
Um novo silêncio percorre a sala, Callen pensa muito antes de falar:
— Não. Ele está vivo... o veneno deve ter lhe dado um susto grande,
mas não foi capaz de matá-lo.
— Majestade — Ash chama —, o Imperador atacará até ter aquilo que
deseja. As coisas foram horríveis com apenas algumas semanas
governando, planos de invadir os reinos de Hesper, regras absurdas foram
impostas. A noite ficávamos com medo de sair de casa por causa das
patrulhas. Imagina se ele souber que a Orianna fugiu para cá. Por favor, eu
peço que nos ajude salvar a nossa casa, o nosso reino e as pessoas inocentes
que ainda estão sendo governadas por ele.
Eu sei que Tanner não é burro, provavelmente ele sabe que a morte do
guarda é minha culpa, acredito que ele também saiba que eu vim para cá.
Ele mandará guardas até aqui... ou não.
Ele não é idiota de vir até aqui, eu descobri, estou segura, Callen não
pensaria duas vezes em atacá-lo caso ele invadisse a casa novamente.
Da primeira vez Callen queria me proteger, mas agora eu não preciso
de proteção.
Callen nos olha, assente com a cabeça e sorri.
— Obrigado por confiar em mim. Agora eu não sou mais o monstro
para todo mundo — ele percorre os olhos pela sala até chegar em mim, um
sorrisinho aparece em seu rosto — amanhã vamos ao reino vizinho, talvez
desta vez o governante tenha piedade de nós... e nos ajude.
Acredito que ele percebeu que existem pessoas boas que o enxergam
como pessoa, não como monstro. Os brilhos nos olhos dele quando o casal
se curvou e o chamou de “majestade” era perceptível de longe.
Escondo o começo do alvorecer com as cortinas. O quarto está
exatamente do jeito que eu deixei quando me levaram. As cobertas
reviradas que não arrumei, o tapete bagunçado e marcado com minhas
pegadas, a escova de cabelo com fios em cima da penteadeira... tudo
exatamente como eu deixei.
Ele não arrumou nada, acredito que nem sequer entrou aqui.
A porta se abre e os passos ecoam até a metade do quarto.
— Sentiu a minha falta? — pergunto, me virando para olhá-lo.
— Senti — assume.
Caminho até a cama e afasto as cobertas com a mão. Ele fica parado,
observando a cortina.
— Ivana e Ash já foram dormir, o dia está quase amanhecendo, tente
descansar um pouco.
Balanço a cabeça de forma negativa.
— Depois... — dou um tempo. — Me diz, o seu irmão sempre foi
egoísta e mimado?
Ele para e parece pensar.
— Enquanto éramos criados por nossa mãe, não, mas depois que ela
partiu e nosso pai começou a nos educar... ele se tornou assim. Eu não acho
que seja egoísmo, meu pai se manteve tão ocupado me preparando para ser
rei, que esquecia do outro filho. Na mente dele, eu tinha tudo o que ele
queria, mal sabe ele, que na minha mente, ele era quem tinha tudo o que eu
queria.
Uma curiosidade veio à mente.
— Se o seu pai era mortal... como ele sobreviveu tanto tempo? —
pergunto curiosa.
— Minha mãe conseguiu convencer um feiticeiro de Calix a usar sua
magia para prolongar o tempo de vida dele, mas... o tempo deve ter
acabado. — A voz dele não apresenta tristeza.
Eu não me lembro de ouvir o senhor Adam falando sobre a esposa, e
nem Tanner mencionava a mãe.
— Sua mãe... ela tinha alguma característica?
— Ela tinha dons por causa de seu reino de origem, mas era um dom
específico. — Responde.
Então deve ser por isso que nunca citaram ela, provavelmente não
queriam dar pistas de que uma Trâniana viveu em Helinor e que fazia parte
de sua família, para que não desconfiassem dos dons de Tanner e rumores
sobre a sua magia surgissem.
— Por que ela veio para cá? — pergunto, curiosa.
— Para fugir de um casamento. Ela acreditava que aqui nunca a
achariam, mas acharam...
Eu sinto que ele pensa demais e fico com medo de ele estar
relembrando memorias ruins, então decido fazer outra pergunta:
— Nunca desconfiou que ele faria isso? — volto o assunto para
Tanner.
Ele balança a cabeça.
— Às vezes eu pensava na possibilidade, mas dizia a mim mesmo que
ele não faria isso e continuava colocando a culpa na feiticeira. Quando me
disse que não foi ela, eu nem questionei, o nome do meu irmão veio à tona
na minha mente e as vozes que diziam que ele era o culpado voltaram, me
dizendo que estavam certas.
— Ele veio até aqui depois que saí?
Os olhos verdes pousam em mim.
— Sim, fingiu que não me conhecia, veio procurar você, mas quando
soube que não estava mais aqui, ordenou que os guardas a procurassem,
quando a encontrassem teriam que prendê-la e depois realizariam sua
execução. — Ele faz uma pausa consideravelmente longa — Na mesma
hora, eu o ameacei, mas ele já estava com as respostas na ponta da língua,
então eu disse para condenarem a mim, eu tinha a culpa.
— Você não tem culpa de nada — as palavras tropeçam da minha boca
assim que ele termina. — O Tanner vai pagar por tudo isso.
Raiva incendeia o meu corpo. Meu sangue borbulha por justiça, minha
respiração fica pesada. Consigo sentir as unhas pressionadas nas palmas das
minhas mãos por causa dos dedos fechados.
— Quando você voltou, eu me desesperei. Quando ele chegou tive que
fazer o que combinamos, se você voltasse, eu te entregaria. Ele cuidaria de
você e eu teria meu fim, mas já tinha que ter desconfiado nas mentiras que
o meu irmão conta. — Ele solta um suspiro pesado. — Eu não pude contar
nada disso a você, me desculpe.
— Não precisa se desculpar.
Decido não fazer mais perguntas. Assim que o silêncio paira no ar,
Callen se abaixa, beija minha testa e diz:
— Boa noite, minha realeza.
Ele sai do quarto e fecha a porta sorrindo.
— Minha realeza? — murmuro.
Sorrio e solto um longo suspiro, arrumando as cobertas para dormir.
A cama confortável me faz pegar no sono rápido e não deixa que os
pequenos raios de sol que ultrapassam algumas brechas na cortina me
incomodem.
Sou acordada pelas sombras que jogam um vestido na cama quando
amanhece por completo.
Ele é branco com um decote em V e mangas teladas. A saia longa
possui uma fenda e coloco botas brancas de cano alto com um salto
elegante no pé e antes que eu possa sair do quarto, elas me param na porta.
Dou um passo para trás e Callen entra, segurando uma caixa.
— O que é isso?
Ele a coloca na cama e abre.
— Uma coroa e uma adaga.
Encaro a caixa e me aproximo, dentro há uma coroa circular prata com
algumas joias transparentes incrustadas. A adaga é de ferro com uma fita
branca de seda amarrada entre lâmina e o punhal, ela tem desenhos de
folhas douradas e a ponta é tão afiada quanto facas.
— Por que a coroa? — pergunto, confusa.
— Eles não escutarão um Rei amaldiçoado, então terão que escutar a
rainha.
— Eu não sou a rainha.
Ele fica pensativo e coloca as mãos no bolso da calça.
— Pode não ser ainda, mas saiba que quando quiser... a coroa também
será sua.
Sorrio enquanto toco as coisas dentro da caixa.
Callen retira a coroa com cuidado e a coloca sobre a minha cabeça.
Pega a adaga e se abaixa para amarrar um pano branco de seda na minha
perna, encaixando a lâmina entre a minha pele e o tecido amarrado nela.
— Minha realeza... Posso afirmar que nunca vi nada comparado com
você em mais de 200 anos. — Ele sorri, um sorriso tão sincero. — Você é
simplesmente perfeita, Orianna.
Eu não sei o que responder, se a minha memória não falha é a primeira
vez que me elogia.
Sinto o meu rosto ficando vermelho e é claro a pele quase pálida não
ajuda a esconder as bochechas corando, apenas mostra com mais evidência.
Viro o rosto para o outro lado, um que ele não consegue ver. E então
sinto... o peso.
Minha cabeça ainda não está pronta para o peso da coroa sobreposta
sobre ela, mas tento sentir aquilo que pela hora possuo.
Ele pigarreia e diz:
— Eu vou na frente, desça quando estiver pronta.
Ele com certeza viu.
— Já estou indo. — Me viro e espero que meu rosto já esteja normal.
Nunca gostei de elogios, mas os dele são diferentes... Ser elogiada por
alguém que você realmente gosta é como se jogar em um lago quente no
inverno... Aquece não só o corpo, mas também o coração.
Callen para em frente a porta antes de sairmos do castelo, os olhos
estão fixos no metal e as asas rígidas.
— Mostre que o rei quer sair — digo.
Ele a encara por alguns segundos e então coloca as mãos sobre o ferro
e a puxa, a porta dá a impressão de ser pesada, mas ela se torna mais leve
que uma folha assim que saímos.
— Agora as barreiras.
Ele caminha e desce os degraus da entrada e, até o momento, nenhuma
barreira aparece, ele dá um impulso para cima e as asas batem livremente.
Ele pousa e o solo treme sobre nossos pés.
— Ivana e Ash vão com os cavalos — organiza. — Orianna, você vem
comigo.
Ivana e Ash montam os animais. Eles vestem roupas modeladas para o
corpo de cada um, com detalhes desenhados pelos tecidos.
Callen me ergue nos braços e o meu estômago parece revirar assim
que se joga céu acima.
— Antes deles conseguirem nos alcançar, eu quero levar outra pessoa
comigo — digo, tentando fazer com que o vento não leve a minha voz com
ele.
Peço para Callen pousar no meio da floresta dos corvos, exatamente
onde a montanha se localiza.
Eu estava concentrada em cada detalhe que era possível ser
visualizado do alto que nem percebi o quanto tempo se passou. O sol já está
quase se pondo, a tarde está quase se despedindo.
Com Callen é muito mais rápido de se chegar, os cavalos atrasam um
pouco, mas são apenas alguns minutos de diferença.
O olhar de Nanrá se fixa em nós dois, expressando surpresa por Callen
ter conseguido controlar a própria mente.
— Que surpresa mais agradável, querida — sinto um tom de ironia na
sua voz dela.
— Nos daria a honra da sua companhia? — retribuo com o mesmo
tom.
Ela ri e joga a cabeça para trás, já imaginando para onde estamos
indo.
— É claro, seja lá o que vão fazer, eu não poderia perder o caos que
essa viagem vai causar.
O ar gélido de Helinor pode ter congelado meus braços, mas logo o
calor de Calix faz minha pele ficar quente como se eu tivesse entrado em
contato com o fogo.
Assim como Helinor, Calix possui as quatro estações, que acontecem
em tempo diferentes, a diferença de um reino para o outro são os habitantes
e o presente que a mãe natureza lhes deu... a imortalidade.
Será que os reinos cristalizados são diferentes, por que a mãe natureza
também os presenteou? Ou será que foram os deuses que os presentearam?
Mas, por que será que Helinor não tem uma característica como os
outros reinos de Hesper?
Eu acho que eles não dariam um presente para um reino de mentiras...
Calix tem seres mágicos, animais de espécies que eu nunca pensei que
veria e pessoas com habilidades especiais, que nasceram ou que
desenvolveram com o tempo. Helinor e Calix são reinos próximos ligados
por uma floresta curta e longe, também pelo oceano com uma distância
muito pequena, que qualquer barquinho poderia atravessar. Mas mesmo
sendo próximos e com uma divisa entre eles, não são amigáveis. Calix não
gosta de ter amizade com outros reinos, nem mesmo com os que são
próximos. Além disso, uma boa parte de Helinor tem medo das criaturas
que vivem nessas terras.
Callen abaixa o voo quando estamos em Calix, mais especificamente
na parte do riacho que pertence ao mesmo, as gotas de água molham a saia
do meu vestido e respingam na minha pele, diminuindo o calor. Nanrá
pousa na beira do riacho, esperando Ivana e Ash chegarem. Quando os
cavalos são avistados, a feiticeira faz um movimento com a mão e a água
cria uma ponte. Eles atravessam e a água perde a força e desaba novamente
no oceano depois que já estão do outro lado.
— Bem-vindos a Calix — Nanrá nos recebe. — Esse é o lugar de onde
vim.
O sorriso no rosto dela é radiante, eu consigo sentir como a terra a faz
reviver.
Ela se vira e corre pela grama verde.
O céu é uma mistura de laranja e amarelo, logo ao entardecer
incrivelmente atraente toma conta da paisagem.
Ivana e Ash dessem dos cavalos e levam os animais para frente junto
com eles. Me abaixo e passo a mão pela grama, sentindo a maciez do solo.
Observo quatro guardas se aproximando assim que me levanto, cada um
deles carrega em uma coleira animais grandes, mesclados com azul e roxo,
semelhante a onças, mas que nem se comparam ao tamanho, já que esses
animais são três vezes maiores.
Nanrá se aproxima junto ao casal, lançando um olhar para os guardas à
nossa frente, um deles parece estremecer com os olhos de gato o
encarando.
— Por que estão nesta terra? — o que está na frente de todos
pergunta.
Callen dá tapinhas nas minhas costas e quase deixo a voz falhar. Mas
percebo a responsabilidade sobre mim antes que isso aconteça, a coroa
mostra o seu peso.
— Preciso falar com o seu rei — sou mais direta do que queria ser.
— O nosso senhor não está esperando visitas — retruca ele.
— Eu sei, não viemos através de um convite, mas estão acontecendo
algumas coisas e gostaríamos da ajuda dele.
O guarda olha para nós e balança a cabeça.
— Vão embora.
Nanrá lança um olhar para o mesmo, que estremeceu alguns segundo
atrás.
O guarda se aproxima do que nos mandou embora e sussurra algo no
ouvido dele. Os olhos se arregalam e ele diz:
— Nos acompanhe.
Nanrá sorri e faz um sinal com a mão para que eu vá na frente.
O palácio à nossa frente parece nos deixar minúsculos. A cor branca
ilumina o reino inteiro e apenas os vidros das janelas já esbanjam a riqueza.
As portas se abrem quando ficamos de frente para ela. E, assim que
entramos, a festa que acontecia para. As pessoas param de dançar, os
músicos param de tocar e o silêncio se estende.
O rei se levanta do trono, deixando a taça de vinho no braço do
mesmo. Ele tem cabelos laranjas e os olhos marrons amarelados, a pele
pálida com uma barba branca mostram que tem uns bons anos. Os guardas
pedem que entremos e nos acompanham até a metade do salão. Dou o
primeiro passo à frente, Callen e Nanrá ficam cada um de um lado e Ivana e
Ash nos acompanham por trás. Paro em frente ao Rei e faço uma leve
reverência com a cabeça, os olhares de todos estão voltados para nós. A
Rainha está sentada no trono um pouco mais distante, ela nos olha, mas não
cumprimenta. Os olhos azuis parecem tristes, os cabelos brancos,
malcuidados, e a pele completamente coberta por tecidos de cores quentes.
— O que temos aqui? — pergunta o Rei para a multidão no palácio.
— Rei Anton, viemos conversar, se puder nos ceder um pouco de seu
tempo — pede Callen.
O Rei faz um sinal com a mão e os murmúrios que tomam o local
acabam.
— Por favor, eu quero ouvir a voz da rainha.
O título me atenta, algo dentro de mim faz com que o título se torne
forte nos meus ouvidos. Isso faz com que a minha voz saia não como se
estivesse fazendo um pedido, mas, sim, soando como uma ordem.
— Em um lugar privado, por favor.
Minha voz ecoa pelo salão que, mesmo cheio, consegue espalhar o eco
pelo silêncio.
O Rei ri e a multidão também se junta a ele nas risadas, as gargalhadas
me causam arrepios.
— Não entendo o motivo das risadas, assim como você, majestade, eu
também exijo respeito. — O Rei para de rir e me olha fixamente.
— Claro, se é assim que vossa majestade deseja.
Ele desce do altar do trono e, mesmo não me olhando, eu sinto os
olhos em mim de algum jeito. Ele caminha até uma sala separada do salão,
passando pela multidão que abre caminho. Eu o sigo e Callen vem atrás,
mas assim que chegamos na porta, o rei para e impede a passagem de
Callen.
— Somente a Rainha.
A porta se fecha e ele se senta na ponta da mesa.
Imagino a expressão de Callen atrás da porta e reprimo uma risada.
Caminho até a outra ponta e puxo a cadeira.
— Sente-se ao meu lado — diz ele, tocando a cadeira.
Até parece, posso ser desatenta, mas não burra.
— Eu possuo o mesmo título que você, então ficaremos cara a cara,
Majestade.
Ele balança a cabeça de forma positiva, cruza os dedos e descansa a
mão sob a mesa.
— Sobre o que seria a conversa?
— Helinor está sendo comandada por um rei tirano. Ele assumiu o
trono mesmo com o verdadeiro rei ainda vivo e manipula as pessoas. Ele
amaldiçoou seu próprio rei para ter poder e está destruindo o meu povo.
“Meu povo...”, é engraçado dizer isso quando nem mesmo o povo sabe
que sou a rainha.
— E esse rei seria o homem que te acompanhou até aqui?
Ótimo chute!
Bom, pela aparência é fácil dizer que ele possui uns bons anos, então
provavelmente ele se lembra um pouco de Callen, para desconfiar que ele é
o rei.
E como não se envolvem no que acontece fora de Calix, é muito
provável que nem sequer tenha ouvido algo sobre o “monstro”.
— Exatamente! — digo, um pouco receosa, pelo fato de não saber se
Callen gostaria que eu dissesse.
— Eu sabia que não se tratava de uma criatura daqui. Diga-me, por
que ninguém se lembra que ele é o rei? Ou então que você é a rainha?
Engulo em seco. Eu não sou a Rainha, mas ele não pode nem sonhar
com isso.
“Você é a rainha”, algo dentro de mim diz.
— Feitiço. Eles não se lembram de seus verdadeiros governantes, mas
se lembram de todos os outros parentes e amigos.
Ele se levanta da cadeira e caminha pela sala, olhando para o chão
como se fosse desabar.
— Eu poderia ajudar. — Ele me dá esperança. — Mas não posso.
Me levanto bruscamente e dou um passo à frente.
— Por que não?
Ele me olha e sorri.
— Porque o imperador já me visitou mais cedo.
Agora, sim, o chão parece desabar para mim.
Meu coração se acelera, tenho certeza de que se não fosse pelo som de
vozes do outro lado da parede eu poderia ouvir o tum-tum de meu coração.
— O que ele pediu? — pergunto, tentando não deixar o desespero
aparecer.
— O mesmo que você, ajuda para acabar com um monstro que nem
Calix aceitaria.
— Você aceitou ajudá-lo?
— Mas é claro, ele me ofereceu metade de suas terras e uma grande
quantia de ouro, eu não recusaria, isso se transforma em benefício para meu
povo e para mim. É uma oferta cativante, não acha?
Me sento novamente na cadeira, olhando fixamente para a mesa.
Sinto que o Rei se aproxima de mim.
— Mas eu posso mudar de ideia...
Ele coloca as mãos no apoio da cadeira. Ficando atrás de mim.
Consigo sentir até a respiração acima da minha cabeça, movendo alguns
fios de cabelo.
— O que faria você mudar de ideia? — pergunto.
Sinto ele sorri.
— Se vossa majestade concordar em se tornar a minha rainha. Eu
ajudo o rei amaldiçoado com algumas criaturas se você concordar em ficar.
— Ah! — Digo tentando fazer com que minha voz pareça de interesse.
— E o que eu ganharia com isso?
— Ganharia poder, poderia governar Calix...
Ele coloca uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.
Os dedos tocando o meu cabelo e roçando a minha pele me faz ter
vontade de quebrar a mão dele.
Minha mão desliza por minha perna, meus dedos tamborilam pelo
metal gelado e, antes que ele possa se dar conta, a adaga está apontada para
a garganta. A ponta está pressionada na pele e com apenas um movimento
eu posso fazê-la atravessar.
— Como ousa garota, apenas uma pessoa me enfrentou e... — Para de
falar, parecendo que a voz foi sufocada, ele observa meu rosto. — Filha de
Morringan.
Um sorriso surge no meu rosto.
— Que bom que reconheceu minhas habilidades com as da minha
mãe.
Minha mãe me ensinou tudo que ela sabia quando eu era criança,
escondido de todo mundo, ela sabia que tirariam todas as crianças de perto
de mim se alguém soubesse, com medo de eu fazer algo, e ela não queria
que eu não tivesse amigos, que eu não aproveitasse a minha infância. Ela
queria me preparar para o futuro, mas sem perder a essência do presente.
Mas é claro que ela me ensinava para eu poder me defender quando
realmente fosse necessário, não para eu ferir alguém por nada. Ela me
ensinou os momentos que seriam necessários usar as lâminas.
Eu me escondi, assim como ela me disse para esconder, para não
acabar com problemas ou rumores...
A frase de todas as noites vem à tona.
“Não podem saber, e então eu vencerei. Porque nunca saberão o que
eu posso fazer.”
A porta se abre e os guardas apontam flechas para mim. Não retiro a
adaga da garganta dele até eu falar. Callen e os outros conseguem ver a
minha mão se mantendo travada na pele do rei através da porta.
— Você deveria respeitar a sua esposa, aquela que escolheu para estar
ao seu lado, não atrás de você. Escute bem a minha voz, majestade, e faça
ela permanecer em sua mente...: eu farei o mundo saber o meu nome e não
darei o meu reino para qualquer um, é melhor me dar a sua lealdade, porque
a minha mãe me ensinou a afiar lâminas, e eu não acho que gostaria de
outro evento desses. Mas, se quiser, sou muito bem treinada para fazer
quantas vezes for necessário. Sua imortalidade não será nada se você tiver
uma adaga no pescoço.
— Orianna! — Callen chama em um tom desacreditado.
Eu me sentia confortável com Callen, mas nem a ele eu contei. Eu
realmente guardei o segredo até agora.
— Deixe-a se divertir — diz Nanrá.
Retiro a lâmina de perto dele, os guardas abaixam as flechas e quando
estou saindo da sala me viro, digo:
— E não ouse me chamar de garota novamente, para você é
majestade.
As pessoas abrem caminho até a porta, mas antes que eu possa abri-
las, não são guardas que me impedem e, sim, a rainha.
Penso que me prenderão e me faram implorar por perdão, coisa que eu
não faria.
Já pedi muitas desculpas sem ter sido a minha culpa, já pedi perdão
por erros de outras pessoas.
Agora não sou mais aquela que tem medo do que poderão fazer
comigo caso eu mostre o que eu sei.
Mas ninguém me segura, ninguém me prende. No entanto, a rainha diz
algo que, de certa forma, me impressiona.
— Por favor, fiquem um pouco — tristeza e felicidade estão
estampadas na voz dela.
Eu poderia ter recusado, mas assim que percebo, estou fechando a
porta do quarto.
— Por que concordou? — pergunta Callen, sentado na cama.
Como o palácio estava cheio, os quartos também estavam ocupados
então foi dividido entre Ivana e Ash, e eu e Callen... Nanrá disse que não
precisava de um quarto e até então não sei para onde ela foi.
— Eu não queria recusar — respondo.
Ele apoia os cotovelos na cama e inclina a cabeça para trás.
— Eu gostei — diz, sorrindo.
— Da cama? — pergunto, me aproximando.
— Não. A minha é mais confortável, estava falando de você. Acharam
estranha a demora... e assim que abriram a porta viram a rainha de Helinor
com uma adaga no pescoço do rei de Calix.
A risada rouca preenche os meus ouvidos.
Subo na cama e, antes que ele perceba, coloco a adaga na lateral do
corpo dele.
— Agora a rainha de Helinor está com a adaga no corpo do rei de
Helinor.
— Mas a diferença é que esse rei é seu.
Reviro os olhos e retiro a lâmina dele. Antes que eu possa sair da
cama, Callen agarra o meu braço e me prende sobre o colchão. Os olhos
verdes me encaram, se divertem em meu rosto, escorregando dele para a
minha boca.
Meus pulsos ficam presos pelas mãos dele, que se aproxima, mas uma
batida ressoa na porta antes da boca tocar a minha.
— Se não for importante, eu que colocarei a lâmina no pescoço da
pessoa — provoca.
Sorrio e o empurro de lado, ele cai na cama e os olhos me
acompanham, abro a porta e na minha frente está a Rainha de Calix.
Sinto que Callen se ajeita na cama.
— Majestade, por favor, entre!
Ela assente com a cabeça e dá um passo para dentro do quarto.
Antes que eu possa perguntar o que a trouxe ao nosso quarto, ela diz:
— Eu queria me desculpar pelo meu marido.
Balanço a cabeça de forma negativa.
— Não. Você não tem que se desculpar por aquilo.
— Mesmo assim, eu me senti obrigada a vir me desculpar e convidá-
los para jantar conosco, teremos uma festa noturna... Por favor, juntem-se a
nós.
— Claro, pode contar com a nossa presença — confirmo.
Ela faz uma pequena reverência e sai do quarto.
Repito os movimentos, fecho a porta e volto para o meio do cômodo.
Callen caminha até a porta e a tranca, as asas se tornam rígidas e sinto
seus passos no chão.
— Já disse que você me irrita.
— Já.
— E sabe por que me irrita?
— Por quê?
— Porque sua imagem não sai da minha mente.
— Quem sabe eu não amaldiçoei você para sempre pensar em mim?
Ele me empurra novamente no colchão, a boca vai até o meu pescoço
e sinto um frio me percorrer.
As mãos brincam com meu cabelo, os fios pretos de seu cabelo solto
fazem cócegas na minha pele.
— Se me amaldiçoou, por favor, não desfaça essa maldição — ele
pede contra a minha pele.
— Jamais — digo antes da minha voz ser sufocada pelos lábios de
Callen.
A noite chega e com ela uma funcionária do palácio.
Ela entra carregando um vestido e uma caixa. Outra funcionária entra
carregando algumas roupas de seda e couro.
— Majestade! — As duas se curvam diante de mim. — Trouxemos as
roupas da festa.
— Muito obrigada — agradeço. — Podem deixá-las em cima da
cama.
Elas se entreolham, aparentemente confusas, então dizem:
— Nós temos que ajudá-los.
Olho para Callen e ele dá de ombros, então digo:
— Tudo bem.
Uma delas me arrasta para o banheiro e quase me joga na banheira
depois que retira minhas roupas, as botas e a faixa na perna. Ela usa
produtos com cheiro doce no meu cabelo e no meu corpo. Retirando a
sujeira que se acumulou nos dias que não pude entrar em uma banheira para
me lavar.
Ela lava o meu cabelo com cuidado, massageando os fios até que toda
a sujeira saia da raiz e do resto do comprimento. Enquanto deixa um creme
fazendo efeito, ela lixa as unhas de minha mão, por um momento penso se
terá algum concurso de beleza no meio do jantar para que tudo isso esteja
acontecendo.
Depois que saio da água, ela me enrola em um roupão, me tira do
banheiro e pede que Callen entre. Ela me leva até a penteadeira e penteia
meu cabelo e o seca. Depois me veste com um vestido de seda azul
marinho, aberto nas costas. Coloca sandálias em meus pés e joias no meu
pescoço, pulsos e orelhas; no meu cabelo coloca a coroa que estava em
cima da penteadeira, pois quando cheguei ao quarto coloquei-a no móvel.
Assim que termina, a porta do banheiro se abre e Callen sai, vestido
com uma calça e dobrando as mangas da camisa de seda debaixo do colete
de couro até os cotovelos.
Ele se senta na cama, coloca as botas e espera elas saírem do quarto
para que possamos segui-las até o local onde ocorrerá o jantar.
Quando chegamos, todos os olhares se voltam para aqueles que
chegaram no reino e agora estão em um jantar no palácio. Que agonia.
O Rei se encontra sentado no trono e a rainha nos degraus da escada,
nos esperando.
— Agradeço por terem comparecido.
— Nós que agradecemos o convite — digo, sorrindo para ela, e a
mesma retribui o sorriso.
As pessoas começam a se movimentar, as conversas e as músicas
preenchem o lugar e eu me sinto um pouco mais à vontade. Entre as
pessoas, encontro Nanrá dançando com uma moça, que possui uma listra
branca no rosto, da testa até a ponta do nariz, as orelhas são acima da
cabeça que se misturam com o cabelo em um vermelho flamejante.
Assim que me encontra, Nanrá caminha até nós com os braços
entrelaçados com o da jovem.
— Fax essa é Orianna, Orianna essa é Fax — nos apresenta. — Ela
vem de uma família que tem características de raposas... ela é minha
amante.
— Prazer. Eu não sabia dessa parte.
— Nos separamos quando ela se mudou para Helinor. Era raro quando
a gente se encontrava — explica Fax.
— Entendi. É um prazer enorme, Fax.
— O prazer é todo meu, majestade.
Callen se aproxima e toca o meu ombro e vejo a rainha preste a falar
assim que olho para trás.
— Queridos convidados, o nosso jantar será servido. Por favor, tomem
seus assentos e esperem.
Assim que termina a fala, o olhar percorre o salão e quando me
encontra faz gestos para me aproximar.
— Sente-se conosco — pede ela.
A mesa dos dois fica em um local mais reservado, mas que, ainda
assim, as pessoas conseguem ver. Sentamo-nos à mesa e logo o jantar é
servido.
Não sei explicar o que é a comida, poderia ser uma sopa, mas o gosto
e a textura são diferentes. Coloco um pouco da comida na boca e não
percebo nada de incomum.
Percebo um olhar sobre mim enquanto como e, assim levanto a
cabeça, vejo os olhos amarelos me observando.
— Gostaria de me desculpar... por hoje mais cedo — o Rei não parece
feliz com o pedido de desculpas.
— Não acho que mereça o meu perdão, mas também não acho que
mereça o meu desprezo... — respondo.
— Não merecerei seu desprezo — afirma ele.
Assinto com a cabeça e volto a comer.
A rainha faz algumas perguntas aleatórias e eu as respondo com
prazer. Ela parece muito feliz perguntando e o sorriso aumenta quando eu
respondo, então não limito o tempo das conversas.
Assim que o jantar acaba, a festa segue por horas, a música não para
nem por um minuto sequer, os pés se movendo ecoam pelo salão e os
corpos rodopiando parecem ilusões se os encara por muito tempo.
Muito tempo se passa e meus olhos ficam pesados com o passar dos
minutos. Callen pede licença para que possamos nos retirar e então, quase
cambaleando, subo até o quarto.
Me sento na cama e retiro as joias, que é a única coisa que eu consigo
fazer antes do meu corpo cair no colchão. Escuto uma risadinha e logo sinto
Callen me ajeitando na cama e me cobrindo com a coberta pesada, ele retira
os fios do meu rosto, juntamente com o resto do cabelo.
— Quer que eu durma no chão?
A pergunta quase me faz rir, eu nunca diria para ele dormir no chão,
necessito do calor, cheiro e aconchego dele.
Balanço a cabeça de forma negativa e então sinto-o se juntar a mim,
levantando a coberta e se pondo debaixo dela.
Sinto as asas sendo colocadas sobre mim. Ele passa o braço por baixo
do meu pescoço, me fazendo ficar ainda mais perto dele. Os dedos passam
em um toque leve por minhas costas. A ponta dos dedos fazem movimentos
delicados que mais parecem penas sendo deslizadas por minha pele, mas eu
sei que não se trata das penas das asas e, sim, de seus dedos tentando não
ficarem rígidos ao tocar a pele nua por conta do vestido decotado.
Minhas cicatrizes ficaram amostra durante a festa, recebi alguns
olhares estranhos de Calixciencies que encaravam o relevo nas minhas
costas. Eu poderia dizer que isso me deixou desconfortável, mas, na
verdade, era como provas que eu passei por muitas coisas, mas estou viva...
sobrevivi a animais selvagens e pessoas com o extinto desses animais,
pessoas que apenas se importaram com a própria sobrevivência.
— Doem? — a voz de Callen ecoa na minha mente, depois que estou
quase sendo levada pelo sono.
A pergunta se refere às minhas cicatrizes, que me fazem sorrir com a
pergunta.
— Não... — digo com a voz falhando.
Ele fica em silêncio, continua tocando minha pele e eu acabo sendo
puxada pelo sono.
Acordo com batidas estrondosas na porta, a pessoa do outro lado
parece estar correndo um perigo severo pela intensidade que bate na
madeira.
Estou aninhada nos braços de Callen e olho para ele quando escuto o
barulho, os olhos verdes me encaram e nós dois nos afastamos e saímos da
cama.
Callen e eu nos levantamos e vemos Ash parado na porta assim que a
abrimos.
Com as mãos vermelhas de tanto levá-las contra a madeira.
— O que aconteceu? — pergunto, percebendo a forte respiração do
rapaz.
— A minha mulher — ele quase balbucia as palavras. — Eles levaram
a Ivana.
— Como assim? — Callen se põem à frente.
— Entraram nos nossos aposentos há pouco tempo e simplesmente
tiraram a minha esposa do quarto, eu tentei atacá-los com uma flecha
decorativa que havia no cômodo, mas quase acertei nela enquanto se
debatia para se soltar.
Sem dizer mais nada, nos entreolhamos e corremos pelo corredor,
descemos as escadas quase tropeçando nos degraus. O rei está no trono e a
rainha no mesmo lugar atrás dele, com os olhos inchados e o rosto
molhando, hematomas estão espalhados pelos seus braços e ela me olha
com uma expressão melancólica.
— Onde está a minha guarda? — pergunto, chegando tão perto que
quase subo os degraus do altar do trono.
O rei me olha, sorrindo, um sorriso nojento.
— Olha. Que surpreendente, não é que veio me confrontar? Sabe é
ousadia demais invadir o meu reino, entrar na minha festa, me ameaçar,
fazer com que minha esposa se ache superior a mim e ainda se direcionar
dessa forma?
— Não diminua a sua esposa. — A Rainha me olha, e eu consigo
sentir a tristeza. — Ela pode ser superior a você quando quiser.
— Eu vou fingir que acredito. — Ele ri. — Se ela conseguisse ser
superior, quem estaria falando era ela e não eu...
Dez guardas estão junto a ele, cinco de cada lado. Mas há algo
estranho neles, parecem estatuas, parecem não respirar e nem estarem
vivos.
— Chega de gracinhas, majestade — tento encerrar a discussão. —
Me diga onde a minha guarda está.
— Depois que me fez passar pela humilhação de ser visto como um rei
fraco, você me causou raiva, garota... Acha mesmo que eu falarei onde ela
está? Eu quero ver você sofrendo.
Escutamos um barulho vindo do alto da escada. Nanrá desce mais um
degrau observando o Rei, os olhos felinos da feiticeira parecem estar
prestes a caçar a presa. Os pés descalços tocam o chão e a atenção do rei se
volta para ela.
— Agora que estamos apenas os mais íntimos, eu posso dizer
tranquilamente — o Rei diz com um sorriso de insatisfação. — Nanrá, a
minha neta maldita.
Ela ri, mostrando as presas afiadas.
— Meu querido avô, quanto tempo — responde ela, com uma ironia
gigantesca na voz.
A Rainha olha a feiticeira andar até o altar do trono e observa cada
movimento.
— Avó, a senhora, sim, é um prazer revê-la.
A Rainha curva a cabeça lentamente, mas logo volta a posição inicial,
a posição de um fantoche, apenas esperando o movimento do dono, eu vejo
a tristeza em sua expressão.
— Minha Rainha está perguntando onde está a Ivana. Responda.
— Ela está no lugar para qual todos vocês irão.
Os guardas avançam para frente, mas param antes que possam nos
tocar.
— Sua bruxa, eu sabia que isso aconteceria quando seus pais
resolveram pedir para que aquele maldito lhe ensinasse feitiçaria.
Nanrá se vira e olha para mim, ela volta os olhos para o avô e diz:
— A única bruxa entre nós é a minha rainha, eu sou uma feiticeira,
vovô, e meu mestre não era maldito. Corram para as masmorras — grita
ela, parecendo-se com um animal selvagem esperando sua presa se distrair.
— Lado direito da escada — conclui.
A porta é arrombada com magia. A visão que se tem é de uma escada
inclinada e os corredores escuros.
Callen segura Ash e eu, nos guiando para baixo. Quando os degraus
acabam, o lugar se ilumina um pouco com as velas espalhadas por ele. As
celas são estreitas e, pelo cheiro de podridão, sujas.
A cada 20 metros existem mais corredores. Um labirinto se forma nas
masmorras e decidimos nos separar para tentar acharmos uma saída e ver se
Ivana está trancada em algum lugar aqui dentro. Callen segue no corredor à
direita, eu e Ash seguimos pela esquerda que está mais iluminado. O teto
acima de nós começa a tremer por causa do andar de cima.
— Ela não conseguirá segurá-los por muito tempo — digo, apressando
o passo.
As celas parecem estar vazias, mas as sombras que se formam nelas as
deixam com uma presença estranha.
Viramos em um corredor pouco estreito, as celas estão um pouco mais
distantes e isso faz com que respiremos tranquilos, ou mais ou menos. O ar
dos nossos pulmões é arrancado para fora quando uma criatura pula nas
grades de uma pequena cela ao nosso lado. A pele parece pegajosa, os
dentes afiados e os olhos brancos parecem não enxergar, como se fosse
cego.
— Ele segue o som — suponho.
Diminuímos o som dos passos e a cada cela que passamos o som dos
guardas correndo dentro do labirinto aumenta.
— Precisamos correr — diz Ash. — Temos que encontrar a Ivana.
— Não podemos, o som atrai os animais dessa ala. Se corremos, eles
ficarão alvoroçados e os guardas perceberão que estamos aqui — sussurro.
Saímos do corredor, os animais se acalmam depois que percebem que
os passos estão longe o suficiente para que a audição deles não alcancem o
eco dos sapatos no chão.
Grades são postas à nossa frente depois de alguns passos. Grades
grossas com um cheiro forte, um cadeado grande e pesado para trancá-la.
Observamos olhos de uma criatura através das grades, logo percebo
que a criatura que habita a cela não é nada comparado com as outras presas
aqui embaixo. Órubos é um monstro que os antigos pensavam que só havia
em lendas, e os atuais continuaram a acreditar nisso.
A criatura se parece com um dragão, mas não possui asas. A pele é de
um verde escuro e ela anda sobre duas pernas. As escamas que cobrem o
corpo são grossas e as garras afiadas.
Meus olhos estão fixos no animal, que também me olha pelas grades.
— Orianna, vamos! — Ash diz, tentando não fazer movimentos
bruscos.
— Vá na frente, eu já te alcanço.
Ele me olha e hesita por um momento, mas logo os pés se movem e
ele apressa o passo para o lado direito do corredor.
As masmorras realmente se parecem com um labirinto, talvez essa seja
a ideia, fazer corredores confusos para que, se alguém fugir ou adentrar na
esperança de sair, se perca. Os guardas devem ser treinados com um mapa
do local para não correr o risco de serem confundidos pelas paredes e se
prenderem aqui junto as criaturas.
Me aproximo das grades e a criatura pula sobre ela, o som é alto como
um trovão o que me faz tampar os ouvidos. As mãos de Órubos fazem as
grades tremerem, se não fossem grossas e resistentes o suficiente, poderiam
estar no chão neste momento.
— Órubos, eu sei que pode falar — digo.
A criatura reclama atrás das grades, reclama algo em outro idioma que
consigo decifrar apenas algumas palavras. “Ir” e “Humana”. Dou um passo
à frente.
— Eu não irei — protesto.
Tento juntar o que entendi e percebo que está me mandando embora.
— Não se aproxime — murmura a criatura. — É melhor correr, eles
estão chegando.
Os olhos são assustadores, mas, por algum motivo, me atraem, tem
algo no olhar que me chama a atenção, algo que não mostra superioridade,
mas, sim, necessidade por alguma coisa... liberdade?
— Eles vão demorar até me achar. Eu pensei que você não existia.
Os olhos vão de um lado para o outro dentro da cela.
— Então os humanos acham que sou uma criação de histórias de
terror? Tipo aquelas para fazer as crianças birrentas dormirem ou se
comportarem?
É quase isso, mas não digo a verdade, apenas balanço a cabeça de
forma negativa, pedindo para ele não perguntar qual era a verdade, e ele não
pergunta. E eu agradeço por isso.
— Está aqui há quanto tempo? — mudo de assunto.
— Há mais do que você pode imaginar, mais tempo do que as histórias
são contadas. Eu cansei... de tentar escapar.
O som dos passos fica mais fortes, mas ainda tenho tempo. Escuto um
barulho, um tintilar e isso me dá a oportunidade perfeita.
Eu sei que ele quer a liberdade, conheço a voz, a expressão e a vontade
de alguém que quer ser livre... eu conheço isso mais do que qualquer um.
— Consegue me ajudar? — pergunto, me aproximando e colocando as
mãos nas grades.
Ele chega para trás, surpreendido com minha aproximação.
— Não tem medo? — pergunta, olhando as minhas mãos.
— Algo me diz que somos parecidos...
O olhar da criatura se ergue.
— Por que eu ajudaria você?
— Porque se me ajudar, eu dou o que você deseja.
Os olhos continuam fixos nos meus.
— E como me daria a liberdade?
Um.
Dois.
Três.
Quatro.
Cinco.
Cinco guardas correm em direção ao corredor em que estou.
— A chave está com um deles.
Alguns segundos depois, o chão começa a vibrar, retiro as mãos das
grades e continuo olhando para ele por atrás dos pilares de ferro.
— Chegaram — anuncia a criatura.
Os cinco guardas viram o corredor, as flechas deslizam por suas mãos
e vão até o arco, a primeira flecha é atirada e perfura a parede ao meu lado.
O som das pedras da parede sendo perfuradas é como o de ossos se
quebrando.
As outras são atiradas e tento desviar das que consigo, algumas caem a
centímetros de meus pés ou ao meu lado, mas uma atinge meu braço de
raspão. A ardência é um pouco mais intensa do que cortar o dedo com uma
folha de papel.
Os guardas se aproximam e a criatura passa as garras pelas grades,
transformando o som dos passos se aproximando e o som das flechas sendo
atiradas em um ruído profundo.
Eles param e as flechas que seguravam caem no chão quando levam as
mãos rapidamente até as orelhas, abafando o som estridente do ferro sendo
arranhado. Corro na direção deles enquanto o ruído continua, meus ouvidos
doem com o barulho, mas consigo manter a atenção voltada para as flechas
no chão.
Os 5 homens permanecem parados até eu me aproximar e conseguir
pegar uma flecha do chão e cravar em um deles, pego outra e mais outra,
repetindo a mesma coisa, tentando fazer as minhas mãos ficarem firmes
enquanto forço as flechas a passarem nos tecidos e atingirem o coração.
Órubos retira as garras do ferro e o som das outras criaturas toma o
lugar, as grades sendo chacoalhadas raivosamente, os gritos ensurdecedores
poderiam enlouquecer qualquer um.
Tampo as minhas orelhas com as mãos até o barulho diminuir. O som
dos animais se mistura no ar e se tornam uma melodia fora de ritmo, um
canto desafinado. O som é uma confusão de melodias que não se misturam
com o ritmo em que a canção é reproduzida. No meio da confusão pode-se
perceber uma nota aguda como a ponta de um garfo sendo arrastada à uma
taça de vidro vazia.
Os animais vão se aquietando, diminuindo a intensidade dos gritos,
berros e uivos.
Retiro as mãos das orelhas quando o som se dissipa por completo.
Respiro fundo e caminho até o guarda com o maço de chaves, desenrosco a
argola de sua roupa tentando não tingir o vestido de vermelho. Caminho até
a cela de Órubos e observo as chaves. Como o cadeado da cela é maior, a
chave também deve ser a maior. Encaixo a chave no cadeado e o giro,
colocando força nas mãos para conseguir abrir.
O cadeado se abre e se solta das grades da cela. Seguro o ferro,
tentando fazer com que o suor das minhas mãos não as deixe escorregar.
— Por que eles têm a chave daqui? — pergunto, apenas por
curiosidade.
— Eles vêm para limpar, às vezes. Me prendem, limpam, mas mesmo
me acorrentando não saem vivos.
Encaro o chão, posso dizer que um pouco de pavor toma conta de
mim.
— Que bom que não vim limpar.
Ele ri. Suponho que também sinta o cheiro de medo.
Abro as grades com a ajuda dele. A altura dele dá cinco vezes a minha,
e eu penso que sentirei mais medo, não aquele resquício que insiste em
aparecer, mas um medo extremo..., mas não sinto.
Os olhos deles estão fixos nos meus. Ele se inclina para frente e, por
um momento penso no ataque e um pouco mais de pavor aparece, mas a
criatura me surpreende ao se curvar perante a mim e dizer:
— Minhas saudações, rainha dos monstros.
Andamos pelos corredores, passando por celas habitadas e vazias.
O cheiro é forte, o silêncio é imenso. Imenso a ponto de escutarmos a
nossa própria respiração.
Órubos parece conhecer bem as masmorras, é estranho se parar para
pensar que ele sempre estava preso. No entanto, ele me guia como se
seguisse esse mesmo caminho todos os dias.
Quando começo a perceber o local por onde andamos, me dou conta
que é o início. A parte na qual a gente se separou e seguimos por direções
contrarias.
Observo a escada logo à frente, mas não tem nem sequer um ponto de
luz vindo da porta, que provavelmente foi fechada.
Me viro e ando para o lado direito, para onde Callen seguiu mais
cedo.
— As criaturas nessa ala têm uma audição horrível, mas uma visão
ótima — explica Órubos.
O cheiro nessa parte é um pouco mais fraco, mas ainda é evidente. A
névoa que se forma se torna mais densa quando se tenta ir mais a fundo.
— Ainda existem cinco guardas aqui, eu escuto as espadas
atravessando algo denso — alerta.
Apressamos o passo e ele me guia para os lados em que os sons ficam
mais distantes.
Assim que passo por uma cela, sou puxada para dentro. Órubos entra
com apenas um passo e arranha as grades do local.
Reconheço o cheiro e faço um sinal com a mão para que ele pare, as
garras se afastam e ele se inclina para adentra a cela.
— Quem é ele? — pergunta Callen.
— Órubos — respondo.
— Monstro de lendas — a criatura corrige.
Consigo ver duas silhuetas atrás de Callen e percebo que é Ash
abraçando fortemente Ivana. Ele está aninhando a esposa nos braços,
apertando forte o corpo dela contra o seu.
Corro até eles e os olhos da garota estão normais, não demonstram
medo.
— Está bem?
Ela afirma com a cabeça, se solta do marido e me abraça, um abraço
forte, e então sinto o medo em seus braços trêmulos... Ela não queria
demonstrar o medo perto do marido.
— Como se encontraram? — pergunto para aquele que quiser
responder.
— Encontrei Ash perambulando pelos corredores — diz Callen. —
Faltava alguns corredores para ter certeza de que Ivana estava aqui, então,
assim que o encontrei, seguimos pelos que faltavam. Ele disse que ouvia a
voz dela de algum lugar então ele me guiou até a cela, ela estava cantando
quando chegamos. A cela estava trancada, mas as chaves estavam com um
guarda que tentou nos atacar e minhas garras foram seu fim. Os outros
correram atrás das sombras.
Franzo a testa.
— Como assim? Elas estão aqui? — pergunto, confusa.
Callen balança a cabeça de forma negativa.
Então caminha até a parede mais próxima, coloca as mãos nas pedras
e fecha os olhos. As sombras da cela escorrem pela parede e param no chão
e então se tornam serpentes. Elas rastejam até mim, sobem pelo vestido e se
enrolam em meus braços... É a mesma sensação que eu tinha em meus
sonhos, quando eu estava em uma sala escura com o som das serpentes me
rodeando e a sensação de estarem subindo pelo meu corpo, mas agora não
me causam tanta agonia como nos sonhos.
— Meu irmão não foi o único que herdou os dons da nossa mãe e os
levou para frente, posso dizer que me interessei por controlar as sombras.
Quando os barulhos de espadas cortando o ar param, os nossos passos
são os únicos sons do lugar.
Os animais são separados por alas, entre aqueles que tem boa audição
e aqueles que tem boa visão. Aqueles que são mais perigosos, dos que não
são.
Suponhamos que a melhor decisão é voltar para o começo e tentar
abrir a porta, a mesma que entramos. Mas olho para o chão e paro assim
que percebo os fios laranjas espalhados antes que possamos chegar até o
início novamente.
— Ela está aqui. — Atraio os olhares de todos e a atenção deles
também. — Nanrá desceu até as masmorras.
Olho para trás tentando achar outra trilha de fios, mas antes de que
eles continuem, o som de passos apressados ficam evidentes perto de nós.
Nanrá corre, atravessando o final do corredor em que estamos e para
quando nos observa no final dele. Ela apressa os passos até se aproximar de
nós. Ela nos olha, observando cada parte nossa. A respiração é pesada e o
suor escorrendo pela testa mostra que teve muito trabalho.
— Estão bem? — pergunta, tentando recuperar o ar dos pulmões.
Todos afirmam que estão, ela cumprimenta Órubos como se não fosse
a primeira vez que o vê, talvez não seja.
Seus olhos não param quietos e eles percorrem as paredes a nossa
volta.
— A única saída além daquela porta é no final das masmorras, temos
que seguir reto por esse corredor, mas essa caminhada deve levar uns dez
minutos para chegar, se a gente não se perder.
Callen anda um pouco à frente, os olhos se estreitam e as asas se
escondem atrás das costas.
— Eles vão chegar antes que possamos sair.
— Nanrá... — tento perguntar, mas ela me responde antes.
— Não tenho força, preciso descansar pelo menos 30 minutos.
Os passos nos corredores soam mais fortes, as criaturas parecem ficar
raivosas e as grades começam a chacoalhar novamente.
— Eu cuido deles — diz Órubos. — Vão na frente, eu encontro
vocês.
Sou puxada por Nanrá antes que eu possa falar algo, ela entrelaça o
braço no meu e começa a correr.
— Por que demorou feiticeira? — Callen pergunta.
— Ah, não sei, querido rei — responde, ironizando a frase. — Talvez
por que estava tentando impedir o meu avô de sair do palácio? — Ela solta
um suspiro forte e desentrelaça nossos braços para que possamos correr
mais rápido. — E segurando dez guardas enfeitiçados enquanto tento fechar
as portas se torna difícil... Os guardas conseguiram sair e desceram até aqui.
O meu avô também saiu enquanto eu estava distraída com os guardas
descendo as escadas.
— Quanto tempo você acha que leva para ele chegar até Helinor? —
pergunto.
Nanrá para bruscamente, os olhos felinos são fixos no longo corredor
a nossa frente.
— Então ele vai até lá. Se ele encontrar o imperador, tudo estará
acabado em dois dias. Ele deve chegar esta noite se usar algum animal para
levá-lo.
O som dos corpos se chocando contra as paredes nos alerta e nos
fazem seguir em frente.
— Se der certo, em cinco minutos estaremos fora daqui.
Ouço passos, mas eles parecem tranquilos, são passos calmos.
Diferentes dos passos raivosos correndo entre os corredores tentando achar
os “fugitivos”.
O corredor fica mais escuro a cada passo que damos, o ar fica menos
evidente enquanto corremos, deixando-nos com dificuldades de respirar.
Isso se torna ainda mais difícil enquanto você está correndo, a exaustão te
alcança rápido e seu corpo protesta em continuar.
— Estamos descendo alguns metros abaixo do solo, o ar vai
diminuindo aqui — alerta Nanrá.
— Sinto algo nos procurando — digo para Callen, que está ao meu
lado.
— Sabe a distância?
— Não, mas parece tão perto.
Ele tenta se concentrar, tenta distinguir a qual distância os passos estão
de nós.
Ash e Ivana continuam seguindo Nanrá.
Callen e eu paramos.
— Cinco metro. Vamos! — conclui ele, segurando minha mão e me
puxando.
Cruzamos com outro corredor e aquilo que vira a parede ao nosso lado
nos faz tampar os olhos com a claridade. A rainha carrega uma tocha em
uma mão e também se assusta conosco, na outra mão ela carrega uma bolsa
grande, como se tivesse voltado das compras.
— Nanrá — chama a neta. — Está indo pela direção errada, minha
feiticeirinha.
Os três a nossa frente param com a voz da rainha e, em alguns
segundos, voltam para trás.
— Vire a primeira direita, entre as pedras terá uma porta,
provavelmente estará aberta, já que algumas pessoas viriam trazer alimento
para os animais. Ela dará na floresta atrás do palácio, se seguirem a trilha de
árvores roxas acabarão na divisa com Helinor — explica a Rainha.
Ela entrega a bolsa e abraça a neta com um sorriso, tentando encorajá-
la a continuar, não se importando com o que acontecerá.
— Terei que voltar, ainda hoje chegarei a Helinor — diz com tristeza
na voz. — Boa sorte, majestade.
Ela se curva e faço o mesmo. Após isso, se vira e segue pelo mesmo
caminho que nos encontrou. Nanrá coloca a bolsa no chão e a abre. Dentro
dela tem roupas em couro e seda, botas e lâminas. Cada uma com um
pedaço de papel que possui o nome identificando a quem a roupa pertence.
São macacões de mangas longas com uma gola não muito alta na cor
preta, exatamente do tamanho do corpo de cada um, são justas e
confortáveis, não prendem os movimentos e o tecido parece ser grosso o
suficiente para que o frio não possa atingir nossa pele.
Ash e Ivana recebem armas para se defenderem, já que citaram em
algum momento que participaram de algumas missões com o exército em
Helinor. Nanrá recusa a dela, dizendo que não será necessário. Callen pega
uma espada de vidro tão polida que se parece um espelho, a cor azul que se
mistura com o transparente do vidro a deixa elegante, mas a ponta mostra
que pode ser bonita, mas também perigosa como todas as outras.
A roupa é perfeitamente adequada para o meu corpo, coloco as botas
pretas que possuem um salto de diamantes um pouco pontiagudo. Minha
adaga também está na caixa enrolada em um pedaço de seda e junto a ela
em outro pedaço existe uma testeira e um bilhete que diz:
Querida majestade.
Uma rainha nunca deve ir para a guerra sem sua coroa, bem como nunca deve quebrá-la
enquanto mostra seu poder. Nesta guerra, essa será sua coroa. Te desejo sorte, rainha Orianna. Que
vossa majestade consiga seu reino de volta.
Rainha Celesta.
A joia é prata, com duas pedras menores nas laterais e uma maior no
centro. Nanrá retira a tiara de minhas mãos e a coloca na minha testa a
prendendo por baixo do cabelo.
— Majestade! — Ela se curva.
É estranho ver a herdeira de Calix se curvando diante de mim, mesmo
sabendo que não sou realmente a rainha de Helinor.
“Você é a rainha”, diz a voz dentro de mim novamente.
— Estamos prontos — conclui ela, se levantando.
Mesmo que o tempo tenha sido levado pelo vento, por algum motivo
eu não consigo me livrar do passado, eu não sei como posso me livrar dele
para ser sincera. Eu não quero perder o controle tentando esquecer de algo
que sei que vai me acompanhar para sempre.
Mesmo que eles tenham tentado quebrar os meus ossos, eu ainda estou
de pé, mesmo que eles tenham tentado quebrar tudo em mim, eu continuo
de pé, porque eles esqueceram que eu não sou uma flor de vidro .
E eu nunca vou quebrar.
Eu aprendi a dançar com as sombras que me rodeavam e é
simplesmente ótimo se sentir viva, livre. Minha liberdade não depende
deles e, sim, de mim somente de mim, e agora eu sou a realeza de Helinor.
Assim como Nanrá tinha dito, eu sou maior que meus ossos, meu
sangue borbulha enquanto percorre minhas veias... E eu vou mostrá-los
como devem temer a rainha. E como a protagonista da minha própria
história, eu vencerei essa batalha.
Me perco nos pensamentos e quando menos percebo, estamos em
frente a porta, ela realmente está aberta e, assim que saímos, a floresta à
nossa frente nos surpreende. As plantas com espinhos estão quase
invadindo a entrada e saída das masmorras.
Callen se põem a nossa frente e, com um movimento da espada, corta
os galhos que estão mais pertos, mas em menos de 10 segundos se
regeneram.
— Feitiço — conclui ele.
É claro que eles pensariam em alguma coisa para que, se alguém
escapasse, não pudesse passar.
Nanrá o empurra para dentro e toca um galho com a mão, ele se
quebra e ela faz o mesmo com os outros na frente.
— Temos três minutos, antes que eles retornem.
Apressamos os passos para conseguirmos sair da prisão de espinhos
antes que eles se regenerem e sejamos perfurados por eles. Temos que
tomar cuidado com as pedras, galhos e plantas espalhados pelo chão.
Os espinhos atrás de nós começam a voltar para seu lugar e Nanrá tem
que retirar os que estão na frente ainda mais rápido. Assim que
conseguimos sair dos galhos espinhosos ficamos mais aliviados por termos
uma coisa a menos para nos preocupar, o caminho à frente está livre, mas as
pegadas de animais que passaram pelo aglomerado de árvores fazem com
que fiquemos atentos.
— Parem um pouco, descansem por alguns minutos — digo.
Eles não questionam, apenas desabam no chão ao sentir o vento tocar
seus rostos.
Me sento na raiz de uma árvore e pego uma folha do chão, o desenho
dela é como a asa de um pássaro e observo a cor que de um lado é lilás e do
outro é um roxo marmorizado com branco, como se fosse uma ametista.
Callen se senta ao meu lado e também observa a folha que estou
segurando.
— Acha que chegamos ainda hoje? — pergunto, nervosa pela reposta.
— Segundo a rainha, se seguirmos essa trilha chegaremos. Não é um
atalho ruim — responde ele. — O nosso povo... — a voz de Callen fica
forte quando pronuncia as palavras. — O nosso povo vai ficar bem, não é?
Olho para ele, que está com o olhar fixo nas folhas no chão.
— Vai. Vai, sim. Vou fazer com que fiquem.
— Não tem mais rancor das pessoas que te olharam de forma
estranha? Ou que te fizeram mal?
Balanço a cabeça de forma negativa.
— Não. Eu sei que a maioria foi levada pelas falas de quem realmente
quer a desgraça dos outros. Seres humanos são assim, acreditam em tudo.
Mesmo sem saber se é a verdade, eles acreditam. Mas eu aprendi que se
guardar rancor das mesmas, eu vou me tornar uma pessoa como elas,
querendo ou não.
As asas se escondem atrás das costas, ele se levanta e para à minha
frente. A mão se estica e a minha descansa sobre ela. Ele me puxa para me
levantar e, assim que o olho, ele diz:
— Essa é a minha realeza.
Sorrio e me afasto dele. Bato as mãos para alertar os três jogados no
chão.
— Seguindo.
Assim que ando em frente, escuto murmúrios de reclamação enquanto
lutam contra eles mesmo para se levantarem.
Ash e Ivana se levantam, retirando as folhas e poeira das roupas. Ivana
amarra o cabelo com um pedaço de tecido e Ash verifica se a arma está no
suporte da perna. Nanrá continua no chão e, quando ando e paro ao seu
lado, ela revira os olhos e se levanta.
— Eu queria diversão — reclama. — Não uma floresta enorme para
andar.
— Daqui a pouco você poderá se divertir o quanto quiser com o que
seja lá que seu avô levará para destruir Helinor, mas agora temos que ir.
Nanrá franze a testa.
— Querem se arriscar um pouco? — questiona ela.
— Como assim se arriscar? — pergunto.
— Eu posso levar a gente para Helinor com magia, mas faz décadas
que não faço isso, podemos nos perder em qualquer lugar se der errado.
Callen se aproxima de mim.
— Será que devemos? — pergunta.
— É a única maneira de chegarmos mais rápido — respondo.
Nessa situação precisamos correr esse risco.
— Certo, deem as mãos, e em hipótese alguma as soltem. — Uma
preocupação rasteja pelo meu corpo com a intensidade da voz dela.
De mãos dadas, ela respira fundo, mantendo os olhos fechados. O
chão treme abaixo dos nossos pés e somos puxados. Quando abro os olhos,
estou na neve, deitada na camada branca.
— Pelo menos deu certo. — Ela ri, se aproximando de mim e me
ajudando a levantar.
Bato as mãos na roupa, tentando tirar a neve do tecido.
— Sabe onde estamos? — pergunto para Callen.
— Estamos em Helinor, na cidade para ser mais específico.
Chegamos a uma rua que as casas estão fechadas, não há nada nas
calçadas, a não ser a neve que cai sobre ela. O centro da cidade está
abarrotado de pessoas. Em frente à casa do imperador, a multidão é visível à
distância. Tanner está na porta da casa dizendo:
— Povo de Helinor, como já sabem fomos amaldiçoados por um
monstro habitante da montanha Ilite com esse inverno rigoroso e duradouro
que devasta nossas plantações e nos traz miséria. Então, para acalmar a ira
da criatura, mandamos uma jovem moça para ele. Mas a garota saiu viva,
isso significa que não foi boa o suficiente e acabou aumentando a ira do
monstro. Ele está preparando um ataque para amanhã. Recorremos a ajuda
do reino de Calix e é com muito prazer que recebo o rei Anton e a rainha
Celesta no meu amado reino. Peço que quem puder nos ajudar e estiver
disposto a salvar o nosso reino, por favor, fiquem atentos quando os ataques
começarem.
As pessoas presentes murmuram algumas coisas. Observamos o
discurso escondidos atrás de uma casa. Tanner se afasta e Irene começa a
dizer:
— É muito triste saber que a minha prima não serviu para salvar nosso
reino da maldição, ela retornou, mas, infelizmente, não sobreviveu. A
fraqueza a consumiu assim que chegou à nossa casa.
Tanner dá um passo à frente.
— Chegamos a um acordo. Como a jovem foi a única a entrar no
castelo e sair viva, a daríamos um título nobre, mesmo não cumprindo o que
foi designada, achamos justo para compensar o desespero que passou. — O
joguinho dele é fazer com que a população ache que ele é a pessoa mais
bondosa que existe. — Mas como minha esposa disse... infelizmente, ela
não resistiu.
As pessoas murmuram ainda mais alto. Raiva invade o meu corpo
pelas mentiras que eles inventam.
— Eu os quero — digo, apontando os dedos indicador e médio para o
imperador e a imperatriz.
— Você os terá — conclui Nanrá, sorrindo. — Se quiser dividi-los, eu
adoraria.
Eles entram dentro da casa e a multidão começa a se desfazer. Cada
pessoa começa a voltar para suas respectivas casas com as mentiras na
cabeça.
— Eles começarão um ataque propositalmente para pensarem que é o
Callen atacando a cidade — diz Ivana.
— Eles acabarão com tudo, pessoas que forem contras, animais que
ajudarem... Tanner não quer somente a mim, ele quer o Reino e se não se
curvarem diante dele, a piedade não existirá em sua alma. — Afirma
Callen.
Andamos para fora da cidade, tentando não sermos vistos. Paramos
um pouco mais do meio entre o castelo e a cidade. Um pássaro sobrevoa o
céu acima de nós, logo ele pousa na neve e deixa um bilhete sobre o gelo.
Querida donzela.
Nossa batalha começa ao amanhecer, mandarei um guarda para conversar, quem sabe eu
possa poupar suas vidas se me derem o monstro.
Tanner.
A noite chega rápido e o céu é tomado pelo azul escuro com pontinhos
brilhantes.
As luzes da cidade são vistas de longe e o vento congelante pode
cortar a pele de quem não estiver protegido. Ficamos sentados na neve,
esperando o dia raiar, assim que o primeiro raio de sol atingir o reino eles
mandarão o homem.
Decidimos não voltar para o castelo, perderíamos tempo e se o ataque
começar antes do previsto poderíamos ser encurralados, sem chances de
defesa.
O crepúsculo no céu indica que, em pouco tempo, o sol nascerá no
horizonte.
— Descansem o máximo que puderem, o dia amanhã será longo.
Eles se afastam um pouco, me deixando sozinha com Callen,
encarando a cidade a nossa frente.
— Você também precisa descansar — diz ele.
— Não. Vá você, eu ficarei aqui esperando.
Ele anda até ficar atrás de mim, passa os braços por mim, me
prendendo contra seu corpo. Seus lábios tocam minha bochecha e me cobre
com suas asas.
— Então te farei companhia.
Não consigo fechar os olhos e, pelo que parece, os outros também não,
eles ficam próximos quando o céu começa a mostrar os primeiros pontos de
luz.
Levantamos e limpamos as roupas quando percebemos silhuetas se
aproximando.
Eles param a mais ou menos 1 Km de distância de nós, o exército
conta com pelo menos 100 pessoas e criaturas.
Um homem caminha até nós e para à nossa frente com os olhos opacos
e, assim que ele começa a falar a voz não é dele, e, sim, de Tanner.
— Maravilha. É incrível como você consegue trazer caos por onde
caminha.
— Eu poderia dizer o mesmo, é tão desagradável saber que aquele
homem com a voz doce dizendo que não mentiria acabou de mentir para
uma população inteira — retruco.
A risada é apenas um som distante da boca do homem à nossa frente.
— “A mentira é apenas uma verdade que esqueceu de acontecer”, eu
não disse mentiras, disse o que queria que acontecesse.
— Não importa, esse povo merece algo melhor...
— Algo melhor? Como você...— diz Tanner, interrompendo a minha
fala.
Antes que eu possa perceber, a espada de Callen corta o vento,
separando a cabeça do corpo.
— A minha Rainha está falando, espere ela terminar pra que você abra
essa boca. — diz ele, se abaixando perto do homem caído.
O exército começa a se mover na nossa direção. Callen faz um
movimento com as mãos e, em segundos, animais de sombras se formam,
eles parecem com lobos, mas de um jeito sombrio, a estrutura canina um
pouco modificada, os dentes são evidentes na boca, os olhos verdes
florescentes parecem ver somente o que Callen quer que eles vejam.
Assim que os primeiros chegam, as criaturas de sombras avançam,
espadas são arremessadas e as criaturas se confrontam umas com as outras.
Ivana e Ash preparam as armas, Nanrá dá um sorriso de canto apenas
esperando a diversão que tanto queria, Callen passa as garras na lâmina da
espada e eu observo o exército se aproximando de nós.
O rei de Calix observa tudo, no final do exército com a rainha ao lado,
com a mesma expressão melancólica de sempre. Tanner avança junto dos
outros homens e Irene fica junto da realeza de Calix, observando a guerra
acontecendo na frente deles.
As lâminas cortam o vento, a magia flutua pelo ar e as armas disparam
em direção do que quer que esteja na frente. O som dos animais se torna
alto e o chão treme com os passos que tocam o solo.
Minha adaga se suja com aqueles que avançam na minha direção, mas
o sangue parece estranho. Enquanto caminho mais para o meio e até chegar
em Tanner, os animais me têm como alvo. As criaturas trancafiadas nas
masmorras são soltas, entram na batalha por troca de liberdade, mesmo
muitas sabendo que não serão livres como desejam, elas sabem que serão
aprisionadas novamente se isso acabar com o outro lado saindo vitorioso. O
cheiro de podridão fica mais intenso com os animais por perto.
Um deles se aproxima, um pássaro imenso coberto por pelos ao invés
de penas, o bico parece ser tão afiado quanto a lâmina de minha adaga. As
asas cobrem o sol acima de mim, mas antes que ele possa chegar até meu
corpo e levá-lo para longe como uma pena, a criatura é arremessada para o
lado. Órubos aparece na minha frente com as garras à mostra.
— Eu cuido do bichinho, vá atrás do que realmente te interessa.
Vou em frente, observando as pessoas que lutam com as sombras. Os
guardas parecem fumaças, algo sai deles aos poucos como se fossem...
Um deles passa pelos animais de sombras e corre na minha direção,
continuo andando sem atacá-lo, apenas pensando “não é real”. Aquilo
parece perder as forças e se desfaz. Ele corre até mim e a espada me
atravessa, mas não me machuca, não me corta. Olho para trás e tento achar
o homem que estava caído na neve alguns minutos atrás, mas seu corpo não
está mais lá.
— São ilusões — concluo.
Órubos se aproxima, ainda de olho no animal.
— O que disse?
— As pessoas, não são reais, são ilusões. Se perceber que são apenas
miragens, param de se alimentar do que acreditamos que sejam. Vão sumir
se pararmos de achar que são reais.
Órubos toma impulso para cima e, assim que retorna, os pés no chão o
solo treme, ele avança em direção da criatura novamente e atravessa as
garras no estômago do animal. — Contarei aos demais. Vá! — diz, se
afastando.
Ando tranquilamente enquanto as ilusões passam por mim, tentando
me ferir. Quando menos percebo, Tanner está a minha frente, armado com
arco e flechas. O sorriso é de deboche e os olhos me observam de baixo
para cima.
— A roupa ficou incrível em você, por favor, não me faça rasgá-la.
— É muito egoísmo da sua parte sabia? — pergunto, sorrindo. —
Quer a coroa para dizimar o reino? Quer uma população que o siga? Bom,
pelo menos sabe que essa não o vê como rei.
Ele ri.
— Mas pode apostar que verão, e depois que eu criar uma população
ainda mais poderosa e tê-los sobre meu controle, ninguém vai me tirar
daquele maldito trono.
— Se é tão fácil assim, por que ainda não fez?
A expressão de deboche no seu rosto dele se desfaz, como se tivesse
acabado de levar um tapa.
— Esse momento me deixa feliz, será hoje que conseguirei minha
coroa e essa que está em sua testa será da minha rainha.
Olho para Irene ao lado do rei e da rainha de Calix, sorrindo junto a
Anton. A felicidade nas faces me causa desprezo.
A rainha percorre os olhos pelo cenário, tentando desviar o olhar e não
escutar os barulhos.
— Seu reino não será mais o mesmo — atento ele. — Já que perderá
uma grande parte do território para Calix. Já pensou no que acontecerá
quando seus aliados se tornarem mais fortes que você?
Ele dá um passo para frente, retira uma flecha do suporte e com a
ponta coloca meu cabelo atrás dos ombros.
Não me mexo em nenhum momento, apenas observo o que ele planeja
fazer.
— Eu sei disso, mas esperei até que você chegasse a mim para ver a
diversão que preparei.
Ele coloca a flecha que está na mão no arco e se vira, são cinco
segundos até a flecha atravessar o pescoço do rei de Calix. Irene se
sobressalta e a rainha não tem reação.
Tanner se vira para mim com um sorriso malicioso.
— Agora é tudo meu.
A rainha se põe à frente e grita para aqueles de seu reino:
— Calixciencies, seu rei sofreu uma traição por parte do imperador,
ordeno que, neste momento, todos se mudem para o lado da verdadeira
rainha e rei de Helinor.
As criaturas e aqueles que foram por vontade própria até ali param de
atacar as sombras e os outros que estavam ficando exaustos. Se juntam a
nós.
Mas meu alívio vai embora assim que percebo que a rainha cavou a
própria cova.
Irene se aproxima de Celesta e crava uma espada na lateral de seu
corpo e mais uma vez a neve fica vermelha. Nanrá irradia um poder
temeroso, o cheiro de magia deixa o ar intenso e enjoativo. Ela vai até a avó
caída no chão e arremessa Irene, fazendo com que ela atinja o corpo em
uma árvore. A rainha diz algo para a feiticeira e logo depois Nanrá se
levanta com uma expressão de mágoa e felicidade, as mãos tocam a neve no
chão e o gelo toma forma de flechas, acertando as ilusões que aparecem na
frente.
Tanner tenta colocar uma flecha no arco, mas eu a retiro de sua mão
antes que consiga. Ele retira outra flecha e, desta vez, mais rápido do que eu
posso me dar conta algo o empurra e o faz rolar na neve. Callen para ao
meu lado, observando o irmão se levantando.
— Ah, meu irmão, quanto tempo, sabe eu achei muito romântico
quando cheguei à procura de Orianna e você se ofereceu para salvá-la! Essa
bruxa vai precisar que você a salve novamente.
Callen ri, uma risada espontânea.
— Irmão, a minha rainha sabe se salvar sozinha, você deveria temê-
la.
Tanner me olha de cima a baixo novamente, observando
principalmente a adaga na minha mão.
— Deu sua preciosa para ela? Engraçado..., eu sempre pedia e você
sempre falava não.
— Está com ciúmes? — pergunto. — Se está fazendo isso por uma
adaga, eu dou para você. Não preciso de nenhuma lâmina para provar que
sou melhor.
Tanner dá um passo para trás, seus olhos se fixam em Callen e as asas
do rapaz ao meu lado se tomam rígidas. Tanner vai até Irene, que se
aproxima, beija sua mão e minha prima com a voz forte e com um sorriso
falso diz:
— Eu farei você chorar.
Tanner estala os dedos e um vento forte arrasta Callen até o tronco de
uma árvore, um círculo de fogo se forma sobre a neve, os olhos de Callen se
fixam no círculo tomado por vermelho e laranja, isso me lembra das vezes
que acendemos a lareira e ele observava as chamas dançarem igual faz
agora.
— Isso é magia — diz Tanner. — Eu poderia quebrar os ossos dele,
mas eu quero ver o fogo dançar na neve.
— Callen! — chamo.
As criaturas lutam com as ilusões que continuam de pé, Nanrá, Ash e
Ivana correm até mim enquanto observo Callen preso no círculo
incendiado.
Dou um passo para frente, mas Nanrá segura o meu braço.
— Por que está me segurando? — pergunto, a voz falhando.
Ela não responde e a cada movimento que eu faço para tentar me
soltar ela me segura mais forte.
O fogo se aproxima dele, até que tocam seus pés.
— ME SOLTA, NANRÁ! — grito.
— Fique aqui, Orianna, você não vai poder fazer nada, não se
arrisque.
O fogo chega na metade de seu corpo, mas nenhum grito sai da boca
dele, nenhuma expressão de dor é mostrada, parece algo normal para ele,
como se, ao invés de fogo, fosse água que estivesse em sua pele.
Desespero. Desespero percorre o meu corpo de uma forma tão
dolorosa.
Deuses, por favor, me escutem... não me deixem perder outra pessoa
que amo, não levem a única pessoa que me fez reviver.
Antes que a chama cubra os olhos dele, Callen levanta o olhar do fogo,
aqueles olhos verdes radiante me encaram como se falassem “vai ficar tudo
bem”.
Nanrá me segura forte e a única coisa que consigo fazer é olhar o fogo
tomando conta dele.
Em alguns segundos, ele some atrás do borrão vermelho. A fumaça
toma conta daquela parte. Quando o fogo finalmente acaba, a árvore na qual
ele foi preso está morta, totalmente queimada. Na neve existem apenas
cinzas sendo levadas pelo vento e o rastro do fogo na camada branca.
Nanrá me solta, mas não consigo andar, me viro para ela e caio de
joelhos na neve, lágrimas escorrem por meu rosto enquanto uma dor me
invade. Meus companheiros são arremessados por uma força poderosa,
consigo escutar seus corpos colidindo em algo.
Tanner anda e para à minha frente. Ele leva o pé até meu ombro e me
empurra para ficar com todo o corpo na neve. Ele se abaixa à minha frente,
sorrindo. Retira uma flecha do suporte em suas costas e a crava na neve ao
meu lado, me fazendo ficar imóvel. Órubos corre até mim, mas Tanner
consegue impedir sua aproximação. Eu também o impeço quando ele tenta
se levantar, eu tenho que fazer isso sozinha.
Fogo percorre minhas veias, sinto a raiva queimar dentro de mim.
Nanrá me disse que sou maior que meus ossos, então por que ainda me
sinto tão pequena?
Não... essa sensação estranha não é de se sentir menor, é de se sentir
muito maior do que está acostumada.
Minha mão desliza até a adaga perto de mim, meus dedos a seguram
com forças.
Nanrá não me deu poder... Me deu coragem e determinação... essa é a
maior magia que alguém poderia ter.
— Eu venci. Não existe mais rei e a rainha logo, logo estará morta —
a voz de Tanner ecoa em meus ouvidos.
— A Rainha está morta — corrige Irene.
— Levante-se! — Tanner ordena.
Quando não o obedeço, ele agarra a minha roupa e me levanta à força,
eu só consigo encará-lo, observar o que fará. As mãos vão até a tiara na
minha testa e assim que os dedos encostam no metal, a lâmina se torna leve
e, sem pensar, faço um corte na mão dele, que o faz retirá-la depressa de
perto de mim e se afastar.
— Como ousa? — questiona.
— Quieto. — Não é um pedido, é uma ordem.
— Ah. Quer dar uma de heroína?
— Eu mandei ficar quieto — minha voz ecoa pelo campo, minha
respiração fica pesada. — Cortarei sua língua se continuar falando.
Ninguém tocará na minha coroa. Enquanto eu estiver aqui, ela pertencerá a
mim — digo, apontando para a tiara. — A RAINHA NÃO ESTÁ MORTA! —
O ar leva minha voz para longe, fazendo com que boa parte escute.
Os olhos de Irene se arregalam e ficam fixos em algo, medo percorre
seu corpo. Tanner observa a sombra que se forma atrás de mim. Uma
lágrima escorre por meu rosto, eu consigo senti-lo novamente. Pelos
Deuses.
Por alguns instantes, me vejo em uma sala escura, onde o breu é o
dono de tudo.
— Meu lírio mais precioso — diz uma voz familiar.
— Mãe.
— Como minha menina cresceu — diz outra.
— Pai.
— Nós sabíamos que você seria algo muito grande, escutamos todas
as vezes que você implorou por liberdade, sabíamos que o momento que
você encontraria isso seria libertando alguém.
Sinto meu rosto sendo molhado pelas lágrimas.
— Eu sofri por tantos anos.
— Nós sabemos, e pedimos desculpas por termos partido tão cedo,
mas seu sofrimento não foi em vão, as vezes precisamos passar pelo fogo
para que depois aproveitemos o frescor — diz o meu pai.
Meus olhos percorrem todos os cantos do salão, ele me lembra o que
aparecia em meus sonhos, mas agora não me sufoca como antes.
— Por que não consigo vê-los?
— Porque viemos apenas nos despedir, prometemos partir para o além
assim que você conseguisse conquistar o que desejava — diz a voz de
minha mãe.
— Agora tem que concluir o que resta — termina a voz de meu pai.
— Nós te amamos. E a nossa rainha não está morta — os dois dizem,
juntos.
Sinto como se o solo despencasse.
Tento recuperar o ar que saiu do meu corpo, minha boca se curva em
um sorriso, meus olhos se abrem e consigo ver a figura de uma fênix atrás
de mim.
“Ele se libertará quando as chamas dançarem e as cinzas voarem”.
Nanrá não disse uma frase sem sentido, eu que não consegui
interpretá-la. A fênix se transforma em chamas e das suas cinzas renasce
um novo pássaro.
Minha voz se ergue quando pronuncio a frase:
— É como dizem... vida longa ao rei.
Callen sobrevoa o céu, derrubando as ilusões que continuam em pé,
Tanner se vira, tentando manter o exército e essa é minha deixa. Giro a
adaga na mão e a passo por suas costas, ele se curva e retira a lâmina dos
meus dedos, segurando meu braço e me jogando na neve. A ponta da adaga
risca a pele do meu pescoço que só não foi mais a fundo porque, graças aos
Deuses, consegui girar o corpo para o lado.
Levanto e coloco a mão em meu pescoço e sinto a tontura me
preenchendo depois de olhar a cor vermelha, ele se levanta e dá um impulso
para frente, apontando a lâmina na direção de meu peito, mas, antes que a
ponta encoste no tecido da roupa, retiro uma flecha do suporte dele e a
cravo em sua perna.
Tanner afrouxa a adaga em seus dedos e cai. Me aproximo dele, do
mesmo jeito que se aproximou de mim quando me jogou na neve. Pego a
adaga caída no chão e a cravo na neve, bem ao lado da cabeça dele.
— Antes, lembre-se de tudo o que já fez, eu fico surpresa de ainda
conseguir me olhar com tanta serenidade. — Uma gota do sangue de meu
pescoço escorre e goteja na bochecha dele. — Esse povo não é seu e nunca
será. Eu tenho muita pena de você, Tanner, porque enfeitiça a si mesmo
para acreditar que está tudo bem e que tem tudo em suas mãos. Isso que
você vive não passa de ilusões que você mesmo criou, não acha que está na
hora de viver seu destino, sem riscar textos e resumir em palavras? Liberte-
se ao em vez de se quebrar e tentar remendar o que sobrou.
Mágoa preenche o rosto dele.
Mil coisas parecem vir à mente, mas ele parece ignorá-las e apenas
diz:
— Eu queria poder dar orgulho a criança do passado que dizia para o
irmão que tomaria seu lugar, já que ele não era o preferido do pai, pelo
menos mostraria que era o mais forte. Eu queria ajudá-la quando descobri
sobre seu sacrifício, eu não queria perder a minha donzela para meu irmão,
mas depois que me disse tudo aquilo... achei mesmo que se mereciam.
Outra gota do meu sangue cai sobre o rosto dele.
— Eu não sou a sua donzela. E você queria o afeto tanto do seu pai
quanto do seu irmão, mas não admitia por orgulho. E ao invés de mudar
para que as pessoas a sua volta te dessem esse afeto, você apenas continuou
sendo o que era.
Ele segura minha mão e a leva até seu rosto. Tento retirá-la, mas ele a
aperta com força. Suas mãos pressionam a minha contra a bochecha dele
enquanto ele fecha os olhos, e nesse momento sou puxada para um lugar
completamente vazio.
Uma paisagem branca e azul, uma mesclagem de neve e céu.
Dou um passo para trás e esbarro em alguém. Me viro tão rápido que
sinto a visão ficando turva.
Tanner está atrás de mim, com roupas limpas, os cabelos ligeiramente
arrumados e um semblante que transmite calma.
— Que lugar é esse? — pergunto um pouco temerosa.
— Não é um lugar — responde ele — são as minhas lembranças.
— Por que me trouxe aqui?
— Para você ver que eu não sou o vilão.
Antes que eu possa dizer qualquer coisa ele aponta um lugar com a
cabeça. Assim que meus olhos encontram o lugar uma criança passa
correndo pelo campo.
Aquela criança é ele.
Ela corre pelo lugar dando gargalhadas, em certo momento tropeça em
algo e cai no chão. Em seguida uma mulher com a pele marrom, cabelos
castanhos presos em uma trança e um sorriso contagiante segura a criança e
a ergue. O nariz do pequeno está vermelho por causa da neve e então ele
começa a chorar.
— Meu filho — diz a mulher — tenha mais cuidado.
Ela limpa o rostinho pequeno com as mãos e o choro para.
— Por que está chorando Tanner? — a voz me é familiar.
O senhor Adam aparece em segundos na paisagem, atrás dele vem um
rapaz com roupas inadequadas para o frio... Callen.
— Ele caiu, querido — diz a mãe deles.
— Se você cai, tem que se levantar, não apenas chorar e ficar no chão
— ele repreende a pequena criança — veja Callen, Tanner, está treinando
desde quando o sol apareceu no horizonte e não apresentou fraqueza em
nenhum momento. Agora só por que levou uma queda já começou a
chorar?
A mãe deles segura Tanner mais forte, e chama Callen para perto dela.
— Dê um tempo para ele, trata seus filhos como se fossem feitos de
ferro — ela retira uma mecha de cabelo da frente dos olhos de Callen —
vamos entrar meu filho?
Ele apenas concorda sem dizer uma palavra sequer.
— Seja que nem seu irmão Tanner, me dê orgulho algum dia.
Depois dessa fala eles desaparecem.
— Eu tinha 8 anos, qualquer criança quando cai chora. Mas eu não
podia fazer isso. Callen era o preferido dele, pois herdaria seu trono e não
chorava por qualquer coisa. Não acha que eu me tornei mais forte que ele?
Eu me tornei o que o meu pai me pediu.
Outra lembrança começa a aparecer.
Tanner corre até o pai e a mãe que estão sentados na mesa de jantar.
— Olha pai, eu aprendi a fazer um arco com galho que encontrei ali
fora.
Adam olha para o filho e revira os olhos.
— Chama isso de arco? Está mais para um brinquedo mal-feito.
São questões de segundo para Callen entrar na sala carregando uma
espada.
— Olha só — Adam se levanta da cadeira e segue em direção ao filho
mais velho — forjou uma espada perfeita, esse é meu filho.
Ele sorri para Callen e dá tapinhas nas costas dele.
Os olhos se voltam para Tanner que está de cabeça baixa.
— Ao invés de ficar fazendo essas coisas toscas, por que não observa
o que o seu irmão faz? Jogue isso fora.
— Tanner, meu filho — a mãe o chama — vamos lá fora para você me
ensinar como se faz um desses?
Ele ergue o olhar rapidamente e concorda com a cabeça.
— Posso ir também, mãe? — pergunta Callen.
— clar...
— Não — Adam a interrompe — meu filho não vai brincar com
gravetos, precisamos comemorar esse forjamento.
Elas desaparecem novamente.
— Ela era o equilíbrio para nós. Quando minha mãe se foi, Callen era
o único filho. Eu fui jogado na neve fria e esquecido lá.
Eu não consigo falar nada.
— Eu queria ser ele. Callen teve uma vida perfeita, a vida perfeita que
eu não tive. Não acha que foi justo ele ser esquecido? Não acha que era a
minha vez de ser o filho perfeito. Quando enfeiticei o meu pai eu me tornei
o preferido, o esquecido foi ele.
Ele se vira e começa a andar para a outra direção, mas eu fico. Espero
mais alguma lembrança.
E então ela surge.
Um grito se rompe no ar, olho por cima do ombro e vejo o corpo de
Tanner enrijecido. Ele se vira lentamente com a testa franzida, e eu volto
para aquela imagem.
Outro grito é levado pelo vento.
Tanner abre uma brecha na porta e bisbilhota o cômodo.
Callen está ajoelhado no chão, com o corpo tremendo, e o rosto
molhado.
Adam chicoteia suas costas enquanto diz:
— Você é fraco Callen, você me envergonha.
Os músculos de suas costas se contraem e ele cai no chão.
Eu começo a tremer, as minhas costas ardem, queimam. Minhas
cicatrizes parecem ferimentos novamente.
— Tanto esforço, treinamentos para estar fraco desse jeito?
Callen tosse, e gotas de sangue são cuspidas.
— Você vai ficar aqui dentro o resto do dia, amanhã esteja pronto pra
caçar.
— Por que faz isso? — pergunta o garoto ajoelhado no chão.
— Faço isso para o seu bem, quer ser alguém fraco como Tanner?
— Não fala isso do meu irmão — diz Callen cerrando os dentes.
— Quer saber, você é quem me dá vergonha. — Adam termina a fala
quase cuspindo no filho.
Tanner corre pelo corredor quando o pai começa a andar até a porta.
Quando chega ao quarto da mãe abre a porta bruscamente.
— Mãe, mãe — grita ele.
Ela sai do banheiro procurando a voz do filho.
Quando o encontra o rosto do menino está desesperado.
— O que aconteceu?
— Callen, Callen precisa de ajuda. — Ele quase balbucia as palavras.
Ela franze a testa.
— Filho, Callen foi treinar na floresta das Almas perdidas, ele foi
atacado por algum animal?
— Não, ele está na ala leste. Caído no chão.
Os dois saem correndo e quando chegam no cômodo Callen está
ofegante.
— Mãe — diz ele com a voz rouca — eu não aguento mais.
— Calma filho, vai ficar tudo bem.
Ela observa os machucados nas costas do seu filho.
— O que é isso?
— Ele estava sendo chicoteado — diz Tanner.
— Não filho, não é só isso, esses machucados não são somente de
chicotes.
— Gelo também — Callen diz — a neve me queimava quando eu
tinha que ficar deitado para suportar baixas temperaturas.
— Por que nunca me contou? — a mãe pergunta incrédula.
— Não queria preocupá-la.
Ela balança a cabeça.
As mãos percorrem a pele de Callen.
— Isso dói — reclama ele.
— Eu sei — diz a mãe.
— Ele vai ficar bem? — Tanner pergunta se aproximando do irmão.
Ela levanta o olhar para o filho mais novo e lhe lança um sorriso.
— Vai, vai sim. Seu pai foi longe demais. — Em instantes as costas
de Callen estão curadas, ela tinha o dom da cura...
Momentos depois a porta é arrombada, silhuetas entram por ela e só os
gritos podem ser ouvidos...
Mas antes que algo aconteça as lembranças desaparecem.
Tanner fica imóvel quando o lugar na nossa frente volta a ser azul e
branco.
— Esse foi o dia em que minha mãe foi assassinada, o trauma foi
grande que me fez esquecer o que aconteceu antes. — A voz está carregada
de emoções.
— Eu não acho — digo.
Ele me olha de relance
— Não acha o que?
— Justo ele ser esquecido. Ele também sofria nas mãos do seu pai.
Mas você não via isso.
— Ele nunca me deixou ver. — ele parece lamentar.
— E se ele apenas quisesse te proteger, assumia as responsabilidades
para que você não sofresse tanto?
Ele não responde. Apenas me olha e me sinto cair... voltamos para o
campo de batalha.
Ele retira minha mão de seu rosto e me lança um leve sorriso.
A voz dele fica rouca.
— Me promete uma coisa.
— Diga.
— Cuide dele — é o que pede.
Assinto com a cabeça e, assim que me levanto, ele mesmo crava uma
de suas flechas no peito, me assusto com o barulho da pele sendo perfurada,
eu nunca pensei que ele faria isso.
Tanner mantêm a mão firme até não conseguir prender a flecha com os
dedos. Irene fica paralisada e corre até o marido no chão. Assim que se
aproxima e vê que Tanner não está mais respirando, ela segura com força
uma flecha e atira em minha direção, mas antes de me atingir a flecha se
crava no tronco de uma árvore após Nanrá estalar os dedos.
Callen escuta o grito de Irene e pousa no chão, desfazendo-se da forma
de pássaro, em suas costas não existem mais as asas, as mãos não possuem
mais as garras. Ele é completamente humano agora. O exército de ilusões se
desfaz atrás de nós. O povo de Calix acompanha Nanrá e Ash que segura a
mão de Ivana.
— Irene — digo.
Ela se levanta, me olhando com o rosto totalmente molhando pelas
lágrimas.
— Não tenha pena de mim — pede.
— Eu não vou ser como você, será presa, mas nada além disso.
Ela se fasta e segue para a cidade.
— Precisamos segui-la? — pergunta Ash.
— Não. Ela irá sozinha.
Callen me olha e segura as minhas mãos, ele beija cada uma delas e
quando levanta o olhar novamente, diz:
— Querendo ou não, conseguiu me libertar.
Sorrio para ele e logo peço para alguém retirar o corpo pálido de
Tanner e levá-lo para que possa ser enterrado.
Callen apenas olha para Tanner, não diz nada além de: “Você era como
ele em certas coisas, mas espero que não se encontrem no além, você
merece paz.”
Ele parece não guardar rancor, pelo menos a voz não mostra isso.
Mesmo que o irmão o tenha amaldiçoado, colocado o povo contra ele e ter
feito com que ficasse na solidão por 2 séculos ele parece não ter mágoa.
Callen limpa a minha pele e enrola um pedaço de tecido no meu
pescoço para conter o sangramento.
— Vai deixar uma cicatriz — ele diz, lamentando.
— Mais uma para a coleção — falo, sorrindo, essa é só mais uma
prova de que sobrevivi a muitas coisas.
A cidade parece perdida, os moradores olham para todos os lados
como se tivessem dormido por um bom tempo e acordado agora. Quando
veem Callen, a expressão de surpresa fica evidente em seus rostos.
— Majestade! — lembram eles.
Fico surpresa por conseguirem se lembrar.
— Como eles se lembram de você sendo que não são as mesmas
pessoas que te viram anos antes do feitiço? — pergunto, confusa.
— O feitiço os fazia esquecer, mas quando é desfeito não importa
quanto tempo se passe, eles lembrarão de tudo como se tivessem dormido
uma noite. Eles viviam em uma mentira pensando que estava tudo bem e
agora acreditam que foi um sonho longo...
A feitiçaria é perigosa.
A multidão se reúne na frente de Callen.
— O que faz aqui, majestade? — pergunta uma senhora na frente, mas
logo para quando me vê ao lado de Callen. — A rainha também está aqui.
Bem-vinda, majestade.
— Eles também se lembram de você, mesmo que, na lógica, só sabem
que você é a rainha agora — ele sussurra.
Os cidadãos se curvam para nós e pronunciam a frase:
— Vida longa à nossas majestades.
Ficamos na casa de Ash e Ivana por um tempo até que a ponte do lago
que dá a volta no castelo estivesse de pé novamente depois de séculos, a
neve não caiu mais, mas o ar gélido continuou.
Assim que conseguimos voltar para casa, entramos e as sombras nos
recepcionam.
Fico feliz por vê-las.
— Eu pensei que não estariam mais aqui.
— Minha magia ainda permanece. É algo natural.
As paredes que, no começo, eram sombrias agora parecem deixar o
lugar confortável. O sol entra pelas janelas, iluminando todo o local, e elas
finalmente podem ser abertas; a Fênix branca pousa no meu braço e se
curva como forma de agradecimento por tudo. Me curvo para ela também,
então as asas se abrem e voam pelo céu aberto.
O ar dentro do castelo se torna leve e o cheiro das flores que começam
a nascer nas paredes deixam o ambiente ainda mais aconchegante.
Callen segura os meus ombros e me vira para olhá-lo. Ele se inclina e
leva as mãos até meu rosto, mas algo paira no ar antes que possa tocar
minha boca.
— Se quiserem fazer algo, façam depois que eu for embora — diz
Nanrá.
— O que faz aqui feiticeira? — Callen pergunta.
Ela se aproxima.
— Eu não sabia que ser rainha é tão difícil — reclama.
— Você não viu nada — diz Callen.
— Fica quieto, reizinho — retruca ela, caminhando até mim e me
entregando a coroa de Helinor. Me lembro que eu a tinha colocado na
penteadeira e, pela correria do outro dia, acabei a deixando no quarto. —
Também trouxe os cavalos que levaram Ivana e Ash.
— Obrigada! — agradeço, levando a coroa até a sala do trono e a
guardando no pilar. — Como está Calix? — pergunto quando retorno.
— Bem, não fui treinada para ser rainha, então está sendo exaustivo.
— E está tentando fugir de suas obrigações vindo aqui? — Callen
atenta ela.
Os olhos de gato olham de relance para ele, e então se reviram
acompanhados de um sorriso um tanto quanto assustador.
— Não vim aqui para isso reizinho, vim entregar uma coisa — ela
retira um envelope do casaco e me entrega.
Callen se aproxima quando abro.
— Está nos convidando para uma festa? — pergunto.
Ela afirma com a cabeça.
— Fax me deu a ideia de fazer uma festa para comemorar meu
reinado, vim convidá-los.
— Com certeza a gente vai! — digo sorrindo.
Nanrá retribui o sorriso.
— Espero vocês — diz ela, antes de virar fumaça e voltar para Calix.
Caminho até uma mesinha e coloco o convite sobre ela.
Quando levanto me assusto com Callen atrás de mim.
Ele ri do meu espanto e se aproxima mais.
Afasta meu cabelo do rosto e pousa os lábios nos meus.
As mãos apertam a minha cintura enquanto me puxam para mais
perto.
Ele se afasta, encosta a sua testa na minha e sorri.
— Obrigado! — ele diz baixinho
— Por? — uso o mesmo tom de voz.
— Por tudo o que fez por mim...— ele me beija outra vez — eu amo
você, minha realeza — diz ele contra minha boca.
— Eu amo você.
Ele se afasta novamente e me olha, com uma expressão confusa.
— Pensando em comemoração, não fizemos uma festa de casamento,
não é? — ele diz com a voz calma.
— Meu amor, a gente nem sequer se casou — digo, abrindo um
sorriso.
E, neste momento, eu percebo o que tinha falado e o quanto isso o
atentou.
— Não seja por isso. — Ele segura a minha mão e me arrasta para fora
do castelo.
Corremos na neve que ficou no solo, enquanto tentamos não cair.
Quando menos percebo, estou assinando vários papéis.
Ele retira a caneta de minha mão e assina também.
— Parabéns, estão casados — diz a mulher à nossa frente.
A festa de Nanrá acontece alguns meses depois, o Reino de Calix entra
em festejo e, no meio da comemoração, proclamamos a paz entre os dois
reinos. Depois de séculos, finalmente, Calixciencies e Heliorianos podem
viver em harmonia.
Em certo momento, perguntei se Órubos gostaria de vir comigo, mas
ele disse que ficaria em casa.
Alguns dias depois, estamos sentados no local onde antes havia apenas
um trono, mas que agora existem dois dos mesmos tamanhos, cores e um ao
lado do outro. Recebemos as pessoas do reino que vieram para uma
celebração pelo fim do inverno e, secretamente, pelo fim da maldição. As
crianças correm pela sala, os adultos dançam, bebem e comem até não
poderem mais.
Callen toca a minha mão que descansa no braço do trono, atraindo
meu olhar para ele.
O sorriso dele me faz sorrir.
— Minha rainha.
— Meu rei.
A coroa dele repousa na cabeça, e a minha repousa na testa... Eu tenho
que confessar que prefiro a minha, ela pesa menos e realmente sinto que
pertence a mim.
Eles me mandaram para ser um sacrifício, acabar com a ira do monstro
e salvar o reino da miséria; enfeitiçados, o povo acreditava que muitas
mentiras eram verdades e deixaram que Tanner envolvido pela vingança
dissesse o que bem entendesse. Ele achava que eu era inocente demais,
obediente demais para me colocar contra ele. Tanner e Irene acharam que as
sombras lá dentro me dominariam e o monstro me devoraria quando eu
fosse jogada no castelo... Mal sabiam eles que as sombras se tornaram uma
parte minha e que eu dançaria junto a elas, mal sabia eles que o monstro me
tornaria a rainha dele e que eu retornaria em uma batalha frente a frente
com ele portando uma coroa.
Sinto algo se aproximando por trás de mim, algo que não é de carne e
osso, mas como uma fumaça invisível. Não me mexo e nem sequer recuo
quando sinto que se aproxima mais, tenta colocar uma mecha de meu
cabelo atrás da orelha, mas falha quando a mecha apenas se movimenta
como se um vento forte passasse por mim. Um sorriso aparece no meu rosto
quando o nada me chama de rainha.
Em uma prisão consideravelmente afastada da cidade, Irene descansa a
cabeça na parede de pedras, enquanto tenta escrever coisas aleatórias em
um papel, utilizando um pedaço de carvão que encontrou na cela.
A pouca luz a faz estreitar os olhos para tentar entender o que escreve.
“Maldita, ela me paga”.
“O meu amor foi tanto para alguém tão frágil”.
“Os guardas terão seu fim”.
“Eu preciso sair”.
Ela amassa o papel depois do carvão acabar.
A cela é escura e úmida, deixando a jovem incomodada, seu estômago
se revira com o cheiro das outras celas, que não possuem prisioneiros, mas
o cheiro forte de quando seus corpos estavam lá ainda continua impregnado
nas paredes.
Ela vomita por causa do enjoo e limpa a boca com as mãos trêmulas.
Um som estranho é ouvido a uma distância considerável para escutar
um barulho aqui e um grito ali.
As grades da entrada se abrem e ela se levanta, esperando ser algum
guarda vindo deixar alguma coisa para comer, mas a figura do homem à sua
frente é familiar, e ela tem certeza de que não se trata de um guarda.
O homem sorri e pede que ela chegue mais perto.
Os passos de Irene são pesados, mas ela não tem medo de se
aproximar dele.
— Seu plano não saiu como o esperado, minha querida — a voz ecoa
pelas celas vazias. — Às vezes, precisamos ser mais espertos.
Ela o olha de relance e, com raiva da fala do homem, diz:
— Eu quase consegui.
Ele ri, uma gargalhada espontânea, com se ela tivesse acabado de lhe
contar uma piada ruim.
— A rainha não está morta — ele lembra, passando os dedos em seu
maxilar.
Ela abaixa o olhar e o fixa no chão, um sorriso lateral surge na sua
boca e os olhos incendiados se erguem novamente para ele enquanto a cela
é aberta.
— Ainda...
Eu nunca pensei que chegaria tão longe. Me lembro de quando era
criança e decidi começar uma história infantil e olha onde estamos. Esse
projeto completou um ano em setembro de 2022. Quando comecei a
escrever, ainda no primeiro capítulo, pensei que ficaria guardado no
computador. Nunca imaginei que eu conseguiria fazer com que outras
pessoas lessem as minhas histórias, além de mim e de minha mãe que
muitas vezes foi dormir tarde por ficar escutando as ideias que vinham à
minha mente.
Então, em primeiro lugar, gostaria de agradecer a minha tão amada
mãe, pela paciência e pelo interesse em meu trabalho, por cada vez que ela
disse orgulhosa “minha filha está escrevendo um livro” para as pessoas que
chegavam no hospital. Eu te amo e sempre vou te amar.
Gostaria de agradecer ao meu pai, que me ajudou mais do que
qualquer outra pessoa; que me encorajou quando pensei em desistir e me
ajudou a conseguir tudo isso!
E, claro, gostaria de agradecer a você, o leitor, por embarcar comigo
em “A Rainha não está morta”. Espero que tenha gostado de ler a história
tanto quanto eu gostei de escrevê-la. Obrigada por escolher o meu livrinho!