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William Shakespeare As Alegres Matronas de Windsor - DougDutra - 2017

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Rafael Duque
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As Alegres Matronas de Windsor

William Shakespeare
tradução de Millôr Fernandes
copyright da tradução: MILLÔR FERNANDES
produção de ebook: @_DougDutra
Personagens

DOM JOÃO FALSTAFF


FENTON – Um cavalheiro
REDUZIDO – Juiz de Paz
MAGRELA – Sobrinho de Reduzido
FORD – Cavalheiro-cidadão de Windsor
PAGEM – Cavalheiro-cidadão de Windsor
DOM HUGO EVANS – Padre galês
DR. CAIO – Médico francês
Hospedeiro da ESTALAGEM DA JARRETEIRA
BARDOLFO – Sequaz de FALSTAFF
PISTOLA – Sequaz de FALSTAFF
NUNCA – Sequaz de FALSTAFF
ROBIN – Pagem de Falstaff
SIMPLICÍSSIMUS – Criado de Magrela
PASSARINHO – Criado do Dr. Caio
MADAME FORD – Mulher de Ford
MADAME PAGEM – Mulher de Pagem
ANA PAGEM – Filha de Pagem
MADAME LEVA-E-TRAZ – Governanta do Doutor Caio
Criados de Pagem, Ford, etc.

LOCAL: Windsor e arredores

(Nota do Tradutor: na tentativa de representar graficamente as


pronúncias estrangeiras de Caio e Avans, francês e galês, respectivamente,
dei apenas indicações, para não tornar incompreensível para os leitores o
que eles dizem. Os atores saberão completar o “pronunciamento” das
falas.)
ATO I
Cena I

Windsor, em frente à casa de Pajem. (Entram o Juiz Reduzido, Magrela, e


Dom Hugo Evans.)
REDUZIDO: É inútil, Reverendo. Não adianta querer me convencer.
Mesmo que em vez de só um Dom João Falstaff, houvesse dez Dons, vinte
Joões e trinta Falstaffs, os sessenta juntos não conseguiriam menoscabar,
menosprezar nem menoscacetear Roberto Reduzido, escudeiro do Rei.
MAGRELA: Escudeiro do Rei, Par da Rainha, Ímpar da coroa. E Juiz
de Paz no condado de Gloster; rogado!
REDUZIDO: Correto, sobrinho Magrela; rogado e togado.
MAGRELA: Ninguém com tanto gado. E cavalheiro nato, senhor
Reverendo; fidalgo com direito ao uso do timbre de Armígero em todas as
notas, mandatos, recibos e requerimentos; Armígero!
REDUZIDO: Direito que uso e temos usado, sobrinho, há mais de
trezentos anos.
MAGRELA: Pois é: assim fizeram todos os descendentes que o
antecederam, e farão todos os antepassados que deixar no mundo. E com
direito ainda de usar doze lírios douro em seu brasão.
REDUZIDO: Um brasão muito antigo.
EVANS: Tôze lírios touro? Manganífico. O lírio é o símbolo da pureza.
Fica muito pem num prasão.
REDUZIDO: Pois não usamos esse símbolo à toa, verá quem tentar
conspurcá-lo.
EVANS: Sim, pela Firgem, tampém fejo assim. Se Tom João Falstaff
cometeu alcuma ofensividade contra do senhor, eu, que ser do Icrexa
(Igreja) me oferece foluntária e mente para restapele-e-cer um
gompromisso, uma baz entra os tôs (dois).
REDUZIDO: O Conselho o julgará – é um baderneiro.
EVANS: Mas o Sacro Conzelho non xulga um paterneiro. O meto te
Teus non entarar no gorasson do paterneiro. O Conzelho, bresta atenzão,
está à zó gapacitato a xulcar o temor te Teus, non entente de paternas: é o
meu avisamento, de minha capeça.
REDUZIDO: Ah, por minha vida! Queria ter de novo a juventude por
um só instante, e minha espada resolveria tudo.
EVANS: Enton famos usar os amicos como espata: e os amicos-espa-ta
ressolfem o queston. Eu tenho aqui no capeça um estrataclara...
REDUZIDO: Estratagema.
EVANS: Xêma, clara. Ô! Eu sapia que era alcuma coisa da ôvo.
Estrataxema, onte entra Ana Paxem, que é a filha do Cafalheiro Jórge
Paxem, uma doncela pelíssima, uma lintíssima firxintate.
MAGRELA: A senhorita Ana Pajem? Ó Meu Deus, a que tem um
cabelo castanho e uma vozinha tímida, canto de passarinho, como convém à
mais pura das virgens?
EVANS: Essata-e-mente essa mesma bessoa, que nom ter no munto
inteira nenhuma outra iqual, mesmo que fôce procurar cem tias e cem anos.
O afô – o afô tela – quanto moreu (que Teus estexa presente na sua
ressureiçon) lhe deixou-lhe a ela sete cens libras de tinheiro e muito ouro e
tampém prata que ela poterá castar quanto atravessar a crassa (graça) dos
tez-e-sete anos. Aconselho a teixarem todas essas prigas e intrigas, esses
batatis-e-batatás, e tratar de opter um pélo (belo) cassamento entre a
senhorita Paxem e aqui nosso afilhato Apraão (Abraão) Magrela.
REDUZIDO: O avô deixou setecentas libras pra ela?
EVANS: Teixou. E o pai tiz que quanto ela casar ainta põe mais de sete-
cens nesse montão.
REDUZIDO: Conheço muito a mocinha em questão: é cheia de
virtudes.
EVANS: Sete-cens firtudes em lipras esterlinas, sem contar as firtudes
que o pai fai lhe teixar.
REDUZIDO: Bem, então vamos imediatamente ao encontro do
honesto Cavalheiro Jorge Pajem. Mas... Falstaff não estará lá?
EVANS: Eu xamais lhe tiria uma mentira. Tesprezo um mentiroso mais
to que um sujeito falso e tanto quanto tesprezo quem não diz a fertate
(verdade). O cafalheiro, esse Tom Falstaff, está lá. Mas eu só peço se
orientarem-se por o quem lhes teseja só o pem. Fou pater na porta te Mestre
Paxem. (Bate) Ó te casa! Teus pentica essa morata.
PAJEM: (De dentro) Quem é?
EVANS: Quem está aqui. Com a pentição te Teus, seu amico, o Xuiz
Retussido: E fem de quepra (quebra) o xóvem Apraão Macrela que tem
uma péla (bela) história pra contar se o senhor teixar ele começar, e oufir
até ele acapar.
PAJEM: (Entrando) Não imaginam o prazer enorme com que vejo os
meus respeitabilíssimos amigos. Aproveito a oportunidade, Mestre
Reduzido, para lhe agradecer a magnífica caça que me enviou.
REDUZIDO: Mestre Pajem, não sabe como me alegra ver o senhor.
Que o meu modesto presente faça bem ao seu generoso coração. Gostaria
que fosse caça melhor ou pelo menos abatida com mais habilidade. Como
vai sua estimadíssima esposa? Ah, não pode avaliar o quanto estimo a
ambos. O digo de todo coração. Repito: de todo coração.
PAJEM: Eu lhe agradeço, amigo.
REDUZIDO: Senhor, o agradecido aqui sou eu. Pelo sim e pelo não,
torno a lhe agradecer.
PAJEM: Estou muito contente de vê-lo, meu bom Magrela.
MAGRELA: Como vai o seu galgo branco, Dom Pajem? Ouvi dizer
que ele perdeu em Roseburgo.
PAJEM: O julgamento foi muito parcial, muito parcial.
MAGRELA: O senhor não quer dar o braço a torcer, a torcer.
REDUZIDO: (À parte) Cala a boca! Cala a boca! (Alto) É um cão
excelente.
PAJEM: Um senhor mastim, eu lhe garanto. Um cão e tanto.
REDUZIDO: Claro, senhor, um cachorrão; um belo belo cão. Que se
pode dizer mais de um cachorro? É bom e belo. Por falar nisso – Dom João
Falstaff está aí?
PAJEM: Sim, está lá dentro. Aliás, eu gostaria muito se pudesse ajudar
a desfazer o mal-entendido que há entre os senhores.
EVANS: Assim fala um pom cristão.
REDUZIDO: Ele me ofendeu profundamente, Mestre Pajem.
PAJEM: Ele reconhece que agiu mal.
REDUZIDO: Reconhecer não quer dizer consertar. Eu fui ofendido.
Ele reconhece. Isso basta? Mestre Pajem, eu lhe repito, Roberto Reduzido,
fidalgo e cavalheiro, foi ofendido, e se declara ofendidíssimo.
PAJEM: Aí vem Dom João. (Entram Falstaff, Bardolfo, Nunca, e
Pistola.)
FALSTAFF: Então, Senhor Reduzido, soube que vai se queixar de mim
ao rei?
REDUZIDO: Cavalheiro, o senhor espancou meus homens, matou
meus animais e arrombou minha porta.
FALSTAFF: Mas não violentei a filha do porteiro.
REDUZIDO: Que pretende! Que eu o condecore pelo que não fez?
Terá que responder por tudo.
FALSTAFF: Mas, com todo prazer! Fiz isso tudo. Pronto, está
respondido.
REDUZIDO: Vamos ver se terá essa desfaçatez diante do Conselho.
FALSTAFF: Conselho lhe dou eu – é melhor não falar mais no que
aconteceu. Todos riem do senhor.
EVANS: Pauca Verba, cafalheiro Falstaff, cuitato com as palafras.
FALSTAFF: Aqui que eu vou tomar cuidado com as palafras. Magrela,
tá bem, quebrei tua cabeça: você tem alguma coisa a alegar contra isso?
Ficou de mau humor?
MAGRELA: De mau humor e com um baita de um tumor. Pretendo
usar ambos na Justiça contra o senhor e sua cambada de patifes, Bardolfo,
Nunca e Pistola. Me arrastaram pra taverna, me embriagaram e limparam os
meus bolsos.
BARDOLFO: (Desembainhando a espada) Quer ser transformado em
manteiga, nata da sociedade?
MAGRELA: Não, não! Deixa pra lá. Não disse nada.
PISTOLA: Você disse meu nome, Mefistófoles? (Desembainha a
espada.)
MAGRELA: Seu nome, Senhor? Mas nem lhe fui apresentado.
NUNCA: (Estocando-o com a espada) Muito prazer. Meu nome é
Nunca. Agora e sempre, Nunca. Se quer me conhecer mais profundamente
(aperta a espada) basta repetir-se. Eis meu estilo.
MAGRELA: Onde está Simplicíssimus, meu criado? Onde é que se
meteu?
EVANS: Silêncio, por fafor! Famos esclarecer pem essa questão. Se
ententi pem, há três árpitros pressentes: primeiro, Mestre Paxem, honoráfel
Mestre Paxem, secunto, loco (logo) tepois, meu hospeteiro da Hospetaria da
Xarreteira, honoráfel hospeteiro. E ultimamente e finalmente, tem eu
mesmo, honoráfel eu mesmo.
PAJEM: Muito bem, então cabe a nós três escutar e julgar.
EVANS: Muito pem: potarei um ressumo no meu lifro de notas parra
tepois tiscutirmos a questão com a sapetoria de que formos gapazes.
FALSTAFF: Pistola.
PISTOLA: Sou todo ouvidos.
EVANS: Pela senhora mãe to Tiabo (Diabo)! Que maneira de falar-se:
“Sou toto oufidos!” Que afetação!
FALSTAFF: Pistola, você tirou a bolsa ou limpou os bolsos do senhor
Magrela?
MAGRELA: Juro pelos dez dedos destas luvas, como ele roubou. Se
não for verdade, de hoje em diante só entrarei em minha própria casa pela
entrada dos criados – suprema humilhação. Me roubou sete peças de seis
dinheiros e cinco efígies de Eduardo que me custaram dois shillings e dois
pences cada uma na loja de Philip Miller; juro por estas luvas que me
esquentam.
FALSTAFF: Verdade, Pistola?
PISTOLA: Ah, forasteiro de fora, montanhês da montanha! Dom João,
mestre e senhor deste lacaio, aceito o desafio desse monte de ossos. É mais
fácil pegar um mentiroso do que um coxo e esse mentiroso aí eu vou deixar
coxo das quatro patas. Boca de peixe, escória de lixo, tu mentes!
MAGRELA: Pelo calor das minhas luvas, então foi aquele ali!
NUNCA: Aquele ali, sou eu aqui? Brinca com fogo, amigo! Que deseja
de mim, conhecer meu estilo? Diz que fui eu outra vez e verá uma
demonstração inigualável – uma estocada no fígado tão veloz que a espada
sairá limpa como entrou. Dito e feito ou retira o dito e evita o feito?
MAGRELA: Pela pluma do meu chapéu, então foi aquele ali, do nariz
vermelho. É verdade que, bêbado como estava, eu não sabia o que fazia e o
que me faziam, mas jamais fiquei asno completo.
FALSTAFF: Foi você então, Nariz Vermelho?
BARDOLFO: Mas que, senhor, esse daí não sabe o que diz. Tinha
bebido tanto que perdeu até os cinco sentimentos...
EVANS: Cinco sentitos! Xesus, que icnorância!
BARDOLFO: E como estava mamado, lhe roubaram até o culote, pois
todos sabem que culote de bêbado não tem dono.
MAGRELA: Só não me ofendo porque o linguajar que falas é latim pra
mim. Mas, viva eu quanto viver, jamais tornarei a me embriagar a não ser
em companhia de gente honesta e temente a Deus. Aprendi que quem bebe
com velhacos amanhece molhado.
EVANS: Assim tizia Noé, quanto pepeu com o pichos tepois to Tilúfio.
FALSTAFF: Cavalheiros, acabaram de ouvir todas as acusações
peremptoriamente negadas. A coisa depende pois de vosso ouvido e vosso
juízo. (Entram Ana Pajem, com vinho; Madame Ford e Madame Pajem.)
PAJEM: Não aqui, minha filha, leva o vinho pra dentro; beberemos lá.
(Sai Ana Pajem.)
MAGRELA: Ó Céus, essa daí é Ana Pajem?!
PAJEM: Então, Madame Ford? Que foi?
FALSTAFF: Madame Ford, que prazer vê-la. Permita-me, permita-
me... (Beija-a.)
PAJEM: Mulher, dá boa acolhida aos gentis cavalheiros. Entrem,
amigos, temos à mesa um magnífico pastel de veado. E se ainda há, entre os
senhores, algum ressentimento, afogaremos no vinho o infeliz. (Saem todos,
exceto Reduzido, Magrela e Evans...)
MAGRELA: Ah, eu daria bem quarenta shillings pra ter aqui meu livro
de sonetos e canções. (Entra Simplicíssimus) Hei, Simplicíssimus, onde é
que você se meteu? Quer dizer que agora tenho que me servir sozinho? Por
acaso trouxe aí o meu livro de charadas?
SIMPLICÍSSIMUS: O Livro de Charadas, é? Mas o senhor não
emprestou ele pra Alice Fura-Bolo, na Festa de Todos-Os-Santos, pra ela
devolver no Dia-De-São-Nunca?
REDUZIDO: Vamos, sobrinho, vamos; estamos todos te esperando.
(Toma Magrela por um braço) E escuta aqui, te alegra um pouco, isto é,
sem exagero. O reverendo Evans, sabe? Falou em casamento, uma espécie
de proposta, em teu nome. Uma coisa vaga, é verdade, mas falou. De longe,
mas falou. Assim como quem não quer nada. Me entendes?
MAGRELA: Claro, sim, como não, meu tio? Sabe bem que minha
razão entende tudo que é razoável.
REDUZIDO: Tá, mas vê se me compreende.
MAGRELA: É o que eu estou tentando.
EVANS: (Tomando-lhe o outro braço) Ouvito, ouvito, meu xóvem
Magrela, apre o ouvito a que teu tio tiz; se quicér eu explico tepois a
explicaçôm.
MAGRELA: Pode deixar, farei tudo que o tio me ordenar. Afinal, ele é
Juiz de Paz em nossa terra e eu não represento nada, nem lá nem em parte
alguma.
EVANS: Mas a guestão não é êssa. Estamos falanto do zeu cassamento.
REDUZIDO: O ponto é esse, filho.
EVANS: É esse o ponto. Cassamento com a senhorita Paxem.
MAGRELA: Ué, é só isso? Mas, se é só isso, eu entendi tudo. E estou
disposto a casar com ela – quer dizer, em condições razoáveis.
EVANS: Mas você pote afeiçoar a moça? Tem da responter com sua
própria poca ou com seus próprios lápios; pois tem fários filósófos que
afirmam os lápios non serem mais que uma parte da poca. Insumamente o
que tesejamos saper é se focê poterá tar a ela o seu afeto, a sua afetação?
REDUZIDO: Querido sobrinho Abraão Magrela, vê se entende: você
pode amá-la?
MAGRELA: Espero que sim, tio, e estou disposto a fazer todo o
razoável. Amar não é razoável?
EVANS: Espera aí, por totos os santos de Teus e suas santíssimas
esposas, tem que falar com positivitate; se pote orientar em fafôr dela os
tesexos te seu coraçon.
REDUZIDO: Sobrinho meu, simplificando: com um bom dote, você
casa com ela?
MAGRELA: A pedido seu, tio, farei até muito mais – desde que
apresentadas as razões.
REDUZIDO: Olha aqui, gentil sobrinho, procura compreender: o que
eu faço, faço apenas pra teu bem e alegria. Você é ou não é capaz de amar
essa donzela?
MAGRELA: O senhor me pede? Se o senhor me pede o que é que eu
não faço? Inda que a princípio não haja grande amor ele certamente irá
diminuindo à medida que formos conhecendo um ao outro e houver entre
nós maior incompreensão. É de esperar que a intimidade aumente a aversão.
De modo que se o senhor diz “Casa com ela” eu faço isso; caso com ela.
Estou firmemente dissolvido e o afirmo de maneira dissoluta.
EVANS: Eis uma resposta cheia de tiscernimento; sem notar a palafra
“tissoluta” que non é forma atférpica (advérbica), o sentido xeral é muito
pom.
REDUZIDO: E parece também que as intenções de meu sobrinho...
bem, não pode haver melhores.
MAGRELA: Se não digo o que penso, que me enforquem.
REDUZIDO: Caluda! Aí vem a bela senhorita Ana. (Entra Ana Pajem)
Perdoe, senhorita Ana, mas vê-la é sentir em mim a angústia de não ser
mais jovem.
ANA: O jantar está na mesa; meu pai roga com insistência que vossas
senhorias me acompanhem.
REDUZIDO: Estou inteiramente às suas ordens, bela jovem.
EVANS: Teus sexa pentito. Fou me sentar à mesa para tar as craças.
(Saem Reduzido e Evans.)
ANA: Quer fazer o favor de entrar também, senhor?
MAGRELA: (Sorrindo bestamente) Não, muito obrigado, lhe digo
cordialmente, isto é, sem rancor; estou muito bem aqui.
ANA: Eu insisto, senhor, o jantar espera.
MAGRELA: Não tenho a mínima fome, lhe agradeço. Vai, rapaz, vai
servir a meu tio Reduzido. (Sai Simplicíssimus) Ele é meu criado, mas gosto
de emprestá-lo para servir meu tio. Meu tio é Juiz de Paz, sempre é
prudente a gente lhe prestar alguns serviços. Só tenho três homens e um
pajem, porque minha mãe teima em não morrer, mas assim que ela se for,
poderei deixar esta vida de fidalgo pobre.
ANA: Eu não posso entrar sem o senhor; meu pai não servirá o jantar
sem a sua presença.
MAGRELA: Juro que já estou de barriga cheia: mas lhe agradeço com
a mesma satisfação de um morto de fome.
ANA: (Perdendo a paciência) Eu rogo senhor, venha comigo.
MAGRELA: Prefiro andar um pouco, muito obrigado. Machuquei a
canela noutro dia, quando estava treinando esgrima com meu professor. A
aposta era uma rapariga da zona para quem acertasse as primeiras três
estocadas.
ANA: Como, senhor? Que diz? Não entendo!
MAGRELA: Ah, não entende de esgrima? Pois olhe que nem vi bem o
que aconteceu. Mal aparava um golpe contra a cabeça e já sentia a estocada
na canela. Mas porque os seus cães latem dessa maneira? Há ursos por
aqui?
ANA: É bem possível, senhor. Ouvi dizer.
MAGRELA: Adoro a luta de ursos, acho sensacional. Mas, aqui entre
nós, em público, ninguém se põe mais ferozmente contra ela. Aposto que se
a senhorita vir um urso solto, morre de medo, hein? Diz, diz.
ANA: Morro, está bem. Mas vamos entrar?
MAGRELA: Pois pra mim, urso, por mais feroz que seja, é como um
irmão. Sacker, conhece o urso Sacker, aquele gigante? Pois eu, mais de
vinte vezes já agarrei ele e passeei com ele na corrente. Mas as mulheres,
puxa, a senhorita precisava ver o medo delas, e a gritaria, os faniquitos,
enquanto eu passeava. Eu acho mesmo que nenhuma mulher gosta de urso;
são muito sanguinários. (Entra Pajem.)
PAJEM: Venha, gentil Abraão Magrela, venha conosco, por favor; só
falta você para o jantar.
MAGRELA: Não vou comer, não, Dom Pajem, muito obrigado.
PAJEM: Com oitenta diabos, eu não estou lhe dando escolha. É uma
ordem, vamos, vamos. (Abre a porta e se põe violentamente de lado, pra
deixá-lo passar.)
MAGRELA: Bem, já que é assim... Mas, o senhor na frente, por favor.
PAJEM: Entra logo!
MAGRELA: (Avança, mas logo pára) Senhorita Ana, pelo menos a
senhorita...
ANA: Oh, senhor, pelo amor de Deus.
MAGRELA: Ah, não, primeiro eu não entro. Não faltaria mais nada.
Não entro mesmo. Seria uma depreciação de sua pessoa.
ANA: Olha aqui, meu senhor, eu...
MAGRELA: Bem, nesse caso, quem está se ofendendo é você mesma.
Prefiro ser mal-educado do que chato. E já percebi que, se não entro, sou.
(Saem.)
Cena II

A mesma.(Entram Dom Hugo Evans e Simplicíssimus.)


EVANS: Olha, Simplicíssimus, a goiza é fácil. Seque em frente e
pergunta bêla casa to Toutor Caio. Lá focê procura uma Senhora chamata
Lefa-e-Traz.
SIMPLICÍSSIMUS: Madame Leva-e-Traz.
EVANS: Pois é. Ela fife com o dr. Caio, é sua cofernanta, sua
cocinheira, sua lafateira, arrumadeira, enxucateira, passateira...
SIMPLICÍSSIMUS: E ainda Leva-e-Traz?
EVANS: Pois é. Mas espera. Peca esta carta e entreca a ela. Essa mulher
tem muita influença sôpre a senhorita Ana Paxem. E a carta é petinto a ela
(com alcum tinheiro, não é, Simplicíssimus?) para protexer o téssexo
(desejo) do teu amo, Apraão Macrela, se casar com a péla Aninha. Te
orteno e te peço – fai tepressa. Eu fou terminar o meu xantar. Ainta falta
(conta nos dedos) a torta, o finho pranco, a fruta e o quexo. Ah, quanta coza
poa nessa Criatzon te Teus. (Saem.)
Cena III

Um quarto na Estalagem da Jarreteira.(Entram Falstaff, Hospedeiro,


Bardolfo, Nunca, Pistola e Robin.)
FALSTAFF: (Levantando o caneco) Meu Hospedeiro da Jarreteira...
HOSPEDEIRO: Que diz o amigo dos amigos, bandalho dos
bandalhos? Ninguém fala com mais sabedoria e mais filosofia.
FALSTAFF: Em verdade, meu bom anfitrião, estou precisando
despedir alguns dos meus homens.
HOSPEDEIRO: Pois despede, Rei dos Hércules. Manda via!
Despacha! Põe pra fora, a trote uns. Outros a galope.
FALSTAFF: Aqui a coisa vai a mais de dez libras por semana...
HOSPEDEIRO: Mas tu és um Imperador. Que são dez libras para um
Cesar, um Viking, um Tzar? Que são dez moedas dessas para um Faraó?
Fala meu Vizir, manda e desmanda, corta minha cabeça, mandarim! Eu fico
com Bardolfo. Dar-lhe-ei o encargo de embarrilhar o vinho ou envinhar os
barris. Te convém, meu Argonauta?
FALSTAFF: Convenientíssimo, caro Hospedeiro.
HOSPEDEIRO: Pois então, do dito ao feito. Que ele me siga. (A
Bardolfo) Vais aprender a servir o vinho sem borra e a cerveja com bastante
espuma. Sou um homem de muitas palavras cada uma valendo por todas e
todas valendo por nenhuma. Me segue. (Sai.)
FALSTAFF: Vai com ele, Bardolfo. Taverneiro é uma bela profissão.
Assim como de um capote velho se faz um casaco novo, de um criado
cansado bem pode nascer um taverneiro fresco. Vai com ele e adieu mon
vieux.
BARDOLFO: Mas é a vida que eu pedi a Deus. Farei fortuna.
PISTOLA: Miserável desertor húngaro. Pensa que vai sair dinheiro
pela bica?
BARDOLFO: Do bolso dos fregueses, flamengo miserável! (Sai.)
NUNCA: Esse foi gerado num porre e por isso não vai lá das pernas.
FALSTAFF: Estou contente de me livrar desse pote de cerveja azeda.
Só tem uma utilidade; quando arrota, os insetos em volta morrem todos.
Mas rouba demais e sem prudência. A velhice lhe aumentou a cupidez e
diminuiu o tato. É como um cantor ruim – sempre fora de tempo e de
compasso.
NUNCA: E todos sabem que para o roubo só há um estilo – roubar no
tempo de uma semi-colcheia. Meter a mão no bolso quando a nota entra e
retirar a mão antes que a nota saia.
PISTOLA: Mas isso não é roubar: é transferir.
FALSTAFF: O que interessa, senhores, é que estou completamente
liso.
PISTOLA: Então é melhor deixar de beber um pouco para não esticar
mais a barriga.
FALSTAFF: Tem que haver um remédio. Meu talento tem que
encontrar um expediente.
PISTOLA: E que vai fazer o jovem velho belo hediondo?
FALSTAFF: Vocês conhecem um cavalheiro Ford, aqui de Windsor?
PISTOLA: Conheço o personagem. Tem boa massa. (Gesto de
dinheiro.)
FALSTAFF: Pois atenção, garotos, que agora vou tomar minhas
medidas.
PISTOLA: (Medindo) Barriga, quatro metros. Papada, doze quilos.
FALSTAFF: Chega de gracinhas, Pistola. Na verdade tenho quatro
metros de cintura e não me ressinto de falarem de minha cinta ou de meu
cinto; mas, agora, não consinto. Pois sinto que no momento o mais
importante é o meu sentimento sintomático: pretendo conquistar a mulher
de Ford. Percebi que, quando me vê, ela flue e floi, sabem? e fica mole, e
convida com os olhos e fala sem dizer e diz o que não quer; em suma, é
toda convidante. Do seu comportamento presente dirigirei o seu
comportamento futuro, se me entendem. Pois todas as suas expressões
analisadas, resumidas e sintetizadas, dizem apenas em língua de adultério:
“Eu quero dar pra João Falstaff”.
PISTOLA: É. Ele a estudou bem e a traduziu melhor. Da língua-mãe
para a vulgaridade.
NUNCA: O problema agora é conservar o estilo. Traduz o resto, patrão.
FALSTAFF: O mais importante de tudo é que – segundo dizem – ela
controla a bolsa do marido. E o marido tem uma legião de príncipes e anjos
que o seguem noite e dia.
NUNCA: Não segui bem o estilo.
FALSTAFF: Os anjos e príncipes que figuram na cara e na coroa das
libras esterlinas – gostou da imagem?
NUNCA: Um estilo de ouro.
PISTOLA: E o senhor, Patrão, com que legiões combate essas?
FALSTAFF: Com a legião dos demônios da concupiscência que não
têm cara e muito menos coroa. Vai bem meu estilo, Nunca?
NUNCA: O estilo se eleva. Resta ver apenas se concorda com a ação.
FALSTAFF: Taqui uma carta que escrevi pra ela; e aqui outra carta que
escrevi para a mulher do Pajem, porque essa jovem senhora também me
tem olhado com olhares judiciosos, isto é, de conhecedora, examinando
sobretudo as partes flutuantes e ambivalentes do meu vasto tronco. Se meu
olhar a surpreende, o olhar dela baixa para os meus pés, aquecendo-me as
plantas com o calor de seus raios. Mas quando eu finjo que não vejo, o seu
olhar recai, imediatamente, abaixo do meu ventre e acima de meus joelhos.
PISTOLA: Como um raio de sol dando vida ao monturo.
NUNCA: Gostei do estilo eclesiástico.
FALSTAFF: O fato é que ela percorre os meus exteriores com tão
despudorada gula que eu sinto meus apetites se erguerem ao nível da
imprudência. Vou procurar reunir o seu útil ao meu agradável. Aqui está
uma carta para ela; dizem que ela, também, controla a bolsa do marido.
Estou certo de que descobri duas Guianas, cheias de ouro e liberalidades.
Explorarei as duas, de ambos os lados, minhas Índias ocidentais, orientais e
horizontais. Vai, entrega esta carta a Madame Pajem. E esta aqui, você a
entrega a Madame Ford. Chegou nossa hora, meninos, chegou nossa hora.
Vamos enriquecer.
PISTOLA: Quer dizer que eu, que nunca deixei espada embainhada a
menor afronta, vou ser agora um moço de recados abjetos? Que o demônio
me despreze se eu fizer isso.
NUNCA: Você me conhece bem, Dom Falstaff: posso descer um pouco,
mas jamais chegarei a porcarias. Guarda sua carta que eu pretendo guardar
o meu estilo.
FALSTAFF: (A Robin) Vem cá, rapaz, leva estas cartas a seu destino.
Navega em minhas águas até às praias douradas. Vocês, patifes, fora!
Desapareçam da minha frente, derretam-se como geada, que eu não
pretendo mais vê-los nem lhes sentir o cheiro. Hienas, para outro covil!
Ousam censurar Falstaff, o único capaz de se integrar ao estilo do seu
tempo. Não preciso de vocês, canalhas. A mim este meu pajem basta. Vai,
carta, de pajem à Pajem, pra minha fortuna. (Saem
Falstaff e Robin.)
PISTOLA: Que os abutres te roam as entranhas, desgraçado! Vai com
teus dados viciados roubando ricos e pobres. As moedas hão de tilintar no
meu bolso quando eu passar por ti, morto de fome, turco nojento.
NUNCA: Minha cabeça estala projetando uma vingança em belo estilo.
PISTOLA: Vais te vingar?
NUNCA: Tão certo quanto haver estrela e firmamento.
PISTOLA: Que pretendes usar – o aço ou o espírito?
NUNCA: Um estilo misto. Pretendo discutir a história com o próprio
Dom Pajem e colocar a serviço dele, se for o caso, minha espada.
PISTOLA: E eu irei a Dom Ford e lhe contarei como Falstaff, vassalo
abjeto, quer lhe comer a mulher, roubar seu ouro e desonrar seu teto.
NUNCA: Não deixarei que meu ânimo se esfrie. Farei penetrar no
sangue de Pajem o veneno amarelo do ciúme. Falstaff verá que comigo não
se brinca; conhecerá o meu melhor estilo.
PISTOLA: És o Deus Marte do descontentamento. Vai, que eu te
secundo. Marcha! (Saem.)
Cena IV

Um quarto na casa do Doutor Caio.(Entram Madame Leva-e-Traz e


Simplicíssimus.)
LEVA-E-TRAZ: Hei, João Passarinho! (Entra Passarinho) Por favor,
vai até à janela e avisa quando vier chegando o meu patrão, o Dr. Caio.
Porque se ele chegar e encontrar em casa alguém estranho põe em duras
provas a paciência de Deus e o inglês do rei.
PASSARINHO: Eu vigio.
LEVA-E-TRAZ: Ótimo. Esta noite, antes que a lareira apague
beberemos juntos um belo copo de vinho quente. (Sai Passarinho) Eis um
rapaz gentil, honesto e diligente – um criado como já não se encontra mais
hoje em dia. Só tem um defeito – reza o tempo todo. Mas quem não tem
também as suas defeituosidades – deixa ele em paz. Teu nome é Simples ou
Simplicíssimo?
SIMPLICÍSSIMUS: Simplicíssimus, senhora. À falta de melhor,
naturalmente. Nem todos podem se chamar Henrique Oitavo.
LEVA-E-TRAZ: Seu patrão é o senhor Magrela?
SIMPLICÍSSIMUS: Precisamente sim.
LEVA-E-TRAZ: É um que usa uma barbona redonda em forma de
bacia de barbeiro?
SIMPLICÍSSIMUS: Precisamente não. Tem uma carinha de cachorro
com uma barbicha de macaco, barba assim, amarelada, bem cor de Caim
depois de matar o irmão.
LEVA-E-TRAZ: Um homem bem tranqüilo, é isso mesmo?
SIMPLICÍSSIMUS: Precisamente talvez, ou melhor precisamente nem
sempre. Porque, quando é necessário, usa as munhecas com mais decisão
do que outro qualquer. Não tem muito tempo arrebentou com um guarda-
florestal.
LEVA-E-TRAZ: Ah, agora me lembro. Não é um que anda assim, de
cabeça levantada, todo empertigado?
SIMPLICÍSSIMUS: Ele mesmo, sem dúvida alguma, caso não seja
outro.
LEVA-E-TRAZ: Bem, o céu ainda podia mandar coisa pior pra Ana
Pajem. Diga ao reverendo Evans que farei tudo que puder pelo teu patrão.
Ana é uma pequena excelente e eu desejo de todo... (Entra Passarinho.)
PASSARINHO: Sai depressa. O patrão vem aí.
LEVA-E-TRAZ: Ele vai nos matar a todos. Sai. (Sai Passarinho) Entra
aqui meu rapaz; aqui neste armário: ele não vai demorar muito. (Fecha
Simplicíssimus no armário) Hei, João Passarinho! Onde é que você se
meteu, Passarinho? João! João! Olha, rapaz, vai procurar teu patrão, ver se
lhe aconteceu alguma coisa. Ele ainda não voltou pra casa. (Canta)
A gagueira do filho da moleira
a besteira do filho da copeira... (Entra o Doutor Caio.)
CAIO: (Deve ter sempre sotaque francês.) Que cantação ser esta? Não
costo nata dessas expançon. Por favor fechar a boca e vai me pegar no meu
armárrio un boitier vert – sape, non? Uma caixa verte – comprrreeende do
meu falarr? U-m-a ca-í-xá vertê.
LEVA-E-TRAZ: Ah, trago logo. (À parte) Ainda bem que não resolveu
ir ele mesmo. Se encontrar lá dentro o rapazinho sofriam a minha reputação
e as minhas costas.
CAIO: (Limpando a testa) Fe, fe, fe,fe! Ma foi, il fait fort chaud. Je
m'en vais à la cour, – la grande affaire.
LEVA-E-TRAZ: É esta aqui, doutor?
CAIO: Oui, mettez le au mon bolsô, dépechez-vous, depressá. Onde
anda o patife do Passarinho?
LEVA-E-TRAZ: João Passarinho! Vem cá, João! (Entra Passarinho.)
PASSARINHO: Pronto, patrão.
CAIO: Olha aqui, seu João Urubu, pega a tua espada me segue à la
cour, ao tribunal. Depressa, nas meus calcanhares.
PASSARINHO: Pronto, senhor, a espada já está aqui e eu já estou lá.
CAIO: Acapei ficando atrazado. Ih, meu Deus. Qu'ai-je oublié? Tenho
que apanhar minhas ervas no armário...
LEVA-E-TRAZ: Eu apanho. Eu apanho.
CAIO: Non, deixa. É muito simples. Já estou aqui. Apro o armário e
apanho – simplicíssimus!
SIMPLICÍSSIMUS: (Aparecendo) Me chamou?
CAIO: O diable! O diable! Qué que tem no o meu armário? Vilon!
Ladrron! (Puxa Simplicíssimus pra fora) Passarinho, minha espada.
LEVA-E-TRAZ: Calma, doutor! Meu bom patrão, muita calma.
CAIO: Querr me disser por que eu devo ter a calma?
LEVA-E-TRAZ: Esse rapaz é uma pessoa honesta.
CAIO: Ah, ah, ah! Ué, que é que faz uma a pessoa honesta no meu
armarrio? As pessoas honestos que eu conhece ficam sempre fora dos
armarrios.
LEVA-E-TRAZ: Oh, por favor, eu lhe peço, senhor, não fique tão
fleumático. O rapaz aí veio apenas me trazer uma mensagem secreta do
reverendo Evans.
CAIO: Que mensagem?
SIMPLICÍSSIMUS: Precisamente, doutor, precisamente para pedir a
ela que...
LEVA-E-TRAZ: Cala a boca, linguarudo.
CAIO: Linguaruda, você. Deixa ele falar.
SIMPLICÍSSIMUS: Ele mandou pedir a esta honesta senhora, sua
prendada governante, para que ela aqui e ali, com jeito, sabe?, hoje e
amanhã, quando puder, né? em suma, sempre que estiver com a senhorita
Ana Pajem meta na conversa uma palavrinha a favor de meu amo e senhor,
que deseja casar com ela.
LEVA-E-TRAZ: O senhor está vendo? Foi isso só. Mas eu não prometi
que ia fazer nada, nem pretendo. Não meto a mão em cumbuca.
CAIO: Quer dizer que o Reverendo te mandou: Passarinho, depressa,
donnez-moi pena e papel... (A Simplicíssimus) Você aí esperra um pouco.
(Escreve.)
LEVA-E-TRAZ: (À parte) Ainda bem que está de bom humor. Você
precisa ver como grita quando tem um ataque de coleira. Mas, apesar de
tudo, meu amigo, eu vou fazer o que puder pelo teu patrão: é claro que tudo
vai depender do comportamento do meu; porque, você sabe, o doutor
francês tenho que considerar meu patrão porque sou eu que faço tudo pra
ele – lavo, passo, varro, limpo, arrumo, cozinho, fermento a cerveja,
preparo a massa do pão, sirvo a comida, preparo o banho e outras cositas
más, outras cositas...
SIMPLICÍSSIMUS: Puxa, mas é coisa demais pruma branca só.
LEVA-E-TRAZ: Ah, você acha? Pois é – tenho que dormir de
madrugada e levantar com o galo. Mas isso são conversas – o que tenho de
importante a te dizer te digo na outra orelha (vira-o): meu patrão também
está apaixonado pela senhorita Pajem. E o pior é que eu conheço muito bem
onde anda o coração de Aninha – e não é lá nem cá.
CAIO: Ôlha aqui, ô patifinho – entregar esto carta a Dom Hugo. Vai
sabendo; é uma desafiação. Quero ele se encontre comigo lá na parque, vou
lhe cortar a cabeça em baixo de uma árvore frondosa. Vou lhe ensinar à
besta desse padre a não se meter onde não estar chamado. Pode ir. Vai. O ar
daqui não é muito bom pro teu saúde. Vou cortar dois bagos desse hipócrita,
que Deus me ajude no ato. E só não os atiro aos cães pros cachorros não
morrerem envenenados. (Sai Simplicíssimus.)
LEVA-E-TRAZ: Mas, coitado, o padre quer apenas ajudar um amigo.
CAIO: O quê? Como? Você não me dizeu que Ana Pajem vai ficar
comigo? Deixa estar, o padre eu mato ele, mesmo o demónio o venha
defender. Já indiquei como Juiz-de-armas, o hospedeiro da Jarreteira. A não
ser que me matem, Ana Pajem tem de o ser minha mulher.
LEVA-E-TRAZ: Patrão, repito que a donzela o ama e que tudo, no fim,
acaba a seu favor. Mas não se pode evitar que a gente fale, diga coisas...
(Caio puxa-lhe uma orelha) Ah, não, isso é demais!
CAIO: Passarinho venez ao tribunal comigo. (A Leva-e-Traz) Te juro
que se Ana Pajem não ser minha te a botarei daqui pra fora a ponta-e-pés.
Colado nas meus calcanhares, Passarinho, vamos. (Saem Caio e
Passarinho.)
LEVA-E-TRAZ: Ah, ele se dana se não tem a Ana. Mas bem se
engana, pois a fulana não lhe tem gana nem é leviana. Em Ana eu sou
veterana, e a influencio na vida mundana como na profana.
FENTON: (De fora) Tem alguém aí?
LEVA-E-TRAZ: Quem é? Entra, por favor. (Entra Fenton.)
FENTON: Como é que é, minha boa mulher? Como vai você?
LEVA-E-TRAZ: Sempre bem cada vez que o senhor resolve me honrar
com essa pergunta.
FENTON: Novidades? Como está aquela jovem maravilhosa?
LEVA-E-TRAZ: Maravilhosa, senhor, não há outra palavra.
Maravilhosa e sincera, sincera e boa: e além disso muito amiga sua, digo de
passagem. E de passagem também aproveito para dar graças a Deus por
isso.
FENTON: Você acha que tenho mesmo alguma chance de conseguir
alguma coisa? Não é tempo perdido?
LEVA-E-TRAZ: Bem, senhor, quem pode afirmar que sim, que não?
Tudo está na vontade do lá de cima. Mas quanto a mim, senhor Fenton,
ponho a mão sobre a Bíblia pelos sentimentos dela: Ana o ama. Sou capaz
de detestar isso diante de um Juiz. Espera aí – o senhor não tem uma
verruga em cima do olho esquerdo?
FENTON: Sim, tenho sim. Por quê?
LEVA-E-TRAZ: Nada, nada, uma história muito comprida. Olha, não
existe outra Ana como essa Aninha. Nunca na vida comeu o pão uma
donzela tão honrada. Sabe, falamos mais de uma hora nessa verruguinha.
Ah, eu só rio mesmo na companhia dessa filha. Só que, coitada, de vez em
quando tem crises de melão-com-linha e mistrissismo. Mas nunca a seu
respeito – ah, vai, pode ir.
FENTON: Vou, preciso vê-la hoje. Toma – dinheiro bom. Que tua voz
só fale em meu favor. Se por acaso a encontrar antes de mim, me
recomenda.
LEVA-E-TRAZ: Com a maior boa vontade. E na próxima vez em que
eu encontrar o senhor, lhe direi mais detalhes a respeito da conversa da
verruga. E de outras conversinhas mais, só de nós duas, a respeito de outros
detalhes verrugosos de Vossa Senhoria. (Fenton ri) E lhe direi também tudo
que fazem os outros pretendentes.
FENTON: Por enquanto, adeus. Estou com muita pressa.
LEVA-E-TRAZ: Adeus, meu senhor. (Sai Fenton) Aí está um belo
cavalheiro! Mas Ana não o ama. Conheço o pensamento de Ana, como
conheço os dias da semana. Que diabo, me esqueci de alguma coisa. Que
foi que eu me esqueci? Ora, se eu soubesse, não tinha esquecido. (Sai)
ATO II
Cena I

Em frente à casa de Pajem. (Entra Madame Pajem com uma carta.)


M. PAJEM: Como? Escapei das melosas cartas de amor na primavera
de minha beleza e agora, já meio bagaço, é que elas vêm me atormentar?
Deixa ver. (Lê) “Não me pergunte a razão porque a amo. Pois embora,
algumas vezes, o amor procure a razão para curar-se, jamais a procura como
confidente. Você não é mais jovem, nem eu também: mas entre nós, ai, que
simpatia! Pois somos ambos juvenilmente alegres, ah, ah, ah, ah! E ambos,
aqui entre nós, somos malucos por um trago. Poderia haver maiores
motivos de amizade? Não há; esses, portanto, bastam. Que lhe baste,
querida madame Pajem, o afeto de um soldado porque eu, soldado, a amo.
Não vou dizer que imploro o seu carinho porque implorar é ação negada a
um militar. Prefiro o imperativo: me ame! E acrescento:
De puro amor
Por ti eu luto
Seja onde for
Na luz do dia,
Tão suntuária
Na luz da noite,
Sempre precária
Ou em qualquer luz
Intermediária.
Perdoa, amada,
que eu desabafe
e logo abaixo
me autografe;
João Falstaff.”
Um verdadeiro Herodes da Judéia! Ó, mundo nojento. Um sujeito já
todo encarquilhado, vem pra cima de mim bancando o galleto ao primo
canto. Gostaria de saber que foi que eu fiz, que palavra pronunciei junto a
esse bêbado que deu a ele a ousadia de me tratar assim. Que diabo, ao todo,
nos encontramos só três vezes. Deus é testemunha de que fui mais
comedida do que é meu costume. Deviam fazer uma lei castrando os
gordos. Mas isso não fica assim. De alguma maneira hei de me vingar. Hei
de me vingar tão certo quanto aquela pança estar cheia de lombrigas podres.
(Entra Madame Ford.)
M. FORD: Comadre Pajem, sabe que eu ia para sua casa agora mesmo?
M. PAJEM: Muito pelo contrário.
M. FORD: Como, não acredita?
M. PAJEM: Quero dizer, eu é que ia na sua. Está sentindo alguma
coisa, Comadre?
M. FORD: Sei lá. Olhe, Comadre Pajem, preciso muito do seu
conselho.
M. PAJEM: Que foi que aconteceu, mulher?
M. FORD: Ah, querida amiga, se não fosse um escrúpulo ridículo eu
poderia ter uma honra com que jamais sonhei.
M. PAJEM: Pois então esquece o escrúpulo e goza a honra.
Dispensado o escrúpulo, qual é a honra?
M. FORD: Bastaria eu conceder um minuto ao inferno para entrar na
fidalguia.
M. PAJEM: Como? Você brinca? A cavalheira Ford? Ou Lady Alice?
Você montaria em alguém ou alguém em você?
M. FORD: Mas, quê? Estamos gastando vela à luz do dia. Toma: lê, lê.
Vai entender como eu seria agraciada. Ah, hei de detestar os homens gordos
a vida inteira: enquanto enxergar o suficiente pra distinguir alguém de
alguém. E o Bonitinho falando mal de quem pragueja. E o Engraçadinho
dizendo bem das mulheres cheias de recato. E o Santinho reprovando o
menor sinal de má conduta. E eu acreditando nas palavras dele. Mas elas se
ajustavam tanto ao que fazia quanto o demônio se ajusta à castidade. Me
diz, que tempestade atirou nas águas de Windsor, essa baleia com tonelada
de azeite na barriga? Eu tenho que me vingar, comadre Pajem. E acho que a
melhor maneira é alimentar-lhe as esperanças até que o maldito fogo da
luxúria o frite nas suas próprias banhas derretidas. Já tinha lido antes uma
desfaçatez igual a essa?
PAJEM: (Puxa da carta, compara) Não só igual: até com a mesma
letra. São duas irmãs gêmeas, a tua carta e a minha. Trocou só os nomes.
Numa, Pajem, noutra, Ford. Portanto, te consola. Não és a única com uma
reputação de dadivosa. Mas como acho que a tua carta chegou primeiro,
sugiro que aceites a herança que ela te promete. Eu não pretendo reclamar a
minha. O sacripantas deve ter, pelo menos, mil cartas iguais, com apenas o
espaço em branco para o nome. E vai ver, as nossas já são da segunda
edição. Olha, eu preferia ser uma montanha violentada por uma avalanche,
do que ceder um afago a esse barril de graxa. Homens! Homens! É mais
fácil descobrir sensualidade num molho de alfaces do que castidade no mais
santo homem.
M. FORD: É mesmo. São exatamente iguais; a mesma letra, as mesmas
palavras. Mas, por quem nos toma, esse patife?
M. PAJEM: Olha, realmente não sei. Quase começo a duvidar de
minha própria honestidade. Começo a procurar em mim alguma coisa que
não sei; começo a me examinar como a uma pessoa que não conheço.
Porque, se ele não tivesse notado em mim alguma inclinação que eu própria
ignoro, é evidente que não teria me abordado com essa incrível audácia.
M. FORD: Você falou abordado? Pois olha, eu lhe garanto que na
minha chalupa esse monstro não trepa.
M. PAJEM: Nem na minha. Não deixarei nem mesmo que meta a
cabecinha na escotilha. Está enganado se pensa que vai navegar nas minhas
águas. Mas vamos nos vingar. Vamos marcar um encontro com ele.
Fingimos que estamos encantadas com a corte que nos faz e vamos arruiná-
lo até ele ser obrigado a vender os cavalos ao Hospedeiro da Jarreteira.
M. FORD: Perfeito, ajudarei você em qualquer vilania contra ele, desde
que não se confunda tudo e nossa reputação acabe prejudicada. Você já
imaginou, se meu marido soubesse desta carta? Isso alimentaria o ciúme
dele por toda a eternidade. E para alimentar o ciúme dele prefiro usar carne
mais jovem.
M. PAJEM: Bastou falar nele que ele apareceu. E vem com meu
marido. Felizmente o meu está tão longe de ter ciúmes quanto eu de lhe dar
motivos – ou seja, uma distância incomensurável.
M. FORD: Você é que é feliz.
M. PAJEM: Vamos discutir um pouco o que podemos fazer contra o
gorducho. Vem cá. (Saem. Entram Ford, Pistola, Pajem e Nunca.)
FORD: Tenho a esperança de que tudo seja falso.
PISTOLA: A esperança é um cachorro vira-lata. Dom João corteja sua
mulher.
FORD: Mas como, senhor, minha mulher não é mais menina.
PISTOLA: Tentar seduzir pobres e ricas, humildes e fidalgas, jovens ou
velhas, pra ele valem tanto umas ou outras, é um apreciador de um bom
entulho. Em guarda, Ford.
FORD: Que coisa estranha – amar minha mulher! Nem eu!
PISTOLA: E com que fúria. Toma cuidado ou acabarás como Ateon
quando Melampo conheceu-lhe a esposa. Não acreditou e acabou um... oh,
que palavra horrenda!
FORD: Que palavra, senhor?
PISTOLA: A única palavra com dois chifres – corno. Adeus. Muita
atenção e olho aberto. É de noite que os larápios agem. Muito cuidado: o
verão começa. Os cucos saem dos ninhos e começam a cantar. Vambora,
soldado Nunca. Pode acreditar nele, Dom Pajem: Nunca sabe muito bem
aquilo que diz. (Sai)
FORD: (À parte) Ah, tenho que ser paciente: descobrir a verdade.
NUNCA: (Para Pajem) Pois acredite mesmo. A mentira não é o meu
estilo. O meu estilo é muito outro; estilo, aliás, que ele tentou violentar de
maneira grosseira e ofensiva. Imagine, eu, entregar uma carta como aquela
à sua mulher: olhe pra mim – é meu estilo? Tenho uma espada que sabe
muito bem me socorrer quando é preciso. Preste atenção, pois não vou ser
demasiado longo nem excessivamente breve: ele ama sua mulher. Meu
nome e posto ou posto e nome: soldado Nunca. Cada vez que falo, uma
verdade é dita. Meu nome é Nunca e Falstaff deseja sua mulher. Adeus. Se
lhe aviso é porque adoro pão de forno, mas jamais comeria o pão de um
corno: e perdão por meu estilo. Adeus. (Sai)
PAJEM: Eis um estilista que escreve torto por linhas tortas. Alguma
coisa deve querer mas não o que vai obter. Alguma coisa quer que eu faça
mas não é o que eu vou fazer.
FORD: Tenho que vigiar esse vil Falstaff.
PAJEM: Estilo. Estilo. Estilo. Nunca vi um patife mais afetado em toda
a minha vida.
FORD: Ah, se eu o apanho.
PAJEM: Não darei o menor crédito a tal lacraia, apesar do padre me
dizer que é um homem de bem.
FORD: Ele me pareceu um rapaz profundamente sério. Olha aí!
(Entram Madame Pajem e Madame Ford.)
PAJEM: É você, Meg?
M. PAJEM: Onde é que você vai, Jorge? Escuta aqui... (Falam à
parte.)
M. FORD: Oh, Franco, querido, que bom te encontrar. Você está bem?
Que cara macambúzia!
FORD: Eu, macambúzio? Que macambúzio! Vai pra casa, vai. (Volta-
lhe as costas.)
M. FORD: Ei, que é que deu nele? Tem alguma coisa na cabeça! Vem
comigo, Comadre Pajem?
M. PAJEM: Um minuto. Você vem jantar em casa, Jorge? (À Madame
Ford) Mas olha só quem vem lá. A que vai ser nossa embaixatriz junto ao
cavalheiro da pança imprudente.
M. FORD: (À parte para Pajem) Engraçado, eu também estava
pensando nela. É exatamente a pessoa que nos convém. (Entra Madame
Leva-e-Traz.)
M. PAJEM: Você veio ver minha filha Ana?
LEVA-E-TRAZ: Precisamente; como vai a minha querida Aninha?
M. PAJEM: Vem conosco e fala com ela. Aliás, nós também queremos
muito conversar contigo. (Saem Madame Pajem, Madame Ford e Leva-e-
Traz.)
PAJEM: E então, meu caro Ford?
FORD: Você percebeu a audácia daquele patife flamengo? Não sei
como me contive.
PAJEM: Percebi; mas o patife que falou comigo não era menos
audacioso do que o teu.
FORD: Você acha que eles disseram a verdade?
PAJEM: Acho que deviam ser enforcados, os dois velhacos. O
cavalheiro Falstaff não é capaz de uma coisa dessas. Esses daí foram
despedidos do emprego e resolveram se vingar inventando essa história
sinistra sobre nossas mulheres. Canalhas refinados, além de desempregados.
FORD: Ah, eram homens de Falstaff?
PAJEM: Você não sabia?
FORD: Isso pra mim não muda a situação. Falstaff onde está – na
Hospedaria da Jarreteira?
PAJEM: Lá, sim. Olha, Ford, quero te dizer uma coisa. Se ele pretende
mesmo cortejar minha mulher não serei eu quem vai se meter no meio. E
que caia sobre a minha cabeça o que ele conseguir dela; acho que, no
máximo, vai receber uma meia dúzia de ofensas de envergonhar um bêbado
e uma dúzia de palavrões de ruborizar um negro.
FORD: Vê bem: não é que eu duvide de minha mulher. Mas me acho
abjeto deixando as coisas assim, sem me mexer. Além do que, só se deve
confiar... desconfiando. Não quero arriscar nada.
PAJEM: Mas olha ali o nosso Hospedeiro da Jarreteira. Pra estar assim
alegre, das duas, uma; ou tem a cabeça alterada pelo vinho ou a bolsa
estufada de dinheiro. (Entra o hospedeiro) Olá, como vai, Hospedeiro?
HOSPEDEIRO: Olá, amigo salafrário. Perdão, o senhor é um fidalgo.
(Chama) Cavalheiro-juiz, juiz-cavalheiro. (Entra Reduzido.)
REDUZIDO: Estou chegando, Hospedeiro meu, estou chegando. Vinte
vezes bom dia, Dom Pajem. Dom Pajem, o senhor não quer vir conosco?
Eu lhe garanto que vai ser um espetáculo de morrer de rir.
HOSPEDEIRO: Conta pra ele, justíssimo cavalheiro, explica a ele,
amigo salafrário!
REDUZIDO: Olha, é um duelo entre Dom Hugo, fidalgo reverendo do
país de Gales, e Caio, fidalgo médico francês.
FORD: Meu bom Hospedeiro da Jarreteira, posso lhe dar uma
palavrinha?
HOSPEDEIRO: Como não, como não, amigo salafrário? (Falam à
parte.)
REDUZIDO: (A Pajem) Vem conosco assistir. O Hospedeiro foi
encarregado de arbitrar as condições do duelo. Estou quase certo de que
indicou um local diferente para cada um. E aliás fez bem, porque Dom
Hugo não é de brincadeira. O Hospedeiro e eu vamos... (Os dois vão para o
lado, enquanto o Hospedeiro e Ford passam ao primeiro plano.)
HOSPEDEIRO: (A Ford) Mas o senhor me garante que não vai propor
nenhuma ação judicial contra o fidalgo Falstaff?
FORD: Mas, nunca! Trata-se apenas de uma brincadeira. Lhe dou um
barril de vinho espanhol se me apresentar a ele dizendo que o meu nome é
Fontes.
HOSPEDEIRO: Aperta aqui, salafrário; terás ingresso, egresso e até
regresso. Eu falei bem? De agora em diante teu nome será Fontes. Você vai
gostar dele, é um camaradão. Vamos andando, beduínos?
REDUZIDO: Eu vou contigo, bom estalajadeiro.
PAJEM: Ouvi dizer que o francês é um espadachim e tanto.
REDUZIDO: Não exageremos. Nos meus tempos garanto que eu era
um pouquinho melhor. Hoje em dia vocês lutam de longe, um distante do
outro, bem seguros, ah! E tem essa história de passes, filigranas, estocadas,
sei lá mais o que; coração, mestre Pajem, coração, tudo está aqui, oh, aqui!
Ah, quando eu era moço, com uma espada na mão botava pra correr feito
ratos quatro ou cinco latagões maiores do que vocês.
HOSPEDEIRO: Vamos, meninos, vamos; querem dormir aqui?
PAJEM: Vamos indo, bom estalajadeiro. Eu, por mim, prefiro ver os
dois duelando pra saber quem maltrata mais a língua inglesa do que num
duelo de verdade. (Saem Hospedeiro, Reduzido, e Pajem.)
FORD: É um belo imbecil esse meu amigo Pajem, confiando tanto na
integridade da mulher. Mas eu não me arrisco assim, tão facilmente. A
verdade é que Falstaff conheceu minha mulher em casa de Pajem, e sei lá o
que terá acontecido, o que terão combinado? Eu não faço por menos; vou
indagar, pesquisar e descobrir. Já tenho até um disfarce pra enganar Falstaff.
Se minha mulher for honesta, melhor para nós três; mas se for o contrário,
pior para eles ambos.
Cena II

Um quarto na Hospedaria de Jarreteira.(Entram Falstaff e Pistola)


PISTOLA: Mas eu lhe pago um pouco por semana.
FALSTAFF: Eu não te empresto nem um níquel furado, malandrim
flamengo!
PISTOLA: Então declaro já que o mundo é uma ostra que abrirei com a
ponta desta espada. (Noutro tom) Te pago tudo com mercadoria roubada.
FALSTAFF: Nem a metade de um níquel com dois furos. Já me
arrependi demais deixando que vocês usassem o crédito do meu nome
honrado. Três vezes jurei em cruz a meus amigos por você e esse seu
cúmplice, Nunca. Dei minha fé de que não tinham feito o que tinham feito
quando eu sabia muito bem que tinham feito muito mais do que eu sabia.
Fiz tudo pra não vê-los atrás de grades, como dois orangotangos idiotas. Sei
que vou direto ao inferno por ter jurado diante de homens dignos, que vocês
eram bons soldados e homens de coragem. E mesmo quando roubaram o
cabo de ouro do leque da duquesa, arrisquei minha palavra para salvar
vocês.
PISTOLA: É, mas não se fala dos lucros? Fiquei apenas com dez –
você com quinze pence.
FALSTAFF: Como, patife, como? Você acha que eu vou arriscar minha
alma grátis? Em uma palavra; desmonta das minhas costas. Não fica
pendurado em mim que eu não sou a forca onde vais terminar teus dias.
Some. Pega tua faca afiada, de ladrão de bolsas de mulher, e volta pro covil
de onde vieste. Vai! O finíssimo canalha não quis levar minha carta porque
a honra... a dignidade... e não sei o quê... Abismo de ignomínia é o que você
é. Eu é que tenho que lavar bem lavada minha honra só por estar junto de
você. Eu, sabe? eu mesmo, eu próprio, eu eu, confesso, algumas vezes, sou
obrigado a fazer pequenas concessões. Seguro o temor de Deus com a mão
esquerda, escondo minha honra com a capa da minha necessidade e não
nego, me adapto às prementes circunstâncias; engano, salto, viro e, por que
não dizer? chego até mesmo ao roubo. E no entanto, você, um canalha
menor, patife que jamais chegará a minha estatura, esconde os seus andrajos
morais, sua perfídia de gato, sua linguagem de bordel, suas blasfêmias
descaradas, sob a proteção de uma honra, no máximo, improvável. E depois
se revolta – se nega a levar as minhas cartas!
PISTOLA: Eu me arrependo. Que mais se pode exigir de um homem?
FALSTAFF: Que suma da minha frente. Pra mim, basta. (Entra Robin.)
ROBIN: Senhor, tem aí uma mulher que quer falar consigo.
FALSTAFF: Manda entrar. (Entra Leva-e-Traz.)
LEVA-E-TRAZ: Ofereço a sua excelência o meu bom-dia.
FALSTAFF: Bom dia, boa mulher.
LEVA-E-TRAZ: Mulher inda não sou, embora o anseie.
FALSTAFF: Boa donzela, então.
LEVA-E-TRAZ: Posso jurar por Jesus; donzela como minha mãe
quando me deu à luz.
FALSTAFF: Acredito. Acredito. Que deseja de mim?
LEVA-E-TRAZ: Posso lhe conceder duas palavras?
FALSTAFF: Duas mil, bela mulher; minha atenção é toda sua.
LEVA-E-TRAZ: Caro senhor, tem aí uma certa Madame Ford...
(Mostrando Pistola e Robin) Um pouco mais pra cá, por favor. Sabe, eu
moro com o Doutor Caio...
FALSTAFF: Está bem, prossegue. Você dizia que Madame Ford...
LEVA-E-TRAZ: Exatamente, a Excelência diz bem; Madame Ford.
Quer chegar um pouquinho mais perto?
FALSTAFF: Fica tranqüila que ninguém nos ouve! É gente minha,
gente minha.
LEVA-E-TRAZ: São mesmo? Que Deus os abençoe e os ponha
também a seu serviço.
FALSTAFF: Mas, a Madame Ford, que é que há com ela?
LEVA-E-TRAZ: Olha, senhor, é uma criatura excelente. Céus! Céus!
Que sedutor que o senhor é! Só peço a Deus que lhe perdoe e a nós todos
que o ajudamos nas suas seduções.
FALSTAFF: Madame Ford – vamos, Madame Ford...
LEVA-E-TRAZ: Ah, sim, lá vai o sumo e o resumo dessa história. O
senhor a deixou numa tal titubeança que é de não acreditar. Os cavalheiros
mais formosos de Windsor nunca conseguiram titubeançá-la nem metade. E
olha que têm vindo cavalheiros, fidalgos, lordes, nobres, menos nobres e
carruagens atrás de carruagens, sem contar as da frente, carta atrás de
cartas, sem falar dos bilhetinhos pequenos e presentes e mais presentes. E
eu não falei do perfume – todos os cavalheiros cheirando a almíscar – todos
paramentados, muito elegantões em seda e ouro. E com aquelas maneiras
ainda mais elegantes de falar. A fala deles é um vinho açucarado capaz de
derreter o coração da mais santa mulher. Pois eu lhe garanto que dela não
tiveram nem um piscar de olho. Inda essa manhã me deram vinte pence mas
eu não sou dessas que aceitam dinheiro assim, de qualquer um, tem que ser
pessoa muito de bem pra mim aceitar. Gente como o senhor. Eu lhe juro;
ninguém conseguiu beber no copo dela. E havia até conde. Até guardas do
palácio! Mas pra ela é tudo a mesma coisa.
FALSTAFF: Mas que é que ela mandou dizer? Diz bem curto, minha
estafeta boquirrota.
LEVA-E-TRAZ: Bem, ela recebeu a sua carta, pela qual lhe manda
agradecer duas mil vezes. E pede também que Vossa Excelência não
esqueça do seguinte:
FALSTAFF: Sim, do seguinte.
LEVA-E-TRAZ: Que o marido, Dom Ford, estará fora de casa entre as
dez e as onze.
FALSTAFF: Dez e onze?
LEVA-E-TRAZ: Precisamente. Ela diz que, a essa hora o senhor pode
ir rever o quadro que tanto lhe agradou, entende? Dom Ford não vai estar
em casa. Coitada, que vida a pobrezinha leva com aquele marido! Ele a
persegue dia e noite – tem um ciúme infernal.
FALSTAFF: Entre dez e onze. Mulher, recomende-me a ela. Estarei lá
na hora.
LEVA-E-TRAZ: Ah, muito bem. Mas tenho ainda outra mensagem pro
senhor. Madame Pajem também lhe manda seus mais ardentes
agradecimentos pela carta. Lhe direi, na outra orelha, (vira-o) que ela é uma
senhora delicada e inducada, honesta e modesta. Se alguma mulher de
Windsor deixar de dizer as rezas da manhã posso jurar que não é ela. Manda
lhe dizer que, infelizmente, o marido está sempre em casa, mas que Deus há
de favorecer uma boa ocasião... Sabe que eu nunca vi uma mulher tão
desvairada por um homem? O que é que o senhor tem? Feitiço?
FALSTAFF: Eu? Nada! Posso lhe garantir que, tirando o feitiço de um
ou outro encanto físico e moral, sou um homem comum.
LEVA-E-TRAZ: Que o seu enorme coração seja bendito.
FALSTAFF: Agora, por favor, me diz aqui! as duas, por acaso, não
terão confiado, uma à outra, o amor que me tem?
LEVA-E-TRAZ: Mas nem de brincadeira! Por mais que sejam amigas,
não chegariam a esse mau gosto. Uma tal confidência seria indecência. Ah,
Madame Pajem pede encarecidamente, em nome do amor que o senhor lhe
devota, para lhe enviar aquele menino pajem. O marido dela tem uma
enorme infecção por esse pajem. Uma coisa tenho que lhe dizer; Dom
Pajem é um homem extraordinário. Nenhuma mulher de Windsor leva uma
vida igual a mulher dele. Ela faz o que quer, diz o que bem entende, compra
tudo que deseja, dorme quando tem vontade, levanta quando bem lhe
agrada e o marido não diz nada. Verdade que ela merece. Pois se há uma
mulher boa em Windsor, essa mulher é ela. Por favor, não deixe de lhe
mandar o pajem.
FALSTAFF: Vou mandar logo.
LEVA-E-TRAZ: Não esquece. É pra ele servir de mensageiro entre o
senhor e ela. Mas é bom, para evitar encrencas, que haja entre os dois
algumas palavras combinadas, a fim de que o menino não consiga entender
o que transmite. Não é bom deixar as crianças perceberem certas
leviandades. Os velhos são mais discretos porque conhecem o mundo.
FALSTAFF: Adeus. Recomenda-me às duas. Toma, guarda minha
bolsa; mas se compreende que ainda fico lhe devendo muito mais. Menino,
acompanha a senhora. (Saem a Leva-e-Traz e Robin) Essas notícias me
deixam completamente embasbacado. Eu não mereço tanto. Eu não mereço
tanto.
PISTOLA: Essa madame trabalha pra Cupido. Pois minha barca vai
singrar na esteira dela. Vento nas velas, mão no leme, fé no destino, à
abordagem, e fogo! Se ela não for minha que o oceano nos engula a todos.
(Sai.)
FALSTAFF: O que é que você diz disso, gordo Falstaff? Segue em
frente; vou tirar desse teu corpo velho muito mais do que tirei dele quando
era novo e esguio. Será que ainda existe alguém que olhe pra ti? Pelo que
ouvi, creio que não se cansam de estudar-te as formas. Quer dizer que esse
teu corpo, depois de gastar montes e montes de dinheiro, vai começar a
render alguma coisa? Ah, corpinho precioso, corpanzil amado, eu te
agradeço. Deixa as más línguas dizerem que és disforme e grasso; se
agradas tanto, pouco importa o que falam. (Entra Bardolfo com um copo de
vinho.)
BARDOLFO: Dom João, aí embaixo tem um senhor chamado Fontes
que deseja muito conhecê-lo e falá-lo. Trouxe de presente um barrilão
(gesto) de xerez espanhol.
FALSTAFF: Se chama Fontes?
BARDOLFO: Fontes, sim senhor.
FALSTAFF: Manda subir. (Sai Bardolfo) Ah, eu adoro Fontes donde
jorra vinho. Oh. Oh. Madame Ford, Madame Pajem, bebamos com esse
amável cavalheiro o sabor da conquista. (Entram Bardolfo e Ford,
disfarçado.)
FORD: Deus o guarde, cavalheiro.
FALSTAFF: E ao senhor também. Deseja me falar?
FORD: Sei que é uma audácia de minha parte apresentar-me assim,
com tal sem-cerimônia.
FALSTAFF: Seja bem-vindo. Em que posso servi-lo? Vai, rapaz. (Sai
Bardolfo.)
FORD: Eu sou, meu senhor, um fidalgo cuja única virtude é
desperdiçar montanhas de dinheiro. Me chamo Fontes.
FALSTAFF: Isso, Dom Fontes, só me faz desejar sua amizade e a
oportunidade de travar conhecimento maior com sua virtude.
FORD: Meu bom Dom João, vejo que é muito fácil o nosso
entendimento. Pois não vim aqui, está claro, pedir nada emprestado. Mais
claro ainda; acho que de nós dois, se for o caso, tenho mais condições de
emprestador. E, aliás, sou franco, foi isso que me deu coragem para esta
entrada inoportuna. Porque, como se diz, é só mandar na frente o
embaixador dinheiro que as portas vão-se abrindo.
FALSTAFF: É verdade, amigo, o dinheiro é um bom soldado.
FORD: Sempre na linha de frente.
FALSTAFF: Valente. Abrindo sempre brechas no campo do inimigo.
FONTES: Disposto a tudo. Por falar nisso, tenho aqui um saco de
dinheiro que está me incomodando. Será que o senhor podia me ajudar,
Dom João? Se o senhor não puder carregar tudo pode pelo menos me ajudar
a levar a metade. Já é um alívio.
FALSTAFF: Ora, carrego tudo, carrego tudo. Mas não sei o que terei
feito para merecer a honra de ser seu carregador.
FONTES: Eu já lhe digo. Se me dá um minuto...
FALSTAFF: Fale uma hora, senhor Fontes. De hoje em diante eu sou
apenas seu ouvidor.
FORD: Dom João, dizem que o senhor é erudito – não tema, serei
breve. De nome eu o conheço há muito tempo, mas ainda não tinha
aparecido a oportunidade ou o motivo de poder conhecê-lo mais
intimamente. Vou lhe dizer uma coisa bem particular, uma confissão do
quanto é imperfeita a minha natureza. Só lhe peço, meu amigo que,
enquanto falo de minhas leviandades, para não me desprezar, o senhor
procure também não esquecer as suas. A única forma de abrandar sua
censura é lembrar como é fácil cair no mesmo erro.
FALSTAFF: Continue, senhor, estou ouvindo.
FORD: Há uma certa mulher nesta cidade, casada com um certo senhor
Ford.
FALSTAFF: Pois muito bem.
FORD: Há muito que eu a amo, e, lhe garanto, por ela já fiz quase tudo.
Segui-a em toda parte, inventei as mais estranhas oportunidades de
encontrá-la, de vê-la um só momento. Tenho gastado generosamente, não só
nos mil presentes que lhe mando, mas também nos que ofereço àqueles que
podem me aconselhar a melhor maneira de presenteá-la. Em suma, assediei-
a com a mesma persistência com que Cupido me atormenta – ou seja, noite
e dia. Mas, por mais que eu mereça, pelos meus sentimentos e minhas
posses, o fato é que não consegui nada até agora. A não ser experiência,
uma jóia que comprei por preço muito caro. Tudo isso ensinou-me apenas:
O amor foge como sombra
Quando o poder o persegue
Persegue quem dele foge
E foge de quem o segue
FALSTAFF: O senhor não recebeu nem uma promissória de esperança
que possa resgatar em certo prazo?
FORD: Nada.
FALSTAFF: O senhor, alguma vez, chegou a falar claro?
FORD: Nunca.
FALSTAFF: Mas então o seu amor é de que raça?
FORD: Meu amor é um castelo de sonho construído em propriedade
alheia. Perdi minha construção por errar o terreno.
FALSTAFF: E com que intenção o senhor me contou tudo isso?
FORD: Ao lhe dizer por que, estou lhe dizendo tudo. Falam que,
embora ela comigo seja tão recatada, com outras pessoas, em outras
ocasiões e outros lugares, a coisa não é a mesma – as más línguas afirmam
que há afortunados. Ora, Dom João, chegamos aqui ao miolo das minhas
intenções: o senhor é um fidalgo verdadeiramente puro-sangue, de
excelente linhagem, admirável educação...
FALSTAFF: Mas, amigo...
FORD: ...irresistível insinuação, fácil penetração, uma pessoa, em
suma, autêntica, que se impõe como homem e cidadão. Todos o admiram
como guerreiro e cortesão, sem falar de sua extraordinária preparação...
FALSTAFF: Mas que é isso?
FORD: É assim, porque todos o sabem e o senhor não o ignora. Olha,
aqui tem mais dinheiro, gasta, gasta. Gasta até mais. Gasta tudo que eu
tenho. Só quero, em troca, que perca um pouco do seu tempo num cerco
galante à honestidade de madame Ford. Use o melhor que possa a sua
extraordinária arte de conquistador. Faz com que ela se renda. Se já se
entregou a alguém o senhor a conseguirá com mais facilidade do que
qualquer outro. Se ainda vai se entregar a alguém, esse alguém só pode ser
o senhor.
FALSTAFF: Será conveniente à veemência de sua paixão que eu
conquiste aquilo que pretende usufruir? A cura pode ser pior do que a
doença.
FORD: Oh, minha intenção é clara. Ela se defende com tanta segurança
atrás do baluarte de sua reputação que, por mais louco que eu esteja, não
ouso declarar-me. Mas se eu pudesse chegar diante dela com uma prova
qualquer de sua leviandade, os meus desejos teriam um precedente para
exigir uma equiparação. Eu a obrigaria a sair da fortaleza de seus votos de
fidelidade, de sua honra irretocável, de sua infinita castidade, enfim das mil
e uma defesas com que atualmente evita o meu assalto. Que lhe parece, meu
caro Dom João?
FALSTAFF: Mestre Fontes, em primeiro lugar eu tomo a liberdade de
escamotear o seu dinheiro. Logo lhe estendo a mão. E por último lhe
afirmo, palavra de fidalgo, que, mais cedo do que pensa, o senhor poderá
degustar essa senhora, onde e como quiser.
FORD: Oh, não me diga!
FALSTAFF: Dom Fontes, eu sei o que prometo.
FORD: Então, nada de economias! Mande, e terá dinheiro. Como e
quanto quiser.
FALSTAFF: O mesmo garanto eu; terá a mulher de Ford como e
quanto quiser. Lhe digo em confiança, hoje mesmo eu vou estar com essa
senhora, num encontro que ela própria marcou. No momento exato em que
o senhor chegou, saía daqui uma camareira dela, uma tal Leva-e-Traz.
Nosso encontro é exatamente às dez horas, porque essa é a hora em que o
marido, um imbecil que morre de ciúmes, não vai estar em casa. Se o
senhor puder vir aqui mais tarde, eu lhe direi como é que a coisa anda.
FORD: Afortunado eu, no momento em que o encontrei. Mas, o senhor,
por acaso, conhece o marido dela?
FALSTAFF: Ford? Nunca o vi mais gordo. Por mim podem enforcar
esse corno miserável. Aliás, me corrijo: à vontade mantenho o corno mas
retiro o miserável. Porque dizem que o tal condescendente tem rios, barricas
e massas de dinheiro. Isso, naturalmente, faz com que sua digna esposa me
pareça ainda mais encantadora, pois me servirá de chave pras arcas do
cornuto.
FORD: Eu preferia que o senhor conhecesse Dom Ford, quanto não
seja para poder evitá-lo, no caso de um encontro ocasional.
FALSTAFF: Quero que enforquem esse vendedor de manteiga rançosa!
Ele vai tremer de pavor quando eu o olhar assim como o estou olhando. Vai
suar de terror quando eu girar meu bastão, assim, em cima dos seus chifres.
Mestre Fontes, eu dominarei o imbecil, nem que seja com a minha força
bruta, assim, pra que o senhor possa se pôr na mulher dele. Logo que
anoitecer, venha me ver. Ford é um impotente – fazê-lo corno já é uma
promoção. Esta noite, então, já sabe, hein? – bem cedo. (Pega a sacola de
dinheiro e sai.)
FORD: Libertino, nojento, desgraçado. Sinto que o coração vai
rebentar de ódio. Eu não posso esperar! Quem ousa repetir que meu ciúme
era infundado? Minha mulher mandou chamá-lo, marcaram hora e local,
está tudo combinado. Quem poderia pensar em coisa semelhante? Minha
cama ficará manchada, meus cofres serão saqueados, minha reputação
dilacerada. E eu, não só tenho que agüentar todas essas infâmias, como
ainda sou obrigado a ouvir as maiores ofensas da boca daquele que me
ultraja. Nomes! Apelidos! Qualificativos! Lúcifer, ainda vai. Satanás eu
suporto. Belzebu eu engulo. Asmodeu, vá lá! São todos apelativos
demoníacos, designativas infernais. Mas, corno! E corno consentido!
Corno! Não. O próprio diabo nunca foi chamado disso, apesar dos chifres.
Pajem é um quadrúpede, um perfeito asno. Confia na mulher. Não tem
ciúmes. Eu com mais facilidade confiaria minha manteiga a um flamengo, o
meu queijo a um galês como o Hugo, minhas reservas de aguardente a um
irlandês, do que minha mulher a ela própria. Porque, quando está só, a
mulher pensa. Quando pensa, conspira. Quando conspira, age. Pois quando
deseja qualquer coisa, a mulher realiza, não lhe importando os meios. Eu
agradeço ao céu o meu ciúme. O encontro é às onze horas. Vou surpreender
minha mulher, castigar Falstaff e rir de Pajem. Vou correndo. Melhor três
horas antes que um minuto depois. Corno! Corno! Corno! (Sai.)
Cena III

Um campo perto de Windsor.(Entram Caio e Passarinho).


CAIO: Passarinho.
PASSARINHO: Senhor?
CAIO: Que horras ser?
PASSARINHO: Já passou da hora que o reverendo combinou.
CAIO: Ah, o cofarde non vir. Conseguiu salfar a sua pele. Fai ver está
ressando o seu Bíblia, Passarinho. Se tinha findo já não estava aqui mais,
estava morrido.
PASSARINHO: Teve juízo, patrão. Sabia que o senhor o mataria, se
viesse.
CAIO: Em nome do Cristo, um salmão defumado não estará tão
morrido quanto ele, quando esbarrar comigo. Peca a espada, Passarinho:
vou te mostrar como se acapa um padre e os sermões dele.
PASSARINHO: Mas, Doutor Caio, eu não sei nem segurar a espada.
CAIO: Como, filão? Desempainha a espada. (Começam a lutar.)
PASSARINHO: Cuidado, aí vem gente. (Entram o Hospedeiro,
Reduzido, Magrela e Pajem.)
HOSPEDEIRO: Deus te proteja, seu doutor salafrário.
REDUZIDO: Deus o conserve, Mestre Doutor Caio.
PAJEM: Como vai, Mestre de medicina?
MAGRELA: Muito bom-dia, senhor.
CAIO: O que é que focês todos, um tois, três, quatro, estão
procurrando?
HOSPEDEIRO: Nada. Viemos te ver lutar. Te ver em guarda, te ver
em ataque, te ver em finta ou em estocada; você aqui, você ali, você em
parada, você a fundo, você em nada, marcando um ponto, medindo um
gesto, tomando alento, atravessando! Onde está ele, meu etíope? Ele está
morto, meu francêscano? Ah, salafraríssimo! Fala, meu Esculápio. Conta o
que aconteceu, hábil Galeno. Vamos, confessa, ele está morto! O
salafraríssimo reverendo está morto. Você o matou? Ahn?
CAIO: (Com desprezo) Matei! É o patre mais cofarde do mundo. Nem
mostrar o cara.
HOSPEDEIRO: Acho que ele fez bem, tu és um rei de Castela,
soberano urinol. Tu és Heitor da Grécia, filho meu.
CAIO: Eu peço que sexam testemunhas que estifemos aqui seis ou sete,
duas ou três horas, e ele non apareceu.
REDUZIDO: O reverendo foi mais sábio, Doutor Caio: ele é um
médico de almas, o senhor um médico de corpos. Lutando estariam ambos
negando a fé e a ciência que abraçaram. Estou falando errado, Dom Pajem?
PAJEM: Ninguém diria, vendo o Juiz de Paz que é agora, o terrível
espadachim que foi um dia.
REDUZIDO: Com a graça de Deus, amigo Pajem, embora agora eu
seja velho e de paz, não posso ver uma espada desembainhada sem sentir
uma certa comichão nos dedos. Por mais que eu seja juiz, ele doutor, o
outro padre, ainda há em nós um pouco do sal de nossa juventude. Somos
filhos de mulheres, Mestre Pajem.
PAJEM: Verdade comum a todos nós.
REDUZIDO: E será sempre assim. Mestre Doutor Caio, vim levá-lo
pra casa. Sou encarregado da ordem pública e seu amigo. Considero o
senhor um excelente médico, mas o reverendo Hugo também é um
sacerdote competente e humano. Vem comigo, doutor.
HOSPEDEIRO: Perdão, Juiz de Paz. Uma palavrinha, doutor
desmiolado.
CAIO: Desmiolado? Que é isso?
HOSPEDEIRO: Desmiolado, em nossa língua, quer dizer que não tem
miolo, isto é, só tem tutano, corajoso.
CAIO: Então eu lhe garantia ser muito mais desmiolato do que
qualquer inglês. Vou cortar os orelhas da maldita patre.
HOSPEDEIRO: Vai confiando que ele acaba te metendo a lenha.
CAIO: Me metendo a lenha? Que é isso?
HOSPEDEIRO: Quer dizer que ele te pede desculpas, te dá
satisfações.
CAIO: Então fai ter muito que me meter o lenha antes deu ficar
satisfeita.
HOSPEDEIRO: Fique descansado. Se for preciso eu ajudo o
reverendo.
CAIO: Eu lhe agradeço o senhor por isso.
HOSPEDEIRO: Além disso, paspalhão... (Aos outros, à parte) Olha,
acho melhor vocês três, meu hóspede, mestre Pajem e o supino cavalheiro
Magrela, irem pra Frogmore, pela estrada que atravessa a cidade.
PAJEM: Hugo está lá, está?
HOSPEDEIRO: Está. Vejam o estado de espírito em que se encontra,
enquanto eu vou indo com o doutor, atravessando o campo. Está certo?
REDUZIDO: Certo.
PAGEM, REDUZIDO e MAGRELA: Adeus, doutor Caio. (Saem.)
CAIO: Eu não me conforma, tenho da matar o Padre. Ele vive me
atrapalhando com Ana Pajem para protager...
HOSPEDEIRO: Proteger.
CAIO: Proteger não sei que idiota.
HOSPEDEIRO: Deixa ele morrer de velho. Controla a tua
impaciência, joga água fria em tua raiva, e vem comigo pelo campo até
Frogmore. Vou te levar a uma festa numa casa de campo. Sabe quem está
lá? Ana Pajem! vai ter o tempo que quiser pra lhe fazer a corte. Piei mal?
Falei bem?
CAIO: Lhe dou graças a Deus pur isso. Focê ser crande amico. Lhe
mandarei lordes, cavalheiros, fidalgos, comerciantes, todos meus pacientes.
HOSPEDEIRO: E eu, como prova de agradecimento, não pouparei
obstáculos para impedir tua rota nas águas de Ana Pajem. De acordo?
CAIO: Não entendi nada.
HOSPEDEIRO: Quero dizer que vou te ajudar em tudo. Vamos
embora.
CAIO: Nas meus calcanhares, Passarinho. (Se afastam.)
ATO III
Cena I

Um campo perto de Frogmore. Duas cercas, uma próxima e outra distante,


fecham a cena. O reverendo, sem batina, apenas com a roupa de baixo, tem
a espada numa mão, um livro na outra. Simplicíssimus vigia do alto de uma
árvore.
EVANS: Eu te pergunto, pom servidor do cavalheiro Magrela, onde é
que você procurou tal Caio que só ele mesmo se considerar doutor na
medicina?
SIMPLICÍSSIMUS: Olha, reverendo, procurei pra lá e prá cá, aqui e
ali, em cima e embaixo, dum lado e doutro, naturalmente só onde ele não
estava, já que não o encontrei. Só não procurei mesmo onde não fui.
EVANS: Talfez ele seja xusjatemente aí. Fai procurar lá.
SIMPLICÍSSIMUS: Sim senhor, meu padre. (Sai.)
EVANS: Teus salfe meu alma pois xamais um referendo tefe tanta raifa
do alguém. Costaria que tuto fosse um encano. Ah, hei de derramar um
urinol cheio na capeça daquele felhaco. Teus salfe meu alma. (Canta.)
Xunto à cascata
Que cai na mata
Cantam mil afes
Marafilhosas
Ali faremos, xentil amata
O nosso leito
Toto de rosas.
Xunto à cascata...
Pobre de mim! Canto. E no entanto só ter vontade é de chorar.
Cantam os aves
Nascem begônias
E eu com os olhos
Cheios da insônia
Espero às portas
Do Babilônia.(Entra Simplicíssimus.)
Como é, que armas ele tem?
SIMPLICÍSSIMUS: Não encontrei ninguém armado em todo o
caminho, reverendo. Nem tropa, nem pessoa. Mas lá vem meu patrão, Dom
Reduzido e outro cavalheiro que não conheço.
EVANS: Me dá minha batina, depressa. Ou melhor, fica com ela no
praço. (Simplicíssimus pega a batina no chão. Entram Pajem, Reduzido e
Magrela.)
REDUZIDO: Olá, olá, prelado e reverendo. Bom-dia, excelente Dom
Hugo. Um jogador longe dos dados, um erudito longe dos livros – que
milagre.
MAGRELA: (À parte) Ah, doce Ana Pajem.
PAJEM: Salve, bom reverendo.
EVANS: Que os apençoe com sua Misericórdia o Teus, também. A
focês totos.
REDUZIDO: Sim, senhor, a espada e o verbo. O senhor domina
ambos, reverendo?
PAJEM: E por que tão juvenil, de jibão e meias num dia assim tão frio,
especial pra reumatismo?
EVANS: Tenho mais da um motivo para estar deste maneira.
PAJEM: Bom pastor, viemos procurá-lo para um ato de caridade.
EVANS: Muiti pem. Que ê que é?
PAJEM: Ali embaixo está um cavalheiro da maior dignidade que,
parece, foi ofendido por alguma pessoa, e se encontra num estado de
exaltação jamais visto. Dá socos na própria respeitabilidade e agride a
própria paciência. Vai acabar estrangulando a própria sombra.
REDUZIDO: Eu já vivi bem oitenta anos e até mais do que isso, se
contar com cuidado. E nunca vi na minha vida um homem com a posição
social, a gravidade de comportamento e o saber que ele tem, perder, assim,
toda compostura.
EVANS: Mas, quem é ele?
PAJEM: Talvez o senhor o conheça; é o ilustre Doutor Caio, o famoso
cirurgião francês.
EVANS: Sanha te Teus e fúria do meu coraçon! Preferia que me
falassem de um pom par de asnos.
PAJEM: Por quê?
EVANS: Famoso cirurgião? Bah! Não sabe nata da coisa nenhuma.
Pensa que Hipócrates é um hipócrita e de Galeno nunca oufiu falar. E além
disso é um felhaco. Em felhaco cofarde não existe outro igual. (Caio vem se
aproximando com um punhal e a espada desembainhada.)
PAJEM: Eu não dizia que era o Padre que ia lutar com o doutor?
MAGRELA: (À parte) Ó, doce Ana Pajem!
REDUZIDO: Parece que sim, a julgar pelas armas. Aí vem Doutor
Caio, cuidado! Não deixem que eles se aproximem. (Entram o Hospedeiro,
Caio e Passarinho.)
PAJEM: Calma, mestre reverendo, guarde a arma.
REDUZIDO: E o senhor também, mestre cirurgião.
HOSPEDEIRO: Tirem as armas deles e deixem que discutam. Que
conservem os membros e estraçalhem apenas o inglês de sua majestade. (Os
dois são desarmados.)
CAIO: Permita que eu lhe tiga uma palafrinha no seu oufido. Por quoi
o senhor não quer lutar com migo?
EVANS: (À parte a Caio) Um pouco do paciência, por opsséquio.
Quanto chegar no hora.
CAIO: Bom Teus, o senhor é um cofarde, um fira-latas, um cão
leproso, mais feio que macaco feio.
EVANS: (À parte a Caio) Lhe peço-lhe que non nos transformar em
motifo de riso de todo o mundo. Tesejo muito ter sua amissade e estou
pronto a lhe tar todas os satisfações. (Alto) Vou derramar todos os meus
urinois na sua capeça de felhaco pra aprender a non faltar os encontros.
CAIO: Diable! Passarinho! Hospedeiro da Jarreteira! Eu não estava lá,
esperando para atravessar o fícado desse animal? Eu estava ou não estava
no local da encontra?
EVANS: Tão certo quanto minha alma ser cristã, olha aqui, seu!, este
está sido o lugar marcada. Apelo para o Hospedeiro do Xarreteira.
HOSPEDEIRO: Paz, paz, eu aconselho, paz, Galo e Galês, Celta e
Francês, doutor de almas e doutor de corpos.
CAIO: Oh, ça c'est très bien dit. É excelante!
HOSPEDEIRO: Paz, eu digo. Ouçam em paz o que vai falar o
Hospedeiro da Jarreteira. Serei eu um político? Serei um sutil? Um
Maquiavel? Quero perder meu doutor? Nunca: são suas poções que
facilitam minhas evacuações. Desejo eu perder meu cura, meu padre, meu
vigário celeste, meu Dom Hugo? Jamais: é ele quem me ensina o verbo e o
adverbo. Vamos, me dá tua mão, celestial, e tu, me dá também a tua mão,
terrestrial – assim. (Une as mãos dos dois) Assim. Aprendizes de
velhacarias, fui eu quem enganei a ambos enviando cada um pra um lugar.
Não duvidamos que ambos têm um coração intrépido, nos alegramos que
estejam com a pele intacta e queremos celebrar a paz num bom copo de
vinho. Amigos, mandem empenhar as armas e me tragam o dinheiro. Me
sigam, anjos da paz, me sigam, sigam, sigam, sigam.
REDUZIDO: Esse Hospedeiro é gira. (Faz sinal de louco) Sigam,
senhores, sigam, sigam.
MAGRELA: (À parte.) Ó, doce Ana Pajem. (Saem Magrela, Reduzido,
Pajem e o Hospedeiro.)
CAIO: Ah, será que entendi eu bem? Fizeram nois tois de impecís? Ha,
ha, ha?
EVANS: Essatamente. Fez de nós bobos do corte. Tesejo que ficamos
amicos, e xuntos, pra pensar numa fingança contra desse tescraçado,
emprulhão, tono do Hospedaria.
CAIO: Por Teus, com toto meu coraçon. Ele prometeu tampem trasser
aqui Ana Paxem e me enganou outro vez.
EVANS: Pem, hei de lhe cortar o crista. Fem comigo por fafor. (Saem)
Fem, fem, fem, fem.
Cena II

Uma rua, em Windsor. (Entram Madame Pajem e Robin.)


M. PAJEM: Vai na frente, belo jovem. Você agora guia onde antes
seguia. Que prefere você, orientar meus passos ou trotar nos calcanhares do
teu patrão?
ROBIN: Claro, senhora, prefiro ir na sua frente, como um homem, do
que seguir um homem, como um anão.
M. PAJEM: Eh, que rapazinho adulador. Você vai ser um grande
cortesão. (Entra Ford.)
FORD: Que prazer encontrá-la, Madame Pajem. Aonde é que vai?
M. PAJEM: Por coincidência vou exatamente me encontrar com sua
mulher. Ela está em casa?
FORD: Claro; e tão ociosa como sempre. Só não faz menos porque
menos, bom, correria o risco de lhe passarem um atestado de óbito. Está
sempre à sua espera. Eu acho que se nós dois, maridos, morrêssemos, a
senhora e ela se casariam logo.
M. PAJEM: Claro – com dois outros homens.
FORD: Onde é que a senhora adquiriu tão belo mastro de navio?
M. PAJEM: Sabe que eu nem sei o nome do tal que o emprestou a meu
marido? Garoto, como é mesmo que você chama o seu patrão?
ROBIN: Dom João Falstaff.
FORD: Dom João Falstaff!
M. PAJEM: Isso. Isso. Eu nunca consigo me lembrar do nome. Depois
que meu marido o conheceu não o larga mais, são carne e unha. Tem
certeza de que Alice está sozinha em casa?
FORD: Está, é claro. (Duvidoso) Por que é que não estaria?
M. PAJEM: Me permita. Estou doida pra falar com ela. (Saem M.
Pajem e Robin.)
FORD: Mas, onde é que Pajem tem a cabeça? Será que ele está cego?
Será que não entende? Só pode estar dormindo – porque qualquer imbecil
percebe que esse maravilhoso pajem é capaz de levar uma carta a vinte
milhas mais depressa do que um canhão atinge um alvo a vinte passos.
Pajem empurra a mulher na rampa do demônio; dá às loucuras dela tempo e
oportunidade. E agora ela vai se encontrar com a minha esposa levando
junto o pajem de Falstaff! Qualquer um vê logo a tempestade se formando –
e o pajem de Falstaff com ela! Bela situação! Está tudo preparado – nossas
mulheres se rebelam e procuram juntas a perdição. Ah, mas comigo não;
vou surpreender o herege com a boca na botija ou com a botija na boca.
Verificado o fato, torturarei minha mulher, arrancarei o véu de falso recato
da senhora Pajem e mostrarei a todos que Pajem é apenas um pobre
conformado. Tenho certeza que minhas atitudes violentas vão merecer
aplausos de todos os meus vizinhos. (Relógio soa) O relógio dá a deixa pra
eu sair de cena, pois tenho que agir com rapidez e brio. Vou agarrar Falstaff.
Ele está lá – tão certo quanto a terra é plana. (Entram Pajem, Reduzido,
Magrela, Hospedeiro, Dom Hugo Evans, Caio e Passarinho.)
ALGUNS DELES: Olá, como é que é? Que bom encontrá-lo, Dom
Ford.
FORD: Ôpa, o prazer é meu, ver a turma reunida. Por acaso tenho uma
festa em casa. Venham comigo que vão se divertir.
REDUZIDO: Desculpe, mas não posso, Dom Ford.
MAGRELA: Eu também não, senhor. Tenho um jantar marcado com
Ana Pajem e só deixaria de comparecer se me dessem o dinheiro que ela
vale – não há tanto dinheiro.
REDUZIDO: Estamos em conversações para realizar o casamento
entre Ana Pajem e meu sobrinho Magrela. Hoje teremos a resposta.
MAGRELA: Espero contar com sua boa vontade, Dom Pajem, meu
pai.
PAJEM: Conte com ela, bom Magrela, sou todo a teu favor. Minha
mulher porém (volta-se para Caio) acha que o melhor partido é aqui o
doutor.
CAIO: Graças a Teus parece tampém que a moça me tem alcum amor.
Assim me conta minha cofernanta Lefa-e-Traz.
HOSPEDEIRO: E os senhores se esquecem de Fenton, que é moço e
encantador? Ele salta, ele dança, explode em juventude, escreve versos, fala
bolas de ouro, conta casos de prata, tem perfumes de abril e alguns de maio.
Vai ganhar, vai ganhar, já a tem na mão. (Fecha o punho) Vai ganhar.
PAJEM: Não com o meu consentimento, eu não aprovo. E não só por
seus defeitos mas também por suas qualidades. O defeito é não ter nada,
nem um níquel de seu. Além disso anda em companhia do príncipe maluco
e do barão estroina. E quanto a qualidades, tem demais; dá pra desconfiar.
Quem somos nós prum homem assim tão alto? Sabe demais, já viveu tudo.
Não, ele não vai cerzir os fios de sua bolsa arrebentada com os dedos da
minha fortuna. Se quer casar com ela e se ela o aceita, não o posso impedir.
Ele que a pegue e a leve, mas limpinha. Minha fortuna só vai com meu
consentimento e o meu consentimento segue outro caminho.
FORD: Peço encarecidamente que os senhores me acompanhem,
venham jantar comigo. Além da boa ceia eu lhes prometo um espetáculo.
Vou lhes mostrar um monstro. Vem, mestre cirurgião, e o senhor também,
amigo Pajem – e o senhor não pode recusar, mestre Dom Evans.
REDUZIDO: Bem, façam bom proveito. Acho melhor irem todos;
assim teremos mais liberdade para fazer a corte a Ana Pajem. (Saem
Reduzido e Magrela.)
CAIO: Fai pra casa, Passarinho. Eu não temoro. (Sai Passarinho.)
HOSPEDEIRO: Adeus, meus corações; vou procurar meu bravo
cavalheiro Falstaff e entornar com ele uma garrafa inteira de vinho das
Canárias. (Sai.)
FORD: (À parte) Está muito enganado. Falstaff é meu conviva e vai
cantar pra nós como um canário. (A todos) Pessoal, vamos?
TODOS: Vamos. Estamos ansiosos pra ver como é esse monstro.
(Saem)
Cena III

Um quarto na casa de Ford.(Entram Madame Ford e Madame Pajem.)


M. FORD: Como é, João? Como é, Roberto?
M. PAJEM: Depressa! Depressa! – o cesto de roupa suja já está...?
M. FORD: Está tudo pronto. Hei, Robin, onde está Robin? Onde se
meteu essa beleza? Comigo é sempre assim – os bonitos eu tenho sempre
que chamar três vezes. Os feios não me largam. (Entram criados com uma
cesta.)
M. PAJEM: Vamos, vamos, mais pra lá.
M. FORD: Aqui, coloquem aqui.
M. PAJEM: Diga logo o que eles têm que fazer. Depressa!
M. FORD: Olhem, João e Roberto, como eu já tinha dito, vocês vão
ficar trancados na despensa. Quando eu gritar venham ambos correndo com
a mesma pressa com que vêm quando eu chamo um só. E sem perder um
segundo, metem nos ombros a cesta de roupa, disparam com ela até a
margem do rio onde ficam as lavadeiras e esvaziam a cesta dentro d'água.
M. PAJEM: Entenderam bem?
M. FORD: E já repeti mais de dez vezes. Já devem saber as instruções
até de cor. Podem ir – e atenção ao grito. (Saem os criados.)
M. PAJEM: Aí vem o rapaz. (Entra Robin.)
M. FORD: Como é, meu falcãozinho, que notícias me traz?
ROBIN: Meu patrão, o cavalheiro João Falstaff, está aí na porta dos
fundos da casa, senhora Ford, e solicita o prazer de sua companhia.
M. PAJEM: Olha aqui, meu João Rosadinho, você está certo de que
não andou nos traindo com seu amo?
ROBIN: Posso jurar nos dois pés. Meu patrão não sabe que a senhora
está aqui e disse que se eu fizer qualquer comentário sobre o que acontecer
me põe em perpétua liberdade, isto é, no olho da rua.
M. PAJEM: Você é um bom rapaz; e a tua discrição é um excelente
alfaiate. Pois vai te dar gibão e calças novas.
M. FORD: Que eu me encarregarei de experimentar, pois não gosto de
ver meus servidores mal vestidos.
M. PAJEM: Vou me esconder.
M. FORD: Vai. E você, Robin, avisa ao cavalheiro que estou sozinha.
Alice Pajem, não esquece tua deixa. E você, Robin?
ROBIN: Quando a senhora disser “agora!”
M. FORD: AGORA. (Ela faz um gesto. Robin sai.)
M. PAJEM: Fica tranqüila. Se eu representar mal, me vaia. (Sai.)
M. FORD: Então vamos dar a partida. Vamos ensinar a essa imundície
gorda, a essa aquosa melancia, a distinguir gazelas de cadelas. Que Deus
me livre de homens mal-cheirosos – posso não ser uma santa mas tenho
bom olfato. (Entra Falstaff.)
FALSTAFF: “Enfim te poderei usar
Jóia sem par?”
Ah, céus, deixem-me morrer agora, pois já vivi bastante. Cheguei ao
ponto final de minha ambição. Ó hora consagrada!
M. FORD: Meu doce cavalheiro. (A senhora Ford faz todo um jogo de
concessões e negativas durante a cena.)
FALSTAFF: Minha amada senhora Ford, eu não sei adular, muito
menos mentir. Confesso que há em meu coração um desejo terrível –
gostaria que teu marido fosse morto. Repetirei isso até diante do Todo-
poderoso porque Ele sabe que, teu marido morto, tu serias minha mulher.
M. FORD: Eu, tua mulher, Dom Falstaff? Ai, eu só faria vergonha em
tua compainha.
FALSTAFF: Que a corte da França me mostre uma rainha igual. Só um
cego resiste ao teu olhar, pois reproduz o brilho da luz dos diamantes.
M. FORD: Diamante, meus olhos, senhor meu? Duas contas vulgares,
pedras falsas.
FALSTAFF: Teu corpo tem a perfeição das curvas da catedral de
Veneza, com ondas fugidias que procuro alcançar, ansioso por naufragar
nos teus braços.
M. FORD: Ondinhas de nada, Dom João! Muito rasas. Nunca ninguém
se afogou nelas.
FALSTAFF: Por Deus, tu trais a ti mesma sendo tão modesta; na corte
serias a mais perfeita lady. A arcada firme de teus pés daria, às anquinhas
que abraçassem teus quadris, um movimento que atrairia até a cupidez do
rei. Não estou inventando. Descrevo apenas o que tu serias se a Fortuna não
fosse tua inimiga, pois que a natureza de ninguém foi mais amiga. Mostra:
de mim não precisas esconder.
M. FORD: Se assim acredita, prefiro que mantenha a ilusão. Pode crer,
meus encantos satisfazem somente aos bens modestos.
FALSTAFF: Então por que motivo me apaixonei por ti? Deixa-me
convencer-te da mais simples verdade – há em ti alguma coisa de
extraordinário. Repito, não sei adular, dizer que és isto e que não és aquilo,
ou que és aquilo e nunca foste isto, como fazem esses moçoilos
amaneirados que de homem usam somente as roupas e cheiram todos a
jardim de acácias. Isso não é comigo! Mas eu te amo. A ninguém mais,
senão a ti. Somente tu mereces.
M. FORD: Não bote e tire ao mesmo tempo, senhor meu. Não me
atraiçoe. Meu coração quer acreditar, porém tem medo de que o senhor ame
Alice Pajem.
FALSTAFF: Mas, que horror, isto é dizer que me agrada muito uma
prisão por débitos ou que aprecio o cheiro de um forno de enxofre.
M. FORD: Ah, o céu conhece o quanto eu o amo. E, se tiver paciência,
assim que possa, darei para o senhor... todas as provas.
FALSTAFF: A que distância estou desse momento?
M. FORD: (Agitada, ansiosa) Não sei, quem sabe? Quando uma
mulher se encontra assim, junto ao homem que ama, que forças encontra
para resistir? Como pode ela afirmar que o momento da entrega é amanhã,
em uma hora ou, até mesmo... agora? (Entra Robin. Falstaff se esconde mal
e mal.)
ROBIN: Madame Ford! Madame Ford! Madame Pajem está aí na porta
toda esbaforida dizendo que precisa falar com a senhora imediatamente. (M.
Ford faz um gesto a Robin. Este sai.)
M. FORD: Isso, se esconde ali atrás. Ela é uma língua terrível. É capaz
até de dizer que fizemos o que nem tivemos tempo. (Falstaff se esconde
atrás do tapete. Entram Madame Pajem e Robin.) Mas que é isso, mulher?
Que coisa aconteceu?
M. PAJEM: Oh, minha amiga, que foi que você fez? Você está
desgraçada, desonrada, arruinada, destroçada, fudi...
M. FORD: Mas que é isso, Alice querida? Eu não fiz nada.
M. PAJEM: Oh, dia infortunado, como é que uma mulher como você,
com um marido honrado como o seu, tem a coragem de lançá-lo na rua da
amargura? Até a mim, por sua amiga, alguns pingos de lama me atingiram.
M. FORD: Seja mais clara, de que lama me falas?
M. PAJEM: Mas que cinismo o seu, minha querida. Mas que vergonha!
E eu que acreditava em ti, como se fosse eu mesma. Como eu estava
enganada!
M. FORD: Por Deus, me diz, que houve?
M. PAJEM: Teu marido vem pra cá correndo à frente de todos os
Oficiais da Justiça da cidade a fim de apanhar em flagrante-delito você e
um certo fidalgo. Teu marido grita em público que, com teu consentimento,
o tal fidalgo faz coisas que a lei nem a ele mesmo, marido, lhe faculta. Você
está arruinada.
M. FORD: (À parte) Fala mais alto. (Alto) Pois eu garanto que não é
verdade.
M. PAJEM: Rogo aos céus que assim seja. Que não haja nenhum
homem aí dentro. Porque o certo é que teu marido vem aí com metade da
população de Windsor correndo atrás dele. E trazem paus e pedras pra
esfolar o intruso. Vim pelo beco para te avisar. Se você, verdade, não tem
culpa, eu fico aliviada. Mas se está com algum amiguinho ocasional aí por
dentro, manda ele embora. Não fica tonta assim, decide! Defende a tua
reputação agora ou dá adeus pra sempre à vida honrada.
M. FORD: Mas, que devo fazer? Tem realmente, aí dentro, um senhor
meu amigo, um amigo amicíssimo – não, não é o que você pensa, mas estou
só pensando que os outros vão pensar o mesmo. E não temo por minha
honra mas pelo perigo que corre a vida dele. Eu daria mais de mil libras
para que ele não estivesse aqui.
M. PAJEM: Que vergonha, sempre a mesma hesitação; daria, não
daria. Teu marido está na porta. Pensa numa solução. Aqui ele não pode
ficar. Ah, que decepção! Olha, uma cesta. Se é um homem de estrutura
normal cabe muito bem aí dentro, apertadinho. Nós o cobrimos com a roupa
suja e, já que hoje, por acaso, é dia de lavagem, mandamos os criados
levarem a cesta até o rio. Teu marido nem vai desconfiar.
M. FORD: Ele é grande demais. Não cabe aí. Oh, que fazer? (Entra
Falstaff.)
FALSTAFF: Deixa eu experimentar, eu caibo, eu caibo. Segue o
conselho dessa santa amiga... Eu caibo. É fácil. (Vai tirando a roupa do
cesto, apavorado.)
M. PAJEM: O que, Dom João Falstaff? (Só para ele) Isso é a
sinceridade de suas declarações, cavalheiro?
FALSTAFF: (À parte) Eu só amo você e a ninguém mais. (Alto) Me
ajudem; se conseguir entrar aqui de qualquer jeito eu nunca mais...
(Consegue entrar. Elas o cobrem com a roupa suja.)
M. PAJEM: Rapaz, ajuda a esconder o teu patrão. Chama os criados,
Alice! (Na cesta) Hipócrita! (Sai Robin.)
M. FORD: João! Roberto! João! (Entram os criados) Levem essas
roupas daqui, depressa. Onde é que está a vara? Vão bem depressa, eu
disse. Não se importem se o cesto sacode ou não – as lavadeiras estão
esperando. (Entram Ford, Pajem, Caio, e Dom Hugo.)
FORD: Entrem todos, por favor; suspeito sem razão, podem zombar de
mim. Eu o mereci. Hei, vocês dois aí, aonde é que vão com isso?
CRIADOS: Aonde, senhor? Mas à lavanderia.
M. FORD: Que absurdo é esse? Só faltava você examinar a roupa suja
e fazer o rol.
FORD: Se toda a roupa suja fosse essa. Seria bem fácil controlar. (Faz
gesto, saem criados com a cesta) Cavalheiros, eu tive um sonho esta noite,
ou melhor, um pesadelo. Depois lhes conto. Aqui, aqui, aqui, tomem
minhas chaves, revistem tudo. Entrem nos quartos, subam, desçam, olhem,
busquem, descubram. Em algum oco essa raposa entrou. Antes, porém...
(Fecha a porta da rua) Agora, à caça!
PAJEM: Meu velho Ford, controle-se um pouco. Você se prejudica a
você mesmo.
FORD: Eu sei, amigo Pajem. Não parem, cavalheiros. Em algum lugar
está. Vamos nos divertir bastante. Venham comigo. (Saem.)
EVANS: Eu nunca fí ciúma tão fantástico.
CAIO: Por Teus, na França a moda não ser essa; non ter ciúme em
França.
PAJEM: Vamos lá, amigos. Vamos ver em que é que dá essa procura.
(Saem Pajem, Caio e Evans.)
M. PAJEM: Há uma dupla lição nessa aventura toda.
M. FORD: Não sei o que me dá mais prazer; se é enganar Falstaff ou
enganar meu marido fingindo que o engano. O ciumento só vê o que não
existe e não enxerga nunca o que fazemos claro.
M. PAJEM: Eu quase morri de rir quando pensei no medo dele no
momento em que Ford pôs-se a falar na cesta.
M. FORD: Acho que depois disso vai precisar de um banho. Não pode
reclamar quando os criados o atirarem n'água.
M. PAJEM: Bem feito para esse atrevido. Gostaria que a todos os da
sua laia acontecesse o mesmo.
M. FORD: Mas eu acho que meu marido tinha alguma suspeita
especial. Veio com muita certeza de que Falstaff estava aqui. Nunca fez
uma cena de ciúmes tão violenta.
M. PAJEM: Vou arranjar um modo de saber o que aconteceu. Mas não
devemos deixar em paz o gordo sedutor. Esse susto de hoje é bem pouco
remédio para tanta luxúria.
M. FORD: Olha, podemos mandar a Leva-e-Traz, essa bruaca tonta,
pedir desculpas a ele por tudo que aconteceu, inclusive o banho. Despertar-
lhe novas esperanças, atraí-lo outra vez, e dar-lhe outro castigo.
M. PAJEM: Acho que é bom. Manda dizer que ele venha amanhã às
oito horas, mas instrui bem a velha safadona. É preciso que ela desperte a
gula do demônio. Que Falstaff não durma, pensando que o dia de amanhã
será de recompensas. (Entram Ford, Pajem, Caio e Dom Hugo.)
FORD: Me dou por vencido – aqui não está. É bem possível que o
velhaco esteja se jactando sem qualquer pé na realidade.
M. PAJEM: (À parte para M. Ford) Ouviu essa?
M. FORD: (À parte para M. Pajem) Há que ter paciência. (Alto) Bela
maneira de tratar sua mulher, senhor Ford. Eu o cumprimento.
FORD: É. Tem razão.
M. FORD: Que o céu não me faça realizar seus pensamentos.
FORD: Amém!
M. FORD: Tantas vezes o cântaro vai à fonte que um dia encontra a
água suja.
FORD: Eu sei, agüento as conseqüências.
EVANS: Se há qualquera possipilitate de um pessoa estar escontito
neste casa, nos armários, nos paús (baús), em qualquer parte, eu querer ser
condenada no Juizo Final.
CAIO: E eu também. Não ter nem uma alma escontida nesses quartos.
PAJEM: Mas que vergonha, meu amigo. Assim não é possível
conviver. Que demônio te sugere esse comportamento? Os chifres que tua
mulher se recusa a te plantar por fora parece que o maligno te enfiou por
dentro da cabeça.
FORD: A culpa é minha, Pajem. Sofro por ela.
EVANS: O senhor sofre da má consciência. Sua esposa é uma dama tão
honesta como não ter outra em cata cinco centas. Dico até mais; em cada
mil centas.
CAIO: Eu tampém acha. E sou francês, conheço.
FORD: Bem – eu convidei para jantar. Enquanto servem, por favor,
venham comigo. Quatro passos no jardim, pra respirar um pouco. E rogo a
todos, me perdoem. Depois explicarei por que razão agi dessa maneira.
Vem, mulher – também você, Margarida. Pajem, vem. (Segura as mãos
dela) Eu peço, me perdoe. De todo coração, repito – me perdoem.
PAJEM: Vamos com Ford, amigos. Não faltará oportunidade, depois,
pra rirmos dele. Amanhã de manhã, estão todos convidados para o almoço
em minha casa. Depois iremos juntos à caça; quero experimentar o meu
novo falcão passarinheiro. Aceitam?
FORD: Você é quem manda.
EVANS: Se fai um, quero ser o segundo.
CAIO: E se fai um e o secundo, eu ser o terceiro.
EVANS: (À parte) Três é uma conta poa pra francês.
FORD: (Dando passagem a Pajem) Por favor.
EVANS: Eu quero petir tampém não esquecer o amanhã esse patife
piolhento do meu Hospedeiro.
CAIO: Ah, pom lembrançamento. Aprofo!
EVANS: Canalha piolhento. Permitir-se tais princateiras, lipertates com
xente como nós. (Saem)
Cena IV

Um aposento na casa de Pajem. (Entram Fenton e Ana Pajem.)


FENTON: Concluí que é impossível conseguir o afeto de teu pai. Por
isso, Ana querida, te rogo que não insistas mais para eu falar com ele.
ANA: E que fazer, então?
FENTON: É você quem decide. Ele se opõe porque acha demasiado
alta a minha origem; pensa que, meu patrimônio desgastado por uma
existência dissoluta, procuro refazê-lo à custa do teu dote. Mas, além disso,
coloca entre nós outras barreiras; minhas antigas agitações, más
companhias. E diz mesmo, bem claro, que é impossível eu sentir por você
outro interesse que não o do dinheiro.
ANA: Talvez tenha razão.
FENTON: Não. E se minto, que de hoje em diante o céu me
desampare! Porém, confesso, a fortuna de teu pai foi o motivo que me
induziu a te fazer a corte. Mas no instante mesmo em que te conheci achei
que você valia mais do que todas as arcas de ouro deste mundo. Agora
desejo apenas você mesma – a maior riqueza de teu pai.
ANA PAJEM: Gentil, amado Fenton, te peço – procura ainda
conquistar meu pai. Quem sabe? Se a humildade e a oportunidade nada
conseguirem então... vem cá, escuta (Conversa à parte. Entram Reduzido,
Magrela, e Leva-e-Traz.)
REDUZIDO: Interrompe essa conversa, Madame Leva-e-Traz. O meu
parente aqui tem que falar com ela.
MAGRELA: (Apavorado) Só uma palavrinha ou duas. Lhe dou uma
flor e digo um galanteio? Será muito arriscado? Tenho que aventurar.
REDUZIDO: Não mostra timidez. Agride.
MAGRELA: Timidez eu não tenho. Eu tenho é medo.
LEVA-E-TRAZ: (A Ana) Por favor, um minuto. Está aí o senhor
Magrela que deseja lhe dizer uma palavra.
ANA: Eu já vou. (À parte) É o candidato do papai. Oh, trezentas libras
por ano tornam formoso até um burro cego.
LEVA-E-TRAZ: E como vai o meu estimado senhor Fenton? Posso lhe
falar um instantinho?
REDUZIDO: Lá vem ela; coragem, meu sobrinho. O pai que tu
tiveste...
MAGRELA: Você precisava ter conhecido meu pai, minha cara Ana –
meu tio aí pode lhe contar uma porção de coisas dele de morrer de rir; eu
não me lembro bem. Tio, quer fazer o favor de contar aqui pra ela aquela
história das duas galinhas que meu pai roubou do galinheiro e elas nem
acordaram?...
REDUZIDO: Senhorita Ana, meu sobrinho quer dizer que a adora.
MAGRELA: É isso mesmo que eu queria dizer; por aqui não tem
nenhuma mulher que eu ame como ela.
REDUZIDO: (Repreendendo) Como ela! Moela é de galinha! (A Ana)
E promete lhe dar uma vida de fidalga.
MAGRELA: Mas isso é claro, uma posição alta e nobre, isto é: nunca
superior à de escudeiro.
REDUZIDO: E lhe dará uma pensão de cento e cinqüenta libras
esterlinas.
ANA: Escuta aqui, bom mestre Reduzido, será que ele não pode me
conquistar sozinho?
REDUZIDO: Ô! Agradecido! Eu lhe agradeço demais pelo descanso.
Sobrinho, fala com ela – eu vou andando.
ANA: Então, senhor Magrela?...
MAGRELA: Então, senhorita Ana?
ANA: (Imitando-lhe o ridículo) Que deseja agora? Qual é sua última
vontade?
MAGRELA: Minha última vontade! É muito boa! Minha última
vontade? Ah, Ah, Ah! Mas nem pensei ainda em testamento, graças a Deus.
Sou tão jovem e saudável...
ANA: Quero saber, caro senhor, qual é sua última intenção a meu
respeito.
MAGRELA: Olha aqui, falar verdade, da minha parte eu acho que não
quero nada da senhorita. Quem andou por aí trançando as coisas foi seu pai
e foi meu tio. Se a sorte resolver que eu tenho que ficar consigo, muito bem;
se for o contrário, então, melhor. O bom bocado não é para quem quer mas
pra quem o come. Acho que os velhos podem explicar muito melhor o que é
que eu quero. Pergunta a seu pai que eu pergunto a meu tio. Olha aí. (Entra
Pajem com a mulher.)
PAJEM: Como vai, mestre Magrela? Goste dele, minha filha. Ele
merece. Mas, que é isso? Desculpe, senhor Fenton, que faz aqui? O senhor
me ofende insistindo em freqüentar minha casa. Já lhe disse que sua
presença não me é grata. Se não ouviu, repito; minha filha está
comprometida.
FENTON: Lhe rogo de joelhos, senhor Pajem, não se irrite.
M. PAJEM: Eu lhe peço também, bondoso Fenton; não importune mais
minha menina.
PAJEM: Ela não lhe serve. Nem o senhor a ela.
FENTON: O senhor pode me ouvir um pouco?
PAJEM: Não, meu caro rapaz, não quero ouvi-lo. Vamos, Dom
Reduzido, e você também, filho Magrela. Conhecendo minha decisão, me
ofende em insistir, prezado Fenton. (Saem Pajem, Reduzido, e Magrela.)
LEVA-E-TRAZ: Fala com a mãe dela.
FENTON: Esplêndida senhora Pajem, porque amo sua filha com a mais
profunda sinceridade, me recuso a bater em retirada. Sejam quais forem os
aborrecimentos, obstáculos e repulsas, o meu dever é um só – fazer triunfar
as cores deste amor. Por favor – sua boa vontade.
ANA: Mãe querida, não me obrigue a casar com esse idiota.
M. PAJEM: Também não quero isso. Acho que você merece um
marido melhor.
LEVA-E-TRAZ: Refere-se a meu amo, grande cirurgião, o doutor
Caio?
ANA PAJEM: Que horror! Preferia ser enterrada viva, apedrejada com
batatas ou embatatada com pedras.
M. PAJEM: Vamos, não se aflija demais, estimado Fenton, e não
desespere. Não me conte como amiga mas também não me receie como
adversária. Vou conversar com Ana para saber até onde vai o amor que ela
lhe tem. O que ela sentir me servirá de guia. Mas até lá, adeus; Ana agora
tem que ir pra casa. O pai pode ficar zangado.
FENTON: Adeus, gentil senhora. Adeus, Aninha. (Saem M. Pajem e
Ana.)
LEVA-E-TRAZ: Tudo obra minha. Eu disse a ela: “Como, minha
senhora, vai entregar a sua filha única a um imbecil ou a um doutor? Mas
nem pensou no senhor Fenton? Tudo obra minha”.
FENTON: Eu te agradeço. E te peço: hoje à noite, quando estiveres
com Aninha, lhe entrega esta lembrança. (Lhe dá um anel) Toma, pelo teu
esforço.
LEVA-E-TRAZ: Que o céu te cubra de prosperidade! (Sai Fenton) Um
belo coração: Qualquer mulher devia correr em cima d'água ou no meio do
fogo por um homem assim. Mas, apesar de tudo, eu preferia que Ana
ficasse com o doutor, meu amo: ou então que o bobo Magrela a
conseguisse; ou que a possuísse o senhor Fenton. Farei tudo que puder,
lutarei pelos três até o fim. Eu prometi e vou cumprir minha palavra; mas
acho que vou cumprir mais pra esse aí. Hiii, tenho que levar aquele recado a
João Falstaff. As senhoras me mandaram há tanto tempo. Que besta eu sou!
Que esquecimento! (Sai.)
Cena V

Um quarto na Estalagem da Jarreteira. (Entram Falstaff e Bardolfo.)


FALSTAFF: Bardolfo, onde é que se meteu?
BARDOLFO: Aqui, senhor.
FALSTAFF: Depressa, me traz um vaso de Canárias e uma torrada.
(Sai Bardolfo) Será que eu vivi até aqui para ser vergonhosamente
carregado numa cesta e atirado no Tâmisa como detrito de latrina? Olha
Falstaff, se, imbecil, tu cais numa outra igual, eu faço arrancar os teus
miolos, mando passá-los na manteiga e os atiro aos cachorros como
presente de Ano Novo. Os dois canalhas me jogaram no rio com a mesma
tranqüilidade com que atirariam o filhotinho cego de uma cadela que tivesse
quinze. E qualquer idiota pode ver, pela minha extensão e por meu peso,
que a minha propensão é ir pro fundo. Se o fundo do rio fosse o inferno eu
ia bater lá, e me afogava. Afogava! Por Deus, uma morte que sempre me
horroriza pois a água incha. Eu eu, inchado, já imaginaram? Todos iam
pensar que era uma múmia de montanha. (Entra Bardolfo com o vinho.)
BARDOLFO: Aí está Madame Leva-e-Traz, patrão, que quer falar
consigo.
FALSTAFF: Primeiro deixa eu misturar um pouco de vinho nas águas
do Tâmisa. (Bebe) Estou com a barriga tão fria como se tivesse engolido
bolas de neve como pílulas para os rins. Manda ela entrar.
BARDOLFO: Entra, mulher! (Entra Leva-e-Traz.)
LEVA-E-TRAZ: Com sua permissão... Me favoreça a mercê de
bomdiar Vossa Senhoria.
FALSTAFF: Bomdio-a eu também. (A Bardolfo) Limpa isso tudo aí,
leva esses copos. E me prepara uma bebida quente.
BARDOLFO: Ponho ovo dentro, patrão?
FALSTAFF: Não, ovo não! Acha que eu quero beber esperma de galo a
uma hora dessas? (Sai Bardolfo) Pode dizer.
LEVA-E-TRAZ: Quem me mandou aqui foi a senhora Ford.
FALSTAFF: A senhora Ford! Estou aqui mais morto do que vivo por
causa da senhora em questão. Pode dizer a essa senhora Ford que eu vou à
forra.
LEVA-E-TRAZ: Ah, maldito dia! Ah, não a condene. Não é culpa
dela. Ficou furiosa com os criados. Eles não entenderam as destruções dela.
FALSTAFF: Eu também não entendi bem. Fui me fiar nas promessas
de uma louca.
LEVA-E-TRAZ: Olha, senhor, ela sofre tanto pelo que aconteceu que
se o senhor a visse ficaria com o coração deste tamanho. O marido dela vai
à caça esta manhã: ela deseja ardentemente que o senhor volte lá – lhe dê
essa oportunidade! – entre as sete e as oito. Preciso de uma resposta
imediata. Ela promete lhe dar todas as desculpas e... muitas compensações.
FALSTAFF: Bem, vou visitá-la. Pode dizer a ela. Mas diz também para
que pense bem no que é um homem. Quando verificar o quanto é frágil a
natureza masculina poderá melhor avaliar meu mérito.
LEVA-E-TRAZ: Eu digo a ela.
FALSTAFF: Vai. Diz. Entre nove e dez, não é isso?
LEVA-E-TRAZ: Oito e nove, senhor.
FALSTAFF: Pode ir. Estarei lá.
LEVA-E-TRAZ: Que a paz fique consigo. (Sai)
FALSTAFF: Estranho que o tal Fontes ainda não tenha aparecido.
Mandou-me dizer que o esperasse. Eu gosto muito do dinheiro dele. Ó, aí
está. (Entra Ford, disfarçado.)
FORD: Bom dia, amigo.
FALSTAFF: Caro Fontes, não precisa dizer nada. Deve estar ansioso
para saber o que se passou entre eu e a mulher de Ford?
FORD: Exato. Morro de ansiedade.
FALSTAFF: Amigo Fontes, não vou lhe mentir: na hora exata
combinada eu estava lá na casa dela.
FORD: Mas, não me diga! Tudo andou bem?
FALSTAFF: Até um certo ponto.
FORD: Até que certo ponto?
FALSTAFF: Até o ponto em que passou a andar mal.
FORD: Nesse momento ela mudou de idéia.
FALSTAFF: Pelo contrário, mostrou-se decidida e carinhosa até o fim.
FORD: Até o fim?
FALSTAFF: Isto é, até o momento em que os imensos chifres do
marido apareceram em cena. Por que o cornudo, que vive no estado de
alarme comum aos ciumentos, chegou no instante fatal, quando já tínhamos
nos abraçado, nos beijado, feito mil protestos de amor, em suma, terminado
o introito de nossa rapsódia. Mas o introito mesmo foi interrompido quando
a manada de amigos que vinha atrás de Ford, açulada, instigada e
provocada pelo furor daquele louco, começou a virar a casa toda querendo
esquartejar o amante – este seu humílimo criado.
FORD: Que a essa altura, é evidente, já tinha se evadido.
FALSTAFF: Não. Não. Enquanto eu estava lá, vendo e ouvindo tudo!
A distância entre mim e o cornudo era a mesma que há agora, entre nós
dois.
FORD: Então estavam cegos.
FALSTAFF: Escuta só. Por sorte, quando estávamos os dois nos
prolegômenos, entrou esbaforida uma senhora Pajem, gritando que Ford
vinha vindo. Com o conselho dela e o desespero da mulher de Ford, acabei
enfiado no cesto da lavanderia.
FORD: No cesto, é?
FALSTAFF: Com a ajuda de Deus, um cesto imundo! Entre camisas e
ceroulas daquele porco estúpido, toalhas lambuzadas, guardanapos
gordurosos, panos de chão, lenços catarrentos, meias chulentas, calções
gosmentos, toucas com caspa, peitilhos babados, babados besuntados,
fronhas remelentas, lençóis com manchas suspeitas, trapos purulentos,
fraldas borradas, enfim uma fedentina, uma catinga, uma morrinha, uma
merdice como jamais ofendeu nariz humano ou mesmo desumano.
FORD: E quanto tempo você agüentou isso?
FALSTAFF: Bem, nem lhe conto, mestre Fontes, o que eu sofri para
conduzir essa mulher ao pecado e abrir para o senhor as portas dela. Assim,
todo enrolado na canastra, ouvi chegarem dois criados de Ford, dois
velhaquinhos a quem a senhora mandou que levassem pra lavar aquela
roupa suja. Me puseram nos ombros; mas, ao chegar na porta, esbarramos
com o canalha do marido ciumento, que perguntou bem quatro vezes o que
é que eles levavam ali na cesta. Eu tremia de medo que o lunático senil
quisesse olhar lá dentro. Mas o destino, que o destinou pra corno a vida
inteira, segurou a mão dele. Bem, lá se foi ele pra dentro revistando, e lá fui
eu pra fora aliviado. Aliviado em termos, pois sofri o terror de três mortes
diversas: primeiro o terror de ser achado por aquele carneiro de chocalho.
Segundo, o sofrimento físico de ficar assim enrolado como uma espada de
Bilbao, quando se experimenta a lâmina juntando punho e ponta, pé e
cabeça. Terceiro: nadar naquela essência de imundície de panos,
fermentando em minha própria banha. Pense na situação – um homem de
minha compleição, do meu tamanho – já pensou nisso? – que sofre mais
com o calor do que manteiga, que está sempre perto do estado de
liquefação, suando e derretendo. Ah, foi um milagre escapar à asfixia. E
quando eu estava no máximo do suor, meio frito ou cozido, não sei bem,
vermelho em brasa, sou atirado ao Tâmisa e esfriado – shóóóóóóóóóó! –
como uma ferradura de cavalo. Já pensou nisso, mestre Fontes?
FORD: Lamento com toda sinceridade que tenha sofrido tanto para me
ajudar. Mas depois do que me conta, sei que tudo é inútil. Meu caso é
desesperado. Compreendo que não queira mais nem chegar perto dela.
FALSTAFF: Olha, senhor Fontes, não sou desses que cedem com
facilidade. Já me jogaram no Tâmisa: mas vão ter que me jogar no Etna. O
marido hoje de manhã saiu à caça. Ela já me mandou um recado dizendo
que me espera. Se quer saber a hora do encontro é entre oito e nove.
FORD: Pois já passa de oito, meu amigo.
FALSTAFF: Já? Então devo ir correndo. Quando quiser venha de novo
que eu lhe conto até onde cheguei. Eu chego lá! O senhor será coroado com
a coroa que merece. Adeus. O senhor a terá, amigo Fontes. Amigo Fontes,
se tudo correr bem, você corneia Ford. (Sai)
FORD: Hum, me digam – será uma alucinação? Um pesadelo? Eu
durmo? Honrado Ford, acorda! Acorda! Acorda, honesto Ford! Estou vendo
um furo no teu melhor casaco, amigo Ford. Pra isso se é casado! Pra isso se
tem lençóis de linho e cestas de lavagem. Bem: vou proclamar o que sou,
mas o lascivo imundo não me escapará. Está na minha casa. Não pode fugir.
Desta vez não consegue. É impossível. Não vai poder se esconder numa
bolsa de moedas ou num saleiro. Mas como o demônio, seu mentor, pode
ajudá-lo, vou encontrá-lo esteja onde estiver, pois pretendo procurar até no
impossível. Não posso evitar ser o que sou, mas ninguém me chamará de
manso. Sei que sou corno mas pelo menos inverterei a ordem dos fatores –
e vou chifrar em vez de ser chifrado. (Sai)
ATO IV
Cena I

Na rua. (Entram a senhora Pajem e Leva-e-Traz.)


M. PAJEM: Já são oito horas. Você acha que ele vai acreditar de novo
em nós?
LEVA-E-TRAZ: Não tenho qualquer dúvida. Ficou logo tonto, quando
abri no nariz dele o frasco do pecado. A esta hora já deve estar em casa de
Madame Ford. Mas achei-o realmente índio guinado...
M. PAJEM: Indignado.
LEVA-E-TRAZ: Indignado por ter sido atirado dentro d'água. Madame
pediu que a senhora venha logo, não deixe ela sozinha com a fera. Não é
que tenha medo, mas o marido, apesar dos chifres, é um homem.
M. PAJEM: Vou imediatamente. É só deixar meu filho ali na escola.
(Saem.)
Cena II

Quarto em casa de Ford. (Entram Falstaff e a senhora Ford. Num canto a


cesta fatídica, que Falstaff olha com aborrecimento.)
FALSTAFF: Querida amiga, sua tristeza por todo o acontecido apagou
em mim qualquer ressentimento. Vejo que o seu amor é límpido e prometo
que o meu será de transparência igual. Não haverá entre os dois a diferença
de um fio de cabelo. Me dedicarei a você não só no ato do amor, que para
mim é simples, mas em tudo mais que o acompanha – complementos,
suplementos e sortimentos, a cerimônia global de uma paixão. Mas, você
está certa agora de que o seu marido...? Hein? Vê lá.
M. FORD: Ele está passarinhando, meigo João...
M. PAJEM: (Fora de Casa) Tem gente aí? Comadre Ford! Tem gente
aí!?
M. FORD: Meu Deus. Entra no quarto, Falstaff. (Sai Falstaff. Entra M.
Pajem.)
M. PAJEM: (Entrando) Me diz aqui, meu bem – você não está
sozinha!!!
M. FORD: Claro que não. Há os criados. E Deus, que está em toda
parte.
M. PAJEM: Não diz.
M. FORD: Que é isso, Meg (À parte) Fala mais alto!
M. PAJEM: Ainda bem que não há ninguém estranho.
M. FORD: Por quê?
M. PAJEM: Porque, comadre, teu marido está outra vez de lua. Grita
com meu marido, lançando pragas contra toda a raça conjugal, maldiz todas
as filhas de Eva, de qualquer forma e tamanho, e dá tapas na testa gritando
o tempo todo; “Despontem! Despontem logo!” Todas as loucuras que vi na
vida parecem paciência, civilidade e contenção perto da fúria dele. Ainda
bem que o gordão não está aqui.
M. FORD: Por quê? Meu marido se refere a ele?
M. PAJEM: Ué, só fala dele! Grita que, da última vez, não conseguiu
pegá-lo porque ele foi carregado numa cesta. Agora convenceu os amigos –
meu marido inclusive – a abandonar a caça para serem testemunhas do
adultério. Graças à Deus que o gordo não está aqui. Vamos ver se teu
marido se convence de que não tem motivos de suspeita.
M. FORD: Mas, diz aqui – ele onde está?
M. PAJEM: Quase chegando. Vinham todos correndo pela rua.
M. FORD: Estou desgraçada! O homem está aí!
M. PAJEM: Então, não há salvação! Você é uma desonrada, e ele, um
homem morto. Que espécie de mulher, meu Deus! Manda ele sair! Manda
ele embora. É melhor a vergonha do que a morte. (A cabeça de Falstaff que
aparece.)
M. FORD: Mas, por onde vai fugir? Onde o posso esconder? Ah, já sei.
Vamos botá-lo outra vez na cesta.
FALSTAFF: (Entrando) Ah, isso nunca! Na cesta não entro mais. Não
dá pra eu sair, antes que ele chegue?
M. PAJEM: Isso é impossível. Três irmãos do senhor Ford vigiam as
portas, armados de pistola... Mas, o que é que o senhor faz aqui?
FALSTAFF: O que eu faço aqui já não interessa. Quero saber o que é
que eu faço pra sair daqui. Ah, vou me esconder dentro da chaminé.
M. FORD: É uma idéia. Mas todos eles, quando vêm da caça, têm a
mania de descarregar lá dentro as espingardas.
M. PAJEM: Não poderia se esconder no forno?
FALSTAFF: Onde? Onde?
M. FORD: É um pouco quente. Meu marido acendeu o forno de manhã
para preparar as aves que caçasse. Olha, não há lugar. Eu sei: ele vai
examinar casa, baú, armário, cofre, arca, fonte, celeiro, prateleira, dedal,
fundo de agulha, procurar até em lugares abstratos. E se a memória falhar
tem uma lista de todos os lugares do corpo onde um homem pode se
esconder.
FALSTAFF: Então, eu saio!
M. PAJEM: Eu lhe aviso, Dom Falstaff, se sai com essa cara de
consigomesmo, é um homem morto. Tem que se disfarçar...
FALSTAFF: Disfarçar, como?
M. FORD: Disfarçar de mulher, naturalmente.
FALSTAFF: Um travestido, eu?
M. PAJEM: Acho que não é possível. Ninguém vai acreditar numa
mulher desse tamanho. Senão ele poderia pôr um chapéu, um véu, uma
mantilha, uma saia rodada, e assim, fugir.
FALSTAFF: Por favor, arranjem qualquer coisa. Eu ponho. Eu ponho.
Vou a qualquer extremo para evitar uma desgraça. Farei tudo pra não
comprometê-la.
M. FORD: Ah, que sorte! A tia da minha camareira, aquela gordona de
Brainford, deixou uma bata aí para lavar.
FALSTAFF: Roupa suja de novo?
M. FORD: A roupa deve servir. Acho até que a mulher é mais gorda
que ele. Vai lá em cima, depressa, Dom João. Tem também um chapéu de
palha e uma mantilha sobre o catre. Vai, gentil amigo, enquanto eu e ela
procuramos alguma coisa com que esconder teu rosto.
M. PAJEM: Depressa. Já subimos para te ajudar. Vai vestindo o
vestido. (Sai Falstaff.)
M. FORD: Temos que fazer tudo pra ele ficar bem parecido com a
mulher. Meu marido não a suporta. Jura que é uma bruxa. Disse que se a
encontrasse aqui de novo lhe quebrava a cabeça com pauladas.
M. PAJEM: Que Deus o coloque debaixo do cacete de teu homem e
que o demônio dê forças ao cacete.
M. FORD: Meu marido vem mesmo?
M. PAJEM: Infelizmente, sim. Não sei quem lhe falou da cesta. Está
obcecado.
M. FORD: Vamos aproveitar isso. Mandamos os homens levar de novo
a cesta, só para ver o que ele faz.
M. PAJEM: Não temos tempo. Já deve estar chegando. Vamos
depressa ajudar o bruxo a transformar-se em bruxa.
M. FORD: Já vou. Mas antes devo dizer aos criados o que fazer com a
cesta. Pode subir; vou apanhar um véu de renda pra donzela gorda. (Sai
Madame Pajem.)
Devíamos era enforcar o sacripanta.
Apenas zombar dele, não adianta.
Mas vamos lhe provar, com minha conduta
Que ser mulher alegre não é ser... truta.
Nós rimos e brincamos, mas não damos.
Enquanto as que se calam... concordamos?
Não se percam na história; é abjeto
Esse porco maior: o come-quieto.
(Entram criados) Vamos, rapazes, carreguem de novo o cesto. Vocês
vão esbarrar com o patrão aí na porta. Se ele mandar que ponham o cesto no
chão, obedeçam logo. Andem! (Sai)
CRIADO I: Pega aí. Força!
CRIADO II: Tomara que desta vez a patroa tenha metido aí um homem
mais magro.
CRIADO I: Tomara. Aquele de ontem não é qualquer um que agüenta.
(Entram Ford, Pajem, Reduzido, Caio e Dom Hugo Evans.)
FORD: Está bem, Pajem, está bem, mas se desta vez eu te provar que é
tudo verdade, com que cara você fica? Ponham no chão essa cesta, seus
canalhas! Chamem minha mulher: Sai dessa cesta, Moisés da vilania.
Rufiões e traidores, todos! Há nesta casa uma conspiração, uma cabala, um
complô, uma intriga – um nojento adultério protegido por todos. Mas agora
o demônio vai tirar a máscara. Vem, mulher, mostra esse rosto infiel. Vem,
aqui, aqui. Estou mandando. Agora esta cesta não me sai da porta: a roupa
suja a gente lava é em casa.
M. PAJEM: Acho que isso já passa dos limites. Dom Ford, o senhor
não pode mais andar na rua! Tem que ser amarrado e internado.
EVANS: Estar mesmo lunático. Mais louco que cachorro doido.
REDUZIDO: Me parece, senhor Ford, que isto não seja próprio, me
parece. Assim não pode...
FORD: É eu que digo também – assim não pode. (Entra M. Ford.)
Chega aqui, minha cara senhora. Os senhores conhecem? Madame Ford,
modelo de honradez. Virtude inabalável. Esposa dedicada. Criatura
virtuosa. O marido? Um imbecil ciumento que desconfia sem qualquer
motivo. Suspeito sem motivo? Diz a eles.
M. FORD: Que posso responder? Você tem razão; quem suspeita de
minha honestidade só pode ser um imbecil ciumento.
FORD: Mas que descaramento! Pois bem, chegou a hora da verdade.
Salta daí, canalha. (Põe-se a tirar as roupas do cesto, furioso.)
PAJEM: Isso ultrapassa!...
M. FORD: Você não se envergonha? Deixa essa roupa em paz.
FORD: Eu sei que tem alguém.
EVANS: Mas é uma loucuro. Mostrar assim em público os roupas
íntimos da mulher. (Pega um corpinho.)
M. FORD: Mas não vê que não tem ninguém? Acaso eu amo um anão?
FORD: Virem a cesta!
M. FORD: Mas que é isso? (Os criados viram a cesta.)
FORD: Amigo Pajem, ontem, enquanto procurávamos, ele fugiu daqui
metido nesta cesta; hoje é evidente que está aí de novo. Eu sei que entrou na
minha casa. Minha informação é certa, meu ciúme fundado. Vejam peça por
peça. (Ele procura, ridiculamente.)
PAJEM: Aqui não tem ninguém.
M. FORD: Que tamanho ele tem – é uma pulga?
REDUZIDO: Por minha fé. Dom Ford, isso não fica bem; ridiculariza
o senhor e sua esposa.
EVANS: Caro Ford, focê tem que reconhecer ser tudo seu imaginaçon
doentia. Ciúmes.
FORD: Realmente, aqui ele não está.
PAJEM: Nem em parte alguma. Está em tua cabeça.
FORD: Me ajudem a revistar a casa só mais esta vez. Se eu não
encontrar o que procuro, não mereço perdão por meus excessos. Que eu
seja para sempre motivo da zombaria de vocês. Que todos digam: “Tão
ciumento como Ford, que partiu uma avelã para procurar lá dentro o ai-
Jesus da mulher dele.” Só esta vez, repito – me ajudem a procurar.
M. FORD: Olá, Margarida! Por favor, desce com a velha que meu
marido quer revistar aí o quarto.
FORD: Velha? Que velha é essa?
M. FORD: A tia da minha camareira. Aquela que mora em Brainford.
FORD: Como? A impostora, a bruxa, aquela velha cafetina? Mas eu
não a proibi de botar os pés na minha casa? Ela vem com recadinhos, não
vem não? Eu sou um homem simples – desconfio apenas; sei que nunca vou
entender toda a perfídia que se esconde por trás da profissão das
cartomantes. Ela trabalha com fluidos, encantos, exorcismos, toda uma
alquimia sobrenatural que ultrapassa as fronteiras da razão – nós não
sabemos nada. Desce daí, maldita, desce megera, vem cá, carcaça
carcomida.
M. FORD: Por favor, não. Isso não, meu bom marido. Amigos, não
deixem que ele espanque a pobre velha. (Entra Falstaff vestido de mulher,
guiado por Madame Pajem.)
M. FORD: Por aqui Tia Anca – me dá tua mão.
FORD: Por aqui, Tia Anca, que Ford te desanca. (Bate nele) Fora da
minha porta, velha rameira, cigana, porca! Fora, canalha, aleijão, monte de
banha. Toma, megera. Vou tirar tua sorte: espera! Toma a boa fortuna! (Sai
Falstaff.)
M. PAJEM: Mas o senhor não se envergonha? Quase matou a pobre
mulher.
M. FORD: Não ficará contente enquanto não o fizer. Será uma glória.
FORD: É isso mesmo: inda vou enforcá-la nessa porta.
EVANS: Pela sim e pela não eu achar que era mesmo um feiticeira. Em
toda minha vida eu tever medo de mulher parpada; e essa daí tinha uma
parba enorme empaixo do mantilha.
FORD: Querem me acompanhar, senhores? Me dêem essa
oportunidade. Vamos verificar juntos se existe causa para o meu ciúme. Se
também desta vez berrei inutilmente, eu sou um cão; não me acudam mais
quando eu latir de novo.
PAJEM: Seja como ele quer, vamos até o fim. (Saem Ford, Pajem,
Reduzido, Caio e Evans.)
M. PAJEM: Mama mia, como ele apanhou. Ele ficou em estado
lastimável.
M. FORD: Pode ser que o estado seja lastimável mas ninguém vai
lastimar.
M. PAJEM: Acho que aquele pau devia ser benzido e posto no altar da
fidelidade. Prestou um serviço meritório.
M. FORD: Que é que você acha? Devemos nos dar por satisfeitas ou
tornamos a usar nossa reputação imaculada para castigar o gordo ainda
mais?
M. PAJEM: Bem, acho que a surra lhe tirou de vez toda a luxúria. Se o
contrato dele com o diabo não é pra toda a vida a essa hora já está desfeito.
Não vai mais nos tentar.
M. FORD: Convém contar aos nossos maridos tudo que aconteceu?
M. PAJEM: Claro que sim: pelo menos para aliviar a mente de teu
pobre esposo. Se eles acharem que o cavalheiro banhudo ainda não pagou
tudo, inventaremos meios de cobrarem o resto.
M. FORD: Penso que ele devia ser publicamente desmoralizado. Acho
que a lição não se completa, e a comédia não acaba se o vilão não for
exposto a essa vergonha.
M. PAJEM: Então temos que agir depressa, enquanto a coisa é quente.
Não se deve malhar em ferro frio. (Saem.)
Cena III

Um quarto da Hospedaria da Jarreteira. (Entram o Hospedeiro e


Bardolfo.)
BARDOLFO: Patrão, os alemães desejam três cavalos; o duque em
pessoa vai chegar amanhã na Corte e os alemães precisam ir ao encontro
dele.
HOSPEDEIRO: Que diabo de duque é esse que chega tão
secretamente? Na Corte ninguém me falou nele. Eu quero conversar com os
moços: eles falam inglês?
BARDOLFO: Sim senhor. Vou avisar a eles.
HOSPEDEIRO: Terão os meus cavalos; pagando, é claro. Um preço
alto. Alemães, é? Vou depená-los. Ficaram com minha casa à disposição
deles uma semana inteira; tive que mandar embora os outros hóspedes.
Agora vou à forra. Vou depená-los. (Sai.)
Cena IV

Um quarto na casa de Ford. (Entram Pajem, Ford, Madame Pajem,


Madame Ford, e Dom Hugo Evans.)
EVANS: Uma de as mulheres mais intelixentes que xamais conheci.
PAJEM: E ele mandou as duas cartas ao mesmo tempo?
M. PAJEM: Com uma diferença de minutos.
FORD: (Ajoelhando-se) Perdoa-me, querida. De agora em diante você
pode fazer o que entender – antes de duvidar de ti suspeitarei primeiro do
calor do sol. Creio que agora aquele herege tem pelo menos uma fé – a tua
honestidade.
PAJEM: Está bem, chega. Não seja tão extremo na submissão quanto
na ofensa. Devemos desenvolver mais nossa trama. Nossas mulheres vão
atrair outra vez o velho barrigudo que, desta vez, não tem como escapar.
Nós dois o agarramos e o desgraçamos.
FORD: Acho que, então, o melhor é executar a idéia delas.
PAJEM: Mandando dizer pra ele ir se encontrar com ela no parque à
meia-noite? Ele não irá nunca!
EVANS: Me tisseram que ele foi xocado no rio: que lefou uma surra da
espantar cachorro: teve estar tão aterrorizado que non fai venir. A carne
assim punida non tem mais tessejos.
PAJEM: Também acho.
M. FORD: Vocês resolvem o que fazer com ele quando estiver no
parque. Nós damos um jeito dele ir.
M. PAJEM: Conta uma velha história que Herne, o caçador, guarda-
campestre das matas de Windsor, durante o inverno volta sempre aqui, à
meia-noite. Traz na cabeça dois chifres imensos, dança ao redor de um
carvalho velho. Sua aparição resseca as plantas, assusta o gado e faz as
vacas verterem, em vez de leite, sangue. Com um ruído aterrador arrasta
uma corrente que... vocês já ouviram falar dessa alma penada e sabem que
os mais ignorantes acreditam nela como verdadeira.
PAJEM: E basta escurecer que, ainda hoje, muitas pessoas evitam
passar por aquele carvalho. Mas, qual é tua idéia?
M. FORD: Vamos marcar ali um encontro com Falstaff. Deve chegar
disfarçado de Herne, com dois grandes chifres na cabeça.
PAJEM: Digamos que ele venha. Que fazemos com essa coisa estranha
quando a segurarmos pelo rabo?
M. PAJEM: Já está tudo pensado e é assim: Aninha, minha filha, o
irmão, e mais três ou quatro jovens como eles, vão se fantasiar de fadas,
diabretes e gnomos, todos de verde e branco, com coroas de velas na cabeça
e chocalhos na mão. Assim que ela e eu começarmos a falar com Falstaff,
os jovens saem do fosso que há ali perto e correm para ele, cantando e
gritando as coisas mais estranhas. Diante disso, é natural, sua mulher e eu
fugimos apavoradas. Os garotos então cercam o impuro e, como é hábito
das fadas, começam a beliscá-lo sem dó nem piedade, obrigando-o a
confessar o que faz, vestido de jeito tão profano, em lugar tão sagrado.
M. FORD: E enquanto não confessar de público a verdade será
beliscado ferozmente e queimado com as tochas.
M. PAJEM: Uma vez desmascarado o fauno, nós nos apresentamos,
arrancamos os chifres do velhaco e o acompanhamos numa procissão de
zombaria até a casa dele.
FORD: É preciso ensaiar bem os rapazes pra que a coisa dê bom
resultado.
EVANS: Pote teixar comigo que eu ensaio neles. E eu mesmo fou me
fantassiar do sátiro para ter tampém o prasser de queimar um pouco o rapo
daquele imundo.
FORD: É excelente! Eu vou comprar as máscaras.
M. PAJEM: Aninha vai vestida de rainha das fadas, num vestido lindo,
todo branco.
PAJEM: Pode deixar que eu compro a seda do vestido. (À parte) Vou
instruir Magrela para que aproveite a dança, roube minha Aninha e case
com ela na Capela em Eton. (Alto) Mandem avisar logo o obeso Falstaff.
FORD: Eu vou lhe fazer uma visita em nome de Fontes. Vai me contar
todos os seus projetos. Ele vai ter que vir.
M. PAJEM: Não se preocupe. Precisamos que nos ajude arranjando
enfeites e apetrechos para as nossas fadas.
EVANS: Ah, vai ser um tiversson bem tivertente e, no fim, uma
felhacaria pem honesta. (Saem, Pajem, Ford e Evans.)
M. PAJEM: Eu acho melhor você mandar alguém imediatamente a
Falstaff, saber em que estado de espírito ele se encontra. (Sai M. Ford) Que
eu, vou ao doutor. É o meu preferido entre os que escolhem Ana. Esse
Magrela tem muita terra mas nenhum miolo. Não sei por que meu marido o
aprecia, pois o doutor, além de rico, tem amigos na Corte, ligações com os
que mandam. E além do mais, gosto dele. Sendo assim, é ele quem vai
casar com Ana, ainda que apareçam vinte e cinco mil outros mais dotados.
(Sai.)
Cena V

(Entram Hospedeiro e Simplicíssimus.)


HOSPEDEIRO: O que é que você quer, seu casca grossa? Diz logo, ô
caolho. Fala, cospe, vomita, discursa; mas pouco, hein, breve, tá ouvindo?
Curto, conciso, veloz, presto, pronto! Falei muito?
SIMPLICÍSSIMUS: Olha, senhor, eu queria falar com Dom João
Falstaff, da parte do cavalheiro Magrela.
HOSPEDEIRO: Lá está o quarto dele, os seus aposentos, sua casa, seu
castelo, seu tugúrio, sua cama fixa e leito de campanha. Tudo decorado com
a história moral do Filho Pródigo, um afresco que ainda está fresquinho.
Sobe, bate e chama. Mas toma cuidado que o homem é antropófago. Bate,
eu não disse?
SIMPLICÍSSIMUS: Tem uma velha, uma velha gorda, no quarto dele.
Eu vi quando subia. Se me permite, senhor, espero aqui que desça. Na
verdade eu vim falar com ela.
HOSPEDEIRO: O quê? Que mulher gorda? Mas, o cavalheiro pode
ser roubado! Eu vou chamá-lo. Esmerado cavalheiro! Esmerilhado Dom
João von Falstaff! Responde com teus brônquios militares. Tu estás aí? Se
não estás podes ficar calado. Quem está falando aqui é o estalajadeiro, teu
companheiro de armas e bagagens.
FALSTAFF: (De cima) Pois é. O quê? Fala, meu Hospedeiro.
HOSPEDEIRO: Aqui tem um Boêmio ou um Tártaro, não sei bem.
Está esperando descer a tua amante gorda. Joga ela aqui, cavalheiríssimo,
empurra a gorda escada abaixo, que os aposentos da casa não são pra certos
atos. Minhas paredes são paredes limpas. E nunca houve colchões tão
ilibados. Nada de reco-recos. Fora! (Entra Falstaff.)
FALSTAFF: Tinha mesmo, comigo, bom Hospedeiro, uma senhora
gorda. Acabou de ir embora.
SIMPLICÍSSIMUS: Desculpe, senhor Dom João, não era por acaso a
cartomante de Brainford?
FALSTAFF: Ela mesma em gordura e osso. Que é que você quer com
ela, tampa de moringa?
SIMPLICÍSSIMUS: É que o meu patrão, senhor, o cavalheiro
Magrela, viu quando ela entrava aqui e queria que ela botasse as cartas pra
saber se um tal Nunca, que roubou dele uma corrente de ouro, ainda está
com a corrente ou já vendeu.
FALSTAFF: Eu estava falando com ela sobre isso.
SIMPLICÍSSIMUS: E o que é que ela disse, meu senhor?
FALSTAFF: Disse que o sujeito que roubou a cadeia do teu amo foi o
mesmo que a furtou.
SIMPLICÍSSIMUS: Eu gostaria de falar com a mulher pessoalmente.
Talvez ela pudesse me explicar melhor. E eu tinha outras coisas pra falar
com ela. Da parte do patrão, eu digo.
FALSTAFF: Que espécie de coisas? Fala.
HOSPEDEIRO: Não te recomendei ser breve? Cospe.
SIMPLICÍSSIMUS: Não posso... Não posso.
HOSPEDEIRO: (Agarrando-o) Como não pode?
SIMPLICÍSSIMUS: Não posso ocultá-lo. É sobre Ana Pajem.
Desejamos apenas que a velha diga se meu amo Magrela vai casar com ela
ou não.
FALSTAFF: Casar com a velha? Vai.
SIMPLICÍSSIMUS: Casar com Ana ou não.
FALSTAFF: Com Ana? É isso mesmo.
SIMPLICÍSSIMUS: O quê?
FALSTAFF: Pode dizer a ele que a velha leu a sorte e que uma coisa é
certa. Ele vai casar com Ana ou não.
SIMPLICÍSSIMUS: Posso ter a ousadia de dizer a ele?
FALSTAFF: Vai, Ousado, diz.
SIMPLICÍSSIMUS: Agradecido a V. Senhoria. Meu patrão vai ficar
felicíssimo com essa informação. (Sai.)
HOSPEDEIRO: Mas que belo quiromante, Dom João. Que oráculo,
profeta, pitonisa. A nigromante estava mesmo aí?
FALSTAFF: Estava sim, Hospedeiro meu. E me ensinou mais coisas
do que aprendi em toda minha vida. E não me cobrou nada. Pelo contrário,
pagou pra eu aprender. (Entra Bardolfo.)
BARDOLFO: Misericórdia, patrão, misericórdia! Ladrões, todos
ladrões!
HOSPEDEIRO: Onde estão meus cavalos? Que aconteceu com eles,
lacaio de uma figa!
BARDOLFO: Foram roubados, senhor.
HOSPEDEIRO: Por quem?
BARDOLFO: Pelos ladrões. Montaram neles e fugiram. Quando
passamos por Eton eles me empurraram da garupa dentro de um lamaçal,
meteram as esporas nos cavalos e desapareceram. Eram três demônios
germânicos, meu patrão, três doutor Faustos.
HOSPEDEIRO: Eles estavam apenas com pressa de encontrar o
duque, canalhíssimo. Não diga que fugiram! Os alemães não roubam. Se
apropriam. (Entra Dom Hugo Evans.)
EVANS: Onde estar meu hospedeiro?
HOSPEDEIRO: Que deseja, reverendo?
EVANS: Eu querro afisar pro senhor tomar cuitado com os seus
brincadeiras e ficar de o olho. Encontrei acora uma amico meu que dizer
vem por aí três falsos tedescos que rouparam os cafalos e o tinheiro de
todas os fiaxantes de Readins, Maidenhead, Colebrook. Eu lhe falo só pra
seu próprio pem – o senhor é sabido, cheio de espírito e de zomparias e não
fai ser conveniente de todo mundo saibar que o senhor ser roupado. Adeus,
adeus. (Sai. Entra o Doutor Caio.)
CAIO: Onde está o mon hospedeiro da Jarretiê?
HOSPEDEIRO: Aqui, mestre cirurgião, mergulhado na perplexidade e
na dúvida.
CAIO: Eu não lhe possar tisser por que – mas me o contaram que o
senhor está com grantes preparatives para um enorme Duque da Germânia.
Eu só vir lho avisar, por o ser amigo, que no Corte ninguém conhecer o
duque não. Ateus, Ateus. (Sai.)
HOSPEDEIRO: Corre e grita, vilão. Grita ladrão! Ladrão! Me ajuda,
cavalheiro! Estou desgraçado! Voa, corre, grita, berra, miserável! Estou
arruinado! (Saem o Hospedeiro e Bardolfo.)
FALSTAFF: Eu queria que todo mundo fosse tapeado poque eu fui
tapeado e espancado. Se chegar ao ouvido da Corte que fui visto travestido
e que, travestido, fui surrado – sem falar que já tinham antes me lavado, ah,
me espremeriam as banhas gota a gota e lustrariam com ela as botas da
nobreza. Me perseguiriam com tantas ironias que a humilhação me deixaria
mais seco que uma passa seca. É; nunca mais na vida ganhei um níquel
honesto desde o dia em que roubei no jogo. Se ainda tivesse fôlego para um
padre-nosso eu juro que me arrependia. (Entra Leva-e-Traz.)
FALSTAFF: De onde é que você vem?
LEVA-E-TRAZ: É preciso dizer? Da parte de ambas e de ambas as
partes.
FALSTAFF: Pois que o diabo fique com uma amba e a mulher do
diabo com a outra. Só no enxofre as duas ficariam bem acomodadas. Eu
sofri mais por causa delas do que pode pagar a infame inconstância da
condição humana.
LEVA-E-TRAZ: E elas não sofreram? Demais, eu lhe garanto.
Especialmente uma delas, Madame Ford, pra ser exata. Pobre mulher, o
corpo todo malhado, marcado de manchas roxas e azuis. Não se vê nem um
ponto branco daquela pele admirável.
FALSTAFF: E você vem me falar de roxo e azul? Eu fiquei com todas
as cores do arco-íris. E quase que fui preso como bruxa. Não fosse a
extraordinária agilidade da minha inteligência e minha capacidade nata de
mistificar, eu não teria representado tão bem uma velhinha pobre,
desamparada e boa; que o esbirro, a princípio, queria me meter no
pelourinho.
LEVA-E-TRAZ: Senhor, calma! Vamos conversar no seu aposento.
Explicarei como é que andam as coisas. Mas, adianto, estão a seu favor.
Aqui tem uma carta que já diz bastante. Oh, meu Deus, quanta luta, para
fazer dois corações amantes se encontrarem! É, um de vocês dois não está
bem com o céu ou o ato de amor já estaria consumado.
FALSTAFF: Vem. Sobe. (Saem.)
Cena VI

Outro quarto na Hospedaria da Jarreteira. (Entram Fenton e o


Hospedeiro.)
HOSPEDEIRO: Mestre Fenton, não fale comigo. Estou com a cabeça
cheia. Minha vontade é largar tudo.
FENTON: É melhor me ouvir primeiro. Se me ajudar naquilo que
preciso, lhe prometo, palavra de fidalgo, que lhe pagarei seus prejuízos
todos e ainda lhe darei mais cem libras-ouro.
HOSPEDEIRO: Bem, se é assim, estou escutando.
FENTON: De tempos em tempos eu tenho te falado do grande amor
que sinto pela formosa Ana Pajem que me corresponde com a mesma
intensidade, e com as demonstrações que lhe permitem sua submissão ao
pai. Acaba de me enviar uma carta cuja mensagem vai te deixar pasmado. A
brincadeira que ela aqui comenta está tão ligada ao que te proponho que não
se pode falar de uma coisa e calar a outra. Na história toda, porém, quem
tem o papel mais importante não sou eu nem ela, é Falstaff, o gordo. Vou te
explicar a história com todos os detalhes.
Presta atenção, caríssimo Hospedeiro. Hoje à noite, no carvalho de
Herne, um pouco depois da meia-noite, a minha doce Ana vai aparecer
vestida de rainha das fadas. A intenção é a seguinte; nesse disfarce,
enquanto os outros praticam os atos mais diversos, o pai ordenou que ela
fugisse com Magrela, casando-se com ele na capela de Eton. E ela
consentiu. Mas veja agora; a mãe, que é totalmente contrária a essa união, e
acha o doutor Caio um bom partido, arrumou tudo para que este aproveite a
distração de todos e arraste Ana até a paróquia, onde um padre os espera.
Obedecendo à mãe com a mesma fidelidade filial com que obedece ao pai,
Aninha prometeu também ir com o doutor. E chegamos aqui, ao principal: o
pai mandou que ela vá toda de branco; vestida assim, Magrela a distinguirá
mais facilmente. Para que fique bem visível ao médico – pois todos terão
máscaras e véus – a mãe resolveu que ela use um vestido de gase verde
clara e fitas esvoaçantes no cabelo. Quando o doutor achar que o instante é
oportuno deverá beliscar a mão de Ana. A esse toque a jovem o seguirá por
toda a vida.
HOSPEDEIRO: A quem pretende ela enganar, ao pai ou a mãe? Ao
moço ou ao velho? Ao fidalguete ou ao esculápio? Os dois, os quatro, os
seis?
FENTON: A um e aos dois, bom hospedeiro, aos quatro, a todos; pois
vai ficar comigo. E aqui tu entras – tens que ir correndo procurar o vigário,
para que esteja na Igreja entre meia-noite e uma hora, a fim de unir os
nossos corações com a solene liturgia do conúbio, consagrando nossa união
com o nome legal de matrimônio.
HOSPEDEIRO: Sou já padrinho desse seu enlace; corro ao vigário. Se
o senhor pega a moça não há de faltar padre.
FENTON: Serei teu devedor eterno. E por ser dívida tão grande,
começo a pagar logo. (Atira-lhe uma bolsa de dinheiro. Saem falando.)
ATO V
Cena I

Quarto na Hospedaria da Jarreteira. (Entram, Falstaff e Leva-e-Traz.)


FALSTAFF: Por favor, já chega de conversa, vai! Estarei lá. É a
terceira vez; espero que o número três me seja leve. Vai logo! Dizem que o
número três dá sorte no nascimento, amor e até na morte.
LEVA-E-TRAZ: Vou lhe trazer uma corrente e farei todo o possível
pra lhe arranjar um belo par de chifres.
FALSTAFF: Mas vai! Depressa. O tempo foge. Como lá diz a Bíblia:
levanta a cabeça e aperta o passo. (Sai Leva-e-Traz. Entra Ford disfarçado.)
Ôba, ôba, senhor Fontes! Olha, o assunto se resolve esta noite ou nunca
mais. Se o senhor for ao parque à meia-noite e ficar perto do carvalho de
Herne vai assistir a coisas espantosas.
FORD: Mas o senhor não foi à casa dela ontem, como disse que tinha
combinado?
FALSTAFF: Fui à casa dela, amigo Fontes, assim como vê, um pobre
velho. E saí de lá inda pior, meu grande amigo, uma pobre velhinha. O
patife do Ford – que agora considero o próprio demônio do ciúme – teve
uma de suas crises e me espancou furiosamente quando eu havia assumido
a forma de mulher: pois na forma de homem, senhor Fontes, ninguém me
bate não. Não temo nem Golias com a funda de Davi. Mas que sei? A vida
é apenas uma máquina de fiar e ninguém sabe o novelo onde é que acaba.
Mas estou com pressa: me acompanhe, que eu lhe conto tudo no caminho.
Olha, já lacei novilhos, depenei gansos, andei em arame, furtei poderosos e
nunca soube o que era ser surrado. Porém esta noite eu me vingo, senhor
Fontes: vou entregar a mulher de Ford nas suas mãos. Me acompanha –
coisas estranhas acontecem – me acompanha. (Saem.)
Cena II

Parque de Windsor. (Entram Pajem, Reduzido e Magrela.)


PAJEM: Em frente, em frente. Nos esconderemos no fosso do castelo
até aparecerem as luzes das fadas. Magrela, filho meu, cuida bem da
menina.
MAGRELA: Pode deixar, senhor. Falei com ela e ela combinou
comigo uma senha pra conhecermos um ao outro. Eu chego perto dela,
vestida de branco, e digo: “Imbe...” e ela responde logo: “...cil.” Assim nos
conhecemos.
REDUZIDO: Não vejo qualquer necessidade do Imbe e do Cil. O
branco do vestido já basta pra decifrar o enigma. Só um imbecil não vê. O
relógio já deu dez horas.
PAJEM: A noite é negra; luzes e espíritos se sentirão bem na escuridão.
O céu ajuda nossa festa. Pois ninguém aqui deseja o mal, só o demônio, e
este vai ser reconhecido pelos chifres. Venham atrás de mim. (Saem.)
Cena III

Uma rua que dá no parque (Entram Madame Ford, Madame Pajem e o


Doutor Caio.)
M. PAJEM: Estimado doutor, minha filha é a de verde. Quando chegar
o momento o senhor segura na mão dela, corre depressa até a capela e
muitas felicidades. O senhor vai na frente. Nós duas devemos entrar juntas.
CAIO: Eu sei que dever fazer. Adieu.
M. PAJEM: Que tudo corra bem. (Sai Caio) Meu marido nem vai
gozar a satisfação de ver Falstaff desmascarado, quando souber que Ana
fugiu com o Doutor Caio. Mas que fazer?
É melhor um aborrecimento agora
Do que desgostos pela vida afora.
M. FORD: Onde é que está Ana com o bando de Fadas? E o diabo
galês, Dom Hugo Evans?
M. PAJEM: Estão todos escondidos num fosso bem junto do carvalho
de Herne. Assim que nos encontrarmos com o gordo vão saltar todos sobre
ele, agitando as tochas.
M. FORD: Estou só imaginando o susto dele.
M. PAJEM: Se ficar com medo será ridicularizado. Se não ficar com
medo, também será. Do ridículo não foge.
M. FORD: A partir de hoje ele se emenda.
M. PAJEM: (Relógio) Está chegando a hora. Pro carvalho! Pro
carvalho! (Saem.)
Cena IV

Parque de Windsor. (Entra Dom Hugo Evans, vestido de sátiro, com Ana
Pajem e outros como fadas.)
EVANS: Lup, lup, lup, lup, tudo correndo, xá. Fatinhas, por aqui. Não
esqueçam o que ter de fazer. Atrás da mim, aqui no fosso nom vão ficar
com o medo, hein? E quando eu ter o senha, já sapem. Lup, lup, lup, lup...
(Saem.)
Cena V

Outra parte do Parque. (Entra Falstaff com uma cabeça de veado.)


FALSTAFF: O relógio de Windsor já bateu as doze. O instante se
aproxima. Ah, que me protejam os deuses que têm sangue ardente. Não
esquece, Júpiter – você virou touro pra pegar Europa. O amor te impôs
chifres. É; o poderoso amor que transforma um animal num homem,
transformou um Deus num animal. E para seduzir Leda, todos sabem,
Júpiter, você se transformou num cisne. Maravilha do amor! Na primeira
vez o Deus adquire a potência de uma fera porque ama ferozmente. Na
segunda se cobre com as penas de uma ave porque seu amor é mais suave.
Se os Deuses têm fraquezas humanas por que o homem não pode ter
aspirações divinas? De mim, não sei: sou, neste momento, apenas um veado
do Parque de Windsor. Acho, aliás, que sou o veado mais gordo aqui
presente. Meu Júpiter, não esquenta muito o tempo, pois me derreto todo ou
mijo aqui na grama. Quem vem lá? É minha corça? (Entram M. Ford e M.
Pajem.)
M. FORD: Dom João, meu bem-amado!
FALSTAFF: Ah, minha corcinha do rabinho preto. Agora o céu pode
chover batatas; pode mandar uma trovoada de sons de bundas de cavalo;
cair granizo quente; desabar uma tempestade de provocações. Já tenho meu
abrigo. (Abraça-a e tenta se abrigar sob os seios dela.)
M. FORD: Margaret Pajem teve que vir comigo, meu amor.
FALSTAFF: Pois me dividam como bem entenderem, como um gomo,
um ramo ou um cacho de uvas. Pra cada uma um bago. Uma pega uma
coxa, outra a outra, a espinha dão ao guarda deste parque e os chifres levam
como lembranças pros simpáticos maridos. Sou ou não sou homem de
conduta? Sou ou não sou um bom filho da... mata? Falo como Herne, o
caçador? Ah, agora sim, Cupido age com consciência – faz restituições.
(Trombetas fora de cena) Que é isso?
M. PAJEM: É. Que é isso?
FALSTAFF: O que é que pode ser?
M. FORD E M. PAJEM: Vamos embora! (Correm.)
FALSTAFF: Acho que o demônio faz tudo pra evitar minha danação
com medo que minhas banhas incendeiem o inferno dele. Está sempre
atrapalhando o meu pecado. Que diabo! (Surgem luzes fantásticas. Entram
Dom Hugo Evans, de Sátiro, Pistola como duende, Ana Pajem como rainha
das fadas e os outros como fadas e gnomos.)
ANA PAJEM: Espíritos da noite, coloridos,
Verdes, vermelhos, brancos, negros,
Gênios lunares,
Sombras tutelares,
Herdeiros órfãos de uma só missão,
Venham cumprir vosso dever e ofício,
Castigar o sujo, queimar o vilão,
Todos que trazem o demônio em si.
Filho do imaculado, faz a chamada aí.
PISTOLA: Duendes, suas raças;
Gnomos, os seus nomes;
Fadinhas, suas graças.
Silêncio aí, gênios sem matéria
Que agora a coisa é séria.
Ninfa, bate as tuas asas
Entra na chaminé das casas
E, onde houver fogo apagado,
E lareira fria
Belisca as criadas velhas com energia
E as novas com bastante cortesia
(naquele lugar no meio da bacia.)
Que cada uma grave na doida cabecinha:
A nossa magnífica rainha
Detesta sujo e sujeira
Material, moral
Ou de qualquer maneira.
FALSTAFF: São fadas ou feiticeiras!
Quem falar com elas se dá mal.
Vou me enterrar bem fundo e fechar os olhos.
Só olhar pra elas já é mortal.
EVANS: Gorgulho, corre!
E onte você encontra um tonzela
Pela,
Que, antes do sono reza o Ave-Maria
Estimula os órgãos da dela fantasia
Por que tenha sonhos cheios da alegria.
Mas das que cai no sono ferrado
Sem pensa sequer no seu pecado
Acordadas com mil peliscões
Nos seios, nos coxas e nas mões.
ANA PAJEM: Em volta, agora;
Vasculhem o castelo de Windsor, duendes,
Por dentro e por fora.
Espalhem a boa sorte, gnomos,
Com água abençoada
Em cada quarto da Mansão Sagrada,
Para que seja, pelo tempo afora,
Cada pedra, degrau, vitral, janela,
Digna da dona e a dona dela.
(À parte)Essa gracinha é uma puxada do Shakespeare na Rainha!
Perfumem com bálsamo todas as cadeiras
E enfeitem-nas com flores e bandeiras.
Cada escudo, móvel, chave, portão,
Deve ser adornado com o imortal brasão.
(À parte) Outra puxada! O Bardo não brincava em serviço!
Vocês, fadas da mata, cantem a noite inteira,
Numa roda de dança como a da Jarreteira.
E onde vocês pisarem
Mesmo o chão ressecado
Nasça grama mais verde
Do que em qualquer prado.
Com tufos de esmeralda,
Flores vermelhas,
Azuis, roxas e brancas,
Uma proclamação se lance:
“Honi soit qui mal y pense.”
Safiras e ricos bordados
Identifiquem cavalheiros armados.
Mais delicadas de alma
Mais feitas com afeto
As fadas usem as flores
Como seu alfabeto.
Agora, até uma da manhã,
Executem com amor,
A Dança Purificadora
Junto ao velho carvalho
de Herne, o caçador
Valente e solitário.
EVANS: E acora de mões dadas
Gnomos, duendes, fadas,
Usem montões de fagalumes como lanternas
Para iluminar caminho nossos pernas.
Mas, esperar, sinto cheiro da enxofre, se eu não erra.
É um homem. Deve ter vindo do tentro da terra.
FALSTAFF: Deus me defenda dessa fada estrangeira
que só diz besteira.
PISTOLA: De dentro da terra? É um verme. O verme mais gordo que
já vi.
FALSTAFF: Esse gnomo flamengo está querendo me queimar!
ANA PAJEM: Queimem-lhe os dedos
Com o fogo purificador
Se for casto
Não sentirá nenhuma dor.
Mas se soltar
Um grito ininterrupto,
sua carne oculta
Um coração corrupto.
EVANS: Experimentar logo, vamos.
PISTOLA: Bem, vamos ver se estes galhos pegam fogo. (Queima
Falstaff.)
FALSTAFF:Ôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôôô
ôôôô Ouuuuuuuuuu! Ouuuuuuuuu! Ouuuuuuuuuuuu! FLAMENGO!
(Atenção: importantíssimo. Esta piada, que pode ser esplêndida, não deve
ser forçada. O ator deve falar exatamente como está aqui e nunca cair na
tentação de dizer Gouuuu DO Flamengo!!!)
ANA PAJEM: Corrupto! Corrupto! Entranhas deformadas.
Em volta dele, Fadas!
Até nascer o dia
Canções de zombaria.
E não esqueçam não,
O ritmo deve ser,
Marcado a beliscão.
EVANS: Muito xusto. Está cheio de porquerias e sujeiras.
(CANÇÃO)
Belisca ele
Beliscão nele
Morte à pecaminosa fantasia
Morte ao desejo em demasia
Que o desejo é um horror
Quando vem sem o amor
Deve ser posto na chama
Quando entra em quem não ama (queimam-no)
Beliscão, beliscão, beliscão.
Beliscão na felonia
Beliscão até que a lua
Se apague com a luz do dia.
Rodem ele
Beliscão
Queimem ele
Beliscão
Zombem dele
Beliscão
Beliscão
No vilão.
(Enquanto se passa tudo, o Doutor vem numa direção e rapta um
rapazinho vestido de verde: Magrela vem por outro lado e rapta um
rapazinho vestido de branco: e Fenton rapta Ana Pajem. Ouve-se um
barulho de trompas de caçada. Todas as fadas fogem. Falstaff arranca sua
cabeça de veado e se levanta. Entram Pajem, Ford, M. Pajem e M. Ford.)
PAJEM: Pára aí. Não foge não. Nós te pegamos, cavalheiro. Ou
pretende continuar a representar o papel que acabou de interromper?
M. FORD: Eu peço a todos, não vamos levar mais longe a zombaria.
Dom João Falstaff já deve ter formado a sua opinião – diga, caro senhor,
que pensa, agora, das matronas de Windsor? São ou não são... alegres? E
você, meu bom marido; vê estes enfeites? Não acha que ficam muito
melhor na mata do que em casa?
FORD: Então, amigo, me diz agora, quem é o corno nessa história?
Senhor Fontes, Falstaff é um velhaco, um velhaco cornudo. E se alguém
duvida o senhor pode mostrar estas galhadas, senhor Fontes. De Ford ele
conseguiu gozar apenas o mau cheiro de suas roupas sujas, o peso do seu
bastão e vinte libras esterlinas que deverão ser devolvidas ao senhor Fontes,
porque os cavalos de Falstaff foram retidos como garantia, senhor Fontes.
M. FORD: Dom João, não conseguimos nem um encontrinho, que sorte
ingrata! Nunca mais tentarei ser sua amante; no máximo o usarei como
enviado.
FALSTAFF: Começo a perceber que banquei o asno o tempo todo.
FORD: Não o ofenda, é um animal brilhante perto de V. Senhoria.
FALSTAFF: Quer dizer então que não são seres sobrenaturais? Três ou
quatro vezes cheguei a duvidar. Contudo a minha pesada consciência e a
violência da surpresa me fizeram aceitar como realidade uma farsa
grosseira. Vejam os senhores como a sensibilidade humana fica opaca
quando se desvia para o mal.
EVANS: Tom João Falstaff, pense em Teus, esqueça os tentações do
carne e nunca mais ninquém fai lhe peliscá-lo.
FORD: Breve e brilhante, reverendo.
EVANS: E apantona o senhor tampém suas ciúmes.
FORD: Só vou desconfiar de novo de minha mulher no dia em que
pegar o senhor falando ao ouvido dela em muito bom inglês.
FALSTAFF: Devo ter deixado o cérebro secando ao sol demasiado
tempo pra não perceber uma armadilha tão simplória. Um cabrão galês
conseguiu me derrotar tranqüilamente. Só me resta afogar-me numa tina de
queijo derretido.
EVANS: Panha no queixo terretido – é chovér no molhato.
FALSTAFF: Panha no queixo terretido. Quer dizer que eu vivo uma
vida de aventuras para no fim ser o jogral de um tipo que assim derrete a
nossa língua? Bastaria isso para justificar o declínio da sensualidade em
todo o reino.
M. PAJEM: Mas escuta aqui, Dom João, o senhor acredita que, se num
momento de loucura, houvéssemos desistido de toda uma existência de
virtude, seria o senhor que nós iríamos escolher pra entregar nosso corpo ao
demônio?
FORD: Um chouriço enorme! Um saco de estrume!
M. PAJEM: Boneco de massa!
PAJEM: Velho, gelado, carcomido e grávido?
FORD: Bem mais hipócrita do que Satanás.
PAJEM: Pobre como Jó.
FORD: Sórdido como a mulher dele.
EVANS: Dato a fornicações, costando de tavernas, de finhos, aguartente
e infusões suspeitas. Brigão, praguejador, xogador, sujo e escantaloso?
FALSTAFF: Muito bem, estou na berlinda. Se por aqui há alguém que
ainda não viu um tema ao vivo, aqui estou eu – assunto e objeto. Vocês
levam vantagem: sou o vencido. Não consigo responder sequer a esta cabra
montês, a esta flanela do País de Gales. Quando a ignorância vence não há
o que reagir: usem-me como quiserem.
FORD: Bem, agora vamos levá-lo até Windsor, a um certo senhor
Fontes de quem V. Senhoria arrancou algum dinheiro prometendo-lhe servir
de rufião. Entre todas as mortificações que já sofreu tenho a impressão de
que devolver esse dinheiro será a mais atroz.
M. FORD: Chega, marido,
Já cobraste demais com esses castigos
Esquece esse dinheiro
Pra que possamos todos ser amigos.
FORD: Bem, estendo a mão; não deve nada.
PAJEM: Fica alegre de novo, cavalheiro; te convido para comer e
beber em minha casa. Vai poder rir de minha mulher como ela agora está
rindo de você. Diz a ela um segredo: mestre Magrela casou com a filha
dela.
M. PAJEM: Tem quem duvide, meu marido e senhor. (À parte) Tão
certo como Ana Pajem ser minha filha é ela ser, neste momento, mulher do
Doutor Caio. (Entra Magrela.)
MAGRELA: Ôi, ai, ui, iii, ei! Senhor Pajem, meu paizinho.
PAJEM: Meu filho, que é que foi? Diz, fala, filho. Fala! Você
conseguiu?
MAGRELA: Consegui! Não entendo nada. Nem mesmo um
matemático conseguiria entender essa embrulhada. O senhor, hein?
PAJEM: Eu hein, o quê? Que embrulhada?
MAGRELA: Cheguei correndo a Eton para casar com a sua filha, e de
repente ela virou um rapagão deste tamanho. Se não estivéssemos na igreja
eu teria arrebentado com ele ou ele comigo. Quero cair morto aqui se
quando eu saí do parque ela, ele, sei lá, não era Ana Pajem. E de repente eu
olho e – pum – vou me casar com o filho do carteiro.
PAJEM: Por minha fé, você confundiu alguma coisa.
MAGRELA: Ah, o senhor também acha? Foi o que eu raciocinei
quando vi que tinha pegado um rapaz por uma moça. Se eu me tivesse
casado com ele, apesar de toda aquela roupa de mulher, eu nunca ia ter nada
com ele.
PAJEM: São resoluções de foro íntimo. Eu não lhe avisei que você
devia reconhecer a minha filha pela roupa?
MAGRELA: Foi o que eu fiz. Ela estava de branco, eu disse: “Imbe...”
e ela disse: “...cil” conforme tínhamos combinado. Mas mesmo assim não
era Ana, estou lhe dizendo: era o filho do carteiro.
EVANS: Ô, meu Teus, senhor Magrela, já imaxinou o senhor por aí,
casado com um rapaz? Como é que iam cuitar das filhos?
PAJEM: Mas é lamentável – não sei o que fazer.
M. PAJEM: Bom marido, não se zangue. Eu sabia de tua intenção,
vesti Ana de verde, e agora ela deve estar voltando da capela, casada com o
mestre cirurgião. (Entra Caio.)
CAIO: Onte está Madame Pajem? Onte está? Por Cristo, eu fui
luditriado. Ludibriê, c’est ça. Me casaram com uma rapaz, un garçon, voilà.
Un paysan, par Dieu, un homme. Non, non era ser filha. Fui luditriado.
M. PAJEM: Mas como? O senhor não pegou a moça que estava de
verde?
CAIO: Sim, senhorra. Peguei dirreitinho a moça do ferde e era um
homão. Mon Dieu, eu fou arretentar toda o cidade. (Sai)
FORD: É muito estranho. Quem terá levado a verdadeira Ana?
PAJEM: Tenho um mau pressentimento – aí vem Mestre Fenton.
(Entram Fenton e Ana Pajem) Que foi que houve, Mestre Fenton?
ANA: Perdão, meu pai querido. Mãe adorada, perdão!
PAJEM: Como é que é, senhorita – por que não foi com o senhor
Magrela?
M. PAJEM: Como é, mocinha, por que não foi com o Doutor Caio?
FENTON: Por favor, não a assustem e ouçam a verdade pura. Os
senhores a teriam casado de maneira vergonhosa, pois faltava, no todo ou
em parte, com um e outro, reciprocidade. A verdade é que ela e eu, de há
muito prometidos, estamos agora certos de que nada nos pode separar. É
bendita a ofensa que ela cometeu e o nosso ardil, ou que outro nome tenha o
engano a que os levamos. Deixa de ser fraude ou desobediência, porque
evita as milhares de horas de tédio e de tristeza de um casamento
desgraçado.
FORD: Fechem a boca, senhores. Não adianta ficarem boquiabertos.
Aqui não há remédio. Nas coisas do amor o céu é quem comanda. Dinheiro
compra terras. Mas quem vende as mulheres é o destino.
FALSTAFF: Estou contente de ver que, embora todos os arcos me
apontassem, algumas flechas ricochetearam.
PAJEM: É, que remédio? Quando não se pode mastigar, se engole. Que
o céu lhe dê felicidades, Ana Fenton.
FALSTAFF: Quando os feiticeiros não são hábeis, fazem as feitiçarias
mais estranhas.
M. FORD: Bem, não vou pensar mais nisso. Senhor Fenton, seja feliz
também. Bom marido, vamos todos pra casa.
Falarmos mais e mais desta noite hilariante
Dom João Falstaff vai conosco!
Cavalheiros, avante!
M. PAJEM: Porém, antes que isto acabe,
Vou defender Falstaff
Pois não é falso tudo seu,
Com respeito ao senhor Fontes
Cumpriu o que prometeu.
Porque pro senhor Fontes
Tudo acaba no melhor
Garanto que esta noite
Vai dormir com a senhora Ford.

FIM

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