0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações6.157 páginas

Tudo o Que Não Vemos - Ziya Tong

Enviado por

André Albino
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
0% acharam este documento útil (0 voto)
33 visualizações6.157 páginas

Tudo o Que Não Vemos - Ziya Tong

Enviado por

André Albino
Direitos autorais
© © All Rights Reserved
Levamos muito a sério os direitos de conteúdo. Se você suspeita que este conteúdo é seu, reivindique-o aqui.
Formatos disponíveis
Baixe no formato PDF, TXT ou leia on-line no Scribd
Você está na página 1/ 6157

Ficha

Técnica
Título: Tudo o
Que Não
Vemos
Título
original: The
Reality
Bubble
Autor: n
97898923479
67
Revisão:
Pedro
Prostes
Capa: Maria
Manuel
Lacerda
ISBN:
97898923479
67

LUA DE
PAPEL
[Uma
chancela do
grupo Leya]
Rua Cidade de
Córdova, n.º
2
2610-038
Alfragide –
Portugal
Tel. (+351) 21
427 22 00
Fax. (+351)
21 427 22 01

© 2019, Ziya
Tong
Autorizada a
tradução da
língua inglesa
da edição
intitulada
THE
REALITY
BUBBLE,
publicada pela
Penguin
Canada.
Edição
portuguesa
publicada por
acordo com
International
Editors’ Co.,
The Cooke
Agency
International e
Rick
Broadhead &
Associates
Inc.”
Todos os
direitos
reservados de
acordo com a
legislação em
vigor
luadepapel@l
eya.pt
obloguedepap
el.blogspot.pt
www.luadepa
pel.leya.com
www.leya.pt
Ziya Tong

TUDO O
QUE NÃO
VEMOS
The Reality
Bubble
Blind Spots,
Hidden
Truths, and
the
Dangerous
Illusions
that Shape
Our World

Traduzido
por
João Carlos
Silva
Para a minha
família
Até ao século
XX, a
realidade era
tudo aquilo
que os
humanos
fossem
capazes de
tocar, cheirar,
ver e ouvir.
Desde a
primeira
publicação do
mapa do
espetro
eletromagnéti
co,
os humanos
aprenderam
que aquilo que
conseguem
tocar, cheirar,
ver e ouvir é
menos do que
um
milionésimo
da realidade.
Noventa e
nove por
cento de tudo
aquilo que vai
afetar
os nossos
amanhãs está
a ser
desenvolvido
por humanos
que usam
instrumentos e
trabalham em
frequências da
realidade
que não são
humanamente
sensíveis.
R.
BUCKMINS
TER
FULLER
Introdução
Todos temos
um momento
na vida em
que
acordamos
para uma
realidade mais
vasta. Para
Ann Hodges,
esse momento
chegou no dia
30 de
novembro de
1954,
precisamente
à 1h46 da
tarde, quando
estava deitada
no sofá. O que
ela sentiu
nesse dia não
foi tanto uma
epifania mas
mais uma
realidade
dolorosa,
quando um
“míssil
cósmico” de
cor verde lima
cruzou o céu
límpido da
tarde,
atravessou o
telhado da sua
casa, fez
ricochete num
aparelho de
rádio e a
atingiu em
cheio, de lado.

Ann tornou-
se uma
celebridade
instantânea:
passou a ser a
única pessoa
conhecida
jamais
atingida por
um meteorito.
Ao fim desse
dia, já havia
centenas de
pessoas,
incluindo
representantes
dos media
nacionais,
concentradas
no seu pátio
das traseiras, a
fotografar o
objeto
extraterrestre,
a registar os
danos sofridos
pela casa e a
olhar, num
misto de
espanto e
horror, para a
marca negra,
do tamanho de
uma bola de
futebol, que o
impacto lhe
deixara na
anca.
Como
estava a fazer
uma sesta,
Ann não deu
pela queda
espetacular da
bola de fogo.
Houve
testemunhas
que a viram a
atravessar três
estados; os
aparelhos de
televisão
tiveram
anomalias por
causa da
interferência
externa; e em
Montgomery,
no Alabama, a
mais de cem
quilómetros
dali, o
estrondo
sónico
projetou um
rapaz da
bicicleta em
que seguia.
Quanto aos
habitantes
locais, quando
a estrela
cadente
finalmente
atingiu o seu
ground zero,
na localidade
de Sylacauga,
a maior parte
pensou que
tinha ouvido
um avião a
cair ou uma
bomba a
explodir.
No entanto,
passadas umas
semanas,
como sucede
com todos os
incidentes
bizarros, toda
a agitação já
tinha
esmorecido.
Os jornalistas
fizeram as
malas e
voltaram para
casa e os
vizinhos
regressaram às
suas vidas
quotidianas. E
se é verdade
que, nesse dia,
o meteorito
causou
impacto em
todos, só a
perspetiva
cósmica de
uma pessoa
foi alterada
para sempre.
Para Ann
Hodges, o
universo, com
os seus
meteoros,
chuvas de
cometas e
supernovas,
deixara de ser
um lugar à
parte, algures
“lá longe”.
Nada disso. O
cosmos, se
quisesse, era
bem capaz de
nos entrar em
casa e de nos
acordar com
uma bofetada.

Longe de
serem idílicos
e tranquilos,
os céus são
um inferno.
Temos chamas
descontrolada
s e colunas
asfixiantes de
gás venenoso;
a escuridão, o
caos e a
destruição
violenta estão
praticamente
por todo o
lado. Na
verdade, se
olhar esta
noite para o
céu na direção
de Sagitário,
mesmo por
cima da seta
do arqueiro,
verá na nossa
galáxia um
buraco negro
supergigante
que, neste
preciso
momento,
oculta tudo o
que se
encontra no
seu horizonte.
Este é o
universo em
que vivemos.
Mas não é isso
que sentimos.
O facto de o
leitor e eu
estarmos neste
momento
relativamente
calmos, o
facto de não
nos
encontrarmos
tomados por
um pânico
absoluto
perante o caos
total e
completo que
se encontra
suspenso
sobre as
nossas
cabeças, deve-
se a vivermos
numa bolha,
uma bolha
física
chamada
atmosfera. Do
espaço, esta
cúpula é
claramente
visível. É uma
película fina e
de um branco
azulado que
funciona
como um
campo de
forças
planetário:
bloqueia
radiações
letais, mantém
a temperatura
dentro de uma
amplitude
pequena (em
comparação
com os
extremos que
se registam no
espaço) e
incinera a
maior parte
dos meteoros
que, de outro
modo,
pulverizariam
a superfície da
Terra.
Enquanto
seres
humanos,
também
vivemos
dentro de
outra espécie
de bolha: uma
bolha
psicológica
que molda as
nossas ideias
sobre o
mundo de
todos os dias.
Esta é a nossa
“bolha da
realidade”.
Assim como
as rochas que
viajam a uma
velocidade
supersónica
têm
dificuldade
em penetrar
na atmosfera
terrestre,
também os
factos
indesejáveis e
as ideias
desconhecidas
quase nunca
ultrapassam a
membrana da
bolha da
realidade. Ela
protege-nos de
pensar nas
forças “lá
longe” que
estão
aparentemente
fora do nosso
controlo e
permite-nos
prosseguir
com o dia a
dia das nossas
vidas.
Mas os
problemas
surgem com
uma força
redobrada e
assistimos a
isso
repetidamente.
Sejam as
bolhas do
imobiliário ou
as bolhas da
bolsa, ou as
bolhas
políticas, estar
numa bolha
significa, por
definição, que
temos uma
perceção
deformada da
realidade. E,
no fim, todas
as bolhas
partilham o
mesmo
destino:
inevitavelmen
te, rebentam.
Por isso,
faríamos bem
em ter
presente que
até as nossas
conceções
mais estáveis
do mundo
podem ser
viradas do
avesso.
Durante mais
de 200 anos,
pensou-se que
o universo era
governado
pela física
newtoniana –
e depois
apareceu
Einstein. Mas
nem sempre é
preciso um
génio para
alargar a nossa
visão do
mundo. Às
vezes, isso
pura e
simplesmente
acontece. Para
Ann Hodges,
foi quando um
meteorito lhe
entrou uma
tarde, como
um torpedo,
pelo telhado
de casa. E,
para si, pode
ser por causa
do livro que
tem neste
momento nas
mãos.

Nós,
humanos,
temos a
tendência para
pensar que
possuímos um
retrato fiel do
mundo, mas
muitas vezes
estamos
enganados. E
isso é porque
todos
nascemos com
um ângulo
morto. Na
verdade,
temos dois:
um em cada
olho. Da
mesma forma
que seríamos
incapazes de
ver todo o
ecrã do
cinema se nos
dessem um
lugar manhoso
atrás do
projetor, há
uma área na
parte de trás
dos nossos
globos
oculares onde
não crescem
recetores de
luz, porque é
precisamente
aí que o nervo
ótico se liga
ao nosso
cérebro. E, no
entanto,
apesar de a
área que ela
eclipsa ser
relativamente
grande (nove
luas cheias no
céu podiam
caber neste
lapso de
visão), a
maior parte de
nós nunca
sequer reparou
nisso.

A melhor
maneira de
ver aquilo que
não
conseguimos
ver é com os
nossos olhos.
Sendo assim,
vamos
espreitar. Tape
o olho
esquerdo e
olhe para a
bola em cima
com o direito.
Agora, sempre
com o olhar
fixo na bola –
tendo
consciência de
que a cruz está
lá, mas não a
fixando –
comece a
mover a
cabeça
lentamente
para a frente e
para trás:
aproxime-se e
afaste-se do
livro. Vai
reparar que a
certa altura a
cruz
desaparece de
repente; sai da
visão. Facto
extraordinário
: esta mancha
branca não é
registada pelo
cérebro como
uma espécie
de vazio. Em
vez disso, o
nosso cérebro
compensa o
vazio e,
através da
nossa própria
versão
percetual de
Photoshop, até
preenche
corretamente a
cor de fundo.
Os nossos
ângulos
mortos são
perfeitamente
camuflados.
Não vemos a
nossa própria
cegueira.
Seria de
pensar que um
ângulo morto
assim tão
óbvio teria
sido detetado
há muito
tempo, mas
isso só
aconteceu
quando um
físico francês
chamado
Edme
Mariotte
começou a
dissecar um
olho e reparou
no feixe de
nervos ligados
à retina.
Interrogou-se
então sobre se
não estariam a
bloquear-nos a
visão.
Fazendo ele
próprio
algumas
experiências
com a sua
visão,
descobriu
aquilo que, no
século XVII,
rapidamente
se tornou uma
mini sensação.
Foi uma
delícia para os
nobres da
corte real, que
se deleitaram
com o truque
de se fazerem
desaparecer
uns aos outros
sem terem
sequer de
piscar os
olhos. A lenda
diz que, do
outro lado do
Canal da
Mancha, o Rei
Carlos II fazia
este truque
visual com os
seus
prisioneiros,
decapitando-
os
visualmente
no cérebro
antes de os
executar na
vida real.
Claro que os
ângulos
mortos não
estão apenas
nos nossos
olhos; também
estão no que
se encontra à
nossa volta. A
palavra
francesa,
angle mort,
diz tudo:
anualmente,
só nos Estados
Unidos,
acontecem
840 mil
acidentes de
automóvel só
porque não
somos capazes
de ver
qualquer coisa
muito grande
a vir na nossa
direção, até
que ela entra
de repente no
nosso ângulo
de visão.

O filósofo
Ludwig
Wittgenstein
afirmou em
tempos que
“os aspetos
das coisas que
são mais
importantes
para nós estão
escondidos
por causa da
sua
simplicidade e
familiaridade”
. Pondo as
coisas de
outra maneira,
muitas vezes
não somos
capazes de ver
as coisas que
estão à frente
do nosso
nariz. Já todos
tivemos essa
experiência:
andámos à
procura das
chaves por
toda a parte
quando elas
estavam
mesmo à
nossa frente,
na bancada da
cozinha.
Cada um de
nós,
individualmen
te, pode ser
cego face
àquilo que é
evidente, mas
coletivamente,
como
sociedade,
também pode
ser assim.
Pensem neste
facto curioso:
no século
XXI, existem
câmaras por
todo o lado,
exceto nos
locais de onde
vem a nossa
comida, de
onde vem a
nossa energia
e para onde
vai o nosso
desperdício.
Como é
possível que a
espécie mais
poderosa do
planeta seja
cega à forma
como
sobrevive?
Pode dizer-
se que nós, os
humanos
modernos,
interagimos
com a
natureza como
se vivêssemos
numa bolha. É
a razão pela
qual, no Reino
Unido, um em
cada três
jovens adultos
não sabe que
os ovos
provêm das
galinhas, um
terço das
crianças
acredita que o
queijo cresce
em plantas e
uns
extraordinário
s 40 por cento
dos jovens
não fazem
ideia nenhuma
de que o leite
vem das
vacas. Para
estes miúdos,
a comida vem
de onde é
óbvio que
vem: “Dah!”
Do
supermercado,
claro.
Não é que
os jovens não
sejam
inteligentes; o
que se passa é
que o seu foco
de atenção
mudou. A
criança média
nos Estados
Unidos passa
45 horas por
semana a
olhar para
meios
eletrónicos e
apenas meia
hora no
exterior em
atividades
extraescolares.
Sendo assim,
não é de
estranhar que
o mundo
cultural oculte
o mundo
natural.
Mergulhada
neste
ambiente, a
criança norte-
americana
média
consegue
reconhecer
mil logotipos
de empresas,
mas é incapaz
de identificar
dez plantas ou
animais da
zona onde
vive.
Os adultos
não estão
muito melhor.
De dentro da
bolha, a
origem da
nossa maior
fonte de
energia – o
combustível
que alimenta a
nossa
economia
global – é
também uma
grande
desconhecida.
Perca um
bocado de
tempo a fazer
perguntas à
sua volta e
depressa
descobrirá que
a pessoa
média não faz
nem ideia do
que é o
petróleo. O
líquido com
que enchemos
os depósitos
de
combustível
dos nossos
carros para
chegarmos ao
trabalho não
provém da
polpa de
dinossauros,
mas cada
depósito de
combustível é
alimentado
realmente por
mil toneladas
de vida antiga.
Então qual é a
espécie extinta
que alimenta
as nossas idas
e vindas? E o
que provocou
essas valas
comuns
gigantes que,
cozinhadas à
pressão, se
transformaram
nos ricos
campos de
petróleo negro
que hoje
perfuramos
para obter
energia?
Por fim,
somos
excecionalme
nte cegos
àquilo que
deitamos fora.
Dos
excrementos
ao lixo e aos
resíduos
tóxicos,
vivemos na
ilusão de que
é possível
fazer
desaparecer os
dejetos ou de
que eles
podem ser
levados pela
água com um
simples
carregar de
um botão,
como que por
magia. O facto
de os nossos
desperdícios
irem para
algum lado, de
a nossa
própria
poluição ser
capaz de
encontrar o
seu caminho
para chegar
aos alimentos
que
consumimos,
à água que
bebemos e ao
ar que
respiramos, é
uma das
razões para a
raça humana
estar hoje,
literalmente,
na merda.
A questão é
que a nossa
ignorância
como espécie
seria muito
mais simples
de ultrapassar
se não
fôssemos
também tão
inteligentes.
No fim de
contas, somos
os animais
mais espertos
ao cimo da
Terra. Somos
os primatas
com
superpoderes.
Somos
capazes de
voar à
velocidade do
som e
comunicar
através do
planeta à
velocidade da
luz. A nossa
espécie
descobriu
como mexer
no ADN e
alterar os
próprios
códigos que
governam a
vida.
Mas o
problema é
que a vida
está a
desaparecer.
Cientistas
dizem-nos que
estamos
atualmente no
meio da sexta
grande
extinção. Na
Terra, das
abelhas às
zebras, as
populações
animais caem
a pique. No
mar, as
reservas de
peixe
desaparecem e
os recifes de
coral sofrem
do fenómeno
de
branqueament
o. Os glaciares
estão a
derreter. As
secas
aumentam. Os
incêndios
florestais
estão
descontrolado
s. A
população está
a explodir e o
clima está a
mudar. A
perceção
angustiante da
catástrofe
aproxima-se
de dia para dia
e, no entanto,
quando
esticamos os
braços… é
apenas para
tirar mais uma
selfie.
O facto de
algures nas
nossas mentes
sabermos que
a civilização
está à beira do
desastre
explica a
nossa
obsessão
cultural com o
apocalipse
zombie. Estas
fantasias
negras vêm de
algum lado.
Todos
sabemos que
as coisas
andam muito,
muito mal,
mas viver
numa bolha
significa que,
por agora,
somos capazes
de o ignorar.
Em vez disso,
canalizamos o
nosso
incómodo
coletivo sob
uma forma de
diversão,
fazendo troça
do nosso
próprio medo
de um
aparente
desastre social
iminente. Das
séries de
televisão aos
guias de
sobrevivência,
“brincamos”
com a
construção de
bunkers e com
o
armazenament
o de armas e
de alimentos.
Em cidades à
volta do
mundo,
dezenas de
milhares de
pessoas
reúnem-se em
“marchas
zombie”,
maquilhadas
de forma
assustadora e
vestidas com
andrajos,
coxeando ao
som cavo do
cântico que
anuncia um
único e
bizarro
desejo.
E o que é
que os
zombies
querem? Os
zombies
querem
céééérebros.
Vale a pena
perguntar se
seríamos
capazes de
subsistir se
não existisse
uma estrutura
social para
assegurar a
sobrevivência.
Porque,
quando
pensamos
nisso, o nosso
sistema de
sociedade
funciona
precisamente
porque nós
nos
comportamos
em
conformidade
com ele, como
se fôssemos
zombies
desprovidos
de cérebro. A
população
humana chega
quase aos oito
mil milhões e
marcha ao
ritmo dos
tambores
capitalistas:
comer,
trabalhar,
comprar e
dormir. Bom,
isto até podia
ser alguma
coisa, se
gostássemos
dela, mas não
gostamos. A
sério, já
encontraram
alguém na
vida que goste
de andar ao
ritmo desta
corrida de
ratos?
Assim, uma
vez que a
humanidade
enfrenta
consequências
graves e que a
maior parte de
nós nem gosta
daquilo que
faz, a questão
que se coloca
é: porque é
que o
fazemos?
O grande
mito,
argumento eu,
é que fomos
educados a
acreditar que
não há outra
maneira de o
fazer. Dizem-
nos
simplesmente
que é assim
que o sistema
funciona. Mas
e se houver
uma outra
maneira? E se
este “mundo
real” em que
estamos tão
envolvidos
não for de
todo nada
real? E se
conseguíssem
os dissipar o
nevoeiro que
envolve os
maiores
ângulos
mortos da
humanidade
para podermos
ver com mais
clareza e
começar a
descobrir o
que se
encontra para
lá da nossa
bolha de
realidade?
Uma frase
famosa de
Proust é: “A
verdadeira
viagem de
descobrimento
não consiste
em procurar
novas
paisagens,
mas em ter
novos olhos.”
E, por isso, a
nossa viagem
deve
principiar
exatamente
onde estamos:
a olhar para o
mundo
comum,
quotidiano,
onde vivemos,
de uma forma
nova e
extraordinária.
Em Eles
Vivem, o filme
de culto de
ficção
científica
realizado por
John
Carpenter em
1988, um
nómada
chamado John
Nada apodera-
se de um par
de óculos
especiais que
revela
“verdades”
que os
cidadãos
comuns não
são capazes de
ver. Quando
os põe e olha
para anúncios
em revistas,
cartazes ou na
televisão, vê
as mensagens
verdadeiras
que lá estão:
obedecer,
consumir,
respeitar e
continuar
adormecido.
Como
parábola
moderna, o
filme teve
impacto. A
sua influência
pode ser vista
em filmes,
jogos de vídeo
e arte de rua,
como na série
Obey de
Shepard
Fairey, nos
cartazes
políticos de
Hal Hefner e
em memes na
Internet. A
mensagem
secreta do
filme é esta:
se ao menos
existissem uns
óculos assim,
as pessoas
podiam
começar a
questionar
porque é que a
realidade não
é o que
parece.
Felizmente,
existe mesmo
uma coisa
dessas.
Neste livro,
vamos
aventurar-nos
ao mundo que
nos rodeia e
não está à
vista, mas em
vez de óculos
de ficção
usaremos
lentes
científicas
para trazer
para debaixo
da luz pontos
de vista que
estão
escondidos. E
vamos fazer
isso porque os
instrumentos
científicos
são, de uma
maneira muito
real, os nossos
novos olhos,
dando-nos
capacidades
sobre-
humanas para
ver e para
ouvir que
estão muito
para lá do que
os nossos
sentidos são
capazes de se
aperceber.
Nos
programas
sobre crimes
reais, vemos
muitas vezes
uma amostra
daquilo que a
ciência
moderna é
capaz de
revelar. Uma
sala bonita e
limpa pode
parecer
perfeitamente
normal a olho
nu, mas
depois de os
investigadores
a
pulverizarem
com luminol –
um produto
químico que
reage ao ferro
contido na
hemoglobina
– e apagarem
a luz, o brilho
azul néon do
produto
ilumina
salpicos de
sangue na
parede – e
revela um
arrepiante
local de um
crime.
Temos a
tendência para
acreditar que
ver é crer, mas
há imensa
coisa que não
conseguimos
ver sem ajuda.
O mesmo é
verdade para o
mundo à
nossa volta. A
nossa visão é
fraca em
comparação
com os
instrumentos
científicos
mais
avançados. Os
telescópios
permitem-nos
ver galáxias a
mais de 13 mil
milhões de
anos-luz de
distância, e
com
microscópios
eletrónicos
podemos
ampliar até ao
nível atómico
para ver e
tocar os
alicerces
essenciais do
nosso
universo.
Então, nas
páginas que se
seguem, a
realidade vai
parecer às
vezes bizarra
e
desorientadora
. É como cair
na toca do
coelho no País
das
Maravilhas.
Vamos
diminuir de
tamanho, ou
ficar gigantes
e até daremos
connosco a
perceber a
linguagem de
outros
animais.
Aplicar esta
lente científica
ao mundo à
nossa volta
altera
radicalmente
as ideias que
fazemos dele,
permitindo-
nos questionar
o que nos
rodeia, o que
nos sustenta e,
o que talvez
seja o mais
importante, o
que nos
controla.
Enquanto
jornalista e
autora de
programas de
ciência, passei
mais de uma
década a
entrevistar
alguns dos
maiores
cientistas e
pensadores do
mundo – e a
aprender com
eles. Uma das
grandes
vantagens de
trabalhar com
cientistas de
muitos
campos
fascinantes é
que isso me
deu um vasto
espetro de
conhecimento
científico,
permitindo-
me partilhar e
comunicar o
saber de um
grande
número de
disciplinas.
Estas
disciplinas
diferentes são
como as peças
de um puzzle.
Individualmen
te, cada uma
dá-nos uma
pista do que
está a
acontecer, mas
só quando as
juntamos
somos capazes
de ver o
quadro
completo.
E agora,
mais do que
nunca,
precisamos de
ver com
clareza,
porque nos
encontramos
numa
encruzilhada
crítica da
história
humana. A
nossa espécie
está bloqueada
numa rota de
colisão fatal,
uma rota que
ameaça
extinguir a
vida na Terra
precisamente
porque a
nossa visão da
realidade é
incompatível
com a verdade
científica. Em
vez disso, o
que
chamamos de
“senso
comum”
deixa-nos
cegos há já
muito tempo.
Neste livro,
examinaremos
dez dos
maiores
ângulos
mortos da
humanidade.
A primeira
parte começa
com uma
apresentação
dos ângulos
mortos com
que todos os
indivíduos
nascem e
revela como a
ciência e a
tecnologia nos
permitem ver
para além dos
nossos limites
biológicos.
Com esta
nova forma de
visão, faremos
a viagem
através do
mundo de
todos os dias
para revelar
aquilo que os
nossos olhos
são incapazes
de distinguir.
Na segunda
parte,
olharemos
para os nossos
ângulos
mortos
coletivos e
investigaremo
s a forma
como,
enquanto
sociedade,
caímos na
cegueira de
uma forma
voluntária.
Focar-nos-
emos nos
aspetos mais
críticos da
nossa biologia
básica –
comida,
energia e
desperdícios –
e veremos
como a
ciência
transformou
radicalmente o
sistema de
suporte de que
as nossas
vidas
dependem – e
criou um
mundo que é
quase
completament
e opaco para a
pessoa
comum.
Por fim, na
terceira parte,
examinaremos
os ângulos
mortos
intergeraciona
is. São formas
de pensar no
mundo que
parecem
naturais, ou
inevitáveis,
mas que são,
na verdade,
maneiras de
ver herdadas e
passadas de
geração em
geração.
Examinaremo
s aqui a forma
como
navegamos
através das
imensas
dimensões do
espaço e do
tempo, como
o peixe da
fábula, que
não conhece a
água em que
nada.
Carl Sagan
afirmou que
“a nossa
espécie
precisa, e
merece-a, de
uma cidadania
com mentes
despertas e
um
conhecimento
básico de
como
funciona o
mundo”. Este
livro é uma
humilde
tentativa de
dar resposta a
essa
necessidade.
Comecemos
então.
PARTE UM

ÂNGU
LOS
MORT
OS
BIOL
ÓGIC
OS
O QUE
ESTÁ À
NOSSA
VOLTA
1
O Frasco
Aberto
Onde
acaba o
telescópi
o,
começa
o
microscó
pio.
Qual dos
dois tem
o
panoram
a mais
grandios
o?
VICTOR
HUGO
Dondidier
desapareceu
num abrir e
fechar de
olhos, mas
este
desaparecime
nto não fazia
parte do
número de
circo. Como
noticiou o
Hamilton
Daily Times
no dia 16 de
agosto de
1913, foram
rapidamente
enviados para
o local
detetives com
cães pisteiros
para tentarem
descobrir o
artista,
desaparecido
dois dias antes
da noite de
estreia.
Felizmente, o
espetáculo não
foi adiado. Na
sexta-feira à
noite, o
acrobata foi
visto por um
membro da
troupe
circense,
escondido na
tenda
principal. O
caso chegou
aos jornais,
mas para o
público a
grande
história não
foi tanto o seu
misterioso
regresso e sim
o seu valor. A
estrela do
circo estava
avaliada em
500 dólares (o
que hoje
seriam mais
de 12 mil
dólares, perto
de 11 mil
euros); uma
quantia
obscena fosse
qual fosse o
ponto de vista,
visto que
Dondidier era
apenas uma
pulga.
Um século
antes do
brilho dos
holofotes de
Hollywood, o
maior
espetáculo do
mundo era
mínimo: era o
circo de
pulgas. Era
uma sensação
internacional e
multidões
percorriam
grandes
distâncias até
cidades como
Nova Iorque,
Paris e
Londres para
ver os
parasitas
atuar. Havia as
pulgas
bailarinas, as
pulgas que
travavam
duelos com
espadas, as
pulgas
disparadas de
canhões, as
pulgas
halterofilistas,
as pulgas
equilibristas,
as pulgas
dançadoras de
tango e as
pulgas
trapezistas. O
público,
espantado
pelas ousadas
proezas em
miniatura,
aplaudia a
mais detestada
de todas as
criaturas: a
Pulex irritans,
a pulga
humana
sugadora de
sangue e
transmissora
de doenças,
que fora
colocada sob
as luzes da
ribalta e
tornara-se
uma estrela.
A
popularidade
do circo de
pulgas estava,
em parte, no
seu segredo
bem
guardado. A
grande
questão, no
fundo, é:
como se treina
uma pulga?
Os insetos,
encontrados
literalmente
no sofá do
casting, eram
fugitivos
hábeis e
podiam
facilmente
saltar do palco
e escapar. Sob
perguntas
insistentes, os
adestradores
de pulgas, ou
“professores”,
como eram
formalmente
conhecidos, lá
acediam a
revelar um
truque para
domar as
minúsculas
feras: para
manter os
animais
sempre
controlados,
guardavam-
nos numa
prisão
invisível.
Como? As
pulgas eram
colocadas
num pequeno
frasco de
vidro, que era
em seguida
cuidadosamen
te selado.
Sendo
parasitas sem
asas que
evoluíram
para pular
para cima dos
hospedeiros e
conseguir a
sua refeição
de sangue, as
pulgas têm
pernas como
molas que
lhes permitem
saltar mais de
cem vezes a
sua própria
altura e, além
disso, a
resistência
para dar mais
de 30 mil
saltos. Só que,
dentro do
frasco, estas
proezas
atléticas
funcionavam
contra elas:
quando
pulavam, os
seus corpos
batiam com
força, e
repetidamente,
contra a
tampa.
Para evitar a
dor, as pulgas
aprenderam
depressa; em
vez de
saltarem
muito,
saltavam
menos – e
assim não
batiam na
tampa.
Quando
chegavam a
esta fase,
explicavam os
professores,
podia tirar-se
a tampa que
os insetos já
não fugiam.
Para as
pulgas, a
liberdade
estava só a um
pulo de
distância, mas
a armadilha
tinha sido
colocada nas
suas mentes.
Era uma boa
história.
Suficientemen
te boa para
satisfazer os
mais curiosos
– só que não
era
verdadeira. E
embora esta
versão do
treino de
pulgas possa
ainda hoje
encerrar uma
lição para a
sociedade
humana, seria
inútil com as
próprias
pulgas. Como
os
“professores”
sabiam
muitíssimo
bem, era
impossível
treinar os
pequenos
sugadores de
sangue; é que,
se se colocar
uma pulga
dentro de um
frasco e se
tirar a tampa,
o inseto, está
bem de ver,
foge.
Mas,
quando
espreitavam
através de
lentes de
aumentar, as
pessoas
juravam ver as
pulgas a
dançar e a
fazer
equilibrismos,
por ordem do
seu mestre.
Ou seja, a
questão
permanece:
como é que os
insetos
realizavam os
seus números
incríveis? O
que se passa é
que este
número
divertido tinha
um lado
negro. Para as
pulgas, era
uma
verdadeira
tortura.
Os insetos,
vestidos com
tutus cor-de-
rosa e colados
a minúsculas
sombrinhas,
não eram
participantes
voluntários no
espetáculo. As
suas trelas de
fio metálico
dourado eram
arneses que os
aprisionavam.
Por exemplo,
as pulgas
“futebolistas”
jogavam com
uma bola
minúscula
embebida em
citronela, uma
substância tão
repelente para
elas que a
afastavam
assim que
havia contato.
As
“malabaristas”
, por outro
lado, eram
mantidas
deitadas de
costas com
cola e o
movimento
das pernas
fazia rolar por
cima delas
uma bolinha
de cotão.
Quanto aos
músicos da
“orquestra” de
pulgas,
estavam
presos a
cadeiras de
uma caixa de
música, cada
um deles com
um
instrumento
miniatura
fixado às
pernas.
Depois, com
uma pancada
em cada um –
ou, às vezes,
de forma mais
sádica, com a
ajuda de uma
chama acesa
por baixo –,
começavam a
espernear com
as patas livres,
dando a
impressão de
que estavam a
agitar-se ao
ritmo da
música.
Agora, antes
de darmos a
deixa de
entrada ao
pequeno
violinista,
devemos
recordar-nos
de que, para a
pessoa média,
a vida de uma
pulga não vale
nada. Nem
cem vidas. Ou
mil. Nem
pestanejaríam
os perante um
Armagedão
global das
pulgas;
ficaríamos
bem contentes
por nos
vermos livres
delas. Mas,
estranhamente
, quando as
pessoas hoje
vêm no
YouTube
pulgas
“halterofilistas
” a puxar
pequenas
carroças ou
pulgas
“acrobatas” a
caminharem
sobre cordas
bambas,
quando tudo
se passa num
ecrã a uma
escala com a
qual
conseguimos
interagir, com
os insetos
ampliados
como micro
estrelas de
cinema, a
reação altera-
se: Estão a
magoar as
pulgas! As
trelas estão a
estrangulá-
las! Isto é
crueldade
sobre os
animais!
Lembrem-se:
é mais do que
provável que
estas pessoas,
nas suas
próprias casas,
esmagassem
instantaneame
nte os
parasitas e
lhes dessem
com
inseticida.
A questão é
esta: enquanto
gigantes, os
seres humanos
têm tendência
para tratar a
vida pequena
como se fosse
insignificante.
Como o
especialista
em pulgas e
entomologista
Tim Cockerill
já observou:
“Às vezes,
numa cidade
como
Londres,
vemos uma
partícula
pequeníssima
a flutuar no
espaço ou a
pousar numa
mesa, ou na
nossa própria
cerveja no
pub, e a maior
parte das
pessoas não
pensa nela
como se fosse
vida. Pega
nela e afasta-
a, como se
fosse uma
partícula de
pó, ou de
cotão, ou
outra coisa
qualquer, mas
na realidade
trata-se de
diversidade
animal. Se
dedicarmos
um instante a
observar essa
partícula,
abre-se um
mundo
inteiramente
novo.”
E é verdade.
De facto, já se
descobriu
assim espécies
inteiramente
novas.1
Robert
Hooke [1635-
1703] era um
gigante
intelectual,
mas, por causa
da escoliose e
da doença de
Pott, também
era corcunda.
Considerado
por alguns
como o
Leonardo da
Vinci de
Inglaterra,
deixou um
número
impressionant
e de
contributos
nas áreas da
astronomia,
biologia,
física,
paleontologia
e até
arquitetura.
Desenvolveu a
teoria de que a
luz era uma
onda, provou
a existência
do ar, definiu
os limites da
visão humana,
descobriu e
batizou a
célula,
deduziu que
os fósseis
eram restos de
coisas que em
tempos tinham
vivido, e
propôs a ideia,
então
inconcebível,
de que as
espécies
podiam
desaparecer
por extinção.
Mas, hoje, é
mais
conhecido por
um desenho
icónico: uma
ilustração
ampliada de
uma pulga.
Ocupando
quatro
páginas, o
inseto
ampliado,
“apresentado
com a
precisão
anatómica de
um
rinoceronte”,
como
escreveu
Allan
Chapman,
historiador de
Oxford,
apareceu
como
desdobrável
no bestseller
Micrographia,
publicado por
Hooke em
1665. E
embora a
personalidade
flagrantement
e difícil de
Hooke o tenha
tornado
impopular
entre os
colegas
académicos2,
o seu livro
valeu-lhe pelo
menos muita
popularidade
entre o
público. Em
Micrographia,
mostrou as
maravilhas do
mundo
ampliado:
ilustrações de
ferrões de
abelhas, de
patas de
moscas, de
dentes de
caracol
(possuem
mais de 20
mil) e até de
ácaros do
queijo. O
pormenor das
imagens ainda
hoje é capaz
de espantar
muitas
pessoas, mas,
para os que
viam pela
primeira vez
estes “corpos
minúsculos”,
o livro era, no
mínimo,
impressionant
e.
Por causa de
Micrographia,
a pulga foi
elevada à
condição de
musa
microscópica.
E, inspirado
pelas
ilustrações de
Hooke, outro
homem
decidiu
aprofundar
ainda mais o
conhecimento
do mundo do
minúsculo.
Utilizando
lentes cada
vez melhores,
até conseguir
uma
ampliação de
270 vezes3,
Anton van
Leeuwenhoek
foi um
contemporâne
o de Hooke
cujos
poderosos
microscópios
caseiros eram
tão bons que
lhe garantiram
o título de
“pai” de uma
nova área: a
microbiologia.

Conseguind
o ampliar até
ao nível do
mícron, ou de
um
milionésimo
de metro, Van
Leeuwenhoek
conseguia ver
muito para
além da
capacidade do
olho nu. E foi
assim que um
dia, ao
examinar
umas gotas de
água de chuva
que tinha
recolhido
numa panela,
fez uma
descoberta
assombrosa.
Mexendo-se
debaixo dos
seus olhos,
numa escala
extraordinaria
mente
pequena,
havia
pequenas
criaturas a
nadar no
líquido. Eram
mais pequenas
do que
qualquer coisa
que ele já
tivesse visto.
Chamou-lhes
animalcules.
É
importante
recordar que
aquilo a que
hoje
chamamos
micro-
organismos
não existia
oficialmente
no século
XVII. Van
Leeuwenhoek
foi o primeiro
a ter acesso a
um mundo
que antes era
invisível ao
olho humano.
Por isso,
quando em
1673 começou
a documentar
as suas
descobertas,
numa série de
cartas
dirigidas à
Royal Society
de Londres, os
principais
cientistas da
época não se
mostraram
apenas
céticos:
pensaram que
ele estava com
alucinações
ou,
provavelment
e, louco.
No entanto,
uma coisa que
Van
Leeuwenhoek
tinha a seu
favor era o
facto de ser
prolífico. E, à
medida que
começou a
olhar de perto
para as coisas
do quotidiano,
elas
transformaram
-se em
maravilhas
ampliadas.
Em 1673,
orientou a sua
lente para a
força da vida
que passa
através de
todos nós,
quando
colocou sob o
microscópio
uma gota do
seu próprio
sangue.
Acontece que
o líquido
continha
sólidos: ele
viu, a correr
pelas nossas
veias, células
sanguíneas,
que descreveu
como
“glóbulos”
côncavos.
Em 1677,
espiou uma
forma de vida
inteiramente
nova e
descobriu os
protozoários.
Criaturas tão
“pequenas,
perante a
minha vista,
que calculei
que mesmo
que cem
destes animais
fossem postos
em fila uns a
seguir aos
outros, não
seriam
capazes de
atingir o
tamanho de
um simples
grão de areia”.
Nesse mesmo
ano, fez a sua
maior
descoberta, ao
examinar
outro fluido
corporal, o seu
próprio
sémen.
Tornou-se a
primeira
pessoa a ver
células vivas
de esperma,
aumentadas e
“a moverem-
se como uma
cobra ou uma
enguia a nadar
na água”.
Em 17 de
setembro de
1863, numa
carta à Royal
Society, Van
Leeuwenhoek
revelou que
tinha
orientado o
seu trabalho
de detetive
para a higiene
oral. Ao
observar a
placa, ou
“matéria
branca”, entre
os seus dentes,
abriu um
portal para
uma nova
dimensão: “Vi
então quase
sempre, com
grande
espanto, que
na dita
matéria
existiam
muitos
pequenos
animálculos
vivos, a
moverem-se
muito bem. Os
maiores…
tinham um
movimento
muito forte e
rápido, e
cruzavam a
água como faz
um peixe. Os
da segunda
espécie… às
vezes giravam
como um
pião… e estes
eram bem
mais
numerosos.”
Ali, na sua
própria boca,
encontrara
uma
metrópole de
vida na
fronteira mais
remota do
mundo
microscópico.
Ainda hoje
são os mais
pequenos
seres vivos
que
conhecemos.
Van
Leeuwenhoek
tinha
descoberto as
bactérias.4
Mas na
comunidade
científica
ainda havia
fortes dúvidas
sobre as suas
ousadas
alegações.
Numa carta a
Robert Hooke,
o holandês
escreveu:
“Enfrento
muita
oposição e
oiço muitas
vezes que só
conto histórias
inventadas
sobre os
pequenos
animais.” E
por isso a
Royal Society
solicitou ao
eminente
Hooke que
repetisse e
confirmasse as
descobertas de
Van
Leeuwenhoek.

Hooke já
tinha
espreitado por
um
microscópio,
mas quando
chegou à
ampliação de
Van
Leeuwenhoek
aquilo que viu
era intrigante
e
“ultrapassava
o
entendimento”
. E, no
entanto, era
verdade. Na
sua carta à
Royal Society,
comunicou:

“Aqui
envio os
testemunh
os de oito
pessoas
credíveis;
algumas
das quais
afirmam
ter visto
10 mil,
outras 30
mil,
outras 45
mil
pequenas
criaturas
vivas,
numa
quantidad
e de água
tão grande
como um
grão de
milho
miúdo
(são
necessário
s 92 para
atingir o
tamanho
de uma
ervilha,
ou a
quantidad
e de uma
gota
natural de
água)…
De acordo
com
alguns
dos
testemunh
os aqui
incluídos,
podem
encontrar-
se nada
menos de
45 mil
animálcul
os numa
quantidad
e de água
do
tamanho
de uma
semente
de milho
miúdo.
Daqui se
segue que
numa gota
normal
desta água
não
haveria
menos de
4.140.000
criaturas
vivas,
cujo
número,
se
duplicado,
resultaria
em
8.280.000
criaturas
vivas
vistas na
quantidad
e de uma
gota de
água,
quantidad
e essa que
posso,
com
verdade,
afirmar
que
distingui.”
Sob a lente
de vidro do
microscópio,
tinha-se aberto
de par em par
uma pequena
janela, e o
universo que
através dela
revelado era
gigantesco.

Tendemos a
esquecer que,
à escala das
coisas vivas,
somos
enormes.
Parece-nos
que a
realidade tem
uma escala
humana, mas
na verdade 95
por cento das
espécies são
mais pequenas
do que o
polegar
humano. Até
pequenos
animais como
as pulgas são
gigantescos
em
comparação
com as formas
de vida
microscópicas
que os
habitam.
Como diz a
velha rima
“Siphonaptera
”: “As pulgas
grandes têm
pulgas
pequenas /
Nas costas
para as
morderem / E
as pulgas mais
pequenas têm
pulgas mais
pequenas / E
assim por
diante, até ao
infinito”. Em
suma, até os
nossos
parasitas têm
parasitas.
Perante isso,
vale a pena
parar um
momento para
pensar
exatamente no
que é um
“parasita”. O
termo implica
uma pequena
criatura cuja
própria
existência e
modo de vida
é um
incómodo. As
pulgas são
apenas uma
entre a
imensidade de
espécies que
desprezamos.
E com razão:
está mais do
que provado
que a pulga da
ratazana foi
hospedeira da
bactéria
Yersinia
pestis, que
matou milhões
de pessoas em
todo o mundo,
mais
especificamen
te relacionada
com a Peste
Negra, a
pandemia que
atingiu o seu
auge na
Europa do
século XIV.5
Por causa
disto, alguns

questionaram
se as pulgas
são sequer
necessárias.
Como alguém
já escreveu na
Net: “Há
criaturas que
não servem
qualquer fim.
As pulgas são
um exemplo.
Não polinizam
flores, não são
predadores
nem destroem
quaisquer
insetos
nocivos. Na
verdade,
sugam sangue
de pessoas e
animais
distraídos, ao
mesmo tempo
que passam
organismos
prejudiciais
para as suas
correntes
sanguíneas!”
Mas a pulga
não é a única
apontada
como
“indigna” de
permanecer
viva. Temos
atitudes
semelhantes
para com as
baratas, os
mosquitos, os
ácaros, os
percevejos, as
vespas, as
traças, as
aranhas, as
moscas e
muitos dos
pequenos
insetos
indesejáveis
que pululam à
volta das
nossas casas.
Decidimos
que animais
devem viver e
devem morrer.
Dividimos os
animais entre
aqueles que
admiramos ou
dos quais
retiramos
vantagens –
insetos que
são belos ou
têm uma
finalidade,
como as
borboletas e
as abelhas – e
aqueles que
preferiríamos
exterminar,
em especial
quando
competem
pelos nossos
alimentos no
reino da
agricultura.
Por causa
disso,
desencadeámo
s a nossa
própria “Peste
Negra”, uma
guerra
química sem
quartel contra
estes
pequenos
invasores. À
escala do
planeta, os
produtos
agroquímicos
e os pesticidas
tornaram-se
uma indústria
de muitos
milhares de
milhões de
dólares que
cresce ano
após ano.6
Mas, na
tentativa de
eliminar
parasitas
indesejados,
lançamos
todos os anos
sobre as
nossas plantas
e os nossos
solos mais de
dois milhões
de toneladas
de pesticidas.
Não
surpreende
que estejamos
a fazer mal
não só aos
insetos de que
não gostamos;
estamos
também a
destruir os
insetos de que
gostamos.
Os cientistas
afirmam que
estamos a
presenciar um
colapso
catastrófico de
populações de
insetos. Um
estudo alemão
concluiu que,
em reservas
naturais
protegidas, o
número de
insetos tinha
caído a pique,
em 80 por
cento.
Rodolfo
Dirzo, um
ecologista da
Universidade
de Stanford,
documentou
um declínio
de 45 por
cento à escala
global das
populações de
insetos nas
últimas quatro
décadas. E na
Lista
Vermelha da
União
Internacional
para a
Conservação
da Natureza
(UICN), 42
por cento dos
3.623
invertebrados
que são
seguidos estão
sob ameaça de
extinção.7
No nosso
desejo de
exterminar
insetos,
perdemos a
noção de
como eles são
fundamentais
para a
sobrevivência
humana, mas
o efeito em
cascata faz-se
sentir de
imediato na
cadeia
alimentar.
Como avisa o
biólogo
britânico Dave
Goulson,
estamos
“atualmente a
caminho de
um
Armagedão
ecológico. Se
perdermos
estes insetos,
então entrará
tudo em
colapso”. É
que os insetos
não ajudam só
com a
polinização.
Eles são os
homens do
lixo da
natureza e, ao
mesmo tempo,
recicladores.
Como observa
Goulson:
“Sem insetos,
não teríamos a
maior parte
das frutas e
dos vegetais
que gostamos
de comer, e
também coisas
como café e
chocolate. Os
insetos
também
ajudam a
desfazer
folhas, árvores
mortas e
cadáveres de
animais.
Ajudam a
reciclar
nutrientes e
voltam a
disponibilizá-
los. Se não
fossem os
insetos,
acumular-se-
iam na
paisagem as
carcaças de
vacas e
cadáveres.”
Não
seremos só
nós a sentir os
efeitos. Os
pássaros que
se alimentam
de insetos já
começaram a
desaparecer. O
número de
pássaros na
Europa caiu
em 400
milhões nas
últimas três
décadas.
Algumas aves
cantoras,
como a
petinha-dos-
prados, viram
as suas
populações
diminuir em
até 70 por
cento.
Não vemos
estas coisas a
acontecer – e
este é,
potencialment
e, o nosso
defeito fatal:
não reparamos
que alguma
coisa está a
desaparecer
até ao
momento em
que ela
desaparece
mesmo.

No fim, o
que acabou
com o circo
das pulgas foi
o
desaparecime
nto da sua
estrela. O
pequeno
espetáculo
brilhou
glorioso
durante bem
mais de cem
anos, mas foi
obrigado a
desmontar a
tenda quando
a pulga
humana
provou não ter
capacidade
para enfrentar,
não os
inseticidas,
mas o
8
aspirador. De
um ponto de
vista
comercial, foi
o custo de
importar
pulgas que
tornou o
negócio
inviável.
Como
observou o
professor
Tomlin, um
dos últimos
grandes
treinadores de
pulgas:
“Tenho
propostas de
todo o mundo
para fazer
digressões
com o meu
espetáculo,
mas há um
problema:
quando se
chega a esse
país há
pulgas? Fui à
Suécia e de 15
em 15 dias
tinha de
mandar buscar
pulgas a
Maiorca, em
Espanha.”
Já nos
vimos
praticamente
livres da pulga
doméstica,
mas os nossos
corpos
continuam a
hospedar
muitas
espécies
menos
conhecidas.
Felizmente,
quer para elas
quer para nós,
elas fazem as
suas vidas
sossegadamen
te, como
pequenas
companheiras
que não
conseguimos
sentir ou ver.
Talvez precise
de respirar
fundo ao ler
isto, mas neste
preciso
momento a
sua cara está
cheia de
ácaros
parasitas
Demodex,
aracnídeos de
oito patas
cujos
familiares
mais próximos
são as
aranhas. Um
estudo
determinou
que, pelos 18
anos de idade,
100 por cento
das pessoas
testadas são
portadoras
destes ácaros.9
Instaladas nos
orifícios dos
nossos poros e
encaixadas
nas nossas
pestanas, as
criaturas
noturnas
emergem
todas as
noites,
movimentand
o-se nos
nossos rostos
a uma
velocidade de
oito a 16
milímetros por
hora, para se
alimentarem e
procurarem
parceiros. Os
cientistas
ainda não têm
bem a certeza
do que é que
elas comem.
Pode ser o
sebo, ou
gordura, que
os nossos
poros
segregam, ou
podem fazer
autênticos
festins com
células mortas
ou bactérias
da nossa pele.
Mas há uma
coisa que os
cientistas
sabem:
embora estes
ácaros tenham
boca, não
possuem ânus,
e a
acumulação
de comida
significa que,
quando
morrem,
explodem e
espalham a
matéria das
suas
entranhas, que
acaba nas
nossas caras.
E a matéria
fecal serve de
casa a
espécies ainda
mais
pequenas,
porque à
boleia, nas
entranhas dos
ácaros, estão
formas de
vida ainda
mais
prolíficas:
bactérias.
Mas uma
bacteriazinha
do rosto não é
nada se
pensarmos
que os seres
humanos estão
cobertos, da
cabeça aos
pés, de
micróbios. E a
diversidade de
espécies é
absolutamente
espantosa. Em
amostras
recolhidas nos
umbigos de 60
pessoas,
investigadores
da
Universidade
Estadual da
Carolina do
Norte que
trabalham no
“Projeto
Biodiversidad
e Umbigo”
encontraram
um verdadeiro
jardim
zoológico de
bactérias, um
total de 2.368
espécies, mais
de metade das
quais eram,
até aí,
desconhecidas
da ciência. O
umbigo de
uma pessoa
até albergava
uma bactéria
que se julgava
existir apenas
em território
japonês. E
essa pessoa
nunca tinha
ido ao Japão,
por isso, como
é que ela lá
tinha ido
parar? Bom,
as bactérias
são viajantes
globais. Até
quando
inspiramos
uma pequena
quantidade de
ar estamos a
experimentar
um safari de
espécies
microbianas
de todo o
mundo, como
assinalou o
microbiólogo
Nathan Wolfe:
“A poeira dos
desertos da
China
movimenta-se
sobre o
Pacífico para
a América do
Norte e mais
para Leste,
para a Europa,
acabando por
dar a volta ao
globo. Essas
nuvens de
poeira contêm
bactérias e
vírus dos
solos de
origem, tal
como outros
micróbios que
foram
apanhando do
fumo de fogos
de queima de
lixo ou do
nevoeiro sobre
os oceanos
que
atravessam.”
Em
amostras de ar
recolhidas por
cientistas do
Laboratório
Nacional
Lawrence
Berkeley
descobriu-se
que o ar que
respiramos
contém até
1.800 espécies
de bactérias.
Estas formas
de vida
bacteriana não
estão apenas
em nós e à
nossa volta;
fazem parte de
nós. Por
exemplo,
engenheiros
da
Universidade
de Yale
descobriram
que a simples
presença de
uma pessoa
numa sala
acrescenta ao
ambiente, em
cada hora, 37
milhões de
bactérias.
Aquilo que
consideramos
ser o nosso
corpo é, na
verdade,
apenas metade
nosso. E
embora exista
o mito de que
as células
bacterianas
são em
número
superior às
células
humanas
numa
proporção de
dez para um,
investigações
recentes
provaram que
estamos
bastante mais
equilibrados.
Um corpo
humano
médio tem 30
biliões de
células
humanas e
cerca de 39
biliões de
células
bacterianas, o
que significa
que só
estamos
ligeiramente
em
desvantagem,
numa
proporção de
1,3 para 1.10
Claro que
isto levanta
outra questão:
quem controla
as coisas?
Elas ou nós?
Desta
perspetiva, a
relação
humanos-
micróbios não
é tanto
parasítica e
sim mais
simbiótica.
Apesar do mal
que se diz de
alguns
germes,
aprendemos a
viver juntos,
na maior parte
dos casos,
numa relativa
harmonia.11
Quando
nascemos, no
entanto,
estamos
relativamente
livres de
12
bactérias e é
ao longo da
vida que
vamos dando
boleia à
maioria dos
viajantes
microscópicos
. É por isso
que, se
recolhermos
amostras
microbianas
de gémeos
idênticos,
descobrimos
que os
micróbios que
neles habitam
possuem ADN
diferentes.
Está a
tornar-se
evidente que
sem bactérias
a nossa vida
estaria em
risco, porque
os apelidados
“micróbios
bons”, como
os probióticos,
são
necessários
para um
sistema
imunitário
saudável. Por
exemplo, uma
espécie
designada
Bacterioides
fragilis
encontra-se
com
abundância
nos intestinos
da maior parte
dos
mamíferos,
incluindo 70 a
80 por cento
dos humanos.
Uma molécula
da superfície
da célula,
designada
polissacarídeo
A, aumenta a
produção de
células T
reguladoras, o
que por seu
turno impede
a inflamação
intestinal.
Cientistas que
trabalharam
com ratos de
laboratório
livres de
germes
descobriram
que as suas
células T
reguladoras
funcionavam
mal, mas que
assim que a B.
fragilis era
introduzida
nos seus
organismos a
sua saúde
melhorava e a
sua imunidade
era
restaurada.
As bactérias
também nos
ajudam a
realizar tarefas
vitais para a
sobrevivência,
como comer.
Se é um fã de
massa, tartes
ou batatas
fritas, então
enche a
barriga graças
à Bacteroides
thetaiotaomicr
on. Assim
como as vacas
têm bactérias
no rúmen, ou
pança, que as
ajudam a
digerir a
celulose e a
transformá-la
em gorduras,
os humanos
dependem da
B.
thetaiotaomicr
on para criar
as enzimas
que permitem
processar
alimentos de
origem
vegetal com
amido.
Mas as
bactérias não
estão só
encarregadas
de regular os
nossos
organismos;
também têm
missões mais
elevadas.
Como
observou Rick
Stevens, um
dos
fundadores do
Projeto
Microbioma
Terra:
“Cinquenta
por cento da
vida na Terra
é ‘invisível’ e,
no entanto, é
responsável
por tornar o
planeta
habitável.” Os
cientistas
sabem agora
que as mais
ínfimas
formas de
vida na Terra
têm a
responsabilida
de de fazer
com que
sistemas a
uma escala
planetária
funcionem – e
isto inclui o
próprio ar que
respiramos e
os alimentos
que comemos.
E embora os
humanos
andem por aí
como se
fossem as
criaturas mais
poderosas à
face do
planeta, quem
na verdade
põe todo o
espetáculo a
mexer são os
micróbios.
Para
começar,
produzem o
gás que é vital
para a vida
multicelular –
o oxigénio. E
embora nos
tenham
ensinado que
o oxigénio é
produzido
essencialment
e pelas
árvores, na
verdade só 28
por cento tem
origem nas
florestas
tropicais. A
vasta maioria
do oxigénio é
criada no mar,
pelo
fitoplâncton e
pelas algas. A
origem desta
fotossíntese é,
no entanto,
exatamente a
mesma, já que
plantas e algas
têm algo em
comum:
foram, em
tempos,
tomadas de
assalto por
bactérias.
Há mais de
dois mil
milhões de
anos, as
cianobactérias
desenvolvera
m um
superpoder
extraordinário
: a capacidade
de transformar
a luz do Sol
em alimento.
Usando a
energia da
estrela mais
próxima de
nós,
começaram a
transformar a
água e o
dióxido de
carbono em
açúcares,
produzindo
oxigénio
como produto
secundário.
Ao longo do
tempo,
algumas
destas
cianobactérias
permaneceram
aquáticas e
continuaram
livres e
independentes
no oceano13,
enquanto
outras foram
absorvidas por
algas,
tornando-se
hóspedes
permanentes
alojados nas
suas
organelas, os
cloroplastos.14
À medida que
espécies de
algas
evoluíram,
foram
migrando para
terra,
tornando-se os
antepassados
das árvores e
plantas
modernas. O
que quer dizer
que estes
engenheiros
muito
pequenos e
muito antigos
são quem
controla todas
as plantas que
realizam a
fotossíntese. E
são eles os
responsáveis
por todo o
oxigénio que
respiramos.
Debaixo dos
nossos pés
encontra-se
outro
ecossistema
imensamente
ignorado. O
solo abriga
um terço de
toda a vida no
planeta e a sua
biodiversidade
é vibrante.
Uma simples
colher de chá
de terra de um
jardim contém
uma
população de
aproximadam
ente mil
milhões de
bactérias. Em
termos de
biomassa, é o
equivalente a
mais ou
menos duas
vacas por
hectare. Uma
mão cheia de
terra da
floresta
contém mais
micróbios do
que o número
de pessoas
sobre a Terra,
e num quilo
de solo
saudável há
mais
micróbios do
que todas as
estrelas que
existem na
nossa galáxia.
Van
Leeuwenhoek
nunca poderia
ter adivinhado
a vastidão do
universo que
encontraria
sob o
microscópio.
Mas ainda
hoje, mais de
três séculos
depois da sua
primeira
descoberta,
muito deste
cosmos
subterrâneo de
bactérias,
arqueas,
fungos,
protozoários,
algas e vírus
continua por
explorar. Até
agora, a
ciência apenas
conhece 0,001
por cento das
espécies
microbianas.
O solo,
evidentemente
, é essencial
em termos
alimentares.
Sem um bom
solo,
passaríamos
fome. E hoje
compreendem
os um dos
papéis fulcrais
que certas
bactérias
desempenham
no
crescimento
das plantas. É
que estas,
como todos os
seres vivos,
precisam de
azoto para o
seu ADN. No
solo, estas
bactérias têm
a capacidade
de pegar no
azoto
atmosférico e
de o
transformar
para lhe dar
uma forma –
como o
amoníaco –
que as plantas
sejam capazes
de utilizar. Na
sua essência,
as bactérias
que
modificam o
azoto
comportam-se
como
minúsculas
“saquetas
solúveis de
fertilizante”
no solo,
fornecendo às
plantas os
seus nutrientes
químicos e, ao
mesmo tempo,
enriquecendo
todos os
animais da
cadeia
alimentar.
Para além
dos seus
habitats na
Terra e nos
oceanos,
também foram
encontradas
bactérias a
vogar na
atmosfera.
Cientistas que
acompanhara
m
investigadores
de furacões da
NASA
colheram um
metro cúbico
de ar a cerca
de dez mil
metros de
altitude e
encontraram
mais de 5.100
espécies. O
nosso planeta
está
literalmente
cercado por
uma bolha de
bactérias. Só
agora
começamos a
descobrir o
que é que
estes
pequenos
seres estão a
fazer lá em
cima. Alguns
cientistas
acreditam que
eles têm um
papel
fundamental
na criação de
nuvens e na
produção de
chuva,
enquanto
outros
afirmam que
eles podem
estar a reciclar
nutrientes nas
camadas
superiores da
atmosfera. Há
pelo menos
uma coisa de
que temos a
certeza: longe
de serem
insignificantes
, as mais
pequenas
formas de
vida na Terra
desempenham
um papel
essencial na
criação dos
sistemas que
sustentam a
vida no
planeta. Há
muito tempo
que somos
cegos aos
serviços
invisíveis que
as bactérias
prestam, mas,
na verdade,
devemos-lhes
a nossa vida.

O nosso
primeiro
ângulo morto
é o facto de a
realidade não
ter uma
dimensão
humana.
Aquilo a que
chamamos
realidade não
passa de um
pedaço
minúsculo no
grande
esquema das
coisas. E
embora
raramente
pensemos no
tamanho, este
é
provavelment
e o atributo
mais
importante da
existência de
um animal:
define onde,
como, e até
durante
quanto
tempo15 se
vive sobre
este planeta.
Mas quando
se trata da
vida sobre a
Terra, o
tamanho tem
os seus
limites.
Por
exemplo, a
vespa parasita
designada por
vespa-fada-
voadora só
tem 200
mícrones de
comprimento.
É mais ou
menos o
tamanho de
uma ameba, o
que quer dizer
que uma
família de
cinco destas
pequenas
vespas caberia
confortavelme
nte no ponto
final no fim
desta frase.
Mas o que é
incrível em
relação à
vespa-fada-
voadora é que,
ao contrário
de uma
ameba, não é
um organismo
unicelular. É
uma forma de
vida
multicelular
complexa, que
foi capaz de
encaixar uma
quantidade
impressionant
e de material
biológico
numa
estrutura
inacreditavel
mente
diminuta.
Estes animais
possuem no
seu corpo a
arquitetura
biológica
básica de um
coração que
bate, asas,
patas, um
aparelho
digestivo e um
cérebro que
funciona.
Então, como é
que isto tudo
encaixa? Para
a vespa-fada-
voadora, ser
pequena tem
um preço
elevado e é
pago em
células
cerebrais.
Cientistas
descobriram
que, quando
chegam a
adultas, as
vespas-fadas-
voadoras
sacrificaram
os núcleos de
95 por cento
dos seus
neurónios, que
é onde o
material
genético está
armazenado
na célula. O
que isso quer
dizer é que,
para um
inseto, é
praticamente
impossível
ficar mais
pequeno. Mas
para bactérias
sem cérebro,
ainda há
espaço para
encolher.
Enquanto no
ponto final no
fim de uma
frase podiam
caber cinco
vespas-fadas-
voadoras, era
possível
encaixar lá,
nesse mesmo
espaço,
centenas de
milhares de
bactérias
unicelulares.
Quanto a
tamanho, as
bactérias são
então as
guardiãs desta
fronteira-
limite. A vida
multicelular
não consegue
tornar-se mais
pequena
porque não há
espaço para os
seus
ingredientes
essenciais:
proteínas e
ADN. Ou
seja, muito
literalmente, a
vida não
consegue
espremer-se
para conseguir
entrar lá
dentro.
No lado
oposto do
espetro estão
os gigantes: os
animais
multicelulares
que têm a
nossa
dimensão e
aqueles que
são ainda
maiores.
Quais são
então os
limites das
grandes coisas
vivas? Porque
é que na vida
real não há
King Kongs16,
Godzillas ou
mulheres com
15 metros de
altura? A
primeira
pessoa a
abordar essa
questão foi
também, nem
a propósito,
uma espécie
de Golias: o
famoso
contemplador
de estrelas e
revolucionário
científico
Galileu
Galilei.
O que
Galileu
percebeu foi
que o tamanho
não só é
importante
como pode ser
uma questão
de vida ou de
morte. Na
obra
Discursos e
Demonstraçõe
s Matemáticas
Relacionadas
com Duas
Novas
Ciências,
escreveu:
“Quem não
sabe que um
cavalo que
caia de uma
altura de três
ou quatro
cúbitos parte
os ossos,
enquanto um
cão que caia
da mesma
altura ou um
gato de uma
altura de oito
ou dez cúbitos
não sofre
qualquer
ferimento?
Também
inócua seria a
queda de um
gafanhoto da
altura de uma
torre ou a
queda de uma
formiga da
distância da
Lua.” Em
resumo:
porque é um
animal grande
sofreria uma
queda mortal
e um animal
pequeno sairia
ileso?
O
brilhantismo
de Galileu
esteve em
compreender
que, se fosse
possível
continuar a
fazer crescer
um animal, a
certo ponto
ele começaria
a entrar em
colapso
devido ao seu
próprio peso.
Tal como uma
árvore já não
conseguiria
suportar o
peso de
imensos e
pesados
ramos,
também uma
mulher
gigante de 15
metros não
seria capaz de
dar um passo
sem partir os
ossos dos seus
membros.17
Para os
gigantes da
Terra, são as
leis da física,
e a gravidade
em especial,
que colocam
um limite às
coisas.
Mas os mais
atentos de
entre vós
devem estar a
pensar: então
e os
dinossauros?
E as baleias?
Os maiores
sáurios tinham
a altura de um
prédio de
quatro andares
e até as
baleias azuis
medem
sensivelmente
o mesmo que
três autocarros
escolares
colocados em
fila. Então,
como é que
são assim
grandes? O
que acontece é
que estes
imensos
animais
evoluíram por
via de alguns
estratagemas
realmente
impressionant
es.
Os
dinossauros
contornaram o
problema do
peso dos ossos
tornando-se
ocos. Os
répteis
titânicos,
como hoje
sucede com os
pássaros que
deles
descendem,
tinham ossos
leves e ocos
com grandes
bolsas de ar
no interior. Na
verdade, 10
por cento do
volume
corporal do T.
rex era ar, e
cientistas
descobriram,
através do
estudo dos
esqueletos de
saurópodes,
que 90 por
cento do
volume dos
seus ossos era
ar. As baleias
resolveram o
problema
evoluindo na
água. Como
todas as coisas
vivas, as
células de
uma baleia
contêm uma
solução salina.
Pondo as
coisas em
termos mais
simples, ser
essencialment
e composto
por água
salgada e
nadar em água
salgada
permite a
estes gigantes
atingirem
tamanhos
imensos e
pesarem até
144 toneladas,
porque, como
vivem no
oceano,
essencialment
e não têm
peso.18
Há, no
entanto, outro
meio invisível
capaz de
afetar o
tamanho de
um animal e,
tal como a
água para as
baleias, é
qualquer coisa
em que mal
reparamos: o
ar. Esse
vaporoso
cocktail que
todos
respiramos
tem mudado
significativam
ente através
dos tempos. E,
com ele, o
tamanho da
vida também
tem mudado.
Se fosse
possível entrar
numa máquina
do tempo e
atrasar o
relógio entre
cem e 400
milhões de
anos, como a
Alice
descobriríamo
s um País das
Maravilhas de
dimensão
gigantesca.
Porque este
foi o tempo
dos gigantes.
Nesse mundo
antigo, os
cogumelos
atingiam a
altura de
casas,
libélulas do
tamanho de
falcões
cruzavam os
céus e até as
pulgas dos
dinossauros
tinham dez
vezes o
tamanho das
suas
homólogas
modernas.
Os
invertebrados
podiam
crescer à
vontade
porque, para
eles, o
tamanho dos
ossos não era
um problema.
Mas havia
outra coisa
que limitava o
seu
crescimento.
Kirkpatrick
Sale, o autor
de Human
Scale,
descreve
assim o
problema: “Se
uma minhoca
fosse dez
vezes maior, o
seu peso seria
mil vezes
maior e a sua
necessidade
de ar mil
vezes maior,
mas a
superfície
através da
qual
absorveria
oxigénio seria
somente cem
vezes maior,
por isso
obteria apenas
um décimo do
ar de que
necessitava e
morreria
imediatamente
.” Sendo
assim, como é
que as
minhocas pré-
históricas
cresceram e
mesmo assim
foram capazes
de sobreviver?
A resposta
está na
concentração
de oxigénio.
Hoje, na nossa
atmosfera, o
oxigénio
representa 21
por cento do
ar, mas
durante o
19
Carbonífero
a sua
concentração
era muito
mais elevada,
cerca de 35
por cento.
Para animais
como as
minhocas, que
respiram não
pela boca, mas
através de
poros na pele,
cada
inspiração
significava um
impulso mais
poderoso e
continha o
oxigénio
suficiente para
conseguirem
sobreviver.20
Podemos
dar-nos por
felizes por não
haver hoje
baratas do
tamanho de
cães a passear
pelas nossas
cozinhas. O
gigantismo
dos insetos
teve um fim
quando outro
animal
assumiu uma
posição de
protagonismo.
Há 150
milhões de
anos, os
dinossauros
evoluíram
para um novo
tipo de
predador
voador: os
pássaros.
Entre os que
procuravam
fugir depressa,
os que eram
mais leves e
aerodinâmicos
tinham mais
sucesso do
que os
grandes e
gordos. A
evolução
favoreceu um
tamanho
corporal mais
pequeno para
efeitos de
fuga, e aí os
insetos
começaram a
encolher.21
O tamanho
de uma
espécie não é
acidental. É
uma interação
muito afinada
– e por
tentativas –
entre a espécie
e o mundo que
ela habita. Ao
longo de
largos
períodos de
tempo, as
flutuações de
tamanho, do
nanismo ao
gigantismo,
foram
frequentement
e um reflexo
de mudanças
significativas
no ambiente.
Mas, em
termos gerais,
nos últimos
500 milhões
de anos a
tendência tem
sido para os
animais
crescerem.
Isto é
especialmente
notável entre
os animais
marinhos,
cujo corpo
médio
aumentou
neste período
cerca de 150
vezes.22
Mas
estamos outra
vez a começar
a ver grandes
mudanças.
Cientistas
descobriram
que muitos
animais estão
a encolher.23
Em todo o
mundo,
espécies de
todas as
categorias –
peixes,
pássaros,
anfíbios,
répteis e
mamíferos –
estão a ficar
mais
pequenas, e o
calor parece
ser um dos
principais
culpados.24
Por exemplo,
os animais
que vivem nos
Alpes
italianos
viram as
temperaturas
aumentar três
ou quatro
graus Celsius
desde os anos
1980. Aí,
mesmo a uma
altitude de mil
metros, ondas
de calor
fizeram subir
as
temperaturas
alpinas a picos
de 30o C. Para
evitar o
sobreaquecim
ento, as
camurças
passam agora
mais tempo a
descansar do
que a pastar e,
por causa
disso, em
apenas
algumas
décadas, as
novas
gerações de
camurças são
25 por cento
mais
pequenas, e
em
comparação
com as
anteriores são
anãs. Também
debaixo de
água as
temperaturas
começaram a
subir, e uma
consequência
disso é que a
água
transporta
menos
oxigénio e se
torna mais
anóxica.
Cientistas que
estudam 600
espécies de
peixes
afirmam que
as grandes
mudanças de
tamanho estão
iminentes e
que por volta
do ano de
2050 os
peixes terão
encolhido em
cerca de um
quarto.
Encolher
envolve
potencialment
e um
problema
ainda maior:
uma queda
abrupta de
população.
Analisando os
dados da
pesca
comercial de
cetáceos ao
longo de
quatro
décadas,
investigadores
chegaram à
conclusão de
que os
cachalotes
diminuíram
significativam
ente de
tamanho –
entre quatro e
cinco metros –
nos anos
anteriores ao
colapso das
suas
populações.
Assim, para os
biólogos, a
diminuição de
tamanho
constitui um
primeiro sinal
de alerta, um
aviso de que
uma espécie
pode estar em
risco.
Mas nem
todos os
animais estão
a encolher. As
espécies
domésticas
que criamos
para nos
servirem de
alimento,
como os
porcos e as
vacas, por
exemplo,
estão a
aumentar
mais, e mais
depressa, do
que em
qualquer
momento da
história.
Desde os anos
1930, os perus
mais do que
duplicaram de
tamanho, e
desde 1950 os
frangos para
produção de
carne
quadruplicara
m.
Para
monitorizarem
estas
mudanças,
investigadores
canadianos
prosseguiram
a criação de
linhagens de
frangos não
modificadas,
comparando-
os com os
nossos
“Frankenstein
s modernos”.
Ou seja,
continuam a
criar estas
estirpes-
referência
como se elas
fossem
cápsulas do
tempo vivas.
Isso permite
aos
investigadores
a comparação
com as
estirpes
selecionadas
para criação
comercial,
como por
exemplo a
Ross 308 de
2005.
Recebendo a
mesma
comida, e
medida com a
mesma idade,
a estirpe de
1957 pesava
905 gramas, a
de 1978
chegava a
1.808 gramas
e a de 2005
atingia 4.202.
A diferença é
enorme. Em
comparação
com as aves
dos anos
1950, os
frangos
modernos têm
peitos 80 por
cento maiores
e o seu
tamanho geral
aumentou 400
por cento.
Isto tem
uma
consequência.
À medida que
fomos
deliberadamen
te criando
animais
maiores para
nos servirem
de alimento, o
nosso apetite
também
cresceu. Em
1960, o norte-
americano
médio comia
anualmente
12,7 quilos de
frango, e hoje
esse número é
de 40,8 quilos,
mais do
25
triplo. Não é
surpresa
nenhuma que,
enquanto
beneficiários
de toda esta
carne barata,
os humanos
também
tenham
começado a
mudar de
tamanho. Nos
últimos 150
anos, o que é,
em termos
relativos, um
período curto,
a altura
humana
aumentou
extraordinaria
mente. Nos
países
industrializad
os, onde há
abundância de
alimentos,
crescemos dez
centímetros. E
não nos
expandimos
apenas
verticalmente,
mas também
horizontalmen
te – de modo
que todos os
países da
Terra viram
subir as suas
taxas de
26
obesidade.
No total,
considera-se
que 2.200
milhões de
pessoas em
todo o mundo
têm peso a
mais, ou são
obesas, e os
adultos têm
uma
probabilidade
três vezes
maior de
serem obesos
do que tinham
em 1975.
Hoje, no
mundo inteiro,
os animais
selvagens
estão a
diminuir de
tamanho, mas
os seres
humanos e os
seus animais
domesticados
estão a
insuflar.
Galileu foi a
primeira
pessoa no
mundo a ter
uma noção da
escala colossal
da realidade.27
Conhecido
hoje como o
“Pai da
Ciência”, não
só foi o
primeiro a
desbravar os
céus com um
telescópio,
como foi o
primeiro a
espreitar por
um
microscópio e
a documentar
a humilde
pulga. Galileu
teve a sorte de
viver num
tempo em que
o fabrico de
vidro fazia
progressos
rápidos, em
especial a arte
de fazer
óculos. Então,
como agora,
as pessoas por
volta dos 40
anos eram
afetadas por
presbiopia, ou
seja, por causa
do
envelheciment
o, o globo
ocular perde
flexibilidade,
tornando mais
difícil, por
exemplo, ler.
Na Holanda,
os mestres
vidreiros
tinham-se
especializado
em fabricar
lentes para
óculos, e
foram eles os
criadores dos
primeiros
instrumentos
rudimentares
que nos
permitiram
observar
escalas até
então nunca
vistas.
O objetivo
dos
fabricantes de
lentes pode ter
sido melhorar
uma visão
deficiente,
mas sem
querer fizeram
muito mais do
que isso.
Quando
ampliaram a
nossa visão,
revelaram que
a humanidade
tinha estado
inconsciente
de duas
escalas
imensas que
coexistiam
secretamente
com a sua
própria escala.
Os mundos
macro e micro
tornavam-se
visíveis, e
com esta nova
e melhorada
capacidade de
visão veio a
compreensão
de que não
habitamos só
uma realidade,
mas sim três.
Pela
primeira vez
na história,
éramos
capazes de
prolongar os
nossos
sentidos
humanos. E,
por causa
disso, os
primeiros
microscópios
e telescópios
eram
considerados
quase
invenções
mágicas. O
fabrico de
óculos era um
negócio de
grande
concorrência e
cheio de
segredos, de
tal modo que
ainda há
discussão
sobre as
patentes
destas
primeiras
invenções. A
conceção dos
primeiros
microscópios
simples e
compostos, no
entanto, é
geralmente
atribuída ao
fabricante de
óculos
Zacharias
Janssen, que
começou a
desenvolver as
suas novas
ferramentas
em 1590; a
primeira
patente do
telescópio foi
apresentada
18 anos
depois, em
1608, pelo
mestre
fabricante de
lentes e de
óculos Hans
Lippershey.28
Galileu era
um cientista e
não um
fabricante de
óculos, mas
assim que
dedicou o seu
génio a
analisar como
eles eram
feitos,
conseguiu
logo melhorá-
los. Em 1609,
engendrou um
aparelho a que
chamou
occhiolino, ou
“pequeno
olho”, um
microscópio
capaz de
ampliar até 30
vezes, ou seja,
dez vezes
mais do que a
criação de
Janssen. E
nesse mesmo
ano construiu
o seu primeiro
telescópio,
uma luneta
que rivalizava
com o invento
de Lippershey.
Em agosto de
1609 até o
ultrapassou,
com um novo
protótipo de
telescópio, um
instrumento
que ampliava
oito vezes e
que
apresentou ao
senado
veneziano. E
em outubro ou
novembro já
tinha
construído um
telescópio
capaz de
ampliar 20
vezes. Foi
com ele que
apontou aos
céus.
A visão
humana pode
ser limitada,
mas é incrível
pensar naquilo
que o olho
humano é
capaz de ver
mesmo sem a
ajuda de
equipamento.
Numa noite
límpida, uma
pessoa com
boa visão
pode detetar o
tremeluzir de
uma única
chama de vela
a 2.760
metros.29 Mas,
dependendo
do tamanho de
um objeto, ou
do seu brilho,
somos na
verdade
capazes de ver
muito mais
longe do que
isso. A Lua,
por exemplo,
está a 385 mil
quilómetros
de distância, e
o nosso Sol é
tão brilhante
que é capaz de
nos cegar
mesmo a uma
distância de
150 milhões
de
quilómetros. E
qual é o maior
objeto que
somos capazes
de ver sem
auxílio de um
telescópio? É
Saturno, que
se encontra a
1.500 milhões
de
quilómetros.
Até somos
capazes de ver
uma galáxia
para lá da
nossa:
Andrómeda,
que brilha
com a luz de
um bilião de
estrelas.
Cintila como
uma vela a 2,5
milhões de
anos-luz, ou
25 triliões de
quilómetros.
E tudo isto
está incluído
por defeito na
nossa visão
básica, que
avaliamos ao
olhar para
uma pirâmide
de letras
negras
conhecida
como tabela
de Snellen.
Boa
capacidade de
visão – ou
aquilo a que
também se
chama visão
20/20 – é
quando somos
capazes de
enunciar
corretamente
as letras
pequeninas na
oitava linha da
tabela. Mesmo
em tempos
antigos, uma
boa visão era
altamente
valorizada.
Não é preciso
dizer que, na
escolha dos
melhores
guerreiros e
caçadores, era
uma
caraterística
crucial para
eliminar
aqueles que
não eram
capazes de
distinguir o
inimigo ou a
presa. Mas os
nossos
antepassados
tinham um
teste de visão
bem diferente,
que não era
feito no
consultório do
oftalmologista
, mas ao ar
livre, de noite,
sob o manto
das estrelas.
O asterismo
conhecido,
entre outras
designações,
como
Papagaio de
Papel fica na
constelação da
Ursa Maior.
Consiste em
sete pontos de
luz e forma no
céu aquilo que
parece ser
uma concha
gigante.
Fixando a
segunda
estrela a
contar da
esquerda na
pega, temos
Mizar, que
brilha a 78
anos-luz de
distância. Mas
quase em
coincidência
com Mizar
está uma
estrela mais
ténue, três
anos-luz atrás
dela.
Chamamos-
lhe Alcor, mas
para os
astrónomos
sufistas era
conhecida
como Al-
Suha, ou “a
esquecida”.
Para o antigo
exército persa
– e, segundo
alguns, para
os índios
norte-
americanos,
do outro lado
do mundo –,
Alcor era a
escala de
Snellen da
natureza: ou
seja, a
capacidade
para distinguir
estas estrelas
duplas
funcionava
como o teste
para avaliar
uma visão
30
perfeita.
Sendo uma
boa visão tão
valorizada
pelos
exércitos, não
surpreendeu
que o exército
holandês
referenciasse e
adotasse de
imediato a
luneta de
Lippershey.
Galileu
também
encontrou
potencialidade
s comerciais
no seu
telescópio e
procurou
vendê-lo aos
venezianos.
“O poder do
meu
canocchiale
[telescópio]
para mostrar
objetos
distantes tão
claramente
como se
estivessem
próximos dá-
nos uma
vantagem
inestimável
em qualquer
ação militar
em terra ou no
mar”,
assegurou ao
Doge. “No
mar, seremos
capazes de ver
as bandeiras
deles duas
horas antes de
eles nos
poderem ver;
e quando
tivermos
determinado o
número e o
tipo das naves
inimigas,
conseguiremo
s decidir se
queremos
persegui-las e
iniciar batalha
ou bater em
retirada. Da
mesma forma,
em terra deve
ser possível, a
partir de
posições
elevadas,
observar os
campos
inimigos e as
suas
fortificações.”

Mas, afinal,
não foram as
ideias de
Galileu sobre
estratégia
militar que
mudaram para
sempre a
forma como
olhamos o
universo, foi
antes qualquer
coisa
absolutamente
casual que
aconteceu
uma noite,
quando ele
estava ao ar
livre a
descansar. Em
vez de apontar
o telescópio
para as luzes
da cidade,
Galileu
ergueu-o para
o céu. Através
da lente,
começou a
examinar o
maior e mais
luminoso
objeto do céu
noturno, a
Lua. E aquilo
que viu foi,
para ele,
completament
e inesperado.
A Lua, essa
esfera perfeita
no céu, não
era só um
balão
brilhante e de
superfície
suave.
Olhando mais
de perto,
conseguia
agora ver que
tinha crateras.
E montanhas.
E vales e
elevações de
terreno
semelhantes
aos que
existiam na
Terra. A Lua,
e ele ficou
chocado ao
descobrir isso,
tinha uma
paisagem.
Para Galileu,
foi uma
revelação
absoluta.
Apontando
o telescópio
para cima
todas as
noites, num
“espanto
infinito”,
rapidamente
começou a
observar
outros objetos
celestes. Foi
com as suas
observações
de Vénus que
Galileu
mudou o
nosso
entendimento
do lugar que
ocupamos no
universo. O
que ele
percebeu era
que Vénus
tinha uma
sombra e que,
exatamente
como sucedia
com as fases
da Lua,
mudava de um
disco
crescente para
cheio quando
estava diante
do Sol. Para
ele, isso só
podia
significar uma
coisa. Vénus
não era apenas
uma “estrela
errante”31:
tinha um
percurso. E
mais ainda:
esse percurso
não era feito a
orbitar a
Terra. Era a
orbitar o Sol.
Foi, em
todos os
sentidos da
palavra, uma
descoberta
revolucionária
. Até então,
tínhamos
acreditado que
o universo
girava à nossa
volta. As
descobertas de
Galileu
desfizeram
essa ideia e
provaram a
teoria do
heliocentrism
o de
32
Copérnico ,
que colocava
o Sol, em vez
da Terra, no
centro do
universo. Mas
não haveria
grande
exaltação à
volta da
descoberta de
Galileu. Para a
Igreja, tratava-
se de uma
observação
perigosa. Na
Bíblia, a
humanidade
tinha sido
colocada
claramente no
centro do
universo, por
Deus.
Acreditar em
Galileu
implicava que
as palavras da
Sagrada
Escritura eram
falsas.
Por isso, em
1616, o
astrónomo foi
chamado pela
Inquisição
Romana e
investigado
por heresia. O
livro de
Nicolau
Copérnico
Sobre as
Revoluções
das Esferas
Celestes já
tinha sido
proibido e foi
decretado que
também
Galileu tinha
de ser
silenciado.
Deixava de
poder sugerir,
de forma oral
ou escrita, que
a Terra se
movia à volta
do Sol. Foi
um momento
notável,
porque,
embora
sempre tivesse
sido dito “ver
para crer”, a
Igreja insistia
para não
acreditarmos
naquilo que
conseguíamos
ver com os
nossos
próprios
olhos. Galileu
tinha
descoberto um
ângulo morto,
mas a Igreja
queria que as
pessoas
permanecesse
m cegas. No
imediato,
Galileu
aceitou a
imposição,
mas 16 anos
depois iria ser
novamente
julgado.
Desde os
dias dos
primeiros
telescópios, a
nossa visão
científica
apurou-se
tremendament
e e hoje somos
capazes de ver
tão longe que
até olhamos
para trás no
tempo, para o
começo do
universo. Em
todo o globo,
centenas de
observatórios
salpicam o
planeta,
perscrutando a
noite como
grandes olhos
robóticos
brancos.
Construímo-
los em
cidades, no
alto de
montanhas,
em desertos
remotos e até
enviámos
telescópios
para o espaço.
O que este
extraordinário
nível de visão
significa é que
só temos de
escolher um
ponto no céu e
depois,
simplesmente,
esperar.
Foi
precisamente
isso que
astrónomos da
NASA
fizeram em
setembro de
2003.
Apontaram o
telescópio
Hubble Ultra
Deep Field
para uma zona
a seguir à Lua
que parecia
completament
e vazia, sem
uma única
estrela visível
a olho nu. As
imagens
obtidas
revelaram-se,
contudo,
extraordinária
s: esse “vazio”
estava repleto
de dez mil
globos de luz,
cada um deles
uma galáxia
como a nossa
Via Láctea,
albergando
centenas de
milhares de
milhões de
estrelas
cintilantes. A
partir dessa
porção de céu
noturno, os
cientistas
calcularam
que existem
no nosso
universo pelo
menos cem
mil milhões
de galáxias,
com um
sextilião de
33
estrelas.
Pensem como
isto é incrível:
estamos
rodeados por
1.000.000.000
.000.000.000.
000 de
gigantes
estelares, mas
eles são
demasiado
ténues para os
nossos olhos
os verem.34
Olhamos há
milénios para
as estrelas,
mas só
recentemente
ficámos a
saber que
estes
pontinhos
cintilantes de
luz são na
verdade
enormes
reatores
nucleares,
bolas de gás
luminoso
quente que
são autênticas
fornalhas de
fusão atómica
– até Alcor, “a
esquecida”,
que mal é
visível, faria o
nosso Sol
parecer um
anão se se
aproximasse
e, com um
brilho 13
vezes maior
do que ele,
incendiaria o
nosso céu
inteiro. É
quase um
número de
ilusionismo
cósmico que,
a partir do
ponto em que
nos
encontramos,
as coisas mais
imensas que
existem no
universo nos
apareçam
como se o céu
fosse uma
placa de Petri
e as estrelas
não passassem
de partículas.

O tamanho
é físico, mas é
igualmente
uma
construção
mental com a
qual temos de
lidar. O
problema é
que os nossos
cérebros não
são muito
bons a
processar
como as
coisas podem
tornar-se
imensamente
grandes, ou
pequenas,
quando saem
dos nossos
limites de
perceção.
Como
observou a
escritora
inglesa Helen
Macdonald:
“Em questões
de escala,
somos muito
maus. As
coisas que
vivem no solo
são demasiado
pequenas para
nos
importarmos
com elas; as
alterações
climáticas são
demasiado
grandes para
as
imaginarmos.”
E, ao
contrário,
quando as
escalas
aumentam, as
coisas, os
objetos e os
números
tendem a
tornar-se
difusos, num
fenómeno a
que os
investigadores
chamam
“cegueira de
escala”. A
vastidão do
universo e o
mundo
quântico
infinitesimal
podem ser
fundamentais
para a nossa
existência,
mas na maior
parte do
tempo
vivemos quase
sempre sem
reparar nas
escalas
maiores ou
mais pequenas
em que
habitamos.
Para ilustrar
aquilo que
quero dizer,
imaginem por
um momento
um pequeno
cupcake. Deve
ser fácil.
Agora,
imaginem dez.
Continuem a
aumentar o
número e
vejam se são
capazes de
imaginar 50
cupcakes, ou
cem. A
resolução dos
bolinhos vai-
se perdendo,
mas o seu
conjunto deve
continuar a ser
visível. Mas
agora vamos
dar um salto:
tentem
imaginar mil
ou cem mil
cupcakes. À
medida que o
número
cresce, em
especial para
um milhão, ou
mil milhões,
perde-se
completament
e a nossa
capacidade
para ter a
perceção da
escala, quanto
mais dos
cupcakes
individualmen
te. Isto pode
parecer uma
questão sem
importância, e
é, quando a
questão é
banal, como
no caso dos
cupcakes, mas
quando a
questão é séria
as implicações
são maiores.
Podemos
viver num
mundo de big
data, mas
somos
insensíveis
aos grandes
números. E os
números que
as notícias nos
transmitem
todos os dias
são-nos, na
maior parte,
incompreensív
eis. Sejam a
desflorestação
anual de 18,5
milhões de
35
hectares , os
20 biliões de
dólares da
dívida norte-
americana, os
1.676 milhões
gastos
anualmente
em armas ou
os 20 milhões
de pessoas à
beira da fome
e da miséria,
quando
chegamos a
números
grandes o
resultado é o
mesmo: os
nossos olhos
abrem-se e
ficamos
perdidos na
enormidade.
Como José
Estaline terá
dito: “Uma
morte é uma
tragédia; um
milhão é uma
estatística.”
Por causa
disso, a
cegueira de
escala pode
ser
monstruosa. É
que quando
perdemos o
nosso sentido
de escala não
somos capazes
de sentir – e
quando não
conseguimos
sentir
perdemos a
capacidade de
reagir
adequadament
e. Uma equipa
de
investigadores
norte-
americanos
que
examinava
este sentido de
escala quis
perceber qual
o efeito de
atribuir preços
de mercado a
uma escala de
danos
causados à
vida.
Especificamen
te, queriam
saber qual era
a perceção do
“custo” de
reabilitar
milhares de
aves marinhas
vítimas de um
derramamento
de petróleo.
Para
determinar
quanto é que
as pessoas
estariam
dispostas a
pagar para
remediar o
problema, a
magnitude do
hipotético
desastre foi
multiplicada
por dez de
cada vez. Os
investigadores
descobriram
que, se o
número de
aves
empapadas em
petróleo fosse
de dois mil,
20 mil ou 200
mil, a
proposta de
ajuda
financeira era
sensivelmente
a mesma. Ou
seja, a escala
não era um
fator. Em
média, as
pessoas
mostravam-se
dispostas a
pagar cerca de
80 dólares
para ajudar
duas mil aves,
mas quando o
número subia
para 20 mil
dispunham-se
a doar 78
dólares, ou
seja, menos
dois, e quando
o número
aumentava
cem vezes,
para 200 mil
aves, a
proposta era
de 88 dólares.
Isto é: mais
198 mil aves,
mas uma
diferença de
apenas oito
dólares.
Se somos
confundidos
tão facilmente
por uma
mudança de
escala de dez
vezes,
imaginem o
que sucede
quando o fator
é de um
milhão. Os
nossos
microscópios
são tão
poderosos que
hoje somos
capazes de
ampliar
objetos mais
de cem
milhões de
vezes, o que
nos permite
observar e
mover os
próprios
elementos
constituintes
do universo:
os átomos.36
Os físicos
sabem,
contudo, que
até esta
perspetiva está
a mudar e que
há muito mais
para lá dos
limites
daquilo que
mesmo as
nossas
tecnologias
mais
avançadas são
capazes de
distinguir.
Atualmente, o
que se crê ser
o extremo
mais
longínquo do
universo
subatómico –
a menos de
0,0000000009
ioctómetros –
é aquilo que é
conhecido
como o
comprimento
de Planck: um
espaço que é
10-35 mais
pequeno, ou
35 ordens de
grandeza mais
pequeno, do
que a nossa
escala atual,
ou aquilo que
consideramos
a nossa
“realidade”
diária. Para
apresentar de
outra forma a
escala deste
pequeníssimo
espaço,
digamos que
um único
átomo de
hidrogénio
tem dez
biliões de
biliões de
comprimentos
de Planck. Em
comparação
com a medida
de um único
comprimento
de Planck, um
átomo é
absolutamente
gigantesco.
Passando
para o
extremo
oposto da
escala, o
universo
observável
estende-se por
1026 metros,
ou 92 mil
milhões de
anos-luz.
Também esta
distância é,
para nós,
inimaginável.
Para dar
alguma
perspetiva, um
ano-luz fica
apenas a dez
biliões de
quilómetros
de distância. E
o simples ato
de contar até
mil milhões,
quanto mais
92, levar-nos-
ia mais de 30
anos. Carl
Sagan
afirmou: “O
senso comum
funciona
lindamente
para o
universo a que
estamos
acostumados,
para escalas
de tempo de
décadas, para
um espaço
entre um
décimo de
milímetro e
alguns
milhares de
quilómetros, e
para
velocidades
muito
inferiores à
velocidade da
luz. Quando
deixamos
esses
domínios da
experiência
humana, não
há razão
alguma para
esperar que as
leis da
natureza
continuem a
obedecer às
nossas
expetativas,
uma vez que
as nossas
expetativas
dependem de
um conjunto
limitado de
experiências.”

As nossas
experiências
dizem-nos que
a realidade
tem uma
dimensão
humana, mas
a nossa
tecnologia
diz-nos que
não. Na escala
verdadeira das
coisas, nós
somos
gigantes
microscópicos
– ao mesmo
tempo
enormes e
ínfimos. E, no
entanto, até
dentro deste
inimaginável
reino sem
fronteiras,
ocupamos um
“lugar”
surpreendente.
Colocados
entre estas
realidades
micro e
macro,
encontramo-
nos mais
próximos, à
escala, dos
confins mais
distantes do
universo
conhecido do
que do
comprimento
de Planck.
Da próxima
vez que
estiver
sozinho num
quarto, pare
um pouco e
pense que
tudo à sua
volta, cada
superfície,
cada sopro da
sua
respiração,
cada
centímetro da
sua pele nua,
está vivo e a
fervilhar de
vida invisível.
E depois
lembre-se que
visto lá de
cima do céu,
por exemplo a
partir de um
avião que
passa, você
também é uma
particula
invisível.
O génio de
Galileu esteve
em
compreender
que aquilo que
os humanos
podiam ver
era apenas
uma parte da
realidade. E
embora tenha
sido o
primeiro a ver
para lá da
velha visão
mundial, ficou
perturbado
pela forma
como outros
se recusaram a
abrir os
37
olhos. Em
1632, em
Diálogo sobre
os Dois
Principais
Sistemas
Mundiais,
escreveu:
“Em
última
análise, as
minhas
observaçõ
es
convencer
am-me de
que
alguns
homens,
com um
raciocínio
absurdo,
definem
primeiro
na mente
uma
conclusão
que, seja
por ser
deles ou
seja por a
terem
recebido
de alguém
em quem
confiam
inteirame
nte, os
impressio
na tão
profunda
mente que
é
impossíve
l tirar-lha
da cabeça.
Argument
os que
apoiem a
sua ideia
fixa,
sejam
engendrad
os por
eles
próprios
ou
ouvidos
de outros,
por muito
simples e
estúpidos
que
possam
ser,
ganham
de
imediato a
sua
aceitação
e aplauso.
Por outro
lado,
recebem
tudo o que
for
apresenta
do contra,
por muito
engenhos
o e
concluden
te que
seja, com
desdém
ou fúria –
quando
não ficam
mesmo
doentes.
Fora de si,
tomados
pela
paixão,
alguns
deles nem
hesitariam
em
congemin
ar formas
de
suprimir e
silenciar
os seus
adversário
s.”

Galileu deu
uma pancada
na bolha da
realidade – e
foi punido por
fazer isso.
Depois da
primeira
acusação, em
1616, deixou
de poder
possuir,
defender ou
ensinar a
astronomia de
Copérnico.
Em 1633 foi
julgado outra
vez, agora
pela
Inquisição
Romana, e
considerado
culpado. Por
causa da sua
fama e da sua
idade, o
grande
astrónomo foi,
contudo,
poupado ao
castigo
reservado aos
hereges – a
tortura e a
morte. Foi
condenado a
passar o resto
da vida sob
prisão
domiciliária.
É revelador
constatar que
dois dos
maiores vultos
da ciência –
Van
Leeuwenhoek,
o pai da
microscopia, e
Galileu, o pai
da astronomia
moderna –
tenham sido
alvo de troça
durante anos
por verem a
verdadeira
natureza da
realidade. No
fim, coube-
lhes a última
palavra: Van
Leeuwenhoek
foi
reconhecido
pela Royal
Society e
tornou-se uma
figura
eminente entre
os seus pares;
Galileu é
agora
considerado
um dos
maiores
pensadores de
sempre. Mas
Galileu,
também
conhecido
como “o pai
da ciência
moderna”,
deixou mais
do que um
legado
científico.
Em 12 de
março de
1737, 95 anos
após a sua
morte, o
túmulo de
Galileu foi
assaltado. O
ladrão foi
Anton
Francesco
Gori, um
professor, que
cortou três
dedos de
Galileu
quando o
cadáver estava
a ser
trasladado de
um túmulo
temporário
para a Basílica
de Santa Cruz,
em Florença.
Era comum a
prática de
cortar dedos e
outras partes
do corpo de
santos mortos,
pois pensava-
se que as
relíquias
tinham
poderes
sagrados. Gori
estava a
prestar
homenagem a
Galileu
elevando-o à
categoria de
mártir, como
se fosse um
santo secular
da ciência
responsável
por estilhaçar
velhas crenças
e por nos
libertar com o
seu
pensamento.
Só quase
dois séculos
depois, em
1927, foi
encontrado o
primeiro dos
dedos
perdidos de
Galileu.
Encontra-se
hoje em
exposição no
Museu
Galileu, em
Florença. Para
os que
conhecem a
história, é
difícil não
entender o
simbolismo.
Lá está, num
frasco de
vidro, a
apontar em
desafio para
os céus, o
dedo do meio
de Galileu.
1
Tim Cockerill
descobriu um
dia uma nova
espécie de
vespa parasita
quando ela “se
suicidou” e caiu
dentro da sua
chávena de
chá.
2

Provavelmente,
já ouviu a
famosa citação
de Newton: “Se
vi mais do que
outros, foi por
estar de pé
sobre os
ombros de
gigantes.”
(Realce meu) A
frase é citada
com frequência
como um
exemplo do
poder da
humildade. Só
que, hoje,
alguns
académicos
acreditam que
pode ter sido a
versão ao jeito
do século XVII
de uma
manifestação de
desprezo entre
cientistas.
Surgiu numa
carta escrita por
Newton a
Hooke quando
estavam
envolvidos
numa discussão
sobre quem
devia receber
um crédito
científico no
campo da ótica.
E deve notar-se
que Hooke era
um homem
baixo.
3
Pensa-se, a
partir dos seus
desenhos, que
Van
Leeuwenhoek
terá construído
alguns
instrumentos
capazes de
ampliar objetos
até 500 vezes.
4
As bactérias
orais são
prolíficas: “Há
20 mil milhões
de bactérias nas
nossas bocas e
reproduzem-se
de cinco em
cinco horas. Se
passar 24 horas
sem lavar os
dentes, esses 20
mil milhões
transformam-se
em 100 mil
milhões!”
5
“A pulga
matou milhões
de pessoas em
todo o mundo
[…] e está
indissociavelme
nte ligada à
história da
Peste Negra. No
homem, como
demonstraram
Yersin e
Simond, esta
doença é
causada pelo
trio bactéria
(Yersinia
pestis)/ ratazana
/ pulga
(Xenopsylla
cheopsis).”
6
Os fabricantes
de pesticidas
defendem que,
sem estes, o
mundo
enfrentaria
maiores
dificuldades
alimentares,
mas cientistas
dizem que a
alegação é
exagerada, e
que a maioria
das explorações
aumentaria a
produtividade
se reduzisse a
utilização de
pesticidas.
7
Embora seja
necessária mais
investigação
científica, há
números que
estão a fazer
soar alarmes em
todo o mundo.
Um estudo
recente em
Porto Rico
descobriu que
98 por cento
dos insetos
terrestres
tinham
desaparecido ao
longo de um
período de 35
anos. Nos ares,
o número era de
80 por cento.
Em termos de
peso total, os
insetos
ultrapassam
normalmente os
humanos cerca
de 17 vezes.
Sem eles, são
de esperar
consequências
catastróficas.
Isto é assim
porque os
insetos
constituem a
base da nossa
cadeia
alimentar. Se os
insetos
entrarem em
declínio, um
efeito de
dominó,
conhecido
como “cascata
trófica
invertida”,
começará a
derrubar outras
espécies que
dependem
deles.
8
A Pulex
irritans não está
extinta. Ainda
pode ser
encontrada na
Grécia, Irão,
Madagáscar e
até no Arizona.
9
A idade parece
ser um fator, já
que os bebés
têm menos
ácaros.
10
As células
bacterianas são
muito mais
pequenas do
que as células
humanas –
embora sejam
muitas,
representam
apenas cerca de
0,2 quilos do
nosso peso.
11
Há quase dois
mil milhões de
espécies de
bactérias, a
vasta maioria
das quais são
inofensivas para
os humanos.
12
Em termos
relativos, mas
não
completamente.
Existem
bactérias na
placenta. “Os
cientistas
detetaram
bactérias no
fluido
amniótico, no
sangue, no
cordão
umbilical, na
membrana que
rodeia o feto e
até no primeiro
cocó dos
bebés.”
13
Uma espécie
em especial faz
isto hoje de
uma forma
brilhante.
Descrito como
“o micróbio
mais importante
de que nunca
ouviu falar”, o
Prochlorococcu
s é responsável
pela produção
de um total de
20 por cento do
oxigénio que
respiramos.
14
Tal como as
mitocôndrias,
os cloroplastos
têm o seu
próprio ADN,
que vem das
cianobactérias.
15
Animais
pequenos
tendem a ter
vidas mais
curtas.
16
O maior
macaco primata
no registo de
fósseis é o
Gigantopithecu
s blacki, com
três metros de
altura. O seu
tamanho
condenou-o, no
entanto, de uma
forma diferente:
durante a Idade
do Gelo, os
alimentos
disponíveis
tornaram-se
insuficientes
para sustentar o
macaco
gigante.
17
Para mais
dados sobre
tamanho, sugiro
ao leitor o
trabalho “On
Being the Right
Size”, de J.B.S.
Haldane.
18
Outro fator
que os
cientistas
julgam capaz de
afetar o
tamanho que os
animais
marinhos
atingem tem
que ver com a
perda de calor.
Os mamíferos
marinhos
crescem mais e
têm mais
gordura à
medida que vão
aumentando de
volume em
relação à
superfície. Isto
permite-lhes
gerar mais calor
e, ao mesmo
tempo, perder
menos através
da superfície da
pele.
19
O
Carbonífero
situa-se
especificamente
entre o período
Devoniano, há
358,9 milhões
de anos, e o
início do
Permiano, há
298,9 milhões.
20
Possuir um
volume maior
em relação à
superfície
queria também
dizer que a
quantidade de
oxigénio
continuaria a
ser relativa à
dimensão do
corpo, por isso
os animais
também não
morreriam por
envenenamento
por falta de
oxigénio.
21
Há muitos
casos
interessantes de
mudanças de
tamanho por
causa do
ambiente. A
regra de Foster
é relevante.
Afirma que, em
ilhas, os
animais grandes
tendem a
desenvolver
corpos mais
pequenos,
devido a
restrições nas
fontes de
alimento, e que
os animais mais
pequenos
tendem a
crescer, por
causa dos
limites que os
seus predadores
conhecem. Um
exemplo pode
ser encontrado
entre os
mamutes: uma
espécie de
mamute que
viveu em Creta
há 3,5 milhões
de anos só
atingia cerca de
um metro, à
altura do
ombro.
22
Analisando
mais de 17 mil
espécies
marinhas,
investigadores
descobriram
que, desde a
primeira
evolução dos
animais, os seus
volumes
corporais
aumentaram
cinco vezes.
23
Como
sempre, existem
exceções. Por
exemplo, as
mudanças
climáticas estão
a fazer
aumentar de
tamanho as
aranhas-lobo.
24

Historicamente,
os cientistas
têm
documentado
casos de
nanismo entre
mamíferos
durante
períodos de
aquecimento na
história da
Terra. E durante
o chamado
Máximo
Térmico do
Paleoceno-
Eoceno, uma
fase de
aquecimento de
três graus que
aconteceu há 55
milhões de
anos, alguns
mamíferos
diminuíram de
tamanho em
cerca de um
terço, enquanto
insetos como
escaravelhos,
formigas e
abelhas
encolheram em
três quartos.
25
O consumo
médio de carne
vermelha e de
aves em 1960
era de 75,3
quilos; a
projeção para
2017 era de
98,8 quilos.
26
Estão
classificados
como obesos 20
por cento dos
habitantes de
Tonga e Tuvalu
e até a Coreia
do Norte
registou um
aumento de 1
por cento.
27
As primeiras
observações
publicadas da
utilização de
um microscópio
estão no
Apiarium de
Galileu, de
1625. Foi em
1624 que ele
observou pela
primeira vez
uma pulga com
um
microscópio.
28
Há três
pessoas
associadas à
invenção do
microscópio, já
que foram
apresentados
dois registos de
patente com um
intervalo de
apenas algumas
semanas.
Zacharias
Janssen também
é
frequentemente
mencionado
como inventor.
Os primeiros
telescópios
eram muito
simples,
constituídos por
dois pedaços de
vidro a alguma
distância um do
outro para
ampliar objetos
distantes.
29
A nossa
capacidade para
detetar luz é tão
grande que
cientistas
descobriram
recentemente
que, de perto,
somos até
capazes de
detetar o ínfimo
brilho da luz de
um único
fotão.
30
Está
determinado
que o antigo
teste de Mizar é
equivalente ao
teste atual que
identifica uma
visão 20/20.
31
Os planetas
não eram
diferenciados
das estrelas,
para além do
facto de que
pareciam ser
“errantes”.
32
Os sete
axiomas do
heliocentrismo,
são: “1) Não há
um centro no
universo; 2) O
centro da Terra
não é o centro
do universo; 3)
O centro do
universo está
próximo do Sol;
4) A distância
da Terra ao Sol
é impercetível,
em comparação
com a distância
às estrelas; 5) A
rotação da Terra
explica a
aparente
rotação diária
das estrelas; 6)
O ciclo anual
aparente de
movimentos do
Sol é causado
pela rotação da
Terra em volta
dele; 7) O
movimento
retrógrado
aparente dos
planetas é
provocado pelo
movimento da
Terra, a partir
de onde se faz a
observação.”
33
Usando novas
técnicas,
investigadores
reavaliaram os
dados e
calcularam que
algumas
galáxias podem
ser quase duas
vezes maiores
do que
originalmente
se pensava.
34
“As galáxias
mais ténues têm
um décimo
bilionésimo do
brilho que o
olho humano
pode
distinguir.”
35
O número, em
campos de
futebol, é
igualmente
alucinante e
difícil de
imaginar:
60.720.000
campos de
futebol.
36
A unidade
mais pequena
que
conseguimos
ver com um
microscópio
eletrónico é um
angström, que é
1 x 10-10.
37
Galileu era
tão controverso
que a Igreja
Católica
precisou de 350
anos para
admitir, em
1992, que ele e
Copérnico
tinham razão.
2
Bomba
Mental
Nunca
me tinha
ocorrido,
mas as
coisas
são
realment
e assim:
todos
nós, na
Terra,
caminha
mos
sobre um
mar
escarlate
e
efervesc
ente de
chamas,
escondid
o nas
suas
entranha
s.
Nunca
pensamo
s nisso.
Mas o
que
sucederi
a se a
fina
crosta
sob os
nossos
pés se
transfor
masse
em vidro
e
víssemos
de
repente
… Eu
tornei-
me
vidro. Eu
vi –
dentro
de mim.
YEVGENY
ZAMYATIN
Os detetives
no local não
tinham muitas
pistas. A cena
era arrepiante.
Duas
mulheres
idosas
estavam
caídas no chão
do
apartamento:
uma fora
encontrada
com a cabeça
debaixo de
uma cadeira, a
outra
embrulhada
num tapete.
Retiraram das
vítimas
pedaços de
unhas e
amostras de
cabelo e de
pele. As
mulheres
encontravam-
se
mumificadas.
A polícia de
Viena
descobriu os
corpos das
irmãs em
1992.
Estavam
mortas há
anos. Os
vizinhos não
tinham dado
pela ausência
delas, já que
viviam quase
em reclusão.
Muitos
partiram do
princípio de
que tinham
simplesmente
feito as malas
e ido para
outro lado.
Mas os
banqueiros
mostraram-se
mais curiosos
do que os
vizinhos,
provavelment
e porque as
irmãs tinham
bastante
dinheiro. Por
isso, quando
as contas
deixaram de
ser mexidas,
começaram a
surgir
perguntas, e
por fim a
polícia
resolveu
investigar.
A notícia da
morte das
irmãs depressa
chegou às
companhias
de seguros. E
embora não se
suspeitasse de
crime, as
seguradoras
precisavam
mesmo assim
de saber qual
delas tinha
morrido
primeiro, pois
a companhia
com a apólice
da herdeira
tinha a ganhar
uma grande
quantidade de
dinheiro. A
equipa forense
viu-se num
beco sem
saída e pediu
ajuda aos
físicos da
Universidade
de Viena. Para
resolver o
caso, os
cientistas
iriam
desenvolver
uma nova
ferramenta
com a
capacidade de
“ver” o corpo
de uma forma
completament
e nova: uma
espécie de
relógio capaz
de identificar
com precisão
a hora da
morte.
Para
explicar como
funciona este
relógio, temos
em primeiro
lugar de
recuar a 1763.
Nesse ano,
quem andasse
a caminhar
nas ruas
empedradas
de Harwich
podia ter
escutado duas
mentes
brilhantes
embrenhadas
numa
conversa
profunda.
Samuel
Johnson e
James
Boswell
estavam a
discutir as
ideias de
George
Berkeley, um
famoso
filósofo
irlandês. Para
a época, o
argumento de
Berkeley era
bastante
radical. Ele
acreditava que
não somos
capazes de ver
as coisas
como elas
realmente são;
em vez disso,
aquilo que
sabemos do
mundo baseia-
se nas nossas
impressões
sensoriais.
Posto de outra
forma: para
Berkeley, as
nossas
perceções
fazem com
que as coisas
nos pareçam
“reais”; isto é,
uma mesa ou
uma cadeira
apenas
existem até ao
ponto em que
podem ser
percebidas, o
que significa
que tais
objetos só
existem nas
nossas
mentes. O que
perturbava as
pessoas nessa
altura, e
continua hoje
a perturbar-
nos, era que,
se apenas
somos capazes
de ver o
mundo que
existe nas
nossas
mentes, como
é que temos a
certeza de que
o mundo
material
sequer existe?
Parece um
enigma
impossível,
mas Johnson
estava
convicto de
que era
possível
provar – e de
uma maneira
bastante
simples – que
o argumento
de Berkeley
estava errado.
Reza a
história que
ele enfrentou
o problema
filosófico com
uma solução
decididamente
não filosófica.
Como iria ele
refutar a
asserção de
Berkeley?
Boswell viu
Johnson dar
um pontapé
numa grande
pedra, ao
mesmo tempo
que gritava:
“Refuto
ASSIM!”
Foi desta
maneira que
Johnson
contribuiu
para a história
da filosofia
com uma nova
falácia: o
argumentum
ad lapidem,
ou
“argumento da
pedra”.
Porque, na
verdade, ele
não tinha
refutado
Berkeley coisa
nenhuma. A
dor nos dedos
dos pés de
Johnson era
até
exatamente
aquilo que
Berkeley teria
antecipado:
uma dor que
só era real por
ter sido criada
pela sua
mente.
Esta mesma
questão da
realidade
externa é hoje
discutida não
apenas por
filósofos, mas
também por
cientistas.
Será que
existe um
mundo “aí
fora”, ou será
que é
necessária
uma
consciência
para que ele
seja
percebido?
Aquilo que
vemos não é
de certeza o
que existe
objetivamente.
Em vez disso,
aquilo que
vemos baseia-
se nos nossos
mecanismos
sensoriais
humanos
específicos.
Por exemplo,
como Robert
Lanza e Bob
Berman
escrevem em
Biocentrism, a
chama de uma
vela, oscilante
e amarela, não
pode ser
percebida sem
nós.

“A
chama é
[…]
apenas
um gás
quente.
Como
qualquer
fonte de
luz, emite
fotões em
pequenos
feixes de
ondas de
energia
eletromag
nética
[…] Estas
ondas
eletromag
néticas
invisíveis
atingem
uma
retina
humana, e
se (e
apenas se)
acontecer
que cada
uma das
ondas
meça
entre 400
e 700
nanómetr
os de
comprime
nto, de
pico a
pico,
então a
sua
energia é
a exata
para fazer
chegar um
estímulo
aos oito
milhões
de células
cónicas da
retina.
Cada
uma, por
sua vez,
envia um
impulso
elétrico a
um
neurónio
vizinho, e
o
processo
vai-se
desenrola
ndo, a 400
quilómetr
os por
hora, até
atingir o
lobo
occipital
do
cérebro,
quente e
húmido,
na parte
de trás da
cabeça.
Aí, em
cascata,
um
complexo
de
neurónios
é
acionado
pelo
estímulo
que
chega, e
percecion
amos
subjetiva
mente
esta
experiênci
a como
uma
luminosid
ade
amarela a
acontecer
num lugar
que fomos
condicion
ados a
chamar ‘o
mundo
externo’.”
O mesmo é
verdade para
objetos físicos
duros, como
rochas. Não
há nada de
sólido numa
rocha. É
composta por
um conjunto
efervescente
de átomos e
de partículas
subatómicas
cintilantes,
cuja maior
parte é espaço
vazio. A
perceção que
Johnson teve
ao dar um
pontapé na
pedra naquele
dia foi uma
sensação de
pressão,
quando os
eletrões de
carga negativa
na cobertura
exterior da
rocha
repeliram os
eletrões de
carga negativa
que
compunham a
cobertura
exterior do
seu sapato.
Não houve
contato sólido;
houve apenas
pressão, que o
seu cérebro
traduziu como
sensação. Dos
nervos dos
seus dedos do
pé até à
espinal
medula e ao
cérebro – foi
assim que
Johnson teve a
perceção de
ter dado um
pontapé numa
pedra. Até
hoje, ninguém
conseguiu
refutar
efetivamente
George
Berkeley.
Nem mesmo
Albert
Einstein foi
capaz de
provar em
termos
definitivos
que a
realidade
existe. Numa
carta que
escreveu em
1955,
afirmou: “É
essencial, para
a física, que se
assuma a
existência de
um mundo
real
independente
mente de
qualquer ato
de perceção.
Mas isto é
uma coisa que
não sabemos
[o ênfase vem
do original].”
Embora não
possamos
afirmar com
segurança se a
realidade
existe
independente
mente de um
observador, o
que sabemos é
que o mundo
físico é muito
mais estranho
do que aquele
que os nossos
olhos
percebem.
Para começar,
pensamos
habitualmente
nos nossos
corpos como
separados e
distintos do
mundo
exterior, mas a
ciência
moderna
afirma-nos
que não existe
isso de “lá
fora”; na
verdade, não
há um lugar
em que o
nosso corpo
acabe e o
mundo
comece.

Se se souber
como olhar, é
possível fazer
desaparecer
uma montanha
inteira. Foi
precisamente
isto que uma
equipa fez no
município de
Gifu, no
Japão. Aí, o
monte Ikeno
ergue-se
acima da
paisagem.
Com os seus
cumes
cobertos de
neve e um rio
a serpentear
pelo sopé,
parece uma
paisagem de
bilhete postal.
Mas
escondido no
interior, um
quilómetro e
meio abaixo
do cume, está
um laboratório
de alta
tecnologia à
altura do
esconderijo de
um vilão num
filme de
James Bond.
No interior
desta antiga
mina de zinco,
técnicos
vestidos com
macacões
brancos com
capuzes
vigiam um
tanque de aço
da altura de
um edifício de
12 andares
cheio com 50
mil toneladas
de água
ultrapura. É o
observatório
de neutrinos
Super-
Kamiokande,
ou Super-K,
uma
gigantesca
instalação
subterrânea
construída
para detetar
algumas das
mais pequenas
partículas
subatómicas
conhecidas do
universo. Para
“ver” estas
partículas
invisíveis, o
teto e as
paredes do
observatório
estão cobertos
com 11 mil
lâmpadas de
vidro
brilhantes,
feitas à mão,
para captar
pequenas
cintilações de
luz de
neutrinos. São
os tubos
fotomultiplica
dores.
Foi aqui,
nas
profundezas
do coração da
montanha, que
esta “câmara
fotográfica”
de cem
milhões de
dólares tirou a
mais
extraordinária
das fotografias
do Sol. A
imagem está
pixelizada,
mas é
instantaneame
nte familiar:
um núcleo
absolutamente
branco,
rodeado de
amarelo
brilhante que
passa a cor de
laranja e com
ondas de
vermelho.
Mas o que é
intrigante é
isto: como foi
possível tirar
uma imagem
do Sol a partir
do interior
profundo de
uma
montanha,
sem janelas
que
permitissem a
entrada de
luz? A
resposta está
naquilo que o
Super-K
procura.
Enquanto uma
câmara
normal capta
fotões, ou
partículas de
luz, o Super-K
capta e mostra
imagens de
um tipo de
partícula
diferente. Ele
anda à procura
de neutrinos:
partículas tão
pequenas e
que se movem
tão depressa
que são
capazes de
atravessar
mesmo a
matéria mais
densa.
Imaginem
um bloco de
chumbo
estendido ao
longo de um
comprimento
de um ano-
luz, ou seja,
de 9.500
biliões de
quilómetros.38
Agora
imaginem
outra coisa:
disparar uma
corrente de
neutrinos
através de
uma das
extremidades
desse bloco.
Parece
inacreditável,
mas metade
das partículas
atravessá-lo-ia
sem qualquer
problema e
sairia do outro
lado. Com
uma massa
próxima de
zero, e sem
carga elétrica,
os neutrinos
são assim
chamados por
serem neutros
e não serem
atraídos por
outras
partículas
subatómicas.
São também
inimaginavel
mente
insignificantes
. Para um
neutrino, o
espaço entre
átomos de
chumbo é
como um
abismo
imenso e, por
isso, é
relativamente
fácil passar
entre eles.
Na vida de
todos os dias,
os nossos
olhos e os
nossos dedos
dos pés
doridos de dar
pontapés em
pedras
enganam-nos
e levam-nos a
acreditar que a
matéria é
sólida, mas
trata-se de
uma ilusão.
Logo no início
do secundário
aprendemos
que os átomos
são
essencialment
e compostos
de espaço
aberto. Por
exemplo, se
conseguíssem
os ampliar o
núcleo de um
átomo de
hidrogénio
para o
tamanho de
uma bola de
golfe, e o
tivéssemos na
palma da mão,
o eletrão a
girar à volta
encontrar-se-
ia a um
quilómetro de
distância. Mas
para
compreender
como um
neutrino é
pequeno seria
preciso
imaginar que
esse átomo
enorme teria,
digamos, o
tamanho do
sistema solar.
E a essa
escala, então,
a bola de golfe
nas nossas
mãos teria
mais ou
menos o
tamanho de
um neutrino;
em
comparação
com o
tamanho de
um átomo ele
é assim
minúsculo.
Mas estas
imagens
simples não
nos dão o
quadro
completo.
Porque, ao
nível
subatómico,
os neutrinos
não têm um
“tamanho” per
se. Os físicos
afirmam que
os neutrinos
são “partículas
do género de
pontos, com
posições
incertas”; têm
menos de um
milionésimo
da massa de
um eletrão, e é
por isso que
conseguem
mover-se
livremente e
relativamente
sem oposição
até nos
espaços de
maior
densidade.
À escala
subatómica,
os nossos
corpos, como
as montanhas,
também são
essencialment
e espaços
vazios. Para
os neutrinos,
nós somos
como
fantasmas, e
em cada
segundo
passam
através dos
nossos corpos
cem biliões de
neutrinos,
como se nem
estivéssemos
lá. Mas por
sermos
bombardeados
por tantos –
estão
constantement
e a ser gerados
pela fusão
nuclear do Sol
e pela
destruição de
supernovas –,
de vez em
quando, dado
o seu imenso
número, um
neutrino choca
com outra
partícula
subatómica, e
isso permite a
sua deteção
por um
observatório
de neutrinos.39
Aquilo de que
os cientistas
do Super-K
estão à espera
é destas raras
colisões.
Quando um
neutrino
atinge um
eletrão na
água
ultrapura,
produz uma
pequena
centelha azul
de luz de
neutrino,
semelhante a
um boom
sónico ótico.
Isto resulta
numa
luminosidade
azul
caraterística,
designada
como radiação
de
Cherenkov.
Ao fim de
503 dias de
exposição, a
capturar todos
os dias cerca
de 15 “pixels”
de neutrino, o
Super-K já
tinha
recolhido um
número
suficiente
destes breves
flashes de
neutrino – que
tinham
passado não
só para baixo,
através da
montanha,
mas para
cima, através
da terra –,
para conseguir
formar a
imagem do
Sol a brilhar,
esplendoroso,
no exterior.
À imagem
criada pelos
neutrinos
chama-se
neutrinografia.
E o que torna
tão
extraordinária
a
neutrinografia
do Sol
elaborada pelo
Super-K é o
facto de ela
provar que
aquilo que
parece o
mundo sólido
à nossa volta,
desde as
pedras às
montanhas, é,
na verdade,
vazio e
poroso. Mas,
como veremos
a seguir, há
outra técnica
de
imagiologia
científica que
pode ser usada
para olhar
para dentro de
nós – e que
revela a
mesma coisa.

Lorde
Londesboroug
h, Em Sua
Casa
144 Picadilly
Uma Múmia
de Tebas vai
ser
desenfaixada
às duas e
meia
– convite
formal, 1850

No século
XIX, a alta
sociedade
britânica
estava tomada
pela
Egitomania.
Era uma
herança da
campanha
egípcia de
Napoleão, que
meio século
antes tinha
iniciado as
escavações
arqueológicas.
Arqueólogos e
exploradores
estavam a
revelar o
espantoso
poder de um
império
antigo, em
tempos tão
imenso como
era então o
Britânico e
que agora
jazia em
ruínas. As
expedições ao
deserto
pilharam os
antigos
túmulos e
templos
egípcios,
enquanto na
Europa
colecionadore
s privados
arrebatavam
as
antiguidades
que durante
milhares de
anos tinham
permanecido
intocadas.
Por causa
deste fascínio,
colecionadore
s ricos
começaram a
organizar
festas onde se
“desembrulha
vam” múmias.
Os convidados
juntavam-se à
volta dos
corpos
mumificados,
maravilhando-
se perante as
pedras
preciosas e
amuletos que
iam sendo
revelados à
medida que as
faixas de
tecido
enroladas à
volta dos
corpos eram
retiradas, de
uma forma
teatral. Estes
cadáveres
eram
recordações
com muita
procura.
Como
escreveu em
1833 o
aristocrata
francês Abbot
Ferdinand de
Géramb,
“dificilmente
seria
respeitável
regressar do
Egito sem
aparecer com
uma múmia
numa mão e
um crocodilo
na outra”. E as
múmias eram
assim
destruídas em
espetáculos de
matiné, para
os ricos
divertirem os
seus amigos.
No entanto,
já para o fim
do século,
nasceu uma
nova loucura
quando em
1895 um
físico alemão,
o professor
Wilhelm
Roentgen,
chamou a
atenção do
público para
uma nova
descoberta
extraordinária.
Chamou-lhe
raio X.40 Os
misteriosos
raios eram
capazes de
penetrar em
matéria sólida,
permitindo às
pessoas verem
através da
pele humana e
até ao osso.
Era uma
coisa
extraordinária.
As imagens
intrigaram a
sociedade
vitoriana. As
pessoas
estavam tão
entusiasmadas
com a
tecnologia
que, como
observou um
autor, o
aparelho de
raios X
tornou-se uma
espécie de
iPhone dos
anos 1890.
Em pouco
tempo esta
nova forma de
“super visão”
estava por
todo o lado.
Pelo menos
para as
múmias, os
raios X, ou
radiografias,
foram um
alívio. Apenas
alguns meses
depois da
apresentação
do raio X, o
físico Walter
König
examinou com
aquela
tecnologia a
múmia de
uma criança
egípcia,
tornando-se
pioneiro de
uma forma
não invasiva
de observar
restos
humanos,
mantendo-os
preservados
para a
posteridade.
Claro que os
raios X não
eram só
usados nos
mortos. Os
médicos, em
especial,
foram rápidos
a perceber as
vantagens que
eles traziam.
Se, antes, a
localização
exata de ossos
partidos
dependia
exclusivament
e do palpite
acertado de
um médico,
agora, com a
visão por raio
X, era
possível
identificar as
áreas atingidas
antes de uma
operação. Esta
capacidade
para ver
através da
carne tornou-
se
especialmente
útil na frente
de batalha, já
que os
médicos
conseguiam
determinar a
localização
exata das
balas e
estilhaços
alojados nos
corpos de
soldados
feridos.
O poder da
visão por raio
X também não
se limitou a
domínios
médicos ou
científicos.
Tornou-se
igualmente
muito popular
entre o
público em
geral. Em
feiras e festas,
os “retratos de
ossos”
tornaram-se
uma nova
atração e as
pessoas
faziam fila
para ver pela
primeira vez a
imagem
chocante dos
seus
esqueletos. Os
raios X
também
revelaram as
deformidades
ósseas
dominantes na
era vitoriana.
Em relação às
mulheres que
vestiam de
acordo com a
moda do
tempo, os
raios X
revelaram que
uma vida
inteira passada
sob o aperto
de corpetes
em forma de
ampulheta
significava
costelas
dobradas e
órgãos
esmagados.
Mas a nova
tendência não
revelou
somente os
efeitos
secundários da
indústria de
beleza,
também
provocou
alguns. O
empresário
britânico Max
Kaiser
desenvolveu
aquilo a que
chamou o
sistema
Tricho, para
remoção de
cabelo. Em
1925, já tinha
expandido o
negócio e
aberto
sucursais em
mais de 75
pontos nos
Estados
Unidos. As
mulheres que
lá iam retirar o
buço eram
submetidas a
até 20 doses
de radiação.
Como
sucede com
qualquer
tendência em
ascensão, o
negócio dos
raios X esteve,
durante um
tempo, ao
alcance de
todos, e
qualquer
pessoa, fosse
construtor,
farmacêutico
ou negociante
de vinho,
podia abrir o
seu próprio
laboratório e
ser
considerado
suficientement
e competente
para ler uma
radiografia. A
tecnologia
tornou-se tão
generalizada
que até à
década de
1950 era
possível
encontrar em
grandes
armazéns os
chamados
“fluoroscópios
”, que eram
despreocupad
amente postos
à disposição
dos clientes
para que estes
pudessem ver
como ficavam
os seus pés
dentro de um
par de sapatos
e, desse modo,
perceber se
assentavam na
perfeição.
Mas os efeitos
secundários
dos poderosos
raios não
tinham
passado
despercebidos.
A loucura dos
exames raio X
começou a
esmorecer à
medida que
foram
surgindo mais
relatos de
perda
indesejada de
cabelo,
bolhas,
inchaços e
queimaduras,
bem como de
cancro e até
de morte. Era
irónico: apesar
de ser possível
“ver” melhor
do que nunca,
não tínhamos
sido capazes
de ver os
danos que isso
provocava
antes de ser
demasiado
tarde.
A radiação,
como os
cientistas
estavam a
descobrir, não
é toda igual:
há raios
diferentes,
com graus de
penetração
diferentes. A
radiação alfa,
por exemplo,
é
razoavelmente
fraca e pode
ser detida por
qualquer coisa
tão simples
como uma
mão
estendida. Os
raios alfa nem
sequer são
capazes de
penetrar nas
células da
camada
exterior da
pele. Por
causa disso,
no tratamento
de cancros, a
radiação alfa,
sob a forma de
rádio-223, é
habitualmente
usada para
destruir
massas
cancerosas.
Inseridas no
tumor, as
partículas alfa
matam as
células
cancerosas,
mas, como
não são
capazes de
penetrar muito
longe, as
células
saudáveis em
redor
permanecem
intocadas.
A radiação
beta, por outro
lado, vai um
pouco mais
longe.
Emitindo
partículas de
uma massa
mais pequena,
esta forma de
radiação
consegue
penetrar
alguns
centímetros no
corpo
humano, mas
pode ser
detida por
uma folha,
relativamente
“sólida”, de
plástico ou de
alumínio. O
carbono-14
radioativo na
atmosfera é
uma forma de
radiação beta
que mal
consegue
penetrar na
camada de
pele morta
mais exterior
dos nossos
corpos. Mas,
como veremos
em breve, esta
forma de
radiação beta
tem outras
formas
engenhosas de
abrir o seu
caminho.
Quanto aos
raios gama e
aos raios X,
estes dois
tipos de
radiação são
os que
apresentam
uma
penetração
maior: são
capazes de
viajar através
do corpo
como se ele
nem estivesse
lá. Mas não
são capazes de
atravessar
materiais
como os
neutrinos.
Lembrem-se:
um neutrino é
capaz de
viajar, sem ser
detido, através
de 9,5 biliões
de
quilómetros
de chumbo,
enquanto
alguns
centímetros
bastarão para
travar um raio
X. A
espessura e a
densidade do
cálcio nos
nossos ossos
são suficientes
para bloquear
raios X, e é
isso que cria
as imagens
dos nossos
esqueletos.
Tecidos
moles, como a
nossa gordura,
músculos e
pele, são mais
permeáveis e,
por isso,
materiais
compostos por
elementos de
um número
atómico mais
alto, como o
cálcio, ou
balas feitas de
chumbo,
bloqueiam a
maior parte do
feixe de raios
X, criando a
silhueta
branca que
nos é agora
familiar.
Quanto às
nossas células,
na maior parte
dos casos os
raios X
passam
através delas
sem causar
danos, mas,
enquanto
radiação
ionizada com
energia
suficiente para
arrancar os
eletrões a um
átomo, de vez
em quando
podem
desfazer a
estrutura
molecular de
uma célula,
causando uma
mutação no
41
ADN. É por
isso que doses
grandes ou
frequentes de
radiação são
perigosas: é
que
literalmente
bombardeiam
as células. E,
como se fosse
um jogo de
roleta russa,
cada tiro
aumenta a
probabilidade
de causar
dano.
Já terão
reparado que,
para proteger
radiologistas e
pessoal
médico, as
portas e
janelas das
salas de raios
X dos
hospitais
modernos
estão
protegidas
com chumbo,
e que, durante
os exames, os
doentes têm
de usar um
colete de
chumbo para
proteger as
partes do
corpo que não
estão a ser
examinadas.
A expetativa
não é que
nenhum dos
fotões consiga
passar –
alguns
conseguirão
sempre –, mas
que, com o
seu número
atómico
elevado, o
escudo de
chumbo
bloqueie a
esmagadora
maioria deles.
Os
aparelhos de
inspeção de
bagagens na
segurança dos
aeroportos
estão
igualmente
revestidos de
chumbo. Uma
vez que os
raios X
destacam
objetos de alta
densidade, os
agentes de
segurança são
alertados para
a presença
potencial de
armas ou de
bombas. Se
alguma vez se
interrogou
porque é que
os passageiros
têm de tirar da
bagagem os
laptops e as
câmaras
fotográficas
quando
passam pela
segurança, é
porque os
raios X não
são capazes de
vez através
destes
materiais
impenetráveis,
tornando
difícil a
deteção de
objetos que
possam estar
escondidos
neles.
Passou mais
de um século
desde a
descoberta do
raio X, e a
maior parte de
nós dá por
garantido que
as máquinas
de raios X nos
permitem ver
aquilo que em
tempos não
éramos
capazes. Mas,
de certa
maneira, cada
nova forma de
visão revela
um tipo de
cegueira
diferente.
Assim como a
máquina de
raios X
consegue
detetar
contrabando
mas é cega em
relação à
bagagem, o
Super-K
consegue ver
o Sol, mas é
cego quanto à
montanha. Às
vezes, para
ver uma coisa
que antes
estava
escondida,
perdemos de
vista outra
coisa.
No debate
de 1763 entre
Johnson e
Boswell, a
essência era se
existiria ou
não uma
distinção real
entre aquilo
que está nas
nossas mentes
e o que está
fora, no
mundo físico.
À escala
humana,
tendemos a
ver “sólido” e
“real” como a
mesma coisa,
mas à escala
subatómica o
mundo à
nossa volta é
uma dança
constante de
partículas
intermutáveis.
Os que os
modernos
instrumentos
científicos nos
revelaram é
que não só
não existe
uma grande
distinção entre
nós e as coisas
à nossa volta,
como os
nossos corpos
são compostos
das coisas à
nossa volta.
Aquela pedra
e os dedos do
pé de Johnson,
como em
breve
descobriremos
, têm ambos
as suas
origens na
mesma coisa.
Em 1957,
um trabalho
científico
agora
conhecido
como Artigo
B2FH mudou
para sempre a
forma como
nos vemos na
Terra. B2FH
vem dos
apelidos dos
seus autores;
os astrónomos
Geoffrey e
Margaret
Burbidge,
William
Fowler e Fred
Hoyle. Nesse
paper,
delinearam a
teoria da
“poeira
estelar” sobre
as origens do
universo vivo.
E, hoje, a
maior parte de
nós possui
provas sólidas
de que toda a
vida, e toda a
matéria que
compõe a
nossa
realidade
material,
provém de
elementos
criados pelas
estrelas.
Em termos
técnicos,
chama-se
nucleossíntese
estelar. O que
isso significa
é que todos
nós somos a
ressurreição
física de
estrelas
mortas. E isso
é porque toda
a vida na
Terra, cada
corpo, nasce
de uma
galáxia de
explosões.
Segundo a
astrónoma da
NASA
Michelle
Thaller, o
ferro que
torna o nosso
sangue
vermelho foi
feito nos
derradeiros
momentos
antes da morte
de uma
estrela. Para
todos nós,
então, o nosso
próprio
sangue
começou com
uma morte
espetacular
num sistema
solar.
As próprias
estrelas
nascem em
berçários
moleculares.
À medida que
nuvens de gás
compostas
essencialment
e de
hidrogénio se
unem sob a
força da
gravidade
num
movimento
em espiral
para o interior,
os átomos de
hidrogénio
começam a
fundir-se e a
constituir um
núcleo a uma
temperatura
muitíssimo
elevada. A
fusão de
quatro núcleos
de hidrogénio
cria um novo
elemento, o
hélio, e é a
projeção desse
fluxo de
energia gerado
pela reação
nuclear
maciça que
sustenta a
estrela,
impedindo-a
de entrar em
colapso sob a
pressão do seu
próprio peso.42
Uma estrela
permanecerá
estável
enquanto estas
duas forças
opostas – a
que explode e
a que implode
– se
equilibrarem.
Mas o
combustível
que é o
hidrogénio
acaba por
esgotar-se e a
estrela começa
a utilizar o
único outro
combustível à
sua
disposição: a
camada de
hélio que
produziu
através de
fusão nuclear.
Ao fundir três
átomos de
hélio, começa
a formar o
elemento
seguinte:
carbono. O
carbono forma
então
oxigénio, e o
oxigénio
transforma-se
em silício e
enxofre. O
processo de
fusão de
elementos
mais leves
para formar
elementos
mais pesados
é a reação em
cadeia da
“nucleossíntes
e estelar”43,
que continua
em ascensão
pela tabela
periódica até a
estrela chegar
a ferro, ponto
em que se
torna tão
pesada que a
energia deixa
de ser
queimada para
fora e, em vez
disso, é toda
absorvida.44 O
resultado é
uma explosão
tão imensa e
espetacularme
nte violenta
que a estrela
moribunda
brilha mais do
que todas as
outras estrelas
da sua galáxia
juntas. É a
lendária
supernova. É a
partir desta
explosão
estelar que são
feitos os
elementos
primários da
tabela
periódica: o
carbono dos
nossos corpos,
o silício dos
nossos
telemóveis, o
urânio que
usamos para
fazer bombas
e dar energia
às cidades.
Quase toda a
matéria que
nos rodeia
resultou da
morte de uma
estrela.45
As
supernovas
são tão
poderosas que
até podem
atirar átomos
para outras
galáxias. O
processo é
conhecido
como
“transferência
intergaláctica”
e astrofísicos
na
Northwestern
University
calcularam
que
aproximadam
ente metade
da matéria que
compõe os
nossos corpos
nem sequer é
da Via Láctea.
Em termos
atómicos, os
terrestres são
seres
extragaláticos,
já que metade
das partículas
dos nossos
corpos
provém de
galáxias bem
distantes.
Como
escreveu o
astrobiólogo
Caleb Scharf
no livro The
Zoomable
Universe:
“Em termos
simples, todos
nos
condensámos.
As
propriedades
físicas
fundamentais
do universo
conspiraram
para reunir um
conjunto de
átomos e de
moléculas que
antes tinham
estado a
ocupar um
volume um
milhão de
biliões de
vezes maior
[...] Há cinco
mil milhões
de anos, os
seus átomos
estavam cerca
de dez
milhões de
vezes mais
espalhados
pelo cosmos
do que estão
agora.”
E alguns
destes átomos
são tão
antigos como
o próprio Big
Bang. Na
verdade, 98
por cento dos
átomos de
hidrogénio no
nosso corpo
datam do
início do
universo.
As
moléculas que
nos rodeiam
também são
antigas.
Gostamos de
pensar que a
água que
bebemos é
limpa, mas os
cientistas
acreditam que
a água é mais
antiga do que
o Sol. Da
próxima vez
que der um
gole, pense
que a água
que está a
beber já foi
uma nuvem,
um icebergue
e uma onda,
que vagueou e
serpenteou
entre
desfiladeiros
no fundo do
mar. Antes de
entrar no seu
corpo, passou,
em média, três
mil anos no
oceano e
apenas uma
semana no céu
antes de cair
sob a forma de
chuva.
Encerrada em
glaciares
permanece
mais tempo,
podem ser
milhares ou
centenas de
milhares de
anos. Depois,
um dia, por
fim, derrete,
passando duas
semanas em
correntes e
rios antes de
correr para o
mar. E este
ciclo tem-se
repetido
muitas e
muitas vezes
ao longo dos
4.500 milhões
de anos em
que a Terra
tem andado a
orbitar o
nosso modesto
Sol.
Não é só a
água que é
reciclada. A
maioria do
carbono que
constitui os
nossos corpos,
aproximadam
ente dois
terços,
provém das
plantas que
comemos e do
dióxido de
carbono que
elas expiram,
mas o terço
restante vem
de carbono
que ficou
aprisionado
em depósitos
de gás e
petróleo
enterrados há
centenas de
milhões de
anos. Quando
queimamos
estes
combustíveis
fósseis, eles
libertam para
a atmosfera os
átomos de
carbono que
constituíram
os organismos
dos primeiros
animais
aquáticos que
existiram há
500 a 600
milhões de
anos; das
primeiras
plantas
terrestres de
há 475
milhões de
anos, dos
primeiros
répteis,
insetos e
anfíbios de há
350 a 400
milhões de
anos; e dos
dinossauros
que andaram
pela Terra
como gigantes
entre 230 e 65
milhões de
anos atrás. Por
isso, de
alguma
pequena
maneira, nós
somos a
ressurreição
atómica de um
dinossauro.
O que isto
quer dizer é
que, enquanto
o nosso corpo
está
constantement
e a renovar-se,
a criar em
cada segundo
milhões de
novas células,
a matéria
atómica que
compõe essas
células é tão
antiga como o
tempo. Como
se fossem
microscópicas
peças de
Lego, os
átomos usados
para construir
cada um dos
nossos corpos
já foram
usados biliões
de vezes
antes, e os
átomos que
estão agora no
nosso corpo
voltarão a ser
usados biliões
de vezes.
A um nível
intuitivo,
sabemos que a
vida é um
ciclo: “És
cinza e em
cinza te
tornarás; és pó
e em pó te
tornarás.” O
berçário de
nova vida é
literalmente o
leito da morte
do
apodreciment
o e da
decomposição
. Só que os
cientistas,
agora, são
capazes de
assistir a esta
ressurreição à
medida que
ela se
desenrola. Na
universidade
inglesa
Sheffield
Hallam, em
Sheffield,
Malcolm
Clench, um
professor de
espectrometria
de massa, foi
o primeiro a
seguir átomos
que se
deslocaram de
um
organismo,
após a sua
morte, até se
incorporarem
de maneira
visível no
corpo de uma
nova vida.
Produtores
da BBC
contataram
Clench, pois
estavam a
trabalhar num
documentário
sobre a
ciência da
decomposição
e queriam
encontrar uma
forma visual
de mostrar aos
espetadores o
processo de
passagem da
morte à vida
no preciso
instante em
que ele
estivesse a
acontecer.
Para isso,
Clench
concebeu um
jardim do
“Pós-Vida”,
criando
plantas
hidropónicas a
que foi dando
um nutriente
especial
contendo
azoto-15. O
azoto é
essencial para
a vida, por ser
um
componente
essencial do
nosso ADN. E
se o azoto-14
está em toda a
parte na
atmosfera, e é
muito comum,
o azoto-15 é
excecionalme
nte raro e a
sua
percentagem
na natureza é
de apenas 0,3
por cento; ou
seja, é
improvável
encontrá-lo
por acaso.
As plantas
dadoras de
Clench foram
criadas para
serem
sacrificadas.
Depois de
decompostas,
a matéria
morta foi
transformada
em líquido.
Esta “sopa de
morte”
alimentou
novos
rebentos, que
até aí tinham
crescido
apenas com o
abundante
isótopo azoto-
14. Usando
um
espetrómetro
de massa46,
que identifica
e isola átomos
e outros
compostos
pelas
respetivas
massas,
Clench
conseguiu
então gerar
uma imagem
com a
localização
exata do
azoto,
mostrando até
onde tinha ido
nas folhas das
novas plantas.
Usando
instrumentos
especiais de
imagiologia,
foi possível
ver o azoto-15
presente nas
folhas
iluminar-se e
mostrar um
brilho branco.
As “marcas da
morte”
atómicas do
isótopo raro
só podiam ter
uma origem:
eram a
ressurreição
atómica da
planta dadora
morta.
A vida e a
morte são um
ciclo. É assim
que a natureza
funciona. Na
floresta de
Tongass, no
Alasca, é
visível um
processo
semelhante.
Mas, aqui, o
que os
cientistas
procuram é
salmão nas
árvores. Em
geral,
imaginamos
animais a
comerem
plantas, mas
neste caso são
as plantas que
se alimentam
dos restos de
animais.
Todos os
anos, quando
centenas de
milhões de
salmões
regressam aos
rios e riachos
para desovar,
morrem e
decompõem-
se nesses
locais,
tornando-se
nutrientes
químicos para
a floresta.
Como observa
a bióloga
Anne Post, um
salmão-cão
prestes a
desovar
contém uma
média de 130
gramas de
azoto, 20
gramas de
fósforo e mais
de 20 mil
quilojoules de
energia sob a
forma de
proteína e
gordura. Isto
quer dizer
que, em
apenas um
mês, um
riacho de 250
metros onde
os salmões
vêm desovar e
morrer recebe
mais de 80
quilos de
azoto e 11
quilos de
fósforo.
É por causa
disto que
Tongass é
conhecida
como “a
floresta do
salmão”. Os
cientistas que
analisam a
vegetação das
margens
concluíram
que entre um
quarto e três
quartos do
azoto das
árvores
provém dos
salmões que
ali vão
desovar. E
isso pode
fazer uma
enorme
diferença para
o seu
crescimento.
O tronco da
conífera
pichea
sitchensis que
cresce nestas
margens
demora cerca
de 80 anos a
atingir um
diâmetro de
50
centímetros;
as árvores-
irmãs mais
afastadas das
margens, que
não têm a
“ajuda” do
salmão,
precisam de
bastante mais
para chegar a
esse ponto –
cerca de três
séculos.
Os
chamados
anéis de
crescimento
no tronco
destas árvores
também
mostram um
registo das
migrações dos
salmões. Nos
anos em que
estas são
grandes, o
azoto-15
presente nas
árvores
mostra-o de
forma muito
evidente.
Como vimos,
o azoto-15 é
muito raro em
ambientes
terrestres, mas
é comum na
rede alimentar
marinha. O
azoto-15
presente nas
árvores só
pode ter vindo
de um lugar:
dos salmões
migrantes. O
que significa
que a história
das migrações
dos salmões
está
literalmente a
ser escrita na
biblioteca da
floresta.
Os humanos
não estão à
margem deste
processo.
Também nós
estamos
sujeitos a este
processo de
passagem da
morte para a
vida. Embora
possamos não
gostar de
pensar nisso,
os cadáveres
humanos
enterrados
naturalmente
também
enriquecem o
solo e, como
sucede com o
salmão,
deixamos para
trás as nossas
assinaturas
biológicas.
Depois da
morte, por
cada quilo de
massa
corporal seca,
o corpo
humano
médio liberta
32 gramas de
azoto, dez
gramas de
fósforo,
quatro gramas
de potássio e
um grama de
magnésio para
o solo de uma
campa. E
embora todo o
processo de
um funeral
possa
inicialmente
matar alguma
da vegetação
próxima,
acaba por ser
atingido um
equilíbrio e os
nossos
cadáveres em
decomposição
começam a
alimentar o
47
ecossistema.
Tal como
estrelas
moribundas
deram origem
a vida na
Terra, os
nossos
próprios
despojos
atómicos
espalhados
reformulam-se
em novos
organismos.
Tornam-se,
outra vez,
ingredientes
de vida.
Desde o Big
Bang que não
há matéria
nova no
universo, mas
sensivelmente
nos últimos
cem anos os
cientistas têm
descoberto
como
transformar
átomos de
maneiras que
são altamente
improváveis
de acontecer
na natureza –
algumas delas
intencionais e
outras nem
por isso. Claro
que até uma
coisa tão
banal como
queimar uma
torrada – ou,
mesmo, fazer
pão –
representa
uma alteração
de estrutura
molecular. (O
que, de uma
perspetiva
evolucionária,
é bastante
impressionant
e: uma
maneira de
pensar na
complexidade
humana é que
somos animais
capazes de
modificar a
estrutura
molecular.)
Mas isso não
é, nem de
perto, a
mesma coisa
do que fazer
novos
elementos,
como uma
estrela faz.
Para isso são
necessárias
quantidades
inimagináveis
de energia,
qualquer coisa
muito para lá
daquilo que os
nossos
antepassados
teriam sido
capazes de
imaginar.
Hoje, no
entanto,
possuímos
esse poder.
Dos 118
elementos da
tabela
periódica, 26
são sintéticos
– ou
produzidos
por humanos.
Criamos
novos
elementos
compactando
núcleos
atómicos
através de um
processo
chamado
fusão.
Fazemos com
que as
partículas
colidam, a alta
velocidade,
num
acelerador de
partículas e se
fundam num
elemento mais
pesado.
Também
desenvolvemo
s o superpoder
oposto: a
capacidade
não só para
fundir átomos
como para os
cindir. E
mostrámos
esse poder às
5h29 do dia
16 de julho de
1945. Uma
fotografia
tirada pela
Secretaria de
Defesa dos
Estados
Unidos
mostra, meio
segundo após
a detonação,
uma bomba a
que foi dado o
nome de
código
Trinity: uma
cúpula de 300
metros de
diâmetro
ergue-se como
uma bolha
gigante sobre
o deserto
Jornada del
Muerto, no
Novo México.
No seu
interior, uma
bola de fogo
dez mil vezes
mais quente
do que o Sol
está pronta a
explodir e a
transformar-se
numa nuvem-
cogumelo
mortal.
A Trinity foi
a primeira
arma nuclear
do mundo. A
potência da
bomba
desencadeou
uma energia
equivalente a
20 mil
toneladas de
TNT. Quando
isso
aconteceu,
fumo e
destroços
elevaram-se a
11.600 metros,
provocando
uma
precipitação
de confetti
radioativos. À
superfície, a
onda de
choque abriu
uma cratera
no solo, o
calor liquefez
a areia e a 16
quilómetros
de distância os
observadores
sentiram que
estavam
“mesmo em
frente a uma
lareira
descontrolada
”. Pela
primeira vez,
a humanidade
tinha nas
mãos uma
potência tão
extraordinária
como a do
Sol. E quando
o dia nasceu,
num raio de
quilómetro e
meio do local
do ensaio,
nada
permanecia
vivo.
Assim que
os Estados
Unidos deram
a conhecer
esta arma de
destruição
maciça, foi só
uma questão
de tempo
antes de todos
também a
quererem. Nas
duas décadas
seguintes, os
exércitos mais
avançados do
mundo
precipitaram-
se para
fabricar as
suas bombas,
deixando
marcas no
planeta, com
mais de 500
explosões
incandescente
s, e atirando
para a
atmosfera
toneladas de
detritos
radioativos,
até que em
1963 foi
assinado o
Tratado de
Limitação de
Ensaios
Nucleares.
Depois, as
coisas
acalmaram.
Foram
proibidos
ensaios
nucleares no
espaço,
debaixo de
água e na
atmosfera,
mas ninguém
tinha sequer a
noção de que
os vestígios
das bombas
nucleares não
se vaporizam
e desaparecem
simplesmente.
Cada
detonação
lançou na
atmosfera
partículas
radioativas,
atirando as
moléculas
para um novo
destino. Tal
como estrelas
a explodirem,
as explosões
das bombas
tornar-se-iam
nova vida.
Mas, para
que exista
vida, o
elemento
carbono é
essencial.
Toda a vida na
Terra é
composta por
ele.
Exatamente o
mesmo
elemento de
que somos
feitos
encontra-se
também em
pedaços de
carvão, minas
de lápis e
diamantes.
Em coisas
vivas, é um
elemento
essencial em
proteínas,
açúcares,
gorduras,
tecido
muscular e
48
ADN. As
plantas
inalam-no
diretamente da
atmosfera e os
animais, por
seu turno,
absorvem-no
das plantas
que comem.
Para os
humanos,
como para
todas as
plantas e
animais, o
carbono que
ingerimos é
usado para
construir os
nossos corpos.
E isso traz-nos
de volta ao
mistério das
duas irmãs
mumificadas
na Áustria.

A equipa
forense
encarregada
da
investigação à
morte das
irmãs foi pedir
ajuda a físicos
nucleares,
porque sabia
que para
descobrir a
idade das
múmias
egípcias se
usava a
datação por
radiocarbono.
Mas o
carbono-14
que existe na
atmosfera, e
que é utilizado
na datação por
radiocarbono,
era neste caso
praticamente
inútil49; com
uma meia-
vida de 5.730
anos, o
carbono-14
podia
seguramente
ser usado para
datar tecido
orgânico, mas
com um grau
de precisão na
casa de várias
centenas de
anos. Para
descobrir qual
das irmãs
morrera
primeiro, os
físicos
necessitavam
de uma
medida a uma
escala de
tempo
humana.
A solução
surgiu-lhes
quando
perceberam
que podia
haver uma
forma
diferente de
datar os
cadáveres.
Podiam tentar
encontrar o
pico artificial
de carbono-14
resultante da
precipitação
causada pelos
ensaios
nucleares
realizados
durante a
Guerra Fria.
Combinado
com oxigénio,
o carbono-14
torna-se
dióxido de
carbono, que é
absorvido
pelas plantas.
Quando os
animais
comem
plantas, ou
outros animais
que se
alimentam de
plantas,
ingerem esse
carbono. E
uma vez que
as células não
fazem
discriminação,
estes isótopos
de carbono
seguem o seu
caminho na
cadeia
alimentar. Foi
assim que o
carbono das
explosões de
bombas
nucleares se
tornou um
elemento
essencial de
cada ser vivo.
O carbono-
14 é raro no
ambiente.
Representa
apenas um
bilionésimo
do carbono no
planeta. É
possível
detetar nos
nossos
organismos
este pico
especial no
radiocarbono
porque a
quantidade de
carbono-14 na
atmosfera
duplicou
durante a era
dos ensaios
atmosféricos,
antes de voltar
a cair
abruptamente
depois de
terem sido
proibidos. Os
físicos
conseguem ler
esta curva
como um
calendário
atómico,
porque desde
então o
radiocarbono
tem-se diluído
a uma
cadência
constante de 1
por cento ao
ano. Assim, se
os cientistas
fossem
capazes de
medir a
quantidade de
“radiocarbono
artificial”
dentro de uma
célula, como
se ele fosse
uma marca do
tempo,
podiam
indicar a data
em que essa
célula
aparecera.50
A equipa
forense
possuía agora
uma maneira
de desvendar
o mistério. A
seguir
precisavam de
uma amostra
dos corpos das
irmãs que
regenerasse
depressa,
células que
fossem criadas
em dias ou em
meses, em vez
de anos.
Já terão
ouvido o mito
de que a cada
sete anos
todas as
células dos
nossos corpos
são
substituídas,
de forma que,
no essencial,
nos tornamos
uma pessoa
completament
e nova. E
ainda que seja
verdade que
todos os dias
perdemos, em
média, cerca
de 50 milhões
de células, as
células dos
nossos corpos
possuem
tempos de
vida
imensamente
diferentes e
são
substituídas a
ritmos
desiguais.
Algumas
células são
como
mariposas e
morrem ao
fim de uns
dias, outras
são
programadas
para ficar
connosco
semanas, anos
ou até
décadas. E,
para destruir
completament
e o mito, há
células tão
leais que
ficam
connosco a
vida inteira.
As células
da pele são
rápidas a
desaparecer.
Situadas na
linha da frente
dos nossos
corpos, são
substituídas a
cada duas ou
três semanas.
Toda a
camada
exterior da
nossa pele, a
epiderme, é
trocada
sensivelmente
de dois em
dois meses.
Mas não é só
nas nossas
partes
exteriores que
há renovação
rápida. Nas
nossas
entranhas, as
células das
vilosidades
intestinais têm
períodos de
vida ainda
mais curtos.
Expostas a
agressivos
ácidos
estomacais,
sofrem um
desgaste
tremendo,
desfazendo-se
e
regenerando-
se mais ou
menos de dois
em dois dias.
A velocidade
a que esta
substituição
celular ocorre
também
depende da
vulnerabilidad
e das células.
Por exemplo,
as superfícies
das nossas
córneas têm a
proteção
acrescida das
nossas
pálpebras,
mas estas
células são
vitais para ter
uma visão
focada e é por
isso que temos
incorporado
um
mecanismo de
emergência:
se sofrerem
qualquer
dano, somos
capazes de as
substituir com
rapidez
extrema, num
espaço de 24
horas.
As células
dos ossos
ficam
connosco mais
tempo. Em
cada década,
os nossos
esqueletos
desfazem-se e
são
gradualmente
substituídos.
As células do
nosso coração
duram ainda
mais. Na casa
dos 20 anos, a
sua taxa de
substituição é
de cerca de 1
por cento ao
ano, mas esta
regeneração
abranda e
quando
chegamos aos
75
substituímos
anualmente
menos de 0,5
por cento das
células do
coração. Por
isso, se chegar
até à bela
idade de cem
anos, ainda
terá consigo
cerca de
metade do
coração
original com
que nasceu.
Como não
há mais
absorção de
carbono
depois da
morte, os
cientistas
determinaram
através da
análise de pele
e de amostras
de cabelo,
algumas das
últimas
células novas
que os corpos
das irmãs
tinham
produzido,
que uma delas
tinha morrido
um ano antes
da outra, em
1988. As suas
células
continham
mais carbono-
14 dos ensaios
atómicos. As
últimas
células
formaram-se
no corpo da
outra irmã em
1989, o que
significa que
ela deve ter
vivido durante
cerca de um
ano junto do
cadáver em
decomposição
da morta,
antes de ela
própria morrer
no ano
seguinte.

Onde
acabamos e
onde
começamos?
Quando
somos
crianças, a
resposta
parece
simples: eu
sou “eu” e
tudo o mais
está à parte.
Na verdade,
até as crianças
têm uma
compreensão
intuitiva da
física.
Percebem, por
exemplo, a
noção de
sólidos: dois
objetos
sólidos não
conseguem
ocupar o
mesmo espaço
e a maior
parte dos
objetos são
rígidos e têm
fronteiras
estáveis. São
coisas que
consideramos
de senso
comum desde
os nossos
primeiros
anos, mas na
realidade
estamos
perante um
ângulo morto
natural. Dada
a escala a que
habitamos,
percebemos
como sólido
aquilo que na
verdade é
poroso, e o
que parece
separado dos
nossos corpos
está, aos
níveis atómico
e subatómico,
profundament
e interligado
com tudo.
Há muito
tempo que os
místicos
perceberam
isto. Como
observam
Lanza e
Berman:
“Religiões
inteiras (três
dos quatro
ramos do
budismo, o
Zen e a
Advaita
Vedanta, uma
das seitas
principais do
Hinduísmo,
por exemplo)
dedicam-se a
provar que um
ser separado
independente,
isolado do
grande
conjunto do
cosmos, é uma
sensação
fundamentalm
ente ilusória.”
Na prática do
budismo zen,
o objetivo é
tornar visível
o invisível.
Muito como
sucede na
ciência, o
objetivo é que
o praticante
zen
compreenda
que “não
existe
separação
entre o seu ser
e as dez mil
coisas”. O
famoso monge
budista Thich
Nhat Hanh
ilustra a ideia
em termos não
científicos
através da
descrição de
uma simples
flor. Uma flor,
explica ele,
não pode
existir como
uma coisa
isolada,
porque está
intimamente
ligada a tudo o
que se
encontra à sua
volta:

“Olhan
do uma
flor,
podemos
ver que
ela é
composta
de muitos
elementos
a que
podemos
chamar
elementos
não
florais.
Quando
tocamos a
flor,
tocamos a
nuvem.
Não
consegui
mos
retirar a
nuvem da
flor,
porque se
fôssemos
capazes
de retirar
a nuvem
da flor, a
flor
entraria
imediatam
ente em
colapso.
Não é
preciso
ser um
poeta para
ver uma
nuvem a
flutuar na
flor, mas
sabe-se
muito
bem que
sem as
nuvens
não
haveria
chuva
nem água
para que a
flor
crescesse.
Por isso a
nuvem faz
parte da
flor, e se
enviarmos
o
elemento
nuvem de
volta para
o céu,
então não
haverá
flor. A
nuvem é
um
elemento
não floral.
E o sol…
é possível
tocar no
sol aqui.
Se
mandarm
os embora
o
elemento
sol, a flor
desaparec
erá. E o
sol é outro
elemento
não
floral.
E a
terra, e o
jardineiro
… se
continuar
mos,
veremos
na flor
uma
multidão
de
elementos
não
florais. Na
verdade, a
flor é
apenas
composta
por
elementos
não
florais.
Não tem
uma
identidade
separada.”

Todas as
coisas vivas
são assim.
Não estamos
isolados;
somos redes.
A vida não
conseguiria
existir de
outra forma.
Somos
compostos por
matéria e,
como toda a
matéria,
estamos
unidos pela
segunda lei da
termodinâmic
a, que afirma
que um
sistema
isolado
tenderá
sempre para
um estado de
caos e
desordem.
Como
sistemas
vivos, como
matéria
organizada,
combatemos
esta entropia
através de um
influxo
constante do
mundo
exterior. E
conseguimos
fazê-lo porque
as coisas vivas
não são
sistemas
fechados.
Necessitamos
de energia do
mundo à
nossa volta
para manter a
nossa
existência. De
uma forma
muito real,
aquilo a que
chamamos
morte é o
momento em
que este
intercâmbio
para e
voltamos a
dissolver-nos
no caos.
Perdemos a
nossa solidez
e tornamo-
nos, outra vez,
partículas.
A questão
de George
Berkeley de o
mundo
material ser
“real” ou
somente uma
impressão da
mente
pressupunha
que as nossas
mentes fossem
feitas de outra
“coisa”. Hoje,
sabemos que
os nossos
cérebros – as
nossas mentes
– são feitos
dos
mesmíssimos
elementos
primordiais
que agora
observamos.
Devido ao
nosso segundo
ângulo morto,
não somos
capazes de ver
como estamos
intimamente
ligados ao
universo à
nossa volta.
Que, na
realidade,
como já
afirmou a
astrónoma
Michelle
Thaller,
“somos
estrelas
mortas, a
olhar de novo
para o céu”.
38
Um átomo de
hidrogénio tem
um protão,
nenhum neutrão
e um eletrão.
Um átomo de
chumbo é muito
mais complexo.
Tem 82 protões,
82 neutrões e
82 eletrões, e é
por isso que o
chumbo é um
elemento muito
mais denso.
39
Sessenta e
cinco mil
milhões de
neutrinos
solares passam,
por segundo,
através de um
centímetro
quadrado
perpendicular
ao Sol.
40
William
Röntgen
recusou-se a
registar
quaisquer
patentes da
tecnologia do
raio X.
Acreditava que
as pessoas
deviam
beneficiar
livremente do
seu trabalho.
41
A primeira
imagem do
próprio ADN
foi obtida com
raios X.
42
O nosso
próprio Sol
funde por
segundo
aproximadamen
te 620 milhões
de toneladas de
hidrogénio, que
transforma em
hélio.
43
O leitor mais
atento terá
reparado que
passámos do
hélio ao
carbono – e que
entre um e
outro deviam
estar os
elementos mais
leves: lítio,
berílio e boro.
Estes elementos
são criados
cosmicamente
de uma forma
diferente,
quando um
elemento mais
pesado é
atingido por
raios cósmicos.
44
O ferro não
consegue
libertar energia
através da
fusão, porque
necessita de um
input de energia
maior do que a
que liberta.
45
Alguns
elementos,
como o ouro,
são constituídos
a partir da
colisão
explosiva de
estrelas de
neutrões.
46
O MALDI-
MS é um
sistema de
espectrometria
de massa que
utiliza um laser
para isolar
átomos e outros
compostos,
permitindo aos
cientistas verem
de que é feito
um objeto
olhando para a
sua massa e
carga.
Instrumentos
modernos
carregam um
átomo ou
molécula e o
laser serve
como uma arma
de disparo,
desencadeando
literalmente
uma corrida
atómica. Os
iões mais leves
são os mais
rápidos e os
mais pesados
são os mais
lentos. E assim,
com base na sua
velocidade e
peso atómico, é
possível obter
uma imagem
dos compostos
presentes numa
amostra.
47
Mas não com
fluidos de
embalsamament
o ou por
cremação, que
são maus tanto
para o solo
como para as
plantas.
48
Quando há
uma replicação
de ADN, 30 por
cento é
carbono.
49
A fonte
primária de
carbono-14 são
colisões de
raios cósmicos.
50
Como o
radiocarbono
resultante dos
ensaios
nucleares
diminui 1 por
cento por ano,
em 2030 terá
desaparecido.
Os organismos
nascidos depois
desse tempo já
não mostrarão
quaisquer picos
significativos
dos sinais
deixados pelas
bombas e por
isso não será
possível datar
as suas células.
A menos, claro,
que façamos
detonar mais
bombas.
3
Olhos nos
Olhos
Quando
não se vê
aquilo
que não
se vê,
nem
sequer se
vê que se
é cego.
PAUL
VEYNE
Para Géza
Teleki, era um
raro dia de
folga. O
primatólogo
tinha decidido
dar um
passeio para
desfrutar da
paisagem dos
altos
desfiladeiros
do Parque
Nacional de
Gombe, na
Tanzânia. Já
para o fim da
tarde,
encontrou um
lugar perfeito
de onde podia
ver uma
luxuriante
planície
verdejante.
Acomodou-se
debaixo de
uma árvore à
espera do
espetáculo da
noite: o
grande sol
africano cairia
em breve
sobre as águas
brilhantes do
Lago
Tanganica.
A
tranquilidade
pairava sobre
as florestas do
vale, mas
quando olhou
em redor
Teleki
percebeu que
não estava
sozinho. A
subir, de
direções
opostas,
vinham dois
chimpanzés
machos
adultos. Ao
atingirem o
topo da
elevação,
viram-se um
ao outro.
Ergueram-se
nas patas de
trás,
caminharam
direitos pela
relva até
ficarem olhos
nos olhos e
saudaram-se
com suspiros
suaves e
apertos de
mão. Apenas
alguns metros
à frente de
Teleki, os
chimpanzés
sentaram-se.
Estavam, os
três, sentados
em silêncio.
Para o
primatologista
, foi uma
experiência
profunda e
transformador
a. Os
chimpanzés
tinham ido ali,
tal como ele,
simplesmente
para se
sentarem a ver
o maravilhoso
pôr do sol.
Que
devemos
pensar desta
história? Uma
vez que somos
99 por cento
chimpanzé,
que
partilhamos
uma grande
quantidade do
mesmo ADN,
é assim
qualquer coisa
de tão
impossível
que eles
fossem
capazes de
apreciar uma
coisa como
um pôr do
sol? Ou será
isso
antropomorfis
mo?
Estaremos a
projetar os
nossos
pensamentos e
ideias sobre
outras
espécies,
vendo o
comportament
o dos
chimpanzés
através de
uma lente
humana?
Há pelo
menos duas
maneiras de
olhar para esta
história – e
ambas
revelam que
temos um
ângulo morto
na forma
como olhamos
para as outras
espécies. Por
um lado,
temos de
admitir que
não somos,
como
poderíamos
pensar, os
únicos seres
no planeta que
olham para as
estrelas. Na
verdade, não
somos os
únicos que
resolvem
problemas,
nem os únicos
comunicadore
s, nem os
únicos
animais
capazes de
amor ou de
apreciar a
beleza.
Mas a outra
maneira de
olhar para o
comportament
o dos
chimpanzés
pode ser ainda
mais
extraordinária
porque,
embora
possamos
tentar
adivinhar os
pensamentos
ou emoções
dos nossos
colegas
primatas que
estavam
naquela
colina, a
verdade é que
nos está
absolutamente
vedado
conhecer a
experiência
deles. Ou seja,
até o nosso
familiar mais
próximo em
termos de
evolução pode
ver e ter a
perceção de
um mundo
completament
e diferente do
nosso.
A maior
parte de nós
passa pouco
tempo a
pensar qual é
a perceção do
mundo que
outros animais
têm. Mas na
cidade de
Monza, em
Itália, foi
aprovada
legislação que
declarava
ilegal manter
um peixinho
num aquário.
A
determinação
foi assente no
raciocínio de
que os peixes
têm boa visão,
sendo por
disso cruel
mantê-los
num ambiente
fechado que
os obriga a
viver com
uma “visão
distorcida da
realidade”. A
conselheira
municipal
Monica
Cirinnà, citada
no jornal Il
Messagero,
afirmou: “A
civilização de
uma cidade
pode medir-se
por isto” – e
“isto” era a
ideia, ainda
bastante
chocante, de
que podemos
ou devemos
ter respeito
pela
perspetiva de
um animal.
É verdade
que os
peixinhos
dourados têm
uma visão
notável. Não
só possuem
cones de
reconheciment
o de cores
para o
vermelho,
verde e azul,
como nós,
mas têm um
quarto recetor
adicional, para
luz
ultravioleta, o
que significa
que lhes está
aberta – e está
vedada a nós –
uma maneira
inteiramente
diferente de
ver. Se
pensarmos
nisto, talvez
não
surpreenda
que os
animais
tenham uma
boa visão:
calculamos
que seja para
conseguirem
sobreviver.
Mas o que
surpreende é o
tipo de
informação
que alguns
animais
conseguem
percecionar.
O peixe-
arqueiro, por
exemplo, é
capaz de
distinguir
rostos
humanos
diferentes.
Para espécie
aquática, estes
peixes têm
uma
habilidade
bastante
única: cospem
jatos de água
para derrubar
presas
voadoras,
como se
fossem
pistolas de
água
biológicas.
São capazes
de apontar a
um inseto que
voa sobre a
água e acertar-
lhe com muita
pontaria a
uma distância
de até 60
centímetros.
Esta
capacidade
especial deu
uma ideia a
investigadores
das
universidades
de Oxford e
de
Queensland:
queriam ver se
a pontaria e
visão apurada
do peixe
podiam ser
usadas de
outra forma.
Por isso,
colocaram
diante dos
peixes
imagens de
rostos
humanos
associados a
uma
recompensa
alimentar e
treinaram-nos
a usar os jatos
para atingir a
imagem de
um rosto
humano
específico
num ecrã de
computador.
Dada a
semelhança
que existe
entre rostos
humanos –
que possuem a
mesma
estrutura
básica de
olhos, nariz e
boca –, até
nós, por
vezes, temos
dificuldade
em fazer
identificações
na nossa
própria
espécie. Mas
para um peixe,
em especial
um peixe com
um cérebro
tão pequeno e
que não
desenvolveu
capacidades
de
reconheciment
o facial
humano, os
resultados
foram
assombrosos.
Perante uma
sequência de
44 rostos
novos, sempre
associados a
um que já
tinha sido
treinado para
recordar, o
peixe-arqueiro
mostrou um
reconheciment
o visual
excelente,
escolhendo o
rosto certo em
86 por cento
dos ensaios.51
Se isso não
vos parece
impressionant
e, pensem se
seriam
capazes de
distinguir o
focinho de um
peixe-arqueiro
no meio de
um cardume
de 44.
Também se
sabe que os
pombos
comuns
possuem uma
visão
altamente
sofisticada.
São capazes
de distinguir
todas as letras
do alfabeto,
reconhecer
dezenas de
palavras,
distinguir
entre quadros
de Monet e de
Picasso e
recordar até
1.800 imagens
individuais.
Conhecedores
destes
excelentes
poderes de
distinção dos
pombos,
investigadores
queriam ver
como seriam
eles capazes
de realizar
uma tarefa
altamente
complexa:
discernir a
diferença
entre tumores
malignos e
benignos em
biópsias à
mama. Os
tumores
malignos que
se
transformam
em cancro são
muitas vezes
identificados
por
microcalcifica
ções no tecido
do peito e têm
uma
disposição
especial.
Radiologistas
e patologistas
podem
demorar anos
a desenvolver
a capacidade
de distinguir
entre massas
malignas e
benignas. Os
pombos não
tiveram anos
de
experiência.
Foram
treinados
durante 34
dias apenas,
usando um
ecrã táctil
ligado a um
dispensador
de alimento.
O treino
consistiu em
mostrar aos
pombos
imagens num
ecrã e em
recompensá-
los de cada
vez que
tocavam numa
barra amarela,
quando a
biópsia era
benigna, ou
numa barra
azul, para
assinalar que
era maligna.
Os pombos
revelaram-se
extraordinaria
mente
certeiros,
capazes de
fazerem uma
identificação
correta, até em
novas
imagens, com
uma taxa de
êxito de 85
por cento.
Quando os
cientistas
resolveram
fazer uma
abordagem
“de bando” e
coligir as
respostas de
todas as 16
aves treinadas,
a precisão
subiu ainda
mais. Juntos,
os pombos
foram capazes
de fazer um
diagnóstico
certo em 99
por cento dos
casos.
A questão
não é se
devemos
substituir
radiologistas
por pombos,
mas pelo
menos
podemos
começar a
questionar as
nossas ideias
sobre o
significado de
inteligência.
Por defeito, o
nosso padrão
está no
patamar da
inteligência
humana, mas,
já que não
vamos afirmar
que os
pombos são
mais espertos
do que os
radiologistas,
então aquilo
que temos
claramente a
fazer é
reavaliar o
que é a
inteligência.
Um aspeto
da inteligência
é a nossa
capacidade
para
interpretar
informação
visual, para
entender o
mundo que
está diante de
nós e
responder-lhe.
Para os
humanos, isso
inclui a
capacidade de
perceção da
informação
espacial, de
ler palavras e
descodificar
mapas e de
entender
símbolos.
Claro que a
visão não é
obrigatória
para qualquer
destas
capacidades,
mas de certo
modo
dependemos
fortemente
dela e é um
auxiliar para
navegarmos
pelo nosso
ambiente. E,
no entanto,
sem toda essa
sofisticação,
um pombo
doméstico é
capaz de fazer
uma coisa que
a maioria de
nós não
consegue:
largada ao
acaso a
centenas de
quilómetros
do seu
pombal, a ave
será sempre
capaz de
encontrar o
caminho de
regresso a
casa – e isso é
absolutamente
notável.
Claro que
hoje temos
GPS, mas
imagine que
tínhamos
inseridas em
nós as
capacidades
de uma ave
migratória ou
de um pombo
doméstico?
Sabemos hoje
que peixes,
pássaros,
tartarugas,
mamíferos,
insetos e até
bactérias
conseguem
detetar
campos
magnéticos.
Se
conseguíssem
os fazer o
mesmo, como
é que isso
mudaria a
nossa forma
de pensar? E
tornar-nos-ia
mais
“inteligentes”
?
São tudo
perguntas
retóricas, mas
apontam para
um facto:
vemos o nosso
mundo através
da mais
estreita das
frinchas de
perceção.
Existem sobre
a Terra pelo
menos 8,7
milhões de
outras
espécies
animais, cada
uma com a
sua própria
forma de
perceção. Por
isso,
peguemos em
algumas
destas lentes e
vejamos como
outras
espécies
experienciam
o nosso
mundo.

A realidade
é como uma
imagem
composta por
milhares de
milhões de
diferentes
pixéis, cada
um com a sua
perspetiva
diferente. O
primatologista
Frans de Waal
observou: “É
isto que torna
tão intrigantes
o elefante, o
morcego, o
golfinho, o
polvo e a
toupeira-
nariz-de-
estrela.
Possuem
sentidos que
ou nós não
temos ou que
temos de uma
forma muito
menos
desenvolvida,
fazendo com
que nos seja
impossível
perceber a
forma como
eles se
relacionam
com o seu
ambiente. Eles
constroem as
suas próprias
realidades.”
Ou seja:
aquilo que
conhecemos
como
“realidade”
não passa de
um ponto de
vista
fragmentado.
A nossa visão,
por exemplo,
está limitada a
uns meros
0,0035 por
cento do
espetro
eletromagnéti
co. Aquilo a
que
chamamos
“luz visível”
são os
comprimentos
de onda entre
os 380 e os
700
nanómetros. A
luz com um
comprimento
de onda de
cerca de 700
nanómetros é
vermelha;
com 600 é
amarelo-
laranja; com
500 é verde;
com 400 é
azul-violeta.
O espetro
acima e
abaixo destes
limites é
invisível para
os nossos
olhos. Mas
nem aquilo de
que nos
apercebemos
como “cores”
existe
realmente no
mundo
exterior. São
interpretadas
nos nossos
cérebros e
dependem do
número e do
tipo de células
recetoras nos
nossos olhos
que estão
sintonizadas
em
comprimentos
de onda
específicos.
Quando há
uma
conjugação de
sol e chuva,
somos capazes
de ver a breve
maravilha
biológica do
arco-íris, a
parte do arco
que
corresponde
ao espetro
visível. De um
lado e do
outro
encontram-se
os
comprimentos
de onda
invisíveis que
não estamos
equipados
biologicament
e para ver.
Como Philip
Morrison
escreveu no
prefácio de
Super Vision:
“Indo na
direção da
porção visível
do espetro
eletromagnéti
co, a última
fração de
violeta
esfuma-se,
abrindo
caminho a
cores
ultravioleta,
depois a cores
raio X, depois
a cores
invisíveis
ainda mais
exóticas
conhecidas
como raios
gama. Se
formos na
outra direção,
a derradeira
fração de
vermelho dá
lugar às cores
infravermelha
s, que
sentimos
como calor,
em vez de as
distinguirmos
como cores
para além do
vermelho.
Continuamos
nessa direção
e chegamos
aos
comprimentos
de onda mais
longos que
agora enchem
as ondas
aéreas,
transmitindo
programas de
rádio e de
televisão,
milhares de
milhões de
conversas por
telemóvel […]
sinais de radar
de torres de
controlo de
tráfego aéreo
e de sistemas
de defesa
aérea.”
Por outras
palavras,
pensamos nos
raios X como
invisíveis,
mas isso só
quer dizer que
são invisíveis
para nós. Ou
seja: a
invisibilidade
não descreve
o raio X, mas
a nossa
própria
capacidade de
o ver ou não.
Alguns
animais
conseguem ter
uma perceção
da luz em
zonas mais
amplas do
espetro do que
nós;
especificamen
te, ultravioleta
e
infravermelho.
Cobras como
as píton, as
boas e as
víboras têm
entre os olhos
e narinas um
órgão
sensorial
termorrecetor,
que lhes
permite ver no
intervalo de
infravermelho
s entre os 750
nanómetros e
um milímetro.
Mesmo
vendadas,
essas cobras
conseguem
capturar
eficazmente a
sua presa. E
isso deve-se
ao fato de o
órgão
termorrecetor
ser sensível ao
calor
irradiado,
captando
leituras de
temperatura
individuais e
usando-as
para gerar
uma imagem
no cérebro. É
assim que
uma víbora
consegue
“ver” no
escuro um
ratinho de
sangue
quente.
As abelhas
também veem
para além do
espetro
visível. Por
exemplo, uma
margarida-
amarela pode
parecer-nos a
nós, humanos,
um conjunto
de pétalas
amarelas, mas
para uma
abelha, que
consegue ver
até ao limiar
dos 300
nanómetros
em
ultravioleta52,
a flor está
acesa como se
fosse uma
pista de
aterragem. Os
jardins estão
cheios destes
alvos secretos,
invisíveis para
nós, mas
acesos para as
abelhas de
forma a elas
encontrarem o
seu néctar. A
águia real
também
distingue luz
ultravioleta –
usa-a para
seguir os
rastos
fluorescentes
de urina que
conduzem à
presa53 –, mas
tem além
disso uma
precisão
visual
assassina.
Enquanto para
nós uma boa
visão está nos
20/2054, as
águias
possuem uma
visão 20/5, o
que significa
que um objeto
visível para
nós a um
metro e meio
será visível
para uma
águia a uma
distância de
seis metros.
Isso acontece
porque a
fóvea do olho
de uma águia
– a parte
responsável
pela focagem
– é muito mais
profunda do
que a nossa,
permitindo-
lhe ver de uma
forma
ampliada,
como se fosse
uma
teleobjetiva de
uma câmara.
Os olhos de
uma águia são
tão bons que
são capazes de
detetar um
coelho a 1.600
metros. É a
mesma coisa
que distinguir
uma formiga
no solo do alto
de um edifício
de nove
andares ou de
ter os piores
lugares num
concerto de
rock num
estádio, mas
ainda assim
conseguir ver
na perfeição
as caras dos
músicos. As
aves de rapina
também
possuem uma
visão de cor
excecional. A
fóvea de uma
águia está
repleta de
cones, o que
lhe
proporciona
uma resolução
incrivelmente
contrastante.
Enquanto os
humanos só
têm cerca de
200 mil cones
por milímetro
no centro da
fóvea, as
águias
possuem um
milhão. É a
mesma coisa
que ver o
mundo num
velho aparelho
de televisão,
em baixa
resolução, ou
vê-lo em ultra
alta
definição.55
Os humanos
também estão
algo limitados
pela colocação
dos olhos na
parte da frente
das cabeças,
que permite
um campo de
visão de
aproximadam
ente 180
graus. As
águias, cujos
olhos fazem
um ângulo de
30 graus, para
trás, desde a
linha do meio
das cabeças,
têm um
campo visual
de 340 graus.
Mas embora
ouçamos com
frequência o
termo “olhos
de águia”,
neste domínio
específico os
tubarões
cabeça de
martelo batem
as águias.
Com as suas
cabeças
largas, os
poderosos
predadores
têm uma visão
de 360 graus
completos.
Não só
conseguem
ver para a
frente e para
trás, mas
simultaneame
nte o que está
acima e
abaixo deles.
Até as
criaturas
“mais baixas”
do nosso
planeta têm
capacidades
que só agora
começamos a
apreciar. A
vida do
humilde
escaravelho é
passada a
transformar
fezes acabadas
de fazer em
bolas que têm
duas ou três
vezes o seu
tamanho. Em
manobras com
as patas da
frente, como
se estivesse a
fazer o pino,
este inseto
trabalhador
usa as patas
traseiras para
empurrar para
trás o seu
tesouro, o
mais depressa
possível, para
longe do
monte de
esterco – e dos
seus
concorrentes.
Mas como é
que ele sabe
para onde ir?
De cabeça
para baixo,
com uma
grande bola de
fezes a
bloquear-lhe a
visão, o
escaravelho
tem mesmo
assim um
incrível
sentido de
direção.
Cientistas
descobriram
que os
escaravelhos
sabem onde
estão e para
onde vão por
mapearem os
céus. Se
observarem
um
escaravelho
verão que ele
de vez em
quando sobe
ao topo da
bola de
esterco e faz
aquilo que
parece ser
uma pequena
dança. Sabe-
se desde há
algum tempo
que aquilo que
ele está a
fazer, na
verdade, é a
tirar uma
espécie de
instantâneo
mental, um
panorama de
360 graus do
céu.
Comparando
uma imagem
mental da
localização do
céu ou da Lua
acima das
suas cabeças
com o seu
mapa dos céus
interno, é
capaz de
determinar a
sua posição e
de avançar
continuamente
em linha reta.
Mas os
investigadores
tinham uma
curiosidade:
em noites sem
luar, como
seria? Como é
que o
escaravelho
noturno se
safa sem um
sinal indicador
brilhante no
espaço? Para
tentar
descobrir,
levaram as
suas
experiências
em recintos
fechados a um
planetário,
onde tinham
controlo
absoluto sobre
o ambiente
celestial.
Surpreendente
mente, quando
retiraram
brilho à lua,
os
escaravelhos
mantiveram a
rota. Só
existia uma
outra fonte de
luz para lhes
servir de guia:
aparentemente
, os
escaravelhos
orientavam-se
olhando para a
Via Láctea.
Para ter a
certeza de que
era realmente
isso que
estava a
passar-se, os
cientistas
precisavam de
testar os
insetos e de
limitar as suas
condições. Por
isso, fizeram-
nos usar
pequenos
chapéus de
cartão. Desse
modo, os
investigadores
podiam
determinar se
eram
realmente as
estrelas, e não
um outro
sentido
qualquer, a
orientar os
escaravelhos.
Aos insetos de
um grupo de
controlo
foram
colocados
visores de
plástico
transparentes,
o que significa
que ainda
conseguiam
ver para cima.
Os resultados
foram
concludentes:
os
escaravelhos
com os
chapéus
ficaram
desorientados
e deixaram de
conseguir
determinar
onde se
encontravam;
continuaram a
empurrar as
suas bolas de
esterco, mas
sem objetivo.
Já o grupo de
controlo
empurrou as
suas bolas em
frente quase
de uma forma
perfeita.
Conclusão:
estes
pequenos
seres terrenos
estavam
mesmo a usar
como bússola
uma galáxia
distante.56
O reino
animal está
cheio de
maravilhas,
mas que dizer
do campeão
da visão? A
libélula tem
de ser
considerada
um dos
grandes
candidatos.
Estes
demónios
velozes têm
28 mil lentes
por olho
composto, que
juntas
constituem a
maior parte da
sua cabeça.
Também
possuem uma
visão de cor
sem paralelo.
Enquanto os
humanos são
tricromáticos
– possuímos
três proteínas
sensíveis à
luz, as
“opsinas”, que
absorvem os
comprimentos
de onda
vermelho,
azul e verde, o
que nos dá a
possibilidade
de misturar
até um milhão
de cores –,
algumas
espécies de
libélulas têm
até 30 opsinas
de pigmento,
o que lhes
permite criar
uma paleta
vasta de cores
literalmente
inimagináveis.
57
Os insetos
também são
capazes de ver
em
ultravioleta e
detetam luz
polarizada.
Além de tudo
isso, têm outra
capacidade
espetacular:
conseguem
ver em câmara
lenta.
Para uma
libélula, como
para Neo no
filme The
Matrix, balas
disparadas a
alta
velocidade
pareceriam
abrandar e
aquilo que nos
surgiria como
um borrão
acelerado
seria uma
imagem
nítida. É
porque nós
vemos a cerca
de 50 imagens
por segundo
enquanto as
libélulas veem
a 300 imagens
por segundo.
O que nos
parece um
filme seria,
para uma
libélula, uma
passagem de
diapositivos.
Não
surpreenderá
por isso que
os animais
sejam
caçadores tão
formidáveis;
com a sua
visão super,
conseguem
capturar 95
por cento das
suas presas.
Nunca
conheceremos
completament
e o mundo de
maravilhas
que está
diante dos
nossos olhos.
No máximo,
só tentamos
imaginar
como seria ver
o mundo
como outros
animais o
veem. A
melhor
comparação
de como isso
podia ser
extraordinário
é imaginar um
daltónico a
pôr uns óculos
EnChroma,
que lhe
permite ver
cores pela
primeira vez.
É muito
frequente
ficarem
completament
e de queixo
caído quando
olham em
volta, em total
êxtase, para
flores
coloridas e
árvores de um
verde viçoso.
A experiência
pode ser tão
esmagadora
que muitas
vezes
começam a
chorar.
Outro
relance do
mundo ao
qual somos
cegos chega-
nos de pessoas
com uma
condição rara,
o
tetracromatis
mo. Os
tetracromático
s têm uma
espécie de
visão em
hipercores,
têm a
perceção de
um mundo
mais rico e
vibrante do
que uma
pessoa média.
É porque
nascem com
quatro células
cones
diferentes para
a visão da cor,
quando a
maior parte de
nós tem três.
O quarto
recetor
permite-lhes
distinguir
mais 99
milhões de
sombras e
nuances do
que um olho
comum é
capaz. Esta
mutação
genética
encontra-se
em cerca de
12 por cento
de mulheres,
mas, deste
grupo, só um
pequeno
subconjunto
tem
verdadeiro
tetracromatis
mo.
Como é
então o
mundo
quando é cem
vezes mais
colorido?
Concetta
Antico, que é
tetracromática
, descreveu-o
como “ver
cores em
outras cores”.
Em
comparação
com ela, nós
vemos o
mundo quase
como os
daltónicos.
Aquilo que
para nós
parece um
caminho de
pedras
cinzentas,
acende-se nos
olhos dela
como um
arco-íris de
diferentes
nuances. Ela
descreve-o
assim: “As
pequenas
pedras saltam
para mim em
laranjas,
amarelos,
verdes, azuis e
rosas.” Para
além da
possibilidade
de ver beleza,
esta forma de
visão tem uma
utilidade
prática.
Quando lhe
perguntaram o
que consegue
ela ver que os
outros não
sejam
capazes,
Concetta
observou:
“Consigo
dizer se
alguém está
doente só de
olhar para
essa pessoa. A
pele fica
cinzenta, fica
amarela e há
algum verde.
Sou capaz de
ver quando a
minha filha
está doente
porque ela
perde as cores
e fica
amarelo-
esverdeada ou
talvez lilás
esbranquiçada
.” Mas nunca
saberemos
aquilo que ela
quer dizer, já
que usa cores
para descrever
outras cores. E
as cores, para
ela, têm um
significado
bem diferente
do que têm
para nós.
As pessoas
com afacia
[sem cristalino
no olho]
também são
capazes de ver
para lá do
comum. Tal
como as
abelhas e as
águias, têm a
capacidade
para ver em
ultravioleta. A
sua condição
resulta muitas
vezes de
cirurgia
ocular,
embora possa
ter origem
numa
anomalia
congénita. O
termo vem do
latim e
significa “sem
lentes”. A
razão pela
qual a maioria
de nós não
consegue ver
em
ultravioleta é
porque o
cristalino
humano
bloqueia
naturalmente a
luz UV. Mas
os doentes que
foram
submetidos a
cirurgia às
cataratas e a
quem foi
extraído o
cristalino são
às vezes
capazes de ver
dentro desta
gama do
espetro.
Claude
Monet, o
artista
impressionista
, terá sido a
mais famosa
pessoa com
afacia. Em
1923, com 82
anos, foi
operado às
cataratas e
retiraram-lhe
o cristalino do
olho esquerdo.
Quando
Monet voltou
a pintar
nenúfares,
eles já não
eram brancos,
mas
apresentavam
nuances
púrpuras
escuras e
azuis
esbranquiçado
s. Mas, mais
uma vez, nós
não vimos
aquilo que ele
viu. Ele pintou
lilases brancos
em cores de
malva e lilás,
mas estas
cores eram
diferentes para
ele do que são
para nós. Seja
como for,
fosse qual
fosse a cor
que os lilases
tinham aos
seus olhos, de
certeza que
não eram
brancos.
A
espionagem
militar tinha
noção deste
superpoder do
mundo real e
usou doentes
com afacia
como
vigilantes
costeiros
durante a
Segunda
Guerra
Mundial. Os
submarinos
alemães
usavam então
lanternas UV
para enviar
sinais secretos
aos seus
agentes em
terra. A
missão dos
vigilantes com
afacia era
lançar um
alerta quando
vissem as
luzes, que
eram
invisíveis a
todos os
outros. Este
exemplo deve
ser
suficientement
e revelador da
dimensão do
nosso ângulo
morto ao nível
da perceção.
Pode haver
inimigos
mesmo ao
largo da costa
e eles serão
invisíveis para
nós, mas
evidentes para
os que são
capazes de
ver.
Não possuir
a capacidade
para ver
alguma coisa
não quer dizer
que não se
possa olhar.
Apaixonado
pelo surf,
Mike
Sturdivant
tinha passado
mais de 30
anos nas
águas da
Costa do
Golfo dos
Estados
Unidos. Mas
em julho de
2010
aconteceu
qualquer coisa
de estranho:
começou a
tossir sangue.
E não era o
único. Ao
longo das
praias da
Florida, havia
pessoas a
queixar-se de
falta de ar, de
queimaduras
na pele e de
visão turva.
Para
Sturdivant,
tornou-se
evidente que
havia qualquer
coisa na água.
Uma noite,
decidiu pegar
na sua luz de
UV, que usava
no barco para
procurar fugas
no motor, para
vasculhar a
praia a ver se
encontrava
alguma coisa.
Aquilo que
viu foi para lá
de
surpreendente:
“da linha das
dunas à beira
da água”, toda
a praia tinha
um brilho cor
de laranja.
A mais de
200
quilómetros
dali, estavam
em curso
operações de
limpeza do
maior
derramamento
de petróleo no
mar na
história dos
Estados
Unidos. Mais
de quatro
milhões de
barris de
petróleo
tinham sido
lançados no
Golfo do
México a
partir da
plataforma de
perfuração
Deepwater
Horizon e,
além disso,
6,5 milhões de
litros de
dispersante
Corexit
tinham sido
atirados para a
água para
apressar a
decomposição
do petróleo.
Cientistas
descobririam
mais tarde que
esta
combinação
de petróleo e
dispersante
tinha tornado
a água 52
vezes mais
tóxica.
Iluminada
por uma luz
UV de 370
nanómetros, a
mistura tóxica
fluorescia.
Um ano após
o derrame,
Sturdivant fez
parceria com
James Kirby,
um geólogo
da costa da
Universidade
da Florida do
Sul, e deu
início a uma
investigação
formal. Ao
longo de dois
anos, os dois
homens
enviaram 71
amostras para
exame
laboratorial.
Os resultados
eram os que
eles
suspeitavam.
De acordo
com o Plano
Nacional de
Emergência
para responder
a
derramamento
s de petróleo e
matérias
perigosas,
uma praia é
considerada
limpa se
contiver
menos de 1
por cento de
petróleo
visível numa
área-amostra
de um metro
quadrado.
Mas o
dispersante
não elimina o
petróleo;
dispersa-o.
Segundo
Sturdivant, o
problema é
esse: “Toda a
operação [de
limpeza] foi
concebida
para tornar as
coisas
invisíveis. E é
por causa
disso que
usam o
dispersante.
Não é que ele
vá ajudar a
acelerar a
degradação do
petróleo. É
porque o torna
invisível.” Isto
é, torna-o
invisível aos
humanos.
Alguns
animais, é
evidente,
conseguem
mesmo assim
vê-lo
perfeitamente
bem.
Mas mesmo
que não o
consigamos
ver, somos
capazes de o
sentir.
Passados
alguns anos,
residentes na
área do Golfo
ainda se
queixam de
sintomas
estranhos:
irritações na
pele, dores de
cabeça,
náuseas,
convulsões,
diarreia com
sangue,
pneumonia,
cãibras,
confusão
mental aguda
e até perdas de
consciência. A
olho nu,
porém, as
praias da
Florida
parecem
perfeitas para
aparecerem
nas
fotografias.

No mundo
animal, a
visão também
assume outras
formas. Para
além da
capacidade de
ver calor, ver
em
ultravioleta e
ver os campos
magnéticos
terrestres,
também existe
a capacidade
de ver através
do uso do
som, ou
ecolocalização
. Os morcegos
e os
odontoceti, ou
baleias com
dentes,
evoluíram
neste sentido
de forma
independente.
Seja no ar ou
debaixo de
água, através
da emissão de
uma série de
sons rápidos,
que podem ser
zumbidos ou
estalidos, e da
escuta do eco,
os animais são
capazes de
determinar a
forma, a
localização e
o movimento
dos objetos à
sua volta58. Os
morcegos
possuem um
campo visual
acústico de
entre dois e
dez metros e,
ao perto,
conseguem
“ver” entre
quatro e 13
milímetros, o
que é
importante
para capturar
pequenos
insetos. O
alcance do
sonar
biológico do
golfinho
comum é de
aproximadam
ente 110
metros,
enquanto os
cachalotes,
que capturam
lulas nas
profundezas
do oceano,
têm o maior
campo de
visão: detetam
uma presa a
500 metros.
Como é que
sabemos que
este sonar
biológico
permite aos
animais
“verem”? O
primeiro
estudo sobre
as capacidades
do morcego
para voar em
escuridão total
foi realizado
no século
XVIII por
Lazzaro
Spallanzani.
Decidido a
descobrir qual
o sentido que
os morcegos59
utilizavam,
Spallanzani
isolou cada
um deles –
visão, tato,
olfato, paladar
e audição – e
eliminou-os
um a um.
Claro que a
ideia de que
os morcegos
são cegos é
um mito, mas
para ter a
certeza de que
não era a
visão que lhes
permitia evitar
obstáculos no
escuro,
Spallanzani
cegou-os,
primeiro
cobrindo-lhes
os olhos com
um pano e
depois, de
forma mais
cruel, tirando-
lhes os olhos.
Nas suas
notas,
escreveu:
“Assim, com
uma tesoura,
removi
completament
e os globos
oculares de
um morcego
[…] Atirado
ao ar, o animal
voou
rapidamente,
seguindo os
diferentes
caminhos
subterrâneos
de uma ponta
à outra, com a
velocidade e a
segurança de
um morcego
saudável.
Mais do que
uma vez, o
animal foi
para as
paredes e para
o telhado… e
finalmente foi
para um
buraco no teto
com cinco
centímetros,
onde se
escondeu de
imediato. Não
consigo
manifestar o
meu espanto
diante deste
morcego que
era totalmente
capaz de ver
mesmo sem os
olhos.”
Estudos
com golfinhos
– felizmente
com os olhos
intactos –
também têm
dado
contributos
importantes
sobre as suas
capacidades.
Estudos
controlados
com golfinhos
em cativeiro
determinaram
que eles são
capazes de
reconhecer
formas
distintas
usando
exclusivament
e o biossonar.
Investigadores
no
Laboratório de
Mamíferos
Marinhos da
Bacia de
Kewalo, no
Havai,
testaram um
golfinho
chamado Elele
colocando
objetos de
formas
diferentes
dentro de uma
caixa. Era
uma caixa em
acrílico fino,
opaco à visão,
mas
penetrável
pelo som. O
treinador
ergueu três
objetos no ar,
mostrou-os a
Elele e pediu-
lhe para
identificar
qual deles
correspondia
ao que estava
na caixa; o
golfinho devia
apontar com o
bico para o
objeto certo.
Os resultados
de Elele foram
excecionais.
Capaz de
alternar entre
sentidos com
à vontade, o
golfinho
revelou-se
capaz de “ver”
o objeto
dentro da
caixa, quer
usando a visão
para encontrar
o par para o
objeto
ecolocalizado,
como
utilizando a
ecolocalização
para encontrar
o par para o
objeto visível.
Conta-se
com
frequência a
história de
como os
golfinhos são
particularment
e curiosos por
mulheres
grávidas e por
outros
golfinhos
grávidos,
nadando e
fazendo
zumbidos
perto da
barriga da
futura mãe.
Embora isso
não esteja
confirmado,
não
surpreenderia
se os
golfinhos
fossem
capazes de
“ver” através
da carne e no
interior dos
nossos corpos,
já que o
ultrassom que
eles usam para
a
ecolocalização
é semelhante
ao ultrassom
utilizado nas
clínicas para
obter imagens
dos fetos.
E como é
uma imagem
destas? É
impossível
saber. Mas se
alguém nos
pode dar uma
pista é Daniel
Kish, o
Batman do
mundo real.
Cego desde
bebé,
começou a
fazer cliques
com a língua e
a escutar o
eco,
encontrando
assim uma
forma de criar
uma imagem
mental do
mundo. Só aos
11 anos,
quando um
amigo lhe
perguntou
pela primeira
vez se estava a
usar
ecolocalização
, Kish
percebeu que
fazia aquilo
que os
morcegos
fazem para
“ver”.
Embora os
humanos não
possuam as
capacidades
bem afinadas
dos morcegos
para detetar
movimentos
pequenos e
rápidos, Kish
desenvolveu
faculdades
notáveis.
Consegue
escutar
edifícios e,
num instante,
saber se são
ornamentados
ou
absolutamente
lisos. Num
auditório, é
capaz de ouvir
as saídas e
sabe
habitualmente
onde elas
estão antes de
uma pessoa
com visão as
encontrar.
Anda de
bicicleta pela
cidade usando
só a sua
capacidade de
ecolocalização
.
Investigadores
que estudam a
atividade
cerebral de
Kish usando
ressonância
magnética
descobriram
que a área do
cérebro
ativada
quando ele faz
ecolocalização
é a região
habitualmente
dedicada à
visão. O que
isso nos diz é
que o seu
cérebro regista
o som como
visão. Ele não
ouve só o
som, ele “vê-
o”.
Poucos de
nós alguma
vez saberão o
que é ver
como Daniel
Kish. Mas
saber aquilo
que não
sabemos diz-
nos algumas
coisas. Kish
vive num
mundo
sensorial que
é tão
impossível de
nós
conhecermos
como é o dos
morcegos ou o
das baleias. É
exatamente o
mesmo mundo
que
habitamos,
mas, ao
mesmo tempo,
é-nos
totalmente
alheio. E, no
entanto, Kish
é humano,
sem sombra
de dúvida.
Isso diz-nos
que, embora a
forma como
os nossos
companheiros
animais vejam
o mundo nos
possa parecer
exótica ou
totalmente
estranha, não
há razão
alguma para
acreditarmos
que é inferior.

O sentido da
visão, no
entanto, não é
apenas
individual. É
também
comunitário,
porque nos
permite imitar
e aprender
com outros.
As crianças
observam com
imensa
atenção os
adultos para
copiarem
aquilo que
eles fazem, e
com os
animais isso
também é
frequente. É
por isso que,
usando a
visão, é
possível
ensinar a uma
abelha com o
cérebro de um
tamanho de
um grão de
sésamo uma
coisa que ela
nunca faria na
natureza
selvagem:
jogar futebol.
Usando uma
abelha de
plástico presa
à ponta de um
pau,
investigadores
da
universidade
Queen Mary,
em Londres,
começaram
por mostrar às
abelhas a
amestrar
aquilo que
deviam fazer.
As abelhas
viram a abelha
falsa empurrar
uma pequena
bola para
dentro de um
círculo. Era a
“baliza”.
Quando a bola
era conduzida
para lá, os
animais
recebiam uma
recompensa
em água
açucarada. Ao
fim de três
experiências
de
observação, as
abelhas foram
então
colocadas
num estádio
em miniatura.
Só pela mera
observação
das abelhas
falsas, eram
capazes de
reproduzir a
tarefa não
natural – e
marcaram
golo em 99
por cento das
vezes.60
A visão
também é um
elemento-
chave para a
memória
visual. E o
animal com a
mais
extraordinária
memória
visual que a
ciência
conhece é
Ayumu, um
chimpanzé
que vive no
Instituto de
Investigação
de Primatas na
universidade
de Quioto.
Aquilo que
torna Ayumu
especial é
possuir uma
memória
eidética, ou
fotográfica.
Num abrir e
fechar de
olhos, a sua
mente
consegue
absorver um
panorama
completo;
frente a um
humano,
numa tarefa
de memória
visual, Ayumu
ganhará
sempre.
Na
aparência, a
tarefa é
simples.
Qualquer
coisa deste
género:
imaginem os
números de 1
a 9 colocados
de uma forma
baralhada em
pontos ao
acaso de um
ecrã. Os nove
números
acendem ao
mesmo tempo
e ficam assim
durante pouco
mais de meio
segundo.
Depois de os
números se
apagarem,
acendem-se
blocos de luz
branca onde
eles estavam e

permanecem.
A tarefa é
tocar, o mais
depressa
possível e na
sequência
correta, nos
blocos
brancos onde
antes
apareciam os
números de 1
a 9.
Ver Ayumi
executar esta
tarefa causa
estupefação.
Se para um
humano,
mesmo
olhando para
o ecrã durante
vários
segundos, é
difícil
processar a
posição de
apenas alguns
números,
imaginem de
todos os nove.
Num teste
contra o
campeão
britânico de
memória Ben
Pridmore, que
memoriza em
menos de 30
segundos a
ordem das
cartas de um
baralho
acabado de
baralhar,
Ayumu foi o
claro
vencedor.
Pridmore
registou um
acerto de
apenas 33 por
cento e o
chimpanzé
chegou aos 90
por cento.
Mas, para
Ayumu, até
meio segundo
é uma
quantidade de
tempo
considerável:
na verdade, já
foi capaz de
realizar esta
tarefa depois
de ver as
imagens
durante
apenas 210
milisegundos.
Mas como é
que ele
consegue?
Sabemos que,
em geral, os
chimpanzés
são melhores
do que nós em
qualquer coisa
chamada
subitização,
que é a
capacidade de
ver e
determinar
instantaneame
nte o número
de objetos
visíveis, tal
como somos
capazes de ver
num dado o
número 4 sem
ter de contar
as pintas. Se
os humanos
são capazes de
subitização de
até quatro ou
cinco números
aleatórios, os
chimpanzés
conseguem
subitizar para
cima de seis.
Ayumu é
especialmente
bom neste
campo,
mesmo para
um
chimpanzé.
Bate tanto
humanos
como
chimpanzés, o
que sugere
que possui
uma memória
visual
extraordinária.

Claro que os
animais não se
limitam a
processar o
que veem,
como
autómatos.
São agentes
ativos. Como
os humanos,
comunicam o
que veem no
mundo ao seu
redor. E
embora quase
toda a
comunicação
aconteça entre
a mesma
espécie,
alguns
cientistas
aventuraram-
se a cruzar
fronteiras e
estão a
aprender a ver
através dos
olhos de
animais,
ensinando-os
a comunicar
connosco.
O
comunicador
mais famoso
do mundo das
aves foi um
papagaio
cinzento
africano
chamado
Alex.
Escolhido ao
acaso numa
loja de
animais, foi
criado pela
investigadora
Irene
Pepperberg e
tornou-se tão
conhecido
pelas suas
capacidades
que
revolucionou
as nossas
ideias sobre
inteligência
animal.
Embora
Alex tivesse o
cérebro do
tamanho de
uma avelã,
possuía as
capacidades
cognitivas de
uma criança
de cinco a seis
anos.
Pepperberg
treinou-o para
responder a
perguntas
sobre o que
via.
Mostravam-
lhe objetos e
ensinavam-lhe
as palavras
que os
identificavam.
Embora a
laringe dos
papagaios não
tenha cordas
vocais, eles
possuem uma
siringe, uma
caixa de voz
que lhes
permite imitar
os sons
produzidos
pelos
humanos.
Alex
conseguia
identificar
diferentes
formas e cores
e contava até
oito; sabia a
diferença
entre “igual” e
“diferente” e
entre “maior”
e “mais
pequeno”; e
comunicava
com um
vocabulário
superior a cem
palavras.
Alex
também
inventava
designações
para coisas
novas que
encontrava.
Por exemplo,
surpreendeu
os
investigadores
durante o
processo de
ensino de
nomes de
frutos. Já
sabia as
palavras
“banana”,
“uva” e
“cereja”, por
ter aprendido
os nomes dos
frutos que lhe
davam a
comer. Mas
quando viu
pela primeira
vez uma
maçã, a ave
criou a sua
própria
designação.
Insistiu em
chamar-lhe
“baneja”.
Porquê? Bom,
é possível que
visse que era
vermelha por
fora e amarela
no miolo, ou
que a tivesse
provado e
decidido usar
uma
combinação
dos dois frutos
que já
conhecida:
uma banana e
uma cereja.
Seja como for,
ficou
“baneja”. A
partir daí,
recusou
sempre
chamar-lhe
maçã.
Alex foi
também, que
se saiba, o
único animal a
fazer uma
pergunta sobre
si próprio. Em
dezembro de
1980, viu o
seu reflexo no
espelho de
uma casa de
banho.
Virando-se
para ele, o
papagaio
perguntou à
tratadora,
Kathy
Davidson: “O
que é isso?”.
Kathy
respondeu-lhe
que era ele,
Alex, e que
ele era um
papagaio.
Depois de se
observar
durante mais
um tempo,
perguntou:
“Que cor?”
Kathy
respondeu-
lhe:
“Cinzento. És
um papagaio
cinzento,
Alex.” Depois
de uma
insistência que
durou algum
tempo, Alex,
ao que parece,
acabou por
perceber.
Pepperberg
diz que foi
assim que ele
aprendeu a cor
cinzenta.
Esta
capacidade
para descrever
o mundo
visual não é
exclusiva dos
papagaios.
Outros
animais
também
aprenderam a
comunicar
connosco.
Talvez o mais
famoso tenha
sido Koko, um
gorila fêmea.
Usando uma
versão
modificada da
língua de
sinais
americana,
Koko possuía
um
vocabulário
extenso: era
capaz de fazer
os sinais de
mil palavras e
compreendia
mais de duas
mil, em
inglês. Tal
como Alex,
Koko era
conhecida por
inventar
palavras para
coisas novas
que entravam
no seu espaço.
Por exemplo,
da primeira
vez que viu
uma zebra,
descreveu-a
como “tigre
branco”; um
boneco de
Pinóquio era
identificado
como
“elefante
bebé”; e da
primeira vez
que viu um
anel chamou-
lhe “pulseira
de dedo”.
É preciso
sublinhar que
os cientistas
ainda debatem
se animais
como Koko e
Alex
possuíam
verdadeirame
nte a
capacidade
para
comunicar. A
ciência exige
uma
objetividade
rigorosa na
verificação de
resultados,
mas a
linguagem é
subjetiva e,
como todos
sabemos, é
muitas vezes
ambígua. No
estudo da
inteligência
animal, os
cientistas
partem muitas
vezes de um
princípio
chamado
Cânone de
Morgan. No
essencial,
afirma que
não devem
atribuir-se a
um animal
processos
psicológicos
superiores se
o mesmo
comportament
o puder ser
atribuído a
qualquer coisa
mais simples,
como um
erro.
Eugene
Linden, o
autor de Apes,
Men and
Language,
descreve a
mesma
situação com
Washoe, uma
chimpanzé e o
primeiro símio
a aprender
linguagem de
sinais: “Há
cerca de 50
anos, num
lago no
Oklahoma,
Washoe viu
um cisne e fez
os sinais para
‘pássaro’ e
‘água’. Estava
a assinalar
simplesmente
um pássaro e a
água ou estava
a combinar os
dois sinais que
sabia
descreverem
um animal
para o qual
não possuía
uma palavra
específica? O
debate
prosseguiu
durante
décadas e
ficou sem
resolução
quando ela
morreu.”
Haverá, no
entanto, uma
maneira de
resolver o
debate,
através do
controlo do
ambiente
sobre o qual
são colocadas
perguntas aos
animais. Na
Noruega,
cientistas
encontraram
uma forma
inteligente de
fazer isto, ao
treinarem
cavalos para
comunicar
com símbolos.
A tarefa era
simples: os
cavalos eram
ensinados a
usar os
focinhos para
apontar para
um quadro,
indicando se
queriam usar
uma manta.
Uma barra
vertical
significava
“tirar a
manta”, uma
horizontal
queria dizer
“pôr a manta”
e um símbolo
em branco
indicava que
preferiam
“não mudar”.
Ao fim de
apenas duas
semanas de
ensinamento,
durante 15
minutos
diários, os
animais eram
capazes de
usar os
símbolos para
comunicar. Os
cavalos não
estavam
simplesmente
a identificar
sinais visuais;
estavam a
tomar
decisões com
base no tempo
que fazia. Nos
dias quentes,
quando a
temperatura
andava entre
os 20 e os 23
graus Celsius,
todos os dez
cavalos a
quem tinham
sido colocadas
mantas
pediam que
elas fossem
retiradas. Os
cavalos sem
manta
indicavam
“não mudar”.
Nos dias frios
e chuvosos,
quando a
temperatura
estava entre os
5 e os 9 graus
Celsius, todos
os dez cavalos
com manta
preferiam
“não mudar”,
enquanto dez
dos 12 cavalos
que não
estavam
tapados
indicavam que
a sua
preferência
era “pôr a
manta”.
O facto de
20 dos 22
cavalos
quererem uma
manta em dias
frios sugeriu
aos
investigadores
que os cavalos
percebiam de
facto os
símbolos
visuais e
faziam
pedidos.
Quanto aos
dois
resistentes, em
dias mais
frios, quando
as
temperaturas
estavam entre
menos 12 e 1
grau,
acabaram por
ceder e
juntaram-se
aos outros.
Ainda que
estes “cavalos
falantes”
sejam
impressionant
es, o melhor
comunicador
animal do
mundo, pelo
menos quanto
à utilização de
símbolos
visuais, é
Kanzi, um
bonobo macho
que vive em
Des Moines,
no Iowa, na
Great Ape
Trust. Kanzi
possui um
vocabulário de
500 palavras
sob a forma de
símbolos num
touch screen,
chamados
lexigramas,
percebe mais
de três mil
palavras em
inglês e
afirma-se que
entende frases
completas e
instruções.
Com uma
máscara de
soldador
posta, para
que as suas
expressões ou
movimentos
dos olhos
nada
revelassem, a
treinadora de
Kanzi, Sue
Savage-
Rumbaugh,
realizou
experiências
em que
introduziu
frases novas e
pedidos
estranhos,
para ver
exatamente o
que Kanzi
percebia.
Quando lhe
foi pedido que
pusesse sal
numa bola,
Kanzi pegou
rapidamente
no saleiro e
fez o que lhe
era solicitado.
Quando a
treinadora lhe
pediu para pôr
no frigorífico
agulhas de
pinheiro,
Kanzi também
não mostrou
qualquer
problema em
executar a
tarefa. E
quando lhe
pediu para
levar a
televisão para
o exterior,
Kanzi
levantou-se,
olhou em
volta, viu o
aparelho e
levou-o lá
para fora.
Para
compreender
até que ponto
isto é
extraordinário,
é preciso parar
e tentar
avaliar o que
poderia estar
Kanzi a
pensar. Muitos
humanos têm
dificuldade
em perceber
uma língua
estrangeira.
Estes animais
não estão
apenas a lidar
com uma
língua
estrangeira,
mas com os
pedidos de
outra espécie.
Se Kanzi é
suficientement
e esperto para
aprender
aquilo que
muitos de nós
não somos
capazes, não é
implausível
imaginar que
possa ter
pensado para
que é que a
sua treinadora
queria pôr no
frigorífico
agulhas de
pinheiro. O
que poderá ter
pensado do
ser humano
que estava à
sua frente
antes de se
levantar e de,
mais uma vez,
fazer o que lhe
era pedido?
Nesta altura,
é justo
perguntar: se
os bonobos e
os chimpanzés
são capazes de
o fazer,
seremos nós
capazes? As
focas e os
golfinhos
entendem os
sinais que
fazemos com
as mãos, os
cães e os
elefantes
percebem as
nossas ordens
vocais, os
orangotangos
até são
capazes de
usar iPads
para
comunicar
connosco.
Mas o que é
que nós
percebemos
das linguagens
de outros
animais? O
que será que
eles veem e
descrevem nas
suas próprias
línguas?
Como
observou a
jornalista de
ciência Rachel
Nuwer, ao
“tentar obrigar
macacos a
aprender a
nossa
linguagem,
ficámos cegos
em relação à
linguagem
deles”. Para
descobrir isso,
um homem
tem passado
muita da sua
carreira
académica a
fazer as coisas
da maneira
inversa, e
desse modo
abriu um
caminho
totalmente
novo para
examinar
como é que os
animais
comunicam
nos seus
próprios
termos. O seu
nome é Con
Slobodchikoff
e já lhe
chamaram um
Doutor
Doolitle dos
tempos
modernos.
Slobodchiko
ff, professor
emérito de
biologia na
universidade
Northern
Arizona,
trabalha com
cães da
pradaria da
espécie
Gunnison,
pequenos
animais muito
vocais que se
parecem com
uma versão
norte-
americana dos
suricatas61.
Com as
cabeças saídas
das suas tocas,
os cães-da-
pradaria estão
muitas vezes
em alerta
máximo
contra
predadores.
Notando que
eles emitiam
sinais de
alerta,
Slobodchikoff
começou a
gravar os sons
que eles
faziam à
aproximação
de predadores
diferentes.
Para os nossos
ouvidos
humanos,
estes sinais
são, na maior
parte dos
casos, os
mesmos;
pequenos
latidos em
sucessão
curta, que
quase parecem
produzidos
por um
daqueles
brinquedos
que guincham.
Mas uma
análise em
computador
revelou outra
coisa: cada
um destes
sinais era
único. E
através da
visualização
das ondas de
som dos
alertas, num
sonograma,
Slobodchikoff
foi capaz de
ver que os
latidos eram
claros e
distintos para
os diferentes
predadores.
Os latidos
para
“humano”,
“falcão”,
“coiote” e
“cão” têm
todos
sonogramas
acústicos
próprios, com
diferentes
comprimentos
de onda e
amplitudes. E
apesar de
alguns dos
predadores
parecerem
semelhantes,
os cães-da-
pradaria nunca
ladram “cão”
quando vêm
um coiote, ou
vice-versa.
Para
Slobodchikoff
e para a sua
equipa de
investigadores
, os
sonogramas
foram uma
forma de
descodificar a
comunicação
entre os
roedores,
como se se
tratasse de
uma Pedra de
Roseta dos
cães-da-
pradaria.
Mas como é
que podemos
ter a certeza
de que os
sinais
significam
aquilo que nós
pensamos?
Slobodchikoff
não gravou
apenas os
latidos de
alerta dos
cães-da-
pradaria,
também
registou em
vídeo as
maneiras
como
escaparam.
Quando viam
um falcão, os
animais
olhavam para
cima, davam
um latido
rápido
monossilábico
e enfiavam-se
pelas tocas
abaixo.
Quando era
reproduzida
uma gravação
sonora com o
mesmo latido,
a resposta era
a mesma: os
animais
olhavam para
cima e
procuravam
no céu e
depois
refugiavam-se
logo nas tocas.
No entanto,
quando era
reproduzido o
som de um
cão, os cães-
da-pradaria
ficavam
alerta, mas
não fugiam.
Robert
Seyfarth tem
feito um
trabalho
semelhante
com macacos-
vervet. Os
primatas têm
diferentes
sinais de
alerta, ou
“palavras”,
para falcões,
cobras e
leopardos. Os
macacos
respondem ao
alerta de
leopardo
correndo por
uma árvore
acima, mas
quando há um
alerta de
falcão olham
para cima e
procuram
terreno
seguro,
escondendo-se
no bosque.
Quando há
alertas de
falcão evitam
subir às
árvores,
presumivelme
nte porque as
aves de rapina
os apanharão
mais
facilmente lá
em cima.
Entre o grupo,
estes sinais
possuem um
significado
evidente.
Quando um
macaco-vervet
emite um
alerta para
cobra, os
primatas
erguem-se nas
patas de trás e
começam a
procurar sinais
do predador
que espreita
entre a
vegetação.
Slobodchiko
ff levou a sua
observação
um passo mais
longe. Queria
ver como
reagiriam os
cães-da-
pradaria a
qualquer coisa
abstrata, que
nunca antes
tivessem
visto, e
construiu em
cartão
círculos,
quadrados e
triângulos.
Depois, ele e a
sua equipa
esticaram uma
corda entre
uma árvore e a
sua torre de
observação,
penduraram as
figuras em
cartão a cerca
de um metro
do solo e
puxaram-nas
para trás e
para a frente
como se
fossem peças
de roupa a
secar numa
corda. Os
cães-da-
pradaria
responderam
às novas
“ameaças”
produzindo
latidos
diferentes.
Incrivelmente,
os animais
tinham sinais
distintos para
“círculo” e
para
“triângulo”,
ainda que para
a colónia estas
formas fossem
inteiramente
novas.62
Slobodchiko
ff tinha
também
reparado que
os apelos dos
cães-da-
pradaria
pareciam
conter
nuances.
Pensou se
cada um
desses apelos
não teria na
verdade mais
informação, se
o sinal para
“cão” era o
mesmo para
todos os cães
ou se os
apelos seriam
diferentes
conforme a
raça. Por isso,
fez passar pela
colónia quatro
cães
diferentes: um
golden
retriever, um
husky, um
dálmata e um
cocker
spaniel.
Quando
analisou os
sons,
descobriu que
os cães-da-
pradaria
emitiam na
verdade mais
do que
simples alertas
a avisar para a
presença de
um cão. Teve
o palpite de
que podiam
ser
descrições.
Colocando
pessoas no
papel de
intrusos da
colónia de
cães-da-
pradaria,
Slobodchikoff
começou a
registar
grandes
diferenças nos
sinais de
alerta. Eram
diferentes
consoante as
pessoas eram
baixas ou
altas. Também
tinham em
conta a forma:
os latidos
eram
diferentes se
as pessoas
eram magras
ou gordas. E,
por fim,
surgiu outra
distinção
incrível: os
roedores
tinham latidos
específicos
dependendo
da cor das
roupas que as
pessoas
usavam.
Ao controlar
as variáveis,
Slobodchikoff
conseguia
descobrir o
que estava a
acontecer. Pôs
os seus
assistentes a
caminharem
sozinhos pela
colónia,
mudando uma
variável: a cor
da t-shirt. A
mesma pessoa
andava pelo
terreno com
uma t-shirt
azul, verde ou
amarela. Os
resultados
foram nada
menos do que
extraordinário
s: os latidos
dos cães-da-
pradaria eram
realmente
descrições dos
intrusos.
Slobodchiko
ff tinha
decifrado
aquilo que os
animais
diziam uns
aos outros
sobre nós.
Quando um
dos seus
assistentes
usava roupa
azul, os cães-
da-pradaria
ladravam
“alto, magro,
humano, azul”
e quando a t-
shirt mudava,
a informação
era “alto,
magro,
humano,
verde”.
A nossa
bolha é a
crença na
excecionalida
de humana:
em sermos a
única espécie
com
consciência
suficiente para
sentir, falar e
pensar. Como
mostram os
estudos de
Slobodchikoff
, os cães-da-
pradaria
conseguem
descrever com
precisão o
mundo à sua
volta, não
porque sejam
treinados para
usar rótulos,
mas porque
estão a
comunicar
naturalmente
aquilo que
veem.

É irónico
que digamos
que alguém é
“cego como
um morcego”,
porque os
morcegos
possuem na
verdade duas
maneiras de
ver. O homem
que descobriu
isto, e que em
1944 cunhou
o termo
ecolocalização
, foi o zoólogo
Donald
Griffin.
Passou a
primeira
metade da sua
carreira
académica a
estudar os
traços
notáveis desta
visão sónica e
a última
concentrado
numa forma
específica de
cegueira
humana: a
crença de que
os humanos
são os únicos
seres
conscientes e
sencientes da
Terra. Este
ângulo morto
tem tido uma
presença
importante nas
ciências,
particularment
e entre os
estudiosos de
comportament
o animal, que
até há pouco
tempo fizeram
lóbi contra as
provas de
consciência
animal,
afirmando que
os estudos que
as apoiavam
não tinham
sustentação e
eram “não
científicos”.
Tal como
muitos
pensadores do
passado que
desafiaram o
statu quo,
Griffin
deparou com
uma barragem
de críticas em
resposta ao
seu trabalho
inicial na área.
Um crítico
afirmou anos
mais tarde que
o seu livro de
1976 The
Question of
Animal
Awareness era
como “Os
Versículos
Satânicos da
cognição
animal”. Na
área de Griffin
houve os que
lamentaram
que um
cientista, em
tempos
grande,
tivesse caído e
viram nesta
nova
extravagância
sobre
consciência
animal um
sinal provável
de “senilidade
prematura”.
Claro que
faríamos bem
em recordar
que os
maiores
cientistas
sempre
questionaram
o papel central
da
humanidade.
Precisamente
o pilar central
desta ideia –
questionar que
o universo
gira à nossa
volta – foi
aquilo que fez
Copérnico ser
proibido e
Galileu ser
preso.
A
excecionalida
de humana é,
contudo,
imensamente
persistente.
Referimo-nos
aos animais
como se
fossem
objetos. Um
animal é uma
“coisa”. A
ideia de que
os animais são
infra-
humanos, sem
consciência e
inteligência,
de que são
inferiores,
levou-nos a
tratá-los como
se não fossem
apenas
propriedade,
mas como
máquinas
biológicas.
Nos primeiros
anos dos
testes
laboratoriais
em animais, a
lógica era a de
que os
animais não
“sentiam”, só
reagiam: se
“um cão uiva
quando o seu
corpo é
magoado, a
vocalização
não é a
expressão de
dor, mas
somente o
resultado de
um processo
puramente
fisiológico,
como se fosse
um relógio a
soar”. Como
se a nossa
própria dor
não fosse
fisiológica.
Para o
primatólogo
Frans de
Waal, este tipo
de
pensamento é
uma forma de
neocriacionis
mo, uma
espécie de
teoria da
evolução
decapitada.
Como ele
escreveu:
“Aceita a
evolução, mas
só pela
metade […]
Vê a nossa
mente como
tão original
que não faz
sentido
compará-la
com outras,
exceto para
confirmar o
seu estatuto de
excecional.” É
como se a
evolução
tivesse parado
na cabeça e,
no entanto,
quando se
trata do corpo,
sentimo-nos
mais
confiantes em
relação àquilo
que tomamos
ou aplicamos
nos nossos
corpos depois
de o termos
testado em
animais. Na
verdade,
fazemos
ensaios de
medicamentos
em animais
antes de os
realizarmos
com humanos,
precisamente
porque
acreditamos
que os efeitos,
dadas as
nossas
semelhanças,
podem ser
extrapolados.
E, no
entanto,
também é
importante
que
respeitemos
que temos
diferenças e
que é tão
impossível
estar na mente
de outro ser
humano e
saber como
ele vê o
mundo como
conhecer
realmente
como é que
um morcego,
um chimpanzé
ou um
escaravelho vê
esse mesmo
mundo. O
filósofo norte-
americano
Thomas Nagel
observou,
num ensaio
que se tornou
famoso,
“What Is It
Like to Be a
Bat?” (“Como
é ser um
morcego?”):

“Mesm
o sem o
benefício
da
reflexão
filosófica,
qualquer
pessoa
que tenha
passado
algum
tempo
num
espaço
fechado
com um
morcego
excitado
sabe
aquilo que
é o
encontro
com uma
forma de
vida
fundamen
talmente
alien […]
O sonar
dos
morcegos,
embora
seja
clarament
e uma
forma de
perceção,
não é
semelhant
e no seu
funciona
mento a
qualquer
sentido
que
possuímos
, e por
isso não
existe
razão para
supor que
seja
subjetiva
mente
como
qualquer
coisa que
possamos
experimen
tar ou
imaginar.
Isto
parece
criar
dificuldad
es à noção
de como é
ser um
morcego
[…]
Quero
saber o
que é,
para um
morcego,
ser um
morcego.
No
entanto,
se tento
imaginar
isto, estou
restringid
o aos
recursos
da minha
própria
mente, e
esses
recursos
são
inadequad
os para a
tarefa.”
As nossas
mentes são
como aliens
em relação a
outras formas
de vida na
Terra, como as
deles são
aliens em
relação à
nossa. E
embora
possamos
pensar que os
nossos
animais
domésticos
sabem quando
estamos
contentes ou
nos confortam
quando
estamos
tristes,
partimos do
princípio de
que eles são
capazes de dar
o salto
quântico que
nós próprios
não estamos
dispostos a
dar na direção
contrária.
Embora
possamos
nunca vir a
saber o que
outro animal
está a sentir
ou a pensar, já
não é um
descaramento
científico
afirmar que
eles sentem e
pensam.
Assistimos a
grandes
revoluções no
pensamento
científico, mas
ainda
permanece um
certo
dogmatismo
no capítulo da
inteligência
animal.
Felizmente,
dissipam-se
lentamente as
noções rígidas
do nosso
especismo.
Em 7 de julho
de 2012, a
Declaração
sobre a
Consciência
de Cambridge
foi assinada
por um
destacado
grupo
internacional
de
neurocientista
s cognitivos,
neurofarmacol
ogistas,
neurofisiologi
stas,
neuroanatomis
tas e
neurocientista
s
computacionai
s. Juntos,
declararam
que “provas
convergentes
indicam que
os animais
não humanos
possuem os
substratos
neuroatómicos
,
neuroquímico
s e
neurofisiológi
cos de estados
de
consciência,
em conjunto
com a
capacidade de
exibir
comportament
os
intencionais.
[…] O peso
das provas
indica que os
humanos não
são os únicos
a possuir os
substratos
neurológicos
que geram a
consciência.
Animais não
humanos,
incluindo
todos os
mamíferos e
as aves, e
muitas outras
criaturas,
incluindo os
polvos,
também os
possuem”.
O velho
ditado afirma
que “os olhos
são a janela da
alma”. Na
ciência, a
existência de
uma alma
pode ser
impossível de
testar e
inverificável,
mas a
existência de
uma
consciência,
não. Os
nossos
próprios olhos
são uma
janela para
uma só forma
de ver o
mundo, uma
amostra de
consciência
entre milhões
de outras
formas
inimagináveis
de o perceber.
Não
podemos
confiar nos
nossos
sentidos para
perceber o
grande quadro
da realidade.
Na verdade,
em relação
àquilo que nos
rodeia, já
revelámos três
grandes
ângulos
mortos. Os
nossos olhos
nus e o senso
comum far-
nos-iam
acreditar que
somos o
centro do
universo,
isolados e
separados do
mundo à
nossa volta, e
superiores a
todas as outras
criaturas. Mas
com as lentes
de correção da
ciência, todas
estas três
suposições
podem ser
desfeitas.
Conseguimo
s, contudo,
dominar a
visão de outra
forma. Somos
uma espécie
singular, com
câmaras e
visores de alta
tecnologia por
toda a parte.
Possuímos as
lentes
tecnológicas
para ver
através das
vastas
distâncias do
espaço, para
observar até
os mais
ínfimos
organismos
microscópicos
, para olhar
através do
corpo humano
e para
espreitar os
próprios
átomos que
compõem o
mundo
material. Mas
há uma coisa
fundamental
que não
vemos.
Quando chega
à questão de
como
sobrevive a
nossa espécie,
somos
completament
e cegos.
51
O estudo foi
atualizado
desde então de
modo a incluir
imagens de
rostos em 3D.
Descobriu-se
que “os peixes
eram capazes
de continuar a
reconhecer a
imagem mesmo
que o rosto
sofresse
rotações de 30,
60 e 90 graus,
passando de
vista frontal a
perfil”.
52
Embora
estudos
anteriores
tenham feito
esta sugestão,
um novo estudo
detalha a
descoberta.
Para já, é
necessária mais
investigação.
53
As abelhas
conseguem ver
na faixa entre
os 600 e 300
nm. Mas como
é que sabemos
o que uma
abelha
consegue ver?
“Conseguimos
saber se um
animal é capaz
de ver luz de
um
comprimento de
onda específico
testando se essa
luz atravessa o
cristalino do
seu olho. Um
cristalino
humano
saudável
bloqueia a luz
ultravioleta, por
isso não a
conseguimos
ver. Mas, para
outras espécies,
ver ultravioleta
pode facilitar a
visão com
menos luz.”
54
Uma visão
20/200 define a
cegueira em
termos legais.
Uma pessoa
com visão
20/20 deve ser
capaz de ler
uma letra E
maiúscula na
tabela de
Snellen a uma
distância de 200
pés (cerca de 60
metros),
enquanto uma
pessoa com
visão 20/200 só
consegue vê-la
a seis metros.
55
Dito isto, em
termos
comparativos
com a maioria
das espécies,
testes de
acuidade visual
humana
mostram que
somos capazes
de ver muito
bem os
pormenores.
Investigadores
que estudaram
600 espécies
animais
descobriram
que a visão
humana é cerca
de sete vezes
mais apurada
do que a de um
gato, 40 a 60
vezes mais do
que a de um
rato ou de um
peixinho
dourado e
centenas de
vezes mais do
que a de uma
mosca ou de um
mosquito.
56
Cientistas têm
sugerido que
esta capacidade
possa ser
adotada na
criação de
algoritmos para
robôs ou carros
autónomos,
uma forma de
as máquinas
poderem saber
o seu paradeiro
sem input ou
interferência
humana.
57

Misteriosament
e, o animal com
o maior número
de opsinas é a
Daphnia pulex,
a pulga-de-
água, cujo
genoma
apresenta uns
extraordinários
46 genes de
opsinas.
58
Mais
especificamente
: escutando a
força do sinal
que volta, a
direção e o
tempo que os
ecos levam a
regressar do
objeto em que
embateram, o
cérebro é capaz
de realizar uma
triangulação e
de criar uma
imagem com a
forma do
objeto.
59
Em 1938, um
estudante de
Harvard,
Donald Griffin,
usou um
gravador de
som para
registar os sons
que os
morcegos
faziam e que se
encontravam
acima do
espetro de
frequências da
audição
humana. Esta
foi a primeira
prova de que os
morcegos
utilizam a
geolocalização.
60
Abelhas sem
treino apenas
“marcaram
golo” por
acaso: 30 por
cento das
vezes.
61
Os suricatas
pertencem a
uma família de
mangustos,
enquanto os
cães-da-
pradaria são
roedores. Por
isso, embora
pareçam
semelhantes,
são muito
diferentes.
62
Os cães-da-
pradaria
pareceram
incapazes de
distinguir a
diferença entre
um quadrado e
um círculo.
PARTE
DOIS

ÂNGU
LOS
MORT
OS
SOCI
AIS
AQUILO
QUE NOS
SUSTENTA
4
Receita
para o
Desastre
Pensem,
de vez
em
quando,
no
sofrimen
to
a cuja
visão se
poupam.
ALBERT
SCHWEITZ
ER
O corpo sobre
a mesa de
autópsias era
irreconhecível
. Aquilo que
em tempos
fora um ser
vivo, a
respirar, tinha
sido
radicalmente
transformado.
O exame
competia ao
professor de
medicina e
pediatria
Richard
deShazo e a
dois colegas
patologistas.
Publicado no
American
Journal of
Medicine, o
estudo
realizado no
Mississippi
era pioneiro:
iam abrir e
dissecar, para
efeitos
científicos,
um nugget de
frango.
Guardado
em formol, o
pedaço de fast
food foi
seccionado
cuidadosamen
te, colocado
numa lâmina e
observado ao
microscópio.
Preocupada
com a
crescente
epidemia de
obesidade no
estado – a
cidade de
Jackson
regista a
maior taxa de
obesidade nos
Estados
Unidos, com
mais de um
terço da
população na
categoria de
muito acima
do seu peso –,
a equipa
queria saber
mais sobre os
alimentos no
centro urbano
e aquilo que
as pessoas
andavam a
comer.
O que os
investigadores
descobriram
deixou-os
“pregados ao
chão” e
“aturdidos”.
Afinal,
músculo
estriado, ou
carne de
frango, “não
era o
componente
predominante
” dos nuggets.
Nem de perto
nem de longe.
Os nuggets
eram
essencialment
e gordura,
osso, epitélio
(as células que
envolvem os
órgãos e a
pele), nervos e
tecido
conjuntivo. Os
outros 40 por
cento eram
tecido
muscular
esquelético.
O frango
(ou, mais
provavelment
e, os frangos)
de cada
nugget tinha
sido
transformado
numa pasta
amalgamada.
Obtido através
do processo
que a indústria
designa como
“aves
separadas
mecanicament
e”, era tecido
forçado, sob
altíssima
pressão, a
soltar-se do
osso. Numa
entrevista,
deShazo
explicou: “É
realmente
possível soltar
aquela coisa
através de
vibração e
ficamos com
estes restos de
frango e junta-
se tudo,
mistura-se
com outras
substâncias e
resulta numa
pasta que se
pode fritar e a
que se pode
chamar
chicken
nugget. É uma
combinação
de frango,
hidratos de
carbono,
gorduras e
outras
substâncias
que aglutinam
tudo. É quase
como
estarmos a
comer
supercola.”
Às vezes
comemos
mesmo cola,
uma pequena
confeção
deliciosa que
tem o nome
apetitoso de
transglutamin
ase, ou TG.
Os seres
humanos
possuem esta
enzima –
quando
esfolamos um
joelho é o que
permite que o
sangue
coagule –,
embora a
versão
comercial seja
sintetizada a
partir de
bactérias ou
obtida a partir
de plasma
sanguíneo de
vacas ou
porcos. E tal
como é capaz
de curar o
joelho,
também
consegue
aglutinar as
proteínas
contidas em
pedaços de
carne, de
modo a que
bocados
separados
ganhem a
forma de uma
peça sólida
que parece
resultar de um
belo corte de
carne. De um
jeito muito
semelhante à
maneira como
o monstro do
Dr.
Frankenstein
foi cosido a
partir de
partes
diferentes de
corpos, esta
“Frankencarne
” resulta da
reunião de
restos, às
vezes de
animais
diferentes.63
Funciona tão
bem que até
talhantes com
experiência
podem ter
dificuldade
em identificar
uma peça feita
a partir de
restos. Na
indústria
alimentar, a
“carne
reestruturada”
mais comum é
o filet mignon.
Em salas de
banquetes e
hotéis que
servem em
grandes
quantidades,
este truque
reduz
tremendament
e os custos em
relação às
peças mais
caras de carne
de vaca.
Quando
falamos de
carne, as
coisas quase
nunca são
aquilo que
parecem.
Claro que toda
a carne está
morta, mas
alguma está
um bocadinho
mais morta do
que outra. Em
2015, as
autoridades
chinesas
desmantelara
m uma rede de
tráfico de
“carne
zombie” que
operava em 14
províncias. As
autoridades
confiscaram
cem mil
toneladas de
carne
congelada de
porco, vaca e
frango que
datavam dos
anos 1970 e
1980 e
estavam a ser
vendidas a
restaurantes e
bancas de
comida locais.
Segundo o
Hong Kong
Free Press, a
carne com 40
anos tinha
sido “injetada
com aditivos
químicos para
ter um aspeto
fresco”. Em
Chongqing, o
epicentro da
rede de
tráfico, um
disfarce para a
fraude era o
próprio facto
de a região ser
conhecida
pela comida
bem picante.
Assim, se a
carne tivesse
um gosto
suspeito, o
picante
serviria de
disfarce,
embora
houvesse uma
questão bem
mais séria:
estaria esta
carne velha
também
doente, uma
vez que
provinha de
áreas
potencialment
e afetadas por
gripe das aves,
febre aftosa e
pela doença
das vacas
loucas? O
tráfico de
alimentos
congelados é
um negócio
altamente
lucrativo. O
valor da
apreensão
feita na
operação na
China atingiu
os três mil
milhões de
yuans,
qualquer coisa
como 381
milhões de
euros, o que
levou
imediatamente
os inspetores a
concluir que
não seria a
última.
Se é
verdade que a
carne zombie
estava bem
para lá do seu
prazo de
validade,
aquilo que
designamos
por “fresco” é
ainda assim
relativo. O
atum que
brilha sob as
luzes de
halogénio do
supermercado
parece bem
fresco, mas
pode ter sido
capturado há
semanas ou
meses e
percorrido
meio mundo
de barco
depois de ter
sido
congelado e
descongelado
um par de
vezes. Como o
vermelho
brilhante do
atum se
transforma
naturalmente
num castanho
pouco
apetecível, o
peixe
importado é
muitas vezes
tratado com
monóxido de
carbono, para
impedir que a
carne em
trânsito sofra
uma
descoloração.
Embora o
processo em si
seja
inofensivo,
pode implicar
riscos para a
saúde, já que
simular
frescura pode
dissimular,
potencialment
e, peixe
estragado.
Também
engana o
consumidor,
que é incapaz
de dizer se o
peixe que está
a comprar tem
um mês ou
acabou de ser
capturado.
O monóxido
de carbono
não será capaz
de dar ao
salmão um
aspeto mais
apetitoso. A
carne do
salmão
selvagem é
cor-de-rosa
porque os
peixes comem
alimentos
selvagens:
krill e
microalgas. O
salmão criado
em cativeiro é
alimentado à
base de soja e
milho. Por
causa disso, a
sua carne não
é cor-de-rosa,
mas cinzenta.
Mas você
gostaria de
salmão
cinzento? Os
especialistas
em comércio
alimentar
suspeitam que
não, e é por
isso que os
viveiros onde
são criados os
salmões usam
o chamado
SalmoFan,
uma gama de
cores como se
fosse um
Pantone,
muito
semelhante às
amostras de
tinta usadas na
decoração de
interiores,
para que os
criadores
possam obter
um salmão
cor-de-rosa
como deve
ser. Lançado
em 1989 pela
empresa
Royal DSM, é
“o padrão de
referência de
cor da
indústria para
a avaliação
visual e a
comparação
de graus de
pigmentação
na carne de
salmão
percebida pelo
olho
humano”.
Chama-se ao
processo
“acabamento
de cor” e é
possível
escolher de
uma paleta de
15 nuances, de
um cor-de-
rosa suave a
um vermelho
alaranjado
forte. Hoje, 70
por cento do
salmão no
mercado é de
aquacultura –
e todo ele é
artificialmente
colorido com
cantaxantina e
a astaxantina,
que são
carotenoides
sintéticos
produzidos a
partir de
petroquímicos
.
Para os
ovos, a mesma
empresa
vende um
YolkFan, que
oferece uma
paleta de 16
nuances para
colorir as
gemas. Na
Ásia, os
consumidores
preferem uma
gema mais
pálida,
enquanto em
países como a
Nova Zelândia
a preferem
com um
laranja forte.
Para satisfazer
diferentes
preferências
geográficas,
os produtores
de ovos que
querem obter
o “brilho
dourado”
perfeito
podem juntar
Carophyll
vermelho e
Carophyll
amarelo à
alimentação
das aves
engaioladas
que não saem
para o ar livre.
A maior parte
das pessoas
acredita que é
capaz, a partir
da cor da
gema, de
distinguir
entre ovos de
galinhas
criadas ao ar
livre e
galinhas de
aviários. Mas,
com os
aditivos
alimentares,
podemos ser
enganados e a
cor, só por si,
não é um
indicador de
um ovo
saudável. Na
realidade, a
cor é só mais
uma faceta da
estratégia de
venda.
Os
primórdios da
falsa frescura
na indústria
alimentar
remontam aos
anos 1950 e
1960, quando
cientistas
começaram a
envolver a
carne em
antibióticos.
Como Maryn
McKenna
escreve no seu
livro Big
Chicken:
“Centenas de
cientistas
fizeram
experiências
envolvendo
carnes e peixe
em soluções
antibióticas,
pulverizando
frutas e
legumes com
produtos
químicos e
misturando-os
no leite.” O
processo foi
chamado
“acronização”
e tornou-se
um dos
métodos
favoritos para
preservar
frangos.
Depois de
abatidas, as
aves eram
encharcadas
numa solução
antibiótica.
Evitando que
as bactérias
estragassem a
carne,
conseguia
prolongar-se o
prazo de
validade e o
seu período de
comercializaç
ão.
O método
conheceu, no
entanto, um
fim bastante
indigno
quando
trabalhadores
de matadouros
começaram a
apanhar
infeções por
estafilococos,
apresentando
queimaduras e
lesões nos
braços e nas
mãos. Não
eram os
próprios
antibióticos a
causar as
infeções, mas
sim estirpes
de bactérias
que se tinham
tornado
resistentes à
acronização.
O processo foi
interrompido
pouco depois.
Hoje, os
frangos já não
estão
encharcados
em
antibióticos,
mas nos
Estados
Unidos estão
encharcados
noutra coisa:
lixívia. Parece
repugnante,
mas na
verdade é
seguro comer
frango lavado
com lixívia,
desde que a
sua
concentração
seja baixa,
entre 20 e 50
partes por
milhão. O
método mata
todos os
agentes
patogénicos
transportados
pelos
alimentos,
como a
campylobacter
e a salmonela,
assegurando
que eles não
sobrevivem e
não se
propagam
depois do
abate. Mas, na
essência, a
lixívia é um
ângulo morto
químico.
Impede-nos de
ver aquilo
que, de outro
modo, não
poderíamos
ignorar.
Do outro
lado do
Atlântico, o
Reino Unido
proibiu
frangos
lavados com
lixívia por
razões que
têm menos
que ver com
riscos para a
saúde e mais
com o sistema
de saneamento
básico. Como
existem
menos
medidas de
proteção para
as aves nos
Estados
Unidos, é
possível
colocar mais
animais dentro
de gaiolas ou
aviários, o que
resulta muitas
vezes em mais
aves doentes e
numa
disseminação
maior de
matéria fecal e
doenças. A
lavagem com
lixívia é o
garante de
eliminação
das bactérias
antes de as
aves irem para
o mercado. No
Reino Unido e
na União
Europeia,
contudo, a
lógica é a
inversa. O
espaço,
iluminação e
ventilação
exigidos para
as aves são
maiores do
que nos
Estados
Unidos. A
exigência
mínima de
espaço nos
EUA é de 465
centímetros
quadrados por
ave. No Reino
Unido, é o
dobro. Seja
como for, as
aves, em
especial os
frangos, não
têm muito
espaço, tendo
em conta que
são
alimentados
para serem
animais
relativamente
grandes, com
três quilos.64
Tudo isto
para dizer que,
quando se
trata daquilo
que comemos,
os nossos
olhos muitas
vezes
enganam-nos.

Há anos que
as pessoas
tentam
justificar a
regra dos
cinco
segundos. A
“regra” sugere
que, quando
um pedaço de
comida cai no
chão, temos
cinco
segundos para
o apanhar
antes de ele
ficar
contaminado
por bactérias.
Claro que não
há nenhuma
base científica
que sustente
isto. Em vez
disso,
arranjamos as
nossas
próprias
justificações,
como: “Não te
preocupes. É
só uma fatia
de queijo.
Limpa-se
facilmente.”
Ou “É um
rebuçado, não
é uma goma.
Não ficou
nada
agarrado.” A
ciência, no
entanto, é
perentória: se
deixarmos
comida cair
no chão, ela
ficará com
bactérias
quase
instantaneame
nte. Então,
porque
persiste o
mito?
Simplesmente
porque
queremos.
Não somos
capazes de ver
as bactérias e
não parece
fazer mal
nenhum, por
isso a maior
parte das
pessoas (79
por cento,
segundo uma
sondagem)
apanha e
come
alimentos que
caem ao chão.
Um rebuçado
sujo é uma
coisa, mas
quando
chegamos à
suja verdade
do nosso
sistema
alimentar, será
que somos
capazes de
enfrentar os
factos ou
fazemos a
mesma coisa e
olhamos para
o lado porque
queremos?
Com os
alimentos, há
coisas que
preferimos
não saber. E a
questão é esta:
nós sabemos
que
preferimos
não saber.
Estudos
científicos
determinaram
que os nossos
cérebros
rejeitam
informação
que não nos
faz sentir bem,
ou que nos
provoca
stress, o que é
uma das
razões para
deixarmos de
ligar ao
sofrimento.
Mas, como
escreve
Margaret
Heffernan no
seu livro
Willful
Blindness
(Cegueira
Voluntária):
“Não saber,
está bem. A
ignorância é
fácil. Saber
pode ser
difícil, mas
pelo menos é
real, é a
verdade. O
pior é quando
não se quer
saber, porque
então deve ser
qualquer coisa
muito má. De
outra forma,
não se teria
tanta
dificuldade
em saber.”
Se ao menos
tivéssemos
uma
curiosidade
mínima sobre
a origem dos
nossos
alimentos, não
seria difícil
entender os
factos. Os
horrores
góticos da
indústria de
carnes são
bem
conhecidos
desde que
Upton Sinclair
publicou The
Jungle, há
mais de cem
anos. Embora
hoje possa ser
menos
provável
encontrar um
rato dentro de
uma lata de
carne
prensada, a
escala do
abate de
animais
cresceu
enormemente
e a
mecanização,
no último
século, só terá
tornado mais
chocantes os
matadouros e
as explorações
de gado à
escala
industrial.
Como James
Pearce
observou no
ensaio “A
Brave New
Jungle”,
“talvez a
forma mais
perspicaz de
ilustrar a
intensificação
da produção
agrícola
intensiva de
animais
durante o
século XX (e
pelo século
XXI dentro)
seja com uma
estatística
simples: a
indústria
aviária mata
hoje num dia
mais aves do
que toda a
indústria
matou no ano
de 1930.”
E se aqueles
que ganham
com a
carnificina
ficam felizes
por manter
escondidos os
factos e os
números, as
verdades
desagradáveis
são as coisas
mais fáceis de
ocultar do
mundo. Se
alguém não
quer saber
uma coisa,
então não vai
sabê-la.
A repulsa é
outro inibidor
poderoso. Os
“repulsólogos
”, ou
“nojólogos”,
como alguns
cientistas que
estudam o
tema gostam
de se
apresentar,
descobriram
que a emoção
da repulsa é
universal – e
tem as suas
vantagens. Por
exemplo, o
facto de nos
encolhermos e
fazermos
caretas
quando vemos
feridas ou
lesões em
carne pútrida
é uma
vantagem que
a evolução
nos deu. O
nojo mantém-
nos afastados
de agentes
patogénicos.
Protege-nos
da doença.
Mas muitas
das coisas
com o
potencial de
nos causarem
nojo deixaram
de estar à
vista. Em
especial
quando se
trata de carne
barata na
indústria
alimentar,
vivemos na
ignorância
total quanto a
factos
importantes
sobre os
nossos
alimentos.
Factos como:
os animais
que comemos
são
habitualmente
alimentados
com lixo e
excrementos
de outros
65
animais.
Factos como:
a maior parte
do bacon vem
de porcos que
foram
colocados
numa câmara
de gás. E
factos como:
há bifes nos
balcões
frigoríficos
dos
supermercado
s que vêm de
um animal
que foi
esfolado vivo.
Talvez
prefira não o
saber. Alguns
factos fazem
com que seja
sem dúvida
mais difícil
comer, ou pelo
menos
comprar. De
certeza que
não são uma
conversa
própria para
ter à mesa. É
desinteressant
e ler os
ingredientes
de, por
exemplo, uma
nata artificial
para café, mas
outra coisa
completament
e diferente é
determo-nos
sobre a
origem de
uma costeleta.
E embora não
nos
importemos
de saber
pouco ou nada
sobre
ingredientes
comuns do dia
a dia – fosfato
dipotássico,
monogliceríde
os,
diglicerídeos,
dióxido de
silício,
estearoil
lactilato de
sódio, lecitina
de soja e
aromas
artificiais –,
no caso de
alimentos que
estiveram
vivos saber
pouco ou nada
é uma forma
diferente de
opacidade e,
pelo menos
em parte, uma
questão de
consciência.
Não saber é
uma forma de
mantermos
limpas as
nossas
consciências.
Regressemo
s ao capítulo
anterior e aos
animais cujas
vidas
interiores e
experiências
sensoriais são
tão ricas como
as nossas. No
fim de contas,
somos
também
animais. E os
animais
tendem a ter
um respeito
nato por
outros
animais. O
consagrado
biólogo norte-
americano
E.O. Wilson
chamou a isto
“biofilia”, ou
“o impulso
para a relação
com outras
formas de
vida”. Quando
estão diante
da natureza,
muitos
humanos
sentem
reverência, ou
uma ligação,
talvez por
fazermos parte
da natureza. É
quase
impossível
resistir ao
desejo de
cuidar e
proteger um
cachorro ou
um gatinho;
poucos são
capazes de se
aproximar de
um cavalo
sem querer
pôr-lhe a mão
no pescoço. A
sensação de
proximidade
com outros
animais não é
alvo de um
estudo
científico
rigoroso, mas
as provas
nesse sentido
são
impossíveis de
ignorar. Nós
adoramos
animais.
No fundo,
as nossas
semelhanças
são difíceis de
negar. A
experiência de
uma vaca, ou
de uma
galinha, ou
mesmo de um
morcego é,
como já
vimos,
seguramente
diferente da
nossa. Não
sabemos como
é ser vaca,
galinha ou
morcego, mas
é como ser
alguma coisa.
Quando
pensamos
naquilo que é
ser animal,
estamos na
mesma
posição em
que estaria um
robô com
inteligência
artificial (ou
um marciano)
ao processar a
questão do
que é ser
humano. Ou
seja, o facto
de os nossos
comportament
os serem
descritos de
uma forma
desapaixonada
não significa
que devemos
partir do
princípio de
que somos
incapazes de
experiências
ricas. E não
temos razões
para partir
desse
princípio em
relação a
outros
animais.
Como observa
Thomas
Nagel: “Negar
a realidade
[…] do que
nunca
conseguiremo
s descrever ou
compreender é
a forma mais
crua de
dissonância
cognitiva.”
Não somos
capazes de
acreditar que
cada um de
nós vê e tem
uma
experiência do
mundo que é
única e ao
mesmo tempo
negamos que
outros animais
o vejam e
experienciem
de uma forma
igualmente
única.
A
dissonância
cognitiva é, na
verdade, só
mais uma
designação
para o
incómodo que
sentimos
quando ambos
sabemos uma
coisa e
fingimos que
não a
sabemos. No
caso da
questão de
onde vem a
carne, o
resultado é um
ângulo morto
voluntário,
suficientement
e grande para
esconder um
mecanismo de
morte tão
arrepiante, tão
cruel e de uma
tal dimensão
que já alterou
a face do
planeta de
uma forma
que o tornou
irreconhecível
. E se somos
capazes de
ignorar, sem
pestanejar,
vários
milhares de
milhões de
mortes, que
outras coisas
se encontrarão
escondidas
estando à vista
de todos?

Comecemos
por olhar para
aquilo que
está mesmo
por baixo dos
nossos pés.
Aquilo sobre
que nos
erguemos é a
base sólida da
cadeia
alimentar. Até
partilha o
nome do
planeta: é a
terra que nos
sustenta. Se
pensarmos
nisso, é uma
maravilha
científica: a
cornucópia
colorida de
alimentos no
supermercado,
toda aquela
variedade –
melancias,
morangos,
couves,
pimentos,
espinafres,
lichias, couves
de Bruxelas,
pêssegos,
abóboras,
batatas doces
– resulta da
mesma
alquimia de
água, sol,
ADN e, claro,
terra.
A qualidade
do solo não é
fácil de
detetar a olho
nu, mas
agricultores
canadianos
descobriram
uma técnica
invulgar de a
tornar mais
visível:
enterrando na
terra durante
cerca de um
mês roupa
interior de
homem
conseguem
obter um
indicador da
saúde do solo.
Isso acontece
porque a
roupa interior
de homem é
99 por cento
celulose, ou
seja, no
essencial,
longas cadeias
de moléculas
de glucose,
que
constituem um
banquete
espetacular
para os
residentes
microbianos
do solo. Ao
colocarem
pares de
cuecas de
homem em
lotes de
terreno que
foram tratados
de maneira
diferente, é
possível ter
uma boa
amostra
comparativa
da riqueza
microbiana do
solo.
Claire
Coombs,
técnica de
investigação
no Ministério
da
Agricultura,
Alimentação e
Assuntos
Rurais do
Ontário,
testou este
método e
enterrou
vários pares
de cuecas num
campo lavrado
usado
convencional
mente com
culturas de
soja
sucessivas, e
num campo de
plantio direto
com uma
excelente
rotação de
culturas, para
ver se existia
alguma
diferença. Ao
fim de dois
meses, a roupa
interior no
campo lavrado
estava
praticamente
intacta e até
podia ser
usada. Mas a
roupa interior
no outro
terreno estava,
no mínimo,
desfeita. Só
restava o
elástico, o
resto tinha
“quase
desaparecido”.
Os micróbios
tinham
devorado a
roupa interior,
o que indicava
que o solo
crepitava de
vida, uma
bênção para a
terra e para as
culturas.
Já foi dito
que “as
civilizações se
erguem e
caem por
causa da
qualidade do
seu solo”.
Prevendo-se
que a
população
humana
ultrapassará os
dez mil
milhões em
meados do
século,
ignorar a
profunda
degradação do
solo seria um
tremendo erro
de cálculo.
Citando um
relatório do
World
Resources
Institute, o
autor britânico
Nafeez
Ahmed
escreveu:

“Nos
últimos
40 anos,
cerca de
dois mil
milhões
de
hectares
de solo –
o
equivalent
e a 15 por
cento da
área
terrestre
do planeta
(mais do
que os
Estados
Unidos e
o México
juntos) –
têm sido
degradado
s por
atividades
humanas,
e cerca de
30 por
cento da
terra
arável
tornou-se
improduti
va.66 Mas,
em média,
é preciso
um século
inteiro
para gerar
um só
milímetro
de
camada
superficial
de solo
que se
perde
através da
erosão.
O solo
é, por
isso, um
recurso
não
renovável,
mas que
está a
perder-se
de forma
rápida.
Estamo
s a ficar
sem
tempo.
Dentro de
apenas 12
anos,
afirma o
relatório,
estimativa
s
conservad
oras
sugerem
que
problemas
causados
pela
subida das
águas
afetarão
as
principais
regiões
produtora
s de
cereais da
América
do Norte e
do Sul, da
África
ocidental
e oriental,
da Europa
Central e
da Rússia,
bem como
do Médio
Oriente,
da Ásia
do Sul e
do
Sueste.”

Não há uma
causa única
para a
degradação do
solo. Resulta
da seca e
agrava-se com
a erosão
causada pela
água e pelo
vento devido à
falta de
vegetação.
Mas resulta
também da
agricultura
industrial: do
tremendo
aumento das
monoculturas
ao uso
excessivo, e
até à falta de
uso, de
fertilizantes.
No fim de
contas, os
cientistas têm
estado a
lançar avisos
muito sérios,
dizendo-nos
que a forma
como
cuidarmos, ou
não
cuidarmos, do
que está sob
os nossos pés
afetará em
breve dois
quintos da
população
humana. A
situação é tão
grave,
segundo um
funcionário
superior das
Nações
Unidas, que, à
taxa atual de
degradação do
solo, poderão
não nos restar
mais de 60
colheitas.
Para as
sementes, o
solo é como
um ventre
materno.
Nutre e
alimenta a
vida vegetal
para que ela
possa
desenvolver-
se e crescer.
Mas apesar de
haver milhões
de diferentes
tipos de
sementes (o
famoso Cofre
Global de
Svalbard, por
exemplo,
contém
atualmente
890 mil e tem
espaço para
4,5 milhões de
variedades de
culturas), em
termos globais
apenas 12
espécies de
plantas e
cinco espécies
animais
constituem
três quartos de
toda a nossa
comida.
E depender
de tão poucas
espécies de
plantas ou de
animais para a
alimentação, e
em especial
depender de
apenas uma
variedade de
uma espécie,
significa que
basta uma
doença ou um
único
acontecimento
meteorológico
de grandes
dimensões
para
potencialment
e eliminar
uma fonte de
alimentação.
Já aconteceu.
Nos anos
1800, a Fome
da Batata na
Irlanda foi
provocada por
um fungo
chamado
Phytophthora
infestans. Os
camponeses
da Irlanda
tinham-se
visto expulsos
das terras, que
os
proprietários
queriam para
criar gado, e
tornaram-se
dependentes
da
monocultura
de uma
variedade de
batata, a
lumper
irlandesa.
Quando a
“praga”
chegou, em
1845, a
principal fonte
de
alimentação
para três
milhões de
pessoas
transformou-
se numa
viscosidade
podre e
negra.
O resultado
não foi só a
fome, mas
uma das mais
terríveis
tragédias da
história. Ao
longo de uma
década, por
causa da fome
e da
emigração, a
Irlanda perdeu
um milhão e
meio de
pessoas, cerca
de um quarto
da população.
A recuperação
demorou um
século.
As bananas
são tão
vulneráveis
como as
batatas. A
grande
referência das
bananas até à
década de
1950 era a
variedade
Gros Michel,
até que um
fungo
designado
doença do
Panamá
destruiu as
colheitas
comerciais.
Para criar um
produto
idêntico
rentável sem
diversidade,
as plantas de
bananeira,
sem sementes,
foram
propagadas
por estaquia,
ou seja, eram
clones
geneticamente
idênticos. Na
verdade,
consideradas
em conjunto,
as bananas são
o maior
organismo do
mundo. E
embora muitas
pessoas nunca
tenham
provado uma
Gros Michel,
diz-se que não
se sabe o que
perdemos,
porque a Gros
Michel era
aparentemente
muito mais
saborosa do
que a
Cavendish, a
variedade que
agora
compramos. A
Cavendish
representa
hoje 99 por
cento de todas
as exportações
de banana e,
sendo um
clone sem
sementes,
também está
ameaçada:
uma estirpe
nova e mais
letal da
doença do
Panamá
espalhou-se da
Ásia para
África e Índia
e encontra-se
a caminho da
América
Central.
Quando
chegar, muitas
variedades de
banana,
incluindo a
Cavendish,
podem ser
varridas.
Mas a
biodiversidade
não está a
desaparecer
apenas por
causa das
plantas que
cultivamos
para nos
alimentarmos.
Segundo o
World
Wildlife Fund,
60 por cento
da perda
global de
biodiversidade
deve-se à
utilização da
terra para
alimentar os
nossos
alimentos.67
Ou seja: a
terra é usada
para produzir
alimentos para
animais
criados para
fornecer
carne. E a
maneira como
“fazemos
crescer” a
carne é
semelhante à
maneira como
gerimos as
monoculturas:
controlamos
as sementes.
Tal como as
bananeiras,
muitos dos
animais que
mantemos em
cativeiro não
têm sexo. E
também
controlamos o
seu pool
genético. Se
seguir o seu
brunch até às
origens, verá
que o sexo
natural foi
riscado do
mapa. A vaca
que nos dá o
leite
engravidará
em média uma
vez por ano,
mas
provavelment
e nunca verá
um boi em
toda a vida. É
porque hoje,
para 95 por
cento das
vacas leiteiras
e para 90 por
cento dos
porcos, a vida
não começa
no piscar de
olhos de um
animal, mas
numa placa de
Petri. A
grande
maioria destes
animais são
concebidos
por
inseminação
artificial.
Para a
recolha de
esperma, o boi
ou é excitado
por um macho
castrado, que
tentará
montar, ou é
colocado atrás
de um boneco
de uma vaca,
que na sua
forma mais
simples se
parece muito
com um
cavalo de
arções de uma
aula de
ginástica no
liceu. A
“ordenha” do
boi assume
em geral uma
de três formas.
O primeiro
método, que é
o mais
comum,
envolve uma
vagina
artificial.
Quando o boi
se prepara
para montar, o
“coletor”
corre para lhe
cobrir o pénis
com a vagina,
o que é uma
tarefa e peras,
tendo em
conta que a
ereção do
animal pode
atingir os 60
centímetros.
Para simular a
realidade, o
interior da
vagina, em
borracha, tem
um
lubrificante, e
as suas
paredes estão
cheias de água
morna.
Usando
“estímulo
termal e
manual”, o
coletor
recolhe o
sémen do
touro. Em
centros de
inseminação
artificial, os
bois passam
por este
processo de
recolha dois
ou três dias
por semana e
nesses dias
são recolhidas
ejaculações
duas ou três
vezes.
Para touros
que não sejam
capazes de
montar ou que
sejam mais
difíceis de
conter, o
método
preferido é o
da electro
ejaculação. O
animal é
guiado para
um
gradeamento
em metal, de
modo a que
apenas a sua
parte traseira
fique
acessível. O
coletor faz
uma
massagem
rectal ao
touro, com a
mão enluvada,
para o
descontrair. A
seguir, uma
grande sonda
metálica com
elétrodos é
inserida no
reto e lança
nos nervos
pélvicos
descargas de
eletricidade
cada vez
maiores. Os
veterinários
também usam
a electro
ejaculação em
animais
selvagens e
em perigo de
extinção para
obterem
esperma,
embora os
anestesiem
para realizar
esse processo.
Os touros não
têm essa
benesse.
O último
método exige
uma forma
mais direta de
envolvimento
humano. O
coletor insere
o braço,
coberto por
uma luva, até
ao cotovelo,
no reto do
touro, e
massaja
através das
paredes rectais
a ampola e as
glândulas
adjacentes; na
verdade,
masturba o
animal a partir
do interior até
ele ejacular.
Em geral,
pensamos nas
vacas como os
animais que
são
ordenhados
por dinheiro,
mas, se
formos a ver o
preço por
litro, o
esperma de
touro é de
longe muito
mais valioso.
Uma única
amostra de
sémen pode
atingir os dois
mil dólares –
sendo que
uma
ejaculação
pode
proporcionar
500
amostras.68 A
nível de elite,
um boi
“estrela” pode
representar
anualmente
sete milhões
de dólares e
originar mais
de 500 mil
descendentes.
Como
elemento
essencial da
indústria
global de
lacticínios,
que vale 600
mil milhões
de dólares, o
esperma de
touro é
considerado
“ouro
branco”. Os
touros que dão
origem às
melhores
filhas leiteiras
arrecadam
fortunas para
os seus
proprietários e
acabam por se
tornar
celebridades.
Na indústria
leiteira, o
Comestar
Leader, o
Sunny Boy ou
o Toystory são
todos nomes
famosos.
Estes animais
pertencem ao
“clube dos
milionários”69,
não só pelo
dinheiro que
fazem, mas
especificamen
te pelo seu
nível de
produção: a
capacidade
para produzir
mais de um
milhão de
doses de
esperma.
Porque é
que o esperma
é um negócio
tão grande? A
geneticista
Christine Baes
explica: “Uma
vaca não
produz leite a
menos que
tenha dado à
luz
recentemente,
e por isso é
que é
importante
engravidar
uma vaca
enquanto ela
for
fisicamente
capaz de
aguentar –
digamos, uma
vez por ano.
Uma vaca vai
dar leite
durante 305
dias, vai
descansar 60 e
então fica
pronta a
engravidar
outra vez.”
Reparem que,
ao contrário
dos touros, as
vacas, que são
quem produz
o leite de que
a indústria
depende, não
têm qualquer
reconheciment
o público. São
invisíveis. Ao
fim de uma
vida a
produzir leite
– cerca de 120
copos por dia
por vaca – são
consideradas
gastas e
levadas a um
matadouro,
para acabarem
como comida
para cão ou
em
hambúrgueres.

Este
“negócio da
ejaculação”
não é apenas
doméstico:
Estados
Unidos e
Canadá
exportam
todos os anos,
para todo o
mundo, doses
de esperma no
valor de
centenas de
milhões de
dólares.
Apesar das
sanções, os
Estados
Unidos até
exportaram
para o Irão
esperma de
touro no valor
de dois
milhões de
dólares, já que
entrava na
categoria de
“ajuda
humanitária”.
É obviamente
caro enviar
animais vivos
num avião de
carga 747, por
isso o esperma
segue
embalado.
Por estes
dias, com os
índices
Nasdaq e Dow
Jones,
tendemos a
esquecer que a
bolsa
começou
como
comércio de
gado. Mas até
os simples
leilões de
animais se
transformaram
hoje em
assuntos
abstratos e de
alta
tecnologia: em
vez de
mostrarem
animais vivos,
empresas
como a
Genomix
fazem leilões
de esperma e
de embriões.
O objetivo é
adquirir a
linha genética
perfeita. Os
compradores
olham a
caraterísticas
como quilos
de carne por
vaca,
crescimento
do animal,
facilidade de
parto e
presença dos
genes
pretendidos
para aumentar
a sua manada.
Na verdade, o
esperma
taurino
tornou-se um
bem tão
procurado que
nos últimos
anos até
houve assaltos
a estábulos,
em que
gatunos
levaram tubos
com esperma
que no
mercado
negro
valeriam
dezenas de
milhares de
dólares.
Este ouro
branco é
precioso não
só para os
negócios
privados, mas
para o estado.
Sémen
criopreservad
o, ou
congelado, é
armazenado
em azoto
líquido a 196
graus Celsius
negativos. Isto
permite
mantê-lo
durante pelo
menos 50
anos – e
alguns dizem
que pode ser
indefinidamen
te. Na
eventualidade
de uma
catástrofe em
grande escala,
ou de uma
doença, o
Departamento
de Agricultura
dos EUA
possui como
plano B uma
instalação
secreta de
armazenament
o de azoto
líquido, como
o cofre de
sementes para
as plantas.
Situado em
Fort Collins,
no Colorado,
o Programa
Animal
Nacional de
Germplasma é
uma espécie
de Arca de
Noé genética.
A ideia é que
o Programa,
se alguma
coisa varrer
populações
inteiras de
animais
domésticos
sobre a Terra,
será capaz de
“repovoar
espécies
inteiras”. Mas
de 700 mil
amostras de
esperma de 18
espécies
animais são
ali guardadas,
para essa
eventualidade.
Esperma de
espécies
vintage, ou
tradicionais,
também está
guardado na
instalação de
quase mil
metros
quadrados, ao
lado de
espécies
comuns de
porco, peru,
frango e
gado.
Manter estas
linhas
genéticas
diversas é
importante por
outra razão:
impedir a
consanguinida
de, que é um
acaso da
inseminação
artificial. Com
16 mil filhas,
500 mil netas
e mais de dois
milhões de
bisnetas, um
touro
chamado
Pawnee Farm
Arlinda Chief
foi, em
tempos, o
Genghis Khan
do mundo dos
laticínios. Os
seus genes
podem ser
encontrados
hoje em 14
por cento de
todo o gado
Holstein. Mas
os fazendeiros
acabaram por
criar em
conjunto
touros e
novilhos que
descendiam
do Chief, e
sucede que o
Chief tinha
um gene com
defeito.
Quando
ambos os
animais
contribuíam
com uma
cópia dele, o
resultado eram
abortos
espontâneos.
Para a
indústria, a
perda
financeira foi
de 420
milhões de
dólares.
O controlo
de qualidade é
assim
essencial para
garantir
esperma
saudável. Em
centros de
recolha de
sémen, o
esperma é
analisado ao
microscópio
para garantir
que os
espermatozoid
es são em bom
número, que
se
movimentam
bem e não
apresentam
anomalias
físicas.
Empresas
como a Semex
também
utilizam
“sistemas de
avaliação de
sémen
assistidos por
computador”,
que usam
software e
imagens em
vídeo de alta
resolução para
avaliar o
esperma de
acordo com
determinados
parâmetros
específicos.
Mas em
alguns lugares
o controlo de
qualidade
ainda é feito à
antiga: o
sémen é
avaliado pelo
cheiro, e
também pela
visão.
Ainda que a
descrição do
seu trabalho
não apareça
provavelment
e no LinkedIn,
funcionários
de empresas
como a
Finnpig têm
de cheirar
esperma e
assinalá-lo
para rejeição
quando
alguma coisa
não lhes
cheira bem.70
É uma parte
importante da
produção de
porcos.
Sabrina
Estabrook-
Russett,
estudante de
veterinária na
universidade
de Edimburgo,
pormenorizou
na revista
Modern
Farmer a sua
experiência
como
empregada
numa quinta.
A trabalhar
para um
produtor
esloveno,
aprendeu o
método
tradicional
para avaliar a
qualidade do
esperma. O
produtor
disse-lhe, num
inglês básico:
“Testamos
com TODOS
os sentidos:
ver, ouvir,
cheirar,
provar…
Quando porco
jovem,
esperma doce.
Quando porco
velho,
esperma
amargo.”
Felizmente,
ela foi
poupada à
tarefa da
prova.
Enquanto
produto, o
esperma
também é
oferecido aos
compradores
em seleções
variadas. O
esperma com
sexo
determinado,
por exemplo,
tornou-se
agora um bem
comum. Para
clientes que
pretendem que
as fêmeas
produzam
leite, faz
sentido
comprar
esperma XX.
Os jovens
machos não
são bem-
vindos, a
menos que se
pertença à
indústria da
carne. Um
citómetro
separa, pelo
peso, os
cromossomas
masculinos
dos femininos,
e uma
corrente
magnética
divide o
esperma XX
do esperma
XY, para que
seja possível
adquirir
esperma que
em 90 por
cento das
vezes resulte
em
nascimentos
de animais do
sexo
desejado.
Algum do
esperma é até
vendido como
“pronto para o
robô”, o que
significa que
as fêmeas que
resultarão dele
terão tetas
mais capazes
de resistir aos
robôs de
ordenha
mecânica. As
vacas leiteiras
sofrem com
frequência de
doenças
relacionadas
com a
produção,
como mastite,
que é uma
infeção do
úbere. Para
lidarem com
isto, as
empresas, em
vez de
mudarem a
tecnologia,
estão a mudar
as vacas.
Como afirma
um press
release da
Semex: “Os
reprodutores
‘Prontos para
o Robô’ da
Sirex ajudarão
as empresas
de laticínios a
criarem
facilmente
vacas
rentáveis para
linhas de
produção
automatizadas
e robóticas
[…]
Identificámos
a necessidade
de produzir
vacas
adequadas a
estes sistemas
como uma
exigência
essencial dos
nossos
clientes que já
utilizam nas
suas fábricas,
ou pensam
instalar,
tecnologias
robóticas
automáticas.”
Quando
assumimos o
controlo da
biologia
destes animais
domésticos,
não só lhes
retirámos a
possibilidade
de terem sexo,
mas também
temos a mão
no contador
que aumenta o
seu número.
De um ponto
de vista
empresarial,
há um
incentivo
financeiro
para aumentar
a população
de onde sai o
produto. Os
porcos, por
exemplo, são
considerados
bons para
pagar as
hipotecas – e
quando se
aumenta o seu
número
também
aumentam os
lucros. Esta
taxa cresce
anualmente
dez vezes. No
primeiro ano,
uma suína
adulta produz
20 porcos; no
segundo ano,
dez suínas
produzem
200; no
terceiro, 100
porcas
produzem dois
mil suínos; a
este ritmo, um
produtor pode
ter, no sexto
ano, até dois
milhões de
porcos. Mas

consequências
: nos anos
1990, uma
porca média
dava à luz 20
leitões por
ano. Hoje,
com a
reprodução
seletiva, o
número
aumentou para
25 a 30, e
algumas até
atingem os 40
por ano.71 Este
rápido
crescimento
na produção
animal
resultante de
inseminação
artificial e
vendas de
embriões
alterou o
processo de
reprodução e,
por causa
disso, fez
subir imenso a
biomassa de
animais
domesticados
no planeta.
Existem
hoje sobre a
Terra mais de
mil milhões
de porcos
domesticados
e 1.500
milhões de
vacas
domesticadas,
e os números
anuais de
abate da
Organização
para a
Alimentação e
Agricultura
das Nações
Unidas
mencionam
quase 66 mil
milhões de
galinhas. O
que isto quer
dizer, como
assinalou
George
Musser, editor
na Scientific
American, é
que “quase
todos os
animais
vertebrados ao
cimo da Terra
ou são
humanos ou
são animais de
quinta”. Se
incluirmos
cavalos,
ovelhas,
cabras e as
nossas
mascotes, 65
por cento da
biomassa de
mamíferos do
planeta é de
animais
domésticos,
32 por cento é
de seres
humanos e só
3 por cento é
de animais em
estado
selvagem.
A população
humana,
atualmente
nos 7.500
milhões, está a
aumentar a
um ritmo de
1,2 por cento
ao ano. Para o
gado, os
números são o
dobro: 2,4 por
cento ao ano.
Calculando-se
que a nossa
população
atingirá os dez
mil milhões
em meados do
século XXI,
precisaremos
de sustentar
não só 120
milhões de
toneladas de
seres humanos
adicionais
como 400
milhões de
toneladas
adicionais de
animais de
quinta. Em
2050, o
espaço físico
necessário
para produzir
alimentos só
para o gado
deverá subir
de três quartos
de toda a atual
terra agrícola
para metade
de toda a terra
existente.
Ponto final.

Uma
alforreca e um
pepino são 95
por cento
água. Os
humanos são
cerca de 60
por cento. O
que todas as
plantas e
animais
terrestres têm
em comum é
que a água faz
parte dos
nossos corpos;
constitui os
nossos
alimentos e
sacia a nossa
sede. Não
podemos viver
sem ela. Mas
quanto é que
sabemos de
onde ela
vem?
Claro que a
água está lá
em cima, nos
céus. Na sua
essência, as
nuvens são
rios
flutuantes. E
embora no ar
pareçam mais
leves, têm
peso. O
conteúdo de
água da
nuvem de tipo
cúmulo
comum, por
exemplo, é de
495 mil litros,
ou seja, o peso
de cem
elefantes. As
nuvens podem
estar por toda
a parte, mas
são
inconstantes
quanto ao
onde e quando
libertam a sua
chuva. A água
de que
dependemos –
para fins
residenciais,
agrícolas,
fabris e
industriais –
provém de
duas fontes
primárias: os
aquíferos a
grande
profundidade
e a neve e o
gelo que
derretem dos
glaciares.
Estas duas
fontes estão a
desaparecer.
Comecemos
no alto, nos
picos das
montanhas.
Toda essa
água glacial é
a origem dos
nossos rios e
correntes.
Segundo o
Serviço
Geológico dos
Estados
Unidos, “60 a
80 por cento
do
abastecimento
anual de água
para 70
milhões de
pessoas no
Oeste
Americano
provém das
neves das
montanhas”.72
É por isso que
deviam ser
muito
alarmantes as
fotografias de
glaciares que
estão a
desaparecer.
Num mundo
em
aquecimento,
o
abastecimento
não está a ser
garantido sem
aquela
cobertura
anual de neve
a transformar-
se em gelo e
depois em
água.
O ritmo a
que isto está a
acontecer é
aterrador. Na
Colúmbia
Britânica, os
glaciares
perdem
anualmente 22
mil milhões
de metros
cúbicos de
água. É como
se 22 mil
edifícios
Empire State
Building
feitos de água
desaparecesse
m todos os
anos dos picos
montanhosos.
Nas altas
montanhas da
Ásia, David
Breashears
tem
documentado
a perda de
“reservatórios
gelados”.
Enquanto
cofundador do
GRIP, Projeto
de Registo de
Imagem e
Investigação
de Glaciares,
ele e outros
montanhistas
utilizam
fotografias de
arquivo para
seguir os
mesmos
percursos
usados no
último século
por outros
trepadores,
comparando
imagens dos
glaciares antes
e agora.
Palavras de
Breashears:
“Devem
os sentir-
nos
desconfort
áveis. A
perda
destes
reservatór
ios de
água
congelado
s terá um
impacto
imenso, já
que os
glaciares
abastecem
de
correntes
sazonais
quase
todos os
grandes
sistemas
de rios da
Ásia. Do
Indo ao
Ganges e
ao
Bramaput
ra na Ásia
do Sul,
aos rios
Amarelo e
Iangtsé na
China,
centenas
de
milhões
de
pessoas
dependem
parcialme
nte, em
termos de
água,
deste
grande
arco de
glaciares
a grande
altitude. À
medida
que os
glaciares
recuam e
libertam
água
armazena
da, as
correntes
aumentarã
o
temporari
amente.
Mas
quando
estes
reservatór
ios de
gelo se
esgotarem
, ficará
ameaçado
o
abastecim
ento de
água para
um
continente
em
crescimen
to e
sobrepovo
ado e as
consequên
cias nos
recursos
de água e
alimentare
s podem
ser
terríveis.”

Em 2016, o
Centro de
Jornalismo
Investigativo
começou a
analisar
telegramas
trocados entre
diplomatas
norte-
americanos
que tinham
sido
divulgados
pela
WikiLeaks.
As notas
“mostravam
uma
preocupação
crescente, por
parte de
líderes
políticos e
empresariais
mundiais, com
a
possibilidade
de a escassez
de água poder
provocar
agitação em
todo o
mundo”. Em
particular, a
maior empresa
alimentar do
mundo, a
Nestlé,
calculou que
se todos na
Terra
comessem
como um
norte-
americano
médio, o
planeta já teria
ficado sem
água potável
há 15 anos.
Agora,
quando países
como a China
e a Índia se
aproximam
dos padrões
ocidentais de
desenvolvime
nto
económico, a
sua procura de
carne disparou
e isto, em
combinação
com a
tendência para
a diminuição
dos glaciares e
dos aquíferos,
parece
conduzir os
recursos e a
água da Terra
a uma
situação
“potencialmen
te
catastrófica”.
O problema
é que as
ameaças são
invisíveis. Já
chamaram
“crise
invisível” ao
esgotamento
da água
subterrânea
usada para a
agricultura.
Águas de
chuva há
muito
acumuladas
em aquíferos
subterrâneos
estão a ser
tiradas a um
ritmo sem
precedentes. E
quando esta
água
desaparecer
levará
milhares de
anos a ser
substituída.
Tendemos a
pensar que a
água provém
da chuva ou
de gelo e neve
derretidos,
mas na
verdade
dependemos
imenso desta
água “fóssil”
para a
agricultura
moderna.
Como
observou Tom
Philpott, da
revista Mother
Jones, “viver
da água que
está à
superfície é
como viver do
ordenado
[…]Depender
da água
subterrânea,
no entanto, é
como viver
das
poupanças”.
Hoje, à
escala global,
um terço da
água
subterrânea
está
ameaçada. E
este ângulo
morto da água
subterrânea
paira sobre
algumas das
cidades mais
populosas do
mundo. Há,
no entanto,
uma maneira
de ver o que
se passa
debaixo do
chão – e, com
razoável
surpresa,
consegue-se
isso
recorrendo a
satélites. A
missão
GRACE-FO
da NASA usa
dois satélites
que se seguem
um ao outro
na mesma
órbita. Ao
medir
constantement
e a distância
entre eles,
consegue
detetar-se
alterações no
campo de
gravidade que
atravessam. E
uma vez que
as oscilações
de água
subterrânea
alteram o
campo de
gravidade, os
dados gerados
podem ser
usados por
cientistas para
“ver” o
volume de
água que está
por baixo. O
que
descobriram é
que, em
algumas
regiões como
o Vale Central
da Califórnia,
um volume de
desaparecime
nto de água
que
costumava
levar décadas
acontece
agora em
pouco mais de
três anos.
A nossa
espécie usa
todos os anos
cerca de 4.600
quilómetros
cúbicos de
água, o dobro
do volume de
todos os rios
do planeta. De
acordo com as
Nações
Unidas, por
volta do ano
2050 haverá
cinco mil
milhões de
pessoas a lutar
com a falta de
água; em
2025, portanto
daqui a muito
poucos anos,
1.800 milhões
sentirão “uma
escassez
absoluta de
água”. Por
causa disso, o
preço da água
está a subir.
Um estudo de
2017
conduzido por
cientistas da
universidade
estadual de
Michigan
determinou
que a água
está prestes a
ficar bem
mais cara.
Calcularam
que dentro de
cinco anos um
terço da
população
norte-
americana não
será capaz de
pagar as
contas da
água.
Claro que
há sempre a
água à
superfície. As
superfícies
frontais
trazem chuva.
E a chuva é de
borla. Mas o
ciclo da água
está a mudar.
À medida que,
ano após ano,
as
temperaturas
globais
aumentam, o
ar quente
provoca mais
evaporação,
levando à
ocorrência de
secas em
algumas áreas
e a inundações
catastróficas
noutras. As
cidades que
planeiam usar
edifícios e
infraestruturas
para recolher
água da chuva
podem muito
bem ser
aquelas que,
nos próximos
anos, terão
água para
beber.

A água pode
ser escassa
para os
humanos, mas
sempre foi
abundante
para os peixes.
As populações
de peixes, no
entanto,
enfrentam
uma ameaça
diferente. Nos
últimos anos
têm tido de
enfrentar um
predador sem
rival, um
predador cujas
capacidades
de caça se
tornaram tão
refinadas que
superam a
capacidade
das espécies
marinhas para
se reproduzir.
Claro que
estou a falar
de nós.
Em 1920,
desenvolvemo
s uma nova e
invulgar
forma de
pescar: a
partir do céu.
Como então
notava um
artigo na
Aerial Age
Weekly, a
prática era
aplicada na
Virginia, onde
“todas as
madrugadas,
às 5h, um
barco voador
com um
piloto, um
operador de
rádio e um
observador de
peixes sai da
estação para
ajudar as
embarcações
de pesca”. Em
1940, este
“novo uso
para os
aviões”
permitia aos
observadores
de peixe
detetar
cardumes
inteiros a
partir de uma
altitude de
entre 180 e
240 metros.
Na década de
1970, os
aviões de
observação já
eram usados
habitualmente
por frotas
comerciais de
pesca. As
grandes
capturas
passaram a
estar
dependentes
desta nova
forma de ver
os peixes. Não
surpreende
que um estudo
apresentado
ao Serviço
Marítimo
Nacional de
Pescas dos
Estados
Unidos
afirmasse que
92 por cento
dos navios de
pesca que
recorriam a
meios aéreos
deste tipo
registavam
capturas
maiores.
Para os
peixes, esta
técnica tem
sido
devastadora.
Com os
nossos olhos a
espreitar lá de
cima, não têm
simplesmente
hipótese de
fuga. Pelo
menos no
Mediterrâneo
foi banida a
deteção aérea
do atum-
rabilho.
Depois de
frotas
pesqueiras da
Espanha,
França, Itália,
Japão e Líbia
terem passado
a usar sonar e
aviões, os
peixes,
cercados e
encurralados
por
embarcações
dotadas de
alta
tecnologia,
não tinham
hipótese e as
suas
populações
caíram a
pique. Mas a
questão
essencial é
esta. Como os
peixes são
menos,
tornam-se
mais difíceis
de apanhar, e
por isso
necessitamos
de todos os
recursos
possíveis para
capturar os
que restam. É
a isso que os
cientistas
chamam uma
“alteração das
linhas de
base”. No
caso do atum-
rabilho do
Pacífico, um
pescador
japonês,
Kazuto Doi,
observa: “Há
20 anos,
costumávamo
s ver os atuns
a nadar
debaixo dos
nossos barcos
em cardumes
que chegavam
a ter quatro
quilómetros…
Agora, já não
vemos nada
disso.” Isso
acontece
porque a
população de
atum-rabilho
do Pacífico
está agora a
não mais de 4
por cento dos
seus níveis
históricos.
Segundo as
Nações
Unidas,
“quase 90 por
cento dos
recursos de
peixe marinho
encontram-se
agora
explorados ao
máximo,
explorados
acima do
máximo ou
exauridos”.
Uma parte
essencial da
dieta de
milhares de
milhões de
pessoas em
todo o mundo
está a
desaparecer e
a maior parte
de nós nem
repara nisso.
Na verdade, a
nossa procura
de peixe
aumenta.
Para
satisfazer a
procura, não
só apanhamos
espécies
selvagens,
mas também
criamos peixe.
Isso também
tem
consequências
nefastas.
Comprimidos
em gaiolas, os
peixes podem
adoecer, ficar
cobertos de
parasitas ou
deformados.
Inspetores de
viveiros de
salmão na
Escócia
encontram
regularmente
provas de
“lesões
sangrentas,
defeitos nos
olhos, órgãos
deformados,
pragas de
parasitas
marinhos que
comem carne”
e mais. De
acordo com o
grupo de lóbi
Scotish
Salmon
Watch, “a taxa
de
mortalidade
nas culturas
de salmão na
Escócia é de
26,7 por
cento”. Por
outras
palavras, o
processo de
criação mata,
ele próprio, 15
a 20 milhões
dos peixes
criados”.
E depois há
os peixes que
capturamos
sem intenção
de comer. As
capturas
acessórias, ou
“desperdício
de peixe” – o
peixe que é
apanhado,
mas é
demasiado
pequeno ou
não é da
espécie ou do
sexo desejado
– é vendido
para comida
para animais.
Longe de ser
um produto
secundário da
indústria das
pescas, a
farinha de
peixe –
produzida a
partir de
peixes
pequenos,
com muitas
espinhas,
apanhados nos
seus habitats –
representa uns
extraordinário
s 60 por cento
das capturas
globais, o que
faz dela, sem
dúvida, a parte
mais
importante da
indústria de
pesca, mas
aquela de que
o consumidor
menos sabe.
Todos os anos
são apanhados
5,4 milhões de
toneladas
destes peixes
“para deitar
fora”, moídos
até se
tornarem pó e
vendidos
essencialment
e como
suplemento
para
explorações
de animais,
onde são uma
fonte barata
de proteína.
Contudo,
num oceano
cada vez mais
exaurido, as
frotas de
pesca entram
com
frequência em
áreas ilegais.
Nos parques
marítimos da
Tailândia, os
peixes
tropicais são
habitualmente
apanhados e
transformados
em farinha
para alimentar
os camarões-
tigre. São os
mesmos
camarões que
encontramos
às nossas
mesas na
Europa e na
América do
Norte. O filme
Grinding
Nemo
(Moendo
Nemo) mostra
arrastões que
capturam nos
parques até 50
espécies
diferentes. A
farinha de
peixe é
produzida,
entre outras
coisas, a partir
de coloridos
peixes de
recifes, de
cavalos
marinhos e de
tubarões bebé
ameaçados. À
medida que os
pequenos
peixes
desaparecem,
vai havendo
consequências
quando se
sobe na cadeia
alimentar; os
peixes jovens
não crescem
até se
tornarem
adultos e
peixes que
normalmente
são apanhados
por
predadores
marinhos
maiores são
completament
e eliminados,
o que deixa
esses
predadores
com muito
pouco para
comer.
O Peru é o
maior
produtor de
farinha de
peixe do
mundo. E um
terço do que
produz vai
para as
criações de
salmão na
Noruega. Para
produzir em
cativeiro um
quilo de
salmão são
precisos dois a
cinco
quilogramas
de alimento
produzido a
partir de
peixes
pequenos. No
Peru, peixes,
que podiam
estar a
alimentar a
população
local, estão a
ser
exportados.73
Também na
África
Ocidental
começaram a
surgir, ao
longo das
costas do
Senegal e da
Mauritânia,
fábricas de
farinha de
peixe. No
Senegal,
arrastões
monstruosos
têm retalhado
a biomassa de
peixe, que
passou de um
milhão para
400 mil
toneladas.
Longe da
nossa vista, os
frangos do
nosso
supermercado
estão a ser
engordados
com peixe de
África. Para
os africanos
que em
tempos
viveram ao
longo de uma
costa com
uma das mais
ricas
existências de
peixe do
mundo, é cada
vez mais
difícil
comprar e
comer peixe
das suas
próprias
águas, porque
os seus peixes
estão a ser
exportados
para alimentar
os nossos
frangos.

Nos anos
1960, cerca de
80 por cento
das aves eram
vendidas
ainda inteiras,
sob uma
forma
reconhecível.
E também é
por isso que a
galinha não
era então um
alimento
popular.
Arranjar,
cozinhar e
cortar uma
ave exigia
tempo, e por
isso a galinha
estava
principalment
e reservada
para as
refeições de
domingo ou
para ocasiões
especiais. Mas
tudo mudou
quando Robert
Baker,
professor de
ciência
alimentar e
marketing na
universidade
de Cornell,
desenvolveu a
primeira
máquina para
tirar a carne
de uma
carcaça de
ave.
Conhecido
como o
Thomas
Edison da
indústria da
carne de aves,
Baker também
ajudou a
inventar a
máquina de
desossar e o
seu trabalho
pioneiro sobre
agentes
aglutinadores
permitiu que a
cartilagem e a
carne
permanecesse
m juntas,
criando um
novo mercado
comercial para
a carne
processada.
Esta carne
“divertida”
podia assumir
formas
amigáveis
para os
miúdos:
estrelas,
corações ou
até
dinossauros.
A
transformação
da ave inteira
em partes
mais
facilmente
comercializáv
eis – asinhas,
coxinhas,
peitos… – e
em formas
processadas
fez aumentar
as vendas
tremendament
e. A indústria
que nos anos
1960 valia
quatro mil
milhões de
dólares
conheceu uma
revolução. A
procura desse
tipo de carne
disparou e
hoje são
abatidos todos
os anos mais
de 60 mil
milhões de
frangos; a
esmagadora
maioria, 75
por cento,
provém de
aviários.
Em
conjunto com
uma
campanha de
marketing
sustentada, os
frangos
deixaram de
ser aves e
tornaram-se
marcas e
produtos. E,
com a procura
crescente, os
aviários
tiveram de
aumentar a
oferta. Para
isso, a linha
de abate
tornou-se cada
vez mais
automatizada
e a
desmontagem
dos animais
foi acelerada.
Hoje, esta é a
última
paragem para
uma ave
criada para
fins
comerciais: a
sua vida não
termina às
mãos
humanas, mas
sob a lâmina
de uma
máquina.
Com isto,
abrimos um
ângulo morto
verdadeirame
nte
horripilante.
Mas
continuemos,
com coragem.
Na arena da
morte de um
matadouro, os
únicos
humanos
“vivos” são os
que penduram
os frangos de
cabeça para
baixo em
argolas de aço
inoxidável. A
linha anda
depressa. Em
média, para
acompanhar o
ritmo, um
trabalhador
precisará de
pendurar até
20 aves por
minuto.
Depois, a
máquina toma
conta do
processo.
Num
cruzamento
entre um filme
de terror e
uma viagem
num parque
de diversões,
os animais
seguem de
cabeça para
baixo pelo
carril para um
banho de
água, onde
ficam
atordoados
quando as
suas cabeças
são
eletrocutadas
debaixo de
água.
A seguir
vem a
máquina da
morte. Cada
ave cai numa
posição em
que o seu
pescoço fica
fixo entre
barras-guia.
Aí, uma
lâmina
circular
motorizada
corta-lhe o
pescoço.
Enquanto os
animais
sangram, um
sistema de
contagem que
funciona a
partir de uma
câmara
mantém o
registo do
número de
aves
processadas.
Depois de
mortas,
entram noutra
câmara de alta
voltagem.
Chamam-lhe
um
“estimulador”.
Durante cerca
de 40
segundos, as
aves passam
sobre uma
placa com
elétrodos, o
que provoca
contrações dos
peitos e induz
um
movimento
das asas para
libertar
qualquer
energia
química que
reste nos
músculos.
Torna os
músculos do
peito mais
tenros, facilita
e acelera o
processo de
desossar.
A seguir, os
corpos
pendurados
entram em
túneis de
escaldagem, a
parte mais
comprida da
linha, onde o
calor da água
quente é
transferido
pelos folículos
das penas das
aves, para que
estas, na
próxima
paragem,
possam ser
retiradas. A
escaldagem
pode ser
“soft” ou
“hard”. A
primeira, a 55
graus Celsius,
produz aves
de pele
amarela e a
segunda, a
mais de 57
graus, resulta
em aves de
pele branca.
A linha
volta a levar
as aves para
trás, para as
fases finais da
operação: o
arrancador de
cabeças, onde
são
decapitadas, e
o cortador de
pés, onde as
patas são
cortadas e as
aves são soltas
das argolas.
Nesta fase,
com exceção
das patas e da
cabeça, as
aves
permanecem
inteiras. Ainda
é preciso
retirar-lhes as
vísceras,
arrefecê-las e
inspecioná-
las, antes de
serem
devolvidas à
linha. As
carcaças são
então abertas
a meio. Aí são
separadas as
partes de trás
(coxas e
pernas) e da
frente (peitos
e asas). As
modernas
máquinas de
desossar
conseguem
processar uma
ave em 2,5
segundos.
Na Europa,
na Ásia e no
Canadá, as
fábricas de
processament
o conseguem
funcionar a
velocidades de
175 a 200 apm
(aves por
minuto).
Numa única
central, isso
quer dizer 12
mil por hora,
ou 96 mil num
dia de oito
horas. Só nos
Estados
Unidos, são
criadas para
abate, todos os
anos, cerca de
nove mil
milhões de
aves para
carne.
Acelerar o
abate para
maximizar a
eficiência não
está a
acontecer,
contudo,
apenas na
criação de
aves. A carne
é um grande
negócio. A
tendência faz-
se sentir em
toda a
indústria e
abrange
galinhas,
porcos e
vacas, que
foram em
tempos
animais de
quinta. E estes
animais não
são as únicas
baixas. Em
fábricas nos
Estados
Unidos, o
aumento na
velocidade na
linha de
processament
o está a
provocar
ferimentos
graves em
trabalhadores.
Segundo
registos da
Administração
de Saúde e
Segurança
Ocupacional,
acontecem,
em média,
duas vezes por
semana
amputações
em operários.
Então como
é que
passámos da
quinta para a
fábrica? Foi o
dono de um
matadouro de
Chicago,
Gustavus
Franklin
Swift, o
primeiro a
inventar a
correia de
transporte de
animais hoje
usada nas
fábricas de
processament
o de carne.
Homem de
negócios
astuto, sempre
em busca de
multiplicar os
lucros, Swift
viu como era
ineficaz
transportar de
comboio
animais
inteiros de
Chicago para
outras cidades
norte-
americanas.
Nessa altura,
cerca de 60
por cento da
massa dos
animais era
considerada
imprópria para
consumo.
Cabeças,
cascos, ossos
e entranhas
eram um peso
morto e
aumentavam
desnecessaria
mente as
despesas de
transporte.
Swift teve a
ideia de
desmantelar
antes os
animais
grandes, como
porcos e gado
bovino. No
caso dos
porcos, podia
depois
transportar
pelo país, em
carruagens
frigorificadas,
pernas,
costeletas,
bacon e
salsichas.
Philip
Danforth
Armour, um
contemporâne
o de Swift,
fundador da
Armour&Com
pany,
encontrou
uma forma
diferente de
transformar as
carcaças de
animais em
alguma coisa
mais lucrativa.
Fez fortuna
com a
embalagem
das primeiras
carnes, sob a
forma de
refeições
enlatadas, de
chilis a
guisados. Mas
Armour
também
maximizou o
valor
económico
dos animais
quando
encontrou
novos usos
para os
desperdícios
dos
matadouros:
as caudas dos
porcos
passaram a ser
usadas em
pincéis; os
pelos foram
transformados
em escovas de
cabelo; as
tripas foram
usadas como
cordas de
raquetes de
ténis; as
gorduras
utilizadas no
fabrico de
sabões; os
ossos
tornaram-se
fertilizante; e
os cascos,
depois de
fervidos,
passaram a ser
cola.
A zona dos
matadouros de
Chicago, a
Union Stock
Yards, tornou-
se um centro
de “inovação
sem
remorsos”. O
próprio
Armour teve
uma frase
famosa, ao
afirmar que
vendia “tudo,
menos o
grunhido do
porco”. Hoje,
a indústria de
carne não
gosta que lhe
seja aplicada a
designação de
fábrica, mas o
facto cru é que
os animais são
completament
e olhados
como bens:
são criados
como
“produtos” e
vendidos em
“unidades”.74
Como Ted
Genoways
escreve em
The Chain,
todo o modelo
“é executado
com a
precisão de
uma fábrica e
construído
para servir as
necessidades
de outras
fábricas – as
de
embalagem,
os
embaladores,
os
distribuidores
– que estão
mais à frente
na linha de
montagem.
Cada passo
pode ser
replicado e
repetido vezes
sem conta em
instalações
idênticas ou
quase
idênticas,
onde quer que
os residentes
em
comunidades
próximas
autorizem”.
Se o abate
de frangos é
desde há
algum tempo
completament
e
automatizado,
a morte ainda
é uma questão
largamente
manual para
animais
maiores, como
porcos e
vacas, que têm
um valor mais
elevado. Na
maior parte
dos
matadouros,
os animais,
presos ou
atordoados,
ainda são
degolados
manualmente.
O sangue é
recolhido
numa calha e
tratado. Torna-
se fertilizante
e alimento
para animais,
em geral
misturado
com ossos
moídos, o que
é uma ideia
bastante
desagradável
para os
vegetarianos,
que podem
não saber que
este
“fertilizante
orgânico” é
usado em
quase todas as
culturas, do
milho aos
legumes.
Guloseimas
como gomas,
doces,
marshmallows
e geleias
também são,
disfarçadas,
produtos com
origem nos
matadouros. O
ingrediente
essencial é a
gelatina, que é
feita da pele,
ossos, chifres
e tecidos
conectivos
recolhidos
depois do
abate e
colocados
durante três
meses em
pegajosas
cubas cor de
lima, até o
colagénio se
desprender.
Depois de
tudo lavado, o
colagénio é
fervido e
transformado
em folhas de
gel ou em pó,
usados em
quase todas as
sobremesas
que têm uma
forma. Mas o
poder
aglutinador da
gelatina não é
só usado na
alimentação:
tornou-se um
bem valioso,
presente em
quase toda a
parte, das
cápsulas
usadas nos
medicamentos
à produção de
papel. Todos
os filmes
fotográficos
são feitos com
gelatina – a
gelatina é o
“filme” que
cobre a base
de plástico, a
gelatina é o
meio que
suspende os
cristais de
halogeneto de
prata que
reagem à luz.
O que quer
dizer que
todos os
filmes
registados em
película – da
Guerra das
Estrelas a O
Senhor dos
Anéis – foram
projetados
através de
restos de um
matadouro.
Os
conhecedores
chamam-lhe
“a indústria
invisível”. O
processo de
transformar
noutros
produtos
partes
incomestíveis
de animais, ou
“renderização
”, é agora um
negócio de
muitos
milhares de
milhões. Só na
América do
Norte, mais de
30 mil
milhões de
quilos de
“desperdício
animal” são
transformados
todos os anos
em produtos
comerciais.
Na década de
1940, havia
partes de
animais
reutilizadas
em cerca de
75 produtos
comerciais. A
lista é hoje
incalculavelm
ente mais
comprida:
anticongelante
s, cola, balas,
agentes
impermeáveis,
amaciadores
de roupa,
detergentes,
pastilha
elástica, fogo
de artifício,
gesso,
contraplacado,
lápis, tintas,
isolantes e
linóleo são
apenas alguns
dos produtos
com restos
animais
irreconhecívei
s.
As partes de
animais
também
alimentam a
indústria de
alimentos para
animais. As
vendas de
comida para
animais
domésticos
estão a
disparar
globalmente.
É neste
momento uma
indústria que
vale 66 mil
milhões de
dólares por
ano. Mas
ninguém
pergunta de
que animais
vem essa
“carne”. Além
dos restos dos
matadouros,
ou seja, as
partes que nós
não gostamos
de comer,
como os
olhos, as patas
ou os miolos,
sabe-se que
outras formas
de “carnes-
misteriosas”
encontraram o
seu caminho
para chegar à
alimentação
dos nossos
bichos.
Investigadores
na
universidade
Chapman, na
Califórnia,
examinaram o
ADN de 52
alimentos para
animais e
descobriram
que 16
continham
carne de uma
espécie que
não estava
mencionada
no rótulo.
Segundo um
artigo da
revista
Modern
Farmer, a
indústria dos
alimentos para
animais tem
um segredo
sujo. Foram
apanhados
produtores a
comprar carne
de “unidades
de
‘renderização”
que se sabe
que aceitam
animais
eutanasiados.
Outros relatos
dão conta da
utilização de
animais
mortos na
estrada, de
gordura
utilizada em
frituras de
restaurante, de
carne
estragada de
supermercado
s e de restos
de animais
doentes de
jardins
zoológicos.
Mais de 70
mil milhões
de animais são
mortos todos
os anos num
ambiente
industrializad
o, mas o que é
igualmente
chocante é o
facto de toda
essa
aniquilação
ser invisível.
Depois da
Segunda
Guerra
Mundial e do
Holocausto,
podemos ter
pensado que
os horrores
grotescos das
câmaras de
gás tinham
tido um fim,
mas para os
animais o
método foi
reintroduzido
nas décadas
de 1980 e 90 e
as câmaras de
gás são hoje
amplamente
usadas. O
CAS, ou
atordoamento
atmosférico
controlado, é
considerado
um método
humano para
insensibilizar
porcos e aves
antes de serem
abatidos. Mas
nas próprias
câmaras de
gás acontece
um sofrimento
incrível. Os
animais
resfolegam,
guincham,
têm
convulsões e
tentam
escapar, à
medida que o
nível de CO2
vai
aumentando.
Nos sistemas
de
atordoamento
elétrico para
aves, algumas
emergem da
água ainda
conscientes e,
como a
velocidade das
linhas de
produção é
cada vez
maior, animais
que não são
devidamente
presos pelos
trabalhadores
às vezes
escapam à
lâmina
automática
que é suposta
matá-los. Por
causa disso, só
nos Estados
Unidos, entre
700 mil a um
milhão de
aves ainda
estão
conscientes
quando são
cozidas até à
morte no
processo de
escaldagem.
A
civilização e
uma sociedade
educada
fizeram-nos
crescer na
crença de que
estamos acima
da barbárie
dos animais.
Mas
dificilmente é
assim. Os
nossos
métodos
clínicos de
matar
permitiram-
nos
simplesmente
fazer de conta
que não vimos
os horrores da
produção
alimentar.
Como
escreveu o
autor inglês
George
Monbiot:
“Que loucura
dos nossos
tempos irá
revoltar os
nossos
descendentes?
Há muitas por
onde escolher.
Mas creio que
uma delas será
a prisão em
massa de
animais para
nos permitir
comer a sua
carne ou ovos
ou beber o seu
leite. Ainda
que nos
consideremos
amantes dos
animais, e
esbanjemos
mimos nos
nossos cães e
gatos,
infligimos
sofrimentos
brutais a
milhares de
milhões de
animais que
também são
capazes de
sentir
sofrimento. A
hipocrisia é de
uma tal
dimensão que
gerações
futuras ficarão
espantadas por
não a termos
conseguido
ver.”
63
Depois de
examinar 30
livros de
receitas de
chefes
destacados, Ike
Sharpless
publicou um
estudo
intitulado
“Making the
Animals on the
Plate Visible:
Anglophone
Celebrity Chef
Cookbooks
Ranked by
Sentient Animal
Deaths”. Postos
por ordem,
verificou-se que
o pior infrator
era Batali’s
Molto Gusto:
Easy Italian
Cooking, com
uma média de
5,25 mortes por
receita e um
total de 620
mortes de
animais.
64
O espaço
extra na Europa
significa,
contudo, que os
animais estão
ligeiramente
mais livres para
se mexerem.
Com aves que
não estão tão
doentes ou
sujas, há menos
necessidade de
descontaminaçã
o química. O
mesmo é
verdade para a
diferença nos
ovos. Nos
supermercados
norte-
americanos, os
ovos são
sempre
vendidos
refrigerados,
enquanto na
Europa se
encontram à
temperatura
ambiente. Isso é
porque as
condições de
postura de ovos
nos Estados
Unidos são
mais sujas e,
por isso, os
ovos têm de ser
pulverizados
com um
desinfetante
químico. A
partir do
momento em
que são lavados
em água quente,
têm de ser
mantidos num
ambiente
refrigerado.
65“A
palavra
‘lixo’ não é
empregue por
acaso.
Misturado com
os cereais pode
estar um sortido
de lixo,
incluindo vidro
moído de
lâmpadas,
seringas
utilizadas e os
testículos
moídos dos
seus animais
jovens. Numa
herdade
agrícola, há
muito pouco
desperdiçado.”
– Paul
Solotaroff, “In
the Belly of the
Beast”, Rolling
Stone, 10 de
dezembro de
2013.
66
Segundo a
FAO, das
Nações Unidas,
25 por cento da
terra do planeta
encontra-se
degradada, mas
em áreas como
a África
subsariana,
América do Sul,
Ásia do Sueste
e Europa do
Norte os
problemas com
a qualidade do
solo afetam a
utilização de
mais de metade
da terra.
67
Na Amazónia
desflorestada,
80 por cento da
soja cultivada
vai para
alimentar
animais. A terra
desmatada é
também usada
para pasto de
gado bovino.
Animais
exóticos como
jaguares,
preguiças e
tamanduás
estão a
desaparecer da
região, onde
entre 2011 e
2015 foram
eliminados 700
mil hectares de
floresta. Por
cada
hambúrguer ou
asinha de
frango há a
perda
correspondente
de animais
selvagens que
habitavam áreas
ecologicamente
ricas como o
Congo, a
floresta
amazónica ou
os Himalaias.
Uma vez
estabelecida a
relação, ela
torna-se
evidente. Para
criar o que não
é natural,
estamos a
destruir o
natural.
68
Os preços
variam. No
mínimo, o
esperma de boi
pode ser
vendido por
entre cinco a 15
dólares por
amostra; no
máximo, com
touros Wagyu,
o preço por
amostra pode
atingir os dois
mil.
69
Touros
famosos até
merecem
obituários. 1 de
novembro de
1990 – 24 de
outubro de
2005.
Internacionalme
nte respeitado,
o 71HO1181
Comestar
Leader EX
EXTRA era
considerado o
verdadeiro
touro de
lacticínios.
Deixou nas
filhas, dos pés à
cabeça, a marca
dos lacticínios,
produzindo
grandes
produtoras de
leite,
vencedoras de
prémios e uma
descendência
altamente
classificada,
fazendo
produtores
satisfeitos em
todo o mundo.
“Em termos de
produção de
lacticínios este
touro foi
responsável por
uma força
tremenda, com
grande textura
de úberes e
qualidade
óssea”,
observou
Lowell Linsay,
Analista de
Descendência
da Semex. “Era
semelhante às
três irmãs em
largura de peito,
grandes patas e
pernas e, como
as irmãs, passou
às filhas essas
caraterísticas.”
O impacto do
líder na
indústria far-se-
á sentir durante
gerações, já que
só no Canadá
tinha 20 mil
filhas
referenciadas. É
só por si,
seguramente,
uma estatística
impressionante,
mas juntem a
isso o facto de
67 por cento
dessas filhas
terem a
classificação
GP ou superior
(270 EX e
3.411 VG) e é
fácil ver porque
é que o Leader
continuará a ser
lembrado em
qualquer parte
do mundo em
que haja apreço
pelas vacas
leiteiras.
70
“A nossa
maneira de
trabalhar com
este problema
tem sido
favorecer, com
cuidado, um
caminho
intermédio.
Qualquer
semente
recolhida do
rebanho é
analisada pelo
seu aspeto e
cheiro.
Qualquer
desvio de cor,
composição ou
cheiro é
interpretado
como anormal e
a amostra é
rejeitada.”
71
A elevada
taxa de
nascimento nos
porcos está a
levar a uma
crescente taxa
de mortalidade
nas mães,
porque o
número de
partos está
“relacionado
com um
aumento
perturbante de
prolapsos – o
colapso do reto,
vagina ou útero
do animal”.
72
“Em algumas
regiões, a
grande maioria
da alimentação
dos rios de alta
montanha
provém da
chuva e do
degelo de neve,
não dos
glaciares que
derretem.” No
entanto,
algumas regiões
estão
dependentes do
degelo de
glaciares.
73
Uma destas é
a anchoveta,
uma espécie de
anchova que
desde há
milhares de
anos tem
alimentado os
peruanos.
74
No Iowa, por
exemplo, o
gado é vendido
por “unidades
animais”, não
por contagem
de cabeças, e é
medido por
peso de acordo
com o
equivalente do
gado de
tamanho
padrão. Sendo
assim,
considera-se
que um porco
representa 0,4
de uma unidade
animal.
5
Ouro Negro
O
obscuro,
acabamo
s por o
vislumbr
ar.
Mais
difícil é
ver o que
é claro
como
água.
EDWARD R.
MURROW
Estava tudo a
correr de
acordo com os
planos até que
apareceram os
pandas bebé.
Como de
costume, os
operadores da
Rede Nacional
de
Eletricidade
tinham os seus
olhos
treinados fixos
nos monitores
de televisão,
mas desta vez
o aguardado
pico não
aconteceu.
Estavam à
espera de um
fenómeno
conhecido
como “pico de
TV”. No
Reino Unido,
acontece
quando
audiências
imensas
assistem a
acontecimento
s desportivos
como o
Campeonato
do Mundo de
futebol ou ao
último
episódio de
séries
populares
como
EastEnders.
Quando o
programa
acaba, os
britânicos têm
o hábito de se
levantarem
todos ao
mesmo tempo
para
aproveitar o
intervalo para
a publicidade
e preparar um
chá. Nos
bastidores,
esta tarefa
aparentemente
inócua
desencadeia
uma cascata
de
acontecimento
s. Quando
milhões de
chaleiras
elétricas são
ligadas ao
mesmo tempo,
a súbita
procura de
eletricidade
reflete-se
numa imensa
corrente
através da
rede.
Quando é
necessária
uma potência
súbita maciça
que ultrapassa
a capacidade
de base da
rede nacional,
os seus
operadores
têm de
recorrer a uma
fonte
adicional de
potência que
está pronta a
ser acionada
de forma
imediata. Mas
no máximo da
capacidade
não é possível
simplesmente
“ligar” uma
fonte
energética
adicional,
porque elas
são lentas. Se
pensa que
ligar o
computador
demora uma
eternidade,
então imagine
geradores
movidos a
combustível
fóssil que
levam cerca
de meia hora a
estar
operacionais
ou centrais
nucleares que
ainda
demoram
mais. Só que,
durante uma
pausa para
anúncios e
para a corrida
nacional à
chaleira não
há tempo para
esta espera;
tudo tem de
acontecer
imediatamente
. Por isso, os
engenheiros
recorrem a
reservatórios.
Isto é, quando
a procura de
eletricidade é
habitualmente
baixa, eles
bombeiam
água para um
reservatório
num ponto
elevado.
Depois,
quando a
procura
conhece um
pico, deixam a
água correr
para baixo e,
no percurso, é
acionada uma
turbina
hidroelétrica.
Nesta
ocasião
específica,
tinha
começado a
passar o
genérico final
de The Great
British Bake
Off, um
programa
muito popular,
e o centro de
controlo da
rede estava
em estado de
alerta, pronto
como de
costume para
o intervalo de
publicidade.
Só não tinham
previsto o que
a BBC
programara a
seguir: um
documentário
sobre a
natureza com
pandas bebé.
Por causa
disso,
ninguém foi
fazer chá,
porque
ninguém se
levantou.
Segundo um
representante
da rede
nacional, “não
houve
qualquer
aumento de
consumo”. A
migração em
massa para a
cozinha para
preparar uma
chávena de
chá
simplesmente
não
aconteceu,
porque as
pessoas
ficaram
coladas aos
ecrãs de
televisão a
olhar para os
fofinhos
animais pretos
e brancos.
Não
costumamos
pensar na
nossa
eletricidade
como uma
coisa feita na
hora, mas é. É
feita no
momento em
que a
solicitamos.
Quando
carregamos o
telemóvel,
como escreve
Gretchen
Bakke no seu
livro The
Grid, a
energia que
usamos é “tão
fresca que, há
menos de um
minuto, se
vive numa
área com
turbinas
eólicas, ainda
era um sopro
de pó de
carvão
pulverizado a
ser atirado
para dentro de
uma enorme
fornalha
industrial e
incandescente.
Se vive numa
zona de rios,
então ainda
era um jato de
água contido
por uma
enorme
muralha de
cimento.
Imagine isso.
A eletricidade
que está a usar
agora era, há
cerca de um
segundo, uma
gota de
água”.
A maior
parte de nós
nunca pensa
na
eletricidade,
muito menos
na rede
elétrica. Em
praticamente
todos os
países é a
maior e mais
poderosa
máquina que
existe, mas
ignoramo-la
mesmo
quando está à
nossa frente.
No final do
século XIX e
no início do
século XX, a
relação entre a
rede e as
nossas vidas
quotidianas
era um pouco
mais difícil de
ignorar. Os
confusos
emaranhados
de fios pretos
das
companhias
de eletricidade
dominavam os
centros das
cidades como
se fossem
teias de
aranha
descontrolada
s. Não havia
só as novas
linhas de
telégrafo e de
telefone, mas
existiam
também os
cabos de
eletricidade
presos a
postes altos, e
todos esses
fios não
estavam
claramente
separados.
Funcional e
esteticamente,
era um
pesadelo. Em
Londres, fios
de 65
instalações
elétricas
diferentes
estavam
pendurados
por cima das
ruas. O
historiador de
tecnologia
Thomas
Hughes
escreveu em
Networks of
Power: “Os
londrinos que
podiam dar-se
ao luxo de
pagar
eletricidade
torravam de
manhã o pão
com uma
variedade,
iluminavam os
escritórios
com outra,
visitavam
sócios em
edifícios de
escritórios
próximos que
usavam ainda
outro tipo e
regressavam a
casa
caminhando
por ruas que
eram
iluminadas
por mais
outro.”
Nos Estados
Unidos, eram
emitidas
centenas de
patentes de
dínamos de
tipos
diferentes
usados para
gerar
eletricidade de
corrente
direta, ou DC.
Na década de
1890, só na
cidade de
Chicago havia
45
companhias
de eletricidade
diferentes e
cabos de
energia
dedicados de
100, 110, 220,
500, 600,
1.200 e 2.000
volts. Não é
preciso dizer
que era uma
enorme
confusão.75
Hoje,
pensamos
pouco na
maneira como
nos chega a
energia que
podemos
acionar com a
ponta dos
dedos. Damos
por garantido
que estará lá
quando
carregarmos
no botão,
acionarmos o
interruptor ou
ligarmos a
ficha à
tomada. Esta
“normalidade”
, como
observa
Bakke, é um
“luxo cego”.
Às vezes, na
rua,
reparamos
numa
informação –
a foto de um
gato
desaparecido,
um folheto a
anunciar aulas
de ioga –
presa a um
dos postes na
vizinhança,
mas é raro
olharmos para
cima, para a
rede de fios
que
atravessam a
paisagem
urbana.
Reparamos
é quando, de
repente,
ficamos sem
energia.
Depois do
sismo de
magnitude 9 e
do tsunami
que atingiram
o Japão em 11
de março de
2011, a central
nuclear
Fukushima
Daiichi deixou
de fornecer
energia à rede.
Quando o
sismo
aconteceu, 11
dos 54
reatores
japoneses
encerraram,
deixando o
país com um
défice
energético de
dez milhões
de kilowatts.
A cidade de
Tóquio foi
imediatamente
colocada sob
dieta
energética,
com blackouts
faseados a
racionarem
cuidadosamen
te a energia
despendida.
Em algumas
áreas, não
havia
eletricidade
durante seis
horas por dia.
Sem outra
hipótese a não
ser adaptarem-
se, fábricas
fecharam e
restaurantes
encerraram, já
que não havia
energia para
refrigerar ou
cozinhar os
alimentos, as
pessoas
ficavam
sentadas no
escuro e
metade dos
comboios
deixaram de
circular. As
caixas de
Multibanco
pararam de
funcionar, as
escadas
rolantes e os
elevadores só
trabalhavam
esporadicame
nte, era
impossível
carregar os
telemóveis e,
sem
semáforos,
começaram a
dar-se mais
acidentes. Até
os icónicos
anúncios
luminosos no
centro de
Tóquio
ficaram
apagados. Em
resumo, as
coisas não
podiam
funcionar
como de
costume,
porque a vida
do dia a dia
depende tanto
da
eletricidade.
Como
noticiou a
NBC News,
“uma das
sociedades
tecnologicame
nte mais
avançadas do
mundo viu-se
transformada
instantaneame
nte numa
região com as
dificuldades
do Terceiro
Mundo”. Sem
energia, o
Japão caiu
simplesmente
de joelhos.
Não são
apenas os
desastres
naturais de
grande escala
que podem
mandar abaixo
a rede.
Embora
possamos
imaginar
cenários
ameaçadores
em que
hackers
estrangeiros
lançam o caos
no nosso
abastecimento
elétrico, há
uma criatura
mais inocente
que é
responsável
por blackouts
mais graves
de
infraestruturas
. Como
afirmou John
C. Inglis,
antigo vice-
diretor da
NSA, a
Agência de
Segurança
Nacional dos
Estados
Unidos:
“Acho mais
provável a
rede elétrica
paralisar
devido a um
desastre
natural do que
devido a um
ataque
cibernético. E,
francamente, a
ameaça
número um à
rede elétrica
dos EUA
registada até à
data são os
esquilos.”
As quebras
de energia
causadas por
esquilos são
habitualmente
curtas e
limitadas a um
único bairro.
As árvores são
uma ameaça
muito maior.
Em 2003, o
maior
blackout na
história dos
Estados
Unidos
aconteceu
quando três
árvores, cujos
ramos tinham
crescido
demais,
derrubaram
linhas de
energia em
vários pontos
da rede,
fazendo com
que outras
linhas
tivessem de
suportar o
fardo
adicional.
Como se fosse
um dominó
elétrico, o
blackout
alastrou por
240 mil
quilómetros
quadrados e,
durante dois
dias, 50
milhões de
pessoas nos
Estados
Unidos e no
Canadá
ficaram sem
energia. O
resultado
foram seis mil
milhões de
dólares em
receitas
perdidas e
uma quebra
no PIB norte-
americano.
Em resposta
a este
acontecimento
foi criado o
Programa de
Gestão de
Vegetação das
Empresas de
Transmissão,
que é
essencialment
e um serviço
regional de
desbaste de
árvores, para
assegurar que
árvores e
ramos não
interferem
com os cabos
que
transportam
eletricidade.
Mas para
manter fora do
caminho as
nada estéticas
linhas e torres,
elas são
erguidas
muitas vezes
em terreno
acidentado e
de difícil
acesso, o que
torna o
desbaste uma
tarefa difícil.
Percorrer
áreas tão
vastas a pé ou
de veículo
motorizado é
demasiado
lento, e é por
isso que hoje
existe uma
profissão
incrivelmente
perigosa: a de
operador de
serra em
helicóptero.
Oficialmente
conhecidos
como
“aparadores
aéreos”, estes
cortadores de
árvores estão
equipados
com uma serra
de 12 metros
de
comprimento
dotada de dez
lâminas
circulares que
está
pendurada
verticalmente
debaixo do
cockpit. O
piloto tem de
seguir
habilmente
um caminho
ao longo das
linhas e das
torres,
aparando as
árvores que
crescem
demasiado
perto.
Esta solução
de alta
tecnologia
pode
solucionar um
problema, mas
o desafio
muito maior
está no fato de
a rede estar a
envelhecer e a
ficar frágil.
Hoje, 70 por
cento dos
transformador
es e linhas de
transmissão
têm mais de
25 anos e, por
causa das
ineficácias da
estrutura
envelhecida,
não só estão a
aumentar as
quebras de
corrente,
como todos os
anos sobe o
tempo de
reposição do
serviço.76 Um
cálculo afirma
que
modernizar e
substituir esta
rede integrada
nos Estados
Unidos
custaria mais
de cinco
biliões de
dólares.
A mistura
de energia que
entra na rede é
outra fonte de
preocupação,
porque a
infraestrutura
foi
originalmente
construída
para fornecer
um fluxo
constante de
energia a
partir de
centrais
tradicionais
movidas a
petróleo,
carvão, gás ou
nucleares. Foi
projetada
como uma
forma
centralizada
de distribuição
de energia.
Mas hoje, com
a meta de
acrescentar
renováveis, é
preciso
considerar
muitas novas
formas
descentralizad
as de energia e
lançá-las na
rede. As
energias
eólica, solar e
geotermal são
algumas das
renováveis
que já nos são
familiares,
mas hoje é
possível
produzir
energia a
partir de quase
tudo – até do
queijo.
A Sabóia é
uma região
pitoresca nos
Alpes
franceses.
Conhecida
pelas suas
montanhas
boas para
esquiar e
aldeias
acolhedoras
no inverno e
pelas
deslumbrantes
paisagens
alpinas no
verão, é
também
afamada pelo
queijo
Beaufort. Dois
dos produtos
derivados do
processo de
fabrico do
queijo são as
natas e o soro
de leite. A
nata é
transformada
por exemplo
em manteiga e
queijo ricotta
enquanto o
leite é
desnatado
para produzir
um preparado
proteico para
batidos e
bebidas
energéticas.
Mas o líquido
que resta do
soro não é
deitado fora; é
usado para
gerar
eletricidade.
Na cidade de
Albertville,
1.500 pessoas
têm as suas
casas
alimentadas a
leite.
O segredo
são
microrganism
os conhecidos
como arqueas,
que são
adicionados
ao líquido
num
biodigestor
livre de
oxigénio, ou
anaeróbico.
Aqui,
alimentam-se
durante quatro
dias dos
açúcares
contidos no
líquido do
soro,
libertando
arrotos
microscópicos
sob a forma de
biogases:
dióxido de
carbono e
metano. O gás
é depois
purificado e
queimado, de
uma forma
muito
semelhante ao
gás natural,
para aquecer
água até uma
temperatura
de 90 graus
Celsius, quase
no ponto de
ebulição,
produzindo
vapor. Este
vapor aciona
uma turbina,
que tem um
braço ligado a
um magnete
que gira
rapidamente
dentro de
bobinas de fio
metálico. O
magnete faz
com que os
eletrões sejam
arrancados aos
átomos que
compõem o
fio e é esta
força
magnética que
cria
fisicamente a
eletricidade.
Quem não
tem um
fornecimento
de queijo
suficiente
pode sempre
queimar
carvão ou
petróleo para
produzir o
vapor que
aciona a
turbina. Ou
ferver água
usando a
desintegração
radioativa do
urânio-235.
(Ou capturar a
energia da
água a descer
uma
montanha,
que, como
vimos, é como
os britânicos
alimentam as
suas chaleiras
para fazerem
todas chá ao
mesmo
tempo.) Mas,
na maior parte
das vezes, o
mecanismo
subjacente é o
mesmo:
produzimos
eletricidade
fazendo girar
uma turbina.
A nossa
civilização é
alimentada
pelas forças
invisíveis da
eletricidade e
do
magnetismo.
Todos a
queremos,
todos a
exigimos, mas
a maior parte
de nós nem
sequer sabe
exatamente o
que é. Quando
acendemos
uma luz – por
exemplo, uma
lâmpada de
120 watts na
mesa de
cabeceira, que
faz passar por
ela um ampere
de corrente –,
o equivalente
a seis
quintiliões de
eletrões
atravessa em
cada segundo
um único
ponto do fio.
Mas os
eletrões não
chegaram aí
vindos
diretamente da
central de
energia. Os
próprios
eletrões
movem-se
lentamente, é
a energia que
se move
depressa.77
Isso acontece
porque os
eletrões,
enquanto
partículas
subatómicas,
não correm
pelos fios
como se estes
fossem um
cano. O
processo
funciona mais
como uma
onda. Quando
ouvimos
alguém cantar
à distância, a
pressão do
som que
atinge o nosso
tímpano não
vem das
moléculas de
ar saídas da
boca de quem
canta. O som
é uma onda de
compressão.
As moléculas
de ar embatem
em moléculas
de ar
adjacentes,
ondulam ao
longo do
percurso, e o
que ouvimos é
como se fosse
a última peça
a cair de um
efeito de
dominó
molecular,
uma
reverberação
do som que
vem de quem
está a cantar.
A
eletricidade é
também um
efeito
ondulante. Ao
conduzir pela
cidade ao
anoitecer, já
viu
provavelment
e as luzes
acenderem-se
todas ao
mesmo tempo.
Isso é porque
a eletricidade
não sai do
interruptor e
vai pela rua
abaixo. Assim
que se
adiciona um
eletrão ao fio
numa ponta,
um outro
eletrão saltará
na outra
ponta. Ou
seja, à escala
atómica,
quando o
gerador faz
girar o
magnete sobre
o fio de cobre,
arrancando
eletrões aos
átomos de
cobre, os
eletrões agora
“sem abrigo”
têm de ir para
algum lado – e
vão para o
átomo
disponível
seguinte,
entrando na
sua órbita.
Mas quando
fazem isto
expulsam o
eletrão do
átomo
vizinho, que
por sua vez
salta para o
próximo e
assim
sucessivament
e. Mas nem
todos os
átomos são
acolhedores.
Alguns
materiais –
como a
borracha, por
exemplo –
fecham as
suas portas
atómicas a
eletrões de
fora, fazendo
com que os
eletrões
tenham mais
dificuldade
em atravessá-
los. A estes
materiais
chamamos
isolantes. Os
metais, por
outro lado,
têm em geral
uma política
de portas
abertas. São
condutores.
Aqui, os
eletrões
podem mover-
se livremente,
tornando
rápido e fácil
este processo
de saltos
sucessivos,
como se
andassem de
porta em
porta.
E é
realmente
rápido e fácil.
O lar
canadiano
médio usa por
mês cerca de
900 kilowatts-
hora para
fazer
funcionar a
máquina de
lavar loiça, o
secador, as
luzes, a
cafeteira de
aquecer água,
o ar
condicionado,
o frigorífico,
computadores,
televisores e
aparelhos
eletrónicos.
(Por sinal,
trata-se de um
dos mais
elevados
níveis de
consumo no
mundo, bem
acima dos
Estados
Unidos.) Mas
isso ainda não
nos diz muito.
O astrofísico
Adam Frank
elaborou outro
cálculo,
determinando
quanta “força
de pedal”
seria
necessária
para criar
eletricidade
para uma casa
comum. Para
dar uma ideia
da energia que
o corpo
humano é
capaz de
gerar, seriam
precisas 50
pessoas a
pedalar oito
horas por dia
durante um
mês para
alimentar a
casa média. E
só uma
pessoa? Se
pedalasse
durante oito
horas por dia,
a pessoa
média
conseguia
gerar energia
suficiente para
acender uma
única
lâmpada.
Se somos
muito bons a
gerar
eletricidade,
uma coisa em
que não temos
sido bons,
pelo menos
até há pouco
tempo, é a
armazená-la.
Por isso, da
próxima vez
que carregar o
telemóvel,
lembre-se de
agradecer ao
peixe torpedo.
Ele é a razão
pela qual o
seu telefone,
ou qualquer
um dos seus
gadgets
eletrónicos,
possui uma
bateria. O
invulgar
peixe, capaz
de atordoar a
presa com um
choque de 200
volts, fascinou
um físico
italiano
chamado
Alessandro
Volta, que nos
anos de 1790
se propôs
gerar
eletricidade
artificial de
forma a imitar
as suas
capacidades.
Volta reparara
que o peixe
tinha no dorso
um órgão com
um padrão
específico de
câmaras: eram
400 a 500
colunas, todas
cheias com
uma pilha de
400 discos de
geleia, as
eletroplacas.
Um
experimentad
or por
excelência,
Volta
combinou esta
observação
com uma
coisa de que
se apercebera
por acaso: o
sabor das
moedas
metálicas.
Descobrira
que, se
colocasse na
língua moedas
feitas de
metais
diferentes e
pusesse uma
colher de
prata no topo
dessa pilha,
sentia um
trepidar de
eletricidade;
era fraco, mas
inconfundível.
Pôs-se a
pensar se,
empilhando
mais destes
metais, como
o peixe
torpedo fizera
naturalmente,
não seria
capaz de gerar
mais deste
estranho
poder.
A sua
invenção
tornou-se
conhecida
como a
“pilha”,
porque era
exatamente
isso: uma
pilha de dois
metais
diferentes,
cobre e zinco,
colocados um
sobre o outro
como
panquecas e
com um pano
ensopado em
água salgada
entre cada
disco.
Ligando um
fio ao topo e
ao fim da
pilha e
colocando
outra vez na
língua as duas
extremidades,
Volta
descobriu que
passava uma
corrente
constante, e
agora mais
forte. Tinha
inventado a
primeira
bateria do
mundo.
As baterias
estão hoje por
toda a parte;
usamo-las
para alimentar
os nossos
aparelhos
eletrónicos,
assim
chamados por
serem
máquinas que
funcionam à
base de
eletrões. E
embora todos
os dias nos
lembremos de
os carregar (a
simples ideia
de um
telemóvel sem
bateria causa
angústia),
poucos
pensam em
como esta
energia
funciona.
As baterias
de lítio-ião
para os nossos
aparelhos
eletrónicos, ou
as de zinco-
carbono,
níquel-cádmio
ou chumbo-
ácida
funcionam
basicamente
todas da
mesma
maneira. Uma
bateria
necessita de
dois metais
diferentes, um
que gosta de
“dar” eletrões
e outro que
gosta de
“receber”
eletrões, o que
dá às
partículas
subatómicas
uma direção
para se
moverem
entre o dador
e o recetor. E
embora sejam
comuns as
baterias que
cabem no
bolso, a
grande
demanda,
hoje, é criar
baterias
imensas, do
tamanho de
edifícios,
capazes de
armazenarem
quantidades
de energia
muito
maiores, para,
quando for
necessário,
fornecerem à
rede elétrica
um acréscimo
de energia.
Como
sucede na
Grã-Bretanha
quando todos
se levantam
do sofá
durante o
intervalo para
publicidade
para ir beber
um chá, há
períodos
previsíveis na
vida das
cidades em
que a procura
de energia
sobe. Por
exemplo, em
tardes quentes
de verão em
Los Angeles,
toda a cidade
tem o ar
condicionado
ligado, mas
ainda é
preciso que
haja energia
disponível
para quando
todos
regressarem a
casa do
trabalho,
ligarem as
televisões e
começarem a
fazer o jantar
e a usar outros
aparelhos.
Nem todas as
cidades têm
um
reservatório
capaz de criar
uma cascata
de água
artificial capaz
de gerar
energia. Em
Los Angeles,
a cidade
prepara-se
para os
momentos de
grande
procura de
energia
recorrendo a
uma central de
combustão de
gás. A
instalação de
combustível
fóssil data dos
anos de 1950
e é velha e
ineficaz. Por
isso, Los
Angeles está a
mudar e já por
volta do ano
2020 planeia
ter a maior
bateria de
armazenament
o do mundo:
um edifício
cheio com 18
mil conjuntos
de baterias de
lítio que
podem ser
ligadas em
minutos, e não
em horas, e
fornecer à
cidade um
acréscimo de
energia
durante quatro
horas, Na
Austrália, a
grande bateria
Tesla de Elon
Musk já está
operacional.
Teve o seu
primeiro
grande teste
em dezembro
de 2017,
quando a mil
quilómetros
de distância
uma unidade a
carvão teve
uma falha e
provocou uma
quebra de
abastecimento
. A bateria
entrou em
funcionament
o no espaço de
milissegundos
e lançou para
a rede 7,3
megawatts,
muito mais
depressa do
que seria
capaz um
gerador a
carvão mais
próximo.
Enquanto as
baterias de
antigamente
eram grandes
e pesadas,
demasiado até
para serem
instaladas em
automóveis,
as de hoje são
pequenas e
leves.
Trazemos
iluminação
nos bolsos e
fomos capazes
de
miniaturizar
os nossos
telemóveis e
outros
gadgets, ao
mesmo tempo
que os
fabricamos
mais potentes,
graças a um
novo tipo de
bateria
alimentada
por um metal
chamado
lítio.
O lítio é o
metal mais
leve da Terra.
Foi descoberto
por Sorano de
Efeso, um
médico grego
do século II
d.C., que
tratava
doentes com
problemas
mentais nas
águas
alcalinas da
cidade. Ainda
hoje, o mesmo
lítio com que
alimentamos
os automóveis
elétricos é
usado como
tratamento
para a
depressão e a
desordem
bipolar. Os
cientistas
sabem que o
elemento afeta
os níveis de
serotonina no
cérebro, mas
ainda não têm
exatamente a
certeza de
como isso
acontece.
Um dos
maiores
depósitos de
lítio está
escondido
debaixo do
maior espelho
natural da
Terra. O Salar
de Uyuni, na
Bolívia, o
maior lago de
sal do mundo,
tem dez mil
quilómetros
quadrados e
envia para o
céu um
reflexo
incrível
quando o sal
se encontra
coberto por
uma fina
camada de
água. O
espelho é tão
grande que
pode ser visto
do espaço.
Quanto ao
lítio, vulcões
antigos
depositaram o
metal em
lagos pré-
históricos que
se
evaporaram,
deixando
cerca de cinco
metros abaixo
da superfície a
fina camada
de sal, com
um depósito
de salmoura
verde azulada
que contém o
“ouro
cinzento”. O
Serviço
Geológico dos
Estados
Unidos
calcula que o
Salar contenha
5,4 milhões de
toneladas de
lítio, enquanto
o governo
boliviano
argumenta que
será muito
mais, uns 100
milhões de
toneladas – ou
70 por cento
das reservas
mundiais.
Mas, por
causa da
história da
Bolívia, com
intervenções
de governos
estrangeiros e
o saque da
prata e do
cobre, os
bolivianos
mostram-se
protetores
deste seu
recurso
natural. O seu
objetivo é
explorarem as
suas próprias
minas de lítio,
em vez de
abrirem a
porta às
grandes
empresas
mineiras.
A
exploração de
lítio na
Bolívia tem
por isso sido
lenta a
arrancar. O
lítio do seu
telemóvel é
com toda a
probabilidade
da Austrália,
Chile,
Argentina ou
China78,
países que têm
estado a
trabalhar
estrategicame
nte para
dominar o
mercado. Os
Estados
Unidos
também
produzem
lítio, em
depósitos no
Nevada. Por
cada litro de
salmoura,
encontra-se
um grama do
metal. Para
termos uma
ideia mais
aproximada
do que isto
representa,
digamos que
uma bateria de
telemóvel tem
entre cinco a
sete gramas de
carbonato de
lítio – ou lítio
em pó –, mas
que uma
bateria de
automóvel
exige até 30
quilos. Para
automóveis
elétricos topo
de gama como
o Modelo S
sedan da
Tesla, são
necessários 63
quilos de
carbonato de
lítio, ou o
equivalente à
quantidade
necessária
para dez mil
telemóveis.

Em 1905,
um homem de
26 anos
chamado
Albert
Einstein
publicou a lei
do efeito
fotoelétrico,
mostrando
basicamente
como é que a
luz pode criar
eletricidade.
Duas décadas
antes, fora
observado que
alguns
elementos,
como o
selénio, eram
capazes de
gerar corrente
elétrica
quando
expostos à luz,
mas ninguém
sabia como ou
porquê.
A teoria
aceite era a de
que a luz era
uma onda. E,
se assim fosse,
então um
aumento da
intensidade da
luz deveria
produzir mais
eletricidade.
Mas não foi o
que
aconteceu.
Até a luz fraca
podia libertar
eletrões da sua
órbita. O
génio e a
visão de
Einstein
estiveram em
apontar que a
luz não era
somente uma
onda; era
também uma
partícula. E se
houvesse uma
frequência
suficientement
e alta destas
partículas, ou
fotões, mais
do que
intensidade,
elas eram
capazes de
fazer saltar
um eletrão da
órbita de um
átomo e lançá-
lo no espaço.
Ora, em
qualquer
instante há
uma
imensidão de
fotões a
embater na
Terra. Para
terem uma
ideia de
quantos,
pensem que,
num dia
limpo, um
metro
quadrado da
superfície do
planeta recebe
cerca de mil
watts de
energia solar.
Agora,
pensem que a
área da Terra é
superior a 500
biliões de
metros
quadrados. Há
bastante
energia solar
para
aproveitar.
Os painéis
solares que
hoje usamos
são um
resultado
direto da
descoberta de
Einstein, que
lhe valeu o
Prémio Nobel.
As células
fotovoltaicas
usam
partículas de
luz para
libertar
eletrões de
átomos e criar
uma corrente
elétrica. Mas,
aqui, os
eletrões não
saltam para as
suas
imediações,
são mantidos
no interior do
material
semicondutor.
A corrente
pode então ser
usada como
energia. À
medida que as
unidades
solares
aumentam em
eficácia e
diminuem de
preço, tornam-
se, com as
baterias de
lítio para
armazenar
energia, a
nossa maior
esperança para
que a
humanidade
faça a
transição para
a energia não
poluente.
A procura
de energia
solar está a
subir em
flecha e em
todo o mundo
o número de
instalações
cresceu 50 por
cento. Embora
isto seja muito
prometedor, a
energia solar,
para já, ainda
só abastece a
rede com uma
quantidade
minúscula de
energia.
Segundo o
jornal The
Guardian, até
na Europa,
onde a energia
solar tem um
peso maior,
fornece
apenas 4 por
cento da
eletricidade. O
problema é
que não
podemos
contar que o
Sol esteja a
brilhar quando
nos
levantamos
todos para ir
ligar as
chaleiras. A
verdade é que,
em geral, o
Sol brilha
quando menos
precisamos
dele. Em
especial em
climas de
países no
Norte, e no
inverno, a
maior procura
acontece
quando está
escuro. Até
termos
baterias
capazes de
acumular a
energia da luz
do Sol – e até
que os
governos
modernizem a
rede (que foi
concebida
como um
sistema
unidirecional,
das centrais de
energia para
as casas) para
fazerem dela
um sistema
descentralizad
o que
funciona
igualmente
bem com
instalações
solares
domésticas
que alimentam
a rede, a
maior parte
dessa energia
solar limpa
continuará a
ser refletida
de volta para o
espaço.79
Uma forma
diferente de
colher a
energia do Sol
é explorar o
vento, que é
uma coisa que
fazemos desde
o século I d.C.
A Holanda,
por exemplo,
é famosa pela
sua tecnologia
de moinhos, e
por volta de
1850 eram
mais de dez
mil os que
salpicavam a
paisagem dos
Países Baixos.
Quando o Sol
aquece a
superfície
terrestre, gera
ar quente, que
sobe e deixa
uma área de
baixa pressão.
O número de
equilibrismo
da natureza
faz com que
outras
moléculas de
ar venham a
correr de áreas
mais frias, de
alta pressão,
ocupar esse
espaço. Esta
interação
rodopiante é a
força invisível
do vento. Os
moinhos
colhem esta
energia
quando ela
passa por eles
– e a moderna
turbina eólica
consegue
transformá-la
em
eletricidade.
Mas o vento
é um animal
caprichoso.
Aparece
quando quer e
não sopra de
maneira
constante. Às
vezes, nem
sopra. A rede
elétrica, por
outro lado,
necessita de
uma
alimentação
permanente e
de um
equilíbrio
perfeito entre
input e output.
Nem
demasiado,
nem
demasiado
pouco. Isto
causa
problemas
óbvios. Se as
turbinas
eólicas não
girarem, não
há energia. E
quando há
uma coisa boa
em excesso,
então o
problema
ainda é maior.
Se o vento
decide soprar
com toda a
força, as
coisas podem
descontrolar-
se. Gretchen
Bakke
escreveu:
“Não é de
todo possível
baixar a
intensidade do
vento. Quando
sopra com
força […] é
possível ver
isso nos picos
de energia –
bang, bang,
bang – dos
parques
eólicos, a
lançarem
eletricidade no
sistema, uns
atrás dos
outros. Inunda
a rede; entra
pela
infraestrutura
dentro como
se fosse uma
onda a bater
num paredão
num dia de
tempestade.
Nem Los
Angeles é
capaz de
absorver toda
a energia
produzida
num dia de
grande vento
no noroeste do
Pacífico […]
Quando há
demasiada
potência nos
cabos, eles
entram em
overload, ou
então são os
circuitos que
entram em
falência para
os proteger, e
quando fazem
isso fecham,
em vez de
abrir, as rotas
disponíveis
para a
potência em
excesso.”
Quando isto
sucede, pode
dar-se um
blackout.
É um spot
muito
procurado e
por isso é
preciso passar
por imensos
turistas com
selfie sticks
até encontrar
um local onde
seja possível
sentar-se e
descansar.
Todos os anos,
centenas de
milhares de
turistas viajam
até à costa
sudoeste da
Islândia para
tomar banho
sob o sol-da-
meia-noite,
beber
cocktails e
relaxar na
mais famosa
atração
nacional. A
paisagem é
espetacular.
Incrustadas
entre planícies
de lava, as
águas de uma
cor azul cião
lançam vapor
para o ar frio e
diz-se mesmo
que há
propriedades
curativas na
mistura de
sílica, algas e
minerais que
se encontram
na água. Mas
o que
surpreende
muitos é que a
Lagoa Azul
não é uma
fonte natural.
A experiência
parecerá
menos
mística, mas a
verdade é que
se trata de
uma atração
feita pelo
homem e
alimentada
pela água
proveniente da
central de
energia
geotérmica de
Svartsengi, ali
mesmo ao
lado.
Dois
quilómetros
abaixo da
superfície, 30
furos trazem
para a
superfície
água
superaquecida
que tem
estado
depositada
perto de
magma. O
solo vulcânico
do país é o
que tem
permitido à
Islândia ter
acesso ao
poderoso calor
do núcleo da
Terra. O vapor
aciona
turbinas que
geram
eletricidade e
fornecem água
quente para 21
mil casas
vizinhas.
Hoje, cinco
grandes
centrais
geotérmicas,
em conjunto
com a energia
hidráulica,
fazem da
Islândia um
dos poucos
países do
mundo que
usa fontes
renováveis
para produzir
100 por cento
da sua
eletricidade. E
ainda que a
indústria
esteja em
expansão – há
40 países em
território
geotermicame
nte rico –, o
custo de fazer
perfurações
em direção ao
núcleo
derretido do
planeta e a
dependência
da localização
fazem com
que menos de
1 por cento da
eletricidade
produzida no
mundo
provenha de
energia
geotérmica.
Mesmo assim,
à medida que
a tecnologia
progride, é
possível que
venha a ter um
papel maior. O
Conselho
Energético
Mundial
calcula que o
número pode,
no futuro,
subir para 8
por cento.

O tremendo
poder das
quedas de
água é outra
alternativa aos
combustíveis
fósseis.80 Na
verdade, nos
primórdios da
rede esteve
uma central
energética
situada na
“capital
mundial das
luas de mel”,
as Cataratas
do Niagara. A
beleza
torrencial da
natureza é
aqui colhida
desde 1896,
quando pela
primeira vez
foi usado o
poder da água
para fazer
girar turbinas
gigantes
geradoras de
eletricidade.
Niagara foi o
primeiro lugar
a usar a
energia de
corrente
alternada
(AC) de
Nikola Tesla.
Ao inventar
aquilo que é
conhecido
como
“corrente
alternada
polifásica”,
Tesla
conseguiu
usar
sequências
temporizadas
de corrente
elétrica para
criar um
campo
magnético
rotativo capaz
de fazer girar
um motor.
Este novo tipo
de energia
significava
que era
possível
enviar
corrente
através de fios
para, na outra
extremidade,
movimentar
um objeto
através de
magnetismo.
A invenção
era brilhante
e, para os que
a viram pela
primeira vez,
deve ter
parecido
mágica. Em
pouco tempo,
as barulhentas
quedas de
água levaram
eletricidade à
cidade de
Buffalo, 32
quilómetros
ao sul, e ao
fim de poucos
anos as
Cataratas do
Niagara
faziam brilhar
as luzes de
Nova
Iorque.81
A invenção
de Tesla ainda
é considerada
uma das
maiores de
todos os
tempos. Na
inauguração
da Niagara
Falls Power
Company, ele
declarou:
“Temos
muitos
monumen
tos de
idades
passadas;
temos os
palácios e
as
pirâmides,
os
templos
dos
gregos e
as
catedrais
da
cristandad
e. Neles
estão
patentes o
poder dos
homens, a
grandeza
das
nações, o
amor à
arte e a
devoção
religiosa.
Mas o
monumen
to em
Niagara
tem
qualquer
coisa de
próprio,
mais de
acordo
com os
nossos
pensamen
tos e
tendências
atuais. É
um
monumen
to digno
da nossa
era
científica,
um
verdadeir
o
monumen
to de
sabedoria
e de paz.
Represent
a a
subjugaçã
o das
forças
naturais
ao serviço
do
homem, o
abandonar
de
métodos
bárbaros,
o alívio da
necessida
de e do
desconfort
o para
milhões.”
Embora
Tesla fosse
seguramente
um visionário,
havia coisas
que ele não
podia
antecipar. No
caso da
hidroeletricida
de, nem todas
as paisagens
são
abençoadas
por quedas de
água
espetaculares,
e por isso elas
têm de ser
artificialmente
construídas
com
barragens, que
bloqueiam
vias cruciais
para animais
marinhos que
chamam aos
rios a sua
casa.
Um dos
maiores
projetos de
construção
jamais
realizados na
Terra foi a
Barragem das
Três
Gargantas, na
China.
Construída ao
longo do rio
Iangtsé, a
barragem não
só obrigou a
deslocar 1,3
milhões de
pessoas, para
abrir espaço
para o
reservatório
de 660
quilómetros,
mas teve
também um
impacto
devastador
sobre os
peixes. Em
tempos, um
terço de todas
as espécies de
peixe do país
viviam na
bacia do rio,
mas depois da
construção da
barragem
quatro
espécies de
carpas
registaram um
declínio de 50
a 70 por cento
e várias outras
espécies
animais foram
ameaçadas de
extinção,
incluindo o
golfinho do
rio Iangtsé, o
baiji, que está
agora
funcionalment
e extinto.
Em
ecossistemas
sensíveis,
como a
Amazónia e as
bacias do rio
Mekong,
persistem as
mesmas
ameaças. E
em países
como o
Canadá,
barragens
hidroelétricas
impedem que
os salmões
subam as
correntes dos
rios para se
reproduzirem.
Para contornar
isto, empresas
hidroelétricas
construíram
estruturas que
vão do bizarro
ao não natural.
Escadas para
peixes, que
são
basicamente
piscinas em
escada que
sobem a
barragem,
permitem que
os peixes vão
fazendo aos
saltos o seu
caminho
corrente
acima, mas
durante essa
tentativa
muitos deles,
até 11 por
cento, ainda
são apanhados
pelas lâminas
das turbinas.
A água
supersaturada

essencialment
e bolhas de ar
– é outro
problema para
os peixes.
Quando a
água gira e
rodopia por
baixo da
barragem,
gases de azoto
concentram-se
em bolhas, e
este gás
dissolvido
concentra-se
na água, onde
acaba por ser
absorvido
pelos peixes.
Assim,
quando eles
respiram, os
gases entram
na sua
corrente
sanguínea. O
mal
provocado
pelas bolhas
de gás pode
desorientar os
peixes, mas o
que é mais
grave é que se
eles
atravessarem
várias
barragens e as
concentrações
atingirem
níveis tóxicos,
isso mata-os
com
frequência.
Estão agora
a ser
estudados,
como uma
hipótese de
passagem por
cima das
barragens, os
chamados
“canhões de
peixe”. No
essencial,
como se se
tratasse de um
tubo
pneumático
gigante, uma
bomba de
vácuo na base
da barragem
suga os peixes
e puxa-os
mais de 30
metros, a 35
quilómetros
por hora, até
eles atingirem
o topo. O
sistema parece
absurdo, mas
é menos
traumatizante
para os peixes
do que serem
capturados
com uma rede
e depois
transportados
em camião ou
helicóptero,
que é como
alguns
serviços de
proteção da
natureza
levam hoje os
animais para
os locais de
procriação.
Mas
construir
barragens ou
desviar um rio
não afeta
apenas os
peixes;
também tem
impacto nas
pessoas.
Países
vizinhos e
múltiplas
comunidades
têm
reivindicações
sobre os rios,
mas estes não
respeitam
fronteiras
humanas. Por
disso, quando
aqueles que
vivem mais
próximos da
nascente
alteram o
curso de um
rio, estão a
interferir com
uma artéria
crítica tanto
de alimentos
como de
água.
Somos a
espécie mais
poderosa
sobre a Terra
porque
engendrámos
formas
extraordinária
s para
controlar
energia. Uma
das mais
controversas
provém de
uma fonte que
é invisível.
Pegamos nas
mais pequenas
unidades de
matéria
comum – os
átomos – e
dividimo-los
em partículas
ainda mais
pequenas para
criar energia
nuclear. Para o
fazer, usamos
um elemento
que se cinde
com
facilidade: o
urânio, em
especial o
isótopo
urânio-235.
Quando o
urânio é
bombardeado
com neutrões,
os seus
átomos
dividem-se e
uma reação
em cadeia
destes átomos
em divisão
gera uma
tremenda
quantidade de
calor. É uma
forma high-
tech de gerar
calor mas,
para lá disso,
uma central de
energia
nuclear
funciona
muito como a
maior parte
das centrais a
carvão ou a
gás ou até
como aquela
central na
Sabóia que
usa queijo.
Como se fosse
uma chaleira,
utiliza o calor
para ferver a
água e criar
vapor, e este
vapor faz girar
turbinas que
geram
eletricidade.
No entanto,
como todas as
formas de
produção de
energia, o
nuclear pode
ter associados
alguns
problemas
bastante
intrincados. O
mais temido
de todos é
uma fusão.
Quando o
sismo de
Tohoku
atingiu o
Japão, em
2011,
provocou um
enorme
tsunami. As
ondas eram
tão grandes e
fortes que
mesmo depois
de terem
viajado 17 mil
quilómetros
tinham dois
metros de
altura ao
chegarem à
costa do
Chile. Muito
mais perto do
epicentro, a
somente 160
quilómetros,
estava a
central de
energia de
Fukushima
Daiichi, que,
apesar de ter
sido
construída
para resistir a
um sismo e a
um tsunami de
5,7 metros, se
revelou
incapaz de
suportar as
ondas
selvagens com
15 metros de
altura.
Quando a
água se abateu
sobre as
paredes,
foram
destruídos os
tanques de
combustível
para os
geradores que
se
encontravam
no nível zero.
Sem energia,
as bombas
construídas
para fazer
circular a água
de
arrefecimento
pararam,
provocando o
sobreaquecim
ento dos três
reatores, que
levou à fusão.
As varetas
de
combustível
de urânio do
Reator 3 só
foram
encontradas
ao fim de seis
anos. No
centro da zona
de desastre, os
níveis de
radiação
atingiram, em
alguns pontos,
máximos de
650 sieverts
por hora – o
que significa
que uma
pessoa que aí
fosse
apanhada
morreria no
espaço de um
minuto. Em
vez de
pessoas,
foram
enviados
robôs para
procurar as
varetas de
combustível –
e mesmo
assim houve
vários robôs
que morreram
durante a
missão.
Acabou por
ser um robô
pequeno, do
tamanho de
uma caixa de
sapatos, o
Little Sunfish,
que conseguiu
nadar pelo
labirinto
inundado do
reator e
localizar o
urânio que
tinha derretido
através do
chão.
Onze por
cento da
eletricidade
em todo o
mundo
provém de
energia
nuclear. E
embora seja
uma fonte
energética
com má
reputação,
deve
sublinhar-se
que é em geral
segura. O
problema são
esses raros
“atos de
Deus” ou
acontecimento
s imprevistos
em que as
coisas
escapam ao
controlo. Aí,
as coisas
correm
horrivelmente
mal. No
Japão, 97 mil
pessoas ainda
não
conseguiram
regressar às
suas casas e
algumas,
provavelment
e, nunca
voltarão.
Calcula-se que
limpar a
confusão de
Fukushima vai
custar uns 188
mil milhões
de dólares e o
local
continuará
contaminado
pelo menos
durante os
próximos 30 a
40 anos.

Num mundo
completament
e justo, as
companhias
petrolíferas
haviam de nos
pagar para
usarmos
gasolina. A
gasolina é um
subproduto
tóxico do
processo de
destilação de
petróleo
crude.
Algumas das
outras coisas
que saem de
um barril de
crude são:
tinta, lápis,
pastilha
elástica,
líquidos para
lavar a loiça,
desodorizante,
óculos, discos,
pneus,
amoníaco e
válvulas
cardíacas. E
também
alcatrão, óleos
lubrificantes,
parafina, óleo
de
aquecimento,
asfalto e
outros
ingredientes
de produtos
industriais, em
especial os
constituintes
petroquímicos
dos plásticos.
O diesel é o
combustível
para grandes
camiões,
comboios e
máquinas
pesadas e tem
uma utilização
óbvia – é
difícil, sem
ele, pôr aviões
no ar. A
gasolina é um
subproduto do
querosene,
que no século
XIX substituiu
o óleo de
baleia como
combustível
para as
lâmpadas de
iluminação.
As
companhias
petrolíferas
limitavam-se a
despejá-la nos
rios mais
próximos até
encontrarem
uma maneira
de a
venderem.
Isto é, até
encontrarem
uma maneira
de nós
pagarmos por
ela. (Se isto
vos parece
uma
insanidade,
pensem que as
companhias
petrolíferas
ainda
queimam gás
natural à boca
do poço – o
mesmo gás
natural que
usamos para
aquecer a
casa.)
Hoje, é
impossível
imaginar a
vida sem
gasolina,
como pode
comprovar
qualquer
pessoa que
tenha já sido
acordada ao
domingo de
manhã pelo
ronco do
soprador de
folhas do
vizinho do
lado. De uma
certa
perspetiva, as
nossas frotas
de automóveis
e
motocicletas,
os nossos jet
ski e barcos de
pesca,
cortadores de
relva e serras
não passam de
aparelhos
caros para
queimar o
desperdício
tóxico de
alguém. Mas
de outra
perspetiva são
sinónimos de
boa vida. Em
especial os
automóveis.
No mundo
em que
vivemos, a
gasolina
acelera e
facilita muitas
tarefas. Isso
acontece
porque é um
conjunto
incrivelmente
denso de
energia. Em
The Upside of
Down,
Thomas
Homer-Dixon
calculou o
valor
calorífico do
crude e
determinou
que é
aproximadam
ente de 12 mil
watt/hora por
quilograma.
“Três grandes
colheres de
petróleo
contêm
sensivelmente
a mesma
quantidade de
energia do que
oito horas de
trabalho
manual
humano, e
quando
enchemos os
nossos
depósitos
estamos a
despejar cerca
de dois anos
de trabalho
manual
humano”,
escreveu.
O próprio
petróleo,
então, é
energia no
sentido mais
verdadeiro da
palavra, e
quando se
percebe a
quantidade de
trabalho de
que nos liberta
é fácil ver
porque é que
nos tornámos
tão viciados
nele. Todos os
dias o mundo
usa mais de 90
milhões de
barris de
82
petróleo. E
cada litro
dessa
substância
antiga tem um
poder incrível.
Enquanto os
humanos
costumavam
depender da
força dos seus
músculos ou
da potência
dos animais
domesticados
para trabalhar
os campos, as
máquinas
alimentadas a
petróleo são
hoje capazes
de fazer por
nós a maior
parte desse
trabalho. Ao
contrário da
energia verde,
é altamente
portátil, e é
por isso que
quando
pensamos em
petróleo
pensamos em
automóveis e
não em
geradores.
Mas nada é
mais fácil do
que gerar
eletricidade a
partir de
petróleo, caso
se tenha
dinheiro para
isso, como a
Arábia
Saudita tem.
Claro que a
gasolina e o
diesel não
libertaram do
trabalho físico
apenas
humanos, mas
também
grandes
números de
bois e cavalos.
A “carruagem
sem cavalos”,
também
conhecida
como
automóvel,
ganhou
especial
importância
por causa da
capacidade
dos motores
de combustão
interna para
transmutarem
em
movimento
esta energia
pré-histórica.
O motor de
um carro
funciona
através da
ignição do
combustível
numa série de
explosões
rápidas. Se
está num
parque de
estacionament
o com o motor
a trabalhar –
digamos que
tem um motor
de quatro
cilindros a
quatro tempos
que está a 750
rotações por
minuto –, isso
significa que
há 1.500
faíscas de
combustão por
minuto.
Quando há
ignição do
combustível, a
força de
explosão faz
com que um
pistão se
mova para
cima e para
baixo,
transformando
energia
química em
energia
mecânica para
fazer mover o
carro. Ainda
hoje temos
qualquer coisa
que nos
recorda como
era a vida
antes do
advento do
motor
alimentado a
gasolina. O
termo
horsepower
[cavalo-vapor
em português,
embora a
medida seja
ligeiramente
diferente] dá-
nos uma ideia
de quanta
energia
equivalente à
dos cavalos é
produzida
pelos nossos
motores.
A
aceleração da
utilização de
petróleo e o
progresso
tecnológico
rápido que
conduziu a um
correspondent
e aumento de
potência
foram
promovidos
pelos
militares. Na
Primeira
Guerra
Mundial, a
divisão média
norte-
americana
usava 4 mil
horsepower
(hp). Na
Segunda
Guerra
Mundial, a
divisão média
usava cem
vezes mais
gasolina, ou
187 mil hp.
Ainda hoje, os
militares são
os maiores
utilizadores de
petróleo. Só
os dos Estados
Unidos
consomem
todos os anos
cem milhões
de barris de
petróleo.83
A energia
que provém
do petróleo
não é, então,
apenas poder
mecânico,
mas também
poder do
estado. Não é
uma
coincidência
que as
superpotência
s do planeta
sejam as
nações que
têm acesso e
usam a maior
parte do
petróleo. A
falta de acesso
ao petróleo
representa
falta de poder,
uma lição
aprendida
desde há
muito.
Durante a
Primeira
Guerra
Mundial,
tornou-se
evidente para
Winston
Churchill que
o petróleo
tinha um
papel crucial
na estratégia
ofensiva. Era
possível
paralisar um
exército
cortando-lhe
os
abastecimento
s de
combustível,
porque um
país sem
petróleo não
teria uma
fonte de
energia para
movimentar
os seus
navios,
tanques e
aviões.
Sem
petróleo, não é
simplesmente
possível travar
uma guerra
moderna. O
petróleo
refinado é um
“material
indispensável
para abrir
pistas, fabricar
tolueno [o
principal
componente
do TNT] para
bombas,
produzir
borracha
sintética para
pneus… e já
sem referir a
necessidade
do petróleo
enquanto
lubrificante
para armas e
máquinas”.
Falamos de
guerras
travadas por
causa do
petróleo como
se o petróleo
fosse apenas
um objetivo,
quando na
verdade ele é
necessário,
desde logo,
para travar a
própria
guerra.
Um país
sem petróleo é
um país que
pode ser
derrotado
rapidamente.
É por isso
que, para os
arquitetos da
guerra, se
tornou tão
importante
assegurar
países
produtores de
petróleo como
o Irão e a
Venezuela. Ter
o petróleo
deles
significava ter
um fluxo
constante de
energia.
Desde 1973,
até 50 por
cento de todas
as guerras
entre estados
têm tido
relação com o
petróleo e
muito do
sangue
derramado no
século XXI
foi no Médio
Oriente. O
que, do ponto
de vista de um
geólogo,
encerra uma
pergunta
curiosa:
porque é que
existe uma tal
abundância
espetacular de
petróleo –
cerca de 60 a
70 por cento
das reservas
mundiais –
nesta região
específica?
Para
descobrir a
resposta,
temos de olhar
para lá da
bomba de
gasolina e dar
um mergulho
profundo na
pré-história,
até um tempo
em que o
mundo parecia
muito
diferente, não
só no que
respeita aos
habitantes do
planeta, mas
também à sua
geografia. Se
recuarmos a
meados do
Cretácico, há
85 a 125
milhões de
anos, os
continentes
encontravam-
se muito mais
próximos do
que hoje; mas
estavam,
contudo, só a
começar a
afastar-se,
depois de se
terem
fraturado e
dividido dos
supercontinent
es de
Gondwana e
Laurasia.
As massas
terrestres
iniciavam a
sua lenta
marcha a
caminho das
configurações
que hoje
reconhecemos
. A América
do Norte e a
Eurásia
tinham
começado a
mover-se para
norte, e a
América do
Sul, o Médio
Oriente, a
África, a
Austrália e a
Antártida
tinham
começado a
sua lenta
migração para
sul. E entre os
continentes do
Norte e do Sul
encontrava-se
um vasto e
antigo oceano,
em forma de
curva, mesmo
acima do
equador,
desaparecido
há muito
tempo.
Chamado
Tétis, como a
antiga deusa
grega do mar,
existiu numa
altura em que
a Terra era
verdadeirame
nte um mundo
aquático.
Apenas 18 por
cento do
planeta era
terra firme e
os níveis
médios da
água eram 170
metros mais
elevados do
que hoje. Com
maior
atividade
vulcânica e
tectónica, era
também um
mundo-estufa.
Os vulcões
expeliam para
a atmosfera
grandes
quantidades
de dióxido de
carbono e no
final do
Cretácico o
CO2
encontrava-se
a um nível
quatro a 18
vezes superior
ao atual,
fazendo com
que o planeta
fosse muito
mais quente
do que agora.
Não havia
calotas
polares; a
água estava a
uma
temperatura
entre 10 a 15
graus Celsius,
enquanto a
temperatura
do oceano
equatorial era
de entre 25 a
30 graus
Celsius. O
ponto crítico,
como defende
o geólogo e
oceanógrafo
Dorrik Stow
em Vanished
Ocean, é que
a água quente
contém menos
oxigénio.84 A
falta de
oxigénio,
associada a
uma
circulação
menos fluída
de água
devido às altas
temperaturas,
criou um
ambiente
marinho
sufocante que
há cerca de 94
milhões de
anos conduziu
àquilo que
criou os
vastos campos
petrolíferos no
Médio
Oriente: um
imenso evento
anóxico
oceânico85 a
que Stow
chamou a
“Morte
Negra”. Neste
ambiente,
bactérias
anaeróbicas
foram
decompondo
plantas e
animais
mortos muito
mais
lentamente, à
medida que
eles caíam no
leito oceânico.
A matéria
orgânica
decompôs-se
apenas
parcialmente,
deixando
carbono no
sedimento.
Enterrados
sob camadas
de lama e
lodo, e ao
longo de
milhões de
anos, os
animais e
plantas mortos
foram
comprimidos
e aquecidos
pela fornalha
incandescente
do centro da
Terra.
O petróleo é
isso mesmo:
coisas mortas.
Muito dele
resulta de um
evento de
86
extinção. O
mundo de alta
tecnologia em
que vivemos é
alimentado
diretamente
por um mundo
pré-histórico.
De cada vez
que ligamos o
motor do
carro e
aceleramos é
como se
acendêssemos
uma pira
funerária que
queima
antigos
resíduos
químicos. E
como a vida é
feita de
carbono,
como bem
sabemos, com
cada
combustão os
despojos
moleculares
destes
organismos
mortos
transformam-
se em
fantasmas no
céu: são, na
verdade, os
espíritos do
dióxido de
carbono.
Um
depósito
médio de
gasolina
contém aquilo
que terão sido
aproximadam
ente mil
toneladas de
vida antiga.
Umas
inacreditáveis
23 toneladas
de vida pré-
histórica estão
contidas em
cada litro de
gasolina. É o
equivalente a
lançar no
depósito 16
hectares de
biomassa para
conseguir
andar com o
automóvel ou
o SUV.
Segundo Jeff
Dukes,
ecologista da
universidade
de Utah,
“todos os dias
[o realce é
meu], as
pessoas
consomem o
combustível
fóssil
equivalente a
toda a matéria
botânica que
cresce em
terra e nos
oceanos
durante um
ano inteiro”.87
Ao contrário
do petróleo, o
carvão foi
constituído
essencialment
e pelas antigas
florestas do
Carbonífero,
há cerca de
300 milhões
de anos. Em
terra, era o
tempo dos
gigantes. Os
arranha-céus
desses tempos
eram fetos do
tamanho de
árvores que se
erguiam a 45
metros de
altura sobre
uma paisagem
coberta de
vegetação rica
e espessa.
Nesta selva
quente e
húmida, com
insetos
enormes a
zumbir, as
árvores eram
muito
diferentes das
de hoje. As
raízes não
eram muito
profundas e
quando as
árvores caíam
os seus
troncos
imensos e
maciços
acumulavam-
se nos
pântanos.
Micróbios
capazes de
digerir a
celulose e a
lenhite ainda
não tinham
evoluído e,
por isso, em
vez de
apodrecerem,
as árvores
permaneciam
inteiras e o
carbono ficava
no seu
interior. Com
o tempo, à
medida que
mais e mais
árvores se iam
acumulando
no solo da
floresta, a
madeira foi-se
comprimindo
em turfa e, ao
longo de
milhões de
anos,
transformou-
se no carvão
que hoje
usamos.
Estas
florestas
antigas têm
aquecido as
nossas casas,
feito andar os
transportes,
funcionar as
máquinas e
fábricas e
trouxeram-nos
a eletricidade.
Mas queimar
carvão liberta
uma
quantidade
asfixiante de
poluição.
Durante a
Revolução
Industrial,
escureceu os
céus, tal como
hoje, na China
e na Índia,
cria um smog
irrespirável. A
transmutação
tóxica do
carvão
também
contribui para
as alterações
climáticas.
Isso acontece
porque, por
cada tonelada
de carvão
queimado, é
libertado para
a atmosfera
quase o triplo
dessa
quantidade de
dióxido de
carbono.
Por causa
disto, o carvão
está,
felizmente, e
finalmente, a
deixar de ser
usado. Em
todo o mundo
estão a ser
encerradas
velhas centrais
de energia a
carvão, mas o
carvão ainda
contribui
muito mais do
que as
renováveis
para a energia
que
consumimos
todos os dias.
É responsável
por 30 por
cento da
eletricidade da
rede.88
O petróleo,
por outro lado,
e os
combustíveis
que pomos
nos nossos
carros provêm
essencialment
e de vida
marinha. Nos
nossos
oceanos
antigos, as
águas
fervilhavam
com um
conjunto
fascinante de
criaturas
microscópicas
. Tal como
uma colher de
chá de água
salgada revela
hoje uma
imensidão de
vida, olhar por
um
microscópio
para os mares
antigos levar-
nos-ia a ver
zooplâncton,
fitoplâncton89
e algas, tão
ignorantes da
nossa
existência
como nós
somos da
deles.
Uma
pergunta
frequente é se
animais
maiores, como
dinossauros,
entraram nesta
mistura.
Embora seja
possível, deve
assinalar-se
que uma parte
significativa
do petróleo de
hoje foi
depositado
muito antes de
os dinossauros
terem
caminhado
sobre a Terra.
Alguns dos
campos
petrolíferos
que hoje
exploramos
têm até 600
milhões de
anos. Por isso,
embora aqui e
ali algumas
moléculas de
dinossauro
possam estar a
ajudar-nos na
viagem até ao
supermercado,
em termos
relativos, e em
comparação
com as
enormes
quantidades
de pequenas
plantas e
animais que
compõem o
nosso
petróleo, os
dinossauros
tiveram um
contributo
insignificante.

O que
aconteceu foi
que este
guisado pré-
histórico,
formado como
fluxo
constante de
organismos
marinhos,
morreu e
deslizou para
o fundo do
mar.
Enterrado sob
camadas de
silte e lama,
em condições
com baixo
teor de
oxigénio, não
se decompôs,
transformando
-se, em vez
disso, numa
substância
cerosa
chamada
querogénio.
Os geólogos
costumam
observar que
“o petróleo
forma-se de
matéria
orgânica que
ou é
‘cozinhada’
nas
profundezas
da Terra
durante longos
períodos de
tempo a
baixas
temperaturas
ou é
‘cozinhada’
durante
períodos
curtos a altas
temperaturas”.
Com o tempo,
as moléculas
de querogénio
dividem-se em
átomos de
hidrogénio e
carbono. A
mistura
líquida mais
pesada,
cozinhada
entre 50 e 100
graus Celsius,
transforma-se
em petróleo, e
as misturas
mais leves que
foram
cozinhadas a
temperaturas
mais elevadas,
de entre 150 a
250 graus,
borbulham
para câmaras
rochosas e
tornam-se
gás.
Juntos,
petróleo,
carvão e gás
constituem a
mais antiga
bateria da
natureza. Em
média,
demorou a
carregar entre
um milhão e
cem milhões
de anos. As
civilizações
modernas só
têm energia
para funcionar
graças aos
organismos
microscópicos
que
capturaram
luz solar
antiga através
de
fotossíntese,
tal como a luz
do sol
alimenta hoje
as plantas que
por sua vez
são comidas,
como se
fossem
“baterias
alimentares”,
para dar
energia a
animais. A
única
diferença com
os
combustíveis
fósseis é que
não somos nós
a comer esta
antiga luz do
sol; ela é
comida para
as nossas
máquinas.
Os estados
petrolíferos do
Médio Oriente
devem a sua
riqueza a um
acaso
geológico.
Encontravam-
se no
perímetro do
oceano Tétis
quando os
combustíveis
fósseis se
formaram. A
região ainda é
responsável
pela maioria
do petróleo do
mundo – dois
terços – e por
um quarto do
gás. O grosso
do
combustível
vem de vida
pré-histórica,
foi formado
por causa das
condições
existentes no
Cretácico.
Peço-lhe,
querido leitor,
que não deixe
de reparar que
estamos a
começar a ver
paralelos com
o nosso
próprio
mundo em
aquecimento.
Mesmo agora,
enquanto lê
isto, há
plataformas
inteiras de
gelo nos polos
a ceder e a
cair no
oceano. No
Equador, a
temperatura
do oceano à
superfície é
como a água
de uma
banheira, uns
muito mornos
30 graus.
Também as
águas
anóxicas estão
a alastrar e,
embora não
estejam nem
de perto nem
de longe nos
níveis que
existiam
durante o
90
Cretácico ,
cientistas já
documentara
m uma
diminuição de
2 por cento
nos níveis de
oxigénio dos
oceanos
durante os
últimos 50
anos, sendo
que este
alastrar
silencioso de
água anóxica91
cresceu em
mais de 4,5
milhões de
quilómetros
quadrados.
Para termo de
comparação, é
o tamanho da
União
Europeia.
Para a maior
parte de nós, o
que se passa
debaixo de
água está fora
de vista e fora
do
pensamento,
mas os
cientistas que
investigam as
águas
famintas de
oxigénio estão
profundament
e
preocupados.
Além de
mortes em
massa,
localizadas, de
organismos do
fundo
marinho,
como estrelas-
do-mar,
caranguejos e
anémonas,
foram
detetadas
recentemente
em águas
muito menos
profundas
espécies como
marlins e
peixes-vela,
que muitas
vezes se
alimentam a
profundidades
de 800 metros.
Investigadores
que estudam
peixes-vela ao
largo da costa
da América
Central
descobriram
que eles já não
mergulhavam
tanto por
causa de uma
imensa bolsa
de água
desprovida de
oxigénio. Os
peixes
mantinham-se
à superfície
porque, se
mergulhassem
mais, iriam
sufocar.
Temos
tendência para
pensar no
oxigénio
como uma
coisa
importante
aqui, na Terra,
esquecendo
que ele,
dissolvido, é
tão vital para a
vida marinha
como para a
vida terrestre.
Imagine o que
sucederia se
em grandes
áreas da nossa
atmosfera
também se
registasse uma
diminuição
semelhante de
oxigénio:
asfixiaria toda
a vida à nossa
volta.

Os humanos
são a única
espécie na
Terra com
superpoderes
artificiais.
Tomámos o
poder dos
mortos, o
poder do Sol,
o poder do
vento, o poder
da água e até
o poder de
átomos
invisíveis,
colhemos toda
essa energia e
transformámo
-la de modo a
podermos
controlar o
mundo à
nossa volta
para lá das
nossas
capacidades
naturais. E
embora
tenhamos
crescido a ler
histórias do
super-homem
e das suas
capacidades,
apresentadas
como
extraordinária
s, a verdade é
que os seres
humanos têm
agora os
mesmos
superpoderes,
só que
acedemos a
eles acionando
um
interruptor.
Tudo o que o
super-homem
faz – voar, a
visão de raios
X, a super
força, a
velocidade, a
visão térmica,
o sopro
congelante e
até o mais
recente super
flare (um
sopro
explosivo
unidirecional
que oblitera
tudo no raio
de meio
quilómetro) –,
nós somos
capazes de
fazer, desde
que tenhamos
energia
suficiente e a
tecnologia
certa.
Podemos voar
à volta do
planeta.
Podemos voar
para o espaço.
Podemos ver e
ouvir o que
está a
acontecer em
diferentes
partes do
planeta no
momento em
que está a
acontecer.
Para os nossos
antepassados
que viviam
em cavernas,
seríamos
mágicos. Aos
seus olhos,
pareceríamos
tão poderosos
como deuses.
A maior
parte de nós
sabe pouco de
onde
realmente vem
ou como
funciona; a
fonte de
energia da
humanidade é
um ângulo
morto. Mas o
nosso poder
também é a
nossa
kryptonite. É
tão fácil o
acesso à
energia –
basta carregar
num botão ou
girar a chave
na ignição –,
que somos
cegos à
quantidade
que usamos. A
energia de que
precisamos
para nos
manter vivos é
de cerca de
duas mil
calorias por
dia, o que
corresponde a
aproximadam
ente 90 watts
– ou seja, o
nosso
metabolismo é
equivalente a
uma lâmpada.
Mas
precisamos de
muito, muito
mais, para
pormos a
funcionar
todas as
nossas
“coisas”
modernas.
Como escreve
o físico
Geoffrey
West: “Agora
precisamos de
casas,
aquecimento,
iluminação,
automóveis,
estradas,
aviões,
computadores
e assim por
diante. Por
causa disso, a
quantidade de
energia
necessária
para sustentar
uma pessoa
média a viver
nos Estados
Unidos subiu
para uns
espantosos 11
mil watts. A
taxa de
metabolismo
social é
equivalente às
necessidades
totais de cerca
de uma
dezena de
elefantes.”
Enquanto
sociedade
global, estas
necessidades
são ainda mais
ampliadas.
Juntos,
usamos
aproximadam
ente 150
biliões de
kilowatt/hora
de energia por
ano. Os
cidadãos do
mundo são
cerca de 7.500
milhões, mas
a energia que
usamos
anualmente é
suficiente para
sustentar uma
população de
200 mil
milhões.
Por causa
disto, estamos
a lançar para a
atmosfera uma
quantidade
assustadora de
dióxido de
carbono. E, no
entanto,
fazemos muito
pouco
relativamente
a este
problema.
Porquê? M.
Sanjayan,
cientista
sénior da
Conservation
International,
explica:
“Neste
momento há
CO2 a sair de
tubos de
escape, há
CO2 a sair de
edifícios, há
CO2 a sair de
chaminés, mas
não
conseguimos
vê-lo. A causa
fundamental
deste
problema é
largamente
invisível para
a maioria de
nós.”92
Aquilo que
não
compreendem
os e não
vemos
fisicamente é
que os
reservatórios
subterrâneos
de
combustível
que estamos a
explorar
contêm cinco
vezes mais
carbono do
que o
reservatório
invisível de
dióxido de
carbono na
atmosfera. O
ciclo do
carbono, em
que o carbono
passa
naturalmente
para a
atmosfera,
demora três
anos;
permanece nas
plantas em
média durante
cinco anos,
nos solos
durante 30
anos, nos
oceanos
durante 300 e
cumpre o
ciclo
geoquímico
uma vez em
cada 150
milhões de
anos. Mas, de
uma forma
muito
fundamental,
estamos a
interferir neste
ciclo natural
ao injetar
artificialmente
na atmosfera
carbono que
encontramos a
grande
profundidade.
Hoje, há 45
por cento mais
dióxido de
carbono no ar
do que havia
antes da
Revolução
Industrial. Da
última vez que
houve no ar
tanto CO2 foi
há mais de
800 mil anos.
Depois de a
usarmos, a
energia para
os nossos
superpoderes
parece
desvanecer-se
no ar. Mas
essa é a ironia
suprema: há
países capazes
de entrar em
guerra para
decidir quem
é dono dos
hidratos de
carbono, e
depois países
reúnem-se
para decidir
quem não é
dono do
dióxido de
carbono.
Mas há uma
maneira clara
de visualizar a
concentração
de calor de
todos os
combustíveis
fósseis que
são
queimados.
Segundo o
climatologista
James
Hansen, o
ritmo nunca
visto a que o
nosso planeta
está a aquecer
é o
equivalente a
lançar todos
os dias 400
mil bombas
como a de
Hiroxima.
75
Foi Thomas
Edison, o
célebre inventor
e criador do
primeiro
aparelho
elétrico DC,
que começou a
esconder, em
Manhattan, o
“esparguete
negro”, que
eram os fios de
eletricidade.
Depois de
muita
persuasão, o
presidente da
câmara de Nova
Iorque aceitou
com relutância
a proposta de
Edison para
escavar as ruas
e enterrar 24
quilómetros de
cabos para levar
“luz elétrica” às
casas das
pessoas. Mas o
projeto de
Edison não
perdurou,
porque ele
acabou
ultrapassado
por outro
inventor
célebre: Nikola
Tesla. Os
sistemas de
distribuição de
corrente
alternada (AC)
de Tesla eram
capazes de
levar a
eletricidade a
distâncias muito
maiores. Isto
significava que
os geradores
não tinham de
ser grandes
mamarrachos à
vista de todos e
podiam ser
construídos
longe das
cidades, mas
queria também
dizer que a
nossa fonte de
energia ficaria
escondida de
nós.
76
Como Bakke
assinala, as
quebras de
energia são de
120 minutos em
média nos
Estados Unidos
e aumentam de
ano para ano;
noutros países,
são de dez
minutos e estão
a diminuir.
77
Será talvez
uma surpresa
saber que os
eletrões se
movimentam
pelos fios de
uma forma
incrivelmente
lenta – na
verdade, mais
lenta do que se
fossem
tartarugas.
Falamos de
uma velocidade
de deriva de
cerca de 1
metro por hora.
Enquanto
ínfimas
partículas
subatómicas, os
eletrões não são
ordenados.
Movem-se de
forma aleatória.
E, numa
corrente
alternada (AC),
que é a que hoje
existe na rede,
os eletrões
estão
constantemente
a avançar e a
recuar.
78
O lítio
também é
extraído da
pegmatite. É
um tipo de
exploração
mineira mais
tradicional, em
que o metal é
retirado do
minério, e é
comum em
regiões da
Austrália e
partes da
China.
79
Ou seja,
menos toda a
energia que foi
absorvida na
fotossíntese, ou
no ciclo
hidrológico, ou
nas muitas
outras coisas
indispensáveis
que o Sol
fornece.
80
Onde não há
quedas de água
naturais, a
engenharia cria
umas artificiais,
em que são
usados declives
para canalizar
água através de
túneis,
aproveitando a
força da
gravidade, para
conseguir o
mesmo efeito.
81
As Cataratas
de Niagara
produzem hoje
quase dois
milhões de
quilowatts de
energia no lado
canadiano e 2,4
milhões no lado
norte-
americano.
82
Até 2020, o
número deve
aumentar para
aproximadamen
te 100 milhões
de barris por
dia.
83
Os picos no
preço do
petróleo podem
ter um grande
impacto sobre
as forças
armadas,
representando
um custo de
milhares de
milhões de
dólares por
cada 10 dólares
de aumento no
preço de um
barril. Por causa
disso, os
militares
também
apostam na
utilização da
tecnologia
verde e solar.
84
Se pegar em
duas latas
abertas de
refrigerante,
deixar uma à
temperatura
ambiente e
colocar a outra
no frigorífico, a
mais fria terá
mais gás,
porque
consegue conter
mais gás
dissolvido. O
mesmo é
verdade para a
água do oceano.
Água mais fria
é capaz de
“manter”
oxigénio,
enquanto águas
mais quentes o
libertam para a
atmosfera.
85

Investigadores
dizem que
ocorreram a
meio do
Cretáceo entre
dois e sete
grandes eventos
anóxicos
oceânicos.
86
Cientistas da
universidade de
Alberta
possuem provas
que sugerem
que o
vulcanismo
submarino pode
ter sido
responsável por
uma extinção
maciça há 93
milhões de
anos, que
conduziu à
formação das
mais
importantes
reservas de
petróleo.
87
Quatro litros
de gasolina
contêm 31
milhões de
calorias.
88
A procura de
carvão caiu na
Europa e nos
Estados Unidos,
mas essa quebra
tem sido
compensada
pela procura na
Índia e em
outros países da
Ásia.
89
A luz do Sol é
responsável
todos os anos
pela floração de
mais de 5.500
milhões de
toneladas de
fitoplâncton.
Estes
microrganismos
unicelulares,
que captam a
luz do Sol, são
os produtores
principais da
cadeia
alimentar,
absorvendo a
energia solar. A
sua morte, ao
longo de
milhões de
anos, capturou e
armazenou esta
energia,
fazendo do
petróleo aquilo
que ele
essencialmente
é: uma bateria
natural
gigantesca.
90
O geoquímico
Martin Fowler
sugeriu que os
níveis de anoxia
no Cretáceo
seriam
semelhantes aos
que
presenciamos
no Mar Morto.
91
“Já com
níveis de
oxigénio
baixos, estas
regiões
continuam a
crescer,
horizontal e
verticalmente.
Estão incluídas
grandes partes
do Pacífico
oriental, quase
toda a baía de
Bengala e uma
área do
Atlântico ao
largo da África
Ocidental tão
vasta como os
Estados Unidos
[…] A zona ao
largo da África
Ocidental
cresceu 15 por
cento desde
1960 – e 10 por
cento só desde
1995. No
Pacífico, a 200
metros de
profundidade ao
largo da
Califórnia, os
níveis de
oxigénio caíram
30 por cento em
alguns pontos
ao longo de um
quarto de
século.”
92
Qual a
dimensão de
um ângulo
morto? É de tal
modo
abrangente que
podemos nem
dar pelo
problema
quando estamos
a conduzir
sentados nele.
Os automóveis
que consomem
muito são,
obviamente,
parte do
problema. Mas
o que é menos
óbvio é que,
dependendo de
onde se vive, o
veículo elétrico
ou híbrido pode
nem ser mais
limpo do que
um SUV de
grande
consumo. Cerca
de um terço da
nossa
eletricidade
provém do
carvão, que está
entre os
combustíveis
mais sujos. Ou
seja, em alguns
lugares, até a
solução é parte
do problema.
Pensem nos
combustíveis
fósseis usados
para extrair o
metal, fundir,
fabricar,
transportar e
montar uma
turbina eólica
antes de ela
chegar ao ponto
de começar a
lançar para a
rede
eletricidade
“limpa” e
começarão a ter
uma ideia de
como até os
mais
ambiciosos
planos para o
futuro estão
envolvidos na
energia do
passado.
6
Lixo &
Tesouro
Estamos
rapidame
nte a
tornar-
nos uma
sociedad
e de
plástico.
Em
breve,
teremos
mais em
comum
com o
Ken e a
Barbie
do que
com o
nosso
ambiente
natural.
ANTHONY
T. HINCKS
Na nossa
imaginação, a
paisagem
cinzenta e
cheia de
crateras da
Lua está
imaculada.
Ainda lá se
encontram as
icónicas
primeiras
pegadas
humanas, a
bandeira
norte-
americana e
uma placa
onde está
escrito: “Aqui,
homens do
planeta Terra
pisaram pela
primeira vez a
Lua, em julho
de 1969 d.C.
Viemos em
paz por toda a
humanidade.”
No entanto,
ao fim de
cinco décadas
na Lua, a
bandeira
começou a
ceder aos
elementos.
Descolorida
pelos
impiedosos
raios
ultravioleta do
Sol, as estrelas
e as riscas
desaparecera
m e o nylon
tornou-se
branco. Mas
os norte-
americanos
não deixaram
apenas uma
bandeira na
Lua;
colocaram
seis. E os
viajantes
espaciais têm
deixado para
trás uma
pegada muito
mais pesada
do que
simples
vestígios de
presença
humana. Há
18 mil quilos
de lixo
esquecido a
sujarem a
superfície
lunar.
Segundo a
NASA,
juntamente
com 96 sacos
de urina e
vómito, há
botas usadas,
toalhas,
mochilas e
tubos. Sem
caixotes do
lixo à mão, os
astronautas
também
deixaram no
local de
alunagem
revistas,
câmaras,
cobertores,
pás. E, ao fim
de várias
missões
internacionais,
existem agora
na superfície
várias naves,
incluindo as
usadas para
efetuar órbitas
e andar na
Lua.
Em
comparação
com a Terra, a
Lua tem uma
atmosfera
muito fina93,
por isso será
preciso passar
algum tempo
até que o rasto
das nossas
visitas sofra
erosão e
desapareça.
Mark
Robinson,
cientista da
universidade
de Arizona
State, sugere
que o impacto
sobre o lixo de
micrometeorit
os do tamanho
de partículas
fará com que
as provas da
nossa breve
passagem pela
Lua se
desfaçam e
desapareçam
dentro de dez
milhões a cem
milhões de
anos.
Visto da
superfície
lunar, o nosso
próprio
planeta eleva-
se acima do
horizonte e
brilha na noite
como uma lua
azul. À
distância,
parece
imaculado,
mas olhando
com atenção
ver-se-ia uma
nuvem
brilhante de
lixo espacial a
orbitar a
Terra. O nosso
planeta
tornou-se
muito
parecido com
Pig-Pen, a
personagem
dos Peanuts
que anda
sempre sujo e
com uma
nuvem de pó à
volta. Há
agora quase
três mil
toneladas de
lixo espacial
continuamente
em redor de
nós.
Claro que
nem sempre
foi assim. Nos
anos 1950,
não havia lixo
na órbita
terrestre. Só
em 17 de
março de
1958 é que a
órbita terrestre
ganhou o seu
primeiro
residente
permanente.
Hoje, este
satélite morto,
o Vanguard 1,
ostenta o
título de
pedaço de lixo
orbital mais
velho. Faz
uma rotação
completa em
volta da Terra
a cada 132,7
minutos. Mas
já não está só.
Juntaram-se a
ele mais de 29
mil outros
bocados de
lixo orbital
que andam
invisivelmente
à nossa roda,
juntamente
com mais de
1.700 satélites
ativos. A
Força Aérea
dos EUA tem
mantido um
registo dos
destroços em
órbita, que são
essencialment
e pedaços de
foguetões
usados e
satélites que
deixaram de
funcionar, e
sabe onde se
encontra
exatamente
um qualquer
objeto que
seja maior do
que uma bola
de beisebol.
Há partes que
se soltam e
são mais
pequenas do
que isso. Entre
os 670 mil
objetos que
têm entre um
e dez
centímetros há
de tudo, desde
pedaços de
tinta a porcas,
parafusos,
bocados de
papel de
alumínio e
tampas de
lentes.
À medida
que o tamanho
dos objetos
diminui, o seu
número
aumenta.
Existirão
cerca de 170
milhões de
destroços com
um tamanho
entre um
milímetro e
um
centímetro.
Mas o facto de
serem
pequenos não
significa que
sejam
inofensivos.
De acordo
com a
Agência
Espacial
Europeia, um
objeto de um
centímetro
que se
movimente a
velocidade
orbital é capaz
de penetrar
nos escudos
da Estação
Espacial
Internacional
ou de avariar
uma nave. O
impacto teria
a energia
equivalente à
da explosão
de uma
granada de
mão.
Mas não nos
limitamos a
deixar as
nossas naves
espaciais no
espaço.
Também as
atiramos para
o mar. No
Oceano
Pacífico,
quilómetros
abaixo das
ondas, existe
um local
designado
Ponto Nemo
que funciona
como
cemitério de
naves.
Escolhido pela
sua
localização
remota (o
ponto de terra
mais próximo
fica a quase
2.400
quilómetros),
é onde as
agências
espaciais
internacionais
deitam fora
objetos de
grandes
dimensões que
não se
desintegram
quando
reentram na
atmosfera.
Entre 1971 e
2016, mais de
260 naves
foram atiradas
para Ponto
Nemo. A
lixeira tornou-
se o destino
final para 140
veículos de
reabastecimen
to russos, um
foguetão
Space X, a
estação
espacial
soviética Mir
e várias das
naves de carga
da Agência
Espacial
Europeia.
Jazem todas
no leito
oceânico,
desintegrando
-se
lentamente.
Maravilham
o-nos com
estas obras-
primas
tecnológicas
de muitos
milhares de
milhões
quando elas
são lançadas,
mas quando
passam o
prazo de
validade
tornam-se
lixo. Os
humanos são
uma espécie
construtora de
ferramentas,
mas a
consequência
é que são
também uma
espécie
produtora de
lixo. E embora
não tenhamos
com as nossas
coisas uma
relação de
amor-ódio,
temos de facto
com elas uma
relação de
“amor-
indiferença”.
Desejamos
objetos antes
de os termos e
mais tarde
atiramo-los
fora sem
voltar a pensar
neles. Com o
lixo é também
assim:
tornámo-nos
especialistas a
fazer de conta
que ele não
existe. O lixo
espacial, na
verdade, não
passa de uma
insignificância
em
comparação
com o
desperdício
que a nossa
espécie gera.
Todos os anos
produzimos
45 milhões de
toneladas de
lixo em
aparelhagem
doméstica,
computadores,
telemóveis e
outro
equipamento
eletrónico. É o
equivalente a
4.500 torres
Eiffel. É lixo
que podia
ocultar a linha
do horizonte
de uma
cidade. Mas
não é só não o
vermos; a
maior parte de
nós não sabe
para onde ele
vai.
Há coisas
que sabemos
sobre o nosso
lixo. Por
exemplo, o
líder mundial
em produção
de lixo são os
Estados
Unidos. Em
todo o mundo,
pessoas ricas e
países ricos
produzem
mais lixo.
Cada norte-
americano
deita fora
todos os dias
3,2 quilos de
lixo, o que
equivale a 90
toneladas ao
longo da vida.
Como Edward
Humes
escreve em
Garbology, “o
legado de
cada pessoa
em lixo, 90
toneladas,
necessitará do
equivalente a
1.100
túmulos. E
muito desse
lixo
sobreviverá a
qualquer
lápide
tumular,
pirâmide de
faraó ou
arranha-céus
moderno”.
Mas,
mesmo assim,
aquilo que
deitamos fora
é só a ponta
do icebergue
de lixo. O que
lançamos no
caixote – o
produto final
– não
representa
mais de 5 por
cento das
matérias
utilizadas nos
processos de
produção,
embalagem e
transporte.
Pondo as
coisas de
outra maneira:
por cada 150
quilogramas
de produtos
que vemos nas
prateleiras,
existem fora
de cena outros
três mil quilos
de
desperdícios
que não
vemos. No
total, o mundo
produz
aproximadam
ente três
milhões de
toneladas de
lixo a cada 24
horas. Em
2025, calcula-
se que o
número
duplicará. E se
tudo continuar
assim, até
final do século
teremos, por
dia, uns
implacáveis
dez milhões
de toneladas.
Não são só
as nossas
fábricas que
criam
desperdício.
Como seres
biológicos,
geramos
também os
nossos
próprios
resíduos. E
com 7.500
milhões de
pessoas no
planeta, essa
porcaria toda
acumula-se.
Em The
Origin of
Feces, David
Waltner-
Toews traça a
ascensão
meteórica dos
excrementos
humanos: “No
ano 10 mil
a.C. havia
cerca de um
milhão de
pessoas no
planeta. Ou
seja, 55
milhões de
quilogramas
de excremento
humano
espalhado
pelo globo em
pequenas
pilhas,
alimentando
lentamente a
erva e as
árvores de
fruto […] Em
2013, com
mais de sete
mil milhões
de pessoas na
Terra, a
produção
humana total
aproximou-se
dos 400
milhões de
toneladas de
merda por
ano.”
Sendo tão
colossais as
quantidades
de resíduos
biológicos
humanos e de
resíduos
sólidos
resultantes dos
processos de
produção, é
quase um
truque de
magia de
proporções
épicas que
tudo isso
pareça,
simplesmente
– puf! –,
desaparecer.
Mas antes
dos dias do
carro do lixo,
as pessoas
tinham de
lidar,
literalmente,
com a sua
merda. Não
havia maneira
de fugir disso
porque ela
ficava ali
mesmo à
frente, a
cheirar mal e
cheia de
moscas. Os
conhecidos
degrauzinhos
de Brooklyn,
o curto lance
de escadas
que leva à
porta de
entrada de
uma casa e de
que todos nos
lembramos da
Rua Sésamo,
não são só
uma herança
arquitetónica
dos
holandeses,
mas também
uma forma
criada no
século XIX
para lidar com
o lixo. As
escadas
conduziam à
entrada
porque nessa
altura, em
Nova Iorque,
as pessoas
atiravam o
lixo para as
ruas, pela
janela. A pilha
de lixo
chegava tão
alto – às
vezes, no
inverno, podia
ter um metro,
quando se
misturava com
a neve e com
o esterco de
cavalo (sendo
que este se
acumulava a
um ritmo de
mil toneladas
sólidas e 227
mil litros de
urina todos os
dias) – que a
escadinha
permitia às
pessoas
elevarem-se
acima da
porcaria e
entrarem sem
problemas
pela porta da
frente.
No século
XIX, a gestão
de resíduos
contava com a
assistência de
cães, ratos e
baratas, mas
os principais
limpadores de
ruas eram os
porcos. Nos
Estados
Unidos, em
cidades com
populações
acima de dez
mil habitantes,
construíam-se
pocilgas
especificamen
te para o
efeito. O
nosso lixo era
o jantar deles,
com uma
média de uma
tonelada de
desperdícios
digerida por
75 porcos por
dia. Não é
invulgar
encontrar
quadros de
Nova Iorque
pintados nessa
altura que
mostram esses
porcos à solta.
Para os
europeus que
os pintavam,
os suínos
urbanos eram
uma novidade,
mas para os
nova-
iorquinos o
cenário desses
animais à
solta era uma
banalidade.
Até aos
anos 1840,
milhares de
porcos
percorriam
Wall Street.
Hoje, a área é
conhecida
pelos seus
banqueiros e
investidores,
mas o nome
Wall Street,
do original
holandês “de
Waal Straat”,
vem de uma
vedação de
3,5 metros de
altura que foi
erguida para
impedir que
os porcos
causassem
danos às ruas
e aos jardins
da
vizinhança.
Em Paris,
lixo e dejetos
humanos
também
inundavam as
ruas. Os
franceses
foram os
primeiros a
criar um corpo
de
trabalhadores
sanitários e,
quatro séculos
antes,
começaram a
gerir assim os
resíduos da
cidade. Mas o
lixo nas ruas
era um
problema
constante, e
isso levou o
rei francês a
emitir um
édito, em
1539, para
enfrentar o
problema:

“Franci
sco, Rei
de França
pela
Graça de
Deus, faz
saber a
todos os
presentes
e a todos
os que
virão, o
seu
desprazer
pela
deterioraç
ão
considerá
vel
sofrida
pela nossa
boa
cidade de
Paris e
pelos seus
arredores,
que em
tantos
lugares
revela
uma tal
degeneraç
ão em
ruína e
destruição
que não é
possível
percorrê-
los, seja
de
carruagem
seja a
cavalo,
sem
enfrentar
grande
risco e
incómodo
. Esta
cidade e
os seus
arredores
passam há
muito por
este
lamentáve
l estado.
Mais
ainda, está
tão suja e
cheia de
lama,
excrement
os de
animais,
entulho e
outros
despojos
que todas
as pessoas
parecem
ter
julgado
certo
despejar
em frente
às suas
portas,
contra
toda a
razão e
contra as
ordens
dos
nossos
antecessor
es, o que
provoca
grande
horror e
ainda
maior
desprazer
em todas
as
valorosas
pessoas
com
influência
.”

Em Paris, os
resíduos
tornaram-se
um assunto
privado. Em
vez de os
lançarem para
as ruas, os
parisienses
receberam
ordens para
construir
fossas nos
quintais. Os
bairros
cheiravam mal
e havia surtos
de cólera e
isso tornou-se,
inevitavelmen
te,
insuportável.94
Os franceses
mudaram
então para um
método que os
chineses
usavam há
milhares de
anos: gerir os
resíduos da
população
transformando
-os em “solo
da noite” – um
eufemismo
para designar
excremento
humano usado
como estrume
para a
agricultura.
Nos anos
1800, o que as
cidades em
crescimento
tinham
descoberto era
que, pela sua
própria
natureza,
concentravam
resíduos numa
escala maciça.
As cidades
tornaram-se, à
falta de um
termo melhor,
motores de
produção de
grandes
montes de
merda. Os
chineses
tinham optado
por retirar o
excremento de
áreas
populosas e
levá-lo para o
campo. Aí,
deixava de ser
desperdício.
Era ouro
castanho. O
estrume
humano era
devolvido ao
solo para
alimentar o
país. A
verdade é que
o sistema
funcionou
muito bem e,
até há pouco
tempo, a
China era
célebre pelos
seus solos
férteis e
agricultura
sustentável.
Durante
milhares de
anos, cerca de
90 por cento
do lixo
humano foi
reciclado e
representava
um terço do
fertilizante
usado no
país.
Pensemos,
por um
instante, no
nosso próprio
contributo
digestivo. Em
média, por
ano, cada um
de nós produz
50 a 55 quilos
de fezes e
cerca de 500
litros de urina.
Mas este
“desperdício”
contém
nutrientes
valiosos.
Segundo a
Empresa para
Cooperação
Internacional
da Alemanha,
numa base
anual isso
quer dizer
cerca de “dez
quilos de
compostos de
azoto, fósforo
e potássio, os
três principais
nutrientes de
que as plantas
necessitam
para crescer –
e, ainda por
cima,
praticamente
nas
proporções
certas”. Os
excrementos
de uma pessoa
são suficientes
para fertilizar
e fazer crescer
mais de 200
quilos de
cereais
durante um
ano.
Os
japoneses
também
identificaram
o valor da
merda.
Durante o
período Edo
(1603 a 1868),
na área que
hoje é Tóquio,
os japoneses
mantinham
um sistema
em circuito
fechado e este
shimogoe (que
pode traduzir-
se como
“fertilizante
vindo do
fundo de uma
pessoa”)
tornou-se
essencial para
a agricultura
sustentada.
Nas bermas de
estradas junto
dos campos
eram
entregues
baldes aos
viajantes e
era-lhes
solicitado que
deixassem
para trás os
seus
desperdícios.
Como escreve
David
Waltner-
Toews, “no
século XVII a
cidade de Edo
enviava
carregamentos
de vegetais e
outros
produtos
hortícolas para
Osaca, de
barco, para
serem
trocados pelo
excremento
humano da
cidade. À
medida que as
cidades e
mercados
cresceram
(Edo tinha um
milhão de
habitantes em
1721), e com
o aumento da
agricultura
intensiva em
campos
inundados, os
preços dos
fertilizantes,
incluindo do
‘solo da
noite’,
aumentaram
imenso; em
meados do
século XVIII,
os
proprietários
da merda
queriam ser
pagos em
prata – e não
apenas em
vegetais.”
A porcaria
tornara-se um
bem de valor
elevado. Os
senhorios
podiam
aumentar o
preço das
rendas que
cobravam se o
número de
inquilinos no
seu prédio
diminuísse,
porque, com
menos
defecadores a
contribuir para
o rendimento
do
proprietário, a
gestão do
edifício
tornava-se
menos
lucrativa.
Neste
negócio,
gerido através
de agentes
privados e não
do governo, os
preços do
shimogoe
eram fixados
pelos
senhorios, o
que provocava
conflitos com
os
agricultores,
que eram
muitas vezes
asfixiados
pelos valores
altos.
Também
havia merda
boa e merda
má. A merda
rica cheirava
de certeza
igualmente
mal, mas tinha
um valor mais
elevado.
Como os ricos
tinham dietas
mais variadas,
isso resultava,
segundo os
agricultores,
na presença de
nutrientes
melhores nas
fezes.95
Quanto ao
valor, o preço
do shimogoe
dependia da
procura, mas
no auge
ascendia a 145
mon por casa.
Para termo de
comparação,
em 1850 era
possível
comprar com
100 mon de
cobre uma boa
refeição de
cogumelos,
pickles, arroz
e sopa. Nos
anos 1800, os
resíduos
humanos eram
tão valiosos
que roubá-los
se tornou um
crime punível
com prisão.
Foi também
elaborada uma
tabela a
comparar o
desperdício
humano e o
produzido por
outros
animais. Num
número de
1849 da
revista norte-
americana
Working
Farmer, o
eminente
agriculturalist
a alemão
professor
Hembstadt é
citado desta
forma:
“Se
uma
determina
da porção
de terra
semeada
sem
estrume
produz
três vezes
as
sementes
lançadas,
então a
mesma
porção de
terra
produzirá:

Cinco
vezes a
quantidad
e semeada
quando
for usado
estrume
com ervas
velhas,
pútridas
ou folhas,
despojos
de jardim,
etc., etc.,
Sete
vezes com
esterco de
vaca,
Nove
vezes com
esterco de
pombo,
Dez
vezes com
esterco de
cavalo,
Doze
vezes com
esterco de
cabra,
Doze
vezes com
esterco de
ovelha, e
Catorze
vezes com
urina
humana
ou sangue
de
novilho.”
Mas para os
mais
conhecedores
da fina arte do
esterco havia
um tipo de
excremento
que estava
sempre no
topo da lista.
Se era preciso
escolher o
melhor
fertilizante do
mundo, então
o guano não
tinha rival.
Ao longo da
história, os
homens já
entraram em
guerra por
muitas coisas,
mas a Guerra
do Guano,
entre 1864 e
1866, pode
muito bem ter
sido a
primeira
travada por
causa de uma
discussão de
soberania
sobre merda
de pássaro.96
Para o Peru, o
guano era uma
autêntica mina
de ouro. A
Espanha sabia
isso e estava
determinada a
reafirmar o
seu poder e a
tomá-lo à sua
antiga colónia.
Por causa
disso, o Chile
entrou nesta
guerra de dois
anos e os
países sul-
americanos
lutaram juntos
para repelir o
seu antigo
colonizador.
Quando se
chegava de
barco, sentia-
se o cheiro das
ilhas Chincha
muito antes de
ser possível
avistá-las.
Com colónias
de pelicanos,
sulas e
cormorões, o
arquipélago
peruano
albergava
mais de um
milhão de
aves. Cada
uma produzia
todos os dias
20 preciosas
gramas de
dejetos; todas
juntas
representavam
11 mil
toneladas por
ano. Ao longo
de gerações, e
numa área
com pouca
precipitação,
os montinhos
de cocó
transformaram
-se em
montanhas. E
no início do
século XIX o
guano nas
ilhas Chincha
tinha dez
metros de
altura.
Há séculos
que as
propriedades
do guano
como
fertilizante
excecional
eram
conhecidas
dos locais;
chamavam-lhe
huanu. O
excremento de
aves marinhas
é
especialmente
poderoso por
estar cheio de
azoto
marinho.
Como as aves
marinhas se
alimentam de
grandes
cardumes de
anchovetas e
de plâncton,
funcionam
como
“bombas
biológicas”
que
transferem o
azoto para
ecossistemas
terrestres.97
Esta dádiva de
fertilidade do
solo tinha um
valor tão
elevado para
os incas que
matar uma ave
marinha podia
resultar numa
sentença de
morte.
Os europeus
perceberam o
seu valor
quando o
explorador
Alexander von
Humboldt
regressou com
um guano de
uma das suas
viagens, em
1804. Os
resultados
pareceram
milagrosos
aos
agricultores
que o
utilizaram nas
suas terras
pela primeira
vez. Solos já
esgotados
tornaram-se
outra vez
férteis e as
colheitas
aumentaram
em 30 por
cento. Ao
contrário do
estrume
comum dos
estábulos, o
do guano era
uma merda
especial:
segundo um
especialista,
era 35 vezes
mais
poderoso.
Em 1850,
como observa
o autor de
ciência
Thomas
Hager, as ilhas
Chincha –
pedaços de
terra perdidos
e cobertos de
merda de aves
– eram,
“hectare por
hectare […] a
propriedade
mais valiosa
ao cimo da
Terra”. Tinha
começado
uma
“guanomania”
. Dezenas de
toneladas de
guano eram
exportadas
todos os anos,
representando
cerca de 60
por cento da
economia
peruana. Os
norte-
americanos,
desejosos de
assegurar as
suas próprias
fontes de
guano,
aprovaram em
18 de agosto
de 1856 a Lei
das Ilhas de
Guano, que no
essencial
permitia aos
Estados
Unidos
reivindicarem
qualquer ilha
que
encontrassem
com depósitos
de guano.
Como se
afirmava na
Secção 1 da
Lei: “Sempre
que qualquer
cidadão dos
Estados
Unidos
descubra um
depósito de
guano em
qualquer ilha,
rochedo ou
caio, que não
se encontre
sob legítima
jurisdição de
qualquer outro
governo, e não
se encontre
ocupado pelos
cidadãos de
qualquer outro
governo, e
assumir
pacificamente
a sua posse, e
o ocupar, essa
ilha, rochedo
ou caio pode,
por
determinação
do Presidente,
ser
considerado
como
pertencente
aos Estados
Unidos.” Até
hoje, foram
reivindicadas
mais de uma
centena de
ilhas no
Pacífico e nas
Caraíbas, e a
lei ainda
vigora,
embora a
maior parte
dessas
reivindicações
não tenha sido
renovada
quando o
guano se
esgotou.
Na verdade,
o problema
com as
Chincha
acabou por ser
esse. O guano
era um
recurso finito
que não podia
ser reposto
com a mesma
velocidade
com que era
extraído.
Quando foi
travada a
Guerra do
Guano (que a
Espanha
perdeu para a
frente unida
de Chile e
Peru), o guano
existente já
dava só para
mais uma
década.
Quando ele se
acabou, o Peru
foi à falência.
Houve um
homem que
viu o desastre
a aproximar-
se e percebeu
que a Europa
estaria em
breve metida
numa grande
merda,
falando
figurativament
e. Com a fonte
essencial
esgotada, o
negócio do
fertilizante
tinha passado
para os
nitratos do
Chile, uma
substância
branca
granulosa que
se encontrava
no deserto e
que era aquilo
que mais se
aproximava
do guano. Mas
William
Crookes, um
cientista
britânico,
fizera as
contas. Pelos
seus cálculos,
ao ritmo da
procura os
nitratos
também não
durariam mais
do que umas
décadas. Na
sua
comunicação
presidencial à
Associação
para o
Progresso da
Ciência da
Grã-Bretanha,
em 1898,
perante uma
casa cheia, o
respeitado
químico
lançou o
alerta: “A
Inglaterra e
todas as
nações
civilizadas
correm o risco
mortal de não
terem o
suficiente para
comer. À
medida que as
bocas se
multiplicam,
os recursos
alimentares
diminuem [...]
Espero indicar
uma saída
para este
dilema
colossal. É o
químico que
tem de sair em
auxílio das
comunidades
ameaçadas. É
através do
laboratório
que a fome
pode acabar
por ser
transformada
em
abundância
[...] A fixação
do azoto
atmosférico é
uma das
grandes
descobertas, a
aguardar o
génio dos
químicos.”
Aquilo que
Crookes
pedia, com
urgência, era o
desenvolvime
nto de estrume
sintético. Mas
apesar das
suas palavras
proféticas, o
mundo ainda
não tinha
maneira de
saber que este
fertilizante
viria,
literalmente,
do ar.

Já lhe
chamaram a
maior
invenção de
que nunca
ninguém
ouviu falar.
Sem o
processo
Haber-Bosch,
metade das
pessoas do
planeta não
estariam hoje
vivas. Foi
desenvolvido
em resposta
ao apelo feito
aos químicos
por Crookes,
para alimentar
o mundo sem
depender das
duas
principais
fontes de
fertilizante de
então: o já
quase
esgotado cocó
de aves
peruano e as
reservas
estratégicas de
nitratos do
deserto
chileno.98
O que essas
duas primeiras
fontes tinham
em comum
eram serem
ricas em azoto
fixado. Ainda
que o azoto
seja abundante
no ar à nossa
volta –
constitui 78
por cento
daquilo que
respiramos –,
o tipo de azoto
de que as
plantas
necessitam de
absorver do
solo encontra-
se sob uma
forma diversa,
como azoto
fixado. No
solo, isso
produz-se
naturalmente
de duas
maneiras. A
primeira, e
mais
extraordinária,
é através de
relâmpagos.
Durante
tempestades,
há descargas
de eletricidade
suficientement
e poderosas
para
desfazerem as
ligações
estreitas do
azoto
atmosférico e
o elemento, ao
entrar em
contacto com
a água,
assume forma
de ácido
nítrico, que
depois se
infiltra no
solo. A
segunda é a
partir de tipos
de bactérias
que formaram
uma relação
simbiótica
com algumas
vagens e
legumes.
Usando um
complexo
conjunto de
enzimas, estas
bactérias
conseguem
quebrar as
ligações do
azoto,
tornando-o
disponível
para ser
absorvido
pelas raízes
das plantas.99
O azoto no
ar é
considerado
“inutilizável”
porque a
molécula N2
consiste em
dois átomos
de azoto com
uma ligação
muito forte –
uma das mais
fortes que se
encontram na
natureza. Os
átomos estão
de tal forma
unidos que é
necessária
uma
quantidade
imensa de
energia –
perto de 1.000
graus Celsius
– para os
separar.
Assim,
embora
consigamos
respirar e
expirar azoto
atmosférico,
sob esta forma
ele é inerte e
não pode ser
absorvido
pelos nossos
organismos. O
azoto presente
no nosso
sangue, na
nossa pele e
no nosso
cabelo vem
por isso dos
alimentos que
ingerimos. E é
essencial. O
azoto está em
cada gene e
em cada
proteína das
coisas vivas.
Sem ele não
era possível
existirmos,
porque
funciona
como a
espinha dorsal
atómica do
nosso ADN.
A
genialidade do
processo
Haber-Bosch
foi ter
conseguido
obter azoto a
partir do ar.
Batizado com
os apelidos de
Fritz Haber, o
cientista que o
inventou, e de
Carl Bosch, o
engenheiro
que o
industrializou,
a invenção
prometeu ao
mundo
fertilizante em
quantidade
ilimitada.
Tinha
finalmente
sido
descoberta
uma fonte
inesgotável,
porque o
azoto
atmosférico
está em toda a
parte. Mas
apesar deste
“estrume
sintético” se
basear num
inteligente
processo
químico, não
era muito fácil
de produzir.
Otimizar o
processo para
permitir a
produção em
massa
implicava
agora, para os
alemães, mais
um tremendo
desafio:
precisavam de
construir a
maior
máquina do
mundo.
Com quase
oito
quilómetros
quadrados, a
fábrica que
usaram, em
Leuna, na
Alemanha,
tinha “o
tamanho de
uma cidade
pequena”.100
Albergava
compressores
imensos,
capazes de
sujeitar gases
a uma pressão
de 200
atmosferas,
mais ou
menos a
mesma, como
Thomas Hager
escreve em
The Alchemy
of Air, que é
necessária
para “esmagar
um submarino
moderno”. O
processo em si
não é muito
complexo:
azoto e
hidrogénio são
aquecidos a
alta
temperatura e
a seguir são
conduzidos
sobre um
catalisador de
ferro101, que
baixa o limiar
energético da
reação. A
mistura de gás
é então
colocada sob
tanta pressão e
calor que os
átomos de
hidrogénio e
azoto se
quebram e
formam uma
nova ligação,
saindo do
outro lado da
máquina sob a
forma de
amoníaco
liquefeito, ou
NH3. Ao
tomarem
azoto do ar,
Haber e Bosch
tinham criado
uma forma
completament
e nova de
alimentar
plantas. Como
diziam os
alemães, era
Brot aus Luft.
Ou seja,
estavam a
obter “pão do
ar”.
Fábricas em
todo o mundo
usam hoje o
processo
Haber-Bosch
para fabricar
fertilizante de
azoto
sintético. Em
2016, foram
produzidas
146 milhões
de toneladas.
E, à medida
que a
população
humana
cresce, a
procura
aumenta. Na
verdade, a
produção de
azoto sintético
e o aumento
de população
estão
intimamente
ligados. Se
alguma vez se
interrogou
porque é que a
população, em
apenas um
século, passou
de 1.600
milhões, em
1900, para
mais de 7.600
milhões, hoje,
é porque
deixámos de
usar estrume
para fazer
crescer
alimentos.
Esta forma de
azoto fixado,
em
combinação
com o
desenvolvime
nto de
pesticidas e de
novas
variedades de
culturas,
trouxe-nos o
que é
conhecido
como a
revolução
verde. Os
humanos
domesticaram
a terra e, por
causa disso, os
seus números
explodiram.
Podíamos
agora
alimentar-nos
de uma forma
inteiramente
nova,
transformando
ar em comida
com a ajuda
de fertilizante
sintético.
Mas falta
cair mais um
alfinete, como
em Matrix,
antes de
seguirmos em
frente. É que,
como metade
do azoto na
nossa cadeia
alimentar é
agora
produzido de
forma
sintética, isso
quer dizer que
metade do
nosso ADN
vem de uma
fábrica Haber-
Bosch.

Todos os
anos, juntam-
se à população
do planeta
mais 83
milhões de
pessoas. Mais
pessoas
significa mais
resíduos. E
desde o
desenvolvime
nto do
processo
Haber-Bosch,
uma
proporção
escandalosa
desses
resíduos têm
sido alimentos
por consumir.
Só para dar
uma ideia, os
Estados
Unidos
produziram
em 2010 mais
de 31 milhões
de toneladas
de comida que
foi
desperdiçada.
A Agência de
Proteção do
Ambiente dos
EUA diz que,
em peso, isso
representa dez
vezes mais
desperdício de
comida do que
bens
eletrónicos
deitados fora
nesse ano.
Toda a
energia usada
para fazer
crescer,
distribuir e
vender comida
que acaba por
ser deitada
fora é então
igualmente
desperdiçada.
Nos Estados
Unidos, só em
emissões de
estufa, é o
equivalente a
explorar para
nada todas as
reservas
offshore de
petróleo e
gás.102 Numa
escala global,
segundo a
Organização
para a
Alimentação e
Agricultura
das Nações
Unidas,
aproximadam
ente um terço
da produção
alimentar
humana não é
consumida.
São uns
aterradores
1.300 milhões
de toneladas
de alimentos
que vão para o
lixo todos os
anos.
Para além
disto, há outra
vertente no
desperdício
alimentar. E
assume a
forma do
fertilizante
sintético
produzido
pelo processo
Haber-Bosch.
Usamos uma
enorme
quantidade de
fertilizante:
por cada
pessoa no
planeta há
aproximadam
ente 20
quilogramas
de amoníaco
espalhados
anualmente
pelos campos.
Mas só 15 por
cento do azoto
produzido
artificialmente
chega às
nossas bocas
sob a forma de
comida103; a
imensa
maioria dos
nossos
fertilizantes
químicos
acaba como
desperdício.
Quando as
chuvas caem
no solo, no
início da
primavera,
compostos de
azoto e
fósforo de
fertilizantes
são arrastados
para correntes,
rios e lagos e,
eventualmente
, acabam no
oceano.104
Aqui, a
mistura de
nutrientes do
escoamento de
fertilizantes e
de esgotos
provoca uma
atividade
alimentar
febril entre as
algas, fazendo
com que estas
se espalhem
por dezenas
ou até
centenas de
quilómetros
quadrados.
Sem querer,
estamos a
fertilizar o
oceano. A
“explosão”
que daí resulta
é, no entanto,
fatal. As
plantas
marinhas e os
animais que
vivem por
baixo do
tapete espesso
e viscoso de
algas veem-se
privados de
luz. E quando
o excesso de
algas morre e
se afunda no
oceano, o
monumental
processo de
decomposição
retira à água
imensas
quantidades
de oxigénio,
fazendo com
que a vida
marinha não
consiga
respirar. As
espécies que
não
conseguem
mover-se para
outro local
não são
capazes de
sobreviver e o
deserto
biológico que
fica é
conhecido
como zona
morta.
Há mais de
500 destas
zonas nos
oceanos – e
estão a
aumentar. O
fertilizante
que devia
provocar o
florescimento
da vida está a
transformar as
linhas
costeiras em
cemitérios. Ao
perturbarmos
o equilíbrio da
natureza com
os sistemas de
sobrevivência
que
inventámos,
criámos um
ciclo vicioso:
agora
precisamos de
mais energia
de
combustíveis
fósseis (o
equivalente a
cerca de 1
tonelada de
TNT por
hectare) para
cultivar mais
comida,
criando, em
troca, mais
bocas para
alimentar. E
todos os anos
se dá uma
escalada do
ciclo.
Só o
processo
Haber-Bosch
usa quase 2
por cento da
capacidade
energética
mundial. E
por cada
tonelada de
amoníaco
produzido são
libertadas para
a atmosfera
duas toneladas
de dióxido de
carbono.
Somos cegos
a este
desperdício de
azoto no
oceano, tal
como somos
cegos ao
desperdício de
dióxido de
carbono que
não somos
capazes de
ver. Mas há
uma forma de
desperdício
que
conseguimos
ver quando ela
se
descontrola: a
poluição
atmosférica.
Em
novembro de
2014, os
habitantes de
Pequim
batizaram uma
nova cor.
Chamaram-
lhe “Azul
APEC”. Foi o
resultado de
uma missão
iniciada meses
antes, quando
o governo
central chinês
encarregou
434 mil
funcionários
nas regiões de
Pequim,
Shandong,
Tianjin,
Shanxi, Hebei,
Mongólia
Interior e
Henan de
executarem
um plano
grandioso. A
meta era
ambiciosa:
mudar a cor
do céu.
Nos dias
que
antecederam a
chegada dos
delegados
internacionais
à cimeira
desse ano da
organização
de
Cooperação
Económica
Ásia-Pacífico
(APEC), 11,7
milhões de
veículos
receberam
ordem para
sair da estrada
e mais de dez
mil fábricas
industriais
suspenderam a
produção. Sob
supervisão
rigorosa, cerca
de outros 40
mil operários
fabris foram
colocados em
turnos
rotativos, para
limitar as suas
horas de
trabalho e,
consequentem
ente, o fumo e
escapes que
emitiam.
O plano
funcionou de
forma
espetacular.
Durante duas
semanas,
nesse mês de
novembro, o
célebre
nevoeiro
cinzento
acastanhado
de Pequim
dissipou-se e a
poluição
atmosférica
caiu nuns
extraordinário
s 80 por cento.
No lugar dele,
prontas a
receber líderes
e dignitários
estrangeiros e
a imprensa
mundial,
estavam
nuvens
brancas
macias e um
céu azul
brilhante, o
azul APEC.
Mas pouco
depois de a
cimeira acabar
esse azul
também
desapareceu.
Os cidadãos
chineses
lembram-se
hoje com
saudade desse
céu azul
APEC de
2014, ou do
céu “azul
desfile
militar” de
2015. Pelo seu
lado,
cientistas
descobriram
porque é que
os céus
voltam a
escurecer tão
depressa
quando são
eliminadas as
restrições
temporárias à
poluição. O
que se passa é
que, depois de
acabar essa
solução
instantânea
para um
acontecimento
especial, há
uma chicotada
de resposta da
indústria. A
seguir à
grande baixa
de poluição
durante o
período do
acontecimento
, há um “pico
poluidor
retaliatório”
das empresas,
para
compensar o
tempo e o
dinheiro
perdidos.105
Não será
propriamente
uma surpresa
a existência de
uma relação
direta entre
atividade
económica e
poluição.
Em cidades
poluídas, o
termo “IQA”
é tão familiar
aos habitantes
como as
indicações
Celsius ou
Fahrenheit.
Refere-se ao
Índice de
Qualidade do
Ar, uma escala
que vai de 0 a
500. Só por
olharem para
o grau de
névoa, os
habitantes
experientes
são capazes de
calcular a
qualidade do
ar. Quando há
alguma névoa
no horizonte,
está nos 100.
Com 200, o
horizonte
cinzento já se
fechou sobre
nós. Nos 300,
a névoa da
poluição já
está a
bloquear a luz
do Sol.
Um IQA de
300, ou mais,
já é
considerado
nocivo para a
saúde
humana. Os
efeitos sobre a
saúde incluem
“agravamento
sério de
doenças
cardíacas ou
pulmonares e
mortalidade
prematura em
pessoas com
doença
cardiopulmon
ar e entre os
mais velhos;
risco sério de
efeitos
respiratórios
entre a
população em
geral”. Já fora
da escala, no
nível 700, o ar
é descrito
como fumo
industrial. É
tão espesso
que “sabe a
químicos, faz
chorar”. Em 4
de maio de
2017, em
conjunção
com uma
tempestade de
areia, o ar
tornou-se
literalmente
de cortar a
respiração.
Com um IQA
de 905,
Pequim
ultrapassou
três vezes o
limite de
risco.
Nos dias
maus, quanto
mais nos dias
terríveis,
passar no
exterior uns
meros 20
minutos pode
fazer com que
as pessoas se
sintam
doentes.
Tornaram-se
comuns
gargantas
irritadas e
tosses sem
sintomas de
constipação
ou de gripe. E
são tosses que
parecem
nunca passar,
em especial
para os que
vivem e
trabalham
perto de
fábricas.
As máscaras
faciais usadas
pelos chineses
já se tornaram
icónicas. Mas
em Pequim só
uma parte da
sociedade
anda
relativamente
à vontade
quando a
poluição se
descontrola.
Os ricos têm
dinheiro para
protegerem o
seu bem-estar,
isolando-se
dos céus
asfixiantes.
Na capital,
os ricos
enviam os
filhos para
escolas
privadas,
muitas das
quais possuem
gigantescos
“recreios-
bolha” onde
as crianças
podem
brincar. Estas
cúpulas de ar
pressurizado
estão
equipadas
com filtros de
qualidade
hospitalar para
purificar o ar e
garantir um
“tempo”
perfeito
durante o ano
inteiro. Em
dias em que o
IQA
recomenda
que as
crianças não
saiam para o
exterior, elas
ficam seguras
atrás de portas
hermeticamen
te fechadas.
Esta
proteção
contra a
poluição não
sai barata. As
cúpulas de ar
custam
milhões de
dólares e
mesmo em
casa só com
dezenas de
milhar de
dólares é
possível
assegurar
bolsas de ar
limpo em que
as famílias
consigam
respirar. Os
apartamentos
em arranha-
céus de luxo
estão
equipados
com as mais
recentes
tecnologias de
ar
condicionado
e purificação
de água, para
transmitir uma
aparência de
normalidade.
Os pobres
não têm outra
escolha a não
ser respirar o
mau ar que os
rodeia. E isto
não acontece
apenas na
China: ficam
na Índia 11
das 12 cidades
mais poluídas.
Também a
Arábia
Saudita e o
Irão têm
cidades com
níveis de
poluição que
fazem com
que seja um
risco lá viver.
Segundo a
Organização
Mundial de
Saúde (OMS),
que mantém
uma base de
dados de três
mil cidades
em 103 países,
mais de 98 por
cento das
cidades em
países de
rendimento
baixo e médio
não
conseguem
cumprir as
linhas
orientadores
da OMS
quanto à
qualidade do
ar, enquanto
em países de
rendimento
elevado essa
taxa de
incumpriment
o cai quase
para metade,
para 56 por
cento.
Claro que os
nossos
organismos
têm filtros de
ar biológicos
incorporados
– os pulmões
–, e o seu
exame pode
revelar a
matéria
específica que
absorvemos
do exterior. O
patologista
Paulo Saldiva,
que pertence
ao comité
científico da
Escola de
Saúde Pública
da
universidade
de Harvard, e
é membro do
comité de
qualidade do
ar da OMS,
tem realizado
autópsias aos
pulmões de
pessoas
expostas a
poluição
atmosférica ao
ar livre.
Escurecidos e
com marcas
de carbono,
podem
facilmente ser
confundidos
com os
pulmões
gastos de um
fumador de
tabaco.
Todos os
dias
inspiramos
cerca de 23
mil vezes, o
que
corresponde,
em média, a
12 mil litros
de ar. Os
pequenos
pelos nas
nossas narinas
e os cílios que
protegem os
nossos
pulmões
filtram as
partículas
maiores, mas
as mais
perigosas são
as mais
pequenas,
chamadas
PM2,5,
porque a sua
matéria tem
um tamanho
inferior a 2,5
micrómetros.
Em conjunto,
constituem
uma
tempestade de
areia invisível
de sulfato,
nitratos,
carbono
negro, pó
mineral,
cloreto de
sódio e
amoníaco, a
que
chamamos
“poluição”.
Proveniente
s do escape
dos motores
de veículos,
de minas, de
centrais
energéticas e
de caldeiras
industriais,
estas
partículas
incineradas
têm sido
relacionadas
de forma
muito direta
com o cancro
de pulmão,
doenças
cardiovascular
es e renais e
com a asma.
Na China, que
já é o país
com a taxa
mais elevada
de cancro de
pulmão, os
especialistas
médicos
calculam que
o número de
pessoas
atingidas por
esta doença
suba para
mais de 800
mil
anualmente
até 2020. É
uma epidemia
silenciosa. À
escala
mundial, a
OMS calcula
que três
milhões de
pessoas
morram
prematuramen
te de poluição
atmosférica
todos os anos.
Em
comparação, o
número de
pessoas que
morre de
SIDA é cerca
de um terço,
940 mil.
Quando
paramos para
pensar, a
poluição que
produzimos
numa base
anual é
esmagadora.
Inclui:

QUÍMICOS
PRODUZID
OS: 30
milhões
de
toneladas
por ano;
POLUIÇÃO
DOS
OCEANOS
POR
PLÁSTICO:
oito
milhões
de
toneladas
por ano;
MATERIAIS
PERIGOSOS
: 400
milhões
de
toneladas
por ano;
CARVÃO,
PETRÓLEO
E GÁS: 15
giga
toneladas
(milhares
de milhão
de
toneladas)
por ano;
METAIS E
MATERIAIS
: 75 giga
toneladas
por ano;
EXPLORAÇ
ÃO DE
MINAS E
DESPERDÍC
IOS
MINERAIS:
cerca de
200 giga
toneladas
por ano;
ÁGUA
POLUÍDA
(contamin
ada na
maior
parte
pelos
desperdíci
os acima):
nove
biliões de
toneladas
por ano.

Estes são os
ingredientes
de uma
gigantesca
bomba tóxica,
segundo o
veterano
jornalista de
ciência Julian
Cribb.
Globalmente,
construímos
todos os anos
uma dessas
bombas. A
diferença é
que não há
uma explosão
ensurdecedora
. O que há, em
vez disso, é
uma
precipitação
silenciosa: as
partículas
invisíveis
infiltram-se
nos alimentos
que comemos,
na água que
bebemos e no
ar que
respiramos.
Cribb
escreveu: “É
rotina
encontrar
agora toxinas
industriais em
bebés recém-
nascidos, no
leite materno,
na cadeia
alimentar, na
água para
consumo
doméstico em
todo o mundo.
Foram
detetadas
desde o pico
do monte
Evereste
(onde a neve
está tão
poluída que
não está
conforme aos
padrões de
água para
consumo) às
profundezas
dos oceanos,
dos corações
das nossas
cidades às
ilhas mais
remotas […]
O mercúrio
encontrado
nos peixes que
comemos e
nos ursos
polares do
Ártico é
precipitação
resultante da
queima de
carvão e
aumenta todos
os anos.”
É uma
ilusão a ideia
de que existe
uma espécie
de mundo
“exterior” no
qual possamos
viver à parte.
A ciência
mostra-nos
aquilo que os
nossos olhos
não são
capazes de
ver: que tudo
o que existe
faz parte de
uma rede,
parte de um
fluxo. O que
lançarmos
para o
ambiente
acabará por
encontrar o
seu caminho
de volta aos
nossos
corpos.
Nas últimas
três décadas,
surgiram na
China
centenas de
novas cidades.
O país tem
hoje mais de
seis centenas,
a maior parte
das quais
eram vilas ou
aldeias até há
muito pouco
tempo.
A ascensão
da China à
posição de
domínio
económico é
uma
consequência
do seu setor
fabril. Os
chineses
fabricaram as
coisas que o
mundo
consumia e
fabricaram-
nas baratas. A
colossal
energia usada
para
movimentar e
alimentar a
sua
população,
produzir bens
para
exportação e
construir as
suas novas
cidades
significa, sem
surpresa, que
a China é
responsável
pela maior
quantidade de
poluição por
carbono. No
fim de 2017, o
país era
responsável
por 28 por
cento das
emissões
globais, uma
parte
significativa
dos cerca de
41 mil
milhões de
toneladas de
dióxido de
carbono que o
mundo emite
anualmente.
Se
conseguíssem
os visualizar
esses 41 mil
milhões de
toneladas de
CO2, seria o
mesmo que
olhar para o
equivalente,
em tonelagem,
a 41 montes
Evereste.106 O
facto de não
conseguirmos
tornou-se o
maior desafio
em qualquer
discussão
sobre
alterações
climáticas.
Mas há uma
outra forma,
mais visível,
de ver os
efeitos dos
desperdícios
do
combustível
fóssil. Sob
esta forma,
está em todo o
lado à nossa
volta. Refiro-
me ao
plástico.
Como
observa o
Conselho
Americano de
Química, “a
maior parte
dos plásticos
baseiam-se no
átomo de
carbono […]
O átomo de
carbono pode
ligar-se a
outros átomos,
até um limite
de quatro
ligações
químicas.
Quando todas
as ligações
são com
outros átomos
de carbono,
podem
resultar
diamantes, ou
grafite, ou
fuligem. Para
criar plásticos,
os átomos de
carbono
também se
ligam a […]
hidrogénio,
oxigénio,
azoto, cloro
ou enxofre.” É
chocante
pensar nisso,
mas há apenas
cem anos o
plástico nem
sequer existia.
Como Edward
Humes
escreve em
Garbology, “o
plástico
passou tão
depressa de
zero a
omnipresente
que se tornou
invisível a
uma perceção
consciente.
Pare por um
instante para
olhar para a
divisão da
casa em que
está. Desde os
frascos de
comprimidos
aos puxadores
das portas dos
armários, dos
botões das
calças ao
elástico das
meias, da
espuma dentro
da almofada,
do sofá à
tigela em que
põe a comida
ao cão e às
próteses
dentárias…
ele está em
toda a parte.”
Um
habitante
médio da
América do
Norte usa
todos os anos
cem
quilogramas
de plástico, a
maior parte
sob a forma de
embalagens
que são
deitadas fora.
No entanto,
quando foi
inventado, o
plástico não
só era
duradouro
como era feito
para durar. Em
1907, o
químico Leo
Baekeland
desenvolveu-o
para substituir
uma
substância
produzida por
um inseto da
Ásia Oriental,
o besouro da
laca. Este
inseto segrega
uma
substância
dura, o
shellac, uma
goma-laca que
era recolhida
manualmente
pela raspagem
do tronco de
árvores. E era
este material
que a então
emergente
indústria
elétrica
utilizava como
isolante dos
seus fios.
Baekeland
pensou que
tinha de haver
uma maneira
melhor de
conseguir isto
e pôs-se a
pensar no
desenvolvime
nto de um
substituto
sintético. No
laboratório,
usando uma
mistura de
formaldeído e
fenol (um
ácido derivado
do alcatrão de
carvão),
produziu uma
resina espessa
e pegajosa. Só
por si não era
especialmente
útil, mas
quando lhe
adicionou
materiais
como
serradura ou
amianto a
substância
ganhou uma
resistência
surpreendente.
Melhor ainda:
quando a
injetou em
moldes,
descobriu que
era possível
moldá-la.
Tinha criado o
primeiro
plástico
termofixo do
mundo.
Baekeland
tinha criado
shellac
sintético.
Novos
objetos
brilhantes
feitos com o
novo material,
chamado
baquelite,
apareceram
nos Estados
Unidos pela
primeira vez
em 1927. O
material era
visto como
milagroso.
Agora, em vez
de se usar
marfim para
os cabos dos
talheres ou
casca de
tartaruga para
as armações
dos óculos,
existia uma
alternativa,
um plástico
que podia ser
moldado para
ter qualquer
forma. Em
1944, já a
baquelite era
usada em 15
mil produtos.
Por esta
altura,
começou a
produção em
massa dos
plásticos de
todos os dias
que hoje
usamos. PVC,
supercola,
velcro, licra,
sacos de
polietileno e
espuma de
poliestireno
entraram no
mercado nas
décadas de
1940 e 1950.
Mas, mesmo
assim, a
produção
global de
plástico era
inferior a um
milhão de
toneladas por
ano.
Desde aí, já
produzimos
mais de oito
mil milhões
de toneladas
de plástico.
Das quais
deitámos para
o lixo seis mil
milhões.
Olhamos
para os
objetos do
nosso dia a
dia, mas
somos cegos
aos processos
que estão por
trás deles. Por
exemplo,
quando
olhamos para
um frasco de
champô em
plástico não
vemos os
derramamento
s de petróleo,
os aterros ou a
Grande Ilha
de Lixo do
Pacífico.
Como
milhares de
milhões de
pessoas fazem
todos os dias,
usamos uma
vez uma peça
de plástico,
um objeto que
durará dez mil
anos, e depois
atiramo-lo
para o lixo. O
absurdo, como
observa um
popular meme
da Internet, é
que “a nossa
sociedade
atingiu um
ponto em que
o esforço
necessário
para extrair
petróleo do
solo, enviá-lo
para uma
refinaria,
transformá-lo
em plástico,
dar-lhe a
forma
apropriada,
transportá-lo
para uma loja,
comprá-lo e
levá-lo para
casa é
considerado
um esforço
menor do que
o que custa
simplesmente
lavar uma
colher depois
de a
usarmos”.
As coisas
não foram
sempre assim.
Até aos anos
1950, era dado
valor aos
objetos do lar.
As pessoas
apreciavam a
qualidade.
Durante
gerações,
foram
passando de
umas para as
outras talheres
de prata ou
frascos de
perfume ou
cadeiras ou
mesas de
jantar ou
estruturas de
cama.
Tornaram-se
as nossas
antiguidades.
Mas em 1955
começou a
emergir um
novo estilo de
vida. Um
número de
agosto de
1955 da
revista Life
incluía uma
visão da nova
família
americana. O
título do
artigo era
“Viver a
Deitar Fora” e
a fotografia
mostrava um
homem, uma
mulher e uma
criança a
lançarem ao
ar, como se
fossem
confetes,
objetos
domésticos. A
prosperidade
material
queria dizer
que os
produtos
passavam
agora a ser
concebidos e
publicitados
para terem
uma vida
curta. Como
proclamava a
Life, “as peças
descartáveis
diminuem as
tarefas do
lar”.
Em breve,
além dos
plásticos de
utilização
única, os
produtos
tinham
“épocas” e
esperava-se
que os
consumidores
seguissem
“tendências”.
A
obsolescência
planeada
tornou-se uma
parte do
princípio do
design.107 Se
os produtos
não passassem
de moda,
então eram
construídos
para avariar
ao fim de um
tempo, para
que outros
fossem
comprados
para os
substituir. É
importante
lembrar que,
em termos
relativos, esta
mudança é
extraordinaria
mente recente
na forma de
pensar da
humanidade.
Mas teve um
impacto
incrível. Hoje,
apesar dos
apelos
nacionais para
a proibição do
material, em
conjunto com
a criação de
novas formas
de plásticos
biodegradávei
s, a produção
tradicional de
plástico ainda
cresce todos
os anos e deve
subir até 40
por cento mais
durante a
próxima
década.
Já se terá
interrogado:
se os plásticos
são feitos de
combustíveis
fósseis e se
estes foram,
em tempos,
organismos
vivos, então
porque é que a
maioria dos
plásticos não
são
biodegradávei
s? A razão é
semelhante
àquela que faz
com que seja
tão difícil
dividir o azoto
no ar. No
fabrico de
plástico, as
moléculas de
carvão são
aquecidas
sobre um
catalisador,
mas o objetivo
não é separá-
las e sim uni-
las, para
formarem uma
ligação
extremamente
forte. Quando
esta ligação se
dá, o plástico
torna-se
quimicamente
inerte. Os
microrganism
os que
evoluíram
para
decompor
matéria
orgânica
nunca antes
encontraram
na natureza
uma ligação
de carbono
deste tipo. Por
isso, e apesar
dos seus
milhares de
milhões de
anos de
evolução, não
possuem as
capacidades
metabólicas
para o
108
digerir.
Se os
plásticos não
podem ser
digeridos,
podem ser
ingeridos. Já
não é
novidade que
os cientistas
encontraram
plástico nas
entranhas de
tudo, desde o
minúsculo
zooplâncton
na base da
cadeia
alimentar
marinha a
grandes
animais, como
peixes, aves
marinhas e até
baleias. Todos
os anos,
acabam nos
oceanos entre
cinco e 13
milhões de
toneladas de
plástico, e
todos os anos
morrem por
ingestão desse
plástico 100
mil mamíferos
marinhos e
mais de um
milhão de
aves. Há agora
tanto
desperdício de
plástico que se
calcula que no
ano 2050
haverá nos
oceanos mais
plástico, em
peso, do que
peixe.
Claro que
nós fazemos
parte da
cadeia
alimentar e os
plásticos têm
andado a
encontrar o
seu caminho
até aos nossos
pratos – não
só para os
fabricar, mas
para chegar à
comida que
pomos lá
dentro. Em
2015,
cientistas que
percorreram
mercados de
peixe nas
costas da
Califórnia e
da Indonésia
descobriram
que um em
cada quatro
peixes tinha
plástico nas
entranhas.
Este número
foi ainda mais
elevado num
estudo
realizado no
Canal da
Mancha, que
detetou
polímeros
sintéticos em
um terço dos
peixes
capturados por
arrasto –
incluindo
bacalhau,
arinca e
cavala. Na
Escócia,
foram
encontradas
fibras de
plástico nuns
inacreditáveis
83 por cento
dos camarões
de Dublin
Bay. E no
Canadá
investigadores
encontraram
microplásticos
na maioria das
ameijoas e
ostras, fossem
de aquacultura
ou selvagens.

O ar, a terra
e a água
acabam por
tornar-se nós.
No limite,
como
escreveu o
paleoclimatol
ogista Curt
Stagger,
somos feitos
de
desperdício:
“Olhe para
uma das suas
unhas. Metade
da massa dela
é carbono e
mais ou
menos um em
cada oito
desses átomos
de carbono
saiu
recentemente
de uma
chaminé ou de
um tubo de
escape […]
Em parte,
[você é] feito
de emissões.”
Não são
apenas os
nossos corpos.
Há impérios
inteiros
construídos
em cima de
desperdício. A
ascensão
súbita da
China à
condição de
superpotência
global deve-se
em grande
parte à sua
estratégia de
consumir
eficientemente
o lixo norte-
americano e
de se
reconstruir
com ele.
Depois de os
navios
carregados de
contentores
cheios de
produtos
fabricados
cruzarem os
oceanos, idos
da China, e
largarem a sua
carga nas
costas dos
Estados
Unidos, não
fazia sentido,
economicame
nte, que
regressassem
vazios. Houve
empresários
que
aproveitaram
esse transporte
barato de
regresso para
enviarem
navios cheios
de lixo e
desperdícios
recicláveis. O
lixo dos EUA
tornou-se
literalmente o
ouro da China
– e também a
prata, e o
cobre, e o
alumínio e o
zinco.
É um
exemplo
perfeito do
velho ditado
“o lixo de uns
é o tesouro de
outros”.
Aproveitar um
fluxo contínuo
de materiais
recicláveis era
seguramente
mais barato do
que extraí-los
em casa; por
exemplo,
reciclar aço
requer menos
60 por cento
de energia do
que produzi-
lo. Em 2010,
os principais
carregamentos
da China para
os Estados
Unidos eram
computadores
e material
eletrónico,
com um valor
calculado em
50 mil
milhões de
dólares. Já as
exportações
principais dos
EUA para a
China, em
volume, eram
desperdício de
metal e de
papel – no
essencial,
segundo a
descrição de
Edward
Humes, “um
pouco mais de
oito mil
milhões de
dólares em
jornais velhos
atados, cartão
esmagado, aço
ferrugento e
latas de
bebida
prensadas,
tudo vendido
a preço de
saldo”. Em
2016, a China
tinha-se
tornado o
maior
importador
líquido de
lixo,
recebendo
anualmente 45
milhões de
toneladas de
restos de
metal, papel e
plástico de
todo o mundo,
com um valor
calculado em
18 mil
milhões de
dólares.
Cidades
grandes e
pequenas
cresceram em
toda a China
para reciclar e
aproveitar
todo este
desperdício. A
cidade de
Shijiao
tornou-se a
“capital das
luzes de
natal”, com
pelo menos
nove fábricas
a retirarem o
cobre de cerca
de nove
milhões de
quilogramas
de luzes de
árvore de
natal deitadas
fora todos os
anos. No
Leste, a
cidade de
Qingdao
tornou-se o
principal
centro de
processament
o do plástico
do mundo,
recebendo um
total de nove
milhões de
toneladas do
plástico
importado
anualmente
pelo país. No
Sueste, na
cidade de
Guiyu, foram
criadas mais
de 5.500
empresas para
desmantelar
mais de 680
mil
quilogramas
de
computadores,
telemóveis e
outro lixo
eletrónico,
para recolher
o ouro,
chumbo e
cobre que
estão no
interior – e
que são
preciosos.
Para a
China, este
foi,
financeiramen
te, um grande
negócio, mas
em termos
ambientais
revelou-se
tóxico. Em
muitas
cidades,
trabalhadores
expostos a
resíduos
perigosos
registaram
índices mais
elevados de
defeitos em
recém-
nascidos,
tuberculose,
problemas
respiratórios e
doenças de
sangue. Ao
mesmo tempo,
depois de
quatro
décadas a ser
a lixeira do
planeta, a
China tornou-
se a segunda
maior
economia do
mundo. Como
Adam Minter,
autor de
Junkyard
Planet,
afirmou numa
entrevista à
CBC, “a
China está a
enriquecer e,
quando se
enriquece,
deitam-se fora
mais coisas.
Quando se
deitam fora
mais coisas,
gera-se mais
para
reciclarmos”.
A China não
precisa,
literalmente,
de levar mais
com a
porcaria do
mundo. Em 1
de janeiro de
2018 pôs um
ponto final
nas
importações
tóxicas e
ergueu uma
“vedação
verde”, ao
proibir a
importação de
24 tipos de
yang laji, ou
lixo
estrangeiro.
Quase de
imediato,
montanhas de
lixo que, se
não fosse isso,
teriam
desaparecido
da América do
Norte,
começaram a
acumular-se
em depósitos
nos Estados
Unidos e
Canadá. Estas
pilhas não têm
agora para
onde ir.
A proibição
chinesa
obrigará
muitos países
desenvolvidos
a enfrentar os
seus próprios
resíduos ou a
encontrar
soluções
diferentes para
o curto prazo.
Isso pode
significar mais
aterros, mais
incineração ou
descobrir
outro país
para onde
exportar. Em
alternativa,
pode querer
dizer que,
finalmente,
aprenderemos
a lidar
adequadament
e com o nosso
próprio lixo.
Na comédia
de ficção
científica
Regresso ao
Futuro, de
1985, a
máquina do
tempo
DeLorean
estava
realmente à
frente do seu
tempo: usava
lixo como
combustível.
Hoje, vivemos
nesse futuro.
Carros, frotas
de autocarros,
até os próprios
camiões do
lixo usam
biogás
produzido a
partir de lixo.
Em cidades
como Nova
Iorque, que
gera todos os
anos dois
milhões de
toneladas de
lixo orgânico
(incluindo
resíduos
alimentares),
o gás
recolhido a
partir da
decomposição
nos aterros é
engenhosame
nte
transformado
em energia.
Os
campeões
desta alquimia
do desperdício
são, no
entanto, os
suecos. Na
Suécia, os
autocarros
funcionam a
partir de uma
bastante
invulgar
mistura de
lixo humano,
de
desperdícios
de matadouros
e de álcool.
As bebidas
alcoólicas têm
um grande
papel na
redução das
emissões do
país por serem
caras na
Suécia, o que
leva os
habitantes a
trazê-las
quando viajam
para fora do
país. Muitos
até
ultrapassam o
limite
permitido pela
alfândega, o
que significa
que todos os
anos centenas
de milhar de
litros de
cerveja, vinho
e outras
bebidas são
confiscadas
nas fronteiras.
Em vez de
lançarem esse
contrabando
pelo cano
abaixo, os
suecos
transformam-
no em
combustível,
sendo que um
litro de bebida
resulta em
meio litro de
biogás. Este
“cocktail
gigante”,
como é
conhecido
localmente
com algum
carinho, faz
andar mais de
mil camiões e
autocarros na
Suécia, além
de um
comboio
movido a
biogás.
Os suecos
são tão bons a
transformar o
seu lixo que
só 1 por cento
do que é
produzido nas
casas acaba
em aterros.
Em vez de
queimarem
combustíveis
fósseis para
aquecimento,
quase um
milhão de
casas em todo
o país
dependem do
aquecimento a
partir de lixo
incinerado.
Por regra, têm
de existir
estações de
reciclagem
num raio de
300 metros
em cada área
residencial.
Dentro de
cada uma
dessas
estações,
sistemas de
vácuo de alta
tecnologia
aspiram o
lixo,
encaminhando
-o para uma
das 32
centrais de
incineração,
onde é
transformado
em calor ou
em
eletricidade. O
sistema é tão
eficaz que a
Suécia
importa lixo,
recebendo por
isso dinheiro
da Noruega,
Reino Unido e
Irlanda.109 As
instalações do
país cobram
aproximadam
ente 43
dólares por
tonelada de
lixo, o que
significa um
rendimento
anual superior
a 100 milhões
de dólares.
Também é
possível
retirar valor
dos esgotos.
Todos os dias,
milhares de
milhões de
pessoas em
todo o mundo
deitam pelos
canos abaixo
pequenas
partículas de
ouro – e, tudo
junto, isso tem
algum peso.
De acordo
com Kathleen
Smith, do
Serviço
Geológico dos
EUA, os
resquícios de
ouro, prata e
platina que
estão no lodo
dos esgotos
equivalem a
uma mina
comercial. Os
metais
preciosos,
ainda que sob
uma forma
microscópica,
provêm do
lixo
industrial110,
de produtos
quotidianos
como
champôs e
detergentes e
até de
nanopartículas
que são
cosidas em
meias com a
função de
reduzir o odor
corporal.
O método
de extração
funciona
sensivelmente
da mesma
forma como a
indústria
mineira retira
os metais das
rochas, com a
utilização de
lixiviados. A
exploração
mineira de
esgotos num
ambiente
controlado
pode
funcionar para
limpar
resíduos
biossólidos,
tornando o
esgoto um
fertilizante
melhor. Claro
que também
há uma
vertente
financeira.
Um estudo da
universidade
do estado do
Arizona sobre
recuperação
de metais
preciosos em
esgotos
determinou
que uma
população de
um milhão de
pessoas
produz
anualmente,
nas águas
residuais, o
equivalente a
13 milhões de
dólares em
metais. Em
Tóquio, a
central de
tratamento de
Suwa já
começou a
extrair ouro
dos esgotos.
Espantosamen
te, a produção
é superior à
que teria uma
exploração
mineira
normal. Na
mina japonesa
de Hishikari,
que possui um
dos maiores
depósitos de
ouro do
mundo, são
em média
encontrados
20 a 40
gramas de
ouro por cada
tonelada de
minério. Em
comparação,
na central de
Suwa, podem
ser
recuperados
1.890 gramas
de ouro, quase
dois
quilogramas,
em cada
tonelada de
cinzas de lodo
incinerado.
Dir-se-ia
que a nossa
civilização
está, por fim,
a lembrar-se
de que o
desperdício
pode ter valor.
Na Europa,
engenheiros
usam o calor
libertado por
esgotos e
incineradores
para manter
edifícios
aquecidos,
enquanto
imensas
centrais de
computação,
como as da
Google e da
Agência de
Segurança
Nacional,
usam água fria
proveniente de
sanitas e
sistemas de
lavagem para
baixar a
temperatura
nas
instalações
que lidam
com
megadados.
Vários tabus
são
responsáveis
por um “fator
de nojo” que
impede a
maioria das
pessoas de dar
valor à
natureza
essencial do
desperdício no
ciclo de
nutrientes.
Mas
devidamente
tratadas, para
que fiquem
livres de
metais
pesados,
doenças e
organismos, as
nossas fezes
podem
transformar-se
em fertilizante
ou, colocadas
em digestores
anaeróbios,
passar a
biogás. Um
relatório
recente das
Nações
Unidas sugere
que os
resíduos
humanos
recolhidos
para produzir
energia tem
um valor
potencial de
9.500 milhões
de dólares por
ano.
Já a nossa
urina, por
outro lado, é
estéril. Em
vez de ser
lançada na
corrente
tóxica dos
resíduos
comerciais,
hospitalares e
industriais que
poluem a água
doce, podia
ser desviada.
O azoto que
cada adulto
produz por
ano só nessa
urina é
suficiente para
cultivar entre
100 e 250
quilogramas
de cereal. Em
vez de
dependermos
tanto de
fertilizante
sintético, que
acaba mais
tarde arrastado
e levado para
o mar,
podíamos
fechar o ciclo
dos resíduos.
Segundo a
OMS, uma só
pessoa, com
as suas fezes e
urina
combinadas,
produz todos
os anos 4,5
quilogramas
de azoto.
Lançando mão
da tecnologia
moderna,
podemos
começar a
regressar à
velha prática
seguida pelos
chineses, que
ao longo de
milénios
manteve o
solo rico.
O
matemático
Alfred North
Whitehead
defendeu que
“a civilização
progride
quando
multiplica o
número de
operações
importantes
que
conseguimos
realizar sem
pensar nelas”.
Os nossos
alimentos
chegam-nos
de lugares que
não vemos; a
nossa energia
é produzida de
formas que
não
entendemos; e
os nossos
resíduos
desaparecem
sem termos de
pensar nisso.
O facto de
termos tantos
ângulos
mortos em
relação à
nossa comida,
energia e
desperdício
está longe de
indicar que
tenhamos
“progredido”
enquanto
sociedade.
Os humanos
deixaram de
estar em
contacto com
aquilo que é
básico no seu
próprio
sistema de
sobrevivência.
Em vez disso,
quebrámos
sucessivament
e os
grandiosos
ciclos naturais
de vida, morte
e
renascimento.
Ao
assumirmos o
controlo do
ciclo de
nascimento e
produzirmos
animais em
pecuária, o
gado
domesticado
supera agora
os mamíferos
selvagens
numa
proporção de
15 para 1. O
nosso sistema
alimentar é
este.
Ao exumar
túmulos pré-
históricos,
perturbámos o
ciclo da
morte. Em vez
de deixarmos
enterrados os
combustíveis
fósseis,
libertámos 45
por cento mais
dióxido de
carbono do
que aquele
que estaria
naturalmente
na atmosfera.
O nosso
sistema
energético é
este.
E quando
deixámos de
usar os nossos
resíduos para
voltar a
cultivar
alimentos no
solo, fintámos
o ciclo de
renascimento
e voltámo-nos
para as
máquinas,
para que estas
aspirassem
azoto da
atmosfera de
uma forma
artificial. Este
é o nosso
sistema de
resíduos.
Em troca, a
população
humana
explodiu –
exigindo mais
alimentos e
mais energia e
produzindo
mais resíduos
–, e em breve
seremos mais
de dez mil
milhões.
Quando
ouvimos
pessoas
afirmar que o
“sistema” está
estragado, em
geral não é ao
sistema que se
referem. Mas
este é o
sistema que
nos sustenta
na Terra; é o
nosso sistema
de suporte de
vida. E os
resultados
ruinosos que
ele provoca
aumentam
rapidamente:
sobrepopulaçã
o, alterações
climáticas e
zonas mortas.
Cada uma
delas, à sua
maneira, é
mortal. Juntas,
são
catastróficas.
Alguém
podia sugerir
que, feitas as
contas,
estamos a
controlar este
sistema. Este
afinal é o
nosso sistema,
criado por
nós. Mas se
conseguimos
ver que as
coisas estão a
seguir um
mau caminho,
dados os
limites de
tempo para a
nossa
sobrevivência,
então porque é
que não
estamos a
mudar de
rumo de uma
forma radical?
Defenderei a
seguir que
isso acontece
porque existe
outro sistema
que nos
mantém onde
estamos, um
sistema que
insiste na
manutenção
da ordem e do
statu quo.
Mas, para o
vermos, temos
de abrir os
olhos para ter
noção das
dimensões
invisíveis que
habitamos.
Precisamos de
olhar com
profundidade
para os
ângulos
mortos do
tempo e do
espaço.
93
Ao contrário
da ideia feita, a
Lua possui
atmosfera,
embora seja
insignificante
em comparação
com a
densidade da
atmosfera da
Terra. O termo
técnico para
este tipo de
atmosfera livre
de colisões é
“exosfera de
fronteira
superficial”.
94
Em 1832, só
em Paris,
morreram de
cólera 20 mil
pessoas.
95
“O solo de
noite humano é
essencialmente
o resíduo do
que as pessoas
comem depois
de terem
absorvido os
nutrientes
necessários. O
solo de noite de
uma população
que comeu
muito peixe e
carne contém
geralmente
mais azoto e
fosfato. As
pessoas cuja
dieta foi
essencialmente
vegetariana
(cereais e
vegetais)
produzem solo
de noite em
geral pobre em
azoto e fosfatos,
mas rico em
potássio e sal.”
Tajima, Kayo,
“The Marketing
of Urban
Human Waste
in the Early
Modern
Edo/Tokyo
Metropolitan
Area”
Environment
urbain:
cartographie
d’un concept,
Vol. 1 (2007).
96
A Guerra do
Guano é
também
conhecida como
Guerra das
Ilhas Chincha.
97
Os dejetos de
aves retiram
todos os anos
do oceano 3,8
milhões de
toneladas de
azoto. O azoto
provém de
gases
dissolvidos no
ar que se
misturam com a
água e se
tornam
hidrogénio
fixado. Durante
o século XIX,
este processo
era
essencialmente
realizado por
cianobactérias.
98
Os nitratos
tinham um fim
duplo: podiam
ser
transformados
em fertilizantes
ou em
explosivos. Um
carregamento
demorava três
meses a chegar
à Europa. Os
alemães, em
especial,
estavam
interessados em
criar a sua
própria fonte de
nitratos, pois
sabiam que em
tempo de guerra
podiam sofrer
um bloqueio e
isso diminuiria
a sua
capacidade para
produzir
alimentos e
repor as
reservas de
pólvora.
99
Hoje, entre 90
milhões e 120
milhões de
toneladas de
azoto no nosso
sistema
alimentar
resultam de
processos
naturais, como
bactérias que
fixam azoto e
relâmpagos.
100
Era duas
vezes maior do
que a primeira
fábrica-piloto,
em Oppau, que
explodiu,
matando 600
pessoas e
ferindo 200,
depois de o
fertilizante
armazenado
num silo ter
solidificado.
Misturado com
nitrato de sódio,
estava a ser
manufaturado
para se tornar
pólvora, mas a
combinação
revelou-se
instável e
provocou uma
explosão que
ainda hoje é
apontada como
um dos maiores
acidentes
industriais da
história. O
Leuna abrange
hoje 13
quilómetros
quadrados.
101
Depois de
muitas
experiências, a
equipa decidiu-
se por ferro
com óxido de
alumínio e
cálcio como
catalisador.
102
Todo esse
dióxido de
carbono em
excesso pode
ser invisível
para nós, mas
continua a ser
lançado. Só os
resíduos
alimentares
representam
anualmente
3.300 milhões
de toneladas de
CO2. É mais do
que duas vezes
e meia as
emissões de
CO2 de todos
os veículos nos
Estados Unidos
juntos.
103
Em todo o
mundo, cerca
de 80 por cento
do azoto
recolhido em
colheitas e erva
vai para
alimentar gado,
em vez de
alimentar
diretamente as
pessoas. Muito
desse azoto
acaba no
esterco dos
animais e
depois
transforma-se
em gás quando
está em imensas
lagoas abertas
junto de centros
de exploração
pecuária
intensiva ou
quando é
espalhado pelos
campos sem ser
devidamente
misturado no
solo. Mingle,
Jonathan. “A
Dangerous
Fixation”, Slate,
12 de março de
2013.
104
É possível
haver excesso
de uma coisa
boa. O processo
é semelhante ao
da alimentação
excessiva de
peixes. O que
sucede é que
adicionámos
artificialmente
duas vezes mais
azoto e três
vezes mais
fósforo do que
aquele que
estaria presente
num sistema
natural.
105
Os dias de
céu azul
político são 4,8
por cento mais
baixos do que
os níveis
médios, mas as
leituras nos
quatro dias
posteriores são
8,2 por cento
mais elevadas.
106
O peso do
monte Evereste
é de
aproximadamen
te mil milhões
de toneladas.
107
O exemplo
mais famoso de
obsolescência
planeada é a
lâmpada
elétrica. A
lâmpada média
incandescente
tem hoje uma
duração de
1.200 horas. As
lâmpadas LED
duram cinco
vezes mais.
Mas, quando
foram
inventadas, as
lâmpadas
duravam muito
mais. A verdade
é que numa
estação de
bombeiros em
Livermore, na
Califórnia, há
uma lâmpada
acesa em
permanência
desde 1901.
108
Existem
algumas
espécies
capazes de
biodegradar
plástico. A
recém-
descoberta
espécie
bacteriana
Ideonella
sakainesis, por
exemplo,
segrega uma
enzima que, nas
condições
ideais de
temperatura,
consegue
decompor
garrafas de
plástico.
109
Há um
bónus: as
emissões de
CO2 resultantes
da queima dos
resíduos são
também
negativas.
110
“Metais
preciosos como
o ouro chegam
aos esgotos por
cortesia de
operações de
extração de
minério,
galvanoplastia,
eletrónica e
joalharia, ou de
catalisadores
para a indústria
ou para o
fabrico de
automóveis.”
PARTE
TRÊS

ÂNGU
LOS
MORT
OS
CIVILI
ZACI
ONAI
S
AQUILO
QUE NOS
CONTROLA
7
Senhores
do Tempo
Dizem
que sou
louco
porque
não
vendo os
meus
dias por
ouro;
e eu digo
que eles
são
loucos
por
pensare
m que os
meus
dias têm
um
preço.
KAHLIL
GIBRAN
No dia 1 de
janeiro de
2018, ao meio
dia e cinco,
várias
centenas de
passageiros
em Auckland,
na Nova
Zelândia,
entraram
numa máquina
do tempo
metálica e
recuaram a
2017. Foi
notícia em
todo o mundo,
ainda que a
máquina do
tempo não
fosse uma
invenção
nova: era o
voo 446 da
Hawaiian
Airlines,
numa ligação
regular. A
única
diferença era
que, dessa
vez, partiu
pouco depois
da meia noite.
Rumou a
nordeste e
cruzou a linha
internacional
de data, para o
Havai, que
tem 23 horas
menos do que
a Nova
Zelândia, o
que significa
que aterrou no
ano anterior,
às dez e 15 da
manhã.
A linha
imaginária
que separa o
mundo em
dois dias é
conhecida
como Linha
Internacional
de Mudança
de Data.
Criada pela
primeira vez
em 1884, esta
linha norte-sul
cruza o
mundo a partir
do coração do
nosso sistema
de tempo
global: o
meridiano de
Greenwich,
em Inglaterra.
Não segue o
mesmo rumo
fixo de uma
coordenada de
longitude; em
vez disso, e
como a linha
de data não
tem estatuto
internacional
legal, faz
ziguezagues
entre países,
que têm
liberdade para
decidir de que
lado querem
estar.
Por causa
disto, alguns
países
encontram-se
agora
separados por
dois dias, em
vez de por
apenas um.
Como é isto
possível? Há
mais de um
século, a
Samoa decidiu
ficar “um dia
para trás”,
para poder
permanecer na
mesma zona
de tempo dos
Estados
Unidos e
assim facilitar
as relações
comerciais.
Kiribati, que
fica
ligeiramente
mais para
leste e tem
uma hora a
menos,
escolheu ficar
do outro lado
da linha de
data, um dia
no futuro.
Depois, em
2011, a Samoa
Ocidental
exerceu o seu
direito
soberano de
mudar de
ideias. Como
a Austrália e a
Nova Zelândia
se tinham
tornado
parceiros
comerciais
mais
importantes,
voltou a saltar
para o futuro,
avançando de
29 de
dezembro para
31 de
dezembro (e,
desse modo,
prescindindo
completament
e do dia 30),
juntando-se
aos países do
outro lado da
linha de data.
A Samoa
Americana,
um território
dos Estados
Unidos,
decidiu,
contudo, ficar
para trás. Isto
quer dizer que
todos os dias,
durante duas
horas,
coincidem na
Terra três
dias. Quando
são 23h30 de
terça-feira na
Samoa
Americana,
são 6h30 de
quarta-feira
em Toronto e
12h30 de
quinta-feira
em
Kiribati.111
A política
dita a hora,
mas a
geografia
também. Nos
polos Norte e
Sul, por
exemplo, não
há zonas
horárias,
porque aqui
convergem
todas as
coordenadas
de longitude.
A uma
latitude de
90o Norte,
onde o gelo
está
constantement
e a mudar,
também não
há habitantes
permanentes,
e por isso
neste local no
Ártico não há,
tecnicamente,
uma hora. Os
exploradores
polares têm
algumas
possibilidades
quando
decidem
escolher uma:
pode ser uma
hora que lhes
seja
conveniente, a
do seu país de
origem, ou
podem utilizar
a do
meridiano de
Greenwich,
como os
astronautas
que dão todos
os dias 16
voltas ao
planeta.
O facto de
todos, em todo
o mundo,
terem os seus
relógios
acertados de
acordo com
um padrão
fixado pelo
Observatório
Real em
Greenwich,
Inglaterra, é
um indicador
de que a
forma como
habitamos o
reino global
do tempo não
é exatamente
natural. É uma
tecnologia e,
como muitas
tecnologias,
nasceu de uma
necessidade
prática.
A razão pela
qual o
meridiano
principal
passa por
Greenwich e
não por outro
lugar qualquer
é que esta
localidade
específica foi
palco, no
século XVIII,
de uma
batalha épica
entre os dois
guardiões do
tempo dessa
época:
astrónomos e
relojoeiros,
que
disputavam
quem
dispunha do
método mais
rigoroso para
medir o
tempo. Os que
olhavam para
as estrelas
faziam os seus
cálculos a
partir do céu,
como sucedia

eternidades,
enquanto os
relojoeiros
depositavam a
sua fé nas suas
próprias mãos
e na sua
capacidade de
construir
máquinas
capazes de
medir o
tempo.
Para os
marinheiros, a
possibilidade
de saber as
horas não era
uma questão
sem
importância.
Era um caso
de vida ou de
morte. E era
também uma
questão de
interesse
nacional. Em
1714, o
parlamento
ofereceu um
prémio de 20
mil libras – o
que, em
dinheiro de
hoje,
representaria
milhões – à
primeira
pessoa que
fosse capaz de
cartografar
com rigor a
longitude. Se
a latitude,
norte ou sul,
podia ser
determinada
pela posição
do Sol, já a
longitude era
bem mais
difícil de
calcular
quando se
deixava de ver
terra. O céu
noturno podia
ser usado para
navegar, como
sucedia há
séculos, mas o
processo não
era
especialmente
rigoroso, e
claro que os
navegadores
podiam querer
saber onde se
encontravam
durante o dia.
Era
fundamental,
de dia, ter um
registo
rigoroso da
hora, para
medir a
distância que
um navio
tinha viajado
para leste ou
para oeste. Era
fácil saber as
horas
localmente,
mas só através
de uma
comparação
com a hora no
porto de
origem era
possível saber
a que
distância se
encontravam.
E, para isso,
precisavam de
um relógio.
Como a
escritora Dava
Sobel
escreveu em
Longitude,
“em todo o
mundo um
grau de
longitude é
igual a quatro
minutos de
tempo, mas
em termos de
distância um
grau encolhe,
passando de
110
quilómetros
no Equador
para
praticamente
nada nos
polos… Por
falta de um
método
prático para
determinar a
longitude,
cada grande
capitão da Era
da Exploração
acabou por se
perder no mar,
mesmo com
os melhores
mapas e
bússolas
disponíveis”.
No final, o
problema
acabou por ser
resolvido por
um mestre
relojoeiro
chamado John
Harrison, que
construiu um
relógio de
uma precisão
tal que só se
atrasava um
terço de
segundo por
dia. E à
medida que os
relógios do
mar, ou
cronómetros,
se foram
expandido, o
Império
Britânico
também.
Assim, não
foram só
“armas,
germes e aço”,
para fazer
uma
referência ao
livro de Jared
Diamond, que
ajudaram a
Britannia a
conquistar
novas terras,
foi também o
controlo que o
império
exercia sobre
o tempo.
Segundo
especialistas
em horologia,
a tecnologia
dos
cronómetros
permitiu aos
britânicos
“dominarem
as ondas” e
conquistarem
novas terras
para lá delas.
Mas o
tempo não é
apenas linhas
imaginárias.
Enquanto
dimensão, o
tempo pode
ser invisível
para nós, mas
conseguimos
sentir a sua
presença.
Podemos ver
o efeito do
tempo nos
nossos corpos
à medida que
envelhecemos
e testemunhar
os seus ciclos
no corpo do
planeta,
através da
sequência
sazonal de
verdes,
vermelhos e
brancos. Há
muito que as
pessoas
dependem da
natureza para
saber as horas,
incluindo sob
a bela forma
das flores. Em
1750, o
botânico e
célebre
taxonomista
sueco Carl
Linnaeus teve
uma ideia
inteligente
para medir o
tempo.
Desenhou o
projeto
daquilo a que
chamou um
horologium
florae, ou
relógio de
flores.
Sabendo que
certas plantas
florescem a
certas horas
do dia,
Linnaeus
defendeu que
era possível
dizer que
horas eram só
por olhar para
um jardim e
ver quais as
espécies que
estavam a
florescer.
Linnaeus
chamou a
estas plantas
especiais
aequinoctales.
Entre as
espécies que
ele viu a
florescer a
determinadas
horas estavam
os lírios de um
dia, a pilosela
ou a tagetes.
E, deste
modo, um
relógio de
flores
funcional,
como o
imaginou o
poeta Tom
Clark, seria
qualquer coisa
deste género:

6h A
leiteiriga
abre;
7h A
tagetes
africana
abre;
8h A
pilosela
orelha-de-
rato abre;
9h O
sonchus
fecha;
10h A
lapsana
fecha;
11h O
ornitogalo
abre.

O relógio de
flores de
Linnaeus
nunca poderia
vingar,
porque, na
maioria das
plantas que
ele observou,
o momento de
abrirem ou
fecharem não
dependia de
uma hora
especial do
dia, mas da
quantidade de
luz que
recebiam. As
flores são
relógios
locais.
Durante o
longo sol de
verão, as
flores na
latitude de
Uppsala, na
Suécia, a
norte, não
abririam ao
mesmo tempo
que as de
Brooklyn, em
Nova Iorque.
A visão não
é, contudo, a
única maneira
de ver as
horas; também
é possível
através do
som. Os
alarmes dos
despertadores
e os toques
das escolas
são comuns
para nós, mas
o despertar da
natureza ainda
é feito através
do canto dos
pássaros. Um
artigo no The
Horological
Journal
assegurou que
é possível
saber as horas
através deste
“relógio
ornitológico”,
se se souber
quando é que
um pássaro
específico
canta. Por
exemplo, o
tentilhão-
verde (“o mais
madrugador
entre todas as
tribos com
penas”) canta
entre a 1h30 e
as 2h, a
toutinegra
vem a seguir,
entre as 2h e
as 2h30,
depois é a vez
da ferreirinha,
das 3h às
3h30, do
melro, das
3h30 às 4h,
das cotovias,
entre as 4h e
as 4h30, do
chapim-de-
crista-preta
entre as 4h30
e as 5h e
finalmente,
quase na
alvorada,
entre as 5h e
as 5h30, do
pardal. Mas,
mais uma vez,
o relógio da
natureza não
pode ser
replicado,
porque
depende quer
da
localização,
quer das
espécies de
aves.
Para além
do ouvido e da
visão, há outro
sentido que
também
podemos usar
para saber as
horas. Durante
a dinastia
Song (entre os
anos 960 e
1279), os
chineses
construíram
relógios de
incenso com
os quais
cheiravam o
passar das
horas. Em A
Geography of
Time, Robert
Levine
escreve: “Este
engenho de
madeira
consistia
numa série de
pequenas
caixas do
mesmo
tamanho
ligadas entre
si. Em cada
caixa estava
uma
fragrância de
incenso
diferente.
Conhecendo o
tempo que
cada caixa
demorava a
consumir o
que tinha no
interior, e a
ordem pela
qual os
incensos
ardiam, os
observadores
conseguiam
identificar a
hora do dia
pelo cheiro
que pairava no
ar.”
Estes são
apenas alguns
dos métodos
que a nossa
espécie tem
usado para
contar o
tempo, mas os
humanos não
são as únicas
criaturas
atentas a isso.
Sabe-se que
muitos
animais –
como abelhas,
ratos e
cigarras, só
para referir
alguns –
registam com
precisão a
passagem do
tempo. Mas
surge muitas
vezes uma
questão
essencial: será
que estes
animais
indicam a
hora do dia
com base em
sinais
ambientais
exteriores,
como o sol, ou
haverá algum
outro relógio
biológico que
lhes permite
registá-la
internamente?
Um dos
estudos mais
conhecidos a
examinar
como é que os
animais
experienciam
o tempo foi
realizado em
1955 pelos
cientistas Max
Rener e Karl
von Frisch.
Sabia-se que
as abelhas
comuns vão
alimentar-se
com
frequência
todos os dias à
mesma hora e
que também
podiam ser
treinadas para
procurar
alimento em
alturas
específicas.
Os
investigadores
queriam saber
se uma
mudança na
zona horária
afetaria o seu
comportament
o. Assim,
colocaram 40
abelhas numa
divisão
fechada em
Paris e
treinaram-nas
para todos os
dias
procurarem o
jantar entre as
20h15 e as
22h15. A luz,
temperatura e
humidade na
sala eram
mantidas
constantes.
Então, uma
noite, entre
momentos de
procura de
alimento,
Renner pôs os
insetos numa
caixa e levou-
os para o
outro lado do
Atlântico.
Quando
voltou a abrir
a caixa, as
abelhas
encontravam-
se numa
divisão selada
idêntica, mas
em Nova
Iorque.
A questão
era: quando é
que as abelhas
sairiam para
se alimentar?
Existiria
algum sinal
externo
relacionado
com a posição
da Terra e sem
relação com a
luz do sol que
levasse as
abelhas a sair
para
procurarem
alimento às
20h15, hora
de Nova
Iorque? As
abelhas
responderam
saindo a meio
da tarde, pelas
15h15,
demonstrando
que estavam a
registar o
tempo
internamente,
porque em
Paris eram
precisamente
20h15, hora
de jantar.
No Pacífico
Sul, há uma
outra criatura
conhecida
pelo seu
sentido do
tempo: o
palolo. Todos
os anos, estas
minhocas
marinhas são
protagonistas
de um
acontecimento
de desova em
massa que traz
à superfície da
água alguns
milhões delas,
uma vez que
têm o
acasalamento
sincronizado
com as fases
da Lua. Para
os locais, esta
orgia é
também um
festim
gastronómico.
Um artigo na
National
Geographic
narrava: “As
minhocas são
fritas em óleo
ou cozinhadas
num pão com
óleo de coco e
cebolas. Um
novo prato do
dia surge nos
menus dos
restaurantes
locais:
minhoca
palolo sobre
tosta. É
considerado
um prato
gourmet.” Na
verdade, no
Vanuatu, o
acontecimento
tem uma
importância
de tal ordem
que está
assinalado no
calendário
lunar.
Então, como
é que um
animal
aparentemente
simples, como
uma minhoca,
sabe ver as
horas? Ao
estudar uma
espécie
diferente de
minhoca
marinha, a
Platynereis
dumerilii, a
neurobiologist
a Kristin
Tessmar-
Raible
encontrou
provas de um
relógio
biológico
lunar. Num
ambiente
laboratorial,
usando
lâmpadas
LED e
comuns,
descobriu que
as minhocas
criadas num
aquário com
as luzes
constantement
e acesas nunca
desenvolviam
ciclos
reprodutivos.
Mas se as
luzes fossem
ligadas por
um período
determinado,
como se
existisse uma
lua artificial,
as minhocas
entravam em
sincronia com
o seu próprio
relógio
circadiano.112
O mecanismo
exato por trás
deste
comportament
o ainda
permanece um
mistério, mas
as minhocas
possuem
efetivamente
nos seus
cérebros
neurónios
sensíveis à
luz. Os
investigadores
acreditam que
isto faz
funcionar uma
espécie de
circuito neural
repetitivo,
para que
“alguma coisa
no corpo
preserve a
memória
dessas
iluminações
noturnas”.
Claro que o
animal
humano
também
possui um
ritmo
circadiano.
Como a maior
parte dos
seres, o nosso
ciclo diário
está
sincronizado
com o sol, e
embora não
haja uma
correspondênc
ia perfeita de
24 horas, é
notavelmente
próxima.
Investigadores
da
universidade
de Harvard
descobriram
que o relógio
interno de
cada pessoa
funciona de
acordo com
um ciclo de 24
horas e 11
minutos, com
uma margem
de erro de 16
minutos.
Havia
curiosidade
entre
cientistas para
saber se o
ritmo
circadiano
humano podia
ser enganado,
como foi
tentado com
as abelhas.
Em 1972, para
determinar
isso, um
geólogo
chamado
Michel Siffre
aceitou
participar num
estudo
financiado
pela NASA no
qual passaria
seis meses
sozinho numa
caverna em
Del Rio, no
Texas.
Objetivo?
Descobrir
como
responderia o
corpo humano
a um
isolamento
prolongado.
Siffre não
passaria fome.
Todas as suas
necessidades
básicas
estavam
asseguradas:
haveria
alimentos e
água em
abundância e
até lhe era
dada a
possibilidade
de controlar a
temperatura e
a iluminação.
Mas, para
além disso,
não tinha
pistas
externas,
como por
exemplo a luz
do sol ou as
estações do
ano, que
funcionassem
como relógio
interno.
Para Siffre,
um
experimentad
o explorador
de grutas, os
dois primeiros
meses foram
relativamente
fáceis. Leu
Platão, ouviu
discos e
explorou o seu
novo
ambiente. No
âmbito da
investigação,
havia
elétrodos
ligados ao seu
corpo para
seguirem o
cérebro, o
coração e a
atividade
muscular.
Siffre também
foi mantendo
um diário
onde escrevia
os pormenores
da
experiência.
Uma das
principais
descobertas
foi que, sem a
luz do dia para
calibrar o seu
relógio
interno, o
corpo de
Siffre
abandonou o
ciclo diário de
24 horas e
encontrou um
diferente.
Periodicament
e, ficava
acordado 32
horas e
dormia 16. E,
algumas
vezes, o seu
corpo assumiu
durante algum
tempo um
ciclo de 48
horas, embora
a variação em
geral oscilasse
entre as 18 e
as 52 horas.
Dentro da
gruta e sem
muita luz, as
fronteiras do
tempo
começaram a
tornar-se
difusas.
“Acredito que,
quando
estamos
rodeados pela
noite – a gruta
estava
completament
e escura,
apenas com
uma lâmpada
–, a nossa
memória não
apreende o
tempo”,
afirmou ele.
“Esquecemo-
nos. Ao fim
de um ou dois
dias, não nos
lembramos do
que fizemos
um ou dois
dias antes. As
únicas coisas
que mudam é
quando
acordamos e
quando nos
deitamos. Para
além disso, é
sempre
escuro. É
como se fosse
um longo
único dia.”
No 79.º dia,
Siffre não só
tinha
começado a
perder a noção
do tempo
como tinha
começado a
perder a
cabeça. Sem
contacto com
o exterior,
sentia uma
desolação
esmagadora.
O seu único
“amigo” era
um rato que
lhe vinha
roubar os
víveres. Por
isso sentiu
uma perda
terrível
quando um
dia, por
acidente,
esmagou o
rato (estava a
tentar apanhá-
lo, com uma
frigideira,
para tentar
domesticá-lo);
então, sem
ninguém para
lhe fazer
companhia, a
depressão
piorou. Siffre
começou a
pensar em
suicídio.
Mergulhou
tanto neste
negrume
mental que
quando uma
tempestade no
exterior lhe
enviou uma
descarga de
eletricidade
para os
elétrodos
cardíacos,
estava
espiritualment
e tão
atordoado que
foram precisas
quatro
descargas
antes de lhe
ocorrer sequer
que tinha de
retirar os fios.
Finalmente,
no dia 179,
saiu. O estudo
tinha sido
muito difícil,
mas, se havia
uma pequena
bênção, era
esta: Siffre
pensava que
tinha estado
menos tempo
na gruta.
Estudos mais
recentes
descobriram
que o
isolamento de
estímulos
externos dilata
o tempo.
Siffre julgava
que se
encontrava na
gruta há
apenas 151
dias.
Enquanto
dimensão, o
tempo vai
muito para
além da escala
e perceção
humanas. Isso
acontece
porque a
verdadeira
natureza do
tempo não é
só profunda,
mas infinita,
indo desde o
Big Bang até
ao momento
atual. Na
cosmologia
hindu e
budista, a
palavra kalpa,
do sânscrito,
refere-se a
este tempo
estendido,
com cada
kalpa a durar
um éon de
4.320 milhões
de anos
humanos. Esta
extensão do
tempo altera
as nossas
perceções113 e
dá-nos de
algum modo
um melhor
sentido de
onde nos
encontramos
no contínuo.
Imaginem, por
exemplo, que
se em vez do
ano 2020
marcássemos
a data a partir
de um ponto
inicial
diferente. Isto
é, se não
contássemos a
partir do
nascimento de
Cristo, mas a
partir do
nascimento do
sistema solar.
De que forma
diferente
olharíamos
para o nosso
tempo na
Terra se
escrevêssemos
a data 26 de
janeiro do ano
4.543
milhões?
Na escala
hiperimediata,
também
falamos de
tempo rápido.
Se ouvirmos
alguém usar
as expressões
em inglês
“estou aí em
dois shakes”
ou “num
jiffy”, isso
significa que
será
imediatamente
. Mas, em
eletrónica, um
jiffy tem um
significado
mais preciso.
Refere-se ao
período de um
ciclo de
energia
alternada, ou
1/60 de um
segundo. Por
outro lado, um
shake equivale
a dez
nanossegundo
s, ou 10-8
segundos, e é
usado em
física como
uma medida
para
cronometrar
as reações em
cadeia numa
explosão
nuclear.
Para os não
cientistas,
aquilo de que
em geral
falamos
quando nos
referimos ao
tempo é do
que sentimos
numa escala
humana.
Durante a
maior parte da
história, o
tempo era
qualquer coisa
de tangível.
Os nossos
próprios
corpos
mantinham o
registo do dia
e da noite e os
corpos
celestes
marcavam as
nossas
estações e
calendários
astronómicos.
O Sol, a maior
e mais
brilhante
estrela do
nosso céu, é o
corpo celeste
que ainda
usamos para
assinalar a
passagem do
tempo. Para os
antigos
egípcios,
quando o Sol
se punha, a
medição do
próprio tempo
desaparecia, e
isto continuou
a ser assim
com os
relógios de sol
romanos.
Como rezava
a inscrição
num destes
relógios de
sol, “Absque
sole absque
usu”. Isto é,
“sem Sol, sem
utilidade”.
O relógio de
água, ou
clepsidra, foi
o primeiro
engenho a
marcar a
passagem do
tempo depois
do pôr do sol,
usando uma
quantidade
específica de
água que
demorava um
tempo
determinado a
pingar através
de um orifício
para um
recipiente. A
ampulheta,
hoje usada
essencialment
e como
elemento
decorativo,
também media
o tempo
usando a
gravidade.
Em
diferentes
partes do
mundo, o
tempo tem
sido medido
de formas que
podemos
agora
considerar
bastante
invulgares. O
historiador
E.P.
Thompson
observou:
“Em
Madagáscar, o
tempo pode
ser medido
por uma
‘cozedura de
arroz’ (cerca
de meia hora)
ou pela
‘fritura de um
gafanhoto’
(um instante).
Habitantes de
Cross River
[na Nigéria]
terão dito que
‘o homem
morreu em
menos tempo
do que leva a
assar milho’
(menos de
quinze
minutos).” O
tempo não era
uma
construção
abstrata, mas
uma medida
real baseada
na duração
habitual de
alguns
acontecimento
s. Mas todos
os métodos de
medição de
tempo do
passado –
desde o uso
das estrelas à
água e do
arroz cozido
aos
gafanhotos
fritos – eram
ainda medidas
da
transformação
de organismos
físicos. Só
com a
invenção do
relógio é que
o tempo se
tornou uma
unidade de
medida
centrada em si
mesma.
Hoje,
quando
olhamos para
o relógio de
pulso, vemos
um tempo que
o próprio
relógio criou.
Ou seja, o
tempo do
relógio é uma
invenção
humana. Em
inglês, a
expressão
“o’clock”
ainda vem daí.
“Ten o’clock”
é “ten of the
clock”, do
relógio. A
distinção entre
tempo “do
relógio” e
tempo vivido
costumava ser
importante,
mas hoje o
tempo “do
relógio” é
praticamente
universal.
Poucos de nós
medem a hora
do dia pela
subida das
marés ou pela
posição das
estrelas. O
tempo já não é
um fluxo
dimensional
que nós, em
conjunto com
o resto da
natureza,
habitamos,
mas antes uma
construção,
uma “coisa”
que ordena as
nossas vidas e
à qual temos
de obedecer.
Isto não
significa que
seja uma má
ideia termos
tempo
coordenado.
Antes de
estarmos
sincronizados,
era difícil
fazer
combinações e
a maior parte
dos encontros
tinham de
acontecer a
horas claras e
específicas,
como por
exemplo ao
raiar da
aurora. O
facto de no
passado o
tempo ser
inexato queria
também dizer
que era
flexível. E
hoje, em
muitas partes
do mundo, o
tempo ainda
não é uma
entidade
rígida. É por
isso que
muitas
pessoas
adoram a
experiência de
“andar sem
horas”. Para
os que viajam,
isso permite-
lhes escapar
ao ritmo
rigoroso do
mundo
moderno. A
ideia é que o
tempo não nos
controla,
somos nós que
controlamos o
tempo.
O tempo
localizado foi
a forma como
medimos o
tempo durante
a maior parte
da história. Os
primeiros
relógios
mecânicos
apareceram
por volta do
século XIV e
usavam
qualquer coisa
chamada
escape. No
essencial, é
um
mecanismo
com pesos que
anda para trás
e para a frente
e movimenta
uma roda
dentada. Isto
criou o tique,
ou o ritmo, do
tempo. Estes
primeiros
relógios eram
colocados nos
centros das
cidades e em
igrejas e
marcavam a
hora dos
acontecimento
s públicos.
Um século
depois, no
início dos
anos 1500, o
ferreiro
alemão Peter
Henlein
inventou o
primeiro
relógio.
Também se
tornou, em
1524, o
fabricante dos
primeiros
relógios de
bolso. Estes
relógios
portáteis
encolheram os
aparelhos do
tempo de uma
forma
semelhante
àquela como
os
computadores
pessoais
encolheram
para o
tamanho dos
telemóveis. E,
tal como os
primeiros
telemóveis,
estes novos
relógios eram
caros. Só os
ricos podiam
adquirir as
criações de
Henlein.
Os relógios
portáteis só se
generalizaram
no início do
século XIX.
Para
determinar a
longitude, os
navegadores
tornaram-se os
primeiros a
adotar os
cronómetros
portáteis. Em
1737, só
existia um
cronómetro,
mas em 1815
já eram mais
de cinco mil.
Na verdade,
foram os
militares que
popularizaram
o uso de
relógios de
pulso. Em
1880, o
fabricante de
relógios suíço
Constant
Girard
produziu em
massa dois
mil relógios
para oficiais
da marinha
alemã. Na
Primeira
Guerra
Mundial, estes
relógios de
pulso, ou
“relógios de
trincheira”,
como se
tornaram
conhecidos,
permitiram
aos soldados
coordenar os
seus
movimentos
sem terem de
vasculhar as
mochilas à
procura de um
relógio de
bolso. Para os
aviadores, um
relógio de
pulso era
especialmente
útil, pois
permitia-lhes
manter as
duas mãos nos
comandos.
Mesmo
assim, o
tempo
manteve o seu
próprio ritmo
local em
várias partes
do mundo. E a
pressão para
criar uma hora
global baseada
em medidas
europeias
encontrou
resistência.
Como Ian
Beacock
escreveu na
revista The
Atlantic, no
artigo “A
Brief History
of (Modern)
Time”, a
mudança do
tempo local
para um
tempo
padronizado
gerou, em
alguns casos,
oposição
violenta:

“Em
janeiro de
1906,
vários
milhares
de
trabalhado
res de
tecelagens
de
algodão
nos
arredores
de
Bombaim
revoltara
m-se.
Recusand
o-se a
trabalhar
nos seus
teares,
apedrejara
m fábricas
e a sua
revolta
espalhou-
se para o
centro da
cidade,
onde mais
de 15 mil
cidadãos
assinaram
petições e
marchara
m em
fúria pelas
ruas.
Protestava
m contra a
proposta
para
abolir a
hora local
em favor
da Hora
Padrão
Indiana,
para ficar
cinco
horas e
meia à
frente da
de
Greenwic
h. Para os
indianos
do início
do século
XX, isto
parecia
mais uma
tentativa
para
esmagar
as
tradições
locais e
reforçar o
poder
britânico.
Só em
1950, três
anos após
a
independê
ncia da
Grã-
Bretanha,
foi
adotada
uma zona
horária
única a
nível
nacional.
Os
jornalistas
batizaram
esta
disputa
como
Batalha
dos
Relógios.
Durou
quase
meio
século.”

A hora,
como em
breve
veremos, veio
beneficiar
algumas
pessoas à
custa de
outras. E à
medida que a
sua medição
se foi
tornando mais
precisa, o
tempo
moderno
tornou-se
menos
flexível.
Tendo perdido
a ligação com
medidas que
somos
fisicamente
capazes de
perceber, o
tempo
moderno não
é uma medida
de organismos
ou de
acontecimento
s. É
impercetível.
E este é o
nosso ângulo
morto:
confundimos a
nossa medida
humana do
tempo com o
próprio
tempo. O
poder do
tempo sobre
nós está no
facto de ser
intangível. No
fim de contas,
como é que se
consegue
controlar
qualquer coisa
sobre a qual
não se tem
controlo?
O relógio de
quartzo médio
oscila a partir
das vibrações
impercetíveis
de um cristal a
32.768 Hz. Os
relógios
atómicos que
tudo
governam, do
GPS aos
nossos
smartphones e
aos
semáforos,
medem as
vibrações
invisíveis de
átomos de
estrôncio. Os
relógios
atómicos do
Observatório
Naval dos
Estados
Unidos
possuem uma
tal precisão
que não se
atrasarão um
segundo em
mais de 300
milhões de
anos, mas até
este grau de
precisão nada
tem que ver
como os mais
recentes
engenhos
horológicos.
Hoje, o mais
preciso dos
relógios
atómicos
atrasar-se-á
apenas um
segundo em
90 mil
milhões de
anos. O tempo
enquanto
medida em si
é agora
completament
e abstrato.
Como Dean
Buonomano
escreveu em
Your Brain is
a Time
Machine, “em
1967, um
consórcio
internacional
definiu um
segundo como
‘a duração de
9.192.631.770
períodos da
radiação
correspondent
e à transição
entre os dois
níveis
hiperfinos do
estado
fundamental
do átomo de
césio 133’. A
unidade básica
de tempo
passou a estar
permanenteme
nte divorciada
das dinâmicas
observáveis
dos planetas e
colocada no
domínio do
comportament
o impercetível
de um único
elemento”.
Se outrora o
tempo foi
subjetivo, hoje
é totalmente
objetivo. Não
é o sol que
nos diz a hora.
Em vez disso,
andamos às
ordens do
tempo
atómico. A
humanidade
inteira foi
sincronizada.
O tempo já
não é um sinal
do sol, mas
um pulsar
constante que
nos é
apontado a
partir de
satélites no
espaço.

Em 2013,
uma jornalista
da estação de
televisão
japonesa
NHK, Miwa
Sado, de 31
anos, morreu
subitamente,
com o
telemóvel nas
mãos, de um
mal conhecido
como karoshi,
um termo
japonês que
significa
“morte por
excesso de
trabalho”.
Este termo
existe porque,
no Japão, a
mortalidade
ocupacional é
uma doença
real. Sado
tinha feito
nesse mês 159
horas
extraordinária
s114 antes de
cair vítima de
uma falha
cardíaca.
Segundo o
repórter Jake
Adelstein, que
trabalha a
partir de
Tóquio, a sua
morte súbita
foi apenas
uma entre
milhares que
acontecem
todos os anos
resultantes de
provável
excesso de
trabalho.
O governo
abriu uma
investigação e
em 2016
publicou o seu
primeiro livro
branco sobre
karoshi. O
relatório
indicava que
um quinto de
todos os
trabalhadores
japoneses se
encontrava em
risco de morte
por excesso de
trabalho. De
acordo com as
empresas
investigadas,
22,7 por cento
dos
funcionários
registavam
mais de 80
horas de
trabalho extra
por mês – o
limiar em que
o trabalho a
mais se torna
um risco de
saúde – e
outros 12 por
cento tinham
feito mais de
100 horas
extraordinária
s.
A tirania do
tempo não é
nova – e
seguramente
que não é
exclusiva do
Japão. Há
milénios que o
tempo
estrutura os
nossos dias. Já
há dois mil
anos as
pessoas se
queixavam.
Numa das
suas peças,
escrita no ano
224 a.C., o
dramaturgo
romano Plauto
amaldiçoava o
relógio de sol
com estas
palavras
famosas:
Os deuses
amaldiçoe
m o
homem
que
descobriu
primeiro
Como
distinguir
as horas.
Amaldiço
em
também o
que,
Neste
lugar
colocou
um
relógio de
sol,
Para tão
maldosam
ente
cortar e
dividir os
meus dias
Em
pedaços
pequenos!
Quando
eu era um
rapaz
O meu
relógio de
sol era a
minha
barriga –
e tinha
mais
certeza,
Mais
verdade, e
mais
exatidão
do que
qualquer
deles.
O relógio
dizia-me
quando
era a
altura
certa
Para ir
jantar,
quando
devia
comer:
Mas hoje,
porque é
que
mesmo
quando
tenho
fome,
Não posso
ir a menos
que o sol

autorizaçã
o.
A cidade
está tão
cheia
destes
malditos
instrumen
tos.
Os relógios
de sol de
ontem são os
digitais de
hoje. E
embora nos
seja recordado
com
frequência
como o nosso
passado
ancestral era
brutal, vale a
pena lembrar
que na sua
procura de
alimentos o
caçador-
recolector
trabalhava em
média três a
cinco horas
por dia ou 20
horas por
semana.
Materialmente
, podemos ter
sido pobres,
mas quanto a
tempo éramos
ricos. E se
realmente
tempo é
dinheiro,
então não
estávamos
assim tão
mal.
O sociólogo
Daniel Bell
fez esta
observação
arguta: a
“industrializaç
ão não teve o
seu início com
a abertura de
fábricas”,
começou
“com a
medição do
trabalho”.
Dito de outra
forma, a
invenção da
máquina a
vapor ou da
máquina de
fiar não
mudou tanto o
mundo como
a nossa atitude
em relação ao
tempo. Num
exemplo
notável da
expressão
“tem cuidado
com aquilo
que desejas”,
acontece que a
ideia de
trabalho
extraordinário
nasceu entre
os fabricantes
de tecidos na
Europa nos
anos 1300. Na
Idade Média,
o tempo de
trabalho era,
como sempre
tinha sido,
equivalente à
quantidade de
trabalho que
podia ser feita
à luz do dia,
do nascer ao
pôr do sol. Na
realidade, as
coisas eram
ainda bastante
descontraídas.
115
Nas
cidades, os
sinos das
igrejas
assinalavam o
início e o fim
do dia de
trabalho; para
os
trabalhadores
agrícolas, isso
não era
necessário,
porque
quando estava
escuro era
impossível
trabalhar no
campo. Os
fabricantes de
tecidos, por
outro lado,
trabalhavam
no interior,
nas fiações, e
por haver
tantos dias de
festa no ano
(marcados
pelo
calendário
religioso)
estavam
proibidos de
fiar durante
esses
períodos. Isso
queria dizer
que nem
sempre
conseguiam
completar o
trabalho. Para
o
conseguirem,
começaram
então a pedir
mais horas de
trabalho e a
pagar mais,
uma coisa que
hoje é banal,
mas que era
então
desconhecida.
No entanto,
trabalhar de
noite era
ilegal; os que
fossem
apanhados a
trabalhar à luz
da vela eram
multados e
banidos do
comércio para
sempre.
Foi só em
1315 que os
proprietários
das fiações de
algodão
começaram a
autorizar o
trabalho
noturno. Tanto
quanto se
sabe, foi um
dos primeiros
casos de
pagamento
por tempo
contado pelo
relógio. Como
conta o
historiador
Peter Sabel,
nas cidades de
Artois e
Flandres,
centros da
indústria de
tecido,
começou a ser
usado o termo
clocke des
ouvriers, ou
“sino dos
trabalhadores”
. E em breve
um novo
ritmo
começaria a
ser imposto
pelos
fabricantes de
têxteis.
Ao contrário
dos antigos
relógios de
igreja, a nova
adesão dos
trabalhadores
aos relógios,
ou
Werglocken,
era alvo de
uma aplicação
mais rigorosa.
Para os
impedir de
fazer batota e
de passar o
tempo sem
fazer nada, os
novos relógios
indicavam
quando é que
os
trabalhadores
deviam ir
trabalhar,
quando
começava e
acabava a
pausa para
almoço e
quando
deviam
terminar, no
fim do dia. Os
trabalhadores
não gostaram
tanto desta
nova fórmula
como
pensaram que
iam gostar.
Havia multas
para os que se
atrasavam e
chegavam
depois do sino
da manhã e
foram
penalizadas as
tentativas para
resistir a este
novo
esquema. Nos
casos mais
extremos, usar
o sino para
convocar uma
resistência
armada de
trabalhadores
ou uma
revolta contra
o rei, o
vereador ou o
próprio
homem do
sino era
punível com a
morte. O
historiador
Jacques Le
Goff observou
que esta
transformação
temporal
constituiu um
limiar entre o
mundo dos
ciclos
naturais,
antigos, e o
mundo como
o conhecemos
hoje: “Nas
localidades
que
produziam
tecido, a
cidade
recebeu o
fardo de um
novo tempo, o
tempo dos
fabricantes de
tecido.”
Na Idade
Média era
difícil
incentivar os
tecedores a
trabalharem
até morrer,
porque não
valia assim
muito a pena
juntar dinheiro
para além
daquilo que
era necessário
para viver. Só
quando a era
industrial
trouxe consigo
uma sociedade
de consumo
em expansão é
que um
pagamento
extra passou a
conter a
promessa de
mais luxos e a
possibilidade
de ascensão
social. Mas o
tempo tinha
sempre sido
considerado
precioso e as
pessoas não
abririam mão
dele com
facilidade.116
Foi preciso
educar os
trabalhadores.
O fim do
século XVII é
a ocasião em
que a palavra
“pontual”
entra nos
nossos
vocabulários
da forma que
a usamos hoje.
Antes, tinha
uma
conotação
diferente e
implicava que
uma pessoa
era demasiado
atenta aos
pormenores.
No entanto,
chegar “a
tempo”
começou a ser
cada vez mais
apontado
como uma
qualidade.
Num panfleto
intitulado
Conselho
Amigável aos
Pobres, o
reverendo
inglês J.
Clayton
queixou-se
das “crianças
esfarrapadas e
que não fazem
nada” que não
obedeciam ao
tempo.
Defendeu que
as escolas
deviam ter um
novo
propósito. Em
1755,
escreveu: “Os
Académicos
são obrigados
aqui a
levantar-se
cedo e a
respeitar as
Horas com
grande
Pontualidade.”
Foram
colocados
sinos nas
escolas para
organizar o
dia,
considerando
que um
modelo fabril
de ordem
repetitiva
prepararia os
jovens para a
indústria e
para o
trabalho duro.
Como Alvin
Toffler
escreveu em
Choque do
Futuro: “As
crianças
marchavam de
lugar em lugar
e sentavam-se
em posições
determinadas.
Havia
campainhas a
tocar para
anunciar
mudanças de
aula. A vida
interior da
escola tornou-
se assim um
espelho
antecipatório,
uma
introdução
perfeita à
sociedade
industrial. As
caraterísticas
da educação
que hoje são
mais
criticadas – a
arregimentaçã
o, a falta de
individualizaç
ão, os
sistemas
rígidos de
organização,
agrupamento,
classificação e
notas, o papel
autoritário do
professor –
são
precisamente
as que
tornaram a
educação
pública
maciça num
instrumento
tão eficaz de
adaptação ao
seu lugar e
tempo.”
Era uma
cultura em
transição para
um mundo
fabril assente
em máquinas.
Era uma
mudança
épica. E
envergonhar
os que
desdenhavam
do tempo era
uma maneira
de a
promover. No
século XVIII,
a pontualidade
e o rigor eram
apontados
como
elementos
essenciais de
uma boa
cidadania,
enquanto a
preguiça e o
desperdício de
tempo no
trabalho eram
considerados
próprios dos
pobres e
desleixados.
Foi por esta
altura que
Benjamin
Franklin
proferiu a sua
famosa frase
“tempo é
dinheiro”.
Num ensaio
de 1748,
intitulado
“Conselhos a
um Jovem
Comerciante”,
escreveu:
“Lembrem-se
de que tempo
é dinheiro. O
que for capaz
de ganhar dez
shillings num
dia com o seu
trabalho, e for
divertir-se ou
ficar sem
fazer nada
metade do dia,
mesmo que
durante a sua
diversão ou
ociosidade
não gaste mais
de sixpence,
não deve
considerar
essa a sua
única despesa;
na verdade,
também
gastou ou
desperdiçou
cinco
shillings.”
Os
capitalistas
industriais
eram agora os
“donos” do
tempo de
trabalho e,
dessa forma,
eram donos
dos operários.
Quando se
vende o
tempo, é
difícil usá-lo
como se quer.
Aos olhos dos
capatazes, o
uso não
lucrativo do
tempo
equivalia a
roubo, por
isso os hábitos
de desperdiçar
tempo tinham
de ser
erradicados da
força de
trabalho. Uma
maneira de o
fazer era com
penalizações.
Em County
Durham,
Inglaterra, Sir
Ambrose
Crowley e o
filho
escreveram 94
regras em The
Law Book of
the Crowley
Ironworks (o
livro da lei da
fundição
Crowley) que
tinham que
ver
especificamen
te com o
tempo. Tempo
desperdiçado
era tempo não
pago: “Este
serviço deve
ser calculado
depois de
todas as
deduções pelo
tempo passado
em tabernas,
cervejarias,
cafés, para
almoço e
jantar, para
jogar, dormir,
fumar, cantar,
ler notícias,
em
discussões,
discórdias,
disputas ou
qualquer coisa
alheia ao meu
negócio,
andando por
qualquer
forma a
vadiar.”
Mas o
tempo das
fábricas não ia
limitar-se às
fábricas ou às
escolas.
Estava a
alastrar.
Depois de
passar de
dimensão
vasta a
“valor”, em
breve o tempo
iria tornar-se,
em si próprio,
um produto.

No século
XIX, a hora
era aleatória.
Em 1875, os
caminhos de
ferro
americanos
tinham de
operar em 75
zonas horárias
em todo o
país, com a
maioria das
cidades a
regularem
ainda a sua
hora pelo
meio dia,
quando o Sol
estava no
ponto mais
alto. Na
Alemanha,
como
escreveu Ian
Beacock, “os
viajantes
tinham de
esclarecer se
as partidas se
faziam de
acordo com a
hora de
Berlim,
Munique,
Estugarda,
Karlsruhe,
Ludwigshafen
ou
Francforte”.
Para evitar
toda esta
confusão,
como agora é
bem sabido, a
sincronização
do tempo e a
criação de
zonas horárias
foi iniciada
em grande
parte pelos
caminhos de
ferro.
O problema
não eram os
relógios; nesta
altura, já eram
bons a medir o
tempo. Mas
sem uma
estandardizaçã
o a nível
nacional ou
continental
eram
efetivamente
inúteis para
conseguir uma
coordenação.
E, por isso,
dois
empresários
entraram
rapidamente
nesta falha
temporal e
mudaram de
facto para
sempre a
nossa
perceção do
tempo.
Samuel P.
Langley foi a
primeira
pessoa a
vender tempo.
Em 1867,
enquanto
diretor do
Observatório
Allegheny, em
Pittsburgh,
Langley
convenceu os
responsáveis
industriais e
comerciais
locais a
pagarem-lhe
pelos seus
sinais sonoros.
O seu
“relógio-
mestre”
transmitiria a
hora por
telégrafo, de
forma a que os
“relógios-
escravos” dos
seus clientes
pudessem
sincronizar-se
com ele.
Empresas
como a
Western
Union e os
caminhos de
ferro da
Pensilvânia
rapidamente
se tornaram
clientes, com
os últimos a
pagarem mil
dólares anuais
pelos sinais
horários do
observatório.
Leonard
Waldo,
astrónomo e
diretor do
observatório
Winchester da
universidade
de Harvard,
foi um passo
mais além.
Acreditando
que os
cientistas
eram capazes
de fazer
melhor,
prometeu
vender uma
hora mais
exata do que
aquela que era
proposta por
Langley (que
tinha um ou
dois segundos
de
imprecisão).
O que os dois
homens
tinham em
comum era o
facto de se
terem tornado
arautos deste
novo tempo e
começado a
defender o fim
das horas
locais, a que
Langley
chamou uma
“ficção” e
uma relíquia
do passado.
Mas a nova
hora
necessitaria de
uma
reeducação
das massas.
Numa carta
aos
comissários
dos comboios,
Waldo
afirmou que
“qualquer
serviço que
treine estas
pessoas a
seguirem
hábitos de
precisão e
pontualidade,
que afetarão
todos os
empregadores
e empregados
com a mesma
rigorosa
imparcialidad
e, no que
respeita aos
salários por
tempo gasto
será um
grande
benefício para
o estado”.
Em 1891, a
Companhia de
Relógio de
Sinal Elétrico
começou a
vender um
relógio para
fábrica,
apropriadame
nte designado
Autocrata. O
novo sistema,
proclamava o
folheto
respetivo,
“proporciona
precisão
militar e
ensina aspetos
práticos,
prontidão e
precisão
quando é
adotado […]
fornecendo
aos gestores e
supervisores
um meio para
prolongar o
seu alcance
disciplinar
para além da
sua visão [o
destaque é
meu]”.
Em 1893,
estavam a ser
instalados nas
fábricas
campainhas e
sistemas de
relógio
mestre/escrav
o. Na Feira
Mundial de
Chicago foi
apresentado
um destes
novos
engenhos: um
relógio-mestre
ligado a 200
“relógios-
escravos”
programados
para fazer soar
sinos que
indicavam aos
operários que
deviam ligar e
desligar
máquinas.
Para os
patrões, o
controlo do
tempo tornou-
se uma nova
forma de
poder. Os
fabricantes de
relógios,
ansiosos por
venderem os
seus produtos,
também
entraram em
ação,
promovendo a
pontualidade
como uma
qualidade e o
atraso como
uma falta de
disciplina e
indesejável.
Como
escreveu
Robert
Levine, os
fabricantes de
relógios
começaram a
vender a ideia
de que era
importante
“vigiar toda a
gente”, literal
e
figurativament
e – uma
antecipação,
como
veremos, do
que se
seguiria.
Também
foram
inventados os
relógios de
ponto, desta
vez para
assinalar a
hora exata em
que cada
trabalhador
chegava e
saía. No
espaço de
décadas, todas
as empresas
que vendiam
tempo foram
caindo sob a
alçada de
William
Bundy, que as
consolidou
numa
empresa, a
International
Time
Recording,
mais tarde
conhecida por
International
Business
Machines, ou
IBM.
Este
“condicionam
ento
tecnológico”
atingiu hoje
um ponto em
que a hora se
infiltrou de tal
forma nas
nossas mentes
que deixaram
de ser
necessários
relógios de
ponto para se
saber a
importância
de chegar a
horas ao
trabalho.
Milhares de
milhões de
pessoas em
todo o planeta
acordam todas
as manhãs ao
som de
alarmes,
viajam em
massa para os
trabalhos e
chegam e
partem às
horas
determinadas,
sem pensarem
porque ou
como foram
treinadas para
a tarefa.
Desde a
invenção da
pontualidade e
da nova
insistência
para “nunca
estar
atrasado”, a
hora das
fábricas
afastou-nos do
ciclo da
natureza. Pode
ter demorado
várias
gerações, mas,
como
escreveu E.P.
Thompson,
“de todas
estas formas –
através da
divisão do
trabalho; da
supervisão do
trabalho; de
multas; de
campainhas e
relógios; de
incentivos
monetários; de
divisões e de
formações
[…] criaram-
se novos
hábitos de
trabalho e foi
imposta uma
nova
disciplina
horária”.
Agora
herdamos esta
ideia de tempo
institucionaliz
ado e
passamo-la a
cada nova
geração.
Embora fosse
completament
e (e
recentemente)
fabricada,
permitiu ao
tempo das
máquinas
passar para o
século atual.
Hoje, este
tempo das
máquinas está
por todo o
lado. O tempo
ainda é
dinheiro, mas
em lugares
como a Índia
ou o Sueste
Asiático –
onde os
trabalhadores
das
sweatshops
suplantaram
os operários
europeus dos
têxteis – não é
muito
dinheiro. Se é
possível
comprar
online uma
bela camisa
por 13
dólares, não é
só por causa
da tecnologia.
É porque no
Bangladesh há
alguém que a
cose e recebe
por hora 12
cêntimos.7
Na Idade
Média, a
mesma camisa
teria custado
milhares, se os
trabalhadores
medievais
recebessem
um salário
mínimo norte-
americano
moderno,
como defende
a historiadora
Eve Fisher.
Segundo os
seus cálculos,
pelo tempo
que levaria a
dobrar o fio
(480 horas), a
tecê-lo (20
horas) e
depois a coser
à mão o
material (oito
horas), uma
camisa
exigiria em
média 508
horas de
trabalho. Nos
Estados
Unidos, onde
o salário
mínimo
federal está
nos 7,25
dólares por
hora, produzir
à mão essa
camisa teria
custado 3.683
dólares. No
Bangladesh,
poderia ser
feita por 65
dólares.
Claro que,
mesmo com
mão de obra
barata, não
realizamos
manualmente
todo o nosso
trabalho. Na
verdade, foi
precisamente
porque o
fabrico de
tecido exigia
tanto tempo
que na
Revolução
Industrial as
máquinas de
tecer foram
das primeiras
a ser
inventadas e
os têxteis
foram dos
primeiros
produtos
fabricados em
massa. Fiar e
tecer são hoje
processos
quase
integralmente
mecânicos e
no fim da
linha está o
operário,
também a
trabalhar com
uma máquina,
a quem está
atribuído o
processo final
de coser, que
demora horas.
É então todo
este trabalho
invisível, todo
este tempo
invisível, que
torna uma
camisa, que
em tempos
levaria 508
horas a ser
feita,
disponível por
uma fração do
que a pessoa
que a usa pode
ganhar num
dia.117
Trabalhar
mais depressa
e poupar mais
tempo é igual
a mais lucro: a
prática tem
gradualmente
ganhado
ímpeto desde
que, no início
do século XX,
Frederick
Taylor lançou
a “gestão
científica”; a
ideia de
dividir tarefas
em ações
individuais.
Nos anos
1960, os
especialistas
em gestão
otimizaram
ainda mais a
eficiência
quando
dividiram ao
minuto o
tempo passado
no escritório e
na fábrica.
Um manual
publicado pela
Associação de
Sistemas e
Procedimento
s da América
propunha aos
patrões estes
“dados-padrão
universais”,
dando-lhes
uma ideia de
quanto
demoravam as
tarefas
básicas:

“Abrir e
fechar
gaveta de
ficheiro,
sem
seleção =
0,04
minutos;
secretária,
abrir
gaveta do
meio =
0,26
minutos;
fechar
gaveta do
meio =
0,27
minutos;
fechar
gaveta do
lado =
0,015
minutos;
levantar
da cadeira
= 0,033
minutos;
sentar na
cadeira =
0,033
minutos;
virar na
cadeira
com rodas
= 0,009
minutos;
andar na
cadeira
até à
secretária
ou móvel
de
ficheiros
ao lado
(máximo
1,20
metros) =
0,050
minutos.”

Nos anos
1980, como
Andrew
Goatly nota
no seu livro
Washing the
Brain, o ritmo
desumanizado
r tinha entrado
nas fábricas
têxteis, onde
“25 a 30 por
cento de todos
os
trabalhadores
administrativo
s eram
supervisionad
os por
computador
em
sweatshops
eletrónicas,
executando
um trabalho
aborrecido,
repetitivo e
em ritmo
elevado que
exige um
estado de
alerta
constante e
atenção ao
pormenor”.
Avancemos
até hoje, em
que os
operários de
fábricas e
escritórios são
rotineiramente
vigiados e
cronometrado
s para avaliar
a
produtividade.
Na Pegatron,
o segundo
maior
fabricante
chinês para a
Apple, “o dia
de trabalho
dura
geralmente 12
horas na linha
de montagem.
Há 90 minutos
de
interrupções
para refeições
e idas à casa
de banho.
Nada de falar.
Nada de estar
em pé. Nada
de beber água
no posto de
trabalho. Nada
de telemóveis.
Quando se
acaba o
trabalho mais
cedo, é
preciso ficar
sentado a ler
manuais do
empregado
[…] A tarefa
do dia é
montar capas
de trás do
iPad. A quota
é de 600 por
dia, ou uma
por minuto”.
E não é
apenas na
China. Em
armazéns da
Amazon no
Reino Unido,
uma
investigação
sob disfarce
revelou que
74 por cento
dos
funcionários
tinham medo
de ir à casa de
banho, porque
isso iria
prejudicar os
seus objetivos.
Muitos até
preferiam
urinar em
garrafas. No
Centrelink,
um call centre
na Austrália,
os
funcionários
têm de
introduzir um
código de
identificação
de cada vez
que querem ir
à casa de
banho. As
pausas são
cronometradas
e qualquer
coisa superior
a cinco
minutos vale
uma
repreensão.
Estes
intervalos para
ir à casa de
banho podem
parecer uma
coisa sem
importância,
mas são uma
ilustração
muito clara de
como
perdemos a
dignidade
quando o
nosso tempo
não nos
pertence.
Segundo um
relatório de
investigação
elaborado ao
longo de três
anos para a
organização
de
beneficência
Oxfam,
intitulado No
Relief: Denial
of Bathroom
Breaks in the
Poultry
Industry [sem
alívio: a
recusa de
intervalos para
ir à casa de
banho na
indústria
aviária], os
trabalhadores
de muitos
aviários nos
EUA vivem
sob um tal
“clima de
medo” que
nem se
atrevem a
pedir para
fazer uma
pausa. O que
acontece é que
“os
trabalhadores
defecam e
urinam
quando estão
na linha de
produção;
usam fraldas
quando vão
trabalhar;
restringem a
um grau
perigoso a
ingestão de
líquidos e de
fluidos;
suportam dor
e incómodo
[que os
colocam] em
risco de
problemas de
saúde
graves”.
Perder
minutos
significa
perder
dinheiro. Mas,
no nosso
sistema
moderno, um
minuto é uma
vida inteira.
Até os
microssegund
os contam. E
em mais lado
nenhum o
ritmo das
máquinas
ultrapassou
tanto a
capacidade
humana do
que nos
mercados
financeiros
globais. Wall
Street faz os
seus negócios
numa escala
de tempo de
que o cérebro
humano não
consegue
sequer ter uma
perceção. No
passado, os
comerciantes
viajavam
durante
semanas e
meses para
trocar os seus
bens,
enquanto hoje
o comércio de
ações é uma
alucinação de
biliões de
“compra!” e
“vende!”
selados por
apertos de
mão
computorizad
os trocados à
velocidade da
luz.
Entre Nova
Iorque e
Londres
trocam-se hoje
informações
em cerca de
60
milissegundos
, ida e volta. O
que quer dizer
que dar uma
ordem para o
outro lado do
Atlântico para
efetuar uma
transação
financeira leva
seis vezes
menos tempo
do que leva a
ler esta frase.
Se o tempo
sempre foi
invisível para
nós, pelo
menos antes
tinha uma
escala
humana.
Conseguíamos
ver a sombra
do relógio de
sol ou olhar o
ponteiro que
saltava de um
segundo para
o seguinte.
Para os que
hoje
negoceiam
nos mercados
bolsistas118, o
tempo
financeiro em
que fazem as
suas
operações é
completament
e indetetável.
Os mercados
operam
naquilo a que
Jeremy Rifkin
chama
“computempo
”, um borrão
de tempo
digital que
passa por nós
a uma
velocidade tão
elevada que os
relógios já não
podem ser
lidos por
humanos; só
podem ser
compreendido
s por
computadores.
Para nós, a
passagem de
um
milissegundo1
19
para o
próximo é
impercetível.
Na verdade, o
cérebro
humano
precisa de 13
milissegundos
inteiros só
para processar
uma imagem.
Mas, para os
computadores,
são estas
brevíssimas
frestas de
tempo dentro
da rede, em
que os
algoritmos
tomam
decisões
financeiras
instantâneas,
que são
exploradas
para alcançar
lucro. Como
escreveu Sal
Arnica, autor
de Broken
Markets:
“Quando o
investidor
comum vê
uma cotação,
é como se
estivesse a
observar uma
estrela que
ardeu há 50
mil anos.”
Mas, dito isto,
a verdade é
que o tempo
financeiro não
opera em todo
o mundo de
forma igual.
Há o tempo de
computador e
o tempo
humano.
Acabámos de
ver como é
que o tempo
medido pelo
relógio é
usado para
comerciar no
mercado
global, mas
aquilo que
valemos – e
por quanto
vendemos o
nosso tempo –
está mais
relacionado
com a nossa
inteligência,
ética de
trabalho ou
capacidades
do que com o
local do
planeta em
que
nascemos.
O tempo é
precioso para
todos os seres
humanos. De
certeza que o
meu tempo
não é nem
mais nem
menos valioso
do que o
vosso, mas as
recompensas
pelos nossos
tempos não
são idênticas.
Nos extremos
do espetro, a
diferença é
abissal. Em
2018, o
multimilionári
o Jeff Bezos
ganhou 8,96
milhões de
dólares por
hora, mesmo
enquanto
dormia. Para
um dalit –
antes
conhecido
como
intocável no
sistema de
castas da Índia
–, o trabalho
sujo de limpar
latrinas vale
46 rupias por
dia, o que,
considerando
um dia de oito
horas,
representa
cerca de cinco
cêntimos de
dólar por
hora.

Uma
consequência
inesperada de
ser um génio
publicamente
reconhecido é
que parece
que nunca se
tem tempo
para nada. Os
jornalistas
andavam
sempre à volta
de Albert
Einstein a
fazerem-lhe
perguntas
sobre as suas
ideias que
desafiavam as
conceções
comuns. Mas
o tempo é tão
precioso para
físicos
teóricos como
é para CEOs,
e Einstein
tinha em
Helen Dukas,
a sua
secretária, um
aliado.
Sempre que
alguém
telefonava ou
aparecia para
pedir a
Einstein que
explicasse a
sua teoria da
relatividade,
ela tinha
instruções
para dizer:
“Uma hora
sentado num
banco de
jardim com
uma rapariga
bonita passa
como se fosse
um minuto,
mas um
minuto
sentado em
cima de um
fogão quente
passa como se
fosse uma
hora. A
relatividade é
isso.” O
entendimento
de Einstein é
que não podia
existir de todo
o conceito de
tempo
“correto”.
Até ao
início do
século XX, os
cientistas
tinham vivido
sob a
impressão, em
termos de
investigação,
de que o
tempo era
absoluto. O
célebre tratado
escrito em
1687 por Sir
Isaac Newton
e intitulado
Princípios
Matemáticos
da Filosofia
Natural tinha
sido o
princípio
orientador da
física. Nele,
Newton
enunciava as
suas três leis
do
movimento,
juntamente
com os seus
princípios de
tempo e
espaço
absolutos,
explicando
como
funcionava o
universo.
Chamamos
agora a isto
mecânica
newtoniana.
Na visão
newtoniana,
se um relógio
fosse
suficientement
e rigoroso e se
estivessem em
vigor os
mesmos
padrões, então
dois relógios –
digamos que
um estava na
Terra e outro
em Júpiter –
bateriam ao
mesmo ritmo
e deste modo
a passagem do
tempo seria
idêntica nos
dois lugares.
Afinal, era
assim que os
navegadores
ingleses
determinavam
a longitude.
O que
Einstein
propôs, e
provou
matematicame
nte, era que as
coisas não
eram nada
assim. Para
começar,
espaço e
tempo não são
coisas
separadas;
encontram-se
unificados. E,
por causa
disso,
qualquer
movimento
através do
espaço afeta o
tempo. Assim,
os dois
relógios, na
Terra e em
Júpiter, que se
movem
relativamente
um ao outro a
diferentes
ritmos de
velocidade,
bateriam de
forma
diferente e
apresentariam,
nos
mostradores,
horas
diferentes.
Sabemos
que isto é
verdade,
porque os
sinais GPS de
hoje
necessitam de
quatro
satélites
diferentes para
determinar
uma
localização na
Terra. Os
relógios
atómicos
triangulam a
nossa posição
medindo a
diferença de
tempo que o
sinal leva a
chegar dos
vários
satélites. Para
o GPS civil,
estes sinais
permitem por
exemplo
medir a
latitude,
longitude e
altitude do
smartphone
num centro
comercial,
com uma
exatidão de
4,90 metros.
Mas para o
GPS ser
rigoroso, os
próprios
relógios têm
de ser
absolutamente
exatos e
operar dentro
do mesmo
intervalo de
40 a 50
nanossegundo
s. Mas a hora
não é igual
aqui na Terra
e a 20 mil
quilómetros
de altitude, no
espaço.
Os satélites
andam à nossa
volta a uma
velocidade
orbital de
cerca de 14
mil
quilómetros
por hora, o
que, segundo
a teoria de
relatividade
espacial de
Einstein, é
suficientement
e rápido para
fazer com que
os seus
relógios
andem mais
devagar.
Concretament
e, sete
microssegund
os mais
devagar, por
dia. Em
simultâneo,
por causa da
sua distância
para a massa
da Terra, os
relógios que
estão mais
afastados da
sua gravidade
sentem menos
o seu efeito e
andam mais
depressa. A
Teoria da
Relatividade
Geral de
Einstein
afirma que é
isso que se
passa. Sem
calibragem, os
relógios
atómicos
alojados em
satélites
adiantar-se-
iam todos os
dias 45
microssegund
os. Isto
significa que,
juntos, os
efeitos da
relatividade
especial e da
relatividade
geral fariam
os relógios
dos satélites
(sete
microssegund
os atrasados e
45
microssegund
os adiantados)
estar
desfasados
todos os dias
38
microssegund
os, ou 38
milionésimos
de segundo.
Trinta e oito
microssegund
os não parece
grande coisa,
mas se não os
levássemos
em conta o
erro
acumulado
acabaria por
tornar o GPS
inútil.
Segundo
Richard
Pogge,
professor de
astronomia na
universidade
estadual de
Ohio, ao fim
de dois
minutos as
posições
espaciais
estariam
completament
e desfasadas, e
com efeitos
cumulativos
os sistemas de
GPS
registariam
erros na
ordem dos dez
quilómetros
por dia.
Sabemos,
portanto, que
não é apenas
uma teoria. Os
cálculos são
rigorosos. E
embora a
física
avançada
consiga
explicar estas
diferenças e
traduzi-las de
uma forma
pela qual
somos capazes
de
compreender
como nos
afetam na vida
diária, os
próprios
físicos não
têm a certeza
de que o
tempo seja,
em si mesmo,
uma “coisa”;
ou seja, se o
tempo é uma
coisa que
imaginámos
ou se o tempo
como o
conhecemos
existe
realmente.120
Pensem
nisto: da
mesma forma
que a
matemática
tem “números
imaginários”
(como i2 = -1,
que é mais um
conceito do
que algo
visível), os
físicos
também
trabalham
com tempo
imaginário. O
tempo real é
aquele que
medimos, com
relógios, nas
nossas vidas
diárias. Como
afirmou
Stephen
Hawking, este
“é o tempo
que sentimos
a passar, o
tempo em que
envelhecemos
”. Se o tempo
real começa
com um ponto
designado por
Big Bang, a
Grande
Explosão, e
acaba com um
ponto
chamado Big
Crunch, o
Grande
Colapso,
então em
tempo
imaginário
existe um
tempo que se
desenrola para
além dessas
escalas de
tempo – o
tempo fora
desses tempos
– que nos
permite
questionar se
o tempo como
o conhecemos
funciona
consoante a
“realidade”.
Em Uma
Breve História
do Tempo,
Hawking
coloca as
coisas desta
maneira:

“Isto
pode
sugerir
que o
chamado
tempo
imaginári
o é
realmente
o tempo
real, e que
aquilo a
que
chamamo
s tempo
real será
apenas
um
produto
das nossas
imaginaçõ
es. No
tempo
real, o
universo
tem um
princípio
e um fim
em
singularid
ades que
formam
uma
fronteira
com o
espaço-
tempo e
na qual as
leis da
ciência
falham.
Mas no
tempo
imaginári
o não há
singularid
ades ou
fronteiras.
Por isso,
talvez
aquilo a
que
chamamo
s tempo
imaginári
o seja na
verdade
mais
básico, e
aquilo a
que
chamamo
s real seja
apenas
uma ideia
que
inventámo
s para nos
ajudar a
descrever
a forma
como
pensamos
que o
universo
seja.”

Para os
físicos, então,
o tempo
imaginário é
qualquer coisa
que “existe”
no sentido em
que pode ser
matematicame
nte descrito,
ainda que não
possa ser
sentido. Do
tempo do
relógio pode
dizer-se o
inverso.
Sentimo-lo,
mesmo que
não saibamos
até que ponto
existe mesmo.
Isto é porque
inventámos
uma
ferramenta de
medida, o
relógio, que
descreve a
própria
medida. Um
relógio mede
o tempo do
mesmo modo
que uma régua
mede o
espaço. Mas
uma régua, na
verdade, não
mede espaço
nenhum; mede
intervalos, ou
aquilo a que
chamamos
centímetros ou
polegadas –
medidas,
como veremos
no próximo
capítulo, que
nós
inventámos.
Como a
pedra em que
Samuel
Johnson deu
um pontapé,
no capítulo 2,
a realidade do
tempo, como a
realidade da
pedra, pode
ser
enganadora.
Numa linha
semelhante, o
destacado
físico Brian
Greene
avançou com
este enigma: e
se o tempo
não for real e
se tratar
apenas de uma
projeção
mental? Ou
seja, talvez
não exista
uma fronteira
invisível entre
o passado a
mudar para o
presente e
depois a levar-
nos ao futuro.
Talvez o
tempo não
esteja algures
“lá fora”,
porque o
tempo é uma
projeção, uma
projeção dos
nossos
cérebros.
Como ele
escreveu em
O Tecido do
Cosmos: “Isto
[…] deixa
aberta uma
questão
essencial: será
a ciência
incapaz de
apreender uma
qualidade
fundamental
do tempo que
a mente
humana
abraça com a
prontidão dos
pulmões que
absorvem o ar,
ou será que a
mente humana
impõe ao
tempo uma
qualidade da
sua própria
criação, uma
qualidade que
é artificial e
que por isso
não surge nas
leis da
física?”
Por outras
palavras, o
que está a
ciência a
medir, se as
únicas coisas
que os
humanos são
realmente
capazes de
experimentar
é o momento
eterno a que
chamamos
agora?121
Há uma
coisa que
podemos
afirmar com
certeza: seja o
tempo real ou
não como
dimensão ou
perceção, nós
estamos a
viver de
acordo com
qualquer coisa
fabricada.
Einstein
provou que
não há um
pulsar
universal do
tempo, e
mesmo assim,
na Terra,
temos as
nossas vidas
organizadas
de acordo com
um sistema de
tempo
sincronizado.

“Imagine
visitar-se a si
próprio no
futuro”,
começa a voz
no anúncio.
Na cena, um
homem está
atrasado, vai a
correr e
mesmo assim
perde o
autocarro para
o trabalho. De
repente,
através da
magia da
televisão, é
transportado
para o futuro,
onde fica
frente a frente
com o seu
antigo eu. As
suas duas
versões estão
a fazer
jogging,
juntas, numa
bela praia,
num dia de
sol. O homem
mais velho
está
bronzeado,
descontraído e
a sorrir. Vira-
se para o seu
eu mais jovem
e pergunta:
“Ainda andas
na corrida de
ratos?”
O anúncio é
bem
conhecido de
muitos
canadianos.
Nos anos
1990
publicitava o
Freedom 55,
Liberdade 55,
um serviço de
planeamento
financeiro da
companhia
London Life
Insurance,
assim
chamado
porque 55
representava a
idade ideal de
reforma. Em
2010, porém,
com a inflação
e os custos
crescentes, já
começava a
parecer cada
vez mais
improvável
mesmo a
hipótese de
reforma com a
idade legal, 65
anos. Um
inquérito da
Sun Life
Financial
realizado
nesse ano
mostrou que
apenas 28 por
cento dos
canadianos
acreditava que
a reforma aos
65 era
realizável. As
expetativas
continuaram a
mudar e no
ano seguinte
os títulos de
jornal
começaram a
interrogar
“Será a
Liberdade 75
a nova meta
da geração
dos
boomers?” E
em 2017 um
novo chavão
entrou na
linguagem
corrente:
“Liberdade
85:
Permanecer na
Força de
Trabalho”. A
ideia de
reforma
antecipada é
hoje, para
muitas
pessoas, um
sonho
longínquo.
Alguns
poderão
pensar: “E a
seguir?
Liberdade
100?” Ou
talvez
“Liberdade
Quando
Estiveres
Morto”?
A reforma é
o pedaço de
queijo que é
agitado à
nossa frente
durante a
corrida de
ratos. O nosso
tempo
pessoal,
aquilo com
que todos
nascemos,
está subjugado
ao tempo do
relógio, que
inventámos.
Prometem-nos
que, se
trabalharmos
no duro
durante a vida
inteira, nos
nossos anos
seniores
seremos
recompensado
s com tempo
livre para
fazer
exatamente o
que
quisermos.
Mas, como
qualquer
pessoa que
esteja
desempregada
há algum
tempo sabe, o
tempo de lazer
não é, de todo,
tempo “livre”.
Acontece que
o lazer nos é
vendido. O
lazer custa
dinheiro.
Mesmo que
se tenha todo
o tempo do
mundo, há
muito poucas
coisas que se
possam fazer
com os bolsos
vazios. É
possível
caminhar,
nadar, jogar
xadrez ou ler
um livro de
uma
biblioteca,
mas a maior
parte das
coisas de lazer
foram
transformadas
em bens e
tornaram-se
grandes
indústrias. Os
praticantes de
ioga nos
Estados
Unidos
gastam 16 mil
milhões de
dólares em
aulas, roupa,
equipamento e
acessórios. O
golfe, ainda
mais de luxo,
representa
uma indústria
de 70 mil
milhões de
dólares nos
Estados
Unidos. A
ilusão de
tempo livre é
o oroboro do
capitalismo. O
lazer entrou
no mercado de
forma a
contribuir para
a economia.
Pensem
como é que ir
às compras,
uma atividade
que até aos
anos 1950 foi
vista quase
sempre como
uma tarefa, se
tornou um
hobby, ou
aquilo que
agora até é
conhecido
como “terapia
de compra”. Ir
às compras é
hoje
considerado
um prazer,
uma forma
descontraída
de passar o
fim de
semana. Para
além do
passeio
dominical
pelo centro
comercial ou
pela Baixa, há
hordas que
passam agora
os dias em
“shopping
tours” cujo
propósito não
é passear e ver
pontos de
interesse, mas
sim ser levado
em autocarros
a outlets, a
armazéns sem
janelas para
comprar
produtos de
marca com
grandes
descontos.
Fazemos
compras como
se a nossa
felicidade
dependesse
disso, porque
nos dizem que
depende, e
porque não
queremos
cometer o
pecado de
estar atrasados
em relação
aos tempos. A
moda, dizem-
nos, mantém-
nos modernos.
Se nos anos
1950 um
estilo de saia
podia durar
uma década,
nos anos 1980
a moda já se
tinha
transformado
em “estações”
diferentes.
Mas, durante
algum tempo,
estas
“estações”
ainda estavam
ligadas às
estações
físicas:
precisamos de
roupas mais
quentes no
inverno e de
peças mais
leves no
verão. Nas
pistas dos
desfiles,
fevereiro e
março são os
meses em que
tradicionalme
nte são
reveladas as
coleções
outono/invern
o, e em
setembro e
outubro os
modelos
vestem as
coleções
primavera/ver
ão para o ano
seguinte. Mas
o ciclo da
moda de hoje
acelerou
muito para
além disso.
No mundo da
“moda de
consumo
rápido” há 52
estações por
ano. Assim
que qualquer
coisa fica na
moda, deixa
de estar, o que
faz com que
os fashionistas
comprem
desesperadam
ente mais
roupas para se
manterem in.
Se somos
treinados para
nos tornarmos
escravos
perante a
moda, não
podemos
esquecer os
escravos da
moda: os
trabalhadores
invisíveis da
indústria que
fazem horas
extraordinária
s a troco de
salários
ínfimos para
que retalhistas
como a cadeia
global Zara
possam
receber
carregamentos
duas vezes por
semana e
empresas
como a H&M
e a Forever 21
apresentem
novos estilos
todos os dias.
Este ciclo
de fabrico a
hipervelocida
de afeta
também o
mundo
natural. No
documentário
RiverBlue, a
designer de
moda e
ativista Orsola
de Castro
afirma: “Há
uma anedota
na China que
diz que é
possível saber
a cor que está
na moda nessa
estação só por
olhar para a
cor dos rios.”
Atrás dela, o
rio está
tingido pelas
tintas dos
têxteis. Não é
azul, mas
magenta.
A imensa
quantidade de
energia
necessária
para fabricar,
embalar e
distribuir bens
a este ritmo
acelerado para
uma
população de
mais de sete
mil milhões
levou a uma
mudança
muito real e
física dos
padrões
meteorológico
s mundiais.
Não é uma
anedota o
facto de a
hiperaceleraçã
o do
capitalismo
através da
“moda” estar
literalmente a
mudar as
estações do
ano. A nossa
economia está
a provocar
alterações
climáticas.
Para os
economistas,
isto quer dizer
crescimento;
para os
ecologistas, é
igual a
devastação.
Juntamente
com o
aumento
rápido de
incêndios
florestais e de
furacões
mortais, o
aumento das
temperaturas
tem
consequências
graves para
espécies que
migram e se
alimentam
com base nas
estações. Na
natureza,
como vimos
antes, o tempo
é tudo. Mas
em anos
recentes,
enquanto os
relógios
atómicos que
sincronizam o
nosso mundo
moderno se
tornaram cada
vez mais
precisos, algo
de estranho
está a
acontecer ao
relógio da
natureza,
porque em
toda a parte à
nossa volta o
seu timing
está
desacertado.
Em Central
Park era uma
quarta-feira à
tarde normal.
Havia pessoas
a correr em t-
shirt e
calções, outras
a fazerem
piqueniques,
miúdos a
rebolar e a
cair na relva
com as caras
sujas de
gelado. A
temperatura
estava nos
25,5 graus
Celsius, o que
seria
perfeitamente
natural para
um dia de
verão, mas
olhando à
volta havia
um sinal de
que qualquer
coisa não
estava certa.
Em todo o
parque, as
árvores
caducas não
tinham folhas.
Este dia de
2018 com um
calor de verão
não aconteceu
em junho. Era
fevereiro.122

acontecimento
s
meteorológico
s estranhos a
acontecer em
todo o mundo
a um ritmo
crescente.
Mas só
quando se
forma um
padrão
sustentado é
que os
cientistas
podem atribuir
isso a uma
alteração
climática.
Para os
jardineiros em
toda a parte,
esta alteração
é cada vez
mais evidente.
Só precisam
de olhar para
os quintais
para reparar
que os seus
próprios
“relógios
florais”
começaram a
florescer em
alturas
invulgares.
Segundo um
grande estudo
realizado pela
Sociedade
Botânica da
Grã-Bretanha
e Irlanda, as
plantas estão a
dar flor antes
da primavera,
o que não era
suposto. Em
2016, mais de
600 espécies
floriram
antecipadame
nte, quase o
dobro do
número do
ano anterior.
Do outro lado
do Atlântico
foi
documentada
a mesma
tendência. Em
2010 e 2012,
na costa leste
dos Estados
Unidos,
floriram
plantas mais
cedo do que
em qualquer
ocasião
constante dos
registos.
Cientistas
afirmam que
isto acontece
porque aquele
momento de
temperatura
ideal em que
as sementes
começam a
desenvolver-
se tem surgido
mais cedo.
Para plantas
como a
Arabidopsis
thaliana, essa
temperatura
situa-se entre
os 14 e os 15
graus Celsius.
Picos de calor
prematuro
estão a afetar
muitas
plantas, e cada
aumento de
temperatura
de um grau
pode
representar
um florir
antecipado de
4,1 dias.
O efeito em
cadeia sente-
se nos reinos
vegetal e
animal. O
campo de
estudo
científico é
designado
fenologia.
Olha para a
ocorrência de
ciclos
biológicos
entre um
conjunto de
espécies na
sua relação
com o clima e
as estações.
Em muitas
espécies, os
timings de
fontes
alimentares,
migrações ou
reprodução
estão ligados,
numa
interdependên
cia estreita. E
em muitas
espécies tem
acontecido
uma
dessincronizaç
ão.
Um
exemplo é a
relação entre a
abelha mineira
e a orquídea
brassa de
cauda, ou
orquídea-
aranha. A
orquídea
produz flores
que na
realidade se
assemelham a
uma abelha,
especificamen
te à abelha
mineira
fêmea. Desde
1848 que
botânicos
mantêm
registos da
altura de
floração da
orquídea, que
coincidem
com o ciclo
reprodutivo da
abelha. As
flores libertam
uma hormona
que imita a
abelha fêmea
e atrai os
machos da
espécie, que
tentam
copular com a
flor. Este
engano resulta
na polinização
da orquídea.
Só que o
aumento das
temperaturas
dessincronizo
u este ciclo
reprodutivo.
Por cada
aumento de
temperatura
de um grau
Celsius, a
floração das
orquídeas dá-
se seis dias
antes. A
mudança na
temperatura
tem um efeito
ainda mais
marcado nas
abelhas, com
os machos a
saírem nove
dias antes, e
as fêmeas 15
dias. O
resultado é
que os machos
deixam de
“acasalar”
com as flores,
preferindo
fazê-lo com as
fêmeas. É
bom para as
abelhas, mas
não para as
orquídeas, que
têm dependido
quase
exclusivament
e das abelhas
mineiras para
a sua
polinização –
que é o
mesmo que
dizer
existência.
Para os
pássaros que
migram entre
continentes, a
mudança no
ciclo de
floração e
insetos
também está a
conduzir a um
desencontro.
Investigadores
que estudam
espécies de
aves na
América do
Norte
determinaram
que alguns
pássaros estão
a chegar bem
depois do
começo da
primavera.
Um velho
ditado diz que
é o pássaro
madrugador
que apanha a
minhoca, mas,
para algumas
espécies que
estão a chegar
com 15 dias
de atraso, as
larvas e os
insetos que
fazem
coincidir os
seus ciclos
reprodutivos
com as plantas
em floração já
lá não estão,
deixando
cansados e
famintos os
pássaros que
acabaram de
percorrer um
longo
caminho.
Sucede que
os pássaros
orientam as
suas
migrações
pelo Sol.
Quando o Sol
começa a
erguer-se mais
cedo, chegou
a hora da
migração. Só
que as árvores
e as plantas
estão a
orientar a sua
“primavera
biológica” não
pela luz, mas
pela variação
de
temperatura.
Os insetos
saem em
massa para se
alimentar das
folhas jovens
antes de as
árvores
libertarem o
seu repelente
natural. E
quando os
pássaros que
vêm da
América
Central e do
Sul chegam
para o seu
banquete
anual, já se
deu um
desencontro
absoluto e
precipitou-se
um efeito em
cascata. Como
afirmou
Stephen
Mayor, autor
principal de
um estudo, “o
desencontro
crescente
significa que é
provável que
menos
pássaros
sobrevivam,
se reproduzam
e regressem
no ano
seguinte. São
pássaros que
as pessoas
estão
habituadas a
ver e a ouvir
nos seus
quintais.… É
como em
Silent Spring,
mas com um
culpado
menos
evidente”.
O culpado
difícil de
identificar é
precisamente
o timing – e
em todo o
planeta ele
está a
desequilibrar
muitas
espécies e
ecossistemas.
No The
Guardian,
Damian
Carrington
escreveu:
“Aconteceram
possíveis
desencontros
entre aves
marinhas e
peixes, como
papagaios-do-
mar e
arenques e
araus e
enguias-da-
areia. A
borboleta
almirante
vermelho e a
urtiga, uma
das suas
plantas
hospedeiras,
também estão
a
dessincronizar
-se.” Este é
um efeito-
borboleta
muito real e o
seu impacto
pode ser
devastador.
Os cientistas
também estão
a registar
alterações na
própria base
da nossa
cadeia
alimentar. Os
complexos
sistemas da
natureza estão
cada vez sob
maior tensão,
das abelhas e
insetos que
fazem a
polinização da
grande
maioria das
nossas
colheitas às
mudanças no
timing do
plâncton nos
mares, que por
sua vez afeta
os moluscos,
peixes, aves
marinhas,
tubarões e
mamíferos
marinhos
como focas e
baleias.
As nossas
invenções do
relógio
humano e do
ciclo de
fabrico – que
governam o
nosso
comportament
o dentro da
bolha da
realidade –
começaram a
provocar o
caos no ciclo
temporal da
natureza. Não
só estamos
sujeitos ao
ritmo artificial
do nosso
tempo
inventado,
como há
espécies nos
reinos animal
e vegetal que
estão a
começar a
sentir também
esta rutura. As
mudanças à
nossa volta
aceleram e, no
entanto, ainda
nem demos
conta de que
este corte
fundamental
tem que ver
com a nossa
própria
criação do
tempo. Em
vez disso,
como nota
Bertrand
Richard,
perante o
“caos
climático, os
pânicos na
bolsa, os
sustos
alimentares,
as ameaças de
pandemias, os
crashes
económicos, a
angústia
crónica, o
medo
existencial”,
nós não
abrandamos.
Fazemos
exatamente o
contrário:
carregamos a
fundo no
acelerador e
aumentamos a
velocidade.
Antes de
avançarmos,
devo
mencionar um
outro relógio
projetado por
cientistas.
Este é mais
metafórico do
que físico.
Todos os anos,
desde 1947, o
Boletim dos
Cientistas
Atómicos tem
usado o
conceito de
um relógio em
contagem
decrescente,
até à meia
noite, para
mostrar a
iminência da
destruição
humana por
causa de
alterações
climáticas,
armas
atómicas e
outras
tecnologias da
nossa própria
criação. É
conhecido
como o
Relógio do
Juízo Final.
Em 25 de
janeiro de
2018, numa
carta aberta
dirigida aos
líderes e aos
cidadãos do
mundo, os
cientistas
anunciaram
que nos
encontramos
agora
altamente
vulneráveis à
catástrofe, que
o relógio se
aproximou um
minuto do
nosso fim.
Está agora nos
dois minutos
para a meia
noite.
A questão
diante de nós
é esta:
carregamos no
botão para
travar o
alarme?
111
As zonas
horárias
também não são
estáticas. Por
exemplo, no
inverno, a
diferença entre
Toronto, no
Canadá, e São
Paulo, no
Brasil, é de três
horas. Em
março – com as
mudanças de
hora nos
hemisférios
norte e sul –
passa a ser de
uma hora.
112
Isto é, as
minhocas têm
dois relógios –
um circadiano
(baseado no
dia) e outro
circalunar
(baseado no
mês).
113
A fundação
Long Now está
atualmente a
construir um
relógio para dez
mil anos que só
terá um tique
uma vez por
ano. A ideia é
encorajar as
pessoas a terem
uma visão a
longo prazo
quando se trata
da natureza do
tempo.
114
Não é uma
situação
exclusiva do
Japão. Charles
Czeisler,
professor de
medicina do
sono na
Harvard
Medical
School,
documentou a
privação de
sono em
estagiários de
hospitais que às
vezes são
colocados em
turnos de 24 a
34 horas. A
falta de sono
envolve perigos
reais: os
estagiários em
privação de
sono
cometeram 36
por cento mais
erros médicos
graves e 5,6
vezes mais
erros de
diagnóstico.
Também
aumentou em
61 por cento o
risco de se
ferirem com um
bisturi ou com
uma agulha.
115
Na Inglaterra
do século XIV,
os camponeses
trabalhavam
cerca de 150
dias por ano.
116
Um inquérito
a 1.018 norte-
americanos
empregados a
tempo inteiro
determinou que
41 por cento
preferiam ter
tempo a
dinheiro. Mas
só 30,3 por
cento se
disseram
dispostos a
prescindir do
salário atual
para ter um
horário melhor.
117
Os operários
têxteis no
Bangladesh são
dos mais mal
pagos do
mundo. Em
média, o salário
mensal anda
pelos 68
dólares, o que
está
significativame
nte abaixo do
que é
necessário para
viver. É
frequente os
operários
trabalharem
sete dias por
semana, com
horas extra que
podem levar os
dias de trabalho
a terem 14 a 16
horas.
118
As
transações a
alta frequência
representam
agora entre 50 a
70 por cento de
todos os
negócios em
bolsa.
119
O cérebro
humano
necessita de 13
milissegundos
para processar
uma imagem e
são precisos
entre cem e 400
milissegundos
para pestanejar.
Uma transação
a alta
frequência entre
Chicago e Nova
Jérsia, ida e
volta, leva só
13
milissegundos.
Isso quer dizer
que no instante
de um
pestanejar
podem realizar-
se 30
transações.
120
Alguns
físicos, por
exemplo,
sugeriram que
“o universo não
tem tempo”.
121
Até a nossa
ideia de “agora”
opera com
desfasamento.
Segundo
cientistas, o
presente
psicológico só
tem três
segundos e “a
nossa
consciência
anda 80
milissegundos
atrasada em
relação aos
acontecimentos
reais”. Diz o
neurocientista
David
Eagleman:
“Quando se
pensa que um
acontecimento
se dá, ele já
aconteceu”.
122
Em anos
recentes, estes
surtos de calor
não têm sido
isolados. O dia
21 de fevereiro
de 2018 não foi
um caso único.
Também em
2016 e em 2017
as temperaturas
foram
bizarramente
elevadas.
8
Invasores
do Espaço
A
medida é
certamen
te uma
ilusão
porque
não se
encontra
m
polegada
s por aí –
não é
possível
pegar
numa.
As
polegada
s, na
verdade
… são
imaginár
ias.
ALAN
WATTS
Em Inglaterra,
é possível dar
um passeio
pela
propriedade
privada de
Madonna. É
assim porque
na lei
britânica está
consagrado o
“direito de
vaguear” pelo
campo. Na
natureza, esta
liberdade –
pelo menos
para os
animais – é
um dado
adquirido.
Para os
pássaros que
voam e para
os insetos que
andam pelo
solo, as linhas
traçadas pelos
humanos para
dividir
propriedade
pública e
privada não
têm quase
consequência.
Mas para a
nossa espécie,
é como se
vivêssemos
num mundo
armadilhado,
com fios
ocultos
espalhados
pelo chão.
Como observa
Floyd
Rudmin, um
especialista
em psicologia
comunitária,
“temos acesso
vedado a mais
de 99 por
cento do
mundo à
nossa volta e
raramente
reparamos
nisso”.
Mas em
Inglaterra, na
década de
1930, um
grupo de
pessoas
reparou. Eram
operários de
fábricas no
coração
industrial de
Manchester. A
cidade era
então cinzenta
e poluída, mas
mesmo ao pé
havia o
chamado Peak
District, uma
bela zona
campestre
com montes
arredondados
e cobertos de
relva. O
problema era
que os
trabalhadores
estavam
proibidos de
lá entrar. Isto
foi antes de
existirem na
Grã-Bretanha
os parques
nacionais, por
isso, se os
operários
queriam
apanhar um
pouco de ar e
desfrutar da
natureza,
significava
terem de
invadir
propriedade
privada.
Assim, em
24 de abril de
1932, um
grupo que se
autodesignou
“ramblers”
[caminhantes
ou
vagueantes]
decidiu
realizar um
ato de protesto
simples, fazer
uma coisa que
hoje poucos
de nós
julgaríamos
“revoltoso”: ir
dar um
passeio. Mas,
sabendo que
se fossem
apenas alguns
seriam
impedidos, os
“caminhantes”
reuniram um
grande grupo.
Deste modo,
400 pessoas
puseram-se a
subir a Kinder
Scout, a maior
elevação do
Peak District.
No início,
vigilantes de
caça, armados
com paus,
tentaram
impedi-los, e
até houve
escaramuças,
mas recuaram
quando
perceberam
que eram em
número muito
menor. A
seguir a
polícia
interveio e
vários dos
caminhantes
foram detidos
e presos. Foi
uma surpresa
que isto tenha
funcionado a
favor deles. A
história
espalhou-se
depressa e a
simpatia da
opinião
pública gerou
um protesto
nacional, à
medida que
mais pessoas
começaram a
exigir o
direito de
passear pelo
campo. A
invasão
coletiva de
Kinder Scout
é hoje
conhecida
como um dos
mais bem-
sucedidos atos
de
desobediência
civil na
história
britânica e é
celebrada
todos os anos.
Ao exercerem
literalmente as
suas
liberdades, os
caminhantes
abriram
caminho à
criação de
parques
nacionais e
também
abriram a
natureza ao
cidadão
comum.
Hoje, em
Inglaterra, é
possível
caminhar por
7 por cento do
campo. Pode
não parecer
muito (e
mostra bem a
quantidade de
terra que
ainda se
encontra
interdita), mas
é
suficientement
e
significativo.
Na Escócia, as
coisas são
ainda
melhores; os
errantes
modernos não
só têm direitos
de caminhada
como têm
acesso ao
equivalente a
Airbnb grátis.
Existem
espalhadas
pelo campo
casas de
agricultores
vazias
conhecidas
como bothies,
cabanas
abandonadas
que são uma
relíquia do
que ficou
conhecido
como
Despejos
Escoceses,
quando
populações
inteiras foram
afastadas das
terras altas
rurais. Estas
cabanas
modestas
constituem
agora uma
rede informal
de alojamento
para viajantes,
e, embora
sejam básicas
– algumas só
têm camas e
uma lareira –,
as bothies
tornaram-se
uma tradição
escocesa,
muito
estimada, que
proporciona
aos viajantes
um lugar
grátis para
passar a
noite.
Claro que
esta liberdade
soa
maravilhosa,
mas tem um
outro lado:
falta de
segurança. No
fim de contas,
embora possa
parecer
maravilhoso
vaguear pelo
campo sem
restrições,
talvez não seja
assim tão
fantástico ver
um estranho
entrar pelo
nosso quintal
dentro. É que
os seres
humanos,
como muitos
animais, são
territoriais.123
Está inscrito
nos nossos
cérebros. Os
cientistas
sabem que os
animais, dos
insetos aos
chimpanzés,
desenvolvera
m um sentido
de espaço
pessoal, o que
faz sentido,
porque, na
natureza, ter o
nosso espaço
invadido pode
ser uma
ameaça à
sobrevivência.

Nos
humanos,
foram
detetadas
quatro zonas
distintas de
espaço
pessoal. Na
década de
1960, o
antropólogo
norte-
americano
Edward Hall
foi o primeiro
a definir e a
medir aquilo a
que chamou
“bolhas” de
reação. A
bolha mais
próxima que
nos rodeia é o
“espaço
íntimo”. Tem
aproximadam
ente 46
centímetros
em redor do
corpo e está
reservada à
família,
parceiros e
amigos
próximos. A
bolha seguinte
é o “espaço
pessoal”. Vai
de 46
centímetros a
um 1,20
metros e é
onde nos
sentimos mais
à vontade com
conhecidos. A
terceira bolha
é a do “espaço
social”. Vai de
1,20 a 3,70
metros e é a
área reservada
a estranhos e
novos
conhecimento
s. Finalmente,
para lá disto,
está o espaço
público, em
que, na maior
parte dos
casos, todos
têm a
liberdade de
entrar. Claro
que há
exceções e,
enquanto
criaturas
sociais,
aspetos como
estatuto, sexo
e diferenças
culturais, tudo
afeta as nossas
noções de
espaço pessoal
“seguro”, mas
em geral estas
bolhas
definem o
nosso sentido
de território
mais básico.
A parte do
cérebro
responsável
pelas nossas
sensações de
medo ou
segurança é a
amídala.
Constitui os
circuitos
neurais que
estão por trás
das nossas
reações de
“lutar ou
fugir”. Mas
ficou a saber-
se, a partir dos
raros casos em
que houve
danos na
amídala, que o
sentido
humano destas
fronteiras
espaciais pode
ser apagado.
Foi o caso de
SM, um
doente com
uma lesão
significativa
na amídala
que o impediu
de ter um
sentido de
espaço
pessoal. Tal
como Aaron,
uma
personagem
de um
episódio da
série Seinfeld
que falava
demasiado
próximo das
pessoas, SM
parecia
perfeitamente
à vontade
mesmo em
situação de
estreita
proximidade
com
estranhos.
Observada
de perto, a
nossa
necessidade
de espaço
será, então,
uma evolução
de defesa.
Mas há
exceções na
defesa de
territórios
maiores –
espaços que
estão para lá
da ameaça
pessoal. No
reino animal,
pássaros como
o tordo, por
exemplo, são
agressivos
para com
outros tordos
que entram no
seu território,
mas permitem
o acesso de
aves como a
trepadeira de
peito branco,
pois as duas
espécies têm
fontes
alimentares
diferentes e
não
competem. Do
mesmo modo,
os chimpanzés
protegem o
seu espaço da
sua própria
espécie. E são
territórios
significativos,
de entre 48 a
241
quilómetros.
Machos, e às
vezes também
fêmeas e
jovens,
patrulham
regularmente
as fronteiras
para assegurar
que os
vizinhos
chimpanzés
não se
infiltram no
seu território.
E embora os
machos
vizinhos
sejam sempre
atacados como
intrusos, as
fêmeas férteis
são bem-
vindas como
novas
imigrantes,
pelo menos
pelos machos.
Em geral são
marginalizada
s de início
pelas fêmeas
residentes,
mas o acesso
acaba por ser-
lhes
autorizado.
Já os
humanos são
diferentes:
gerimos os
nossos
territórios não
apenas de uma
forma física,
mas com as
nossas
mentes.
Enquanto
espécie,
criámos
fronteiras e
mapas que nos
separam uns
dos outros e
assinalam
espaços
definidos. A
separar-nos
está também o
facto de os
nossos
territórios
poderem ser
imensos; na
verdade,
aquilo que
hoje constitui
o nosso
território
abrange o
planeta
inteiro.

Na
Finlândia, o
povo indígena
Sami tem uma
unidade de
medida muito
especial.
Chama-se
poronkusema
e é definida
como a
distância que
uma rena pode
percorrer
antes de ter de
parar para
urinar. Os
Sami, que
vivem há
séculos ao
lado das renas,
repararam que
os animais
nunca urinam
enquanto
caminham. E,
portanto,
aproximadam
ente ao fim de
cerca de 7,5
quilómetros,
uma
poronkusema,
param e
esvaziam as
bexigas.
Embora esta
medida possa
parecer um
bocadinho
absurda para
todos aqueles
que não
guardam
rebanhos de
renas, deve
dizer-se que,
antes de o
sistema
métrico surgir,
muitos países
e culturas
possuíam os
seus sistemas
bastante
peculiares. É
provável que,
no futuro, as
pessoas
também
considerem
bizarro o facto
de
descrevermos
a perda
irreparável das
nossas
florestas
tropicais em
termos de
“campos de
futebol”.
A
capacidade
que temos
para definir e
medir o
espaço com
rigor separa-
nos de outras
espécies.
Somos os
únicos
animais com
aptidão para
projetar a
nossa
idealização
mental do
mundo –
usando
comprimentos
, larguras,
linhas e mapas
– e assim
definir o
espaço físico
em redor. Para
compreender
de que modo
construímos
este mundo
cartografado é
importante, no
entanto, olhar
primeiro para
a forma como
criámos as
unidades
básicas de
medida.
A dimensão
do espaço,
como vimos
no capítulo 1,
é demasiado
gigantesca
para ser
apreendida
pelos nossos
pequenos
cérebros e por
isso
reduzimos a
escala do
abismo,
dividindo-o
em
pedacinhos
mais pequenos
que somos
capazes de
entender,
coisas de uma
dimensão
humana.
Muito como a
dimensão do
tempo,
originalmente
todas as
medidas
foram feitas
com corpos.
Como Witold
Kula escreve
em Measures
and Men, ao
longo da
maior parte da
história o
corpo humano
funcionou
como “a
medida de
todas as
coisas”.
Recuando a
2700 a.C., os
egípcios
usavam o
cúbito real,
uma medida
que ia de
523,5 a 529,2
milímetros e
era
sensivelmente
equivalente à
distância entre
a mão esticada
e o cotovelo.
O cúbito era
depois
dividido em
sete “palmos”,
cada um
aproximadam
ente com 75
milímetros, e
os palmos
eram
subdivididos
em quatro
djeba, ou
dedos, com
cerca de 19
milímetros
cada.
Estas
medidas do
antebraço
eram
populares em
todo o mundo.
E fazia
sentido.
Temos todos
braços, por
isso era como
andar sempre
com uma
medida. Os
gregos antigos
mediam o
cubo em 460
milímetros,
enquanto a
antiga ulna
romana era de
444
milímetros.
Não eram
obviamente
medidas
exatas, mas
eram muito
semelhantes.
Eram também
usadas como
medida outras
partes do
corpo,
incluindo o
shaku (pé) no
Japão, o hasta
(antebraço) na
Índia, o chi
(mão) na
China, o
thnang dai (nó
dos dedos) no
Camboja e o
wa (braço
esticado) na
Tailândia.
Mas o
problema com
as medidas
baseadas no
corpo, como é
fácil de
perceber, é
que não são
iguais. Por
isso, quando
os
governantes
queriam
aplicar
impostos a
uma
população, a
medida exata
de uma mão
cheia ou de
um cesto
cheio de trigo
ou de 60
passadas de
um campo era
subjetiva. Em
territórios
sujeitos a um
governo,
como observa
o sociólogo
Zygmunt
Bauman,
todas estas
diferentes
modalidades
de medida
tinham de ser
absorvidas
pela
“imposição de
medidas
padrão,
obrigatórias,
de distância,
superfície ou
volume,
proibindo ao
mesmo tempo
todas as outras
definições
locais, de
grupo ou
individuais”.
As medidas
tinham de
tornar-se
padronizadas.
Na
Inglaterra
medieval, a
terra chegou a
ser medida
pela
quantidade
necessária
para sustentar
uma casa. A
unidade de
medida era
conhecida
como um
“hide”.
Tradicionalme
nte, um hide
tinha cerca de
48,5 hectares,
mas a sua
definição era
flexível no
sentido em
que era mais
uma medida
de valor (sob a
forma dos
impostos que
produzia para
a família) do
que uma
medida de
superfície.
Um hide de
solo fértil, por
exemplo, seria
mais pequeno
do que um
hide de solo
pobre. A
questão é que
a medida do
espaço não era
uma coisa
perfeitamente
definida.
Podia ser
negociada.
O primeiro
padrão que
conhecemos
foi
promulgado
por Ricardo I
em 1196. No
Tribunal de
Medidas, o rei
decretou que
“por todo o
reino haverá a
mesma jarda
do mesmo
tamanho e
deverá ser de
ferro”. Mas
Ricardo I
também tinha
a noção de
que, para
serem aceites,
os seus
padrões
tinham de ser
vistos como
benéficos para
o povo. E, por
isso, quando a
Magna Carta
foi assinada,
em 1215, não
só fixou
limites à
monarquia e
deu mais
direitos aos
barões
rebeldes, para
garantir o seu
apoio político,
como
também, de
uma forma
bastante
surpreendente,
delineou os
primeiros
padrões para a
cerveja. Os
“direitos” da
carta
garantiam que
a cerveja seria
finalmente
idêntica “por
todo o reino”,
fazendo assim
com que as
pessoas não
fossem
enganadas
umas pelas
outras ou por
comerciantes
gananciosos.
Como
afirma a
cláusula 35 da
carta: “Haverá
em todo o
nosso reino
uma medida
para o vinho,
e uma para a
cerveja, e uma
para os
cereais, a
saber: o
quarter
londrino.
Haverá
também uma
largura para os
panos
tingidos, os
russets e os
haberjects, a
saber: dois
ells entre as
margens. Os
pesos devem
ser
padronizados
da mesma
forma.”
Ao longo
dos séculos,
com a subida
ao trono de
vários
monarcas, as
medidas
mudaram com
frequência, ao
sabor dos seus
desejos.
Durante o
reinado de
Eduardo I
(1272 a 1307),
a medida
oficial para os
terrenos era o
rod, ou perch
(vara). A sua
definição
parecia uma
criação dos
Monty
Python: um
rod era “o
comprimento
total dos pés
esquerdos dos
primeiros 16
homens a
saírem da
igreja ao
domingo de
manhã”. Até
ao reinado de
Henrique VII
(1485 a 1509),
a “yard”
(jarda) era
orgulhosament
e definida
como “a
amplitude do
peito de um
saxão”.
Henrique
substituiu-a
pelo “ell”
padronizado,
uma medida
que era
aproximadam
ente uma jarda
e um quarto e
foi pedida
emprestada
aos
vendedores de
tecidos
franceses. Em
1588 o ell foi
então
suplantado
pela jarda de
Isabel I. Esta
jarda foi
duradoura;
prevaleceu
mais de 200
anos. Mas em
1824 outra
jarda tomou o
seu lugar,
quando Jorge
IV
encomendou à
Royal Society
um padrão
imperial.
Infelizmente,
a sua jarda
durou apenas
nove anos e
198 dias, já
que a vara
oficial padrão
ficou
danificada no
grande
incêndio de 16
de outubro de
1834, que
arrasou o
edifício do
parlamento.
As medidas
não têm
estado só
sujeitas aos
caprichos da
história,
também têm
diferido de
país para país
e até de lugar
para lugar no
mesmo país.
Em The
Measure of All
Things, Ken
Alder escreve
que na França
pré-
revolucionária
se calculava
que “sob o
disfarce de
perto de 800
nomes, o
Ancien
Régime
francês usava
umas
extraordinária
s 25 mil
unidades
diferentes de
pesos e
medidas”.
Mas também
foram os
franceses que
criaram os
primeiros
padrões de
medida
“universais”,
estabelecendo
o sistema
métrico que a
maior parte do
mundo hoje
usa.
Quando a
Revolução
Francesa
esmagou a
monarquia,
também
deixou cair a
guilhotina
sobre as
velhas ideias.
Os franceses
criaram um
novo sistema
e declararam
que seria
“para todo o
povo, para
todo o
tempo”. A sua
grande ideia
era afastar o
corpo humano
– e as
complexidade
s da forma
humana – da
condição de
fonte principal
de perspetiva
e, em vez
disso, assentar
novas
unidades de
medida em
qualquer coisa
de mais
universal: o
nosso corpo
planetário. Era
uma tarefa
imensa.
No verão de
1792, dois
astrónomos,
Jean-Baptiste
Delambre e
Pierre
Méchain,
saíram de
Paris em
direções
opostas.
Delambre
dirigiu-se para
norte,
enquanto o
colega
Méchain
partiu para
sul. Tinham
um objetivo
extremamente
ambicioso:
serem os
primeiros a
medir o
mundo. Para o
conseguirem,
iriam seguir o
arco
meridiano
entre
Dunquerque e
Barcelona,
que passava
por Paris.
Extrapolando
a partir dessa
medida,
encontrariam
então a
distância entre
o Equador e o
Polo Norte.
Foi, e
continua a ser
até hoje, um
feito
extraordinário.
Usando varas
de platina para
seguir a linha
de longitude,
os dois
homens
calcularam
que a
distância entre
o Polo Norte e
o Equador era
de dez
milhões de
metros e
determinaram
que o metro
devia ser
definido como
um décimo
milionésimo
da distância
entre o polo e
o Equador.
Com base em
medições
efetuadas por
satélites,
sabemos hoje
que a
distância exata
é de
10.002.290
metros.
Delambre e
Méchain
enganaram-se
apenas por um
par de
quilómetros, o
que significa
que o cálculo
de um metro
estava exato
com um erro
de 0,2
milímetros, ou
seja,
aproximadam
ente a largura
de dois
cabelos
humanos.
Esta medida
da Terra foi
forjada em
platina e no
dia 22 de
junho de 1799
um protótipo
deste metro,
designado
“mètre des
Archives”
(metro dos
arquivos), foi
colocado nos
Arquivos
Nacionais em
Paris. Em
breve seriam
exportadas
cópias para
outros países,
para que eles
pudessem usar
a medida. Mas
surgiu uma
complicação.
As cópias
podiam sofrer
danos e
estavam
sujeitas a
desgaste. Por
isso nasceu
um novo
metro, o metro
protótipo
internacional.
Esta barra de
platina e irídio
seria uma
“linha
padrão”.
Tinha duas
marcas que
davam a
medida de um
metro,
evitando
assim o
problema de o
metro ser
danificado nas
pontas. O
protótipo
ficaria
guardado no
recém-criado
Bureau
Internacional
dos Pesos e
Medidas, em
Sèvres, nos
arredores de
Paris. Este
tornou-se o
metro
“oficial” e em
breve seria
copiado e
usado em
mais de 30
países.
Como o
incêndio que
destruiu o
parlamento
britânico tinha
mostrado,
havia ainda
um problema
com uma
representação
física de uma
coisa abstrata.
O metro
“real” (que
representava
todos os
outros) ainda
estava sujeito
a sofrer danos.
E, por isso, o
metro de
platina,
enquanto
padrão do
sistema
métrico,
precisava de
ser protegido.
Em Sèvres, foi
criado um
complexo
sistema de
alarmes contra
incêndios e
antirroubo. Na
Rússia
czarista dos
últimos
tempos, as
medidas
oficiais
também eram
guardadas em
segurança na
fortaleza de
Pedro e Paulo
em São
Petersburgo.
Mas até estas
precauções
extremas não
eram
suficientement
e seguras.
Como
escreveu
Witold Kula:
“O
pensamento
de que um dia,
por causa de
um sismo ou
de um
incêndio
calamitoso, o
mundo
pudesse ficar
‘sem o metro’,
era na verdade
um pesadelo.
As novas
regras,
aplicadas em
1961,
abandonaram
o próprio
conceito de
‘padrão’.
Hoje, o metro
verdadeiro ou
invariável é
definido como
‘um
comprimento
igual a
1.650.763,73
comprimentos
de onda da luz
laranja
emitida pelo
átomo de
Krypton de
massa 86 in
vacuo’ e é
reproduzível
no mundo
inteiro em
qualquer
laboratório
científico
devidamente
equipado.”
Assim
nasceu o
padrão
transferível.
Em vez de
medir uma
dimensão
através das
suas
quantidades
humanamente
observáveis, o
metro tornou-
se uma coisa
abstrata,
invisível e
intocável.
Como sucedeu
com a medida
do tempo,
fomos
afastados da
possibilidade
de ter a
perceção das
medidas que
nós próprios
criámos. Estas
medidas são
hoje tão
exatas que só
podem ser
conseguidas
por meio de
tecnologia
avançada. Até
a medida a
partir do
Krypton está

desatualizada.
Hoje, o metro
desmaterializa
do já tem
outra
definição.
Com a
invenção do
laser, o espaço
já não é
apenas uma
medida de luz,
mas também
uma medida
de tempo.
Estabilizado
através de
iodo
molecular, o
laser de hélio-
néon define o
metro do
século XXI
como “o
comprimento
do caminho
percorrido
pela luz no
vácuo durante
um intervalo
de tempo de
1/299.792.458
de um
segundo”.
Tudo isto
parece
altamente
complexo para
qualquer coisa
que devia ser
muito simples.
No fim de
contas, como
sabe qualquer
pessoa que já
tenha feito
compras na
IKEA, a maior
parte de nós
ainda mede as
coisas com os
pés e com as
mãos. Mas as
medidas têm
esta
caraterística:
elas definem
tudo sobre o
nosso mundo
e no entanto
nós nunca
pensamos
nelas ou nas
suas origens.
Contudo, em
silêncio, as
medidas
definem o
próprio
sistema em
que vivemos.
Como
escreveu Ken
Alder: “Medir
é uma das
nossas ações
mais comuns.
Falamos a sua
linguagem
quando
trocamos
informações
precisas ou
trocamos
objetos com
exatidão. Mas
esta mesma
ubiquidade
torna as
medidas
invisíveis.
Para
cumprirem a
sua missão, os
padrões
precisam de
funcionar
como um
conjunto de
suposições
partilhadas, o
cenário que
nunca vimos
mas no qual
alcançamos
acordos e
fazemos
distinções.
Não
surpreende
por isso que
consideremos
as medidas
como um
dado
adquirido e as
consideremos
banais.”
Esta
banalidade
está
formalizada
no aceitar “as
coisas como
elas são”. O
mundo sem
limites torna-
se um mundo
medido. A
nossa relação
pessoal com o
espaço muda.
O espaço
torna-se uma
coisa. Torna-
se um ângulo
morto. Mas
não
questionamos
esta abstração.
E assim, com
o tempo, a
forma como
estruturamos o
espaço
começa a
parecer-nos
natural ou
inevitável.
Mas, como
veremos a
seguir, as
medidas não
definem
somente as
fronteiras do
nosso mundo,
também
definem quem
o ocupa.

O exército
dos Estados
Unidos faz
hoje
exercícios em
campos de
batalha
conhecidos
como
ambientes de
treino
sintético. Os
militares já
criaram
versões
virtuais da
Coreia do
Norte, Coreia
do Sul, Nova
Iorque, São
Francisco e
Las Vegas
para servirem
de campos de
treino
simulados,
réplicas
completas em
três dimensões
geradas a
partir dos
ambientes
reais. A
capacidade
para efetuar
medições de
alta precisão é
vital, porque
elas passam a
representar a
realidade.
Neste caso, o
mapa abre-se
e torna-se o
território.
A ideia é
que as
unidades do
exército
conheçam
antecipadame
nte um terreno
de batalha,
para o caso de
alguma vez
terem de o
pisar. E
embora a
tecnologia
tenha
melhorado,
não é
propriamente
nova. Já em
1993, num
artigo para a
revista Wired,
o autor de
ficção
científica
Bruce Sterling
escrevia sobre
como os
militares
estavam a usar
o espaço
virtual para
bater o seu
adversário
real:

“O
Projeto
2581 é
sobre a
reproduçã
o virtual e
arquivame
nto do
planeta
inteiro. A
tecnologia
de
simulação
atingiu
hoje um
ponto em
que as
fotografia
s de
satélite
podem ser
automatic
amente
transform
adas em
paisagens
virtuais
em 3D.
Estas
paisagens
podem ser
guardadas
em bases
de dados,
e depois
usadas
como
terrenos
de treino
altamente
idênticos
para
tanques,
aviões,
helicópter
os,
SEALs,
comandos
da Força
Delta. O
que quer
isto dizer?
Quer
dizer que
em breve
não
haverá
“território
desconhec
ido” para
os
militares
dos
Estados
Unidos.
No futuro
[…] os
militares
norte-
americano
s
conhecerã
o todo o
planeta
como a
palma das
suas
mãos.
Conhecer
ão outros
países
melhor do
que se
conhecem
a si
mesmos.”

Se a ideia de
ter a sua
cidade
cartografada
virtualmente
pelo
Pentágono o
deixa um
tanto
desconfortável
, pense um
pouco nos
que, ao longo
dos séculos,
sentiram os
europeus ao
chegar com
astrolábios e
pequenos
telescópios e
outros
instrumentos
usados em
cartografia.
Fossem os
espanhóis no
Peru, os
franceses em
São Lourenço,
os ingleses em
África ou os
próprios
Mason e
Dixon a
atravessar os
Estados
Unidos, era
inevitável que,
depois de os
mapas estarem
feitos,
chegariam
agentes de
potências
estrangeiras –
e logo a
seguir, em
geral, havia
violência.
Mas a
cartografia
também é
usada para
manter a paz e
reconciliar
interesses em
conflito de
uma forma
civilizada.
Hoje, o Ártico
– onde há
petróleo
avaliado em
35 biliões de
dólares, além
de riquezas
em pescado e
em minério,
sepultado sob
o gelo e a
água – tornou-
se um ponto
de interesse
estratégico.
Cinco países –
Estados
Unidos,
Canadá,
Noruega,
Dinamarca
(Gronelândia)
e Rússia – têm
reivindicações
territoriais
sobre a região
polar. Quem
fica com o
quê?
A lei
marítima
afirma que
cada país pode
reivindicar
200 milhas
náuticas
(370,4
quilómetros)
para lá da sua
costa. É a sua
“zona
económica
exclusiva”.
Mas debaixo
de água existe
também a
plataforma
continental,
que pode
“pertencer” a
um país ou a
outro. E
assim, em
casos onde a
margem
continental se
prolonga para
além do
alcance da lei
dos mares, os
países podem
ainda
reivindicar
outro “limite
exterior”, que
é definido
como uma de
duas coisas: 1)
pontos a 60
milhas
náuticas
[cerca de 111
quilómetros]
do talude
continental;
ou 2) pontos
nos quais a
espessura da
rocha
sedimentar
seja pelo
menos 1 por
cento da
distância mais
curta entre
esses pontos e
o talude
continental.
Tudo se
torna
complicado e
técnico e é
aqui que as
linhas que
definem
soberania
começam a
tornar-se
difusas. Isso
acontece
porque onde a
plataforma
continental se
prolongue
para lá de 200
milhas (370,4
quilómetros),
um país pode
adicionar 350
milhas (648
quilómetros) a
partir da linha
de base (ou
linha de
baixa-mar ao
longo da
costa) ou 100
milhas (185
quilómetros) a
partir do
ponto em que
a plataforma
atinge uma
profundidade
de 2.500
metros. E por
isso o Canadá
apresentou nas
Nações
Unidas uma
petição para
reavaliar onde
termina a sua
plataforma
continental. A
Rússia fez o
mesmo, o que
vai colidir
com a
Dinamarca e
provavelment
e com a
petição
canadiana.
Entretanto, a
Dinamarca e o
governo da
Gronelândia
também
propuseram
um novo
“limite
exterior”, que
iria colidir
com a
plataforma
continental da
Noruega. As
linhas vão
sobrepor-se
umas às
outras, como
um fio
desenrolado.
Mas, por
agora,
enquanto o
gelo do Ártico
resiste, a
fricção entre
países por
causa dos
recursos ainda
não aqueceu.
Em 2007, no
entanto, a
Rússia fez
uma
reivindicação
simbólica
sobre o Polo
Norte. Num
gesto que
provocou
controvérsia
internacional,
cientistas
russos
viajaram até
4.300 metros
debaixo do
gelo nos
submarinos
Mir 1 e Mir 2.
O seu
propósito era
recolher
sedimentos e
amostras de
água para
provar
cientificament
e a
continuidade
do leito
oceânico
como parte da
plataforma
continental
russa.
Também
colocaram
uma bandeira
russa em
titânio, com
um metro de
altura, no
Desfiladeiro
Lomonosov,
onde ainda se
mantém, nas
águas escuras
sob o gelo
polar.
A questão é
que os mapas
podem estar
errados
mesmo
quando são
rigorosos,
porque aquilo
que eles
realmente
afirmam não
são as
fronteiras do
espaço, mas o
alcance do
poder. E
embora
tenham sido
usadas a
geologia e a
ciência dura
para justificar
a
reivindicação
russa ao Polo
Norte, a
comunidade
internacional
não julgou
que isso fosse
um argumento
convincente.
Em entrevista
ao The
Guardian,
Kim Holmén,
diretor de
investigação
do Instituto
Polar
Norueguês,
rejeitou assim
a
reivindicação
russa: “Os
Estados
Unidos e a
Europa
estiveram em
tempos
ligados, os
Apalaches e
as montanhas
escocesas são
a mesma
formação
geológica,
mas por causa
disso a
Escócia não
pode
reivindicar
que os
Estados
Unidos fazem
parte do seu
território.
Estas amostras
não podem
provar de uma
vez por todas
que toda a
discussão está
terminada.”
O então
ministro
canadiano dos
Negócios
Estrangeiros,
Peter MacKay,
também
ridicularizou o
espetáculo
russo de
deixar uma
bandeira:
“Não estamos
no século XV.
Não podemos
andar pelo
mundo a pôr
bandeiras e a
dizer:
‘Reivindicam
os este
território’.”
Tudo isto é
verdade. Sem
dúvida que os
continentes
estiveram em
tempos todos
juntos. E há
séculos que
espetar
bandeiras no
chão não é
considerado
boa
diplomacia.
Mas o que
ninguém viu
foi que o
aparentemente
irresolúvel
problema da
soberania
sobre o Ártico
não foi
causado por
qualquer
manobra
russa. Foi
provocado por
mapas. As
linhas e
fronteiras que
traçamos para
desenhar
países são
arbitrárias.
Não quero
dizer que as
plataformas
continentais
sejam
imaginárias;
elas são bem
reais.124 Mas a
ideia de que
têm alguma
coisa que ver
com aquilo a
que
chamamos
nações não
passa disso
mesmo: uma
ideia. E a
ideia de que
os mapas
conferem
propriedade
começa a
parecer
bastante
ridícula,
quando dois
mapas
perfeitamente
rigorosos
parecem
afirmar duas
coisas
diferentes. Por
outras
palavras, a
questão não é
efetivamente
se um dos
mapas está
errado. É que,
como forma
para resolver a
questão de
quem detém
os direitos a
explorar os
recursos
debaixo do
gelo, ambos
podem estar
errados.
Em 24 de
julho de 1969,
o funcionário
da alfândega
Ernest Murai
recebeu três
visitantes
especiais em
Honolulu, o
porto de
entrada no
Havai. Os
visitantes
tinham estado
oito dias fora
do país, o que
não era
particularment
e invulgar. O
que era
invulgar era o
ponto de onde
tinham
partido. O voo
era o da
Apollo 11, e
bem visível no
formulário de
entrada, no
espaço
reservado ao
ponto de
partida dos
viajantes, lia-
se
simplesmente
“Lua”.
A ideia de
astronautas
regressados à
Terra a
passarem pelo
controlo de
alfândega
parece um
bocado
rebuscada. É
evidente que
Neil
Armstrong,
Buzz Aldrin e
Michael
Collins não
precisaram de
vistos ou
passaporte
quando
viajaram para
a Lua, mas
para
regressarem a
casa
precisaram de
pedaços de
papel
carimbados. O
mesmo é hoje
verdade na
Estação
Espacial
Internacional.
Estes viajantes
do espaço
circulam
livremente à
volta do
planeta, 16
vezes por dia,
mas quando
aterram a
NASA tem de
levar-lhes
passaportes
para poderem
viajar outra
vez na Terra.
Quando se
pensa nisso, é
notável o
poder que
estes livrinhos
em papel
representam,
em especial se
se considerar
que são uma
invenção
muito recente.
Hoje, para
além de serem
uma forma
oficial de
identificação,
revelam quem
são os nossos
aliados (e
inimigos) no
planeta. Os
passaportes
mais
poderosos
concedem a
maior
liberdade. São
emitidos por
países que têm
alianças com
muitos outros.
Os indivíduos
que possuam
passaportes de
Singapura ou
da Coreia do
Sul, por
exemplo, têm
acesso a 163
países sem
necessidade
de visto. O
detentor de
um passaporte
do
Afeganistão,
no entanto,
tem acesso a
apenas 26.
As pessoas
com
passaportes
“bons” não
pensam neste
desequilíbrio
de liberdade.
Como
escreveu o
jornalista
Kanishk
Tharoor, “os
cidadãos de
países
ocidentais
como os EUA
raramente têm
a noção do
enorme luxo
que os seus
documentos
de viagem
constituem.
As fronteiras
dissolvem-se
perante o
suave acenar
de um
passaporte
britânico ou
americano; o
pior incómodo
é muitas vezes
ter de estar em
fila num
aeroporto para
conseguir um
visto”. Em
contraste,
como nota
Tharoor, os
refugiados
sírios que
viajaram para
a Europa de
barco, entre a
Turquia e a
Grécia,
tiveram depois
de seguir a pé
pelos Balcãs
para a Europa
Central. E é
uma
deslocação
cara. Uma
viagem de ida
deste tipo
entre a Síria e
a Europa custa
pelo menos
três mil
dólares. Mas
quando se é
sírio não é
simplesmente
possível entrar
num avião e
solicitar um
visto à
chegada.
Embora os
passaportes
tenham
tecnicamente
existido há
séculos sob a
forma de
“documentos
de viagem”
(cartas de reis
a prometer
passagem em
segurança
datam do ano
450 a.C.), o
passaporte
moderno,
como o
conhecemos,
só existe
desde 1914.
No seu livro
Closed
Borders, Alan
Dowty sugere
que isso é
assim muito
simplesmente
porque até ao
fim do século
XIX não
existiam as
infraestruturas
necessárias.
“Eram poucos
os governos”
– escreveu –
“que tinham
realmente
controlo total
das suas
fronteiras; e
não possuíam
burocracias
suficientement
e sofisticadas
para destrinçar
entre
migrantes
legais e ilegais
quando estes
cruzavam os
postos
fronteiriços.”
Foi só
apenas depois
da Primeira
Guerra
Mundial,
quando os
impérios se
fraturaram em
nações mais
pequenas, que,
para fins de
segurança e
controlo de
emigração, o
passaporte
começou a ser
usado. Era um
tempo em que
os países
estavam bem
mais
preocupados
com as
pessoas que
saíam pelas
suas fronteiras
do que com as
que entravam.
Como o
escritor Stefan
Zweig recorda
na sua
autobiografia
O Mundo de
Ontem:
“Antes de
1914, a terra
tinha sido de
todos […] As
pessoas iam
onde queriam
e ficavam o
tempo que
lhes apetecia.
Não havia
autorizações,
nem vistos, e
dá-me sempre
prazer
espantar os
jovens ao
dizer-lhes que
antes de 1914
viajei da
Europa para a
Índia e para a
América sem
passaporte – e
sem que
alguém tivesse
visto um.”
Mas não nos
limitámos só a
inventar o
passaporte.
Antes do
século XVIII, o
mundo
também não
tinha estados-
nação.
Embora em
qualquer dado
momento as
fronteiras
pareçam
permanentes,
elas têm
mudado
enormemente
ao longo dos
séculos. Se as
olhássemos ao
longo de um
período de mil
anos usando o
conceito de
imagens
sucessivas,
veríamos
como
avançam e
recuam como
se fossem
ondas, em
especial na
Europa. E
embora a
nossa
tendência seja
para assumir
que as
fronteiras têm
o papel
importante de
separar
claramente o
que está de
um lado da
linha daquilo
que está do
outro, os
vizinhos das
localidades de
Baarle-Hartog
e de Baarle-
Nassau, que
pertencem
respetivament
e à Bélgica e à
Holanda,
veem as
coisas de uma
maneira muito
diferente.
Aqui, as
fronteiras
estão tão bem
definidas
como um
prato de ovos
mexidos,
graças a
duques e
lordes
medievais que
nessa altura
trocaram
pedaços de
terra da
mesma forma
que hoje
trocariam
moedas. Por
causa disso,
hoje, dentro
de uma
comunidade,
há 22 mini
Bélgicas que
formam
enclaves
dentro da
Holanda, e
sete destes
pedaços de
terra contêm
mini
Holandas. O
que significa
que há “partes
da Holanda
dentro de
partes da
Bélgica que
estão dentro
da Holanda”.

localidades
cortadas por
fronteiras que
ziguezagueia
m. Algumas
passam
mesmo pelo
meio de bares
e restaurantes,
enquanto
outras
dividem
parques e até
edifícios
residenciais.
Algumas
famílias têm
casas de
nacionalidade
dividida, com
uma cozinha
num país e a
sala noutro.
De acordo
com as linhas
de fronteira,
há diferentes
operadores de
TV por cabo e
serviços de
recolha de
lixo. Mas não
é tudo. “Há
dois governos
locais – o que
significa que
há duas
eleições para
dois
presidentes de
câmara. Há
também dois
conjuntos de
eleições
regionais e
nacionais. Há
dois serviços
postais. Se se
enviar uma
carta de um
país para o
outro (o que,
neste caso,
quer dizer
para o outro
lado da rua), a
carta
percorrerá um
longo
caminho, de
Baarle até
Amesterdão
ou Bruxelas
até regressar
novamente a
Baarle… E há
dois sistemas
fiscais, dois
sistemas
elétricos, dois
sistemas
telefónicos,
dois sistemas
escolares e
dois clubes de
ténis.”
Durante
algum tempo,
os bares do
lado holandês
da cidade
fechavam
mais cedo, e
nos
restaurantes
divididos ao
meio podiam
iludir-se as
regras
simplesmente
passando os
clientes para o
lado belga,
onde podiam
continuar a
comer e a
beber. Mas
esta teia de
linhas
divisórias
também criou
vazios
financeiros. E
embora os
residentes
tenham de
obedecer às
fronteiras, há
formas de
fazerem o
sistema
funcionar a
seu favor. Os
impostos, por
exemplo, são
pagos no país
para onde abre
a porta da
frente, e por
isso, em
vários casos,
houve
comerciantes
que trocaram
a porta de
entrada das
suas lojas e
assim se
mudaram para
outro país, de
forma a terem
impostos mais
favoráveis.
Tudo isto
para dizer que
as linhas
invisíveis que
desenhamos
são
importantes, e
que embora
possam nem
sempre
separar
pessoas ou
culturas,
separam leis.
No caso de
Baarle-Nassau
e Baarle-
Hertog, os
habitantes têm
evidentemente
mais em
comum uns
com os outros
do que com
qualquer outro
grupo no
planeta,
apesar de
viverem em
países
diferentes. Ao
mesmo tempo,
embora um
país possa
reivindicar ser
diferente de
outro, existem
sempre dentro
das suas
fronteiras
grupos
étnicos, fações
políticas e
diferenças
religiosas, por
muito
homogéneo
que esse país
pareça. Isso
acontece
porque há a
tendência para
fazer coincidir
estados-nação
com estados
territoriais.
Em Mastering
Space, John
A. Agnew
escreveu:
“Isto parece
bastante
inocente, mas
confere ao
estado
territorial a
legitimidade
de representar
e de expressar
o ‘caráter’ ou
‘vontade’ da
nação […]
Neste sentido
singular,
muitos estados
não são
claramente
nações.”
Foi sem
dúvida o que
aconteceu
com muitos
países em
África,
quando as
potências
coloniais
dividiram o
continente
sem pensarem
muito nas
pessoas e nos
grupos étnicos
que o
habitavam. No
Corno de
África, os
povos somalis
viram a sua
terra dividida
entre a
Somalilândia
Britânica, a
Somalilândia
Italiana, a
Somalilândia
Francesa, a
região somali
da Etiópia e a
região somali
do norte do
Quénia. Em
especial para
os grupos
nómadas e de
pastores, as
fronteiras
coloniais que
restringiam os
seus
movimentos
significavam
muitas vezes a
perturbação,
ou mesmo a
destruição,
dos seus
modos de
vida. Muitos
tinham de se
fixar e
competir por
recursos, o
que conduziu
a um aumento
dos conflitos.
Noutros
casos, foi o
contrário que
provocou
problemas:
grupos étnicos
completament
e afastados,
sem qualquer
partilha de
costumes ou
uma herança
comum,
reunidos
dentro de
fronteiras.
Tomemos
como exemplo
um dos mais
novos países
de África. Em
Angola
existem dez
grupos étnicos
diferentes, que
na verdade
têm apenas
uma coisa em
comum: foram
colonizados
pelos
portugueses e
conquistaram
a
independência
em 1975. Os
europeus
levaram o que
puderam
quando se
foram embora,
mas deixaram
as fronteiras e
um país que
não tinha
existido
antes.
Basicament
e, ser do
mesmo país
de outra
pessoa não
quer dizer ser
igual a ela, do
mesmo modo
que pertencer
a um país
diferente não
quer dizer que
se seja
diferente.
Pensem desta
forma: há
cerca de 6.500
idiomas
falados na
Terra. E o
idioma é um
dos principais
elementos
unificadores
de uma
125
cultura.
Dado que
existem 195
países, isso
significaria
que em média
um país
contém 33
culturas
linguísticas
diferentes.
Vejamos a
Papuásia-
Nova Guiné,
com mais de
800 idiomas
falados, ou a
Indonésia,
com 742. É
evidente que
as fronteiras
nacionais não
se
transformam
em
agrupamentos
culturais. As
contas não
batem certas.
Há outra
forma de olhar
para as
fronteiras.
Gostamos de
partilhar os
feriados
nacionais, a
gastronomia
ou os
costumes mas
nem sempre
estamos
dispostos a
deixar entrar
algumas
pessoas. No
fundo somos
animais e,
enquanto
animais, às
vezes lutamos
por causa de
território. As
nossas
naturezas
animais
podem, no
entanto, ser
saciadas
quando há
espaço e
recursos em
abundância. É
por isso que o
espaço
desconhecido,
como o
espaço
exterior, não
sofre em geral
qualquer
contestação.
Há tanto
espaço no
sistema solar e
no universo
que é
absolutamente
inútil disputá-
lo. Do mesmo
modo, em
terras
desertas, há
milénios que
pequenas
populações de
nómadas
tiveram o
direito de
vaguear por
grandes
porções de
território.
Como Fred
Pearce escreve
em The Land
Grabbers, as
mudanças que
estamos agora
a ver são
relativamente
recentes,
porque há
apenas “uma
geração os
beduínos e os
seus camelos
vagueavam
pelos desertos
do Médio
Oriente”. Mas
mesmo nessa
altura “não
havia
liberdade
total.
Negociavam-
se e vigiavam-
se propriedade
e direitos, mas
sem vedações,
leis formais
ou fronteiras
nacionais”.
Como os
nómadas se
adaptam com
frequência a
lugares
inóspitos e
inférteis como
o deserto, a
estepe, o
Ártico ou a
tundra, as suas
populações
eram
tipicamente
pequenas e
ágeis, tirando
partido da
vegetação e da
caça quando
migravam
com animais,
segundo as
estações do
ano. Nas
regiões férteis,
porém, as
tribos
humanas
começaram a
assentar em
casas
permanentes.
Há dez mil
anos, com o
advento da
agricultura,
fomos
também
capazes de
constituir pela
primeira vez
reservas de
alimentos. Em
conjunto com
povoações
desenvolvidas
que
precisavam de
ser
defendidas,
mais
alimentos
significavam
também mais
pessoas.
Havia
confrontos
quando o
espaço era
valioso. E
quando os
grupos
instalados já
não
conseguiam
expandir-se
para outros
territórios,
evoluiu um
novo tipo de
formação de
grupo
humano:
começámos a
expandir-nos
para cima. Foi
a invenção da
hierarquia.
A hierarquia
permitiu a
complexidade
social e o
governo
coordenado de
grupos
maiores. Na
revista New
Scientist,
Deborah
MacKenzie
examinou a
evolução das
nações,
observando
que
“hierarquias
maiores não
só ganharam
mais guerras
como
alimentaram
mais pessoas
através de
economias de
escala, que
permitiram
inovações
técnicas e
sociais como a
irrigação, o
armazenament
o de
alimentos, a
manutenção
de registos e
uma religião
unificadora.
Seguiram-se
as cidades, os
reinos e os
impérios.
Uma cidade
ou região
conquistada
podia ser
subjugada
para fazer
parte de um
império,
independente
mente da
‘identidade
nacional’ dos
seus
habitantes”.
Por outras
palavras, há
milhares de
anos os
impérios
tendiam a ser
multiculturais
e isso, na
verdade,
nunca mudou.
Mas o
grande flagelo
das primeiras
cidades-estado
e impérios não
eram tanto
outras
cidades-estado
e impérios;
eram mais
aqueles que
não se tinham
fixado e não
tinham
devotado a
sua energia à
agricultura.
Ou seja, os
povos livres:
os nómadas.
Do ponto de
vista dos
colonos, um
nómada é
alguém que
não liga à
nossa fronteira
ou à nossa
divisão de
espaço. Os
que migravam
eram em geral
mais
saudáveis e
mais fortes do
que os
agricultores.
Alguns
andavam a
cavalo e
caçavam com
arco e flechas
e, como tal,
eram
considerados
guerreiros
natos. Por
isso, os
agricultores
tinham todas
as razões para
temer os
nómadas. A
história, tal
como a
conhecemos,
está repleta de
conflitos
sangrentos
entre os dois
grupos, desde
os tempos
bíblicos até
hoje. Mas
apesar de os
estereótipos
serem muitos,
será que os
nómadas eram
mesmo
predadores?
Ou eram as
presas?
Há duas
descrições de
povos
nómadas.
Uma defende
que eram
invasores e
extorquiam e
atacavam
sociedades
agrícolas;
outra que
protegiam o
seu estilo de
vida
tradicional
contra as
sociedades
agrícolas
expansionistas
. Na verdade,
as duas são
exatas; só
depende de
com quem se
está a falar.
O último
povo indígena
da União
Europeia, os
sami,
sustenta-se
através da
pesca e
também da
pastorícia de
renas. E, no
entanto, os
sami têm de
combater os
estados-nação
que existem
nas suas terras
tradicionais.
Como afirmou
um sami: “Os
governos da
Finlândia e da
Noruega
tentam
ilegalizar a
pesca do
salmão para
os sami e dar
novos direitos
de pesca a
pessoas ricas
que
construíram
cabines na
nossa terra.”
Então, a quem
devem
pertencer os
direitos? A
pessoas que
vivem no
local há
milhares de
anos, mas não
são “donas”
da terra, ou a
pessoas que
não têm
verdadeirame
nte laços com
a terra, mas
são donas da
propriedade
privada?
A questão
vai tornar-se
cada vez mais
pertinente à
medida que o
crescimento
global da
população
transformar o
espaço e os
recursos num
luxo. Agora
que vivemos
num mundo
de estados,
consideramos
um pecado ser
apátrida. E,
contudo, a
ideia de uma
linha
imaginária
que alguém
pudesse cruzar
e passar de um
estado para
outro é
razoavelmente
recente na
história
humana. Só
em 1648,
quando foi
assinado o
Tratado de
Vestefália, a
Europa
estabeleceu o
conceito
nascente
daquilo a que
hoje
chamamos
soberania e
pôs fim a
séculos de
violência. O
imperador
Ferdinando II
tinha querido
impor o
catolicismo
nos seus
domínios
(onde as
potências
locais eram
cada vez mais
protestantes).
Isto
desencadeou a
Guerra dos
Trinta Anos,
que causaria
grande
destruição e
depressa
envolveu
quase todos os
países da
Europa.
O conflito
sangrento
durou entre
1618 e 1648,
quando
Ferdinando já
estava morto
há 11 anos, e
resultou em
oito milhões
de mortes. Os
224
principados,
ducados e
outros
pequenos
domínios que
então
compunham
aquilo que
hoje
conhecemos
como
Alemanha
(onde se
travaram a
maior parte
dos combates)
perderam, de
acordo com
algumas
estimativas,
20 a 30 por
cento da
população, o
que fez desta
guerra uma
das mais
sangrentas da
história. No
fim, todas as
partes tinham
um enorme
incentivo para
assinar o
tratado de paz,
só para acabar
com o
pesadelo. Mas
é improvável
que alguém
soubesse que
estava a
estabelecer
um precedente
que iria mudar
o mundo. A
nova ideia que
foi finalmente
aceite, e que
séculos depois
abriu caminho
às Nações
Unidas, era
que as
fronteiras dos
estados davam
aos novos
territórios
direitos às
suas próprias
políticas e
práticas
religiosas. Era
mais ou
menos o
direito de ser
deixado em
paz, em troca
do
compromisso
de deixar os
outros em paz.
É isso que
hoje queremos
dizer,
basicamente,
quando
falamos de
soberania.
A ideia
radical teve
implicações a
nível
individual.
Agora que o
controlo
político já não
era exercido
numa linha
direta,
putativamente
através da
vontade de
Deus, a agir
através do rei
até ao mais
ínfimo dos
súbditos do
estado, era
necessário um
novo
alinhamento
para definir
precisamente
a condição de
estado. E ele
foi alcançado
através do
investimento
direto no
estado, sob a
forma de
propriedade
privada. O
indivíduo era
agora parte de
um contrato e
tornava-se
legalmente
responsável
pela terra que
possuía, e em
contrapartida
tinha um
interesse
investido na
entidade
política maior
a que
pertencia. O
estado
territorial
colocava-se
então no papel
de
protetorado.
Como sugere
John Agnew,
o estado
tornou-se um
“harmonizado
r da
sociedade”.
Pela
primeira vez
na história, o
indivíduo – o
comum –
tinha um lugar
importante na
sociedade.
Como
escreveu
Brian Nelson,
autor de The
Making of the
Modern State,
“a escolha
individual, em
especial a
escolha
económica,
torna-se agora
possível”. E
com esta
interdependên
cia entre o
estado e o
indivíduo,
surgiu a noção
abstrata de
“direitos”.
Afinal, “a
reivindicação
individual ao
direito de
propriedade
[…] torna-se
válida apenas
até ao ponto
em que o
indivíduo
reconhece as
reivindicações
de outros e
aceita o dever
legal de as
aceitar”. E
embora a
noção de
propriedade
privada
existisse desde
os gregos
antigos, para
estes a
propriedade
não era uma
coisa que o
indivíduo
tivesse o
direito de
negociar. As
transferências
de terras entre
famílias eram
difíceis e
necessitavam
de autorização
religiosa e a
apropriação de
terras privadas
pelo estado
era
inexistente,
exceto em
casos de
exílio. Só com
a criação do
estado
moderno
viemos a
assistir a uma
lealdade para
com o espaço
abstrato. Para
a pessoa
comum, a
ideia de “o
meu país”, “o
meu estado” e
“a minha
propriedade”
só podia
evoluir com a
ideia de que o
espaço em
questão podia
ser imaginado
como “meu” e
comprado e
vendido como
uma “coisa”.

As divisões
do “espaço”
podem não se
ver, mas estão
por todo o
lado. Até a
coluna de
espaço por
cima da sua
cabeça e por
baixo dos seus
pés tem
direitos
associados.
Ser
proprietário de
uma casa é
uma maneira
de ser dono de
espaço, mas
os direitos
aéreos e sob a
superfície
podem
pertencer a
outro. Nem
sempre foi
assim.
Durante a
maior parte da
história,
partia-se do
princípio de
que um
proprietário
também era
dono do
espaço por
cima e por
baixo; o
espaço que lhe
“pertencia”
estendia-se até
ao infinito. A
ideia baseava-
se na doutrina
ad coelum,
cujas origens
podem ser
traçadas até ao
século XIII.
No essencial,
declarava:
“Cuius est
solum, eius est
usque ad
coelum et ad
infernos”
(“Quem é
dono do solo,
possui tudo o
que está acima
deste até aos
céus, e o que
está abaixo,
até ao
inferno”).
Bastante
dramático,
quando se fala
de
propriedade
imobiliária.
A ideia de
ser dono do
espaço até ao
reino celestial
acabou por ser
puxada para a
terra de uma
forma bastante
improvável.
Não foi
desfeita por
soldados com
espadas ou
com armas de
fogo, mas por
balões de ar
quente e por
um criador de
galinhas muito
zangado. Em
1783, em
França, depois
de o primeiro
balão de ar
quente ter
flutuado
lentamente
sobre os
campos,
levantou-se a
questão da
invasão de
propriedade
aérea; com o
aparecimento
das viagens
aéreas por
avião, a
questão
passou para
primeiro
plano. A partir
do momento
em que isso
aconteceu, era
uma questão
de tempo até
serem
aplicadas
restrições. Em
1925, o
Congresso dos
Estados
Unidos
aprovou a Lei
Kelly, que
concedia rotas
de
“alimentação”
aos serviços
postais aéreos.
Depois, em
1926, a Lei do
Comércio
Aéreo criou
corredores
aéreos que
atribuíam ao
governo os
direitos aéreos
sobre todo o
espaço acima
dos 500 pés
(152 metros)
em áreas
urbanas. O
que
significava
que as leis de
violação de
espaço já não
podiam
aplicar-se.
Mas nem a
Força Aérea
dos Estados
Unidos podia
violar a
santidade do
espaço aéreo.
Em 1946, um
corajoso
criador de
galinhas
chamado
Thomas Lee
Causby, de
Greensboro,
na Carolina do
Norte, levou o
governo a
tribunal por
invasão do
espaço aéreo
sobre a sua
quinta. A
propriedade
ficava a
menos de um
quilómetro da
pista aérea de
Lindley, usada
pelos militares
na Segunda
Guerra
Mundial.
Todos os dias,
quando os
aviões
descolavam e
aterravam,
passavam a
não mais de
25 metros dos
galinheiros. O
ensurdecedor
troar dos
motores punha
as galinhas em
estado de
choque,
levando a que
deixassem de
pôr ovos.
Como refere o
processo,
“seis em dez
[…] galinhas
morreram um
dia ao
atirarem-se,
em pânico,
contra as
paredes. O
total de
galinhas
perdidas desta
maneira foi de
cerca de 150”.
Causby teve
de fechar o
seu negócio.
Em tribunal,
Causby
ganhou e foi
compensado
pelo seu
sofrimento (e
pelo das aves)
pelas
passagens
aéreas
realizadas
entre os 25 e
os 111 metros
– a primeira
era a altura
mais baixa a
que os aviões
voaram sobre
a sua
propriedade e
a segunda
estabelecia a
zona de
travessia
pública em
áreas rurais.
Embora este
veredicto
possa,
entretanto, ter
sido atirado
para livros
jurídicos
cheios de pó,
ainda é
recordado por
uma coisa:
pôs um ponto
final ao ad
coelum. O
governo não
podia
reivindicar “a
posse” do
espaço até ao
solo, da
mesma forma
que os
proprietários
de terras
também não
podiam
prolongar os
seus direitos
de
propriedade
indefinidamen
te até ao
126
céu.
Com a
recente
chegada dos
drones,
porém, a lei
precisou de
ajustamentos
adicionais
quanto aos
direitos de
propriedade
aérea. A
Administração
Federal de
Aviação
(FAA) não
autoriza que
veículos
aéreos não
tripulados
voem acima
dos 400 pés
(122 metros),
para não
interferirem
com os aviões
que se
deslocam a
baixa altitude.
Mas com a
capacidade
para pairar
sobre casas e
espreitar por
janelas de
torres
residenciais,
ainda há uma
área cinzenta
jurídica
quanto aos
drones e aos
direitos de
propriedade.
Um
exemplo: em
26 de julho de
2015, em
Bullitt
County, no
Kentucky,
David Boggs
viu
horrorizado
como William
Merideth
apontava uma
caçadeira aos
seu
quadricóptero
Phantom
novinho em
folha e o
derrubava
com um
disparo
ensurdecedor.
Merideth
alegou que o
drone estava a
invadir a sua
propriedade, e
embora os
dois homens
discordassem
sobre a altura
a que o
aparelho
voava –
Boggs falou
em 61 metros
e Meredith em
menos de 30
–, o drone
estava de
qualquer
modo no
espaço aéreo
do
proprietário
privado. E
assim, de
acordo com o
juiz, Meredith
estava no seu
direito de o
abater.
Quanto mais
se sobe, mais
espaço aéreo
tem sido
disputado,
medido e
dividido. Os
satélites que
orbitam o
nosso planeta
não
sobrevoam
apenas
propriedade
individual,
mas países
inteiros. E por
isso é preciso
que estes se
ponham de
acordo quanto
às fronteiras a
partir das
quais
prescindem
dos seus
direitos aéreos
soberanos.
Embora ainda
persistam
desentendime
ntos, a faixa
horizontal
entre os 30
quilómetros
(onde voam os
aviões e
balões capazes
de subir mais)
e os 160
quilómetros
(onde passam
os satélites de
órbita mais
baixa) é em
geral
designada
como a zona
onde um país
perde as suas
reivindicações
a direitos
aéreos.
Dentro desta
faixa existe
outra fronteira
invisível.
Segundo a
Federação
Aeronáutica
Internacional,
que é o
organismo que
tutela a
astronáutica e
a aeronáutica,
a linha oficial
entre a Terra e
o espaço
exterior situa-
se nos cem
quilómetros.
Para lá deste
limite,
qualquer
viajante
humano é
considerado
um astronauta.
Este limiar
também é
conhecido
como linha de
Kármán e é
onde a
gravidade do
planeta
começa a
perder o seu
poder de
atração sobre
os engenhos
aéreos.127
Sempre que
esta linha é
cruzada,
aplica-se um
conjunto
diferente de
leis que é
diferente das
da Terra, tal
como
definidas no
Tratado sobre
o Espaço
Exterior das
Nações
Unidas, de
1967. No
espaço,
nenhum país
pode
reivindicar
soberania
territorial.
Mas é,
contudo,
irónico que
seja lá no alto
e não aqui na
Terra que o
espaço seja
livre e um
“domínio para
toda a
humanidade”.
Que aquilo
que é
partilhado em
comum exista
num lugar
onde a maior
parte de nós
não consegue
chegar,
quando mais
habitar.
No espaço
reina a paz
(pelo menos
por agora) e
são
rigorosamente
proibidas
armas de
destruição
maciça.
Enquanto
domínio
aberto a toda a
exploração, as
reivindicações
de soberania
sobre título ou
território
podem ser
proibidas, mas
isso não
significa que
não haja
enganos. Há
por exemplo
empresas
online que
oferecem o
direito de
“comprar” o
nome de uma
estrela, mas
nenhuma é
reconhecida
oficialmente.
A União
Astronómica
Internacional
é o único
organismo
com poderes
para atribuir
nomes a
objetos
espaciais e,
“enquanto
organização
científica
internacional,
dissocia-se
completament
e da prática
comercial de
‘vender’
nomes
fictícios de
estrelas,
nomes de
pormenores na
superfície ou
propriedade
noutros
planetas ou
luas no
Sistema
Solar”.
Se é
verdade que
os indivíduos
não podem
reivindicar
objetos
celestes, há
empresas
privadas que
preparam a
exploração de
recursos no
espaço. O
Congresso dos
Estados
Unidos
aprovou em
2015 a Lei do
Espaço, que
alguns
académicos
afirmam
violar o
Tratado sobre
o Espaço
Exterior. Com
os progressos
nos voos
espaciais
privados, e no
espírito do
capitalismo, a
lei encoraja a
concorrência.
Foi atualizada
para permitir a
cidadãos dos
EUA que
“empreendam
a exploração
comercial e a
exploração de
‘recursos
espaciais’”,
incluindo água
e minerais,
abrindo a
porta à
potencial
exploração
mineira de
cometas e
asteroides, em
busca de
metais como
ouro, prata,
irídio, ósmio,
paládio e
platina – tal
como os
norte-
americanos
partiram em
tempos pelos
mares em
busca de
guano.
Todos nós
existimos
numa parcela
minúscula da
nossa galáxia.
Sendo assim,
as nossas
reivindicações
sobre
propriedade
no espaço são
tão absurdas
como uma
formiga
afirmar que é
dona de toda a
propriedade
imobiliária em
Nova Iorque.
Mas, para
cientistas e
empresários,
esta demanda
para a criação
de colonatos
no espaço é a
nova fronteira.
Dados os
recursos
limitados da
Terra e a
nossa
população
crescente,
mudar para
outro planeta
é visto por
alguns como a
“esperança da
humanidade
para um
futuro para
além da
Terra”.
Entretanto,
o nosso
planeta mãe
continua a ser
explorado. O
mundo sob os
nossos pés
contém um
valor imenso,
já que nele se
encontram os
metais que são
transformados
nos nossos
carros,
comboios e
aviões; os
ingredientes
para o gesso,
vidro, cimento
e tijolos que
usamos para
construir as
nossas
cidades; os
minerais que
permitem a
comunicação
através dos
nossos
portáveis e
telemóveis; e,
está claro, a
terra onde
crescem os
nossos
alimentos.
Não deve
surpreender,
então, que o
solo seja o
maior de
todos os
campos de
batalha.
Na esquina
da Sétima
Avenida com
a Christopher
Street, ao pé
de uma loja de
charutos,
encontra-se a
mais pequena
propriedade
imobiliária de
Nova Iorque.
Com a forma
de uma fatia
de piza, o
pedaço de
terra não tem
mais de 3.226
centímetros
quadrados.
Está lá um
bloco de pedra
que, em tom
desafiador,
tem escrito:
“Propriedade
da Casa de
Hess, que
nunca foi
outorgada
para fins
públicos.” Foi
o último
pedaço de
terra
propriedade
de David
Hess, que se
recusou a
desistir da sua
luta com a
cidade para
manter a sua
propriedade
privada.
Em 1910,
Nova Iorque
começou a
comprar terra
e a demolir
edifícios para
alargar as ruas
e construir um
metropolitano.
Hess recusou
vender o seu
edifício de
quatro
andares, mas
foi de
qualquer
modo
obrigado a
abdicar da sua
propriedade,
por
determinação
das leis de
expropriação.
Deixaram-lhe
3.226
centímetros
quadrados.
Como se não
fosse o
suficiente, a
cidade ainda
tornou as
coisas piores
quando pediu
a Hess que
doasse o que
lhe restava
para ser usado
como parte do
passeio. Hess
recusou, e é
por isso que
existe hoje
essa ínfima
parcela de
propriedade
imobiliária a
proclamar o
“despeito”.
Em 1938, o
triângulo de
Hess foi
vendido por
apenas dois
dólares por
cada 6,5
centímetros
quadrados; o
seu preço,
ajustado à
inflação, seria
hoje superior
a 17 mil
dólares. Isso
significa que a
terra custa o
equivalente a
mais ou
menos 26
milhões de
dólares o
metro
quadrado,
embora a
propriedade
de Hess
inscrita no
passeio não
valha nada.
Ninguém pode
ali cultivar, ou
pesquisar ouro
ou procurar
água. As
cidades são os
centros de
poder e de
capital no
mundo e não
há centro
maior do que
Nova Iorque.
Por isso, não é
só terra que se
paga; paga-se
pela terra
escassa que
todos querem
muito ter.
O negócio
imobiliário é
hoje o negócio
de compra,
venda e troca
de espaço.
Mas a ideia de
que a terra
pode ser
“nossa” é – tal
como as
medidas, as
fronteiras e os
estados-nação
– outra
invenção
humana. Ao
folhear
catálogos de
propriedades é
fácil esquecer
que esta ideia
só tem umas
centenas de
anos. Como
escreveu, em
The Land,
Simon Fairlie,
o diretor da
revista, “a
ideia de que
um homem
podia ter os
direitos sobre
uma faixa de
terra, com
exclusão de
todos os
outros, estaria
para lá da
capacidade de
compreensão
dos membros
de qualquer
tribo ou
mesmo dos
camponeses
medievais. O
rei, ou o
senhor da
propriedade,
poderiam ser
donos de
umas terras
num sentido
da palavra,
mas o
camponês
tinha todo o
tipo dos
chamados
direitos de
‘usufruto’,
que lhe
permitiam
apascentar
gado, cortar
madeira ou
apanhar turfa,
abastecer-se
de água ou
cultivar em
vários pedaços
de terra em
alturas
específicas do
ano”.
Eram as
áreas
“comuns”.
Aqui, aldeões
e camponeses
partilhavam
terras de
cultivo e
pastagem e
áreas
florestais. E
embora os
lotes
estivessem
divididos até
um certo
ponto – um
camponês
podia ter um
pequeno
jardim junto
de casa, por
exemplo,
enquanto
outro tinha
uma pequena
área onde os
seus animais
habitualmente
pastavam –,
ninguém era
“dono” da
terra no
sentido em
que hoje
pensamos
nisso. Os usos
e costumes
significavam
mais do que
títulos e
medidas.
Pelo uso da
terra, os
camponeses
davam aos
lordes e
proprietários
uma parte das
suas colheitas,
juntamente
com a sua
lealdade. Mas
para os
proprietários
nem sempre
isto era o
suficiente,
pois tinham a
perceção de
que os
camponeses
não fariam
mais nada
assim que
tivessem
produzido
comida
suficiente para
si e para as
famílias. Um
desses
proprietários,
numa carta ao
diretor de uma
revista de
comércio e
agricultura,
lamentou-se:
“Quando um
trabalhador
fica com mais
terra do que
ele e a família
conseguem
cultivar
durante as
tardes […] o
agricultor já
não pode
depender dele
para um
trabalho
constante”.
Por outras
palavras, as
pessoas
(muito
logicamente)
punham-se a
descansar
assim que
tivessem
trabalhado o
suficiente para
arranjar
alimentos.
Os
proprietários,
contudo,
consideravam
esse
comportament
o como um
sinal de
preguiça. Tal
como vimos
no último
capítulo, sobre
o tempo, logo
que o espaço
se tornou uma
abstração e
um bem, os
interesses do
trabalho e do
capital
divergiram: os
ricos passaram
a odiar tanto o
não fazer nada
como os
trabalhadores
passaram a
odiar o
excesso de
trabalho. Uma
motivação
essencial dos
proprietários
para mudar o
sistema das
áreas comuns
acabou por ser
consequência
de uma nova
forma de
lucro: a
Inglaterra
estava a
tornar-se
famosa pela
sua lã de alta
qualidade.
Entre os
séculos XIV e
XVII,
proprietários
ricos
ergueram
vedações à
volta de terras
de pastagem e
expulsaram os
camponeses,
para
privatizarem a
terra para a
criação de
ovelhas. Com
a ajuda do
parlamento,
estas
expulsões
foram
aplicadas com
a força da lei.
Se 80 por
cento da terra
fosse
propriedade
de um titular
(como
acontecia
muitas vezes
com os
proprietários
ricos), isso
significava
que podia ser
oficialmente
fechada para
se tornar terra
de pastagem.
Em meados
de 1800, esta
apropriação de
terras cobria
cerca de um
sexto da área
de Inglaterra,
ou 2,8 milhões
de hectares, e
ao fim de
quatro mil
peças
legislativas
aprovadas
pelo
parlamento, o
que era até
então terra
comum ficou
vedada. Para
os
camponeses,
havia pouco a
fazer. Como
um deles, com
estudos,
escreveu ao
seu senhorio,
em 1824, “se
um pobre
homem tirasse
uma das suas
ovelhas da
área comum, a
sua vida
terminaria por
causa da lei.
Mas se o
senhor tirasse
a área comum
às ovelhas de
cem pobres
homens, a lei
nada diria”.
Por causa
do que podia
ser ganho no
mercado da lã,
mais e mais
terra foi sendo
desimpedida.
Entre meados
e o final do
século XVIII
e ainda pelo
século XIX
dentro, foram
queimadas
cabanas e
milhares de
famílias
expulsas à
força das
terras altas da
Escócia, no
que passou à
história como
“Clearances”
[“Limpezas”].
O resultado
foi uma
migração em
massa, com a
maior parte
dos expulsos a
dirigir-se às
terras baixas
em busca de
trabalho em
fábricas,
enquanto
outros clãs se
meteram em
barcos para
tentar
encontrar
trabalho nos
Estados
Unidos ou no
Canadá.
Isto
representou o
início da
urbanização.
Os
despossuídos
que já não
conseguiam
cultivar os
seus alimentos
não tinham
muitas vezes
alternativa a
não ser
mudarem-se
para os
centros
urbanos e
tornarem-se
operários
fabris. Por
volta de 1760,
tinha
começado a
Revolução
Industrial e as
máquinas
estavam
famintas por
trabalho
barato. Além
destas
expulsões à
força, havia
então,
também, uma
oportunidade,
o que resultou
na tendência
para o êxodo
rural. Na
Inglaterra e no
País de Gales,
em 1801, 65
por cento da
população
vivia em áreas
rurais;
exatamente
cem anos
depois, só 23
por cento da
população
permanecia.
As
“enclosures”
na Escócia
podem parecer
uma relíquia
de um passado
distante, mas
processos
quase
idênticos estão
a desenrolar-
se hoje em
países pobres.
A Oxfam
afirma que, só
na última
década, 33
milhões de
hectares de
terra em todo
o mundo
(sensivelment
e a dimensão
da Alemanha)
foram
tomados a
camponeses e
agricultores e
vendidos a
investidores
estrangeiros.
Mas nem
sempre a
culpa é do
comprador
estrangeiro.
Muitas vezes
dizem-lhe que
a terra “não
está
cultivada”, o
que sugere
que está
desocupada.
Mas como
especialistas
em reforma
agrária têm
assinalado,
“não
cultivada”
quer dizer isso
mesmo, “não
cultivada”, o
que não é o
mesmo que
não ser de
ninguém ou
não ser usada.
Em África,
por exemplo,
como
escreveu Fred
Pearce, “cerca
de quatro
quintos dos
2.500 milhões
de hectares do
continente não
são
propriedade
formal de
ninguém, a
não ser do
estado.
Mesmo sem
um título de
propriedade,
os habitantes
rurais
consideram a
terra como
sua”.
Como o
caso de David
Hess ilustra,
pode também
haver
expropriação
quando o
governo
reconhece um
proprietário,
mas força a
compra da
terra para que
ela passe de
espaço
público a
privado. Isto
tem
acontecido em
grande escala
na China. A
transformação
do país, no
espaço de
poucas
décadas, de
uma
imensidão
rural atrasada
num império
de metrópoles
brilhantes
implicou a
deslocação
física de 50
milhões de
camponeses
desde os anos
1990, em
nome do
desenvolvime
nto
económico.
Só na primeira
década deste
século, quase
um milhão de
aldeias foram
abandonadas
ou arrasadas.
Uma
investigação
da
universidade
de Tianjin e
do ministério
chinês dos
Assuntos
Civis diz que
entre 2000 e
2010 a China
passou de 3,7
milhões de
aldeias
tradicionais
para 2,6
milhões. É o
equivalente a
perder três
aldeias por
dia.
O
Departamento
Nacional de
Estatística da
China calcula
que, no ano
2034, menos
de 25 por
cento da
população do
país será rural.
Esta
tendência, da
periferia para
o centro, está
a acontecer
em todo o
mundo, à
medida que as
pessoas saem
do campo para
as cidades. A
UN-Habitat
calculou que
só em 2009, à
escala global,
três milhões
de pessoas
acorriam às
cidades todas
as semanas, e
aponta para
que em 2030
um terço da
humanidade
viva em
centros
urbanos. À
medida que a
população
humana cresce
e mais pessoas
afluem às
cidades, o
espaço que
temos
disponível
diminui
drasticamente.

Em Paris,
Nova Iorque e
Londres, em
alguns dos
bairros mais
caros do
mundo, surgiu
um novo
fenómeno
imobiliário:
“apartamentos
zombie” e
“casas
fantasma”.
Não se trata
de casas
assombradas,
mas antes de
casas sem
alma. Se são
assustadoras,
é só por
estarem
vazias. Em
Londres, sete
em cada dez
casas nestas
áreas de luxo
são
investimentos
para
compradores
estrangeiros;
em Paris, o
número é de
uma em cada
quatro; e em
Manhattan,
entre a Quinta
Avenida e
Park Avenue,
da rua 49 à
rua 70, quase
um terço das
casas estão
desocupadas
durante dez
meses do ano.
As
propriedades
estão vagas
porque, para
os super-ricos
estas não são
as suas
primeiras
casas. São
muitas vezes a
terceira ou a
quarta. Este
tipo de
“investimento
em terra”
acontece nas
grandes
cidades do
mundo inteiro,
com o número
de casas
vazias a
aumentar, por
exemplo, em
Miami,
Jerusalém,
Hong Kong,
Vancouver,
Dubai,
Singapura,
São Francisco
e Sidnei.
Os super-
ricos, como os
reis e os
lordes de
tempos
antigos, são os
donos da
maior parte da
terra. Em
Inglaterra,
quase metade
do país é
propriedade
de 1 por cento
da população.
Entretanto,
como
escreveu
Simon Fairlie,
“a maior parte
do resto de
nós passa
metade das
nossas vidas
de trabalho a
pagar a dívida
de um bocado
de terra onde
mal cabem
uma moradia
e uma corda
para estender
a roupa”.
Considerando
a quantidade
de pessoas nos
centros
urbanos, o
desequilíbrio é
evidente. Em
2018, no
Reino Unido,
216 mil casas
estavam
vazias durante
seis meses ou
mais; ao
mesmo tempo,
78 mil
famílias
encontravam-
se em
alojamentos
temporários
ou não tinham
casa. Os
números nos
Estados
Unidos eram
ainda mais
esmagadores
depois da
crise
financeira de
2008: por
cada pessoa
sem abrigo
havia cinco
casas vazias.
Podemos
muito bem ser
a única
espécie sobre
a Terra a
impedir
ativamente os
seus de
habitarem um
espaço quando
ele se
encontra
disponível.
Na China, a
discrepância é
assustadora.
No seu livro
Ghost Cities
of China,
Wade Shepard
escreve: “O
país mais
populoso do
mundo tem
sem dúvida o
maior número
de casas
vazias do
mundo.” O
desenvolvime
nto rápido na
China durante
o seu boom
económico
superou a
procura de
novas casas.
Na sua ânsia
de construir, a
China usou
mais cimento
entre 2011 e
2013 do que
aquele que foi
usado em todo
o século XX
nos Estados
Unidos.
Olhando para
a utilização de
telefones
móveis e da
Internet como
forma para
medir a
quantidade de
vida que pode
ser detetada
nessas zonas
vazias,
investigadores
da
universidade
de Pequim
determinaram
que existem
em todo o país
aproximadam
ente 50
“cidades
cinzentas” que
continuam
largamente
desabitadas.
Como se se
tratasse de
uma maqueta
de arquitetura
à escala
natural, foram
construídos
edifícios de
apartamentos,
centros
comerciais e
praças, jardins
e parques
infantis; só
que, como
numa cidade
zombie, não
há pessoas. As
cidades estão
vazias.
Mas, com a
migração em
massa do
campo para a
cidade, é
legítimo
perguntar para
onde vão
todas essas
pessoas.
Atraídas pelas
promessas de
trabalho e pela
hipótese de
alcançarem a
riqueza,
muitos
migrantes
chineses vão
viver para as
fábricas que
os empregam.
Como George
Knowles
escreveu no
jornal South
China
Morning Post,
algumas
destas fábricas
parecem
campos de
trabalho. Em
blocos de
dormitórios
construídos
para albergar
50 mil pessoas
há beliches
em ferro (às
vezes são 12
por quarto) e
os operários
usam duches
coletivos. Para
pagar isso,
veem
deduzidos
todos os
meses dos
seus salários
cerca 160
yuans (20
euros).
Em cidades
sobrepovoada
s como Hong
Kong, onde o
apartamento
médio de 37
metros
quadrados
custa dois mil
dólares por
mês, os pobres
têm, para
viver, o
mesmo espaço
dos
prisioneiros
que estão
numa cela.
Um estudo
realizado por
um grupo de
defesa dos
direitos dos
inquilinos
determinou
que o espaço
médio
ocupado por
famílias que
vivem em
cubículos
divididos em
Kwai Chung,
um subúrbio
de Hong
Kong, é de
4,65 metros
quadrados, ou
“sensivelment
e o tamanho
de três
cubículos de
casa de banho
ou metade de
um espaço
comum de
estacionament
o”. Segundo
os Serviços
Prisionais de
Hong Kong,
os prisioneiros
têm um
espaço médio
de 4,60 metros
quadrados por
pessoa. Mas,
acreditem ou
não, até esse
espaço é um
luxo para
alguns. Em
algumas casas
subdivididas
de Hong Kong
há os
chamados
“cubículos
caixão”, tão
pequenos que
não
ultrapassam
1,4 metros
quadrados.
Tornámo-
nos cegos ao
facto de as
nossas regras
de espaço
serem
artificiais e de
termos criado
um sistema
em que nos
aprisionamos
a nós próprios.
Hoje, os ricos
do nosso
mundo são
proprietários
de mansões
fantasma
vazias,
enquanto os
pobres vivem
em caixões.
Em grandes
cidades na
China, a
situação é
igualmente
extrema. Para
os pobres
urbanos, que
vivem no
centro para
evitar grandes
viagens de e
para o
trabalho, há
uma falta
terrível de
alojamento a
preços viáveis
e, por isso,
muitos
escolheram
viver debaixo
de terra. Em
Pequim, cerca
de um milhão
de pessoas
vivem numa
rede
subterrânea de
antigos
abrigos
antiaéreos.
Chamam-lhes
a Tribo dos
Ratos. As
rendas são
metade do que
poderiam ser à
superfície,
uma média de
436 yuans
mensais (cerca
de 55 euros)
por um quarto
subterrâneo
com cerca de
9,75 metros
quadrados,
com cozinha e
casa de banho
partilhada. As
instalações,
sobrelotadas,
não são em
geral limpas.
Num caso
documentado,
os ocupantes
de 80 quartos
alugados
dividiam uma
única casa de
banho. São
pessoas que
não
conseguem
pagar uma
coisa tão
básica como a
luz do dia.
Nas palavras
de Zhuang
Qiuli, uma
jovem
pedicura que
vive debaixo
de terra: “Não
há diferença
entre mim e as
pessoas que
vivem no
condomínio
de luxo por
cima de mim.
Usamos as
mesmas
roupas e
temos os
mesmos cortes
de cabelo. A
única
diferença é
que nós não
conseguimos
ver o sol.”
123
Para os seres
humanos, o
espaço também
é emocional. É
frequente
grupos
indígenas
referirem a sua
ligação
espiritual com a
Terra. Todos
nós já tivemos
essa sensação
com um lugar
que
conhecemos
bem. Temos
memórias
queridas dos
nossos lugares
favoritos
enquanto
crescíamos e,
muitas vezes,
uma ligação
calorosa com as
nossas casas.
124
Com um
pedido de
desculpas ao
bispo George
Berkeley.
125
Os impérios
precisam de
uma
consonância
ideológica para
manterem o seu
domínio sobre
vastas áreas.
Mao percebeu
isto bem
quando, em
1949,
proclamou o
mandarim como
língua “oficial”
da China.
Quando as
pessoas
perguntam
“Falas chinês?”,
estão a
amalgamar pelo
menos oito
grupos
linguísticos e
centenas de
dialetos
diferentes.
126
Como
determinou o
Supremo
Tribunal, “a
doutrina legal
comum de que
a propriedade
da terra se
estende até à
periferia do
universo não
tem lugar no
mundo
moderno”.
127
O astrónomo
de Harvard
Jonathan
McDowell tem
defendido que a
linha Kármán
devia realmente
ser fixada nos
80 quilómetros,
uma vez que já
foram
observados a
esta altitude,
sem caírem na
Terra, alguns
satélites de
órbita elíptica.
9
Robôs
Humanos
E o que
é um
bom
cidadão?

Simples
mente
aquele
que
nunca
diz, faz
ou pensa

qualquer
coisa de
invulgar.
H.L.
MENCKEN
Os Olhos
Acima de
Nós
Era visível
que o ponto
no mapa tinha
deixado de se
mexer, mas
ainda passou
um tempo até
as pessoas
perceberem
que o ponto
no mapa tinha
morrido. O
ponto era
Michael Hall,
um ciclista
que
participava
numa corrida
de resistência
de 5.500
quilómetros,
acompanhada
em tempo real
online por
uma
comunidade
de
“observadores
de pontos”,
fãs que
seguiam os
ciclistas ao
longo da
viagem de 13
dias entre
Fremantle e
Sidnei, na
Austrália.
Cada ponto
tinha a
indicação do
nome de um
atleta, e não
era invulgar
pararem aqui
e ali, sempre
que os atletas
interrompiam
a sua prova
para
descansar,
fazer uma
refeição ou ir
à casa de
banho. Havia
emissores
GPS nas
bicicletas para
assegurar que
os ciclistas
não faziam
batota e para,
ao mesmo
tempo,
permitir aos
adeptos seguir
em direto os
corredores.
À medida
que a corrida
se foi
desenrolando,
as pessoas
foram
começando a
relacionar-se
cada vez mais
com os
pequenos
pontos em
movimento no
ecrã. Nas
palavras de
Belinda
Hoare, uma
das
seguidoras,
“primeiro
olhava-se
talvez uma ou
duas vezes por
dia, depois
espreitava-se
mais vezes,
depois de hora
a hora, e por
fim o mapa
estava sempre
aberto […]
Era mesmo
como se
conhecêssemo
s estas
pessoas”.
Em 18 de
março de
2017, o ponto
de Hall estava
em segundo
lugar quando
às 6h22 da
manhã parou
de repente,
perto do
cruzamento da
autoestrada de
Monaro com a
estrada de
Williamsdale.
Era o último
dia da corrida
e os fãs
ficaram sem
perceber
porque é que
Hall teria
parado nesse
momento
crítico. O que
não sabiam é
que tinha sido
atingido por
um carro e
estava morto.
Tinham
testemunhado
a sua morte
por GPS.
Em poucas
décadas, o
GPS tornou-se
tão
omnipresente
e
indispensável
que entrou
praticamente
em todas as
áreas das
nossas vidas.
A partir do
momento em
que saímos à
rua com o
telemóvel na
mão, também
nos
transformamo
s num ponto
em
movimento.128
E, embora não
o possamos
ver, o mundo
está envolvido
numa grelha
de tempo e
espaço. Todos
nós estamos
sincronizados
com ela e
podemos ser
localizados
pelas nossas
coordenadas.
Ignoramos
quase tudo
sobre o papel
que os
satélites
desempenham
nas nossas
vidas, mas a
bolsa, as
telecomunicaç
ões, os
percursos de
jogging, os
ataques com
drones, as
previsões
meteorológica
s locais, as
máquinas de
Multibanco,
os semáforos
e a
distribuição de
alimentos
dependem
desta
infraestrutura
pública que
orbita em
silêncio sobre
nós.
Os sinais
são
controlados
pela Força
Aérea dos
EUA e usados
todos os dias
por cerca de
mil milhões
de pessoas. De
noite, às vezes
é possível ver
um destes
satélites GPS
a piscar no
céu, como se
fosse uma
estrela
artificial que
reflete o sol.
Cada satélite
pesa cerca de
duas
toneladas, e
com os
painéis solares
abertos pode
alcançar uma
amplitude de
cerca de 35
metros.
Orbitando
sobre a Terra a
uma altitude
de 20.200
quilómetros,
faz parte de
uma
constelação de
24 a 31
satélites GPS
que circulam
em volta do
planeta a
velocidades
superiores a
11 mil
quilómetros
por hora.
No livro
GPS
Declassified,
Eric Frazier e
Richard
Easton
imaginaram o
que o capitão
Cook, que
usou estrelas
verdadeiras
para navegar,
poderia pensar
desta
tecnologia
moderna.

COOK:
Para que
servem
estrelas
invisíveis
?
COMANDA
NTE: Não
precisamo
s de as
ver. Os
satélites
transmite
m
frequência
s
eletromag
néticas
[…] sinais
rádio que
o nosso
equipame
nto usa
para
determina
r a nossa
posição.
Sinais
rádio são
vibrações
muito
rápidas
que os
nossos
instrumen
tos
detetam
com as
suas
antenas,
que para
eles são
como os
nossos
ouvidos,
só que
estes são
sons que
ninguém é
capaz de
ouvir.
COOK:
Guia o
seu navio
por sons
que não é
capaz de
ouvir e
que são
enviados
por
estrelas
que não é
capaz de
ver?

É
precisamente
isso que
fazemos. O
ser humano é
capaz de ouvir
som numa
frequência de
entre 20 hertz
e 20
quilohertz,
mas os sinais
GPS são
muito mais
altos do que
isso.
Operando em
bandas de
1.227,6
megahertz e
1.575,42
megahertz,
estas ondas de
rádio, quando
chegam ao
solo, não são
audíveis por
nenhum
animal na
Terra. Os
sinais rádio
são
incrivelmente
débeis. Como
afirmou em
tempos Carl
Sagan: “A
energia total
captada por
todos os
radiotelescópi
os do planeta
inteiro ao
longo de toda
a história é
menor do que
a energia de
um único
floco de neve
a tocar o
chão.” A
afirmação foi
feita quando
em 1980
gravou o
programa
Cosmos.
Segundo o
astrónomo
Frank Drake,
que realizou o
cálculo
original, com
as ondas rádio
adicionais que
caíram na
Terra desde
então, a
quantidade
poderá ser
agora igual a
“dois flocos
de neve…
talvez três”.
Usando
recetores,
contudo,
somos capazes
de captar as
ondas débeis
destes sinais
quando elas
caem sobre
nós. E não
temos de nos
limitar à
oferta de
satélites norte-
americanos. A
Rússia tem os
seus satélites
GLONASS, a
União
Europeia os
Galileu e a
China o seu
sistema de
satélites de
navegação
BeiDou.
Recorrendo a
sinais de um
ou mais destes
sistemas, além
de uma
estação base
numa posição
conhecida,
como
referência, os
recetores GPS
civis de hoje
podem agora
fornecer a
nossa
localização
com um erro
de um metro e
meio (nos
anos 1990 a
margem era
bem maior,
aproximadam
ente do
tamanho de
um campo de
futebol).129
Claro que os
satélites GPS,
que operam
numa órbita
terrestre
média (MEO)
e dão a volta
ao planeta
duas vezes por
dia, não são os
únicos olhos
presentes no
céu.
Encontramos
a maior parte
dos satélites
de observação
da Terra numa
órbita terrestre
baixa (LEO),
a uma altitude
de dois mil
quilómetros, e
menos.
Cumprindo
uma órbita a
cada 90
minutos, estes
satélites estão
próximos da
superfície do
planeta e são
usados com
frequência
para registos
meteorológico
s,
cartográficos
ou ambientais.
Muito mais
acima, a uma
altitude de
35.786
quilómetros, é
onde
encontramos
os satélites
que operam
em órbita
geossíncrona
(GSO) e
geoestacionári
a (GEO).
Estes satélites
encontram-se
sincronizados
com o período
de rotação do
planeta130 e
são
essencialment
e utilizados
para
telecomunicaç
ões,
permitindo o
acesso
permanente e
fiável aos
sinais a partir
do mesmo
ponto na
Terra. Como
observa o
artista e
geógrafo
Trevor Paglen,
os satélites
geoestacionári
os encontram-
se “milhares
de vezes mais
distantes” e
“continuam a
ser luas
artificiais
numa órbita
perpétua
muito depois
de expirarem
os seus
tempos de
vida
operacionais”.
Por estarem
demasiado
distantes para
serem
encaminhados
na direção da
Terra e
incinerados ao
entrarem na
atmosfera,
quando
atingem o fim
das suas vidas
estes satélites
são atirados,
com líquido
propulsor que
têm a bordo,
para uma
altitude de
300
quilómetros,
para o que é
hoje
conhecido
como órbita
cemitério.
Paglen faz
notar que eles
continuarão a
dar voltas à
Terra e
durarão mais
do que as
pirâmides
enquanto
despojos da
nossa
civilização.
Os
arqueólogos
do futuro não
se limitarão a
escavar a
terra;
descobrirão
provavelment
e muito do
registo
humano do
século XXI
quando
examinarem
as nossas
máquinas bem
conservadas,
que espreitam
lá de muito
alto nos
nossos
cemitérios
espaciais.
Para além
da LEO, MEO
e GEO, há
ainda outras
órbitas que,
por motivos
de segurança,
não têm
horários
conhecidos
publicamente.
São as rotas
secretas dos
satélites
espiões.
Desde a
década de
1960 que a
CIA lança
satélites de
reconheciment
o da classe
“Keyhole”
(KH)
(Fechadura).
Possuem
lentes
poderosas,
capazes de
ampliar os
mais pequenos
pormenores
existentes na
Terra, e no
entanto
permanecem
invisíveis ao
público.
Como sucedeu
com o GPS, as
capacidades
dos engenhos
civis têm
vários anos de
atraso em
relação àquilo
que os
militares são
capazes de
fazer. Em abril
de 2018, a
Surrey
Satellite
Technology
Ltd. anunciou
que o satélite
Carbonite-2,
do Reino
Unido, era
capaz de
gravar vídeo a
cores em alta
definição a
505
quilómetros
de distância.
Usando uma
técnica
semelhante à
dos
especialistas
de
macrofotograf
ia, é possível
usar os dados
de forma a
obter imagens
tiradas do
espaço com
uma resolução
até 60
centímetros. E
estamos a
falar de um
engenho civil.
Com o
abrandamento
de algumas
restrições do
governo norte-
americano,
satélites
comerciais
como aqueles
que a Google
utiliza serão
capazes de
mostrar
imagens com
uma resolução
de 25
centímetros.
Ou seja:
conseguirão
mostrar a
nossa cara,
vista a partir
do espaço.
Os últimos
satélites
espiões são
ainda mais
poderosos.
Afirma-se que
os satélites de
captura de
imagens
eletrónicas da
classe KH-12
possuem a
bordo um
espelho
principal com
um diâmetro
de 2,4 metros.
É a mesma
dimensão do
espelho usado
pelo
telescópio
espacial
Hubble, que é
utilizado para
fazer imagens
de objetos que
se encontram
dez mil a 15
mil milhões de
quilómetros
de distância.
Nem é bem
possível
imaginar a
resolução que
estes satélites
de
reconheciment
o possuem
quando
apontam as
suas lentes,
não para o
espaço, mas
para a
Terra.131 Não
há grandes
revelações
sobre os
satélites
Keyhole, mas
sabemos que
os
lançamentos
são geridos
pelo
Departamento
Nacional de
Reconhecime
nto, que
possui um
avultado
orçamento
anual, que
andará pelos
dez mil
milhões de
dólares. Os
satélites
seguem em
geral órbitas
elípticas
polares, o que
lhes permite
vasculhar a
Terra inteira,
de polo a
polo,
passando pelo
Equador
sempre a uma
longitude
diferente
enquanto o
planeta por
baixo vai
girando do dia
para a noite.
Até os
documentos
desclassificad
os sobre
satélites
espiões estão
muito
censurados,
por isso aquilo
que sabemos
sobre as suas
localizações é
quase tudo
revelado por
amadores que
rastreiam os
seus
percursos.
Estes
astrónomos
amadores têm
os olhos
treinados para
seguir as
máquinas
ultrassecretas.
São, na
verdade, os
únicos olhos
que observam
aqueles que
nos observam.
Comunicando
através de
uma mailing
list designada
SeeSat-L, este
pequeno
grupo de
observadores
de todo o
mundo usa
cronómetros,
telescópios e
câmaras para
acompanhar
as trajetórias
orbitais de
aproximadam
ente 400
satélites
militares.
Como diz um
elemento do
grupo, Marco
Langbroek,
“assim como a
Terra tem uma
grelha
coordenada,
com latitude e
longitude, o
céu tem uma
grelha
coordenada e
todas as
estrelas têm
uma
coordenada
dentro dessa
grelha. E ao
usarmos as
estrelas como
ponto de
referência
somos capazes
de determinar
as
coordenadas
de um satélite
no céu”.
Para a maior
parte de nós,
estes satélites
estão fora da
nossa vista e
dos nossos
pensamentos,
mas a
realidade é
que há
milhares de
olhos
comerciais,
científicos e
militares
altamente
avançados que
pairam e
circulam pelos
céus acima de
nós realizando
missões
fulcrais para o
funcionament
o da sociedade
moderna. O
geoestratega
Nayef Al-
Rodhan
observou:

“Qualq
uer
interrupçã
o
acidental
ou corte
deliberado
de
serviços
baseados
no espaço
causaria
perdas
financeira
s imensas
e outras
perturbaç
ões. Na
verdade,
um só dia
sem
acesso ao
espaço
teria
consequên
cias
desastrosa
s em todo
o mundo.
Seriam
estrangula
das nos
mercados
financeiro
s
operações
avaliadas
em 1,5
biliões de
dólares
por dia,
lançando-
os no
caos. De
acordo
com
estatística
s
fornecidas
pela
Associaçã
o
Internacio
nal do
Transport
e Aéreo,
mais de
cem mil
voos
comerciai
s cruzam
diariamen
te o
planeta. É
óbvio que
esses voos
seriam
interrompi
dos por
perturbaç
ões nas
comunica
ções e a
distribuiçã
o de
serviços
de
emergênci
a sanitária
seria
muito
condicion
ada. Além
disso,
tornar-se-
ia quase
impossíve
l
coordenar
respostas
eficazes
às crises.
Dada a
natureza
fundamen
talmente
transnacio
nal de
quase
todas as
atividades
no espaço
exterior,
qualquer
conflito
aqui –
ainda que
limitado –
teria
consequên
cias
desastrosa
s para o
grande
número
de civis
que em
todo o
planeta
dependem
da
distribuiçã
o de
serviços
com base
no espaço.
Estrategos
contempo
râneos
alertam
que as
estruturas
de
controlo e
comando
das forças
armadas
modernas
também
estão a
tornar-se
criticamen
te
dependent
es de
elementos
baseados
no espaço
para
comunica
ção,
coordenaç
ão,
reconheci
mento,
vigilância,
pontaria
de alta
precisão e
outras
atividades
militares
críticas. A
crescente
indispensa
bilidade
do espaço
para
atividades
militares
modernas
faz dos
satélites,
em
conflitos
futuros,
alvos
ideais.”

Transformar
os satélites em
alvos deixa
todos na Terra
excecionalme
nte
vulneráveis –
em especial os
países mais
desenvolvidos
e
tecnologicame
nte avançados.
Um incidente
específico
revelou o
potencial de
uma
perturbação
séria no
espaço. Em 11
de janeiro de
2007, a China
lançou um
míssil
balístico do
Centro
Espacial
Xichang. O
seu alvo era
inofensivo, o
Fengyun-1C,
um velho
satélite
meteorológico
chinês que
viajava a
cerca de 27
mil
quilómetros
por hora. O
míssil
transportava
um veículo
assassino
cinético [que
usa a energia
para destruir o
alvo]132, que
libertou em
direção ao
satélite, que
seguia na
direção
contrária a
uma
velocidade
relativa de
32.400
quilómetros
por hora. A
colisão frontal
destruiu
instantaneame
nte o satélite,
desfazendo-o
numa nuvem
de destroços
que lançou em
órbita mais de
35 mil
estilhaços, que
ainda estão
em volta do
planeta. A
ameaça dos
destroços
espaciais para
outros
satélites em
órbita é
seguramente
perigosa, mas
esta missão
deixou bem
clara outra
coisa. É que a
China, ao
mesmo tempo
que procedia à
destruição de
um velho
satélite, estava
também a
provar a todo
o mundo que
possuía a
capacidade
para destruir
um satélite em
órbita e cegar
os olhos de
outros países.
Os Olhos À
Nossa Volta
“A senhora do
vestido
castanho,
cabelo louro,
que está com
o homem de
fato preto,
pode por favor
recolher essa
chávena e pô-
la no lixo” –
disse a voz da
câmara de
vigilância.
Esta câmara
falante
pertence a
uma rede de
144 aparelhos
deste tipo
instalados na
cidade inglesa
de
Middlesbroug
h. Há mais de
20 localidades
em Inglaterra
onde o Big
Brother não só
nos observa
como nos dá
ordens e diz
literalmente o
que devemos
fazer. Quando
se trata de
recolher o
lixo, não
parece que
isso seja um
problema.
Mas no norte
de Londres,
onde há
câmaras deste
género
colocadas em
bairros de
habitação
social, elas
são
opressivas, em
especial
quando as
pessoas que
estão à porta
das suas
próprias casas
as ouvem
dizer que
andam a
vadiar. Mas
este tipo de
vigilância
falante não
existe apenas
em áreas
pobres ou de
classe média.
Em
Mandelieu-la-
Napoule, uma
das
localidades
mais ricas da
Riviera
Francesa,
foram
instaladas
câmaras de
vigilância
falantes que
repreendem
pessoas por
infrações que
incluem
estacionament
o incorreto,
deixar no chão
cocó do cão,
fazer lixo ou
outro
comportament
o antissocial.
Como
escreveu o
diretor-
adjunto do
jornal Le
Parisien, o
novo sistema
é como “uma
voz vinda dos
céus para
avisar que não
deves pisar o
risco”.
Hoje, todos
nós estamos
rodeados por
câmaras, na
sua maior
parte
silenciosas. O
Reino Unido,
pátria de
George
Orwell, possui
a dúbia honra
de ter o maior
número de
câmaras de
vigilância na
Europa per
capita, mais
de seis
milhões, o que
dá cerca de
uma para cada
dez pessoas. O
Reino Unido
também
utiliza o
reconheciment
o automático
de matrículas
e, com cerca
de nove mil
câmaras, capta
todos os dias
40 milhões de
pedaços de
dados sob a
forma de
matrículas,
guardando
neste
momento
cerca de 20
mil milhões
de registos.
Um relatório
do comissário
de Vigilância
por Câmaras,
órgão
independente
do governo
britânico,
observa que
isto constitui
“uma das
maiores bases
de dados não
militares do
Reino
Unido”.
A China não
ultrapassou o
número de
câmaras de
vigilância per
capita do
Reino Unido,
mas, com a
sua imensa
população,
tem
seguramente o
maior número
a funcionar
em qualquer
país. Há mais
de 170
milhões de
câmaras
instaladas,
número que
até 2020
deverá saltar
para entre 400
e 600
milhões.
Funcionand
o em
conjugação
com a
Inteligência
Artificial (IA)
e o
reconheciment
o facial, as
novas centrais
de vigilância
na China –
com imensos
ecrãs digitais
do chão ao
teto e
resplandecent
es secretárias
de comando e
controlo – são
tão
espetaculares
como
qualquer
cenário de um
filme futurista
de ficção
científica.
Numa destas
centrais, na
cidade de
Guiyang, a
base de dados
possui uma
imagem
digital de cada
um dos
residentes. No
caso dos
cidadãos
locais, as
câmaras, que
funcionam em
rede,
identificam o
rosto de uma
pessoa a partir
da imagem do
seu cartão de
cidadão e
acompanham
os seus
movimentos
por toda a
cidade durante
uma semana.
Ligando o
rosto da
pessoa à
matrícula do
seu veículo e
fazendo
ligações com
a lista de
contactos de
amigos e
família, o
sistema
também sabe
“quem tu és e
com quem te
encontras com
mais
frequência”.
Além de
reconhecer
rostos
individuais,
alguns
sistemas são
capazes de
calcular idade,
género e
origem
étnica.
Para ver
como
funciona o
sistema de
Guiyang, a
BBC
imaginou uma
experiência
inteligente do
tipo “Onde
está o
Wally?”.
Lançaram nas
ruas o seu
jornalista John
Sudworth para
descobrir
quanto tempo
levaria até o
encontrarem.
Marcado
como
“suspeito”
para efeito
dessa
experiência,
Sudworth não
teve hipóteses
face aos olhos
movidos a
Inteligência
Artificial. Foi
identificado e
detido em
apenas sete
minutos.
Mas não é
só fora de casa
que somos
seguidos. Por
onde quer que
se ande num
edifício de
escritórios,
grande
armazém ou
centro
comercial,
basta olhar
para cima e lá
estão, por toda
a parte, as
esferas negras.
São assim,
negras, para
que a câmara
possa olhar
para nós, mas
nós não
consigamos
saber para
onde é que ela
está a
apontar.
As nossas
conversas
também são
cada vez mais
gravadas por
ouvidos
invisíveis. Em
Everyday
Surveillance,
William G.
Staples
escreveu:
“Autocarros
públicos em
São Francisco;
Athens, na
Geórgia,
Baltimore;
Eugene, no
Oregon;
Traverse City,
no Michigan;
Hartford, no
Connecticut; e
Columbus, no
Ohio, foram
equipados
com
sofisticados
sistemas de
áudiovigilânci
a para ouvir as
conversas dos
passageiros.”
E em Las
Vegas, Detroit
e Chicago foi
instalado o
sistema
Intellistreets.
São postes de
iluminação
com
microfones e
câmaras
incorporados,
capazes de
gravar
secretamente
conversas de
transeuntes.
Nos nossos
locais de
trabalho, até
os cubículos
dos escritórios
são cada vez
mais vigiados.
Como assinala
um artigo na
MIT
Technology
Review, esta
forma de
vigilância de
alta tecnologia
no escritório é
invisível,
porque “os
sensores estão
escondidos
nas luzes, nas
paredes,
debaixo das
secretárias –
onde quer que
isso lhes
permita obter
informações,
por exemplo,
onde as
pessoas estão
e se falam
muito e se se
levantam
muito”. Tudo
isto, está bem
de ver, com a
justificação de
melhorar a
produtividade
e reduzir
custos.
Empresas
como a
Humanyze
fornecem
aquilo que
designam
como
“analisadores
de pessoas”.
Os
funcionários
recebem
cartões de
identificação
com
microfones,
sensores de
Bluetooth e
acelerómetros
incorporados,
e os dados são
tranquilament
e recolhidos
enquanto as
pessoas
andam no seu
dia a dia. A
ideia é que, ao
verem por
onde é que os
trabalhadores
andam, com
quem falam e
por quanto
tempo, os
chefes
possam, por
exemplo,
perceber quais
os
departamentos
com os
melhores
fluxos de
informação e
tomar
decisões
estratégicas
levando isso
em
consideração,
inclusive
melhorando a
comunicação
através da
disposição das
secções. O
sistema
também diz
aos chefes até
que ponto as
pessoas são
produtivas,
através da
análise do
tempo que
passam a
socializar no
trabalho. De
uma forma
assustadora,
os engenhos
são mesmo
capazes de
determinar
“quanto tempo
passa um
indivíduo sem
dizer uma
palavra a
ninguém – e,
quando essa
palavra é
pronunciada,
onde é que
isso acontece
e a quem é
dirigida”.
Neste
momento, três
quartos das
empresas
norte-
americanas
sujeitam os
seus
funcionários a
vigilância no
local de
trabalho. De
muitas
maneiras,
estamos a
revisitar um
remake em
alta tecnologia
do taylorismo
extremo de
que falámos
no capítulo 7,
em que os
pormenores da
produtividade
laboral são
“guiados” por
princípios de
gestão
científica. As
câmaras,
sensores e
sistemas
inteligentes
são, em si
mesmos, uma
forma de
“super visão”
para a
supervisão. E
com o atual
mercado de
vigilância
vídeo avaliado
em qualquer
coisa como 36
mil milhões
de dólares,
prevendo-se
que em 2023
atinja os 68
mil milhões, a
vigilância está
constantement
e a ser-nos
vendida como
uma
ferramenta
capaz de
produzir
eficácia e
segurança.
Mas por trás
destas
promessas
funciona uma
força mais
sombria,
menos
benigna.
Como escreve
Staples, as
modernas
estratégias de
vigilância são
“usadas tanto
por
organizações
públicas como
privadas para
influenciar as
nossas
escolhas,
mudar os
nossos
hábitos,
‘manter-nos
na linha’,
avaliar a nossa
performance,
reunir
conhecimento
ou provas
sobre nós,
avaliar
desvios e, em
alguns casos,
aplicar
penalizações”.

Não é
demais repeti-
lo: aquilo que
sofre mais
erosão numa
sociedade sob
vigilância é a
confiança
humana. Em
vez de
confiarmos
uns nos
outros,
depositamos
essa confiança
em olhos que
nos espiam,
em
localizadores
GPS e em
máquinas que
funcionam em
rede. Os
camionistas,
que não
trabalham
dentro de
instalações,
sentem
diariamente
este tipo de
avaliação
intrusiva. O
registo
eletrónico
tornou-se uma
forma de alta
tecnologia de
os chefes
seguirem a
sua
performance.
E os
proprietários
de frotas de
veículos
dizem estar
contentes com
os resultados:
afirmam que
essa vigilância
resulta numa
maior
utilização do
cinto de
segurança, em
produtividade
mais elevada,
velocidades
menores,
menos horas
extraordinária
s e menor
consumo de
combustível e,
por isso, numa
pegada de
carbono mais
pequena. No
papel, parece
fantástico,
mas os
camionistas
contam uma
história
diferente. Para
eles, é
opressivo e
desumanizado
r estarem sob
vigilância
constante de
instrumentos
telemáticos.
A telemática
tem que ver
com o registo
e
acompanhame
nto de dados a
longa
distância, em
essencial
dados dos
veículos – o
que inclui, só
para referir
alguns,
trajetos e
estradas,
velocidade,
tempo de
paragem,
aceleração e
travagem, uso
do cinto de
segurança –, e
visa manter os
funcionários
permanenteme
nte focados e
a operar a um
nível ótimo,
comportando-
se, no
essencial,
como robôs
humanos. No
fim de cada
turno, os
dados são
enviados para
um
computador e
depois
transmitidos
para um
centro de
dados, onde
são analisados
por
algoritmos.
Embora seja
bom para o
negócio, é
humilhante
para os
camionistas
terem de
explicar
qualquer
desvio de rota
ou tempo
gasto. Na
expressão de
um
camionista, a
telemática
“devia
chamar-se
‘intimidamátic
a’”. Outro
afirmou que
os dados
faziam com
que ele
parecesse
culpado,
quando era
inocente:
“Partem do
princípio de
que todos os
condutores
estão a
vigarizar e a
roubar a
empresa, só
que ainda não
os apanharam.
A telemática
dá uma
perspetiva
totalmente
nova a este
mundo de
suposição […]
Sempre que
me atiraram
com a
telemática à
cara, foi-me
dito que
estava ‘a fazer
[uma] pausa
extra sem a
registar’. Na
verdade, o que
acontece é que
estava a lidar
com clientes
furiosos ou
insatisfeitos,
em defesa da
empresa. Mas
claro que
partiam do
princípio de
que estava a
roubar a
empresa.”
A telemática
pode parecer
intrusiva, mas
não é nada em
comparação
com o novo
sistema de
vigilância
cerebral que
existe na
China. Aqui,
os
trabalhadores
recebem
toucas
especiais,
algumas com
câmaras, que
registam as
suas ondas
cerebrais. De
acordo com
um artigo no
South China
Morning Post,
“escondidos
em capacetes
especiais ou
chapéus de
farda comuns,
estes sensores
levíssimos,
sem fios,
registam
constantement
e as ondas
cerebrais de
quem os tem
postos e
enviam os
dados para
computadores
que usam
algoritmos de
inteligência
artificial para
detetar picos
emocionais
como
depressão,
angústia ou
raiva”. A
tecnologia já é
usada de uma
forma
generalizada e
tem sido
empregue nas
forças
armadas,
transportes
públicos,
fábricas e
empresas do
estado. Os
seus
defensores
afirmam que
tem
aumentado a
eficiência e
que os
funcionários
cometem
menos erros.
Os adversários
contrapõem
que o
propósito é
limitar até as
emoções, para
conseguir uma
produtividade
elevada, e que
o sistema está
a transformar
os
trabalhadores
humanos em
máquinas.
Estamos a
ser vigiados,
dentro e fora
de portas, no
trabalho e em
casa. Não há
uma esfera em
que estejamos
livres de
vigilância. E
ainda que os
nossos medos
tendam a ser
dirigidos aos
hackers que
espiam através
de monitores
de bebés ou a
quem nos
possa espreitar
pela janela, a
maior das
janelas para os
nossos
mundos
privados está
todos os dias a
olhar para
nós: é o ponto
negro das
nossas
webcams.
Em 2014,
Edward
Snowden
revelou que o
Quartel-
General de
Comunicações
do Reino
Unido
(GCHQ) tinha
estado a
espreitar pelas
webcams dos
cidadãos
britânicos ao
abrigo de um
programa
chamado
Nervo
Ótico.133 Em
2008, durante
seis meses,
mais de 1,8
milhões de
contas de chat
do Yahoo!
foram
violadas, com
agentes a
descarregarem
milhões de
imagens
através das
câmaras de
portáteis e
computadores
caseiros. Na
mais privada
de todas as
esferas, os
alvos eram
cidadãos
comuns,
inocentes. O
sistema
engoliu tudo o
que estava à
sua frente,
guardando
uma imagem
de cinco em
cinco minutos.
Foi um ensaio
para
experiências
de
reconheciment
o facial.134
Claro que as
pessoas, em
casa, não
faziam ideia
de que
estavam a ser
observadas
pelo governo,
e por causa
disso 11 por
cento das
imagens
guardadas
continham
nudez e foram
identificadas
como
“explícitas”.
Os
documentos
revelados por
Snowden só
revelaram
aquilo que foi
apanhado ao
longo de meio
ano.
Juntos,
Austrália,
Canadá, Nova
Zelândia,
Reino Unidos
e Estados
Unidos
constituem a
aliança de
espionagem
Five Eyes
(cinco olhos),
com
capacidade
para vigiar
uma imensa
população em
todo o globo.
Ainda não
temos maneira
de saber qual
o grau de
acesso que
possuem às
nossas
comunicações
privadas vídeo
e áudio, mas
sabemos que
os seus
sistemas se
vão tornando,
ano após ano,
mais
sofisticados,
mais
abrangentes e
mais
intrusivos.
Os Olhos
nas Nossas
Cabeças
Hoje, há olhos
no céu, olhos
que nos
rodeiam em
terra e até
olhos que
espreitam a
nossa mente.
As redes
sociais são, à
superfície, a
plataforma
onde
colocamos
conteúdos
para nos
relacionarmos
com outras
pessoas nas
nossas vidas.
É onde
partilhamos
imagens dos
nossos bebés e
das nossas
mascotes, do
que comemos
e das férias
que fazemos,
e onde
dizemos
aquilo de que
gostamos e de
que não
gostamos,
revelamos os
nossos sonhos
e aspirações.
Mas para as
empresas que
recolhem os
nossos dados,
os nossos
perfis são, na
realidade,
dossiês
digitais.
Revelam as
nossas
preferências,
as nossas
orientações
sexuais, as
nossas
perspetivas
religiosas e as
nossas
preferências
políticas.
Guardadas,
provam que
aquilo que
dissermos
pode ser
usado contra
nós, mesmo
que não
tenhamos sido
presos. É por
isso que em
2018 a
Secretaria de
Estado dos
EUA propôs
um novo
formulário
para todos os
que solicitam
um visto de
entrada no
país. Num
esforço para
absorver mais
dados para
avaliações de
background,
os requerentes
precisam
agora de
apresentar
uma lista
completa das
suas contas
em redes
sociais, para
que possam
ser pré-
avaliados. O
facto de os
nossos posts
públicos
serem
observados
pela polícia e
por outras
autoridades
não é novo.
Um estudo de
2013 da
Associação
Internacional
de Chefes de
Polícia
afirmava que
96 por cento
das forças
policiais
utilizam de
algum modo
as redes
sociais, sendo
o uso mais
comum (86
por cento)
para
investigação
criminal. Mas
quando a rede
é tão grande,
há sempre
falsos
positivos. No
documentário
Terms and
Conditions
May Apply, o
humorista Joe
Lipari sentiu
na pele os
efeitos disto
quando pegou
numa frase do
filme Clube
de Combate e
a colocou no
Facebook.135
Dizer a coisa
errada pode
ter
consequências
graves. Duas
horas depois,
uma equipa da
força de
intervenção
SWAT bateu-
lhe à porta e
ele passou um
ano em
tribunal a
provar que
não era, de
todo, um
terrorista.
Lipari afirmou
que, enquanto
veterano do
exército norte-
americano,
sempre sentira
que
“estávamos do
lado das
pessoas.
Agora, vejo
que o governo
olha para nós
todos como
potenciais
ameaças, por
muito
meritórias que
sejam, ou
tenham sido,
as nossas
carreiras
militares ou
civis”.
Mas não é
só aquilo que
postamos em
público que é
vigiado. É
também
aquilo para
que olhamos:
as nossas
buscas, os
nossos likes,
os nossos
posts e os
anúncios em
que clicamos
são só uma
parte do rasto
digital que
deixamos. E
embora
possamos
esquecer essas
migalhas de
cookies ao fim
de estarmos
uma hora
online, aquilo
que dissemos
ou pensámos
não se perdeu;
é tudo
guardado
como dados
demográficos
ou
psicográficos
nos servidores
dos sites e
apps que
visitámos e
abrimos.
A IBM
calculou que
todos os dias
cada pessoa
deixa uma
pegada digital
de 500
megabytes.
Isso foi em
2012, o que é
história antiga
em
comparação
com os dados
que hoje são
recolhidos.
Com as
pessoas e os
objetos cada
vez mais
ligados à
Internet, seja
através de
relógios seja
através de
aplicações
domésticas, a
estimativa da
IBM é
provavelment
e apenas uma
fração da
pegada digital
que hoje
deixamos para
trás. Isto
porque a
maior parte da
informação
mundial –
alguns dizem
que até 99,8
por cento – foi
criada nos
últimos dois
anos. Segundo
um estudo, o
universo
digital conterá
44 biliões de
gigabytes de
dados em
2020, o
equivalente a
5.200
gigabytes por
cada pessoa
sobre a Terra.
Na imagem do
professor
Michael
Kosinsky, da
universidade
de Stanford,
se
imaginarmos
apenas um dia
de dados da
humanidade
impressos em
papel, dos
dois lados, em
corpo 12, a
pilha de papel
chegava ao
Sol e voltava
quatro vezes.
É uma
quantidade
impossível de
imaginar.
E que valor
têm estes
dados?
Segundo a
revista The
Economist, “o
recurso mais
valioso do
mundo já não
é o petróleo,
mas dados”.
No primeiro
trimestre de
2017, a
Amazon, a
Apple, o
Facebook, a
Google e a
Microsoft
tiveram lucros
de 25 mil
milhões de
dólares. Só a
Amazon
representou
metade dos
dólares gastos
online nos
Estados
Unidos. Os
nossos dados
são valiosos
porque é
através deles
que somos
visados
enquanto
consumidores.
A partir do
momento em
que ligamos o
computador
ou o
smartphone e
começamos a
navegar na
Internet,
estamos a ser
invisivelmente
seguidos. O
novo modelo
económico é
aquilo a que
Shoshana
Zuboff, da
Harvard
Business
School, chama
“capitalismo
de vigilância”.
A professora
Zuboff
escreveu: “O
jogo está em
vender acesso,
em direto, ao
fluxo da nossa
vida diária, à
nossa
realidade, para
influenciar
diretamente e
modificar o
nosso
comportament
o para obter
lucro. Este é o
acesso a um
novo universo
de
oportunidades
de
monetização:
restaurantes
que querem
ser o nosso
destino.
Vendedores de
serviços que
nos querem
arranjar os
travões. Lojas
que nos
atrairão como
se fossem as
sereias de
outros
tempos.”
Tudo isto é
feito através
da
comercializaç
ão de dados
pessoais, o
novo negócio
principal para
mais de mil
empresas.
Embora
ouçamos falar
com
frequência do
modelo de
negócio das
FAANG
(acrónimo
para o grupo
que inclui
Facebook,
Apple,
Amazon,
Netflix e
Google),
Sarah
Spiekermann,
professora de
ética em
desenho de
investigação e
tecnologia no
Instituto de
Engenheiros
Elétricos e
Eletrónicos,
lembra-nos
que “não são
apenas o
Facebook e a
Google, a
Apple ou a
Amazon que
recolhem e
usam os
nossos dados
[…]
Plataformas
de gestão de
dados como
aquelas que
são operadas
pela Acxiom
ou pela Oracle
BlueKai
possuem
milhares de
informações
pessoais e
perfis
sociopsicológi
cos de
centenas de
milhões de
utilizadores”.
A partir do
momento em
que entramos
online, põe-se
em marcha
um imenso
aparelho, cada
vez maior, que
recolhe e
envia os
nossos perfis
para
servidores
distantes, para
que um
anúncio feito
à medida
possa ser-nos
enviado em
milissegundos
.
A menos
que esteja no
ramo da
publicidade,
provavelment
e não ouviu
falar de RTB,
ou real-time
bidding,
leilões em
tempo real nos
quais é
vendido, na
Internet, 98
por cento de
todo o espaço
disponível
para anunciar.
A plataforma
automatizada
de leilão é
semelhante ao
Nasdaq, mas
em vez de
comprar e
vender ações,
compra-nos e
vende-nos a
nós, ou, mais
especificamen
te, os nossos
dados. Para os
que exploram
este mercado,
é verdadeiro
ouro digital.
É assim que
funciona:
plataformas de
gestão de
dados alojam
o que é
conhecido
como dados
primários,
secundários e
terciários. Na
sua forma
mais simples,
os dados
primários são
aqueles em
que o site é a
própria fonte
– ou seja, são
os próprios
dados
demográficos
e de compra e
pesquisa dos
visitantes
desse site. Os
dados
secundários
são dados de
consumidores
recolhidos
num site
parceiro,
através de um
acordo. E os
terciários
provêm de
quaisquer
fontes
externas que
reúnam e
vendam os
nossos dados.
A seguir,
estes dados
são
processados e
segmentados
em
“audiências”
para abastecer
mercados
pormenorizad
os:
exemplifique
mos com um
homem que
gosta de
desporto, com
18 a 25 anos,
que viva na
área de
Toronto e que
nos últimos
dias tenha
gastado online
mais de 500
dólares. Os
dados são
então
exportados e
disponibilizad
os para um
leilão em
tempo real.
Quando o
sistema de
troca de
anúncios
andar à
procura de um
homem de 20
anos em
Toronto, cujas
buscas
regulares
incluem
hóquei, a sua
identidade
aparece,
permitindo a
um e-tailer
(um retalhista
que vende
bens na
Internet) fazer
a sua oferta,
para que o seu
anúncio a
vender sticks
de hóquei
apareça nos
sites que ele
visita.
Quanto aos
pormenores
do processo, o
que
desencadeia a
ação é a
plataforma do
lado da
procura.
Segundo a
descrição de
Pete Kluge,
group
manager de
marketing de
produto na
Adobe
Advertising
Cloud, a
“plataforma
faz uma oferta
sobre cada
impressão
individual em
RTB, com
base naquilo
que é
conhecido
sobre o
utilizador, e
determina
então o preço
certo para
fazer uma
oferta pela
impressão
individual
desse
utilizador”.
Tudo se passa
a uma
velocidade
impressionant
e e quase
impercetível;
a partir do
momento em
que se começa
uma busca até
aparecer um
anúncio
passam cerca
de dez
milissegundos
.
Os nossos
dados não são
apenas
imensamente
valiosos para
a economia de
vigilância, são
também um
maná para fins
políticos. Em
março de
2018,
Christopher
Wylie, antigo
diretor de
pesquisa na
Cambridge
Analytica,
veio revelar
que a empresa
tinha
analisado os
perfis no
Facebook de
86 milhões de
pessoas, cujos
dados foram
usados para
influenciar
tanto o
referendo
sobre o Brexit
no Reino
Unido como
as eleições
nos Estados
Unidos.
Tudo
começou
como uma
simples
proposta na
Mechanical
Turk, uma
plataforma da
Amazon que
permite aos
utilizadores
ganharem
pequenas
quantias
realizando
tarefas banais
como
inquéritos
online,
identificação
de objetos em
imagens ou
ver vídeos na
Internet. Desta
vez, foi
pedido aos
utilizadores
que
instalassem
uma aplicação
com um teste
de
personalidade
chamado
“This Is Your
Digital Life”,
por um a dois
dólares por
download. O
pedido era
simples: tudo
o que havia a
fazer era
realizar o teste
de
personalidade
enquanto se
tinha a conta
do Facebook
aberta. Mais
de 270 mil
pessoas
descarregaram
o quiz, sendo
que
aproximadam
ente 32 mil
eram eleitores
norte-
americanos.
Os
utilizadores
foram
informados de
que a app era
“uma
ferramenta de
investigação
usada por
psicólogos”,
só que ela não
se limitava a
reunir
informação
sobre cada
pessoa que a
descarregava.
Também abria
caminho pelas
contas dos
amigos dos
utilizadores e
por toda a sua
comunidade
digital, usando
um algoritmo
que visava
centenas de
pontos de
dados por
pessoa. Esses
dados eram
então usados
para criar
perfis
psicológicos
micro
orientados.
Como
observava um
artigo no The
Guardian, o
que a
Cambridge
Analytica
procurava
eram as
pegadas
digitais: “O
algoritmo […]
faz uma
recolha pelos
posts
aparentemente
mais banais e
desinteressant
es – os ‘likes’
que os
utilizadores
vão deixando
– para
recolher
informação
pessoal
sensível sobre
orientação
pessoal, raça,
género, até
inteligência e
traumas de
infância.”
Os
utilizadores
foram
divididos em
tipos –
receoso,
impulsivo ou
aberto, por
exemplo – e
foram criadas
mensagens
políticas para
visar essas
caraterísticas
específicas e
começar a
alterar em
massa o
comportament
o eleitoral. O
objetivo da
Cambridge
Analytica era
convencer os
indecisos,
usando contra
eles a sua
própria
psicologia. No
fim de contas,
apropriaram-
se de dados de
utilizadores
para poderem
“não apenas
ler as suas
mentes, mas
mudá-las”.
Isso acontece
porque, tal
como os
“gostos” das
redes sociais
são usados
pela
publicidade
para nos
vender
produtos,
também os
nossos perfis
podem ser
usados para se
saber a melhor
maneira de
chegar a nós.
Como Wylie
observa,
enquanto as
pessoas
podem
apresentar
versões
diferentes de
si próprias à
família,
amigos ou
patrões, os
computadores
são neutros;
registam a
pegada digital
de todas as
nossas
personas. E,
como têm este
quadro
completo, diz
Wylie, “os
computadores
são melhores
a perceber
quem nós
somos
enquanto
pessoas do
que até os
nossos colegas
ou amigos”.
Na era
digital, as
nossas vidas
tornaram-se
livros abertos.
Os
utilizadores
fora dos
Estados
Unidos têm
desde há
algum tempo
a capacidade
para saber o
que o
Facebook
conhece sobre
eles. Os
resultados
variam de
pessoa para
pessoa,
dependendo
de há quanto
tempo estão
no Facebook e
do seu grau de
atividade. O
austríaco Max
Schrems,
estudante de
direito, testou
isto quando
solicitou todos
os seus dados
de Facebook.
Recebeu mais
de 1.200
páginas, um
autêntico livro
de dados,
“incluindo
chats e pokes
antigos e
material que
tinha sido
apagado anos
antes”. O
termo “livro”
é uma forma
benigna de
falar sobre os
nossos dados;
faz com que
tudo soe bem,
como se se
tratasse de
uma espécie
de
autobiografia
digital. Mas
talvez seja
mais útil
chamar-lhe o
que realmente
é: aquilo que
existe de cada
um de nós é
um cadastro.
Pelo menos
com as
empresas das
redes sociais,
até certo
ponto somos
nós que
decidimos
entrar. Mesmo
que as pessoas
não saibam
como estão a
ser usados os
seus dados, ou
para quê, têm
a sensação de
que há uma
troca, de que
estão a dar
alguma coisa
para poderem
usar o serviço
gratuitamente.
As crianças,
por outro lado,
cada vez
menos têm
essa opção.
Pais
preocupados
no Colorado
travam desde
2014 um
combate
contra aquilo
que é
conhecido
como o
Registo
Dourado, e
que é
essencialment
e um registo
pormenorizad
o dos seus
filhos, que
começa no
pré-escolar e
os segue até
ao liceu. É um
pipeline de
dados que
regista
informação e
comportament
o sobre os
estudantes, ao
longo de toda
a carreira
académica:
resultados dos
exames, faltas,
informação
financeira
sobre a
família,
demografia,
dificuldades
de
aprendizagem,
questões de
saúde mental,
explicações,
aconselhamen
to ou outras
intervenções.13
6
Ora, o que
acontece a
todos esses
dados?
Funcionário
s do
departamento
de Educação
afirmam que o
objetivo é
“ajudar a
orientar pais,
professores,
escolas,
unidades
escolares e
líderes
estaduais, já
que
trabalhamos
juntos para
melhorar os
resultados
académicos,
de forma a
que todas as
crianças
completem os
estudos
preparadas
para a
faculdade e
para as suas
carreiras”.
Parece
suficientement
e inocente, se
nas letrinhas
pequeninas
não estivesse
escrito que os
dados também
são
disponibilizad
os “a
vendedores
contratados,
com
obrigações de
privacidade
assinadas,
para
aplicações
especificadas”
.
Num vídeo de
2013, Dan
Domagala, o
principal
responsável
pela
informação do
Departamento
de Educação
do Colorado,
declarou que a
informação
longitudinal
pode ser
partilhada “de
forma
diversificada”
e em ligação
com outras
agências
estatais,
incluindo a de
Serviços
Humanos e o
Departamento
Prisional.
Embora o
Departamento
de Educação
insista que os
dados se
encontram
agregados e
que não é
dada qualquer
informação
que
identifique os
estudantes,
isso não é o
suficiente para
tranquilizar os
pais. Como
observou uma
mãe, toda a
extensíssima
recolha de
informação
sobre a filha é
inacessível a
ela. “Nenhum
pai conseguiu
alguma vez ter
acesso ao
Registo
Dourado do
seu filho.”
Os Olhos
nos Nossos
Corpos
A polícia
chegou sem se
anunciar à
Casa
Funerária de
Sylvan Abbey.
No mês
anterior, em
março de
2018, agentes
tinham
matado a tiro,
num posto de
gasolina,
Linus Phillip
Jr., de 30
anos.
Mandaram-no
parar porque
ele tinha os
vidros do
carro
escurecidos.
Os agentes
disseram que
também
tinham
encontrado
droga no
veículo e que,
quando Phillip
tentou fugir,
durante a
busca, o
atingiram com
quatro tiros.
Os polícias
estavam agora
na casa
funerária
porque
queriam
aceder ao
telefone de
Philip.
Mandaram
que o corpo
dele fosse
retirado do
depósito
frigorífico e
usaram os
seus dedos
para tentar
desbloquear o
seu iPhone.
A tentativa
não
funcionou,
talvez porque
o sensor de
impressões
digitais do
iPhone reverte
a um código
ao fim de 48
horas. Mas a
família ficou
indignada com
a brutal
invasão de
privacidade.
Para a
namorada de
Phillip, não só
ele tinha sido
assassinado
sem motivo
como estava
agora a ser
“desrespeitado
e violado” na
casa funerária.
Mas a polícia
da Flórida
tinha uma
abordagem
mais fria.
Afirmaram
que, segundo
a lei, os
mortos não
têm direito à
privacidade. É
verdade. É
bastante
rotineira a
utilização de
impressões
digitais de
mortos em
investigações
policiais.137
Para
proteger o
público,
especialistas
em segurança
têm estado a
trabalhar na
criação de um
sistema
biométrico
“impossível
de violar”.
Para muitos, é
uma espécie
de cálice
sagrado, mas
até hoje
nenhuma
tentativa para
criar uma
segurança
biométrica
inviolável
funcionou.
Quando o
corpo humano
se torna a
palavra-passe,
alguém
encontrará
sempre uma
maneira de a
descobrir. Na
Malásia, uma
quadrilha de
malfeitores
revelou-se
mais radical
do que a
maioria. Ao
roubarem um
Mercedes-
Benz que, para
ser
desbloqueado,
exigia um
sensor de
impressões
digitais,
cortaram o
dedo
indicador do
proprietário
com um
machete.
Claro que há
métodos mais
subtis (e
felizmente
menos
violentos). Na
universidade
de Michigan
State,
especialistas
pegaram em
impressões
digitais em
duas
dimensões,
imprimiram-
nas em papel
condutor, para
terem
condutividade
elétrica, e
desbloqueara
m telefones.
No entanto,
todos os anos
os leitores
biométricos se
tornam mais
complexos.
Os últimos
leitores de
impressões
digitais usam
digitalizadores
de
infravermelho
s para detetar
padrões de
veias sob a
pele e exigem
circulação
sanguínea
ativa para
certificar a
identificação.
Na Bolha da
Realidade, a
pessoa média
pode não
saber muito
sobre como
funciona o
sistema, mas o
objetivo do
sistema é
saber tudo o
que é possível
sobre a pessoa
média. A
biométrica é a
última
fronteira da
vigilância: o
corpo
humano.
Permite às
máquinas
lerem e
identificarem
seres
humanos. As
impressões
digitais já não
são apenas
solicitadas a
presos ou
condenados,
porque num
certo sentido
agora somos
todos
suspeitos. As
impressões
digitais são
usadas para
desbloquear
telefones,
obter acesso a
zonas de
aeroportos e
permitirem
aos traders de
ações usarem
as suas
aplicações
móveis.
Outras partes
do nosso
corpo também
estão a ser
cartografadas
e colocadas
em bases de
dados. O
sistema
NEXUS usa
scanners de
retina para
permitir que
viajantes de
confiança
passem
rapidamente
pela
alfândega. O
MasterCard já
tem
reconheciment
o facial para
que as pessoas
possam “tirar
uma selfie” e
fazer compras
com o seu
rosto. Há
bancos que
usam
verificação de
voz para
confirmar
detentores de
contas. E
agora até o
nosso silêncio
está sob
vigilância:
pode ser-se
identificado e
seguido pela
forma como
se respira.
Cientistas
encontraram
maneiras de
obter
“impressões
digitais” da
forma como
inspiramos e
expiramos,
porque as
nossas
passagens
vocais e a
capacidade
dos nossos
pulmões são
únicas. É
possível usar
um algoritmo
para
encontrar,
pelo telefone,
a
correspondênc
ia entre uma
pessoa e os
seus “sons
respiratórios
intervocálicos
”, o que
significa que
podemos ser
seguidos e
identificados
mesmo que
não falemos.
A grande
pergunta é:
porque é que
há olhos por
cima de nós, à
nossa volta,
nas nossas
mentes e nos
nossos
corpos?
A IBM foi a
primeira
empresa a
usar as suas
máquinas
tabuladoras
para dividir as
pessoas em
grupos. Em
1933, a
empresa
constituiu uma
parceria de 12
anos com os
nazis e os seus
simples
cartões
perfurados,
designados
cartões
Hollerith,
foram usados
para organizar
e segregar
prisioneiros
em campos de
concentração.
Edwin Black,
autor de IBM
and the
Holocaust,
escreveu:

“Os
códigos
mostram a
designaçã
o
numérica
da IBM
para
vários
campos.
Auschwit
z era o
001,
Buchenwa
ld o 002;
Dachau o
003, e
assim por
diante.
Vários
tipos de
prisioneir
os foram
reduzidos
a números
IBM, com
o 3 a
significar
homossex
ual, o 9
anti social
e o 12
cigano. O
número
IBM 8
designava
um judeu.
A morte
dos presos
era
também
reduzida a
um dígito
IBM: 3
significav
a morte
por causas
naturais, 4
por
execução,
5 por
suicídio e
o código 6
designava
“tratament
o
especial”
em
câmaras
de gás. Os
engenheir
os da IBM
tiveram
de criar
códigos
Hollerith
para
distinguir
entre um
judeu que
tinha sido
obrigado
a
trabalhar
até à
morte e
outro que
tinha sido
gaseado.”

Até este
sistema inicial
foi alvo de
tentativas de
assalto. E o
primeiro
hacker
inspirado pela
ética foi René
Carmille,
controlador-
geral do
exército
francês e
responsável
pelo censo em
França antes
da invasão dos
alemães. Os
nazis deram
instruções a
Carmille para
lançar em
máquinas
IBM os dados
do
recenseament
o e analisá-
los, de modo a
obter uma
lista completa
dos judeus a
viver em
França.
Carmille e a
sua equipa
tiveram uma
ideia
diferente.
Modificaram
as máquinas
de leitura dos
cartões
perfurados, de
forma a fazer
com que fosse
impossível
lançar dados
na coluna que
especificava a
religião. Esta
sabotagem
funcionou até
1944, quando
os nazis
descobriram o
esquema.
Carmille foi
torturado e
enviado para o
campo de
concentração
de Dachau,
morrendo
pouco depois.
Como
observa a
especialista
em lei digital
Heather
Burns, esta
pequena
manipulação
do sistema
teve uma
consequência
importante:
“Na Holanda,
73 por cento
dos judeus
holandeses
foram
descobertos,
deportados e
executados.
Em França, o
número foi de
25 por cento.
Foi muito
mais baixo
porque não
conseguiram
descobri-los.
E não
conseguiram
descobri-los
porque René
Carmille e a
sua equipa
tomaram
partido e
manipularam
os dados.”
Hoje, os
dados são a
forma como
segmentamos
e vigiamos a
sociedade.
David Lyon,
autor de
Identifying
Citizens,
explica a
questão com
clareza.
Porque é que
estamos a
transformar as
pessoas em
dados? Porque
“a
identificação é
o ponto de
partida da
vigilância”.
Permite aos
sistemas
separar as
pessoas em
grupos que
podem ser
analisados,
classificados
e, segundo o
tipo de dados
que tiverem
sido
recolhidos,
recompensado
s ou
discriminados.

O filósofo e
economista
David Hume
observou em
1741 que
“nada parece
mais
surpreendente
[…] do que a
facilidade com
a qual os
muitos são
governados
pelos poucos”.
E é
surpreendente.
Recebemos
ordens porque
as nossas
vidas já foram
ordenadas de
maneiras nas
quais
raramente
pensamos.
Todas as
manhãs,
milhões de
pessoas
parecem
entrar nos
seus carros da
mesma forma
automatizada
para ir
trabalhar,
porque as
horas estão de
tal modo
inscritas na
nossa mente
que não
questionamos
isso;
limitamo-nos
a obedecer. Da
mesma forma,
imaginem o
espanto dos
nativos
americanos
quando viram
tropas norte-
americanas
paradas na
Medicine
Line, a
fronteira com
o Canadá no
paralelo 49,
enquanto eles
podiam
atravessá-la.
Aos olhos
deles, era
como se os
soldados
tivessem de
parar por
estarem
possuídos por
uma qualquer
magia. Mas o
efeito não era
bem mágico,
era mais da
ordem do
pensamento
mágico. Hoje,
todos nós
obedecemos a
estas linhas
imaginárias
porque a
importância
das fronteiras
está inscrita
nas nossas
mentes. Como
Yuval Noah
Harari afirma
em Sapiens,
“as pessoas
estão
dispostas a
fazer coisas
dessas quando
confiam nas
ficções da sua
imaginação
coletiva”. Mas
estes sistemas
já não são só
imaginados;
tal como o
Pinóquio, as
criaturas estão
a tornar-se
reais.
Se, no
passado, o
desenrolar do
dia a dia, as
ordens e os
controlos
eram
conseguidos
através da
hegemonia e
da
aquiescência
das nossas
convicções,
hoje as nossas
crenças
coletivas
sobre como os
relógios e as
fronteiras
dividem as
dimensões do
mundo
encontram-se
formalizadas
numa grelha
através da
qual as nossas
vidas são
determinadas.
Este é o
“sistema”
infame que
está por toda a
parte, mas nos
permanece
escondido e
não visto.
Aqui, as
nossas
medidas de
tempo e
espaço
entraram no
mundo real
como dados e
os nossos
duplos digitais
são postos sob
vigilância
constante;
tornámo-nos
os “pontos” na
grelha,
deixando um
rasto digital.
Neste mundo
virtual, todos
nós estamos a
ser seguidos.
Mas se há um
elemento que
falta na grelha
é a nossa
própria carne,
o nosso
próprio
sangue. Para
integrar
realmente os
nossos corpos
com o
sistema,
também nós
temos de nos
tornar dados.
A biométrica
constitui essa
trela digital,
permitindo
que os nossos
corpos físicos,
reais, sejam
seguidos e
controlados no
mundo físico,
real.
Os Olhos
com a Sua
Própria
Mente
Para a polícia,
tentar
encontrar o Sr.
Ao era como
encontrar uma
agulha num
palheiro. Mais
de 50 mil
pessoas
vibravam de
entusiasmo no
concerto de
Jacky Cheung
na cidade de
Nanchang, no
leste da China,
e aí,
misturados na
multidão, Ao
e a mulher
sentiam-se
seguros. Mas
não muito
depois da
chegada do
casal, câmaras
de
reconheciment
o facial
começaram a
varrer a arena
do concerto de
música pop.
Momentos
mais tarde, Ao
foi encontrado
e preso. Os
jornais
noticiaram
que foi levado
e acusado de
cometer
“crimes
económicos”
não
especificados.
A China não
só possui um
sistema de
vigilância
muito
completo,
como também
o tem ligado
ao historial de
crédito de
cada pessoa.
Se, no
ocidente, as
pessoas vivem
obcecadas
com o número
de “gostos”
nas redes
sociais, na
China as
pessoas têm
uma obsessão
adicional: o
seu registo de
crédito social.
O sistema,
proposto em
2014 pelo
Conselho de
Estado da
China para
criar “um
sistema
nacional de
registo das
reputações de
indivíduos,
empresas e até
funcionários
do governo”,
já foi
considerado a
“gamificação
[do] bom
comportament
o”. Mara
Hvistendahl
escreveu na
revista Wired:
“O objetivo é
que cada
cidadão chinês
possua, até
2020, um
ficheiro com
dados
compilados de
fontes
públicas e
privadas, e
que esses
ficheiros
sejam
pesquisáveis
através de
impressões
digitais e
outras
caraterísticas
biométricas.”
São
concedidos
pontos por
comportament
os tão
meritórios
como pagar
contas cedo,
parar nas
passadeiras de
peões, poupar
energia, dar à
caridade e ser
amigo das
pessoas certas.
Ter na nossa
rede social
amigos com
pontuações
elevadas é ter
um retorno
positivo, que
adiciona
pontos ao
nosso próprio
registo de
crédito social.
E ter uma boa
pontuação tem
vantagens: por
exemplo,
reservar um
quarto de
hotel sem
pagar
depósito, usar
chapéus-de-
chuva
oferecidos,
saltar filas de
segurança nos
aeroportos,
conseguir
melhores
taxas de juro
nos bancos,
ter descontos
nas contas da
energia, obter
acesso a casas
para alugar e
até ser
premiado com
uma nota
positiva nos
perfis
colocados em
sites para
encontros
amorosos. E,
cada vez mais,
à medida que
há uma
integração
entre o
reconheciment
o facial e
tecnologias
como a “sorria
ao pagar”, o
rosto de uma
pessoa irá
ficando ligado
à sua
pontuação de
crédito social,
tal como à sua
carteira.
Estes são os
pontos
positivos. Mas
também
podem ser
retirados
pontos por
mau
comportament
o. E tanto
podem ser os
hábitos de
compra como
um discurso
online
considerado
indesejável.
Também pode
ser por
atravessar fora
das
passadeiras,
por espalhar
notícias falsas
ou propaganda
antigovernam
ental, por
pagar as
contas com
atraso, por
fazer lixo, por
estacionar
num local
proibido, por
fazer
demasiados
jogos de
computador
ou até por ter
um grupo de
amigos numa
posição digital
inferior. E as
penalizações
não são
frívolas.
Pessoas com
pontuações
baixas podem
ter dificuldade
em que os
filhos entrem
em boas
escolas, em
obter
empréstimos
para comprar
casa ou em
conseguir
emprego na
administração
pública.
Como
escreveu
Hvistendahl,
com uma
pontuação
social baixa a
pessoa torna-
se,
“efetivamente,
um cidadão de
segunda
classe”. Ela
deu o exemplo
de uma pessoa
com baixa
pontuação que
“foi impedida
de viajar da
maior parte
das maneiras;
só conseguia
reservar os
piores lugares
nos comboios
mais lentos.
Não podia
comprar
certos
produtos ou
ficar em
hotéis de luxo
e era
inelegível para
empréstimos
bancários
avultados”.
Pontuações
baixas
colocaram
milhões de
chineses em
listas negras
de viagem.
Quatro
milhões já se
encontram
impedidos de
usar comboios
de alta
velocidade e
outros 11
milhões viram
vedada a
hipótese de
comprar
bilhetes de
avião. E
quando as
pessoas
entram na lista
negra, não
sabem como
hão de sair.
Mesmo Zhang
Yong, vice-
diretor da
Comissão de
Reforma e
Desenvolvime
nto Nacional,
que regula o
sistema de
crédito social,
já afirmou que
“é muito
frequente” as
pessoas
permanecerem
na lista negra
depois de as
suas multas ou
dívidas terem
sido pagas.
O sistema
chinês de
crédito social
ainda está nas
primeiras
fases. Mas a
circulação de
dados foi
projetada
como um
sistema
conjunto entre
estado e
empresas; na
maior parte
dos casos, o
governo usa a
sua
infraestrutura
de alta
tecnologia –
como câmaras
de
reconheciment
o facial para
vigiar e seguir
cidadãos em
público –,
enquanto o
grosso dos
dados
compilados
sobre os
cidadãos
provém de
empresas
privadas como
a Tencent e a
Ant Financial,
do grupo
Alibaba, que
registam e
avaliam o
comportament
o dos
consumidores,
inclinações
políticas,
redes sociais e
pagamentos
(ou ausência
deles) nas
suas apps.138
A ironia
está em que,
historicamente
, na China, a
forma mais
poderosa de
controlo social
tem sido o
desejo de
“salvar a
face”, ou
preservar a
imagem
pública,
porque isso se
reflete não
apenas no
indivíduo,
mas no
respeito que é
dado à sua
família e na
dignidade
dela. Hoje,
essa “face”
são os dados
digitalizados.
E estamos a
permitir cada
vez mais que
computadores
avaliem as
nossas
reputações
com base na
nossa história
nas redes
sociais. No
mundo real, os
nossos amigos
e famílias
podem, com o
tempo,
perdoar e
esquecer, mas
não é possível
“salvar a face”
com um
computador,
porque uma
base de dados
nunca
perdoará ou
esquecerá.
Com
inteligência
artificial,
entregamos as
redes a
máquinas.
James Vincent
escreveu na
revista The
Verge: “Em
geral,
pensamos nas
câmaras de
vigilância
como olhos
digitais, que
nos vigiam ou
que vigiam
por nós,
dependendo
do ponto de
vista. Mas, na
verdade, elas
são mais
como os
óculos para
espreitar pela
porta: só são
úteis quando
alguém
espreita por
eles […] A
inteligência
artificial está a
dar às câmaras
de vigilância
cérebros
artificiais para
se conjugarem
com os seus
olhos,
deixando-as
analisar
imagens em
direto sem que
sejam
necessários
humanos.”
Para os
computadores,
os nossos
corpos
tornam-se
apenas mais
uma
topografia,
apenas outro
mapa.
Sistemas de
reconheciment
o facial
modernos
avaliam os
nossos rostos
como se eles
fossem
acidentes de
terreno. As
nossas
caraterísticas
principais são
definidas e
medidas,
desde a cana
do nariz à
profundidade
e largura da
cavidade
ocular e à
forma das
orelhas. Neste
campo, quem
nos reconhece
não são
pessoas, mas
sim
computadores.
Sistemas
como o usado
na Face ID da
Apple
projetam no
rosto de uma
pessoa 30 mil
pontos de
infravermelho
s, criando uma
topografia
única que é
instantaneame
nte lida e
reconhecida
pelos sensores
do telefone.
Tecnologias
computorizad
as como a
DeepFace,
usada por
sistemas de
vigilância,
conseguem
criar modelos
em 3-D das
nossas
cabeças a
partir de
imagens em
duas
dimensões,
como
fotografias,
para podermos
ser seguidos,
ainda que
estejamos a
mexer a
cabeça ou que
a câmara nos
esteja
apontada a
partir de um
ângulo
diferente.
Além disso,
podem ser
usadas
análises de
textura de
superfície para
melhorar os
métodos de
identificação.
Há algoritmos
que analisam
uma área de
pele à procura
de
caraterísticas
específicas,
como linhas e
poros, e criam
uma
“impressão de
pele” única,
que pode
melhorar a
capacidade de
reconheciment
o facial em 20
a 25 por
cento. Até
estão a ser
testadas
câmaras
térmicas para
que o perfil de
uma pessoa e
a forma do seu
crânio sejam
reconhecíveis,
independente
mente de estar
a usar chapéu,
lenço, óculos,
maquilhagem
ou um
qualquer
disfarce.
Quando se
fala na
questão da
vigilância, é
comum ouvir
as pessoas
dizer: “E
depois? Eu
não faço nada
de mal. Que
tenho a
recear?” Para
falar com
clareza, não é
preciso fazer
nada de mal;
pode suceder
apenas que se
seja da
categoria
errada. Ser
judeu, cristão,
muçulmano,
gay,
transsexual,
pobre, doente,
inválido – ou
atravessar mal
a rua. E os
sistemas de
reconheciment
o facial não
são apenas
capazes de ver
a idade,
etnicidade e
género de uma
pessoa, mas
também a sua
sexualidade.
Este “gaydar”
tem uma taxa
de precisão de
91 por cento,
o que pode
levar a abusos
graves em
países onde
ser gay pode
significar ser
preso, ou
mesmo a pena
de morte.
Na
província
chinesa de
Xinjiang,
pátria da
população
uigur
muçulmana da
China, mais
de 18,8
milhões de
pessoas foram
chamadas em
2017 a
participar no
programa
Exercício
Físico para
Todos. Os
dados
biológicos
recolhidos
incluíram
amostras de
ADN e de
sangue,
impressões
digitais e
digitalizações
da íris. Todos
os dados são
tratados, em
conjunto com
indicadores de
segurança,
para
classificar as
pessoas como
“seguras”,
“normais” ou
“inseguras”.
Não participar
no programa
não era uma
opção e só o
simples facto
de mencionar
isso já era
considerado
um “problema
de
pensamento”
ou uma
“deslealdade
política”.
Como sucede
com o sistema
do Registo
Dourado nas
escolas do
Colorado, os
participantes
involuntários
não podem
consultar os
seus
resultados.
Hoje, na
principal
cidade da
província,
Urumqi,
funciona um
dos mais
avançados
sistemas de
segurança do
mundo. Num
esforço para
erradicar
separatistas
violentos,
assinalou o
Wall Street
Journal,
“barragens de
segurança
com scanners
de
identificação
guardam a
estação
ferroviária e
as estradas
que entram e
saem da
cidade.
Scanners
faciais
registam as
idas e vindas
em hotéis,
centros
comerciais e
bancos. A
polícia usa
aparelhos
manuais para
efetuar buscas
em
smartphones à
procura de
aplicações
capazes de
realizar
conversas
encriptadas,
de vídeos com
conteúdo
político e
outro
conteúdo
suspeito. Para
pôr gasolina,
os condutores
têm primeiro
de passar os
seus cartões
de
identificação
na máquina e
olhar para
uma câmara”.
Para os que se
encontram na
lista negra,
aparece um
“X” quando a
foto da
identificação é
analisada, e
quando isso
acontece são
apanhados.
Não podem
viajar para
lado nenhum.
As empresas
tecnológicas
que
glamorizam e
normalizam as
tecnologias
biométricas
levam-nos a
entregar-lhes
os nossos
dados através
de “coisas
fixes”, como
realizar
pagamentos
rápidos,
prioridades
VIP e apps
com avatares
patetas. Mas
sucede que os
dados
biométricos
não são só
entregues
voluntariamen
te. Em muitos
países estão a
ser cada vez
mais usados
sem o
consentimento
das pessoas.
Na Índia, até
são
digitalizadas
as impressões
dos dedos dos
bebés recém-
nascidos139 e
no Reino
Unido quatro
em cada dez
escolas usam
impressões
digitais
biométricas,
criando uma
base de dados
de 1,28
milhões de
alunos (sendo
que 31 por
cento são
tiradas sem
perguntar aos
pais). O
sistema é
também
generalizado
nos Estados
Unidos, onde
centenas de
escolas
começaram a
usar o registo
biométrico de
impressões
digitais para
os estudantes
pagarem a
despesa que
fazem na
140
cantina.
Nos Estados
Unidos,
quando alguns
pais
protestaram e
levantaram
questões de
privacidade,
receberam a
resposta de
que se os
filhos não
aceitassem o
sistema “então
não poderiam
de todo fazer
refeições na
escola”.
Estamos a
começar a ver
o lado negro
da biométrica.
Quando é
usada para
controlar o
acesso a
necessidades
de vida
básicas, tem o
poder para nos
penalizar das
formas mais
fundamentais.
Podem negar-
nos não só
liberdade de
movimento
como até a
possibilidade
de comer. Na
Índia, o
governo pôs
em
funcionament
o o sistema
obrigatório
Aadhar, pelo
qual os seus
1.300 milhões
de habitantes
têm de passar
por scanners
que recolhem
imagens dos
seus olhos,
rostos e
impressões
digitais. Como
Vindu Goel
escreveu em
The
Independent,
no âmbito do
programa “os
pobres têm de
passar as suas
impressões
digitais na loja
das rações
para conseguir
a porção de
arroz dada
pelo governo.
Os reformados
têm de fazer o
mesmo para
levantar as
suas pensões”.
Do mesmo
modo, na
Venezuela,
foram
instalados em
supermercado
s mais de 20
mil scanners
de impressões
digitais, no
âmbito do
plano nacional
de
racionamento,
para impedir o
açambarcame
nto e conceder
ou limitar o
acesso a
alimentos,
medicamentos
, papel
higiénico,
fraldas,
detergente e
outros bens.
Ver É Um
Crime?
Jean-Jacques
Rousseau
afirmou em
tempos que “o
homem
nasceu livre e
em toda a
parte está
acorrentado”.
As correntes
não são
imaginárias –
são até muito
reais –, mas
invisíveis a
olho nu. E o
poder reside
nesta
invisibilidade.
Todo o nosso
planeta está
rodeado por
olhos. Somos
seguidos por
câmaras que
estão no céu a
35
quilómetros e
digitalizados e
medidos até às
linhas e poros
da nossa pele.
Mas a questão
é esta: nem
damos por
isso. É um
imenso ângulo
morto. É
como se
vivêssemos
num
panóptico de
alta
tecnologia, o
edifício
prisional
circular
imaginado
pelo filósofo
Jeremy
Bentham,
onde todos os
prisioneiros
podiam ser
observados
nas suas celas
sem sequer
saberem que
alguém os
estava a ver.
Os que
observavam
conseguiam
ver, mas não
eram vistos
pelos que
estavam a ser
observados.
Michel
Foucault tinha
consciência
disto quando
afirmou que
“o poder
disciplinar é
exercido
através da sua
invisibilidade
[e] ao mesmo
tempo impõe
aos seus
sujeitos uma
visibilidade
obrigatória. É
este facto de
ser
constantement
e visto que
assegura a
manutenção
do poder que é
exercido sobre
eles.” Na
mesma linha,
num artigo na
revista
Guernica,
John Berger
escreveu que
“a melhor
maneira de
compreender
o mundo não é
enquanto
prisão
metafórica,
mas literal”. E
que, sem
qualquer
hipérbole, o
nosso atual
estado de
coisas é “nada
menos do que
isso. Por todo
o planeta,
estamos a
viver numa
prisão”.
Ao longo de
todo este
livro, tem
havido um
tema
recorrente: no
século XXI,
encontramos
câmaras por
todo o lado
exceto nos
locais de onde
vem a nossa
comida, de
onde vem a
nossa energia
e para onde
vai o nosso
lixo. São estes
os três
ângulos
mortos do
nosso sistema
de suporte da
vida humana.
O sistema
funciona para
se proteger – e
é por isso que
descobrimos
que ele nos
cega
deliberadamen
te.
Ryan
Shapiro,
diretor
executivo da
organização
pela
transparência
Property of
the People,
obtém desde
há mais de
uma década
documentos
ao abrigo da
Lei da
Liberdade de
Informação
(FOIA). Num
deles,
descobriu que,
um ano depois
do 11 de
setembro,
apesar de
todas as
prioridades
dadas ao
combate ao
terrorismo em
solo
americano, o
FBI estava a
seguir vegans
– mais
especificamen
te numa festa
de
Halloween.
Está escrito
no
documento:

SINOPSE:
Festa de
Hallowee
n vegan
PORMENOR
ES:
Filadélfia
conseguiu
um post
online do
site Stop
Huntingd
on
Animal
Cruelty
(SHAC).
O post
anuncia
uma Festa
de
Máscaras
de
Hallowee
n Vegan:
“No
sábado,
19 de
outubro, a
começar
pelas
19h30 na
SHAC de
Philly
[Filadélfia
] vamos
ter uma
festa de
máscaras
de
Hallowee
n vegan
para
angariar
fundos
para o
centro
comunitár
io de Old
Pine (na
4th street
com a
Lombard)
. Haverá
DJ,
comida
vegan e
um
estúdio
fotográfic
o para
fazer
fotos dos
presentes
e dos seus
acompanh
antes no
esplendor
festivo em
que
escolhere
m
apresentar
-se.”

E porque é
que havia
espiões do
FBI a
controlar uma
festa que
provavelment
e não tinha
nada de mais
perigoso do
que uns
petiscos
vegetarianos
de quinoa?
Porque os
ativistas dos
direitos dos
animais são
olhados como
uma ameaça
direta ao
sistema
alimentar.
Como vimos
no capítulo 4,
as condições
de criação dos
animais nem
sempre são
bonitas. Para
recordar uma
frase famosa
de Paul
McCartney,
“se os
matadouros
tivessem
paredes de
vidro, todos
seriam
vegetarianos”.
Mas não são
só as paredes
que mantêm
escondida a
realidade.
Olhar lá para
dentro pode
ser ilegal. As
empresas
alimentares
que querem
ficar
protegidas do
escrutínio
público
avançaram
com propostas
de leis que
visam proibir
investigações
encobertas a
locais de
criação.
Propostas pela
primeira vez
em 2011, estas
leis tornariam
crime
“produzir um
registo que
reproduz uma
imagem ou
141
som” dentro
de uma
instalação
com animais,
ou mesmo
“estar na
posse ou
distribuir”
uma tal
gravação.
Vídeos que
mostram
perturbadores
abusos de
animais e
condições de
criação
insalubres já
levaram à
destruição de
grandes
quantidades
de carne, o
que é mau
para o grande
negócio. Mas,
ao fazerem o
trabalho sujo
de expor
práticas
desumanas e
às vezes
horríveis, má
segurança
alimentar e
abusos dos
direitos dos
trabalhadores,
os ativistas
dos direitos
dos animais
que
clandestiname
nte filmam,
fotografam e
documentam
os abusos são
considerados
“ecoterroristas
” que
cometem um
crime e, se
forem
apanhados,
podem ser
multados ou
presos.
É frequente
as notícias
apresentarem
os militantes
pelos direitos
dos animais
como pessoas
violentas, que
põem bombas,
e por isso Will
Potter, autor
de Green is
the New Red,
decidiu ir à
fonte e
investigar a
história deles.
Potter
contactou a
Fundação para
Investigação
Biomédica,
organização
sem fins
lucrativos com
sede em
Washington,
que apoia
testes em
animais em
investigações
médicas e
científicas e é
hoje o único
grupo em todo
o mundo que
mantém um
registo dos
crimes de
ecoterroristas.
Se há um
grupo que tem
interesse em
expor os
crimes dos
ativistas dos
direitos dos
animais, é
este. Mas
aquilo que
Potter
descobriu foi
surpreendente:
“A lista de
crimes de
ecoterrorismo
elaborada por
um dos
principais
adversários
destes
movimentos
não inclui um
único
ferimento ou
morte.” E
embora
tenham sido
documentados
, nas últimas
décadas,
“milhares de
atos
criminosos
violentos”,
continua
Potter, um
relatório que
investiga o
tema
“menciona 95
crimes entre
1984 e 2002,
incluindo
diversos
‘porcataques’.
Um
porcataque é
exatamente o
que o nome
sugere, um
ataque com
um porco.
Pensem nos
Três Estarolas
imbuídos do
espírito
revolucionário
da
Internacional
Situacionista.”

É ilegal
olhar com
demasiada
atenção para
de onde vem a
nossa comida
– e o mesmo é
verdade para
os nossos
sistemas de
energia e de
lixo. As
empresas e os
governos
podem espiar-
nos, mas nós
estamos
proibidos de
os espiar e em
alguns casos
até estamos
proibidos de
registar um
protesto
público.
Em outubro
de 2016, as
documentarist
as Deia
Schlosberg e
Lindsey
Grayzel foram
presas por
virarem as
suas câmaras
para filmar
protestos
contra
oleodutos.
Schlosberg
teve de
enfrentar três
acusações de
conspiração
criminosa,
arriscando 40
anos na
cadeia, por
gravar
acontecimento
s no oleoduto
TransCanada
Keystone em
Pembina
County, no
Dacota do
Norte,
enquanto
Grayzel foi
sujeita a uma
busca e
atirada para a
prisão por
filmar um
protesto
contra um
oleoduto em
Skagit County,
Washington.
Após grandes
protestos e o
envolvimento
de
celebridades,
as queixas
foram
retiradas. No
EcoFilm
Festival de
Portland,
Schlosberg
afirmou ao
público:
“Lindsey e eu
nunca
tínhamos tido
uma
experiência
destas: fomos
presas por
fazermos o
nosso
trabalho,
acusadas de
crimes por
fazermos o
nosso
trabalho.” E,
tal como
afirmou Dawn
Smallman,
diretora do
festival: “Se
foram capazes
de prender
Lindsey e
Deia, então
são capazes de
prender
qualquer
realizador que
apresentamos
aqui no
festival. É
uma coisa
muito
arrepiante
quando se
trabalha nos
media, no
cinema e se
está a tratar de
questões
importantes
como as
alterações
climáticas e as
grandes
empresas”.
Em
comparação
com o ativista
vietnamita
Hoang Duc
Binh, as
realizadoras
norte-
americanas
tiveram uma
vida fácil. No
dia 6 de
fevereiro de
2018, Binh foi
condenado a
14 anos de
prisão pelo
crime de
filmar
pescadores
que
protestavam
contra
poluição por
resíduos.
Depois de um
imenso
derramamento
químico numa
enorme
fábrica ter
devastado
comunidades
piscatórias e
causado a
morte maciça
de peixes ao
longo de 200
quilómetros
de costa, os
locais, cujas
vidas
dependiam
das reservas
de peixe,
manifestaram-
se.
O crime de
Binh foi
transmitir em
direto no
Facebook este
protesto dos
pescadores. O
Tribunal
Popular da
província de
Nghe Na
condenou-o
por “abuso
das liberdades
democráticas
para
prejudicar os
interesses do
estado, de
empresas e do
povo e por
confrontar
agentes que
cumpriam o
seu dever”.
Durante a
transmissão
em direto,
Binh tinha
dito aos seus
espetadores
que os
pescadores
estavam a ser
espancados
pelas
autoridades. O
tribunal
decidiu que
essas
afirmações
eram
caluniosas, o
que Binh
negou. No
essencial, o
crime de Binh
foi recusar-se
a alinhar na
cegueira
oficial.
Nos últimos
anos, o
silenciamento
de ativistas
ambientais –
os que
documentam
coisas erradas
sobre os
nossos
alimentos,
produção de
energia e lixo
– tem
registado um
aumento
constante. Só
em 2017, 197
ativistas
ambientais
foram
assassinados
por
denunciarem
abusos
sistémicos.
Segundo a
organização
sem fins
lucrativos
Global
Witness, que
regista crimes
cometidos
contra
ativistas, em
2016 até
quatro pessoas
foram mortas
em cada uma
das semanas
do ano.
A vigilância
é então a
forma como é
mantido o
nosso sistema
moderno de
suporte de
vida. Garante
que
trabalhamos
com eficiência
e
produtividade,
que somos
bons
consumidores
e
compradores,
que não
agitamos o
barco nem nos
desviamos do
statu quo.
Somos
seguidos
numa grelha
que já não
precisa que
“acreditemos”
na hegemonia
do tempo e do
espaço. O
novo sistema
é uma
manifestação
física que
procura
controlar e
limitar o
nosso
comportament
o através de
um aparelho
físico.
Seria,
contudo, um
erro pensar
que há por trás
disto tudo
uma mente
maligna. Não
há Big
Brother.
Estamos todos
a olhar uns
para os outros
para garantir
que andamos
na linha.
Dizemos a nós
próprios que
isso nos
mantém
seguros, que a
vigilância
protege as
pessoas boas
da sociedade
ao vigiar os
maus, aqueles
que têm um
comportament
o criminoso.
Mas as
pessoas
comuns
também estão
a ser vigiadas
e penalizadas
pela mais
pequena das
“infrações”. E
a vigilância
moderna
também é
usada para
seguir e
silenciar
ativistas que
tentem
apontar as
câmaras ao
sistema para
nos mostrarem
onde é que as
coisas estão a
correr mal.
Isso será,
talvez, o mais
assustador. O
nosso sistema
de produção
de alimentos e
energia e de
eliminação de
resíduos
funciona
numa escala
para lá de
alarmante.
Somos
prisioneiros de
um sistema
que, se não for
fiscalizado,
irá, e não é
exagero
afirmá-lo,
destruir a
maior parte da
vida na Terra.
E, no entanto,
a vigilância
encoraja-nos,
na verdade
obriga-nos, a
seguir com a
nossa vida
como de
costume, a
fingir que não
vemos e a
olhar para o
lado.
128
Quem vive
nos Estados
Unidos e no
Canadá, até tem
a porta da rua
com uma
coordenada
GPS. O censo
usa GPS para
registar as
coordenadas de
todas as
moradas do
país.
129
No dia 1 de
maio de 2000, o
Presidente
Clinton acabou
com a
“disponibilidad
e seletiva” do
GPS, dando na
prática aos civis
a mesma
capacidade que
os militares
possuíam. Com
isso, fez com
que os sinais se
tornassem
instantaneament
e dez vezes
mais rigorosos
do que antes. A
margem de erro
do GPS, ao ar
livre, é de
aproximadamen
te cinco metros.
Mas com o
desenvolviment
o da tecnologia
wifi que permite
o seu uso no
interior, a
precisão pode
chegar a um ou
dois metros.
130
Os satélites
geossíncronos
orbitam o
planeta em
sincronização
com o nosso dia
sideral, ou seja,
uma vez em
cada 23 horas,
56 minutos e
quatro
segundos, e por
isso parecem,
para um
observador na
Terra, estar no
mesmo lugar à
mesma hora
uma vez por
dia. Um satélite
geoestacionário
também orbita
o planeta uma
vez por dia,
mas encontra-se
estacionado a
grande altitude
sobre o
Equador e, por
isso, parecerá a
um observador
na Terra que
está no mesmo
lugar ao longo
de todo o dia.
131
A resolução
da imagem será
de pelo menos
12 centímetros,
o que significa
que é possível
distinguir, a
partir do
espaço, um par
de tesouras no
chão. Mas, dada
a dimensão da
lente, e o facto
de fornecedores
comerciais já
estarem a fazer
pressão para
uma resolução
de dez
centímetros, os
satélites da
classe KH
possuem
provavelmente
uma resolução
muito mais
elevada do que
isso.
132
O Tratado
sobre o Espaço
Exterior proibiu
armas de
destruição
maciça em
órbita e no
espaço, mas não
interdita armas
convencionais
em órbita.
133
Vale a pena
lembrar que o
nervo ótico
transmite ao
cérebro
informação
visual e é
também onde se
localiza, em
cada um dos
olhos, o ângulo
morto dos seres
humanos.
Permite-nos
ver, mas a sua
localização
também está
escondida da
nossa vista.
134
Dados de
registos
públicos
indicam uma
taxa de 92 por
cento falsos
positivos em
reconhecimento
facial: “Dos
2.740 alertas do
sistema de
reconhecimento
facial, 2.297
eram falsos
positivos. Por
outras palavras,
em nove em
cada dez vezes
o sistema
assinalou
erradamente
alguém como
suspeito ou
passível de
prisão”.
135
O post foi:
“Joe Lipari
podia entrar
numa loja
Apple da
Quinta Avenida
com uma arma
semiautomática
Armalite AR-10
com sistema de
gás e despejar
bala após bala
naqueles
assistentezinhos
patetas.” A
citação original
de Clube de
Combate é: “E
este psicopata
reprimido,
vestido à
Oxford, podia
simplesmente
passar-se e
saltar de
escritório em
escritório com
uma arma
semiautomática
ArmaLite AR-
10 com sistema
de gás e
despejar bala
após bala em
colegas e
empregados.”
136
Todos os
anos, os
estudantes
recebem o
“Inquérito
Miúdos
Saudáveis do
Colorado”, que
solicita
pormenores
pessoais como
que idade
tinham quando
tiveram a
primeira relação
sexual, se já
foram
sexualmente
molestados,
quantas vezes
conduziram
depois de
consumir
marijuana.
137
A polícia
também pode
contratar uma
empresa como a
Cellebrite para
desbloquear um
telemóvel, sem
precisar de
dados
biométricos. O
custo é de entre
1.500 a três mil
dólares por
telefone.
138
Segundo um
artigo no The
Sydney
Morning
Herald, “a
primeira fase da
plataforma de
informação de
partilha de
crédito estava a
ser usada por 44
departamentos,
em todas as
províncias, e
por 60
empresas
privadas, para
revelar
informação e
ser avaliada
para um
‘castigo
conjunto’”.
139
Na Índia, os
trabalhadores
do sistema de
saúde estão a
tirar impressões
digitais a
crianças como
forma principal
de as identificar
sem
documentos
oficiais.
140
O sistema até
pode crescer,
ser “expandido,
sem custo
adicional, para
gerir as horas e
as presenças, a
admissão a
eventos, a
segurança em
parques de
estacionamento
ea
monitorização
de estudantes
que viajam em
autocarros
escolares”.
141
Onde estas
leis foram
rejeitadas, os
ativistas estão a
ser acusados
através de
outros meios.
Por exemplo,
operações de
salvamento de
animais doentes
ou feridos caem
sob a alçada das
leis federais de
roubo e são
puníveis com
uma pena que
pode chegar aos
cinco anos.
10
O Império
Vai Nu
Amaldiç
oada seja
a
primeira
pessoa
que
disser
“Isto é
meu”.
PROVÉRBI
O CROATA
O maior
assalto da
história a um
banco foi
invisível. Não
houve armas,
nem gatunos
com máscaras
de esqui, nem
caixas a
tremer
obrigados a
abrir o cofre.
É que o
dinheiro não
estava
guardado num
lugar físico. A
verdade é que
foi roubado
quando estava
em
movimento, a
passar num
relâmpago
entre
continentes,
em correntes
de uns e
zeros.
No dia 5 de
fevereiro de
2016, os
empregados
do banco
central do
Bangladesh
repararam em
qualquer coisa
de invulgar: a
máquina que
imprimia
automaticame
nte todos os
registos das
transações
diárias tinha
estado
completament
e parada.
Depois de
algumas
tentativas, o
problema
acabou
finalmente por
ser resolvido
no fim desse
dia e a
impressora
começou
então a cuspir
resmas de
mensagens do
Banco da
Reserva
Federal de
Nova Iorque.
Faziam
perguntas
sobre as
ordens de
transferência
que tinham
chegado do
Bangladesh, já
que
totalizavam
uma quantia
enorme:
concretamente
, mil milhões
de dólares.
Na
economia
moderna, o
dinheiro
move-se à
velocidade da
luz, e ao
contrário dos
seres humanos
atravessa com
facilidade a
maior parte
das fronteiras.
A rede
SWIFT
(iniciais em
inglês de
Sociedade de
Telecomunica
ções
Financeiras
Interbancárias
Mundiais) é
por onde os
fundos dos
bancos viajam
pelo planeta.
Num dia
médio, cerca
de cinco mil
milhões de
dólares
circulam entre
bancos
parceiros da
rede SWIFT,
que inclui 11
mil
instituições
financeiras em
mais de 200
países e
territórios.
Os ladrões
não se tinham
limitado a
usar software
malicioso para
assaltar o
banco.
Também
operaram uma
sofisticada
manipulação
de tempo e de
espaço. Os
responsáveis
do banco
demoraram
entre quinta-
feira à noite,
hora de Nova
Iorque, e
terça-feira de
manhã, hora
do
Bangladesh, a
perceber
sequer que
tinham sido
roubados. Os
assaltantes
usaram contra
os bancos, de
uma forma
inteligente, a
geografia e as
zonas horárias
dos países. O
The New York
Times
escreveu:
“Quand
o o Fed
tinha
recebido
um total
de 70
ordens de
pagament
o
fraudulent
as para
quatro
contas
bancárias
nas
Filipinas e
uma no
Sri Lanka,
o Banco
do
Banglades
h estava
fechado
para o fim
de
semana.
No
domingo,
quando o
banco
reabriu e
descobriu
o erro,
não
conseguiu
contactar
o Fed. [O
diretor]
enviou
uma
ordem
para
travar o
pagament
o ao
banco
central
das
Filipinas,
que estava
encerrado
para o
Ano Novo
Chinês
[…] Na
segunda-
feira ao
fim da
tarde,
hora de
Daca,
quando o
Fed
estava a
reabrir, o
Banco do
Banglades
h solicitou
a Nova
Iorque
que
bloqueass
e a
transferên
cia de
dinheiro
para as
Filipinas,
mas foi-
lhe dito
que era
tarde
demais e
que o
dinheiro
já se
encontrav
a nos
bancos.”
No fim, os
ladrões
acabaram por
não obter tudo
o que tinham
esperado. Mas
ainda assim
conseguiram
lavar 81
milhões de
dólares
através de
casinos nas
Filipinas e
colocá-los em
contas
offshore. O
responsável
continua sem
ser
identificado,
mas, com base
no rasto de
registos, o
suspeito
principal é a
Coreia do
Norte. Se for
verdade, isso
significa que
um dos países
mais pobres
do mundo se
lançou no
assalto a
bancos.
Mas isto
arrasta uma
questão-
chave: porque
é que existe
uma divisão
tão grande
entre países
ricos e países
pobres?
Segundo
Jason Hickel,
autor de The
Divide, isso
tem muito que
ver com o
fluxo do
dinheiro. No
século XVIII,
observa
Hickel, a
verdade é que
os povos da
Ásia tinham
um nível de
vida mais alto
do que os da
Europa
Ocidental. E
foi a
colonização,
da América
Latina à Índia
e a África, que
provocou
quedas
acentuadas no
nível de vida e
nos
rendimentos.
As matérias
primas eram
extraídas da
terra através
de trabalho
barato, para
que os
produtos
fabricados
pudessem ser
vendidos de
volta às
colónias e aos
países
ocidentais,
enquanto
taxas de
importação
elevadas
asseguravam
que os
senhores
coloniais não
teriam
concorrência.
Ao
desvalorizar
os recursos
das colónias e
o trabalho que
os produzia, o
colonialismo
criou um
sistema de
“troca
desigual”, um
fluxo que dura
há séculos, faz
sair dos países
pobres uma
tremenda
riqueza e
mantém hoje
na pobreza
milhares de
milhões de
pessoas.
Como Hickel
escreveu: “No
passado, as
potências
coloniais eram
capazes de
ditar as
condições
diretamente às
colónias.
Hoje, embora
o comércio
seja
tecnicamente
‘livre’, os
países ricos
conseguem
fazer o que
querem
porque têm
um poder
negocial
muito maior.
Além de tudo,
os acordos
comerciais
impedem
muitas vezes
os países
pobres de
protegerem os
seus
trabalhadores
da forma que
os países ricos
fazem. E
como as
empresas
multinacionais
podem agora
andar pelo
planeta em
busca do
trabalho e dos
bens mais
baratos, os
países pobres
são obrigados
a concorrer
uns com os
outros para
baixarem os
custos.”
É por causa
desta troca
desigual que
comprar uma
camisa feita
localmente é
mais caro do
que
encomendar
do estrangeiro
uma que foi
fabricada do
outro lado do
planeta. Se
fossem tidos
em conta os
custos reais,
calcula-se que
a riqueza
extraída aos
países pobres
e transferida
para os ricos
ascenderia
anualmente a
4,9 biliões de
dólares.
Mas há
outras
maneiras de
viciar o
sistema
financeiro.
Esconder
dinheiro é
uma das mais
conhecidas.
Segundo a
Global
Financial
Integrity,
organização
sem fins
lucrativos que
segue a forma
como o
dinheiro é
movimentado
em segredo,
os fluxos
financeiros
ilícitos (IFF)
terão sido, só
em 2014, de
3,5 biliões de
dólares. E o
que são os
IFF? São
transferências
ilegais – como
lavagem de
dinheiro, erros
de faturação
ou a utilização
de empresas
de fachada –
para
movimentar
fundos de país
para país de
formas que
“pretendem
claramente ser
escondidas e
não
observáveis”.
Nos dias de
hoje, o
dinheiro pode
fazer isto
porque não é
real. A moeda
assentava
geralmente em
qualquer coisa
sólida, que
podia ser
gado, conchas
de moluscos
ou tabaco,
mas hoje o
dinheiro é
abstrato, é
uma rede de
símbolos
relacionados
com as nossas
identidades –
números
ligados ao
número do
nosso cartão
de cidadão –
que voam
através de
cabos
submarinos e
silvam como
vapor através
do ar, sem
necessitar de
fios. A imensa
maioria do
dinheiro do
mundo é
invisível, uma
espécie de
fantasma.
Mas talvez
o truque mais
conhecido
para esconder
dinheiro seja o
que utiliza os
véus das
fronteiras e da
geografia para
guardar
fundos. Os
ricos são
quem
beneficia
mais, pois são
eles que
podem pagar a
advogados
que conhecem
os prós e
contras do
esquema.
Falo,
evidentemente
, dos paraísos
fiscais. Em
2016, segundo
Gabriel
Zucman, autor
de A Riqueza
Oculta das
Nações,
existiam em
contas
offshore e,
portanto, por
taxar, cerca de
8,6 biliões de
dólares. Para
termos uma
ideia, é quase
três vezes
mais do que a
totalidade do
mercado
tecnológico,
atualmente
avaliado em
cerca de três
biliões de
dólares. As
fugas de
informação
dos Panama
Papers e dos
Paradise
Papers
revelaram até
que ponto esta
prática é
comum.
Descobriu-se
que no
Canadá as 60
maiores
empresas
tinham em
zonas offshore
mais de mil
subsidiárias.
Por isso,
enquanto os
canadianos
comuns têm
de pagar os
seus impostos,
sob pena de
terem à perna
as
autoridades,
as empresas e
as elites
financeiras do
país
encontraram
formas
legítimas de
manter todos
os anos fora
das suas
contas 15 mil
milhões de
dólares.
A regra
geral é esta.
Como o
dinheiro tem
liberdade de
movimento,
os ricos não
precisam de o
ter em casa.
Como assinala
a revista
Fortune, em
2017 a Apple
Inc. tinha em
offshores 252
mil milhões
de dólares de
lucros da
empresa para
assim evitar
pagar
impostos nos
Estados
Unidos. A
Amazon teve
lucros de
quase três mil
milhões, mas
graças a
isenções
fiscais e a
créditos quase
não pagou
impostos
federais. No
mesmo ano,
segundo um
relatório da
Oxfam, uns
“incríveis 82
por cento da
riqueza criada
em todo o
mundo foram
para os 1 por
cento mais
ricos”, e esse
1 por cento
tem uma
riqueza
combinada
que é sete
vezes
suficiente para
acabar com a
pobreza
extrema no
planeta. O
fosso entre
ricos e pobres
tornou-se tão
grande que as
42 pessoas
mais ricas do
planeta têm
tanto dinheiro
como a
metade mais
pobre da
população
mundial. Ou
seja, há 42
indivíduos
com a riqueza
de 3.700
milhões de
pessoas.
Ser pobre
não é só
perder o jogo.
Os pobres são
cada vez mais
penalizados e
criminalizados
pela sua falta
de riqueza. Ao
nível mais
simples,
muitos bancos
cobram uma
multa, ou uma
“taxa”, se o
saldo de uma
conta for
demasiado
baixo. O
Banco da
América, por
exemplo,
propôs uma
taxa de 12
dólares para
saldos
mensais
inferiores a
1.500 dólares,
o que, no
essencial,
cobra às
pessoas por
não terem
dinheiro
suficiente. Os
bancos
também
analisam os
nossos dados
e usam
algoritmos
para
determinar a
categoria de
crédito a que
pertencemos.
Até o facto de
fazer compras
repetidamente
“em lojas
associadas a
maus
pagamentos”
pode ter
impacto no
crédito
pessoal,
levando a uma
redução nos
limites de
crédito e a
taxas de
crédito mais
elevadas. E
enquanto os
pobres não
podem
simplesmente
fazer as malas
e mudar-se
para um bairro
melhor, para
os sem-abrigo
isso ainda é
mais difícil.
Como assinala
o Centro
Legal
Nacional para
Sem-Abrigo e
Pobreza, em
Washington,
“apesar de
uma falta de
habitação
acessível e de
espaços de
abrigo, muitas
cidades
decidiram
punir cívica
ou
criminalmente
pessoas que
vivem na rua
por fazerem
aquilo que
qualquer ser
humano tem
de fazer para
sobreviver. As
cidades
continuam a
ameaçar,
prender e
multar pessoas
sem-abrigo
por realizarem
atividades
essenciais –
como
dormirem ou
estarem
sentadas – em
lugares
públicos ao ar
livre, apesar
de não
existirem
alternativas
legais em
espaços
fechados”.
Nos últimos
anos,
aumentaram
52 por cento
as proibições
de estar
deitado ou
sentado em
lugares
públicos e têm
sido instalados
em bancos de
parques e em
entradas de
edifícios
“espigões anti
sem-abrigo” –
semelhantes
aos que
existem para
afugentar
pássaros –, de
forma a tornar
impossível
dormir ou
estar ali
sentado. Até
organizações
de inspiração
religiosa
podem ser
processadas e
enfrentam
penas de
prisão por
alimentarem
sem-abrigo
com fome.
Nos Estados
Unidos, mais
de 50 cidades,
incluindo
Atlanta, Los
Angeles,
Miami,
Phoenix e San
Diego, têm
leis
antiacampame
nto ou
antipartilha de
alimentos.
O abissal
fosso que se
abre entre
ricos e pobres
é uma função
do acesso que
cada grupo
tem ao
sistema de
troca que os
seres humanos
usam para
comerciar
dinheiro. A
um nível
macro, a
economia
global
depende do
fluxo e troca
constante de
dinheiro, mas
a maior parte
das pessoas,
incluindo 84
por cento dos
legisladores
britânicos, não
sabe de onde
ele vem.
Aquilo que
muitas
pessoas
consideram
dinheiro
“real”, as
notas e
moedas
físicas,
constitui
aproximadam
ente cinco
biliões de
dólares,
apenas 16 por
cento de todo
o dinheiro que
circula no
mundo.
Segundo o
CIA World
Factbook, o
total global de
dinheiro, ou o
que é
chamado
agregado
monetário,
andará pelos
80 biliões.
Sendo assim,
de onde vem
todo este
outro
dinheiro?
Como os
nossos pais
gostavam de
nos dizer, não
cresce nas
árvores. Mas
cresce nos
computadores.

Num
documento
intitulado
“Criação de
Dinheiro na
Economia
Moderna”, o
Banco de
Inglaterra
explica que o
dinheiro é
criado através
da dívida.
Especificamen
te, “sempre
que um banco
faz um
empréstimo,
cria ao mesmo
tempo um
depósito
correspondent
e na conta de
quem o pediu,
criando desta
forma
dinheiro
novo”. A
forma como
os livros
teóricos o
explicam,
afirma o
banco, é uma
falácia: “A
realidade de
como é hoje
criado
dinheiro difere
da descrição
que se
encontra em
alguns livros
de economia:
em vez de
serem os
bancos a
receberem
depósitos
quando as
pessoas
poupam, o
empréstimo
bancário cria
depósitos
[realce meu].”
A dívida é
essencial para
o nosso
sistema
económico
moderno
continuar a
funcionar,
porque a
dívida cria
riqueza.
Noutro
plano, todos
conhecemos a
história da
origem do
dinheiro.
Sabemos que
o dinheiro não
é “real”; quer
seja um
pedaço de
papel, ou uma
moeda ou uma
transferência
digital, o
dinheiro, no
seu sentido
mais
fundamental,
é um
reconheciment
o de dívida. É
uma
promessa. A
dívida global
atingiu,
contudo,
níveis recorde
que são
ultrapassados
todos os anos.
Em termos
globais, o
mundo tem
247 biliões de
dólares em
promessas, na
maioria
vazias, com
uma taxa de
endividament
o que tem
crescido a uns
absurdos 40
por cento nos
últimos dez
anos.
Para se
manterem à
tona, os países
mais pobres
tiveram de
hipotecar os
seus futuros.
Desde 1980,
os países do
Sul têm estado
a pagar os
juros das suas
dívidas a um
ritmo de 200
mil milhões
de dólares por
ano. No total,
segundo Jason
Hickel,
corresponde a
4,2 biliões de
dólares, só em
juros, que
passaram dos
bolsos dos
países pobres
para os dos
países ricos.
Deve
assinalar-se
que também
os países ricos
têm dívidas
imensas, mas
junto de
bancos e
investidores
individuais,
não, em
termos gerais,
a governos
estrangeiros.
E quando são
feitos
empréstimos a
países ricos é
sob a forma de
obrigações do
governo com
taxas de juro
muito baixas.
Como Annie
Logue
explicou na
revista How
We Get to
Next, “as taxas
cobradas a
estes países
[ricos] para
empréstimos
cobrem a
utilização de
dinheiro e a
inflação
esperada, mas
não levam em
conta qualquer
risco de
pagamento”.
O velho
ditado afirma
que o dinheiro
é que faz o
mundo girar,
mas é a
natureza
invisível e
vaporosa do
dinheiro e as
regras
viciadas do
jogo que
encaminham a
riqueza para
as contas
bancárias dos
ricos, ao
mesmo tempo
que a dívida
dos pobres
aumenta. E,
por isso,
talvez
devêssemos
pensar num
ditado
diferente para
definir como é
que, nesta
economia
moderna, nos
sustentamos.
Como afirmou
num episódio
um vilão
empresarial da
série Mr.
Robot: “Deem
uma arma a
um homem e
ele será capaz
de roubar um
banco. Deem
um banco a
um homem e
ele será capaz
de roubar o
mundo.”

Em Athens,
na Geórgia, na
esquina das
ruas South
Finley e
Dearing,
ergue-se
orgulhoso um
grande
carvalho-
branco, com
os ramos
elevados
formando um
leque de
folhas verdes.
Por baixo,
protegida na
sombra, está
uma placa de
pedra onde se
lê:
Por causa e
em
consideração
do amor
que tenho a
esta árvore e
do grande
desejo
de a ver
protegida para
sempre,
transmito-lhe
os direitos de
propriedade
dele próprio
e da terra
envolvente até
2,5 m.
WILLIAM H.
JACKSON

O carvalho
é conhecido
pelos
habitantes
como A
Árvore Que É
Dona de Si
Própria ou,
mais
rigorosamente
, A Filha da
Árvore Dona
de Si Própria,
já que a árvore
original sofreu
em 1907
danos
causados por
uma
tempestade de
gelo e acabou
por cair em
1942. Com
700 anos, a
árvore era
adorada pelo
coronel
William
Jackson, que
passou a
infância a
brincar
debaixo dos
seus ramos
imensos. Para
a proteger,
Jackson
decidiu, no
início do
século XIX,
transmitir à
árvore a
propriedade
de si própria e
do terreno em
volta.
Quando a
árvore original
caiu, os
residentes
pegaram em
ramos do chão
e conseguiram
que eles se
desenvolvesse
m, plantando-
os no mesmo
local. A
geração
seguinte desta
árvore ergue-
se hoje firme e
“livre” neste
solo herdado e
já tem 15
metros de
altura.
Legalmente,
no estado da
Geórgia, os
seres não
humanos não
possuem
direitos, mas a
independência
da árvore
nunca foi
contestada,
porque, para
os locais, esta
árvore
específica,
acima e para
além de todas
as outras,
ganhou o
direito de ser
dona de si
própria.
Pode
parecer
absurda a
ideia de uma
coisa como
uma árvore
poder ter
direitos. A
nossa
tendência é
para acreditar
que os direitos
ou privilégios
legais só
devem existir
no domínio
humano, em
especial
porque, para
começar, um
“direito” é
uma
construção
humana. Mas
as árvores são
seres vivos.
Como defende
Peter
Wohlleben no
seu livro A
Vida Secreta
das Árvores,
são criaturas
sociais que
cuidam dos
seus mais
jovens,
comunicam
umas com as
outras, sentem
dor, têm a
capacidade de
memória – e
fazem sexo.
Não são seres
inanimados;
estão vivas e
existem dentro
de uma
comunidade
silenciosa,
mas
dinâmica.
Tal como os
seres humanos
usam uma
rede
subterrânea de
tubos e fios
chamada
Internet para
comunicar uns
com os outros,
a floresta
também
recorre a uma
rede – a
“wood wide
web”. Cada
árvore
comunica com
outras através
de redes de
fungos que as
ligam pelas
raízes.
Suzanne
Simard,
professora de
ecologia na
universidade
de British
Columbia,
descobriu que,
usando estas
redes de
microrrizas, as
árvores são
capazes de
transmitir
sinais de
perigo,
alimentam-se
umas às outras
com carbono,
azoto, fósforo
e água e
comunicam
sinais de
defesa e
químicos para
proteger a sua
comunidade
de ameaças
potenciais.
Não podemos
ver ou ouvir o
que acontece
– tal como,
olhando para
um sistema de
fios, não
conseguimos
ver as
mensagens
transmitidas
de um lado
para o outro
na Internet –,
mas as árvores
estão, de uma
forma muito
real, a
comunicar
umas com as
outras.
Os cientistas
só agora
começam a
compreender
que formas
não humanas
de vida
possuem os
seus próprios
tipos de
inteligência. É
bom, por isso,
que em todo o
mundo
estejam cada
vez mais a ser
concedidos
direitos a
formas de
vida não
humanas,
numa tentativa
jurídica de as
proteger. A
natureza não
terá uma voz
per se, mas,
ao conferir um
“direito” ao
mundo
natural, os
seus interesses
podem pelo
menos ser
defendidos em
tribunal e
pode ter uma
existência
jurídica.
Num
veredito
histórico
pronunciado
em 5 de abril
de 2018, o
supremo
tribunal da
Colômbia fez
exatamente
isso e alterou
o estatuto da
parte da bacia
do Amazonas
que pertence
ao país de
modo a torná-
la “uma
entidade
possuidora de
direitos” – o
que, no
essencial,
confere ao
ecossistema os
mesmos
direitos de um
ser humano.
Ao fim de
anos de
destruição
desenfreada
através de
exploração
mineira ilegal,
abate de
árvores e
expansão
agrícola,
incluindo para
cultivo de
drogas, a
Amazónia
estava a ser
roubada e os
seus recursos
vendidos. Só
entre 2015 e
2016, a
desflorestação
aumentou em
44 por cento,
para 70.074
hectares, mais
ou menos a
área de Nova
Iorque. Sendo
possuidora de
direitos
jurídicos, a
floresta
tropical passa
a poder ser
protegida e
defendida.
Da mesma
forma, em
março de
2017, o rio
Whanganui,
na Nova
Zelândia,
ganhou o
direito de
possuir
personalidade
jurídica. Para
os Maori, que
há mais de
150 anos
lutam por
respeito e
justiça para o
rio, ele nunca
foi uma
“coisa”; foi
sempre uma
essência da
vida, uma
parte vital da
comunidade.
Os povos
indígenas da
área – os iwi,
ou tribo, do
rio
Whanganui –
têm um
ditado: “Eu
sou o rio e o
rio sou eu.” O
que, como
vimos no
capítulo 2, é
apoiado pela
ciência: temos
uma ligação
física com o
mundo, ainda
que não
consigamos
vê-la a olho
nu. Em The
Rights of
Nature, David
R. Boyd
explica a
filosofia maori
designada
whanaungata
nga:

“A
whanaung
atanga é
na
verdade
qualquer
coisa mais
vasta do
que a
afinidade,
no sentido
em que
tem que
ver não só
com as
relações
entre os
humanos
vivos,
mas
também
com uma
rede
expansiva
de
relações
entre
pessoas
(vivas e
mortas),
terra,
água,
flora e
fauna e o
mundo
espiritual
dos atua
(deuses) –
todos
unidos
pela
whakapap
a
(genealogi
a). Por
outras
palavras,
os Maori
acreditam
que todas
as coisas
no
universo,
vivas e
mortas,
animadas
e
inanimada
s, estão
ligadas,
desde
Papatuanu
ku (a
Terra) a
Ranginui
(o céu).
Assim,
todos os
elementos
da
natureza
têm uma
ligação.”

Aquilo que
o Tribunal
Ambiental da
Nova Zelândia
reconheceu é
essa ligação
básica, mas
poderosa: as
pessoas são
feitas de água;
bebem água;
e, no fim,
“poluir a água
é poluir as
pessoas”. Mas
ao contrário
do Amazonas
colombiano, o
Whanganui
ficou sob a
alçada de uma
comissão de
representantes
humanos para
defenderem os
seus direitos.
Mais: se a
indústria
quiser desviar
o curso
natural do rio,
tal pode ser
considerado
uma violação
de direitos e
os guardiães
do rio podem
pedir ao
tribunal que o
defenda.
Mas a ideia
de que as
florestas,
montanhas,
solo, rios e
oceanos não
são mera
propriedade
humana não é
aceite sem
desafios.
Embora mais
de três
dezenas de
comunidades
norte-
americanas
tenham hoje
legislação de
defesa dos
direitos da
natureza para
proteger os
seus
ecossistemas
locais, as
grandes
empresas
também
contrataram
advogados de
topo para
defender os
seus direitos à
terra.
Na
Pensilvânia,
está em curso
há seis anos
uma batalha
do tipo David
contra Golias
entre a
comunidade
de Grant
Township e a
Pennsylvania
General
Energy, PGE.
Em causa está
a Pequena
Bacia de
Mahonig,
onde vivem
peixes,
moluscos,
insetos
aquáticos, um
tipo específico
de salamandra
e, o que é vital
para os locais,
é a fonte
principal da
água que
bebem. Em
2014, no
entanto,
quando se
vivia no
estado um
boom da
exploração
por fracking, a
PGE
conseguiu
autorização
para lançar os
seus resíduos
hídricos em
poços de
injeção a
grande
profundidade.
Para a
comunidade,
cuja água para
beber provém
diretamente de
poços
particulares,
uma injeção
diária de 150
mil litros de
água
proveniente de
fracking,
tóxica e
radioativa, é
um risco que
não está
disposta a
correr – em
especial
quando se
sabe que os
sismos são
uma
consequência
bem
documentada
do processo
de fracking.
Em tribunal,
advogados da
PGE
defenderam
que era
“absurda” e
um “número
de circo” a
ideia de que a
Pequena Bacia
de Mahonig
devia ter
direitos.
Argumentara
m que uma
bacia “não
possui
consciência,
inteligência,
cognição,
comunicabilid
ade ou
atividade. A
bacia não
pode decidir
intervir, não
pode aceitar
ser
representada
ou trocar
impressões
com um
advogado
enquanto
cliente, e não
pode ir a
tribunal ou
testemunhar”.
No dia 5 de
janeiro de
2018, a juíza
federal Susan
Paradise
Baxter decidiu
a favor da
empresa,
considerando
“implausíveis
” e
“irrazoáveis”
as tentativas
do Fundo
Jurídico de
Defesa
Ambiental da
Comunidade e
afirmando que
uma
abordagem
deste tipo
“resulta em
custos
enormes para
as partes e
consome
recursos
judiciais
limitados”. O
diretor
executivo do
fundo e a
equipa
jurídica foram
multados em
52 mil
dólares, a
serem pagos à
PGE. Também
foram
remetidas
outras
medidas, para
consideração,
ao gabinete
disciplinar do
Supremo
Tribunal da
Pensilvânia,
incluindo a
suspensão de
licenças de
advogados e
até a expulsão
da Ordem.
Mas será
que lutar pelos
direitos da
natureza é
fazer pouco
dos tribunais?
A ironia da
situação está
em que as
empresas são
tanto uma
construção
artificial como
um
ecossistema
vivo, ou ainda
mais. Como
observa David
Boyd:
“Muitos dos
mesmos
argumentos
[dos
advogados da
PGE] usados
para atacar a
condição da
bacia são
igualmente
aplicáveis ao
cliente. Uma
empresa é
uma ficção
legal, sem
consciência,
inteligência ou
cognição. É
incapaz de
fazer o que os
advogados da
empresa
sugerem que
um
ecossistema
deveria ser
capaz, como
prestar
testemunho
em tribunal. É
extraordinário
que os
advogados da
PGE tenham
descrito as
bacias como
‘construções
artificiais’ e
ao mesmo
tempo digam
acreditar que
as empresas
são pessoas
reais dotadas
de direitos.”
Mas, em
termos
jurídicos, as
empresas são
“pessoas”.
Têm quase os
mesmos
direitos que as
pessoas têm.
Nos Estados
Unidos, inclui
igualdade de
proteção,
liberdade
religiosa, de
expressão, de
imprensa, de
buscas e
apreensões
sem mandado,
o direito a não
ser julgadas
duas vezes
pelo mesmo
crime, a
advogado ou a
um processo
legal devido,
para só
mencionar
alguns. Como
observou
Adam Winkler
no seu livro
We the
Corporations,
as empresas
conseguiram
os seus
primeiros
direitos em
1809, meio
século antes
de serem
propostos
direitos legais
para os
afroamericano
s ou para as
mulheres. Mas
o problema é
este: enquanto
as empresas
têm direitos, o
facto de não
possuírem um
corpo físico
impede que
sofram as
mesmas
penalizações
que os
humanos.
Uma empresa
pode fazer
mal, mas uma
empresa não
pode ir para a
prisão.
Ao mesmo
tempo, os
nossos primos
biológicos
mais
próximos, os
chimpanzés,
que partilham
98,8 por cento
do nosso
ADN, viram
várias vezes
negado por
tribunais
norte-
americanos o
direito a
possuírem
personalidade
jurídica. Por
isso, se está
bem uma
empresa ser
uma pessoa,
porque é que
não pode um
animal ou um
ecossistema
atingir esse
estatuto? A
resposta é que
há muito
tempo que
olhamos para
os animais
como tendo
um estatuto de
propriedade,
um pouco
acima, mas
não muito, do
estatuto das
coisas
inanimadas.
Mesmo
assim, é
possível amar
aquilo de que
somos donos.

seguramente
criadores de
gado, por
exemplo, que
mostram
grande
cuidado e
afeto pelos
seus animais;
nem todos os
sujeitam à
crueldade dos
grandes
complexos
produtores de
carne ou leite.
Mas isto não
tem que ver
com a relação
entre vaca e
criador,
porque o
animal é na
mesma
propriedade.
Não é livre.
E a
propriedade,
seja um
objeto, uma
vaca ou um
escravo, não
tem direito de
movimento
sem o
consentimento
do dono. Não
pode mudar as
condições em
que se
encontra
mesmo que
seja infeliz,
porque não
possui
direitos. O
ponto-chave
aqui é que
quando
chegamos aos
seres vivos os
direitos são
incompatíveis
com
propriedade.
No fim de
contas, se os
rios e os
chimpanzés
tiverem
direitos, o que
virá a seguir?
O nosso bacon
e os nossos
ovos exigirão
liberdade? A
nossa madeira
e o nosso
papel? Os
nossos sapatos
de cabedal e
as nossas
camisolas de
lã? Toda esta
vida, ou vida
extinta, é
definida como
propriedade
para fazermos
dela o que
entendermos.
Começar a
questionar
essa
autoridade
fundamental
da nossa
propriedade
de vida seria
pôr em causa
todo o nosso
sistema de
pensamento. E
isso é porque
o pilar central
de todo o
nosso sistema
económico
pode ser
derrubado só
por fazer uma
pergunta
muito simples:
o que é que
significa
exatamente
“ser dono” de
alguma
coisa?

Só porque
pagámos por
uma coisa não
significa
necessariamen
te que sejamos
donos dela.
Martha Fuqua
aprendeu essa
lição em
primeira mão
quando
comprou por
sete dólares
uma caixa
com objetos
sortidos numa
feira de
objetos em
segunda mão
na Virgínia
Ocidental. A
caixa continha
uma vaca de
plástico, uma
boneca em
cabedal
castanho e
uma pintura a
óleo do
tamanho de
um
guardanapo
feita por um
dos maiores
artistas de
todos os
tempos. Fuqua
não sabia
disso na
altura, mas
tratava-se de
um Renoir, e
quando o
mandou
avaliar ficou a
saber que o
seu valor era
superior a 100
mil dólares.
Mas quando
se espalhou a
história da
descoberta da
pequena obra-
prima,
depressa
surgiu outro
potencial
proprietário a
apresentar
uma
reivindicação:
o Museu de
Arte de
Baltimore
assegurou que
Paisagem nas
Margens do
Sena tinha
sido roubado
em 1951 e era
propriedade
sua. Depois de
ouvir a
reivindicação
do museu, a
companhia de
seguros do
fundo dos
bombeiros
também se
envolveu no
caso. Na
sequência do
roubo tinham
pago ao
museu uma
compensação
de 2.500
dólares e, por
isso, eles
próprios
podiam
apresentar-se
como
legítimos
proprietários
da pintura.
Neste caso, o
objeto mudara
de mãos
várias vezes,
mas tinha três
“proprietários
” diferentes.
Então, quem
era o dono?
Um juiz
decidiu que o
proprietário
legítimo do
Renoir era o
museu. O caso
precisou de
um juiz, como
sucede com
muitas das
disputas sobre
propriedade,
porque
raramente é
simples a
questão de
quem é dono
do quê. Em
alguns países,
as questões
judiciais sobre
propriedade
constituem 66
por cento dos
casos anuais.
As disputas
são muito
diversas e vão
desde quem
tem os direitos
sobre os
emails de um
homem morto
a quem é dono
de genes
humanos ou a
quem é dono
do cão da
família. A
questão de
quem é dono
do quê é de
uma
importância
crítica para
nós, porque as
coisas que
possuímos não
definem só o
nosso estatuto
social,
também nos
definem
interiormente.
O psicólogo
William James
foi o primeiro
a argumentar
que temos um
“impulso
cego” para
criar laços
com as coisas,
que os nossos
objetos e
propriedade se
tornam, de
algum modo,
uma parte das
nossas
identidades
materiais. Ou
seja, as coisas
a que chamo
“minhas” vão
para além do
meu corpo
físico,
prolongam-se
para as
minhas
roupas, a
minha família,
a minha casa,
o meu jardim
e o meu carro.
Cada um de
nós existe
como
epicentro das
nossas coisas
e ainda que
muitas delas
sejam
inanimadas
afetam as
nossas
emoções.
Como James
escreveu em
1890, em The
Principles of
Psychology,
“a identidade
de um homem
é a soma total
de tudo aquilo
a que ele
PODE chamar
seu, não
apenas o seu
corpo e as
suas
capacidades
psíquicas, mas
as suas roupas
e a sua casa, a
sua mulher e
crianças, os
seus
antepassados e
amigos, a sua
reputação e
obras, as suas
terras e
cavalos e
barcos e
contas
bancárias.
Todas estas
coisas dão-lhe
as mesmas
emoções. Se
elas crescerem
e
prosperarem,
ele sente-se
triunfante; se
definharem e
acabarem,
sente-se
abatido, não
necessariamen
te no mesmo
grau para cada
uma delas,
mas de forma
muito
semelhante
em relação a
todas.”
Avancemos
para o século
XXI, onde
vendedores e
publicitários
têm perfeita
consciência de
que vemos
produtos e
coisas como
extensões dos
nossos seres
físicos. Vários
estudos têm
mostrado que
o simples ato
de tocar num
objeto é
suficiente para
despertar
sentimentos
de
propriedade –
e é por isso
que as pessoas
são
encorajadas a
testar
amostras, a
experimentar
roupas ou a
fazer test
drives de
automóveis.
O processo
desenrola-se
com muita
rapidez.
Quando
entramos
numa loja,
sabemos
perfeitamente
que nenhum
dos objetos
que lá está nos
pertence, mas
assim que
chegamos à
caixa e
pagamos uma
peça, o objeto
muda
instantaneame
nte, não
fisicamente,
mas na nossa
cabeça. Agora
é nosso. Como
dizia Gail
Wynand, o
magnata dos
jornais do
romance The
Fountainhead,
de Ayn Rand,
“sou o homem
mais
ofensivamente
possessivo à
face da Terra.
Faço qualquer
coisa às
coisas.
Deixem-me
pegar num
cinzeiro numa
loja de
quinquilharia,
pagá-lo e
metê-lo no
bolso – e
torna-se logo
um cinzeiro
especial,
diferente que
todos os que
existem no
mundo,
porque é
meu”.
Os
psicólogos até
têm um nome
para este
fenómeno.
Chama-se
“efeito
instantâneo de
posse” e
identifica o
apego súbito
que
desenvolvemo
s por um
objeto logo
que nos
tornamos
proprietários
dele. Esse
efeito de
propriedade
até é visível
no cérebro.
Usando
imagens
obtidas por
ressonância
magnética,
cientistas
descobriram
que quando
uma pessoa
pensa num
objeto que é
seu, por
oposição a um
objeto que
pertence a
outra pessoa,
o seu cortéx
pré-frontal
medial
ilumina-se. É
a mesma área
do cérebro
associada ao
“processament
o
autorreferenci
al” e é ativada
quando
ouvimos o
nosso nome,
recordamos
memórias
autobiográfica
s ou nos
lembramos
das nossas
preferências
pessoais.
Os seres
humanos não
estão
seguramente
sozinhos
quanto ao
impulso para
proteger
objetos e
defender
território; é
sabido que
outros animais
têm um
entendimento
rudimentar de
troca e de
propriedade.
Os pássaros-
cetim, por
exemplo,
apanham
pedaços de
coisas
coloridas para
colocar junto
dos ninhos, os
polvos lutam
por causa de
abrigos em
cocos e os
babuínos no
topo da
hierarquia
respeitam os
direitos de
propriedade
de outros
membros do
grupo e não
lhes tirarão
qualquer
objeto, mesmo
que ele ou ela
esteja numa
posição
socialmente
inferior, se foi
o primeiro a
tê-lo em seu
poder. Parece
por isso existir
no reino
animal alguma
base genética
para a
propriedade,
mas
absolutamente
nada que se
compare com
o impulso dos
humanos para
adquirir.
Enquanto
outros animais
têm territórios
e abrigos, nós
somos a única
espécie com
um tão grande
número e
variedade de
possessões. A
maior parte
dos animais
não tem nada;
a maior parte
dos humanos
está presa a
um local por
causa das suas
“coisas”.
As nossas
coisas podem,
no entanto, ser
uma das
explicações
para o facto de
a nossa
espécie ser tão
poderosa.
Enquanto
éramos
macacos nus a
correr pelo
espaço aberto
da savana,
dependíamos
do nosso
cérebro
grande para
sobreviver, e
há 300 mil
anos alguns
dos primeiros
objetos que
criámos eram
armas como
setas e lanças.
Tornaram-se
as nossas
primeiras
possessões.
Os caçadores
terão
desenvolvido
uma ligação
com as suas
melhores
armas e tê-las-
ão usado
repetidamente,
e dessa
perspetiva faz
sentido que as
nossas
primeiras
possessões
fossem vitais
para a
sobrevivência.

À medida
que a nossa
espécie se
tornou mais
sedentária,
cresceu o
impulso para
acumular
coisas. O
arquélogo
Gary Feinman
defende que
armazenar a
mais era uma
forma de
minimizar o
risco, porque
quando “as
pessoas se
fixavam
tornavam-se
mais
suscetíveis ao
desastre
ambiental”.
Com as
famílias a
armazenarem
bens, as
relações entre
as pessoas
foram
reforçadas
através do
comércio e a
“troca de bens
não
necessários”
tornou-se uma
forma de
estreitar os
laços com os
vizinhos.
Hoje, a
propriedade é
considerada
uma
caraterística
humana
universal.
Encontra-se
em todas as
culturas,
embora haja
variações
culturais
significativas.
Por isso,
embora possa
afirmar-se que
a propriedade
possui raízes
evolucionárias
, muita coisa
sobre ela, em
especial as
suas regras, é
aprendida e
não inata.
Começamos
cedo a
aprender essas
regras. Como
todos sabem,
o conceito de
“meu” torna-
se muito
importante
para os bebés.
Psicólogos de
desenvolvime
nto
descobriram
que crianças
com 18 meses
conseguem
distinguir a
diferença
entre uma
coisa que têm
no momento e
uma coisa que
é sua; e com
dois anos são
capazes de
raciocinar e
entender que
uma coisa é
daquele que a
teve em
primeiro
lugar. Esta
noção de
“primeira
posse”, como
veremos, é
uma das
primeiras
formas como
os adultos
definem
propriedade
legal.
Para
começar, no
entanto,
devemos
lembrar que a
propriedade
não existe
num vazio.
Deixa de
existir se não
houver outra
pessoa. De um
ponto de vista
psicológico,
“os objetos
são
reivindicados
para os
distinguir de
outra coisa
que pertence a
outra pessoa
[…] Sem a
presença do
outro,
desaparece a
necessidade
de colocar nos
objetos o
rótulo ‘é meu’
ou ‘não é
meu’”. Ou,
para colocar
as coisas de
outro modo:
se estiver
sozinho numa
ilha deserta,
tudo é seu e
nada é seu;
isso, muito
simplesmente,
não terá
importância
nenhuma. Até
aparecer
alguém.
Quando outra
pessoa entra
em cena, aí
começamos a
reivindicar
direitos sobre
aquilo que nos
pertence. E é
possível ver
crianças com
dois ou três
anos a
defenderem os
“direitos” da
sua
propriedade.
Por exemplo,
num estudo
em que
crianças muito
pequenas
viam bonecos
a atirar
objetos para
um caixote do
lixo, não se
importavam se
os bonecos
atirassem
objetos que
eram deles,
mas
protestavam
com
veemência se
eles atirassem
objetos que
eram delas. O
reconheciment
o do direito
dos outros à
propriedade
começa
também por
volta desta
idade. Miúdos
de dois anos
viam sem
protestar um
boneco atirar
fora uma coisa
que
pertencesse a
um terceiro,
mas com três
anos já
protestavam
contra esta
violação dos
direitos de
propriedade
de alguém.
Então, como
é que as
crianças
decidem o que
é seu e o que
não é? A
posse em
primeiro lugar
é a regra mais
simples, mas
depende de
como essa
posse foi
alcançada.
Num cenário
de igualdade,
com um
objeto que não
pertence a
ninguém,
funciona a
regra do
jardim-escola:
“Quem o
encontrou,
fica com ele.”
Shaylene
Nancekivell,
psicóloga
cognitiva na
universidade
de Michigan,
observa que
“é por isto que
apanhar
conchas que
estão numa
praia pública é
aceitável,
[enquanto]
pegar em
conchas que
estão expostas
para venda
numa
banquinha na
praia já não
é”. O
vendedor
encontrou-as
antes e tem o
direito de as
vender. Mas
num mundo
em que a
maior parte
das coisas são
compradas em
transações
feitas em
lojas,
raramente
saímos do
nosso modo
de piloto
automático
para pensar
em quem é
dono do quê.
Se
começarmos a
pensar nisso,
contudo,
como os
psicólogos de
desenvolvime
nto têm feito,
torna-se
evidente que
“a propriedade
não é uma
‘posse’ natural
de objetos,
mas sim
determinada
por intenções
humanas” e
que “factos
sobre quem é
dono do quê
podem ser
alterados por
decisões
apropriadas”.
Na revista
Cognition,
Max Palamar
e colegas seus
exploraram
esta ideia de
propriedade e
intenção
usando a
experiência da
pena que está
no topo de um
cato. Num dos
cenários,
alguém
chamado
Mike quer a
pena e usa um
pau para a
soltar; ela
desprende-se e
flutua
lentamente até
ao solo.
Estudos sobre
o raciocínio a
propósito
deste tipo de
propriedade
indicam que a
maior parte
das pessoas
vai considerar
que Mike é o
legítimo
proprietário da
pena. Mas se
Mike bater no
cato por
acidente e a
pena cair
exatamente no
momento em
que Dave vai
a passar, e se
Dave a
apanhar…
bem, aí as
regras
mudam. Dave
torna-se o
legitimo
proprietário da
pena porque
Mike teve
menos
responsabilida
de direta em
consegui-la.
A história é
outro fator
para decidir
quem é dono
do quê. Como
observámos
antes, com
dois ou três
anos a maior
parte das
crianças já
tem um
entendimento
básico da
regra de
propriedade.
Para testar
isto, foram
distribuídos
carrinhos a
miúdos e, ao
fim de algum
tempo a
brincarem uns
com os outros,
tinham de
dizer ao
investigador
que carrinho
era o seu. As
crianças de
dois anos
tinham
dificuldade
em fazê-lo,
porque os
carrinhos
pareciam
todos iguais,
mas as de três
anos
conseguiam
identificar os
seus, porque
seguiam com
atenção todo o
movimento de
trocas entre o
seu carro e os
dos outros
miúdos.
Mas a
história e a
posse em
primeiro lugar
não são as
únicas formas
pelas quais
determinamos
quem é dono
do quê. Se um
objeto tem um
criador
identificável,
isso também
afeta as nossas
ideias de
propriedade.
A posse em
primeiro
lugar, por
exemplo, pode
ser
ultrapassada
pelo
“investimento
” criativo num
objeto. Num
estudo para
avaliar este
comportament
o, deram
plasticina a
crianças e
disseram-lhes
que podiam
ficar com ela
depois de
terminada a
experiência.
Mas durante o
estudo era-
lhes pedido
para trocarem
a sua
plasticina com
a do
investigador e
cada um
moldaria um
objeto. Para as
crianças,
quando o
objeto, por
exemplo um
dinossauro,
ficava pronto,
essa nova
condição
sobrepunha-se
à posse em
primeiro
lugar. Mesmo
que a
plasticina
fosse
emprestada, o
trabalho
criativo
investido pelo
que a pedira
emprestada
convertia-o no
legítimo
proprietário
do objeto e,
por causa
disso, dava-se
uma
transferência
de
propriedade.
Uma troca
voluntária de
plasticina que
não custou
nada é uma
coisa, mas os
direitos de
propriedade
são mais
complexos se
a matéria-
prima for
considerada
valiosa. Por
exemplo,
ouro. No que
respeita a
materiais
emprestados,
os
investigadores
descobriram
que existiam
diferenças
significativas
entre crianças
e adultos. Se
lhes
emprestassem
madeira para
fazer uma
estátua, a
maior parte
dos miúdos de
três e quatro
anos pensava
que devia
ficar com a
estátua,
enquanto a
maioria dos
adultos não.
Mais ainda,
quanto maior
fosse o valor
dos materiais
emprestados,
menos
impacto teria
o trabalho
criativo sobre
a propriedade.
Se por
exemplo eram
dados aos
participantes
no estudo dois
materiais,
ouro e papel,
mesmo que
houvesse
trabalho
criativo, o
produto
acabado era
considerado
pertença do
dono do
material se se
tratasse de
ouro,
independente
mente do
tempo que a
outra pessoa
tivesse
gastado a
concluir o
produto
acabado.
Como estes
casos
ilustram, a
propriedade é
uma questão
muito
escorregadia.
Não há regras
imutáveis,
porque as
vamos
alterando
conforme as
circunstâncias.
Para dar um
exemplo final,
a posse em
primeiro lugar
pode ser
também
ultrapassada
por outro
fator: o uso
frequente.
Ori
Friedman e os
seus colegas
investigadores
queriam sabe
se fatores de
cansaço
podiam mudar
as ideias das
pessoas sobre
a utilização de
um objeto.
Numa série de
estudos,
adultos e
crianças de
três a sete
anos ouviram
histórias
diferentes
sobre disputas
de
propriedade e
foi-lhes
perguntado
quem tinha
direito a ficar
com o objeto.
Num dos
cenários, um
rapaz está a
usar um lápis
para fazer um
desenho para
a mãe, mas o
lápis pertence
a uma
rapariga e ela
quere-o de
volta. Para as
crianças, a
resposta, de
forma
esmagadora,
foi a de que o
lápis devia ser
devolvido à
rapariga,
funcionando a
regra da posse
em primeiro
lugar. Já os
adultos deram
prioridade ao
uso do objeto
nesse
momento e
mostraram-se
convencidos
de que o rapaz
devia ficar
com ele para
acabar a sua
tarefa. Mas
quando o
cenário
mudou e foi
dito aos
participantes
que o lápis era
de uma
terceira parte,
neutral, o
professor, aí
tanto crianças
como adultos
disseram que
o rapaz que
estava a usar o
lápis podia
ficar com ele.
É essencial
investigar e
perceber bem
as nossas
ideias sobre
identidade,
porque no
mundo real as
nossas
disputas sobre
propriedade
vão muito
para lá da
discussão
sobre lápis
emprestados
na escola.
Numa escala
geopolítica,
estes
mesmíssimos
argumentos
são usados
para discutir
direitos
territoriais,
fronteiras e
propriedade
histórica. E
em regiões de
grau elevado
de conflito,
como entre
Israel e a
Palestina, ou
no território
indígena no
Canadá, ou na
reivindicação
histórica dos
chineses ao
Mar da China
do Sul, estas
questões estão
sempre a
surgir. É-se
dono da terra
porque se
chegou lá em
primeiro
lugar? Ou
porque se está
a usar agora
essa terra? Ou
porque se deu
valor à terra,
tornando-a
“melhor”?
O
argumento da
“melhoria” é a
base dos
modernos
direitos de
propriedade e
foi avançado
pelo filósofo
do século
XVII John
Locke. Em
1690,
escreveu, no
Second
Treatise of
Civil
Government:
“Quanta terra
um homem
for capaz de
lavrar, plantar,
melhorar,
cultivar e
puder ter o
usufruto,
quanta terra
será sua
propriedade.”
Esta lógica
baseava-se na
ideia de que,
por sermos
donos do
nosso corpo,
então, por
extensão,
somos donos
daquilo em
que os nossos
corpos
trabalham:
“Apesar da
terra e de
todas as
criaturas
inferiores
serem
propriedade
comum de
toda a
humanidade,
cada homem
tem a
propriedade
da sua própria
pessoa. Mais
ninguém, a
não ser ele,
detém direito
algum sobre
ela. O trabalho
do seu corpo e
o labor das
suas mãos são
seus, há que
reconhecê-lo.
Seja o que for
que ele retire
do estado em
que encontrou
a Natureza, e
em que a
deixou,
juntando-lhe o
próprio
trabalho e
acrescentando
-lhe qualquer
coisa que é
sua,
transformou-o
por essa via
em
propriedade
sua.”
Já foi dito
que esta
passagem
influenciou a
trajetória da
civilização
ocidental mais
do que
qualquer outra
coisa já
escrita. Serviu
para definir
como é que as
pessoas
podiam ser
donas da terra.
Segundo
Locke, é na
mistura entre
trabalho e
natureza que
se dá a magia.
E assim, como
ele sugere,
uma pessoa
que apanha
uma maçã de
uma árvore é a
dona da maçã.
Hoje, contudo,
embora as
ideias de
Locke sirvam
como base
filosófica da
moderna lei
de
propriedade,
estamos a uma
grande
distância desta
noção
simplista. Por
exemplo, os
apanhadores
de fruta que
trabalham em
quintas não
são donos das
maçãs que
apanham; os
frutos
pertencem à
quinta ou à
empresa que é
dona da
quinta. No
supermercado,
a maçã
pertence à loja
até a
pagarmos, e
depois é
nossa. O
trabalho
adiciona, a
cada passo,
valor de
mercado, e
adiciona
igualmente
camadas de
complexidade
à questão da
propriedade.
O que não tem
discussão é a
suposição de
que qualquer
pessoa pode
ser a
proprietária.
Nem sempre
foi assim. Nos
anos 1700,
William
Blackstone,
famoso pelos
seus
comentários
sobre a lei
comum
inglesa,
desafiou as
nossas ideias
de
propriedade.
Argumentou
que era uma
coisa nada
natural o facto
de uma pessoa
poder
reivindicar o
direito sobre
um objeto
“com exclusão
total de
qualquer outro
indivíduo no
universo”. Se
olhássemos
para a história
de um objeto,
começaríamos
a questionar a
ideia dessa
autoridade.
“Não existe
base, na
natureza ou na
lei natural”,
escreveu,
“para que um
conjunto de
palavras
escritas num
pergaminho
devam
transmitir o
domínio da
terra; para que
o filho deva
ter o direito a
excluir os seus
irmãos de um
determinado
pedaço de
solo porque o
seu pai, antes
dele, o tinha
feito; ou
porque o
detentor de
um campo
particular, ou
de uma joia,
ao jazer no
seu leito de
morte e já
incapaz de
manter a sua
posse, tenha o
direito de
dizer ao resto
do mundo
quem deve
desfrutar do
quê depois da
sua partida.”
E, no
entanto, no
fundo, cada
um de nós já
sabe isto:
quando
morrermos,
não
poderemos
levar as
nossas coisas.
E isso é
porque elas
não
constituem
uma extensão
física dos
nossos corpos;
são apenas
uma extensão
das nossas
mentes.
No templo
de Kofuku-Ji,
na província
de Chiba, no
Japão,
desenrola-se
desde 2015
um ritual
bizarro.
Quando se faz
uma visita no
dia certo é
possível ver
monges
budistas a
oficiarem
funerais de
cães-robô
Sony. Parece
um espetáculo
montado por
alguém de
relações
públicas, mas
é uma
cerimónia
real. Há
incenso a
sério a pairar
sobre os entes
queridos que
partiram, um
sacerdote
genuíno canta
sutras
tradicionais e
caem lágrimas
verdadeiras
quando os
donos dos
robôs dizem o
último adeus.
O Aibo
(diminutivo de
robô de
inteligência
artificial) da
Sony foi
concebido
para
“conhecer” o
seu
companheiro
humano.
Treinado para
ladrar, fazer
truques e
responder a
comandos de
voz, adaptava
o seu
comportament
o às
preferências
dos donos. Por
isso, muitas
pessoas
criaram uma
ligação forte
com as suas
mascotes
robóticas, ao
ponto de, em
alguns casos,
as
considerarem
membros da
família. Mas
em 2006,
depois de a
Sony ter
descontinuado
o produto, os
proprietários
ficaram
sozinhos com
os seus Aibo e
foram
surgindo
problemas
com o
desgaste das
componentes
mecânicas. Ao
perceber a
oportunidade,
um antigo
empregado da
Sony criou um
“hospital de
veteranos”
para os robôs
que tinham
começado a
sofrer avarias.
E quando um
cão chega
àquela fase
em que já não
há nada a
fazer, há outro
caminho para
ele, como
“dador de
órgãos”. As
partes ainda
boas dos
robôs em
estado
terminal são
retiradas para
que possam
ser instaladas
em robôs que
ainda são
considerados
“vivos”. O
funeral
tornou-se
assim uma
parte
importante da
homenagem
devida aos
robôs mortos
antes de
seguirem,
depois de
desmontados,
para o céu dos
robôs.
A cerimónia
não é só para
o hardware
agora inútil.
Como afirmou
o sacerdote
chefe do
serviço,
Bungen Oi,
“todas as
coisas têm um
pouco de
alma”. A
crença, no
animismo, de
que os objetos
têm uma alma,
prevalece nos
hábitos
japoneses e
encontra-se
também no
xintoísmo, a
principal
religião do
país. Na
região de
Kanto, no dia
8 de fevereiro
de cada ano,
realiza-se
outra espécie
de funeral,
quando
mulheres em
quimono se
reúnem para
celebrar o
festival Hari-
Kuyo. Em
japonês, hari
significa
“agulha” e
kuyo é
“memorial”.
Basicamente,
a cerimónia
reúne
costureiras e
fabricantes de
quimonos para
que possam
enterrar as
suas velhas
agulhas em
tofu ou bolos
de geleia, um
suave último
repouso ao
fim de uma
vida de
trabalho duro.
Estes rituais
fazem parte da
crença mais
generalizada
de que rios,
pedras,
árvores,
lugares e
animais
possuem todos
uma essência
sagrada e que,
do mesmo
modo, os
objetos do dia
a dia podem
também ter
um espírito.
Chaleiras de
chá, bonecas e
facas podem
tornar-se
possuidoras
do que é
designado por
tsukumogami,
ou “espírito de
objeto”. Por
causa disso, os
objetos, sejam
brinquedos,
armas ou
ferramentas,
devem ser
reparados e
cuidados, para
não ofender os
espíritos que
os habitam.
No
Ocidente,
pode parecer
absurda a
ideia de que
os objetos têm
espírito, mas,
afinal, essa
mesma ideia
não é assim
tão fora do
comum entre
os ocidentais.
Há pessoas
que dão nome
aos seus
carros e falam
com eles
como se
fossem seres
racionais, tal
como outras
se irritam com
os seus
computadores
e
fotocopiadora
s. Um escritor
pode ter uma
caneta
“especial” e
um jogador de
basebol um
taco “da
sorte”. As
pessoas
também
adoram ícones
religiosos e
algumas até
afirmam que
há estátuas
capazes de
chorar ou
sangrar. E,
claro, há os
objetos
queridos,
como alianças
de casamento
e outros itens
com
significado
pessoal. Na
verdade,
criou-se um
negócio
inteiro à volta
de médiuns e
de espíritas,
com base na
crença de que
é possível
aceder a uma
parte do
espírito
humano por
segurar num
objeto que
terá ficado
com “qualquer
coisa” da
pessoa a quem
pertencia.
Mas o que é
realmente
estranho é
que, embora
cheguemos a
adorar alguns
objetos e a
tratá-los como
sagrados,
deitamos fora
a maior parte
das nossas
coisas sem
pensar duas
vezes.
Imagine por
um instante
uma lista de
tudo aquilo
que possui
neste
momento:
casa, carro,
roupas,
sapatos,
malas, livros,
eletrodoméstic
os, joias,
mobília,
aparelhagem
eletrónica,
lâmpadas,
objetos de
casa de banho,
bugigangas, a
comida que
está no
frigorífico, a
coleção de
discos, mesmo
tudo, até à
última pastilha
elástica.
Agora, tente
imaginar uma
segunda lista
que inclua
tudo aquilo
que já foi seu
e tudo aquilo
que já deitou
fora. É
impossível,
porque ao
longo de uma
vida a pessoa
média é dona
de milhões de
coisas. Só que
não nos
afeiçoamos a
todas. “A
minha tablete
de chocolate”
será comida e
o papel que a
embrulhava
deitado fora,
do mesmo
modo que “a
minha caneta”
um dia destes
vai ficar sem
tinta e ela será
atirada fora
sem
cerimónias.
As coisas
que
guardamos
são coisas que
usamos, ou
coisas com
valor
sentimental,
como
recordações,
presentes e
heranças, às
quais estão
associadas
memórias.
Damos valor a
estes objetos
porque eles
podem
transportar-
nos a um
tempo e a um
lugar especial.
É por isso que
as pessoas têm
garagens
cheias de
coisas que
adoram, mas
que nunca
usam. Este
género de
armazenament
o em massa é
considerado
normal numa
cultura
material.
A sociedade
tem contudo
um nome para
pessoas que
não são
capazes de se
desfazer com
facilidade de
objetos
descartáveis.
São
conhecidas
como
acumuladoras.
Mas a
acumulação
não é, como
poderia
pensar-se,
uma desordem
que resulta de
valores
materialistas.
Os
acumuladores
desenvolvem
ligações
emocionais
fortes com
quase todos os
objetos que
lhes
pertencem. A
sua
dificuldade
vem de
dificuldades
na tomada de
decisões,
porque até
objetos inúteis
são olhados
como uma
extensão do
seu ser. Por
isso, os
acumuladores
não sabem o
que hão de
guardar e
deitar fora. É
uma extensão
de um
problema que
todos nós
temos até um
certo ponto: a
ideia de que
somos as
nossas coisas.
Dito isso,
populações
normais
podiam ser
consideradas
igualmente
desviantes,
levando em
conta o
volume insano
de coisas que
deitamos fora
todos os dias.
Historicame
nte, nem todas
as culturas
têm mostrado
a mesma
consideração
(ou
desconsideraç
ão) pelas
coisas. E
embora a
acumulação
seja
considerada
universal, com
casos
documentados
em sociedades
em todo o
mundo, as
abordagens à
propriedade e
ao
materialismo
podem ter
enormes
diferenças a
um nível
cultural, mais
do que
individual.
Cristóvão
Colombo
ficou
genuinamente
surpreendido
com a forma
como o povo
da ilha
Hispaniola
lidava com a
questão da
propriedade.
Em 1493,
numa carta
para Espanha
a
pormenorizar
a sua primeira
viagem,
escreveu:
“São tão
simples e tão
livres com
aquilo que
possuem que
ninguém
conseguiria
acreditar sem
ver. Se lhes
pedirmos
qualquer coisa
nunca dirão
que não; em
vez disso,
convidam a
pessoa a
partilhá-la e
mostram tanto
amor como se
estivessem a
entregar os
seus corações;
e ficam
contentes com
qualquer
pequena coisa
de qualquer
tipo que lhes
seja dada,
tenha ela valor
ou não custe
nada.”
Também o
capitão James
Cook ficou
espantado
com o
comportament
o dos nativos
da Nova Gales
do Sul, na
Austrália, que
não
cobiçavam
bens materiais
e se
contentavam
com o facto de
a natureza
lhes satisfazer
as
necessidades
básicas. Não
tinham
necessidade
de “coisas
supérfluas”.
As
sociedades
capitalistas
modernas
olham para o
papel dos bens
de uma forma
completament
e diferente. Na
nossa era, o
excesso é uma
necessidade.
Isto porque a
economia
assenta no
crescimento e
o crescimento
assenta em
produzir,
consumir e
deitar fora
cada vez mais
coisas. Foi a
isto que
Hannah
Arendt
chamou em
1958
“economia do
desperdício”.
Em A
Condição
Humana,
escreveu: “As
coisas têm de
ser quase
devoradas e
deitadas fora
com a mesma
rapidez com
que
apareceram no
mundo.” Por
causa disso, o
ciclo de
ligação é
curto. São na
verdade raros
os objetos que
atingirão a
idade de cem
anos dos
espíritos
tsukumogami,
já que os
produtos
modernos são
produzidos e
largados num
tempo muito
mais curto.
Também
pode ser que
tenhamos
agora uma
relação
diferente com
os nossos
objetos. É
porque a
maior parte
das nossas
coisas não são
feitas à mão.
Falta-lhes por
isso, segundo
um estudo
publicado no
The Journal of
Marketing, o
ingrediente
essencial do
“amor”.
Valorizamos
as coisas
feitas à mão,
sabendo que
houve tempo e
esforço
pessoais
investidos na
sua criação. É
por isso que
adoramos as
camisolas
feitas à mão
pelas nossas
avós ou os
desenhos e
objetos
simples feitos
pelos nossos
filhos. E é
também por
isso que
pensamos que
os objetos
comerciais
feitos à mão
“contêm e
transmitem a
‘essência’ do
artesão […] O
cliente tem a
perceção de
que o próprio
produto feito à
mão está
impregnado
de amor”.
A grande
maioria dos
nossos bens é
hoje fabricada
por robôs e
máquinas.
Cada prato,
camisola ou
telemóvel é
um clone do
seguinte. Por
não terem
alma, torna-se
mais fácil
separar-nos
deles. Além
disso, como
bem sabe
quem alguma
vez tenha
visto o
programa de
televisão How
It’s Made, a
escala e a
velocidade a
que são
produzidos os
bens de
consumo é
estonteante.
Mas este
modelo de
produção
também nos
obriga a um
ciclo
perpétuo. As
máquinas não
se cansam.
Nunca se
queixam de
horas
extraordinária
s. São rápidas,
eficientes e
precisas e
batem
qualquer ser
humano na
sua
capacidade
infindável de
produzir.
O que nos
deixa com
esta
conclusão:
temos agora,
para ir ao
encontro das
necessidades
de uma
produtividade
hiperintensa,
um papel
principal, que
é o de
consumir.

A cena
caótica no
Wal-Mart de
Porter Ranch,
na Califórnia,
foi captada
num vídeo
feito por um
telemóvel. Às
22h10,
multidões que
esperavam em
fila
começaram
aos gritos e
urros,
esfregando
desesperadas
os olhos a
arder,
enquanto
tentavam
fugir. Estavam
à espera para
comprar a
última Xbox
360. Mas
quando
começaram os
empurrões
agressivos,
um “cliente
aborrecido”
lançou um
spray de gás
pimenta.
Se um
extraterrestre
viesse
observar o
nosso atual
estado
civilizacional,
poderia pensar
que a espécie
humana
enlouqueceu
no seu desejo
de ter coisas.
Com o passar
dos anos, os
saldos da
Black Friday
tornaram-se
conhecidos
por causa
deste tipo de
comportament
os, com
autênticos
motins e
pessoas a
atropelarem-
se, a
insultarem-se
e a lutarem
umas com as
outras, na
ânsia de
comprar os
últimos
produtos
eletrónicos e
eletrodoméstic
os. Há um
site,
blackfridayde
athcount.com,
que mantém
um registo de
baixas nestas
escaramuças.
No fim da
Black Friday
de 2018, o
total ia em 12
mortos e 117
feridos.
A verdade é
que as
escaramuças
na Black
Friday estão a
esmorecer,
porque a febre
das compras
está a sair das
grandes
superfícies e a
passar para o
online, onde o
crescimento
tem sido
extraordinário.
Em 2013, só a
Amazon
vendeu 26,5
milhões de
itens na Cyber
Monday, o
que
corresponde a
426 itens por
segundo.
Entretanto,
este número
foi eclipsado
na China por
uma ocasião
batizada como
Dia dos
Solteiros.
Aquilo que
começou em
1993 como
uma espécie
de anti Dia
dos
Namorados,
promovido
por um grupo
de estudantes
da
universidade
de Nanjing,
foi
aproveitado
em 2009 pelo
gigante do
comércio
online Alibaba
e
transformado
numa
alucinante
operação de
marketing
comercial. Em
2017, o Dia
dos Solteiros
da plataforma
Alibaba
atingiu cinco
mil milhões
de dólares nos
primeiros 15
minutos e
chegou aos 25
mil milhões
durante as
primeiras
vinte e quatro
horas, o que
corresponde a
256 mil
compras por
segundo.
A explosão
consumista,
sendo
saudável para
a economia, é
catastrófica
em
consequências
físicas. A
Greenpeace
Asia calculou
que a loucura
das compras
do Dia dos
Solteiros em
2016, para
além do que
está associado
ao fabrico,
embalagem e
distribuição,
terá resultado
em tais
emissões de
CO2, só na
aquisição de
roupas, que
seriam
precisas 2,58
milhões de
árvores para
as absorver.
Este
consumismo
descontrolado
também cobra
um preço
entre os
humanos.
Estamos,
muito
literalmente, a
fazer compras
até nos
matarmos.
Um estudo
recente de
Steven Davis
e de colegas
da
universidade
da Califórnia
em Irvine,
determinou
que há 760
mil mortes
anuais por
poluição
atmosférica
relacionadas
diretamente
com a
produção de
bens de
consumo.
Vista de
fora, é claro, a
situação
parece
absurda. Por
isso, vale a
pena
perguntarmo-
nos porque é
que fazemos
isto. E a
resposta
simples é que
acreditamos
que ter coisas
nos faz
felizes. Mas a
felicidade que
retiramos das
coisas
materiais é
sempre
temporária. A
obsolescência
planeada e a
necessidade
de estar
atualizado na
moda e de
manter o
estatuto social
aprisionaram-
nos como se
fôssemos ratos
a correr sem
fim numa
roda.
Este
conceito de
“roda
hedonista” foi
avançado pela
primeira vez
pelos
psicólogos
Philip
Brickman e
Donald
Campbell para
se referirem
ao processo
em que os
seres humanos
sentem
mudanças de
humor súbitas
provocadas
por elementos
exteriores,
mas
rapidamente
regressam a
um ponto de
partida, ou
linha base, em
busca da
felicidade. É
por isso que
sentimos
aquele
entusiasmo
inicial quando
compramos
um produto
novo. No seu
livro Happy,
Derren Brown
escreveu:

“Na
altura em
que
escrevo
isto,
desejo a
sexta
encarnaçã
o do
smartpho
ne da
Apple
Macintosh
com
acesso à
Internet,
mas sei
que ele
não me
vai fazer
realmente
mais feliz.
Ao fim de
um
tempo,
mais ou
menos o
tempo que
me leva a
explorar
as suas
novas
caraterísti
cas e a
acostumar
-me à sua
forma e
peso,
sentirei
por ele
exatament
e o
mesmo
que sinto
pelo que
tenho
agora. É
evidente
que a
Apple
sabe isto e
continua a
desenvolv
er novos
modelos a
um ritmo
tal que
fará com
que seja
obviament
e doloroso
para mim
não ser
dono do
mais
recente e
melhor de
todos, o
que
acrescenta
ao
processo
um
reforço
negativo.
Há o
prazer do
novo
modelo e
o
desprazer
de saber
que o meu
não
possui
certas
caraterísti
cas de que
as outras
pessoas
todas
estão a
desfrutar.
Isto é tão
patético.”

Felicidade
não é o
mesmo que
autoestima.
Investigadores
descobriram
que as pessoas
podem ter
uma
autoestima
elevada e ser
infelizes ou
serem felizes
e terem uma
autoestima
baixa. Talvez
sem surpresa,
estudos
determinaram
que as redes
sociais têm
um efeito
negativo sobre
a autoestima.
À medida que
as pessoas
comparam e
avaliam o seu
estatuto
material com
outros online,
começam a
sentir-se
insatisfeitas
com o lugar
que ocupam
na hierarquia
social. Por
exemplo, a
visualização
de contas de
Instagram
onde os
utilizadores
mostram os
seus bens de
luxo cria com
frequência
uma
comparação
social
negativa e
contribui para
diminuir a
autoestima de
quem está a
ver.
Segundo
Tim Kasser,
que investiga
há 30 anos a
psicologia do
materialismo,
“aquilo que a
investigação
tem mostrado,
em
literalmente
dezenas de
estudos, é que,
quanto mais
as pessoas dão
prioridade aos
valores
materiais,
menos felizes
são, menos
satisfeitas
estão com as
suas vidas,
menos energia
e vitalidade
sentem,
menos
probabilidade
têm de sentir
emoções
agradáveis
como
felicidade e
contentamento
e alegria, mais
deprimidas e
angustiadas
andam, mais
emoções
desagradáveis
sentem, como
medo e raiva e
tristeza, [e] é
mais provável
que se
entreguem ao
consumo de
substâncias
como tabaco e
álcool”.
Estamos a
esmagar os
nossos
próprios
espíritos na
busca de
possuir coisas
melhores,
mais coisas,
coisas que
ironicamente
em breve
deixaremos de
querer e
deitaremos
fora. A parte
pior é que esta
dependência
da aquisição
de objetos
tende a piorar
quando os
tempos se
tornam mais
difíceis,
porque,
quando nos
sentimos
inseguros, ter
qualquer coisa
de sólido a
que nos
agarrar torna-
se um
mecanismo
para suportar
o que está a
acontecer-nos.
Os nossos
bens dão-nos
uma aparência
de controlo
sobre o
mundo. Dão-
nos poder.
Nós, a espécie
fraca do
macaco nu,
não usámos a
força bruta,
mas sim o
nosso cérebro
para dominar.
E fizemos isso
com as nossas
coisas.
Tornámo-nos
os mestres das
coisas. Coisas
que nos
tornaram mais
fortes, mais
rápidos, mais
poderosos,
mais bem
defendidos,
mais
eficientes e
mais
perigosos.
No mundo
moderno, este
poder traduz-
se em ação.
Temos o poder
de comunicar
uns com os
outros à
velocidade da
luz e de voar à
velocidade do
som.
Individualmen
te, as nossas
coisas dão-nos
a liberdade
para viajarmos
grandes
distâncias. As
nossas coisas
poupam-nos
tempo. Há
máquinas que
lavam as
nossas roupas
e os nossos
pratos. Basta
carregar num
botão de uma
máquina para
triturar
alimentos
instantaneame
nte, quando
levaríamos
meia hora se o
fizéssemos à
mão. As
nossas coisas
também nos
salvam do
fardo do
trabalho
manual; há
frotas de
robôs que
fazem horas
extraordinária
s para montar
os bens que
produzimos
em massa.
Dir-se-ia
que temos
quase tudo à
nossa
disposição no
mundo
moderno, mas,
até nos países
prósperos –
onde, em
teoria, as
pessoas têm
acesso a todo
o tipo de bens
de consumo –,
muitos ainda
têm uma
sensação de
vazio; as
pessoas
sentem-se
como se
tivessem sido
roubadas.
Talvez porque
haja um preço
real a pagar
por adorarmos
coisas.
Segundo um
estudo da
JWT, uma
empresa de
marketing de
Nova Iorque,
“a fama e a
fortuna
substituíram a
fé e a família
como o núcleo
do Sonho
Americano”.
Mas este
sonho é uma
ilusão
perigosa. No
fim, dinheiro e
propriedade
são símbolos
de estatuto e
os símbolos
são apenas um
sinal de
felicidade, não
a sua
essência.
Ouve-se
com
frequência que
a ganância
está na raiz
dos problemas
do mundo.
Não é
completament
e verdade.
Nós
acreditamos
que temos de
ser donos de
coisas – um
belo carro,
uma casa
magnífica,
roupas na
moda – para
sermos
respeitados e
apontados
como bem-
sucedidos.
Pode atingir a
“boa vida”,
diz-se,
trabalhando
muito e
continuando a
comprar. A
regra do jogo
é essa. E por
isso as
pessoas
endividam-se
regularmente
para
comprarem
mais coisas.
Essa dívida
transforma-se
em dinheiro,
que por sua
vez vai parar
aos mais ricos.
Os ricos têm a
capacidade
para encontrar
buracos (das
contas em
offshores às
isenções
fiscais) que os
tornam
melhores no
jogo. E, por
causa disso, o
fosso entre
ricos e pobres
torna-se mais
extremo.
Podemos
pensar que ter
coisas é a
solução, mas
é, de muitas
maneiras, o
problema. E
embora a
propriedade
pareça uma
coisa natural,
não quer dizer
que seja boa.
A evolução
criou todos os
outros tipos de
traços e
comportament
os “naturais”
que agora são
desajustados
ou até
criminosos.
Na verdade,
uma forma de
definir
civilização é
como o
esforço é
partilhado
para mitigar o
perigo das
respostas
geradas pela
evolução.
Mas há
outra questão
na própria
base da
propriedade. E
essa questão é
que, mesmo
que a nossa
espécie
acredite
cegamente
que é dona do
mundo, isso
não quer dizer
que ele seja
verdadeirame
nte nosso.
11
Revolução
É
essencial
um novo
tipo de
pensame
nto se a
humanid
ade
quiser
sobreviv
er e
passar a
níveis
mais
elevados
.
ALBERT
EINSTEIN
Na primavera
de 2014, fiz as
malas e viajei
para o remoto
arquipélago de
Lamu, ao
largo da costa
do Quénia,
para iniciar a
investigação
para este livro.
Escolhi
especificamen
te aquele local
porque Lamu
é uma relíquia
viva; é um
lugar fora do
tempo. Os
burros ainda
são o principal
meio de
transporte na
ilha, e há
dhows que
cruzam as
águas
brilhantes com
as suas velas
triangulares
bege, como há
dois mil anos.
Ao mergulhar
noutra
realidade,
esperei
começar a
questionar a
minha própria
realidade.
Uma
manhã, já para
o fim da
minha estada,
a dona do
hotel disse-me
que ia de
barco a uma
ilha próxima.
Fazia isso de
vez em
quando,
levando
sementes de
embondeiro
que tinham
caído das suas
árvores.
Enquanto
conversávamo
s, olhei para
os dois
enormes
embondeiros
por cima de
nós, com os
seus grandes
troncos
prateados.
Pareciam
guardas
gigantes a
proteger-nos,
com a sombra,
do sol
africano. Mas
estas árvores
eram ainda
jovens, teriam
apenas cem ou
200 anos.
Perguntei à
dona do hotel
porque é que
ela se
preocupava
em plantar
árvores que
nunca
conseguiria
ver crescidas
no seu tempo
de vida.
Respondeu-
me que eram
um presente
para as
pessoas do
futuro, para
que um dia
também
pudessem
sentar-se
debaixo de
embondeiros
gigantes e,
simplesmente,
admirá-los.
Depois de
ela se ter ido
embora, olhei
para cima e
pensei em
como seriam
poucas as
pessoas que
hoje
questionariam
o direito de
ser dono de
qualquer coisa
como uma
árvore. Se está
no teu terreno,
é tua;
pertence-te.
Podes deixá-la
crescer ou
cortá-la.
Podes fazer o
que quiseres
porque és
dono dela.
Mas nessa
manhã,
debaixo
daquelas
árvores
africanas
gigantes,
ocorreu-me
como é
estranho
pensar que se
pode ser dono
de qualquer
coisa como
um
embondeiro.
Como posso
ser dona de
uma vida que
viverá mais
dois mil anos
do que eu?
Por
comparação
com o
embondeiro,
senti-me uma
borboleta
efemérida.
Nesse
momento,
pareceu-me
totalmente
absurda a
ideia de que
aquela árvore
pudesse ser
minha.
De regresso
a Toronto, dei
por mim a
pensar de uma
maneira
semelhante
sobre a
propriedade.
A toda a
minha volta,
dizia-se que as
pessoas
viviam numa
“bolha
imobiliária”.
Mas ter uma
casa é
diferente de
ter uma
árvore. Sim,
algumas casas
são
investimentos,
mas as nossas
primeiras
casas são os
nossos
abrigos; não
são opcionais,
são uma
necessidade.
À medida que
ia pensando
mais nisso,
compreendi
que temos
relações com
as nossas
casas, e quer
elas sejam
nossas ou as
aluguemos (e
a maior parte
das pessoas
nem é dona da
sua casa, o
banco é que é)
isso não faz
diferença para
o sentimento
de
propriedade
que temos. As
pessoas amam
as suas casas.
Cuidamos
delas, seja
pintando as
paredes,
aparando a
relva ou
remodelando a
cozinha.
Algumas,
como as
nossas casas
de infância,
ocupam um
lugar
significativo
nos nossos
corações. Mas
será que isso
requer
propriedade?
Precisaremos
de ser donos
de uma coisa
para que ela
faça parte de
nós?
Agora,
olhando à
volta, em
minha casa,
pode dizer-se
o mesmo das
coisas que
sinto como
mais
preciosas,
como
fotografias ou
objetos que
herdei. Gosto
deles porque
funcionam
como uma
cadeia
ininterrupta de
tempo,
atravessam
gerações e não
têm preço. O
relógio da
minha avó,
por exemplo,
não é capaz de
fazer nenhuma
das coisas que
um relógio
moderno faz.
Não consegue
avaliar os
meus
exercícios de
fitness, fazer
telefonemas
ou receber
emails. É um
objeto querido
não por causa
daquilo que
faz, e
continuaria a
ser querido
mesmo se
deixasse de
funcionar.
Regista-me o
tempo de uma
maneira
diferente. É o
portador físico
de uma
memória.
Afinal, se o
perdesse, o
que sucederia?
A perda seria
da minha avó
ou minha? Ou
da próxima
geração?
Quando
começamos a
entender como
olhamos o
mundo através
de uma lente
de
propriedade,
somos capazes
de perceber
como isso
define tudo
sobre a nossa
realidade. Está
tão
profundament
e entrelaçada
com o dia a
dia que parece
a coisa mais
natural do
mundo e não a
questionamos.
Afinal, todos
nós, eu
incluída,
somos, até
certo ponto,
proprietários.
Mas o que
significa
realmente ser
dono de uma
coisa? A
propriedade é
uma realidade
intrínseca,
fundamental,
como um
átomo? Ou é
apenas uma
maneira de
olhar as
coisas?
Temos
olhos, mas
isso não quer
dizer que
vejamos com
clareza. Em
1951,
Solomon Asch
realizou uma
experiência
famosa para
mostrar isto
mesmo. O
estudo
envolveu um
teste de visão
com 50
estudantes
universitários
em
Swarthmore,
na
Pensilvânia.
Quando cada
um entrava na
sala, sentava-
se ao lado do
que pensava
serem mais
sete
estudantes; na
verdade, eram
atores.
Estes
“estudantes”
tinham uma
tarefa: havia
no lado
esquerdo de
um quadro
uma linha
com um
determinado
comprimento,
e eles tinham
de determinar
qual era a
linha que
estava do lado
direito,
identificada
como A, B e
C, que tinha o
mesmo
comprimento.
O sujeito do
teste não sabia
que os atores
tinham
recebido
instruções
para
escolherem
todos a
mesma linha,
mas nunca a
certa: ou a que
era demasiado
pequena ou a
que era
demasiado
grande. Era
um engano.
Por exemplo,
na ilustração
em baixo, o
grupo diria
que a linha da
esquerda
correspondia à
linha A. Uma
resposta que
estava
evidentemente
errada.
O estudo
descobriu que,
confrontados
com as
respostas
erradas dadas
pelos outros
participantes,
75 por cento
dos estudantes
submetidos ao
teste
aceitaram pelo
menos uma
vez a escolha
coletiva; ou
seja,
afirmaram ver
aquilo que os
outros viam,
ainda que a
resposta
estivesse
errada. Entre
os que
participaram
num grupo de
controlo, onde
não havia
atores, menos
de 1 por cento
deram a
resposta
errada.
Numa
tentativa para
descobrir o
que se passava
no cérebro
quando os
estudantes
eram
submetidos a
esta
experiência,
investigadores
da
universidade
de Emory
modificaram o
teste de Asch
colocando-os
dentro de uma
máquina de
ressonância
magnética,
para ver que
partes do
cérebro eram
ativadas
durante a
tarefa. Foi-
lhes pedido
que
realizassem
um teste
semelhante,
mas em vez de
linhas foram-
lhes
mostrados
objetos em
3D. A
expetativa dos
investigadores
era a de que,
se a aceitação
do que os
outros diziam
resultasse de
um processo
consciente de
tomada de
decisões,
então o córtex
pré-frontal
seria ativado,
já que esta é a
área do
cérebro
relacionada
com o
planeamento,
tomada de
decisões e
moderação do
comportament
o social. Mas
tiveram uma
surpresa: os
que
respondiam
por
conformidade
com os outros
mostravam
atividade nas
áreas parietal
e occipital do
cérebro. É
aqui que são
processadas a
informação
sensorial e a
visão, o que
mostrou aos
investigadores
que a
conformidade
não era
somente uma
decisão,
também
estava a
exercer sobre
a visão uma
influência de
perceção. Dito
de outra
maneira, a
conformidade
com a opinião
dos outros
pode ter
alterado a
perceção. Para
estas pessoas,
não era um
caso de ver
para crer, mas
antes o
contrário –
crer para ver.
A
experiência de
Asch sobre a
conformidade
tem sido
muitas vezes
dada como
exemplo ao
longo dos
anos, mas
raramente é
sublinhado um
aspeto do
estudo: a
frequência
com que as
pessoas se
recusaram a
responder em
conformidade.
Sendo verdade
que 75 por
cento dos
sujeitos do
estudo
original
seguiram a
maioria pelo
menos uma
vez, também é
verdade que
95 por cento
se
“revoltaram”
pelo menos
uma vez e
mantiveram
aquilo que
viam. Mais
ainda: 25 por
cento
recusaram
sempre mudar
de opinião.
Duzentos
anos antes,
David Hume
tinha previsto
mais ou
menos esses
resultados. Na
verdade, uma
das
perspetivas
essenciais
sobre o
comportament
o humano que
nos deixou foi
sobre a nossa
ânsia de
conformidade.
E esta
conformidade
não é benigna;
tem enormes
implicações
políticas. Em
1741, no
tratado Dos
Primeiros
Princípios do
Governo,
Hume
observou:

“A
força está
sempre do
lado dos
governado
s, os
governant
es
apoiam-se
unicament
e na
opinião.
Por isso, é
sobre a
opinião
que o
governo
assenta e
esta
máxima
estende-se
aos
governos
mais
despóticos
e mais
militares,
bem como
aos mais
livres e
mais
populares.

Sendo
assim, os
tiranos
dependem do
apoio público,
tanto como os
primeiros-
ministros e
presidentes
eleitos. Mas,
mesmo
quando há
uma maioria,
há sempre
objetores. Na
verdade, os 25
por cento que
recusam a
conformidade,
que se
recusam a ser
cegamente
governados,
são o motivo
pelo qual
somos sujeitos
a uma
vigilância
cada vez
maior.
E então a
maioria? O
que causa a
sua
conformidade
? A
investigação
ao cérebro
tem mostrado
que há um
preço a pagar
pelo
pensamento
independente.
No estudo de
Asch com
ressonância
magnética, os
sujeitos que
recusaram a
conformidade
mostraram
sinais de
atividade
numa área do
cérebro onde
outros sujeitos
nada
registaram: a
amídala, a
parte do
cérebro
associada a
decisões do
tipo “lutar ou
fugir”.
Defender as
nossas crenças
tem por isso
um preço
cognitivo,
porque
contrariar um
consenso pode
representar
conflito. Isso
provoca
angústia e
aflição em
animais
sociais como
nós. No fim,
fazer frente à
maioria exige
uma
quantidade
razoável de
coragem.

Em grego
antigo, a
palavra
“apocalipse”
soa menos
como um mau
presságio
quando se
conhece a sua
etimologia.
Na definição
original, um
“apocalipse” é
uma
“descoberta”
de
conhecimento,
um levantar
do véu, uma
revelação. Na
essência, é
uma alvorada
de clareza.
Este género de
revelação é
aquilo que
filósofos,
sábios e
cientistas
pedem há
muito tempo:
que a
humanidade
esfregue os
olhos, acorde
e comece a
ver as coisas
como elas
realmente são,
para
reconhecer
que aquilo a
que
chamamos
realidade é na
verdade uma
ilusão.
Muitos
grandes
pensadores já
escreveram
sobre a bolha
da realidade.
Na alegoria da
caverna de
Platão, os
prisioneiros
viam sombras
projetadas
contra as
paredes da
caverna e
passaram a
acreditar que
eram reais;
confundiram
aparência e
realidade. Os
antigos textos
indianos de
Os
Upanishades
continham o
conceito de
maya, o véu
que obscurece
o mundo
verdadeiro e
eterno. E na
filosofia
budista o
princípio
fundador do
dharma, ou lei
cósmica,
conduz os
praticantes
numa
demanda para
verem a
realidade
como ela é,
em vez
daquilo que
nos
apercebemos
que é, e
compreendera
m que, neste
quadro maior,
tudo está
ligado.
Para ver o
mundo
claramente,
temos em
primeiro lugar
que nos dar
conta do véu;
precisamos de
reconhecer os
nossos
ângulos
mortos. A
forma como
passámos a
perceber a
realidade está
tão
profundament
e entranhada,
encontra-se
tão
socialmente
enraizada,
geração após
geração, que
perdemos de
vista a forma
como
pensamos.
Isto é
importante,
porque aquilo
que pensamos
cria a
realidade. O
tempo, com os
cinco dias de
trabalho por
semana e o
horário das
nove às cinco
do mundo
“real”, existe
não por causa
de alguma
ordem
temporal
cósmica, mas
porque nós o
inventámos, o
mantemos e se
tornou a
realidade a
que aderimos.
Herdar uma
realidade
torna muito
mais difícil
vê-la como o
que ela é.
Como Peter
Berger e
Thomas
Luckmann
escrevem em
A Construção
Social da
Realidade, “se
uma pessoa
afirma ‘É
assim que as
coisas se
fazem’, é
frequente a
pessoa
acreditar
nisso. Então,
um mundo
institucional é
experienciado
como uma
realidade
objetiva. Tem
uma história
que é anterior
ao nascimento
do indivíduo e
não está
acessível à sua
memória
biográfica.
Estava lá
antes dele
nascer e lá
estará depois
da sua
morte”.
O nosso
mundo
construído
tornou-se-nos
tão real e
querido que
esquecemos
que aquilo a
que
chamamos
realidade é um
produto das
nossas
mentes. Esta
amnésia
coletiva talvez
não seja tão
surpreendente
se pensarmos
nas décadas
que passámos
a educar e a
socializar os
jovens.
Esperamos
que os nossos
jovens
cresçam e se
conformem
como sujeitos
na experiência
de Asch, para
ver uma
realidade que
na verdade
não está lá. É
irónico, pois,
dizermos que
as crianças
vivem num
mundo de faz
de conta,
porque na
verdade os
adultos
também
vivem. A
diferença é
que as
crianças são
capazes de
nos dizer que
o mundo delas
é inventado,
enquanto os
adultos não.
O mundo de
faz de conta é
hoje tão
poderoso que
até o seu
antecedente, o
mundo
natural, se
tornou seu
refém. Como
Yuval Noah
Harari escreve
em Sapiens,
no passado
vivíamos
numa
realidade dual.
“Por um lado,
a realidade
objetiva dos
rios, árvores e
leões; e por
outro lado a
realidade
imaginada dos
deuses, países
e empresas.
Com o tempo,
a realidade
imaginada
tornou-se cada
vez mais
poderosa, de
forma que
hoje a própria
sobrevivência
dos rios,
árvores e
leões depende
da
misericórdia
de entidades
imaginadas
como deuses,
países e
empresas.”
É com estas
entidades
fabricadas que
legitimamos a
nossa
prerrogativa
sobre a
natureza.
Afinal, é isso
que deuses,
países e
empresas
fazem. Dão-
nos
legitimidade.
Apoiam a
crença de que
o Homo
sapiens é
dono do
mundo
inteiro.
Só uma
espécie
acredita que é
dona do ar,
dona da água
e dona da
terra. Demos a
nós próprios o
direito de
comprar e
vender espaço
e comprar e
vender tempo.
Na verdade, a
base da
economia
global é essa:
a de que
podemos ser
donos das
próprias
dimensões em
que
habitamos.
Mas, ainda
para além
disso, os
humanos não
só são donos
do planeta
como de toda
a vida que
nele habita. Só
a nossa
espécie
funciona com
a convicção
de que temos
o direito de
comprar e
vender outras
espécies como
nos apetecer.
Para nós, a
própria vida é
um bem. E
com o ritmo
hiperacelerado
das trocas
comerciais,
não é surpresa
que a própria
vida esteja
agora a
desaparecer.
Segundo o
World
Wildlife Fund,
em 2020
teremos um
impressionant
e declínio de
67 por cento
nas
populações de
vida selvagem
em todo o
planeta,
relativamente
a 1970.142
Com as
ameaças dos
sistemas
alimentares e
da agricultura,
a perda de
habitats e a
exploração de
espécies, mais
de metade da
vida
vertebrada –
mais de
metade dos
nossos
mamíferos,
aves e peixes
selvagens – já
desapareceu.
Mas não são
só os animais.
Enquanto
escrevo estas
palavras,
estou a ver
títulos de
notícias que
dão conta de
um destino
triste para os
embondeiros.
Estes gigantes
antigos,
alguns dos
quais andam
por cá desde
que o Império
Romano
estava no seu
auge, estão a
morrer a um
ritmo sem
precedentes.
O botânico
Adrian Patrut
acredita que
as alterações
climáticas são
o culpado
mais provável.
Desde 1960, o
número de
embondeiros
em África
caiu para
metade.
Segundo
Patrut, que há
15 anos faz
datação de
embondeiros
por
radiocarbono,
chegou o
momento de
colocarmos
estas árvores
na categoria
das espécies
“em perigo”.
É simbólico
que a “árvore
da vida” de
África esteja a
morrer. Como
o meu amigo
Rob Stewart,
um ativista
entretanto
falecido,
observou um
dia: “Em
meados do
século, se
continuarmos
na nossa
trajetória
atual,
estaremos
perante um
mundo sem
cardumes,
nem recifes de
coral, nem
florestas
tropicais, com
concentrações
de oxigénio
em queda e
nove mil
milhões de
pessoas
famintas e
sedentas a
lutarem pelo
que resta […]
No tempo de
vida de uma
árvore
[embondeiro],
consumimos a
maior parte do
nosso sistema
de suporte de
vida.”
Esta visão
negra do
futuro instalou
o medo até
nos corações
dos autores da
ficção
científica mais
distópica.
Como
observou
sombriamente
William
Gibson,
poucas
pessoas hoje
pensam sequer
em escrever
sobre um
futuro que vá
para lá de
2100. Numa
entrevista à
revista
Vulture,
Gibson
afirmou: “O
que me parece
mais sinistro é
quão
raramente
vemos hoje a
expressão ‘o
século XXII’.
Quase
nunca.”
Se
queremos
sobreviver e
chegar ao
século XXII,
vamos
precisar de um
novo modelo
global. Temos
de libertar-nos
dos
constrangimen
tos de
ideologias
políticas
passadas,
sejam de
esquerda ou
de direita,
porque todas
elas começam
com a
pergunta
errada. Elas
perguntam
quem deve ter
o direito de
ser dono do
mundo e não
se devemos
sequer ter esse
direito.

Ouvimos
muitas vezes
dizer que é
preciso
combater o
sistema ou
que o sistema
está avariado.
Mas o que é,
exatamente, o
“sistema”?143
Onde está o
sistema?
O sistema,
como tenho
defendido
neste livro, é o
nosso sistema
de suporte de
vida. É o
sistema que
construímos
para não
termos de
depender mais
dos caprichos
dos ciclos da
natureza. É o
sistema que
nos torna a
espécie mais
poderosa da
Terra. E
embora fosse
fácil supor
que o
propósito do
nosso sistema
fosse a
sobrevivência
da nossa
espécie, não é.
Se fosse,
então todos os
seres humanos
teriam
alimentos e
energia
suficientes e
espaço e
tempo
suficientes
para
prosperar.
Mas sabemos
que não é
assim. A
ironia está em
que a nossa
sobrevivência
é apenas
acessória em
relação ao
objetivo do
sistema: a
propriedade.
O verdadeiro
objetivo é
simplesmente
ser dono do
máximo de
coisas
possível: ser
dono de
tempo, de
espaço, de
alimentos, de
energia, de
tudo exceto do
nosso lixo. É
este o modelo
que conduz o
mundo. Um
sistema em
que as dádivas
da natureza
deixaram de
ser grátis. E
agora, para
adquirir os
seus bens,
temos de
vender a coisa
mais preciosa
com que
nascemos: o
nosso tempo.
Mas há, no
entanto, outro
fator crítico
que nos
escapa: onde é
que está o
sistema? Não
somos capazes
de o ver
porque ele
existe nos
nossos
ângulos
mortos. É a
natureza
disfarçada.
Hoje, se não
conseguimos
ver a nossa
ligação ao
mundo natural
é porque a
maior parte
dos nossos
produtos não
se parecem
nada com ele:
um nugget de
frango não
parece uma
ave; o carvão
não se parece
com uma
floresta
antiga; e o
fertilizante
não tem
qualquer
semelhança
com o ar. A
natureza foi
transformada
num produto.
Na verdade,
todos os anos
é
transformada
em biliões e
triliões de
produtos.
Estes
alimentam a
nossa
população e
os nossos
apetites
vorazes e em
expansão, o
que nos leva a
saquear estes
“recursos”
naturais a um
ritmo cada vez
maior. Por
causa disso, a
economia
cresce, mas a
natureza
morre. E
embora
sejamos
animais
espertos,
nenhum de
nós podia ter
previsto a
reviravolta no
argumento.
Nenhum de
nós podia ter
adivinhado
que, no fim,
teremos de ser
nós a desligar
o nosso
próprio
sistema de
suporte de
vida, e que, se
não o
fizermos, ele
destruir-nos-
á.144
A ameaça é
tão real como
o sistema é
real. Real no
sentido em
que,
parafraseando
Philip K.
Dick, os
nossos
problemas não
vão
desaparecer se
deixarmos
simplesmente
de acreditar
neles. Mas os
sistemas – por
muito sólidos
que possam
parecer –
ainda são
construídos
sobre o nosso
pensamento
coletivo, as
nossas formas
de ver o
mundo. Sendo
assim, podem
mudar, mas
apenas se
mudarmos o
pensamento
por trás deles.
Como Robert
Pirsig
escreveu em
Zen e a Arte
de
Manutenção
de
Motocicletas,
“se uma
fábrica for
desmantelada,
mas a lógica
que a
produziu
continuar de
pé, então essa
lógica acabará
por produzir
outra fábrica.
Se uma
revolução
destruir um
governo, mas
os padrões
sistemáticos
de
pensamento
que
produziram
esse governo
permanecerem
intactos, então
esses padrões
irão repetir-
se”.
Do que
precisamos,
com urgência,
é de encontrar
uma saída
deste labirinto
de espelhos. E
podemos
encontrá-la
com a ciência,
porque a
ciência pode
destruir velhas
visões do
mundo. Pode
literalmente
mudar o
mundo
mudando a
forma como o
vemos.
As grandes
mentes da
história eram
pensadores
rebeldes como
Galileu,
Darwin e
Einstein.
Sabemos os
nomes deles
porque eram
revolucionário
s ousados e
científicos que
desafiavam a
opinião da
maioria e
refizeram o
nosso
entendimento
do mundo.
Somos os
felizes
herdeiros do
seu
pensamento
radical.
Galileu
provou que a
Terra gira em
volta do Sol e
sabemos agora
que não nos
encontramos
no centro do
universo.
Darwin uniu
os pontos da
vida,
provando que
os animais são
nossos
familiares,
que fazemos
parte de uma
longa
evolução da
vida, não
separados,
mas antes
ligados a
todos os
outros seres
vivos. E
Einstein deu a
volta ao que
se sabia sobre
as dimensões,
provando que
o espaço-
tempo é
relativo para o
observador e
que não existe
um tempo ou
espaço
absoluto,
fixo.
Estas
grandes
mudanças de
pensamento
dificilmente
podiam
resultar do
senso comum.
Na verdade,
estão contra
aquilo que,
com os nossos
sentidos,
percebemos
ser o mundo.
Ao escrever
sobre Carl
Sagan, a
crítica literária
Maria Popova
também
observou:
“Naveg
amos pelo
mundo
através da
nossa
perceção
de senso
comum,
mas essa
perceção
cegou-nos
repetidam
ente para
a
realidade.
Tomámos
por factos
do
universo
as nossas
intuições
sensoriais
– durante
milénios,
tivemos
ideias
erradas
sobre a
forma da
Terra, o
seu
moviment
o e
posição,
porque ela
parece
plana,
estática e
no centro
da ordem
do
cosmos.
Desconfiá
mos de
processos
e de
fenómeno
s para
além das
fronteiras
daquilo
que
somos
capazes
de tocar e
de sentir
com os
nossos
sentidos
limitados
– desde a
evolução,
que se
desenrola
em
escalas de
tempo
demasiad
o vastas
para ser
visível no
espaço de
uma vida
humana, à
mecânica
quântica,
que opera
em
escalas
subatómic
as
impercetí
veis e
quase
inconcebí
veis para
o
observado
r
humano.”

Os nossos
sentidos
dizem-nos que
estamos
separados do
universo e do
ambiente e
dos outros
seres vivos. A
ciência,
contudo,
apresenta
provas de que
as nossas
perceções
físicas estão
erradas. Esse é
o grande dom
da ciência e
dos cientistas:
testam a
realidade, são
capazes de
examinar os
nossos
ângulos
mortos com
provas que
nos dão uma
visão mais
clara e mais
objetiva do
mundo. Os
maiores
cientistas de
sempre são
lembrados por
terem
rebentado com
a nossa bolha
da realidade.
Diz-se que é
fácil saber
uma coisa
depois de ela
ter acontecido
e isso é mais
verdade na
ciência do que
noutra área
qualquer, com
velhas ideias
sobre a
realidade a
parecerem-nos
agora
absurdas. No
seu livro
pioneiro The
Structure of
Scientific
Revolutions,
Thomas
Kuhn, o físico
formado em
Harvard,
afirma ter
encontrado a
sua inspiração
para escrever
e depois de
estudar a obra
de Aristóteles.
Kuhn
observou que
o gigante
intelectual
“parecia não
só ignorar a
mecânica, mas
ser igualmente
um cientista
bastante mau
na área da
física”. Mais
ainda: “Sobre
o movimento,
em particular,
os seus
escritos
parecem-me
cheios de
enormes erros,
tanto de lógica
como de
observação.”
A perspetiva
essencial de
Kuhn foi a de
que um
pensador
brilhante
como
Aristóteles
parecia, pelos
padrões
modernos, um
perfeito idiota.
Mas
Aristóteles
funcionava de
acordo com
um paradigma
científico
estabelecido;
as suas ideias
eram
moldadas por
uma visão
muito especial
do mundo. A
epifania de
Kuhn foi esta,
e levou-o a
criar o termo
“mudança de
paradigma”:
se, no
passado, o
conhecimento
científico
tinha sido
olhado como
um processo
lento, mas
acumulativo,
que se
encaminhava
no sentido de
uma maior
compreensão
da realidade
física, Kuhn
mostrava que
o
conhecimento
acontece, na
verdade,
através de
saltos gigantes
e
descontínuos.
Ou, para usar
uma analogia
diferente, uma
lagarta não
cresce até se
tornar uma
borboleta;
entra numa
fase de
crisálida, em
que se
dissolve numa
sopa genética
que evolui
para um inseto
de aspeto
muito
diferente, mas
que continua a
ter uma
memória do
seu ser
anterior.
Para Kuhn,
as revoluções
científicas são
estas
mudanças
importantes de
pensamento.
Mas também
assinalou
prontamente
que os
progressos
científicos não
são como as
ilusões de
ótica da teoria
da Gestalt em
que, por
exemplo, a
perceção que
uma pessoa
tem de uma
imagem pode
oscilar entre
duas coisas
aparentemente
diferentes. É
uma mudança
maior,
escreveu, do
que uma mera
ilusão: “As
marcas no
papel que
antes eram
vistas como
um pássaro
passam a ser
vistas como
um antílope,
ou vice-versa.
O paralelo
pode ser
enganador. Os
cientistas não
veem uma
coisa como
outra coisa;
simplesmente,
veem-na.”
Fazer essa
distinção é
muito
importante.
Como nota
Ian Hacking, o
filósofo de
ciência, “os
cautelosos
dirão que a
visão que cada
um tem do
mundo muda,
mas o mundo
permanece o
mesmo. Kuhn
queria dizer
algo bem mais
interessante.
Depois de
uma
revolução, no
campo que foi
alterado, os
cientistas
trabalham
num mundo
diferente”.
Nós também
vivemos num
mundo
diferente
devido a estas
revoluções
científicas. As
nossas mentes
coletivas têm
mudado por
causa daquilo
que temos
aprendido.
Embora haja,
está claro,
aqueles que
recusam ver o
que a ciência
vê, que
confiam
apenas nos
seus sentidos
humanos: os
que acreditam
que a Terra é
plana e os
criacionistas
que esperam
todos os frutos
do mundo
moderno
enquanto se
recusam a
abandonar
crenças que
são obsoletas
há muito
tempo.
Os maiores
pensadores da
humanidade
são, contudo,
aqueles que
alargam as
fronteiras da
visão; são
visionários no
mais
verdadeiro
sentido da
palavra,
porque veem
o que é
invisível para
o resto de nós.
Para Newton,
foi a força
invisível da
gravidade;
para Van
Leeuwenhoek
foram os
animálculos
invisíveis;
para
Copérnico e
Galileu foi o
movimento
invisível da
nossa Terra
imóvel à volta
do Sol. Como
Kuhn tinha
noção, os
cientistas
trabalham
regularmente
com
“entidades
teóricas, tais
como eletrões,
[observando
coisas] para as
quais não é
possível
apontar”;
trabalham
regularmente
num mundo
que é
invisível.
Por causa
disso, há
muitas vezes
um fosso entre
o que a
ciência vê e o
que o laico
entende. Com
acesso a
ferramentas
tecnológicas
modernas,
microscópios
eletrónicos,
espectrómetro
s de massa e
máquinas de
ressonância
magnética, os
cientistas
conseguem
ver aquilo que
o resto de nós
não consegue,
e isto, além de
uma
especialização
muito elevada,
resulta num
significativo
fosso de
conhecimento
entre os
cientistas e o
público.
Numa
sondagem
recente
efetuada pelo
Pew Research
Center e pela
Associação
Americana
para o Avanço
da Ciência
(AAAS), uma
maioria de
norte-
americanos,
79 por cento,
concordava
que os
cientistas e o
conhecimento
científico não
têm preço,
mas inquéritos
semelhantes
têm mostrado
que um
número
significativo
de pessoas
não recorre à
ciência para
sustentar os
seus pontos de
vista. Por
exemplo,
numa
sondagem de
2013, apenas
33 por cento
do público em
geral
acreditava que
as alterações
climáticas
eram um
problema
grave, em
comparação
com 77 por
cento dos
cientistas da
AAAS que o
afirmava, uma
abismal
diferença de
44 pontos
percentuais.145
Outra razão
para a grande
diferença tem
que ver com a
forma como a
ciência é
comunicada
ao público.
Aqui, a
linguagem
pode ter um
efeito
significativo.
Quando os
cientistas
afirmam que
existe
“incerteza”
quanto a uma
consequência,
o público
tende a pensar
que isso
significa que
não se sabe o
suficiente,
quando uma
melhor
tradução do
termo, tal
como é usado
cientificament
e, seria
“amplitude”.
Do mesmo
modo, quando
os cientistas
falam de
“retornos
positivos”
quando se
discutem
alterações
climáticas, as
pessoas
tendem a
pensar num
bom
resultado, ou
em qualquer
coisa de
positivo,
quando na
prática a
expressão se
refere a um
ciclo que se
alimenta a si
próprio.
As grandes
ideias também
levam tempo a
transmitir,
porque as
pessoas são
teimosas em
relação àquilo
em que
acreditam.
Passado um
século sobre a
morte de
Copérnico, as
suas ideias
ousadas ainda
tinham poucos
seguidores. E
embora as
provas
inovadoras de
Newton
estivessem
bem
documentadas
nos seus
Mathematical
Principles of
Natural
Philosophy,
teve de
decorrer meio
século até as
suas ideias
serem
geralmente
aceites. O
vencedor do
Nobel da
Física, Max
Planck,
também
lamentou que
“uma nova
verdade
científica não
triunfe por
convencer os
seus
adversários e
fazer com que
vejam a luz,
mas antes
porque os seus
adversários
acabam por
morrer e
cresce uma
nova geração
que a
conhece”.
Embora
Planck tivesse
sem dúvida
razão, não
temos o tempo
de uma
geração para
descobrir isto.
E Planck não
teve a sorte de
viver no
mundo de
hoje, todo
conectado e a
alta
velocidade,
onde temos a
possibilidade
de ler,
partilhar e
comunicar
novas ideias
uns com os
outros
instantaneame
nte.

Desde 1972,
apenas 24
pessoas
ultrapassaram
a órbita
terrestre baixa
e viram o
planeta como
objeto no
espaço. Esse
número
aumentou com
as missões do
vaivém
espacial da
NASA, em
conjunto com
as expedições
à Estação
Espacial
Internacional
e às estações
Tiangong da
China, mas,
de qualquer
modo, apenas
pouco mais de
500 pessoas
tiveram o
privilégio de
ver a Terra a
partir do
espaço. Ou,
por outros
números:
apenas
0,0000072 por
cento da
população
humana
usufruiu dessa
visão
esplendorosa.
Entre
aqueles que
tiveram esse
privilégio,
alguns
referem uma
mudança de
perspetiva
radical. Até
tem um nome,
o “overview
effect”, o
efeito
panorâmico,
uma
“consciência
espacial” que
provoca uma
mudança
profunda de
pensamento e
permite aos
astronautas
olharem de
uma nova
forma para o
seu lar
terreno.
Médicos que
analisaram
astronautas de
regresso à
Terra
afirmaram que
“a muitos
deles, isso
deu-lhes uma
atitude
especial sobre
eles mesmos e
a sua relação
com os outros.
Muitos
tornaram-se
mais
conscientes da
própria Terra,
todos eles
passaram a ter
uma nova
perspetiva da
ordem do
universo. E
aqueles que
estão
próximos
deles
desenvolvera
m o mesmo
tipo de
reações,
mesmo sem lá
terem ido”.
Ao contrário
de nós, os
homens e
mulheres da
Estação
Espacial
Internacional
observam o
Sol a nascer
16 vezes por
dia e a pôr-se
outras tantas.
Mas o que é
ainda mais
incrível é que,
quando olham
para baixo, os
nossos
relógios e
fronteiras
terrestres
perdem o
significado,
mesmo que a
estação esteja
somente a 400
quilómetros
de distância.
Os
astronautas
também
assistem
literalmente às
revoluções do
nosso planeta.
Veem-no a
girar sob os
seus pés e os
seus olhos
captam a
magnitude da
sua beleza, tal
como a escala
da sua
destruição.
Numa
revolução da
Terra,
conseguem
testemunhar a
desflorestação
, as secas, os
incêndios
florestais, as
calotes polares
a derreter, os
furacões e a
poluição. A
partir do
espaço, a
pegada
humana na
Terra não é
uma coisa
abstrata. Não
são dados. É
visível.
A partir do
espaço, até a
bolha é real.
Pode ser vista
como a curva
azul
esbranquiçada
que nos
protege das
radiações do
espaço.
Conhecida
como
atmosfera, é a
bolha que
protege toda a
vida na Terra.
Mas a bolha é
também uma
armadilha. E,
como nos
dizem os
cientistas, o
ritmo a que o
CO2 aumenta
na atmosfera
está a acelerar,
e são as
emissões
destes gases
que mantêm o
calor, na
maior parte
causadas pelos
humanos, as
responsáveis
pelo
aquecimento
global.
Mas não é
preciso uma
epifania
precipitada
pelo espaço
para termos
noção daquilo
que estamos a
fazer à nossa
casa. E
embora alguns
sintam o
efeito
panorâmico,
na realidade é
um fenómeno
que muitos
astronautas
não sentem.
Como o
astronauta
Charles
Hadfield me
contou, não é
a visão de
cúpula a partir
da Estação
Espacial
Internacional
que altera a
perspetiva,
mas sim os
próprios
pensamentos e
experiência de
vida. Por
outras
palavras, não
é preciso ir ao
espaço para
ver o mundo
de uma
maneira
diferente. É
possível vê-lo
de uma
maneira nova
a partir daqui
mesmo.

Quando nos
transformamo
s,
transformamo
s o mundo.
Quando
transformamo
s o mundo,
transformamo
-nos a nós.
Como Joseph
Campbell
explicou no
seu livro O
Herói de Mil
Faces, este é
um tema que
atravessa os
tempos, em
muitas partes
do mundo. É a
história
universal da
viagem do
herói e está na
base dos
épicos mais
importantes,
dos mitos da
antiga Grécia
aos
blockbusters
de Hollywood
como Guerra
das Estrelas,
O Senhor dos
Anéis ou The
Matrix.
No
essencial, a
jornada do
herói
desenrola-se
num ciclo, ou
numa
revolução
única.
Começa com
o herói a viver
a sua vida
num mundo
banal até que
um dia é
virado de
pernas ao ar,
quando
descobre que
esse mundo,
que ele tinha
por garantido,
mudou de
repente. Vê-se
num “mundo
especial, não
familiar” e
tem de pôr de
parte o status
quo, ir em
busca de um
novo
conhecimento.
Este
conhecimento
é utilizado
para combater
as provações e
desafios que o
herói vai
enfrentar
quando o seu
estilo de vida
normal é cada
vez mais
ameaçado. A
certa altura,
tudo pode
parecer
perdido e a
derrota
inevitável,
mas depois,
nos momentos
finais, surge
uma nova
perspetiva de
poder
revelador,
permitindo
que o herói
vença e faça
um regresso
triunfal. A
seguir, o herói
dirige-se a
casa, agora já
portador de
uma nova
perspetiva. E
embora visto
de fora o
mundo possa
parecer o
mesmo, para o
herói ele
mudou
completament
e.
É quase
como se estas
históricas
épicas nos
tenham estado
a preparar
para este
momento
específico.
Chegámos a
uma altura em
que cada um
de nós deve
erguer-se à
altura dos
desafios que
nos
confrontam. É
tempo de nós
mudarmos. E
embora a
maior parte
das pessoas
ainda viva no
“mundo
normal”, para
aqueles que
são capazes de
ver é evidente
que o caos
iminente não
está muito
distante. Na
verdade, já
estão a
aparecer as
fendas na
nossa
normalidade.
Os cientistas
dizem-nos que
estamos à
beira de
mudanças
devastadoras e
que o mundo
em que
vivemos agora
em breve
estará
cercado. Mais
ainda: se não
formos
capazes de
responder,
teremos de
enfrentar nas
próximas
décadas não
apenas
desastres
localizados,
mas
catástrofes
civilizacionais
.
Por outro
lado, é
praticamente
uma piada
cósmica que
estejamos
sequer aqui
para enfrentar
este momento.
Porque,
sejamos
francos, as
hipóteses
contra nós são
imensas.
Como Stephen
Hawking
assinalou em
Breve História
do Tempo, a
existência de
vida na Terra
exigia
condições
perfeitas
implausíveis
no universo:
“Se o ritmo de
expansão um
segundo
depois do Big
Bang tivesse
sido mais
pequeno
apenas numa
parte em cem
mil milhões
de milhões,
teria entrado
em colapso
antes de
atingir a sua
dimensão
atual.” Na
mesma linha,
o biólogo Ken
Miller
escreveu: “Se
g [constante
gravitacional]
fosse mais
pequena, o pó
do Big Bang
teria
simplesmente
continuado a
expandir-se,
nunca
coalescendo
em galáxias,
estrelas,
planetas – ou
em nós. O
valor da
constante
gravitacional é
o
precisamente
certo para a
existência de
vida. Se fosse
um pouco
maior, o
universo teria
entrado em
colapso antes
de podermos
evoluir; se
fosse um
pouco mais
pequeno, o
planeta em
que nos
encontramos
nunca se teria
formado.”
Estes são
apenas dois
exemplos de
mais de 200
parâmetros
físicos no
sistema solar e
no universo
que
precisavam de
ser quase
perfeitos para
que a vida
tivesse uma
hipótese de
evoluir. Mas
as hipóteses
contra a
existência de
cada um de
nós ainda são
mais
elevadas.
Ali Binazir,
da
universidade
de Cambridge,
decidiu
calcular as
probabilidades
de qualquer
um de nós
nascer.
Combinando
as hipóteses
de os nossos
pais se
encontrarem
(uma em 20
mil) e de
ficarem juntos
para nos
conceber (uma
em dois mil),
as
probabilidades
básicas de
nascimento
começam em
um para 40
milhões. Mas
isso é antes de
se
contabilizare
m as
probabilidades
biológicas.
Com a nossa
mãe a
produzir mais
de cem mil
óvulos durante
o seu tempo
de vida e o
nosso pai a
produzir mais
de quatro
biliões de
espermatozoid
es, as
probabilidades
de cada um de
nós,
especificamen
te, nascer, são
de cerca de
um em 400
triliões.
Mas é
preciso olhar
ainda mais
para trás dos
nossos pais,
porque
pertencemos a
uma cadeia
ininterrupta de
linhagem
familiar que
remonta a 150
mil gerações
humanas.
Binazir
calcula que
estas
probabilidades
andem na
ordem de 1
em 1045.000,
um número
demasiado
longo para
escrever na
totalidade
nesta página –
ou até neste
capítulo. Na
verdade, é um
número “não
só maior do
que todas as
partículas do
universo – é
maior do que
todas as
partículas do
universo se
cada partícula
fosse em si
mesma um
universo”.
Pondo isto em
perspetiva, a
probabilidade
da existência
de cada um de
nós é
equivalente à
“probabilidad
e de dois
milhões de
pessoas se
juntarem…
para cada uma
jogar aos
dados com um
dado de um
bilião de
lados. Todas
lançam os
dados e a
todas sai o
mesmo
número”. Ou
seja: “As
probabilidades
de cada um de
nós existir são
basicamente
zero.”
Pensem
nisso. No
grande
esquema da
realidade,
chegámos à
Terra, ao lugar
certo, na
altura certa,
para aparecer
exatamente na
véspera do
apocalipse
planetário?
Realmente,
é demasiado
perfeito. Nem
Hollywood
seria capaz de
imaginar um
argumento
melhor. E
você, o herói
desta história,
não
conseguiria
encontrar-se
no meio de
uma narrativa
mais épica,
invulgar ou
extraordinária.

142
“Populações
de animais
vertebrados –
como
mamíferos,
aves e peixes –
caíram em 58
por cento entre
1970 e 2012.”
143
Segundo
Donella
Meadows, uma
pioneira em
pensamento de
sistemas, um
sistema pode
ser definido
como “um
conjunto de
coisas –
pessoas,
células,
moléculas, o
que seja – que
estão
interligadas de
tal forma que,
com o tempo,
produzem o seu
próprio padrão
de
comportamento
”.
144
Numa carta
intitulada
“Aviso de
Cientistas de
Todo o Mundo
à Humanidade”,
mais de 1.500
cientistas de
topo e
laureados com
o Nobel
assinam o
seguinte aviso:
“Os seres
humanos e o
mundo natural
estão em rota de
colisão […] Se
não forem
corrigidas,
muitas das
nossas práticas
atuais colocam
em grave risco
o futuro que
desejamos para
a sociedade
humana e para
os reinos
animal e
vegetal, e
podem alterar
de tal forma o
mundo em que
vivemos que se
torne
impossível
sustentar a vida
tal como a
conhecemos.”
145
A
percentagem de
público que
afirma que o
aquecimento
global é um
problema muito
grave tem
flutuado nas
sondagens da
Pew Research
entre o ponto
mais baixo de
32 por cento em
2010 e o
máximo de 47
por cento em
2009.
Agradecimen
tos
Escrever um
livro é um
processo
solitário, mas
não é uma
coisa que se
possa fazer
sozinho. Em
primeiro
lugar, estou
em dívida
para com o
meu brilhante
editor, Nick
Garrison. Ele,
em conjunto
com o meu
incansável
agente Rick
Broadhead,
foram os
primeiros a
acreditar neste
livro.
Obrigado a
ambos pela
vossa
sabedoria,
excelência,
conselhos e
gentileza.
Também
gostaria de
agradecer a
toda a equipa
da Penguin
Random
House
Canada,
especificamen
te a: Kristin
Cochrane e
Nicole
Winstanley,
Kara Savoy,
Tonia
Addison,
Paisley
McNab e
Scott Loomer,
e ao meu
fantástico
copy editor
Alex Schultz.
Sendo este o
meu primeiro
livro, todo o
apoio deles
merece o meu
profundo
agradecimento
.
Estou
também muito
grata aos
cientistas,
académicos,
jornalistas,
investigadores
e amigos que
partilharam o
seu tempo e as
suas
competências.
Os meus
agradecimento
s a Mark
Abbott, Nobu
Adilman,
Malcolm
Clench, Tim
Cockerill,
Biella
Coleman,
Martin
Fowler, Jonas
Frisén,
Michael
Gillard, David
Grimm, Peter
Jakobs,
Naomi Klein,
Arthur e
Marilouise
Kroker, Jo-
Anne
McArthur,
Alan
Nazerian, Dan
e Shelby
Riskin, Bob
Rutledge, Joel
Solomon, Jan
Sorgenfrei,
Nigel J.T.
Smith, David
Suzuki, Astra
Taylor e o
WWF
Canadá. E um
agradecimento
especial ao
meu amigo
Jay James.
Ao longo de
uma década,
tive a
felicidade de
trabalhar no
Discovery
Canada. Os
meus
agradecimento
s vão para
todos os
colegas da
CTV/Discover
, mas em
especial para
Seonaid
Eggett, Kelly
McKeown,
John
Morrison,
Agatha
Rachpaul e
Ken Shaw
pelo seu
apoio.
Para o
coletivo Black
Sheep, que me
inspira,
obrigado. E
para os meus
amigos mais
próximos
(vocês sabem
quem são – e
porque, para
respeitar a
privacidade,
não vos
nomeio),
adoro-vos.
McLean
Greaves e Rob
Stewart, vocês
estão no meu
coração,
sempre.
Finalmente,
este livro é
para a minha
família. Pela
paciência,
pelo apoio
sem fim, pelo
amor e por ser
a maior fonte
da minha
felicidade.
Devo-vos tudo
e ao mesmo
tempo nada,
porque sempre
me ensinaram
que as dádivas
mais preciosas
na vida são
grátis.

Pode
encontrar
uma lista de
referências
online:
https://rando
mhouse.app.
box.com/v/Re
ality-Bubble-
References

Você também pode gostar