Dowbor A Era Do Capital Improdutivo 83 91
Dowbor A Era Do Capital Improdutivo 83 91
OS PARAÍSOS FISCAIS
| 83
(offshore) constitui uma dimensão de praticamente todas as ativi-
dades econômicas dos gigantes corporativos, formando um tipo de
ampla câmara mundial de compensações, onde os diversos fluxos
financeiros entram na zona de segredo, de imposto zero ou equi-
valente e de liberdade relativamente a qualquer controle efetivo.
Nos paraísos fiscais, os recursos são reconvertidos em usos
diversos, repassados a empresas com nomes e nacionalidades
diferentes, lavados e formalmente limpos, livres de qualquer pe-
cado. Não é que tudo se torne secreto, mas com a fragmentação
do fluxo financeiro, que ressurge em outros lugares e com outros
nomes, é o conjunto do sistema que se torna opaco, incluin-
do-se inúmeras empresas formalmente pertencentes a nações
concretas. “Se você não pode ver o todo, não pode entendê-lo. A
atividade não acontece em alguma jurisdição – acontece entre
as jurisdições. O ‘outro lugar’ se tornou ‘lugar algum’: um mundo
sem regras”. (Shaxson, p.28)
O volume de recursos em paraísos fiscais passou a ser mais
conhecido desde a crise de 2008. Com a pressão das sucessivas
reuniões do G20, e os trabalhos técnicos do TJN (Tax Justice
Network), do GFI (Global Financial Integrity), do ICIJ (Inter-
national Consortium of Investigative Journalists) e do próprio
The Economist, além de vazamentos mais recentes sobre o Pa-
namá, passamos a ter ordens de grandeza: são cifras da ordem
de 21 trilhões a 32 trilhões de dólares em paraísos fiscais, para
um PIB mundial de 73,5 trilhões (2013). O Brasil participa com
algo como 520 bilhões de dólares, equivalente a 27% do PIB
(estoque acumulado, não fluxo anual).
A OCDE aprovou em 2015 um primeiro programa de con-
tenção dos drenos, o BEPS (Base Erosion and Profit Shifting),
mais uma das múltiplas tentativas de se criar um marco legal
para conter o caos planetário gerado. Mas na base está um pro-
84 |
blema estrutural: o sistema financeiro é planetário, enquanto as
leis são nacionais, e não há governo/governança mundial. E o
peso político dos gigantes financeiros é suficiente para dobrar
as tentativas de regulação por parte de governos específicos, in-
clusive jogando uns contra os outros, ou provocando a “corridas
para baixo”, race to the bottom.
O sistema impacta diretamente os processos produtivos e
as políticas macroeconômicas de âmbito nacional. “Keynes en-
tendeu a tensão básica entre a democracia e os fluxos livres de
capital. Se um país tentar reduzir as taxas de juros, digamos, para
estimular as indústrias locais em dificuldades, é provável o ca-
pital vazar para o exterior na busca de uma remuneração mais
elevada, frustrando o seu intento”. (Shaxson, p.56) As políticas
keynesianas deixam em grande parte de ser funcionais quando se
rompe a unidade territorial entre o espaço das políticas macroe-
conômicas de uma nação e o espaço global do sistema financeiro.
Quando, além disto, pode-se ganhar mais aplicando em pro-
dutos financeiros, e ainda por cima deixar de pagar impostos,
qualquer política econômica de uma nação se torna pouco rea-
lista. Assim “o sistema offshore cresceu com metástases em todo
o globo, e surgiu um poderoso exército de advogados, contadores
e banqueiros para fazer o sistema funcionar... Na realidade o
sistema raramente acrescenta algum valor. Ao contrário, está re-
distribuindo a riqueza para cima e os riscos para baixo e criando
uma nova estufa global para o crime.” (Shaxson,130)
A questão dos impostos é central. O mecanismo fiscal do
offshore é apresentado no livro, a partir de um relatório de 2009
elaborado pelo FMI: trata-se “do velho truque dos preços de
transferência: os lucros são offshore, onde escapam dos impostos,
e os custos (o pagamento de juros) são onshore, onde são de-
duzidos dos impostos.” (Shaxson, p.216) A conexão com a crise
| 85
financeira mundial é direta. “Não é coincidência que tantos dos
envolvidos em tramoias financeiras, como a Enron, ou o império
fraudulento de Bernie Madoff, ou o Stanford Bank de Sir Allen
Stanford, ou Lehman Brothers, ou a AIG, estivessem tão profun-
damente entrincheirados em offshore”. (Shaxson, p.218)
A maior parte das atividades é legal. A grande corrupção gera
a sua própria legalidade, que passa pela apropriação da política,
processo que Shaxson qualifica de “captura do Estado”. Não é
ilegal ter uma conta nas ilhas Cayman, onde a legalidade e o
segredo são completos, “um lugar que busca atrair dinheiro ofe-
recendo facilidades politicamente estáveis para ajudar pessoas
ou entidades a contornar regras, leis e regulamentações de ou-
tras jurisdições.” (Shaxson, p.228)
Trata-se, em grande parte, de corrupção sistêmica. “No es-
sencial, a corrupção envolve entendidos (insiders) que abusam
do bem comum, em segredo e com impunidade, minando as re-
gras e os sistemas que promovem o interesse público, e minando
a nossa confiança nestas regras e sistemas. Neste processo, agra-
vam a pobreza e a desigualdade e entrincheiram os interesses
envolvidos e um poder que não presta contas.” (Shaxson, p.229)
A base da lei das corporações, das sociedades anônimas, é que
o anonimato da propriedade e o direito de serem tratadas como
pessoas jurídicas, podendo declarar a sua sede legal onde queiram
e independente do local efetivo das suas atividades, teria como
contrapeso a transparência das contas. “Na origem, as corporações
tinham de cumprir um conjunto de obrigações com as socieda-
des onde se situavam, e em particular de serem transparentes nos
seus negócios e pagar os impostos... O imposto não é um custo
para os acionistas, a ser minimizado, mas uma distribuição para os
agentes econômicos (stakeholders) da empresa: um retorno sobre
os investimentos que as sociedades e os seus governos fizeram em
86 |
infraestruturas, educação, segurança e outros requisitos básicos de
toda atividade corporativa”. (Shaxson, p.228)
Nesta pesquisa, Shaxson não elaborou um panfleto contra os
paraísos fiscais e sim desmontou os mecanismos da finança in-
ternacional que neles se apoia, oferecendo uma ferramenta para
entender o caos mundial que nos deixa cada vez mais perplexos.
O mecanismo nos atinge a todos, na injustiça dos impostos mas
também no prosaico cotidiano, nos preços dos produtos, na opa-
cidade dos conteúdos. “A construção de monopólios secretos
por meio do descontrole offshore parece penetrar amplamente
em certos setores e ajuda muito a explicar porque, por exemplo,
as contas dos nossos celulares são tão elevadas em certos países
em desenvolvimento.” (Shaxson, p.148)
Os impactos são sistêmicos. “As propinas contaminam e
corrompem governos, e os paraísos fiscais contaminam e corrom-
pem o sistema financeiro global”. (Shaxson, p.229). A realidade
é que se criou um sistema que torna inviável qualquer controle
jurídico e penal da criminalidade bancária. Praticamente todos
os grandes grupos estão com dezenas de condenações por frau-
des dos mais diversos tipos, mas em praticamente nenhum
caso houve sequelas judiciais como condenação pessoal dos
responsáveis. O sistema criado envolve uma multa, acordo judi-
cial (settlement) que libera a corporação, mediante pagamento,
do reconhecimento de culpa. Basta a empresa fazer, enquanto
pratica a ilegalidade, uma provisão financeira para enfrentar os
prováveis custos do acordo judicial.
Um exercício de sistematização da criminalidade financeira
pode ser encontrado no site Corporate Research Project, que apre-
senta as condenações e acordos agrupados por empresa. Em geral,
quando condenadas a pagar as multas (sem reconhecimento de
culpa), as corporações realizam um grande espetáculo de mudan-
| 87
ça de algumas cabeças no topo da corporação, com o inevitável
anúncio de que houve erros, mas que a empresa é saudável e que
as distorções serão corrigidas. Os responsáveis não só saem livres
como munidos dos bônus legalmente cabíveis, já que não há exi-
gência de reconhecimento de culpa. Confrontar as condenações
com as imagens dos filmes corporativos de recrutamento de jovens
para atuarem nos respectivos grupos, anunciando os elevados valo-
res éticos e vitalidade econômica, com o elenco da criminalidade
corporativa, é um exercício deprimente, mas instrutivo.
A dimensão jurídica está em plena evolução, já que as corpo-
rações estão constituindo um Judiciário paralelo que lhes permita
processar os Estados, ampliando radicalmente os seus instrumen-
tos jurídicos de poder político. Nas palavras de Luís Parada, um
advogado de governos em litígio com grupos mundiais privados: “A
questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode
forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor,
em vez de o investidor se adequar às leis que existem no país”.28
Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídi-
co, como o International Centre for the Settlement of Investment
Disputes (ICSID) e instituições semelhantes em Londres, Paris,
Hong Kong e outros. Tipicamente, irão atacar um país por lhes
impor regras ambientais ou direitos sociais que julgam desfavo-
ráveis e processá-lo por lucros que poderiam ter obtido.
O amplo artigo publicado no The Guardian apresenta este novo
campo de relações internacionais que está se expandindo e transfor-
mando as regras do jogo. Os autores qualificam esta tendência de
“um obscuro mas cada vez mais poderoso campo do direito interna-
cional” (an obscure but increasingly powerful field of international law).
28
The Guardian, 10 de junho, 2015 - http://dowbor.org/2015/06/
claire-provost-e-matt-kennard-the-obscure-legal-system-that-lets-corpora-
tions-sue-countries-the-guardian-june-2015-5p.html/
88 |
A disputa jurídica também constitui uma dimensão es-
sencial dos tratados TTIP (Transatlantic Trade and Investment
Partnership) na esfera do Atlântico e TPP (Trans-Pacific Partner-
ship) na esfera do Pacífico. Estes tratados amarram um conjunto
de países em regras transnacionais em que os Estados nacionais
perdem a capacidade de regular questões ambientais, sociais e
econômicas e, muito particularmente, as próprias corporações.
Pelo contrário, serão as próprias corporações a lhes impor - e a
nós todos - as suas leis. Com o novo ciclo político nos Estados
Unidos, é inseguro hoje o futuro desta configuração interna-
cional, já que Donald Trump pretende rejeitar os instrumentos
de partnership e exercer o poder internacional de maneira mais
direta. As nomeações de executivos corporativos, inclusive da
Goldman&Sachs, para postos chave no governo norte-america-
no permitem antever ações mais truculentas.
O aporte do The Economist às pesquisas sobre os paraísos
fiscais se refere essencialmente aos locais onde estão 20 trilhões
de dólares, e identifica as principais praças financeiras que
gerem estes recursos: o Estado americano de Delaware, Miami
e Londres. As ilhas paradisíacas, portanto, servem de localiza-
ção legal, e de proteção em termos de jurisdição, fiscalidade e
informação, mas a gestão é realizada pelos grandes bancos que
conhecemos como “sistemicamente significativos” como Bar-
clays, HSBC, Goldman&Sachs, UBS e assim por diante.29
Trata-se de um gigantesco dreno que permite que os ciclos
financeiros fiquem ao abrigo das investigações. Um excelente e
breve resumo de Kofi Annan sobre as ilegalidades praticadas por
corporações transnacionais na África, em particular o “transfer
mispricing”, preços fictícios artificialmente baixos nas exporta-
29
The Missing $20 Trillion: Special Report on Offshore Finance -The Economist,
16 de fevereiro, 2013, Editorial, p. 13
| 89
ções de matérias primas africanas, para pagar menos impostos,
mostra um mecanismo típico. A venda a preços fictícios é feita
a empresas do mesmo grupo situadas em paraíso fiscal, para de-
pois ser refeita a preço cheio no mercado internacional. Assim, o
mispricing junto com o sistema de paraísos fiscais e de empresas
laranja custa 60 bilhões de dólares anuais ao continente, segun-
do declarações de Kofi Annan. Mais do que a soma das ajudas
e investimentos externos. Os fundos não-declarados apenas no
Panamá envolvem mais de 250 mil empresas de todo o mundo.
O sistema é planetário, e o fato de estar solidamente im-
bricado no sistema financeiro internacional mostra a que ponto
não se trata de uma atividade paralela, uma exceção às regras de
comportamento financeiro, mas de um elemento estruturante
fundamental de todo o processo produtivo moderno. Um dos
maiores paraísos fiscais é um estado dos Estados Unidos (De-
laware), as Ilhas Virgens Britânicas constituem de facto território
britânico, Luxemburgo está no coração da União Europeia, a
Suíça continua a desempenhar um papel de impacto mundial.
As ilhas que imaginamos constituírem os paraísos fiscais na re-
alidade são pontos de apoio que sustentam o conjunto da rede
corporativa mundial.
Um estudo de Mark Peith e Joseph Stiglitz resume perfeita-
mente o que enfrentamos: “Cresce o consenso de que os paraísos
fiscais – jurisdições que solapam as normas globais de transparên-
cia empresarial e financeira – representam um problema global
por facilitarem tanto a lavagem de dinheiro quanto a evasão e eli-
são fiscais, contribuindo assim com o crime e níveis inaceitáveis
de desigualdade global de riqueza.” Este estudo é particularmen-
te interessante por sistematizar os tipos de impacto, as iniciativas
tomadas e o conjunto de acordos internacionais que desde a
crise de 2008 tentam gerar uma base institucional para resgatar
90 |
a transparência sobre os fluxos financeiros. Não há aqui muito
mistério: “Em um mundo globalizado, se houver qualquer bolsão
de sigilo, os recursos fluirão através desse bolsão.”30 (p.1)
A lógica da acumulação de capital mudou. Os recursos, que
vêm em última instância do nosso bolso (os custos financeiros
estão nos preços e nos juros que pagamos), não só não são rein-
vestidos produtivamente nas economias como sequer pagam
impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e
da injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmen-
te econômicos, de lucro, reinvestimento, geração de empregos,
consumo e mais lucros – o ciclo de reprodução do capital --, o
sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo.
30
Stiglitz, Joseph and Mark Pieth – Superando a Economia Paralela – Friedri-
ch Ebert Stiftung – Fevereiro de 2017. http://dowbor.org/blog/wp-content/
uploads/2017/04/17-Stiglitz-Pieth-Paraisos-fiscais-33p.pdf A dimensão pro-
priamente ilícita dos fluxos financeiros internacionais encontra-se no estudo
do Banco Mundial, Illicit Financial Flows, April 2016 http://www.worldbank.
org/en/topic/financialmarketintegrity/brief/illicit-financial-flows-iffs “In the vast
majority of cases involving high value financial crime, criminals or their accom-
plices will employ a legal entity (company or foundation) or arrangement (trust) to
conceal their interest in the illegally acquired asset.” O Institute on Taxation and
Economic Policy informa que os nove maiores bancos americanos pagaram ape-
nas 18,6% de impostos entre 2008 e 2015. Os seis maiores administram 2.342
sucursais em paraísos fiscais (Bank of America, Citigroup, JPMorgan Chase,
Goldman Sachs, Morgan Stanley, Wells Fargo): http://inequality.org/wp-con-
tent/uploads/2017/04/Republican-Tax-Giveaways-to-Wall-Street-April-11.pdf
| 91