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Dowbor A Era Do Capital Improdutivo 83 91

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CAPÍTULO 6

OS PARAÍSOS FISCAIS

Os gigantes financeiros planetários estão buscando transformar


seu poder financeiro em poder político organizado. No nível
interno de um país, tal dinâmica seria considerada ilegal, infrin-
gindo as leis sobre trustes e cartéis. Mas esta nova arquitetura de
poder depende vitalmente do autêntico vácuo jurídico no qual
esses grupos se movem. As jurisdições e os bancos centrais se
movem nas esferas nacionais, enquanto o oligopólio sistêmico
financeiro se move no espaço planetário. Têm sólidas raízes na-
cionais, em particular nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha,
mas uma extraterritorialidade de fato, graças à expansão da rede
de paraísos fiscais, objeto de excelente análise de Nicholas Shax-
son, Treasure Islands: Uncovering the Damage of Offshore Banking
and Tax Havens (Ilhas do Tesouro: Descobrindo o Dano Causado
Pelos Bancos Offshore e Paraísos Fiscais), qualificado por Jeffrey
Sachs de “an utterly superb book”, um livro esplêndido.
Estamos acostumados a ler denúncias sobre os paraísos fis-
cais, mas só muito recentemente começamos a nos dar conta do
papel central que eles jogam na economia mundial. Não se trata
de “ilhas” no sentido econômico, mas de uma rede sistêmica
de territórios que escapam das jurisdições nacionais, permitindo
que o conjunto dos grandes fluxos financeiros mundiais fuja das
suas obrigações fiscais, escondendo as origens dos recursos ou
mascarando o seu destino.
Todos os grandes grupos financeiros mundiais e os maiores
grupos econômicos em geral estão hoje dotados de filiais (ou ma-
trizes) em paraísos fiscais. Este recurso de extraterritorialidade

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(offshore) constitui uma dimensão de praticamente todas as ativi-
dades econômicas dos gigantes corporativos, formando um tipo de
ampla câmara mundial de compensações, onde os diversos fluxos
financeiros entram na zona de segredo, de imposto zero ou equi-
valente e de liberdade relativamente a qualquer controle efetivo.
Nos paraísos fiscais, os recursos são reconvertidos em usos
diversos, repassados a empresas com nomes e nacionalidades
diferentes, lavados e formalmente limpos, livres de qualquer pe-
cado. Não é que tudo se torne secreto, mas com a fragmentação
do fluxo financeiro, que ressurge em outros lugares e com outros
nomes, é o conjunto do sistema que se torna opaco, incluin-
do-se inúmeras empresas formalmente pertencentes a nações
concretas. “Se você não pode ver o todo, não pode entendê-lo. A
atividade não acontece em alguma jurisdição – acontece entre
as jurisdições. O ‘outro lugar’ se tornou ‘lugar algum’: um mundo
sem regras”. (Shaxson, p.28)
O volume de recursos em paraísos fiscais passou a ser mais
conhecido desde a crise de 2008. Com a pressão das sucessivas
reuniões do G20, e os trabalhos técnicos do TJN (Tax Justice
Network), do GFI (Global Financial Integrity), do ICIJ (Inter-
national Consortium of Investigative Journalists) e do próprio
The Economist, além de vazamentos mais recentes sobre o Pa-
namá, passamos a ter ordens de grandeza: são cifras da ordem
de 21 trilhões a 32 trilhões de dólares em paraísos fiscais, para
um PIB mundial de 73,5 trilhões (2013). O Brasil participa com
algo como 520 bilhões de dólares, equivalente a 27% do PIB
(estoque acumulado, não fluxo anual).
A OCDE aprovou em 2015 um primeiro programa de con-
tenção dos drenos, o BEPS (Base Erosion and Profit Shifting),
mais uma das múltiplas tentativas de se criar um marco legal
para conter o caos planetário gerado. Mas na base está um pro-

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blema estrutural: o sistema financeiro é planetário, enquanto as
leis são nacionais, e não há governo/governança mundial. E o
peso político dos gigantes financeiros é suficiente para dobrar
as tentativas de regulação por parte de governos específicos, in-
clusive jogando uns contra os outros, ou provocando a “corridas
para baixo”, race to the bottom.
O sistema impacta diretamente os processos produtivos e
as políticas macroeconômicas de âmbito nacional. “Keynes en-
tendeu a tensão básica entre a democracia e os fluxos livres de
capital. Se um país tentar reduzir as taxas de juros, digamos, para
estimular as indústrias locais em dificuldades, é provável o ca-
pital vazar para o exterior na busca de uma remuneração mais
elevada, frustrando o seu intento”. (Shaxson, p.56) As políticas
keynesianas deixam em grande parte de ser funcionais quando se
rompe a unidade territorial entre o espaço das políticas macroe-
conômicas de uma nação e o espaço global do sistema financeiro.
Quando, além disto, pode-se ganhar mais aplicando em pro-
dutos financeiros, e ainda por cima deixar de pagar impostos,
qualquer política econômica de uma nação se torna pouco rea-
lista. Assim “o sistema offshore cresceu com metástases em todo
o globo, e surgiu um poderoso exército de advogados, contadores
e banqueiros para fazer o sistema funcionar... Na realidade o
sistema raramente acrescenta algum valor. Ao contrário, está re-
distribuindo a riqueza para cima e os riscos para baixo e criando
uma nova estufa global para o crime.” (Shaxson,130)
A questão dos impostos é central. O mecanismo fiscal do
offshore é apresentado no livro, a partir de um relatório de 2009
elaborado pelo FMI: trata-se “do velho truque dos preços de
transferência: os lucros são offshore, onde escapam dos impostos,
e os custos (o pagamento de juros) são onshore, onde são de-
duzidos dos impostos.” (Shaxson, p.216) A conexão com a crise

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financeira mundial é direta. “Não é coincidência que tantos dos
envolvidos em tramoias financeiras, como a Enron, ou o império
fraudulento de Bernie Madoff, ou o Stanford Bank de Sir Allen
Stanford, ou Lehman Brothers, ou a AIG, estivessem tão profun-
damente entrincheirados em offshore”. (Shaxson, p.218)
A maior parte das atividades é legal. A grande corrupção gera
a sua própria legalidade, que passa pela apropriação da política,
processo que Shaxson qualifica de “captura do Estado”. Não é
ilegal ter uma conta nas ilhas Cayman, onde a legalidade e o
segredo são completos, “um lugar que busca atrair dinheiro ofe-
recendo facilidades politicamente estáveis para ajudar pessoas
ou entidades a contornar regras, leis e regulamentações de ou-
tras jurisdições.” (Shaxson, p.228)
Trata-se, em grande parte, de corrupção sistêmica. “No es-
sencial, a corrupção envolve entendidos (insiders) que abusam
do bem comum, em segredo e com impunidade, minando as re-
gras e os sistemas que promovem o interesse público, e minando
a nossa confiança nestas regras e sistemas. Neste processo, agra-
vam a pobreza e a desigualdade e entrincheiram os interesses
envolvidos e um poder que não presta contas.” (Shaxson, p.229)
A base da lei das corporações, das sociedades anônimas, é que
o anonimato da propriedade e o direito de serem tratadas como
pessoas jurídicas, podendo declarar a sua sede legal onde queiram
e independente do local efetivo das suas atividades, teria como
contrapeso a transparência das contas. “Na origem, as corporações
tinham de cumprir um conjunto de obrigações com as socieda-
des onde se situavam, e em particular de serem transparentes nos
seus negócios e pagar os impostos... O imposto não é um custo
para os acionistas, a ser minimizado, mas uma distribuição para os
agentes econômicos (stakeholders) da empresa: um retorno sobre
os investimentos que as sociedades e os seus governos fizeram em

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infraestruturas, educação, segurança e outros requisitos básicos de
toda atividade corporativa”. (Shaxson, p.228)
Nesta pesquisa, Shaxson não elaborou um panfleto contra os
paraísos fiscais e sim desmontou os mecanismos da finança in-
ternacional que neles se apoia, oferecendo uma ferramenta para
entender o caos mundial que nos deixa cada vez mais perplexos.
O mecanismo nos atinge a todos, na injustiça dos impostos mas
também no prosaico cotidiano, nos preços dos produtos, na opa-
cidade dos conteúdos. “A construção de monopólios secretos
por meio do descontrole offshore parece penetrar amplamente
em certos setores e ajuda muito a explicar porque, por exemplo,
as contas dos nossos celulares são tão elevadas em certos países
em desenvolvimento.” (Shaxson, p.148)
Os impactos são sistêmicos. “As propinas contaminam e
corrompem governos, e os paraísos fiscais contaminam e corrom-
pem o sistema financeiro global”. (Shaxson, p.229). A realidade
é que se criou um sistema que torna inviável qualquer controle
jurídico e penal da criminalidade bancária. Praticamente todos
os grandes grupos estão com dezenas de condenações por frau-
des dos mais diversos tipos, mas em praticamente nenhum
caso houve sequelas judiciais como condenação pessoal dos
responsáveis. O sistema criado envolve uma multa, acordo judi-
cial (settlement) que libera a corporação, mediante pagamento,
do reconhecimento de culpa. Basta a empresa fazer, enquanto
pratica a ilegalidade, uma provisão financeira para enfrentar os
prováveis custos do acordo judicial.
Um exercício de sistematização da criminalidade financeira
pode ser encontrado no site Corporate Research Project, que apre-
senta as condenações e acordos agrupados por empresa. Em geral,
quando condenadas a pagar as multas (sem reconhecimento de
culpa), as corporações realizam um grande espetáculo de mudan-

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ça de algumas cabeças no topo da corporação, com o inevitável
anúncio de que houve erros, mas que a empresa é saudável e que
as distorções serão corrigidas. Os responsáveis não só saem livres
como munidos dos bônus legalmente cabíveis, já que não há exi-
gência de reconhecimento de culpa. Confrontar as condenações
com as imagens dos filmes corporativos de recrutamento de jovens
para atuarem nos respectivos grupos, anunciando os elevados valo-
res éticos e vitalidade econômica, com o elenco da criminalidade
corporativa, é um exercício deprimente, mas instrutivo.
A dimensão jurídica está em plena evolução, já que as corpo-
rações estão constituindo um Judiciário paralelo que lhes permita
processar os Estados, ampliando radicalmente os seus instrumen-
tos jurídicos de poder político. Nas palavras de Luís Parada, um
advogado de governos em litígio com grupos mundiais privados: “A
questão finalmente é de saber se um investidor estrangeiro pode
forçar um governo a mudar as suas leis para agradar ao investidor,
em vez de o investidor se adequar às leis que existem no país”.28
Hoje as corporações dispõem do seu próprio aparato jurídi-
co, como o International Centre for the Settlement of Investment
Disputes (ICSID) e instituições semelhantes em Londres, Paris,
Hong Kong e outros. Tipicamente, irão atacar um país por lhes
impor regras ambientais ou direitos sociais que julgam desfavo-
ráveis e processá-lo por lucros que poderiam ter obtido.
O amplo artigo publicado no The Guardian apresenta este novo
campo de relações internacionais que está se expandindo e transfor-
mando as regras do jogo. Os autores qualificam esta tendência de
“um obscuro mas cada vez mais poderoso campo do direito interna-
cional” (an obscure but increasingly powerful field of international law).

28
The Guardian, 10 de junho, 2015 - http://dowbor.org/2015/06/
claire-provost-e-matt-kennard-the-obscure-legal-system-that-lets-corpora-
tions-sue-countries-the-guardian-june-2015-5p.html/

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A disputa jurídica também constitui uma dimensão es-
sencial dos tratados TTIP (Transatlantic Trade and Investment
Partnership) na esfera do Atlântico e TPP (Trans-Pacific Partner-
ship) na esfera do Pacífico. Estes tratados amarram um conjunto
de países em regras transnacionais em que os Estados nacionais
perdem a capacidade de regular questões ambientais, sociais e
econômicas e, muito particularmente, as próprias corporações.
Pelo contrário, serão as próprias corporações a lhes impor - e a
nós todos - as suas leis. Com o novo ciclo político nos Estados
Unidos, é inseguro hoje o futuro desta configuração interna-
cional, já que Donald Trump pretende rejeitar os instrumentos
de partnership e exercer o poder internacional de maneira mais
direta. As nomeações de executivos corporativos, inclusive da
Goldman&Sachs, para postos chave no governo norte-america-
no permitem antever ações mais truculentas.
O aporte do The Economist às pesquisas sobre os paraísos
fiscais se refere essencialmente aos locais onde estão 20 trilhões
de dólares, e identifica as principais praças financeiras que
gerem estes recursos: o Estado americano de Delaware, Miami
e Londres. As ilhas paradisíacas, portanto, servem de localiza-
ção legal, e de proteção em termos de jurisdição, fiscalidade e
informação, mas a gestão é realizada pelos grandes bancos que
conhecemos como “sistemicamente significativos” como Bar-
clays, HSBC, Goldman&Sachs, UBS e assim por diante.29
Trata-se de um gigantesco dreno que permite que os ciclos
financeiros fiquem ao abrigo das investigações. Um excelente e
breve resumo de Kofi Annan sobre as ilegalidades praticadas por
corporações transnacionais na África, em particular o “transfer
mispricing”, preços fictícios artificialmente baixos nas exporta-

29
The Missing $20 Trillion: Special Report on Offshore Finance -The Economist,
16 de fevereiro, 2013, Editorial, p. 13

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ções de matérias primas africanas, para pagar menos impostos,
mostra um mecanismo típico. A venda a preços fictícios é feita
a empresas do mesmo grupo situadas em paraíso fiscal, para de-
pois ser refeita a preço cheio no mercado internacional. Assim, o
mispricing junto com o sistema de paraísos fiscais e de empresas
laranja custa 60 bilhões de dólares anuais ao continente, segun-
do declarações de Kofi Annan. Mais do que a soma das ajudas
e investimentos externos. Os fundos não-declarados apenas no
Panamá envolvem mais de 250 mil empresas de todo o mundo.
O sistema é planetário, e o fato de estar solidamente im-
bricado no sistema financeiro internacional mostra a que ponto
não se trata de uma atividade paralela, uma exceção às regras de
comportamento financeiro, mas de um elemento estruturante
fundamental de todo o processo produtivo moderno. Um dos
maiores paraísos fiscais é um estado dos Estados Unidos (De-
laware), as Ilhas Virgens Britânicas constituem de facto território
britânico, Luxemburgo está no coração da União Europeia, a
Suíça continua a desempenhar um papel de impacto mundial.
As ilhas que imaginamos constituírem os paraísos fiscais na re-
alidade são pontos de apoio que sustentam o conjunto da rede
corporativa mundial.
Um estudo de Mark Peith e Joseph Stiglitz resume perfeita-
mente o que enfrentamos: “Cresce o consenso de que os paraísos
fiscais – jurisdições que solapam as normas globais de transparên-
cia empresarial e financeira – representam um problema global
por facilitarem tanto a lavagem de dinheiro quanto a evasão e eli-
são fiscais, contribuindo assim com o crime e níveis inaceitáveis
de desigualdade global de riqueza.” Este estudo é particularmen-
te interessante por sistematizar os tipos de impacto, as iniciativas
tomadas e o conjunto de acordos internacionais que desde a
crise de 2008 tentam gerar uma base institucional para resgatar

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a transparência sobre os fluxos financeiros. Não há aqui muito
mistério: “Em um mundo globalizado, se houver qualquer bolsão
de sigilo, os recursos fluirão através desse bolsão.”30 (p.1)
A lógica da acumulação de capital mudou. Os recursos, que
vêm em última instância do nosso bolso (os custos financeiros
estão nos preços e nos juros que pagamos), não só não são rein-
vestidos produtivamente nas economias como sequer pagam
impostos. Não se trata apenas da ilegalidade da evasão fiscal e
da injustiça que gera a desigualdade. Em termos simplesmen-
te econômicos, de lucro, reinvestimento, geração de empregos,
consumo e mais lucros – o ciclo de reprodução do capital --, o
sistema trava o desenvolvimento. É o capitalismo improdutivo.

30
Stiglitz, Joseph and Mark Pieth – Superando a Economia Paralela – Friedri-
ch Ebert Stiftung – Fevereiro de 2017. http://dowbor.org/blog/wp-content/
uploads/2017/04/17-Stiglitz-Pieth-Paraisos-fiscais-33p.pdf A dimensão pro-
priamente ilícita dos fluxos financeiros internacionais encontra-se no estudo
do Banco Mundial, Illicit Financial Flows, April 2016 http://www.worldbank.
org/en/topic/financialmarketintegrity/brief/illicit-financial-flows-iffs “In the vast
majority of cases involving high value financial crime, criminals or their accom-
plices will employ a legal entity (company or foundation) or arrangement (trust) to
conceal their interest in the illegally acquired asset.” O Institute on Taxation and
Economic Policy informa que os nove maiores bancos americanos pagaram ape-
nas 18,6% de impostos entre 2008 e 2015. Os seis maiores administram 2.342
sucursais em paraísos fiscais (Bank of America, Citigroup, JPMorgan Chase,
Goldman Sachs, Morgan Stanley, Wells Fargo): http://inequality.org/wp-con-
tent/uploads/2017/04/Republican-Tax-Giveaways-to-Wall-Street-April-11.pdf

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