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V. 26 N. 98 (2008) Estudos Bíblicos - Bíblia Teoria e Prática Leituras de Rute

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ESTUDOS BiBLICOS 98 EDITOR RESPONSAVEL. Ludovico Garmus (E-mail: [email protected]) CONSELHO DE REDAGAO. Gilberto Gorgulho, Carlos Mesters, Ludovico Garmus, Ana Flora Anderson, Milton Schwan- tes, José Comblin, Tércio Machado Siqueira, Jalio Paulo Tavares Zabatiero, Paulo Lockmann, Valmor da Silva, Shigeyuki Nakanose, Céssio Murilo. COORDENADORES DESTE NUMERO: Telmo José Amaral de Figueiredo COLABORADORES Rio Grande do Sul: Verner Héffelmann, Uwe Wegner, Renathus Porath, Nelson Kilpp, Cyzo ‘Assis Lima, Norberto da Cunha Garin, Nélio Schneider, Elaine Gleci Neuenfeldt, Irineu Ra- buske, Inacio Pinzetta, Giinther Wolff, Plinio R. Maldaner, Marga Janete Stroher, Jalio Paulo Zabatiero + Parand e Santa Catarina: Maria Soave Buscemi, Luiz Alexandre Solano Rossi, Jo- sué Adam Lazier, Luis J. Dietriech, Giinther Wolff, Zenilda Luiza Petry, Ido Perondi, Mauro Odorissio, Nilva Dircksen, Celso Loraschi, Aldo dal Pozzo, Ney Brasil Pereira, Werner Fuchs, Hermes Tonini Sao Paulo: Tércio Machado Siqueira, Milton Schwantes, Shigeyuki Nakano- se, Paulo Nogueira, Marcos Paulo Baildo, Matthias Grenzer, Enilda de P. Pedro, Nancy Cardo- so Pereira, Pedro de Lima Vasconcelos, Marli Wandenmurem, Noli Bernardo Hahn, Maricel Mena Lépez.* Minas Gerais: José Luiz Gonzaga do Prado, Emanuel Messias de Oliveira, Pau- lo Sérgio Soares, Airton José da Silva, Johan Konings, Western Clay Peixoto, Wolfgang Gru- en, Jacir de Freitas Faria, Jaldemir Vitério, Telmo José Amaral de Figueiredo, Jacil Rodrigues de Brito + Rio de Janeiro: Paulo Lockmann, Carlos Mesters, Ludovico Garmus, Francisco Oro- fino, Carlos Schlapfer, Isidoro Mazzarolo, Lilia Dias Marianno, Ricardo Lengruber Lobosco + Regido Nordeste: José Comblin, Artur Peregrino, Joao Luis Correia Jinior, Anizio Freire, Pau- lo F. Valério, José Flavio de C. Femandes, José Raimundo Oliva, Sérgio Sezino Douets Vas- concelos, José Carlos Leandro, Agabo Borges de Sousa + Regido Norte: Sandro Gallazzi, Ana Maria Rizzante Gallazzi, Nicolau Masi, Francisco Rubeaux, Luis Mosconi, Tea Frigerio, Na- talia Soares, Narciso Farias, Rosa Marga Rothe » Regido Centro-Oeste: Marcelo de Barros Souza, Joel Ferreira, Geraldo Rosania, Pedro Casaldaliga, Valmor da Silva, Haroldo Reimer, Ivoni Richter Reimer. Assinatura anual: para 0 exterior: US 50,00 para o Brasil: RS 55,00 Para assinaturas dirija-se a: [email protected] Tel.: (Oxx24) 2233-9000, Ramal 9029 Printed in Brazil EDITORIAL “Além disso, meu filho, fica atento: fazer livros é um trabalho sem fim, e muito estudo cansa 0 corpo.” (Eel 12,12) Essa citagao de Eclesiastes ou Coélet nos vem a mente quando contemplamos o resultado de mais este niimero de Estudos Biblicos, uma vez que jamais tera fim o exercicio de estudo e interpretagio da Biblia! A ntengao do grupo de biblistas que uniu esforgos para realizar esse trabalho foi recolocar em pauta a importncia, jamais superada e insuperavel, de se tomar o texto biblico com todo o respcito c atengiio que ele merece. Todo trabalho para ser bem reali- zado necessita de método, o mesmo se aplica para o estudo da Biblia, ainda mais que ela, além de ser uma obra literdria, é acolhida pelas igrejas ¢ pelo judaismo como Pala- vra de Deus. Como afirma o documento da Pontificia Comissao Biblica (PCB) — A Interpretacao da Biblia na Igreja — “esta convicgao de f& tem como conseqiiéncia a pratica da atualizacao e da inculturagao da mensagem biblica” (p. 139 — Edigdes Pauli- nas). Para atualizar e inculturar a Palavra de Deus importa conhecer, com fidelidade, 0 que o texto da mesma quer nos dizer. Nao é segredo que, nos tempos atuais, enfrenta-se uma forte tendéncia ao funda- mentalismo, pois é “atraente para as pessoas que procuram respostas biblicas para seus problemas da vida” (op. cit., p. 86). O fundamentalismo é a pratica de tomar tudo aquilo que esta escrito na Biblia como isento de erro ¢ interpreté-lo literalmente em to- dos os particulares. Como reconhece o documento ja citado da PCB, a leitura funda- mentalista recusa-se a levar em conta o carater histérico da revelagdo biblica (cf. ibid., p. 83), cardter esse que marcou a linguagem ea mensagem da mesma. Tal procedimen- to é perigoso, pois oferece “interpretagdes piedosas, mas ilusérias, ao invés de lhes di- zet que a Biblia ndo contém necessariamente uma resposta imediata a cada um desses problemas” (ibid., p. 86). Este namero de Estudos Biblicos divide-se em duas partes: a primeira pretende fornecer tanto o método para se utilizar os instrumentos que temos ao nosso dispor para bem estudarmos os textos biblicos, como os conhecimentos basicos para que isso acontega (Parte I). A segunda parte deseja oferecer exemplos de como esse estudo se da na pratica através da andlise do livro de Rute sob 0 viés rabinico-judaico, histori- co-critico, narrativo, socioantropolégico e psicolégico-feminino (Parte II). Outros en- foques poderiam e podem ser empregados na anilise de qualquer outro texto biblico, esses foram escolhidos somente para demonstrar a amplitude e riqueza que as varias abordagens da Biblia podem nos proporcionar. O primeiro artigo, de Johan Konings e Siisie Helena Ribeiro, pretende ser uma segura indicagao das “coisas que precisam ser feitas” pelas pessoas e comunidades de- sejosas de estudar a Biblia. O objetivo ¢ partir do texto para atingir a vida das pessoas ¢ desta, retornando novamente, ao texto biblico, que sempre é a nossa referéncia. Para tanto, € preciso varios “olhares”, primeiramente, o “inter-esse” pelo texto biblico, in- terrogando-o e deixando-se interpelar por ele. Depois, “olha-se bem” o texto, pois “importa ver com atengiio que parte da Biblia se vai estudar, o que ali esta escrito exa- tamente, que lugar ocupa, se constitui um texto coerente ¢ tais coisas mais.” Em segui- da, o “olhar hist6rico-literdrio” ir se interessar pelos fatos, as palavras citadas e a gé- nese histérica do texto. Esta foi a andlise denominada diacrénica do texto. Importa, agora, realizar a andlise sincrénica, que a complementa. O interesse, agora, por aqui- lo que “o texto significa, ndo s6 segundo a intengo explicita de quem o concebeu — Ppois esse nao est mais aqui, ‘o autor morreu’— mas também segundo a propria poten- cialidade do texto, que agora talvez diga mais do que o autor conscientemente quis di- zer.” Agora que se tem em maos a andlise diacrénica ¢ sincrénica do texto, pode-se perceber que o texto “desdobra-se num mundo de significagao” que lhe permite falar a. nés hoje. Esse € 0 momento hermenéutico do texto biblico. Interessante notar que, nessa “agenda” de trabalhos proposta por Konings ¢ Stisic Helena, ha tarefas para to- dos: pessoas comuns da comunidade que léem com atengao, biblistas, tedlogos, histo- riadores, lingiiistas, culturalistas ¢ “sabios”. Complementando 0 que esse primeiro artigo aborda, 0 segundo, de autoria de Cassio Murilo Dias da Silva, deseja ajudar-nos a perceber que “caso leiamos a Biblia de forma empirica, isto é, sem um método [...] muito da riqueza do texto biblico passa despercebida aos nossos olhos ¢ corremos 0 risco de nos contentar com o que nio ¢ im- portante. Ou, o que é pior, corremos 0 risco de pensar que 0 texto biblico diz algo que ele nao diz”. Por isso, Cassio Murilo preocupa-se em tornar mais preciso e adequado 0 vocabulario sobre metodologia de estudo biblico. Em seguida, demonstra quais as vantagens em se aplicar um método a um determinado texto da Biblia. Para tal, ele ana- lisa a pericope da cura do cego Bartimeu (Me 10,46-52). E 0 que aconteceria se nao fosse empregado nenhum método na andlise desse texto? Acompanhe o artigo ¢ mui- tas surpresas apareceriio! Os métodos de anilise biblica terminam por levantar, de modo direto ou indireto, a questao se os fatos narrados pela Biblia sao hist6ricos, ou seja, verdadeiros, ou in- veng6es, lendas e fantasias de seus autores. O terceiro artigo da primeira parte deste numero de Estudos Biblicos, redigido por Telmo José Amaral de Figueiredo, se ocu- para dessa intrincada questao. Afinal, a Biblia é formada por um conjunto de mitos ou elanarra a verdade dos fatos? A resposta a essa questo acabard por ser encontrada na clarificagao dos termos que a compéem, isto é, o que é mito, o que vem a ser historia? Ver-se-d que “a linguagem mitica na Biblia, especialmente no Antigo Testamento, nao serve para camuflar uma realidade histérica, mas exatamente 0 contrario, serve para expressar narrativamente como se realizou, nos acasos da historia do universo e de Israel, aquilo que os redatores compreendiam como a ordem do plano de Deus desde 0 inicios do mundo e de Israel.” Telmo José exemplifica a sua explicagaio com a anali- sede Génesis 1 e trechos do poema babilénico Enuma Elish ¢ 0 hino egipcio a Aton so- bre a criagio do mundo. Encerrando a primeira parte deste mimero de Estudos Biblicos, temos 0 artigo de Jacir de Freitas Faria, fornecendo titeis e importantes indicagées para se ler com pro- veito um tipo de literatura que tem atraido sempre mais pessoas nela interessadas. Estamos falando dos apécrifos, especialmente, aqueles do Novo Testamento. Jacir nos proporciona “ferramentas” e critérios para discernir os varios tipos de apécrifos que temos na atualidade. Esse artigo se preocupara em mostrar como que “a literatura apécrifa do Segundo Testamento contribuiu sobremaneira para manter viva a fé no imaginério popular. Sao historias de picdade que se transformaram em poesia, canto, pinturas, misicas e expressées devocionais.” A nossa catequese, a musica popular brasileira, os benditos e acalentos, bem como 08 oficios e cantorias populares expres sam muito daquilo que os apécrifos nos contaram. Vamos conferir! Abrindo a segunda parte desta revista, que nos traz exemplos de variadas meto- dologias de estudo biblico aplicadas ao livro de Rute, o rabino Leonardo Alanati justi- fica a escolha desse texto, pois “o livro de Rute é diferente de todos os outros livros da Biblia Hebraica, Nao existem eventos ligados 4 politica nacional, ndo ha revelagdes nem intervengdes divinas. Nenhum milagre. As escolhas so individuais e nao guia- das por profetas. Eis um texto biblico que valoriza os atos cotidianos de bondade.” O rabino Alanati contextualiza o livro de Rute no interior da liturgia e teologia judaicas. Extrai dele as principais ligdes para a espiritualidade e pratica religiosa do judaismo desde os tempos antigos até o presente. Entre essas ligdes, destaca-se Rute como “mu- Iher solidéria, corajosa, decidida, verdadeiramente admirdvel, permanecerd sempre no coragdo judaico como ancestral nao apenas de lideres ilustres do passado, mas tam- bém do lider que levard a humanidade a uma nova era de paz, solidariedade, justiga e amor ao préximo.” Costuma-se dizer que “aquilo que é bom dura para sempre”, Podemos dedicar, sem medo de errar, tal conceito ao método histérico-eritico de andlise biblica. José Luiz Gonzaga do Prado aplica as oito etapas tradicionais desse método ao estudo do li- vro de Rute, Enganam-se aqueles que atribuem a esse método uma objetividade muito fria e uma mania de dissecagio pura e simples do texto. Como afirma a PCB (op. cit., p. 41) esse método “procura elucidar os processos histéricos de produgo dos textos biblicos, processos diacrénicos algumas vezes complicados ¢ de longa duragio.” Asi- tuagdo de tempo ¢ espago na qual se encontravam os destinatarios originais do texto biblico é também descoberta durante o processo de investigagdo, o que ajuda na deter- minagio de seu genuino sentido. O “sabor feminino” do texto e a sua qualidade estéti- co-literdria so algumas das caracteristicas reveladas pelo estudo de José Luiz. Um “fato, em si corriqueiro, adquiriu importancia pela beleza e capricho da composigao do relato, especialmente se visto como alegoria ou midraxe da tradigao do povo, desde 0 periodo tribal até a restaurago pés-exilica.” De uns anos para c vem crescendo o emprego da anilise narrativa no estudo dos textos biblicos. A azo disso é ébvia, finalmente é um dado adquirido e solidificado que a Biblia é Palavra de Deus, mas chegou até as nossas maos como literatura. E, como tal, ela possui a mesma fisionomia da literatura denominada profana, como des- taca Jaldemir Vit6rio em seu artigo: “Deus fala a linguagem humana para ser entendi- do.” A sua Palavra vem revestida pela palavra humana com todos os seus condiciona- mentos e beleza, Jaldemir emprega a técnica da andlise narrativa que destaca no interi- or do texto: a intriga, os personagens, a focalizagao, a temporalidade, 0 contexto e, fi- nalmente, o ponto de vista. Como conclui Jaldemir, “a andlise narrativa tem 0 mérito de aproximar o texto biblico do leitor-intérprete atual ao mostrar como os autores bi- blicos trabalharam de forma idéntica como trabalham os narradores atuais, tao distan- tes no tempo € no espago.” Enquanto a andlise narrativa interessa-se pelo jogo cénico criado pelo autor do texto empregando personagens, ambientes, tempo, foco de interesse e pela interpreta- ‘cdo que dele emerge, ha outra forma de estudo biblico que, além de ocupar-se com as informagées fornecidas pela narrativa, ird investigar ¢ tentar descobrir 0 “imaginario do autor/a que gera a narrativa, o mundo real fora do livro, a construgao social ¢ ideo- légica deste mundo pelo autor/a para atingir um objetivo.” Essa é a tarefa da qual se in- cumbe Airton José da Silva, que realiza uma leitura socioantropolégica do livro de Rute. Um duplo olhar se faz necessario nesse tipo de leitura, ambos orientados no sen- tido da sociedade, sendo um “para a sociedade que aparece dentro do texto”, ¢ outro, “para a sociedade que aparece por tras do texto, investigando a situag4o na qual e para a qual 0 livro foi escrito.” Como fruto desse duplo olhar, Airton conclui que o livro busca “fortalecer o cla, contra a tendéncia global, gerada pela politica imperial persa e por seus agentes de Jerusalém”. A personagem principal, Rute, “na verdade, o estran- geiro/a, diz o autor/a da estoria, nao destréi a identidade judaita, como pensam os lide- res de Jerusalém, mas a revela.” Coneluindo a segunda parte e fechando com chave de ouro este nimero de Estu- dos Biblicos, Maria Aparecida Duque ¢ Rosana Pulga nos brindam com uma bela e pe- netrante andlise feminina e psicolégica do livro de Rute. Os personagens femininos prineipais, ou seja, Noemi, Orfa, Rute, passam por um crivo psicolégico, porém a atengdo principal das autoras se volta para o tipo de relacionamento estabelecido entre a sogra, Noemi, ¢ a nora, Rute. Percebe-se a completa renuincia ¢ anulagdo pessoal de Rutea favor dos projetos de sua sogra que deseja resgatar sua terra que ficou em Israel, bem como o nome de sua familia por meio de um filho nascido de sua nora, mas atribu- ido a ela. O dilema sogra-nora é analisado em pormenores, principalmente pela dtica do poder ¢ da subservigneia de uma pessoa a outra. Merece ser lida ¢ apreciada essa perspicaz leitura feita dessas duas personagens femininas, pois grandes ligdes poderaio ser extraidas para a nossa vida, também hoje! Desculpando-me por ter-me estendido tanto neste editorial, entrego aos(s) es mados(as) leitores(as) mais este niimero de Estudos Biblicos para servir a todos(as) que amam e desejam tirar oméximo proveito de sua leitura atenta das Sagradas Escrituras. Telmo José Amaral de Figueiredo 10 NDA PARA O ESTUDO DE UM TEXTO BiBLICO Johan Konings e Sisie Helena Ribeiro Apresentamos aqui a agenda daquilo que parece fundamental para a /eitura aten- ta de um texto biblico. Leitura que faga jus ao texto, ndo mera leitura de consulta para satisfazer a curiosidade, fundamentar um dogma ou dar autoridade a uma ideologia; mas empenho em ler 0 texto como texto, como uma entidade, quase uma pessoa que se apresenta a nos face a face. Dai o cuidado em nao deformé-lo, em perceber-lhe a po- tencialidade, em nao se apropriar dele, mas deixd-lo ser o que é: um outro. Cuidado em ler o texto respeitando sua alteridade, como num verdadeiro didlogo. “Agenda” significa as coisas que precisam ser feitas. Nao necessariamente na or- dem em que sdo apresentadas. A numeragao das tarefas, agrupadas em cinco blocos (A-B), tem fungdo de inventario, nao de seqiiéncia’. As vezes, uma tarefa pode ser exe- cutada concomitantemente com outra (por exemplo, géneros literarios ¢ tipo de texto). Outras vezes, um ponto da agenda deverd ser retomado diversas vezes (a critica textu- al-documental pode sofrer modificagdo em conseqiiéncia dos argumentos exegéticos). Por isso, aconselhamos abrir uma pasta especifica — quer de cartolina, quer no computa- dor —para cada tarefa, e completé-la a medida da descoberta de novos elementos. Ora, se Carlos Mesters chamou a Biblia de “livro feito em mutirao™, pode-se di- zer que também a leitura ¢ o estudo melhor se fazem em mutirao. Determinadas tarefas podem ser realizadas pela comunidade, como, por exemplo, o questionamento, a her- menéutica comunitaria ou, mesmo, o estudo sécio-historico (leitura pelos quatro la- dos). Outras tarefas exigirdo algum “engenheiro” que, no seu gabinete, estude os as- suntos mais especializados. O resumo final deste artigo (bloco F) visualiza essa orga- nizagao de tarefas. A. “Inter-esse” Fundamental para entender uma pessoa é ter interesse por ela. © mesmo vale para um texto. Eo interesse deve ser mituo: eu interrogo o texto, que me interpela. [n- 1. Como ponto de partida tomamos EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testamento: introdugio aos métodos lingiisticos e histérico-criticos, So Paulo: Loyola, 1994; WEGNER, Uwe, Exegese do Novo Testamento; manual de metodologia. Sao Leopoldo: Sinodal; Sio Paulo: Paulus, 1998; SILVA, Cassio Murilo Dias da. Metodologia de exegese biblica, So Paulo: Paulinas, 2000; SCHNELLE, Udo. Introdugiio d exegese do Novo Testamenta. Sao Pau- lo: Loyola, 2004, vitamos a discussdo se 0s métodos sinerdnicos (§§ 11-16) devem seguir ou preceder os diacroni- 05 §§ 7-10), mencionada por EGGER, 0.c.,p. 16-17; SCHNELLE, 0. p. 47-48, ~ Estas ¢ outras referencias bibli- ogrificas, normalmente em idioma acessivel, server de sugestio para a leitura 2. MESTERS, Carlos. Biblia: livro feito em mutirdo, Sio Paulo: Paulus, 19 edigdo, 1983. Nio se constréi um centro social em mutirdo sem a ajuda de um engenheiro, O problema é encontrar engenheiros que queiram participar do mutirio, i ter-esse significa 0 que esta no meio, © que une a atengdo, No meio, entre a Biblia ¢ nés, esté a vida, Ler a Biblia é conversar com a Biblia sobre a vida. Eis o interesse’. 1. Perguntas/hipsteses (problematizagio) Nao se pode empreender uma leitura atenta sem tomar consciéneia de algum problema, sem alguma finalidade para ir até o texto, sem alguma hipétese que se dese- ja verificar. Muita leitura, qual chuva de verdo, fiea sem penetrar no chlo porque nao ha expectativa de aprender, no hd pergunta, nem idéia a ser verificada ou falsificada, Portanto, qualquer leitura fecunda ou qualquer estudo relevante deve iniciar pela pro- blematizagdo'. Essa pode se cristalizar em torno de um detalhe, um versiculo, uma pa- lavra, como também pode abranger a Biblia no todo. Pode surgir da reflexio, da inquic- tude individual ou de uma reflexdo comunitaria, o importante é que haja um problema que oriente nosso estudo, ainda que ao longo do estudo o questionamento possa mudar de foco. O questionamento em torno do texto confere ao estudo relevancia para a vida pessoal, para a comunidade, a sociedade, a cultura, o mundo — para que nao produza- mos brilhantes respostas a perguntas nao feitas. Vice-versa, o texto esclareceraa situa- ‘ao vital a partir da qual Ihe fazemos nossas perguntas. Esse questionamento reciproco fundamenta as duas fases da leitura. A primeira, que consiste em olhar bem o texto na sua circunsténcia — disciplina histérico-literaria —, e a segunda, que é olhar para nossa circunstancia a partir do texto — atitude hermenéutica. A ordem pode ser invertida: da vida para a Biblia, da Biblia para a vida. O importante é que ambas sejam respeitosa- mente escutadas. O interesse deve estar presente em todas as fases do estudo. E em fungao do inte- resse que vamos delimitar a parte do texto que queremos estudar (§ 2), relevar varian- tes textuais (§ 3), analisar os dados sécio-historicos (§ 6), a estrutura semAntica (§ 13)... B. Olhando bem... Muitas vezes as pessoas, inclusive os pregadores, comentam supostos textos bi- blicos, trocando um pelo outro, misturando histérias, citando coisas que nem esto ali Por isso, depois de suscitado o interesse do estudo, importa ver com atengdo que parte da Biblia se vai estudar, o que ali esta escrito exatamente, que lugar ocupa, se constitu um texto coerente ¢ tais coisas ma 3. A ocupagiio com um texto da Escritura se dé na busea por conselho ou consolo, na constatagio da realidade defici- tiria em que vivemos: a afligdo ou necessidade humana, material ou espiritual. O que demanda a interpretagao éa experigneia allitiva da realidade. CI, BERGER, Klaus. Hermenéutica do Novo Testamento, Sao Leopoldo: Sino- dal, 1999, 4, Ver SEVERINO, Ant6nio Joaquim. Metodologia do trabalho cientifico. 21. ed, $40 Paulo: Cortez, 2000, p.75: "ter {déia clara do problema a ser resolvido, da davida a ser superada”, 12 2, Delimitar 0 texto Aprimeira tarefa é delimitar o texto a ser estudado, Decerto, poderiamos escolher a Biblia inteira como texto. E 0 que acontece no estudo do canon (hebraico, helenista, cristio...): visa-se a compreender o sentido que surge do conjunto da Biblia, desde a cria- do e o paraiso em Gn 1-2 até o novo paraiso e a nova criagao em Ap 21-22. Podemos fechar 0 zoom: qual o sentido que surge do Antigo Testamento, ou da Biblia Hebraica, ou da Septuaginta no seu conjunto, ou do Novo Testamento no seu conjunto, ou somente do Pentateuco, ou somente do corpus paulino, por exemplo. Geralmente, porém, fechamos mais ainda 0 zoom, estudamos trechos, recortes menores, pericopes’. Neste caso, a abrangéncia diminui, mas a defini¢o aumenta. Quanto menor a abrangéncia, maior a definigao. Por isso, pode ser mais proveitoso estudar aprofundadamente um tinico ve culo do que um livro inteiro, pois o aprofiundamento desse tinico versiculo vai trazer & tona as linhas mestras ¢ as caracteristicas literdrias da obra inteira. Para delimitar o recorte cabe relevar indicios que permitam dizer: aqui comega e ali termina uma unidade literdria. Num texto natrativo (que narra um fato, uma hist6- ria, uma estéria, uma utopia), tais indicios podem ser: a mudanga de local ou de cend- rio (Me 1,14), a entrada em cena de novos personagens (0 leproso em Me 1,40), 0 en- cerramento de um fato anterior (“Depois de terminar essas palavras...”: Mt7,29; 11,1; 13,53; 19,1; 26,1) ou andincio de um novo momento temporal (“No dia seguinte deci- diu partir para a Galiléia...”, Jo 1,43). Podemos também operar um recorte dentro de uma unidade maior, por exemplo, quando aparece um novo momento da ago’. Tudo depende do que se quer “enquadrar” no zoom. E atengGo, quando o fotdgrafo nao en- quadra bem a fotografia, os personagens saem sem pernas ou sem cabega! (O que ds vezes acontece nos lecionarios litirgicos da Igreja...). Se 0 texto é um ordculo, uma adverténcia ou um discurso, deve-se atentar para qual é o tema principal, como ele é introduzido, os mecanismos que indicam a relago causa e conseqiiéncia, quando se comeca a dar justificativas ou quando se utilizam exemplos, para apoiar ou refutar uma idéia, 14 um fechamento, em forma de conclu- sio. As partes so marcadas por elementos como conjungdes adversativas (mas, po- rém, contudo, todavia), conclusivas (entdo, portanto), explicativas (assim, por isso, para tanto) e outras. Na delimitagao convém olhar para trs e para frente, ver a relagdo da parte recor- tada com o que precede e com o que segue imediatamente, para julgar se a demarcagiio foi bem feita ou se € preciso deslocar os marcos. As vezes convém modificar as divi- sdes que aparecem nas edigdes da Biblia; alias, a divisdo em capitulos e versiculos nao faz parte do texto biblico original’. 5. Termo designando originalmente os trechos recortados para a leitura litngic 6. Em Gn 22, a narrativa do sactificio de Isaac, posso isolar o momento do sacrificio propriamente, anunciado no v. 9; “Quando chegaram ao lugar indivado...” e concluido no v, 13". viu 0 camneiro e ofereceu-o em holocausto no lugar de seu filho” 7. A divisio em capitulos provém de Stephan Langton (+1228) e em versiculos, de Robert Estienne (#1559), que fez seu trabalho, em parte, viajando numa caleche, CI. KONINGS, Johan. 4 Biblia nas suas origens e hoje. 6, ed, Petr6- polis: Vozes, 2006, p. 16. 13, 3. O texto certo (critica textual-documental) Delimitado o texto, importa ver 0 teor exato do que materialmente se encontra ai escrito. Esse trabalho chama-se critica* textual ou documental’. Nao diz respcito, dire- tamente, ao contedido literario ou significado do texto, mas ao estado material do texto como esté conservado nos documentos primitivos, ou seja, aos sinais graficos que a pena escreveu nas folhas de papiro ou pergaminho. O meio mais seguro para realizar esta tarefa seria examinar 0 documento original, mas sé um especialista seria capaz disso e, além disso, de nenhuma parte da Biblia temos o manuscrito original. Temos, sim, cépias mais ou menos proximas do original. Dai a pergunta: qual dessas é mais préxima do original? Nao necessariamente a mais antiga, mas sim a mais fielmente copiada”’ Esta investigagdo é uma especialidade a parte. Porém, ela nio é inacessivel ao comum dos mortais, mas impée-se a leitura atenta da Biblia, apesar dos que nao que- rem mudar um jota ou virgula de seu fextus receptus", Para os que dominam os idio- mas biblicos existem publicagdes com a reconstituicdo hipotética do texto, acompa- nhada de um “aparato critico” que contém as principais variantes textuais (expressées divergentes que se apresentam nas c6pias antigas): a Biblia Hebraica Stuttgartensia, 0 Novum Testamentum graece, 0 Greek New Testament'’. Ora, como as variantes real- mente importantes sio mencionadas nas notas das “biblias de estudo””’ e nos comen- térios cientificos, o estudante ou leitor interessado podem se orientar por ai para sele- cionar as variantes a serem levadas em conta. Inclusive, 0 Greek New Testament ja fez uma selegdo dos casos realmente interessantes e publicou um fasciculo acompanhante coma explicagdio do porqué™. (Quem nao domina as linguas originais, deveré se servir de uma “critica documental” ja pronta, consultando as notas nas biblias de estudo nos comentarios'®.) 8, “Critica” no sentido de investigagdo cientifico-critica (em alemio, Kritit), 9. Acrescentamos “documental” porque os alunos facilmente confundem critica textual com andlise textual 10. Isso interfere com a questéo da canonicidade (§ 18): qual é 0 texto a ser considerado “autorizado”, e autorizado quando e por quem? Pelo autor ou pela comunidade de fé que o incluiu no eénon? 11, Pense-se na diferenga entre a ARC, tradugo de Joaquim Ferreira de Almeida “revista e corrigida” (baseada nos an- figos manuscritos conhecidos no tempo da Reforma Protestante —o textus receptus), ea ARA, “revista eatualizada” (que leva em consideragdo os muitos e valiosos manuscritos descobertos no decorrer dos tltimos dois séculos), Do lado catblico: a Vulgata sisto-clementina (do Coneilio de Trento) e a Nova Vulgata (do Concilio Vaticano I), que assimila os avangos da critica textual ais edigdes de texto (salvo novas edigdes): Biblia Hebraica Stuttgartensia, 2. ed, emend. 1984, — ). Septuaginta, id est Vetus Testamentum graece iuxta LXX interpretes, Stuttgart, 1979. — NESTLE-ALAND, Novum Testamentum graece. 27. ed, Stuttgart: Deulsche Bibelgeselischatl, 1995 (as edigdes anteriores & 26" estio superadas).— ALAND, Barbara ct alii. The Greek New Testament. 4. ed. revis. Stuttgart: De- utsche Bibelgesellschaft; USA: United Bible Societies, 1993 [= GNT]—METZGER. Bruce. 4 textual commentary ‘on the Greek New Testament. United Bible Societies, 1971 13, No Brasil, a Biblia de Jerusalém (BJ) c a Biblia Tradugdo Ecuménica (TEB) c, até certo ponto, a Biblia Sagrada Tradugdo da CNBB. Além das edigdes de estudo da tradugo de Jodo Ferreira de Almeida 14, METZGER, A textual commentary... (vernota 12); PAROSCHI, Wilson. Critica textual do Novo Testamento. Sio Paulo: Vida nova, 1993, lembra alguns eritérios bisicos. 15. As notas que citam as variantes grdficas nos antigos documentos/manuscritos, a no confundir com as notas que explicam o sentido ou a tradugdo do texto, os dados historicos ou literirios ete 14 4, Texto/tradugao instrumental Estabelecidos (provisoriamente) a delimitagio ¢ 0 teor, transcreva-se o texto ou a tradugiio de modo a visualizar melhor os scus elementos. (1) Texto de trabalho e/ou tradugdao instrumental. Caso se use 0 texto em idioma original, pode-se copid-lo segundo a edigao critica em uso, com mengio as variantes textuais relevantes. Geralmente, porém, usat-se-a uma tradugdo, Essa deve ser a mais literal possivel, por exemplo, a de Joao Ferreira de Almeida ou uma tradugo feita es- pecialmente para este fim'*. Neste caso, convém mencionar logo depois do texto tra- duzido as principais variantes textuais, em forma simplificada ¢ transpostas para 0 portugués”, (2) Disposiedo analitica. Cada proposigio (principal ou subordinada), normal- mente caracterizada por verbo e sujeito, seja disposta numa nova linha". Os niimeros dos versiculos devem ficar numa margem a parte, a esquerda, pois servem somente para localizar os elementos, sem interferir na andlise do texto. (3) Referéncias de textos paralelos. Porque na exegese & importante ver logo a semelhanga entre o texto em pauta e outros textos biblicos (pois a Biblia vive de relei- tura!), convém inserir na margem do texto instrumental uma coluna com as referéncias dos textos paralelos relevantes, como fazem as biblias de estudo. 5. Lugar da pericope dentro da obra Para compreender que lugar o trecho ocupa no contexto interno da obra, proce- da-se por camadas. A camada central é constituida pelos textos que antecedem e se- guem imediatamente o trecho em estudo (contexto imediatamente anterior ¢ contexto imediatamente posterior): completando 0 que jé foi constatado na delimitagdo do tre- cho (§ 2), observe-se como 0 trecho se relaciona com esses contextos. Num segundo momento situe-se o texto, com seu contexto imediato, no contexto amplo: em que par- te maior do livro se encontra, que lugar ocupa no conjunto do livro (por exemplo, na “grande viagem” de Le 9-19)”. 16, Assima tradugdoliteraissima dos evangelhos sinépticos em KONINGS, Johan. Sinopse dos Evangethos de Mateus, Marcos e Lucas e da Fonte Q. Sao Paulo: Loyola, 2005. 17 Peex., Le 3,22: na tradugdo instrumental escreva-se Ti és meu filho amado, em tiesto meu agrado; ¢ depois da tra- uso acrescente-se: “v. 23: Tu és... estd o meu agrado: variante: Tu és meu filho, hoje te gerei (poucos)”. 18, Existem também proposigd 19. P.ex,, situando Le 1127-28: 1-2: Infancia 3,1-4,13: J. Batista, batismo, tentagao 4,14-9,50: O inicio na Galilé 9,51-19,27 A *viagem" a Jerusalém 1114-26 contexto imediato antecedente: Jesus e Beelzebu 11,27-28 texto: Bem-aventuranga da mie 11,29-32 contexto imediato conseqdente: o sinal de Jonas 19,28-24,53 Paixdo, morte e Ressurreigao nominais, sem verbo: exclamagdes, apéstrofes. 15 Dependendo da obra, essa “geografia” do texto pode ser muito importante para a compreensio. No evangelho de Joao, os caps. 1-12 descrevem os “sinais” de Jesus junto 4 multidao, mas seu sentido profundo aparece nos caps. 13-20, a “glorificagao” de Jesus, com sua “elevagao” na cruz. No Génesis, as grandes unidades devem ser li- das em fungao de seu género literdrio proprio (§ 10): Gn I-11 deve ser lido como uma “antropologia universal” na qual se situardo Abraio ¢ Israel, enquanto Gn 37-50 tem ares de romance, de cunho sapiencial, sobre José e seus irmios, os filhos de Israel”. 6. A coeréncia do texto Um texto pode parecer “acidentado”, seja porque o autor no conseguiu dominar bem o que queria escrever (velho, cansado, preocupado, emocionadb...), seja porque um colaborador houve por bem encurtar ou completar o texto (os profetas ¢ evangelistas, e mesmo Paulo, trabalhavam com secretarios), seja porque foi composto de material hete- rogénco (recordagées, tradugdes, fontes...). O analista literdrio percebe logo essas coi- sas. Via de regra, 0 teor geral da obra permite iluminar o que as passagens mal-enjam- bradas deixam pouco compreensiveis. A Primeira Carta aos Corintios, por exemplo, ins- trui como as mulheres devem falar na assembléia, mas Cor 14,35b-36 lhes proibe falar: estes versiculos, interrompendo a seqiiéncia dos v. 35a ¢ 37, foram, provavelmente, acrescentados por um colaborador mais escrupuloso que o proprio Paulo. Nesses casos, o exegeta pode até imaginar como o texto ficaria melhor, mas ndo tenha a pretensio de reescrevé-lo! Os indicios de incoeréncia servirdo de alerta para as fases ulteriores do es tudo e as vezes encontram ai sua explicagao (tradigdes, redagdo, §§ 8-10). C. O olhar histérico-literario Os textos biblicos so quase sempre produtos de uma gestagdo na histéria da co- munidade. Isso lhes confere caracteristicas préprias, que ndo se podem perder de vista, Tanto os fatos e as palavras citados quanto a génese historia do texto devem, num de- terminado momento, ser tomados em consideragio. Abordagem histérica e contexto sécio-histérico-cultural Nos manuais elissicos de estudo biblico fala-se da “critica (~ investigago) his- t6rica”. Originalmente, esse termo designava a verificago histérica (factual) dos acontecimentos e palavras mencionados. Hoje em dia sabe-se que a Biblia testemu- nha uma visao de £8, que, mesmo se menciona fatos hist6ricos, ndo faz isso com uma intengdo cientifica. Ainda assim, continua indispensavel a aferigdo historica das nar- rativas e palavras, ndo para aceitar ou negar “a verdade da Biblia”, como acontecia no tempo do “racionalismo selvagem”, mas para situar os dados factuais no “mundo do texto” e perceber sua fungdio na mensagem’". 20. Cf, RAD, Gerhard von, A histdria de José do Egito, Petropolis: Vores, 1973 21. Dependente do tipo do texto, esses dados podem ser meramente narrativos, sem incidéncia histérico-cientifiea ne- ‘nhuma (p.ex., a data do dilivio); ou visar & informagio bio-historiografica (p.ex., a historia dos hasmoneus em Me); ou menecionar dados histéricos reais para servir de quadro narrativo (p.ex. os"'sineronismos” dos reis de Israel ede Judi em 1-2Reis) 16 Além disso, é necessério 0 conhecimento cientifico da histéria em torno da Bi- blia: os impérios, os grandes fatos politicos ¢ culturais, a estrutura sociopolitica, o modo de viver ¢ os costumes das populagées, o cotidiano — sofrido ou alegre — do povo. Considerem-se também os dados arqueolégicos, as reliquias materiais do passado, pe- dras monumentais, vestigios de habitagdes e de utensilios, testemunhas mudas e, con- tudo, elogiientes de uma vida que passou. S6 que nem sempre é facil entender a voz dessas testemunhas mudas. As ruinas de Meguido sao os estabulos da cavalaria de Sa- lomo, as casamatas de seus soldados ou a senzala de seus escravos? Faz diferenga... “Os tempos eram outros, as pessoas eram diferentes”, diz a narradora no inicio do filme The Go Between™. E preciso compreender a hist6ria sécio-politico-cultural ¢ religiosa do tempo biblico, inclusive do tempo de Jesus, que era um judeu filho de seu tempo. Sem compreender o espirito do antigo Israel, do judaismo pés-exilico e do tempo de Jesus, no se compreende a Biblia. O ponto de amarragao da compreensio histérica é 0 exilio babilénico, quando Israel e Juda tomaram consciéncia de sua identidade™. Antes, eram conglomerados de clas outribos, concentrados em tomo de dois centros de poder: Samaria (Norte) e Jeru- salém (Sul). Unia-os a religido do deus Iahé (Javé), que se tornou sempre mais um es- trito monoteismo, néo sem veementes intervengdes de profetas e chefes militares (Jeit!). A partir de 722, o reino do Norte desapareceu no cadinho assirio; em 597/586, as elites de Jerusalém foram levadas a Babilénia. Entre essas duas catastrofes, surge a consciéncia deuteronomista, movimento que, em vez de atribuir os desastres a fatali- dade ou a Deus, situou o problema na infidelidade A lei e A alianga de Moisés™. Assim, ‘o melhor ponto de partida para o estudo hist6rico da Biblia é a narrativa deuteronomis- ta (de Josué até 0 exilio babildnico), escrita no espirito do grande profetismo (Amés, Miguéias, Jeremias...) ¢ tendo como prélogo 0 Deuterondmio, releitura das tradigdes do Exodo”. Entrementes surgiu, nos circulos sacerdotais, outra obra monumental, recolhen- do as tradigdes em torno dos patriareas e de Moisés: a Tord (= “Instrugdo”, em hebrai- co) ou Pentateuco (=“os cinco rolos”, em grego). Os profetas emblematicos desta ori- entagdo sdo Ezequiel, o profeta dos exilados, e Ageu ¢ Zacarias, no grupo que voltou da Babilénia (depois de conquistada por Ciro, o Persa). Neste ambiente consoli- dou-se, no século V aC, o “judaismo” (concentrado em Juda), com figuras como Esdras e Neemias. Reinava a “paz persa”, mas havia também graves crises sociais™ 22, Filme de Joseph Losey (1971, port. O Mensageiro), sobre uma noiva aristocrata (Julie Christie) tendo um caso com ‘um camponés; filme notavel por sua construgao com flashbacks e flash-forwards. 23. CE. KONINGS, 4 Biblia... (0.c.) p. 46. Ultimamente, ouve-se dizer, is vezes, que a matriz.geradora da Biblia é 0 éxodo e/ouaalianga. Tal opinio deve ser matizada: o interesse pelo éxodo e pela alianga se tomiou tema literario por volta do exilio e como espelho daquilo que o povo estava vivendo nesse momento, 24, A referéncia historica desse movimento é reforma religiosa de Josias (640-609 aC). —Cf. Estudos Biblicos n. 88: Obra Historica Deutoronomista. Os artigos deste faseiculo sero em breve publicados em forma de livro pela Ed. Vozes, com o titulo provavel: Histéria Deuteronomista: fidelidade de Deus e infidelidade do Povo. 28, Veja, no presente fasciculo, o artigo de Cassio Murilo Dias da SILVA, “Por que énecessério um método para ler a iblia?” 26, Indicios disso se encontram em J6, Pr e, sobretudo, em Ne 5, Pense também na exclusio dos ndo-judeus. 17 Foi o tempo da expansao das comunidades judaicas fora da Palestina (a diéspora), em contato com as culturas babil6nica, persa, grega e egipcia, porém sempre conservando sua identidade. No fim do século IV aC, com as conquistas de Alexandre, © Grego (por volta de 330), advém o helenismo, o predominio da cultura grega (Hellen = “grego”). A partir de 175 aC, os seléucidas, sucessores sirios de Alexandre, invadem Juda. Em 167, 0 rei Antioco Epifanes profana o templo de Jerusalém. Explode a revolta dos macabeus, que resultard na dinastia dos hasmoneus. E quando surgem os grupos religiosos nacio- nalistas, os hassideus, os fariseus (Ieigos), os saduceus (a aristocracia sacerdotal do templo de Jerusalém) ¢ os seus adversatios, os essénios (Qumra?). Em 63 aC entram 0s romanos (Pompeu) para “pacificar” as brigas dos tiltimos hasmoneus, ¢ ficam, No- meiam Antipater como fantoche politico e, depois dele, o “rei” Herodes Magno, dés- pota 4 maneira helenista. Os filhos de Herodes reinam, a partir de IV aC, como gover- nantes regionais, ao lado de procuradores romanos como Péncio Pilatos. Em todo esse tempo reinam grande desigualdade e progressivo empobrecimento da populagao rural, com crescente concentragao das terras. O mbito s6cio-econémi- co-cultural de Jesus era o da populagao rural empobrecida, com pontos de apoio nas cidades bem judaicas de Cafamaum, Corazin, Betsaida e Magdala. As influéncias religiosas que Jesus recebeu parecem vir do farisaismo galileu porum lado, e do profetismo escatolégico de Jodo Batista, por outro. Quanto aos auto- res do Novo Testamento, todos situados no judaismo de lingua grega (lingua interna- cional daquele tempo), percebemos contatos com a tradigdo farisaica (Tiago, Mateus), com 0 judaismo cosmopolita (Marcos), com a cultura helenista formal (Paulo, Lucas) e até com os grupos gnosticizantes (Jodo, Carta de Judas). Desta abordagem faz parte estudar as estruturas sociolégicas do povo ¢ o “lugar sociolégico” dos autores e redatores: escrevem a partir de quem e para quem? Tiago parece escrever para comerciantes da didspora, porém a partir da profética op¢do pelos pobres, misturando o estilo sapiencial (Tg 3) com o profético-apocaliptico (Tg 4). O Apocalipse revela comunidades de resisténcia contra a ideologia e © comércio do Império Romano (sobretudo Ap 12-18), enquanto no evangelho e nas cartas de Joao a dimensio socioeconémica parece ficar no segundo plano, focalizando-se os conflitos religiosos, tanto do lado judaico como do lado gnéstico. 8. Tradigdes e fontes Observando assim o texto, pode-se descobrir que ele é 0 resultado do material re- cebido de outros e da criatividade propria de quem o redigiu. Temos, portanto, uma d lética de tradigéo (aquilo que foi transmitido) e redac@o (a assimilagao criativa pelo re- dator ou autor). Para compreender melhor a mensagem do autor, cumpre saber qual foi o material que usou (fontes escritas, tradigdes orais, citagdes literarias) para, com isso, cri- ar seu sentido proprio (§ 9). Procurem-se, portanto, os indicios de tradigdes e fontes sub- jacentes ao texto, com as quais 0 texto pode ter tido contato direto (“dependéncia literd- ria”) ou indireto (influéncia literdria ou cultural em sentido difuso). 18 (a) Tradigdes. “O que nossos pais contaram”, assim soa o lema do Salmo 78,3. Por trds do texto biblico—o Antigo Testamento e sua releitura crist@ que é 0 Novo —es- tio as tradigdes de Israel, transmitidas de pai para filho, seja em tomo do fogo de cho nas aldeias, seja na sinagoga (a reuniao da comunidade, que podia acontecer até ao ar livre), seja nas festas e outras atividades liturgicas. E nessas tradigdes narrativas, pro- féticas e sapienciais, quer orais, quer escritas, que beberam os redatores da Biblia (b) Fontes escritas. O uso mais maci¢o de fontes escritas, no Antigo Testamento, encontra-se no Pentateuco, na obra histérica deuteronomista e nos livros das Créni- cas’”. Quanto ao Novo Testamento, os evangelhos de Mt e Le se alimentaram do Evan- gelho de Mc ¢ de um outro documento comum, Q (Quelle, ou Fonte dos Ditos de Je- sus), além das tradig6es particulares de cada um. Portanto, quando se examina um tex- to de Mt ou de Le, observe-se, com a ajuda de uma “sinopse”, a dependéncia de Mt ou Le em relagdo a Mc e Q”. Outros casos siio os da Carta aos Efésios e da Segunda Carta de Pedro™. Um ponto de partida para este trabalho pode ser o levantamento dos “paralelos biblicos” (textos semethantes), indicados nas notas das biblias e dos comentiri ios”. As citagdes do Antigo Testamento no Novo so muito importantes, ainda que o Novo pos- sa hes mudar o sentido e até a letra (§ 17). Via de regra, o Novo Testamento cita o Anti- go segundo a tradugo grega (Septuaginta ou LXX), que incluios livros deuterocand- nicos, coisa que escapou 4 atengdio de muitos comentadores classicos. Mas olhem-se também as pardfrases aramaicas e os comentarios das comunidades judaicas (targum, talmude e midraxe)", os escritos extracandnicos (“apécrifos e pseudepigrafos”)” extrabiblicos (p.cx. os historiadores profanos ou pensadores contempordneos do pe- riodo biblico)”. Esses escritos, embora geralmente compostos depois dos textos bibli- cos, podem conter tracos das tradigdes que estes assimilaram. Oestudo de fontes e tradigdes nao é a mesma coisa que o estudo sinerénico da in- tertextualidade (§ 16), o qual examina a capacidade significativa do texto pela compa- ragdo com outros textos, pouco importa que pertengam ao mundo do autor ou lhe se- jam alheios 27. Tamipém nos Salmos enos Provérbios reconhece-s¢ uso de colegSes, possivelmenteescrtas, como os “salmos de {Asaf ou os “proverbios de Lemuel”. Exemplo de profeciaescrta o rolo de Jeremias (Ir 33) 28. CL, KONINGS, Sinopse... (0. p-i-xvi (apresentagio sinttica da “questio sindptica”) 29, 2Pd se serve amplamente de Jd, EF € uma ampliagdo de Cl 30. Os paralelosreferidos nas edigSes da tradugo de Almeida, de origem protestante, no mencionam os paralclos dos deuterocandnicos, 0 que & uma pena, pois muitos escritos Go Novo Testamento mostra influéncins dests. 31. Ver, sobretudo, a conhocida colegio de Hermann L. STRACK c Paul BILLERBECK, Kommentar zum Newen Tes- fament aus Talmud und Midrasch. Consideragies mctédicas: MERINO, Luiz Dicz, Lo estudis targumicos en a actualidad, Estudios Biblicos 62, p. 347-390, 2004 (to. RIBERA-FLORIT, Jem Estudios Biblicos 87, p. 441-437, 1999), 32. 0 termo “apécrifos” éambiguo, pois, no uso protestant, inclu também os livros que 0 calélios chamam de“deu- terocandnicos”.E preferivel falar em “extracandnicos” 33. Principalmente Flavio Josefo, historiador judeu contemporineo dos evangelhos, 19 9. O trabalho autoral ou redatorial Situadas as tradigdes as fontes, podemos dirigir nossa atengdio ao trabalho au- toral dos que produziram ou, como se prefere dizer, redigiram o texto (dai “historia da redagiio”, Redaktionsgeschichte). Pois os textos biblicos ndo so meras compilagdes de tradigdes e fontes, mas verdadeiras redagdes intencionais dos autores, com concep- Go tracos literarios préprios. No Antigo Testamento, por exemplo, admiramos a redagdo da obra deuterono- mista. A partir do seu “prélogo”, que é o livro do Deuteronémio, o redator™ repete in- cansavelmente, até o fim da obra histérica (2Rs 25), seu critério teolégico: se Israel obedece a lei e mantém a Alianga, encontra a vida; se ndo, a morte (Dt 30,15-18)". O trabalho autoral/redatorial foi atentamente estudado no caso dos evangelhos sindpticos. Marcos, na crise dos anos 65-73 (na Palestina e em Roma), transformou a memoria da pregacdo apostélica (a tradigao pré-marcana) em antincio atualizado para seus contemporaneos. Uniu o passado (0 tempo de Jesus) ao presente (0 tempo da pre- gaciio). A parusia de Cristo estava tardando quase meio século. Surgiam “falsos profe- tas”, pretendendo ser 0 Messias (Mc 13,6) ou apontando-o (13,21). Fazendo a releitu- ra da tradigao acerca da chegada de Jesus em Jerusalém, Mc 13 ensina que nem essa chegada anunciada no ano 30, nem os acontecimentos aterradores dos anos 70, so “o Fim”. Mas é preciso ser vigilante, sempre“. O Evangelho de Mateus é como uma “nova edigdo revista, atualizada e aumenta- da” de Me, especialmente pela integragdo da colegdo dos Ditos de Jesus (“Q”). Si- tua-se na proximidade do novo judaismo (0 “judaismo formativo”, de inspiragdo fari- saica), que surgiu depois da destruigao do templo em 70. Mtse dirige a uma comunida- de que toma distincia desse novo judaismo, mas nem por isso despreza a heranga de Israel! Pelo contrario, ensina a sua comunidade judeu-crista que ela ¢ “o verdadeiro Israel”. Qual novo Moisés, Jesus “aperfeigoa” a Lei (5,17-47), em oposigao expressa Aquilo que fazem os fariseus e os escribas (5,20). Jesus é“o nico Mestre”. Mt insiste na boa formagio dos discipulos. E o evangelho da “sinagoga crist2 Na mesma época, também Lucas julgou necessario escrever um evangelho, to- mando maior liberdade do que Mt com relagdo ao “modelo” que ¢ Me. Lucas escreve para as Igrejas do mundo grego, que ele mesmo, ao lado de seu mestre Paulo, ajudoua evangelizar. Recorre a indicagdes da historia mundial, didlogos, cenas de simpésio, de viagem, como fazem os literatos helenisticos. Lucas no se limita a evocar a atividade de Jesus, mas estende seu olhar sobre a Igreja (Atos dos Apéstolos). Ele ensina a viver 34, Chamamos assim aquele que concebeu a obra na forma em que ela foi entregue a comunidade, pouco importa se se ‘tata de um autor individual ou de um grupo de esetibas 35. CE. acima, nota 24 36. Cf, RUIZDE GOPEGUI, Juan A. A vigilincia escatolégica em constante conflito com as especulagdes apocalipti- cas, Ensaio de leitura teoldgica de Me 13. Perspectiva Teoldgica v. 20, n. 52, p. 339-358, sot-dez. 1988, 37. Cf. OVERMAN, J. Andrew. [greja e comunidade em crise: o Evangelho segundo Mateus. Sao Paulo: Paulinas, 1999; ld. O Evangetho de Mateus ¢ o judaismo formativo: 0 mundo social da comunidade de Mateus, Sao Paulo: Loy- ola, 1997. 20 no “longo prazo”, Em vez da oposigao bipolar entre “este mundo” e 0 reino anunciado por Cristo como tempo do Fim, periodiza o tempo como uma “hist6ria da salvagaio”: 0 tempo da promessa (o Antigo Testamento), o tempo do cumprimento (a atuagao de Je- sus), 0 tempo da vida dos cristdos no mundo, reunidos na Igreja ¢ animados pelo Espi- rito Santo”. 10. Os géneros literdrios Cada texto e cada parte do texto devem ser lidos conforme seu tipo de literatura, chamado também género literdrio. . como na musica: nao se escuta a Paixao segundo Mateus, de Bach, como se escuta uma misica dos Beatles ou de Tom Jobim, e mesmo entre as misicas de Tom Jobim cabe distinguir varios tipos, que se escutam com um ouvido diferente. Essa abordagem nao considera necessariamente a génese histérica do texto, Por isso, voltaremos a falar do tipo de texto na andlise lingiiistica (§ 12). Com facilidade distingue-se entre os grandes géneros: prosa, poesia, drama (J6), narrativa, didlogo, discurso... Mas nem sempre os leitores fazem essa distingdo: to- mam por deserigdo da realidade o que & uma pardbola dentro do discurso (p.ex., Mt 25,35-46), ou por fato histérico o que é uma narrativa didatica (a hist6ria da criagdo) ou simbélica (as bodas de Cand). Mais dificil ainda torna-se a distingdo pormenoriza- da: apotegmas (palavras enquadradas numa mini-histéria, que nao é necessariamente “nistérica”), pardbolas, enigmas, paradoxos (ditos contraditérios para fazer a gente pensar)...” A fronteira entre o género literario e as figuras de linguagem é fluida (assim 0 uso da hipérbole ou exagero intencional etc.). Ora, certos géneros esto em relagdo estreita com a historia das comunidades bi- blicas e podem ser percebidos melhor a partir dela. Tal abordagem dos géneros litera- rigs, sobretudo do Novo Testamento, ganhou novo impulso no inicio do século XX, quando se percebeu que o género textual, muitas vezes, se relacionava como interesse oua situago da pregagdo. Nasceu assim a Formgeschichte ou estudo das “formas lite- rarias” que a comunidade criou para conservar a meméria de Jesus, refletindo o inte- resse ¢ a situago vivencial (Sitz im Leben) da comunidade”. Essas formas primitivas de pregagio, subjacentes aos atuais escritos, mostram a vida ¢ a criatividade das pri- meiras comunidades cristds no afi de “cristalizar” aquilo que as pessoas precisavam saber para se converter a Jesus de Nazaré e viver em sua comunidade. Podem ser com- paradas a “folha de estilos” do computador: formatam espontaneamente o texto em fungdo da intengdo concreta da comunidade. Assim, as palavras de Jesus foram “refor- 38. Cf, CONZELMANN, Hans. EI centro del tiempo: estudio de la teologia de Lucas. Madrid: Fax, 1974, 39. RODRIGUES, Maria Paula (org.). Palavra de Deus, palavra da gente: as formas lterérias na Biblia. Sao Paulo: Pau- lus, 2004, p. 89, traz.um pritico panorama dos principais génetos, suas caracteristicase intend. Sobre a questao teo- ogica, veia KONINGS, J, Génerosliteririose verdade biblica, Vida Pastoral, So Paulo, v.4,n, 232, p. 20-25, 2008, 40. KONINGS, 4 Biblia... (0.c.),p. 140-141, menciona como principais formas literérias no Novo Testamento: 0 que- rigma ou primeiro anlincio; a profissio de £6; a catequese dos candidatos e a instrugdo dos convertidos (palavras e gestos de Jesus: apotegmas, milagres...); formas litirgicas (doxologias, a “hist6ria da Paixo” de Jesus); a exortagdo A firmeza (parénese); as discussbes ¢ debates de Jesus ou dos apéstolos, entre outras. 21 matadas” pela comunidade, para deixar claro que quem fala (Jesus) é agora Senhor glorioso (forma pés-pascal). D. O olhar literario-lingiiistico Com as anilises histéricas (“diacrénicas”, §§ 7-10) no segundo plano, podemos abrir na “tela ativa” a andlise literdria de tipo “sinernico™', focalizando o texto tal qual se apresenta diante de nds, hoje, como resultado final de seu desenvolvimento na comunidade™, Nas Faculdades de Lingitistica e Literatura (Ciéncias da Linguagem), este tipo de estudo é conhecido como anilise textual —a nao ser confundida com a su- pracitada eritica textual-documental (§ 3). Perguntamos agora 0 que o texto significa, ndo sé segundo a intengdo explicita de quem o concebeu— pois esse nao est mais aqui, “o autor morreu” —, mas também segundo a propria potencialidade do texto, que agora talvez diga mais do que 0 autor conscientemente quis dizer. 11. A arquitetura do texto E notavel o cuidado com que a maioria dos textos biblicos sdo compostos, estru- turados, com inicio, meio e fim, com pés e cabeca, muito diferente das redagdes esco- lares e jornalisticas de hoje. Esse cuidado arquitetonico se explica, por um lado, pelas formas narrativas ¢ poéticas bem lapidadas da tradigao do povo (pense nos cordéis nordestinos ou nas trovas gauchescas), por outro, pela arte de escrever que era rara, mas muito valorizada naqueles tempos. Para visualizar a arquitetura do texto, retome-se a tradugao instrumental (§ 4) ¢ acrescente-se, com lapis e borracha (pois é um trabalho sujeito a revisao), as articula- ‘des do texto: inicio, meio e fim, eventuais correspondéncias entre inicio e fim, formas de simetria ou incluso, paralelismos literdrios..." Tal levantamento da estrutura visi- vel ou arquitetura do texto é importante, ndo apenas por razées estéticas, mas também para a interpretagdo, pois o tipico das repetigdes e paralelismos é que uma expressio ajuda a compreender a outra. As vezes, 0 texto é estruturado por palavras-gancho e encadeamentos, ligando dois temas por uma palavra semelhante, como nds fazemos nas anedotas. Outro aspec- to da arquitetura é o numerismo, ou seja, o fato de certas palavras-chave serem repeti- das em niimero simbélico (trés vezes, sete vezes...), dando realce a determinado tema. 41. Ulimamente creseu a percepeto da estrutura intrinseca da “linguagem”,independente da “‘palava” que ela fala. ‘Alinguagem ndo épenas orevestimento de conceitos que o autor quetcomunicar. Ela fala por si co texto, uma vez eserito,deixao autor pars tds. O autor moreu,..ndoestd mais ai para explicr o que ele quis dizer, enquanto a in- fguagem vai dedobrando sua prdpria competéncia no texto que ficou a. E nesta perspeciva que a andlise iterdria deserita a seguir considera o texto, 42. Cf, SCHNELLE, Introdugio... (0.c.), p. 48. Por esta razio, a abordagem sincrénica nao pode ser separada da dia- 43. Cf. o excelente resumo de SILVA, Céissio Murilo Dias da, Leia a Biblia como literatura, Sao Paulo: yyola, 2007, 22 Tudo isso, evidentemente, sé aparece numa tradugdo bastante literal, como é a tradugdo instrumental (§ 4), Indicando-se nela tais ligagdes, transforma-se num mapa para a interpretagao. 12. Anilise lingiiistico-sintatica, tipo de texto e estilo Aarquitetura do texto reflete uma série de intengdes, op¢des, mensagens, valo- res que o redator quer imprimir no seu processo comunicativo. Croatto a chama de es- trutura manifesta e utiliza recursos da andlise estruturalista para organizé-la, além da anilise lingiiistico-sintatica™ Aanilise lingiiistica e sintatica® faz o inventario dos elementos com os quais 0 texto é construido: os fipos de palavras (substantivo, verbo, adjetivo, pronome, prepo- sigdo, artigo, conjungdo), as formas gramaticais das palavras (tempo, género, modo, mimero, declinago), a concatenagao interna segundo as regras da gramdtica, Descre- ve aarticulacao dos “significantes” (elementos portadores de sentido) dentro do texto: como as palavras, locugdes ¢ frases se inter-relacionam e de que maneira se estabelece a coeréncia (por repeticao, variacao, amplificagdo, substituigdo, supressdo, termos- chave, termos-gancho...). Comparando-se esse “inventério” (vocabulério, formas...) do texto em pauta com o da obra toda ou com um grupo de eseritos comparaveis (por exemplo, a histéria deuteronomista, os evangelhos sinépticos), descobre-se a peculiaridade lingilistica do texto, para depreender-Ihe a fungdo comunicativa ¢ as estratégias de persuasio, ar- gumentagio ¢ indicagao, Em todo esse trabalho é sempre fundamental a observagdo das relagdes gramati- cais basicas, a sintaxe dos elementos da proposigao (sujeito, predicado, objeto...) ¢ a sintaxe das proposigdes (coordenagao, subordinago). O que supde o dominio do idio- ma original e a fidelidade sintatica da tradugdo instrumental, se a tal se recorre. Na andlise textual, o que historicamente foi relevado como “género literdrio” ou “forma literdria” (§ 10), aparece como tipo de texto (prescindindo-se de como histori- camente chegou a nascer). Na pratica, os resultados do estudo histérico da forma ou do género poderdo intervir na defini¢io do tipo de texto. Também os conceitos teolégicos determinantes, termos raros, vocabuléio peculiar ou preferencial ajudam a perfilar 0 texto e suas construgdes. Um actimulo de verbos, por exemplo, é indicio de um texto narrativo, um aciimulo de substantivos abstratos aponta para um texto argumentativo. Outro aspecto do perfil textual é 0 estilo, como jé apareceu na aniliise redacional (§ 10). Paulo escreve num estilo apaixonado, Jodo eo autor do Deuteronémio, num es- tilo hieratico, o de Nimeros se distingue pelos exemplos casuisticos, Marcos parece usar 0 idioma grego como um comerciante alégeno... Se em Jodo ¢ Lucas as frases, 44.Cf, KRUGER, René; CROATTO, Severin; MIGUEZ, Néstor. Método exegétcos, Bucnos Aires: EDUCAB ISEDET, 1996, 45. Inspiramo-nos agui em SCHNELLE, o¢., p. 50. normalmente “fecham” bem, em Marcos ¢ Paulo, e sobretudo no Apocalipse, notamos incongruéncias gramaticais (falta do verbo, dos complementos, conjungao de vocati- vo com nominativo...) que realgam alguma palavra, produzem um efeito de surpresa ‘ou coisa semelhante (anacolutos)*. Observem-se as figuras de linguagem: figuras retoricas e narrativas, exageros, paradoxos e muitas outras coisas a ndo serem tomadas ao pé da letra, nem explicadas da maneira edulcorada. A palavra de Jesus sobre o camelo passar pelo olho da agulha nao precisa ser facilitada, dizendo que o olho da agulha € a portinha noturna da cidade eo camelo um erro de tradugao. Jesus (ou quem anotou a palavra) gosta mesmo de exageros orientais, pois, se no exagera, ninguém escuta... 13. A andlise semAntica Aseméntica’ ¢ 0 estudo da significagao, perguntando a que realidade se refere a estrutura de significantes analisada pela sintaxe. Tal estudo atenta para o sentido de cada expressao em si, no contexto da frase e do assunto. A analise semantica detecta os niveis de significagao de um texto, descrevendo os nexos semanticos entre os elemen- tos parciais e tentando identificar 0 arcabouco de sentido do texto com base em temas, contraposigées e linhas de sentido. Primeiro, partindo do significado de uma palavra e de sua articulagao concreta no contexto atual, compilam-se as palavras com significa- do afim e os portadores de significado de um texto. Depois, procura-se estabelecer 0 potencial de sentido de um texto, definindo e relacionando entre si as linhas de sentido (grupos de palavras com significado correlato, temas, vetores, oposigdes). A importineia dessa circunscrigdo do significado aparece, por exemplo, no su- posto “antijudaismo” do quarto evangelho. Jodo apresenta Jesus em discussio vee- mente com “os judeus”, mas Jesus mesmo é “judeu” (Jo 4,9) e declara que “a salvagao vem dos judeus” (4,22), Aandlise do campo semantico “judeu” e correlatos nao indica desvalorizagao da etnia judaica e muito menos do povo da Alianga, que Joo chama de Israel (1,47). Quando “os judeus” sfio mencionados em sentido negativo, trata-se dos compatriotas de Jesus (¢ dos cristios joaninos) que pertencem ao grupo oposto do au- tor dentro da mesma etnia®. Tal observagao implica levar em consideragao os elemen- tos depreendidos da abordagem histérica (§§ 7-9). Aanilise semantica permite ver melhor as significag6es latentes no texto, o dito do ndo-dito: o dito e seu contrario que é negado (se 0 texto for coerente), as possiveis ilagdes...” Interessante é, neste sentido, o texto juridico-legislativo. Ordenando ou 46. Por exemplo, em Me2,10, Jesus numa mesma frase comesa falando aos escribas ena metade continua para para- Titi. 47, Resumindo SCHNELLE, 0. p. SL 48, Outro caso & “a carne" nos eseritos paulinos, muitas vezes interpretada como se significasse exclusiva ‘ualidade, enquanto significa tanto a humanidade, como o orgulho eauto-sufieiéneia humana, mesmo do ais” (ICor 3,1-3). Assim se pergunta se os “pobres pelo espiito” (ML5,3, em tradusio literal) so os “pobres espiri- tuais” de nossa classe A, os “curvados (da terra)” dos salmos e dos profetas (Ls 29,19 et.) ows “pobres pelo espiri- to” que Pr 16,19 opée aos orgulhosos? 49. Um exemplo clissico neste sentido € o “quadrilitero semantico” (ver, p.ex., EGGER, 0.¢., p. 95-97). 24 proibindo determinadas ages, ele nos ensina sobre os usos e abusos que estavam rei- nando naquela sociedade, transformando-se assim numa fonte de informagées s6- cio-histérico-culturais. Para relevar o sentido dos termos conforme o uso em determinado contexto, ou questdes semelhantes, é indispensvel o uso de bons comentarios e diciondrios, bem como dos programas eletrénicos criados para este fim (“Bible Works” ¢ outros). Cabe aqui uma observagao sobre 0 uso de tradugées, na andlise lingiiistica. De fato, ha quem diga—certamente com a boa intengao de incentivar o leitor comum—que nao é preciso usar o texto original para o trabalho semiético. Bastaria uma tradugdo confidvel (se é que existe). Isso parece muito ideal. Supde que na semidtica estariamos destilando significagdes puras, tal signo gerando tal significado, prescindindo do idio- ma. Na realidade, porém, os significantes lingiiisticos disponiveis em determinado idioma nao cobrem exatamente o mesmo significado que seus equivalentes em outro idioma. Por exemplo, o hebraico dabar (“palavra”) nao cobre exatamente o mesmo potencial de sentido que seu equivalente grego logos. Ainda que a fungdo semantica dos termos nao se defina pelo Iéxico, mas também pela estrutura sintatico-discursiva — de modo que, em linhas gerais, a andlise semiética se possa fazer sobre a tradugio —, uma semintica “de alta definigao” exigira, no fim, sempre a verificagao no idioma ori- ginal. Por isso, quem for capaz, faga isso desde 0 comego... 14. Andlise da narrativa/analise do discurso Ao olharmos para 0 texto, depois de té-lo dividido, avaliado seus signos e suas relagées, é preciso, novamente, transforma-lo em unidade. Essa unidade pode ser de dois tipos: ou narrativa ou discurso. Caso se tenha percebido que é uma histéria, est6- ria, parabola, ou seja, se conta algo que aconteceu de tal ¢ tal modo, se 0 foco esté na ago, com determinadas pessoas ou situagdo, entao é uma narrativa. Se esté ensinan- do, pregando, exortando, definindo, aconselhando, ilustrando, argumentando ou de- monstrando, se 0 foco est4 em um didlogo de convencimento, entéo é um discurso. Aanidlise narrativa’ investiga o percurso das ages ¢ dos atores: como, ¢ por que meios, uma ago é levada adiante. Para a andlise narrativa importa que algo acontega. Esse acontecimento é carregado de significados. A trama resolve 0 conflito em um tempo ¢ lugar especifico. HA um narrador que organiza esses elementos para produzir a significado. Consideram-se os atos de linguagem (fala direta/indireta, perguntas, exigéncias, ameagas...), a seqiiéncia do(s) acontecimento(s) ¢ a construgao de contra- posigdes. Na leitura sociopolitica, por exemplo, procura-se perceber que forgas se en- frentam na dimensio narrativa. A estrutura da acao é determinada, preponderante- mente, por pessoas enquanto atuantes (actantes); por isso cumpre analisar que atores entram em cena e como eles se relacionam entre si. Assumem importéncia especial os ‘50, Escolhemos este exemple porque o desconhecimento deste fato levou a infeliz leitura filosética, “i grega”, do Pré- logo joanino, $1. Veja SCHNELLE, 0, p. SL 25 pontos de conexo dos quais resultam alternativas de ago: a ago poderia ter-se de- senvolvido numa outra linha, a “escolha” ocorrida é “significativa”. E significativas também sio as rupturas na seqiiéncia da agdo. Aandlise do discurso” se preocupa com a mensagem comunicada e as intengdes por tras dessa comunicago. O discurso ensina, adverte, corrige, elogia, orienta, orde- na, define, organiza; ¢ implica num didlogo. Nao ha uma estria, ndo hd trama ou enre- do, mas ha um etos que configura a credibilidade do enunciador, Nao hd uma ago, mas ha uma cena. Nao ha personagens fazendo algo, mas hé alguém que deseja que outro alguém faga algo. 15. A andlise pragmitica O proximo passo é ainda mais “unificador”, na medida em que 0 texto se transfor- ma em uma unidade de sentido e que provoca efeitos no seu leitor/ouvinte. A andlise pragmatica® pergunta pelo que o texto pode “fazer” nos leitores/ouvintes, ¢ por quai meios. Com essa finalidade, a andlise pragmatico-textual faz o inventario dos elementos ‘com que o texto tenciona produzir, da parte dos leitores, um envolvimento pessoal. Ao Ambito do pragmatismo textual pertence também a retérica, arte da persuasio. Um exemplo € 0 testemunho de amor fraterno que, em meio de muitas falhas, continua sendo a marea da comunidade que se guia pela palavra de Jesus. “Nisto todos reconhecerdo que sois discipulos meus: se tiverdes amor uns para com 0s outros” (Jo 13,35). Ou seja, que Jesus quis indicar pelo termo amor apreende-se na realizagaio efetiva nos seus ouvintes hoje. Podemos incluir nesta abordagem a resposta do leitor (implicito), pois a signifi- cagdio nao se realiza se ninguém a concede. O significado do texto nao se constitui ape- nas pela obra do autor/emissor, mas também pela contribuigdo do leitor/ouvinte (§ 18)". Ambos, o emissor € 0 receptor, sio necessdrios para se ter um processo de comunica- ‘do. Espera-se que os leitores/ouvintes cooperem com a inferéncia e implicago indu- zida pelo texto. 16. Intertextuali lade e confronto cultural Se 0 olhar histérico ja constatou a contribuigdo de outros textos (tradigdes fon- tes) para a génese do texto (§ 8), cabe agora confrontar a competéncia significativa do texto em pauta com o mundo em torno de si, com a literatura em geral, pouco importa se anterior ou posterior, em um processo metalingiiistico: textos que se remetem a tex- 52. Veja SOUZA, Licia Soares de. Introducdo ds teorias literirias. Petropolis: Vozes, 2006, 53. Veja SCHNELLE, 0. p. 52. ‘54, “O texto é, desta forma, um espelho no qual os Ieitores podem “ver” mundo no qual vive. O significado do texto 6 produzido pela experiencia da leitura do evangelho e se remete a este lado do texto, entre o leitor © o text. CULPEPPER, Alan R. Anatomy of the Fourth Gospel. Philadelphia: Fortress, 1983, p. 4-5. Para compreender os termos “mundo do texto”, “intertextualidade”, “refiguragao do leitor”, “trabalho da interpretagao”, ver RICOEUR, Paul, A Hermenéutica Biblica, Sao Paulo: Loyola, 2006. 26 tos, os quais se remetem a outros textos e por ai vai. fo principio de Lavoisier aplicado A linguagem: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma (ou se copia, ressignifica, re-interpreta...). O significado de algum outro texto pode ajudar a compreender me- Ihor o do texto em questo, Parafrascando Paul Valéry, se um ledo ¢ feito dos carneiros que devorou, um texto é feito dos mundos e da vida que devorou... Aandlise de um ro- mance do século XX, por exemplo, pode ajudar a descobrir mais riqueza na historia de José ¢ seus irmaos (Gn 37-40)". © que dizemos aqui vale também para outras expressdes culturais: 0 cinema, a pintura... E como esse conffonto cultural é global, ndo deve fechar-se numa tradi¢ao cultural peculiar, por exemplo, a judaico-crista — ¢ muito menos na platénico-crista. Trata-se de um confronto intercultural, ‘Um aspecto peculiar da intertextualidade ¢ 0 mundo que trazemos ao texto, me- diante nossas expresses culturais, influenciadas pelo espago social ¢ cultural. Uma coisa ¢ ler a Biblia no contexto judaico sinagogal, outra coisa ¢ 1é-la—na tradugdo da ‘Vulgata! —no contexto da cristandade medieval, sob influéncia dos tratados escolasti- cos e das vidas dos santos. Outra coisa ainda sera a leitura da Biblia na situagdo so- cio-politica da Africa hoje. E. Da exegese & hermenéutica Unindo agora o olhar historico ¢ o olhar literario-lingiiistico, podemos ver como, do sentido primeiro percebido no momento histérico em que o texto nasceu, desdo- bra-se um mundo de significagao que permite ao texto falar a nds hoje. 17. A exegese do sentido “primeiro” do texto Com as ferramentas acima mencionadas, procuremos primeiro perceber a men- sagem que os “emissores” (comunidade/autor/redator) do texto transmitiram aos des- tinatarios originais (comunidade/leitor/ouvinte): 0 sentido primeiro do texto. Pode- mos chama-lo de sentido literal, mas esse sentido literal pode conter elementos nao-li- terais, como as parabolas, metaforas, citagdes do Antigo Testamento num “sentido pleno” etc. Assim, o sentido figurativo visado por uma parabola é 0 sentido literal que © autor transmite. Cabe aqui uma palavra sobre 0 sentido pleno do Antigo Testamento que, no Novo, se transforma em sentido primeiro, literal”, Em Gn 19,5-6, 0 povo eleito por Deus para tornar presente seu Nome entre as nagdes é 0 povo de Israel. 1Pd 2,9 confere ao texto de Gn 19 um sentido pleno: ele se completa no novo povo de Deus que é a Igreja, prescindindo da etnicidade israclita. Mas esse sentido, que é pleno em relagdo a Gn 19, é 0 sentido literal que 1Pd 2,9 quer expressar! O evangelho de Mateus é espe- ‘58. Cf. o romance de Thomas MANN, José e seus irmios, ‘56. E sempre itil retomar, a esterespeito, oestudo classico: LUBAC, Henri de. Escritura na tradigo. Sio Paulo: Pau- linas, 1970, Ble explica, sobretud, o sentido pleno como tipo e antitipo. Na tradigao judaica conhecemos o pésher, ou seja, o esquema promessa-cumprimento ou atualizacio escatolégica, 27 cialista em atribuir sentidos plenos a textos do Antigo Testamento, especialmente pela formula: “para que (ou de modo que) se cumprisse (= plenificasse) 0 que foi dito (por Deus!) por meio do profeta...” Assim, Mateus (4,14) vé em Jesus percorrendo a Gali- Iéia 0 “sentido pleno” da luz que ilumina as trevas, anunciada em Is 9,1. Esse sentido pleno de Isaias (para Mateus) é o sentido literal de Mateus para nés. Na explanagdo do sentido primeiro cumpre explicar bem o sentido lexical das palavras, os fatos histéricos referidos, a situagao sécio-hist6rico-cultural, os proces- sos lingiiisticos que operam na fala e na escrita humana. Esses detalhes, porém, ainda no sao a mensagem que o texto daa conhecer. E preciso fazer a sintese de tudo 0 que o texto anuncia como mensagem nova ao leitor/ouvinte (no nivel do conhecimento) edo que ele efetua em seu coragao e em sua vida (no nivel pragmatico). A isso é que chama- mos de sentido exegético. 18. A recepsio ¢ a re-transmissio do texto Hé autores que escrevem para si mesmos. Esse nao é 0 caso dos textos biblicos. Esses se caracterizam por serem recebidos e por encontrarem seu sentido primeiro nessa recepedio. Ora, essa recepedo nao é coisa de um momento sé. Os receptores con- servaram os textos para as gerag6es ulteriores. Este fato confere ao texto um novo sig- nificado: acontece uma re-significagdo, um novo processo de comunicagtio. Os que conservaram o texto enriquecem o texto com um julgamento de valor: dizem, implici- tamente, que ele tem importancia para novos leitores. Ao sentido encontrado pela co- munidade que recebeu 0 texto e depois 0 conservou ¢ transmitiu, acrescentam-se no- vos sentidos, que resultam no sentido que nos é passado hoje. Tudo isso é levado & consciéncia na “historia da recep¢do”, que muito nos ajuda para divisar o potencial de sentido que o texto leva em seu bojo. Um indicio muito especial da compreensio dos textos biblicos é a canonicidade, ou seja, 0 fato de que os textos biblicos foram incluidos numa lista (“cdnon”, regra) que rege a sua f&, ao mesmo tempo em que por esta é regida. O fato de textos que pare- cem bem profanos, como 0 CAntico dos CAnticos eo Eclesiastes (Coélet), serem cano- nizados leva-nos a compreender algo a respeito da divina bondade da criag&io que ne- les se reflete. Nessa perspectiva, o Eclesiastes aparece como uma reflexo de bom sen- so—entre estdico e epicureu-, sobrea vida e sobre como vivé-la dum jeito de que Deus tera boa lembranga. Além da canonicidade, ha inimeros outros elementos que podemos deduzir da recepgdo do texto. Veja-se a leitura patristica da Biblia, mas também a religiosidade popular, que inclusive traz.até o nosso hoje figuras da tradigo apécrifa, Ora, essa re- cepgao do texto nem sempre vai na linha que 0 emissor parece ter visado. O fato de o evangelho de Joao ter dado azo a uma leitura gnéstica nos obriga a examind-lo mais de perto, para compreender melhor o que significa, por exemplo, a presenca da gléria di- vina em Jesus-‘carne” (abominagio para os gnésticos!). A religiosidade popular vei- cula “recepgdes” que nos obrigam a aprofundar o sentido do texto para ver se nfo hou- ve desvios perigosos. Tudo isso supde a consciéncia ou atitude hermenéutica, de que falaremos adiante (§ 20). 28 O confronto entre o provavel sentido primeiro co sentido em que o texto foi rece- bido na histéria pode assim servir como aferig&o critica da compreensio da fé na co- munidade, da teologia, da catequese... Por exemplo, uma leitura atenta de Jo 6,51-58 deve mostrar que Jodo no entende o corpo (ele diz: “carne”) ¢ 0 sangue na refeigdo eu- caristica como mera realidade fisica — 0 que seria o entendimento antropofagico que ele atribui aos adversirios (Jo 6,52)—, mas como uma realidade de outra ordem, que se presentifica num rito de verdadeiro alimento e bebida: a realidade do dom da vida de Jesus. Contudo, nao é raro ouvir este texto para inculcar uma compreensio fisicista da presenga real de Cristo na Eucaristia. 19. O efeito do texto Outro elemento para compreender o que o texto foi e & capaz de significar é 0 efei- to que ele produziu ou produz. A andlise historica desses efeitos (Wirkungsgeschichte, dizem 0s alemaes) nos permite descobrir melhor o que o texto pode significar, mas tal anélise deve ser critica, pois nem sempre os desenvolvimentos na histéria correspon- dem ao que 0 significado primeiro “permite”. Um caso de sentido reconhecido a partir dos efeitos parece-me a propria consti- tuigdo da Igreja. Os textos alegados para justificar a “fundago” da Igreja ndo falam disso expressamente, mas a vida segundo 0 legado de Jesus parece ter levado quase que espontaneamente a isso, se podemos dar confianga aos Atos dos Apéstolos ¢ as cartas do Novo Testamento, Até certo ponto, também a ressurreigo de Cristo parece atestada mais pelo efeito do texto (a fé de que Jesus “vai A frente de seu rebanho”, cf. Me 14,28; 16,7) do que por uma compreensdo meramente historico-critica dos textos, no livres de problemas nesse nivel. O texto toma-se gerador de histéria. A partir de Mt 20 constréi-se toda uma ecle- siologia e pratica batismal. Por outro lado, tal “histéria” pode ser questionavel: a partir de Gn 3,16, desenvolveu-se um preconceito contra a mulher’ com conseqiiéncias pra- ticas, proibindo-lhe, entre outras coisas, o ministério na comunidade! A“histéria dos efeitos” é importante para compreender a moral (pretensamente) derivada dos textos biblicos. 20. A hermenéutica Ahermenéutica nasce da atitude e da competéncia sensivel e criativa para captar ‘0s sentidos que um texto pode comunicar, em inter-relagdo com o contexto sempre di- namico no qual ele se faz presente. E a “arte” da interpretagdo, é mais que a exegese do sentido original. A hermenéutica consegue ver potencialidades que nao se mostra- ram na primeira hora, inclusive por causa da recepgao ¢ do efeito do texto (§§ 17-18). Assim, 0 texto é um ser social e cultural, um ser vivo, que se desenvolve alimentado pelo ambiente no qual ele é “cultivado”. 57. Cf Tertliano, a mulher seria diabolo ianua (em De cult feminarum) e para Agostinho, a esposade 16 completa o trabalho de Eva, aose prestaraajucante do disbo:diaboliatudatrix Un Eundem Psalmum 29 Enarrato le Sermo de symbolo ad catechumenos 3,10 Tob 2,7-8) 58. No sentido de habilidade criativa, ndo de arbitrariedade (ef. Beseleel em Ex 31,13). 29 Ha muitos modelos para conceber essa compreensao enriquecida e atualizada Conhecido é 0 modelo da fusdo dos horizontes: o horizonte do texto original e o do lei- tor atual”. Este modelo justifica que tanto se leia o texto a partir da vida hoje quanto a vida hoje a partir do texto. Outro modelo para compreender essa dinamicidade é 0 do reiterado fechamento e nova abertura de sentido". Desde a origem até hoje, em qual- ‘quer momento da transmissao, a interpretagao do texto pode se fechar em torno de um determinado sentido, valido nessa situagao. Esse sentido — visto que o texto tem um efeito pragmatico (§ 15)—produz um agir que transforma a situagao, criando assim um novo contexto de compreensio, que produz uma nova leitura, que produz uma nova praxis... até que ressoe a proclamagiio “para nés hoje”. De fato, a hermenéutica moderna se desenvolveu como teoria da pregagdo, da atualizagao da palavra proclamada no culto (Schleiermacher). Entretanto percebeu-se que essa teoria se abre também para a interpretago pratica da palavra ¢ para sua leitura em determinadas perspectivas (politica, “libertadora”, feminista...)". A hermentutica é, assim, a arte de captar o sentido do texto antigo fecundado pela circularidade de praxis ¢ interpretago. (No inicio era o circulo hermenéutico... ¢ dai surgiram os circulos biblicos!) Tal compreensio se pode manifestar tanto em no- vas palavras para dizer as coisas d’antanho quanto numa nova praxis, emuitas vezes a nova praxis é a interpretagdo mais elogiiente da semente que foi a palavra primitiva: a compreensio expressa ndo s6 pela cabega, mas pelas maos e pelos pés. Estas consideragdes podem parecer estranhas para uma mente positivista, que quer saber “as coisas como sio, sem interpretagd0” — juntando-se assim ao lema fun- damentalista. A teoria do conhecimento ¢ até os textos do Magistério eclesidstico con- trapdem, a tal mentalidade, o “perspectivismo” de todo o nosso saber e especialmente de nossa meméria histérica, Um fato s6 se torna evento fundador de sentido porque & acolhido numa percepgao de sentido que o eleva ao grau de “evento”. A tradigao judaico-crista tem um nome para esse fenémeno do continuo reaviva- mento prdtico—e por isso afetivo e cognitivo — da palayra-evento fundadora: o Espiri- to. “O Pardclito, o Espirito Santo que o Pai enviaré em meu nome, ele vos anunciard tudo e recordard tudo o que eu vos tenho dito. (...) Quando ele vier, o Espirito da Verda- de, ele vos guiard em toda a verdade. Ele nio falard por si mesmo, mas diré tudo quanto tiver ouvido e vos anunciard o que ha de vir. Ele me glorificard, porque recebera do que & meu para vos anunciar” (Jo 14,26; 16,13-14). Nés o aplicamos ao espirito da herme- néutica, que nos ajuda a ler a Escritura “naquele espfrito em que foi escrita”*. A luz de nossas perguntas, transformando-as... ss Cf. GADAMER, Hans-Georg, Verdade e método. Petropolis: Vores, 2002. 60. Cf, CROATTO, José Severino. Hermenéutica biblica: para uma teoria da leitura como produgio de significado. ‘So Leopoldo: Sinodal, 1986. 61. Cf, PONTIFICIA COMISSAO BIBLICA. A interpretagao da Biblia na Igreja. Sio Paulo: Loyola, 1994, p. 35-39, 62. Evento no sentido de evento interpretado: cf. MARROU, Henti-lrénée. Sobre o conkecimento histérico. Rio de Ja- neiro: Zahar, 1978, 63. Pensamos nos paradigmas de Gn | (o espirito “pratico”) e de Sb 1 (0 espirito que conhece tudo). 64. CONCILIO VATICANO Il, Dei Verbum, 12. 30 F. Organizando Podemos agora organizar esse trabalho ingente que é o estudo da Biblia. Ninguém é capaz de fazer sozinho tudo o que consta desse programa, Assim, este quadro ¢ ao mes- mo tempo um convite aos especialistas para se unirem, como “intelectuais organicos”, aos grupos de estudo biblico que querem organizar seu trabalho metodicamente, I. O “cireulo”: falar com a Biblia sobre a vida do texto para a vida > VIDA fixar os _olhar pesquisador sentido primeiroampliando o interesse §1 olhos sentido § 18+19 texto > 95.206 olhar histérico §§ 7-10 — exegese $17 __hermendutica § 20 §§ (O)II-16 —____ da vida para 0 texto Il. Tarefas (para a comunidade ¢ para os especialistas) Tarefa Objetivo Ajudantes 1. Problematizar | Pela reflexdo da comunidade ou grupo de | todos estudo, bem como pela reflexdo pessoal, definir o interesse e levantar as perguntas que devem presidir 0 estudo. 2. Delimitar Demarcar os limites (recorte) do texto a ser _| biblista, leitor estudado. atento 3. Critica Com a ajuda de uma edigao critica do texto | biblis textual-documental | ou pelo menos notas ¢ comentarios, definir o teor verbal exato do texto com documento. 4, Texto instrumental | Fazer uma tradugao bem literal do trecho | biblista com indicios de paralelos... 5. Lugarna obra __| Situar o trecho escolhido no conjunto da obra | Ieitor atento (contexto imediato ¢ contexto amplo). 6. Coeréncia do texto | Localizar incoeréncias e perguntar qual pode sera causa, 7. Dados histéricos ¢ | Com a ajuda de um especialista ou com base | biblista, historiador estrutura em bibliografia adequada levantar os dados sécio-histérico- histéricos e arqueoldgicos em tomo do texto cultural © compreender 0 contexto sécio-histérico- politico, cultural ¢ religioso. 8, Géneros literarios_| Reconhecer a caracteristica, intengao € biblista, lingilista finalidade do tipo do texto que se estuda, 31 9. Tradiges ¢ fontes Rastrear as tradigdes na base do texto, apontar 0 uso de fontes (escritas) e deserever 0 modo em que o(s) autor(es) transforma(m) o que receberam para atualizar a mensagem, 10, Trabalho autoral/’ redatorial ‘Com a ajuda de um entendido em letras ou exegese analisar o trabalho do autor ao transformar o material de que dispunha Diblista, lingilista TI, Arquitetural estrutura de superficie Perceber a composigdo bem-ordenada do texto e as conseqiiéncias para a compreensio. biblis a, lingiiista 12. Andlise lingiiistico-sintatica Estudar como os elementos do texto fancionam para produzir 0 sentido. Perceber © carater geral do texto (tipo de texto/ estilo) © 0 modo em que deve ser lido e compreendido. bibl ling 13, Andlise seméntica Com a ajuda de bibliografia adequada, comentirios, diciondrios, ver a que realidade se referem as expressdes © 0 conjunto do texto, biblista, lingitista, tedlogo 14, Andlise narrativa Rastrear 0 movimento do texto para desenvolver a histéria que narra. Diblista, lingilista 15. Analise pragmatica Reconhecer os elementos do texto que influem na pratica do leitor, inclusive procedimentos retéricos, biblista, lingiiista 16. Intertextualidade | Com conhecedores da literatura e da lingilista, culturalista econfronto cultural | arte, enriquecer o entendimento do texto pela comparago com outras expresses literdrias ¢ artisticas. 17. Exegese do Explanagao do texto no sentido do “autor” e | biblista sentido primeiro dos destinatarios originais. 18. Recepgao do texto ‘Ver em que sentido o texto foi recebido, compreendido e passado adiante pela comunidade da fé. 19. Efeito do texto Rastrear, na historia da comunidade, as biblista, tedlogo, praticas geradas pelo texto, desvelando sua _| historiador capacidade significativa. 20. Hermenéutica | Coma comunidade e seus sabios, explicitar | “sabios” © que o texto nos fala hoje e retomar 0 questionamento inicial. Johan Konings Ay. Dr. Cristiano Guimaraes 2127 CEP 31720-300 — Belo Horizonte — MG (Brasil) e-mail: konings@ faculdadejesuita.edu.br ‘Susie Helena Ribeiro Rua Waldir Leite Pena, 175/201 CEP 31140-420 — Belo Horizonte - MG e-mail: [email protected] 32 APRENDA A ENXERGAR COM 0 CEGO BARTIMEU, OU... Por que é necessario um método para ler a Biblia? Cassio Murilo Dias da Silva Turistas no texto biblico O titulo deste artigo é, propositadamente, provocativo ¢ paradoxal. Como é pos- sivel aprender a enxergar com um cego? Na verdade, o relato da cura do cego Barti- ‘meu, narrada em Me 10,46-52, serviré de exemplo concreto para responder pergunta que subtitula este artigo e que é seu principal objetivo: demonstrar a necessidade de ler a Biblia com um bom método. Antes, porém, de analisar 0 episédio da cura de Bartimeu, é preciso discutir algu- mas questdes preliminares. Para tanto, come¢o com um fato que se passou comigo. Cer- ta.vez, enquanto cu estava em Roma fazendo 0 mestrado, recebi a visita de um conheci- do. Ele s6 entrou em contato comigo dois dias depois de chegar a cidade. Quando final- mente nos encontramos, perguntei a ele o que jé tinha visitado da assim chamada “Cida- de Eterna”. Sua resposta foi categérica: “JA visitei tudo 0 que é importante!” Ja de cho- fre, esta resposta assustou-me: fazia trés anos que cu morava ld ainda nao tinha visitado “tudo o que era importante”. Todavia, preferi pensar que, em somente dois dias, ele ti- vesse percorrido as dezenas (se nao centenas) de monumentos, museus, edificios, obras de arte, etc. que eu, por conta dos estudos, ainda nao tinha visto. Com muito interesse, perguntei: “Vocé ja esteve nos Museus Vaticanos? No Coliseu? No Circo Maximo? No Castelo de Sant’ Angelo? Na Via Apia Antiga? Em alguma das catacumbas?” Qual nio foi minha surpresa: meu visitante nao tinha estado em nenhum desses lugares! Nao pude evitar de Ihe perguntar: “Bom... entdio 0 que vocé considera importante?” Com meu visitante aconteceu o que normalmente acontece com quem viaja a uma cidade sem ter guia, sem falar a lingua do lugar, sem conhecer sua histéria nem os acontecimentos que ali se deram: cle nao soube avaliar o que era (¢ continua sendo) importante conhecer. Pois um turista desse tipo pode até compreender que aquela pra- atem certo valor histérico, deduzir que aquela estitua retrata algum personagem his- t6rico; mas, sem divida, perderé varias vezes a diregdo ¢ passard por muitos lugares sem dar a cles a devida atengiio, Em resumo: olhard muito, mas enxergaré pouco. Caso leiamos a Biblia de forma empirica, isto é, sem um método, algo semelhan- te acontece: muito da riqueza do texto biblico passa despercebida aos nossos olhos ¢ corremos o risco de nos contentar com o que nao ¢ importante, Ou, o que é pior, corre mos 0 risco de pensar que o texto biblico diz algo que ele nao diz! Meu visitante nao agiu como um turista que quer aproveitar bem sua viagem ¢ que, por isso, toma alguns cuidados minimos, tais como procurar conhecer algo sobre a historia do lugar, informar-se sobre o que merece ser visto e conhecido, pegar um 33

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