V. 9, N.
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HISTÓRIA PÚBLICA: DESAFIOS CONTEMPORÂNEOS
ISSN: 2318-5503
AMÉRICA LATINA: POVO SEM PERNAS, MAS QUE CAMINHA
RESUMO: Este trabalho de resenha tem como intuito
construir uma compreensão sintética e analítica sobre a obra
“América Latina na encruzilhada: Lawfare, Golpes e Luta de
Classes”, publicado no ano de 2020 pela editora Autonomia
Literária, organizada por mais de uma dezena de autoras e
autores latino-americanistas preocupados com os destinos
do continente.
PALAVRAS-CHAVE: América Latina; Esquerda política; Tempo
Presente
Introdução e Autores Organizadores
Na esteira de discussões acadêmicas e políticas relevantes e atuais travadas no Brasil dos
últimos anos, onde apontamos uma em especial, “Uma história da onda progressista sul-americana
(1998-2016)”, de 2018, organizado pelo historiador Fábio Luis Barbosa dos Santos – entre os
pessimismos que rondam o tempo presente global, mas em especial o latino-americano – emergiu
por conseguinte a obra “América Latina na encruzilhada: Lawfare, Golpes e Luta de Classes”,
construindo narrativas analíticas capazes de proporcionarem um entendimento panorâmico a
respeito dos processos políticos, econômicos e sociais da América Latina contemporânea após a
chamada “maré rosa”, conjuntura histórica em que partidos, frentes e coalizações de esquerda
aliadas a movimentos sociais antissistêmicos de países como Venezuela, Uruguai, Argentina, Chile,
Equador e Brasil chegaram ao poder, vitoriosos em seus diferentes processos eleitorais, guardadas
as suas devidas distinções.
Publicado em 2020 pela editora Autonomia Literária, América Latina na encruzilhada abarca
artigos extensos e profundos de quatorze especialistas em suas específicas áreas de atuação e
campos de análise crítica dos estudos latino-americanos dentro das Humanidades em geral, sendo
organizada por Roberto Santana Santos, doutor em Políticas Públicas e mestre em História pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); João Claudio Platenik Pitillo, mestre em História
Comparada (UFRJ) e doutorando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (Unirio); e María del Carmen Villarreal Villamar, doutora em Ciência Política pela Universidade
Complutense de Madrid e pesquisadora do Grupo de Relações Internacionais e Sul Global (Grisul).
Obra essa que conta com 414 páginas, compilada por esses três latino-americanistas de renome, de
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forma a trazer aos leitores brasileiros – mais acadêmicos que leigos – uma tentativa de “compreensão
totalizante” da América Latina atual.
Na tentativa de ser totalizante e panorâmica, promove uma conexão pertinente entre os
textos elencados. A escolha dos temas e autores também não é obra do acaso, pois existe uma
relação explícita entre o sujeito acadêmico e o político, aquele que escreve e, ao mesmo tempo,
move-se neste tabuleiro de difícil compreensão que se tornou a América Latina no raiar do século
XXI. Se existe um público-alvo para a obra seriam aqueles capazes de compreender a pluralidade de
visões de esquerda presentes sobre o continente. É destinada para os que estão inseridos na região,
que vivem e observam, mesmo que de longe, a precariedade dos serviços públicos, a miséria
crescente em razão do fosso social que exponencialmente aumenta e a dificuldade de se locomover
e fazer ecoar um discurso político capaz de promover uma mudança para além das tentativas (entre
acertos, equívocos e obstáculos) daqueles que os precederam. Há um retorno aos teóricos clássicos
– como no sexto capítulo “Cuba: a revolução buscando seu socialismo”, onde Ernesto “Che” Guevara
e Fernando Martínez Heredia são constantemente evocados – e as suas contribuições para o debate
mostram-se profícuas.
É relevante o retorno às conjunturas políticas, instabilidades econômicas e processos e
agitações sociais da segunda metade do século XX, principalmente para acontecimentos-chave como
a deflagração de Golpes de Estado Civil-Militares e processos revolucionários e reformistas. Para os
organizadores da obra, apresentada como um trabalho coletivo de olhares heterogêneos, há
claramente uma quantidade sobrepujante de permanências que “acorrentaram” o presente da
“maré rosa” latino-americana, que inicia-se na eleição de Hugo Chávez, na Venezuela, e a sua
chamada Revolução Bolivariana, e termina com as destituições de presidentes como Fernando Lugo,
no Paraguai, Dilma Rousseff, no Brasil, até o golpe de Estado contra Evo Morales, na Bolívia, as
derrotas eleitorais das frentes de esquerda na Argentina e no Equador, culminando, na contramão,
com a ascensão de López Obrador, no México, vista pelo autor Antonio Palazuelos Manso, sociólogo
e doutor em Ciências Políticas pela Universidad Complutense de Madrid, como a história de um
fracasso anunciado.
Como se existisse, à época de recorte, que vai do ano de 1998 a 2019, na qual entraram em
cena novos atores políticos e novas formas de fazer política, um longo passado a ser superado – assim
como um futuro que precisava ser construído em contraposição às forças de direita, aos
conservadores e ao neoliberalismo globalizado que representariam esse passado. Para os três
organizadores da obra, o objetivo era “oferecer um panorama latino-americano dos governos
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revolucionários, social-liberais ou até de forças políticas de esquerda que não chegaram ao
governo”381. Objetivo este que obtém sucesso inegável durante a empreitada.
IV “Partes” Distintas
Dividido em quatro partes distintas 382 , relacionáveis e em conexão, América Latina na
encruzilhada parte da premissa que o leitor necessita compreender a centralidade do Estado-Nação
no desenrolar da história da América Latina contemporânea. Na “Parte I: Panorama latino-americano
no século XXI”, há a preocupação inicial de situar-nos no tempo – tempo este de “terra arrasada”,
período de derrotas para os reformistas da esquerda tradicional, nascedouro de um conservadorismo
de extrema-direita e o momento histórico do “pós-progressismo”. Conceito que é levado ao título do
primeiro capítulo, “Sobre o pós-progressismo na América Latina: contribuições para o debate”, do
argentino Atílio Borón, professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos
Aires, e Paula Klacko, historiadora na Universidade Nacional de Avellaneda e da Universidade
Nacional de José C. Paz.
Em seguida, em “Sobre o Estado, o poder político e o Estado independente”, de Jaime Osório,
partícipe do departamento de Relações Sociais da Universidad Antónoma Metropolitana, há a
necessidade premente de compreender as estruturas e instituições do Estado burguês. Notório que
Osório escreva: “Em diversos graus, o Estado tem a particularidade de assumir demandas e posições
de todas as classes, frações e setores. Porém, assume-se com a condição de que há classes que detêm
poder e outras não”383. Diferentemente dos anos 1980 e 1990, “era de ouro do neoliberalismo”, na
maré rosa latino-americana, grupos e sujeitos políticos que não detinham poder, principalmente o
econômico, ocuparam suas respectivas estruturas de Estado, como um indígena na Bolívia e um ex-
sindicalista no Brasil.
Na Parte II, “Progressismos e revolução, organização popular, novas condições e lutas
capitalistas”, é interessante notarmos quais regiões estão analisando as autoras e autores:
Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba. Se a última realizou o seu processo revolucionário no início da
década de 1960, os três outros estiveram – e de alguma forma ainda estão – frente a frente com
“novas condições” históricas, em uma diferente conjuntura. Não há como mimetizar a experiência
381
2020, p. 08.
382
Utilizamos a palavra “parte” exatamente como está na obra, almejando aproximar-nos da forma mais fidedigna
possível das separações dos capítulos.
383
2020, p.39 135
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socialista cubana, como não houve como mimetiza-la em nenhuma outra região do continente desde
a segunda metade do século XX. Ela é vista como “farol”. Ilumina, mas a luz permanece e
permanecerá apenas no horizonte.
Como exemplos, a obra traz os artigos “Venezuela: breve história e análise da Revolução
Bolivariana”, de Roberto Santana Santos, doutor em Políticas Públicas na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ); “Bolívia há doze anos do processo de mudança: desafios, apostas e riscos”, de
Rebeca Peralta Mariñelarena, mestra em Estudos Latino-americanos pela Universidade Nacional
Autónoma do México; “A via equatoriana: luzes e sombras da Revolução Cidadã”, por María Villareal
Villamar, doutora em Ciência Política pela Universidad Complutense de Madrid; e “Cuba: a revolução
buscando seu socialismo”, de Luís Eduardo Mergulhão Ruas, doutor em História pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Na Parte III: Progressismo e reformismo: avanços sociais e limites estruturais, o Brasil
aparece como intrincado quebra-cabeças a ser montado, um mistério a ser desvendado. As
indagações a respeito das razões para a derrocada do projeto petista e a ascensão da extrema-direita
com o advento do golpe de Estado de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff são vistas no texto
“Brasil: o fim da Nova República – Quebra do arranjo político, crise de representatividade e golpe de
Estado no ocaso da república liberal brasileira”, assinado por Roberto Santana Santos, doutor em
Políticas Públicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), e João Cláudio Platenik Pitillo,
um dos organizadores da obra.
As agitações partidárias e eleitorais na Argentina, “Argentina e as lutas populares em uma
perspectiva anticapitalista”, por Julio Gambina, doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências
Sociais da Universidades Nacional de Buenos Aires (UBA); o projeto de coalizão da Frente Ampla
uruguaia, em “Uruguai: a continuidade do projeto do capital com legitimação social”, por Antonio
Elías, economista e docente pela Universidade da República de Uruguai; e as tentativas de
transformação social e econômica paulatinas – com ênfase na questão fundiária – no Paraguai, até o
golpe de Estado de 2012, em “Paraguai: o golpe de estado de classe de 2012 e o governo entreguista
antinacional”, por Cecilia Vuyk, cientista política na Universidad Nacional de Asunción, também são
as temáticas centrais dos artigos que seguem.
Há uma clara exposição crítica de que para essas regiões do continente latino-americano e
seus respectivos governos, os limites institucionais do Estado burguês estavam bem traçados. Pouco
podia-se fazer para ultrapassá-los como fizeram, em condições distintas, não da forma que muitos
aliados e grupos políticos almejavam, Venezuela, Cuba, Equador e Bolívia.
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Na Parte IV: Nem progressismo, nem revolução: a resiliência do neoliberalismo na América
Latina, o neoliberalismo é revelado, pelas autoras e autores dos artigos finais, como um fantasma
que ainda ronda as regiões do continente, um problema estrutural de difícil superação. Há um foco
maior no Chile e a sua institucionalidade pós-ditatorial em “Os caminhos para uma nova esquerda
chilena no século XXI”, de Matías Ortiz Figueroa, historiador pela Universidade Andrés Bello; “Estado,
luta de classes e novo contexto de paz na Colômbia”, de Sergio Quintero Londoño, doutor em Serviço
Social também pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ); “Movimentos sociais e partidos
políticos nas dinâmicas da esquerda peruana”, de Ricardo Palácios, filósofo pela Universidade Mayor
de San Marcos; e, por fim, “México e o seu momento: a história de um fracasso”, de Antonio Manso,
pesquisador da V Faculdade de Ciências Políticas e Sociologia da Universidad Complutense de Madrid.
Relevante apontarmos que em cada texto, os estudiosos tentam apreender a força das
classes dominantes latino-americanas e a “confusão e perplexidade”384 no domínio do Estado, como
classificou Darcy Ribeiro, em ensaio sobre as diferentes tipologias de lideranças políticas latino-
americanas. Há tentativas de mudança estrutural – mas não há meios eficazes de enfrentamento
para o combate.
Das Considerações Finais
América Latina na encruzilhada: Lawfare, Golpes e Luta de Classes é uma obra que reúne as
maiores referências e nomes dos estudos latino-americanos da atualidade. É responsável, como
expuseram os seus organizadores, por uma gama heterogênea de correntes teórico-críticas sobre a
América Latina contemporânea – desde vieses revolucionários até perspectivas reformistas –, todos
com vistas ao bem-estar social dos latino-americanos.
Observar os governos da maré rosa que se estenderam pela maioria das regiões como
“projetos revolucionários”, inserindo-se na institucionalidade das estruturas políticas e econômicas
burguesas, seria um erro. Mesmo nas chamada “Revolução Bolivariana”, na Venezuela, e a
“Revolução Cidadã”, no Equador. As autoras e autores esclarecem isso com altivez. Não existe
comparação possível com a Revolução Cubana de 1959, momento-chave da História latino-
americana – apesar de todas as críticas e apontamentos analisados por Luís Eduardo Margulhão Ruas,
doutor em História pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).
384
RIBEIRO, 2017, p.30. 137
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Todos os artigos elencados em suas distintas “partes” compreendem a luta e a defesa dos
direitos humanos, a diminuição das desigualdades sociais, inclusão de populações originárias e a
agitação popular e estudantil de todos os governos que vão de 1998 a 2019. Os acontecimentos
revolucionários em Cuba, por exemplo, são lidos mediante problemas que dizem respeito ao seu
presente, e não apenas ao seu passado. São coalizações partidárias, processos eleitorais vitoriosos,
rearranjos políticos e econômicos, entre os caminhos e descaminhos da História. Em todos os escritos
apresentados há uma tentativa marcante, e bem-sucedida, de regressar aos processos históricos da
segunda metade do século XX, mostrando o tempo presente latino-americano não como resultado
diretamente relacionado a um ou outro acontecimento ou conjuntura, mas como um continente
sedimentado por diversas temporalidades: passados que ainda insistem em não passar.
A obra é uma contribuição acalentadora para os debates acadêmicos e políticos sobre a
América Latina no tempo presente. Um presente marcado por autoritarismos explícitos, prisões de
opositores políticos considerados “subversivos” (Lawfare) e golpes de Estado jurídico-parlamentares,
muitas vezes sem armas e um único tiro disparado. Nesse período sinalado pela desesperança, a obra
nos mostra os caminhos a se evitar e aqueles outros, onde se abrirão as grandes alamedas por onde
passará o homem livre.
Referências
RIBEIRO, Darcy. América Latina: a Pátria Grande. São Paulo, Ed. Global, 2017.
SANTOS, Santana R.; PITILLO, João Cláudio P.; VILLAMAR, Maria de Carmen V.; América Latina na
Encruzilhada: Lawfare, Golpes e Luta de Classes. São Paulo, Ed. Autonomia Literária, 2020.
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