6-SIGAUD, Lygia - A Morte Do Caboclo 1978 - digMN
6-SIGAUD, Lygia - A Morte Do Caboclo 1978 - digMN
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BOLETIM DO MUSEU NACIONAL ?rr,*J
NOVA SÉRIE
RIO DE JANEIRO, RJ BRASIL
-
ANTROPOLOGIA NS 30 DEZEMBRO DE 1978
? I
30 1L
í5.23
(Justiça do Trabalho, Sindicatos, etc.), eu.me. pergunto se é poq-
sível entender as implicações deste caráter anti-patrâo da ideologia
do trabalhador, me atendo apenas ao modo corno ele vive a re-
lação com o proprietáiio. Em outras palavras, parece-me Deces-
sário ampliar a análise, integrando a percepção que os trabalha-
dores têm dos personagens ou qntidades sociais que constituem
garantias da legititnidade do sistema.
A análise que se segue é uma primeira tentativa de examinar
a maneira como os trabalhadores representam estes personagens e,
como tal, se insere numa preocupaçâo mais ampla com a questão
da legitimidade.
A Referentes ao trabalhador:
-
I . Trabalhador
2. Trabalhador rural
3. Trabalhador do campo
4. Morador
5. Camponês
6. Caboclo
7. Pobre
8. llomem
9. O campo
10. Funções de serviços (cortador de cana, enchedor
de carro, cambiteiro, etc.)
2
5. Capitão
6. Chefe de CamPo
7. Dr. Agrônomo
8. Gerente
9. Homens
10. Eles
C Referentes aos proprietários:
-
l. Hqmens
2. Sr. de engenho
3. Usineiro
4. Eles
5. Rico
6. Dono da propriedade
7. Dono da usina ou das indústrias
8. Empregador
9. Patrão
10. Dr.
ll. Dr. da Usina
12. Rendeiro
13. Usina
14. UsinaX (o nome da Usina)
15. X (o nome da usina simplesmente)
16. Empresa
17. EngenlÍo particular
18. Dr. Fulano ou Seu Fulano
19. Industrial
4
é filho de Seu Getúlio Vargas. Foi o tempo que ele morÍeu,
deixou tudo assinado. E o que está assinado fica aquilo,
passa lQ 12 anos, 75, 20, mas aquilo guardado. Vai pas-
sando, vai passando, vai passando, quando cuida na vida,
naquele meio, chega um descobre. ,Foi que nem João Gou-
lart descobriu o que estava assinado do pai dele e esse
Governo de Miguel Arraes também era qerto mais Joâo Gou-
lart,'aí conseguiu, descobriu esses direitos, né? P'ro tabalhador
ter um conforto mais, né? Ter o conforto, ter um custo de
vida melhor, ele passa mais melhor, que é o homem que
dá produtividade é o trabalhador do campo mesmo. Sem o
trabalhador do campo, a usina não mó,i, operário nenhum não
mói, não trabalha porque não tem. O operário não vai cortar
cana, não vai cambitar, não vai encher caminhão, nâo vai
Iimpar, nâo vai semear o adubo, não vai fazer nada disso.
É o pessoal do campo, o camponês. É tanto, é contar que o
Ministérict do Trabalho aprontou essas carteiras verde prá
gente. E o Sindicato ficou. É verdade que os usineiros quer
derrubar o Sindicato prá gente ficar no tempo velho que a
gente ganhava 100 mil réis, não era nem cruzeiro, era 100
mil réis e 180 cruzeiros, 200 mil réis."
u1
5
No texto (2) apaiecem novamente as quatro distinções:
6
sição relativa 5. A exceção observada quanto à mudança de po-
sição dos termos desta coluna, o caso da aliança com os pro-
prietários, ocorre com todos os personagen\ à exceção de três:
Arraes, o Presidente e Deus.
Prosseguindo a observação da listagem dos termos, me pare-
ceu importante ressaltar ainda duas coisas. Primeiro, o fato de
que o único termo recorrente nas quatro colunas é o termo ho-
mens. Em segundo lugar, me chamou a atenção a ausência da
Igreja Católica ou de qualquer outra instituição religiosa.
Uma vez constatada a discontinuidade entre as colunas, resta
refletir sobre o sentido da pluralidade de termos utilizados para
se referir a um mesmo agente social . A análise a ser feita deve
partir do princípio de que a pluralidade de termos não é simples
questão de sinonímia embora ela exista e que se o tra-
balhador precisa de um - para se classifi-
- certo número de termos
car a si próprio e os outros é porque esses termos possuem va-
lores diferentes. Não haveria sentido, nem necessidade, de se
examinar um por um dos termos, uma vez que muitos são inter-
cambiáveis, independentemente do contexto (por exemplo, sr. de
engenho, dono de engenho, dono da propriedade, engenho par-
ticul.ar). O importante é identificar justamente o que, neste nível
de análise, não é intercambiável e portanto específico e apontar
para os contextos de sua utilizaçâo. O(s) princípio(s) que presi-
de(m) a utilizaçâo de um termo e não outro deverá(ão) ser
buscado(s) ao nível do discurso do trabalhador e não em formu-
lações explícitas do trâbalhador que dispõe apenas da maitise
prática destes princípios.
Começaremos pelos termos da primeira coluna, isto é, os au-
toclassificatórios. Do conjunto listado, apenas um termo substitui
os outros em qualquer contexto: trabalhador. Teoricamente, qual-
: guer outro termo seria intercambiável, à exceção do termo rno-
rador que qualifica aqueles que residem noE engenhos, excluindo
7
portanto os trabalhadores expulsos. Mas o que é possível teori-
camente, não ocorre na prática. Por exemplo, nunca um trabalha-
dor utiliza o termo camponês para se referir aos problemas que
um trabalhador esteja enfrentando com a usina ou com o sr. de
engenho a respeito de suas lavouras. O termo caboclo só aparece
quando o trabalhador reproduz algum diálogo dele com o pr<>
prietário. Caboclo é o termo utilizado pelos proprietários ao se
dirigirem a um trabalhador. A rigor não é um termo autoclassifi-
catório . Trabalhador rural, trabalhador do campo e campo nunca
aparecem isoladamente e não possuem nutonomia, no senüdo de
que necessitam sempre de um outro termo (em geral o de tra-
balhador) para figurarem em uma formulação. Os termos que
designam as funções de serviço (cambiteiro, cortador de cana, en-
chedor de carro) são sempre' substituíveis por trabalhador, mas
o inverso não é verdadeiro. O pobre seria o único termo quase
tão intercambiável quanto o de trabalhador. Ocorre, no entanto,
que não se trata de uma categoria inclusiva porque jamais será
trtilizada para substituir o termo camponês. Resta o termo homem
que deixarei para examinar depois, em virtude de sua presença
em todas as grandes rubricas.
A partir desta primeira aproximação do problema, tendo a
achar que apenas alguns dos termos merecem uma análise mais
detida. Embora trabalhador seja a categoria mais inclusiva, não
me parece que sua análise apresente maior interesse do que os
termos camponês e morador, que são justamente os que encerram
menores possibilidades de intercambialidade, sendo por isso mesmo
os mais específicos. Acrescente-se a isso o fato de que esses dois
termos são presença obrigatória em contextos bem definidos 8.
Quanto à hierarquia administrativa, à exceção de três termos
(eles, homens e empregados), todos os demais referem-se a fun-
ções de serviço e não são intercambiáveis. Dos três assinalados,
dois são termos utilizados também para designar os proprietários
e os personagens externos (eles e homens). O termo empregado
aparece assim como o único específico da hierarquia administrativa
e com propriedades de intercambialidade. A análise será feita sobre
I
este termo poque, embora sendo uma categoria inclusiva como a
de trabalhador (o que poderia diminuir o interesse por ela), tem
uma posição estratégica no discurso dos trabalhadores sobre sua
relação com os proprietários e também com os personagens externos.
A rigor está em jogo aí uma categoria indispensável à coerência
do sistema.
No caso dos proprietários, o trabalhador distingue três termos,
sr. de engenho, usineiro e rendeire 7, gu€ remetem a posições dife-
rentes quanto à propriedade da terra e à propriedade de uma in-
dústria. Do conjunto listado, apenas cinco termos são aplicáveis
aos três tipos de proprietários. Os demais aplicam-se apenas a alguns.
O quadro abaixo ajudará a uma visualização melhor. do problema:
ACB
Sr. de engenho ustnelro rendeiro
Dr., Dr. Fulano
Seu Fulano Seu Fulano
Dr. da usina
Dono da propriedade II I I t I t I t t t t tt
llllllltlttttt
Engenho particular Empresa 'r'l'r'r't'r't't'l'l I I 1',
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1 1 ||t|t Dono da Usina tttltttttltttt
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I Dono da indústria tttt tttltltl tl tl tl tl tl tl tt
Engenho Itlt't
Usina ,ltltltltlt
t1 t1 t I | I1 I1 I/1 ,,t,lt l,', tt't't'
lt t,, l, t,t,t
t1 t1 t1 t1t1 t1 t1
1 1
Usina X t t
ll t1 t 1l t1t1t ltlt |1t1
t 1t1
11 X (Nome da usina) I
trl
rltt rtt't't
t, tt'tttlt
Homens (r)
Eles
Rico
Empregador
Patrão
9
Dentro de cada coluna, apenas alguns termos são intercam-
biáveis. Por exemplo, sr. de engenho substitui todos os ou.tros ter-
mos da coluna A, em qualquer contexto. Na coluna B, o mesmo
ocorre com usineiro. O inverso, no entanto, nâo ocorre; por exem-
plo: Dr. da usina não substitui usineiro, o mesmo sendo aplicável
a X (nome d3 usina) e Usina X. Agora, em relaçâo aos termos
que são comuns às três colunas, apenâs os homens não são in-
tercambiáveis em nenhum con.texto, ou seja, o termo só é utilizado
em um contexto específico. Os demais termo§ comuns são inter-
cambiáveis entre si (O fato de que um termo seja intercambiável
não indica que possa ser usado em qualquer contexto, significa
apenas que pode figurar em mais de um contexto.).
Os homens, por sua especificidade na classe de proprietá-
rios e pela sua presença em todas as rubricas, será a categoria que
merecerá maior atenção. Como no caso do camponês, trata:se aí
de uma categoria que teoÍicamente poderia ser inclusiva mas que
a rigor é específica. Não haveria pâra os proprietários uma cate-
gDria inclusiva como a de trabalhador, possível de ser acionada
ena qualquer contexto.
Dada a heterogeneidade dos agentes designados pelos termos
da coluna de personagens externos, nâo farei nenhuma considera-
çâo particular sobre e!es, deixando a avaliaçâo dos termos para o
momento em que forem isolados os contextos.
A. Contexro nq I
(l) "Só prestava a gente fazer assim, a gente fazer assim: a gente
agaÍrar nenhum cortasse cana. Se o camponês fizesse acor-
do; combinasse todo mundo. Nâo carecia negócio de greve,
não era negócio de greve nâo. Era o camarada fazer assim:
ninguém corta cana. Outros prá acolá, ninguém corta. E
noutro canto, ninguém corta cana [prá ver se a gente não
recebia o décimo-terceiro]."
(2) "Aí o pessoal avoou em cima do carro da Polícia disse que
ainda devoraram uns seis ou sete soldados ainda, o-pessoal
né. E os soldados passaram godo em tudinho.. eu sei que,
e!e, dizendo, morreram 12 componê^r, em São Lourenço da
l0
Mata. E ainda morreram 7 soldados ainda. Aí ficou os outros
com vontade de matar a Polícia, né, os trabalhador. Aí ia
dar uma guerra, ia dar uma guerra ihfeliz, se não tivesse
sido, se a Polícia não tivesse resolvido esse problema dessas
greves de., do tempo de Miguel Arraia tinha pegado a guerra
mesmo."
(3) "Coisa que um operário conversou comigo um dia desses
(. . . ) ele pegou, falou assim comigo. Ele disse: 'Um ho-
mem, l0 homens,dentro da usina trabalhando não trabalha
por um camponês que nem o senhor'. Disse a mim. E não
üabalha mesmo não. (. . . ) Mas veja que nós, mas veja que
nós, nossa força numa razão dessas . . . mas veja se fosse
o caso, se fosse uma coisa emparelhada, que o camponês
ganhasse e os operários tamEm ganhasse, ninguém não
yia..."
(4) "O camponés, eu salu camponás, mas sou contra o campo-
nês e sou a favor do camponês em toda parte. Porque o que
acaba com o camponês é a nação que não se une. E o que
não se une não pode fazer força, porque como é que vai
fazer força um só no meio de milhão de milhâo de gente,
não pode fazer força. (. . .) No fim do ano, o trabalhador
está arrasado e o empregado tem bom lucro, boa gorjeta."
(5) "Eu, por mim, nós nunca vimos nosso Pai, né, Poderoso.
Chega um homem aqui e diga que é nosso'Pai, pode ser
inté que tenha um que queira matar ele, né. Mas tem muito
que diz: 'É nosso Pai, ó xente.'Fica, o pessoal aqui, o camara-
da, é capaz de matar ele somente da alegria que tem. Mesmo
assim foi com o camponês, no campo. Quando disse, ele
[ArraesJ deu essa força prá' gente ganhar 506 cruzeiros . . .
O pessoal ganhava cento e oitenta mil réis e cem mil reis,
que eu me lembro que no engenho de Seu X eu ganhava
cem mil réis e cento e cinquenta réis, no engenho dele. Eu
passei logo prá ganhar 500 e tanto. Eu dei um pinote tão
grande que eu quase quebrava o pescoço numa barreira.
T2: De alegria.
Tl: De alegria. E todo mundo. (...) na fala dele aqui
em Y para Y (cidade), o Dr. Miguel Arraia dizia: 'Façam
força camponês'. Ali na Prefeitura. ',Façam força, que a
ll \z
ç
reunião que faz a força, façam força, não deixa eu cair,
não deixa eu cair."
(6) "[Um advogado] dizia que o camponês é a força do Brasil,
o camponês. E é mesmo, eu acho que seja também, viu?
Porque é brincadeira a pessoa sair bem cedo com aquele
café? Muitos nem sai, leva um punhado de farinha ( . . .)
Caldo de cana tá servindo de vitamina pro camponês. Ele
tá tâo ruim, mas ainda tem a cana prá ele chupar e ainda
se conforta,, que trabalha o dia todinho no caldo da cana
(. . .) E o .rico não. O rico veve 'no seu repouso, né, tem
um bom carro. Só imagina no clinheiro. Nem em Deas ele
não imagina. É no dinheiro e carro bonito. E entâo cana no
meio do mundo. É isso. E o camponês, o camponês, quem
conforta ele é só Deus e mais ninguém. E é nessa situação
assim direto, até o fim da vida dele."
(l) camponês
Contexto: Reunir para greve como soluçâo para atraso no
pagamento do 139 salário.
(2) camponês Polícia
Contexto: Narrativa de uma greve realizada em 1964, du-
rante a qual os trabalhadores colocaram um chocalho no
pescoço do administrador.
(3) camponês .... operário
Contexto: Reivindicação de igualdade de direitos perante a
usina quanto ao pagamento do 139 salário. Os operários já
haviam recebido e os trabalhadores não.
(4) camponês .... administrador
Contexto: Exploração dos empregados sobre os trabalhado-
res.
(5) camponês .... Miguel Arraes
Pai Poderoso
Contexto: (contido no texto)
(6) camponês .... rico .... Deus
Contcxto: Valor do trabalhador, como a força do paÍs,
t2
Remetendo ao texto apresentado na página 3, vemos as se-
guintes oposições:
t3
ponêsE. De quatquer forma, chama a atençâo o fato de que o ope-
rário sempre seja contrastado com o camponês (o que indicaria a
função do termo operário como contra-ponto. O trabalhador vê o
operário como uma categoria valorizada pelos patrões e no momen-
to em que estâ em jogo a sua valorização, ele aciona a figura do
operário) e também a presença constante de Arraes. Enquanto
categoria, camponês e parece ter surgido no período de lutas polÊ
ticas das Ligas e Sindicatos, tendo sido introduzida pela liderança
sindical',, da mesma forma que outras categorias, como os di-
reitos. Foram os acontecimentos do período de Arraes que cria-
ram as condições para que os trabalhadores se vissem como cam-
poneses. Daí possivelmente a associaçâo freqüente dos dois termos.
t4
Essas considerações me autorizariam a detinir as circunstân-
cias que acompanham a utilizaçâo do termo camponês, como um
contexto, o qual por falta de outra expressão mel.hor chamarei
de contexto político. A regra em jogo nesse contexto poderia ser
formulada da seguinte forma:
Sempre gue o contexro tor político, o trabalhadol empregará
preferencialmente o termo camponês. O único substituto em-
piricamente encontrado é o de trabalhador.
B. Contexto n9 2
(l) Tl: "É que nem aqui na minha casa. Somos, digamos,
sonlos l0 pessoas. Eu trabalhando, ganhando, ganhando,
qualcluer coisa come tudinho. Come tudo. Dou de comer a
tudinho. E se não fosse eu? Ficava parado, né? Ia morrer
de fome. É que nem o usineiro. O usineiro é pai do povo
todinho, dá de comer ao pessoal todinho.
T2: Níls come tudo.
'['l: Agora os entpregado.r clele é que recebe aquelas ordens
ruim né, às vezes ele nào manda dar aquelas ordens tâo
düra aos trabalhadore§, e os enrpregados chega ríspido, né,
com o revólver de uma banda de cá, parece uma metra-
lhadora, um cacete, um câcete por dentro da bota. Vai o
camaracla ao trabalhador, o trabalhador já tá todo fadigado
com a formiga mordendo, suado, no sol, ele, ele, ele vem
com o cacete. É por isso que há muita desgraça por aí.
Há muita desgraça por aí. Às vezes o trabalhador morre,
às vezes mata. às vezes apapha, às vezes dá. Pronto. Por-
que á usina é fogo. Às vezes o usineiro dá uma ordem,
eles vem com outra ordem nojenta.-Estrompa."
(2) "As imprensas que os empregados dava, nem os donos não
era, era os empregados. Que tem vez que os empregados
da usina é pior do que o dono. A pessoa fala, tem um
negócio para acertar, é rhelhor acertar com o dono, o sr. de
engenho, ou o dono da usina, o dr. da usina, do que acer-
tar com os empregados. Porque os empregados,. o sujeito
puxa pro dono da usina e vamos castigar o trabalhador. Se
chama as estica é essa. Prá ganhar uma gorjeta dele ou
pegar muito valor, dado por aquele dono, aquele proprie-
l5
tário do engenho, aquele emprcgador, aquele usineiro dar
valor a ele. Ele no fim do ano tá com o bolso cheio e o
trabalhador morto,'estragado de tanto trabalhar. .."
L6
algunas ccnsiderações sobre a Íigura dos empregados, tomando
como ponto de partida uma conversa que tive com dois traba-
lhadores:
P: "O cabo também é empregado?
Tl:. É empregado. É fichado também.
P: Sim, mas ele.. .
Tl: Mas ganha mais do que a gente.
P: Sim, mas o cabo é trabalhador, trabalhador rural tam-
bém, ou o cabo é empregado?
Tl: É rural, o cabo é rural.
T2: É rural também.
Tl: Agora o ordenado dele é maior do que da gente. A
gente dentro de um ano, fazendo um ano certo, são uma
verba de Cr$ 151,00, bom e o cabo é uma verba de 180,00,
né T2?
T2: Duzentos e pouco.
Tl: Duzentos?
P: Uma coisa, porque eu assim a gente ouve falar as-
sim: porque os empregâdos, os empregados, então eu queria
saber se o cabo ... O administrador é empregado nào é?
Tl e T2: É.
P: O cabo é empregado também?
Tl: É também.
T2: Ê, empregado também.
P: Agora, o trabalhador é empregado não?
Tl: É, quer dizer que é empregadoE não, empregador não, é
homem do campo, quer dizer que também é fichado. . .
T2:. É, trabalhador.
Tl: É trabalhador.
P: Hum...
I ' Tl: É trabalhador. O cabo é empregado, o administrador é
àmpregado, bom, e... o trabalhador é trabalhador, é traba-
lhador, sabe?
T2: O trâbalhador é trabalhador.
Tl: O estribeiro é empregado tamtÉm, o estribeiro?
T2: Não.
Tl: O cargueiro. O cargueiro é não é?
T2: Nâo. Qual a leitura que o cargueiro'tem? Pegar um bur-
ro pro cambiteiro. 'Pegue tal burro', 'pegue tal burror, 'Pegue
L7
burro fulano de tal', Pegue lá no quarlo, tire a cangalha
númêro dois, número três.i Isso é empregado? É não.
Tl: É não.
"12: Enrpregado rcm tlu( ter leitura, né?
Tl: 'I'em que ter leitura, ner?
T2: Prâ mim é assim. Mas cargueiro nâo. Cargueiro é em-
pregado de dar burro a cambiteiro. (...)
Tl: Mas [a usina] considera que é empregado.
T2: Mas não é empregado nâo. É tambaio de burro. Írisosl
Tl: Esse T2. [risos]
T2: Lambaio de burro. Nunca vi lambaio de burro ser em-
pregado. Irisos.l
P: Lambaio o que é?
T2: Lambaio de burro? Ê o que trata, que trata né dos
burros né. O burro tá com fome. ele c'trega bota aquele. ca-
pim pro burro se alimentar. Lambaio de burro. Prá mim é
assim. Nâo tem outro nâo. Prá mim é assim. Agora o em-
pregado, o empregado é que pega uma canera, pega um papel
e escreve o nome, o nome da pessoa, o nome dele. Pode di-
zer que é um fempregado]. Esse sim. Mas o cargueiro não.
0 cargueiro é lambaio de burro.
P: E o cabo tem leitura. nào?
T2: Tem sim sr.. Tem cdbo que tem leitura mesmo que
não pode prestar conta do serviço [sem leitura] né?
Tl: Agora tem um cabo lá em X [engenho] que tem, tra-
balha sem leitura.
T2: Mas é?
Tl: Ê.. Trabatha sem leitüra. Um tal de A.R
T2: Mas é compadre do administrador, né, mas que ele quei-
ra não, que. . .
Tl : É na capacidade, que ele f.az certo. É desses trabalhador
que é uns trabalhador. . .
T2: Certo.
Tl: Certo sabe. É os homens considera ele. Não laz agita-
ção. Tudo que laz é dento da lei, da lei certa, sabe. Aí os
empregados, a usina, considera. Mas veja que o Dr. Y [o usi-
neiro] ainda reclamou, viu T2?
T2: Héim?
l8
Tl:,1á reclamou esse negócio da situaçao de Seu A.R. tra-
balhqr no engenho sem a leitura. Mas veja que o administra-
dor gostu muito dele, aí encobre né? Faz uma lala com o
doutctr e tal, e ele vem fazendo certo aí eles também deixa
de mão, né. Mas se nâo fosse, se nâo fosse por isso, ele
não trabalhava mesmo nâo. Não trabalhava mesmo não, por-
que a usina nãct considera mesmo um homem sem ter leitura,
sem... tomar a responsabilidade do campo não. Trabal.ho do
campo é tanto juizo, carece ter muito juizo o cabo. O cabo
a gente vê assim, é um empregado que faz trabalho mais
que o administrador. O administrador é só dando as ordens.
Vai à usina recebe aquelas ordens do gerente e o gerente dá
aquelas ordens, ele trabalha porque fai aquele bilhàtinho, né,
faz tudo rrerto., é alumiado, é visto como administrador."
(grifos meus)
C. Contexto nQ 3
20
do Trabalho sempre tem um defensor que vem todo mês
do Recife prá aqui, o Sindicato. o gerente do Sindicato-Geral
vem corrigir os Sindicatos todr-ls, e saber da situação dos
usineiros, que eles tá fazendo com o trabalhador né. Por
isso é que eles têm mais um medozinho. Mas se fosse por
gosto deles mesmo, não tivesse esse que tomasse essas pro-
vidências de mês em mês, que vem aqui prá cidade, pros
Sindicatos todos, o trabalhador já tinha se acabado a toda
vida, já tinha se acabado".
(3) "O trabalhadór r,ão deve de caçoar muito do empregado.
Porque o empregado tem uma cobertura que os homen,s, o
sr. de engenho, ou os usineiros gostam de encobrir ele. E
às vezes, no caso do trabalhador, a usina não deixa de
apoiar um empregado dele, mesmo que o campo, o traba-
lhador rural é o que dá lucro à usina não é nem empregado.
Mas veja, a usina desconsidera o trabalhador e dá cobertura
ao empregado e o trabalhador sempre passa embaixo, por-
que é pequeno e eles sào grandes. Mas veja a diferença que
o grande só é nosso Pai Poderoso e mais ninguém mais nessa
terra . Tudo é pó da terra. Nada nesse mundo vale. O
que é o nosso ter coração a Deus. Tudo é pó da terra que
quando se acabar. . . Deus querendo, pelas amarguras que
o trabalhador vem sofrendo e aguentando desses homens,
Deus está vendo essa rebordosa. Deus, querendo acabar,
agora não escolhe ninguém, é assim, dentro de um segundo
ele f.az assim, vai-se embora, acabou-se riqueza. Isso tudo
é pó da terra, pronto. Não tem negócio de bondade, tudo
somos espírito, nós somos tudo espírito, somos tudo matéria
suja, sem crença. Agora aqui, ali, pro.nto, o camaradinha.
um tem dez tostões mais do que o outro, já é o rei. Mas
1 deixa Deus está vendo toda a situação. É que nem esses
homens. Há um negócio, um caso, o trabalhador vai re-
clamar. O administrador pode soltar a maior mentira., fica
por uma verdade na boca do usineiro. E o trabalhador pode
estar na maior verdade, pode ter l0 testemunhas, 20 a f*
vor dele, mas sempre vai ficar por mentiroso."
(4) "O que falta é uma ordem certa. Os pobres estão traba-
lhando hoje pro usineiro. Os pobres tá trabalhando prá usi-
neiro e ptos empregadot. Os empregados não, que os em-
2l
pregados já ganha do usineiro. Mas o pobre é tá fazendo
força prá todos esses homens. Prá mim, o trabalhador rural
hoje [devia] tá ganhando dez contos. Se fosse naquele Go-
verno fde ArraesJ o trabalhador hoje tava ganhando 10 con-
tos por dia. Mas esses àornens [do Governo atual] nâo estão
conhecendo o que está se passando em Pernambuco nâo. Dá
carestia e os pobres ganhando pouco e sofrendo muito para
ganhar cinco contos e quarenta (. . . ) Porque parece que
os homens guerem tirar mesmo o derradeiro sangue do tra-
balhador.'"
(5) "Porque uns homens [usineiros, sr. de engenho] desses que-
rem matar mesÍno o trabalhador. Se não tiver autoridade
para uns homens desses mata mesmo."
Oposições em jogo nos textos:
(I ) trabalhador emppgado . . . . . usirleiro . . . . . (fora)
horÀens
Contexto: Atraso no pagamento do 139 salário.
(2) traba!.hador usineiro Governo Miguel Arraes
eles Sindicato
Justiça do Trabalho
Contexto: Contido no próprio texto.
(3) trabalhador usineiro e ... Deus
sr. de engenho
uúna
h ens
Contexto: Incêndio de canavial
(4) pobres .., empregados usineiro Governo de Arraes
Tl: "Se você estivesse Iá [migrado para o Panará] com essa fa-
mília...
23
T2: Era fazendeiro. . .
Tl: ...como se diz aqui você era um homem.
T2: Mas foi bom, era. . . mas Deus não quis, né?
Tl: Você era um homem."
3. A eiicócia da tríade
.A partir do que foi visto no contexto interno ao sistema e
no contexto da sociedade, ficou claro que o trabalhador opera
freqüentemente em seu sistema classificatório como uma tríade, na
qual o elemento de mediação é valorado negativamente. Provi-
soriamelte deixarei de lado o contexto político, onde nâo se coloca
sempre uma oposição ternária.
A tríade pode ser caracterizada como um esquema de percep-
ção das relações sociais, no qual estão envolvidas sempre três po-
sições hierárquicas com avaliações bem definidas. Pode ocorrer mu-
dança dos ocupantes das posições, mas o esquema permanece.
Existe uma posição cujos ocupantes são sempre os mesmos: os
trabalhadores. No polo da mediação, os ocupantes podem ser os
empregados ou então os proprietários. No terceiro polo os ocupan-
tes podem ser ou os proprietários ou os personagens externos:
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Trabalhador Empregados Usineiros e srs. de eng.
+
Trabalhador homens Personagens externos
+
O esquema admite algumas variações, notadamente no que se
refere aos personagens externos. Alguns deles poderão vir a
ocupai o polo da mediação ao lado dos homens, quando o con-
texto fôr da sociedade. Por exemplo: "Se o Presidente soubesse
mesmo o que se passa aqui nesse Estado [Pernambuco] e não
fosse esse funcionário grande [do INPS] que agitasse com os em-
pregados por aí, as providências talvez que fosse melhor."
Nenhum personagem externo está livqe de ser percebido como
um aliado dos .homens. Para tanto basta que seu comportamento
seja hostil ao trabalhador. Por exemplo: "Até prender o pobre
do velho [morador] pai de família prenderam. A polícia daqui dá
direito ao velho [sr. de engenho], ao velho J.G. Descobre o tra-
balhador, o morador. Um homem com 33 anos de morada com
um sr. de engenho. Não ter direito."
Um Sindicato sob intervenção do Ministério do Trabalho pode
ser considerado um aliado dos patrões, bem como um juiz ou a
Justiça do Trabalho quando dá pareceres contrários ao trabalhador.
E assim todos os personagens podem ser aliados dos homens, à
exceção dos três mencionados previamente: Arraes, o Presidente
e Deus, que são incorruptíveis e sempre estão ao lado dos traba-
lhadores. Deus e o Presidente aparecem sempre que o trabalhador
descreve a sua situação como a pior possível. e vê nestes dois per-
sonagens a única possibilidade de salvação. O Presidente de que
fala o trabalhador-não é nenhum Presidente em particular. Trata-
se de uma figura quase que lendária, que não se confunde com
o Governo. Já Arraes é um personagem concreto reverenciado
pelos trabalhadores. Um trabalhador, falando sobre os crimes co-
metidos pelos srs. de engenho e usineiros, observava: "(...) mas
também o pÍazeÍ, o prazer que aquele homem [Arraesl, embora
ele desterrou-se do Brasil. Mas Deus abençoe onde ele estiver.
Que a tiririca bateu no rico, [ele] disse: 'Agora não é assim mais
não. Agora o trabalhador tem direito' e botou o É. . ."
Para os trabalhadores, se Arraes ainda fosse "Governo" a si-
tuação do trabalhador seria diferente (cf. trecho nQ 4 do contexto
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da sociedade, onde o trabalhador diz: "Se fosse naquele Governo,
o trabalhador hoje tava ganhando dez contos por dia"). Nunca
o trabalhador associa Arraes ao Presidente. Arraes contrasta com
Deus e com o Pai Poderoso (cf. trecho ng 5 do contexto político,
no qual o trabalhador compara o fato de Arraês ter "dado" o
salário-mínimo para o trabalhador com a vinda do Pai Poderoso
à terra).
Feitas estas observações sobre os possíveis ocupantes das po
sições, resta examinar o sentido da tríade. O que parece estar em
jogo é a transferência de responsabilidade do terceiro poto para p
mediador, a quem então é atribuído o mau funcionamento do sis-
tema. No contexto interno ao sistema, o proprietário é poupado
em detrimento do empregado e. no contexto da sociedade, o Esta-
do em geral é poupado em detrimento dos proprietários. No
contexto interno ao sistema, a'coisa não seria tão absoluta quanto
no contexto da sociedade, pois o trabalhador sempre faz a ressalva
do "às vezes" quanto à "bondade" dos proprietários. Por outro
Iado, foi observado que o trabalhador tende a crer. que os em-
pregados e os proprietários sejam sempre aliados 1r. O que a rigor
o trabalhador está questionando no contexto interno ao sistema é
que os empregados sejam ligados aos patrões.
A tríade assim caracterizada pareêe ser um esquema de pen-
samento da maior eficácia para a reprodução do sistema, na me-
dida que pernrite ao trabalhador alimentar a crença de q'.16 gxlr1a
alguém acima de seu "inimigo" (a tríade é sempre hierárquica)
que está a seu favor, este alguém podendo ser eventualmente o
próprio proprietário ou, mais f reqüentemente, o Estado, através
de seus prepostos. A tríade é capaz de dar conta de fatos que o
trabalhadoi dificilnrente aceitaria, como a queda de Arraes, que é
justificada através do mau comportamento dos mediadores 13.
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Aeficácia da tríade assim se explicaria por só permitir a
presença de três elementos, por atribuir necessariamente ao me-
diador o sinal negativo e por excluir de sua estrutura interna as
seguintes possibilidades:
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dilerença importante em relaçâo aos outros dois contextos, que
é o fato de que os únicos personâgens externos acionados são
Deus e Arraes.
No contexto político, o trabalhador não busca al.ternativas na
hierarquia do Estado. mas tende a valorizar a sua própria poten-
cialidade de enfrentamento com os proprietários e com os perso-
nagens externos que a eles se aliam. Neste sentido me inclinaria
a identificar nesse contexto a presença de elementos desagregadores
do sistema e a probabilidade do surgimento de urn novo tipo de
legitimidade
Ao se classificar como camponês, o trabalhador estaria assu-
mindo a sua condição de ator político, adquirida nas lutas sociais
das Ligas Camponesas e dos Sindicatos e que vem sendo repri-
mida há catorze anos. O termo camponês parece ter conservado a
significação política de que se revestiu nessa época, a respeito da
qual Julião (1968: 70) afirma: "Elle ['expression 'camponêsl] fit
son chemin sans se deformer, sans jamais perdre son contenu
idéologique ni sa signification politique (. . . ) les paysans eux-
mêmes, appelaient 'camponês' le compagnon loyal et courageux..."
O gue aí chama a atenção é a retenção pela memó,ria social de um
termo que evoca todo um conjunto de atitudes bastante diferentes
daquelas encontradas nos outros contextos, durante todo um pe-
ríodo em que permanecem fechadas as vias de participação política
dos trabalhadores rurais.
NOTA
o
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BIBLIOGRAFIA
WEBER, Max
1964 Economía y Sociedad. México: Fondo de Cultura
- Económica.
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Este trabalho é uma reediçáo do que anteriormente foi publicado como
Comunicaçâo do Programa de Pós-Graduaçâo em Antropologia Social.