LEANDRO MONTE NEGRO SANTANA
APRESENTAÇÃO E EXALTAÇÃO DE JESUS NO PRÓLOGO
DO QUARTO EVANGELHO
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Pós-Graduação de Teologia da
FAECAD – Curso de Pós-
Graduação em Teologia do Novo
Testamento.
Orientador:
Professor Mestre Cláudio
Márcio Pinheiro Martins
RIO DE JANEIRO - RJ
2017
2
SUMÁRIO
Introdução
1. Estágio atual dos estudos do Quarto Evangelho (QE)
2. Delimitação da abordagem – João 1.1-18
3. Os títulos atribuídos a Jesus
Logos
Luz
O Unigênito do Pai
Ninguém jamais viu a Deus
Considerações finais
Referências bibliográficas
3
Introdução
O Evangelho Segundo João é uma das mais belas obras literárias e
teológicas já produzidas. Ele tem servido como ponto de partida de inúmeros
estudos para novos crentes, para crentes experientes, e ainda é tema de volumosos
livros de comentário e de estudos teológicos avançados.
Numa época tal qual a que vivemos hoje, quando a Verdade deu lugar à
verdades, que Conhecimento deu lugar a Incognoscibilidade e que a Singularidade
do Amor Divino foi transformada em trivialidade, deve-se considerar
minimamente útil oferecer mais uma abordagem, mesmo que breve, sobre o
evangelho mais cristocêntrico legado pelos primeiros cristãos.
O Quarto Evangelho (QE) quer produzir certezas, fé única num Deus
único para uma salvação total (João 20.31). Se escrito em nossos dias, o quarto
evangelho seria tachado de intolerante, tendencioso e pretensioso em suas
afirmações sobre fé, verdade, homem e Deus. A mentalidade pós-moderna não
pode tolerar um livro como esse, pois ela tem como marca ser assistemática,
pluralista, relativista; justamente por isso, existe uma grande similaridade entre a
mentalidade dos homens do primeiro século – para quem João escreveu seu
evangelho – e a mentalidade dos homens hodiernos.
Temos, hoje, muitas vozes dissonantes, muitas ideias contrárias, muitos
caminhos, muitos deuses, tal como outrora. Se João escreve de maneira enfática
sobre Jesus, apresentando-o como o Messias/Cristo, o Rei, o Cordeiro, o Profeta,
Filho Unigênito/Único, sendo ele mesmo Deus, que revela plenamente a Deus e
diante dele estava antes do Princípio é porque esses eram temas importantes para
os homens da época; e também são imprescindíveis para os nossos dias.
João considerou a singularidade de Jesus como uma questão de suma
importância, por isso todo seu evangelho não é um simples retrato histórico, mas
um tratado teológico que visava demonstrar em que e o quanto Jesus era superior
a tudo o que se podia (pode) crer e pensar. Assim, toda obra é permeada por uma
revelação, comparação e exaltação da pessoa de Jesus, como se tentará demonstrar
nas próximas linhas.
4
1. Estágio atual dos estudos do Quarto Evangelho (QE)
Antes de se fazer uma tentativa de interpretação de um texto, qualquer tipo
de texto que seja, é necessário que se investigue alguns elementos constitutivos
desse mesmo texto, bem como se faça algumas considerações sobre o contexto, as
circunstancias, as motivações, os objetivos, os interlocutores envolvidos e uma
série de outros elementos que se nos apresentam pelo próprio texto e pela
atividade interpretativa, os quais podem ser percebidos de forma menos ou mais
conscientes (e consistentes).
Por isso, antes de falar propriamente do Prólogo joanino e de como este
apresenta e exalta a Jesus Cristo, julga-se importante falar sobre o próprio
evangelho. Isso quer dizer que se abordará brevemente as questões que há séculos
elucidam e/ou ocultam aquilo que o apóstolo desejou transmitir, levando o QE
para o centro da controvérsia cristológica e da tensão entre História e
Teologia/Evangelho que sacudiu a cristandade nos últimos pouco mais de 150
anos.
O QE, como afirma Carson, deve ter sido incorporado aos outros três
evangelhos não muito depois de sua publicação, circulou não em um pergaminho
(como normalmente se pensa de todas as publicações antigas), mas num livro
(codex= códice), isto é, tinha folhas separadas, como nossos livros modernos e era
costurado ou colado em um de seus lados. A atribuição das autorias, para a
maioria dos estudiosos e comentarista, foi acrescentada aos textos não antes de
125 d.C., como uma forma de distinguir os quatros escritos conhecidos (juntos)
simplesmente como O Evangelho (CARSON, 2007, pg. 25).
Se hoje causa estranheza que um livro possa ser publicado anonimamente,
não é exagero pensar que isso acontecia também na época da publicação do
Evangelho. Qual seria a razão então dos quatro evangelhos serem anônimos? F. F.
Bruce1, sugere que isso é bastante revelador uma vez que os quatro evangelhos
canônimos podiam, a época de sua publicação, dar-se ao luxo de ser publicados
anonimamente, e isso era bem diferente dos evangelhos apócrifos, que começaram
a aparecer a partir da segunda metade do século II e que afirmavam (falsamente)
terem sido escritos por apóstolos ou outras pessoas ligadas ao Senhor. Conclui-se
1
F. F. Bruce citado por Carson (CARSON, 2007, pg. 69)
5
que os evangelhos eram anônimos porque seus autores eram pessoas conhecidas e
de autoridade.
Ao final do século II, a autoria de João só era negada pelos chamados
Alogoi2, isto é, os que rejeitavam a doutrina do logos. Mas, com o surgimento da
Alta Crítica e o surgimento do Iluminismo (século XVIII) viu-se um crescente
ceticismo tomar conta do cenário. Na Europa começou-se a questionar de maneira
incisiva a autenticidade, a unidade e a autoria de praticamente todos os escritos
bíblicos (CARSON, 2007, pg. 30).
Quão quanto por suas características o evangelho de João tenha gozado de
alguma consideração pelos acadêmicos europeus, uma vez que não traz, por
exemplo, expulsões de demônios e o sobrenaturalismo cru dos feitos de Jesus,
podendo esses ser reinterpretados não como ―maravilhas‖, mas, ―sinais‖ que
relacionados aos discursos bem podiam ter sido manipulados segundo as
necessidades narrativas, o que dava um ar mitológico ao texto. Não é de
surpreender, por isso, que a crítica tenha chegado à conclusão de que a Bíblia (e,
por conseguinte, o quarto evangelho) estava impregnada de mitos.
Um dos primeiros a chegar a essa conclusão foi David Friedrich Strauss, e
um dos mais notáveis foi Rudolf Bultmann, ambos preconizavam que os escritos
bíblicos continha muitos mitos, os quais eram ininteligíveis (ou inaceitáveis) às
mentes modernas e que não se podia apreender fatos históricos tanto em João,
quanto em qualquer outro evangelho, apenas se podia saber que Jesus existiu.
Mesmo que se possa dizer que a influência bultmaniana tenha diminuído é
preciso reconhecer que ela ainda se faz muito presente. Algumas razões para tal
diminuição foram: o abandono da ênfase numa influência gnóstica (mandaen),
dificuldades em relação à crítica da fonte, o repúdio ao antissobrenaturalismo
liberal e a mudança para abordagens literárias que levantam poucas questões
históricas (CARSON, 2007, pg. 31-42).
Do Novo Testamento, o mais antigo ―exemplar‖ de que se tem
conhecimento é justamente um fragmento de João 18, no qual se percebe apenas
algumas poucas palavras. Tal fragmento é chamado de Papiro 52 e foi datado de
uma época próxima a 130 d.C.. Há também o papiro P75, que também se data
entre 120-130, este contém uma porção ainda maior: João 1,1-13; 10; 14.8; 15-8
2
Alogoi é um adjetivo substantivado que a princípio significa pessoa sagaz, mas era usado pelos
ortodoxos para designar os que negavam a doutrina do Logos.
6
(MAZZAROLO, 2004, pg. 35). O que jogou por terra muitas das teorias vigentes
à época da descoberta que colocavam a publicação do QE em épocas muito mais
tardias (final do século II). Sobre o texto do quarto evangelho Konings afirma:
―não existe obra literária profana ou religiosa da Antiguidade
conservada de modo mais confiável que o Evangelho de João.
Nestas últimas décadas foram reencontradas cópias
manuscritas que datam do século II, menos de cem anos depois
da redação do Evangelho, o que é excepcional para esse tipo de
literatura.‖ (KONINGS, 2005, pg. 16)
Dessa mesma época também é a primeira referência de que se tem
conhecimento do texto do evangelho joanino. Tal referência fora feita por
Basílides (130 d.C.), um gnóstico, citando João 1.9 como um comentário de
Gênesis 1.3, segundo Hipólito3.
Há ainda um número considerável de citações e/ou afirmações que atestam
a antiguidade do evangelho e a autoria por João (o evangelista, filho de Zebedeu,
discípulo a quem Jesus amava). Eis algumas: o Evangelho da verdade, atribuído a
Valentino (140 d.C.); Herácleo/Heracleão, discípulo de Valentino, escreveu um
comentário sobre o evangelho de João (o primeiro de que se tem notícia); Justino
Mártir (morto em 165 d.C.) em sua Primeira Apologia 61.4-5 alude a João 3.3-5,
seu aluno Taciano, tal como Cláudio Apolinário e Atenágoras citam o QE como
fonte de autoridade; Teófilo de Antioquia (181 d.C) atribui a autoria do evangelho
a João.
É verdade que há ainda grande debate sobre a autoria de quase todos os
livros do Novo Testamento; e o evangelho de João não é uma exceção. Poucos
estudiosos defendem atualmente a autoria apostólica, preferindo pensar em termos
de uma escola ou comunidade joanina, e ainda, numa concorrência de vários
redatores a partir de algum material básico feito por João ou um de seus
seguidores. Dentre esses podemos citar: Bultmann (1941), Wilkens (1958),
Scnackenburg (1965), Brown (1966), Fortna (1970), Boismard e Lamouille
(1977), os quais apresentam a tese de uma sucessão de redações para a formação
do QE, cada um sob uma ótica pouco ou mais distinta do outro (MAZZAROLO,
2004, pg. 33-34).
3
Hipólito em Refution of Heresis, citado por CARSON (2007, pg. 26).
7
De modo, geral os comentaristas evitam enveredar nessa questão
limitando-se a fazer referência às dificuldades e tomando uma posição em geral
―neutra‖. Tal como faz Louis Morris em seu livro Teologia do Novo Testamento:
―Também devemos sempre ter em mente que, como exceção de
Apocalipse, todos os esses livros [evangelhos e cartas] eram
anônimos, e apesar de dizer que o nome do autor é João, não
diz qual João. Tudo isso significa que a questão da autoria é
confusa e difícil. Existem os que mantêm a posição
conservadora, enquanto outros consideram vários autores uma
hipótese necessária‖. (MORRIS, 2003, pg. 268)
Em nota de rodapé, Morris apresenta a posição conservadora fazendo
referência a E. Stauffer4 que afirma:
―temos base suficiente para atribuir esses cinco escritos
[evangelho, epístolas e Apocalipse] a um autor comum de
individualidade marcante e grande importância, e para
identificá-la com o apóstolo João‖ evidenciando na mesma
nota a posição de cautela do mesmo autor ―uma posição de
cautela: os escritos joaninos do Novo Testamento devem ser
atribuídos ao apóstolo João ou à sua influência‖.
Já se cogitou refutar as evidências externas recorrendo ao testemunho de
Papais, equivocadamente interpretado como a confirmação da existência de dois
discípulos chamados João: o apóstolo e o ancião que possivelmente seria o
escritor de Apocalipse. Ainda que a evidência de Papias seja ambígua (ou mesmo
equivocada para alguns estudiosos) uma interpretação mais acurada pode revelar
que ela é uma forte evidência externa à autoria joanina.
―Se houver a possibilidade de alguém de fato ser um
seguidor dos anciãos, eu investigaria os discurso dos anciãos, o
que André ou Pedro disseram, ou o que Felipe, ou Tomé ou
Tiago, ou o que João ou Mateus ou qualquer outros dos
discípulos disse; e coisas que Aristion e João, o ancião,
discípulo do Senhor dizem.‖ Papias, citado por Eusébio em
História Esclesiástica, citado por Carson (2003, pg. 71).
A maneira mais adequada de interpretar o dito de Papias, segundo Carson,
diferente do que fez Eusébio, é considerar que a separação entre os nomes das
duas listas é distinguir entre discípulos/apóstolos mortos (disseram) e
discípulos/apóstolo vivos (dizem). Reconhece-se, hoje, que Eusébio além de fazer
4
E. Stauffer em New Testament theology. London, 1955, pg. 41; em (MORRIS, 2003, pg. 268)
8
distinção entre apóstolo/discípulo e ancião – coisa que Papias não fazia – tinha
como objetivo refutar a autoria joanina do Apocalipse, vendo nessa interpretação
– a existência de dois homens chamados João – uma solução (CARSON, 2007,
pg. 71-72).
Claramente, o autor do evangelho declara ser ele mesmo o discípulo
5
amado (capítulo 21). Longe de significar arrogância, tal expressão é uma
declaração que revela humildade, mas tal sentido só pode ser depreendido a partir
de uma visão do que o Evangelho declara sobre a relação Amor–Pecado. Ser
amado por Jesus é o mesmo que ser um pecador que recebeu uma dádiva
imerecida, se essa é uma afirmação de humildade está em consonância com a sua
submersão na narrativa e nas palavras de Konings: respeitemos o anonimato do
autor (KONINGS, 2005, pg. 30).
O discípulo amado é o que se recosta ao ombro do Senhor durante a ceia
no cenáculo e faz a mediação da pergunta de Pedro a respeito do traidor (João
13.23), está aos pés da cruz e é incumbido dos cuidados da mãe de Jesus (João
19.26,27), é o que chega primeiro à tumba vazia (João 20.2-9) e pode ser
identificado como a testemunha que viu água e sangue jorrar da lateral do corpo
ferido do Cristo crucificado. A identificação do discípulo amado com João é feita
a partir de uma harmonização como os sinóticos: apenas os discípulos-apóstolos
estavam na ceia (Marcos 14.17), ele é alguém distinto de Pedro (João 13.23,24;
20.2-9; 21.20), não é nenhum dos apóstolos nominados em João 13-16, é um dos
que saem a pescar em João 21 e não é citado pelo nome, sugerindo-se que é um
dos filhos de Zebedeu, dos quais não pode ser Tiago devido ao martírio precoce
que este sofreu a mando de Herodes Agripa I (Atos 12.1,2), por isso, dos filhos de
Zebedeu só pode ser João. Tratando da autoria do QE, Carson discute de modo
mais demorado a evidência externa que trata a questão Papias–Eusébio e outras
concluindo pela autoria de João, o apóstolo, discípulo amado filho de Zebedeu
(CARSON, 2007, pg. 28; 69-82).
Mesmo que alguns não considerem tais evidências conclusivas, as somas
de evidências internas e evidências externas levam alguns dos mais proeminentes
estudiosos a opiniões divergentes. Brown, por exemplo, vê o discípulo amado
5
Não parece sustentar-se a interpretação de que a afirmação ―estas coisas‖ (João 21.24) refere-se
apenas ao trecho (capítulo 21) e não a todo o escrito conforme observa Carson (CARSON, 2007,
pg. 78).
9
como o apóstolo João, mas não o considera o autor do evangelho; Cullmann vê o
discípulo amado como o evangelista, mas não como o apóstolo; Barret, ignorando
a força das evidências afirma ter ―certeza moral‖ que não foi João o autor do QE;
Kümmel afirma que a autoria joanina é indubitável. Posto tudo isso, ainda parece
ser razoável aceitar como autor do QE o discípulo amado, que é ninguém menos
que um dos filhos de Zebedeu, aquele que viveu mais tempo, o apóstolo João
(CARSON, 2007, pg. 79).
Como já foi dito, a grande maioria dos estudiosos considera que o
evangelho de João seja o resultado de uma evolução e compilação de textos.
Utilizando-se da chamada crítica da fonte muitos autores, como Robert Fortna,
chegaram a encontrar fragmentações textuais as quais chamavam por vezes de
livros, fontes ou camadas. É preciso, no entanto, ressaltar que não há evidências
externas que comprovem a teorias de compilação. Os manuscritos mais antigos e
confiáveis demonstram os textos já em seu estado atual (ainda que muitos sejam
fragmentários), a unidade estilística é notadamente reconhecida, as ―fraturas
textuais‖ podem ser explicadas melhor pela unidade temática e/ou mudança
temática, pelo objetivo primário, pela ênfase teológica, pela disposição e arranjo
de material.
Também ganha importância trabalhos como o de Vern Poythress, que
busca demonstrar a unidade e a autoria única do evangelho a partir de um estudo
de conjunções e assíndetos. Ainda que se aceitas as especulações de autores
diversos em relação às camadas redacionais, às tradições, as fontes, aos livros e às
escolas/comunidades o estado atual do texto torna praticamente impossível
separar esses fragmentos (CARSON, 2007, pg. 43-44).
Sobre isso Carson nos aponta a posição de Kysar6 que declara:
―Se o evangelho se desenvolveu de maneira
semelhante à sugerida por Brown e Lindars, então está
completamente fora do alcance dos estudiosos e dos
historiadores de João produzir uma tentativa de prova de que
esse foi o caso‖.
Considerável parte dos estudos joaninos atuais aponta para a unidade
textual, ainda que isso não signifique necessariamente uma volta à posição
6
Kysar em The Fourth Evagelist and His Gospel: Na Examination of Contemporary Scholarship.
Augusburg, 1975, citado por Carson (CARSON, 2007, pg. 44).
10
ortodoxa. Essa ―unidade‖ deve-se a primazia de uma perspectiva sincrônica do
texto que não levanta questões sobre a história do texto, o estado da comunidade
joanina, a confiabilidade histórica ou mesmo fontes (livros) que possam ser
identificadas, antes, preocupam-se principalmente em como encontrar sentido no
texto como ele chegou até nós.
A partir dessa posição, Culpepper7 produziu uma das obras mais influentes
e amplas na qual, utilizando categorias retóricas e literárias, apresenta que o
significado se produz a partir do movimento mental que parte do texto ao leitor,
sem levar em consideração questões relacionadas a fontes, origens e autoria. Em
parte essa posição é verdadeira, contudo é preciso considerar o quanto essas
mesmas questões não estão subentendidas pelo leitor e o quanto esse conteúdo
implícito influencia (mesmo que secundariamente) a interpretação.
Para Carson, o trabalho de Culpepper é (apesar de não conter todas as
respostas às dificuldades que se nos apresentam no QE) um bom exemplo de que
as aporias não são necessariamente fraturas e assim, sugere que se deve olhar
novamente a posição majoritária da crítica em tomar como possível e certo o
acesso/existência de redações (livros) no evangelho de João (CARSON, 2007, pg.
64-69).
O evangelho de João, que nos primeiros séculos era visto como um
evangelho singular e espiritual, agora, passou à desconfiança do historicismo
exacerbado, até chegar à visão de ser um material ainda singular, construído a
partir do uso eclético de memórias, tradições e mantendo uma relação de
interdependência com os evangelhos sinóticos. Tal evangelho funciona como
instrumento de confirmação e introdução dos fieis, levando-os ao conhecimento
de quem é o Cristo. Reflete um conflito com o judaísmo, mas não é um tratado
sobre esse conflito, focando-se não nos que não fazem parte do grupo, mas
naqueles que ali estão (KONINGS, 2005, pg. 17, 35-36).
Também não é um escrito antijudaico – num sentido religioso – pois, ao
falar dos ―judeus‖, toma o termo num sentido de um grupo mais específico, um
grupo religioso oposto a Jesus, a seus ensinos, as suas reivindicações e ao grupo
de discípulos. João trata dos judeus com animosidade profética apontando que
7
Culpepper em Anatomy of the Fourth Gospel, citado por Carson (CARSON, 2007, pg. 40).
11
deles era o Cristo e que esses faziam parte do mundo que o rejeitou (v. 11 e 13)
(KONINGS, 2005, pg. 43-44).
Para Konings o evangelho de João é:
―[...] um evangelho para iniciandos e para iniciados.
Usa uma linguagem, uma terminologia específica, que os de
fora não entendem, com duplo sentido, ironia, mal-entendido
(§ 2.1.7). É um evangelho para os que têm a luz, a verdade (cf.
Jo 12,36), em oposição aos que vivem na mentira, nas trevas,
fora (§ 2.1.6).‖ (KONIGNS, 2005, pg. 51)
A comunidade cristã, audiência de João, são aqueles que o receberam, isso
inclui também judeus como não-judeus, pois são nascidos de Deus, não por
vontade humana. Esses são chamados a uma escolha, a uma confissão de fé e, se
necessário, até ao martírio. Isso é melhor desenvolvido no evangelho – ideia de
que os cristãos sofrerão – mas no prólogo já podemos ver a menção ao Messias
rejeitado.
Cullmann aponta que, ainda que os temas Servo Sofredor e Messias não
estivessem oficialmente ligados à época de Jesus, a ideia de um Messias Sofredor
pode ser verificada em diversos textos da época do NT. É importante notar que o
Servo Sofredor na literatura judaica em geral ora é interpretado como um
indivíduo, ora como uma coletividade e, potencialmente, como um remanescente;
agora na literatura cristã passa a ser reinterpretado somando-se todas essas formas
(CULLMANN, 2002, pg. 80-84).
2. Delimitação da abordagem – O Prólogo (João 1.1-18)
Na tentativa de apontar como a autoridade de Jesus é destacada no QE,
pretende-se abordar um trecho do primeiro capítulo, indo do primeiro ao décimo
oitavo versículo, isto é, a perícope conhecida como Prólogo. Tem-se plena
consciência de que toda divisão textual (capítulos, versículos e parágrafos) é
artificial e limitada, mas essa perícope já foi clara e amplamente apontada como
uma divisão válida uma vez que mostra uma regular unidade temática. Nela temos
a apresentação de Jesus iniciando-se a história com uma narrativa num tempo
muito distante daquele em que iniciaram os outros evangelistas, e exalta-se Jesus
como alguém superior a toda experiência e expectativa de seus leitores/ouvintes.
12
O prólogo antecipa os temas que serão bem mais desenvolvidos em todo o
QE. É possível traçar os seguintes paralelos a partir do Prólogo:
Tema no Prólogo no Evangelho
A preexistência do Logos/Filho 1.1,2 17.5
Nele estava a vida 1.4 5.26
Vida é luz 1.4 8.12
Luz rejeitada pelas trevas 1.5 3.19
Mas não extinta por elas 1.5 12.35
Luz vindo ao mundo 1.9 3.19; 12.46
Cristo não é recebido 1.11 4.44
Nascido por Deus e não da carne 1.13 3.6; 8.41,42
Vendo sua glória 1.14 12.41
O Filho ‗Unigênito‘ 1.14,18 3.16
Verdade em Jesus Cristo 1.17 14.6
Ninguém viu a Deus 1.18 6.46
Muitas sugestões para se compreender e explicar o prólogo do QE já foram
feitas, desde a afirmar que se trata de uma interpolação feita por um redator
posterior, até a ser uma apropriação de uma poesia gnóstica (Trimorphic
Protennoia). Cuidando para não ir ao campo da especulação é possível dizer que o
prólogo é uma prosa rítmica, que sumariza o evangelho, podendo ter sido até
mesmo composto após o mesmo (CARSON, 2007, pg. 112, 113); e que, segundo
Culpepper8, tem uma estrutura quiástica assim organizada: 1.1,2 é paralelo de
1.18; 1.3 é paralelo de 1.17; 1.4,5 é paralelo de 1.16; 1.6-8 é paralelo de 1.15;
1.9,10 é paralelo de 1.14; 1.11 é paralelo de 1.13; 1.12a é paralelo de 1.12c; é
1.12b o pivô sobre qual o quiasmo gira. Konings também trata esse quiasmo
demonstrando como contribui para a formação de um painel dividido em duas
partes (KONINGS, 2005, pg. 75).
Todo o primeiro capítulo de abertura, mas em especial o prólogo, é uma
apresentação e exaltação de Jesus como um ser muito mais singular do que se
podia esperar, contrapondo-o às expectativas messiânicas e a toda experiência
religiosa, e filosófica, de seus leitores. Jesus é aquele por meio do qual fomos
feitos filhos de Deus.
O evangelho começa num tempo narrativo anterior a qualquer outro
evangelista. Mateus, logo após apresentar a genealogia da realeza de Jesus,
8
Alan Culpepper, NTS 27, 1980-81, pg. 1-31; citado por Carson (2007, PG. 113).
13
começa sua narrativa no nascimento; a narrativa de Marcos já nos mostra João
batista em franca atividade e o ponto de virada com o batismo de Jesus; por sua
vez, Lucas retrocede sua história indo para meses antes do nascimento de Jesus,
começando pela anunciação do nascimento de João e de Jesus. O QE começa no
princípio de todas as coisas (v. 1) – um tempo antes do Tempo.
Qualquer pessoa que conheça minimamente o texto de abertura do Gênesis
fará associação entre esse texto (No princípio era o Verbo; João 1.1) e aquele (No
princípio criou Deus; Gênesis 1.1). O autor começa sua apresentação de Jesus
desde a Eternidade Pretérita, apresentando sua revelação/encarnação (v. 4),
avançando para o início de seu ministério (v. 9), rejeição (v. 10) e (talvez) morte
(v. 5). Essa porção oferece bom material para se apontar como João aborda a
temática da Autoridade que é bem presente em todo restante de seu texto, no qual
Jesus é apresentado em contraste superior aos principais referenciais do judaísmo,
evidenciando que como o Cristo, que nos revela plenamente a graça, inaugura
uma nova relação com Deus (v. 12b) e supera tudo o que se tinha nesse sentido.
A cristologia joanina tenta explicar não apenas que Jesus é o Cristo, mas
também tem como objetivo dizer que tipo de Cristo ele é, para isso é necessário
que se utilize da fonte das expectativas messiânicas judaicas. Logo, não há
exagero quando se afirma que já no primeiro verso, o autor fornece a seus leitores
o pano de fundo e ponto de partida que se deve ter como referência para uma
melhor compreensão de seu evangelho: o Antigo Testamento (AT).
3. Os títulos atribuídos a Jesus
Para João, e por que não dizer para toda igreja do primeiro século, Jesus é
o centro da vida, o centro de tudo. Assim, sua cosmovisão é dominada não apenas
por quem Jesus é: o Cristo/Messias; mas que tipo de Cristo ele é. Por isso, a
cristologia primitiva buscava responder mais a pergunta qual a função de Cristo,
ao mesmo tempo, claro, que respondia à questão quem é o Cristo (CULMMAN,
2002, pg. 20). O QE parece muito mais preocupado em mostrar que tipo de
relação ele tinha com Deus, que tipo de reino e influência ele teria e, por fim, que
tipo de relacionamento passamos a ter com Deus por meio dele (v. 12, 13).
14
A teologia joanina é construída por meio de pares opostos (antíteses) como
luz e trevas, crença e descrença, céu e terra, carne e espírito; Jesus é o antítipo, os
proeminentes homens e elementos usados por Deus no texto veterotestamentários
(Moisés, Jacó, maná, etc.) são os tipos; isso é importante porque leva os leitores
não apenas a um conhecimento de Jesus, mas também a uma escolha antitética:
escolhe-se a imagem real (Jesus), ou, permanece-se com as velhas figuras (ZUCK,
2008, pg. 188).
Logos –
A declaração de abertura do evangelho é uma singular afirmação da
superioridade de Jesus ao declarar que ―No princípio era o Verbo, e o Verbo
estava com Deus, e o Verbo era Deus‖ (v.1). No prólogo, João refere-se 14 vezes
a Jesus como Logos (Verbo, Palavra), e não volta a fazer isso em nenhuma outra
parte do evangelho.
Essa é uma afirmação tripla da autoridade de Jesus. O Logos estava com
(pros) Deus, isto é espantoso, pois ele tem a dignidade de estar junto a Deus; o
Logos estava com Deus, isto é autoritativo, pois ele estava antes de qualquer outra
coisa estar; O Logos era Deus, isto é, não apenas era digno e eterno como Deus
(distinção), mas também era Deus (identificação). Só isso já devia ser escandaloso
ou sublime para uma audiência judaica.
A identificação entre Jesus (Filho) e Deus (Pai) não deve ser levada ao
ponto de anular a distinção entre ambos. Estando pros (com) os Verbo é distinto
dele. João não estabelece aqui as fronteiras dessa distinção nem discute a natureza
de Cristo, mas eleva o Verbo à categoria e dignidade de Deus, pois ele está onde
ninguém pode, e nem poderia, estar.
Muito já se discutiu sobre o Logos9 joanino. Por muito tempo os
estudiosos tentaram aproximar o logos joanino do logos da filosofia grega, ou
mesmo da filosofia judaica representada por Fílon de Alexandria, e também dos
targuns (o de Jônatas, por exemplo). Harris salienta que os panos de fundo grego e
judaico são importantes, haja vista que João escreveu para um público
familiarizado com esses pensamentos e que de alguma forma seriam projetados
sobre o texto. Curiosamente, a audiência de João não recebe uma orientação direta
9
Veja a questão melhor discutida em CARSON (2007, pg. 114-118) e KONINGS (2005, pg. 22).
15
sobre qual deve escolher (essa já é uma questão antitética!); entretanto, qualquer
que fosse o pano de fundo escolhido, deveria ser superado (ZUCK, 2008, pg. 212-
213).
A resposta mais satisfatória à pergunta (qual o background para se
interpretar o logos joanino?) tem sido dada usando como pano de fundo o AT.
Embora Morris não seja conclusivo quanto ao pano de fundo veterotestamentário
(MORRIS, 2003, pg. 270-272), Carson diz que esse deve ser o background mais
adequado:
―O pano de fundo fundamentalmente judeu, bem
como o do Antigo Testamento, no evangelho de João é cada
vez mais reconhecido. O que chamamos de
Antigo Testamento é o que ele repetidamente cita e ao que ele
repetida e explicitamente alude (e.g. com referências ao
tabernáculo, à escada de Jacó, ao poço de Jacó,
ao maná, ao sábado, e assim por diante). A grande exatidão das
observações topográficas do evangelista, todas da Palestina,
comprovam, pelo menos, exposição ao
pensamento judeu da Palestina.‖ (CARSON, 2007, pg. 60-64)
A essa mesma conclusão chega Konings ao afirmar que:
“[...] os destinatários de João, em grande parte de
tradição semítica, percebiam o substrato bíblico. Nós hoje
precisamos da análise histórico-literária para descobrir o
sentido semítico, oriental, presente como fermento na massa do
texto joanino [...]”. (KONINGS, 2005, pg. 22)
Ainda que seus leitores tivessem em mente outros conceitos de logos e em
certa medida fizessem uso desses conceitos para compreenderem o logos joanino,
o sentido mais provável é o que relaciona esse logos preexistem com o conceito
veterotestamentário Palavra/Lei e Sabedoria (Provérbios 8.22-30; Salmo 33.6;
Jeremias 1.2, 4; Ezequiel 1.3; Oséias 1.1; Isaías 2. 3; 55.11; Gênesis 1.3). O Logos
joanino deve ter soado familiar e espantoso ao ouvido de seus primeiros leitores.
Se por um lado aproximava-se da filosofia grega, distanciava-se dessa porque fez-
se carne, e matéria; se aproximava-se do logos da filosofia judaica, mas afastava-
se pois trazia o escândalo de ser Deus e ao mesmo tempo distinto dele.
Foi por meio do Logos que todas as coisas foram feitas (v. 3), isso é
afirmado positivamente e negativamente para que não haja qualquer dúvida que
ele é o agente Criador de Deus, a Palavra por meio da qual tudo se fez. O Pai e o
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Filho fizeram todas as coisas e, mais à frente, no Evangelho, veremos que esse
trabalho continua já que o Filho declara que o Pai ainda trabalha (sustenta) e ele
também o faz (anuncia o Reino e redime; João 5.17).
O QE sustenta que a verdadeira imagem de Deus, e sua glória, foi-nos
revelada por Cristo e em Cristo. E isso só foi possível porque era e estava com
Deus. Ainda que a expressão Filho do Homem não apareça no prólogo é uma
ideia bastante recorrente nesse evangelho segundo Cullmann e está ligada a ideia
de Logos e preexistência, e por isso, Cristo é o homem celestial (CULLMANN,
2002, pg. 235-245).
Luz –
Jesus é apresentado como a luz que ―resplandece nas trevas‖, mas que não
é ―compreendida‖. A palavra luz aparece 17 vezes no QE; a maior parte delas faz
referência a Jesus. Embora luz seja uma palavra comum em diversas religiões, o
pano de fundo veterotestamentário parece-nos também o mais adequado para se
buscar o sentido aqui empregado.
Se João recuou seu início da história até o tempo antes do tempo, é
justificado se pensar que a luz a que faz referência é também uma luz antes da luz.
A identificação de Jesus com a luz cósmica criada é bem antiga e pode (e já o fez)
gerar a interpretações de que Jesus é uma criatura (de alguma espécie elevada) de
Deus e fazia com que o QE fosse preferido pelo gnosticismo (CARSON, 2007,
pg. 26).
Contudo, a identificação de Jesus com a luz cósmica não parece seguir da
frase em que está inserida (v.4). A luz é a vida, e a vida estava no Verbo; aqui não
parece ter alguma relação com Gênesis 1.3, visto que lá não há uma relação direta
entre a luz cósmica e a vida (humana) que só passa a existir a partir do verso 3.
Mas é ainda no AT que se pode encontrar uma possível direção para a melhor
compreensão da vida que é luz resplendente, porém é rejeitada. O evangelista
Lucas relata as palavras de jubilo de Simeão que ao ver o infante Jesus expressa
suas expectativas messiânicas chamando-o de ―luz para iluminar as nações‖
(Lucas 2.32); Mateus, também fazendo falando de Jesus, refere-se a ele como
―grande luz‖ que brilha sobre os assentados em regiões de trevas e sombra de
17
morte (Mateus 4.16). Os dois escritores parecem trazer como pano de fundo os
textos proféticos (Isaías 9.2; 58,8; 60.3,19).
A relação de Jesus e a luz que brilha sobre as trevas e ilumina os
homens/nações que creem está mais de acordo com a luz do Messias, isto é, a
salvação por ele trazida, do que com a luz cósmica da criação (CARSON, 2007,
pg. 120). Essa luz salvadora, mas rejeitada, é retomada e desenvolvida em vários
outros trechos do QE (João 3.19; 8.12; 9.5; 12.35-36, 46).
Ainda é possível discutir a abrangência do resplendor dessa luz. A
conclusão a que Carson chega é que seu fulgor ilumina um número limitado de
homens, uma vez que, ―todo o homem‖ é melhor compreendido por ―todo tipo de
homem‖ quando se olha a expressão a luz da proposta de todo evangelho:
salvação a um número limitado (aos que creem; aos que são enviados). A
expressão ‗Todo homem‘ se contrapõe ao exclusivismo judaico, e não deve ser
tomada como um universalismo, conclusão que contrariaria toda a sotereologia
joanina (CARSON, 2007, pg. 124).
A luz prenunciada por João (e aqui João alinha sua história com aquela
contada por outros evangelistas) foi incompreendida pelas trevas, e foi rejeitada
(não recebida) pelos de sua casa (os que eram seus), entretanto, a luz deu poder
(capacidade) aos que receberam de serem feitos – e não se fazerem –
filhos/feituras (tekna) de Deus.
O Filho Unigênito do Pai –
O Verbo tornou-se carne, isto é, armou seu tabernáculo (skênoô) entre os
homens, superando a habitação antiga – o Templo; e a ulterior (o Tabernáculo –
skênê); por meio de uma habitação semelhante a dos homens. Há várias possíveis
alusões ao AT nessa passagem, e uma não exclui a outra. João, além de referir-se
a entrada do Verbo na história humana nascendo de Maria, pode estar referindo-se
a profecias em que Deus promete katasênôsô (habitar, viver) entre o povo
(Zacarias 2.10; Joel 3.17; Ezequiel 37.27,28; Êxodo 34.6)
Alusões ao texto de Êxodo, nas várias oportunidades que Deus revela-se a
Moisés, já começam a aparecer. O Tabernáculo fora dado por intermédio de
Moisés; era no tabernáculo que Deus fazia-se presente sobre a Arca e na Nuvem
que pairava e tomava o lugar/tenda. O Verbo não é só a nova habitação de Deus
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(hebraico: sakan, miskan; termo pós-bíblico: skina= habitação; presença visível),
também é a mais perfeita habitação (CARSON, 2007, pg. 127-131), pois revela
plenamente a sua glória (hebraico: kabôd; grego: doxa). Embora o Verbo tivesse
glória ainda antes de tornar-se carne (João 17.5,24), manifestou sua glória por
meio de seus sinais, sua morte e sua exaltação (João 2.11; 11.4,40; 7.39; 12.16,23;
13.31,32).
Habitando entre os homens, o Verbo encarnado manifesta a sua glória.
Essa glória é a glória do monogenes10, isto é, daquele que é Unigênito e amado, (o
próprio) Deus 11 que é o único do tipo – o vocábulo filho (huios) não aparece aqui
nem no versículo 18; a palavra é traduzida, normalmente, por unigênito, ou filho
único, contudo seu sentido está mais ligado ao filho amado/querido usado para
traduzir o hebraico yâ hîd (Gênesis 22.2). O que João parece querer nos dizer é
que Jesus tem um relacionamento único com Deus (monogenes theos), e ele
mesmo é Deus e por meio da fé no ‗Filho de Deus‘ (huios) nos tornamos filhos de
Deus (teknon) (MORRIS, 2003, pg. 126, 278). Jesus sendo ―unigênito, Deus‖ é o
único que pode revelar quem e como Deus realmente é, não apenas por suas
palavras, mas também por meio de suas obras, as quais são transmitidas pelo
evangelho. Assim não se pode chegar ao conhecimento verdadeiro sobre Deus se
não for por intermédio de Jesus (KONINGS, 2005, pg. 83).
A glória revelada é semelhante àquela que fora vista por Moisés, mas
também é glória cheia de graça, ou verdadeiramente misericordiosa; mesmo assim
não foi percebida, nem aceita por todos (vv. 10,11). João acrescenta que se a Lei
foi dada a Moisés numa gloriosa manifestação de teofânica, agora, o Verbo em
sua plenitude nos manifestou sua graça e verdade, trocando uma graça por outra
graça (v.16), isto é, a graça da aliança anterior (a manifestação da glória e
misericórdia de Deus no advento da Lei), sendo substituída por outra graça: o
advento daquele que é Único (CARSON, 2007, pg. 134).
Ninguém jamais viu a Deus –
Os judeus tinham Moisés na mais alta estima. Foi ele o grande libertador e
primeiro legislador do povo, foi por meio dele que os hebreus tiveram as
10
Daniel Wallace sugere como melhor tradução: ―aquele que é Único, ele mesmo Deus‖; em
palestra ministrada na Escola Charles Spurgeon; disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=F4FIU3F2b7E
11
Tradução sugerida por Carson (2007, pg. 139-140).
19
maravilhosas experiências com Deus no deserto, receberam a Lei, o Tabernáculo e
a Arca; ele falou com Deus face a face (Deuteronômio 5.4; 34.10). Ainda assim,
João registra que ninguém jamais viu a Deus, isso depois de citar nominalmente o
próprio Moisés. O contexto aludido parece ser o do Êxodo quando Moisés pode
de alguma forma ver sua glória (Êxodo 33.17-23). Ainda que se afirme que
Moisés viu a Deus face a face (Número 12.8), isso é em algum grau uma figura de
linguagem. Contudo, claramente João declara que o Verbo revelou-nos o Pai (vv.
17-18).
A tensão entre Moisés e Jesus será retomada mais tarde (João 6.22-59),
aqui, no entanto, já podemos perceber que a autoridade de Jesus é posta como
superior a de Moisés – se esse não pode estar pros Deus, aquele esteve; e não
apenas isso, Jesus é apresentado como superior a própria Lei, visto que agora
graça e verdade foram-nos reveladas por aquele que é Deus (CARSON, 2007, pg.
134-135). Jesus revelou-nos de forma verdadeira e plena a Deus: um ser espiritual
(João 4.23-24), amoroso (João 1.12.30); e declarou-nos sua vontade (João 5.30).
O prólogo por si mesmo é uma forma de mostrar aos cristãos que travaram
contato com o evangelho de João, por si só, é uma revelação de Deus em Jesus
Cristo. O Prólogo prenuncia o que mais para frente se verá no evangelho, mas que
os leitores já tiveram oportunidade de ver e saber quando tiveram o primeiro
contato com Cristo e o evangelho, esses terão a oportunidade de ver a Cristo de
forma mais clara, compreendê-lo de forma mais nítida, vendo, assim, a Deus.
Considerações finais:
Por que afirmar a autoridade de Jesus? Para exaltá-lo acima das
expectativas messiânicas e redentoras dos homens do primeiro século e, por
conseguinte, de ―todos os homens‖. Fazendo com que o verdadeiro conhecimento
de Deus, a revelação de Jesus, como o Cristo, o Servo Sofredor e Cordeiro
Vicário de Deus, nos alcance, levando-nos a fé e consequente Salvação.
Quarto Evangelho é sabidamente aquele que rapidamente revela Jesus
como Deus, mas também é aquele que de forma recorrente evidencia a falta de
entendimento por parte das pessoas, incluindo os discípulos; disso resulta a ironia
joanina. Quem fala e convive com Jesus não sabe quem ele é, mas o
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leitores/ouvintes sabem e riem-se, jubilam-se, pois agora, num tempo pós-evento,
podem perceber aquilo que estava oculto.
O mistério da narrativa conduz o leitor, vendo de fora, a compreender mais
profundamente sobre Jesus, mas essa compreensão profunda nada tem que ver
com gnosis, na verdade é mais simples e acessível. Sempre esteve ali.
A contraposição de Jesus em relação a Moisés, a Lei, as Origens às
expectativas de redenção política, a observância da Lei, a eleição nacional, faz
com que tudo seja superado, visto que ele é quem mostra a face de Deus, é quem
dá vida, quem nos une como filhos a Deus, quem nos redime e vivifica. Ao
apresentar Jesus como a verdadeira imagem, das quais aquelas eram pálidas
sombras, a superação é inevitável.
Referências bibliográficas:
BÍBLIA. O Novo Testamento - Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri,
SP, 2002.
—. Shedd, Almeida Revista e Atualizada. 2. Edição: Russell P. Shedd.
Tradução: João Ferreira de Almeida. Barueri, SP: Vida Nova, 1997.
CARSON, D. A. O Comentário de João. 1ª. Tradução: Daniel de Oliveira e
Vivian do Amaral Nunes. São Paulo, SP: Shedd Publicações, 2007.
CULLMANN, Oscar. Cristologia do Novo Testamento. São Paulo, SP: Custom,
2002.
KONINGS, Johan. Evangelho Segundo João, Amor e Fidelidade. São Paulo:
Loyola, 2005.
MAZZAROLO, Isidoro. Lucas em João, uma nova Leitura dos evangelhos.
Porto Alegre: Gráfica e Editora Comunicação Impressa, 2004.
MORRIS, Leon. Teologia do Novo Testamento. 1ª. Tradução: Hans Udo Fuchs.
São Paulo, SP: Vida Nova, 2003.
ZUCK, Roy B. Teologia do Novo Testamento. 1ª. Edição: Roy B. Zuck.
Tradução: Lena Aranha. Rio de Janeiro, RJ: CPAD, 2008.