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Ponto de vista

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Os sentidos do silêncio

Eliete Eça Negreiros

Revista Brasileira de Psicanálise Eliete Eça Negreiros é cantora de


volume 50, n.4, p. 121-132 · 2016 música popular brasileira, ensaísta e
doutora em filosofia pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo FFCL-USP.

Resumo
Reflexão sobre diversos aspectos do silêncio, tanto na
filosofia quanto na música.
Palavras-chave
silêncio; som; verdade; conhecimento; contemplação;
sentido.

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O senhor sabe o que o silêncio é? É a possíveis e impossíveis sentidos em aberto,


gente mesmo, demais. ad infinitum, como no poema de Ferreira
(Grande sertão: veredas, João Guimarães Gullar, “Infinito silêncio” (2004, p. 489):
Rosa)

houve

A usência de som, ausência de palavras,


à primeira vista pode parecer que o silêncio
(há)
um enorme silêncio
anterior ao nascimento das estrelas
é ausência de sentido. É o antes do dizer,
do significar. Ou o depois: esgotada a lin- antes da luz
guagem, depois que tudo está dito, resta o a matéria da matéria
silêncio. Se assim fosse, seria um paradoxo
falar do sentido do silêncio e, ainda mais, de onde tudo vem incessante e onde
dos seus sentidos. tudo se apaga
Mas o silêncio abriga em seu âmago eternamente
várias modalidades de significação. Silên- esse silêncio
cio original, de onde nascem todos os grita sob nossa vida
sons. Silêncio da contemplação, quando e de ponta a ponta
aquietamos os pensamentos, silêncio a atravessa
interior, em que o olhar pousa em coisas estridente
sem nome, em formas e cores. Silêncio (Gullar, 2004, p. 489)
como esquecimento, quando aquilo que
foi é como se nunca tivesse sido. Silên- Agora vamos viajar por veredas que tri-
cio como repressão, quando calamos por lharam alguns pensadores, músicos e poe-
medo, quando não pensamos por medo, tas que se debruçaram sobre esse tema, sem
quando apagamos as palavras ou as engo- pretender abarcar sua amplidão, mas bus-
limos. Silêncio diante do espanto com o cando atalhos que iluminem alguns aspec-
que vemos no mundo. Na música, o silên- tos do silêncio.
cio funciona como uma espécie de limite,
separando os sons e possibilitando que se
distingam e definam as notas musicais, 1. O silêncio como conhecimento:
além de ser, juntamente com a duração, Plotino e a contemplação silenciosa
responsável pelo ritmo. Silêncio final – a
morte, silêncio-jazigo para onde tudo o Para Plotino, o silêncio é o estágio
que foi dito converge e é sugado, enigma mais elevado do conhecimento da reali-
que, ao mesmo tempo que é ausência de dade, ou seja, do Um, unidade que tudo
voz e das vozes que aquela voz continha,
instaura uma pluralidade de vozes ditas,
imaginadas, um coro de vozes, polifonia de

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Eliete Eça Negreiros

abarca sem sair de si. Quando o aspirante Tudo o que existe contempla, e toda con-
à verdade tem a experiência da unidade, templação é uma decorrência da própria
essa experiência é total e silenciosa. Atra- natureza das coisas e tende para o Uno:
vés do pensamento racional, diz ele, nós a contemplação é silenciosa, e tudo se dá
nos distanciamos desse centro e, através sem que haja esforço. A contemplação
da contemplação silenciosa, somos recon- acontece no silêncio e é silêncio, é o modo
duzidos a ele, podendo assim experimen- de ser de tudo, e por isso toda realidade é
tar a verdade. Essa experiência da verdade contemplação e silêncio.
é indizível e se caracteriza por um certo Pierre Hadot, no livro O que é a filosofia
abandono a esse centro primordial: ao que- antiga? (1999), explica que para Plotino a
rer falar dela, nos desligamos da unidade, realidade é gerada a partir de uma unidade
nos desdobramos e, assim, perdemos a primordial – o Uno ou o Bem – de onde
experiência. surgem níveis de realidade gradativamente
Em Plotino, a contemplação é o cami- inferiores: o Intelecto, a Alma e as coisas
nho que sai do Uno e a ele retorna: “A sensíveis:
compreensão deste caminho só se adquire
na caminhada, quando através da marcha O discurso filosófico de Plotino, para
percorremos todas as paisagens e vislum- todos os níveis da realidade, conduz a uma
bramos com os ‘olhos da Alma’ os segredos ascese e a uma experiência interiores que
ali guardados”, explica Gabriela Bal em seu são o verdadeiro conhecimento, pelo qual
livro Silêncio e contemplação: uma introdu- o filósofo eleva-se para a realidade suprema
ção a Plotino (2007, p. 27). Por meio da alcançando progressivamente níveis mais e
contemplação, somos levados ao silêncio. mais elevados e mais e mais interiores da
Apoiado na teoria das três naturezas, consciência de si. Plotino retoma o velho
apresentada por Platão no diálogo Parmê- adágio “somente o semelhante conhece
nides, Plotino caracteriza as três realidades o semelhante”. Mas isso significa para ele
primeiras: o Um, o Intelecto e a Alma. É a que é somente se tornando espiritualmente
partir dessas realidades primordiais, inteli- semelhante à realidade que se quer conhe-
gíveis e incorpóreas que é possível explicar cer que é possível conhecê-la. A filosofia de
todas as coisas. O Um, origem de tudo, per- Plotino revela assim, por outro lado, o espí-
manece em si mesmo, imóvel. Abaixo dele, rito do platonismo, isto é, a indissolúvel uni-
vem o Intelecto e, depois, a Alma. dade do saber e da virtude: só há saber em
A contemplação não é uma mera cate- e pela progressão existencial na direção do
goria existente no pensamento de Plotino, Bem. (p. 236)
mas é o seu próprio pensar. O todo está
presente nas partes e estas refletem o todo. O conhecimento em Plotino é visto
como uma ascese cujo primeiro passo acon-
tece quando a alma racional toma consciên-
cia de que ela não se confunde com a alma

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irracional, aquela que anima o corpo e que estrada que só se trilha sozinho, a jornada
é perturbada pelo prazer e pela dor. Diz solitária.
Plotino: “Restringe-te e examina-te”; “Tira Essa concepção de que o conheci-
o que é supérfluo […] não cesses de esculpir mento deve ser vivido e de que essa vivên-
tua própria estátua” (Hadot, 1999, p. 237). cia é solitária e silenciosa, podendo a razão
A alma racional é iluminada pelo intelecto apenas indicar o caminho, encontra-se,
e aí se inscreve o raciocínio filosófico e a numa outra dimensão, na ideia da busca
prática da virtude. Mas, além dessa ativi- do conhecimento do mundo, no samba
dade intelectual, a alma racional terá um “Vida”, de Paulinho da Viola e Elton
conhecimento de si, como se ela própria Medeiros (1975). O protagonista do samba
fosse o intelecto. Todavia, nesse momento é alguém a quem foi pedido um conselho
da ascese, ainda não chegamos ao ponto sobre o modo de viver, e o sambista diz que
culminante: há uma realidade transcen- só pode indicar o caminho, mas não pode
dente que é a experiência silenciosa, não dizer o que deve ser escolhido nem como
discursiva, a experiência do Uno, que é a será a experiência. A música começa e ter-
mais elevada e que é indizível, indivisível. mina com o elogio do silêncio – “Mais não
Essa experiência corresponde à contempla- se pode dizer”, “Mais eu não posso dizer”:
ção silenciosa, à total imersão do eu na uni-
dade, a ponto de não haver distinção entre Mais não se pode dizer,
ambos. É indizível e una, pois que, se se Nem eu, nem ninguém,
quisesse explicá-la, a unidade seria perdida, Você é quem deve colher
se dividiria com o distanciamento e desdo- Depois de semear também,
bramento causado pelo discurso. Diz Hadot: Você é quem pode rasgar o caminho
“Essa experiência é indizível e, ao descrevê- E fechar a ferida
-la, Plotino nada pode dizer sobre o Uno, ele E achar no seu justo momento a razão
descreve unicamente o estado subjetivo de De tudo aquilo que chamamos vida.
quem a experimenta. Contudo, essa expe-
riência é o que conduz realmente ao Uno” Vamos lá,
(1999, p. 241). Deixa o coração
Plotino distingue entre o ensino do Recolher os pedaços do sonho perdido
discurso e a experiência não discursiva: a Essa é a lei nos caminhos
teologia é discursiva, nos ensina, instrui Onde a ilusão e a dor
sobre o Bem e o Uno, mas o que conduz Fazem parte do primeiro artigo
ao Uno é a virtude, a purificação da alma, Traços comuns em nossas vidas
o esforço para viver a vida segundo o Espí- Não justificam um conselho sequer
rito. O ensino é uma orientação, indica em E logo eu que procuro
qual direção se deve ir, mas para se chegar
ao Uno, ao conhecimento mais elevado,
é necessário andar efetivamente por uma

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Eliete Eça Negreiros

Infinitas formas de amar e viver a respeito da verdade final, da natureza e da


Posso apenas declarar que o medo relação de todas as coisas” (2000, p. 48), a
É que faz a nossa dor crescer. arte que nos conduz ao Uno, ao Bem, Plo-
tino pergunta quais são as pessoas que per-
Mais eu não posso dizer. correm essa jornada solitária. Ele cita Platão,
que no Fedro diz que são aquelas pessoas que
O samba é a resposta do poeta a alguém “já viram todas as coisas ou a maioria delas”,
que está perdido na estrada da vida, sem e continua: “Esses, em seu primeiro nasci-
saber o que fazer, e que lhe pede conselho. mento, entram no germe de um homem que
O samba então é como uma iniciação aos se tornará um filósofo, um músico ou um
mistérios do mundo: na vida, há algumas amoroso. O filósofo toma o caminho ascen-
regras – a lei nos caminhos – que podem dente por natureza; o músico e o amoroso
ser ensinadas, mas cabe a cada um viver precisam de um guia exterior” (p. 45).
e decidir o que fazer. Podemos ver aqui o O músico é
topos plotiniano da jornada solitária, em que
a experiência do caminhante e a busca do facilmente comovido e tocado pela beleza.
sentido da vida só podem ser realizadas pelo No entanto é um tanto ou quanto lento para
próprio caminhante, só podem ser vividas e despertá-la em si mesmo, está muito aberto
não transmitidas. A verdade não tem receita. ao estímulo exterior; e assim como as pessoas
É experiência de cada um. Por isso, na can- nervosas são muito sensíveis ao ruído, ele o é
ção, o silêncio do sambista é o ponto mais às melodias e à beleza nelas contidas. Qual-
alto do conhecimento, pois é o reconheci- quer desarmonia nos sons e nos versos lhe
mento de que sua jornada é solitária e seu causa repulsa e ele busca o que tem ritmo e
encontro com a verdade é silencioso, único, estrutura harmônicos. (p. 46)
intransmissível e não pode ser ensinado. Por
isso o poeta diz: “Mais não se pode dizer.” Assim, o músico, segundo Plotino, tem
O não poder dizer, o silêncio, é o mais alto uma natureza muito sensível e impressio-
grau de sabedoria que o poeta alcançou, nável e está sujeito aos estímulos exterio-
depois de muito ter vivido e aprendido. res para poder alcançar o Uno e a beleza.
Ele precisa aprender a abstrair o elemento
material – a melodia e a harmonia – e
2.  músico, o amoroso e o filósofo,
O a encontrar os princípios que regem a
segundo Plotino música, pois a beleza está nesses princí-
pios, “devem ensiná-lo que aquilo que o
No Tratado das Enéadas, falando da dialé- encanta é, na verdade, a harmonia inte-
tica, “uma ciência que pode se pronunciar ligível e a beleza que há nela: a Beleza
universal e não uma beleza particular”
(p. 47). A excessiva sensibilidade do músico
o impede de encontrar a verdade.

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O amoroso tem uma espécie de reminis- ele a ascese em direção ao Uno, ao Bem.
cência da Beleza universal, mas não con- Nesse caminho, nos envolvemos num pro-
segue apreendê-la separadamente de um cesso de purificação, nos desapegando de
objeto belo. Ele é arrebatado pelas bele- tudo que não nos pertence desde o início.
zas visíveis, mas precisa aprender a não ser Quando nada mais pode ser dito, Plo-
tocado por uma forma corporal, mas sim tino recorre à metáfora do santuário para
por uma disciplina mental, aprender falar um pouco do encontro do cami-
nhante com o Bem:
a ver a beleza em toda parte e discernir que ela
é algo diferente das formas corporais, que ela O santuário representa a morada do inefável,
vem de outro lugar. Deve-lhe ser dito que ela local acessível apenas aos iniciados, ou seja,
se manifesta mais claramente em outras coisas àqueles que realizaram a conversão da Alma
como, por exemplo, numa vida digna, num e não se identificam com o sensível, mas que
sistema social bem organizado; e ele deve ser reconhecem ser este a imagem da realidade
educado para reconhecer a beleza nas artes, suprema, à qual converge o olhar. […] Per-
nas ciências e nas virtudes. Isso o acostumará correr o caminho que conduz ao santuário
a amar as coisas incorpóreas. (p. 47) é despojar-se das imagens e paisagens já vis-
tas, mesmo as mais belas e resplandecentes,
O filósofo, segundo ele, é naturalmente porque a verdadeira beleza não se encontra
atraído para as coisas elevadas: fora, mas dentro do templo. (Bal, 2007, p. 73)

Tem asas, por assim dizer, e não tem necessi- Plotino ensina de que modo aquele que
dade, como os precedentes, de se separar do entra no santuário pode ver essa beleza
mundo sensível. Ele se move para as alturas, imensa ali resguardada:
mas seus passos são incertos; de modo que
ele precisa apenas de alguém que lhe mostre Sim, que ele se volte e procure associar-
o caminho e o instrua, pois é desapegado das -se à sua própria intimidade, aquele que
coisas sensíveis por natureza. (p. 48) pode fazê-lo, abandonando a visão exterior
pelos olhos e não se interessando mais pelo
esplendor anteriormente entrevisto nos cor-
3. O viajante solitário e o santuário pos. Vendo-as, com efeito, essas belezas cor-
póreas, não é preciso se precipitar na sua
Os escritos de Plotino são como que um direção, mas sabendo que elas são apenas
guia ao viajante solitário na sua jornada em imagens, vestígios e sombras, é necessá-
busca da verdade, que afinal é uma volta rio fugir em direção àquilo de que elas são
à origem. Quando nos identificamos com imagens. Pois se alguém se precipita para
um determinado nível de realidade, diz ele,
somos atraídos para um nível mais elevado,
e assim vamos perfazendo juntamente com

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Eliete Eça Negreiros

elas querendo agarrá-las porque pensa tra- Quando penso na pequena duração de
tar-se do ser verdadeiro, este seria como minha vida, absorvida na eternidade anterior
o homem que tendo desejado agarrar seu e na eternidade posterior, no pequeno espaço
belo reflexo na água, como em alguma que ocupo, e mesmo que vejo, fundido na
parte conta um mito exprimindo-se através imensidade dos espaços que ignoro e que
de enigmas, penso, desapareceu no fundo me ignoram, aterro-me e assombro-me de
da água. (p. 74) ver-me aqui e não alhures, pois não há razão
alguma para que esteja aqui e não alhures,
A visão do interior do santuário se apre- agora e não em outro momento qualquer.
senta como enigma para todos aqueles que Quem me colocou nestas condições? Por
buscam a verdade. Dentre estes, o sacerdo- ordem e obra de quem me foram designa-
te-sábio não se contenta em compreender dos este lugar e este momento? Memoria
o enigma e o que este é capaz de revelar: hospitis unius diei praetereuntis. O silêncio
ele vive a experiência da unidade, a verda- eterno desses espaços infinitos me apavora.
deira visão, sabendo que a visão do inte- (1979, p. 91)
rior do santuário não depende de ele entrar
nesse espaço, mas pode se realizar sempre Pierre-Maxime Schuhl, no artigo “Le
que ele entra em si mesmo querendo reali- silence dans la philosophie de Plotin”
zar essa verdadeira visão, pois o verdadeiro (1968), escreve:
templo é imaterial e invisível e a experiên-
cia é indizível. Daí chegamos novamente O silêncio eterno da natureza produz em
ao silêncio como ponto máximo do conhe- Plotino uma impressão profunda; mas não é
cimento da verdade. “Aquele que viu sabe uma impressão de pavor nem de inquietude:
o que eu digo”, dirá Plotino (citado por a ausência de barulho se associa nele à ausên-
Bal, 2007, p. 77). cia de sofrimento e de esforço. É assim que a
criação das coisas por imitação das Formas se
faz no silêncio e sem cansaço. (p. 135)
4. Plotino e Pascal

Para Plotino, o silêncio, que corresponde 5. O silêncio na música: John Cage


ao movimento dos astros no céu, à harmo-
nia cósmica, não traz em si nada de assusta- O som é vibração, onda que se propaga
dor, diferentemente do silêncio pascalino, pelo espaço, atinge nosso ser e é captada e
carregado de inquietação e de pavor. Lem- interpretada por nossos ouvidos. Quando
brando a antológica passagem de Pascal nós representamos o som como uma
nos Pensamentos: onda sonora, estamos apontando para
uma certa periodicidade dessa vibração.
José Miguel Wisnik, em O som e o sentido
(2011), afirma que

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o som é o produto de uma sequência rapi- uma fundação cósmica: insemina-se cole-
díssima (e geralmente imperceptível) de tivamente, no meio dos ruídos do mundo,
impulsões e repousos, de impulsos (que se um princípio ordenador” (p. 33).
representam pela ascensão da onda) e de Digo que o som do mundo seria ruído
quedas cíclicas desses impulsos, seguidos de porque na música contemporânea essa dis-
sua reiteração […]. Não é a matéria do ar tinção entre som e ruído vai se dissolvendo.
que caminha levando o som, mas sim um Os ruídos passam a fazer parte da compo-
sinal de movimento que passa através da sição, são incorporados a ela e se transfor-
matéria, modificando-a e inscrevendo nela, mam em elementos da música, em sons.
de forma fugaz, o seu desenho. (p.17) Um exemplo da incorporação do ruído
na música é “Épico”, de Caetano Veloso
A onda sonora pode ser percebida na (1973), do álbum Araçá azul (em que o
natureza em duas grandes modalidades: a barulho do trânsito compõe o universo
que possui frequências regulares e que pro- sonoro no qual se desenha a melodia das
duz o som musical, com altura definida, e a cantigas que Caetano entoa):
que possui frequências irregulares e produz
o ruído, o barulho. O barulho do mundo. Ê, cidade
Vivemos imersos num mar de ruídos dís- Sinto calor, sinto frio
pares, atordoantes, e para sermos ouvidos Nordestino do Brasil?
já não falamos, gritamos: Vivo entre São Paulo e Rio
Porque não posso chorar.
Quem se dispuser a escutar o som real do
mundo, hoje, e toda a série de ruídos em Augusto de Campos, em O anticrítico
série que há nele, vai ouvir uma polifonia de (1986), falando de John Cage no poema
simultaneidade que está perto do ininteligí- “Cage: Chance: Change”, escreve que o
vel e insuportável. […] O jogo entre som e músico
ruído constitui a música. O som do mundo é
ruído, o mundo se apresenta para nós a todo em 1937 já dizia:
momento através de frequências irregulares e “enquanto no passado o ponto de discórdia
caóticas com as quais a música trabalha para estava entre a dissonância e a consonância
extrair-lhes uma ordenação. (pp. 33 e 53) no futuro próximo ele estará
entre o ruído
Já o canto é som, música. Conseguimos e os assim chamados sons musicais.” (p. 215)
por meio de certas músicas criar um uni-
verso sonoro harmonioso, com frequências, O som está envolvido em silêncio assim
alturas e intensidades definidas dentro do como o silêncio abriga a possibilidade de
barulho do mundo: “Um único som afi-
nado, cantado em uníssono por um grupo
humano, tem o poder mágico de evocar

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Os sentidos do silêncio 129
Eliete Eça Negreiros

infinitos sons. John Cage tinha no silêncio e não toca nada


um de seus temas capitais. Músico, poeta, a música é feita pela tosse
artista plástico, pensador, seu primeiro livro o riso e os protestos do público
chama-se Silence (1961). Diz Augusto de incapaz de curtir quatro minutos e alguns
Campos, a respeito do silêncio em Cage, segundos de
em “O profeta e guerrilheiro da arte inter- silêncio
disciplinar” (1998):
o silêncio sempre o interessou
Um silêncio carregado de significados, pro- (de fato, seu primeiro livro se chama
vindo, ideologicamente, da filosofia zen e silence)
musicalmente de Webern […]. O silêncio, e nesse sentido ninguém entendeu
como dimensão estrutural do discurso musi- melhor webern do que ele
cal, é fundamental em suas composições, por mais que os dois pareçam distantes
nas quais sons e ruídos se integram sem qual- e embora para ele sob outro ângulo
quer hierarquia. Mas o silêncio de Cage não o silêncio não exista:
é metafísico. É, antes, um modo de apro- “there is no such thing as silence”
priação do acaso, porque, como realidade “nenhum som teme o silêncio que o
acústica, não existe: “Nenhum som teme o ex-tingue
silêncio que o extingue e não há silêncio que e não há silêncio que não seja grávido de
não seja grávido de som.” (p. 134) som” (1986, p. 218)

A famosa peça de John Cage 4’33” é


uma constatação da presença ruidosa no 6. A linguagem e o silêncio:
silêncio: um pianista vai tocar uma peça, Merleau-Ponty e Sartre
mas fica com as mãos em suspenso sobre
o piano por 4 minutos e 33 segundos, sem Merleau-Ponty, em “A linguagem indireta
tocar nada. Ruidosamente, o público e as vozes do silêncio” (1980), faz a crítica
começa a se manifestar. A música sus- da noção clássica de linguagem, em que
pensa vira silêncio, que vira ruído e depois se pensa que o mundo poderia ser tradu-
música: o silêncio se transforma em ruído zido em palavras. Na época clássica, tanto a
e o ruído em música do mundo. Sobre essa linguagem verbal quanto a pintura tinham
peça, escreve Augusto de Campos: a pretensão de poder traduzir o mundo.
Mas, parafraseando o poeta-sambista Noel
em 4’33’’ (1952) Rosa, o mundo não tem tradução… Não
um pianista entra no palco temos de um lado o mundo e de outro a
toma a postura de quem vai tocar linguagem que o traduziria. A linguagem,
ao apropriar-se das coisas, nomeando-as,
imprime nelas a sua marca e acaba se refe-
rindo a si mesma, quer dizer, buscando

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130 Revista Brasileira de Psicanálise
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expressar o mundo, a linguagem fala de Jean-Paul Sartre, a quem Merleau-Ponty


sua própria natureza. Por isso, tanto as coi- dedica o ensaio antes citado, diz que o
sas quanto a linguagem carregam seu pró- homem,
prio silêncio. Nas coisas, na linguagem e
na relação das coisas com a linguagem há uma vez engajado no universo da lingua-
algo que é indizível. Nas coisas, porque a gem, não pode mais fingir que não sabe
linguagem não consegue penetrar em seu falar: quem entra no universo dos signifi-
âmago; na linguagem, porque há uma opa- cados não consegue mais sair: deixemos as
cidade de sentido, resultante do desejo de palavras em liberdade, e elas formarão fra-
expressar e da impossibilidade de fazê-lo ses, e cada frase contém a linguagem toda e
plenamente; na relação entre as palavras remete a todo universo: o próprio silêncio se
e as coisas, o silêncio se potencializa pelo define em relação às palavras, assim como
encontro desses dois silêncios e pelo desejo a pausa, em música, ganha o seu sentido a
de significação. partir dos grupos de notas que a circundam.
Mas assim como a linguagem carrega Esse silêncio é um momento da linguagem;
em seu âmago algo impenetrável, seu calar não é ficar mudo, é recusar-se a falar –
silêncio, o silêncio também carrega a logo ainda é falar. (p. 22)
possibilidade da linguagem. Se, quando
falamos, silenciamos, quando silenciamos,
falamos. Em Que é a literatura? (1999),

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Os sentidos do silêncio 131
Eliete Eça Negreiros

7. Tudo está dito A geração contínua de som e silêncio,


essa dialética entre o não ser e o ser, esse
O silêncio: página em branco do poeta, movimento perpétuo em que o silêncio
tela vazia do pintor, pausa antes do som. gera o som, que por sua vez está envolvido
Mas esse ponto zero tem em potência em silêncio e o gera, alimenta uma cadeia
todas as formas de vida, senão nada ali sonora e semântica infinita, que busca dar
seria criado, nada germinaria. Poderia ser sentido à vida, criar sentido, ainda que este
um abismo que sugasse qualquer intenção seja mera criação humana, para zombaria
de nascimento. Como disse o filósofo: por dos deuses. Termino citando o poema de
que existe o ser e não o nada? O silêncio Augusto de Campos “Tudo está dito” (1979,
não é o nada. Assim como o vazio con- p. 23), que contempla o dito e o não dito,
tém a possibilidade de todas as formas, o o som e o silêncio, pois, se tudo está dito,
silêncio contém a possibilidade de todos os nada mais haveria a dizer, no entanto…
sons. Como disse Cage: “There is no such
thing as silence.” E, no entanto, o silêncio Tudo está dito
é imenso e há tanta coisa a falar, um para- Tudo está visto
doxo, impossível falar tudo sobre o silêncio. Nada é perdido
Nada é perfeito
Eis o imprevisto:
Tudo é infinito.

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132 Os sentidos do silêncio
Eliete Eça Negreiros

Los sentidos del silencio The meanings of silence

Reflexión sobre diversos aspectos del silencio, tanto A reflection on several aspects of silence in both
en la filosofía como en la música. philosophy and music.
Palabras clave: silencio; sonido; verdad; conocimiento; Keywords: silence; sound; truth; understanding;
contemplación; sentido. contemplation; meaning; sense.

Referências
Bal, G. (2007). Silêncio e contemplação: uma introdução Negreiros, E. E. (2011). Ensaiando a canção: Paulinho da
a Plotino. São Paulo: Paulus. Viola e outros escritos. Cotia, SP: Ateliê.
Cage, J. (1961). Silence. Middletown: Wesleyan Univer- Pascal, B. (1979). Pensamentos. In Os pensadores (S. Mil-
sity Press. liet, Trad.). São Paulo: Abril.
Campos, A. de. (1979). Viva vaia: poesia. São Paulo: Duas Plotino. (2000). Tratado das Enéadas (A. Sommerman,
Cidades. Trad.). São Paulo: Polar.
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[Recebido em 8.9.2016, aceito em 22.9.2016] Eliete Eça Negreiros


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