100 Fábulas Fabulosas - Millôr Fernandes - Rio de Janeiro, Brazil, 2003 - Editora Record - 9788501066565 - Anna's Archive
100 Fábulas Fabulosas - Millôr Fernandes - Rio de Janeiro, Brazil, 2003 - Editora Record - 9788501066565 - Anna's Archive
FABULOSAS
Muitos e muitos séculos antes de Esopo, já havia lobos vestidos na pele de cordeiros,
estuprando inocentes. Muito tempo antes do homem se organizar em Estados, já existiam
lobos ferozes proibindo carneiros de beber sua água. 0 homem ainda não tinha pensado
em construir cidades quando raposas finórias e sem escrúpulos arrancavam queijos do bico
^Çil de corvos ingénuos. E quando o último homem apertar o último botão nuclear ain-
N fi»J da haverá sapos coaxando nos pântanos, cantando as glórias e a sedução do lodo.
100
FÁBULAS
FABULOSAS
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in 2013
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Millôr Fernandes
100
FÁBULAS
FABULOSAS
2ã EDIÇÃO
EDITORA
1 RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2003
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN 85-01-06656-7
CDD - 869.97
03-0216 CDU - 821.134.3(811-7
ISBN 85-01-06656-7
I Mudanças imutáveis 9
II A sabedoria dos grandes cálculos 11
III 0 enfrentamento 13
IV Holismo a bom mercado 15
V Cultura de massa 17
XV Sábias divergências 39
XVI O pagamento do devedor e a dívida do credor 41
XVII A generosidade das elites e a gratidão dos humildes... 43
XVIII O homem que dormiu no ponto 45
XX O antiquista 49
XXVI A perseguição 61
XXVII A sorte & o azar 63
XLII A rã e o boi 95
XLII1 A execução 97
O fogo 113
C A esperteza 225
i Mudanças imutáveis
A maneira dos... chineses
10
ii A sabedoria dos grandes cálculos
A maneira das... japoneses
11
por ser o mais rápido do reino. Mas, por mais rápido que seja, eu
também sou rápido. Se correr ao lado dele, acrescento minha velo-
cidade àdele. Seis pernas correm sempre mais do que quatro.
12
O enfrentamento
À maneira dos... chineses
13
Alcançando a pinguela, e compreendendo imediatamente o en-
trave, disse pro filho:
- Corre em casa com os pastéis de nata e entretém o nosso
hóspede, que eu fico aqui e, com a minha infinita paciência, en-
frento esse idiota que pretende levar vantagem em tudo.
14
iv Holismo a bom mercado
A maneira dos... tibetanos
15
Ao montar numa onça tem que atentar para o fato de que as duas
partes da natureza, a humana e a assim chamada selvagem, ainda
não estão perfeitamente unificadas. Pois a incorporação — se me
permite o jogo de palavras - só se torna perfeita no momento em
que a onça devora o cavaleiro.
16
v Cultura de massa
À maneira da... Seguridade Social
17
vi Amor com amor se paga
1. Os mistérios que existem entre marido e mulher, os dinheiros não dados, os pensamentos não
ditos, os códigos do livrinho de endereços, os telefonemas incompreensíveis na calada da noite
(ou mesmo no raiar do dia, por que não?), os pedacinhos de papel queimados no cinzeiro, toda
essa massa de desvios de intenção exige mais do que eu para explicações anímicas.
18
Dizendo isso, Ismael des-
maiou. Desmaiou e reviveu. A
tempo
E veiopassou.2
então a vez da mulher
cair doente, pois aos cônjuges o destino reserva sempre alternação
nas moléstias, para que possam repartir lealdades e sacrifícios. Os
médicos examinaram cuidadosamente Isaura e concluíram que
não era nada grave. Consequentemente (ah, os esculápios!), ela
começou a dar sinais de que não ia durar muito. Sentindo a morte,
chamou Ismael, o marido, e disse:
— Ismael, naquele dia, gravemente enfermo, você teve a co-
ragem de me confessar que tinha errado. Chorei. Mas quando
você pensava que eu chorava ferida por seus erros, na verdade eu
chorava ferida pelos meus. De remorso por não poder também
contar meus pecados na hora em que você partia para sempre. Se
você não podia levar pra outro mundo o peso de suas faltas, como
lhe dizer naquele momento que mais pecadora era eu, com isso
amargurando ainda mais o coração moribundo que se mostrava
19
tão nobre?3 Agora, porém, quando é meu fim que se aproxima, eu
lhe digo:
— Se eu morrer, como é quase certo, você vai naquele latão na
cozinha onde está escrito "Milho". Nele, eu pus um grão de feijão
por cada erro que cometi em relação a você. Mas só abra depois
que se instalar em mim uma absoluta rigidez cadavérica.
Dizendo isso, Isaura deu início a seu the end. Fechou os olhos e
principiou a falecer. Antes porém teve um lampejo, uma lembran-
ça. Abriu os olhos e disse:
— Ah, Ismael, ia me esquecendo; na lata há alguns feijões de
menos, porque, no outro dia, no teu aniversário, a empregada ti-
rou quatro xícaras para fazer a feijoada.
E morreu.
3. É muito comum tirar-se de uma verdade explicitada uma mentira absolutamente sincera.
20
vii A última vontade
À maneira dos... assírios
21
mento por tudo que havia feito na vida. E resolveu mudar seu
comportamento para com aquele que sempre o tratara como...
um pai. Pensou: "Não, ele nunca mereceu a maneira como eu o
tratei. Desta vez, a última, vou fazer exatamente o que ele pediu."
E, ajudado por empregados um tanto relutantes, pegou o cor-
po do pai e c atirou no lamaçal no fim da estrada.
22
viu Hi-Shin-Chon se inocenta
ou
A prova irrefutável
A maneira de... Fernando Collor
23
naturalmente em silêncio e temor, fixou-se desafiador sobre as
duas pernas, abriu os braços e ordenou com voz firme:
— Podem me revistar.
A multidão aplaudiu delirantemente.
24
ix As ligações (cirúrgicas) perigosas
A maneira da... cirurgia plástica
3. Podia ser qualquer outro veículo. Mas Seguro de Saúde é sempre uma ameaça.
26
x Ambições desmedidas
À maneira do... Crato de cratoleba
27
xi João sem medo
28
de um avô molancas e de uma avó cagarolas, sem falar que eles
próprios, pais, eram medricas e caguinchas - tudo sinónimos de
covardia que estão nos dicionários.
Entibiados, os pais resolveram soltar o filho no vasto mundo
que, ninguém duvida, é a maior universidade de terror.2 Não vol-
tasse antes de aprender a tremer feito varas verdes e se borrar na
primeira batida de janela durante a noite e pedir penico a qual-
quer moleque com uma atiradeira.
Assim, mochila às costas, João Sem Medo se encaminhou pro
local mais terrível do mundo - a apavorante Favela do Alemão.
No caminho - como acontece em fábulas — , foi atacado por três
tigres; Volta Seca e seus cabras marcados pra morrer, uma patru-
Ihinha da PM, e dois corretores de imóveis. João tratou-os com a
sua reação mais natural, que o vulgo chama bravura — espetou
um, derrubou outros, subornou os demais.
Continuou a caminhar, foi pra Zona Sul, onde encontrou uma
ipanemense típica, quatorze anos infestados, um biquini do tama-
nho de um Band-Aid, um par de seios que nem te digo e um par
de nádegas que vou te contar. João Sem Medo, não hesitando um
átimo, perguntou a ela:
— Justeza da natureza, onde é que fica a Pontifictícia Universi-
dade do Terror?
2. Depois da família.
29
- Ih, bem! - disse a jovem — , você está querendo aprender
medo e susto? Tou morando que você não tem a menor voca pra
isso. Isso, a gente ou nasce com ou nasce sem. De qualquer forma,
não é aqui não. É ali na entrada do túnel. Se chama Torre Rio-Sul:
tem planos do Metro abandonados, embaixo, e mesas do MaxinVs
abandonadas, em cima.
João Sem Medo encontrou logo a tal Torre (95 andares) e foi
falar com o Reitor, um senhor que se assustava pelo nome de
Drácula de Frankenstein da Silva Estripador. Assim que João en-
trou, oReitor apagou todas as luzes, mandou um raio artificial lá
fora e estertorou: "Buuuuuuuuuu!" João nem. E o Reitor disse:
— Você é justamente o homem de que estamos precisando. Ti-
vemos tanto sucesso na implantação do medo em nossa gestão,
que agora os nossos 95 andares e 1.300 salas estão vazias de alu-
nos, ocupadas apenas pelos filhos, descendentes indiretos, deriva-
dos e subprodutos do medo que implantamos. Você, como candi-
dato a catedrático de pânico, tem que nos ajudar, enquanto sofre
de desassombro, livrando-nos da demasia de espantos, calafrios e
cagaços que...
Nessa mesma noite João dormiu sozinho no salão principal da
Torre. Dormiu bem, apesar dos "Buuuuuuuus!" imensos, arrasta-
mentos de correntes, gargalhadas sinistras, pedidos lancinantes
de socorros, gemidos de dor de torturados e que tais. E a certa
hora da noite, quando o relógio dava exatamente doze eletroni-
30
cadas, João sentiu no corpo - tinha a mania de dormir nu - as
mãos acariciantes (falanges, falanginhas e falangetas) de um es-
queleto. João não teve dúvidas — abraçou o esqueleto e possuiu-o
ali mesmo, pois era necrófilo convicto. E dormiu abraçado com
ele/a, não o/a3 deixando ir embora. A luz do amanhecer revelou
que o esqueleto não resistira ao abraço de João - estava morto.
Logo os elementos aterrorizadores do imenso imóvel começa-
ram a entrar (alguns atravessando as paredes), se apresentando e,
ao mesmo tempo, se despedindo de João. Um morcego branco de
olhos sanguíneos falou por todos:
— João, depois disso nunca mais ninguém vai ter medo de nós.
Você nos venceu, liquidando o nosso líder. Adeus!
Nosferatu, o vampiro bicha, disse:
— Adeus, João, eu sabia que o clima tropical não ia dar.
Jack, o estripador, falou:
— Good-bye, master John, the fearless. Prefiro a senhora
Thatcher.
E um troglodita do antigo DOI-CODI ainda aconselhou:
— João, pense pra frente! Nada de revanchismo.
Nesse mesmo dia o Reitor organizou uma cerimónia no salão
principal do Rio-Sul e disse pra João:
31
— João, você nos salvou. Agora podemos trazer pra cá todo o
funcionalismo público do Estado, com sua terrível burocracia —
isso sim, é de meter medo. E você, pelo serviço que prestou, vai ter
exatamente o que veio buscar — vou lhe dar minha filha em casa-
mento.
Quando viu a filha torta do Reitor, os olhos vesgos da filha do
Reitor, o nariz inoperável da filha do Reitor, os gambitos da filha
do Reitor e os seios sacos-de-café da filha do Reitor, João come-
çou a empalidecer, depois a suar e por fim a gelar, soluçando pela
primeira vez na vida: "Mãiêê!"
32
xii Três economistas padrão
A maneira do... Planalto
34
— Eu o encheria de areia. Também
fácil de transportar, não tão fácil
quanto a palha, mas o quarto fi-
caria praticamente cheio. Pode-
ríamos também deitar sobre a
areia, ou usá-la como defesa,
atirando-a contra os olhos de alguém que nos atacasse.
— A ideia é boa — aceitou o professor e mais velho — , mas o
quarto ficaria praticamente cheio, não compactamente. Sem falar
que, cheio de areia, não poderíamos ficar dentro dele. Tem ideia
que resolva melhor a proposta do teste, Eusébio?
Eusébio, o mais barbudo, que já tinha tido tempo de pensar,
disse:
— Acho que sim. Eu encheria o aposento com água. Aí ele esta-
ria cheio, compactamente cheio. E nada poderia encher o quarto
mais rapidamente, pois bastaria deixar aberta a bica do banheiro
aí junto. E existe alguma coisa mais útil do que a água?
— Tem toda razão, Eusébio, na rapidez do processo e na utili-
dade do material utilizado. Se esqueceu apenas de pequeno ponto
negativo; morreríamos todos afogados. Tem ideia melhor, Ivan?
E Ivan, o mais bem-dotado de todos, respondeu docemente:
— Da maneira mais simples, mais rápida, da única maneira, no
momento, verdadeiramente útil de aproveitar o espaço, já que
mal podemos nos ver nesta noite que cai. Executo agora mesmo.
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Diante dos outros admirados, dirigiu-se até a parede, girou o
comutador e encheu o aposento de luz.
- Admirável! Perfeito! - disse o professor. - Realmente, nin-
guém pode viver sem luz, a luz é que alimenta o mundo, a luz é
que torna possível a saúde e a reprodução da vida. Sem falar que
podemos nos locomover dentro dela sem qualquer dificuldade. E
sem falar, também, na simbologia, pois a luz representa tudo que
é livre na...
Porém, antes que acabasse de falar, a polícia, que estava vigi-
ando o edifício há vários dias, vendo que havia luz na janela, inva-
diu o aparelho e fuzilou todo mundo.
36
xiv Narciso e Eco
37
Eco não seguiu atrás dele, mas, diz a lenda, foi definhando de
amor, definhando, até que dela ficou apenas a voz no ar claro da
manhã.
— No ar claro da manhã.
Mas, não tendo mais Eco a quem olhar,1 Narciso acabou olhan-
do a si próprio num lago, e ficou tão apaixonado pela própria
imagem, que saltou no lago pra se autopossuir. Conseguiu apenas
se afogar.2 Depois disso, uma bela flor nasceu no lago e todos pas-
saram a chamá-la de Narciso, mas já não adiantava mais nada.
Não adiantava mais nada.
1. Duplo sentido.
2. E inventar o narcisismo.
38
xv Sábias divergências
■
A maneira dos... siberianos
39
- Parem! Parem e prestem atenção às belezas infinitas das al-
tas discussões culturais!
Os alunos pararam e ouviram, até que um deles disse:
- Mas me parece que esses dois aí estão apenas se esculham-
bando.
40
xvi O pagamento do devedor
e a dívida do credor
À maneira de... Ibrahim Eris,
Grande Ministro da Grande Economia
41
sitava. Um observador social, que observava socialmente, não se
conteve, saiu de sua observação e disse a Gazara:
— Como pode um sexagenário se humilhar de maneira tão hu-
milhante ese curvar de maneira tão curvante pra conseguir que
um idiota lhe empreste umas míseras gotas de sua liquidez?
E Gazara respondeu:
— Não - pra mim foi fácil e nem senti a humilhação. Eu preci-
sava do dinheiro e vou pagar com juros. Mas os juros maiores, os
da humilhação, quem vai pagar é ele, quando quiser receber: terá
que andar de quatro atrás de mim um ano inteiro.
42
xvn A generosidade das elites
e a gratidão dos humildes
À maneira dos... sul-coreanos
43
clemência a Alá.4 Alá surgiu como o auxiliar do chibatador, que
lhe disse ao ouvido que, se desse todo o dinheiro que tinha, o
chibatador apenas fingiria as outras noventa chibatadas. Mas que
gritasse ainda mais pra que o povo em volta não percebesse a bar-
ganha. Omiserável concordou, a chibatação e os gritos continua-
ram cada vez mais fortes e mais altos, até se completarem as cem
chibatadas e o povo sair contente, porque agora, como todos ti-
nham visto, também os poderosos eram castigados, embora por
interpostas pessoas. No dia seguinte, o miserável estava outra vez
na sua esquina, quando viu passar o potentado cujo lugar tinha
tomado. Num ímpeto, atirou-se em frente ao homem e, ajoelha-
do, murmurou, com os olhos em lágrimas:
— Agradecido, mil vezes agradecido, meu louvado senhor; que
o céu o faça cada dia mais poderoso. Se o senhor não tivesse me
financiado com tanta generosidade, eu agora estaria morto com
aquelas cem chibatadas.
44
xvni O homem que dormiu no ponto
A maneira dos... mongóis
45
com meu amargo destino." Mas, assim que ele dormiu e começou
a roncar, a mulher, sabiamente, trocou o par de tamancos verme-
lhos que o amante holandês2 tinha abandonado no pavor da fuga
e botou no seu lugar um par de borzeguins dourados do marido.
— Ah! - exclamou Qian-Qnei alegremente, ao acordar de ma-
nhã. - Extraordinário! Bastou passar a raiva, pra que eu veja me-
lhor. Como é que eu fui confundir meus melhores borzeguins
dourados com um par de tamancos vermelhos? Devia estar mes-
mo muito fora de mim. Se agisse de modo precipitado, ontem à
noite, teria ficado completamente ridicularizado diante de minha
querida mulher.
46
xix A perda abstrata
À maneira dos... baianos
47
— Não, nada, estou só aborrecido. Perdi uma palavra.
— Uma palavra? Estava escrita num papel?
— Não. Não estava escrita em lugar nenhum. Só na minha
cabeça.
— Perdeu uma palavra que estava na sua cabeça? Perdão, se-
nhor, mas é um absurdo!
— É isso! Encontrou! Obrigado, meu amigo, obrigado.
48
xx O antiquista
A maneira dos... chineses
49
tiu, e, como não possuía mais nada além da casa em que morava,
trocou a casa pela bengala.
Daí em diante, Ong-Ong-Ung, em vez de supremo sábio, pas-
sou a ser chamado de supremo idiota, e, não tendo com o que
viver, nem onde morar, dormia no catre de Ing-Ing-Ong, andava
pelas ruas apoiado na bengala de Lin-Pin-Ton, e recebia esmolas
na tigela de Zing-Zang-Zeng. Mas jamais perdeu a esportiva.
50
xxi Na fronteira da esperança
51
xxii A caixa (ou lá que outro
nome tenha) de Pandora
52
Mas quando Prometeu ficou com o fogo na mão, orgulhoso de
sua bravata, Júpiter nem conversou. Puniu os mortais, vejam só!,
dando-lhes exatamente o que eles queriam - uma mulher! — só
pra eles aprenderem o que era bom.
Eali mesmo na praça, bonita como um chafariz e jorrando pipi
como um desses ornamentos arquitetônicos, surgiu Pandora.* As
exclamações, ao vê-la cair do céu, foram as mais naturais pos-
síveis:
— Olha o arco-íris!
— Que que é isso, pombas?
— Pombas? Bom nome pro bicho.
— Topless, olha!
— Que que ela tá escondendo na caixinha?
Sim, porque, além de todas as suas outras qualidades, Pandora
tinha uma caixinha negra, de forma triangular, que Deus (Zeus,
Júpiter) tinha lhe dado, recomendando que não a abrisse pra nin-
guém nunca, conservasse a sua - dela, caixa — virgindade, que,
aliás, pra maior segurança, vinha lacrada com um hímen epitelial.
Quer dizer, a intenção de Júpiter era fazer Prometeu casar com Pandora e quebrar a
cara. Mas como Prometeu nem deu bola, estava noutra, Júpiter, fulo dentro da roupa,
mandou pendurar Prometeu no Cáucaso, condenando-o a ter o fígado devorado por
um abutre durante 30.000 anos. Mas Hércules, o super-herói, matou o abutre e
libertou Prometeu 30 anos depois: o que dá 99.900% de diminuição de pena. Flagrante
incentivo à impunidade!
53
Mas sabe como é home, né? Sempre naquela de oprimir a mu-
lher. Tanto pediram: "Abre! Abre!" "Nenhum de nós tem ,uma
igual!" "Ih, o que que tem dentro? Aposto que nem você sabe" —
que Pandora hesitou, hesitou mas... Pois é, não resistiu mesmo,
quando um centurião, mais afoito, bolou uma forma carinhosa
que ia durar séculos: "Abre, meu bem!"
Pandora abriu a sua caixinha, e, pronto, os males do mundo
que estavam lá dentro - a luxúria, a inveja, o medo, o cheque sem
fundo e a impontualidade - escaparam todos e povoaram a terra
pra sempre. Pandora ainda fechou as pernas - onde tinha coloca-
do a caixinha - a tempo de reter a esperança, uma florzinha pe-
quenininha cor-de-rosa, muito suscetível, espécie de maria-sem-
vergonha.
Por isso, até hoje a Esperança só dá no escuro, e os homens
vivem atrás dela aos tropeções. Mas não desistem.
54
xxiii Onde nasce a hierarquia?
A maneira dos... chineses
1 Fazia parte do pragmatismo chinês, na dinastia Yuan, segundo Chen Yuanjing. Continua
sendo parte do pragmatismo de... (cala-te boca!), na dinastia... (bem, deixa pra lá).
55
xxiv Tudo não vale nada
À maneira dos... sírios
57
cados como leis e como de
cretos.
O Burro levantou
a cabeça.
- Mas isso garante
a ordem? Olha a bandei-
ra - Ordem e Regresso. E,
no entanto...
- Perdão, Alteza: Ordem e Congresso. Mas está tudo previsto
pra manter a ordem. As ordenanças são em ordem alfabética jus-
tamente pra não serem compreendidas pelos analfabetos.
- Estou achando você meio genial, perdão, meia genial, coma-
dre Raposa. Estou até pensando em você pro Ministério da Incul-
tura.
- Ora, ora, Majestadíssima. Temos ainda as novas diretrizes pra
aviação nacional. Olha só: Primeiro: Fica proibido a qualquer
avião voar fora do ar, como o nome indica.
- Maravilha!
- Segundo: Fica terminantemente proibido a qualquer avião
aterrizar sem rodas e subir sem asas.
O Burro abanou a orelha esquerda.
- Mas que subordinação extraordinária! - comoveu-se o
Leão.
58
— Calma, Sereníssima Alteza, porque agora tenho o projeto
para a denominação nominal do nome onomástico.
— Nome? - cogitou o Rei (no sentido de Cogito ergo sum).
— Claro, Majestade, a selva se multiplica em selva, e os animais
terão que ter mudados seus nomes próprios e impróprios. Aquele
de pescoço comprido se chamará Sapo; o Coelho se chamará Ele-
fante; oColibri, Hipopótamo; e o Hipopótamo, Boate.
— E eu, vou me chamar como? Vais deixar de me chamar de
Leão?
— Claro, Majestade! Vossa Alteza, de hoje em diante, será cha-
mado apenas pelo encomiástico: Sereníssimo e Majestático Impe-
rador das Selvas.
— Não é mau. Pra começar.
0 Burro levantou a orelha direita. 0 Leão reparou.
— Como é que é, Burro, você não diz nada?
— Nada tenho a acrescentar, Rei.
— Sempre haverá alguma coisa a acrescentar - disse o Rei.
— Não se pode acrescentar sabedoria à tolice. Esse pacto é
infactível. É como juntar a sua fome com a vontade de comer da
Raposa. Há que haver muita comida.
— Mas nem a Lei da Aeronáutica você achou boa?
— Acho boa, digamos, como lei. Mas interessa, se não temos
aviação, e se a aviação nem sequer foi inventada?
— Mas e quanto à onomástica?
59
— Ora, desde que o Homem é Homem, e o Burro, Burro, quem
chama Burro de Homem e Homem de Burro nem é Burro nem é
Homem - é um idiota completo. Mas quanto a chamar o Colibri
de Hipopótamo, dessa eu gostei. Revela um senso de humor ines-
perado.
61
Mas a ovelhinha corria era atrás de uma girafa, e pensava: "Eu
corro atrás dessa girafa porque tenho inveja desse pescoço longo,
eu, um animal praticamente sem pescoço."
E a girafa, que estava apenas fazendo o seu cooper matinal,
não dizia nada, porque a girafa é muda.
62
XXVII A sorte & o azar
ou
Botar a boca no mundo é perigoso.
64
xxvni É caindo que se aprende
A maneira dos... argentinos
65
xxix Odisseu e a Odisseia
ou Ulisses e a Ulisséia
66
— É permitida a entrada de suínos?
— Claro, taradão - disse a Efígie -, eu sou a ninfa Calipso Fac-
to e estou com a noite inteiramente livre.
Ulisses entendeu logo o que ela queria e foi aquele oink-oink-
oink anos a fio. E aí Ulisses disse pra ela:
— Bem, Calipso Facto, chega de oink-oink-oink, eu tenho que
ir.
E Calipso:
— Você mal chegou! Fica mais uns XII anos!
Então Ulisses se atirou de novo nas águas do Tirreno, refle-
xionando:
— Pô, essas donas são insociáveis, digo insaciáveis. E já estou
começando a ter saudade de comidinha caseira.
ENQUANTO ISSO...
67
todos os pretendentes com uma flecha per capita. Penélope ati-
rou-se-lhe nos braços, entusiasmada:
— Ah, meu amor, que emoção, tua porquinha não aguentava
mais.
E Ulisses:
— Oink, oink.
68
xxx As irrefutabilidades matemáticas
A maneira dos... circassianos
69
mesmo uma monstruosidade, uma proposta de infelicidade per-
manente para ambos; a diferença de idade é brutal.
- Como brutal? - disse Ney Sir. — Ele tem quatro anos, ela
dois. Uma diferença de apenas dois anos.
- Perdão, Grande Mestre, mas é espantoso ver o senhor defen-
der tão trivial matemática. Ele não é apenas dois anos mais velho
do que ela; ou melhor, isso não importa. O que importa é ele ter o
dobro da idade dela. Se não considerarmos isso, nos perdemos
numa aritmética pueril que, como sabe vossa sabedoria, foi o que
sempre fez a infelicidade dos indivíduos e dos povos. Hoje ele tem
quatro anos, ela tem dois. Mas amanhã ele terá oito, ela quatro;
depois, ele vinte, ela dez; em seguida, ele quarenta, ela vinte. E
quando tiver 60 nada poderá advir de bom para um homem, tão
idoso, casado com uma mulher que tem apenas trinta anos. Per-
doe-me, mas a diferença é demasiada. Aceita outra chávena?
70
xxxi Certas coisas figadais
A maneira dos... egrégios
71
lhe tirou o fígado. E ao ver que o ganso morria, concluiu sabia-
mente:
— Tongo tem toda razão. Se o fígado fora do ganso lhe faz
tanto mal, imagina se permanecesse mais tempo lá dentro.
72
xxxii O leão, o burro e o rato
73
ram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extrema-
mente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente
iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:
— Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha?
0 leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na
nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.
Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse:
— Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de
que concorda em que não podíamos suportar a presença de tama-
nha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas
não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava
mais o compadre burro. Me faça um favor agora - divida você o
bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro.
Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma delibera-
ção sensata.
Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu
o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o
corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza3 morto por
acaso. 0 leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato o
chamou:
— Compadre leão, está pronta a partilha!
74
O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde
deixar de cumprimentar o rato:
— Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você
chegou tão depressa a uma partilha tão certa?
E o rato respondeu:
— Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu
tamanho e o meu - é claro que você precisa comer muito mais.
Tracei uma comparação entre a sua força e a minha - é claro que
você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu.
Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha
— e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou
um intelectual, sou todo espírito!
— Inacreditável, inacreditável! Que compreensão Que argúcia!
— exclamou o leão, realmente admirado. - Olha, juro que nunca
tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o
tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?
— Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um
elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora
mesmo, com o burro morto.
75
xxxni A sopa de pedras
76
de pedra", disse Serapião. "De peeeeedra?", espantaram-se os ha-
bitantes daaldeia, em uníssono. "E pode sopa de pedra? Nóis num
comi sopa aqui tem mais di méis. Si dava para fazê sopa di pedra,
a gente toda tava toda limentada." Um demagogo presente apro-
veitou adúvida no ar e vociferou: "É como os eternos leguleios,
eternos prometedores de miragens, embaindo o povo do sertão
com falácias infantis, acenando para o povo com soluções mirí-
ficas enquanto palacianos governosos se locupletam com suas
gordas mordomias. Mas mesmo esses profissionais do engodo ja-
mais pensaram em proposta de solução alimentar tão estapa-
fúrdia!" Tomou ar e perguntou noutro tom: "Que é que você pre-
tende exprimir, dialeticamente, com sopa de pedra?" "Bem",
respondeu Serapião, um tanto intimidado, a sopa pode sê só di
pedra, né?, e inté qui sai boa. Mas se ôces mi arranja um pidacinho
de tocinho, um pezinho di cove, um naquinho di rapadura, aí dava
muito in mió, né memo?" "Qué qui há, Maneco, sem essa!", disse
então um pau-de-arara que tinha trabalhado em Ipanema duran-
te seis meses, pendurado num edifício da Vieira Souto, e por isso
era considerado o grã-fino da aldeia. "Sopa de pedra é sopa de
pedra! Não vem com subsídios que aqui não tem disso não. Você
falou em sopa de pedra; vai ser sopa de pedra! Pessoal, todo mun-
do fazendo sopa de pedra aí na praça!" Em poucos minutos, a pra-
ça estava cheia de panelas, caldeirões, chaleiras, terrinas e latas
fervendo com pedras. E cada um já procurava fazer sua sopa me-
77
Ihor que a do vizinho, com um sabor diferente: rocha, granito,
sílex, calcário, pedra-pomes, basalto, pedra-sabão, pedra-ume,
pedregulho. Mas terminou tudo numa grande decepção. Nenhu-
ma das sopas de pedra tinha o menor gosto de sopa. Pior ainda -
não tinha nem gosto de pedra. Foi aí que um caboclo mais imagi-
noso descobriu a única utilidade da pedra capaz de, naquele mo-
mento, satisfazer a todos os habitantes da aldeia. Tacou um para-
lelepípedo na cabeça de Serapião, que caiu ali mesmo e logo foi
apedrejado por todo mundo, morrendo dilapidado.
Como na Bíblia.
78
xxxiv Crime & castigo
A maneira dos... indonésios
80
xxxv A maior ambição
A maneira dos... hindus
seu mandato,3 achou que não bastava, que estava na hora de doar
também partes físicas de si mesmo. "0 que me pedirem, darei",
refletiu no fundo do âmago. Mas o deus Ghatsinbuva, que habita
exatamente no mais fundo recesso do âmago das almas, ouviu a
intenção do Governador e resolveu testá-la. Foi pra rua, disfarça-
do de cego, esbarrou com o Governador
e implorou:
— Ó Supremo, não sou um ce-
go de verdade, mas o pior cego é
o que quer ver. Bem que pode-
ríeis me dar um de vossos olhos.
81
— Um? — respondeu o Potentado. — Leva os dois pelo mesmo
preço: a graça divina.
Mas, no Nirvana,4 Ghatsinbuva sentiu remorsos. E embora isso
não seja sentimento apreciável em deuses, decidiu reencontrar
SharMey. Este esmolava numa rua, de óculos escuros, e o Deus o
abordou:
82
xxxvi O médico que ficou sábio
À maneira de... Catai
83
(Ill) Quando Shing-lun chegou em casa, morto de cansado, ras-
gado eferido pelos bambuais, o bom filho estudava à luz de
uma vela, mergulhado profundamente em Tratados de Ana-
tomia. Antes de desmaiar, Shing-lun reclamou:
— Mas estudando anatomia até agora? Se você quer le-
var a medicina a sério, tem que praticar o cooper e aprender
natação.
84
xxxvu A velhice e a sabedoria
ou
85
que lhe tenho, pelo temor de que, sabendo minha idade, você não
se casasse comigo. Na verdade, estou com 44 anos.
O marido enganado (antes dessa forma!) não se conformou,
mas, como todo o comportamento da mulher daí por diante foi
consistente com a idade que ela declarou (e durante o dia ela to-
mava todos os cuidados pra parecer mais jovem), ele foi levando.
Uma noite, porém, acordou, e a cara da mulher, de boca aberta e
algumas falhas de dentes aparecendo, lhe pareceu muito mais ve-
lha, horrendamente velha. Ele então foi até a cozinha, fez barulho
com as panelas, deixou uma tampa cair no chão, quebrou dois
pratos; quando a mulher acordou apavorada, gritando o que é
que era, ele voltou pro quarto e disse, calmo:
- Não é nada não, eu fui só assustar os ratos que estavam co-
mendo ofubá!
- Rato comendo fubá? - disse a mulher espantada. - Que
coisa estranha! Eu já vivi mais de 70 anos e nunca ouvi ninguém
dizer que rato come fubá.
86
xxxvin O testador testado
ou
A esperteza inútil
À maneira dos... tailandeses
87
— Bom, en-tããoo eu faa-ço a is his-tóória seer de diia e não
ca-caio no bu-bu-raco.
— Gomo assim? Tem que cair. Eu te joguei no buraco.
— Nãão see-nhor. Eu não ea-caio. Você pooode me go-gozar
poorque eu sou ga-ga-go, mas nããão voou ca-ir nuuum bu-bu-
raco de dia poorque não soou ce-ce-go iiim-bee-cil.
Todo o pessoal em volta caiu na gargalhada.
88
xxxix O luar dos destituídos
À maneira dos... maranhenses
89
- Ah, eu já tinha inté uvido meu pai fala - disse o maranhen-
se. — Mas nu Maranhão num tem não. Adispois antão que essa
famia do fio do coroné meu tio foi guvernadô, lá cada vez mais só
que só tem quartu minguante.
90
xl Vénus, a deusa da amora1
Dizem que Afrodite, Vénus, nasceu das águas, ou melhor, das es-
pumas suspeitas do mar da Ilha de Chipre, depois que Saturno ti-
nha lançado ali os testículos de Urano - e estão aí a pintura de
Botticelli e os logotipos da Shell que não nos deixam duvidar. Vé-
nus era linda de morrer, e, não bastasse, o marido, Vulcano, sabe-
se lá por que taras precursoras,2 fez pra ela, pessoalmente, uma
toga que a deixava (ainda mais) irresistível.
Plutão, ao ver aquilo, foi o primeiro a babar na gravata de ad-
miração:
— Pó, Vulcano. Cara, não estou puxando não; acho que você
acabou de inventar a permissividade!
Parece que sim, pois, pelo conteúdo ou pelo continente, Narci-
so, que ia passando, viu Vénus mordendo uma maçã, achou aquilo
sedutoramente ecológico e, indeciso entre a maçã e a deusa, co-
92
xu Ribamar tiro certeiro
93
privilegiado pra qualquer pontaria. Os amigos de Ribamar, como
faziam em tempos de jadis os aldeões medievais com suas filhas,
deixaram a ele a primícia do tiro. Ribamar ergueu sua arma à altu-
ra da mancha volátil, fixou bem o bicharoco, colocou-o bem no
centro de sua alça de mira, dormiu na pontaria e, pum!, não acon-
teceu nada! O pato continuou voando impávido, asas pandas ao
vento, sem mudar a rota nem dar a mínima para o espoco.
Ribamar baixou a arma sem olhar em volta, preparando-a para
novo pato e novo tiro, escutando os comentários, fingindo que
não:
Malvadeza: Nesta hora e nessa contraluz, não é possível acer-
tar em nada.
Soódré: Esses patos daqui são muito traiçoeiros. A gente calcu-
la que vão alterar o vôo e eles nos enganam - continuam sempre
em linha reta.
Masquiline: Realmente, essa indústria bélica nacional não é o
que dizem. Se fosse uma espingarda tcheca, não falhava.
Mantelo: Senhores, tenho a impressão de que não perceberam
que, neste instante, assistimos a um milagre - pela primeira vez
na história, estamos vendo um pato morto continuar voando.
94
xui A rã e o boi
96
xliii A execução
98
xliv A ideologia e a natureza
À maneira dos... verdes-abacate
99
xlv O Cavalheiro do Cisne
Na época ainda não havia gravador, mas não temos que duvidar
de que foram estas as últimas palavras do duque de Bouillon:
— Meu mui erótico conde Frederico Tetramundo, cuida com
extrema ternura de minha filha Elza, com seus seis aninhos.
Ao que o conde, compungido, jurou:
— Morra logo em paz, espantoso duque, que, em não mais de
dez anos, farei de sua filha um donzelão pra nenhum dragão pe-
dófilo botar defeito.
E assim foi. Uma década depois, o priápico conde encostou
Elza na parede e discursou tipo & género ninguém-é-mais-repul-
sivo-do-que-eu:
— Sei muito bem que nem instituto de
aposentadoria gosta de velho, mas ta-
mos aqui pro que der e vier, e você,
já que veio, tem que dar.
Elza, arfando as duas lindas es-
feras que a essa altura1 pos-
suía, redarguiu:2
100
- Que que é isso, conde? Desde menininha, a coisa com que eu
mais gostava de brincar era a sua dentadura e a sua peruca, em-
bora... -Dito o que, trancou-se no banheiro,3 enquanto o conde
gritava:
- Casa comigo, sacripanta; essa foi a última vontade do teu
E ela respondia:
pai!
- Veja se estou a fim de casamento branco, velho gaga. Eu
quero o meu.
E o conde:
- Gaga, eu? Você sabe com que eu estou batendo?
Resumindo: a coisa foi levada à decisão da Corte Suprema, isto
é, o Imperador, que arengou:
- Aqui está minha decisão, como sempre de uma equanimida-
de que me bestifica. Você só não casa com o conde Frederico, ô,
coisa fofinha, se encontrar alguém que o derrote num duelo sin-
gular. Mas não esqueça: em qualquer caso, não abro mão do jus
primae noctis.4
Chegados o dia e a hora do duelo, marcado o local no meio de
um bosque, na beira de um lago, Elza não tinha arranjado um he-
rói. Eaí, ninguém aparecendo para disputá-la, o conde, vestido de
101
negro, como convém a todo mau-caráter de novela, já ia levando
seu prémio (ela), quando surge no lago um cisne puxando um bar-
co, do qual salta um mancebo que, apregoando "Eu sou o Cava-
lheiro do Cisne!", mata o conde e ganha o corpinho cobiçado de
Elza de Brabante. Já na cama, Elza, naturalmente, quis saber quem
ele era, mas o Cavalheiro do Cisne respondeu apenas:
— Se você quiser viver comigo, jamais poderá tentar invadir a
minha privacidade.
Mas Elza não se conformou, e tantas vezes perguntou, que,
quinze anos depois, o Cavalheiro do Cisne não resistiu e confessou:
- Eu sou Sir Lohengrin. Sou um guarda do Santo Graal. Estava
de férias, mas agora tenho de novo que pegar o meu cisne do ho-
rário, que por acaso é teu irmão Gottfried, condenado a essa forma
pela feiticeira Ortrud, para maior grandeza das óperas de Wagner.
102
xlvi As grandes transformações
À maneira dos... chineses
103
frio, o condenado resolveu vestir um dos casacos que secavam
numa corda embaixo dum salgueiro. Meia hora depois, Sao-nwei
voltou para espairecer no jardim e se surpreendeu com aquela fi-
gura desconhecida sentada num banco:
- 0 que é que o senhor está fazendo aqui sozinho, general?
Imediatamente mandou o criminoso-general entrar, começa-
ram a conversar sobre a segurança do país e resolveram invadir o
vizinho Par-a-Guay, o que trouxe muita prosperidade à província,
com o desenvolvimento da indústria bélica e o aumento de milha-
res de empregos de soldados.
104
xlvii A pança dos
■
poderosos
A maneira dos... japoneses
105
— O ventre de V. Senhoria está cheio de sabedoria filosófica
que adquiriu no trato com os livros.
Tanaka balançou a cabeça, negativamente. E aí, Gen-ziug, o
mais velho dos assessores, disse:
— Um ministro de Estado deve ter sempre a pança cheia com
tudo aquilo alheio às necessidades dos tempos.
E Tanaka sorriu, conivente.
106
xlviii Entre o frio e o quente,
e o dentro e o fora
À maneira dos... coreanos
107
aceitaria um desafio perdido. 0 inverno este ano está muito gela-
do, e este é o dia mais frio do ano. Mas, com a natureza a meu
favor, se Vossa Senhoria quiser apostar o contrário, garanto-lhe
que, faça o que fizer, resista como possa, eu o obrigarei a entrar
em casa.
0 académico topou, foi para o jardim e disse:
— Vamos, obrigue-me agora a entrar em casa.
- Não posso! - respondeu Lin-Sen. - Confesso que não posso.
Já esgotei minha capacidade intelectual ganhando a primeira
aposta.
MORAL Quem não está bem por dentro nunca está bem por fora.
108
xlix Aquarela
À maneira dos... gaúchos
109
O doidão por presunto defumado fuçou nos bolsos e entregou
uma pataca ao magistrado. Mas este disse apenas:
— Você mesmo jogue com força a moeda na placa de ferro da
churrasqueira. — O acusado obedeceu, a moeda quicou duas ou
três vezes na chapa e caiu no chão. 0 magistrado então senten-
ciou:
— Pronto, considero que o som da moeda do presuntuoso paga
devidamente a fumaça do churrasqueiro. - Curvou-se, botou a
moeda no bolso e foi embora murmurando a palavra "honorários".
110
Dois gémeos díspares
À maneira dos... sarracenos
111
miadíssima. Não entendo o que você tira dessa dieta macroidió-
tiea- disse YI-EI.
- Pois venha comigo até o lago e verá a materialização do
meu espírito - desafiou El— El.
Os dois foram pro lago e logo (gostaram dojoguinho de pala-
vras?) EI-EI saiu lampeiro, caminhando sobre as ondas.
- Percebe? - disse irónico.
- Percebe? - respondeu YI-EI, já dentro de uma gôndola rica-
mente ajaezada, puxada por seis remadores núbios.
- Mas qualquer praticante de cooper sabe que caminhar sobre
as ondas faz um bem extraordinário ao espírito - argumentou EI-
EI, meio contrafeito.
- Porém, Tandrun Kofata, o gozador, provou que não há me-
lhor exercício espiritual do que contemplar seis remadores núbios
dando duro - respondeu YI-EI.
- Mas andar sobre as ondas faz uma cosquinha deliciosa na
planta dos pés - retrucou EI-EI.
- Ah, você também aprecia os prazeres do corpo? - gozou
YI-EI.
- Não estou falando com você, estou falando com meu umbi-
go - engrossou EI-EI, perdendo a esportiva e afundando.
112
u O fogo
114
lii O preço do pão
À maneira do... Iraque
115
Llll SÍSÍfO
116
— Eu nunca soube que você tinha tesão por mim, Sísifo.
— Eu não tenho - redarguiu Sísifo. - Eu não faço amor, faço
vingança.
Pra encurtar o papo; Sísifo ficou tão entusiasmado com sua
proeza, que a coisa lhe subiu à cabeça: acusou Júpiter de rapto,
sequestrou Tanatos,4 promovendo um longo período em que não
houve mortes. E até começou a querer se passar por Deus,5 imi-
tando otrovão, fazendo rodar um carro sobre placas de bronze.6
Bom, aí Júpiter não aguentou, precipitou Sísifo no inferno,
dando-lhe como castigo empurrar um gigantesco rochedo até o
alto de uma montanha muito mais gigantesca, rochedo esse que,
quando chegava lá em cima, rolava de novo montanha abaixo,
obrigando Sísifo a recomeçar a tarefa do ponto zero.
E quando Sísifo, cansado, perguntou a Júpiter quanto tempo
ainda ia demorar aquele inferno, Júpiter respondeu, sereno:
— Só até o fim da eternidade. Depois você pode voltar a cuidar
dos seus bois.
4. A própria morte, que, por causa desse nome grego, acabaria famosa
- e cara! - no divã dos analistas.
5. Quem não?
6. Devia ganhar o prémio de sonoplastia. Mas ainda não havia Oscar.
117
liv Os deveres da hospedagem
À maneira do... Gerson "Canhotinha"
118
lv O jatobá e os juncos
imenso Jatobá: "Que horas são, amigo?" "Eu não sou amigo e não
digo horas pra juncos encharcados", respondia invariavelmente o
Jatobá. Os juncos, humolhados,3 voltavam ao seu farfalho humil-
de, enquanto o Jatobá apregoava aos grandes companheiros das
matas a glória de sua cabeleira centenária. A vida é assim.
Mas lá chega o dia...
Esse dia foi de noite.
Um vendaval daqueles de
derrubar até torres de ar-
ranha-céu, se arranha-céu
119
já existisse. O Jatobá, cuja imensa galhada oferecia uma resistência
gigantesca4 às forças da natureza, veio ao chão num estrondo as-
sustador. chefe
0 dos juncos, vendo aquele desastre com o gigante,
todo mundo cai?" E a cadeira respondeu sem hesitar: "Eu não falo
com junco!"
120
lvi O cachorro e o trem
121
lvii O herói e o anti-herói
122
um copo. Avança pro Herói, aponta este revólver e o prende em
nome da Lei e da Revolução. Ele vai resistir, protegido por alguns
convidados que não sabem o que está acontecendo, mas você o
algema e o arrasta. As falas você improvisa. Toma o revólver e as
algemas.
— Xá cumigo — disse o já Delegado, com entusiasmado laco-
nismo.
E, realmente, meia hora depois, quando o copo quebrou, ele
entrou em cena com firmeza e dignidade, avançou pro ator mais
bonito e mais bem vestido, evidentemente o que lhe pareceu mais
heróico, e lhe apontou o revólver:
— Está preso em nome de Deus e da Revolução! - exclamou.
— Cuidado, ô cara - disse baixinho o ator -, não sou eu não.
— Como não é você? Ah, sei, é a Rainha da Inglaterra - res-
pondeu bem alto o Substituto, algemando o bonitão, encorajado
pelas risadas e aplausos da plateia, que a essa altura já sabia da
substituição.
— Calma, cara — disse, também baixinho, um gordinho2 que
estava do lado.
2. Como é comum no Teatro, e, aliás, na vida, o Herói era esse baixinho, gordinho e
velhusco. Mas dono da companhia.
123
- Comigo você vai comer o pão que o diabo amassou!
E mudando de tom, baixinho, pro ator:
- Essa eu acertei em cheio, hein, colega?
E saiu, arrastando o outro pela gola.
124
lviii O eqliino e o suíno
125
cavalo só não ganhou a próxima corrida porque estourou na reta
de chegada.
E acabou se encontrando dentro de uma salsicha com o porco
que tanto desprezara. Depois, os dois foram comidos e se trans-
formaram em adubo, e depois viraram alface e assim por diante.
126
ux Música, divina música!
127
e sedutora, enquanto o génio ia abrindo jaula após jaula e os ani-
mais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele pre-
vira. Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, ele-
fantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido,
envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que
o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal
— um tigre. Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolin-
do músico e música — e flauta doce de quebra. Os bichos todos
deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o es-
panto ea revolta de todos:
— Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime!
Por que você fez isso?
E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, per-
guntou:
— Ahn? 0 quê, o quê? Fala mais alto, pô!
128
i_x Os três porquinhos e o lobo bruto
(nossos velhos conhecidos)
129
zia tão bem — queria era descobrir a epistemologia da realidade
cotidiana.
Daí que um Lobo Bruto, que ia passando um dia, comeu os três
e nem percebeu o talento que degustava, nem as incoerências que
transitam pela alma cultivada.
130
lxi O espelho
131
Chiung não quis saber mais nada. Voltou pra sua vila sobraçan-
do o objeto encantado. A mulher e a filha vieram logo recebê-lo,
ávidas por presentes. Mas, assim que Mnin-Liu se olhou no espe-
lho, falou, amargurada:
— Quem é essa mulher maravilhosa que você trouxe pra morar
conosco? Estou morta de ciúmes. Você não precisava dar pra ela o
mesmo vestido que me deu.
O marido riu e disse:
— Querida, isso é um espelho e essa mulher é você mesma. 0
espelho funciona de acordo com princípios oftalmológicos lógi-
cos e pode ter superfície plana ou curva, esférica ou parabólica...
A mulher se olhou no espelho durante anos e anos, e a casa foi
ficando abandonada. Até que um dia, depois de ouvir o conselho
de um vizinho chamado Confúcio, ela guardou de vez o aparelho
refletor, dizendo:
— Vou me livrar disso, senão acabo ficando vaidosa, e aprovei-
to pra morrer logo, pois já está bem na hora.
Ttzing-Ttzing-Ttzing, a filha, a essa altura uma mulherona,
acorreu ao leito de morte e perguntou, dorida:
— Mamãe, diga-me a verdade: você está em seus instantes fi-
nais?
A mãe não pôde mentir:
— É, querida filha. Mas deixo pra você um objeto precioso,
guardado no armário da cozinha. É um espelho, e funciona, de
132
acordo com Newton, a partir de curvaturas que podem ser esfé-
ricas, cilíndricas e hiperboloidais, atuando sobre um foco em...
E chega; são minhas últimas palavras.
Ttzing-Ttzing-Ttzing nem esperou o último suspiro da mãe e,
assim que se viu na frente do espelho, perplexou-se:
— Que realismo o desse teu retrato, extinta mãe! Nem falta fa-
lar. Eficou até mais bonito do que você.
133
lxii O leão e o rato
134
muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, dei-
tando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato
vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um
enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá
explicar onde conseguiu (fábulas!). 0 Leão, ao ver o queijo, embo-
ra não fosse um animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
— Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete ma-
ravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo
com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha
natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata
nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar
o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida
você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para o Leão, a parte
do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato per-
cebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais
apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do
rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou
apenas com os buracos. 0 Leão segurou com as patas o queijo
todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o
rato pelo seu alto critério:
- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é
que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sem-
pre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os
135
súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se
arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que po-
dia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos
do queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que po-
diam os seus fracos pulmões:
— Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!
136
lxiii O cavalheiro rusticano
137
cabelinho na venta e foi encarar os amantes na porta da igreja,
lembrando-os de que adultério já era admitido pela sociedade lo-
cal mas ninguém lhes perdoaria o sacrilégio.
- Não é sacrilégio, sua ignorante - corrigiu Turiddu -, é sa-
cro-colégio. E depois, sem pecado não interessa.
Mas Santuzza não se conformou e berrou na porta da igreja:
— Eu vou botar a boca no mundo! - O que, aliás, já estava fa-
zendo, num soprano invejável.
Aí, depois de um intermezzo no qual a cortina do teatro fica a
meio, todos os personagens se encontram no bar, não sei se do
teatro ou da igreja.
Turiddu: 0 que é que você quer beber, Álfio?
Álfio: 0 teu sangue, traitore!!
Turiddu: On the rocks?
Álfio: Andante com brio, staccato e fulminato, cane male-
detto.
E juntando a ação às palavras (fora de cena, porque em cena
luta de punhal é o cúmulo do ridículo), Álfio liquida com Turiddu,
enquanto Lola, chorando, avisa ao público, numa ária de quinze
minutos:
138
LXIV Nas belbras da guerra de Tróia
Crimes e mais crimes
139
Egisto - Eu era muito mocinho naquela ocasião e ainda não
conhecia o significado pungente de uma libido desenvolvida, co-
mo agora. Além disso, sabe como é nesta Grécia antiga - meu pai
também tinha desestruturado meus irmãos, minha avó tinha feito
escabeche com meu avô etcétera.
Mas os dois não sabiam é que Agamenon não era bobo e tinha
deixado o menestrel da corte vigiando por trás da cortina. Aliás,
esse menestrel era o inventor da cortina, cuja ideia, a princípio,
não era decorativa, era ética. Não sabiam, mas ficaram logo sa-
bendo, porque o menestrel-repentista começou a cantarem todas
as praças:
Agamenon foi para Tróia
Como dá essa menina!
Criada como uma jóia
140
Nesse momento, Agamenon bateu na porta e disse: "Abram,
palhaços, e deixem de transar em minha própria cama!" De den-
tro, Egisto perguntou: "Como é que você suspeita uma coisa des-
sas de mim?" "Eu não suspeito não", respondeu Agá. "Estou aqui
com Cassandra, que trabalha no ramo da profetização." Ao que
Cassandra disse baixinho pra Agamenon: "E estou certa de que
desta não escapamos."
Dito e feito: os adúlteros saíram de dentro do quarto e, nus
como estavam, degolaram Cassandra e Agamenon com um ma-
chado e uma espada. E já iam saindo pé ante pé, quando foram
141
mentou: "Que é que eu posso fazer, mamãe?, o Oráculo de Delfos
mandou. Ordens são ordens!" E degolou os dois. Pra satisfação de
Electra, que batia palmas, cheia de energia, e aproveitou isso pra
inventar a eletricidade.
142
lxv Cão! Cão! Cão!
A maneira do... melhor amigo do homem
Abriu a porta e viu o amigo que há tanto não via.1 Estranhou ape-
nas que ele, amigo, viesse acompanhado de um cão.2 Cão não
muito grande mas bastante forte, de raça indefinida, saltitante e
com um ar alegremente agressivo. Abriu a porta e cumprimentou
o amigo, com toda efusão.3 "Quanto tempo!" 0 cão aproveitou as
saudações, se embarafustou casa adentro e logo o barulho na co-
zinha demonstrava que ele tinha quebrado alguma coisa.4 0 dono
da casa encompridou um pouco as orelhas, o amigo visitante fez
um ar de que a coisa não era com ele. "Ora.veja você, a última vez
que nos vimos foi..." "Não, foi depois, na..." "E você, casou tam-
bém?".5 Ocão passou pela sala, o tempo passou pela conversa, o
cão entrou pelo quarto, e novo barulho de coisa quebrada. Houve
143
um sorriso amarelo por
parte do dono da casa,
mas perfeita indiferen-
ça por parte do visitan-
te. "Quem morreu defini-
tivamente foio tio... Você
144
lxvi Sorab e Rustam
145
filho teu com o mesmo ardor,
valor, destemor, espírito trai-
çoeiro esanguinolência.
Depois de apaziguar
a princesa umas oito ve-
zes, Rustam pegou o gine-
te das onze e se mandou
de volta pro Irã, pensan-
do lá com seu cavalo: "Uma mulher é um ser inferior, pois só tem
duas patas." Inferior ou não, 22 meses depois a princesa teve o
resultado da soma dos fatores - um menininho horrendo que a
primeira coisa que fez foi lhe arrancar o bico do seio com uma
dentada.
— Que monstruosidade! - exclamou a princesa. - Um verda-
deiro animal - igualzinho ao pai! Eu não podia ser mais feliz!
Educado para aprimorar ao máximo a sua ferocidade, o prín-
cipe, aos dez anos de idade, já era o mais facinoroso canalha do
reino. Mas também muito curioso. Um dia, pegou uma espada,
apontou pro ventre da mãe e disse:
— Mãe querida, instrua-me sobre a ascendência imediata, mi-
nha linhagem, ou será logo desventrada e esquartejada.
Soraya, emocionada, falou:
— Sorab, meu filho, que peste você é. Nenhuma mãe poderia
estar mais orgulhosa. Só sei que o nome de teu pai é Rustam, o
146
Hércules persa, mas não sei se é louro ou moreno, pois não tirou o
turbante.
— Que revelação mais perturbante! Rustam, o odioso, é meu
pai? Rustam, esse nome temido em todo o mundo incivilizado?
Mãe nojenta, vou logo ao Oriente Médio, de passagem arraso o
Iraque com meu séquito de monges eróticos, e logo porei meu pai
no trono do Irã, como Aiatolá. E aí meu pai me dará cobertura pra
decapitar todo o Egito, a Arábia Saudita e o Líbano.
— Vai à guerra, meu filho - disse Soraya. - Tudo pela paz!
Mas, do outro lado, Rustam não sabia da existência de Sorab,
quanto mais de seus planos sangrentos. Enquanto continuava
matando e roubando, um informante se aproximou dele:
— Rustam, vem aí um exército de cem mil turquestãos coman-
dados por um anãozinho feroz.
Rustam ficou louco:
— Me diz onde é que os turquestãos estão, que eu mato esse
anão. Rimei bem?
Quando Sorab e Rustam se encontraram, diz a lenda, a luta du-
rou seis dias. Derrubaram uma floresta e arrasaram duas monta-
nhas. Findos os seis dias, Rustam propôs:
— Você não está nada mal, ô Nelson Ned do levante. Proponho
o seguinte: damos uma parada hoje e amanhã liquidamos com o
assunto.
147
— Concordo, ô barrigudo! - disse Sorab -, pois você também
não é nada mau em atrocidades.
E ia se afastando pra descansar quando Rustam atravessou ele
e cavalo numa estocada só.
— Ai, ai, ai — disse Sorab, morrendo — , eu, Sorab, filho do Hér-
cules Rustam e da princesa Soraya, nascido em 3 de maio de 655
a.M. (antes de Maomé ou de Millôr), em Krasnaiya, morrer assim, à
traição.
Rustam começou a gargalhar:
— Meu filho! Meu filho! Que morte bacana!
148
lxvii Tamanho é documento?
149
lxviii O fim da miséria umana-hurbana*
0 cabelo esvoaçando à brisa fresca do Corcovado, o Cristo de pe-
dra chorava. Um milagre?
Uma andorinha, só, parou.
- Eu estava por aí - disse ela pro Cristo — , mas, como uma
andorinha só não faz verão, vou indo pro Norte. Alguma coisa que
eu possa fazer pra interromper teu pranto?
— Daqui do alto eu vejo tudo - disse o Cristo. - Já não há mais
o meu Rio. O mar batendo quase aqui nos meus pés, as moças
passando lá embaixo sem a bunda de fora, os pobres conhecendo
o seu lugar — como era verde o meu vale. Mas eu ainda gostaria
de fazer alguma coisa pra ajudar pelo menos um carioca. Está
vendo lá embaixo aquele imbecilzinho? Coitado! Acabou a pilha
do super-rádio dele e ele carrega aquilo preso
na cabeça, sem poder chatear os outros
com a sua cacofonia. Arranca um dos
meus olhos, pintassilgo, e dá a ele,
pra que ele troque por uma pi-
lha nova.
A andorinha não entendeu
bem, sobretudo ser chamada
150
de pintassilgo, mas arrancou um olho do Cristo com o bico, voou
até lá embaixo e jogou o olho em cima do surfistão.
— Olhai, ô reles, um olho do Cristo. Vale duas pilhas: troca por
um metal pesado a nível de chateação coletiva — e voou de novo
pro Cristo: — Pronto, chefe!
— Que magnânimo esse teu volteio, bem-te-vi. Assim ele po-
derá continuar impondo a sua preferência estúpida a maior nú-
mero de passivos. Mais fascista do que isso, só o Trio Elétrico. Mas,
estou vendo agora... olha lá, uma jovem ocióloga...
— Ocióloga? - disse a andorinha.
— Ocióloga! Coitada, não pode terminar sua tese sobre as de-
terminantes das determinadas no aprofundamento das superfi-
cialidades urbanas, e, apesar dos seus vinte pe-agadês, vai ser
obrigada a trabalhar na caixa do Supermercado. Cambaxirra, pega
o outro olho meu e...
A andorinha obedeceu, arrancou o outro olho do Cristo e jo-
gou em cima da jovem grávida de saber:
— Torna esse olho do Cristo e troca por vinte bolsas de estudo e
uma da Fiorucci.
E enquanto a jovem ocióloga interrogava o dono do rádio pra
saber até onde aquilo era uma substituição do orgasmo masculi-
no, e o dono do rádio mostrava que ela estava enganada porque o
rádio era apenas um símbolo fálico em frequência modulada, a
151
andorinha voltava ao Cristo pra se despedir. Encontrou-o com um
sorriso beatífico e um brilho estranho no buraco dos olhos, por
onde se via o céu:
152
lxix Jonas e o peixe grande
que...
Deus pensou então que, se tais coisas aconteciam em Nínive na
calada da noite,3 coisas muito mais sérias deveriam estar aconte-
cendo no silêncio do dia.4 Imbuído de que devia fazer alguma coi-
sa, Eletonitruou!!!!:
-Jonas, ô Jonas!!!l
Jonas veio correndo, olhou lá pra cima5 e disse:
— Oquei, Boss, qualé?
Eo Senhor ordenou:
1. Todas as cidades antigas eram ruínas. Até hoje não se encontrou nenhuma nova.
2. Prós mais pudicos ou mais anglófilos - swapping.
3. Calada, a noite tão falada.
4. Deus continuava achando que sua maior criação era o Fiat Lux.
5. Segundo Dário Fo, o céu, naquele tempo, era bem mais baixo.
153
- Eu quero que você faça uma jeremiada contra Nínive.
- Então não seria mais próprio, vernacular e etimológico, cha-
mar oJeremias?
- Faz o que eu mando - rosnou o Senhor -, e não discute
questões semânticas, ou eu te ponho na Academia pra todo o
sempre!
Jonas não discutiu mais e começou a berrar:
- Abaixo Nínive! Morram os ninivanos! Fora os niniviados!
6. Em inglês, Oxford.
7. Dorme de halo.
154
— Olha aqui, rapaziada, tá difícil sair desta pelos meios técni-
cos de que dispomos neste pobre navio, nesta época do ano e nes-
te período da história. Ainda não conhecemos nem o astrolábio!8
O negócio é cada um rezar pelo Deus de sua preferência. Eu rezo
por Netuno, você aí por Anfitrite... - E, fixando Jonas, perguntou:
— Ei, você, cara, qual é o teu Deus?
— O verdadeiro, claro. Eu sou monoteísta!
A marujada, sem nem esperar ordem do comandante, pegou
Jonas e atirou-o no mar:
— Aqui dentro não queremos nenhum monetarista, senão o
barco afunda!
Atirado ao mar, Jonas foi logo engolido por um peixe grande. E
durante quarenta dias9 foi aquela luta: Jonas com medo de ser
posto pra fora do seu transporte e ter que enfrentar Nínive, e o
peixão doido pra se livrar daquele profeta indigesto. Mas, afinal,
achando que Jonas já tinha se arrependi-
do de sua fuga ao dever, Deus berrou
lá de cima:
— Vomita, Peixe Grande!
155
E, bem no centro de Nínive, o Peixe Grande vomitou Jonas, que
começou imediatamente a berrar:
— Eu venho a mando do único Deus verdadeiro e trago vossa
maldição, já! Saí de vossos bordéis, já! Abandonai as vossas tendas
de ópio, já! Largai o trissexualismo, já!
Os ninivelanos, apavorados, se prosternaram na praça e fica-
ram esperando o castigo, já! Jonas também.
Mas o castigo não passou no consenso entre o Senhor e alguns
arcanjos meio permissivos. E Nínive foi poupada por mais um pe-
ríodo. Jonas, indignado, ficou bradando aos céus:
- Como, nem uma praguinha de gafanhotos? Qual, nem uma
enchente de quarenta dias? Como, nem uma sarça ardente? Ora
essa — nem um rio de fogo? Você tá ficando mole, velho. Pelo
menos dá alguns desses caras prós peixes.
Mas o Senhor lhe respondeu apenas:
-Você pensa que está indignado com eles, mas na verdade
quer é se afirmar comigo, seu Criador. Não os castiguei porque
isso seria a sua satisfação. Acabo de descobrir a psicologia.
156
lxx Vovozinha Vermelha
(e o lobo não tão mau assim)
157
lhe invejava os guapos acompanhantes — uma hora era Frederico,
outra Teodoro, outra Manfredo, outra Gervásio. "Isso é que é ju-
ventude", pensava ela, "e não a porcaria que deixei pra trás!"
Um dia, quando ia por ali assim, Chapeuzinho Turquesa —
acompanhada por Fagundes — encontrou um lobo, que lhe disse:
— Olá, tou te conhecendo? Não dançamos juntos no Vereda
Tropical?
— Sem essa - sacou Chapeuzinho. - Eu não frequento o Vere-
da, não moro em Niterói e este aqui é o Ambrósio, campeão de
Gin-Do-Ku-Fu e minha transa atual.
0 lobo se fez de desentendido e disse:
— Então tá bem, vou tentar a tua vó.
— Vai com Deus, a paz e o livramento - respondeu Chapeuzi-
nho. — E se achar um buraco, cai dentro.
E quando o lobo se afastava correndo, ela disse pro compa-
nheiro:
— Lobo falando! Parece alucinado!
E o Gin-Do-Ku-Fu respondeu:
— Alucinado não. Chegado a um alucinógeno. - E continua-
ram a caminhar.
Quando iam se aproximando do condomínio fechado da vó,
começaram a ouvir gritos terríveis:
— Socorro! Socorro! Me acudam! Estão me violentando!
158
O casal correu e, quando entrou no quarto da Vovozinha Ver-
melha, láestava o lobo, deitadão na cama confortável:
— Alô, garotada, olha só que orelhas enormes eu tenho. Ore-
lhas de burro! Sabem por quê? Passei a vida comendo garotinhas e
só agora descobri que caldo de galinha velha etcétera e tal e coisa.
Nesse momento a Vovozinha Vermelha ia saindo do banheiro e
Chapeuzinho perguntou, espantada:
— Uá, Vovozinha, eu pensei que o lobo tinha comido a se-
nhora!
Ao que a velha gargalhou:
— Oh, netinha, como sois ingenuosa! A espécie Canis Lúpus há
várias gerações que abandonou a via oral. E esse daí, especialmen-
te, soube reconhecer as minhas qualidades não-dietéticas.
— Lamentável o comportamento das velhas gerações — criti-
cou Chapeuzinho ao ouvido do companheiro. E pra vó:
— Mas, então, por que a senhora gritou por socorro?
— Socorro? - disse o lobo. - Quem gritou por socorro fui eu!
159
lxxi O remo e as estrelas
A maneira dos... chineses
160
lxxii O arreglo
161
- Ah, é? - fez Joãozinho Pixin-
ga, Rei dos Goleiros, meio ofendido
porque, além de goleiro, tinha tam-
bém suas pretensões intelectuais, e
a veleidade do outro de ter uma
ideia melhor que a sua lhe parecia
coisa ofensiva. - Qualé?
— Cem mil cruzeiros.
— Cem mil cruzeiros o quê? Não en-
tendo - disse Joãozinho Pixinga, fingindo-se
de desentendido.
- Vou direto - disse Maneta. - Não sou Rei dos Bicheiros à
toa.-VConversa
ai. de homem. Topa não topa, a coisa morre aqui.
162
quem a crítica especializada, além da "técnica sem par", elogia a
"elegância sem igual" - estou citando -, vou liquidar minha car-
reira assim, por 100.000? Que que há? Vai subornar os teus tiras,
Maneta.
— Quem falou em 100.000? Eu disse 500.000.
— Pois é; você pensa que vou enterrar minha glória e minha
honra, meu comportamento, "verdadeiro exemplo para os mais
novos" - estou citando -, por 500.000 cruzeiros? 0 que que há?
Vai subornar a tua PM, Maneta.
— Mas, que diabo, quem falou em 500.000? Só isso por um
partidão desses? Você está doido? Trouxe até aqui, no bolso, ó, em
espécie: 1 milhão.1 Foi o que eu distribuí com o júri das escolas de
samba.
— Dois milhões? Pô, de uma vez por todas, Boa Pinta, você
acha que a posição que eu consegui no esporte, alto e louro, aos
22 anos, olho azul na defesa da pequena área, eu vou vender por
3 milhões?
— Pixinga, você não percebe que tudo é um equívoco, que
querem nos jogar um contra o outro, desfazer nossa amizade de
tantos anos, desde que "trocávamos figurinha" no fundo do quin-
tal em Del Castilho? Quem falou em 4 milhões? É tudo ou nada,
1. Maneta aprendeu a levar todo o dinheiro que possuía consigo próprio lendo um grande
filósofo que, às vezes, anda até com 25.000 dólares no bolso - Jean-Paul Sartre.
163
Pixinga; já fiz um pool com o Anastácio do Pó e o Toninho-do-
Assalto-ldeológico e "fechei" em 5 milhões. Fica tranquilo, sabe-
mos valorizar o que é nosso. Tua honra não vale menos que a do
príncipe Bernardo, da Holanda, pô.
— Adiantado. Toma nota aí da minha conta numerada na Tai-
lândia.
164
Pixinga não estava num dia ruim. Ele nunca tivera um dia ruim.
Estava num dia negro. Ninguém entendia. Nunca se vira aquilo.
Parecia dopado. Defendia mal as bolas mais bobas, deixava as bo-
las mais fracas resvalar das mãos, saía mal do gol, caía errado em
cima das bolas, assistia os adversários passarem livres pela sua
defesa.2 Um dia incrível - comentavam todos nas gerais, nas ar-
quibancadas enos estúdios de rádio e TV. Parecia - como disse
um comentador - o goleiro de um time de terceira de Araguari.
Mas o fato é que, apesar do fracasso espantoso de Pixinga, o Fru
perdeu o jogo e o campeonato.
Naquela tarde, os jogadores do Fru estavam ainda piores que
sempre, piores até que Pixinga e, misteriosamente, não consegui-
ram enfiar um gol em todos os 90 minutos de jogo. Misteriosa-
mente? É.Até que expliquemos ao leitor que Pixinga, além do
grande talento esportivo, tinha também, como já vimos pelo seu
diálogo com Maneta Boa Pinta, um extraordinário talento políti-
co-financeiro. Depois de aceitar os 5 milhões de Maneta, ele, sa-
biamente, distribuíra 3 entre os atacantes do time adversário para
que estes chutassem todas as bolas fora. Foi por isso que, apesar
de sua atuação, ainda saiu do campo carregado pela solidariedade
2. Pra conseguir não ver os adversários, Pixinga inaugurou uma coisa nova em
futebol: jogou de óculos escuros. Imitava assim alguns ditadores que usam óculos
escuros pra não ver a corrupção em volta.
165
da torcida (que, se antes admirava apenas sua perícia, desse dia
em diante passou a mitificar também a sua sorte), com 2 milhões
no bolso e a honra intacta.3
3. Dizem que tem uns caras aí no baixo mundo que não foram nessa e preparam o
testamento de Pixinga, já estando em confecção um pijama de madeira, no qual,
com a boca cheia de formiga, ele vai comer capim pela raiz eternidade afora. Mas
isso, como diria Kipling, é outra istória.
66
lxxiii Otlassa
167
lo que nós todos somos permanentemente, assaltantes; enquanto
ele, por um breve instante assaltante, logo depois voltaria a ser o
assaltado de sempre - a não ser que leve o ato de assaltar a tal
constância, que substitua, pela dinâmica de ação, a condição so-
cial. Sem falar que corri o risco de morrer apenas uma vez, en-
quanto meu assaltante possivelmente já estará morto no momen-
to em que esse prestigioso jornal publica esta. Assim, repito, esta
não é uma carta de protesto pelas condições da violência vigente
nesta cidade, mas um agradecimento público aos privilégios da
minha vida."
Era um cínico ou um sábio?
168
lxxiv Os flatos sem consequências
169
eu não entendo bem por que você sente falta", disse a rolinha do
Piauí. "Sempre ouço falar que aqui na cidade existem carros de
20, 40 e até 60 cavalos." "Ah, sim, é verdade", respondeu o par-
dal de Brasília, "existem. Mas que é que adianta? Esses cavalos
peidam, trovejam, mas na hora de fazer o que nós queremos, não
170
lxxv O código selvagem
171
- Estranha nuvem, aquela, que parece um elefante.
- Realmente, um perfeito elefante - concordaram todos os
fâmulos.
- Não, não, pensando melhor, parece mais uma baleia - disse
o Macaco.
- É claro, uma baleia, logo se vê que é uma baleia - os outros
animais repetiram em coro grego.
Mas, fixando o olhar, todos viram que a nuvem vinha mesmo
era do chão, como se um bando enorme de animais - ou qualquer
coisa - avançasse em direção ao palácio. E, enquanto a nuvem de
pó aumentava e se aproximava, um ruído também crescente, se
fazia ouvir: "Kpw!xwszYyyiFFx2wç!XvyvxfstswTT!"
- 0 qué qué isso? - perguntou o Macaco se aproximando de
sua real janela.
- Nada, Majestade; tentativas de revolta de estúpidos animais
que nem sequer sabem se fazer compreender. Basta o senhor pro-
mulgar um decreto-lei, que essa canalha some no mesmo instante.
- Sábio! Sábio! - disse o Macaco para o Leão. - Fiz muito bem
em aproveitar a tua experiência. Portanto, decreto, de acordo
com, mediante a alínea E, do parágrafo G, do artigo A, que esse
ataque fique sem efeito, entrando este decreto em vigor no mo-
mento em que eu o penso. Apesar, porém, do decreto, o ruído
"Kpw!ZxszYyyiFFx2wç!WvyvxfstswTT!" foi aumentando e se apro-
ximando até se transformar em "MM Ah! Ty Yt liiii Ddfswxooor-
172
wzx". Nesse momento, algumas paredes do castelo foram ao chão,
e uma massa enorme de corvos, pombos, tigres, ratos, sapos,
cobras, galinhas, coelhos e javalis3 entrou no castelo, destronou o
rei e entregou o poder ao Leão, que era, naturalmente, o chefe do
contragolpe.
0 Macaco, deposto, foi recolhido a uma fortaleza antiga, sem
nenhuma proteção tecnológica, e recebeu um livro de adivinhas
vulgares, onde um dia, afinal, descobriu que toda aquela codifica-
ção estranha gritada pelos animais queria dizer apenas: "Macaco,
você é burro!"
3. O lúmpen-animalato.
173
LXXVI Para crianças grandes e homenzarrões pequenos
O julgamento do burro
Embora não se saiba de nenhum juiz que tenha pegado dez anos.
174
— Típica campanha difamatória - comentou o Burro. — Estou
acostumado. Sempre fui vítima da mesma coisa por parte do Ca-
valo. Que o Rato apresente sua defesa.
— 0 Rato não compareceu à audiência, excelência - disse o
Onagro, que servia de meirinho.
— E por que não? - indignou-se o Juizão. - Não admito esse
desrespeito, sobretudo no meu primeiro julgamento. Imagine, eu,
Burro Master, criar essa analogia negativa logo em meu primeiro
pronunciamento. Tragam o Rato imediatamente.
— Ele continua preso — esclareceu o meirinho.
— Como? Preso sem julgamento? Que esculhambação é essa na
minha jurisdição? Não admito.
— Perdão, excelência - ajuntou mais o meirinho. - 0 Rato
continua preso na ratoeira, onde foi comer o queijo.
— Eu declarei que mostrei a ele onde estava o queijo - disse a
Salamandra malandra.
— Mas não mostrou a saída — choramingou a futura viúva do
Rato.
— Ele só me perguntou como é que podia comer o queijo que
tinha visto comigo — endureceu a Salamandra malandra. — Eu
mostrei.
— A Salamandra me parece perfeitamente correta - senten-
ciou oJuizão. - Sobretudo porque está aqui, presente. Condeno o
Rato por desrespeito à corte. Julgamento à revelia por não ter
175
comparecido diante deste tribunal. Fica firmado o princípio: "Os
ausentes nunca têm razão."
— Injustiça! Injustiça! - gritou a futura viúva. — Quero ver meu
marido. Exijo ver o corpo do meu marido. - E gritou em latim,
numa cultura inesperada: - Dêem-me o corpo; habeas corpus!
— Fundamental e justo o pedido - declarou o Juizão. - A Sala-
mandra malandra está intimada a mostrar à dona Ratazana, futu-
ra viúva, o caminho para a ratoeira.
176
lxxvii O fracasso dos canais eletrônicos
177
nar a amargura da bílis que lhe subia do fígado e lhe envenenava
a alma. Apenas por desrecalque matou uma ou duas moscas que
voavam inocentemente por ali,6 deu dois ou três pontapés na
mulher,7 pegou a mala que nem desfizera, correu para um hotel,
onde encheu a ficha com angústia quase incontrolável e subiu
para o quarto. Mal se tinha jogado na cama, bateram na porta.
Era o sogro, pai da moça:
— Sei de tudo e não sei de nada - declarou, conciso e cons-
ciente.
178
O outro disse que essas coisas não têm mesmo explicação,8 mas
resolveu esperar até o dia seguinte para tomar suas providências.
No dia seguinte, pálido de triunfo, o sogro entrou no quarto do
hotel ainda bem cedo, gritando para o genro:
- Eu não te disse? Eu não te disse que devia haver uma expli-
cação? Está tudo explicado: ela não recebeu teu telegrama.
179
lxxviii Decadência dos costumes
À maneira dos... arménios
vai parar."
180
lxxix A história do futuro contada agora
depois que a bomba explodiu
182
lxxx Por que os Estados Unidos
vivem sempre em guerra
183
lxxxi Eros uma vez...
184
Porém, as irmãs de Psychê, chamadas Curiosidade, Perfídia e
Prospecção, começaram logo a envenenar as relações da irmã com
aquele desconhecido, afirmando que devia se tratar pelo menos
do Corcunda de Notre-Dame ou do Homem Elefante na versão
original. Curiosidade dizia:
— Se ele não se assume, é porque tem medo das grandes clari-
dades. Vai ver, ele é o Eros-Close.
Perfídia ajuntava:
— Uma noite, manda Celacanto em teu lugar. Evita maremoto.
E Prospecção concluía:
— Mata ele. Um pouquinho só. Se é Deus como diz, depois res-
suscita em forma de butique.
Psychê não resistiu às más influências, e uma noite entrou na
câmara escura em que Cupido dormia, levando uma lamparina
numa mão e uma adaga na outra: "Vou lhe fazer um teste sexual
pré-olímpico e depois enfio esta adaga em seus boiEROS." Porém,
quando a luz bateu em Cupido, e Psychê viu aquele gatão, ficou
tão excitada, que... Nesse momento, porém, uma gota de óleo da
lamparina caiu no ouvido de Eros, que acordou assustado, saltou
de lado e desapareceu pra sempre.
Durante dez anos, Psychê procurou em vão o seu amor. Afi-
nal, subiu ao Olimpo pela escadinha dos fundos e implorou a
Aphrodite:
185
- Minha querida sogra, por favor, me dá de volta Cupido, que
perdi por ser muito cúpida.
Ao que Aphrodite respondeu:
- Está bem, vou te dar três tarefas. Se cumprir as três, eu te
devolvo meu filho. 1a tarefa) Enfiar o dedo no nariz de outra pes-
soa com o mesmo prazer com que enfia no seu. 2a) Transformar
85 torturadores da polícia em outros tantos perfeitos democratas.
3a) Descer aos infernos e me trazer a caixa preta (também conhe-
cida como Boceta) de Pandora.
Psychê desprezou as duas primeiras propostas, pegou o primei-
ro buraco de tatu pro inferno e trouxe consigo a tal coisa de
Pandora. Mas, no caminho pro Olimpo, não resistiu e resolveu
olhar o que tinha na caixa. Imediatamente, de dentro da caixa
fugiram todos os males do mundo — a inveja, a preguiça, o colé-
gio eleitoral e o jornalismo brasileiro — , e Psychê desmaiou. Eros
se materializou no mesmo momento, mais apaixonado do que
nunca, e, olhando na caixa, viu que nem tudo estava perdido. Bem
no fundo, escondidinha, lá estava a esperança. Por isso ele se
casou com Psychê e tiveram três filhas - Volúpia, Titila e Tara —
e três filhos - Aconchego, Deleite e Orgasmo.
186
lxxxii Nu, quem?
187
uma comunicação: "Cidadãos, pela presente o departamento de
pesquisas químicas de Sua Majestade avisa que conseguiu fabri-
car um tecido, com o qual Sua Majestade está vestido neste mo-
mento, tecido de beleza e resistência excepcionais. Mas completa-
mente invisível a qualquer subversivo."
188
lxxxiii A automaldição
189
logo depois do almoço. Se não voltar, quero que me caia a lín-
gua!" Régio falou com tal sinceridade que o açougueiro não teve
jeito. Tirou a mão de cima do embrulho e deu de ombros, aborre-
cido, como quem diz "Tá bem!"4 Régio saiu do açougue, dobrou a
esquina e, ali mesmo, abriu o pacote de carne. No meio do acém,
das tripas e das costeletas estava a língua. Pegou-a e deixou-a
cair no chão.
190
lxxxiv O lobo e o arminho
191
— Eu, cruzar a água nojenta desse canal, eu hein, rosa? - res-
pondeu Arminho.
o — Conspurcar a pureza de minha pele, tão lin-
da e sedosa quanto a dos lírios do campo? Sai fora, Eulálio. Estou
muito bem aqui e aqui fico. Além do que, um dia ou outro de
fome só pode mesmo é dar uma linha melhor ao meu corpo e um
brilho maior à minha cobertura. Se você quer ir, vai, bofe, eu fico
aqui. Acho que você está errado, não concordo em absoluto com
o que pensa, mas lutarei até a morte pelo seu direito de pensar
assim.2
0 Lobo, catrapum! Saltou no canal, conseguiu escapar ao
bombardeio dos aviões inimigos e pouco tempo depois já estava
do outro lado, comendo, fartando-se com os belos frutos e legu-
mes da região. Enquanto isso o Arminho ficava do lado de cá, e
como, do lado de cá, o índice do produto per capita caía cada vez
mais, ele foi ficando cada vez mais fraco até que um caçador o
apanhou numa armadilha boba, tirou-lhe a pele e deu-a de pre-
sente aCuquita Carballo, "la rumbera de fuego".
192
lxxxv Prudente Seguro do Resguardo
193
sem cair de cima mas também as enchentes não lhe entrassem em
casa. Sua casa tinha ferrolhos contra ladrões, aquecimento a lenha
para evitar os perigos do gás, e seus filhos só iam à escola com dois
guarda-costas, assim que começou a moda dos sequestros.
E assim vivia Prudente, tranquilo e feliz, protegido pela sua
imensa sabedoria, quando, um dia, ao sair de casa, um bólido caiu
do céu em cima dele e matou-o. Esse bólido era nada mais nada
menos do que Vulnerável Indefeso Porumfio, que, numa de suas
experiências com um novo motor atómico para bicicletas infantis,
tinha explodido sua garagem-laboratório, a 25 quilómetros de
distância, e viera cair exatamente em cima do sábio - Deus o te-
nha no seu bem protegido Paraíso - Prudente. Vulnerável saiu
completamente ileso do acidente, sem um arranhão, e declarou à
imprensa que não desistirá de suas experiências enquanto não
completar a sua bicicleta voadora.
194
lxxxvi Águas rasas muito profundas
A maneira dos... coreanos
da pro dono?"
195
lxxxvii Partida amistosa
196
souro e Aranha; Barata, Lagarta Fenómeno e Caramujo Baiano.3
No gol a própria Formiga, organizadora da partida. Como juiz, o
Gorila.4 Bem, não precisa dizer que, com esses dois times, o pri-
meiro tempo foi um passeio prós elefantes. Terminou com o time
paquidérmico ganhando de 23 a 4. Mas a Formiga, mistura de
empresária e treinadora, não parecia desanimada.5 Aconselhou os
jogadores, animou-os6 bastante e fez as três substituições permi-
tidas pelo regulamento. Os elefantes ficaram um pouco apreensi-
vos com as mudanças, mas não alteraram o próprio time. Do time
da Formiga, saíram a Lagarta, a Lesma e o Caramujo, e entraram a
Lacraia, o Escorpião e a Centopeia.
E a coisa virou. 0 time da Formiga, tão sabiamente reforçado no
segundo tempo, estraçalhou o time dos elefantes humilhados, que
perdeu pela esmagadora diferença de 187 a 43. 0 Elefante amigo
da Formiga não pôde, claro, deixar de perguntar à adversária:
3. Formação 4x3x4.
4. Et pour cause.
5. Perdão, desanimalda!
6. Animol-os?
197
- Mas, me diz uma coisa: por que você não colocou logo de
início a Lacraia, o Escorpião e a Centopeia? Estava o quê; queren-
do fazer suspense pra humilhar a gente?
— Eu, hein? - respondeu a Formiga. - la lá arriscar isso? Eles
só entraram no segundo tempo porque demoraram muito pra cal-
çar as chuteiras!
198
LXXXVIII Fábulas à beira do deserto
O camelo acamelado
A maneira dos... curdos
199
podemos imitar os deuses ocidentais, que se ligavam também a
seres não da sua espécie. Júpiter...
Disse a Deusa:
— Já entendi. Já entendi. É verdade. Conheço bem a mitologia
ocidental. Podemos imitá-la, por que não?
O camelo virou-se de costas para a Deusa e mostrou:
-Vê? Sou um pouco da sua espécie. Não haverá por aí uma
camelinha que queira casar comigo?
A cara da Deusa do deserto iluminou-se:
— Claro! Como não!? Por acaso uma sobrinha minha. Mas o se-
nhor, como marido, vai ter que ter muita paciência. Ela é extrema-
mente complexada. Nasceu sem corcova.
200
lxxxix A visita da Velha Senhora
À maneira dos... novos
201
— É, minha mãe também me acha baixinho - já tenho treze
anos e estou só com 1,80m. Mas, de qualquer forma, ela acha que
este cigarro faz menos mal do que o normal - explicou o garotote
meio linguiça dando uma puxada.
— Menos mal do que o quê? - engoliu a Velha Senhora.
Mas, disfarçando o espanto, entrou no jogo cínico. Vejam só:
— Vai dizer que você também anda por aí com namoradas?
— Namoradas, não - moralizou o garotote -, que eu não sou
promíscuo feito a sua geração. Uma namorada.
— Ah, é? - avançou a Velha Senhora — , e aonde é que você vai
com ela — cineminhas ou... boates?
— Não gosto desses ambientes gregários, podes crer - esno-
bou o garotote. - Duas ou três vezes vou ao apartamento dela e
durmo lá. Ou então dormimos num motel.
— E o que é que vocês fazem na cama, pode-se saber? - a Ve-
lha Senhora provocou.
— Olha, sinceramente - respondeu o garotote -, isso eu não
sei dizer. Sempre que durmo com ela estou completamente do-
pado.
— Ah! - fez a Velha Senhora.
202
xc O pescador e a relíquia
A maneira dos... sikhs
203
xci Os 13 trabalhos de Hércules
204
foi (5o trabalho) limpar o estábulo de Hegeu, o qual três mil ani-
mais sujavam dia e noite, há cem anos. Às onze da manhã, Hércu-
les tinha acabado essa tarefa e já estava se preparando para (6o
trabalho) dizimar os pássaros carnívoros que aterrorizavam a
Arcódia. Ele engaiolou todos os pássaros e pôs-se (7o trabalho)
atrás do touro de Creta, que abateu com um soco. Em seguida (8o
trabalho), teve que abater também as éguas de Diômedes, que se
alimentavam de carne humana. Foi fácil: Hércules liquidou o pró-
prio Diômedes e deu-o como alimento às suas próprias éguas.
Agora, Hércules tinha que (9o trabalho) topar a parada duríssima
de roubar uma liga de Hipólita, rainha das amazonas. Ele conse-
guiu seduzir a rainha, tirou-lhe a liga e meia hora depois já estava
(10° trabalho) matando os bois do monstro Gerion. O dia já escu-
recia quando ele (11° trabalho) desceu ao inferno, salvou Cérbero
de lá, ainda a tempo de (12° trabalho) poder roubar as maçãs do
Jardim das Hespérides.
Pois é, aí, completamente esgotado, Hércules chegou em casa,
colocou em cima da mesa as maravilhosas maçãs, jogou-se numa
poltrona e disse:
— Olha, querida Megara, você nem sabe o meu dia de hoje.
Eu... — e ia começar a narrar o dia histórico quando Megara o in-
terrompeu, furiosa:
— 0 quê, seu porco chovinista, você ainda tem coragem de me
falar de seus trabalhos na rua, se divertindo, se engrandecendo,
205
sempre cercado da sua patota de machistas, enriquecendo a sua
experiência a toda hora, enquanto eu, mulher-objeto, fico aqui na
monotonia deste meu trabalho doméstico sem perspectiva e...
Pois é: foi aí que Hércules não se conteve e realizou o seu 13°
trabalho.
206
xcn O Super-Samsão
Samsão era filho de Manué e da
mulher dele; o Senhor tinha prome-
tido que ele seria o maior, se não co-
messe coisas imundas e jamais entras-
se num coiffeur pour monsieurs. Mas
acontece que essas coisas não são bem
assim, né? Pois o que Deus esqueceu foi
de tomar cuidado pra Samsão não ser tão chegado a uma jovem
devassa. De modo que, depois de exercer o cargo de juiz por mui-
tos anos, Samsão um dia se engraçou adoidado por uma filistina,
filha de filisteus (espécie de americanos do Oriente Médio daquela
época) muito sobre a dadivosa. Os pais dele ficaram furiosos, mas,
como Samsão era cabeçudo (além de forte!), tiveram que casar ele
com a tal dona, que logo, assim como quem não quer nada que-
rendo tudo, combinou pra mesma noite uma transa sexual com o
melhor amigo do recém-marido.
Samsão, quando descobriu que estava sendo passado pra fren-
te, ficou samsudíssimo. Mas o pai da moça argumentou que a
moça era assim mesmo, muito da avãgarde, e que era melhor que
fosse com o melhor amigo porque, desse modo, estabelecia um
princípio, e que ele tinha uma filha mais nova, e com seios muito
207
mais bonitos, que desde logo oferecia a Samsão. Samsão topou,
mas, quando viu a tal filha, achou que com onze anos era um
pouco nova demais e mandou que o velho safado enfiasse a filhi-
nha num filme do Polanski. Enquanto isso, naturalmente, ia to-
cando fogo no rabo de trezentas raposas que saíram desvairadas
destruindo tudo por onde passavam - trigais, vinhais, olivais e o
que mais. Parecia até o pessoal do INPS soltando as raposas do
terrorismo nas instalações da Tribuna da Imprensa.
Não contente com a raposada, Samsão ainda pegou uma quei-
xada de burro e gritando "Eu não me queixo!", matou mil filisteus
dos mais grandinhos, deixando um exemplo de coragem que até
hoje muitos de nossos governantes querem imitar mas não conse-
guem porque não têm força - só têm a queixada. Então, cônscio
de que seu casamento não ia muito bem, Samsão saiu pra outra,
indo bater na casa de uma jovem de má (má?) vida. E quando es-
tava lá, naquele doce fuque-fuque, os incircuncidados o agarra-
ram, amarraram e jogaram num quarto todo gradeado. Mas, horas
depois, Samsão acordou, gostou do estilo da porta e levou-a pra
dar de presente a outra esplêndida marginal chamada Dalila. Em-
bora pudesse ter tudo dando só a porta e mais uns trinta ses-
tércios (28 talentos no mercado paralelo de Smirna), Samsão re-
solveu casar de novo, sem saber que Dalila a essa altura já estava a
soldo da CIA - Central de Informações Arabescas. Por isso, um
carinhozinho aqui, uma lambidinha ali, ela pediu a Samsão que
208
lhe contasse de onde vinha sua força e a maneira de neutralizá-la,
a ela, força. Samsão, que era o protótipo do machão, como as
leitorinhas mais feministas já puderam perceber, o que tinha de
estúpido tinha de estúpido, mas não era tão estúpido quanto
Dalila, e disse:
— Pra me tirar a força, basta me amarrar com sete cordas de
nervos ainda não secos, ou melhor, ainda bem úmidos.
Dito assim, aos ouvidos de hoje, parece até que ele estava
de sacanagem, porque onde é que a gente vai encontrar sete
cordas de nervos ainda não secos, não é mesmo? Mas Dalila, em
2033 a.C, achou bem natural. Foi ao primeiro supermercado,
comprou as tais cordas, depois de pechinchar um pouco, e amar-
rou Samsão todo, enquanto ele dormia. Ao acordar, porém, Sam-
são arrebentou as cordas com um safanão, o que deixou Dalila
fula da vida airada:
— Pô, você não me ama mesmo, e eu não vou mais deixar você
fazer aquilo assim comigo, nem aquilo assado, se você não me
ensinar como é que eu posso te matar.
Ouvindo isso, já tresvariado, Samsão se entregou:
— Não, filhinha, não, antes a morte! É no meu cabelo, boneca,
você não viu logo, pô? Pode cortar; tá tudo aí na juba, queridoca.
Foi assim que, na madrugada seguinte, cem homens do DOI-
CODI filisteu entraram na residência de Dalila, aquela com uma
luz vermelha bem grande na porta. 0 capitão do comando lhe en-
209
tregou um saco com 33 dinheiros (estabelecendo um precedente)
depois que ela assinou um documento garantindo que o carecão
ali era mesmo Samsão, e como eles eram apenas cem contra um,
resolveram logo, por medida razoável de segurança nacional, ar-
rancar os olhos de Samsão e amarrá-lo numa mó, que é uma pe-
dra enorme que se usa para fazer palavras cruzadas. E assim cego
amolado - amarrado na mó — Samsão foi jogado numa cela, onde
ficou até o dia em que seus ex-companheiros de magistratura, se
banqueteando com os príncipes filisteus, resolveram dar uma últi-
ma gozada nele. Mandaram buscá-lo na prisão e ordenaram:
- Vamos, Samsinho, faz alguma coisa pra nos divertir ou leva
trinta chibatadas.
Mas, dizendo isso, eles desconheciam duas coisas:
1) O cabelo de Samsão já estava até aqui assim;
2) Além da força, Samsão tinha também senso de humor e ex-
celente expressão corporal. De modo que, quando rebolou pra lá e
pra cá e sacudiu as colunas do templo dizendo que ia derrubar
tudo, o pessoal morreu de rir. Literalmente. A casa veio abaixo.
Idem.
210
xcni Os rictos da primavera
1. Também chamada Perefata - a que dá frutos -, filha de Júpiter com Ceres, que
Júpiter seduziu disfarçado de chama. Prosérpina era tão bonita que o próprio pai
tentou faturá-la fingindo-se de serpente.
2. Deixando cair a produção agrícola e desequilibrando o PNB da Hélade.
211
aquilo era um caso entre homerr e mulher3 e devia ser resolvido
como tal.4 Mas Ceres retrucou que, sendo assim, abandonava de-
finitivamente acornucópia de abacaxi, soja, milho, trigo, frutas
em geral.5 Diante da ameaça desse boicote, Júpiter chamou Mer-
cúrio, seu filho com Maia, e disse: "Meu filho, resolve essa parada
aí enquanto eu vou botar minha pele de touro, pois tenho um
212
Foi sempre assim que se criou o frio, a fome e a beleza da pri-
mavera. Sempre que Prosérpina volta à superfície, está tudo esga-
lhado eseco, mas a mãe, Ceres, fica tão contente que sai pulando
213
xciv Diálogo das grandes especializações
À maneira dos... quenianos
214
xcv O grande sábio e o imenso tolo
215
do eu acertar, ganho cem pratas. Quando o senhor acertar, ganha
só vinte.
- Está bem - concordou o professor -, pode começar.
— Me diz, professor - perguntou o aluno -, o que é que tem
cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
0 professor, sem sequer pensar, respondeu:
- Não sei; nem posso saber! Isso não existe.
— 0 senhor não disse se devia existir ou não. 0 fato é que o
senhor não sabe o que é - argumentou o aluno - e, portanto, me
deve cem pratas.
— Tá bem, eu pago as cem pratas — concordou o professor pa-
gando — , mas agora é minha vez. Me diz aí: o que é que tem cabe-
ça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
- Não sei - respondeu o aluno. E, sem maior discussão, pagou
vinte pratas ao professor.
216
xcvi A bolsa é a vida
217
tinha fechado, bateu no carro da frente,7 tendo Amarildo se apro-
veitado da batida pra lhe tomar a arma e rendê-lo no melhor es-
tilo uésterni ispaguéti. Mandou que o carro tocasse até alguns
218
levantou-se, já refeito, e foi pegar a bolsa que... ué, quede a bolsa
do Amarildo? Amarildo olhou desesperado e viu sua bolsa de cro-
codilo lábem longe, no meio da lagoa, nas costas do jacaré que
ele tinha pensado que era apenas um montezinho de capim. E en-
quanto chorava, o jacaré afundou com a bolsa e seus dois bilhões
de cruzeiros.13
219
xcvn O milagre económico
À maneira dos... persas
220
xcvm O homem que inventava companhias
Era uma vez uma senhora muito rica que encontrou um balconis-
ta de tabacaria que, de olhos fechados, distinguia dinheiro de
221
20 milhões numa piscina par-
ticular e,com o resto, inven-
tou outra companhia.
Inventadas as duas compa-
nhias, estava o ex-balconista
tranquilamente se refestelando
em Tóquio,2 quando encontrou
alguns japoneses que não sabiam
o que fazer com o nacionalismo do
seu dinheiro. 0 ex-balconista rapi-
damente insinuou neles o dinheiro do
seu nacionalismo, ofereceu um peda-
ço de montanha, dez profundidades de mar e uma planície de
boiadas, e os japoneses assinaram um contrato cheio de parágra-
fos itens artigos decretos no qual ficava estabelecido que a cláu-
sula do item acima se referia ao artigo do parágrafo seguinte nas
propostas estabelecidas abaixo. E aí o ex-balconista inventou
1.000 companhias. Depois, sem saber o que fazer com tanto di-
nheiro nacional-internacional-universal de suas 1.000 compa-
nhias, oex-balconista construiu mais uma piscina em sua cober-
tura eoutra em sua casa em Angra, ao mesmo tempo que resolvia
botar no bolso também toda a classe média apelando para a assim
222
dita poupança popular. E a classe média acorreu logo, cada Pessoa
trazendo suas garantias, cadernetas, pecúnias, economias, ansiosa
por morar exatamente onde, como e pagando o que o ex-balco-
nista mandava. Tudo devidamente assegurado por organismos
oficiais.3
Foi nesse momento que houve uma tremenda implosão no
centro do Centro Financeiro da cidade e, quando a fumaceira toda
serenou, não havia mais nenhum sinal de nenhuma companhia
nem do ex-balconista. Seu corpo só foi encontrado muitos meses
depois, vivo, é bom esclarecer, muito vivo, aliás, mais vivo do que
nunca, tomando um Bacardi com gelo numa piscina olímpica que
tinha mandado construir junto ao seu chalé de verão no mais belo
lago de Genebra.
3. Sem falar que a classe média não resiste a uma "Selva de Pedra"
223
xcix O Jacaré e o Sapo
À maneira dos... chineses
224
c A esperteza
À maneira dos... croatas
— Deus do céu, meu sobrinho, este pano ainda está aqui? - disse
o velho comerciante eslavo,1 quando, ao mexer na prateleira de
fazendas, encontrou uma peça que tinha colocado ali há mais de
seis meses.
225
vender, mas deixando sempre que ficasse bem visível aos olhos4 da
velhinha. E, como os leitores já adivinharam,5 depois de algum
tempo a velhinha saía da loja com a peça de fazenda velha e mo-
fada, tendo pago por ela o dobro do preço que pagaria por uma
peça nova. Mas aparentemente convencida do que lhe dissera o
vendedor: estava comprando uma raridade inglesa, um desenho
único, etcétera, etcétera, etcétera.6 Quando a velha saiu, o velho
mercador mostrou pro sobrinho a nota de quinhentão que ela dei-
xara elhe deu a lição definitiva e eterna da história do comércio:
— Vê, meu sobrinho, uma mercadoria jamais se vende pelas
suas qualidades, mas sim pelas qualidades do vendedor. A merca-
doria tem o valor de quem a propõe no mercado.
O garoto olhou a nota espantado e disse ao tio:
- Maravilhoso, meu tio, e profundamente verdadeiro. Mas tem
também o valor da malandragem do comprador que faz sempre o
preço da mercadoria reverter a seu valor verdadeiro.7 Vê só, tio: a
velhinha pagou ao senhor com uma nota falsa. Bota os óculos.
4. Embaraçados.
5. Não sei pra que é que eu escrevo!
6. Etcétera.
7. Mais ou menos por aí começa a lei da oferta e da procura.
226
Este livro foi composto na tipologia Rotis, no corpo 11,5/16,
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sas inúmeras biografias de girafa
tão populares na África Central.
Diante disso resolvi ficar mesmo na
linguagem atual: A RAPOSA E 0 BODE Por um azar do destino, uma raposa caiu num
poço profundo, do qual não conseguiu sair. Um bode, passando por ali algum tempo de-
pois e vendo a raposa, foi mordido pela curiosidade: "Comadre raposa, que está fazendo
aí?" "Você então não sabe?", respondeu a matreira raposa. "Vem aí a mais terrível seca de
toda a história do Nordeste. Saltei aqui no fundo deste poço e guardarei a água que bro-
tar só pra mim. Mas, se você quiser, como é meu compadre, pode me fazer companhia."
Sem pensar duas vezes, o bode saltou também no fundo do poço. A raposa, imediatamen-
te, trepou-lhe nas costas, apoiou-se num dos chifres do bode e saltou fora do poço, gri-
tando: "Adeus, compadre!" moral: JAMAIS CONFIE EM QUEM ESTÁ EM DIFICULDADE.
LINGUAGEM DO TEMPO EM QUE OS ANIMAIS FALAVAM: A BAPOSA E 0 RODE Por UIT1 azino
do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi
por alando, algois tum depempo, e vosa a rapendo, foi mordade pela curiosidido: "Comosa
rapadre, que esti fazá aendo?" "Voção ente são nabe?", respontreira a maposa radeu. "Vai
em a mais terreca sível de toda histeste do Nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guar-
darei a ar que brotágua sim pra mó. Mas, se vocer quisê, como é mau compedre, per me
fazia companhode." Sem pensezes duas var, o bem saltode tambou no i isbnbs-oi-ows-7
pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre
num dos chodes do bou-se e salfoço foco do porá, gritando: "Adadre,
788501"066565
compeus!" moral: JAMIE CONFAIS EM QUÁ ESTADE EM DIFICULDEM. [j