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100 Fábulas Fabulosas - Millôr Fernandes - Rio de Janeiro, Brazil, 2003 - Editora Record - 9788501066565 - Anna's Archive

Direitos autorais
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100 Fábulas Fabulosas - Millôr Fernandes - Rio de Janeiro, Brazil, 2003 - Editora Record - 9788501066565 - Anna's Archive

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FABULAS

FABULOSAS

Muitos e muitos séculos antes de Esopo, já havia lobos vestidos na pele de cordeiros,
estuprando inocentes. Muito tempo antes do homem se organizar em Estados, já existiam
lobos ferozes proibindo carneiros de beber sua água. 0 homem ainda não tinha pensado
em construir cidades quando raposas finórias e sem escrúpulos arrancavam queijos do bico

^Çil de corvos ingénuos. E quando o último homem apertar o último botão nuclear ain-
N fi»J da haverá sapos coaxando nos pântanos, cantando as glórias e a sedução do lodo.
100
FÁBULAS
FABULOSAS
Digitized by the Internet Archive
in 2013

http://archive.org/details/100fabulasfabulo00fern
Millôr Fernandes

100
FÁBULAS
FABULOSAS
2ã EDIÇÃO

EDITORA
1 RECORD
RIO DE JANEIRO • SÃO PAULO
2003
Cip-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Fernandes, Millôr, 1924-


F41c 100 fabulas fabulosas /Millôr Fernandes. -2«ed.
2* ed. -Rio de Janeiro: Record, 2003.

ISBN 85-01-06656-7

1. Humorismo brasileiro. I.Título.

CDD - 869.97
03-0216 CDU - 821.134.3(811-7

Copyright © Millôr Fernandes, 2003

Projeto gráfico: Regina Ferraz

Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou


transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia
autorização por escrito.

Direitos exclusivos desta edição adquiridos pela


DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA SA
Rua Argentina 171 -Rio dè Janeiro, RJ - 20921-380 - Tel.: 2585-2000
Impresso no Brasil

ISBN 85-01-06656-7

PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL


Caixa Postal 23.052
Rio de Janeiro, RJ - 20922-970 editora afiliada
Sumário

I Mudanças imutáveis 9
II A sabedoria dos grandes cálculos 11
III 0 enfrentamento 13
IV Holismo a bom mercado 15
V Cultura de massa 17

VI Amor com amor se paga 18


VII A última vontade 21

VIII Hi-Shin-Chon se inocenta ou A prova irrefutável 23


IX As ligações (cirúrgicas) perigosas 25
X Ambições desmedidas 27
XI João sem medo 28

XII Três economistas padrão 33


XIII Os perigos da filosofia 34
XIV Narciso e Eco 37

XV Sábias divergências 39
XVI O pagamento do devedor e a dívida do credor 41
XVII A generosidade das elites e a gratidão dos humildes... 43
XVIII O homem que dormiu no ponto 45

XIX A perda abstrata 47

XX O antiquista 49

XXI Na fronteira da esperança 51

XXII A caixa (ou lá que outro nome tenha) de Pandora 52

XXIII Onde nasce a hierarquia? 55


XXIV Tudo não vale nada 56

XXV A raposa, o leão e o burro 57

XXVI A perseguição 61
XXVII A sorte & o azar 63

XXVIII É caindo que se aprende 65


XXIX Odisseu e a Odisseia ou Ulisses e a Ulisséia 66

XXX As irrefutabilidades matemáticas 69

XXXI Certas coisas figadais 71


XXXII O leão, o burro e o rato 73

XXXIII A sopa de pedras 76

XXXIV Crime & castigo 79

XXXV A maior ambição 81


XXXVI O médico que ficou sábio 83
XXXVII A velhice e a sabedoria
ou Pra que serve a sabedoria? 85

XXXVIII O testador testado ou A esperteza inútil 87


XXXIX O luar dos destituídos 89

XL Vénus, a deusa da amora 91


XLI Ribamar tiro certeiro 93

XLII A rã e o boi 95

XLII1 A execução 97

XLIV A ideologia e a natureza 99


XLV O Cavalheiro do Cisne 100

XLVI As grandes transformações 103

XLVII A pança dos poderosos 105

XLVIII Entre o frio e o quente, e o dentro e o fora 107

XLIX Aquarela 109

Dois gémeos díspares 111

O fogo 113

0 preço do pão 115


Sísifo 116

IV Os deveres da hospedagem 118


LV O jatobá e os juncos 119
LVI O cachorro e o trem 121

LVII O herói e o anti-herói 122

LVIII O equino e o suíno 125


LIX Música, divina música! 127

LX Os três porquinhos e o lobo bruto


(nossos velhos conhecidos) 129

LXI O espelho 131


LXII O leão e o rato 134

LXI II O cavalheiro rusticano 137

LXIV Nas belbras da guerra de Tróia:


Crimes e mais crimes 139

LXV Cão! Cão! Cão! 143

LXVI Sorabe Rustam 145

LXVII Tamanho é documento? 149

LXVIII O fim da miséria umana-hurbana 150

LXIX Jonas e o peixe grande 1 53


LXX Vovozinha Vermelha
(e o lobo não tão mau assim) 157
LXXI O remo e as estrelas 160

LXXII O arreglo 161


LXXIII Otlassa 167

LXXIV Os flatos sem consequências 169

LXXV O código selvagem 171

LXXVI Para crianças grandes e homenzarrões pequenos:


O julgamento do burro 174
LXXVII O fracasso dos canais eletrônicos 177

LXXVIII Decadência dos costumes 180

LXXIX A história do futuro contada agora


depois que a bomba explodiu 181
LXXX Por que os Estados Unidos
vivem sempre em guerra 183
LXXXI Eros uma vez 184

LXXXII Nu, quem? 187

LXXXIII Aautomaldição 189


LXXXIV 0 lobo e o arminho 191

LXXXV Prudente Seguro do Resguardo 193


LXXXVI Águas rasas muito profundas 195
LXXXVII Partida amistosa 196
LXXXVIII Fábulas à beira do deserto:
O camelo acamelado 199

LXXXIX A visita da Velha Senhora 201

XC O pescador e a relíquia : 203


XCI Os 13 trabalhos de Hércules 204

XCII O Super-Samsão 207


XCIII Os rictos da primavera 211

XCIV Diálogo das grandes especializações 214


XCV O grande sábio e o imenso tolo 215
XCVI A bolsa é a vida 217

XCVII O milagre económico 220

XCVIII O homem que inventava companhias 221

XCIX 0 Jacaré e o Sapo 224

C A esperteza 225
i Mudanças imutáveis
A maneira dos... chineses

"Se você não consegue fugir, você é muito corajoso."

Olin-Pin, abastado negociante de óleos e arroz, vivia numa impo-


nente mansão em Kin-Tipê. Sua posição social e sua mansão só
não eram perfeitas porque, à direita e à esquerda da propriedade,
havia dois ferreiros que ferravam ininterruptamente, tinindo e re-
tinindo malhos, bigornas e ferraduras. Olin-Pin, muitas vezes sem
dormir, dado o tim-pin-tin, pan-tan-pan a noite inteira, resolveu
chamar os dois ferreiros e ofereceu a eles 1.000 ienes de compen-
sação, para que ambos se mudassem com suas ferrarias. Os dois
ferreiros acharam tentadora a proposta (um iene, na época, valia
rnil dólares) e prometeram
pensar no assunto com todo
empenho. E pensaram. E com
tanto empenho que, apenas
dois dias depois, prevenida-
mente acompanhados de ad-
vogado, compareceram jun-
tos diante de Olin-Pin. E
assinaram contrato, cada
um prometendo se mudar para outro lugar dentro de 24 horas.
Olin-Pin pagou imediatamente os 1.000 ienes prometidos a cada
um e foi dormir feliz, envolvido em lençóis de seda e adorável si-
lêncio. Mas no dia seguinte acordou sobressaltado, os ouvidos es-
tourando com o mesmo barulho de sempre. E quando ia reclamar
indignadamente pela quebra do contrato, verificou que não tinha
o que reclamar. Os dois ferreiros tinham cumprido fielmente o
que haviam prometido. Ambos tinham se mudado. 0 ferreiro da
direita tinha se mudado pra esquerda, e o da esquerda tinha se
mudado pra direita.

MORAL Cuidado quando a esquerda e a direita estão de acordo.

10
ii A sabedoria dos grandes cálculos
A maneira das... japoneses

A batalha estava perdida. 0 entendimento com o feudo vizinho era


tão importante, que o xogum chamou o matemático e economista
do acampamento, jovem em quem tinha plena confiança, e comu-
nicou: "Você vai montar meu próprio cavalo, o Raio do Céu, pra
entregar esta mensagem o mais depressa possível ao Tai-Kum Li-
Pin-Li. Cada minuto vale uma vida de nossos companheiros."
0 mensageiro se curvou, mostrando pleno entendimento, pulou no
cavalo e desapareceu. À noite,
porém, um companheiro
o encontrou na floresta,
não montado, mas cor-
rendo esbaforido ao lado
do cavalo, que também
trotava velozmente, e es-
tranhou fato.
o
— 0 xogum - disse o
mensageiro, numa lógica
de sabedoria irretorquivel
— me entregou este cavalo

11
por ser o mais rápido do reino. Mas, por mais rápido que seja, eu
também sou rápido. Se correr ao lado dele, acrescento minha velo-
cidade àdele. Seis pernas correm sempre mais do que quatro.

MORAL A matemática é (matematicamente) imbatível.

12
O enfrentamento
À maneira dos... chineses

0 cavalheiro Kuoon Nung era inacreditavelmente teimoso e... ti-


nha um filho tão teimoso quanto ele. Um dia, Kuoon convidou um
amigo pruma ceia e mandou o filho na vila comprar alguns pas-
téis de nata pra servir junto com as bebidas. Quando voltava pra
casa, tendo que atravessar a única pinguela que dava acesso a seu
bairro - e só dava passagem pra uma pessoa -, Kuoonzinho viu
outro homem na pinguela, caminhando em direção contrária.
Gritou: "Pare! Volte! Eu pisei primeiro na pinguela!" Ao que o ou-
tro respondeu: "Volte você! Eu pisei antes e, sendo maior, não re-
cuo." Enada mais disseram. E lá ficaram, os dois, sem dar
passagem um ao outro, en(
tempo, esse sim, passava,
muito lentamente.
Kuoon, o pai, vendo que
o filho não voltava, ficou
indócil e, pedindo al-
guns minutos de li-
cença ao convidado,
que já havia chegado,
saiu à procura do filho.

13
Alcançando a pinguela, e compreendendo imediatamente o en-
trave, disse pro filho:
- Corre em casa com os pastéis de nata e entretém o nosso
hóspede, que eu fico aqui e, com a minha infinita paciência, en-
frento esse idiota que pretende levar vantagem em tudo.

EM TEMPO Esta história é totalmente improvável. Porque, se


Kuoonzinho tinha barrado o caminho de casa, quer dizer que o
pai, quando veio em seu auxílio, teria que passar pelo outro tei-
moso até chegar a ele. Ainda que o conseguisse e substituísse o
filho no confronto, Kuoonzinho teria também que passar pelo
confrontador pra ir pra casa. Se este deixou os dois passarem por
ele para a troca, por que não foi logo embora e acabou com esta
fábula?

MORAL No caminho do teimoso tem sempre uma pinguela e uma dúvida.

14
iv Holismo a bom mercado
A maneira dos... tibetanos

Um dia, Tsin-tsin, velho escolar da província de Kon-Non, ensina-


va a seus alunos sua tese holística de que todas as coisas perten-
cem a todas as coisas e se incorporam umas às outras, que a ten-
dência da natureza é sintetizar, agrupando unidades dispersas em
totalidades organizadas, e que qualquer ser, ao participar da me-
nor partícula existencial, partilha do total do universo. Mao-
Ming-Mong, aluno especialmente espertinho, levantou então
uma questão absolutamente pertinente:
— Mestre, devo compreender então que um homem iluminado
por suas teorias pode montar numa onça e unir-se a ela sem qual-
quer perigo de ser devorado pela fera, pelo simples fato de que a
parte é o todo, o todo é a parte, e tudo é tudo? Entendi bem ou
entendi mal?
— Você entendeu Mao
— disse o escolar, num tro-
cadilho que fez todo mun-
do rir.* — Percebeu a teo-
ria apenas parcialmente.

* Lá, como cá, puxa-sacos há.

15
Ao montar numa onça tem que atentar para o fato de que as duas
partes da natureza, a humana e a assim chamada selvagem, ainda
não estão perfeitamente unificadas. Pois a incorporação — se me
permite o jogo de palavras - só se torna perfeita no momento em
que a onça devora o cavaleiro.

MORAL A união faz a força (dos mais fortes).

16
v Cultura de massa
À maneira da... Seguridade Social

0 contínuo do INSS estava satisfeito, assobiando feliz, em sua co-


zinha suburbana, preparando carnes e temperos pruma macarro-
nada que oferecia, nesse domingo, aos amigos. De repente, a mu-
lherzinha dele, ao entrar na cozinha, reparou que ele estava
escondendo uns pacotes de macarrão atrás da geladeira.
— Pra que você está escondendo esse macarrão? - perguntou
a mulherzinha. - Não é nosso? Não foi comprado com nosso di-
nheiro?
O contínuo respondeu apenas:
— Treinando.

MORAL Ninguém sobe sem nourrau.

17
vi Amor com amor se paga

Morria o dia e Ismael morria. Sob a colcha de linho tiritava seu


corpo ainda relativamente moço, corpo, aliás, de homem cuja vida
não fora das mais operosas. A esposa, a seu lado, ainda moça tam-
bém, assistia-o em seu transe derradeiro. Ismael morria. E Isaura o
assistia. E, no pungir da morte, Ismael confessou:
— Isaura, meu amor, quero morrer com a consciência límpida.
Na hora grave e treda em que parto desse mundo, devo levar a
alma leve pra iniciar outra existência sem o peso desta. Confesso
que errei muito em minha relação com você. Nem sempre fui ver-
dadeiro, nem sempre fui fiel. Mas, para não tirar da minha cons-
ciência os dias e as vezes em que pequei ou errei, coloquei um
saquinho dentro do armário de roupa, lá embaixo, onde guardo os
sapatos velhos. Nesse saquinho você encontrará tantas moedas de
mil, mil-réis, mil cruzeiros, mil cruzados, mil reais - ah, nosso di-
nheiro muda tanto! - quantos foram meus erros e pecados.1 Não
abra o saquinho antes da minha morte. Só depois, só depois...

1. Os mistérios que existem entre marido e mulher, os dinheiros não dados, os pensamentos não
ditos, os códigos do livrinho de endereços, os telefonemas incompreensíveis na calada da noite
(ou mesmo no raiar do dia, por que não?), os pedacinhos de papel queimados no cinzeiro, toda
essa massa de desvios de intenção exige mais do que eu para explicações anímicas.

18
Dizendo isso, Ismael des-
maiou. Desmaiou e reviveu. A

morte poupou-o, a vida convi-


dou-o para novas aventuras, e
ele mudou as moedas de saqui-
nho, e o saquinho de lugar. E o

tempo
E veiopassou.2
então a vez da mulher
cair doente, pois aos cônjuges o destino reserva sempre alternação
nas moléstias, para que possam repartir lealdades e sacrifícios. Os
médicos examinaram cuidadosamente Isaura e concluíram que
não era nada grave. Consequentemente (ah, os esculápios!), ela
começou a dar sinais de que não ia durar muito. Sentindo a morte,
chamou Ismael, o marido, e disse:
— Ismael, naquele dia, gravemente enfermo, você teve a co-
ragem de me confessar que tinha errado. Chorei. Mas quando
você pensava que eu chorava ferida por seus erros, na verdade eu
chorava ferida pelos meus. De remorso por não poder também
contar meus pecados na hora em que você partia para sempre. Se
você não podia levar pra outro mundo o peso de suas faltas, como
lhe dizer naquele momento que mais pecadora era eu, com isso
amargurando ainda mais o coração moribundo que se mostrava

2. O tempo não faz outra coisa.

19
tão nobre?3 Agora, porém, quando é meu fim que se aproxima, eu
lhe digo:
— Se eu morrer, como é quase certo, você vai naquele latão na
cozinha onde está escrito "Milho". Nele, eu pus um grão de feijão
por cada erro que cometi em relação a você. Mas só abra depois
que se instalar em mim uma absoluta rigidez cadavérica.
Dizendo isso, Isaura deu início a seu the end. Fechou os olhos e
principiou a falecer. Antes porém teve um lampejo, uma lembran-
ça. Abriu os olhos e disse:
— Ah, Ismael, ia me esquecendo; na lata há alguns feijões de
menos, porque, no outro dia, no teu aniversário, a empregada ti-
rou quatro xícaras para fazer a feijoada.
E morreu.

MORAL Quando o pecado é grande não


importa uma feijoada a mais ou a menos.

3. É muito comum tirar-se de uma verdade explicitada uma mentira absolutamente sincera.

20
vii A última vontade
À maneira dos... assírios

Aben Assan, filho espúrio e estrafalário, sempre contrariava as de-


cisões de Ibin Bibar, seu pai. Desde menino - já lá vão quatro dé-
cadas -,fazia exatamente o oposto do que o velho mandava ou
sugeria. A princípio, o pai não percebeu, depois percebeu, enfim
certificou-se - o comportamento do filho era coisa cruel e deli-
berada. Por isso, quando sentiu que ia morrer, querendo ser enter-
rado no maravilhoso mausoléu da família, Ibin Bibar chamou
Aben Assan e disse:
— Meu filho, não quero ir pro cemitério da cidade, onde
estão enterrados todos os nossos ancestrais. Quero estar
num lugar onde não sejam possíveis reverên-
cias nem adulações póstumas, todas hi-
pócritas. Pegue meu corpo e jogue no
lamaçal lá no fim da estrada. — E,
dizendo isso, condizente-
mente, morreu.
Ao ver o pai morto,
Aben Assan teve uma sú-
bita crise de arrependi-

21
mento por tudo que havia feito na vida. E resolveu mudar seu
comportamento para com aquele que sempre o tratara como...
um pai. Pensou: "Não, ele nunca mereceu a maneira como eu o
tratei. Desta vez, a última, vou fazer exatamente o que ele pediu."
E, ajudado por empregados um tanto relutantes, pegou o cor-
po do pai e c atirou no lamaçal no fim da estrada.

MORAL Cria corvos e te arrancam os olhos.

22
viu Hi-Shin-Chon se inocenta
ou

A prova irrefutável
A maneira de... Fernando Collor

Na aldeia de Ko-Min-No, o impetuoso Hi-Shin-Chon tomou o go-


verno no meio de uma revolução rápida e bem aceita, dada a cor-
rupção anterior - sempre havia roubo de galinhas, ovos e batatas.
Mas, logo depois que ele assumiu, a população descobriu que no
seu governo o roubo era maior — tinham desaparecido duas vacas.
Uma delas, louca. A população se reuniu em praça pública, acusou
Hi-Shin-Chon, cercou o palácio, mas, democratica-
mente, mandou avisar ao Grande Líder que ele tinha
todo o direito de defesa. Davam-lhe para isso
cem dias. Hi-Shin-Chon imediatamente man-
dou um porta-voz comunicar que abria mão do
prazo, pois nada tinha a temer.
E, realmente, uma hora depois, aparecia no
alto da escadaria. Desceu solenemente os cem
degraus da escadaria palacial, chegou ao meio da
praça, parou num círculo que a multidão abriu

23
naturalmente em silêncio e temor, fixou-se desafiador sobre as
duas pernas, abriu os braços e ordenou com voz firme:
— Podem me revistar.
A multidão aplaudiu delirantemente.

MORAL Homem público não se deixa avacalhar.

24
ix As ligações (cirúrgicas) perigosas
A maneira da... cirurgia plástica

Mulher linda, sensual, altamente desejável. Além disso, e evitando


o "mau" uso dessas características, era devota, crente, caridosa.
Por isso1 um dia Deus lhe apareceu. Ela se prostrou2 diante dele,
maravilhada e contrita. E Deus lhe disse:
— Por todas as tuas virtudes morais e religiosas, jamais anula-
das pelas tentações físicas, você vai viver cem anos.
Estimulada pela promessa divina, a mulher caprichou cada vez
mais nas suas práticas humanistas. Mas, não querendo que seu
esplendor físico se distanciasse muito de suas qualidades morais,
aos cinquenta anos fez uma operação plástica. Em nome de Deus.
Aos cinquenta e cinco anos, achou que devia manter os resultados
positivos conseguidos aos cinquenta e fez outra plástica. Outra
aos sessenta. Outra aos sessenta e

1. Pelas qualidades espirituais, ou pruma


olhadinha pro bumbum, uma paquerada?
As opiniões divergem. Uns acham que
Deus é Deus. Outros, que nem sempre.
2. No bom sentido. Não no maroto, o

sacrossacana "ajoelhou tem que rezar"


cinco. Um dia, aos setenta, quando ia saindo da clínica do Dr.
Pitangui, novinha em folha, catrapum!, foi atropelada por uma
ambulância da AMIL - Seguros de Saúde.3 Ao abrir os olhos, esta-
va no céu. Diante de Deus! Foi insopitável a cobrança:
— Mas, Senhor meu Deus, o Senhor tinha me prometido...
E Deus, um tanto ou quanto contrafeito, se Deusculpou:
- Perdão, minha filha, eu não te reconheci.

MORAL É preciso ser reconhecida por Deus.


Não basta ser reconhecida ao cirurgião plástico.

3. Podia ser qualquer outro veículo. Mas Seguro de Saúde é sempre uma ameaça.

26
x Ambições desmedidas
À maneira do... Crato de cratoleba

Chorando e mais chorando, o filho chegou junto do pobre e ma-


gro pai:
— Tô com a fome, pai! Tô com a fome!
0 pai ergueu sua face magra de barba rala, bateu culpadamen-
te na cabeça chata do filho e disse:
— Pede, meu filho, pede. Que é que você quer comer? Mesmo
que seja o cavalo de São Jorge ou o Dragão da Maldade, eu mato
pra você comer. 0 sertanejo é antes de tudo um forte.
— Não, pai, não quero nada disso - respondeu o pranteado*
filho. — Não preciso de vosso hediondo esforço, inaudito risco ou
insólito sacrifício. Quero só feijão, rapadura e farinha.
— Filhos, filhos! - queixou-se o
pai, amargurado. - Só pedem o
impossível!

MORAL Há um limite até para o mínimo.

Pranteado aqui não é sinónimo de morto.


Lembrem-se de que o filho estava chorando.

27
xi João sem medo

Há muito, muito tempo, no Reino da Multifobia,


nasceu João, um menino anormal - não tinha
o menor medo. Os pais levaram-no ao médico
mais incompetente do Reino e João nem piscou
quando o escularápio manejou injeções e brandiu
bisturis. Depois soltaram João, à noite, num bos-
que negro como a noite, cheio de ruídos suspei-
tos, e o garoto nem vagiu. Jogaram-no num precipí-
cio, pra que ele sentisse a vertigem do terror, e o imbecil1 saiu
rindo e nadando nas águas lá embaixo.
Altas horas, uma máscara horrenda na cara, podia o pai entrar
sorrateiramente e colocar em seu pescoço as mãos previamente
geladas no freezer que João apenas perguntava: "É mamãe?" Und
so weiter.
Os pais desesperaram. Como iria sobreviver, num mundo de
poltrões, o filho sempre tão tranquilo em sua poltrona? E nem en-
contravam razões genéticas pra tanta coragem: por parte de mãe,
o garoto descendia de um avô covarde, que, já crescido, fugia de
briga de menino, casado com uma avó ignava; e por parte de pai,

1. Claro que também era!

28
de um avô molancas e de uma avó cagarolas, sem falar que eles
próprios, pais, eram medricas e caguinchas - tudo sinónimos de
covardia que estão nos dicionários.
Entibiados, os pais resolveram soltar o filho no vasto mundo
que, ninguém duvida, é a maior universidade de terror.2 Não vol-
tasse antes de aprender a tremer feito varas verdes e se borrar na
primeira batida de janela durante a noite e pedir penico a qual-
quer moleque com uma atiradeira.
Assim, mochila às costas, João Sem Medo se encaminhou pro
local mais terrível do mundo - a apavorante Favela do Alemão.
No caminho - como acontece em fábulas — , foi atacado por três
tigres; Volta Seca e seus cabras marcados pra morrer, uma patru-
Ihinha da PM, e dois corretores de imóveis. João tratou-os com a
sua reação mais natural, que o vulgo chama bravura — espetou
um, derrubou outros, subornou os demais.
Continuou a caminhar, foi pra Zona Sul, onde encontrou uma
ipanemense típica, quatorze anos infestados, um biquini do tama-
nho de um Band-Aid, um par de seios que nem te digo e um par
de nádegas que vou te contar. João Sem Medo, não hesitando um
átimo, perguntou a ela:
— Justeza da natureza, onde é que fica a Pontifictícia Universi-
dade do Terror?

2. Depois da família.

29
- Ih, bem! - disse a jovem — , você está querendo aprender
medo e susto? Tou morando que você não tem a menor voca pra
isso. Isso, a gente ou nasce com ou nasce sem. De qualquer forma,
não é aqui não. É ali na entrada do túnel. Se chama Torre Rio-Sul:
tem planos do Metro abandonados, embaixo, e mesas do MaxinVs
abandonadas, em cima.
João Sem Medo encontrou logo a tal Torre (95 andares) e foi
falar com o Reitor, um senhor que se assustava pelo nome de
Drácula de Frankenstein da Silva Estripador. Assim que João en-
trou, oReitor apagou todas as luzes, mandou um raio artificial lá
fora e estertorou: "Buuuuuuuuuu!" João nem. E o Reitor disse:
— Você é justamente o homem de que estamos precisando. Ti-
vemos tanto sucesso na implantação do medo em nossa gestão,
que agora os nossos 95 andares e 1.300 salas estão vazias de alu-
nos, ocupadas apenas pelos filhos, descendentes indiretos, deriva-
dos e subprodutos do medo que implantamos. Você, como candi-
dato a catedrático de pânico, tem que nos ajudar, enquanto sofre
de desassombro, livrando-nos da demasia de espantos, calafrios e
cagaços que...
Nessa mesma noite João dormiu sozinho no salão principal da
Torre. Dormiu bem, apesar dos "Buuuuuuuus!" imensos, arrasta-
mentos de correntes, gargalhadas sinistras, pedidos lancinantes
de socorros, gemidos de dor de torturados e que tais. E a certa
hora da noite, quando o relógio dava exatamente doze eletroni-

30
cadas, João sentiu no corpo - tinha a mania de dormir nu - as
mãos acariciantes (falanges, falanginhas e falangetas) de um es-
queleto. João não teve dúvidas — abraçou o esqueleto e possuiu-o
ali mesmo, pois era necrófilo convicto. E dormiu abraçado com
ele/a, não o/a3 deixando ir embora. A luz do amanhecer revelou
que o esqueleto não resistira ao abraço de João - estava morto.
Logo os elementos aterrorizadores do imenso imóvel começa-
ram a entrar (alguns atravessando as paredes), se apresentando e,
ao mesmo tempo, se despedindo de João. Um morcego branco de
olhos sanguíneos falou por todos:
— João, depois disso nunca mais ninguém vai ter medo de nós.
Você nos venceu, liquidando o nosso líder. Adeus!
Nosferatu, o vampiro bicha, disse:
— Adeus, João, eu sabia que o clima tropical não ia dar.
Jack, o estripador, falou:
— Good-bye, master John, the fearless. Prefiro a senhora
Thatcher.
E um troglodita do antigo DOI-CODI ainda aconselhou:
— João, pense pra frente! Nada de revanchismo.
Nesse mesmo dia o Reitor organizou uma cerimónia no salão
principal do Rio-Sul e disse pra João:

3. Usa-se esse o/a para indefinir sexo, quando o sexo é indefinido.


No caso de esqueleto, não sei onde é que fica.

31
— João, você nos salvou. Agora podemos trazer pra cá todo o
funcionalismo público do Estado, com sua terrível burocracia —
isso sim, é de meter medo. E você, pelo serviço que prestou, vai ter
exatamente o que veio buscar — vou lhe dar minha filha em casa-
mento.
Quando viu a filha torta do Reitor, os olhos vesgos da filha do
Reitor, o nariz inoperável da filha do Reitor, os gambitos da filha
do Reitor e os seios sacos-de-café da filha do Reitor, João come-
çou a empalidecer, depois a suar e por fim a gelar, soluçando pela
primeira vez na vida: "Mãiêê!"

MORAL Roosevelt dizia: "Nrada tremos


a tremer srenão o próprio mredro."

32
xii Três economistas padrão
A maneira do... Planalto

Com o profundo interesse público de sempre, três economistas do


governo, que chamaremos de 1, 2, 3, viajavam incógnitos pelo
Brasil, à procura de dados e informações com que aperfeiçoar seus
grandes planos científicos pra solução definitiva de todos os pro-
blemas económicos do país.
Certa noite, dormiam num modesto quarto de pensão do inte-
rior de Minas, quando o 1, sentindo forte comichão na perna, co-
meçou acoçar a perna do 2. Como a comichão não passasse, o 1
esgaravatou mais fortemente a perna do 2, até
que ela começou a sangrar. O 2, sentindo algo es-
correr pela perna, pensou que era o 3 sofrendo
de incontinência urinária, acordou-o e, irritado,
disse que fosse mijar lá fora. O 3 levantou-se e
foi à beira do quintal pra se aliviar. Mas, como
por perto havia um reservatório que botava água
pelo ladrão sem parar, o 3 ficou ali até o sol raiar
e ele perceber o que estava acontecendo.

MORAL O plano vai dar certo.


Precisa só de pequenas correções.
xiii Os perigos da filosofia

E como estavam ali há tanto tempo juntos, aqueles quatro moços


de várias habilidades intelectuais e um professor um pouco mais
velho (bem baixinho, só aqui pra nós, todos subversivos), este pro-
pôs um teste filosófico:
— Companheiros, estamos aqui neste aposento vazio, neste
aparelho, a perigo, nesta hora de graves ameaças. Vamos aprovei-
tar prum exercício, digamos, metafísico. Suponhamos que cada
um de vocês tivesse que encher este espaço. Qual seria a maneira
mais rápida e mais útil de fazê-lo? Responde você primeiro, José.
José, o mais velho dos moços, respondeu:
— Eu o encheria de palha. Seria uma maneira muito rápida de
encher o quarto, com material leve e fácil de transportar, e extre-
mamente útil, pois poderíamos nos entreter tecendo cestas, ou
descansar sobre ela mais confortavelmente.
O professor esclareceu:
— Você deu uma boa resposta, que tem execução prática, e é
útil. Quem errou fui eu; vou tornar a questão mais clara - o quar-
to tem de ser completamente cheio, de maneira compacta. Você
agora, Mário.
Mário, o mais magro de todos, respondeu:

34
— Eu o encheria de areia. Também
fácil de transportar, não tão fácil
quanto a palha, mas o quarto fi-
caria praticamente cheio. Pode-
ríamos também deitar sobre a
areia, ou usá-la como defesa,
atirando-a contra os olhos de alguém que nos atacasse.
— A ideia é boa — aceitou o professor e mais velho — , mas o
quarto ficaria praticamente cheio, não compactamente. Sem falar
que, cheio de areia, não poderíamos ficar dentro dele. Tem ideia
que resolva melhor a proposta do teste, Eusébio?
Eusébio, o mais barbudo, que já tinha tido tempo de pensar,
disse:
— Acho que sim. Eu encheria o aposento com água. Aí ele esta-
ria cheio, compactamente cheio. E nada poderia encher o quarto
mais rapidamente, pois bastaria deixar aberta a bica do banheiro
aí junto. E existe alguma coisa mais útil do que a água?
— Tem toda razão, Eusébio, na rapidez do processo e na utili-
dade do material utilizado. Se esqueceu apenas de pequeno ponto
negativo; morreríamos todos afogados. Tem ideia melhor, Ivan?
E Ivan, o mais bem-dotado de todos, respondeu docemente:
— Da maneira mais simples, mais rápida, da única maneira, no
momento, verdadeiramente útil de aproveitar o espaço, já que
mal podemos nos ver nesta noite que cai. Executo agora mesmo.

35
Diante dos outros admirados, dirigiu-se até a parede, girou o
comutador e encheu o aposento de luz.
- Admirável! Perfeito! - disse o professor. - Realmente, nin-
guém pode viver sem luz, a luz é que alimenta o mundo, a luz é
que torna possível a saúde e a reprodução da vida. Sem falar que
podemos nos locomover dentro dela sem qualquer dificuldade. E
sem falar, também, na simbologia, pois a luz representa tudo que
é livre na...
Porém, antes que acabasse de falar, a polícia, que estava vigi-
ando o edifício há vários dias, vendo que havia luz na janela, inva-
diu o aparelho e fuzilou todo mundo.

MORAL Quem está na merda não filosofa.


submoral Da discussão nasce a luz. E da luz?

36
xiv Narciso e Eco

Narciso, vocês sabem, era aquele tremendo gatão da Bíblia, per-


dão, da outra mitologia. E Eco era aquela bonitona, também mito-
lógica. Mas só era encantadora nos três primeiros minutos, porque
no quarto enchia. Não conseguia ter uma única expressão ou
pensamento próprios. Eco só sabia repetir o que os outros diziam:
— O que os outros diziam.
— Que mania essa tua, Eco! - resmungava Narciso, já cansado
daquele caso e começando a vestir a toga. — Vive me repetindo!
Realmente, caros feitores, com Eco não havia saco.
— Não havia saco.
Por isso, Narciso resolveu
irà vida:
— Não te aguento mais,
mulher, você enche até ces-
to de vime.
— Cesto de vime.
— Vou botar o pé na es-
trada, evê se não vem atrás
de mim.
— Atrás de mim.

37
Eco não seguiu atrás dele, mas, diz a lenda, foi definhando de
amor, definhando, até que dela ficou apenas a voz no ar claro da
manhã.
— No ar claro da manhã.

Mas, não tendo mais Eco a quem olhar,1 Narciso acabou olhan-
do a si próprio num lago, e ficou tão apaixonado pela própria
imagem, que saltou no lago pra se autopossuir. Conseguiu apenas
se afogar.2 Depois disso, uma bela flor nasceu no lago e todos pas-
saram a chamá-la de Narciso, mas já não adiantava mais nada.
Não adiantava mais nada.

MORAL Não adiantava mais nada!

1. Duplo sentido.
2. E inventar o narcisismo.

38
xv Sábias divergências

A maneira dos... siberianos

Dois homens de alta sabedoria se encontraram no meio de uma


estrada estreita em Irks-Polustski. Um deles, vendo que o outro
não lhe dava passagem, gritou:
— Sai do meu caminho, filho de um cão pária e reco-reco!
Ao que o outro reagiu:
— Tu, que jamais tiveste consciência do espírito e espírito da
consciência, deverias sair do caminho de um homem que está aci-
ma das vãs trivialidades do teu pensamento. Sai, afasta-te, verme!
- Se conhecesses os princípios e os fins, os mistérios da esca-
tologia, me darias passagem, cão sarnento e teco-teco - replicou
o outro.
- Se princípios e fins
fossem do teu conheci-
mento, há muito já esta-
rias morto, e a escatologia
tinha ido pro brejo - gri-
tou o segundo sábio.
Um professor de filoso-
fia, que ia passando com
seus alunos, ordenou:

39
- Parem! Parem e prestem atenção às belezas infinitas das al-
tas discussões culturais!
Os alunos pararam e ouviram, até que um deles disse:
- Mas me parece que esses dois aí estão apenas se esculham-
bando.

- Quando sábios tratam de princípios e especulações filosófi-


cas, tudo que dizem é filosofia - explicou o professor.
- Mas, então - aventurou o discípulo — , quando é que a coisa
se torna ofensa e agressão?
- Quando é dita por qualquer pessoa comum, sem interesse
cultural. A cultura — aprenda - está sempre acima e além da pro-
saica busca de convivência e harmonia social.

MORAL Só na guerra se aprende a beleza da paz.

40
xvi O pagamento do devedor
e a dívida do credor
À maneira de... Ibrahim Eris,
Grande Ministro da Grande Economia

Na última lona, Hizi-ibn-Bem-Gazara pediu um empréstimo a um


amigo rico que ia passando por ali. 0 amigo, cuja mania era aper-
tar torneiras, recusou o empréstimo. Gazara implorou. O já não
tão amigo recusou. Gazara chorou, prometeu, garantiu, até que o
ex-amigo lhe disse:
— Se você, aos sessenta anos, conseguir plantar bananeira, eu
lhe empresto o dinheiro.
Apesar da idade, e apesar de nunca ter feito um exercício na

vida, Gazara imediatamente plantou bananeira.* O agora inimigo,


obrigado a honrar sua palavra, imediatamente deu a Gazara as
3.000 rupias de

que ele neces-

* Não há maior estímulo do


que a adversidade, dizem
todos os filósofos que,
vivendo à custa do poder,
jamais passaram necessidade.

41
sitava. Um observador social, que observava socialmente, não se
conteve, saiu de sua observação e disse a Gazara:
— Como pode um sexagenário se humilhar de maneira tão hu-
milhante ese curvar de maneira tão curvante pra conseguir que
um idiota lhe empreste umas míseras gotas de sua liquidez?
E Gazara respondeu:
— Não - pra mim foi fácil e nem senti a humilhação. Eu preci-
sava do dinheiro e vou pagar com juros. Mas os juros maiores, os
da humilhação, quem vai pagar é ele, quando quiser receber: terá
que andar de quatro atrás de mim um ano inteiro.

MORAL O credor está sempre na mão do devedor.

42
xvn A generosidade das elites
e a gratidão dos humildes
À maneira dos... sul-coreanos

Um homem de ombreiras bordadas a ouro1 foi condenado a cem


chibatadas em público, por não pagar imposto de renda. No dia

anterior à sentença, encheu uma bolsa com 10.000 piastras2 e, en-


contrando na rua um miserável, pediu que, em troca das 10.000
piastras, o miserável recebesse as chibatadas em seu lugar, como a

lei permitia.3 0 pobre-diabo achou extremamente boa a proposta


(10.000 piastras!), e no dia seguinte estava lá, de cócoras, no cen-
tro da maior praça da cidade, pra receber as chibatadas. Mas, logo
nas primeiras dez, começou a chorar - viu que não
resistia - e, em altos e lancinantes brados, pediu

1. Correspondente ao nosso colarinho-branco.


2. Piastras não são moedas da Coreia do Sul,
mas nas fábulas vale tudo, desde que os
nomes sejam sonoros.
3. Aliás, aqui entre nós, os pobres também
pagam pelos ricos através de dinheiro barato
fornecido aos ricos pelo Banco Central.

43
clemência a Alá.4 Alá surgiu como o auxiliar do chibatador, que
lhe disse ao ouvido que, se desse todo o dinheiro que tinha, o
chibatador apenas fingiria as outras noventa chibatadas. Mas que
gritasse ainda mais pra que o povo em volta não percebesse a bar-
ganha. Omiserável concordou, a chibatação e os gritos continua-
ram cada vez mais fortes e mais altos, até se completarem as cem
chibatadas e o povo sair contente, porque agora, como todos ti-
nham visto, também os poderosos eram castigados, embora por
interpostas pessoas. No dia seguinte, o miserável estava outra vez
na sua esquina, quando viu passar o potentado cujo lugar tinha
tomado. Num ímpeto, atirou-se em frente ao homem e, ajoelha-
do, murmurou, com os olhos em lágrimas:
— Agradecido, mil vezes agradecido, meu louvado senhor; que
o céu o faça cada dia mais poderoso. Se o senhor não tivesse me
financiado com tanta generosidade, eu agora estaria morto com
aquelas cem chibatadas.

MORAL Nada que vem de cima me humilha.

4. Alá também não tem nada a ver com


a Coreia, mas fábula é fábula, pô!

44
xvni O homem que dormiu no ponto
A maneira dos... mongóis

Qian-Qnei, voltando de madrugada, depois de um mês de viagem,


teve que bater violentamente na porta de casa até que a mulher o
atendesse. Caindo de cansaço, e irritado pela aparente desaten-
ção, ohomem esculhambou a mulher e, apesar de morto de fome,
resolveu se deitar sem comer. A mulher, também zangada, virou
pro lado na cama - e, quando ele acendeu a luz, gritou:
— Apaga essa porcaria, que eu quero dormir!
O homem apagou, mas, apesar do escuro, viu a ponta de dois
tamancos holandeses vermelhos aparecendo de modo suspeito
embaixo da cama. Envenenado de ódio, sentiu o sangue lhe subir
à cabeça, pegou silenciosamente sua cimitarra,1 pronto para um
ato de violência, quando se lembrou da lição existencial de seu
mestre de filosofia, Ku-En-Puí: "Pense dez vezes antes de uma
ação que possa ser fatal no seu dia." Qian-Qnei
se acalmou ao lembrar o conselho

fletiu lá consigo próprio: "Dormi


um sono tranquilo e amanhí
mais calmo, ajusto contas

1. Mongol usa cimitarra?

45
com meu amargo destino." Mas, assim que ele dormiu e começou
a roncar, a mulher, sabiamente, trocou o par de tamancos verme-
lhos que o amante holandês2 tinha abandonado no pavor da fuga
e botou no seu lugar um par de borzeguins dourados do marido.
— Ah! - exclamou Qian-Qnei alegremente, ao acordar de ma-
nhã. - Extraordinário! Bastou passar a raiva, pra que eu veja me-
lhor. Como é que eu fui confundir meus melhores borzeguins
dourados com um par de tamancos vermelhos? Devia estar mes-
mo muito fora de mim. Se agisse de modo precipitado, ontem à
noite, teria ficado completamente ridicularizado diante de minha
querida mulher.

MORAL Devemos sempre agir às claras.

2. Amante holandês na Mongólia? Eta, mulherzinha!

46
xix A perda abstrata
À maneira dos... baianos

0 extraordinário professor de línguas passeando pelo Brasil punha


sempre ouvidos à maneira de falar dos nativos, fossem professo-
res, como ele próprio, ou gente simples do povo. E ficou fascinado
com uma palavra que ouvia a todo momento - absurdo. E daí em
diante, sempre que podia, a toda hora, dizia, absurdo! Absurdo.
Absurdo! E sorria deliciosa satisfação intelectual semântica.
Pois não é que um dia, atravessando a Baía da Guanabara a
passeio, em direção a Paquetá, o professor achou a paisagem um
absurdo de bonita e, que horror!, não lembrou a palavra? Tentou,
levantou-se, andou até a popa do barco, depois até a proa, procu-
rando no mais fundo da me-
mória, mas a palavra não veio.
E estava ali, de cabeça baixa,
andando pra lá e pra cá, sem
nem mais olhar a paisagem,
quando um taifeiro lhe per-
guntou:
- Que foi, cavalheiro, está
sentindo alguma coisa?

47
— Não, nada, estou só aborrecido. Perdi uma palavra.
— Uma palavra? Estava escrita num papel?
— Não. Não estava escrita em lugar nenhum. Só na minha
cabeça.
— Perdeu uma palavra que estava na sua cabeça? Perdão, se-
nhor, mas é um absurdo!
— É isso! Encontrou! Obrigado, meu amigo, obrigado.

MORAL A cultura está em toda parte.

48
xx O antiquista
A maneira dos... chineses

Um dia, um trapaceiro, sabendo que o supremo sábio Ong-Ong-


Ung era tarado por antiguidades, lhe trouxe um velho catre no
qual — provava com farta documentação - dormira durante anos
Ing-Ing-Ong, o arquimestre de lutas marciais do século XII. Ong-
Ong-Ung não resistiu. Ofereceu em troca do catre as três únicas
juntas de búfalos que possuía, e ficou com ele. Catre.
Tempos depois, voltou o trapaceiro e, com documentação ain-
da mais veemente, mostrou a Ong-Ong-Ung uma tigela lascada,
onde comera durante anos Zing-Zang-Zeng, o divino samurai da
Dinastia Ika. Ong-Ong-Ung não resistiu e ficou com a tigela, dan-
do em troca todos os seus móveis e mais as cinco
cerejeiras do seu quintal.
Mais tempo, e volta o trapaceiro com
uma bengala de junco, provando, com
inúmeros palimpsestos e alguns palimp-
sétimos, que a bengala pertencera a
Lin-Pin-Ton, o invencível pirata do
século VIII, terror do Oceano de
Sangue. Ong-Ong-Ung não resis-

49
tiu, e, como não possuía mais nada além da casa em que morava,
trocou a casa pela bengala.
Daí em diante, Ong-Ong-Ung, em vez de supremo sábio, pas-
sou a ser chamado de supremo idiota, e, não tendo com o que
viver, nem onde morar, dormia no catre de Ing-Ing-Ong, andava
pelas ruas apoiado na bengala de Lin-Pin-Ton, e recebia esmolas
na tigela de Zing-Zang-Zeng. Mas jamais perdeu a esportiva.

MORAL Mais vale um gosto do que seis ienes.

50
xxi Na fronteira da esperança

0 guarda parou o carro na barreira da


Nova República.
— Parabéns! - disse ele ao moto-
rista do carro. - Acaba de ganhar o
prémio de um milhão de cruzeiros!
É o milésimo motorista que entra na
nova estrada do Progresso e da Li-
berdade. que
O é que o senhor pre-
tende fazer com esse dinheiro?
— Eu? - respondeu o motorista. - A primeira coisa que vou
fazer é comprar uma carteira de motorista.
— Não presta atenção nesse idiota, não! - gritou a mulher que
estava ao lado do motorista. - Ele vem bebendo desde que entra-
mos na estrada; já está completamente bêbado!
— Bêbado nada, sua idiota! - falou a velha que estava no fun-
do do carro. - Se meu filho estivesse bêbado, não tinha consegui-
do roubar o carro.
— Magnífico o bom humor de vocês! - disse o guarda. - Po-
dem ir. Boa viagem!

MORAL Toda repressão tem sua cota de permissividade.

51
xxii A caixa (ou lá que outro
nome tenha) de Pandora

No tempo em que Prometeu usava-se ape-


nas como nome próprio e não como ver-
bo, compondo uma frase deceptiva: "Pro-
meteu e não cumpriu", era tudo home cum
home. A terra ainda estava vazia de mulheres. Não estou dizendo
que isso fosse bom ou ruim, mas feminismo não tinha não. Pen-
sando bem, até que podia ser bom, porque hoje, depois do femi-
nismo, tem muito home aí já jogando as muié pra escanteio, e
muita muié também fazendo o mesmo com os home, e deve ser
porque isso é bom, não é mesmo? Digam vocês aí que entendem.
Mas o caso é que Prometeu juntou a moçada na praça — só
tinha uma e se chamava Agora - e disse que todo mundo ia fi-
car besta com um número que ele ia fazer, uma coisa! Deu um
pulo quando um raio de sol ia passando baixinho e, pronto, rou-
bou ofogo do céu. A maior parte dos caras ficou meio assim sobre
o decepcionado, porque estava mesmo é esperando que ele rou-
basse do céu uma dona boa, uma baita deusa, pois, enquanto os
humanos viviam no ora-veja, os deuses lá em cima andavam cer-
cados das minas e das gatinhas - literalmente nas nuvens, num
machismo adoidado.

52
Mas quando Prometeu ficou com o fogo na mão, orgulhoso de
sua bravata, Júpiter nem conversou. Puniu os mortais, vejam só!,
dando-lhes exatamente o que eles queriam - uma mulher! — só
pra eles aprenderem o que era bom.
Eali mesmo na praça, bonita como um chafariz e jorrando pipi
como um desses ornamentos arquitetônicos, surgiu Pandora.* As
exclamações, ao vê-la cair do céu, foram as mais naturais pos-
síveis:
— Olha o arco-íris!
— Que que é isso, pombas?
— Pombas? Bom nome pro bicho.
— Topless, olha!
— Que que ela tá escondendo na caixinha?
Sim, porque, além de todas as suas outras qualidades, Pandora
tinha uma caixinha negra, de forma triangular, que Deus (Zeus,
Júpiter) tinha lhe dado, recomendando que não a abrisse pra nin-
guém nunca, conservasse a sua - dela, caixa — virgindade, que,
aliás, pra maior segurança, vinha lacrada com um hímen epitelial.

Quer dizer, a intenção de Júpiter era fazer Prometeu casar com Pandora e quebrar a
cara. Mas como Prometeu nem deu bola, estava noutra, Júpiter, fulo dentro da roupa,
mandou pendurar Prometeu no Cáucaso, condenando-o a ter o fígado devorado por
um abutre durante 30.000 anos. Mas Hércules, o super-herói, matou o abutre e
libertou Prometeu 30 anos depois: o que dá 99.900% de diminuição de pena. Flagrante
incentivo à impunidade!

53
Mas sabe como é home, né? Sempre naquela de oprimir a mu-
lher. Tanto pediram: "Abre! Abre!" "Nenhum de nós tem ,uma
igual!" "Ih, o que que tem dentro? Aposto que nem você sabe" —
que Pandora hesitou, hesitou mas... Pois é, não resistiu mesmo,
quando um centurião, mais afoito, bolou uma forma carinhosa
que ia durar séculos: "Abre, meu bem!"
Pandora abriu a sua caixinha, e, pronto, os males do mundo
que estavam lá dentro - a luxúria, a inveja, o medo, o cheque sem
fundo e a impontualidade - escaparam todos e povoaram a terra
pra sempre. Pandora ainda fechou as pernas - onde tinha coloca-
do a caixinha - a tempo de reter a esperança, uma florzinha pe-
quenininha cor-de-rosa, muito suscetível, espécie de maria-sem-
vergonha.
Por isso, até hoje a Esperança só dá no escuro, e os homens
vivem atrás dela aos tropeções. Mas não desistem.

MORAL A superproteção num tá cum nada.

54
xxiii Onde nasce a hierarquia?
A maneira dos... chineses

Afinal, depois de ter arrasa-


do cidades e assaltado mil

embarcações, o célebre pi-


rata Zheng Guang, que ope-
rava nas costas de Fujian, sen-
tiu o peso da idade. Entrou em
acordo com as mais altas autori-
dades de Nung — e se rendeu. Em
troca recebeu do Taikum o mais alto peso no oficialato* Apesar de
acostumados à prática, os mais graduados membros das milícias
se revoltaram e tentaram forçar Zheng Guang a abdicar. Mas este,
como superior, mandou prender todos os dissidentes, declarando:
— O que entendem vocês de hierarquia? Vocês começaram a
roubar depois que se tornaram oficiais. Eu só me tornei oficial de-
pois de muitos e muitos anos de roubo.

MORAL Antiguidade é posto.

1 Fazia parte do pragmatismo chinês, na dinastia Yuan, segundo Chen Yuanjing. Continua
sendo parte do pragmatismo de... (cala-te boca!), na dinastia... (bem, deixa pra lá).

55
xxiv Tudo não vale nada
À maneira dos... sírios

Altas horas. 0 ladrão entrou na casa do velho miserável. Irritado


com o tremendo erro - não encontrou absolutamente nada pra
roubar — , saiu batendo a porta violentamente. Mas a porta conti-
nuou aberta, e, do seu catre, o miserável dono da casa gritou:
— Vê se fecha essa porta, ô desgraçado!
Ao que o ladrão respondeu:
— Não admira que a sua casa seja tão miserável, se você é tão
vagabundo e preguiçoso que não levanta nem pra fechar a porta
depois da casa assaltada.
E aí o miserável dono da casa respondeu:
— De que adiantaria eu me levantar pra fechar a porta, ou fa-
zer alguma coisa, até mesmo trabalhar pra ganhar dinheiro, se no
■— ^ — i fim ia acabar assaltado por
vagabundos como você?

MORAL O fim é consequência do começo.


xxv A raposa, o leão e o burro

0 Burro, a Raposa e o Leão estavam lá no bem-bão. E o bem-bão


traz filosofia, traz reflequição.
— Majestade — disse a Raposa -, eu tenho planos para a Nova
Floresta.
— Ora, ora, bom momento - disse Sua Sereníssima Alteza. -
Vejamos.
0 Burro levantou a cabeça e deu uma olhada.
— Pra começar do começo - disse a Raposa -, temos a Frente.
— Que Frente? - perguntou o Leão.
— A parte contrária à de trás - respondeu habilmente a Rapo-
sa. — A junção dos contrários, a sintagmatização dos antípodas,
para que se possa fazer um governo em conjunto. 0 Pacto!
— Ah, o Pacto! Por que você não disse logo? Vinha cantando
alegremente, quem, quem!
— Sem o Pacto, o senhor sabe, há total desarmonia na Nova
Floresta. O Jaguar tem medo das riscas do Tigre, o Elefante não
trata dos dentes no Rinoceronte, e o Galo não quer se aproximar
de mim, por falta de garantias.
— E o Pacto resolve isso?
— Claro, Alteza. Basta dizer que tem 400 itens, 3.477 parágra-
fos, pra não falar dos 3.000 decretos-leis; que podem ser apli-

57
cados como leis e como de
cretos.
O Burro levantou
a cabeça.
- Mas isso garante
a ordem? Olha a bandei-
ra - Ordem e Regresso. E,
no entanto...
- Perdão, Alteza: Ordem e Congresso. Mas está tudo previsto
pra manter a ordem. As ordenanças são em ordem alfabética jus-
tamente pra não serem compreendidas pelos analfabetos.
- Estou achando você meio genial, perdão, meia genial, coma-
dre Raposa. Estou até pensando em você pro Ministério da Incul-
tura.
- Ora, ora, Majestadíssima. Temos ainda as novas diretrizes pra
aviação nacional. Olha só: Primeiro: Fica proibido a qualquer
avião voar fora do ar, como o nome indica.
- Maravilha!
- Segundo: Fica terminantemente proibido a qualquer avião
aterrizar sem rodas e subir sem asas.
O Burro abanou a orelha esquerda.
- Mas que subordinação extraordinária! - comoveu-se o
Leão.

58
— Calma, Sereníssima Alteza, porque agora tenho o projeto
para a denominação nominal do nome onomástico.
— Nome? - cogitou o Rei (no sentido de Cogito ergo sum).
— Claro, Majestade, a selva se multiplica em selva, e os animais
terão que ter mudados seus nomes próprios e impróprios. Aquele
de pescoço comprido se chamará Sapo; o Coelho se chamará Ele-
fante; oColibri, Hipopótamo; e o Hipopótamo, Boate.
— E eu, vou me chamar como? Vais deixar de me chamar de
Leão?
— Claro, Majestade! Vossa Alteza, de hoje em diante, será cha-
mado apenas pelo encomiástico: Sereníssimo e Majestático Impe-
rador das Selvas.
— Não é mau. Pra começar.
0 Burro levantou a orelha direita. 0 Leão reparou.
— Como é que é, Burro, você não diz nada?
— Nada tenho a acrescentar, Rei.
— Sempre haverá alguma coisa a acrescentar - disse o Rei.
— Não se pode acrescentar sabedoria à tolice. Esse pacto é
infactível. É como juntar a sua fome com a vontade de comer da
Raposa. Há que haver muita comida.
— Mas nem a Lei da Aeronáutica você achou boa?
— Acho boa, digamos, como lei. Mas interessa, se não temos
aviação, e se a aviação nem sequer foi inventada?
— Mas e quanto à onomástica?

59
— Ora, desde que o Homem é Homem, e o Burro, Burro, quem
chama Burro de Homem e Homem de Burro nem é Burro nem é
Homem - é um idiota completo. Mas quanto a chamar o Colibri
de Hipopótamo, dessa eu gostei. Revela um senso de humor ines-
perado.

MORAL Triste da selva que depende tanto da sabedoria do burro.


xxvi A perseguição

Um dia, um gatinho sarnento miou prum buldogue que passava. 0


buldogue saiu correndo, e o gatinho refletiu com seus bigodes:
"Serei eu um gato feroz? Nesta pergunta já estará implícita a res-
posta?" E,contente com sua recém-adquirida ferocidade, saiu
correndo atrás do cachorro, que, na verdade, não corria dele, cor-
ria atrás de um tigre para quem ele tinha latido. Indagava-se o
cachorro: "Serei eu um felino? Bem, se sou, devo ser desde meni-
no." Rimava.
Mas o tigre não corria do cachorro. Ele corria era atrás de um
carneiro gostoso e cheiroso. "Eu corro atrás de carneiro porque
não encontro veados", pensava o tigre. "De qualquer forma, essa
é a minha maneira de ganhar a vida. Nem todo mundo é astro

tevê."o carneiro corria atrás de uma ovelha


de Mas

com quem pretendia fazer um capotinho,


uma echarpe, ou pelo menos três rolinhos
de lã bem bonitinhos:
— Vem cá, bem meu — falava ele. —
E você vai ser a ovelhinha mais
feliz do mundo.

61
Mas a ovelhinha corria era atrás de uma girafa, e pensava: "Eu
corro atrás dessa girafa porque tenho inveja desse pescoço longo,
eu, um animal praticamente sem pescoço."
E a girafa, que estava apenas fazendo o seu cooper matinal,
não dizia nada, porque a girafa é muda.

MORAL O sentido das coisas é inalcançável.

62
XXVII A sorte & o azar

Sexta-feira da Paixão, a menininha acordou, cheia de alegria, foi


pra janela do barraco e meteu os peitos no último pagodão ro-
mântico, composto pela dupla Depardiê Belmondô e Marlon Bo-
checha.1 Amãe, assustada, gritou:
— Pára com isso, Tardiosa! Neste dia só se canta música sacra,
menina! — E como a menina não ligasse, a mãe sentenciou: —
Deus castiga quem canta o que você está cantando, você vai ver
só! Pára com isso!
Pois nesse exato momento aí, ia passando pela frente do barra-
co Maurice Gerard, diretor do Olímpia:2
— Que voz, menina!
E a menina, delicadíssima, respondeu:
— Percebo que messiê não sabe bem português; vós não sinhô,
pode me tratar de você!
Gerard corrigiu:
— Sei português muito bem, estou fa-
lando mesmo de tua voz magnífica, e vou

1. A influência estrangeira na MPB continua cada vez maior.


Apesar dos nomes, ambos os compositores são negros.
2. Aquele mesmo que convidou pra cantar lá a cigarra, da
Cigarra e a Formiga, só pra desmoralizar La Fontaine.
te contratar pra cantar no Olimpiá!3 Toma aqui dez mil dólares
por conta e entra aí em meu Porsch, que vou passar um fax pra
Paris, enquanto você assina o contrato prum circuito de um ano
na Europa, França e Bahia.
A menina assinou o contrato, contentíssima. E a mãe, que já
tinha aprovado, assinou como testemunha. A menina, antes de
entrar no carrão, saiu saltitante, já cantando em francês, não viu
o buraco, caiu e ficou gemendo de dor, com o pé torcido, talvez
quebrado.
- Viu? - disse a mãe. - Eu não falei que cantar música profa-
na na Sexta-feira da Paixão, Deus castiga?

MORAL Todo vaticínio é relativo

ou
Botar a boca no mundo é perigoso.

3. Ou ela, ou eu, alguém está copiando a vida da Piaf - em preto e branco.

64
xxvni É caindo que se aprende
A maneira dos... argentinos

Ao sair de um bar onde tinha o hábito de discutir com outros bê-


bados suas articulações políticas, o candidato ao trono foi-se mal
das pernas, tropeçou, vacilou e caiu no chão, não quebrando o
nariz por se amparar nas mãos. Levantou-se a custo, recusou or-
gulhosamente qualquer auxílio, mas, assim que se levantou, as
pernas bambearam e ele caiu outra vez. Sem forças, apoiou-se nas
mãos e refletiu, pra iluminação de seus discípulos:
— Se eu soubesse que ia cair uma segunda vez, teria poupado
o esforço de me levantar a primeira.

MORAL Taí por que os sábios andam de quatro.

65
xxix Odisseu e a Odisseia
ou Ulisses e a Ulisséia

Depois que inventou o Cavalo de Tróia e


deu por terminada a guerra do mesmo nome,
Ulisses resolveu voltar pra ítaca, onde Penélope
o esperava tecendo sua infindável tela. Mas perdeu o barco de
MCMXXXVIII, e quando pegou o próximo, VI anos depois, este
afundou. Botou o pé numa ilha, onde foi recebido por uma belda-
de tipo Fafá de Belém, que o saudou alegremente:
- Bom dia, gatão. Meu nome é Circe, e minha especialidade é
transformar homens em porcos, ao contrário de todas as minhas
concorrentes.
Assustado, Ulisses saiu andando pelas águas, enquanto os por-
cos em volta grunhiam:
— Volta, idiota, em toda a Hélade você não vai encontrar chi-
queiro melhor.
Ulisses não deu ouvidos e continuou no seu crau perfeito, mas
Circe, que era capaz de acertar flecha em furo de lança-perfume,
atingiu-o com uma pedra que o transformou em espírito de por-
co. Nessa condição, ele bateu na ilha mais próxima, onde o rece-
beu jovem ainda mais linda do que Circe. Perguntou Ulisses:

66
— É permitida a entrada de suínos?
— Claro, taradão - disse a Efígie -, eu sou a ninfa Calipso Fac-
to e estou com a noite inteiramente livre.
Ulisses entendeu logo o que ela queria e foi aquele oink-oink-
oink anos a fio. E aí Ulisses disse pra ela:
— Bem, Calipso Facto, chega de oink-oink-oink, eu tenho que
ir.
E Calipso:
— Você mal chegou! Fica mais uns XII anos!
Então Ulisses se atirou de novo nas águas do Tirreno, refle-
xionando:
— Pô, essas donas são insociáveis, digo insaciáveis. E já estou
começando a ter saudade de comidinha caseira.

ENQUANTO ISSO...

Um porrilhão de surfistas (na Grécia, tanta ilha e tanto mar em


volta, ou o cara era surfista ou não tava cum nada) achava que
Ulisses tinha morrido e assediava Penélope. Esta, marota, disse -
ora, vocês sabem! - que só escolhia pretendente quando acabasse
um xale que tecia ou lhe apetecia, não sei. E de noite desfazia o
que fazia durante o dia, de modo que não acabava nunca, mas os
bestalhões nem percebiam, parece que lenda é assim mesmo. Foi
nesse momento que Ulisses chegou e sapt, zapt, zapt, atravessou

67
todos os pretendentes com uma flecha per capita. Penélope ati-
rou-se-lhe nos braços, entusiasmada:
— Ah, meu amor, que emoção, tua porquinha não aguentava
mais.
E Ulisses:
— Oink, oink.

MORAL É chique viver em chiqueiro.

68
xxx As irrefutabilidades matemáticas
A maneira dos... circassianos

Ney Sir, o Grande Agregado, foi visitar seu determinado e impo-


nente discípulo, Ma Son II, Condestável Perene, levando pela mão
o belo filho. Ma Son II recebeu Ney Sir na Sala das Salamandras e
lhe ofereceu um chá de tulipas em chávenas de Pranto de Alá, a
mais rica louça do reinado de Luf Ma IV. No meio da tertúlia en-
trou a mulher de Ma Son II, trazendo pela mão a maravilhosa íris
do Sol, sua pequena filha. As duas se curvaram, no rito secular, e
se retiraram para os fundos da casa, pois é assim que devem fazer
as mulheres em todos os tempos. Nesse momento Ney Sir falou:
— Ma Son II, eu vim aqui com uma missão, e, ao ver a beleza de
sua filha, não resisto mais — que idade ela tem?
— Dois anos, Mestre — res-
pondeu oCondestável Perene.
- Pois é perfeito - tornou
Ney Sir. - Meu filho tem qua-
tro anos. Eu lhe proponho que
os dois se casem no próximo
Mês das Tamareiras. #0k
— Perdão, Mestre, mas não
posso aceitar tal absurdo. Acho

69
mesmo uma monstruosidade, uma proposta de infelicidade per-
manente para ambos; a diferença de idade é brutal.
- Como brutal? - disse Ney Sir. — Ele tem quatro anos, ela
dois. Uma diferença de apenas dois anos.
- Perdão, Grande Mestre, mas é espantoso ver o senhor defen-
der tão trivial matemática. Ele não é apenas dois anos mais velho
do que ela; ou melhor, isso não importa. O que importa é ele ter o
dobro da idade dela. Se não considerarmos isso, nos perdemos
numa aritmética pueril que, como sabe vossa sabedoria, foi o que
sempre fez a infelicidade dos indivíduos e dos povos. Hoje ele tem
quatro anos, ela tem dois. Mas amanhã ele terá oito, ela quatro;
depois, ele vinte, ela dez; em seguida, ele quarenta, ela vinte. E
quando tiver 60 nada poderá advir de bom para um homem, tão
idoso, casado com uma mulher que tem apenas trinta anos. Per-
doe-me, mas a diferença é demasiada. Aceita outra chávena?

MORAL É por essas e outras (muitas outras)


que nossa distribuição de renda é o que é.

70
xxxi Certas coisas figadais
A maneira dos... egrégios

Quando Tongo Tango, interrogado por Jango Lomango sobre a


morte de seu pai, respondeu que ele tinha morrido depois de co-
mer patê de foagrá (pasta feita com fígado de ganso), Lomango se
espantou:
— Como? O fígado estava podre?
— Não - explicou Tongo Tango — , estava bom. Mas todos sa-
bem que não se deve comer fígado de ganso, porque é uma coisa
terrivelmente tóxica. Mortal.
— Que bobagem mais boba! — riu-se Lomango. - Se o fígado
de ganso fosse tóxico, os gansos não andariam por aí, lampeiros.
Não resistiriam ao próprio fígado.
— Resistem - concordou Tongo — , mas resistem pouco. Os
gansos vivem 2°/o do que vive o ser huma-
no exatamente por causa do fígado.
Lomango calou-se, abalado. E como
ele próprio possuía um gan-
so, nessa noite, na surdina,
pegou um facão, foi ao
quintal, abriu o ganso e

71
lhe tirou o fígado. E ao ver que o ganso morria, concluiu sabia-
mente:
— Tongo tem toda razão. Se o fígado fora do ganso lhe faz
tanto mal, imagina se permanecesse mais tempo lá dentro.

MORAL Toda lógica é mortal.

72
xxxii O leão, o burro e o rato

Um leão, um burro e um rato voltaram, afinal, da caçada que ha-


viam empreendido juntos1 e colocaram numa clareira tudo que ti-
nham caçado: dois veados, algumas perdizes, três tatus, uma paca
e muita caça menor. 0 leão sentou-se num tronco e, com voz to-
nitruante que procurava inutilmente suavizar, berrou:
— Bem, agora que terminamos um magnífico dia de trabalho,
descansemos aqui, camaradas, para a justa partilha do nosso es-
forço conjunto. Compadre burro, por favor, você, que é o mais sá-
bio de nós três, com licença do compadre rato, você, compadre
burro, vai fazer a partilha desta caça em três
partes absolutamente iguais. Vamos, com-
padre rato, até o rio, beber um pouco de
água, deixando nosso grande amigo burro
em paz para deliberar.
Os dois se afastaram, foram até o rio,

beberam água2 e ficaram um tempo. Volta-

1. A conjugação de esforços tão heterogéneos na destruição


do meio ambiente é coisa muito comum.
2. Enquanto estavam bebendo água, o leão reparou que o rato
estava sujando a água que ele bebia. Mas isso é outra fábula.

73
ram e verificaram que o burro tinha feito um trabalho extrema-
mente meticuloso, dividindo a caça em três partes absolutamente
iguais. Assim que viu os dois voltando, o burro perguntou ao leão:
— Pronto, compadre leão, aí está: que acha da partilha?
0 leão não disse uma palavra. Deu uma violenta patada na
nuca do burro, prostrando-o no chão, morto.
Sorrindo, o leão voltou-se para o rato e disse:
— Compadre rato, lamento muito, mas tenho a impressão de
que concorda em que não podíamos suportar a presença de tama-
nha inaptidão e burrice. Desculpe eu ter perdido a paciência, mas
não havia outra coisa a fazer. Há muito que eu não suportava
mais o compadre burro. Me faça um favor agora - divida você o
bolo da caça, incluindo, por favor, o corpo do compadre burro.
Vou até o rio, novamente, deixando-lhe calma para uma delibera-
ção sensata.
Mal o leão se afastou, o rato não teve a menor dúvida. Dividiu
o monte de caça em dois: de um lado, toda a caça, inclusive o
corpo do burro. Do outro, apenas um ratinho cinza3 morto por
acaso. 0 leão ainda não tinha chegado ao rio, quando o rato o
chamou:
— Compadre leão, está pronta a partilha!

3. Os ratos devem se contentar em se alimentar de ratos.


Como diziam os latinos: Similia similibus curantur.

74
O leão, vendo a caça dividida de maneira tão justa, não pôde
deixar de cumprimentar o rato:
— Maravilhoso, meu caro compadre, maravilhoso! Como você
chegou tão depressa a uma partilha tão certa?
E o rato respondeu:
— Muito simples. Estabeleci uma relação matemática entre seu
tamanho e o meu - é claro que você precisa comer muito mais.
Tracei uma comparação entre a sua força e a minha - é claro que
você precisa de muito maior volume de alimentação do que eu.
Comparei, ponderadamente, sua posição na floresta com a minha
— e, evidentemente, a partilha só podia ser esta. Além do que, sou
um intelectual, sou todo espírito!
— Inacreditável, inacreditável! Que compreensão Que argúcia!
— exclamou o leão, realmente admirado. - Olha, juro que nunca
tinha notado, em você, essa cultura. Como você escondeu isso o
tempo todo, e quem lhe ensinou tanta sabedoria?
— Na verdade, leão, eu nunca soube nada. Se me perdoa um
elogio fúnebre, se não se ofende, acabei de aprender tudo agora
mesmo, com o burro morto.

MORAL Só um burro tenta ficar com a parte do leão.

75
xxxni A sopa de pedras

Quando terminou a guerra dos


farrapos de Canudos, uma guerra
dessas aí!, Serapião Pintumba perambu-
lou por muito tempo no sertão. À proporção
que perambulava, penetrava, e, penetrando,
sua miséria aumentava - pois o interior fazia
as cidades empobrecerem com ele. Até que um dia
chegou a uma aldeia de casas de taipa, distante de tudo, isto é,
próxima de nada. Serapião bateu numa porta e pediu um pedaço
de pão. Foi escorraçado. Bateu noutra porta, pediu um pedaço de
queijo de cabra. Foi chutado. Bateu em outra porta e pediu um
pedaço de rapadura. Foi cuspido. Bateu noutra porta e pediu uma
lata velha. Foi atendido. Aí, Serapião se acocorou no meio da pra-
ça, fez uma trempe, botou a lata em cima e ficou esperando o
destino. 0 destino, como sempre, juntou uns curiosos: "Que qui tu
tá fazendo aí, Serapião Maluco?" perguntaram. "Uma sopa", disse
Serapião. "To veno nada", criticou um velho crítico de sopas local.
"Tão marranja água que cê vai vê", disse Serapião. Arranjaram
água pro Serapião, e fogo, e ele, assim que a água pegou uma fer-
vura, jogou duas pedras dentro da lata e ficou lá mexe que mexe
com um pau. "Que sopa é essa?", veio a próxima pergunta. "Sopa

76
de pedra", disse Serapião. "De peeeeedra?", espantaram-se os ha-
bitantes daaldeia, em uníssono. "E pode sopa de pedra? Nóis num
comi sopa aqui tem mais di méis. Si dava para fazê sopa di pedra,
a gente toda tava toda limentada." Um demagogo presente apro-
veitou adúvida no ar e vociferou: "É como os eternos leguleios,
eternos prometedores de miragens, embaindo o povo do sertão
com falácias infantis, acenando para o povo com soluções mirí-
ficas enquanto palacianos governosos se locupletam com suas
gordas mordomias. Mas mesmo esses profissionais do engodo ja-
mais pensaram em proposta de solução alimentar tão estapa-
fúrdia!" Tomou ar e perguntou noutro tom: "Que é que você pre-
tende exprimir, dialeticamente, com sopa de pedra?" "Bem",
respondeu Serapião, um tanto intimidado, a sopa pode sê só di
pedra, né?, e inté qui sai boa. Mas se ôces mi arranja um pidacinho
de tocinho, um pezinho di cove, um naquinho di rapadura, aí dava
muito in mió, né memo?" "Qué qui há, Maneco, sem essa!", disse
então um pau-de-arara que tinha trabalhado em Ipanema duran-
te seis meses, pendurado num edifício da Vieira Souto, e por isso
era considerado o grã-fino da aldeia. "Sopa de pedra é sopa de
pedra! Não vem com subsídios que aqui não tem disso não. Você
falou em sopa de pedra; vai ser sopa de pedra! Pessoal, todo mun-
do fazendo sopa de pedra aí na praça!" Em poucos minutos, a pra-
ça estava cheia de panelas, caldeirões, chaleiras, terrinas e latas
fervendo com pedras. E cada um já procurava fazer sua sopa me-

77
Ihor que a do vizinho, com um sabor diferente: rocha, granito,
sílex, calcário, pedra-pomes, basalto, pedra-sabão, pedra-ume,
pedregulho. Mas terminou tudo numa grande decepção. Nenhu-
ma das sopas de pedra tinha o menor gosto de sopa. Pior ainda -
não tinha nem gosto de pedra. Foi aí que um caboclo mais imagi-
noso descobriu a única utilidade da pedra capaz de, naquele mo-
mento, satisfazer a todos os habitantes da aldeia. Tacou um para-
lelepípedo na cabeça de Serapião, que caiu ali mesmo e logo foi
apedrejado por todo mundo, morrendo dilapidado.
Como na Bíblia.

MORAL Não se deve abusar da miséria


do povo; ele acaba ficando empedernido.

78
xxxiv Crime & castigo
A maneira dos... indonésios

0 Imperador Spenmgo-Sango recebeu do seu Governador Tungi-


Nais, homem de 130 anos de idade, um frasco de vinho dourado
que, diziam, era a própria razão da longevidade do Governador.
Mais até: o Governador, numa carta bordada em seda, dizia que o
conteúdo desse frasco era especial, e daria não apenas longevida-
de mas imortalidade a quem o bebesse. Assim, cercado por alguns
fiéis servidores, o Imperador Spenmgo-Sango sentou-se à mesa
de sua refeição matinal, comeu os dois ovos de faisão do sacro
ritual e mandou que servissem o vinho dourado. Mas quando o
garçom virou a garrafa, descobriu-se que estava vazia. 0 espanto
e a revolta duraram pouco, porém; logo se encontrou o culpado: o
eunuco predileto da Imperatriz, com os olhos brilhando, num por-
re dionisíaco. A condenação à mor-
te foi imediata, dando-se ao réu
apenas o direito de um minuto de
defesa, que ele usou dizendo:
- Majestade, todos sabem
que o senhor é sábio e justo.
Portanto não pode mandar me
matar.
79
- Por quê? - indagou o sábio e justo.
- Porque, se V. Majestade acredita mesmo nas virtudes desse
vinho, como sábio sabe que não conseguirá me matar. E se esse
vinho não é o que apregoam, ao me matar estará cometendo uma
injustiça. Eu terei apenas bebido um vinho como qualquer outro.
- Muito bem refletido - disse o Imperador — , mas, como la-
drão, receberás 150 chibatadas todos os dias, pelo resto de teus
dias. Me tragam mais dois ovos de faisão.

MORAL A imortalidade é discutível. A gatunagem, não.

80
xxxv A maior ambição
A maneira dos... hindus

Quando Buda ainda era principiante,1 um bodhisattva na conste-


lação dos Satras tomou a forma terrena de SharMey, Governador
bom, compreensivo e compassivo.2 E assim, integrado num enor-
me humanismo transcendente, ele, um dia, depois de levar sua so-
lidariedade ao próximo ao extremo de abrir mão de mil anos do

seu mandato,3 achou que não bastava, que estava na hora de doar
também partes físicas de si mesmo. "0 que me pedirem, darei",
refletiu no fundo do âmago. Mas o deus Ghatsinbuva, que habita
exatamente no mais fundo recesso do âmago das almas, ouviu a
intenção do Governador e resolveu testá-la. Foi pra rua, disfarça-
do de cego, esbarrou com o Governador
e implorou:
— Ó Supremo, não sou um ce-
go de verdade, mas o pior cego é
o que quer ver. Bem que pode-
ríeis me dar um de vossos olhos.

1. Ainda estava na centésima primeira encarnação.


2. E bem vestido.
3. E doar tudo que tinha aos mais que pobres.

81
— Um? — respondeu o Potentado. — Leva os dois pelo mesmo
preço: a graça divina.
Mas, no Nirvana,4 Ghatsinbuva sentiu remorsos. E embora isso
não seja sentimento apreciável em deuses, decidiu reencontrar
SharMey. Este esmolava numa rua, de óculos escuros, e o Deus o
abordou:

— Governador, estou arrependido de ter posado de cego. Que


posso lhe dar em compensação por sua cegueira, que todos os
seus súditos reconhecem verdadeira e irrecuperável?
— A morte — respondeu SharMey sem pestanejar.
— A morte? Por quê?
E SharMey:

— Já imaginou: reencarnação, outras vidas, não ter mais com-


paixão pelo próximo, passar a eternidade contemplando o próprio
umbigo?

MORAL A imortalidade é imoral.

4. Ou seja, lá onde seja que habitam os deuses budistas.

82
xxxvi O médico que ficou sábio
À maneira de... Catai

(I) Quando Shing-lun saiu pra visita semanal a seus pacientes de


Qientzin, o bom filho, estudante de medicina, lia histórias ro-
mânticas, encantado com os encontros e desencontros dos
sentimentos humanos.
- Se você pretende levar a medicina a sério - ralhou
Shing-lun — , largue esses livros e estude anatomia.

(II) Quando Shing-lun saltou de seu muar nos portais de Qientzin


e avançou para o palácio do prefeito, teve uma surpresa: dez
seguranças e uma pequena multidão de cam-
poneses avançaram contra ele aos gritos
de "Médico assassino!", "Doutor in-
competente!", "Morte a quem mata!"
— e ele nem teve tempo de remontar
o burro. Correu horrorizado pelas
ruelas, entrou num pequeno bos-
que, saltou num lamaçal pesti
lento, passou a noite caminhan-
do no paul, caiu no rio já de
madrugada e...

83
(Ill) Quando Shing-lun chegou em casa, morto de cansado, ras-
gado eferido pelos bambuais, o bom filho estudava à luz de
uma vela, mergulhado profundamente em Tratados de Ana-
tomia. Antes de desmaiar, Shing-lun reclamou:
— Mas estudando anatomia até agora? Se você quer le-
var a medicina a sério, tem que praticar o cooper e aprender
natação.

MORAL Bom médico acha remédio pra tudo.

84
xxxvu A velhice e a sabedoria
ou

Pra que serve a sabedoria?


A maneira dos... neerlandeses

Um fazendeiro se casou com uma mulher bem mais velha (por


questões que aqui não interessa esmiuçar) e estava tudo muito
bem, até que um dia ele acordou no meio da noite, olhou pra cara
da mulher sem maquiagem, na impudência do sono, e viu-lhe
muitas rugas no rosto. Acordou a mulher, indignado, e falou:
— Mulher, você, quando casou comigo, me disse que tinha 43
anos. Muito bem, 43 são muitos
anos, mas não são demais. Po-
rém, passados apenas dois
meses, você, no meio da
noite, como saída de um
pesadelo, me apresenta
essa cara de 58 anos. Co-
mo se explica?
— Eu vou lhe contar
a verdade - disse a mu-
lher. - Menti pelo amor

85
que lhe tenho, pelo temor de que, sabendo minha idade, você não
se casasse comigo. Na verdade, estou com 44 anos.
O marido enganado (antes dessa forma!) não se conformou,
mas, como todo o comportamento da mulher daí por diante foi
consistente com a idade que ela declarou (e durante o dia ela to-
mava todos os cuidados pra parecer mais jovem), ele foi levando.
Uma noite, porém, acordou, e a cara da mulher, de boca aberta e
algumas falhas de dentes aparecendo, lhe pareceu muito mais ve-
lha, horrendamente velha. Ele então foi até a cozinha, fez barulho
com as panelas, deixou uma tampa cair no chão, quebrou dois
pratos; quando a mulher acordou apavorada, gritando o que é
que era, ele voltou pro quarto e disse, calmo:
- Não é nada não, eu fui só assustar os ratos que estavam co-
mendo ofubá!
- Rato comendo fubá? - disse a mulher espantada. - Que
coisa estranha! Eu já vivi mais de 70 anos e nunca ouvi ninguém
dizer que rato come fubá.

MORAL A idade traz sabedoria. Mas pode-se


usar a sabedoria sem sabedoria nenhuma.

86
xxxvin O testador testado
ou
A esperteza inútil
À maneira dos... tailandeses

Milionário muito milionário gostava


de gozar as pessoas com defeitos físi-
cos ou características inferiorizantes.
Um dia, entre os convidados a uma re-
cepção em sua casa, tinha um gago, e,
na frente de outros convidados, o mi-
lionário resolveu embananá-lo com
um problema existencial. Transcreve-
mos odiálogo:
— Suponhamos que você vai andando
por uma picada no mato e de repente cai num buraco de dois me-
tros de largo por vinte de fundo. Como é que você consegue sair?
— 0 bu-bu-raa-co tem uuma es-es-caada?
— Não, não tem nada. É um buracão natural.
— Eeessa su-ua-ua hi-hi-póóó-tese é de nooi-te ou dee dia?
— Não importa. A questão é como é que você sai do buraco.
Noite ou dia é indiferente.

87
— Bom, en-tããoo eu faa-ço a is his-tóória seer de diia e não
ca-caio no bu-bu-raco.
— Gomo assim? Tem que cair. Eu te joguei no buraco.
— Nãão see-nhor. Eu não ea-caio. Você pooode me go-gozar
poorque eu sou ga-ga-go, mas nããão voou ca-ir nuuum bu-bu-
raco de dia poorque não soou ce-ce-go iiim-bee-cil.
Todo o pessoal em volta caiu na gargalhada.

MORAL Mas o pessoal riu mais porque ele era gago.

88
xxxix O luar dos destituídos
À maneira dos... maranhenses

Um dia, um pobre maranhense andou muitas léguas e foi bater no


Piauí. Caminhou mais muitas léguas e chegou ao Ceará. Atraves-
sou muito mais léguas e foi dar na Paraíba. E aí, de noite, na habi-
tação do compadre paraibano, uma choupana que lhe parecia um
palácio, ele bebia feliz um chimarrão, quando, na outra margem
do Tietê,1 uma lua cheia, cheiona, tomou
conta do céu. José Ribamar, o mara-
nhense, ficou besta, arregalou os
óio,2 abriu a boca e disse:
- Cumpadre, que lua cê
tem! Eu nunca num vi uma lua
anssim nim toda minha vida!
— É - falou o compadre -,
tá bunita meismo essa! Mas
lua é lua, sô! Tem cheia e tem
vazia!

1. Esta fábula não é, decididamente, realista.


2. Esta fábula não pretende ter, claro, unidade
de linguagem.

89
- Ah, eu já tinha inté uvido meu pai fala - disse o maranhen-
se. — Mas nu Maranhão num tem não. Adispois antão que essa
famia do fio do coroné meu tio foi guvernadô, lá cada vez mais só
que só tem quartu minguante.

MORAL O céu é dos lunáticos.

90
xl Vénus, a deusa da amora1
Dizem que Afrodite, Vénus, nasceu das águas, ou melhor, das es-
pumas suspeitas do mar da Ilha de Chipre, depois que Saturno ti-
nha lançado ali os testículos de Urano - e estão aí a pintura de
Botticelli e os logotipos da Shell que não nos deixam duvidar. Vé-
nus era linda de morrer, e, não bastasse, o marido, Vulcano, sabe-
se lá por que taras precursoras,2 fez pra ela, pessoalmente, uma
toga que a deixava (ainda mais) irresistível.
Plutão, ao ver aquilo, foi o primeiro a babar na gravata de ad-
miração:
— Pó, Vulcano. Cara, não estou puxando não; acho que você
acabou de inventar a permissividade!
Parece que sim, pois, pelo conteúdo ou pelo continente, Narci-
so, que ia passando, viu Vénus mordendo uma maçã, achou aquilo
sedutoramente ecológico e, indeciso entre a maçã e a deusa, co-

1. Amor, inventado por Vénus, naturalmente


se chamava assim, amora. Mas os séculos
posteriores, intensamente chovinistas,
impuseram a palavra machista "amor".
2. Vulcano era deformado e horrendo.
Tem algum analista aí na plateia?
meu as duas.3 Logo depois, Marte, com roupa ou sem roupa, se
apaixonou perdidamente por ela, cunhando a frase milenarmente
repetida: "Boneca, quando eu te vejo só tenho vontade de fazer o
amor, não a guerra." Desse amor a ferro e fogo, Vénus teve um
filho, Cupido, que, como o nome indica, era extremamente cúpido.
Fato é que nem homem nem Deus passando por Vénus conse-
guia iradiante ou voltar pra trás. E por ela, ou pelo que a envolvia,
logo se formou uma fila imensa nos jardins dos Campos Elísios.
E, depois de Marte e Adónis, ela transou com Baco, Netuno,
Anquises; e, naturalmente, muitos outros menos votados. Mas
Vulcano, que até então parecia um perfeito adepto da redistribui-
ção de bens, já estava tão fulo dentro da armadura que resolveu
neutralizar a força de atração de Vénus, colocando nela um cintu-
rão cheio de esmeraldas.4 Com isso, tornou-a ainda mais sedutora
- e à primeira vista. Vulcano fez mais, pegou um balaio, ou rede de
pescar, e prendeu Marte, expondo-o à execração e ao ridículo pú-
blicos.
Por essas e outras, Vulcano é tido como inventor do ciúme, e
Vénus é considerada a primeira grande assanhada da história.

MORAL É de menina que se torce a pepina.

3. E olha que o que ele gostava mesmo era de um espelho.


4. Espécie de cinto de castidade sem castidade nenhuma.

92
xu Ribamar tiro certeiro

Contam que Ribamar, dono de uma chácara


de mais de oito milhões de quilómetros quadrados,
era também pensador refinado de renome internacional1 e legis-
lador em causa própria como não se conhecia igual. Mas o que
Ribamar apreciava acima de tudo era tiro ao alvo.2 E se orgulhava
de sua pontaria, que apregoava mesmo infalível. -C^
Pois um dia, Ribamar resolveu ir caçar patos, acompanhado
de quatro de seus amigos mais íntimos e bem experts no es-
porte: Masquiline (especialista em tiros na praça), Soódré
(que em São Paulo organizou uma temporada de caça que foi
tiro-e-queda), Malvadeza (que em 1986 tinha dado um extraordi-
nário tiro pela culatra) e Mantelo (embaixador especial no Tirol).
E aí estão, acampados no cimo de um outeiro do Pericumã,
vendo correr a seus pés o caudaloso Amazonas,3 os cinco amigões,
armados até os dentes,4 esperando aparecer no horizonte o pri-
meiro pato. E ei-lo que surge, o pato, grasnante e solitário, alvo

1. Na opinião insuspeita do seu ombudsman de quarto.


2. Embora não o desaprovasse ao negro, quando estava na África do Sul.
3. Esse Amazonas correndo aí em Brasília é pra dar a esta história um toque de realismo fantástico.
4. Muitos destes, claro, da terceira dentição.

93
privilegiado pra qualquer pontaria. Os amigos de Ribamar, como
faziam em tempos de jadis os aldeões medievais com suas filhas,
deixaram a ele a primícia do tiro. Ribamar ergueu sua arma à altu-
ra da mancha volátil, fixou bem o bicharoco, colocou-o bem no
centro de sua alça de mira, dormiu na pontaria e, pum!, não acon-
teceu nada! O pato continuou voando impávido, asas pandas ao
vento, sem mudar a rota nem dar a mínima para o espoco.
Ribamar baixou a arma sem olhar em volta, preparando-a para
novo pato e novo tiro, escutando os comentários, fingindo que
não:
Malvadeza: Nesta hora e nessa contraluz, não é possível acer-
tar em nada.
Soódré: Esses patos daqui são muito traiçoeiros. A gente calcu-
la que vão alterar o vôo e eles nos enganam - continuam sempre
em linha reta.
Masquiline: Realmente, essa indústria bélica nacional não é o
que dizem. Se fosse uma espingarda tcheca, não falhava.
Mantelo: Senhores, tenho a impressão de que não perceberam
que, neste instante, assistimos a um milagre - pela primeira vez
na história, estamos vendo um pato morto continuar voando.

MORAL Crer para ver.

94
xui A rã e o boi

Quatro rãs muito bonitinhas, uma mãe rãzona e três filhas


rãzinhas, viram um boi pela primeira vez na vida. 0 boi, sozinho,
puxava arado conduzido por um lavrador. As três rãzinhas quase
morreram de admiração. Que animalzão! Que fortão! Que bicha-
no! Que gatão!
A mãe rãzona, enciumada, exclamou:
— Mas vocês acharam esse boi assim tão forte? Que é que há?,
não exagerem. No máximo é uns dois centímetros mais alto do
que eu. Basta eu querer...
— Querer como? - disseram as rãzinhas em coro* - Você é
uma rã, e até, como escreve o Millôr aí em cima, uma rãzona. Mas
jamais será sequer um boizinho.
— Ora — disse a rãzona -, é só uma questão de comer mais e
respirar mais fundo.

"Toda rã pertence a um grupo coral.


*$£Z
E ali mesmo, na frente das filhas perplexas, a rãzona começou
a comer mais e respirar tudo que podia em volta. E foi crescendo e
perguntando:
— Já estou do tamanho dele?
E as filhas, sempre em coro:
— Não. Ainda falta muito.
Estimulada pelas negativas, a mãe foi comendo e respirando,
respirando e comendo, até que as filhas tiveram de concordar:
— Espantoso, mãe, agora a senhora está um boi de verdade. Faz
mu!
E quando ela fez um, o lavrador, que ia passando de novo com
o arado e o boi, também ficou entusiasmado:
— Ei, ô rãzona metida a boi, de hoje em diante você vai puxar o
meu arado pra serviços especiais. Tem aí um terreno cheio de
morrinhos e eu não consegui fazer o diabo desse boi frouxo
aprender a saltar.
E a partir daí, a rãzona teve que trabalhar de sol a sol sem sol-
tar um pio, isto é, um coaxo.

MORAL À rã o que é da rã, e ao boi o que é do boi.


ou
A tecnologia agrícola exige especialização.

96
xliii A execução

Acompanhado do diretor da prisão,


o santo homem, presidente da Liga
Internacional de Defesa dos Presi-
diários, visitou a penitenciária. Foi
uma visita cordial, em que o diretor
da prisão lhe prestou todos os escla-
recimentos lhe
e mostrou tudo com a
maior boa vontade. Vários jornalistas acompanha-
vam a visita do santo homem. E o diretor da prisão, com a
maior boa vontade, explicava detalhes e procurava justificar as ra-
zões de uma ou outra deficiência. Os jornalistas faziam perguntas,
o santo homem fazia perguntas, e o diretor se prestava a todos os
esclarecimentos, frisando que, afinal, uma prisão é uma prisão, e se
cá fora as coisas são duras, é natural que lá dentro as coisas o
sejam um pouco mais. Depois de uma hora de visita, percorridas
todas as instalações, já era total o clima de cordialidade entre o
diretor da prisão e o santo homem. Afinal, chegaram ao ponto
mais dramático da visita, o pátio interno, pequeno, cercado de
muros altíssimos, onde eram executados os condenados à morte.
No centro, tomando quase todo o pátio, o enorme cadafalso, com
o braço de madeira e a corda, forte, escura, pendurada na ponta.
Os dois subiram no estrado; o santo homem perguntou se alguém
tinha sido executado ultimamente, e o diretor da prisão, um tanto
constrangido, respondeu que, naquele mesmo dia, pela madruga-
da, tinha sido executado um criminoso, mas irrecuperável, irrecu-
perável! santo
0 homem disse apenas, com voz triste: "É". E, aproxi-
mando-se da forca, por pura brincadeira, colocou a cabeça no laço,
enfiou-o até o pescoço, esbugalhou os olhos e botou a língua pra
fora. 0 diretor da prisão riu e, também de pura brincadeira, apertou
um botão e abriu o alçapão. 0 santo homem esbugalhou de novo
os olhos e botou a língua pra fora, desta vez a sério.

MORAL Não adianta nada você ser inocente.

98
xliv A ideologia e a natureza
À maneira dos... verdes-abacate

Um grupo de ratos vinha por uma esterqueira, carre-


gando cartazes pela preservação da espécie ameaçada,
quando surgiu, andando malemolente em direção oposta, um gato.
Os ratos já iam correr, quando perceberam que era um gato com a
cara pintada de verde, tendo pendurado no pescoço um logotipo ve-
getariano. Um dos ratos exclamou, surpreendido:
- Olha, pessoal, um gato verde!
0 líder do grupo, um rato mais velho e mais sábio, ajuntou:
— Espantoso mesmo; um gato vegetariano!
E, alegremente, conduziu o grupo de ratos em direção ao gato,
pronto a indagar daquela surpreendente conversão felina. Aproxi-
mado, o gato não deu um miau - comeu meia dúzia de ratos. Os
outros escaparam, correndo. Botando os bofes pela boca, já seguro
num buraco da esterqueira, antes que o criticassem ou acusassem
por sua imprudência em se aproximar do gato, o rato mais velho e
mais sábio ponderou:
-Aprendamos, companheiros - o vegetarianismo aumenta a
voracidade dos gatos!

MORAL Todo gato verde precisa ser ratificado.

99
xlv O Cavalheiro do Cisne

Na época ainda não havia gravador, mas não temos que duvidar
de que foram estas as últimas palavras do duque de Bouillon:
— Meu mui erótico conde Frederico Tetramundo, cuida com
extrema ternura de minha filha Elza, com seus seis aninhos.
Ao que o conde, compungido, jurou:
— Morra logo em paz, espantoso duque, que, em não mais de
dez anos, farei de sua filha um donzelão pra nenhum dragão pe-
dófilo botar defeito.
E assim foi. Uma década depois, o priápico conde encostou
Elza na parede e discursou tipo & género ninguém-é-mais-repul-
sivo-do-que-eu:
— Sei muito bem que nem instituto de
aposentadoria gosta de velho, mas ta-
mos aqui pro que der e vier, e você,
já que veio, tem que dar.
Elza, arfando as duas lindas es-
feras que a essa altura1 pos-
suía, redarguiu:2

1. Mais ou menos um metro e quarenta.


2. Ou obtemperou.

100
- Que que é isso, conde? Desde menininha, a coisa com que eu
mais gostava de brincar era a sua dentadura e a sua peruca, em-
bora... -Dito o que, trancou-se no banheiro,3 enquanto o conde
gritava:
- Casa comigo, sacripanta; essa foi a última vontade do teu

E ela respondia:
pai!
- Veja se estou a fim de casamento branco, velho gaga. Eu
quero o meu.
E o conde:
- Gaga, eu? Você sabe com que eu estou batendo?
Resumindo: a coisa foi levada à decisão da Corte Suprema, isto
é, o Imperador, que arengou:
- Aqui está minha decisão, como sempre de uma equanimida-
de que me bestifica. Você só não casa com o conde Frederico, ô,
coisa fofinha, se encontrar alguém que o derrote num duelo sin-
gular. Mas não esqueça: em qualquer caso, não abro mão do jus

primae noctis.4
Chegados o dia e a hora do duelo, marcado o local no meio de
um bosque, na beira de um lago, Elza não tinha arranjado um he-
rói. Eaí, ninguém aparecendo para disputá-la, o conde, vestido de

3. Banheiro naqueles ermos e eras? Isso é que é realismo fantástico!


4. Se vocês são mais chegados a um francês, /e droit du seigneur.

101
negro, como convém a todo mau-caráter de novela, já ia levando
seu prémio (ela), quando surge no lago um cisne puxando um bar-
co, do qual salta um mancebo que, apregoando "Eu sou o Cava-
lheiro do Cisne!", mata o conde e ganha o corpinho cobiçado de
Elza de Brabante. Já na cama, Elza, naturalmente, quis saber quem
ele era, mas o Cavalheiro do Cisne respondeu apenas:
— Se você quiser viver comigo, jamais poderá tentar invadir a
minha privacidade.
Mas Elza não se conformou, e tantas vezes perguntou, que,
quinze anos depois, o Cavalheiro do Cisne não resistiu e confessou:
- Eu sou Sir Lohengrin. Sou um guarda do Santo Graal. Estava
de férias, mas agora tenho de novo que pegar o meu cisne do ho-
rário, que por acaso é teu irmão Gottfried, condenado a essa forma
pela feiticeira Ortrud, para maior grandeza das óperas de Wagner.

MORAL Quando não tinha feminismo, mulher dava


muito trabalho. Hoje dá muito mais. Não dá? Dá!

102
xlvi As grandes transformações
À maneira dos... chineses

Zhozey Sao-nwei era então o grande magistrado da província de


Bra-zhi-ylia. Conhecido pelos seus propósitos austeros e pela sua
má memória, Sao-nwei um dia mandou trazer aos jardins de seu
palácio um terrível criminoso, que tinha roubado dez trombetas, a
menor moeda do país. 0 magistrado resolvera ele próprio dar as
vinte chibatadas de praxe no criminoso, para exemplo e escar-
mento de outros ladrões potenciais. Pois raciocinava: se todos os
mais pobres roubarem, o país corre o risco de atingir uma igualda-
de absoluta e insuportável. O criminoso, nu até a cintura, ajoe-
Ihou-se no jardim, na frente do magistrado, e ficou esperando os
golpes, em vão. É que alguém viera
avisar o magistrado que estava
na hora de sua massagem com
uma gueixa do Camagway. E
Sao-nwei, já esquecido do que
estava fazendo no jardim, en-
trou para sua sessão diária de
calistenia erótica. Enquanto
isso, como a tarde caía e fazia

103
frio, o condenado resolveu vestir um dos casacos que secavam
numa corda embaixo dum salgueiro. Meia hora depois, Sao-nwei
voltou para espairecer no jardim e se surpreendeu com aquela fi-
gura desconhecida sentada num banco:
- 0 que é que o senhor está fazendo aqui sozinho, general?
Imediatamente mandou o criminoso-general entrar, começa-
ram a conversar sobre a segurança do país e resolveram invadir o
vizinho Par-a-Guay, o que trouxe muita prosperidade à província,
com o desenvolvimento da indústria bélica e o aumento de milha-
res de empregos de soldados.

MORAL O hábito faz o monge e a boca torta.

104
xlvii A pança dos

poderosos
A maneira dos... japoneses

len Tanaka arrotou lautamente seu ministe-


rial pequeno almoço de 38 pratos e, em
paz com a vida, foi fazer seu passeio
matinal, vendo o sol nascer espe-
cialmente pra ele, por trás das mon-
tanhas do Kai-Do. Seguindo Tanaka,
seus três principais assessores cami-
nhavam felizes, pois, nos países de
longa e sábia tradição, a satisfação do
amo é a satisfação dos servidores. E vi-
ram, os três, que Tanaka coçava feliz a
sua vasta barriga, depois do que parou,
voltou-se prós três e perguntou:
— 0 que vocês acham que tenho neste momento na minha
barrigaça?
Shin-kai, o mais novo dos assessores, respondeu logo:
— O estômago do querido Mestre está visivelmente cheio com
o mecanismo fundamental da criatividade e da competência.
Como Tanaka não desse demonstração de apreciar a resposta,
Zen Nagura, mais experimentado do que Shin-Kai, disse:

105
— O ventre de V. Senhoria está cheio de sabedoria filosófica
que adquiriu no trato com os livros.
Tanaka balançou a cabeça, negativamente. E aí, Gen-ziug, o
mais velho dos assessores, disse:
— Um ministro de Estado deve ter sempre a pança cheia com
tudo aquilo alheio às necessidades dos tempos.
E Tanaka sorriu, conivente.

MORAL O grande rei não tem o rei na barriga.

106
xlviii Entre o frio e o quente,
e o dentro e o fora
À maneira dos... coreanos

Na província de Usai, Lin-Sen era conhecido pelas suas malandra-


gens. De modo que, ao vê-lo chegando ao portão de sua casa, o
académico Kin-Kon-Kun disse prós dois amigos que fumavam
com ele o fumo da paz do futuro:
- Quero ver se consigo... - E, voltando-se para Lin-Sen, assim
que este abriu a porta: - Lin-Sen, todos dizem, nesta província do
Oriente, que você sabe todos os truques e malandragens que es-
tão nas onze mil enredações do Dai-
Min-Sou. Então os meus dois ami-
gos aqui apostaram comigo, e eu
apostei com esses meus dois ami-
gos aqui, como, faça você o que fi-
zer, não será capaz de me conven-
cer a sair pro jardim.
E Lin-Sen, com a sabedoria que
tinha, respondeu:
— Vossa Senhoria aposta apenas
por saber muito bem que eu não

107
aceitaria um desafio perdido. 0 inverno este ano está muito gela-
do, e este é o dia mais frio do ano. Mas, com a natureza a meu
favor, se Vossa Senhoria quiser apostar o contrário, garanto-lhe
que, faça o que fizer, resista como possa, eu o obrigarei a entrar
em casa.
0 académico topou, foi para o jardim e disse:
— Vamos, obrigue-me agora a entrar em casa.
- Não posso! - respondeu Lin-Sen. - Confesso que não posso.
Já esgotei minha capacidade intelectual ganhando a primeira
aposta.

MORAL Quem não está bem por dentro nunca está bem por fora.

108
xlix Aquarela
À maneira dos... gaúchos

Há muito tempo, existiam, em Los


Pagos de Guantanamera, um fa-
moso ehurrasqueiro e um doidão
por presunto defumado. Este, tendo à mão um presunto cru, re-
solveu defumá-lo aproveitando a fumaça que saía da churras-
queira do famoso churrasqueira. Mas quando o doidão por pre-
sunto defumado ia saindo satisfeito, mordendo o seu presuntão
recém-defumado, o famoso churrasqueira agarrou-o, gritando:
— Espera aí, seu ladrão! Ou paga uma pataca pela fumaça que
usou ou vou defumar você todo!
A briga começou, juntou gente, até que um pacifista, que gos-
tava de churrasco e também de presunto defumado, foi correndo
chamar o juiz da vara de comidas e acepipes pra resolver a dispu-
ta. 0 magistrado veio imediatamente, ouviu os dois querelantes e
perguntou ao acusado:
— Quanto ele quer lhe cobrar pelo uso da fumaça?
— Uma pataca, meritíssimo - respondeu o doidão por presun-
to defumado.
— Então me dá uma pataca - ordenou o magistrado.

109
O doidão por presunto defumado fuçou nos bolsos e entregou
uma pataca ao magistrado. Mas este disse apenas:
— Você mesmo jogue com força a moeda na placa de ferro da
churrasqueira. — O acusado obedeceu, a moeda quicou duas ou
três vezes na chapa e caiu no chão. 0 magistrado então senten-
ciou:
— Pronto, considero que o som da moeda do presuntuoso paga
devidamente a fumaça do churrasqueiro. - Curvou-se, botou a
moeda no bolso e foi embora murmurando a palavra "honorários".

MORAL Onde só há fumaça não se


deve chamar o Corpo de Bombeiros.

110
Dois gémeos díspares
À maneira dos... sarracenos

Nasceram, no ano de 1233, em Minika-el-Fart, a mais rica cidade


daquela parte ali assim, dois gémeos, EI-EI e YI-EI, cujo destino foi
viverem afastados, em universos completamente diferentes. Um
abandonou as pompas e todos os prazeres do mundo. 0 outro, ao
contrário, era o chamado homem do dito, explorador ao máximo
do gozo da vida.
Um dia, sabendo que o gozador jamais iria visitá-lo no meio do
deserto pra degustar com ele uma saladinha de gafanhotos com
pastéis de brisa, EI-EI foi ao palácio de YI-EI. Este o recebeu com
grande alegria, mas ficou chateado quando, sentado à mesa do
pequeno almoço - 38 entradas e 12 saí-
das -, o irmão nem tocou nas pitanças,
ficando o tempo todo de cabeça baixa.
— Você estupidou de vez? - per-
guntou YI-EI. — Por que não come?
— Caluda! Estou ouvindo meu
umbigo, que hoje está brilhantís-
simo - respondeu EI-EI.
— Então vou dar tua comida
à gata Cama Sutra, que está hoje

111
miadíssima. Não entendo o que você tira dessa dieta macroidió-
tiea- disse YI-EI.
- Pois venha comigo até o lago e verá a materialização do
meu espírito - desafiou El— El.
Os dois foram pro lago e logo (gostaram dojoguinho de pala-
vras?) EI-EI saiu lampeiro, caminhando sobre as ondas.
- Percebe? - disse irónico.
- Percebe? - respondeu YI-EI, já dentro de uma gôndola rica-
mente ajaezada, puxada por seis remadores núbios.
- Mas qualquer praticante de cooper sabe que caminhar sobre
as ondas faz um bem extraordinário ao espírito - argumentou EI-
EI, meio contrafeito.
- Porém, Tandrun Kofata, o gozador, provou que não há me-
lhor exercício espiritual do que contemplar seis remadores núbios
dando duro - respondeu YI-EI.
- Mas andar sobre as ondas faz uma cosquinha deliciosa na
planta dos pés - retrucou EI-EI.
- Ah, você também aprecia os prazeres do corpo? - gozou
YI-EI.
- Não estou falando com você, estou falando com meu umbi-
go - engrossou EI-EI, perdendo a esportiva e afundando.

MORAL Há mais delícias no espírito de porco


do que espírito no jardim das delícias.

112
u O fogo

Prometeu, um dos muitos titãs, estava lá no seu trabalho diário,


todo sujo de lama, obrigado por Júpiter a fazer uma centena de
homens por dia.1 Feitos assim, e de material tão precário, os ho-
mens2 viviam rodando em volta de si mesmos, se queimando vinte
e quatro horas por dia: "Pô, essa comida está fria!"; "Cáspite! Ba-
nho gelado de cachoeira. Essa josta não tem aquecedor?"; "A gali-
nha botou dois ovos lindos. E a gente não poder fazer dois ovos
fritos!" Tudo isso apenas porque ninguém tinha inventado o fogo.
Prometeu foi ficando com tanta pena dos seres humanos, que
um dia, aproveitando os deuses dormirem depois de comer um
belo assado, roubou um pouco de fogo da celeste
churrasqueira e, atirando as chamas em cima
da humanidade, ensinou:
— Olha aí, cambada, isso se chama fogo!
Cuidado pra não queimar todo mundo e seu
pai! Fogo pega! Serve pra requentar a co-
mida, atear fogo às vestes e pra receber PD.FI64DO
seguro de incêndio. _todo DIA
o dia Todo;
1. Daí os defeitos.
2. E as mulheres, subprodutos,
derivados de costelas masculinas.
A humanidade ficou muito contente e nunca mais foi a mes-
ma. Queimou a biblioteca de Alexandria, tocou fogo em Roma e
inventou o Corpo de Bombeiros. Mas os deuses, que não dormiam
de touca, ao acordarem, contaram as labaredas e perceberam o
roubo. Júpiter convocou imediatamente um júri composto por
seus semideuses puxa-sacos, e estes decidiram:
- Prometeu está condenado, por roubo em primeiro grau, a
ser amarrado numa montanha do Cáucaso e ter o fígado comido
por um avestruz, melhor, por um abutre. A pena começa a ser
cumprida dia 12, às 3h45min, e terminará no fim dos tempos, que
nenhum de nós sabe quando é. Esperamos que assim você apren-
da a não botar a mão no fogo pelos outros.
E lá ficou Prometeu, amarrado no rochedo, tendo seu fígado
comido diariamente pelo abutre.3 Até que se passaram dez mil
anos, e Hércules, achando que o fim da eternidade estava próxi-
mo, rompeu as correntes de Prometeu, e os dois comemoraram o
fato com um belo abutre ao primo canto.

MORAL Nada tendes a perder senão os vossos grelhados.

3. Dieta desagradável e malcheirosa, mas rica em proteínas.

114
lii O preço do pão
À maneira do... Iraque

A pobre mulher, cercada pelos de-


zoito filhos, atirou-se aos pés do
Supremo Juiz que, sumariamente,
tinha condenado seu marido a cem
dias de prisão.
— Meu senhor supremíssimo, perdoe o meu marido, cunhado
do meu irmão, pai dos meus filhos, genro de meu pai. Precisamos
dele. Liberte-o, pelo amor de Maomé!
— Pare com essas lágrimas! Já me esqueci: por que seu marido
foi condenado?
— Porque há uma semana roubou um pão.
— Grave, grave! Pelo menos é um bom marido?
— Não, digna sumaríssima entidade, não: joga, bebe demais,
tem amantes, bate nas crianças, me sevícia.
— Mas então por que você deseja tanto que ele seja solto?
— Ah, juizíssimo, porque há uma semana não comemos pão.

MORAL O sofrimento também tem hierarquia.

115
Llll SÍSÍfO

Descobrindo que seu vizinho Autólico, o mais descarado ladrão da


mitologia grega,1 estava afanando seu gado e modificando com-
pletamentefisionomia
a dos animais de modo a torná-los irreco-
nhecíveis, Sísifo resolveu bater o canalha no seu próprio jogo. Um
dia apareceu lá na reforma agrária do bandidão e comunicou:
- Camarada ladrão, vim buscar os meus bois de raça.
Autólico, ainda com a broxa na mão, com a qual acabara de
pintar de amarelo os chifres e de azul a cara dos bois, retrucou:2
- Couro?, companheiro mítico, todo mundo sabe que seus bois
são de corte, meros, que só dentro de muitos séculos se transfor-
marão em autênticos white-herefords.
- Tudo bem - redarguiu3 Sísifo -, mas o fato é que, auroques
ou não, eu marquei aqui, embaixo da pata de cada um dos ani-
mais, esta pequena lembrança, vê só: "Roubado por Autólico."
Enquanto Autólico caía em desgraça e tinha que pagar o preço
de todos os bois roubados da vizinhança, Sísifo, entusiasmado com
sua vitória, apressou-se em tirar partido dela comendo a bela fi-
lhinha de Autólico, Anticléia, que, no ato, se espantou:

1. Hoje nem dava pra saída.


2. Retrucar era como antigamente se chamava o ato de responder às pessoas.
3. Redarguiu era como uma pessoa retrucava quando não queria retrucar.

116
— Eu nunca soube que você tinha tesão por mim, Sísifo.
— Eu não tenho - redarguiu Sísifo. - Eu não faço amor, faço
vingança.
Pra encurtar o papo; Sísifo ficou tão entusiasmado com sua
proeza, que a coisa lhe subiu à cabeça: acusou Júpiter de rapto,
sequestrou Tanatos,4 promovendo um longo período em que não
houve mortes. E até começou a querer se passar por Deus,5 imi-
tando otrovão, fazendo rodar um carro sobre placas de bronze.6
Bom, aí Júpiter não aguentou, precipitou Sísifo no inferno,
dando-lhe como castigo empurrar um gigantesco rochedo até o
alto de uma montanha muito mais gigantesca, rochedo esse que,
quando chegava lá em cima, rolava de novo montanha abaixo,
obrigando Sísifo a recomeçar a tarefa do ponto zero.
E quando Sísifo, cansado, perguntou a Júpiter quanto tempo
ainda ia demorar aquele inferno, Júpiter respondeu, sereno:
— Só até o fim da eternidade. Depois você pode voltar a cuidar
dos seus bois.

MORAL Nunca é tarde.

4. A própria morte, que, por causa desse nome grego, acabaria famosa
- e cara! - no divã dos analistas.
5. Quem não?
6. Devia ganhar o prémio de sonoplastia. Mas ainda não havia Oscar.

117
liv Os deveres da hospedagem
À maneira do... Gerson "Canhotinha"

Um moço bem moço, mas já bem brasileiro, soou um berrador na


porta de um velho vizinho do Pantanal, em Mato Grosso, pra to-
mar umas e outras. 0 velho serviu uma cachaça, mas se lamentou:
- Infelizmente, não tenho nada pra fazer uns petiscos que
acompanhem esta bebidinha.
- Não seja por isso - disse o moço -, abatemos meu cavalo.
- Que é isso? - disse o velho, entendendo o moço. - Aqui
ninguém pode viver sem montaria.
- Eu monto naquilo ali - disse o moço apontando um fran-
guinho no quintal.
- Eu bem que podia lhe oferecer meu franguinho - disse o
velho, entendendo ainda mais o moço -, mas não tenho com que
fazer fogo.
- Não seja por isso - disse o moço, tirando o casaco -, quei-
mamos meu gibão de couro.
- E depois como é que você ia se proteger do vento?
- Ora - respondeu o moço -, eu me abraço com aquelas suas
duas belas filhinhas que estão me olhando ali.

MORAL Você tem que levar vantagem em tudo.

118
lv O jatobá e os juncos

Um magnífico Jatobá vivia a sua vida galhofeira1 cercado de uma


multidão de juncos farfa Ih antes, à beira de um riacho riachante.
Orgulhoso de sua imensa copa, ele a abanava a todos os ventos de
todas as tardes e, de vez em quando, é natural, aproveitava pra fa-
zer uma sombra indevida aos juncos que lhe ficavam em volta.2 Os
juncos, às vezes, querendo saber onde andava o sol pra calcular em
quanto tempo iriam se livrar do destino sombrio, perguntavam ao

imenso Jatobá: "Que horas são, amigo?" "Eu não sou amigo e não
digo horas pra juncos encharcados", respondia invariavelmente o
Jatobá. Os juncos, humolhados,3 voltavam ao seu farfalho humil-
de, enquanto o Jatobá apregoava aos grandes companheiros das
matas a glória de sua cabeleira centenária. A vida é assim.
Mas lá chega o dia...
Esse dia foi de noite.
Um vendaval daqueles de
derrubar até torres de ar-
ranha-céu, se arranha-céu

1. Cheia de galhos, e gozadora.


2. Afinal, de que vale nossa alegria sem
a infelicidade alheia?

3. Quer dizer, amargurados dentro d'água.

119
já existisse. O Jatobá, cuja imensa galhada oferecia uma resistência
gigantesca4 às forças da natureza, veio ao chão num estrondo as-
sustador. chefe
0 dos juncos, vendo aquele desastre com o gigante,

gritou sabiamente pro seu grupo: "Não resistam! Agachem-se!"5


Tombado, o Jatobá foi arrastado pela corrente do riacho até
uma serraria, onde imediatamente o transformaram em magnífi-
cas cadeiras de jacarandá. Mas os juncos, que riam satisfeitos,
dançando ao sol da manhã de abril, sem a cobertura do Jatobá
foram logo descobertos por empalhadores, que os arrancaram a
todos e os utilizaram para empalhar cadeiras.
Espicaçados pelo vírus da filosofia, os juncos não resistiram e

perguntaram a uma cadeira: "Você sabe explicar por que a queda


dos poderosos é mais terrível do que a dos mais fracos, mas no fim

todo mundo cai?" E a cadeira respondeu sem hesitar: "Eu não falo

com junco!"

MORAL Orgulho não adianta; sempre se


acaba com a bunda de alguém em cima.

4. Quinta lei da dinâmica da prepotência.


5. Segundo parágrafo do artigo primeiro da lei da sobrevivência política.

120
lvi O cachorro e o trem

Imaginem que o cachorro grandão, cachorrão policial, estava des-


cansando deum acesso de raiva exatamente junto dos trilhos da
estrada de ferro. O rabo sobre o trilho, assim. Roncando, o cachor-
ro. Eis que o trem se aproxima. Suspense - o trem que se aproxi-
ma é um trem de carga, vem bem lento. Tchoique, tchoique —
tchoique, tchoique. 0 cachorro vai ou não vai acordar? Ai, acha
que não vai não!
Lá vem o trem, cachorro, acorda, sai de baixo! Deus. 0 cachorro
não acorda, e o trem de carga, lento, fique, fique, fique, passa sa-
dicamente em cima do rabo dele, corta-o. Agora, sim, o cachorro
acorda com um uivo de dor e, num salto de ódio, corre contra a
máquina, tentando se vingar da mutilação. Resultado: o trem lhe
passa em cima da cabeça e mata-o definitivamente.

MORAL Jamais perca a cabeça por causa de um rabo.

121
lvii O herói e o anti-herói

Eram várias vezes1 um drama teatral que terminava com a apari-


ção de um feroz e implacável delegado de polícia. Porém quem
representava o delegado era, fora do palco, um homem bastante
débil de saúde, o que volta e meia provocava problemas quando a
companhia viajava pelo país. Foi o que aconteceu agora, nesta ci-
dade do interior. E mais grave do que nunca, pois o nosso homem
começou a se sentir mal exatamente na hora do espetáculo. De-
pois de trinta minutos de atraso, quando o público já viajava, o
Produtor resolveu iniciar o espetáculo assim mesmo, avisando que
iria haver uma substituição. Substituição essa que só encontrou
uma hora depois, na pessoa de um padeiro que tinha sido um
magnífico canastrão, vinte anos antes.
— Olha, companheiro — disse o Produtor,
enquanto o táxi corria em direção ao teatro
— , vamos chegar na hora exata de você en-
trar em cena, mas não tem problema. 0
papel é pequeno: você entra no meio do
coquetel, na hora em que ouvir quebrar

1. Pela primeira vez na história uma istória


com um múltiplo de Era uma vez...

122
um copo. Avança pro Herói, aponta este revólver e o prende em
nome da Lei e da Revolução. Ele vai resistir, protegido por alguns
convidados que não sabem o que está acontecendo, mas você o
algema e o arrasta. As falas você improvisa. Toma o revólver e as
algemas.
— Xá cumigo — disse o já Delegado, com entusiasmado laco-
nismo.
E, realmente, meia hora depois, quando o copo quebrou, ele
entrou em cena com firmeza e dignidade, avançou pro ator mais
bonito e mais bem vestido, evidentemente o que lhe pareceu mais
heróico, e lhe apontou o revólver:
— Está preso em nome de Deus e da Revolução! - exclamou.
— Cuidado, ô cara - disse baixinho o ator -, não sou eu não.
— Como não é você? Ah, sei, é a Rainha da Inglaterra - res-
pondeu bem alto o Substituto, algemando o bonitão, encorajado
pelas risadas e aplausos da plateia, que a essa altura já sabia da
substituição.
— Calma, cara — disse, também baixinho, um gordinho2 que
estava do lado.

— Não adianta resistir - disse o "Delegado", sem tomar conhe-


cimento da interrupção. E ainda berrou com voz estentórica, fa-
zendo a plateia vir abaixo:

2. Como é comum no Teatro, e, aliás, na vida, o Herói era esse baixinho, gordinho e
velhusco. Mas dono da companhia.

123
- Comigo você vai comer o pão que o diabo amassou!
E mudando de tom, baixinho, pro ator:
- Essa eu acertei em cheio, hein, colega?
E saiu, arrastando o outro pela gola.

MORAL Se deixar enganar pelas aparências às vezes traz a glória.

124
lviii O eqliino e o suíno

Estava um porco se refestelando na po-


cilga, quando passou por ele um mara-
vilhoso cavalo, tratado e lavado: "Ani-
mal Imundo!", disse o cavalo. "Nem sei
como você se atreve a contemplar o mes-
mo Sol que eu! Ficas aí, no meio da maior imundície, e todos te
desprezam. E se te dão comida é apenas para que engordes, en-
gordes, engordes, até que te mandem ao matadouro e sirvas de
alimento para os homens. Agora, olha pra mim, tratado como um
príncipe, ricamente ajaezado, enquanto parto para a mais nobre
missão. Vou para o concurso de obstáculos da Olimpíada, vou de-
fender omeu país." E dizendo isso, saiu trotando pelos campos em
direção a um ponto de fuga no horizonte.
Acontece porém que, quando o cavalo chegou ao local da Gló-
ria, aOlimpíada já tinha terminado. E seu dono, não sabendo o
que fazer com ele e não querendo perder todo o dinheiro que
empregara em seus cuidados olímpicos, colocou-o no jóquei para
disputar o Grande Prémio Vale Tudo.
Mas o cavalo não era muito bom de corrida, perdeu esse pré-
mio etodos os outros dez páreos em que entrou. Aí, o dono, de-
sesperado, encheu o cavalo de doping, picou-o de alto a baixo, e o

125
cavalo só não ganhou a próxima corrida porque estourou na reta
de chegada.
E acabou se encontrando dentro de uma salsicha com o porco
que tanto desprezara. Depois, os dois foram comidos e se trans-
formaram em adubo, e depois viraram alface e assim por diante.

MORAL Nada se perde, tudo se transforma.

126
ux Música, divina música!

Tanto duvidaram dele, da teoria daquele jovem génio musical, que


ele resolveu provar pra si mesmo, empiricamente, a teoria de que
não existem animais selvagens. Que os animais são tão ou mais
sensíveis do que os seres humanos. E que são sensíveis sobretudo
ao envolvimento da música, quando esta é competentemente
interpretada. Por isso, uma noite, esgueirou-se sozinho pra dentro
do Jardim Zoológico da cidade e, silenciosamente, se aproximou
da jaula dos orangotangos. Começou a tocar baixinho, bem suave,
a sua magnífica flauta doce, ao mesmo tempo em que abria a
porta da jaula. Os macacões quase que não pestanejaram. Se mo-
veram devagarinho, fascinados, apenas pra se aproximar mais do
músico e do som. 0 músico con-
tinuou as volutas de sua fan-
tasia musical enquanto abria
a jaula dos leões. Os leões,
também hipnotizados, foram
saindo, pé ante pé, com o res-
peito que só têm os grandes
aficionados da música. E as-
sim aflauta continuou soan-
do no meio da noite, mágica

127
e sedutora, enquanto o génio ia abrindo jaula após jaula e os ani-
mais o acompanhavam, definitivamente seduzidos, como ele pre-
vira. Uma lua enorme, de prata e ouro, iluminava os jacarés, ele-
fantes, cobras, onças, tudo quanto é animal de Deus ali reunido,
envolvidos na sinfonia improvisada no meio das árvores. Até que
o músico, sempre tocando, abriu a última jaula do último animal
— um tigre. Que, mal viu a porta aberta, saltou sobre ele, engolin-
do músico e música — e flauta doce de quebra. Os bichos todos
deram um oh! de consternação. A onça, chocada, exprimiu o es-
panto ea revolta de todos:
— Mas, tigre, era um músico estupendo, uma música sublime!
Por que você fez isso?
E o tigre, colocando as patas em concha nas orelhas, per-
guntou:
— Ahn? 0 quê, o quê? Fala mais alto, pô!

MORAL Os animais também têm deficiências humanas.

128
i_x Os três porquinhos e o lobo bruto
(nossos velhos conhecidos)

Era uma vez Três Porquinhos e um Lobo Bruto.1 Os Três Porquinhos


eram pessoas de muito boa família, e ambos2 tinham herdado dos
pais, donos do Porção, um talento deste tamanho. Pedro, o mais
velho, pintava que era uma maravilha — um verdadeiro Beetho-
ven. Joaquim, o do meio, era um espanto nas contas de somar e
multiplicar, até indo à feira fazer as compras sozinho. E Ananás, o
menor, esse botava os outros dois no bolso - e isso não é maneira
de dizer. Ananás era um mágico admirável.
Mas o negócio é que - não é assim mesmo, sempre? - Pedro
não queria pintar, gostava era de cozinhar, e todo dia estragava
pelo menos um quilo de macarrão e duas dúzias de ovos tentando
fazer uma bacalhoada. Joaquim vivia perseguindo meretrizes e
travestis, porque achava matemática
chato, era doido por Imorali-
dade aplicada. E Ananás de-
testava as mágicas que fa-

1. No sentido de inculto, não lapidado.


2. Três é ambos?

129
zia tão bem — queria era descobrir a epistemologia da realidade
cotidiana.
Daí que um Lobo Bruto, que ia passando um dia, comeu os três
e nem percebeu o talento que degustava, nem as incoerências que
transitam pela alma cultivada.

MORAL É inútil atirar pérolas aos lobos.

130
lxi O espelho

Há muito tempo, vivia no extremo


norte da China, numa cidade tão
distante que nem conhecia a Bolsa
de Valores, o marceneiro Chiung-
! ' ^=^ 4^~
Tang com sua mulher, Mnin-Liu, e a filhinha, Ttzing-Ttzing-Ttzing.
Um dia, Chiung se despediu da diminuta família e saiu pela porta
em busca de alargamento - ou aprofundamento - do seu iôri.
Troloc-troloc (ia num burro), até que chegou a uma cidade tão
grande, tão grande, que devia ter bem mais de 35 pessoas. Quan-
do ia passando pela gigantesca praça central de uns 20 metros
quadrados, Chiung-Tang teve um ataque histérico de agorafobia,
mas foi salvo por um vendedor ambulante que o segurou por um
braço e lhe perguntou:
— Olá, nordestino, quer comprar um espelho?
Chiung-Tang pegou o negócio oval que o camelo estava ven-
dendo e,ao ver o que viu, perguntou, horrorizado:
— Ei, cabra da peste crepuscular, que bicho é esse?
Ao que o vendedor respondeu:
— Um espelho. Superfície ligeiramente convexa que produz
imagens por reflexo, funcionando a partir do princípio da reali-
dade da curvatura do raio de luz, estabelecida por...

131
Chiung não quis saber mais nada. Voltou pra sua vila sobraçan-
do o objeto encantado. A mulher e a filha vieram logo recebê-lo,
ávidas por presentes. Mas, assim que Mnin-Liu se olhou no espe-
lho, falou, amargurada:
— Quem é essa mulher maravilhosa que você trouxe pra morar
conosco? Estou morta de ciúmes. Você não precisava dar pra ela o
mesmo vestido que me deu.
O marido riu e disse:
— Querida, isso é um espelho e essa mulher é você mesma. 0
espelho funciona de acordo com princípios oftalmológicos lógi-
cos e pode ter superfície plana ou curva, esférica ou parabólica...
A mulher se olhou no espelho durante anos e anos, e a casa foi
ficando abandonada. Até que um dia, depois de ouvir o conselho
de um vizinho chamado Confúcio, ela guardou de vez o aparelho
refletor, dizendo:
— Vou me livrar disso, senão acabo ficando vaidosa, e aprovei-
to pra morrer logo, pois já está bem na hora.
Ttzing-Ttzing-Ttzing, a filha, a essa altura uma mulherona,
acorreu ao leito de morte e perguntou, dorida:
— Mamãe, diga-me a verdade: você está em seus instantes fi-
nais?
A mãe não pôde mentir:
— É, querida filha. Mas deixo pra você um objeto precioso,
guardado no armário da cozinha. É um espelho, e funciona, de

132
acordo com Newton, a partir de curvaturas que podem ser esfé-
ricas, cilíndricas e hiperboloidais, atuando sobre um foco em...
E chega; são minhas últimas palavras.
Ttzing-Ttzing-Ttzing nem esperou o último suspiro da mãe e,
assim que se viu na frente do espelho, perplexou-se:
— Que realismo o desse teu retrato, extinta mãe! Nem falta fa-
lar. Eficou até mais bonito do que você.

MORAL As reflexões modificam os nossos soxelfer.

133
lxii O leão e o rato

Depois que o Leão desistiu de comer o


rato porque o rato estava com um espi-
nho no pé (ou por desprezo, mas dá no
mesmo), e, posteriormente, o rato, tendo
encontrado o Leão envolvido numa rede de
caça, roeu a rede e salvou o Leão (por gratidão ou
mineirice, já que tinha que continuar a viver na mesma floresta),
os dois, rato e Leão, passaram a andar sempre juntos, para estra-
nheza dos outros habitantes da floresta (e das fábulas). E como os
tempos são tão duros nas florestas quanto nas cidades, e como a
poluição já devastou até mesmo as mais virgens das matas, eis
que os dois se encontraram, em certo momento, sem ter comido
durante vários dias. Disse o Leão:
— Nem um boi. Nem ao menos uma paca. Nem sequer uma le-
bre. Nem mesmo uma borboleta, como hors-d'oeuvres de uma fu-
tura refeição.
Caiu estatelado no chão, irado ao mais fundo de sua alma
leonina. E, do chão onde estava, lançou um olhar ao rato que o fez
estremecer até a medula. "A amizade resistiria à fome?" - pensou
ele. E, sem ousar responder à própria pergunta, esgueirou-se pé
ante pé e sumiu da frente do amigo(?) faminto. Sumiu durante

134
muito tempo. Quando voltou, o Leão passeava em círculos, dei-
tando fogo pelas narinas, com ódio da humanidade. Mas o rato
vinha com algo capaz de aplacar a fome do ditador das selvas: um
enorme pedaço de queijo Gorgonzola que ninguém jamais poderá
explicar onde conseguiu (fábulas!). 0 Leão, ao ver o queijo, embo-
ra não fosse um animal queijífero, lambeu os beiços e exclamou:
— Maravilhoso, amigo, maravilhoso! Você é uma das sete ma-
ravilhas! Comamos, comamos! Mas, antes, vamos repartir o queijo
com equanimidade. E como tenho receio de não resistir à minha
natural prepotência, e sendo ao mesmo tempo um democrata
nato e confirmado, deixo a você a tarefa ingrata de controlar
o queijo com seus próprios e famélicos instintos. Vamos, divida
você, meu irmão! A parte do rato para o rato; para o Leão, a parte
do Leão.
A expressão ainda não existia naquela época, mas o rato per-
cebeu que ela passaria a ter uma validade que os tempos não mais
apagariam. E dividiu o queijo como o Leão queria: uma parte do
rato, outra parte do Leão. Isto é: deu o queijo todo ao Leão e ficou
apenas com os buracos. 0 Leão segurou com as patas o queijo
todo e abocanhou um pedaço enorme, não sem antes elogiar o
rato pelo seu alto critério:
- Muito bem, meu amigo. Isso é que se chama partilha, Isso é
que se chama justiça. Quando eu voltar ao poder, entregarei sem-
pre a você a partilha dos bens que me couberem no litígio com os

135
súditos. Você é um verdadeiro e egrégio meritíssimo! Não vai se
arrepender!
E o ratinho, morto de fome, riu o riso menos amarelo que po-
dia, e ainda lambeu o ar para o Leão pensar que lambia os buracos
do queijo. E enquanto lambia o ar, gritava, no mais forte que po-
diam os seus fracos pulmões:
— Longa vida ao Rei Leão! Longa vida ao Rei Leão!

MORAL Os ratos são iguaizinhos aos homens.

136
lxiii O cavalheiro rusticano

0 nosso Turiddu cansado de guerra, e pronto a fazer o amor, des-


cobriu que alguém tinha sido mais rápido que ele e subido celere-
mente ao leito de sua amada: Lola tinha casado com Álfio, um
chofer de caminhão, vejam vocês.
Turiddu, com dois dês, não admitia ficar assim no ora-veja.
Usou a ambos os dês e conquistou Santuzza com o evidente in-
tuito de enciumar Lola. Mas Lola, com a experiência adquirida
enquanto Aturdiu estava na guerra, achou que, em vez de ficar
ciumenta e sozinha, era melhor dar pro Turiddu e fazer dois ciu-
mentos, Santuzza e Álfio. Turiddu topou imediatamente a parada,
pois assim ainda ganhava Lola na ciumentada — com ela, agora
eram três os ciumentos de Turiddu.
Mas, nesse dramalhão danado, onde é que vocês pensam que
os dois foram transar? - numa velha igreja fundada em 922 pelos
frades Don Rodrigo Sanches e
Piero Navada. A igreja, exem-
plar romântico de arquitetu-
ra etrusca com duas torres...
(bom, é melhor vocês pega-
rem um guia). 0 fato é que
Santuzza também tinha seu

137
cabelinho na venta e foi encarar os amantes na porta da igreja,
lembrando-os de que adultério já era admitido pela sociedade lo-
cal mas ninguém lhes perdoaria o sacrilégio.
- Não é sacrilégio, sua ignorante - corrigiu Turiddu -, é sa-
cro-colégio. E depois, sem pecado não interessa.
Mas Santuzza não se conformou e berrou na porta da igreja:
— Eu vou botar a boca no mundo! - O que, aliás, já estava fa-
zendo, num soprano invejável.
Aí, depois de um intermezzo no qual a cortina do teatro fica a
meio, todos os personagens se encontram no bar, não sei se do
teatro ou da igreja.
Turiddu: 0 que é que você quer beber, Álfio?
Álfio: 0 teu sangue, traitore!!
Turiddu: On the rocks?
Álfio: Andante com brio, staccato e fulminato, cane male-
detto.
E juntando a ação às palavras (fora de cena, porque em cena
luta de punhal é o cúmulo do ridículo), Álfio liquida com Turiddu,
enquanto Lola, chorando, avisa ao público, numa ária de quinze
minutos:

MORAL La commedia è finita.

138
LXIV Nas belbras da guerra de Tróia
Crimes e mais crimes

Diz que o Agamenon foi à luta, achando que a guerra ia terminar


logo — era uma espécie de Malvinas aqui no sul. Até convidou
Egisto para acompanhá-lo, mas Egisto tirou o corpo (estava guar-
dando pra usar na cama do próprio Agamenon), dizendo: "Não
vou não, Agá, alguém precisa ficar pra cuidar da retaguarda".1
Assim que Agamenon dobrou a esquina, Egisto, pluct!, saltou na
cama olímpica e transou uma tremenda extraconjugal com Clitem-
nestra, que, como lá dizem os argentinos, no era de se echar a los mi
perros. Os dois tavam lá numa boa, quando... Vamos transcrever:
Clitemnestra - Egisto, seu safadão! Depois de ter es-
traçalhado meu pai e dado ele prós urubus, você ain-
isso HÂo
da se comporta dessa ma- v!4i Ac/\rar
neira. Egisto, meu gatão,
nunca vi ninguém mais
mitológico!

1. Maneira um tanto grosseira de


se referir às deliciosas nádegas
de Clitemnestra.

139
Egisto - Eu era muito mocinho naquela ocasião e ainda não
conhecia o significado pungente de uma libido desenvolvida, co-
mo agora. Além disso, sabe como é nesta Grécia antiga - meu pai
também tinha desestruturado meus irmãos, minha avó tinha feito
escabeche com meu avô etcétera.
Mas os dois não sabiam é que Agamenon não era bobo e tinha
deixado o menestrel da corte vigiando por trás da cortina. Aliás,
esse menestrel era o inventor da cortina, cuja ideia, a princípio,
não era decorativa, era ética. Não sabiam, mas ficaram logo sa-
bendo, porque o menestrel-repentista começou a cantarem todas
as praças:
Agamenon foi para Tróia
Como dá essa menina!
Criada como uma jóia

Clitemnestra, tomando conhecimento do sucesso do rapsodo


pelos meios de comunicação locais,2 mandou colocá-lo numa ilha
deserta, sem água e sem pão, e voltou pra cama com Egisto, onde
(corte/dois anos depois) os dois souberam que Agamenon volta-
va da guerra portando Cassandra a tiracolo. "Matamo-lo quando
ele chegar?", indagou Egisto. "Pra quê?", respondeu Clitemnestra.
"Não tenho que dar satisfação a um infiel. Que, aliás, matou meu
primeiro marido, que, aliás..."

2. Praças, coretos e termas.

140
Nesse momento, Agamenon bateu na porta e disse: "Abram,
palhaços, e deixem de transar em minha própria cama!" De den-
tro, Egisto perguntou: "Como é que você suspeita uma coisa des-
sas de mim?" "Eu não suspeito não", respondeu Agá. "Estou aqui
com Cassandra, que trabalha no ramo da profetização." Ao que
Cassandra disse baixinho pra Agamenon: "E estou certa de que
desta não escapamos."
Dito e feito: os adúlteros saíram de dentro do quarto e, nus
como estavam, degolaram Cassandra e Agamenon com um ma-
chado e uma espada. E já iam saindo pé ante pé, quando foram

avistados por Electra, que berrou, horrorizada: "Adúlteros de mer-


da!" Mas a mãe gritou mais alto: "Electra, vai já pro teu quarto e
escreve 50 vezes: Eu nunca mais digo merda pra mamãe!" Electra
foi pro quarto, mas, em vez de fazer a lição que a mãe mandou
escreveu pro irmão, Orestes:

"Amado Orestes, mamãe, essa adúltera de uma figa,3 está dan-


do adoidado pro Egisto. Os dois gostam tanto, que mataram papai
e Cassandra só pra não interromper o ato. 0 tempo aqui está bom.

Semana que vem, eu vou pra Atenas. Um beijão".


Bom, pra encurtar, que o espaço também é curto: Orestes che-
gou e enfrentou os dois criminosos sexuais. Clitemnestra ainda
lhe lembrou que era um horror matar a própria mãe, mas ele la-

3. Evitou a palavra merda - de qualquer maneira, a repressão deu certo.

141
mentou: "Que é que eu posso fazer, mamãe?, o Oráculo de Delfos
mandou. Ordens são ordens!" E degolou os dois. Pra satisfação de
Electra, que batia palmas, cheia de energia, e aproveitou isso pra
inventar a eletricidade.

MORAL Mais dia menos dia, todos nós ficamos órfãos.

142
lxv Cão! Cão! Cão!
A maneira do... melhor amigo do homem

Abriu a porta e viu o amigo que há tanto não via.1 Estranhou ape-
nas que ele, amigo, viesse acompanhado de um cão.2 Cão não
muito grande mas bastante forte, de raça indefinida, saltitante e
com um ar alegremente agressivo. Abriu a porta e cumprimentou
o amigo, com toda efusão.3 "Quanto tempo!" 0 cão aproveitou as
saudações, se embarafustou casa adentro e logo o barulho na co-
zinha demonstrava que ele tinha quebrado alguma coisa.4 0 dono
da casa encompridou um pouco as orelhas, o amigo visitante fez
um ar de que a coisa não era com ele. "Ora.veja você, a última vez
que nos vimos foi..." "Não, foi depois, na..." "E você, casou tam-
bém?".5 Ocão passou pela sala, o tempo passou pela conversa, o
cão entrou pelo quarto, e novo barulho de coisa quebrada. Houve

1. Outros abrem a porta e dão de cara com um corvo. Ou coisa pior.


2. Cão, quatro patas, latidos agudos ou graves, senhor da casa onde mora, criatura
mortal tida como o melhor amigo do homem. Ave, canem!
3. O tempo se passara. A efusão era falsa. A amargura do reencontro era maior que tudo.
Os dois se olharam e se entristeceram. O rosto marcado pelos dissabores das alegrias.
4. Splashhht
5. Casara, ai!

143
um sorriso amarelo por
parte do dono da casa,
mas perfeita indiferen-
ça por parte do visitan-
te. "Quem morreu defini-
tivamente foio tio... Você

se lembra dele?" "Lembro, ora, era o que mais...


não?" 0 cão saltou sobre um móvel, derrubou um
abajur, logo trepou com as patas sujas no sofá (o tempo passando)
e deixou lá as marcas digitais de sua animalidade. Os dois amigos,
tensos, agora preferiam não tomar conhecimento do dogue. E, por
fim, o visitante se foi. Se despediu, efusivo como chegara, e se foi.
Se foi. Se foi. Quer dizer, não foi. Já ia indo, quando o dono da
casa perguntou: "Não vai levar seu cão?" "Cão? Cão? Cão? Ah, não!
Não é meu, não. Quando eu entrei, ele entrou naturalmente comi-
go e eu pensei que fosse seu. Não é seu, não?"

MORAL Quando notamos certos defeitos nos amigos,


devemos sempre ter uma conversa esclarecedora.

144
lxvi Sorab e Rustam

Rustam não podia admitir que tivessem roubado o seu melhor


corcel — grande prémio Sedjestan-Krakrostny — e saiu, mesmo a
pé, perseguindo os ladrões a cavalo e, mata um aqui, mata outro
ali, entrou por todas as Rússias até esbarrar em Samovartsy, rei da
Krakívia.
— Rrrssuuss! - rosnou Rustam. Mas o rei estava cordial:
— Seja bem-vindo, meu caro Rustam. Você está um pouco can-
sado. Como vão as coisas, lá no Irã? Aquilo ainda vai acabar mal.
Aceita uns testículos de carneiro? - Rustam topou logo; adorava
testículos, sobretudo os próprios.
Depois de muito miolo de passarinho e vinho de sangue de
vaca, Rustam resolveu tirar um ronco no caravançarai dos hóspe-
des. Mas não conseguiu dormir em paz - às quatro da matina
teve que receber a visita da filha do rei, completamente nua. Coi-
sa chata!
— Que quereis de mim, ó filhíssima de Samovartsy, assim des-
pida de preconceitos?
— Lhe dou só uma oportunidade de adivinhar — disse Soraya
balançando os dengos. E juntando, quando Rustam não conse-
guiu adivinhar, vejam só que proposta: - Deus me prometeu um

145
filho teu com o mesmo ardor,
valor, destemor, espírito trai-
çoeiro esanguinolência.
Depois de apaziguar
a princesa umas oito ve-
zes, Rustam pegou o gine-
te das onze e se mandou
de volta pro Irã, pensan-
do lá com seu cavalo: "Uma mulher é um ser inferior, pois só tem
duas patas." Inferior ou não, 22 meses depois a princesa teve o
resultado da soma dos fatores - um menininho horrendo que a
primeira coisa que fez foi lhe arrancar o bico do seio com uma
dentada.
— Que monstruosidade! - exclamou a princesa. - Um verda-
deiro animal - igualzinho ao pai! Eu não podia ser mais feliz!
Educado para aprimorar ao máximo a sua ferocidade, o prín-
cipe, aos dez anos de idade, já era o mais facinoroso canalha do
reino. Mas também muito curioso. Um dia, pegou uma espada,
apontou pro ventre da mãe e disse:
— Mãe querida, instrua-me sobre a ascendência imediata, mi-
nha linhagem, ou será logo desventrada e esquartejada.
Soraya, emocionada, falou:
— Sorab, meu filho, que peste você é. Nenhuma mãe poderia
estar mais orgulhosa. Só sei que o nome de teu pai é Rustam, o

146
Hércules persa, mas não sei se é louro ou moreno, pois não tirou o
turbante.
— Que revelação mais perturbante! Rustam, o odioso, é meu
pai? Rustam, esse nome temido em todo o mundo incivilizado?
Mãe nojenta, vou logo ao Oriente Médio, de passagem arraso o
Iraque com meu séquito de monges eróticos, e logo porei meu pai
no trono do Irã, como Aiatolá. E aí meu pai me dará cobertura pra
decapitar todo o Egito, a Arábia Saudita e o Líbano.
— Vai à guerra, meu filho - disse Soraya. - Tudo pela paz!
Mas, do outro lado, Rustam não sabia da existência de Sorab,
quanto mais de seus planos sangrentos. Enquanto continuava
matando e roubando, um informante se aproximou dele:
— Rustam, vem aí um exército de cem mil turquestãos coman-
dados por um anãozinho feroz.
Rustam ficou louco:
— Me diz onde é que os turquestãos estão, que eu mato esse
anão. Rimei bem?
Quando Sorab e Rustam se encontraram, diz a lenda, a luta du-
rou seis dias. Derrubaram uma floresta e arrasaram duas monta-
nhas. Findos os seis dias, Rustam propôs:
— Você não está nada mal, ô Nelson Ned do levante. Proponho
o seguinte: damos uma parada hoje e amanhã liquidamos com o
assunto.

147
— Concordo, ô barrigudo! - disse Sorab -, pois você também
não é nada mau em atrocidades.
E ia se afastando pra descansar quando Rustam atravessou ele
e cavalo numa estocada só.
— Ai, ai, ai — disse Sorab, morrendo — , eu, Sorab, filho do Hér-
cules Rustam e da princesa Soraya, nascido em 3 de maio de 655
a.M. (antes de Maomé ou de Millôr), em Krasnaiya, morrer assim, à
traição.
Rustam começou a gargalhar:
— Meu filho! Meu filho! Que morte bacana!

MORAL Nunca ande sem sua carteira de identidade.

148
lxvii Tamanho é documento?

No psicanalista, Montalvão expôs seu problema - es-


tatura. Pequeno demais. Ridículo. Vivia se comparan-
do, se pondo na ponta dos pés pra se medir com os
outros. Tinha a sensação de que mesmo os menores
eram muito maiores. Vida insuportável. Complexo angustiante.
O que é que um sábio psicanalista pode fazer com um cliente
desses, lhe aumentar a estatura? 0 psicanalista fez o que sentiu
conveniente no momento. Falou-lhe que tamanho não é docu-
mento, que há inúmeras outras qualidades compensatórias no ser
humano pequeno — a natureza é sábia — , e, pra mostrar que o que
dizia era verdade, lembrou grandes homens pequenos - Lautrec,
Chaplin, o general Giap, pra não falar do pequeno maior de todos,
Napoleão.
Com uma só sessão - com uma só -, Montalvão saiu do con-
sultório praticamente curado. Já olhava prós outros com um sen-
timento de normalidade, e se sentia, pela primeira vez na vida,
quase eufórico. Quando, um dia, já pleno dessa nova exaltação
existencial, ia entrando em casa, um gato o viu, pulou da sacada
em cima dele e engoliu ele.

MORAL Um mínimo de tamanho é documento.

149
lxviii O fim da miséria umana-hurbana*
0 cabelo esvoaçando à brisa fresca do Corcovado, o Cristo de pe-
dra chorava. Um milagre?
Uma andorinha, só, parou.
- Eu estava por aí - disse ela pro Cristo — , mas, como uma
andorinha só não faz verão, vou indo pro Norte. Alguma coisa que
eu possa fazer pra interromper teu pranto?
— Daqui do alto eu vejo tudo - disse o Cristo. - Já não há mais
o meu Rio. O mar batendo quase aqui nos meus pés, as moças
passando lá embaixo sem a bunda de fora, os pobres conhecendo
o seu lugar — como era verde o meu vale. Mas eu ainda gostaria
de fazer alguma coisa pra ajudar pelo menos um carioca. Está
vendo lá embaixo aquele imbecilzinho? Coitado! Acabou a pilha
do super-rádio dele e ele carrega aquilo preso
na cabeça, sem poder chatear os outros
com a sua cacofonia. Arranca um dos
meus olhos, pintassilgo, e dá a ele,
pra que ele troque por uma pi-
lha nova.
A andorinha não entendeu
bem, sobretudo ser chamada

150
de pintassilgo, mas arrancou um olho do Cristo com o bico, voou
até lá embaixo e jogou o olho em cima do surfistão.
— Olhai, ô reles, um olho do Cristo. Vale duas pilhas: troca por
um metal pesado a nível de chateação coletiva — e voou de novo
pro Cristo: — Pronto, chefe!
— Que magnânimo esse teu volteio, bem-te-vi. Assim ele po-
derá continuar impondo a sua preferência estúpida a maior nú-
mero de passivos. Mais fascista do que isso, só o Trio Elétrico. Mas,
estou vendo agora... olha lá, uma jovem ocióloga...
— Ocióloga? - disse a andorinha.
— Ocióloga! Coitada, não pode terminar sua tese sobre as de-
terminantes das determinadas no aprofundamento das superfi-
cialidades urbanas, e, apesar dos seus vinte pe-agadês, vai ser
obrigada a trabalhar na caixa do Supermercado. Cambaxirra, pega
o outro olho meu e...
A andorinha obedeceu, arrancou o outro olho do Cristo e jo-
gou em cima da jovem grávida de saber:
— Torna esse olho do Cristo e troca por vinte bolsas de estudo e
uma da Fiorucci.
E enquanto a jovem ocióloga interrogava o dono do rádio pra
saber até onde aquilo era uma substituição do orgasmo masculi-
no, e o dono do rádio mostrava que ela estava enganada porque o
rádio era apenas um símbolo fálico em frequência modulada, a

151
andorinha voltava ao Cristo pra se despedir. Encontrou-o com um
sorriso beatífico e um brilho estranho no buraco dos olhos, por
onde se via o céu:

- Obrigado, colibri, agora já não vejo mais nenhum sofrimen-


to na cidade.

MORAL O que está aí dá pra comover até um cristo de pedra.

(Baseada numa ideia de Oscar Wilde. Acho.)

152
lxix Jonas e o peixe grande

Só aí é que Deus, do alto de Sua Sabedoria, tomou conhecimento


da vida noturna de Nínive. No seu ouvido direito um anjo fofocava:
— Vossa Mercê nem sabe o barato brilhante que corre nas ruí-
nas1 de Betsalaão.
No ouvido esquerdo soprava um querubim:

— Eu ontem estive, só pra checar, numa suruba2 com Betsabel,

que...
Deus pensou então que, se tais coisas aconteciam em Nínive na
calada da noite,3 coisas muito mais sérias deveriam estar aconte-
cendo no silêncio do dia.4 Imbuído de que devia fazer alguma coi-
sa, Eletonitruou!!!!:
-Jonas, ô Jonas!!!l
Jonas veio correndo, olhou lá pra cima5 e disse:
— Oquei, Boss, qualé?
Eo Senhor ordenou:

1. Todas as cidades antigas eram ruínas. Até hoje não se encontrou nenhuma nova.
2. Prós mais pudicos ou mais anglófilos - swapping.
3. Calada, a noite tão falada.
4. Deus continuava achando que sua maior criação era o Fiat Lux.
5. Segundo Dário Fo, o céu, naquele tempo, era bem mais baixo.

153
- Eu quero que você faça uma jeremiada contra Nínive.
- Então não seria mais próprio, vernacular e etimológico, cha-
mar oJeremias?
- Faz o que eu mando - rosnou o Senhor -, e não discute
questões semânticas, ou eu te ponho na Academia pra todo o
sempre!
Jonas não discutiu mais e começou a berrar:
- Abaixo Nínive! Morram os ninivanos! Fora os niniviados!

Dilapidem as decaídas do Bósforo!6


Mas o Topoderoso não engoliu essa e cortou rente:
- Pára de gritar, Jonas. Vai lá!
Jonas, apavorado com a missão, dirigiu-se à primeira estação
de barcas e pediu uma passagem simples pra Tarshiche.
- Onde é que é isso? - perguntou a bilheteira. E Jonas respon-
deu:
- Só Deus sabe. Ou melhor, espero que ele não saiba! — Pois o
que Jonas queria mesmo era passar o mais ao largo de Nínive que
pudesse. Mas Deus, que não dorme de touca,7 mandou uma tre-
menda tempestade em cima do barco que transportava o profeta.
E o comandante do barco, cheio de pavor, determinou aos mari-
nheiros ainda mais apavorados:

6. Em inglês, Oxford.
7. Dorme de halo.

154
— Olha aqui, rapaziada, tá difícil sair desta pelos meios técni-
cos de que dispomos neste pobre navio, nesta época do ano e nes-
te período da história. Ainda não conhecemos nem o astrolábio!8
O negócio é cada um rezar pelo Deus de sua preferência. Eu rezo
por Netuno, você aí por Anfitrite... - E, fixando Jonas, perguntou:
— Ei, você, cara, qual é o teu Deus?
— O verdadeiro, claro. Eu sou monoteísta!
A marujada, sem nem esperar ordem do comandante, pegou
Jonas e atirou-o no mar:
— Aqui dentro não queremos nenhum monetarista, senão o
barco afunda!
Atirado ao mar, Jonas foi logo engolido por um peixe grande. E

durante quarenta dias9 foi aquela luta: Jonas com medo de ser
posto pra fora do seu transporte e ter que enfrentar Nínive, e o
peixão doido pra se livrar daquele profeta indigesto. Mas, afinal,
achando que Jonas já tinha se arrependi-
do de sua fuga ao dever, Deus berrou
lá de cima:
— Vomita, Peixe Grande!

8. Um comandante mitológico que-


rendo antecipar Vasco da Gama!
9. Ou isso foi o Dilúvio?

155
E, bem no centro de Nínive, o Peixe Grande vomitou Jonas, que
começou imediatamente a berrar:
— Eu venho a mando do único Deus verdadeiro e trago vossa
maldição, já! Saí de vossos bordéis, já! Abandonai as vossas tendas
de ópio, já! Largai o trissexualismo, já!
Os ninivelanos, apavorados, se prosternaram na praça e fica-
ram esperando o castigo, já! Jonas também.
Mas o castigo não passou no consenso entre o Senhor e alguns
arcanjos meio permissivos. E Nínive foi poupada por mais um pe-
ríodo. Jonas, indignado, ficou bradando aos céus:
- Como, nem uma praguinha de gafanhotos? Qual, nem uma
enchente de quarenta dias? Como, nem uma sarça ardente? Ora
essa — nem um rio de fogo? Você tá ficando mole, velho. Pelo
menos dá alguns desses caras prós peixes.
Mas o Senhor lhe respondeu apenas:
-Você pensa que está indignado com eles, mas na verdade
quer é se afirmar comigo, seu Criador. Não os castiguei porque
isso seria a sua satisfação. Acabo de descobrir a psicologia.

MORAL Ninguém é profeta nem na terra dos outros.

156
lxx Vovozinha Vermelha
(e o lobo não tão mau assim)

Vovozinha Vermelha era uma vovozinha que vivia cuidando de


sua horta, sem se importar com a maledicência natural do mundo.
Vovozinha Vermelha, assim chamada porque, quando moça, se
disfarçava de velhinha pra dar cobertura a subversivos do Partido
Comunista, agora continuava sendo chamada assim porque em
sua horta só plantava tomates (vermelhos), pimentões (encar-
nados), caquis (fucsinos), beterrabas (sangue-de-boi) e cenouras
(carmesins). Na verdade, a essa altura do mundialito, ela detestava
política, a cor vermelha, a cor vermelha e horta, mas o que é que
havia de fazer na sua idade provecta, quando o apelo da vida no-
turna e das orgias sexuais já estava tão longe?
De família, ao que se sabia, Vovozinha Vermelha tinha apenas
Chapeuzinho Turquesa, uma
neta que sempre lhe trazia
uma cesta de pães, mel na-
tural, arroz integral e ou-
tras macrobióticas. A ma-
cróbia agradecia à netinha,
ao mesmo tempo em que

157
lhe invejava os guapos acompanhantes — uma hora era Frederico,
outra Teodoro, outra Manfredo, outra Gervásio. "Isso é que é ju-
ventude", pensava ela, "e não a porcaria que deixei pra trás!"
Um dia, quando ia por ali assim, Chapeuzinho Turquesa —
acompanhada por Fagundes — encontrou um lobo, que lhe disse:
— Olá, tou te conhecendo? Não dançamos juntos no Vereda
Tropical?
— Sem essa - sacou Chapeuzinho. - Eu não frequento o Vere-
da, não moro em Niterói e este aqui é o Ambrósio, campeão de
Gin-Do-Ku-Fu e minha transa atual.
0 lobo se fez de desentendido e disse:
— Então tá bem, vou tentar a tua vó.
— Vai com Deus, a paz e o livramento - respondeu Chapeuzi-
nho. — E se achar um buraco, cai dentro.
E quando o lobo se afastava correndo, ela disse pro compa-
nheiro:
— Lobo falando! Parece alucinado!
E o Gin-Do-Ku-Fu respondeu:
— Alucinado não. Chegado a um alucinógeno. - E continua-
ram a caminhar.
Quando iam se aproximando do condomínio fechado da vó,
começaram a ouvir gritos terríveis:
— Socorro! Socorro! Me acudam! Estão me violentando!

158
O casal correu e, quando entrou no quarto da Vovozinha Ver-
melha, láestava o lobo, deitadão na cama confortável:
— Alô, garotada, olha só que orelhas enormes eu tenho. Ore-
lhas de burro! Sabem por quê? Passei a vida comendo garotinhas e
só agora descobri que caldo de galinha velha etcétera e tal e coisa.
Nesse momento a Vovozinha Vermelha ia saindo do banheiro e
Chapeuzinho perguntou, espantada:
— Uá, Vovozinha, eu pensei que o lobo tinha comido a se-
nhora!
Ao que a velha gargalhou:
— Oh, netinha, como sois ingenuosa! A espécie Canis Lúpus há
várias gerações que abandonou a via oral. E esse daí, especialmen-
te, soube reconhecer as minhas qualidades não-dietéticas.
— Lamentável o comportamento das velhas gerações — criti-
cou Chapeuzinho ao ouvido do companheiro. E pra vó:
— Mas, então, por que a senhora gritou por socorro?
— Socorro? - disse o lobo. - Quem gritou por socorro fui eu!

MORAL O melhor afrodisíaco é a carência prolongada.

159
lxxi O remo e as estrelas
A maneira dos... chineses

Quando o guru Single Zhon pegou o seu pequeno barco para a


peregrinação até a cidade de Tin, no reino de Oan, ordenou a seu
criado, de nome Hao Shandong, que remasse até lá se orientando
pelas estrelas. Shandong, embaraçado, disse que não sabia remar,
e muito menos se orientar pelas estrelas. Ao que Jen-Single Zoom
advertiu-o:
— Como queres que eu te guie se eu também não remo nem
sou astrólogo?

MORAL A longa marcha começa com o primeiro tropeção.

160
lxxii O arreglo

A sorte, de muitos madrasta, de Joãozinho Pixinga era mãe e


companheira, amante e conselheira, fã e secretária. Com dentes,
num país de feios; louro, num país em que a água oxigenada é
cara; vivo, num país de gigantesco índice de mortalidade infantil;
ele era, só por isso, um privilegiado. 0 fato é que...
— João Pixinga, preciso ter uma conversa muito séria com você
- disse Maneta Boa Pinta, Rei dos Bicheiros, encontrando Pixinga
num bardo Rocha.
— Fala, criôlo! - disse Pixinga.
— Pixinga, você sabe o quanto eu o admiro. Aliás, não faço ne-
nhuma vantagem com isso. Sou eu e toda a população da cidade.
— Sei. Passa pro outro parágrafo. Não vamos perder tempo
com o que todo mundo sabe.
— Depois que você virou titular do Framinense, o escore máxi-
mo que os outros times conseguiram contra o teu time foi 0 a 3, 0
a 5 e 0 a 8. Nunca mais ninguém conseguiu balançar o véu do Fra.
— Já sugeri um randicápi: aumentarem o tamanho do meu gol.
Se não, o futebol não tem mais graça.
— É uma boa ideia - concordou Maneta, Rei dos Bicheiros — ,
mas eu tenho uma ideia melhor, e mais rápida, pra animar o cam-
peonato.

161
- Ah, é? - fez Joãozinho Pixin-
ga, Rei dos Goleiros, meio ofendido
porque, além de goleiro, tinha tam-
bém suas pretensões intelectuais, e
a veleidade do outro de ter uma
ideia melhor que a sua lhe parecia
coisa ofensiva. - Qualé?
— Cem mil cruzeiros.
— Cem mil cruzeiros o quê? Não en-
tendo - disse Joãozinho Pixinga, fingindo-se
de desentendido.
- Vou direto - disse Maneta. - Não sou Rei dos Bicheiros à
toa.-VConversa
ai. de homem. Topa não topa, a coisa morre aqui.

— Pois é. Dia 1 5, temos a finalíssima Frumengo x Framinense, o


crássico. O mais importante Fru x Fra dos últimos dez anos. 0 Dia
disse que é o Fru x Fra do século.
- Exato. Há dez anos o Fru não ganha um campeonato. Este
ano, se passar pelo Fra, o Fru tá feito, o caneco na mão.
- Tou com 100.000 na agulha.
— Pra quê?
— Pra você amolecer.
- Peraí, Maneta Boa Pinta, não tou te entendendo bem. Quer
dizer, eu, o maior goleiro da história do futebol brasileiro, de

162
quem a crítica especializada, além da "técnica sem par", elogia a
"elegância sem igual" - estou citando -, vou liquidar minha car-
reira assim, por 100.000? Que que há? Vai subornar os teus tiras,
Maneta.
— Quem falou em 100.000? Eu disse 500.000.
— Pois é; você pensa que vou enterrar minha glória e minha
honra, meu comportamento, "verdadeiro exemplo para os mais
novos" - estou citando -, por 500.000 cruzeiros? 0 que que há?
Vai subornar a tua PM, Maneta.
— Mas, que diabo, quem falou em 500.000? Só isso por um
partidão desses? Você está doido? Trouxe até aqui, no bolso, ó, em
espécie: 1 milhão.1 Foi o que eu distribuí com o júri das escolas de
samba.
— Dois milhões? Pô, de uma vez por todas, Boa Pinta, você
acha que a posição que eu consegui no esporte, alto e louro, aos
22 anos, olho azul na defesa da pequena área, eu vou vender por
3 milhões?
— Pixinga, você não percebe que tudo é um equívoco, que
querem nos jogar um contra o outro, desfazer nossa amizade de
tantos anos, desde que "trocávamos figurinha" no fundo do quin-
tal em Del Castilho? Quem falou em 4 milhões? É tudo ou nada,

1. Maneta aprendeu a levar todo o dinheiro que possuía consigo próprio lendo um grande
filósofo que, às vezes, anda até com 25.000 dólares no bolso - Jean-Paul Sartre.

163
Pixinga; já fiz um pool com o Anastácio do Pó e o Toninho-do-
Assalto-ldeológico e "fechei" em 5 milhões. Fica tranquilo, sabe-
mos valorizar o que é nosso. Tua honra não vale menos que a do
príncipe Bernardo, da Holanda, pô.
— Adiantado. Toma nota aí da minha conta numerada na Tai-
lândia.

(Corte. Quinze dias depois.)


Bocó passou pra Deodoro, Deodoro chutou pra Plim-Plim, que
matou no peito e bateu firme contra o gol desguarnecido de Pi-
xinga, que estava caído. A bola passou raspando a trave, 2 centí-
metros por fora, milagrosamente não entrou. Pixinga deu mal a
saída, a bola foi prós pés de Jequitinhonha, que cruzou pra Bocó,
que chutou de primeira contra um gol vazio porque Pixinga, sozi-
nho, tinha escorregado e caído outra vez. A multidão em peso gri-
tou "Goooooooollll". Os locutores das várias TVs e inúmeras rádios
também gritaram um "Gooolll" gigantesco, que ecoou em todo o
país, enquanto a bola, outra vez milagrosamente, passava por
cima das traves do Fra.
De novo o jogo recomeçou. 0 time de Pixinga, sempre fraco e
mal ajustado, que usualmente só dependia dele defendendo tudo
no gol, nesse domingo não podia contar com coisa alguma. Ainda
assim, absurdamente, ganhava de 2 a 0.

164
Pixinga não estava num dia ruim. Ele nunca tivera um dia ruim.
Estava num dia negro. Ninguém entendia. Nunca se vira aquilo.
Parecia dopado. Defendia mal as bolas mais bobas, deixava as bo-
las mais fracas resvalar das mãos, saía mal do gol, caía errado em
cima das bolas, assistia os adversários passarem livres pela sua
defesa.2 Um dia incrível - comentavam todos nas gerais, nas ar-
quibancadas enos estúdios de rádio e TV. Parecia - como disse
um comentador - o goleiro de um time de terceira de Araguari.
Mas o fato é que, apesar do fracasso espantoso de Pixinga, o Fru
perdeu o jogo e o campeonato.
Naquela tarde, os jogadores do Fru estavam ainda piores que
sempre, piores até que Pixinga e, misteriosamente, não consegui-
ram enfiar um gol em todos os 90 minutos de jogo. Misteriosa-
mente? É.Até que expliquemos ao leitor que Pixinga, além do
grande talento esportivo, tinha também, como já vimos pelo seu
diálogo com Maneta Boa Pinta, um extraordinário talento políti-
co-financeiro. Depois de aceitar os 5 milhões de Maneta, ele, sa-
biamente, distribuíra 3 entre os atacantes do time adversário para
que estes chutassem todas as bolas fora. Foi por isso que, apesar
de sua atuação, ainda saiu do campo carregado pela solidariedade

2. Pra conseguir não ver os adversários, Pixinga inaugurou uma coisa nova em
futebol: jogou de óculos escuros. Imitava assim alguns ditadores que usam óculos
escuros pra não ver a corrupção em volta.

165
da torcida (que, se antes admirava apenas sua perícia, desse dia
em diante passou a mitificar também a sua sorte), com 2 milhões
no bolso e a honra intacta.3

MORAL Generalizando-se a corrupção, restabelece-se a justiça.

3. Dizem que tem uns caras aí no baixo mundo que não foram nessa e preparam o
testamento de Pixinga, já estando em confecção um pijama de madeira, no qual,
com a boca cheia de formiga, ele vai comer capim pela raiz eternidade afora. Mas
isso, como diria Kipling, é outra istória.

66
lxxiii Otlassa

No dia seguinte, ele escreveu


pro jornal: "Senhores, falam mui- ^^
to de assalto, e ontem a mim tam-
bém aconteceu. Mas, tudo visto e
examinado, não dou queixa nem
exijo reparação da sociedade. Até
estou profundamente agradecido às circunstâncias momentâneas
— sem falar das permanentes - do meu destino. Primeiro, porque,
num país rachado pelas costuras, e numa cidade onde, a qualquer
hora dessas, vamos assistir a um duelo entre Jesse James e Doe
Hollyday (e suas quadrilhas), esta foi a primeira vez que fui assal-
tado. Segundo, porque, tendo algum, até muito, dinheiro no bol-
so, o assaltante pôde se satisfazer com o que eu tinha e não me
levou o essencial, a vida; se é que esta ainda vale alguma coisa,
pois, aos 45 anos, já gastei - sem dúvida - três quartos dela. Ter-
ceiro, porque, pertencente às classes ditas privilegiadas, mesmo
me levando muito, o assalto ainda me levou bem pouco. Quarto,
porque, afinal, estou do lado de cá e não do lado de lá, e, ao fim e
ao cabo, ainda prefiro estar do lado do cano a estar do lado do
cabo, ser assaltado e não assaltante, pois na verdade fui assaltado
uma só vez, num rápido momento, e logo depois voltei a ser aqui-

167
lo que nós todos somos permanentemente, assaltantes; enquanto
ele, por um breve instante assaltante, logo depois voltaria a ser o
assaltado de sempre - a não ser que leve o ato de assaltar a tal
constância, que substitua, pela dinâmica de ação, a condição so-
cial. Sem falar que corri o risco de morrer apenas uma vez, en-
quanto meu assaltante possivelmente já estará morto no momen-
to em que esse prestigioso jornal publica esta. Assim, repito, esta
não é uma carta de protesto pelas condições da violência vigente
nesta cidade, mas um agradecimento público aos privilégios da

minha vida."
Era um cínico ou um sábio?

MORAL Quem é mais antípoda: nós ou os japoneses?

168
lxxiv Os flatos sem consequências

A rolinha do Piauí encontrou de repente o pardal de Brasília. "Oba,


oba!", exclamou o pardal de Brasília, "você por aqui? Que bons
ventos te trazem?" "Vim só dar uma espiada", respondeu a roli-
nha do Piauí. "Um caminhão ia passando na estrada, me deu uma
vontade danada de dar um passeio, saltei na capota e lá vim eu!
Cidadão, hein? Deve ser bacana viver por aqui!" "Não é mau, não é
mau", concordou o pardal de Brasília. "Mas não é como na roça,
no mato em que você vive. Lá você tem ar puro, minhoca fácil, os
grãos todos ao alcance do bico, muita árvore pra brincar, água
às pampas, tem tudo, na roça. E depois, quando vem o frio, tem
os cavalos. 0 que eu tenho mais saudade é dos
cavalos.

"Bem, isso é verdade", assentiu a rolinha do


Piauí. "Na hora do frio, não há como ter um
bom cavalo por perto, esperar que ele satisfa-
ça a sua necessidade quentinha pra nós po-
dermos também nos aquecer tranquila-
mente." "É",disse o pardal de Brasília,
"pra nós, da cidade, a grande falta é
mesmo daquilo que os cavalos fazem.
No inverno dá uma saudade..." "Mas

169
eu não entendo bem por que você sente falta", disse a rolinha do
Piauí. "Sempre ouço falar que aqui na cidade existem carros de
20, 40 e até 60 cavalos." "Ah, sim, é verdade", respondeu o par-
dal de Brasília, "existem. Mas que é que adianta? Esses cavalos
peidam, trovejam, mas na hora de fazer o que nós queremos, não

fazem não. "

MORAL Ninguém vive de promessas.

170
lxxv O código selvagem

No seu imenso palácio cercado de li-


malha de ferro e com paredes iman-
tadas capazes de denunciar aproxi-
mações estranhas, o Macaco, que tomara o
poder na marra e na garra, estava reunido
com seus súditos mais fiéis e mais hábeis, aliás
todos ministros de Estado, inclusive o Leão, que ele depusera mas
indultara1 para aproveitar sua experiência de governo.
- Felizmente está tudo em paz - disse o Macaco, depois de
grande reflexão.
- Sábias palavras - confirmou logo a matreira Raposa, que
viera especialmente para a reunião.
- Não só hábeis, mas reconfortantes - trombeteou o Elefante,
procurando parecer menor do que era.
- Sábias, reconfortantes e progressistas palavras - concordou
o avestruz, olhando para o outro lado.2
O Burro nem chegou a falar. Enquanto procurava, num dicio-
nário de expressões adulatórias, alguma coisa que dizer, o Macaco
falou, imitando Polónio, Shakespeare:

1. 0 Macaco lera que "toda prisão política é uma fábrica de heróis".


2. Chão de pedra, não havia onde enfiar a cabeça.

171
- Estranha nuvem, aquela, que parece um elefante.
- Realmente, um perfeito elefante - concordaram todos os
fâmulos.
- Não, não, pensando melhor, parece mais uma baleia - disse
o Macaco.
- É claro, uma baleia, logo se vê que é uma baleia - os outros
animais repetiram em coro grego.
Mas, fixando o olhar, todos viram que a nuvem vinha mesmo
era do chão, como se um bando enorme de animais - ou qualquer
coisa - avançasse em direção ao palácio. E, enquanto a nuvem de
pó aumentava e se aproximava, um ruído também crescente, se
fazia ouvir: "Kpw!xwszYyyiFFx2wç!XvyvxfstswTT!"
- 0 qué qué isso? - perguntou o Macaco se aproximando de
sua real janela.
- Nada, Majestade; tentativas de revolta de estúpidos animais
que nem sequer sabem se fazer compreender. Basta o senhor pro-
mulgar um decreto-lei, que essa canalha some no mesmo instante.
- Sábio! Sábio! - disse o Macaco para o Leão. - Fiz muito bem
em aproveitar a tua experiência. Portanto, decreto, de acordo
com, mediante a alínea E, do parágrafo G, do artigo A, que esse
ataque fique sem efeito, entrando este decreto em vigor no mo-
mento em que eu o penso. Apesar, porém, do decreto, o ruído
"Kpw!ZxszYyyiFFx2wç!WvyvxfstswTT!" foi aumentando e se apro-
ximando até se transformar em "MM Ah! Ty Yt liiii Ddfswxooor-

172
wzx". Nesse momento, algumas paredes do castelo foram ao chão,
e uma massa enorme de corvos, pombos, tigres, ratos, sapos,
cobras, galinhas, coelhos e javalis3 entrou no castelo, destronou o
rei e entregou o poder ao Leão, que era, naturalmente, o chefe do
contragolpe.
0 Macaco, deposto, foi recolhido a uma fortaleza antiga, sem
nenhuma proteção tecnológica, e recebeu um livro de adivinhas
vulgares, onde um dia, afinal, descobriu que toda aquela codifica-
ção estranha gritada pelos animais queria dizer apenas: "Macaco,
você é burro!"

MORAL É preciso entender o que os outros estão falando.

3. O lúmpen-animalato.

173
LXXVI Para crianças grandes e homenzarrões pequenos
O julgamento do burro

Pois, ainda que pareça incrível, o Burro ga-


nhou as eleições para o posto de Juizão. Ape-
nas por inadvertência do resto da animalhada:
ninguém compareceu, e o Burro arrebanhou os vo-
tos dos seus adeptos, a Mula, o Bucéfalo, o Onagro, o Jeri-
có, oJumento, o Asno, a Besta e a Guecha. E, logo na posse, o
Burro Juizão foi submetido a julgamento, pois, como vocês sabem
muito bem, quem julga se julga, e o juiz é que é julgado diaria-
mente, enquanto o réu é julgado apenas uma vez*
A Salamandra, assim que o Burro tomou posse, entrou no tri-
bunal eapresentou uma queixa formal contra o Rato.
— Qual seja? — indagou o Juizão.
- 0 Rato, meritíssimo, veio me pedir um conselho. Chegou
perto de mim e me disse que estava louco pra comer um pedaço
de queijo que tinha visto eu comprar. Não tive dúvida, mostrei a
ele onde estava o queijo. Ele se lançou em cima do queijo feito um
louco, e, a partir dai, começaram as acusações mais terríveis sobre
mim por parte da mulher do Rato, a bubônica Ratazana.

Embora não se saiba de nenhum juiz que tenha pegado dez anos.

174
— Típica campanha difamatória - comentou o Burro. — Estou
acostumado. Sempre fui vítima da mesma coisa por parte do Ca-
valo. Que o Rato apresente sua defesa.
— 0 Rato não compareceu à audiência, excelência - disse o
Onagro, que servia de meirinho.
— E por que não? - indignou-se o Juizão. - Não admito esse
desrespeito, sobretudo no meu primeiro julgamento. Imagine, eu,
Burro Master, criar essa analogia negativa logo em meu primeiro
pronunciamento. Tragam o Rato imediatamente.
— Ele continua preso — esclareceu o meirinho.
— Como? Preso sem julgamento? Que esculhambação é essa na
minha jurisdição? Não admito.
— Perdão, excelência - ajuntou mais o meirinho. - 0 Rato
continua preso na ratoeira, onde foi comer o queijo.
— Eu declarei que mostrei a ele onde estava o queijo - disse a
Salamandra malandra.
— Mas não mostrou a saída — choramingou a futura viúva do
Rato.
— Ele só me perguntou como é que podia comer o queijo que
tinha visto comigo — endureceu a Salamandra malandra. — Eu
mostrei.
— A Salamandra me parece perfeitamente correta - senten-
ciou oJuizão. - Sobretudo porque está aqui, presente. Condeno o
Rato por desrespeito à corte. Julgamento à revelia por não ter

175
comparecido diante deste tribunal. Fica firmado o princípio: "Os
ausentes nunca têm razão."
— Injustiça! Injustiça! - gritou a futura viúva. — Quero ver meu
marido. Exijo ver o corpo do meu marido. - E gritou em latim,
numa cultura inesperada: - Dêem-me o corpo; habeas corpus!
— Fundamental e justo o pedido - declarou o Juizão. - A Sala-
mandra malandra está intimada a mostrar à dona Ratazana, futu-
ra viúva, o caminho para a ratoeira.

MORAL Se o réu é um rato, a justiça o ratifica.

176
lxxvii O fracasso dos canais eletrônicos

De repente deu-lhe uma saudade danada da mulher, e o represen-


tante dos Grandes Armazéns Santelmo resolveu largar tudo e vol-
tar pra casa. Não podia mais. Passou um telegrama avisando à
mulher que ia voltar, pegou o primeiro trem, saltou no primeiro
aeroporto, pegou o primeiro avião, saltou no outro aeroporto, pe-
gou o primeiro táxi, saltou em casa, subiu o elevador, abriu a por-
ta de casa, entrou em casa, atravessou o corredor e entrou no

quarto apenas para, como o leitor malicioso já adivinhou, encon-


trar a mulher nos braços1 de outro,2 como vem acontecendo em
todas as histórias deste tipo desde que o mundo é mundo.3 0 hor-
ror estampou-se-lhe4 na face. Ele contou as balas do
revólver,5 mas, entre ir para a cadeia e deixar a
mulher com vida, preferiu conter seu ódio, domi-

1. E apenas. E tudo o mais.


2. Ponto de vista muito relativo. Para o amante, o outro é
o marido.
3. Ou mesmo antes?
4. Forma mesoclítica, considerada o fino pelos escritores
da Academia Brasileira de Letras.
5. Marido que surpreende a mulher em ato adúltero está
sempre armado. É fundamental para o pathos da história.

177
nar a amargura da bílis que lhe subia do fígado e lhe envenenava
a alma. Apenas por desrecalque matou uma ou duas moscas que
voavam inocentemente por ali,6 deu dois ou três pontapés na
mulher,7 pegou a mala que nem desfizera, correu para um hotel,
onde encheu a ficha com angústia quase incontrolável e subiu
para o quarto. Mal se tinha jogado na cama, bateram na porta.
Era o sogro, pai da moça:
— Sei de tudo e não sei de nada - declarou, conciso e cons-
ciente.

E quando o genro lhe contou todos os detalhes, o pai dela, so-


gro dele, abanou a cabeça:
— Não! Lhe digo que não é possível! Minha filha não faria uma
coisa dessas assim sem mais nem menos. Deve haver uma explica-
ção. Éevidente que há uma explicação. Ela jamais agiria assim,
dando-lhe tal dor, se não houvesse uma motivação justa, explicá-
vel. Em minha família jamais aconteceu nada semelhante!
— Me desquitarei imediatamente - disse o genro infeliz, frio e
determinado.
— Não, eu lhe peço! - pediu o sogro. — Lhe peço, espere, pelo
menos até amanhã. Tem que haver uma explicação. Às vezes,
quem sabe, nunca se sabe... Espere. Se ela não me der uma expli-
cação definitiva, ficarei inteiramente do seu lado.

6. Assim nos bate à porta o destino.


7. No local onde se dão pontapés.

178
O outro disse que essas coisas não têm mesmo explicação,8 mas
resolveu esperar até o dia seguinte para tomar suas providências.
No dia seguinte, pálido de triunfo, o sogro entrou no quarto do
hotel ainda bem cedo, gritando para o genro:
- Eu não te disse? Eu não te disse que devia haver uma expli-
cação? Está tudo explicado: ela não recebeu teu telegrama.

MORAL Quem não se comunica, se trumbica.

8. Exceto a grande, universal explicação biológica.


Mas também, que é que há? Assim, tudo se explica.

179
lxxviii Decadência dos costumes
À maneira dos... arménios

Kismet Assan, o grande advogado, ia chegando


em casa, tarde da noite, cansado do trabalho, e
descobriu que havia um ladrão em seu quarto. Pegou uma arma e
avançou, silenciosamente. Mas o ladrão percebeu e saltou pela ja-
nela, assustado. Ao fugir, porém, deixou sobre a cama uma maleta
com dois candelabros de prata que tinha roubado em alguma ou-
tra casa. Com muita advocacia, Kismet pensou: "Bem, ficarei com
isto como honorários pela ação de fuga que impus ao malfeitor."
E ficou olhando satisfeito as duas belas peças.
Na noite seguinte, na noite imediatamente seguinte a essa, e
em muitas noites consequentes, Kismet chegava em casa na espe-
rança de encontrar de novo o ladrão. Mas isso não aconteceu
nunca mais, e Kismet concluiu: "Realmente, não sei onde este país

vai parar."

MORAL Invectiva o mal, mas cobra o (ou cobra-o) bem.

180
lxxix A história do futuro contada agora
depois que a bomba explodiu

E, de repente, catehmbooouuummm, buuuummmm, catroaummm,


raaassppp, pum, puuuum! A floresta toda estremeceu, aturdida,
com o ronco sinistro lá longe, à distância, imensa, no invisível além.
Uma onda de ferro e fogo varreu tudo, calcinou tudo, destruiu
tudo. E os meses se passaram. E os anos também, somando tudo.
Mil depois (anos), um gorilão emergiu de uma caverna bem
profunda, com ar nem mais horrorizado, só cansado e entediado,
diante da desolação que se abria à sua frente. E saiu caminhando.
Caminha que caminha foi dar numa outra gruta, muitos dias de-
pois. Bateu. Veio uma gorilona, bem bonita e bem catita.
— Tens aí o que comer? - perguntou o gorilão. - Estou morto
de fome. 0 mundo foi destruído, não ficou
ninguém, estou morto de fome. Não
ficou mais ninguém mesmo, não
é não?
— Ninguém mesmo — sorriu
a monicela -, só nós dois.
— E então? - rosnou o mo-
não. — Tem ou não tem alguma
coisa aí que se coma?
- Muito pouco - disse a monicela, e penetrou na gruta. Vol-
tou pouco tempo depois, trazendo uma maçã. 0 macacão olhou o
fruto e exclamou:
— Ah, não, pelo amor de Deus - uma vez chega!

MORAL Pelo menos uma salada de frutas.

182
lxxx Por que os Estados Unidos
vivem sempre em guerra

Bem, os Estados Unidos vivem sempre em guer-


ra porque Nova York é uma cidade de dezoito
milhões de habitantes. Há na cidade um tele-
fone pra cada dois habitantes. Isso faz nove
milhões de telefones. Cada assinante de tele-
fone recebe, anualmente, três catálogos telefó-
nicos — um comercial, um nominal e um de en-
dereços, ou seja, 27 milhões de catálogos, grossíssimos. A solução
foi encontrada há muitos anos: os Estados Unidos entram numa
guerra, ganham a guerra (os Estados Unidos ganham todas as
guerras) e, quando os heróis voltam, o povo, entusiasmado, rasga
os catálogos em pedacinhos e atira os pedacinhos pelas janelas,
em cima dos heróis.

MORAL Felizmente o Brasil é um país pacífico.

183
lxxxi Eros uma vez...

Um dia, Aphrodite, posteriormente fone-


tizada pra Afrodite (e traduzida pra Vénus),
não aguentou mais. Chamou o filhinho, Eros,
conhecido também como Cupido, e disse:
— Pombas, qualé? Que é que adianta ser Deu-
sa e linda, se toda hora tenho que entrar em
concurso pra ver se ainda sou a maior? Agora
é essa tal de Psychê! Vai lá e dá uma flechada
nela, meu filho.
Cupido ainda tentou sair pela tangente:
— Por que, mamãe? Chama o Papai, que é o Deus da guerra.
Mas a mãe, venérea como era, apenas mandou que ele xarape
a boca e obedecesse.
Eros, assim que avistou Psychê, caquerou-lhe uma flecha nos
cornos, mas era tão ruim de pontaria, que a flecha acertou-o no
próprio coração. Desesperado de amor auto-infligido, Eros mesmo
assim esperou a noite ficar bem negra pra possuir Psychê sem ser
visto pela mãe, pelo público e — pasmem! - até pela própria atriz
convidada, que, contudo, diante da performance dele, exclamou,
gratificada:
— Rapaz, sinceramente, nunca vi nada mais erótico!

184
Porém, as irmãs de Psychê, chamadas Curiosidade, Perfídia e
Prospecção, começaram logo a envenenar as relações da irmã com
aquele desconhecido, afirmando que devia se tratar pelo menos
do Corcunda de Notre-Dame ou do Homem Elefante na versão
original. Curiosidade dizia:
— Se ele não se assume, é porque tem medo das grandes clari-
dades. Vai ver, ele é o Eros-Close.
Perfídia ajuntava:
— Uma noite, manda Celacanto em teu lugar. Evita maremoto.
E Prospecção concluía:
— Mata ele. Um pouquinho só. Se é Deus como diz, depois res-
suscita em forma de butique.
Psychê não resistiu às más influências, e uma noite entrou na
câmara escura em que Cupido dormia, levando uma lamparina
numa mão e uma adaga na outra: "Vou lhe fazer um teste sexual
pré-olímpico e depois enfio esta adaga em seus boiEROS." Porém,
quando a luz bateu em Cupido, e Psychê viu aquele gatão, ficou
tão excitada, que... Nesse momento, porém, uma gota de óleo da
lamparina caiu no ouvido de Eros, que acordou assustado, saltou
de lado e desapareceu pra sempre.
Durante dez anos, Psychê procurou em vão o seu amor. Afi-
nal, subiu ao Olimpo pela escadinha dos fundos e implorou a
Aphrodite:

185
- Minha querida sogra, por favor, me dá de volta Cupido, que
perdi por ser muito cúpida.
Ao que Aphrodite respondeu:
- Está bem, vou te dar três tarefas. Se cumprir as três, eu te
devolvo meu filho. 1a tarefa) Enfiar o dedo no nariz de outra pes-
soa com o mesmo prazer com que enfia no seu. 2a) Transformar
85 torturadores da polícia em outros tantos perfeitos democratas.
3a) Descer aos infernos e me trazer a caixa preta (também conhe-
cida como Boceta) de Pandora.
Psychê desprezou as duas primeiras propostas, pegou o primei-
ro buraco de tatu pro inferno e trouxe consigo a tal coisa de
Pandora. Mas, no caminho pro Olimpo, não resistiu e resolveu
olhar o que tinha na caixa. Imediatamente, de dentro da caixa
fugiram todos os males do mundo — a inveja, a preguiça, o colé-
gio eleitoral e o jornalismo brasileiro — , e Psychê desmaiou. Eros
se materializou no mesmo momento, mais apaixonado do que
nunca, e, olhando na caixa, viu que nem tudo estava perdido. Bem
no fundo, escondidinha, lá estava a esperança. Por isso ele se
casou com Psychê e tiveram três filhas - Volúpia, Titila e Tara —
e três filhos - Aconchego, Deleite e Orgasmo.

MORAL A psychêatria não resiste à cupidez.

186
lxxxii Nu, quem?

No salão Grená, a pequena multidão


de nobres espera nervosamente a
entrada de Sua Majestade. É dia do
aniversário do Supremo Mandatá-
rio, eEle vai dirigir a palavra a seus
cidadãos, eoneitando-os para mais
um esforço pelo desenvolvimento do
país. Alguns radicais exigem a reforma
dos feudos, mas as rédeas estão seguras
nas mãos fortes que cuidam da Pátria. De repente há um frémito
entre as pessoas, o mestre-de-cerimônias bate com o bastão no
chão e anuncia Sua Majestade, Pepino, o Longo. Sua Majestade
entra e vai desfilando lentamente por entre os nobres, se encami-
nhando para o elevado do trono. Quando, porém, coloca o pé no
degrau do trono, um menininho, que estava perto, arregala os
olhos e fala, alto bastante para que a sala toda, mergulhada em
emocionado silêncio, ouvisse: "Mamãe, mamãe, o Rei está nu!"
Imediatamente, enquanto o tumulto tomava conta do am-
biente, oserviço de segurança de Sua Majestade agarrou o meni-
no e a mãe, e os arrastou pra fora da sala. Sem perda de tempo,
um arauto subiu ao palanque do trono e, com voz pausada, leu

187
uma comunicação: "Cidadãos, pela presente o departamento de
pesquisas químicas de Sua Majestade avisa que conseguiu fabri-
car um tecido, com o qual Sua Majestade está vestido neste mo-
mento, tecido de beleza e resistência excepcionais. Mas completa-
mente invisível a qualquer subversivo."

MORAL Olhe bem para o desenho. Você


acha que o Rei está nu ou está vestido?

188
lxxxiii A automaldição

Régio Nonada ficou olhando o açougueiro empacotar cuidadosa-


mente suas compras,1 e, quando o açougueiro já estava atento a
seus próprios gestos,2 mexeu acintosamente na carteira e disse,
pesaroso: "Xi, seu António, estou sem um níquel, depois eu pago."
Seu António já conhecia o Régio. Disse: "Não faz mal, doutor Ré-
gio, eu aceito um cheque." Régio fez uma expressão inda mais pe-
sarosa: "Seu António, o senhor sabe que deixei tudo em cima da
cama, na hora de sair? Mas, olha, de tarde mesmo passo por aqui e

pago." 0 açougueiro fez um ar de desespero e disse, botando a


mão no embrulho: "0 senhor vai perdoar, doutor Régio, mas da
última vez que ficou devendo, levou três meses pra me pagar. Não

posso fiar, não; eu vivo disso." Régio botou também a mão em


cima do pacote: "Olha, seu António, o senhor sabe como eu sou
supersticioso. Crente. Boto a mão aqui como se

fosse na Bíblia.3 Juro que volto com o dinheiro

1. A diferença entre o açougueiro e o ator: o ator encarna


os papéis. 0 açougueiro empapela as carnes.
2. His, dele. Ah, a ambiguidade dos possessivos portugueses!
3. Porém, tem gente que bota a mão na Bíblia como
se a pusesse sobre um bife.

189
logo depois do almoço. Se não voltar, quero que me caia a lín-
gua!" Régio falou com tal sinceridade que o açougueiro não teve
jeito. Tirou a mão de cima do embrulho e deu de ombros, aborre-
cido, como quem diz "Tá bem!"4 Régio saiu do açougue, dobrou a
esquina e, ali mesmo, abriu o pacote de carne. No meio do acém,
das tripas e das costeletas estava a língua. Pegou-a e deixou-a
cair no chão.

MORAL Tem gente sincera.

4. É o que se chama "expressão corporal"

190
lxxxiv O lobo e o arminho

Havia desde muito tempo, muito tempo mesmo, um Lobo e um


Arminho1 que viviam do lado de cá do Monte Sinai. 0 Lobo tinha
ouvido dizer que "viver bem é a maior vingança". Já o Arminho
vivia repetindo Salomão: "Gratuitas e belas são as prendas do Se-
nhor. Olhai os lírios do campo: nenhum outro ser tem a pele mais
bela e mais pura."
O Arminho achava que sua pele era melhor do que a dos lírios.
No máximo, igual.
Um dia, vendo que a vida se tornava impossível neste lado, o
Lobo convocou o Arminho e lhe disse, como proposta de solução
definitiva:
— Meu caro Arminho, olhe bem: o outro lado do canal é fértil.
Olhe o ondulante dos legumes, olhe o dourado do trigo, olhe a
nuvem de insetos, olhe o tentador das frutas. Bastará o esforço de
cruzarmos o canal para que tenhamos, ao alcance de nossas mãos,
digo patas, alimento para o resto da
existência. Por que continuarmos a
viver deste lado, na pobreza e no
desamparo?

1. Mamífero mustelídeo, de pele macia e alvíssima


no inverno. Símbolo de nobreza e grã-finagem.

191
— Eu, cruzar a água nojenta desse canal, eu hein, rosa? - res-
pondeu Arminho.
o — Conspurcar a pureza de minha pele, tão lin-
da e sedosa quanto a dos lírios do campo? Sai fora, Eulálio. Estou
muito bem aqui e aqui fico. Além do que, um dia ou outro de
fome só pode mesmo é dar uma linha melhor ao meu corpo e um
brilho maior à minha cobertura. Se você quer ir, vai, bofe, eu fico
aqui. Acho que você está errado, não concordo em absoluto com
o que pensa, mas lutarei até a morte pelo seu direito de pensar

assim.2
0 Lobo, catrapum! Saltou no canal, conseguiu escapar ao
bombardeio dos aviões inimigos e pouco tempo depois já estava
do outro lado, comendo, fartando-se com os belos frutos e legu-
mes da região. Enquanto isso o Arminho ficava do lado de cá, e
como, do lado de cá, o índice do produto per capita caía cada vez
mais, ele foi ficando cada vez mais fraco até que um caçador o
apanhou numa armadilha boba, tirou-lhe a pele e deu-a de pre-
sente aCuquita Carballo, "la rumbera de fuego".

MORAL Todos os bem-pensantes nunca se


arriscam, mas acabam perdendo a pele.

2. Isto me cheira a Voltaire.

192
lxxxv Prudente Seguro do Resguardo

Taí um homem: Prudente Seguro do Resguardo. Sua mãe ensinou-


Ihe, desde cedo, que não devia ir à janela porque podia cair, que
não devia abrir a janela pra não tomar corrente de ar, que não
devia responder mal às pessoas maiores - podiam bater nele - ou
mais ricas - podiam prejudicá-lo no continuar da vida. E Pruden-
te preservou a brancura da pele, jamais tomando sol.
Crescendo, Prudente aprendeu a guiar devagar e não avançar
sinais, a não levar cachorro pra praia e, sobretudo, a apontar às
autoridades os transgressores, jogadores de frescobol, surfistas e
que tais.
Casando-se, Prudente casou com uma mulher feia, pra não ser
passado pra trás. Só aplicava suas economias em terras e aparta-
mentos ("Terra é sempre terra") e foi morar num lugar isolado, nem
muito alto nem muito baixo, pra que seus dois filhos não pudes-

193
sem cair de cima mas também as enchentes não lhe entrassem em
casa. Sua casa tinha ferrolhos contra ladrões, aquecimento a lenha
para evitar os perigos do gás, e seus filhos só iam à escola com dois
guarda-costas, assim que começou a moda dos sequestros.
E assim vivia Prudente, tranquilo e feliz, protegido pela sua
imensa sabedoria, quando, um dia, ao sair de casa, um bólido caiu
do céu em cima dele e matou-o. Esse bólido era nada mais nada
menos do que Vulnerável Indefeso Porumfio, que, numa de suas
experiências com um novo motor atómico para bicicletas infantis,
tinha explodido sua garagem-laboratório, a 25 quilómetros de
distância, e viera cair exatamente em cima do sábio - Deus o te-
nha no seu bem protegido Paraíso - Prudente. Vulnerável saiu
completamente ileso do acidente, sem um arranhão, e declarou à
imprensa que não desistirá de suas experiências enquanto não
completar a sua bicicleta voadora.

MORAL Não adianta você andar na mão se


tem um maluco vindo a toda na contramão.

194
lxxxvi Águas rasas muito profundas
A maneira dos... coreanos

Era uma vez um anãozinho chamado Saar-Nei, pescador no Rio


Pir-i-Ku-Man. Lá ia ele, distraidamente remando seu barquinho, e
distraidamente o barquinho encalhou num banco de areia. Saar-
Nei, pescador não muito competente, tentou sair da encrenca
com movimentos desastrados dos remos - e só conseguiu se
encrencar ainda mais. Desesperado, saltou do barco pra empurrá-
lo, esquecido de que não sabia nadar. E quando caiu n'água e viu
que não dava pé, começou a gritar por socorro, refletindo: "Como
é que essa água desgraçada pode ser tão rasa pro barco e tão fun-

da pro dono?"

MORAL O meio é medíocre.

195
lxxxvii Partida amistosa

Depois que terminaram o seu famoso "caso", as relações da Formi-


ga com o Elefante ficaram um pouco estremecidas.1 Mas, tempos
passados, os dois se encontraram, e a Formiga, querendo restabe-
lecer as relações entre ambos numa outra base, desafiou o Elefan-
te pruma partida de futebol.
- Como futebol? - estranhou o Elefante. - Eu contra você?
- Não, claro - respondeu a Formiga. - Onze contra onze,
como em qualquer partida. Eu entro com onze insetos, moluscos
etc, bichos assim do meu porte, e você entra com onze elefantes.
- Mas você acha que vai dar uma boa partida? - duvidou o
Elefante.

- Vamos ver, não custa tentar - respondeu a Formiga, muito


animalda.2
No dia combinado, no meio de uma clareira da floresta, de-
marcada de maneira perfeita, os dois times se reuniram pra dispu-
ta. Quase todos os bichos da floresta assistiam, interessados. No
campo, de um lado, onze enormes elefantes. Do outro, um time
misto, curioso: Lagarta, Lesma e Caramujo; Mosca, Lagartixa, Be-

1. Antes também estavam estremecidas. Mas era outra coisa!


2. A Formiga é animal.

196
souro e Aranha; Barata, Lagarta Fenómeno e Caramujo Baiano.3
No gol a própria Formiga, organizadora da partida. Como juiz, o
Gorila.4 Bem, não precisa dizer que, com esses dois times, o pri-
meiro tempo foi um passeio prós elefantes. Terminou com o time
paquidérmico ganhando de 23 a 4. Mas a Formiga, mistura de
empresária e treinadora, não parecia desanimada.5 Aconselhou os
jogadores, animou-os6 bastante e fez as três substituições permi-
tidas pelo regulamento. Os elefantes ficaram um pouco apreensi-
vos com as mudanças, mas não alteraram o próprio time. Do time
da Formiga, saíram a Lagarta, a Lesma e o Caramujo, e entraram a
Lacraia, o Escorpião e a Centopeia.
E a coisa virou. 0 time da Formiga, tão sabiamente reforçado no
segundo tempo, estraçalhou o time dos elefantes humilhados, que
perdeu pela esmagadora diferença de 187 a 43. 0 Elefante amigo
da Formiga não pôde, claro, deixar de perguntar à adversária:

3. Formação 4x3x4.
4. Et pour cause.
5. Perdão, desanimalda!
6. Animol-os?

197
- Mas, me diz uma coisa: por que você não colocou logo de
início a Lacraia, o Escorpião e a Centopeia? Estava o quê; queren-
do fazer suspense pra humilhar a gente?
— Eu, hein? - respondeu a Formiga. - la lá arriscar isso? Eles
só entraram no segundo tempo porque demoraram muito pra cal-
çar as chuteiras!

MORAL Toda vantagem tem sua desvantagem.

198
LXXXVIII Fábulas à beira do deserto
O camelo acamelado
A maneira dos... curdos

Infeliz? Sim, o pobre camelo de Damasco era infeliz. Ficava ali,


vendendo seus berloques na praça, perto da mesquita, mas era um
desgraçado. Num mundo em que todo mundo pretende ser dife-
rente, tudo que ele queria era ser igual. 0 destino o fizera corcun-
da. E assim passara seus trinta anos de vida sem ser aceito no
mundo dos homens, o que inclui sobretudo as mulheres. Pois estas
nem o viam. Quando saía, às vezes, à noite, e, no escuro, arranjava
uma namorada, o instante de carinho era interrompido com hor-
ror. Ao passar-lhe a mão nas costas, a moça descobria a corcova
maldita. E imediatamente o rejeitava, enojada. 0 mundo é, defini-
tivamente, dos chatos.
Sentindo-se envelhecer, ele um dia teve
uma ideia genial — procurou a
camela Deusa do deser-
to. Disse-lhe:
— Vê? Sou assim. Não
encontro ninguém que
me queira. Mas acho que

199
podemos imitar os deuses ocidentais, que se ligavam também a
seres não da sua espécie. Júpiter...
Disse a Deusa:
— Já entendi. Já entendi. É verdade. Conheço bem a mitologia
ocidental. Podemos imitá-la, por que não?
O camelo virou-se de costas para a Deusa e mostrou:
-Vê? Sou um pouco da sua espécie. Não haverá por aí uma
camelinha que queira casar comigo?
A cara da Deusa do deserto iluminou-se:
— Claro! Como não!? Por acaso uma sobrinha minha. Mas o se-
nhor, como marido, vai ter que ter muita paciência. Ela é extrema-
mente complexada. Nasceu sem corcova.

MORAL Os cães passam e a caravana ladra.

200
lxxxix A visita da Velha Senhora
À maneira dos... novos

A visita da velha senhora. Ela bateu a porta da casa. Ela bateu à


(corrijo) porta da casa de subúrbio. Um garotote, meio linguiça,
de aí seus nove anos, veio atender. Um garotote veio atender. Na
mão, um cigarro. É, um cigarro na mão. A velha senhora pergun-
tou. Perguntou:
— Você fuma já, nessa idade? - Não, corrijo a Velha Senhora:
— Você já fuma, nessa idade?
Respondeu o garotote meio linguiça:
— Claro que fumo.
— Quer dizer que tua mãe não está em casa, né?
— Está - respondeu o garotote -, claro que está. Mãe que é
mãe não sai de casa.
— E ela não se importa que você fu-
me desse tamanho?
— Ora, eu fumo desse ou de qual-
quer tamanho.
— Não estou falando do tama-
nho do cigarro - obtemperou a
Velha Senhora.

201
— É, minha mãe também me acha baixinho - já tenho treze
anos e estou só com 1,80m. Mas, de qualquer forma, ela acha que
este cigarro faz menos mal do que o normal - explicou o garotote
meio linguiça dando uma puxada.
— Menos mal do que o quê? - engoliu a Velha Senhora.
Mas, disfarçando o espanto, entrou no jogo cínico. Vejam só:
— Vai dizer que você também anda por aí com namoradas?
— Namoradas, não - moralizou o garotote -, que eu não sou
promíscuo feito a sua geração. Uma namorada.
— Ah, é? - avançou a Velha Senhora — , e aonde é que você vai
com ela — cineminhas ou... boates?
— Não gosto desses ambientes gregários, podes crer - esno-
bou o garotote. - Duas ou três vezes vou ao apartamento dela e
durmo lá. Ou então dormimos num motel.
— E o que é que vocês fazem na cama, pode-se saber? - a Ve-
lha Senhora provocou.
— Olha, sinceramente - respondeu o garotote -, isso eu não
sei dizer. Sempre que durmo com ela estou completamente do-

pado.
— Ah! - fez a Velha Senhora.

MORAL O diálogo entre as gerações é perfeitamente


possível. Só que não conduz a nada.

202
xc O pescador e a relíquia
A maneira dos... sikhs

Cruzando o rio em seu barco a remo, Jawhal Saber, o pescador de


Deus,* transportava uma Serpe de Ouro, espécie de Santo Graal da
região, que devia entregar no Templo de Prata. Súbito uma cor-
rente de vento fez vibrar o barco de maneira mais forte. A precio-
sidade religiosa caiu no fundo do rio. Com a sabedoria de uma
longa vida de pescador, Jawhal não hesitou; para não se perder,
pegou um facão e marcou no casco do barco o local exato em que
a imagem tinha caído. E, com toda a calma, continuou reman-
do, seguro e rápido, até o seu destino na outra margem do rio.
Chegando, amarrou o barco, veri-
ficou onde tinha feito a marca,
mergulhou, e recolheu a Serpe
sagrada.

MORAL Nada resiste à fé da lógica


apoiada pela lógica da fé.

Supunha ser descendente direto de Pedro.

203
xci Os 13 trabalhos de Hércules

Contam alguns mitologistas que Hércules matou sua mulher,


Megara, e foi condenado a realizar doze trabalhos, que ficaram
famosos. A verdade não é essa. Hércules saiu de casa normalmen-
te, como todo homem de bem, despediu-se normalmente de
Megara e foi cumprir sua rotina diária de trabalhos.
Às cinco da manhã, já estava com sua clava de bronze no om-
bro procurando (1o trabalho) o Leão da Neméia, que assolava seus
vizinhos. Depois de matar o leão e vestir-se com sua pele, saiu à
cata da (2o trabalho) Hidra de Lerna que, segundo uns, tinha sete
cabeças, segundo outros tinha cem. O pior é que, assim que Hér-
cules destruía uma cabeça, outra, morta antes, renascia; Hércules
resolveu a questão queimando cada cabeça morta antes de matar
a próxima - se não, estava nesse traba-
lho até hoje. Imediatamente, Hércu-
les saiu atrás do (3o trabalho) viado
de chifre de ouro, famoso por ve-
locidade. Hércules pegou o viado,
entregou-o a Diana e logo par-
tiu para (4o trabalho) pegar o
javali de Erimantos. Apa-
nhando ojavali, Hércules

204
foi (5o trabalho) limpar o estábulo de Hegeu, o qual três mil ani-
mais sujavam dia e noite, há cem anos. Às onze da manhã, Hércu-
les tinha acabado essa tarefa e já estava se preparando para (6o
trabalho) dizimar os pássaros carnívoros que aterrorizavam a
Arcódia. Ele engaiolou todos os pássaros e pôs-se (7o trabalho)
atrás do touro de Creta, que abateu com um soco. Em seguida (8o
trabalho), teve que abater também as éguas de Diômedes, que se
alimentavam de carne humana. Foi fácil: Hércules liquidou o pró-
prio Diômedes e deu-o como alimento às suas próprias éguas.
Agora, Hércules tinha que (9o trabalho) topar a parada duríssima
de roubar uma liga de Hipólita, rainha das amazonas. Ele conse-
guiu seduzir a rainha, tirou-lhe a liga e meia hora depois já estava
(10° trabalho) matando os bois do monstro Gerion. O dia já escu-
recia quando ele (11° trabalho) desceu ao inferno, salvou Cérbero
de lá, ainda a tempo de (12° trabalho) poder roubar as maçãs do
Jardim das Hespérides.
Pois é, aí, completamente esgotado, Hércules chegou em casa,
colocou em cima da mesa as maravilhosas maçãs, jogou-se numa
poltrona e disse:
— Olha, querida Megara, você nem sabe o meu dia de hoje.
Eu... — e ia começar a narrar o dia histórico quando Megara o in-
terrompeu, furiosa:
— 0 quê, seu porco chovinista, você ainda tem coragem de me
falar de seus trabalhos na rua, se divertindo, se engrandecendo,

205
sempre cercado da sua patota de machistas, enriquecendo a sua
experiência a toda hora, enquanto eu, mulher-objeto, fico aqui na
monotonia deste meu trabalho doméstico sem perspectiva e...
Pois é: foi aí que Hércules não se conteve e realizou o seu 13°
trabalho.

MORAL A História não pára.

206
xcn O Super-Samsão
Samsão era filho de Manué e da
mulher dele; o Senhor tinha prome-
tido que ele seria o maior, se não co-
messe coisas imundas e jamais entras-
se num coiffeur pour monsieurs. Mas
acontece que essas coisas não são bem
assim, né? Pois o que Deus esqueceu foi
de tomar cuidado pra Samsão não ser tão chegado a uma jovem
devassa. De modo que, depois de exercer o cargo de juiz por mui-
tos anos, Samsão um dia se engraçou adoidado por uma filistina,
filha de filisteus (espécie de americanos do Oriente Médio daquela
época) muito sobre a dadivosa. Os pais dele ficaram furiosos, mas,
como Samsão era cabeçudo (além de forte!), tiveram que casar ele
com a tal dona, que logo, assim como quem não quer nada que-
rendo tudo, combinou pra mesma noite uma transa sexual com o
melhor amigo do recém-marido.
Samsão, quando descobriu que estava sendo passado pra fren-
te, ficou samsudíssimo. Mas o pai da moça argumentou que a
moça era assim mesmo, muito da avãgarde, e que era melhor que
fosse com o melhor amigo porque, desse modo, estabelecia um
princípio, e que ele tinha uma filha mais nova, e com seios muito

207
mais bonitos, que desde logo oferecia a Samsão. Samsão topou,
mas, quando viu a tal filha, achou que com onze anos era um
pouco nova demais e mandou que o velho safado enfiasse a filhi-
nha num filme do Polanski. Enquanto isso, naturalmente, ia to-
cando fogo no rabo de trezentas raposas que saíram desvairadas
destruindo tudo por onde passavam - trigais, vinhais, olivais e o
que mais. Parecia até o pessoal do INPS soltando as raposas do
terrorismo nas instalações da Tribuna da Imprensa.
Não contente com a raposada, Samsão ainda pegou uma quei-
xada de burro e gritando "Eu não me queixo!", matou mil filisteus
dos mais grandinhos, deixando um exemplo de coragem que até
hoje muitos de nossos governantes querem imitar mas não conse-
guem porque não têm força - só têm a queixada. Então, cônscio
de que seu casamento não ia muito bem, Samsão saiu pra outra,
indo bater na casa de uma jovem de má (má?) vida. E quando es-
tava lá, naquele doce fuque-fuque, os incircuncidados o agarra-
ram, amarraram e jogaram num quarto todo gradeado. Mas, horas
depois, Samsão acordou, gostou do estilo da porta e levou-a pra
dar de presente a outra esplêndida marginal chamada Dalila. Em-
bora pudesse ter tudo dando só a porta e mais uns trinta ses-
tércios (28 talentos no mercado paralelo de Smirna), Samsão re-
solveu casar de novo, sem saber que Dalila a essa altura já estava a
soldo da CIA - Central de Informações Arabescas. Por isso, um
carinhozinho aqui, uma lambidinha ali, ela pediu a Samsão que

208
lhe contasse de onde vinha sua força e a maneira de neutralizá-la,
a ela, força. Samsão, que era o protótipo do machão, como as
leitorinhas mais feministas já puderam perceber, o que tinha de
estúpido tinha de estúpido, mas não era tão estúpido quanto
Dalila, e disse:
— Pra me tirar a força, basta me amarrar com sete cordas de
nervos ainda não secos, ou melhor, ainda bem úmidos.
Dito assim, aos ouvidos de hoje, parece até que ele estava
de sacanagem, porque onde é que a gente vai encontrar sete
cordas de nervos ainda não secos, não é mesmo? Mas Dalila, em
2033 a.C, achou bem natural. Foi ao primeiro supermercado,
comprou as tais cordas, depois de pechinchar um pouco, e amar-
rou Samsão todo, enquanto ele dormia. Ao acordar, porém, Sam-
são arrebentou as cordas com um safanão, o que deixou Dalila
fula da vida airada:
— Pô, você não me ama mesmo, e eu não vou mais deixar você
fazer aquilo assim comigo, nem aquilo assado, se você não me
ensinar como é que eu posso te matar.
Ouvindo isso, já tresvariado, Samsão se entregou:
— Não, filhinha, não, antes a morte! É no meu cabelo, boneca,
você não viu logo, pô? Pode cortar; tá tudo aí na juba, queridoca.
Foi assim que, na madrugada seguinte, cem homens do DOI-
CODI filisteu entraram na residência de Dalila, aquela com uma
luz vermelha bem grande na porta. 0 capitão do comando lhe en-

209
tregou um saco com 33 dinheiros (estabelecendo um precedente)
depois que ela assinou um documento garantindo que o carecão
ali era mesmo Samsão, e como eles eram apenas cem contra um,
resolveram logo, por medida razoável de segurança nacional, ar-
rancar os olhos de Samsão e amarrá-lo numa mó, que é uma pe-
dra enorme que se usa para fazer palavras cruzadas. E assim cego
amolado - amarrado na mó — Samsão foi jogado numa cela, onde
ficou até o dia em que seus ex-companheiros de magistratura, se
banqueteando com os príncipes filisteus, resolveram dar uma últi-
ma gozada nele. Mandaram buscá-lo na prisão e ordenaram:
- Vamos, Samsinho, faz alguma coisa pra nos divertir ou leva
trinta chibatadas.
Mas, dizendo isso, eles desconheciam duas coisas:
1) O cabelo de Samsão já estava até aqui assim;
2) Além da força, Samsão tinha também senso de humor e ex-
celente expressão corporal. De modo que, quando rebolou pra lá e
pra cá e sacudiu as colunas do templo dizendo que ia derrubar
tudo, o pessoal morreu de rir. Literalmente. A casa veio abaixo.
Idem.

MORAL Os cabeludos é que tão com a razão.

210
xcni Os rictos da primavera

Pois é, vou aproveitar que as folhas das árvores estão voltando e


que o meu telhado voou com a última ventania, pra lhes contar
que Prosérpina1 foi sequestrada por Plutão. Sequestrada, ela, que
não estava acostumada a isso, berrou: "Você vai me pagar, seu
bruto!", ao que Plutão pensou lá com seus tridentes que quem ia
pagar era ela, e em espécie. Chegando às Regiões Infernais, un-
derground onde habitava, Plutão ofereceu a Prosérpina ouro, in-
censo emirra e muito sexo, mas ela só aceitou mesmo este último
com papel passado, primeiro porque toda mulher é chegada a um
bom casamento, e segundo porque assim ela podia xingar o cana-
lha com mais autoridade.
Enquanto isso, a mãe - dela - largava de mão a agricultura
olímpica2 e ia se queixar a Júpiter que, na época, sozinho, resolvia,
como um delfim, todos os problemas nas altas paragens. Júpiter,
que estava com pressa porque tinha um entrevero libidinoso com
Danae e ainda ia se transformar em chuva de ouro, disse que

1. Também chamada Perefata - a que dá frutos -, filha de Júpiter com Ceres, que
Júpiter seduziu disfarçado de chama. Prosérpina era tão bonita que o próprio pai
tentou faturá-la fingindo-se de serpente.
2. Deixando cair a produção agrícola e desequilibrando o PNB da Hélade.

211
aquilo era um caso entre homerr e mulher3 e devia ser resolvido
como tal.4 Mas Ceres retrucou que, sendo assim, abandonava de-
finitivamente acornucópia de abacaxi, soja, milho, trigo, frutas
em geral.5 Diante da ameaça desse boicote, Júpiter chamou Mer-
cúrio, seu filho com Maia, e disse: "Meu filho, resolve essa parada
aí enquanto eu vou botar minha pele de touro, pois tenho um

compromisso sexual com Europa daqui a meia hora."6 No entre-


mentes, Plutão, já por aqui com sua mulher, Prosérpina, resolveu
devolvê-la à superfície, mas a lei jupiteriana não permitia que
ninguém mais subisse depois de ter ingerido qualquer coisa lá
embaixo, e Prosérpina tinha tomado umas e outras. Só depois de
muitas e muitas conversações as forças de baixo e do alto chega-
ram a um denominador comum: Prosérpina ficava seis meses no
submundo e seis cá em cima, período em que Ceres concordava
em abrir sua horta à floração e frutificação incentivadas. Essa
combinação entre os Altos Poderes trazia anualmente seis meses
de frio horrível e consequente falta de produtos hortigranjeiros,

ocasião em que o povo morria como mosca subalimentada.7


3. Já raro, então.
4. Por exemplo?
5. Mas não abandonou. Nunca abandonam.
6. Júpiter também seduziu Antiope disfarçado de sátiro; Leda, fazendo-se de cisne, e
até - epa! - disfarçou-se como Diana para fornicar com Calisto. Um senhor travesti!
7. Mas também nenhum governo pode resolver tudo ao mesmo tempo, não é mesmo?

212
Foi sempre assim que se criou o frio, a fome e a beleza da pri-
mavera. Sempre que Prosérpina volta à superfície, está tudo esga-
lhado eseco, mas a mãe, Ceres, fica tão contente que sai pulando

pelos prados, dando ordens a torto e a direito: "Brota, violeta!"


"Abre, girassol!", "Flora, margarida!", "Arroxeia, quaresmeira!" É
por isso que a primavera é linda e todo mundo adora a primavera.
Exceto, é claro, as flores!

MORAL Nem tudo é mel no reino das abelhas.

213
xciv Diálogo das grandes especializações
À maneira dos... quenianos

0 amante de tartarugas foi procurar o especialista máximo em


tartarugas:
— Doutor Tartarugólogo, estou com um sério problema: tenho
duas tartarugas, mas não sei distinguir macho e fêmea. Como faço?
0 especialista máximo nem refletiu:
— É muito simples: o senhor pega uma lagartixa fêmea e uma
lagartixa macho. A tartaruga fêmea vai comer a lagartixa macho
e a tartaruga macho vai comer a lagartixa fêmea.
0 amante de tartarugas ficou impressionado e satisfeito com a
simplicidade da solução, pensando: "Os verdadeiros entendidos
jamais complicam." Logo, porém, surgiu-lhe uma complicação:
— Mas, doutor Tartarugólogo, e como é que eu faço pra saber
qual é a lagartixa fêmea e qual é a lagartixa macho?
0 Máximo nem pestanejou, supremo simplificador:
— Simplicíssimo. Vou lhe dar o endereço de um colega que é,
no Brasil, o maior especialista em sexologia lagartixóloga.

MORAL O especialista sabe cada vez mais sobre cada vez


menos, concordamos. E nós, vendo televisão o dia todo,
sabemos cada vez menos sobre cada vez mais.

214
xcv O grande sábio e o imenso tolo

Por um acaso do destino, um velho e sábio professor e um jovem e


estulto aluno se encontraram dividindo bancos gémeos num ôni-
bus interestadual. 0 estulto aluno, já conhecido do sábio profes-
sor exatamente por sua estultice, logo cansou o mestre com seu
matraquear ininterrupto e sem sentido. 0 professor aguentou o
quanto pôde a conversa insossa e descabida. Afinal, cansado, ar-
ranjou, na sua cachola sábia, uma maneira de desativar o papo
inútil do aluno. Sugeriu:
— Vamos fazer um jogo que sempre proponho nestas minhas
viagens. Faz o tempo passar bem mais depressa. Você me faz uma
pergunta qualquer. Se eu não souber
responder, perco cem pratas. Depois
eu lhe faço uma pergunta. Se você
não souber responder, perde cem.
— Ah, mas isso é injusto! Não pos-
so jogar esse jogo - disse o aluno,
provando que não era tão tolo quan-
to aparentava — , eu vou perder mui-
to dinheiro! 0 senhor sabe infinita-
mente mais do que eu. Só posso jogar
com a seguinte combinação: quan-

215
do eu acertar, ganho cem pratas. Quando o senhor acertar, ganha
só vinte.
- Está bem - concordou o professor -, pode começar.
— Me diz, professor - perguntou o aluno -, o que é que tem
cabeça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
0 professor, sem sequer pensar, respondeu:
- Não sei; nem posso saber! Isso não existe.
— 0 senhor não disse se devia existir ou não. 0 fato é que o
senhor não sabe o que é - argumentou o aluno - e, portanto, me
deve cem pratas.
— Tá bem, eu pago as cem pratas — concordou o professor pa-
gando — , mas agora é minha vez. Me diz aí: o que é que tem cabe-
ça de cavalo, seis patas de elefante e rabo de pau?
- Não sei - respondeu o aluno. E, sem maior discussão, pagou
vinte pratas ao professor.

MORAL A sabedoria, nos dias de hoje,


está valendo 20% da esperteza.

216
xcvi A bolsa é a vida

Quando saiu do banco, abraçando carinhosamente sua bolsa de


crocodilo, com três bilhões de cruzeiros,1 Amarildo notou dois
vultos suspeitos2 na esquina.3 Apressou o passo, eles apressaram
os respectivos passos deles, Amarildo evitou um guarda4 e se es-
condeu atrás de uma árvore; quando os homens desapareceram,
Amarildo saiu de trás da árvore. Aí notou que estava sendo acam-
panado por um carro roxo com bolinhas brancas. Saltou um fos-
so5 e pulou pro outro lado, dando uma banana pro carro cheio de
padres.6 Aí resolveu tomar um táxi que passava, apenas para, as-
sim que o carro arrancou, encontrar um magnífico 38 apontando
pro seu nariz. 0 chofer, naturalmente parte de um complô amplo,
geral e irrestrito, disse apenas: "A Bolsa, ou leva chumbo!" Mas,
como estava voltado para trás, o chofer não percebeu que o sinal

1. Ele ia fazer umas compras na feira.


2. Escurinhos, portanto suspeitos, segundo a PM
3. Amarildo tinha medo de esquinas. Era um
esqui nofrênico.
4. PM! Brrrrrrr!
5. Estava numa rua qualquer do rio.
6. Discretinhos como o papa.

217
tinha fechado, bateu no carro da frente,7 tendo Amarildo se apro-
veitado da batida pra lhe tomar a arma e rendê-lo no melhor es-
tilo uésterni ispaguéti. Mandou que o carro tocasse até alguns

quilómetros, ordenando: "Toca e não olha pra trás, senão leva


chumbo!" E antes mesmo que o motorista arrancasse, pespegou
dois tiros na carroceria do automóvel.8 Mas, nem bem o carro ti
nha sumido no horizonte,9 Amarildo viu quatro homens uniformi-
zados correndo velozmente em sua direção. Como era míope, não
reparou que os uniformes eram de atletas fazendo cooper e botou
o pé no imundo.10 Apertando a bolsa no peito, correu como um
raio pelos caminhos do bosque - estava num bosque! - e logo
deixou os perseguidores para trás. Quando viu que não via mais
ninguém, olhou o relógio cheio de regozijo; tinha feito o melhor
tempo de sua vida — 4.000 metros em 19min 10s.n Nada mau, aos
39 anos. Aí, ainda resfolegando, resolveu descansar à beira da la-
goa,12 deixando a bolsa em cima de um monte de capim. Dormita-
va uns dez minutos deitado ao comprido no chão, depois do que

7. Carteira falsificada no próprio Detran.


8. Como diz a polícia: "Efeito psicológico."
9. Horizonte, no Rio?
10. Mundo sujo!
11. 0 homem precisa sempre ser motivado.
12. Havia uma lagoa!

218
levantou-se, já refeito, e foi pegar a bolsa que... ué, quede a bolsa
do Amarildo? Amarildo olhou desesperado e viu sua bolsa de cro-
codilo lábem longe, no meio da lagoa, nas costas do jacaré que
ele tinha pensado que era apenas um montezinho de capim. E en-
quanto chorava, o jacaré afundou com a bolsa e seus dois bilhões

de cruzeiros.13

MORAL Se você não abraça bem sua bolsa de crocodilo,


o jacaré, provavelmente filho dela, a abraça.

13. A essa altura o dinheiro já tinha desvalorizado.

219
xcvn O milagre económico
À maneira dos... persas

Um mendigo surdo-mudo entrou num botequim e, com gestos


fortes e significativos, pediu esmolas. Os fregueses, irritados em
sua generosidade, recusaram. 0 mendigo ficou insistindo de mesa
em mesa, até que o dono do botequim enxotou-o dali. 0 mendigo
continuou pela rua afora, pedindo a todos os passantes do mesmo
jeito. Uma hora depois, voltou, sentou com espalhafato numa
mesa do botequim e gritou, pra que todos ouvissem:
- Uma Brahma estupidamente!
0 garçom trouxe a Brahma correndo, abriu e disse:
- Ué, como é? Você não era surdo-mudo? Ficou bom de re-
pente?
E o mendigo respondeu:
- Que que adianta a gente falar, quando não tem o puto de
um níquel pra pedir uma Brahma?

MORAL O dinheiro fala mais alto.

220
xcvm O homem que inventava companhias

Era uma vez uma senhora muito rica que encontrou um balconis-
ta de tabacaria que, de olhos fechados, distinguia dinheiro de

qualquer parte do mundo.1


— Milagre! - disse a senhora. - Com isso você pode ficar rico
— disse ao balconista.
E, com o dinheiro dela, inventou logo sua primeira companhia,
ele, naturalmente, como presidente e 103% dos lucros.
O ex-balconista estava, assim, lá muito satisfeito na presidên-
cia geral de sua companhia, quando, no meio dos miscoquetéis
ocasionais que organizava, por acaso cheio de vedetes e croque-
tes, descobriu um homem que fazia empréstimos, muitos emprés-
timos. Eentão o ex-balconista disse pro homem que fazia em-
préstimos:
— Aposto 30% de 100 milhões como você não é capaz de me
emprestar 100 milhões sem nenhuma garantia.
— 0 homem que fazia empréstimos, com um copo de uísque
numa mão, um baseado na outra e uma vedete no colo, lhe deu
imediatamente uma porção de papéis pra assinar; o ex-balconista
assinou, pegou os 70 milhões que o emprestador lhe deu, gastou

1. De olhos abertos, até eu!

221
20 milhões numa piscina par-
ticular e,com o resto, inven-
tou outra companhia.
Inventadas as duas compa-
nhias, estava o ex-balconista
tranquilamente se refestelando
em Tóquio,2 quando encontrou
alguns japoneses que não sabiam
o que fazer com o nacionalismo do
seu dinheiro. 0 ex-balconista rapi-
damente insinuou neles o dinheiro do
seu nacionalismo, ofereceu um peda-
ço de montanha, dez profundidades de mar e uma planície de
boiadas, e os japoneses assinaram um contrato cheio de parágra-
fos itens artigos decretos no qual ficava estabelecido que a cláu-
sula do item acima se referia ao artigo do parágrafo seguinte nas
propostas estabelecidas abaixo. E aí o ex-balconista inventou
1.000 companhias. Depois, sem saber o que fazer com tanto di-
nheiro nacional-internacional-universal de suas 1.000 compa-
nhias, oex-balconista construiu mais uma piscina em sua cober-
tura eoutra em sua casa em Angra, ao mesmo tempo que resolvia
botar no bolso também toda a classe média apelando para a assim

2. Numa casa de gueixas, sim senhor.

222
dita poupança popular. E a classe média acorreu logo, cada Pessoa
trazendo suas garantias, cadernetas, pecúnias, economias, ansiosa
por morar exatamente onde, como e pagando o que o ex-balco-
nista mandava. Tudo devidamente assegurado por organismos
oficiais.3
Foi nesse momento que houve uma tremenda implosão no
centro do Centro Financeiro da cidade e, quando a fumaceira toda
serenou, não havia mais nenhum sinal de nenhuma companhia
nem do ex-balconista. Seu corpo só foi encontrado muitos meses
depois, vivo, é bom esclarecer, muito vivo, aliás, mais vivo do que
nunca, tomando um Bacardi com gelo numa piscina olímpica que
tinha mandado construir junto ao seu chalé de verão no mais belo
lago de Genebra.

MORAL Deus disse: Fiat lux. Deu um dinheirão.

3. Sem falar que a classe média não resiste a uma "Selva de Pedra"

223
xcix O Jacaré e o Sapo
À maneira dos... chineses

0 Jacaré e o Sapo nadavam em paz no Grande Lago Tsé-Chuin,


quando o sábio Oi-Ti-Sin gritou da margem:
- Ei, Jacaré, o Tai-Kum acaba de decretar que de hoje em
diante é permitido de novo matar e comer qualquer animal com
rabo. Olha, vem aí o barco do xogum!
O Jacaré imediatamente pôs em movimento suas poderosas
patas, gritando:
- Trepa nas minhas costas, Sapo, que eu te salvo.
Mas o Sapo continuou nadando tranquilo, dizendo:
- Ué, e eu lá tenho rabo? - e foi se aproximando, destemero-
so, do barco de pesca, facilitando ser apanhado pela rede que os
pescadores atiravam. E, ao se sentir preso, pôs-se a gritar:
- Me soltem, me soltem! Eu não tenho rabo! Eu não tenho
rabo!
Mas o Jacaré, protegido por trás de uma pedra, invectivou:
- Nossas leis têm efeito retroativo, idiota! Você não tem rabo,
mas teve, quando era girino.

MORAL Quem já teve rabo tem que se prevenir.

224
c A esperteza
À maneira dos... croatas

— Deus do céu, meu sobrinho, este pano ainda está aqui? - disse
o velho comerciante eslavo,1 quando, ao mexer na prateleira de
fazendas, encontrou uma peça que tinha colocado ali há mais de
seis meses.

— Mas, tio, como é que eu posso vender essa fazenda? - per-


guntou-respondeu o sobrinho. - Está velha, manchada, mofada, e
o padrão saiu de moda há muito tempo.
— Ora, meu caro sobrinho, vendendo. Olha! Vem a calhar. Veja
e aprenda — disse o velho fazendeiro2 ao ver entrar na
loja uma velhinha bem velhinha, daquelas que, a
essa altura, nem velhinha deveria ser mais.3
— Que deseja, minha senhora? - falou ele,
cheio de mesuras. E, antes que a velhinha se
explicasse em sua voz já longínqua, passou a
mostrar rolos e rolos de fazenda, sem mos-
trar, naturalmente, a que pretendia mesmo

1. Ao fundo e ao cabo, todo comerciante é eslavo.


2. O que vende fazendas.
3. No máximo, poderia ser uma ex-velhinha.

225
vender, mas deixando sempre que ficasse bem visível aos olhos4 da
velhinha. E, como os leitores já adivinharam,5 depois de algum
tempo a velhinha saía da loja com a peça de fazenda velha e mo-
fada, tendo pago por ela o dobro do preço que pagaria por uma
peça nova. Mas aparentemente convencida do que lhe dissera o
vendedor: estava comprando uma raridade inglesa, um desenho
único, etcétera, etcétera, etcétera.6 Quando a velha saiu, o velho
mercador mostrou pro sobrinho a nota de quinhentão que ela dei-
xara elhe deu a lição definitiva e eterna da história do comércio:
— Vê, meu sobrinho, uma mercadoria jamais se vende pelas
suas qualidades, mas sim pelas qualidades do vendedor. A merca-
doria tem o valor de quem a propõe no mercado.
O garoto olhou a nota espantado e disse ao tio:
- Maravilhoso, meu tio, e profundamente verdadeiro. Mas tem
também o valor da malandragem do comprador que faz sempre o
preço da mercadoria reverter a seu valor verdadeiro.7 Vê só, tio: a
velhinha pagou ao senhor com uma nota falsa. Bota os óculos.

MORAL Não há vitória definitiva.

4. Embaraçados.
5. Não sei pra que é que eu escrevo!
6. Etcétera.
7. Mais ou menos por aí começa a lei da oferta e da procura.

226
Este livro foi composto na tipologia Rotis, no corpo 11,5/16,
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Qs^r*

K
sas inúmeras biografias de girafa
tão populares na África Central.
Diante disso resolvi ficar mesmo na

língua geral, essa que você usa to-


do dia inocentemente, sem saber
que ela não só veio diretamente da
Torre de Babel, como está se enca-
minhando rapidamente pra lá.

MILLÔR I: Pequena biografia do


Millôr Fernandes nasceu. Aos 13
anos de idade, já estava. O que não
invalida. No entanto, sua. atuação
teatral, até onde se sabe. Dos li-
vros publicados, foi constatado
sem qualquer dúvida. Ao concluir
seu Mestrado, percebeu logo. Um
dia, depois de um longo programa
de televisão, foi que. Amigos e pes-
soas vagamente interessadas, na-
turalmente. Onde e como, mas tal-
vez, Millôr jamais, no caso. Ao ser
agraciado disse, e não foi à toa.
Entre os tradutores brasileiros. E
tanto em 1960 quanto em 1978.
Mas nem todo o mundo concorda.
0 resto, diz ele. Ou seja, hoje em
dia, como ninguém ignora.
Neste livro, entre outras descobertas etimologicamente fabulosas, o autor revela como os
animais falavam no .tempo em que deram origem a tantas fábulas. Fixando hieróglifos da
Rosetta e cruzando-os com ícones do Obelisco Negro de Shalmanazar (858 a.C), o autor
conseguiu reverter a fábula A raposo e o bode a sua linguagem original. Compare.

linguagem atual: A RAPOSA E 0 BODE Por um azar do destino, uma raposa caiu num
poço profundo, do qual não conseguiu sair. Um bode, passando por ali algum tempo de-
pois e vendo a raposa, foi mordido pela curiosidade: "Comadre raposa, que está fazendo
aí?" "Você então não sabe?", respondeu a matreira raposa. "Vem aí a mais terrível seca de
toda a história do Nordeste. Saltei aqui no fundo deste poço e guardarei a água que bro-
tar só pra mim. Mas, se você quiser, como é meu compadre, pode me fazer companhia."
Sem pensar duas vezes, o bode saltou também no fundo do poço. A raposa, imediatamen-
te, trepou-lhe nas costas, apoiou-se num dos chifres do bode e saltou fora do poço, gri-
tando: "Adeus, compadre!" moral: JAMAIS CONFIE EM QUEM ESTÁ EM DIFICULDADE.
LINGUAGEM DO TEMPO EM QUE OS ANIMAIS FALAVAM: A BAPOSA E 0 RODE Por UIT1 azino
do destar, uma rapiu caosa num pundo profoço, do quir não consegual saiu. Um rode, passi

por alando, algois tum depempo, e vosa a rapendo, foi mordade pela curiosidido: "Comosa
rapadre, que esti fazá aendo?" "Voção ente são nabe?", respontreira a maposa radeu. "Vai
em a mais terreca sível de toda histeste do Nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guar-
darei a ar que brotágua sim pra mó. Mas, se vocer quisê, como é mau compedre, per me

fazia companhode." Sem pensezes duas var, o bem saltode tambou no i isbnbs-oi-ows-7
pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoifre
num dos chodes do bou-se e salfoço foco do porá, gritando: "Adadre,
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compeus!" moral: JAMIE CONFAIS EM QUÁ ESTADE EM DIFICULDEM. [j

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