3ª
Carta
a
Inês
de
Praga
Fr. Marcos R. Rocha de Carvalho, OFMCap.
Piracicaba-SP, 12 de agosto de 2015
Introdução
Esta carta deve ser de 1238. Aos 9 de fevereiro de 1237, Gregório IX
publicou o decreto "Licet velut ignis", impondo a todos os mosteiros da
Ordem de São Damião total abstinência de carne, a exemplo dos
cistercienses. A confusão foi grande. Sabendo que em São Damião as
normas eram diferentes, Inês pede a orientação de Clara. Mas a Santa
parece estar incluindo outro assunto, relacionado com a bula papal "Pia
credulitate tenentes", de 15 de abril de 1238, em que Gregório IX tinha
aceitado a renúncia de Inês ao hospital de São Francisco para se entregar
com suas Irmãs à vida de contemplação. Clara se aprofunda em magníficas
considerações sobre a vida de contemplação e de pobreza e sobre sua
missão na Igreja. Em todo caso, a carta deve ser anterior ao conhecimento
de Clara de que, no dia 11 de maio de 1238, Gregório IX, impôs a Inês a
regra hugoliniana. Antes disso, ela observou as normas de São Damião e
até pediu uma Regra própria, para a qual queria as orientações de São
Francisco sobre o jejum.
Fr. Marcos Roberto Rocha de Carvalho, OFMCap. - 2
3ª Carta a Inês de Praga
1,2Clara,humílima e indigna servidora de Cristo e serva das
damas pobres, à reverendíssima senhora em Cristo, sua irmã
Inês, a mais amável de todos os mortais, irmã do ilustre rei
da Boêmia e, agora, irmã e esposa do sumo Rei dos céus.
Desejo-lhe as alegrias da salvação e o melhor que se possa
desejar no autor da salvação.
3Tenho a maior alegria e transbordo com a maior
exultação no Senhor ao saber que está cheia de vigor, em
boa situação e obtendo êxitos no caminho iniciado para
obter o galardão celeste. 4Ouvi dizer e estou convencida de
que você completa maravilhosamente o que falta em mim e
nas outras Irmãs para seguir os passos de Jesus Cristo pobre
e humilde.
Fr. Marcos Roberto Rocha de Carvalho, OFMCap. - 3
5Eu me alegro de verdade, e ninguém vai poder roubar-me
esta alegria, 6porque já alcancei o que desejava abaixo do céu:
vejo que você, sustentada por maravilhosa prerrogativa de
sabedoria da própria boca de Deus, já suplantou impressionante
e inesperadamente as astúcias do esperto inimigo: o orgulho
que perde a natureza humana, a vaidade que torna estultos os
corações dos homens. 7Vejo que são a humildade, a força da fé
e os braços da pobreza que a levaram a abraçar
o tesouro incomparável escondido no campo do mundo e dos
corações humanos, com o qual compra-se aquele por quem
tudo foi feito do nada. 8Eu a considero, num bom uso das
palavras do Apóstolo, auxiliar do próprio Deus, sustentáculo dos
membros vacilantes de seu corpo inefável.
9Quem vai me dizer, então, para não exultar com tão
admiráveis alegrias? 10Por isso, exulte sempre no
Senhor também você, querida. 11Não se deixe envolver pela
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amargura e o desânimo, senhora amada em Cristo, gozo dos
anjos e coroa das Irmãs.
12Ponha a mente no espelho da eternidade, coloque a
alma no esplendor da glória. 13Ponha o coração na figura da
substância divina e transforme-se inteira, pela
contemplação, na imagem da divindade.
14Desse modo também você vai experimentar o que
sentem os amigos quando saboreiam a doçura escondida,
que o próprio Deus reservou desde o início para os que o
amam. 15Deixe de lado tudo que neste mundo falaz e
perturbador prende seus cegos amantes e ame totalmente
o que se entregou inteiro por seu amor, 16aquele cuja beleza
o sol e a lua admiram, cujos prêmios são de preciosidade e
grandeza sem fim. 17Falo do Filho do Altíssimo, que a
Virgem deu à luz permanecendo virgem depois do parto.
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18Prenda-se à sua dulcíssima Mãe, que gerou tal Filho que os
céus não podiam conter, 19 mas que ela recolheu no pequeno
claustro do seu santo seio e carregou no seu regaço de menina.
20Quem não tem horror das insídias do inimigo do homem
que, pela tentação de glórias passageiras e falazes, tenta
aniquilar o que é maior do que o céu? 21Pois é claro que, pela
graça de Deus, a mais digna das criaturas, a alma do homem
fiel, é maior do que o céu. 22Pois os céus, com as outras
criaturas, não podem conter o Criador: só a alma fiel é sua
mansão e sede. E isso só pela caridade que os ímpios não têm,
pois, 23como diz a Verdade: Quem me ama será amado por
meu Pai, e eu o amarei, e nós viremos a ele e nele faremos
nossa morada.
24Assim como a gloriosa Virgem das virgens o trouxe
materialmente, 25assim também você, seguindo seus passos
(cfr. 1Pd 2,21), especialmente os da humildade e pobreza, sem
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dúvida alguma, poderá trazê-lo espiritualmente em um corpo
casto e virginal. 26Você vai conter quem pode conter você e todas
as coisas, vai possuir algo que, mesmo comparado com as outras
posses passageiras deste mundo, será mais fortemente seu.
27Nisso enganam-se certos reis e rainhas deste mundo: 28sua
soberba pode chegar ao céu e sua cabeça pode tocar as nuvens
mas, no fim, serão reduzidos ao esterco.
29Quanto às coisas sobre as quais você pediu a minha opinião,
30acho que posso responder o seguinte. Você pergunta que
festas nosso glorioso pai São Francisco nos aconselhou a celebrar
especialmente, pensando, se entendi bem, que é possível variar
os pratos.
31Em sua prudência você certamente saberá que, com
exceção das fracas e das doentes, para quem exortou-nos e até
mandou usar de toda discrição possível com respeito a qualquer
alimento, 32nenhuma de nós que fosse sadia e forte deveria co-
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mer senão alimentos quaresmais, tanto nos dias feriais como
nos festivos, jejuando todos os dias, 33com exceção dos
domingos e do Natal do Senhor, em que deveríamos comer
duas vezes.
34Também nas quintas-feiras, em tempo ordinário, fica à
vontade de cada uma; quem não quiser não é obrigada a
jejuar. 35Mas nós, sadias, jejuamos todos os dias, exceto nos
domingos e no Natal. 36Mas não somos obrigadas ao jejum,
de acordo com um escrito do beato Francisco, por todo o
tempo da Páscoa e nas festas de Santa Maria e dos santos
Apóstolos, a não ser que essas festas caiam em sexta-feira.
37Mas, como disse, as que somos sãs e fortes sempre
comemos alimentos quaresmais.
38Entretanto, como não temos carne de bronze nem a
robustez de uma rocha, 39pois até somos frágeis e inclinadas a
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toda debilidade corporal, 40rogo e suplico no Senhor, querida,
que deixe, com sabedoria e discrição, essa austeridade
exagerada e impossível que eu soube que você empreendeu,
41para que, vivendo, sua vida seja louvor do Senhor, e para
que preste a seu Senhor um culto racional e seu sacrifício seja
sempre temperado com sal.
42Eu lhe desejo tudo de bom no Senhor, como desejo a
mim mesma. Lembre-se de mim e de minhas Irmãs em suas
santas orações.
Fr. Marcos Roberto Rocha de Carvalho, OFMCap. – 8
referência
PEDROSO,
José Carlos Corrêa.
Fontes Clarianas.
4. ed. Piracicaba:
Centro Franciscano
de Espiritualidade,
2004. p. 51-54.
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