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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Tuxped Serviços Editoriais (São Paulo - SP)
C957q Cruz, Amália Catharina Santos (coord.).
Quantas histórias têm as cartas de quem ousa se anunciar?: pedagogias feministas e
epistemologias decoloniais / Coordenadora: Amália Catharina Santos Cruz;
Organizadoras: Zuleide Paiva da Silva, Ana Lúcia Gomes da Silva e
Maria Lizandra Mendes de Sousa.
1. ed. – Campinas, SP : Pontes Editores, 2024; figs.; fotografias.
Inclui bibliografia.
ISBN 978-85-217-0461-4.
1. Educação. 2. Feminismo. 3. LGBTQIAPN+’s.
I. Título. II. Assunto. III. Coordenadora. IV. Organizadoras.
Bibliotecário Pedro Anizio Gomes CRB-8/8846
Índices para catálogo sistemático:
1. Feminismo / Emancipação da mulher. 305.42
2. Educação. 370
3. Biografias e autobiografias de mulheres. 920.72
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Editoração: Eckel Wayne
Capa: Acessa Design
Revisão: Zélia Guerra
Conselho Editorial:
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Impresso no Brasil 2024
SUMÁRIO
EXPERIÊNCIAS-EXPERIMENTOS, REABRINDO AS PORTAS DO S
ERAGIR FEMINISTAS: APRESENTANDO A COLETÂNEA?!..............9
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
Maria Lizandra Mendes de Sousa (Liz Mendes)
Amália Catharina Santos Cruz
GINGAS 1 - TRAJETÓRIAS EM LUTAS FEMINISTAS
CARTA DE UMA VELHA FEMINISTA ACADÊMICA PARA AS NOVAS
GERAÇÕES DE FEMINISTAS............................................................19
Cecilia M. B. Sardenberg
DOCÊNCIA FEMINISTA RECORDADA: CARTA-TRIBUTO A ANA
ALICE ALCÂNTARA, PRESENTE!! ....................................................75
Zuleide Paiva da Silva (Eide Paiva)
Ana Lúcia Gomes da Silva
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
GINGAS 2 - CARTAS PEDAGÓGICAS FEMINISTAS:
ESCRITAS IN(TER)VENTIVAS
CARTA PARA UMA PROFESSORA MUITO AFETUOSA E INSPIRADORA.91
Vitalina Silva
CARTA ABERTA À CONCEIÇÃO EVARISTO: PALAVRAS QUE
ABRAÇAM, DENUNCIAM, ANUNCIAM E INSPIRAM.....................101
Andréia Bispo Santos
Bianca Dias de Souza
Juciane Pacheco de Almeida Pacheco
Maria Leandra Brandão Santos
A TODAS AS MINHAS ALUNAS, ESPECIALMENTE ÀS
ALUNAS NEGRAS............................................................................115
Marcelo Alves Pinto
CARTA-MOVIMENTO: O FEMINISMO NEGRO COMO POSSIBILIDADE
DE (AUTO)CONHECIMENTO NO AMBIENTE ACADÊMICO..........129
Eliane Costa da Silva
Maricéia Pereira de Novais
ESCREVIVÊNCIAS MPEDIANAS DE DUAS MULHERES NEGRAS.....145
Eliete Fagundes
Luciana Dias Ribeiro
CARTA SÁFICAS..............................................................................169
Ana Cláudia Macedo
Suely Aldir Messeder
MANIFESTO SAPATÃO: UMA PROVOCAÇÃO ESCREVIVENTE
NECESSÁRIA DAS PRIMEIRAS VEZES..............................................189
Maria Lizandra Mendes de Sousa (Liz Mendes)
CARTA PARA O FUTURO EX-MORADOR “DO ARMÁRIO”!..........213
Sara Wagner York
Vércio Gonçalves
O RESPEITO TRANSFORMA!...........................................................219
Cinthia Pacheco Xavier Araújo
Cynthia Almeida dos Santos
Josenilda Correia Vieira
EU VOU APRENDER A LER PARA CONVIDAR MINHAS CAMARADAS:
UMA CARTA-CONVITE PARA MULHERES PROFISSIONAIS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA.......................................................................229
Nara Paixão Sacramento
Rosana Mercês Santos
Rozane da Conceição Silva Costa
CARTA-POESIA PARA TODES PROFESSORUS DA REDE PÚBLICA
DE ENSINO......................................................................................245
Yasmim Araújo do Nascimento
Estefane Mendes da Silva
CARTA ABERTA: FEMINISMOS NO TEMPO PRESENTE – HOMENAGENS
AO PASSADO E LUTAS PARA O FUTURO......................................257
Ana Paula Neves Lins
Andressa Ferreira
Gabriela Carneiro Maciel
ENSINAGENS DO BARCO EPISTEMOLÓGICO DAS PEDAGOGIAS
FEMINISTAS E DECOLONIAIS ........................................................273
Elizangela Bastos
Dailza Araújo
Clarice da Silva Coelho
CARTA-POEMA: DAS MEMÓRIAS DE SI ÀS RODAS-GINGAS........283
Ana Luísa Barbosa de Castro
Elaine Rodrigues Santos Santiago
Kelline Roberta Ferreira do Nascimento
PEDAGOGIA FEMINISTA E EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS:
BÚSSOLA ORIENTADORA DE BARCOS À DERIVA........................295
Maria Beatriz Dias Coutinho
GINGAS 3 - ARTISTAGENS MULTILINGUÍSTICAS DO
COMPONENTE CURRICULAR PEDAGOGIAS FEMINISTAS E
EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS
CARDS-ARTES DOS ENCONTROS DO COMPONENTE CURRICULAR PEDA-
GOGIAS FEMINISTAS E EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS (2023.2).........309
CARDS-ARTES DOS CARTÕES POSTAIS PEDAGÓGICOS FEMINISTAS....313
(DES)COLAGEM FEITA POR LIZ PARA ...........................................323
AS RODAS GINGAS........................................................................323
CARDS-ARTES OUTROS .................................................................329
SOBRE AS/ES/OS AUTORAS/US/E ...................................................331
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
EXPERIÊNCIAS-EXPERIMENTOS, REABRINDO
AS PORTAS DO SERAGIR FEMINISTAS:
APRESENTANDO A COLETÂNEA?!
Queridas/es/os leitoras/us/es, a Coletânea Quantas histórias
têm as cartas de quem ousa se anunciar? Pedagogias Feministas
e Epistemologias Decoloniais é mais uma publicação fruto dos
enlaces tecidos pelo componente “Epistemologias Feministas
e Epistemologias Decoloniais”, ofertado no semestre 2023.2, na
modalidade on-line pelo Programa de Pós-graduação em Educação
e Diversidade (PPGED), na Universidade do Estado da Bahia, nos
Campus IV/Jacobina e XIV, em Conceição do Coité.
É um contínuo de possibilidades epistemológicas tecidas
desde a sua primeira aparição “Experiências (Auto)Formativas
Diarizadas na Educação Universitária: Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais”, em que polifonias feministas foram
costuradas a partir do diário de pesquisa-bordo para (re)pensar
outros caminhos, modos e formas de ensinagens-aprendizagens-
-experiências, bem como performatizar um escrever-pesquisar nos
enlaçamentos com o corpo que cria brechas, fendas e perfurações,
ou seja, corpoescrevepesquisasente. Aqui, neste movimento de
acontecimentos da sua segunda aparição é também movido por
uma rede de afetospolíticoséticos.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
As experiências-experimentos-aprendizagens, mais uma
vez, são o fio condutor das narrativas que as Cartas eviden-
ciam. Narrativas essas resultado da imersão proposta pelo
componente que traz como metodologia a Roda de Conversa,
um dispositivo que produz a circularidade dos conhecimentos
trazidos e compartilhados na roda, na perspectiva de uma gira
gingada. A interseccionalidade é a base que traduz o entrecru-
zamento dos feminismos que produzem as rupturas históricas,
sociais e culturais fazendo frente ao conhecimento hegemônico
de base iluminista, eurocêntrico fortemente confrontado pelas
epistemologias decoloniais.
A interseccionalidade, enquanto conceito, é apreendida
como uma ferramenta analítica relevante para a elaboração
discursiva e percepção das hierarquias de poder que estruturam
relações desiguais de raça, gênero, classe, deficiências, entre
outros, perceptível nos espaços formais de educação, como
também nas relações sociais de uma maneira em geral (Collins;
Bilge, 2021). Assim, as experiências-experimentos-aprendiza-
gens trazidos para a roda por professoras/us/es-extensionistas-
-ativistas estão colocadas nas Cartas Pedagógicas que traduzem
suas experiências e perspectivas em relação à produção de um
conhecimento emancipatório atento aos mecanismos de re-
produção da dominação patriarcal, racial, capitalista e sexual
na perspectiva da luta por justiça social e pela democracia e,
principalmente pela luta anticapitalista, tendo como base a
luta das mulheres, por entendermos que sem a emancipação
total das mulheres, as opressões continuarão.
As Cartas Pedagógicas anunciam as/us/os leitoras/us/es,
uma escrita de si, mas não só. Partindo da noção de radicali-
dade freiriana (Freire, 2000) quanto a sua compreensão que a
escrita é um exercício epistemológico e uma tarefa eminente-
mente política e ética. As Cartas trazem discursos que podem
ser reconhecidos a partir de seus lugares nos mais variados
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
espaços de sociabilidade, luta e resistência, ancoradas por uma
perspectiva feminista, antirracista, antilgbtfóbica. As Cartas
nos possibilitam uma leitura situada, sem neutralidade, onde
as subjetividades e a materialidade são evocadas e reconhecidas
como potencial de análise e de produção de conhecimentos.
As Cartas Pedagógicas, como as escritas por Paulo Freire, são
um exercício epistemológico e uma tarefa também política. Nelas,
as palavras/pensamentos que chegam as/aos destinatárias/os,
refletem suas preocupações com a educação e suas possibilidades
transformadoras. As Cartas Pedagógicas, que compõem essa cole-
tânea, confrontam desse modo, os discursos essencialista, biolo-
gista, tecnicista-, pilares de uma ciência andocêntrica, indagando
o conhecimento e o seu fazer hegemônico, masculino, ocidental e
branco, encarnado na figura “do conhecedor” (Mackinnon, 2013).
Essa perspectiva também freiriana de crítica à desumanização,
produzida por uma ciência positivista/andocêntrica, nos dá a di-
mensão de um fazer científico comprometido com o pensamento
crítico e libertador.
Aliados a essa perspectiva, das Cartas Pedagógicas que
compõem essa coletânea, emergem conhecimentos contextuais,
parciais, situados e corporizados que estabelecem conexões, par-
tilhas e traduções entre diferentes localizações (Haraway, 1995).
Como postulado por Donna Haraway, o olhar descorporizado
sobre outros corpos em posições menos privilegiadas evidencia
sistemas e práticas de dominação que terminam por definir níveis
de visibilidade/exclusão das/es/os sujeitas/us/os.
Na perspectiva desse olhar corporizado sobre a forma de
ser educadora e o compromisso político com a transformação
social, os escritos encarnados de bell hooks (2020), como as
Cartas Pedagógicas dessa coletânea, também se encontram.
Em seu livro Ensinando pensamento crítico, bell hooks quer
comunicar as/es/aos leitoras/us/es, a partir de sua experiência
como mulher negra, a realidade cultural e institucionalizada
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
de hierarquias e preconceitos, baseada nas condições de classe,
raça e gênero. Sob a influência de Freire, as reflexões contidas
nesse livro foram constituídas a partir de diálogos realizados
com professores e estudantes ao longo de sua prática como
educadoras e educadores. Nesse sentido, pensa a autora, a es-
cola como espaço de formação não deveria ser um lugar onde
os estudantes “são doutrinados para apoiar o patriarcado ca-
pitalista, imperialista, supremacista branco, mas sim um lugar
onde aprendem a abrir suas mentes e se engajem em estudos
rigorosos, para pensar criticamente” (hooks, 2020, p. 18).
O componente Epistemologias Feministas e Epistemolo-
gias Decoloniais, ao propor partir da experiência-experimento-
-aprendizagens, das/os educadoras/es convidadas/os que fizeram
girar a roda de conversa durante o semestre, proporcionou as/aos
professoras/es discentes, a possibilidade de confrontar as suas
experiências-experimentos-aprendizagens vivenciados em espa-
ços formais e não formais de educação, com conhecimentos que
rasuram a existência acomodada pela lógica heterocispatriarcal,
capitalista, racista, capacitista, entre outros que hoje, em razão
do avanço do pensamento fundamentalista cristão e de extrema
direita, ameaçam a existência de corpos dissidentes não confor-
mados a essa lógica.
Os espaços formais de educação, em especial, têm se tor-
nado uma arena de disputa entre o pensamento emancipador e
democrático e ideologias ultraconservadoras. Nesse sentido, as
Cartas Pedagógicas emergem como possibilidade de construção
de outras narrativas sobre o mundo social alicerçada em produ-
ções no campo da educação, que trazem como base o pensamento
feminista, negro, anticapitalista, transfeminista, lesbofeminista,
anticapacitista, ambientalista etc.
Nas giras que gingaram nas conversas o convite foi feito:
“Vamos fazer uma escritarizomacorporificada para pessoas que
desejamos com todos os sentidos chamar para a roda da vida
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
viva, a partir de cartas”. Um convite em doses extravagantes de
ser-fazer-sentir-partilhar amor, impulsos que puxam fios de ver-
dades transitórias, que recusam o controle opressor e, assim, de
sol a sol, de vidaemvidaemnós, dorme para pensar-caminhar em
sonhos. Um chamamento de amor para existir variando-se emsie-
mnós, dizendo com o corpo todo aberto sim à vida, a embriaguez
de brincar sentindo os erros da felicidade e pulsando os fluxos das
inquietudes provocadas dos possíveis-sensíveis.
Em amor embriagado de experiências do ser sonhante, que
convoca a vida para uma dança corpoacorpo, sentindo os cheiros e
os sabores do xote em chamego e muito dengo, a obra é dividida em
três ritmos. Na chegância, tem-se uma canção de luta e resistência
feminista em que as trajetividades teorizadas de professoraspes-
quisadorasfeministas, intitulado “Gingas 1 - Trajetórias em lutas
feministas”, onde as autoras nos convocam para continuar na luta
e a acreditar no que nos motiva a sonhar, atravessando cotidiana-
mente os dias violentos, a partir de uma base conceitual densa e
situada historicamente. Um convite para continuar tecendo redes
de afetividades construídas pela ética feminista.
Passos, dois para cá e dois para lá, lambidas feministas, vêm-
-se o segundo ritmo da coletânea intitulada de “Gingas 2 - Cartas
Pedagógicas Feministas: escritas in(ter)ventivas”. Aqui vocês,
leitoras/us/es, encontrarão palavras caídas, levantadas, expostas
em bandejas de denúncias, pronunciadas no desejo ardente dos
feminismos e da interseccionalidade, e que as salas de aula sejam
cada vez mais povoada pelas diferenças em suas potencialidades,
celebrando o bem-viver, a vida viva. Sentindo o arrepio no cangote,
correspondências sendo passadas na medida em que memórias
escritas nos falam que, para ter justiça epistêmica, política e ética,
tem-se que justiça social. Histórias de duasemtantas que ramificam
em nós. Corpoacorpo, manifesto das primeiras vezes para embalar
as fomessedes de permanecer em vida, festejando os amores e
sentindo os sabores dos chás de memórias.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Portas sendo abertas. Passos entortados devagar. Respiros
de alívio e convite amorosos e repletos de vida para orgulhar-se
de quem se é. No chamego e na intensidade de vivenciar cami-
nhos seus, venha experienciar com sorrisos sua autenticidade.
Em noites de lembranças, tributos aos amores em vida foram
chamados para uma dança de reconhecimento das experiências-
-experimento das ensinagens-aprendizagens. O desejo das
águas que escorrem nos corpos inspirados em sensações de
ocupação: ocupar o componente, ocupando a vida – tudoem-
nós. Em muitas poesias, fibras de sisal fizeram fluxos para os
sonhos povoarem mais a educação. Não esquecer as opressões
históricas e pensar em feminismos nas realidades sociais, a
partir das desobediências decoloniais. Nas derivas, territórios
de sentir foram acionados para rasurar a universalidade e po-
tencializar a pluralidade.
No terceiro ritmo, intitulado de “Gingas 3 - Artistagens
multilinguísticas do componente curricular Pedagogias Feminis-
tas e Epistemologias Decoloniais”, explosões de cores, sabores,
cheiros, amores e desejos nas bebidas poéticas de memórias e
afetações. Servindo-se em tonssons de sonhos, as artes em cor-
popalavras nos convidam a acordar, entrever os silêncios, deixar
os corposemqueda, brotar intimidades escondidas e acalmar as
pressas. Caminhar, entrar, festejar, sair, refazer e (re)inventar(se).
Vestindo-se os corpos em suas peles em devorações dos espa-
çostempos e em tremores, corposvivos pegados em pegâncias de
liberdades. Juntam-se e, assim, como o sol que lambuza o dia,
deixem-se em artes.
Com e sem pausas, desejamos que vocês, leitoras/us/es,
tenham encontros e reencontros com os corpospalavraspoéticos
que ousam continuar reivindicando sonhos nas experiências-
-experimentos nos espaçostempos de ensinagens-aprendizagens
e, também, no devir da vida. Lambuzem-se com as cartas textos
encarnados e sem pedir licença, façam-se neles. Esperamos que
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
possam encontrar-se neles e juntes avançarmos em uma com-
preensão de mundo que rompa com as barreiras impostas pelo
sistema do capital e todas as suas formas de opressão. Portanto,
nos vistamos de cores e sintamos os amores que nos enredam
pela vida vivida, repleta de experiências que nos constituem e
nos fazem mais humanes. Desejamos uma excelente leitura por
esse mundo que se abre!
Das águas dos espaçostempos em poéticas.
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
Maria Lizandra Mendes de Sousa (Liz Mendes)
Amália Catharina Santos Cruz
Universidade do Estado da Bahia
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GINGAS 1
TRAJETÓRIAS EM LUTAS
FEMINISTAS
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA DE UMA VELHA FEMINISTA ACADÊMICA
PARA AS NOVAS GERAÇÕES DE FEMINISTAS
Cecilia M. B. Sardenberg
NEIM/UFBA
Queridas Companheiras:
Recentemente, completei meus setenta e seis anos de vida,
mais de cinquenta deles atuando como feminista em diferentes
campos de ação, sendo o espaço acadêmico, de produção de co-
nhecimento crítico feminista, o principal. Creio que nesse espaço
de tempo, que já se alarga por mais de cinco décadas, aprendi mui-
tas coisas, ensinei outras, refleti e escrevi bastante. Nesta carta,
compartilho com vocês alguns desses aprendizados e reflexões
que se desdobraram a partir de minhas vivências, tanto no espaço
doméstico quanto acadêmico, auxiliada por trechos “pescados”
em meu memorial de títulos, elaborado em 2016, para ascender
à Professora Titular de Antropologia da Universidade Federal da
Bahia - UFBA (Sardenberg, 2016).
Tal como me expressei ali, ao enveredar por esta “aventura de
contar-me” (Rago, 2013), fui me situando nos diferentes espaços
que cruzei, delineando minhas diferentes “posicionalidades” ne-
les, ou seja, como gênero, classe, raça, etnia, sexualidade, geração
e nacionalidade, dentre outros tantos marcadores sociais, se inter-
sectaram nesses diferentes contextos ao longo da minha trajetória,
ora me posicionando em diferentes situações de vulnerabilidade,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ora de usufruto de privilégios (Sardenberg, 2015). Isso tudo foi
me situando no mundo, construindo meu lugar para conhecê-lo
e produzir conhecimentos, pavimentando, assim, o traçar de uma
epistemologia feminista perspectivista, interseccional, pois como
bem aponta Patrícia Hill Collins (1991), a interseccionalidade não
forja apenas identidades específicas, mas também situa sujeitos
em uma perspectiva epistemológica.
Essa epistemologia se caracteriza como uma teoria crítica
feminista sobre o conhecimento, que autoriza e fundamenta um
saber que se quer politizado (Sardenberg, 2002), e que se afirma
como um saber situado - daí porque perspectivista, como proposto
por Nancy Hartsock (1987), Sandra Harding (1996, 1986), e Donna
Haraway (1995). E acrescento aqui, decolonial em dose dupla,
não só em termos de uma decolonização de influências externas,
como também de internas, sobretudo em relação ao Sul e Sudeste.
Conforme ressaltei em artigo anterior:
No Hemisfério Norte, observa-se a tendência a nos
colocarem - nós, feministas latino-americanas, todas
nós, feministas brasileiras, e todas as outras que não
cabem nos outros rótulos - na categoria Feministas
do Terceiro Mundo. Como se as nossas diferenças
culturais e sociais - de posicionalidade e, portanto,
de ângulos de visão ou “perspectivas” significativa-
mente diferentes - não tivessem a menor importância
epistemológica em um feminismo perspectivista.
[...] Se isso é verdade, então, o que dizer de nós, na
periferia da periferia? Refiro-me aqui a nós, feminis-
tas acadêmicas brasileiras, com nossos “fazeres cien-
tíficos” nos estados do norte e nordeste e, portanto,
longe dos próprios “centros acadêmicos” feministas
do país. Onde ficamos com a nossa perspectiva dupla-
mente periférica em um feminismo perspectivista?
(Sardenberg, 2002, p. 111).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Neste exercício, vou me deter mais nos momentos iniciais da
minha trajetória, estendendo-me só até fins dos anos 90, quando
terminei meu curso de doutorado. Vou ter que deixar o resto para
uma próxima carta (esta já será longa) - afinal, são mais de cinco
décadas de trabalho!
Mas ressalto aqui, desde o início, que na construção da
epistemologia na qual me apoio, os principais motores para o
meu despertar para o feminismo foram, por assim dizer, “cons-
trangimentos” sobre as desigualdades de gênero, o que ainda o
alimenta. Isso se iniciou nos anos 60, em meio às “sofrências” do
golpe militar de 1964, ano em que ingressei no curso científico (o
equivalente ao Ensino Médio atual), com a pretensão de estudar
Medicina. Meu interesse para tal, surgiu, inicialmente, por suges-
tão de um amigo meu, aluno da Escola Paulista de Medicina (hoje
UNIFESP), tornando-se ainda mais aguçada durante os jogos de
basquete entre a “Pauli” (pessoal da Paulista) e a “Poli” (Escola
Politécnica da USP), nos quais eu o acompanhava e ouvia a Bateria
51 cantando uma cantiga da Pauli que assim dizia: “Medicina,
Medicina, não é coisa pra menina”. Confesso que me senti ultra-
jada com essa cantiga e desafiada a ingressar em uma faculdade
de Medicina, chegando mesmo a me inscrever para o vestibular
da Universidade de São Paulo - USP (para entrar na famosa “Pi-
nheiros” de Medicina) e começar a fazer um cursinho para tal fim.
Mas veja, o destino me reservara outros caminhos. Em 1965,
em meio ao meu curso científico, concorri e fui premiada com uma
bolsa do American Field Service (hoje conhecido como AFS), para
fazer um intercâmbio de um ano, nos Estados Unidos da América.
Fui morar com uma família da qual permaneço próxima até os
dias de hoje, e estudar em um colégio de freiras, semelhante ao
colégio que frequentava em São Paulo. Ocorre, porém, que acabei
não cursando nenhuma das disciplinas que seriam demandadas
no vestibular de Medicina, vez que as oferecidas no colégio ame-
ricano eram menos avançadas do que as já cursadas por mim no
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Brasil. Sem esse reforço, senti-me bastante despreparada para
enfrentar o disputado vestibular, ou mesmo acompanhar as aulas
de um cursinho preparatório. O despreparo levou-me ao desinte-
resse. Desisti de prestar o temido exame, quase em cima da hora.
Acabei ingressando em um curso de letras, Inglês e Português, na
Faculdade Sedes Sapientiae, que depois foi incorporada à Ponti-
fícia Universidade Católica - PUC de São Paulo: tudo diferente
do planejado.
Reconheço, porém, que minha experiência no intercâmbio
foi fundamental, não apenas pelas amizades que ali selei e por ter
deslanchado meu inglês, mas também por ter contribuído para a
construção da minha consciência de gênero feminista. Diferente
do meu colégio no Brasil, me vi, ali, em uma escola mista, com
mais ou menos o mesmo número de rapazes e moças. Aos pou-
cos, conforme meu inglês foi melhorando, comecei a notar que as
mentes mais brilhantes eram as femininas, contudo, as lideranças
estavam todas nas mãos dos rapazes, sendo eles também os alunos
que mais se expressavam na sala de aulas! Isso me incomodou!
Ainda mais quando as colegas iam desistindo dos programas que
nossa turma de amigas fazia para os fins de semana, na medida em
que recebiam convites dos rapazes para um date, um programa de
casal. Ora, no Brasil, naquela época, saíamos com os namorados
sempre com turmas de amigas e, que eu me lembre, ninguém fi-
cava de fora. Ninguém largava a companhia das amigas para sair
só com o namorado!
Vale observar que estávamos vivendo nos anos 60, década em
que os movimentos feministas começavam a adentrar na arena
das lutas sociais e um novo discurso - um discurso feminista so-
bre valores e atitudes referentes às relações de gênero e direitos
das mulheres ganhava expressão. Betty Friedan (1963), uma das
precursoras dessa “segunda onda do feminismo” (a primeira acon-
tecera em torno dos anos 20, pelo direito ao sufrágio) publicara
seu livro A Mística Feminista, em 1963, falando do “mal que não
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
tem nome”, para expressar a insatisfação das mulheres com a sua
situação inferiorizada, fundando, em 1966, a National Organization
for Women - a NOW, organização do feminismo dito liberal.
Só fui ler seu livro em meados dos anos 70, mas os ecos desse
novo discurso que ela trazia já se faziam ouvir, permitindo-nos
reconhecer e nomear o mal-estar que sentíamos com a discri-
minação, com o machismo, ou seja, com a dominação patriarcal.
Em 1967, já estava de volta ao Brasil, cursando o primeiro
semestre de Letras no Sedes, obtendo boas notas e mantendo
sempre um bom convívio com as colegas e professoras. Contudo,
não consegui me interessar muito pelo curso. Na verdade, naquela
época de efervescência de manifestações contra a ditadura, estava
mais interessada em participar das mobilizações estudantis que
se avolumavam então por todo o Brasil, particularmente contra
os acordos MEC-USAID. Acreditávamos que o objetivo maior
desses acordos era a fragmentação dos nossos cursos, de sorte a
dificultar a articulação e organização de estudantes. Lembro-me,
em especial, de uma passeata de protesto em frente ao Consulado
dos Estados Unidos, então operando no Conjunto Nacional, na
Avenida Paulista, em São Paulo, onde funcionavam, também, dois
cinemas: o Rio e o Astor. Quando a polícia chegou para desbara-
tar nossa manifestação, corri com mais duas outras colegas para
o Cine Astor onde estava passando o filme “Quem tem medo de
Virginia Woolf?”. Ficamos lá sentadas por duas sessões, mas só
me recordo de ter assistido ao filme, de fato, anos depois, tal era
meu medo de ser pega pela polícia!
Todavia, o pior foi voltar para casa e encontrar minha mãe
desesperada, certa de eu ter sido presa - dois ou três casos dessa
ordem já haviam acontecido na família. E depois, é claro, lidar
com as restrições impostas em relação à minha participação em
futuras manifestações. Confesso que ficou difícil. Some-se a isso
a visita nas férias de julho de meu namorado americano, que fora
convocado para servir nas forças armadas e estava vivendo em
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uma base aérea na Carolina do Sul, podendo ser enviado a qual-
quer momento para um “tour” na Guerra do Vietnã! Resultado:
noivamos no final de julho, antes de seu retorno à base; e eu
desisti do Curso de Letras. Casei-me em dezembro de 1967, aos
dezenove anos, ficando no aguardo da papelada da imigração para
me mudar para os Estados Unidos, mas com a firme intenção de
voltar a estudar.
Só consegui viajar na segunda semana de abril de 1968, pouco
depois da missa de sétimo dia do estudante secundarista, Edson
Luís de Lima Souto, assassinado pela polícia da ditadura em 29
de março, no Restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, missa
essa realizada na Igreja da Candelária, no dia 4 de abril. Nesse
mesmo dia, também o líder do movimento pelos Direitos Civis dos
negros, nos Estados Unidos, o Reverendo Martin Luther King Jr.,
era assassinado em Memphis, Tennessee, o que veio a provocar
repetidas manifestações de protesto (riots) nos bairros negros das
principais cidades do país.
Cheguei à Atlanta, na Geórgia, para fazer conexão em direção
à Columbia, Carolina do Sul, em 8 de abril de 1968, na noite an-
terior ao sepultamento do Reverendo King, também em Atlanta.
O aeroporto fervilhava de gente, muitos chorando ou com o sem-
blante entristecido, gente vinda de diferentes cidades americanas
e de outros países para a cerimônia do dia seguinte.
Para me buscar no aeroporto, em Columbia, meu marido fora
obrigado a obter uma autorização especial com seu comandante,
haja vista a ordem de toque de recolher emitida pela polícia do
Estado em consequência das justas manifestações de luto e pro-
testos pelo assassinato do Reverendo King. E, de fato, por todo o
trajeto de cerca de 90 km, do aeroporto em Columbia, até a Shaw
Air Force Base (Shaw AFB), em Sumter, vimos fogo, manifestações
e confrontos com a polícia. Fomos parados várias vezes pela polícia
no trajeto, sendo obrigados a mostrar, a cada parada, a autorização
do comandante para estarmos na estrada e chegarmos a Sumter.
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Já era, pois, madrugada quando finalmente chegamos ao
“parque de trailers” (trailer park), que seria minha nova moradia
pelos próximos seis meses. Assim, só na manhã seguinte, à luz do
dia, pude me dar conta dos arredores. E foi um choque constatar
que, aquilo antes imaginado como “romântico” - morar em um
trailer em uma base aérea - se traduzirá em morar em um caixote
de metal, com cômodos interligados e bastante espremidos, es-
tacionado em um lote com chão de terra batida, em frente à base
aérea, e do outro lado da estrada que levava a Sumter, ou seja, on
the wrong side of the tracks.
Com efeito, apesar de o nosso pequeno trailer azul ser ro-
deado por lindas roseiras e sombreado por uma frondosa árvore,
logo descobri que morar em um trailer era pertencer a uma das
camadas menos prestigiadas da sociedade americana, um status
social identificado como trailer trash. Na verdade, enquanto na
cidade em que eu vivera antes nos Estados Unidos como estudante
do AFS, eu havia sido paparicada em minha escola - fui rainha
das missões e uma das princesas na Homecoming Court - minha
situação em Sumter, principalmente na Shaw AFB, era totalmente
oposta. Ser estrangeira, brasileira, latino-americana não era ali
algo a ser celebrado. Eu era apenas mais uma “esposa de soldado
estrangeira” e, acrescente-se, não branca, por ser latina, e morava
agora em um trailer park. Em pouco mais de 24 horas, portanto,
eu despencara vários degraus na pirâmide social. Uma experiência
que contribuiu significativamente para a construção, em tempo,
de uma epistemologia perspectivista, interseccionada, no meu
pensar (Sardenberg, 2002).
A Shaw AFB era uma das maiores bases aéreas nos Estados
Unidos e incluía uma área residencial, mas só para oficiais e
pessoal de carreira e suas famílias. Na época em que vivia ali, os
demais militares moravam na cidade (a 13,5 km da base) ou nos
parques de trailers que circundavam a base, como aquele em que
fui residir. Ali viviam casais jovens, como nós; alguns, com filhos
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pequenos, famílias de pessoal alistado sem patente. Logo que
cheguei, fiz amizade com algumas das jovens esposas que não
trabalhavam fora de casa, mas não consegui me adaptar muito
bem ao seu ritmo de vida: dar conta das tarefas domésticas pela
manhã, para nos reunirmos no trailer de uma ou de outra e passar
a tarde juntas, assistindo soap operas (novelas) na televisão.
Acostumada a morar em São Paulo e a circular pela cidade
com as colegas de faculdade, sentia-me tolhida morando em um
lugar longe de tudo e sem transporte. E sem transporte, porque,
apesar de termos um carro, eu não podia dirigir vez que minha
carteira de motorista do Brasil logo perdeu sua validade e não
pude tirar uma carteira local, por força da “ordem patriarcal de
gênero” e geracional: eu era mulher, com menos de 21 anos, e
precisava da autorização do pai (que devia ser residente local) ou
do marido (que também deveria ter mais de 21 anos) para poder
me inscrever. Fato outro que contribuiu, é claro, para o engendrar
de minha consciência feminista.
Para escapar das tardes em frente à televisão ou lendo sozi-
nha em casa, passei a frequentar a biblioteca da base. Foi assim
que vim a conhecer ali Margaret Mead (1963; 1935) lendo Sexo e
Temperamento, que me despertou para a antropologia, bem como
Simone de Beauvoir (1949), que me encantou com O Segundo Sexo,
e me levaria, em tempo, para o feminismo. Anos mais tarde, escre-
vi um artigo dedicado às duas sob o título “Um diálogo possível
entre Margaret Mead e Simone de Beauvoir”, no qual dou asas à
imaginação criando uma ficção científica, ao utilizar trechos de
suas obras para construir um diálogo imaginário entre as duas
(Sardenberg, 2000).
Mas, naquela época, ler Simone de Beauvoir me fez ver que
seria impossível, para mim, crescer como pessoa se continuasse
na total dependência em que me encontrava. Consegui, então,
convencer meu marido que precisávamos nos mudar para a cidade
para eu poder trabalhar, ajudar nas despesas, quem sabe voltar a
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estudar. E foi assim que fomos morar em uma casinha na cidade,
e eu consegui trabalho como comerciária em uma loja de roupas
femininas em um Shopping Center.
Foi meu primeiro emprego (em São Paulo, eu dava aulas
particulares de inglês) e, também, a primeira vez que sofri assédio
moral. Eu trabalhava, normalmente, das 9 às 18h., dependendo
do transporte público para chegar ao trabalho. Pegava o ônibus
das 8h para chegar no horário, chegando sempre meia hora antes
de bater o ponto. Um dia em que chovia muito, atrasei em sair
de casa e acabei perdendo o ônibus das 8h.; peguei o das 8:30h.,
chegando para bater o ponto às 9:10h., ou seja, dez minutos atra-
sada. Por azar, nesse dia, a supervisora regional, cujo nome eu
enterrei há muito tempo, estava lá. Nem bem fui chegando, toda
molhada pela chuva, ela começou a gritar comigo, não me dando
a menor chance de explicar o atraso, tampouco permitindo que a
gerente da loja pudesse retrucar dizendo que eu chegava meia hora
antes todos os dias! Mas minha raiva maior foi de mim mesma:
chorar incontrolavelmente e deixar que aquela mulher horrível
me humilhasse daquela forma! No mesmo dia, no meu horário
de almoço, saí de lá e consegui emprego na Woolco’s Department
Store (subsidiária da Walmart), que ficava no mesmo Shopping
Center, pedindo minhas contas na loja de roupas femininas assim
que voltei do almoço!
A Woolco’s era uma grande loja de departamentos, e fui
trabalhar no balcão de joias; na verdade, uma franquia de outra
empresa funcionando dentro da Woolco’s. Além de ser responsável
pelas vendas, eu tinha que aprender a tirar e a colocar pulseiras
de relógio e aumentá-las e diminuí-las de acordo com o braço do
freguês ou freguesa e, o pior, era obrigada a limpar as pratas que
ficavam sempre dispostas em um balcão ao lado. Resultado: até
hoje tenho ódio de enfeites de prata!
Mas trabalhar na Woolco’s foi uma importante aprendizagem.
Nos horários de descanso (15 minutos de manhã e 15 à tarde) e de
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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almoço, havia sempre outras funcionárias na cantina de emprega-
dos, onde as conversas sobre trabalho, família, filhos e televisão
rolavam sem cessar. A maioria das pessoas que trabalhavam ali era,
de fato, composta por mulheres, algumas casadas com soldados da
aeronáutica e de fora, como eu. Contudo, grande parte das demais
era das classes trabalhadoras locais, filhas e esposas de operários
ou de pequenos proprietários rurais, quase todas brancas e, diga-se
de passagem, bastante preconceituosas, quando não abertamente
racistas e xenófobas.
Conforme mencionado anteriormente, para chegar ao traba-
lho eu dependia de transporte público, pegando sempre o ônibus
que rodava pela avenida principal. No ônibus, eu era geralmente
a única não negra. Minhas companheiras de trajeto eram quase
todas as faxineiras ou empregadas domésticas, em geral - tal
qual retratado no filme “Histórias Cruzadas”, exibido em nossas
telas em anos recentes. O trajeto até o Shopping era longo, com
tempo suficiente para conversas com companheiras de assento,
na maioria das vezes, sobre minha (estranha para elas) presença
no ônibus. Ao tomarem conhecimento de que eu era do Brasil,
ficavam curiosas por saber se, de fato, as relações raciais eram
diferentes na nossa suposta “democracia racial”, ainda que não
se expressassem exatamente dessa forma. Isso me levou a refletir
sobre a questão, abrindo meus olhos para, em tempo, reconhecer
a força do racismo entranhado na sociedade brasileira. Anos mais
tarde, eu iria compreender também que, andando naquele ônibus,
eu estava adentrando pelas “entranhas do monstro”, ao conhecer
mais de perto a vida das mulheres negras norte-americanas vi-
vendo no Sul dos Estados Unidos nos anos 60.
Nos últimos seis meses que passei em Sumter, South Caro-
lina, comecei a buscar meios de voltar a estudar, pensando em
ingressar no Campus local da University of South Carolina (USC).
Tratava-se de uma universidade pública, estadual, mas, como
todas as universidades públicas nos Estados Unidos, era paga, as
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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taxas de matrícula estando muito além das minhas possibilida-
des. Conversando sobre esse meu interesse com minha colega de
trabalho no balcão de jóias, que estudava na USC, fiquei sabendo
do grande déficit de professores/as, principalmente para escolas
de primeiro grau, que caracterizava aquele período na Carolina
do Sul, e da possibilidade de conseguir uma bolsa. Fiquei sabendo
também que, em virtude desse déficit, as escolas paroquiais es-
tavam aceitando estudantes como professores/as, muito embora
para se lecionar mesmo no primeiro grau fosse necessário ter um
curso de graduação.
Fui então conversar com o pároco da igreja perto de onde eu
morava, que tinha escola vinculada, descortinando-se a possibi-
lidade de dar aulas lá, contanto que eu voltasse a estudar - o que
pretendia fazer, mediante uma bolsa para futuros professores. No
entanto, nesse ínterim, meu marido recebeu ordens de relocação,
estipulando que se apresentasse na base aérea de San Francisco,
Califórnia, dentro de um mês, onde pegaria o avião para as Fili-
pinas, lá ficando até o fim do seu período de serviço militar na
Aeronáutica. Por tratar-se de uma área considerada como “zona
de guerra”, eu não poderia acompanhá-lo.
Pensei muito em permanecer em Sumter, seguindo meus
planos. Mas por força do custo de vida e do salário reduzido que
receberia na escola paroquial, bem como da pressão de familiares,
inclusive do meu próprio marido para que eu não “ficasse sozinha
em um lugar estranho” (condição de gênero!), acabei voltando
ao Brasil, indo morar com meus pais até que ele terminasse seu
período de serviço, nas Filipinas. Foram cerca de seis meses em
que eu fiquei em compasso de espera, não conseguindo adiantar
meus estudos nem encontrar trabalho fora das aulas particulares
de inglês, sentindo-me, por assim dizer, em um limbo, sem con-
trole do meu próprio destino.
Comecei assim a me preparar para prestar novo vestibular no
Brasil, mas com o retorno de meu marido das Filipinas, em janeiro
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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de 1970, voltamos para Decatur, Illinois, sua cidade natal, e onde
eu havia morado como estudante do AFS. Essa foi também uma
situação temporária, porquanto aguardávamos os resultados da
sua solicitação de matrícula na Southern Illinois University (SIU-
-E), na cidade de Edwardsville, além da resposta ao pedido da bolsa
do governo americano para veteranos - a tal de “GI Bill” - para
financiar seus estudos. Nesse meio tempo, comecei a trabalhar
em um banco, iniciando no “departamento geral”, que cuidava da
correspondência, passando depois por diferentes departamentos
como parte do meu treinamento para me tornar teller, uma caixa
de banco.
Esse período passado em Decatur mostrou-se bastante re-
velador no tocante ao habitus de classe de diferentes segmentos
da população local. Eu estava sempre em contato com minha
família americana, família com a qual eu havia morado durante
meu ano do AFS. Tratava-se de uma família de classe média
alta, apreciadora do bom e do melhor sem, contudo, cair no es-
nobismo ou consumismo. Ao contrário, os membros da família
tinham poucas peças de vestuário, mas eram de boa qualidade,
duradouras, o mesmo em relação aos carros que dirigiam. No
entanto, frequentavam o Country Club, moravam em bairro
nobre, passavam férias de inverno na Flórida e de verão no Lago
Michigan, e os filhos faziam faculdade em universidades priva-
das. Eram católicos, de origem irlandesa, mas abraçavam pers-
pectivas políticas ditas “progressistas”: um dos meus “irmãos”
foi um conscientious objector, ou seja, não serviu o exército por
convicções pacifistas, o outro integrou o Peace Corps (Corpo de
Voluntários da Paz), trabalhando por mais de três anos como
voluntário na Ilha de Truk, famosa para nós, antropólogas e
antropólogos, pelo trabalho de Ward Goodenough.
Já a família de meu marido, com a qual convivi bem de perto,
era de classe trabalhadora. Os pais eram divorciados e meu so-
gro trabalhava com britadeiras para o Departamento de Energia
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Elétrica de Illinois, perfurando o solo para instalar redes elétricas
subterrâneas na cidade. Ele morava em um trailer, mas dirigia um
carro imenso, luxuoso e não perdia um jogo de baseball do seu
time, não importando onde fosse o jogo. O marido de minha sogra
era operário da Caterpillar, uma indústria fabricante de tratores,
bastante ligado ao pessoal do sindicato, filiado ao AFL-CIO, uma
das maiores centrais sindicais dos Estados Unidos. Mas há de lem-
brar que os sindicatos norte-americanos naquele período (anos
60-70) não primavam por ideias progressistas.
Minha sogra era pentecostal, bastante devota, dedicando-
-se às funções da sua igreja, que lhe tomavam várias noites por
semana. Afora a igreja e a família, sua grande paixão eram as
yard ou garage sales (bazares), que aconteciam principalmente
na primavera, quando as famílias faziam uma limpeza geral em
suas casas e vendiam o que não mais queriam em liquidações,
com as peças (de roupas velhas a móveis ou até mesmo velhos
automóveis) expostas nos jardins ou garagens. Em geral, esses
bazares eram (e ainda são, creio eu!) marcados para os sábados,
com anúncios publicados nos jornais locais, atraindo muita
gente, especialmente mulheres em especial. Na verdade, eram
atividades menos rentáveis em termos monetários do que so-
ciais, ou seja, funcionavam mais como espaços de sociabilidade
para as mulheres de uma comunidade, tanto como vendedoras,
quanto compradoras.
E, de fato, eu frequentava esses bazares com minha sogra,
mais como diversão. Geralmente, saíamos cedo, com a listagem
dos anúncios publicados no jornal nas mãos, visitando quatro
a cinco casas em uma manhã. Minha sogra sempre encontrava
gente conhecida e ficava “jogando conversa fora” aqui e ali, mas
nós duas sempre voltávamos com um monte de coisas, muitas
sem a menor utilidade, que comprávamos nessas ocasiões (aliás,
identifico em minha mesa de trabalho pelo menos dois objetos
que adquiri nessas liquidações!).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Ela era de origem rural e, vez por outra, íamos visitar seus
pais no sítio em que moravam. Eles haviam penado durante os
anos da Grande Depressão e viviam apenas de uma pequena
aposentadoria (social security), fazendo aproveitamento total de
tudo pela casa! Até as flores de abóbora empanadas (fried pum-
pkin blossoms) serviam de alimentação (uma delícia, por sinal),
o frango ensopado sendo engrossado por uns bolinhos de chuva
(chicken dumplings) para render mais, as latas aproveitadas como
regadores e canecos, um grande fogão à lenha para aquecer a casa
toda, no inverno. Quando vejo o quadro “American Gothic”, de
Grant Wood, sempre me lembro deles: Grandma H., de vestido de
florzinhas até quase o tornozelo, Grandpa H., com um macacão,
tal qual o da referida pintura!
Destaco essas questões, pois os contrastes de classe entre os
dois núcleos familiares que eu frequentava eram imensos, permi-
tindo a mim uma visão mais ampla da vida das famílias americanas
do Midwest como a “forasteira dentro” que eu era, ou seja, como
alguém que estava ali, mas não pertencia, para usar da perspec-
tiva de Patrícia Hill Collins (1986). Essa vivência contribuiu para
que eu fosse construindo, aos poucos, não apenas uma noção de
classe muito mais abrangente do que a definição estrutural (lugar
ocupado no processo de produção), tão ao gosto do Marxismo
estruturalista, mas sobretudo, também uma consciência de classe
fracionada, de uma “forasteira dentro”. Fui me dando conta, aos
poucos, da relevância dos diferentes valores, ideologias e práticas
de classe cotidianas, parte constitutiva das vivências de classe, ou
o que eu, mais tarde, ao ler Pierre Bourdieu (1983), compreenderia
tratar-se de habitus de classe.
Com o início do semestre letivo na Southern Illinois Univer-
sity, em setembro de 1970, nos mudamos inicialmente para uma
casinha em uma cidadezinha vizinha, na época, um povoado com
pouco mais de um mil habitantes, relocando, depois, para um
apartamento em Edwardsville, Illinois, onde ficava a universidade.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Antes mesmo de nos mudarmos, fui procurar emprego como teller,
num dos bancos locais, dado o meu treinamento anterior. Acabei
trabalhando, ali, por quatro anos, aprendendo bastante sobre
bancos e fazendo grandes amizades (que preservo até hoje), como
também começando a me conscientizar sobre a discriminação
contra as mulheres no espaço de trabalho.
Aliás, tal conscientização já fora despertada na primeira
entrevista com o gerente do banco, quando ele me perguntou o
que eu fazia para evitar filhos! Eu tinha só 22 anos de idade e não
costumava falar sobre tais questões, muito menos com um homem
totalmente estranho. Confesso que fiquei bastante chocada, mas
não me dei por vencida. Perguntei-lhe por que o interesse nessa
questão da minha vida pessoal, ao que ele respondeu: “Não vamos
treinar você para o cargo e daqui a seis meses você engravidar!”
Por certo, tal questão jamais era perguntada para os homens.
Várias outras questões surgiram no curso do trabalho e me
deixaram alerta para as desigualdades de gênero, sobretudo no
que diz respeito à divisão sexual de tarefas, cargos e os salários
correspondentes. Por exemplo, nos porões do banco havia uma
copa-cozinha, usada pelos funcionários e funcionárias para as
breaks e horário de almoço, já que quase todo mundo - pelo menos
todo o “baixo clero” do banco - levava sua marmita. A cada semana,
uma das funcionárias era escalada para a limpeza da copa-cozinha:
os homens estavam livres desse encargo. Cabia a eles abrirem e
fecharem o banco, uma responsabilidade que também era semanal,
mas vista como tarefa essencialmente masculina.
Aprendi logo os procedimentos do banco e acabei me tor-
nando uma das treinadoras de novos tellers. Treinei mulheres e
homens, até que um dia descobri que eu ganhava menos que os
trainees. Não tive dúvida, fui tomar satisfações com o gerente: por
que eu ganhava menos? “Ora, você está aqui porque seu marido
é aluno da SIUE. Daqui a pouco ele se forma e vocês vão embora;
por que investir em alguém que não vai ficar conosco?”, disse-me
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ele. Fazia sentido, mas era só meia verdade, pois vários dos trai-
nees que passaram por mim também estudavam na SIUE e foram
embora quando se formaram, mas eles eram homens! Mais uma
vivência despertando a minha consciência de gênero feminista...
Apesar de tudo isso, eu gostava muito do meu trabalho, prin-
cipalmente o fato de lidar diretamente com o público. Na época
de Natal, eu me divertia vestida de Mother Christmas (ou Mamãe
Noel), sentada em uma mesa ao lado da nossa grande árvore de
Natal vendendo carnês de Christmas Clubs, um tipo de poupança
com depósitos semanais (de cinco, dez, vinte cinquenta ou cem
dólares), só sendo possível descontar o tal carnê no final do ano,
com os juros incluídos.
Nesse banco, trabalhei em vários setores e diferentes janelas
de atendimento como teller. Fiz muita hora extra, trabalhando
aos sábados, pela manhã, na walk up window, uma janela de teller
que abria para a calçada e, às sextas-feiras, na drive-in window,
uma janela nos fundos do banco que atendia pessoas em seus
carros. Naquela época (1970-1974), é bom lembrar, quase nada
era automatizado, nem mesmo a gaveta na qual as transações na
janela do walk up e drive-in eram passadas: era tudo na base do
“muque” mesmo. Lembro-me que ao fim do dia (nas sextas-feiras,
trabalhávamos até às 19:30h., eu saía de lá com o braço doendo,
de tanto empurrar e puxar a tal gaveta!
Grande parte dos clientes que eu atendia na janela do drive-
-in era de operários da Granite City Steel, uma imensa siderúrgica
localizada em uma cidade vizinha. Eles vinham com suas esposas
depositar o salário semanal, mas quem controlava os depósitos
dos cheques eram as mulheres. Elas depositavam a maior parte
do valor do cheque na conta, descontando uma pequena quantia
em dinheiro para ser dividida com os companheiros. Muitas das
minhas colegas de banco eram casadas com operários da Granite
City Steel, e pude observar que elas também se encarregavam de
fazer todos os pagamentos da casa, tomando conta do dinheiro
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
da família. Esse era também o procedimento que observara ter
lugar na casa de minha sogra e entre outras famílias operárias
americanas com as quais convivi naquela época, um costume
bastante diferente das famílias operárias, que mais tarde viria a
estudar em Salvador.
No banco, durante o verão, quando acontecia o Mississippi
River Festival (algo semelhante ao Rock in Rio, que se estendia por
algumas semanas), eu ficava encarregada da venda dos bilhetes
no banco e de contar e depositar as somas arrecadadas com a
venda das bilheterias durante os shows. Eu contava sacolas e mais
sacolas de dinheiro (nem consigo imaginar hoje a quantidade de
dólares que já passaram por minhas mãos!), mas era bastante
rápida e precisa na contagem! Tinha o maior orgulho desta mi-
nha habilidade, orgulho de um trabalho bem feito, mesmo que o
dinheiro não fosse meu! A lembrança desse orgulho me permitiu
empatizar com as operárias que estudei anos mais tarde, quando
me falavam do orgulho das peças que produziam como tecelãs,
mesmo que essas peças não lhes pertencessem.
Os últimos dois anos que passei em Edwardsville (1972-1974)
foram os melhores. Primeiro, por eu começar a me envolver com o
movimento feminista. Foi ali que comecei a participar das reuniões
semanais do comitê local da National Organization for Women -
NOW, o único grupo feminista da cidade, e me envolvendo também
na campanha presidencial de George McGovern, que tinha o apoio
das feministas da NOW e que se opunha à guerra do Vietnã. Ao
mesmo tempo, eu finalmente voltara a estudar! Isso se tornou
possível só depois que conseguimos moradia dentro do Campus
da SIUE, em um apartamento subsidiado para alunos com família,
o que significou uma grande economia nos gastos com aluguel,
permitindo que eu cursasse disciplinas à noite.
Em grande parte das universidades norte-americanas, como
no caso da SIUE, os dois primeiros anos são bastante abertos,
interdisciplinares, só se fechando mais nos dois últimos anos,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
quando se faz a concentração na área, ou major, que se pretende
cursar. Quem estuda só à noite, contudo, tem um leque de escolhas
bem menor, mesmo assim, tive a oportunidade de cursar ótimas
disciplinas. Dentre elas, cursei Introdução à Antropologia, dis-
ciplina essa que confirmou meu interesse pelas Ciências Sociais
e, no particular, pela Antropologia. De fato, tive um professor
excelente - um “doutorando” -, que soube fazer uma abordagem
bastante caprichosa dos quatro campos da Antropologia: socio-
cultural, biológica, arqueologia e linguística. Até hoje, tenho as
copiosas notas feitas durante aquele meu primeiro encontro com
a Antropologia, acontecido há mais de cinquenta anos.
Durante esse período na SIUE, aproveitei também a possibi-
lidade de ganhar créditos por meio de “exames de proficiência”
(proficiency tests), pagando uma pequena taxa e me preparando,
sozinha, para as provas. Consegui, assim, aprovação (e os créditos
correspondentes) em disciplinas de Espanhol e História Mundial.
Juntando com os créditos que trouxe do Sedes Sapientiae, pude
acumular o equivalente a um pouco mais de um ano de estudos,
bagagem essa que levei para a Illinois State University – ISU, em
Normal, Illinois, onde finalmente concluiria meu bacharelado.
Tal mudança se deu em 1974, quando meu marido se formou e foi
trabalhar para a General Telephone of Illinois, uma grande em-
presa de telecomunicações, operando na região de Bloomington-
-Normal, cidades gêmeas na área central do Estado de Illinois. Foi
uma escolha feita a dois, de modo a possibilitar o meu retorno aos
estudos em tempo integral.
Decidida a voltar a estudar, mas ainda sem meios de custeio
para meus estudos, inscrevi-me na seleção para trabalhar como
funcionária pública na ISU, em Normal, sendo aprovada e assu-
mindo o posto de assistente administrativa no Setor de Aquisições.
Isso me permitiu usufruir de uma bolsa parcial para funcionários,
com a possibilidade de cursar até duas disciplinas por semestre,
“de graça”. Contudo, trabalhando tempo integral, estava limitada
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
a escolha de disciplinas oferecidas no horário noturno, mas conse-
gui, junto aos meus supervisores diretos, tempo extra necessário
para assistir às aulas.
Naquele meu primeiro ano na ISU, cursei quatro disciplinas
do ciclo básico, bem como ganhei créditos por meio de exames de
proficiência, contribuindo para que, a partir de setembro de 1975,
eu pudesse largar o emprego na Universidade e, finalmente, me
tornar aluna de tempo integral de Antropologia, por ser agraciada
com uma bolsa de estudos concedida pela Illinois State Scholar-
ship Commission (ISSC), que custeou minhas taxas de matrícula
por quatro semestres, até a minha formatura, em maio de 1977.
Destarte, no segundo semestre de 1975, foi possível me
matricular em sete (07) disciplinas, inclusive no Seminário sobre
Mulheres na Atualidade, minha primeira disciplina em Estudos
sobre Mulheres, quando finalmente pude ler A Mística Feminina, de
Betty Friedan (1963), A Dialética do Sexo, de Shulamith Firestone
(1970), e Sisterhood is Powerful, de Robin Morgan (1970), feministas
de destaque naquela época.
Cursar essas disciplinas como aluna de tempo integral, re-
gularmente matriculada, trouxe importantes mudanças. É lógico
que a mais importante foi ter tempo suficiente para me dedicar
aos estudos. Mas houve uma virada no sentido de me fazer sentir,
mais uma vez, como uma forasteira dentro. Explicando melhor:
enquanto eu estudava de noite, tinha colegas que, como eu, eram
mais velhos e mais velhas que a média dos estudantes universitá-
rios, muitos já casados(as), e trabalhando durante o dia. Já como
aluna de tempo integral, a maior parte de meus e minhas colegas
era de jovens, solteiros/as, sem outras responsabilidades e com
experiência limitada à escola secundária.
Aos poucos, fui me identificando com pessoas mais velhas
que, como eu, voltavam a estudar: mulheres que, devido ao casa-
mento ou aos filhos, haviam abandonado a faculdade e voltavam
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agora determinadas a se formar, pessoas aposentadas que que-
riam também uma nova chance e, como era típico para a época
em questão, um número ainda maior de rapazes, veteranos de
guerra, que, tal qual meu marido, usufruíam das benesses da GI
Bill. Acabei me tornando parte de um grupo de colegas que se
encaixava nesse perfil, como no caso de Debby, minha amiga até
hoje! Como éramos mais velhas, até mesmo com idade próxima a
algumas de nossas mestras, tornamo-nos próximas a elas.
Vale ressaltar: já naquela época, havia no campus muitas
mulheres, professoras e estudantes, que se identificavam com
os ideais feministas dos quais eu comungava e ao lado de quem
participei de vários eventos em defesa dos direitos das mulheres.
Cheguei a fazer parte do grupo de mulheres articuladoras da Stu-
dents’ Association for Women-SAW, a primeira organização estu-
dantil para mulheres da ISU. Esse grupo participou da organização
do Alice Doesn’t Day, em Bloomington-Normal, que teve lugar em
29 de outubro de 1975, no Campus da ISU, quando se realizou, no
país todo, uma greve de três horas, por parte de nós, mulheres,
para protestarmos contra nossa marginalização no mercado de
trabalho. Deixando de cumprir as tarefas que nos eram alocadas
durante o período de ‘greve’, nos propúnhamos a demonstrar a
importância do trabalho feminino na sociedade. Participamos,
também, de ações na Assembleia Legislativa de Illinois, em Sprin-
gfield, para pressionar os deputados do Estado a aprovar o “Equal
Rights Ammendment - ERA”, emenda parlamentar que incluía o
princípio da igualdade entre os sexos, não contemplado até hoje
na Constituição Norte-americana.
Aos poucos, porém, fui me aproximando mais de outros
grupos feministas ditos “mais radicais”, participando de grupos
de conscientização, reflexão e ação feministas, bem como de
oficinas de sensibilização para gênero, dentre os quais a maioria
das participantes se identificava como lésbicas e a questão das
sexualidades e das violências sexuais entravam sempre em pauta.
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Conforme descrevi em artigo sobre a relevância desses grupos para
o movimento feminista (Sardenberg, 2018, p. 22):
É importante lembrar que romper com as amarras
dos condicionamentos da dominação patriarcal e,
em especial, com a subordinação, não é algo instan-
tâneo, ou que se processe de forma linear, mas sim
resultado de processo gradual, muitas vezes prenhe
de incertezas e contradições. Ademais, ainda que esse
processo possa ser desencadeado individualmente,
a partir da leitura, por exemplo, é certamente muito
mais eficaz quando se desenrola coletivamente.
Nesse mesmo artigo, descrevi um pouco minha experiência
nesses grupos, que incluo aqui:
Com efeito, nesses grupos era possível pensar cole-
tivamente como gênero e processos de subordinação
das mulheres eram reproduzidos e se manifestavam
em nossas vidas - e como seria uma sociedade mais
justa. Os grupos criavam um espaço aberto e acolhe-
dor para que as mulheres pudessem falar de sua vida
e questionar as tradições e visões patriarcais sobre
o ser mulher, até mesmo as próprias, destrinchando
suas raízes sociais e possíveis formas de erradicá-las.
Minha experiência em um grupo de conscientização
se deu nos Estados Unidos, no início dos anos 70,
experiência essa fundamental para a minha tomada
de consciência sobre a força do patriarcado e meu
engajamento, até hoje, nos movimentos feministas.
Na primeira reunião que participei, discutia-se vio-
lência sexual. Eu nunca havia falado sobre isso antes,
mas impulsionada pelos depoimentos das mulheres
ali presentes, consegui relatar uma experiência que
há muito escondera de mim mesma. Foi quando eu
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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ainda era uma menina de apenas 12 anos e um estra-
nho, escondido na entrada de uma vilinha perto da
minha casa, em São Paulo, me chamou para vê-lo se
masturbando. Eu corri para casa morrendo de medo
e de vergonha, porque havia olhado para o pênis do
assediador, como se a culpada por tudo isso fosse
eu. Discorrendo sobre esse fato na reunião e cons-
tatando como esse tipo de assédio sexual é comum
nas sociedades patriarcais, tendo algo semelhante
acontecido com outras participantes do grupo, pude
por fim “me perdoar” por algo que eu não tinha culpa
e por não ter tido a coragem de denunciar o ocorrido,
para tirar o verdadeiro culpado das ruas. Ponto para
a minha autoestima, ponto para o meu processo de
conscientização e, em tempo, para ações coletivas de
combate à violência contra mulheres (Sardenberg,
2018, p. 21-23).
O ano de 1976 se iniciou com algumas importantes mudanças
em minha vida. Por certo, a maior foi minha separação do meu
marido e minha mudança para a sede de uma sorority, tipo de re-
pública feminina, onde fui trabalhar como Housemother, ou seja,
como supervisora. Eu dispunha de um pequeno apartamento e sala
e cozinha conjugada, com quarto e banheiro, dentro da residência,
e convivia de perto com as jovens (cerca de 30) que ali residiam,
fazendo minhas refeições com elas e dando-lhes assistência nas
inúmeras pequenas crises que ali aconteciam. Era um trabalho um
tanto desgastante, por eu ter que “estar no ar” 24 horas por dia,
mas além de não pagar o aluguel nem pelas refeições, eu ainda
recebia um pequeno salário, crucial para a minha manutenção.
Outra vantagem era a proximidade da Universidade - na verdade,
ficava quase dentro do Campus da ISU –, o que me permitia ganhar
tempo e economizar no transporte.
Mas talvez o maior bônus desse trabalho tenha sido a
oportunidade de desenvolver uma observação sistemática ou
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mesmo “participante” da vida universitária do Midwest dos
Estados Unidos, nos anos 70, na situação de uma “forasteira
dentro”. Passei então a redigir um diário de campo da minha
vivência na sorority, comentando minhas observações com
minha colega e amiga Debby. Pareceu-nos importante pensar
as sororities como um tipo de instituição total voluntária, tal
qual conventos, escrevendo um trabalho juntas sob o título “A
Different Kind of Nunnery” (Sardenberg; Donnellan, 1977a),
publicado em uma coletânea sobre “instituições totais”, em
homenagem a Erving Goffman. Nesse trabalho, argumentamos
que instituições totais voluntárias, dessa ordem, para mulhe-
res, só se mantinham em pé por criarem um clima de família e
uma linguagem de parentesco fictício, de sorte que as colegas
se tornavam “irmãs”, havia a figura da “housemother”, as ex-
-alunas eram “madrinhas”. Senti-me lisonjeada quando me dei
conta de que esse nosso argumento serviu para uma tipificação
das instituições totais, tal qual esboçado por Christie Davies
(1989), anos depois.
No início de 1976, também fiz parte de um grupo de alunos
que criou a organização estudantil Friends of Anthropology, con-
tando com o apoio do corpo docente do Departamento de Antro-
pologia da ISU e de suas famílias. Eles e elas marcaram presença
inclusive no nosso time de softball (um basebol mais suave),
além de contribuírem para a confecção de camisetas para o nosso
time, que estampavam um mapa genealógico como logomarca
da “Friends”. Eleita presidente dessa organização, tive o imenso
prazer de passar um dia inteiro, em abril de 1976, ciceroneando
a Profa. Dra. Margaret Mead, por ocasião da sua visita à ISU. Isso
incluiu buscá-la em outra universidade, localizada a cerca de 80
km de Normal, o que me proporcionou tempo só com ela, mas
no qual ela dominou a conversa, perguntando sobre minha vida
e comentando sobre o Brasil, tema sobre o qual ela parecia estar
muito bem informada.
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Nesse primeiro semestre de 1976, meu principal trabalho foi
elaborado para a disciplina “Política dos Países em Desenvolvi-
mento”’, do campo da Ciência Política, minha área de concentração
secundária. Intitulado “The Fight is On, Brazil, a Revolution in
the Making” (Sardenberg, 1976a), esse trabalho de mais de trinta
páginas, teve como objetivo analisar as condições socioeconômicas
e políticas no Brasil em termos de pré-condições para o deslanchar
de uma “revolução” socialista. Para escrevê-lo, li Carlos Marighela
(1973), Márcio Moreira Alves (1973) e João Quartim (1971), autores
de livros proibidos no Brasil na época, dentre outros. Hoje, consi-
dero o trabalho bastante sofrível em termos teóricos - fiz uso de
uma abordagem funcionalista e ainda por cima, nada sofisticada
-, mas elaborei uma análise apaixonada sobre o que acontecia
no país então, visto por alguém que estava longe e sedenta por
mudanças. Creio mesmo que foi meu trabalho de expiação por
ter saído do Brasil, sem me engajar nas lutas contra a ditadura.
Esse primeiro semestre de 1976, além de ser enriquecedor em
termos das disciplinas cursadas, abriu novos espaços de atuação
para mim. Um dos principais fatores nessa direção foi minha
participação na Conferência da Central States Anthropological
Association, que teve lugar em St. Louis, Missouri, quando, por
intermédio de uma professora amiga, vim a conhecer a Profa. Dra.
M. Estellie Smith, da State University of New York (SUNY-Oswego),
que se tornaria minha principal tutora na prática do trabalho de
campo etnográfico. Filha de uma portuguesa da Ilha da Madeira,
que foi criada na cidadezinha de Provincetown, Massachusetts, a
Dra. Smith vinha trabalhando há anos com populações de origem
lusofônica, na costa da Nova Inglaterra, nos Estados Unidos, que
planejavam passar o verão naquela cidadezinha pesquisando as
cooperativas de pescadores de lá, que eram, em sua maioria, de
origem portuguesa. Como não falasse português, ela me convidou
para trabalhar como sua assistente de campo - convite imedia-
tamente aceito!
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Foi assim que passei três meses em Provincetown traba-
lhando com a comunidade lusofônica local, aprendendo a fazer
trabalho de campo com a Dra. Smith. Essa experiência foi muito
enriquecedora em muitos aspectos, dando origem, inclusive, a
três trabalhos: a) “Provincetown: a summer’s view” (Provincetown
visto no verão) (Sardenberg, 1976b), elaborado como relatório de
estudo independente, b) “Ethnicity in Provincetown” (Etnicidade
em Provincetown) (Sardenberg, 1977b), elaborado como trabalho
final da disciplina Antropologia Política, aprovado para apresenta-
ção na Reunião da Northeastern States Anthropological Societies
e, mais recentemente, a c) “Revisitando o Campo: autocrítica de
uma antropóloga feminista” (Sardenberg, 2014b), publicado na
Revista Mora, na Argentina, no qual faço uma revisita crítica a
três momentos e contextos distintos onde desenvolvi trabalho
de campo, mostrando como a intersecção de vários marcadores
sociais nos constroem enquanto diferentes personas no campo.
Naquele artigo, antecipando um pouco o que me proponho
neste trabalho, tive como proposta refletir sobre os “desafios
postos para a produção de conhecimento na perspectiva da An-
tropologia Feminista, a partir de um exercício de autocrítica”. A
ideia era revisitar minhas diferentes vivências e experiências no
trabalho de campo como autodenominada antropóloga feminista,
apoiando-me nos “princípios das epistemologias feministas pers-
pectivistas”, procurando identificar e analisar de que forma e em
que medida as intersecções de gênero, raça, etnia, classe, geração
e sexualidade, dentre outras, dentro dos contextos etnográficos
distintos no tempo e no espaço em que atuei, demarcaram minha
posicionalidade e persona no campo, promovendo - ou delimitan-
do - meus encontros (ou desencontros) com meus interlocutores
e interlocutoras na produção de um conhecimento que se quer
antropológico e feminista” (Sardenberg, 2014b, p.).
No artigo em questão, discorro sobre o assédio que sofri no
meu trabalho em Provincetown. Naquela época, eu era uma jovem
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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mulher separada do marido, não sendo, pois, à toa que, dentre a
comunidade portuguesa, tive muito mais facilidade em encon-
trar homens dispostos a conversar comigo do que mulheres. Na
verdade, como ressaltei, “vi-me constantemente assediada pelos
homens dessa comunidade [...] por confundirem meu interesse
em conversar com eles como meus interlocutores, com um pos-
sível interesse neles enquanto sujeitos sexuados, o que tornou
praticamente impossível entrevistá-los (a começar pelo fato de
que só marcavam encontro comigo nos bares da cidade). Devido a
esse comportamento dos homens, poucas mulheres mais velhas,
particularmente as esposas, aceitavam conversar comigo. Eu era
vista por algumas como possível femme fatale, inclusive por estar
então separada do meu marido”.
No meu retorno do trabalho de campo, em Provincetown,
participei e fui aprovada em uma seleção para trabalhar como
Monitora na disciplina “Introdução à Antropologia”, que marcou
minha primeira experiência de tirocínio docente. Amei! Decidi en-
tão o caminho que seguiria: tornar-me uma docente universitária
no campo da Antropologia! Nesse mesmo semestre, cursei a dis-
ciplina “Pesquisa em Estudos sobre Mulheres”, uma das primeiras
disciplinas sobre pesquisa feminista oferecidas nas universidades
americanas. Foi para essa disciplina que comecei a escrever um
trabalho sobre epistemologia, só concluído há poucos anos, artigo
esse que considero uma das minhas principais contribuições aos
estudos feministas no Brasil, publicado sob o título “Da crítica
feminista à ciência, a uma ciência feminista?” (Sardenberg, 2002).
No final de 1976, tive ainda a oportunidade de participar como
monitora na reunião anual da American Anthropological Associa-
tion, realizada em Washington, D.C., ocasião em que um simpósio
sobre sociobiologia, com a participação de Earl Wilson, um de seus
mais ferrenhos defensores, atraiu grande público, eu inclusive,
mas ao lado dos seus críticos! Por certo, para nós, antropólogos e
antropólogas, sobretudo para nós feministas e antirracistas, essa
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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crítica tornava-se fundamental, haja vista a proposta central de
Wilson (1975): o biológico como determinante das interações
humanas, fundamentando-se na suposta tendência evolucionária
de genótipos individuais maximizarem seu sucesso reprodutivo.
Daí porque a “Nova Síntese”, proposta por aquele mesmo autor, no
sentido de as humanidades e ciências sociais serem incorporadas
na Biologia Evolucionária! A defesa de Marshall Sahlins (1976) da
relevância da “cultura” sobre a biologia e, assim, da Antropologia
enquanto disciplina, foi então - como em anos mais recentes tam-
bém (Sahlins, 2004) - uma tábua de salvação para sairmos daquele
mar essencialista de determinismo biológico!
Esse debate ainda estava quente no primeiro semestre de
1977, meu último semestre na ISU, esquentando as aulas da dis-
ciplina “Adaptações Afro-Americanas”, quando denunciávamos a
defesa implícita do racismo pela sociobiologia. Nesse semestre,
dentre outras disciplinas, cursei Métodos de Pesquisa na Antropo-
logia, escrevendo para esta última disciplina meu melhor trabalho
do semestre, “Truck Stop Behavior” (Sardenberg, 1977b), trabalho
baseado em pesquisa sobre as interações entre caminhoneiros e
garçonetes em restaurantes de beira de estrada, voltados para os
motoristas de caminhão. Pensada como uma pesquisa mais apro-
fundada, ela acabou se baseando, em grande medida, apenas em
observações sistemáticas. O trabalho expressa toda essa frustração
da pesquisadora que não conseguiu fazer sua pesquisa, avaliando,
porém, o quanto se pode aprender apenas com o “olhar”, tal qual
nos ensinou Roberto Cardoso de Oliveira (2000) em O trabalho
do antropólogo.
Apesar de meus tropeços no início do curso de graduação,
com interrupções e mudanças de universidades, consegui, fi-
nalmente, concluir meu bacharelado, formando-me com High
Honors (Alto Mérito). Fui indicada, duas vezes, para a premiação
do Bone Scholar Award (Prêmio Bone), da ISU, tendo eu recebido
menção honrosa, como também para uma Danforth Fellowship
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
(Bolsa de Pós-Graduação Danforth), para a qual cheguei a ser
finalista, não podendo afinal ser agraciada por não ter cidadania
americana. Creio que devo tudo isso aos professores e professoras
maravilhosos (as) da ISU, que me levaram a amar a Antropologia
com sua maneira amiga, não pretensiosa e apaixonada de ensinar,
convidando-me a pensar criticamente e, assim, aprender.
Quando escolhi cursar o bacharelado em Antropologia, sabia
que estava optando por uma carreira acadêmica, para o que seria
necessário fazer o doutorado. Nos Estados Unidos, existia a possi-
bilidade de se ir direto do Bacharelado para o Curso de Doutorado,
o título de mestre sendo conquistado no caminho. Com isso em
mente, preparei-me para me submeter aos exames do GRE, algo
semelhante ao ENEM para quem quer cursar pós-graduação.
Depois, inscrevi-me e fui aceita em diferentes universidades,
optando pela Boston University (BU) por me oferecer bolsa de
estudos e a possibilidade de dar continuidade às pesquisas ini-
ciadas em Provincetown, com a população de origem portuguesa
na Nova Inglaterra, e de trabalhar com o Prof. Dr. Anthony Leeds,
que havia realizado pesquisas no Brasil e com imigrantes portu-
gueses também. Além do mais, a Boston University não só era a
alma mater do Dr. Martin Luther King, que ali obtivera seu título
de Doutor em Teologia, como também uma das universidades
com um corpo estudantil dos mais atuantes durante os anos 70,
tornando-a ainda mais atraente para uma ativista como eu. Sem
esquecer que Boston era - e ainda é - um dos mais importantes
centros acadêmicos da costa leste, contando com universidades
famosas, tal como Harvard, Massachussets Institute of Techno-
logy - MIT, Tufts, Brandeis, Boston College, dentre outras, além
da Boston University.
Mudei-me para Boston no final de maio de 1977, carregando
todos meus pertences em um caminhão U-Haul, contando com
a ajuda de meu amigo Ken, marido de minha colega e ‘amigona’
Rose, que dividiu a direção comigo. Ken era das ilhas Fiji e nunca
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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tinha ido para a costa leste. Aceitou me ajudar na mudança e a
me instalar em troca do bilhete de volta e de um lugar para ficar
e conhecer Boston.
Ciente de que a bolsa da BU só começaria a ser paga no final
de setembro, com o início das aulas, e que até lá eu precisaria
de algum meio de sobrevivência, saí à cata de um emprego. Tive
sorte, logo consegui uma colocação como secretária da diretora da
biblioteca do Emerson College, na Berkeley Street, bem nas redon-
dezas de onde explodiram as duas bombas durante a maratona de
2013. Em maio de 1977, quando cheguei a Boston, porém, ali era
um lugar tranquilo! Perto da Copley Square, do Boston Commons
e do Gardens, na Arlington Street, onde eu costumava almoçar
com colegas, degustando deliciosos “sanduíches submarinos” que
comprávamos em Beacon Hill. Que saudades!
Devo confessar que esses primeiros meses em Boston foram
um marco importante em minha vida: além de Boston ter sido a
primeira cidade na qual fui morar por minha própria escolha, foi a
primeira vez em que morei sozinha e me tornei dona de meu pró-
prio nariz. Foi um momento importante para mim, do feminismo,
como vivência, tal como nas palavras de Margareth Rago (2013,
p. 28) quando afirma que os feminismos podem ser considerados:
[...] como linguagens que não se restringem aos
movimentos organizados que se autodenominam
feministas, mas que se referem a práticas sociais,
culturais, políticas e linguísticas, que atuam no
sentido de libertar as mulheres de uma cultura mi-
sógina e da imposição de um modo de ser ditado pela
lógica masculina nos marcos da heterossexualidade
compulsória.
De fato, como a mesma autora acrescenta adiante, “[...]
transformação social implica não só em um projeto político, mas
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
também transformar um estilo de vida, ou ‘estética da existência’,
criada na experiência individual e social” (2013, p.49). Posso então
dizer que nesses meus primeiros meses em Boston, comecei a
mudar minha “estética de existência”. Por isso mesmo, na época,
achei importante registrar essa experiência em um dos primeiros
trabalhos que elaborei no meu curso de pós-graduação na BU,
intitulado “Impressionism and Impressions on Getting to Know
Boston” (Sardenberg, 1977c, p.3), ‘Impressionismo e Impressões
ao Começar a Conhecer Boston’, onde assim afirmei:
Vim para Boston naquele verão para ficar e estudar
como tantos outros fizeram. Deixei Illinois e seus
tristes campos de milho uma manhã, sem arrepen-
dimentos, muito feliz por escapar de suas planícies
monótonas. Eu vim de caminhão - um enorme ca-
minhão alugado - transportando ao longo tudo o
que restou de dez anos de casamento, de dez anos
de ser pessoas que eu não era, e que eu não queria
ser. Carreguei comigo móveis, livros, fotografias
antigas. Todo o resto – as pessoas que eu não era, os
sentimentos que eu não queria sentir, as lembranças
que eu não queria ter – joguei pela janela. Espero
que tudo isso tenha ficado em algum lugar entre
Illinois e Massachusetts, provavelmente nas longas
e intermináveis colinas do Pennsylvania Turnpike.
Em fins dos anos 70, início dos anos 80, havia na Boston
University, a BU, um núcleo de professoras feministas, algumas
delas inclusive no Departamento de Antropologia – Susan Brown,
Maureen Giovaninni e Jane Guyer - das quais tive o prazer de ser
aluna e também assistente de pesquisa (Maureen Giovaninni) e
trabalhar como monitora na disciplina “Female Perspectives in
the Study of Cultures” (Susan Brown e Maureen Giovaninni). Sob
a coordenação de Susan Brown, Pamela Sankar, algumas outras
colegas da BU e demais universidades de Boston e eu, organizamos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
o coletivo responsável pela publicação da National Conference for
Women in Anthropology Newsletter, o boletim da Conferência Na-
cional de Mulheres na Antropologia, rede articulada por Eleanor
Leacock, em Nova Iorque, que mais tarde daria lugar à Association
for Feminist Anthropology da American Association of Anthropolo-
gy. Foi neste boletim que publiquei uma resenha sobre livros no
campo da Antropologia da Mulher, sob o título: “From the Anvil
of Experience: a critical review of Murphy and Murphy’s Women
of the Forest and Wolff’s Women and the Family in Rural Taiwan”
- Do âmago da experiência: uma revisão crítica de As Mulheres
da Floresta de Murphy e Murphy e Mulheres e Família e Taiwan
Rural (Sardenberg, 1977d).
Nessa época, cursei a disciplina “Matrilineal Societies” - So-
ciedades Matrilineares- com a Profa. Susan Brown, elaborando
como trabalho final um artigo baseado em uma releitura crítica,
na perspectiva feminista, dos trabalhos de Robert Murphy sobre
os índios Mundurucu, do Rio Tapajós, que intitulei “Matrilocality
and Patrilineality in Mundurucu Society: A Reinterpretation” -
Matrilocalidade e Patrilinealidade na Sociedade Mundurucu: uma
reinterpretação - (Sardenberg, 1980). Por um bom tempo, fiquei
fascinada com a forma de organização social dos Munduruku -
seu regime “dis-harmônico” na perspectiva de Lévi-Strauss - a
ponto de pensar em realizar meu trabalho de campo entre eles.
Na procura por material bibliográfico sobre os povos da região
em questão, deparei-me com O Selvagem e o Inocente, de David
Mayberry-Lewis (1980). Nesse livro, Mayberry-Lewis relata seu
período de trabalho de campo entre os povos nativos da Região
da Amazônia, mencionando os problemas que ele e sua família
enfrentaram com o teto da cabana infestado de baratas. Foi o que
me bastou para mudar de ideia - tenho pavor de baratas, princi-
palmente se forem voadoras!! Hoje, os Mundurucu sofrem males
muito maiores com o envenenamento causado pelo derramamento
criminoso doo mercúrio nas águas dos Tapajós, pelo garimpo.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Cursando a disciplina Antropologia Aplicada, escrevi um
trabalho sobre cabo-verdianos em Boston, perdido nessa minha
longa caminhada, mas que serviu de base para outro trabalho que
teve por título: “Cape Verdean Migration, Strategic Unions, and the
Definition of Marriage” - Migração Cabo-Verdiana, Uniões Estra-
tégicas e a Definição de Casamento - (Sardenberg, 1978a). Fiquei
bastante interessada em seguir trabalhando com a comunidade
cabo-verdiana em Boston e com a questão dos “casamentos es-
tratégicos” como problema possível para minha tese doutoral,
começando até mesmo a aprender um pouco de “criolo”, o idioma
de Cabo Verde. Mas com o nascimento de minha filha, nascida da
minha união com outro doutorando brasileiro na BU, e o desejo
de todos e todas nós, estudantes de pós-graduação vivendo en-
tão em Boston, de voltarmos para o Brasil com a anistia, acabei
abandonando essa ideia.
Devo ressaltar, porém, que a pesquisa para a realização do
referido trabalho só se tornou possível com o apoio de colegas
de origem cabo-verdiana, que cursaram a disciplina Applied An-
thropology comigo, bem como de Helena, uma cabo-verdiana,
minha vizinha, quando residia no Ringe Towers Apartments, em
Cambridge, Massachusetts. Tratava-se de um housing develop-
ment, ou seja, um complexo residencial para famílias das camadas
populares de Boston, sendo ocupado principalmente por negros.
Pude assim constatar o racismo institucional contra negros nos
Estados Unidos, principalmente por parte da polícia de Boston,
com meus próprios olhos. A começar pela presença constante de
uma viatura de polícia na porta do prédio em que vivia, com o
constante assédio aos moradores. Eu mesma e meu companhei-
ro, na época, passamos por uma situação bastante assustadora
quando, supostamente com base em uma falsa denúncia, policiais
invadiram nosso apartamento à procura, até hoje, não sei bem do
que. Não respeitaram nem mesmo o fato de eu estar em estado
avançado de gravidez da minha filha, Marina, empurrando-me,
nada gentilmente, quando abri a porta! Pelo fato de sermos bra-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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sileiros e, portanto, latinos, ou seja, não brancos, não se deram ao
trabalho de apresentar mandado de busca e apreensão, entrando
porta adentro sem pedir licença. Só não fizeram pior por desco-
brirem que éramos doutorandos na BU - aliás, assustaram-se com
tal fato -, avisando-nos, inclusive, que ali não era um bom lugar
de moradia para nós! Nesse caso, parece que o fato de sermos
“forasteiros dentro” nos salvou da brutalidade policial racista de
Boston: nem sempre nossos vizinhos tiveram a mesma sorte...
A bem da verdade, esse meu primeiro período em Boston
foi bastante positivo. Além do nascimento de minha filha, tive
o prazer de ter ótimas colegas e ser aluna de professoras e pro-
fessores não só competentes como solidários. Além disso, tive a
oportunidade de assistir a algumas conferências do Prof. Howard
Zinn, historiador conhecido por seus estudos sobre a classe tra-
balhadora americana e por ter organizado os famosos sit ins e
teach ins - aulas ao ar livre - em protesto contra o envolvimento
americano na Guerra do Vietnã.
Aliás, naquela época, na BU, havia um grupo de professores
bastante progressista, responsável pela coordenação do “Summer
Seminar in Critical Social Theory”. Esses seminários anuais reu-
niam muitos pesquisadores e estudantes, participando de cursos
de pensadores de renome, na época. Tive assim a grata oportu-
nidade de ser aluna de Ernest Mandel, Andre Gunderfrank, Robin
Blackburn e Goran Therborn, não me perdoando até hoje por ter
perdido os seminários de Nicos Poulantzas, oferecidos no verão
anterior à minha chegada à BU! Reparem, porém, que as “grandes
figuras” então eram homens, brancos, de meia-idade para cima.
No entanto, uma das melhores disciplinas que cursei
durante minha primeira jornada na BU foi “Development and
Underdevelopment” - Desenvolvimento e Subdesenvolvimen-
to - , sob a regência da Profa. Susan Eckstein. Essa disciplina
congregou boa parte do pessoal que frequentava os “Summer
Seminars”, uma turma maravilhosa de estudantes, que levava
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
os debates da sala de aula para os cafés e bares dos arredores.
Para essa disciplina, escrevi com minha colega e amiga, Pame-
la Sankar, um trabalho intitulado “The Sugar Economy in the
Brazilian Northeast: Transformations in the Relations of Pro-
duction, 1888-1964” - A Economia do Açúcar no Nordeste Bra-
sileiro: Transformações nas Relações de Produçãol, 1888-1964
- (Sardenberg; Sankar, 1979), que acabou sendo desdobrado,
posteriormente, em dois trabalhos. Um, lidando com a produção
de açúcar sob o regime escravocrata e os primeiros momentos
depois do fim da escravidão, ficou sob a responsabilidade de
Pamela Sankar. Outro, sob minha responsabilidade, voltou-se
para a penetração de relações de produção capitalista e a luta
de classes na economia açucareira. Esse último trabalho, “Class
Struggle and the Spread of Capitalist Relations of Production
in the Brazilian Northeast” - Lutas de Classe e a Inserção de
Relações de Produção Capitalistas no Nordeste Brasileiro -(Sar-
denberg, 1979), foi inicialmente elaborado para a disciplina
sobre “Gramsci, Althusser, Poulantzas”, oferecida pelo Prof.
Dr. Terry Freiberg, sendo também aceita para apresentação no
Encontro da Northeastern Anthropological Association, a ser
realizado em Amherst, MA, em abril de 1980.
A boa receptividade em relação a esse trabalho despertou-me
o interesse em desenvolver meu projeto de tese sobre movimentos
sociais no campo, particularmente sobre as ligas camponesas no
Nordeste, dentro da perspectiva da antropologia marxista. Uma
viagem de carro visitando vários lugares no Nordeste, realizada
no verão de 1979, aguçou esse meu interesse, com proposta de
realização de trabalho de campo em Pernambuco. Meu exame
de qualificação de doutorado, realizado em maio de 1981, válido
também para o título de Master of Arts in Anthropology, voltou-se,
portanto, para essa temática, tal qual esboçada na bibliografia
submetida à banca na ocasião.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Contudo, por força de motivos familiares, meus planos de
estudar movimentos no campo em Pernambuco, acabaram nunca
sendo realizados. Meu companheiro, pai de meus filhos, recebeu
um convite para integrar-se como professor no então recém-
-criado Mestrado em Economia da UFBA. Com uma filha ainda
bebê, não tive condições nem de ficar sozinha em Boston, nem
de ir sozinha para o campo em Pernambuco, sobretudo quando
veio a segunda gravidez - uma questão de gênero? Em agosto de
1980, voltei para o Brasil e vim morar em Salvador. Meu título de
mestre foi concedido precisamente em setembro de 1981, quando
nascia meu filho, João.
Cabe aqui destacar que os anos 80 caracterizaram-se pela
retomada dos movimentos sociais no país, sendo o movimento
docente nas Instituições Federais de Ensino Superior (IFES) um
dos mais arrojados, se reerguendo com força depois de anos de
pesada repressão impostos pela ditadura militar instalada no
país, em 1964. Na Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi
grande o número de docentes, discentes e de servidores técnico-
-administrativos atingidos pela repressão. Mas isso não impediu
que o movimento docente se articulasse assim que os primeiros
ares da “reabertura” se fizessem sentir no país.
Com efeito, criada em 1968 e logo em seguida fechada pela
ditadura, a Associação dos Professores Universitários da Bahia
(APUB) foi reativada na UFBA, em 1979, mesmo ano em que se
realizou, em Salvador, o Congresso de Reconstrução da UNE.
Em 1980, foi promulgada a Lei da Anistia, possibilitando o
retorno de exilados ao Brasil. Em Boston, em 1979 e início de 1980,
participei de várias reuniões de brasileiros onde discutíamos a
viabilidade da volta ao Brasil e seus possíveis desdobramentos.
Muitos de nós estávamos lá cursando pós-graduação, com a ideia
de voltarmos ao Brasil e contribuirmos para a reconstrução da
democracia no país. Lembrar aquele momento, quando vivemos,
recentemente, uma profunda ameaça à nossa democracia, cons-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
truída a ferro e fogo nessas três últimas décadas, por certo arrepia
a alma, mas, ao mesmo tempo, renova minhas esperanças de que
ainda poderemos fazer a diferença.
Essa era, de fato, a crença que nos estimulava a voltar - fazer a
diferença! Assim, meu companheiro e eu, junto com outros colegas
em Boston, fechamos questão em relação à volta, alguns de nós já
decididos a ingressar no recém-criado Partido dos Trabalhadores.
Chegando à Bahia em outubro de 1980, quando meu companheiro
assumiu seu posto como professor no Mestrado de Economia, já
encontramos a APUB em plena mobilização, enunciando deman-
das em relação à abertura de concursos públicos, reformulação
da carreira docente e à reconstrução de uma identidade docente
orgulhosa de pertencer à universidade pública.
Em novembro daquele ano (1980), o movimento docente
decretava sua primeira greve nacional, envolvendo dezenove
autarquias, estando a Bahia na liderança. Seguiram-se mais seis
greves na década de 1980 (1981, 1982, 1984, 1985, 1987 e 1989) por
reposição salarial, reforma da carreira para eliminar distorções,
isonomia salarial. Foi graças a toda essa mobilização nacional
que, na Bahia, foi realizado em abril de 1982, o primeiro grande
Concurso Público na UFBA, para o preenchimento de mais de 400
vagas para docentes. Participei desse concurso para a disciplina
Teoria Antropológica, obtendo a segunda classificação. Mas foi
graças à articulação do “movimento dos concursados” com o
apoio da APUB e do movimento estudantil, que os contratos dos
classificados no concurso foram enfim efetivados.
O meu contrato saiu em 14 de setembro de 1982, apenas para
o ingresso como Professor, ainda fora da carreira. Passei para o
quadro na qualidade de Professor Assistente I, de 40 horas, so-
mente em 19 de julho de 1983, mas já dentro dos parâmetros da
carreira docente reformulada em 1981, como uma das demandas
do movimento.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Nem bem cheguei à UFBA, em maio de 1983, integrei o grupo
de professoras que criou o Núcleo de Estudos Interdisciplinares
sobre a Mulher, o NEIM, que faria toda a diferença em minha vida.
A ideia surgiu da parte de Ana Alice Costa, que eu havia conhecido
na época do referido concurso, principalmente com o “movimento
dos concursados” e que ingressara no Departamento de Ciência
Política. Recém-chegada do México onde participara de grupos
feministas, Alice já integrava então o Grupo Feminista Brasil
Mulher de Salvador (eu só ingressaria nesse grupo mais tarde).
Em um encontro feminista no Rio de Janeiro, Alice conversou
com a Profa. Fanny Tabak, coordenadora do Núcleo de Estudos
da Mulher - NEM, da PUC/RJ, que sugeriu a criação de um núcleo
semelhante na UFBA.
Dito e feito. Assim que voltou do tal encontro, Alice reuniu
um grupo de professoras feministas que atuavam na Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, eu dentre elas, com a proposta
de criação do NEIM, imediatamente acatada por nós. O núcleo
foi vinculado ao então Mestrado em Ciências Humanas, sendo
integrado por Ana Alice Costa, do Departamento de Ciência Po-
lítica, Alda Britto da Motta e Maria Luiza Belloni, de Sociologia,
Maria Quartim de Moraes, pesquisadora visitante no Mestrado,
Maria Amélia Almeida, mestranda no programa, e eu, lotada no
Departamento de Antropologia.
Não vou aqui adentrar pela história do NEIM. Convido todas
vocês, jovens companheiras, a conhecerem essa história por meio
dos artigos que escrevi sobre ela (Sardenberg, 1998; 2022). Tal
leitura tornará evidente que minha trajetória acadêmica, a partir
da criação do NEIM, será profundamente marcada por minha
atuação no Núcleo e minhas parcerias com Ana Alice, sendo difícil
separá-las. Voltarei a essa questão mais à frente.
Por ora, devo observar que, antes de ser contratada pela UFBA,
comecei a dar aulas de Antropologia Social na Escola de Serviço
Social da Universidade Católica de Salvador. Trabalhei também
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
em dois projetos vinculados à ISP-UFBA: em um Projeto sobre
reflorestamento, desenvolvido pela COPENER, com uma bolsa de
assistente de pesquisa do CNPq e, depois, como documentadora
no Curso de Serralheria para Mulheres, do CESUN, financiado
pelo Pathfinder Fund.
No Projeto do Pathfinder, trabalhei cerca de dois anos, entre
1982 e 1984, acumulando grande quantidade de material de cam-
po sobre relações de gênero, família e trabalho entre as camadas
populares de Salvador. Com a autorização do Pathfinder para uso
desse material de campo para minha tese, solicitei e fui agraciada
com uma bolsa da CAPES para retornar a Boston. A essa época, já
estava separada do pai dos meus filhos, que se recusou a conceder
a autorização necessária para eles viajarem comigo para o exterior.
Enfrentei, assim, uma longa batalha de mais de seis meses, ten-
tando conseguir autorização da Justiça da Bahia para levar meus
filhos comigo. Nesse período, meu ex-companheiro não só pediu
o cancelamento da minha bolsa junto a CAPES, como também me
acusou de tentativa de sequestro dos meus filhos, tornando-me
personagem das páginas policiais dos jornais da cidade.
Nem tudo, porém, foi desesperador: conforme esclare-
ci em artigo recente sobre a questão da posicionalidade da/o
pesquisador/a em trabalho de campo antropológico (Sardenberg,
2014b), essa situação revelou minha vulnerabilidade de gênero,
trazendo uma importante mudança na minha relação com as
mulheres do projeto em que trabalhava, ou seja, permitiu uma
maior aproximação com minhas interlocutoras.
O que estou tentando ressaltar é que um marcador social que
está associado a privilégios, como ser branca, por exemplo, pode
ser contrabalançado por outro “desprivilegiado” como lesbianida-
de, que nos torna mais vulnerável, tal qual visto nas observações
de Cherrie Moraga (1980). No meu caso, o fato de eu ser branca, de
uma classe social mais privilegiada, ser de São Paulo e cerca de 10
anos mais velha do que o grupo de jovens com as quais trabalhei
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
logo que cheguei a Salvador, concedia-me privilégios, mas me
distanciava dessas jovens, tornando difícil o diálogo necessário à
pesquisa que eu desenvolvia. Contudo, conforme observei acima,
durante o curso do trabalho de campo, fui vítima de violência
doméstica e isso mudou a minha posição em relação às jovens:
de repente, eu me tornei, para elas, uma mulher de carne e osso
e, assim, também vulnerável.
Mas não foram poucos os problemas enfrentados para voltar
a Boston com dois filhos pequenos (3 e 5 anos) e tentar traba-
lhar na tese. Por certo, tive o apoio da minha família de origem
e de amigos e amigas em Salvador e em Boston, bem como do
empenho de meu orientador, Anthony Leeds. Contudo, concluir
meu trabalho, dentro do pequeno espaço de tempo que me fora
concedido pela Justiça da Bahia para eu permanecer com meus
filhos no exterior, não foi tarefa fácil. Ao contrário, foram muitas
as dificuldades, principalmente as financeiras. A bolsa da CAPES
não cobria as despesas de estadia, muito menos as de creche das
crianças. Vivenciei, assim, os problemas que mães de filhos pe-
quenos, mães trabalhadoras enfrentam quando não dispõem dos
recursos necessários para cobrir custos com creches ou cuidadoras
para as crianças. E constatei como minha situação era bastante
distinta da dos homens, meus colegas do Brasil, que também
tinham filhos pequenos. Eles contavam com suas companheiras
para cuidar dos filhos, recebendo apoio extra da CAPES para elas
(as companheiras)!
Fato é que não consegui concluir a tese antes do prazo esta-
belecido pela Justiça da Bahia. E, pouco depois do meu retorno ao
Brasil, Anthony Leeds, meu orientador, faleceu repentinamente.
Fiquei perdida! Ademais, num curto espaço de tempo depois disso,
perdi também minha avó, minha mãe e meu pai. E meu trabalho
de tese ficou parado por anos...
Nesse período, vivenciava-se no Brasil o processo de redemo-
cratização, o movimento pelas Diretas Já e a campanha por uma
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Constituição mais progressista, a partir de emendas populares. O
Grupo Brasil Mulher, do qual eu fazia parte, bem como o NEIM,
viu-se largamente envolvido nessas campanhas. Em especial, nos
voltamos à coleta de assinaturas para as emendas populares perti-
nentes às questões de gênero e direitos das mulheres, envolvendo-
-nos, também, na elaboração da proposta do Capítulo da Mulher,
da Constituição do Estado da Bahia, e em emendas populares para
a Lei Orgânica do Município de Salvador.
Era um momento importantíssimo para o país - de otimismo,
de crença em um futuro cada vez mais democrático e de avan-
ço dos nossos direitos e, também, dos estudos feministas nas
universidades. O NEIM investiu muito nisso. Começamos a nos
envolver com a articulação de redes de pesquisadoras feministas
(a exemplo da Rede Regional Feminista Norte e Nordeste de Es-
tudos sobre Mulheres e Relações de Gênero - REDOR e –a Rede
Nacional de Estudos Feministas - REDEFEM) e na promoção de
cursos, dentre outras atividades, tudo isso me ocupando cada vez
mais e deixando cada vez menos tempo e espaço para a conclusão
da tese. Confesso que, com a efervescência dos desdobramentos
das atividades que desenvolvíamos, acabei deixando a tese de
lado, embora ainda interessada pela temática proposta, ou seja,
gênero, família e trabalho.
Os anos 1990 chegaram, trazendo a exigência da titula-
ção de doutorado para avanços na carreira acadêmica e como
pesquisadoras. Também se impunha como essencial no que se
referia à legitimidade e reconhecimento do feminismo acadêmico
em nosso meio (Sardenberg, 2015d). Para dar continuidade às
atividades de ensino, pesquisa e extensão, nós, integrantes do
NEIM/UFBA, sentimos a necessidade de buscar essa titulação.
Ana Alice Costa e eu entendemos que era o momento de voltar-
mos e retomarmos nossos estudos - ela na UNAM, no México, eu
na BU, nos Estados Unidos - e começamos a preparar o terreno
para a volta.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Nessa época, estávamos trabalhando com o Centro da Mulher
Suburbana - CEMS (hoje Centro da Mulher Baiana) e, principal-
mente, com a Associação de Moradores de Plataforma - AMPLA.
Parte do meu trabalho com a AMPLA envolvia a facilitação de
oficinas com o Grupo de Mulheres Idosas, de Plataforma, vindo
delas a informação sobre a Fábrica São Braz, que ali funcionou
por mais de oitenta anos. Muitas das mulheres participantes do
grupo eram antigas operárias dessa fábrica e me incentivaram a
desenvolver o estudo sobre a história da São Braz e de seu opera-
riado, estudo esse que serviu de base para o desenvolvimento da
minha tese doutoral. Mas minha ideia era dar continuidade aos
estudos sobre gênero, classe, trabalho e família entre as camadas
das classes trabalhadoras que eu havia iniciado com meu trabalho
como documentadora no Projeto do Pathfinder, olhando então
para mulheres operárias.
Para elaborar e defender a tese, apresentei o novo projeto
ao Departamento de Antropologia da Boston University, sendo
readmitida com o reconhecimento de todos os créditos que havia
acumulado anteriormente, e a indicação da Profa. Dra. Sutti Ortiz,
especialista em Antropologia econômica e em América Latina,
como minha orientadora.
Com a aprovação do pleno do Departamento de Antropolo-
gia da UFBA, onde eu estava lotada desde 1982, candidatei-me e
obtive, então, junto a CAPES, uma nova bolsa de doutorado no
exterior para concluir minha tese, permanecendo nos Estados
Unidos de dezembro de 1994 a setembro de 1996. Desta feita, meus
filhos já eram adolescentes (13 e 15 anos) e pressionaram o pai
para que ele lhes concedesse autorização de saída do país comigo,
sem maiores problemas. E já eram suficientemente crescidos, até
mesmo, bastante independentes, de sorte que pude me dedicar à
elaboração da tese.
Tendo em vista que essa tarefa não implicaria em visitas
constantes à Boston University, meus filhos e eu fomos morar na
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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cidade costeira de Gloucester, no Cape Ann, em Massachusetts,
a cerca de 40 minutos de Boston. Cidade pesqueira de renome,
Gloucester atraiu uma população de imigrantes italianos e portu-
gueses, originalmente envolvidos na pesca. E, talvez mesmo por
concentrar uma significativa população de origem portuguesa, a
cidadezinha passou a atrair, também, na época em que lá moramos,
um crescente número de imigrantes brasileiros, principalmente
mulheres, algumas das quais se tornaram nossas amigas.
Para mim e meus filhos foi um período difícil, porquanto o
custo de vida nos Estados Unidos estava acima do que a bolsa e
o salário cobriam. Mas foi um bom aprendizado e um momento
importante de ficarmos próximos. Eu me dediquei totalmente à
tese, passando boa parte da escrita tentando descobrir qual era,
de fato, a minha tese!
Intitulada “In The Backyards of the Factory: Gender, Class,
Power and Community in Bahia, Brazil” - Nos Quintais da Fábrica:
Gênero, Classe, Poder e Comunidade na Bahia, Brasil’- (Sarden-
berg, 1997), a tese versou sobre a presença feminina no antigo
operariado baiano, tendo sido defendida em dezembro de 1996
(foi finalmente traduzida para o português e logo será publicada).
De acordo com os regulamentos da Boston University, contudo, o
título de “PhD in Anthropology” só foi concedido em janeiro de
1997, sendo posteriormente revalidado no Brasil pela Universidade
Federal da Bahia.
De volta a Salvador, mais uma vez, retomei as atividades
acadêmicas, ministrando disciplinas, orientando trabalhos de
conclusão de curso, tanto na graduação, quanto em programas
de pós-graduação. Em especial, participei do corpo docente
tanto do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (aliás,
desde os anos 80, quando ainda era conhecido por Mestrado em
Ciências Humanas), quanto de Antropologia. Confesso, porém,
que me dediquei, sobretudo, ao Programa de Pós-Graduação em
Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
- o PPGNEIM. Esse programa foi, primeiro, um grande sonho da
equipe do NEIM, que desde os anos 1990 acalentava a ideia de um
programa dessa ordem. Em especial, havíamos sido incentivadas
a criar tal programa por Sonia Alvarez, então Diretora da área de
gênero na Fundação Ford, junto com Mariza Navarro, que viera
ao Brasil como consultora da Ford, para avaliar os projetos que o
NEIM desenvolvia com o apoio da Fundação.
Apelidado, por nós, de “Projeto Baby Doll Lilás” (não me
lembro do porquê do nome!), o projeto de pós-graduação do
NEIM era discutido na sala de visitas (com vista para a Bahia de
Todos os Santos!!) da companheira Ívia Iracema Alves, onde ela,
Ana Alice Costa, Alda Motta, Silvia Lúcia Ferreira, Elizete Passos
e eu trabalhávamos em uma proposta a ser apresentada para a
Pró-reitoria de Pós-graduação da UFBA. No entanto, naquela
época, fomos desencorajadas a seguir adiante com a proposta,
pois ninguém acreditava que ela pudesse ser aceita pela Câmara
de Pós-graduação da UFBA, muito menos pela CAPES.
A partir de 2003, porém, novos ventos trazendo o PROUNI,
trouxeram também a possibilidade de avançarmos no sentido da
criação de cursos de pós-graduação inter e multidisciplinares. Por
sugestão do magnífico Reitor, Prof. Dr. Naomar Almeida, apresen-
tamos uma nova proposta de programa, elaborada pela Profa. Ana
Alice Costa e por mim, com a colaboração das demais professoras
e pesquisadoras da equipe do NEIM, logrando aprovação em todas
as instâncias da UFBA e na CAPES. Assim foi criado o PPGNEIM,
com aula inaugural em março de 2006, tendo eu a honra de pro-
ferir essa aula magna.
Foi o primeiro Programa desse tipo, não apenas no Brasil,
mas em toda a América Latina. Mais recentemente, foram cria-
dos programas de doutorado em estudos de gênero em Córdoba,
Argentina, na Universidade de San Cristobal de las Casas, na
Região de Chiapas, México e, no ano passado, o Programa de
Doutorado em Estudos de Gênero na Universidad Autonoma
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Metropolitana de Xochimilco, México, todos inspirados em nossa
ousadia no NEIM.
No PPGNEIM, mesmo aposentada, atuo como Professora
Permanente, ainda que de forma bem mais tímida. No passado, fui
responsável principalmente por disciplinas obrigatórias: a) Semi-
nários de Teorias Feministas I, que resgata algumas das principais
contribuições teóricas feministas nos estudos sobre mulheres e
relações de gênero; b) Seminários de Teorias Feministas II, ofe-
recida só para alunas do doutorado e voltada à crítica feminista à
ciência e para as epistemologias feministas e; c) Seminários Mul-
tidisciplinares de Pesquisa, que se volta para uma reflexão sobre
as pesquisas desenvolvidas dentro das perspectivas feministas.
Confesso, no entanto, que de todas as atividades didáticas
que tenho desempenhado ao longo da minha trajetória acadêmi-
ca, considero como tarefa mais desafiadora, mais enriquecedora
e gratificante na docência, a de orientar alunas e alunos em suas
pesquisas e na elaboração de seus trabalhos de conclusão de cur-
so - monografias, dissertações de mestrado e teses de doutorado.
Para mim, a tarefa de orientação implica sempre em um novo
aprendizado. Acredito mesmo que acompanhar orientandos e
orientandas, desde o processo de construção do objeto e como
abordá-lo, passando pela identificação de descobertas “no campo”,
análise do material coletado até a redação do trabalho final, nos
faz crescer enquanto docentes e pesquisadoras/es. E que prazer
participar do momento de uma defesa bem-sucedida! Sem es-
quecer que esse processo implica muitas vezes na construção de
laços, de amizade e acadêmicos, que poderão nos acompanhar
por toda a vida!
Apesar de uma agenda apertada com minhas responsabilida-
des docentes, jamais abdiquei das lutas feministas na sociedade
como um todo, dedicando-me a uma série de atividades de ex-
tensão em que tenho atuado na qualidade de militante feminista
a partir da academia.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Vale aqui ressaltar que embora o feminismo seja pensado
como “prática política e pensamento crítico” (Ávila, 2004, p.1),
narrativas da história do movimento geralmente alegam que, a
partir dos anos 70, com a emergência dos estudos sobre mulheres
nas universidades, foi se estabelecendo, aos poucos, uma suposta
divisão do trabalho, ficando a prática política com os movimentos
feministas e o pensamento crítico, teórico, com as ditas “feminis-
tas acadêmicas”. Conforme destaquei no artigo sobre a “História e
Memória do Feminismo Acadêmico no Brasil” (Sardenberg, 2022),
segundo essas narrativas, isso levou a um afastamento cada vez
maior entre esses dois espaços, de sorte que a teoria feminista,
produzida na academia, deixou de ser relevante para o movimento.
Esse tem sido o motivo constante de intermináveis discussões
com minhas amigas feministas que não atuam na academia e que
teimam em afirmar, “nós, do movimento”, “vocês, da academia”.
Creio, porém, que se trata de uma das principais ‘fábulas’ que
persistem no pensamento feminista, dando origem à boa parte das
críticas ao feminismo acadêmico. Faço uso aqui do termo “fábu-
la”, pois, desde que me embrenhei pelos caminhos do feminismo
acadêmico, tenho atuado muito mais como militante dentro da
universidade e da academia, do que produzindo teoria. Na verdade,
há anos que venho argumentando que “fazer feminismo” nas uni-
versidades, pelo menos nas brasileiras, é uma ação política, pois
vai muito mais além do que desenvolver estudos e pesquisas, ou
ministrar disciplinas, sobre mulheres, gênero e feminismo. Aliás,
para conseguirmos chegar aí (desenvolvendo essas pesquisas e
oferecendo esses cursos), foram muitos esforços empenhados na
luta pela conquista do reconhecimento da legitimidade de nosso
campo. Mas a fábula mencionada ainda permanece no imaginário
de militantes feministas...
Creio que parte do problema reside nos conceitos com os
quais temos trabalhado; eles nos levam a pensar em movimento
social e feminismo acadêmico como formações políticas femi-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
nistas radicalmente distintas, ainda que abarcadas pelo guarda-
-chuva “feminismo”. No meu entender, trabalhar, outrossim, com
a noção de campo feminista e, mais precisamente, com a noção de
campos discursivos de ação feminista, proposta por Sonia Alvarez
(2014), nos permite melhor apreender os processos de trocas,
conexões, tensões entre diferentes campos de ação feminista,
reconhecendo todos como formações políticas, de militância.
Segundo Alvarez, campos discursivos de ação feminista, tal
como outros campos de ação, se “[...] articulam, formal e infor-
malmente, através de redes político comunicativas”, costuradas,
por assim dizer, “[...] por cruzamentos entre pessoas, práticas,
ideias e discursos”. Elas interconectam grupos, ONGs, indivíduos
em diferentes espaços na sociedade civil, na sociedade política,
Estado, academia etc. Além disso, como ressalta a mesma auto-
ra, os campos também se articulam “discursivamente através de
linguagens, sentidos, visões de mundo pelo menos parcialmente
compartilhadas, mesmo que quase sempre disputadas, por uma
espécie de gramática política que vincula as autoras/es que com
eles se identificam (Alvarez, 2014, p. 18)”.
Conforme observou Margareth Rago (1996, p. 17), o femi-
nismo teve “um profundo impacto na academia e na produção
científica”. Por certo, o reverso também tem sido verdade, ou seja,
o feminismo acadêmico, enquanto campo discursivo de ação femi-
nista, também tem tido um “profundo impacto” nos demais cam-
pos de ação feminista, tanto os que se multiplicam na “sociedade
civil”, quanto na chamada “sociedade política” e no Estado. Ora,
uma das características especiais dos feminismos acadêmicos na
América Latina, no Brasil em particular, tem sido justamente essa
sua maior articulação com outros campos, sobretudo nos campos
de ação de ONGs, da sociedade política e do Estado. Na verdade,
há um grande entrecruzar desses campos, com deslocamentos de
militantes de um para outro campo ou mesmo atuação em vários
ao mesmo tempo.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
De fato, em seu livro, El feminismo en mi vida, Marcela Lagarde,
antropóloga feminista mexicana, assim escreveu:
El feminismo constituye una cultura que, en su globali-
dad, es crítica de uno sujeto social - las mujeres -, a la
sociedad y a la cultura dominantes, pero es mucho más;
es afirmación intelectual, teórica y jurídica de concep-
ciones del mundo, modificación de hechos, relaciones
e instituciones; es aprendizaje e invención de nuevos
vínculos, afectos, lenguajes y normas; se plasma en una
ética y se expresa en formas de comportamiento nuevas
tanto de mujeres como hombres. Como nueva cultura, el
feminismo es también uno movimiento político público
y privado que va de la intimidad a la plaza; movimiento
que se organiza, por momentos con mayor éxito, para
ganar pedazos de vida social y de voluntades a su causa,
y para establecer vínculos y encontrar su sitio en otros
espacios de la política (Lagarde, 2013, p. 555).
Viver o feminismo, portanto, é vivê-lo em todos os espaços
pelos quais circulamos, atuando nos diferentes campos de ação
feministas, “da intimidade à praça”, das salas de aula para as ruas.
Acredito que, em minha vida, tem sido assim. Tenho desenvolvido
ações feministas desde os anos 70, quando comecei a me cons-
cientizar das profundas desigualdades impostas na sociedade pela
ordem patriarcal vigente nos países que conheci.
Como observei anteriormente, participei de um grupo da
NOW, em Edwardsville, Illinois, no início dos anos 70, integrando
depois grupo semelhante em Normal, Illinois, para onde me mu-
dei em 1974, enveredando, depois, para um grupo mais radical,
um grupo de conscientização e ação. Na Illinois State University,
fiz também parte do grupo que criou a Student Association for
Women - SAW, a Associação para Mulheres Estudantes, em 1975
e, em Boston, cursando o Doutorado na Boston University, fui
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
uma das antropólogas feministas responsáveis pela Women in
Anthropology Newsletter Collective, o Coletivo de Mulheres na
Antropologia, da BU, frequentando, também, cursos no Women’s
Health Collective, o Coletivo de Saúde das Mulheres em Cambrid-
ge, Massachusetts, com o grupo que elaborou o livro Our bodies,
Ourselves - ossos Corpos, Nossas Vidas,), bíblia para minha geração
de mulheres no conhecimento de nossos próprios corpos, tradu-
zido para o português como Nossos Corpos, Nossas Vidas.
Chegando em Salvador, conheci o Grupo Feminista Brasil Mu-
lher, o primeiro grupo feminista de Salvador, tornando-me parte
dele algum tempo depois. Em 1983, junto a colegas da Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, fiz parte também do grupo fun-
dador do NEIM - sou também mãe do NEIM! - onde venho atuando
de diferentes formas no campo dos Feminismos Acadêmicos no
Brasil, sendo, de fato, parte dessa história. Mas fomos além!
De fato, como integrante do NEIM e do Brasil Mulher, par-
ticipei do Fórum de Mulheres de Salvador, desde a sua criação
em meados dos anos 1980, época em que lutamos pela conquista
de nossos direitos na Constituição Federal (1988) e, aqui, na
Constituição da Bahia (1989), bem como na Lei Orgânica do Mu-
nicípio (1989). Lutamos pela criação dos Conselhos de Direitos
da Mulher, o municipal e o estadual (fiz parte do primeiro!), e
pelas Delegacias Especiais de Atendimento às Mulheres. Luta-
mos por creches comunitárias, por centros de referência, por um
atendimento de fato especializado para mulheres em situação
de violência. Trabalhamos com o Sindicato de Trabalhadoras
Domésticas, com o Sindicato de Comerciárias, fazendo pesquisas
para a Federação Nacional de Metalúrgicos e, com o Setor de Gê-
nero do MST, organizando oficinas para os seus acampamentos
anuais, em Salvador.
Criamos no NEIM, também, um espaço para o OBSERVE, Ob-
servatório de Monitoramento de Aplicação da Lei Maria da Penha,
produzindo, como parte de um consórcio da sociedade civil com
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
vários núcleos e organizações feministas dos quatro cantos do
país, instrumentos de coleta de dados e informações pertinentes
para esse monitoramento.
Com o apoio do Projeto Trilhas do Empoderamento de Mu-
lheres - TEMPO (Pathways), um projeto que desenvolvemos com
o Institute of Development Studies - IDS, da Inglaterra, levamos
o NEIM para ocupar a Mudança do Garcia, no Carnaval, com um
protesto das mulheres de Salvador, demandando a criação da Se-
cretaria de Políticas para Mulheres. Fomos ao Congresso Nacional
promover um Seminário Internacional sobre Reforma Política e
Cotas para Mulheres. Prestamos, também, assessoria para a Supe-
rintendência de Políticas para Mulheres do Município, assim como
para a Câmara de Vereadores de Salvador e para a Comissão da
Mulher na Assembleia Legislativa da Bahia. Junto com essa Comis-
são, encampamos a luta em defesa da aprovação do Projeto de Lei
conhecido por “Anti-baixaria”, proibindo o uso de verbas públicas
para o pagamento de artistas que cantam músicas legitimando a
violência e desqualificando mulheres, negros e homossexuais.
Saímos também às ruas, na Marcha das Vadias, no 8 de mar-
ço, na luta pela Democracia - sempre! - defendendo os direitos e
qualidade de vida das mulheres. Para tanto, participamos, inten-
samente, das conferências municipais, estaduais e nacionais de
políticas para mulheres, e até mesmo em conferências da ONU,
levando adiante um projeto de transformação da sociedade e
combate ao sexismo, ao racismo, às lesbo-homo-bi-transfobias e
desigualdades socioeconômicas resultantes do nosso capitalismo
selvagem e da ação nefasta de bolsonaros e bolsominions, no
nosso mundo.
Ao longo das décadas, articulamo-nos com pesquisadoras
feministas no país todo e, em especial, no Norte e Nordeste,
rompendo também fronteiras nacionais para articular nossa luta
e produção de conhecimentos com pesquisadoras e centros nas
Américas, na Europa, na Ásia e na África. Na UFBA, inovamos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
criando novos cursos de pós-graduação (de especialização, mes-
trado e doutorado) sobre estudos feministas e, na graduação, o
Bacharelado em Estudos de Gênero e Diversidade, trazendo a des-
construção das ideologias de gênero para a universidade. Criamos,
também, um novo departamento: o Departamento de Estudos de
Gênero e Feminismos, único no país. Fizemos, ainda, revoluções
constantes em nossas vidas, construindo nesses espaços, em todos
os espaços, tramas de solidariedade feministas.
Creio que, como praticante da antropologia feminista e in-
tegrante da equipe do NEIM, venho vivendo o feminismo no meu
dia a dia, há mais de cinco décadas - hoje, é verdade, cada vez
menos nas ruas e mais nos espaços virtuais, no Facebook, Twitter
e WhatsApp! Para concluir esta minha já longa carta a vocês, mi-
nhas jovens companheiras, falando do que tem sido viver tudo
isso, tomo a liberdade de reproduzir aqui trechos de um livreto
que denominei de Diários da Independência, escrito durante o
ano de 1991:
Porque nasci fêmea e me criaram menina, “tornei-
-me mulher”. Não sei se por azar ou por sorte, sou
parte de uma geração de mulheres que questionaram
seu lugar na família, na sociedade, no mundo e na
história. Mesmo com todos os percalços que isso
implicou e apesar das cabeçadas, das frustrações e
todo o sofrimento que vêm junto com o nosso nos
tornarmos “sujeitos na história”, não quero voltar
atrás. Na verdade, não poderia fazê-lo, mesmo que
assim quisesse. Não dá para passar a borracha por
cima e esquecer tudo que já passei para chegar até
aqui! (Salvador, 12/06/1991).
Dizem que geminianos são “fadados ao sucesso”.
Continuo, portanto, esperando que esse sucesso
chegue logo. Enquanto isso, vou compondo este
relato, um tanto tortuoso, eu sei, de como cheguei
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
até aqui, sem saber ainda muito bem ou ao certo
para onde irei daqui pra frente! O que importa, no
momento, é apenas compor este relato: para quem?
Para mim? Para a posteridade? Porque escrever
é preciso, posto que levar para o túmulo tantas
experiências sem poder compartilhar com meus
pares - as mulheres de minha geração, que viveram
muito disso comigo - será como se não tivesse de
fato vivido tudo isso.
Não porque acredite que minhas experiências te-
nham sido únicas, peculiares, especiais. É justamente
porque não foram, porque refletem a vivência de uma
geração - e, sobretudo, das mulheres dessa geração -
que, como feminista, sinto-me no dever de relatá-las.
Hão de servir para algo, para alguém, para se compor
um retrato de vivência concreta - e as representações
e práticas - de pelo menos parcela dessa geração de
mulheres que ousou - ou tem ousado - botar a boca
no trombone, gritar por seus direitos, denunciar a
discriminação sofrida e se insubordinar, rompendo
com o passado, com as amarras, com os papéis e
lugares que nos foram impostos.
E é preciso reconhecer: é difícil fazê-lo. Tem sido
desgastante nadar contra a corrente, desbravar no-
vos caminhos. Porque o caminho que percorremos
é marcado por altos e baixos, por idas e voltas e
reviravoltas. Não é um percurso linear. E há tantas
batalhas para se vencer ainda, inclusive dentro de
nós mesmas! (Salvador, 04/10/1991).
“O que procuro atualmente? Sobretudo, paz de
espírito. Só que meu espírito não poderá estar em
paz com tanta injustiça, tanta tristeza, tanto ódio
e dor ao meu redor. Como ter paz sem resolver os
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
conflitos que tumultuam os meus sonhos, os con-
flitos não resolvidos dos meus afetos e desafetos?
E os conflitos que advêm do próprio processo de
amadurecimento (envelhecimento?), da consciência
de chegar à “meia-idade” e de constatar que ainda
há tanto por fazer e tão pouco tempo para fazê-lo?”
(Salvador, 05/10/1991).
Por fim, deixo aqui uma curta mensagem: À luta, compa-
nheiras!
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73
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
DOCÊNCIA FEMINISTA RECORDADA:
CARTA-TRIBUTO A ANA ALICE ALCÂNTARA,
PRESENTE!!
Zuleide Paiva da Silva (Eide Paiva)
Ana Lúcia Gomes da Silva
Amélia Tereza Santa Rosa Maraux
Novamente nos encontramos juntas para mais uma escrita
coautoral, afetada e militante, dentre tantas já produzidas. Esta,
vem através dos gestos de afetos e recordações no gênero carta
pedagógica feminista1 para uma docente presente em nós, para
1 O gênero textual carta pedagógica foi um recurso utilizado no componente Pe-
dagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais. Recurso este, bastante adotado
na educação como dispositivo metodológico, avaliativo e formativo, assim como
nas pesquisas qualitativas em Educação para promover a reflexão, o diálogo e a
troca de experiências entre educadoras/es e estudantes. Elas geralmente contêm
informações, reflexões e orientações sobre práticas pedagógicas, estratégias de
ensinagens e aprendizagens, e podem ser utilizadas como dispositivo de formação
para o nosso desenvolvimento profissional, assim como para estabelecer diálogos
que tomam a experiência com formação e demarca o compromisso ético-político
da/o pesquisadora/r no movimento educativo de pesquisas participativas coori-
zontais, que rasuram processos de colonização do saber, potencializando nossa
formação docente e nossa prática pedagógica. É uma escrita dialogada que no geral
se apresenta de forma criativa e interativa, e compartilha conhecimento produzido
em destinos espaços formativos escolares e não escolares. Tem como inspiração as
bases da educação freiriana e popular. Uma carta pedagógica feminista, portanto,
ao trazer o adjetivo, convoca docentes, estudantes e sociedade em geral para uma
ação intencional, política, estética, epistêmica e ética, como requer a uma práti-
ca engajada e encarnada que adota e advoga uma educação como justiça social,
justiça epistêmica e justiça curricular. Defende a política da diferença através das
diversidades, diferença e diferenças que se evidenciam nos marcadores sociais de
gênero, sexualidades, classe social, geração, raça e etnia e deficiências, numa luta
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
todo o sempre: nossa amada Ana Alice Alcântara. Nossa primeira
professora feminista, uma das fundadoras do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares sobre a Mulher, da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), ativa participante do movimento “Lobby do Ba-
tom”, uma articulação política que resultou na implementação de
direitos (sobretudo, da personalidade) da mulher na Constituição
Federal de 1988 (Prezotto; Fachin, 2020).
Saudade nos define nesse instante!
Quanto tempo, tanto que a lembrança saudosa virou pre-
sença e enxergamos a querida Professora Ana Alice Alcântara
Costa, “guerreira e forte para todo o sempre” (1951-2014). Nós
a vemos-sentimos semente dos feminismos que nos ensinam
a transgredir-viver a vida em movimento de afeto e luta po-
lítica. Enxergar alguém que partiu para o orum, é ver-sentir
a sua presença vivida, recordar, acessar memórias-histórias,
experiência.
“Cachaceando”, isto é, conversando com Daniela Auad (2021),
entendemos que recordar é um ato político, ético, afetivo, gene-
roso, dialógico. Como bem pontua essa querida Auad, “Recordar
permite conversar de novo com quem não está mais entre nós, mas
deixou um texto para lermos e, então, entendermos, enfim, algo
que não tivemos, em outras épocas, maturidade para compreen-
der” (p. 2). Com esse entendimento recordamos, sem nunca ter
esquecido, a querida Alicinha, nossa primeira professora feminista.
É para ela que escrevemos essa carta-escrita-amor, produto das
pedagogias feministas e decoloniais que ela nos inspira a ensinar-
-aprender.
a favor da vida e das distintas formas de existência no mundo. Para saber mais ver:
Paulo (2018, 2020), Paulo e Dickmann (2020), Camini (2021), Paulo e Gaio (2021),
Paulo e Piletti (2022), cujos estudos foram sistematizados no artigo intitulado:
Cartas Pedagógicas como Instrumento Metodológico de Pesquisas Participativas
de Fernanda dos Santos Paulo, publicado na Rev. Inter. Educ. Sup. Campinas, SP, v.
9, p. 1-15, 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Essa carta-escrita-amor é de reconhecimento e agradecimen-
to. Registramos aqui o entrelaçamento de memórias, histórias
nossas. Recordamos encontros de ensinagens, aprendizagens.
Nesse movimento de saudade e afeto, compreendemos a
importância da querida mestra, em nossa trajetória formativa e
dizemos para ela o que não nos foi possível dizer antes, por falta
de tempo ou compreensão. Escrevemos na primeira pessoa, ora
no singular, ora no plural. Somos inspiradas em Glória Anzaldúa
(2000), que nos impele a escrever para nos salvar da complacência
que nos amedronta, para nos manter vivas, e manter vivo o espírito
da revolta em nós. Também inspiradas em bell hooks (2021) que
muito nos ensina sobre o amor em sua trilogia Tudo sobre o amor:
novas perspectivas, quando nos convoca primeiro a compreender o
que é o amor, com clareza e sagacidade política, de vida e de luta.
Destacando que, de modo recorrente, muitas vezes escutamos
discursos sobre o amor como sinal de fraqueza e irracionalidade,
bell hooks defende que o amor é mais do que um sentimento - é
uma ação capaz de transformar o niilismo, a ganância e a obses-
são pelo poder que dominam nossa cultura. Assim, por esta carta,
materializamos um pouco do nosso amor, da ética amorosa e da
militância que aprendemos com ela. Como docente feminista,
defendemos que, sim, é possível pela educação estabelecermos
alianças capazes de edificar uma sociedade verdadeiramente igua-
litária, fundamentada na justiça epistêmica e curricular, pautadas
na defesa do bem-estar coletivo.
Querida Ana Alice,
Você está registrada na memória dos nossos corpos não con-
formados à heterossexualidade compulsória. É viva, pulsante, a
lembrança da sua presença cor-lilás, a cor dos nossos feminismos
que corria em suas veias, cobria seu corpo e seus gestos. Seu corpo
falava como um texto-vivo e encarnado, e como também defende-
mos, fazia pesquisa encarnada que, para nós, é imprescindível, pois
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
no corpo habitam desejos, saberes, experiências, medos, pulsões
de vida, de morte, como parte da existência humana. Ao falarmos,
o fazemos com o corpo inteiro, olhos, bocas, cheiros, respirações,
gestos, risos, braços em movimentos, compondo nosso texto que
transcende ao texto verbal e se enreda nos gestos, figurino, adere-
ços, que compõem o corpo como território de saber-poder. Assim
você se apresentava e se mostrava para nós.
Este trecho da bell hooks na obra supracitada nos convoca a
tecer com suas narrativas-imagética, a seguir, como expressão de
luta e docência pública, luta coletiva-docência pesquisa, docência-
-humana, ao nos afirmar: “[...] conhecer o amor ou a esperança
de conhecer o amor é a âncora que nos impede de cair num mar
de desânimo profundo” (hooks, 2021, p. 57).
Tomamos afeto como concebe bel hooks (2021) e destaca
a autora Silvane Silva no prefácio da edição brasileira, ao nos
apontar que o desafio é colocarmos o amor na centralidade da
vida. bell hooks afirma que começou a pensar e a escrever sobre
o amor quando encontrou “cinismo em lugar de esperança nas
vozes de jovens e velhos”, e que o cinismo é a maior barreira que
pode existir diante do amor, porque ele intensifica nossas dúvidas
e nos paralisa; bell hooks nos convoca a regressar ao amor. Se o
desamor é a ordem do dia no mundo contemporâneo, falar de amor
pode ser revolucionário, como potência e como intencionalidade
política de ação e não como romantização piegas. Ana Alice falava
e praticava o amor.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Imagem 1 – Ana Alice e/em Nós. Folia Feminista, Salvador/BA (2009).
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Desde que te conheci, em 2006, e recebi-senti o seu abraço
acolhedor, o lilás-feminismo colore minha-nossas vidas lésbicas,
e pelas trilhas dos nossos feminismos, desde então, seguimos
construindo professoralidades lésbicas feministas, marcas que nos
constituem singularizando nosso modo de ser-viver professoras
lésbicas feministas.
Imagem 2 – Na militância pelos direitos lesbofeministas.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Impossível esquecer, por mais que eu tente, que te conheci
em situação de lesbofobia, ameaçada através de uma carta anôni-
ma com ameaça de curra e de morte, com requinte de crueldade.
Imagem 3 – Carta Anônima.
Fonte: Arquivo pessoal, 2024.
Essa história de violência, como você me incentivou a fazer na
ocasião, eu contei, denunciei, escrevi, problematizei. Como narra-
do anteriormente (Silva, 2011, 2017, 2021), o contato direto com
a lesbofobia afetou minha autoestima, me desmontou, adoeceu,
enfureceu e acionou toda a memória do meu corpo tantas vezes
violado. Naquele instante, tive a consciência da vulnerabilidade
do meu corpo lésbico, um corpo político marcado pelo gênero e
pela sexualidade para morrer e para viver na resistência. Esta nova
consciência foi arrebatadora, refletiu em todas as minhas ações e
interações, exigindo tomada de decisão.
Decidi não morrer, nem enlouquecer de medo, dor ou vergo-
nha. Pedi a Exu, o senhor das encruzilhadas, que me apontasse
caminhos; a Oxum, minha mãe, pedi que me cobrisse com seu
ouro. Exu apontou-me o PPG NEIM-UFBA, como um caminho de
resistência.
80
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Amelia Maraux, que para além de ter sido sua aluna era sua
companheira de militância no Partido das/os Trabalhadoras/es,
levou-me-acompanhou até o PPG-NEIM. Tudo que eu queria era
encontrar um espaço acolhedor, onde eu pudesse me fortalecer,
teórica e politicamente, para enfrentar e superar a violência, não
sucumbir-fugir-sair de Coité.
Lá chegando, com as bênçãos de Oxum, fomos recebidas por
você. Amélia me apresentou, e iniciou a conversa sobre a minha
situação em Conceição do Coité. Você, usando um vestido de linho
lilás, tipo tubinho, com os cabelos tingidos de vermelho, soltos ao
vento, abraçou-me dizendo que eu podia contar com você e com
o PPG-NEIM. E eu contei. E gravei na memória do copo aquela
imagem linda, um instante de solidariedade feminista. Te vi-senti
bruxa-feiticeira-guerreira. Fogo-Poder-Luta. Encanto puro. Den-
tro de mim cresceu a certeza: vou resistir.
Você acolheu-me na Faculdade de Filosofia e Ciências Huma-
nas da UFBA, em São Lázaro, onde Ana Lúcia e eu nos reencon-
tramos depois de algum tempo afastadas, desde que saí da UNEB
- Campus IV/Jacobina. Foi um duplo (re)encontro. Você nos inseriu
nas ondas dos nossos feminismos. No cotidiano da sua sala de
aula, como alunas dos componentes “Gênero e Poder” e “Gênero e
História”, aprendemos a importância da “solidariedade feminista”,
que você tanto ensinava praticando. Aprendemos, em especial, a
importância de incluir o pensamento feminista nos currículos, na
formação docente, tecendo cotidianamente a humana docência
sendo professoras de carne e osso, autorais.
Lembramos, emocionadas, de uma aula que você desenhou
no quadro (então negro) a potência, o alcance e o poder trans-
formador de uma ação feminista na universidade, na escola e
demais espaços formativos. Você defendia a institucionalização
do pensamento feminista, e nos vimos no feminismo acadêmico
que você promovia o caminho de resistência no Campus XIV.
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Um caminho que eu, Eide, já estava trilhando, sem, contudo,
identificá-lo como expressão do feminismo acadêmico, isto é,
ativismo feminista dentro da universidade, um campo discursivo
de ação feminista (Sardenberg, 2020).
Como nos lembra a querida Cecília:
[...] quem se embrenha pelos caminhos do feminismo
acadêmico no país, logo percebe que suas protago-
nistas fazem militância quase que cotidiana dentro
da universidade e em outros espaços científico-
-acadêmicos, seja no campo do ensino, da pesquisa
ou da extensão universitária, militando lado a lado
com outros grupos feministas e de mulheres do “mo-
vimento social” (Sardenberg, 2020, p. 87).
Inspirada por você e pela querida Ceci, enfrentei a lesbofobia
na UNEB, investindo no feminismo acadêmico produzido-ensina-
do pelo NEIM/UFBA, desde a sua criação, tendo você como uma
das fundadoras. Para tanto, você me incentivou a fazer a seleção
para o doutorado no PPG-NEIM. Eu que já tinha feito o Mestrado
Profissional em Gestão Integrada de Organizações, oferecido pela
UNEB, em parceria com a UNIBAHIA, senti-me insegura, e esco-
lhi fazer a seleção para o mestrado, temendo as provas de língua
estrangeira. Para minha surpresa e alegria, fui aprovada entre as
primeiras colocadas. Como o meu propósito de pesquisa era o de
investigar o fenômeno da violência contra mulheres, em Conceição
do Coité, não pude ser orientada por você, que me indicou Cecília
Sardenberg; e a você, sou grata por essa indicação.
Atendendo ao seu pedido, a querida Cecília me ajudou, ensi-
nou, orientou. Ela, assim como você, me fortaleceu e me inspirou
na produção de conhecimento, nas lutas pelo fim da violência
contra as mulheres, em outras frentes de luta. Vocês duas me
ensinaram, e eu aprendi a reconhecer as teorias feministas como
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ferramentas para enfrentar o patriarcado, apreendido como um
sistema de poder, que coloca os homens no topo da hierarquia
social e mantém as mulheres em posições subordinadas. Aprendi
e sigo aprendendo a enfrentar o androcentrismo da ciência pro-
duzindo ensino, pesquisa e extensão feminista.
Através de você e Cecília Sardenberg, conheci a “Campanha
de 16 dias de ativismo pelo fim da violência contra as mulheres”,
campanha internacional criada em 1991 por um movimento de
mulheres feministas, vinculadas ao Centro para a Liderança Glo-
bal das Mulheres. Incentivada por você, exercitando o feminismo
acadêmico, em 2006, criei o projeto de extensão “Campanha de
16 dias de ativismo na UNEB pelo fim da violência contra as mu-
lheres”, um movimento feminista que se apresenta à comunidade
acadêmica e à sociedade baiana como um movimento de leitura
e intervenção social, rumo à educação para a diversidade e ao
enfrentamento à violência contra as mulheres.
Desde a sua criação, esse projeto, hoje coordenado pela pro-
fessora Amélia Maraux, tem investido no diálogo entre a univer-
sidade, movimentos sociais e o Estado, como estratégia política
e metodológica e epistêmica de modo a avaliar as conquistas
das lutas feministas, os avanços nas políticas públicas e refletir
experiências de enfrentamento à violência, assim como refletir
a conjuntura política, social e econômica produtora de múltiplas
faces da violência contra as mulheres.
A partir de enlaces teóricos e metodológicos, buscando
ampliar e fortalecer os feminismos acadêmicos no Campus XIV,
no mesmo ano, criei no Campus XIV – UNEB o projeto “GLEI-
GS - Grupo de Leitura e Estudos Interdisciplinares de Gênero e
Sexualidade”, com o propósito de fortalecer e ampliar o campo
dos estudos feministas na graduação, pós-graduação, educação
básica, em outros espaços de educação e na comunidade em geral,
assegurando e democratizando a produção, a difusão e o acesso
à literatura feminista na graduação. Em 2017, após meu processo
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de doutoramento, o GLEIGS foi integrado ao Grupo de Pesquisa
FEL, e desde então tem-se constituído corpovivo, em movimento
de extensão da Linha “Gênero, Sexualidade e Educação”.
Rememorando essas experiências, compreendo que o projeto
GLEIGS, assim como o projeto Campanha de 16 dias de ativismo
na UNEB pelo fim da violência contra as mulheres, primeiros pro-
jetos de extensão do Campus XIV situados no campo dos estudos
feministas, são trilhas que abri e caminhei para enfrentar e superar
a lesbofobia com tantas outras colegas e amigas que a UNEB nos
deu. Em conjunto, esses projetos fomentam o pensamento crítico,
a criação e o fortalecimento de comunidades de aprendizagens,
capazes de fortalecer o compromisso individual e coletivo com a
educação democrática, com a justiça social e epistêmica. Também
compreendo que esses projetos seguem em movimento na UNEB,
porque você, querida Ana Alice, juntamente com Cecília Sarden-
berg me/nos mostraram o feminismo acadêmico como caminho
de empoderamento feminino.
Por esse caminho tenho seguido. Hoje, chorando sua ausên-
cia, sentimos sua presença, agradecemos por tudo e por tanto.
Partiu para o orum, lutando contra uma doença devastadora, e
nunca iremos nos esquecer de quão dolorosa foi a sua partida
para todas nós; do mesmo modo que nunca iremos nos esquecer
do quão importante você foi e segue sendo para cada uma de nós.
Seu legado é gigante. E gigante também é a legião de femi-
nistas que segue cuidando, ampliando, fortalecendo seu legado
epistêmico de afeto e lutas feministas. Orgulho-me de ser-estar
entre elas. Somos gratas ao universo e a energia que nos constitui,
atravessa, movimenta e desloca, por nos ter permitido encontrar
você em sua breve vida. Sim, breve, brevíssima vida.
Ainda dói, e muito, a lembrança do momento que nos des-
pedimos do seu corpo. Choro-dor-emoção-tristeza em multidão.
Rememoramos novamente suas aulas e as rodas de leitura em que
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as contas no quadro-negro [naquela época] eram matematicizadas
para demarcar a conta que fazia e como seria multiplicada em
grandes números de docentes feministas, estudantes feministas,
pois se cada uma ali presente na aula tinha no mínimo três a cinco
turmas de estudantes, e se ao menos uma ou um se tornasse um
docente-feminista, estaria assim realizando a polinização como
faz a flor dente de leão2, que poliniza grandes distâncias mesmo
sem luz solar suficiente. Também alargava a nossa concepção de
sala de aula, tendo-a como espaços escolares, mas também não
escolares.
Eu, Amélia Maraux, jamais me esquecerei de que você, querida
Ana Alice, esteve presente na minha formação intelectual e polí-
tica, em especial na militância no Partido das/os Trabalhadoras/
es - PT, onde juntas, com a saudosa Luiza Bairros, Cecília Sarden-
berg, Terezinha Gonçalves, Valdeci Nascimento, Vilma Reis, Janja
Araújo, Anhamona Brito, dentre tantas feministas do PT, criamos a
“Expressão Feminista”, uma corrente política que ousou de forma
radical questionar as desigualdades de gênero, raça e sexualidade
no interior do Partido. Na ocasião, com a colaboração e incentivo,
produzimos um documento denunciando a estrutura sexista, ra-
cista e heteronormativa que forjava e ainda segue constituindo o
Partido. É verdade, companheira, não conseguimos romper com
as desigualdades de gênero que ainda hierarquizam as relações
partidárias.
Você partiu; Luiza Bairros também nos deixou. Foi para o
orum. Sem vocês nos dispersamos, e a Expressão Feminista dei-
xou de existir. Porém, os princípios políticos e afetivos que vocês
duas nos ensinaram, em movimento, nos atravessam na militância
onde quer que estejamos. E estamos em todos os lugares. Somos
muitas. Somos frutos do feminismo que vocês fomentaram e
protagonizaram na Bahia, no Brasil.
2 Os dentes-de-leão são capazes de se reproduzir quando não há luz solar suficiente para abrir
os botões de flores. Nesse caso, as partes masculinas polinizam as partes femininas contra
as quais são pressionadas.
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Em multidão, hoje te saudamos. Para ser feminista, como você
sempre nos dizia, precisa ter coragem. Exatamente por isso, eu,
Ana Lúcia, convido Jorge Larrosa e Walter Kohan (2017) para mais
uma nota dialógica contigo, porque eles nos convocam, juntamen-
te com você, a pensar sobre e com a experiência como aquela que
dá sentido à escritura, e não a verdade, já que o objetivo da escrita
como experiência nos agencia a escrever com a finalidade de
transformar o que sabemos e não para transmitir o
já sabido. Se alguma coisa nos anima a escrever, é a
possibilidade de que esse ato, essa experiência em
palavras, nos permita liberar-nos de certas verdades,
de modo a deixarmos de ser o que somos para ser
outra coisa, diferentes do que vimos sendo. Também
a experiência, e não a verdade, é o que dá sentido à
educação. Educamos para transformar o que sabe-
mos, não para transmitir o já sabido. [...] (Larrosa;
Kohan, 2017, p. 11).
Neste processo de (trans)formação, fomos agraciadas com
a leitura como banquete e iniciação quando traz os desafios e
experiências-experimentos da docência feminina e feminista, que
você, querida Ana Alice Alcântara Costa, como semente feminista
sempre presente, nos ensinou e deixou como legado!
Encerramos esta carta pedagógica feminista em forma de
abraço afetuoso, com a canção Tempo Rei, de Gilberto Gil (1984),
por nos convocar para a (trans)formar as velhas formas do viver,
do habitar à docência como professores/as militantes nômades.
Não me iludo
Tudo permanecerá do jeito que tem sido
Transcorrendo, transformando
Tempo e espaço navegando todos os sentidos
Pães de Açúcar, Corcovados
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Fustigados pela chuva e pelo eterno vento
Água mole, pedra dura
Tanto bate que não restará nem pensamento
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Pensamento
Mesmo o fundamento singular do ser humano
De um momento para o outro
Poderá não mais fundar nem gregos nem baianos
Mães zelosas, pais corujas
Vejam como as águas de repente ficam sujas
Não se iludam, não me iludo
Tudo agora mesmo pode estar por um segundo
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Transformai as velhas formas do viver
Ensinai-me, ó, pai, o que eu ainda não sei
Mãe Senhora do Perpétuo, socorrei
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei
Tempo rei, ó, tempo rei, ó, tempo rei.
De igual modo, ao experienciarmos a experiência-experimen-
to das aprendizagens da educação para/com/na morte, estampada
na transitoriedade da vida que escorre por entre nossos dedos em
um segundo, em que cada segundo importa para experimentar o
amor gestado, parido, com suas nuances de dores e de humanidade,
mas você não está só. Seguimos contigo nesta aventura que é viver.
Sinta-se abraçada eterna mestra Ana Alice, Alicinha!!
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REFERÊNCIAS
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AUAD, DANIELA. Caminhos entrelaçados: Feminismos e Lesbianidades na
Pesquisa em Educação. Revista Estudos Feministas, v. 29, p. 1-15, 2021.
hooks, Bell. Tudo sobre o amor: novas perspectivas. São Paulo: Editora Elefante:
2021.
LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. 6 ed. Rev.
amp. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2017. In: Apresentação da coleção (coord.
Jorge Larrosa e Walter Kohan), p-11-17.
PAULO, Fernanda dos Santos. Cartas Pedagógicas como Instrumento Metodológico
de Pesquisas Participativas. Rev. Inter. Educ. Sup. Campinas, SP, v. 9, p. 1-15,
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PREZOTO, Juliana Luiz; FACHIN, Zulmar Antonio. A Carta das mulheres
brasileiras à Constituinte de 1987-88: espaço de conquista de direitos da mulher.
In: COPENDI -Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito
Florianópolis Santa Catarina. Constituição e democracia I (Recurso eletrônico
on-line). Florianópolis: COPENDI, 2020, p. 41-60. (9) A Carta das Mulheres
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Raça Humana, 1984. In: https://www.letras.mus.br/gilberto-gil/46247/. https://
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xcb6v-VQ. Acesso em 10 de mai. de 2024.
SARDENBERG, Cecilia. História e memória do feminismo acadêmico no Brasil:
o núcleo de estudos interdisciplinares sobre a mulher - NEIM/UFBA (1983-2020).
Revista Feminismos, v. 8, p. 82-121, 2020.
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GINGAS 2
CARTAS PEDAGÓGICAS FEMINISTAS:
ESCRITAS IN ( TER ) VENTIVAS
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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CARTA PARA UMA PROFESSORA MUITO
AFETUOSA E INSPIRADORA
Vitalina Silva
Minha Querida Edite,
Escrevo esta carta para compartilhar contigo um pouco das vi-
vências pedagógicas desenvolvidas durante o Projeto de Educação
Antirracista que desenvolvi no Centro Educacional Maria Quitéria,
no município de Camaçari - Bahia. Na verdade, essa carta é uma
continuidade dos nossos diálogos acerca da necessidade da adoção
de práticas pedagógicas emancipatórias e pautadas na diversidade
e pluralidade dos estudantes das escolas públicas. Compreendendo
que a escola é, invariavelmente, um dos lugares onde crianças e
adolescentes se deparam com o racismo e o preconceito, mesmo
que ainda atribuam à prática a uma brincadeira ou bullying, decidi
por realizar ações pedagógicas que promovessem o letramento e
o fortalecimento da identidade racial, a partir da compreensão
dos processos históricos de resistência negra, promovidos pelos
povos africanos e afro-brasileiros escravizados no Brasil e por
seus descendentes no afrodiáspora.
Acatando a sua sugestão, fiz inúmeras leituras para funda-
mentar o projeto como, por exemplo, o livro O Movimento Negro
Educador, da autora Nilma Lino Gomes, que nos orienta a repensar
a escola, a construir a pedagogia das ausências e emergências;
confesso que este livro, em especial, ampliou a minha percepção
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sobre a necessidade de dar visibilidade às produções de saberes
realizadas pelos estudantes a partir das vivências e interações
com as suas famílias e comunidades. Outros autores guiaram a
elaboração e efetivação do projeto de educação antirracista, como
Ana Célia Silva e Kabenguele Munanga, grandes educadores que
nos impulsionam a compreender a diversidade como um poderoso
instrumento de combate ao racismo e para a construção de uma
sociedade democrática que leva em conta as existências negras
de forma humanizada.
Defini alguns objetivos, inicialmente, mas, certamente, ao
longo do projeto eles foram ampliados, pois não bastava apenas
buscar compreender a relação entre a diversidade e os direitos
humanos, celebrar a diversidade de crenças, culturas e valores,
reconhecer o protagonismo dos povos africanos na produção
de conhecimentos sistematizados e difundidos universalmente,
evidenciar os processos históricos de resistência negra e como
desdobramento, perceber as manifestações de racismo e precon-
ceitos presentes em nossa sociedade, sejam estrutural, cultural,
epistêmico, dentre outros, e que a partir deste reconhecimento
estes estudantes possam adotar práticas antirracistas. Como nos
ensinou Angela Davis (1981), “numa sociedade racista, não basta
não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Confesso, minha querida Edite, que ao definir as ações do
projeto, fiquei um pouco insegura, pois tinha que pensar detalha-
damente nos materiais e equipamentos pedagógicos, nos livros
selecionados e na materialização de algumas ideias, dentre elas,
um desfile temático que seria uma apresentação envolvendo
produção literária, pesquisas, música, dança e artes. Tenho que
ressaltar que as escolas públicas lidam diariamente com a escassez
de materiais diversificados, que permitam aos professores uma
variação de estratégias pedagógicas. Digo, contudo, sobre a minha
experiência, pois para colocar em prática as propostas idealizadas,
foi necessário investimento financeiro pessoal para aquisição de
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livros, impressão de cartazes, fotos de estudantes, aquisição de
materiais para artesanato, tecidos etc.
Em algumas oportunidades, solicitei ajuda aos colegas da
escola, que gentilmente contribuíram com a compra de materiais
necessários para o desenvolvimento do projeto. Preciso demarcar
que o apoio da gestão e coordenação escolar, em todos os sentidos,
foi imprescindível para o desenvolvimento, manutenção e sucesso
do projeto; infelizmente, a limitação financeira em escolas públi-
cas é um processo histórico e real.
A partir do apoio da gestão e da parceria com alguns pro-
fessores da escola, o projeto foi apresentado aos estudantes, que
de pronto demonstraram interesse e curiosidade; acho que foi a
partir desta mobilização que eles se disponibilizaram a descobrir
e a aprender a partir das próprias incertezas e a naturalizar os
equívocos e os desconhecimentos sobre a sua própria história
como processo da própria construção da aprendizagem. O que eles
sabiam ou conheciam sobre o processo de construção do nosso
país, estava fundamentado no livro de didático que se ocupa da
manutenção do viés eurocêntrico como única forma de conheci-
mento, e que reduz a história do povo negro a um único período,
o da escravidão.
O projeto tratou de recontar essa história revisitando os ar-
quivos da memória da escravidão, e os rasurando e preenchendo
com potência criativa, trazendo a produção de conhecimento an-
cestral, científico e tecnológico, produzido em África em período
muito anterior ao cativeiro. Uma abordagem que gerou curiosidade
e surpresa, especialmente quando assistiram a um vídeo disponível
em plataformas digitais intitulado “África de A a Z”, que apresenta
os países do continente africano com recortes da sua dimensão
histórica, cultural e geográfica, desmistificando a ideia que eles
trazem de uma África única, como um país. Outra atividade da ca-
tegoria curiosidade, que produziu novos conhecimentos foi a visita
virtual ao museu do Egito através do site https://tourvirtual360.
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com.br/rosacruz/; aqui praticamos a pedagogia da pergunta pro-
posta por Paulo Freire em seu livro-diálogo com Antonio Faundez,
eu e os meus estudantes aprendemos e descobrimos, juntos, sobre
a inteligência, criatividade tecnológica, arquitetônica, artística e
científica dos nossos ancestrais.
Você não tem ideia, Edite, de como eles ficaram surpresos
com o que viram, os olhos deles brilhavam, os corpos se moviam
inquietos e agitados com tantas possibilidades de novos conheci-
mentos, sobre os antigos conhecimentos. Ao longo da realização
do projeto, inúmeras atividades aconteceram, não conseguirei
descrever todas elas em uma única carta; já firmo contigo o
compromisso de continuidade desta escrita. Certamente que
trabalhar com um projeto desta dimensão, trouxe-me alguns
desafios. Eu sabia que precisava estudar muito, apropriar-me de
leituras, ampliar o meu repertório histórico, cultural, pesquisar
filmes, músicas, fazer cursos sobre as relações étnico-raciais e
assim eu fiz, aliás, ainda estou nesse processo, mas tenho certeza
de uma coisa: uma vez iniciado o processo de rompimento com
este modelo de educação hegemônica e eurocêntrica, não tem
como retroceder!
Como estratégia para discorrer sobre as ações do projeto, es-
tou fazendo uma descrição cronológica. Então, logo depois dessa
introdução ao tema, partindo de uma pauta de positivação, apre-
sentei aos estudantes o livro da autora Bárbara Carine Pinheiro,
História Preta das Coisas: 50 invenções científico-tecnológicas de
pessoas negras, que apresenta um inventário de grande relevância
criado por civilizações africanas, mas invisibilizado e desconhe-
cido por nós. Reconhecer e atribuir estas invenções aos nossos
antepassados criou uma percepção de autoestima coletiva na sala
de aula. Apresentei aos estudantes alguns vídeos da Professora,
Doutora e Cientista Bárbara Carine; vídeos disponíveis nas redes
sociais dela. Na ocasião, entrei em contato com a professora,
apresentei-lhe o projeto e fiz um convite para que ela fosse, pre-
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sencialmente, até a escola conversar com os estudantes; e por sorte
nossa, ela aceitou e fez uma roda de conversa com os estudantes.
O evento teve um efeito impactante do ponto de vista da
interlocução e identificação da história de vida da Professora Bár-
bara Carine, por guardar semelhanças com a história de vida dos
estudantes. Suas dificuldades, as barreiras sociais e as limitações
foram apresentadas, mas a possibilidade da projeção para outra
esfera social e econômica através da educação trouxe acolhimento
e esperança; e a partir deste episódio, o interesse dos estudantes
pelo projeto se ampliou. Lembrei-me muito de quando você me
dizia que a Educação precisa fazer sentido para a vida de quem
aprende, lembrei-me dessa frase conhecida e, consequentemen-
te, das nossas trocas nos corredores da Universidade Estadual da
Bahia.
Além disso, asseguro que as minhas intervenções são pauta-
das na afetividade defendida pela escritora bell hooks; acredito de
fato que a afetividade é capaz de transformar realidades, vivencio
na prática a comprovação desta afirmação, o poder do afeto é
arrebatador. Ao identificar o resgate da memória ancestral como
elemento essencial para a identidade, seguimos com atividades
que reforçam a potencialização da nossa existência. Os estudantes
foram orientados a pesquisar a biografia de personalidades negras
da história antiga e da contemporaneidade, abarcando todas as
áreas da produção do conhecimento, então tivemos uma diversi-
dade de representantes negros e indígenas na Educação, Ciência,
Medicina, Direito, personalidades importantes nas lutas e batalhas
pela libertação dos escravizados, representantes da política, das
artes, da comunicação, da música, do entretenimento, das famílias,
das religiões e da própria escola.
Acho que você já consegue imaginar a grandeza dessa ativi-
dade! Neste processo de pesquisa, ficou evidente a compreensão
equivocada e folclorizada que os estudantes tinham sobre os po-
vos originários, buscamos compreender com mais detalhamento
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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a compreensão da história do nosso país, reconhecendo a ampla
contribuição e o protagonismo dos povos indígenas para o nosso
país. As Leis n° 10.639/03 e a 11.695/08 são muito bem estrutu-
radas sobre a importância e obrigatoriedade da temática no Art.
26-A. que diz: “Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de
ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo
da história e cultura afro-brasileira e indígena”. Como estratégia
de desenvolvimento das atividades, solicitei a cada estudante que
pesquisasse a biografia de uma personalidade e apresentasse a
partir da escolha de uma competência e habilidade conveniente
ao seu método de aprendizagem.
O resultado foi uma variedade muito rica de produções em
forma de mapa mental, podcast, jornal, cordel, desenhos e história
em quadrinhos. Como já te disse anteriormente, o projeto fugiu
ao controle do meu planejamento e se tornou muito maior, muito
mais interessante, pois os estudantes assumiram a condução e se
desafiaram a construir outras possibilidades a partir das orienta-
ções, monitoramento e tutoria. A partir destas produções, tivemos
a oportunidade de receber os povos Tupinambás de Abrantes, que
fizeram oficinas e rodas de conversa com os estudantes para apre-
sentar a sua história, as suas vivências e modo de vida. Foi através
dos relatos dos indígenas que os estudantes puderam ressignificar
a memória imaginária sobre estes povos, compreendendo que a
memória ancestral é elemento para construção da própria iden-
tidade. Quantas novidades, não é, Edite?
O final da carta se aproxima, mas não posso deixar de falar
sobre o “Desfile Histórico-cultural”, que foi o momento de com-
partilhamento das produções realizadas durante a efetivação
do projeto, foi tudo absolutamente lindo! O desfile tinha alas
organizadas para apresentar as produções de moda, cabelos e ma-
quiagem; esqueci-me de relatar, mas fizemos oficinas de biojoias
com contas, cordas, conchas, búzios e miçangas, todas produzidas
pelos estudantes e usadas durante o desfile. Tivemos uma ala de
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homenagem a mulheres negras, com imagens que iniciavam com
Maria Felipa, Dandara e Luiza Mahim, a cientista Jaqueline Goes
e a grande escritora Conceição Evaristo, que tanto influenciou o
nosso projeto com a sua literatura preta como instrumento para
a decolonialidade; esse desfile, com mais de 30 mulheres home-
nageadas, ocorreu ao som do samba-enredo da Mangueira, de
2019, História Para Ninar Gente Grande que em um dos versos diz:
Brasil, meu nego
Deixa eu te contar
A história que a história não conta
O avesso do mesmo lugar
Na luta é que a gente se encontra
Escrever sobre esse momento, traz para mim uma grande ale-
gria e muita felicidade! Outra ala da pesquisa foi a da apresentação
da letra e música “14 de Maio”, de autoria de Antonio Jorge Por-
tugal e Lázaro Jeronimo Ferreira, interpretada pelo cantor Lazzo
Matumbi. A letra desta canção questiona o processo de libertação
dos escravizados, no dia 13 de maio de 1889, despertando um
posicionamento crítico dos estudantes acerca dos fatos históricos
registrados nos livros de história. Ainda tivemos a presença de
grupos de dança ao som de Pérola Negra, interpretada pela can-
tora Daniela Mercury e a música “Negro Lindo”, interpretada pelo
cantor Léo Santana, porque eles já estavam muito empoderados,
com a autoestima elevada e queriam, como dizemos aqui na Bahia
“se amostrar”! Pense numa apresentação linda, Edite!
Não tenho como descrever o impacto destas atividades na
vida dos estudantes, na minha vida e na dimensão escolar; só sei
que nada mais será como antes, como diz um provérbio africa-
no: “O rio enche-se graças aos pequenos riachos”. E assim, vou
finalizando esta carta e espero ter conseguido expressar o meu
compromisso com a educação para a emancipação, criticidade e
autonomia dos estudantes; optar por um currículo disruptivo, deve
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ser uma responsabilidade de todo educador, ou correremos o risco
da manutenção das narrativas que favorecem apenas um lado da
história, a do colonizador; e como consequência, as intolerâncias,
preconceitos e racismo ganham espaço para a sua materialidade.
É preciso, neste momento, desestruturalizar o racismo; e só
conseguiremos alcançar este objetivo com a educação como prá-
tica de liberdade, fazendo de cada espaço educativo um pequeno
riacho. Quem sabe, em um futuro bem próximo, teremos um rio
perene, navegável que corre em direção a outros rios, pois como
nos dizia o poeta e pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos
(Nego Bispo), “um rio não deixa de ser um rio quando ele conflui
com outro rio. Ele continua em sua essência. Essa é a grandeza
da confluência” (Portal Uol, 13-08-2023).
Sigamos nos reinventando, pois como diz Emicida: “É tudo
pra ontem!”
Um abraço sensível e amoroso, da sua amiga Vitalina Silva.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei N° 9.394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/
leis/l9394.htm. Acesso em 20 de jul. de 2024.
BRASIL. Lei N° 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20
de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional,
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
“História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm. Acesso em 20 de
jul. de 2024.
BRASIL. Lei N° 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 09 de janeiro de 2003, que
estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena”. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_
ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em 10 de ago. de 2021.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
FREIRE, P; FAUNDEZ, A. Por uma pedagogia da pergunta. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1985.
GOMES, Nilma Lino. “Diversidade étnico-racial: por um projeto educativo
emancipatório”.
In: FONSECA, M. V.; SILVA, C. M. N.; FERNANDES, A. B. (Orgs.) Relações
étnico-raciais e educação no Brasil. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2011.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade.
Tradução:
Marcelo Brandão Cipolla. 2 ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2017.
Munanga, Kabenguele (Org.). Superando o Racismo na escola. 2 ed. revisada.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade, 2005, 204 p.
PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. História preta das coisas: 50 invenções
científico-tecnológicas de pessoas negras. 1 ed. São Paulo: Editora Livraria da
Física, 2021.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA ABERTA À CONCEIÇÃO EVARISTO:
PALAVRAS QUE ABRAÇAM, DENUNCIAM,
ANUNCIAM E INSPIRAM
Andréia Bispo Santos
Bianca Dias de Souza
Juciane Pacheco de Almeida Pacheco
Maria Leandra Brandão Santos
Querida e inspiradora Maria da Conceição Evaristo de Brito,
Em gratidão à sua voz, existência e luta, escrevemos esta
carta-manifesto:
Permita-nos esta breve apresentação - somos quatro mu-
lheres, de trajetórias de vida distintas, de diferentes espaços
geográficos de nosso país, que se unem por meio desta escrita-
-verso-corpo-eco, compondo o componente curricular “Pedago-
gias Feministas e Epistemologias Decoloniais”, do Programa de
Pós-Graduação em Educação e Diversidade, da Universidade do
Estado da Bahia (MPED/UNEB).
Vale salientar que nesses 40 anos, a UNEB é espaço privilegia-
do para fomentar o debate e a discussão pertinente sobre temas
da contemporaneidade, tais como ações afirmativas, cidadania,
direitos humanos, relações de gênero e sexualidade, e educação
em todas as suas dimensões, fazendo ecoar nesse imenso Bra-
sil, vozes muitas vezes silenciadas. Os seus programas visam à
promoção de práticas de equidade, indistintamente, a todas as
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
diversidades: étnico-raciais, culturais, de gênero, de geração/faixa
etária, de inserção territorial-geográfica, de condições físicas e/
ou históricas desvantajosas e outras, que compõem o quadro de
estudantes, professores e servidores técnicos e administrativos
em todos os departamentos da universidade.
A disciplina foi ofertada na modalidade EaD - Educação à
Distância, o programa atua nas cidades de Jacobina - no território
do Piemonte, da Chapada Diamantina e em Conceição do Coité -
Território do Sisal, ministrada pelas potentes professoras Amália
Catharina Santos Cruz, Ana Lúcia Gomes da Silva e Zuleide Paiva
da Silva; contamos com a colaboração das monitoras Beatriz Cou-
tinho, Josiane Zaco e Sueli Santana.
O que nos fez mergulhar nesse componente foi o imenso
desejo de refletir sobre pedagogias e epistemologias feministas
e suas contribuições para o campo educacional na interface com
a diversidade como princípio onto-epistêmico formativo, poten-
cializando e ressignificando a nossa prática pedagógica.
É uma Andréia curiosa que se une com uma Bianca observa-
dora tecendo fios com uma Juciane audaciosa e com uma Maria
Leandra rebelde. Curiosa-observadora-audaciosa-rebelde, eis
nosso encontro com seu corpo inspiração, ousado e construído
por experiências encarnadas de tantas outras mulheres, Concei-
ção Evaristo.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Imagem 1 – Card do componente “Pedagogias Feministas e Epistemologias
Decoloniais” – MPED-UNEB.
Fonte: Arquivo MPED-UNEB, 2023.
Imagem 2 – Card do 1° encontro do componente “Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais” - MPED-UNEB.
Fonte: Arquivo MPED-UNEB, 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Registramos esse momento em nossa escrita, porque dese-
jamos expressar o quanto potente, inspirador e singular foi essa
aula. Estávamos ansiosas e repletas de dúvidas, angústias e ávi-
das por ouvir e aprender cada vez mais com as mestras que nos
presentearam com uma aula instigadora, e nos impulsionaram a
permanecer e a querer sempre mais. A trajetória desse componente
foi uma experiência incrível, que despertou o desejo de progredir
nos estudos e nos deixou com aquele gosto de “queremos mais”...
Ao longo deste percurso, tivemos acesso às histórias outras,
partindo de lugares diversos, mas, em prol de uma mesma cau-
sa - a partilha de saberes contra-hegemônicos, que valorizam
as perspectivas ancestrais, sobretudo, as vozes e os discursos
daquelas/es que são vulnerabilizadas/os socialmente, como as
mulheres negras.
Imagem 3 – Projeto Vozes Mulheres na Escola Estadual Aloysio Barros Leal.
Fonte: @conceicaoevaristooficial
Professora Conceição, escolhemos esta imagem para fazer
parte da nossa carta como um gesto de reconhecimento e agra-
decimento por compartilhar saberes e nos fazer compreender a
importância da escrita para eternizar conhecimentos. A linguagem
verbal e não verbal nos permite inúmeras percepções e chacoalha
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
nossas impressões a vislumbrar novos olhares e termos ciência da
imensidão da sabedoria presente na fala transcrita.
A escrita desta carta para você, nos veio da mobilização de
uma roda de conversa, intitulada como “Pensamento de mulheres
negras feministas”, marcada por relatos de experiências e diálo-
gos que ocorreram no componente curricular, que cursamos em
2023.2, o qual, citamos anteriormente.
Imagem 4 – Card Roda de conversa “Pensamento de mulheres negras feministas”, do
componente “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais” – MPED-UNEB.
Fonte: Arquivo MPED-UNEB, 2023.
A mestra Ana Maria Anunciação da Silva e a Professora Dou-
tora Josiane Cristina Clímaco, mulheres negras, empoderadas,
feministas, insubmissas, senhoras de seus destinos, atravessadas
por caminhos difíceis e de resistência, mostraram-nos através
de suas falas e narrativas, as trajetórias e lutas para ocuparem os
espaços como mulheres, educadoras e pesquisadoras. Os cami-
nhos são diferentes para todas, mas eles se tornam ainda mais
desiguais quando são permeados e estruturados por uma elite
branca altamente privilegiada, que desde a colonização não quer
perder o seu lugar de poder.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Na textura desse encontro, dessa roda, dessa ginga, as nar-
rativas de resistência e o grito das mulheres que se recusam a ser
esquecidas, concretizam-se como ato de coragem e confirmação da
existência daquelas que resistem em ser abandonadas à margem
da sociedade ou à margem dos processos históricos, o que nos
remete a você, Conceição Evaristo.
São mulheres que trazem na sua caminhada a marca do “ser e
resistir”, a marca do sorriso largo, das lutas e silenciamentos que
também perduram no universo acadêmico, tecido nas malhas de
processos que inviabilizam lugares e verbalizam em contextos de
opressão em que as narrativas e vivências negras não importam
e não ocupam espaços.
“Descolonizar-se é pensar de outro modo” (Legramandi;
Tavares; Gallego, 2022, p. 6), apostamos que ao narrarmos nos-
sas dores e superações, fazendo denúncias, estamos anunciando
a força que tecemos coletivamente, em prol de transformações.
Com licença poética, num ato esperançoso, tal como você nos
propõe, compreendemos que, “[...] Escrever pode ser uma espécie
de vingança, às vezes fico pensando sobre isso. Não sei se vingan-
ça, talvez desafio, um modo de ferir o silêncio imposto, ou ainda,
executar um gesto de teimosia esperança” (Evaristo, 2005, p. 2).
E nesse gesto singelo, numa escrita gerada por nós, enfatiza-
mos que você é uma das grandes mulheres que batalham por uma
sociedade antirracista, principalmente através das letras. Nessa
representação dita no prefácio de seu livro Insubmissas lágrimas
de mulheres (Evaristo, 2011, p. 3), vemos o seu comprometimento
e aliança à essa batalha:
[...] E quando se escreve, o comprometimento
(ou não comprometimento) entre o vivido e
escrito aprofunda mais o fosso.
Entretanto, afirmo que, ao registrar estas
histórias continuo no premeditado ato
de traçar uma escrevivência.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ou seja, a sua escrita-corpo-vivência provoca emaranha-
mentos e aprofundamentos, junto às lutas das/dos antepassadas/
os, que sentiram na pele tamanho peso do silenciamento e do
apagamento brutal. Ao mesmo tempo, o refúgio presente em seus
versos promove outros mundos possíveis, onde a desigualdade
não impera.
Em diálogo com o espaço-tempo de espera, vivido pela mãe
de Ponciá Vicêncio, descrito no seu romance (Evaristo, 2017a,
p. 72), vemos a importância de caminhar sempre e de entoar
canções, como os mais velhos (sábios) faziam e se alegravam,
encorajando e perpassando as novas gerações. Assim, aprovei-
tamos para homenageá-la, a partir da música “Maria, Maria”,
composta por Milton Nascimento (https://www.youtube.com/
watch?v=IElS9cxpImA&t=10s),
Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta
Maria, Maria é o som, é a cor, é o suor
É a dose mais forte e lenta
De uma gente que ri quando deve chorar
E não vive, apenas aguenta
Mas é preciso ter força, é preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria mistura a dor e a alegria
Maria é exemplo de força e resistência, e todas nós sentimos
a necessidade de reexistir e somos impulsionadas a ter força,
sempre. Convidamos a recitar/cantar “Maria, Maria é um dom,
uma certa magia, uma força que nos alerta” e sentindo seu corpo
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
encarnado, Conceição Evaristo, em nós. Encantando-nos com a
vida, da mesma forma que dançando, nos alerta sobre os perigos
e armadilhas do racismo. “Quem traz no corpo a marca”, conti-
nuamos cantando, sentindo e dizendo que somos, porque somos,
o que queremos, porque lutamos, resistimos e amamos. Nossos
corpos são as marcas de histórias tantas vividas por mulheres
[diversas] ancestrais. “Maria, Maria mistura a dor e alegria”, eis a
anunciação das nossas vidas que com você, Evaristo, pensamos
e construímos...”.
E, quando falamos acerca das figuras mais velhas, visamos
a ruptura com as estruturas sociais as quais nos ditam coisas
e nos isolam umas das outras. Rompemos com as perspectivas
individualistas e valorizamos os nós tecidos na coletividade, e
no princípio da ancestralidade, advindo das matrizes culturais
africanas. Compreendemos que na junção de diferentes pessoas,
de diferentes faixas etárias e culturas, estamos enaltecendo a al-
teridade, a visibilidade e a legitimidade das histórias e vivências
de tantas Marias, que merecem ser respeitadas, amadas e reco-
nhecidas, tal como são.
Nesta rede de acolhimento e nos “[...] mundos submersos,
que só o silêncio da poesia penetra”, como você nos mobiliza
em Poemas da recordação e outros movimentos (Evaristo, 2008,
p. 91), vemos que a arte traduz, a poesia também fala, e o si-
lêncio não silenciado por outrem, também produz sonoridade
em nós e entre nós. Os nossos gestos corporais estão falando
o tempo todo, as nossas expressões (escritas, ou não) dizem
algo ou a alguém. Ainda nesse livro, exaltamos os fragmentos
de seu poema “Vozes-mulheres” (Evaristo, 2008, p. 24-25), ao
nos dizer que,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
[...] A voz de minha filha
recorre todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Estimada Professora, quão valioso é ver mulheres negras,
pretas, pobres, LGBTQIA+ e feministas e transfeministas ocupa-
rem lugares que não projetaram para elas. As mulheres sempre
tiveram que se movimentar para romper barreiras, ciclos, catego-
rias, e mais, quando se trata das mulheres negras, esses desafios
são mais significativos e marcantes. Você é uma inspiração pela
sua luta, fala, resistência e escrita que encorajam e empoderam
a todas com os seus versos que ecoam como um mantra de luta e
poder, presente no poema “Pedra, pau, espinho e grade” (p. 55), da
mesma obra citada anteriormente: Poemas da recordação e outros
movimentos (Evaristo, 2018).
[...] Mas a ousada esperança
de quem marcha cordilheiras
triturando todas as pedras
da primeira à derradeira
de quem banha a vida toda
no unguento da coragem
e da luta cotidiana
faz do sumo beberagem
topa a pedra pesadelo
é ali que faz parada
para o salto e não o recuo
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
não estanca os seus sonhos
lá no fundo da memória,
pedra, pau, espinho e grade
são da vida desafio.
E se cai, nunca se perdem
os seus sonhos esparramados
adubam a vida, multiplicam
são motivos de viagem.
Portanto, as mulheres sempre tiveram que lutar para romper
ciclos e categorias que as marcaram e ainda marcam E sabemos
que a sua trajetória também foi abalizada por enfrentamentos,
desde aqueles primeiros momentos da infância, já marcados pelo
trabalho doméstico em “casa de família”. Mas o seu sonho estava
nas letras, no seu encantamento com o universo mágico da leitura
e da literatura, assim como as convidadas da nossa roda (comenta-
da no início desta carta), que adentraram o mundo acadêmico, já
que não havia limites e nem barreiras para a realização dos sonhos.
Esses passos são extremamente importantes, pois nos levam
a pensar na entrada das mulheres no Ensino Superior e na des-
construção das armadilhas sociais que são impregnadas em nosso
meio. Cabe a nós dizer, que no ano de 1879, o direito das mulheres
frequentarem o Ensino Superior foi “concedido” pelo imperador
Dom Pedro II, no Brasil. Contudo, tal direito continuou sendo
um campo de luta, mesmo um século depois. Com a Constituição
Federal de 1988 e a democratização da Educação em todos os
níveis, em âmbito nacional, bem como, o movimento feminista
na década de 1970, vemos a importância de contextualizarmos o
Século XX - período de grandes transformações sociais em nível
mundial, ressaltando que em séculos anteriores a condição de
subalternização das mulheres e de todas as ditas minorias eram
ainda piores, da mesma forma que a presença da figura masculina
era maior na ciência (Pereira; Nunes, 2018).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ou seja, devido à modernidade, e, sobretudo, na década de
1980, as mulheres passaram a integrar as atividades de pesquisa,
abandonando os costumes e argumentos machistas de que elas se
ocupam apenas das e nas atividades do lar (Legramandi; Tavares;
Gallego, 2022). Quando, principalmente, abordamos as mulheres
negras, intencionamos a ruptura com os estereótipos que inferio-
rizam e direcionam os seus lugares para o de servidão. Além do
mais, à medida que exaltamos os seus corpos-vozes-superações,
enfatizamos que há muitos lugares possíveis a serem ocupados,
como na pesquisa acadêmica e tantos outros. A caminhada ainda
é longa, contudo, as andanças e gingas estão ocorrendo: as uni-
versidades estão mais coloridas e diversas.
E você, estimada Conceição, implica um grande exemplo
dessa situação, pois a sua trajetória na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ - onde cursou a Graduação em Letras), na
Pontifícia Universidade Católica (PUC/RJ - onde cursou o Mestrado
em Literatura Brasileira), na Universidade Federal Fluminense
(UFF - onde lecionou e cursou o Doutorado em Literatura Compa-
rada), na Universidade do Estado da Bahia (UNEB - onde também
lecionou), é linda demais, povoando e provocando muitos sonhos
e realidades.
Assim, escrevemos esta carta como uma homenagem singela
e reconhecimento de que sua voz é um poderoso instrumento
que ecoa e se concretiza através das páginas dos livros e da nossa
literatura. Nos seus poemas, narrativas e personagens, encontra-
mos a representação de vidas e a força das que se recusam a ser
omissas e submissas, das que não aceitam mais ser silenciadas.
Encontramos a representatividade em cada verso, bem como, o
encanto e a generosidade da sua escrita, que sobrepuja fronteiras
para mostrar a essência do ser, do estar, do existir e viver.
Numa reconstrução de vidas, experiências e memórias, me-
diante às suas narrativas, e como uma ação política, dizemos que
as suas obras precisam adentrar mais e mais às escolas e outros
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
espaços formativos do Brasil, e que seu nome necessita ocupar
a Academia Brasileira de Letras. Salientamos que a educação,
sozinha, não dá conta de todas as mazelas do mundo, mas o seu
potencial é libertador.
Através de linhas-versos-pulsos-poemas, provemos a cons-
cientização subjetiva, humana e crítica de pessoas, num movi-
mento de inédito-viável (Freire, 2011), princípio instigado pelo
grande educador popular Paulo Freire, que não se baseia só em
utopias, mas em ações cotidianas frente às lutas e pautas raciais,
LGBTQIA+, feministas, transfeministas, anti-capacitistas, antie-
taristas, afro-quilombolas e tantas outras.
Nesta carta, desejamos expressar a nossa profunda grati-
dão por sua escrita e o alento para todas as mulheres que você
consegue/conseguiu atravessar, através de suas escrevivências
– as quais instigam a recuperação dos vocabulários da comu-
nidade negra que foi escravizada, bem como, das narrativas
individuais e coletivas das mulheres negras, à medida que as
mesmas ocupam espaços na sociedade, ecoam suas vozes, e são
também capazes de escrever subjetivamente as suas e outras
histórias/experiências de vida, construindo memórias e iden-
tidades (Evaristo, 2017b).
No mesmo entoar e intuito, também fomos afetadas por
esse componente curricular, já que pudemos escutar múltiplas
vozes, com tanta sensibilidade e, concomitantemente, força.
Pudemos vislumbrar um espaço acadêmico habitado pelas
camadas populares, tanto em presença física (ainda que no
ambiente remoto), quanto em teoria e prática. Além disso,
pudemos experienciar as rodas de conversas, relembrando as
antigas rodas de nossas/os antepassadas/os, ao entoar de cada
convidada e cada partilha.
E, assim, esperamos seguir: vivendo, pesquisando, escre-
vendo, falando, “escrevivendo” (Evaristo, 2017b)... Que a tua
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
inspiração continue, Conceição, para que os seus versos possam
ressoar nos corações daqueles que os leem, e que seu esforço e
contribuição à nossa literatura sejam reconhecidos e exaltados
sempre, percorrendo milhares de gerações.
Das mulheres insubmissas (em dezembro de 2023, numa
conexão Bahia-Rio de Janeiro).
Andréia Bispo Santos - Morro do Chapéu/Bahia;
Bianca Dias de Souza - São Gonçalo/Rio de Janeiro;
Juciane Pacheco de Almeida Pacheco - Várzea da Roça/Bahia;
Maria Leandra Brandão Santos - Cícero Dantas/Bahia.
REFERÊNCIAS
EVARISTO, Conceição. Destaque Conceição Evaristo. Revista Conexão
Literatura, p. 5-10, nº 24, junho, 2017b.
EVARISTO, Conceição. Gênero e Etnia: uma escre(vivência) de dupla face. In:
BARROS, Nadilza Martins de; SCHNEIDER, Liane (Orgs.). Mulheres no mundo:
etnia, marginalidade e diáspora. João Pessoa: Ideia, 2005, p. 202.
EVARISTO, Conceição. Insubmissas lágrimas de mulheres. Rio de Janeiro:
Malê, 2011.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de
Janeiro: Malê, 2018.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2017a.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 50 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011.
LEGRAMANDI, Aline Belle; TAVARES, Manuel; GALLEGO, Rita. A incidência
feminina nas pesquisas sobre pedagogia decolonial, com ênfase nos estudos de
gênero e sexualidades na educação formal brasileira em periódicos nacionais:
uma revisão sistemática de literatura. Dialogia. São Paulo, n. 41, p. 1-20, e22474,
mai./ago. 2022. Disponível em: https://doi.org/10.5585/41.2022.22474. Acesso
em 04 de set. de 2022.
PEREIRA, Sandra de Oliveira Gomes, NUNES, Juraildes Barreira. A presença
das mulheres no Ensino Superior e o papel das políticas de permanência das
universidades federais brasileiras. 2018. Disponível em: https://periodicos.ufes.
br/abepss/article/view/23378/16097. Acesso em 01 de dez. de 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A TODAS AS MINHAS ALUNAS,
ESPECIALMENTE ÀS ALUNAS NEGRAS
Marcelo Alves Pinto
Queridas, quando cursando o componente curricular “Pe-
dagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”, como aluno
especial do programa de Pós-graduação em Educação e Diversi-
dade - MPED, da UNEB, surgiu a proposta para que escrevêssemos
cartas pedagógicas feministas endereçadas a alguém sobre alguma
das discussões tidas neste componente.
O componente foi estruturado em rodas, cada semana con-
tava com uma participante nova, geralmente mulheres ligadas à
universidade ou a algum movimento social, como desafio para
escolhermos uma das temáticas que mais nos tocasse para que
produzíssemos este escrito aqui endereçado a vocês; gostei da
temática do feminismo negro no qual o componente nos apresen-
tou pesquisadoras como Vitalina1 e Altamira Simões2. Na semana
seguinte a esta roda, continuamos com a temática do feminismo
negro e, desta vez, fomos apresentados a Josiane Climaco e Ana
Maria da Anunciação.
As discussões desenvolvidas neste componente e, especifi-
camente nessas rodas me tocam, pois, sendo um homem negro
1 Vitalina Silva: Professora da Educação Básica de Camaçari e Mestranda em Educação
pela UNEB.
2 Altamira Simões: CEO - Ayomidê Yalodê Coletiva de mulheres negras e LBTs; Con-
selheira Nacional de Saúde e Educadora popular.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
conheço a opressão do racismo e classismo e mostro-me favorável
às pautas do feminismo; e cá, com vocês leitoras, faço também
uma provocação, homens podem ser feministas?
Não restava dúvida, iria falar sobre feminismos negros, e por
que direcionei esta carta a todas vocês alunas e especialmente às
alunas negras? Primeiro, não quero restringir os escritos às mulhe-
res. Conhecer os feminismos é um dever de todos que desejam criar
um mundo mais igualitário, portanto, meninos também se sintam
incluídos. Segundo, porque espero com esta carta sensibilizar vo-
cês, mulheres, para os feminismos que vêm constantemente sendo
atacados por discurso que quer desqualificar esse movimento e
a organização das mulheres. Terceiro, especialmente às alunas
negras, porque pretendo tratar dos feminismos negro, pois as
mulheres negras como poderão constatar através desta carta são
o elo mais fraco da estrutura social, fazendo-se necessário que
criemos redes de afetividade para ajudar umas às outras.
Na escrita desta carta, surgiram também algumas preocupa-
ções, como conseguir alinhar as pautas dos feminismos e produzir
uma escrita em linguagem acessível a um público de Ensino Médio.
Buscarei, sempre que possível, exemplificar concretamente. Os
feminismos devem ser uma luta de todos, ao compreendermos
este movimento como luta das mulheres contra as opressões
sofridas em decorrência do sexismo, destacamos que este não é
um movimento de força bruta, e sim sobre ocupar lugares antes
não permitidos às mulheres. Recordo-me uma vez, ao me hos-
pedar em uma pousada na qual a recepcionista conversava com
um cliente, surgiram indagações sobre o direito das mulheres.
Um dos argumentos do rapaz era o de que a mulher não seria
capaz de carregar um saco de cimento, em contrapartida, a moça
prontamente respondeu, eu posso carregar sim, nem que eu pre-
cise dividir o saco em dois.
Este é um dos objetivos dos movimentos feministas, a cons-
cientização e superação dos estereótipos de gênero que atribui às
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
mulheres apenas um papel social, de mãe e esposa. A conscienti-
zação e a luta levarão à emancipação política das mulheres, asse-
gurando alguns direitos conquistados ao longo do tempo, como o
voto, participação na vida pública, oportunidade de prosseguir nos
estudos e, em especial, no ensino superior, exercer sua profissão
sem discriminação de gênero, pois há também uma negação de que
mulheres exerçam carreiras nas áreas das ciências exatas, sempre
vítimas de piadinhas quem colocam em xeque suas capacidades
cognitivas.
Hoje, as mulheres conseguiram conquistar espaço no mer-
cado de trabalho, contudo ainda são vítimas de outras séries de
violências tais como: menor remuneração, dificuldade de contra-
tação por questões de gênero, assédios no ambiente de trabalho
dentre outros, e aqui também aparece a questão racial, será que
são todas as mulheres que conseguem ter igual oportunidade de
acesso ao nível superior?
Apesar de todos os avanços sociais, não existe apenas a
opressão de gênero afligindo as mulheres, pois não são todas as
mulheres que podem desfrutar de um nível superior e se assumi-
rem como profissionais liberais, pois, embora as teorias feministas
seja basilar para a interpretação da vida das mulheres, há outras
forças da opressão atuando, como, por exemplo, raça e classe.
Há mulheres brancas que não gozam de todos os privilégios que
uma mulher branca de outra classe social, que pode desfrutar de
uma vida confortável, e o trabalho fora de casa seria apenas uma
realização pessoal, enquanto outras necessitam trabalhar, mesmo
que em empregos mal remunerados, para suprir as necessidades
básicas de existência.
Em decorrência do racismo, e toda a transformação histó-
rica, pelo recorte racial, as mulheres negras são as que estão em
trabalhos subalternos destinados a cuidar dos outros, sendo, por
exemplo, diaristas, lavadeiras e outros trabalhos informais que a
necessidade lhes incube.
117
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Damos o nome de interseccionalidade, conceito que pode
ser lido em Carla Akotirene (2019), que nos diz que raça, classe e
gênero atravessam os sujeitos determinando seus locais sociais.
Em leituras de Collins & Bilge (2021), as mesmas compreendem a
interseccionalidade como ferramenta analítica para análise social
oferendo ricas contribuições para pensar e teorizar as relações de
poder relacionadas à classe, raça, gênero, etnia, cidadania, orien-
tação social e capacidade, na qual uma opressão não é superior
às outras, mas constituem-se mutuamente. E para as autoras, a
existência de trabalhos interseccionais não é posterior ao momen-
to que o conceito foi produzido. Desde a década de 1960, já eram
produzidos trabalhos de caráter interseccionais, utilizando como
exemplo o trabalho das brasileiras Lélia Gonzales e Sueli Carneiro,
que produziram trabalhos sobre raça e gênero analisando a relação
da mulher negra brasileira na sociedade.
Falar de um feminismo não daria conta de todas as realidades
das mulheres, mas de feminismos e historicamente, mulheres ne-
gras sempre foram um grupo marginalizado, socialmente menos
privilegiado que as mulheres brancas. Assim, um feminismo que
fala apenas da experiência de mulheres brancas é um feminismo
branco/burguês, que não dá conta de retratar a experiência de
todas as mulheres e, especialmente, das mulheres negras.
Aqui, transitarei entre dois gêneros textuais, ora buscarei
fazer um diálogo com vocês, ora meu lado acadêmico aflora-
rá e trarei uma escrita no estilo mais acadêmico, que como
vocês logo perceberão, assemelha-se a uma resenha de livros
e apresentação de pensadoras que considero essenciais para
refletir as relações de opressão. Penso que a leitura de textos
teóricos e de teóricas nos ajuda a interpretar nossa realidade.
Não é preciso de escrita para dizer que as mulheres são, em
algum nível, oprimidas, quando isso é algo que já é vivenciado
por vocês. Mas as leituras de outras autoras oferecem-nos uma
visão por um ângulo que talvez não tenhamos visto antes, e
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
também nos ajuda a entender que esta realidade não é algo
natural, mas historicamente construído.
Vivemos hoje em um mundo capitalista, chamamos de
neoliberal o pensamento que defende que todos terão igual
oportunidade de vencer na vida ao se esforçarem, e que se so-
mos pobres é porque não estamos nos esforçando o suficiente.
Esse tipo de fala sugere a naturalidade das desigualdades, sejam
elas de classe, gênero ou raça e muitas vezes aceitamos como
verdades absolutas.
O Neoliberalismo surge como a forma moderna do capitalis-
mo, lido em Collins & Bilge (2021). Este pensamento fundamenta-
-se na filosofia que visa promover a menor intervenção estatal na
economia e no bem-estar social, pois o mercado por si só seria
capaz de oferecer um mundo mais justo e igualitário mediante
a crescente privatização dos serviços como segurança, saúde e
educação, pois a iniciativa privada conseguiria fornecer de forma
mais eficiente tais serviços.
Junta-se a isso a redução ou inexistência de gastos com segu-
ridade social, pois causa oneração aos cofres públicos cometidos
por governos irresponsáveis. Estão inseridos também na pauta do
neoliberalismo, o livre comércio e flexibilização das leis trabalhis-
tas como forma de geração de mais empregos e renda; por fim, o
neoliberalismo acredita na crença da individualidade, sendo cada
pessoa responsável por si, seus sucessos e fracassos ignorados às
desigualdades sociais historicamente construídas.
O neoliberalismo traveste-se de ideologia progressista ao
defender a autonomia dos povos, em especial das mulheres através
do discurso feminista, aqui, representado por feminismo neolibe-
ral, pois o feminismo neoliberal discute o empoderamento femi-
nino através do empreendedorismo feminino, a participação das
mulheres no mercado de trabalho, porém ao desconsiderar toda
a historicidade de opressões sociais, este feminismo está fadado
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ao fracasso em promover a transformação social das mulheres,
pois o feminismo não deve considerar a individualidade de uma
mulher, mas sim, ser um movimento que promova a transformação
coletiva da realidade de todas as mulheres.
Por isso, é essencial termos acesso a outras formas de pen-
samento. Por isso digo que os escritos teóricos afinam o nosso
pensamento para enxergarmos a realidade por outras lentes;
assim, sinto-me incumbido de apresentar a vocês autoras que
gosto e muito têm me ajudado, a pensar a nossa realidade sobre
feminismos plurais como justiça social.
Uma importante pensadora que traremos aqui, para pensarmos
os feminismos negros é a escritora afro-americana bell hooks, que
deixo como sugestão para que vocês se aprofundem mais em suas
obras. A primeira curiosidade sobre essa escritora é que a mesma
assina seu nome como pseudônimo de bell hooks, e é escrito assim
mesmo, com as letras minúsculas como forma de mostrar os pro-
cessos de invisibilidade que a mulher negra passa e por afirmar que
suas ideias são mais importantes do que ela, a autora.
A escrita de hooks é simples de ler. Por trazer uma linguagem
bastante acessível, ela dialoga com seus leitores em uma escrita
que, na maioria das vezes, é feita em primeira pessoa realizando
um diálogo com seus leitores, na qual ela assume o compromisso
de ser intelectual, transgredindo fronteiras discursivas para ana-
lisar e promover mudanças políticas.
O primeiro livro que considero essencial para começarmos
a compreender o porquê de se reivindicar um feminismo negro é
E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo, de hooks
(2019a), no qual a autora discorre sobre como as vivências das
mulheres negras são negadas pelo feminismo branco, sobre como
as mulheres desde o período colonial foram desconsideradas até
de ser mulheres, em discursos, que as consideravam como corpos
sem mentes.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Neste livro, também, hooks faz a distinção do que ela consi-
dera como feminismo burguês, produzido por mulheres brancas
cansadas do ócio de donas de casa, preocupadas em se inserir no
mercado de trabalho produzindo escritos que, na maioria das ve-
zes, não contemplavam todas as mulheres, apenas a uma pequena
classe. Assim, este feminismo baseava-se mais numa cooptação
do movimento feminista para as causas individuais.
Mulheres negras sempre trabalharam até mesmo fora de
casa, e segundo estas, as mulheres negras não sofriam opressão,
pois as mesmas eram livres para trabalhar. Esta teoria, portanto,
não considera raça e classe; mulheres negras que trabalhavam e
estão trabalhando, em nossa sociedade que ainda não superou
a violência racial, em empregos subalternos destinados a cuidar
dos outros, e sempre mal remuneradas. O trabalho da mulher
negra não era uma libertação, e sim uma necessidade. Apesar de
hooks falar sobre a experiência de mulheres negras vivendo nos
Estados Unidos, a experiência colonial vivenciada nas Américas
permite-nos fazer aproximações para analisarmos também a
realidade brasileira.
Em Teoria Feminista da margem ao centro, hooks (2019b)
coloca que é a mulher negra que está nas margens da sociedade
e quem se dirige ao centro para ir trabalhar, e ao retornar às suas
casas, à noite, no contexto segregacionista dos Estados Unidos na
década de 1960, situação semelhante às brasileiras que retornam
do centro às favelas, sendo, portanto, ela quem melhor conhece a
realidade dos dois mundos, é a mulher negra quem melhor pode
falar sobre a opressão vivenciada pelas mulheres.
Se aceitássemos que, hoje, há uma igualdade entre gênero
porque a mulher pode trabalhar fora, vemos que isso não se cons-
titui em uma conquista dada às mulheres, mas advém de uma
necessidade econômica das famílias no contexto capitalista que
os gastos em manter uma família aumentaram, e quando estas
mulheres retornam aos seus lares após uma jornada de trabalho,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ainda precisam realizar o trabalho doméstico uma vez que o dis-
curso promovido pelo senso comum incumbe somente às mulheres
a realização das atividades domésticas.
É perceptível como o destino das mulheres já é traçado a
partir do gênero quando se concebe para estas o papel de mãe e
esposa, cuja única função é a criação, e isso se percebe no senso
comum a partir da linguagem, ao afirmarmos cotidianamente
a adjetivação “mãe solteira” quando não existe “pai solteiro”,
casamento e maternidade guiam o destino das mulheres. A
crítica feminista não nega o papel de mãe e esposa às mulheres,
mas produz questionamentos se esta é a única forma de ser
uma mulher. O que aconteceria com mulheres estéreis? Seriam
menos mulheres?
Caras estudantes negras e caros estudantes negros, quero
salientar para vocês nesta carta, que à mulher negra foi negada
também o papel de mãe/esposa. hooks (2019a) analisava como
os discursos consideravam as mulheres negras como impróprias
para o casamento, por não serem femininas, pois ao realizar
serviços muitas vezes masculinos na colheita, por exemplo, aca-
bavam emasculando os homens. O discurso colonial elaborava
para a mulher negra também estereótipos como corpos sem
mentes, sexualmente lascivas, capazes de perverter o homem
branco, corrompendo-o ao atraí-lo para o coito sexual, o que
justificaria os abusos sexuais cometidos pelos senhores de
escravizados; por isso, a cor negra era considerada como cor
do pecado.
Contemporaneamente, estes estereótipos ainda persistem
às mulheres negras em representações como a mulata, mulheres
negras sexualmente permissivas, ou mulheres negras gordas
dessexualizadas, destinadas a cuidar dos outros, como podemos
ver na literatura em personagens como Rita Baiana, em “O Cor-
tiço”, de Aluísio de Azevedo, ou a Tia Nastácia, personagem de
Monteiro Lobato.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A luta feminista negra insere-se em um palco de disputa
contra estereótipos cristalizados para estas mulheres, assumindo
que as diferenças de raça, classe e gênero precisam ser superadas
e que uma opressão não pode ser superior a outra; estão todas im-
bricadas no processo de exclusão, isto acontece por estar a mulher
negra na base da pirâmide ocupacional, dito por hooks (2019b),
por isso que uma frase da célebre pensadora Ângela Davis, diz
que quando uma mulher negra se movimenta, toda estrutura da
sociedade se movimenta junto com ela. Ainda segundo hooks,
mulheres brancas exercem poder sobre homens negros, homens
negros exercem poderes sobre mulheres negras, e a mulher ne-
gra não exerce poder algum. Por estar nesse lugar de não poder,
colocadas na marginalidade, cabe à mulher negra construir uma
práxis contra hegemônica que desafia as opressões de classe, raça
e gênero oferecendo novas visões sobre as opressões enfrentadas
pelas mulheres.
O feminismo é uma luta de todos. As contribuições dos
feminismos brancos são essenciais para se pensar as opressões
vivenciadas pelas mulheres, contudo, muitas vezes, relacionadas
apenas a um seleto grupo; por isso, hooks critica este movimen-
to, não para diminuí-lo, mas para agregar novas visões e, assim,
potencializá-lo, uma vez que o feminismo considerado burguês
não inclui na discussão a vivência de todas as mulheres não bran-
cas, ou brancas, mas pobres.
hooks (2019b) nos diz ainda que há um problema em definir
o que é feminismo. No componente que cursamos, chama-se
pedagogias feministas, no plural, pois há várias correntes de
pensamento feminista; e divergência de definições muitas vezes
torna-se um empecilho para que mulheres reconheçam-se como
feministas, sendo possível encontrar falas como “ser favorável ao
movimento feminista”, mas não se reconhecendo como feministas,
isso porque, muitas vezes, o movimento foi considerado como
um movimento de lésbicas, ou rotulado com acepções negativas.
123
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Saibam caros/as estudantes negros e negras, que no feminis-
mo branco, por exemplo, poderia se dizer que o objetivo seria a
igualdade entre as mulheres e os homens, e essa visão poderia ser
favorável dentro do recorte racial branco, mas para as feministas
negras esta igualdade ignora a relação classe e raça, uma vez que
o homem negro, embora possa exercer o poder sexista, não tem
poder em uma relação racial, e economicamente não trariam uma
igualdade real.
Toda violência se fundamenta no discurso, é ele quem legiti-
ma as práticas sociais, e o discurso conservador atua perpetuando
o status quo da opressão feminina através de falas que respon-
sabilizam o feminismo pela degradação da família, corroborado
também pelo discurso religioso que defende para as mulheres, o
atributo de mulher vitoriosa sendo aquela que edifica o lar, for-
necendo uma única visão de mulher e matrimônio, e estimulando
que a mesma permaneça em casamentos falidos mesmo que este
seja uma relação de abuso e violência.
No cenário da violência doméstica, as mulheres são culpabi-
lizadas por sofrerem a violência, através de falas como “apanha
porque gosta” ou “está com o agressor porque quer”, invisibilizam
que nossa sociedade produz discursos que desvalorizam as mu-
lheres separadas/solteiras. Objetifica as mulheres em uma socie-
dade patriarcal como, quando solteiras sendo posses dos pais e
quando casadas posses dos maridos, negando suas subjetividades
em cenários nos quais às mulheres também é proibido alcançar
a independência financeira, e têm suas autoestimas minadas to-
dos os dias sendo difícil para elas se verem fora do casamento e
também não tendo como sustentar suas proles quando suas vidas
foram construídas para o casamento e não para a independência
enquanto ser humano.
Um dos meus incômodos em falar sobre o feminino negro
é se como homem negro, eu estou autorizado a falar sobre
feminismo, mas esta resposta vem do supracitado livro Teoria
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
feminista da margem ao centro, no capítulo 5, “Homens nosso
companheiros de luta”, hooks (2019b) nos esclarece assim como
fez em todo o seu livro que o erro do feminismo burguês foi o de
acreditar que as pautas do feminismo seriam boas o suficiente
para atrair todas as mulheres, esquecendo-se de promover am-
bientes de formação, uma vez que iria dialogar com públicos
de mulheres diversificados, pois a transformação social não
se dará somente por mãos femininas; toda a sociedade precisa
estar inserida neste processo.
A ideia de um feminismo restrito às mulheres era mais uma
pauta do feminismo burguês que almejava o papel do homem
branco burguês, desconsiderando que homens negros, por
exemplo, não ocupavam o mesmo lugar na classe dominante.
Segundo, por não ser o feminismo um movimento de supera-
ção dos homens, e se desejamos construir uma mudança na
sociedade, os homens precisam estar inclusos no feminismo,
precisamos desaprender a opressão sexista, que também pode
ser reproduzida por mulheres.
Na posição de educador, está na nossa incumbência em pro-
mover ambientes formativos democráticos visando à construção
de uma sociedade igualitária, e isso não será possível se a pauta
feminista não fizer parte da nossa prática. Um dos mais conhe-
cidos livros por educadores é o Pedagogia do oprimido, de Paulo
Freire (2018) e hooks, que teve a oportunidade de dialogar com o
educador e tecer críticas sobre sua obra, que não a diminui como
a autora frisa, mas apresenta problemas no uso da linguagem,
no qual a relação de opressão e oprimido aconteceria mediante
a conscientização dos homens. Sendo que as mulheres também
necessitam fazer parte deste processo de lutar contra a opressão e
é o nosso compromisso como educador, o de conhecer o feminismo
e saber dialogar com nossas alunas e alunos, e para vocês, alunos/
alunas, transformarem o mundo a sua volta através de uma nova
práxis que promova a igualdade e o respeito a todos.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Por acreditar no potencial da educação como transformador de
vidas, vejo a necessidade de o feminismo estar alinhado com as pautas
de classes socialistas, cobrando do estado investimentos em educa-
ção, como, por exemplo, cotas sociais nas universidades, creches para
que mães possam exercer a maternidade e trabalhar, erradicação da
violência e desigualdade social e de gênero através de forma efetiva.
E não vejo melhor forma de terminar essa carta, senão com arte, por
isso, trago um poema da escritora negra Cristiane Sobral (2000):
Não vou mais lavar os pratos
Não vou mais lavar os pratos.
Nem vou limpar a poeira dos móveis.
Sinto muito. Comecei a ler. Abri outro dia um livro
e uma semana depois decidi.
Não levo mais o lixo para a lixeira. Nem arrumo
a bagunça das folhas que caem no quintal.
Sinto muito.
Depois de ler percebi
a estética dos pratos, a estética dos traços, a ética,
A estática.
Olho minhas mãos quando mudam a página
dos livros, mãos bem mais macias que antes
e sinto que posso começar a ser a todo instante.
Sinto.
Qualquer coisa.
Não vou mais lavar. Nem levar. Seus tapetes
para lavar a seco. Tenho os olhos rasos d’água.
Sinto muito. Agora que comecei a ler quero entender.
O porquê, por quê? e o porquê.
Existem coisas. Eu li, e li, e li. Eu até sorri.
E deixei o feijão queimar...
Olha que feijão sempre demora para ficar pronto.
Considere que os tempos são outros...
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ah, esqueci de dizer. Não vou mais.
Resolvi ficar um tempo comigo.
Resolvi ler sobre o que se passa conosco.
Você nem me espere. Você nem me chame. Não vou.
De tudo o que jamais li, de tudo o que jamais entendi,
você foi o que passou
Passou do limite, passou da medida,
passou do alfabeto.
Desalfabetizou.
Não vou mais lavar as coisas
e encobrir a verdadeira sujeira.
Nem limpar a poeira
e espalhar o pó daqui para lá e de lá pra cá.
Desinfetarei minhas mãos e não tocarei suas partes móveis.
Não tocarei no álcool.
Depois de tantos anos alfabetizada, aprendi a ler.
Depois de tanto tempo juntos, aprendi a separar
meu tênis do seu sapato,
minha gaveta das suas gravatas,
meu perfume do seu cheiro.
Minha tela da sua moldura.
Sendo assim, não lavo mais nada, e olho a sujeira
no fundo do copo.
Sempre chega o momento
de sacudir,
de investir,
de traduzir.
Não lavo mais pratos.
Li a assinatura da minha lei áurea
escrita em negro maiúsculo,
em letras tamanho 18, espaço duplo.
Aboli.
Não lavo mais os pratos
Quero travessas de prata,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Cozinha de luxo,
e joias de ouro. Legítimas.
Está decretada a lei áurea.
Este poema, para mim, melhor sintetiza minha compreensão
do que pretendemos com a educação e com o feminismo negro.
Temos uma mulher que mesmo alfabetizada não conseguia ler para
além das entrelinhas, não era capaz de enxergar sua realidade,
sempre destinada a cuidar do trabalho doméstico de outrem, mas
a partir do momento que ela começa a ler, processo simbólico que
representa ter acesso a uma educação transformadora, tornou-
-se capaz de observar para além das entrelinhas, enxergar que
o lugar social que ocupamos não é natural, mas historicamente
construído, que o racismo e a desigualdade gênero promovem para
mulheres negras lugares desprivilegiados na base da pirâmide
ocupacional, não mais lavar os pratos é um grito de rebeldia com
este sistema, e sua inserção na luta pela igualdade de oportuni-
dades, superação do racismo e imposições de gênero.
Com afeto, Professor Marcelo!
REFERÊNCIAS
AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro. Pólen, 2019.
Edição Kindle.
COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Tradução: Rane
Souza. 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2021.
HOOKS, bell. E eu não sou uma mulher: mulheres negras e feminismo. Tradução:
Bhuvi Libânio. 1 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019ª. Edição Kindle.
HOOKS, bell. Teoria feminista: da margem ao centro. Tradução: Rainer Patriota.
1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2019b. Edição Kindle.
SOBRAL, Cristiane. Não vou mais lavar os pratos. Cadernos negros 23:
poemas afro-brasileiros, 2000. http://www.letras.ufmg.br/literafro/24-textos-das-
autoras/932-cristiane-sobral-nao-vou-mais-lavar-os-pratos. Acesso em 04 de dez.
de 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA-MOVIMENTO: O FEMINISMO
NEGRO COMO POSSIBILIDADE DE (AUTO)
CONHECIMENTO NO AMBIENTE ACADÊMICO
Eliane Costa da Silva
Maricéia Pereira de Novais
Muitas vezes querem nos calar,
nos bater e nos maltratar.
Somos pretas,
já nascemos fortes,
nada disso irá nos parar.
O espaço acadêmico é cheio de fatos,
racismo,
machismos,
sexismo…
Repito:
NÃO VÃO NOS PARAR!
Vamos pesquisar,
escrever,
publicar,
destoar,
criticar,
gritar,
afirmar
e reafirmar.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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A universidade pública é nossa
VAMOS OCUPAR!
Eliane Silva1
Nobres colegas pesquisadoras negras, que com muita luta
adentraram ao universo acadêmico com o intuito de contribuir
com pesquisas e publicação teoricamente libertadoras, que enfren-
taram o racismo e todas as formas de preconceito para ocupar seus
lugares de fala e reivindicar o direito de liberdade de expressão,
essa escrita almeja fortalecer o movimento feminista e abraçar a
todas que estão inseridas no processo.
Esta carta foi desenvolvida conjuntamente por nós, Eliane
Costa da Silva e Maricéia Pereira de Novais, no Programa de Pós-
-Graduação em Educação e Diversidade, no qual fomos estudantes
especiais do componente curricular, Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais, do Mestrado Profissional em Edu-
cação e Diversidade -MPED-NEB, turma 2023.2. Nossa carta é
direcionada a todas as mulheres negras que estão na ambiência
de universidades, faculdades, institutos, ensino médio etc. Todas
as mulheres, cis, trans que fazem ciência, estudos e pesquisas.
Queremos dizer que vocês não estão sozinhas; nós, mulheres
negras, sempre estamos juntas, nossa ancestralidade nos une e
nos interliga.
Nesta escrita, temos como objetivo, destacar o conceito de
feminismo de autoras brasileiras, principalmente as estudiosas
negras, as quais são fundamentais para compreender o feminismo
negro. É necessário destacar que não abordaremos abrangente-
mente os pontos principais. Mas, certamente, deixaremos aqui
nesta carta como parte na luta no espaço acadêmico, dedicada à
importância de estudos feministas, principalmente das autoras
negras, tão fundamentais para compreender a sociedade brasileira.
1 Produção escrita e desenvolvida exclusivamente para a carta-movimento.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Conceituar o feminismo no Brasil é um desafio estimulador, e
nós, autoras desta carta, percebemos a necessidade e importância
de fazer esse movimento. No livro intitulado Interseccionalidade
pioneiras do feminismo negro brasileiro, Heloisa Hollanda (2019),
apresenta, na introdução, com tristeza a presença de estudos de
gênero nos centros de pesquisa marcados fortemente por estudio-
sos anglo-americano e eurocêntricas. Dessa forma, compreende-
-se a necessidade de estimular estudos e pesquisas que valorizem
as pensadoras filósofas latino-americanas e mestiças, chicanas
(americanas com pais mexicanos) e latinas. Estudos voltados para
a perspectiva “[...] decolonial, com ressalvas às teorias de caráter
eurocêntrico” (Hollanda, 2019, p. 8).
Para Sergio Rego (2019, p. 10) a formação do ativismo
feminista no Brasil, nos anos 60-70, teve bastante atuação na
promoção de “[...] avanços sociais, sobretudo no assegurar de
medidas legais, acesso e direitos às mulheres, percebemos que
muito se deve à sua manifestação acadêmica, principalmente a
partir dos anos 60”.
Nos anos 70/80, as mulheres que estavam no ambiente acadê-
mico “[...] passaram a ter contato com o pensamento feminista que
emergia no cenário dos países do norte e escritos de acadêmicas
americanas feministas, inglesas e italianas penetraram no Brasil”
(Araújo, 2019, p.3).
Na década de 1990, destaca-se o “[...] houve um esforço cole-
tivo para potencializar a incidência política das mulheres negras
institucionalmente” [...] (Rodrigues; Freitas, 2021, p.12). Os es-
forços foram marcados pela multiplicação de Organizações Não
Governamentais (ONGs) de mulheres feministas negras. Destaca-
-se “[...] Geledés, Fala Preta!, Crioula, Casa de Cultura da Mulher
Negra, Nzinga - Coletivo de Mulheres Negras de Belo Horizonte,
Maria Mulher, entre outras), a fundação da Rede de Mulheres
Afro-Latinoamericanas e do Caribe, em 1992” (Rodrigues; Freitas,
2021, p. 13). Conforme Rego (2019), no final da década de 1980 e
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
início da década de 1990, destaca-se a publicação feminista dirigi-
da por acadêmicas feministas, em sua maioria, nas ciências sociais.
Sabemos que no decorrer da história da América Latina, es-
pecificamente do Brasil, a partir da colonização, os povos latino-
-americanos/brasileiros passaram por um processo de colonização
no qual a cultura europeia perpassou e sobressaiu exacerbadamente,
anulando nossa ancestralidade, nossos costumes e tradições. A
partir do tráfico negreiro, a miscigenação corroborou com a mistura
de sons, traços e cores que tornou o Brasil o país da diversidade.
A escravidão no Brasil assolou os africanos escravizados de
maneira tão intrínseca que seu resquício perdura até os dias atu-
ais, segregando, estratificando e excluindo pessoas. As atitudes
capacitistas, embora previstas como crime no artigo 20 da Lei
7.716/1989, continuam implícitas ou explicitamente em vigor
em nosso cotidiano. Compreendemos a importância de um ensi-
no que seja na prescritiva descapacitista, assim como conceitua
Aline Alvernaz (2022, p. 101) “Pedagogia Descapacitista surge
deste contexto formativo com a emersão de noções de corpo e
movimento para uma perspectiva inclusiva, humana e democrá-
tica”. A autora aponta que esse movimento deve ser permeado por
“[ ] novas posturas, atitudes, práticas e concepções para além da
escola” (Alvernaz, 2022, p. 100). Dessa forma, concordamos com
a referida autora, pois compreendemos que ser descapacitista é
uma postura que devemos tornar diariamente em todas as ambi-
ências de convívio, para assim “[ ] fazer pensar outro, questionar
as práticas pedagógicas já consolidadas” (Alvernaz, 2022, p. 101).
Mulheres negras lutam por igualdade de direitos, por reco-
nhecimento como ser humano, e vem sendo feito o apelo, por
meio das reivindicações, manifestações e denúncias das mais
diversas formas de preconceito racial. É necessário ir mais além,
pois sabe-se que ninguém nasce preconceituoso, o mesmo é
construído socialmente ao longo dos tempos e vai se ampliando
à medida que vai ganhando ênfase.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Entendemos que medidas preventivas precisam ser tomadas,
uma vez que essas atitudes capacitistas perpassam até mesmo os
muros das universidades. Durante as aulas/rodas de conversas
do componente “Pedagogias Feministas e Epistemologias De-
coloniais”, ocorridas em 2023.2, vieram à tona vários relatos de
colegas e participantes/convidadas, relacionados à discriminação
racial e de gênero dentro das universidades. O meio acadêmico
deveria ser o lugar onde se dissemina o respeito mútuo, a inclusão
e a equidade, mas percebe-se que essa caminhada rumo à igual-
dade de direito ainda anda em passos lentos, o que não significa
desistir, mas persistir.
É notório que as “Pedagogias Feministas e Epistemologias
Decoloniais” instigam a resistência por parte de homens e mu-
lheres que buscam e ocupam seus lugares no mundo, tendo a
possibilidade de reinventar, ler o mundo por várias dimensões e
projetar uma sociedade mais humana. Paulo Freire propõe peda-
gogias que possibilitem ao educador a autonomia, a liberdade e
a criticidade (Freire, 2007).
Segundo Ferreira e Silva (2022), a educação precisa de práti-
cas emancipatórias que sejam contra a hegemonia e enfrentam o
racismo, sexismo e LGBTfobia nos cotidianos e ainda que almejam
o arrombamento das fronteiras do eurocentrismo patriarcal para
a construção de uma sociedade justa, para toda humanidade. Para
isso, é urgente que a educação se apresente como alicerce no com-
bate às múltiplas violências, oriundas do preconceito e do ódio.
Tudo isso nos remete a refletir sobre todas as formas de exclusão,
exploração, opressão e a refletir também o quanto preconceituosas
foram as pedagogias feministas eurocêntricas/brancas.
Como já foi mencionado anteriormente, o sistema patriarcal
machista ocidental marcou a história da colonização da América
Latina, por meio da hegemonia eurocêntrica do conhecimento
validado e considerado universal, que por sua vez inferiorizou
e menosprezou a cultura, os saberes e as concepções dos povos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
latino-americanos, com base nos marcadores sociais de gênero,
raça e classe social, apoiados estrategicamente na educação para
disseminar o autoritarismo e o empoderamento dos coloniza-
dores sobre os colonizados, que se tornaram reféns da política
pedagógica implantada. Por ter sido um colonialismo machista,
mulheres negras e indígenas eram consideradas subalternas e
tratadas como tal.
A existência de uma Pedagogia Decolonial Feminista é de
grande relevância porque deve, essencialmente, assumir o papel de
transformar o modelo educacional tradicional, que articula meios
de oprimir mulheres, principalmente as negras e indígenas, que
segundo Dombkowitsch e Silva (2022) vêm sendo ocultadas por
meio da colonialidade moderna de gênero ao longo dos tempos
em um modelo de educação que rompa a Epistemologia do Norte
Global.
O ápice da Pedagogia Feminista Decolonial é desmistificar
e romper com a ideologia eurocêntrica dominante do saber, tido
como único e universal, e adotar um sistema que elimina as mais
variadas formas de opressão contra os povos do Sul Global, no que
tange aos marcadores sociais de classe, gênero e raça. Para isso,
urge a necessidade de uma Pedagogia Feminista Decolonial que
introduza a Epistemologia do Sul Global com seus saberes e fazeres
que resgate a identidade e autoestima desses povos, trazendo-os
de volta à existência ao mundo moderno, podendo citar como
exemplo, mulheres negras, pobres e indígenas.
Considerando o contexto social estratificado em todas as es-
feras da América do Sul, em decorrência do colonialismo europeu
que desumanizou os povos originários locais e perpetua exacerba-
damente com todas as formas de discriminação racial e de gênero,
é necessário adentrar no universo das “Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais”, com o intuito de realizar pesquisas
pertinentes a essa disciplina para aprofundar nesse estudo e trazer
à tona verdade, igualdade e equidade para todas as mulheres; e,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
com isso, contribuir por meio de mobilização e motivação para
o empoderamento e inclusão de todas as mulheres que vivem às
margens dessa sociedade machista, racista e preconceituosa.
Para bell hooks (2013), o movimento feminista afro-ameri-
cano marcou consideravelmente o sistema de educação, porque
foi esse movimento que no final da década de 1980 lutou contra
as desigualdades de maneira plural e não dominante. Segundo a
autora, a contribuição das mulheres nesse movimento foi incalcu-
lável e alcançou discussões modernas sobre a pedagogia, porque
foi direcionado para a reconstrução de um feminismo multicul-
tural e crítico a respeito de raça, gênero, classe, orientação sexual
e teorias feministas brancas (hooks, 2013).
As discussões sobre as concepções de pedagogias feministas,
realizadas durante esse componente, proporcionaram elementos
reflexivos e possibilidades para insurgência de novas práticas pe-
dagógicas que viabilizem a transformação do contexto escolar e,
consequentemente, a transformação de todos os sujeitos envolvi-
dos no processo. Nesse componente, as epistemologias feministas
problematizaram os eixos interseccionais entre sexismo, racismo,
imperialismo, lgbtfobia e práticas pedagógicas colonizadoras,
trazendo à tona a proporção da discrepância dos marcadores de
gênero, raça/etnia e sexualidade.
A abordagem apresentada pelas professoras do componente
está em consonância com a Pedagogia Libertária que busca com-
preender e valorizar as vivências e saberes dos povos que viveram
e vivem excluídos. Todos os debates instigaram a reflexão sobre o
ponto de vista heterogênico, visando romper com o pensamento
homogêneo, eurocêntrico e patriarcal que exclui, marginaliza e
segrega.
Podemos partir do racismo ambiental para entender o
racismo no espaço acadêmico. Conforme Filgueira (2021), o
racismo ambiental está imbricado nas “[...] ações ancoradas
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
em injustiças sociais e ambientais. Tais ações incidem sobre
grupos populacionais vulneráveis”. Essas injustiças sociais
não fogem da realidade nas universidades públicas, pois, como
sabemos, os espaços educacionais também fazem parte da
sociedade. Logo a réplica da hegemonia eurocêntrica/branca
é feita e desenvolvida.
Ainda segundo Filgueira (2021, p.191), no racismo ambien-
tal, temos a cidadania como acesso aos direitos, civis, políticos
e sociais. Ele destaca que os grupos subalternos, tais como: tra-
balhadores pobres, indígenas, pescadores, negros e outros, têm
pouco ou nenhum acesso à/ao “[...] saúde, educação, trabalho e
habitação. Com isso, a cidadania plena, vista como o acesso inte-
gral aos três direitos, ainda é um projeto a ser alcançado, pois a
concessão dos direitos sociais é negada”.
Para as mulheres pretas, isso pode ser percebido e sentido
diariamente. Por meio da negação do básico e a violação dos
nossos corpos diariamente. O acesso e permanência ao ambiente
acadêmico da pós-graduação é esse misto de direitos sociais: di-
ficuldade para acessar o mestrado/doutorado no ensino superior
público, dificuldade para permanecer nesse ensino, a negação da
capacidade de pensar, escrever e pesquisar, a dúvida/afirmação se
aquele ambiente replica o racismo ambiental.
O espaço acadêmico também é um dispositivo de poder
entre o branco versus o negro. Essa primazia está ancorada em
uma posição de poder exercida na sociedade como formação
cultural. Dessa forma, Filgueira (2021, p. 195) afirma que a “[...]
raça é um dispositivo de poder, posto em circulação pelo Oci-
dente, baseado na eliminação da diversidade pela lógica binária
rivalizante (branco versus negro), a fim de garantir a estrutura
moderna dominação”. O dispositivo racial é um conceito arti-
culado por Sueli Carneiro (2019, p. 27) como: o dispositivo de
racialidade demarca a
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
[...] humanidade como sinônimo de brancura, irá
redefinir as demais dimensões humanas e hierar-
quizá-las de acordo com a proximidade ou o distan-
ciamento desse padrão [...]. [Desse modo], branco
torna-se ideal de Ser para os Outros, e a mulher bran-
ca, uma mística para os não brancos. Essa forma de
afirmação da burguesia instituiu para todos o padrão
estético desejável, a forma de amor e de sexualidade,
a moral correspondente, sendo o corpo a expressão
da autoafirmação, afinal, “o corpo funciona como
marca dos valores sociais, nele a sociedade fixa seus
sentidos e valores” (grifos da autora).
Compreendemos que, da mesma forma como padrão estético,
reproduz uma sociedade racista, misógina e machista. O campo do
conhecimento é a réplica desses marcadores sociais. Destaca-se
o currículo e referenciais teóricos dos componentes curriculares
como balizadores. A ausência de autores negros e negras, como
referência de estudos e criadores de conceitos.
Nós, estudantes desse componente curricular, nos ma-
ravilhamos ao nos deparar com a diversidade de autores e
conceitos, destacamos: os autores negros, as autoras negras,
os conceitos de lesbianidade, transmasculidade, transgenerida-
de, pedagogia da desobediência. Momentos esses em que não
haveria outra oportunidade de estudos e compartilhamentos
de conhecimentos.
Além desses balizadores mencionados anteriormente, des-
taca-se a pouca ou nenhuma representatividade negra no quadro
docente na pós-graduação. Esse marcador social reflete em quais
projetos de pesquisa podem ser aprovados em processos seletivos
para o acesso ao mestrado e doutorado. Compreende-se que esse
movimento político é racista, pois ao submeter os projetos nas
seleções, mesmo que passe na prova escrita, idiomas, o projeto
pode ser barrado, pois no programa não tem professores que
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
trabalham com objeto/tema de pesquisa pretendido. O desenvol-
vimento da pesquisa,
[...] sobre raça ou racismo no campo das ciências
humanas implica não falar de si, mas produzir dis-
cursos sobre “os outros”. Esses “outros” costumam
ser os não brancos. Não é de hoje que intelectuais
brancas e brancos desenvolvem análises acerca dos
processos de construção de desigualdades raciais
sem estender essas mesmas análises ao ambiente
acadêmico em que trabalham e são hegemônicos.
O fato de que os produtores de conhecimento são
portadores de epiderme clara não costuma ser visto
como expressão acadêmica da desigualdade racial.
Essa situação simplesmente não costuma ser enca-
rada como problema (Rosa, 2018, p. 40).
Rosa (2018) aponta que os espaços acadêmicos de fato têm
a face clara, e tal situação não é encarada como um problema. Os
produtores de conhecimento, que estão no padrão de branquitude
e heteronormativo. Não estamos aqui tentando menosprezar todo
o avanço em relação às políticas de cotas e ações afirmativas. Es-
sas políticas de fato mexeram com as estruturas das instituições
de ensino superior público, que era majoritariamente um espaço
embranquecido, machista, padrão, misógino e elitista. Mesmo
assim, podemos encontrar opiniões que retiram a legitimidade dos
estudantes negros. Afirmando que, quando os negros adentram ao
espaço acadêmico na graduação, possa haver uma diminuição na
qualidade e excelência do ensino. Assim como afirma Guimarães
(2003, p. 262-263).
Um dos argumentos mais usados, principalmente
por professores das universidades públicas, contra
as políticas de ação afirmativa para negros é de
que a flexibilização do sistema de ingresso poderia
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
acarretar uma perda de qualidade do ensino e de ex-
celência das universidades. A isso, os ativistas negros
respondem apontando para o caráter preconceituoso
desta opinião, uma vez que não se mostram os dados
em que ela pode estar baseada.
O caráter preconceituoso é o racismo acadêmico que existe
nas universidades públicas. Usam esse argumento racista, sem
dados, para retirar o fortalecimento do movimento de luta con-
tra a hegemonia nos espaços acadêmicos. A luta para se manter
nesse ambiente é grande e é resistência. Não só permanecer, mas
também manter a continuidade, formando as novas gerações. É
muito importante enegrecer as universidades; para isso, Carmo;
Cornélio; Rodrigues e Freitas (2020, p. 90) afirmam ser uma ne-
cessidade urgente. Enegrecer “[...] referências e pensamentos que
para traçar referenciais enegrecidos é preciso nos localizamos
geopoliticamente como produtores de conhecimento, pensar nas
artimanhas do racismo e no engendramento do colonialismo que
matou e ainda mata conhecimento”.
Assim como afirma Gonzalez (2020), é importante que nós,
mulheres pretas, sejamos organizadas. Para isso, é fundamental
um projeto de transformação social. Compreendemos que esse
movimento, também está nas universidades públicas. Partici-
pando de projetos, grupos de estudos, movimentos sociais etc.
Tais momentos e oportunidades, fecundam o processo reflexivo.
De acordo com bell hooks (2013), na educação, teoria e prá-
tica não se separam quando o que se vivencia está inerentemente
inseparável da teorização como um processo crítico e reflexivo
que propõe mudança e cura do indivíduo ou do coletivo desde
que seja direcionada para esse fim, considerando a teoria como
prática libertadora.
Para que as práticas de ensino estejam em consonância com
as teorias no tocante a descolonização do conhecimento, e esti-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
mule o senso crítico dos estudantes, avançando para uma prática
libertadora das minorias oprimidas, é necessária, segundo hooks
(2013), a construção de uma educação humanista (antirracista,
antissexista, anti-homofóbica etc.) que reconheça as singulari-
dades dos sujeitos garantindo voz e vez aos mesmos.
Para que o supracitado aconteça, é imprescindível romper
com as metodologias, disseminar o conhecimento teórico e insti-
gar a academia aproximar a teoria da prática, visto que, a produção
acadêmica feminista valorizada é construída no âmbito da elite
branca que hierarquiza e não contribui para o coletivo, pensada
para manter o status quo da classe dominadora intelectual.
A teorização para a ação libertadora objetiva a não reprodu-
ção do status quo, na perspectiva de despertar o senso crítico e
reflexivo, trazendo o pensamento de desconstrução de conceitos
racistas e preconceituosos para o meio acadêmico, de forma que
os estudantes deixem de ser pessoas meramente passivas e en-
gessadas e tornem-se sujeitos ativos, protagonistas da própria
história. Além disso, despertem o senso crítico no que concerne à
sociedade em que vivemos, como também a invisibilidade dos não
brancos, das mulheres negras e de todos que vivem às margens.
Queridas companheiras de luta e resistência, nesta carta,
aproveitamos para fazer um movimento também de agradeci-
mento às professoras Amália Catharina Santos Cruz, Zuleide
Paiva da Silva, Ana Lúcia Gomes da Silva e as monitoras Beatriz
Coutinho, Josiane Zaco e Sueli Santana, do componente curricular
Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais, pela aten-
ção, apoio e contribuições nessa formação/roda/ginga, que nos
possibilitou um olhar mais aguçado e sensível no que concerne
ao componente e a temática “Movimento Feminista”, do qual já
nascemos inseridas no processo, fazendo parte das “fortes”, e dizer
que as discussões nas gingas foram valorosas e a receptividade
nas rodas, calorosas.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
As rodas de conversas das aulas seis e sete do referido com-
ponente curricular, que tratou do Pensamento de Mulheres Negras,
despertou em nós o desejo de externar, por meio desta carta, o
nosso ponto de vista, angústias e empoderamento, considerando
a luta incansável de todas as companheiras negras que lutaram e
lutam por justiça, respeito e dignidade.
Vale ressaltar que os discursos de empoderamento e resis-
tência no fortalecimento dos movimentos feministas foram de
grande relevância. Desmistificar o entendimento improcedente
de termo feminismo pelo conceito verídico do mesmo foi impres-
cindível para o abrir do leque de muitas mulheres que o entendia
também como movimento de mostrar a nudez e equiparar-se
aos “homens”, quando, na verdade, o movimento vai muito além
desse pensamento errôneo. Abraçar coletivamente toda equipe
do MPED; colegas, que nos representou em seu lugar de fala, nos
relatos das vivências dentro e fora do meio acadêmico. As mulheres
do campo, que tiveram seus currículos escolares negligenciados e
calendários escolares, que na maioria das vezes não respeitaram/
respeitam as peculiaridades de suas respectivas comunidades.
Por fim, agradecer e enlaçar todas as mulheres negras e
quilombolas, as quais esta carta foi endereçada. Como mulheres
negras, compartilhamos mais essa conquista que é a conclusão
do componente citado, como alunas especiais. A cor da pele e
nossas características ancestrais não nos diferem com relação
à capacidade e criatividade. A intelectualidade é característica
humana e é isso que SOMOS.
141
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
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142
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ESCREVIVÊNCIAS MPEDIANAS DE DUAS
MULHERES NEGRAS
Eliete Fagundes
Luciana Dias Ribeiro
Senhor do Bonfim, 30 de outubro de 2023.
Prezada colega Eliete, escrevo-lhe com a intenção de estabe-
lecermos um diálogo por meio de cartas pedagógicas feministas,
com foco no pensamento das mulheres negras. Você é uma fonte
inspiradora para mim como mulher negra, e estou certa de que
trocaremos informações enriquecedoras, que me auxiliarão a
dissipar minhas dúvidas e inquietações. Quero convidá-la para
escrevermos e lermos cartas nossas, que falam sobre feminismo
negro, igualdade entre gêneros e como é a vida das mulheres
negras como nós. Nelas, exploraremos assuntos importantes
para termos uma sociedade mais justa e que respeite a todos e
todas. Convido você para compartilharmos relatos, ideias e so-
nhos de modo a promover o respeito e a diversidade. Espero que
ao compartilharmos com outras pessoas nossas cartas, elas/eles
sintam-se acolhidas/os por nós, por isso venha com a gente nessa
jornada de aprendizado e mudança.
Esta carta pedagógica que estou enviando, é um documento
para comunicar ideias, valores e práticas educacionais. Trata-se de
uma carta pedagógica feminista, que tem como finalidade abordar
o feminismo negro, questões de gênero, desigualdade e justiça
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
social na educação, para que possamos enfocar o empoderamento
das mulheres e a promoção da igualdade de gênero dentro e fora
da sala de aula. Desejo, com esta carta, poder expressar minhas
perspectivas, experiências e aspirações em relação à criação de
ambientes de aprendizado que valorizem e respeitem a diversida-
de. Este componente curricular que estamos cursando, intitulado
Pedagogias Feministas Decoloniais, apresentou-se para mim como
uma oportunidade para refletir criticamente sobre as questões
de gênero na educação e desenvolver uma compreensão mais
profunda das implicações práticas das pedagogias feministas.
Além disso, é também um componente catalisador para poder-
mos praticar habilidades de comunicação escrita, argumentação
e análise crítica, enquanto também exploramos e articulamos
nossas próprias visões sobre educação e justiça social.
Como não nos conhecemos pessoalmente, permita-me
apresentar-me. Meu nome é Luciana Dias Ribeiro, nasci e cresci
no interior da cidade de Andorinha, em um povoado chamado de
Sítio do Açude, onde vivi os melhores anos da minha vida. Estudei
todo o meu Ensino Fundamental no povoado, e cursei o Ensino
Médio na cidade; no povoado, a escola era somente até o Ensino
Fundamental II; sou negra, filha da Lucicléia e do Edivan, tenho
um irmão mais velho e uma irmã mais nova com quem comparti-
lho meus sonhos e frustrações, e hoje, me encontro em busca de
novos conhecimentos e, por isso, estou aqui escrevendo essa carta
para que, juntas, possamos entender o pensamento das mulheres
negras, numa troca de ideias de uma mulher negra para outra.
Formei-me recentemente em licenciatura em Ciências Bio-
lógicas, pela Universidade do Estado da Bahia, Campus VII, loca-
lizado na cidade Senhor do Bonfim, e estou em busca de ingressar
no mestrado, e para entender melhor a dinâmica estou fazendo
juntamente com você o componente curricular “Pedagogia Fe-
ministas e Epistemologias Decoloniais”, conforme Imagem 1, a
seguir:
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Imagem 1 – Card Pedagogia Feministas e Epistemologias Decoloniais.
Fonte: WhatsApp grupo do componente, 2023.
O referido componente despertou em mim vários sentimentos
e inquietações sobre a minha prática docente como colaboradora
na formação de muitos estudantes em uma educação atual, que
não é plural e muito menos abrange a todos e todas de maneira
igualitária; por isso, estou em busca de expandir meus horizontes
e me tornar uma educadora negra que seja aquela pessoa referên-
cia que eu não tive durante a minha jornada na escola, que não
tinha representatividade e os profissionais da escola não sabiam,
na época, como agir quando uma criança era vítima de racismo; o
máximo que acontecia era ameaçar mandar pra direção.
Escrevo a você para compartilhar os meus anseios sobre os
pensamentos de mulheres negras e a importância do feminismo
negro na educação básica, que nos dias atuais ainda não vemos essa
inserção no cotidiano escolar, abertamente, como parte do currículo
das instituições e, confesso que ainda estou em processo de cons-
trução dos meus próprios pensamentos, mesmo recém-formada
em uma universidade pública, em curso de licenciatura, pouco se
falou durante a minha formação sobre esses assuntos; imagino e
147
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
espero profundamente que isso ocorra apenas no curso de Biologia
e que seja por conta da alta demanda de conteúdos específicos, o
que não impede que as instituições revejam suas grades e incluam
o mais rápido possível, no ensino superior, disciplinas que discutam
pautas importantíssimas como essas, que ajudam a entender quem
somos e como podemos atuar como educadores. A Lei nº 11.645, de
10 de março de 2008, por exemplo, torna obrigatório o estudo da
história e cultura indígena e afro-brasileira nos estabelecimentos
de Ensino Fundamental e Médio e, recentemente, estenderam para
o Ensino Superior, já é um pequeno avanço.
Quando falamos sobre ensinar Biologia, precisamos ir além
do corpo apenas como algo biológico, cara Eliete. É importante
considerar como raça, classe, sexualidade e deficiência afetam a
maneira como vivemos nossos corpos. Por exemplo, pessoas de
diferentes raças ou classes podem enfrentar diferentes desafios
em relação à saúde e acesso a cuidados médicos. Da mesma forma,
a sexualidade é mais do que apenas biologia, envolve questões
sociais, culturais e políticas.
Quando falamos sobre deficiência, é fundamental adotar uma
abordagem que promova a inclusão e a acessibilidade para todos.
Isso significa desafiar ideias que marginalizam as pessoas com
deficiência e garantir que todos tenham oportunidades iguais. Em
nosso currículo, devemos incluir temas que abordem essas ques-
tões de maneira sensível e inclusiva. Isso pode envolver discutir
representatividade na ciência, saúde mental e ética na pesquisa.
Preparar os futuros professores de Biologia para lidar com essas
questões é essencial para criar um ambiente educacional justo e
acolhedor.
Sobre esta questão na roda de conversa sobre o pensamento
de mulheres negras tivemos a honra de ler trabalhos incríveis
como o da Ana Maria Anunciação, que proporcionou um acolhi-
mento e calmaria na alma enquanto eu lia, e depois ao ouvi-la
percorrendo em suas falas pela excelência de existir e resistir da
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mulher negra que vive na zona rural, compartilhando os enfren-
tamentos do seu cotidiano para viver tornando-se inspiração para
outras mulheres como eu, por exemplo, que sou da zona rural e
compreende a importância de resistir e existir.
No decorrer de minha infância, tive poucas referências de
mulheres negras próximas na minha vida, na convivência do dia
a dia. Não que elas não existissem, mas porque eu não entendia o
que é uma mulher negra e, também não ter sido ensinada mesmo
sendo uma mulher negra. Na verdade, fui criada ouvindo que eu
era morena, e por muito tempo acreditei nisso, sempre que eu
falava que era negra, vinha alguém falando “não, você é mulata,
café com leite, e outros adjetivos que poderia citar vários aqui. Mas
sei que não é preciso, pois como mulher negra que sou, imagino
já ter ouvido vários. Com o decorrer das rodas de conversas que
participamos, minhas indagações, interna e externa, aumentaram
e muito, principalmente depois das falas da convidada Josiane
Cristina Climaco, que evidenciou que novas perguntas devem ser
feitas, para obtermos novos pensamentos. Minhas inquietações
são quais perguntas eu devo fazer? Como abordar essas novas
perguntas? Para onde vão nos levar os novos pensamentos? Acre-
dito que sejam apenas inquietações iniciais, que depois de umas
boas leituras mais aprofundadas serão sanadas; ao mesmo tempo,
tenho a sensação de capacidade e de sentir-me acolhida com suas
palavras e escrita da experiência neste componente.
Na escola, ao longo dos anos, passei por algumas situações de
racismo, mesmo sendo poucas, ficaram internamente na minha
mente e fizeram feridas na alma. Lembro-me dos meus primeiros
movimentos, sozinha, para entender que era negra, mas não foi
fácil. Isso aconteceu quando o agente de saúde passou pela minha
casa e estava fazendo o cadastro de dados da família. Na verdade,
estávamos em um tanque lavando roupa, próximo de casa, e ele
foi perguntando algumas informações para a minha mãe, até que
chegou o momento da pergunta da cor de cada pessoa. Ele mesmo
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ia respondendo e quando chegou à minha vez, falei: “coloca a
minha, preta”, e todos discordaram.
Lembro-me ainda de ouvir claramente “você não é preta, você é
morena”; por fim, ele mesmo decidiu colocar amarela. Fiquei chatea-
da e continuei sem entender qual o problema de colocar a minha real
cor; na verdade, no meu íntimo, eu já sabia o que estava acontecendo.
Era mais uma vez a negação da identidade negra de uma pessoa, pois,
ao longo da história, ser preto era visto como algo negativo, ruim e
por não ter conhecimento suficiente ou pouco se falar sobre o assunto
ainda ocorriam episódios lamentáveis como este.
Ainda na escola, em um período de festa junina, a professora
pediu para que eu fosse a rainha do milho da quadrilha junina,
da minha sala. Fiquei super feliz e aceitei imediatamente, até um
colega de turma dizer que nunca tinha visto rainha do milho preta.
No momento, meu mundo caiu e fiquei visivelmente abalada. A
professora repreendeu a ele, que continuou a falar umas coisas,
baixinho, e eu fui acolhida pelos meus amigos. Com o entendi-
mento que tenho hoje, compreendo que nem a professora teve
acesso a uma educação que abrangesse tais pautas; por isso, a
importância de inserir nas universidades e escolas de Ensino Bá-
sico uma educação antirracista, até porque, segundo a convidada
Josiane, quem criou o racismo não foi o preto.
Foi no componente curricular que tive meu primeiro contato
com a literatura produzida por mulheres negras. Quando acessei
o conteúdo dos livros, tive uma mistura de surpresa, admiração
e, ao mesmo tempo, um sentimento de pertencimento e identi-
ficação. Pela primeira vez, vi minhas próprias experiências, lutas
e perspectivas refletidas nas páginas dos livros, o que me deixou
emocionada e inspirada. O componente curricular foi fundamental
para me ajudar a entender mais sobre o feminismo negro, pedago-
gia feminista e epistemologias decoloniais. Através das discussões
em sala de aula, leituras e atividades práticas, pude ampliar minha
consciência sobre a importância de nossas identidades como mu-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
lheres negras e como esses conhecimentos podem ser aplicados
em nossas vidas e futuras práticas educativas.
Sobre minha existência no espaço acadêmico, houve uma
mistura de desafios e determinação para concluir o curso, haja vista
que trabalhava como frentista após as aulas. Apesar do histórico de
exclusão e negação de conhecimentos às pessoas negras, acredito
que a minha presença e permanência serviram para afirmar e con-
tribuir para a construção de um ambiente mais inclusivo e diverso,
auxiliando na relevância das mulheres negras na educação.
Quanto aos conceitos de docência, educação, diversidade,
cultura e direitos humanos, pude obter uma compreensão pro-
funda e sensível, baseada em minhas próprias vivências e na
reflexão crítica proporcionada pelo componente. Entendi que a
luta e resistência são elementos essenciais em minha vida e na
luta por justiça e igualdade. As histórias situadas em nossos cor-
pos negros falam sobre sobrevivência, violências, cansaço, falta
de dignidade e respeito, mas também sobre resiliência, força e
esperança. Acredito que estamos determinadas a fazer nossas
vozes ser ouvidas e a criar um mundo mais justo e inclusivo para
si e para as gerações futuras.
Aguardo pela sua resposta - sobre como você atua como peda-
goga da educação básica como mulher negra e como trabalha essas
pautas? Quais suas vivências e lutas como atuante do feminismo
negro? Sei que devemos estudar muitos assuntos como seres em
constante formação e inacabamento humano; quero compartilhar
com uma colega de profissão meus medos, lutas e vivências para
que, juntas, possamos mergulhar em novos caminhos e formas de
compartilhar conhecimentos na sala de aula. Fico ansiosa para ler
seus relatos e experiências.
Abraços!
Luciana.
Tijuaçu, Senhor do Bonfim, 19 de novembro de 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Cara colega Luciana,
Na verdade, nós ainda não nos conhecemos pessoalmente,
espero te conhecer em breve, mas enquanto esse dia não chega,
vou me apresentar e falar um pouco de mim, e da minha trajetória
de vida.
Eu sou Eliete Fagundes de Jesus Rodrigues, uma mulher negra,
quilombola, nasci, fui criada, resido e trabalho na comunidade
Quilombola de Tijuaçu. Sou a 4ª em uma família de 6 irmãos. Sou
casada e mãe de dois filhos lindos: Lucas Emanuel, de 16 anos
e Fernando José, de 7. Sou filha de pais pobres, negros e semia-
nalfabetos. Éramos oito em uma casa de taipa, pau a pique, com
apenas quatro cômodos e um banheiro cercado, do lado de fora.
Mainha, tratando fato de boi e vendendo milho na feira. Meu pai,
menos presente do que se esperava. Pois ele viajava para trabalhar
fora e demorava muito tempo para retornar, e quando acontecia
de chegar em casa depois dessas longas viagens, passava quase
todo tempo bêbado; você acredita que em uma dessas viagens
ele passou cinco anos e quando voltou, trouxe uma filha de ou-
tra mulher, minha irmã caçula, para minha mãe criar? Ele ficou
morando conosco, mainha criou-a como filha. Sofríamos muito
com meu pai quando estava bêbado, ele, às vezes, nos colocava
para dormir fora de casa, pedíamos abrigo na casa dos vizinhos
ou dormíamos na igreja. É triste falar, mas nos sentíamos mais
aliviadas quando ele não estava em casa ou não estava bebendo.
Quase sempre a minha mãe dava dinheiro para ele viajar, pois
também não suportava tal situação. Hoje, ele está com a idade de
71 anos e continua bebendo e passando muito tempo fora de casa.
A minha infância não foi muito diferente da sua, e da de
tantas outras mulheres mundo afora. Esta etapa da minha vida
foi marcada por muitas situações difíceis e privações, mas com a
bravura, sabedoria e desejo de mudança de uma mulher guerreira
fez toda diferença na nossa vida. Você acredita, Luciana, que mi-
nha mãe saía tão cedo para trabalhar que durante algum tempo
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
eu chamava minha irmã mais velha de mãe? Comecei a trabalhar
muito cedo, aos 10 anos já cuidava dos filhos dos outros e aju-
dava com os meus irmãos, catava osso, carregava água em tonel,
o que surgia. Um pouco depois, já comecei a dar aula sim, aula!
Era professora dos meus amigos na nossa “escolinha” tinha até
diretora, fazíamos boletim de desempenho e tudo! Pois é, mainha
trabalhava na roça e vendia milho na cidade de Senhor do Bonfim,
que fica a 18 km daqui, de Tijuaçu. Estudei desde o ABC (que era
assim que chamava a educação infantil, na época) até a 8ª série
aqui na comunidade, pois o Ensino Médio, só tinha na cidade.
Lembro-me que, com apenas 12 anos, em uma tarde quente,
não muito diferente das tardes desse ano que estamos quase fina-
lizando, como quase todos os dias daqueles anos, a seca assolava
o sertão da Bahia e eu temia pela fome, pois quem sobrevive da
roça teme quando se depara com longos períodos sem chuvas, já
que dependemos da chuva para garantir a comida em nossa mesa.
Hoje, sei que esse não é o tipo de pensamento que uma criança
deve ter, mas, àquela altura, eu não tirava esses pensamentos da
minha cabeça.
Como sou filha de pais pobres, negros e semianalfabetos,
esperavam de mim o mesmo futuro que eles tiveram. Entendo os
pensamentos deles, provavelmente tiveram seus sonhos adorme-
cidos e lidaram com uma realidade difícil, onde o sonho se tornou
ter comida para a família e vivendo uma realidade árdua imagina-
va que seus passos fossem seguidos, já que a luta de quilombola
nunca foi fácil. Éramos oito em uma casa, imagina o quão difícil
era manter a comida no prato de cada um. Os mais velhos iam
cuidando dos mais novos, ajudando como podia, sempre que surgia
alguma oportunidade de fazer um trabalho que ganhasse algum
dinheiro para ajudar nas despesas, quem estivesse disponível ia
logo, não podia deixar as oportunidades passarem.
A vida seguia entre sonhos e muita labuta, e com o passar
dos anos fomos crescendo e ajudando cada vez mais em casa.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Completei a 8ª série do Ensino Fundamental II, isso já era uma
grande vitória, tinha até formatura! Eu cheguei lá! 50 estudantes
começaram a 5ª série comigo e apenas 18 saíram para o Ensino
Médio. Olha, Luciana, foram tantas coisas que aconteceram nesse
período que hoje, lembrando para te escrever, só vejo o quanto
fui e sou persistente em meus sonhos. Você acredita que queriam
que eu trabalhasse o dia todo em casa de família como doméstica
para que eu não conseguisse ir à escola? Muita gente não quer que
a gente estude, essa é a verdade. Trabalhei em uma casa onde a
mãe era professora, duas filhas e seus maridos advogados. Foram
15 dias horríveis, recebi R$5,00 pelo trabalho realizado durante
aqueles dias, e fui embora para casa desolada com tamanho des-
respeito e falta de humanidade. Minha irmã passou por situações
semelhantes; certa vez, uma senhora falou para ela, depois de
realizar o serviço doméstico em sua casa: “- Você quer o dinheiro
ou a comida?”, mas, ali, pensei em desistir e me sentia sem ânimo
para continuar aquela jornada tão dura, porém, com o apoio da
minha mãe e a minha vontade que foi resgatada depois de pensar
um pouco, segui na escola, em Tijuaçu.
Mas como nada é fácil, todo ano eu sentia a mesma aflição,
pois a escola tinha um prazo para apresentar fardamento com-
pleto, como manda o “figurino”. Mas eu nunca sabia se daria certo
e isso me deixava ansiosa e receosa, se minha mãe mesmo com
todo o esforço que fazia iria conseguir comprar. Lá, sempre nos
diziam: “quero dar a vocês o que nunca tive”, mas, às vezes, não
tinha como. Minhas irmãs mais velhas ajudavam também. Ainda
assim, às vezes, não conseguiam, sem contar com as surpresas que
aconteciam de, vez em quando, trocarem a farda que estávamos
usando por outro modelo, gerando toda aquela aflição novamente.
Hoje, a realidade para quem estuda é diferente, graças às políticas
públicas de garantia de acesso e permanência de crianças e adoles-
centes à escola, na nossa cidade, por exemplo, ao se matricularem,
os alunos recebem o fardamento e material didático.
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Na infância e adolescência, sempre madrugava para catar
milho com mainha, dona Dejanira Fagundes, e ia para a escola,
também em Tijuaçu. Eram apenas duas salas, nem muro tinha.
Mas não era isso que me transmitia liberdade, era a escrita. Sempre
tive a facilidade de pegar as coisas ouvindo. Nunca gostei disso,
de decorar decoreba, para me expressar o que tinha na aula, eu
aproveitava ao máximo.
E vivendo entre roça, carona no pau de arara, feira, aula, rua,
casa dos outros, ponga em transporte, brincar de escola, os dias
foram passando. Mais rápido do que gostaria, porque quando a
noite chegava, era o candeeiro que iluminava a casa. A nossa era
a única da rua que não tinha luz elétrica, era ruim demais para
estudar, pois era a noite o período em que tinha mais tempo e
podia fazer o dever de casa, o candeeiro fazia muita fumaça escura
e manchava o material, sem contar que vez em quando ao ficar
muito perto acabava queimando os cabelos e quando percebia era
aquele cheiro de sapecado, e já tinha queimado algumas fios que
não estavam totalmente presos.
Como falei anteriormente, aqui em Tijuaçu, só tinha até a 8ª
série, fiz o Ensino Médio na cidade de Senhor do Bonfim. Vivia
esse período fazendo de tudo um pouco, pegava transporte (de
graça) até a cidade e corria na feira de Senhor do Bonfim fazendo
meus “negócios” como sempre fazia, passava oferecendo milho, e
tentava trocar por qualquer pedaço de carne nos açougues, colo-
cava no fogareiro hummmm que carne gostosa. Outra lembrança
boa!! Parece que estou sentindo o cheiro! Ao final do dia, 18 km à
frente, já estava em casa de novo. “É de taipa, mas é nossa”, sem-
pre dizia a minha mãe. E de lá, olhando para o chão batido e para
quem passava, sentia calor e agonia. Minha irmã trabalhava como
empregada doméstica em Senhor do Bonfim e, confiando nela,
“se tudo der errado, pelo menos teremos o de comer”, eu rezava,
pois o dinheiro que ganhávamos era para ajudar nas despesas de
casa. Digo isso porque, também, trabalhei em Senhor do Bonfim
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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como empregada doméstica; na verdade, a maior parte do Ensino
Médio e era muito difícil, porém precisei ser muito teimosa, e
driblar as adversidades, graças a Deus consegui concluir o curso
de magistério.
Assim terminei o Ensino Médio e tempos depois consegui in-
gressar na universidade -, Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
onde me graduei em Pedagogia e faço mestrado atualmente. São
muitas lutas e desafios que enfrentei e enfrento diariamente, mas
o bom mesmo é que nunca me fizeram desistir dos meus sonhos
e conquistas que tenho todos os dias quando acordo e me lembro
da minha jornada de vida e de mulher.
Em meio a tantas buscas e sendo uma mulher preta, sofri com
o preconceito, às vezes mais explícito e outros mais mascarados,
mas nunca deixaram de ser preconceito, entre as muitas memórias,
lembro-me de um episódio de quando estava trabalhando como
doméstica, em Senhor do Bonfim, com apenas 13 anos, ouvi a se-
guinte frase “Lugar de empregada, meio-dia, é na cozinha, não é
aqui fora”. Ouvi, em meio a uma briga em que nada tinha a ver. Eu
lá sei que horas é para almoçar? Pensei. Em casa, eu comia quan-
do dava certo, quando tinha o mínimo tempo; apenas engolia na
verdade, e tinha que me deparar com esses tipos de falas; e nessa
casa, Luciana é a mesma que falei que recebi apenas R$5,00 pelo
trabalho de 15 dias.
As pessoas achavam que pelo fato de estar oferecendo um
trabalho, quem aceitasse, não devia ter o direito de sentir fome ou
eles queriam determinar a que hora que o outro iria sentir fome,
mas eu sei que isso só acontecia porque eu era de uma comunidade
onde a grande maioria passava por privações e se sujeitava, por
necessidades, a permanecer nesses ambientes, onde os patrões
se achavam donos dos empregados, e alguns iam mais fundo,
simplesmente queriam trocar a mão de obra por comida.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Luciana, sou professora concursada, atuo em duas comu-
nidades Quilombolas: Tijuaçu, aqui no município de Senhor do
Bonfim e Aguadas, no município de Filadélfia; minha querida, já
são mais de 15 anos atuando na educação básica, contribuindo com
a construção de sonhos de crianças e adolescência, não perco a
oportunidade de trazer para a sala de aula assuntos relacionados à
história e cultura afro-brasileira, como também a história da nossa
comunidade e minha própria história de vida. Confesso que não
é fácil lidar com questões relacionadas ao racismo, uma vez que
infelizmente ainda convivemos com um racismo estrutural tão
evidente, costumo dizer que só sabe o que é ser preto, quem é; hoje,
mais ainda sinto na pele, pois na função que estou atualmente a de
diretora da Escola Municipal de 1º Grau de Tijuaçu, vejo o quanto
ainda estamos a passos lentos de termos uma sociedade que va-
lorize a mulher e principalmente a mulher negra. Você acredita,
Luciana, que quando recebi o convite para me candidatar à direção
da nossa escola, algumas pessoas duvidaram da minha capacidade
de exercer cargo de tamanha importância e responsabilidade,?
Tive que desconstruir alguns estereótipos, não para ser aceita, mas
sim para desenvolver o meu trabalho visando o desenvolvimento
de nossos alunos e, por conseguinte, da nossa comunidade, venho
ao longo desses quase seis anos desenvolvendo um trabalho em
parceria com a nossa equipe, com as famílias, com alguns órgãos
governamentais e sociedade organizada da nossa cidade, visando
o crescimento da minha comunidade através de uma educação
cada vez mais inclusiva, e antirracista.
E mesmo diante de muitas lutas, jamais devemos desistir;
e acredito que com a educação chegaremos a lugares, pessoas,
pensamentos e comportamentos incríveis. Observei isso ao longo
do componente curricular e do mestrado em si e, principalmente,
na roda de conversa no nosso sétimo encontro, que tinha como
tema pensamentos de mulheres negras, quando contamos com
duas convidadas incrivelmente inspiradoras, que foram a Josiane
Cristina Climaco e Ana Maria Anunciação da silva e, logicamente,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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que já imaginei minha dissertação causando a mesma sensação
em outras pessoas e servindo de referências e rodas de conversa,
aulas, palestras e muito mais, pois o meu objetivo com a criação
do coletivo de mulheres negras quilombolas, com e sem deficiência
de Tijuaçu, é justamente tornar a nossa história conhecida, e que
inspire outras pessoas, mulheres e homens, a buscarem cada vez
mais a realização de seus sonhos e o desenvolvimento da nossa
comunidade. Sim, concordo com as convidadas quando dizem
que ainda que o corpo negro não ocupe os lugares de poder, que
a política é sim, um lugar de poder e existem pouquíssimas mu-
lheres negras ocupando esses cargos e espaços, o feminismo não
era para as mulheres negras, já que a mulher negra que sempre
trabalhou incansavelmente criou-se sobre elas um olhar de mu-
lheres desumanizadas, raivosas e subalternizadas, inviabilizaram
suas lutas e histórias e se esqueceram de que a mulher negra é a
base da sociedade e leva tudo isso nas costas.
Por isso, eu luto para que minhas alunas, amigas, vizinhas,
irmãs, mãe, tias e todas as mulheres negras possam fazer a di-
ferença com suas vivências e sejam tão inspiradoras quanto às
das nossas convidadas. Espero que Ana Maria e Josiane tenham
causado muitos atravessamentos em você, Luciana.
Beijos!
Senhor do Bonfim, 20 de novembro de 2023.
Cara colega, Eliete,
Ler sua carta confirmou tudo aquilo que eu imaginava que
você fosse, quer dizer, foi além da minha imaginação muito mais
forte seus relatos e sua vivência, saiba que me sinto inspirada por
você em todos os aspectos, mãe, mulher, estudante, filha e uma
porção de outras coisas que é, e que faz cada função com maestria
e com um sorriso gigante no rosto que ilumina seu caminho.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Sei que poderíamos passar longos períodos de nossas vidas
trocando cartas e contando uma para outra nossas lutas, o que
seria incrível aprender com você, mas, hoje, o que ainda me in-
quieta são questões gritantes como o preconceito e a importância
do feminismo negro nas escolas do Ensino Básico, que ainda não
são inseridos como os assuntos de português e matemática. Eu,
como mulher negra, ainda sei muito pouco sobre, mesmo estu-
dando sempre essas temáticas para que eu possa me entender e
entender as demandas dos meus alunos, saber lidar com as mais
variadas demandas da sala de aula, que vão muito além do currí-
culo que a nós é apresentado. Eu só tive acesso e um pouquinho
de entendimento sobre o feminismo negro recentemente; antes,
quando lia um livro mesmo que os assuntos abordados fossem
temas como racismo, feminismo negro, igualdade de gênero e
outros temas abordados no componente, eu não olhava as carac-
terísticas do outro, lia e era apenas mais uma leitura. Interna-
mente, fica uma coisa ou outra, mas nada me tocava igual, agora,
quando fiz algumas leituras que se tornaram referências em minha
vida, pois, agora, entendo e sou atraída para fazer essas leituras.
Compreendendo claramente que uma fala de negra para negra,
e consigo me imaginar como essas mulheres, sendo referências
para as futuras mulheres negras. Eliete, devido a isso, ainda não
tenho tanta desenvoltura para dialogar muito com as autoras a
nós apresentadas no componente, mas espero que isso logo seja
superado.
Hoje, enquanto lhe escrevo, comemora-se o Dia da Consci-
ência Negra, e eu me pergunto a todo instante, se a escola com
as comemorações que realiza tem o objetivo real de compartilhar
com os alunos o sentido primordial da comemoração, ou se ape-
nas está cumprindo protocolo? Porque todo ano tem propostas
nas instituições, mas quando conversamos com os alunos sobre,
eles não conseguem, por vezes, iniciar e aqueles que iniciam não
mantêm um diálogo sobre o assunto. Percebo que é raso, e que nas
falas muitos se repetem ou simplesmente dizem que não sabem.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Quando estudava, não tinham comemorações nesta data, ou
qualquer outra atividade, o que acarretou muita falta de conheci-
mento e pertencimentos. Você acredita que só soube da existência
do feminismo negro depois de adulta? Até então imaginava que
só existisse um tipo específico de feminismo, esse que é mostrado
nas mídias, composto na maioria das vezes por mulheres brancas,
e eu não me sentia representada, eu ouvia falar como foi através do
feminismo que as mulheres conseguiram o direito de trabalhar, e
eu pensava: “desde quando isso é um direto”, sendo que eu sempre
trabalhei e todas as mulheres que conheço também trabalham e
trabalham muito, para além de qualquer jornada estabelecida em
legislação trabalhista.
Em meio às minhas buscas por entendimento e conversas
com colegas, ouvi a sugestão de um amigo para fazer a leitura de
livro de Djamila Ribeiro, Lugar de fala (2017), que eu entenderia
melhor alguns questionamentos que havia feito, lembro-me de
ele dizer: “é uma leitura gostosa, você vai ler rapidinho”; assim
eu fiz, procurei alguém para emprestar o livro e minha vizinha
emprestou, fiz a leitura e ao final meu sentimento era de angús-
tia, porque me dei conta de que era a primeira autora negra e que
falava com uma linguagem simples e clara para entender tudo. E
lendo as informações sobre a autora, a satisfação foi maior ainda,
pois são tantas outras coisas como: Filósofa, feminista negra e
pesquisadora, além de na sua obra trazer outras referências das
quais pesquisei e compreendi mais ainda.
Outro marco para meu entendimento foi em uma roda de con-
versa, dessas que participamos no componente curricular, não me
lembro bem quais foram as palavras que ficaram em minha mente,
quando alguém falou sobre o feminismo branco, que fazia coisas
como queimar sutiãs, e a pessoa falou que as antepassadas dela
nem sutiãs tinham, que lavavam roupas em tanques com peitos
batendo na barriga porque não possuíam condições financeiras de
ter um para usar. E na hora eu me lembrei de uma cena da minha
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
infância, onde várias mulheres da comunidade onde eu morava
estavam lavando roupas em um tanque grande que durava mais
tempo com água no período seco e uma delas falou que pensava
que não ia ter ninguém lá, e por isso nem colocou um sutiã.
Depois de um período de conversas entre elas, acabou falan-
do que na verdade estava com poucos sutiãs e estava guardando
para quando fosse sair. Ouvi essa conversa enquanto brincava e
aquilo ficou em mim, e hoje entendo perfeitamente as situações
que mulheres negras e pobres passam em suas vidas; sendo que
esse nem era um dos piores problemas que passavam; a fome sim,
era de assustar e ainda assusta boa parte da população do país
atingida pela fome - a maioria é de pessoas negras.
Busquei mais conhecimentos e ouvi por horas podcast e
entrevistas com a própria Djamila Ribeiro, que em seu livro traz
muitas falas de outra autora que é bell hooks que ainda não li por
completo seu material, que foi disponibilizado no Google sala de
aula no componente curricular, pois recebemos muitos materiais
de riquíssima importância e demandaria mais tempo para realizar
todas as leituras e fazer as reflexões necessárias. Fiz leituras de
sua biografia e assisti a algumas entrevistas para que pudesse
entender o pensamento de mulheres negras. Com as leituras que
fiz sobre bell hooks, me senti convocada a pensar e repensar toda
a minha existência como mulher e professora, e agora estou aqui
no emaranhado de busca e de sentimento da qual não sairei dessa
carta da mesma forma que entrei, e quando isso acontece acredito
que estamos indo em busca do melhor.
Eu também não poderia deixar de falar uma autora que ins-
pira com tanta majestade que é Conceição Evaristo, a criadora da
uma palavra que tanto uso na minha vida que é “Escrevivência”,
que teve seu reconhecimento aos 70 anos, e demonstra ainda o
quanto é sofrido e demorado o reconhecimento de uma mulher
negra, assistindo a algumas de suas entrevistas, foi perguntado a
ela por que demorou tanto para alcançar seu reconhecimento, e
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ela sabiamente disse que “Não se espera que uma mulher negra
escreva”, pontuou. Essas falas, eu comprovo na minha jornada,
quando eu era frentista e universitária ao mesmo tempo. Ficou
muito cansativa a jornada de trabalho, era visível no rosto o
cansaço e oscilação de peso, aí as pessoas perguntavam por que
eu estava assim e eu falava que estava com dupla jornada e, por
isso, o cansaço e, por muitas vezes, eu ouvi: “Para que estudar se
já está com carteira assinada, deixa isso pra quem tem tempo”,
quando não eram piores os comentários de cunho sexual como
“Uma moreninha dessa trabalha porque quer, com tantos homens
que abastecem aqui”.
Mencionei essas autoras que são conhecidas e inspiradoras
para nós mulheres negras, mas jamais me esquecerei de tantas
outras inspiradoras à nossa volta, professoras, colegas, amigas,
avós, vizinhas, alunas, mães e, logicamente, as convidadas da
roda de conversa número 7 (sete), que agora fazem parte das
mulheres inspiradoras da minha trajetória e, sim, me causaram
muitos atravessamentos com quem unimos vozes e compartilha-
mos vivências. E que vivências maravilhosas a das convidadas,
serei sempre agradecida pelas palavras, músicas e leituras que
proporcionaram mais entendimento, acolhimento e o mais im-
portante de tudo do acreditar em si para fazermos as mudanças
que queremos. Espero que minha carta tenha ficado inteligível, e
aguardo saber de você quais suas referências de pensamentos de
mulheres negras, e como você trabalha essas questões nas salas
de aula e na sua comunidade.
Abraços!
Tijuaçu, Senhor do Bonfim, 27 de novembro de 2023.
Luciana, minha amiga, vou começar essa carta respondendo
algumas das questões levantadas na sua carta, sobre as comemo-
rações, aqui no município onde sou docente, existe na grade curri-
cular o componente de Cultura Afro-brasileira, onde procuramos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
sempre abordar a temática da cultura afro, e, também trazer aos
alunos o conhecimento da história da nossa comunidade. Diversas
vezes sou chamada pelo professor da disciplina para fazer uma
roda de conversa com os alunos sobre assuntos que envolvem
a temática afro quilombola, pois alguns alunos infelizmente se
mostram resistentes quando nas aulas são abordados conteúdos
relacionados principalmente a sexualidade e religião de matriz
africana. Também, Luciana, temos na nossa escola o projeto Museu
Mariinha Rodrigues, onde, durante todo ano letivo, e de forma
interdisciplinar, são realizadas atividades voltadas para a temática
afro quilombola visando, assim, tornar nossa história conhecida
por nossos alunos, incentivando também ao resgate e valorização
da história e cultura do nosso povo. E como no mês de novembro,
é quando é celebrado o Dia da Consciência Negra, realizamos a
culminância do projeto. Essa atividade aqui, em Tijuaçu, não é
realizada apenas pela escola, mas sim por toda a comunidade; na
verdade, temos uma rede intersetorial formada pelos seguintes
setores: educação, saúde, assistência social, associações locais e a
comunidade em geral; durante o mês da consciência negra, reali-
zamos ações conjuntas voltadas para a temática afro quilombola.
Imagem 2 - Celebrando o Dia da Consciência Negra com
as mulheres do Samba de Lata de Tijuaçu.
Fonte: Arquivo pessoal, 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Confesso que mesmo passando por dificuldades e situações
de racismo, desde a infância, algumas questões, só ficaram claras já
na fase adulta, pois só depois de muito tempo compreendi porque
não via crianças brancas sendo chamadas para realizar trabalhos
domésticos nas casas das outras pessoas. Você acredita, Luciana,
que com oito anos de idade, já sabia ler, aí teve uma campanha
de vacinação aqui na comunidade e a moça não acreditou que eu
sabia ler e não me deu o brinde, que era uma revista em quadrinhos
da Xuxa e dos Trapalhões? Fiquei tão triste!
Sobre as mulheres que me inspiraram e me inspiram, têm
todas essas que você citou na sua carta, mas gostaria de trazer as
que fazem parte da história da minha Comunidade Quilombola de
Tijuaçu, a exemplo de Mariinha Rodrigues, uma escravizada fugida
que chegou ao território de Tijuaçu, e pode vivenciar a liberdade
que lhe fora roubada. Amiga, a nossa matriarca quando chegou
aqui encontrou sombra e água, e por se sentir segura permane-
ceu dando origem ao nosso povo; você acredita que ela depois
de ter os filhos e esses já serem adultos, ela iria colocando eles
para morarem cada um em um canto da terra, garantindo assim a
posse da mesma, e hoje Tijuaçu, de acordo com o censo de 2022,
100% da população se autodeclarou quilombola, contribuindo
assim para elevar a cidade de Senhor do Bonfim, que é onde fica
o nosso território, a posição nº 1 como a cidade que mais tem
quilombolas no Brasil.
• Isso é motivo de orgulho, se antes muitos sentiam vergonha
ou não queriam se autodeclarar, hoje sentimos alegria de dizermos
que somos quilombolas. Pois, desde a fundação da Associação
Agropastoril Quilombola de Tijuaçu e Adjacências, a nossa luta
ganhou ainda mais força, e hoje vemos não só a nossa comunidade
sendo reconhecida e valorizada como também outras tantas no
nosso território, a exemplo disso temos os dados do censo de 2022
onde, pela primeira vez, as comunidades quilombolas tiveram a
oportunidade de se autodeclararem,Biko Rodrigues, coordenador
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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executivo da CONAQ, participou da reunião e falou sobre a im-
portância do censo.
Estamos tirando da invisibilidade os quilombolas
desse país. Em nome da CONAQ e de todos os qui-
lombolas do país quero agradecer a todos que con-
tribuíram para que esse dia acontecesse. Agradeço
a cada liderança quilombola, que mesmo com as
situações que passamos, fizeram o papel do Estado
durante o censo. O censo é uma conquista de anos
de luta e é importante para que possamos avançar
na construção de políticas públicas. Somos mais do
que números. A cada número desse, bate um coração
e uma trajetória de resistência.
Não posso jamais deixar de citar a mulher que me inspira
todos os dias, que é a minha mãe, já te falei sobre ela, mas quero
acrescentar que ela é uma mulher muito sábia, que sempre nos
incentivou no caminho do bem, e ir em busca dos nossos objetivos.
Ela, mesmo não tendo estudado, sempre quis que seus filhos es-
tudassem, mesmo vinda de uma cultura em que alguns defendiam
que mulher que queria aprender a ler era para enviar carta para o
namorado. Ainda bem que ela pensava diferente, e não permitiu
que a sociedade nos negasse esse direito. Ela, agora, retornou
aos estudos e, olha, que alegria, estuda na escola em que estou
diretora, fazendo assim valer a fala dela: “Minha filha, estude, o
que não tive quero dar a você e vou acrescentar, para mais tarde
você me dar, e, também às outras que como eu não tiveram na
idade certa”.
Dentre tantas outras que fazem parte da minha história de
vida, com as quais estou escrevivendo na minha pesquisa de mes-
trado, quero falar um pouco de minha irmã Marilza. Pense num
ser de luz. Muitas das coisas que realizo abaixo de Deus, agradeço
também a ela, pois desde que passei no vestibular para o curso de
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Pedagogia e tive filho, ela divide comigo a tarefa de ser mãe, pois
é ela quem cuida de nós, para que eu consiga trabalhar e estudar.
Senhor do Bonfim, 28 de novembro de 2023.
Querida Eliete, que maravilha ler sua carta e saber que você
enfrenta/ou com maestria as dificuldades que a você foram apre-
sentadas, e mais feliz ainda por saber que a Educação foi ponto-
-chave na vida, e como ela transformou o mundo à sua volta.
Sim, muitas situações que somos expostas ao longo da vida, só
nos damos conta do que realmente é quando nos tornamos adul-
tas, e quando passamos a interpretar e estudar é que vem todo
o entendimento das questões que achávamos estranhas e não
entendemos o porquê.
Que mulheres incríveis essas citadas por você, agora entendo
de onde vem toda sua inspiração e fico extremamente feliz por sua
mãe estar estudando novamente. Que alegria que a comunidade
está consciente de suas origens e que não há problema algum em
ser quilombola, muito pelo contrário, é uma honra fazer parte da
história de resistência, luta e muitas conquistas como é perceptível
na sua vivência.
Tenho a certeza de que nós poderíamos ficar escrevendo uma
para outra, por meses ou quem sabe anos, e ainda assim teríamos
assuntos a escrever; agradeço pelo seu carinho e compreensão ao
ler minhas cartas contendo muitas inquietações e anseios. Espero
conhecê-la pessoalmente em breve, e desejo que a sua escrita de
dissertação de mestra seja brilhante. Aguardo o convite para assistir
a sua defesa, muito sucesso na sua vida. Vou ousar e presenteá-la
com uma nuvem de palavras para que elas lhe auxiliem na sua escri-
ta, espero que goste. A nuvem foi elaborada a partir de colaboração
das amigas e amigos do componente curricular, onde disponibilizei
o link para que pudessem responder com duas palavras o que cada
um/uma entende por “escrevivências e pensamentos de mulheres
negras; espero que ajude, sucesso em sua vida.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Imagem 3 – Nuvem de palavras.
Fonte: Elaborado a partir do aplicativo Mentimeter, 2023.
Abraços,
Luciana Dias.
REFERÊNCIAS
FOLHA DE SÃO PAULO. São Paulo: Grupo Folha, 27 de julho de 2023. Diário.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2023/07/mineracao-e-
pecuaria-fizeram-a-capital-baiana-do-forro-ter-a-maior-populacao-quilombola-
do-brasil.shtml#:~:text=Cidade%20de%20Senhor%20do%20Bonfim%20tem%20
16%20mil%20quilombolas%2C%20segundo%20Censo%202022&text=A%20
cidade%20de%20Senhor%20do,do%20pa%C3%ADs%2C%20considerando%20
n%C3%BAmeros%20absolutos.. Acesso em 10 de nov. de 2023.
HOOKS, bell. Anseios: raça, gênero e políticas culturais. Tradução:Jamille
Pinheiro. São Paulo: Elefante, 2019.
HOOKS, bell. Olhares negros: raça e representação. Tradução: Stephanie Borges.
São Paulo: Elefante, 2019a.
CONAQ - COORDENAÇÃO NACIONAL DE ARTICULAÇÃO DAS
COMUNIDADES NEGRAS RURAIS QUILOMBOLAS. Nossa história.
Disponível em: <https://conaq.org.br/nossa-historia/>. Acesso em:13 maio. 2024.
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiências da
comunidade negra rural de Tijuaçu-Ba. São Paulo: Annablume, 2009.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte (MG): Letramento:
Justificando, 2017.
RODA VIVA. Conceição Evaristo. YouTube, 06 de setembro de 2021. Disponível
em: https://www.youtube.com/live/Wnu2mUpHwAw?si=3UTkddD1K7hUy9K5.
Acesso em 30 de out. de 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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CARTA SÁFICAS
Ana Cláudia Macedo
Suely Aldir Messeder
Brasília, 14 de julho de 2024.
Oi, Suely,
Como tu estás? Como está teu domingo?
Por aqui, em Brasília, é temporada de seca: céu de um azul
belíssimo e um frio se estás na sombra. Sentada na varanda, ven-
do minhas gatas (Gal e Audre Lorde) brincarem no quintal e com
um café super quente, começo a te escrever, ainda sem a menor
ideia do que virá. Nossas trocas por WhatsApp até o momento,
para mim, foram confusas. Se, por um lado, a proposta de Eide de
escrever com alguém que não conheço me trouxe um desafio bom;
por outro, com os vários desencontros de tempos, me vi um tanto
desanimada. Já tinha desistido, quando me escreveste anteontem
e sugeriste que trocássemos cartas entre nós, exatamente com o
mote de nosso (des)encontro. Emocionou-me dizeres que estavas
retornando de Belém.
Sou paraense, morando há quase 25 anos fora da minha terra
- entre Rio de Janeiro e Brasília - em um momento de migração
de retorno. Não sei como foi para ti a descoberta/vivência da tua
sexualidade. Se quiseres contar, gostaria de saber. Para mim, nasci-
da em uma família super católica, e com várias crenças religiosas,
demorei muito a entender certos sentimentos e sensações. Até
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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os 18 anos, a única certeza que tinha era a necessidade de morar
longe, algo que precisava viver não seria possível em Belém. Assim,
fui fazer jornalismo na UFRJ, no Rio. Lá, pela primeira vez, beijei
uma mulher. A maciez da pele de Rafaela me fascinou e ao mesmo
tempo me fez questionar: sou uma pecadora?
Com o tempo fui me atentar que a vivência não heterossexual
como pecado tinha suas origens arraigadas no processo colonial,
que deixa suas marcas até hoje: a colonialidade do ser. A Igreja
Católica teve papel fundamental na configuração da colonialidade
do ser ao criar e perpetuar o dogma da não heterossexualidade
como pecado. Era uma atuação para ditar que corpos-mentes-es-
píritos com sexualidade eram não seres e, desse modo, mereciam
punição. E a partir da negação do ser de pessoas com vivências
não heterossexuais, a atuação do Tribunal do Santo Ofício da
Inquisição foi essencial.
É assustador o primeiro registro do que pode ser considerada
uma prática sexual lésbica e sua consequente punição, por meio
das Leis Extravagantes de 1499: “a mulher que usa torpemente
como homem, haverá a mesma pena que o homem que tal pecado
com outro macho comete: deve ser queimada viva, reduzida a pó,
seus bens sequestrados, seus descendentes tornados inábeis para
que não ficasse delas memória”. Curioso que para falar do “peca-
do nefando” entre mulheres foi necessário equiparar às práticas
consideradas sodomitas realizadas por homens.
Sob acusação de “molície”, 29 mulheres foram incriminadas,
sete processadas, e, destas, três foram castigadas pelo delito-
-pecado, na ocasião da primeira visitação do Santo Ofício ao Bra-
sil, entre 1591 e 1595. A pena mais severa foi atribuída a Felipa
de Sousa, que foi presa, sentenciada, açoitada publicamente e,
finalmente, condenada ao degredo. Sobre ela, havia referência
de relações com seis diferentes parceiras. Ainda adolescente, me
sentir pecadora, tinha em meu corpo as marcas da colonialidade
do ser, dessa construção da não heterossexualidade como pecado.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Mesmo com essa sensação, segui me envolvendo com Rafa,
às escondidas. Foram seis meses muito conturbados. Apresentava
como amiga e meu irmão fazia comentários sexuais sobre ela.
Sentia raiva, mas me calava. Não conseguia dizer que ela, além do
afeto de amiga, mobilizava outras partes do meu ser. Estava feliz
e extremamente mexida e culpada. Nesse período, tive minha pri-
meira crise depressiva. Não me sentia segura para compartilhar o
que estava vivendo. De angústia em angústia, minha chefe à época,
sem saber dos meus dilemas e buscando me auxiliar, me indicou
uma psiquiatra e psicóloga. Não tomei os remédios prescritos e
também não denunciei a psicóloga quando ela fortemente me
alertou: “esse tipo de coisa ninguém é obrigado a ver, então ficar
com mulheres só se for entre quatro paredes”.
Foram anos até eu conseguir compreender que essa frase
resumia a colonialidade do saber em pleno funcionamento: a
não heterossexualidade como doença. Ainda reflexo da transição
de projeção discursiva europeia: da medieval para a moderna, da
religiosa para a científica (sem acabar totalmente com a primeira),
quando a não heterossexualidade passou a ser vista como doen-
ça, a ser classificada, estudada e regulada por diferentes campos
científicos.
Na “missão civilizadora/normalizadora” estavam as bases da
colonialidade do saber, quando se impôs, a partir do processo de
colonização das Américas, a heterossexualidade como o padrão
mundial da sexualidade superior e normal. É desse período a siste-
matização, por meio do conhecimento científico, da hierarquia de
corpos-mentes-espíritos, por meio da definição de “não humanos”
de acordo com a criação dos conceitos de raça, gênero e sexuali-
dade, que a não heterossexualidade foi taxada como doença.
Não sei se conheces os estudos da pesquisadora portuguesa
Ana Maria Brandão. Encanta-me como ela resgatou, do início do
século XVII, o primeiro registro da palavra lésbica. No Brasil, essa
palavra passou a ser utilizada, pelo menos, desde 1894. O termo
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
estava associado ao discurso científico da sexologia predominante
à época, por meio da diferenciação das mulheres que tinham re-
lações afetivo-sexuais com mulheres, tomando como referência
as relações sexuais heterossexuais convencionais, a partir de uma
perspectiva de homossexualidade ativa (“masculina”, “tríbade”,
“verdadeira”) e passiva (“feminina”, “sáfica”, “falsa”), sendo a
última “corrompida” pela primeira.
Além de fazer a distinção binária de tipos de lesbianidade, o
discurso médico delimitava os espaços pertinentes para mulheres
que se relacionavam com mulheres: hospital, prisão ou prostí-
bulo. Essa perspectiva patologizante da lesbianidade e de outras
vivências não heterossexuais perdurou por quase dois séculos.
Como tu sabes, é super recente, 17 de março de 1990, o fato de
a OMS ter retirado a não heterossexualidade da lista de transtornos
mentais previstas na CID. Mas, mesmo com a despatologização,
diversas/os profissionais de psicologia ainda praticam a chamada
terapia de reorientação/conversão, a “cura gay”. Fugi daquela
terapeuta, que por meio da colonialidade do saber, utilizando
discursos médicos científicos em combinação com religiosos,
contribuía para o “aniquilamento da subjetividade” de pessoas
não heterossexuais.
Afastei-me daquela profissional, mas se passaram anos em
que estava tomada por uma lesbofobia internalizada. Até que me
encantei por Mariana. Suely, não saberia te dizer o que houve, mas
uma coragem tomou conta: precisava sair do armário. Precisava
viver essa parte de mim. Mari me mostrava livros, séries e filmes
lésbicos. Apresentou-me um mundo em que viver a lesbianidade
não era apenas possível, mas podia ser prazeroso. Lembro-me até
hoje de como foi essa saída.
Tomei todas, “de cara” não conseguiria falar e liguei para
meus pais em Belém. Minha mãe, de pronto, disse: “Estás en-
volvida com alguém e estás com medo de contar, eu sinto e sei
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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disso”. Por um momento, senti um alívio, ela já sabia. Seria mais
simples do que eu temia. Ela iniciou as perguntas: “Ele é casado?
Tem filhos? Usa drogas? Está preso? Estuprou alguém? Matou al-
guém?”. Tremendo, respondi o que conseguia no momento: “Não,
se chama Mariana”. Ela de pronto falou: “Ah, não, meu deus, ah
não”. E assim, foram dois anos sem falar comigo.
Seria crime o que estava fazendo? Aí, estava outra marca do
processo de construção do mundo moderno: a colonialidade do
poder. Isso me instigou tanto que passei tempos realizando um
levantamento sobre cronistas e obras do século XVI, em busca de
narrativas sobre práticas de mulheres que se relacionavam afetivo-
-sexualmente com outras mulheres nos territórios de Abya Yala,
em busca das histórias encobertas sobre relações entre mulheres
neste período de intrusão, mesmo que só estivessem registrados
os “discursos dos vencedores”. Impressionou-me o relato das ça-
coaimbeguiras (que significa “machão que não conhece homem
e tem mulher e fala e peleja como homem”) feito pelo cronista
Pero Magalhães Gandavo, no Tratado da Terra do Brasil, de 1576:
Algumas índias há entre os Tupinambá que não
conhecem homem algum de nenhuma qualidade,
nem o consentirão, ainda que por isso as matem.
Elas deixam todo o exercício de mulheres e imitam
os homens e seguem seus ofícios como se não fos-
sem fêmeas. Trazem os cabelos cortados, da mesma
maneira que os machos, e vão à guerra com os seus
arcos e flechas, e à caça, perseverando sempre na
companhia dos homens. Cada uma tem mulher que
a serve, e que lhe faz de comer e com quem diz que é
casada. E assim se comunicam como marido e mulher.
Achei esse trecho super marcante porque mostra como um
dos eixos de constituição da modernidade ia se consolidando, a
partir da definição de vivências não heterossexuais como o outro,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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como o contrário da norma, como alteridade. Ficou latente que, por
meio da colonialidade do poder, as vivências não heterossexuais
foram criminalizadas e até os dias de hoje ainda são consideradas
ilegais em 78 países, ou seja, 39% dos Estados integrantes da ONU!
Mas mesmo nos países em que a não heterossexualidade deixou
de ser um crime (lesbofobia de estado), a colonialidade do poder
da sexualidade ainda imprime suas marcas por meio da lesbofobia
social. Sentir essa lesbofobia vinda de minha mãe doeu e foram
muitos anos de terapia para tentar lidar com esse sentimento.
E, agora, já tenho mais de quarenta anos. Vivi muitos amores
sáficos. Entreguei-me à causa na militância por direitos de sapa-
tonas. Questionamentos meus e das minhas se tornaram mote
para pesquisa acadêmica (seria a violência entre mulheres uma
mera reprodução da violência heterossexual?). Enamorei-me e me
inspirei em sapatonas que vieram antes de mim, como Adrianne
Rich, Audre Lorde, Cheryl Clarke, Gloria Anzaldúa, Marcela La-
garde, Margarita Pisano, Ochy Curiel, Yuderkys Espinosa, entre
tantas outras. Consegui, finalmente, ser uma lésbica pública e
orgulhosa. E agora volto para Belém, território onde não sentia
que poderia ser eu.
Aprendi com Norma Mogrovejo sobre sexílio, quando mi-
gramos para poder viver nossa sexualidade. Entendi, com seus
ensinamentos, que o que havia acontecido comigo, e com tantas,
tantos e tantes outres LGBTs tinha nome. Passados quase 25
anos longe, minha migração de retorno tem motivo: volto para
dividir atividades de cuidado familiar. Marcas do machismo que
nos colocam mulheres neste lugar. Em contraposição, esta volta
está imbuída da aliança que tenho com outra mulher, minha irmã.
E te escrevo, Suely, de coração aberto, com meus dilemas atuais.
Não sabia o que escrever quando iniciei esta carta. Agora, vou me
despedindo, desejosa de uma troca contigo que nunca vi. O fato
de Eide ter pensado em nos apresentar deve ter algum motivo
que não alcanço!
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ao fim, me sinto contente. Vou fazer mais café, talvez tomar
um pouco de sol. Despeço-me neste escrito, com o coração pulsan-
te: é por meio de troca entre nós, por meio de compartilhamento
entre mulheres, que podemos nomear e enfrentar as marcas da
colonialidade. Então, agradeço a Eide por ter feito essa provocação
e te agradeço, Suely, pela proposta dessa escrita entre nós. Quando
fores a Belém, terás uma casa para te receber. Fico aguardando
saber de ti com muito carinho. Que caminhemos rumo à desco-
lonização da sexualidade.
Te mando um abraço lesbofeminista,
Cláudia
Para Claudia
14 de julho de 2024.
Algo inusitado aconteceu, como te falei no WhatsApp. Des-
pertei como se hoje fosse 15 de julho e segui com a mala rumo ao
aeroporto. Fiz o check-in até que, por um momento, a recepcio-
nista conseguiu a lucidez e comentou, depois de ter me cobrado
o visto para Moçambique: “Oxe, senhora, hoje é 14, e seu voo será
amanhã”. Antes que ela terminasse o procedimento, liguei para o
meu irmão para relatar tudo o que havia acontecido e pedir que
ele me resgatasse desse imbróglio. Enfim, sua chegada também
foi breve, uma vez que o aplicativo o levou para um lugar diferente
do habitual. Todo esse preâmbulo é para te expor como os desen-
contros têm sido a tônica deste momento presente.
Pensar em desencontros, inclusive de narrativas, enquanto
duas mulheres que possuem desejos eróticos e amorosos por ou-
tras mulheres, nos leva a desconstruir o sentido da amizade pura
e do ativismo do continuum lésbico, colocando sabores e corpos
em nossos desejos, muitas vezes sabotados pelo exagero no amor
romântico entre nós, impossibilitando a carne. Somos carne, de-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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sejos, amizades, amores jogados no mundo como o segundo sexo.
Somos uma coexistência nada linear.
Confesso a você que, antes do desejo, minha performance de
gênero sempre foi desconcertante para o outro. Minha afinidade
com a teoria queer decorre do meu ser no mundo. Na minha tenra
infância, lembro-me da interpelação: “É menino ou menina?”
Minha afinidade era com o mundo dos meninos. Adorava sair com
meu pai, frustrava-me suas negativas. Todos iam para a Fonte
Nova (estádio de futebol), menos eu, por ser menina.
Meu irmão mais velho triunfava com as meninas, ele era
como um prêmio em um concurso de Miss. Eu o admirava pro-
fundamente por seu galanteio. Elas faziam suas tarefas escolares
e todas se apaixonavam por sua leveza. Ele não tinha aparência
de um macho alfa, mas sim de alguém que demandava cuidados.
Essas qualidades me faziam ter afinidade com ele. Há uma foto
flagrante em que meu olhar para ele estampa essa admiração.
Possivelmente, o jeito de ser do meu irmão era minha mimé-
tica. Eu não me enquadrava no mundo dos meninos mais viris,
parecia um menino-menina ao mesmo tempo. Tive amores por
meninas, mas não reconhecia isso como desejo lésbico, e sim como
mais uma possibilidade de tornar-me menino. Essa era minha
composição entre desejo e performance de gênero.
Até os 12 anos, imaginava que pela divina graça me tor-
naria um menino. No mês do meu aniversário, em outubro,
ao completar 12 anos, no festival da escola, escuto uma voz:
“Suely, venha cá!” Era a diretora, que na plateia privilegiada,
me chamou e comunicou: “Precisa colocar um sutiã, já tem um
botãozinho nascendo”. Uma água fria imaginária desabou sobre
minha cabeça. Naquele instante, perdi a inocência de tornar-
-me um menino. Reconhecia meu limite no âmbito de um dito
determinismo natural. Não mais questionei o ser em situação,
prendi-me e no casulo me fiz menina. No ano seguinte, com
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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as unhas pintadas e cabelo arrumado, lanço-me no mundo.
Montei-me como uma garota.
O ginásio passou, a escola técnica chegou. Envolvi-me com os
rapazes. Aos 18 anos, começaria minha saga com os romances de
Sartre e Simone de Beauvoir na Aliança Francesa. Frequentava as
noites de Salvador, conheci os bares para entendidos(as), mas até
então não me envolvi com mulheres. Namorei com Aldo, antigo
colega da escola técnica, e no território entre o rio e o mar, em
Imbassaí, permiti-me a primeira relação amorosa/sexual, embora
já tivesse tido relações mais íntimas com Gel, namoradinho da
escola técnica.
Em 1990, acontecimentos marcaram minha existência na to-
talidade. Fui sumariamente demitida por conta de uma greve que
participei. Parei de matematizar minha vida. Afinal, tinha feito o
curso de eletrônica, um dos mais concorridos, e estava fazendo o
curso de matemática.
Comecei a perceber a vida pelo pedal da minha bicicleta na
orla de Salvador e foi no ritmo dos pedais que reencontrei as co-
legas lésbicas da escola técnica. Na verdade, era um reencontro
comigo mesma. Era confortável, um bálsamo. Senti-me acolhida
pelo casal Soraia e Meg. Éramos um grupo de mulheres. Foi pela
água salgada que me adentrei no mundo lésbico. Apaixonei-me
aos 20 anos, escrevia poesias para a mulher amada. Mas este
amor ficou no movimento platônico. Ela era comprometida e sua
mulher havia recém-descoberto um câncer no útero. Todas nós
não tínhamos mais do que 25 anos.
Neste momento, vivenciei o sentimento de amizade em to-
das as suas dimensões. Reencontrei meu primo Marcos, o casal
Amelinha e Marli, e Marcos Tesão. Era uma ambiência de São
Lázaro - UFBA. Todos faziam o curso de Ciências Sociais. Fui to-
mada por todos eles. Era algo meio caetanear. O tesão estava na
somaterapia. Era um sentimento de liberdade, uma profusão de
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
acontecimentos. No primeiro momento, afastei-me intencional-
mente da minha família.
Depois de poetizar o amor com mulheres e viver intensas
amizades, encontrei-me com Tereza. Ela me ensinou a mergulhar
eroticamente no corpo feminino. Lembro-me que sofri muitíssimo
com sua viagem para Minas Gerais, sua terra natal. A saudade
me consumia. Tínhamos vivido intensamente a vida em casal.
Conhecemo-nos, e no dia seguinte fiz o vestibular para o curso
de Ciências Sociais. Para nossa surpresa, fui aprovada em terceiro
lugar. Era tudo muito intenso numa temporalidade curta. Estava
com 21 anos de idade.
Amar mulheres foi um reencontro, cultivar novas amizades
e ver a beleza do mundo por tais lentes me conduziu ao curso de
Ciências Sociais. Reencontrar o menino que fui e acolhê-lo pelos
abraços da minha mãe, que sempre foi muito doce comigo, foi
um privilégio.
Neste caminho narrativo, experimento novamente a utopia
de reconstruir um mundo mais confortável através das alianças
da coexistência entre nós. Experimento a compaixão, não no sen-
tido piegas, mas em apreciar o sentimento de amizade entre nós,
mulheres vilipendiadas por sermos sapatões, sapatilhas, trans.
Sobretudo, fazemos as pazes conosco e com nossa ancestralidade.
Afinal, o futuro está na semente do passado, que germinará com
pequenas doses de mel e de alegria.
Parei no início do meu caminho para que possamos sentir se
temos afinidades na práxis teórica submersas nesta breve narra-
tiva. Em Belém, experimentei um reencontro comigo mesma, e
foi algo com muitos sabores e com jambu.
Suely Messeder
Brasília, 15 de julho de 2024.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Oi, Suely,
Te agradeço pelas palavras que me chegaram ontem. Agra-
deço pela partilha do que entendi e do que também não consegui
compreender - fiquei imaginando e sorrindo pelo que poderias
querer dizer com “Era algo meio caetanear. O tesão estava na so-
materapia”. Achei também curioso dizeres que desencontros têm
sido a tônica do momento presente e ao mesmo tempo falares de
tantos reencontros: ao amar mulheres, com o menino que foste
e contigo mesma em Belém.
Teve um trecho da tua carta que quase consegui sentir aqui.
Foi quando disseste: “Comecei a perceber a vida pelo pedal da
minha bicicleta na orla de Salvador e foi no ritmo dos pedais que
reencontrei as colegas lésbicas da escola técnica. Na verdade, era
um reencontro comigo mesma. Era confortável, um bálsamo.”
Senti a brisa em meus cabelos e uma sensação gostosa de - após
os desafios que te contei no último escrito -- viver minha lesbia-
nidade.
Dentre tantos amores e desamores vividos, sorriso veio lar-
go ao me lembrar de um relacionamento que tive e se encerrou
em meados de 2022. Foram quatro anos e meio com uma das
pessoas mais inteligentes, amorosas, briguentas e desejosas de
transformação social que conheço. Alma bonita, sabe? Passamos
juntas todo o período tenebroso do governo Bolsonaro e também
a pandemia. Imagine, duas servidoras públicas federais, sofrendo
perseguições nos órgãos em que trabalhávamos. Encaramos, jun-
tas, processos de depressão e tratamentos psiquiátricos (quando
já não dávamos mais conta).
Ela, bióloga, ensinou-me sobre plantas e bichos. Com ela,
chegaram na minha vida duas gatinhas. Por meio dela, entrei em
contato com os ensinamentos de Davi Kopenawa e Ailton Krenak.
E, sim, a vida não é útil. Ela lia poesias de Manoel de Barros. E,
hoje, quando colhi mamão e limões do pé, ecoou os dizeres de que
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o meu quintal é realmente maior que o mundo, e que eu gosto
mesmo das coisas desimportantes.
Nesse período em que estivemos juntas, me permiti ser mo-
bilizada e mexida por não racionalidades. Desde que me lembro,
estive envolvida com movimentos sociais, desde o segundo grau.
Minha forma de mobilização era quase sempre por meio da escrita,
da fala. Lembro-me que ela, gentilmente, sistematizou os dados
do LesboCenso do DF. Também fez belos mapas para eu usar na
tese. De meu lado, fui encontrando em mim espaço para sentir e
praticar o que tanto acreditava. Saber-sentir. Finalmente, ia fa-
zendo sentido o descolonizar: a separação corpo-mente-espírito
cada vez fazendo menos sentido. Sigo nesse caminhar.
Tua carta me mobilizou nesse sentido. E gerou um grande
desejo de saber mais sobre o que falaste sobre composição entre
performance e desejo. Se isso for confortável para ti, pois não con-
sigo dimensionar como foram as interpelações que mencionaste
na infância, se eras menino ou menina. Fez-me lembrar o que me
compartilhava essa ex-companheira.
Te conto como essas questões de gênero me mobilizam.
Sempre questionei a imposição e vigilância à binariedade mas-
culino/feminino seja de expressão de gênero (vestimenta, corte
de cabelo, modo de andar e sentar, uso ou não de maquiagem
e manicure, dentre outros aspectos relativos ao visual), seja de
papéis de gênero (provedor/cuidadora, agressividade/docilidade,
expansividade/introspecção, dentre outros aspectos comporta-
mentais), especialmente porque essas duas concepções são, em
geral, associadas de forma direta.
Durante o período de pesquisa, tive a oportunidade de con-
versar com duas sapatonas na Cidade do México, cujas falas me
mobilizaram bastante. Peço licença para compartilhar contigo. Uma
delas fazia questão de se reivindicar como machorra, que poderia
ser traduzido como caminhoneira. Vamos chamá-la de Sandra:
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Sandra: Penso nisso a partir do meu jeito de me vestir e da
forma como tenho desconstruído meu ser mulher, talvez um
pouco afastada dos padrões de feminilidade vistos socialmente,
pois não uso maquiagem, não uso vestidos, não uso salto alto,
nenhum elemento feminino em termos de roupa. Acho que na
minha personalidade tenho muitos elementos culturalmente
mais femininos, mas a minha aparência física é muito fácil até
de ser confundida com um homem.
Cláudia: Já aconteceu contigo?
Sandra: Já aconteceu comigo muitas vezes. Acontece comigo
o tempo todo que me chamem no masculino, ou que me vejam
como homem, e às vezes até me negam espaços exclusivos de
mulheres. Então, é como se você tivesse que dizer: “peraí, mesmo
que você não me leia como uma, eu sou uma mulher”.
Cláudia: E como te sentes?
Sandra: No começo soava como estranho, mas agora meu ser
sapatão (machorra em espanhol) está muito politizado, é uma
forma de resistência e de ruptura com o padrão cultural que tem
sido atribuído às mulheres. E às vezes isso me dá medo, porque
já conversei com algumas companheiras que dizem que eu ter
passabilidade como homem me dá certos privilégios, e de repen-
te fica difícil para eu entendê-los, tipo... privilégio masculino
de onde estamos vendo, para mim, receber a conta para pagar
não parece um privilégio, ou se estamos em um restaurante e
eu estou com minha companheira, todas as garçonetes vêm em
minha direção, indo fazer o pedido. E todas as perguntas são
dirigidas a mim. E isso acontece comigo com muita frequência.
Então, no final das contas, acho que às vezes me coloco em uma
tripla vulnerabilidade porque não apenas sou uma mulher e sou
lésbica, mas para as pessoas sou mulher, sou lésbica e quero
parecer um homem sem ser. Isso faz com que, se bem que há
momentos nos quais posso me sentir segura, quer dizer, caminho
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na rua à uma hora, eu sozinha, e uso roupa folgada e pareço um
homem, me dá certa tranquilidade no sentido de que melhor que
pensem que sou um homem e não uma mulher, e o que acon-
teça seja que me assaltem, também penso que se perceberem
que sou uma mulher, virá à tripla vulnerabilidade, porque vão
me ler como uma mulher, uma lésbica e, além disso, que quer
parecer um homem, porém sem ser, então acho que isso me co-
loca meio que mais fácil de sofrer violência e também, por isso,
eu o atribuo como uma forma de resistência, como quebrar um
paradigma cultural de ser uma mulher e de, todo o tempo, estar
repetindo que sou uma mulher e que tenho que ser tratada como
uma e que, por ter atribuições ou as características culturais de
ser uma mulher, se as tenho ou não, isso não teria que ser uma
diferença com respeito o tratamento que tenham que me dar.
Cláudia: Já sofreste algum tipo de ameaça ou aconteceu alguma
coisa contigo na rua?
Sandra: Felizmente não. Inclusive em algumas ocasiões tenho
usado isso como mecanismo de defesa quando saio muito de
madrugada, e se estou com minha namorada ou uma amiga,
pergunto: se me chamarem no masculino, não os corrijo, se for
à noite, não os corrijo. Porque se acontece de ser chamada de
“jovem” ou algo assim durante o dia, e minha namorada, prin-
cipalmente, responde “não, ela é uma garota”, e eles dissessem
“desculpe, senhorita”, algo assim. Mas à noite... eu sei que sou
mulher, você sabe, essa é a minha postura, mas é melhor que
sejamos lidas como um casal heterossexual do que lidas como
duas mulheres. Às duas da manhã na rua me parece mais arris-
cado, então faço como forma de proteção. Não gosto disso, mas
às vezes é o contexto. Principalmente quando vou a Puebla, e
por algum motivo andamos tarde da noite, porque parece que...
Puebla tem uma taxa de feminicídio muito alta, então isso me
deixa nervosa...
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Cláudia: Quando dizes que tua namorada corrige, por que isso
acontece de ela corrigir e não tu?
Sandra: Às vezes fico exausta de corrigir e as pessoas acabam
percebendo, por causa da minha voz ou por causa dos meus seios.
Mais cedo ou mais tarde eles acabam se corrigindo e dizendo
“ah, desculpe, pensei... qualquer coisa”. Mas de repente eu penso
que minha namorada entra em conflito por causa de sua posi-
ção política como lésbica, ser lida como heterossexual é como
um retrocesso, então é algo como “eu não ando de mãos dadas
com um homem, ando de mãos dadas com uma mulher.” Acho
que é por isso que ela faz esse exercício de corrigir as pessoas.
Quando eu acho conveniente ,eu faço, chega uma hora que eu
já corrijo cinco vezes ao dia, é tipo para quê? As pessoas acabam
percebendo, e se não, tanto faz.
Ela contava da lesbofobia que sofre com base na expressão
de gênero e como isso gerava um tensionamento na sua relação
com a namorada, que ao ter sua companheira “confundida com
homem” deixa de ter reconhecida sua identidade sexual de lésbica.
Um tensionamento sobre os relacionamentos lésbicos decorrentes
da colonialidade da sexualidade; neste caso, em intersecção com a
de gênero. Compartilho o relato de outra para já-já te dizer como
isso me mobilizou. Vamos chamá-la de Mariana:
Mariana: Só sei que sou mulher, que me considero lésbica, que
a sociedade me lê como mulher. Às vezes, bem, eu acho que sou,
vamos chamar de “homem à primeira vista”, ou seja, ao me ver,
me chamam de “rapaz”, e aí em um momento dizem “não, des-
culpe, senhorita”, é isso, tipo, “tudo certo” [...] Às vezes acontece
isso comigo, me chamam “ei, rapaz” e eu respondo “pode me
chamar de moça”, simplesmente gosto de fazer isso [risos] ...
Bem, eu me identifico como uma “mulher não feminina”, não
gosto de me chamar de masculina, porque não gosto de nada
do masculino [...] Para mim, tudo tem um conteúdo social ou
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histórico, não é um produto da natureza, tudo que existe é
construído pelas pessoas, e eu acho que isso é modificável, é
histórico, é em certo ponto uma decisão coletiva. Então, eu
entendo a masculinidade como uma construção social que eu
não gosto, e é por isso que não gosto de me referir a mim mesma
como masculina e sim como não feminina.
Cláudia: [...] O é esse feminino para o qual dizes não?
Mariana: Bom, eu acho que certas características muito físicas,
muito observáveis e um corpo: cabelo comprido, a forma de se
arrumar, sei lá, maquiagem, decotes, o jeito de andar, o jeito de
vestir, certas atividades que eu não costumo fazer, não, isso “não
é feminino”... E a verdade é que não gosto nem me identifico
com o queer, basicamente porque aqui no México percebo que
quem se autodenomina queer dentro do movimento LGBTI é
um segmento com privilégios de classe, então não me sinto
identificada aí [ ] E, além disso, acho que no México as mulheres
sofrem muita violência de gênero, sim, sofremos, e não gosto de
abandonar essa categoria, não gosto de deixar outras mulheres
sozinhas.
Quando ela contava sobre seu distanciamento da expressão
de gênero dita como feminina como um ato político, só conse-
guia pensar no que Margarita Pisano propunha: abandonarmos
o essencialismo vinculado ao ser mulher em rebeldia ao “triunfo
da masculinidade”: “Ao propor o abandono da feminilidade e a
exaltação dos seus valores, proponho o abandono de uma modelo
impregnado de essencialismo e que leva consigo o desafio de nos
assumirmos como sujeitos políticos, pensantes e atuantes”.
Não sei se isso tem a ver com o que dizes, menino-menina. E
como agora acolhes - por meio dos braços de tua mãe (nessa parte
de tua carta chorei, choro de contentamento pelo acolhimento que
recebeste) - o menino em ti. Para mim, sempre vi me reconhece-
rem menina e ao mesmo tempo recusava as amarras vinculadas
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a esse lugar. Já tive distintas expressões de gênero, inclusive, em
alguns momentos sendo chamada de “senhor”. Vejo o tempo todo
interpelarem meu afilhado como menina, justamente por ele não
exercer os papéis de gênero esperados - ele é tão gentil e carinhoso!
As leituras e conversas sobre queer sempre me pareceram
tão distantes, de um contexto tão distante do meu. Sigo querendo
saber mais, aberta a compreender os diferentes sentires-olhares-
-interpretações sobre este estar num mundo em que a coloniali-
dade de gênero e da sexualidade (junto com todas as marcas da
racial) moldam nossas relações.
Te escrevo e vou me (re)encontrando um tantinho mais
comigo. Imagino que já devas ter chegado em Maputo. Espero
que tenhas feito boa viagem e que teus (re)encontros contigo de
sabores e jambus sigam com novos cheiros, sons, gostos, imagens
e toques.
Um abraço,
Cláudia
Para Claudia
15 de julho de 2024
Em sua última carta, precisei de fôlego, porque foram muitas
demandas. Por isso, escrevo a você, agora, com tom de respostas,
algumas sem serem conclusivas. Escrevo hoje porque, possivel-
mente, no período em que estarei no trabalho de campo em Ma-
puto, ficarei restrita, sem disponibilidade de tempo para escrever
qualquer outra coisa que não seja o meu campo. Vamos lá para sua
primeira demanda, talvez a mais fácil de atender “objetivamente”:
Tenho a honra de compartilhar o mesmo lugar de origem
de Maria Bethânia, Caetano, Gil e Gal Costa. Quando posso citá-
-los(as), faço-o sem cerimônias. No contexto mencionado, “cae-
tanear” tem mais o sentido de amizade cultivada e sem disputas
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de poder, um maravilhoso espiral que não necessita do irascível
entre eles, mas sim do substantivo do cúmplice, para que saíssem
do estado e entrassem no movimento do verbo “cumpliciar”.
Quem dera que, no movimento social e no ativismo acadêmico,
encontrássemos entre nós essa forma. Lá, percebi que mesmo os
mais próximos não cultivam esse movimento.
Não prego o abandono do sentimento de raiva, pois sei que
ela nos constitui, mas também sei que, como ocidentalizados(as),
supervalorizamos a vingança e o revanchismo. O ethos do triunfar
sob a batuta da vingança é algo para nos deslocar. Se tem uma
expressão que não gosto: “vou sapatear na cara”. Aqui, suplico
a Xangô para nos colocar a par de sua narrativa: justiça jamais
será vingança.
Cresci no perrengue de um pai metido a empresário e, con-
comitantemente, boêmio. Portanto, desde sempre vivíamos em
instabilidade econômica. Acabei de defender o meu memorial e um
dos marcadores sociais mais fortemente presentes é a questão de
classe, coexistindo com os demais. Com isso, não estou afirmando
que hierarquizo classe, gênero, raça, deficiência, regionalidades
em minhas análises teóricas ou na leitura do meu ser no mundo.
Tampouco afirmo que consiga atravessar essa turbulência sem
pensar na água salgada que me devolveu o elã da minha lesbia-
nidade.
Aproveito a lesbianidade para dizer-lhe que me pareceu uma
linda melodia com harmônicos ouvir sobre a sua relação de casal
com a bióloga. E como ela conseguiu te levar a outros saberes e
fazeres, fico pensando no sentido da compostagem, do húmus da
natureza, como não recurso teorizado por Donna Haraway. Estava
evitando mencionar nomes de autores e autoras, mas talvez pelo
ser da bióloga, a sua bióloga de carne, sangue e osso, mas sem
nome na carta, e a outra, uma bióloga mais famosa, me toca e diz
muito sobre as minhas afinidades. Embora eu goste mais de gatos,
a foto emblemática de Donna Haraway seja com seu cachorro, brin-
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cadeiras à parte, considero muito bom pensar sobre as multiespé-
cies. Olha, ainda sobre a relação com os bichos, no ano passado,
li o livro de Nastassja Martin, Acreditar nas feras, impressionante
a estreita relação que ela manteve com o urso que a atacou. Não
falarei do livro com receio de spoilers. Leia! (quase no imperativo).
Vou concluir lhe falando que amo imitar os animais na ginástica.
Em um dado momento, lá na pandemia, me dediquei com Pirata
(meu antigo instrutor) a esses movimentos sob a influência do
Kempô, método oriental que os mimetiza. Hoje sigo no Flow; tem
poucos movimentos de animais, mas é movimento. A gata Audre
Lorde, não a sua gata, nos ensina sobre a raiva e, mais adiante,
como situa o seu câncer em seu documentário, lá na Alemanha.
Sobrou muito assunto neste breve parágrafo, perdão, às vezes as
ideias surgem e não quero perdê-las.
Gente, a composição sobre performance e desejo lembra que
escrevi “Quando as lésbicas entram na cena do cotidiano: uma bre-
ve análise dos relatos sobre mulheres com experiências amorosas/
sexuais com outras mulheres na heterossexualidade compulsória”,
sob encomenda para a Revista Universidade e Sociedade, depois
de uma palestra no sindicato do Andes. A Teoria queer me veio
na época do Mestrado, em 1997, com ela me senti muito cômoda.
Lendo Judith Butler, percebi o quão o binário é impositivo. Essas
regras prescritas negavam a minha existência; constantemente
me sentia um ser não acolhido pelo mundo. Uma frase de uma
coleguinha de escola me interpela até hoje: - Professora, Suely é
mesmo o quê, homem ou mulher? Éramos crianças de seis anos
de idade. Depois de Butler, encontrei-me com Tereza De Lauretis,
que coloca a divisão sexual como uma pauta perigosa, caso não
consigamos escapar das armadilhas das dicotomias, uma vez que
escamoteiam as diferenças e nos limitam em suas lentes. Em
2004, caminhei para o meu doutorado ainda amando os escritos
de Butler. No Brasil, Judith Butler chega às mãos de Guacira Louro,
pela Pedagogia. Em minhas mãos, chegou a partir de minha então
orientadora, Mary Castro, uma socióloga.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Não entro no debate sobre os impactos da teoria queer para as
mulheres lésbicas militantes; sempre encaro que toda e qualquer
teoria limita a vida. Não aprecio o essencialismo porque possui a
força do determinismo. O queer é uma palavra importada. “Paris
em Chamas” me diz muito sobre de quem esse corpo queer, esse
ser excremento para o mundo. Prefiro pensar nas coexistências
sem negar qualquer tipo de movimento que seja para dizer que
existe um ser, e ele não deverá ser negado. Na semana passada, fiz
uma digressão sobre água pelas mãos de Krenak. No dia seguinte,
estava tomando banho no Igarapé da sua linda terra. À noite, fui
conduzida por uma motorista de Uber, bolsonarista, e tentei en-
tabular o diálogo com ela. Perguntei se ela era contra os direitos
humanos. De pronto, me respondeu: “Não, mas não gosto de Lula.
Prefiro Bolsonaro”.
Forte abraço, falaremos mais sobre questões de classe e
lesbianidades.
Essencialismo estratégicos? Quero novas narrativas que me
tragam para além de mim e sobre mim? Minha sujeita de direito
atende as expectativas do Estado? Mas somos limitadas pelo po-
der do Estado? Em que momento deixamos de coexistir? Em que
arquipélago me deixaram?
Fazendo Gênero, Enlaçando Sexualidades, Desfazendo Gê-
nero e Ameaçando Gênero qual alcance?
Maputo, 16 de junho de 2024 (00:49h.)
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MANIFESTO SAPATÃO: UMA PROVOCAÇÃO
ESCREVIVENTE NECESSÁRIA DAS PRIMEIRAS
VEZES
Maria Lizandra Mendes de Sousa (Liz Mendes)
Meu corpo tem fome-sede
de alimento,
de liberdade de andar
nas ruas-esquinas
sem medo do estupro corretivo.
Meu corpo tem fome-sede
de festejar o desabamento
da colonialidade-neofascista.
De amar sem medo.
Meu corpo tem fome-sede
de não ter que criar táticas
cotidianamente de sobrevivência.
Meu corpo tem fome-sede
de falar do[s] amor[es] que carrego no peito.
Das mãos cruzadas em público,
dos abraços sem temor.
Meu corpo tem fome-sede
do chão-vida dos
espaços
tempos
lugares
fossem os encontros de corpos
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em agências-alianças.
Meu corpo tem fome-sede
de viver a vida
e não sobreviver.
Meu corpo tem
MUITA
fome-sede.
De que seu corpo tem fome-sede?
(Poesia autoral).
21 de outubro de 2023.
Queridas Eide Paiva e Amélia, Sueli e Joise,
Desejo encontrá-las bem!
Estou há alguns dias ousando deixar que meu corpo se entre-
gue a esta escrita. Há algumas escritas que são sempre difíceis de
iniciar-anunciar. Ainda não entendo os meus entraves para esse
processo de anunciar meus pensamentos aqui, nesse jeito outro
de me comunicar. Fico criando hipóteses, porém, na verdade, não
passam de desculpas para me distanciar e, com isso, recusar os
meus desejos em escrever para vocês. Temo a intimidade como
quem teme a própria vida, afinal, são os atos íntimos de permitir
aproximar-se de outras pessoas que as nossas vulnerabilidades
começam a emergir e, muitas vezes, perdemos encontros bonitos.
Não sei se sou uma pessoa tão necessária quando as minhas
vulnerabilidades começam a se amostrar nesse processo de rela-
ções próximas. E o que há de mais profundo do que escrever para
pessoas “distantes” (será que realmente estamos distantes?) em
um ato de abrir as portas dos meus tantos esconderijos? Recorro-
-me as minhas rebeldias para deixar meu corpo desabrigado e,
assim, anunciar-manifestar alguns cursos, tropeços e movimentos
cambaleantes dos tempos de vida desse meu corpo sapatão numa
tentativa bonita de manter diálogos com vocês (e, quem sabe, com
tantas outras mulheres sapatões-lésbicas).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise, vocês temem suas
vulnerabilidades? Tem alguma boniteza nos nossos corpos des-
protegidos? O que deixam vocês sem esperanças? Existe, na inti-
midade com outras pessoas, alguma rota de fuga para os perigos
dos sofrimentos? Há algo que mantém acesa a chama de viver,
mesmo com os assombros e escombros das violências? Como vi-
ver os tempos de vida sem medo de morrer a qualquer instante?
Vocês têm medo de quê? Como povoam-regam seus corpos em
luta-resistência? Quem são vocês quando estão sozinhas? Muitos
questionamentos, vários ensaios de faróis epistemológicos.
Já passam das 3 da madrugada. Estou sentada no chão, na
área da casa onde resido. Meu corpo já começa a sentir alguns
incômodos, mas não me importo. Existem dores maiores do que
um corpo físico cansado. Fico olhando para a tela do notebook orga-
nizando e desorganizando, contextualizado e descontextualizando
as palavras que quero expor aqui. Elas seguem em confusões. Meu
esforço é tentar manter alguma coerência, mas acredito que não
conseguirei. Vou deixar-me perder, então, no palavrear dos meus
dedos. Eu gosto da madrugada!
As madrugadas têm um poder triunfal de puxar nossos corpos
para os encontros dos desconhecidos, e olha que o desconhe-
cimento me deixa trêmula. Mas já estou acordada, nesse caso,
vou continuar aqui, sentada no chão, sentindo o vento frio que
carregam memórias corporais de tantas histórias-experiências de
pessoas distantes. Talvez seja aí onde reside a quebra do tempo
cronológico: encontramos pelo vento frio das madrugadas as
lembranças de corpos que já se foram, que moram em cidades
distantes, daquelas que conhecemos e as que não conhecemos.
Mantemos os diálogos pelos arrepios emanados por cada pequenos
pedaços de trilhas corporais.
Levanto-me para olhar um pouco o céu. É engraçado sentir
que sou tão insignificante para a beleza que o universo carrega
em si. Vocês já sentiram essa sensação alguma vez? Retorno ao
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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meu assento no chão. O corpo continua sentindo dores, já não
sei se são as físicas, ou emocionais ou ambas. Escrevo para vo-
cês nas madrugadas entre encontros e desencontros dos ventos
frios que dançam em memórias. Escrevo para vocês em noites
de insônias em busca de algum alívio para minha mente acele-
rada. Escrevo para vocês em estado de poesia, porque sou um
corpo-inquieto-poético. Escrevo, pois, para vocês com minhas
belas águas insurgentes, mas, especificamente, as afetivas. O
que há de mais revolucionário do que o afeto entre mulheres
sapatões-lésbicas?
Essa escrita perdida nas e em confusões, inicia com poesia
em forma de fome-sede. Uma fome-sede que vasculha nas tripas
os desejos de resistir-existir, uma forma de atravessar as cortinas
coloniais com roteiros em movimentos, de gritar que têm muitas
mulheres que recusam a heterossexualidade, de dizer que sofre-
mos quando uma de nós é encurralada nas esquinas dos estupros,
que continuaremos buscando saídas, brechas, fissuras, táticas,
alianças possíveis para viver e festejar a beleza de sermos quem
somos.
Fome-sede que urge dos assombros, mas que convoca os dias,
as tardes, as noites e as madrugadas a cantar as canções há tanto
tempo guardadas. Fome-sede que reafirma: choramos todas as
nossas saudades, celebramos todas as nossas conquistas, dança-
mos todas as nossas liberdades, reivindicamos todos os nossos
direitos, juntamos em nós para ser-por-nós, ocupamos todos os
espaços sociais e continuaremos amando as mulheres. De que
seus corpos têm fome-sede?
Aqui, sentada no chão da área da casa que resido, sentindo o
vento frio, pensando em poesia repletas de imbricações de fome-
-sede, lembro-me do cheiro do lápis e do papel quando escrevi
minha primeira carta. Era uma criança sendo asfixiada por sen-
sações estranhas e abraçada em medos, deixei, pois, meus dedos
escrever uma carta para mim mesma. Uma carta endereçada aos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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sonhos de uma Liz futura, que em desenhos e palavras confusas,
dizia dos desejos de querer entender-se a si. Dezesseis anos depois,
fico sorrindo: ainda não me compreendendo e nem sei se algum
dia irei me entender.
Eu acredito que isto faz parte do processo de reconhecer que
somos pessoas em movimentos, ou seja, que dançamos em des-
sintonia com os giros da roda da vida. Tenho uma relação íntima
com as cartas, uma vez que esse relacionamento surgiu em meios
às sombras das árvores como rota de fuga-acalento-descanso.
Quais as relações de vocês com as cartas? Lembram-se da primeira
vez que escreveram uma carta? Foi uma escrita endereçada para
quem? E hoje, ainda escrevem cartas? Por quê? O que o ato de
escrever cartas anunciam-revelam nos seus corpos?
Eu escrevo, porque preciso respirar. Eu respiro, porque
necessito escrever. Escrever-respirar, meu jeito de andar nos
caminhos de espinhos. Meu corpo explode com as palavras-
-histórias guardadas no quarto sempre povoado por outros, mas
nunca por mim, e onde as chaves ficaram perdidas nos entulhos
dos desejos dos outros, jogados como únicos e adequados para
minha existência. Escrevo para despovoar meu corpo e, assim,
quem sabe, encontrar motivos outros de continuar respirando-
-vivendo. Escrevo para dizer o que não digo em voz alta. Escrevo
para encontrar minhas águas-vozes. Existem na escrita diver-
sos fios que são tecidos cotidianamente na medida em que me
anunciou como sapatão.
Escrever é sentir o nascer do pôr do sol nos dias frios de so-
lidão. Eu gosto do sabor que a escrita me provoca, mesmo que, na
grande maioria das vezes, ela me mate. Mata-me por reacender
acontecimentos adormecidos, por convocar a escancarar as portas
dos aprisionamentos e por dizer que preciso me colocar no colo
e, assim, me ninar. Escrever é, pois, sentir o gosto da vida aque-
cendo o sangue. Escrevo porque temo deixar de escrever, Gloria
Anzaldúa (2000), e talvez isso seja nossa convicção final: temer a
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escrita, porque tememos deixar de tê-la em nós. Quais as razões
que levam vocês, Eide e Amélia, Sueli e Joise, a escrever? Quais
são as suas relações com a escrita?
Já são 5 da madrugada! Fiquei olhando para os meus pés por
uns 10 minutos. Vocês sentem que têm muitos olhos cercando-
-as? Eu sinto isso e confesso que me deixa apavorada, já que não
sei o que esses olhos querem, o que revelam, por que me cercam
e quais são suas intencionalidades com meu corpo sapatão (são
olhos meus ou olhos dos outros?). Preciso tomar um café. Que-
ria chá de gengibre com limão, mas não tenho. Qual é a bebida
favorita de vocês? Quando tomam, sentem o gosto como se esti-
vesse tomando pela primeira vez? A que lugares as suas bebidas
favoritas as levam?
O chá de gengibre com limão e o suco de cajá sempre me
levam para os lugares afetivos da infância: os pés descalços na
areia do quintal, ao vento-abraço do riacho, as companhias segu-
ras das sombras das árvores, as observações das chuvas caindo no
chão, as danças de olhos fechados no quintal, sentindo as gotas
da chuva atravessarem meu corpo fazendo desenhos invisíveis
de acolhimento e as rebeldias de acolher a estranheza e, assim,
brincar de ser livre. O chá de gengibre com limão e o suco de
cajá são as poesias localizadas pelas percepções-lembranças da
Liz criança.
Fiquei de olhos fechados durante uns cinco minutos e tenho
quase certeza de que passei esse tempo todo sorrindo ao lembrar
que tenho recordações bonitas da infância. Quais lembranças-
-recordações-memórias fazem vocês sorrirem? Penso-acredito que
devemos convocar esses acontecimentos mais vezes para nossos
tempos de vida-cotidiano. Talvez o convite da escrita desta carta
pedagógica no componente curricular Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais seja uma possibilidade de pensar-
-construir práticas éticas, honestas, epistêmicas e coletivas de
garantir os aparecimentos de corpos dissidentes na ocupação
194
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
dos espaços de produção e divulgação científica, mas também no
reconhecimento de nós mesmas enquanto pessoas que merecem
sorrir todos os nossos sorrisos roubados.
O que seria, então, cartas pedagógicas? Caminho entre leitu-
ras (que mais se parecem com encontros que me desnudam) para
tentar desenvolver uma definição autoral de uma forma menos
superficial. Nessas andanças, encontro-me com Ana Lúcia Souza
de Freitas (2018, p. 4), especialmente na parte que ela diz que
as cartas pedagógicas podem “[...] contribuir para desenvolver o
prazer de escrever”. Sentindo a afirmação de Ana Lúcia, começo
a compreender que as cartas pedagógicas, assim como a vida, são
formas de abrir e permitir as rodas de conversas - com responsabi-
lidade - em contextos compartilhados, reencontrando a potência
dos nossos corpos.
As Cartas Pedagógicas sempre serão cartas que escrevem em
potências viscerais os sonhos bonitos, as poesias desejadas e as
inspirações sentidas por corpos-territórios em suas vozes epistê-
micas plurais, revolucionárias, corajosas, teimosas, insubmissas,
insurgentes, rebeldes, inquietas, ousadas e transformadoras. São
as buscas cotidianas por justiça social e os encontros com o que é
de mais autoral em nós mesmos: a potência de nossa subjetividade
encarnada, em estado de entrega íntima.
Escrevo para vocês, Eide e Amélia, Sueli e Joise, para cons-
truirmos uma roda de conversa, mesmo a distância, tomando
nossas bebidas favoritas e, com isso, a boniteza dos afetos, dialo-
garmos sobre os cursos e tempos de vida, movimentada pela re-
lação duradoura dos amores sapatões-lésbicos de vocês. Queridas
Eide e Amélia, Sueli e Joise, sei que essa escrita está embaralhada,
mas quero dizer que meu objetivo é provocar entrelaços entre os
fios do meu corpo sapatão com os fios dos seus corpos lésbicos
amantes, aflorando as primeiras vezes dos cursos de vida em uma
provocação escrevivente necessária para pensar-construir-narrar-
-tecer redes afetivas.
195
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Quero escrever-falar das primeiras vezes, afinal nossa vida é
ordinária e por ser ordinária é necessária, urgente. Deve, portanto,
fazer parte dos direitos humanos. Quero escrever-falar das primei-
ras vezes em uma articulação com as rodas gingas do componente
curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”,
especialmente o encontro sobre o pensamento lésbico. Quero
escrever-falar das primeiras vezes como um exercício de miradas
e escutas com outros corpos similares e diferentes aos nossos. É
um desejo encarnado de questionar-anunciar: quais manifestos
seu corpo sapatão-lésbica produz?
22 de outubro de 2023.
Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise,
Continuo desejando encontrá-las bem!
Os finais de semanas são sempre difíceis para meu corpo-
-inquieto-poético. São os dias que me encho de trabalhos e ativi-
dades no intuito de não pensar. No entanto, nem sempre funciona
e hoje está sendo esse dia que minhas táticas de sobrevivência
resolveram me abandonar. Escrevo para vocês chorando descon-
troladamente e com um peso gigante nas costas. Eu gosto de dizer
que as lágrimas são nossos corpos pedindo para descansarmos,
buscando aconchego no alívio da casa derrubada. Essa casa são os
acontecimentos que dizemos estar resolvidos, mas, na verdade,
apenas fingirmos para nós mesmos. Quantas vezes vocês fingiram
para si? Vocês sentem alívio quando choram pelo desabamento
das casas? O que fazem para continuar seguindo em frente? Vocês
têm vergonha de suas fragilidades?
Quando contei à minha família que era uma menina-
-mulher sapatão (falei que era lésbica, porque ainda não tinha
me apossado do termo sapatão), toda a minha vida que já era
atordoada, virou um caos total. Para não encarar a rejeição,
raiva e ódio da minha família, passava o dia todo na escola e,
196
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
depois, na universidade. Entretanto, não tinha como ficar nes-
ses espaços aos finais de semanas e nem nas férias. Aos finais
de semanas e nas férias, eu ficava no quarto, só saía para beber,
comer e tomar banho. Era muito difícil ouvir tudo que ouvi e
observar as expressões corporais dos meus familiares em torno
da minha presença.
Fui aprendendo rapidamente a me sufocar-silenciar. Acre-
ditei que merecia tudo aquilo, afinal eu era um monstro. Assim,
no momento que “saí” (aprendi também a dizer que saí, sendo
que fui desalojada daquele espaço) da casa dos meus pais. Tive
muitos momentos delicados nos finais de semana: todos os acon-
tecimentos vividos vinham à tona, com uma força que esmagava
meu corpo. E, hoje, continuo sem saber lidar com os finais de
semana. Ouço listas de reprodução de músicas de Maria Bethânia,
no YouTube; escrevo palavras soltas, sem nenhuma coerência;
fico quietinha na cama, olhando o teto; faço minhas atividades
acadêmicas; leio livros, romance ou poesia ..., mas hoje tudo isso
não foi o suficiente.
São 2 da madrugada, e estou aqui na área da casa onde
resido. Deitada. Ouvindo os barulhos dos silêncios. Trouxe
o notebook comigo numa tentativa de buscar algo para dimi-
nuir minhas dores, e em instante súbito as lágrimas foram se
acalmando. Lembrei-me de Cecília Sardenberg na roda ginga
sobre Pedagogias Feministas, quando ela disse que “é preciso
viver pelo que acreditamos”. É em viver-lutar-desejar aquilo
que acredito que não posso parar. Não podemos parar, temos
que continuar plantando as sementes de outras pedagogias e
epistemologias para transformar e libertar os corpos que são
desumanizados. As lembranças situadas da fala de Cecília Sar-
denberg me fizeram recordar a primeira vez que vesti roupas
tidas como masculinas. Já não residia mais na casa dos meus
pais. Pedi para um amigo meu fazer umas roupas para mim e
uma delas era uma camisa branca e um calção preto.
197
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Odiava (e ainda odeio) comprar roupas nas lojas, porque
sempre são as mesmas violências: Aqui é a seção masculina;
Moço, acho melhor você não usar o provador, porque pode causar
desconforto para as clientes; Você é uma menina? ... mas meu ami-
go fez as roupas. Coloquei um top, a camisa branca, uma cueca
preta e o calção preto, meias brancas, um tênis preto e um colar.
Olhei-me no espelho e pela primeira vez confiei no que eu via no
espelho. Mas foi também a primeira vez que sorri de alívio. Fico
me questionando, Cecília Sardenberg (2015), quem sou eu nos
caleidoscópios de gênero? Quem sou nos fios que se entrelaçam
mediante às relações sociais? Quem sou eu quando rejeito os
padrões femininos?
As minhas lágrimas já cessaram. Passam das 4 da madrugada.
Fecho os olhos e sinto o vento frio. Recordo-me de você, Natalia
Borges Polesso (2015, p. 52-53), no seu livro Amoras, quando diz:
Tenho me pensado como lugar, sabe? Um corpo é
um lugar? O corpo como metáfora de lugar, per-
corrido, uma cartografia de vida, com suas marcas,
sinais, ilhas. Não uma correspondência exata, como
se o cérebro fosse uma parte cultural da cidade e o
estômago uma parte gastronômica, mas um mapa
caótico, sempre fronteiras, onde as ruas vão dar em
becos escuros e estreitos como nossos dedos e em lu-
gares úmidos com cheiros acres. Como nossos olhos.
Acredito, Natália, que o corpo tem diferentes significados
para quem ousa provocar definições. Eu, por exemplo, penso o
corpo enquanto cartografias inquietas que desmarcam memórias
de acontecimentos vividos e os ainda desconhecidos, dos espaços-
-tempos-lugares desalinhados dos giros da roda da vida, que
desnudam as fronteiras do reconhecer-se a si, que traçam linhas
incoerentes aos fios de outros corpos e que urge como territó-
rios de silêncios. Corpo-inquieto-poético também é um corpo-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
-território-memória que conversam com muita intimidade com
o corpo-cartografia-fronteiras, assim como desenham paisagens
com ausências de interpretações profundas do corpo-orgânico-
-desconhecido. Acredito que tem os corpos-territórios-ancestrais.
Independentemente do que compreendemos do que seja corpo,
existe algo em comum: o corpo nunca será o mesmo, posto que
rejeita os acordes estáticos e abraça as danças na chuva, pois é
feito por e em movimentos.
Ao pensar em corpo, passeio pelos caminhos de mais
questionamentos, especialmente este: quem pensa e ouve
as demandas das meninas? É como se eu estivesse ouvindo a
canção “Amelie”, tocada-interpretada por Andrea Vanzo, in-
finitamente (link da canção instrumental: https://youtu.be/
e6Po2lDHD1I?si=4RNhsFYH0Q7VTu8i ouvem comigo?). As mãos
no piano, as teclas em sintonias e a melodia saindo do vídeo e
encontrando o meu corpo. Não é mais o Andrea que toca, sou eu.
Mas não estou sozinha, têm muitas mulheres conduzindo meus
dedos nos caminhos dos movimentos sonoros.
Quem pensa e ouve as demandas das meninas? O que as
corpografias revelam sobre as demandas das meninas? O que
vocês, Eide e Amélia, Sueli e Joise, pensam sobre as corpografias?
Vocês pensam e ouvem as demandas das meninas? Não quero
sair do estado vulcânico que meu corpo se encontra. Passeio pelo
YouTube ao encontro de um vídeo de uma poesia que escrevi na
disciplina de Financiamento da Educação e que caiu nas mãos
da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. Depois de uns
cinco minutos, encontro o vídeo. Assistam comigo: https://youtu.
be/3gnyIcRZd0Y.
A primeira vez que lutei pelas demandas das meninas, eu era
ainda uma criança. Eu não sabia que estava lutando pelas causas
das meninas. Queria poder brincar com as brincadeiras que me
deixava feliz, que movimentava meu corpo. Queria poder subir
nas árvores, brincar de futebol com os meninos, de construir
199
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
estradas para os carrinhos passarem, de montar e desmontar os
carrinhos... eu queria sentir o vento conduzindo meu corpo. No
entanto, eu era uma menina. E onde já se viu meninas brincarem
de liberdade? Sofri as consequências de minhas desobediências,
porque não parei de brincar do que eu realmente queria. E isso é
lutar pelas demandas das meninas. Uma luta pelo direito de brin-
car de ser livre. Coragem. Ousadia. Rebeldia. Desejo. Liberdade.
Desobediências. Isso tudo fez parte do corpo da Liz criança.
Qual foi a primeira vez que vocês lutaram pelas demandas
das meninas, Eide e Amélia, Sueli e Joise? Qual foi a primeira
vez, enquanto casal lésbico, vocês lutaram pelas demandas das
meninas? Qual foi a primeira vez, como pessoas individuais e,
também, como casal lésbico, vocês ouviram as demandas das
meninas? Já são 5:30 da madrugada, e eu continuo aqui sentada
na área. Estou mais aliviada. Escrever uma carta pedagógica talvez
seja encontrar-se a si em doses de aconchego. Carregamos tantos
entulhos de violências no corpo que, muitas vezes, esquecemos
de que não precisamos transportá-los sozinhas. Eu tenho muita
vergonha das minhas fragilidades e vulnerabilidades, porque elas
dizem que sou um corpo sem sentido-significado.
Mas aprendi a ser rebeldia com tantas mulheres que ainda
irei festejar o dia que as minhas fragilidades e vulnerabilidades
não serão mais um problema; afinal, elas constituem as minhas
corpografias. É um ato corajoso mostrar os turbilhões de angús-
tias que somos para os outros. As fragilidades e vulnerabilidades
irão se transformar, cotidianamente, em potencialidades na luta-
-resistência-existência. Eu até vejo o dia chuvoso que irá inaugurar
os desabamentos. Hoje não é esse dia chuvoso, mas a celebração
já iniciou. Vou descansar, dormir um pouco. Descansar o corpo é
ganhar fôlego! Descansem... Espero que quando retornar a escre-
ver esta carta pedagógica seja para cumprir o objetivo proposto.
11 de novembro de 2023.
200
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise,
Amplio meu desejo de encontrá-las bem!
Já faz uns dias que não escrevo para vocês. Ando quieta
demais, uma passividade que me assusta. É como se essa passi-
vidade estivesse tirando do meu corpo as poesias inquietas, de
denúncias... tirando a minha voz-rebelde. Isso muito me aflige.
Resolvi buscar minha ousadia e com a ousadia, encontrei a cora-
gem e com a coragem, abracei a rebeldia. Fiz em movimento de
busca por meio das memórias das rodas gingas do componente
curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”.
Lembrei-me dos rasgos que Laís, Daniele e Marilene fizeram no
meu corpo com suas provocações epistemológicas guiadas pelas
corpografias nesse ato de dizer-anunciar aquilo que o mundo
nos roubou, assim como em festejar as desaprendizagens e que
as memórias gritam.
Foi nesse estado de gritaria que me encontrei em lágrimas.
Laís, Daniele e Marilene rasgaram meu corpo, porque me fizeram
revisitar acontecimentos que jurei nunca pronunciar. Não tenho
forças de digitar o que falei, mas compartilho uma carta que fiz
para o simpósio “Desleituras da Escrita Acadêmica: Prática e
Poiesis”, proposto por Juliana Cristina Salvadori, Ana Lúcia Gomes
da Silva e Alcidéia Margareth Rocha Trancoso, no “III Webinário
Nacional & II Webinário Internacional do LEFOR”, pintando pela
seguinte temática: Leituras polimorfas: nas dobras dos/as leitores/
as plurais. A querida Ana Lúcia me convidou para ler a carta tam-
bém no encerramento do evento. Então, caso queiram ouvir basta
clicar no link, a partir de uma hora, vinte sente minutos e vinte
segundos: https://www.youtube.com/live/aClupO-W97s?si=kiF8d-
-LAYfxyna-4.
Quantas vezes vocês, Eide e Amélia, Sueli e Joise, já desacre-
ditaram de si mesmas? Vocês têm lugar(es) para retornar? Qual
foi a primeira vez que vocês foram convidadas a se despir dos
201
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
preconceitos? Vocês já buscaram afetos em outras pessoas que
não fazem parte da rede familiar biológica? Quantas vezes vocês
tiveram que ressignificar as violências que sofreram? Quantas
promessas já quebraram? Por que quebram? Qual foi a primeira vez
que entendeu que precisava do feminismo? É preciso reinventar
as escolas e academias da mesma forma que reivindicamos nossos
direitos? O que suas corpografias revelam sobre as responsabili-
dades com o chão-vida das escolas e academias? Por que construir
outros possíveis? Qual foi a primeira vez que entenderam que
vocês, como casal lésbico, têm mais força-coragem do que quando
estão sozinhas?
Penso que a área da casa onde resido é o espaço-vida dos
nossos encontros nessa carta pedagógica, Eide e Amélia, Sueli e
Joise. Ainda estou com as aprendizagens em forma de rasgo de
Laís, Daniele e Marilene, no corpo, porém olhando para a parede
do muro sou puxada nas gingas de Janja, Sueli e Alessandra. Essa
roda foi um convite para encontrarmos as circularidades e, com
isso, praticarmos cotidianamente as ensinagens-aprendizagens-
-experiências em, de, para e com circularidades. Por que nos
afastamos da circularidade em nós? Por que temos vergonha dos
movimentos diferentes do nosso corpo? Quais são as estranhezas
que carregamos? Por que carregamos? Fomos nós que as coloca-
mos ou outras pessoas? Existe circularidade em pessoas brancas?
Quais ensinagens-aprendizagens-experiências aprendemos sobre
circularidade com pessoas negras, quilombolas e indígenas? A
ancestralidade é uma questão política? Como construir circula-
ridade em nós?
Começo a sorrir! Como pode memórias das rodas gingas
energizar o corpo que era passivo, mas agora, está inquieto-re-
belde? Qual foi a primeira vez que vocês sentiram os seus corpos
inquietos-rebeldes, Eide e Amélia, Sueli e Joise? Conseguiram
controlar ou deixaram-se levar pelas temperaturas de ousadias?
Qual foi o primeiro ato corajoso de vocês? Por que fizeram? Se
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
arrependem? Já são 4 da madrugada. Passei meia hora deitada, de
olhos fechados, sentindo o vento frio e tentando não pensar. Mas
quando o corpo entra em estado de inquietude é difícil controlar
seus movimentos. Vou beber água e ouvir a música “Prudência”,
de Maria Bethânia e, após, mesmo que eu não siga essa sequência,
vou para o aconchego do corpo-lar da minha amada.
Ela sabe que os finais de semanas são complicados para mim.
Eu a vejo levantando a minha procura, porém, quando percebe que
estou imersa nos meus pensamentos, apenas me deixa no meu
mundo. Ela sabe que a qualquer momento irei retornar para ela.
Ela compreende que preciso escrever. Isso é bonito: compreender
que mesmo sendo um casal, temos os nossos lados individuais,
difíceis e que precisamos de espaço. Ela fica atenta. Um cuidado
e zelo com minhas dores, mas, principalmente, com aquilo que
ainda irei transbordar. O que vocês sentem, Eide e Amélia, Sueli e
Joise, com as ações de zelo-cuidado-amor de suas amadas? Qual
foi a primeira vez que sentiu que ao lado do seu amor tudo tinha
mais cor? Quais são as cores do amor de vocês? Amo ser e ter um
amor sapatão-lésbico!
12 de novembro de 2023.
Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise,
Vibrando desejos de encontrá-las bem!
Qual foi a primeira vez que sentiu segurança no relaciona-
mento (amor) sapatão-lésbico de vocês? Penso que uma parte
importante de qualquer relacionamento seja o sentimento de
segurança: segurança em entregar-se a outra pessoa, a abrir as
portas dos sentimentos e de deixar que o nós se faça cada vez mais
presente-presença. Gosto de pensar em segurança como o sabor
honesto de sentir que suas vulnerabilidades não serão usadas para
ocasionar estados de dependência emocional, mas sim, de criar
fios entrelaçados ao respeito. Pensando em segurança, e sorrindo
203
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
agora feito uma boba, lembro-me da primeira vez que beijei uma
menina. Foi no dia 07 de novembro de 2016, às 11:30h. (ou um
pouquinho mais). A gente já estava conversando pelo WhatsApp
(foram os dias que não larguei o celular. Sim! Podem sorrir), desde
o dia 04 (ela já tinha interesse em mim, vocês acreditam? Mas não
teve coragem de mandar mensagem. Em uma outra oportunidade,
conto como foi esse processo todo).
Eu saí da aula e fui em direção ao local onde ela estava na
escola. Ela estava sentada no chão. Eu simplesmente cheguei,
dei um “oi”, pedi licença e coloquei minha cabeça nas pernas
dela. Sim, isso mesmo: eu me deitei no colo da menina. Ficamos
conversando e sorrindo. Discutimos sobre alguma coisa em que
eu na minha ousadia disse: “Então, me cala”. Ela tirou os óculos e
me beijou. Eu senti calafrios, vi flores, estrelas... e disse para mim
mesma: “Tudo faz sentido agora”. O beijo terminou (para a minha
tristeza), fiquei olhando para ela, sorri bastante, e perguntou:
“Foi tão ruim assim?”. Eu: “Não! Foi simplesmente maravilhoso.
O único beijo que realmente amei. Estou sorrindo, porque você é
uma menina corajosa”.
Daquele dia em diante, nunca mais soltei a mão da menina
corajosa. Lembrar-me do primeiro beijo que tive com uma menina
é como se estivesse sentindo o mesmo gosto, voltando no tempo e
estar ali, sentindo os lábios da menina corajosa. Que felicidade é a
minha dela ter segurado e não ter soltado também a minha mão.
Qual a sensação do primeiro beijo que tiveram com uma menina?
Lembram-se da primeira vez que vocês Eide e Amélia, Sueli e Joise,
se beijaram? Ainda sentem a mesma sensação de antes? O que
significa para vocês o beijo sapatão-lésbico?
Recordando do(s) beijo(s), vem à mente a roda ginga sobre os
pensamentos lésbicos. Confesso que foi uma das minhas rodas gin-
gas preferidas. Ouvir-sentir Ana Lemos, Suely Messender, Sarah,
Gersier e Ana Claúdia foi escancarar as portas dos esconderijos e
abraçar com muita saudade os sentimentos de pertencimento. Fo-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ram rodas de pertencimentos, guiadas por experiências-vivências,
memórias-histórias, saberes-conhecimentos plurais e ensinagens-
-aprendizagens de mulheres sapatões-lésbicas professoras que
dizem que seus pensamentos-práticas não se distanciam com
sua existência sapatão-lésbica. Senti-me em uma grande roda de
conversa entre amigas, compartilhando seus atravessamentos e
sentimentos sobre os cursos e tempos de vida.
Essas recordações me levam a primeira vez que li um texto
escrito por uma mulher sapatão-lésbica. Esse texto foi escrito pelo
meu corpo. Nos meus sentimentos turbulentos e inquietos, mui-
tas vezes digitei “Lésbica” no Google e sempre parecia conteúdos
pornográficos. Era como se ser lésbica fosse algo sem legitimida-
de. Não tinha ninguém para contar acerca dos sentimentos que
sufocavam meu corpo. Várias vezes me chamaram de “Sapatão”,
não como algo bonito, mas sim, pejorativo, violento, punitivo e
nojento. “Ela é sapatão”, risos, “Ela quer ser macho”, risos, “Se
fosse para namorar uma criatura dessa, namorava logo um ho-
mem”, dito por uma outra menina lésbica. Desisti de encontrar
algo na internet (ainda não sabia das bases de dados confiáveis,
como Scielo, Google Acadêmico, Portal de Periódicos da CAPES...).
Meu refúgio: a escrita. Era como se eu estivesse escreven-
do para ter alguma referência de mulher que ama-deseja outra
mulher; encontrar alguma válvula de escape que diminuísse um
pouco o peso de estar sendo esmagada por sensações estranhas,
mas tão gostosas, vivas e de sentidos; encontrar alguma miragem
de escuta que pudesse ficar em silêncio só ouvindo os meus medos
das certezas que tinha sobre minha existência e o meu querer.
Qual foi o primeiro texto de uma mulher sapatão-lésbica que
leram? Concordaram ou discordaram com as escritas-narrativas?
Sentiram-se pertencentes à escrita lida-sentida? A imagem, a
seguir, se não me falha a memória, é uma das primeiras escritas
que consegui colocar em palavras o que estava sentindo.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Imagem 2 – Pedido de ajuda.
Fonte: Arquivo da autora, 2023.
O que essa imagem-texto urge em vocês? Durante muito
tempo imaginei que viveria até os 10 anos, depois até os 15 anos.
Chegaram os 20 anos, pensei que só viveria até os 25 anos. E aqui
estou eu: resistindo-existindo. Não temo a morte, fico triste por
não ter experienciado as belezas de ser quem sou desde a infância,
de forma livre, sem julgamentos, sem violências, sem rejeições,
somente com orgulho-afeto. A lesbofobia faz diversos estragos na
forma em que você se percebe, além de fazer com que acreditemos
que não merecemos e nem somos dignas de viver, da vida. Os es-
tragos ainda correm pelo meu corpo, muitas vezes tomando conta
da minha existência, tantas outras vezes sufocam as esperanças
de acreditar na minha potencialidade.
O que é ser no outro? O eu é o outro? Por que somos o outro?
Por que só nos aplaudem quando falamos de nossas dores e nos
rejeitam ainda mais quando falamos de nossa felicidade? Quem
tem direito a aplausos? Nós merecemos o amor? Quais retratos
carregamos nos nossos percursos tempos de vida? Quem são as
pessoas que as motivam a continuar? Quais bandeiras vocês fazem
questão de levantar-reivindicar? Por que do ativismo-militância?
206
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Nunca existiu a hipótese do envelhecimento para mim. Era algo
tão distante, impossível de visualizar. O que significa o envelhe-
cimento para vocês? Já comecei a embaralhar tudo. Vou abraçar
meu afeto-amor sapatão-lésbico.
18 de novembro de 2023.
Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise,
Vibrando desejos de encontrá-las bem!
Quais os atravessamentos que as rodas gingas do componente
curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”
provocaram no meu corpo-inquieto-poético? Eis a pergunta que
desde a primeira roda vem me remoendo. Um questionamento,
vários incômodos epistemológicos. O componente em questão foi
o primeiro que participei como ouvinte. E que alegria-sorte é a
minha de estar em um conjunto de pessoas em intersecções dan-
çando pedagogias e epistemologias outras, para pensar-construir
redes afetivas, sensíveis e seguras, a partir de uma escuta ativa,
acolhedora e qualificada. Qual foi a primeira vez que participou
de um componente enquanto aluna especial ou ouvinte? Nem nas
minhas melhores esperanças imaginaria encontrar nas discussões
gigantes elos inquietos e necessários para refletir, por exemplo,
as responsabilidades sociais, éticas e políticas com o chão-vida a
educação pública brasileira.
Os fios das Pedagogias Feministas com os fios das Epistemo-
logias Decoloniais me fizeram ampliar as percepções que tenho so-
bre o pensamento sapatão-lésbico, ao ponto de compreender que
necessitamos manter alianças com as iguais a nós para promover o
fortalecimento da existência sapatão-lésbica e, com isso, organizar
agenciamentos de alianças com outros corpos subalternizados e
desumanizados; afinal, não conseguiremos realizar união sem
entender nossas próprias pautas e demandas. Entretanto, isto não
diz para ficarmos longe dos outros corpos, pelo contrário, revela
207
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
a importância do contato para alimentarmos o respeito que deve
fazer parte dos nossos discursos e práticas. Por isso, sinto que a
interseccionalidade é um convite para realizar justiça étnico-racial
e de gênero imbricada com a justiça de sexualidade, de classe e
ambiental, por exemplo.
Lembro-me de você, Geni Daniela Núñez Longhini (2021,
p. 58), quando disse: “Nossos percursos não são neutros, porque
nosso corpo é afetado o tempo todo”. É aqui, precisamente, que
vejo potência na política de localização interseccional”. São os
becos de lágrimas de e sem saídas, nas permissões de ser ou não
tocadas pelos acontecimentos, rasgando as sombras dos silêncios
e rompendo as regras coloniais. O não esgotamento da existência,
as brechas e fissuras criadas pelo corpo para confrontar o binaris-
mo, na promoção de discursos-ações antirracistas encarnados nas
corpografias e na garantia de derrubar as histórias únicas. Qual foi
a primeira vez que perceberam que a interseccionalidade precisa
fazer parte do processo ser, sentir-se e tornar-se alguém-gente-
-humana?
Nessa localização interseccional, vou ao encontro das memó-
rias de Bruna Benevides, Vércio Gonçalves, Ananda Oliveira, Sara
York e Thiffanny Odara na roda ginga sobre o Transfeminismo,
Pedagogias das Desobediências e outras Epistemologias inclu-
sivas. Os encontros me fizeram compreender que as violências-
-genocídios além de ser uma ferramenta muito eficaz que a co-
lonialidade e a extrema-direita usam para exterminar, aniquilar
e limpar corpos fora da lógica cisheteronormativa, é também
um modo de demonstrar o que pode acontecer com quem recusa
seguir as normas tidas como naturais e adequadas de existência,
gerando medo como mecanismo de controle. Quais aprendiza-
gens o pensamento sapatão-lésbico pode ter nos pensamentos
da transgeneridades? Como o pensamento sapatão-lésbico pode
transeducar suas práticas, a partir das ensinagens-experiências
das pedagogias das desobediências?
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Recorro-me, Eide e Amélia, Sueli e Joise, as queridas Daniela
Lopes Ferreira e Zuleide Paiva da Silva (2022, p. 142), quando
elas dizem que “[...] a escola como um colorido cata-vento, um
redemoinho, como lugar de sociabilidades, de possibilidades,
de encontros, encantos e arruaças”. As instituições de ensino
formais são espaços-tempos-lugares de conflitos e confrontos,
mas também de construção de acreditar-esperançar em agencia-
mentos de alianças que garantam os encontros com os direitos
humanos. E as escolas e academias só conseguem ser lugares de
pensamentos-práticas outras, porque corpos tidos e vistos como
desumanizados e desnecessários estão ocupando esses espaços e,
com isso, mobilizando transformações. Qual foi a primeira vez que
percebeu que a ocupação escolar e acadêmica é importante para
mudanças das concepções coloniais? Eu celebro toda vez que sei
que uma mulher sapatão-lésbica é professora da Educação Básica
ou do Ensino Superior. Vou tomar café, aceitam?
28 de novembro de 2023
Queridas Eide e Amélia, Sueli e Joise,
Vibrando desejos de encontrá-las bem!
Gostaria de ter escrito para vocês sobre outras tantas primei-
ras vezes, a exemplo da primeira vez que sofri lesbofobia. Contudo,
eu apaguei! Ainda não tenho tanta coragem para expor alguns
acontecimentos. Acredito que chegará o dia que minha rebeldia vai
ser o meu corpo todo, mas até lá, reafirmo que escrevi para vocês,
em lágrimas. Eu escrevi nas madrugadas, nas noites de insônia.
Todas as palavras digitadas nos finais de semanas. Vocês deixaram
esse processo de dizer-anunciar mais calmo e confortável, mesmo
sendo à distância. Deixo para vocês um trecho do conto “Diário
roubado”, escrito por Anderson Ferrari (2022, p. 78), no livro Eu
chorei só cinco lágrimas: contos que me contam. E junto ao trecho,
uma foto minha de um dos momentos que sofri lesbofobia na rua
e na universidade.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Cecília passou a ser apontada na rua. Perdeu muitas
amizades. Não se intimidou. Assumiu ser lésbica.
Pelo menos sentiu alívio de não ter mais que escon-
der o que sentia. Não se sentia mais obrigada a se
aproximar de nada que era feminino. A cidade não
perdoou. No carnaval daquele ano, quando a mar-
chinha ‘Maria Sapatão’ começou a tocar no único
clube da cidade, os presentes substituíram Maria por
Cecília e cantaram em coro ‘Cecília sapatão, sapatão,
sapatão. De dia é Cecília e de noite é João’. A música
perseguiu Cecília onde ela aparecia em público. Mas
não causava o efeito na menina. Ela não abaixava
a cabeça. Muito pelo contrário. Bastava a música
começar e as pessoas cantarem, para Cecília erguer
os braços como se regesse o coro, abrir um sorriso e
cantar junto, sem deixar de dançar. No final gritava:
‘sou sapatão mesmo e com muito orgulho’.
Fonte: Arquivo pessoal, 2022.
P.S. Eu penso que não consegui florir o objetivo que propôs,
mas desejo que essas palavras cheguem a vocês com inquietude,
poesia, curiosidade e desejo de acreditar-esperançar no pensa-
mento sapatão-lésbico. Assim, questiono: com quantas mãos se
faz uma revolução sapatão-lésbica? Com quantas mãos se faz um
manifesto sapatão-lésbico? O que vocês aprenderam com o amor
sapatão-lésbico?
Com carinho-dengo-poesia,
Maria Lizandra Mendes de Sousa, a Liz Mendes.
Carta(s) feita(s) ao sabor da cajuína de Floriano, Piauí, para
o som-sabor da vida de Salvador, Bahia.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
REFERÊNCIAS
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Andrea Vanzo (em inglês). Compositor: Andrea Vanzo. 2023 (em inglês). 1 vídeo
(3min:16s). Publicado pelo canal Andrea Vanzo. Disponível em: https://youtu.be/
e6Po2lDHD1I?si-4RNhsFYH0Q7VTu8i. Acesso em 22 de out. de 2023.
FERREIRA, Daniele Lopes; SILVA, Zuleide Paiva da. Pedagogias feministas no Sertão
da Bahia: sobre experiências o programa novo mais educação no Colégio Estadual
Antônio Bahia. In: MACEDO, Aldenora Conceição de; OLIVEIRA, Ivana Gonçalves
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um lugar como da diversidade. 2 ed. Porto Alegre-RS: Editora Fi, 2022, p. 142-168.
FREITAS, Ana Lúcia Souza de. Carta sobre Cartas Pedagógicas: compartilhando
experiências sobre a formação de professores/as e de gestores/as. In: II Congresso
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Gerais: UFMG, 2018, p. 1-5. DOI: 10.17648/paulofreire-2018-89512. Disponível
em: https://proceedings.science/freire-globalconference-2018/trabalhos/carta-
sobre-cartas-pedagogicas-compartilhando-experiencias-sobre-a-formacao-de-
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LONGHINI, Geni Daniela Núez. Sobre silêncios e alaridos do lugar de fala. In:
ALVES, Bárbara Elcimar dos Reis; FERNANDES, Felipe Bruno Martins (Orgs.).
Pensamento lésbico contemporâneo: decolonialidade, memória, família, educação,
política e artes. Florianópolis-SC: Tribo da Ilha, 2021, p. 50-59.
PINHO, Maria José; GOMES, Ana Lúcia; VERENA, Iria. Diversidade, currículo e a
formacional do CIPHEUM: (des) leituras e suas obras (Mesa Temas 05). Mediação
de Antenor Rita Gomes. In: III Webnário Nacional & II Webnário Internacional
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POLESSO, Natalia Borges (Portuo). Amora: contos. Porto Alegre: Não Editora, 2015.
Quem pensa e ouve como as meninas? Refloresçam-se em si e nós por Interpretação:
Maria Lizandra. Autoria: Maria Lizandra. Em 2022. 1 vídeo (4min:54s. Publicado
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SARDBERG, Cecília Maria Bacellar. Caleidoscópios de gênero: gênero e
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SOUSA, Maria Lizandra Mendes de. Meu corpo tem fome-sede. (No prelo).
211
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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CARTA PARA O FUTURO
EX-MORADOR “DO ARMÁRIO”!
Sara Wagner York
Vércio Gonçalves
Carta ao Jovem LGBTQIAPN+, de qualquer lugar, que ainda
“está no armário”.
Em um mundo tão masculinista tóxico e embrutecido,
tomaremos a liberdade de iniciar nossa conversa bus-
cando uma neutralidade trans. E o neutro aqui, assume
a função do radical da palavra: nem um, nem outra!
Queride desconhecide (mas nem tanto assim), tudo bem?
Escrevemos-te estas palavras com o coração repleto de afeto
e compreensão, pois sabemos que o caminho que tens percorrido
pode ser desafiador e solitário. Aliás, somos duas pessoas trans,
uma travesti e um homem trans, assumindo a função simbiótica
nessa escrita. A simbiose e o parasitismo são duas relações entre
seres vivos, entretanto a primeira entra em harmonia e ambos
trabalham sem prejuízo ao outro. No parasitismo, há uma perda
para uma das partes e isso pode ser danoso, violento e até mor-
tal. Você é parte de uma comunidade diversa, viva e vibrante, e
é importante que sintas o apoio e a solidariedade do mundo que
lhe cerca, mas, sobretudo, de quem te acolhe, respeita e entende.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Por termos, já, caminhado por essa mesma estrada, podemos
te ajudar, em algum sentido, e começamos por te dizer que não
se sinta “tão” só. Sentir-se sozinho, por muitas vezes, faz parte
da caminhada humana e do amadurecimento pessoal de cada um,
porém, se perceba conectado com pessoas que já passaram pelo
que passa agora e, também, por um mundo de gentes que passam
pelo mesmo que você, nesse exato momento.
Sabemos que, muitas vezes, a descoberta e aceitação das nos-
sas identidades, que são múltiplas enquanto humanos, pode ser
complexa. Quando o assunto é identidade de gênero e orientação
sexual, podem ser momentos complexos e dolorosos. O peso do
“armário”, essa sensação de esconder quem somos, pode parecer
esmagadora.
Sentimentos de amargura, rejeição, solidão, dúvida e medo
nos fizeram passar por situações horríveis, mas percebemos que
muitas delas eram maiores e muito violentas por falta de infor-
mação!
Saiba que você não está só! Há uma comunidade inteira
pronta para te acolher e te apoiar, exatamente como és. Tem gente
má entre nós, afinal em grande maiores viemos de experiências
muito dolorosas e que iniciam com situação violentas desde
nossas famílias; entretanto, a quantidade de gente que expande
a criatividade com ideias, vida e alegria é muito maior.
Há algum tempo, para nossa geração (dos 40+) e para gerações
anteriores a nossa, ter essa consciência era mais difícil, porque não
se falava muito sobre nossas existências LGBTQIAPN+, a não ser
para nos deslegitimar, enfraquecer, atingindo nossa autoestima e
nos adoecendo. A presença social de nossa comunidade era (creia:
ainda é, mas já foi pior) meio que comparada a uma peste.
Alguns de nós viveram estes dias na pele, talvez por isso a
sua chegada seja tão importante, esperada e comemorada!
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Hoje, mesmo com poucos avanços, no que diz respeito aos
nossos direitos, para uma vida mais digna, viver se tornou um
pouco mais fácil. Atente-se a isso: aprendemos a escutar quem vale
a pena, nos proteger do preconceito e principalmente caminhar
por estradas menos esburacadas. Se a vida é uma caminhada, a
nossa, já não possui tantos buracos. Isto porque estamos aqui e
agora, escrevendo esta carta para você, que, ao lê-la, saberá que é
possível, sim, existir, para além de resistir e não desistir.
O que queremos te dizer é que se torna fundamental explo-
rar tua identidade de forma segura e respeitosa. Todos temos o
direito de nos expressar livremente, sem medo de discriminação
ou violência. Tu mereces viver plenamente, com amor e orgulho
por quem és. No caso de ser uma pessoa trans, você já pensou em
brincar com vários nomes, até se apresentar socialmente com um
nome? No mundo do bullying seria como receber um apelido em
cada escola, mas no mundo LGBTQUIAPN+ preparado, esse exer-
cício pode ser lúdico e muito enriquecedor. Mesmo para pessoas
não trans, ter um nome social ou (auto)apelido é um exercício
de afeto. Estabeleça uma conexão, primeiramente, com seu eu,
na sua experiência LGBTQIAPN+, e entenda que o problema não
está em você, está nas pessoas intolerantes ao que é diverso. Sim,
você chegou ao mundo no momento em que mais precisávamos
espalhar o respeito à natureza, às pessoas e amor.
Quando falamos em viver plenamente, te chamamos a expe-
rienciar uma vivência coletiva, porque mesmo nesse nosso tempo,
sua geração ainda lida muito com os preconceitos que nós e nossa
ancestralidade experienciamos, o que evidencia a necessidade de
sermos coletivos... Sozinhos, ficamos mais frágeis. Mas não se
assuste nem desista! Hoje, podemos continuar o que começaram
lá atrás, bem antes de nós, que te escrevemos, mas dessa vez,
juntes/os/as e não a partir de vidas que foram tomadas, por serem
vozes individuais.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Bom lembrarmos sempre que, mesmo falando em primeira
pessoa do plural, nossas vozes nem sempre foram coletivas, pois,
ao lutar por algo que nos cabia e parecia ser pessoal, elas acabavam
por dizer ao mundo que era uma existência possível, para muitas
outras vivências.
Na individualidade, ainda que a sociedade recusasse, muitas
pessoas se mostraram consciente de seus direitos a uma cida-
dania e, fazendo isso, acabou por visibilizar nossa experiência e
nossas pautas. Precisamos, então, em nome dessa ancestralidade,
continuar o trabalho que nos foi delegado: não é mais sobre lutar
pela nossa sobrevivência, queremos uma vida mais digna e plena.
No passado, muites de nós morremos assassinades ou fomos
brutalmente violentades, de formas variadas. Hoje, em maior ou
menor nível - não conseguimos mensurar -, a violência ainda é
uma constante para nós, mas de uma coisa a gente pode se or-
gulhar: antes, essas mortes e registros de violência morriam ou
eram silenciados, da mesma forma que as vítimas. Ao contrário
da atualidade que, mesmo acontecendo e, muitas vezes, ficando
sem resolução, por conta de nossa afirmação, tem se tornado dado.
Quando se torna dado, é esperado que, em algum momento, possa
se tornar um problema social e, como tal, responsabilidade do
Estado. Este, por sua vez, precisa ser implicado a pensar políticas
públicas, visando buscar uma solução para o problema.
Essa precisa ser nossa utopia!
Tem mais uma coisa que queríamos te levar a pensar: muites
de nós não tiveram amor, a contar dos nossos primeiros núcleos
sociais, que é a família e a escola. Como dissemos anteriormente,
alguns núcleos são simbiose outros parasitismo, tipo cachorro e
carrapato. Por conta disso, foram pessoas levadas, desde muito
cedo, a uma vida árida de afeto, seca de cuidado e vivendo uma
“sub-existência” humana. Então, se em sua casa, você ainda
encontrar amor, mesmo que, em seu arranjo familiar (qualquer
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
que seja), haja dificuldade em acolher essa sua existência LGB-
TQIAPN+, tente... apenas e até onde for possível para sua saúde
mental.
Com um detalhe: só se essa família se movimentar, no sen-
tido de lhe acolher, em sua integridade, pois temos notado que a
maioria de nós se torna frágil, quando, desde muito cedo, perde o
aconchego dos nossos responsáveis, entre final da infância e início
da adolescência. Momento que seria o de receber apoio ideal para
nos reconhecermos e nos pensarmos como seres possíveis. Mais
que isso, momento em que ainda somos considerados incapazes,
assim como dita o ECA - aqui para nós, desconfio que o Estatuto
da Criança e do Adolescente não enxerga crianças e adolescentes
negras, pobres e LGBTQIAPN+...
A maioria de nós passa por abandono e, negligenciades pelas
nossas famílias/responsáveis, nos vemos expostos a todo tipo de
violência, acabamos por desenvolver um “auto-horror” e a nos
rejeitarmos, passando a nos submeter e aceitar qualquer tipo de
afeto, mesmo que acabe nos matando.
Muites LGBTQIAPN+’s acabam por seguir o caminho que a
vida ofereceu/oferece - abandono escolar, prostituição, uso com-
pulsivo de drogas, diversos adoecimentos, suicídio, dentre outros
-, apenas, porque precisam sobreviver, com o mínimo, mesmo que,
para isso, sofram outros tipos de violência.
Muitas vezes, a fuga de uma realidade, que violenta e ma-
chuca, pode conduzir o sujeito ao caminho da autodestruição até
chegar ao último recurso, que é desistir da vida. É por isso que
estamos aqui, para te dizer tudo o que somos, mas também tudo
o que a sociedade pode fazer de nós, para que nunca pense em
desistir. Lembre-se de estar em relações simbióticas e agregadoras,
e ao se lembrar disso, evite confronto aberto nas relações de para-
sitismo, até poder se livrar delas. Um pai ou mãe que não te aceita,
pode ter péssimas imagens sobre pessoas como nós ao longo de
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
sua formação humana. Se você vive algo assim, mostre quantas
pessoas (como nós) estão fazendo trabalhos de excelência...
Você sabia que tem uma travesti que trabalha na NASA?
Você sabia que um dos maiores atores do mundo é um homem
trans? Você sabia que a primeira travesti a ancorar no jornalismo
brasileiro só conseguiu esse feito em 2021, e com quase 50 anos?
Você sabia que a organização de homens trans e popularização
das fotos e imagens de peito têm relação direta com a imagem do
seio de mulheres amamentando e de indígenas, que estão sendo
repensadas pelas redes sociais?
Ser LGBTQIAPN+ é imperativo de liberdade e respeito, não
mais de vergonha, preocupação com “o que o vizinho vai pensar”
ou com imposições morais.
Pelo contrário, lembre-se sempre: tua identidade é válida, tua
existência é importante e tua voz merece ser ouvida. Não tenhas
medo de ser quem és, pois a autenticidade é um dos maiores pre-
sentes que podemos oferecer a nós mesmos e ao mundo.
Com afeto, solidariedade e felizes por sua leitura,
Rio de Janeiro – RJ, julho de 2024 / Salvador – Bahia, julho
de 2024.
Sara Wagner York & Vércio
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
O RESPEITO TRANSFORMA!
Cinthia Pacheco Xavier Araújo
Cynthia Almeida dos Santos
Josenilda Correia Vieira
Passarinho de toda cor
Gente de toda cor
Amarelo, rosa e azul
Me aceita como eu sou
(Renato Luciano)
Caro Yuri,
Na intenção de fazermos ecoar sua voz, força e coragem lhe
escrevemos esta carta:
Espero que esteja tudo bem contigo. Ontem à tarde, estive
com uma amiga e durante a nossa conversa, ela me falou sobre
você, estava um pouco preocupada, contou-me que você é um
garoto maravilhoso, inteligente, prestativo e bastante amigável,
mas que está passando por uma fase difícil, e isto tem lhe deixado
muito angustiado, por esse motivo ela queria encontrar alguma
forma de ajudá-lo, pois tem um carinho especial por você.
Talvez você esteja se perguntando o porquê de estarmos lhe
enviando esta carta, sim escrevi “estarmos”, porque esta carta está
sendo escrita de modo colaborativo por três mulheres: Josenilda
Vieira, Cynthia Santos e Cinthia Pacheco. Somos discentes do Mes-
trado em Educação e Diversidade da UNEB, Campus IV/Jacobina,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
eu e Cinthia Pacheco, alunas regulares, Cynthia Almeida, aluna
especial. Neste semestre, estamos cursando o Componente “Pe-
dagogias Feministas Epistemologia Decoloniais”, no qual pessoas
comprometidas com a justiça social e epistêmica são convidadas
para, a partir de suas experiências, discutir temas que venham
contribuir com a promoção da equidade de gênero, o combate ao
racismo, ao sexismo (discriminação, preconceito contra o gênero,
em geral, feminino), a lesbitransfobia (preconceito contra a ho-
mossexualidade feminina).
O componente tem como procedimento as rodas de con-
versas, nas quais a conversa é o dispositivo de aula-pesquisa;
cada encontro ocorre no formato on-line às segundas-feiras, com
início às 19 horas. Em alguns desses encontros, tivemos convi-
dados transexuais, homens e mulheres que relataram sobre suas
lutas e dores, mas que hoje se encontram em um lugar, no qual
suas vozes são ouvidas e, por isso, assumiram o compromisso de
ajudar outras pessoas que fazem parte da população LGBTQIA+,
sobretudo pessoas transgêneras.
Na 10ª roda de conversa no dia 06 de novembro de 2023,
falamos sobre o transfeminismo (feminismo, sendo feito por e para
mulheres travestis e transexuais), recebemos a Bruna Benevides
(diretoria da Associação Nacional de Travestis e Transexuais - AN-
TRA e do Conselho Nacional do LGBTQIAPN+) e o Professor Vércio
Gonçalves. Tivemos a grande oportunidade e o desafio de trans/
educar o pensamento para descolonizar a educação. Inclusive, tive-
mos o privilégio de conhecer o trabalho de professor Vércio em seu
canal do Youtube, a partir de um vídeo no qual canta duas canções,
a primeira: “É D’Oxum”, de Gerônimo Santana e Vevé Calazans, e
a segunda: A voz do tambor, de Celso Fonseca e de Ronaldo Bastos.
Seu diário de bordo marca o seu processo de “redescoberta”, termo
utilizado na descrição de seu vídeo, com isso lhe convido a assistir
também, já que conseguimos a partir de vários dispositivos com-
partilhar nossos processo, lutas, angústias e vitórias.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A partir das discussões, ficamos mais sensíveis à luta contra
a violência contra os trans e outras dissidências, além do enfren-
tamento ao transfeminicídio (política disseminada, intencional e
sistemática de eliminação das travestis, mulheres trans e mulheres
transexuais, motivada pela desumanização das vítimas), discuti-
mos também formas de enfrentar a transfobia, os genocídios, as
injustiças a partir da institucionalidade, por muitas vezes o Estado
violar esses direitos por ação ou por omissão como falta de políticas
públicas eficazes. Vale destacar que ao falamos em “políticas públi-
cas”, estamos nos referindo às ações governamentais que tentam
de certa forma intervir de forma estratégica em questões sociais.
As discussões transitaram também sobre a luta pela autode-
terminação de gênero, pois vale destacar que desde 2019, o STF
decidiu favorável, porém 65% da população trans não retificou sua
documentação, ou seja, a garantia do direito não efetivado segue
sendo violado. Com isso, podemos refletir de forma colaborativa
sobre a aplicabilidade dessas políticas públicas, já que é necessário
saber quais são as fragilidades que impedem que os direitos sejam
realmente acessíveis.
Como rasurar sistemas tão fortalecidos? Como ser resis-
tência? Uma fala recorrente que escutamos em nossas aulas da
disciplina de “Epistemologias Feministas e Epistemologias Deco-
loniais” é sobre arrombar as portas quando não são abertas, e a
partir dessa metáfora, percebemos a força que podemos ter para
começar abrir brechas nesse sistema opressor. Uma forma que
já estamos utilizando, é a pesquisa. Ocupar espaços nas univer-
sidades, principalmente universidades públicas, nos promovem
aberturas para reflexões e discussões, consequentemente essas
discussões ultrapassam os muros das universidades e chegam em
outras pessoas, como é o caso de nossas cartas, uma iniciativa de
nossas professoras que, ao pensar a metodologia que transitaria
em nossa disciplina, promoveram um espaço afetuoso que pudesse
estabelecer uma conexão com diversas comunidades.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Durante o diálogo com minha amiga, senti vontade de te
conhecer, de poder conversar com você, saber um pouco mais
profundamente o que você está sentindo? O que realmente te
deixa tão triste e angustiado? Quais são seus maiores desejos? O
que você almeja em seu futuro? E depois de uma deliciosa con-
versa, poder te abraçar e te acolher, senti vontade de te dizer que
vai ficar tudo bem e que existem muitas pessoas que olham para
você e te enxergam exatamente como você é: um lindo menino,
um adolescente que tem planos e sonhos iguais aos demais que
têm a sua idade. Gostei do seu nome, Yuri é um nome muito bo-
nito, foi em homenagem ao primeiro homem a viajar pelo espaço,
o Cosmonauta, Yuri Gagarin? Naquele dia, vim para casa e fiquei
pensando de que forma eu poderia ajudá-lo. Foi quando iniciei
esta carta, imagino que seja muito difícil o fato de não ter ainda
sua identidade de gênero reconhecida e não ser tratado pelo nome
social, além do apoio de sua família, das pessoas em seu contexto
escolar, entre outros.
Talvez seja difícil para compreender, mas entendemos que
muitas pessoas não sabem lidar ainda com essa situação, infe-
lizmente a nossa sociedade é extremamente preconceituosa e
perversa, existe uma imposição social que entende como nor-
malmente apenas o sexo biológico. Essas pessoas resistentes em
aceitá-lo como você é, não viveram e não compreendem as lutas
da decolonialidade, vale ressaltar que o termo “decolonialidade”
refere-se ao reconhecimento de múltiplas e heterogêneas dife-
renças coloniais, assim como as múltiplas e heterogêneas reações
das populações e dos sujeitos subalternizados à colonialidade do
poder, em decorrência disso, surgem questionamentos também
sobre a heteronormatividade, sendo essa a imposição social que
instaura numa força totalizadora dominante que dita o que cada
um deve ser ou se comportar de acordo com os papéis construí-
dos socialmente de cada gênero, além de questões binárias que
excluem qualquer tipo de pluralismo de ideias, de viver e de ser.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Porém, através desta carta, queremos dizer a você que conti-
nuaremos lutando para que você e muitos Yuris, um dia possam
ter todos seus direitos garantidos de verdade, continuaremos
lutando por uma sociedade mais justa e igualitária, onde as pes-
soas não sejam julgadas pela cor da sua pele, pelo gênero ou por
sua orientação sexual, pelo seu corpo ou qualquer outra forma
de discriminação. Convidamos você a se juntar a nós nessa luta,
porque como disse Mardonio José de Queiroz Barros, “tudo que
nos divide nos enfraquece”.
Gostaria de convidá-lo a pensar um pouco sobre a coletivida-
de nesses processos de movimentos sociais, uma ótima metáfora
para representar a força que provocamos quando lutamos juntos
é voltando nossa atenção para a natureza, a partir de uma planta.
Essa planta, da qual estou me referindo, é um rizoma, em oposição
a um modelo de árvore que é hierárquico e vertical, um rizoma
se destaca por seu formato horizontal com inúmeras raízes que
vão se conectando e se fortalecendo, de modo que conseguem
emergir em várias partes do solo. Com isso, reflita sobre a partilha,
sei que é difícil e que talvez você pense que está sozinho, porém
sinta-se abraçado e sempre busque ajuda, pois, dessa maneira e
de mãos dadas, vamos fortalecendo uns aos outros e brotando em
inúmeros espaços.
De modo que nossa ação não esteja limitada apenas à leitura
desta carta, gostaríamos de sugerir uma leitura, um livro que tem
por título Vidas Trans: a luta de transgêneros brasileiros em busca
de seu espaço social apresenta a biografia de quatro pessoas: Amara
Moira, João W. Nery, Márcia Rocha e Tarso Brant, espero que de
alguma forma essa leitura possa trazer reflexão, conhecimento e
principalmente afeto em seu processo de (re)descobertas, luta e
resistência.
Acreditamos que talvez seja um trabalho de formiga, cada
dia, juntos, fazendo refletir, questionar e criticar, promovendo
mais espaços que compreendam cada indivíduo dentro das suas
223
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
singularidades, e que não deva existir nenhum tipo de repressão
a partir das singularidades dos indivíduos, sejam elas em relação
à cor, gênero, religião, entre outros.
É necessária essa luta, de modo que possamos conseguir abrir
brechas nesse sistema moldado por valores e concepções prévias,
que dita o que é certo ou o que é errado, precisamos lutar para que
políticas públicas eficazes intervenham em diversos campos que
influenciam em problemáticas sociais que geram qualquer tipo
de intolerância. Infelizmente, sabemos que você tem plena noção
dos percalços que são enfrentados diariamente, porém devemos
acreditar na nossa luta e resistência de modo que não seja tolerado
qualquer tipo de preconceito.
Lembre-se, Yuri, quando se sentir triste, perdido, sem rumo,
você pode buscar forças e inspiração através da arte, podemos
citar escritores, poetas, artistas e cantores, como Natt Maat com
sua música transfobia:
Transfobia
Viva a sua vida
Cuide da sua vida
Que da minha vida cuido eu
Viva a sua vida
Cuide da sua vida
Que da minha vida cuido eu
Não é você que faz a decisão por ninguém
Ser Trans é ter uma vida e é ser um alguém
Não é você que manda no meu pensamento
Só entenda que cada um aqui tem o seu talento
Não é você que faz a decisão por ninguém
Ser Trans é ter uma vida e é ser um alguém
Não é você que manda no meu pensamento
Só entenda
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
90% delas estão na prostituição
Eu falo de uma realidade sem capacitação
Sem estudos por motivos inúteis ou até banais
O preconceito e a violência nas ruas são reais
Não conseguem estudar e nem conseguem trabalhar
O preconceito existe, é sério e está em todo o lugar
Eu falando de Transfobia parece ser vitimismo
Se não é sua realidade você mostra egocentrismo
Quanta notícia eu vejo falando mal dessas pessoas
Que nasceram, têm suas vidas e sabem que em algo
são boas
Proselitismo, perseguição, e toda essa invasão
Preencha todo o seu vazio com a sua ilusão
Se quiser falar em algo fale em psicológico
Só não venha me ensinar o que é um biológico
E não venha me julgar e falar da minha vida
Pois eu entrei aqui e não é você que faz a minha saída
Não
Segundo sites de pornografia o Brasil é o país que mais
consome filmes pornôs de Mulheres Trans e Travestis e,
também segundo sites de estatísticas o Brasil é o país
que mais mata essa população
Transfobia mata
Preconceito mata
Ignorância mata
Intolerância religiosa mata
Não é você que faz a decisão por ninguém
Ser Trans é ter uma vida e é ser um alguém
Não é você que manda no meu pensamento
Só entenda que cada um aqui tem o seu talento
(Identidade de gênero é diferente de orientação sexual
O Brasil é um país que não ensina sexualidade não
ensina sobre identidades de gênero e a sua importância)
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Viva a sua vida
Cuide da sua vida
Que da minha vida cuido eu
Acreditamos em nossas lutas e resistências, estas podem re-
sultar em políticas públicas mais efetivas que abracem as individu-
alidades e que intervenham ainda mais nesse sistema hegemônico
e binário. Existe, por exemplo, o Conselho Nacional de Combate
à Discriminação e Promoções dos Direitos de Lésbicas, Gays,
Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT) que auxilia no processo da
criação e garantia de direitos, entre eles a do nome social, auxilia
na resolução de conflitos e denúncias, além de apoiar as pesqui-
sas desenvolvidas nesses contextos, existe também a Associação
Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA, uma rede nacional
que desenvolve ações para promoção da cidadania da população
de Travestis e Transexuais.
Com isso, queremos te dizer que você não está sozinho, mui-
tas pessoas se importam com os seus sentimentos e querem te
ver bem e feliz. À medida que o tempo for passando, seus desejos
vão se tornando realidade, tenha paciência e lute por aquilo que
quer. Que esta carta possa ser um abraço apertado e cheio de afeto
para a sua alma; desejamos que você, Yuri, alcance todos os seus
sonhos, e se em sua caminhada encontrar portas fechadas, com
muita força você irá arrombá-las e conquistar muitos espaços,
mas, inclusive e principalmente, a liberdade de ser quem você é.
Um grande abraço,
Josenilda Vieira, Cinthia Pacheco e Cynthia Almeida.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
REFERÊNCIAS
BISCOITO FINO. Renato Luciano: “De Toda Cor” (Clipe Oficial), (5 min.20s). 11
de mai. 2017. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=FTU5NYUxZ14
Acesso em 15 de jan. de 2024.
BRASIL. Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoções dos
Direitos de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (CNCD/LGBT). Brasília, DF:
Senado Federal, 2018. Acesso em 20 de fev. de 2024.
MOIRA et al. Vidas Trans: A luta de transgêneros brasileiros em busca de seu
espaço social. 2 ed. São Paulo: Astral Cultural, 2022. 176p.
NATT MAAT. Transfobia – Naat Maat. (2min.17s). 17 de ago. 2018. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=0GlDsiF4tgo. Acesso em 19 de fev. de
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VÉRCIO. Vércio - Diário de Bordo: 10 meses de testosterona (7min:7s). 7 de set.
2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wlWlGqPUO2Y&t=5s
Acesso em 19 de fev. de 2024.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
EU VOU APRENDER A LER PARA CONVIDAR
MINHAS CAMARADAS: UMA CARTA-CONVITE
PARA MULHERES PROFISSIONAIS DA
EDUCAÇÃO BÁSICA
Nara Paixão Sacramento
Rosana Mercês Santos
Rozane da Conceição Silva Costa
Imagem 1 – Rio Paraguaçu entre as cidades de Cachoeira e São Félix - BA.
Fonte: Arquivo pessoal das autoras, 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
(Evaristo, 2017, p. 25)
Escrever uma carta é estar por inteiro. Se despir, se dar,
se doar, se desnudar do véu e deixar se envolver pelas suas
subjetividades. Somos três mulheres que ingressaram no
Programa de Pós-Graduação em Educação e Diversidade, no
curso de Mestrado Profissional em Educação e Diversidade
(MPED), no ano de 2023, atravessadas pelos marcadores de
raça, gênero, sexualidade e classe. Esta carta é o desenrolar
de muitas conversas que se deram ao longo dos encontros se-
manais do segundo semestre de 2023, no Componente “Peda-
gogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”, orientados
pelas Professoras Zuleide Paiva da Silva, Amália Cruz e Ana
Lúcia Gomes da Silva. Conversas essas que envolveram tantos
sentimentos, aspirações, dores, sabores, amores, afetos, de
“ensinagem” e aprendizagem.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Imagem 2 – Card do componente curricular.
Fonte: Imagem do grupo WhatsApp, 2023.
Esta carta é um convite as profissionais da Educação Básica
desobedientes (Odara, 2020), mulheres cis e trans que atuam na
Educação, que atuam em diferentes cargos e que diariamente de-
sobedecem. Desobedecem ao modelo educacional instrutor de cor-
pos dóceis, da educação bancária, da reprodução brancocêntrica,
patriarcal, racista, lgbtfóbica, padronizante, que constantemente
regula os corpos em categorias, enaltecendo alguns e silenciando
violentamente outros. Esta carta é para você, que faz movimentos
que podem ser lidos como pequenos, mas são revoluções no seu
espaço de trabalho e na sua vida. Esta carta é para você, que ge-
ralmente é lida como a profissional problema, porque o sistema
está acostumado com pessoas obedientes e conformadas, e nós
desobedecemos.
Antes de tudo, é preciso demarcar o papel que esta carta
ocupa, já que não é uma simples escrita. Trata-se de uma “Carta
Pedagógica Feminista”, e dessa forma, aqui são bem-acolhidos
os feminismos plurais, que foram despertados através da apre-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
sentação da ementa dos encontros do componente no começo do
semestre. As explanações e as vivências dos participantes e das
convidadas e convidados reagiram para percebermos a existência
de outros feminismos, aguçando o nosso redor, como forma de
rever posturas e contagiar pessoas para essa gira.
As Cartas Pedagógicas são um instrumento de diálogo cunha-
do por Paulo Freire (1993), mas não é um simples instrumento que
possibilita o diálogo no processo contínuo de formação docente, é
um instrumento político em que potencializa as dores e as delícias
pedagógicas: as experiências, saberes, lutas, apagamentos, afeta-
ções. As cartas pedagógicas feministas colocam sujeitas(es) antes
invisibilizadas com a palavra para conduzir a prosa. A carreira
docente, apesar de ser majoritariamente feminina, não são esses
corpos que legislam na garantia de uma educação de qualidade
para todes/as/os como agentes ativas e valorizadas.
As cartas pedagógicas feministas colocam estes outros cor-
pos em diálogo, pondo em crise os papéis de gênero, raça, classe
e outros marcadores, que ditam quem são as(os) sujeitas(os)
autorizadas(os) a falarem e pensarem sobre a Educação no Brasil.
As cartas pedagógicas feministas cutucam a ferida da educação
colonial e diz que “o lixo vai falar, numa boa” (Gonzalez, 2020,
p. 78). Nesse sentido, a mulher é vista apenas como a professo-
ra de educação básica, não que isso seja algo menor, e sim algo
amplo e rico, mas aqui criticamos a imagem da mulher associada
ao cuidado como papel secundário. Esta carta vai na contramão
desta ideia, é um convite emancipatório no campo da educação,
apontando o componente “Pedagogias Feministas e Epistemo-
logias Decoloniais” como uma encruzilhada potencializadora
desta emancipação feminista. Este espaço é inaugurado com
maestria para abrigar as pautas banidas e criminalizadas por leis
normatizadoras na Educação Básica e criar rodas que conectem
outros saberes e a outras pessoas que discutem o que (não) está
na programação escolar.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Os exercícios vividos em cada encontro semanal do componente
trouxe para nós um constante fazer em vento, em roda e gira, pensan-
do em como as nossas vivências e atravessamentos possam ser divi-
didos com outras. A todo tempo falávamos: “Como seria bom se mais
pessoas pudessem estar aqui”. Esse sentimento se manteve aceso e
a motivação surgiu: “Por que não escrever uma carta-convite?” Uma
correspondência que tenha verossimilhança com o vivo e o provocado
pelas conversas e escutas, fugindo da lealdade de sentimento que é
inefável, mas se ater ao abraço e encanto de trilhas marítimas vastas,
calmas e revoltas, experiências compartilhadas que não se podem se
manter isoladas e sim partilhadas com outras muitas e mais. É por
isso que escrevemos, e como afirma Chiziane (2013, p. 201) queremos
“quebrar o silêncio, para comunicar-me, para apelar à solidariedade
e encorajamento das outras mulheres” para assumirmos outras rotas
determinadas por nós mesmas.
Nosso objetivo aqui é convidá-las a viver a intensidade, aco-
lhimento, sororidade, aquilombamento das giras do componente
curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”.
E o verbo não podia ser outro para este componente a não ser
viver, pois as giras são as nossas vidas desnudas, sendo acolhidas
e abraçadas, fazendo uma discussão teórica encarnada proposta
por Messeder e Nascimento (2020). Ao longo dos encontros, muito
pouco poderia ser previsto do que seria discutido, somente os tex-
tos disponibilizados anteriormente. Estávamos sempre ansiosas
com o imprevisto de cada momento e como cada troca nos retroa-
limentava para manter a batalha pedagógica da resistência. Cada
segunda-feira era o momento de aquilombar, de ouvir estratégias,
experiências e nos nutrir de conhecimento para “aprender a ler”
uma língua que comunique nosso corpo-presença-crença.
Os encontros foram todos pertinentes, interessantes e, princi-
palmente, provocantes e nos convoca a outros saberes-fazeres do-
centes, para questionar o que está posto: por que está posto? Quem
colocou? Por que estamos seguindo? Ao viver este componente é
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
dizer “não” para as normatizações do ensino que consequentemente
oprimem e mantêm os papéis de subalternização de pessoas/grupos
que não se veem representadas(os). Nas giras irmanadas gritamos
que tipo de educação não desejamos mais, que não seremos agentes
passivas, que não nos apagaremos a nós e aos nossas/nossos, as
giras dos componentes foram e são emancipatórias.
Aos poucos, usando da sabedoria ancestral como quem quer
equilibrar o tempero em uma comida, vamos colocando uma
pitada do aprendizado das giras do componente, do MPED e do
resgate aos ensinamentos das nossas mais velhas. Levamos para
o chão da escola, acolhimento às narrativas das/dos estudantes,
questionamos a normatização e nos embravecemos diante da
docilização euro-hetero-cristã que as escolas insistem em man-
ter. Depois deste componente, nossos estudantes encontraram
professoras-confluentes, ainda mais militantes e o sistema por
outro lado uma pedra no meio do caminho.
Muitos encontros foram pertinentes e interessantes e muito
foi aprendido, o que traz para esta carta ancorada nas reflexões
conversadas na roda com as convidadas Altamira Simões e Vita-
lina Santos com o título “Pensamento de Mulheres Negras”. O
feminismo negro se faz presente intensamente na vida dessas
professoras através da luta dos movimentos sociais e das asso-
ciações de bairro, das heranças familiares, da universidade e dos
acessos através de pesquisas e da própria mídia.
Maria Firmino dos Reis, Maria Carolina de Jesus, Lélia Gonza-
lez, Maria Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Angela Davis,
Patrícia Hill Collins, Sueli Carneiro, Karla Akotirene, Joice Berth,
bell hooks, Vilma Reis,Nilma Lino Gomes, Petronilha Gonçalves e
Silva são alguns nomes, assim como Dona Maria, Dona Zefa, Dona
Silvina e tantas avós, muitas das nossas que praticaram a rebeldia,
contribuindo para a nossa continuidade e presença, alimentando
autoestima, perseverança e inspiração. Esse encontro-aula, de
número 06, com as convidadas citadas acima, foi um espaço para
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
dividir acertos, ganhos, de ser acolhida para compartilhar dores e
decepções, desse cenário da Educação Básica, pensando a respeito
de direitos educacionais e justiça social.
O diálogo desta sexta roda ilustrava as diversas facetas do
caminhar de mulheres negras em solo baiano, as micropolíticas
realizadas no campo educacional e social pensando em ações que
abordem a educação por um viés étnico-racial e na promoção de
políticas públicas que assegurem a saúde desses corpos nesse
processo garantam avanços e acompanhe possíveis e intencionais
negligências.
Imagem 3 – Card da aula Pensamento de Mulheres Negras.
Fonte: Grupo do WhatsApp, 2023.
Vitalina Silva entrou na roda apresentando-se como militante
dos movimentos educacionais e professora na cidade de Camaçari
e dizendo, na sua fala, “precisamos criar espaços para nos ouvir e
criar instrumentos de resistência e enfrentamento”, reivindicação
rotineira das educadoras que são pouco acolhidas. Falando da sua
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
participação em fóruns e movimentos que reforçam um cenário
educacional mais equânime e disruptivo. A fala inicial de Vitalina
foi efervescente para pensar em quais caminhos e posições esta-
mos adotando, para deixarmos de contribuir para um currículo
colonizador e para o fundamentalismo, já que a educação tem um
papel importante de mudança dessa engrenagem conservadora
e massacrante.
A fala da professora Vitalina convida a uma decisão, para um
passo de revolução das metragens e colonizações de nossos corpos
e mentes. Chiziane também nos anuncia quando comunica que
“se as próprias mulheres não gritam quando algo lhes dá amar-
gura da forma como pensam e sentem, ninguém o fará da forma
como desejam” (2013, p. 202), convidando para que nós mesmas
reclamemos o lugar das nossas pautas, omissões e riscos.
Altamira Simões, CEO Ayomidê Yalodê, apresentou-se como
conselheira municipal de saúde, vivente de lutas diárias para corpos
pretos abastados e dando voz às conquistas como o Sistema Único
de Saúde, o SUS. Assim, no texto “O SUS é uma conquista do povo”
indicado no componente, Altamira Simões diz: “é resultado da luta
do movimento sanitarista, do movimento negro e de mulheres;
enfim, de todos os movimentos sociais que atuavam a favor de
uma saúde que trouxesse princípios como equidade, integralidade
e universalidade” (2020, p. 01). Uma mulher que afirma “que gosta
de uma escrita livre” apesar de se referir às vivências acadêmicas
traumáticas por não aceitar o conhecimento do candomblé, por
exemplo, como modo de vida menor do que o científico.
A fala de Altamira abraça e convida aquelas pessoas que não
se sentem capazes na academia, como muitas de nós já nos sen-
timos assim, acreditando que ser pesquisadora era se ausentar da
pesquisa, omitir sentimentos, sensações e outros sentidos que não
coubessem numa tabela, julgados como inválidos e incentivados
a ignorância. Muitos corpos de mulheres no meio universitário
são insultados e desafiados por minutos pela ótica androcêntrica.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Contra essa correnteza, Altamira segue nos irmanando e
isso muito encanta. Ela afirma que “não estou aqui para contar
corpos e sim falar de prevenção”, somatizando o que todas nós
almejamos porque “o racismo vai criar novas tecnologias”, fala
que Altamira também reforçou nesse encontro, alertando para a
vigilância contínua.
Ter esse cenário proposto e ver potências em espaços de poder
reafirma esse espaço para falar de nós, o Xirê para evocar saberes
circulares, que aqui escrevemos e nessa gira nos apresentaremos
mais à frente, afirmando o aprendizado que Lélia Gonzalez (2020)
nos presenteia, afirmando que pessoas pretas precisam ter nome
e sobrenome e ocupar espaços enquanto gente.
Quiseram uma mulher ignorante.
Eu já tinha lido o suficiente pra me proteger.
[...]
Apostaram que eu teria um subemprego.
Eu vislumbrei ir mais distante.
(Nascimento, 2014, p. 96-97)
Inspiradas em Anzaldúa, “a escrita é uma ferramenta para
penetrar naquele mistério, mas também nos protege” (1981, p.
232) e nos fortalece para seguir e não sucumbir. Estamos marcadas
nesta escrita a várias mãos, pensamentos, formas de viver e estar
no mundo. É um desafio o ato de escrever? Talvez, mas vamos
experienciar esta aliança contingente que nos eleva, nos une
para pautas que nos interessam como defende Butler (2018), já
que semanalmente desafiamos a lógica individualizante de viver
na universidade e nos acolhemos, nós cuidamos, respeitamos os
silêncios e falas de desabafo. Apresentar-nos aqui é mais que rito
da escrita, é “o que nos valida como seres humanos, nos valida
como escritoras” (1981, p. 233), e assim faremos a seguir.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Nara Paixão Sacramento, mulher preta, mãe solo, soteropo-
litana, professora de Inglês no Recôncavo Baiano, filha de pro-
fessora e industriário, que desde sempre foi impulsionada a ser
aquilo que não caberia nas caixas, mesmo sem que os seus mais
próximos imaginassem. Mulher expressiva, justa e generosa, mas
“oito ou oitenta” em segundos, a famosa “braba”. Nara, a cidade do
Japão ou “aquela que aproxima”, se apresenta como uma pessoa
dedicada a agir com respeito, zelo e acolhimento com as outras.
Aquela que anda acompanhada com o otimismo e em qualquer
travessia, com sua preta velha, saudando os mais velhos ancestrais,
principalmente os menos visíveis.
Rosana Mercês, mulher, branca, natural de Santo Antônio de
Jesus - BA, que encontrou pertencimento na calmaria do Capão -
Chapada Diamantina, mãe de Frida, apaixonada pelas leituras e
coordenadora na escola do Capão. Amante de conversas, diálogos
e trocas, uma eterna descobridora de horizontes próximos de
forma humilde, em constante diálogo. “Zana” como é chamada
carinhosamente, segue pensando numa Educação Básica menos
fragmentada, mais zelosa e comprometida com as suas e os seus
estudantes do Capão, local bastante rico e inspirador e no seu
fazer pedagógico resiste aceitando cuidado e outras energias
pedagógicas para a mudança.
Rozane da Conceição Silva Costa, mulher, negra, baiana, eu
sou dali da beira do Rio do Paraguaçu, da cidade que pulsa no
ritmo do reggae da família Gomes e do samba de roda, sou de São
Félix - BA, mas trago o Recôncavo no coração. Sou pedagoga por
formação, atuo na Educação Infantil e é trabalhando com os mais
novos que me conecto com o passado, com as rodas de contação
de história da minha avó, com a agitação das rezas de São Cosme,
todo dia no meu trabalho é dia de Erê.
Escrever é poder. Estamos dispostas a disputar este espaço
que nós lançamos a escrever, nos despir, tomar a palavra para
nos anunciar, como mulheres nordestinas, baianas, professoras,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
estudantes e inconformadas com as nossas realidades, buscamos
nos afetar e afetar as vidas das pessoas com nossa prática.
Conceber uma carta é uma reverência, um ato Sankofa1, que
colhemos aquilo do que as nossas semearam e lutaram para que
hoje possamos ocupar espaços de poder e decisão na academia.
É um ato contra uma hegemonia que sempre esteve interessada
em esconder outras verdades (Kilomba, 2019) daquelas narradas,
uma delas é que somos mulheres de realeza, produtoras de co-
nhecimento e sementes de mudança.
A epistemologia antirracista embute práticas de mulheres
militantes (Liston; Backes, 2023) para um ativismo de questionar
o status quo com o simbolismo de movimentar outra página, de um
novo caminhar, com escrituras que só serão possíveis no momento
que abandonamos os manuais e nos permitirmos nos perder na
imprevisibilidade (Ostetto, 2019) que a vida nos presenteia. Muito
já foi dito sobre nós, por outros, como deveria funcionar esse ser-
-sendo a todo instante.
Essas denominações grotescas, nós já fomos apresentadas e
respondemos com: Não! Dispenso o “tão pouco” da imensa igno-
rância dominante que seus olhos detêm. Mares, tormentas, gran-
dezas e longitudes. Essa reviravolta é constante, como combustível
para um corpo que se apresenta nesse porvir. Essa transformação
vem muito das trocas e vivências dos encontros do componente
“Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”, que es-
tamos sempre imaginando aquilo que não se mede antes de cada
encontro, porque sempre uma nova sensação é despertada, uma
fala que arrepia, um corpo que aparece e resplandece nessas rodas
e gingas, como o encontro com as professoras Vitalina Santos e
Altamira Simões que desenham um momento magistral.
1 “Nunca é tarde para voltar e apanhar o que ficou atrás. Símbolo da sabedoria de
aprender com o passado para construir o futuro.” (Nascimento; Gá, 2009, p. 27)
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Tá na hora de reagir
Entender que somos gigantes
Ocupar o nosso lugar
Acolher nossas almas
Nunca é tarde pra replantar
Nossa terra é de amor infindo
A semente vai germinar
É assim que a vida é
(Ferro, 2019, s/p)
Dessa maneira, não se pode deixar essa experiência ecoar
isoladamente e nesse pensamento de nós, usamos esse momen-
to para te convidar para essa roda - que ginga, pulsa, comove,
atravessa, afeta e eleva -, que precisa se manter circulante e con-
taminada por várias mãos, sem comparações, hierarquização de
saberes ou julgamentos. O componente “Pedagogias Feministas
e Epistemologias Decoloniais” é para você!
Permita-se girar essa chave e viver experiências, trocar e
se acolher nessas descobertas e no compartilhamento desses
saberes “construídos em movimentos sociais” (Gomes, 2011, p.
137) e acadêmicos também. A roda gira para oportunizar outras
vivências, que crescemos e nos deparamos com outras formas de
ser no mundo, com outras oportunidades e criatividade.
Aqui é só o começo de muitas narrativas de nós, de reafirma-
ção de um corpo que pode se tornar acadêmico, digno de qualquer
lugar. Sinta-se mais do que convidada nessa experiência, sua
cadeira já está reservada, junto com abraços, olhares, risos, cho-
ros, gozos e arrepios. Saiba que esse lugar é de aquilombamento,
com respeito, cuidado, divergências e como trampolim para ou-
tras arruaças como quem sabe, uma seleção para o Programa de
Pós-Graduação em Educação e Diversidade da UNEB, ampliando
caminhos de pesquisadora. Tudo é possível!
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
E para selar o início desse movimento, precisamos realizar
uma cerimônia, uma consagração. Leia essas frases e realize os
movimentos, em seguida:
• Feche os olhos;
• Respire;
• Sinta seu redor;
• Experimente os cheiros, os sons e as sensações, ouvindo o som
da sua respiração;
• Agradeça por tudo vivido;
• Celebre o que virá, estando aberta para o novo e na esperança
de dialogar com o que transformará seu olhar para sua volta;
• Respire fundo e solte o ar;
• Agora, abra os olhos devagar;
• Olhe esta carta e experimente um sorriso, rememore esse
pacto no seu consciente;
• Respire, inspire e se abrace.
Salve cada instante desse momento, pois esse é um pacto
de sensações estabelecido consigo mesma, assumindo trilhar
essa jornada, conviver a cada instante, dialogar e aprender. Saber
que essa jornada é sua, e que a partir de agora, você decidiu, (re)
começar. Assine esse elo e seja-bem-vinda, com todos os hifens
conectados no saber de que muito de maioral é imaginado e é
desejado a você nesta carta-convite, ainda mais sacramentada
com as sábias palavras de Ryane Leão (2019).
todas as revoluções
que eu desejo
começam em mim
(Leão, 2019, p. 7)
______________________________________________________
Sua assinatura linda!
241
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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REFERÊNCIAS
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Janeiro, Civilização Brasileira, 2018.
CHIZIANE, Paulina. Eu, mulher... por uma nova visão do mundo. Revista do
Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da UFF. V. 5, n. 10, 2013.
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ferro/germinar/ Acesso em 29 de nov. de 23.
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Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.
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e modelagens no saber fazer das ciências. Salvador: Edufba, 2020.
242
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
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ODARA, Thiffany. Pedagogia da Desobediência: Travestilizando a Educação.
Salvador, Editora: Devires, 2020, p. 130.
243
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA-POESIA PARA TODES PROFESSORUS
DA REDE PÚBLICA DE ENSINO
Yasmim Araújo do Nascimento
Estefane Mendes da Silva
Queridos/as/es Professores/as/us da Rede pública de en-
sino, nós (Yasmim Araújo e Estefane Mendes) gostaríamos de
endereçar a vocês esta carta-poesia, movida pelas discussões do
componente curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias
decoloniais”, do Mestrado Profissional em Educação e Diversida-
de - MPED/UNEB, como alunas especiais. Temos como objetivo
orientar/movimentar as práticas pedagógicas através da poesia,
a fim de inquietar o currículo, desobedecer às nossas escolas,
fundamentadas ainda nos moldes coloniais, e fazer rebuliço nas
mentes e corações de nossos alunos/as/es. Embora nossa carta-
-poesia esteja voltada para todos/as/es professores/as/us da Rede
Pública de Ensino, queremos alcançar de forma mais esperançosa
as professoras lésbicas, mulheres que amam outras mulheres e se
sentem invalidadas no corpo escolar/ descentradas das conversas
corriqueiras na sala dos professores e confraternizações eventu-
ais/ que, muitas vezes, é chacota do porteiro e secretário por não
performar feminilidade, ou performar a ponto de parecer absurdo
não heterosexualizar. Mas inspiram diferença e rebeldia grandiosa
no meio fio da sala, construindo referências.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
enquanto corpo deslocado no mundo
que beira à margem
à quina
o meio fio
descentrado do lugar de origem
para as periferias
recuo à esquerda
pelas extremidades
das coisas
enquanto corpo acidentado
pelas avenidas identitárias
fragmentam o eu
espero socorro
epistemológico
é sempre discursivo
nunca biológico
esse corpo desviante
da norma
intercepta histórias e
estórias
nas encruzilhadas de oferendas
ancestrais
recurso pioneiro
onde corpo se desfaz
em descontinuidades
rotas fraternas
reparando as arestas
coloniais
enquanto corpo violentado
pelas rotas ocidentais
desaguo subjetividades
a fim de tornar me sujeito
destas embarcações (Poesia Autoral, Araújo, 2023).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Nos sulearemos a partir de algumas rodas-gingas oferecidas
pela disciplina, trazendo o recorte de duas rodas em específico,
pela proximidade e conexão com as ideias compartilhadas. Mas
antes de darmos início a essa escrita reflexiva, gostaríamos de
dizer que respeitamos a docência, partindo desse lugar também
de professoras lésbicas da rede pública, entendendo-a como fonte
inesgotável de cara coragem, de ebulição dos conhecimentos e
desconhecimentos, de força geracional e intuitiva para aprender
e desaprender infinitas vezes.
Eu, Yasmim, somando a força da palavra com a solidificação
dela, referencio Audre Lorde (2019), ao dizer que precisamos
transformar o silêncio em ação, desejando que essas palavras não
apenas fixem em suas mentes e corações, mas que nos levem a
transgressão completa.
Eu, Estefane Mendes, rememoro e referencio Marielle Franco
(2018), ao dizer que “Não Seremos Interrompidas!” Nossa voz,
lésbica, negra, precisa ser ecoada cada vez mais, não toleraremos
interrupções de corpos misóginos, machistas, racistas, que não
sabem ouvir e que perpetuam desigualdades.
Escolhemos a linguagem poética porque acreditamos que a
poesia é o cerne da alma, ela expande nosso potencial de trans-
formação, faz movimento voluntário de enxergar por outras
óticas, mais encante, onde mundos possíveis dialogam. Esses
mundos são os nossos, que tateiam o chão da escola, mas também
é atravessada por outras vigas, vigas de ferro, fibras de sisal, ou
incineradas pelo fogo:
todas nós temos uma história com o fogo!
voluptuosas
degenerativas
transcendental
nascida de parto natural
mãe solo
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
de forte ligação com a terra
soube desde mais nova
a quem meu coração se destina
e de onde vem toda revolta
quem sustenta minha história
minhas labutas
é na curva que o vento faz
no que a memória traz
ainda que cheia de recortes
que eu vejo uma mulher forte
de pele escura, e cocar
recitando poesia
atravessando
meu andar
cantando iorubá
sussurrando segredos de sobrevivência
por onde quer que eu vá (Poesia Autoral, Araújo, 2023).
Evocada pela poesia, gostaríamos de começar introduzindo
esta carta tocada pela roda-ginga intitulada “Pensamento de Mu-
lheres Negras”, que fez nosso coração bater mais forte, entendendo
o contexto majoritariamente composto por alunas/os/es negras/
os/es. Ainda, mergulhadas em um currículo tradicional, que mata
simbolicamente o dialeto, nosso pretoguês, e nosso sotaque ar-
rastado, marcado pela geografia sisaleira e pelos assentamentos
e quilombos de Conceição do Coité.
Recém-graduadas e sedentas para atuar onde a diferença fos-
se agenciada de forma política e redentora, fortalecidas por umas
referências, ausentes de outras, caminhamos sob solo duvidoso,
até nosso encontro com o MPED. Encontro esse, que revolucionou
nossos olhares direcionando-os para as margens, para as quinas,
fazendo recuo à esquerda, descentralizando muitas coisas, a fim
de construirmos uma subjetividade radical e potente.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Quando retornamos à docência, ainda efusivas pelas teorias
acadêmicas, muitas vezes, sentimos o chão sob nossos pés rachar,
o teto onde paira nossas cabeças estremecer, as paredes desmoro-
narem, e só aí nos damos conta que o chão não é feito de concreto,
podemos perfurar. Os nossos alunos/as/es já fazem essa estrutura
ceder com seus corpos-vidas, marcados pelas experiências coti-
dianas do racismo, do machismo, da gordofobia, da lesbofobia,
da transfobia e outras opressões acumulativas que parecem nos
engolir. É como estar na boca do lobo e ainda assim o desafiar.
Essa tem sido nossa resistência enquanto professoras lésbicas!
Por muito tempo, diante dos nossos atravessamentos en-
quanto professora/ negra e professora lésbica nos questionamos:
Como socorrer uma vítima, se nós ainda estamos acidentadas?
Se não fomos amparadas e a ferida ainda tem sangramentos?
Aprendemos nesse encontro a cura coletiva, podemos vociferar
juntas, professoras lésbicas e alunos/as/es. Afiar a ponta do lápis,
de punhos e peito inflame vamos narrar caminhos, forjar estraté-
gias, orientar os reparos, para erradicar os danos, descentralizar os
cânones e ajudá-los a protagonizar as leituras e literaturas, narrar
em primeira pessoa, situar as referências, validar a diferença como
potencialidades inegociáveis para a branquitude:
primeiro evocaram silêncio
à violência epistemicida
censuraram a fala
interromperam a escrita
julgaram ser rebuscada
jargão, fonte desconhecida
enquanto o português
não valida a lírica do gueto
porque é colonial demais
o pretoguês
é língua legítima
eu peço licença
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
aos cânones
pra outras vozes ressarcir
e teorizar intelectualmente
das margens pro centro
essas contra narrativas
que para além da prosa
é também poesia
fala a partir de
um lugar
de agonia
de quem quer ser entendido
enquanto sujeito ativo
no processo
não quer ser mais objeto
de pesquisa
dentro de uma visão essencialista
que reduz vidas
e minimiza subjetividades
escamoteando-as
e colocando-a em papel de outridade
mas que bom que já começamos a escutar
a verdade
essas vozes
não mais distantes
elas beiram em nossas estantes
e nas instâncias de poder
já alcança
e entende as possibilidades de ser tantas
coisas em um ser só
porque essas experiências outras
contam inverdades
que a sociedade insistiu em sustentar
assertivamente
isso é só pra dizer que daqui pra frente
a gente sabe que conhecimento validar (Poesia Autoral,
Araújo, 2023).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Convidamos vocês a beberem da fonte desse recurso pioneiro,
que é o pensamento de mulheres negras alinhado às pedagogias
feministas. Porque de fato, foram as mulheres negras duplamente
feridas pelas avenidas identitárias, que articuladas frente a es-
sas opressões, pensaram nessa ferramenta de cuidado que hoje
chamamos de interseccionalidade. bell hooks (2017) nos ensina
que nenhuma teoria que não possa ser usada em uma conversa
cotidiana não pode educar um público, por isso a importância de
uma pedagogia popular, preta, rural, afetiva. Por isso educar atra-
vés de uma líder quilombola, de uma mãe solo, de uma mulher de
terreiro, de uma lésbica, de uma mulher trans, de uma anciã, uma
artesã, uma mestra da capoeira, é sacudir o alicerce da educação.
Entendemos que as nossas experiências e a de nossos/as/es alunos/
as/es não podem partir unicamente de um repertório, partindo
do pressuposto que somos constituídos pelas amefricanidades.
Queremos que vocês se permitam refletir sobre suas práticas
pedagógicas, cativar novos olhares, construir juntos/as/es um
ambiente escolar de acolhimento e de amorosidade. Também, se
faz necessário, pensar sobre qual é o seu conceito de docência,
como vocês enxergam o ato de lecionar.
A intenção é enxergar a escola como um feixe de palha, onde
nós só precisamos acender/ fogueirizar. Apegamo-nos às palavras
da professora Nilma Lima Gomes, palavras que fizeram eco em
nossas mentes, respondendo nossos anseios, aqueles mais dire-
cionados à falta de respeito e ética da gestão escolar, que descre-
dibilizam nossos corpos docentes e se camuflam na sombra dos
princípios progressistas, mas destilam ódio e preconceito gratuitos
nos corredores e reuniões extraescolares, a fim de menosprezar
nossas práticas. Gomes (2010) vai nos dizer que não basta só o
reconhecimento do Outro, mas precisamos reconhecer esse Ou-
tro com o direito de viver a sua diferença e ver sua cultura e sua
identidade respeitadas tanto no cotidiano das escolas e dos seus
currículos quanto na política educacional.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Aprendemos bastante nessa roda-ginga e gostaríamos de
sugerir a vocês repensarem nossas práticas e aderirem às novas
possibilidades, como, por exemplo, “A sociologia das ausências
e emergências”, na qual consiste em transformar os educandos
e educadores “impossíveis”, em corpos possíveis. Transvertendo
ausências em presenças.
“As rosas da resistência nascem no asfalto. A gente recebe
rosas, mas vamos estar com o punho cerrado falando da nossa
existência contra os mandos e desmandos que afetam nossas
vidas” (Marielle Franco, 2017, Web).
Nesta carta-poesia, queremos marcar o nosso lugar enquanto
Professoras Negras Feministas e Lésbicas. Nosso objetivo é construir
coletivamente práticas emancipatórias, libertadoras e que represen-
tem nossos corpos nos espaços docentes. Escrevemos com paixão
em nossos corações, pulsando alegria pelo caminho que trilhamos
até aqui e também esperançosas, pelo que ainda está por vir.
Em mais um encontro (entre os muitos), tocante e potente,
gostamos muito do que foi construído na roda intitulada Pensa-
mento Lésbico. Refletimos sobre a colonialidade da sexualidade,
envelhecimento de mulheres lésbicas e práticas educativas de
professoras negras lésbicas.
“O que é ser mulher? O que cada uma de nós já deixou de
fazer ou fez com algum nível de dificuldade pela identidade de
gênero, pelo fato de ser mulher?” (Marielle Franco, 2015, Web).
O questionamento sobre o que é ser Mulher vem muito forte
em nossa sociedade e ainda mais, para os corpos de mulheres
negras e lésbicas. O processo de invisibilização se apresenta de
maneira muito ferrenha. E na Educação não é diferente.
Os corpos docentes negros-lésbicos além de taxados e
demarcados como “anormais”, ainda são estereotipados como
incapazes de terem uma relação afetiva, respeitosa e digna. As
mulheres idosas lésbicas carregam consigo a luta por uma justiça
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
epistêmica, elas que negociaram tantos espaços para que em nossa
contemporaneidade possamos ser mais insurgentes em nossas
trajetórias identitárias.
Não temos como não citar bell hooks e seu livro Ensinando a
transgredir - a Educação como a prática da liberdade. hooks nos lembra
que a educação tem o poder da conexão, conecta a vontade de saber
com a vontade de se tornar. Desse modo, os entrelaçamentos no chão
da escola, não podem deixar de ter relações com a vida em sociedade,
com a diversidade, o respeito e principalmente a liberdade.
hooks também nos diz que “a aprendizagem é um lugar onde
o paraíso pode ser criado” (2017, p. 30), nos fazendo questionar,
quais são os paraísos que estamos criando? Ao discutirmos sobre
as práticas educativas em nossa sala de aula, precisamos entender
a necessidade de formação, a busca por novos conhecimentos e
reconhecendo nosso lugar, enquanto mulheres negras e lésbicas,
exercendo sua função pedagógica docente.
Dessa maneira, a gente segue resistindo, o tempo todo. A
gente segue ativas, militando e fazendo discussões interseccio-
nais. Porque em nós, o esperançar é vívido, sabemos que a luta
não pode parar.
Chimamanda Adichie (2019) nos diz que as mulheres que
estão nos espaços de poder, de fato, necessitam abraçar, acolher e
construír com outras mulheres. E é assim que desejamos construir
juntos/as/es. Lado a lado, ocupando cada vez mais os espaços de
poder e fazendo pequenas revoluções por onde chegamos.
Por fim, finalizamos também com poesia, falar de amor, falar
dos corpos LGBTQIAP+, falar de liberdade! Esperamos que essa
carta-poesia aqueça seus corações, querides professorus. E convi-
damos vocês para lutar junto conosco, a luta não se faz sozinha;
com aliados/as/es, somos mais fortes e conseguiremos trilhar uma
educação emancipatória e livre de preconceitos. Vamos juntos/
as/es transgredir?
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
o afeto te afeta e te faz um ser melhor
estar com quem se ama
deixa mais leve a trama da vida
do amor à morte
da alegria a tristeza
do caos a lama
a sociedade misógina e patriarcal
querem proibir o nosso direito de amar
pan, gay, queer
cis, trans, lesb ou bi
somos resistência de corpo presente
NÃO ACEITAREMOS SEUS RÓTULOS!!!
Ditadores, defensores da “Família Tradicional Brasileira”
POIS BEM.
ABRAM as portas dos armários
que vamos passar pela avenida, sorrindo, espalhando con-
fetes e fazendo Carnaval (Poesia Autoral, Mendes, 2023).
Abraços Afetivos, com amor
Ester e Yas
11.12.2023.
REFERÊNCIAS
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Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo, 2013.
LEMOS, Ana Carla da Silva. Movimentos de lésbicas de Pernambuco: uma
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Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2019.
MESSEDER, S. A. Memórias e cenas narradas sobre a infância e as relações de
gênero na linha de vida da professora universitária e da pesquisadora encarnada.
Revista Periódicus, 1(9), 2018, p. 122-135
SARDENBERG, Maria Cecília Barcellar. Da crítica feminista à ciência a uma
ciência feminista? In: COSTA, Ana Alice Alcântara; SARDENBERG, Maria
Cecília Barcellar. (Org.) Feminismo, Ciência e Tecnologia. Salvador: REDOR/
NEIM-FFCH/UFBA, 2002. p. 89-120.
254
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
SILVA, Zuleide Paiva. Sapatão não é bagunça: estudo sobre as organizações
lésbicas da Bahia 2016. Tese (Doutorado em Difusão do Conhecimento) - UFBA,
IFBA, UNEB, UEFS, SENAI-CIMATEC, LNCC, Salvador - BA, Brasil, 2016.
SILVA, Zuleide Paiva; ARAÚJO, Rosangela Janja Costa. Pensamento lésbico:
uma ginga epistemológica contra hegemônica. Revista de Estudos Feministas. V.
29, n. 3, Florianópolis, 2021.
255
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA ABERTA: FEMINISMOS NO TEMPO
PRESENTE – HOMENAGENS AO PASSADO E
LUTAS PARA O FUTURO
Ana Paula Neves Lins
Andressa Ferreira
Gabriela Carneiro Maciel
“Pés, por que os amaria, se tenho asas para voar?”
(Frida Kahlo, 1953, não paginado).
Escrevemos esta carta para vocês, mulheres do passado, que
vieram antes de nós e lutaram para que a nossa condição, nosso
espaço nesse mundo fosse melhor, para que nossa luta e tantas
outras lutas humanitárias evoluíssem. A todas vocês, prestamos
toda homenagem e toda honra por meio desta carta. Aqui, mos-
tramos o quanto as suas lutas nos permitiram continuar lutando,
desconstruindo e construindo humanidade.
Vocês, mulheres do futuro, que agora no presente são grandes
meninas, nossa intenção é escrevê-las para situá-las do nosso
presente, da nossa luta. Esperamos que esta carta impulsione as
lutas futuras, as inspire a continuar essa jornada que não é fácil,
mas é por meio delas que podemos modificar nossa realidade e
garantir que a sociedade se torne cada tempo mais humana.
Escrevemos esta carta como documento de finalização do
componente curricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias
Decoloniais”, desenvolvido no Mestrado Profissional em Educa-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ção e Diversidade - MPED, da Universidade do Estado da Bahia. A
proposta da atividade surgiu como uma forma de transpor ideias,
sentimentos e inquietações desenvolvidas durante o percurso
das nossas gingas. Acreditamos que este seja o papel de uma
carta pedagógica feminista: inquietar, provocar , mas, ao mesmo
tempo, acolher e encorajar. E a atividade proposta também foi de
extrema importância para (auto)reflexão e, principalmente, por
nos apresentar outras possibilidades de escritas.
Ao continuarmos a apresentação, precisamos também enun-
ciar quem somos, não? Então, começando por Gabriela, que é uma
mulher nordestina, baiana, heterossexual e branca, que aprecia
a literatura e as diversas formas de arte, e a partir desse lugar
encontrou a sensibilidade, encontrou um lugar para traçar um
olhar mais sensível e poético sobre a vida. Já Ana Paula é uma
mulher nortista, de Belém do Pará, bissexual, branca e que tem
uma intensa sede de ir além. Que faz dos conhecimentos do dia
a dia, parte essencial para o florescimento de uma eterna apren-
diz. E Andressa é uma mulher branca, heterossexual e moradora
do Estado de São Paulo, que busca em Lélia Gonzales e tantas
outras autoras inspiração para aprender com e entre mulheres.
Nós três fazemos parte da classe trabalhadora, enxergamos nas
lutas sociais a importância para a emancipação de todas, todes
e todos.
E é a partir dessa pluralidade de corpos, lugares e pensamen-
tos que escrevemos esta carta. E foi a partir dessa mesma diver-
sidade que tanto dialogamos sobre as rodas de conversas e todos
os momentos que nos tocaram em sala de aula. Seja nos debates
sobre transfeminismo, sobre feminismo negro, sobre feminismo
e educação todos esses se somaram para que pudéssemos nos
inspirar na escrita e essas linhas.
As gingas realizadas com as companheiras e também com-
panheiros participantes nos fizeram muito pensar nas mulheres
de luta, revolucionárias, que nos antecederam e nas que virão
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
depois de nós. Pois se hoje nós, mulheres, podemos votar ou
até mesmo cursar um ensino superior, é porque muitas outras
mulheres lutaram pela garantia dos nossos direitos. E as lutas
de hoje servirão também para o nosso amanhã, para aquelas que
vêm depois de nós.
Assim como a Geografia, consideramos espaço e tempo como
“um conjunto indissociável”, refletimos sobre como o que somos
hoje é a continuidade de muitas que já se foram; e de como no
amanhã também tem parte do hoje.
E quando falamos sobre feminismo? Ou seria melhor femi-
nismos? As lutas das mulheres (sim, o plural é necessário) que
atravessam espaços-tempos muito nos instigam por esta também
ser a nossa própria luta, que atravessa a nossa experiência de ser-
-existir nesse plano.
Desse modo, vejo que na própria matéria cursada, uma re-
volução também é feita. Ocupar espaços acadêmicos com debate
sobre gênero e feminismos, bem como outras epistemologias
para além das canônicas, também é uma revolução. Ver mulheres
negras, LGBTQIAPN+, da classe trabalhadora ocupando espaços
acadêmicos, também é uma revolução. Queríamos que todas que
vieram antes soubessem disso: passo a passo, construímos outros
caminhos, e vocês foram fundamentais!
Lembramos que, em uma das primeiras gingas feministas,
durante a sua apresentação, a Profa. Amália citou a seguinte
frase: “meu compromisso dentro da universidade é com a classe
trabalhadora”. Aquilo ecoou por dias em nossas cabeças! (Re)
pensar nossas ações na sociedade, bem como os compromissos
que temos com muitas por ocupar determinados espaços, é algo
mais do que necessário: indispensável.
Dito isso, vemos nas pedagogias feministas possibilidades
para enfrentarmos e desvendarmos muito sobre nós de forma
plural - por um plural não excludente, mas sim somatório, em que
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
os atravessamentos dialoguem, em que as propostas de dinâmicas
nos ajudem e nos ensinem e não nos eliminem e meramente nos
classifiquem.
Queridas, ao longo desse componente, tivemos ainda mais
noção de que a nossa revolução é cotidiana e transpassa qualquer
ideia delimitada de espaço-tempo; e quando falamos das pedago-
gias feministas, não podemos deixar de compartilhar com vocês
este excerto que muito me instiga:
Assim, o desafio das pedagogias feministas é bor-
rar o conhecimento historicamente autorizado e o
consequente domínio político firmemente situado
nas mãos de homens brancos, cristãos e heterosse-
xuais. Nessa perspectiva, essas pedagogias na sala
de aula, no pátio, nos corredores da escola apontam
outros olhares, outros horizontes. Apontam para
as encruzilhadas do ser/saber no “novo mundo”. A
proposta poética/engajada das pedagogias feministas
se pretende como mais uma possibilidade política de
enfrentamento de práticas racistas, sexistas e LGTT-
-fóbicas no intento de reinventar as relações para o
bem-viver em sociedade (Ferreira e Silva, 2021, p. 92).
Outro ponto fundamental de aprendizado nos últimos meses
é que, muito mais que uma alternativa ao “cistema” de ensino
em sala de aula, as pedagogias feministas também repensam as
várias práticas de socialização e aprendizados, até mesmo em
uma plataforma online, como foi em nosso caso. Mas falamos
também de aprendizados diversos, que englobam corpos diver-
sos, experiências diversas e que todas são importantes para a
compreensão plural do aprender-sensibilizar. Falamos sobre
sensibilizar, pois concordamos com Paulo Freire (2019, p. 127)
quando o mesmo diz que “Educar é um ato de amor, e por isso,
um ato de coragem”. Concordamos tanto que acreditamos que
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
a educação é um ato de sensibilidade, e o aprendizado também
é um ato de amor e coragem. E quando falamos de aprendizado,
vamos além das “matérias” encontradas nos currículos, mas
pontuamos sobre o aprendizado do dia a dia, que também move
corpos e estruturas em prol de um saber compartilhado, como
assim deve ser.
E refletimos sobre tudo isso, pensando em quantas de nós
tivemos nossos caminhos interrompidos. De formas trágicas que
vieram a público, como ocorreu com Marielle Franco e tantas
outras. Mas também de formas silenciosas, como acontecem com
centenas de mulheres que, apesar de respirarem, estão presas nas
amarras da misoginia, no machismo que nos assola a cada dia, e
do capitalismo que transforma nossos corpos em meros objetos e
tanto nos explora, e tem seus futuros interrompidos pela quebra
das possibilidades que poderiam desvendar.
Enfim. Depois de tanto compartilhar e tanto refletir, prosse-
guimos esta carta pontuando para as mulheres que vêm depois:
já percorremos muito por aqui, mas sempre será necessário irmos
além. Afinal, todas nós temos direito de ser livres a partir das
nossas diversidades, assim como nossos saberes estão aqui para
ser ainda mais compartilhados. Esperamos que o mesmo tanto de
inspiração e instigação que as gingas das pedagogias feministas
nos trouxeram também sejam um dia compartilhadas entre vo-
cês, com muitos avanços, pois outros e mais passos, sem dúvidas,
serão dados. Voem!
Além das reflexões tecidas até aqui, é fundamental pontuar
que estamos escrevendo para vocês, para tratar também sobre
a nossa luta, agora, no presente e como estamos aprendendo a
lutar realmente a favor da vida e enxergar a todas, todes e todos.
Relatamos a vocês que a consciência que pousou sobre as nossas
mentes, por meio das rodas do componente curricular “Pedago-
gias Feministas e Epistemologias Decoloniais”, foi que a luta não
é individual. As mudanças não ocorrem se os movimentos pelos
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
quais participamos, lutamos e defendemos agem de forma isolada
e sem olhar para quem e o que está ao nosso redor. É preciso haver
alianças entre os movimentos.
Acima de tudo, a luta deve ser humanitária e, por meio dela,
espalhar também humanidade. Nossas ancestrais, no nosso pre-
sente ainda não há humanidade como deveria haver, irmãs do
futuro, bem, esperamos com alguma ponta de esperança de que o
sentimento e ações humanas estejam mais presentes nesse futuro
em que vocês se encontram. Queremos relatar a vocês também
sobre a nossa indignação com o feminismo tradicional, burguês
e branco. Apesar de ter lutado contra as opressões machistas e
patriarcais, lutaram isoladamente. Quando foram reivindicar por
voto, educação, quando lutaram contra o estupro e tantas outras
causas, as feministas tradicionais não pensaram nas suas irmãs
negras, indígenas, latino-americanas e trans; portanto, tudo o
que conquistaram não chegaram às mulheres que não estavam
inclusas na sua bolha, bolha branca e burguesa, ou seja, lutavam
contra a opressão masculina e estavam sendo, ao mesmo tempo,
opressoras das outras mulheres.
Diante desse choque de realidade, compreendemos que o
feminismo tradicional também foi responsável pela desigualdade
que vivemos hoje, pela rivalidade entre as mulheres, pelo precon-
ceito de ver nas nossas irmãs o perigo. Pela falta de irmandade,
alianças e humanidade, a luta feminista tradicional não alcançou
grandes proporções como deveria e se tornou antidemocrática,
fechou os olhos, os ouvidos, os braços para as mulheres negras,
trabalhadoras pertencentes às outras classes sociais, não olharam
para as mulheres da América Latina, para as mulheres indígenas,
para as mulheres não brancas, para as mulheres trans.
Diante disso, nos indagamos o seguinte: como vamos apoiar
e lutar por um feminismo que exclui, que não tem humanidade,
diversidade, democracia, sonoridade, empatia? Rupi Kaur (2020,
p. 195), uma poeta contemporânea, nos alerta:
262
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
procure mulheres ao seu redor que têm menos es-
paço que você, ouça escute-as e coloque o que elas
dizem em prática - amplifique a voz das mulheres não
brancas. Indígenas.trans.negras.pardas.
Atendendo não somente a esse conselho da poeta Kaur (2020),
mas a tantos outros que ouvimos nas rodas sobre feminismo
negro no componente curricular que citamos anteriormente, é
que nos propomos a conhecer, valorizar, respeitar e colocar em
desenvolvimento o que essas mulheres nos ensinaram e o que têm
a nos ensinar. E viemos compartilhar nesta carta um dos muitos
ensinamentos importantíssimos que foram responsáveis por des-
vendar os nossos olhos sobre a luta feminista. Olhando através
da lente do feminismo negro, estamos aprendendo a enxergar a
história, as experiências, as vivências de cada mulher e, também
de cada pessoa. Referente a isso, Collins (2017, p. 8) relata que:
[...] as mulheres afro-americanas faziam parte de
um movimento mais amplo de mulheres, em que
mexicanas e outras latinas, mulheres indígenas e
asiáticas estavam na vanguarda de reivindicar a
inter-relação de raça, classe, gênero e sexualidade
em sua experiência cotidiana.
Nas rodas do componente curricular “Pedagogias Feministas
e Epistemologias Decoloniais”, principalmente nos encontros
que discutiam sobre o feminismo negro, nos foram apresenta-
das, não só, as questões feministas, mas questões humanas e a
maneira de enxergar e lutar pela vida de todxs. Dessa maneira,
abrangeu-se desde o lugar do “eu”, de maneira que as nossas
experiências e histórias de vida tornam-se escrevivências nos
textos acadêmicos, como foi o caso da professora Maria Anuncia-
ção da Silva, que fez uma belíssima pesquisa sobre as narrativas
de pessoas negras que residem na zona rural, relacionando a sua
263
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
trajetória educacional, sua formação como professora e sua rela-
ção com seus antepassados em sua escrita, além de pontuar que
as nossas histórias podem, sim, ocupar a academia. E no decorrer
de outros encontros sobre o feminismo negro, estenderam-se
às reflexões e discussões até sobre a maneira como somos po-
sicionadas, tratadas, consideradas, abordadas em sala de aula e
nas universidades.
Dessa maneira, consideramos o feminismo negro como
abraço humano, sua teoria nos mostra o quanto somos abrigadas
por ele, mas felizmente estamos lutando para que essa teoria
ganhe mais espaço nas práticas, não só no ambiente escolar, mas
em todos os locais que se é possível mostrar, ensinar e praticar
essas teorias humanas e democráticas que já deveriam dominar
o nosso cotidiano.
Esse olhar cuidadoso do feminismo negro tornou-se possível
porque as mulheres negras souberam associar as lutas do seu
povo com as suas e promoveram a interseccionalidade, como
relata Davis (2016), ou seja, as mulheres que estavam na luta
contra o sexismo, racismo, homofobia, neoliberalismo, fascismo,
que estavam imersas no movimento sindical acharam por bem
propor alianças desses movimentos com suas causas feminis-
tas, com sentimento e ações acolhedoras. Dentro dessa luta do
feminismo negro, há também o feminismo decolonial, que nos
propõe quebrar as lentes que os colonizadores impuseram sobre
todas, todes e todos nós.
Para exemplificar essa quebra proposta por esse determinado
feminismo, apresentamos para vocês uma parte da canção “Triste,
Louca ou Má”, da banda Francisco, El Hombre, que nos mostra o
que fazer e que caminho devemos seguir juntxs.
264
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Eu não me vejo na palavra
Fêmea, alvo de caça
Conformada vítima
Prefiro queimar o mapa
Traçar de novo a estrada
Ver cores nas cinzas
E a vida reinventar
(FRANCISCO, EL HOMBRE, 2016, (4’:29”))
São nessas alianças dos movimentos a favor da democracia
e da humanidade, por meio das discussões, estudo, da escuta,
da escrita, da leitura, do ensinar e aprender, essas práticas fe-
ministas e epistemologias decoloniais, é que vamos queimando
esse mapa da tradição, costumes, visão e pensamento colonial,
patriarcal e machista e, junto a isso, estamos tentando traçar
uma nova estrada e reinventar as nossas relações e a maneira
como percebemos o mundo. Confessamos para vocês que não é
nada fácil desconstruir e construir nossos pensamentos, vivên-
cias e todos os aspectos dela e estar nessa luta diária. Estamos
tentando formar gerações com pensamentos e ações humanas.
Mas salientamos que é gratificante e emocionante quando vemos
toda essa luta dando certo.
Expomos, novamente, para vocês, mais um trecho do poema
de Kaur (2020, p. 192), em que ela diz: “[ ] com mais mulheres no
palco sobra espaço para todas lá no alto - juntas somos mais fortes”.
Esse trecho não está nessa carta por acaso, pois nos lembramos
dele ao falar do feminismo decolonial, que possui alianças com o
feminismo negro e com o feminismo das mulheres de cor e juntos,
ambos os movimentos, “[...] reivindica que seja dado protagonismo
às experiências das mulheres que até resistem até hoje à violência
racista e colonialista” (Castro, 2020, p. 217).
Olhem só, companheiros do feminismo negro, o feminismo
revolucionário vem nos propor a luta contra o fim da exploração das
mulheres pelas mulheres na relação de patroa com empregada, sendo
265
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
esse, mais um rastro da escravidão. Também nos mostra a situação
da exploração e opressão capitalista e patriarcal das mulheres negras,
indígenas, que engloba também os homens negros e indígenas que
sofrem com essa violência. Ou seja, a lente do feminismo revolucio-
nário nos faz enxergar a vida, as experiências, histórias e as vivências
das mulheres e dos homens; afinal de contas, os homens também
sofrem com o machismo que possuem em suas mentes.
Percebem como o feminismo negro abriu as portas, os ou-
vidos, os olhos e os braços? Percebem o acolhimento da luta, da
experiência, da vivência, das fragilidades das outras e dos outros?
As mulheres negras, ao lutarem por sua liberdade, entenderam que
não tinham como ser livres se suas irmãs e seus irmãos ainda conti-
nuavam a viver opressões; dessa forma, o feminismo negro realizou
a junção entre a solidariedade política dos demais movimentos com
a interseccionalidade, acreditando que dessa maneira as pessoas
que estavam imersas em situações de homofobia, racismo, sexismo,
intolerância religiosa, nacionalismo, exploração de classe, opressão
capitalista, machismo tinham que ter acesso à liberdade também.
Queridas, esse é um recorte de um dos nossos processos de
mudança e transcendência, que o fazemos para honrar a vocês,
que vieram antes de nós e para humanizar o futuro, que será o
vosso presente, mulheres futuras. Não há luta fácil nessa vida,
mas quem luta tem esperança e é ela quem nos faz ir em frente.
A desconstrução, reconstrução e construção são processos árduos
por acontecerem de dentro para fora e, mais do que nunca, não
devemos soltar a mão de ninguém, nem fechar nossos olhos, ou-
vidos e braços. A luta acontece nas alianças.
Ainda sob este prisma, as epistemologias feministas negras
e decoloniais acima descritas vêm apontando também, desde as
últimas décadas do século XX, as características eurocêntricas e
androcentradas dos currículos escolares brasileiros. Neste sentido,
nós, mulheres brasileiras, latino-americanas, somos duplamente
invisibilizadas: por não sermos europeias e por não sermos homens.
266
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
O que vêm permanecendo nos currículos brasileiros são nar-
rativas educacionais, cujo personagem central é majoritariamente
o homem-branco-heterossexual-europeu. Para nós, isso é um
grande problema. Para compreender esta questão, é importante
nos questionarmos: qual é a importância e as implicações de uma
educação feminista?
Para responder à pergunta, é preciso que tenhamos em mente
que, em primeiro lugar, o ponto de partida da aprendizagem são
as demandas e as carências de orientação do tempo presente. Ora,
neste sentido, os debates feministas são demandas atuais, à me-
dida que fomentam questionamentos e reflexões sobre as nossas
experiências. Você, que lê, pode então questionar: mas que expe-
riências são estas, que são, para mim, demandas e carências de
orientação no tempo em que estou inserida?
Vamos juntas, então, questionar algumas experiências de de-
sigualdade, que nos impactam cotidianamente: por que o trabalho
doméstico, em minha casa, é quase sempre feito exclusivamente
por mulheres? Por que nas grandes mídias ainda há tantas notí-
cias sobre feminicídio? Por que, ao caminhar pelas ruas, mulheres
ainda são assediadas? Por que o amor lésbico não é respeitado
como o amor heterossexual? Por que na educação escolar, as
experiências das mulheres no tempo, atuantes nas ciências, nas
artes, na literatura, enfim, metade da humanidade é silenciada?
Estes são alguns, dentre os muitos outros questionamentos que
podem ser feitos, que apontam para dúvidas, anseios e carências de
orientação que nos impactam. Respondida esta questão, voltemos à
indagação inicial: qual é a importância e o impacto de uma educação
feminista? A educação escolar e superior contribuem para que os
estudantes decifrem grande parte destas perguntas.
O historiador Jörn Rüsen (2007) nos indica o seguinte enca-
minhamento: as nossas dúvidas no presente sobre desigualdade de
gênero, isto é, as nossas carências de orientação, nos encaminham
267
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
para o estudo sobre as desigualdades de gênero construídas no
passado e no presente.
De posse do conhecimento apreendido, nos tornamos capazes
de realizar interpretações embasadas no saber adquirido, sobre as
desigualdades da nossa temporalidade. Com efeito, nos tornamos
aptas, também, a projetar ações individuais e coletivas, para que
tais desigualdades diagnosticadas sejam superadas no futuro.
Esta é a importância e o impacto, portanto, de uma educação
feminista. Se os debates feministas são demandas do nosso tempo,
então a educação escolar pode trazer contribuições essenciais
para que os alunos se tornem aptos a agir visando superar as
desigualdades de gênero no futuro.
Mas, para isso, é preciso que você, leitora - seja você educa-
dora, aluna, mãe ou familiar de jovens em idade escolar - tenha
em mente que, em primeiro lugar, não existe neutralidade na
educação. Como uma relação humana, toda intervenção educativa
provoca impactos na esfera social.
Neste sentido, a educação deve servir para que os alunos
questionem desigualdades e hierarquias sociais. Deve servir para
a emancipação humana. Para tanto, pensar a construção de uma
educação feminista é um dos primeiros passos, tendo em vista as
assimetrias de gênero que impactam todas nós mulheres, sejamos
avós, mães, filhas ou netas.
Ainda, leitoras, é sempre importante lembrar que defender
uma educação para as relações de gênero significa compreender
que as aulas devem ser baseadas em “narrativas plurais”, que re-
flitam sobre questões de “gênero, raça, classe e sexualidade”.
Pois, como o feminismo negro nos ensinou, não existe mulher,
enquanto um sujeito único que possa ser interpretado como uni-
versal. Existem mulheres, no plural. Subjetividades atravessadas
por categorias distintas. As hierarquias que impactam mulheres
brancas não são as mesmas das mulheres negras.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ou das mulheres lésbicas. Estas categorias, por vezes, se
interseccionam mais para determinadas mulheres do que para
outras. Neste sentido, as desigualdades também diferem. Para
alguns de nós, elas são mais abissais. O nosso olhar deve ser cui-
dadoso e empático para este complexo emaranhado que compõe
as relações humanas.
Para que nós tenhamos consciência destes atravessamentos
que nos impactam, faz-se necessário que os currículos escolares
sejam reconstruídos a partir da memória das mulheres, do povo
negro, dos povos indígenas, da população trabalhadora etc. Afinal
de contas, nós compomos todos estes grupos. E a memória deste
povo é a que mais se conecta com a nossa. Trata-se da nossa an-
cestralidade. Da nossa autocompreensão identitária.
Ao findar desta carta, esperamos que tenhamos obtido su-
cesso em apontar a vocês, leitoras, a trajetória das epistemologias
feministas, o que inclui a dimensão fundamental do pensamento
feminista negro e as possibilidades de uma educação feminista
para a transformação social, isto é, que visa, para o futuro de vocês,
que virão depois de nós, a superação das desigualdades de gênero,
raça, classe e sexualidade, que ainda nos impacta.
Como versa a artista Drik Barbosa, na canção “Sobre nós”:
“se somos, sou resistir. Se somos, sou persistir. Herdamos laços
que nos fazem nós. Nosso sonhar resiste”. (BARBOSA, D. 2020,
(03’:39)). Às que nos antecederam, todo o nosso reconhecimento
e reverência pela luta e conquista de muitos direitos que temos
hoje. Esperamos que, por nossas ações, conquistemos também
direitos, a vocês, mulheres do futuro. E que essa continuidade
permaneça. Entre vocês e para as próximas gerações. A utopia é
a esperança que nos encaminha para o agir. Que nunca percamos
de vista nossas utopias feministas. Finalmente, dedicamos a vocês
um poema especial, que nos une, poema esse da escritora negra
Conceição Evaristo (2017, p. 24-25):
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Vozes-Mulheres
A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem - o hoje - o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.
Com muito afeto e esperança, Ana Paula Neves Lins, Andressa
Ferreira e Gabriela Carneiro Maciel.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
REFERÊNCIAS
BARBOSA, D. Sobre nós, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=HZ6K6ULfAh0. Acesso em: 28/02/2024, às 14:54.
CASTRO, Susana de. Feminismo Decolonial. Natal. V. 27, n. 52, p. 213-220.
COLLINS, Patrícia Hill. Se perdeu na tradução? Feminismo negro,
interseccionalidade e política emancipatória. Parágrafo, 2017. Disponível em:
https://revistaseletronicas.fiamfaam.br/index.php/recicofi/article/view/559/506.
Acesso em 01 de dez. de 2023.
DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classe. Tradução: Heci Regina Candiani. 1 ed.
São Paulo: Boitempo, 2016.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de
Janeiro: Malê, 2017, p. 24-25.
FERREIRA, D. L.; SILVA, Z. P. Retratos das Pedagogias Feministas: uma
reflexão sobre o Programa Novo Mais Educação no Colégio Estadual Antônio
Bahia. In: Insurgências Pedagógicas na Educação Básica. Editora Devires, 2021.
KAUR, Rupi. Meu corpo minha casa. São Paulo: Planeta, 2020, p. 192-195.
FREIRE, P. Educação como prática da liberdade. Paz e Terra, 1967, 192 p.
RÜSEN, J. História Viva: Teoria da História III: formas e funções do conhecimento
histórico. Brasília: Editora da UnB, 2007.
STRASSACAPA, Juliana; KOZYREFF, Andrei Martinez; UGARTE, Mateo
Piracés-; UGARTE, Sebastián Piracés-; Gomes, Rafael. Triste, Louca ou Má.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lKmYTHgBNoE. Acesso
em 01 de dez de 2023.
271
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
ENSINAGENS DO BARCO EPISTEMOLÓGICO
DAS PEDAGOGIAS FEMINISTAS E DECOLONIAIS
Elizangela Bastos
Dailza Araújo
Clarice da Silva Coelho
Saudações, de quem conseguiu ver e sentir a gira girar!
Para nós, que escolhemos fazer a travessia de aprender mais
sobre as “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”,
eu, Elizangela Bastos, pedagoga, natural de Irecê, trabalho em
Várzea Nova, sou apaixonada pela Educação Infantil, pois com-
preendo que o aprendizado nesta etapa da Educação Básica pode
influenciar toda a vida da criança, tenho especialização em Psi-
copedagogia, e sou avó de Bernardo e Helena; eu, Dailza Araújo,
pedagoga, natural de Santa Luz, doutoranda em estudos Interdis-
ciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo na Universidade
Federal da Bahia (UFBA), exerço a docência na Universidade
Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), no Campus de Jequié, e
moro em Salvador; eu, Clarice Coelho, 25 anos, mãe do Mateus,
de 4 anos, pedagoga e pós-graduanda em Neuropsicopedagogia,
atuo como coordenadora pedagógica de uma escola do campo,
da rede de Monte Santo e atuo como professora na Faculdade do
Sertão Baiano - FASB, constituímo-nos, pois conseguimos fazer
parte de uma gira, que inclui, afeta e atravessa epistemologica-
mente nossos “eus”.
273
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ao conhecimento adquirido nas gingas do componente cur-
ricular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”,
nomeamos “barco epistemológico”, pois ao embarcar nessa aven-
tura do conhecimento, tivemos que ancorar muitas vezes para
deixar alguns “ranços” coloniais, aprendidos ao longo da nossa
trajetória até aqui, os quais nos impediam de perceber a amplitude
das várias formas de produção acadêmica, de prática pedagógica
e de políticas de citação.
As pedagogias feministas, a partir de uma proposição de
desobediência decolonial, permite saber que existem outras inter-
secções que envolvem as discussões de gênero, as quais ampliam e
incorporam o debate sobre as transgeneridades, as travestilidades,
transmasculinidades, os feminismos negros, as lesbianidades e
tantas outras possibilidades de viver o gênero. Por isso, “deco-
lonizar o gênero é necessariamente uma práxis” (Lugones, 2014,
p. 940), e passa por oportunizar que mulheres em suas diversas
identidades possam falar e ser ouvidas; escrever e ser citadas.
Para Angela Figueiredo (2020), as experiências que corrobo-
ram para uma nova epistemologia feminista negra são oriundas
das vivências das mulheres negras ao longo da caminhada en-
quanto ativistas e acadêmicas:
Testemunhamos o aumento significativo do femi-
nismo negro e suas diferentes perspectivas: são as
feministas negras decoloniais, feministas negras
abolicionistas, feministas negras interseccionais,
feministas negras lésbicas, dentre outras. Esse movi-
mento tem sido autodefinido pelas mulheres negras
em Salvador como maré feminista negra, uma clara
alusão à divisão das três fases que caracterizam o
feminismo em ondas; ao mesmo tempo em que se
constitui enquanto uma ruptura, uma vez que as
diferentes ondas feministas não incluíram, em ne-
nhuma de suas fases, a contribuição feminista negra
(Figueiredo, 2020, p. 4).
274
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Assim, as leituras, escutas e trocas proporcionaram as en-
sinagens, que ajudaram a pensar a importância das pedagogias
feministas e epistemologias decoloniais na prática pedagógica:
por isso, a vocês, que estiveram colaborando direta ou indire-
tamente no referido componente curricular, vocês foram faróis
epistemológicos, guiando a direção do pensamento, da prática
e da vida!
O processo de construção e desconstrução é contínuo, e pode
ser proporcionado por vários fatores. A nós, foi possível através de
possibilidades metodológicas diferenciadas, inovadoras e decolo-
niais: cartas pedagógicas e as escrevivências. Contrariamente ao
que a ciência ocidental preconiza, a escrita afetuosa e pessoal que
fala de si na primeira pessoa, é uma possibilidade de insurgência
dos/as sujeitos/as, que vêm transformando o campo de estudos
feministas, rasurando as concepções de escrita acadêmica que
temos escutado por aí, nos bancos da academia.
Por isso, sentimos o impacto epistêmico logo na segunda
ginga sobre “Pedagogias Feministas, Teorias e Práticas de Pesqui-
sa no Âmbito do MPED”, com a leitura de uma carta escrita pela
professora Eide Paiva homenageando e descrevendo um pouco da
trajetória das convidadas para nossa segunda aula. Nesse dia, foi
possível ouvir as mestras Marilene Queiroz, Daniele Ferreira e Laís
Abreu. As três são egressas do Mestrado Profissional em Educação
e Diversidade - MPED, e todas elas desenvolveram pesquisas atra-
vessadas pelas pedagogias feministas. A escrita afetiva e poética
sobre a realidade das mães estudantes da Universidade do Estado
da Bahia, Campus XIV - Conceição do Coité/BA, somatizada à sua
experiência de maternagem, trouxe para nós, a forma como as nos-
sas ancestrais estavam envoltas pelas ações e práticas feministas,
e isso nos tocou profundamente, levando-nos a perguntar: o que
são as pedagogias feministas? E podemos responder que estas
são formas de conduzir ao agenciamento de mulheres em suas
várias identidades, são ensinamentos do mar, só quem viveu pode
275
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
contar. Por isso, nossas mães, avós, e mais velhas são as nossas
matriarcas feministas, pois mesmo que o termo esteja no rol das
pesquisas acadêmicas, sempre foi sobre nós, sobre quem veio, e
pôde contribuir para que, quem virá possa ter um caminho regado
com flores e perfume. Nossas ancestrais estiveram em terra para
abrir os caminhos da nossa liberdade. Foi um encontro emocio-
nante, regado às partilhas, às lágrimas e a saberes.
Laís Abreu, com sua pesquisa sobre violência sexual e infantil,
ampliou e alertou nosso olhar para a necessidade de desenvol-
vermos práticas e ações docentes capazes de permitir que nossas
crianças, mulheres e outras sujeitas estejam agenciadas pelo co-
nhecimento e informação, as quais só podem ser proporcionadas,
se houver uma discussão de gênero nas escolas e na sociedade. A
conclusão da pesquisa apresentada por Laís e suas companheiras
de escrita evidenciam a necessidade de implementar nos currí-
culos, principalmente das licenciaturas, as temáticas abordadas
dentro das pedagogias feministas; elas apresentam que:
A estrutura da formação docente oferecida no Brasil
não tem dado conta de atender às demandas exigi-
das na profissão docente e, consequentemente, no
exercício das práticas pedagógicas - seja no que diz
respeito ao enfrentamento da violência sexual in-
fantil ou de qualquer outro tema ou questão social
que incida na escola (Oliveira Abreu: Gomes Silva e
Auad, 2020, p. 43).
Diante desse contexto, Daniele Lopes, ao afirmar que o
feminismo atravessava toda sua prática pedagógica, nos tocou
com muita profundidade, pois é realmente assim que acontece
quando temos a sensibilidade da escuta, quando permitimos
que nossas/os educandas/os sejam protagonistas de suas ações
e aprendizagens. A maneira como ela descreveu o que é femi-
nismo, ao relatar sobre as práticas pedagógicas de resistência,
276
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
de sempre buscar educar para o antirracismo, para a equidade
de gênero ou debater sobre sexualidades, nos fez perceber que
o que entendíamos sobre essa categoria era muito limitado, e
que estamos no lugar certo, para nos tornarmos profissionais e
pessoas melhores.
Dito isto, acionamos Cauê Moura (2021, p. 115) para trazer
a nossa travessia com tema “Transfeminismos e as Pedagogias
da Desobediência”, na décima roda-ginga: “prefiro seguir acre-
ditando em um transfeminismo comprometido não apenas com
a “coerência e coalizão”, mas sim com a transformação, com
o desmantelamento do “cistema” e seus eixos de opressões”.
Com a participação da ativista Bruna Benevides e do professor
Vércio Gonçalves, costuramos juntas debates e reflexões sobre
as maneiras que as pedagogias feministas e epistemologias
decoloniais deslocam nosso caminho e nos chamam a mudar
a rota da prática pedagógica, pois não podemos conceber uma
prática docente que seja democrática sem pensar as/os corpas/os
existentes na escola e fora dela. Por isso, seguimos para atracar
mais uma vez nosso barco e deixar a nossa concepção de ações
docentes que não consideraram o pensamento transfeminista
como norte pedagógico; estamos aprendendo a não agir nem
por ação, nem por omissão.
Durante toda a disciplina, a possibilidade de ouvir tantas
experiências epistêmicas de dissidência, lembramos de bell
hooks (2018), grande pesquisadora e escritora feminista negra
que aponta em seus escritos que o feminismo é um movimento
que deve tocar a todxs, independente do seu gênero, raça ou
classe social, e que somente dessa forma o movimento verda-
deiramente terá força para transformar a sociedade. Ela afirma
também que o feminismo, na verdade, não é um movimento que
busca a supremacia das mulheres e o rebaixamento de homens,
ao contrário, o labor feminista, na visão da citada autora, é por
igualdade, equidade e respeito entre todos, todas e todes dentro
277
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
da nossa agremiação. Pensando nas ideias de bell hooks e em
tudo que foi girado em nossa roda, acreditamos que esse compo-
nente está sendo na (trans)formação de melhores profissionais
que (trans)forma/rão mentes, para que tenhamos pessoas livres
de preconceitos, em seus respectivos ambientes de atuação.
Por isso, gostaríamos de destacar a terceira roda-ginga
que teve como tema: “Pedagogias feministas: o que são? Como
se agenciam?” A gira potente foi conduzida pela professora
Dra. Cecília Sardenberg, com uma discussão muito signifi-
cativa sobre o conscientizar para poder transformar, e sobre
o empoderamento coletivo que possa levar a transformação.
Conduziu-nos a compreender que longe dos feminismos não há
mudança epistêmica, que a conversa é a melhor metodologia
de aprendizagem, e a importância da partilha de afetos. A for-
ma vivenciada e cheia de sentimentos que Cecília Sardenberg
conversava, fez com que nos sentíssemos totalmente afetadas
pelas pedagogias feministas.
A vivência nas gingas, especialmente a quinta roda-ginga,
que teve como tema “Pensamento lésbico e epistemológicas
lésbicas: teorias e práticas de pesquisa”, possibilitou para nós
acessar e ampliar sobre o pensamento lésbico, as várias manei-
ras de trabalhar o gênero na educação, nas pesquisas, e na vida
cotidiana, de modo a nos impulsionar a exercer as pedagogias da
desobediência. No caminho da travessia pelo mar do conheci-
mento, quando saber a hora certa de mudar a rota? O momento
certo para içar as velas, e buscar novos horizontes? As convida-
das Sarah Sanches, Gersier Ribeiro e Ana Cláudia Macedo nos
ajudaram com seus olhares e vivências lésbicas a compreender
a transformação que uma educação desobediente e insubmissa
pode causar na vida das/os estudantes. As ensinagens dessa
roda, não são apenas conhecimento, foram um convite à ação.
Compreendemos as cartas pedagógicas como possibilida-
des para uma escrita que atravessa várias frentes de existência
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
a partir dos marcadores sociais de gênero, raça, sexualidades,
geração, e tantos outros. O nosso acesso, como mulheres, ne-
gras, mães, bissexuais, travestis, transexuais no espaço onde
o conhecimento acadêmico é produzido, traz novas formas de
ser e estar no mundo, e que podemos chamar de pedagogias
feministas. Não vemos nossos objetos de estudo, nossa metodo-
logia, nossos dados/informações da mesma forma, pela mesma
lente epistemológica, e por isso criamos outros caminhos para
atravessar.
E com isso nos lembramos de conversar com Ochy Curiel
(2019, p. 46) que “[...] esse aspecto parte do reconhecimento
dos pontos de vista que são produzidos a partir das experiências
vividas que contribuem a propor outros mundos mais justos e
humanos, fora da matriz liberal/colonial”. Estar “fora” é construir
outras formas de atravessar
A escrevivência funciona como processo que favorece o
exercício da liberdade, as transgressões, possibilitando uma com-
preensão mais integral das pessoas, dos fenômenos, propiciando,
assim, o aprendizado, a troca de experiências, o movimento de
autorreflexão e processos de subjetivação. Como escreve Marilene
Queiroz (2023, p. 43) “escreviver pode ser um processo de descons-
trução e reconstrução constante, um permear de desassossegos,
aconchegos e afagos”.
Conversar com Glória Anzaldúa (2000, p. 232), que escreve
para mulheres do terceiro mundo, é encontrar respostas sobre por-
que se escreve: “[...] escrevo para registrar o que os outros apagam
quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim,
sobre você. Para me tornar mais íntima comigo mesma e consigo”.
Por que a escrita para nós, grupos considerados subalternos, é
algo que tem entrado no campo teórico da decolonialidade? Quais
as principais estratégias que foram e estão sendo utilizadas pelas
pedagogias feministas para a desconstrução do conhecimento
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
hegemônico? Compreendendo que o que move a sociedade são
as perguntas, sentimo-nos provocadas a estar vivenciando cada
momento das travessas dentro do campo das pedagogias femi-
nistas e epistemologias decoloniais, através do choro, do riso, do
afeto, a estética e principalmente do acolhimento.
Na sexta roda-ginga, com a presença Altamira Simões e Vitali-
na Silva, com tema “Pensamento de Mulheres Negras”, lembramos
Lélia Gonzalez (1984, p. 225), que quando afirma que “[...] na medida
em que nós negros estamos na lata, o lixo da sociedade brasileira,
pois assim o determina a lógica da dominação”, aponta a impor-
tância de usar nossa marginalidade para a escrita e o momento da
fala como forma de combater a dominação em qualquer sistema
de opressão. Portanto, vamos assumir nossa fala no contexto da
posicionalidade, “ou seja, o lixo vai falar, e numa boa”, como afirma
a autora (p. 225). Assim, estamos com Lélia, o lugar da nossa produ-
ção é um lugar insubmisso, jamais subalterno. Se há uma coisa que
aprendemos com as pedagogias feministas é sobre insubmissão!
Com a nossa escrita situada, combatemos o androcentrismo,
o racismo epistêmico, o cisheteropatriarcardo e o “cistema” capi-
talista. Produzimos de um lugar do incômodo, e pelos escritos de
Cecília Sardenberg (2014, p. 18), expressamos “[...] as etnografias
produzidas por antropólogas na perspectiva da antropologia fe-
minista incorporam muitas vezes sua experiência pessoal, deline-
ando ‘o próprio processo de compreensão com suas perplexidades,
descobertas e temores”, estabelecendo-se a partir da experiência
vivida em campo e do lugar das identidades. Causamos temores,
na estrutura que ouse nos excluir, pensamos em Coletivo, um lugar
de existência que há espaço para todas/os nós!
Por isso, professoras Eide Paiva, Amália Amaral e Ana Lúcia
Silva, agradecemos por nos ajudarem nessa travessia, que foi tão
bonita, afetuosa e rica de significados. Graças à condução sábia,
insubmissa e decolonial de vocês, foi possível, para nós, descons-
truir a escrita, desvendar os olhos e projetar novas possibilidades.
280
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A cada gira, conseguimos extrair contribuições para nossa prática
pedagógica e cotidiana, de maneira a olhar, enxergar e considerar
corpos/as e sujeitos/as outras.
Assim, escrever para nós, que somos afetadas por uma ciência
euro, andro e brancocêntrica, é um ato de insurgência. Desafiar
os moldes científicos da produção do conhecimento muda não
só a nós, como a sociedade, pois não há negociação, não vamos
continuar em um lugar silencioso, oculto e a qual nos colocaram,
o caminho percorrido possibilitado pela escrita é um caminho sem
volta, epistemologicamente falando, pois enquanto escrevemos o
próprio programa de edição sugere um erro de escrita para “afe-
tadas”, indicado que o correto seria “afetados”. Agora achamos
um caminho muito mais possível, um caminho coletivo, onde há
espaço para todas as formas de existir, e com as possibilidades
das pedagogias feministas, estamos fazendo a travessia, agrade-
cemos às professoras a quem esta carta é direcionada, pois elas
estão sendo nossos faróis, assim como as pessoas convidadas para
compor este barco epistemológico.
Até breve, nos encontramos em uma leitura ou em qualquer
outro lugar, pois a gira, que permitiu nosso encontro, vai conti-
nuar a girar!
Com afeto, Day, Clarice e Elizangela.
REFERÊNCIAS
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do terceiro mundo. Revista de Estudos Feministas. Ano 8, n. 1, p. 229-236, 2000.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas desde o feminismo
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SILVA, Claudilene. A volta inversa na árvore do esquecimento e nas práticas de
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Curitiba: CRV, 2019.
282
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
CARTA-POEMA:
DAS MEMÓRIAS DE SI ÀS RODAS-GINGAS
Ana Luísa Barbosa de Castro
Elaine Rodrigues Santos Santiago
Kelline Roberta Ferreira do Nascimento
Queridas Ana Lúcia, Amália, Beatriz, Eide, Josianne e Sueli,
Espero que esta carta-poema encontre vocês bem e com
esperança. Essa escrita é parte avaliativa do componente curri-
cular “Pedagogias Feministas e Epistemologias Descoloniais”, do
Mestrado Profissional em Educação e Diversidade, da Universidade
do Estado da Bahia (MPED/UNEB). Para além de um instrumento
de avaliação, ela é o registro de algumas memórias construídas
na intersecção entre corpo, identidade, sexualidade, gênero e
educação. Algumas delas rasgaram meu peito, outras, chamaram-
-me para dançar. Eu gostaria de, através desta escrita simples e
emotiva, desenhar o caminho tão bonito que eu construí a partir
do componente que cursei com vocês. Assim, diante da postura
escrevivente que assumo, esta carta também será pessoal. Será
memória e poesia. Ela será uma carta-poema!
Através da linguagem, as pessoas constroem narrativas
sobre si mesmas, atribuem significados a suas experiências e
estabelecem conexões com grupos e comunidades. Segundo Hall
(1999), a linguagem não é um sistema de comunicação neutro,
mas é impregnada de significados culturais, símbolos e discursos
que moldam e influenciam como entendemos a nós mesmas e as
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
outras pessoas, desempenhando um papel crucial na construção
da identidade, tendo em vista que a linguagem é o principal meio
pelo qual os significados e representações culturais são transmi-
tidos e compartilhados. Hall argumenta que a identidade não é
algo fixo e pré-definido, mas sim uma construção social e cultural
constantemente negociada e reformulada ao longo do tempo.
Uma grande inquietação minha era como dividir com vocês,
através de uma carta-poema, as experiências que aconteciam
dentro de mim, nas minhas vivências como professora negra e
feminista e como alguém que é um “devir”, pois ainda não estou
completa. Assim, trago para esta escrita o conceito de “Escrevi-
vência”, como saída epistêmica para me ajudar a relatar algumas
vivências despertadas pelas rodas-gingas deste componente
acadêmico.
Oliveira (2009, p. 662), chama de escrevivência a obra que
carrega em si a “escrita de um corpo, de uma condição e de uma
experiência”. Essa obra pode ser construída a partir de
rastros fornecidos por aqueles três elementos for-
madores da escrevivência: corpo, condição e expe-
riência. O primeiro elemento reporta à dimensão
subjetiva do existir negro, arquivado na pele e na
luta constante por afirmação e reversão de estereó-
tipos. A representação do corpo funciona como ato
sintomático de resistência e arquivo de impressões
que a vida confere. O segundo elemento, a condição,
aponta para um processo enunciativo fraterno e com-
preensivo com as várias personagens que povoam
a obra. A experiência, por sua vez, funciona tanto
como recurso estético quanto de construção retórica,
a fim de atribuir credibilidade e poder de persuasão
à narrativa (Oliveira, 2009, p. 662).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Escrevivência é um conceito criado pela escritora brasileira
Conceição Evaristo que se refere à escrita como um ato de resis-
tência e de afirmação da identidade negra e periférica. Segundo
Evaristo (2020, p. 35) a escrevivência é
antes de qualquer domínio, é interrogação. É uma
busca por se inserir no mundo com as nossas histó-
rias, com as nossas vidas, que o mundo desconsidera.
Escrevivência não está para a abstração do mundo, e
sim para a existência, para o mundo-vida. Um mundo
que busco apreender, para que eu possa, nele, me
autoinscrever, mas, com a justa compreensão de que
a letra não é só minha. Por isso, repito uma pergunta
reflexiva, que me impus um dia ao pensar a minha
escrevivência e de outras.
A escrevivência, nesse sentido, é atravessada pela minha
experiência quando incorporo minha vivência e minha experi-
ência ao me colocar como sujeito desta narrativa. Dessa forma,
as experiências das rodas-gingas atravessam a práxis pedagógica
aprendida na universidade e transpassam meu corpo e minhas
memórias de tal forma que extrapolam a impessoalidade, muitas
vezes esperada nas produções acadêmicas. Na condição de pro-
fessora-pesquisadora-feminista-militante, muito me foi confiado
pelas estudantes e professoras. No entanto, eu não conseguiria
narrar essas experiências sem usar a ficção e a literatura. Assim,
a transformação dessas narrativas em relatos poéticos traz para
esta carta outros vieses de acesso às minhas memórias.
Eu estou diferente, queridas professoras. Talvez, vocês nem
me reconheçam mais. Como eu mudei muito, vou começar poe-
tizando e escrevivendo quem eu era antes de começar a gingar.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Classificados
Cansou-se de si e pôs os sonhos à venda.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Conclusões segundísticas ou autobiografia não finalizada
Não conheci Édipo.
Achei que eu era ele e era ela.
Sem saber, ao certo, quem eu era, fiquei à mercê dos Outros
e me perdi com meus eus.
Me vesti de desejos alheios e dei-me a destinos frágeis.
Naufraguei em uma terceira margem.
Perdida, eu ginguei.
Na roda feminista,
Catei os pedaços e refiz meu rumo.
Abri meus cárceres e escancarei minhas portas.
Arejei meu juízo.
Enterrei os mortos, dividi os despojos e comprei um espelho.
Nasceu uma outra Eu.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Como professora, sempre busquei iniciar minhas aulas a
partir do conhecimento prévio das estudantes e, talvez por esse
motivo, sempre tive turmas bastante participativas e afetuosas.
Essa relação de confiança criada pelo componente e pelas práticas
pedagógicas que eu promovia, faziam com que as alunas se sen-
tissem à vontade para partilhar não só seus interesses pessoais e
conhecimentos prévios, mas, também, suas histórias e incômo-
dos. Distante das propostas elencadas na BNCC, as temáticas dos
relatos que chegavam a mim versavam sobre homofobia, desejo,
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
mutilação, religião, gênero e corpo. No entanto, diante da extensa
lista de assuntos e habilidades que eu precisava trabalhar durante
o ano letivo, eu não encontrava orientação na BNCC que me auto-
rizasse a contemplar, como parte do currículo, o desenvolvimento
de atividades que refletissem em torno desses marcadores.
Fases
Amanheceu, e nenhum sinal do novo.
Espero boas notícias da tarde
Mas, se elas não chegarem
Anoiteço na esperança de um enluecer.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Assim, sem encontrar espaço para construir conhecimentos
sobre essas temáticas, inclusive com meus pares, eu silenciava. Hoje,
depois de tantas danças coletivas promovidas pelo componente,
eu ouso dizer que me considero uma professora desobediente,
militante e feminista. Se hoje eu consigo olhar para trás e analisar
minhas práticas pedagógicas é porque fui fortalecida pelo coletivo
que dançou comigo nas gingas, e a vocês, queridas professoras, que
nos orientaram. Eu me senti plural: não estava mais só.
Imagem 1 – Cartão Postal.
Fonte: Elaine Santiago, acervo pessoal, 2023.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Mesmo gingando em um coletivo, alguns encontros foram do-
lorosos. A aula 2, por exemplo, fez com que questionasse a minha
coragem de permanecer no componente, pois algumas partilhas
abriram feridas que eu nem conhecia. Eu me sentia despida de
velhas concepções, mas, em momento algum, eu senti vergonha
de minha nudez.
Imagem 2 – Card da aula.
Fonte: Grupo de WhatsApp do componente, 2023.
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Arqueologia das rodas-gingas
Rodas-gingas que retiram todas as minhas camadas, delicada-
mente, até que as entranhas fiquem expostas.
Revisito meu passado para entender meu presente
Faço projeções
Abandono ilusões
Crio nossas pontes
As rodas riem de meus pedaços
Dos hiatos após as gingas
Das perguntas não ditas, mas sentidas
Da vontade de não desligar
Nunca quero dizer “tchau”
Minhas gratificações são as descobertas.
As velhas e as novas.
Cada ginga invoca algo das profundezas
Elas me analisam: autoetnografia
Selfie acadêmico
Eu, o objeto de estudo, tal qual Lázaro, caminho para fora
Revivo às segundas
A arqueóloga, enfim, é quem se liberta de si mesma.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Eu não conhecia todas as convidadas que gingaram conos-
co. Aproveito para agradecer a vocês pela escolha dessas po-
tências, mas preciso confessar que elas não apenas partilharam
como as teorias feministas rasuram as práticas de pesquisa e
a importância da abordagem de gênero na educação: elas me
atravessaram.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A voz pelo espelho preto
Ela me decifra: barema, esquete e roteiro.
Eu estendo a mão.
Ela a rejeita.
Sua mágica é ler o silêncio e os sons.
Eu, livro disponível.
Ela, escriba anciã.
Eu, fio de Ariadne.
Ela, irmã distante das moiras.
Entre fios, linhas e silêncios, eu me desfaço, traço, fujo e recrio.
A voz pela tela segue seus planos enquanto eu recolho meus
pedaços.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Todos os encontros foram polifônicos: vozes lésbicas-trans-
feministas-desobedientes-negras-nordestinas-pedagógicas. Eu
aprendi a ver os cruzamentos e linhas tênues que oprimem as
pessoas que fogem das vivências impostas pela heteronormativi-
dade compulsória, branquitude e outras formas de opressões. Para
Saffioti (2009, p. 26), “[...] há uma estrutura de poder que unifica
as três ordens - de gênero, de raça/etnia e de classe social”. Ainda
segundo essa autora, categorias como “a raça/etnia, com tudo que
implica em termos de discriminação e, por conseguinte, estrutura
de poder, imprimiu sua marca no corpo social por inteiro”. Assim,
pensar sobre as relações de gênero implica em refletir sobre os
demais atravessamentos que o corpo sofre (gênero, raça e etnia,
classe), e que, também, “vão gestando a subordinação” (Saffioti,
2009, p. 26) de alguns corpos: essa intersecção pode ser considerada
como um “sistema de opressão interligado” (Akotirene, 2019, p. 21).
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Eu sempre fiquei calada, mas o silêncio que me acompanhava
nas aulas não era tédio, sono ou distração: era análise. Tradução
simultânea; reconstrução. Eu estava em processo de letramentos,
em aprendizagens. Quando me faltava a voz, me sobravam sonhos.
Mutação
Sentada na cadeira muda, ela muda-se.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Eu não quero mais sentir medo da minha voz ao responder
aos questionamentos de meus estudantes. O meu fazer pedagógi-
co deve ser político e militante. Eu preciso assumir uma postura
decolonial-feminista por mim e por todas as pessoas que me
atravessam na educação, pois esta é uma prática social que está
intrinsecamente ligada à política e à formação da sociedade em
que vivemos.
Eu não sou eu nem sou a outra
Ensaio um sorriso no espelho
E encaro uma estranha.
Alguém que habita meu corpo
Ou eu me escondo em outro alguém?
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Como afirmou Paulo Freire, um dos principais teóricos da
educação crítica, “ela demanda a existência de sujeitos, um que,
ensinando, aprende, outro que, aprendendo, ensina, daí o seu
cunho gnosiológico; [...] daí a sua politicidade, qualidade que
tem a prática educativa de ser política, de não ser neutra” (Frei-
re, 1996, p. 28). Assim, toda educação é política, pois ela tem o
potencial de transformar a realidade e como as pessoas pensam
e agem no mundo.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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Meu acerto
Errar é, para alguns, desperdiçar a chance de algo que poderia
dar certo.
Eu não tenho medo de errar.
Meu medo é de acertar sempre.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Ao considerar as categorias analíticas e políticas, sexualidade,
gênero e raça, Bento (2017) afirma que elas possuem [...] “pouco
valor explicativo se consideradas fora de contextos mais amplos
e complexos” (Bento, 2017, p. 30). Dessa forma, o cruzamento
desses marcadores da diferença e da desigualdade “[...] nos alerta
para a impossibilidade de análises essencialistas, naturalizantes
e universais” ao mesmo tempo em que têm força discursiva de
“verdades irrelativizáveis” (Bento, 2017, p.30).
Nudez
Tomo posse de mim mesma
Na tentativa de ser penetrável
Violando meus lacres
Simulacros que tracei
Trilhei
Descalça.
Elaine Santiago, 2023, no prelo.
Finalizo essa carta com esperança de encontrar todas vocês
no próximo semestre. Em mim, permanecem vivências desejosas
por novas rodas-gingas.
Abraços de Ana, Elaine e Kelline.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
REFERÊNCIAS
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BENTO, Berenice. As tecnologias que fazem os gêneros. In: CONGRESSO
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BENTO, Berenice. 2017. Transviad@s: gênero, sexualidade e direitos humanos.
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HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 3 ed. Rio de Janeiro: DP
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293
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
PEDAGOGIA FEMINISTA E EPISTEMOLOGIAS
DECOLONIAIS: BÚSSOLA ORIENTADORA DE
BARCOS À DERIVA
Maria Beatriz Dias Coutinho
Quando me vi diante da possibilidade de cursar um compo-
nente intitulado “Pedagogia Feminista e Epistemologia Deco-
loniais”, não pensei duas vezes e participei do edital de seleção
para cursar o componente. Fiz um processo de seleção para aluna
especial da disciplina “Pedagogia Feminista e Epistemologia De-
coloniais”, ofertada pela Universidade Estado da Bahia (Uneb), no
ano de 2022; e no ano de 2023, fui convidada para ser monitora
desse maravilhoso componente. Neste processo, pude perceber
o componente Pedagogia Feminista e Epistemologia Decoloniais
funcionando como uma bússola norteadora e orientadora de na-
vios à deriva - EU.
Com esse componente, foi possível compreender que o meu
conhecimento estava muito aquém do que eu supostamente sabia
e achava que sabia. Quando comecei a assistir às primeiras rodas,
me vi sem rumo, à deriva, como sendo um barco perdido em alto
mar do conhecimento, mas segui firme.
Paulo Freire (2021) nos diz que o ensinar e o aprender, não
podem dar-se fora da procura, fora da boniteza e da alegria (p.
139). Em sintonia com essa visão transformadora, o componente
“Pedagogia Feminista e Epistemologia Decoloniais” tornou-se um
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
espaço onde a busca pelo conhecimento se entrelaça com a beleza
e a alegria do aprendizado. Aqui, cada roda de conversa tornou-se
um terreno fértil para a procura incessante por saberes diversos,
promovendo uma sinergia entre educandos e educandas.
Acredito que a verdadeira aprendizagem floresce na atmos-
fera da curiosidade, da beleza e da alegria, concebendo assim uma
experiência educacional enriquecedora e significativa. E foi nessa
procura e com alegria, que me vi mergulhada no estudo do feminis-
mo. Não compartilhei muita coisa durante as rodas de discussão,
pois meu intuito era o de aprender e não tinha nada sobre o tema
que pudesse compartilhar a não ser as reflexões e associações que
eu fazia, ao ouvir cada roda de discussão, no entanto, eu não o fiz.
Portanto, diante do disposto, dedico esta carta às professoras
e alunas do componente “Pedagogia Feminista e Epistemologia
Decoloniais”, que muito me ensinaram e me deram visões de
mundo das quais eu nem imaginava que teria um dia. Nesse sen-
tido, eu irei relatar as experiências vividas e vivenciadas durante
essa trajetória no componente. Nesta carta, irei distribuir como
o componente curricular “Pedagogia Feminista e Epistemologia
Decoloniais” foi se desenvolvendo. Portanto, o objetivo dessa
produção acadêmica em gênero - Carta -, visa trazer reflexões de
como o componente curricular PPGED trouxe alento, funcionando
como bússola ao meu barco que se encontrava à deriva.
Nessa trajetória considerarei o componente “Pedagogia Fe-
minista e Epistemologia Decoloniais (PPGED)”, uma “entidade
acadêmica” que se revela como uma espécie singular, além dos
limites tradicionais de gênero. Neste ecossistema de conhecimen-
to, onde a igualdade é a norma, quero expressar minha profunda
conexão e apreço por essa entidade em que se revela acolhedora
de pressupostos pensados fora de uma matriz acadêmica eurocên-
trica e conservadora. Nesse contexto, você, componente curricular,
proporcionou-me momentos nos quais fui instigada a explorar
essa curiosidade pelo aprendizado, fornecendo informações que
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
permitiram consolidar minhas bases de conhecimento. Porém,
para outros, você tenha representado um alicerce, e talvez, a
construção de um início e, quem sabe, até a solidificação de algo
já previamente construído.
Portanto, em nosso diálogo, o “Componente” assume uma
vida própria. Ele não é apenas um elemento abstrato do currículo,
mas sim um ser que promove a capacidade crítica e investigati-
va. Como uma espécie que transcende limites, o “Componente”
compreende todas as perspectivas e identidades. Seus rizomas
mergulham nas questões fundamentais da Pedagogia Feminis-
ta, enraizando-se na promoção da igualdade de gênero. E seus
emaranhados se estendem pela vastidão da Epistemologia De-
colonial, desafiando-nos a repensar narrativas e perspectivas
de cada ser. Entende-se por rizoma, na perspectiva de Deleuze e
Guattari (2019), como uma estrutura que se opõe à organização
hierárquica tradicional, como a de uma árvore com raízes e galhos.
Para estes autores, o rizoma são elementos que estão conectados
de forma horizontal, sem uma hierarquia fixa. Portanto, rizomas
não possuem um começo ou um fim, mas diversos meios que se
encontram com outros meios (Julio, 2020, p. 303).
Imagem 1 – Uma entidade sábia, desprovida de limitações de gênero e
transcendentalmente além das fronteiras acadêmicas convencionais.
Fonte: Autora fazendo uso de IA (Bingen Creator), 2024.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
bell hooks nos instiga a repensar o ensino superior como um
terreno fértil para a transgressão educacional, destacando que
ensinar com entusiasmo nesse contexto é, por si só, um ato disrup-
tivo. A atmosfera acadêmica, muitas vezes, enxerga o entusiasmo
como algo que pode perturbar a seriedade esperada, considerando-
-o desnecessário para o processo de “ensino”. A ousadia de buscar
e estimular o entusiasmo, segundo hooks (2017), torna-se, assim,
uma verdadeira transgressão nos padrões estabelecidos.
Ao explorar suas ramificações rizomáticas, descobri um ter-
reno fértil para o florescimento do pensamento crítico e da cons-
ciência social. Com o rizoma, temos novas funções para pensar,
deixando de lado formalizações e agenciando múltiplas direções
(Julio, 2020, p. 303). Cada Roda foi um convite para desbravar
novos territórios, desconstruir preconceitos arraigados e construir
pontes de entendimento entre diferentes saberes.
Ao longo desta jornada, pude testemunhar a diversidade de
ideias florescendo como flores únicas em um jardim cuidadosa-
mente cultivado. Sua natureza inclusiva proporcionou um ambien-
te propício para o diálogo respeitoso e a troca enriquecedora de
perspectivas, desafiando-nos a repensar constantemente nossos
próprios entendimentos. A interseção entre nossas reflexões e a
sabedoria de bell hooks (2017) ressoa quando ela evoca Romanos
12:2, instigando-nos a não nos conformarmos com este mundo,
mas a nos transformarmos pela renovação da nossa mente. Esta
citação adiciona uma dimensão espiritual à nossa busca por co-
nhecimento e transformação, inspirando-nos a transcender os
limites preestabelecidos e a abraçar a renovação contínua.
Como uma espécie que compreende a importância da equi-
dade, você se tornou uma bússola orientadora em nosso percurso
acadêmico. Cada encontro foi uma oportunidade de navegar por
águas desconhecidas, desafiando-nos a questionar, aprender e
crescer. E, assim, Paulo Freire nos fala de sermos curiosos episte-
mologicamente. Paulo Freire destaca a importância da curiosidade
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
epistemológica ao discutir a formação crítica dos educadores. Ele
enfatiza a necessidade de os educadores cultivarem a curiosidade,
a sede de conhecimento e a inquietude intelectual (Freire, 2021).
Esses elementos são considerados fundamentais para uma
prática educativa que se compromete com o desenvolvimento da
consciência crítica e a promoção da autonomia dos educandos.
Nos moldes acadêmicos, talvez, devesse desenvolver em relação ao
conhecimento o pensamento crítico alijado em caixas e fugir disso
seria subversão, e prefiro ser subversiva com você. Nesse sentido,
tendo como base que a curiosidade epistemológica representa a
busca por compreender as bases, os fundamentos e os processos
que sustentam o conhecimento (Freire, 2021). Solidifico que ao
cursar o referido componente e ser monitora me permitiu cons-
truir redomas mais fortalecidas nesta dimensão do conhecimento.
Portanto, ao me fortalecer, destaco Freire (2021) ao men-
cionar que ao exercer criticamente a capacidade de aprender, os
indivíduos constroem e desenvolvem certa curiosidade epistemo-
lógica. Ou seja, ao questionar, analisar e compreender de maneira
crítica os conteúdos e as informações, os aprendizes não apenas
acumulam conhecimento superficial, mas também buscando en-
tender as razões e os princípios subjacentes, alcançando para um
entendimento mais profundo do objeto de estudo, estou também
me fortalecendo.
Freire ressalta, ainda, a importância de uma abordagem
ativa e crítica no processo de aprendizagem, onde a curiosidade
epistemológica desempenha um papel necessário na construção
de um conhecimento mais significativo e reflexivo (Freire, 2021).
E nesse contexto, ao expressar minha gratidão, não posso deixar
de reconhecer o papel que você desempenhou na minha e creio
que também na formação dos colegas de jornada, tanto nas dis-
tribuições de informação e formação. Esses meses de jornada me
permitiu agregar valores, conhecimentos e norteou meus passos
como um jogo de luz e sombra no meu caminho enquanto pesqui-
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
sadora. E, portanto, ao continuar e ao trilhar este caminho juntos,
construímos pontes entre saberes, desconstruindo barreiras e,
acima de tudo, vivenciando a diversidade que enriqueceu minha
jornada.
Neste contexto navegante, revisito cada uma de nossas rodas
de conversas que aqui chamo de rotas marítimas, onde explora-
mos as vastas águas do conhecimento e navegamos pelos mares
das “Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais”. Cada
roda foi uma jornada única metodológica/um dispositivo de aula,
e aqui estão as cartografias de nossas viagens:
Rota Marítima 1 - 04/09: Apresentação do Componente e
Concepções de Pedagogias Feministas
O componente foi iniciado pelas professoras regentes da
turma, Ana Lúcia, Eide, Amália Cruz. Na presença das monitoras
Beatriz Coutinho, Josiane Zaco e Sueli Santana e alunos/as que
fizeram parte dessa jornada. Iniciamos nossa rota marítima com
a apresentação do componente, traçando o plano de trabalho e
delineando os instrumentos avaliativos. Juntos, exploramos as
concepções de Pedagogias Feministas com as valiosas contri-
buições de Eide Paiva, Ana Lúcia, e Amália Cruz, que ousaram
ensinar diferente do que se propõe na academia, ousaram ir além
de padrões eurocêntricos tido como normas, para se aprender e
ensinar. E nesse jeitinho de pensar fora da caixinha, reforçaram o
que bell hooks diz sobre esperançar, ensinar e transgredir.
Nos últimos vinte anos, educadores que ousaram es-
tudar e aprender novos jeitos de pensar e de ensinar,
a fim de que nosso trabalho não reforce sistemas de
dominação, imperialismo, racismo, sexismo ou eli-
tismo, criaram uma pedagogia da esperança (hooks,
2023, p. 20).
300
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Rota Marítima 2 - 11/09: Pedagogias Feministas, Teorias e
Práticas de Pesquisa
Nessa rota, mergulhamos nas teorias e práticas de pesquisa
no âmbito do MPED, contando com as inspiradoras palavras de
Marilene dos Santos Queiroz, Daniele Lopes Ferreira e Laís Oli-
veira Abreu.
Rota Marítima 3 - 18/09: Pedagogias Feministas: O que são?
Como se agenciam?
A Professora Cecília Sardenberg, da UFBA, nos guiou por
reflexões profundas sobre o significado e o agenciamento das
Pedagogias Feministas.
Rota Marítima 4 - 25/09: Pensamento Lésbico/Epistemo-
logias Lésbicas
Sob a orientação da Professora Ana Carla Lemos e da Pro-
fessora Suely Messeder, exploramos o pensamento lésbico e suas
epistemologias, mergulhando em teorias e práticas de pesquisa.
Rota Marítima 5 - 02/10: Pensamento Lésbico/Epistemolo-
gias Lésbicas: Teorias e Práticas de Pesquisa.
As Professoras Gersier Ribeiro (MPED - UNEB) e Ana Claudia
Bezerra Macedo (UNB) conduziram-nos por uma rota rica em te-
orias e práticas de pesquisa relacionadas ao pensamento lésbico.
Rota Marítima 6 - 09/10: Pensamento de Mulheres Negras
Recebemos a visita da ativista Altamira Simões, das Candaces,
e da Mestra Vitalina Santos, do PPGEDUC/UNEB, que comparti-
lharam conosco o poderoso pensamento das mulheres negras.
Rota Marítima 7 - 16/10: Pensamento de Mulheres Negras
- Pesquisas Concluídas ou em Andamento.
A Me. Ana Maria (MPED) brindou-nos com reflexões sobre
pesquisas concluídas ou em andamento relacionadas ao pensa-
mento de mulheres negras.
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Rota Marítima 8 - 23/10: Atividade Assíncrona e Produção
das Cartas Pedagógicas
Sob a orientação das Monitoras e da Professora Amália, dedi-
camos essa rota à atividade assíncrona e à produção das preciosas
Cartas Pedagógicas.
Rota Marítima 9 - 30/10: Ginga Feminista - Bases Episte-
mológicas
Mestra Janja (UFBA) e Profª Sueli Santana (MPED/FEL)
presentearam-nos com a ginga feminista e as bases epistemoló-
gicas que alicerçam cada vez mais nossa compreensão do mundo.
Rota Marítima 10 - 06/11: Pedagogia da Desobediência -
Teorias e Práticas de Pesquisa
Vércio Gonçalves (UNEB) e Bruna Benevides - ANTRA - RJ)
conduziram-nos pela rota da pedagogia da desobediência, explo-
rando suas teorias e práticas de pesquisa.
Rota Marítima 11 - 13/11: Transgeneridade e Deficiência:
Por Outras Gramáticas Epistemológicas Inclusivas
Thiffany Odara (Uneb/PPGEDUC), Sara Wagner YorK (UERJ)
e Prof. Amélia Maraux compartilharam insights valiosos sobre
transgeneridade, deficiência e outras gramáticas epistemológicas
inclusivas.
Rota Marítima 12 - 20/11: Indicação da Turma - Apresen-
tação de Alunos
Um momento de destaque para os alunos, que puderam se
apresentar livremente, compartilhando suas experiências e pers-
pectivas sobre as pedagogias feministas. E aqui foram escolhidas
duas oficinas: a confecção de bonecas Abayomi e a oficina de
Turbante.
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Rota Marítima 13 - 27/11: E-book Cartas Pedagógicas
Sob a organização das professoras Ana Lúcia, Zuleide Paiva e
Amália Cruz, discutimos a produção do e-book Cartas Pedagógicas:
Pedagogias Feministas em Co-formação na Universidade.
Rota Marítima 14 - 04/12: Grande Roda de Experiências
Feministas na Pedagogia Universitária
Encerramos nosso percurso com uma grande roda de expe-
riências feministas. Socializamos excertos das cartas pelos trios,
contribuímos, avaliamos e celebramos nossa jornada. Nas ondas
desafiadoras do componente “Pedagogia Feminista e Epistemologias
Decoloniais”, cada aula foi como uma rota marítima, traçando cami-
nhos além dos limites convencionais do saber. Vi este componente
se apresentando como uma bússola ousada, oferecendo não apenas
direção, mas também a promessa de transformação nas águas tur-
bulentas da instituição escolar e na rotina de docentes e discentes.
A rota da pedagogia libertária é trilhada com destemor. Ao
cursar essa disciplina, e enquanto monitora, busquei compreender
os saberes situados, valorizando as diversas experiências históricas
e político-sociais dos sujeitos subalternizados. Cada roda gingada
foi um convite para mergulhar nas águas das experiências, reco-
nhecendo a riqueza de conhecimentos que muitas vezes foram
marginalizados.
Pois como diz Freire (2011), a educação deve ser uma prática
libertadora, envolvendo a conscientização sobre a realidade social
como um catalisador psicológico para a transformação pessoal e
social. Portanto, ao longo dessa jornada, a bússola da coletividade
orienta o olhar para além das margens. A interseccionalidade é
o leme que guia, reconhecendo que a transformação genuína só
pode acontecer quando confrontamos as amarras das práticas
pedagógicas colonizadoras. Este componente não é apenas uma
disciplina, mas uma chamada para a ação, um convite para todos
navegarem pelos mares da inclusividade e da emancipação.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
A bússola dessa jornada pedagógica não se contenta com su-
perficialidades. Ela mergulha nas profundezas das desigualdades,
destacando os marcadores de gênero, raça/etnia e sexualidade. As
epistemologias feministas são como ventos que sopram por sécu-
los, problematizando os nós intrincados entre sexismo, racismo,
imperialismo, lgbtfobia e as práticas pedagógicas que, muitas
vezes, replicam estruturas colonizadoras.
E assim, “navegando nas ondas do saber”, com o componente
curricular “Pedagogia Feminista e epistemologia decoloniais”,
dedico a todos vocês:
Imagem 2 – Bússola do saber.
Fonte: Autora fazendo uso de IA (Bingen Creator) 2024.
Em ondas de conhecimento, nossa bússola a apontar, Peda-
gogia Feminista, a nos orientar.
No mar acadêmico, roda após roda a girar,
Bússola, nossa guia, a nos inspirar.
Na Rota da desobediência, coragem a pulsar, Bússola orien-
tadora, a nos incentivar.
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Transcendendo fronteiras, rumo a inovar, Pedagogia Femi-
nista, sempre a nos guiar.
No diálogo das águas, em cada experiência a navegar,
Bússola decolonial, a nos iluminar.
Cartas pedagógicas, tesouros a revelar,
Bússola da coletividade, a nos conectar.
Ao fechar do ciclo, na última aula a ecoar,
Bússola, agradecemos, por nos inspirar.
Em pedagogias feministas, todas/todes a aprender,
Bússola sempre presente, a nos fortalecer.
Fonte: Coutinho (2024). Texto autoral.
Os desafios que teve/tivemos foram enormes, e acredito que
as professoras regentes tinham uma responsabilidade tamanha
em conduzir o leme deste barco, para com a consolidação das
ações propostas no intuito de chegar às ilhas do conhecimento,
da desobediência e da compreensão.
Essa foi a nossa rota navegada conjunta, uma jornada que
vai além das ondas acadêmicas, tocando os mares profundos das
“Pedagogias Feministas e Epistemologia Decoloniais”. Finalizo
sem concluir dedicando esta carta às professoras Ana Lúcia,
a Eide Paiva e a Amália Cruz, que foram o leme deste navio; a
Josy e a Sueli, que foram monitoras nesse mar navegante, assim
como a todos/as os/as alunos/as que fizeram parte desta rota de
aprendizagem.
Ao compartilhar esta carta, construí uma narrativa, em diá-
logo entre os mares do saber e as práticas transformadoras que
entrelaçou o componente PPGED. Agradeço-o por suas energias,
sabedorias e por eu ter feito parte integrante desta tripulação
que desafia e recria os horizontes da educação. E assim, faço um
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
convite a todos que desejarem participar desse maravilhoso com-
ponente, que não perca a oportunidade de entrar no mar profundo
de sabedoria, coletividade e aprendizado.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia.
V. 1. Tradução: Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa.
2 Ed. São Paulo: Editora 34, 2019.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática
pedagógica. 26 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2021.
FREIRE, Paulo. Ação Cultural: para liberdade e outros escritos. 14 ed. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2011.
HOOKS, bell. Ensinando pensamento crítico. São Paulo: Elefante, 2020.
HOOKS, bell. Linguagens: ensinar novas paisagens novas linguagens. Rev. Estudos
Feministas, v. 16, n. 3, p.857-864, 2008.
JULIO, João Victor. DELEUZE E GUATTARI: o rizoma e a criação no currículo.
PÓLEMOS - Revista de Estudantes de Filosofia da Universidade de Brasília, v.
11, n. 22, p. 301-313, 2022.
306
GINGAS 3
ARTISTAGENS MULTILINGUÍSTICAS
DO COMPONENTE CURRICULAR
PEDAGOGIAS FEMINISTAS E
EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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CARDS-ARTES DOS ENCONTROS DO
COMPONENTE CURRICULAR PEDAGOGIAS
FEMINISTAS E EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS
(2023.2)
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CARDS-ARTES DOS CARTÕES POSTAIS
PEDAGÓGICOS FEMINISTAS
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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(DES)COLAGEM FEITA POR LIZ PARA
AS RODAS GINGAS
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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CARDS-ARTES OUTROS
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
SOBRE AS/ES/OS AUTORAS/US/E
Fonte: [Des]Colagem feita por Liz Mendes pelo Canva nutrido por sensações das
palavras do apresentar-se a si no componente curricular “Pedagogias Feministas e
Epistemologias Decoloniais” (2023).
Amália Catharina Santos Cruz
Professora do Departamento de Ciências Humanas - Campus IV - UNEB;
Doutora em Educação/UFSC, Pesquisadora do grupo e uma das coorde-
nadoras do grupo LEPEL/UNEB e membro TMT/UFSC. Coordenadora e
professora do Curso de Educação Física UNEB/ DCH IV-Jacobina e do
PPGE/MPED.
E-mail:
[email protected]Amélia Tereza Santana Rosa Maraux
Professora do Departamento de Educação - Campus XIV/UNEB; Doutora
em Difusão do Conhecimento/UFBA, Pesquisadora do grupo Formação,
Experiência e Linguagens - FEL/UNEB, Vice Coordenadora do Centro
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de Estudos em Gênero, Raça/Etnia e Sexualidade CEGRES/DIADORIM,
Articuladora Nacional da Liga Brasileira de Lésbicas e Conselheira do
Conselho Nacional de Direitos das Pessoas LGBTQIA+.
E-mail:
[email protected] Ana Claúdia Macedo
Lesbofeminista; Servidora pública e Doutora em Ciências Sociais, pelo
Departamento de Estudos Latinoamericanos - ELA/UNB. Autora do livro
Colonialidade da Sexualidade: implicações sobre violências em relações
lésbicas na América Latina.
E-mail:
[email protected] Ana Lúcia Gomes da Silva
Baiana, jacobinense, eu, Ana Lúcia Gomes da Silva, de 57 anos, ariana
inquieta e desbravadora, tenho clareza de impossibilidade de me definir
e fixar, mas tenho muitas pistas, pois como um ser humano inacabado,
em devir, estamos sempre sendo, o que não vínhamos sendo. Nasci na
Páscoa, que significa passagem, numa “quinta-feira santa”, gestada
de palavras, símbolos, vozes e gestos que me iniciaram no mundo das
linguagens, como sujeito de linguagem. Quem quiser saber mais... siga
a aventura de ler, desler e reler.
E-mail:
[email protected] Ana Luísa Barbosa de Castro
Sou mulher, negra, mãe, professora do IFBA/Jacobina, formada em His-
tória; Especialista em inclusão e Mestranda em Educação e Diversidade.
Por muito tempo, esqueci-me de quem eu era, não compreendia o porquê
das minhas escolhas. Hoje, redescobri quem sou, reconheço minhas
passagens, minhas falhas, minhas vitórias, minhas lutas e tecelagens.
Compreendi a importância do “eu” e escutar a minha voz interior. Estou
aqui pelos meus filhos, meus alunos e, principalmente, pela vontade de
fazer a diferença na Educação e Diversidade inclusiva, para que nossas
diferenças sejam respeitadas, abraçadas e vivenciadas com amor.
E-mail:
[email protected]332
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Ana Paula Neves Lins
Mulher, bissexual, paraense, nortista e amazônida, com orgulho! Faço do
meu território, minha casa, meu lugar de (re)descobertas internas e (con)
vivências marcantes. Formada em Geografia e, atualmente, mestranda
em Diversidade Sociocultural pelo Museu Paraense Emílio Goeldi, ins-
tituição de enorme importância para o desenvolvimento da Amazônia.
E-mail:
[email protected]Andréia Bispo Santos
Natural do Morro do Chapéu. Sou uma colcha de retalhos inacabada:
canceriana de 43 anos, mulher negra, lésbica, casada, professora da rede
municipal - LP, uma sonhadora que ama música e violão. Retornei para a
UNEB no 1º semestre, através da disciplina Educação e Contemporanei-
dade. A princípio, queria ingressar para o mestrado com um projeto sobre
formação do leitor, mas com as discussões que venho acompanhando
desde a outra disciplina, agora não tenho mais certezas. São tantas vozes
que ecoam na minha cabeça pedindo espaço de fala. Feminismo lésbico?
Feminismo negro? Letramento em feminismo negro-lésbico? Não sei!
A única certeza que tenho, neste momento, é que quero ingressar no
mestrado, não por status, mas porque amo as descobertas, porque amo
descobrir que ainda tenho tanto a aprender. No momento só sei cantar:
“Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso, porque já
chorei demais...”.
E-mail:
[email protected]Andressa Ferreira
Tecer linhas sobre si é sempre um momento que exige introspecção. O que
nos define, afinal? Quem sou hoje, certamente, não serei a mesmo daqui
a alguns anos. Provavelmente, as palavras não dão conta de expressar a
complexidade humana. O que falo sobre mim, não me traduz. Não me
resume. São apenas pequenos fragmentos da minha trajetória, em 23 anos,
escolhidos para serem narrados. Tendo em mente que sou um ser inacaba-
do, hoje me constituo, academicamente, como licenciada em História pela
Universidade Estadual do Norte do Paraná e mestranda em História Social
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
pela Universidade Estadual de Londrina. Dentre as aprendizagens que a
formação historiográfica me traz, chamo a atenção para a historicidade da
vida humana, individual e coletiva. Os sujeitos carregam em si o potencial
transformativo de si e do mundo. Neste sentido, sobre nós seres huma-
nos, nada é em essência. Na verdade, tudo está, de acordo com o curso do
tempo no qual estamos inseridos. Quanto a isso, o movimento feminista
e de mulheres há tempos nos ensina. No âmbito de uma estrutura social
androcentrada, elas revolucionaram para que nós obtivéssemos o direito
de acessar espaços acadêmicos como o que nos possibilitou a publicação
desta coletânea. No presente, também projetamos as nossas utopias, que
em grande medida, se traduzem em nossas linhas. Nós revolucionamos
de formas diversas. Inclusive nas resistências cotidianas. Quando, por
exemplo, questionamos e não permitimos formas de violências implícitas
e explícitas, direcionadas sobre nós devido a marcadores sociais de gênero,
raça, classe e sexualidade. Se posso afirmar algo sobre mim, dentro da
esfera que compõe este livro, reafirmo a minha utopia pela justiça social,
sobretudo no que se refere às formas de violências direcionadas às mulhe-
res, considerando toda a diversidade que compõem este coletivo. Sigamos
caminhando, por nós mesmas, e pelas nossas semelhantes. Que o nosso
potencial transformativo, aliado à historicidade do tempo, encaminhe
para o futuro, mais justiça social para todas nós. Que possamos aprender
todos os dias, a nos unir dentro das nossas diferenças.
E-mail:
[email protected] Bianca Dias de Souza
“quando as palavras
me encontraram
eu escrevi em
paredes e peles
e blocos
e cadernos
e muros
folhas e telas
a poesia
me fez livre”.
334
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Com as palavras poéticas de Ryane Leão (@ondejazzmeucoracao),
apresento-me: Sou a Bianca, uma menina-mulher que desde pequena
é apaixonada pelo Universo da leitura (e das literaturas de matrizes
africanas, um adendo) da escrita e das artes. Costumo dizer que no
movimento de escrever, encontrei e encontro o meu lugar. Espaço
esse, de afeto, de partilha, de expressão da vida, de identidade e
de voz (porque quando escrevo, também me coloco, e falo). Aos 17
anos de idade, adentrei a Universidade Federal do Estado do Rio de
Janeiro (UNIRIO), no curso de Pedagogia. E nela, sigo caminhando
e habitando até os dias atuais, no Doutorado em Educação. O co-
nhecimento tem mudado a minha existência e as formas pelas quais
sinto, vejo, interajo e estou no/com o mundo, em sua pluralidade. E
assim, aproveito para deixar a minha autoria - de uma casa-corpo que
problematiza o silêncio, e que pensa, principalmente porque sente
(em sua impermanência):
silêncio. perceba. escute. ele fala sem nem mesmo dizer. ele às vezes grita.
ele pode ser estrondante. ele aponta até para aquilo que não se quer ver.
atente. e nunca se esqueça de quem você é. se dê aquele abraço quando
ninguém tá por perto. fortaleça. Mesmo estando nebuloso, agradeça.
entre luz e sombra, sobreVIVA. acolha. se escolha. o caos ensina. que
lástima seria ter que fingir. eu escolho ser do grupo do sentir. assim eu
vou seguir.
E-mail:
[email protected]Cecília M. B. Sardenberg
Professora Titular de Antropologia, Docente no Programa de Pós-Gradu-
ação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo
(PPGNEIM/UFBA), Pesquisadora do NEIM/UFBA, Co-coordenadora do
Projeto Countering the Backlash, Reclaiming Gender Justice. Editora da
Revista Feminismos. http://lattes.cnpq.br/5848359202151995
E-mail: [email protected]
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Cinthia Pacheco Xavier Araujo
Cinthia nasceu em 09 de junho de 1998 na cidade de São Paulo, cresceu
na cidade de Embu das Artes - SP. Formada em Letras e Pedagogia, aos
23 anos mudou-se para uma pequena cidade do interior da Bahia, Ser-
rolândia, cidade essa de seus pais, que inspira seus estudos no campo
da Literatura e cultura dentro do Programa de Pós-graduação do Mes-
trado Profissional em Educação e Diversidade (PPGED). Atualmente,
é professora do ciclo de alfabetização da rede municipal de ensino da
cidade de Serrolândia.
E-mail:
[email protected] Cynthia Almeida dos Santos
Formada em Geografia pela UNEB Campus IV, dou aula em Itatiaia distrito
de São José do Jacuípe do 6º ao 9º e, também, na EJA e, também, sou
policial Militar e trabalho na região de Jacobina. Meus alunos perguntam
qual profissão eu gosto mais, e eu respondo que amo o que faço, pois as
duas profissões me possibilitam ajudar o próximo. Meu coração salta de
alegria quando vejo um aluno descobrir, através de mim, coisas novas e
vice-versa, pois aprendo muito com eles também; e como policial, o que
mais gosto são as diversas possibilidades: Um dia, estou no atendimento
do 190, no outro, estou trabalhando em uma festa, em outro, estou em
sala de aula com o PROERD (Programa Educacional de Resistência às
Drogas e a Violência) ou na viatura, posso estar trabalhando nas motos
ou na cavalaria, com cães ou na banda da polícia, posso trabalhar na área
da saúde da Polícia Militar ou dirigir o helicóptero da PM, trabalhar no
administrativo, morar em qualquer cidade da Bahia, ou seja, realmente
posso ser ou fazer o que eu quiser, basta querer e me dedicar.
E-mail:
[email protected] Clarice da Silva Coelho
Filha da cidade de Monte Santo - Bahia, é uma mulher que sonha e
batalha todos os dias pela realização das suas utopias. Estudante e
professora de escolas do campo, vê nesse espaço o seu lugar de fala e de
vida. Clarice deseja que as mulheres que, como ela, vivem e com quem
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
convive possam entender que o mundo só é para nós um lugar bonito
se assim o fizermos ser.
E-mail:
[email protected]Dailza Araújo Lopes
Começo dizendo quem sou, através de um trecho da música de Luedji
Luna “um corpo no mundo”: “Eu sou um corpo. Um ser. Um corpo só.
Tem cor, tem corte. E a história do meu lugar. Eu sou a minha própria
embarcação. Sou minha própria sorte”.
Tenho 34 anos, sou pisciana, venho lá de SantaLuz - BA, passo por
Serrinha - BA, faço minha graduação em Pedagogia, me descubro como
mulher negra com a finalização do meu TCC, paro de alisar meus cabelos
e começo a jornada de pesquisa dentro do campo da educação, gênero,
estética negra, feminismos negros, educação e relações étnico-raciais,
raça e gênero e formação de professor/as, a qual me levaria onde estou
hoje. Vou para Salvador fazer mestrado em Estudos étnicos e africanos
na UFBA, e lá permaneço até hoje (risos). Foi no mestrado que descobri
que queria ser professora no ensino superior. Por meio das muitas redes
que me compõem, integro o Coletivo Angela Davis (UFEB) grupo de pes-
quisa ativista em gênero, raça e subalternidades, começo o doutorado em
Estudos Interdisciplinares sobre mulheres, gênero e feminismo (UFBA),
onde pretendo finalizar no próximo ano. Agora, estou como docente na
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), Campus de Jequié,
onde realizo e concretizo cotidianamente meu sonho vivido de ser pro-
fessora no Ensino Superior. Chego até aqui, e desejo embarcar com você
nessa viagem bonita que será nossa disciplina.
E-mail:
[email protected]Elaine Rodrigues Santos Santiago
Mulher-preta-cis-bissexual. Sou formada em Letras com Inglês. Traba-
lho como professora de Inglês, na Prefeitura de Salvador e em Lauro de
Freitas. Sou bastante curiosa, amo escrever contos, bilhetes e poesia.
Estou em re(construção), em análise e de coração grato e unida aos meus
ancestrais, que sempre me acompanham.
E-mail:
[email protected] 337
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Eliane Costa da Silva
Graduada em Pedagogia, Especialista em linguagens, e quase mestre
em Educação. Ao longo da minha vida e percurso acadêmico, sempre
me anulei e me escondi. Tentei me apagar, me negar e me deixar para
trás, enquanto os outros, eu colocava na frente. No final do mestra-
do me redescobri; quero fazer desse novo recomeço um momento de
virada. Quero seguir com essas novas perspectivas para o doutorado,
estou meio confusa quanto às linhas de pesquisa em Educação, talvez
tenha que escolher outra, menos educação. Nessa nova caminhada é
uma oportunidade de me recolocar como ponto central da minha vida!
Nisso que entra o feminismo negro e suas raízes na pedagogia. Novas
oportunidades, novos olhares, nova Eliane!
E-mail:
[email protected] Eliete Fagundes de Jesus Rodrigues
Mestranda em Educação e Diversidade pelo Programa de Pós-Graduação
em Educação e Diversidade (PPGED) da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) - DCH IV - Jacobina. Graduada em Pedagogia pela Universidade do
Estado da Bahia (UNEB) - DCH VII - Senhor do Bonfim - BA. Possui uma
segunda graduação em Letras Língua Portuguesa pela Faculdade Regional
de Filosofia, Ciências e Letras de Candeias, Fac, Brasil. Pós-graduada em
Psicopedagogia Clínica e Institucional pela Faculdade Kurius. Atua como
pesquisadora do grupo de pesquisa em Diversidade, Discursos, Formação
na Educação Básica e Superior (DIFEBA/UNEB). Professora concursada
nos municípios de Senhor do Bonfim-BA e Filadélfia-BA. Gestora desde
2019 da Escola Municipal de 1° Grau de Tijuaçu - Senhor do Bonfim-BA.
E-mail:
[email protected] Elizangela Gonçalves Bastos
Graduada em Pedagogia; Especialista em Psicopedagogia, apaixonada
pela Educação infantil. Sou professora da rede pública municipal de
Várzea Nova - BA. Um ser em constante construção. Mãe de Bruna, vó
de Bernardo e Helena.
E-mail:
[email protected]338
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Estefane Mendes da Silva
Mulher preta, bissexual, amante das literaturas, poetisa, escritora, feminista,
ativista e militante dos direitos humanos. Sou professora, atualmente, REDA
Estadual, de Língua Portuguesa e Redação. Sou licenciada pela UNEB, Cam-
pus XIV, de Conceição do Coité/BA. Especialista em Coordenação Pedagógica
pela Facuminas, Especialista em Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
(FAVENI) e estou pós-graduanda no Ifbaiano/Serrinha em Alfabetização
e Letramento. Faço parte do Coletivo Marielles, Café com Paulo Freire-
-BA, Associação Beneficente e Cultural Revolution Reggae e, também, me
movimento na academia, em dois grupos de pesquisas: Grupo de Estudos
e Pesquisas em Política e Avaliação Educacional (GEPALE-BA) e do Grupo
de Pesquisa, Literatura e Diversidade Cultural: imaginário, linguagens, ima-
gens. A mim, muito interessa as pedagogias, em especial neste componente,
as pedagogias feministas, espero conhecer e me debruçar neste emaranhado
de possibilidades. Também quero entender as epistemologias decoloniais,
acredito que seja a base para novos pensamentos dentro da Educação e na
vida. Na minha prática docente, levo sempre os pressupostos freirianos
comigo, buscando entender as/os sujeitas/os como autônomas/os dentro
do seu processo de aprendizagem, contextualizando os conteúdos com as
realidades dos estudantes, também, trago a amorosidade para a sala de
aula, não é simples, nem fácil, mas, torna tenho comigo a esperança de uma
educação mais humanizadora, traçando caminhos possíveis.
E-mail:
[email protected]Gabriela Carneiro Maciel
Sou graduada em Letras, com habilitação em língua portuguesa e li-
teraturas pela UNEB Campus XIV, Conceição do Coité. Amo as mais
diversas expressões artísticas, aprecio poesias, principalmente quando
são recitadas e amo muito a literatura. Procuro tirar lições e aprendi-
zados das situações e das experiências que vivo na minha caminhada e
estar receptiva a aprender coisas novas. Escolhi essa disciplina visando
aprender mais sobre as questões feministas e decoloniais, que tanto vejo
nas narrativas literárias, mas agora na área pedagógica, que considero
muito importante para a formação e transformação da sociedade.
E-mail:
[email protected] 339
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Josenilda Correia Vieira
Natural de São Sebastião do Passé/BA. Cidadã Jacobinense, onde resido
há 14 anos. Graduada em Direito pela UNEB, Campus IV, hoje aluna
regular (2023.1) no MPED/Jacobina; sou Policial Militar há 15 anos, fui
Instrutora do Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Vio-
lência (PROERD), de 2014 a 2020, e desde o ano de 2018, atuo na Ronda
Maria da Penha desta cidade. A pesquisa que estou realizando surgiu das
minhas inquietações acerca das políticas de enfrentamento da violência
contra a mulher que não incluem os homens agressores (na perspectiva
de ações educativas); entendo que estes também devem fazer parte das
ações que buscam acolher e proteger as mulheres que se encontram em
situação de violência doméstica e familiar. A escolha deste componente
“Pedagogias Feministas e Epistemologias Decoloniais” deu-se em razão
da minha necessidade em aprender mais sobre estas questões e assim
oferecer um melhor serviço para a sociedade jacobinense e região, em
especial, para as mulheres. Estou amando as rodas, amando conhecer a
turma, muito feliz e grata por esta oportunidade. Avante!
E-mail:
[email protected] Juciane Pacheco de Almeida Pacheco
“Gosto de gente, bichos, plantas, lugares, chocolate, vinho, papos amenos,
amizade, amor.”
Citando Drummond, gosto de tudo o que é poesia, é humano, é partilha,
é amor... Meu nome é Juciane, sou professora de Língua Portuguesa da
Educação Básica, sou da cidade de Várzea da Roça, sou baiana e minha
formação é em Letras Vernáculas pela UNEB, Campus IV - Jacobina. Não
consigo ainda trazer/fazer uma definição sobre mim, pois ainda estou em
busca do meu eu, da minha essência nesta jornada que é a vida.
“Não sei quem sou neste momento.
Durmo sentindo-me. Na hora calma
Meu pensamento esquece o pensamento,
Minha alma não tem alma.”
E-mail:
[email protected]340
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Kelline Roberta Ferreira do Nascimento
Mulher, mãe de duas crianças, professora atuante na Educação da in-
fância. Graduada em Pedagogia e Licenciada em Geografia. Natural de
Mirangaba (do interior do município de uma comunidade quilombola
chamada Santa Cruz do Coqueiro). Entro nessa roda com vocês por
concordar com o pensamento de Paulo Freire, que é através do conhe-
cimento que conquistamos a liberdade. Insisto muito para estar aqui e
desejo aprender muito.
E-mail:
[email protected]Luciana Dias Ribeiro
Graduada em Ciências Biológicas, pela UNEB campus VII, filha de agri-
cultores, irmã, tia, esposa e muito sonhadora. Sou uma mulher preta
que estou em constante desconstrução e reconstrução sobre eu e sobre
o que está a minha volta, acreditando cada dia mais na educação mesmo
quando chegam para dizer ao contrário.
E-mail:
[email protected]Maricéia Pereira de Novais
Mãe de duas meninas, professora do Fundamental Anos Iniciais, com
formação em Pedagogia, pela UNEB. Sou do Território Velho Chico, NTE
02. Amo a Educação porque ainda acredito no poder que ela exerce para
transformar a sociedade para melhor com mais justiça e equidade.
E-mail:
[email protected]Marcelo Alves Pinto
Graduado em Letras pela UNEB – Campus IV/Jacobina. Especialista em
Inclusão e Diversidade na Educação, pela UFRB. É professor da rede
estadual da Bahia e acredita que a educação é a arma mais poderosa
para a transformação social, vê nas teorias feministas a oportunidade
de construir um mundo mais igualitário para todxs.
E-mail:
[email protected] 341
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Maria Beatriz Dias Coutinho
Eterna menina em transformação
Piauiense, mãe de dois rapazes,
Professora na educação, entre mil fases.
Doutorado na UnB, meu sonho a conquistar,
No semestre passado, comecei a caminhar na jornada do feminismo.
De volta como monitora, radiante estou,
A aprender com todos, é o que me motiva.
Esta jornada de conhecimento é pura magia,
Com vocês, meus amigos, é minha alegria!
Vamos juntos aprender, crescer, sonhar,
Neste semestre, vamos nos destacar.
Compartilhando saberes, sem nos cansar,
O futuro é nosso, vamos conquistar!
E-mail:
[email protected] Maria Leandra Brandão Santos
Casada, mãe socioafetiva de Enzo Pyetro - uma criança linda a qual deu
cor e sentido à minha vida, casada. Considero-me parda, fruto da mis-
cigenação que forma o nosso país. Sou filha, irmã, esposa e mãe muito
protetora e amorosa. Quero que os meus estejam bem sempre e minha
oração é para que apenas pessoas do “bem” trilhem os nossos cami-
nhos... Quanto à profissão, sou Professora da Rede Pública Municipal e
Coordenadora pedagógica da Rede Pública Estadual da Bahia, atuo na
minha cidade, Cícero Dantas. Já lecionei durante 10 anos em uma cidade
vizinha, Antas, tive que pedir exoneração para assumir outro concurso
e permanecer na minha cidade. Resido em Cícero Dantas, uma cidade
com todas as características de cidade do interior. Minha infância e ado-
lescência foram em um povoado que fica a 9 km de distância da cidade.
Amo a calmaria do interior, gosto de lugares calmos. Sou graduada em
Letras e Pedagogia; já fiz algumas especializações na área da Educação
e, agora, estou “sonhando” cursar o mestrado. A educação foi e é tudo
em minha vida!!!
E-mail:
[email protected]342
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pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Maria Lizandra Mendes de Sousa (Liz Mendes)
Nordestina, sapatão e poeta que anda, por vezes, perdida no ser-em-
-si, mas que tem buscado e lutado, cotidianamente, para se construir
enquanto um ser-para-si. Graduada de Licenciatura em Pedagogia pelo
Campus Amílcar Ferreira Sobral (CAFS), da Universidade Federal do Piauí
(UFPI). Mestranda pelo Mestrado Profissional em Educação e Diversi-
dade (MPED), da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Integrante
do Grupo de Pesquisa Formação, Experiência e Linguagens (FEL) e do
Grupo de Leitura e Estudos Interdisciplinares sobre Gênero e sexua-
lidade (GLEIGS). Colaboradora do Laboratório de Leitura e Produção
Textual [LPT]. Integrante do Núcleo de Pesquisa em Estudos Críticos e
Linguagem (Necril) e do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Extensão em
Saúde, Educação Profissional Tecnológica, Informática e Meio Ambiente
(NEPESEPTIMA). Integrante da Liga Brasileira de Lésbicas e Mulheres
Bissexuais da Bahia (LBL). Ama chá de gengibre com limão.
E-mail:
[email protected]Nara Paixão Sacramento
Sou filha de Marluce Paixão Sacramento e Valmir Dias Sacramento. Mãe
de Sofia, mulher preta, inventiva, criativa e educadora. Bem, sou natural
de Salvador (de parto), mas com o coração no mundo. Sou professora de
Língua Inglesa e trabalho com a disciplina há quase 20 anos. Dei aulas
em cursos de idiomas e, atualmente, trabalho em duas escolas distritais
nas cidades de Santo Amaro da Purificação (terra de Betânia) e em São
Sebastião do Passé, na lendária Maracangalha (Se Nara não quiser ir eu
vou só...). Todos esses atravessamentos me fazem estar no MPED. Sou
uma mãe azul, pois Sofia é uma menina inserida no espectro autista
e essas vivências assim como o ideal de trabalhar com ludicidade me
permitiram ser especialista em Ludicidade e em Psicopedagogia. Além
das minhas vivências profissionais que não estão dissociadas da minha
vida pessoal, porque essas escrevivências nunca estiveram separadas,
sinto-me ainda mais abraçada no programa do MPED. Sinto que aqui
é um lugar de reflexões e (co)criações. Feliz de me juntar nessas rodas!
E-mail:
[email protected] 343
QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Sara Wagner York ou Sara Wagner Pimenta Gonçalves Júnior
Pessoa com deficiência visual, pai, avó e apresentando-se como Tra-
vesti da/na Educação. Professora visitante e associada ao CLAS Uni-
versidade de Pittsburgh - 2023 (Pensilvânia). Professora visitante na
Vanderbilt University - 2023 (Tenesse). É Mestra em Educação (GENI/
ProPEd - UERJ - com bolsa CNPq), Especialista em Gênero e Sexualida-
des (CLAM/Instituto de Medicina Social - UERJ - com bolsa da própria
instituição) e Especialista em Orientação Escolar, Supervisão Escolar e
Inspeção Escolar (ISV). Graduada em Letras - Literatura Inglesa (Licen-
ciatura - UNESA), Pedagogia (Licenciatura/UERJ) e Letras Vernáculas e
Literaturas Brasileiras, Portuguesas e Africanas em Língua Portuguesa
(Licenciatura - UNESA). Jornalismo (UNESA/2021-2023) e é considerada
a primeira travesti/trans a ancorar no jornalismo brasileiro através da
mídia (pós-TV) Brasil 247.
E-mail:
[email protected] Suely Aldir Messender
Possui graduação em Ciências Sociais, pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), mestrado, pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
pela UFBA e Doutorado em Antropologia, pela Universidade Santiago
de Compostela, validado no Brasil pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia - UFBA. É professora titular da Universidade do Estado da
Bahia - UNEB. Foi gerente das Ações Afirmativas da UNEB. Foi coordena-
dora do Doutorado Multi-institucional e Multidisciplinar em Difusão do
Conhecimento e Professora permanente do Programa de Pós-Graduação
em Crítica Cultural do Campus II - Alagoinhas. É atual coordenadora da
Agência UNEB de Inovação. É membro da Comissão Editorial de Perió-
dicos Científico da ABA (Associação de Brasileiros de Antropologia). É
coordenadora do Grupo de Pesquisa Enlace e foi primeira secretaria da
Associação Brasileira de Estudos de Homocultura - ABEH, no decorrer da
gestão de 2010-2012. Foi Gestora do termo de Cooperação Técnica entre
o Ministério Público e a Universidade do Estado da Bahia. Atualmente
é Membro da Câmara Básica de Assessoramento e Avaliação Técnica da
FAPESB. Seus interesses em ensino, pesquisa e extensão estão nas áreas
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de sexualidades, masculinidades, relações de gênero, corpo, relações
étnico-raciais, gestão e difusão do conhecimento, empreendedorismo
social, tecnologia social e baianidade. Desenvolveu o Museu Digital Sa-
beres e Fazeres na Bahia, e o jogo digital narrativo Cocada de Dona Maria.
E-mail:
[email protected]Rosana Mercês Santos
Professora da Educação Básica e Mestranda do Mestrado Profissional
em Educação e Diversidade, do Campus XIV, Conceição do Coité/BA, da
Universidade do Estado da Bahia.
E-mail:
[email protected]Rozane da Conceição Silva Costa
Sou filha de Raimunda e Antônio, sou natural de São Félix - BA, sou
recôncavo e reconvexo! Para citar aquelas coisas que cabem no Lattes,
sou pedagoga pela UNEB Campus XIII (Itaberaba), professora de Edu-
cação Infantil e o trabalho me rendeu uma das maiores riquezas, meu
ex-aluno é também meu afilhado, recheado a bio de amor, eu sou dinda!
E-mail:
[email protected]Vitalina Silva
Professora do Centro Educacional Maria Quitéria - Seduc Camaçari - BA.
Técnica da COPE/SEC-BA na rede de assessoramento ao Monitoramento
e Avaliação dos Planos Municipais de Educação. Pesquisadora do grupo
Política e Gestão da Educação na Universidade Federal da Bahia/UFBA.
Mestranda no MPEJA/UNEB. Vencedora do Prêmio Led da Rede Globo,
na categoria Professor Inovador - Projeto de Educação Antirracista.
E-mail: [email protected]
Vércio Gonçalves
Doutor em Letras - Literatura e Cultura, pela Universidade Federal da
Bahia. Atua como professor de Literatura e Língua Portuguesa na Uni-
versidade do Estado da Bahia. Pesquisa Literaturas e Culturas Africanas
de Língua Portuguesa, com foco nas produções literárias e musicais de
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
pedagogias feministas e epistemologias decoloniais
Moçambique, no período colonial. Pós-doutorando em História pelo
PPGHis-UFMA. É, antes de tudo, cantor e compositor. Tem circulado
com o show “Pedra de Responsa”, em que interpreta as canções de Chi-
co César, mas seu projeto principal é o “Posso Falar”, um show autoral,
em que apresenta suas canções e, mediado por outras artes, narra seu
processo de transição, levando o público a pensar sobre as identidades
trans. Em 2021, junto a Bruno Santana e Leonardo Peçanha, lançou a
obra Transmasculinidades Negras: narrativas plurais em primeira pessoa,
pela Editora Ciclo Contínuo.
E-mail:
[email protected] Yasmim Araújo do Nascimento
minto quando digo que não sou continuidade das mulheres da minha
família, me reconheço em cada uma delas, a força geracional
a bondade divina
a rebeldia
todas elas têm sangramentos
feridas não muito diferentes das minhas
todas causadas por um homem
minha mãe do meio tem uma cicatriz maior; o racismo
essa eu não sei curar
mas escrevo como tentativa
de abrir caminhos
para uma geração de mulheres que me esperam para passar
e não tem sido fácil estar nesse lugar
que parece ser de expectativa, mas entendi que é sobre possibilidades
é muito maior o fardo quando tento fugir dele, porque eu me perco
e não me acho em nenhum canto do mundo
por isso me volto para escrita
lembrar quem eu sou, de onde eu vim
e quem merece meu amor
quem entende minha dor
como traço inerente
antecede a ausência, às faltas
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QUANTAS HISTÓRIAS TÊM AS CARTAS DE QUEM OUSA SE ANUNCIAR?
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eu sempre soube que seria extraordinária
quando aos nove anos sacudi o mundo com as palavras
e desde então nunca mais estive só
aceito a condição de compor cantigas de redenção
me volto pra casa, (de dentro)
aproximo gerações de mulheres
não mais silenciadas.
(alguns poderes são intransferíveis).
E-mail:
[email protected]Zuleide Paiva da Silva
Quem sou eu? Eu sou o que me torno sendo a cada dia em movimentos
feministas. Sou um corpo lésbico, que é corpo político, máquina de
guerra. Na ginga, faço minhas as palavras poema de Florbela Espanca,
que eu amo, e amo muito.
Eu
Eu sou a que no mundo anda perdida,
Eu sou a que na vida não tem norte,
Sou a irmã do Sonho, e desta sorte
Sou a crucificada... a dolorida...
Sombra de névoa ténue e esvaecida,
E que o destino amargo, triste e forte,
Impele brutalmente para a morte!
Alma de luto sempre incompreendida!...
Sou aquela que passa e ninguém vê...
Sou a que chamam triste sem o ser...
Sou a que chora sem saber porquê...
Sou talvez a visão que Alguém sonhou,
Alguém que veio ao mundo pra me ver
E que nunca na vida me encontrou!
(Florbela Espanca, in “Livro de Mágoas).
E-mail:[email protected]
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