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Um Século de Clarice Lispector

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Um século de Clarice Lispector

Ensaios críticos

organização
YUDITH ROSENBAUM E CLEUSA RIOS P. PASSOS
Sumário

1. Capa
2. Folha de rosto
3. Sumário

4. APRESENTAÇÃO

5. PARTE I — FORMAS DO ESTRANHAMENTO


1. As surpresas do narrar em Clarice Lispector: “A quinta história” –
Lucia Helena
2. O infamiliar animismo de Clarice Lispector – Alexande Nodari
3. Homem devorador, animal regenerador: Duas variantes do
masculino monstruoso em Clarice Lispector – António Ladeira
4. O lado de fora do lado de dentro – Noemi Jaffe

6. PARTE II — INICIAÇÃO, ENCENAÇÕES


1. A imprensa como caminho: Os primeiros textos de Clarice
Lispector na mídia impressa – Aparecida Maria Nunes
2. Adolescentes de Clarice nos caminhos turbulentos do feminino –
Eliane Fittipaldi
3. Nem tanto como o barro nas mãos do oleiro: A metáfora da
criação em Clarice Lispector – Mariângela Alonso
4. A idade desfeita: Reversões irreversíveis em Clarice Lispector –
Clara Rowland
5. A perfeição da rosa – Michel Riaudel

7. PARTE III — PERCURSOS


1. Brasília, a extrósima – Carlos Mendes de Sousa
2. No limiar das casas de Clarice Lispector – Clarisse Fukelman
3. Arrumar a forma? – Veronica Stigger
4. A cidade sitiada: O caroço e seus frutos – Regina Lúcia Pontieri
5. O começo e o fim – Vilma Arêas
8. PARTE IV — DIÁLOGOS
1. Sereias: Sedução/Conhecimento/Danação – Adelia Bezerra de
Meneses
2. A potência do pequeno: Notas sobre “A menor mulher do
mundo”, de Clarice Lispector – Eliane Robert Moraes
3. Clarice Lispector, musa inquietante – Gilberto Figueiredo
Martins
4. Literatura e cinema: A paixão segundo G.H. – Nádia Battella
Gotlib
5. Escrituras e pinhos-de-riga: A incomum paleta de cores de
Clarice Lispector – Ricardo Iannace

9. PARTE V — ESTÓRIAS ENREDADAS


1. O tesouro que é só descobrir: Uma leitura de “Os desastres de
Sofia” – João Camillo Penna, Belinda Mandelbaum e Enrique
Mandelbaum
2. As tramas de Laços de família: A palavra em espera – Cleusa
Rios P. Passos
3. A coisa social – José Miguel Wisnik
4. Faces da poética da inocência em Clarice Lispector – Simone
Rossinetti Rufinoni
5. “Trouxeste a chave?”: O significante enigmático em “Evolução
de uma miopia” – Yudith Rosenbaum

10. ÍNDICE DE TERMOS PARA BUSCA


11. SOBRE OS AUTORES

Landmarks

1. Cover
2. Body Matter
3. Table of Contents
4. Copyright Page
Apresentação

Quero que os outros compreendam


o que jamais compreenderei.
Clarice Lispector

Clarice Lispector, aos cem anos de seu nascimento, continua a surpreender


seus leitores, no país e no exterior. A epígrafe nos desafia a seguir lendo
seus textos, a expandir seus múltiplos sentidos, sempre contornando suas
zonas opacas, cheias de mistério e inesgotável decifração. A escritora revela
seu desejo de que se compreenda o que ela jamais compreendeu. Difícil
tarefa que legou aos que se debruçam sobre sua obra. No entanto, ainda que
haja o limite do que também nós não saberemos — e ressalve-se que o não
saber é, ainda, na visão de Clarice, um modo singular de contato entre os
seres —, a potência de seus textos nos envolve, instiga-nos a analisá-los e
nos transforma no encontro com sua escrita.
Por isso, a convivência com a literatura da autora tem gerado uma
produção crítica incessante. É o caso deste volume, Um século de Clarice
Lispector, uma coletânea de ensaios compostos por autores brasileiros e
estrangeiros, estudiosos de Clarice Lispector, que a homenageiam em seu
centenário. Além disso, o livro se faz uma complementação do Colóquio
Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, que teve lugar em fins de 2020,
organizado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da
Universidade de São Paulo.
A seção inicial, FORMAS DO ESTRANHAMENTO, traz autores que tratam das diferentes
modalidades de estranhamento em obras de Clarice, tornando-se um
aspecto constitutivo de grande parte de seus escritos. Sobre o assunto, em
“As surpresas do narrar em Clarice Lispector: ‘A quinta história’”, Lucia
Helena realiza uma leitura desse conto, integrante de A legião estrangeira, à
luz da compreensão do conceito de “estranho”, de Freud, relacionando-o ao
modo peculiar da escrita da autora, baseado na labilidade de formas e na
repetição obsessiva de um núcleo semântico gerador do aprofundamento da
experiência de vida das personagens, sempre postas em desassossego, como
forma de manifestar uma concepção densa do estar no mundo.
Já Alexande Nodari escreve o ensaio “O infamiliar animismo de
Clarice Lispector”, tratando também da recorrência do estranhamento do e
no familiar, na prosa da autora. Podendo ser aproximado ao infamiliar
freudiano, tal motivo, porém, se afasta dele, na medida em que se associa,
por um lado, ao monismo presente nas ficções de Clarice — que postula o
caráter animado de tudo que existe, independentemente das distinções
correntes entre realidade psíquica e material, fantasia e real, vivo e inerte
etc. — e, por outro lado, ao seu perspectivismo, com a existência de
múltiplas naturezas e a possibilidade de comunicação e transformação entre
elas. Assim, o infamiliar clariciano consistiria não no retorno do recalcado,
como em Freud, mas na sobreposição de naturezas, que se dá no encontro
sobrenatural com um outro (sub- ou inumano) que olha para o sujeito.
Sem se fixar explicitamente no estranhamento, mas valendo-se de
traços que o tocam, António Ladeira, em “Homem devorador, animal
regenerador: Duas variantes do masculino monstruoso em Clarice
Lispector”, apoia-se em perspectivas dos estudos sobre a masculinidade e a
teoria junguiana dos arquétipos para enfocar duas personagens masculinas,
considerando-as duas variantes daquilo a que ele nomeia “o masculino
monstruoso”. As personagens são “o homem que janta”, em “O jantar”, e o
búfalo, em “O búfalo”, contos de Laços de família. O crítico argumenta
que, ao estudar essas personagens, em sua relação com as femininas, pode-
se iluminar estas últimas nas suas motivações e conflitos. Além disso,
defende que tanto o “homem que janta” como o “búfalo” propiciam
experiências iniciáticas às “mulheres” que, com eles, formam um “par”,
tendo os episódios em que participam funções formativas ou regeneradoras.
Por sua vez, “O lado de fora do lado de dentro”, de Noemi Jaffe, é um
artigo sobre o conto “A repartição dos pães”, integrante de Felicidade
clandestina, no qual se aborda o aspecto do estranhamento e de que forma
tal aspecto se relaciona às ideias de gratuidade e hospitalidade. Diante de
uma mesa farta que a anfitriã de um almoço oferta, desinteressadamente, a
um grupo de convidados hostis, a narrativa mostra como ocorre uma
transformação na atitude desses convidados. O ensaio analisa as marcas
semânticas, sintáticas e estilísticas que propiciam tanto o estranhamento
como a mudança sofrida pelas personagens.
INICIAÇÃO, ENCENAÇÕES constitui a segunda seção, revelando algumas escolhas da

trajetória de Clarice desde seu início, bem como parte do jogo de


encenações ficcionais que a autora emprega na construção de suas criações
literárias ou jornalísticas em momentos distintos de sua trajetória. Em “A
imprensa como caminho: Os primeiros textos de Clarice Lispector na mídia
impressa”, Aparecida Maria Nunes mostra justamente que, na imprensa
brasileira, a autora publicou ficção e atuou como jornalista. Essa trajetória
de quase quarenta anos permitiu que os primeiros escritos de Clarice
viessem a público e a popularizassem, sobretudo quando as editoras
recusavam seus livros. No trabalho com os gêneros jornalísticos, ela
também foi exemplar ao adotar critérios próprios, não se submetendo
rigorosamente aos manuais de redação. No início dos anos 1940, quando
decide seguir a carreira de jornalista aos dezenove anos de idade, em pleno
Estado Novo, constrói um legado ao fazer parte dos principais periódicos da
ocasião, espólio esse que nos auxilia a compreender a participação de
intelectuais no governo de Getúlio Vargas, mas também dos pressupostos
que nortearam a Clarice Lispector escritora e jornalista.
Cabe, entretanto, apontar o outro modo de iniciação, o da passagem da
infância para a adolescência, explorada no artigo “Adolescentes de Clarice
nos caminhos turbulentos do feminino”, de Eliane Fittipaldi. Nele, Clarice
penetra no conflito que vivem suas personagens entre se inserir na ordem
social (predominantemente burguesa e falocêntrica) de que fazem parte e
resistir às coerções que essa ordem impõe. Um momento importante em que
esse conflito eclode é o da adolescência, limiar entre a infância e a vida
adulta, que demanda uma nova condição subjetiva. Abordam-se, assim,
duas personagens que vivem esse momento de crise e de crescimento: a
protagonista do conto “Gertrudes pede um conselho”, escrito em 1940-41 e
publicado postumamente em 1979, no volume A bela e a fera, e a jovem
inominada de “Preciosidade”, escrito em 1955 e publicado em 1960, em Laços de
família. A ideia é perceber a maneira pela qual os “conceitos de ‘feminino’
e ‘feminilidade’ afetam a caracterização dessas personagens” e,
consequentemente, o corpo do texto — sua escritura.
Em outra perspectiva, Mariângela Alonso enfoca a ideia de “origem”,
no ensaio “Nem tanto como o barro nas mãos do oleiro: A metáfora da
criação em Clarice Lispector”, destacando que tal metáfora constitui uma
das linhas de força da obra da autora, expandindo-se livremente tanto em
suas narrativas como em suas pinturas. Cabe sublinhar que a escrita da
autora não deixa de registrar os impulsos e os anseios do ato criador e sua
expressão. É o que podemos observar em romances como O lustre, Água
viva, A hora da estrela, Um sopro de vida; processo semelhante se observa
nas telas Interior de gruta e Gruta. Nessas obras, porém, a metáfora da
criação surge ancorada à ideia de origem como imperfeição ou falha,
imagem que recolhe o turbilhão originário da vida e do texto, presente ao
mesmo tempo na caracterização das personagens e seus atos, bem como na
própria experiência da escrita. Assim, aí se busca investigar a metáfora da
criação nas produções mencionadas, a partir das formulações de George
Steiner, Roland Barthes e Benedito Nunes.
De outro ponto de vista, ainda relacionando iniciação e encenação, o
artigo “A idade desfeita: Reversões irreversíveis em Clarice Lispector”, de
Clara Rowland, aponta a questão do leitor e sua relação com a obra a partir
de encenações da autora, que afirma, em nota “a possíveis leitores”, na
abertura de A paixão segundo G.H., sugerindo que “ficaria contente” se seu
livro “fosse lido apenas por pessoas de alma já formada”, pois só essas
saberiam que o livro “nada tira de ninguém”. O artigo pretende, então,
interrogar essa advertência, procurando lê-la mais do que como um aviso
para os perigos de uma leitura precoce, como uma das muitas encenações
da obra de Clarice, de rituais sacrificiais de iniciação que põem, em cena, a
interação complexa e decisiva para a ideia de ficção que estrutura essa obra,
entre tempos e idades da experiência humana.
Enfocando ainda questões da encenação, o artigo “A perfeição da
rosa”, de Michel Riaudel, trata da labiríntica e enigmática história “A
imitação da rosa”, constante de Laços de família e centrada em duas
mulheres, Laura e Carlota. Em torno da relação dessas amigas, que remonta
à infância, e da dinâmica monótona do casal Laura e Armando, a trama liga
várias imagens e noções de uma forma muitas vezes paradoxal. Assim,
Cristo e as rosas aparecem ambos como a pior tentação contra a qual se
deve resistir. Do mesmo modo, não é fácil conciliar o horizonte de
autenticidade de Laura com a encenação a que ela se presta. Trata-se de
seguir o caminho que estes valores traçam para compreender o que está em
jogo na “loucura” de Laura, a relação entre os códigos sociais e a “verdade
profunda” dos seres.
A terceira seção, PERCURSOS, contempla a obra de Clarice tanto em seus
deslocamentos espaciais, literal ou metaforicamente, como em seus
movimentos e sentidos ao longo do tempo. O primeiro ensaio, “Brasília, a
extrósima”, de Carlos Mendes de Sousa, trata da junção feita, pela autora,
de seus dois textos sobre Brasília (em Visão do esplendor, de 1975),
possibilitando uma leitura em perspectiva e tendo em conta as datas em que
as “crônicas” foram escritas, os contextos em que aparecem, além do
diálogo estabelecido com outras obras da autora. A “Brasília” de Clarice é
um lugar onde, como que, distraidamente, mil portas se abrem. Nesse modo
de se apresentar a cidade, toda a Clarice está lá dentro, afinal. Como quem
não quer a coisa, são apresentadas reflexões sobre literatura e verdade, vida
e morte, mas também desconcertantes notas humorísticas sobre as coisas
menores do cotidiano. Pretende-se mostrar ainda como o segundo texto
(“Brasília: Esplendor”), em vários planos, anuncia o livro A hora da estrela.
Outras portas se abrem e entra o artigo de Clarisse Fukelman, “No
limiar das casas de Clarice Lispector”, que se propõe a pensar
arquiteturalmente a obra da autora, tomando por fio condutor a janela, como
lugar de (auto)conhecimento e de comunicação entre espaço privado e
público. Antropologia, literatura, artes visuais e fenomenologia fornecem
instrumentos interpretativos para observar as conexões entre o projeto
arquitetural e o projeto ficcional claricianos. A progressiva implosão de
coordenadas espaciais ao longo de sua obra, a favor do fluxo da escrita, leva
às “não casas” e amplia o potencial metafórico da janela: textos-fluidos
abrigados no espaço da página, como se quisessem transcender os limites
do suporte, com impacto sobre os modos de relação do leitor com o espaço-
texto.
Do espaço mais amplo para o menor, mas não menos complexo e
intrincado, Veronica Stigger, no artigo “Arrumar a forma?”, apresenta a
seguinte hipótese: como Cristo, pelas estações da Via-Crúcis a que a paixão
do título A paixão segundo G.H. faz referência, a protagonista de Clarice
Lispector se desloca por vários aposentos de seu apartamento até chegar ao
quarto da empregada, onde para. Seu percurso se interrompe diante da falta
do que arrumar no ambiente limpo, iluminado e organizado de Janair. Se
“arrumar é achar a melhor forma”, quase como “desgasta[ndo]
pacientemente a matéria até gradativamente encontrar sua escultura
imanente”, que forma ela pode extrair do que vê como um “vazio seco?”
Já os dois ensaios posteriores desta seção buscam outro tipo de
percurso; contudo, não inteiramente diferente dos propostos nos três
iniciais, já que se encontram na mesma busca. Nos próximos, o caminho se
faz pelos jogos textuais no decorrer do tempo. No primeiro artigo, “A
cidade sitiada: O caroço e seus frutos”, de Regina Lúcia Pontieri, objetiva-
se ressaltar a importância de A cidade sitiada para a experiência de escrita
que a autora elaboraria nas obras posteriores. Publicado em 1949, o terceiro
romance de Lispector não parece ter recebido até hoje uma atenção mais
cuidadosa. É o que mostra a revisitação de alguns momentos de sua fortuna
crítica. Entretanto, o cotejo de certos aspectos desse romance com trabalhos
posteriores da autora permite perceber o modo como ele lhes foi
determinante.
O segundo ensaio “O começo e o fim”, de Vilma Arêas, não propõe
uma simples comparação entre Perto do coração selvagem e A hora da
estrela, mas pretende determinar o ponto de encontro entre suas diferenças,
que se cruzam na discussão da atividade literária. Desistindo de encontrar
uma resposta para a questão no primeiro livro, Clarice fez um apelo só
respondido 43 anos depois, em A hora da estrela. Neste último, conseguiu
vencer sua dificuldade, sempre discutida por ela e por alguns críticos, de
escrever sobre a classe popular no Brasil.
Em DIÁLOGOS reúnem-se artigos que estabelecem relações intertextuais
entre literaturas nacionais e internacionais e a literatura de Clarice, bem
como conexões das suas narrativas com outros campos do saber ou outras
linguagens artísticas. O primeiro deles, “Sereias:
Sedução/Conhecimento/Danação”, de Adelia Bezerra de Meneses, propõe
um recorte de um estudo do mito odisseico em contraponto com a literatura
brasileira. O intuito consiste em trabalhar o romance Uma aprendizagem ou
o livro dos prazeres, de Lispector, focando sobretudo o motivo temático da
sereia. Na sequência de uma apresentação da leitura que Adorno faz da
Odisseia, em Dialética do Esclarecimento, aborda-se a sereia de um viés
menos explorado na diluição deste mito, ou seja, a inquietante relação entre
sedução e saber, que tanto marca a protagonista Loreley. Isso levou,
inevitavelmente, a um paralelo com o mito bíblico de Adão e Eva,
articulando conhecimento e danação, e explorando a simbologia da maçã,
da Bíblia ao logotipo da Apple.
Em seguida, Eliane Robert Moraes, em “A potência do pequeno: Notas
sobre ‘A menor mulher do mundo’, de Clarice Lispector”, mostra como o
encontro de um explorador francês com uma pigmeia africana é ocasião
para Clarice Lispector interrogar a viagem como conhecimento das
alteridades e refletir sobre a impossibilidade de decifração do outro. Na
contramão dos lugares-comuns da ideologia colonialista, que sustentam a
superioridade dos maiores, a autora aposta na equivalência entre os grandes
e os pequenos, explorando um paradoxo que já se anuncia no título (a
menor mulher é a maior de sua categoria) e se evidencia nos procedimentos
literários da redução e da ampliação, reiterados ao longo do texto.
Lispector se alinha, assim, a uma tradição da literatura filosófica europeia
que, de Swift a Bataille, critica a noção de medida humana em função do
complexo jogo de proporções que subjaz à condição humana. Daí que a
minúscula personagem possa ser aproximada da desmesura de Deus.
Um outro diálogo, desta vez entre escritores que homenageiam seus
pares, tem lugar em “Clarice Lispector, musa inquietante”, de Gilberto
Figueiredo Martins. Partindo da ideia de que, assim como as adaptações
interartes ou traduções intersemióticas, as criações literárias e depoimentos
de escritores produzidos em homenagem a colegas de ofício passam a fazer
parte de suas fortunas críticas, o ensaio revisita e comenta textos escritos
pelo poeta Ferreira Gullar para celebrar a autora Clarice Lispector, após sua
morte, ocorrida em 9 de dezembro de 1977. Ganham destaque dois poemas, um
feito no calor da hora, como reação ao choque da perda; outro, analisado
como contribuição brasileira para uma série de atualizações do topos
literário Ubi sunt? (“Onde estão?”).
Já no ensaio de Nádia Battella Gotlib, cinema e literatura se
encontram. Um dos romances escritos por Clarice Lispector, A paixão
segundo G.H., de 1964, ganha filme assinado pelo cineasta Luiz Fernando
Carvalho, que tem longa e bem-sucedida carreira enquanto diretor. A
proposta de Gotlib é discutir questões referentes a uma leitura comparada
entre essas duas narrativas — a do filme e a do romance —, questões que
envolvem especificidades de linguagens e acarretam diferentes modos de
recepção de tais obras por parte do leitor/espectador. Como considerar
então, criticamente, essa passagem das páginas literárias para as telas de
cinema, já que esse trabalho criativo ultrapassa os limites do que se
considera uma adaptação?
É também na vertente dos estudos comparatistas que se insere
“Escrituras e pinhos-de-riga: a incomum paleta de cores de Clarice
Lispector”, de Ricardo Iannace. O artigo atém-se ao constructo estético em
Clarice Lispector a partir da especulação comparativa entre o romance A
paixão segundo G.H. (1964), as prosas de ficção Água viva (1973) e Um sopro de
vida: pulsações (1978), e duas pinturas em técnica mista sobre madeira que a
escritora produziu. Procura-se, com vistas a esse corpus, trazer a lume tanto
as proposições de Lispector acerca daquilo que nomeia de “figurativo do
inominável” quanto à correlação, em paralelo às inferências da autora, que
evidencie aspectos estruturais de sua linguagem verbal e de sua fatura
pictórica, as quais reverberam uma fragmentação sintática
exponencialmente marcada por instabilidade e processo corrosivo do léxico,
mediante operação reincidente de certas figuras retóricas — em consórcio
com cores arbitrárias, pinceladas veementes e texturas exageradas,
conferindo visibilidade ao campo energético da realidade. Interessa, ainda,
ensaiar uma correspondência entre o que a ficcionista concebe como sendo
a “harmonia secreta da desarmonia” e o espaço diagramado em desenho
quadrilátero, a perspectivar o dormitório de empregada na obra A paixão
segundo G.H. Esse cômodo, a propósito, admite diálogo com dois de seus
quadros: Interior da gruta (1960 [Acervo Instituto Moreira Salles]) e Caos,
metamorfose, sem sentido (1975 [Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa]).
Por fim, a seção que encerra o volume, ESTÓRIAS ENREDADAS, como o próprio
título já diz, enlaça uma grande diversidade de textos de Lispector. A
unidade do conjunto é dada pela proposição de um núcleo principal — seja
a descoberta da escrita, a dinâmica das relações familiares, a força da
matéria social ou as polaridades entre inocência e civilização — de cujo
novelo emana uma rede de contos/crônicas/romances, revelando a
organicidade da obra de Clarice, a despeito da multiplicidade temática. O
primeiro ensaio, “O tesouro que é só descobrir: Uma leitura de ‘Os
desastres de Sofia’”, foi escrito por três autores — João Camillo Penna,
Belinda Mandelbaum e Enrique Mandelbaum — e segue o caminho
sugerido pela própria narradora de “Os desastres de Sofia”, ao dizer que
“meu enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”. Ao
desdobrar algumas histórias enoveladas no conto, os autores desenvolvem a
ideia de que a narrativa pode ser lida como uma parábola, em cujo centro
encontra-se uma outra parábola hassídica em duas versões, a do professor e
a da aluna Sofia. É no encontro promovido entre elas, a partir da versão da
parábola de cada uma, que se vislumbra o nascimento de Clarice como
escritora, quando a aluna vê o impacto que seu texto produz no professor e
a possibilidade de curar através de uma escrita mobilizada por
identificações entre eles, ambos imigrantes judeus acolhidos em terras
brasileiras.
Na sequência, Cleusa Rios P. Passos propõe a leitura de “Os laços de
família”, do livro quase homônimo Laços de família. A análise centra-se na
palavra suspensa que marca a vida de um casal, bem-sucedido social e
economicamente, mas não em suas relações afetivas, pois se calam sobre
seus desejos e angústias. Só se terá acesso a tais aspectos pelo olhar e fluxo
de pensamento de cada um. Aqui, o enfoque privilegiará a figura feminina
que, presa aos laços familiares (pais e marido), evocará experiências
semelhantes das mulheres de “A imitação da rosa”, “Feliz aniversário” e
“Amor”. As tramas que enlaçam todas as personagens — inclusive os
homens — levam-nas a esperar a palavra do outro que não se exterioriza.
Contudo, há sempre uma ruptura desencadeadora de inquietações singulares
e propulsoras de seus incertos destinos.
Novos enredamentos narrativos surgem a partir da presença inequívoca
da questão social em Clarice, mapeada por José Miguel Wisnik no ensaio
“A coisa social”. Partindo da crônica “Literatura e justiça”, Wisnik
circunscreve o que sempre esteve no dilema quase insolúvel da escrita da
autora: “como aproximar a ‘coisa social’ da ‘veemência da arte’?”.
Transitando por textos em que a potência da “coisa inominável de tão
óbvia” é apenas entrevista, como no conto “Amor”, o ensaísta caminha
pelas marcas contundentes da “coisa social” na sensibilidade literária de
Lispector, atravessa o embate entre narrador e personagem n’A hora da
estrela até despontar na vertiginosa crônica “Mineirinho” e nas tensões
cruciais do romance A paixão segundo G.H. Percebe-se, ao final do
percurso, o que Wisnik antecipa em suas páginas iniciais: “Engana-se, pois,
quem pensar Clarice como uma escritora desligada da inquietude e do
fervor social, supostamente mergulhada nos desvãos existenciais e
psicológicos de uma obra da qual a dimensão política estaria ausente […]”.
Ainda dentro da perspectiva de histórias enredadas, Simone Rufinoni
parte da leitura da crônica “O artista perfeito”, desenvolvendo uma reflexão
acerca dos aspectos que o tema da inocência pode assumir na obra da
autora. Sob esse ponto de vista, são brevemente analisados os contos “A
mensagem” e “A menor mulher do mundo”, a novela A hora da estrela e o
romance Água viva. O desdobrar das possíveis acepções da ideia de
inocência na obra da autora entremostra um arco que compreende diversas
recorrências: o anseio de liberdade, a presença do bárbaro, a tendência ao
silêncio, a construção literária do excluído e a vocação experimental.
Fechando o percurso do livro, Yudith Rosenbaum examina, no ensaio
“O significante enigmático em ‘Evolução de uma miopia’”, referente ao
conto do livro A legião estrangeira (1964), aspectos da constituição do sujeito
na cultura, eixo temático importante da obra clariciana. A leitura parte de
um comentário inicial sobre o texto “Menino a bico de pena”, mostrando
afinidades e diferenças com o conto central. O operador de leitura é o
conceito psicanalítico relativo ao “significante enigmático”, formulado por
Laplanche, de modo a investigar como o pré-adolescente protagonista
decodifica (ou não) as mensagens ambíguas no tabuleiro do jogo familiar.
Conforme se vê, o universo clariciano, em seu centenário, proporciona
mil e um pontos de vista críticos. Cabe ao leitor desses ensaios construir o
seu e continuar o movimento infinito de recepção e fruição de uma das
maiores escritoras brasileiras.
AS ORGANIZADORAS
PARTE I

Formas do estranhamento
As surpresas do narrar em Clarice Lispector: “A
quinta história”*
LUCIA HELENA

O que te falo nunca é o que te falo e sim uma outra coisa. Capta essa coisa que
me escapa e, no entanto, vivo dela e estou à tona de brilhante escuridão.
Clarice Lispector, Água viva1

Vamos falar a verdade: isso não é crônica coisa nenhuma. Isto é apenas. Não
entra em gênero. Gêneros não me interessam mais.
Clarice Lispector,
A descoberta do mundo2

De escrita insólita, Clarice Lispector transforma estilos e gêneros e faz, do


tema do desassossego do mundo, um recurso constante, que atinge sua
culminância no inusitado da forma e do conteúdo em um de seus contos, “A
quinta história”.3 As micronarrativas de que esta historieta se compõe são
uma tentação para a metamorfose que seu estilo leva a cabo. Lispector
chama a atenção do leitor para a estranheza de uma ambiência contaminada
de um tom de absurdo, que invade a realidade doméstica do todo dia,
fazendo-a adentrar o patamar do inesperado e quase surreal.
Abre-se o livro A legião estrangeira e lê-se o título do texto em que
ela fala da arte de matar baratas: “A quinta história”. É um conto? É uma
crônica? Ou pertence ao gênero do que ela chama de fundo de gaveta? É
difícil nomeá-lo. Clarice também hesita. A narradora, do mesmo modo,
vacila em batizar o seu relato, que poderia, segundo diz, também se
intitular: “O assassinato”, “As estátuas”, “De como matar baratas” ou,
ainda, “Leibniz e a transcendência do amor na Polinésia”.
Curioso4 texto, com suas várias possibilidades de nomeação e que
parece, ao mesmo tempo, simples e emaranhado, fechado em si mesmo.
Raro seria, também, um título possível para um relato que oferece, entre
outras coisas, uma receita de como matar baratas.
E é assim que o prosaico se insinua como chave de entrada, o que não
é incomum na obra de Clarice Lispector, capaz de dar densidade ao
cotidiano de donas de casa, ou a uma cesta de peras. E, deste modo, a
simplicidade entra em conflito com a quantidade e diversidade de títulos
que inserem o texto na categoria do que, se parece nojento e assustador,
desperta, todavia, um sentimento de coisa inusitada que, ao mesmo tempo,
remete o leitor ao que é familiar, no caso, as baratas, algo que se acrescenta
ao familiar, à casa de família, fazendo com que soe bizarro e provoque
estranheza pelo excesso da repetição.5
Em “Como matar baratas” — lembremos que a expressão consta como
um dos títulos do conto (e/ou crônica) de Lispector — a barata, apesar do
nojo que usualmente causa, é um bicho comum ao cotidiano das casas e,
ainda que seja um animal que se costuma colocar entre o abjeto, o temido e
o assustador, é familiar. No entanto, quando a ela se acrescenta, como
acontece no texto, uma conotação que não se consegue de início descobrir
qual é, a barata que parecia inicialmente algo apenas concreto, animal que
se vai matar, aos poucos ressurge com virtualidades novas, ganhando a
semântica de algo estranho, de algo que vai além do que se diz, projetando
uma dimensão: a do que ainda não foi dito e resta em suspenso. Ao se fixar
na simplicidade da “barata”, coisa esquisita e talvez inadequada para se
tratar na literatura, pensarão alguns, é aí, então, que o texto de Lispector
começa a fisgar o leitor.
Todavia, este convite de entrada com aparente ingenuidade e
prosaísmo é uma porta falsa. Cuide-se o leitor, pois Clarice já começou a
fingir. Tudo no seu fingimento parece, mas não é. Sorrateiramente, a
narrativa vai-se construindo como estranhamento. A nota dissonante e
disfarçada é, em geral, coisa minúscula, uma notação breve da linguagem
minimalista. Uma lista de novos títulos, como no caso, “A quinta história”.
A reclamação banal de quem se queixa de baratas é logo atendida por uma
vizinha prestimosa que oferece a receita necessária de como “matar
baratas” para, deste modo, a incomodada poder se livrar do animal nojento.
Aliás, Lispector, como Kafka (em A metamorfose), utiliza o abjeto para
construir impacto e gerar reflexão sobre a morte, o horror, o abominável. É
oportuno lembrar que os diversos títulos enumerados, em penca, e logo de
saída, revelam-se recurso de alto valor para ampliar o processo de
subjetivação em A hora da estrela, ficção em que treze títulos “pendem” na
folha de rosto, como os cantadores penduram o seu cordel, nas feiras do
Nordeste. Neste conto também. E isto porque a barata vai alçando voo de
significação, deslocando-se do “ser barata” para “ser um ente” e, também,
gente. Esta é uma lenta e poderosa transformação. Em Kafka ela também
ocorre, na Metamorfose, só que de forma muito mais impetuosa.
Em “A quinta história”, temos um texto que age como se a narradora-
protagonista (uma dona de casa, personagem cara a Lispector) fosse “gaga”.
A narrativa empaca no título, logo no início da história, como se a frase não
decolasse e o enunciado ficasse preso no molambo da língua. O texto em
questão apresenta, como se viu antes, quatro diferentes títulos dados pela
narradora como alternativa, em uma história que se anuncia como “a
quinta” a ser narrada. Afinal, pergunta o leitor, qual a denominação dessa
história, com tantos títulos? Se um gago repete as vogais e as sílabas de
uma mesma palavra, ou mesmo repete incessantemente, até o arrepio do
interlocutor, a mesma palavra; a narrativa gaga de Lispector finge que
repete, criando diferenças, um título que não quer acabar nunca. Como se
remontássemos ao relato interminável de Sherazade. Como se fosse uma
imagem da narradora milenar, que contava histórias ao sultão para salvar-se
e continuar viva, Clarice Lispector um dia comentou que “escrever é uma
maldição, mas uma maldição que salva”. Passado o momento do narrador
que contava para a comunidade suas experiências, ou o do narrador viajante
que, ao retornar, relatava suas aventuras, Clarice Lispector, no mundo
líquido moderno, tem como possibilidade, nos anos 1970, lidar com o
fragmento, a falta de unidade, a repetição, a revelação pontilhista da
estranheza em face à solidão das personagens com as quais escolhe lidar.
Pensando além, existe algo em comum entre os quatro títulos
propostos como alternativa para nomear um mesmo texto? Creio que sim e
que este traço de união os divide em dois grupos: três dos títulos, “As
estátuas”, “O assassinato” e “Como matar baratas” falam de algo que se
aproxima da morte. As estátuas são congelamentos do movimento,
sugerem, pois, a própria morte do movimento. Brincar de estátua, quando
criança, é sinônimo de ficar parado por muito tempo. Dentre esses três, dois
remetem ao ato de assassinar e ao de matar baratas, expressões que, até
literalmente, inscrevem a palavra morte, por associação direta. O quarto
título, no entanto, não nos fala da morte. E é um tanto inusitado, se
pensarmos na quase literalidade dos outros três. O quarto título fala do amor
e reúne coisas díspares como o filósofo Leibniz e a Polinésia. Engata-se
Leibniz ao amor quem sabe porque, em seu trabalho na filosofia, na política
e na diplomacia, esse pensador alemão do século 17 discutia a necessidade
de se buscar, na reflexão, um fundamento que ajudasse a extirpar o estigma
mortal das guerras religiosas ocasionadas pela cisão do Cristianismo.
O que teria Leibniz a ver, no entanto, com a Polinésia e o amor na
Polinésia? E o que teria isto a ver com uma receita para matar baratas?
Estas são junções que Lispector cuidou de estabelecer com argúcia. O elo
que as reúne não é evidente, mas atende ao que diz o provérbio italiano “se
non è vero è bene trovato” (“se não é verdade, é um bom achado”). Ou seja,
se não é claro, no entanto existe a sutil e, no caso, delicada urdidura de um
elo: na Polinésia, como símbolo do amor carnal e do amor da hospitalidade,
se oferecem flores — gardênias brancas —, indicação de apreço pelo
hóspede ou de desejo pela pessoa amada. Na flor que se entrega ao hóspede,
o que se oferece é o carinho da intimidade, no qual o interesse carnal foi
sublimado e transformado em uma espécie de transcendência do amor.
Desse gesto resulta um efeito: o afeto desejoso de coligar. Assim, pode-se
ver no texto de Lispector “A quinta história” um relato que dá forma ao
especial enlace de amor e morte, ou: dá-se o enlace da vida contra a morte,
no amor capaz de gerar transcendência, ou: o amor como princípio de vida
e, mesmo, da vida.
Se você, leitor, se dispuser a ir, agora, ao início deste (meu) texto, verá
que uma epígrafe, retirada de (outro) texto da própria Lispector, dá uma boa
sugestão para que se interprete a maneira de ser da linguagem, em Lispector
em geral e nesta “A quinta história”, em particular. Esta escritora, que uma
vez se anunciou “fiandeira de achados e perdidos” disse, em Água viva, um
de seus mais desafiadores ardis narrativos: “o que te falo nunca é o que te
falo e sim uma outra coisa”. Resta, então, perguntar, a bem do fingimento
de Lispector (ou será “a bem da verdade”?): — Afinal, estamos ou não
tratando de baratas? Talvez a receita para matar baratas, dada pela vizinha,
possa até funcionar para matar baratas “reais”. Quem sabe uma de nossas
leitoras — minha ou dela, Lispector — venha a utilizá-la. Mas se este for o
caminho que você escolheu para ler “A quinta história”, procurando baratas
reais, para daí partir e analisar o texto, jamais se questionando sobre a
natureza da barata de que se fala, talvez seja hora de deixar o livro quieto e
começar a pensar.
A linguagem de Lispector é clandestina. Uma linguagem que tem
parte com o demo (como no redemoinho de Riobaldo, em Grande sertão:
veredas), que é parente da cigana oblíqua e dissimulada, na verdade mais
próxima do “bruxo do Cosme Velho” do que da personagem Capitu, em
Dom Casmurro. Lispector usou a expressão clandestina no título de uma de
suas coletâneas de contos: Felicidade clandestina, de 1971. Em seu texto,
portanto, não cabe um leitor que só queira ficar ao pé da letra, regido pelo
dicionário, mas outro que, como no poema de Drummond, busque penetrar
surdamente no reino das palavras, onde esperam os poemas para serem
escritos. Como, então, interpretar essa enigmática composição? Como a
barata que se transforma em outra coisa, este texto de Lispector foi também
mudando. Inicialmente ele foi publicado em A legião estrangeira (1964),
livro de estatuto híbrido, dividido em duas partes. A primeira continha uma
série de contos, dentre eles, “A quinta história”. A segunda parte reunia o
que a autora denominou de “fundos de gaveta”. Sendo parte e sendo todo,
este fragmento do livro se compõe de trechos que migravam de uma
condição a outra, localizando-se, em outros livros da autora, ora como
contos, ora como crônicas, ora como partes de crônicas, romances, contos.
Para complicar um pouco mais, no jogo que Clarice Lispector faz com
esse texto, vê-se outro elemento: mesmo o gênero em que ele era
reconhecido, o do conto, vai ser metamorfoseado em outra coisa. Digo isso
porque, em 1971, em uma crônica do Jornal do Brasil, “A quinta história”
foi reproduzida como crônica, com o título de: “Cinco relatos de um tema”.
Vê-se, pois, que, mesmo na parte de A legião estrangeira destinada a reunir
contos, onde esse texto fora enfeixado, a estratégia da metamorfose de um
fragmento mutante o contamina e lança o leitor futuro, e o atual, em um
território pantanoso, em que o gênero literário se transforma em uma
entidade de linguagem movediça.
Mediante tal procedimento, não apenas “A quinta história” mas
também A legião estrangeira nos lançam em uma “pátria” na qual o
estrangeiro pode ser visto como um estranhamento ou, também, como o
estrangeiro, no sentido de “o hóspede”, aquele a ser hospedado com amor,
na Polinésia. A legião de palavras usadas em A legião estrangeira abona o
substantivo “estranho”, ele mesmo uma palavra em migração, que
transporta a noção de diferença, que remete tanto ao “imigrante” quanto ao
“migrante” e, também, ao “não familiar”, e ao que Freud um dia chamou de
“Unheimlich”.
O estranho, o não habitual, pode ser interpretado como aquela pessoa
ou coisa que está em contato com paragens remotas de nós mesmos e que,
assim sendo, no estatuto das palavras é capaz de recuperar e levar adiante
matrizes pré-textuais. Estamos nos aproximando daquilo que, em literatura,
em especial na de Katherine Mansfield, Virginia Woolf e James Joyce, o
crítico inglês Robert Humphrey chamou de O fluxo da consciência no
romance moderno. Com esta expressão, Humphrey se referia ao fato de
que, no Modernismo e em especial nos contos e romances dos autores
citados, a narrativa simulava alcançar os limites da pré-fala: o discurso que
viria do inconsciente do personagem para o leitor, encravado, mas de forma
independente, no texto do narrador. É o estranho freudiano em ação, na
forma textual.
Trata-se de um procedimento não só do modernismo. Machado de
Assis, em suas obras, notadamente Dom Casmurro e Memórias póstumas
de Brás Cubas, nas quais o recurso aparece com frequência, usou dessa
técnica com riqueza de nuances e de significação, em benefício de produzir
um texto com força inaudita, no qual o inconsciente e o consciente se
encontram conectados, no eixo do discurso literário, a partir de algo que
hoje se denomina fluxo da consciência. A técnica se manifesta, dentre
outras maneiras que lhe servem de recurso, pelo “discurso indireto livre”,
em que a fala do narrador é invadida pelo nível da pré-fala do personagem,
que não tem mais seu discurso introduzido de forma direta ou indireta
apenas, mas em uma forma mista, híbrida também ela. Ou seja, o discurso
indireto livre abona a frase de Mário de Andrade, quando — querendo
indicar que o que escrevia aflorava também de modo inconsciente, como no
fragmento extraído da Pauliceia desvairada — disse: “Falo sem pensar o
que o meu inconsciente me grita”.6
A barata do texto de Lispector vem de longe. Vem de um remoto e
imaginário território de linguagem. Remoto, mas possível de estar presente,
pois o trabalho com a linguagem é — sempre e ao mesmo tempo — um
trabalho com distintas e simultâneas dimensões temporais e textuais, em
incessante contaminação e deslizamento — uma metamorfose ambulante de
sintagmas e paradigmas, metonímias e metáforas. Desse modo, a literatura
deixa entrever que a linguagem é, ao mesmo tempo, uma representação do
mundo e, também, uma forma de demonstração do quanto o mundo é,
paradoxalmente, irrepresentável, o que torna a literatura um fazer que não
espelha o mundo, nem é a representação de um análogo que a antecede.
Vale a pena retomar e organizar um pouco mais a história desse texto
(não a que ele nos conta, mas a história da viagem do próprio texto na série
literária elaborada por Lispector). Como já se disse, ele surge em 1964,
como conto, em A legião estrangeira. Reaparece como crônica publicada
no Jornal do Brasil, em 26 de maio de 1971. Esta crônica, por sua vez,
encontra-se republicada em uma coletânea, A descoberta do mundo, de
1984. Sua movimentação histórica não para aí. Esse conto-crônico (e
conto/crônica) ganhou, de novo, forma de conto em Felicidade clandestina,
também de 1971. Mas não é só isso. O texto está em diálogo, no nível dos
símbolos e alegorias de que se utiliza, com um dos romances mais famosos
da autora, A paixão segundo G.H. (1964). Nele, é marcante a relação sui
generis da protagonista com a barata. E remete a possibilidades
significativas muito amplas, como, por exemplo, a uma coita de amor:
queixei-me de baratas.
De que nos fala mais este texto? Um texto ao mesmo tempo conto e
crônica-fragmento-todo e parte; a que Clarice Lispector denominou,
tomando-o como conto, “A quinta história”, e nomeando-o crônica,
intitulou-o “Cinco relatos de um tema”. Entre outras coisas, o texto nos diz
do mal-estar da escritora com o gênero, entendido como gênero literário,
mencionado na segunda epígrafe desta interpretação. Uma das razões do
incômodo de Clarice Lispector com a categoria dos “gêneros literários”
advém do fato de que ela trata o texto como um tecido, como uma trama de
linguagem que ela urde em permanente metamorfose, o que a leva a
escrever “no limite” das formas existentes — os gêneros — e que
encontrava disponíveis na literatura tanto do passado como naquela que lhe
era contemporânea.
Como escritora, Lispector revela-se distante do amor aos padrões
clássicos (do mundo clássico, o que a toca mais de perto é a forma claro-
escuro do barroco, chamado de “pérola imperfeita”). Ela é mais afinada,
neste sentido, com a caoticidade — benéfica em seu mundo de ramificações
— que a explosão das formas pode provocar. Surgido no barroco, esse jogo
de silêncio e fala, de morte e ressurgimento, de dispersão e recoleção
desenvolveu-se no romantismo, em especial em sua vertente saturnina e
orgiástica, com seu quê de anúncio do decadentismo. Este jogo de
linguagem liberou, dos padrões clássicos, os gêneros lírico e dramático e
mostrou como estavam corroídas as bases do universo épico, em
contradição com a sociedade de consumo. Lukács argumenta, em A teoria
do romance, como teve surgimento, em substituição ao mundo clássico e à
epopeia, o romance: o novo texto do homem solitário em uma sociedade de
valores burgueses, distintos das comunidades existentes antes das
transformações trazidas pela revolução industrial e pelo iluminismo, na
Europa do século 18, além da alteração do contrato social, conforme
vislumbrado por Rousseau. Para além da vitória do romance, uma forma
literária mais livre e experimental foi levada ao extremo pelas vanguardas
históricas europeias de inícios do século 20 e, também, pelo modernismo
dos anos 1920-30 no Brasil. Clarice Lispector, ainda que pertença ao grupo
de renovadores do uso da linguagem, no entanto, não é uma “formalista”,
nem podemos chamá-la de “vanguardista”, no sentido de produzir uma
linguagem perceptual e claramente “experimental”. Seu experimento é
minimalista e opera na fresta da linguagem, razão pela qual o termo
“clandestinidade” é uma forma adequada para nomear o processo de escrita
desta autora magnífica.
O trabalho de linguagem de Lispector é labor em surdina, destinado a
aguçar um tipo de leitor que se aproxime do viés machadiano, oblíquo e
dissimulado. Como disse, em expressão feliz, um de seus melhores críticos,
Benedito Nunes, ela trabalha não só o drama existencial dos homens e
mulheres excluídos e da classe média, mas, e de forma engenhosa, “o drama
da linguagem”. Seu texto se realiza na tensão entre o novo e o já sabido,
utilizando-se do aparentemente banal para produzir o corte da agudeza e o
traço do incomum. Lispector, recorrendo a seu pendor para o minimalismo
no estilo, usa aspas, por exemplo, um recurso de pontuação a que todos
estão acostumados desde a escola primária, mas que ela, no entanto, usa de
forma inesperada, de um modo que transforma em algo incomum a
caracterização da protagonista do conto “A imitação da rosa”, de Laços de
família (1960). Quando o narrador afirma que Laura “estava de novo
‘bem’”, essa notação leva a supor que a “natureza” desse “bem” não é
inocente, nem banal. Quem está bem “entre aspas”, estaria, de fato, bem?
Com as aspas, a narrativa levanta no leitor atento uma suspeita acerca do
bem-estar da personagem. Ainda tratando de Laura, a narrativa informa que
ela, quando menina e aluna do colégio Sacré Coeur, copiava, “com ardor de
burra”, as aulas que não entendia. Surpreende-nos, portanto, a junção entre
termos passíveis de serem compreendidos como acepções em contrário —
ardor e burra — já que quase ninguém reuniria, sem mais, a palavra ardor à
expressão de burra, uma vez que a burrice é tida como algo insosso, sem
atrativo, portanto, sem ardor. Na linguagem estranha de Lispector, a burrice
se enche de intensidade até erótica, a ponto de, em “A imitação da rosa”, as
duas significações opostas hospedarem uma à outra, reunindo os contrários,
não para sintetizá-los, mas para enlaçá-los em um paradoxal ardor de
burra. “A quinta história” é uma teia hospedada na linguagem de Lispector,
pelo erotismo do amor e pelo amor à dialética dos contrários. A linguagem
hospedeira se entretece com o amor pelo estranho, como os laços de flores
enlaçam de amor os hóspedes, na Polinésia, lugar no qual ao estranho se
oferece o colar de flores do amor e o calor do afeto. “A quinta história”
aviva a vontade do amor fraterno na filosofia de Leibniz. Seu apreço à
mônada, em uma de suas obras mais famosas, traduz o gosto pela unidade
concebida como símbolo de uma possível união universal. Uma unidade
paradoxal, porque remete a uma concepção de amor marcada pelo conflito:
entre o amor e o ódio e entre a vida, a morte e a guerra.
Recordando as ilações de Ricardo Piglia, em O último leitor, talvez
coubesse não apenas nos fixarmos no texto, mas também no leitor e nos
leitores que o vão ler. E, neste sentido, o leitor é quem pergunta o que um
texto é e como ele é narrado. O leitor ao texto se reúne, seja ele singelo ou
atilado, num momento de dialogismo, de conversa íntima, de leitura-puxa-
leitura, que puxa lembrança e ativa o processo de significação, num
procedimento erótico e poroso de contaminação. Deste modo, a mediação
do leitor no processamento do sentido do texto não tem fim. Não seria
mentir (ou seria fingir?), pois, dizer que “A quinta história” é, dentre outras
possibilidades, uma estranha história de amor (e de ressentimento),
construída no terreno minado da linguagem de Lispector em que a
significação é explosão e festa, nojo e abjeção em transcendência erótica.
No palco da crueldade de um imaginário que pode gerar Eros, mas também
pode fazer falar as forças destrutivas de Tânatos, inscreve-se e escreve-se,
por entre as frestas da narrativa de Clarice Lispector, uma história de amor
confiscado, em clima de traição e culpa. Componentes que a autora gosta de
buscar no melodrama que permanece no subterrâneo de um imaginário
cheio de surpresas. A força da metáfora no texto literário é vital, uma vez
que “em sua tarefa de desautomatizar as percepções […] a linguagem
literária inspiraria, afinal, vida à linguagem morta”.7 Retornando a Freud,
que observa esta força de um outro ponto de vista, a que denominou de “o
estranho”, ele nos diz que, na literatura, o estranho ganha uma força de
reversibilidade especial. Assim e acima de tudo, é um ramo muito mais
fértil do que o estranho é na vida real, já que:
contém a totalidade deste último e algo mais, além disso, algo que não pode ser encontrado na
vida real. O contraste entre o que foi reprimido e o que foi superado não pode ser transposto
para o estranho em ficção sem modificações profundas; pois o reino da fantasia depende, para
o seu efeito, do fato de que o seu conteúdo não se submete ao teste da realidade. O resultado
algo paradoxal é que, em primeiro lugar, muito daquilo que não é estranho em ficção sê-lo-ia
se acontecesse na vida real; e, em segundo lugar, que existem muito mais meios de criar
efeitos estranhos na ficção, do que na vida real.8 [grifo do autor]

A presença da “receita para matar baratas” e tudo o que sua rede


metafórica pode fazer convergir para o texto, e dele divergir, gera no leitor
o sentimento de que existe um contraste entre a barata e a mulher que
reclama, mas um contraste que as aproxima. Algo contrastante reúne o que
foi reprimido (um possível ressentimento amoroso) e o que foi superado (a
escrita das várias possibilidades de títulos, até que se chega ao amor na
Polinésia, um lugar distante e quimérico, fantasioso, exótico, bem diferente
de uma casa cheia de baratas). O resultado, aproveitando Freud, é algo
paradoxal, o fato de que o conto (ou a crônica?) expõe a transformação
metabólica dos afetos, entre ressentimento, ódio, incômodo, estranheza,
para uma nova estranheza, a Polinésia, mas cercada do sentido do amor. É
dessa tensão vital entre morte e vida, entre a destruição e implantação do
impulso amoroso, que o texto de Lispector se torna hospedeiro da
afetividade que retorna.
Extremamente criativa, Lispector, ao deslocar sua personagem da
ambiência de vida, da morte do amor e do ressentimento, oferece ao leitor
uma substituição de mundos: o da casa, com seus barulhos, o casal com
suas incompatibilidades sob mesmo teto, a violência da morte, ainda que
fosse de uma barata impregnada de alteridade, transferindo a narradora-
personagem para outro habitat, o da cena de amor da afetividade, do
erotismo e da hospitalidade. Este texto, que não é um conto, não é uma
crônica, não é só isto, embora possa ser tudo isso, é ainda mais: não só a
casa, mas um lar. Deste modo, quando no texto de Lispector ocorre a
chance, pela diminuição do ressentimento da narradora, de o tema da barata
desdobrar-se não mais em direção à violência, ao ódio e à morte, mas ser
encaminhado rumo à encenação da vida e do amor, “A quinta história” dá
lugar ao amor na Polinésia, verdadeiro locus ameno de sentimentos
hospitaleiros e afetivos, criando-se uma cena de fulgor em que o familiar do
amor se junta ao estranho da surpresa. “A quinta história” é, pois, um texto
no qual Lispector enreda magnífica interpretação do drama da linguagem e
da afetividade entre os seres, em tensão, no palco do mundo, fazendo-se
uma representação em metamorfose fugidia, do amor e da morte. Forças
que são, ao fim (e ao princípio) de tudo, sentidos inolvidáveis do humano,
transfigurados na teia tênue da ficção, que reassegura o poder da vida contra
a morte, construindo de modo sutil a passagem da “arte de como matar
baratas” à alegoria do amor nas flores da Polinésia.
Espero que o leitor me acompanhe nesta aventura de pensar questões
narrativas, candentes ainda hoje; encravadas no chão histórico da obra de
Lispector e em consonância com os impasses não resolvidos deixados a
nosso cargo, ao longo da história da literatura, dos sonhos, realizações e
fracassos do mundo ocidental; numa época como a nossa, em que o anseio
pela globalização construiu um modelo de capitalismo que atinge o mundo
como um todo.
Nesta ambição, o acúmulo do capital tem sido acompanhado por uma
sensibilidade de outra natureza, violenta e voraz, quase desumana, e é na
arte, talvez nem sempre bem-vinda, nem sempre valorizada, que
encontraremos, sem dúvida, a chance de formular o pensamento crítico e de
valorizar o ato de ler e escrever como atividades do espírito humano no que
ele tem de mais voltado a nos aproximar de uma reflexão indispensável, que
nos leve a compreender que o dinheiro não é, como se pensa, a maior
compensação da vida.
Mais importante do que valorizar uma riqueza apenas material, creio
que é necessário estarmos atentos à importância da construção de uma
sociedade mais justa, na qual se viva com equilíbrio e generosidade a vida.
E na qual o prazer e a beleza em todas as suas modalidades, também na do
belo horrível, possam comparecer e nos habilitar a emoções menos
belicosas do que a da violência que campeia o planeta, cheio de
desigualdades sociais e de perigos iminentes.

NOTAS
1. Lispector, 1973, p. 16.
2. “Máquina escrevendo”, crônica de 29/5/1971 (Lispector, 1992, p. 375).
3. Cf. Lispector, 1964, pp. 147-50.
4. Cf. Freud, 1996, pp. 235-7.
5. Cf. Freud, 1996, p. 238.
6. Como percebe o leitor, “tomei emprestada” a frase do “Prefácio interessantíssimo”, de Mário de
Andrade, que compõe seu volume de poesias Pauliceia desvairada, de 1921.
7. Guerizoli-Kempinska, 2009, p. 209.
8. Freud, 1996, p. 266.
* Este texto é uma versão modificada do último capítulo de meu livro Uma literatura inquieta:
Memória, ficção, mercado, ética. Rio de Janeiro: Editora Caetés, 2016. Houve transformação do
título e de alguns parágrafos. (N.A.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANDRADE , Mário de. “Prefácio interessantíssimo”. In: ______. Pauliceia desvairada: Poesia completa.
São Paulo: Martins, 1966, pp. 12-32.
FREUD, Sigmund. “O estranho”. In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918).

Trad. do alemão e do inglês sob a direção de Jorge Salomão. Comentários e notas de James
Strachey, em colaboração com Anna Freud. Assistidos por Alix Strachey e Alan Tyson. Obras
psicológicas completas de Sigmund Freud. v. xvii. Rio de Janeiro: Imago, 1996, pp. 235-73.
GUERIZOLI-KEMPINSKA, Olga. “A metáfora morta-viva em Kafka”. In: Gragoatá. Publicação do Programa

de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense. Niterói, n. 26, pp. 207-16. 1.


sem. 2009.
HELENA, Lucia; oliveira, Paulo Cesar Silva. Uma literatura inquieta. Rio de Janeiro: Caetés, 2016.

HUMPHREY, Robert. O fluxo da consciência: Um estudo sobre James Joyce, Virginia Woolf, Dorothy

Richardson, William Faulkner e outros. Trad. de Gert Meyer. Revisão Técnica de Afrânio
Coutinho. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1976.
KAFKA, Franz. A metamorfose. Trad. de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

LISPECTOR, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro: Editora Artenova, 1973, p. 16.

______. A descoberta do mundo. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1992, p. 375.
______. “A quinta história”. In: ______. A legião estrangeira. Contos. Rio de Janeiro: Editora do
Autor, 1964, pp. 91-4.
______. “A quinta história”. In: ______. Felicidade clandestina. Contos. Rio de Janeiro: Sabiá,
1971, pp. 147-50.
______. “A quinta história”. In: ______. A descoberta do mundo. Crônicas. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984, pp. 226-7. (Crônica publicada no Jornal do Brasil, 26 jul. 1969).
LÖWY, Michael. Judeus heterodoxos: Messianismo, romantismo, utopia. Trad. de Marcio Honório de

Godoy. São Paulo: Perspectiva, 2012.


LUKÁCS, George. A teoria do romance. Trad. de Alfredo Margarido. Lisboa: Presença [s.d.].

______. A alma e as formas: Ensaios. Trad. de Rainer Patriota. Intr. de Judith Butler. Belo Horizonte:
Autêntica, 2015.
NUNES, Benedito. O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 19٨9.

PIGLIA, Ricardo. O último leitor. Trad. de Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
O infamiliar animismo de Clarice Lispector
ALEXANDRE NODARI

Digamos que, se essa palavra [unheimlich] tem algum sentido na experiência


humana, é o da casa do homem. Deem à palavra “casa” todas as ressonâncias
que quiserem, inclusive astrológicas. O homem encontra sua casa num ponto
situado no Outro para além da imagem de que somos feitos.
Jacques Lacan

1.Muito antes da tradução recente, levada a cabo por Ernani Chaves e Pedro
Heliodoro Tavares, consagrar em círculos psicanalíticos “O infamiliar” para
verter Das Unheimliche, de Freud (traduzido ao português anteriormente
como “O estranho” ou “O inquietante”), a palavra aparece três vezes em um
livro de Clarice Lispector de 1960. Que isso se dê em uma obra intitulada
justamente Laços de família parece apontar para o copertencimento entre
familiar e infamiliar de que falava Freud, que formam, como coloca
Cleyton Andrade, “opostos sem exclusão mútua”. Afinal, continua o
psicanalista, o infamiliar constitui “uma surpreendente alteridade do
mesmo, do íntimo”, “o familiar que retorna num lugar em que sua
familiaridade se desfaz por um momento”.1 De sua parte, Laços de família
parece apontar para a radicalização de um duplo movimento presente desde
o início na ficção clariciana: por um lado, os laços familiares, socialmente
familiarizados, aparecem não só para unir, como também para prender,
enlaçar, servindo como instrumentos de domesticação que alocam cada um
em seu lugar; e, por outro, nas margens do familiar, nas bordas dos laços do
domesticado, começam a aflorar cada vez mais uma série de figuras que
depois dominarão quase que por completo sua obra — “loucos”, criados,
animais, espaços “naturais” domesticados na cidade, cercados por ela
(jardins zoológicos ou botânicos) etc. Como uma verdadeira legião
estrangeira — de sentido completamente oposto à da formação militar com
esse nome —, tais figuras vão ganhando cada vez mais o centro da cena da
obra de Clarice, questionando e revelando a violência das relações
domesticadas e domesticantes. Como dirá João Camillo Penna, “a família
está ali sempre para ser margeada, para fazer aflorar a margem. E, nesses
textos, claramente são os laços da família, os fios da domesticidade que se
esgarçam, para deixar ver uma exterioridade real que rompe, um estrangeiro
em legião, estranho, experimental […]. Esses outros ‘infamiliares’ em série,
nessa imensa, infinita reescrita do Unheimliche freudiano”.2

2. Todavia, a homonímia oculta um equívoco. Por trás da semelhança


manifesta, há uma diferença latente entre o infamiliar freudiano e o
clariciano. Comecemos por Freud. O “efeito de infamiliar” se produz, para
ele, quando a “prova de realidade” (a diferenciação entre o que é interno, da
ordem psíquica, e o que é externo, da realidade material e simbólica
partilhada socialmente), é, digamos assim, posta à prova e falha, ou, ao
menos, vacila. Trata-se de um “conflito de julgamento” que se dá, entre
outros casos, “quando as fronteiras entre fantasia e realidade (Wirklichkeit)
são apagadas, quando algo real (Real), considerado como fantástico, surge
diante de nós”.3 Que o fantástico possa emergir como real, em substituição à
realidade “material”, aquela partilhada simbolicamente e que deveria
aparecer como tal, é o que possibilita a emergência do sentimento de
infamiliaridade: duplos, seres inanimados que se indistinguem dos
animados, coincidências cuja aleatoriedade fica em xeque por sua
constância, em suma, todo um domínio que se pode chamar de sobrenatural.
Por isso, Cleyton Andrade irá dizer que se trata da “invasão de uma
realidade por outra que já estava lá”, o que gera uma indeterminação do que
se deve tomar como real.4 Essa outra realidade, como “já estava lá”, não
emerge do nada, pela primeira vez, e sim como retorno do recalcado, de
uma cena, se diria, originária: “esse infamiliar”, diz Freud, “nada tem
realmente de novo ou de estranho, mas é algo íntimo à vida anímica desde
muito tempo e que foi afastado pelo processo de recalcamento”, a saber, o
animismo:
A análise de casos da ordem do infamiliar nos remeteu à antiga concepção animista de mundo,
que se caracterizava pelo preenchimento do mundo com espíritos humanos, pela
supervalorização narcísica dos próprios processos anímicos, pela onipotência de pensamentos
e pela técnica da magia construída a partir disso, pela distribuição das forças mágicas
cuidadosamente escalonadas entre pessoas estranhas e coisas (mana), bem como por todas
essas criações com as quais o ilimitado narcisismo desse período do desenvolvimento se
defende da objeção imposta pela realidade. Parece que todos nós, em nosso desenvolvimento
individual, atravessamos uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos e que não
nos afastamos dela sem que ela nos legue restos e rastros capazes de expressão, de tal modo
que tudo o que hoje nos aparece como “infamiliar” é a condição para que esses restos da
atividade psíquica animista ainda nos toquem e estimulem sua expressão.
Ainda que se possa argumentar, como Cleyton Andrade faz, que
“selvagem e civilizado não” operam, aqui, “como marcadores de distinção
entre natureza e cultura, mas como uma outra gramática para o
copertencimento entre positividade e negatividade”, nem toda a matização
presente, tanto em O infamiliar quanto em Totem e tabu, desfazem por
completo o laço que o argumento freudiano faz entre ontogênese e
filogênese, a criança e o “primitivo”, a “pré-história individual e [… a] pré-
história dos povos”.

3. Passemos a Clarice. Como tenho proposto em outros lugares, o monismo


professado por ela, enunciado já em Perto do coração selvagem quando
Joana entoa “Tudo é um”, não diz respeito somente à unidade entre seres
vivos e entre o orgânico e o inorgânico, o animado e o inanimado, mas
também àquela entre, para usar os termos de Freud, realidade e fantasia (ou
ficção).5 Daí o procedimento que Camillo Penna chama de
“desliteraturização”,6 tão frequente em sua obra, bem como a famosa
formulação de G.H.: “Vou criar o que me aconteceu. Só porque viver não é
relatável. Viver não é vivível. Terei que criar sobre a vida. E sem mentir.
Criar sim, mentir não. Criar não é imaginação, é correr o grande risco de se
ter a realidade”.7 Não há em Clarice uma distinção de natureza entre
realidade interior (psíquica) e exterior (material), entre o plano do
imaginário e o do simbólico, entre a fantasia e uma partilha coletiva do que
seria o externo.8 Assim, ao apontar que a “realidade não é fenômeno
puramente externo”, ela não estava apenas marcando a igualdade de
estatuto entre a realidade interior e a exterior, mas também advogando a
reversibilidade (ou seja, no limite, a indistinção) entre ambas, como fizera
antes com a relação entre o abstrato e o figurativo: “Tanto em pintura como
em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece
apenas o figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos
visível a olho nu”.9 Por isso, não se deve tomar os abalos pelos quais
passam suas personagens como meramente psíquicos, na linguagem
patológica da loucura, e sim como verdadeiros abalos sísmicos,
ontológicos, não redutíveis a um fenômeno interior. Quando, por exemplo,
o mundo de Ana vacila em “Amor”, após a visão do cego, é, de fato, o
mundo-de-Ana que vacila:
Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham
um ar mais hostil, perecível… O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam,
as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas na rua
eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por
um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.
Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se
pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com
que não o eram.10

E mais tarde, esse mundo outro para o qual “o cego a guiara” e que se
consubstancia no Jardim Botânico, é claramente definido pela narradora
como não se limitando a uma realidade interna, mas, ao contrário, como
extremamente palpável também: “Ao mesmo tempo que imaginário — era
um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e
tulipas […]. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que
apodrecia”.11
Ou seja, se os acontecimentos que poderiam ser reputados como
“fantásticos”, mágicos ou sobrenaturais, não se dão meramente dentro das
personagens, não se limitam a uma “realidade psíquica”, então não
surpreende que o mesmo monismo esteja presente na indistinção entre o
real e o mágico, o natural e o sobrenatural. Assim, numa entrevista, a
autora, ao ser perguntada “como encara o sobrenatural em sua vida?”,
responderá: “Olha, o natural é sobrenatural também. Não pense que está
longe, não. O natural já é um mistério…”.12 E em Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, a protagonista se dará conta justamente de que “a vida
era sobrenatural”: “O que lhe veio à mente foi a levemente assustadora
certeza de que os nossos sentimentos e pensamentos são tão sobrenaturais
como uma história passada depois da morte”.13 Mas, se não há, em Clarice,
uma distinção de natureza (ontológica) entre a realidade interior e a
exterior, entre fantasia (sobrenatural) e real (natural), isso implica também
que não pode haver uma “indeterminação” entre eles, tampouco um
“conflito de julgamentos” ou uma vacilação da “prova de realidade”, dos
quais, no esquema freudiano, derivariam o infamiliar. Como, então, ele
emerge na sua obra?

4. Grande parte dos enredos claricianos, por isso mesmo rarefeitos, gira em
torno de uma mesma situação: personagens que, diante de um, digamos,
lugar-comum, uma cena cotidiana e banal, familiar, são levadas a um
estranhamento radical. O infamiliar, assim como em Freud, “não está
longe”: do mesmo modo que o natural já é sobrenatural, o infamiliar se
inscreve (ao menos potencialmente) já no próprio familiar. Uma passagem
de A paixão segundo G.H., que relaciona explicitamente o viver, o
sobrenatural e o infamiliar, aponta para isso, ao mesmo tempo que indica o
processo pelo qual tal relação se desfaz: “Coisa sobrenatural que é viver. O
viver que eu havia domesticado para torná-lo familiar”.14 É como se, para
Clarice, os “laços de família” (familiarizantes, domesticantes), as relações
sociais naturalizadas e, no limite, o processo mesmo de humanização (como
ocorre em “Menino a bico de pena”) impedissem e patologizassem como
loucura isso que constitui, na verdade, a “visão da realidade”.15 Contudo, tal
visão não cessa de acontecer — ou de aparecer —, sempre por meio de um
encontro, o encontro com um outro que está nas margens dos laços
familiares do cidadão de classe média (o paradigma da normalidade das
sociedades ocidentais industrializadas), com figuras que essa sociedade
considera baixas, inumanas ou subumanas e que produz o estranhamento (a
infamiliaridade) da cena familiar — seja ele um objeto de uso comum de
repente estranhado (como em “O relatório da coisa”), seja uma planta (“A
imitação da rosa”), seja ele um bicho, seja ele alguém de outra classe social
(empregadas, mendigos), seja alguém de uma condição física “anormal”,
com todas as aspas (o cego de “Amor”, por exemplo). Trata-se, de fato, de
um encontro no sentido forte, na medida em que esse outro não apenas é
olhado pelo sujeito, pelas personagens de Clarice, mas olha de volta: esse
outro não é apenas objeto do olhar alheio, mas sujeito da ação de ver. É
assim que, nas ficções claricianas, até mesmo um despertador pode aparecer
dotado de visão (e, logo, de subjetividade): “Será que o Sveglia me vê? Vê,
sim, como se eu fosse um outro objeto”, pois “é mais gente do que gente”;16
o mesmo valendo para o ovo de “O ovo e a galinha”, que se inicia com a
seguinte frase: “De manhã na cozinha sobre a mesa vejo o ovo”, para logo a
seguir inverter a relação: “O ovo me vê”.17 Num contínuo que vai do
inanimado ao animado, tudo o que existe parece, na obra clariciana,
potencialmente capaz de ver, de pensar, de ser gente. Mas, sem sombra de
dúvida, são os encontros com os animais os mais abundantes. Ratos (como
o de “Perdoando Deus”), as inúmeras galinhas, cachorros e cavalos, a ostra
(já presente em “Amor” como objeto da visão, e que em Água viva se
mostrará pensante), e, como caso mais emblemático, a barata de A paixão
segundo G.H., que faz a protagonista perceber a sobrenatureza da vida, que
a faz entrar no que chama de “mundo primário”:
A barata com a matéria branca me olhava. Não sei se ela me via, não sei o que uma barata vê.
Mas ela e eu nos olhávamos, e também não sei o que uma mulher vê […]. A barata não me via
diretamente, ela estava comigo. A barata não me via com os olhos mas com o corpo. […] E eu
— eu via. Não havia como não vê-la […]. Eu a via toda, à barata.18

Assim, se o outro, mesmo não humano, e mesmo um objeto, uma


coisa, algo inanimado, se revela um ser vivo, um sujeito, então estamos
diante de um animismo, de um “mundo todo vivo”.19 E é isso que as
personagens veem ao serem vistas pelo outro, é isso que constitui o que a
própria Clarice chamou de “estado de graça”, em diversas obras (e que,
como mostrou Camillo Penna, não pode ser equacionado à epifania no
sentido teológico):
No estado de graça, via-se a profunda beleza, antes inatingível, de outra pessoa. Tudo, aliás,
ganhava uma espécie de nimbo que não era imaginário: vinha do esplendor da irradiação
quase matemática das coisas e das pessoas. Passava-se a sentir que tudo o que existe — pessoa
ou coisa — respirava e exalava uma espécie de finíssimo resplendor de energia. Esta energia é
a maior verdade do mundo e é impalpável […]. Não como se tivesse estado em transe — não
houvera nenhum transe —, saía-se devagar, com um suspiro de quem teve o mundo como este
o é.20

Mas, se esta é a “maior verdade do mundo”, “o mundo como este o é”


(e não um estágio superado ou superável, como em Freud), por que não é
visto sempre? Aqui, é importante retomar uma distinção feita por G.H.: por
um lado, “o estado de graça existe permanentemente”, ou seja, “Todo o
mundo está em estado de graça”, mas, por outro, “A pessoa só é fulminada
pela doçura quando percebe que está em graça, sentir que se está em graça é
que é o dom, e poucos se arriscam a conhecer isso em si”.21 Assim, se
“estado de graça é inerente”, o que costumamos chamar de “estado de
graça” é a percepção, a visão disso (do mesmo modo que se o natural já é o
sobrenatural, a percepção disso é o que costumamos chamar de
sobrenatural). No monismo clariciano, como vimos, o sobrenatural não está
sobre o natural, não o transcende, mas constitui a própria natureza, dando-
se a ver com o encontro que infamiliariza o familiar, que indomestica o
domesticado, que estranha o naturalizado: “Ao explorar o espaço do
sobrenatural”, afirma Renata Sammer, Clarice “o torna imanente,
desafiando os limites entre os corpos, humanos e não humanos. As
oposições entre transcendência e imanência, natureza e cultura, são assim
desfeitas”.22 Mas tal visão, tal conhecimento, como alerta G.H., traz consigo
sempre um risco, também enunciado pela protagonista de Uma
aprendizagem…: “Lóri achava que estava certo o estado de graça não nos
ser dado frequentemente. Se fosse, talvez passássemos definitivamente para
o ‘outro lado’ da vida, que esse outro lado também era real mas ninguém
nos entenderia jamais: perderíamos a linguagem em comum”.23

5. “É que um mundo todo vivo tem a força de um Inferno”:24 o perigo


acarretado pelo “estado de contato”, como G.H. define o encontro com o
outro, é o da transformação completa de si, o que ela chama de
“despersonalização”. Assim, a narradora de G.H. vai se tornando barata ao
longo do romance,25 e a sua narrativa constitui uma tentativa não só de dar
conta dessa experiência, mas também de fazer frente a ela e de garantir o
retorno à condição humana. Ser transformado por aquilo (e naquilo) que
nos vê constitui um risco disseminado pela obra clariciana (risco que é, ao
mesmo tempo, um desejo, mesmo que a contragosto, assim como, para
Freud, mas de modo radicalmente indiferente, haveria um desejo infantil de
semelhança entre o inanimado com o animado, de inexistência de “uma
rigorosa diferença entre vivos e não vivos”, que, recalcado, retornaria na
forma do efeito de infamiliaridade). Os exemplos poderiam se multiplicar,
do “Seco estudo de cavalos”, em que “Só os cães ladram pressentindo o
sobrenatural” da transformação da protagonista, que “veria as coisas como
um cavalo vê”,26 à célebre crônica “Bichos”:
às vezes me arrepio vendo um bicho. Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim
quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho, e me
confundo toda, fico ao que parece com medo de encarar meus próprios instintos abafados que,
diante do bicho, sou obrigada a assumir, exigentes como são, que se há de fazer, pobres de nós.
Conheci uma mulher que humanizava os bichos, conversando com eles, emprestando-lhes suas
próprias características. Mas eu não humanizo os bichos, acho que é uma ofensa — há de
respeitar-lhes a natura — eu é que me animalizo […]. Não ter nascido bicho parece ser uma de
minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso
responder senão ficando desassossegada. É o chamado.27

E é por essa possibilidade de transformação radical que as personagens


muitas vezes tentam evitar o olhar do outro, como quando a protagonista de
“O búfalo” se vê diante de um quati no zoológico, passagem em que fica
claro o motivo da transformação e suas consequências:
Recomeçou a andar em direção aos bichos […]. Não conseguiu ir muito adiante: teve que
apoiar a testa na grade de uma jaula, exausta, a respiração curta e leve. De dentro da jaula o
quati olhou-a. Ela o olhou. Nenhuma palavra trocada. Nunca poderia odiar o quati que no
silêncio de um corpo indagante a olhava. Perturbada, desviou os olhos da ingenuidade do
quati. O quati curioso lhe fazendo uma pergunta como uma criança pergunta. E ela desviando
os olhos, escondendo dele a sua missão mortal. A testa estava tão encostada às grades que por
um instante lhe pareceu que ela estava enjaulada e que um quati livre a examinava.28

Aqui, o desvio do olhar vem muito tarde, e, mesmo que brevemente, o


mundo vacila e ocorre uma inversão ou troca de perspectiva (que se repetirá
ao final, como que numa radicalização dessa mesma cena, agora entre a
personagem e o animal que nomeia o conto). Eis o risco, eis no que consiste
a transformação: adotar a perspectiva do outro e, desse modo, estranhar a
própria (ver “as coisas como um cavalo vê”, como se deseja no “Seco
estudo”, significa, evidentemente, ver-se como cavalo, e não mais como
uma humana, não mais identificar-se com os demais humanos). Assim,
como vimos, o olhar do despertador Sveglia, em um mesmo gesto, inverte a
relação entre sujeito (pessoa) e objeto (instrumento) e converte a narradora
de “O relatório da coisa” naquilo que ele “é”, na medida em que a vê “como
se eu fosse um outro objeto” (e o conto trata justamente, entre outras coisas,
da objetificação dos homens produzida pela divisão do tempo em unidades
iguais e vazias proporcionada pelo relógio e instrumentos de “medição”,
que, mais do que medir algo previamente dado, o constituem).
Trata-se, portanto, de uma concepção não só animista, como também
perspectivista, em que tudo que existe (espécie viva, objeto etc.) não só é
dotado de visão, agência, subjetividade, ponto de vista, como também,
atrelado a isso, um mundo ou natureza próprios.29 “A partida do trem”
parece enunciá-lo explicitamente, quando a narradora afirma, em referência
ao cachorro que:
Ulisses, se fosse vista a sua cara sob o ponto de vista humano, seria monstruoso e feio. Era
lindo sob o ponto de vista de cão. Era vigoroso como um cavalo branco e livre, só que ele era
castanho suave, alaranjado, cor de uísque. Mas seu pelo é lindo como o de um energético e
empinado cavalo. Os músculos do pescoço eram vigorosos e a gente podia pegar esses
músculos nas mãos de dedos sábios. Ulisses era um homem. Sem o mundo cão.30

Do “ponto de vista de cão”, “Ulisses era um homem”, i.e., sujeito —


mas sem o “mundo cão” que caracteriza o “nosso” mundo humano,
demasiado humano. Ou seja, em Clarice, como corolário dessa concepção,
o infamiliar (o sobrenatural) não emerge, como em Freud, quando se dá
uma indeterminação entre duas realidades (a psíquica e a material, a interna
e a externa) de um mesmo sujeito, e sim quando há o encontro de duas
naturezas de dois sujeitos diferentes que se sobrepõem e parecem
sobredeterminar a realidade:31 uma sobrenatureza. Não se trata do retorno
de crenças (Freud fala em “crença infantil”, “crenças animistas”), que o
desenvolvimento psíquico individual e dos povos teria recalcado e/ou
“superado”, mas da (re)emergência da percepção da existência do
animismo, da existência de mais de um mundo ou natureza, que o processo
de (auto)domesticação, familiarização, teria ocultado (inclusive, mas não
só, pelos perigos que sua visão comporta). O infamiliar, em Clarice, é a
Stimmung do encontro sobrenatural entre mundos ou naturezas.

. A sobrenatureza, afirma Marco Antonio Valentim,


6

é o princípio que opera uma comunicação equívoca entre mundos divergentes: como propõe
Viveiros de Castro, acentuando o caráter ontológico-político do conceito, “o sobrenatural não é
o imaginário, não é o que acontece em outro mundo; o sobrenatural é aquilo que quase-
acontece em nosso mundo, ou melhor, ao nosso mundo, transformando-o em um quase-outro
mundo”.32

Um dos modos dessa “comunicação equívoca” aparece no topos ex-


tópico indígena do “encontro sobrenatural na mata”, em que o sujeito
(humano) encontra “um ser que, visto primeiramente como um mero animal
ou uma pessoa, revela-se como um espírito ou um morto, e fala com o
homem”,33 “situação”, diz Viveiros de Castro, “em que o sujeito de uma
perspectiva […] é subitamente transformado em objeto na perspectiva de
outrem”.34 É, de certo modo, o que se passa com as personagens claricianas
quando, diante do olhar do outro, são transformadas nele. Contudo, a
transformação não é o único resultado possível do encontro sobrenatural:
se, como aponta Viveiros de Castro, “a Sobrenatureza é a forma do Outro
como Sujeito”,35 essa forma, nas ficções claricianas, não é unívoca.
Em um importante e potente artigo recente, Renata Sammer definiu a
“sobrenatureza” em Água viva como “o que torna possíveis as
transformações e o contato entre mundos distintos”.36 E, de fato, o “contato”
é crucial nessa obra (e talvez em todas as outras) da autora: assim, a
narradora falará do “estado de contato com a energia circundante”, “contato
com o invisível núcleo da realidade”, ao mesmo tempo, um “contato seco e
elétrico consigo, um consigo impessoal”, um “contato com uma realidade
nova” e “um contato com a vida primitiva animálica”.37 Trata-se, vale frisar,
de um movimento que não é unidirecional, mas recíproco: a personagem
tanto toca quanto é tocada por aquilo que toca.38 Desse modo, um dos
exemplos invocados por Sammer (numa referência de Clarice a Rilke) é
justamente uma cena em que a narradora vê e é vista por um animal, sem
que o resultado seja a transformação (só) dela: “Uma vez olhei bem nos
olhos de uma pantera e ela me olhou bem nos olhos. Transmutamo-nos.
Aquele medo. Saí de lá toda ofuscada por dentro […]. Estou com saudade
daquele terror que me deu trocar de olhar com a pantera negra”.39
“Transmutamo-nos”, “trocar de olhar com”: aqui, a transformação é de mão
dupla, uma troca recíproca de naturezas. O “terror” (e também a saudade
dele, sentida posteriormente) se justifica, pois, além da possibilidade de
passar para o “outro lado da vida” e perder a “linguagem comum” (a
transformação total de si no outro), essa troca se dá na forma de uma
“entrega” (e “não existe nada mais difícil que entregar-se totalmente”).40 Ao
menos é o que lemos numa das mais belas passagens de Uma
aprendizagem, o encontro de Lóri com o mar:
Aí estava o mar, a mais ininteligível das existências não humanas. E ali estava a mulher, de
pé, o mais ininteligível dos seres vivos. […] Ela e o mar. […] Só poderia haver um encontro
de seus mistérios se um se entregasse ao outro: a entrega de dois mundos incognoscíveis feita
com a confiança com que se entregariam duas compreensões. […] Lóri olhava o mar, era o
que podia fazer.41

Aqui, a inversão de gêneros prenuncia a entrega recíproca (“o mar, a


mais ininteligível das existências não humanas”, “a mulher […], o mais
ininteligível dos seres vivos”), e a oposição apenas aparente entre
“existências não humanas” e “seres vivos” (afinal, uma existência não
humana pode ser um ser vivo) aponta para o monismo animista de Clarice
que torna possível o encontro sobrenatural se dar entre o animado e o
supostamente inanimado (o mar se revela, poderíamos dizer, uma água
viva).
Em A hora da estrela, presenciamos algo semelhante, em que a
diferença das duas naturezas transmutadas não é aquela entre duas espécies
de seres vivos, mas também entre um ser vivo e uma “existência não
humana”, só que, agora, ficcional, a saber, entre um autor (Rodrigo S.M.) e
sua personagem (Macabéa): “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e —
um rufar de tambor — no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo.
Tanto nós nos intertrocamos”.42 Essa “intertroca” parece constituir, ao lado
da transformação (ou previamente a ela), um dos modos privilegiados de
emergência do infamiliar, do encontro sobrenatural. Se G.H. passa, de fato,
por um devir-barata, antes disso, porém, há um intercâmbio existencial de
naturezas. Retomemos a cena em que a barata olha a narradora:
Mas se seus olhos não me viam, a existência dela me existia — no mundo primário onde eu
entrara, os seres existem os outros como modo de se verem. E nesse mundo que eu estava
conhecendo, há vários modos que significam ver: um olhar o outro sem vê-lo, um possuir o
outro, um comer o outro, um apenas estar num canto e o outro estar ali também: tudo isso
também significa ver.43

Esse tipo de formulação reciprocante — “a existência dela me existia”


— aparece seguidamente nos encontros claricianos com a alteridade: em
“Bichos”, numa referência à relação entre um médico e sua rosa, lemos que
eles “haviam podido se viverem um ao outro profundamente, como só
acontece entre bichos e homens”.44 Se o encontro sobrenatural parece se dar
quando duas naturezas se interpenetram, então é possível que haja uma
sobredeterminação recíproca de ambos.
Além disso, nem sempre a transformação, quando ocorre, é total. O
infamiliar pode emergir também como uma contaminação entre mundos: o
contato, mesmo que parcial, pode gerar efeitos, gerar trocas mesmo que
inaparentes. Para ficar na crônica recém-citada, se uma das suas frases
iniciais é “Um animal jamais substitui uma coisa por outra”, mais adiante,
encontramos uma formulação muito semelhante, referente agora às relações
entre seres humanos e animais, usada para explicar por que a narradora
dava aos seus filhos bichos de espécies diferentes: “é que as relações entre
homem e bicho são singulares, não substituíveis por nenhuma outra”.45 É
como se o contato com os animais acabasse fazendo com que a relação com
eles fosse regida pela sua natureza (“eu não humanizo os bichos, acho que é
uma ofensa — há de respeitar-lhes a natura — eu é que me animalizo”).
Mas há ainda outra forma em que “a forma do Outro como Sujeito”
pode tomar forma em Clarice, caracterizada pelo mais cruel de seus
personagens, o (criminoso) professor de matemática, como entendimento,
quando diz, em referência ao cão que abandonou, ou melhor, para ele:
embora meu, nunca me cedeste nem um pouco de teu passado e de tua natureza. E, inquieto,
eu começava a compreender que não exigias de mim que eu cedesse nada da minha para te
amar, e isso começava a me importunar. Era no ponto de realidade resistente das duas
naturezas que esperavas que nos entendêssemos: Minha ferocidade e a tua não deveriam se
trocar por doçura: era isso o que pouco a pouco me ensinavas, e era isto também que estava se
tornando pesado. Não me pedindo nada, me pedias demais. De ti mesmo, exigias que fosses
um cão. De mim, exigias que eu fosse um homem. E eu, eu disfarçava como podia. Às vezes,
sentado sobre as patas diante de mim, como me espiavas! Eu então olhava o teto, tossia,
dissimulava, olhava as unhas. Mas nada te comovia: tu me espiavas. A quem irias contar?
Finge — dizia-me eu —, finge depressa que és outro, dá a falsa entrevista, faz-lhe um afago,
joga-lhe um osso — mas nada te distraía: tu me espiavas. Tolo que eu era. Eu fremia de
horror.46
Não nos enganemos: o que o cão propõe não tem nada de pacífico, daí
o narrador não poder aceitar de modo algum e desviar seu olhar, como que
ciente de que “Quem se recusa à visão de um bicho está com medo de si
próprio”.47 Trata-se, antes, de uma proposição utópica ou ex-tópica, mesmo
sobretópica, em que as diferentes naturezas coexistiriam em sua própria
conflituosidade, no (não-, entre- ou sobre-)lugar do seu próprio friccionar-
se: a utopia clariciana de uma comunidade da existência em que o acordo (o
entendimento) não é uma abdicação do conflito e da diferença em um
metalugar, mas o lugar mesmo em que o conflito e a diferença têm lugar.
Pois o “entendimento” proposto se daria no “ponto de realidade resistente
das duas naturezas”, justamente ali onde a diferença aparece enquanto
diferença, onde o encontro aparece enquanto encontro, justamente ali onde
as duas naturezas se friccionam ao máximo para constituir um ponto de
realidade sobredeterminado reciprocamente por ambas, e sem que nenhuma
delas se anule, sem que nenhuma delas ceda à outra. O real (o infamiliar, o
sobrenatural, o “invisível núcleo da realidade”, a “visão da realidade”)
emerge aqui como um ponto resistente, ao mesmo tempo de contato e
intervalo (não-contato), toque e conflito. E o entendimento nesse ponto
resistente, no real, é, no fundo, um entendimento recíproco desse ponto que
resiste, da resistência desse ponto (ao entendimento), entendimento
do/sobre o não entendimento recíproco, afinal, como diz G.H., “Toda
compreensão súbita é finalmente a revelação de uma aguda
incompreensão”.48 Trata-se, em suma, do entendimento da diferença, em que
é a diferença que (se) entende, mais uma forma do “encontro de seus
mistérios”, da “entrega de dois mundos incognoscíveis feita com a
confiança com que se entregariam duas compreensões”. O entendimento em
jogo assemelha-se, portanto, à percepção do estado de graça, o saber
peculiar que dele emana:
Era como se viesse apenas para que se soubesse que realmente se existia. Nesse estado, além
da tranquila felicidade que se irradiava de pessoas lembradas e de coisas, havia uma lucidez
que Lóri só chamava de leve porque na graça tudo era tão, tão leve. Era uma lucidez de quem
não adivinha mais: sem esforço, sabe. Apenas isto: sabe. Que não lhe perguntassem o que,
pois só poderia responder do mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se.49

Eis, assim, uma possível definição do sobrenatural, enquanto real


último, segundo Clarice Lispector: o ponto resistente do/no encontro entre
mundos. A realidade, sobrenatural por si só, está nesse encontro, se situa
nele, em suma, é o próprio encontro de mundos, a sua percepção, o seu
entendimento: como diria Riobaldo, “o real não está na saída nem na
chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”. E esse ponto de
realidade resistente talvez seja, ao fim e ao cabo, o ponto que habitamos, a
nossa casa (“o viver”), casa sobrenatural, sempre outra, sempre também do
outro, contato entre mais de uma natureza, casa que domesticamos para
tornar familiar, mas cuja infamiliaridade não cessa de emergir quando,
sobrenaturalmente, no encontro com outro, a encontramos (percebemos) e
(a) entendemos (em) toda a nossa incompreensão (mútua).

NOTAS
1. Cleyton Andrade. Comunicação sem título apresentada na atividade preparatória para o XXIII
Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, em 24 ago. 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=VPEdy5hkwbo. As demais citações de Cleyton Andrade provêm
dessa fala.
2. João Camillo Penna, comunicação privada.
3. Sigmund Freud. O infamiliar. Trad. de Ernani Chaves e Pedro Heliodoro Tavares. Belo Horizonte:
Autêntica, 2019. As demais citações de Freud provêm dessa edição eletrônica.
4. Cf. “Animismo e indeterminação em ‘Das Unheimliche’”, de Christian Dunker, presente na edição
citada de O infamiliar.
5. Cf. Alexandre Nodari. “A vida da ficção: apontamentos sobre o feminino, a escritura e a
transformação em Clarice Lispector”. In: COUTINHO, F. ; ALENCAR, S. (Orgs.). Visões de Clarice Lispector:
ensaios, entrevistas, leituras. Fortaleza: Imprensa Universitária UFC, 2020, pp. 13-33.
6. João Camillo Penna. “O nu de Clarice Lispector”. Alea, 12(1), pp. 68-96, 2010.
7. Clarice Lispector. A paixão segundo G.H.: edição crítica. Madri: ALLCA XX, 1997, p. 15.
8. Id. Encontros. Evelyn Rocha (Org.). Rio de Janeiro: Azougue, 2011, p.83.
9. Id. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 31.
10. Id. Laços de família. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp. 22-3.
11. Ibid., p. 25.
12. Clarice Lispector, Encontros, op. cit., p. 161.
13. Id. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 140.
14. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., p. 13 [grifo nosso].
15. Id. Uma aprendizagem…, op. cit., p. 69.
16. Clarice Lispector. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 57-8.
17. Id. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp. 49-50.
18. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., p. 50.
19. Ibid., p. 16.
20. Clarice Lispector. Uma aprendizagem…, op. cit., pp. 131-2 [grifos nossos].
21. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., pp. 93-4.
22. Renata Sammer. “Sobrenatureza, Água viva: o conceito à luz da ficção de Clarice Lispector”.
Remate de males, 40 (1), pp. 205-21 (citação pp. 219-20), 2020.
23. Clarice Lispector. Uma aprendizagem…, op. cit., p. 133 [grifo nosso].
24. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., p. 16.
25. Cf. Eduardo Viveiros de Castro. “Rosa e Clarice, a fera e o fora”. Revista Letras, 98, pp. 9-30, 2018;
Alexandre Nodari. “‘A vida oblíqua’: o hetairismo ontológico segundo G.H.”. O eixo e a roda, 24(1),
pp. 139-54, 2015.
26. Clarice Lispector. Onde estivestes de noite. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 40-2.
27. Id. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 334-7.
28. Ibid., p. 130.
29. A referência aqui, escusado dizer, é a Viveiros de Castro, mas também às variantes ocidentais do
perspectivismo, de Leibniz a Ortega y Gasset, passando por Nietzsche.
30. Clarice Lispector. Onde estivestes de noite, op. cit., p. 33.
31. A “sobredeterminação” aqui parte do sentido conferido ao termo por Freud em A interpretação
dos sonhos: um único elemento manifesto do sonho pode ser determinado por mais de uma série de
pensamentos latentes, não se reduzindo, portanto, a nenhuma delas em específico. A ressalva é de
que, em nosso uso do conceito, não estamos lidando com sonhos e pensamentos, mas mundos ou
naturezas.
32. Marco Antonio Valentim. “A sobrenatureza da catástrofe”. Revista Landa, 3(1), pp. 3-25 (citação p.
11), 2014.

33. Eduardo Viveiros de Castro. A inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, p. 397
[grifos no original].
34. Id. “O medo dos outros”. Revista de antropologia, 54(2), pp. 886-917 (citação p. 902), 2011.
35. Id. A inconstância da alma selvagem, op. cit., p. 397 [grifos no original].
36. Renata Sammer. “Sobrenatureza, Água viva”, op. cit., p. 214 [grifo nosso].
37. Clarice Lispector. Água viva. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, pp. 13, 21, 28, 62 e 44.
38. Cf. Alexandre Nodari. “O indizível manifesto: sobre a inapreensibilidade da coisa na ‘dura
escritura’ de Clarice Lispector”. Revista Letras, n. 98, pp. 83-113, 2018.
39. Clarice Lispector. Água viva, op. cit., p. 73.
40. Id. A descoberta do mundo, op. cit., p. 334.
41. Id. Uma aprendizagem…, op. cit., p. 78 [grifo nosso].
42. Id. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2017.
43. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., p. 50.
44. Id. A descoberta do mundo, op. cit., p. 337.
45. Ibid., pp. 332-4.
46. Id. Laços de família, op. cit., pp. 122-3.
47. Id. A descoberta do mundo, op. cit., p. 334.
48. Id. A paixão segundo G.H., op. cit., p. 12. Trata-se de um motivo recorrente na prosa clariciana.
Cf., por exemplo, a crônica “Não entender” em A descoberta do mundo, op. cit., p. 172.
49. Id. Uma aprendizagem…, op. cit., pp. 131-2.
Homem devorador, animal regenerador: Duas
variantes do masculino monstruoso em Clarice
Lispector*1
ANTÓNIO LADEIRA

INTRODUÇÃO

No universo de Clarice Lispector, as personagens femininas e as respectivas


marcas de género geram um interesse crítico crescente que remonta, para
não ir mais longe, aos anos 1970. O mesmo não se poderá dizer dos
personagens masculinos. Se a questão do feminino em Lispector é
relativamente polémica, mais o será a questão da masculinidade, na sua
articulação com os personagens masculinos, muitas vezes tidos como pouco
significativos num universo ostensivamente não masculino. A escassez de
estudos sobre este tema, na minha opinião, constitui uma lacuna a
preencher. A crítica brasileira Bernadete Grob-Lima afirma que uma certa
“corrente feminista” “omite em seus estudos as personagens masculinas e
todo o seu esplendor. Não se fala do desempenho de Martim [A maçã no
escuro], Dr. Lucas, Perseu, Mateus [A cidade sitiada], Ulisses [Uma
aprendizagem ou o livro dos prazeres], Daniel [O lustre]”.2
A forma como estudo a masculinidade e os personagens masculinos
em Clarice Lispector* segue, em parte, a proposta dos “masculinity studies”
(originários do mundo anglo-saxónico), uma subdivisão dos estudos de
género. Estudar a masculinidade neste universo, como se imagina, é
acrescentar controvérsia à polémica já mencionada. Nem todos encontram
utilidade no estudo do género masculino na sua especificidade, enquanto
categoria gendered e já não como modelo universalizante da experiência
humana, como tem sido o caso até há pouco tempo. A minha abordagem
baseia-se na sociologia (área onde nasce este campo de estudos),
nomeadamente no trabalho do americano Michael Kimmel que, na esteira
de Pierre Bourdieu (no livro Masculine Domination), defende o lema
“igualdade de género”, expressão que, parecendo simples e justa, não deixa
de ser complexa e incompreendida. Aqui parto da premissa de que tanto o
homem como a mulher se encontram, de certa maneira, em situação de
desajuste relativamente ao papel que a sociedade patriarcal lhes atribui;
embora nem sempre compreendam a origem específica do seu mal-estar.
Lucia Helena afirmava há alguns anos: “Os personagens de Lispector […]
estão sempre tensamente submetidos à tradição patriarcal em sua dinâmica
de obediência a valores que, se aparentemente se mostram mais vantajosos
para os homens, acabam por aprisionar e reprimir todos, não importando o
sexo, a classe, a etnia ou a idade”.3
Recorrendo à teoria junguiana dos arquétipos, pretendo trabalhar dois
personagens masculinos que considero constituírem, de certa maneira,
“tipos”, embora não no sentido de “tipos sociais”. Serão, se se quiser,
“arquétipos”, uma vez que os encontramos, recorrentemente, em diferentes
pontos da obra, em forma de variantes, ou parcialmente, em intersecção
com outros arquétipos. Eu diria que o “arquétipo” lispectoriano é diferente
de um arquétipo no sentido mais convencional (sendo verdade, além disso,
que não sigo exactamente a definição de Jung), porque nunca se dão
propriamente recorrências exactas; existem, sim, regularidades de
elementos em circulação e recomposição permanentes, à medida que se
viaja na obra. Estes materializam-se em certo tipo de imagem, de
personagem, em certo tipo de situação diegética, em alguma forma de
conflito, de encontro ou desencontro etc. A hipótese que aqui proponho é de
que a obra, ao colocar estas figuras masculinas em interação (geralmente)
com as femininas,* acaba por revelar aspectos destas últimas que teriam
permanecido ocultos caso a interacção não tivesse sido analisada. Por outras
palavras, interrogar os personagens masculinos desta forma — tendo em
conta a sua especificidade, na sua relação com o seu par feminino — acaba
por enriquecer o nosso entendimento das próprias personagens femininas
(e, naturalmente, da obra onde estas se inserem). Escolhi dois tipos, ou dois
personagens-arquétipos, presentes em dois contos: o homem que janta
exuberantemente no conto “O jantar”; e o animal que é objecto do ódio da
protagonista no conto “O búfalo”.
Podemos dizer que estes arquétipos — enquanto caricaturas e símbolos
que também são — se encontram na margem do sistema patriarcal, não
constituem, digamos, um masculino realista, mas aquilo a que chamaria
uma forma de masculino radical e alegórico: o masculino monstruoso.
Nesta linha junguiana, como dizia, procuro explorar a natureza
essencialmente dupla dos arquétipos — constituindo cada arquétipo, na
verdade, um par arquetípico: homem-mulher; sendo que ambos os polos de
cada par arquetípico se encontram numa relação dinâmica entre si; têm
sinais opostos, mas estes sinais podem alternar, substituir-se.

HOMEM QUE JANTA, BÚFALO QUE OBSERVA

Tanto o “homem que janta” como o “búfalo que observa” podem


representar o animus junguiano da mulher. (Bem sei que o narrador do
conto “O jantar” é um homem, mas aqui procuro explicar por que, assim
mesmo, este poderá representar o polo feminino destas interacções
arquetípicas). Ora, o animus é — segundo Jung — a projecção feita, pela
mulher, do seu princípio masculino (oculto) que, com frequência, se
originou no pai desta e que ela projecta nos objectos do seu interesse
amoroso. Isto indica que estas figuras masculinas, ao serem “construções”
do desejo ou da repulsa das mulheres, não deixam de constituir uma parte
dos próprios polos femininos que integram estes pares arquetípicos. Por
outras palavras, os personagens masculinos constituem uma parte das
próprias personagens femininas; os monstros masculinos não deixam de ser
uma criação de quem os observa, e de quem deles fala obsessivamente. A
energia e sentimentos que a mulher projecta no homem, no outro, no outro
género, representam aquela energia e sentimentos que ela mesma tem
relativamente a uma parte de si mesma. Isto explica porque faz sentido
considerar tanto o “búfalo” como o “homem que janta”* como duplos dos
seus pares “femininos”.
Além da natureza dupla de cada arquétipo, ambos se relacionam em
função de uma complementaridade: o homem que janta completa o búfalo e
vice-versa. (A esta ideia regressarei.)
Pela presença do onirismo, de uma certa atmosfera mágica (não tanto
no enredo, mas na linguagem e nas imagens), pelas provas de superação ou
iniciáticas (no sentido da autodescoberta) por onde se veem conduzidos
heroína ou herói, pela repetição de motivos e arquétipos, não é
excessivamente arriscado propor que o mundo de Clarice Lispector é afim
dos contos de fadas. Ora, os contos de fadas, longe de serem insignificantes
histórias para crianças, constituem uma das expressões mais relevantes e
directas da matéria arquetípica humana, constituindo a “anatomia do
homem”, como terá afirmado Jung.4
Entrando na matéria do conto, “O jantar” apresenta as impressões de
um homem que come de forma sôfrega num outro homem que come de
forma discreta. Aquele personagem é designado como “o velho comedor de
crianças”,5 com as óbvias ressonâncias míticas dos contos de fadas. O
observador, embora homem, é possuidor do que chamaria uma
masculinidade não hegemónica, relativamente à época e grupo social. A sua
masculinidade é diminuída (ou “aumentada”, depende da perspectiva)
contrastando gritantemente com a masculinidade do homem-monstro. Esse
homem frágil que voyeuristicamente observa e regista esta história, é a
“mulher” que Clarice Lispector não deixa de ser, mesmo quando disfarça o
seu género. Não devemos esquecer que o conto “O jantar” tem a sua origem
(o primeiro ensaio de um texto posteriormente ampliado) numa curta cena
do romance Perto do coração selvagem. Nessa cena, quem observa o
“homem que janta” é a protagonista, Joana, entre fascinada e enojada.
Destacam-se duas coisas: a óbvia tensão sexual da cena em que a
protagonista, “antes de casar”, perde simbolicamente a virgindade.
Perdendo-a, ela ganha preparação para a próxima etapa da vida. O homem
que janta faz — obviamente — uma das coisas que melhor definem os
monstros ou os animais que amedrontam as crianças: come, mastiga, devora
ameaçadoramente. Note-se também que, como consequência dos que
observam, tanto Joana (no romance) como o observador (no conto) perdem
o apetite perante a sofreguidão do homem, reforçando simbolicamente o
que não são nem desejam ser: monstros hipermasculinos. Enojado com a
cena que testemunha, o observador termina o conto recusando a sua
refeição: “empurro o prato”;6 na cena do romance, Joana tem um acto
equivalente, arrepia-se, “estremece” diante do seu “pobre café” que —
aposto — nunca chega a terminar:
Um dia, antes de casar... vira um homem guloso comendo. Espiara seus olhos arregalados,
brilhantes e estúpidos, tentando não perder o menor gosto do alimento... As pernas sob a mesa
marcavam compasso a uma música inaudível, a música do diabo... A ferocidade, a riqueza de
sua cor... Joana estremecera arrepiada diante do seu pobre café. Mas não saberia depois se fora
por repugnância ou por fascínio e voluptuosidade.7 [grifo meu]

Ora, esta mesma relação entre o observador comedido, espacialmente


restringido (escondido na sala, procurando não ser notado) e o monstro
exuberante que fascina, que se amplia no espaço e não dá sinal de ver em
volta — existe nas duas cenas, do conto e do romance. Aqui incluem-se as
sugestões de admiração extática e voluptuosa que uma mulher pode sentir
por um homem; ou que (neste caso) um homem (com algumas diferenças)
poderá sentir por outro mais forte, outro que possui poder sobre a sua vida
ou a sua posição.8*
O processo de deglutição do monstro é uma ruidosa e escandalosa
encenação da predação do reino animal, de um animal comendo outro,
justamente, sem cerimónias. As visões da língua, dos dentes, da deglutição
e, finalmente, do “abocanhar da carne em pleno voo”, remetem-nos,
precisamente, para o espectáculo da alimentação dos animais em cativeiro,
para os circos e, naturalmente (não por acaso), para o momento em que os
tratadores alimentam os animais nos jardins zoológicos (o que nos
transporta para a personagem do búfalo, que abordarei em seguida):
agora desperto, virava subitamente a carne de um lado e de outro, examinava-a com
veemência, a ponta da língua aparecendo — apalpava o bife com as costas do garfo, quase o
cheirava, mexendo a boca de antemão... Em breve levava um pedaço a certa altura do rosto e,
como se tivesse que apanhá-lo em voo, abocanhou-o num arrebatamento de cabeça.9

É interessante como o poder deste patriarca se revela fechado a toda a


comunicação com o que o rodeia (como um cego) cego ao “homem
feminino” (por contraste, com o monstro) que — quase tão sofregamente
como aquele — segue todos os seus movimentos, na ânsia de penetrá-lo
com o olhar: “Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais
o próprio rosto, para ver afinal. Mas é inútil. A grande aparência que vejo é
desconhecida, majestosa, cruel e cega”.10
É muito relevante o facto do observador/narrador fazer, no final, após a
saída do homem, uma espécie de balanço do estado do seu género. Para
uma mulher, é natural que a sua identidade se reforce na comparação com
um homem hipermasculino. No caso dos homens, afirma a sociologia da
masculinidade que estes — ao se conhecerem socialmente —
imediatamente medem o seu estatuto e se posicionam numa hierarquia
imaginária. O observador certamente se posicionou num lugar inferior, pois
afirma que este velho “parece mais fraco, embora ainda enorme e ainda
capaz de apunhalar qualquer um de nós”.11 Ou seja, apesar de enfraquecido
pela idade, trata-se de um homem que poderia dominar fisicamente os
outros; um atributo clássico da masculinidade. O conto termina de uma
forma muito eloquente, o narrador apressa-se a comunicar ao leitor que a
sua identidade de género sobreviveu, que ele ainda é homem apesar do
embate com aquela força cega e superior: “Mas eu sou homem ainda”.12
Claire Williams reconhece uma certa ambiguidade nestas palavras,
parecendo que aceita como possibilidade o narrador lamentar pertencer ao
mesmo género de um ser que, monstruosamente, parece incluir todas as
contradições do sistema patriarcal.13 Lendo o conto como uma crítica ao
sistema patriarcal, Claire Williams conclui com aquilo que dizem quase
unanimemente os estudiosos da masculinidade: “O jantar” mostra que não
são apenas as mulheres que sofrem com as expectativas da sociedade. Os
homens também experimentam pressões — mesmo estando numa posição
de mais poder só por serem homens:14 “All men were harmed by the
“hegemonic masculine”... because it narrowed their options, forced them
into confining roles, dampened their emotions, inhibited their relationships
with other men, precluded intimacy with women and children, imposed
sexual and gender conformity”.15
Aquela resistência grotesca, animalesca, às dificuldades mais terríveis
(nunca confirmadas, mas sobre as quais o narrador especula a partir da
lágrima solitária) confirma-se quando ele mantém o apetite, contrastando
com o caso do narrador, que perde o apetite. Por isso o observador afirma,
colocando-se temporariamente no lugar do homem observado: “Quando me
traíram ou assassinaram, quando alguém foi embora para sempre, ou perdi o
que de melhor me restava, ou quando soube que vou morrer — eu não
como”.16 E afirma: “Não sou ainda esta potência, esta construção, esta ruína.
Empurro o prato, rejeito a carne e seu sangue.”17 Ou seja, ele rejeita os
atributos de uma masculinidade violenta e desesperada, abraçando outra
mais moderada, ou escolhendo a “feminilidade” que resulta da rejeição dos
mais brutais atributos masculinos: “Feminity is what lies beneath, it is what
results of a failed, corrupted or disrupted masculinity”.18
O outro conto que aqui estudarei, “O búfalo”, apresenta um arquétipo
pertencente à mesma família do anterior. Sabe-se que o búfalo é um animal
totémico, um dos mais sagrados segundo as culturas indígenas da América
do Norte. Uma história bantu, que inclui um búfalo (o búfalo africano, neste
caso; supõe-se que o búfalo do conto é o “bisonte” norte-americano), diz,
deste animal, que ele contém “a thousand magic arts”.19 É um animal que,
de certa maneira, salva e redime e (como mostrarei adiante) parece,
estranhamente, complementar o homem que mastiga/devora.* Os dois polos
passivos dos dois casais arquetípicos (isto é: o homem que observa o
monstro e a mulher que estuda o búfalo) saem grandemente modificados
das suas experiências com estes arquétipos. Eu diria que ambos — embora
de formas diferentes — saem mais completos, mais próximos daquilo a que
Jung chama a individuação, ou seja, um estado de relativo equilíbrio entre o
consciente e o inconsciente. Compreende-se que também este arquétipo,
como todos, tenha uma função compensatória visto que, como nos sonhos,
eles procuram corrigir um desequilíbrio.
É claro que o homem que devora se animaliza no acto de mastigar, em
parte porque seus olhos permanecem cegos, fechados ou fixos no tecto,
cessando indicações de consciência humana ou pensamento. No conto “O
búfalo”* dá-se, de certa maneira, o oposto. Apesar de, à primeira vista,
parecer ameaçador, é um animal proveniente do mundo insondável do
inconsciente, e que aqui surge como adjuvante. Trata-se, portanto, de um
animal que parece ter condições de percepção superiores aos da mulher e
dos humanos, uma figura aqui enigmática, subtil, quase mítica ou angélica.
E isso é reconhecido pelo leitor, sobretudo pelo impacto dramático que o
búfalo imprime à protagonista, o seu polo feminino: fá-la simplesmente cair
no chão (procurarei interpretar esta queda mais adiante).
Eis uma forma de resumir a história: uma mulher, no rescaldo de uma
separação — o seu amante rejeita-a —, decide que quer aprender a odiar o
homem de quem se separou. Para “aprender a odiar” ruma ao jardim
zoológico e procura um animal no qual projecta o ódio que, por enquanto,
ainda é só projecto. O que se segue é uma viagem pelo labirinto simbólico
(típico das viagens iniciáticas) que é o jardim zoológico, em busca do
animal eleito, numa espécie de versão invertida (diabólica?) dos muitos
contos de fadas em que o príncipe, de casa em casa, procura a virgem ideal
a quem propor casamento para, com ela, viver feliz para sempre.
Naturalmente, há um crescendo na espectacularidade das rejeições, como
no caso de Cinderela, até o príncipe encontrar a parceira certa. Segue-se
uma lista dos animais que, por uma razão ou outra, como a mulher mesma
conclui, não merecem ser odiados: ou porque são demasiado ingénuos,
atraem a compaixão, ou são incapazes de ódio. A lista inclui o leão, o
hipopótamo, os macacos, o elefante e o camelo, a que se segue o quati.
Frustrada com o facto de nenhum deles ser bom candidato a objecto do seu
ódio, ela pede a Deus, numa espécie de oração diabólica,* uma intervenção
a favor do ódio e não do amor. Significativamente, ela usa o termo “par”,
aquilo que Cinderela, mesmo sem palavras, parece pedir a Deus ao
completar os degradantes trabalhos domésticos: “Oh, Deus, quem será o
meu par neste mundo?”. Esta frase sugere uma relação problemática com o
seu animus (por isso a hesitação entre amá-lo e odiá-lo). Como numa
história do folclore norueguês, o búfalo — neste caso, o touro, animal com
características muito comparáveis — é aqui um ser bondoso, “azul” e
“limpo”, embora a princípio não o pareça: “Here the helpful animal is a
bull, which can represent primitive masculinity, brutal emotion, often linked
with the negative animus, who can really cause a woman to be like a bull in
a china shop. But describing this bull as “blue” and “clean” means that
here he is not destructive”.20
Chegada ao camelo, no auge da sua frustração, ela sente uma vontade
irresistível de matar, que é análoga — parece-me — à do homem que
jantava. (Sabemos isto porque o próprio observador diz que aquele homem
poderia apunhalar qualquer um, se o desejasse). É, portanto, como se
tivesse havido uma substituição quiásmica entre os polos arquetípicos. O
polo passivo da segunda história — a mulher que deseja odiar — adquire
características do polo activo da primeira história — o monstro que devora.
Primeiro nota-se a voluptuosidade do desejo do ódio e, agora, surge o
impulso de eliminar o outro — de o comer — pela violência: “Então,
nascida do ventre, de novo subiu, implorante, em onda vagarosa, a vontade
de matar, seus olhos molharam-se gratos e negros numa quase felicidade”.21
Prosseguindo, vemos que a mulher apresenta um quadro de valores
invertido relativamente àquele que Lispector considera positivo, e
habitualmente celebra na sua obra: o amor, o amor pelo outro, o amor pelo
mundo. Ora, a mulher em “O búfalo” valoriza o oposto, queixa-se de que
— no rescaldo da rejeição amorosa que sofreu — ela, na vida, “só
aprendera a ter a doçura da infelicidade, e só aprendera a amar, a amar, a
amar”,22 justificando assim porque deseja, agora, odiar. Já que foi rejeitada
por excesso de características femininas, como a passividade e a docilidade,
deverá agora fazer o oposto do que tem feito: masculinizar-se, tornar-se, em
parte, “monstro”; talvez inverta, assim, a sua circunstância na vida. É em
reacção a esta frustração que ela vai agir. Se o ódio pelo animal não
encontrou um veículo — por não ter ainda visto o animal certo —, não há
dúvida de que a mulher sente aqui, entretanto, ódio por si mesma, um
sentimento que o conto vai procurar resolver. Mas é então que ela vê o
búfalo. Primeiro, ao longe, sem ver ainda o rosto (como aconteceu, a dada
altura, com o homem que jantava).* “Era um búfalo negro. Tão preto que a
distância a cara não tinha traços.”23 Finalmente, ela julga ter encontrado o
objecto perfeito para o seu ódio. Um animal digno do ódio que ela deseja
ter por ele e capaz de odiar também. Como numa inversão — outra — de
uma paixão à primeira vista, ela parece sentir aqui o ódio (mútuo) à
primeira vista, uma relação não de vitalidade mas de morte. A consequência
lógica desta cena é repor o que foi substituído, a declaração de amor-ódio
feita, finalmente, ao verdadeiro correlato do búfalo, o amante que a
rejeitara: “Eu te amo, disse ela então com ódio ao homem cujo grande
crime impunível era o de não querê-la. Eu te odeio, disse implorando amor
ao búfalo”24. Uma variante desta frase tinha sido proferida por ela antes.
“‘Eu te odeio’, disse muito apressada”25 e esta “pressa” sugere (admitido
pela própria narradora) a futilidade de um ódio apressado, caprichoso e,
sobretudo, imerecido para o homem. A linguagem habitual dos contos de
fadas (sobretudo em Clarice) prepara o leitor para que uma personagem que
pense e aja assim venha a receber uma punição que a matará ou a tornará o
oposto do que é. Assim — de acordo com as regras do próprio mundo
clariciano — quem está agindo contra a ética é a mulher que visita o
zoológico, é ela quem precisa aprender uma lição, sofrer uma punição,
redimir-se da missão de ódio que ela mesma se atribuiu. Por fim, quando
“os olhos do búfalo... olharam os seus olhos”, a mulher “meneava a cabeça
[como se imagina que faça um búfalo, um touro etc.] espantada com o ódio
com que o búfalo... a olhava […] Ela sente-se presa, enfeitiçada no amor do
ódio”. O conto termina com a sugestão de que ela terá caído no chão: “...
antes de o corpo baquear macio a mulher viu o céu inteiro e um búfalo”.26
Como mencionei, as interpretações possíveis serão aqui múltiplas: algumas
apontariam para um desmaio, outras para uma morte, por exemplo.

CONCLUSÃO

Dado que a lógica estruturante destes contos — embora apresentando cenas


realistas — não reside na realidade mas no mundo do sonho ou do
inconsciente, eu considero que é legítimo falar-se numa morte iniciática no
caso de ambas as histórias. Quanto à mulher em “O búfalo”, tal sugestão de
morte é óbvia; mas, no caso do conto “O jantar”, tal sugestão, se
considerarmos com atenção, também está omnipresente. Tanto a morte
própria como a alheia, tanto a morte da carne viva, que é a carne deglutida
na refeição, como a morte temida de quem observa, horrorizado, o
espectáculo da devoração. (A náusea sentida significa que tanto devoração
como morte os atingem profundamente.) Esta morte, segundo a
antropologia das religiões, pode significar simultaneamente o fim da
infância, da ignorância e da condição profana.27 É uma morte que conduz
necessariamente — tratando-se de um conto de formação, de busca
espiritual — a uma passagem para um estado superior, se se quiser,
causando a correção de algo que necessitava ser ajustado. Só ao morrer
simbolicamente, entrando e saindo da morte, atravessando a sua nuvem
negra, esta mulher aprende a rejeitar o egoísmo e a autoabsorção própria
das crianças. Só assim ela desaprenderá (eufemisticamente) o ódio e a
morte. Como dizia Mircea Eliade, “Os símbolos da morte iniciática e do
renascimento são complementares”.28 Na linha desse arquetipismo de sinal
contrário, podemos dizer que ela tenta devorar e é devorada; tenta odiar e
acaba sendo “amada” (pelo mundo, pelo monstro, por si própria).* A queda
que o búfalo provoca é uma lição clássica: só o amor, e não o ódio, salva. A
lição é aparatosa: uma queda que é uma devoração simbólica por parte de
um monstro que o é apenas na aparência.
A devoração pelo monstro aparece como o cenário específico da iniciação heroica em que o
iniciado, graças à ajuda providencial dispensada pelos deuses, fadas, humanos, ou objectos
mágicos, consegue paulatinamente vencer ou superar os diversos obstáculos que vai
encontrando ao longo do seu percurso de vida: infância — adolescência — idade adulta...
permite ao iniciado aceder a uma nova modalidade de ser, dotar-se de um estatuto ontológico
radicalmente outro.29

Podemos dizer que se trata de um conto que nos apresenta o drama dos
relacionamentos amorosos, o que é equivalente a dizer — como em muitos
outros casos na obra de Lispector — o drama do género. Drama que, no
fundo, é também o drama da natureza humana, na sua necessidade de
prestar provas e de, sem desanimar, movimentar-se iniciaticamente de etapa
em etapa. O género é conflito, a relação humana é conflito, e ai das que se
julgam “princesas passeando pela floresta virgem”:
There are women who are so afraid of this battle that they stay out of this world — they seem
to have no animus and no conflicts. They are like princesses going through the forest
untouched. But they only remain untouched because they don’t touch the reality of the mortal
individual, the drama of human relationship. If they do touch it, this princess life stops, and the
trolls and bulls break loose.30 [grifo meu]

Esta explosão de trolls e bulls (ou búfalos) que sucede quando nos
recusamos a enfrentar a vida remete-nos para os monstros — afinal vitais,
regeneradores — desses dois contos.* Estranhamente, se há figura que
simboliza a regeneração é o monstro. Tudo dependendo da forma como
lidamos com ele:
“Em todas as civilizações deparamos com imagens de monstros
devoradores, antropófagos e psicopompos, que são símbolos da necessidade
de uma regeneração. A simbologia do monstro poderia resumir-se com a
fórmula ‘Morra o homem velho, viva o homem novo’”.31
Para terminar, de forma compensatória (como acontece, dizia eu, com
os sonhos), ambos os arquétipos causam um crescimento a quem com eles
se depara, uma vez que o seu propósito é instintivamente terapêutico, como
é o caso da obra de Lispector em geral. Sempre com o objectivo de
providenciar um equilíbrio às nossas naturezas desajustadas. Em “O jantar”,
a lição surge de forma preventiva: o monstro assusta para impedir uma
situação perigosa; no caso de “O búfalo”, de forma curativa, causando a
correcção do rumo de quem se encontrava perdida sem o saber.

NOTAS
1. Todos os contos mencionados estão incluídos no livro Todos os contos.
2. Grob-Lima, p. 246.
3. Lucia Helena, p. 1167.
4. Apud. Marie-Louise von Franz, Shadow and evil, p. 12.
5. “O jantar”, pp. 166-9.
6. Ibid.
7. Perto do coração selvagem, p. 26.
8. “Estou tomado pelo êxtase arfante da náusea. Tudo me parece grande e perigoso” (“O jantar”, p.
168).
9. “O jantar”, p. 167.
10. Ibid., p. 168.
11. “O jantar”, p. 169.
12. Ibid.
13. Williams, p. 73
14. Id.
15. Em tradução livre: “Todos os homens foram prejudicados pelo ‘masculino hegemônico’... porque
ele estreitou suas opções, forçou-os a papéis restritos, amorteceu suas emoções, inibiu suas relações
com outros homens, impediu a intimidade com mulheres e crianças, impôs conformidade sexual e de
gênero” (Gardiner, p. 5).
16. “O jantar”, p. 169.
17. Ibid.
18. Em tradução livre: “Feminidade é o que está por baixo, é o que resulta de uma masculinidade
fracassada, corrompida ou rompida” (Biron, p. 15).
19. Em tradução livre: “mil artes mágicas” (Franz. Animus and Anima, p. 56).
20. Em tradução livre: “Aqui, o animal útil é um touro, que pode representar masculinidade
primitiva, emoção brutal, muitas vezes ligada ao animus negativo, que pode realmente fazer com que
uma mulher seja como um touro em uma loja de porcelana. Mas descrever este touro como ‘azul’ e
‘limpo’ significa que aqui ele não é destrutivo” (Franz. Animus and Anima, p. 53).
21. “O búfalo”, p. 209.
22. Ibid., p. 208.
23. Ibid., p. 209.
24. Ibid., p. 210.
25. Ibid., p. 205.
26. Todas as citações deste parágrafo são trechos de “O búfalo”, p. 211.
27. Araújo, p. 56.
28. Ibid., p. 61.
29. Eliade apud Araújo, p. 57.
30. Em tradução livre: “Há mulheres que têm tanto medo desta batalha que ficam fora deste mundo
— parecem não ter animus e nenhum conflito. Elas são como princesas intocadas, na floresta. Mas
elas só permanecem intocadas porque não tocam a realidade do indivíduo mortal, o drama do
relacionamento humano. Se tocarem, a vida desta princesa para, e os trolls e touros se soltam”
(Franz. Animus and Anima, p. 54).
31. In: Chevalier & Gheerbrant, p. 456.
* A editora optou por manter a grafia do português de Portugal. (N.E.)
* Actualmente trabalho num projecto de livro sobre os personagens masculinos em Clarice Lispector.
O presente trabalho apresenta, de forma modificada, parte das pesquisas feitas. (A partir daqui, todas
as notas com asterisco são do autor.)
* Os leitores notarão que aqui trabalho uma noção de género binária. Não quero significar com isto
que Clarice Lispector — ou eu — sejamos conservadores na maneira de pensar o género. Quero dizer
que, segundo me parece, o verbo de Clarice pode estar justamente denunciando o binarismo
sufocante dos géneros, sancionado pela sociedade, ao estudar obsessivamente este binarismo. As
caricaturas que faz em inúmeras personagens e livros podem constituir a sua denúncia. Por outras
palavras, o género é ridiculamente rígido porque ele (tal como o binarismo) está sendo caricaturado,
criticado. Naturalmente, é possível que a própria autora não tenha desejado que o seu texto denuncie
as categorias de género, o binarismo, da forma exacta em que o exponho. O que é facto, na minha
opinião, é que o leitor tem razões suficientes para defender que o texto clariciano o faz,
independentemente da vontade da autora.
* Citarei aqui um dos autores que propõe o modelo do duplo, a propósito de “O búfalo”: Oliveira, na
p. 3, nos diz: “O argumento desenvolvido neste trabalho é de que o animal que dá nome à narrativa é,
por um efeito de visão da própria personagem, um duplo tanto de si mesma como do amante que a
rejeitou”.
* Este arquétipo pode também remeter para a figura do “masculino devorador” brasileiro. Almeida,
na p. 64, traz afirmação de Viveiros de Castro que dizia, dos tupinambás, que “sem ter morto um
inimigo um homem não existia; a execução ritual era a cerimónia de iniciação masculina, que assim,
além de cancelar uma morte prévia, vingança restauradora, criava vida, inventava homens”. [meu
sublinhado]
* “O cego que mastiga”, no conto “Amor”, é uma variante interessante do monstro devorador; de
certa maneira, é uma variante de sinal oposto. O cego é o antimonstro porque, em vez de devorar
com gozo como o homem que janta, ele apenas mastiga em seco, infinitamente e inofensivamente,
um chiclete que provavelmente não tem sabor. (Conhecemos a relação entre infinito e esterilidade
que, para Lispector, residia no chiclete da infância que nunca mais acabava e que perdia o sabor ao
fim de algum tempo). O cego é, pela maneira desamparada como vive (em situação de rua), alguém
que leva a dona de casa a sentir-se culpada (culpa de classe?) da sua vida privilegiada na qual ela,
apesar disso, sempre sentiu alguma misteriosidade quando todos se ausentavam. É também a visão do
cego que a faz partir os ovos, símbolo universal da vida. Ou seja, o cego faz com que a sua vida se
quebre, ainda que temporariamente. Esta devoração falsa não alimenta, não sustenta e, no fundo,
revela — para surpresa da dona de casa — que é ela (representante da classe privilegiada) quem o
devora a ele e não o contrário. O cego é quem é devorado.
* No conto “Mistério em ‘São Cristóvão’” são vários homens mascarados de animais (e um de diabo)
que, assustando uma família pelo barulho que fazem ao quebrar flores no jardim, precipitam uma
moça virgem numa passagem iniciática (de simbolismo sexual, mas não exclusivamente) a um estado
de superioridade moral, social, ética, ontológica etc. Todas as máscaras têm algo de monstruoso
porque evocam uma alteridade (numa relação eu versus outro) sobretudo as que representam animais
ou seres espirituais. Uma das máscaras é a de touro, símbolo de força, potência sexual etc.
* Recordemos que em Perto do coração selvagem o ritmo que o homem marca com os pés, na p. 26,
é classificado como “música do diabo”.
* A referência ao rosto cego, outro elemento arquetípico, surge também no conto “O jantar”, na p.
168: “Procuro aproveitar este momento, em que ele não possui mais o próprio rosto, para ver afinal”.
* Como diz Vilma Arêas, na p. 215: “Chega ao jardim zoológico procurando ódio... Mas lá só
encontra amor”.
* Este momento remete-nos, creio, para os “bichos” ou monstros (o animus) que, de noite, se
soltavam de Vitória, na obra A maçã no escuro, na p. 229, quando esta pensava em Martim, com
quem tinha uma óbvia relação de amor-ódio. Note-se como, tal como a protagonista do conto “O
búfalo”, ela tem a necessidade de confessar “amo-te” em silêncio ou apenas mentalmente: “‘Eu te
amo’, experimentou de novo com voz dura e altiva... ‘Os bichos estão soltos’, pensou então suave,
suave, melancólica”.

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O lado de fora do lado de dentro
NOEMI JAFFE

Se o termo “estranho” significa, originalmente, aquele que vem de fora —


daí a ideia de estrangeiro e de estrangeiridade — há muito já se sabe que
também do lado de dentro (das comunidades, dos lugares, mas, sobretudo,
das subjetividades) habita um estrangeiro que nos olha e a quem olhamos
com estranhamento. Quem é você, outsider, alien — ou estrangeiro, em
latim — que ora se oculta, ora se revela dentro de mim?
Se Clarice Lispector é uma das autoras que mais e melhor perscrutam
o lado de dentro de suas personagens — geralmente, mulheres urbanas e
burguesas em estado mais ou menos consciente de crise —, é a partir do
lado de fora desse lado de dentro que essa crise tende a irromper. É no
momento em que Ana vê o cego mascando chicletes e nos momentos em
que testemunha o instante pecaminoso de luxúria vegetal e animal no
Jardim Botânico que ela reconhece, mesmo que imperceptivelmente, a outra
com quem convive. É na visão do dente quebrado que a esposa obediente
decide, num átimo de surpresa, pular da janela, cometendo assim seu maior
e talvez único ato de desobediência. É no encontro com o basset
avermelhado, em “Tentação”, que algo na menina fica sabendo que ela se
transformará numa insolente cabeça de mulher.
No conto “A repartição dos pães” — que analiso mais detidamente a
partir de agora —, uma narradora em primeira pessoa, que se refere a um
grupo de convidados para um almoço de sábado como “nós”, vai
lentamente transformando sua reação negativa ao convite em espanto
epifânico, diante de uma mesa farta e acolhedora.
O almoço a que esse “nós” estava convidado é referido, logo na
primeira linha, como “de obrigação”. Em seguida, a narradora diz que cada
um deles “gostava demais do sábado para gastá-lo com quem não
queríamos”. Todos se encontravam “presos”, como se fossem obrigados,
novamente, “a pousar entre estranhos”. Já se autorreferenciando, ela —
quero supor que seja uma narradora feminina — afirma que preferiria, a
gastar mal o sábado, fechá-lo na mão dura, onde ela o amarfanharia como a
um lenço. Pairava, entre os convidados já chegados à casa, “uma avareza de
não repartir o sábado”. Todas essas indicações estão no primeiro parágrafo
do conto. São duas vezes “obrigação”, duas vezes “gastar”, uma vez
“avareza” e uma vez “prisão”. Um campo semântico estabelecido de uma
“economia do desejo”, uma forma de colocar o desejo em situação de
mercadoria a não ser esbanjada ou desperdiçada, a não ser comerciada em
troca de algo obrigatório, que os aprisione. É claro que, desde logo, o leitor
mais atento já vai se dar conta, pelo uso intencional da terminologia
econômica e do absurdo irônico de preferir amarfanhar o sábado a gastá-lo
mal, que esses convidados já se encontram aprisionados em sua forma
mercantilista de experimentar o desejo. E, ainda mais, pela ironia implícita
no uso do “nós”, quando, na verdade, é a voz da narradora que domina a
narrativa de forma praticamente onisciente.
“Cada um fora alguma vez feliz e ficara com a marca do desejo. Eu, eu
queria tudo. […] Ninguém ali me queria, eu não queria a ninguém. […]
Bebíamos sem prazer, à saúde do ressentimento. Não é com você que eu
quero, dizia nosso olhar sem umidade. […] Qualquer alegria seria um
insulto à alegria maior.”
Fica clara, aqui, a forma como persevera um cultivo amesquinhado e,
pode-se dizer, mesmo birrento de um desprazer antevisto nesse almoço de
sábado, dia de descanso e de dar chance ao desejo. Ninguém é feliz,
ninguém se quer nem se deseja, mas todos precisam preservar, a qualquer
custo — trocadilho incluso — a alegria maior da insatisfação. Essa é a
marca que deixou nesses corpos a felicidade um dia vivida.
Como oposição ao economicismo dos convidados, o segundo
parágrafo começa descrevendo a anfitriã como a única a não ter
“economizado” o sábado para “gastá-lo” numa quinta à noite. Ela não se
impacientava com aquele grupo que “parecia não querer refrear seu cavalo,
para ir em busca de outros, outros cavalos”. Há uma ênfase insistente em
desejos de ir além daquilo que não se tem. Ninguém ali está de posse de um
desejo ou de uma alegria, mas todos querem mais. A única em quem
coincidem o desejo e sua prática é a anfitriã, que só parece querer o que tem
e ofertar o que deseja.
Quando, no terceiro parágrafo, os convidados passam para a sala do
almoço, não acreditam que aquela mesa possa se destinar a eles.
É como se, nas reticências que seguem o “não podia ser para nós”, se
ocultasse a continuação “para nós, que, por recusarmos um convite
desconhecido por antecipação, só somos merecedores de um almoço
sovina”, já que o raciocínio é matemático. A conta não parece fechar.
O que ocorre é que a anfitriã não calcula, não se entrega ao cálculo
comercial. Ela, como hospedeira, oferece o almoço de graça. Vamos ver
adiante como se destacam termos representativos da graça e da abundância,
num conto cuja moral — se uma houvesse — poderia ser: “Existe almoço
grátis”.
Isso fica explícito em passagens como: “aquela mulher dava o melhor
não importava a quem”; “ela lavava os pés do primeiro estrangeiro”; “os
tomates eram redondos para ninguém”; “sábado era de quem viesse”; “a
laranja adoçaria a língua de quem primeiro chegasse”; “tudo só existindo e
todo”; “em nome de nada, era hora de comer”; “em nome de ninguém, era
bom”; “era reunião de colheita e fez-se trégua”; “come, come e reparte”.
O conto não explicita nem quem é essa mulher, apenas referida como
“mulher”, nem quem são os convidados. Como se trata de uma experiência
de hospedagem — hospedeiro e hospedados (hôte, em francês, é quem
hospeda e quem se hospeda, já que os papéis devem ser intercambiáveis)
—, o nome deve ser o que menos interessa, em termos ideais, como o dessa
anfitriã. Ela é a hospitaleira ideal, perfeita justamente porque não se sabe
perfeita, porque não oferece a abundância da comida em nome de algo ou
alguém, como a narradora faz questão de salientar sobre o funcionamento
mental dos convidados.
As várias referências religiosas do conto também fazem pensar, é
claro, na hospitalidade cristã: desde a lavagem de pés estranhos até as duas
vezes em que Deus é mencionado, passando por “era uma mesa para
homens de boa vontade” e pelos ramos de trigo distribuídos pela mesa.
A religiosidade certamente existe, mas, como tudo em Clarice, ela
aparece subvertida. Guardando muitas semelhanças com o Éden entre
paradisíaco e infernal do conto “Amor”, assim é descrita, no outro conto, a
mesa em que se distribui a comida:
A mesa fora coberta por solene abundância. Sobre a toalha branca amontoavam-se espigas de
trigo. E maçãs vermelhas, enormes cenouras amarelas, redondos tomates de pele quase
estalando, chuchus de um verde líquido, abacaxis malignos na sua selvageria, laranjas
alaranjadas e calmas, maxixes eriçados como porcos-espinhos, pepinos que se fechavam duros
sobre a própria carne aquosa, pimentões ocos e avermelhados que ardiam nos olhos — tudo
emaranhado em barbas e barbas úmidas de milho, ruivas como junto de uma boca. E os bagos
de uva. As mais roxas das uvas pretas e que mal podiam esperar pelo instante de serem
esmagadas. E não lhes importava esmagadas por quem. Os tomates eram redondos para
ninguém: para o ar, para o redondo ar. Sábado era de quem viesse. E a laranja adoçaria a
língua de quem primeiro chegasse.

Se existe religião nesse conto — e ela existe fartamente — e se há,


nessa religiosidade, referências ao cristianismo, seria uma espécie de
cristianismo pagão, porque essa mesa descrita — continuando nos
parágrafos seguintes — é uma mesa nada menos que dionisíaca. São todos
alimentos crus (só mais tarde, no conto, haverá uma indicação passageira à
carne), como que provenientes imediatos da terra e todos destacados em sua
inteireza, cor, umidade, ereção, majestade e como que oferecimento. São
alimentos que se oferecem à boca. A visão dessa mesa, para a narradora, os
convidados e o leitor, repercute os insetos e plantas em estado de
acasalamento incessante que Ana presencia no Jardim Botânico, mas aqui
sem a sombra do inferno e do pecado, pairando ao redor. Tudo é pura
entrega, puro erotismo e pura religião e essa mulher hospitaleira
desinteressada torna-se uma verdadeira deusa, mênade Madalena.
Além de tudo isso, também fora oferecido leite e vinho em bilhas de
barro, rabanetes e limões de acidez espanhola, e a melancia com seus
alegres caroços. Tudo “só existindo e todo. Assim como existe um campo e
as montanhas. Assim como existem homens e mulheres e não nós, os
ávidos. Assim como um sábado. Assim como apenas existe. Existe”. E,
mais adiante, “aquilo tudo queria tanto ser comido como nós queríamos
comê-lo”. É restituída a sacralidade do sábado de descanso, dia de
realização de desejos instintuais como comer e beber, mas sem a avidez dos
desejos não realizados ou a da gula que come além da comida. O encontro,
aqui, é exato: hóspedes que querem comer a comida justa que, por sua vez,
quer ser comida por eles. Não há atributos nem no sábado, nem na comida,
nem nos comensais, tudo se torna o que é, num paganismo à Alberto
Caeiro, em que adjetivos só fariam contaminar de julgamentos o que está
aquém do juízo.

A hospitalidade primeira, essa que se encontra na Odisseia e nos povos


originários, é uma prática que, por sua importância, tem ascendência até
sobre rituais de vingança, manutenção da honra ou sobre interesses
comerciais e políticos. Para o filósofo Levinas, inclusive, a hospitalidade
tem precedência sobre os valores da liberdade e da igualdade. Para ele, não
se concebe liberdade e igualdade sem que haja a recepção do outro,
simplesmente pela sua outridade. A hospitalidade está diretamente
relacionada ao estranhamento e à estrangeiridade. No mesmo conto
menciona-se, algumas vezes, o termo “estranho” e a frase que o conclui diz
que “pão é amor entre estranhos”. Quem recebe um hóspede não lhe
pergunta quem ele é ou o que quer. Lava seus pés e lhe oferece o que sua
casa tem de melhor: cama, comida, calor e abrigo. Só depois dessa
distribuição de conforto é que haverá as perguntas sobre sua procedência,
suas experiências e necessidades. Não se fazem perguntas, num primeiro
momento. Aceita-se o estranho em sua integridade estrangeira. Aquele que
hoje é hóspede poderá, um dia, ser o hospedeiro e quem se hospeda, por ter
sido bem recebido, saberá retribuir a atenção concedida. É uma das
primeiras trocas civilizacionais do humano e aquela que sustenta as regras
éticas e de convivência de uma comunidade.
Em “A repartição dos pães”, o processo epifânico acontece pela
surpresa dos convidados hostis, diante da presença farta e graciosa com que
são recebidos, sem o juízo sobre sua contrariedade. Como ocorre muitas
vezes na linguagem clariciana, alguns verbos aparecem intransitivamente,
como “existe”, “existem”, “comíamos” (duas vezes), “olhávamos”. A
hospitalidade está diretamente vinculada à graciosidade e à intransitividade
como atitude. Como oposição delicada ao economicismo dos convidados,
representado semanticamente nos exemplos mostrados antes, tudo o que se
refere à mulher é ligado à graça: ela faz o que faz sem pensar em
retribuição, de graça; a ideia de graça também como bênção aparece aqui no
aspecto religioso e incondicional com que ela prepara essa mesa; também
em seu gesto ressalta a graciosidade da disposição da comida; e, finalmente,
a graça como espírito de alegria, capaz de desarmar o mau humor teimoso
desses convidados espantados.
“Tudo diante de nós.” Essa ideia de estar diante de, de pôr-se diante
de, é a própria etimologia da palavra “presença” e do tempo presente: estar
diante de. Essa mesa que se faz presente no presente, transformando o
sábado em sábado e cada um em si mesmo, além de com o outro, sem um
porquê algum, é não a representação, mas a própria imanência hospitaleira.
Coisas e pessoas que são o que são por ser, mas não espontaneamente e sim
pelo gesto de uma mulher desinteressada.
Como em “A menor mulher do mundo”, em que a pigmeia grávida
deseja o anel e as botas do explorador, também aqui o contato com o
“selvagem” despoja as pessoas do desejo do que não se tem em nome do
desejo exato pelo que se tem, pelo que se oferece e pelo que se aceita
receber. Trata-se, agora, de um desejo erótico e sensível, em que visão,
paladar e tato se ajustam ao tamanho, cor, textura e sabor do que se acolhe e
colhe. “Nada guardado para o dia seguinte, ali mesmo ofereci o que eu
sentia àquilo que me fazia sentir. Era um viver que eu não pagara de
antemão com o sofrimento da espera. Fome que nasce quando a boca já está
perto da comida […] A cordialidade era rude e rural.” E, numa lembrança
quase direta à menor mulher do mundo, “aquilo tudo me pertencia, aquilo
era a mesa de meu pai. Comi sem ternura. Comi sem a paixão da piedade”.
Distante da moralidade, este conto aproxima o leitor de uma noção mais
arcaica de ethos cuja premissa é o bem-estar de todos com todos. Sem
esquecer que, ainda no conto “A menor mulher do mundo”, a visão sobre o
desejo da pigmeia é também contraposta ao querer ávido e oportunista das
leitoras da notícia do jornal, ansiando, em seus recalques e defesas, por
possuir a menor mulher do mundo. Só ela, alegre mesmo no perigo que
corre — ou justamente por causa dele —, sabe ajustar aquilo que quer
àquilo que vê e pode: “Mas na umidade da floresta, [...] amor é não ser
comido; amor é achar bonita uma bota, amor é gostar da cor rara de um
homem que não é negro, amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena
Flor piscava de amor e riu quente, pequena, grávida, quente”.
Outro índice do aspecto pagão dessa entrega amorosa — e, pode-se
dizer, primitivamente cristã — é a ausência de sofrimento ligado à oferta do
banquete: “Não havia holocausto, aquilo tudo queria ser comido tanto
quanto nós queríamos comê-lo. Era um viver que eu não pagara de antemão
com o sofrimento da espera”. Deus, com letra maiúscula mesmo, diz o
conto, nunca foi tão tomado pelo que Ele (também em maiúscula) é. Trata-
se de um ato de fé ligado à terra. Os convidados se tornam camponeses
fidalgos, “ocupados como quem lavra a existência, e planta, e colhe, e mata,
e vive, e morre, e come”. Os atos intransitivos prescindem de juízo, de
virtude e da ideia de qualquer sacrifício, o que implica ausência de
retribuição. E é justamente em função da ausência de comércio como motor
da ação que todos os estranhos podem repartir o que têm e o que comem:
“A comida dizia rude, feliz, austera: come, come e reparte”; ou: “Quem
lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia” e “a cordialidade era
rude e rural”.
E não adianta buscar nomear a que tipo de credo a autora ou narradora
se refere. Seria algo semelhante a uma das seitas apócrifas do início do
cristianismo? Seria um ecumenismo com elementos do sincretismo
brasileiro? É claro que nada disso cabe para a leitura desse conto, cuja
oferta como literatura é postar-se em algum lugar aquém até mesmo da
linguagem e certamente aquém de classificações.
“Comi aquela comida e não o seu nome.”
Trata-se de uma utopia erótica da exatidão (justo encontro). O que
desejo se encontra com o que se oferta diante de mim. Estou diante de: o
que está diante de mim é o presente presente: a imanência. O sonho maior
de todo escritor — e, sobretudo, dos poetas — é fazer coincidirem palavra e
coisa, numa língua que prescindiria da arbitrariedade. Uma língua adâmica
em que a coisa é nomeada assim que é posta epifanicamente diante de seu
nomeador, numa relação de necessidade absoluta.
Ao longo de todo o conto, Clarice faz com que a linguagem trabalhe a
serviço do maior silêncio possível, distante da ideia da palavra apenas como
intermediação ou instrumento que liga as coisas à sua designação. Também
o conto deve ser lido por suas palavras e não pelo que elas designam, se
isso for possível.
Desde o momento em que se passa à sala do almoço, passa-se, também
no conto, a uma outra qualidade semântica e sintática. Abundam os
adjetivos relativos às sensações: branca, vermelhas, amarelas, verde,
alaranjadas, avermelhados, ruivas, negro, roxas; redondos, líquidos, duros,
eriçados, aquosa, ocos, emaranhado, ardentes, retorcido. E os substantivos e
verbos: abundância, pele estalando, carne, ardiam nos olhos, instante de ser
esmagadas (as uvas), adoçaria a língua, cortado pela acidez, atravessas com
as cabras os desertos dos penhascos. Tudo isso num retângulo de dez linhas
que imitam a própria mesa em sua proliferação colorida, telúrica e sensível.
Um parágrafo que se dispõe diante do leitor em sua fartura, presentificando
a experiência dos personagens.
E também na sintaxe, como já dito, salta-se para a intransitividade e
para advérbios como “nada, nenhum, ninguém, nunca, sem”, em que
ressalta a gratuidade: “Em nome de nada, era hora de comer. Em nome de
ninguém, era bom. Sem nenhum sonho. Nada guardado para o dia seguinte.
Ninguém falou mal de ninguém porque ninguém falou bem de ninguém.
Nunca Deus foi tão tomado pelo que Ele é. Sem uma palavra de amor. Sem
uma palavra”.
E tudo isso expresso por frases curtas se sucedendo num ritmo
emulador de coisas que vão brotando como que autonomamente, um ritmo
bíblico, também imitando o gesto de levar a comida à boca:
Quem lento bebeu o leite, sentiu o vinho que o outro bebia. Quem bebia vinho, com os olhos
tomava conta do leite. Lá fora Deus nas acácias. Que existiam. Comíamos. Como quem dá
água ao cavalo. A carne trinchada foi distribuída. A cordialidade era rude e rural. Era reunião
de colheita e fez-se trégua. Comi sem saudade nenhuma. E eu bem valia aquela comida. Sem
uma palavra de amor. Mas teu prazer entende o meu. Nós somos fortes e comemos.

A última frase do conto — “pão é amor entre estranhos” — resume a


etimologia da palavra “companheirismo”, ou “dividir o pão”. É pelo pão
que esses estranhos se aceitam e pelo gesto dessa anfitriã que,
gratuitamente, o distribuiu. Pela experiência do espanto diante da coisa que
se oferece para ser consumida, os contrariados se fizeram próximos. Pelo
esquecimento, mesmo que passageiro, do lugar da palavra como mediação
para ocupar um vínculo de necessidade com a coisa nomeada, também a
língua se coloca como ofertório e também o leitor compartilha a
imediaticidade.
Pode ser que tudo seja breve.
A literatura não é mesmo matéria que se aloja definitivamente no
corpo e na alma. Ela apenas reacomoda pequenos calos, dissolvendo-os
devagar. Quando vemos, depois de muita Clarice, muito Rosa, muito
Machado, nosso olhar para o mundo e para nós mesmos é de maior
aceitação e tolerância ou, ainda, de maior rebeldia e ação.
O antropólogo inglês Tim Ingold, em ensaio que defende uma
educação voltada para o lado de fora, mais do que para dentro, sugere uma
inversão da frase “uma coisa aparece” para a mais estranha “aparece uma
coisa” ou “aparece ela”. Na ordem convencional, a coisa existe antes de sua
revelação, pronta e esperando para ser percebida pelo observador, cuja
atenção está buscando algo naquilo que vê e observa. Ao caminhar
desinteressadamente, entretanto, a atenção é capturada pelo “aparecimento
daquilo que aparece”; “o andarilho espera, acompanha a emergência das
coisas”. “O aparecer de uma coisa equivale à sua emergência, e testemunhar
esse aparecimento é comparecer ao seu nascimento.”
Em “A repartição dos pães”, acompanhamos uma narradora que se
transforma, ou se reinaugura, pela visão do aparecimento inaugural de uma
mesa farta e gratuita. Na sala de almoço, “aparece a mesa” e, com ela,
“aparece a comunhão”.
Clarice não faz a coisa aparecer. Ela faz aparecer a coisa e, com isso,
também aparecemos nós.
PARTE II

Iniciação, encenações
A imprensa como caminho: Os primeiros textos de
Clarice Lispector na mídia impressa
APARECIDA MARIA NUNES

Ainda como estudante da Escola Nacional de Direito da Universidade do


Brasil, Clarice Lispector decide não seguir a carreira de advogada. Pretende
iniciar outra: a de jornalista. A jovem estudante busca então, junto aos
principais editores de revistas da cidade do Rio de Janeiro, a publicação de
seus contos e se candidata ao trabalho de jornalista. Apresenta-se também
como tradutora.
Desiludida com a disciplina de Direito Penal, ela é bem-sucedida nas
abordagens. A Pan, de José Scortecci, promete divulgar o conto
encaminhado, conforme conta em carta à irmã Elisa, em 22 de maio de 1940:
“Ou o homem está louco ou sou eu quem está” (2007, p. 19). E a Vamos Ler!,
dirigida por Raimundo Magalhães Junior, que se considera padrinho
literário de Lispector, não somente acolhe a ficcionista iniciante, mas
também a repórter, a entrevistadora e a tradutora.
Por muito tempo, devido a uma informação equivocada na biografia de
Clarice Lispector escrita por Renard Perez, em Escritores brasileiros
contemporâneos (1964), a partir de uma entrevista que obteve com a escritora
em 1961, acreditava-se que o primeiro conto clariciano publicado na imprensa
fosse o que Álvaro Moreira, então redator-chefe, recebe na redação de Dom
Casmurro, em 1941. Dom Casmurro, periódico literário de circulação
nacional, talvez o mais representativo veículo da área no governo de
Getúlio Vargas, em pleno Estado Novo (1937-1945), com o programa de lançar
novos autores, apresenta a estreia de Clarice Lispector, como verdadeira
promessa em “Cartas a Hermengardo”,1 distribuídas em três edições do ano
de 1941 (14 de junho, 26 de julho e 30 de agosto). Nessas cartas, Idalina, moça de
trinta e dois anos incompletos, escreve ao amado, que na verdade se
chamava José, narrando momentos de angústia, revolta e paixões, entre
outros assuntos confidenciais, que denotam o traço da experiência interior e
do aprofundamento introspectivo na ficção da jovem Lispector. Mas Dom
Casmurro também revela, em 1941, a Clarice Lispector poeta, em “Canto da
mulher eterna” e “Descobri o meu país”.
Por essa ocasião, a estudante se arrisca na poesia. Chega a preparar um
livro somente com seus poemas, anunciado até pela imprensa carioca. Mas
a edição não ocorre, talvez porque se decepciona com a avaliação
desencorajadora de Manuel Bandeira. Em carta à amiga, em 23 de novembro
de 1945, Bandeira comenta que prepara uma antologia de poetas bissextos.
Lamenta, então, não ter consigo os poemas que certa vez ela lhe mostrara,
para incluí-la na coletânea. Insiste que Lispector é poeta e afirma sentir
remorsos do que disse a respeito dos versos que ela lhe mostrara: “Você é
bissexta: faça versos Clarice, e se lembre de mim” (2002, pp. 78-9). Apesar
disso, não há apontamentos que comprovem que Lispector tivesse se
enveredado pela poesia depois da idealização desse livro, que acabou se
perdendo. No entanto, as páginas da imprensa brasileira ainda conservam
alguns poucos registros da tentativa. E as primeiras que chegam ao leitor de
jornal são as que Dom Casmurro deu visibilidade, ainda de uma poeta
desconhecida no meio literário.
O poema inaugural “Canto da mulher eterna” apresenta traços que se
somam às propostas literárias da escritora em formação. Há crítica às
escolas literárias e o manifesto de rompimento com os postulados que o
simbolismo, o parnasianismo e o modernismo defendem. O eu lírico
preconiza liberdade de criação, nos moldes a propiciar a identidade e o
momento de quem escreve, sem amarras.
CANTO DA MULHER ETERNA2

Não quero modernismos


onde palavras estranhas se choquem
com o tilintar de taças desiguais.
Não quero parnasianismos
onde a palavra pise a ideia
e conceba uma flor frágil e artificial.
Não quero simbolismos
que se isolem em analogias.
Quero um pouco de barro.
Um pouco d’água.
Um pouco de sopro.
Quero fazer uma outra poesia,
com pernas e braços,
que tenha um pouco da terra e do céu,
que tenha a verdade dentro de si
sem saber,
que chore e ria e ame e cante e vibre e morra e seja eterna,
gerando sempre outras poesias.
Eu quero um filho.
A poeta de vinte anos, em seu segundo poema publicado na imprensa,
segue a mesma estrutura do anterior, no que se refere à composição dos
versos livres, à ausência de rimas e à escolha pela forma que privilegia a
palavra e seus significados. Aliás, sobre a questão “forma e conteúdo”, o
dilema integra as premissas do projeto literário de Lispector, desde os seus
primeiros textos inaugurados pela imprensa. Nesse projeto, divulgado pela
própria Clarice Lispector em “Literatura de vanguarda no Brasil”,3 escrito
para participar, em 1963, no XI Congresso Bienal do Instituto Internacional de
Literatura Ibero-Americana, na Universidade do Texas, em Austin (Estados
Unidos), e relido em diversas outras palestras, a escritora frisa que as
expressões “corpo e alma”, “matéria e energia” e “fundo e forma” nunca
tiveram muito sentido para ela, pois em se tratando de linguagem real a
“palavra é na verdade um ideograma”. E acrescenta que escrever em uma
língua que ainda borbulha, que precisa mais do presente do que de uma
tradição, exige que “o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa”. Ou
seja: “Cada sintaxe nova é então reflexo indireto de novos relacionamentos,
de um maior aprofundamento em nós mesmos, de uma consciência mais
nítida do mundo e do nosso mundo”. O poema “Descobri o meu país”,
sintomaticamente, dialoga com esse discurso da palestrante. Em tom
intimista, rompe com fronteiras, nem terra nem céu. Inventa outro Deus,
outro céu, outra terra e outros homens, numa zona de intersecção,
hachurada, com a literatura que produz. Porém, algumas imagens mais
proeminentes em escritos futuros já se fazem presentes nesse poema. O
cenário com anjos, de asas em harmonia, que derramam sete bálsamos
purificadores no corpo da que fala no poema, por exemplo, é recuperado,
mas de outra maneira, com aprofundamento nas discussões sobre corpo
feminino e sociedade, na composição da peça dramática “A pecadora
queimada e os anjos harmoniosos”, escrita por Clarice Lispector em Berna
e publicada na primeira edição de A legião estrangeira (1964), e depois
suprimida pela própria autora nas edições subsequentes.
DESCOBRI O MEU PAÍS

Subi a montanha
e no seu topo os anjos me cercaram
e me engrinaldaram a fronte
com as flores do céu.
Asas zumbiam
em harmonias fragílimas
e vozes de arcanjos louvavam a paz.
Derramaram sobre meu corpo
sete bálsamos purificadores
e fizeram-me beber
ambrosia e mel.
Banharam-me no rio da música
e eu saí ingênua
como o canto de uma criança.
E depois surgiram novos anjos
e não havia noite
e não havia dia.
E a ambrosia e o néctar
deslizavam com fartura celestial.
E novas canções se entoaram
sempre em louvor a Deus.
E não havia noite
e não havia dia.
E aos poucos cresceu dentro de mim
o desespero
e eu busquei em vão os olhos celestiais.
Eles nada diziam
e cantavam a paz.
E aos poucos uma nostalgia
me enlanguesceu
e eu era o arco distendido
sem a flecha
e eu buscava o ar
sem respirar.
Um anjo me interrogou: mais néctar?
Eu gritei: quero cheiro da terra!
E o anjo me perdoou
E eu cansei de ser perdoada,
eu queria sofrer.
E não havia noite e não havia…
Quebrei minhas asas,
desci a montanha
e vivi na Terra!

Homens amavam
e cansavam do amor.
Homens bebiam sangue
e descobriam
que não desejavam brigar
Entoavam-se cânticos místicos
onde só havia a insatisfação.
E depois homens morriam
e todos sabiam que era o fim.
Nem a terra,
nem o céu!

Fechei-me num quarto,


inventei outro Deus,
outro céu, outra terra
e outros homens.

A estreia, contudo, da ficção de Lispector acontece em Pan, semanário


popular, especializado em matérias sobre a Segunda Grande Guerra,
dirigido pelo escritor Tasso da Silveira, no momento em que “Triunfo” é
lançado em 25 de maio de 1940, quando a revista já estava em declínio. Mesmo
assim, o conto é diagramado em três páginas, com ilustrações que realçam
os conflitos de relacionamento do casal Luísa e Jorge, quando ele abandona
a companheira. O texto de tom intimista antecipa as particularidades da
literatura clariciana, como o fluxo da consciência.
Logo após a morte do pai, Pedro, em 26 de agosto de 1940, em decorrência
de uma cirurgia de vesícula, a Clarice de dezenove anos concilia os estudos
do segundo ano da faculdade com o trabalho na imprensa carioca. Na
Vamos Ler!, revista semanal da empresa A Noite, consegue publicar dois
novos contos: “Eu e Jimmy” e “Trecho”. Lançado em 10 de outubro de 1940,
“Eu e Jimmy”4 recebe ilustração de José Correia de Moura, desenhista
conceituado, com o qual a escritora mantém duradoura amizade. À
semelhança do conto inaugural em Pan, a trama de “Eu e Jimmy” centra-se
na relação de um casal, mas dessa vez com leveza e bom humor, para
discutir a subserviência das mulheres em seus relacionamentos afetivos.
“Trecho”, publicado em 9 de janeiro de 1941, com ilustração do premiado
pintor e caricaturista pernambucano Euclides L. Santos, expõe os conflitos
pessoais de Flora enquanto aguarda, em um café, a chegada de Cristiano.
Além desses contos, Vamos Ler! se reveste de importância por ter
permitido que a jovem Clarice Lispector se iniciasse na reportagem e na
entrevista. Vamos Ler! é a responsável pelo registro dos primeiros textos
jornalísticos da acadêmica de direito, e o resgate desse material permite
constatar, por exemplo, que a forma, o viés e a linguagem que empregou na
realização da entrevista, em 19 de dezembro de 1940, com o escritor Tasso da
Silveira, foram mantidos quando ela assina os “Diálogos possíveis com
Clarice Lispector”, na revista Manchete, entre 1968 e 1969, e depois na Fatos &
Fotos/Gente, entre 1976 e 1977. Para produzir suas entrevistas, Lispector opta
por escrever em primeira pessoa, em texto estruturado por perguntas e
respostas e introduzido pelo perfil do entrevistado, segundo suas
impressões.
A REPÓRTER E A ARTICULISTA

É constante a presença de Clarice Lispector nas redações de jornais no


início da década de 1940. Disposta e interessada na cobertura das pautas,
conforme opinião do escritor e jornalista Antônio Callado, ela aos poucos
vai chamando a atenção de veteranos jornalistas, ao atuar na Agência
Nacional e em A Noite. Francisco de Assis Barbosa, um dos primeiros a ler
os originais de Perto do coração selvagem (1943), destaca que a colega ria
muito: “Gostava da vida. Estava de bem com a vida. Estava pronta para
viver” (2006, p. 65). E Lúcio Cardoso, mentor por toda uma vida, integra a nova
amiga em seu grupo e nas rodas de intelectuais do Rio de Janeiro.
Como repórter da Agência Nacional, Clarice Lispector tem seus textos
distribuídos aos órgãos da imprensa brasileira, divulgando o Estado Novo e
promovendo pessoal e politicamente Getúlio Vargas. Não há registro oficial
do período em que aí esteve nem das reportagens que cobriu. Esse resgate
ainda está sendo construído à medida que as matérias assinadas por
Lispector vão sendo descobertas nas publicações jornalísticas do país. É
certo, porém, que trabalha na Agência Nacional em 1941, indicada por
Lourival Fontes, homem de confiança do presidente Vargas e diretor do
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), ao qual a Agência Nacional
estava vinculada. Aliás, é importante observar que esse início de carreira
como jornalista não é fácil, mesmo sendo apadrinhada por Lourival Fontes.
Em carta à irmã Tania, datada de 7 de fevereiro de 1941, Clarice Lispector
narra o episódio de sua saída da Agência Nacional em decorrência de
desentendimentos com o dr. J., por desejar trabalhar com reportagens. Ela
desabafa:
Quanto ao trabalho: fui falar com o dr. J. e ele ficou de falar com L.F. Mas no dia seguinte
telefonei pedindo que ele abandonasse a ideia porque eu não ia voltar. Nunca vi tanta
necessidade de dar coices como naquele sujeito. Começou por me dizer que eu não era
indispensável. Como eu dissesse que desejava voltar às reportagens, disse-me que eu já estava
com imposições. Que eu, entrando lá, faria o que fosse preciso. E que, quando eu fosse com
ele ao L.F., ia dizer que tivera um incidente comigo, mas que eu queria voltar e como tinha
certas qualidades… E disse-me ele, aconselhava-me a que concordasse com isso como um pai
aconselharia… Fez o possível para me botar no meu lugar. E o idiota do Sampaio não me
cumprimentou senão depois de longos minutos de observação. Mas o Santos Jr. acha que eu
voltarei, porque o J.S. já tinha falado com L.F. (2007, p. 21).

É possível identificar L.F. como o diretor do DIP Lourival Fontes e J.S.


como o jornalista Joel Silveira. Mas a identidade do dr. J. não se conhece
ainda. Fato é, no entanto, que a novata repórter, antes da passagem relatada
na carta à irmã Tania, entrevista a primeira-dama Darcy Vargas e tem
matéria publicada no Diário do Povo, de Campinas (SP), com crédito de
autoria e como repórter da Agência Nacional. “Onde se ensinará a ser
feliz”5 é publicada em 19 de janeiro de 1941 e divulga o projeto “Cidade das
meninas”, que seria construída em terreno doado pelo governo federal em
Nova Iguaçu, para abrigar cinco mil crianças desamparadas.6 Iniciada por
um nariz de cera, técnica comum nos textos de reportagem de Lispector, a
matéria menciona a “Cidade dos meninos” do padre Flanagan, no estado de
Nebraska (Estados Unidos), que ressurge na proposta de Darcy Vargas. O
intuito era que as meninas não recebessem apenas casa e comida, mas um
lar. “Nas centenas de casas, simples e alegres, as meninas se desenvolverão
sem promiscuidade, como numa pequena família”, segundo a idealizadora
(2012, p. 55).
Ainda sobre assistência às crianças desamparadas, a revista Vamos
Ler! publica “Uma visita à Casa dos Expostos”,7 em 8 de junho de 1941.
Fundada por Romão de Mattos Duarte em 1738, a instituição chamava-se Casa
da Roda, em alusão à roda de madeira instalada na porta de entrada, na qual
as crianças abandonadas eram deixadas pelos pais para receberem
assistência. A reportagem rememora o fundador e é interessante observar as
ilações de Lispector na cobertura. Quando descreve o caso dos internos que
permaneceram na Casa até a velhice, ela escreve: “Às vezes o exposto se
enxerta de tal modo à nova árvore, que dela só se desprende quando
murcho. Assim, ainda mora na Casa dos Expostos uma turma de velhinhos,
que nunca se lembrou de fugir” (2012, p. 47). Na sala dos recém-nascidos, a
repórter conhece Bonifácio. Diante da história do menino sem condições de
sobrevida, ela critica um dispositivo do Código Penal que proibia as
entidades assistenciais de aceitarem crianças sem dados de identidade, sob
pena de um a cinco anos de prisão. Sensibilizada por temas sociais, expõe
um retrato da infância desamparada e finaliza a matéria argumentando que
não “é proibindo a aceitação de crianças não identificadas que se acabará
com o nascimento delas” (2012, p. 53).
Nesses escritos, as convicções da jovem de vinte anos são tão
contundentes que, ao longo da vida, não as modificará. Na revista discente
A Época,8 essa atitude de ver os desvalidos, problematizando as formas de
se fazer justiça, fica evidente. Em “Observações sobre o fundamento do
direito de punir”,9 publicado em agosto de 1941, a articulista defende a tese de
que não há direito de punir, mas poder de punir. De acordo com a autora, “o
homem é punido pelo seu crime porque o Estado é mais forte que ele” (2006,
p. 60). Para a redatora de A Época, enquanto “punir” significar simplesmente
encarcerar o criminoso, em vez de almejar a cura do mal social para
impedir outros de cometerem o mesmo delito, então é “preferível abandonar
a discussão filosófica dum ‘fundamento do direito de punir’ e, de cabeça
baixa, continuar a ministrar morfina às dores da sociedade” (2006, p. 60),
conclui.10
No segundo texto que publica em A Época, “Deve a mulher
trabalhar?”, em setembro de 1941, Clarice divulga a enquete que realizou com
estudantes do curso de direito sobre a atuação da mulher fora de casa. Logo
no primeiro parágrafo, a repórter questiona: “Deve ou não deve ela estender
suas atividades pelos vários setores sociais? Deve, ou não, voltar suas vistas
também para fora do lar?”. Na sequência, indica duas possibilidades: ou ela
segue seu eterno destino biológico ou escolhe livremente seu caminho. “De
um lado, a casa, compreendendo filhos e marido, exigindo abnegação
constante. De outro, a evolução dos costumes e dos ideais, lançando-a no
conhecimento de si mesma e de suas possibilidades” (2012, p. 71). A pauta
provavelmente foi motivada pela história da própria Clarice, que
conquistava espaço no mercado de trabalho, e da irmã Elisa, que sempre
trabalhou para ajudar nas despesas.

CLARICE NA REVISTA O CRUZEIRO

Escalada para cobrir a visita do presidente Getúlio Vargas ao Museu


Imperial de Petrópolis, Clarice Lispector ganha matéria de quatro páginas,
no conceituado semanário O Cruzeiro,11 edição de 5 de julho de 1941. Inspirada
na norte-americana Life, a revista O Cruzeiro, editada pelos Diários
Associados, de Assis Chateaubriand, foi o principal magazine ilustrado
brasileiro do período, com circulação nacional.
Quando da cobertura pela repórter da Agência Nacional, O Cruzeiro
constitui importante porta-voz da política modernista e nacionalista do
governo de Getúlio Vargas. Por isso, justifica-se a diagramação destacada
do trabalho assinado por uma “Clarisse Lispector” em caixa alta e ilustrado
por sete fotos do presidente Vargas em visita à residência favorita de verão
de d. Pedro II, elevada à condição de Museu Imperial12 por decreto-lei do
próprio Vargas, em 29 de março de 1940.
O parágrafo introdutório da reportagem de Lispector, redigido em
nariz de cera, lista os países com maior número de museus. O continente
africano, no recorte que fez, possuía sessenta museus, enquanto a América
Latina nem figurava na tal relação. A redatora explica, diante do contexto,
que é necessário “trazer ao povo a noção das experiências antigas,
ensinando-lhe a amar o que é seu e facilitando-lhe a compreensão da
realidade atual. E o melhor meio de ensinar história é despertar a
curiosidade pela história”.
As informações são coletadas em conversa com Alcindo de Azevedo
Sodré, diretor do Museu Imperial. A repórter do DIP não entrevista Getúlio
Vargas nem reproduz alguma fala oficial. Mas, guiada por Sodré, conhece
as dependências do Palácio e se encanta com o lustre de 32 quilos de cristal,
que pertenceu ao Marquês de Abrantes, instalado na sala de jantar da
família imperial. Em determinado momento, conta Lispector, o diretor do
museu pede que as janelas sejam fechadas e torce o comutador. O efeito da
luz emanada pelo lustre surpreende, mesmo com o recinto despojado de
móveis e objetos. O resultado inesperado desse ato deve ter proporcionado
um vislumbre inesquecível na futura romancista e contribuído de alguma
forma na trama de seu segundo romance, pois nem mesmo as intervenções
de Lúcio Cardoso a demovem de modificar o título O lustre (1946) para a
obra.
Como repórter, Clarice Lispector é contratada, em março de 1942, por A
Noite, inclusive com registro em carteira de trabalho. Contudo, a bem-
sucedida carreira de repórter é interrompida, em 1943, com o casamento e os
anos vividos na Europa ao lado de Maury Gurgel Valente. No entanto, após
o lançamento de Perto do coração selvagem, a imprensa é novamente o
veículo escolhido para a publicação de novos contos, notadamente no
período de três anos em que vive em Berna, Suíça, de 13 de abril de 1946 a 3 de
junho de 1949, quando escreve histórias, como “O crime” (que depois seria
revista e transformada em “O crime do professor de matemática”) e “O
jantar”, que são publicadas pelo suplemento Letras e Artes, do jornal A
Manhã, em 25 de agosto e 13 de outubro de 1946, respectivamente, com
ilustrações do conceituado artista Santa Rosa, antes de fazerem parte de
Laços de família (1960). Em Berna, também escreve “Mistério em São
Cristóvão” e “Os laços de família”.13
Em visita ao Rio de Janeiro, em 1949, para conferir as provas de A cidade
sitiada, a ficcionista escreve mais três contos: “Amor”, “Começos de uma
fortuna” e “Uma galinha”. E, enquanto o casal aguarda a viagem para
Torquay, na Inglaterra, a revista O Cruzeiro publica novos contos de
Lispector em diagramação cuidada, geralmente na prestigiada página 3,
dedicada à produção feminina, e ilustrados por Percy Deane e Alceu Penna,
que fazem história no jornalismo brasileiro. Assim, as páginas de O
Cruzeiro são as responsáveis por levar aos leitores o texto, em primeira
versão, dos seguintes contos: “Instante alpino” (3 set. 1949), “Espanha, canto e
dança flamengos” (29 out. 1949), “Esboço de menino” (10 dez. 1949), “Mocinha” (24
dez. 1949), “Pepe, el guia” (18 fev. 1950), “O jantar” (13 maio 1950), “Uma alma
caridosa” (23 set. 1950), “A moça tranquila” (3 fev. 1951).
Dos oito contos que a revista O Cruzeiro publica, apenas “O jantar”
não é inédito, pois o Letras e Artes já o havia lançado. Porém, os demais
contos, escritos quando Clarice Lispector era estudante de direito e no
período em que residiu em Berna, é imperativo reforçar, conservam uma
redação inicial que foi aperfeiçoada pela ficcionista em anos e até em
décadas posteriores, obedecendo a critérios estéticos e efeitos estilísticos.
Nas versões em livros, Clarice Lispector suprime termos acessórios, faz
substituições vocabular e frasal, amplia a narrativa para tornar mais claro o
tema, reconfigura a pontuação, altera nome de personagem, elimina e
modifica trechos e substitui títulos, em meio a outros procedimentos
textuais, extinguindo os traços da escritora principiante.

DA RECEITA DE MATAR BARATAS AO CONTO

Sobre o processo de reescrita, a publicação de uma receita de matar baratas


na página “Entre mulheres”14 é significativa. Nessa primeira versão da
receita, Clarice Lispector estrutura o texto ao discurso convencional da
imprensa feminina, dispondo ingredientes e modo de fazer, além do uso do
verbo no imperativo. A receita de matar é publicada discretamente na
edição de 8 de agosto de 1952, com o título “Meio cômico, mas eficaz…” e se
ajusta, a princípio, às temáticas trabalhadas por esse tipo de jornalismo, que
reforça os papéis da mulher nos cuidados com a casa e família.
A higienização do lar é proposta recorrente no pós-guerra. As receitas
caseiras de toda ordem são instigadas a serem substituídas pelos produtos
de consumo que a publicidade aconselha. Há um modelo de Brasil que está
sendo construído, em busca da modernidade e do progresso. A imprensa e a
publicidade, principalmente no pós-guerra, empenham-se na difusão do
novo estilo, calcado na cultura da higiene, que tem como alvo a dona de
casa. As marcas Detefon, Neocid e Flit investem pesado em anúncios,
depois que o uso do diclorodifeniltricloroetano, o DDT, considerado o
primeiro pesticida moderno utilizado no combate de piolhos transmissores
do tifo nos soldados, em campos de batalha na Europa, é introduzido no
ambiente doméstico da classe média brasileira.
A página de Tereza Quadros compõe-se de pequenos textos narrativos
sobre beleza, moda, comportamento, etiqueta, culinária e maquiagem,
organizados na forma de conselhos, receitas e segredos. Mesmo
consultando as revistas Bünte, Paris Match e Jour de France, doadas ao
semanário por uma senhora alemã chamada Lothe,15 para auxiliar na
elaboração do repertório, Tereza Quadros faz de “Entre mulheres”
oportunidade para veicular a ficção de Clarice Lispector. No caso da receita
de matar baratas, disfarçadamente, o exercício ficcional “Meio cômico, mas
eficaz…” convida a leitora ao ritual de matar e com “eficácia”, palavra de
ordem da publicidade da época para os inseticidas. Eis o texto-embrião que
Lispector transformará em conto:
De que modo matar baratas? Deixe, todas as noites, nos lugares preferidos por esses bichinhos
nojentos, a seguinte receita: açúcar, farinha e gesso, misturados em partes iguais. Essa iguaria
atrai as baratas que a comerão radiantes. Passado algum tempo, insidiosamente o gesso
endurecerá dentro das mesmas, o que lhes causará morte certa. Na manhã seguinte, você
encontrará dezenas de baratinhas duras, transformadas em estátuas. Há ainda outros processos.
Ponha, por exemplo, terebentina nos lugares frequentados pelas baratas: elas fugirão. Mas para
onde? O melhor, como se vê, é mesmo engessá-las em inúmeros monumentozinhos, pois “para
onde” pode ser outro aposento da casa, o que não resolve o problema.

Esse passo a passo para a assepsia da casa está na contramão da


mentalidade do Brasil dos anos 1950, que busca abandonar as receitas caseiras.
A leitora pode não perceber o jogo lúdico, pois Tereza Quadros é
dissimulada. Quando integra a equipe de Comício, Lispector já não é mais
aquela mocinha interessada em adquirir experiência na reportagem. Ela
agora chega ao Rio de Janeiro16 como escritora reputada e mãe de Pedro,
trazendo na bagagem as experiências da Europa marcada pelo nazismo, as
trocas de conhecimento com personalidades da vanguarda cultural e os
requintes e as pompas da diplomacia.
Essa receita de matar baratas permanece, contudo, no imaginário de
Clarice Lispector. A narrativa aparece na página feminina do Diário da
Noite, em 16 de agosto de 1960, com modificações, e tem o título alterado para
“Receita de assassinato (de baratas)”. Depois, o texto é aperfeiçoado,
adquirindo a forma de conto na revista Casa e Jardim, no mês de outubro
de 1960, e recebe o nome de “A quinta história”. Como conto, aparece
também, em abril de 1962, na sessão “Children’s corner” da revista Senhor,
onde a escritora assina C.L., até ter nova versão, em 1969, na coluna que
escreve para o Jornal do Brasil, com o título modificado para “Cinco
relatos e um tema”. Em livro, “A quinta história” integra os contos da
edição de 1964 de A legião estrangeira e de A descoberta do mundo (1984).
Em 1959, quando regressa dos Estados Unidos ao Brasil, em definitivo,
separada do marido e com seus dois filhos, Clarice Lispector tem
novamente na imprensa um caminho para publicar sua ficção, como nas
revistas Senhor e Mais, e retomar a carreira de jornalista, com as páginas
femininas do Correio da Manhã e Diário da Noite, as entrevistas para
Manchete e Fatos&Fotos/Gente, e as crônicas em Joia e no Jornal do
Brasil. Porém, não mais frequenta com assiduidade as redações de jornal e
pouco interage com os repórteres, conforme declaração do jornalista Raul
Giudicelli,17 que trabalhou com Clarice Lispector no Diário da Noite. Nesse
retorno, Clarice Lispector perde aquela alegria e leveza descrita pelos
colegas de sua primeira fase na imprensa, entusiasmada pela reportagem.

NOTAS
1. “Cartas a Hermengardo” foram reunidas e publicadas em Clarice na cabeceira: jornalismo, pp. 56-
65. Ver também Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas, pp. 57-8.

2. Os poemas de Clarice Lispector que Dom Casmurro lançou tiveram a ortografia atualizada.
3. Texto consultado na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, espólio de Clarice
Lispector.
4. Os contos “Triunfo” e “Eu e Jimmy”, além da entrevista “Uma hora com Tasso da Silveira”,
podem ser consultados em Clarice na cabeceira: jornalismo, pp. 29-45.
5. Ver texto integral em Clarice na cabeceira: jornalismo, pp. 54-5.
6. O empreendimento acabou não vingando, por falta de recursos suficientes.
7. Consultar texto integral em Clarice na cabeceira: jornalismo, pp. 46-53.
8. Revista da Faculdade de Direito, ligada ao Centro Acadêmico Cândido de Oliveira (Caco), um dos
redutos da luta antifascista do período.
9. Os dois textos de Clarice Lispector publicados em A Época podem ser consultados em Clarice na
cabeceira: jornalismo, pp. 66-74.
10. Essa visão é manifestada também em crônicas, como na encomendada pelo conselho editorial da
revista Senhor, em junho de 1962, por ocasião da morte do criminoso Mineirinho. E também quando
escreve, indignada, na página feminina “Só para mulheres”, do Diário da Noite, em 9 de maio de 1960,
sobre o caso Caryl Chessman, acusado de ser o Bandido da Luz Vermelha, que foi condenado a
respirar um gás mortífero, mesmo negando a autoria dos crimes: essa justiça “mata como médico que
desse veneno a um doente porque não soubesse que remédio outro lhe dar”.
11. O registro da reportagem e dos contos escritos por Clarice Lispector em O cruzeiro é inédito.
12. Como o Palácio de Petrópolis havia sido anteriormente alugado para o Educandário Notre Dame
de Sion e, depois, para o Colégio São Vicente de Paulo, a edificação é submetida a um projeto de
reconstituição. A inauguração acontece em 16 de março de 1943, na comemoração do centenário da
cidade. Portanto, Clarice Lispector, nessa reportagem, não cobre a inauguração do Museu Imperial,
mas a visita do presidente Getúlio Vargas às obras de restauro ao referido Palácio.
13. O Letras e Artes ainda publicou “Noite na montanha” e “O medo de errar”, em janeiro e julho de
1950, respectivamente.

14. Clarice Lispector produz três colunas femininas, utilizando pseudônimos. No semanário Comício,
como Tereza Quadros de “Entre Mulheres”, colabora de março a setembro de 1952; no Correio da
Manhã é a Helen Palmer, de “Correio Feminino”, entre 1959 e 1961; e em “Só para mulheres”, do
Diário da Noite, assina o nome da atriz Ilka Soares, de 1960 a 1961. Sobre esse trabalho, consultar
Clarice Lispector jornalista: páginas femininas & outras páginas.
15. Depoimento de Joel Silveira a Aparecida Maria Nunes, em 16 ago. 1990.
16. A família Valente chega de Torquay, Inglaterra, em março de 1951, e permanece no Brasil até
setembro de 1952, quando, então, parte para Washington, nos Estados Unidos.
17. Depoimento concedido a Aparecida Maria Nunes, nas dependências da revista Manchete, no Rio
de Janeiro, em 30 de novembro de 1987.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
LISPECTOR

______. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.


______. Literatura de vanguarda no Brasil. Arquivo Clarice Lispector. Fundação Casa de Rui
Barbosa, Rio de Janeiro.
MONTERO, Teresa (Org.). Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

______. Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.


NUNES, Aparecida Maria. Clarice Lispector jornalista. Dissertação de mestrado. São Paulo: usp, 1991.

______. Clarice Lispector jornalista: Páginas femininas & outras páginas. São Paulo: Editora Senac
São Paulo, 2006.
______ (Org.). Clarice na cabeceira: Jornalismo. Rio de Janeiro: Rocco, 2012.
PEREZ, Renard. Escritores brasileiros contemporâneos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.
Adolescentes de Clarice nos caminhos turbulentos
do feminino
ELIANE FITTIPALDI

O ajuste das mulheres à feminilidade nunca é perfeito, e muito menos se dá sem


conflito.
Maria Rita Kehl1

CLARICE E O FEMININO

Em quase toda a sua obra, Clarice Lispector trata de questões relativas ao


ajuste das mulheres ao feminino desde a infância até a velhice, passando
pela adolescência e pela idade adulta. Para configurá-las como seres
desejantes, a escritora quebra vários tabus relativos à sexualidade feminina:
fala do desejo infantil, do desejo reprimido da mulher solteira e da casada,
do desejo entre as do mesmo sexo, do desejo na terceira idade e da falta de
desejo onde ele “deveria” haver. Em suas personagens femininas, delineia
uma complexidade de sensações e sentimentos: a anatomia do desconforto
existencial com as pressões que a sociedade exerce para que elas sejam —
cada uma à sua maneira e conforme as circunstâncias que as narrativas
engendram —, algo aquém delas mesmas, para que se conformem com algo
menor do que suas possibilidades de ser. Clarice matiza o anseio dessas
mulheres por uma existência mais ampla na contramão de tais pressões e
aborda o conflito daí resultante com coragem, perspicácia e sensibilidade,
ancorada em vários recursos narratológicos e retóricos (principalmente o
discurso indireto livre).
Um momento importante em que esse conflito eclode é o da
adolescência, fronteira entre a infância e a vida adulta e que requer uma
nova condição subjetiva. O psicanalista Moses Laufer data essa fase dos
doze ou treze até os 21 anos e a define como “o momento que vai da
maturidade sexual física até o momento em que o indivíduo afirmou uma
identidade sexual irreversível ou, como Freud o descreveu, uma
‘organização sexual definitiva’”.2
As personagens que aqui abordarei vivem exatamente essa fase de
crise e de crescimento. Uma delas é a protagonista do conto “Gertrudes
pede um conselho”, escrito em 1940 ou 1941 (quando Clarice tinha entre vinte e 21
anos) e publicado postumamente em 1979, no volume A bela e a fera. Outra é
a jovem inominada de “Preciosidade”, conto escrito em 1955 (quando Clarice
já tinha 35 anos) e publicado pela primeira vez em 1960, em Laços de família.
Clarice não gostava desse conto e comentou, em A descoberta do mundo:
“Preciosidade” é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina, e depois pedindo-
lhe desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas tendo vontade de não pedir mesmo.
Terminei arrumando a vida dela mais por desencargo de consciência e por responsabilidade
que por amor. Escrever assim não vale a pena, envolve de um modo errado, tira a paciência.
Tenho a impressão de que, mesmo se eu pudesse fazer desse conto um conto bom, ele
intrinsecamente não prestaria.3

Nesses dois textos, vários temas se entrelaçam: a sexualidade, as


relações com o outro (importantes na formação do sujeito), a identidade e as
identificações, as transformações do eu, o ideal de eu e o eu ideal, a fantasia
e o devaneio, a angústia, o trauma, a aprendizagem, o feminino e a
feminilidade. São questões que afetam o corpo das personagens e sua
caracterização; o corpo do texto, sua escritura. Não havendo como dar conta
de todas em tão pouco espaço, a ideia aqui é verificar, na medida do
possível, como Clarice (des)constrói os conceitos de “feminino” e
“feminilidade”, isto é, como o corpo do texto — sua escritura — coloca-os
em discussão e os transforma em arte.

ADOLESCÊNCIA, PERÍODO TRAUMÁTICO

Vale notar que a palavra “adolescente” origina-se do verbo latino


adolescere, que significa “crescer”. Considerando-se que o sufixo nominal
“ente” exprime a ideia de agente, ela significa, como adjetivo, qualidade ou
estado (aquele que cresce) e, como substantivo, tem um conteúdo
dinâmico.4 Nas duas formas lexicais, refere-se a uma complexa fase de
transformação do sujeito: é quando ocorre o estranhamento, a angústia em
relação ao corpo em mudança e ao aumento da libido, quando se processa o
luto do corpo da infância que se está perdendo — o corpo do narcisismo
parental. É um período delicado em que também se transforma a relação
que se tem com o pequeno outro, cujo olhar pode se tornar invasivo,5 e com
o grande Outro. Tudo isso caracteriza o período da adolescência como
potencialmente traumático. Como diz Pierre Jeammet, essa potencialidade
traumática “no sentido freudiano do termo, […] diz respeito à possibilidade
de o eu ver seus processos de elaboração e de organização saturados pela
tarefa a realizar”.6 Daí os conflitos, a inadequação, a contestação de valores,
a rebeldia que transborda dessa saturação.
Aos conflitos próprios da adolescência, juntem-se aqueles específicos
das mulheres na época em que esses contos de Clarice são escritos: época
em que não se pode exercer livremente a sexualidade sem a preocupação
com as consequências da maternidade; em que se ensinam as meninas a
conterem os instintos; em que a cultura produz mecanismos rígidos de
controle do corpo da mulher; e em que as instituições de poder e os
discursos de autoridade (família, igreja, escola, medicina, publicidade)
restringem a definição do feminino à conhecida antinomia burguesa que
vem do século 19 — a mulher do lar e a da rua (e o bom modelo a ser
seguido é, logicamente, o da esposa-mãe-dona de casa).

SERES DE EXCEÇÃO

“Preciosidade” é um substantivo abstrato, de derivação adjetiva, e funciona


como uma espécie de epíteto para essa personagem que é apenas referida
como “ela” e que, na verdade, quase a nomeia de imediato, por constituir a
principal marca que a caracteriza. Pretiositas, em latim, é a qualidade do
que é precioso, do que só pode ser obtido por um preço alto ou que não se
traduz em moeda alguma: aquilo que tem alto valor por sua beleza ou
raridade. No caso da personagem, esse atributo não é a beleza — isso já é
dito logo no início, por meio de uma lítotes amenizadora: “Tinha quinze
anos e não era bonita” [grifo meu], ratificada várias vezes depois pelo
intensificador “tão”:
Quando foi molhar os cabelos diante do espelho, ela era tão feia.
Ela possuía tão pouco e eles haviam tocado.
Ela era tão feia e preciosa. [grifos meus]

Mas, embora a personagem não tenha o atributo da beleza, ela é


associada às ideias de raridade e pureza, e é descrita como um ser de
exceção por meio de epítetos como “centauro”, “princesa do mistério
intacto” — mistério esse que se esconde no texto sob várias repetições
insistentes: a principal é a da aliteração em [v], fonema que associa
subliminarmente por homofonia e, é claro, pela via semântica, dois valores
bem específicos ao conceito do feminino. Um, biológico: a vagina. Outro,
sociocultural: a virgindade, tão importante nessa época. Percebe-se,
portanto, tudo aquilo que está subjacente ao título, “Preciosidade”, e à
expressão “intenso como uma joia”, ambos referentes a “ela”.
Nos dois primeiros parágrafos do conto, que descrevem
minuciosamente o despertar da jovem de quase dezesseis anos, há uma alta
carga de sensualidade na linguagem. A prosa assume um ritmo lento, com a
enumeração de três adjetivos em gradação — “vagaroso, desdobrado,
vasto” — que a instalam no tempo da experiência, da duração. Este último,
“vasto”, além de depois repetir-se, assume também outras formas lexicais e
sintáticas — “vastamente”, “vastidão” —, caracterizando assim a
personagem como um potencial para tomar diferentes formas.
Outra repetição nesse trecho é a da palavra “não”, também
intensificada em gradação: “Que não se espreguiçava, não se comprometia,
não se contaminava: Ela” [grifos meus]. Refere-se àquilo que, nela,
constitui o valor já formado e inegociável (sua idiossincrasia), contribui
para reforçar o ritmo ternário que se vem afirmando e estabelece, na
materialidade da linguagem, a personagem como “a depositária de um
ritmo” — ritmo que é a base dessa idiossincrasia: onde ela é “idem” a si
mesma.
Essa perífrase (“a depositária de um ritmo”) também marca a
personagem como preciosa: afinal, quem é depositário é depositário de um
valor. Mas que valor é esse, que ritmo é esse?
É aquele que ocorre no espaço íntimo da vastidão e da nebulosidade —
o ritmo todo seu em que ela elabora sua trajetória de transformação de
menina em mulher: no “ato misterioso, autoritário e perfeito” de “erguer o
braço” como se fosse uma varinha mágica, quando, de manhã cedinho, atrai
para si o ônibus, símbolo fálico não ameaçador, espécie de adjuvante
mágico, que “avança” dentro da névoa (a da rua e a que está dentro dela)
“obedecendo à arrogância de seu corpo”. Perceba-se que, nesse ato de
chamar para si o ônibus, com cujo andamento se harmoniza (já que, como
ela, ele é “incerto e vagaroso, vagaroso e avançando”), ela está testando
imaginariamente o poder de sua sexualidade no ambiente seguro e
controlado do devaneio.
Enquanto “ela” é caracterizada principalmente pela vastidão, pela
pureza e pela virgindade, Gertrudes é caracterizada pela força. Seu nome
vem do alemão arcaico Ger-trood, que significa “haste forte”. Além disso,
seu apelido, “Tuda”, lembra o feminino de “tudo”, pronome indefinido que
é invariável, não tem flexão de gênero. Esse apelido, com seu significado
assim tão absoluto e abrangente, equivale à vastidão da menina de
“Preciosidade” e aponta para o potencial de atuação, para o potencial de ser
e também para o potencial de subversão da personagem: faz o feminino na
linguagem prevalecer contra as normas (no caso, as gramaticais) e mostra
que a personagem é capaz de ir também contra outras normas, que é capaz
de transformar e se transformar. E, se a protagonista de “Preciosidade”
começa o conto mergulhada no espaço íntimo em que desfruta de nebulosa
e ampla liberdade, na ilusão de uma completude que sabemos ser
impossível (pois só se realiza uma vez para nós, quando estamos no útero
materno), Tuda também inicia o conto in medias res, mas já lançada no
espaço social. Quando a encontramos pela primeira vez, está tolhida pela
convenção do que deve ser o comportamento feminino: bem sentadinha,
tesa, querendo causar boa impressão na consultora de revista com quem se
vai aconselhar — provavelmente uma psicóloga, encarregada de menores
abandonados.
Tuda tem um humor instável, característico das variações hormonais
da adolescência e da preocupação em adequar-se às normas sociais. Ela não
está contente, e é para esse descontentamento que quer uma explicação.
Quer saber quem é e busca uma mulher, uma “doutora”, um “sujeito
suposto saber”, que a ajude a descobrir isso. Busca um objeto de valor: um
conselho. E, se possível, um emprego. Se a menina de “Preciosidade” abre
o conto em harmonia consigo, Gertrudes experimenta um estranhamento de
si — é meio canhestra como costumam ser os adolescentes e envergonha-se
de suas cartas à doutora, considera-se “idiota, absolutamente idiota”. Para
ela, “tudo era confuso”. Alterna o tédio, a tristeza e a languidez com a força
cujo nome indica. E também se percebe como alguém especial, incomum:
“ela era alguém, uma extraordinária, uma incompreendida!” [grifo meu].
Diferentemente dessa Tuda que busca a individualização na relação
com a doutora e que inclui o amor dos homens em seus devaneios, a menina
de “Preciosidade” busca ser impessoal para não ter de enfrentar o olhar do
outro — principalmente o dos homens, do qual tem medo, porque ele é
passível de coisificá-la sexualmente. Ela sabe que já “está pronta” para o
sexo, que seu corpo tem valor para os homens, que sua transformação em
mulher nesse corpo é visível e foge ao seu controle. Tem medo da mulher
que se está tornando e que não sabe bem o que e como é, já que as
convenções sociais da época não possibilitam discussões abertas a respeito
da sexualidade, principalmente a feminina. Além do medo que tem da
sexualidade despertada, do desejo — seu e do outro —, essa menina
também tem medo da rejeição. Tem uma lembrança encobridora do único
garoto que já a amou e lhe jogou um rato morto — como ela diz, “uma
porcaria” —, e isso lhe ficou como uma espécie de trauma. Assim, ela
recorre a vários rituais e mecanismos de proteção (precisa afirmar para si
mesma que é vigorosa por dezesseis vezes — uma para cada um de seus
quase dezesseis anos) em uma espécie de ritual mágico. Recorre também a
uma espécie de alienação de sua sexualidade, de sua feminilidade (faltosa
que é), assumindo uma postura de encerrar-se em si mesma, de se bastar
narcisicamente — postura essa que é altamente fálica (porque, como
sabemos, só mesmo o falo representa a completude e também sabemos que
ela é impossível). O único momento em que essa personagem se sente à
vontade no meio dos meninos é quando está em sala de aula, ambiente
protegido em que “era tratada como um rapaz. Onde era inteligente”. E
onde “adivinhava a repulsão fascinada que sua cabeça pensante criava nos
colegas”. É aqui que ela desafia as estruturas de poder patriarcais.
Assim, enquanto a trajetória da Gertrudes começa na identificação
com um ideal de eu (a doutora) para depois se desligar dele (“Eu lá preciso
de doutora! Preciso de ninguém!”), a menina de “Preciosidade” inicia o
conto mergulhada numa espécie de eu ideal (no mergulho narcísico na
imagem que tem de si própria ou que espera que os outros tenham dela) e o
termina aquiescendo ao seu destino de mulher (“assim como uma pessoa
engorda, ela deixou, sem saber por que processo, de ser preciosa”).

ADOLESCENTES E MÁSCARAS IDENTITÁRIAS: NAS TRILHAS


DOS DEVANEIOS

Clarice faz, nos dois contos, uma crítica velada e sutil, mas contundente, à
família burguesa, que não dá conta de orientar as meninas nessa fase da
vida. A casa, o espaço familiar, para as duas, é um espaço de banalidade, de
não reconhecimento: a família da menina de “Preciosidade” é ausente, e ela
procura respostas para suas dúvidas e inquietações junto à empregada da
casa; e a família de Gertrudes não a percebe sequer — Gertrudes reclama da
vulgaridade dos pais e das irmãs e do fato de lhe dedicarem “um olhar
distraído, alheio ao nobre fogo que ardia dentro dela”. Esse modo precário
como a família lida com a transformação da menina em mulher também é
muito bem descrito no conto “Obsessão”, também ele um conto da
juventude de Clarice (escrito no mesmo ano de 1941) e do mesmo livro A bela
e a fera em que se encontra Gertrudes. Há um momento nele em que a
narradora-protagonista diz o seguinte:
Até que um dia em mim descobriram uma mocinha, abaixaram meu vestido, fizeram-me usar
novas peças de roupa e consideraram-me quase pronta. Aceitei a descoberta e suas
consequências sem grande alvoroço, do mesmo modo distraído como estudava, passeava, lia e
vivia.7

Acontece que Gertrudes e a menina de “Preciosidade” não estão assim


tão distraídas. Elas percebem que se encontram em crise e, enquanto a
primeira procura respostas para suas questões junto a uma profissional, a
segunda tenta se evadir da angústia, isolando-se na bolha narcísica. Clarice
coloca uma lente de aumento nas sensações, pensamentos e devaneios de
ambas e mostra como é, para a mulher, esse processo de subjetivação que é
o período da adolescência.
As transformações que então ocorrem não dizem respeito apenas ao
corpo, mas ao sujeito em relação à alteridade. Tendo de, nessa fase,
desligar-se da autoridade dos pais, objetos de amor que até então lhe vêm
fornecendo vias de circulação para o desejo, e de processar o luto da ilusão
de completude perdida, ele sente então um vazio que não pode ser
preenchido por objeto algum, daí sua angústia existencial. Como defesa e
como parte desse processo de constituição da subjetividade e de
apropriação do próprio desejo, busca então referências simbólicas por vias
imaginárias de identificação com ideais que são veiculados pelo Outro:
Reconstruídos mediante destruição e construção de identificações, os papéis imaginários […]
ajudam o adolescente a experimentar ou conviver com diversos personagens — fictícios ou
não — através dos quais elegem características que poderão inspirar, reformular e enriquecer
seus papéis pessoais. Da combinação de cópias de modelos reais ou imaginários, scripts
antigos jamais apagados, surgem as singularidades que não podem ser desprezadas no estudo
da adolescência.8

Considerando tudo isso, o sujeito tem duas possíveis trajetórias de


desenvolvimento: ou se fixa nessas identificações (o que acarreta problemas
de desenvolvimento psíquico), ou se movimenta por elas, experimentando
imaginariamente diversas situações de circulação do desejo. No devaneio,
experimenta máscaras que o ajudam a enfrentar a angústia e a encarar o
mundo.
No mundo transformado pela luz do sol, sentindo-se exposta, a menina
de “Preciosidade” obriga-se a adotar um ritmo diferente do seu próprio.
Quando a rua nebulosa adquire nitidez, a repetição do [v] dá lugar à do [r] e
o texto passa a falar em “imolação das ruas”, “parte do rude ritmo de um
ritual” [grifos meus]. Trata-se agora de um espaço de imprevisibilidade, de
“guerra”, de sacrifício, de embate com o outro. Para adaptar-se, “ela” (esse
feminino em formação que representa toda adolescente e que é produzido
por uma Clarice também ela quase adolescente) testa então algumas
máscaras identitárias, atributos fálicos rígidos, na expectativa de que
encubram sua feminilidade. Essas máscaras são nomeadas pelo/a
narrador/a, que, com elas, ilustra seus sentimentos e sensações:
“missionária séria”, “intelectual”, “andar de soldado”, “filha”, “mulher de
apache”.
Também Gertrudes fabrica para si várias modalidades de máscaras:
“líder de multidões”, “mulher amada pelos homens”, “freira-enfermeira
amada pelo médico”. Em seu caso, essas máscaras são vivências
imaginárias de funções adultas, explorações de possíveis existências futuras
e de escolhas profissionais, sociais e amorosas.
As duas acreditam que têm um destino, um dom, uma vocação, e
devaneiam a respeito. Gertrudes mantém “longas conversas imaginárias”
com a doutora e se fantasia, desempenhando papéis heroicos e amorosos. Já
os devaneios de Preciosidade são mais abstratos, simbolizados pelas
estrelas que desenha e que estão em sintonia com sua nebulosidade, sua
amplitude de possibilidades de ser. Nesses devaneios, as duas, na qualidade
de “tudas”, estão procurando ensaiar a mascarada feminina em sua
multiplicidade e mobilidade — estão se investindo de papéis teatrais, mas
para aventurar-se em terreno seguro. Em linguagem deleuziana, traçam
linhas de fuga criativas para “devir mulheres”.
Ambas procuram ideais em que se espelhar: uma, a empregada que
tem experiência de vida, que é a “antiga sacerdotisa”; outra, a “doutora”,
com quem monta uma imagem que se esfacela no encontro decepcionante.
Assim Gertrudes fabrica essa imagem: “Vai ser assim: ela é alta, tem os
cabelos curtos, olhos fortes, um busto grande. Um pouquinho gorda. Mas ao
mesmo tempo parecida com Diana, a Caçadora, da sala de visitas”.9
E assim se lhe apresenta a doutora: “Miúda, cabelos pretos enrolados
em dois cachos sobre a nuca. O batom pintando um pouco pra fora dos
lábios, numa tentativa de sensualidade. O rosto calmo, as mãos irrequietas.
Tuda sentiu vontade de fugir”. 10
A tão idealizada doutora nem é uma mulher excepcional, nem
reconhece a excepcionalidade de Tuda: revela-se uma pessoa tão vulgar
quanto as de sua família, recorre a todos os clichês possíveis para definir o
que a menina sente e só lhe tem a oferecer uma “compreensão inútil e
humilhante”, um olhar minorizante que projeta sua pequenez na menina e
contrasta com a imensa expectativa que esta havia projetado nela. Não tem
as respostas esperadas porque está adaptada a um papel que a torna
simulacro de si e constitui um conflito personificado, vive em “duelo”.
Ainda chega a propor a Tuda um pacto com a alienação, ao sugerir que a
menina volte a procurá-la quando tiver vinte anos, quando passar “o
período de desadaptação”, e lhe pede para “ser boazinha”.
Interessa notar que, no diálogo das duas, há um deslocamento da
focalização da menina para a doutora, que revela a contradição no seu modo
de pensar e uma ironia: a doutora até poderia considerar Tuda como uma
pessoa especial se não a pré-categorizasse como uma burguesa mimada e
não estivesse tão desistente, tão grotesca em sua máscara desgastada. Em
determinado momento, “uma sombra terrivelmente simpática” promove
uma conexão entre as duas, fazendo Tuda percebê-la com um ar “divino”.
Mas essa revelação logo desaparece com a assunção da mulher inserida
num mundo social a que Tuda quer pertencer, mas não assim, e ocorre uma
inversão de forças: “Olharam-se e Tuda, decepcionada, sentiu que estava
em posição superior à da doutora, era mais forte do que ela”. Gertrudes
percebe-se como a haste forte que é e sai, desprezando aquela em quem
buscava um modelo de força.

OS SAPATOS E A SEXUALIDADE

A menina de “Preciosidade” se ressente dos seus sapatos vociferantes,


inadequados: porque são sapatos de infância que não lhe servem no
caminho da adolescência; porque ela quer caminhar em silêncio nas trilhas
do feminino; porque a fragilizam, minam o poder que ela ainda está
testando magicamente — como quando levanta a mão e o ônibus vem,
carregado de [v]s (“vagaroso, vagaroso e avançando”), em sintonia com seu
ritmo. Esses sapatos ruidosos denunciam o segredo que ela detém, o valor
de que é depositária — sua sexualidade emergente, com a qual ainda não
sabe o que fazer. Eles evidenciam o desejo que ela não controla (o dos
rapazes e — é claro — o dela). Lembremos que, nos contos de fadas, são
sapatinhos de cristal que promovem a inserção da Cinderela na vida com
um homem e lembremos também que os de Dorothy, de O mágico de Oz,
têm o poder de conduzi-la de volta à casa, a si mesma. Esses sapatinhos
servem apenas nelas e simbolizam não apenas sua base de apoio no mundo,
mas um caminhar que é só delas. E surgem na hora exata, quando elas estão
preparadas para o encontro com o parceiro ou consigo mesmas. A história
em que os sapatinhos descoincidem com a heroína e lhe impõem um ritmo
demoníaco (Os sapatinhos vermelhos, de Andersen) é aquela em que a
personagem abre mão do que há de mais precioso em si (sua criatividade)
pela vida rica, mas vulgar.
Preciosidade também detesta seus sapatos porque são duráveis, sempre
os mesmos, e quer trocá-los à medida que cresce. Os sapatos não estão em
sintonia com ela: foram escolhidos pelos pais e simbolizam o desejo do
Outro que a desloca para a não singularidade, quando ela é preciosa e
precisa de sapatos que se harmonizem com seu ritmo sutil. Essa menina não
quer reprimir ou tamponar o desejo que se faz evidente, mas aprender a
gerenciá-lo com uma delicadeza e um ludismo que seus sapatos, símbolo do
ser no mundo, fornecido pela instituição da família — sua vulgar família
burguesa — não possibilitam.

ENCONTROS E DESENCONTROS

Em determinado dia, “ela” comete um ato falho: sai mais cedo que de
costume, alterando assim seu ritmo próprio, e mergulha na estranheza das
ruas desertas, onde acaba encontrando dois rapazes que vêm em direção
contrária à sua e cujo passo faz um ruído insistente em contraposição ao
seu. Ela tem muito medo de que a olhem, mas não recua, porque “como
voltar e fugir se nascera para a dificuldade. Se toda a sua lenta preparação
tinha o destino ignorado a que ela, por culto, tinha que aderir”. Ela sabe que
tem de passar por um ritual de sacrifício, que tem de abrir mão de sua bolha
narcísica, que tem de confrontar o outro sexo, que isso faz parte de seu
crescimento. E é assim que, “de pernas heroicas”, vai ao encontro dos
rapazes — que seu caminhar se mistura com o deles, que o ruído de seus
sapatos se mescla com o deles; que seu ritmo é afetado pelo deles.
Interessa notar aqui, que, assim como o ritmo da menina se altera, o do
texto também se altera; que a ruptura no modo como ela vem adolescendo
também ocorre no texto: antes, ele se estendia em orações longas, em
subordinadas articuladas por conjunções; agora, passa a apresentar períodos
simples, orações assindéticas, frases curtas que geram suspense.
Observamos ainda que a trajetória desse feminino em crise se aproximando
dos passos dos rapazes é marcada pela distensão do tempo da narração: a
“fração de segundo” em que tudo ocorre se expande em câmera lenta pela
distorção que as sensações da menina promovem e pelas próprias
acumulações que se fazem nos níveis fonético, lexical, sintático e semântico
(observemos especialmente como a recorrência de “oca/ocos/oca/oco” e do
fonema [t] produzem no texto uma espécie de sapateado, aproximando
nossa sensação, pela harmonia imitativa, da sensação da menina). Esse é o
acontecimento traumático fulcral do conto: “ela”, que não quer nem mesmo
ser olhada, é apalpada pelos dois rapazes. Sua reação mais imediata é a
paralisação: ela se entrega ao estranhamento de tudo — de si e do ambiente
em que se encontra; e, nesse estranhamento do familiar que é ela mesma,
nota que, ao mesmo tempo, não é mais a mesma. O modo como se vê e ao
mundo se transforma, e esse deslocamento é indicado por uma metonímia:
“Devagar reuniu os livros espalhados pelo chão. Mais adiante estava o
caderno aberto. Quando se abaixou para recolhê-lo, viu a letra redonda e
graúda que até esta manhã fora sua”.11
Depois, altera o próprio ritual: caminha até a escola, ela que antes ia de
ônibus, e percebe que, nesse trajeto, perdeu a noção do tempo, desconectada
de seu ritmo e não mais entregue a devaneios. Não conseguindo se
concentrar na aula e já atraindo a atenção dos colegas, vai ao lavatório e lá,
sozinha, verbaliza aos gritos sua sensação de estar só no mundo. Faz-se
ruidosa como seus sapatos, mas só para si mesma. Por último, olha no
espelho que a reflete feia, olha as mãos sujas de tinta “do dia anterior” e
pensa que precisa cuidar mais de si. E, ao pensar isso, assume um feminino
que até então tinha recusado — um feminino que Gertrudes inicia o conto já
cultivando ao sentar-se direitinho, “passando a ferro” a saia amarrotada com
as mãos. E esse feminino que assume apresenta então uma demanda de
acolhimento e, principalmente, de reconhecimento, que é formulada ao
jantar com os pais, quando exige sapatos novos. “Ela” afirma então ser
mulher (o que a família não reconhece). E exige subsídios para um novo
caminhar, para pôr em movimento o desejo que é seu direito viver. Não
discute ter sido vítima de uma agressão — embora revele, pelo modo como
fala, que está em conflito. É que ela percebe que o mundo familiar não tem
como protegê-la, como não a protegeram os sapatos que lhe deram.
Desconfia que a família possa vir a encaminhá-la à perpetuação de um
modo de ser que ela rejeita (o da não preciosa).
Gertrudes também passa pela experiência marcante de um
(des)encontro difícil — com a doutora —, mas ainda assim uma experiência
epifânica e transformadora: “De repente, pareceu-lhe que depois de ter
vivido aquela tarde, não poderia continuar a mesma […] Transformava-se
tudo! Como? Não sabia…”. Ela também descobre que o caminho da
subjetivação e do feminino é individual, solitário, mas assume, apesar do
medo da vida e do futuro, a certeza da sua peculiaridade. Escolhe o
caminho da não automatização, até de uma possível marginalidade. Embora
ainda não saiba o que fazer de si (questão que a levou ao consultório em
primeiro lugar), sabe que caminho não quer seguir:
“Continuou a andar. […] Pensava: antes era daquelas que existem, que
se movem, casam, têm filhos simplesmente.”
“[…] vou ter outra vida, diferente da de Amélia, mamãe, papai…”12
Ao sair do encontro com a doutora, Tuda tem dois outros encontros
casuais: um deles é com duas meninas “de uniforme”, isto é, idênticas,
institucionalizadas, adaptadas, que lembram suas irmãs, tão diferentes dela.
Há uma antipatia imediata entre Tuda e elas, que, sendo duas, sentem que
vencem o confronto. Mas Tuda não se dá por vencida, o que aqui é muito
importante, já que falamos de um momento de formação da identidade —
de um momento muito peculiar da existência, em que normalmente o
indivíduo quer ser “idem” aos elementos do grupo ao qual pertence. Tuda
não entra nesse jogo e pensa: “que tenho a ver com elas?”. Ela permanece
coerente com a imagem que tem de si mesma, de uma pessoa singular, e
afirma essa singularidade.
O outro encontro casual na rua é, na verdade, um encontrão com um
homem desconhecido, que sugere uma espécie de bifurcação nas
possibilidades da menina dentro da liberdade que sente: ela pode continuar
sem considerar certa atração que parece ocorrer entre os dois ou, ao
contrário, desviar-se de sua caminhada “sobre a planície desconhecida” para
entrar no terreno batido do “girl meets boy”. Mas Tuda permanece firme em
sua haste: assume a mulher que está se tornando como uma força que a faz
apropriar-se do “corpo que o homem olhara” e da “alma que a doutora
tocara”, na intenção de coincidir consigo. Aterra, lúcida, nessa rua que, para
ela, é espaço de aventura e de liberdade, que lhe causa medo, mas onde ela
“diria o que quisesse, comeria todas as casquinhas do mundo, faria o que
bem entendesse” — lugar que ela sobrepõe àquele lar onde sente segurança
mas é banal, ou que lhe promete amor e só lhe oferece o desejo de se matar.
É na rua que ela afirma a si mesma e seu desejo.
Neste, como em outros textos, Clarice mostra que a mulher, em vez de
ser o Outro do homem, como denuncia Simone de Beauvoir n’O segundo
sexo, é a única de si e para si mesma, e que ela, mais que poder tudo ou
querer tudo, é em si, Tuda. Como é “tuda” a literatura, que lida com os
possíveis do real, lugar esse que é sujeito a todas as possibilidades do
deslocamento, do devir e da desterritorialização e que abre sentidos (isto é,
opções existenciais) para que o humano se expanda, e se experimente, e
reflita a respeito de si, e se torne sujeito de si, e faça deslocar seu desejo.
Ideias essas que me fazem voltar um pouco à questão da máscara (a
máscara que é própria do feminino e que Clarice tão bem mostra
consolidar-se na adolescência). Lembro que, na literatura, a palavra
“máscara” está na origem da palavra “personagem”, cuja etimologia etrusca
(phersu), grega (prósora) e latina (persona) significa “soar através de” e se
refere às máscaras teatrais, que eram feitas não só para configurar o papel
do ator (aquele que age) mas também fazer sua voz ressoar adequadamente
no ambiente de representação (comunicar-se com a plateia). Ou seja, a
personagem é um lugar de onde se fala, um topos da narrativa, um lugar-
comum na estrutura do conto, da novela, do romance — assim como do
filme e de outras modalidades por meio das quais se conta uma história.
Assim, se a máscara é um lugar, ou uma posição, de onde se diz
alguma coisa ao mundo, cabe a nós pensar o que Clarice está tentando nos
dizer com essa voz que soa a partir dessas máscaras do feminino que são
“ela” e Gertrudes, em histórias que são recortes de existências possíveis. E
em que lugar ela nos coloca como receptores/as dessa voz.
Ao fazer essas duas meninas adolescerem, isto é, crescerem aos nossos
olhos, ela parece estar nos colocando no lugar mesmo do crescimento — no
lugar de um feminino que olha para si e pensa quais são suas próprias
possibilidades de deslocamento e de devir. É como se ela nos perguntasse: o
que vocês vão querer herdar de mim, Clarice, no século 21? Sapatos
barulhentos? Um rato morto? Um batom pintado para fora da boca? Uma
casa para cuidar? Ou uma consciência de que o feminino e a linguagem
poética lhes oferecem várias máscaras para usar e para fazer o desejo
circular e se manifestar (ruidosa ou sutilmente) e abrir sentidos infinitos,
não apenas para os papéis sociais que nós escolhemos desempenhar como
mulheres, mas para aquilo que vai além desses papéis e que pode nos tornar
cada vez mais humanas?
Percebo que, em toda a obra de Clarice e em cada um de seus livros,
há sempre uma voz paródica — isto é, um canto paralelo ao das
personagens ou que soa duplamente na própria voz delas — e que nos
alerta: o feminino é algo que se constrói socialmente, mas que também se
desconstrói socialmente, por meio da crítica de suas tensões e contradições.
E, já que falo aqui em etimologias, vou lembrar que essa palavra, “crítica”,
deriva da palavra grega krimein (quebrar) e tem relação com a palavra
“crise”. Trata-se de “pôr em crise” ou decompor um objeto de
conhecimento para verificar os elementos que o compõem, para se poder
reconstituí-lo em uma interpretação que vá muito além da soma de suas
partes recompostas. É nisso que consiste uma boa crítica — na
decomposição de um objeto em partes para análise e em sua reconstituição
em um discurso interpretativo. Nesse sentido, em cada uma de suas obras,
Clarice faz uma crítica do feminino: põe esse conceito (e outros,
evidentemente) em crise, expondo sua estrutura anatômica, para que
possamos olhar bem os elementos que o formam (a linguagem que o
constitui). E, ao recompô-lo, oferece várias propostas (ou máscaras) para
esse feminino, vários itinerários, bons ou ruins, nos quais ele passa por
transformações. Mas a interpretação daquilo que ela analisa é feita
poeticamente. As máscaras (personae ou personagens) que engendra para
povoar seus contos e romances têm tamanha polissemia que, mesmo
estando ligadas às contingências de determinada época, representam o
feminino de hoje e de sempre.
Porque é isso o feminino: um constante devir. Quando Beauvoir diz
(nessa mesma época) que uma mulher “não nasce mulher, mas se torna
mulher”, ela está atingindo o cerne da questão. Não há uma mulher
acabada, ela se fabrica o tempo todo. Nada, nas palavras de Beauvoir, diz
que ela está sendo teleológica — isto é, que a trajetória do feminino chega a
um ponto final. Ela sabe muito bem que essa trajetória nunca termina.
Clarice também o sabe. E é por essa razão que produz tantas personagens
femininas diferentes. Ao criá-las, ela está colocando suas leitoras e seus
leitores diante dos possíveis do feminino — está trabalhando esteticamente
suas próprias máscaras, as máscaras que somos todas nós. Clarice está nos
mostrando que somos todas preciosas e tudas, ou que podemos sê-lo. E,
embora não nos dê receita alguma para as nossas transformações, porque
receita não há, ela nos lança na experiência, nos acontecimentos, e isso nos
afeta tanto quanto a realidade empírica nos afetaria ou talvez até mais.
Porque ela faz isso com a linguagem poética. Afinal, quem de nós não é
afetado/a por suas narrativas e não as considera bem realizadas — mesmo
as que não foram valorizadas pela crítica — mesmo as de que ela própria
não gostava?

NOTAS
1. Deslocamentos do feminino: A mulher freudiana na passagem para a modernidade. Rio de
Janeiro: Imago, 1998, p. 82.
2. Laufer, “Psychopathologie de l’adolescent”, Adolescence, v. 1, n. 1, Paris, 1983. Apud, Sonia Alberti,
Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos/Contra Capa, 2009, p. 26.
3. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 239.
4. Dicionário etimológico. Disponível em: https://www.dicionarioetimologico.com.br/adolescente.
Acesso em: 16 jan. 2021.
5. Sandra Dias, “A inquietante estranheza do corpo e o diagnóstico na adolescência”. Psicologia
USP, São Paulo, v. 11, n. 1, 2000, pp. 119-35. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-
65642000000100008. Acesso em: 17 mar. 2021.
6. Pierre Jeammet. “Expériences psychotiques et adolescence”, Adolescence, v. 3, n. 1. Paris, 1984.
Apud Sonia Alberti, Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos/Contra Capa, 2009,
p. 29.
7. Clarice Lispector, A bela e a fera. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 31.
8. Angelina Bulcão Nascimento. Quem tem medo da geração shopping? Uma abordagem
psicossocial. 2. ed. Salvador: EDUFBA, 2005, p. 39.
9. Clarice Lispector, op. cit., 1999, p. 22.
10. Ibid., p. 23.
11. Clarice Lispector, Laços de família: contos. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 91.
12. Clarice Lispector, op. cit., 1999, p. 28.
Nem tanto como o barro nas mãos do oleiro: A
metáfora da criação em Clarice Lispector
MARIÂNGELA ALONSO

INTRODUÇÃO

No descomeço era o verbo.


Só depois é que veio o delírio do verbo.
Manoel de Barros

Como sói dizer, Deus criou o mundo e a totalidade de tudo o que existe foi
criada pelo poder de sua palavra: “Deus disse: faça-se a luz [fiat lux]. E a
luz foi feita” (Gn 1, 1-3). No livro do Gênesis, o auge da criação é o homem e
a mulher, Adão e Eva, criados no sexto dia. O sétimo dia configura o
descanso de Deus, em referência direta ao sábado, sagrado e adotado pelos
hebreus. O processo encadeado na sequência de seis dias sinaliza uma
preocupação com a ordem: “Esta é conseguida através de separações e
distinções, ordenando a realidade caótica da Terra, que estava sem forma e
vazia” (STORNIOLO; BALANCIN, 1991, p. 14).
Assim, com a criação da matéria, o criador rompeu com o silêncio e o
imenso vazio do infinito hipotético. Registra-se a força do verbo, conforme
consta na célebre passagem do Evangelho segundo São João:
No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. Ele estava no
princípio com Deus. Todas as coisas foram feitas por intermédio Dele, e sem Ele nada do que
foi feito se fez. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós, cheio de graça e de verdade, e
vimos a Sua glória, como a glória do unigênito do Pai. (João 1: 1-14)

Por outro lado, desde 1948, com George Gamow (1904-1968) e Georges
Lemaitre (1894-1966), a ciência procura explicar a origem do universo a partir da
famosa Teoria da Grande Explosão ou Big Bang, calcada na hipótese de
explosão violenta, inflação cósmica, entre outros termos. Tal explosão
refere-se à vasta liberação de energia de ondas gravitacionais e de
densidade, que teriam criado o que conhecemos por espaço-tempo.
Seja como for, o entendimento sobre como ocorreu o processo de
origem do universo atual favoreceu e ainda favorece diversos debates,
estudos e teorias que estão longe de explicar tal fenômeno. Desde os tempos
mais remotos, a criação constitui um tema que desperta grande curiosidade
dos seres humanos e continua a alimentar grandes polêmicas nos campos
religioso, filosófico, científico e literário. Dessa maneira, para além de
qualquer tentativa de explicação, a criação do mundo permanece na esfera
abscôndita, preservando sua condição misteriosa e intangível.
Em que pese o plano de mistério e de impenetrabilidade do tema da
criação, diversos artistas debruçaram-se sobre ele, no esforço de decifrar o
seu sentido na pintura, na literatura e nas artes em geral.
O crítico francês George Steiner (1929-2020) deixou contribuições que
ampliam esse debate, abrindo uma importante linha de interpretação ao
buscar respostas para o sentido da origem do mundo. Em Gramáticas da
criação (2003), ele parte do impasse ancestral, questionando, na esteira de
Leibniz: “Por que o Nada não prevaleceu?”, o que teria induzido o
aparecimento da matéria orgânica e da vida? No seu entendimento, seria o
postulado de um começo no tempo que tornaria imprescindível o conceito
de criação, uma vez que somos “criaturas sedentas e empenhadas em voltar
para casa, para um lugar que nunca pudemos conhecer” (STEINER, 2003, p. 28). Para
o estudioso, os campos artístico, teológico e filosófico se congregam,
constituindo possíveis atribuições de sentido para os sujeitos. Em linhas
gerais, as três áreas procuram responder a questões inerentes à infância da
humanidade. Debruçando-se sobre o texto bíblico O livro de Jó e sobre A
divina comédia, de Dante Alighieri, Steiner aborda as diversas concepções
do sentido da criação, considerando que o campo semântico do termo
utilizado nas narrativas míticas e religiosas acaba por determinar os modos
de se “compreender a criação articulada da poesia e de hipóteses
filosóficas” (STEINER, 2003, p. 24).
Nesse viés, a literatura comparada compreende o objeto literário em
sua integração com o domínio da cultura. A partir dessas formulações,
tentaremos entender e discutir a temática cosmogônica em algumas
passagens da trajetória artística de Clarice Lispector. Para a ficcionista, a
criação ou origem do mundo é parte de reflexões acerca do exercício
literário, revelando muitas vezes um ideário que percorre toda sua obra e
desvela complexas técnicas de recriação textual. Conforme indica Carlos
Mendes de Sousa: “A questão da origem é tão obsessiva que em torno dela
pode dizer-se que se enreda toda a prosa da autora” (SOUSA, 2000, p. 164). Sem nos
estendermos nesse ponto, podemos observar essa obsessão no enigmático
conto “O ovo e a galinha”, publicado em 1964, na coletânea A legião
estrangeira. Nele, a narradora procura desvendar a figuração de um objeto
hermético, o ovo, a partir de indagações a respeito de sua natureza. As
imagens construídas efetuam-se a partir desse núcleo dramático, o que
permite que o texto assuma feições ensaísticas: “— O ovo terá sido talvez
um triângulo que tanto rolou no espaço que foi se ovalando. — O ovo é
basicamente um jarro? Terá sido o primeiro jarro moldado pelos etruscos?
Não. O ovo é originário da Macedônia” (LISPECTOR, 1964, p. 56). A remissão aos
povos etruscos e à Macedônia sinaliza um passado longínquo, bem como
uma ancestralidade histórica, que continuará a ser evocada no texto por
meio de uma sucessão de imagens. Como bem observou Verônica Stigger
na ocasião do Colóquio em homenagem ao centenário de Clarice Lispector
(FFLCH/USP, 2020), em “O ovo e a galinha” a escritora retém duas ideias principais:
perfeição geométrica e origem. A continuidade desse tema está presente
também na atividade diletante de Clarice Lispector com a pintura. É sabido
que a autora pintou vinte e dois quadros, sendo dezenove sobre madeira,
especialmente pinho-de-riga, e três sobre tela. Dezoito estão depositados na
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, enquanto outros dois
foram presenteados aos escritores Autran Dourado e Nélida Piñon e,
finalmente, dois pertencem ao Acervo do Instituto Moreira Salles, no Rio
de Janeiro. Em linhas gerais, as telas sugerem aspectos rudimentares e
inacabados pelo esquema das formas e pelos materiais utilizados na
composição, como cola, vela derretida, canetas esferográfica e hidrográfica,
óleos e ainda esmaltes de unha, que se projetam em sua maioria sobre o
pinho-de-riga, de modo a marcar um universo primitivo e hostil,
denominado por Ricardo Iannace de “estética do feio” (2020, p. 220).
A respeito das reflexões em torno da pintura, cabe lembrarmos a
entrevista que a ficcionista fez com o pintor Iberê Camargo (1914-1994), em
fevereiro de 1969, para a seção “Diálogos possíveis com Clarice Lispector”, da
revista Manchete. Nesse encontro, os dois conversam com grande
desenvoltura e ela pergunta inusitadamente ao artista: “O que é um
núcleo?”, “O que é uma expansão?”. As respostas de Iberê Camargo
organizam-se em torno do sentido cósmico e do que chama “libertação” (2007,
p. 212), afirmando que sentia um grande “esvaziamento” após a finalização de
um quadro, opinião que é partilhada pela escritora: “Sinto um esvaziamento
que quase se pode chamar, sem exagero, de desesperador. […] a
germinação e a gestação para o novo trabalho podem demorar anos, anos
esses em que feneço” (LISPECTOR, 2007, p. 212). Para além de uma mera entrevista, as
perguntas e respostas denotam a insistência da autora no tema das origens e
o aspecto de tensão presente em sua literatura, como se estivesse
frequentemente mesclando a pintura à escrita, num jogo de espelhamentos.
Assim, o presente capítulo tem por objetivo investigar a metáfora da
criação como uma das linhas de força da obra de Clarice Lispector.
Conforme veremos, esse tema expande-se livremente tanto nas narrativas
quanto nas pinturas realizadas pela escritora, uma vez que sua escrita não
deixa de registrar os impulsos e os anseios do ato criador e sua expressão. É
o que podemos observar em romances como O lustre (1946), Água viva (1973), A
hora da estrela (1977), Um sopro de vida (1977) e ainda com as telas Interior de
gruta (1960) e Gruta (1973-1975). Detalharemos a seguir.

MODELAR, ESCULPIR E (DE)FORMAR: A CRIAÇÃO EM


CLARICE LISPECTOR

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.


Álvaro de Campos

Para darmos início ao processo de investigação acerca da metáfora da


criação em Clarice Lispector, elegemos algumas cenas presentes nas
narrativas de O lustre (1946), Água viva (1973), A hora da estrela (1977) e Um
sopro de vida (1977). Além disso, contemplaremos a atividade pictórica
realizada pela autora, com as telas Interior de gruta (1960) e Gruta (1973-1975).
Iniciamos as reflexões dando destaque a duas cenas que traduzem a
metáfora da criação e que se enredam na narrativa de O lustre, a primeira
ocorrida durante a infância da protagonista Virgínia em Granja Quieta e a
segunda vivenciada na cidade grande, correspondente à fase adulta da
personagem.
Vale destacar que a trama de O lustre, segundo romance de Clarice
Lispector, tem, por tema, a vida de Virgínia, desde sua infância na
propriedade rural de Granja Quieta, Brejo Alto, e sua estadia na cidade
grande, acompanhada pela morte trágica por atropelamento. A infância da
protagonista é marcada pela submissão ao irmão Daniel, porta-voz da
Sociedade das Sombras e pela indiferença dos pais e da avó, além da fria
relação que mantém com Esmeralda, a filha preferida da mãe. Deslocada do
núcleo familiar, a menina Virgínia encontra-se imersa em sua própria
solidão, vivendo a opacidade das coisas: “Os dias na Granja Quieta
respiravam largos e vazios como o casarão” (LISPECTOR, 1999a, p. 20).
Dessa maneira, a vivência traumática de Virgínia movimenta
conteúdos inconscientes representados pela criação artística compensatória
que possibilita à personagem o preenchimento de lacunas existenciais,
como a confecção de bonecos disformes, preparados com barro e água
numa área próxima ao casarão. Embora mergulhada em uma imagem
agônica da infância, a atividade é capaz de proporcionar outros vínculos da
menina com o lugar onde mora a partir da experiência manual, fazendo
sobressair um modo próprio de interpretação. Como podemos observar no
trecho abaixo, reaproveitado pela escritora e publicado na revista Nordeste
(Recife, ano XIII, n. 2, jul. 1960) com o título de “Bonecos de Barro”:
Virgínia cavava com os dedos aquela terra pálida e lavada — na lata presa à cintura iam-se
reunindo os trechos amorfos. O rio em pequenos gestos molhava-lhe os pés descalços e ela
mexia os dedos miúdos com excitação e clareza. […] Eram bonecos magrinhos e altos como
ela mesma. Minuciosos, ligeiramente desproporcionados, alegres, um pouco surpreendidos —
às vezes pareciam um homem coxo rindo! […] Observava: mesmo bem acabados eles [os
bonecos] eram toscos como se pudessem ainda ser trabalhados. Mas vagamente pensava que
nem ela nem ninguém poderia tentar aperfeiçoá-los sem destruir sua linha de nascimento.
(LISPECTOR, 1999a, pp. 43-5)

O trabalho de Virgínia com as figuras de barro manipula conteúdos


latentes de sua interioridade: “Conseguia uma matéria clara e tenra de onde
se poderia modelar um mundo” (LISPECTOR, 1999a, p. 45). O percurso interno dessa
cena destaca a força da metáfora da criação desenvolvida por meio da água
com o barro. Pelo exemplo dado, Clarice Lispector manipula como poucos
os feitiços da criação literária, estendendo seus efeitos a uma busca
incessante por “sentidos ocultos no interior da linguagem” (MOSER, 2009, p.196).
Grosso modo, pode-se dizer que as brincadeiras com as estatuetas de barro
engendram a própria representação do artista em seu processo de criação.
Como uma espécie de demiurgo, Virgínia artesã de si mesma procura
modelar e organizar a matéria caótica e disruptiva por meio do barro. O
fragmento intensifica o exercício literário vinculado ao drama da existência,
na medida em que dá lume a uma das bases fulcrais da ficção. Não por
acaso, o vocábulo ficção é oriundo do latim fictio:
[…] palavra derivada de fictus, particípio de fingere, ‘modelar na argila’ e daí, por extensão,
reproduzir os traços de, representar, fingir, imaginar, inventar. A origem etimológica ligada ao
boneco de barro acentua a ideia de artesanato e de simulacro que caracteriza a ficção
romanesca como um lugar de territórios vastos, dotado de riqueza técnica e de transcendência
filosófica, no qual se recria o drama da criatura humana e no qual essa mesma criatura pode
buscar orientação. (FERREIRA, 2014, p. 70)

Diante dos bonecos, Virgínia olha a si própria, perdendo-se para poder


se encontrar, num movimento muito próximo do que seria o da escultora
G.H. com suas formas amadoras, construídas pela artesã Clarice, dezoito
anos depois, em A paixão segundo G.H., livro publicado em 1964. O trabalho
de Virgínia com o barro traduz O lustre como um espaço intervalar de
grandes vazios, cujos sentidos se fazem pela contingência metaforizada no
“segredo”, fato que se converte nas oscilações marcadas pela atividade de
moldar os bonecos. O segredo em questão acompanha toda a trajetória de
Virgínia e refere-se à sugestão de um afogamento, ocorrido durante a
infância, situação na qual ela e o irmão Daniel observam do alto de uma
ponte um chapéu marrom, arrastado pelas águas turvas de um rio. Esse fato
faz com que ambos acreditem que houve um afogamento, pactuando um
segredo, decidindo calarem-se a respeito: “Ela seria fluida durante toda a
vida. Porém o que dominara seus contornos e os atraíra a um centro, o que a
iluminara contra o mundo e lhe dera íntimo poder fora o segredo” (LISPECTOR,
1999a, p. 9).

A cena inicial do romance retorna em diversos momentos da narrativa,


reconduzindo Virgínia aos primórdios de sua vida, ao “segredo” vivenciado
nas águas, na medida em que as formas desproporcionais dos bonecos
assemelham-se a estados inanimados e inorgânicos, reatualizados numa
espécie de presente eternizado pela ação da personagem: “Pequenas formas
que nada significavam mas que eram na realidade misteriosas e calmas”
(LISPECTOR, 1999a, p. 45).
As figuras esculpidas são impregnadas de detalhes significativos do
drama existencial que ronda a personagem, que, encantada com o ato
criativo, esvazia-se de tudo ao contemplar as formas extraídas de sua mão.
Trata-se de um instante deflagrador, que se estende ao processo ficcional da
própria autora na medida em que atinge nas entrelinhas suscitadas pelos
silêncios de Virgínia o poder da palavra sempre errante, impossível e
inatingível. Nesse sentido, sobressai a atuação literária clariciana como
“constructo” do discurso literário, na medida em que demonstra a
incompletude do ato de escrever e a consciência de que “o escritor não
atinge inteiramente o alvo, mas apenas o toca com a palavra” (ROSENBAUM, 2012, p.
230).

A sutileza da cena atesta a necessidade de expressão da personagem,


que, em sua solidão, molda figuras de barro, guardando consigo emoções
desconhecidas, as quais parecem brotar da atividade manual com água e
terra, em estreita ligação com a realidade íntima. A água misturada com a
terra revigora o comportamento viscoso e meditativo de Virgínia,
desmontando-se em sentidos a partir das figuras de barro. O retorno desse
motivo liga-se ao esforço e tentativa de compreensão para algo que
transcende a linguagem e o conhecimento da protagonista: “Era como se
eles [os bonecos de barro] só pudessem se aperfeiçoar por eles mesmos, se
isso fosse possível” (LISPECTOR, 1999a, p. 46).
O episódio adquire tamanha importância no conjunto de O lustre a
ponto de ser novamente mencionado na trajetória de Virgínia. Temos, então,
uma segunda cena. Já adulta e vivendo na cidade, ela se depara com o
desejo agudo de remodelar as formas de barro, em clara alusão ao caminho
regressivo das águas da infância:
Abria a pequena mala das coisas de barro, sem hesitação mergulhava-as em água quente para
dissolvê-las e obter matéria para novas figuras. Trabalhava numa feliz concentração que
emprestava ao seu rosto a antiga transparência nervosa. Os bonecos no entanto continuavam o
traço dos erguidos ainda na infância. Grotescos, sérios e imóveis, de linha fina e independente,
Virgínia obstinadamente insistia em dizer a mesma coisa sem entendê-la. (LISPECTOR, 1999a, p. 141)

Não obstante a equidistância dos fatos narrados, as lembranças são


reavivadas como sinais de uma experiência que transcendeu seu próprio
tempo. A passagem revela um tempo que é continuamente sentido pela
personagem, fazendo ressoar a infância dentro de si. Observam-se as
relações de sentido da palavra com o ato da criação, como massa informe e
grotesca, oriunda de barro e água. Inevitável dizer que a alegoria bíblica do
oleiro é reconfigurada, como uma reflexão em torno do ato de criar, mais
especificamente sobre a obra literária e a criação da personagem Virgínia,
imperfeita e sempre a se moldar.
Na Antiga Mesopotâmia e no Egito Antigo, o barro constituía uma
força pulsante e criadora. Através dele era possível a construção de
cerâmicas, tabuletas, tijolos para casas e monumentos etc. Os povos
mesopotâmicos acreditavam que, após a morte, o cadáver tornava-se pó
pelo processo de decomposição. No Antigo Testamento, as figuras do oleiro
e do barro constituem um dos textos mais reflexivos em torno da criação do
homem. No momento em que Deus atesta que Adão havia comido do fruto
proibido censurou-o com a máxima: “[…] por que tu és pó e ao pó voltarás”
(Gn 3,19). Assim, uma matéria disforme e desprovida de expressão ganha
contornos decisivos, tornando-se imagem e semelhança de Deus: “Como o
barro nas mãos do oleiro, assim estão vocês em minhas mãos, ó casa de
Israel” (Jr 18,1-6). A imagem do oleiro como artífice é acentuada pelo profeta
Jeremias, sugerindo que Deus molda e dirige a história:
O próprio homem nasce da terra e é formado por Deus, como se este fosse um oleiro
modelando um vaso […]. Percebemos que essa concepção nasce num mundo artesanal: o
homem fabrica objetos, mas só Deus tem o poder de fazer o vaso humano com vida. (STORNIOLO;
BALANCIN, 2008, p. 16)

Porém, ao emular o ato da criação, a personagem de Clarice Lispector


se mostra imperfeita, como as formas dos bonecos: “Ela inclinava a cabeça
e como continuava a crescer” (LISPECTOR, 1999a, p. 141). Tais considerações podem
ser complementadas pelas formulações do psicanalista Jacques Lacan,
quando este toma a imagem e o ato do oleiro enquanto metáfora da criação
simbólica. Segundo Lacan (1988), ao criar e elaborar as formas de um vaso, o
oleiro cria um vazio, circunscrevendo uma lacuna a ser preenchida. Nesse
sentido, os bonecos imperfeitos vão se sobrepondo na infância e na
maturidade de Virgínia, acabando por revelar seu vazio e sua opacidade.
Tais figuras favorecem a metáfora da criação imperfeita e/ou deformada, o
que muito dialoga com o itinerário da personagem. Ao modo de um vaso
imperfeito e vazio, Virgínia morrerá atropelada, encurralada na rua e
confundida com uma prostituta. Ademais, O lustre é cruzado por uma série
de deformações, que vão desde o olho de Virgínia, tornado vesgo na
infância pela picada de uma aranha, até as descrições de seu pescoço e dos
contrastes dos corpos do pai e das primas Henriqueta e Arlete, além de
outros momentos.
A estratégia textual contida nas duas cenas pode ser aproximada do
que Roland Barthes (2007) definiu como metanarratividade, quando a obra
literária tende a voltar-se sobre si própria, como processo de reflexão e
referência: “[…] a literatura começou a sentir-se dupla: ao mesmo tempo
objeto e olhar sobre esse objeto, fala e fala dessa fala, literatura-objeto e
metaliteratura” (BARTHES, 2007, p. 28). Nessa perspectiva, o narrador em O lustre
passa do barro ao texto, encenando o exercício literário ao mesmo tempo
em que delimita sua própria finitude e impasse: “o artesão compõe tanto o
conteúdo de sua produção quanto seus instrumentos” (STEINER, 2003, p. 90).
A temática da origem continua fortemente em Água viva (1973). Esse
livro passou por dois títulos anteriores, Atrás do pensamento: monólogo
com a vida e Objeto gritante. A autora preferiu finalmente Água viva,
“coisa que borbulha. Na fonte” (LISPECTOR, 1980, p. 27). Segundo Yudith
Rosenbaum (2002, p. 50), Água viva é, dentre todas as narrativas claricianas, a
que mais independe da fábula ou enredo. Por meio de um monólogo
dialogado, a voz narrativa tem por ofício a pintura em palavras e é dirigida
a um tu imaginário e anônimo, efetuando as mais diversas considerações
acerca do tempo, da liberdade, da arte, da morte e da própria linguagem. A
escassa trama centra-se no questionamento de sua própria confecção, no
registro e captura do “instante-já” e do “é” da “coisa” em processo de
escrita autodilacerada: “Mas o instante-já é um pirilampo que acende e
apaga, acende e apaga” (LISPECTOR, 1980, p. 16). Assim, o aspecto fragmentário da
narrativa constata o desejo que se metaforiza pela busca da palavra.
A condição frenética da voz narrativa aborda constantemente a
urgência do ato criativo, sugerindo a todo momento que algo se cria, numa
conexão mista de palavra e pintura: “Entro lentamente na escritura assim
como já entrei na pintura. É um mundo emaranhado de cipós, sílabas,
madressilvas, cores e palavras — limiar de entrada de ancestral caverna que
é o útero do mundo e dele vou nascer” (LISPECTOR, 1980, p. 7).
O elo entre a escrita e a pintura no interior da caverna evoca as
pinturas rupestres encontradas nas concavidades subterrâneas em que
ecoam vozes ancestrais ou primitivas, anteriores mesmo à própria
linguagem:
E se muitas vezes pinto grutas é que elas são o meu mergulho na terra, escuras mas nimbadas
de claridade, e eu, sangue da natureza — grutas extravagantes e perigosas, talismã da Terra,
onde se unem estalactites, fósseis e pedras, e onde os bichos que são doidos pela sua própria
natureza maléfica procuram refúgio. As grutas são o meu inferno. […] Dentro da caverna
obscura tremeluzem pendurados os ratos com asas em forma de cruz dos morcegos. Vejo
aranhas penugentas e negras. Ratos e ratazanas correm espantados pelo chão e pelas paredes.
Entre as pedras o escorpião. Caranguejos, iguais a eles mesmos desde a pré-história, através de
mortes e nascimentos, pareceriam bestas ameaçadoras se fossem do tamanho de um homem.
Baratas velhas se arrastam na penumbra. E tudo isso sou eu. (LISPECTOR, 1980, p. 7)

Ligadas ao útero, as grutas surgem como mananciais de vida, em que


ressoam a experiência criadora da voz narrativa. A associação acaba por
revelar o duplo movimento da literatura clariciana, uma vez que tanto na
pintura quanto na narrativa a autora estabelece um processo de escavação
da palavra, buscando a todo o momento o elemento protoplasmático da
linguagem, em que a escrita assume o movimento de retorno às origens ou à
“arché soterrada pelo tempo” (PESSANHA, 1989, p. 183). Nesse sentido, para a voz
narrativa de Água viva, o ato criativo é condição essencial para a existência,
sendo a escrita e a pintura atividades equivalentes: “Tudo é pesado de sonho
quando pinto uma gruta ou te escrevo sobre ela” (LISPECTOR, 1980, p. 7).
A temática da gruta é reaproveitada por Clarice Lispector em sua
atividade com a pintura. Do conjunto pictural realizado pela autora,
destacamos duas peças que partilham o tema das origens e retratam o
motivo das grutas: Interior de gruta (1960) e Gruta, cujos limites temporais
marcam o entremeio de 1973 e 1975.

Em ambos os quadros pode-se dizer que ecoa a voz narrativa de Água viva.
Há neles um estilema ou traço estilístico em comum, que se constitui pela
origem ou ancestralidade. Em meio a um espaço repleto de cores,
acompanhamos o grito ancestral atrelado ao “útero do mundo”. As imagens
trazem à baila uma natureza primitiva, excêntrica e misteriosa, na qual se
orquestram as descrições contidas em Água viva. A primeira delas (Interior
de gruta) nos coloca diante das “estalactites” mencionadas na narrativa,
junto a formas brancas que se assemelham a larvas, como estágios imaturos
ou pré-embrionários. A cena parece resgatar elementos de uma vida
primitiva. O esboço disforme ao lado das diversas cores permite a inserção
de áreas cavernosas e obscuras, em que se observam, sobretudo no segundo
quadro (Gruta), traços de animais, como a fisionomia de um cavalo, no lado
esquerdo da tela, e a de um morcego com olheiras, no lado oposto. Tais
figuras dão continuidade a uma lista de animais asquerosos mencionados
pela voz narrativa de Água viva, como aranhas penugentas, ratos, ratazanas,
bestas e baratas velhas. Acerca dessas últimas é pertinente lembrarmos sua
presença no célebre romance A paixão segundo G.H. (1964). Nele, esse inseto
provoca uma longa introspecção na personagem G.H., promovendo o seu
autoconhecimento e o debate acerca da ancestralidade, já que sua existência
remonta a tempos anteriores ao surgimento do homem na terra: “Era uma
barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era
antiga como uma lenda” (LISPECTOR, 1998, p. 55).
Em linhas gerais, as telas apresentam-se ao modo de esboços, cujos
traços imperfeitos retomam as linhas disformes dos já citados bonecos
coxos e mutilados elaborados por Virgínia em O lustre.
Um sopro de vida (1977) compartilha similaridades com Água viva no
que tange à metatextualidade. O traçado metalinguístico é inerente à
escritura, especialmente no diálogo entre dois personagens, Ângela e Autor.
Pautada por uma longa problematização da criação literária moderna, essa
obra revela um horizonte de semelhanças também com o romance A hora
da estrela (1977), tanto no nível temático quanto formal. Tais semelhanças são
partilhadas quanto à atitude de comentário e reflexão da obra acerca de seu
acabamento e sua gênese, como uma espécie de dobra especular sobre si
mesma, na medida em que se alternam os dois monólogos: “[…] autor
interposto e personagem feminina, dessa vez uma escritora (Ângela), ambos
como heterônimos da romancista, Clarice Lispector, mais presente do que
ausente” (NUNES, 1995, pp. 169-70).
Clarice Lispector conduz as reflexões para a exposição dos impasses
inerentes ao ato de escrever. Este é o ponto-chave para entender Um sopro
de vida, onde a impossibilidade de resolução desses conflitos é representada
pelo silêncio, pela página em branco, pelo vazio e pela ruína do próprio
texto: “Num sentido mais profundo, a arte também é artífice” (STEINER, 2003, p.
134). Assim, a obra encarna a encenação dramatúrgica e performática de um

embate agônico entre a criação e a criatura:


Tive um sonho nítido inexplicável: sonhei que brincava com o meu reflexo. Mas meu reflexo
não estava num espelho, mas refletia uma outra pessoa que não eu. Por causa desse sonho é
que inventei Ângela como meu reflexo? […] Eu a esculpi com raízes retorcidas. É só por
atrevimento que Ângela existe em mim. Quanto a mim reduzo tudo em palavras de roda-viva.
Todos nós estamos sob pena de morte. Enquanto escrevo posso morrer. Um dia morrerei entre
os fatos diversos. (LISPECTOR, 1999b, pp. 27-8)

Como se vê, há uma espécie de jogo de espelhos que se opera pelo


desdobramento do narrador, na cisão entre Autor e Ângela, abarcando, ao
longo da obra, a consciência da morte e do ser para a morte. Sobre esse
aspecto, podemos recuperar as problematizações do crítico George Steiner
(2003) quanto à obra de Gustave Flaubert (1821-1880), cujas personagens saíam do
controle de sua própria pena, bem como de sua ação. Flaubert oscilava,
mostrando-se perdido ao afirmar que Emma Bovary era uma espécie de
extensão dele, por vezes se contradizia ao dizer que não a controlava, pois
ela possuía vida própria no enredo. Desse modo, o estudioso procura captar
o movimento dialético entre criador e criatura, colocando a questão da
responsabilidade do criador por suas criaturas. Assim, na análise sobre O
livro de Jó, afirma:
Na estética da resposta sem resposta de Deus a Jó, a “arte pela arte” ou, mais exatamente, a
“criação pela criação” ostenta o tempo todo sua grandeza e sua petulância festiva em relação à
humanidade. O silêncio do criador para justificar-se ou explicar-se, análogo à recusa do oleiro
para assumir qualquer responsabilidade pela argila, estende-se implícito na tautologia da Sarça
Ardente que afirma “Eu sou o que sou” (ou “Eu sou/Eu sou”). (STEINER, 2003, p. 58)

Em Um sopro de vida, no diapasão do contato confuso entre Autor e


Ângela é que sobressai uma intensa preocupação com a origem das coisas
ou a ancestralidade.
Um sopro de vida é aberto com quatro epígrafes que reforçam a
temática da criação. A primeira delas é extraída de Gn 2,7: “Do pó da terra
formou Deus-Jeovah o homem e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida. E
o homem tornou-se um ser vivente”. A segunda traz uma frase do filósofo
Friedrich Nietzsche (1844-1900): “A alegria absurda por excelência é a criação”.
Na sequência é apresentada uma frase de Andréa Azulay, filha do
psicanalista de Clarice Lispector: “O sonho é uma montanha que o
pensamento há de escalar. Não há sonho sem pensamento. Brincar é ensinar
ideias”; a quarta e última pertence à pena da própria escritora: “Haverá um
ano em que haverá um mês, em que haverá uma semana em que haverá um
dia em que haverá uma hora em que haverá um minuto em que haverá um
segundo e dentro do segundo haverá o não tempo sagrado da morte
transfigurada”. Dessa maneira, o livro já anuncia o enredo em torno da
criação e da ancestralidade. Ao longo das páginas vamos saber que o Autor
escreve sob ruínas e menciona grutas e cavernas pré-históricas: “Ângela
tem a espontaneidade de uma iniciativa ou é apenas o meu eco repetido em
sete cavernas até morrer? Não é nada disso. O que é? O seguinte: eu só me
ouço no eco repetido porque minha voz inicialmente se confunde comigo”
(LISPECTOR, 1999b, p. 75).
Ressoa a imagem da gruta como “mergulho na terra” no mundo
primitivo. Como “útero do mundo” a gruta é o espaço da vida em seu
estado bruto, matéria primitiva e elementar. Nesse cenário amorfo e obscuro
como uma caverna pré-histórica, os personagens revelam-se imperfeitos e
intangíveis. Nesse sentido, Ângela, criatura por excelência, não se define,
espiando-se de viés: “Eu sou oblíqua como o voo dos pássaros. Intimidada,
sem forças, sem esperança, sem avisos, sem notícias — tremo — toda
trêmula. Me espio de viés. (LISPECTOR, 1999b, p. 37). Ângela é, portanto, a memória
ancestral e intangível, constituindo-se como a nostalgia de um tempo que
antecede a própria linguagem. Nesse sentido, o Autor cria Ângela em torno
de uma atmosfera de indefinição e silêncio. É como se o grito ancestral
presente nas cavernas e grutas desembocasse no silêncio libertador da
criação: “Criar um ser que me contraponha é dentro do silêncio […] Eu
inventei Ângela porque preciso me inventar — Ângela é uma espantada”
(LISPECTOR, 1999b, pp. 15-7). Ao longo da narrativa, Ângela assume o silêncio como
plenitude, afirmando: “O silêncio não é o vazio, é a plenitude” (LISPECTOR, 1999b,
p. 38). A fim de compreendermos a totalidade dessas passagens, podemos
nos reportar às leituras de George Steiner (1988), acerca da poética de
Hölderlin (1770-1843). Para Steiner, os versos do poeta alemão aliam o silêncio a
um espaço vazio, porém, deflagrador de sentidos:
Como o espaço vazio é, de forma tão evidente, parte da pintura e da escultura modernas, como
os intervalos silenciosos são tão importantes em uma composição de Webern, assim também
os lugares vazios nos poemas de Hölderlin, principalmente nos últimos fragmentos, parecem
indispensáveis ao complemento do ato poético. (STEINER, 1988, p. 68)

De acordo com o crítico, o silêncio, como experiência singular


representa as exigências do ideal. Os intervalos que derivam deste silêncio
deflagram uma incrível força poética, expressando o ser em sua totalidade.
Em Um sopro de vida, o silêncio apresenta-se, portanto, como responsável
pela criação e significação escritural. Sobre esse ponto, o filósofo Benedito
Nunes afirma que é possível observar, na ficção de Clarice Lispector, um
movimento em “círculo”, que vai “da palavra ao silêncio e do silêncio à
palavra”, movimento que definiria o estilo da autora: “escritura conflitiva,
autodilacerada, que problematiza, ao fazer-se e ao compreender-se, as
relações entre linguagem e realidade” (NUNES, 1995, p. 145).
Por sua vez, o tema cosmogônico é abordado em A hora da estrela (1977)
através da transfiguração paródica do discurso bíblico do livro do Gênesis:
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a
vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o
sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou. (LISPECTOR, 1993, p. 11)

A construção avizinha-se dos contos maravilhosos na medida em que


remete ao “era uma vez” das histórias geralmente ligadas a desfechos
felizes. Entretanto, o relato está longe de conter esse traço, sendo, na
verdade, de carga dramática e irônica. Isso se confirmará nas próximas
páginas, quando o narrador Rodrigo S.M. nos apresentará Macabéa, moça
pobre e nordestina, criatura parca e rala, contrastando com o tom solene do
início do livro: “[…] a pessoa de quem falarei mal tem corpo para vender,
ninguém a quer, ela é virgem e inócua, não faz falta a ninguém. Aliás —
descubro eu agora — eu também não faço a menor falta, e até o que escrevo
um outro escreveria” (LISPECTOR, 1993, p. 23).
O embuste sugere ao leitor a ideia do fiat lux, bem como toda a criação
do mundo narrada em Gênesis. No entanto, a origem da vida não é aqui
resultado da intervenção de Deus, comumente associado como o criador
ipsis litteris, mas sim da junção de duas moléculas. Dessa maneira, ao trazer
para o leitor as cosmogonias remotas, o texto “ultrapassa a simples
retomada do passado para reinscrevê-lo como força de criação do novo”
(HELENA, 2013, p. 171). Nessa dinâmica, Rodrigo S.M. é capaz de afirmar: “Mas que
ao escrever — que o nome real seja dado às coisas. Cada coisa é uma
palavra. E quando não se a tem, inventa-se-a. Esse vosso Deus que nos
mandou inventar” (LISPECTOR, 1993, p. 26). Se Deus modelou o homem com a
argila, Clarice Lispector, através do discurso de Rodrigo S.M., modela
Macabéa com a palavra literária, missão não tão impossível: “Com mãos de
dedos duros enlameados apalpar o invisível na própria lama. De uma coisa
tenho certeza: essa narrativa mexerá com uma coisa delicada: a criação de
uma pessoa inteira que na certa está tão viva quanto eu” (LISPECTOR, 1993, p. 28).
O enunciado partilha com Água viva e Um sopro de vida a
preocupação metalinguística, na medida em que problematiza a gênese do
próprio processo de criação literária e de suas subversões.
Ademais, para além da criação de Macabéa, o narrador também busca
o próprio autoconhecimento, oscilando entre “identificação e afastamento”
(FUKELMAN, 1993, p. 7) em relação à sua criatura. Rodrigo S.M. salienta as
imperfeições de sua personagem, ao mesmo tempo em que se identifica
com a precariedade que a envolve: “[…] Macabéa tinha ovários murchos
como um cogumelo cozido. Ah pudesse eu pegar Macabéa, dar-lhe um bom
banho, um prato de sopa, um beijo na testa enquanto a cobria com um
cobertor” (LISPECTOR, 1993, p. 63).
O procedimento de composição das personagens é semelhante a Um
sopro de vida, uma vez que o jogo de identificação se dá por vozes
interpostas, Rodrigo e Ângela.
Rodrigo S.M. é a voz que sustenta a cena de enunciação e, com ele,
Clarice Lispector exibe o procedimento demiúrgico, ao humanizar o ato
divino e divinizar o humano, problematizando a função e a posição do
escritor: “Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta
me tem como um monstro esquisito, a média com desconfiança de que eu
possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a mim” (LISPECTOR, 1993, p. 27).
Nesse sentido, estão presentes na criação de Macabéa diversas reflexões
discursivas acerca de temas referentes à existência, a representação artística,
a justiça social, entre outros. Como já exaustivamente ressaltado pela
crítica, o livro concretiza uma história de miséria social e exclusão. A aura
cosmogônica sobreleva o “substrato do hibridismo cultural brasileiro” (HELENA,
2013, p. 176), na medida em que dá forma às caracterizações de Macabéa e de

seu namorado Olímpico, ambos nordestinos e apartados de um contexto


social abalado pela modernização emergente.
Logo no início, o narrador Rodrigo S.M. embaraça-se quanto à fatura
narrativa, interrompe o andamento dos fatos, com contradições e ironias,
adiando sorrateiramente o relato. No entanto, nessa espécie de prólogo
confuso, cabe enfatizar a posição reflexiva de Rodrigo S.M., ao afirmar
que, muito mais do que uma mera invenção ficcional, o livro tem por
obrigação narrar a exclusão social de Macabéa, moça nordestina entre
tantas outras: “Porque há o direito ao grito. Então eu grito” (LISPECTOR, 1993, p. 23);
“[…] através dessa jovem dou meu grito de horror à vida” (LISPECTOR, 1993, p. 40).
A passagem remete ao quarto dos treze títulos da obra, ao mesmo tempo em
que guarda ligação direta com o título de número sete, “Ela não sabe
gritar”.
Essa disposição acompanhará o narrador por todo o relato,
corroborando a queda final de Macabéa acuada na sarjeta, em posição fetal,
quando atropelada: “ela pertencia a uma resistente raça anã teimosa que um
dia vai talvez reivindicar o direito ao grito” (LISPECTOR, 1993, p. 82).
Macabéa, criação cariada e imperfeita incomoda Rodrigo S.M., na
medida em que toca na dimensão ética e traz a lume a temática das origens
e dos problemas sociais, avançando o embate entre o narrar e o discutir:
[…] a obra leva ao extremo a discussão do que o ato da criação dos homens e o ato de criação
do Criador (com maiúscula, como se costuma dizer) têm a ver, se comparados entre si, pois
ambos dispõem, hipoteticamente, do poder de dar vida e dar morte, seja aos seres humanos,
seja às personagens literárias. (HELENA, 2013, p. 175)

Assim, Macabéa morre e leva Rodrigo S.M. consigo: “acabo de morrer


com a moça” (LISPECTOR, 1993, p. 87). Rodrigo assume sua mea culpa: “Desculpai-
me esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita tudo porque já beijou
a parede. […] Viver é luxo” (LISPECTOR, 1993, p. 87).
A morte da nordestina desencadeia o ancestral grito mudo de denúncia
social. Seu apagamento é acompanhado por divagações cosmogônicas do
narrador acerca da luz, evocando o início da narrativa, semelhante ao
circuito de Ouroborus, que morde a própria cauda em movimento de eterna
busca e conclusão impossível: “Eu vos pergunto: — Qual é o peso da luz?”
(LISPECTOR, 1993, p. 88). Deixando de ser um peso para Rodrigo S.M., Macabéa

morre com as luzes da humanidade, concluindo sua trágica e fraca


trajetória.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo buscou salientar a metáfora da criação como uma das linhas
de força da trajetória artística de Clarice Lispector. Como vimos, sua escrita
não deixa de registrar os impulsos e os anseios do ato criador e sua
expressão. A temática cosmogônica expande-se livremente tanto nas
narrativas quanto nas pinturas realizadas pela autora. Para ela, a criação
ancora-se à ideia de origem como imperfeição ou falha, muito longe do
trabalho do oleiro, como imagens que recolhem o turbilhão originário da
vida e do texto. Tais imagens encontram-se, ao mesmo tempo, na
caracterização dos personagens e seus atos, bem como na própria
experiência da escrita.
É o que podemos observar com os romances abordados. A prática de
escavação da linguagem clariciana se dá a partir das grutas obscuras de
Água viva, dos bonecos coxos de Virgínia, das criações imperfeitas e
cruzadas de Macabéa, Rodrigo S.M., Autor e Ângela. O grito e a força da
ancestralidade presentes nesses personagens convivem com a atmosfera de
silêncio pulsante e deflagradora de sentidos. Comum a todos, os limites
intransponíveis da linguagem.
De acordo com George Steiner, a criação revela-se a partir de duas
condições cruciais a seus autores: é uma representação da liberdade e
encerra o paradoxo de criar algo que “é” e que ao mesmo tempo “poderia
ser”:
Num paradoxo supremo, quanto mais avançadas a radioastronomia e a observação de
nebulosas do “limite do universo”, mais profundo é nosso mergulho no abismo temporal e no
passado primevo no qual toda expansão começou. O ponto crucial, na verdade, é o próprio
conceito de início. (STEINER, 2003, p. 20)

Conforme procuramos demonstrar, para a escritora, criar constitui


condição essencial para existir. Diante dessa premissa, podemos pensar o
ato de narrar e de pintar como experiências complementares.
As imagens e borrões na madeira se mesclam e se confundem com as
letras da máquina de escrever, atravessando tempos, corpos e linguagens em
constante devir, como um abismo em que somos jogados. Desse modo, a
obra de Clarice Lispector segue soberana no caminho da pesquisa, o que
torna possíveis mais leituras que, com esta, possam dialogar, reivindicando
o grito que a própria autora nos lança. Enquanto isso, permanecemos na
gruta, como garantia de nosso “mergulho na terra”.

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A idade desfeita: Reversões irreversíveis em
Clarice Lispector*
CLARA ROWLAND

Li O lobo da estepe aos treze anos. Me deu uma febre danada.


Clarice Lispector, entrevista1

1.

Gostaria de começar pelo começo, ou seja, pelo momento em que um leitor


abre pela primeira vez A paixão segundo G.H. e encontra o aviso à
navegação destinado “A possíveis leitores”:
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas
de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz
gradualmente e penosamente — atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar.
Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A
mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas
chama-se alegria.2

Uma advertência como esta não é estranha à obra de Clarice, e tenderá


a ocorrer com maior frequência e intensidade nos seus textos tardios —
como em A hora da estrela, com a sua “dedicatória do autor, na verdade
Clarice Lispector”3 e as suas várias indicações de leitura (“que não se
esperem então estrelas no que se segue”);4 ou nas páginas iniciais de Um
sopro de vida, declaradamente um prefácio do seu autor suposto, onde
lemos, por exemplo: “Se este livro vier jamais a sair, que dele se afastem os
profanos. Pois escrever é coisa sagrada onde os infiéis não têm entrada”5.
Mas se o gesto encenado nesses textos posteriores é semelhante, não parece
repetir a radicalidade dessa inscrição inicial de A paixão segundo G.H., que
tanto eco teve nas reacções à leitura de Clarice. Que efeito prevê sobre
“possíveis leitores” uma nota como esta? Como a podemos ler?
O que se passa nestes textos pode ser pensado a partir de um ensaio de Jean-Marie Schaeffer
sobre aquilo a que chama “o prefácio filosófico”.6 Nesse texto, Schaeffer sublinha o modo
como, na tradição moderna, o lugar do prefácio ganha importância como espaço de defesa da
singularidade da voz do autor, precisamente naquele limiar em que, encontrando-se com o
mundo, correria o risco de se diluir. Entre as várias manobras retóricas que se destacariam
nesse espaço, destaca-se segundo Schaeffer a função pragmática, na qual o filósofo se dirige
aos seus destinatários como a um conjunto de “potenciais leitores-discípulos”, exacerbando a
diferença entre o mundo em geral e os leitores do livro. No espaço do prefácio os leitores
podem ser escolhidos e seleccionados através da sua disponibilidade para cumprir uma série
de “exigências”, para usar uma expressão de Schopenhauer no prefácio a O mundo como
vontade e representação, ou através da exposição de uma pedagogia da leitura, como no
prefácio de Nietzsche a Aurora. Aí, lemos: “Ó pacientes amigos, este livro deseja apenas
leitores e filólogos perfeitos: aprendei a ler-me convenientemente!”.7

Partilhando com a retórica exacerbada de Um sopro de vida a ideia de


uma selecção de leitores de algum modo já iniciados, o prefácio de A
paixão segundo G.H. parece, no entanto, cumprir outras funções. Desde
logo porque, ao contrário dos casos que referi, parece assentar sobre uma
disjunção clara entre nota e livro — uma disjunção autoral, entre as
assinaturas C.L. e G.H., que parte da caracterização do livro como coisa
feita e pronta, dependendo por isso de uma descrição mais fina do que
significa entrar — ou poder entrar — na obra. E a sua formulação mais
comedida, ou cautelosa — “Este livro é como um livro qualquer. Mas eu
ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada.”—,
tem como origem a posição desta C.L. que aqui aparece como leitora, e não
como autora. O que parece estar em causa, na nota de A paixão segundo
G.H., parece então ser menos o efeito da leitura sobre a singularização do
discurso autoral do que o efeito do livro sobre os seus leitores — no
conjunto dos quais, de alguma forma, se deve incluir a assinatura C.L.,
significativamente isenta de qualquer singularização.
Ao contrário dos prefácios filosóficos a que referi — Schopenhauer e
Nietzsche — não se trata, aqui, de uma prescrição de leitura: a
temporalidade da formulação é clara. A autora da nota desejaria que o livro
fosse lido por pessoas de alma já formada, ou seja, aquelas que sabem, só
elas, já que “a aproximação […] se faz gradualmente e penosamente”. Esse
conhecimento é prévio e o livro sobre ele nada pode, parece dizer-nos a
nota. O que distingue esta advertência do que acontece em Um sopro de
vida é a sua justificação: “só elas entenderão bem devagar que este livro
nada tira de ninguém”. Mais do que uma conformação do leitor ideal do
livro que introduz, a advertência activa então um estranho mecanismo de
protecção — uma ética da leitura, mais preocupada, no limiar, com as suas
aparentes perdas do que com os seus ganhos ou, no mínimo, com a
distinção entre perdas e ganhos no cômputo final dos efeitos possíveis deste
livro. E, sobretudo, dos efeitos possíveis deste livro se for lido cedo demais
— a nota de A paixão segundo G.H. parece de algum modo querer defender
o leitor do perigo representado por uma leitura precoce.
A “alegria difícil” que a autora retira de G.H. surge assim como o
efeito de leitura certo de um livro que poderia dar errado — como se a nota
estivesse lá para proteger, ou sugerir proteger, leitores incautos do risco do
livro: o de poder tirar algo a alguém. O efeito de perturbação desta nota
para gerações de leitores de Clarice pode ser situado neste caveat, alerta ao
leitor, e no modo como encena dois efeitos possíveis para o mesmo livro,
no limiar a que um qualquer leitor — por exemplo um leitor de treze anos
— pode aceder. E, no entanto, a cena que a nota invoca como risco — a de
um encontro precoce e não preparado que acontece cedo demais — é uma
das cenas mais recorrentes da obra de Clarice Lispector, a ponto de poder
ser considerado um dos seus temas recorrentes e estruturantes. Tratar-se-á
então realmente de um aviso à navegação? Porque já estamos dentro do
livro, o prefácio pode ser visto como mais um episódio de encenação do
constante embate entre o ainda informe e o já formado, entre a formação e a
deformação, em A paixão segundo G.H. e em toda a obra de Clarice. É o
que gostaria de propor nesta leitura transversal da representação do
encontro entre diferentes idades da vida na obra de Clarice Lispector, que
esta nota parece inscrever na materialidade do livro. Parafraseando a sua
protagonista, poderíamos dizer, desta nota, que põe em cena um ritual que
“não é exterior a ele, o ritual é inerente”.8

2.

É possível que o melhor exemplo desse embate e do que aqui parece estar
em jogo — o risco do informe sobre pessoas de alma ainda não formada —
esteja no livro que Clarice publica no mesmo ano, e que José Miguel
Wisnik vincula a A paixão segundo G.H. através da ideia de uma trilogia da
separação.9 Nesse ensaio, Wisnik chama a atenção para o carácter
estruturado tanto de Laços de família — aspecto evidente e muitas vezes
destacado — quanto de A legião estrangeira, livro mais disperso, como a
sua história editorial comprova. A reforçar a ideia de um livro vertebrado,
na parte inicial da colectânea de 1964, está a relação quiasmática que se
estabelece de forma clara entre os dois contos que a delimitam, “Os
desastres de Sofia” e “A legião estrangeira”, dois contos sobre a educação
de uma criança, com vários pontos de contacto.
De um para o outro conto, em particular, é evidente o paralelismo entre
as duas epifanias “orgânicas” que marcam os seus momentos culminantes
— poucas vezes replicadas, em intensidade, na obra de Clarice. No
primeiro conto, a protagonista descreve deste modo a visão do professor a
tentar sorrir:
O que vi, vi de tão perto que não sei o que vi. Como se meu olho curioso se tivesse colado ao
buraco da fechadura e em choque deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando.
Eu vi dentro de um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com
sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o
olho ri. Até que o esforço do homem foi se completando todo atento, em vitória infantil ele
mostrou, pérola arrancada com a barriga aberta — que estava sorrindo. Eu vi um homem com
entranhas sorrindo. […] Minhas costas forçaram desesperadamente a parede, recuei — era
cedo demais para eu ver tanto. Era cedo demais para eu ver como nasce a vida.10

Em “A legião estrangeira”, o nascimento de Ofélia como criança é


descrito nestes termos:
Diante de meus olhos fascinados, ali diante de mim, como um ectoplasma, ela estava se
transformando em criança. Não sem dor. Em silêncio eu via a dor de sua alegria difícil. A lenta
cólica de um caracol. Ela passou devagar a língua pelos lábios finos. […] A agonia lenta. Ela
estava engrossando toda, a deformar-se com lentidão. Por momentos os olhos tornavam-se
puros cílios, numa avidez de ovo. E a boca de uma fome trémula. Quase sorria então, como se
numa mesa de operação dissesse que não estava doendo tanto. Ela não me perdia de vista:
havia marcas de pés que ela não via, por ali alguém já tinha andado, e ela adivinhava que eu
tinha andado muito. Mais e mais se deformava, quase idêntica a si mesma. Arrisco? deixou eu
sentir?, perguntava-se ela. Sim, respondeu-se por mim.11

A relação é quiasmática, como dizia: adulto e criança, em posições


invertidas, interagem numa revelação que parece poder ser descrita com as
mesmas palavras e recorrendo a expressões equivalentes. Mas se no
primeiro caso o corpo metamórfico é o do professor — e o olhar atónito é o
da criança de nove anos —, em “A legião estrangeira” é Ofélia que vive o
próprio parto como criança, perante os olhos ao mesmo tempo instigadores
e fascinados da narradora adulta. O professor e Ofélia, adulto e criança,
parecem sujeitar-se à mesma experiência metamórfica, que acontece
precisamente no interior de uma relação com o outro polo da contraposição
(a aluna ou a vizinha adulta que narra) e que, paradoxalmente, implica, nos
dois casos, uma estranha regressão temporal.
Nos dois contos, além disso, o que acontece entre as duas personagens
apresenta-se como uma revelação precoce e arriscada, ou uma revelação
arriscada porque precoce: se a adulta de “A legião estrangeira” recorda já
tardiamente de que “não me lembrara de avisar que sem o medo havia o
mundo”, e tenta em vão alcançar Ofélia antes que “desistindo de servir ao
verdadeiro, ela fosse altivamente servir ao nada”;12 a narradora de “Os
desastres de Sofia” percebe que era “cedo demais para eu ver tanto. Era
cedo demais para ver como nasce a vida”.13 Como tantas outras crianças
precoces de Clarice, estas crianças veem, para os adultos que as narram,
cedo demais, e a reacção violenta que têm depende disso mesmo. Como diz
a narradora de “Os desastres de Sofia”, “Eu ia receber de volta em pleno
rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso me era
conhecida. […] Meu pai estava no trabalho, minha mãe morrera há meses.
Eu era o único eu”.14 O embate entre uma revelação disforme e uma “alma
não formada” é, também aqui, um embate arriscado, que o final dos contos,
ou a sua moldura, terá de algum modo de naturalizar.

3.

Duas crónicas de Clarice podem ajudar a delimitar o problema.


A primeira é de 1968 e tem como título “A descoberta do mundo” —
título que passará a referir o conjunto publicado de crónicas de Clarice e
que joga com frases decisivas dos contos anteriores —, e Clarice descreve o
seu choque ao ouvir (desta vez, tarde demais), de uma coetânea, a
explicação, como diz, “daquilo a que os americanos chamam os fatos da
vida”.15 A revelação tardia do sexo deixa a jovem Clarice paralisada,
levando-a a jurar, em choque, que nunca irá querer casar-se. Entretanto o
tempo passa, e a reacção dilui-se e converte-se em aceitação. Mas não sem
perdas. Clarice comenta:
Antes de me reconciliar com o processo da vida, no entanto, sofri muito, o que poderia ter sido
evitado se um adulto responsável se tivesse encarregado de me contar como era o amor. Esse
adulto saberia como lidar com uma alma infantil sem martirizá-la com a surpresa, sem obrigá-
la a ter toda sozinha que se refazer para de novo aceitar a vida e os seus mistérios.16

Esta frase interessa-me, para já, como descrição em negativo das


tensões que activam a ficção de Clarice e que estou a perseguir: por um
lado, a expressão “lidar com a alma infantil sem martirizá-la com a
surpresa”, que descreve o adulto responsável no acto de iniciação da
criança, permite já adiantar reflexões sobre o papel da narradora em “A
legião estrangeira”, que entrega conscientemente Ofélia ao risco da surpresa
e da ruína do seu edifício, além de que recorda já a nota de A paixão… do
início do ensaio. Ao contrário da descrição sugerida, os adultos em Clarice
têm, muitas vezes, o papel de agir sobre a criança precisamente obrigando-a
a ter toda sozinha de se refazer ou, pelo menos, provocando directamente
ou indirectamente essa metamorfose solitária, e é possível aventar que o
espectáculo dessa destruição e reconstrução está no centro da experiência
literária clariciana. Refazer-se, além disso, é expressão que gostaria de
guardar e que recorre ao longo destes textos, sempre que se trata destes
choques violentos a que as crianças ou os adolescentes claricianos são
expostos cedo demais. Interessa-me porque chama a atenção para a
dimensão formal, em sentido literal, desta problemática, sugerindo a
associação entre a ideia de crescimento e a de construção de uma forma
que, mais do que feita, pode ser desfeita e refeita, como a do próprio texto
que a narra. Como veremos, é um movimento que traduz uma tensão
definidora da forma do conto em Clarice.
É possível que uma formulação mais precisa deste efeito esteja numa
interessante crónica dedicada às reacções de Clarice ao filme Persona, de
Ingmar Bergman. Aí, Clarice parece desviar a crónica do filme (“Não, não
pretendo falar do filme de Bergman”) para o seu título e para a relação entre
as palavras pessoa e máscara. Começa então por recuperar uma memória
paterna:
Acho que aprendi o que vou contar com o meu pai. Quando elogiavam demais alguém, ele
resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que se
pode dizer de alguém que venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à
humanidade: ele, ele é um homem. Obrigada por ter desde cedo me ensinado a distinguir entre
os que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas.17

Como o narrador rosiano de “O espelho”, em Primeiras estórias, a


consideração da máscara em Clarice parece conduzir à pergunta: “Você
chegou a existir?”. Mas, tal como no filme de Bergman (e, nesse sentido, a
crónica de Clarice é uma leitura sensível do filme), a oposição não é entre
identidade e máscara, ou entre existência e máscara, mas entre a nudez do
rosto, associada inicialmente à infância e à adolescência, e formas
diferentes de máscara, que necessariamente dão forma ao humano, no
embate com a existência.
O que é interessante para o meu argumento é a dupla caracterização de
um desfazer-se da máscara, na crónica. Se rosto e máscara se equivalem
para Clarice em importância, e se a escolha da própria máscara, na
adolescência, é a primeira escolha individual — ela própria afirma usá-la,
“aquela mesma que nos partos de adolescência se escolhe para não se ficar
desnudo para o resto da luta” —, há dois momentos em que a possibilidade
de uma ausência de máscara é sugerida e questionada. Por um lado, diz
Clarice, o puro rosto pode escolher, na adolescência, manter-se exposto. Se
isso acontecer, porém, o risco é alto: “esse rosto que estava nu poderia, ao
ferir-se, fechar-se sozinho em súbita máscara involuntária e terrível. É, pois,
menos perigoso escolher sozinho ser uma pessoa. Escolher a própria
máscara é o primeiro gesto voluntário humano”.18
Por outro lado, na idade madura, depois de anos “de sucesso com a
máscara”, esta pode, de repente — “ah, menos que de repente, por causa de
um olhar passageiro ou uma palavra ouvida” —, romper-se. Escreve Clarice
que a máscara pode “crestar-se no rosto como uma lama seca, e os pedaços
irregulares caem com um ruído oco no chão”, revelando o “rosto nu,
maduro, sensível quando já não era mais para ser”.19 É uma descrição que
concentra muitos daqueles a que podemos chamar lugares-comuns da obra
de Clarice — o choque súbito que desperta a epifania, provocado por um
quase nada, o molde a revelar-se oco e a romper, revelando o seu interior
interdito, recordando as inúmeras ostras, baratas e ovos que se crestam ao
longo da obra, figurando, na simetria formal das suas oposições entre
interior e exterior, uma das suas tensões fundamentais.
Nestas duas excepções, porém, a crónica sobre Persona articula, mais
uma vez quiasmaticamente, os dois tempos e as duas idades que estou aqui
a perseguir — um cedo demais arriscado e petrificador e um tarde demais
violento e deformador, figurando, nos dois casos, a forma a fazer-se e
desfazer-se como molde ao mesmo tempo impossível e inevitável.

4.

É interessante então ler a articulação entre “Os desastres de Sofia” e “A


legião estrangeira” a partir destas crónicas, precisamente através da imagem
da máscara que se desfaz. Falei de relação quiasmática, no jogo entre
criança e adulto que os dois contos estabelecem, e é efectivamente a
articulação indissociável entre duas idades que parece estar aqui em causa,
mais uma vez sublinhando a questão da formação, ou da educação, tão cara
a Clarice. No primeiro caso, é o rosto do professor que se expõe numa
nudez insuportável, quando “já não era para ser”, precipitando o refazer-se
da criança a partir de uma alteração radical do seu equilíbrio anterior, que
estabelecia a oposição entre criança e adulto em termos agónicos e
antagónicos. Perante o olhar nauseado da narradora sem nome, o professor
infantiliza-se numa inocência repugnante e exposta, ou repugnante porque
exposta, deixando-a desprotegida para a violência da revelação: “ele matava
em mim pela primeira vez a minha fé nos adultos: também ele, um homem,
acreditava como eu nas grandes mentiras…”.20 É possível que a melhor
descrição desse efeito esteja numa crónica de 1969, intitulada “A proteção
pungente”, onde lemos:
Ela não podia olhar para seu pai quando ele tinha uma alegria. Porque ele, o forte e amargo,
ficava nessas horas todo inocente. E tão desarmado. […] E obrigava a ela, uma criança, a arcar
com o peso da responsabilidade de saber que os nossos prazeres mais ingênuos e mais animais
também morrem.21

O cedo demais da narradora de “Os desastres de Sofia” é indissociável


do tarde demais do professor, que permitiu, na sua nudez terrivelmente
amorosa, que a criança visse com “aterrorizado fascínio o mundo”.22
No segundo conto, é Ofélia que renasce criança, rompendo a máscara
adulta com que atormentava os dias da narradora — com “opinião formada
acerca de tudo”23 — no desejo violento do pintainho. A caracterização desse
rosto coberto — “ela que estava toda coberta, e tinha mãe coberta, e pai
coberto” — tem como revés o rosto sem cobertura da narradora (“logo no
rosto que sendo nosso avesso é coisa tão sensível”),24 deixa perceber que, tal
como no conto anterior, o ponto de partida é a inversão entre as figuras da
crónica sobre Persona: o rosto é aqui o da adulta, a máscara protegida é a
de Ofélia. E se essa inversão entre adulto e criança é também uma oposição
entre educadora e educando, também aqui ela vai inverter-se radicalmente.
Quando a voz da criança começa a entrar “por entre as palavras escritas”,25 a
narradora opera a traslação necessária para a alteração dos papéis. “Sem me
mexer, eu a olhava. Eu sabia de grande incidência de mortalidade infantil.
[…] Eu tinha a ousadia de dizer sim a Ofélia, eu que sabia que também se
morre em criança sem ninguém perceber”:26 a partir deste momento, nos
termos da crónica, é a adulta que expõe Ofélia à obrigação de se refazer
toda sozinha, e à exposição do seu corpo nu ao desejo. O resultado, que
fecha o livro, é conhecido de todos: Ofélia mata o pintainho, e a narradora
tenta inutilmente correr atrás dela para a proteger tardiamente, ou para
reparar a violência do choque sofrido: “Oh, não se assuste muito! às vezes a
gente mata por amor, mas juro que um dia a gente esquece, juro!”.27 Como
os adolescentes da crónica sobre Persona, a exposição sensível de Ofélia
corre o risco de a ferir e fechar numa máscara imutável — provavelmente a
da “princesa hindu por que sua tribo esperava”. Nesse destino, Ofélia sai do
conto, ou está já fora dele: “Ofélia é que não voltou: cresceu”. “A legião
estrangeira” começa e acaba com a sua narradora, sozinha na cozinha com o
pintainho — e é a ela que regressarei, depois de mais um desvio por alguns
lugares transitados da obra de Clarice.

5.

Também ao longo de “Os laços de família” encontramos recorrentemente


este movimento brusco: o da diluição súbita, e nas linhas finais do conto, de
uma crise adolescente no correr do tempo. É um movimento perturbador,
porque nos violenta com um corte repentino que corresponde apenas à
consciência de que o tempo passa, fazendo-nos ver de que modo o conto
nos ocupou com a expansão amplificadora e suspensa de um momento que
corroía, ou pelo seu transbordar, ou pela sua vectorialidade invertida ou
inatural à delimitação no tempo. A tensão entre o “pendor formalizante” e o
“excesso do fragmentário” na obra de Clarice, de que nos falou Carlos
Mendes de Sousa,28 tem, nos cortes bruscos finais com que se termina (para
recuperar palavras de Clarice, sobre Preciosidade) “resolvendo a vida” das
personagens,29 a sua representação mais visível, fazendo-nos estranhar a
história natural no momento em que nos é apresentada como pano de fundo
para a experiência sincopada e não teleológica de outras idades na vida.
Talvez o exemplo mais visível destes movimentos seja o conto
“Mistério em São Cristóvão”, em que a correlação entre idades que estou a
tentar perseguir assume a conformação de um esquema: a família, que com
as suas quatro idades se organiza num desenho que predetermina o risco da
sua desorganização: “o sereno perfumado de São Cristóvão não era
perigoso, mas o modo como as pessoas se agrupavam no interior da casa
tornava arriscado o que não fosse o seio de uma família numa noite fresca
de maio”.30 Essa desorganização virá, como se sabe, pela intervenção
improvável de três mascarados que decidem colher um jacinto do jardim e
são surpreendidos; primeiro, pela menina à janela, e depois pela lua, que
imobiliza as quatro máscaras (o rosto da menina é também já uma máscara)
num jogo de olhares que antecede a fuga do jardim. Tudo no início tem o
carácter de uma cena que se fixou no devir do tempo: na noite de maio, o
desenho de uma família é captado no seu equilíbrio precário, e no mistério
ou choque que o desequilibra é o tempo que se torna protagonista do conto,
porque a sua figura é a conjugação síncrona de várias idades num momento
parado no tempo. E nessa travagem, mais uma vez, assistimos a várias
perturbações da linha cronológica.
No processo, um dos mascarados, “exangue sob a máscara,
rejuvenescera até encontrar a infância e o seu horror”.31 E quando, no final,
toda a família se reúne em torno da mocinha, ela é descrita deste modo:
“Seu rosto apequenara-se claro — toda a construção laboriosa de sua idade
se desfizera, ela era de novo uma menina. Mas na imagem rejuvenescida de
mais de uma época, para o horror da família, um fio branco aparecera entre
os cabelos da fronte”.32 É mais uma criança que renasce, numa iniciação
capaz de a marcar para sempre. O rejuvenescimento é aqui iniciático,
marcado pelo jacinto quebrado no talo, e assinala a deformação da idade
desprotegida (“se equilibrando na delicadeza da sua idade”),33 como junção
de regressão e envelhecimento.
Mas tal como em “Preciosidade” — conto que também incide sobre
um violento atentado a uma alma não formada — “a mocinha aos poucos
recuperou a sua verdadeira idade”.34 A deformação de um rosto adolescente,
que violentamente a devolve a uma infância inesperada, é uma regressão
que o tempo lentamente corrige. Como no conto “Amor”, será possível,
talvez, “envelhecer de novo”.35 Talvez em nenhum livro como em Laços de
família seja tão evidente esse embate entre o momento da crise, que institui
um movimento de regressão não cronológico — o regresso à infância como
detonação da forma e da máscara — e a história natural, que absorve as
crises na sequência dos tempos da vida. Os adolescentes, “assim como uma
pessoa engorda”,36 crescem, mas não é disso que o conto se ocupa. A
história natural funciona, nestes casos, como moldura inatural e
incomensurável com a experiência relatada.
Já os adultos, no final do conto, têm outro destino — e é assim que me
encaminho para o meu ponto de chegada. Diz-nos o conto que, se a
mocinha, aos poucos, recuperou sua verdadeira idade,
os outros, que nada tinham visto, tornaram-se atentos e inquietos. E como o progresso naquela
família era frágil produto de muitos cuidados e de algumas mentiras, tudo se refez e teve de se
refazer quase do princípio: a avó, de novo pronta a se ofender, o pai e a mãe fatigados, as
crianças insuportáveis, toda a casa parecendo esperar que mais uma vez a brisa da abastança
soprasse depois do jantar. O que sucederia talvez noutra noite de maio.37

A família, então, vê o laborioso edifício da casa sucumbir ao risco e ter


de se desfazer e refazer de novo. E, tal como nos contos mais emblemáticos
de Laços de família — “Amor”, “Os laços de família” —, o texto termina
desfazendo-se com a sugestão de que se poderá, ciclicamente, refazer e
repetir.

6.

No final de “A legião estrangeira”, estas duas temporalidades — a


vectorialidade inevitável da história natural e a ciclicidade sincopada do
fazer e refazer as formas do humano — são também explicitamente
contrapostas, deixando, como dizíamos, a narradora sozinha na cozinha
com o novo pinto, que estremece: “o amarelo é o mesmo, o bico é o
mesmo. Como na Páscoa nos é prometido, em dezembro ele volta. Ofélia é
que não voltou: cresceu”.38
Talvez seja porém o ponto na obra de Clarice em que é mais clara a
lógica sacrificial desta dinâmica: a vectorialidade inexorável da saída de
cena de Ofélia — a que foi avisada tarde demais — opõe-se ao jogo das
formas no adulto, que é também o jogo da repetição. A própria estrutura de
“A legião estrangeira” aponta para isso mesmo, articulando a sua moldura
— a família reunida à volta do pintainho sem mãe que chegou à cozinha —
com a narrativa de Ofélia, através da consciência da repetição de um gesto
(“Então estendi a mão e peguei no pinto. Foi nesse instante que revi
Ofélia”)39, que coloca a narradora, ao mesmo tempo, no lugar de Ofélia, a
criança que estende a mão para pegar o pinto, e da responsável
irresponsável pela sua morte simbólica — a adulta que tira no mesmo gesto
em que dá. Numa extraordinária inversão do gesto dúplice da preceptora de
The Turn of the Screw [A volta do parafuso. Barueri, SP: Novo Século, 2021]
de Henry James, que abraça o pequeno Miles, ao mesmo tempo para o
proteger e sufocar, a pedagogia arriscada da narradora do conto faz, no
mesmo movimento, nascer e morrer Ofélia, sem poder saber se sobreviverá.
Percebe-se então talvez de que modo a abertura de “A legião
estrangeira” e o extraordinário quadro da sua moldura remetem para o
mesmo ritual do saber de dois gumes que encontramos na abertura de A
paixão segundo G.H. Aí, não sem surpresa, estamos num tribunal:
Se me perguntassem sobre Ofélia e os seus pais, teria respondido com o decoro da
honestidade: mal os conheci. Diante do mesmo júri ao qual responderia: mal me conheço — e
para cada cara de jurado diria com o mesmo límpido olhar de quem se hipnotizou para a
obediência: mal vos conheço. Mas às vezes acordo do longo sono e volto-me com docilidade
para o delicado abismo da desordem. Estou tentando falar sobre aquela família que sumiu há
anos sem deixar traços em mim, e de quem me ficara apenas uma imagem esverdeada pela
distância. Meu inesperado consentimento em saber foi hoje provocado pelo fato de ter
aparecido em casa um pinto.40

Poderíamos dizer que a teoria da ficção de Lispector está toda contida


neste “inesperado consentimento em saber”: o movimento que permite
passar da ignorância sobre o outro — a morte da escrita — ao saber do
outro, que permite a configuração telepática dos modos de narração dos
contos de Clarice como uma dolorosa inscrição no género humano. É, no
fundo, essa identificação a permitir saber que se pode ser, ao mesmo tempo,
vítima e carrasco num mesmo parto mortal, e quanto se perdeu e quanto se
ganhou no embate com a forma humana que viemos ou não a ter. Desse
drama, acredito, fala C.L. no limiar da descida ao informe de G.H.; e
também numa passagem de uma crónica intitulada “Trechos”, em que a
lógica sacrificial destas narrativas de iniciação se torna evidente:
Um domingo de tarde sozinha em casa dobrei-me em dois para frente — como em dores de
parto — e vi que a menina em mim estava morrendo. Nunca esquecerei esse domingo. Para
cicatrizar levou dias. E eis-me aqui. Dura, silenciosa e heroica. Sem menina dentro de mim.41

É neste sentido que, voltando às palavras de G.H., o ritual é inerente, e


também inevitável, ou mais propriamente impossível de evitar com
qualquer aviso ou advertência: o cedo demais e o tarde demais fundem-se,
em Clarice, no modo como o fazer e o refazer das almas já formadas se
apresentam, afinal, como uma repetição inevitável da morte com que, na
infância ou na adolescência, entrámos no jogo periclitante da forma
humana. E é essa a nossa irresponsabilidade comum.
NOTAS
1. “Entrevista de Clarice Lispector (C.L.)”, Clarice Lispector. A paixão segundo G.H., edição crítica
coord. por Benedito Nunes. Paris: Association Archives de la littérature latino américaine, des
Caraibes et africaine du XXe siècle. Brasília: cnpq, 1988, p. 298.
2. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 5.
3. Id. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 12.
4. Ibid., pp. 20-1.
5. Id. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 21.
6. Jean-Marie Schaeffer, “Note sur la préface philosophique”. Poétique, n. 69, pp. 35-44, 1987.
7. Friedrich Nietzsche, Aurora. Trad. de Rui Magalhães. Porto: Rés, 1977, pp. 10-1.
8. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 75.
9. José Miguel Wisnik, “Diagramas para uma trilogia de Clarice”. Revista Letras. Curitiba, ufpr, n.
98, pp. 282-307, jul./dez., 2018.
10. Clarice Lispector, A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 21.
11. Ibid., pp. 95-6.
12. Ibid., p. 100.
13. Ibid., p. 22.
14. Ibid., p. 19.
15. Id. A descoberta do mundo: Crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p. 114.
16. Ibid., p. 115.
17. Ibid., p. 80.
18. Clarice Lispector, A descoberta do mundo: Crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1984, p. 80.
19. Ibid., p. 81.
20. Id. A legião estrangeira, p. 23.
21. Id. A descoberta do mundo, p. 171.
22. Ibid., p. 25.
23. Clarice Lispector, A legião estrangeira, p. 91.
24. Ibid., p. 92.
25. Ibid., p. 94.
26. Ibid., p. 95.
27. Ibid., p. 100.
28. Carlos Mendes de Sousa, “A íntima desordem dos dias”. In: Clarice Lispector, Laços de família.
Lisboa: Cotovia, 2006, p. 131.
29. “‘Preciosidade’ é um pouco irritante, terminei antipatizando com a menina, e depois pedindo-lhe
desculpas por antipatizar, e na hora de pedir desculpas tendo vontade de não pedir mesmo. Terminei
arrumando a vida dela mais por desencargo de consciência e por responsabilidade que por amor”.
(Clarice Lispector, “Fundo de Gaveta”. A paixão segundo G.H., 1988, p. 293.)
30. Clarice Lispector, Laços de família, p. 101.
31. Ibid., p. 103.
32. Ibid., p. 104.
33. Ibid., p. 101.
34. Ibid., p. 105.
35. Cf. “Amor”: “Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma
mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego
desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo?” (Laços de
família, p. 25).
36. Cf. “Preciosidade”: “Até que, assim como uma pessoa engorda, ela deixou, sem saber por que
processo, de ser preciosa” (Laços de família, p. 84).
37. Ibid., p. 105.
38. Id. A legião estrangeira, p. 100.
39. Ibid., p. 89.
40. Ibid., p. 86.
41. Id. A descoberta do mundo, p. 377.
* A editora optou por manter a grafia do português de Portugal. (N.E.)
A perfeição da rosa
MICHEL RIAUDEL

UM DRAMA DOMÉSTICO

Os contos de Clarice Lispector são como pequenas peças de teatro, com a


sua divisão em atos e cenas, cenários, personagens e enredos. “A imitação
da rosa” presta-se bem a esta forma de organizar a leitura. Unidade de
lugar: um apartamento no bairro da Tijuca, na época geralmente habitado
por uma pequena classe média, no limite da Zona Norte.1 A ação vai do
quarto (onde está o toucador) à cozinha (onde Laura bebe o seu copo de
leite), depois da cozinha à sala de estar, onde o sofá é o elemento central.
Concentração do tempo: tudo se passa numa tarde. Nada acontece, ou
quase, apesar de esta ser a história mais longa da coletânea. A sua extensão
rompe com “Uma galinha”, a história anterior e a mais curta do livro. O que
marca possivelmente a atenção que a escritora prestou ao ritmo do volume.
Pode-se imaginar várias hipóteses de recortes, por exemplo, dois atos e
um epílogo. Ato I, cena 1: Laura perde-se nos pensamentos; enquanto espera
por Armando, o seu marido, prepara-se diante do toucador para o jantar na
casa de Carlota e João… Cena 2: ela percebe que se esqueceu de tomar o
copo de leite prescrito pelo médico, o que a leva à cozinha, antes de ela se
instalar no sofá da sala de estar, seguindo o ritual que ela estabeleceu.
Começa outro momento de longo devaneio, lembrando o início do primeiro
conto do livro. De repente (ato II), o seu olhar fixa as rosas que ela comprou
de manhã no mercado. De agora em diante, tudo gira em torno destas flores.
Segue-se uma série de sentimentos mistos, desejos contraditórios,
hesitações. A empregada entra em cena: Maria terminou o seu dia, Laura
pede que faça um desvio quando voltar para sua casa e entregue o buquê à
sua amiga Carlota. Epílogo: anoitece, o marido chega do trabalho e
encontra a sua esposa “sentada no sofá sem apoiar as costas, de novo alerta
e tranquila como num trem. Que já partira”. Em outras palavras, a crise
voltou.
Estes treze contos estruturam-se quase sempre em torno de um colapso
existencial. Este pode ser latente, como no início do “Devaneio…”, e logo
acentuado sob o efeito do álcool. Pode ocorrer sem aviso prévio, como em
“Amor”, e aprofundar-se: a passagem pelo Jardim Botânico. Momento tanto
inesperado quanto inelutável, tais as sequências implacáveis de uma
tragédia: se Ana não tivesse perdido a parada do bonde, tornava-se
impossível o vaguear no fantástico mundo das árvores. A crise pode
preceder o início da história, como em “O búfalo”, o que “justifica” o
adversativo “Mas”, raro na abertura de uma história…; a visita ao jardim
zoológico irá, no entanto, redistribuir a crise em ondas sucessivas, até o
desmaio conclusivo. Os sinais dessa crise são diversos: a suspensão do
tempo normal, tudo se intensifica, acelera, as personagens perdem o seu
rumo. É como se estivéssemos a passar do chronos para o kairos ou aiôn,
uma temporalidade que se contrai no instante e se dilata no eterno. Deste
ponto de vista, devemos prestar muita atenção ao verbo “acontecer” (ou
sinônimos), que muitas vezes funciona como um aviso.
Em “A imitação da rosa”, “acontecer” aparece quatro vezes, em
contextos diferentes. No segundo parágrafo, surge no meio de uma projeção
imaginária, um regresso à casa da família após uma escapada: “Como um
gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido,
encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando.” [grifo nosso].
Uma denegação esconde um “acontecimento” cuja gravidade se encontra
encoberta por uma dupla desrealização: metáfora e condição. Aliás, se tão
pouco acontece em uma história tão longa, é porque tudo se passa no
mundo “irreal” e paralelo do fluxo de consciência de Laura, o tempo da
recordação, da meditação, da reflexividade. Em vez de privilegiar a ação, a
narrativa fica atenta à forma como a vibração das coisas está vivida e
sentida, num modo subjetivo. Em uma destas ruminações é lembrado o
conselho do médico: “Abandone-se, tente tudo suavemente, não se esforce
por conseguir — esqueça completamente o que aconteceu e tudo voltará
com naturalidade” [grifo nosso].
O que aconteceu se mantém no plano da alusão: um internamento
psiquiátrico, que terminou há pouco. Assim, a crise aqui teria precedido o
momento em que o leitor entra na história. Desde as primeiras linhas,
pegamos o trem andando, por assim dizer — um trem que já partira, no
momento de regresso ao lar, à vida normal. Mas reconstituindo aos poucos
o que aconteceu (um enigma que se esclarece gradualmente, por
fragmentos, a partir de vários índices: as precauções do marido, a reação
dos que a rodeiam, da enfermeira, do médico…), entendemos que a
recuperação é frágil, uma nova crise ameaça. O leitor pode até se perguntar
se Laura está realmente “curada”, se a crise não é permanente, em latência
constante.
A terceira ocorrência de “acontecer” situa-se no episódio das rosas:
“Mas, sem saber [o] porquê, ela estava um pouco confusa, um pouco
perturbada. Oh, nada demais, apenas acontecia que a beleza extrema
incomodava.” [grifo nosso]. A contemplação das rosas perturba Laura,
incomodada pela extrema beleza das flores. É apenas isso, porém algo
acontece de novo. Talvez por isso, para evitar que aconteça duravelmente,
ela imagina dar o buquê à sua amiga Carlota: “dar as rosas era quase tão
bonito como as próprias rosas”. Mataria dois coelhos de uma só cajadada:
agradaria à amiga e “ficaria livre delas”. Mas logo vem a pergunta, a
dúvida: “o que é mesmo que aconteceria”? [grifo nosso]. A recorrência do
verbo “acontecer”, em quatro tempos ou modos diferentes, lembra a
intervalos regulares que a crise paira sobre o personagem, que ela só foi
resolvida na superfície, e ameaça voltar a atacar a qualquer momento. O
que interroga sobre o significado desta “crise”.
Por enquanto completamos o esboço desta pequena comédia com a
estrutura das personagens. Apenas três estão no palco, este ocupado sem
interrupção pela mulher. No entanto, a narrativa, que adota quase
constantemente o ponto de vista de Laura, estrutura o drama e os seus
bastidores em torno de um quarteto, um quadrado perfeito, atravessado por
relações cruzadas: ao paralelismo dos dois casais sobrepõe-se um
paralelismo dos sexos, os homens entre eles, as mulheres trocando sobre
“coisas de mulheres”, um eco de Tereza Quadros (pseudônimo de
Lispector) e a sua coluna “Entre mulheres” (1952), ou então a crônica
feminina da suposta atriz Ilka Soares (outro avatar inventado pela jornalista
Lispector em 1960, ano de publicação de Laços de família). O mundo do
homem está aberto para o exterior, os amplos espaços, ele está interessado
nas notícias mundiais publicadas nos jornais; o das mulheres restringe-se
aos assuntos domésticos e à intimidade.
Pouco se sabe sobre João, uma figura marginal, já que a relação
começa com uma amizade de infância entre Laura e Carlota. De fato, as
esposas ocupam a linha da frente da história. Cada uma delas encarna um
perfil de conduta e concepção da mulher que deve convidar o leitor a não se
contentar com esquemas binários (o dominante/o dominado…), nem reduzir
o livro a um simples manifesto contra o patriarcado ou a favor da
emancipação da mulher. É verdade que, na “vida real”, Clarice Lispector
acabara de deixar o seu marido nos Estados Unidos e regressar para o Rio,
com os seus dois filhos, quando publicou Laços de família. Tinha
experimentado o casamento e os seus reveses, o tédio da mulher de
diplomata; a partir de 1959 descobriu a condição de mulher separada (o
divórcio sendo oficialmente reconhecido no Brasil em 1977, ano da morte da
escritora). Mas, longe de se prestar a uma leitura de mão única, seus contos
observam todas as nuances dos códigos de gênero, frequentemente
observados do ponto de vista feminino, mas também, por vezes, a partir do
ângulo masculino: ver precisamente o final de “Os laços de família” ou de
“A imitação da rosa”. Sobretudo, os contos justapõem tipos muito diversos
de mulheres, desde a velha Anita em “Feliz aniversário”, agarrando-se aos
seus princípios rígidos e arcaicos que a fazem condenar quase todas as suas
noras e seus próprios filhos, até à jovem e mais independente Catarina (“Os
laços de família”) que rivaliza cordialmente com a sua mãe, a
apropriadamente chamada Severina. Apesar de todas as contingências e
adversidades, a mais feliz e menos atormentada dessas mulheres é Pequena
Flor. Em “A imitação da rosa”, Carlota encarna a visão “moderna”, aquela
que estabelece uma relação de igualdade no casal: “a amiga tinha um modo
esquisito e engraçado de tratar o marido, oh não por ser ‘de igual para
igual’, pois isso agora se usava”. No livro, padrões concorrentes opõem
gerações, mas também mulheres da mesma idade, refletindo a influência do
american way of life, com a sua dona de casa up to date consumista, contra
a organização tradicional da família. A prosa de Clarice questiona, no
fundo, tanto a noção de normas, os papéis sociais e máscaras quanto a
própria “dominação” entre classes e gêneros.
A amiga, uma mulher ousada, é o oposto de Laura, insípida, baixinha,
sem muito encanto. Desde o colégio do Sagrado Coração onde se
conheceram, Carlota vem exercendo um fascínio sobre a sua amiga; ela,
presa na imagem da esposa devota, cuja vida está organizada em torno do
seu marido. Ele trabalha, tem uma vida fora de casa; Laura existindo a seu
serviço. O cabelo dela, meticulosamente preso, ilustra a contenção da sua
conduta. A sua roupa marrom (que reaparece em “O búfalo”), em harmonia
com a cor dos seus olhos, combina com o colarinho de creme feito de
“renda verdadeira”, compondo um caráter discreto, o oposto da mulher
decidida, Carlota, de uma bondade algo autoritária. Ambiciosa e viva,
individualista, a amiga goza a vida, mesmo que isso signifique mentir às
freiras do internato. Laura, pelo contrário, valoriza a autenticidade: ela não
tem os olhos verdes das esposas que escondem coisas dos seus maridos,
nem o cabelo preto ou louro das sedutoras, mas sim o cabelo castanho. Ela
é lenta, bem cuidada, sincera; o modelo do “segundo sexo”, sempre em
segundo plano, que existe para valorizar o homem. Ela até aspira a um
estado de insignificância e de esquecimento:
[…] recebendo enfim de novo a desatenção e o vago desprezo da amiga, a sua rudeza natural,
e não mais aquele carinho perplexo e cheio de curiosidade — e vendo enfim Armando
esquecido da própria mulher. E ela mesma, enfim, voltando à insignificância com
reconhecimento. Como um gato que passou a noite fora e, como se nada tivesse acontecido,
encontrasse sem uma palavra um pires de leite esperando.

Como se tratasse de respeitar os códigos sem ostentação, de alcançar


uma espécie de verdade do neutro, a comparar com a aspiração do neutro da
narradora de A paixão segundo G.H.: “Mas se eu cumprir o meu núcleo
neutro e vivo, então, dentro de minha espécie, estarei sendo especificamente
humana”.

UMA MULHER “ALIENADA”?

Seria fácil ler, nesta passagem, uma confirmação da alienação de Laura.


Porém a questão não é tanto que Laura adote uma atitude “submissa”, mas
que ela escolha entre duas posições alheias: recusando a “ternura perplexa e
curiosa” demonstrada por Carlota, ela prefere a “desatenção”, escolhe
voluntariamente desaparecer. Desta forma, também rejeita mentiras e falsas
atenções, e não quer ser tratada como um animal curioso, por causa da sua
fragilidade psíquica. Pois, quando não compreendida, vai presa — assim
como fora presa “no tempo do Sacré Coeur”. A história de Laura é, em
alguns aspectos, uma história de confinamento. A sua “loucura”, tratada
como uma doença, medicalizada, levou-a para fora do mundo comum. Ela
apenas deseja regressar a esta banalidade, passar despercebida, deixar de ser
alvo de atenção, a única forma de ajuda aceita:
As pessoas felizmente ajudavam a fazê-la sentir que agora estava “bem”. Sem a fitarem,
ajudavam-na ativamente a esquecer, fingindo elas próprias o esquecimento como se tivessem
lido a mesma bula do mesmo vidro de remédio. Ou tinham esquecido realmente, quem sabe.
(LISPECTOR, 1990, p. 48)
O importante não é que ela esteja bem, mas que tenha ou dê a sensação
de que está bem. Este “bem” colocado entre aspas sublinha que não se trata
de uma realidade vivida, mas de um discurso sobre si própria, assumido
pelos outros, e integrado pela própria Laura. Melhor a dureza de Carlota, a
sua verdade por ser “natural” do que demasiada atenção; do mesmo modo,
as recomendações do médico visam um retorno à naturalidade: “tudo
voltará com naturalidade”; e Laura vai sentar-se com o seu copo de leite no
sofá, “com muita naturalidade”, fingindo falta de interesse, “não se
esforçando”. As aspas voltam a aparecer para filtrar esta alegada
espontaneidade, trazendo de volta o discurso (social). Já que temos de
desempenhar um papel, mais vale adotarmos o papel do apagamento. Ser
esquecida dos outros é garantir a si mesma que voltou ao mundo do
cansaço, da banalidade, da normalidade.
Notamos o peso das metáforas, tudo menos inofensivas. Aquela sobre
o regresso do gato é duplamente surpreendente. Além do felino, a palavra
“gato” remete também a um homem bonito, a conquista viril, e o que
implica em termos de desejo sexual. Associação surpreendente quando
aplicada à Laura, mas coerente quando convoca o pires de leite: ele prepara
o copo de leite do “tratamento”, e é associado à bebida do bebê, à comida
dos primeiros meses fornecida pela mãe (ora não há mãe), a brancura e suas
propriedades calmantes e medicinais.
Outra imagem: “como se tivessem lido a mesma bula do mesmo vidro
de remédio”, que surge para ilustrar o esforço de voltar ao normal e, no
entanto, convoca o universo semântico do campo médico: em vez de
reforçar a ideia de cura, a imagem enfatiza o patológico. Assim funciona a
escrita clariciana, por aproximações falsamente inesperadas, associações
discretas e secretas, correspondências e paradoxos…
Finalmente, se Laura quer ser tranquilizada sobre a sua normalidade, é
porque sabe, no fundo dos seus olhos, que não é de forma alguma “normal”.
Os “sintomas” são: a sua esterilidade, o seu caráter maníaco, as suas
tendências super-humanas. “Por acaso alguém veria, naquela ponta mínima
de surpresa que havia no fundo de seus olhos, alguém veria nesse mínimo
ponto ofendido a falta dos filhos que ela nunca tivera?” Este segredo quase
imperceptível, a ausência de uma criança, revelaria a sua incompletude,
explicaria a sua instabilidade? A maternidade tê-la-ia feito alcançar a
plenitude do seu sexo, enquanto ela está privada dele, enquanto ela sente
apenas metade de uma mulher? Este tema da maternidade, muito presente
na obra de Clarice Lispector, refere-se naturalmente à “função-mulher” tal
como é entendida pela sociedade, mas também ao ciclo espontâneo da vida,
à perpetuação da espécie, bem como ao mistério da criação. É o grande
assunto do íntimo. Em “Uma galinha”, o ovo repentino traduz o interior
inacessível, enigmático, imprevisível do bicho; a “maternidade” torna-a
intocável durante um tempo, sagrada, elevando-a à categoria de “rainha”,
como nos contos de fadas. Em negativo, a falta de filho de Laura distingue-
a de Ana, Catarina, da rapariga… Revela uma falha, a ser explicada
“cientificamente”, pela insuficiência ovárica.
[…] de volta à paz noturna da Tijuca — não mais aquela luz cega das enfermeiras penteadas e
alegres saindo para as folgas depois de tê-la lançado como a uma galinha indefesa no abismo
da insulina —, de volta à paz noturna da Tijuca, de volta à sua verdadeira vida: ela iria de
braço dado com Armando, andando devagar para o ponto do ônibus, com aquelas coxas baixas
e grossas que a cinta empacotava numa só fazendo dela uma “senhora distinta”; mas quando,
sem jeito, ela dizia a Armando que isso vinha de insuficiência ovariana, ele, que se sentia
lisonjeado com as coxas de sua mulher, respondia com muita audácia: “De que me adiantava
casar com uma bailarina?”, era isso o que ele respondia. (LISPECTOR, 1990, pp. 54-5)

Na citação, Laura é justamente comparada com uma galinha indefesa


quando, no hospital, as enfermeiras a colocam em coma de insulina (um
tratamento de choque então em voga, supostamente para curar a
esquizofrenia, mas na realidade ineficaz e com efeitos secundários
devastadores). Notemos também a “senhora distinta”, à parte (e
sofisticada), caracterização que se deve tanto à sua infertilidade, quanto ao
seu corpo desproporcionado, longe dos cânones de papel brilhante das
revistas: coxas curtas e gordas, realçadas por uma cinta apertada (ver o
cruel “empacotava”). Armando tranquiliza-a, criticando o sistema de
valores do mundo circundante, superficial e vicioso: a bailarina tem corpo
esbelto e gracioso, mas é também associada à prostituta. A citação traz, por
fim, um novo devaneio de Laura: ela na rua, à vista de todos, no braço do
seu marido. Mais uma vez, tenta corresponder às expectativas dos outros.
Alienada não no sentido psiquiátrico de loucura, ou no sentido marxista de
submissão à ideologia dominante, mas na medida em que está, em certa
medida, alienada de si mesma, quer pelos discursos alheios que assume,
quer pelos papéis que aceita desempenhar. A normalização de sua
esterilidade passa pela medicalização, ou seja, o discurso do outro, da
ciência, do médico: sua incompletude sai do domínio moral ou psicológico,
para se ancorar na ordem fisiológica. Assim dissocia o seu ser mais
profundo, as suas fontes mais escondidas, e aquele que ela tenta fazer
coincidir com certos códigos em vigor. Há nela um cálculo, uma aderência
superficial ao estereótipo. “A paz do homem…”, com o seu valor proverbial
de verdade geral, afirma uma espécie de lei da natureza. Da mesma forma,
no Sagrado Coração, copiava as lições na perfeição, mas sem as
compreender; e leu “com o ardor de um burro” o livro da piedade, ao
mesmo tempo em que sentia o perigo dela se abandonar realmente a ele. Ela
é uma estranha na sua própria casa, vendo-se como numa sala de espera:
“Oh como era bom rever tudo arrumado e sem poeira, tudo limpo pelas suas
próprias mãos destras, e tão silencioso, e com um jarro de flores, como uma
sala de espera. Sempre achara lindo uma sala de espera, tão respeitoso, tão
impessoal”.
Outro sinal de uma existência não tão ordinária é o comportamento
obsessivo ou maníaco de Laura, “seu gosto minucioso pelo método”. Ela
arruma a casa, passa roupa…, tudo é pretexto para pôr as coisas em ordem,
o que a narrativa mimetiza por abundantes repetições e que Clarice assim
comenta: “‘Imitação’ me deu a chance de usar um tom monótono que me
satisfaz muito: a repetição me é agradável, e repetição acontecendo no
mesmo lugar termina cavando pouco a pouco, cantilena enjoada diz alguma
coisa”.2
À redundância junta-se esta forma insólita de estruturar o texto por
listas: “[…] ela não precisasse fazer mais nada, senão 1) calmamente vestir-
se; 2) esperar Armando já pronta; 3) o terceiro o que era? Penso que sim. Era
isso mesmo o que faria”. Esta preocupação pelas arrumações, limpeza,
higiene remonta à infância. Mas transforma-se numa obsessão que encobre
uma certa vacuidade, come esse “terceiro” sem objeto, as afirmações
repetidas, que ritualizam a rotina e preenchem o vazio com uma “riqueza
íntima”…
O que devia fazer, mexendo-se com familiaridade naquela íntima
riqueza da rotina — e magoava-a que Carlota desprezasse seu gosto pela
rotina —, o que devia fazer era: 1) esperar que a empregada estivesse pronta;
2) dar-lhe o dinheiro para ela já trazer a carne de manhã, chã de dentro;

como explicar que a dificuldade de achar carne boa era até um assunto bom,
mas se Carlota soubesse a desprezaria; 3) começar minuciosamente a se
lavar e a se vestir, entregando-se sem reserva ao prazer de fazer o tempo
render.
Não se trata, de novo, de psiquiatrizar o que parecem perturbações
obsessivas do comportamento, mas de notar que, tal como em outros
contos, o foco interno e o discurso indireto livre contaminam a narrativa
heterodiegética, que absorve suas cores, a forma de falar e pensar da
personagem, que se mantém a grande distância da sua verdade intrínseca e
sente uma enorme dificuldade de adaptação à realidade. As parcas marcas
do presente são intercaladas por considerações longas, nebulosas,
fantasiosas ou irreais, condicionais e subjuntivas, Laura movendo-se
mentalmente para trás e para a frente, em camadas do passado e do futuro
mais ou menos próximo: são como os bastidores de um teatro, que tiram a
personagem do presente mas lhe dão, ao mesmo tempo, uma espessura
diacrônica. Encenando esta perda de contato com a realidade, o aviso “Mas,
quando viu as horas…” tem o efeito de reiniciar momentaneamente a
“ação”. Outro exemplo extraordinário desta dissociação é fornecido pelo
parágrafo marciano:
Se uma pessoa perfeita do planeta Marte descesse e soubesse que as pessoas da Terra se
cansavam e envelheciam, teria pena e espanto. Sem entender jamais o que havia de bom em
ser gente, em sentir-se cansada, em diariamente falir; só os iniciados compreenderiam essa
nuance de vício e esse refinamento de vida. (LISPECTOR, 1990, p. 51)

Mais poderoso do que a difração reflexiva do espelho, este excurso em


Marte ecoa certamente, para o ler trivialmente, a aventura espacial
desencadeada no período pós-guerra (e, em geral, a atenção de Clarice
Lispector às ciências, ao mundo do átomo, das “partículas”), mas ilustra
sobretudo o quanto Laura vive em outro planeta e o quanto ela observa e
sonha mais do que vive (ao contrário da pragmática Carlota). A penteadeira,
móvel feminino por excelência, dedicada a vestir e encenar o corpo da
mulher — aparência que disfarça o ser — é também propícia ao
distanciamento e à introspecção. Em frente ao espelho, a mulher avalia-se,
pergunta-se quem é… Aqui o móvel tem uma função narrativa: introduz a
descrição física da personagem através da sua própria visão; e mostra a
Laura mais uma vez ocupada a arrumar (ou planejar arrumações).
Marte, espelho ampliando a imagem refletida, introduz o terceiro
“sintoma”, aquele pelo qual tudo indica que Laura foi internada: a síndrome
da perfeição. A humanidade, vista de Marte, é definida pela sua falibilidade,
a sua fadiga. Mas a Laura não dormia mais. E a sensação de exaustão
tranquiliza-a sobre o seu estado: “No cansaço havia um lugar bom para ela,
o lugar discreto e apagado de onde, com tanto constrangimento para si e
para os outros, saíra uma vez. Mas como ia dizendo, graças a Deus,
voltara”. Assim como ela estica o tempo inútil, as compras no mercado…,
ela estica o seu reflexo sobre o cansaço, o seu desejo de dormir, a sua
tentação de uma sesta:
Mas não tinha verdadeiramente tempo de dormir agora, nem sequer de tirar um cochilo —
pensou vaidosa e com falsa modéstia, ela era uma pessoa tão ocupada! Sempre invejara as
pessoas que diziam “não tive tempo” e agora ela era de novo uma pessoa tão ocupada.
(LISPECTOR, 1990, p. 53)

O papel de Laura consiste, e esta é toda a contradição, em voltar a ser


normal, como todos os outros, na perfeição.

IMITAÇÃO, TENTAÇÃO, PERFEIÇÃO

Cabe aqui se debruçar sobre o lugar de Imitação de Cristo no conto, uma


obra que ecoa no título da história, e é mencionada duas vezes na narrativa.
A primeira leva-nos de volta ao tempo do Sagrado Coração.
Quando lhe haviam dado para ler a Imitação de Cristo com um ardor de burra, ela lera sem
entender, mas que Deus a perdoasse, ela sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido —
perdido na luz, mas perigosamente perdido. Cristo era a pior tentação. E Carlota nem ao
menos quisera ler, mentira para a freira dizendo que tinha lido. (LISPECTOR, 1990, p. 49)

Ao contrário de Carlota, Laura tentou ler este manual ascético da Idade


Média tardia, como as freiras do internato lhe pediram, mas apesar de
afirmar não compreender nada do livro, tira conclusões que são o oposto do
propósito do livro, conclusões próximas das notas da autora, uma vez que a
própria Clarice voltou a este clássico em várias ocasiões. A 14 de agosto de
1946, enquanto vivia em Berna, falou nestes termos à sua irmã Tania:

Ah, querida, como estou cansada de ter saudade e de pensar. Estou tão cansada disso e de
tentar pelo pensamento sair fora da vida que levo que não tenho gosto nem força de trabalhar.
Um dia desses abri um livro que comprei, o célebre Imitação de Cristo, e estava escrito: ainda
não sofreste até o sangue. Acho que no momento em que isto suceder, será o momento de agir,
de resolver. Por enquanto ainda posso contemporizar.3

No mesmo dia, escreve ao seu amigo e jovem escritor Fernando


Sabino:
Quanto à Imitação de Cristo, ela manda sofrer até o sangue, e me ceder inteiramente. Sofrer
até o sangue, chegarei lá e mesmo às vezes já cheguei. Mas me abandonar, não sei como, me
falta a graça. Como diz Álvaro Lins, eu sou dos muitos chamados e não escolhidos […].4
A 5 de Outubro de 1953, sete anos mais tarde, ela volta ao assunto:
“Quanto às leituras, variadas, provavelmente erradas, a mais certa é a
Imitação de Cristo, mas é muito difícil imitá-LO, e isso é menos óbvio do
que parece”.5
Confirma-se que o livro causou impacto duradouro na Clarice. Uma
espécie de relação sadomasoquista estabelece-se entre o livro e a leitora. A
imitação parece-lhe muito exigente, para além do possível. Sem,
evidentemente, confundirmos a escritora e sua personagem, vemos que ela
transpõe para o romance uma espécie de relação fascinante em que Laura
também enfrenta seus próprios limites: de compreensão e sacrifício. Melhor
ainda, a ficção desliza da imitação à tentação, numa transformação
paradoxal de Cristo em tentador: uma inversão das provações a que Ele
teria sido submetido no deserto. Deus e o diabo aproximam-se, Cristo
tornou-se tentação.
Imitar é correr o risco de se perder na luz. Existe uma sedução
perigosa do extremo, da radicalidade do julgamento, à qual Laura
finalmente resiste. Em vez da salvação, a perdição espera aquele que se
atreveria a imitar Cristo. Luz e perdição… Cristo era a pior tentação.
Clarice tem um prazer malicioso em cultivar contradições e inverter os
significados. Esta conversão da imitação em tentação precede nada menos
que seis outros retornos do tema, todos ricos em significado.
Em primeiro lugar, a tentação refere-se ao período em que ela se torna
super-humana, período que precipitou o seu internamento e que ela rejeita
com força: “Oh, fora apenas uma fraqueza; o gênio era a pior tentação”.
Deve-se resistir à perfeição do super-homem, como se deve resistir à
imitação de Cristo. Mais adiante, Laura repele a tentação de uma sesta.
Paradoxalmente, ela escolhe a ascese que tinha rejeitado. Mas, em breve,
são as rosas que atravessam o seu caminho, tal um demônio sedutor: “Como
uma viciada, ela olhava ligeiramente ávida a perfeição tentadora das rosas,
com a boca um pouco seca olhava-as”. Vem o último parágrafo onde
aparece o verbo “tentar”:
Quando Maria voltou e pegou o ramo, por um mínimo instante de avareza Laura encolheu a
mão retendo as rosas um segundo mais consigo — elas são lindas e são minhas, é a primeira
coisa linda e minha! e foi o homem que insistiu, não fui eu que procurei! foi o destino quem
quis! oh só dessa vez! só essa vez e juro que nunca mais! (Ela poderia pelo menos tirar para si
uma rosa, nada mais que isso: uma rosa para si. E só ela saberia, e depois nunca mais oh, ela se
prometia que nunca mais se deixaria tentar pela perfeição, nunca mais!) (LISPECTOR, 1990, p. 64)
Transparece uma deliberação difícil, uma verdadeira luta interior, entre
o desejo de guardar as rosas para si e a resolução de dá-las à sua amiga. As
exclamações sinalizam a paixão ardente que apela à conservação do buquê.
O parêntese abriga um argumento incontornável, como se assim pudesse
escapar a Deus que vê e ouve tudo (mas não lê o que está entre parênteses).
Além disso, a questão é enganar a realidade: fazer transportar as flores, mas
distrair uma delas para uma felicidade clandestina. Em todos os casos,
guardar as rosas soa como uma decisão transgressiva, uma exceção a nunca
mais repetir. Entre as razões favoráveis, contudo, encontra-se a da posse:
seria a primeira vez que Laura possuiria algo bonito. Possuir é como se
pertencer a si mesmo, ela que até agora passou das mãos do pai e do padre
para as do marido.
No entanto, o álibi do destino repousa mais uma vez na tentação de um
homem, o florista que insistiu para que ela comprasse as rosas. Mais um
homem no seu caminho? Existe uma grande diferença entre o seu marido e
este sedutor vendedor (sedução a que ela sucumbiu). Armando é tímido;
quando ele vai visitá-la no hospital, não sabe o que fazer com ela. Quando
Laura comenta a conduta de sua amiga, ele concorda como para evitar a
discussão: “Armando concordara mas não dera muita importância”.
Contentar-se com uma esposa curta e robusta, desdenhando as “bailarinas”,
também faz parte daquela fisiologia do casamento que, segundo as
instruções do “padre austero”, permite apenas “alegria humilde e não a
imitação de Cristo”. Esta é uma fórmula decisiva, que justifica a rotina
vulgar e sem alegria cultivada por um marido fraco, que tenta esconder as
aspirações da sua mulher à “perfeição”, as “tentações” de Laura. Tentação
mística (o livro da piedade), tentação estética (as flores) e tentação do
êxtase físico. De fato, ela oscila constantemente entre os papéis sociais e o
desejo de se abandonar, de desfrutar as coisas de corpo e alma. Imitar
Cristo, imitar a rosa, aceitar o “bliss” (Katherine Mansfield), seria uma
forma de se deixar devorar, de ser engolida. É por isso que a imitação é
violenta, perigosa e, por assim dizer, impossível ou proibida: Laura não
pode imitar, só pode se tornar aquilo que imita transformando-se, passando
ao outro lado do espelho.
[Armando] abriu a boca e involuntariamente a cara tomou por um instante a expressão de
desprendimento cômico que ele usara para esconder o vexame quando pedira aumento ao
chefe. No instante seguinte, desviou os olhos com vergonha pelo despudor de sua mulher que,
desabrochada e serena, ali estava. (LISPECTOR, 1990, p. 69)
O particípio “desabrochada” passa do vocabulário das flores para a
mulher, em plena floração, para a qual o marido não pode olhar. E se a
“loucura” não fosse de Laura, mas do seu marido e dos que não toleram
nem permitem o prazer feminino indecente, imodesto, religioso, artístico,
carnal?
Este final exige várias observações, sendo a primeira de que o ponto de
vista mudou: a cena é vista através dos olhos de Armando, um recurso
narrativo que é suficientemente extraordinário para ser sublinhado. Embora
a própria Laura sugira o regresso da “sua loucura” e o anuncie ao seu
marido, a questão está efetivamente situada na forma como ele olha e não
olha para ela. Ela cedeu à tentação, à perfeição, tornou-se literalmente rosa
(a rosa, que tradicionalmente encarna a beleza feminina), ela está sentada e
em movimento, transportada. O marido não embarca com ela, permanece
no cais. As fissuras mudaram de lado. Um pouco mais acima, a lucidez
também passou para o lado de Laura, com algumas latências eróticas
quando ela imagina a chegada de Armando:
Armando abriria a porta. Apertaria o botão de luz. E de súbito no enquadramento da porta se
desnudaria aquele rosto expectante que ele procurava disfarçar mas não podia conter. Depois
sua respiração suspensa se transformaria enfim num sorriso de grande desopressão. Aquele
sorriso embaraçado de alívio que ele nunca suspeitara que ela percebia. Aquele alívio que
provavelmente, com uma palmada nas costas, tinham aconselhado seu pobre marido a ocultar.
(LISPECTOR, 1990, pp. 66-7, grifo nosso)

É a vez de Armando fingir, esconder fendas profundas, como lhe foi


aconselhado. Essas fissuras dos seres revelam vulcões, um racho sísmico.
Anunciar que “está de volta” significa que a Laura finalmente se entregou.
O “desabrochada” é, deste ponto de vista, mais do que metáfora: a mulher
encarnou-se num buquê. Existe uma relação fenomenológica entre as
coisas, que supera o corte sujeito/objeto (daí a frequência do foco interno e
o discurso indireto livre),6 e tende a apagar os limites (dentro/fora etc.); daí
também a tênue fronteira entre metáfora e metamorfose, e entre imitação e
autenticidade: “Noto que os meus imitadores são melhores que eu. A
imitação é mais requintada que a autenticidade em estado bruto”.7
Concluamos, voltando ao parágrafo da “Explicação inútil” sobre a
composição de “A imitação da rosa”, da qual citamos apenas as últimas
frases. Assim começa:
‘Imitação da rosa’ usou vários pais e mães para nascer. Houve o choque inicial da notícia de
alguém que adoecera, sem eu entender [o] porquê. Houve nesse mesmo dia rosas que me
mandaram, e que reparti com uma amiga. Houve essa constante na vida de todos, que é a rosa
como flor. E houve tudo o mais que não sei, e que é o caldo de cultura de qualquer história.
(LISPECTOR, 1984, p. 365)8

Há sempre uma espécie de novo romance nestas exegeses entregues


pela escritora, uma metaficção, em parte, mimética, do conto em questão;
em parte, nova bifurcação. Assim a história teria nascido de vários pais,
assim como Laura passou de homem para homem. Seria a concreção de
uma série de anedotas contingentes e de um caldo de cultura. Clarice não
diz nada sobre as suas tentativas de ler a Imitação de Cristo. A gênese
guarda os seus segredos.

NOTAS
1. A Tijuca era um local de média e alta burguesia. A desvalorização “social” do bairro ocorre por
volta dos anos 1970, quando a “burguesia abastada, mas burra” começa a migrar para a Barra da Tijuca.
Os que ficam vão para a Zona Sul (quem pode) e permanecem os menos abastados e mais
empobrecidos. À época da escrita do livro — e, em geral, durante todo o período em que Clarice
publicou —, a Tijuca, apesar de ser um bairro menos “moderno, avançado”, ainda mantinha uma
reputação de bairro “fino”. Por isso mesmo, sempre foi extremamente reacionário e conservador. Na
verdade, “morar na Tijuca” também é um significante nessa novela; é a Laura que consente, que não
se deixa cair em tentação [comentário de Cristina Batalha, professora da UERJ].
2. Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 365.
3. Clarice Lispector, Minhas queridas. Rio de Janeiro: Rocco, 2007, p. 154.
4. Id.; Fernando Sabino, Cartas perto do coração. Rio de Janeiro: Record, 2002, p. 51.
5. Ibid., p. 112.
6. E as flutuações entre a figura da escritora e suas personagens, em A hora da estrela e Um sopro de
vida.
7. Tomamos a liberdade de citar Um sopro de vida (Rio de Janeiro: Círculo do Livro, 1978, p. 35),
apesar dos problemas genéticos que pesam neste livro póstumo, editado por Olga Borelli: ver, por
exemplo, Odile Cisneros, “O último sopro de Clarice: Um sopro de vida como Ars Poetica”, Revista
da Anpoll, v. 51, n. esp, Florianópolis, jan./dez. 2020, pp. 83-94; Alex Keine de Almeida Sebastião, “O
manuscrito de Um sopro de vida: imagens da letra”, Vertentes & Interfaces I: Estudos Literários e
Comparados, Vitória da Conquista, v. 12, n. 2, jul./dez. 2020; e a conferência de Carlos Mendes de
Sousa, “Sete semanas ou o livro por vir: Um sopro de vida” [colóquio internacional online], Cem
anos de Clarice Lispector, mesa 5, 20 de outubro de 2020. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=4bCo4IREjBM&t=8s>.
8. Clarice Lispector, A descoberta do mundo, p. 365.
PARTE III

Percursos
Brasília, a extrósima* **
CARLOS MENDES DE SOUSA

O que Clarice Lispector disse sobre Brasília talvez pudesse ter dito sobre os
seus próprios textos, concretamente sobre A maçã no escuro, livro
fascinante, sem esquinas, onde é preciso aprender a habitar. Aproximamo-
nos da literatura de Clarice como nos aproximamos de Brasília. E o que
Oscar Niemeyer disse da cidade também se poderá aplicar a Clarice: “você
pode gostar ou detestar Brasília. Mas não pode dizer que viu antes coisa
parecida”.
Foi precisamente através de A maçã no escuro que entrei no mundo de
Clarice. E quando vi Brasília ocorreu-me essa aproximação para a qual
procurei justificações. Antes de tudo, a vizinhança dos tempos: o tempo da
ideação e da construção da cidade (1956-1960) e o tempo da criação e do
aparecimento do romance. No fim de A maçã no escuro, encontramos a
nota: “Washington, maio de 1956”; o romance foi publicado apenas em 1961.
Com as devidas distâncias relativamente àquilo que não é comparável,
podem encontrar-se os laços: a arquitectura e o monumental; a estranheza e
o espanto; a poesia e a modernidade. Tudo isto une as duas obras que
trazem consigo uma diferença fundacional. Mas na verdade as
aproximações que busquei repercutem mais fundo. Brasília abre-se a
horizontes que, na obra de Clarice, vão muito para além deste romance.

I.

Na sequência da primeira visita a Brasília, dois anos após a inauguração,


Clarice escreveu um texto com o título “Brasília: cinco dias”, divulgado
primeiramente na coluna “Children’s Corner”, da revista Senhor, em 1963, e
coligido, no ano seguinte, na segunda parte do livro A legião estrangeira.
Em 1974, regressou à nova capital e escreveu um texto mais extenso
“Brasília: Esplendor”, publicado na antologia Visão do esplendor (1975), onde
aparece posposto ao texto escrito aquando da primeira viagem. A junção de
dois textos, de tempos diversos, com a referência às datas de escrita,
constitui uma situação singular dentro da obra. A ligar os dois blocos,
encontra-se um pequeno fragmento onde são explicitados os momentos das
visitas e da escrita:
Estive em Brasília em 1962. Escrevi sobre ela o que foi agora mesmo lido. E agora voltei doze
anos depois por dois dias. E escrevi também. Aí vai tudo o que eu vomitei./ Atenção: vou
começar./ Esta peça é acompanhada pela valsa “Sangue Vienense” de Strauss. São 11h20 da
manhã do dia 13.

É notória a atenção que é concedida pela autora a estes dois textos,


reunidos sob o nome “Brasília”, desde logo pelo reflexo no nome escolhido
para o título da antologia e pelo facto de o díptico abrir o volume. Fica-se
com a ideia de que Clarice projectou um livro que acolhesse o texto
resultante da visita à cidade em 1974. Também se pode pensar que tal escolha
tenha decorrido igualmente do desejo de dar um destaque ao primeiro texto,
acompanhando naturalmente a seleção de outras crónicas saídas na
imprensa e incluídas em Visão do esplendor. A brevidade das duas visitas
contrasta claramente com a demora do olhar sobre a cidade, expressa nos
textos que lhe dedicou.

II.

A metáfora do sobrevoo aparece em muitos textos relativos ao planeamento


da cidade de Brasília. Também a encontramos em Clarice. Por exemplo,
quando, em Água viva, se reporta ao modo de olhar para o texto como se
visto de avião. A explicação (momento metadiscursivo) sobre a imagem da
vista aérea adquire aqui uma particular relevância. É a distância que permite
o discernimento da ordem: “Este texto que te dou não é para ser visto de
perto: ganha uma secreta redondez antes invisível quando é visto de um
avião em alto voo”.
Não é difícil encontrarmos na obra sucessivos pontos de chegada que
se constituem como pontos de partida. Concretamente no que diz respeito
aos romances. No início, no meio ou na última fase, as diferenças e as
semelhanças permitem-nos argumentar em função de mudanças que
implicam recomeços. Também textos de menor extensão podem ser
entrevistos nessa perspectiva. Pretendo ler “Brasília” dessa forma,
assinalando algumas conexões, alguns pontos que nos permitem uma
revisitação da obra.
Uma das implicações maiores da junção dos dois textos sobre Brasília
num díptico decorre justamente da possibilidade que é proporcionada de
uma leitura em perspectiva, tendo em conta as datas em que as “crónicas”
foram escritas, os contextos em que aparecem e o diálogo estabelecido com
outras obras da autora. O primeiro texto remonta ao período-chave em que
se situa a escrita de alguns dos mais emblemáticos livros de Clarice: entre
os romances A maçã no escuro e A paixão segundo G.H. e entre os livros de
contos Laços de família e A legião estrangeira.
Saltam à vista as diferenças entre os dois blocos. O primeiro, mais
compacto, produz um efeito de maior fechamento. Apesar da existência de
elementos provocadores de estranhamento, comporta um assinalado sentido
de coesão assente no propósito de recriação de uma particularíssima fábula
fundadora. O segundo bloco é marcado pelo estilhaçamento observável, de
imediato, na configuração formal, através da presença de parágrafos muito
curtos.
No primeiro texto, a amplidão impõe-se à voz enunciadora que diz a
estranheza do lugar. O registo discursivo remete para capítulos de A paixão
segundo G.H. (como o cap. 18), mas também para alguns dos textos de A
legião estrangeira, concretamente da segunda parte — “Fundo de Gaveta”.
Quanto ao segundo texto, somos de imediato levados a contextualizá-
lo no quadro da produção de Clarice dos anos 1970, particularmente marcada
pelo signo do fragmentário. Importa considerar uma leitura que coloque em
diálogo os textos das diversas fases, tendo obviamente em conta as
especificidades dos momentos. Neste quadro, gostaria de destacar o livro
Água viva, de 1973. É importante sobretudo assinalar que a partir daqui se vai
operar uma espécie de deslaçamento ou uma nova direcção muito
expressiva.
Pretendo mostrar que a “Brasília de Clarice” é um lugar onde, como
que distraidamente, mil portas se abrem. Nesse modo de se apresentar a
cidade, toda a Clarice está lá dentro, afinal. Como quem não quer a coisa,
no mesmo plano, o alto e o baixo, as questões autobiográficas e identitárias,
literatura e verdade, vida e morte; mas também a brincadeira e o humor, o
desconcerto e a deflação.
III.

No primeiro bloco, Brasília aparece associada à claridade e à cegueira, à


gelidez do cristal. A incidência da luz crua realça o desterro. Fala-se da
cidade soterrada que se ergue dos escombros. Foi a natureza que se
encarregou de escondê-la, até que reaparecesse um dia. É este o móbil da
fábula fundadora. Pode-se falar de uma teoria dos estratos (o passado, o
presente, o futuro) determinantes na configuração e na existência da urbe.
Representa-se uma cidade que cumpre os atributos do lugar mítico circular:
a concretização de uma abstracção ou idealização (“redonda e sem
esquinas”).
Um passado fantástico é reinventado a partir de dados reais: “Olho
Brasília como olho Roma. Brasília começou com uma simplificação final
de ruínas”. Os elementos que se reportam à realidade empírica ancoram
numa historicidade reconhecível, mas o trânsito dominante é o da
amplificação superadora dessas referências. Uma Antiguidade florescente
(o século 4 a.C.) mesclada com um presente intemporal reenvia-nos para o
livro A cidade sitiada, um dos romances da fundação (do nome próprio, da
escrita). A dado momento, diz-se de Lucrécia que é “grega numa cidade
não erguida”, encontrando nomes para as coisas, ressonância que ecoará
extraordinária e sumptuosamente amplificada no referido cap. 18 de A paixão
segundo G.H.
No primeiro parágrafo deste primeiro bloco de “Brasília”, a
convocação do mito (para dar conta do que se vê e sente) sublinha o
momento auroral apoiado na analogia primeira: a criação do mundo. Os
leitores de Clarice Lispector não deixam de ter presente o modo como, na
obra da autora, em concreto na fase inicial, se encontram muitas
revisitações dos mitos fundacionais. Nesse sentido ganha força a
identificação entre Clarice e a cidade de Brasília: grega, romana e
brasiliária, ela também. Os confrontos com o lugar da estranheza são a
estranheza de si. O foco da observadora desvela a sua condição alienígena
que põe em marcha continuamente a autoconsciência e a alteridade
propulsoras.

IV.
As interrogações sobre o Brasil, as tentativas de compreender o país a partir
desse lugar, que é a nova cidade, são recorrentes na década de 1960. Lembro
diferentes olhares de fora, de alguma forma coincidentes, como o do
sociólogo Max Bense, que se debruça sobre o cartesianismo e a amálgama,
ou o da poeta Sophia de Mello Breyner Andresen, que fala da cidade
“lógica e lírica”. No próprio Brasil são recorrentes as visões que dão conta
do estranhamento. Lembre-se o curta-metragem de Joaquim Pedro de
Andrade — “Brasília: contradições de uma cidade nova”.
Em Clarice, não é difícil fazer um levantamento muito completo de
uma geografia literária. Mesmo de cor, quem conhece a obra pode
apresentar um quadro que sucintamente permita aceder a uma síntese onde
se destacam, em particular, vários lugares da cidade do Rio de Janeiro. Nos
primeiros livros, são mínimas as referências a uma qualquer vinculação de
ordem geográfica localizável. Convém não esquecer o sentido fundador
integrado no arco que a construção da obra apresenta. No livro de 1949, em
cujo título, genericamente, aparece a palavra “cidade”, impõe-se uma certa
atmosfera, de paisagem cruamente extraterritorial, isto é, prevalecentemente
abstracta.
Importa então perguntar: por que uma tão explícita e demorada atenção
à nova capital? Dos lugares mapeáveis e das impressões objectiváveis, em
“Brasília”, depressa somos confrontados com as linhas de fuga. O motivo
das deslocações repercute nos textos: das ressonâncias familiares da
primeira viagem (na referência aos filhos) à explicitação dos motivos da
segunda deslocação (a conferência aí proferida).
No início do segundo bloco, num parágrafo sobre a visita à igreja de d.
Bosco, é referida a imobilidade contemplativa e a admiração pelos vitrais
“esplêndidos”. Mas logo se aponta uma dissonância e sugere-se um
propósito de acção: “O único defeito é o inusitado lustre redondo que
parece coisa de novo-rico. A igreja ficaria pura sem o lustre. Mas que é que
se há-de fazer? Ir de noite, bem no escuro, roubá-lo?”. O texto progride ao
lado do mapa: “Depois fui à Biblioteca Nacional”; progride com as
referências às sensações, com as referências àquilo que marca o contacto da
escritora-visitante e com o modo de interagir com elementos definidores da
cidade; progride com as referências precisas à fome que sente, ao frio, à luz,
ao ar seco. Muito depressa, a narração vai-se deixando contaminar por
aquilo que desconcerta, aquilo que escapa ao convencionalismo do relato de
viagem ou da crónica.
V.

A visita à cidade e o regresso pressupõem um movimento que releva do


signo da hospedagem. Assinalem-se dois aspectos relacionados com esta
questão: o contraponto com outras cidades, outros lugares convocados no
texto, e a questão brasileira. O sentido da hospedagem é particularmente
actuante no segundo bloco (“Brasília: Esplendor”), marcado pela
pendularidade entre o Rio de Janeiro e Brasília, um movimento que ritma
todo o texto. Observa-se, contudo, uma mescla que, por vezes, parece gerar
confusão e que implica o trânsito entre as duas cidades — o lugar onde se
chega e o lugar de onde se partiu e aonde se regressa.
Vejamos os quatro primeiros parágrafos do segundo bloco. A extensão
dos dois primeiros é similar. O terceiro parágrafo diminui de tamanho e o
quarto é muito mais curto. Uma frase apenas: “Páro um instante para dizer
que Brasília é uma quadra de ténis”. Depois desta pausa, o parágrafo
seguinte começa assim: “Faz lá um friozinho revigorante”. O advérbio
aponta para o lugar que é objecto da atenção. É a partir daqui que ocorrem
algumas contradições, do ponto de vista enunciativo, apontadas pela própria
autora, sobre os tempos de escrita e os lugares: “Amanhã volto para o Rio,
cidade turbulenta de meus amores”; “Amanhece aqui no Rio”; “Brasília tem
gnomos?/ A minha casa no Rio está cheia deles”.
Paradoxalmente, a visita permite o regresso ao lugar onde a exilada se
reconhece. Em Brasília, Clarice encontra um mundo à sua imagem, uma
terra em que possa pisar. Ronda, ameaçador, o anjo da expulsão, mas está
ausente.
A aproximação a Brasília pode dar-se pela via do significado político.
Nas crónicas de Clarice no JB, deparamos algumas vezes com a
preocupação face à questão nacional. Gilberto Figueiredo Martins, no livro
Estátuas invisíveis. Experiências do espaço público na ficção de Clarice
Lispector (São Paulo: Edusp, 2010), apresenta uma leitura sob este foco,
dando conta de uma diferença no segundo texto face ao primeiro, que
reflete o momento político. A lei da cidade hospedeira impõe-se em alguns
momentos e suscita o confronto. Lemos aí a referência à “Brasília
implacável” e ao implacável olho verde, à cidade que “prende” e que
desapossa de documentos, identidade, veracidade e hálito íntimo, enfim, à
cidade que a conduz ao crime. Mas já em 1962, Clarice falava do “estado
totalitário”. Quando entrevistou Oscar Niemeyer, confrontou-o com este
juízo: “Eu uma vez escrevi: ‘A construção de Brasília: a de um estado
totalitário’. Que é que você acha dessa minha impressão, Oscar?”. Na
mesma entrevista, surge a preocupação relativamente ao modo como a
cidade poderia levar a cabo a concretização do ideal democrático
consonante com o projecto arquitectónico. Em 1972, quando entrevistou Paulo
e Gisela Magalhães, arquitectos que trabalhavam em Brasília, afirmou
claramente: “Quando há anos estive lá, pareceu-me uma cidade desertada
pelas gentes”; E mais: “Minha impressão primária, já bem antiga […] e que
vi no começo de Brasília, foi a de uma cidade do farwest dos filmes, com
saloons e tiroteio”.
A deslocação é feita para um lugar que suscita reflexão. O retorno ao
ponto de partida é um estar dentro, mas simultaneamente fora. No regresso,
como se fosse um improviso, irrompe uma torrente de memórias, num
registo de imagens fugidias. A aceleração projecta espelhos
multiplicadores, um modo de escapar à fixidez. Os contrapontos encontram,
por oposição, referentes precisos: Nova York, Capri, Bahia, Ceará, Recife,
Lisboa… Que tempo faz? Como se vive? Se Brasília aponta para uma
dimensão trans-histórica e transtemporal, a habitante da terra, Clarice
Lispector, pede também que haja lugar para o terreno banalizado.

VI.

Nas visões propostas, ecoa sempre o impulso criador: “minha insónia sou
eu, é vivida, é o meu espanto”; “Eles ergueram o espanto inexplicado. A
criação não é uma compreensão, é um novo mistério”.
Pode então afirmar-se que a cidade é espelho da escrita: a autora capta-
a no seu tempo, que é o de uma estranheza reconhecida. Em espelho, na
cidade encontra-se a si própria. Por todo lado, nós, leitores, fazemos o
reconhecimento, ao lermos os lugares, os tópicos do universo Lispector.
Lugares em perspectiva: o mundo é de tantas maneiras quantas aquelas que
Lispector nos diz que pode ser visto e tantas mais quantas nós,
lispectorizados, o passamos a ver.
Na Brasília de Clarice somos continuamente transportados para o
domínio da superação e da transmutação. O frio, a luz, a cor da terra, as
árvores, o trânsito, são transformados em signos claricianos. Entrelaçam-se
dados factuais com alusões fantásticas, como quando se diz que os ratos de
Brasília comem carne humana. “Brasília” é, em Clarice, um lugar onde
sempre se escapa ao rótulo. Um lugar onde poderíamos ler, como legenda, a
frase de Água viva: “gênero não me pega mais”. Frase que, na obra, se pode
ler afinal à entrada de tantos textos. Às vezes de forma mais explícita, como
numa peça de difícil classificação que dialoga com “Brasília”: “O relatório
da coisa” (Onde estivestes de noite). Significativamente, quando publicado
na coluna do JB, este texto recebeu o nome “Objeto: anticonto”. Clarice
apresentou aí uma nota esclarecedora: “O que tentei com essa espécie de
relatório?/ Acho que queria fazer um anticonto, uma antiliteratura. Como se
assim eu desmistificasse a ficção. Foi uma experiência valiosa para mim.
Não importa que eu tenha falhado. Chama-se: Objeto”.

VII.

Em oposição ao cimento armado, aos edifícios monumentais, à solidez, ao


terroso, à solenidade da abertura da cidade nova, nascida do nada, surge a
cidade espectral que se esfuma, a cidade que levita, a flutuação, o difuso:
“Estarei sendo levitada? Brasília sofre de levitação”. O que causa a perda?
O que fantasmaticamente desaparece? Em jogo permanente está o que se
consegue mostrar e o que escapa ao sujeito da percepção. Evidencia-se o
pendor indagativo, as enunciações associadas à ideia de fuga. Por que
colocar as questões? Por que Brasília? O texto está pejado de interrogações.
E, a todo o momento, esbarramos na enunciação dubitativa que desemboca
nas premissas duplas. Pressupõem sempre mais do que um caminho. Até
mesmo a possibilidade de voltar atrás no juízo e de ficar com a não
resolução: “Será que em Brasília tem faunos? Está resolvido: compro é
chapéu verde para combinar com o meu xale. Ou não compro nenhum?”;
“Já resolvi: não preciso de chapéu nenhum. Ou preciso? Meu Deus, que
será de mim?”; “disse ou não disse […]?”.
A assunção da própria morte é outro assinalado signo de fuga. Ver-se-á
como a estranha formulação “morri” apresenta em si uma impossibilidade
ontológica. Tudo é velozmente percebido — de repente, tudo é passado,
esquecimento e o que a velocidade nos deixa entre as mãos é um pequeno
tempo esvaziado. No primeiro bloco, o olhar de espanto sobre a cidade
recém-nascida projeta-se em viagens no tempo, concretamente num futuro
além morte e num passado fabulosamente reinventado: “Quando morri, um
dia abri os olhos e era Brasília”; “Mamãe, está bonito ver você em pé com
esse capote branco voando. (É que morri, meu filho)”.
A desarmante e obsessiva enunciação sobre a própria morte abre para
os sentidos da fuga, associados a uma marcada fantasmagoria. No segundo
bloco, retoma-se este comparecimento expandido em formulações cada vez
mais desconcertantes em que se misturam o humor e o tom elevado:
Meu nome não existe. O que existe é um retrato falsificado de um retrato de outro retrato meu.
Mas a própria já morreu. Morri no dia 9 de junho. Domingo. Depois de ter almoçado na
preciosa companhia dos que amo. Comi frango assado. Estou feliz. Mas falta a verdadeira
morte. Estou com pressa de ver Deus. Rezem por mim. Morri com elegância.

VIII.

O encontro com a nova capital suscita uma deflagração que brota da energia
anárquica da voz. Um fluxo que pode ser lido como um manifesto contra a
cidade programada. Uma criatividade explosiva revela o avesso do retrato
que a autora nos dá de Berna ou de outros lugares, nos antípodas de
Brasília. Palavras, expressões, recursos gráficos conformam formulações
singulares que dão conta da extraordinária inventividade: “Eu te amo, oh
extrósima! Oh palavra que inventei e que não sei o que quer dizer”. Entre
tantos exemplos, veja-se o parágrafo com uma frase destacada: “Brasília é
um olho azul cintilanterríssimo que me arde no coração”.
O discurso progride com admirável à vontade. Brasília é uma máquina
produtora de imagens. Desenrolam-se os fios, desmantelando-se os lugares-
comuns. As dualidades e as alternâncias dominam: da imagem celebrada à
figura humilhada. As percepções espontâneas associam-se ao relato do
imprevisível. Constelações semânticas suscitam perspectivas sobre
perspectivas.
Brasília permite uma série de cruzamentos, de jogos, de
entrelaçamentos. Texto-encruzilhada: notas referenciais, relatos fantásticos,
fragmentos autobiográficos, tiradas humorísticas, paródicas. É grande a
relevância deste centramento cosmofágico: “Peço humildemente socorro.
Estão me roubando. Todo o mundo é eu? Espanto geral”. Imediatamente a
seguir lê-se “Isto não é ventania não, senhor, é ciclone”. Mais à frente: “A
máquina monstruosa. É um telescópio. Que ventania. É ciclone? É”.
A intensidade é o grau em que Clarice se investe. Ela é ciclone. A
serviço da novidade estilística, que marca a fuga e o estilhaçamento do
texto, encontramos recursos que enrolam e desenrolam as frases: as
palavras com hifens no interior de sílabas ou letras (um modo de as tornar
mais audíveis?), as frases incompletas, as formulações diferentes (“Lá as
pessoas se jantam e se almoçam — é para ter gente que as povoe”), as
repetições muito marcadas: “Bem disposta, bem disposta, bem disposta,
sinto-me bem”. A percepção do sujeito enunciador é desconcertante e
apoia-se na segmentação, na acumulação, nos encadeamentos
impertinentes, no ritmo alucinado, nos símiles estranhos, no retrato
perturbador.
Em “Brasília”, como em “O relatório da coisa” ou mesmo antes em “O
ovo e a galinha”, ganha força a figura do brainstorm, que Clarice adoptará
em textos da última fase. Aparece mesmo uma “Tempestade de almas” em
Onde estivestes de noite. Há frases soltas que ecoam em Brasília,
pensamentos que se cruzam, incertos dizeres, aforismos, vozes, ecos
(encontramos uma passagem em que a narradora se apresenta como
receptáculo de vozes que regista), jogos e trocas de palavras (“Seus”, em
vez de Deus).
No vórtice das falas, os sonhos erguidos diante nós, as ínfimas (ou
infinitas) perguntas em proliferação. No redemoinho para que o relato nos
atira, de vez em quando, impõe-se uma paragem, uma flecha ou um flash,
uma cintilação ou imagem inusitada, antes do regresso ao turbilhão: “Eu
não passo de frases ouvidas por acaso. […] Em Brasília tenho resistência
física, enquanto no Rio sou meio mole, meio doce. E ouvi a frase seguinte
das mesmas mulheres gordas que eram baixas: ‘Que é que ela tem que fazer
lá?’ E foi assim, minha gente, que fui expulsa”.
A complexidade do brainstorm, que acolhe uma diversidade de
estratos, assenta em movimentos tensivos de uma mescla de registos
surpreendente: do clima fantástico associado ao humor crítico e às
referências autobiográficas constantes, à coabitação de referências literárias
díspares. Como no registo das crónicas, mas mais extensamente liberto.
Assinale-se a força do discurso telegráfico e do discurso espontâneo, a
transcrição de registos em outras línguas (em especial o inglês), a
transcrição das palavras silabadas: “Quero voltar a Brasília para o
apartamento 700. Assim ponho o pingo no ‘i’. Mas Brasília não flui. Ela é ao
contrário. Assim: iulf (flui)”. Iulf ao contrário. A denegação diz a
centralidade. Como o discurso flui! Clarice não é discurso rebarbativo, não
é pedras duras na boca. É água que flui, água densa de estrelas e joias raras,
água de beber, água de vida. A narradora é apanhada pela poderosíssima
força impregnante da cidade. É o efeito atordoador (a inexplicabilidade do
lugar) que, em parte, desencadeia a torrencialidade do discurso.

IX.

Há um cruzamento de muitos eixos em “Brasília”. Mais do que em qualquer


outro texto próximo deste (pense-se em “O ovo e a galinha”, “O relatório da
coisa” ou “Onde estivestes de noite?”), existe aqui um caminho que é o do
anúncio de A hora da estrela.
Quase no final do segundo bloco, lemos: “Sou inocente e ignorante. E
quando estou em estado de escrever, não leio. Seria demais para mim, não
tenho força”. Declarações desta ordem antecipam a chegada do alter ego
Rodrigo S.M. (entrevista igualmente em A via-crúcis do corpo, na
personagem de Cláudio Lemos). Aquilo que no início do primeiro bloco de
“Brasília” era um reflexo de espelhos (a autora falava do mistério da
criação dos arquitectos, falando de si), é, no segundo bloco, explicitado
pendor metaliterário.
São muitas as semelhanças encontradas entre este texto e A hora da
estrela, no domínio da reflexão sobre a própria escrita. Coisas que ouvimos
na voz de Rodrigo S.M. já tinham sido antecipadas em “Brasília:
Esplendor”. No romance de 1977, a dado momento, o personagem escritor
sublinha enfaticamente que “não é fácil escrever. É duro como quebrar
rochas. Mas voam faíscas e lascas como aços espelhados”. No texto sobre
Brasília, a narradora afirma que “as palavras nada têm a ver com as
sensações. Palavras são pedras duras e as sensações delicadíssimas,
fugazes, extremas”.
Em “Brasília: Esplendor”, cruzamo-nos com personagens reais e
fictícias — na biblioteca, no aeroporto, no avião. Entre essas personagens é
revelada Brasília. A relação da narradora com a cidade é muito próxima
daquela que o narrador Rodrigo S.M. estabelece com Macabéa. Neste
domínio dialogal, também se pode ainda entrever uma geminação de
“Brasília” com Um sopro de vida, em particular nas intertrocas entre o
Autor e Ângela. Com liberdade, e num registo repleto de humor, a
personagem Brasília (“magra”, “toda elegante”) é interpelada para,
distanciadamente, melhor ser vista. O desvelamento decorre da perseguição
e saturação da figura, procedimento recorrente em Clarice.
É muito marcado o signo da privação: cidade sem esquinas/ não tem
botequim para a gente tomar um cafezinho/ É verdade, juro que não vi
esquinas./ Em Brasília não existe cotidiano. Na cidade asséptica, o erro foi
erradicado. Reivindica-se uma revisão. Porque a habitabilidade, o lugar do
humano, pressupõe a fundamental incorporação do erro. No final de um
parágrafo lê-se uma espécie de máxima: “Brasília é uma piada estritamente
perfeita e sem erros. E a mim só me salva o erro”.
Através do jogo, da paródia e do humor, procura-se continuamente
resgatar a falha. Também aqui somos conduzidos às aproximações com
muitas das personagens de Clarice, especialmente Macabéa: “Brasília é
Marcha Nupcial. O noivo é um nordestino que come o bolo inteiro porque
está com fome há várias gerações. A noiva é uma velha senhora viúva, rica
e rabugenta”.
E, contudo, a assunção da falha não implica a desistência. O desafio
que a cidade pede é da ordem do risco. Aqui se encontra mais um dos fortes
traços identificativos do universo de Clarice Lispector: “Brasília é arriscada
e eu amo o risco. É uma aventura: me deixa face a face com o
desconhecido”.
Uma muito expressiva recorrência neste texto — a tentativa de dizer
pela predicação — traduz uma impossibilidade (“Brasília é…”). Que outra
coisa pode querer dizer essa insistência? A irrupção dessas tentativas
reforça a incapacidade de descrever: “Está se vendo que não sei descrever
Brasília”. Como em toda a obra, anda-se à volta de um objecto ou pessoa,
procura-se incessantemente atingi-lo, chegar ao núcleo.
No jogo de aproximações, assinalem-se dois elementos: a cadeira do
dentista e a quadra de ténis. A máquina do dentista em Brasília, um motivo
recorrente, conduz-nos à dor de dentes, a “coisa de dentina exposta” de A
hora da estrela. A referência à quadra de ténis aparece num conto de Onde
estivestes de noite, “A partida do trem”, texto que ocupa um papel
assinalável no domínio das inter-relações estabelecidas entre textos da
última fase. Na estrutura dual que o conto apresenta, a figura de Ângela
Pralini surge diante de d. Maria Rita, mas projectando um diálogo com a
personagem ausente, Eduardo. O sentido atribuído à caracterização da
personagem está próximo daquele que começa por ser convocado para
descrever a cidade, na primeira ocorrência: “Paro um instante para dizer
que Brasília é uma quadra de ténis”. A complexificação manifesta-se no
avançar do texto: “Eu disse ou não disse que Brasília é uma quadra de
tênis? Pois Brasília é sangue numa quadra de ténis. E eu? onde estou? eu?
pobre de mim, com o lençol manchado de escarlate. Me mato? Não. Vivo
como bruta resposta. Estou aí para quem me quiser”. E mais à frente:
“Lembram que falei na quadra de ténis com sangue? Pois o sangue era meu,
o escarlate, os coágulos eram meus”. E se o sangue pode conduzir a uma
leitura política, na desmontagem do cenário opressivo da ditadura militar,
como pretende Gilberto Figueiredo Martins, esse sangue diz também o
reenvio à essência do ser e à experiência dos limites — a obsessão pelo
âmago, pelo núcleo da vida. “Será essa história o meu coágulo? Que sei
eu”, afirma Rodrigo S.M., na “Dedicatória do Autor”.
Poderíamos continuar a arrolar exemplos. Lembro apenas o final de
“Brasília”, tão próximo do fecho do último romance: “E agora vou morrer
um pouquinho. Estou tão precisada./ Sim. Aceito, my Lord. Sob protesto./
Mas Brasília é esplendor./ Estou assustadíssima”.

É uma voz declaradamente autobiográfica que comparece em “Brasília”,


ainda que essas notações irrompam aqui de uma forma solta, muitas vezes
quase despercebidamente. Os procedimentos indagativos sublinham o
propósito de ocultação e desvelamento da figura do escritor e dos processos
de escrita. São múltiplas as referências à Clarice-mãe, ao cão Ulisses, que
ocupa um espaço privilegiado neste texto, à coca-cola, aos taxistas, às
empregadas, à cartomante d. Nadir do Méier...
Desvelamentos? Alguns. Outras vezes a latência que nos suscita a
interpretação: “Ai, coitadinha de mim. Tão sem mãe. É coisa da natureza.
Sou a favor de Brasília”.
No quadro das explicitações, recorde-se, a título de exemplo, a
comparência directa de tópicos de forte ressonância no universo da
escritora: “Como eu disse ou como não disse, quero uma mão amada que
aperte a minha na hora de eu ir”. E é em “Brasília” que surgem
autocaracterizações lapidares que serviriam de mote aos biógrafos. Olga
Borelli retrata: “Seu porte tinha algo da humildade de uma camponesa
mesclada à altivez de uma grande dama”. Na voz de Clarice lemos aqui:
“Ora essa, sou uma mulher simples e um pouquinho sofisticada. Misto de
camponesa e de estrela no céu”. Acima de tudo, o que se persegue em
“Brasília” é o que se persegue em toda a obra: o encontro do eu com o eu.
Uma busca que encontra, aqui, uma expressão maximizada na interrogação
em torno da figura-emblema da escrita de Clarice Lispector. “Brasília é
guindaste alaranjado pescando coisa muito delicada: um pequeno ovo
branco. Esse ovo branco sou eu ou uma criancinha que nasce hoje?”

NOTAS
* A editora optou por manter a grafia do português de Portugal. (N.E.)
** Dedico este texto a Vilma Arêas, Marta Peixoto e Yudith Rosenbaum pelos diálogos sobre este e
outros lugares de Clarice. Uma versão mais extensa e diferenciada deste ensaio, com o título
“Brasília em sobrevoo”, encontra-se em formato on-line, no site sobre Clarice Lispector do Instituto
Moreira Salles. Disponível em: https://site.claricelispector.ims.com.br. (N.A.)
No limiar das casas de Clarice Lispector
CLARISSE FUKELMAN

O interior [das casas burguesas] obriga seus moradores a adquirir a quantidade


maior possível de hábitos.
Walter Benjamin

Por que não tentar neste momento, que não é grave, olhar pela janela?
Clarice Lispector

Através da publicação das correspondências, passamos a conhecer um


pouco da intimidade das casas em que Clarice Lispector viveu. Enquanto
filha de imigrantes pobres buscando um lugar para se fixar e, depois, como
esposa de diplomata em países europeus e nos Estados Unidos, trocou de
endereço inúmeras vezes, como se estivesse predestinada à itinerância,
desde o berço: Maceió, Recife, Rio de Janeiro, Berna, consulado do Brasil
em Nápoles (durante a guerra), Washington, até se fixar novamente no Rio
de Janeiro, desta vez no bairro do Leme, à beira do mar, nutrindo
lembranças dos passeios com o pai e as irmãs nas praias nordestinas.
Tomando por base as cartas trocadas com Fernando Sabino, Clarice se
espanta ao saber que o escritor mineiro, morando nos Estados Unidos,
trabalha de noite num arranha-céu; fica radiante ao se mudar para uma
“casa com lareira” cuja arquitetura foge ao usual: apartamento de dois
andares, “com uma escada no meio (só isso me deixa feliz), e meu quarto
tem aspecto de ateliê de artista pobre do século suponhamos 18, com uma das
paredes inclinada e o teto inclinado”; comenta, usando uma adjetivação
morna, que em Washington, “cidade vaga e inorgânica” onde “falta
bagunça”, foi morar “numa casa simpática, com jardinzinho e quintal,
janelas verdes, algumas árvores, tudo murcho agora, sem folhas”. Na
mesma cidade, cinco meses depois, vive um “dia tão pacífico que poderia
estar escrevendo de um curral”, imagem que se repete no mês subsequente:
“hoje já não está muito curral, se bem que fosse tão bom ter o aconchego
deste num dia de chuva”. Por fim, reiterando a perspectiva de que ali não é
o “seu” canto, comenta: “vou pedir lá em casa que me mandem” o livro do
Guimarães Rosa, referindo-se à casa das irmãs, que tem como sendo dela
também, o seu (re)canto.
Essas casas serviram de insumo para o imaginário e o projeto ficcional
claricianos. Remeto aqui às construções criadas pela escritora para instalar
as personagens, a maioria delas vivendo em espaços compartimentados e
incomunicáveis. O lugar para sentir e saciar a fome, para sonhar, para
alienar-se, para sofrer pesadelos, para recolher-se etc. Casas elegantes e
assépticas como o apartamento de G.H. ou, ao contrário, exalando poeira
em meio a bibelôs, como o sobrado em que vivia Lucrécia, de A cidade
sitiada, e a casa da tia de Joana, de Perto do coração selvagem, ostentando
peso e rigor — todas de algum modo preparadas para manter intacta a
rotina, regularizar o tempo e domar desejos.
Proponho observar conexões entre o projeto arquitetural e o projeto
ficcional claricianos, suplementando, assim, abordagens precedentes
consagradas pela crítica, desde o tema do olhar até a tríade comunicação,
corpo e linguagem, que se expressa de forma mais aparente, sistemática e
radical na produção literária a partir de 1964, com a progressiva implosão de
coordenadas espaciais a favor do fluxo da escrita, desaguando em obras
como Água viva (1973) e Onde estivestes de noite (1974). Ao final, portanto, e à
contraface, pretendo chegar às “não casas”, textos-fluidos abrigados no
espaço da página, como se quisessem transcender os limites do suporte,
expandindo-se como uma música; e, de forma correlata, à proposta
implícita quanto ao modo de uso ou modo de relação do leitor com o
espaço-texto.
A planta baixa das edificações no âmbito privado, interno, doméstico,
e no âmbito externo, público, orienta os usos dos cômodos (por critérios de
gênero, idade e grupo social) e estrutura o percurso das narrativas. Ao
mesmo tempo, Clarice arquiteta brechas (sonoras, visuais, olfativas,
rememorativas) que quebram ou desestabilizam o programa previsto. Tendo
em vista estas construções textuais do espaço físico, como se esquivar do
traçado das edificações, numa escritora obcecada pela forma, pela imagem,
pela ideia de desenho, pelos múltiplos ângulos com que o real se apresenta?
Pensar arquiteturalmente a obra de Clarice significa considerar os
objetos e o espaço visível e tangível (edificações e entornos) como campo
de expressão. Neles se elaboram percepções e experiências sociais,
culturais, emocionais e afetivas. Se, em diversas narrativas, a escritora, num
primeiro momento, apresenta a naturalização do espaço construído, com a
cegueira cognitiva de corpos habituados à mesmice, num segundo
momento, ela própria quebra esta naturalização, ao evocar a paisagem
imaginada, sem contorno definido, que abala aqueles valores morais,
políticos, de gênero etc., levando a uma zona de rememoração e criação.1 O
mesmo se poderia comentar a respeito dos objetos dispostos nas cenas; a
força de sua fisicalidade2 vem do fato de operarem o silêncio e em silêncio.3
Entretanto, o foco, aqui, não serão elementos como roupas, mobiliário ou
apetrechos pessoais e da casa. Tomo como eixo de leitura um artefato que
ganhou peso excepcional em nossas vidas. Desde março de 2020,* habitamos
uma zona marcada pela apreensão, pela premente reorganização e avaliação
da experiência de espaço e tempo e, no limite, observando o duelo entre
morte e vida. Além dos canais de comunicação modernos — telas do
computador, da televisão e de celulares —, buscamos oxigênio nas janelas.
Aquela data anunciou, até graficamente, a era das janelas. Era de tomar
distância e, simultaneamente, aproximar-se do outro e de si próprio, de ser
capaz de se sensibilizar com a dor alheia e ser tolerante consigo mesmo.
A perplexidade de viver em suspensão, no interstício, faz com que nos
agarremos às janelas para buscar a luz, equilibrar o medo, reconectar a
natureza e também buscar diferentes ângulos de interpretação. Sob o
compasso da temperança compulsória, imposta pelo instinto de
preservação, através da moldura e do vidro, cada um de nós busca se
reinserir no ciclo do sol, da chuva, das aves e das bicicletas. Contempla-se o
mundo e controlam-se apreensões, muitas vezes difusas, ao abrir a janela
em busca do horizonte, ou acostar o rosto ao vidro, como muitas
protagonistas da escritora, de Joana à narradora de Água viva.
O crítico e ensaísta suíço Jean Starobinski (1984) comenta, a propósito de
Kafka, que, exatamente por constituírem lugares destinados à passagem, as
janelas “colocam ainda mais em evidência a impossibilidade de se ir além,
o que, por sua vez, destaca o perigoso privilégio da ultrapassagem”.4 A
janela posta na cena clariciana fala, sobretudo, de um espaço físico lacunar
que contextualiza um modo de ser e estar e que, ao mesmo tempo, traz
questões pertinentes à linguagem e à ficção.5 A janela, estrutura vazada que
cria uma abertura numa edificação, constitui um tema e também uma forma
figurativa e retórica. Esta é a direção que tomo aqui: o interstício entre o
que está e o que se projeta, o aquém e o além, o quase, força dentro da
forma, apelo à pausa e ao movimento, emanação de sentidos, substrato
imaginário em trânsito entre diferentes planos de realidade. Ela nos coloca
em outro plano, quebra a horizontalidade, movimenta o corpo em infinitas
direções, multiplica o viés.
Assim, se, em toda sua obra, Clarice conduz personagens e leitores a
participar de estados fronteiriços, ela o faz também através da arquitetura,
em cujo traçado finca um espaço liminar e lacunar, pausa e travessia entre
tijolos fixados com cimento e areia, sem criar um código, um passe livre
para superação de obstáculos, conforme indica Gilda de Mello e Souza,
trazendo a historicidade sobre a condição feminina: “como não lhe
permitem a paisagem que se desdobra para lá da janela aberta, a mulher
procura sentido no espaço confinado em que a vida se encerra: o quarto
com os objetos, o jardim com as flores, o passeio curto que se dá até o rio
ou a cerca”. (1980, p. 79)
Enquanto ideia, imagem e forma, a janela comporta, de um lado, a
estrutura física consistente, firme, regular e limitada e, de outro, o miolo
vazado, recoberto ou não de vidro ou outro material, permitindo múltiplas
angulações, dimensões e graus de luminosidade e profundidade.
Independentemente de sua localização, Clarice tira proveito, através da
janela, da figuração do duplo, mas sua força imagética supera o binarismo,
a favor da perspectiva, do dúbio, que é ternário e múltiplo; invoca temas a
ela associados pela metonímia, sinonímia e por um amplo espectro
metafórico. Espelho, porta e vidraça podem, deste modo, absorver diversos
meios e modos de representação (fotografia, jornal e a própria página do
livro), pontos de vista (o alto e o baixo; o dentro, o meio e o fora; o próximo
e o distante) e tensões (visível e não visível; translucidez e reflexo;
ascensão e descensão; elevação e vertigem).
Desde a sua forma, a janela é suporte ou condição prévia para a
faculdade imaginativa, para o gesto do olhar, pausa no tempo e locus que
evoca quebra de limites, ponte, lacuna, interrupção, descontinuidade,
continuidade; sua natureza contrasta com a solidez e impenetrabilidade da
parede. Assume múltiplas feições. Janela-fenda, janela-passagem, janela-
moldura, janela-esconderijo, janela-ameaça, janela-contemplação, janela-
trampolim, janela-escudo, janela-texto. Nesta breve enumeração, um elenco
de roteiros interpretativos indicia a escala e a profundidade com que o
dispositivo janela pode ser apreendido e interpretado na ficção clariciana.

DE JANELA EM JANELA
Tema herdado das artes plásticas, a janela se desenvolve enquanto motivo
literário a partir do século 19, sob o impacto das profundas transformações
técnicas e urbanísticas. Novos modos de circulação, convivência e
exposição consolidam uma poética do olhar que considera as
reconfigurações do público e privado, nas literaturas de Edgar Allan Poe,
Rimbaud, Baudelaire, adentrando o século 20 com Kafka, Robbe-Grillet,
Fernando Pessoa, entre outros.
Como primeiro movimento para comentar a inserção da janela no
universo clariciano, é inevitável o contraponto com a parede. Uma de suas
mais sutis abordagens encontra-se no texto “Desenhando um menino” (A
legião estrangeira, 1964) ou, na versão publicada no Jornal do Brasil,
“Menino a bico de pena” (18 de outubro de 1969). Nele, a construção do
indivíduo se modela mediante coordenadas da edificação da casa. Aquele
ser miúdo sentado no chão, “imerso num vazio profundo”, sem autonomia,
sem domínio do corpo e de linguagem, ele vai se configurando à medida
que conquista o território lar e é por ele moldado (o chão move-se incerto, a
cadeira o supera, a parede o delimita). Neste microcosmo, ensaia o mundo,
experimentando a divisão dos espaços (mãe na cozinha; ele, na sala e,
depois, no quarto) e símbolos que modelarão uma identidade que se quer
definida e definitiva. A parede fixa, sólida, protetora e, simultaneamente,
impossível de transpor, apresenta-lhe a imagem sacra em que deverá se
espelhar: “E na parede tem o retrato de O menino. É difícil olhar para o
retrato alto sem apoiar-se num móvel, isso ele ainda não treinou”. O “retrato
alto” ilude a autossustentação, pois entre o olhar e o comando do corpo,
entre o desejo e a sua realização, há uma distância a ser vencida. Em meio a
quedas na “sala entortada e refratada pelas lágrimas”, aprenderá a se medir
e a se situar (o “teto está mais perto, agora; a mesa, embaixo”). Entrar numa
fôrma exige treino, progresso, “bondade necessária”. Ao final internalizará
movimentos, como uma máquina. O preço da modelagem definida será
trocar hesitação por certeza, informe e inesperado por marcos regulares do
viver (“o domesticaremos em humano”); o processo de individuação
envolve um sacrifício ritualístico agregador (Girard, 1990).
Para esta criança, a escritora não fez brotar na parede uma janela que
se apresentaria, talvez, como um espaço utópico da dúvida, no processo de
passagem para a vida adulta — sem que isto significasse redenção e paz.
Mas o tópico janela veio se construindo de diferentes maneiras e com uma
pluralidade de intenções, desde os primeiros textos. Como fios de um tear,
janelas elaboram “presenças”, no sentido que lhes atribui Gumbrecht (2010, p.
13). Presença enquanto “relação espacial com o mundo e seus objetos”. Uma

coisa “presente” “pode ter impacto imediato em corpos humanos”, capaz de


“‘trazer para diante’ um objeto no espaço”. A “produção de presença”
envolve eventos e processos nos quais “se inicia ou se intensifica o impacto
dos objetos ‘presentes’ sobre corpos humanos”. Quando surge uma fricção,
ou um estranhamento, resulta em uma experiência (no sentido
benjaminiano)6 fascinante e aterrorizadora: espaços edificados e entornos se
definem como corpos, e podem se alargar em paisagens.7 Mas o inverso
também ocorre: a indiferença, o papel decorativo das passagens.
Um rápido passeio pela obra atesta sua onipresença. O conto juvenil
“História interrompida” (1941), publicado post mortem em A bela e a fera,
tem o influxo da atmosfera romântica, apesar do anticlímax anunciado no
título. O enredo amoroso entre a jovem de vestido florido e o rapaz
“moreno e triste” é contado pela perspectiva da mulher adulta, casada e
mãe. Os movimentos da moça se decidem à beira da janela, onde, no
contato com a “natureza em todas as fibras”, colhe energia e se intensifica
(“num dia de verão abri a janela de par em par. Pareceu-me que o jardim
entrara na sala”). Diante da instabilidade do namoro, apoia “as mãos no
parapeito da janela”, em busca da pausa e do influxo necessários para evitar
o rompimento. A janela se desdobra em cenas, figurações pictóricas
(“imaginando quadros”) através das quais tenta, em vão, resgatar a alma do
rapaz egocêntrico e perdido, ideia abençoada pela lua que penetra o quarto.
Seguimos com Perto do coração selvagem, também da década de 1940.
Desde o primeiro capítulo, a imagem da protagonista criança se fixa como
“investigadora da realidade”, ofício que se torna marca de sua
personalidade: “Encostando a testa na vidraça brilhante e fria olhava para o
quintal do vizinho, para o grande mundo das galinhas-que-não-sabiam-que-
iam-morrer”. Bordejando a janela, lugar de pausa e cogito, ensaia captar o
sentido da “coisa”, porque “Entre ela e os objetos havia alguma coisa”.8
O choque vivido pela órfã Joana, ao ser recebida pela tia madrasta, se
traduz na parede ostensiva daquela casa onde faltam sinais vitais, “onde o
vento e a luz não entravam”, onde rumina a sombria sala de espera […]
entre os móveis pesados e escuros e homens emoldurados. Diante das
calcificações do ambiente (“mal respirando”, “doce e parado”, “mofo”), o
imaginário poético de Joana reage. Seu ponto de fuga, o mar, a amplitude, a
expansão, o movimento corporal: “paredes e o teto que rodavam e se
desmanchavam”. Ou a fuga: “As paredes eram grossas, ela estava presa,
presa! Um homem no quadro olhava-a de dentro dos bigodes e os seios da
tia podiam derramar-se sobre ela, em gordura dissolvida. Empurrou a porta
pesada e fugiu”. [grifos nossos]
Já adulta, a parede demarca a barreira no vínculo amoroso: “como
ligar-se a um homem senão permitindo que ele a aprisione? Como impedir
que ele desenvolva sobre seu corpo e sua alma suas quatro paredes?”. De
entremeio, no internato, a água e o estado onírico amolecem a dureza dos
limites: “Quando as paredes cedem, se adoçam e diluem em fumaças, outra
zona se abre”; “O quarto abafado de vapores mornos, os espelhos
embaçados, o reflexo do corpo já nu de uma jovem nos mosaicos úmidos
das paredes”; “A cama desaparece aos poucos, as paredes do aposento se
afastam, tombam vencidas. E eu estou no mundo solta e fina como uma
corça na planície”.
Laços de família, composto em grande parte por textos escritos da
década seguinte (1950), concede protagonismo à janela em quase todos os
textos. Entre objetos que compõem rituais domésticos, a família alimenta
uma vaga ideia de felicidade e harmonia. Nisso, intromete-se a janela. Por
ela, numa atmosfera onírica, anuncia-se a puberdade, simbolicamente
marcada pelo jacinto quebrado no jardim; ela se transmuta em janela-jaula
para a mulher em sua catarse diante do búfalo; opera flashes cortantes
colhidos nas casas burguesas, revelando flagrantes de repúdio em relação ao
Outro, ao diferente (“A menor mulher do mundo”); imobiliza
fotograficamente o marido de Catarina — paralisado, como quem vê na
vitrine uma joia cobiçada, mas distante, e do alto observa, perplexo, a
esposa e o filho passearem independentes, donos da rua; demarca um
programa para a boa esposa (“ela estava de novo ‘bem’, tomariam o ônibus,
ela olhando como uma esposa pela janela, o braço no dele”); juntamente
com o espelho em tríptico da penteadeira, item essencial no mobiliário
feminino nos anos 1950, prepara a rapariga para a quebra de sua rotina
(“Estava a se pentear vagarosamente diante da penteadeira de três espelhos,
os braços brancos e fortes arrepiavam-se à frescurazita da tarde. Os olhos
não se abandonavam, os espelhos vibravam ora escuros, ora luminosos. Cá
fora, caiu à rua uma cousa pesada e fofa”), num dia coroado pela
contemplação da lua que adentra seu quarto de madrugada. E, situação
exemplar, no conto “Amor”, a janela em vigília murmura sonhos abortados:
semidesnuda, mal encoberta pela cortina que sacoleja ao primeiro sinal de
vento, põe de sobreaviso/estado de alerta desejos soterrados, antevê o
desastre que acontece a seguir, quando Ana vê o cego mascando chiclete e
termina encolhendo-se à meia-luz do quarto9.
Em A paixão segundo G.H., que inaugura o romance em primeira
pessoa, a janela do quarto de empregada subverte as expectativas da
proposta modernista enlaçada ao estilo de vida conservador. A janela grita,
escancara. Como um olho vigilante, corrói certezas, usos e funções
previstos desde a concepção do imóvel, que segue o estilo de vida burguês.
A artista plástica “esperara encontrar escuridões”, se preparara “para ter que
abrir escancaradamente a janela e limpar com ar fresco o escuro mofado”
para, afinal, descobrir que “aquela Janair nunca, pois, havia fechado a
janela? Aproveitara mais do que eu da vista que se tinha da cobertura”.
Aos poucos, andar pela casa significa, para G.H., correr o risco do
precipício. Janelas pantagruélicas, vorazes, antropofágicas devoram as
bases de um programa de vida estruturalmente hierarquizado: “A área
interna era um amontoado oblíquo de esquadrias, janelas, cordames e
enegrecimentos de chuvas, janela arreganhada contra janela, bocas olhando
bocas”. Elas solapam a linearidade do tempo, trazem, em turbilhão, um
trabalho imemorial: “Através das outras janelas dos apartamentos e nos
terraços de cimento, eu via um vaivém de sombras e pessoas, como dos
primeiros mercadores assírios. Estes lutavam pela posse da Ásia Menor”.
Uma versão da janela, feita à mão, instala-se sobre a parede e agrava a
crise de G.H.: com sua arte rude, trêmula e incisiva, a doméstica deixa na
dobra do muro, como um legado, o desenho vazado em cujo vazio a patroa
se espelha, sendo levada a um delírio de projeções.

JANELA-TEXTO, JANELA-LEITOR

Desde G.H. somam-se textos que implodem cada vez mais as coordenadas
físicas e se tornam palco de reflexão sobre a linguagem, ampliando a
reflexão sobre a janela em confronto com o texto. Outros horizontes se
abrem a partir da janela ficcional, pertinentes, de forma mais explícita, ao
processo criativo, à leitura, à produção de linguagem e à comunicação.
Em breves apontamentos, citam-se, primeiramente, o suporte e as
condições materiais que mediam o ato de escrita. A janela se desdobra no
espaço da folha enquanto janela-tela, como a página de abertura de A hora
da estrela, em que a autora explora a disposição geométrica dos títulos;
pelos usos inesperados de sinais gráficos (interrupções através de travessões
e reticências, que criam uma camada sonora de vocalização e uma presença
corporal); através da incorporação da imagem tipográfica da palavra,
tomada visualmente enquanto corpo, como na frase extraída de Água viva:
“Mas eternidade é palavra dura: tem um ‘t’ granítico no meio”; e, evocando
Virginia Woolf, ao compor o ambiente propício ao desenvolvimento da
escrita: também em Água viva, a máquina de datilografia é alocada perto da
janela do quarto ou do ateliê. Por ela, recebe o “zumbido de abelhas e
vespas, gritos de pássaros”, a “música selvática […] de uma casa vizinha
onde jovens drogados vivem o presente”; de novo e, sempre, a lua cheia,
num trânsito permanente entre o curso da natureza, a rotina diária e a fala.
Em segundo lugar, considera-se o acervo de crônicas (a que sucederá o
acervo de cartas), como um método de investigação que opera “à moda de
janela”, em dois sentidos. Muito tempo tida como gênero bastardo, a
crônica oferece novos roteiros de leitura, permite ampliar interpretações do
conjunto da obra, dar contorno mais definido a conflitos entre privado e
público e identificar a abordagem mais direta de temas políticos. A sua
publicação, em livro, redirecionou e aprofundou perspectivas de análise de
sua produção escrita como um todo. Abriu-se uma fresta não só para dados
biográficos pessoais (o modo como vivenciava a cidade, como lidava com a
maternidade etc.) num contexto que vai do pós-guerra à ditadura, mas
também mudanças de comportamento, como a febre de consumo, a
tecnologia e os primeiros movimentos de abertura política.
Por outro lado, a desconfiança de Lispector, em relação ao gênero,
expressa seu receio em se expor. Sua relutância em escrever crônicas
semanais, decorre de seu estatuto anfíbio, entre o factual e o ficcional
(impulsionada, desde a sua origem, pela “coisa pública”, pelo fato e, ao
mesmo tempo, ser uma espécie de diário pessoal); da exposição da
intimidade, ao trazer a assinatura da autora (e não da narradora); e de
ocupar um lugar intermediário entre textos por encomenda, e sob
pseudônimo, para colunas femininas, e textos “propriamente” ficcionais.
Mas esta relutância tem um lado paradoxal, considerando-se que Clarice
desenvolveu um verdadeiro projeto de ruptura com modelos e fronteiras
entre gêneros literários. Um volume considerável de suas crônicas se dá em
estado de flânerie pela cidade, a meio caminho, seja de ônibus (raramente),
a pé ou de táxi. Esta sondagem urbana é propícia à reelaboração de si, em
face dos fluxos e tropeços pelas gentes, ruas e calçadas, com armadilhas
geradas pelo acaso, pelo choque, por regras de civilidade, pelo que excede e
coage.
Sobre as estratégias ficcionais que utiliza, a própria Clarice dá dicas.
Na crônica “Ficção ou não”, de 14 de fevereiro de 1970, afirma: “Mas
exatamente o que não quero é a moldura […]. Por que não ficção, apenas
por não contar uma série de fatos constituindo um enredo?”. A escritora
recusa, para si, enquadramento. E também para os leitores. Na mão dupla
de escrita-escuta, cria aproximações muito estreitas com os personagens e
suas coisas, como se operasse lentes de aumento, e provoca diversos tipos
de ruído (na rede imagística, na sequência frasal, na estrutura narrativa, nas
sentenças enigmáticas) que operam como horizontes a serem conquistados:
“Este texto que te dou não é para ser visto de perto: ganha uma secreta
redondez antes invisível quando é visto de um avião em alto voo. Então
adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares” (Água viva).
Por fim, Lispector desde sempre manifestou suas afinidades com as
artes visuais. Ao plantar janelas em toda a sua obra, o que lhe interessa é a
irrupção do que está dentro do suporte e de algum modo se propõe a
transcendê-lo, mesmo que não o consiga; nas janelas importa a perspectiva
de abertura e de profundidade, marcando que há um ponto de vista que
orienta e desafia a visão. A operação de leitura demanda contemplação e
meditação que pode causar desnorteamento. Como a escritora que, diante
do quadro de Klee, confessa: “Se eu me demorar demais olhando Paysage
aux oiseaux jaunes, de Paul Klee, nunca mais poderei voltar atrás. Coragem
e covardia são um jogo que se joga a cada instante”. A aquarela com fundo
negro sobre o qual aves e árvores, ao redor de um astro, apontam para
diferentes direções, combina a precisão do traço preciso e a atmosfera
onírica. Além disso, a paz e a simetria convivem com a sugestão de
movimento e ritmo, resultando num alargamento do cenário ali criado. A
palavra poética de Clarice Lispector, em comunhão com a pintura, contesta
o modo de estar no mundo atrás das barras da prisão, acomodado e
medroso, porque não aceita o desafio da janela que, sedimentada na vida
cotidiana, propõe travessias inauditas.

NOTAS
1. Valor de rememoração compreende valor de ancianidade, valor histórico e valor de rememoração
intencional (Aloïs Riegl, 2003).
2. Fisicalidade implica o corpo, compreendido como forma sensível que age, reage e atua; ser
espacial, que reclama um campo de ação (objetos e espaços construídos).
3. Daniel Miller (2013) atribui o descaso da crítica literária em relação ao mundo material à
“humildade dos objetos”; apesar de guardiães de narrativas e evocações, estão de tal modo urdidos à
vida do indivíduo, que se tornaram imperceptíveis. Michel Butor (1964) segue a mesma direção, ao
se referir ao papel poético e revelador dos móveis, “bem mais ligados à nossa existência do que
comumente admitimos”; “descrever móveis, objetos, é um modo de descrever os personagens,
indispensáveis” (pp. 54-5).
4. “Mettent d’autant mieux en évidence l’impossibilité de passer outre, laquelle, à son tour, met en
valeur le dangereux privilège du franchissement.”
5. Dado o contexto político, a escritora apresenta, simbolicamente, na crônica de 17 de fevereiro de
1968, uma janela-torre, atrás da qual se protege o então ministro da Educação, encastelado e covarde,
defendendo-se do contato com a massa estudantil que reivindica vagas na universidade. Na
arquitetura e usos da cidade, através da tensão entre casas, palácio e rua, expressa o desequilíbrio nas
instâncias de poder. Ao final, em protesto, transforma o seu texto em uma utópica passeata em
Brasília.
6. “Experiência é matéria da tradição, tanto na vida privada quanto na coletiva. Forma-se menos com
dados isolados e rigorosamente fixados na memória, do que com dados acumulados, e com
frequência inconscientes, que afluem à memória”. Já a vivência (Erlebnis) se constitui de “dados
isolados” “rigorosamente fixados na memória” (Walter Benjamin, 1994. p. 105).
7. Merleau-Ponty (1992). Como resultado da correlação entre sujeito e objeto há um terceiro
elemento, dinâmico e tenso, pelo qual se alarga o campo de visibilidade, ao mesmo tempo “visível e
tangível”, dizível e indizível.
8. A angústia diante do que se vê e não se pega, mas que certamente ali está, é mola propulsora do
pensamento e da meditação de Sofia. Este tema recorrente em Lispector se consuma na palavra
“coisa” que terá uma exploração sistemática em Água viva, obra que dramatiza a tensão entre a
“coisa em si”, inalcançável, e a sua realização em palavra. Para marcar a diferença, a narradora joga
com os termos “it”, neutro e impessoal, e sua versão visível, o símbolo “X”.
9. Outras obras poderiam ser incluídas, como as janelas noturnas de A maçã no escuro, cuja cena
inicial se dá numa sacada em um “dia inescalável”, e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, em
que Ângela Pralini parece ampliar eroticamente as sensações e desejos da protagonista do conto
“História interrompida”, assinado pela jovem Clarice: “Quando chover quero que caia sobre mim,
abundantemente. Abrirei a janela de meu quarto e receberei nua a água do céu”.
* Refiro-me a medidas sanitárias de reclusão tomadas pelo Brasil e por outros países para controlar a
pandemia da Covid-19, causada pela disseminação do novo coronavírus. (N.A.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

OBRAS DA AUTORA

, Clarice. A bela e a fera. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.


LISPECTOR

______. A cidade sitiada. Rio de Janeiro: José Olympio, 1975.


______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
______. A maçã no escuro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974.
______. Água viva. Trad. de Regina Helena de Oliveira Machado. Paris: Des Femmes (edição
bilingue), 1980.
______. Laços de família. Rio de Janeiro: José Olympio, 1973.
______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
______. Para não esquecer. Rio de Janeiro: Ática, 1978.
______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Editora Sabiá, 1969.
______. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.
______; SABINO, Fernando. Cartas perto do coração. Rio de Janeiro: Record, 2001.

TEXTOS TEÓRICOS E CRÍTICOS

BACHELARD , Gaston. La poétique de la rêverie. Paris: PUF, 1971.


BENJAMIN , Walter. “Charles Baudelaire: Um lírico no auge do capitalismo”. Obras escolhidas III. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
BUTOR, Michel. Répertoire II. Paris: Les Editions de Minuit, 1964.

DEL LUNGO, Andrea. La fenêtre. Sémiologie et histoire de la représentation littéraire. Paris: Seuil, 2014.

(Collection Poétique)
GIRARD, René. A violência e o sagrado. São Paulo: Paz e Terra; Unesp, 1990.

GUMBRECHT, Hans. Produção de presença. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010.

MELLO E SOUZA, Gilda de. “O vertiginoso relance”. In: Exercícios de leitura. São Paulo: Duas Cidades,

1980.

MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. Trad. de J.A. Gianotti e Armando Mora d’Oliveira. São

Paulo: Perspectiva, 1992.


MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de

Janeiro: Zahar, 2013.


RIEGL, Aloïs. “Le Culte Moderne des Monuments”. Socio-Anthropologie, 9|2001, 15 jan. 2003.

Disponível em: http://journals.openedition.org/socio-anthropologie/5. Acesso em: fev. 2012.


STAROBINSKI, Jean. “Fenêtres (de Rousseau à Baudelaire)”. In: L’idée de la ville, Actes du colloque

international de Lyon. Seyssel: Editions du Champ Vallon, 1983.


______. “Regards sur l’image”. In: Le siècle de Kafka. Catálogo da exposição do Centro Georges
Pompidou. Paris, 1984.
Arrumar a forma?
VERONICA STIGGER

A narrativa de A paixão segundo G.H. inicia-se com a protagonista falando


da “desorganização profunda” em que vive, em função do que lhe ocorrera
no dia anterior. Na manhã da véspera, Janair, a empregada, demite-se e
G.H. decide, então, ir até o quarto dela para arrumá-lo. Fazia seis meses que
não entrava ali, o exato tempo que Janair trabalhara para ela. Como é
costume nos apartamentos brasileiros de classe média e alta, este quarto
situa-se o mais distante dos aposentos dos proprietários, o que implicava
num deslocamento espacial da protagonista por sua própria morada em
direção à parte menos frequentada — em suas próprias palavras: “O bas-
fond de minha casa”.1 G.H. imagina encontrar um quarto escuro, sujo,
desorganizado, algo como um depósito com pilhas de jornais velhos e “as
escuridões da sujeira e dos guardados”,2 mas depara com o oposto: um
ambiente organizado, claro, limpo, “um quadrilátero de branca luz”, que
“tinha uma ordem calma e vazia”.3 Diante da imprevista organização, sente-
se traída por Janair, que passa a ver como uma estrangeira em sua casa:
“Não contara é que aquela empregada, sem me dizer nada, tivesse arrumado
o quarto à sua maneira, e numa ousadia de proprietária o tivesse espoliado
de sua função de depósito”.4
A sensação de traição se reforça quando vê, numa das paredes do
quarto, um desenho a carvão que nada mais é que um simples contorno dos
corpos nus de uma mulher (com a qual se identifica), de um homem e de
um cachorro: “três figuras soltas como três aparições de múmias”.5 Para
G.H., “o desenho não era um ornamento: era uma escrita”.6 Talvez um
recado de Janair a ela, ou melhor, contra ela, como uma pequena rebelião de
classe: “Pareciam ter sido deixados por Janair como mensagem bruta para
quando eu abrisse a porta”.7 Até então, era como se a patroa nunca houvesse
percebido a presença da empregada. Nem mesmo do seu rosto conseguia,
num primeiro momento, recordar — o que a leva a pensar num ódio mútuo:
“Perguntei-me se na verdade Janair teria me odiado — ou se fora eu que,
sem sequer a ter olhado, a odiara”.8 Como se não bastasse deparar com a
organização e a luminosidade do quarto e com o desenho na parede, G.H.
ainda avista, saindo do armário, uma barata.
Essas descobertas não apenas a tiram de sua rotina, mas a colocam
frente a algo com que não sabe lidar: “A isso prefiro chamar desorganização
pois não quero me confirmar no que vivi — na confirmação de mim eu
perderia o mundo como eu o tinha, e sei que não tenho capacidade para
outro”.9 Essa “desorganização” de que fala G.H. não é apenas uma
desorganização espiritual, mas também (e talvez fundamentalmente) uma
desorganização corpórea, ainda que o corpo, aí, não se restrinja a nenhuma
materialidade física simples: “Fico tão assustada quando percebo que
durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra
para substituir a perdida”.10 É precisamente a perda da “montagem humana”
que leva à escrita: “Quem sabe me aconteceu apenas uma lenta e grande
dissolução? E que minha luta contra essa desintegração está sendo esta: a de
tentar agora dar-lhe uma forma?”.11 Escrever se constitui como uma
tentativa custosa de dar forma e, portanto, existência ao que se passou:
“Mas é que também não sei que forma dar ao que me aconteceu. E sem dar
uma forma, nada me existe”.12 (E é preciso, neste ponto, levar em conta a
formulação singular “nada me existe”, em que chama a atenção esse
pronome oblíquo “me” associado ao verbo “existir” que qualifica a
existência como existência-para-si que é também, dada a ambiguidade da
construção, existência-de-si: em resumo, sem forma, nada existe para mim,
ou em relação a mim, mas também, sem forma, nada existe em mim — e,
portanto, também eu, na medida em que só posso existir na relação com o
que está fora de mim, não existo.)
G.H. é escultora diletante e, como tal, dedica-se justamente a dar
forma à matéria. Ou de modo mais específico, como ela mesma define,
“desgastar pacientemente a matéria até gradativamente encontrar sua
escultura imanente”.13 A prática da escultura — aventará ela no desenrolar
da narrativa — talvez seja decorrência de sua “única vocação verdadeira”, a
de arrumar. Afinal, dirá ainda, “arrumar é achar a melhor forma”:
“Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo”.14 E acrescenta,
supondo uma troca de papéis entre ela e Janair: “Tivesse eu sido
empregada-arrumadeira, e nem sequer teria precisado do amadorismo da
escultura; se com minhas mãos eu tivesse podido largamente arrumar”.15
Na pergunta que se faz em seguida, talvez esteja a chave para a
compreensão da busca que empreende na fatídica manhã da partida de
Janair: “Arrumar a forma?”.16 Embora a procedência da palavra “arrumar”
seja incerta, nas três possíveis etimologias propostas no Grande Dicionário
Houaiss há sempre uma associação com a ideia de espaço ou, mais
precisamente, de um deslocamento espacial. Uma possibilidade é que venha
de “rumo”, termo com o qual originalmente se designava cada um dos 32
espaços em que se divide a rosa dos ventos, o diagrama que mostra as
direções da esfera celeste. Outra hipótese é que provenha do francês antigo
arrumer, relacionado ao germânico rūm, que indica o “espaço ou lugar num
navio”. Poderia, porém, também ter sofrido influência do francês arrimer,
que significa “dispor as mercadorias de maneira conveniente”, isto é,
organizá-las no espaço. Rumo, de resto, é também a direção que segue um
navio e, por extensão de sentido, “percurso, orientação a seguir para ir de
um lugar a outro; caminho, vereda, itinerário, rota”.17
“Arrumar a forma” seria, então, dirigir-se a ela, percorrer o caminho
entre a não forma (o caos) e a forma. Há aí, implicada no verbo utilizado
por G.H., uma ênfase sobre o deslocamento — o que podemos ler como
uma sugestão de que a forma talvez nunca se complete, esteja sempre em
processo, ou mais precisamente (e com o perdão da redundância) sempre
em formação. Já afirmava Henri Focillon, em seu estudo sobre as formas:
“Ela [a forma] é estrita definição de espaço, mas é sugestão de outras
formas. Ela continua, se propaga na imaginação, ou melhor, a consideramos
como uma espécie de fissura, pela qual podemos entrar num reino incerto,
que não é nem o estendido nem o pensado, uma multidão de imagens que
aspiram a nascer”.18
Como Cristo pelas estações da via-crúcis a que a paixão do título faz
referência,19 G.H. passa por vários ambientes de seu apartamento até chegar
ao quarto, onde para. Seu percurso se interrompe diante da falta do que
arrumar no ambiente limpo, iluminado e organizado de Janair. Se “arrumar
é achar a melhor forma”, quase como “desgasta[ndo] pacientemente a
matéria até gradativamente encontrar sua escultura imanente”,20 que forma
ela pode extrair do que vê como um “vazio seco”?21 Afirma G.H. quando,
finalmente, penetra na peça: “apesar de já ter entrado no quarto, eu parecia
ter entrado em nada”.22 Se “uma forma contorna o caos”, se “uma forma dá
construção à substância amorfa”,23 funcionando como um invólucro ou uma
casca,24 como dar forma ao nada, que, como a própria Clarice Lispector
anotaria anos depois em Água viva, “não tem barreiras”, sendo “a
verdadeira incomensurabilidade” — ao contrário do tudo, que, por ser
“quantidade”, “tem limite no seu próprio começo”?25 Podemos, quanto a
isso, recorrer novamente a Focillon, quando este observa a respeito do
trabalho dos arquitetos com a forma: “O construtor envolve não o vazio,
mas uma certa estadia das formas [un certain séjour des formes], e,
trabalhando sobre o espaço, ele o modela, por fora e por dentro, como um
escultor”.26
Se a ideia inicial de G.H. era interferir no quarto da empregada, a
tarefa falha e ela não consegue desempenhar aí a função da arquiteta-
escultora — tampouco, na outra ponta da perversa escala social brasileira, o
papel de “empregada-arrumadeira”. Ao não encontrar espaço para si no
território de Janair — “Mesmo dentro dele, eu continuava de algum modo
do lado de fora. Como se ele não tivesse bastante profundidade para me
caber e deixasse pedaços meus no corredor, na maior repulsão de que eu já
fora vítima: eu não cabia”27 —, G.H. acaba por estabelecer uma cisão entre
o quarto e seu próprio apartamento, como se aquele não fizesse parte da
estrutura deste, constituindo uma espécie de anexo incômodo ou enclave
potencialmente violento. O quarto se torna, então, tão estrangeiro — tão
inimigo — quanto a própria criada. Daí, talvez, a vontade súbita de “matar
alguma coisa ali”.28 Por isso também G.H. diga a si mesma, em desespero,
quando se acha dentro da peça: “Ah, quero voltar para a minha casa”.29
Nessa cisão, cria uma identificação do quarto a Janair, e do
apartamento a si mesma: “O apartamento me reflete. […] Como eu, o
apartamento tem penumbras e luzes úmidas, nada aqui é brusco: um
aposento precede e promete o outro”.30 O quarto, por sua vez, “era o retrato
de um estômago vazio”.31 G.H. o enxerga como um quadrilátero irregular:
uma irregularidade dentro daquela inesperada ordem que supõe ser
ocasionada não pela própria arquitetura, mas por seu olhar sobre aquele
determinado ambiente. É ela, bem sabe, que o vê de maneira deformada.32
Curiosamente, nessa recusa ao quarto da empregada, ela não o rebaixa, mas
o imagina acima do próprio apartamento, quase que completamente
independente e distante, “como um minarete […], solto acima de uma
extensão ilimitada”.33
Ao não reconhecer o quarto como parte do apartamento, mas como um
enclave sobre o qual não tem domínio, termina por não se reconhecer a si
mesma, como se finalmente se desse conta de que até então vivera uma vida
“entre aspas” ou como se compreendesse, pela primeira vez, que o silêncio
e o mistério de seu próprio sorriso inexpressivo nos retratos era uma das
expressões desse “eu” que, em suas próprias palavras, pouco a pouco,
“havia se transformado na pessoa que tem [s]eu nome”:34
Essa imagem de mim entre aspas me satisfazia, e não apenas superficialmente. Eu era a
imagem do que eu não era, e essa imagem do não ser me cumulava toda: um dos modos mais
fortes é ser negativamente. Como eu não sabia o que era, então “não ser” era a minha maior
aproximação da verdade: pelo menos eu tinha o lado avesso: eu pelo menos tinha o “não”,
tinha o meu oposto.35

A outra expressão desse “eu” entre aspas, que criara para si e cuja
forma (isto é, contorno, invólucro, casca) era dada pela estrutura mesma do
apartamento, eram suas iniciais nas valises: “Esse ela, G.H. no couro das
valises, era eu; sou eu — ainda?”.36 E as malas, ironicamente, encontravam-
se empilhadas num canto do quarto da empregada. Lá estava aquele “eu”
limitado não apenas pelas iniciais, mas também por uma pele animal, o
couro, que, em certa medida, desde já a ligava, pela animalidade, à barata.
A fusão com o próprio apartamento é levada a tal ponto que passa a se
referir ao próprio corpo como uma construção: “meu edifício”.37 É esta
construção, aliás, que se desmonta, que rui, que desaba: “Caminho em
direção à destruição do que construí, caminho para a despersonalização”.38
A perda da “formação humana”39 e a entrada num âmbito de vida mais
“primária” que leva G.H. a matar a barata e a provar de seu interior são
narradas através de uma comparação com o momento mesmo em que a
arquitetura vira ruína, isto é, quando a arquitetura — “a mais sublime
vitória do espírito sobre a natureza”, segundo Georg Simmel40 — desaba e a
natureza volta a dominar a cultura. Porém, também a arquitetura que aqui
desmorona participa, em alguma medida, do inumano — não só são
edifícios, mas cavernas. Conta-nos G.H.: “Como te explicar: eis que de
repente aquele mundo inteiro que eu era crispava-se de cansaço, eu não
suportava mais carregar nos ombros — o quê? — e sucumbia a uma tensão
que eu não sabia que sempre fora minha. Já estava havendo então, e eu
ainda não sabia, os primeiros sinais em mim do desabamento de cavernas
calcárias subterrâneas, que ruíam sob o peso de camadas arqueológicas
estratificadas — e o peso do primeiro desabamento abaixava os cantos de
minha boca, me deixava de braços caídos”.41
Tudo à volta passa então a ser percebido como que imbricado à
natureza e, nessa transmutação, tanto tempo quanto espaço se distendem e
se fundem. Do mesmo modo que G.H. vai da pré-história ao presente, vai
dos fundos do prédio à usina, à caverna, à montanha. No início de sua
jornada, antes de chegar ao quarto, compara a sua posição em seu
apartamento de cobertura à do “pico de uma montanha”.42 As montanhas,
diga-se de passagem, parecem ser, em Clarice Lispector, o lugar
preferencial da magia, da transmutação, da transformação (e não
esqueçamos que é num monte que se dá a transfiguração de Cristo, ao fim
da paixão), como fica evidente, por exemplo, no conto que dá título ao livro
Onde estivestes de noite, em que um estranho ritual ocorre no alto de uma
montanha. Montanha e usina se comunicam nisso, são lugares de
transformação — na usina, transformação da matéria, destruição de uma
forma em direção a outra forma.
A derrocada da “montagem humana” corresponde justamente ao
momento de transmutação de G.H., atingindo em cheio a maneira pela qual
se apresenta ao mundo, pelo nome: “Até que me seja enfim revelado que a
vida em mim não tem o meu nome. E eu também não tenho nome, e este é o
meu nome”.43 Daí ela não ser, ao longo da narrativa, mais do que iniciais
afixadas nas malas — elementos, por excelência, associados ao
deslocamento. Como bem lembra a narradora do conto “O ovo e a galinha”,
publicado pela primeira vez no mesmo ano de A paixão segundo G.H.,
“‘eu’ é apenas uma das palavras que se desenha enquanto se atende ao
telefone, mera tentativa de buscar forma mais adequada”.44 Ou seja, é o
nome que dá contorno ao “eu”, é a sua moldura. A tomada de consciência
de si própria só se completa quando esmaga a barata no armário, quebrando
a sua casca, seu invólucro,45 isto é, o que a delimitava e lhe dava uma forma.
A barata, aliás, também era vista de modo arquitetural, ao ser comparada
por G.H. a uma cariátide.46 Portanto, ao quebrar sua casca, ela rompe sua
estrutura, a faz também desabar, liberando seu interior pastoso. Assim, a
barata acaba por se aproximar do modo como G.H. se vê naquele momento:
sem contorno, sem limite; em uma palavra, informe. Estabelece-se então
uma identificação dela com o inseto:
Eu, corpo neutro de barata, eu com uma vida que finalmente não me escapa pois enfim a vejo
fora de mim — eu sou a barata, sou minha perna, sou meus cabelos, sou o trecho de luz mais
branca no reboco da parede — sou cada pedaço infernal de mim — a vida em mim é tão
insistente que se me partirem, como a uma lagartixa, os pedaços continuarão estremecendo e
se mexendo.47

Não resta, pois, forma a arrumar.


A descida ao nível do inseto conclui-se com a ingestão de parte da
massa branca de seu interior. Nesse gesto antropofágico de comunhão com
o inseto,48 parece haver não apenas uma busca de identificação com a barata,
mas uma tentativa de se transformar no outro, de vir a ser outro, deixando
de ser o que era. Talvez seja nesse sentido que possamos compreender a
epígrafe de A paixão segundo G.H., extraída do historiador da arte Bernard
Berenson: “Uma vida plena talvez seja aquela que termina em tal
identificação com o não eu que não resta mais um eu para morrer”.49 Uma
vida plena: uma vida plenamente consciente, não só no conceito, mas no
próprio corpo, de que a aventura da forma nunca se completa, que a forma
talvez só se dê a ver, em plenitude, como experiência da não forma, porque
todo esforço para arrumar a forma, se levado ao seu limite — como vemos
exemplarmente encenado no romance de Clarice Lispector —, põe a perder,
de uma vez por todas, não só a forma, mas o próprio rumo.

NOTAS
1. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995, p. 41.
2. Ibid.
3. Ibid.
4. Ibid.
5. Ibid., p. 43.
6. Ibid.
7. Ibid., p. 44.
8. Ibid., p. 47.
9. Ibid., p. 15.
10. Ibid., p. 18.
11. Ibid.
12. Ibid.
13. Ibid., p. 30.
14. Ibid, p. 37.
15. Ibid.
16. Ibid.
17. Antônio Houaiss, Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
18. Henri Focillon, Vie des formes. Paris: PUF, 2004, p. 4.
19. Cf. Olga de Sá, “A reversão paródica da consciência na matéria viva: o signo iconizado”, em
Clarice Lispector: A travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993, p. 126 e ss.
20. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 30.
21. Ibid., p. 41.
22. Ibid., p. 49.
23. Ibid., p. 18.
24. Em “O ovo e a galinha”, Clarice Lispector deixa mais explícita a relação entre forma e casca ao
afirmar: “Pego mais um ovo na cozinha, quebro-lhe casca e forma” (in: A legião estrangeira. Rio de
Janeiro: Rocco, 1999, p. 56).
25. Clarice Lispector, Água viva. Rio de Janeiro: Artenova, 1973, p. 108.
26. Henri Focillon, op. cit., p. 35.
27. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 49.
28. Ibid.
29. Ibid., p. 111.
30. Ibid., p. 34.
31. Ibid., p. 46.
32. Ibid., p. 42.
33. Ibid.
34. Ibid., p. 29.
35. Ibid., p. 36.
36. Ibid.
37. Ibid., p. 179.
38. Ibid., p. 177.
39. Ibid., p. 18.
40. Georg Simmel, “Ruína”. Trad. de Sebastião Rios. In: Jessé Souza e Berthold Öelze. Simmel e a
modernidade. Brasília: UnB, 2005, p. 135.
41. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 48.
42. Ibid., p. 39.
43. Ibid., p. 179.
44. Clarice Lispector, “O ovo e a galinha”, p. 56.
45. Diz G.H.: “Mãe, eu só fiz querer matar, mas olha só o que eu quebrei: quebrei um invólucro!
Matar também é proibido porque se quebra o invólucro duro, e fica-se com a vida pastosa. De dentro
do invólucro está saindo um coração grosso e branco e vivo com pus, mãe, bendita sois entre as
baratas, agora e na hora desta tua minha morte, barata e joia” (A paixão segundo G.H., p. 98).
46. Ibid., p. 58. Em sua dissertação de mestrado, Mariana Silva Bijotti propõe que compreendamos a
própria barata como uma escultura (Moldar o inexpressivo: A formação do artista em Clarice
Lispector e a escrita escultórica em A paixão segundo G.H. São Paulo: FFLCH-USP, 2020, p. 91).
47. Ibid., p. 69.
48. Berta Waldman já havia chamado a atenção para a comunhão entre G.H. e a barata: “É a partir
dele que G.H. se desnuda do núcleo de sua individualidade para estabelecer com o inseto um laço de
união. Para confirmar esse nexo, ela ingere a massa branca da barata esmagada, numa espécie de
ritual de comunhão sagrada, em que o horror e a atração se equivalem” (Clarice Lispector: A paixão
segundo C. L. São Paulo: Escuta, 1992, p. 77). E Eduardo Viveiros de Castro atenta para a antropofagia
nesse gesto de G.H., precisando a noção de “antropofagia”: “A palavra antropofagia é potencialmente
ambígua: costumamos usá-la no sentido de ‘comer outro humano’, mas ela pode significar ‘comer o
humano de si’, entenda-se, a humanidade, aquele que come. A antropofagia seria assim uma
autofagia ‘indireta’, um comer o humano daquele que come, devorar-destruir o que há de sujeito
naquele mesmo que come outro sujeito. Aquele que come o homem se ‘desumaniza’: para comer o
homem é preciso primeiro comer a si mesmo enquanto homem, comer o humano de si mesmo de
forma a poder comer o outro humano; para que o outro seja humano é preciso que eu não seja”
(“Rosa e Clarice, a fera e o fora”. In: Revista de Letras: As muitas coisas de Clarice Lispector, n. 98,
jul./dez. 2018, p. 20).
49. Citado na epígrafe de A paixão segundo G.H.
A cidade sitiada: O caroço e seus frutos
REGINA LÚCIA PONTIERI

A sucessão de histórias que constituem o conto “A quinta história” mostra


também o processo pelo qual as baratas, de início puros objetos de
morticínio, transformam-se em subjetividades. Monumentalizadas como
estátuas, lembram os humanos que, em Pompeia, participavam da “orgia no
escuro” sem saber que se petrificavam. Decisivo é o passo final desse
processo: uma barata agora individualizada, “aquela ali, a de antena
marrom suja de branco” torna-se sujeito de linguagem dizendo: “é que olhei
demais para dentro de mim!”.1
Estaria Clarice Lispector, num lance de autoironia, fazendo referência
a suas obras, apontando nelas a presença de subjetividades olhando demais
para dentro de si mesmas? O que faria de Joana a puxadora de uma longa
fila, chegando ao final até Rodrigo S.M. e passando por G.H. e tantos
outros? Como sabemos, Benedito Nunes vincula o romance de estreia da
autora a “um modo de apreensão artística da realidade na ficção moderna,
cujo centro mimético é a consciência individual, enquanto corrente de
estados ou de vivências”.2 Entretanto, Nunes observa também que em A
paixão segundo G.H. “desagrega-se a sondagem introspectiva que absorve
nos romances anteriores o dinamismo da ação romanesca”.3
Se for assim, interessaria investigar o modo como se opera tal
desagregação, tão cheio de consequências para o restante da ficção
lispectoriana. Penso que essa ficção esteve desde o início assombrada pelos
paradoxos da alteridade, figurada de diversas formas: a alteridade feminina,
a alteridade animal, a alteridade social, a alteridade corporal e, enfim, a
alteridade do silêncio constitutivo da linguagem. A propósito, caberia
lembrar um dos momentos em que Lispector figura o modo como a
alteridade se constitui para ela como problema. Num texto intitulado “A
experiência maior”, ela diz:
Eu antes tinha querido ser os outros para conhecer o que não era eu. Entendi então que eu já
tinha sido os outros e isso era fácil. Minha experiência maior seria ser o outro dos outros: e o
outro dos outros era eu.4
A rigor, pode-se dizer que o processo de desagregação a que se refere
Nunes já está em andamento em Perto do coração selvagem, mesmo que de
maneira muito incipiente. O mergulho na consciência a tal modo absorve a
realidade ficcional que mesmo os aspectos que poderiam dar a Joana a
feição de um eu singularizado vivendo entre os demais, ficam relativizados,
na medida em que pouco comparecem outros eus singularizados. A prova é
que, nas poucas vezes em que a narrativa se detém na consciência de
Otávio, vemos que essa consciência difere muito pouco da de Joana, o que
parece sugerir que o outro desse eu-indivíduo seja já um eu-impessoal —
ou “despessoal”, para falar com G.H. —, algo próximo do que aparecerá em
Água viva. E também próximo do eu que, na primeira das histórias de “A
quinta história” diz “queixei-me de baratas” etc., isto é, um puro agente.
Que será paulatinamente recheado dos traços de pessoalidade, nas versões
seguintes.
Voltando a “A quinta história” e suas baratas, vejamos um rápido
histórico da aparição dessa imagem tão densa e cheia de consequências, tal
como se dá nos romances iniciais da autora, de onde migrará para outras
obras. Em Perto do coração selvagem, a barata aparece como objeto de
devoração: Joana, assim, antecipa-se a G.H. Pois o “bolo esquisito, escuro”
que a menina Joana come e vomita, na ocasião da morte do pai, tem “gosto
de vinho e de barata”.5 Em O lustre, baratas reaparecem como objeto, agora
da visão de Daniel, que se refere a “baratas velhas, cinzentas e vagarosas”.6
É somente em A cidade sitiada que a barata virá, pela primeira vez, para a
frente da cena, identificada com a personagem central, Lucrécia Neves. Em
conversa, Perseu, um dos namorados da moça, lhe diz que sentira à noite
em sua casa mosquito, mariposa e barata voadora, completando que “já nem
se sabe mais o que está pousando na gente”. A isso, Lucrécia lhe responde:
“Sou eu”.7
De fato, parece possível dizer que o terceiro romance que Lispector
publica em 1949 inaugura o prestígio das radicais outridades que frequentam a
obra da autora: as empregadas — Eremita ou Janair; a anã africana de “A
menor mulher do mundo”, as várias galinhas, sejam elas propriamente
animais, tal como aparecem, por exemplo, em “Uma galinha” ou em A vida
íntima de Laura, seja a mulher-galinha, ela também uma Laura, de “A
imitação da rosa”; o búfalo ou o cão que se alçam à condição de
interlocutores mudos — da mulher de “O búfalo” e do professor, de “O
Crime do Professor de Matemática”, respectivamente. Todos descendentes
de Lucrécia Neves, tanto quanto de Perseu e Efigênia, outras personagens
de A cidade sitiada, que compartilham com Lucrécia a condição de
videntes/visíveis, isto é, corpos feitos para ver e serem vistos, e nisso
partícipes plenos de um mundo entendido como campo de visibilidade.
Antecipando-me um tanto, diria que agora o corpo, como o outro do
espírito, vem para primeiro plano.
Antes de dar outros esclarecimentos sobre minha visão desse romance,
gostaria de retomar, de modo muito sumário, alguns momentos de sua
fortuna crítica. Quando tive oportunidade de me deter com vagar sobre essa
obra, pude acompanhar melhor o que chamei de “infortúnios de uma
cidade”.8 Escolhi dois de seus leitores críticos mais antigos e um mais
recente, para esclarecer que me parece que, daquele momento até agora,
não mudou essencialmente a recepção dada ao livro. Recepção que se
poderia qualificar de “cautelosa”, para não mencionar os casos em que ela é
francamente desabonadora. De fato, de modo geral, é possível dizer que o
romance causou estranheza por sua obscuridade e hermetismo.
Começo com o primeiro dos leitores críticos a tratar o livro com maior
atenção e mais detidamente, justamente um que qualificou a obra como
hermética. Trata-se do crítico português João Gaspar Simões, que se
manifestou sobre A cidade sitiada já no ano seguinte ao da publicação. Seu
artigo, que apareceu no jornal carioca A Manhã, intitulava-se “Clarice
Lispector ‘Existencialista’ ou ‘Supra-Realista’”. Observe-se que essa
aproximação do estilo da obra àquele do surrealismo já tinha como
antecedente a manifestação de Sérgio Milliet, qualificando esse estilo como
“preciosista” e “rococó”.
Simões aparentava A cidade sitiada com as experiências então recentes
de Simone de Beauvoir e Sartre, no âmbito do romance existencialista. Aí
estaria para o crítico o perigo: um excessivo conceptualismo, vinculando o
romance a sistemas filosóficos, corria o risco de torná-lo abstrato,
perdendo-se a concretização da vida. Referindo-se ao “hermetismo dos
sonhos” de que se fazia o livro, o crítico, então, concluía: “Haja quem lhe
encontre a chave”.
Benedito Nunes, este grande clássico entre os leitores críticos de
Clarice, foi de particular valia para minha própria abordagem do livro de 1949.
Em 1973 ele publicava, pela Quíron, Leitura de Clarice Lispector, avaliando
toda a ficção da autora até Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres.
Tanto quanto Gaspar Simões, Nunes também registrava o parentesco de
Clarice com o existencialismo, sobretudo de Sartre. No referente a A cidade
sitiada, o crítico observava sua diferença com relação aos dois romances
anteriores, diferença atinente ao ângulo de visão. Enquanto os primeiros
eram centrados na consciência da personagem, o terceiro estaria distante
dela. Nunes apontava também a natureza alegórica do romance, o que
transparecia no título do capítulo: “A cidade sitiada: uma alegoria”. O
romance seria composto de “quadros estáticos da vida de província” e
enfatizaria a caricatura e o grotesco, na apreensão dos gestos. Diversamente
dos romances anteriores, o distanciamento narrativo, que tornaria maquinal
a gestualidade das personagens, permitiria também operar uma “reversão da
experiência interna, objetificada para o próprio sujeito, como reflexo de
uma realidade que lhe é estranha”.9 Enfatizo essa questão da objetificação
do sujeito porque esse é um ponto que retomo adiante.10
No capítulo 2 de O dorso do tigre, de 1965, Nunes realçava a diferença
entre Clarice e Kierkegaard, no que se refere à natureza da subjetividade.
Enquanto o filósofo limitaria a realidade do ser humano à subjetividade, a
ficcionista veria, nessa subjetividade, “apenas um momento privilegiado
dessa experiência que […] possui extensão universal e caráter cósmico” de
modo que a “existência humana, individualmente considerada, torna-se aí
apenas um aspecto ou um modo determinado da existência universal que se
manifesta em todas as coisas e até nos mais humildes objetos”.11 Esse
predomínio da existência universal seria referido por Nunes a A maçã no
escuro e A paixão segundo G.H. E aí está outro ponto que eu gostaria de
sublinhar. Pois embora tenha notado n’A cidade sitiada a objetificação do
sujeito, que é uma forma de manifestação dessa existência cósmica, Nunes
veria n’A maçã no escuro a experiência da “existência irredutível,
inexplicável, das coisas que não precisam de nós para existirem tal como
existem” pois elas “vivem de uma vida própria assediando a consciência”.
Parece-me, ao contrário, que já está n’A cidade sitiada o início do processo
de prestígio das coisas.
Concluo este sumário da fortuna crítica, com um posfácio de Benjamin
Moser, que aparece numa edição brasileira bastante recente do romance em
epígrafe. O posfácio é datado de 2018 e nele se encontram vários dos lugares-
comuns da fortuna crítica do livro, desde sua publicação. O que dá a ver
que o passar dos anos não modificou substancialmente essa fortuna. Depois
de fazer referência ao fato de que a própria Clarice achava o livro difícil e
que ele seria, segundo ela, “um de meus livros menos gostado”, Moser
introduz seu comentário sobre o assunto, em termos que não deixam de ter
certa graça:
Todo brasileiro instruído conhece G.H. e Macabéa. Mas só o clariciano devoto reconhecerá
rapidamente o nome de Lucrécia Neves Correa. Num país vergado sob o peso de escritos sobre
Clarice Lispector, o livro que tem Lucrécia como protagonista é um órfão. Ensaios e artigos
sobre ele são raros no Brasil, e aparentemente pouco lidos. As vendas indicam que é o menos
popular dos romances de Clarice.12

Como Simões e Nunes, Moser também aproxima Lispector do


existencialismo, mas agora na figura da Simone de Beauvoir de O segundo
sexo, publicado no mesmo ano de A cidade sitiada. Aqui retorna a questão
da objetificação. Pois a abordagem da filósofa, enfatizando o processo de
construção da mulher como objeto do olhar masculino, processo que
passaria pela atitude da própria mulher, erigindo-se em objeto de adorno, tal
abordagem fornece, ao crítico, material para uma avaliação nada lisonjeira
de Lucrécia Neves:
Diferentemente das protagonistas dos dois primeiros romances de Clarice, Lucrécia é fútil e
pretensiosa, satisfeita de permanecer na superfície. Lucrécia — está em seu nome — é lucro, é
só mais um dos bibelôs de porcelana na sala de estar de sua mãe […]. Suas ambições são
materiais, e ela é a mulher mais insolentemente superficial que Clarice retratou.

Moser, que tão bem percebeu a importância que Lispector atribuiu a


esse romance, lembrando que ela volta a mencioná-lo na última obra, Um
sopro de vida, serviu-se de um referencial, o de Beauvoir, que só explica
uma parte da obra, a convivência entre Lucrécia e os homens com quem se
relaciona. Mas não ajuda a entender o fato de outras personagens serem
também objetos de olhar: sobretudo Perseu, mas também Efigênia, uma
viúva solitária, que apesar de aparecer poucas vezes é figura emblemática
da obra. Da mesma forma, não ajuda a entender a ênfase posta no espaço —
a cidade e seus habitantes — como corpos videntes-visíveis, que olham e
são olhados.
De fato, a atividade principal a que se entregam não só as personagens
mas também os objetos do mundo é olhar e serem olhados. Daí a ênfase na
superfície, na exterioridade, no espaço, seja o da cidade e seus diversos
lugares, seja o dos corpos, das pessoas e dos objetos. As personagens não
são consciências imaginantes ou reflexivas, não são interioridades: seu
pensamento se limita à visão das coisas. Por isso são, também, parcas de
inteligência e, no limite, impessoais. Lavando louças em sua casa, Lucrécia
adere a tal ponto ao mundo que
as coisas eram vistas imediatamente. A pia. As panelas. A janela aberta. A ordem, e a
tranquila, isolada posição de cada coisa sob o seu olhar: nada se esquivava. […] Tudo estava à
mão. O que era tão importante para uma pessoa de algum modo estúpida; Lucrécia que não
possuía as futilidades da imaginação, mas apenas a estreita existência do que via.13

Note-se que a futilidade que Moser atribui a Lucrécia aqui não aparece
como característica sua, uma vez que a futilidade é atributo da imaginação,
e a moça apenas vê. Um pouco adiante, ela surge “remoendo sua
dificuldade de raciocinar”, uma vez que “o pensamento, quase nunca
utilizado, primarizara-se até transformar-se num sentido apenas. Seu
pensamento mais apurado era ver, passear, ouvir”.14
É justamente essa total aderência ao mundo, essa “impessoalidade”,
que faz dela a construtora do mundo pelo olhar: “A realidade precisava da
mocinha para ter uma forma. ‘O que se vê’ — era a sua única vida interior;
e o que se via tornou-se a sua vaga história”.15 Trata-se de uma visão que
apreende a pura exterioridade: “A esse esforço S. Geraldo tornara-se
extraordinariamente exterior, as pedras leves. As coisas se mantinham à
própria superfície na veemência de um ovo”.16 Aqui é difícil não lembrar a
que ponto esse livro é o antecedente forte de outro texto da autora tido
como muito hermético, “O ovo e a galinha”, que descortina o encontro
entre um olho e um ovo-superfície, donde se extraem imagens as mais
inusitadas.17
Também Perseu, que depois de Lucrécia é a personagem mais
destacada, é de inteligência parca. O segundo capítulo, intitulado “O
cidadão”, é inteiramente dedicado a mostrá-lo à janela de um segundo
andar, enquanto decora um texto cujo significado ele ignora: “Decorar era
bonito. Enquanto se decorava não se refletia, o vasto pensamento era o
corpo existindo. […] a inconsciência do rapaz dominava largamente a
cidade”.18 Tanto quanto Lucrécia, ele se confunde com a cidade da qual é
artífice: “Despercebido à janela porque ele era apenas um dos modos de ser
S. Geraldo. E também um de seus alicerçadores somente por ter nascido
quando o subúrbio também se erguia[…]”.19
Clarice dá indicações bastante claras sobre seus objetivos ao se propor
uma tarefa tão difícil, penosa e arriscada. Respondendo a uma crítica a seu
romance, ela esclarece que Lucrécia seria uma “personagem sem as armas
da inteligência, que aspira, no entanto, a essa espécie de integridade
espiritual de um cavalo, que não ‘reparte’ o que vê, que não tem uma ‘visão
vocabular’ ou mental das coisas, que não sente a necessidade de completar
a impressão com a expressão — cavalo em que há o milagre de a impressão
ser total — tal [sic] real — que nele a impressão já é a expressão”. Além
disso, continua Clarice, “o modo de ver, o ponto de vista altera a realidade,
construindo-a. Uma casa não é construída apenas com pedras, cimento etc.
O modo de olhar de um homem também a constrói. […] Uma das mais
intensas aspirações do espírito é a de dominar pelo espírito a realidade
exterior. Lucrécia não o consegue — então ‘adere’ a essa realidade, toma
como vida sua a vida mais ampla do mundo”.20
Uma manifestação dessa ordem repõe o problema da já referida
“objetificação” de Lucrécia e os demais. Se o que se procura é apagar o
que, no humano, tem relação com a subjetividade — a saber, pensamento,
reflexão e imaginação — como falar em “objetificação” onde não há
sujeitos? Não se poderia pensar que a escritora estaria, aí, tentando
questionar a oposição entre sujeito e objeto?
Para construir esse mundo em que a cidade, os habitantes, as coisas,
tudo enfim é exteriorizado como visão, Clarice lançou mão de
procedimentos estilísticos vários. Gaspar Simões, referindo-se à estética do
surrealismo, enfatiza a ambiência onírica em que, com frequência,
aparecem mergulhadas as personagens. Mas também os paradoxos e as
metáforas insólitas são vinculáveis à mesma estética. Também o grotesco e
a caricatura, aos quais se referira Benedito Nunes, são categorias que
ajudam a compreender a figuração de uma realidade em que humanos e
animais, humanos e coisas, animais e coisas, tudo se aparenta, na condição
de corporeidades visíveis.
Chamam a atenção também as várias imagens visuais que funcionam
como emblemas ou efígies da própria obra. Não é casual que uma delas seja
a imagem de Efigênia — o nome diz tudo — que, surgindo ao final do
primeiro capítulo, dá início a um novo dia que desponta, construindo-o com
seu olhar. Outro emblema são os cavalos (com que Lucrécia é identificada)
que ora aparecem soltos no morro do pasto, sinalizando a esfera subterrânea
do fluido e livre; ora imobilizados, seja como estátua equestre ou atrelados
às engrenagens do progresso do subúrbio. Seria possível apontar outros
emblemas, mas vou me limitar a um que não só parece funcionar como
emblema de A cidade sitiada, mas também sugere a importância desse livro
para outras obras de Clarice.
O capítulo em que se vê Perseu “à janela, de um segundo andar”,
decorando um texto cujo sentido é ignorado, mostra-o, depois, comendo
tangerinas e cuspindo os caroços:
Em breve comia e jogava os caroços no beco sujo. Olhava piscando: o caroço dava dois pulos
antes de imobilizar-se ao sol. Perseu não o perdia de vista apesar da distância e das pessoas
que já se entrecruzavam apressadas […]. E em pouco a rua se achava plena de pontos
concretos: inúmeros caroços espalhados numa disposição que tinha um sentido flagrante —
apenas que incompreensível.21

De algum modo, também sobre A cidade sitiada se poderia falar num


sentido flagrante, apenas que incompreensível. Perseu emblematiza não só a
atividade dominante das personagens da obra, olhar o mundo, mas também
aquilo que, nesse romance, contrastado com outras obras de Lispector, fica
como que em estágio recessivo, embora se apresente: a oralidade. O moço
engole a fruta e depois cospe os caroços, assim como, ao recitar, expele pela
boca caroços verbais. O texto recitado vai aparecendo aos pedaços ao longo
do capítulo, interrompido por observações do narrador. O comer e vomitar,
que antes se vira em Joana, passa por Perseu, antes de chegar a G.H. Parece,
assim, que A cidade sitiada, em sua dureza de texto hermético é da natureza
do caroço. Dele brotarão frutos. Vejamos alguns.
A maçã no escuro é o romance cuja publicação se seguiu a A cidade
sitiada, embora doze anos depois. Ambos iniciam numa ambiência noturna.
Só que A cidade sitiada apresenta o povo de S. Geraldo na noite de festa em
homenagem ao padroeiro. Ainda assim, a experiência onírica é traço forte
da caracterização: “A multidão, tocada do sono rápido em que sucumbira,
moveu-se bruscamente […]. Sonolentas, obstinadas as pessoas se
empurravam com os cotovelos […] os habitantes […] cujas costas já davam
para o vazio lutavam sonâmbulos para entrar”.22
N’A maçã no escuro, trata-se da noite de sono de Martim:
Esta história começa numa noite de março tão escura quanto é a noite enquanto se dorme. O
modo como, tranquilo, o tempo decorria era a lua altíssima passando pelo céu. Até que mais
profundamente tarde também a lua desapareceu. Nada agora diferenciava o sono de Martim do
lento jardim sem lua: quando um homem dormia tão no fundo passava a não ser mais do que
aquela árvore de pé ou o pulo do sapo no escuro.23
Ora, o capítulo 5 de A cidade sitiada trata também do sono de Lucrécia.
Não parece casual que seu título seja “No jardim”. Nos dois casos, a
metáfora é a mesma: “jardim” é espaço onírico. E o modo como se figura
esse espaço é semelhante nos dois romances:
o rosto de Lucrécia estava transviado pelos primeiros espantos do sono. Mal-assombrada como
se já tivesse adormecido, interrompeu-se com o vestido na mão […] mais um instante e
começaria a sonhar […]. Havia um momento na imobilidade dos objetos que assombrava
numa visão […]. Fitar as coisas imóveis por um momento a solevou num suspiro de sono, a
própria imobilidade a transportou em desvairamento […] Em breve estava na cama.
Adormeceu desperta como uma vela.24

Note-se que de Martim também se diz que “suspirou dentro de seu


largo sono acordado”.25 Além disso, assim como, dormindo, ele é impessoal
como uma árvore ou um sapo, Lucrécia o é como uma estátua: “Enquanto
sonhara, já se passara muito tempo sobre o rosto […]. Os lábios de pedra
haviam-se crestado e a estátua jazia nas trevas do jardim”.26
N’A maçã no escuro lemos que “os canteiros tinham uma ordem que
procurava concentradamente servir a uma simetria. Se esta era discernível
do alto da sacada do grande hotel, uma pessoa estando ao nível dos
canteiros não descobria essa ordem”. A imagem é muito próxima daquela já
citada em que Perseu, também ele postado no alto de um sobrado, cospe
caroços na rua e constrói uma figura “cuja disposição tinha um sentido
flagrante, apenas que incompreensível”. Aliás, como Perseu, que é visto de
pé à janela de um segundo andar, também Martim “ficara de pé, na sacada
procurando, com inútil obediência, não perder nada do que se passava”. 27
Tanto quanto Lucrécia e Perseu, Martim aparece, ao menos nesse
início de história, como parco de recursos mentais:
Assim pensou ele. E findo o raciocínio, ao qual chegara com a maleabilidade com que um
invertebrado se torna menor para deslizar, Martim mergulhou de novo na mesma ausência
anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como se nada tivesse a ver consigo
mesmo, e a espécie se encarregasse dele.28

Também ele, nesse momento, aparece mais como corpo do que como
espírito: “Ninguém ensinara ao homem essa conivência com o que se passa
de noite, mas um corpo sabe”.29
Volto à imagem do jardim por ser ela frequente em obras de Lispector.
Próximo à publicação de A maçã no escuro, no volume de contos dos Laços
de família, encontra-se esse que talvez seja um dos contos mais conhecidos
da autora: “Amor”. Embora Ana não seja qualificada como “burra” ou
“estúpida”, adjetivos que servem para Lucrécia ou para a Laura de “A
imitação da rosa”, ela se mantém fortemente aderida ao cotidiano banal de
dona de casa e mãe de família:
A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros […] o vento batendo nas
cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa,
olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não
outras, mas essas apenas.30

Também para Lucrécia, no seu destino de moça casadoura, o espaço da


cozinha e as modestas atividades domésticas são referências importantes:
Nesse dia aconteceu a Lucrécia Neves estar na cozinha às duas horas da tarde […] Esfregando
os dentes do garfo, Lucrécia era uma roda pequena girando rápida enquanto a maior girava
lenta — a roda lenta da claridade, e dentro desta uma moça trabalhando como formiga. Ser
formiga na luz absorvia-a inteiramente e em pouco, como um verdadeiro trabalhador, ela não
sabia mais quem lavava e o que era lavado.

Como se vê, são situações muito semelhantes: se Ana aparece “como


um lavrador”, Lucrécia também é “um verdadeiro trabalhador”. Ainda no
mesmo capítulo em que Lucrécia lava pratos, lê-se também que
a moça tinha sorte: por um segundo sempre escapava. Verdade era que, pela diferença deste
segundo, outra pessoa de súbito compreenderia. Mas era verdade também que pelo mesmo
segundo, outra pessoa seria fulminada: S. Geraldo estava cheia de pessoas fulguradas que se
sacolejavam plenas de alegria no carro de socorro do Hospício Pedro II.31

Com pedras parecidas, Lispector constrói situações diversas. Se


Lucrécia escapa de compreender e de ser fulminada, Ana não é fulminada
mas, no ambiente do jardim, fora do círculo protegido da cozinha, e depois
da visão do cego, adquire a compreensão relativa à vida anterior à
domesticidade da qual buscava fugir. Já Laura, de “A imitação da rosa” é a
“estúpida” que não escapa e acaba sendo fulminada.
Essa família de mulheres de horizontes limitados, “estúpidas”,
fornecerá a Lispector o exemplar com o qual concluirá sua obra, levando-a
à altura das estrelas. Pois, tanto quanto para Lucrécia, para Macabéa
“pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito se pensava”.32 A relação de
ambas com os respectivos pretendentes é muito semelhante. Durante um
passeio com Lucrécia, Perseu tem “um pensamento obstinado de amor, que
ele não sabia lhe dar. ‘E não havia mesmo motivo de lhe dar amor’…
Apenas razões contra; e uma delas é que ‘ela escolhia muito’ […] Perseu
buscava algo sobre o que ter piedade amorosa porém mesmo os defeitos
físicos da namorada eram calmos”.33
Também no caso de Macabéa e Olímpico, trata-se de um “namoro
talvez esquisito mas pelo menos parente de algum amor pálido”.34 Quando
os dois conversam, a coisa sai assim:
— Olhe, Macabéa…
— Olhe o quê?
— Não, meu Deus, não é ‘olhe’ de ver, é ‘olhe’ como quando se quer que uma pessoa escute!
Está me escutando?
— Tudinho, tudinho.
— Tudinho o quê, meu Deus, pois se ainda não falei!35

Compare-se com a conversa de Lucrécia com outro pretendente, o


tenente Felipe:
— ... que horas são… indagou ela com gentileza.
Felipe coçou o pescoço, levantando o queixo iluminado:
— As mesmas de ontem a essa mesma hora…
Lucrécia Neves riu, os lábios secos partiram-se com ardor em vários talhos sem sangue.
[…]
— Não, de verdade, Felipezinho, que horas são, ronronava a moça inquieta e atraente.
[…]
— Já não lhe disse? insistiu o tenente examinando-a na penumbra esverdeada com um
interesse maior…36

Macabéa ainda apresenta um traço que a aparenta não só a Lucrécia


mas a outras mulheres lispectorianas já referidas: a proximidade com a
imagem da barata. E, no seu caso, tal parentesco é evocado de modo
fortemente enviesado. Diz-lhe o nada gentil namorado: “Você não vai
entender mas eu vou lhe dizer uma coisa: ainda se encontra mulher barata.
Você me custou pouco, um cafezinho. Não vou gastar mais nada com você,
está bem?”.37
Esses exemplos de migração de temas, procedimentos estilísticos e
modos de caracterização, d’A cidade sitiada para obras posteriores, não são
os únicos. Um levantamento mais exaustivo seguramente apontaria para
outras obras beneficiadas pela experiência que o romance de 1949 significou
para a prática de escrita da autora. Com isso, parece ser possível auferir de
modo mais aprofundado o valor e a importância desse romance. Nele,
efetivamente, Lispector se empenhou como um lavrador, como um
verdadeiro trabalhador: garimpando pedras, lapidou diamantes.
Para concluir, volto ao começo, à importância das baratas em Clarice.
Mesmo que não ouse, aqui, me aproximar de G.H., pois esse seria assunto
para outro ensaio. Em “A quinta história” se diz que o veneno que mata as
baratas esturricaria o de dentro delas. Ao tentar construir, n’A cidade
sitiada, personagens sem o de dentro delas, Clarice parece procurar aliviá-
las do veneno da subjetividade. O que lhes confere a marca de estrangeiras
e as aproxima de experiências ficcionais de outros escritores importantes do
período, como Camus ou Robbe-Grillet, por exemplo. Sem falar de
antecessores que já vinham elaborando formas diversas de repensar a
subjetividade, como Proust e Woolf. Sobre esses dois, Michel Serres diz
que eles “cantam a alma das coisas”.38 De Lispector se poderia dizer que
canta a fusão da alma com as coisas.

NOTAS
1. “A quinta história”. In: A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964, p. 93.
2. O drama da linguagem. São Paulo: Ática, 1989, p. 13.
3. Ibid., p. 14.
4. A legião estrangeira, pp. 142-3.
5. Perto do coração selvagem. 5. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1974, p. 31.
6. O lustre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982, p. 189.
7. A cidade sitiada. 5. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 41.
8. Cf. Clarice Lispector: Uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
9. Cf. Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973, pp. 18-21.
10. Uma poética do olhar, pp. 62-4.
11. O Dorso do Tigre. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 122.
12. O posfácio de Moser encontra-se em A cidade sitiada. Rio de Janeiro: Rocco, 2019, pp. 193-207.
13. A cidade sitiada, op. cit., p. 86.
14. Ibid., p. 87.
15. Ibid., p. 19.
16. Ibid., p. 48.
17. O texto está incluído em A legião estrangeira.
18. A cidade sitiada, op. cit., p. 28.
19. Id., p. 27.
20. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 416-7. Carta publicada na coluna do
JB de fev. 1970.
21. A cidade sitiada, op. cit., p. 28.
22. A cidade sitiada, op. cit., pp. 9-10.
23. A maçã no escuro. 3. ed. Rio de Janeiro: José Álvaro Ed., 1970, p. 11.
24. A cidade sitiada, op. cit., p. 75.
25. A maçã no escuro, p. 13.
26. A cidade sitiada, p. 80.
27. A maçã no escuro, p. 11.
28. Ibid., pp. 14-5.
29. Ibid., p. 15.
30. Laços de família. 3. ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1973, p. 17.
31. A cidade sitiada, op. cit., p. 85.
32. A hora da estrela. 7. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 63.
33. A cidade sitiada, op. cit., pp. 39-40.
34. A hora da estrela, p. 69.
35. Ibid., p. 63.
36. A cidade sitiada, op. cit., pp. 49-50.
37. A hora da estrela, p. 64.
38. “Tempo, erosão: faróis e sinais de bruma”. In: Virginia Woolf, O tempo passa. Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2013. Trad. e org. de Tomaz Tadeu, p. 66.
O começo e o fim
VILMA ARÊAS

…uma grande vontade de se dissolver até misturar seus fins com o começo das
coisas.
Clarice Lispector

Imagino que Perto do coração selvagem1 produza um estremecimento no


leitor desde a sua primeira página, quando Joana, menina, depois de “um
momento grande, parado, sem nada dentro”, percebe que “deram corda no
dia e tudo começou a funcionar […] como uma chaleira a ferver”. Olhando
a cena de fora, percebemos que essa chaleira pode ser a chaleira da
literatura, movimentando elementos exteriores e interiores como num
brinquedo de dar corda, segundo palavras da narradora. Não é novidade que
o fogo desse coração selvagem alimentou, de feição irradiante, direta ou
obliquamente, os livros que se seguiram, até a assombrosa A hora da
estrela,2 cuja presença Clarice já intuíra desde o começo, durante a
adolescência de Joana no colégio interno, ao admirar a noite por uma janela
aberta: “[…] estrelas grossas, sérias e brilhantes, como um aviso parado:
como um farol. O que tentam dizer?” (p. 58).
Ela sente então “a forma brilhante e úmida debatendo-se” dentro de si.
Mas como falar dela? Aflita, pergunta-se: “onde está o que quero dizer,
onde está o que devo dizer?”, desejando a autonomia do querer (“eu posso
tudo”, costumava dizer), mas que fosse ao lado da palavra justa, aquela que
deve ser dita ou escrita.
Por isso, antes de mais nada, uma linha forte de Perto do coração
selvagem se apoia numa investigação intuitiva, mas insistente, sobre o
pensar a função do próprio pensamento, em mais de um aspecto imposta
por esse conceito de autonomia, buscado também intuitivamente. A tensão
advém da exigência muitas vezes obscura da verdade e do que se deve
dizer. Apesar disso, Joana não desiste, afastando lembranças pessoais,
sempre incertas, para encontrar “a primeira verdade”.
“Onde foi que eu vi uma lua alta no céu, branca e silenciosa? As
roupas lívidas flutuando ao vento […] Estou me enganando, preciso voltar.
Não sinto loucura no desejo de morder estrelas, mas ainda existe a terra. É
porque a primeira verdade está na terra e no corpo” (p. 59).
O problema seria articular a imanência do ser com o discernimento.
Ao lado disso acrescenta o princípio ético, que se deixa entrever na
aspiração da criança de ser “herói”,3 isto é, salvar, fazer o que deve ser feito;
em geral, atribuição dos heróis. Este desejo se projetou nos livros seguintes,
embora Joana não saiba muito bem o que significa esse “heroísmo”.
Também quer se tornar uma verdadeira estrela, o que só seria possível
quando fosse além da inspiração e possuísse “a própria coisa” (p. 58).
Adiantando, o ponto de chegada do longo caminho que os vários
narradores, “na verdade Clarice Lispector”, percorreram às voltas com esse
desejo, nos é dito em A hora da estrela, num cenário radicalmente
transformado, quando o mesmo Rodrigo S.M./Clarice Lispector, narradores
duplos, concluem pragmaticamente que a hora da estrela é a hora da morte,
momento em que os sinos badalam “sem que seus bronzes lhes dessem
som” (p. 103).
No início, num mundo incompreensível, Joana tenta a experiência de
possuir; no limite, “compreender”, “ter concretamente” objetos e elementos,
a começar quando tenta segurar o ar e fracassa, mesmo sabendo que é o ar,
mas não sabendo o que é o ar: “sim, eu sei o ar, o ar! Mas não adiantava,
não explicava” (p. 12). A experiência com a água do mar abre uma distância,
a menina dá um passo além. O pai havia morrido e ela passa a viver em
casa da tia, para onde fora levada. Transtornada com a mudança indesejada,
foge para a praia, para o mar. A água corria, “escapulindo clara como bicho
transparente e ‘vivo’, mas que “escorregava, fugia” (p. 35). Nesta precisa
ocasião, ela vai ficando feliz, mas era “uma alegria séria, sem vontade de
rir, uma alegria quase de chorar”.
“Devagar veio vindo o pensamento. Sem medo… nu e calado embaixo
do sol como a areia branca. Papai morreu. Papai morreu… Agora sabia
mesmo que o pai morrera… O pai morrera como o mar era fundo!
Compreendeu de repente. O pai morrera como não se vê o fundo do mar,
sentiu” (p. 66).
A observação da natureza é uma lição que permite o pensamento,
levando à autotransformação: “Não estava abatida de chorar. Compreendia
que o pai acabara. Compreendia que o pai acabara. Só isso”. Ela conseguia,
portanto, ir além da simples experiência concreta, podendo assim
compreender, na prática, o pensamento que levava à autotransformação.
Isto é, o movimento alcançara um desenvolvimento pela natureza do objeto
que está exposto, acessível a suas contradições. Para começar, ela nem sabia
dizer quem era.
“Quer dizer, sei-o bem, mas não posso dizer. Sobretudo tenho medo de
dizer, porque no momento em que tento falar não só não exprimo o que
sinto como o que sinto se transforma lentamente no que digo” (p. 17).
O esforço mental da protagonista, em movimento e ebulição — a
referida chaleira a ferver — é constante em Perto do coração selvagem, e
ela treina suas possibilidades nas mais variadas ocasiões. Basta
observarmos a estratégia de brincar de bonecas. A menina está séria, calada,
os braços ao longo do corpo, sem tocar na boneca, pois “de longe mesmo
possuía as coisas”. Nessa surpreendente brincadeira, percebe ainda uma
coisa difícil de compreender e que em A hora da estrela chega às últimas
consequências: isto é, o narrador da ficção, que é sempre construído pelo
autor e sua invenção, contém tudo o que é pensado. Assim, depois de
brincar de bonecas inventando um enredo, compreende que a boneca, o
carro azul que a matou, a fada, “não eram senão Joana, senão seria pau a
brincadeira” (p. 10). A experimentação abrange vários domínios, inclusive o
dos sonhos, quando explica que uma empregada lhe ensinava a brincar de
sonhar (p. 43). Os sonhos iam se modificando, tornando-se cada vez mais
detalhados e mais complexos. Também confessa que “em pequena podia
brincar uma tarde inteira com uma palavra” (p. 150).
A primeira análise a respeito de Perto do coração selvagem, a de
Antonio Candido,4 pouco depois da publicação do livro em 1943, aponta dois
traços que serão importantes para este meu comentário: o primeiro significa
o predomínio da expressão e da sensibilidade para a transfiguração do
cotidiano e suas referências, pois como diz Joana a Otávio, no final do
livro, na página 177: “tudo o que nos vem é matéria bruta, mas nada existe
que escape à transfiguração”. Isso ela aprendeu na praia, como vimos,
ampliando a busca do sentido da vida, estendendo-o mais tarde à linguagem
e à arte. Isso pode aproximá-la dos “romances de aproximação”, diz
Candido, que substituem a relação bilateral sujeito/objeto, pela
identificação do escritor com o assunto de que trata (como vimos na
brincadeira de bonecas), fazendo a língua adquirir “o mesmo caráter
dramático que o entrecho”. Assim, cria-se muitas vezes uma falsa terceira
pessoa que estabelece um duplo olhar, aprofundando divisões íntimas e de
entendimento da própria personagem, que muitas vezes não compreende o
que vive.
Quando traduziu Bliss, de Katherine Mansfield, Ana Cristina César5
também observou que, do ponto de vista estilístico, as variações estruturais
da história “não são orientadas por fatores externos, tais como trama e
tempo, nem mesmo pela alternância clássica entre o mostrar e o narrar,
entre a cena e o panorama, ou entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo,
entre o lírico e o dramático”. Ao contrário, “a estrutura da história é
organizada pelo tom, em perpétua e simétrica oscilação, em contínuo
movimento de ruptura e discórdia”. Embora em terceira pessoa, a ação é
simultaneamente filtrada por outra consciência (discurso indireto livre),
limitando as funções de intervenção pessoal do narrador e possibilitando, ao
leitor, a experiência direta do personagem.
Nos textos claricianos, o procedimento acontece muitas vezes às
claras, quando a primeira pessoa repentinamente atropela o discurso da
terceira: “E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela
continuava a esperar o que ia acontecer, compreende?” (p. 12). “Estava
alegre nesse dia, bonita também. Um pouco de febre também. Por que esse
romantismo: um pouco de febre? Mas a verdade é que tenho mesmo” (p. 16).
Uma outra referência, ampliando limites, nos é dada pela própria
Clarice numa entrevista a Pedro Bloch: “Comecei a escrever, com sete anos,
histórias que ninguém publicava… Todas as histórias publicadas contavam
fatos. As minhas relatavam repercussões de fatos”.6
Ora, “repercutir” significa refletir, dar nova direção, fazer sentir
indiretamente, inclusive quanto aos narradores, e é isso o que acontece
frequentemente nos textos. Palavras e situações também deslizam,
liberando os conteúdos possíveis da palavra ou da situação. Por exemplo,
no final de Perto do coração selvagem, somos informados da viagem e do
caso amoroso com um homem, de quem ela nada sabia. Mas parece que o
nada saber abre espaço à invenção, perturbando a interpretação anterior da
leitura.
“As ondas cor-de-rosa escureciam, o sonho fugia. Que foi que eu
perdi? que foi que eu perdi? não era Otávio, já longe, não era o amante, o
homem infeliz nunca existira” (p. 185).
Como entender a última afirmação? Do mesmo modo, a viagem no
final do romance aparece a primeira vez, e sempre muito repetida, em um
quadro nos aposentos do “homem infeliz”. Estará criada a dúvida? Existiu
mesmo a viagem? Brincadeiras com a natureza fugidia das palavras?
“O pequeno navio branco flutuava sobre grossas ondas, verdes,
brilhantes e malfeitas — via ela deitada, espiando o pequeno quadro na
parede” (p. 146). “O fim da lucidez de Joana misturou-se ao navio torto sobre
as ondas, movendo-se? movendo-se. Bastava menear a cabeça para que as
ondas a acompanhassem” (p. 152).
Numa entrevista ao Pasquim7 em 1974, Ziraldo observou a respeito de “O
búfalo” que ela narrava não o que estava acontecendo com o búfalo ou a
personagem, mas o que se desenrolava no espaço entre eles. Portanto ela
escrevia mais sobre as possibilidades do que sobre o fato em si.
Essa “suspensão de sentido”, que na verdade é a problematização das
muitas camadas de sentido, significa também momentos de conflito com as
relações familiares, pai, tia, marido, amante; com as leis sociais (ela acha
natural roubar, mentir, sente náuseas com a bondade8 etc.; maturidade
intelectual e sensitiva que perturba os professores; como vemos na pergunta
a uma professora, que contara uma história com final feliz, para que os
alunos a escrevessem. Mas Joana parece em dúvida: “depois que se é feliz o
que acontece? o que vem depois?”)9 (p. 25).
Talvez os elementos mais importantes sejam os conflitos ou angústias
a respeito da construção literária, que aparecem desde a obra de estreia, pois
tudo leva a crer que o narrador, naquele mesmo momento, esteja escrevendo
o livro que temos nas mãos. Como acontecerá em A maçã no escuro e
especialmente em A hora da estrela, as dúvidas dos narradores são muitas.10
Depois de todas as elucubrações, quando se sentia de “outra qualidade”,
“espalhada no ar, pensando dentro das criaturas, vivendo nas coisas além de
mim mesma” (p. 24), percebe que se afastara da terra e do corpo, pois
escolhera os caminhos “antes de neles penetrar — e apenas com o
pensamento” (p. 167). Mas já estamos no final do livro, a
personagem/narradora não tem mais tempo, embora confesse corajosamente
que não sabe resolver o desfecho. Então pergunta ao leitor: “como terminar
a história de Joana?”. E avalia: “Eu não a chamaria de herói, como eu
mesma prometera a papai” (pp. 168-9). Fracassara. Entrega-se, então, às
promessas do futuro, redefinindo o próprio projeto: “Eu romperei todos os
nãos que existem dentro de mim … o que eu disser soará fatal e inteiro …
serei leve e vaga como o que se sente e não se entende … de qualquer luta
ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo” (pp. 178-9).
Quarenta e três anos depois, A hora da estrela responde a essa
promessa, descartando, entretanto, o fundamental; isto é, o protocolar
desfecho ditoso. Basta-nos observar um dos treze títulos do romance
(“.quanto ao futuro.”), em que o futuro se mostra encurralado pelos dois
pontos finais. Evidentemente não é assim com os outros personagens, pois a
linha mais forte da trama vai se construindo apoiada na imagem, ao mesmo
tempo realista e imaginária, de uma retirante miserável,11 que é, ao mesmo
tempo, a narradora (não incluo aqui Rodrigo S.M., porque ele já é “na
verdade” Clarice Lispector). À Macabéa o futuro feliz é apenas prometido
pela patética cartomante, pouco antes do atropelamento fatal:
Ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou
veloz e guloso: é agora, é já, chegou a minha vez! E enorme como um transatlântico, a
Mercedes amarela pegou-a — e neste mesmo instante em algum único lugar do mundo um
cavalo como resposta empinou-se em gargalhada de relincho12 (p. 95).

Naquele momento, à narradora só resta concluir que a morte naquela


história era “seu personagem predileto”.
As trinta e seis linhas iniciais de A hora da estrela, que compõem a
“Dedicatória do Autor (na verdade, Clarice Lispector)”, contêm em
essência o conteúdo da obra, a começar pela reafirmação da morte: “Pois
que dedico esta coisa aí ao antigo Schumann e sua doce Clara que são hoje
ossos, ai de nós”. É interessante comparar essa desalentada dedicatória com
a primeira página de Perto do coração selvagem porque, apesar da
insistência desse motivo em vários textos de Clarice, o tom que os percorre
inspira diferenças sutis. Aqui também o tom e o tempo determinam diálogo
e divergência entre os dois livros. Joana se refere à morte, mas observada de
longe, fazendo parte do ciclo da vida. Encosta “a testa na vidraça brilhante e
fria”, olhando no quintal do vizinho para “o grande mundo das galinhas-
que-não-sabiam-que-iam-morrer”, enquanto “uma ou outra minhoca” se
espreguiçava “antes de ser comida pela galinha que as pessoas iam comer”
(p. 9).
A hora da estrela retoma o fio desta pauta. De um certo ângulo,
travestida e meio disfarçada, a recordação da vida enche dramaticamente as
páginas, como uma espécie particular de Amarcord.13 Além disso, a
estrutura narrativa é provocante e claramente circense,14 com o par de
clowns, Macabéa e Olímpico de Jesus, que lembram Gelsomina e Zampanó,
também de Federico Fellini, antiga admiração de Clarice. O filme é La
Strada (“A Estrada da Vida”).15 Com tal apoio, o livro pode vestir-se com
negligência proposital, com ares de improvisação, embora saibamos que,
em arte, a improvisação não se improvisa. A revolta é destilada pouco a
pouco, não apenas pelo escândalo da desigualdade social brasileira, mas
também pela própria Clarice, na obra, com suas lembranças de pobreza e
sua melancolia profunda, que sempre vêm à tona. Portanto, a confissão
“tanto nos intertrocamos”, referida a si própria e a Macabéa, não funciona
como blague, apenas.16 E, como se não bastasse, narradora e personagem
estão, concreta e imaginariamente, a um passo da morte. Sentindo-se um
fracasso, ela repete Martim, de A maçã no escuro, que desistira da verdade.
Agora, esta mesma verdade, embora procurada, era “irreconhecível” para os
homens. Além disso, conclui que qualquer história tem a condição e a
contradição de ser “verdadeira, embora inventada”. Abala, portanto, aquela
verdade anterior baseada na terra e no corpo, como vimos antes. A
desilusão frente a tudo isso a faz considerar o próprio livro como “esta coisa
aí”. A protagonista nunca passara “de uma caixinha de música meio
desafinada”, em oposição à obra dos grandes músicos citados na sequência.
Assim, a ela só resta a lastimável confissão: “O que me atrapalha a vida é
escrever”.
A história, perpassada por uma “levíssima e constante dor de dentes”,
acontece “em estado de emergência e de calamidade pública”. Em sua
elaboração, não só o cenário e o figurino obedecem ao teatro popular, mas
também o som, que abre a cena com um “violino plangente tocado por um
homem magro bem na esquina”; a “explosão” dos tambores soa, nos
momentos de expectação, e a marcação dos minutos que ecoam
mecanicamente na Rádio Relógio misturam-se a rápidas informações
culturais e musicais. Foi então que Macabéa ouviu, pela primeira vez, Una
furtiva lacrima, “única coisa belíssima de sua vida”.17
Os personagens principais, cada um com sua máscara, formam um
elenco circense completo, a começar pela extraordinária transmutação de
Macabéa feita pelo espelho deformante, que passa a identificá-la como
clown: “meio caiada” de pó de arroz, com a bocona vermelha para imitar
seu ídolo, Marilyn Monroe, e o narigão. Os outros atores/atrizes são a
cartomante gorda, “bonecão de louça quebrado”, Glória, com seu bigode
dourado criado pelo buço oxigenado (o que faz Olímpico, excitado, se
perguntar se “lá embaixo” ela era também loura), e o próprio narrador que
se diz “ator”, porque, “com apenas um modo de pontuar, faço malabarismos
de entonação, obrigo o respirar alheio a me acompanhar o texto” (p. 29);
Olímpico de Jesus,18 parceiro clownesco de Macabéa, é personagem
complexo, que mereceria uma análise mais detida. É ele quem revela
Macabéa ao leitor, no primeiro encontro que tiveram.
“— qual é mesmo a sua graça?
— Macabéa.
— Maca — o quê?
— Bea, foi ela obrigada a completar.
— Me desculpe, mas até parece doença, doença de pele.” (p. 53).
Não é raro a crítica relacionar o nome da personagem ao Livro dos
Macabeus, mesmo que este, embora conhecido, não faça parte da Bíblia
judaica. Não possuir a Palavra conduziria à desagregação pessoal, conforme
acontece com a personagem. A relação é clara, ninguém pode negar e, em
“O Estrangeiro em Clarice Lispector”, Berta Waldman a examina de modo
perspicaz.19 Mas, segundo penso, existe o outro lado da moeda, claramente
colocado. Vejamos: por que será que Olímpico associa o nome “Macabéa” a
“doença de pele”? Aliás, num efeito dramático, mas temeroso, ele repete a
palavra “doença” (“Até parece doença, doença de pele”). Isso não pode ter
sido por acaso. Só encontro a resposta pela associação sonora de
“Macabéa” com “morfeia”, isto é, lepra, comum no Norte e no Nordeste,
entre as classes populares,20 pelo menos na época. Acho que esta relação é
estrutural do livro. Quanto ao divino, não são raras as afirmações como
esta: “Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem
conseguir pegá-lo”21 (p. 33).
A este ponto retomo a “Dedicatória”, com apoio no ensaio citado de
Antonio Candido. Pois em A hora da estrela a linguagem também adquire o
mesmo caráter dramático do entrecho, o que não deixa de significar o
respeito à verdade para com os materiais. Assim, se o assunto é a pobreza, a
linguagem se faz também pobre, mal articulada e com erros de português.
Desde os nomes dos protagonistas, Macabéa e Olímpico, que imitam o
costume popular de batizar os filhos com nomes excêntricos, talvez como
empurrão mágico para afastá-los da pobreza. O mesmo acontece com o
esforço de “falar difícil”, imitando a classe de cima. As últimas linhas da
“Dedicatória” nos servem de demonstração, para o jeito troncho do uso:
“Resposta esta que espero que alguém no mundo ma dê. Vós?”. No
exemplo, a construção gramatical é apenas improvável. Mas o que dizer
desta: “Cada coisa é uma palavra. E quando não se a tem inventa-se-a”?
Do mesmo modo, encontramos grande falta de cerimônia e humor,
quando a narradora muda termos cristalizados na crítica literária, como
“autor” e “personagem”. Por exemplo, “Dedicatória do Autor (Na verdade
Clarice Lispector)”. São traços que se espalham pelo livro, a partir também
da “história lacrimogênica” do penúltimo título. Aliás, treze títulos entram
pelo mesmo caminho, além de brincar, exagerando comicamente, os títulos
duplos dos melodramas. O narrador, também duplo, chega a perguntar:
“Isto é um melodrama?”.
Os exemplos oscilam entre erros e invenções notáveis e lúdicas:
“Ruflar” por “rufar”, “efemérides ou efeméricas?” Ou “efemírides”? (p. 49).
“Imaginavazinha” (p. 40); “vivia em câmara leeeeenta, lebre puuuuulando no
aaaar sobre os ooooouteiros” (pp. 40-1). Um dia Macabéa vê num botequim
um homem muito belo. “[Era] tão, tão, tão bonito que-que queria tê-lo em
casa. Deveria ser, como-como ter uma grande esmeralda-esmeralda-
esmeralda num estojo aberto” (p. 50).
A radicalidade gestual da expressão dispensa interpretações. O mesmo
acontece com os diálogos, principalmente entre os dois clowns, a começar
do primeiro, já citado. O hábito de Macabéa ouvir a Rádio Relógio, a única
“escola” ao alcance das mil Macabéas brasileiras, é fonte de gags, ou
efeitos burlescos, extraordinários.
— Eu gosto tanto de ouvir os pingos de minutos do tempo assim: tic-tac-tic-tac-tic-tac. A
Rádio Relógio diz que dá a hora certa, cultura e anúncios. Que quer dizer cultura?
— Cultura é cultura — continuou ele emburrado. — Você também vive me encostando na
parede.

— Você sabia que na Rádio Relógio disseram que um homem escreveu um livro chamado
Alice no País das Maravilhas e que era também um matemático? Falaram também em
“élgebra”. O que é que quer dizer “élgebra”?
— Saber disso é coisa de fresco, de homem que vira mulher. Desculpe a palavra de eu ter dito
fresco porque isso é palavrão para moça direita.

Os exemplos são inúmeros, para não falar das estranhíssimas


mesóclises, já citadas, e que são a preferência de alguns de nossos políticos
históricos.
Por tudo isso, A hora da estrela, em seus doze segmentos, é mais do
que um depoimento dilacerante ou uma despedida. Trata-se de uma revisão
total do registro literário anterior, uma retificação, um deslocamento da
história do olhar. Assim, se a “pálida e frágil” Joana, de Perto do coração
selvagem, é como um pássaro, cuja perna se assemelha a “uma asa frágil”,
não deixa de partilhar essa qualidade alada com Macabéa, mas os termos
são corrigidos: Macabéa possui, sim, o olhar “de quem tem uma asa ferida”,
mas “é distúrbio talvez de tiroide” (p. 33); e se anda de leve “é por causa da
esvoaçante magreza” (p. 24). Essa retificação é uma invariante do texto e
aponta, em Clarice, a coragem de rever sua atividade de escritora,
recolocando as muitas contradições do intelectual, já indicadas nos treze
títulos, a que se acrescente a situação das classes populares.
Talvez possamos ver (e agora é nossa vez de dizer explosão, explosão)
uma sombra de promessa para a classe das Macabéas, no final do livro.
Vejamos: caída no chão depois do atropelamento, com o rosto voltado para
a sarjeta, da cabeça de Macabéa sai “um fio de sangue inesperadamente
vermelho e rico. O que queria dizer que apesar de tudo ela pertencia a uma
resistente raça anã e teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao
grito” (p. 96).
Isto quer dizer que a única esperança talvez esteja, ou um dia estará, na
resistência das classes populares. Então, fora do livro, imaginariamente e
em outros termos, A hora da estrela será a resposta esperada desde Perto do
coração selvagem.

NOTAS
1. Clarice Lispector, Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora,
1963.

2. Id. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.


3. Suponho que “heroína” não fosse comum nos anos 1940.
4. A análise de Perto do coração selvagem foi republicada com o título de “No raiar de Clarice
Lispector” (In: Antonio Candido, Brigada Ligeira, 1945), e republicada em Vários escritos. São Paulo:
Livraria Duas Cidades, 1970.
5. Ana Cristina César, “Introdução” a Escritos da Inglaterra. São Paulo: Brasiliense, 1988.
6. Pedro Bloch, “Entrevista — Vida, pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira”. Rio
de Janeiro: Bloch Editores, s.d., pp. 7-11 (as entrevistas são datadas de 1963-64-65; a de Clarice é de 1964).
7. Cf. Encontros/Clarice Lispector (Org. Evelyn Rocha). Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2011, p.
121.

8. Yudith Rosenbaum, Metamorfoses do mal, principalmente o capítulo primeiro sobre Perto do


coração selvagem, quando Joana surge como “matriz da crueldade”. (São Paulo: Edusp; Fapesp, 1999.)
9. Não deixa de ser curiosa a coincidência, e evidentemente não passa disso, da formulação de
Clarice quanto ao “ser feliz” e a de Samuel Beckett (em En Atendant Godot, publicado em 1952 pela
Minuit), nove anos depois de Perto do coração selvagem. A fala é de Estragon: “Qu’est-ce-qu’on fait
maintenant qu’on est content?”.
10. João Adolfo Hansen, “Uma estrela de mil pontas”. Língua e Literatura: Revista do Departamento
de Letras da USP. São Paulo: Edusp, ano XIV, v. 17, 1989.
11. Macabéa é representante de toda uma classe. “Como a nordestina há milhares de moças
espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa … é
minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas etc.” (p. 18).
12. A cena da morte de um cavalo, a tiro, aparece na ficção de Clarice desde A via-crúcis do corpo,
quando ela viu o filme A noite dos desesperados, que fez enorme sucesso no Rio dos anos 1970, e era
baseado no livro de Horace McCoy, They shoot horses, don’t they? (1930), que se passa na época da
Depressão Americana.
13. “Amarcord”, em dialeto romagnolo, significa “eu me recordo” (cf. Luiz Renato Martins, Conflito
e interpretação em Fellini. São Paulo: Edusp; Instituto Cultural Ítalo-Brasileiro, 1994).
14. O que se segue sobre a estrutura do livro é, em parte, o que discuti em Clarice Lispector com a
ponta dos dedos/A trama do tempo, op. cit., cap. 4.
15. Cleusa Rios Passos, “Clarice Lispector, os Elos da Tradição”, em que a ensaísta examina, no
cruzamento do King Lear shakespeariano com “Feliz Aniversário”, de Laços de família, a
“reinvenção textual” de Clarice, fluindo meio encoberta sob o texto, mediante mecanismos diversos.
Cf. Revista USP, n. 10, jun./jul./ago. 1991.
16. Gilberto Figueiredo Martins, Estátuas invisíveis: experiências do espaço público na ficção de
Clarice Lispector. São Paulo: Nankin; Edusp, 2010, principalmente o capítulo 2: “Infância e fome: O
espaço rememorado (Evocações do Recife)”.
17. A ária é último ato de L’elisir d’more, de Gaetano Donizetti (1832). Gelsomina também ouve um
dia uma melodia seiscentista que a impressiona, aprende a tocá-la numa corneta e foi o que lhe restou
até a morte.
18. Não esquecer os nomes pomposos dos circos do passado, como “Circo Real” ou “Circo
Olímpico”. (Cf. Mário Fernando Bolognesi, primeiro capítulo “Asteleys — Observações Históricas
sobre o Circo”. In: Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.)
19. Berta Waldman, “O Estrangeiro em Clarice Lispector”. A narração do indizível. Porto Alegre:
Artes e Ofícios, 1998.
20. Cf. estatística sobre a lepra nas classes populares em Fausto Cupertino, População e saúde
pública no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. Cf. também Marlyse Meyer, Caminhos
do imaginário no Brasil, primeiro capítulo, em que ela cita a Folha de S.Paulo, de 4 nov. 1979: “Manaus
convive com seis mil hansenianos desamparados”.
21. Como uma pista, talvez, para a religiosidade de Clarice, aconselharia o excelente artigo de
Joaquim Alves Aguiar, “O Poeta Aviador”, sobre Manuel Bandeira, pois o poeta, apesar de não
acreditar em Deus, tem muitas referências a Ele e às coisas sagradas. (Cf. Letras & Letras: Revista
do Instituto de Letras e Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia: Edufu, v. 17,
jan./dez. 2001.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Joaquim Alves de. “O Poeta Aviador”. Letras & Letras: Revista do Instituto de Letras e
Linguística da Universidade Federal de Uberlândia. Uberlândia: Edufu, v. 17 n. 1-2, jan./dez.
2001.
ARÊAS, Vilma, Clarice Lispector com a ponta dos dedos/A trama do tempo. São Paulo: Imprensa

Oficial, 2020.
BLOCH , Pedro. Entrevista: Vida, pensamento e obra de grandes vultos da cultura brasileira. Rio de
Janeiro: Bloch Editores, s/d.
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Ed. Unesp, 2003.

CANDIDO, Antonio. “No raiar de Clarice Lispector”. In: ______. Vários escritos. São Paulo: Duas

Cidades, 1970.
CÉSAR, Ana Cristina. “Introdução”. In: ______. Escritos da Inglaterra. São Paulo: Brasiliense, 1988.

CUPERTINO, Fausto Guimarães. População e saúde pública no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização

Brasileira, 1976.
HANSEN, João Adolfo . “Uma estrela de mil pontas”. Língua e Literatura: Revista do Departamento de

Letras da USP. São Paulo: Edusp, ano xiv, v. 17, 1989.


LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora, 1963.

______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Editora Livraria José Olympio, 1977.
MARTINS, Gilberto Figueiredo. Estátuas invisíveis: Experiências do espaço público na ficção de Clarice

Lispector. São Paulo: Nankin; Edusp, 2010.


MEYER, Marlyse. Caminhos do imaginário no Brasil. São Paulo: Edusp, 199٣.

PASSOS, Cleusa Rios. “Clarice Lispector: os Elos da Tradição”. Revista USP, São Paulo: usp, n. 10, 1991.

ROCHA, Evelyn (Org.). Encontros/Clarice Lispector. Rio de Janeiro: Azougue, 2011.

ROSENBAUM, Yudith. Metamorfoses do mal, uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Edusp; Fapesp,

1999.
WALDMAN, Berta. “O Estrangeiro em Clarice Lispector”, em Clarice Lispector, a narração do indizível.

Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1998.


PARTE IV

Diálogos
Sereias: Sedução/Conhecimento/Danação1
ADELIA BEZERRA DE MENESES

O romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,2 de Clarice


Lispector, sugere um inescapável contraponto com a Odisseia3 e, muito
especificamente, com o topos da sereia. No entanto, antes de mergulharmos
no texto da Clarice, impõe-se uma interpretação da Odisseia em suas linhas
essenciais, focando a questão da sedução nesse texto matriz. E o guia dessa
interpretação será a leitura que Adorno faz da epopeia de Homero, em
Dialética do Esclarecimento.4
De significativa presença não apenas literária como iconográfica, as
sereias povoam a Antiguidade Clássica, de Homero, a Eurípides, Platão,
Plutarco, Ovídio etc. Esse topos, no entanto, atravessa tempos e espaços e
repontará em mitos de outras cepas culturais, com outras modulações.
Em termos literários, a matriz é a Odisseia de Homero e, na
apresentação que aí se faz das sereias, ressalta aquilo que ao longo dos
séculos restará como a característica fulcral desses seres perigosos: voz
maravilhosa, seduzem quem delas se aproxime, levando à destruição. Todos
conhecemos o episódio do Canto XII da épica, em que Odisseu, para escapar
das sereias, utiliza o estratagema de vedar os ouvidos dos seus
companheiros com cera, para que continuassem a remar, e, quanto a si
próprio, fazer-se amarrar de pés e mãos no mastro do navio, mantendo os
ouvidos livres. [Canto XII, vv. 38-55].
Importa dizer que o texto homérico não fornece uma descrição física
dessas criaturas, sua representabilidade é dada pela iconografia, que mostra
seres metade mulheres, metade pássaros. Mas elas passaram posteriormente
à tradição — em consonância com seu status de divindades marinhas —
figuradas como metade mulheres, metade peixes. A figuração pisciforme,
no entanto, data de fins da Idade Média. E o que as caracteriza,
inescapavelmente, é o canto que encanta.
Mas o que cantam as sereias? Qual o conteúdo desse canto? Essa
informação será dada nesse mesmo Capítulo XII, na sequência do relato de
Odisseu ao rei dos feácios sobre o encontro que tivera com as sereias. Diz
Odisseu:
Estávamos à distância de um grito, avançando rapidamente, quando elas perceberam o ligeiro
barco singrando perto e ergueram um canto mavioso: “Dirige-te para cá, decantado Odisseu,
grande glória dos aqueus; detém o teu barco para ouvir-nos cantar. Até hoje ninguém passou
vogando além daqui, sem antes ouvir a doce voz de nossos lábios e quem a ouviu partiu
deleitado e mais sábio. Nós sabemos, com efeito, tudo quanto os argivos e troianos sofreram
na extensa Troia pela vontade dos deuses e sabemos tudo quanto se passa na terra fecunda.
(Canto XII, vv. 182-200)

O que é significativo — e esse é um elemento em geral descurado na


diluição do mito das sereias, ou melhor, totalmente ausente na
comercialização consumista do mito — é o tipo de sedução que elas
representariam para quem cai na sua armadilha: as sereias são detentoras de
um saber. Prometem a quem os ouve que partirá “mais sábio”.
Elas seduzem pela promessa de um saber que é fundamental a
Odisseu, que o concerne vitalmente, na medida em que conhecem tudo que
gregos e troianos viveram em Troia; mas, para além da própria épica, sabem
“tudo quanto se passa na terra fecunda”. São detentoras de um
conhecimento de uma amplidão totalizante. Não há nenhum sinal de
sedução sexualizada, não há sinal de uma beleza corporal das sereias, nada
de uma descrição física; no entanto, a sua voz é qualificada várias vezes
como “doce” e, sobretudo, nos é apresentado o seu efeito: elas fascinam,
atraem prometendo conhecimento. Sua sedução, não é demais repetir, é a do
saber. No entanto, que fique claro, elas não disponibilizam esse saber
naquilo que Odisseu, amarrado ao barco e impossibilitado de lançar-se ao
seu encontro, efetivamente ouve. Seu canto apenas promete o saber, mas
como Odisseu não cai na armadilha, não experimentará o que o deixaria
“mais sábio”. Ouve a promessa do saber, mas não prova desse fruto. No
entanto, outros marinheiros, cujos ossos e peles se veem na ilha das sereias,
esses se deixaram atrair até elas — e morreram. Conhecimento e danação
articulados.
As sereias no mundo grego corresponderiam, assim, à serpente no
mundo bíblico, tentando Adão e Eva para que provem do fruto da Árvore
do Conhecimento do Éden. Gabriel Germain,5 em seu alentado Gênese da
Odisseia: O Fantástico e o Sagrado, trata muito rapidamente dessa questão.
E se pergunta sobre o canto das sereias: “Ele age sobre os sentidos, ou
procura atingir diretamente o espírito? Qual é sua ‘tentação’?”. Responde
infelizmente rápido demais para o que nós gostaríamos, citando numa nota
de rodapé de J.E. Harrison: “É estranho e belo que Homero faça dirigir-se o
apelo das sereias ao espírito, não à carne. Para o homem primitivo, grego ou
semita, o desejo de saber — de ser como os deuses, era o desejo fatal”.6 A
esse desejo não sucumbiu Odisseu.
Efetivamente, nesse mito de outra cepa cultural, que é o da Bíblia,7 no
Livro do Gênesis, lemos:
A serpente era o mais astuto de todos os animais dos campos, que Iahweh Deus tinha feito. Ela
disse à mulher “Então Deus disse: Vós não podeis comer de todas as árvores do Jardim?”
A mulher respondeu à serpente: “Nós podemos comer do fruto das árvores do jardim. Mas
do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus disse: dele não comereis, nele não
tocareis, sob pena de morte”.
A serpente disse então à mulher: “Não, não morrereis! Mas Deus sabe que, no dia em que
dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós sereis como deuses, versados no bem e no mal.
A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à vista, e que essa árvore era
desejável para adquirir discernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu
marido, que com ela estava e ele comeu. Então abriram-se os olhos dos dois e perceberam que
estavam nus; entrelaçaram folhas de figueiras e se cingiram.8

Aqui também acabou havendo, em algumas das interpretações, uma


erotização do mito, como se a “tentação” da serpente fosse da esfera sexual.
Descura-se o “adquirir discernimento”, o tornarem-se “versados no bem e
no mal”, e a reiterada alusão à imagem de “abrirem-se os olhos”. Mas o que
importa são as consequências: a queda, a expulsão do Paraíso e a perda da
imortalidade, com seu preço em dores, velhice e morte.
Nesse cotejo de dois textos fundadores de civilização, de dois pilares
da civilização ocidental, de duas obras canônicas, uma observação: na
Odisseia, o astuto Odisseu não comeu desse fruto que lhe foi apresentado,
resistiu às sereias, escapou da danação.
Importa agora ver como o herói grego age ao longo de suas demais
aventuras — mas isso implicará em um recuo teórico, como se segue — e
que consistirá na interpretação que Adorno faz da epopeia — e das sereias,
em particular.
Nos capítulos “O Conceito de Esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e
Esclarecimento” da Dialética do Esclarecimento,9 Adorno desenvolve sua
famosa interpretação da Odisseia, que pode ser resumida como a viagem
metafórica do homem ocidental em busca da constituição do sujeito. Ele
aponta uma unidade em todas as lendas difusas que constituem o tecido das
aventuras do herói, e que estão recolhidas entre os cantos IX e XII da épica.
Esses episódios versam sobre o confronto de Odisseu com seres fantásticos
e primitivos, como gigantes antropófagos com um olho só, ou monstros
híbridos como Cila e Caribdis, e, num outro registro, mas igualmente fatais,
as sereias.
Grandes helenistas debruçaram-se sobre esse miolo folclórico da
Odisseia, apontando o caráter de oralidade da epopeia — que a irmanará à
poesia oral de outros povos. (A esse respeito, é muito curioso que até em
narrativas dos nossos indígenas, à margem de qualquer influência
colonizadora, encontramos alguns topoi, como o da ypupiara, ser horrendo
que habita as águas e arrasta para a perdição aqueles que dela se
aproximam.
Adorno analisa os episódios em que Odisseu, no retorno de Troia a
Ítaca, tem um embate com seres arcaicos, míticos e mágicos, forças
primitivas e poderosas, que ele vence através da razão, sabendo renunciar,
num primeiro momento, para poder ao fim afirmar-se plenamente: “Nos
perigos mortais que teve de arrostar, foi dando têmpera à unidade de sua
própria vida e à identidade da pessoa”.10
Efetivamente, em todas as aventuras mais significativas vividas pelo
herói, delineia-se sempre o mesmo esquema. Por exemplo, no encontro com
os lotófagos, Odisseu renuncia a provar da flor do lótus, planta que, uma
vez ingerida, o mergulharia num estado de felicidade e comunhão panteísta
com a natureza, mas lhe tiraria a memória e, consequentemente, o desejo da
volta a Ítaca; ele não come a carne das vacas, proibidas porque pertenciam
ao deus Hélio, contrariamente a seus camaradas, que comeram e todos
pereceram; vence o Cíclope Polifemo, o gigante de um olho só, que ele
cega depois de embebedar, mas renuncia a alardear seu próprio nome de
vencedor, dizendo chamar-se “Ninguém” (o que impediu que os demais
cíclopes o atacassem, ao virem socorrer o companheiro ferido). Os outros
cíclopes, ao verem Polifemo urrar de dor, perguntam “Quem te feriu?” e
Polifemo responde “Ninguém me feriu!”. Diz Adorno, analisando essa
passagem: “Ele (Odisseu) faz profissão de si mesmo negando-se como
Ninguém, ele salva a própria vida fazendo-se desaparecer”.11
Poderíamos falar aqui, freudianamente, da necessidade da repressão
para a passagem da natureza à cultura. Essa repressão é iconizada pelo
episódio paradigmático das sereias: como já vimos, o herói vence sua
sedução fazendo-se, muito sugestivamente, amarrar ao mastro do navio
(ligando-se ao seu próprio eixo, poderíamos interpretar), o que o impediria
de atirar-se aos braços das cantoras, ao mesmo tempo que coloca cera nos
ouvidos da tripulação, para que não ouvissem o canto e continuassem a
remar, sem desviar o barco de sua rota. Eu poderia dizer também que aqui
neste episódio vemos a sedução encenada no seu viés etimológico: se-
ducere significa conduzir para o lado, levar à parte, afastar, desviar. (Do
latim se = à parte + ducere = conduzir).
De fato, foi baseado nos enfrentamentos de Odisseu com esses seres
folclóricos, de narrativas do gênero “maravilhoso”, que Adorno tece suas
doutas considerações sobre a constituição do eu, aí vendo um percurso do
sujeito em confronto com potências míticas, e através do qual ele se
individua, nessa passagem do mythos ao logos: “As aventuras de que
Ulisses sai vitorioso são perigosas seduções que desviam o eu da trajetória
de sua lógica”.
Efetivamente, Odisseu é transformado no protótipo do ser humano: “A
viagem errante de Troia a Ítaca é o caminho percorrido através dos mitos
por um eu fisicamente muito fraco em face das forças da natureza e que só
vem a se formar na consciência de si”.
Efetivamente a literatura é testemunha do desenvolvimento espiritual
do ser humano: a gente sabe que a tragédia grega mostra a formação do
homem como sujeito responsável, estando os gregos do séc. 5 a.C. às voltas
com a categoria da “vontade”. Nos tempos homéricos, recuados de quatro
séculos (por volta do séc. 9 a.C.), lida-se com algo mais primordial: a
questão do in-divíduo no sentido etimológico, do não dividido. Adorno, ao
tratar do herói da Odisseia, fala de um processo de questionamento da
unidade do próprio ser. Ele aponta, nos embates de Odisseu com as sereias,
com o Cíclope, com os lotófagos etc., uma constante: a necessidade de se
constituir como sujeito passa pela necessidade de se dominar. Com efeito,
ao longo do texto, nem sempre se tratará de vencer monstros ou mesmo de
driblá-los, às vezes o inimigo é interno. Na consulta que Odisseu faz a
Tirésias, no reino dos mortos, a volta à casa é posta na dependência da sua
capacidade de “domar o coração”.
Finalmente, pensando na literatura de uma maneira geral, creio que se
poderia dizer que é esse processo de busca de uma identidade configurada,
de uma individuação a ser conquistada, que resta a grande parte da ficção
intimista contemporânea, como vou apontar, ao abordar Uma aprendizagem
ou o livro dos Prazeres, de Clarice Lispector, focando na questão da sereia e
do conhecimento.
No texto de Clarice, a odisseia (odisseia com “o” minúsculo) é outra. Nesse
romance em que a protagonista tem nome de sereia, Loreley (a sereia
nórdica), toda a temática gira em torno da constituição do eu. Efetivamente,
Loreley (chamada ao longo do romance, na maioria das vezes, pelo apelido
redutor “Lóri”) contracena com a personagem Ulisses, estabelecendo-se um
complexo jogo de reapropriações, retomadas e inversões da Odisseia. Lóri
não apenas descola da protagonista da Odisseia, Penélope, identificando-se
ao viajante Odisseu, mas também constela toda uma temática ligada à
sereia. Assim, de um lado vê-se às voltas com problemas da sedução
feminina e suas falácias (sedução no sentido etimológico já apontado, de
se-ducere = conduzir para o lado, desviar da rota); mas de outro lado, num
nível mais profundo, bordeja a questão da articulação entre a sereia e o
saber, que, como vimos, familiarmente aproxima as sereias de Homero à
serpente bíblica, no mito do Gênesis. Não por acaso, a maçã tem uma
presença significativa no romance de Clarice, como se verá. E “morder a
maçã” é tingida com as cores da modernidade.
Eu falei em reapropriações e inversões: nessa reescrita em clave
intimista da epopeia grega, a viagem é interior e efetivada pela personagem
feminina, enquanto Ulisses é quem espera. É o caso de se acompanhar o
percurso de Loreley, em sua busca da constituição do sujeito (para se falar
nos termos de Adorno), auxiliada não por Atena, a protetora do herói grego,
mas por um Ulisses, professor de filosofia, numa “aprendizagem” em que,
ao final, individuados, os dois se encontrarão no amor. O romance mostra
os vários percalços nessa empreitada de constituir-se um “eu”: aventuras
todas interiorizadas e, quando exteriores, reduzidas às dimensões da vida
moderna, ou mais especificamente, do cotidiano da média-alta burguesia
brasileira, na virada dos anos 1960 a 1970.
Contrariamente aos entes míticos com que Odisseu se defronta na
épica, aqui no romance de Clarice Lispector não são seres excepcionais ou
perigos extremos e externos que desafiam a protagonista na sua trajetória
rumo a uma individuação, mas os internos. Trata-se de um processo de
busca de uma identidade, de uma individuação duramente conquistada, de
uma aventura interior. Retomo, como se vê, a interpretação adorniana da
Odisseia, acima sintetizada como a viagem metafórica do homem ocidental
em busca da constituição do eu. Pois bem, essa viagem interior é o que
estrutura o romance. Trata-se, efetivamente, de uma “reapropriação” que,
conscientemente, essa autora faz da Odisseia, um “capital cultural”, uma
“herança clássica” nos termos de Bourdieu.12 Como se verá, há aqui um
paralelismo invertido — pois, apesar de o protagonista ser “Professor de
Filosofia” — representando a metis (para os gregos, a inteligência,
característica fundamental de Odisseu) — e ser aquele que conduz Lóri, a
constituição do sujeito é efetivada, ou melhor, nos é mostrada em seu
processo sobretudo pela personagem feminina. Há assim, um jogo entre
homem/mulher, inteligência/sedução, seduzido/sedutora, espera/viagem,
com os agentes trocados. Lóri faz a viagem, empreende a sua aventura
interior; Ulisses é quem espera, paciente, e pacientemente ensina — posição
um tanto irritante ao longo do livro e que, para Benedito Nunes, era
“exercida com pedanteria e em tom didático”.13
Nessa retomada da Odisseia o confronto com o texto matriz propicia
que se conheça melhor a atualidade. Não no que diz respeito ao
protagonismo feminino, pois a Penélope do mito era uma personagem forte,
malgrado o contingenciamento de seu lugar social fixado pelo horizonte de
sua cultura (ela é a mulher que fica e chora, enquanto seu homem vai para a
luta e vive sua odisseia). Embora dependente de marido e filho, na realidade
ela tem um papel significativo na épica: engana os príncipes aqueus por dez
anos, com o ardil do manto que tece de dia e desmancha à noite. Astuta
(apesar de ser esse o epíteto primordial de Odisseu), ela interfere com força
no enredo e com sua trama enreda o mundo masculino.
Como Penélope, Lóri também tece:
faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações […], faz de conta que amava e era
amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade […], faz de conta que ela não ficava
de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não
sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de
corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos14

As “aventuras” de Lóri, no mundo exterior, são banais acontecimentos


do dia a dia de uma representante da classe média alta do Rio de Janeiro, de
fins da década de 1960 — no registro do cotidiano. Algumas de suas aventuras
são apresentadas quase que carnavalizadamente, como por exemplo, o
telefonema “dificílimo” para chamar o bombeiro de encanamentos de água;
mas outras se revestem de um caráter inapelavelmente simbólico, como o
banho de mar iniciático, de madrugada, sozinha, do qual ela sai fertilizada
pela água salgada.
Tal empreitada é dos dois e implicará em domar o coração (para se
falar nos termos de Homero); em renunciar (para se falar nos termos de
Adorno). O Ulisses de Uma aprendizagem, embora desejando-a, declara
esperar que Lóri “também tenha corpo-alma para amar”.
Mostra-se um percurso que é uma aprendizagem afetiva e existencial
que temporalmente vai desembocar na estação em que o amor floresce, em
que os seres do reino animal se acasalam e em que tudo brota e reverdece.
Nesse livro que se inicia com uma vírgula e acaba com um dois pontos —
portanto, assumindo o caráter intervalar de tudo — delineia-se um percurso.
O enredo se sobrepõe ao ciclo do Cosmos, indo de uma primavera à
próxima primavera — que, como todos sabemos, é um recomeço.
O estado que as personagens atingem é o da “individualidade como
pessoa”. Tínhamos visto, logo na primeira página, no seu monólogo-fluxo-
de-consciência, que a protagonista lembra-se de que o namorado dissera
uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem o nome, não respondesse
“Lóri”, mas “meu nome é eu”. (Diferentemente do Odisseu da épica que,
indagado pelo Cíclope, declara que se chamava “Ninguém”.) No entanto
será em outras formulações da busca da subjetividade que esse topos volta,
como um leitmotiv: “A mais premente necessidade de um ser humano é
tornar-se um ser humano”; “E o que o ser humano mais aspira é tornar-se
um ser humano”. São máximas que ecoam algo de outro grego: refiro-me a
Píndaro, o poeta lírico do século 6 a.C., cujo verso “Torna-te o que tu és!”
foi utilizado por Nietzsche como epígrafe para o seu livro Ecce Homo.
“Torna-te o que tu és.” Pois bem, ao final do romance, as personagens
reconhecem esse ideal em vias de ser atingido.
Retomemos o contraponto com a Odisseia, nas demais reapropriações,
inversões e transgressões do romance. Afora a pequena passagem, acima
referida, em que se alude a Lóri tecelã, a protagonista nada tem de
Penélope, mas, nessa sua viagem interior, de um lado identifica-se com
Odisseu, experienciando a grande viagem em sua aventura de individuação;
de outro lado, a partir do seu nome, Loreley, constela toda uma temática
ligada à sereia, vendo-se às voltas com problemas da sedução feminina.
Mas aqui, num nível mais profundo, bordeja-se a questão menos evidente
da articulação entre sedução e saber, presente nas sereias de Homero e na
serpente bíblica. É isso que justifica, como se verá, a significação que,
nesse romance, ganha a simbologia da maçã. Mas antes, vamos à sereia
Loreley.
Há um momento importante no romance em que o nome da
protagonista é explicitado. Diz Ulisses à sua namorada: “Loreley é o nome
de um personagem lendário do folclore alemão, cantado num belíssimo
poema por Heine. A lenda diz que Loreley seduzia os pescadores com seus
cânticos e eles terminavam morrendo no fundo do mar […]”.
Encontram-se no poema de Heine15 as grandes invariantes do mito das
sereias: a mulher associada a um canto que fascina, a atração que leva à
morte, a sedução. E aquilo que se foi agregando ao longo do tempo, no
recorte das narrativas folclóricas: os longos cabelos loiros, o pente de ouro,
o ato de pentear-se enquanto canta (que vamos ver presente na Yara do
folclore brasileiro). Mas em Heine — como nas incidências do tema das
sereias no folclore — está totalmente ausente o assunto que particularmente
me interessa, a relação da sereia com o saber, a sedução pelo saber.
Processa-se ao longo do romance uma nítida evolução: no início, Lóri
agencia todos os quesitos habituais da sedução feminina superficial, mas
quando vai naquela noite ao encontro de Ulisses, sai de cara lavada, com
apenas uma camisola por debaixo da capa de chuva. Detecta-se o abandono
progressivo das “práticas” exteriores de sedução — maquiagem, perfumes,
vestidos justos etc. — para um outro tipo de sedução, que tem a ver com a
busca do conhecimento a que ela se entrega e que fascina o companheiro.
Só quando dispensa todos os recursos exteriores da sedução, essa mulher
está “pronta” para ficar com o seu homem.
Um dado extremamente interessante é apontar de que maneira Clarice
Lispector desenvolve esse elemento que sublinhei em Homero, e que ficou
estranhamente ausente na diluição do mito das sereias: sua inquietante
associação a um saber — que, como já referi, as aparenta à serpente do
Éden — em cuja sedução caiu Eva, arrastando Adão. E é esse mito que
acabará por dominar no final de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
com a prevalência do símbolo da maçã.
Importa dizer que na primeira página do romance já se alude à maçã,
no monólogo interior com que se inicia o texto, em que Lóri pensa em
“dispor na fruteira as maçãs que eram sua melhor comida”.
Essa maçã, Lóri vai comer, de fato, lá pelo meio do livro; e
simbolicamente, ao final, num sonho, numa alusão direta e explícita à
narrativa bíblica. Mas a leitura do mito feita por Clarice traz uma inversão
fundamental: ao morder a maçã, Lóri entra no Paraíso. Diz o narrador que
Lóri toma em mãos a maçã. E
Depois de examiná-la, de revirá-la, de ver como nunca vira a sua redondez e sua cor escarlate
— então devagar, deu-lhe uma mordida. E, oh Deus, como se fosse a maçã proibida do
paraíso, mas que ela agora já conhecesse o bem, e não só o mal como antes. Ao contrário de
Eva, ao morder a maçã, entrava no Paraíso.16

Como se vê, foi aqui convocado, ao lado da épica grega, o outro


grande cânon da literatura ocidental, que é a Bíblia, o “Grande Código”,
como a nomeia o crítico Northrop Frye.17
No contexto das relações entre sedução e conhecimento, o mito bíblico
é desconstruído/reconstruído. Lóri morde a maçã, e isso não é uma
transgressão; ou melhor, é uma transgressão necessária. A consequência de
morder a maçã é detidamente descrita, ela leva à lucidez, uma lucidez de
quem “sem esforço, sabe.”
“Era uma lucidez de quem não adivinha mais: sem esforço, sabe.
Apenas isso:
sabe. Que não lhe perguntassem o que, pois só poderia responder do
mesmo modo infantil: sem esforço, sabe-se”.
E, ao final do capítulo, ela chega à percepção de que
“Havia experimentado alguma coisa que parecia redimir a condição
humana, embora ao mesmo tempo ficassem acentuados os estreitos limites
dessa condição. E exatamente porque depois da graça a condição humana se
revelava na sua pobreza implorante, aprendia-se a amar mais, a esperar
mais”.18
Trata-se da percepção de um estado contraditório, de seres marcados
pela finitude, pela precariedade e pela cisão, à beira do risco; de seres que
sabem que a completude é um processo de busca renovada e incessante; que
sabem — como diz Chico Buarque, na canção “Beatriz” — que “para
sempre é sempre por um triz”.
Essa experiência, provocada simbolicamente pelo morder a maçã,
precede o encontro sexual de Loreley com Ulisses. Ela vai para a casa dele,
dispensados todos os signos convencionais de sedução feminina — “Fora
tudo tão rápido e intenso que não se lembrara sequer de se pintar”.19 Nas
páginas finais do romance, na sequência de uma conversa dos amantes,
ainda na cama, explicita-se a temática da sedução, que é nomeada com
todas as letras, mas na chave oposta àquela esperada pelo nome de sereia, e
também oposta a uma identificação com a Eva bíblica:
Meu amor, disse ela sorrindo, você me seduziu diabolicamente. Sem tristeza nem
arrependimento, eu sinto como se tivesse enfim mordido a polpa do fruto que eu pensava ser
proibido. Você me transformou na mulher que sou. Você me seduziu, sorriu ela.20
Mas antes, houve o sonho de Loreley. Pois logo após terem finalmente
a sua primeira relação sexual, num “semissono”, ela sonhou com a maçã,
desta vez num contexto erótico:
Foi nesse estado de sonho-deslumbre que ela sonhou vendo que a fruta do mundo era dela. Ou
se não era, que acabara de tocá-la. Era uma fruta enorme, escarlate e pesada que ficava
suspensa no espaço escuro, brilhando de uma quase luz de ouro. E que no ar mesmo ela
encostava a boca na fruta e conseguia mordê-la, deixando-a no entanto inteira, tremeluzindo
no espaço. Pois assim era com Ulisses: eles se haviam possuído além do que parecia ser
possível e permitido, e no entanto ele e ela estavam inteiros.21

Plenitude e incompletude, inteireza e cisão. O ser pleno, efetivamente,


só existe no mito. Para além desse viés sexualizado que parece querer
prevalecer, ao fim, no romance de Clarice — nesse recorte das relações
entre sedução e saber, conhecimento e danação —, o mito bíblico é
desconstruído/reconstruído. O ser humano, consciência cindida, vive sob o
signo da fragmentação. E da transgressão. Há aí nessa “fruta do mundo”,
nessa “fruta enorme, escarlate e pesada que ficava suspensa no espaço
escuro, brilhando de uma quase luz de ouro”, uma grande condensação:
além da maçã do Éden, ela nos remete à maçã de Newton (cuja teoria da
gravidade significou um marco decisivo na ciência para a humanidade);
remete ao pretensioso símbolo da cidade de New York (a “Big Apple”) e ao
que ela significa em termos de civilização e barbárie;22 e, finalmente, remete
ao logotipo da maçã mordida da Apple, estampado nos nossos
computadores e celulares “inteligentes” (muito posteriores ao romance de
Clarice, diga-se de passagem). Aquilo que existe de prometeico no ser
humano sempre será disruptor: é roubo do fogo dos céus?
Em todo o caso, a busca do conhecimento bordeja o abismo da
danação:
“Depois de tal saber, qual perdão?”,23 diz o verso de Eliot, em
Gerontion.

NOTAS
1. Esse texto constitui uma síntese de um ensaio com o título de “Sereias: sedução e saber” publicado
na Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da USP. Cf. Adelia Bezerra de Meneses. “Sereias:
sedução e saber”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo: Universidade de São Paulo
(USP), n. 75, pp. 71-93, abr. 2020. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/169168.
2. Clarice Lispector. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, 19. ed., Rio de Janeiro: Francisco
Alves, 1993.
3. Homero, Odisseia. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 1993, p. 142.
4. Theodor Adorno; Max Horkheimer, “O Conceito de Esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e
Esclarecimento”. In: ______. Dialética do Esclarecimento. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
5. Gabriel Germain. Genèse de l’Odyssé: le fantastique et le sacré. Paris: Presses Universitaires de
France, 1954.
6. J.E. Harrison apud Germain, 1954, p. 384.
7. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Edições Paulinas, 1987.
8. Gn 3,1-17.
9. Theodor Adorno; Max Horkheimer. “O Conceito de Esclarecimento” e “Ulisses ou Mito e
Esclarecimento”. In: ______. Dialética do Esclarecimento. 2. ed., Rio de Janeiro: Zahar, 1986.
10. Cf. Dialética do Esclarecimento, p. 43.
11. Ibid., p. 65.
12. Pierre Bourdieu. A economia das trocas simbólicas. Intr., org. e seleção de Sérgio Micelli. São
Paulo: Perspectiva, 2007.
13. Benedito Nunes. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973, p. 76.
14. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, pp. 20-1.
15. Heinrich Heine. “Die Loreley”. In: ______. Buch der Lieder, Berlin: S. Fischer Verlag, 1824.
16. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 154.
17. Northrop Frye. Le Grand Code. La Bible et la Littérature. trad. de Catherine Malamoud. Paris:
Seuil, 1982.
18. Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, p. 154.
19. Ibid., p. 167.
20. Ibid., p. 177.
21. Ibid., p. 175.
22. “O drama de uma sociedade que desenvolveu sua tecnologia, sua burocracia e seu potencial
bélico até o paroxismo, enquanto os indivíduos se submetem a uma impotência tanto maior quanto
mais elevado o nível quantitativo do progresso, prefigura-se nessa cisão operada pela epistemologia
científica do pensamento da Ilustração”. (“Civilização e barbárie: à guisa de um comentário mínimo,
uma reflexão de um filósofo tecendo considerações sobre a Dialética da Ilustração de
Adorno/Horkheimer”. In: Eduardo Subirats. Paisagens da Solidão. Ensaios sobre Filosofia e
Cultura. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1986, p. 118.)
23. “After such knowledge, what forgiveness?” (T.S. Eliot. Poemas. Org. e trad. de Caetano Galindo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2018.)
A potência do pequeno: Notas sobre “A menor
mulher do mundo”, de Clarice Lispector1
ELIANE ROBERT MORAES

I.

Em dezembro de 1943, Clarice Lispector publica seu primeiro livro, intitulado


Perto do coração selvagem. Meio ano depois, ela atravessa o Atlântico
numa sinuosa viagem rumo à Europa, vindo a desembarcar no oeste
africano em 31 de julho de 1944, para uma escala que se estende por dois dias.
Suas notas sobre essa brevíssima temporada na África poderiam muito bem
partilhar o título do romance de estreia, na medida em que registram a
primeira aproximação da então jovem escritora ao coração selvagem desse
continente que ela qualifica de “indomável” e, mais tarde, reconhece como
“o nascedouro do mundo”.2
A maior parte dessas anotações foi escrita no calor da hora, por
ocasião da sua chegada à Libéria, onde Clarice pernoitou. Nelas, misturam-
se impressões de viagem com registros de sensações físicas, desejos e
expectativas de futuro, além de descrições e comentários. Lidos em
conjunto, esses apontamentos parecem se oferecer como a primeira
palpitação do conto “A menor mulher do mundo”, que seria publicado
originalmente em 1959, na revista Senhor e, no ano seguinte, na coletânea
Laços de família. Por tal razão, vale a pena reproduzi-las, senão na íntegra,
ao menos em suas passagens mais expressivas, como as que se seguem,
datadas de 31 de julho de 1944, dia da chegada:
As negras de busto nu nas vilas onde os missionários não chegaram. […] Um negro, a quem
eu dei adeus e sorri mais demoradamente, de propósito, ficou encantado e pôs a mão no
[rasurado]. As negras jovens pintam o rosto com traços de cor creme e o lábio inferior com
uma tinta da cor de azinhavre. […] Uma falou alguma coisa longa e complicada. Vi que era a
meu respeito e ela ria. (Eles riem com grande facilidade, mas alguns são tristes e mesmo o
riso deles é de humildade e fascinação.)
[…]
Entramos numa loja pobre, quase sem nada. O homem ria, ria de alegria da gente ter
entrado lá. Aquele tambor também para chamar todos […].
Ah, o corpo, o corpo. Como é difícil arranjar uma posição confortável para ele!
[…]
O incompreensível está salvo dos indiscretos […].
Perto não há nenhuma cidade. Vi alguns negros. Bonitos, limpos (por que estou falando
deles como de animais? […] Parece-me que tanto faz estar na Libéria como no Brasil. Não
sinto mudança de natureza, não sinto “viagem”! Pois agora uma mania de procurar poesia nas
coisas, de se enternecer. É horrível isto e, no entanto, fácil e atraente. Não existirá um modo
mais, digamos, austero e fino de ver as coisas? E no momento em que esse modo austero e
fino for um abismo onde se cai com prazer, procurar um novo modo. Para não ofender as
coisas. Ser leal com elas. Não enganá-las. Não ver no mar imediatamente o verde, o brilho, as
ondas, o poder, a calma. Se não puder ver mais nada, o silêncio será mais simples e mais puro
como atitude.3

Não é difícil, ao leitor familiarizado com o conto, perceber as possíveis


repercussões dessas notas no texto que será escrito por volta de dez anos
mais tarde. Do busto nu das mulheres, que por certo desafiava a severa
moralidade dos missionários, ao riso fácil dos nativos que devia confundir
os viajantes por expressar sentimentos paradoxais; do intento de encontrar
uma posição confortável para o próprio corpo às estranhas reações
precipitadas pelo corpo do outro; do tempo que não se mede pela
produtividade das tarefas até o tambor usado como legítimo meio de
comunicação — tudo naquele lugar, que parecia distante de tudo,
demandava uma compreensão mais profunda, que ultrapassasse as
aparências. Até a visão imediata dos corpos — “bonitos, limpos” — era
colocada em suspeita, por talvez encobrir o mais impiedoso dos
preconceitos: ver os outros como se fossem animais.
Tal qual a protagonista do conto, flagrada no constrangedor ato de se
coçar “onde uma pessoa não se coça”, aqueles africanos que colocavam a
mão no lugar “errado” pareciam excluídos do círculo humano.4 É digno de
nota que, ao reproduzir o texto original num comentário posterior sobre a
mesma viagem, Clarice tenha “corrigido” o episódio do moço que se
encantou com ela “e pôs a mão no […]”, preenchendo a rasura com as
seguintes palavras: “Sou extremamente examinada por um negro jovem e,
sem saber o que fazer, termino por lhe dar adeus, já que eles gostam tanto
de dar adeus. O rapaz fica encantado e, com aplicação, numa delicadeza de
oferenda, ingênuo e puro, faz gestos obscenos”.5 Nada mais distante da
mentalidade dita civilizada do que uma obscenidade casta e pura.
O que se impõe diante da escritora em sua escala na África é,
definitivamente, o desconhecido, a demandar “um modo mais austero e fino
de ver as coisas”. Era preciso cultivar esse novo olhar “para não ofender as
coisas” e tampouco “enganá-las”. Tratava-se de ignorar o que há de mais
evidente na paisagem marinha — ou seja, de resistir à enganosa claridade
do óbvio para poder reconhecer as opacidades que se escondem nas suas
profundezas. Tratava-se, sobretudo, de não reduzir os africanos às
impressões imediatas, estas não raro acomodadas a estereótipos
etnocêntricos e ofensivos quase sempre disfarçados de “obviedades”.

Nenhum apelo ao exotismo se faz notar nos apontamentos de Clarice.


Muito pelo contrário. Em carta a Lucio Cardoso, datada de 30 de setembro de
1944, a autora faz um breve comentário sobre sua passagem pelo território

africano, para contar sua chegada a Fisherman’s Lake, e dizer: “Eu


precisava me repetir: isso é África — para sentir alguma coisa. Nunca vi
ninguém menos turista”.6 De certa forma, reitera-se na carta a observação
feita em seu diário já na manhã da chegada, quando Clarice escreve que
“tanto fazia estar na Libéria como no Brasil. Não sinto mudança de
natureza, não sinto ‘viagem’!”.
“Sentir viagem” — a expressão estranha parece dizer mais do que
aparentemente diz. Primeiro, porque nela a viagem é tratada mais como
sentimento do que como acontecimento, pouco ou nada tendo em comum
com o turismo. Assim também, o deslocamento implicado na ideia de
“mudança de natureza” sugere uma superação das evidências factuais e a
passagem para um patamar de impressões sensíveis bem menos evidentes.
O que predomina na concepção clariciana é, em suma, um modo de viajar,
análogo ao modo de ver, reivindicado nos mesmos apontamentos, a saber,
aquele modo “mais austero e fino” no qual a transfiguração das coisas,
possibilitada pela atividade criadora, pudesse constituir — e reconstituir —
a paisagem. Tudo leva a crer que, para a autora, esse modo será dado pela
escrita.
É o que se conclui do último texto de Clarice sobre aquela experiência
de viagem, este já devidamente aquilatado pelo trabalho da memória, uma
vez que se apresenta francamente como lembrança do passado, talvez
registrada um quarto de século depois do episódio africano. Publicado no
Jornal do Brasil em 1971, o caráter de rememoração se reforça desde o título
“Estive em Bolama, África”, ao qual se seguem as considerações abaixo:
Também por desvio de rota, eis-me na possessão portuguesa africana, Bolama. Lá tomei
breakfast e vi os africanos. Os portugueses, pelo menos aqueles que eu vi, tratavam os negros
a chicote. Falam os negros um português de Portugal engraçadíssimo. Perguntei a um menino
de seus oito anos que idade tinha. Respondeu: 53 anos de idade. Caí para trás. Perguntei ao
português que me acompanhava no breakfast: como é que se explica isso? Ele respondeu: não
sabem a idade, a senhora podia perguntar àquele velho a sua idade e ele poderia lhe responder
dois anos. Perguntei: mas é necessário tratá-los como se não fossem seres humanos?
Respondeu-me: de outro modo eles não trabalham. Fiquei meditativa. A África misteriosa.
Neste mesmo momento em que alguém me lê, lá está a África indomável vivendo. Lamento a
África. Gostaria de poder fazer um mínimo que fosse por ela. Mas não tenho nenhum poder.
Só o da palavra, às vezes. Só às vezes.7

Muita coisa muda aqui, se comparado com as notas de 1944. O texto,


feito de associações abruptas que desnorteiam o leitor, não faz qualquer
menção a datas. Além disso, a notação geográfica sobre a antiga capital da
Guiné só ganha importância por ser o pano de fundo de um espetáculo atroz
de crueldade. Mas a passagem para o âmbito público não apaga a
responsabilidade pessoal que a escritora assumira antes: se, nas anotações
originais da viagem, Clarice atribui a si mesma o preconceito (“por que
estou falando deles como animais?”), ao ampliar seu alcance, ela não deixa
de se incluir entre aqueles a quem acusa. Pronta a acolher as contradições, a
narradora do fragmento de 1971 que denuncia a violência colonial também
desfruta, colonialmente, de seu breakfast europeu, que exclui os africanos.
A cada linha, o relato ganha em complexidade e o incógnito se mostra mais
e mais eloquente, atestando a dificuldade, senão a impossibilidade, de se
conhecer uma África tão dominada quanto indomável, tão explorada quanto
misteriosa. Recorde-se que, segundo ela, o mais simples dos entendimentos
da vida civilizada, o da notação numérica para a passagem do tempo, não é
partilhado pelos habitantes de Bolama: para estes, as idades simplesmente
inexistem, nem a história e, a bem da verdade, nem o tempo tal qual o
concebemos.
Ora, esse lugar onde não existem datas e idades já é uma Bolama
transfigurada pela memória e convertida em um mundo outro, com tempo e
espaço próprios, a precipitar o sentimento de viagem. Ou seja: para ela, o
deslocamento só se efetiva nas situações paradoxais em que a distância se
torna condição de proximidade para permitir a ciência das coisas. O simples
ato empírico de testemunhar os fatos de perto não garante acesso ao
conhecimento. É o que sustenta Raúl Antelo, ao propor uma fértil
comparação entre o relato clariciano e um escrito de Henri Michaux, que
explora a mesma ordem de inquietações, partindo de uma pergunta que
poderia perfeitamente ter sido assinada por Lispector: “Onde fica a
viagem?”. Observa o intérprete:
Quase no fim do percurso de Equador (1929), navegando o Amazonas como turista aprendiz,
Henri Michaux pergunta-se “mais où est l’Amazon?” [Mas onde está a Amazônia?], o que o
conduz a uma pergunta ontológica mais capital ainda, “Mais, où est-il ce voyage?” [Mas onde
fica a viagem?]. Embora Michaux esteja no rio, navegue por ele, ele não vê o rio. Para vê-lo é
preciso subir, vê-lo do alto, não basta a horizontalidade do deslocamento, mas exige-se,
fundamentalmente, a verticalidade da abstração, uma cartografia, uma ficção. “Il faut l’avion”
[Precisamos do avião], a técnica, os dispositivos da Europa, a linguagem, o poder. “Je n’ai
donc pas vu l’Amazon” [Então, eu não vi a Amazônia]. Em outras palavras, vivência não é
experiência.8

Como que pactuando a mesma disposição de Michaux, que só vê o


Amazonas através da escrita, Clarice relaciona duas experiências que se
desenrolam paralela e simultaneamente — a do texto e a da vida — sabendo
que nada, ou quase nada, garante a existência de um ponto de contato entre
uma e outra. Nada, ou quase nada, é forçoso insistir, pois as entrelinhas
deixam entrever uma tênue esperança de que a palavra possa ser
compartilhada e, quiçá, valer-se de seu poder transformador: “Lamento a
África. Gostaria de poder fazer um mínimo que fosse por ela. Mas não
tenho nenhum poder. Só o da palavra, às vezes. Só às vezes”.

II.

É no coração selvagem da misteriosa África de Clarice que o leitor


surpreende os singulares protagonistas de “A menor mulher do mundo”. Lê-
se nos parágrafos iniciais do conto:
Nas profundezas da África Equatorial o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem
do mundo, topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente. Mais surpreso,
pois, ficou ao ser informado de que menor povo ainda existia além de florestas e distâncias.
Então mais fundo ele foi.
No Congo Central descobriu realmente os menores pigmeus do mundo. E — como uma
caixa dentro de uma caixa, dentro de uma caixa — entre os menores pigmeus do mundo estava
o menor dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às vezes a
Natureza tem de exceder a si própria…9

A abertura do conto adota um tom jornalístico e pouco se identifica,


nela, da voz literária de Clarice, nada afeita ao didatismo referencial que
marca tais parágrafos. Assim também, o trecho que se segue, mantendo o
padrão da linguagem objetiva, desliza para a explicação científica, na
tentativa de mimetizar o tom dos estudos etnográficos, notadamente aqueles
de viés positivista. Os likoualas são descritos em seus principais atributos, a
começar pelo fato de serem um grupo em extinção. Susceptíveis a toda
sorte de precariedades sanitárias e alimentares, são presas frequentes dos
“selvagens bantos” que “os caçam em redes”. Destaque é dado ao tambor,
um “avanço espiritual” que lhes serve de utensílio quando dançam sob a
proteção de um pequeno machado.
Ora, para colher esses dados a respeito da Pequena Flor, o explorador
francês ostenta uma disposição típica do universo investigativo das ciências
naturais, marcada pelo distanciamento e pela formalidade, e introduzida em
suas facetas mais caricaturais. A relação de Marcel Pretre com a pigmeia é
quase sempre definida por meio de clichês que se acumulam no decorrer da
narrativa, ora na voz do narrador, ora na do personagem, cujos discursos
convergem até o ponto de se tornarem indistintos. Elemento de
multiplicação, a paródia se constitui como um dos principais procedimentos
estruturantes da narrativa, e vários intérpretes apontam diálogos com outros
gêneros literários (do conto de fadas ao roman noir) e também
cinematográficos (dos documentários científicos aos filmes de terror).
A justaposição de diálogos paródicos evidencia uma das principais
operações simbólicas nas quais o conto investe intensa e vertiginosamente:
a ampliação. Esta se faz presente também nas enumerações e na
proliferação de enunciados hiperbólicos, cujo melhor exemplo talvez esteja
na passagem em que Pretre se dá conta da magnitude de sua descoberta.
Afirma o narrador: “Seu coração bateu porque esmeralda nenhuma é tão
rara. Nem os ensinamentos dos sábios da Índia são tão raros. Nem o homem
mais rico do mundo já pôs olhos sobre tanta estranha graça. Ali estava uma
mulher que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar”.10
A tendência a tudo ampliar, agigantando sentimentos, sensações e
valores, chega a contemplar o próprio título do conto, instaurando um
paradoxo. Afinal, o pressuposto de que existe a menor mulher do mundo
supõe a conquista do lugar mais alto de determinada escala, que faz dela
não só a menor dentre eles, mas ainda a maior de todos. Atente-se ao fato
de que o texto afirma repetidamente a pequenez da pigmeia e reitera,
categoricamente, que “entre os menores pigmeus do mundo estava o menor
dos menores pigmeus do mundo, obedecendo talvez à necessidade que às
vezes a Natureza tem de exceder a si própria”. O menor dos menores escapa
ao paradigma.
O paradoxo do título se repõe na outra operação simbólica estruturante
do conto, que implica justamente o contrário da ampliação, a saber, a
redução. Escusado lembrar que figuras da diminuição, da subtração e do
encolhimento são soberanas na narrativa. Se as mais evidentes se
manifestam nos recorrentes diminutivos — da “racinha de gente” ao
“retratinho dela, coitadinha” —, uma das mais complexas se esboça quando
o narrador diz que “não tendo outros recursos, [Pequena Flor] estava
reduzida à profundeza”.11 Redução que, assim formulada, se furta por
completo à claridade: a exemplo do que ocorre com o fundo do mar, essa
profundeza não se revela a quem divisa seus domínios, estes imersos na
opacidade do desconhecido. É o que se confirma na leitura de outro texto de
A descoberta do mundo que dialoga com “A menor mulher do mundo”:
“Mas ninguém encontraria nada se descesse às suas profundezas — senão a
própria profundeza, como na escuridão se acha a escuridão”. 12
Semelhante busca se faz ler em outra imagem da autora que concentra
o sentido mais profundo do recurso da redução, seja nesse conto, seja em
outras obras suas. Trata-se da “caixa dentro de uma caixa, dentro de uma
caixa” que se impõe como emblema de uma procura infinita, em cujo
horizonte se revelaria a unidade infinitesimal da “matéria vivente”. Ou,
como propõe José Américo Motta Pessanha, aquilatando a urgência da
redução para se chegar ao âmago de todo ser em que pulsa a vida:
para chegar lá é preciso “reduzir” ainda mais. É preciso ir ao ser humano, mas tão pouco, tão
primitivamente humano, tão pequenamente humano, que se vai à “Menor mulher do mundo”.
E, como se não bastasse, à menor mulher do mundo que está grávida. Recuo antropológico e
biológico: disfarce de redução fenomenológica. Busca da semente na semente — esta forma de
já se estar buscando a essência. Como nesses artefatos da paciência chinesa que, dentro de
pequeninas esferas de marfim, trabalha uma sucessão de esferas cada vez menores — num
tender para zero que é a forma metafísica de se buscar a unidade mínima indispensável, esta
essência.13

Por certo, o leitor familiarizado com a obra de Lispector logo


reconhece as palavras acima em uma extensa série de figuras que compõem
seu imaginário, todas aludindo de algum modo a tais formas mínimas de
vida. Do ovo à água viva, da baba ao ectoplasma, da pulsação de uma
tartaruga arfando à massa interior de uma barata moribunda, o obstinado
desejo da autora no sentido de conhecer o mais ínfimo sopro de vida passa
invariavelmente por uma vertiginosa interrogação do que é insuficiente,
insignificante ou mesmo informe. Note-se que Pequena Flor, este raríssimo
exemplar de uma racinha de gente condenada à extinção, ganha uma
qualificação muito particular: “Foi, pois, assim que o explorador descobriu,
toda em pé e a seus pés, a coisa humana menor que existe”.14
De grande força expressiva, a associação desses dois termos pede
esclarecimento. Afinal, o que seria a coisa humana?
Lê-se num verbete intitulado “Homem” que a revista Documents, dirigida
por Georges Bataille, publica em 1929:
Homem — Um eminente químico inglês, o dr. Charles Henry Maye, empenhou-se em
estabelecer de forma exata de que é feito o homem e qual é seu valor químico. Eis os
resultados de suas sábias pesquisas. A gordura de um corpo humano de constituição normal
seria suficiente para fabricar sete porções de sabonete. Encontram-se no seu organismo
quantidades suficientes de ferro para fabricar um prego de espessura média e de açúcar para
adoçar uma xícara de café. O fósforo daria para 2200 palitos de fósforo. O magnésio forneceria
matéria para se tirar uma fotografia. Ainda um pouco de potássio e de enxofre, mas em
quantidade inutilizável. Essas diversas matérias-primas, avaliadas na moeda corrente,
representam uma soma em torno de 25 francos.15

Essa imagem perturbadora, que decompõe o ser humano em porções


para definir “de forma exata do que ele é feito”, evoca com terrível poder de
síntese a redução do corpo humano a um quase nada. O verbete atribuído a
Bataille supõe um princípio radicalmente materialista, em cujo horizonte
talvez resida o pesadelo de uma dissolução química dos corpos, a sugerir
uma impiedosa antecipação da realidade: dez anos depois da publicação do
artigo, esse pesadelo realmente se efetiva nos processos de “liquidação
industrial” levados a termo pelo nazismo. De fato, essas formas
“científicas” de decomposição remetem inexoravelmente à degradação dos
corpos: nessas imagens o ser humano é confrontado com a sua condição de
matéria, perecível e reciclável, cuja evidência mais dramática se manifesta
no aspecto definitivo do cadáver. Por coincidência, em que pesem os
distintos contextos dos escritos de Bataille e de Lispector, semelhante
redução ao cadáver será evocada de maneira eloquente numa das páginas
mais impactantes de “A menor mulher do mundo”.
Trata-se da passagem em que o narrador invade a intimidade dos
leitores de um jornal de domingo que publica a foto da diminuta criatura em
tamanho natural. Como quem abre uma nova caixa na narrativa, ele segue
de apartamento em apartamento para colher novos dados: num salto abrupto
do coração da selva africana para o cenário urbano contemporâneo, ele
investiga o impacto da imagem da pigmeia nas famílias de classe média
brasileira que folheiam o suplemento dominical. De todas as cenas
descritas, ganha relevo aquela em que a mãe de um menino devaneia diante
de um espelho, recordando o que lhe contara uma cozinheira sobre sua
infância num orfanato:
Não tendo boneca com que brincar, a maternidade já pulsando terrível no coração das órfãs, as
meninas sabidas haviam escondido da freira a morte de uma das garotas. Guardaram o cadáver
num armário até a freira sair, e brincaram com a menina morta, deram-lhe banhos e
comidinhas, puseram-na de castigo somente para depois poder beijá-la, consolando-a. Disso a
mãe se lembrou no banheiro, e abaixou mãos pensas, cheias de grampos. E considerou a cruel
malignidade de nosso desejo de ser feliz.16

O trecho concentra diversas sobreposições, entre as quais Rosenbaum


destaca a perplexidade da mãe que sorri e coloca “entre seu rosto de linhas
abstratas e a cara crua da Pequena Flor, a distância insuperável de
milênios”. A modernidade aparece aí como abstração de uma crueza
condensada na pessoa da pigmeia: “é do abjeto enquanto magma
primordial, morada informe de nossa ancestralidade, mundo pulsional de
um fundo sem fundo, que o sujeito humano se distancia para se constituir,
perdendo sua carnalidade, tornando-se abstrato, ou seja, genérico, alienado
de sua singularidade”.17 Daí o paralelo com a terrível redução que Bataille
reconhece no desencantado mundo moderno onde, alienados de sua força
vital, os seres soçobram como restos materiais. Afinal, se a cena das órfãs
expõe o horror do desamparo, o processo de reificação só faz reiterá-lo
como ameaça ao menino criado para ser distinto de alguma coisa “escura
como um macaco”. O horror trabalha em tempo integral, seja em
laboratórios ou em câmaras de gás, seja nos porões dos orfanatos ou nos
apartamentos citadinos.
Todavia, ainda que denuncie os signos da morte inscritos nesses
impiedosos devires, a coisa humana de Lispector não se esgota no apelo ao
inanimado, marcando distância do caráter finalista que dá o tom do verbete
batalliano. No fundo sem fundo explorado pela escritora há sempre uma
nova dimensão a ser descoberta, como atenta Berta Waldman: “ao mesmo
tempo em que se desconstrói um modelo cristalizado de racionalidade, de
cultura, de ciência, emerge o exame do informe, da matéria humana
minúscula, quase reduzida a nada, e, no entanto, pulsante”. Por isso a
conclusão de que “se, por um lado, o trabalho do explorador é o de tentar
afastar a pigmeia da espécie humana, de outro, o movimento da pigmeia é o
de impor sua humanidade despossuída de acréscimos civilizacionais,
espécie de humanidade em estado puro”.18
Forçoso lembrar que o significante coisa se reveste de significados
plurais, ambivalentes e por vezes misteriosos nas mãos de Clarice, nem
sempre conformado aos termos que tradicionalmente estão a ele associados
como objeto, produto, utensílio ou qualquer outro aparato material sem
vida. Para a autora, coisa pode realmente ser muita coisa ou até mesmo
qualquer coisa, sem excluir os sentidos equívocos que a psicanálise
empresta à expressão Das Ding. Em meio a tal polifonia, ganha singular
força a evocação da palavra, numa contundente nota da escritora sobre a
origem do conto, que lhe teria sido sugerido por um artigo de jornal norte-
americano em torno de uma pigmeia. Já mãe, com filho no colo, a notícia
lhe inspira reflexões sobre a coisa vivente:
“A Menor Mulher do Mundo” me lembra domingo, primavera em Washington, criança
adormecendo no colo no meio de um passeio, primeiros calores de maio — enquanto a menor
mulher do mundo (uma notícia lida no jornal) intensificava tudo isso num lugar que me parece
o nascedouro do mundo: África. Creio que este conto vem de meu amor por bichos: parece-me
que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus, material que não
inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se
pondo imediatamente de pé, e vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma vez, nunca aos
poucos apenas, nunca se poupando, nunca se gastando.19

III.

Búfalos, peixes, cachorros, baratas, macacos, corujas, cavalos, pintinhos,


galinhas, galinhas e galinhas — a copiosa imaginação zoológica de
Lispector caminha em paralelo a seu declarado e inesgotável amor pelos
bichos. Daí que venha a ser tópica obrigatória para os exegetas de sua obra,
sempre aberta à descoberta de novas potencialidades animais e não raro
tangenciando o “incompreensível” que preside o apelo à coisa. Aliás, é
nessa aproximação que a autora parece apostar quando associa sua delicada
protagonista aos bichos, por ser, como eles, “coisa já se pondo
imediatamente de pé, e vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma
vez”.
Estranha-se, pois, que ao longo do conto a identificação da pigmeia
com os bichos só venha a se fazer em tom pejorativo e em franca chave de
depreciação. “Escura como um macaco” — vaticina o francês; “parecia um
cachorro” — acrescenta o narrador, ao descrever sua foto no jornal; sua
tristeza é “de bicho, não é tristeza humana” — esclarece a mocinha noiva,
com dó no coração. O que prevalece nesses testemunhos, portanto, não é a
declarada disposição amorosa da escritora com relação aos animais, mas
aquela sua antiga suspeita formulada com limpidez na pergunta de 1944 —
“por que estou falando deles como de animais?”.
O que prevalece aí é a palavra truculenta do colonizador, imposta
como ato inaugural de uma violência que se faz corpo, excedendo em muito
a própria palavra. Entende-se por que a ideologia colonialista seja a
primeira caixa que o conto deixa a descoberto, ganhando evidência antes de
qualquer outra, por resultar de um processo autoritário de opressão e de
exploração. Como resume Wilton de Souza Ormundo, “a estranha graça de
Pequena Flor e o quase ‘apetite devorador’ do europeu sobre ela permitem
uma inevitável associação entre esse encontro e o processo de colonização
das Américas, África e Oriente”. 20
É desse quadro que parte Daniela Mercedes Kahn, ao analisar o texto
como uma reflexão literária que desmistifica o discurso da colonização.
Para tanto, a intérprete propõe um diálogo entre “A menor mulher do
mundo” e As viagens de Gulliver, a grande obra satírica de Jonathan Swift
que, publicada originalmente em 1726, foi traduzida e adaptada no Brasil dos
anos 1970 por ninguém menos que a própria Clarice Lispector.
Como se sabe, as passagens mais conhecidas das aventuras ficcionais
de Gulliver se concentram na sua descoberta do Império de Lilliput,
habitado por uma população de indivíduos minúsculos, que não excedem
treze centímetros de altura. A descrição desse país onde o herói passará
longa temporada torna-se ocasião privilegiada para o autor criticar com
humor, veemência e pessimismo os valores de sua própria sociedade,
revoltando-se contra o sistema de conquista colonial escravista então
vigente em diversos pontos da Europa. Não surpreende que o personagem
se mostre profundamente hostil à vida de seus compatriotas, o que o leva a
rejeitar as tradições ditas “civilizadas” e, por consequência, a adotar hábitos
e pontos de vista dos povos que visita.
Observa Kahn que, sendo irlandês, Swift ocupa “uma posição
periférica dentro do próprio Império Britânico, posição essa que, sem
dúvida, favorece o olhar crítico com relação ao imperialismo inglês”. Da
mesma forma, o conto da escritora brasileira enfoca “o confronto entre o
colonizador e o colonizado emblemático para a relação entre os povos da
era moderna ao colocar face a face o explorador francês e a africana
Pequena Flor”. A exemplo do autor de Gulliver, a criadora de Macabéa
também fala de uma posição periférica, o que é determinante para a escolha
da África como cenário do conto, pois, sendo associado aos atributos
“escuro”, primitivo e misterioso, “do ponto de vista brasileiro o continente
se configura como lugar de barbárie” assim como “do ponto de vista
europeu o Brasil faz parte do mundo bárbaro”.21
Jogos de espelhos que se impõem e se interpõem sobre as diferenças
entre os exploradores de Swift e de Lispector: distantes no tempo e no
espaço, as obras se aproximam como discursos de alta voltagem crítica
contra os abusos coloniais. Elemento essencial dessa crítica, cabe assinalar,
é a disposição por parte dos dois escritores em deixar um espaço em branco
— não preenchido e nem preenchível — que preserva a inviolabilidade das
alteridades, em respeito ao que Kahn define como “natureza indecifrável do
outro”.
Prova disso é que Clarice insiste em manter Pequena Flor na condição
de “incompreensível”, sem jamais explicar a escuridão de sua mudez, o
abismo de seu sorriso ou sua capacidade de amar profundamente um anel
ou uma bota. Da mesma forma, Swift termina o romance lançando seu herói
aos confins do inexplicável. É digno de nota que sua última aventura
transcorra numa terra ignota onde vivem cavalos de extraordinária
inteligência, que teriam domesticado os homens. Gulliver admira essa
civilização e se abandona voluntariamente ao aprendizado de seus hábitos e
de sua língua. Obrigado a retornar à sua pátria, de tal forma a companhia
dos compatriotas lhe é insuportável que, passados cinco anos, ele ainda se
sente um estrangeiro ao lado deles. Homem culto e experiente, no seu
estábulo vivem dois cavalos, com os quais ele conversa quatro horas por
dia.
Se o desfecho das Viagens de Gulliver se reveste de inegável
opacidade, aquele de “A menor mulher do mundo” não é menos
enigmático. Vale evocar o fim do relato, quando, depois de ter se perturbado
“como só homem de tamanho grande se perturba”, o explorador “se
chamou à ordem, recuperou com severidade a disciplina de trabalho, e
recomeçou a anotar”. Completa o narrador, retornando ao prédio de
apartamentos onde os moradores ainda contemplavam a foto no jornal:
“Quem não tomou notas é que teve de se arranjar como pôde: — Pois olhe
— declarou de repente uma velha fechando o jornal com decisão —, pois
olhe, eu só lhe digo uma coisa: Deus sabe o que faz”.22
É de se perguntar o que faz no texto uma frase feita como essa, ainda
mais como desfecho. Lugar-comum das ladainhas das beatas brasileiras e
das tagarelices de quem busca a salvação em fórmulas instantâneas,
responderia ela ao desejo da escritora de fechar o conto com um toque de
ironia? Ou, ao contrário, seria acaso um expediente literário “para não
ofender as coisas”, para “ser leal com elas” e para “não enganá-las”?
Impossível saber, sobretudo quando se tem em mente que a rara criatura era
incluída por Lispector no rol das “coisas ainda muito próximas de Deus”.
Seria fácil ver aí uma declaração de fé da escritora que, então, se
renderia a uma explicação de fundo criacionista para dar conta da presença
dos animais no mundo. Seria, porém, um equívoco: assim como acontece
com a enigmática palavra coisa, as menções da autora à figura divina se
recobrem de tal complexidade que realmente se torna impossível fixá-las
num sentido único e inconteste. E não será por isso mesmo que a passagem
acima associa os dois significantes, preferindo aludir às coisas e não às
criaturas “próximas de Deus”, como que professando um estranho
materialismo místico?
A frase se reveste de uma obscuridade que demandaria mais espaço do
que este ensaio pode lhe dedicar, embora se possa ainda abordá-la
obliquamente para tentar entender a particularidade desse chamamento.
Resta saber que lugar cabe à imponência celestial nos minúsculos universos
habitados por gente como os likoualas e os liliputianos.
No mais das vezes, o que está em questão no confronto entre a
grandeza divina e aquilo que é menor, mais baixo ou mesmo insignificante,
é a própria condição humana, a testemunhar sua irremediável queda e
consequente miséria. Embora tal perspectiva não escape aos textos de
Lispector e de Swift, ela não deixa de ser subvertida quando eles atribuem
um sentido positivo às figuras do pequeno, quase sempre em comparação
com a ostensiva pequenez dos que se vangloriam de seu tamanho. Recorde-
se que Gulliver reconhece a superioridade moral de seus miúdos anfitriões
assim como o narrador clariciano não deixa de denunciar os disparates dos
“grandes”, diante da singela pigmeia.
Mais importante do que o elogio do diminuto é o fato de ambos os
autores cultivarem um singular jogo de proporções que, oscilando entre o
físico e o espiritual, vem perturbar as noções de medida humana
estabelecidas na modernidade ocidental. Nunca é demais lembrar que Swift
também narra em detalhe a passagem de Gulliver por Brobdingnag onde,
capturado por gigantes, o personagem conhece aventuras ainda mais
surpreendentes do que as vividas em Lilliput. Por conta de seu tamanho
então reduzido, ele quase se afoga numa tigela de leite ou é esmagado por
uma maçã, passando igualmente maus bocados quando preso no focinho de
um cachorro. Nesse mundo superlativo, o herói passa a viver sob o nome de
Grildrig — significando “pequeno pedaço de homem” — até o dia em que
sua “casa portátil” é lançada ao mar, de onde ele será resgatado por um
navio inglês.
Colocado na situação inversa que caracterizava seu convívio com os
lilliputianos, o personagem é reduzido à mais completa impotência em
Brobdingnag, o que permite ao seu criador expor a fragilidade das bases
sobre as quais se ergue a imagem do homem ocidental, deixando patente
que o grande e o pequeno são valores relativos, que se implicam
mutuamente. Talvez esteja justamente nesse particular, e não na ficção
sobre os pequeninos, a afinidade maior entre as duas fabulações, a princípio
tão distintas, permitindo a conclusão de que o tempo forte do romance e do
conto reside numa interrogação de alto teor filosófico sobre a medida do
humano.
Porém, longe de pretenderem dar uma resposta às questões que
formulam, um e outro preferem manter viva a inesgotável pergunta que suas
fábulas precipitam. Afinal, manter o estado de interrogação significa
preservar o mistério, e é precisamente nesse ponto que a evocação de Deus
ganha sentido em “A menor mulher do mundo”, já que a simples menção ao
seu nome é suficiente para que toda medida seja colocada à prova de sua
insondável desmedida.
Entende-se por que Clarice potencializa, nesse conto, seu singular
talento para transfigurar questões existenciais em problemas de
composição, valendo-se à vontade dos expedientes literários da ampliação e
da redução. Estes não só se alternam mas também se embaralham, até o
ponto de perturbar por completo as proporções em jogo. É o que ocorre em
mais uma passagem exemplar do texto, quando o explorador francês flagra
a pigmeia rindo e “gozando a vida”:
Era um riso como somente quem não fala ri. Esse riso, o explorador constrangido não
conseguiu classificar. E ela continuou fruindo o próprio riso macio, ela que não estava sendo
devorada. Não ser devorado é o sentimento mais perfeito. Não ser devorado é o objetivo
secreto de toda uma vida. Enquanto ela não estava sendo comida, seu riso bestial era tão
delicado como é delicada a alegria.23

Nesse momento de súbita harmonia, em que um simples sorriso passa


a valer por toda uma existência, o bestial se reconcilia com o delicado e a
morte é decididamente adiada. O menor e o maior se equivalem como
potências do excesso, alheias a todas as classificações: reduzida à
profundeza, Pequena Flor partilha da desmesura de Deus. Daí que, vedado a
quem se expressa em linguagem articulada, o incompreensível venha
precipitar uma estranha e exuberante fruição: “Se a própria coisa rara estava
rindo, era porque, dentro de sua pequenez, grande escuridão pusera-se em
movimento”.24
O sopro da escuridão vibra em silêncio — e não conhece limites.

NOTAS
1. Este texto é uma versão reduzida de artigo publicado na França sob o título “A potência do
pequeno: Notas sobre ‘A menor mulher do mundo’”. In: Sandra Assunção, Ilana Heineberg, Michel
Riaudel (Orgs.). Hispanismes Revue de la Societé des Hispanistes Français, v. 15, pp. 98-120, 2021.
Disponível em: https://hispanistes.fr/index.php/31-hispanismes/1733-hispanismes-n-15.
2. Clarice Lispector, “A explicação que não explica”. In: A descoberta do mundo, Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, pp. 365-6, 1984.
3. Clarice Lispector, Caderno de bordo. Disponível no site do Instituto Moreira Salles:
https://claricelispectorims.com.br/caderno-de-bordo. Acesso em: 15 out. 2020. [Os itálicos indicam
palavras e temas presentes no conto.]
4. Id., “A menor mulher do mundo”. In: Laços de família, Rio de Janeiro: Rocco, 1983, p. 79. [Todas
as menções ao conto, doravante, com o título abreviado “MMM” serão referidas a essa edição.]
5. Clarice Lispector, “Corças negras”. In: A descoberta do mundo, op. cit., p. 270.
6. Id. [A Lúcio Cardoso], Correspondências. Rio de Janeiro: Rocco, 2002, p. 54.
7. Clarice Lispector, “Estive em Bolama, África”. In: A descoberta do mundo, p. 552.
8. Raúl Antelo, “Mas onde fica a viagem?”. In: Confluenze - Rivista di Studi Iberi Americani, v. 4, n.
1. Bolonha: Dipartimento di Lingue e Letterature Straniere Moderne, Università di Bologna, p. 2,
2012.
9. MMM, p. 77.
10. MMM, p. 79.
11. Clarice Lispector, “A menor mulher do mundo”, op. cit., p. 84.
12. Id., “Como uma corça”. In: A descoberta do mundo, p. 85. [A frase descreve Eremita, que
Rosenbaum aproxima de Pequena Flor.]
13. José Américo Motta Pessanha, “Clarice Lispector: O itinerário da paixão”. In: Clarice Lispector,
A paixão segundo G.H., Edição crítica coordenada por Benedito Nunes. Madri/ Paris/ México/
Buenos Aires/ São Paulo/ Rio de Janeiro: ALLCA XX, 1996, p. 321. (Coleção Archivos)
14. MMM, p. 79, itálicos nossos.
15. Revista Documents n. 4, Paris: Jean-Michel Place, p. 215, 1991, edição fac-simili.
16. MMM, p. 81.
17. Yudith Rosenbaum, “Uma estranha descoberta. Leitura do conto ‘A menor mulher do mundo’, de
Clarice Lispector”. In: Revista Literatura e Sociedade, v. 20. São Paulo: FFLCH-USP, 2015, p. 152.
18. Berta Waldman, “Duas mulherzinhas”. In: Entre passos e rastros. Presença judaica na literatura
brasileira. São Paulo: Perspectiva, 2001, pp. 64-5.
19. Clarice Lispector, “A explicação que não explica”, op. cit., pp. 365-6. [grifos nossos]
20. Wilton de Souza Ormundo, Figurações do grotesco nas narrativas curtas de Clarice Lispector. São
Paulo: FFLCH-USP, 2008, p. 41. Disponível em Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP:
https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-12082009-163845/pt-br.php. Acesso em: 2
nov. 2020, p. 51.
21. Daniela Mercedes Kahn, “A menor mulher do mundo, de Clarice Lispector e a Desmistificação
do discurso da colonização”. Revista Ângulo 111, Lorena: Unifatea, out./dez. 2009, p. 28.
22. MMM, p. 86.
23. MMM, p. 84.
24. MMM, p. 84.
Clarice Lispector, musa inquietante
GILBERTO FIGUEIREDO MARTINS

Et quid amabo nisi quod aenigma est?


Giorgio de Chirico

Dentro do mais interior de minha casa morro eu neste fim de ano exausta. Eu,
eu, se não me falha a memória, morrerei. O clímax de minha vida será a morte.
Clarice Lispector1

Aspecto privilegiado — e talvez superdimensionado — em sua fortuna


crítica, a vinculação entre vida e obra preside a fatura de ao menos três
estudos publicados após a morte de Clarice Lispector (1920-1977).2 Neles, a
opção comum pelo encadeamento cronológico faz confluir, para as páginas
finais, o relato dos instantes derradeiros de padecimento físico da escritora,
vitimada pelo câncer.
Cinco meses após viagem de uma semana à Europa, Clarice fora
internada no Rio de Janeiro, no fim de outubro de 1977, vindo a falecer pouco
mais de um mês depois, em um hospital público, numa manhã de sexta-
feira, 9 de dezembro. No dia seguinte, seria seu 57o aniversário. Com base no
depoimento da secretária e amiga de Lispector, Olga Borelli (1926-2002),
reconta-nos a sua primeira biógrafa:
Na véspera da morte, Clarice estava no hospital e teve uma hemorragia muito forte. Ficou
muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção
à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou
com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse:
— Você matou meu personagem!3

Conforme a tradição judaica à qual pertencia por origem, a escritora


não pôde ser enterrada no sábado (shabat) e seu corpo foi levado para o
Cemitério do Caju no domingo. Na segunda-feira, 12 de dezembro, a Folha
de S.Paulo noticiou o ritual ortodoxo observado no sepultamento:
Numa cerimônia simples, sem discursos, na qual a família chegou até a dispensar a presença
do grão-rabino Henrique Lemle, substituído pelo cantor-mor Joseph Aronsohn, a escritora e
jornalista Clarice Lispector […] foi sepultada ontem no Cemitério Comunal Israelita, no Caju.
Cerca de 200 pessoas, entre parentes e amigos, acompanharam o corpo — velado desde sexta-
feira no oratório do Cemitério — até o túmulo 123, da fila G […]. Antes de ser enterrado, o
corpo da escritora, de acordo com o ritual judaico, foi purificado, sendo lavado, interna e
externamente, por quatro mulheres da Irmandade Sagrada “Havra Kadisha”. No oratório, o
caixão, fechado, coberto apenas por um manto negro com uma estrela de David bordada em
prateado, foi visitado pelos escritores Rubem Braga, Fernando Sabino, Nélida Piñon e José
Rubem Fonseca […]. Ainda no oratório, precisamente às 11 horas, o substituto do rabino deu
início à liturgia lendo, em aramaico, o “Salmo 91”, do “Antigo Testamento”, seguido de
cânticos em hebraico e de uma leitura, agora em português, de alguns Salmos. Ali, antes do
caixão ser conduzido à sepultura, Joseph Aronsohn ainda fez a despedida do corpo, rezando o
“El Molê Rachamim”. […] À beira do túmulo, Joseph Aronsohn […] rezou o “Kadish” —
oração fúnebre —, enquanto a última homenagem a Clarice Lispector era prestada com o
lançamento de três pás de terra sobre o caixão, indicando que “da terra vieste, à terra voltarás”.
A cerimônia foi encerrada com o substituto do rabino pedindo aos presentes que se voltassem
para a direita, em direção ao Oriente, indicando o sentido de Jerusalém.4

Motivado pelas celebrações do centenário do nascimento de Clarice


Lispector, em 2020, recupero tais relatos, a fim de revisitar o impacto que seu
indesejável momento terminal teve para um de nossos maiores poetas, o
qual, à morte da amiga, reagiu criando.
Ferreira Gullar (1930-2016) conta ter conhecido Lispector em 1955 ou 1956
(depois da publicação de seu livro de poemas A luta corporal),5 numa tarde
de sábado ou domingo, na casa da artista plástica Zélia Salgado, em
Ipanema, cerca de cinco anos após ter lido o romance O lustre (de 1946), o
qual o deixara “bastante impressionado, por sua estranheza e densidade
poética”.6 Também impactado pela aparência da escritora — para ele,
semelhante a uma “loba fascinante”, com os “olhos amendoados e verdes,
as maçãs do rosto salientes” —, saíra da reunião “meio atordoado”,
imaginando que um reencontro o levaria a se apaixonar por ela.7 Na redação
do “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, onde publicava seus
primeiros poemas concretos, voltaria a vê-la algumas vezes. Depois, apenas
quando regressou do exílio político, em março de 77, “respaldado pela
repercussão do Poema sujo, escrito em Buenos Aires”. Clarice lhe
telefonou, querendo entrevistá-lo para a página que assinava na revista
Fatos & Fotos, convidando-o para ir a seu apartamento, no Leme:
A esta altura, a mulher de 30 anos que eu conhecera naquela tarde de sábado era agora uma
senhora de 52 anos,8 marcada pelo sofrimento e por um acidente com fogo que quase lhe
inutilizara uma das mãos. Mas continuava encantadora. Ela me recebeu afetuosamente e por
um momento falamos do passado.

Na lembrança de Gullar, os olhares trocados então ganham espaço de


destaque, os dela como fonte de encantamento e perturbação: “fixou seus
olhos nos meus e falou”, “rimos e ficamos olhando um para o outro”; e os
dele não teriam igualmente passado despercebidos por ela, que lhe teria
dito: “Gosto de teus olhos… São bondosos”. No comentário que antecede a
entrevista publicada, Lispector afirma ser sua “fervente admiradora […],
desde os tempos de A luta corporal até esse escandalosamente belíssimo
Poema sujo”:
Mas eu tinha um pouco de medo dele, parecia-me que, com seu extraordinário poder verbal, eu
seria aniquilada. Éramos um pouco distantes um do outro, e eu desconfiava que ele rejeitava a
minha “literatura”. Mas o que fazer? Nada, senão continuar a gostar do que ele escrevia e
escreve. Nesta entrevista, ele me assegurou que a desconfiança antiga era errada. Aleluia!

Durante a conversa, comentam de que modo para ambos se processava


o ato criador, identificando-se quanto à quase ausência de revisão ou
reescrita feita naquilo que produziam. Ferreira Gullar tenta explicar-lhe o
impulso lírico:
Em mim o poema quase sempre é provocado por um choque emocional qualquer. […] O
choque emocional já por si provoca as palavras, eu em geral não me preocupo em escolhê-las,
elas jorram. […] Sempre fiz literatura como um modo de entender a vida e a mim mesmo. […]
[o poema] é uma tentativa de dizer tudo como se depois dele eu fosse morrer.9

O poeta menciona a alegria de rever grandes amigos, entretanto


lamenta a ausência daqueles “que desapareceram para sempre”, como os
dramaturgos Vianinha e Paulo Pontes. Finalmente, a entrevista termina com
Gullar declamando de cor o poema que escrevera para Oscar Niemeyer
(também entrevistado por ela) e afirmando que gostaria mesmo era de ter
escrito “um poema capaz de abarcar toda a história sofrida e obscura da
gente brasileira”. Clarice entrega-lhe um exemplar autografado de seu Água
viva (1973).10
Dias depois, jantam no restaurante Fiorentina, onde conversam sobre o
problema de saúde dos filhos, quando, por acaso, aparece Glauber Rocha,
provocando polêmica ao defender o regime militar. Finalmente, em outra
ocasião, se reveem no apartamento dela, juntamente com Rubem Fonseca,
Fauzi Arap e outros amigos: “Foi a última vez que a vi. A roda-viva
daqueles tempos me arrastou para longe dela, em meio a problemas de toda
ordem, crises na família, filhos drogados, clínicas psiquiátricas”.11 Logo, ela
adoece, é internada em clínica particular do bairro Jardim Botânico e depois
no Hospital da Lagoa. Ele combina com Olga Borelli, acompanhante da
escritora, de ir visitá-la, mas Lispector manda avisar que não gostaria, pois
não queria ser vista com a aparência debilitada.12 Completa o escritor:
Ela nunca voltou para casa. Dias depois, pela manhã, estou me aprontando para uma viagem a
São Paulo, quando soa o telefone. Atendo: “Clarice morreu”, disse a voz. “O enterro será hoje
mesmo de manhã”. Fiquei desesperado, não podia adiar a viagem. A caminho do aeroporto só
penso nela, comovido. Na manhã linda e iluminada, as árvores balançavam seus ramos
naturalmente, como se ela não tivesse morrido. O mundo não precisa de nós, disse a mim
mesmo […].13

Naquele mesmo dia, em trânsito rumo a seu compromisso, um poema


lhe vem pronto, como reação ao potente choque emocional da perda:
MORTE DE CLARICE LISPECTOR

Enquanto te enterravam no cemitério judeu


do Caju
(e o clarão de teu olhar soterrado
resistindo ainda)
o táxi corria comigo à borda da Lagoa
na direção de Botafogo
E as pedras e as nuvens e as árvores
no vento
mostravam alegremente
que não dependem de nós14

Também o Ferreira Gullar cronista, anos depois, reativará a memória


afetiva, em novo (e belo) registro, evidentemente esteado nas imagens do
próprio poema:
De viagem marcada para São Paulo, entrei num táxi que me levou pela lagoa Rodrigo de
Freitas. Não poderia ir a seu sepultamento. O táxi corria dentro de uma manhã luminosa,
enquanto a brisa balançava alegremente os ramos das árvores. Clarice morrera e a natureza o
ignorava. No avião, escrevi um poema falando nisso. Que mais poderia fazer?

Alguns meses atrás, quando aceitei fazer a curadoria da exposição


sobre ela, no Museu da Língua Portuguesa, todas essas lembranças me
acudiram. Ia ser bom voltar a pensar nela, reler seus livros, pois é neles e só
neles que é possível reencontrá-la agora e nunca naquele saárico túmulo do
Cemitério Israelita do Caju, aonde certo dia, sob sol escaldante, fui, com
Cláudia Ahimsa, visitá-la. Não havia Clarice nenhuma sob aquela laje de
pedra, sem flores. E não havia porque, de fato, o que Clarice efetivamente
foi, o que fazia dela uma pessoa única e exasperada, era sua patética entrega
ao insondável da existência — e a necessidade de escrever, de tentar
incansavelmente dizer o indizível, mas certa de que, ao torná-lo dizível, o
dissiparia.
Não obstante, isso era tudo o que valia a pena fazer na vida, conforme
afirmou: “Quando não escrevo, estou morta”.
Em compensação, quando a lemos, ressuscita.15
Seco, direto, o título do poema anuncia o que de incontornável e
definitivo há na fatalidade que motivou a escrita, aproximando-se do
prosaísmo da manchete jornalística ou mesmo do proclama funéreo. Se a
própria escritora explicava a origem de seu sobrenome vinculando-o à
imagem metonímica do corpo velado — com a flor-de-lis no peito —, a
incômoda proximidade sonora entre os vocábulos morte e Lispector retoma
e confirma o vínculo etimológico-semântico, tornado ecoante verdade
irrecorrível. Com enunciação dirigida à interlocutora ausente — referida na
2a pessoa do singular e cujo nome aparece tão somente no título —, o eu

lírico parece combinar relato e justificativa, lamento e escusa, amparado no


ritmo e pulsação da palavra, a fim de resgatar a ambiência de proximidade
da conversa íntima.
Se a predominância marcante do som surdo da consoante oclusiva T,
no verso de abertura, alude ao processo de inumação do corpo, dando a
ideia de um ruído seco, repetido, que as palavras derivadas do elemento
natural (enterravam e soterrado) vêm igualmente reiterar, a renúncia quase
absoluta à pontuação, sobretudo ao ponto final para (não) encerrar o poema-
décima,16 concretiza na escrita a recusa do fim e, por oposição, a resistência
do fulgor — ora sovertido — do olhar oblíquo que tanto siderara o autor.
Daí o realce dado à exceção: a presença, no 3o e no 4o verso, dos sinais de
parênteses, os quais encerram e isolam uma ponderação ou ressalva (de
sobrevida) por meio de dois vocábulos que, combinados, semântica e
acusticamente remetem à ideia de continuidade e duração — “resistindo
ainda”.
A perícia linguística do poeta atua para acentuar o efeito de contraste
da escolha lexical: em versos diferentes, porém em posição imediatamente
subsequente, os vocábulos “soterrado” e “resistindo” contrapõem
semanticamente o aspecto verbal do particípio — com função
adjetiva/predicativa, a indicar um processo acabado/concluído —, o qual
imanta a “o clarão de teu olhar” um sentido de passividade e resignação, e o
verbo no gerúndio — com forma adverbial/circunstancial e valor de voz
ativa —, conferindo, ao mesmo sintagma nominal, atributos de vontade e
potência de reação à finitude. Combinação tensiva de opostos: consumação
e perpetuidade, interrupção e prolongamento. Posto que enterrado, o
“clarão” do olhar de Clarice fulge em sua hora de estrela, feito vestígio de
luz viva sob o solo, memória persistente a emitir sinais e a estimular a
demanda de interlocução, à que o elegíaco apelo verbal em forma de poema
dá voz.
Primeira palavra do texto, a conjunção “Enquanto” assinala a
concomitância temporal de dois fatos: encerrado no táxi, em corrida “na
direção de Botafogo”, o sujeito da enunciação lírica distancia-se
fisicamente do lugar onde se efetiva, naquele mesmo momento, o funeral da
escritora: “o cemitério judeu do Caju”.17 Outro jogo de simultaneidade
dialética configura a segunda parte do texto (versos 7-10): a natureza segue
“alegremente” seus processos e fluxos,18 com aparente sem-razão, ao passo
que o reconhecimento da finitude da condição humana expõe e impõe
limites à consciência-de-si, no mundo da cultura, do simbólico e da
representação. A mescla ligeira de elementos narrativos e descritivos gesta
a conclusão reflexiva (à que o uso do pronome pessoal “nós” confere
dimensão plural e centrípeta, tragando e incluindo o leitor, no presente da
recepção) acerca da distinção entre sujeito e objeto, negando-se assim a
chave romântica da pretensa continuidade entre a fenomenologia do espírito
(ser-para-a-morte) e o curso da verdade do mundo.
Ao mobilizar as palavras “judeu” e “Caju”, para além do efeito chiante
de aliteração e rima interna com que a repetição da sílaba ju contribui para a
tessitura sonora do poema, Gullar aproxima (e afasta, por
enjambement/transposição/cavalgamento) a origem estrangeira étnico-
religiosa da imigrante ucraniana e sua adesão ao elemento nacional,
tensionando o índice étnico-religioso com a palavra tupi que designa a
fruta, a qual metonimicamente recupera a cor local de fundo biográfico, ao
condensar simbolicamente a fase da juventude em que Clarice viveu no
Nordeste (região à que ele próprio, maranhense, também pertence), nos
estados de Alagoas e Pernambuco. Mais uma vez, simultaneidade e
contraste: errância e imobilidade, migração e identidade, alteridade e
pertença. Finalmente, etimologia e toponímia confluem para a construção
do sentido: também é chamado de “caju” o forte vento noroeste que sopra
ocasionalmente na baía de Guanabara, a indicar mudança das condições
climáticas,19 ligando-se, portanto, não apenas os versos 1 e 2, mas este e o
verso 8, igualmente curtos, condensando locuções de lugar. Aliás, a
insistência com que comparecem no texto signos de referencialidade
espacial (“do Caju” / “da Lagoa” / “de Botafogo”) reafirma, após tantas
viagens (compulsórias ou não), a opção comum de ambos os escritores pela
capital fluminense, cidade onde moraram até seus últimos dias.
Dez anos após a morte de Clarice Lispector, em 1987, Ferreira Gullar
lança o livro Barulhos, com outro poema em que há referência direta à
amiga:20
ONDE ESTÃO?

Na enseada de Botafogo o mar é cinza


e sobre ele se erguem os rochedos da Urca,
o Pão de Açúcar.
É tudo solidamente real.

Mas e os mortos,
onde estão?
O Vinícius, por exemplo,
e o Hélio? a Clarice?
Não quero que me respondam.
Pergunto apenas, quero
apenas
fundamente
perguntar.

Ia cruzando a sala de manhã quando


me disseram: a Clarice morreu.
E no banheiro, depois, lavando as mãos,
lavava eu as mãos já num mundo sem ela
e água e mãos eram um enigma
de sensações e lampejos
ali na pia.
É que a morte revela a vida aos vivos?

Quando Darwin morreu


fomos todos para o seu apartamento na Rua Redentor.
Ele estava esticado num banco
enquanto eu via
pela janela sobre a praia
um helicóptero
a zumbir na atmosfera iluminada
longe.
Thereza, Guguta, Zuenir,
estavam todos ali e o bairro
funcionava, a cidade funcionava naquela manhã
como em todas as manhãs.
Não era realidade demais
para alguém deixar assim
para sempre?
A caminho do cemitério me lembro
havia uma casa espantosamente ocre
recém-pintada — e até hoje me pergunto
o que há de espantoso numa casa ocre
recém-pintada.
Não sei se devido à quantidade de automóveis
que há na cidade
o surdo barulho das ruas
e os aviões que cruzam o céu,
o certo é que
subitamente
me pergunto por eles.

Onde estão?
onde estou?
O mundo é real demais para alguém pensar
que se trata de um sonho.21

Desde o título, Gullar mobiliza e reatualiza mais diretamente o topos


literário do “Ubi sunt?”, o qual remonta pelo menos ao século 13, segundo o
esclarecedor ensaio de Augusto Meyer (cujo desenvolvimento, aliás, o
poeta parece acompanhar pari passu).22 “Pergunta sem resposta”, a fórmula
recorrente “Onde estão?” reaparece como motivo literário obsedante, da
literatura medieval à barroca, da modernista à mais contemporânea,
inicialmente via Boécio e Villón, com graus de formalismo diversos, pela
maior ou menor adesão de cada poeta ao paradigma retórico da antiga
chapa, ao clichê da “velha receita”. A “fórmula interrogativa tão seca e
direta, ameaçadora e cortante em sua brevidade”,23 repõe a reflexão acerca
da evanescência natural das coisas e seres e inspira os autores a enfileirar
nomes e pontos de interrogação em meio a graves considerações que
ratificam a consciência da caducidade dos bens temporais.
Repetida à exaustão, por vezes como estribilho, a indagação ecoa nos
textos e se transfere aos leitores, com isto se ampliando sua expressão
angustiante, pois na longa tradição ocidental (de cuja ramificação é o
poema de Gullar um evidente exemplo de derivação tópica), é “interrogação
que na verdade não espera resposta alguma”.24 Se o passado fora o tempo da
presença, o presente certifica apenas a ausência, como prova inescapável de
que o processo avança rumo ao futuro e de que, portanto, tudo passará. Daí
a inclusão do eu lírico, muitas vezes, no próprio catálogo nominal de
fantasmas, na enumeração ou “lengalenga dos nomes”, de “cerrados
pelotões de mortos, tudo de cambulhada”.25
Otto Maria Carpeaux, em sua tentativa de “Resposta à pergunta” do
amigo Augusto Meyer, acentua as ressonâncias melancólicas do tema e a
significação metafísica daquele lugar-comum poético.26 Para ele, na
literatura medieval, porque profundamente marcada pelo espírito religioso
da época, observa-se ainda a possibilidade de evasão ou de arrefecimento
da angústia, visto que os “que antes de nós viviam neste mundo” estariam
no além, sendo recompensados ou punidos conforme suas virtudes ou
pecados. Embora nem por isto deixassem os poemas de servir de alerta ao
leitor, como reafirmação sempre reposta do temível “Memento mori”
(“Lembre-se da morte” ou, mais diretamente, “Lembre-se de que também
vai/vamos morrer”).
Se, por outros momentos de sua obra poética, não seria difícil filiar
Ferreira Gullar ao epicurismo e à tradição estoica, mencionados por
Carpeaux — em que se responde à certeza da finitude humana com o aceite
do convite à boa vida e o “acorde da alegria de viver”, temperado com notas
orgíacas de “sensualidade brutal” —, neste caso, o dos poemas dedicados a
Clarice Lispector e a outros amigos mortos, a evidência maior é a de que o
pensamento do poeta brasileiro adere, antes, ao materialismo moderno,
segundo o qual, após a morte, nada há e os já idos tão somente “não estão”,
restando deles apenas a cinza e o pó, como traços residuais da (in)existência
do corpo, fugazes porém concretos demais: “É tudo solidamente real!”.27
Ao rastear temas e recursos poéticos medievos nos poemas de Manuel
Bandeira, Franklin de Oliveira detém-se na musicalidade dos versos,
vinculando-a à tristeza elegíaca e à irradiação da “voz subjacente” do
“Memento mori” como presença fortemente atuante em sua poética. Para
tanto, o crítico revisita a obra monumental de Ernest Robert Curtius,
Literatura europeia e Idade Média latina, com destaque para a investigação
acerca da “tópica do inexprimível” e do “sentimento do irrevogável, da
irreparável perda” e da “tópica da vanidade de todas as coisas, a qual
condicionava quase todo o pensamento medieval”:
[…] uma das tônicas é o motivo da decomposição do corpo. O tema das lamentações pela
beleza que se converte em putrefação está […] na base da ars moriendi; nela ressoa a voz do
Memento mori. É o núcleo do Ubi sunt […] A tópica da evanescência de todas as coisas é uma
ideia propedêutica: ela nos prepara para a natural aceitação do conceito da morte, como o
único problema da existência […].28

Em seção de seu ensaio dedicado à análise interpretativa do poema


“Profundamente”, de Bandeira, Davi Arrigucci Jr. recupera as reflexões dos
críticos que o antecederam, a fim de também esquadrinhar o “motivo
arquibatido” da ausência, “na forma de uma pergunta enumerativa e
reiterada, sugerindo o desaparecimento de uma série de indivíduos”, como
“padrão repetitivo ao longo da história literária do Ocidente (e não
apenas)”,29 tradição à qual se filia, acrescento, o texto de Ferreira Gullar. Em
comum com este seu colega maranhense, o poeta de Pernambuco faz uso de
um “tipo de forma mesclada, épico-lírica […], na qual o discurso
expressivo em primeira pessoa” depende intimamente da “memória épica, a
faculdade mestra do narrador”, “evocando, com efeitos plásticos marcantes,
eventos e figuras humanas […], como se contassem uma história, de teor
profundamente subjetivo, por meio de quadros imagéticos”.30 E, assim como
Gullar, Bandeira revisita o topos elegíaco, agregando à fórmula o “elemento
pessoal e autobiográfico”, sob o aspecto da existência individual,
envolvendo o seu passado recente, “ao dar espaço na lista de nomes ilustres
para pessoas […] saídas ao que parece do círculo de convivência
estritamente pessoal e íntima do poeta”:31
Ora, o tema do Ubi sunt? representa, no universo da lírica, precisamente o momento de
concentração e organização da experiência diante da morte, sob a forma da meditação
elegíaca, quando é possível pensar o sentido de uma vida e da própria existência humana como
um todo, quando o aprender a morrer se impõe como necessidade de pensar o horizonte da
própria vida. […] O aproveitamento levado a cabo por Bandeira representa uma renovação
profunda do tópico, pela sabedoria construtiva com que soube inseri-lo numa nova situação
histórica e pessoal, particular e concreta, para dele extrair sua mais íntima experiência […].
[Ele] insere o tema, de forma decisiva, no contexto histórico do país em processo de
modernização, tornando-o um eco elegíaco de todo um mundo em processo de extinção,
fazendo da história mais ampla de uma sociedade em transformação uma história pessoal e
íntima e, ao mesmo tempo, generalizando a experiência individual, através do motivo
recorrente da tradição, numa forma simbólica de alcance universal, exprimindo a atitude de
um homem diante do fato inelutável e comum a todos que é a morte.32

Como no poema anterior, neste, Gullar reúne topônimos cariocas


(“enseada de Botafogo”, “Urca”, “o Pão de Açúcar”) e elementos da
paisagem natural (“mar”, “rochedos”, “praia”, “atmosfera iluminada”) para
servir de cenário empírico e “solidamente real” à inquirição metafísica, que
se repõe com a constatação acumulativa da perda de tantos amigos, dentre
os quais o poeta Vinícius de Moraes e o artista plástico Hélio Oiticica,33
mortos no mesmo ano de 1980, e o jornalista Darwin Brandão, cujos velório e
enterro ganham destaque (e três testemunhas) a partir da quarta estrofe. A
terceira, dedicada a mais uma vez repercutir o passamento da amiga
escritora, é composta quase integralmente por decassílabos (versos 14-17 e 21),
em sequência interrompida justamente quando se interpõe à razão
organizadora da forma fixa “um enigma” (verso 18), com potência
desagregadora — que a cisão dos versos 19 e 20 vem formalizar: “É que a
morte revela a vida aos vivos?”.
Antes, nos dois primeiros versos da estrofe, o contraste auditivo faz
cessar a homofonia de assonâncias que indicavam o antes (“Ia cruzando a
sala de manhã quando/ me disseram:”) e o depois da notícia (“a Clarice
morreu”), caso exemplar de utilização estilística de sonoridade expressiva.
Já nos dois últimos (versos 20 e 21), reforça-se a oposição acústica, com efeito
de reflexo invertido, pela ausência de nasalização nas palavras formadas
com a vogal “i” (“ali” / “pia” / “vida” / ”vivos”), a ressoar a sílaba tônica de
“enigma” e do prenome da autora (verso 15), além de, cifradamente, remeter
ao título do livro que ela lhe dera de presente, Água viva.
Métrica e ritmo ajustados em consequência dos “lampejos” de clareza
e verdade que a experiência da morte alheia (re)vela acerca da própria vida
(tornando mais significativa a fantasmática falta de menção ao provável
espelho sobre a “pia” do “banheiro”, no qual o sujeito certamente se miraria
ao se lavar). E a repetição do substantivo “mãos”, em posições diferentes
nos versos 16-18, soma-se à alternância do verbo lavar no gerúndio e no
pretérito imperfeito do indicativo, a fim de representar iconicamente,
também no branco do papel, à maneira verbivocovisual dos ex-colegas
concretistas, o movimento contínuo e recorrente do ato banal que se repete,
porém ora ressignificado por novas “sensações”, “já num mundo sem ela”.
Pois é justamente ao recordar a ocasião de mais uma perda — quando
se postara na janela de um apartamento a focalizar a paisagem urbana, no
movimentado “bairro” da “cidade” cosmopolita, enquanto o corpo do
companheiro jornalista jazia “esticado num banco” — que o eu poemático
se dá conta, com perplexidade analítica, do desacordo, de que tudo ainda
“funcionava”, ininterruptamente, “como em todas as manhãs”. E assim se
constata que o domínio da técnica neste universo prosaico e desencantado
não decifra, antes adensa e complexifica, a sempiterna incógnita da
perecibilidade: “Não sei se devido à quantidade de automóveis/ que há na
cidade/ o surdo barulho das ruas/ e os aviões [e um helicóptero] que cruzam
o céu,/ o certo é que/ subitamente/ me pergunto por eles.”; afinal, “Não era
realidade demais/ para alguém deixar assim/ para sempre?”. No momento
mesmo em que se repõe o enigma do desaparecimento de outrem
afetivamente caro, o que outrora fora familiar é estranhado e a rotina
apaziguadora que arrefecera o choque de lutos anteriores é rompida com a
reinstalação do assombro — como a fixação da imagem da esfíngica “casa
espantosamente ocre / recém-pintada”, no caminho do cemitério, vem
ratificar.34
Se, em 1964, Clarice Lispector afirmara, por meio da narradora
protagonista de A paixão segundo G.H., que “a explicação de um enigma é
a repetição do enigma”,35 resta-nos — agora que o poeta Ferreira Gullar
também não mais se encontra neste mundo “real demais” — tão-somente
“fundamente perguntar”: “onde estão? / onde estou?”. Mesmo certos de que
as respostas possíveis apenas repõem a pergunta, indefinidamente… Afinal,
como exprime, na frase em latim que abre este ensaio, o pintor greco-
italiano Giorgio de Chirico (1888-1978) — que retratou a escritora em 1945 e é
também o autor de quadro cujo título é As Musas Inquietantes —, “E o que
devo amar senão o enigma?”.
O resto é silêncio.

NOTAS
1. Gotlib, 1995, pp;. 482-3.
2. Cf. Gotlib, Ferreira e Moser.
3. Gotlib, p. 484. Cf. Ferreira (pp. 290-2), em 28 de outubro, durante cirurgia de obstrução intestinal,
constatou-se tumor nos ovários e Clarice foi transferida, em 17 de novembro.
4. Disponível em: http://almanaque.folha.uol.com.br/ilustrada_12dez1977.htm.
5. Cf. Cadernos ims (pp. 53-5) e Gullar (2016), pp. 86-7.
6. “Já no segundo romance, O lustre, o discurso mostra-se intenso, movido por uma retórica outra,
nova, cheia de elementos inesperados. O propósito da romancista, menos que contar uma história e
definir caracteres, foi gerar uma atmosfera tensa e atordoante, alucinatória quase, de que se ergue
uma realidade estranha, transfigurada. As personagens não são seres excepcionais, antes são pessoas
comuns, vivendo em um mundo, por assim dizer, mágico; mas de uma magia diferente, clariciana,
feita de enigmas e perplexidades — uma magia nascida da exacerbação da palavra. Percebe-se, já
nesse livro, que um traço decisivo da personalidade da escritora é a audácia que, daí para a frente,
determinará o caminho seguido por ela.” (Gullar; Peregrino, p. 34).
7. “Nos dias que se seguiram, não conseguia esquecer seus olhos oblíquos, seu rosto de loba com
pômulos salientes.”
8. Cinquenta e seis anos. “Já quase nada tinha da jovialidade de antes, embora continuasse
perturbadora em sua natural dramaticidade.”
9. Lispector (2007), pp. 53-5.
10. “[…] Água viva tampouco tem a atmosfera soturna e angustiada dos livros anteriores e,
particularmente, de A paixão. Livre do compromisso narrativo, […] ela parece viver uma aventura
literária sem limites, entregando-se à improvisação e ao fluir da escrita, descomprometida, sem
qualquer objetivo previsível. Lembra, nisso, a escrita automática preconizada pelos surrealistas e que
nenhum deles pôs de fato em prática, mesmo porque, nos termos em que a concebiam, era
impraticável, uma vez que não se pode escrever continuamente sem qualquer interferência da razão
ou da consciência. De qualquer modo, os surrealistas abriram caminho para uma linguagem que
incorporasse o onírico e o mágico. Clarice, ‘tomada por um ritmo incessante e doido’, tentou vencer
os limites da coerência lógica e criar, assim, um discurso encantatório. Há momentos, em Água viva,
em que o fluxo da escrita se faz movido por jogos de ideias e palavras ‘cegas’, que arrastam o leitor
sem lhe dar tempo de compreender o que lê; ou se rende ou desiste. Por isso mesmo, este livro
reflete, como nenhum outro livro seu, uma alegria que vem certamente do fato de que, nele, ela está a
salvo de qualquer injunção; escreve para escrever, para gozar da liberdade de inventar o texto e
elevá-lo a alturas inspiradas para além da compreensão, pois o que deseja é o encantamento. Trata-se
talvez do que ela definiu como ‘a vida pela vida’, acrescentando: ‘Posso não ter sentido mas é a
mesma falta de sentido que tem a veia que pulsa’. E nisso também difere dos surrealistas; já não quer
perder-se no onírico, mas no real.” (Gullar; Peregrino, pp. 44-6).
11. Gullar, 2016, p. 87.
12. “E se ela não voltasse mais para casa? Dobrei o papel com o recado e guardei-o no bolso,
desapontado. Àquela noite, quando contei o ocorrido a minha mulher, ela explicou: ‘Clarice, vaidosa
como era, não queria que você a visse no estado em que estava’. Pode ser, mas, de qualquer forma,
até hoje lamento não ter podido vê-la uma última vez.” (Ibid.)
13. Cadernos ims, p. 55.
14. Na 1a versão do poema, cemitério “de S. Francisco Xavier”, nome substituído em Toda poesia
(Gullar, 2015, p. 370). Em São Luís do Maranhão, há a “praia do Caju” (Gullar, 2006), p. 141.
15. “Presença de Clarice”, 20/5/07. In: Gullar, 2016, p. 87.
16. Embora as maiúsculas nos versos 1 e 7 cindam o poema em dois períodos.
17. Em “o táxi corria comigo” (verso 5), cruzam-se os sentidos de o veículo trafegar com o
passageiro e o de este ser expulso (ou escapar) do lugar onde deveria estar.
18. Há imagens dos quatro elementos fundamentais: “enterravam”/ “soterrado”, “Lagoa”/ “nuvens”,
“vento”, “Botafogo”/ “clarão”; e dos reinos humano/animal, vegetal (“árvores”) e mineral (“pedras”).
19. Cf. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
20. Sobre Barulhos, diz Camenietzki (2006, p. 177): “São poemas da maturidade poética, em que
[…] acumulam-se grandes perdas pessoais. Mário Pedrosa, principalmente, mas também Glauber
Rocha, Armando Costa e a lembrança de Clarice Lispector. […] Mesmo que irreligiosa, sua poesia
nem por isso deixou de se debater incansavelmente com a morte (ou talvez por isso mesmo). Sem
transcendência da alma, o corpo se extingue e, com ele, a vida que havia. Apenas na memória dos
vivos os mortos vivem, e no poema”.
21. Gullar, 2015, pp. 394-5.
22. Meyer, pp. 81-93.
23. Ibid., p. 83.
24. Ibid., p. 85. Os versos 9-13 explicitam: “Não quero que me respondam/ Pergunto apenas, quero/
apenas/ fundamente/ perguntar”.
25. Meyer, p. 85. Na última estrofe, surge a variante “onde estou?”, incluindo o eu, por antecipação,
no inventário de ausentes, ampliando-se a perplexidade existencial e metafísica.
26. Carpeaux, pp. 9-13.
27. “Ora, acredito saber uma resposta. […] foi dada, definitivamente, pelo buril de Goya: na gravura
na qual um esqueleto escreve sobre seu próprio túmulo a palavra Nada.” (Ibid., pp. 10 e 13).
28. Oliveira, pp. 242 e 248.
29. Arrigucci Jr., p. 217. Ver Rosenbaum (2002), caps. 3 e 4.
30. Id., p. 205. O uso dos advérbios de modo (solidamente, fundamente, espantosamente,
subitamente) reforça a hipótese intertextual.
31. Arrigucci Jr., p. 220. “Entendida assim, a convenção do Ubi sunt? seria um meio entre outros que
o homem encontrou para lidar com a morte, através da poesia, não tanto ou apenas para frisar o poder
devastador do tempo sobre a existência humana e todas as coisas, mas antes para instaurar a
meditação capaz de tornar admissível a própria ideia de morrer. […] Dessa aprendizagem da morte
— a que busca familiarizar-se a todo custo, tratando-a como algo sério e problemático, mas sem
chegar ao trágico, através de uma mescla estilística que passa pela representação concreta do
cotidiano, incorporando traços do sermo pedester ou humilis, como no discurso cristão — extrai a
condição mesma da liberdade através da meditação constante […].” (pp. 222-3).
32. Ibid., p. 225.
33. Gullar refere-se a Hélio Oiticica como “uma espécie de irmão mais novo”, ao relatar a
“experiência-limite” de criação do “Poema enterrado”, em 1960 (Gullar, 2016, pp. 151-2; Gullar,
2006, pp. 147-55).
34. “De lampejos e aparições é feito o imaginário móvel de Gullar trabalhado em mais de um poema.
Este amador das artes da forma e da cor vê dentro e fora de si uma inesperada verde relva em meio à
sua cidade em ruínas. ‘De tais espantos somos feitos’. […] O mesmo se dirá da recorrência de um
certo tom drummondiano audível em poemas imersos na cidade grande ou evocadores de mortos —
aqueles que sobrevivem nas fotos ou no ventre da memória mais doída” (Bosi, p. 59).
35. Lispector, 1998, p. 134.

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Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1980 (p. 235-62).
ROSENBAUM, Yudith. Manuel Bandeira: Uma poesia da ausência. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2002.
Literatura e cinema: A paixão segundo G.H.*
NÁDIA BATTELLA GOTLIB

A partir do momento em que se assiste à narrativa cinematográfica


intitulada A paixão segundo G.H., obra de Luiz Fernando Carvalho, a
correlação entre duas linguagens — a do filme e a do romance homônimo,
de Clarice Lispector, parece inevitável. Não há como escapar. E é
justamente esse diálogo que me servirá de fio condutor ao longo de minha
reflexão.
Antes de entrar na questão propriamente dita, centrada na leitura
desses dois objetos estéticos, romance e filme, e já que o tema propõe
considerações entre literatura e cinema, gostaria de me reportar a um outro
objeto estético do campo do cinema, criado por Suzana Amaral, falecida há
apenas quatro meses, aos 25 de junho deste 2020.
Seu filme, A hora da estrela, de 1985, baseado em romance de igual
título, escrito por Clarice Lispector, teve papel significativo na divulgação
da escritora junto a um público mais amplo. A cineasta paulistana fez uma
opção: usou apenas uma das histórias que compõem o romance A hora da
estrela, que é a de Macabéa. Assim sendo, Rodrigo S. M., o narrador criado
por Clarice Lispector para contar — e efetivamente conta — a história de
Macabéa, não tem aí sua própria história — a história sua, enquanto escritor
— incorporada ao filme. Perdeu-se o fio estrutural do romance que se
constrói mediante a imbricação dessas duas histórias. Trata-se de uma
opção, entre tantas outras, assumidas pela cineasta ao criar sua adaptação.
Suzana Amaral justificou sua escolha, argumentando que, ao adaptar A
hora da estrela, evitou a fala do narrador que no curso da narrativa registra
sua experiência — a história do escrever o romance —, pois esse recurso
lhe apresentava o risco de o filme se tornar monótono. Seja como for, e tal
como foi adaptado, o filme foi um sucesso e ganhou merecidos prêmios,
como o Urso de Prata de Berlim, concedido em 1986 a Marcélia Cartaxo como
melhor atriz.
Alerto, pois, para o fato de que o filme A paixão segundo G.H. tem
proposta bem diferente da que foi assumida por Suzana Amaral. Trata-se de
uma outra postura diante da obra a ser recriada em linguagem de cinema. O
cineasta Luiz Fernando Carvalho tem, como objeto, o livro na sua
totalidade. Poderia optar por uma das histórias, pois, nesse romance, G.H.
nos conta o que lhe aconteceu no dia anterior. Temos aí duas vertentes da
mesma personagem: a que mnemonicamente capitula a história (G.H.
narradora) e a que é objeto da história registrada (G.H. no dia anterior ao da
“contação” da história), duas histórias criadas pela autora Clarice Lispector.
Sob esse aspecto, há um trio gerador do romance, tal como em A hora da
estrela — com a diferença de que aqui, neste, em A paixão segundo G.H., o
nome da autora Clarice Lispector aparece explicitamente apenas na capa do
romance, ao passo que, em A hora da estrela, além do seu nome registrado
na capa, a sua assinatura atravessa os treze títulos do romance numa de suas
primeiras páginas.
Mas registra-se, em ambos, a técnica do desdobramento: uma autora
cria uma personagem narrador/narradora que cria um romance ou uma
história de personagem: história de Macabéa, em A hora da estrela; história
de G.H. no passado recente, em A paixão segundo G.H.
Convém considerar que o filme surgiu como resultado de um contato
intenso e duradouro do cineasta com o romance. O próprio Luiz Fernando
Carvalho afirma que começou a ler a obra de Clarice Lispector há muitos e
muitos anos, lendo-a enquanto filmava o romance Lavoura arcaica, de
Raduan Nassar — filme, aliás, que ganhou dezenas de prêmios pelo mundo
afora. Afirma inclusive que, durante as filmagens de Lavoura arcaica, A
paixão segundo G.H. era seu livro de cabeceira, porque G.H. expressava, no
romance, tudo aquilo que a Ana, personagem de Lavoura arcaica, não
dizia, ou não podia dizer, tendo em vista o meio familiar extremamente
repressor em que ela vivia. Portanto, interessante observar que o diretor,
enquanto filmava a obra de Raduan, já elaborava um diálogo entre esses
dois romances. De lá para cá, passaram-se vinte anos.
Também penso ser oportuno revelar que me surpreendi, de maneira
muito positiva, com o modo como o cineasta preparou a equipe do filme A
paixão segundo G.H. Lembro-me do dia em que cheguei ao Galpão
Criativo, local da Oficina Teórica destinada à preparação da equipe, no
bairro Leopoldina, em São Paulo. Um enorme galpão, com um grande
espaço vazio no meio, tinha vários cenários na parede de fundo. Num deles,
podia-se divisar a assinatura de Clarice Lispector. Outro espaço da mesma
parede, mas do alto até quase embaixo, era ocupado por interessante painel
com o desenho de um homem, uma mulher e um cão. Claro que
identifiquei, imediatamente, o desenho feito por Janair no quarto de
empregada que ela ocupava no apartamento de cobertura de G.H. Ao lado e
na mesma parede, um oratório. Perguntava-me: seria o local sagrado em
que se transforma o quarto de empregada durante uma das experiências aí
vividas por G.H.? E, num dos cantos do galpão, um quarto pequeno, de
madeira, com uma cama: o quarto de Janair, espaço construído para a
preparação da atriz Maria Fernanda Cândido que, no filme, interpreta G.H.
Num segundo momento, quando lá cheguei para fazer uma palestra
sobre o romance, fiquei surpresa com a quantidade de pessoas que
formavam a equipe, composta por cerca de uma centena de pessoas, que
incluía também convidados do meio artístico e cultural, ali reunidas para
seguir uma programação que previa uma série de palestras, em diferentes
datas, feitas por Franklin Leopoldo e Silva, Yudith Rosenbaum, José Miguel
Wisnik, Carlos Byington, Maria Rita Kehl, Rafaela Zorzanelli, Flávia
Trocoli. A equipe pôde, assim, discutir leituras do romance com
especialistas de várias áreas do conhecimento — literatura, filosofia,
psicanálise, sociologia.
Pude perceber então a proposta colaborativa da equipe, que incluía
profissionais diversos: a responsável pelo figurino, a pessoa que servia o
café, a roteirista, o motorista, a atriz, enfim, estava ali presente um grupo
muito numeroso.
Não vou me estender sobre tal assunto porque o percurso de
preparação, desenvolvimento e execução do filme encontra-se devidamente
documentado em livro organizado pela jornalista e roteirista Melina
Dalboni, a ser divulgado por ocasião do lançamento do filme. Mas me
detenho apenas num outro momento da preparação da equipe de que
participei, quando cerca de oito pessoas, sentadas em volta de uma mesa,
fizeram a leitura do romance, palavra por palavra, do início ao final. Pude
perceber então que essa leitura em grupo, além das anteriores, revelava o
extremo cuidado com cada palavra do romance, assim experimentada por
cada um de nós envolvidos no projeto.
A essa minha experiência de contato com a equipe somou-se uma
outra posterior: a de poder assistir ao filme em algumas etapas de sua
edição.
O que também pretendo apresentar a vocês, hoje, é um resumo de
algumas das reações que tive durante esse processo. Elas me levaram a
detectar pontos que considero significativos nesse diálogo entre o filme e o
romance. Por isso, passo a me deter em apenas alguns momentos da trama
cinematográfica, no sentido de registrar alguns dos recursos que aí observei
nesse percurso de se “experimentar” Clarice.
De fato, o filme me trouxe a convicção de que a proposta do cineasta
caminha na direção de tentar passar para o espectador aquilo que a Clarice
buscou oferecer a nós, leitores. Ou seja: raptar o leitor, a fim de fazê-lo
mergulhar nesse universo. Ora, se tal proposta é uma característica de toda
arte, no entanto ganha especificidade ao se constituir como uma experiência
do “ser Clarice”. É isso que, suponho eu, o diretor propõe: a
experimentação do “ser Clarice”. E como é que isso acontece?
Observe-se que o romance exibe pontos fundamentais de ordem
estrutural, em parte desenhados pelo seu fio episódico e que podem ser
encontrados na história da literatura da escritora. Já no seu primeiro texto
publicado, o conto “Triunfo” (alguns consideram o título com o artigo, “O
triunfo”), impresso na revista Pan em 25 de maio de 1940 — portanto quando
Clarice tinha seus dezenove anos —, a personagem é uma mulher em estado
de perda (o marido abandonou-a) e de solidão (não há mais ninguém na
casa). Esse núcleo de situação da personagem feminina há de ter vida longa
na obra da escritora. Reaparece em G.H.
Também nesse conto se observa outro recurso utilizado: a narradora
rememora. A personagem do referido conto, depois da partida do
companheiro e sozinha em sua casa, volta-se para a cena do dia anterior, o
da partida do companheiro, e adquire assim consciência de seu próprio
papel na relação afetiva, depois de descobrir que o marido era, na verdade,
um escritor medíocre e frustrado. Esse é o processo de rememoração
desenvolvido pela narradora do conto. E também pela narradora G.H. —
embora, evidentemente, a narradora remonte a várias relações sentimentais
do seu passado. E a autora desenvolve seu relato com maior desenvoltura
estética, em parte propiciada por se tratar de romance, texto mais extenso,
ou ainda e talvez, por se tratar de autora em fase de maturidade criativa, já
que o romance foi escrito entre seus 41 e 43 anos de idade.
Seja qual for o motivo, observa-se no romance um nível de alta tensão,
diria mesmo um nível de alta voltagem, renovada a cada um dos 33
fragmentos (ou capítulos), que prendem o leitor numa verdadeira rede,
reforçada pelo fato de que um capítulo se liga ao outro como uma corrente,
pela repetição do último enunciado de um capítulo no início do capítulo
seguinte. Justamente pelo grau elevado de tensão, que se acumula, por uma
série de sobressaltos, a narrativa acaba sendo desconfortável e às vezes
insuportável. É esse o clima que o filme também traduz.
Mas há um outro recurso do romance, a pujança imagística, o luxo
figurativo, elevado a uma enorme potência. Se o leitor, no ato da leitura,
cria seu próprio repertório de imagens, montando cenários, desenhando
paisagens, compondo fisionomias e gestos a partir dos dados escritos que
lhe são legados pelo escritor, nesse caso temos diante de nós as imagens do
cineasta, que abre um novo universo do imaginário, de que destaco trechos.
Ressalto as primeiras imagens do filme: o da apresentação, em que a
figura da atriz nos surge distorcida, movimentando-se em linhas sinuosas,
ora saindo da tela, ora voltando, em tons pastéis e às vezes com alguns
borrões vermelhos. E ao som de uma música atonal — nem poderia ser
outra — de Gustav Mahler, um dos compositores que Clarice apreciava.
Tal como o romance, o filme nos traz uma série de impactos. E este, o
da apresentação, é o primeiro. Diante da imagem distorcida, temos a
recepção, a primeira, do que há de se comprovar ao longo da narrativa: a
desmontagem. Do quê? De tudo: da personagem G.H., dos padrões, dos
sistemas, da própria convenção narrativa. Cascas de sentido vão sendo
desvestidas, num processo que o crítico Benedito Nunes considerou como
sendo o da “desescritura”, e que a escritora leva a extremas consequências,
na medida em que desmonta o sentido da própria ficção, o sentido da
literatura, o sentido de si mesma como escritora profissional.
Como, nesse primeiro momento do filme, a imagem da atriz se
encontra em movimento, ela se expõe, se esconde e volta de novo, a
desconfiguração da figura física da atriz Maria Fernanda Cândido, de certa
forma, expressa o primeiro contato do espectador com alguma coisa que ele
tenta apreender e não consegue: eis o cerne mesmo do sentido dessa obra,
do romance e do filme: a procura.
A cena da atriz sentada à mesa da cozinha, moldando lentamente
bolinhas de pão, abre-nos o campo para o passar do tempo e para a
intimidade das rememorações. E o close no rosto da atriz inaugura as
primeiras falas ou as palavras do primeiro parágrafo do romance, com o
olhar voltado para nós, espectadores, mantendo de nós pouca distância —
seria a distância que mantemos do livro ao lermos o romance?
“Estou procurando… estou procurando, estou tentando entender,
tentando dar a alguém o que vivi, e não sei a quem. Mas não quero ficar
com o que vivi, não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa
desorganização profunda.”
Ela nos oferece, a nós, leitores, o que ela viveu. E a história é a da
“desorganização profunda” na busca do sentido da vida.
Além desse primeiro momento de apresentação do filme, seguido das
primeiras cenas — G.H. na cozinha, moldando bolinhas de miolo de pão, e
G.H. diante de nós, próxima a nós, na sua primeira fala —, destaco cenas
que se passam no ambiente social da sala do apartamento. Como sabem, o
trajeto da personagem ao longo do romance se faz entre dois ambientes: da
sala para o quarto de empregada.
No filme a sala aparece muito bem decorada, com sobriedade, mas
também com certa alegria colorida, ainda que discreta. Trata-se de um
espaço construído pelo cineasta como se fosse, ele também, uma obra de
arte. A decoração, típica dos anos 1960 — quando foi escrito e publicado o
romance —, mostra o requinte e a sofisticação cuidadosa, de acordo com o
status social da artista escultora que tem dinheiro e vive num apartamento
de cobertura.
Interessante o recurso da linguagem cinematográfica criada pelo
cineasta para traduzir essa elegância de uma vida social intensa, numa
sequência de recepções luxuosas: a porta de entrada do apartamento abre e
fecha sucessivamente e, a cada vez que se abre, G.H. exibe uma toalete
requintada diferente, um novo penteado, com igual nível de sofisticação.
Por outro lado, enquanto a personagem passeia ali na sala, nota-se o
que eu poderia traduzir como o não dito. Por trás da aparência da elegância,
o cineasta constrói com perspicácia uma certa inquietação por parte de
G.H., que aparece em mínimos detalhes: certos olhares e gestos da atriz.
Segundo expressão da própria narradora do romance, há um “leve
prazer geral” ou “suave pré-clímax”, ou simplesmente ali está a “mulher
que sorri e ri”, e também “o doce tédio da lua de mel”. Paira alguma coisa
ainda informe que a personagem tenta aplacar e disfarçar. Eu diria que ali
existe um estado de periclitância, de estar à beira de alguma coisa que há de
acontecer.
Já passando para um outro espaço cênico — o do quarto de empregada
—, gostaria de me deter em apenas um dos seus elementos de composição,
tanto no romance quanto no filme: o mural, com o desenho de um homem,
uma mulher e um cão, que, no filme, é o mesmo que figurava numa das
paredes do galpão de preparação da equipe e desenhado pelo próprio Luiz
Fernando Carvalho.
Então, se aparece um cineasta diretor que nas primeiras imagens do
filme é um pintor, um escultor, ao criar imagens da personagem em cores
trabalhadas em movimento, nessa cena é ele também um desenhista.
Confesso que, desde que vi esse desenho num painel do Galpão, não
consigo dele me desligar — tal como a imagem da atriz Marcélia Cartaxo,
do filme A hora da estrela, que se transformou, para mim, na imagem da
personagem Macabéa do romance. Uma contaminou (no bom sentido) a
outra.
É esse mural que G.H. descobre, logo ao abrir a porta do quarto
ocupado pela empregada, Janair, que já fora embora, espaço que G.H.
escolhe limpar, supondo que seria o mais sujo, e que inesperadamente
reconhece como sendo limpíssimo. Pois bem. O desenho coloca G.H. diante
do seu “vazio seco”. De fato, só existe o contorno das três figuras, sem nada
dentro. A tendência da personagem G.H. é apagar essa imagem de si, que
lhe traz um vazio desconhecido e até então não enfrentado. Eis uma
passagem do romance: “A Janair me fez assim, mas eu não quero adentrar
esse oco!”. A intenção é despejar baldes de água sobre os traços desenhados
por Janair na parede, destruindo assim a imagem que o outro tem dela, sem
nada dentro.
No filme, esse embate entre Janair — negra e empregada doméstica —
e G.H. — branca e patroa — acontece mediante genial solução do cineasta.
Duas mãos se conectam numa sugestiva batalha: a mão negra arranha a
parede, risca o carvão com violência, produzindo ruído desagradável, ao
fazer o desenho, enquanto a mão branca tenta apagar esse registro, raspando
com veemência os riscos da parede.
Trata-se de cena contundente, em que passado (tempo em que Janair
desenhou o mural) e presente (tempo em que G.H. se depara com o
desenho) se encontram. E aí torna-se patente a força de Janair sobre a
patroa, induzindo-a a enfrentar seu próprio vazio. Porque, com esse
desenho, Janair irrita a patroa, provoca-a a tal ponto que se impõe diante
dela. E G.H. acaba por reconhecer quem é Janair.
Se antes Janair vestia uniforme marrom, que se confundia com a sua
pele negra e passava absolutamente despercebida, pela primeira vez G.H.
consegue ver Janair como pessoa, como um ser vivo. Apenas no quarto de
empregada e após o baque do enfrentamento do seu “oco” é que G.H.
consegue distinguir o rosto de Janair, lembra-se do nome dessa serviçal, que
se torna uma “rainha africana”. Mas observe-se que é Janair quem
conquista sua visibilidade diante da patroa. Eis o papel revolucionário — de
índole emancipatória e de caráter abolicionista — dessa cena do romance,
que ganha realce na linguagem do filme.
Tem longa história na vida literária de Clarice Lispector o tema do
respeito pelo outro. Mas essa questão que aparece no repertório de contos,
crônicas e artigos jornalísticos, e tão evidente no romance
de que tratamos aqui, ganha nova configuração no filme: na cena em que as
mãos da patroa e empregada se digladiam, até que acontece o desfecho. A
minoria vence. A patroa se reconhece como um ser vivo, tal como Janair.
E passamos ao penúltimo item dessa minha breve apresentação:
remeto ao momento em que G.H. se encontra diante da barata, num
enfrentamento que atinge o seu clímax quando a personagem mata e
supostamente come a massa branca que sai de dentro do animal. Há várias
fases de aproximação entre essas duas personagens. Mas um recurso
importante na cena em questão é o olhar direto com que G.H. encara essa
“outra”, olhar esse que foi examinado pelas colegas Lúcia Helena e Regina
Pontieri.
De fato, o olhar fulminante em direção ao seu alvo é recurso utilizado
pela autora em vários momentos de sua obra. Lembre-se da troca de olhares
entre a personagem e o búfalo, no conto “O búfalo”, publicado em Laços de
família.
Abro parênteses para observar a importância do olhar da própria
Clarice em algumas fotos dela. Quando preparava o livro Clarice
fotobiografia, selecionei algumas fotos da Clarice menina, com seus oito e
dez anos de idade, porque, para mim, o punctum — para usar expressão de
Roland Barthes —, ou seja, o ponto que me atraía nas referidas fotos era
mesmo o olhar da menina fixamente voltado para a câmera fotográfica.
Pelo mesmo motivo — a fulminância do olhar —, selecionei para o mesmo
livro duas fotos de Alair Gomes, dos anos 1960, dois olhares implacáveis e
sem benevolência dirigidos a nós, espectadores.
Além da impactante cena de troca de olhares entre as personagens em
confronto, com detalhe decisivo que aqui não conto, para não tirar a
surpresa, seleciono uma outra imagem da barata. Em dado momento, somos
colocados diante das suas antenas, que, em movimentos curtos, repetitivos,
parecem tentar captar um sinal — o sentido da vida? Um pedido de socorro,
prevendo a sua própria morte? A câmera, centrada nos dedos da mão da
personagem G.H., dedos longos voltados para o alto, eles também, como as
antenas da barata, acionam movimentos leves. Estariam eles também
tentando captar sinais de sentido?
Tais apelos contrastam com o mundo externo, que nos surge em
imagens de antenas e fios instalados no topo do edifício, que a câmera
percorre, em ritmo lento; antenas de metal que distribuem sinais sem que se
perceba de onde e para onde vão e ficam, ali, como monumentos grudados
nos telhados dos edifícios da cidade grande.
Eis que a câmera desenha, pois, o contraste entre o mundo arcaico, o
mundo da barata, que consegue sobreviver há 350 milhões de anos “sob os
escombros da civilização”, portanto, num mundo subterrâneo, e o mundo da
tecnologia moderna, alçado nos ares, com ondas invisíveis a atravessar os
céus.
É bem verdade que, no romance, o exterior se estende pela janela do
quarto de empregada até as favelas do Rio de Janeiro e chega a países
distantes — Egito, Ásia Menor e a outros tantos lugares desse mundo
global. Se o espaço amplo do imaginário no romance alcança tais limites,
no filme aparece, por exemplo, mediante cenas em que o calor do deserto
egípcio invade o quarto minúsculo em que G.H. se encontra, e se
complementa mediante vestuário típico de um ritual ancestral de evocação
de entidades sagradas.
Também ao longo do filme, a imagem da barata, tal como elaborada
pelo cineasta, leva o espectador a reforçar a lembrança de certas imagens do
romance. As asas transparentes do corpo do inseto, superpostas, me
remetem à imagem das cascas de cebola usada pela romancista, ambas —
asas e cascas — finas e transparentes, possíveis traduções do processo de
desmontagem. É como se o objeto — a cebola e a barata — fossem se
desfazendo de seus invólucros, fossem descascadas das camadas de cultura
acumuladas pela civilização, para se chegar ao sumo, ao mais arcaico, ao
núcleo da “coisa”.
As cascas transparentes da barata, em tons de amarelo e marrom,
aparecem, no filme, diretamente diante de nós e, por vezes, em absoluto
silêncio: impossível deixar de encarar esse objeto que nos fita, que nos
causa ao mesmo tempo atração e repulsa.
Vemos a barata como G.H. a vê, pelos olhos da personagem. Nesse
momento de clímax, a construção da imagem consegue atingir uma síntese
dos sentidos que a barata nos foi transmitindo, com suas antenas em estado
de alerta, ao longo dos episódios encenados no quarto de empregada. Da
troca de olhares chega-se ao alvo: o crime consumado, quando então,
mediante a devoração do outro, a personagem finalmente experimenta o
“estar sendo viva”.
Não se trata apenas de um ato banal, mas o auge de um cerimonial
ritualístico, devoração antropofágica e arcaica, de apelo erótico acentuado,
tanto no romance quanto no filme. E não só de devoração do outro — a
barata, o homem, o amante —, mas a si mesma, ritual autofágico,
devoração de si sob a forma de masturbação. E chega-se à sentença síntese
do processo: “A vida se me é”.
O importante é que, ao longo desse percurso de desmontagem,
percebe-se uma aproximação do outro, a tal ponto que o outro,
desdobramento de um eu que a narradora reconhece como o Mim, é que
olha para o eu. O jogo de alteridade, de um eu em direção a um outro, me
traz à lembrança um dos poemas de Fernando Pessoa, ortônimo da série
“Chuva oblíqua”. O poeta registra uma descida até a tumba do rei Quéops.
O percurso tem início quando o poeta se encontra em ato de escrita, a pena
a desenhar sinais hieroglíficos no papel em branco, cujo vértice é também o
da parede do quarto branco, que, por sua vez, é o vértice da pirâmide em
que mergulha até o fundo, em busca do tesouro, que encontra, mediante
troca de olhares, quando se identifica com o rei: “Rei Quéops em ouro
velho e Mim”.
Tal como o poeta Fernando Pessoa, G.H. encontra o tesouro da cidade
do Rio de Janeiro: a barata em mim, ou seja, em G.H. E em nós, quando
lemos — nós, leitores que somos. É o momento em que a personagem pode
afirmar: “Eu não entendo o que digo, e adoro”.
Existe pois, além da identificação de G.H. com Janair, a identificação
de Janair com a barata, e de G.H. com a barata, num processo de
desdobramento sucessivo, que consuma a proposta já anunciada na cena do
embate diante do mural: o mergulho no de dentro do outro, isto é, de si
mesma. No final do filme, o cineasta traz de volta a personagem Janair. E
acontece a cena em que a semelhança entre as duas mulheres se consolida,
numa demonstração do que chamei há algum tempo de “grandeza
igualitária”.
A última cena que eu gostaria de destacar é a que, de certa forma, foi
construída — e tudo ali é criação — para dar a dimensão do próprio ato
inventivo em cena. O cineasta aparece no canto esquerdo da tela. E aponta
para o set de filmagem. Muitas questões são colocadas nesse final de
narrativa — romanesca e fílmica. Pois é nesse final que se indaga: o que é a
verdade? O que representa essa reiterada procura, numa sequência de
perdas e de novas tentativas?
Tanto no romance como no filme se desenha o gesto de procura em
direção ao que nos compõe como matéria viva, em direção ao inexpressivo,
ao atonal. Mas, no filme, a mão do cineasta que aponta para a obra que ali
se faz, o filme, essa mão, tal como uma antena a mais que anuncia o
processo da necessária desmontagem dos padrões, mitos, verdades
definitivas, segue a trilha de um Deus “que não se deixa ver”. E eu cito
Clarice: “Pois Ele sabia que eu não saberia ver o que visse”.
Eis o ritual de paixão e de libertação se criando, de vida emergindo e
se impondo plasticamente, artisticamente, esteticamente, com a “máscara da
solenidade”, porque o filme todo, como o romance, é um ritual — na
tradução de que, e eu cito a Clarice, “a explicação de um enigma é a
repetição do enigma”.

NOTAS
* O texto que ora se publica é uma versão transcrita da que foi apresentada por ocasião do Colóquio
Internacional Cem Anos de Clarice Lispector, em outubro de 2020. A partir da gravação, recebeu
pequenas alterações e inclusão de novos trechos, com vistas à melhor explicitação das considerações
aí expostas.
Escrituras e pinhos-de-riga: A incomum paleta de
cores de Clarice Lispector1
RICARDO IANNACE

Uma escultora; duas pintoras; dois escritores. Respectivamente: G.H.; a


narradora de Água viva (1973), cujo nome não é revelado, e a personagem
Ângela Pralini; Rodrigo S.M. e aquele que figura em Um sopro de vida:
Pulsações (1978) como AUTOR. A esse quinteto somem-se ricas e quantitativas
referências nas esferas musical (Frédéric Chopin, Arnold Schönberg…),
arquitetônica (Pompeia, Acrópole de Atenas…), escultural (Cariátide,
Vênus de Milo…), pictórica (Paul Klee, Marc Chagall…) e, sobretudo,
literária (William Shakespeare, Fiódor Dostoiévski…). Tal repertório,
distribuído pelo conjunto de títulos de Clarice Lispector, sinaliza a atenção
que ela confiara às artes. O contato com amigos que experimentaram o
ofício da pintura (Lúcio Cardoso) ou se dedicaram vocacionalmente ao
segmento (Augusto Rodrigues, Maria Bonomi), e mesmo os artistas que
entrevistou para a revista Manchete (entre eles, o arquiteto Oscar Niemeyer,
os pintores Iberê Camargo e Djanira da Motta e Silva),2 atestam de algum
modo uma vivência refletida em sua ficção.
Coincidência ou não, chegara-lhe nos anos 1970 a encomenda de três
obras para tradução e adaptação: Histórias extraordinárias de Allan Poe
(volume do autor estadunidense em que se insere “O retrato oval”), O
retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, e a novela Unfinished portrait, de
Mary Westmacott (pseudônimo de Agatha Christie). O conto de Poe e o
romance de Wilde mencionados abalizam, indiscutivelmente, uma reflexão
sui generis sobre a natureza do estético. Ocorre que, se ambos escritores
despontam também como tratadistas do mistério e da sublimidade da arte,
Clarice, a seu jeito, se pronunciara com frequência sobre constructos da
ordem do figurativo e do abstrato,3 manifestando-se a respeito da técnica e
da matéria que desenvolveu como pintora — afinal, produziu vinte e três
quadros —4 lançando, em paralelo, proposições no tocante à forma de seus
registros literários.
A ficção Água viva, que ela começara a redigir por volta de 1971,5 é, sem
dúvida, a obra que mais põe em relevo sua experiência no terreno do
pictórico — a narradora, antes de tudo, apresenta-se como artista plástica.
Essa trama é ponto de viragem na literatura clariciana — radicaliza o
processo de escrituração; o texto, ostensivamente fragmentado, impõe-se tal
qual uma teia desagregada e a reboque de estruturas preestabelecidas; a
engrenagem que opera o discurso é centrífuga e rizomática: “um
emaranhado de fios […] em eriçamento” que “não tem começo: é uma
continuação”. “Ah este flash de instantes nunca termina.”6
Se no romance Perto do coração selvagem (1943) existem elementos e
aspectos que apontam filiação com James Joyce e Virginia Woolf (mais de
um crítico, à época, observou — é o caso de Álvaro Lins: “[Perto do
coração selvagem] é o nosso primeiro romance dentro do espírito e da
técnica de Joyce e Virginia Woolf. E, pela novidade, este livro provoca
desde logo uma surpresa perturbadora”;7 se nos romances ulteriores fica
visível uma montagem episódica em sincronia com o referido gênero (A
paixão segundo G.H. [1964] está nesse grupo); e se os contos de Laços de
família (1960) e A legião estrangeira (1964) anunciam um plano de composição,
independentemente da originalidade, que evidenciam os legados de Anton
Tchekhov e Katherine Mansfield, a obra Água viva escapa de toda essa
tradição; dispensa paradigmas.
Sua enunciação reverbera, intencional e experimentalmente, uma
sintaxe estilhaçada, em fluxo intenso e desenfreado — o leitor, decerto, tem
a impressão de que o léxico pulsa e queima. Nessa vertente, o título
responde à tessitura de Água viva como responderiam — se prevalecessem
— os outros dois nomes eleitos para a obra: Atrás do pensamento:
monólogo com a vida e Objeto gritante.8 A narradora busca, à revelia de
gênero literário (novela?, romance?; não — melhor é chamá-la de ficção ou
de prosa poética), apossar-se “do é da coisa”.9 Pretende-se tocar o it. E tal
experiência implica o exercício da desarticulação, a procura da “harmonia
secreta da desarmonia”.10
Nessa metaficção por meio da qual a narradora infere que “Este não é
um livro porque não é assim que se escreve”,11 há laivos de escrituração
ensaística. Ou seja, a artista, ao testemunhar que pinta “o horror”, não
apenas exprime considerações a respeito do estrato plástico (cores,
texturas), como ainda dissemina, no calor da hora, colocações desta
envergadura: “quando estranho uma pintura é aí que é pintura. E quando
estranho a palavra aí é que ela alcança sentido”.12 Com efeito, Água viva é
um convite à conciliação entre o literário e o pictórico. Essas duas formas
de expressão se friccionam. Lembre-se: a narradora, a certa altura, diz
querer “sentir em [suas] mãos perquiridoras o nervo vivo e fremente do
hoje”,13 já que ela perdeu o “medo da simetria, depois da desordem da
inspiração”.14
Não por acaso, a malha de Água viva se urde à imitação de uma paleta
abstrata; a saber: instabilidade da hegemonia verbal; orações com cortes
bruscos; esgotamento quanto à acepção corrente da língua; chamamento à
fruição de uma gramatura sugestivamente espessa, pastosa e dotada de
resíduos. Como atinadamente escreveu Olga de Sá, manipulam-se, no
campo sígnico de Clarice Lispector, “metáforas, imagens, recursos
sintáticos, sinestesias, paronomásias, oximoros, repetições”,15 a convergirem
para o que a professora chama de “desgaste da linguagem”, submetida “a
um processo de corrosão contínua”.16
Nessa esteira, vale frisar que tal nervura estaria em paridade com
dominantes que perspectivam, grosso modo, as manufaturas das quais
emergem cores arbitrárias, pinceladas enérgicas, movimentos exagerados,
colagens e rupturas de superfície que promovem camadas sobressalentes,
fibrosas. Em resumo, enseja-se tornar fulgurante a veemência da realidade.
Em Água viva a narradora assegura pintar — acima de tudo — pintura. Não
o figurativo clássico, mas o “figurativo do inominável”.
Crie-se aqui um parêntese para duas citações de Jacques Derrida
recolhidas de seu livro Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível
(1979-2004):
É quando as palavras começam a enlouquecer, e não se comportam mais com propriedade em
relação ao discurso, que elas têm mais relação com as outras artes e, inversamente, isso revela
como as artes aparentemente não discursivas, como a pintura e a fotografia, correspondem à
cena linguística.17

a palavra pensar é uma das mais obscuras, das mais enigmáticas […]. O pensamento não se
reduz nem à razão, nem ao saber, nem à consciência; há um pensamento inconsciente; há um
pensamento sem conhecimento […]: ele nos chama, mesmo que não saibamos de onde vem o
chamado.18

Lê-se em Água viva: “não acredito em mim porque meu pensamento é


inventado”.19 Melhor: o que se nomeia “instintiva volúpia” é antes uma
“verdade inventada”. Inconteste, a palavra em situação ficcional, para
Lispector, avoca um pensamento (ou mesmo se fixa como ato de
pensamento) à revelia de qualquer previsibilidade ortodoxa: intuição e
inspiração criadoras assumem o comando discursivo; o texto ensaia-se. A
língua, como preferira Manoel de Barros, ecoa seu deslimite, e o saldo
dessa performance elucubrativa expressa o descompromisso surpreendente
com a lógica cartesiana — o primevo ou o anverso dela; o atrás… do
pensamento.
E quantos não são, em Um sopro de vida, os sintagmas que selam essa
percepção da escritora: “Eu trabalho com o inesperado […] nos solilóquios
do escuro irracional”.20 Ou: “Uma palavra é a mentira de outra”.21 No
atinente a essa última sentença, faz-se intrigante o fato de a autora estar em
conformidade com filósofos da linguagem que, contemporâneos da
ficcionista, explanaram exaustivamente acerca da polissemia e da
ambiguidade do verbo — de sua imprecisão e, portanto, incerteza
semântica, a exemplo de Roland Barthes,22 Michel Foucault, Maurice
Blanchot e Derrida.
Quando este pós-estruturalista franco-argelino adverte para o desvario
das palavras na “cena linguística” do literário e para um “pensamento
inconsciente” — isto é, o “pensamento sem conhecimento” que parece
eclodir involuntariamente, sem que “saibamos de onde vem o chamado” —,
vislumbramos pela óptica derridiana o agenciamento escritural de Lispector.
Quer dizer, aí reside a dicção tremente, libertária, cuja fabulação suscita
incalculáveis leituras pelo que encerra de aparente ilogicidade,
vagalumeando em paradoxos.
A propósito, o já mencionado poeta mato-grossense empresta uma
frase de Clarice, decalcando-a como epígrafe, no seu livro Ensaios
fotográficos: “‘Eu te invento, ó realidade!’ — Clarice Lispector”. Na poesia
intitulada “Autorretrato”, surge esta sensível declaração: “Tenho uma
confissão: noventa por cento do que/ escrevo é invenção; só dez por cento
que é mentira”.23
No texto “Palavras”, assim escreve: “[…] Eu desestruturo a
linguagem? Vejamos: eu estou bem sentado num lugar. Vem uma palavra e
tira o lugar debaixo de mim. […] Foram as palavras pois que
desestruturaram a linguagem. E não eu”.24
Estes são os dois primeiros versos de “Comportamento”: “Não quero
saber como as coisas se comportam./ Quero inventar comportamento para
as coisas”.25
Em Água viva, aparecem referências do primeiro quadro que Clarice
teria pintado: Interior da gruta, datado de 1960. Na ficção, a pintura é
mencionada como “esverdeada pelo limo do tempo”.26 Nessa furna
refugiam-se ratos, aranhas, morcegos, baratas… Um receptáculo
aterrorizante, grotesco. “As grutas são o meu inferno”,27 diz a narradora.

No romance A paixão segundo G.H., que antecede Água viva, uma gruta
também se fizera inscrita. A protagonista, que mora em apartamento de
cobertura em edifício de classe alta no Rio de Janeiro, bem-sucedida
economicamente, ao adentrar o quarto de Janair, a empregada negra que
deixara por definitivo o trabalho, reporta-se ao cubículo como uma
representação de caverna e minarete.
O minúsculo dormitório não se diagrama sob o diâmetro de um
retângulo, tampouco de um quadrado: ele é quadrilátero assimétrico de
verticalização acidentada; seus ângulos são imperfeitos, irregulares.
Cumpre recordar que em uma das paredes está, a carvão, o painel
sinistro (à maneira de um trabalho rupestre), a plasmar três contornos: de
um homem, de uma mulher e de um cão. Na visão de G.H., “o desenho não
era um ornamento, era uma escrita”,28 encravado na parede demasiadamente
branca e rugosa à qual adere o preto do bastão de ponta quebrada, gerando
um traço duplo, grosso e trêmulo.
A fim de se sublinhar a identificação de Clarice Lispector com essa
agrimensura plástica, o quarto delegado à Janair admitiria aproximações
fundadas em um elo que sumariza o espaço e o acontecimento absurdo
expostos no romance: 1. dormitório-cárcere (espécie de cela que aprisiona
G.H.); 2. miniauditório-judiciário, no qual um discurso de autoacusação é
encenado (“Eu matara”, confessa a protagonista que prensa a “cintura” da
barata com a porta do guarda-roupa); 3. aposento-vernissage (carvão sobre
alvenaria à mostra no recinto antes ocupado pela serviçal).
Há, em meio à atmosfera insólita, uma cena em que G.H. relata certo
devaneio: “[…] sou o trecho de luz mais branca no reboco da parede […].
Sou o silêncio gravado numa parede, e a borboleta mais antiga esvoaça e
me defronta: a mesma de sempre”.29
Em 1975, passados onze anos da publicação de A paixão segundo G.H.,
Clarice Lispector cria o quadro Caos, metamorfose, sem sentido. Esse
experimento, produzido em técnica mista sobre madeira, com tintas nas
cores vermelho e salmão, canetas esferográficas preta, verde e vermelha,
cola e vela derretidas, forma um mosaico de estranha geometria, simulando
asas de borboletas em alusão a um ecossistema desmesurado, senão a um
bestiário licencioso, imbuído de rastros e vestígios dessa natureza de difícil
classificação. Desordem? Ordem indigesta, internalizada?

Na obra Um sopro de vida, título publicado em data póstuma, Ângela


Pralini surge como personagem que se lança à aventura pictórica. Abona-se
que ela é tanto “barroca” quanto um “superlativo”.
ÂNGELA — Estou pintando um quadro com o nome de “Sem Sentido”. São coisas soltas —
objetos e seres que não se dizem respeito, como borboleta e máquina de costura.30
[…]
ÂNGELA — Meu ideal seria pintar um quadro de um quadro. Vivo tão atribulada que não

aperfeiçoei mais o que inventei em matéria de pintura. Ou pelo menos nunca ouvi falar desse
modo de pintar: consiste em pegar uma tela de madeira — pinho-de-riga é a melhor — e
prestar atenção às suas nervuras. De súbito, então vem do subconsciente uma onda de
criatividade e a gente se joga nas nervuras acompanhando-as um pouco, mas mantendo a
liberdade. […] É um modo genérico de pintar. E, inclusive, não se precisa saber pintar:
qualquer pessoa, contanto que não seja inibida demais, pode seguir essa técnica de liberdade.31

Um sopro de vida projeta um AUTOR e essa sua personagem. Em dado


momento ele pede licença para escrever “a sucata da palavra”. E mais:
“Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros,
compassos e ângulos de estreito enigmático triângulo”.32 Avisa seu leitor
que, como literato, se deixa guiar pelo “inesperado”. Diz que dentro de si
está alojada uma escuridão equivalente a uma larva, e também afirma que
sua invenção — Ângela Pralini — se afigura como um casulo fechado.
Nesse aspecto, a pintora se engenha, simbolicamente, em
correspondência com o quadro que ela própria compõe. Fique esta
pergunta: Ângela se mimetizaria, como em um caleidoscópio, nos casulos
que fabrica? Ou seja: Caos, metamorfose, sem sentido se forjaria como
autorretrato da personagem que é conhecida como alter ego de Lispector?
Talvez estas duas citações extraídas de Água viva colaborem um pouco
mais para intuir o panteão da desordem e da transcendência, promulgado
pela ficcionista — e auxiliem no questionamento de sua gramática do
desarranjo:
“[…] esmago borboletas entre os dedos. […] Sou em transe.”33
“No atrás do meu pensamento está a verdade que é a do mundo. A
ilogicidade da natureza.”34

NOTAS
1. O presente texto, com ligeiras alterações, apresenta-se fiel à comunicação que proferi em mesa
mediada por Eliane Fittipaldi no Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector, na tarde de
19 de outubro de 2020, coordenado pelas docentes e colegas Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios
Pinheiro Passos, da Universidade de São Paulo.
2. Ver Clarice Lispector, De corpo inteiro.
3. A propósito, há, na seção Fundo de Gaveta, de A legião estrangeira, tanto um registro intitulado
“Abstrato e figurativo” quanto uma crônica intitulada “Irmãos”, republicada como “Dois meninos”
em A descoberta do mundo.
4. Vinte e uma pinturas são produzidas sobre pinho-de-riga; uma, apenas, sobre tela. (Ver Ricardo
Iannace, Retratos em Clarice Lispector: literatura, pintura e fotografia). Recentemente, a artista
plástica Maria Bonomi, amiga de Clarice Lispector, divulgou a existência de um retrato sobre tela
que a escritora criou e com o qual a presenteou — intitula-se A matéria da coisa.
5. Nádia Battella Gotlib. Clarice: uma vida que se conta, p. 510.
6. Clarice Lispector. Água viva, consecutivamente: pp. 24, 49 e 95.
7. Álvaro Lins. “A experiência incompleta: Clarisse [sic] Lispector”. In: ______. Os mortos de
sobrecasaca, pp. 188-9.
8. Nádia Battella Gotlib, op. cit., p. 510.
9. Clarice Lispector. Água viva, p. 9.
10. Ibid., p. 12.
11. Ibid., p. 12.
12. Ibid., p. 85.
13. Ibid., p. 72.
14. Ibid., p. 77.
15. Olga de Sá. Clarice Lispector. A travessia do oposto, p. 19.
16. Ibid., p. 19.
17. Jacques Derrida. Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (1979-2004), p. 40.
18. Ibid., p. 74.
19. Clarice Lispector, Água viva, p. 46.
20. Id. Um sopro de vida, p. 20.
21. Ibid., p. 87.
22. Fac-símiles de datiloscritos dessa ficção, antes de se chamar Água viva, revelam uma epígrafe
assinada pelo semiólogo francês: “‘- - - - não há arte que não aponta sua máscara com o dedo’.
Roland Barthes”. (Cf. Clarice Lispector, Água viva, edição com manuscritos e ensaios inéditos, p.
14). Quanto à ensaística barthesiana, tal poética notadamente se espraia em Água viva — a narradora-
pintora estaria, pois, em diálogo empático com o autor de O prazer do texto. Ela diz: “[…] esta é uma
festa de palavras. Escrevo em signos que são mais um gesto que voz.”. Id., p. 24.
23. Manoel de Barros. “Autorretrato”. In: ______. Ensaios fotográficos, p. 45.
24. Id. “Palavras”. In:______ Ensaios fotográficos, p. 57.
25. Id. “Comportamento”. In:______ Ensaios fotográficos, p. 65.
26. Clarice Lispector, Água viva, p. 15.
27. Ibid., p. 15.
28. Clarice Lispector. A paixão segundo G.H., p. 33.
29. Clarice Lispector. A paixão segundo G.H., p. 57.
30. Id. Um sopro de vida, p. 38.
31. Clarice Lispector. Um sopro de vida, pp. 40-50.
32. Id. Um sopro de vida, p. 73.
33. Id. Água viva, pp. 68-9.
34. Id. Água viva, p. 87.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROS , Manoel de. Ensaios fotográficos. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.
DERRIDA, Jacques. Pensar em não ver: Escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Orgs. Ginette
Michaud, Joana Masó, Javier Bassas. Trad. de Marcelo Jacques de Moraes. Florianópolis:
Editora da UFSC, 2012.
GOTLIB, Nádia Battella. Clarice: Uma vida que se conta. 6. ed. rev. e aum. São Paulo: Edusp, 2009.

IANNACE, Ricardo. Retratos em Clarice Lispector: Literatura, pintura e fotografia. Belo Horizonte:

Editora da UFMG, 2009.


LINS, Álvaro Lins. Os mortos de sobrecasaca. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963.

LISPECTOR, Clarice. Laços de família. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1960.

______. A legião estrangeira. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964.


______. A paixão segundo G.H. (1964). Rio de Janeiro: Rocco. (Edição digital: jul. 2015).
______. Água viva (1973). 6. ed. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.
______. Água viva. Edição com manuscritos e inéditos. Organização e prefácio Pedro Karp Vasquez.
Rio de Janeiro: Rocco. (Edição digital, 2019).
______. De corpo inteiro. Rio de Janeiro: Artenova, 1975.
______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
______. Um sopro de vida: pulsações. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1978.
______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
SÁ, Olga de. Clarice Lispector. A travessia do oposto. São Paulo: Annablume, 1993.
PARTE V

Estórias enredadas
O tesouro que é só descobrir: Uma leitura de “Os
desastres de Sofia”
JOÃO CAMILLO PENNA, BELINDA MANDELBAUM E ENRIQUE MANDELBAUM

Para Yudith Rosenbaum

A LEGIÃO ESTRANGEIRA

“Os desastres de Sofia”, de Clarice Lispector, primeiro conto da coletânea A


legião estrangeira, publicada em 1964, é uma história construída de histórias.
A narradora diz algo nesse sentido: “meu enleio vem de que um tapete é
feito de tantos fios que não posso me resignar a seguir um fio só; meu
enredamento vem de que uma história é feita de muitas histórias”.1 O foco
de nosso trabalho é falar de algumas delas, com a condição, no entanto, de
nenhuma se sobrepor em importância às outras. As histórias guiam a
narradora sem que ela tenha consciência, como ela mesma diz: “sem saber
[…] eu obedecia a velhas tradições, mas com uma sabedoria com que os
ruins já nascem — aqueles ruins que roem as unhas de espanto”.2 Nem
todas as histórias ela pode contar, pois “uma palavra mais verdadeira
poderia de eco em eco fazer desabar pelo despenhadeiro as minhas altas
geleiras”.3 Sustentando o edifício, portanto, está a própria natureza ficcional
e memoriosa das histórias, que se organizam em ecos e ecos de ecos em
torno de uma verdade histórica, biográfica e experiencial, sempre
auscultada, mas evitada. Aqui nos embrenhamos pelos ecos de algumas
dessas histórias e pela sabedoria contida nelas, algumas que nascem com a
narradora, outras que antecedem o seu nascimento, outras ainda que a
fazem nascer. Mas, sem perder de vista que a ignorância é também uma
condição da autora. Como ela afirma quase no desfecho do texto, “eu era a
escura ignorância com suas fomes e risos, com as pequenas mortes
alimentando a minha vida inevitável — que podia eu fazer? eu já sabia que
eu era inevitável”.4 A ignorância e o entendimento se conjugam na autora
em lúcido estranhamento: “Assim, eu nos entendi, e nunca saberei o que
entendi. Nunca saberei o que eu entendo”.5
Como Clarice sempre pensava a colocação de cada conto dentro do
conjunto, podemos supor que essa posição não seja casual, e o conto
inaugure a coletânea por se tratar de um relato sobre inícios e iniciação. Se
essa é uma história que trata de inícios, de aberturas, de entrada de algo
novo e para algo novo, da inauguração da autora como escritora, ela é
também a história dos desastres que levaram a esse início e se realizaram
nele, e do próprio desastre que é esse início. Desastres de vida mentada e
vivida, desastres da memória, em torno de memórias de desastres: as
brincadeiras de menina, sua família, a escola, vida escolar, o professor, o
pai, a voz própria, o início da escrita — um desastre que pode ser “bem
feito”. Esses “desastres” são configurados na forma de uma parábola
estendida que narra o nascimento da autora de parábolas, imbricada em
tantos desastres que ficam ali submersos ou apenas levemente sugeridos.
Início, repetição e fim, ver e se ver ser vista, sem querer deixar de continuar
sendo quem era, é a matéria dos laços e desenlaces: é o “ponto de desenlace
dessa história e começo de outras”, escreve a narradora.6
Escrito em primeira pessoa, “os desastres” são as memórias da menina
cujo nome, Sofia, aparece apenas no título do conto. Dentre os vários fios
que compõem o “tapete” de histórias que nos enredam, ao enredar Sofia,
está a referência ao volume homônimo de histórias edificantes infantis, “Os
desastres de Sofia” (Les malheurs de Sophie, 1858), da autora russa,
naturalizada francesa, Condessa de Ségur. O volume é um dos mais célebres
dos inúmeros escritos pela Condessa, bastante populares no século 19, e
relata o duro aprendizado prático do bom comportamento (sentido moral
também de “sage” em francês, a que remete a raiz grega de Sofia) através
dos erros cometidos, em experiências desastrosas a que é levada pela
curiosidade, pelo desejo e por suas deduções equivocadas sobre as coisas. A
referência irônica à “sabedoria” grega de Sofia, em seu aprendizado
empírico e moral da realidade, onde as travessuras involuntárias da menina
não têm nada de sábias, é uma das operações do texto. O resultado é algo,
assim, como a conversão de Sofia em criança modelo. Conforme o formula
a Condessa, na dedicatória à sua neta: “ela era colérica, tornou-se doce; era
comilona, tornou-se sóbria; era mentirosa, tornou-se sincera; era ladra,
tornou-se honesta; enfim, era malvada, e tornou-se boa”.7 Já no texto de
Clarice, a narradora diz, após sua redação ganhar o reconhecimento do
professor e ter despertado nele uma alegre surpresa:
“Abaixei os olhos com vergonha. Preferia sua cólera antiga, que me ajudara na minha luta
contra mim mesma, pois coroava de insucesso os meus métodos e talvez terminasse um dia me
corrigindo: eu não queria era esse agradecimento que não só era a minha pior punição, por eu
não merecê-lo, como vinha encorajar minha vida errada que eu tanto temia, viver errado me
atraía”.8

Podemos ver que a “sagesse” da Condessa de Ségur é problematizada


pela Sofia de Clarice. Não que Clarice propriamente desminta essa
filosofia, ou entre em conflito com ela. É bem mais: a Sofia de Clarice se
autoafirma em traquinagem, assim se perde, mas assim também se acha e
aprende. Ela precisa aprender com suas travessuras para tornar-se “sábia”,
bem-comportada e, afinal, escritora, o que não deixa de conter certa
sabedoria. No conto de Clarice, a referência é equivocamente irônica, ao
transformar as travessuras da menina em sabedoria a seu modo muito
peculiar, a cuja cifra se trata aqui de enfrentar. Assim o nome grego da
protagonista insere o relato, e a sabedoria nele contida, em uma história
europeia, refratada a partir da experiência particular brasileira e, mais do
que brasileira, com sotaque pernambucano. Tudo isto faz parte, como
veremos, da legião estrangeira, conforme o conto homônimo e título da
coletânea.
O relato da Condessa termina com uma viagem da família, de navio, à
América, para buscar uma herança. A viagem pitoresca em navio de luxo
parece uma versão sublime e ideal da terrível viagem da família de Clarice
no paquete Cuyabá, de Hamburgo para Maceió. Dentre as promessas
exóticas da América, ainda no texto da Condessa, se abre a possibilidade de
conhecer os “selvagens negros, amarelos, vermelhos”. Mas Sofia tem medo
de ser comida por eles, algo que parece retornar sutilmente no final do
conto de Clarice, com a referência aos lobos e sua “cruel boca de fome”, na
última volta dos contos de fadas que o conto dá.9 O exotismo da visão
europeia da América, a referência implícita ao trauma europeu da
antropofagia tupinambá do século 16, em contraposição à realidade que vivia
na América, deve ter divertido Clarice quando leu o livro em menina. Era
algo da história da menina que começava a se escrever nas margens dos
modelos europeus, e em diferença com relação a eles.
Essas leituras de criança devem ser integradas a outros biografemas
evidentes que aparecem dispersos no relato como escolhos narrativos, em
torno dos quais se fiam as histórias. A morte da mãe de Clarice, Mania
Krimgold Lispector, em 21 de setembro de 1930, por exemplo, data a história, o
colégio e o professor, inscrevendo o conto no registro do “memorial”:10 “Eu
tinha nove anos e pouco”; “Meu pai estava trabalhando, minha mãe morrera
há meses. Eu era o único eu”.11 O conto é uma versão transfigurada,
elaborada por camadas sucessivas de memória e de tempo, de suas
experiências na escola aos nove ou dez anos, o que o situa por volta de 1930. E
tem, no centro delas, seu professor, que veio a morrer quatro anos depois,
quando “eu já não era mais um moleque e sim uma jovem digna”. A escola
era o Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, onde Clarice cursou o terceiro e o
quarto ano primário, entre 1930 e 1931.12 O professor, o seu professor de
hebraico, Moysés Lazar. Mencionamos essas referências com um sorriso
nos lábios — bem cientes de que tudo aqui é revisto pela regra memoriosa
da narradora —, porque elas são importantes para a hipótese que
formulamos. Em volta do professor há a classe, em volta da classe o jardim
da escola, cenários onde a relação interior da aluna com o professor se
materializa. A relação de Sofia com o seu professor é intensamente
perturbadora:
Passei a me comportar mal na sala. Falava muito alto, mexia com os colegas, interrompia a
lição com piadinhas, até que ele dizia, vermelho:
— Cale-se ou expulso a senhora da sala.
Ferida, triunfante, eu respondia em desafio: pode me mandar! Ele não mandava, senão
estaria me obedecendo. Mas eu o exasperava tanto que se tornara doloroso para mim ser o
objeto do ódio daquele homem que de certo modo eu amava. Não o amava como a mulher que
eu seria um dia, amava-o como uma criança que tenta desastradamente proteger um adulto,
com a cólera de quem ainda não foi covarde e vê um homem forte de ombros tão curvos.13

Na relação de Sofia e seu professor, encontramos um bom exemplo do


fenômeno que Freud chama de transferência, e que pode assoberbar
qualquer relação. O professor é bem mais do que um professor para ela.
Para ele e nele, Sofia projeta bem mais do que um interesse didático. Para
ele e nele, isto é, com ele, Sofia tem que lidar até o extremo com toda a sua
ambivalência de intensas emoções. Ela se comporta mal, intensamente mal,
intensamente arrogante, intensamente desobediente. E, no entanto, em torno
de toda a dor resultante da construção desse objeto de ódio — o professor
—, brilha um amor por ele. “Eu era atraída por ele”, diz a narradora.14 O que
a leva a querer, à sua maneira, salvá-lo. Característica singular desse amor
transferencial, o programa da salvação (“Cada dia renovava-se a mesquinha
luta que eu encetara pela salvação daquele homem”).15 O que a irrita é ver
um homem tão forte numa situação tão curvada. Quer que ele se rebele, que
se liberte. Paradoxal amor que não era o amor da mulher que Sofia seria um
dia, mas da criança que quer “proteger um adulto”,
que precisa que o adulto represente a lei dos adultos, assim salvando-o e
assim protegendo também, ato contínuo, a integridade do mundo da
criança.16 Para salvá-lo seria preciso que ele a punisse, tornando-se assim a
lei na qual ela quer transformá-lo, mas na qual ele teima em não se deixar
encarnar. Sofia transfere para o professor algo da situação existencial de seu
próprio pai. O professor é um objeto em ressonância com a biografia
paterna. Tal como o pai, o professor é parte de uma “legião estrangeira”. É
por aí que o conto começa:
Qualquer que tivesse sido o seu trabalho anterior, ele o abandonara, mudara de profissão, e
passara pesadamente a ensinar no curso primário: era tudo o que sabíamos dele.
O professor era gordo, grande e silencioso, de ombros contraídos. Em vez de nó na
garganta, tinha ombros contraídos. Usava paletó curto demais, óculos sem aro, com um fio de
ouro encimando o nariz grosso e romano. E eu era atraída por ele.17

Não há referência explícita ao fato de o professor ter vindo de outras


terras, mas ele seguramente é estranho e mal adaptado à condição que vive.
Tal como a aluna, sabemos dele muito e muito pouco: em sua trajetória de
vida há abandono, mudança, peso, contração e nó na garganta. E traços
contraditórios: “um homem forte de ombros tão curvos”, “seus gordos
ombros contraídos e seu paletozinho apertado” mostram alguém que não
cabe bem no papel que deve desempenhar. Uma incongruência, que aparece
no advérbio, “pesadamente”. Sabemos que ele mudara de profissão, evoca-
se um trabalho anterior, quem sabe uma vocação contrariada. E o segredo
quase total de seu passado, como que proibido, sugere que fugira dele,
como se contivesse algo de que o professor devesse ter vergonha. Se pouco
ou quase nada sabiam dele, mais adiante ela ou os colegas parecem saber
tudo: “suas histórias não me ludibriavam e […] eu bem sabia quem ele era”.
A menina saber quem era o professor é parte da chave para o que nos
interessa aqui. Em nosso entendimento, e como procuraremos mostrar, ela
sabe dele porque compartilham, cada um a seu modo, desastres históricos
que são transformados pelo conto em parábolas, no centro das quais temos
uma parábola hassídica em duas versões. Essas duas versões se tornam, pela
escrita de Clarice, uma mise-en-abyme do conto como um todo, que, por
sua vez, como uma matrioska narrativa, pode ser lido como uma dupla
parábola sobre o nascimento da literatura para e de Clarice, imbricada na
história da imigração judaica no Brasil, nas primeiras décadas do século 20,
tudo isto escrito a partir da experiência e do testemunho de quem a viveu.
A narradora não é apenas parte da legião estrangeira a que o professor
também pertence. Dos biografemas que apontamos e que suportam a
emergência da narrativa, fazem parte quem sabe serem ambos,
Clarice/Sofia e o professor, irmãos de navio, por assim dizer. Ela, sua
família e o professor, imigrantes judeus em terras brasileiras. Talvez seja
esta identificação que permite a circulação da profunda, estranha e
conflitiva intimidade, familiaridade e reconhecimento que agiliza a estranha
e intensa relação entre essa aluna e seu professor. É isso que nos permite
sugerir que aspectos da relação de Clarice com seus pais são atualizados e
realizados, isto é, são possíveis de ganhar algum tipo de elaboração, em
torno desse desastre criativo que é o vínculo de Sofia com seu professor. O
texto ficcional é também uma elaboração emocional da autora em torno de
si própria e seus laços de família, laços que comparecem aqui pela ausência,
e que se esgarçavam na coletânea homônima de 1960.

HISTÓRIAS HASSÍDICAS EM CLARICE LISPECTOR?

Um biografema não é apenas um traço material biográfico/histórico da


autora, presente em seu texto ficcional. “Os desastres de Sofia” trazem
evidências de outras histórias que vão além da sugerida leitura na
infância/juventude de Clarice do texto da Condessa de Ségur, eles trazem
também aspectos da tradição cultural de sua família. É possível que esteja
em jogo na literatura de Clarice uma forma de processar e metamorfosear as
incontáveis histórias que compõem o manancial das narrativas hassídicas,
esse movimento de renovação judaica, surgido no século 18, originado na
região da atual Ucrânia, muito próximo de onde vem a família de Clarice,
para se espraiar pela cultura ídiche europeia e se desdobrar e dissolver com
a perseguição de judeus da Europa que culminaria no holocausto e, por
razões muito diferentes, mas também relacionadas ao holocausto, na
fundação do estado de Israel.
Nas entrelinhas dos restos das histórias de uma boa parte das famílias
de imigrantes judeus do leste europeu, costumam sussurrar narrativas
hassídicas. O hassidismo é um movimento religioso, espiritual e cultural
que, desde o final do século 18 e durante todo o século 19 e início do século 20,
foi ganhando penetração dentre a população judaica do leste europeu,
principalmente nas periferias das grandes cidades, em aldeias e cidades
menores, onde grandes parcelas dessa população viviam em condições de
extrema precariedade histórica, em todos os sentidos — sociais,
econômicas, sanitárias, familiares etc. O hassidismo impulsionou essas
populações a uma metamorfose radical, ao mobilizar uma espiritualidade
paradoxal: ao mesmo tempo conservadora e transformadora. Em largos
traços, podemos dizer que a espiritualidade hassídica se caracteriza por
conservar uma fidelidade ao corpo de leis que fundamentam a prática da
vida judaica e, por outro lado, promover a fruição da vida em seu sentido
histórico material, ao mesmo tempo rigorosamente imanente e
transcendente, construído através da virtual indiferenciação entre sagrado e
profano, e muitas vezes confrontado por setores do judaísmo oficial da
época. Gershom Scholem e Martin Buber, dentre muitos outros, já
mostraram a importância do hassidismo na transformação desses cidadãos
do leste europeu para a condição de imigrantes forçados no chamado Novo
Mundo, nas primeiras décadas do século 20, ou em colonos, na construção do
estado de Israel.
Estas novas situações de vida, como mostram esses autores, são a
realização de permanências e transformações, de rupturas e continuidades
de um longo processo espiritual e ideacional. O hassidismo soube
transformar a história que essa população em estado de vida emergencial
vivia em narrativas, oferecendo uma melodia que os impulsionasse. Ele
ensinou o povo a contar cantando o que vivia. As narrativas hassídicas
cantam a história que esses homens, mulheres e crianças atravessavam. E,
nelas, as origens retornavam. Velhos sábios se atualizavam e o tempo abria
as portas para novas histórias, para um progressismo histórico de todos os
implicados, encarnado essencialmente no labirinto infinito de narrativas
contadas e recontadas, variantes de variantes, que vão sendo desfiadas ao
longo de gerações. Toda história hassídica em seu centro tem o tema da
graça e sua identificação com a lei. Trata-se de uma graça autorizada, isto é,
da abertura para algo novo que é legitimado desde velhos tempos, senão
pelas histórias que são recontadas, ao menos por fragmentos que também
demandam velhos sonhos que custaram a vida de muitos e que, agora,
renascem, desta vez em melodia ou narrativa. O importante é que se renova
a vida, como abrir os olhos ou escutar alguma coisa, tocar ou ser tocado,
promover a emancipação de cada um e uma.
Em Clarice, tudo isto tem um lugar. Lei e graça são temas centrais na
sua obra, aos quais ela insistentemente retorna. O fato de que Clarice tenha
se sentido, antes de mais nada, uma autora brasileira, com pouca ou
nenhuma relação aparente com sua história familiar de imigração, não
implica o desaparecimento das marcas trazidas por essa cultura. Este é um
quadro comum dos judeus de sua geração, estimulados pelos pais a
“esquecerem” o ídiche — a língua original de emergência do hassidismo —
e tudo o que essa cultura da diáspora podia trazer consigo, ao adotarem as
línguas e os modos dos países para onde imigraram. Se, na origem da
espiritualidade hassídica, o ídiche foi legitimado como língua da
transformação de seus falantes, ele também se tornou o meio de transporte
histórico coletivo entre a origem, na tradicional vida judaica em territórios
europeus, e o desembarque em novos terrenos históricos, em diferentes
línguas de chegada. Para a grande maioria dos homens, mulheres e crianças
implicados, essa língua-transporte deixou de ter presença manifesta, os seus
falantes se reatualizaram em outras histórias, novas línguas, mas em seu
interior, de forma latente, traços mnêmicos (para usar uma expressão
freudiana) agem ativamente, de forma inconsciente, desde o silêncio das
línguas mortas-vivas. É bom sempre termos em mente que a família de
Clarice e ela mesma desembarcaram no Brasil alguns dias depois de 24 de
março de 1922, em Maceió (Alagoas), no paquete Cuyabá, falando, isto é,
vivendo em ídiche.18 E, no entanto, o imperativo histórico que parecia
organizar essas populações de novos imigrantes exigia que esse mundo
fosse inteiramente soterrado pela experiência no novo mundo, como o foi
por Clarice, ou guardado, como também o foi por ela, numa memória
imemorial, para ser então integralmente salvo na letra de sua escrita. O que
expõe o exercício crítico a um impasse: a reconstituição arqueológica de
suas camadas salvas não pode frequentemente ser comprovada; nunca
saberemos ao certo, em Clarice, o que é Brasil e o que é esse outro do
Brasil, contido na história hassídica subterrânea a partir da qual a sua
literatura se escreve. Nossa leitura põe em movimento uma hipótese desse
tipo.

TESOUROS

No núcleo do conto e da memória de menina há uma história que o


professor conta aos alunos e, em seguida, a composição que pede que
escrevam. Essa história e suas diferentes versões — a do professor e a da
menina, na composição que escreve — presentificam-se no conto como
suporte para as elaborações dos desastres de cada um, seu modo de lidar
com eles, ao reelaborarem uma parábola hassídica que os dois parecem
conhecer, que está na origem de suas vidas, a serviço da expressão do ser de
cada um — modo, aliás, pelo qual as narrativas hassídicas sempre
funcionaram, ao atualizar velhas tradições na vida presente dos coletivos
judaicos. A versão do professor é a seguinte:
[…] um homem muito pobre sonhara que descobrira um tesouro e ficara muito rico;
acordando, arrumara sua trouxa, saíra em busca do tesouro; andara o mundo inteiro e
continuava sem achar o tesouro; cansado, voltara para a sua pobre, pobre casinha; e como não
tinha o que comer, começara a plantar no seu pobre quintal; tanto plantara, tanto colhera, tanto
começara a vender que terminara ficando muito rico.19

E essa é a versão de Sofia:


A história que eu transcrevera em minhas próprias palavras era igual à que ele contara. […]
Com alguma faceirice, pois, havia acrescentado as frases finais. […] Provavelmente o que o
professor quisera deixar implícito na sua história triste é que o trabalho duro era o único modo
de se chegar a ter fortuna. Mas levianamente eu concluíra pela moral oposta: alguma coisa
sobre o tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é só descobrir, acho que
falei em sujos quintais com tesouros.20

A história “igual”, mas diferente. A diferença consiste precisamente


naquilo que a narradora chama de “tirar a moral das histórias, o que, se me
santificava, mais tarde ameaçaria sufocar-me em rigidez”. As frases finais
acrescidas, “a moral da história”, o que diferencia a versão da menina da do
professor, diz respeito precisamente à graça. Não há que procurar e
trabalhar para encontrar o tesouro: ele se dá a nós de graça, “é só
descobrir”. E é esta reatualização da moral da história hassídica, que
também tem força suficiente para ressignificar a própria narrativa de
origem, a da Condessa de Ségur, a qual o conto faz referência. Lá, a menina
traquina teria que aprender com a experiência que, para se tornar Sofia,
deveria evitar desastres. Aqui, não. Aqui, fortalecida pela lei e pela
potencialidade de emergência da graça na narrativa hassídica, das
traquinagens pode emergir Sofia. Aquilo que mobiliza as traquinagens da
“menina safadinha”,21 da “menina muito curiosa” que “via o abismo do
mundo […] anônimo como uma barriga aberta para uma operação de
intestinos”22, é a via de acesso aos seus tesouros, sua escrita: um possível
remédio para outros, seus leitores, para o professor, e uma perdição para
ela.
A parábola, a história do tesouro, contada pelo professor e “transcrita
em suas próprias palavras” pela menina, é uma versão de uma parábola
hassídica célebre, de que temos várias versões, dentre elas a do rabi Bunam
de Pzhysha (Polônia, 1765-1827). Bunam contava aos neófitos que vinham
procurá-lo essa história do rabi Aisik. Fazemos aqui um resumo dela:
Depois de sonhar três vezes que devia procurar um tesouro perto da ponte que leva ao palácio
real de Praga, o rabi Aisik finalmente decidiu obedecer ao mandato do sonho e viajar da
Cracóvia, onde morava, até Praga. Chegando lá, descobre que a ponte era vigiada por
sentinelas dia e noite, e ele não se atreveu a cavar embaixo dela. Todos os dias ele retornava à
ponte e a rondava até a noite. “Finalmente o capitão da guarda, que se havia percebido de seus
movimentos, perguntou-lhe se procurava algo ou alguém.” Aisik contou-lhe sobre o sonho do
tesouro. O Capitão riu e lhe disse: “E tu, pobre coitado, peregrinaste até aqui com os sapatos
rasgados, por causa de um sonho? Ora, quem crê em sonhos! Se eu acreditasse em sonhos,
também teria de sair andando e ir a Cracóvia procurar um tesouro embaixo do fogão da casa
de um judeu chamado Aisik, filho de Iekel”. O rabi Aisik cumprimentou-o e viajou de volta
para casa, escavou o chão exatamente onde o capitão havia dito, e encontrou o tesouro,
exatamente onde o capitão havia dito que estaria. Ali ele construiu uma sinagoga. E o rabi
concluía a história com a moral: “Há algo que não poderás encontrar em parte alguma do
mundo, nem mesmo com o tzadik, e, no entanto, há um lugar onde o poderás encontrar”.23

O tzadik é o “líder santo e espiritual da comunidade hassídica”, o


mestre, o “Messias não messiânico”, por assim dizer, como explica
Gershom Scholem.24 A parábola trata do tema da graça. Contada ao neófito
que vinha buscá-la junto ao tzadik, ela o alerta sobre o fato de que a graça
não será encontrada necessariamente junto ao sábio, mas em si mesmo. A
parábola funciona assim como um dispositivo antimessiânico. A outra
versão da parábola de que dispomos, do rabi Nachman de Bretzlav
(Ucrânia, 1772-1810), apresenta pequenos, mas significativos deslocamentos. Em
primeiro lugar, a busca do tesouro leva a personagem a Viena, e não a
Praga. Ora, Viena era a capital do Império Austro-Húngaro, e rabi Nachman
transfere assim a personagem para o centro do mundo judaico ashkenazi da
época, o espaço mais cosmopolita e mais urbano, que envolvia, por isto
mesmo, problemas maiores de assimilação. A parábola sugere que rabi
Aisik retorne às suas origens, à sua casa, que lá está o verdadeiro tesouro,
mas dentro de uma dialética mais conflitiva do que na narrativa de rabi
Bunam. Em rabi Nachman, o fortalecimento da identidade judaica singular
dá-se em torno da busca no centro do cosmopolitismo contemporâneo.
Além disso, nessa versão, o sonho manda rabi Aisik ir a Viena para ouvir a
história, o que introduz uma segunda dobra narrativa à parábola — a de que
é preciso ouvir a história para se chegar ao tesouro, ou ainda, de que a
história é o tesouro a ser encontrado. Aqui, o elemento antimessiânico não é
apenas a casa pessoal, mas também a própria narrativa hassídica. A dobra
que rabi Nachman realiza dá tanta força a esta história hassídica que não
podemos deixar de nos lembrar de um outro integrante da legião
estrangeira, também morador de Viena: Freud. Juntando hassidismo,
sonho, história e Viena, essa história pode ainda ser lida como uma parábola
da psicanálise, da interpretação dos sonhos, cujos tesouros se encontram
“embaixo do fogão da casa”, do eu. Ou, quem sabe, seria o contrário: a
psicanálise, ela própria, como uma imensa parábola hassídica, que propõe o
método de interpretação dos sonhos como caminho para o encontro sempre
infinitamente adiado de si mesmo.
A história contada pelo professor do conto de Clarice, embora ela
também baseada na parábola hassídica, contém uma moral que inverte o seu
sentido original, conforme as versões que conhecemos, ao eliminar dela
justamente o seu núcleo irradiador, a ideia da graça, que por sua vez a
menina recupera em sua composição. Da estrutura das parábolas rabínicas,
mantida pelas parábolas hassídicas, Sofia conserva o mashal, a parábola em
si, mas muda o nimshal, “a aplicação ou significação fornecida pelo
contador da história”.25 Sofia comenta a moral das duas histórias, a do
professor e a sua; primeiro a dele que, podemos depreender, é a moral
prevalente nesse novo giro da história judaica, agora feita de legiões de
estrangeiros que fogem das perseguições em solo europeu, que cansados
andam o mundo inteiro e continuam sem achar o tesouro, e trocam a moral
hassídica, a graça do tesouro que vem de graça e está no próprio e sujo
quintal, em si mesmos, pela ética do trabalho duro, exclusivamente, com
potencialidade de eclipsar a graça. Sofia muda “levianamente” e
“arbitrariamente” o fim de sua história, fazendo-a terminar pela moral
oposta, a do tesouro que “é só descobrir”. Só que, em sua forma “leviana” e
apressada, ela resgata, não apenas para si, mas também para o professor, o
tesouro hassídico original, se é que se pode falar de originalidade aqui.
Porque o quintal “próprio e sujo” pode bem ser não só esse acolhedor
quintal da escola em que a menina pode se soltar e alegrar-se, mesmo
portando todos os lutos de casa. Esse “próprio e sujo” quintal agora é o
Brasil, um Brasil que soube acolher Clarice e ressignificar criativamente
seus desastres pessoais, permitindo que ela escreva o que escreveu ao
professor, e a nós, a sua literatura, a partir já de sua experiência em quintais
brasileiros.
É desse modo que a economia contida na “leviandade” da menina gira
toda ela em torno da graça: dar tudo por nada e tudo receber também por
nada. Essa, a sua “irrazoável esperança”. Ocorre que a graça tem sempre
uma dimensão do dialógico. A graça é um estado que implica
necessariamente uma situação relacional: é o reconhecimento pelo
professor da criatividade presente na composição da aluna que transforma e
legitima, para Clarice, sua escrita em autoria inaugural. A versão primeira
do professor, por sua vez, teria invertido a parábola hassídica, inversão
através da qual ele constrói para si uma versão de sua própria história,
talvez consolando-se com a esperança mais razoável de que a riqueza virá,
não de(a) graça, mas do trabalho (duro). Quem sabe como parte das
transformações do professor, daquelas que fizeram dele um homem grande
enfiado num paletó curto demais, que curvou seus ombros e deu um nó na
garganta, quem sabe ele supôs que, para fazer parte da legião estrangeira em
busca de um tesouro, ele teria que deixar de lado atmosferas místicas onde
homens sonham com tesouros que vêm de(a) graça. Se isto for verdade, o
professor trocou a versão milagrosa da parábola original por uma ascese
advinda do suor nosso de cada dia, como caminho árduo ao tesouro.
Se nossa hipótese for correta, e o professor reelabora a parábola
hassídica original, transcrevendo assim a sua própria história e convidando
os alunos a criarem as suas, é justificável que sorriamos, como ele acaba
por sorrir, porque o que é “engraçado”, toca em nossas entranhas, ou “finca
a flecha” em nossos corações, é que é esta menina endiabrada em terras
brasileiras, numa escola do Recife, que lhe põe uma vez mais em contato
com a parábola hassídica “original”, aquela em que o tesouro vem de(a)
graça, está em nós mesmos, nos nossos sujos quintais, e não depende de
nosso trabalho intencional, racional, razoável. Sofia coloca o professor uma
vez mais em contato com as velhas e “irrazoáveis esperanças” que
apareciam nos sonhos dos judeus pobres dos quintais sujos dos pequenos
shtetls do leste europeu. E este é um núcleo central da escrita de Clarice. Ao
longo de sua obra, a cena se repetirá e tesouros emergirão, reservados aos
leitores, de graça, surpreendentemente, em sujos quintais, por assim dizer,
das situações de vida mais comezinhas. Tesouros não materiais, mas
capazes de, ao estremecer algo da vida anímica, abri-la para algo
inesperado: um sopro novo de vida. Em familiaridade com as narrativas
hassídicas, os textos de Clarice ofertam a experiência da graça, muitas
vezes compreendida por leitores como uma epifania, isto é, um encontro
com algo do divino. É verdade, a graça pode ser uma epifania, mas capaz de
ser realizada em lugares tão improváveis como sujos quintais, em sua plena
imanência, isto é, onde o quintal é mais sujo, no mais escuro da maçã.
A menina, “sem saber […] obedecia a velhas tradições…”,26 este
mistério que atravessa as gerações nos lembra o que Freud diz sobre o seu
próprio judaísmo, no prefácio à tradução judaica de Totem e Tabu (1930/1976), ao
falar de si como alguém que “abandonou todas as características comuns a
seus compatriotas”, e em quem, apesar disso, ainda resta “uma parte muito
grande e provavelmente a própria essência” do judaísmo.27 Talvez algo
semelhante acontece em Clarice.
Nunca saberemos se a menina já ouvira alguma versão da parábola
hassídica original — de seu pai, por exemplo? Clarice parece que a
conhecia. Mas, no conto, a “velha tradição” aparece como tendo sido
inventada pela sabedoria de Sofia. Há uma perda necessária da tradição
para que ela pense que inventou o que já existia, ela que, “safadinha”, acha
que o professor se deixara enganar, ao mesmo tempo em que confusamente
viu que “através de mim, ele recebera […] aquilo de que somos feitos”.28
Neste caso, talvez não seja um erro dizer que ambos eram feitos, dentre
outras coisas — e aqui, no conto, sim —, de parábolas hassídicas. Ou então,
seria possível que ao mesmo tempo essa história fosse inteiramente
inventada e inteiramente lembrada por Sofia? Que ela tivesse sido
concebida junto à inocência idílica dos cavalos e esquilos do parque infinito
anexo ao colégio onde não estudava, ao mesmo tempo que lembrada, sem
ela saber, a partir de “velhas tradições” que ela, sem saber, sabia e de que se
lembrava sem saber que se lembrava? De qualquer maneira, a nova versão
de Clarice da velha parábola hassídica não apenas a revive para a menina e
o professor. Aqui, a versão ganha tamanha atualização que se manifesta
viva para além da legião estrangeira, para qualquer leitor. É como se ela, ao
ressignificar e atualizar as estrangeirices pessoais, levasse cada leitor(a) a se
abrir às legiões estrangeiras que o(a) habitam, pessoalmente. A menina
redescobre o tesouro em quintais brasileiros ou, se se quiser, os quintais
brasileiros permitem redescobrir os tesouros hassídicos. Seria esse o
trabalho da memória, que lembra de algo que nunca aconteceu e, ao mesmo
tempo, não parou de acontecer, tantas vezes de tantas maneiras em tantas
histórias anteriores e posteriores à nossa própria vida, “de eco em eco”,
mostrando-nos a vida imprópria que, como a memória, não é de ninguém?

O PROFESSOR
Nádia Gotlib, em sua biografia de Clarice Lispector, descreve um certo
professor de hebraico, Moysés Lazar, do Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro
em Recife, onde Clarice estudou precisamente entre 1929 e 1931, que se mudaria
depois para Israel. É ele que talvez tenha morrido por volta de 1934, quando a
menina tinha treze anos (“aos treze anos, de mãos limpas, banho tomado
[…] recebi então a notícia de que o professor morrera naquela
madrugada”).29 E é precisamente naquele momento, na madrugada de sua
morte, que se inscreve a primeira dobra dessa história, a primeira camada
de memória da história de Sofia e de seu professor, provável início de sua
escrita, fazendo-a voltar a “quatro anos atrás”.30 O personagem atraiu a
atenção dos seus três biógrafos. A colega Anita Levy descreve uma cena
curiosa de Clarice com esse professor:
Clarice estava falando com o professor dela de hebraico, Lazar, que era uma sumidade. Não
era um simples professor de abc. Eu ia passando. E a Clarice insistia com ele porque queria
saber qual era a diferença entre homem e mulher. Insistia tanto para que lhe explicasse! Insistia
mesmo.31

De fato, não seria excessivo afirmar que “Os desastres de Sofia” é


também uma parábola sobre a diferença sexual, essa mesma sobre a qual
Clarice menina interrogava insistentemente o seu professor, e que é parte do
assunto transfigurado pela narrativa. Um pequeno detalhe, narrado por outra
biógrafa, Teresa Montero, evoca também algo de “Os desastres de Sofia”:
Clarice sai ao encalço do professor, depois de tocar a sineta do recreio. O
prof. Lazar “era muito pra frente”, horrorizando às vezes os alunos, com as
respostas iconoclásticas que dava às perguntas insistentes: “Como é que foi,
Deus entregou a Torá na mão dele?”. Ao que o prof. Lazar respondia:
“Olha, ninguém viu”. Não se tratava de um professor que impunha a
religião aos alunos, o que destoava talvez de algumas das expectativas
doutrinárias colocadas sobre ele.32 Talvez parte da revolta da pequena Sofia
com o seu professor fosse que ele traísse suas expectativas de que ele
encarnasse uma lei mais conservadora que ele se recusava encarnar. Um
outro biógrafo, Benjamin Moser, sugere uma hipótese com a qual
concordamos: a de que ele seria talvez um dos modelos na composição dos
personagens de professor que comparecem nos textos de Clarice, sobretudo
em “Os desastres de Sofia”.33 Pois esse professor de hebraico que “era uma
sumidade”, como diz a colega de Clarice, parecia ser demais ali, ensinando
num curso primário, excessivamente progressista para o meio, num estado
de opressão pessoal para o qual, talvez, a sua ida para Israel tenha sido uma
resposta, e a redação da menina Sofia, um estímulo. O certo é que, no
professor do conto, há uma profunda melancolia, um “nó na garganta”,
podemos supor que devido à mudança e à perda, que também é um
amálgama de perdas, resultantes da imigração.
Sugerimos que as fontes que mobilizam a produção desse personagem,
o professor, seja o que, em psicanálise, chamamos de processos
identificatórios primários, aqueles que põem em movimento a identificação
com cada um dos pais, a cena primária, suas ressonâncias sedutoras e
castradoras, entre o incestuoso e o criativo universal. Lidando de forma
criativa com esses difíceis e ambivalentes núcleos primários, o
reconhecimento do professor leva a narradora a ter que se reconhecer autora
menina, como que repentinamente transformada, entre outros atributos, em
mulher e mãe do professor, chamada a testemunhar o nascimento dele,
transformado em “homem”, que ela despreocupadamente provocara ao lhe
dar a sua composição, e que se dá diante de seus olhos. É como se, de
algum modo, Sofia tomasse consciência daquilo que é capaz de suscitar, nos
outros, a inusitada escrita de Clarice. A redação de Sofia mexe no professor
como os textos de Clarice mexem em seus leitores. Este é o tesouro que
Sofia encontra no retorno do professor, um retorno que tem a ver com ver e
ser vista:
Vi tão fundo quanto numa boca, de chofre eu via o abismo do mundo. Aquilo que eu via era
anônimo como uma barriga aberta para uma operação de intestinos. […] Eu vi dentro de um
olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto com sua gelatina móvel.
Com suas lágrimas orgânicas. Por si mesmo o olho chora, por si mesmo o olho ri.34

Nessa visão de um olho, boca ou barriga, vistos de dentro, abertos ao


olhar da menina, convocada a testemunhar, há, quem sabe, algo da ferida de
suas metamorfoses que se põem à mostra, nuas, “o abismo do mundo”,
algo, quem sabe, do mundo abissal da imigração, expresso na carne. A
menina vê porque se vê solicitada a isto, é uma demanda que sente que lhe
fazem, desde criança: “sem entender, eu sabia que pediam de mim que eu
recebesse a entrega dele e de sua barriga aberta, e que eu recebesse o seu
peso de homem”.35 Há aqui associações precisas, explicitadas no conto, com
o seu pai, Pinkhas — que adotou o nome de Pedro ao chegar no Brasil, tal
como ela era Chaya e virou Clarice — e a ferida dele, que a menina precisa
cuidar: “Eu já me habituara a proteger a alegria dos outros, a de meu pai,
por exemplo, que era mais desprevenido que eu”.36 Nossa hipótese inclui a
asserção de que a ferida do pai, inscrita de forma incisiva por seu caráter
desarmado e não precavido, é também um efeito de imigração, de ser um
judeu no Brasil, ele também parte de uma legião estrangeira.

ÁVIDA MATÉRIA DE DEUS

Falemos ainda um pouco mais do materialismo hassídico de Clarice e suas


“lágrimas orgânicas”,37 tal qual se inscrevem no conto. O misticismo ali
expresso não é por Deus, mas pela matéria de Deus (“E a fonte de um
nascente misticismo. Não misticismo por Ele, mas pela matéria d’Ele, mas
pela vida crua e cheia de prazeres: eu era uma adoradora”).38 Ela, que é
“ávida matéria de Deus”. Adoração material e transgressiva da “vida crua e
cheia de prazeres”, adoração, portanto, à matéria de que ela própria é feita.
A mística de que a menina já traz sinais é imanente e material.
Emaranhados aos fios de histórias hassídicas há histórias cristãs: “os
segredos de confessionário”, “a freira monstruosa”, a repetição dos tipos (os
ícones): o santo e a prostituta (“eu estava sendo a prostituta e ele o santo”),39
o professor reencenando o papel de Jesus e ela o de Maria Madalena,
organizam a escrita figural de Clarice como um todo. E essa referência
repetida ao homem como “rei da criação” (“o homem era o meu rei da
Criação”),40 que define a matriz da sexualidade da menina, revista pelo olhar
da mulher que escreve. A referência aqui, ao contrário do que se imagina
num primeiro momento, não se encontra no Gênesis. Ela vem
provavelmente da Patrística de Gregório de Nissa, que comenta a passagem
do livro do Gênesis em um opúsculo chamado “A criação do homem”.41
Mais uma vez é notável a maneira como a menina retrabalha essas
histórias. O opúsculo comenta e desdobra a passagem do Gn 1,26, que narra a
criação do homem “à nossa imagem, como nossa semelhança”, com o
propósito de fazê-lo dominar “sobre os peixes do mar, as aves do céu, os
animais domésticos etc.”. O motivo do domínio do homem sobre as outras
criaturas, como tema fundante da hierarquia que governa o mundo, coincide
com a determinação do ícone (“imagem”, em grego) como modelo da
relação homológica entre Deus e a criatura homem. O domínio (arkhô, em
grego) do homem, (ánthropos) isto é, de adam, “terra”, “solo”, em
hebraico, ainda sem gênero, sobre os outros seres, estabelece também o
domínio da analogia, que Gregório de Nissa vai transformar em regra
hierárquica da construção das coisas: o criador do cosmos, Deus, está para a
terra como o homem está para a casa, como o rei está para o seu trono,
como o mestre da casa está para a casa. O homem de que se trata aqui
(adam, ánthropos), concebido como “rei da criação”, é composto de
imanência e transcendência, “misturando o terreno e o divino”, como
escreve Gregório, uma prefiguração de Jesus Cristo. Entre o Gênesis e o
Novo Testamento ocorre a intervenção de
S. Paulo, o verdadeiro “inventor” da doutrina da encarnação de Deus no
ícone humano (na imagem) de Jesus Cristo.42 Essa é a matriz de todos os
ícones, o ícone dos ícones, que comanda a hierarquia imagética e analógica
que ordena o mundo. O cerne da analogia depende da fundação messiânica
do reino de Deus nesse mundo. É também um discurso sobre o tesouro, as
“riquezas” que povoam o mundo, como a parábola hassídica, mas entre os
dois tesouros existe um mundo de diferenças. Para o cristianismo, trata-se
de estabelecer um programa de domínio sobre as coisas, enquanto para os
pobres judeus que sonham com o tesouro que depois encontram no quintal
embaixo de seu fogão, trata-se de fundar a casa de Deus (as duas sinagogas)
pela fábula.
“O rei da criação” estabelece o domínio especista da espécie humana
sobre todos os seres da terra, criados por Deus para que o homem deles
desfrute. Na Patrística, a afirmação do reinado do homem sobre o mundo é
um enunciado teológico-político, que funda o reinado do Messias na terra, a
sua basileia, neste mundo. É algo como uma dupla soberania que se
expressa aqui: da espécie humana sobre as outras, consignada pela
superioridade icônica do homem sobre as outras espécies, e do homem —
enquanto gênero, sobre a mulher.
Nada disso, no entanto, aparece em Clarice, muito pelo contrário. A
obra dela gira frequentemente em torno de uma ampla reinterpretação do
versículo anterior, Gn 1,24-25, que trata do método de criação divina dos seres
da terra, “segundo sua espécie”. Espécie traduz o grego génos, “família”,
em hebraico, min. Todos os seres da criação são referidos a essa lei da
espécie, que determina a forma impessoal a que todos os seres são
subordinados. É essa lei que é, ao mesmo tempo, a nossa prisão e a nossa
graça, a nossa necessidade e a nossa liberdade. O que interessa a Clarice é a
determinação de cada espécie pela forma perdida que ela é, a que devemos
retornar para nos salvarmos, e que implica não numa condição imóvel, mas
a própria mobilidade do ser que somos. É, portanto, nesse versículo
imediatamente anterior à criação do homem que Clarice colhe a lei da
espécie: anterior àquele que estabelece o jugo especista da imagem (o
ícone) humana sobre as outras espécies, destinado a que foi o homem;
anterior à diferenciação de gêneros, a dominar as outras espécies e,
posteriormente, a dominar também as mulheres. Para Clarice, ao contrário,
cada espécie obedece à lei do seu tipo: “Toda mulher é a mulher de todas as
mulheres, todo homem é o homem de todos os homens, e cada um deles
poderia se apresentar onde quer que se julgue o homem. Mas apenas em
imanência, porque só alguns atingem o ponto de, em nós, se
reconhecerem”, dirá G.H.43 Assim como “a barata é a barata de todas as
baratas”, como toda galinha, cachorro, tanto os animais como as plantas e
flores — todos eles são “segundo a sua espécie”, eles são a repetição que
põe em movimento a forma da espécie, são a matéria em movimento
segundo o ser da variação em um continuum vital, vistos pela distância
milenar e matemática de Deus, já que todos eles são em Deus. Este, o
misticismo “pela matéria” de Deus.
No conto de Clarice, esse “homem” humano, por analogia platônica
plasmado em rei que governa sobre todas as outras criaturas, é
transformado no homem sexualizado, diferente da mulher, e que reina sobre
ela. Mas, “coitado desse rei da Criação”, entende a menina, ambos
submetidos que são à regra comum da realidade e da dor.44 A operação
consiste nada mais nada menos do que na erradicação da transcendência do
“filho do homem”. O “homem” é só um homem imanente (ao mesmo
tempo anér e ánthropos). Como o Jesus Cristo de Clarice, que não é um
Deus, mas um homem, ou é Deus porque é homem, o professor deixa de ser
professor e torna-se justamente “o
homem” a partir do momento em que Sofia volta do recreio para a sala de
aula. É o homem, Adam diante de Eva, Havvah, em hebraico, que tem a raíz
hayah, “viver”, o mesmo radical que compõe Chaya, nome de Clarice. O
parque dentro do qual se situava o Colégio (“alugado dentro de um dos
parques da cidade”), que “não acabava nunca”, onde “cabia um ar livre
imenso”, com suas “azedas begônias” e “abelhas [que] faziam mel”, quem
sabe uma das matrizes do Jardim Botânico de “Amor” ou da fazenda de A
maçã no escuro; é um pouco o jardim do Éden, com seus troncos de árvore
inscritos de corações de amor, onde as crianças “faziam o seu mel”.45 Na
formação de Sofia indicia-se sempre a precariedade da educação formal, o
Colégio como variação episódica do recreio infinito, do jardim e suas
descobertas, travessuras e sabedoria muito singular. A gênese da escrita é
indissociável da traquinagem com o Gênesis. De maneira perceptível, a
interpretação de Clarice da analogia patrística é perfeitamente hassídica: o
homem, compósito de ánthropos e Deus, como Cristo, é lido por ela de
maneira estritamente imanente: Jesus Cristo é Deus porque é humano,
porque Deus está nos humanos como nos outros seres, igualmente, e não
como um Deus que teve que se esvaziar da divindade para se fazer humano
(esse o sentido da kénosis), tornando-o o sucedâneo de Deus na terra e
legítimo soberano dos seres que aqui estão. Não, cada ser, em sua diferença,
situada num continuum da vida, se situa em perfeito pé de igualdade com
relação à soberania única de Deus sobre a sua criação, que não se projeta
em uma soberania humana sobre as coisas.

A CURA

Os fios das diversas histórias se desenlaçam e reenlaçam em torno do


sentido do tesouro contido na graça revelada pela parábola. E a graça
consiste na cura através do nascimento material e orgânico. É pela
composição, pela escrita de uma história contada, esquecida e lembrada,
que o professor e a narradora renascem, cada um a seu modo. É pela escrita,
mais uma vez, que lemos o relato desse nascimento, da vida do homem
salvo pela menina artista e arteira que vira a escritora que escreve o conto
que lemos; que naquele preciso momento nasce como escritora. Para o
professor que acreditava no tesouro obtido pelo trabalho árduo, a facilidade
de encontrar o que não precisa ser buscado equivale à mais preciosa
descoberta: a graça da vida, a vida gratuita do que simplesmente está à mão.
Em uma primeira camada de sentido, o tesouro é a própria Sofia, que cura o
“homem” ao lhe dar a própria vida nua e desprotegida, a nudez daquilo que
pode se mostrar, que não precisa mais se ocultar.
É sob o signo da metamorfose orgânica na volta do recreio que tudo
começa a se dar: na aproximação lenta da sala, a menina se sente “como
num espelho”, uma “coisa úmida”, uma ameba fria e sem contorno, que se
esgueira colada à parede da sala.46 O professor vira repentinamente, como
vimos, “o homem”, e mais que isso, “o homem de sua vida”. Mais adiante,
é a cesariana metafórica do sorriso que testemunhamos a partir do olhar da
menina: os cílios de barata doce dos olhos do professor,47 a feia entrega de
quem recebeu a dádiva do tesouro de viver. Mas a metamorfose da graça é
recíproca, a menina e o homem se salvam um ao outro pelas graças do
tesouro. A mise en abyme se abre sobre o “abismo do mundo”, a fenda do
corpo ferido mostra as suas entranhas. É o mundo inteiro que se apresenta
ali porque todo nascimento envolve forças cósmicas, infinitas e anônimas.
A cesariana de um sorriso, que a menina despreocupadamente opera no
“homem”, não ocorre só na boca. A vida não nasce no útero, mas no corpo
inteiro: intestinos, fígado, pé, olho. É o corpo orgânico e cego, “a barriga
aberta para uma operação de intestinos”, “como se um fígado ou um pé
tentassem sorrir”, ou um olho visto por dentro com sua “geleia móvel”.48 O
sorriso orgânico se irradia pelo corpo, quem sorri são as partes cegas da
pele que sente e se abre ao outro. O corpo é todo feito de aberturas que dão
a ver o que está dentro. Quem nasce não é uma pessoa, mas a vida
“anônima”, nua e qualquer. O nascimento da vida, revisto pelo olhar
memorioso da literatura, é o nascimento da vida em tudo o que vive.
Como entender a mútua operação de cura e graça que se dá ali? É a
menina que dá ao professor o tesouro que se disfarça e que está à mão,
facilmente encontrável. É ele que lhe dá a terrível graça ambígua de ter de
receber a entrega inteira de um homem, de ser a mulher do pobre rei da
Criação. Em ambos os casos, trata-se da descoberta da vida. Para Sofia,
uma vida indissociável da escrita e do amor. Receber o peso de um homem,
a graça terrível de ter de ser responsável, isto é, de responder pelo
nascimento de alguém. “Ver como nasce a vida”, escreve a narradora. Mas
Sofia resiste à vocação precoce da dádiva, que faz dela parte dessa legião
estrangeira dos vulneráveis e feridos, daqueles que não podem esconder os
seus tesouros.
No entanto, a conclusão inapelável da menina, num primeiro
momento, era de que a salvação seria impossível para ambos. Para ele, por
haver ingenuamente acreditado numa lorota de menina e, para ela, porque
salvar-se dependia de os adultos encarnarem a lei, cuja queda colossal ela
testemunha em primeira mão. Há ali algo como uma vingança, o “ídolo
caído” que cai do alto de sua monumentalidade, com um baque. Não é Deus
quem faz o homem à sua própria imagem, mas é Sofia quem faz o adulto à
sua própria imagem e semelhança.49 Uma imagem dela própria apenas
“purificada pela penitência do crescimento, enfim liberta da alma suja de
menina”.50 Ainda aqui reescreve-se o itinerário do ícone. Agora a menina
descobre que o adulto é igual a ela, que “aquele homem também era eu”, e a
descoberta equivale à “queda do ídolo” (era “meu amargo ídolo que caíra”).
A iconoclastia corresponde a algo como a morte de Deus, numa cena
familiar em que parecem enlaçados os temas do materialismo do século 19,
de Feuerbach, de Nietzsche e de Wagner. Se o professor do conto for de fato
baseado no professor de hebraico, Moysés Lazar, como acreditamos ser, o
que isso diz sobre o nascimento da literatura de Clarice? O que isso diz
sobre a relação entre a língua hebraica e o português como tradução
obrigatória, para a geração de Clarice, do ídiche, tudo isto ligado à
descoberta da vocação de escritora brasileira? A menina não apenas
transcreve uma parábola hassídica do rabi Bunan ou do rabi Nachman, mas
o próprio conto, como um todo, é escrito à maneira de uma parábola
hassídica.
A constatação da impossibilidade da salvação se dá pela descoberta da
comunidade entre ela e o homem, já que “aquele homem também era eu”.51
O tesouro é decepcionante, melhor seria tê-lo encontrado depois de uma
longa busca, muito longe, quem sabe: “[…] e a troco de nada, eu perdia o
meu inimigo e sustento”, escreve a narradora.52 Mas, o que fazer se ele sou
eu, eu apenas eu? Já no parque, a escrita da história se transforma em ícone
gravado no tronco da árvore, o “duro entalhe de um coração com flecha”,
vislumbra-se o “fim do mundo”, o “fim sombreado do parque”.53 Para o
homem, ela era o tesouro disfarçado. Mas, e para ela, que queria que o
tesouro se mantivesse no mundo inexpugnável dos adultos? Coitado desse
“rei da Criação” que fez dela o seu tesouro. Ela não pode ser o tesouro de
ninguém. Decididamente não poderia nunca ser ela, o tesouro nunca
poderia estar perto, nos “sujos quintais” do eu. “Eu não era um tesouro”,
conclui ela, recusando a dádiva do tesouro que o homem lhe tinha dado ao
receber, de sua mão, o seu. Ela recusa o artifício do tesouro em troca da
realidade, esse o nome do seu tesouro afinal. “A realidade era o meu
destino, era o que em mim doía nos outros”.54 O homem se enganara, então.
Ela não era o tesouro, embora para ele certamente o fosse. Ela o fizera ver o
tesouro nele mesmo, fora isso que ela presenciara: o recebimento afinal do
tesouro que ele era, que ele tinha à mão e não sabia. O tesouro não poderia
nunca ser ela. Não se trata então de tesouro, conclui ela em negação, mas do
real feito da realidade da dor. Porque a realidade contém a possibilidade da
cura, e o seu tesouro consiste, afinal, em curar: “só naquele instante de mel
e flores descobria de que modo eu curava: quem me amasse, assim eu teria
curado a quem sofresse por mim”.55 Ela curava quem sofresse por ela,
amando-a. Mesmo não “prestando”, ela se tornara o tesouro daquele
homem, e não podia negar isso. Ela aceita, então, ver-se através da
perspectiva do outro e, por mais absurdo que fosse, perceber que ela tinha
sido o tesouro valioso de alguém. Quem sabe então o tesouro esteja no
outro, na perspectiva do outro sobre nós mesmos. Em aceitar ser o tesouro
de outro, mesmo que não nos vejamos assim. Aceitar a lei do outro: isso
talvez seja a graça.
A metamorfose final da história retoma, sob a forma de parábola, na
última dobra da parábola hassídica, o conto de fadas da Chapeuzinho
Vermelho, recontado pelos irmãos Grimm, mas que data do século 10, talvez
ainda mais antiga que uma versão sufi muito antiga da parábola contada
pelo rabi Bunam, recontada por Sofia e invertida pelo professor.56 A menina,
agora mulher, é o lobo que come o outro, fazendo-o sofrer, mas que salva a
Chapeuzinho Vermelho que ela própria engoliu. Ela, que nascera com a
mão dura, sem nojo da dor, e que podia, portanto, arrancar a flecha farpada
do coração de quem ama. O texto retoma a enunciação da fábula em
primeira pessoa. Essa a dobra final da metamorfose da história: ela se
encarna na pessoa ou seria a pessoa que se encarna nela, que se transforma
em fábula?
Para que te servem essas unhas longas? Para te arranhar de morte e para arrancar os teus
espinhos mortais, responde o lobo do homem. Para que te serve essa cruel boca de fome? Para
te morder e para soprar a fim de que eu não te doa demais, meu amor, já que tenho que te doer,
eu sou o lobo inevitável pois a vida me foi dada. Para que te servem essas mãos que ardem e
prendem? Para ficarmos de mãos dadas, pois preciso tanto, tanto, tanto — uivaram os lobos, e
olharam intimidados as próprias garras antes de se aconchegarem um no outro para amar e
dormir.57

Os lobos são os que mais precisam: aninhados de mãos dadas, mordem


e amam. As voltas dos muitos fios das histórias nos levaram a uma parábola
sobre o amor do “homino homine lupus” radicalmente diferente do de
Thomas Hobbes, que salva pelas garras de sua história os nossos corpos
feridos de leitores de parábolas que não acreditamos em salvação, mas
aceitamos afinal a graça de sermos, nos submetendo à magia de sua cura. Se
o texto de Sofia cura o professor, esse homem grande, gordo e silencioso de
ombros contraídos, abrindo espaço para a emergência de um sorriso e um
reconhecimento que ressignificam, para ele, essa aluna tão indisciplinada;
para ela, a transfiguração suscitada no professor, ao reconhecê-la como
criadora, não ressignifica propriamente tudo o que estava envolvido em sua
perturbadora relação com ele. Ela preferiria “sua cólera antiga, que me
ajudara na minha luta contra mim mesma, pois coroava de insucesso os
meus métodos e talvez terminasse um dia me corrigindo”.58 Sofia preferiria
que a moral presente nos textos da Condessa de Ségur se realizasse, que ele
a castigasse duramente por suas impertinências de menina, que se vingasse
dela. Ela preferia
receber de volta em pleno rosto a bola de mundo que eu mesma lhe jogara e que nem por isso
me era conhecida. Ia receber de volta uma realidade que não teria existido se eu não a tivesse
temerariamente adivinhado e assim lhe dado vida. Até que ponto aquele homem, monte de
compacta tristeza, era também monte de fúria?59

Ela não admite propriamente ser algum tipo de tesouro: algo de sua
rigidez, do rigor de seu modo de ser, de sua lei pessoal, a leva a considerar
que “tudo o que em mim não prestava era o meu tesouro”.60 A súbita falta de
raiva nele a deixa intrigada e desconfiada. A súbita falta de raiva abre
ameaças novas. Sofia sofria: “[…] Perplexa, e a troco de nada eu perdia o
meu inimigo e sustento. Olhei-o surpreendida”.61 O que ela vê é o impacto
da sua escrita, que ela aloca como um encontro de olhos: “Eu vi dentro de
um olho. O que era tão incompreensível como um olho. Um olho aberto
com sua gelatina móvel. Com suas lágrimas orgânicas”.62 O olho que agora
ela olha e que a olha é o impacto que sua escrita pode realizar no outro.
Essa é a sua graça, que não tem nada de graciosa. É uma graça capaz de
arrancar pérolas da barriga aberta, “lágrima orgânica”: “vida nascendo era
tão mais sangrento do que morrer. Morrer é ininterrupto. Mas ver matéria
inerte lentamente tentar se erguer como um grande morto-vivo… Ver a
esperança me aterrorizava, ver a vida me embrulhava o estômago”.63
Para nós, essa passagem pode ser entendida como uma espécie de
leitura pessoal de Clarice sobre o efeito clariciano de seus textos em seus
leitores. Sofia abriu os olhos de seu professor e, de algum modo, abriu seus
olhos para a sua escrita. Ela tem a competência de fazer circular tesouros,
de encontrar pérolas nas vísceras aprisionadas em realidades cotidianas. Ela
não tem casa para onde voltar e perdeu a moral da Condessa de Ségur. Sofia
aprendeu a pôr um lobo em ação. Só isso. Não é pouco, pois esse lobo pode
curar outros. Mas é uma esperança que a aterroriza, demanda-lhe muita
coragem. Ela sabia agora que inventava algo que não é só mentira, algo que
alimenta. Assim como o professor, nós, leitores de Clarice, podemos
parecer “um mendigo que agradece o prato de comida sem perceber que lhe
haviam dado carne estragada”.64
Kafka suspeitava que a sua escrita surgia de sua perdição e temia que
talvez pudesse promover a perdição de seus leitores. Talvez por isso, pediu,
antes de morrer, que seu amigo Max Brod queimasse toda a sua obra.
Clarice, não. Nesse texto, Sofia reconhece que seu texto pode, de fato, curar
o seu leitor, ao fazer brotar em sua boca um sorriso, tocar o orgânico, fazer
a matéria viva nascer. Uma cura fulgurante e momentânea que é a cura da
literatura, muito diferente, por exemplo, da cura proposta pela psicanálise.
Cura para os outros, mas que não cura a escritora. Cura para o leitor e não
para a autora. A escritora, quanto a ela, permanece fiel ao veredito de
Kafka, reportado por Janouch: “Existe muita esperança, mas não para nós”.
Seu texto não resgata Sofia. Ao contrário, se saber escritora enreda para
sempre Clarice aos quintais sujos. O tesouro hassídico reencontrado por
Clarice em quintais de língua brasileira, no grande parque do colégio, talvez
a tenha auxiliado, como ela diz, “a aprender a ser amada, suportando o
sacrifício de não merecer, apenas para suavizar a dor de quem não ama”.65 E
nós, leitores de Clarice, lendo-a, quem sabe aprendamos um pouco mais
sobre o duro amor que é viver.

NOTAS
1. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia. In: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 262.
2. Ibid.
3. Ibid., pp. 262-3.
4. Ibid., p. 277.
5. Ibid., p. 278.
6. Ibid., p. 266.
7. Comtesse de Ségur, Les malheurs de Sophie. Édition du groupe “ebooks libres et gratuits”, abr. 2004,
p. 4.
8. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia, pp. 274-5.
9. Comtesse de Ségur, Les malheurs de Sophie, p. 143.
10. Cf. Yudith Rosenbaum, “Diabólica inocência”. In: Metamorfoses do mal. Uma leitura de Clarice
Lispector. São Paulo: Edusp/Fapesp, 1999.
11. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia, pp. 261, 271.
12. Nádia Battella Gotlib, Clarice. Uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p. 94.
13. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia, p. 261.
14. Ibid., p. 261.
15. Ibid., p. 262.
16. Ibid., p. 261.
17. Ibid.
18. Nádia Battella Gotlib, Clarice Fotobiografia. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial
do Estado de São Paulo, 2009, 2. ed., p. 47.
19. Ibid., p. 266.
20. Ibid., p. 268.
21. Ibid., p. 275.
22. Ibid., p. 273.
23. Martim Buber, Histórias do rabi. Trad. de Marianne Arnsdorff et al. São Paulo: Perspectiva,
2012, p. 571.
24. Gershom Scholem, As grandes correntes da mística judaica. Trad. de Jacó Guinsburg et al. São
Paulo: Perspectiva, 1995, 3. ed., p. 373.
25. Aryeh Wineman, The Hasidic Parable. An Anthology with Commentary. Filadélfia:
The Jewish Publication Society, 2001, p. XV.
26. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia”, p. 262.
27. No prefácio à tradução hebraica de Totem e Tabu (1930/1976), Freud escreve: “Nenhum leitor [da
versão hebraica] deste livro achará fácil colocar-se na posição emocional de um autor que é ignorante
da linguagem da sagrada escritura, completamente alheio à religião de seus pais — bem como a
qualquer outra religião — e não pode partilhar de ideais nacionalistas, mas que, no entanto, nunca
repudiou seu povo, que sente ser, em sua natureza essencial, um judeu e não tem nenhum desejo de
alterar essa natureza. Se lhe fosse formulada a pergunta: ‘Desde que abandonou todas essas
características comuns a seus compatriotas, o que resta em você de judeu?’, responderia: ‘Uma parte
muito grande e, provavelmente, a própria essência’. Não poderia hoje expressar claramente essa
essência em palavras, mas algum dia, sem dúvida, ela se tornará acessível ao espírito científico”.
[Sigmund Freud, Totem e Tabu
e outros trabalhos. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud,
v. XIII (1913-1914). Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 19.]
28. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia, p. 278.
29. Ibid., p. 265.
30. Ibid., p. 266.
31. Nádia Battella Gotlib, Clarice. Uma vida que se conta, p. 94.
32. Teresa Cristina Montero Ferreira, Eu sou uma pergunta. Uma biografia de Clarice Lispector. Rio
de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 41-2.
33. Benjamin Moser, Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2009, p. 106.
34. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia”, p. 273.
35. Ibid.
36. Ibid., p. 275.
37. Ibid., p. 273.
38. Ibid., pp. 263-4.
39. Ibid., p. 262.
40. Ibid., p. 265.
41. Citemos um trecho: “Esta grande e honrável coisa que é o homem não havia ainda encontrado
lugar na criação. De fato, não era conveniente que o chefe aparecesse antes das coisas sobre as quais
teria comandado. Mas não era senão depois da preparação de seu reino que devia logicamente ser
revelado o rei, quando o Criador do cosmo tivesse por assim dizer preparado o trono daquele que
devia reinar. Eis a terra, as ilhas, o mar e sobre eles, o céu como um teto. Riquezas de todos os
gêneros tinham sido colocadas nesses palácios: por riquezas, eu entendo toda a criação, tudo o que a
terra produz e faz germinar, todo o mundo sensível, vivente e animado. […] o homem chegou como
cumprimento, não seja relegado com menosprezo ao último lugar, mas porque desde seu nascimento
convinha que ele fosse rei. E como um bom mestre de casa não faz entrar o convidado antes de ter
preparado os alimentos, mas depois que tenha preparado todas as coisas e decorado com ornamentos
adaptados à casa, o assento da refeição, a mesa, e quando todas as coisas são preparadas para o jantar
faz entrar o convidado no lar doméstico, do mesmo modo, aquele que, em sua imensa riqueza, é
hóspede de nossa natureza, decora, antes de tudo, a casa com belezas de todo gênero e prepara um
variado e magnífico festim; então ele introduz o homem para lhe confiar não a aquisição de bens que
ele não teria ainda, mas o regozijo daqueles que se lhe oferecem. E, por essa razão, lança nele dois
princípios de criação, misturando o terreno com o divino, a fim de que, através de ambos, tenha de
maneira congênere e familiar o regozijo de um e de outro: de Deus através de sua natureza mais
divina, dos bens terrenos através da sensação, que é da mesma ordem que esses bens” (Gregório de
Nissa, A criação do homem. A alma e a ressurreição. A grande catequese, v. 29. São Paulo: Paulus,
s/d., Coleção Patrística.)
42. Marie-José Mondzain, Image, icône, économie. Les sources byzantines de l’imaginaire
contemporain. Paris: Seuil, 1996, p. 28.
43. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1964,
p. 176.
44. Id. “Os desastres de Sofia”, p. 276.
45. Ibid., p. 267.
46. Ibid., p. 270.
47. Ibid., p. 271.
48. Ibid., p. 273.
49. “O homem fabrica uma imagem de Deus, isto é, ele transforma a entidade abstrata da razão, a
entidade do pensamento, num objeto dos sentidos ou numa entidade de fantasia.” (Ludwig
Feuerbach, A essência do cristianismo. Trad. de José da Silva Brandão. Petrópolis: Vozes, 2007, p.
99.)
50. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia”, p. 276.
51. Ibid.
52. Ibid., p. 272.
53. Ibid., p. 276-7.
54. Ibid., p. 277.
55. Ibid., p. 277.
56. Wineman observa que exatamente a mesma parábola do rabi Bunam pode ser encontrada, com
cidades trocadas, Bagdá e Cairo no lugar de Cracóvia e de Praga,
na obra do poeta sufi persa, Jalal ad-Din Rumi, que viveu no século 13, cinco séculos antes do
surgimento do hassidismo polonês. Aryeh Wineman, The Hasidic Parable,
op. cit., p. 176.
57. Clarice Lispector, “Os desastres de Sofia”, pp. 278-9.
58. Ibid., p. 274.
59. Ibid., pp. 270-1.
60. Ibid., p. 278.
61. Ibid., p. 272.
62. Ibid., p. 273.
63. Ibid., p. 274.
64. Ibid., p. 275.
65. Ibid., p. 279.
As tramas de Laços de família: A palavra em
espera*
CLEUSA RIOS P. PASSOS

UM RECURSO EVOCADOR: A REPETIÇÃO

“Os laços de família”, parte do livro quase homônimo Laços de família,


ganha aqui relevo por sublinhar uma constante em Clarice Lispector que
pode ser nomeada “a palavra em espera”, isto é, aquela palavra suspensa
que as personagens não formulam, sufocam, e, com ela, ocultam desejos,
angústias, ressentimentos etc., não os expressando a seus parceiros, pais e
familiares em geral. Os laços entre esses seres são paradoxais, prendem,
geram solidão e a contenção de afetos chega ao leitor pelo fluxo de
pensamento de cada um.
A “palavra em espera” constitui um recurso que se estende por vários
textos de Laços de família e, dentre eles, três serão enfocados para
estabelecer breve relação com o conto escolhido como eixo e, neste,
precisamente, um traço psíquico fundamental se impõe, qual seja, o
esquecimento. Aspecto retomado de modo insistente, ele aflora graças a um
jogo verbal entre uma mãe e uma filha sobre o ato de esquecer, velando a
força dos dizeres represados que, por sua vez, operam sob o signo da
repetição. Em outros termos, desde as primeiras linhas, o “esquecimento”
estará no lugar de algo reprimido, revelado sob a forma de repetição e
atuante na existência das duas mulheres e seus vínculos familiares.
Em linhas gerais, “Os laços de família”1 trata do fim de uma visita de
duas semanas de Severina, a mãe, a Catarina, a filha casada e mãe de um
menino de quatro anos. Ao deixar Severina na estação e retornar sozinha, a
moça sente a dor do amor materno e, ao entrar em seu apartamento, revê o
filho, pega-o pela mão e sai. De passagem, comunica brevemente sua
partida a Antônio, seu marido.
Habituado a ter o sábado para si, porém com a família “em casa”, o
homem experimenta, sozinho, sensações de perda de controle e exclusão,
responsáveis por divagações a dominarem o discurso até o fim, momento
indicativo de ilusória volta à “normalidade”. Se o narrador lhe cede esta
segunda parte do conto, a primeira é destinada a Catarina e será o principal
objeto desta leitura. Tal procedimento permite apreender o fluxo de
consciência das personagens, sublinhando suas relações, marcadas seja pelo
automatismo do cotidiano de um casal economicamente bem-sucedido da
década de 1960, seja pelo “esquecimento” da troca sugestiva de seus desejos e
reflexões mais íntimas. Como se vê, as poucas ações giram em torno das
partidas (as de Severina e de Catarina) que acabam por desencadear afetos,
inquietudes e desamparo particulares.
Já no parágrafo inicial, o leitor depara com mãe e filha dentro de um
táxi com destino à estação. O diálogo entre elas é, em aparência, inócuo,
porém, portador de outro sentido a merecer atenção: Severina se preocupa
em contar e “recontar” as malas desnecessária e ironicamente, pois são
apenas duas, perguntando pela “terceira vez” se não esquecera “nada”.
Divertida e paciente, Catarina responde que não. Sem saber o que dizer à
filha, a repetição se instaura na pergunta recorrente “Não esqueci de nada?”.
Vale frisar que as duas mulheres “esquecem” de reconhecer o amor e as
decepções mútuas.
Em uma passagem anterior, num instante capital, resultado de uma
“freada súbita” do táxi, uma é lançada “contra” a outra, ocorrendo “um
desastre irremediável” — o renomado relance epifânico de Clarice? —,
Severina balança a cabeça, tornando-se, de repente, “envelhecida e pobre” e
Catarina lembra de “uma intimidade de corpo há muito esquecida, vinda do
tempo em que se tem pai e mãe” (p. 111).
Ora, criado pelo acaso, o encontro desperta a “verdade” ignorada, ou
parte dela, e, nesse momento, o toque dos corpos, realizado um “contra” o
outro, insinua não apenas a falta de intimidade, mas, sobretudo, o incômodo
do contato. Além disso, essa “meia” verdade aflora, como algo peculiar ao
ato de lembrar, graças ao dado “externo” que reaviva o “interno”, levando a
filha aos tempos de cumplicidade com o pai, quando a mãe os obrigava a
comer demais e eles trocavam piscadelas coniventes. Aflora, igualmente,
como nostalgia de um tempo, para sempre perdido, em que pai e mãe, mais
do que laços consanguíneos, representavam figuras que ocupavam (e, de
outro modo, ainda ocupam) lugares no imaginário da filha, em sua
constituição como sujeito que ganha existência, tendo acesso à linguagem,
ao desejo e seus desdobramentos.
No encontro inesperado, revela-se, por exemplo, a falta fulcral na
família de Catarina da troca de carinhos, que acabam desviados pela mãe
para a preocupação alimentar excessiva, atuante no presente, em relação ao
neto, considerado magro por ela. Comer adquire outra função corporal, a de
tomar o lugar do amor que ela não conseguira demonstrar à filha, nem
parece conseguir, agora, oferecer ao neto. Não reelaborar seus sentimentos,
por meio da verbalização, determina o retorno do ato de outrora sem que
Severina o “saiba”. Vale frisar: repetir constitui uma forma de substituir o
passado esquecido, ensina Freud.2
Mas o choque do táxi é provocador e algo vem à luz, levando Catarina
a reconhecer que “a mãe lhe doía” e a redescoberta desse afeto esquecido,
algo “sabido”, mas sufocado ao longo do tempo só se faz na iminência da
partida do trem, quando nada mais podem dizer e confissões, dúvidas e
angústias são contidas. Para encobrir a falta de diálogo, as duas proferem
palavras que as identificam e manifestam o máximo de afeto possível a ser
verbalizado: “Mamãe” e “Catarina”. E sobrevém uma revelação a Catarina:
“Que coisa tinham esquecido de dizer uma a outra, e agora era tarde
demais. Parecia-lhe que deveriam um dia ter dito assim: sou tua mãe,
Catarina. E ela deveria ter respondido: e eu sou tua filha.” (p. 113).
Contudo, restam as palavras em espera; palavras que, ao longo da vida,
a personagem substituiu pelo olhar, ligeiramente estrábico, isto é, próprio ao
desvio do que precisa conter. Desde pequena, “rira pelos olhos” e sempre
lhe “doía um pouco ser capaz de rir”, transgredindo, aparentemente, a
própria função prazerosa do riso pela incorporação da dor; no fundo, é o
humor que desloca a dor. Logo, o olhar tem duplo papel, o de rir e o de
manifestar afetos e sensações encobertos pela mulher. Nesse jogo, entram
os paradoxos de Clarice, frequentes na complexidade composicional de
seus seres ficcionais.
Se Catarina não verbaliza o que sente, por outro lado, seu olhar “fala”
por ela, estabelecendo uma espécie de subversão criativa, responsável por
uma singularidade que a impele a não permanecer na mera repetição, legada
pelo laço materno. Não se pode ignorar que, embora não o declare, a filha
mostra bom humor, cuja presença textual acaba por desvendar certos
sentimentos dissimulados pela mãe e pelo marido. E, ainda, o humor, “dom
precioso e raro”,3 vai além de lhe permitir fruir o prazer, apesar dos elos
afetivos dolorosos, porque, no conjunto da narrativa, ele se faz um traço
importante para sublinhar a solidão das personagens. Segundo Freud, o
humor pode completar “seu curso dentro de uma única pessoa”,4
dispensando a participação do outro. Daí, por analogia, esse curso cabe à
moça, que usufrui sozinha determinadas situações, ponderando sobre o
desconcerto dos familiares na cena de despedida da mãe: “[…] Se eu rio,
eles pensam que sou louca […]” (p. 110).
Catarina deseja, então, outro destino para a própria função materna. Ao
chegar ao apartamento, ela procura desatar os nós entrelaçados com
Severina; contudo, são eles que, de maneira sub-reptícia, lhe sugerem
outros rumos. Localiza o filho e mais uma epifania se desenrola. Sempre
distraído, o menino, que organiza sua fala costumeira quase ignorando os
verbos, “não ligando as coisas entre si”, para o espanto da moça, num
“tom” diferente e “sem pedir nada”, chama-a: “mamãe!”.

O RELANCE CRUCIAL

Distinta da palavra dos adultos que buscam ardis para não formular a
palavra esperada pelo outro, a da criança vem à luz sem simulação,
comovendo a mulher, que se pergunta a quem deveria relatar o
acontecimento e de que modo o faria. A solução seria mudar a forma e
hipóteses aparecem. Catarina contaria que a criança dissera “mamãe, quem
é Deus?”. Ou “mamãe, menino quer Deus”, refletindo, ainda, que “sua
mentira” se mostra necessária e, inesperadamente, ri “de fato para o menino
não só com os olhos”, mas seu “corpo todo” ri, “quebrado, quebrado um
invólucro, e uma aspereza aparecendo como uma rouquidão” (p. 116).
A cena é plena de sugestões primordiais. Para a personagem, junto ao
filho, desponta o valor do simbólico, da linguagem, da palavra pronunciada,
reveladora de uma troca afetiva sem disfarce ou negação. O filho a nomeia,
levado pelo desejo (não sabido?)5 de constatar seus elos com a mãe, num
tom inexplicável textualmente, porém carregado de sentido afetivo para ela,
que, de súbito, percebe a existência do menino pelo ato da fala e os vínculos
de parentesco entre ambos se constituem com a “verdade” possível,
engendrando-se de maneira diferente daqueles estabelecidos entre ela e
Severina. Aqui não há mais a “palavra em espera”. A criança a enuncia.
Não por acaso, em meio às conjecturas, relativas à ideia de comunicar aos
demais a “mentira” sobre a invocação recebida, Catarina declara fugir da
mãe. Imaginariamente, acredita que Severina deva estar fora de tais
relações; paradoxalmente, a “velha” senhora não está. Embora negada, sua
presença foi determinante para que a filha percebesse sua própria história,
que não prescinde do passado, nem do desejo de seu lugar e função singular
como mãe.
Há, ainda, as questões forjadas pela moça, que subvertem a fala do
menino. Mais uma vez, surge o deslocamento, contínuo ao longo da
narrativa. Certa de que não poderia explicar todas as faces afetivas da
evocação “mamãe”, só apreendida por ela, a personagem desvia tal dizer,
incorporando a ele perguntas relativas a Deus. E sua escolha suscita várias
leituras. Uma delas poderia sugerir a ideia da unidade de Deus, próxima ao
sentimento de união com o filho, experimentada na gestação e revivida,
imaginariamente, nesse momento? Só a imagem do Absoluto daria conta de
tal sensação? Mais hipóteses surgem ainda: a criação da palavra ganharia
traços divinos, daí sua contiguidade com Deus?6 A alusão ao Verbo não
seria também a forma de a moça religar o filho com o processo da
linguagem já que, literalmente, ele “falava como se desconhecesse verbos”?
7
A palavra não reatualizaria o instante da concepção de um ser e, para tal
feito, só seria compatível a presença Daquele que, na tradição judaico-
cristã, criou os seres e a mãe se identifica com Ele, pois, em ponto menor,
ela também gera um ser, cabendo à palavra do filho marcar esse feito?
Por outro lado, tais associações poderiam conter outra e fundamental
indagação: no imaginário de Catarina, Deus não constituiria o pai
idealizado, onipotente, protetor e perfeito substituto de Antônio para o filho,
uma vez que o marido se caracteriza como o pai simbolicamente ausente,
fora da cena com a criança? Esta, ao enunciar a palavra “mamãe”, marca
sua presença no simbólico, acionando tanto a função materna, como,
indiretamente, a paterna, pois também Antônio é responsável pela entrada
do filho no mundo da cultura e, mais precisamente, no simbólico. E, nessa
elaboração, surge a pergunta intrigante desde Freud: “o que é um pai?”. O
que ele transmite? Qual sua posição nesse lugar? Clarice tentará perseguir a
resposta, na parte final do conto, enfocando os conflitos da personagem
masculina, sua dificuldade em assumir tal posição, o desamparo e a
angústia que ele projeta no filho, visto pela janela, “fora de seu alcance”.
Vale aqui evocar uma das hipóteses de Lacan, segundo a qual o único a
responder completamente por tal posição, enquanto pai simbólico, “é aquele
que poderia dizer como o Deus do monoteísmo: Eu sou o que sou”.8 já que
a ninguém mais é dado pronunciar a frase e Antônio trata a função paterna a
partir de inquietações como filho de um pai “morto”, conforme se
depreende de suas projeções. Não por acaso, Catarina o destitui de tal
função, ao evocar Deus e desviar o discurso da criança, reconstruindo outro,
peculiar a seu desejo, com a incorporação da palavra esperada (mamãe)
para concluir: “Só em símbolos a verdade caberia, só em símbolos é que a
receberiam”. Deus ocuparia, plena e imaginariamente, a posição de pai
simbólico para o menino, na perspectiva da mulher.
Voltando à fala do filho, esta é, sem dúvida, uma revelação inusitada e
quem responde pela mãe é seu próprio corpo. O riso, “de fato”, ocorre
agora no lugar, sem tampouco abandonar os olhos, porque o corpo todo ri
por ela; e, paradoxalmente, quebrado. Bem-vinda, a metáfora sublinha a
ruptura com uma espécie de revestimento que envolve seu corpo e alma
(inseparáveis), levando à indagação: do que se protege Catarina? E para
quê? Ao longo do texto, observa-se, pelas reflexões do marido, seu papel
como esposa de engenheiro bem-sucedido: tranquila, calada, sempre atenta
ao “apartamento arrumado, onde ‘tudo corria bem’”, para que o
companheiro, “cheio de futuro”, obtivesse mais sucesso econômico-social.
Também paradoxalmente, ela o ajudaria a conseguir “e odiaria o que
conseguissem” (p. 118).
Tais imposições sociais não questionadas dessa típica esposa burguesa
dos anos 1960, no Brasil urbano, aliam-se a certa transmissão dos traços
paternos. Severina (a severa) parece ter sempre lhe negado a “palavra
esperada” sobre o amor, as relações conjugais e a existência; já seu pai,
embora evocado afetivamente, surge apenas em uma passagem como
cúmplice da dissimulação diante da mãe, sugerindo quase uma ausência de
voz. Assim, o dado social, a rede familiar e o casamento padronizado criam
o “invólucro” que parece inibir a moça de seguir um caminho próprio. Vale
destacar que o movimento feminista, no país, foi muito gradativo; basta
observar que apenas em 1932 é garantido o sufrágio feminino. E, mais
espantoso, só na Constituição de 1988, no que concerne ao Direito de Família,
o homem deixou de ser “o chefe da sociedade conjugal”, podendo ambos
exercer “direitos e deveres […] de igual forma”.
“Os laços de família” veio a público em 1960 e, entre essa década e a de
1970, eclode a “revolução sexual”; contudo, muito da educação conservadora

de séculos persiste, refletindo-se na personagem que representa anos


anteriores e um pouco dos vindouros, sem menções temporais claras. Um
exemplo se encontra em sua submissão ao pudor, exigido à grande parte das
mulheres, ao evitar ser vista nua pelo parceiro, atitude aceita entre quatro
paredes e no escuro, isto é, o recato impede o abandono do corpo ao olhar
do marido.9 E, mais, é ele quem relata o episódio, confessando entrar no
quarto enquanto Catarina troca de roupa para humilhá-la, sem saber por que
o faz. Uma resposta estaria no desejo de manter o poder sobre ela,
estendendo a dominação econômica ao que a companheira tem de mais
íntimo e exclusivo, seu corpo, marcado por imposições da moral e da
educação tradicionais.
Dessa perspectiva, a fragmentação metafórica suscitada pelo filho
permite a Catarina, ainda que sugestiva e momentaneamente (em Clarice, o
relance é sempre crucial!), livrar-se das amarras sociais, suspender, em
parte, os deslocamentos que a regem — o riso volta a seu lugar — e
reconhecer (sem o dizer) seu desejo. Entrevê-se, aí, a possibilidade de
mudança. A demanda de reciprocidade amorosa da criança obriga a
retribuição do afeto e a mãe o faz por meio do rubor e do ato que substitui a
“palavra esperada” (e bem-dita), a saber, o convite desviante: “Vamos
passear”.
Quanto ao marido, a saída de mulher e filho parece desafiadora,
desencadeando inquietude e ruptura (instantânea ou duradoura?) da
composição do casal e desvelando os grilhões dos laços familiares, isto é,
para além da acepção de vínculo, laço contém a de armadilha e prisão.
Antônio considera que sua mulher, em algum momento, doará ao filho
“uma prisão de amor que se abateria para sempre sobre o futuro homem” e
o menino, já adulto, repetiria sua situação, olhando a cena que ele vê pela
vidraça (e se reflete), devendo “responder a um morto”, ou seja, a um pai
fantasmático. Aí estaria a transmissão de gerações?
Ora, Catarina também parece ter sido aprisionada pelos
laços/armadilha do amor materno. De certa forma paradoxais, tais laços
incluem seu pai, embora a maioria das cenas seja centrada em Severina. Em
suma, a palavra do menino, uma espécie de “eu existo” capital, acorda a
moça para sua implicação na função materna, sem que a narrativa o
exponha com todas as letras. Esse despertar gera reações, ao atingir Antônio
que, solitário, começa a perceber seu papel como pai e marido; algo
doloroso e cruel. Num esmerado paralelismo entre as personagens, a última
parte da trama, como em um espelho que reflete a primeira, desvenda o
imaginário masculino, capturado pelos processos de projeção, deformação e
negação. Em construção simétrica, o casal só se desvela graças aos fluxos
de consciência, isoladamente.
Por fim, num ilusório “esquecimento” de seu conflito, Antônio
aguarda o retorno de Catarina, bem como a repetição do cotidiano sem
inquietações, sempre reprimidas. Já a mulher nos escapa, pois, se a cena
com o filho evidencia a impossibilidade de ela formular a palavra de amor
esperada pela criança, essa mesma cena pode ter outra face: a do gesto
inaugural de, repentinamente, tomar o filho pela mão — corpo a corpo, sem
o “choque” vivido com Severina — e, com ele, sair em busca de mais um
paradoxo, o do “mistério partilhado”. Pode-se sublinhar: nem sempre
partilhado, mas que permite puxar aqui o fio da trama de outras figuras
femininas. Vamos a elas.

“DESTINO DE MULHER”

Brevemente, vale recobrar a palavra em espera, o temor de pronunciá-la ou


seu deslocamento por uma cena e/ou frase dissimuladora dos desejos de
personagens que evocam Catarina ou são evocadas por ela, constantes em
“A imitação da rosa”, “Feliz aniversário” e “Amor”.10 Nessas narrativas
destacam-se a repetição, a asfixia do desejo, a palavra “não dita”, o olhar
agudo, a dor de “cair num destino de mulher” e um elemento “disruptivo”
que atingem suas protagonistas, aproximando-as de Catarina, em maior ou
menor grau.
Resumidamente, em “A imitação da rosa”, Laura regressa ao lar ou à
literal “insignificância com reconhecimento” — da dona de casa, vale
acrescentar —, saída de alguma clínica e disposta a retomar o cotidiano
anterior, que, por ironia, combina com as recomendações médicas a
observar: o método tranquilo da mesmice, da imobilidade e do
esquecimento. O narrador, em terceira pessoa, segue o fluxo de pensamento
da personagem e, entre suas lembranças, ressurgem, nos olhos, “o ponto
ofendido” de uma falta “de filhos” ou o “gosto minucioso pelo método”
desde a época do colégio, ao lado da obrigação de controlar a ansiedade
para voltar à “normalidade”.
O conto é exemplar em termos do paradoxo entre a lucidez luminosa e
o automatismo de repetição destruidor, considerado não só um traço
(sintomático?) da mulher, mas, sobretudo, a proposta terapêutica para
retornar à insipidez do cotidiano; a saber, horário do leite, dos remédios,
esquecimento dos conflitos e “do que aconteceu”; em uma palavra,
repressão da angústia, evitando contaminar a quietude alheia, no caso, a do
marido. E, por outro lado, a contradição do conselho curativo de
“abandonar-se”. Ora, nada se enuncia claramente no texto. O leitor não sabe
se Laura esteve em uma clínica psiquiátrica, o que lhe ocorreu ou que a
levou à suposta internação, tudo é insinuado, as palavras precisas ficam em
espera.
Contudo, entra o elemento “disruptivo”: a personagem compra rosas
silvestres, “miúdas”, belas, que a encantam e iluminam sua sala a ponto de
a beleza e a perfeição incomodarem profundamente e ela cogita presenteá-
las para a amiga perfeita com quem deve jantar. Laura o fará, mas o risco da
beleza já se instaurara, assim como o devaneio prazeroso da maneira pela
qual as flores seriam recebidas, opondo-se à hesitação maior de realizar seu
desejo, ficando com as rosas. Há aí uma quebra da rotina e o conflito se
estabelece: ter ou não as flores? Parece pequeno, contudo, é o conflito de
possuir ou não as coisas e ela ainda se impõe mais um: “a uma coisa bonita
faltava o gesto de dar”; porém, para preencher essa falta específica, que
substitui outras, será necessário abdicar da realização do desejo. O perigoso
círculo da repetição se inaugura em outro nível, não mais envolvendo
aspectos da repetição embrutecedora do cotidiano da casa, e, sim, a
repetição movida pelo desejo, despertado pela beleza, encadeando os elos
da perfeição, do prazer de olhar, e gerando o ato de se perder na dúvida
entre o ter e o doar.
Quando o marido volta do trabalho, Laura não está pronta para sair, no
entanto, mostra-se tranquila e “desabrochada”. Como as rosas! “Miúdas” e
“silvestres” (análogas, respectivamente, a seu perfil constrangido e apagado
e a seu corpo sem frutos?). Ela só consegue dizer que não pôde “impedir”.
O quê? Não se sabe. O objeto direto faltante constitui a palavra em espera e
a cena final desloca a possibilidade de que tal palavra viesse a ter lugar.
Laura permanece no sofá com a metáfora paradoxal do narrador, única a dar
conta do que dela não se apreende: “alerta e tranquila como um trem. Que
já partira”. Nova suspensão verbal ocorre, restando a dúvida: impossível de
ser refreada, a personagem partira para onde? Domina o que habitualmente
se designa por “loucura”? Ou domina o que se chamaria de “outra lógica”,
isto é, ceder ao desejo sem as amarras do princípio de realidade? Clarice
nos coloca diante de mais um intrincado paradoxo: qual a mais doída
repetição, a do automatismo engendrado pelas regras sociais das tarefas
cotidianas (aliás, de qualquer trabalhador), das normas sociais e médicas
impostas a Laura ou a de seu desejo singular que pressupõe devaneios,
incluindo o “gosto minucioso pelo método”, presente desde menina, embora
distantes do princípio de realidade? O gozo ou o literal “alívio” da entrega
ao que ela e o marido temem nomear, ou seja, a palavra suspensa. A que
designaria um sintoma? E importa sublinhar que o tal “alívio”, de não mais
se moldar às regras alheias para ser aceita, devendo abdicar da “perfeição”
alastrada “como câncer na alma”, pode ocultar uma parcela de dor, mas
vem ao lado de outra perfeita metáfora para essa mulher que espera o
marido, sentada, “com a serenidade do vaga-lume que tem luz” (e não
controla a própria luz… semelhante a ela), num enredo permeado pelo traço
lírico e dramático, possível graças à arte literária.
Por sua vez, em “Feliz aniversário”, a repetição adentra o modo pelo
qual as personagens chegam à festa de D. Anita, a mãe, avó e sogra que
completa 89 anos. Os convidados teatralizam seus movimentos, pois
cumprem um papel que não lhes agrada. As relações consanguíneas são
substituídas pelas socioeconômicas, a família se divide em classes
diferentes e determinadas pelos bairros do Rio de Janeiro de onde provêm e
ainda, por mero costume da cultura ocidental, cabe a Zilda, a única filha
mulher, cuidar da mãe. É ela, então, a primeira a abafar o discurso que
gostaria de enunciar por sua irritação devido às tarefas gerais, sem a
contribuição dos demais. A fala contida se desloca para seu “coração
revoltado”. Além disso, Zilda teme a reprovação dos parentes sobre uma
cena em que D. Anita cospe no chão. Nesse momento, há uma inversão de
papéis e, envergonhada, a filha acredita ter por função educar a mãe.
A cuspida configura-se o resultado da “cólera” da velha senhora,
depois da reflexão não explicitada, mas, metaforicamente, expelida do
corpo pela boca, mesmo lugar da fala reprimida. A aniversariante acaba de
repensar a vida e a geração de filhos, netos e bisnetos, avaliando sua época,
seus valores e os da família, sentindo “desprezo pela vida que falhava” e se
espantando com o fato de que seu “tronco” bom dera frutos “azedos e
infelizes”. Em seguida, sufocada pela raiva, suspende a palavra precisa e a
substitui pelo pedido de um “copo de vinho”. Significativamente, D. Anita
não bebe o vinho, pois ele está no lugar de outro desejo e sua função é
justamente a verbalização da demanda para chocar os parentes que já não a
consideram adulta e lúcida.
Nessa narrativa, “a verdade” (ou parte dela) se desloca de tal forma,
que só a constatamos em Cordélia, a nora mais moça. Observadora e
silenciosa, ela se manifesta pelo olhar e expressões distintas: sorri, olha
esbaforida, “ausente diante de todos”, “espantada”, “estarrecida”, para a
aniversariante, até atingir o instante “disruptivo” no qual captura, “num
ímpeto dilacerante”, o ‘dizer’ mudo da sogra: “É preciso que se saiba. É
preciso que se saiba. Que a vida é curta. Que a vida é curta”. O narrador
recupera o clichê e o rearticula, quebrando a sintaxe e obrigando o leitor a
reelaborar duas vezes a oração para lhe dar sentido. E isso num relance.
Forma ímpar de se obter a verdade?
Os dois contos, cada um a seu modo, comportam a repetição, elemento
importante em “Os laços de família” e Laura, Zilda, D. Anita ou Cordélia
são capturadas pelos laços-prisão, não conseguindo exprimir pelo verbo o
que sentem, trocando-o por um gesto ou discurso desviante, reprimindo
seus desejos. No entanto, uma ruptura ocorre nessas personagens, apenas
Zilda permanece refém das armadilhas familiares. Na ruptura das demais
atua, sobretudo, a força do olhar, que substitui igualmente a palavra
suspensa: em Catarina, ele é responsável por sua subversão criativa; em
Laura, o olhar desvela o desejo diante das rosas; em D. Anita, suas piscadas
o substituem, denunciando ainda seu “sopro” de vida; em Cordélia, ele
captura, gradualmente, o estranhamento frente à indiferença de todos
perante a velhice e a brevidade da existência. Em todas, instaura-se a
solidão.
Por fim, em “Amor”, Ana também não escapa de tais armadilhas e cai
“num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse
inventado”, pois, bem casada, dedicada a marido e filhos, esquece “seu
desejo vagamente artístico” para dele lembrar apenas quando, de um bonde
parado, observa um cego mascando chiclete e seu movimento reiterado de
parecer “sorrir e deixar de sorrir”. De repente, o bonde arranca e seu saco
de compras cai, assustando-a. Aqui, a experiência de repetição de Ana
aproxima-se à de Catarina. Só que, agora, a repetição se instala na imagem
do cego, aquele que não vê, mas faz Ana ver, e a arrancada do bonde
substitui o “desastre irremediável” do táxi da personagem da outra
narrativa, choque responsável por desatar alguma liberação dos elos entre a
moça e sua mãe. Estendendo-se a imagem, o bonde é deslocado pelas rosas
em Laura e pela velhice que ultrapassa o ser em Cordélia.
São momentos desencadeadores de fraturas e mudanças. Cada mulher
reage a seu modo e Ana vai para o Jardim Botânico, onde depara com um
universo inusitado. Se todas tentavam apaziguar a vida, conforme se lê em
“Amor”, para que “esta não explodisse”, sem dúvida, não o conseguem: a
vida explode! E, em todas, a palavra sobre o futuro permanece suspensa.
Com Ana, a “flama do dia” se apaga como uma vela — que pode
reacender? O marido de Catarina espera seu regresso. De que modo será?
Laura parte “como um trem”. Sem retorno? Cordélia se deixa levar pela
mão do filho… Para onde? Não se pode ignorar que os contos revelam
paralelismos sutis. Os desenlaces de Catarina e Ana não significam que elas
voltem a seus cotidianos anteriores. Para Ana, fica a pergunta: “O que o
cego desencadeara caberia nos seus dias?”. Para Catarina: quebrado o
invólucro e partilhado o mistério entre ela e o filho, bastariam o jantar e o
cinema rotineiros, com o marido, para apagar a revelação do dia? Seus
pensamento e voz ficam suspensos. A incerteza do leitor se estende ao
destino dessas mulheres. No entanto, resta o encontro com certa verdade de
si mesmas, verdade singular, instantânea, nunca toda, mas fundamental para
se constituir como barreira ao esquecimento do próprio desejo. Logo,
Clarice acerta ao elaborar relances da “verdade” de formas distintas e
acesso surpreendentemente reveladores nos desvios de uma linguagem que
desarranja seus universos estereotipados, rearticulando-os pela força do
engenho da palavra, seja ela presente ou ausente…

NOTAS
1. Todas as citações referentes a essa narrativa estão em Clarice Lispector, Laços de família., 10. ed.
Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, pp. 109-20.
2. Cf. Sigmund Freud. “Recordar, repetir e elaborar” (1914). Observações psicanalíticas sobre um
caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”). Artigos sobre técnica e outros
textos (1911-1913). São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 201.
3. Cf. Sigmund Freud. “O humor” (1927). Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e
outros textos (1926-1929). São Paulo: Companhia das Letras, 2014, p. 330.
4. Cf. Sigmund Freud. “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905). Obras completas. Rio
de Janeiro: Imago, v. VIII, 2015, p. 150.
5. Há sempre algo que pensamos não saber, pois quem “sabe” é o Outro, o Inconsciente, que tem
lógica própria e “pensamentos”, sabendo o que acreditamos ignorar. Contudo, esse algo ignorado
pode aflorar a qualquer instante, no que a psicanálise nomeia “formações do inconsciente”, ou seja,
nos sonhos, lapsos, atos falhos etc. ou na fala “imprevista” do semelhante. No conto, é o chamado do
menino o responsável pela produção do choque na mãe, que, repentinamente, captura o novo sentido
de sua função materna. Sobre o assunto, ver Jacques Lacan. Le séminaire. Les formations de
l’inconscient. Paris: Éditions du Seuil, 1998.
6. Não se pode esquecer a afirmação bíblica:
“No princípio era o Verbo e o Verbo estava junto de Deus, e o Verbo era Deus.
Ele estava no princípio junto de Deus.
Todas as coisas foram feitas por meio dele […]
Nele estava a vida e a vida era a luz dos homens”.
(Bíblia Sagrada. Trad. dirigida pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma. Prólogo. (Jo 1,1-4).
São Paulo: Ed. Paulinas, s./d.)
7. Agradeço à Suely Corvacho pela discussão dessa ideia e à Amanda Herane pela atenta revisão.
8. Ver, sobre o assunto, Jacques Lacan, “Le séminaire livre IV”, La relation d’objet. Paris: Éditions du
Seuil, 1994, p. 210. Vale ressaltar que não se enfocou, minuciosamente, as questões do nome-do-pai,
ligadas às instâncias paternas (Real, Imaginário e Simbólico), sempre entrelaçadas, em vista da
concisão do artigo.
9. Ver, sobre o assunto, Mary del Priore. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do
Brasil. São Paulo: Planeta, 2011, p. 177.
10. Os três contos aqui mencionados compõem a edição de Laços de família citada no início.
Convém esclarecer que, sob outra perspectiva, “Amor” e “Feliz aniversário” já foram relacionados a
“Os laços de família” por Nádia Gotlib (“Os difíceis laços de família”. Cadernos de pesquisa. São
Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 91, nov. 1994, pp. 93-9.)
* Este ensaio foi ampliado, com alterações, em “Laços de família: A palavra em espera”, texto no
qual, além das personagens femininas aqui enfocadas, a figura masculina, bem como o paralelismo
composicional com sua mulher são contemplados mais alongadamente.
A coisa social*
JOSÉ MIGUEL WISNIK

Num depoimento curto, lúcido e nu, chamado “Literatura e justiça”, Clarice


Lispector expõe sua culpa por não tratar a “coisa social”, em seus escritos,
com a contundência que lhe é devida.1 Por que não escancarar a miséria e a
injustiça, pergunta-se ela, por que não combatê-las explicitamente, por que
não vocalizar a indignação, se o sentimento de revolta diante dos
mocambos em Recife, assim como “a beleza profunda da luta”, anterior
mesmo à descoberta da “arte”, foram a sua “primeira verdade”?
A resposta está contida na pergunta: é exatamente porque essa verdade
já lhe é conhecida, porque é a premissa inerente à sua relação com o
mundo, que não será a razão de ser de sua escrita. Também não é um fim,
nem se converte num programa temático, porque consiste no próprio
postulado de seu confronto com o real da vida coletiva: “O problema da
justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me
surpreender com ele — e, sem me surpreender, não consigo escrever”.
A declaração expõe o fato, aliás, evidente, de que, para Clarice,
escrever não se resume a dizer o que se acha de alguma coisa mas, ao
contrário, de achar o que se diz da coisa ou, mais propriamente, de achar o
dizer da coisa, no sentido forte de sua “coisidade”, isto é, daquilo que
“recusa e resiste”, na obscuridade da existência, à sua captura “pela
instrumentalidade humana”.2 Em outras palavras, aquilo que “interpela o
sujeito sem se deixar nomear; que se volta enigmaticamente para quem se
volta para ele; que resiste a ser apreendido, designado, significado”.3 Pode
ser o ovo, a barata, ou tantas outras coisas, mas não é sem consequências,
em se tratando dessa escritora, que ela se refira à questão da injustiça
usando, mesmo que quase casualmente, a expressão “coisa social” [o
destaque é meu].
Ao afirmar que não há uma passagem automática da demanda por
justiça à sua problematização literária, Clarice estava dando uma resposta
estratégica, sem deixar de ser sincera, às cobranças por engajamento feitas
aos escritores e escritoras no início dos anos 1960. Ela não o diz nesses
termos, mas a exigência de empenho social vinha geralmente empacotada
em noções políticas que pressupunham a literatura como uma espécie de
fábula com mensagem. Aqui, ela desvencilha-se dessa armadilha
afirmando, de maneira inesperada, a anterioridade radical do político em
relação a tudo, inclusive à arte. O mal-estar social — o choque da menina
ante os mocambos no Recife — é a “primeira verdade”, a fratura exposta,
gritante e inalcançável de tão real. A seu modo, a crônica recusa
transformar esse mal-estar numa mistura de boa consciência com má
literatura. Isso, essa coisa inominável de tão óbvia e tão entranhada na
experiência traumática da cidade, grita por si só e cala em si mesma,
exigindo outras estratégias de dizer, como veremos.
Entenda-se também que esse lugar conflituoso, em que Clarice
Lispector se coloca, está longe de ser assumido como prerrogativa de uma
superioridade qualquer sobre alguém. Ela se atormenta ao confessar que
não sabe “como se aproximar de um modo ‘literário’ (isto é, transformado
na veemência da arte) da ‘coisa social’”; ao afirmar que não consegue
extrair surpresa do sentimento de revolta ante a injustiça (pois esse
sentimento é uma de suas raras certezas); e ao não poder contribuir com
ações consequentes para a luta política, pois o ofício de escrever, até onde
ela alcança, não dispõe dessa capacidade (e porque ela mesma se perderia
“ignorantemente” nos domínios da política, caso se aventurasse por aí).
“Literatura e justiça” é, assim, uma declaração de impotência que
envolve a culpa, a dor, a vergonha e a humilhação de não corresponder na
justa medida à certeza de que a ordem social se constitui sobre o erro.
Vergonha de não saber, de não conseguir e de não poder, mas nenhuma
vergonha por escrever: envergonhar-se de escrever, diz ela numa última
ironia, seria pecar por orgulho — dar importância demasiada, talvez, a si
mesma. Muito mais que isso, fica implícito nessa passagem que culpar-se
pela aparente irresponsabilidade da escrita seria trair o compromisso, que
lhe é inerente, de dar voz ao difícil, de nomear o não nomeado e o não
nomeável.
Engana-se, pois, quem pensar Clarice como uma escritora desligada da
inquietude e do fervor social, supostamente mergulhada nos desvãos
existenciais e psicológicos de uma obra da qual a dimensão política estaria
ausente. O que acontece é que o sentimento da injustiça está pulsando,
sempre visceralmente, e com a “veemência da arte”, justamente ali onde é
menos esperado.
Tomemos por exemplo o famoso conto “Amor”, coração do livro
Laços de família, no qual Ana, dona de casa, esposa e mãe, é arrebatada, em
meio à rotina das compras domésticas, por um surto visionário que a
desencaminha para um estado de graça e de náusea, levando-a ao recesso do
Jardim Botânico. Ali onde “tudo era estranho, suave demais, grande
demais”, onde ruídos, cheiros e os menores movimentos se intensificam,
fazendo em surdina seu “trabalho secreto”; ali onde frutos, caroços, flores e
raízes persistem e apodrecem em nojo e fascínio; ali onde “a crueza do
mundo era tranquila”, onde “o assassinato era profundo” e “a morte não era
o que pensávamos”; no meio desse lugar em que o Jardim do Éden confina
com o Inferno, a revolta irrompe de dentro, de repente, numa golfada:
“Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a
náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada”.4
O gozo das propriedades sensíveis das coisas, muito mais que
contemplativo, guarda um componente convulsivo — em meio a ele, a
lembrança da miséria no mundo vem como um quase-vômito. A sensação
física da injustiça da desigualdade se descobre, pois, para a personagem, no
âmago do Jardim Botânico — esse lugar de poder cujas intensidades
desencadeadas antecipam, aliás, as do quarto de Janair em A paixão
segundo G.H. Aquilo a que ela aspira dizendo-se impotente, em “Literatura
e justiça” — aproximar a “coisa social” da “veemência da arte” —,
acontece de fato, aqui: o mal-estar social coincide com a coisidade exposta
do mundo, e o faz com a força do inesperado. Em Clarice, isso se dá sem
que se tire o corpo fora: a existência de crianças e homens famintos bate em
cheio nessa mulher que se percebe de repente como que “grávida e
abandonada”.
Sintomaticamente, a primeira crônica, entre as centenas que ela
escreveu durante sete anos para o Jornal do Brasil, vai ao nervo da
mesmíssima questão:
Não posso. Não posso pensar na cena que visualizei e que é real. O filho está de noite com dor
de fome e diz para a mãe: estou com fome, mamãe. Ela responde com doçura: dorme. Ele diz:
mas estou com fome. Ela insiste: durma. […] Ele insiste. Ela grita com dor: durma, seu chato!
Os dois ficam em silêncio no escuro, imóveis. Será que ele está dormindo? — pensa ela toda
acordada. E ele está amedrontado demais para se queixar. Na noite negra os dois estão
despertos. Até que, de dor e cansaço, ambos cochilam, no ninho da resignação. E eu não
aguento a resignação. Ah, como devoro com fome e prazer a revolta.5
“Cena que visualizei e que é real”, diz ela. Trata-se, bem entendido, de
uma projeção imaginária (cena mental, no sentido de que não é vista, e sim
visualizada), mas ao mesmo tempo real (considerando que real é o que não
dá pra não ver, mesmo que não se esteja vendo). Cena que salta à mente,
incontornável, e que, condenada à “resignação”, não desaparece nem se
resolve, retornando como espectro. Na passagem, a indignação acaba
devorada com volúpia feroz por esta que, negando-se à resignação, mas
condenada à impotência, vinga-se da fome refestelando-se na substância da
revolta, num ato autofágico.
O livro A hora da estrela se escreve todo “em estado de emergência e
de calamidade pública”, por dentro do mal-estar de classe que é dele, meu e
teu, como se infere do pronome na primeira pessoa do plural que termina
esta frase: “A dor de dentes que perpassa esta história deu uma fisgada
funda em plena boca nossa” [o destaque é meu].6 Mesmo nos momentos em
que não dói no nervo, o incômodo de fundo não abandona a narrativa, para
cuja apreensão importa saber que “esta é acompanhada do princípio ao fim
por uma levíssima e constante dor de dentes, coisa de dentina exposta”.7 O
narrador, Rodrigo S. M., é convocado “na verdade [por] Clarice Lispector”
para dar conta de colocar no papel da página a graça despossuída da moça
pobre nordestina que, em algumas noites, come papel para encher o
estômago. Nas palavras do livro: “Às vezes antes de dormir sentia fome e
ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era
mastigar papel bem mastigadinho e engolir”.8 Nesses dois papéis — o de
escrever e o de comer, o papel do escritor ante a narrativa impossível e o da
datilógrafa inepta e pobre que o usa para driblar a fome — projetam-se
destinos à primeira vista inconciliáveis, que a narrativa cruzará, ao fazer de
cada um o outro do outro: “Vejo a nordestina se olhando ao espelho e […]
no espelho aparece o meu rosto cansado e barbudo. Tanto nós nos
intertrocamos” [o destaque é meu].9 A hora da estrela é a seu modo uma
amplificação extremada daquela “primeira verdade” traumática — o mal-
estar diante do mal social, a miséria dos mocambos na cidade da infância
—, atazanando ad infinitum e ad nauseam em espasmos intermitentes.
O escritor-fantasma da autora (se não for o contrário) identifica-se
como um desclassificado que, não se reconhecendo nem sendo reconhecido
por sua classe social, só se reconhece nessa outra da qual está radicalmente
apartado (“a classe alta me tem como um monstro esquisito, a média com
desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca vem a
mim”).10 Ao escrever, ele não poderá “enfeitar a palavra”, ostentando queira
ou não as prerrogativas do estilo, sob pena de, tocando no pão da moça,
transformá-lo em ouro — “E a jovem não poderia mordê-lo, morrendo de
fome”. A relação narrativa com esta outra radical não se inicia sem passar
por um rito expiatório em que o narrador busca fundar uma periclitante
ética da escrita, falando de dentro de um poço de contradições: “Tenho
então que falar simples para captar a sua delicada e vaga existência. Limito-
me humildemente — mas sem fazer estardalhaço de minha humildade que
já não seria humilde — limito-me a contar as fracas aventuras de uma moça
numa cidade toda feita contra ela”.11
Mas nada se compara, em matéria de testemunho, ou em termos de
uma anatomia política da própria ideia de justiça, à crônica de junho de 1962,
encomendada pela revista Senhor, a propósito da morte de José Miranda
Rosa, o bandido conhecido como “Mineirinho”, caçado e morto com treze
tiros no final de abril daquele ano, conforme amplamente noticiado na
ocasião (treze tiros inauditos para a época, embora tão distantes da escala a
que fomos obrigados a nos acostumar).12 Tratava-se, na verdade, da cena
inaugural de um novo estágio da violência brasileira, em que o confronto
armado entre forças policiais e banditismo urbano ganhava os meios de
massa, pendulando entre o registro das ocorrências e o sensacionalismo. De
um lado, um banditismo ainda longe de se tornar crime organizado,
concentrado na figura individual e algo romantizada do bandido; de outro,
uma ação policial que evidenciava adotar métodos parapoliciais mal
disfarçados.
Os principais jornais do Rio (Diário Carioca, Diário de Notícias,
Correio da Manhã) reportavam, no primeiro dia de maio de 1962, que
Mineirinho fora morto na região central da cidade e desovado, para usar a
expressão que se tornaria comum, anos depois, na estrada Grajaú-
Jacarepaguá. Fugira do Manicômio Judiciário no dia 23 de abril, prometendo
só se entregar morto; baleara dois policiais num entrevero em Tomazinho e,
pego de surpresa na rua General Pedra, “nas fraldas do Morro do Pinto”,
fora executado quando tentava reagir, já baleado e tombado sob um ônibus
estacionado na rua. “À primeira rajada ‘Mineirinho’ caíra sob o ônibus,
ouvindo-se uma voz ordenar: ‘Mate logo’.” Três homens portando
metralhadoras usadas pelas Forças Armadas e pela polícia, identificados
pela reportagem como os detetives Daniel, Guaíba e Malvadeza,
“apanharam o cadáver e o colocaram dentro de um carro pequeno, tipo
‘Volkswagen’, de cor amarela, que desapareceu em disparada”, segundo
testemunho de populares.13
Um texto de cunho editorial, publicado na primeira página do Correio
da Manhã sob o título de “A cidade está em paz”, dá a medida das questões
que embaraçavam a opinião pública diante do atropelamento da justiça
formal pelo justiçamento sumário — justiçamento que se escondia sob a
capa de uma cena de morte visivelmente forjada. O texto deixa ver,
também, um sinal da reação popular à morte do bandido (que portava,
segundo os jornais, a aura de Robin Hood do morro, que era devoto de são
Jorge e em cujo bolso foi encontrada, segundo informa a reportagem do
Correio da Manhã, a oração “Cinco minutos diante de santo Antônio”):
Não foi a justiça quem decretou a morte do mais temível assaltante do Rio de Janeiro […]. Ele
próprio a procurou, desafiando a tranquilidade pública e um aparelhamento policial cujas
metralhadoras sabia não lhe dariam trégua. Carregando 104 anos de prisão, o facínora ainda
brincou pelas ruas e favelas da cidade durante dias, assaltando e baleando — que estas eram
sua razão de viver. Não há pena de morte, muito menos os policiais têm carta de legítima
defesa permanente, para matar sem dar as devidas satisfações. Seja a vítima da mais alta
periculosidade. Daí seu corpo ter sido manhosamente transportado para local ermo, numa
prova de que nem sempre os detetives sabem despistar. Mas isso é outra história. “Mineirinho”
acabou para a crônica policial. Seu corpo, como outro qualquer, só mereceu do popular que
aparece na foto o gesto de retirar o chapéu de sobre a cabeça, em sinal de respeito. Em sinal de
respeito aos leitores, também evitamos focalizá-lo varado pelas balas.14

O artigo é bastante sintomático do desconforto provocado pelo duplo


movimento de intervenção e despiste que identifica na ação dos policiais,
mas que se vê levado a redobrar em seu próprio discurso. Reconhece a
ilegitimidade da execução (“não há pena de morte, muito menos os policiais
têm carta de legítima defesa permanente, para matar sem as devidas
satisfações”), reporta a simulação da cena do crime, “manhosamente”
plantada pelos agentes da lei, mas justifica ao mesmo tempo a necessidade
do ato sumário, dado como imposto pelos fatos. A incongruência entre a
ordem jurídica e o justiçamento fica na conta da “outra história” (“mas isso
é outra história”), que cabe à esfera pública silenciar. Registra ainda o gesto
nobre do homem popular na fotografia, que parece dispor da civilidade
humilde de um poema de Manuel Bandeira, ao tirar o chapéu em respeito
ao morto; e finaliza a matéria evitando estampar o cadáver “varado pelas
balas”, como se fechasse aos olhos do respeitável público a janela “de
frente pro crime” (lembrando aqui a canção de João Bosco e Aldir Blanc).
O pronunciamento jornalístico exemplifica bem a posição dúbia e
prenhe de consentimento contra a qual Clarice levantará sua revolta
articulada ponto a ponto. Se nele se entremostrava e recalcava o novo real
da cena urbana no Brasil — a um só tempo exposto e ocultado —, a crônica
é um libelo inequívoco contra a pena de morte tácita contida na execução de
um homem acuado, ao mesmo tempo em que uma reavaliação radical do
sentido de justiça, medida em suas consequências de longo alcance. A
argumentação atesta em registro literário a formação da autora em direito,
sem deixar uma palavra solta e, mais uma vez, sem tirar o corpo fora. Com
“Mineirinho”, Clarice Lispector tornava-se provavelmente a primeira
pessoa pública a acusar os justiçamentos policiais e parapoliciais que se
converteriam em norma na montante da violência brasileira, desmascarando
a sua lógica interna.
Por que dói — “está doendo” — “a morte de um facínora”?, pergunta
ela, de início. Por que os treze tiros que o mataram parecem pesar mais,
nela, que o número de seus crimes? Como nos dois pratos de uma balança,
de um lado encontram-se os crimes evidentes de um marginal matador e, de
outro, os tiros de agentes da lei convertidos em bando de matadores. O
argumento segue uma dialética vertiginosa: a lei não pode se tornar
criminosa ante o criminoso, pois, se sua prerrogativa é a de se contrapor ao
crime, exercendo seu poder de punir, o crime dos agentes da lei é ainda
mais inadmissível que o do criminoso, ao forjar o lugar do impunível,15 o
que a levará a acusar uma inversão de sinais, produzida paradoxalmente
pela ação policial: “Na hora de matar um criminoso — nesse instante está
sendo morto um inocente”.
O julgamento se desenrola no foro íntimo da cronista, que se assume
como “um dos representantes de nós” — representando esse “nós”, por sua
vez, a introjeção da esfera pública representada por sua classe. Por isso
mesmo, submete a questão ao testemunho de alguém de fora dessa ordem: a
cozinheira que trabalha em sua casa, a quem pergunta o que pensa sobre o
assunto. Esta, mexida na sua alma pela interrogação difícil, vivendo “a
pequena convulsão” íntima de um conflito entre “sensações contraditórias”,
e o mal-estar por “não saber como harmonizá-las”, afirma, com alguma
raiva da patroa, que aquilo que sente “não serve para se dizer”, pois, se
Mineirinho era inegavelmente criminoso, certamente terá entrado a salvo no
reino do céu. As duas mulheres, sugere o texto, concordam em que
“Mineirinho era perigoso e já matara demais”; e, não obstante, “nós [elas] o
queríamos vivo”. Sofrendo a impossibilidade de decidir a questão no plano
terreno, onde a violência se consuma, a mulher pobre encontra a redenção
para seu mal-estar no plano da justiça divina, no qual, acrescenta a patroa,
devolvendo a questão à terra, o criminoso entraria em glória “mais do que
muita gente que não matou”.
É sabido, diz ela, que “a primeira lei” — “não matarás” — é “a minha
maior garantia: assim não me matam, porque eu não quero morrer, e assim
não me deixam matar, porque ter matado será a escuridão para mim”. Sob o
império dessa lei, que implica inexoravelmente o eu e o outro, escrutina os
treze tiros do fuzilamento numa escalada vertiginosa:
Há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança,
no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de
vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo
minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo
segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro.
Porque eu quero ser o outro.

Indo do alívio de segurança (pela suposta eliminação do perigo) ao


estado de alerta, ao desassossego, à vergonha, ao horror, ao tremor, ao
espanto prostrado ante o silêncio divino e ao apelo ao irmão ausente, a ira
sagrada desemboca na identificação radical com a vítima, o sujeito-objeto
da caçada: “O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro.
Porque eu quero ser o outro”.
Muitos anos depois, perguntada, naquela que foi sua última entrevista,
sobre o que escolheria destacar entre tudo o que escreveu ao longo da vida,
ela cita dois textos: “O ovo e a galinha” e “Mineirinho”, lembrando
especificamente deste parágrafo. Dá um testemunho inequívoco, assim, do
alcance de sua “revolta enorme” e do lugar que ocupa, na sua escrita, o ato
de converter-se em outro: “eu me transformei em Mineirinho”, diz ela na
entrevista. Diz ainda da “prepotência” e da “vontade de matar” mal
disfarçadas no suposto cumprimento da justiça, pensamento que, na
crônica, aparece formulado de maneira cristalina e fulminante: “Na hora em
que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo
eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um
longamente guardado”.
A argumentação se apoia na distinção cortante entre duas formas de
justiça. Uma é a “justiça estupidificada” a que aderimos, enquanto “sonsos
essenciais”, para que ela proteja nossos privilégios e não permita que se
abale o chão sobre o qual assenta a nossa casa:
“Para que minha casa funcione, exijo de mim […] que eu não exerça a
minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa
estremece. Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o
chão onde nova casa poderia ser erguida”.
A outra é “uma justiça um pouco mais doida”, uma “justiça prévia”
que fosse capaz de ir ao erro primeiro que está na fonte da violência,
espelho do nosso erro, lá onde se encontram o medo, o amor pisado, a fome
de reconhecimento, a falta social de pai, a matéria da vida aberta na carne,
em espanto, placenta e sangue:
“Uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos,
lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem
pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa
cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento”.
Ao longo do texto, a busca por nomear essa segunda justiça lança mão,
repetidas vezes, do recurso à indeterminação da palavra “coisa”, indiciando
algo que só se pode apreender pela borda, algo que precisa ser adivinhado,
captado no movimento inapreensível de sua falta e de sua força originárias.
É “alguma coisa” que a faz ouvir, por exemplo, a mensagem dos treze tiros;
é “uma coisa pura e cheia de desamparo”, “essa coisa que move
montanhas”, que teria que ter sido resgatada em Mineirinho por um gesto
que se antecipasse à perdição; “é uma coisa que em nós é tão intensa e
límpida como um grama perigoso de radium”, “essa coisa” que “é um grão”
ambivalente de violência e amor; “alguma coisa em nós que desorganizaria
tudo — uma coisa que entende” — que desorganiza a coisa social tal como
está posta, “coisa” muito séria diante do homem metralhado, “coisa“ que
não é “o assassino em mim”, mas “o desespero em nós”.
Do primeiro tipo de justiça (abençoada por um deus fabricado “à
imagem do que eu precisar para dormir tranquila”, justiça dos honoráveis
“baluartes de alguma coisa”), Clarice tira consequências implacáveis: tal
disposição mental, cumpliciada com o morticínio clandestino, converte o
sujeito individual, ele mesmo, no equivalente de um bando armado até os
dentes (“se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas
metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade”). Em outras palavras, a
aceitação do justiçamento camuflado, que se implantava na cena urbana
brasileira e que toma para si a prerrogativa de matar a contrapelo de
qualquer lei, converte o suposto sujeito de bem (isto é, aquele sujeito sonso
que, precavidamente, não é doido) em milícia particular manhosamente
introjetada. A análise, exposta com extraordinária lucidez, ilumina a
atualização histórica dessa vocação miliciana, que se nos apresenta hoje de
maneira cabal, no plano real e no plano imaginário, no plano individual e no
coletivo, como incubada no pacto sinistro que a execução de Mineirinho
selava na vida pública brasileira.16
A outra justiça considera que o território de toda casa está disposto
sobre a materialidade áspera e difícil do terreno, “o chão onde nova casa
poderia ser erguida”, território que seria preciso desorganizar para entender,
ou entender para desorganizar. Recusando os eflúvios do “sublime” e as
concessões a uma “caridade vaga”, sentimental e autoconciliatória, a coisa
social diz respeito à destinação social da habitação, lugar onde assenta a
possibilidade de justiça. É isso que entra em jogo na discussão do
assassinato social de Mineirinho.
Um último ponto. Em A paixão segundo G.H. a figura da empregada
doméstica assume um lugar crucial. No romance, uma mulher rica e
independente, morando num apartamento de cobertura em Copacabana e
girando na mesmice inautêntica de seu lugar de classe (tal como ela mesma
o descreve), adentra o quarto vago de Janair, a empregada que deixara o
emprego na véspera, e, na ausência desta, é impactada pela força de sua
passagem por ali: o presumido muquifo da mulher negra e pobre estampa
na parede um desenho seco e cru que parece radiografar a alma e o corpo da
patroa, abalando as estruturas mentais, existenciais e discursivas sobre as
quais esta se move.17 Ali onde supusera reencontrar o “bas-fond de [sua]
casa” — pardieiro habitacional convivendo com “o amontoado de jornais” e
“as escuridões da sujeira e dos guardados” —,18 G.H. depara, na verdade,
com um “minarete” caiado e impecável, um campo energético poderoso
voltado contra ela na forma desse mural quase rupestre, no qual se veem os
contornos a carvão de um homem nu em tamanho natural, de uma mulher
nua e de um cão “mais nu do que um cão”.
O quarto, do qual Janair se apossou com “ousadia de proprietária”,
espoliando-o “de sua função de depósito” e convertendo-o numa clara zona
de poder, cava dentro da habitação um avesso que faz, da empregada
doméstica, a senhora de um império: o império da posse contra o da
propriedade.19 Sem ser a detentora legal do apartamento, ela mostra-se a
dona de fato de seu próprio quarto, enfeitiçando-o.20 A paixão segundo G.H.
instaura, assim, um olhar contundente, a contrapelo, sobre esse fenômeno
arquitetônico e social brasileiro, o apartamento de moradia com cubículo
para a criada — quadrilátero levemente irregular, de uma geometria
anômala e quase imperceptível, no qual ressaltam o colchão crispado, o
guarda-roupa empenado e imprensado contra a cama, exalando um bafo de
galinha, do qual emergirá a barata numa casa de resto “minuciosamente
desinfetada”,21 tudo manifestando ainda a segregação escravista e a senzala
enquistada no prédio de luxo.22 (Como em “Mineirinho”, a questão de fundo
é também, aqui, a da destinação social da habitação.)
Ao empreender a luta pela reintegração da posse ultrajada daquele
rincão de seu apartamento (“procurando apossar-me um pouco mais
daquele enorme vazio”), G.H. se propõe a faxiná-lo, banhá-lo e encerá-lo,
mesmo que “sem nenhuma intimidade” com a tarefa braçal, numa purga
expiatória que tem como alvo primeiro o guarda-roupa.23 Mas é justamente
ao tentar abri-lo (com dificuldade, pois na estreiteza do cubículo a porta se
emperra contra o pé da cama) que G.H. se defronta com a “barata grossa”
que se move lentamente dentro dele, “na meia escuridão”.24
Vale dizer: a barata adentra o romance pela fenda da “coisa social”,
sem prejuízo de abrir-se para a voragem ontológica. Não porque salte para o
símbolo ou para a alegoria, mas porque inflete para a força irredutível da
coisa. Pois, se se constitui na irrupção da coisa, num sentido filosófico, é
também “coisa social” investida da “veemência da arte”: cifra obscura e
metonímica do confronto da patroa com a empregada, na disputa pelo
território. Dito de outro modo, a ação de espoliar o quarto de despejo da
sua função de depósito, por Janair, de torná-lo habitável e potente,
afrontando a condição da subalternidade, corresponde a elidir a utilização
instrumental do outro e a fazer emergir um recalcado social e ontológico do
qual a barata será a manifestação suprema, e sem o que não existiria a
experiência na qual o romance mergulha. Justamente por isso, impõe-se a
G.H. reconhecer que “a barata e Janair eram os verdadeiros habitantes do
quarto”.25
A propósito desse ponto, é preciso assinalar o impacto, na cena
cultural brasileira, do livro Quarto de despejo, lançado em 1960 por Carolina
Maria de Jesus, catadora de papel, lavadeira e moradora da favela do
Canindé, em São Paulo. Ao escrever o testemunho literário de sua condição
de vida, Carolina já espoliava, à sua maneira, o quarto de despejo da sua
função de depósito, fomentando um deslocamento de perspectiva
correspondente, em outro sentido, àquele que levaria Clarice, de maneira
simétrica e em época próxima, a adentrar o universo da empregada
doméstica (A paixão segundo G.H. foi publicado em 1964).26 Uma foto de 1961
mostra as duas escritoras, juntas, por ocasião de um evento em que Clarice
autografava A maçã no escuro e Carolina autografava Quarto de despejo.27
A distância implícita nesse encontro é exponenciada e atravessada, pode-se
dizer, por Clarice: o quarto de empregada em A paixão segundo G.H.,
envolvendo a madame e a serviçal, faz um contraponto sugestivo,
intencionado ou não, com o aparecimento literário da escritora negra, que
anunciava àquela época uma questão micropolítica que se tornou candente
hoje.
Desse encontro fica ainda uma conexão vaga, mas intrigante. É que,
num de seus muitos manuscritos, Carolina anota: “Quando eu trabalhava
como empregada doméstica, se o patrão me despedia, eu deixava um verso
escrito na parede para exasperar as patroas”.28 A anotação ressoa
curiosamente na inscrição de Janair na parede de seu quarto. Pode não
passar de acaso essa dupla ocorrência, de todo modo surpreendente, de
inscrições provocativas deixadas na parede por duas empregadas
domésticas, nos textos das duas escritoras — inclusive porque o manuscrito
de Carolina permaneceu inédito. Mas pode ser também o sinal de uma
conversa entre elas, conversa que não ouvimos e que, mesmo se não tiver
havido, é próprio da literatura, à sua maneira, fomentar por outros meios.
Não cabe dúvida de que uma ligação entre Clarice e Carolina, em algum
nível de manifestação, está inscrita nas paredes de A paixão segundo G.H. É
essa mesma ligação latente que reverbera em dois poemas de Conceição
Evaristo: “Carolina na hora da estrela” (“No meio da noite Carolina corta a
hora da estrela./ Nos laços de sua família um nó/ — a fome”) e “Clarice no
quarto de despejo” (“Clarice no quarto de despejo/ lê a outra, lê Carolina,/ a
que na cópia das palavras,/ faz de si a própria inventiva./ Clarice lê:/ —
despejo e desejos —”).29

NOTAS
1. Clarice Lispector, “Literatura e justiça”. In: A legião estrangeira, Editora do Autor, pp. 149-50.
2. João Camillo Penna. “Das Ding”. Revista Letras, Curitiba, n. 98, jul./dez. 2018, p. 34.
3. José Miguel Wisnik. “Diagramas para uma trilogia de Clarice”. Revista Letras, Curitiba, n. 98,
jul./dez. 2018, p. 296.
4. Clarice Lispector, “Amor”. In: Todos os contos. Rio de Janeiro: Rocco, 2016, p. 151.
5. Clarice Lispector, “As crianças chatas”. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 2019,
p. 23. [Crônica de 19/8/1967].
6. Clarice Lispector, A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 2017, pp. 46-7.
7. Ibid. p. 57.
8. Ibid. p. 64.
9. Ibid. p. 56.
10. Ibid., p. 53.
11. Ibid., p. 50.
12. Clarice Lispector, “Mineirinho”, Todos os contos, pp. 386-90.
13. “Mineirinho foi crivado de balas e atirado no grajaú-Jacarepaguá”. Correio da Manhã, 1o maio
1962, p. 5.
14. “A cidade está em paz”. Correio da Manhã, 1o maio 1962, p. 1.
15. Reflexões agudas sobre o direito e o poder de punir estão contidas em um texto da estudante de
direito Clarice Lispector, “Observações sobre o direito de punir”, publicado originalmente em A
Época n. 1, revista da Faculdade Nacional de Direito, 1941-1944, e recolhido em Clarice Lispector,
Outros escritos (Org. Licia Manzo. Rio de Janeiro: Rocco, 2020).
16. Vale notar que o livro Primeiras estórias, publicado por Guimarães Rosa no mesmo ano, dava
sinais da migração para a cidade do mundo sem lei do sertão. Ver: José Miguel Wisnik, “O
famigerado”. In: Sem receita: Ensaios e canções. São Paulo: Publifolha, 2004, pp. 121-56.
17. Minhas considerações finais sobre o romance se baseiam, em grande parte, em José Miguel
Wisnik, “Diagramas para uma trilogia de Clarice”, em especial pp. 300-3.
18. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 36.
19. A posse contra a propriedade é um tema, ou lema, do direito antropofágico em Oswald de
Andrade, recorrente na Revista de Antropofagia e dando nome ao primeiro capítulo de Marco zero I:
A revolução melancólica. São Paulo: Globo, 2008. Ver, a propósito: Alexandre Nodari, “A única lei
do mundo”. In: Jorge Rufinelli; João Cézar de Castro Rocha. Antropofagia hoje? — Oswald de
Andrade em cena. São Paulo: É Realizações Editora, 2011, pp. 455-83.
20. Eduardo Viveiros de Castro sugere que as imagens desenhadas por Janair “são, entre outras
coisas, um feitiço”, e que G.H. foi capturada e “enfeitiçada por essa empregada negra”. “Rosa e
Clarice, a fera e o fora”. Revista Letras, Curitiba, n. 98, jul./dez. 2018, p. 22.
21. A paixão segundo G.H., p. 46.
22. Antonio Risério anota o fato de que, no Brasil, os dormitórios de empregada doméstica em
apartamentos, em razão de sua área incompatível com as exigências legais mínimas, costumavam
constar falsamente nos processos oficiais de aprovação de plantas como “despensas, depósitos ou
rouparias”. A informação amplia o entendimento do alcance do ato de Janair, quando espolia seu
quarto da função de depósito, com ousadia de proprietária. In: A casa no Brasil. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2019, p. 369.
23. Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., p. 45.
24. Ibid., p. 46.
25. Ibid., p. 48.
26. Em Carolina Maria de Jesus, o quarto de despejo é uma metáfora em escala urbana: “É por isso
que eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes
velhos”. Depoimento recolhido em Quarto de despejo — Diário de uma favelada. São Paulo: Ática,
2014, p. 195.
27. Ver: Nádia Battella Gotlib, Clarice fotobiografia. São Paulo: Edusp/Imprensa Oficial do Estado
de São Paulo, 2008, p. 345.
28. Manuscrito recolhido por Raffaella Fernandez em A poética de resíduos de Carolina Maria de
Jesus, Edições Carolina, pp. 28-9. Agradeço a informação a Lorenzo Mammì.
29. Conceição Evaristo, “Poemas”. Braziliana — Journal for Brazilian Studies, v. 3, n. 1. jul. 2014,
pp. 569-70.
* Escrito originalmente a convite de Verônica Stigger e Eucanaã Ferraz para o catálogo da exposição
Constelação Clarice (São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2021).
Faces da poética da inocência em Clarice
Lispector1
SIMONE ROSSINETTI RUFINONI

Leia-se a crônica “O artista perfeito” (1969), de Clarice Lispector, compilada


em A descoberta do mundo:
O ARTISTA PERFEITO

Não me lembro bem se é em Les donnés immediates de la conscience que Bergson fala do
grande artista que seria aquele que tivesse, não só um, mas todos os sentidos libertos do
utilitarismo. O pintor tem mais ou menos liberto o sentido da visão, o músico o sentido da
audição.
Mas aquele que estivesse completamente livre de soluções convencionais e utilitárias veria
o mundo, ou melhor, teria o mundo de um modo como jamais artista nenhum o teve. Quer
dizer, totalmente e na sua verdadeira realidade.
Isso poderia levantar uma hipótese. Suponhamos que se pudesse educar, ou não educar,
uma criança, tomando como base a determinação de conservar-lhe os sentidos alertas e puros.
Que se não lhe dessem dados, mas que os seus dados fossem apenas os imediatos. Que ela não
se habituasse. Suponhamos ainda que, com o fim de mantê-la em campo sensato que lhe
servisse de denominador comum com os outros homens lhe permitisse certa estabilidade
indispensável para viver, dessem-lhe umas poucas noções utilitárias: mas utilitárias para serem
utilitárias, comida para ser comida, bebida para ser bebida. E no resto a conservasse livre.
Suponhamos então que essa criança se tornasse artista e fosse artista.
O primeiro problema surge: seria ela artista pelo simples fato dessa educação? É de crer
que não, arte não é pureza, é purificação, arte não é liberdade, é libertação.
Essa criança seria artista do momento em que descobrisse que há um símbolo utilitário na
coisa pura que nos é dada. Ela faria, no entanto, arte se seguisse o caminho inverso ao dos
artistas que não passam por essa impossível educação: ela unificaria as coisas do mundo não
pelo seu lado de maravilhosa gratuidade, mas pelo seu lado de utilidade maravilhosa. Ela se
libertaria. Se pintasse, é provável que chegasse à seguinte fórmula explicativa da natureza:
pintaria um homem comendo o céu. Nós, os utilitários, ainda conseguimos manter o céu fora
do nosso alcance. Apesar de Chagall. É uma das poucas coisas das quais ainda não servimos.
Essa criança, tornada homem-artista, teria, pois, os mesmos problemas fundamentais de
alquimia.
Mas se homem, esse único, não fosse artista — não sentisse a necessidade de transformar
as coisas para lhes dar uma realidade maior — não sentisse, enfim, necessidade de arte, então,
quando ele falasse, nos espantaria. Ele diria as coisas com a pureza de quem viu que o rei está
nu. Nós o consultaríamos como cegos e surdos que querem ver e ouvir. Teríamos um profeta,
não do futuro, mas do presente. Não teríamos um artista. Teríamos um inocente. E arte,
imagino, não é inocência, é tornar-se inocente.
Talvez seja por isso que as exposições de desenhos de crianças, por mais belas, não são
propriamente exposições de arte. E é por isso que, se as crianças pintam como Picasso, talvez
seja mais justo louvar Picasso que as crianças. A criança é inocente, Picasso tornou-se
inocente.2

Partindo de uma proposição de Bergson, segundo a qual “o grande


artista seria aquele que tivesse […] todos os sentidos libertos do
utilitarismo”, Clarice discute a questão da criação artística. O artista deveria
ou poderia ser aquele que foge à convenção, à regra: apreende a “verdadeira
realidade” dada sua indisposição em face da convenção e sua predisposição
à liberdade. Até esse ponto, uma definição reconhecível: o artista — e
consequentemente a arte — assume atitude de antítese em face do mundo.
No entanto, o argumento adquire nuances a partir da hipótese mobilizada,
segundo a qual a existência de um processo formativo, desvinculado dos
padrões reinantes, conduziria uma criança à liberdade total, a ponto de esta
não se acostumar, não se adequar. Ao comentar a respeito da necessária
fuga do utilitarismo rumo à inocência para a criação artística, a autora
diferencia tal empreitada quando feita por um homem comum e por um
artista; este não pode prescindir do conhecimento dos males do mundo.
Imbuído dessa problemática, empreenderia um retorno à inocência como
libertação. Nesse percurso, o narrador indaga a respeito de uma imaginária
criança deseducada: e se esse singular sujeito se tornasse artista? Como tal,
se a arte assume a ordem da oposição, qual seria sua apreensão do mundo?
O artista é aquele naturalmente inocente? Uma vez que a condição do
artista é a do dissenso, se a inocência olhasse o mundo como arte, o tornaria
útil; mas em outros termos, dado que se trata daquele que desconhece o útil
do mundo. A criança-artista se libertaria de sua inocência, pintando um céu
que se pode comer e descobriria a “utilidade maravilhosa” contrária à
“maravilhosa gratuidade”.
Esse homem hipotético possuiria uma liberdade perigosa capaz de
dizer que o “rei está nu”. Despojado de máscaras, destituído de amarras,
apto a combater as regras. Diz a autora que teríamos um profeta do presente
e não do futuro. Alguém que olhasse o mundo sem o anteparo dos símbolos.
Contudo, adverte: “arte não é inocência, é tornar-se inocente”. Esse sujeito
seria um inocente, uma espécie de príncipe Michkin, cuja idiotia ou
solipsismo lhe permitiria afrontar a ordem com a serenidade de quem vê
além dos dados banais. Apesar disso, tal sujeito não seria artista, pois, para
se chegar à arte, deve “tornar-se inocente”, o que implica vivenciar o
processo que leva à perda e à reflexão como etapa necessária à elaboração
estética — imprescindível, portanto, a travessia pelo processo de
desencantamento do mundo, já que “arte não é pureza, é purificação, arte
não é liberdade, é libertação”.
A etimologia ensina que “inocente” vem de innocens, aquele que não
causa danos e não tem culpas. A arte, ao contrário, implica a aguda
consciência do mal. O desajuste conduz ao paradoxo: a inocência almejada
é conscientemente inocente; trata-se, pois, de uma construção estética nada
inocente da inocência. Artifício refinado de pureza. O pressuposto a ser
considerado é o da oposição à civilização, quer esta assuma a face do culto
ao inconsciente ou às formas das sociedades arcaicas — um primitivismo
refinado, culto, negação que pressupõe o arsenal da civilização.
A inocência pode assumir configurações várias, inflexões que não se
reduzem às conhecidas presenças da criança e dos animais na obra da
autora.3 Alguns exemplos poderão dar a medida de como a reflexão sobre o
puro, ingênuo ou bárbaro, por oposição aos espécimes da civilização, corta
sua obra, assumindo matizes por vezes muito específicos, que vão da
observação da vida miúda à modalidade do silêncio ou da experimentação
radical, passando pela reflexão sobre o papel da arte e do artista na
sociedade — modos e formas de a literatura procurar o inocente,
explorando os modos da negação.4
A recusa à palavra desgastada, tornada instrumento da ordem social,
aliada à busca da palavra intocada, símile do ideal, está no centro do conto
“A mensagem”. Nos termos da crônica, pode-se contemplar o ideal de
inocência como insurgência contra o mundo e a linguagem que o legitima.5
Dois adolescentes se reconhecem estranhos ante o todo que os cerca e lhes
acena com o império do senso comum e suas recompensas. Forjam um
escudo de palavras como salvaguarda contra a onipresente ameaça. Unidos
pela desconfiança, anseiam por refazer a linguagem que implicaria a não
cooptação pelo mundo “dos outros”. Nesse processo, ingênua e
heroicamente intentam renomear o mundo, possível vertigem à margem do
coração selvagem almejado. A princípio, concordam em chamar de
“angústia” aquilo que experimentam e que os distingue; já o que
desconhecem e procuram nomeiam de a “mensagem”; e investem contra a
“poesia” — “Poesia era a palavra dos mais velhos” — talvez, sugere
Clarice, não desconfiando que o que anseiam mais fortemente estaria
inserido nela.6 O embate assume a forma da investida contra os signos, pois
que representantes do mundo convencional, cujo hábito e senso comum
induzem à aceitação. Em pauta está a difícil resistência ao mundo que
entendem como opressor; este, alicerçado sob os signos, onde jazem os
códigos legitimadores da falsa harmonia, deve ser combatido por meio da
linguagem.
O estar-no-mundo assume a face da recusa ao signo, onde se
depositaram séculos de civilização. Participa dessa difícil aventura o desejo
de alcançar a inocência, uma vez que se querem anteriores à ordem
instituída — e corrompida — do discurso. Não por acaso, várias palavras
grafadas em itálico aludem à possível pureza no âmbito da linguagem,
oposta ao império do senso comum: eles queriam ser autênticos; queriam a
verdade; orgulhavam-se de serem diferentes dos outros; temiam a
normalidade. Também não é à toa que o ideal de mundo refeito passa pelo
desejo de escrever.
A aura de mistério que envolve o conto não esclarece exatamente o
que procuram — “Que é, afinal, que eles queriam?”, indaga o narrador —,
imersos no processo cego da busca por excelência, suspeitam de tudo, das
palavras a seus próprios atos. O titubeio em face da identificação do objeto
combatido apreende a dinâmica do mal-estar generalizado, próprio daquele
que capta a força invisível dos imperativos sociais sem conseguir sopesá-los
suficientemente. O ato da procura é mais relevante que o possível êxito. A
fase da vida em que se encontram — a adolescência — também é
determinante: possuem a selvageria necessária ao embate e se fecham às
seduções do mundo. Vivem os resquícios da inocência infantil, unida à
revolta e à vertiginosa e heroica arrogância. Bárbaros e sublimes, eles têm o
pendor em ser do contra, mas contra o que lutam? A incapacidade de
resposta reside no próprio desconhecimento do processo e a sensibilidade
afim à negação deriva da coragem desse tempo intermediário — o que resta
da infância aliado ao melhor do ser adulto — que lhes permite facultar um
modo de ser limítrofe, anterior à adesão irrefletida ao mundo feito, o mundo
dos outros.
Estariam salvos se distantes da “perigosa verdade”: salvos para a
sociedade e perdidos para o futuro renovado que tanto ansiavam. “Oh Deus,
não nos deixeis ser filhos desse passado vazio, dai-nos o futuro”.7 Os
adolescentes procuraram o impossível, ao desejar ostentar o “puro rosto”
em substituição à máscara; nesta repousa a incontornável escolha humana
de representar-se a si mesmo.8 Viver sob um disfarce traduz o processo de
amadurecimento necessariamente atrelado à perda das ilusões e à adesão ao
“mundo feito”; uma vez distantes do “futuro”, restam presas do “passado”,
com a consequente renúncia à pureza almejada.
Outra face da inocência perdida, agora sob a égide do bárbaro, é
entrevista em “A menor mulher do mundo”. Neste conto, Clarice constrói
uma personagem alheia ao mundo civilizado; a ficção criada dá conta de
uma pigmeia, pertencente a uma tribo da África, cuja existência se cola à
natureza. A inocência é, agora, a do intocado pelos males do mundo, cuja
imagem, contudo, está sujeita à representação literária — esfera cujo
refinamento não condiz com a pureza do selvagem — que nos é dada pelo
narrador ao orquestrar as vozes das sete casas que a veem e interpretam. Os
olhares que a aprisionam estão sujeitos à vertigem da felicidade burguesa: a
fantasia da família perfeita, branca e mediana, cercada de mercadorias
domésticas, ávida por ampliar o âmbito do consumo. O dialogismo é, a um
só tempo, moderno e patriarcal. Talhado pela modernização conservadora,
alterna o pressuposto moderno e democrático do reconhecimento da
alteridade à imediata subjugação; são flagrantes os indícios de violência
travestidos de generosidade. É assim que, de modos diversos, todos
desejam, a seu bel-prazer, instrumentalizar a mulherzinha que vai de filha a
brinquedo, passando por serviçal e bicho doméstico. Pela via das
subjetividades superficialmente evocadas, encenam-se os paradoxais modos
da cordialidade nacional. O tom melífluo empregado é característico da
dominação privada, inimiga da atribuição da cidadania. Se a cordialidade
embute a ânsia de aniquilamento do outro, sua interdição da vida comum,
aqui ela ainda é mais enfatizada devido à estratégia que faz da personagem
alguém que emergiu do espaço da natureza.
Há claramente uma inflexão da ideia de inocência no conto. A
personagem é desprovida da camada civilizatória que nos dá sustentação:
seu estar-no-mundo é imune à noção de representação, ela não sabe como é
ser para o outro, ela simplesmente é — como um bicho. Sem modos,
máscaras ou símbolos, sua existência é bruta, sem desvãos. A incapacidade
de dissimulação ou de representar-se a si mesma a torna objeto por
excelência da interpretação daqueles que acabam por se revelar mais
selvagens do que desejariam ser, pondo a nu a barbárie fundadora da
civilização.
Nesse sentido, a personagem, composta por vários estigmas de
inferioridade natural e social — é mulher, africana, pigmeia, selvagem —, é
construção elaborada a fim de despertar, por contraste, o avesso do sujeito
civilizado. Cada uma das casas procura, à sua maneira, e como mosaico de
polifonia paradoxalmente uniforme, destruir a diferença. Anular a
alteridade implicará doar-lhe significado e função reconhecíveis; eles a
civilizam, por assim dizer.
A coisa estranha torna-se humana na medida em que é criança, bicho,
empregada, milagre. Ao inocente é dada uma função no mundo, assim ele
passa a ser algo ou um quase alguém. O sentido da oposição inocência ×
utilidade assume, aqui, uma tonalidade feroz: trata-se da vocação predatória
do humano como substrato de civilidade, numa lógica perversa e invertida,
uma vez que só a coisificação lhe dará legitimidade.
A personagem — sua construção, bem como sua posição no enredo —
enquanto sujeito desprovido de subjetividade reconhecível, instaura o
deslumbramento desconcertante do óbvio; sua existência lembra a todos,
despudoradamente, que o rei está nu. O ato de desvestir o mundo de seus
invólucros amortecedores é, no conto, trabalhado por artifício que lembra as
mil e uma noites; “como uma caixa dentro de uma caixa, dentro de uma
caixa”9 — no fundo mais fundo da África, a tribo mais afastada das tribos, o
menor ser humano dentre os menores. Além disso (horror dos horrores!), a
miniatura de gente traz dentro de si outra mais absurda e diminuta vida: está
prenhe. O sistema de encaixes também se comunica à forma cujas dobras
desmascaram a civilização, que surge ainda mais desamparada que a mulher
sujeita aos canibais: o caçador capta a mulher que, por sua vez, é captada
pelo jornal, de onde invade lares instilando a cruel estranheza que assalta
suas vidas. Do externo ao mais íntimo, o estranho é alimento de consumo e
desencadeador de perversidades. Não só o bárbaro da personagem, mas a
estratégia sofisticada com que a literatura rói a solidez da vida instituída,
expõe a perigosa nudez do irrepresentável.
Pequena Flor é amoral. Nesse caso, não se trata de uma escolha
consciente, reflexiva como a que levou certos personagens como Joana e
Martim à busca e exploração do mal, a fim de se oporem às instituições,
mas no sentido em que ela está além — ou aquém — do bem e do mal.
Como parte da natureza e à margem da sociedade, sua existência repele os
critérios da moralidade.10
Tal qual a criança da crônica, a inocência sem peias da mulherzinha
nunca a faria artista, de vez que não lhe ocorreu o descolamento da esfera
da natureza, imprescindível à reflexão, por meio da qual a harmonia será
sempre almejada e jamais obtida.11 No entanto, a inocência é um recurso
claramente mobilizado a fim de se expor a miríade de reações barbaramente
civilizadas que, pretendendo acolhê-la, a devoram. Não se trata do artista
que almejou ser puro, mas de um objeto por meio do qual, ao se encenar a
interpretação da pureza como barbárie, desvelam-se os perturbadores
meandros da vida social.
Sob esse ponto de vista, contos tão diferentes como “A mensagem” e
“A menor mulher do mundo” parecem adquirir certa identidade, permitindo
esboçar uma poética. Subjaz aos assuntos a elaboração da ideia de
inocência como uma poética comum: no primeiro, comparece como modo
de não aceitação da ordem vigente; no segundo, o homem natural
desmitologizado desnuda a barbárie da sociedade pretensamente moderna.
Em ambos os casos, contudo, permanece intocada a questão do ponto de
vista da representação e a esfera da forma não parece incorporar a reflexão
proposta pela crônica.
Representante de uma literatura que testemunha desconfiança em face
das palavras, enraizada na ficção pós-30 que não se rende ao naturalismo, o
embuste ou despistamento estético consubstancia-se nos modos como a
literatura apreende a representação e o papel do artista. Não há como não
recorrer à experiência de A hora da estrela, onde a dicotomia abordada na
crônica assume caráter dúplice: como componente da personagem Macabéa
e como parte do papel da arte e da função do artista. Desse modo,
compreendida enquanto traço poético, a temática da inocência incide sobre
o papel do escritor e da função da arte, participando do olhar que formaliza
o mundo.
Na novela, a inocência irá avizinhar-se da pobreza, aproximação que
se dá pelo coeficiente de negação. Se os desdobramentos aqui considerados
passaram pelas ideias de pureza e barbárie, agora assumirão os matizes da
simplicidade, da ignorância e da miserabilidade. O despojamento do
arcabouço civilizado irá se comunicar com o socialmente despossuído. Os
termos aproximam-se pela carga negativa que comportam: aquele que não
pecou e não tem culpas aparenta-se àquele que não tem nada de seu. Daí a
insistência na difícil coincidência entre objeto e representação: à singeleza
da personagem deve corresponder uma narrativa também com sinal de
subtração. Chama a atenção o quanto a esfera genérica da inculpabilidade
do bárbaro adquire tonalidades concretas ante o chão histórico delimitado;
desse modo, a culpa, agora, incidirá sobre o narrador, vertendo-se em culpa
de classe.
O narrador-protagonista, Rodrigo S.M., expõe a busca pela
simplicidade ao desejar despojar-se de seus atributos de classe como
expediente que lhe pudesse franquear acesso à pobreza social e existencial
de sua criatura, Macabéa.12 Rodrigo almeja tornar-se inocente, a fim de se
acercar da parca existência de sua heroína. No entanto, sabe-se
representante de uma classe, detentor da língua e de suas estratégias,
enunciador de uma voz socialmente inaudível, mergulhado na matéria
impura da pobreza, alienação e exploração. O exaspero em torno da
adequação criador/criatura marca a narrativa pela obsessão com o
despojamento, espécie de construção de um simulacro de condição de
indigência apta a criar um lugar de fala infenso à civilidade.
A inocência molda Macabéa de modo diverso do que ocorre com a
personagem de “A menor mulher do mundo”. Sua condição de extrema
marginalidade a faz deslocada; porém, apesar de sua inconsciência, está
irremediavelmente imersa na sociedade. Caberia a indagação a respeito do
sentido de seu alheamento: seria inocência ou alienação? Algo da pureza da
pequena africana sobrevive nessa nordestina espoliada, mas o tratamento
ficcional é outro: se, no conto, pouco verossímil e embebido em fina ironia,
a sociedade comparecia como plataforma de comparação, agora a opressão
é objetiva e a personagem, desentranhada do Brasil real.
Macabéa vive num limbo entre o ser e o não ser — “ela vive num
limbo impessoal” —, tornam-se indistinguíveis os limites entre a inocência
e a alienação de que é vítima. As marcas de despersonalização, articuladas
às condições de vida da personagem, deslindam a complexidade da sua
indigência social e existencial. No espaço do capital, inocência traduz-se
em inadequação e fracasso.
Diferentemente de Pequena Flor, cuja vida se desenvolve rente à
natureza, Macabéa — operária pobre e explorada — pensa também estar
sujeita a leis tão somente naturais. É absolutamente alheia ao conflito social
do qual faz parte. O fato de não se entender como sujeito suprime de sua
visada qualquer tipo de reivindicação individual: já que ela “não é” (só
passa a ser no momento da morte), não pode almejar a liberdade ou a
felicidade. Se o casal de adolescentes opõe a integridade contra o mundo
administrado e a encenação do bárbaro, na figura da anã, explora a possível
ingenuidade alheia às normas, Macabéa representa a inocência impossível
que se faz inconsciência de si, imagem do sujeito desindividualizado,
tragado pela história.
A vida adulta repele a pureza, o selvagem é alteridade devorada pelo
senso comum, não é possível inocência no espaço do capital — essas as
lições desentranhadas da diversidade que o tema assume na obra da autora.
Caberia, ainda, indagar: a que, do ponto de vista da forma, conduziria esse
retorno ao inocente, puro, aquém da cisão humana e social? O que ocorreria
se a inocência intentasse fazer-se forma? A literatura que se dispusesse a
trilhar esse caminho correria o risco de perder os contornos reconhecíveis,
provavelmente adentrando espaço interdito onde vigora a linguagem
experimental, apta a fazer borrar os limites discursivos, de gênero ou
narrativa.
Como o imperativo do “tornar-se inocente” penetra a estrutura? De
certo modo, o hibridismo está presente em A hora da estrela, na medida em
que se misturam metalinguagem, monólogo interior e narrativa
propriamente dita, em cruzamento ininterrupto de dicções. No entanto,
outras experiências estéticas de Clarice parecem desbordar, mais
radicalmente, os limites rumo ao aquém civilizado. Distante das formas
consagradas pela tradição, parece confirmar-se uma busca pelo inocente,
transmudado em agônica convivência entre instâncias formais diversas.
Caberia pensar, portanto, na experiência do informe como um
desdobramento da busca pela pureza; nesse sentido, estaríamos diante da
tendência à perda dos contornos, na vertiginosa mistura das ordens do
mundo presente em alguns textos que geram maior estranhamento, como
ocorre com Água viva.13 Não estaria, aí, uma tentativa de se tornar inocente?
A fusão sujeito-objeto faz transbordar os contornos do mundo interpretável
que, captado ao nível da linguagem, torna-se gênero indefinível, híbrido.
Assim, o caminho rumo ao primitivo parece valer-se de um estatuto
paradoxal: enquanto arte moderna, experimental e imersa inevitavelmente
no diálogo com a tradição, é refinamento de pureza, inocência construída,
artifício de anticivilização. Remontando à crônica, redimensiona-se o “vir a
ser” refletido, adensado pelo contato crítico com o mundo, rumo à
gratuidade, atributo oposto à utilidade.
O tênue fio objetivo de Água viva — uma pintora que, por meio da
escrita a um amor passado, investiga-se junto com a arte e a vida — sofre
os contínuos efeitos do “tornar-se” algo: dissolve-se, fragmenta-se,
emaranha-se em linhas ora contínuas, ora descontínuas, confunde as ordens
do mundo. Não só o embaralhamento de sujeito e objeto é intenso, mas,
sobretudo, a passagem de um elemento a outro — do humano ao animal, do
animal ao vegetal, do humano ao vegetal etc.
O primado do humano desumanizado se fará princípio compositivo: o
sujeito procura o impessoal do mundo pré-reflexivo e a fatura, avessa às
convenções e tensionada por dissonâncias abruptas, assume a ordem do
informe. Nesse sentido, o repisar da referência ao orgânico se encaminha
para outros domínios, possivelmente avessos à consciência. “Quero a
profunda desordem orgânica que no entanto dá a pressentir uma ordem
subjacente”14 à ordem da natureza, reino animal e mineral contrário ao
sujeito. Uma vez que tal “ordem subjacente” é oposta à subjetividade, o
apelo à convivência livre dessas instâncias aponta para a transposição dos
limites. As correspondências estruturais são flagrantes: o descosimento do
eixo narrativo permite o amálgama com outras modalidades do discurso,
fazendo conviver, no mesmo fluxo, aforismos, descrições desconexas,
fragmentos de micronarrativas, reflexões filosóficas e estéticas, fulgurações
líricas.
Assim, é possível considerar que essa nova curva das acepções
possíveis do primado da inocência adquire tonalidade primordialmente
estética. A investigação aguda sobre o sentido da vida e do eu mergulha nos
espaços anteriores à vida organizada: o não à civilização incorpora uma
guinada de volta à natureza selvagem, aos bichos e aos quatro elementos,
àquilo que pode neutralizar as conhecidas dicotomias da razão.
Pode-se aventar o quanto a passagem ao inumano remete, ainda, ao
conceito de pulsão de morte freudiano.15 Na economia dos processos
psíquicos, Freud propõe a dicotomia entre instinto de vida e instinto de
morte; enquanto o primeiro traduz o impulso à perpetuação da vida e da
espécie, o segundo refere-se à “necessidade de restauração de um estado
anterior”,16 ao desejo de retorno ao elementar, às formas primeiras onde
repousa a cessação das excitações e a quietude absoluta. O apaziguamento
repousaria no retorno ao inanimado, numa espécie de supressão de todos os
desprazeres. O retorno ao arcaico implica a perda do eu; a dessubjetivação
que advém desse processo pode encampar uma estratégia de opção pelo
impessoal como “vivência primária de satisfação”.17 Esse caminho de
autoconhecimento paradoxalmente afina-se com a desindividualização:
“Não tenho estilo de vida: atingi o impessoal, o que é tão difícil”.18 O reino
das formas primitivas é elaborado pela criação literária e se faz resposta
estética às ilusões civilizatórias, bem como à crise do individualismo
burguês.
O intocado pelos males do mundo — primitivo, ingênuo, inadaptado
— em Clarice está na base de seu peculiar modo de produzir
estranhamento. Quer como dado de enredo, quer como lugar de fala ou
componente da fatura, a escolha desse topos oferece pistas para se penetrar
as complexas relações entre subjetividade, forma e matéria social na obra
da autora.
Que não se confunda essa poética da inocência com descompromisso.
A face gratuita da arte faz-se mais uma dobra desse princípio, em
detrimento da utilidade; contudo, sabe-se que a literatura é fenômeno de
civilização, cuja origem e desenvolvimento estão inequivocamente presos a
condições históricas precisas que a fazem autônomo instrumento intelectual
da vida pública. Talvez resida no intrincado impasse dessa equação o
caráter singularmente interessado da escrita de Clarice.

NOTAS
1. Este texto é uma versão reduzida do ensaio “O artista perfeito: Clarice Lispector e a poética da
inocência”. Remate de Males. Campinas, v. 36, n. 02, pp. 357-79, jul./dez. 2016. Disponível em:
periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8647907.
2. Clarice Lispector, em “O artista perfeito”. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999,
pp. 228-9.
3. As crianças e os bichos são frequentes na obra da autora que se dedicou, inclusive, à literatura
infantil. A respeito da presença da infância na obra da autora, comenta o biógrafo Benjamin Moser:
“A nostalgia da infância foi ficando particularmente aguda à medida que Clarice ficava mais velha”.
(Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 470.)
4. O caráter metafórico da crônica fornece a hipótese da inocência como princípio estético, uma vez
que o tema e suas inflexões cortam a obra da autora. Contudo, cabe notar que, ao mesmo tempo em
que os modos e formas dessa temática, ao expressarem a recusa ao mundo, se fazem índice de
resistência, o lado oposto, a saber, o tema da perversidade, terá consequências semelhantes. Isto é:
tanto a pureza quanto a maldade irão, na obra da autora, incorporar a oposição à norma, à lei e,
portanto, à ordem corrompida do mundo.
5. O desafio da negação à palavra apresenta similitudes com o Ideal, projeção de um mundo
inalcançável propugnado pelo artista: “O ideal seria cada poeta ter sua própria linguagem, específica
para sua necessidade expressiva; dada a natureza social e convencionada da fala humana, tal
linguagem só pode ser o silêncio”. (George Steiner. Linguagem e silêncio: Ensaios sobre a crise da
palavra. São Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 69.)
6. “Um modo possível de se salvarem seria o que eles chamaram de poesia” (In: “A mensagem”.
Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1988, p. 124). Não lhes poderia ocorrer que a poesia é a
forma por excelência da oposição, como expressam as palavras de Enzensberger: “Dizer que o poema
não é mercadoria não é de modo algum uma frase idealista. Desde o começo a poesia moderna
desejou subtrair o poema à lei do mercado […]. Da mesma forma, o mais alienado texto de Arp ou
Éluard já é poésie engagée pelo simples fato de ser poesia: oposição, não acordo com o
estabelecido”. (“Linguagem universal da poesia moderna”. In: Com raiva e paciência. Ensaios sobre
Literatura, Cultura e Colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985, p. 46.)
7. Clarice Lispector, op. cit., 1988, p. 130.
8. Na crônica “Persona” — a propósito do filme homônimo de Ingmar Bergman — posiciona-se
Clarice a respeito da oposição face/máscara diante do processo de amadurecimento: “Bem sei que
uma das qualidades de um ator está nas mutações sensíveis de seu rosto, e que a máscara as esconde.
Por que então me agrada tanto a ideia de atores entrarem no palco sem rosto próprio? Quem sabe, eu
acho que a máscara é um dar-se tão importante quanto o dar-se pela dor do rosto. Inclusive os
adolescentes, estes que são puro rosto, à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara. E com
muita dor. Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é uma surpresa
amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. É a hora da escolha”. (Clarice Lispector, A
descoberta do mundo, op. cit., p. 80). Cabe lembrar que o filme aborda a história de uma atriz que
decide abster-se do mundo, calando-se voluntariamente, temática que remete às nuances do silêncio
em Clarice.
9. “A menor mulher do mundo”, op. cit., p. 68.
10. Benjamin Moser (op. cit., pp. 217-9) comenta a presença de Spinoza na concepção de natureza,
presente em textos da autora.
11. Vale lembrar a oposição entre o apelo à poesia do mundo natural, cara ao que Schiller chama de
modo ingênuo e a poesia sentimental, própria da constatação da inexorabilidade dos conflitos do
mundo. Desejar a harmonia perdida pressupõe sabê-la, de antemão, inalcançável. (Friedrich Schiller,
Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991.)
12. Gilberto Figueiredo Martins pontua, por um lado, o caráter de ascese no exercício de nivelamento
entre criador e criatura e, por outro, considera a hipótese do caráter dissimulado do discurso do
narrador: “[…] Rodrigo constrói certas estratégias de aproximação que supostamente poderiam
garantir algum nivelamento com a criatura que decide retratar; assim, bem ao gosto asceta, propõe-se
a, enquanto escreve, colocar-se no nível da nordestina e, para tanto, prescinde do luxo nesse período,
abstendo-se de sexo, vivendo do mínimo, alimentando-se mal, descuidando-se da aparência pessoal,
desprezando a vaidade. Entretanto, impedido de efetivamente sofrer-com, de sentir compaixão (no
sentido lato da palavra), pateticamente se evidenciam a simulação e o falseamento da empreitada”.
(Estátuas invisíveis: experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector. São Paulo:
Nankin/Edusp, 2010, p. 116.)
13. Água viva foi publicada em 1973, anterior, portanto, à novela A hora da estrela (1977). O olhar que
acompanha as experiências estéticas em torno da ideia de inocência não pressupõe, portanto, uma
trajetória progressiva do tema, mas sim um caminho que considere a complexidade dos
encaminhamentos possíveis.
14. Clarice Lispector, Água viva, op. cit., p. 31.
15. Sigmund Freud, “Além do princípio do prazer”. In: ______. História de uma neurose infantil (“o
homem dos lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
16. Ibid., p. 230.
17. Ibid., p. 210.
18. Clarice Lispector, Água viva, p. 52.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ENZENSBERGER , Hans Magnus. “Linguagem universal da poesia moderna”. In: Com raiva e paciência:
Ensaios sobre literatura, política e colonialismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
FREUD, Sigmund. “Além do princípio do prazer”. In: História de uma neurose infantil (“o homem dos

lobos”): Além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das
Letras, 2010.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

______. “A menor mulher do mundo”. In: Laços de Família. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
______. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.
______. Água viva. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
______. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
______. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro: Rocco, 2019.
MARTINS, Gilberto Figueiredo. Estátuas invisíveis: Experiências do espaço público na ficção de Clarice

Lispector. São Paulo: Nankin/Edusp, 2010.


MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2013.

NUNES, Benedito. O drama da linguagem: Uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.

SCHILLER, Friendrich. Poesia ingênua e sentimental. São Paulo: Iluminuras, 1991.

STEINER, George. Linguagem e silêncio: Ensaios sobre a crise da palavra. São Paulo: Companhia das

Letras, 1988.
“Trouxeste a chave?”: O significante enigmático
em “Evolução de uma miopia”*
YUDITH ROSENBAUM

Entre tantos assuntos recorrentes na literatura de Clarice Lispector, há uma


questão que se coloca do primeiro ao último texto e que retorna como
indagação perpétua: como pensar a constituição do sujeito humano na
cultura? O processo de subjetivação, tão caro às ciências humanas e à
psicanálise, em particular, percorre as narrativas claricianas, construindo um
painel multifacetado, em que cada texto parece tocar aspectos ou momentos
distintos da formação do sujeito no contexto familiar, cultural e social. Para
investigar melhor esse núcleo temático, que se irradia por outros tópicos a
ele articulados, proponho um trânsito entre dois contos que tratam de
passagens etárias e existenciais: “Menino a bico de pena” e “Evolução de
uma miopia”, com foco neste último texto, mas alicerçado no primeiro
deles.
Quem me despertou para esse jogo entre os dois meninos, um
começando a aquisição da linguagem e o outro, já mais crescido, vivendo
um complexo processo de socialização, com sua rede de expectativas e
idealizações, foi a psicanalista Luciana Pires, que publicou nos anais da
Abralic de 2008 o belo artigo “Concepções da infância em Clarice Lispector”.1
A sua análise, como vou mostrar aqui, é o catalisador desta reflexão, que se
abre a novas perspectivas a partir dos insights valiosos de Pires.
Curiosamente, as narrativas possuem duplo título: a primeira,
originalmente nomeada de “Evolução de uma miopia”, recebe o nome de
“Miopia progressiva” quando é republicada como crônica no Jornal do
Brasil em 11/10/1969 e depois no volume Felicidade clandestina, de 1971;2 já
“Menino a bico de pena”3 intitulava-se “Desenhando um menino”, quando
surgiu em 1964 na seção “Fundo de gaveta”, da primeira edição de A legião
estrangeira. Note-se que a mudança, neste caso, marca exatamente o grande
desafio de tornar-se sujeito, tema de que vou tratar aqui. Inicialmente, o
menino ocupa o lugar de um objeto do narrador/desenhista. A ênfase está
no ato de desenhar, dado pelo gerúndio (“desenhando”). Na passagem para
“Menino a bico de pena”, o sujeito agora é o menino, que assume o
protagonismo. Ainda que possa ser desenhado por alguém — como, de
algum modo, todos nós também somos… —, quem assume o primeiro
plano no título é ele. Comento, então, alguns aspectos de “Menino a bico de
pena” apenas como passagem para a análise do conto principal, “Evolução
de uma miopia”.

“Menino a bico de pena” começa com uma pergunta: “Como conhecer


jamais o menino?”.4 O advérbio de negação já atesta a impossibilidade de
chegar ao conhecimento do menino, entregue a um “real vegetativo” (nas
palavras do texto), mergulhado na “atualidade absoluta a que um dia já
pertencemos”.5 A abertura do conto ainda traz uma frase surpreendente:
“Para conhecê-lo tenho que esperar que ele se deteriore, e só então ele
estará ao meu alcance”.6 De um lado, o menino (“um ponto no infinito”)
imerso em um “hoje” inalcançável pelo desenho/escrita do narrador. De
outro, um olhar — sempre reiterado nesta narrativa e na obra da autora —,
que busca apreender, conhecer, escrever, desenhar: “Quanto a mim, olho, e
é inútil: não consigo entender coisa apenas atual totalmente atual”.7 Está
armada, em poucas linhas, a figura matricial da obra clariciana: um sujeito
frente a uma coisa inapreensível, seja a dona de casa vendo um ovo sobre a
mesa (no conto “O ovo e a galinha”, de A legião estrangeira), seja o
narrador/personagem Rodrigo S.M. tentando decifrar Macabéa (em A hora
da estrela), entre tantos outros. Ambos, o ovo, a pobre nordestina — e,
aqui, um menino — tendem a ser realidades de impossível apreensão,
desafiando um sujeito que “fracassa” em sua linguagem representacional —
fracasso decisivo para que a escrita aconteça. Por isso, talvez, no paradigma
clariciano, os seres só se entregam quando não são entendidos, como
profetiza a autora em “O ovo e a galinha”:
Olho o ovo na cozinha com atenção superficial para não quebrá-lo. Tomo o maior cuidado de
não entendê-lo, sei que se eu entender é porque estou errando. Entender é a prova do erro.
Entendê-lo não é o modo de vê-lo. […] O que eu não sei do ovo é o que realmente importa. O
que eu não sei do ovo me dá o ovo propriamente dito.8

Trata-se, então, de ver sem entender — ou seja, tornar o olhar função


independente do logos, desatrelar o olho que vê do sistema racionalizante,
dicotômico, encobridor, que pode devassar a tal coisa que Clarice quer tocar
com sua literatura. A palavra, que para os gregos também era logos —
discurso e razão — seria, para Clarice, um anteparo indesejável, mas
incontornável. A palavra atravessa o olhar e impede de ver. O não saber,
único acesso à coisa-ovo, ou à coisa-menino, depende de a palavra ser
driblada, contorcida ou silenciada para melhor ver o que se apresenta ao
olhar.
O observador de “Menino a bico de pena” que tenta, em vão, entender
pelo olhar o “hoje” inapreensível do menino9 é um suposto sujeito, diante de
um objeto a princípio colocado para ser conhecido. No entanto, se ele, o
menino, jamais poderá ser apreendido pelo saber desse que o vê, pode-se
dizer, então, que o menino, em seu começo de caminhada pelo mundo,
escapa também à condição de objeto e passa a não ser submetido ao desejo
de representação do narrador. Ambos se tornam sujeitos que desconhecem.
O menino ainda não é capaz de decodificar o idioma ao seu redor assim
como o narrador tampouco pode decifrar o real dessa criança. Digamos que
esse primeiro tempo do conto tem conexão com vários outros momentos da
obra em que as posições estabelecidas e fixas entre sujeito e objeto são
revertidas ou ultrapassadas.10
Adianto que, no próximo conto a ser examinado, a operação se inverte:
dessa vez é o menino, já crescido, que se encontra diante do enigma do
outro e aprende a entender por outras vias, sem olhar — ou melhor, vendo
de um outro modo.
Outro elemento chama atenção, ainda na primeira narrativa: a palavra
parece ser pesada demais para surpreender a atualidade viva do menino,
sentado em sua “meditação profunda”. O narrador, então, tenta simular, na
escrita, o traço delicado da técnica de desenho a bico de pena, para não ferir
“a finíssima linha de extrema atualidade” em que se encontra o objeto de
seu olhar: um menino “em quem acabaram de nascer os primeiros dentes e
é o mesmo que será médico ou carpinteiro”.11 Sabemos que a mãe tentará
dar um contorno ao seu filho, que ainda é “um ponto no infinito”,
atribuindo-lhe gestos, intenções, desejos, envolvendo-o com palavras e
afetos ao longo do conto. Possivelmente, as deduções da mãe, que também
busca entender seu filho, entram em desacordo com o que de fato ocorre no
organismo do menino, que balbucia, tenta equilibrar-se nos móveis ao pôr-
se de pé, cai e chora, reconhece sons, entre tantas peripécias do
crescimento. É inevitável haver desencontro entre mãe e criança. Aliás, é
nesta falha, intervalo indispensável, que será possível ao sujeito advir.12
Mas essa criança só se tornará alguém passível de ser reconhecido pelo
outro e de poder constituir-se como subjetividade ao ser enredada pelo
circuito simbólico e movimentar seu desejo no intercâmbio de perdas e
ganhos entre objetos, afetos, valores e pensamentos.13 Diz o texto que o
menino “ajudará sua domesticação: ele é esforçado e coopera. Coopera sem
saber que essa ajuda que lhe pedimos é para o seu autossacrifício”.14
Domesticar, deteriorar e sacrificar apontam para o sentido da coerção e
violência sobre o corpo e o psiquismo do menino. Talvez pudéssemos
pensar nos efeitos do adestramento e da educação, formas pelas quais se
amolda o pequeno infans em seu ingresso na sociedade. Clarice vê com
desconfiança e amargura a inevitabilidade dessa ação que expulsa o menino
de sua imersão no “vazio profundo” ao lhe atribuir uma história.
O desfiladeiro pelo qual todos nós passamos e que nos desloca, nas
palavras do texto, “do tempo atual ao tempo cotidiano, da meditação à
expressão, da existência à vida”15 supõe uma inserção ininterrupta no
discurso do Outro, no código alheio. Essa passagem, propiciadora da “vida”
(diferente da “existência”, segundo o texto) exige ainda “o grande sacrifício
de não ser louco”, para “construir o possível, sacrificando a verdade que
seria uma loucura”.16
O risco de ficar de fora dessa teia de discursos que nos recebe ao
nascer e nos acompanha vida afora é, na visão do conto, nada menos do que
o enlouquecimento. Perde-se o núcleo vital, mas ganha-se o possível. É essa
troca que a psicanálise investiga a fundo, e que Clarice nos traz em palavras
e imagens certeiras.
A bela ideia da psicanalista Luciana Pires, mencionada no início deste
ensaio, é de que há dois esboços identitários que sustentariam o menino: um
é a imagem do retrato na parede (referido como “O menino”), no qual ele
apoia seu olhar para ficar de pé. Seria metaforicamente a moldura de um
contorno social, de fora e alienante, que serve ao eu como um espelho
integrador de seu caos interno, como diria Lacan em seu famoso ensaio.17
De outro lado, a baba que escorre da boca ao cair no chão (ele a olha e
“pensa bem alto: menino”) seria, para Pires, “suas vísceras postas para fora
e tornadas visíveis” — ao que se somarão o choro e o xixi na fralda
molhada. A analista diz que “entre seu retrato e a baba, o caminho
humanizante adota o primeiro eixo em detrimento do segundo […] A
umidade de suas entranhas é higienizada e seca pelos cuidados maternos,
restando um bebê sequinho de propaganda de fraldas”.18 Segundo Pires, os
chamados e os equívocos de interpretação da mãe selam o processo em que
o menino se aliena de si, ao ser capturado pela rede humana. Funda-se, aí,
“uma cisão entre a experiência de si mesmo, tal qual vivida de dentro e a
experiência compartilhada, nomeada, desenhada”.19 Concordo inteiramente
com o argumento e, como leitora, me pergunto: seria possível de outro
modo? Talvez. Para Freud, de O mal-estar na civilização, haveria um
excesso nos dispositivos e mecanismos sociais, culturais e políticos que
cerceiam a pulsionalidade (as “entranhas”, no caso), violentando o núcleo
vital. Entre a loucura e a adaptação, que nos seca as vísceras, deveria haver
uma terceira margem infensa à alienação. Talvez Clarice assim o desejasse,
abrindo brechas, em meio ao mais comum cotidiano, para um vislumbre
dessa luminosa e frágil possibilidade.

VISÃO DESCENTRADA

Passemos agora ao outro menino; quem sabe o mesmo, que já cresceu.


Embora a idade seja indefinida, trata-se de uma criança que domina com
maestria os recursos da linguagem e da racionalidade. Quase podemos
sentir a continuidade entre as narrativas, como se “Evolução de uma
miopia” trouxesse os embates sociofamiliares que o jogo imaginário
provoca, quando já se está fisgado pelo mundo circundante. O menino a
bico de pena agora enfrenta novas demandas.
A família envolve o menino no que seria um “rápido movimento do
tabuleiro de damas”, uma dinâmica de identificações de difícil apreensão.
Uma voz em terceira pessoa, mas acumpliciada inteiramente com sua
personagem, define o problema a ser enfrentado pelo protagonista ao longo
do texto: “Se era inteligente, não sabia. Ser ou não inteligente dependia da
instabilidade dos outros”.20 Se todos nós, como quer a psicanálise, somos
estrangeiros a nós mesmos, o que dirá uma criança em relação às regras do
jogo dos adultos que não pode codificar? Cito o texto: “quando era
considerado inteligente, tinha ao mesmo tempo a inquieta sensação de
inconsciência: alguma coisa lhe havia escapado. A chave de sua inteligência
também escapava”.21 Às vezes, chegava a reproduzir suas frases de sucesso,
mas a reação dessa vez era de indiferença. A criança percebe um
mecanismo automático na família, de troca de olhares e lugares quando diz
algo bem recebido, como uma “quadrilha de dança de filme de far-west.
[…] Eles se entendiam, os membros de sua família e entendiam-se à sua
custa”.22 Como provocar voluntariamente esse movimento no tabuleiro e
“apoderar-se da chave de sua inteligência? [...] Na tentativa de descoberta
de leis e causas, porém, falhava”.23
As estratégias para se apoderar da chave de si próprio formam a
tessitura desta narrativa de Lispector (e de grande parte de sua obra). Trata-
se aqui de se perceber estrangeiro a um idioma desconhecido. A
complexidade da rede e suas contradições, nas quais o menino se sente
externo ou excluído, abarca também os pais, que se desentendiam
permanentemente, ainda que “submissos às regras do jogo, como se
tivessem concordado em se desentenderem”.24
Os “laços de família”, tão bem amarrados no primeiro livro da autora,
ganham aqui novas configurações, a partir do olhar astuto de uma criança.
Como decodificar mensagens cambiantes e mutáveis, sem ser aprisionado
no tabuleiro de damas, na dança da quadrilha e nas regras do jogo? Na
desordem familiar havia algo inapreensível. O precoce menino é tomado
por indagações — “Por que uma vez conseguia mover a família, e outra vez
não”? “Sua inteligência era julgada pela falta de disciplina alheia?”.25 Até
que, um dia, passa a “substituir a instabilidade dos outros pela própria”,
vivendo um “estado de instabilidade consciente”.
Agora entremos no núcleo do conto. Os olhos, afinal, não poderiam
faltar, em se tratando de Clarice. A miopia progressiva, como deslocamento
e perda da visão de longo alcance, a cada nova conscientização do menino,
ganha corpo como metáfora central. Quanto mais a personagem percebe
que não possui controle sobre o que pensam dela, mais a miopia se instala,
apagando os contornos de fora e adensando o olhar interno. “Que a sua
própria chave não estava com ele, a isso ainda menino habituou-se a saber.
[…] E que a chave não estava com ninguém, isso ele foi aos poucos
adivinhando sem nenhuma desilusão, sua tranquila miopia exigindo lentes
cada vez mais fortes”.26
Talvez porque a miopia represente um abrigo ao desfocar o mundo
próximo e libertar o menino das inconstâncias (suas e dos outros).27 Sem
bem enxergar seu entorno, ele poderia ver melhor a si mesmo e recolher-se
no que lhe é próprio. Aliás, o olhar se eclipsa na miopia, que traz
embaçamento na distância e foco na proximidade dos detalhes. Resta um
modo diferenciado de ver, que acaba por situar o menino fora do jogo
imaginário, libertando-o das mutações familiares, ao habitar sua visão
interna.
É quando fica sabendo que passará um dia inteiro na casa de uma
prima casada, sem filhos e que adorava crianças. Por um dia, teria um amor
estável: “durante um dia inteiro, ele seria julgado o mesmo menino”.28
Ocupa-se em antecipar mentalmente a visita, decidindo como iria se
comportar, já que sua imagem para a prima permaneceria igual por um dia.
Começa a achar preocupante também a estabilidade… As garras dos
enquadres internos e externos em Clarice são poderosas. Quem afinal ele
seria para conquistar a prima? Se na família a inconstância era a norma,
com a prima tratava-se de evitar a fixação em uma imagem. Não só ele
poderia se estabilizar em algum erro que “se tornaria permanente”, como
considerava a própria prima “estabilizada pela permanente vontade de ter
filhos”.29 Mas, em ambos os casos, o que é alheio à própria subjetividade
continua a ditar a demanda de amor.
Chamo ainda a atenção para certos enunciados do narrador sobre o
menino que realçam seus atributos, digamos, próprios de uma maturidade
diferenciada: “Mas era um menino com capacidade de estática: sempre fora
capaz de manter a perplexidade como perplexidade, sem que ela se
transformasse em outro sentimento”.30 Ou ainda: “extraordinária calma de
óculos”,31 “[…] e com a capacidade que tinha de suportar a confusão — ele
era minucioso e calmo em relação à confusão […]”, “[p]ois
prematuramente — tratava-se de criança precoce — era superior à
instabilidade alheia e à própria instabilidade”.32 E, por fim, “[…] o passo
que muitos não chegam a dar ele já havia dado: aceitara a incerteza, e lidava
com os componentes da incerteza com a concentração de quem examina
através das lentes de um microscópio”.33
Ao lado do desvio de sua visão, ele também era um ponto fora da
curva da média de sua idade. E o exame microscópico lhe permitia ver mais
(ou diferente) onde em geral não se via.34 No entanto, mesmo em sua
singular precocidade, algo não se deixava revelar. A questão irrespondível
para o menino seria a seguinte: como saber o que está cifrado na mensagem
oculta do desejo da prima?

ENIGMAS DO OUTRO

Isso me leva a um operador de leitura psicanalítico: o conceito de


“significante enigmático” de Laplanche.35 O ponto de partida é que a
dinâmica da linguagem — carícias, gestos, palavras, afetos, expectativas
—, entre um adulto e uma criança, implica uma tradução de mensagens (e
isso nos evoca obliquamente o conto “A mensagem”, do mesmo livro…).
Laplanche retoma a noção de sedução nos escritos de Freud (1896-1897) e
acrescenta a dimensão da tradução, pelo receptor-criança, das mensagens
adultas atravessadas, comprometidas por aspectos de seu próprio
inconsciente sexual. Laplanche considera, inicialmente, a dissimetria sexual
entre o adulto e o infans como portadora de mensagens não codificáveis por
este. E embora, no conto, não se trate de um bebê sem linguagem, podemos
expandir o núcleo das ideias laplanchianas para pensar, metaforicamente, o
impasse tradutivo do discurso do outro adulto por uma criança em processo
de subjetivação.
Segundo o psicanalista, a sedução “funda-se sobre a situação à qual
nenhum ser humano pode escapar, a que chamo de situação antropológica
fundamental. Essa situação é a relação adulto-criancinha, adulto-infans”.36
Esse diálogo entre ambos, segue Laplanche,
por mais recíproco que seja, é imediatamente parasitado por outra coisa. A mensagem é
perturbada. Existe, da parte do adulto, num sentido unilateral, intervenção do inconsciente.
Digamos mesmo do inconsciente infantil do adulto, na medida em que a situação adulto-infans
é uma situação que reativa suas pulsões inconscientes infantis [grifos do autor].37

O que conta nessa situação é precisamente “a tentativa de tradução e o


necessário fracasso desta tentativa”.38 Reconhecemos no conto “Evolução de
uma miopia” esse fracasso, na medida em que o amor da prima pelo
protagonista (amor esse atravessado por conteúdos não acessíveis ao
menino e tampouco ao leitor) torna-se campo de dúvidas e projeções. Para
fazer frente ao significante enigmático do outro, os códigos inatos ou
adquiridos são insuficientes. Laplanche: “A criança deve recorrer a um
novo código, ao mesmo tempo improvisado por ela e buscado nos
esquemas fornecidos pelo meio cultural”.39
O fato é que os recursos de decifração do menino são desafiados a
cada novo acontecimento do mundo adulto. Na evolução do conto (e de sua
miopia), dois momentos o surpreendem: o primeiro é quando
“negligenciara um detalhe”, pois “a prima tinha um dente de ouro, do lado
esquerdo”,40 e “foi isso que num só instante desequilibrou toda a construção
antecipada”.41 O segundo era “a surpresa do amor da prima”. Por não ser
inicialmente evidente em seu amor, a prima deu-lhe “um dia inteiro vazio e
cheio de sol”, ao dizer que ia arrumar a casa e ele poderia brincar. A
expressão antitética, um “vazio cheio de sol”, talvez condense bem o fato
de que é na abertura ensolarada da ausência do olhar do outro que o menino
pode abrir-se também. No princípio, o amor sem filhos da prima permite a
ele ser, existir fora das idealizações e antecipações que uma gravidez
carrega. Luciana Pires anota, no artigo já citado, que “o amor com gravidez
confunde, sufoca; o amor sem gravidez liberta. Ou ainda, a falta é clara e
fecunda, a presença confunde e sufoca”.42
Improvisando, então, um novo código — ainda que retirado de seu
repertório cultural —, “resolveu que, já que tudo falhara, ele iria brincar de
‘não ser julgado’: por um dia inteiro ele não seria nada, simplesmente não
seria. E abriu a porta num safanão de liberdade”.43
Esses momentos duram pouco em Clarice e o enigma do significante
volta a pedir decifração: “à medida que o sol subia, a pressão delicada do
amor da prima foi se fazendo sentir. E quando ele se deu conta, era um
amado”. Suportar o “amor impossível” da prima, posto que “[e]ra um amor
pedindo, a posteriori, a concepção”, e que exigia dele que “tivesse nascido
do ventre dela”, faz com que o menino conheça “a estabilidade do desejo
irrealizável”, “do ideal inatingível”. E, diante da falta que percebe no outro
desejante, o menino descobre a sua própria falta: “pela primeira vez sentiu-
se atraído pelo imoderado: atração pelo extremo impossível. Numa palavra,
pelo impossível. E pela primeira vez teve amor pela paixão”.44 A frase
inconclusa deixa o leitor suspenso na significação que não se fecha: amor
pela paixão impossível que a prima sentia pelo filho que ela gostaria que ele
fosse? Ou amor pela paixão impossível que se abria nele pela prima?
A aprendizagem em tal situação de risco — em que o enigma da
mensagem permanece desafiador e funciona “como um corpo estranho
interno que é preciso a todo preço integrar, controlar”45 — parece ocorrer
por meio da própria miopia, já “evoluída” e instrumento de (in)decifração
às avessas. É na ausência de nitidez propiciada pela miopia que o menino
passa a ver “claramente o mundo” e a nebulosa que o caracteriza:
E foi apenas como se ele tivesse tirado os óculos e a miopia mesmo é que o fizesse enxergar.
Talvez tenha sido a partir de então que pegou um hábito para o resto da vida: cada vez que a
confusão aumentava e ele enxergava pouco, tirava os óculos sob o pretexto de limpá-los e,
sem óculos, fitava o interlocutor com uma fixidez reverberada de cego.46
Se, em Clarice, olhar é não ver e saber é não entender, o significante
enigmático também se mantém ao não se decifrar. Sua tradução é sempre
imperfeita, diz Laplanche.47 O que de fato a prima ocultava, em seus desejos
inconscientes, é opaco ao outro, seja o menino, seja o leitor. Quem narra
tampouco sabe, restando especular o que o menino conjectura, mudando de
opinião à mercê da instabilidade alheia. A miopia, afinal, é o seu ponto de
vista, capaz de abrigá-lo da sinuosidade dos adultos. Assim também a
ficção de Clarice, cuja visão míope48 nos faz ver melhor o quanto, de fato,
não sabemos. Pela “fixidez reverberada de cego”, desfocamos o outro e
mergulhamos na nossa própria “imprevisibilidade permanente”, nas
palavras do texto.
Finalmente, não só personagens e leitor entram no jogo de uma
decifração impossível, mas o mesmo jogo tem papel decisivo na impulsão
ficcional da autora. Arrisco dizer que sua trajetória pela literatura se faz sob
o signo do que os olhos não abarcam e do que o pensamento não codifica,
reagindo a infinitos “significantes enigmáticos” que a interpelam desde
sempre.
Para afirmar sua escrita outsider, transgressiva e geradora de
estranhamento, Clarice engendrou traduções (do que chegava a ela como
mistério) fora do dicionário que o “tabuleiro de damas” da vida psicossocial
preconizava. Instituiu ela mesma, em seus textos, significantes que nos
desafiam a uma perpétua tradução, em rede complexa e provocadora de
sentidos sempre alheios ao senso comum. E jogou fora a chave que nem ela
tinha, deixando reverberar sua linguagem como “permanente incerteza”.

NOTAS
1. Luciana Pires. “Concepções da infância em Clarice Lispector”. IX Congresso Internacional da
Abralic. Tessituras, interações, convergências, jul. 2008. Disponível em:
https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/048/LUCIANA_PIRES.pdf.
2. Utilizo aqui a edição de “Evolução de uma miopia” de Clarice Lispector, do volume A legião
estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, pp. 91-97.
3. O conto “Desenhando um menino” é republicado com título modificado para “Menino a bico de
pena”, no Jornal do Brasil em 18/10/1969, sendo posteriormente recolhido, com o segundo nome, no
volume de crônicas de Clarice Lispector, A descoberta do mundo (Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 240-
2). As citações serão desta última edição.

4. Ibid., p. 240.
5. Ibid., p. 241.
6. Ibid., p. 240.
7. Ibid., p. 241.
8. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 58.
9. Esse “hoje inapreensível”, que se aproxima ao “real lacaniano”, foi bem situado, em análise do
mesmo conto, no artigo “Redesenhando o menino: o real, o simbólico e o imaginário em Clarice
Lispector”, de Humberto Moacir de Oliveira, a partir dos conhecidos registros de Lacan. Oliveira
recorre, ainda, à oposição entre história e real nos estudos de Jacques-Alain Miller e afirma “A
oposição entre história e real também está presente em Clarice quando ela diz que a pura atualidade,
o que se encontra então, fora do processo de historicização, revela-se um empecilho para o
conhecimento do menino” (Psicanálise & Barroco em Revista, v. 12, n. 2, p. 140, dez. 2014). Portanto,
fora da história, que supõe uma narrativa simbólica, não há ainda um sujeito propriamente dito, como
nos revela a teoria lacaniana.
10. Ver, a esse respeito, a notável passagem de José Miguel Wisnik em seu texto “Diagramas para
uma trilogia de Clarice Lispector”, paradigmática da leitura que desenvolvo aqui: “O móvel secreto
do livro [A legião estrangeira] (na verdade da trilogia inteira), seu tropismo de fundo, pode-se dizer,
é o movimento de descida em direção àquele objeto irredutível que não se confina nem se submete à
sua condição de objeto; que interpela o sujeito sem se deixar nomear; que se volta enigmaticamente
sobre quem se volta para ele; que resiste a ser apreendido, designado, significado; que se furta
radicalmente deixando um rastro rasante de real; em outras palavras, que não é objeto e sim outra
coisa [...]. Cabe perfeitamente aqui a formulação lacaniana: o objeto é elevado à dignidade da Coisa”
[grifos do autor]. (Revista Letras. Curitiba: UFPR, n. 98, p. 296, jul.-dez. 2018).
11. Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, pp. 241-2.
12. Sobre esse desacerto profícuo entre mãe e filho, remeto o leitor ao livro de Donald Winnicott,
Bebês e suas mães, que positiva essas “incontáveis falhas” nas relações entre mãe e filho (São Paulo:
Ubu, 2020).
13. Oliveira mostra que a mãe “oferece a palavra e o conforto”, trazendo a dimensão simbólica
decisiva para a entrada do menino no mundo do Outro (a “morada do significante”). Com a palavra, a
criança desestabiliza seu universo imaginário, mas se transforma em alguém reconhecível pelo
entorno (op. cit., p. 146).
14. Clarice Lispector, A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 241.
15. Ibid. p, 241.
16. Ibid.
17. J. Lacan, “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: ______. Escritos. Rio de
Janeiro: Zahar, 1998, pp. 96-103.
18. Luciana Pires, p. 3.
19. Ibid., p. 2.
20. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 91.
21. Ibid.
22. Ibid.
23. Ibid., p. 92.
24. Ibid., p. 92.
25. Ibid.
26. Ibid.
27. A definição científica e médica da miopia pode oferecer interessante associação analítica com o
conto. Vejamos a seguinte descrição de um oftalmologista: “A miopia é um erro refrativo do globo
ocular no qual a imagem dos objetos no olho é focada incorretamente, isto é, os objetos são focados à
frente da retina, fazendo com que a visão dos objetos distantes pareça turva [...] A imagem não é
formada corretamente na retina — mas sim à frente da retina. Assim, a imagem transmitida ao
cérebro não corresponde à imagem correta”. Disponível em:
https://www.saudebemestar.pt/pt/clinica/oftalmologia/miopia. Acesso em: 21 abr. 2021. O precoce
menino se adiantaria à imagem externa (instável e não confiável), vendo “à frente da retina”. Com o
foco deslocado e distorcido, é possível desprender-se do visível. O que é erro na medicina se torna,
paradoxalmente, vantagem na literatura de Clarice. Aliás, o cacoete do míope piscando os olhos na
busca da nitidez é enfatizado no conto e associado tanto à curiosidade (“com os olhos pestanejando
de curiosidade”) quanto ao pensar, aquém ou além do ver: “Quando homem, manteve o hábito de
pestanejar de repente ao próprio pensamento, ao mesmo tempo em que franzia o nariz — o que
deslocava os óculos — exprimindo com esse cacoete uma tentativa de substituir o julgamento alheio
pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade” (Clarice Lispector, A legião
estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 92).
28. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 93.
29. Ibid., pp. 94-5.
30. Ibid., p. 92.
31. Ibid., p. 93.
32. Ibid., p. 94.
33. Ibid.
34. Para investigar mais a fundo as relações entre as modalidades de visão das personagens
claricianas e os procedimentos retóricos das narrativas, remeto o leitor ao instigante ensaio de Clara
Rowland, “Revelações ópticas: visão e distorção nos contos de Clarice Lispector”, onde a autora
também analisa o presente conto. Em certa altura, o argumento se define do seguinte modo: “Pensar a
distorção da visão nos contos da autora permite encontrar alguns movimentos, nestes percursos de
descoberta, que a representação da cegueira torna invisíveis: e na visão distorcida da miopia podemos
procurar o movimento ao mesmo tempo deslocado, desfocado, estranhante e extremamente preciso
da prosa de Clarice” (Em Românica. Revista de literatura. Departamento de Literaturas Românicas
Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, n. 19, 2010, p. 75).
35. Jean Laplanche. “Três acepções da palavra ‘inconsciente’ no âmbito da teoria da sedução
generalizada”. Em Sexual. A sexualidade ampliada no sentido freudiano — 2000-2008. Trad. de
Vanise Dresch e Marcelo Marques (caps. X e XIV). Porto Alegre: Dublinense, 2015, pp. 190-206.
36. Ibid., p. 191.
37. Ibid., p. 192.
38. Ibid., p. 193.
39. Ibid., p. 195.
40. A aparição inesperada do dente de ouro da prima nos remete à quebra do dente da mulher ao
morder a maçã no conto “Os obedientes”, do mesmo volume. Em ambos, trata-se de um
acontecimento disruptivo, que leva as personagens a reconfigurarem a visão de mundo. No caso do
conto citado, o caminho é trágico; já em “Evolução de uma miopia”, a existência do dente imprevisto
desequilibra “toda a construção antecipada”, mas gera novos reposicionamentos (p. 95).
41. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 95.
42. Luciana Pires, p. 7.
43. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 23.
44. Ibid., p. 96.
45. “A tradução da mensagem enigmática adulta não se faz em uma só vez, mas em dois tempos. O
esquema em dois tempos é o mesmo do traumatismo. No primeiro tempo a mensagem é
simplesmente inscrita, ou implantada, sem ser compreendida. Como se fosse mantida sob a camada
fina da consciência ou ‘sob a pele’. Num segundo tempo a mensagem é revivificada do interior. Ela
age como um corpo estranho interno que é preciso a todo preço integrar, controlar” (Laplanche, op.
cit., p. 195).
46. Clarice Lispector, A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992, p. 97.
47. Jean Laplanche. p. 195.
48. Refiro-me à expressão “visão de míope” que aparece no ensaio “O vertiginoso relance”, de Gilda
de Mello e Sousa (Exercício de leitura. São Paulo: Duas Cidades, 1980, p. 91), ainda que com diferentes
conotações.
* O presente texto retoma resumidamente, na sua primeira parte, alguns aspectos do meu ensaio
“Construindo um sujeito: leitura de ‘Menino a bico de pena’” (em Escritas do desejo: Crítica
literária e Psicanálise. Org. de Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosenbaum. Cotia/SP: Ateliê
Editorial, 2010, pp. 217-37), acrescentando a segunda análise, inédita, sobre “Evolução de uma miopia”.
(N.A.)

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LACAN , J. “O estádio do espelho como formador da função do eu”. In: ______. Escritos. Rio de
Janeiro: Zahar Editor, 1998, pp. 96-103.
LAPLANCHE, Jean. “Três acepções da palavra ‘inconsciente’ no âmbito da teoria da sedução

generalizada”. Em Sexual: A sexualidade ampliada no sentido freudiano — 2000-2008. Trad. de


Vanise Dresch e Marcelo Marques (caps. X e XIV). Porto Alegre: Dublinense, 2015, pp. 190-206.
LISPECTOR, Clarice. A legião estrangeira. São Paulo: Siciliano, 1992.

______. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


OLIVEIRA, Humberto Moacir de. “Redesenhando o menino: O Real, O Imaginário e o Simbólico em

Clarice Lispector”. Psicanálise & Barroco em Revista, v. 12, n. 2, p. 140, dez. 2014.
PIRES, Luciana. “Concepções da infância em Clarice Lispector”. IX Congresso Internacional da Abralic.

Tessituras, interações, convergências, jul. 2008. Disponível em:


https://abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/048/LUCIANA_PIRES.pdf.
ROSENBAUM, Yudith. “Construindo um sujeito: Leitura de ‘Menino a bico de pena’”. Escritas do desejo:

Crítica literária e Psicanálise. Org. de Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosenbaum. Cotia/SP:
Ateliê Editorial, 2010, pp. 217-37.
ROWLAND, Clara. “Reversões ópticas: Visão e distorção nos contos de Clarice Lispector. Românica:

Revista de Literatura. Departamento de Literaturas Românicas Faculdade de Letras da


Universidade de Lisboa, n. 19, 2010, pp. 71-88.
SOUSA, Gilda de Mello. “O vertiginoso relance”. In: ______. Exercícios de leitura. São Paulo: Duas

Cidades, 1980.
WISNIK, José Miguel. “Diagramas para uma trilogia de Clarice”. Revista Letras. Curitiba: ufpr, n. 98,

jul.-dez. 2018, pp. 283-303.


Índice de termos para busca
As obras sem indicação de autor são de autoria de Clarice Lispector

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África
Agência Nacional
Água viva
Ahimsa, Cláudia
Alighieri, Dante
“alma caridosa, Uma” (conto)
Alonso, Mariângela
Amaral, Suzana
Amarcord (filme)
“Amor” (conto)
Andersen, Hans Christian
Andrade, Cleyton
Andrade, Joaquim Pedro de
Andrade, Mário de
Andresen, Sophia de Mello Breyner
animismo
Antelo, Raúl
Antigo Testamento
aprendizagem, Uma ou o livro dos prazeres
Arap, Fauzi
Arêas, Vilma
Arrigucci Jr., Davi
“artista perfeito, O” (crônica)
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Aurora (Nietzsche)
“Autorretrato” (Barros)
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Azulay, Andréa

Bandeira, Manuel
Barbosa, Francisco de Assis
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Barthes, Roland
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Bataille, Georges
Baudelaire, Charles
“Beatriz” (canção)
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bela e a fera, A
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Berenson, Bernard
Bergman, Ingmar
Bergson, Henri
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“Bichos” (conto)
Blanchot, Maurice
Bliss (Mansfield)
Bloch, Pedro
“Bonecos de Barro” (conto)
Bonomi, Maria
Borelli, Olga
Bourdieu, Pierre
Braga, Rubem
Brandão, Darwin
“Brasília: cinco dias” (crônica)
Brasília: contradições de uma cidade nova (filme)
“Brasília: Esplendor” (crônica)
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Brod, Max
Buarque, Chico
Buber, Martin
“búfalo, O” (conto)
Bünte (revista)
Byington, Carlos

Caeiro, Alberto
Callado, Antônio
Camargo, Iberê
Camillo Penna, João
Campos, Álvaro de
Camus, Albert
Candido, Antonio
Cândido, Maria Fernanda
“Canto da mulher eterna” (poema)
Caos, metamorfose, sem sentido (pintura de Clarice)
Cardoso, Lúcio
Carpeaux, Otto Maria
“Cartas a Hermengardo” (conto)
Cartaxo, Marcélia
Carvalho, Luiz Fernando
Casa e jardim
César, Ana Cristina
Chagall, Marc
Chapeuzinho Vermelho (conto de fadas)
Chaves, Ernani
Christie, Agatha
“Chuva oblíqua” (Pessoa)
cidade sitiada, A
Cinderela
Clarice fotobiografia (Gotlib)
Collegio Hebreo-Idisch-Brasileiro, Recife
Colóquio Internacional: Cem Anos de Clarice Lispector (2020)
“Começos de uma fortuna” (conto)
Comício (jornal)
“Comportamento” (Barros)
“Concepções da infância em Clarice Lispector” (Pires)
contos de fadas
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“criação do homem, A” (Nissa)
“crime do professor de matemática, O” (conto)
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“desastres de Sofia, Os” (conto)
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“descoberta do mundo, A” (conto)
“Descobri o meu país” (poema)
“Devaneio…” (conto)
“Deve a mulher trabalhar?” (artigo)
Dialética do Esclarecimento (Adorno)
“Diálogos possíveis com Clarice Lispector” (coluna de revista)
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Diário do Povo
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Dom Casmurro (revista)
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Eliot, T.S.
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“Entre mulheres” (coluna de jornal)
Época, A (revista)
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“Espanha, canto e dança flamengos” (conto)
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“estrangeiro em Clarice Lispector, O” (Waldman)
“Eu e Jimmy” (conto)
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Evaristo, Conceição
“Evolução de uma miopia” (conto)
existencialismo
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“Explicação inútil” (conto)

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“galinha, Uma” (conto)


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Gaspar Simões, João
Gênese da Odisseia. O Fantástico e o Sagrado (Germain)
Gênesis, livro do
Germain, Gabriel
Gerontion (Eliot)
“Gertrudes pede um conselho” (conto)
Giudicelli, Raul
Gomes, Alair
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Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa)
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hassidismo
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“História interrompida” (conto)
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Hölderlin, Friedrich
holocausto
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hora da estrela, A (filme)
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“imitação da rosa, A” (conto)
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infamiliar, O (Freud)
infamiliaridade
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Jesus, Carolina Maria de
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Laplanche, Jean
Laufer, Moses
Lavoura arcaica (filme)
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“legião estrangeira, A” (conto)
Leibniz, Gottfried
Leitura de Clarice Lispector (Nunes)
Lemaitre, Georges
Leopoldo e Silva, Franklin
Levinas, Emmanuel
Levy, Anita
Lins, Álvaro
Lispector, Clarice (geral): afinidades com as artes visuais; alterações no ritmo do texto; alteridades
em; amor pelos bichos; animismo em; antropofagia e; arquétipos em; biografemas em: busca da
individuação em; carreira de jornalista; casas de; casa-se com Maury Gurgel Valente; como
estudante; como existencialista; como pintora; como poeta; como repórter da Agência Nacional;
como repórter em A Noite; contraste entre a vida contemplativa e a vida prática das personagens;
crítica à família burguesa; crônica sobre Persona de Bergman; crônicas de; desejo em;
desigualdade social brasileira e; e a barata; encontro com Ferreira Gullar; encontros precoces
em; enunciação sobre a própria morte; erotismo contido em; erotismo em; “estranho” em;
experiências estéticas de; fantasia e realidade em; fingimento em; formação da identidade em;
impressões sobre a África; infância no Recife; inspiração em histórias hassídicas; linguagem
“clandestina” de; masculinidade em; metaficção em; metalinguagem em; minimalismo em;
misticismo em; montanha como lugar e magia/transmutação; morte do pai; morte e enterro de;
movimento circular entre palavra e silêncio; narrativas de iniciação em; objetificação do sujeito
em; objetificação dos homens em; olhar fulminante de; organização tradicional da família em;
papel da mulher no casamento em; paternidade em; potência das imagens como recurso;
presença de artistas nas obras de; prosaico em; questão da adolescência feminina em; questão da
imigração de; questão da inocência em; questão da maternidade em; questão da origem em;
questão de justiça social em; questão do olhar em; questões de gênero em; racismo e;
radicalização no estilo a partir de Água viva; relação com as artes plásticas; religiosidade em;
resolução brusca no final dos textos; revelação do sexo para; ruptura com modelos e fronteiras
entre gêneros literários; sexualidade em; sexualidade feminina em; sobre a “maldição” de
escrever; sobre as grutas e cavernas; sobre o papel da arte e do artista; sobrenatural em;
subjetividade em; suspensão de sentido em; tentação em; trabalho em O Cruzeiro; tradução de
As viagens de Gulliver; transmutação em; troca de perspectiva com animais e objetos; uso da
arquitetura em; uso de repetições; visão psicanalítica sobre; vive em Berna, Suíça
Lispector, Clarice (contos): “alma caridosa, Uma”; “Amor”; “Bichos”; “Bonecos de Barro”; “búfalo,
O”; “Cartas a Hermengardo”; “Começos de uma fortuna”; “crime do professor de matemática,
O”; “desastres de Sofia, Os”; “descoberta do mundo, A”; “Devaneio…”; “Espanha, canto e
dança flamengos”; “Eu e Jimmy”; “Evolução de uma miopia”; “experiência maior, A”;
“Explicação inútil”; “Feliz aniversário”; “galinha, Uma”; “Gertrudes pede um conselho”;
“História interrompida”; “imitação da rosa, A”; “Instante alpino”; “jantar, O”; “laços de família,
Os”; “legião estrangeira, A”; “Literatura e justiça”; “Menino a bico de pena” ou “Desenhando
um menino” ou “Esboço de menino”; “menor mulher do mundo, A”; “mensagem, A”; “Mistério
em São Cristóvão”; “moça tranquila, A”; “Mocinha”; “Obsessão”; “Onde estivestes de noite?”;
“ovo e a galinha, O”; “partida do trem, A”; “pecadora queimada e os anjos harmoniosos, A”;
“Pepe, el guia”; “Perdoando Deus”; “Preciosidade”; “proteção pungente, A”; “quinta história,
A”; “relatório da coisa, O”; “repartição dos pães, A”; “Seco estudo de cavalos”; “Tempestade de
almas”; “Tentação”; “Trecho”; “Triunfo”
Lispector, Clarice (crônicas): “artista perfeito, O”; “Brasília: cinco dias”; “Brasília: Esplendor”;
“Ficção ou não”; “Mineirinho”; “Trechos”
Lispector, Clarice (romances e livros de contos): Água viva; aprendizagem, Uma ou o livro dos
prazeres; bela e a fera, A; cidade sitiada, A; descoberta do mundo, A; Felicidade clandestina;
hora da estrela, A; Laços de família; legião estrangeira, A; lustre, O; maçã no escuro, A; Onde
estivestes de noite; paixão segundo G.H., A; Perto do coração selvagem; sopro de vida, Um; via-
crúcis do corpo, A; vida íntima de Laura, A; Visão do esplendor
Lispector, Clarice (outras obras): “Canto da mulher eterna” (poema); Caos, metamorfose, sem sentido
(pintura); “Descobri o meu país” (poema); “Deve a mulher trabalhar?” (artigo); “Diálogos
possíveis com Clarice Lispector” (coluna de revista); “Entre mulheres” (coluna de jornal); Gruta
(pintura); Interior de gruta (pintura); “Literatura de vanguarda no Brasil” (palestra);
“Observações sobre o fundamento do direito de punir” (artigo); “Onde se ensinará a ser feliz”
(reportagem); “visita à Casa dos Expostos, Uma” (reportagem)
Lispector, Elisa (irmã)
Lispector, Mania Krimgold (mãe)
Lispector, Pedro (pai)
Lispector, Tania (irmã)
“Literatura de vanguarda no Brasil” (palestra)
“Literatura e justiça” (conto)
Literatura europeia e Idade Média latina (Curtius)
livro de Jó, O
Lucia Helena
Lukács
lustre, O
luta corporal, A (Ferreira Gullar)

maçã no escuro, A
Machado de Assis
Madame Bovary (Flaubert)
Magalhães Junior, Raimundo
Magalhães, Paulo e Gisela
mágico de Oz, O (filme)
Mahler, Gustav
Mais (revista)
mal-estar na civilização, O (Freud)
Manchete
Mandelbaum, Belinda
Mandelbaum, Enrique
Manhã, A (jornal)
Mansfield, Katherine
Martins, Gilberto Figueiredo
Masculine Domination (Bourdieu)
Mello e Souza, Gilda de
Memórias Póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis)
Mendes de Sousa, Carlos
“Menino a bico de pena” ou “Desenhando um menino” ou “Esboço de menino” (conto)
“menor mulher do mundo, A” (conto)
“mensagem, A” (conto)
Metamorfose (Kafka)
Meyer, Augusto
Michaux, Henri
Milliet, Sérgio
“Mineirinho” (crônica)
Mineirinho (José Miranda Rosa)
“Mistério em São Cristóvão” (conto)
“moça tranquila, A” (conto)
“Mocinha” (conto)
Montero, Teresa
Moraes, Eliane Robert
Moraes, Vinícius de
Moreira, Álvaro
“Morte de Clarice Lispector” (Ferreira Gullar)
Moser, Benjamin
Motta e Silva, Djanira da
Motta Pessanha, José Américo
mundo como vontade e representação, O (Schopenhauer)

Nassar, Raduan
Niemeyer, Oscar
Nietzsche, Friedrich
Nissa, Gregório de
Nodari, Alexandre
Noite, A (jornal)
Nordeste (revista)
Nunes, Aparecida Maria
Nunes, Benedito

“Observações sobre o fundamento do direito de punir” (artigo)


“Obsessão” (conto)
Odisseia (Homero)
Oiticica, Hélio
Oliveira, Franklin de
“Onde estão?” (Ferreira Gullar)
Onde estivestes de noite
“Onde estivestes de noite?” (conto)
“Onde se ensinará a ser feliz” (reportagem)
Ormundo, Wilton de Souza
“ovo e a galinha, O” (conto)

paixão segundo G.H., A


paixão segundo G.H., A (filme)
“Palavras” (Barros)
Pan (revista)
Paris Match
“partida do trem, A” (conto)
Pasquim
Passos, Cleusa Rios P.
Patrística (doutrina cristã)
Pauliceia desvairada (Andrade)
“pecadora queimada e os anjos harmoniosos, A” (conto)
Penna, Alceu
Penna, João Camillo
Pensar em não ver: escritos sobre as artes do visível (Derrida)
“Pepe, el guia” (conto)
“Perdoando Deus” (conto)
Perez, Renard
Persona (filme)
perspectivismo
Perto do coração selvagem
Pessoa, Fernando
Picasso, Pablo
Piglia, Ricardo
Piñon, Nélida
Pires, Luciana
Poe, Edgar Allan
Poema sujo (Ferreira Gullar)
Pontes, Paulo
Pontieri, Regina Lúcia
“Preciosidade” (conto)
Primeiras Estórias (Guimarães Rosa)
“Profundamente” (Bandeira)
“proteção pungente, A” (conto)
Proust, Marcel
psicanálise, interpretação dos sonhos na
psicanálise, processos identificatórios primários em
psicanálise, visões sobre a obra de Clarice
Pzhysha, Bunam de

Quadros, Tereza (pseudônimo de Lispector)


Quarto de despejo (Jesus)
“quinta história, A” (conto)

“relatório da coisa, O” (conto)


“repartição dos pães, A” (conto)
retrato de Dorian Gray, O (Wilde)
“retrato oval, O” (Poe)
Riaudel, Michel
Rilke, Rainer Maria
Rimbaud, Arthur
Robbe-Grillet, Allain
Rocha, Glauber
Rodrigues, Augusto
Rosenbaum, Yudith
Rowland, Clara
Rufinoni, Simone

Sá, Olga de
Sabino, Fernando
Salgado, Zélia
Sammer, Renata
Santa Rosa, Tomás
Santos, Euclides L.
sapatinhos vermelhos, Os (Andersen)
Sartre, Jean-Paul
Schaeffer, Jean-Marie
Scholem, Gershom
Schopenhauer, Arthur
Scortecci, José
“Seco estudo de cavalos” (conto)
segundo sexo, O (Beauvoir)
Ségur, Condessa de
Senhor (revista)
Silveira, Joel
Silveira, Tasso da
Simmel, Georg
sobrenatureza
sopro de vida, Um
Starobinski, Jean
Steiner, George
Stigger, Verônica
Swift, Jonathan

Tavares, Pedro Heliodoro


Tchekhov, Anton
“Tempestade de almas” (conto)
“Tentação” (conto)
Teoria da Grande Explosão ou Big Bang
teoria do romance, A (Lukács)
Totem e tabu (Freud)
“Trecho” (conto)
“Trechos” (crônica)
“Triunfo” (conto)
Trocoli, Flávia

último leitor, O (Piglia)


Unfinished portrait (Westmacott)
Universidade de São Paulo

Valente, Maury Gurgel


Valentim, Marco Antonio
Vamos Ler! (revista)
Vargas, Darcy
Vargas, Getúlio
via-crúcis do corpo, A
viagens de Gulliver, As (Swift)
Vianna Filho, Oduvaldo
vida íntima de Laura, A
Visão do esplendor
“visita à Casa dos Expostos, Uma” (reportagem)
Viveiros de Castro, Eduardo
volta do parafuso, A (James)

Wagner, Richard
Waldman, Berta
Westmacott, Mary (ou Agatha Christie)
Wilde, Oscar
Williams, Claire
Wisnik, José Miguel
Woolf, Virginia

Ziraldo
Zorzanelli, Rafaela
Sobre os autores

é pesquisadora do CNPq e foi professora de Teoria Literária e


ADELIA BEZERRA DE MENESES

Literatura Comparada na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e


na Universidade de São Paulo (USP). Lecionou literatura brasileira na
Technische Universität, de Berlim. Publicou diversos livros e, em 1982,
ganhou o Prêmio Jabuti de Ensaio com um texto que posteriormente se
tornou Desenho Mágico: Poesia e Política em Chico Buarque (Ateliê
Editorial, 2022).

é professor do Departamento de Literatura e Linguística e dos


ALEXANDRE NODARI

programas de pós-graduação em Letras e em Filosofia da Universidade


Federal do Paraná (UFPR). É também bolsista de Produtividade em Pesquisa 2
do CNPq. Fundador e coordenador do species — Núcleo de Antropologia
Especulativa. É coordenador editorial da Mandakaru Editora.

é professor associado de Literaturas Lusófonas na Texas Tech


ANTÓNIO LADEIRA

University, nos EUA. É licenciado em Estudos Portugueses pela Universidade


Nova de Lisboa e doutor em Línguas e Literaturas Hispânicas pela
Universidade da Califórnia. Como bolsista da Comissão Fulbright, foi
pesquisador visitante na USP, com um projeto sobre Clarice Lispector.
Publicou cinco livros de poesia, um romance e quatro livros de contos em
Portugal, Colômbia e Brasil.

é graduada em Letras e em Comunicação Social. É doutora e


APARECIDA MARIA NUNES

mestre em Literatura Brasileira pela USP e pós-doutora em Estudos Literários


pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Publicou Clarice
Lispector jornalista: Páginas femininas & outras páginas (Senac, 2006),
além de outros livros que organizou para a editora Rocco: Clarice na
cabeceira: Jornalismo (2012), Correio para mulheres (2018), Correio
feminino (2006) e Só para mulheres (2008).

é psicanalista e professora associada do Departamento de


BELINDA MANDELBAUM

Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, onde


também coordena o Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero
e Sexualidade. Desenvolve atividades de ensino e pesquisa na interface
entre psicanálise e psicologia social, em particular com famílias em situação
de vulnerabilidade social. Escreveu, entre outros, Psicanálise da família
(Artesã, 2020) e Trabalhos com famílias em Psicologia Social (Casa do
Psicólogo, 2014), bem como artigos em revistas nacionais e estrangeiras.

tem se dedicado especialmente ao estudo da literatura


CARLOS MENDES DE SOUSA

brasileira e da poesia portuguesa moderna e contemporânea. Dedicou vários


estudos a Clarice Lispector, dispersos em publicações coletivas, assim como
os livros Clarice Lispector: Figuras da escrita (IMS Editora, 2012) e Clarice
Lispector: Pinturas (Rocco, 2013). É codiretor da Fundação Luís Miguel
Nava e da revista de poesia Relâmpago.

é professora associada do Departamento de Estudos Portugueses


CLARA ROWLAND

da Universidade Nova de Lisboa e pesquisadora do Instituto de Estudos de


Literatura e Tradição. Desenvolve o seu trabalho em Literatura Brasileira,
Literatura Comparada e Estudos Interartes. Suas publicações em Estudos
Brasileiros incluem ensaios sobre Guimarães Rosa, Clarice Lispector,
Bernardo Carvalho, Raduan Nassar, Manuel Bandeira, Carlos Drummond
de Andrade. É autora de A forma do meio: Livro e narração na obra de
João Guimarães Rosa (Editora da Unicamp/Edusp, 2011).

é doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do


CLARISSE FUKELMAN

Rio de Janeiro (UFRJ) e foi professora na PUC-Rio, onde idealizou e


implementou a pós-graduação em Leitura, Teoria e Prática. É curadora de
seminários internacionais e exposições. Escreveu e dirigiu a peça Ao redor
da tela com Clarice Lispector (Sesc Rio) e foi organizadora dos livros
Contos em quatro tempos (Sesc, 2009), Eu assino embaixo: Biografia,
memória e cultura (EdUERJ, 2014), Poesia em pauta (Edições Oito e Meio,
2015).

é professora titular de Teoria Literária e Literatura Comparada


CLEUSA RIOS P. PASSOS

da USP. Entre suas principais publicações estão Confluências: Crítica


literária e psicanálise (Nova Alexandria, 1990), Guimarães Rosa: Do
feminino e suas estórias (Hucitec, 2000) e As armadilhas do saber:
Relações entre literatura e psicanálise (Edusp, 2009). Participou ao lado de
Yudith Rosenbaum da organização de Escritas do desejo: Ensaios de crítica
literária e psicanálise (Ateliê Editorial, 2010), Interpretações: Crítica
literária e psicanálise (Ateliê Editorial, 2014) e Infinitamente Rosa
(Humanitas, 2018), este último também com Sandra Vasconcelos.

é mestre e doutora em Letras com especialização em Tradução e


ELIANE FITTIPALDI

fez pós-doutorado em Literatura Brasileira, pela USP, onde também lecionou


literatura portuguesa. Também foi professora de teoria da literatura, língua
francesa, literatura norte-americana e crítica literária, na PUC-SP, e de
comunicação empresarial, na Fundação Getúlio Vargas. Hoje dedica-se a
cursos ad hoc na Casa Guilherme de Almeida, à pesquisa e a publicações de
crítica e tradução principalmente literárias, atividade que exerce desde
1979. É autora de Trajetórias do feminino em narrativas de Clarice
Lispector, Simone de Beauvoir & Agnès Varda (Hucitec, 2021).

é professora de literatura brasileira na USP, pesquisadora do CNPq


ELIANE ROBERT MORAES

e bolsista do Instituto de Estudos Avançados da USP. Publicou diversos


ensaios sobre o imaginário erótico na literatura, entre os quais O corpo
impossível, lições de Sade: Ensaios sobre a imaginação libertina
(Iluminuras, 2011) e Perversos, amantes e outros trágicos (Iluminuras,
2013). Organizou a Antologia da poesia erótica brasileira (Tinta da China,
2017) e a coletânea O corpo descoberto: Contos eróticos brasileiros (Cepe,
2018).

ENRIQUE é psicanalista e educador. Fez doutorado em Língua e


MANDELBAUM

Literatura Hebraica e pós-doutorado em Literatura Comparada, na USP.


Escreveu Franz Kafka: Um judaísmo na ponte do impossível (Perspectiva,
200٣) e diversos artigos de crítica literária e psicanálise em revistas
nacionais e estrangeiras.

é graduado em Letras pela USP, onde concluiu mestrado e


GILBERTO FIGUEIREDO MARTINS

doutorado em Literatura Brasileira, ambos sobre Clarice Lispector e sob


orientação de Valentim Facioli. Realizou estágio de pós-doutoramento na
Unicamp e especializações em História das Religiões e Religiosidades na
Universidade Estadual de Maringá (UEM-PR) e em Direção e Atuação (E.S.A. Célia
Helena-SP). É autor do livro Estátuas invisíveis: Experiências do espaço
público na ficção de Clarice Lispector (Edusp/Edições Nankin, 2010).
Desde 2006, é professor de literatura na Universidade Estadual Paulista
(Unesp).
é professor titular de Teoria Literária e Literatura Comparada da
JOÃO CAMILLO PENNA

UFRJ. Escreveu o livro de poemas Parador (Móbile, 2011) e os volumes de

crítica Escritos da sobrevivência (7Letras, 2013) e O tropo tropicalista


(Azougue/Circuito, 2017). Traduziu com Virginia Figueiredo A imitação
dos modernos: Ensaios sobre arte e filosofia, de Philippe Lacoue-Labarthe
(Paz e Terra, 2000); com Eclair Almeida e outros, Demanda: Literatura e
filosofia (Argos/Editora da UFSC, 2016), de Jean-Luc Nancy, e com Marcelo
Jacques de Moraes, Documents, de Georges Bataille (Cultura e barbárie,
2018).

é músico, ensaísta e professor sênior de literatura brasileira na


JOSÉ MIGUEL WISNIK

USP. É autor de O som e o sentido: Uma outra história das músicas

(Companhia das Letras, 1989), Sem receita: Ensaios e canções (Publifolha,


2004), Machado maxixe: O caso Pestana (Publifolha, 2008), Veneno
remédio: O futebol e o Brasil (Companhia das Letras, 2008), Maquinação
do mundo: Drummond e a mineração (Companhia das Letras, 2018). Foi
professor convidado nas universidades da Califórnia e de Chicago, nos EUA.
Foi premiado com o Jabuti de Literatura, o prêmio da Associação Paulista
de Críticos de Arte (APCA), o prêmio do Festival de Cinema de Gramado e o
Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional.

LUCIA é professora titular aposentada do Instituto de Letras da


HELENA

Universidade Federal Fluminense (UFF) e professora associada aposentada da


Faculdade de Letras da UFRJ, onde idealizou e fundou o Núcleo
Interdisciplinar de Estudos da Mulher na Literatura. Foi pesquisadora do
CNPq de 1993 a 2022. É autora de Ficções do desassossego (Contracapa,

2010), Náufragos da esperança: A literatura na época da incerteza (Editora


Raquel, 2012), Nem musa, nem medusa: Itinerários da escrita em Clarice
Lispector (Eduff, 2012), Uma literatura inquieta (Caetés, 2016). É
professora visitante em várias universidades no exterior e no Brasil.

é doutora em Estudos Literários pela Unesp, com período


MARIÂNGELA ALONSO

sanduíche na Universidade Paris-Sorbonne. Possui pós-doutorado pela USP e


é autora de três livros sobre Clarice Lispector. Em 2012 foi laureada
internacionalmente com o prêmio de melhor ensaio acadêmico sobre a obra
clariciana pela International Society for Humor Studies. Suas pesquisas
englobam Clarice Lispector e a narrativa brasileira moderna. Atualmente
desenvolve um segundo estágio pós-doutoral na USP sobre a obra de Marques
Rebelo.

é professor titular da Agrégation de Letras e fez doutorado em


MICHEL RIAUDEL

Literatura Comparada sobre a intertextualidade e a tradução na obra de Ana


Cristina Cesar pela Universidade Paris Nanterre. Pesquisa literatura
brasileira, circulações literárias, questões de recepção, transferência e
regimes de conhecimento. É professor responsável do Departamento de
Estudos Lusófonos e diretor da UFR de Estudos Ibéricos e Latino-Americanos
da Universidade Sorbonne. Traduziu Ana Cristina Cesar, Modesto Carone,
José Almino, Milton Hatoum, João Guimarães Rosa, entre outros.

é professora livre-docente de literatura brasileira da USP e


NÁDIA BATTELLA GOTLIB

pesquisadora sênior do CNPq. Também foi professora visitante de várias


universidades brasileiras. No exterior, entre outras instituições, atuou como
Senior Assistant Membre junto à Universidade de Oxford e à Universidade
de Buenos Aires. Publicou onze livros, entre eles Clarice, uma vida que se
conta (Edusp, 2013) e Clarice: Fotobiografia (Edusp/Imprensa Oficial do
Estado de São Paulo, 2014), ambos traduzidos para o espanhol,
respectivamente, na Argentina e no México.

é escritora e professora de escrita, literatura e crítica literária.


NOEMI JAFFE

Também é doutora em Literatura Brasileira pela USP e escreveu os seguintes


livros: O que os cegos estão sonhando? (Editora 34, 2012), A verdadeira
história do alfabeto (Companhia das Letras, 2012, vencedor do Prêmio
Brasília de Literatura), Írisz: As orquídeas (Companhia das Letras, 2015),
Não está mais aqui quem falou (Companhia das Letras, 2017) e O que ela
sussurra (Companhia das Letras, 2020), entre outros. Desde 2016, coordena
o centro cultural A Escrevedeira, onde dá aulas de escrita de ficção.

é professora livre-docente aposentada da USP. Como especialista


REGINA LÚCIA PONTIERI

em teoria do conto, publicou ensaios sobre Edgar Poe, Anton Tchekhov,


Virgínia Woolf e outros. Sobre Clarice Lispector, publicou Clarice
Lispector: Uma poética do olhar (Ateliê Editorial, 2010) e, como
organizadora e coautora, Leitores e leituras de Clarice Lispector (Hedra,
2004). Publicou A voragem do olhar (Perspectiva, 1988), sobre os
romances de José de Alencar.
é doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada pela USP, com
RICARDO IANNACE

estágio pós-doutoral em Estudos Literários e Culturais pela UFMG. É também


professor das faculdades de tecnologia do Estado de São Paulo (Fatecs) e da
pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa da USP. Escreveu A Leitora Clarice Lispector (Edusp, 2001),
Retratos em Clarice Lispector: Literatura, pintura e fotografia (Editora da
UFMG, 2009) e Murilo Rubião e as arquiteturas do Fantástico (Edusp, 2016).

é professora de literatura brasileira da USP. É também autora


SIMONE ROSSINETTI RUFINONI

de Favor e melancolia: Estudo sobre A menina morta, de Cornélio Penna


(Edusp/Edições Nankin, 2010) e organizadora do volume Caminhos da
lírica brasileira contemporânea: Ensaios (Edições Nankin, 2013). Atua
como pesquisadora e crítica literária com foco nas relações entre literatura e
sociedade. Entre seus temas de pesquisa, destacam-se a poesia e a prosa
brasileiras do século 19 até a contemporaneidade, com foco na prosa
brasileira a partir de 1930.

é escritora, professora universitária e curadora independente. É


VERONICA STIGGER

doutora em Teoria e Crítica de Arte pela USP e realizou pesquisas de pós-


doutorado junto à Università degli Studi di Roma “La Sapienza”, ao Museu
de Arte Contemporânea da USP (MAC-USP) e ao Instituto de Estudos da
Linguagem da Unicamp. É professora da pós-graduação em Histórias das
Artes da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP). Foi curadora, entre
outras, das exposições Maria Martins: Metamorfoses (2013) e O Útero do
Mundo (2016), ambas no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP). Ao
lado de Eucanaã Ferraz trabalha na curadoria da exposição Constelação
Clarice, do Instituto Moreira Salles (IMS).

é titular aposentada de Literatura Brasileira na Unicamp. Foi


VILMA ARÊAS

professora convidada pelas universidades de Salamanca, na Espanha, e de


Berkeley, nos EUA. É autora de ensaios e ficção. Entre os primeiros, Na
tapera de Santa Cruz (Martins Fontes, 1987) e Clarice Lispector com a
ponta dos dedos (Companhia das Letras, 2005). Ganhou o Prêmio Jabuti
pelos títulos Aos trancos e relâmpagos (Iluminuras, 2013) e Um beijo por
mês (Luna Parque edições, 2018). Traduziu com Francisco Guimarães O
método Albertine, de Anne Carson (Edições Jabuticaba, 2017).
é professora de literatura brasileira na USP. Trabalha na interface
YUDITH ROSENBAUM

da literatura com a psicanálise, pesquisando autores do século 20 como


Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Clarice Lispector. É autora dos livros
Manuel Bandeira: Uma poesia da ausência (Edusp, 2002), Metamorfoses
do mal: Uma leitura de Clarice Lispector (Edusp, 2006) e Clarice
Lispector (Publifolha, 2002). Organizou em parceria com Cleusa Rios P.
Passos as coletâneas Escritas do desejo (Ateliê Editorial, 2011),
Interpretações (Ateliê Editorial, 2014) e Infinitamente Rosa (Humanitas,
2018), esta última também com Sandra Vasconcelos.
Copyright da apresentação e da organização © Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios P. Passos, 2021

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou
transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem a permissão expressa e por escrito da
Editora Fósforo.

Todos os esforços foram feitos para determinar os fotógrafos de todas as imagens utilizadas na capa
deste livro, porém isso nem sempre foi possível. Teremos prazer em creditar as fontes, caso se
manifestem.

EDITORA Juliana de A. Rodrigues


Mariana Correia Santos e Cristiane Alves Avelar
ASSISTENTES EDITORIAIS

PREPARAÇÃO Andressa Bezerra

REVISÃO Anabel Ly Maduar, Paula B. P. Mendes e Andrea Souzedo

ÍNDICE ONOMÁSTICO Marco Mariutti

PRODUÇÃO GRÁFICA Jairo da Rocha

CAPA Luciana Facchini

IMAGENS DE CAPA 1. Fotógrafo não identificado/Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles; 2. Foto

Mosso/Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles; 3. Fotógrafo não identificado/Acervo


Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles; 4. Fotógrafo não identificado/Acervo Clarice
Lispector/Instituto Moreira Salles; 5. Fotografia de Bluma Wainer/Acervo Clarice Lispector/Instituto
Moreira Salles; 6. Fotógrafo não identificado/Acervo Clarice Lispector/Instituto Moreira Salles
PROJETO GRÁFICO DO MIOLO Alles Blau

EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Página Viva

VERSÃO DIGITAL Marina Pastore

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Um século de Clarice Lispector [livro eletrônico] / organização Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosenbaum. -- São Paulo, SP : Fósforo, 2021.
ePub

Vários autores.
ISBN 978-65-89733-49-2

1. Ensaios brasileiros - Coletâneas 2. Lispector, Clarice, 1920-1977 - Crítica e interpretação


I. Passos, Cleusa Rios P. II. Rosenbaum, Yudith.

21-85191 CDD-B869

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira : Antologia B869

Eliete Marques da Silva - Bibliotecária - CRB-8/9380

Editora Fósforo
Rua 24 de Maio, 270/276
10o andar, salas 1 e 2 — República
01041-001 — São Paulo, SP, Brasil
Tel: (11) 3224.2055
[email protected]
www.fosforoeditora.com.br
O lugar
Ernaux, Annie
9786589733034
72 páginas

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Livro que lançou Annie Ernaux à fama, O lugar, inédito no Brasil,


estabelece as bases para o projeto literário que Ernaux levaria adiante por
três décadas de consagração crítica e sucesso de público. Nesta
autossociobiografia, uma das mais importantes escritoras vivas da França se
debruça sobre a vida do próprio pai para esmiuçar relações familiares e de
classe, numa mistura entre história pessoal e sociologia que décadas mais
tarde serviria de inspiração declarada a expoentes da auto ficção mundial e
grandes nomes da literatura francesa como Édouard Louis e Didier Eribon.
O resultado é um clássico moderno profundamente humano e original.

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O vento mudou de direção
Duarte, Simone
9786589733294
240 páginas

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Muitos livros foram escritos sobre os eventos do Onze de Setembro, mas


são raríssimos os relatos que resgatam a experiência daqueles que, apenas
por haver nascido em certos países, tiveram suas existências transformadas,
frequentemente de forma devastadora. Neste livro eletrizante, resultado de
entrevistas colhidas em primeira mão, a jornalista Simone Duarte revela a
vida de sete pessoas de quatro nacionalidades distintas que nada teriam em
comum, não fossem a tragédia do atentado às Torres Gêmeas em Nova York
em 2001 e suas consequências. Ao dar voz a essas personagens, Duarte faz
emergir a ponta de um iceberg de histórias que o Ocidente desconhece —
mesmo passadas duas décadas do instante em que o vento mudaria de
direção — e nos lembra dos perigos de aceitar uma história única.

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Kentukis
Schweblin, Samanta
9786589733096
192 páginas

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O que aconteceria se fosse permitido às pessoas entrar na casa de


desconhecidos e circular livremente por meio de um dispositivo tão
adorável quanto um robô de pelúcia? Do que somos capazes quando
guiados pelas regras incertas de um novo contrato social e sob a garantia do
anonimato? Neste romance original e divertido, mas também aterrador,
Samanta Schweblin, uma das principais vozes da literatura argentina atual,
explora o lado inquietante da tecnologia e constrói um poderoso retrato da
vida moderna. Solidão, afeto e generosidade, mas também oportunismo,
infâmia e perversão, são alguns dos sentimentos que, atravessados pela
virtualidade e pela paradoxal fragilidade da comunicação contemporânea,
compõem este romance demasiado humano, verdadeira anatomia moral de
nossos dias.

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Psiconautas
Leite, Marcelo
9786589733010
264 páginas

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Em Psiconautas, fruto de uma extensa pesquisa, Marcelo Leite conta a


história das principais drogas psicodélicas, desde sua descoberta no século
20 até o uso medicinal revolucionário que vem sendo feito de cada uma
delas atualmente. Mesclando relatos da própria experiência com várias
dessas substâncias ao perfil dos principais pesquisadores da área, muitos
deles brasileiros, Leite oferece um panorama completo do chamado
renascimento psicodélico, desfaz mitos e aponta para conquistas científicas
há pouco tempo impensáveis, como tratamento para a dependência química,
a depressão e a síndrome do estresse pós-traumático, entre outros benefícios
ainda sendo pesquisados. O livro recebeu um prefácio de Sidarta Ribeiro
que, junto a Luís Fernando Tófoli, Stevens "Bitty" Rehen e Dráulio de
Araújo, compõe o grupo dos psiconautas brasileiros que guiaram Marcelo
em suas explorações.

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Os anos
Ernaux, Annie
9786589733157
224 páginas

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Uma das principais escritoras francesas da atualidade, Annie Ernaux,


empreende neste livro a ambiciosa e bem-sucedida tarefa de escrever uma
autobiografia impessoal. Com ousadia e precisão estilística, ela lança mão
de um sujeito coletivo e indeterminado, que ocupa o lugar do eu para dar
luz a um novo gênero literário, no qual recordações pessoais se mesclam à
grande História, numa evocação do tempo única. Nascida em 1940, em uma
pequena cidade no interior da França, Ernaux pertence a uma geração que
veio ao mundo tarde demais para se lembrar da guerra, mas que foi
receptora imediata das recordações e mitologias familiares daquele tempo.
Uma geração que nasceu cedo demais para estar à frente de Maio de 68,
mas que ainda assim viu naquelas manifestações a possibilidade dos mais
jovens de uma liberdade que por pouco não pode gozar. Finalista do
International Booker Prize e vencedor dos prêmios Renaudot na França e
Strega na Itália, Os anos é uma meditação filosófica poderosa e uma
saborosa crônica de seu tempo. Pela prosa original de Ernaux, vemos passar
seis décadas de acontecimentos, entre eles a Guerra da Argélia, a revolução
dos costumes, o nascimento da sociedade de consumo, as principais
eleições presidenciais francesas, a virada do milênio, o 11 de Setembro e as
inovações tecnológicas, signo sob o qual vivemos até hoje.

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