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PROMOTOR

Pedro Alcântara
Série homens da lei
Livro 4
Mari Sillva
PRÓLOGO

Paula

Sete anos atrás

— Vai ficar tudo bem, meu amor, a mamãe


promete. – Faço carinho no rosto da minha filha
enquanto lágrimas deslizam pelo meu rosto.
Minha vida mudou completamente no instante
em que conheci o pai da Maria. Eu era jovem e
ingênua, acreditava em todas as palavras doces que
saíam da boca dele. Meu primeiro amor. O cara que
pensei que seria para sempre. Mas o "para sempre"
não durou nem até a próxima manhã. Naquela noite,
entreguei a ele o que eu tinha de mais precioso: minha
confiança, minha inocência. Era virgem e me joguei de
corpo e alma pensando que ficaríamos juntos para
sempre, mas, quando o sol nasceu, Douglas já não
estava mais lá ao meu lado.
Só havia um bilhete mal escrito, e uma sensação
de vazio me consumindo. Cada palavra era como uma
lança contra o meu peito.
“Comer você foi mais fácil do que pensei, Paula.
Mas como eu não repito figurinha no meu álbum,
adeus, vadia.”

Essas foram as últimas palavras deixadas pelo


pai da minha filha em um pedaço de papel amassado,
lembro de chorar por vários dias. E quando pensei que
enfim estava começando a superar o Douglas, o cara
mais descolado do meu bairro, eu descubro que estou
grávida. Fiquei em choque! Quem engravida logo na
primeira vez? E nem durou tanto assim, foi coisa de
alguns minutos, nem senti dor ao perder a virgindade.
E agora tinha uma bebê a caminho, eu não poderia
estar mais aterrorizada. Contar para os meus pais foi
uma das coisas mais difíceis que já fiz. Eles eram
rígidos, severos, cheios de moral, e nunca
entenderiam.
Na verdade, meus pais não só não entenderam
como me expulsaram da vida deles, já que me recusei
a interromper a gestação como eles exigiram. Fazer um
aborto nunca passou pela minha cabeça em nenhum
segundo, eu já amava o meu filho com todas as forças
e faria de tudo para protegê-lo. Fui jogada para fora de
casa só com a roupa do corpo, sem um centavo no
bolso e com um bebê crescendo dentro de mim.
Implorei por ajuda de vizinhos e conhecidos, precisava
de um lugar para ficar até conseguir um trabalho e
poder me virar sozinha.
Mas todos me viraram as costas, até os irmãos
da igreja que minha família frequentava toda semana.
Então a partir dali a rua se tornou meu lar. Dormi ao
relento, pedindo esmolas para sobreviver, já que
ninguém queria dar trabalho para uma moradora de
rua e ainda por cima grávida. Cada dia era uma luta, e,
mesmo assim, havia momentos em que acariciava a
minha barriga e sentia esperança quando o meu bebê
se mexia, como se dissesse que eu não estava sozinha.
Isso sempre me fazia sorrir. Sentia que, de algum jeito,
tudo ia dar certo. Que eu ia conseguir.
Quando a Maria nasceu, mesmo aos trancos e
barrancos, com a minha bolsa estourando enquanto
dormia em um banco de uma praça, meu Deus! Esse
foi o dia mais feliz da minha vida. Eu senti um amor
incondicional quando vi o rosto lindo da minha menina,
naquele momento jurei que faria qualquer coisa para
que ela fosse feliz e tivesse uma vida boa. Cheia de
amor e apoio. Mas, infelizmente, logo após a dar à luz,
minha situação estava prestes a ficar pior. Uma
enfermeira ligou para uma assistente social e explicou
a minha situação e nos enviaram para um abrigo.
O lugar era horrível. Sujo, abafado, cheio de
gente tão desesperada quanto eu. Mas, pelo menos,
era um lugar onde eu podia fechar os olhos à noite sem
temer que alguém roubasse minha filha dos meus
braços. Tinha comida, tinha um teto, e isso era o
suficiente... por um tempo. Até o diretor do lugar
começar a se aproximar. Ele era um homem nojento.
Desde o começo, me olhava de cima a baixo, aquele
olhar que eu conhecia bem — o mesmo que via nos
olhos de muitos homens na rua. Eu era uma jovem
muito bonita e na flor da idade, sempre chamei a
atenção dos caras. Nasci com uma aparência
privilegiada bem acima da média, sou morena alta com
um corpo escultural, cintura fina, peitos e bunda
naturais bem avantajados que ficam perfeitos em
qualquer roupa.
Meu cabelo é preto liso abaixo da cintura, e o
que mais chama a atenção em mim são os olhos cor de
mel. O diretor do abrigo sempre me elogiava. Mas eu
tentava ignorar. Tentava manter a cabeça baixa e
cuidar da minha filha. Porém, um dia, ele bateu na
porta do meu quarto no meio da noite e ficou me
encarando com aquele sorriso torto. Depravado. E
começou a fazer insinuações.
— Você é uma moça muito bonita, Paula. E as
coisas podem ficar mais fáceis aqui para o seu lado,
caso coopere comigo, é claro – disse em tom arrastado,
enquanto coçava a barriga enorme de cerveja.
— Cooperar com o senhor? – Fingi que não
entendi.
Mas, quando ele chegou mais perto, encostando
a mão suada no meu braço, percebi que não tinha
como fugir do que estava acontecendo. O desgraçado
disse, com todas as palavras, que se eu não fizesse o
que ele queria, seria expulsa do abrigo na manhã
seguinte. De volta para as ruas.
Quando ameacei denunciá-lo por assédio, o
diretor riu na minha cara e disse para eu ir em frente,
porque outras mães que passaram por aquele abrigo
tentaram e ninguém acreditou nelas. E no final das
contas, acabaram voltando a ser moradoras de rua e
perderam a guarda dos seus filhos. Foi nesse momento
que, com os olhos cheios de lágrimas, eu olhei para
minha filha dormindo no berço improvisado no canto
do quarto, o rostinho tranquilo e inocente. Pensei nas
noites frias que passei na calçada com ela ainda
crescendo no meu ventre, no desespero de não ter
para onde ir. E, por mais que me odiasse por isso,
concordei com a proposta indecente daquele homem
desprezível.
Essa foi a primeira vez que vendi o meu corpo,
eu mal tinha completado dezoito anos na época. Uma
garota sem juízo, assustada e com o coração partido.
Abandonada por todos. Lembro que quando terminou
me senti enojada, com raiva de mim mesma por
escolher a opção mais “fácil”, como muitos enchem a
bocar para julgar. Mas cada um sabe da sua própria
realidade, de todos os demônios que enfrentam
dentro de si. E, naquele momento, o meu medo de
perder a minha filha me obrigou a fazer aquilo e não
me arrependo nem por um segundo. Faria tudo de
novo, sem pensar duas vezes.
No entanto, depois daquele dia, eu sabia que
minha vida nunca mais seria a mesma. Aquilo destruiu
algo dentro de mim, algo que eu sabia que não teria
cura. Para piorar o diretor começou a me arranjar
"trabalhos" fora do abrigo, clientes que pagavam bem.
Foi assim que consegui me erguer sozinha aos poucos,
aluguei um apartamento e saí de vez daquele maldito
abrigo. Contratei uma babá para a minha filha e
comecei a fazer programas por conta própria, batendo
ponto no calçadão todas as noites.
O que eu não sabia era que alguns anos depois o
fato de ter entrado para o mundo sombrio da
prostituição me colocaria na mira de um assassino em
série, assinando, assim, a minha própria certidão de
óbito.
Sim!
Os meus dias estavam contados...
Capítulo 1
Paula

“128ª DP do Rio de Janeiro”.


É o que está escrito na placa enorme em frente
à delegacia da polícia civil. As letras douradas brilham
sob a luz do sol, contrastando com o cinza sóbrio do
prédio. A fachada é imponente, feita de tijolos escuros
que absorvem o calor do clima quente do Rio de
Janeiro. Já as janelas são mais discretas, pequenas e
parecem quase como olhos vigilantes, observando
todos que se aproximam. Há uma câmera de segurança
no canto superior direito, e as cortinas pesadas no
interior não revelam nada do que está acontecendo lá
dentro. O que me deixa ainda mais nervosa, afinal, não
faço ideia do porquê eu, uma garota de programa de
uma esquina qualquer, ter sido convocada para vir
nesse lugar com tanta urgência.
Cheguei aqui já faz uns dez minutos e ainda
estou parada na calçada na mesma posição, sendo
corroída pela dúvida cruel sobre se devo entrar ou fugir
para bem longe dessa delegacia. Os sons da cidade
estão ao meu redor, me confundindo ainda mais.
Carros passam, buzinam e freiam, criando um
constante zumbido de tráfego. As pessoas conversam
em vozes baixas, ocasionalmente se tornando mais
estridentes quando se animam em uma discussão por
algum motivo banal. Um policial uniformizado passa
por mim, falando em seu rádio de maneira rápida e
ininteligível, porém, seus olhos gulosos deslizam pela
parte desnuda das minhas pernas bem torneadas.
E hoje nem estou usando um dos meus looks
ousados do “trabalho”, coloquei um vestidinho preto
sem graça e não pesei muito a mão na maquiagem
como de costume. Queria parecer mais séria; em
outras palavras, com menos cara de puta.
— Como se isso fosse possível... – penso em voz
alta depois de cuspir no chão o chiclete de menta que
estava na minha boca, mastigar alguma coisa sempre
me acalma, pena que dessa vez não fez nenhum efeito.
As minhas mãos segurando a alça da bolsa
pendurada no meu ombro não param de tremer, tento
ignorar o frio na barriga, mas é quase impossível.
Nunca me senti tão ansiosa como estou desde ontem
à noite, quando recebi uma ligação estranha. Eu estava
atendendo um cliente que sempre me paga muito bem
por um boquete ali mesmo no calçadão, no seu carro,
quando o meu celular tocou dentro do meu decote
entre os seios.
Fui obrigada a parar o serviço e atender o celular
enquanto o meu cliente resmungava ao meu lado no
banco do motorista com o pau duro; ninguém costuma
me ligar nesse horário e pensei que podia ser a babá
da minha filha com alguma emergência. Só que não era
a dona Elza, mas, sim, um senhor que se apresentou
como investigador da polícia civil, com o nome de
Licanor Siqueira. Sua voz é tão dura e seca quanto as
poucas palavras que proferiu, ordenando que eu viesse
na delegacia hoje nesse horário. Não gostei do jeito
mandão dele, mas fiquei muito preocupada, afinal, não
é todo dia que se recebe uma ligação da polícia.
E se tem uma coisa que aprendi trabalhando
como garota de programa é que nunca se bate de
frente com um peixe grande. E esse tal investigador
Siqueira tinha o tipo de ser um tubarão, daqueles que
te engole inteiro só com uma mordida.
Droga, Paula, em que merda você se meteu
dessa vez?
Me pergunto várias vezes, puxando na memória
alguma coisa de errado que eu tenha feito a ponto de
chamar a atenção da polícia. Durante a curta ligação
até cheguei a indagar o tal investigador Siqueira do que
se tratava o assunto que queria falar comigo, mas ele
apenas respondeu friamente que não resolve nada por
ligação e ainda salientou que odeia atrasos. Nem
consegui mais bater ponto no calçadão ontem à noite
depois disso. Devolvi o dinheiro do cara do boquete,
desmarquei outros clientes que estavam agendados e
fui para casa mais cedo.
Tomei um banho demorado, como sempre faço,
para tirar a sujeira da rua do corpo, e só então liberei a
babá que cuida da minha filha para eu trabalhar. Dona
Elza é o meu braço direito lá em casa e, mesmo
sabendo que sou garota de programa, nunca me
julgou.
— Ei, gostosa, gostaria de dar uma voltinha na
minha garupa? – Assobia um cara ao passar na rua de
moto, trazendo-me de volta dos meus devaneios.
— Vai se ferrar, babaca! – Mostro o dedo do
meio para ele, depois volto a olhar para a fachada da
delegacia em um suspiro longo, faço o pai-nosso e
enfim entro na repartição.
Seja o que Deus quiser...
— Ei, pessoal, ela chegou – diz um dos policiais
assim que passo pela porta, todo mundo me encara de
um jeito muito estranho e, por um segundo, penso que
serei presa.
A impressão que tenho é que todos aqui me
conhecem, eu só não faço ideia de onde. Totalmente
sem graça e incomodada com os cochichos e olhares
curiosos, me aproximo do balcão da recepção para
pedir informação.
— Com licença, eu vim falar com o...
— Investigador Siqueira, é, eu sei, senhorita
Paula – a policial de cabelo grisalho preso em um coque
severo no topo da cabeça me corta, afiada feito uma
navalha. — Eles já estão esperando por você, a sala de
interrogatório fica na última porta do corredor. –
Aponta, indicando a direção, mas sem olhar nos meus
olhos em nenhum momento.
E que história é essa de “eles”, no plural, estão
me esperando?
Cacete!
Essa situação só fica cada vez mais estranha.
Caminho pelo corredor ainda mais nervosa do que
entrei nessa maldita delegacia, cada estalo do salto
fino dos meus scarpins vermelhos no piso escuro ecoa
dentro da minha cabeça. Minha vontade é de dar o fora
desse lugar correndo e não olhar para trás. O problema
é que nunca fui de fugir de nada na minha vida, por isso
vou entrar nessa sala para saber o que essa gente quer
comigo.
— Não vim até aqui para desistir agora. – Bato
na porta de nariz em pé.
Certa de que não tem nada do outro lado que
possa assustar uma mulher forte feito eu, com sangue
quente correndo nas veias.
Você vai tirar essa de letra, gata!
Tento me encorajar, mas fico intimidada quando
logo na primeira batida na porta ouço a voz seca do
investigador Siqueira saindo de dentro da sala, ainda
mais fria do que por ligação. Minhas pernas tremem
um pouco, mas mantenho a pose.
— Entre, senhorita Paula – ordena.
É incrível como toda palavra que sai da boca
desse investigador soa tão ameaçadora, fico
imaginando como deve ser a sua cara de mau, que
estou prestes a conhecer em segundos.
— Mas que porra está acontecendo aqui? – Levo
um tremendo susto quando entro na sala e percebo
que entre “eles”, à minha espera, junto do
investigador, há três homens, e dois deles eu conheço
muito bem.
Um é o delegado Avilar, que está sentado em
uma das cadeiras ao meio da sala, com a postura ereta
e a expressão mais séria do que o normal. E a outra
pessoa ao lado do delegado eu conheço muito mais do
que bem, afinal, é o meu melhor amigo Léo. O terceiro
homem não conheço, é um loiro, alto, bonitão,
encostado na mesa do Siqueira, com os braços
cruzados.
Pelo distintivo pendurado no pescoço e a arma
na cintura, o loiro gato também é policial.
— Se acalma, Paula, e ouve com atenção o que
o delegado Avilar, o investigador Siqueira e o parceiro
dele, Eduardo Souza, têm para dizer, porque é muito
sério. – Léo tenta segurar a minha mão na tentativa de
me acalmar, mas não deixo.
— Ah, vai se foder, Léo! E para com esse papo de
me acalmar, caramba! – O empurro para longe de mim.
— Não estou gostando nadinha dessa merda, você
sabe que não confio na polícia, e agora eu te encontro
aqui de complô com eles para me trazer até essa
delegacia sabe lá Deus o porquê — esbravejo, me
sentindo acuada.
— Não há nenhum complô, Paula. Fui chamado
aqui porque sou seu amigo e padrinho da sua filha, e
ambas vão precisar muito do meu apoio para o que
irão enfrentar daqui para frente. – Seus olhos se
enchem de lágrimas.
Ali vi que a situação é séria de verdade. Só vi o
marrento do Léo chorar mesmo quando o filho mais
velho dele, e melhor amigo da minha filha, o fofo do
Marcelinho, morreu de câncer no ano passado.
— Olha, Léo, você é como um irmão para mim,
mas se armou esse circo todo só para me trazer até
aqui para os seus amiguinhos na polícia me
convencerem a parar de bater ponto no calçadão
porque tem um assassino em série de prostitutas solto
por aí e não sei mais o quê, já garanto que não vai
funcionar. Sei cuidar muito bem de mim sozinha, ok? –
Jogo as mãos sobre os quadris, de queixo erguido, em
uma postura claramente defensiva.
Léo não me deixa em paz desde que apareceu
esse assassino em série e, de fato, o cara tem tocado o
terror no Rio de Janeiro, já matou trinta e duas
prostitutas a sangue-frio. Mas não tenho medo e
continuo atendendo meus clientes normalmente,
tenho contas chegando aos montes para pagar todo
mês. Fora que, com a má fama que tenho, ninguém
nessa cidade me contrataria nem para lavar privada.
Deixar de ser mulher da vida não é tão fácil quanto
parece. E eu nem quero, modéstia à parte, sou muito
boa no que faço.
Nesses seis anos que se passaram desde o meu
primeiro programa, aprendi a me virar muito bem no
mundo da prostituição. Cliente nenhum nunca se
atreveu a me passar a perna. O único que tentou saiu
com o nariz quebrado. Por isso, todas as meninas que
também batem ponto no calçadão me respeitam.
Conheço bem como funcionam as coisas no lado mais
obscuro das ruas, e já passei por todos os tipos de
perigo e sobrevivi. Isso fez de mim a mulher forte que
sou hoje. Faço o que quero e não admito de maneira
nenhuma que ninguém se intrometa na minha vida.
— Não seja teimosa, Paula! Porque, dessa vez, a
coisa é mesmo séria – insiste Léo.
— Certo! Vocês têm cinco minutos, depois vou
embora. – Me sento na cadeira vazia no centro da sala,
dividindo o olhar desconfiado pelos rostos dos quatro
homens presentes, todos com expressão de velório.
— Sinto muito, mas o Léo está mesmo certo e as
notícias não são nada boas, Paula – inicia o delegado
Avilar, escolhendo as palavras com cautela. — Lembra
de um fã maluco do assassino de prostitutas que
cometeu alguns crimes recentemente e encenou para
parecer ser seu ídolo?
— Claro que lembro, porque esse fã maluco era
o professor do quinto ano na escola onde minha filha
estuda. Eu fiquei em choque quando soube. – Cruzo as
pernas, desconfiada.
Não sei onde o delegado quer chegar com essa
conversa, mas sinto que não vou gostar nem um
pouco.
— Pois é, esse professor Roberto sabia que você,
uma das mães do colégio em que ele lecionava, é
garota de programa e andou tirando umas fotos suas.
Com certeza estava planejando fazer algo terrível
contigo.
— Mas que arrombado do caralho! – xingo,
furiosa. — Mas, pelo que eu assisti nos jornais, o
verdadeiro assassino de prostitutas não gostou
nadinha desse cara imitando-o por aí e deu um fim no
seu fã tão psicopata quanto ele. – Giro os olhos em
uma respiração profunda.
É incrível como tem gente maluca nesse mundo
e com tempo de sobra para atrapalhar a vida dos
outros, eu mal consigo cuidar da minha própria vida,
quem dirá de terceiros.
— O problema é que, depois de dar um jeito no
seu fã maluco, o verdadeiro assassino de prostitutas
levou uma das fotos que o professor Roberto tirou sua,
Paula – revela, e eu perco o chão debaixo dos meus
pés, mas logo recupero a pose.
— E por que eu deveria me preocupar com isso,
delegado? O assassino em série de prostitutas pode ter
levado a minha foto, mas não veio atrás de mim até
agora, como pode ver. Estou vivíssima e melhor do que
nunca. – Abro um sorriso de falsa confiança, sendo
teimosa como sempre.
Mas, por dentro, eu estou apavorada. Por que
um assassino em série pegaria uma foto minha?
— Você está certa, Paula. Mas, infelizmente, o
desgraçado foi atrás de outra pessoa próxima a você.
— Mas de que merda você está falando,
delegado? – Meu coração acelera como se fosse sair
pela boca.

— Nós encontramos o corpo da sua amiga


Valentina, ela foi a vítima número 28 do assassino de
prostitutas. Depois dela, ele já fez outras 4 vítimas
fatais – o investigador Siqueira entra na conversa e
joga essa informação terrível assim, à queima-roupa.
Nesse momento o tempo para por alguns
segundos. Fico de pé, mas não consigo assimilar nada
à minha volta, está tudo mudo e em câmera lenta,
como numa fita de vídeo arranhada. Sinto uma dor
tremenda no peito, parece que vai explodir. Meu
amigo Léo, assustado com o meu estado de transe, me
segura pelos ombros e me balança na tentativa de me
trazer de volta para a realidade, contudo, a única coisa
que consigo pensar é na imagem da minha amiga
Valentina saindo de casa sorrindo tão feliz naquela
tarde de domingo ensolarada, prometendo voltar em
breve.
Eu conheci Valentina trabalhando no calçadão,
não tinha nem dezoito anos ainda a pobre garota e já
havia se perdido no mundo da prostituição para suprir
o vício em drogas. Esse foi o único jeito que encontrou
para lidar com os vários traumas que carregava. Tem
sido assim desde que fugiu de casa e do padrasto
abusador, que a espancava diariamente e a obrigava a
abrir as pernas para os seus amigos nojentos em troca
de grana. A mãe dela sabia de tudo, mas era conivente
com o marido abusador, afinal, alguém precisava
bancar a casa.
Chorei quando ouvi a sua triste história de vida e
lembrei da época que eu também morei na rua sem ter
para onde ir. Por isso, convidei Valentina para morar lá
em casa até que se estabilizasse. Minha filha era louca
pela tia Val, era como a irmã mais velha que sempre
sonhou em ter. O problema é que, devido ao vício em
drogas, ela sempre sumia por um tempo e depois
aparecia do nada, em um estado caótico. Mesmo
assim, eu estava disposta a ajudá-la a se reerguer na
vida.
Valentina chorou muito quando perguntei se
queria morar com a gente em definitivo, ela parecia
tão animada, e disse que queria ir para uma clínica de
reabilitação e voltaria a estudar quando saísse limpa
das drogas. Fiquei muito feliz pela minha amiga porque
eu já sou uma puta velha no mercado e é tarde demais
para mim, mas ela era jovem e poderia sair do calçadão
e seguir alguma carreira de sucesso. Só precisava de
alguém que acreditasse nela, e eu acreditava.
Só que, naquela mesma tarde ensolarada de
domingo que tivemos essa conversa definitiva, a Val
saiu sorrindo de casa, disse que ia ao mercado comprar
algo especial para o nosso primeiro jantar em família e
nunca mais voltou. No começo pensei que, no
caminho, ela tivesse encontrado algum dos seus
amigos viciados e voltaria para casa depois de algumas
semanas, mas agora sei que isso nunca vai acontecer.
— Vo... vocês têm mesmo certeza de que é a
Valentina? – pergunto, o rosto coberto por lágrimas.
— Mas é claro que nós temos certeza, senhorita
Paula. Mas se não acredita pode ver as imagens feitas
pelos legistas. – O velho chato dá de ombros com
desdém.
— Não precisa passar por isso, Paula! Eu vi as
fotos e reconheci a sua amiga, acho que nunca vou tirar
essas imagens horríveis da memória. – Léo aperta os
olhos balançando a cabeça. — Ela era tão jovem, quase
uma criança ainda – lamenta inconformado.
— Eu não entendo! Como assim já faz semanas
que a polícia encontrou o corpo da Valentina e não saiu
nada na mídia ainda? Outras mulheres foram mortas
depois dela e todas tiveram seus nomes e fotos
divulgados em todos os jornais – ataco, ferida.
Quero saber por que a morte da minha amiga
parece não importar para mais ninguém além de mim,
isso é inaceitável.
— Resolvemos manter a identidade da Valentina
em sigilo por ser a única vítima menor de idade, Paula.
Eu realmente sinto muito pela perda da sua amiga, ela
parecia ser uma boa garota que poderia ter tido um
futuro promissor. – Delegado Avilar tira um lenço do
bolso e me entrega em um ato gentil.
— Valentina era, sim, uma boa garota.
Inteligente e gentil – afirmo aos prantos. — Não
merecia morrer dessa forma tão cruel.
— Ok. Mas isso não vem ao caso agora,
senhorita Paula. Esqueça a morte da sua amiga, porque
não foi por causa dela que te chamei aqui. – O
investigador Siqueira destrava a sua arma, pronto para
me dar mais um tiro à queima-roupa, mas dessa vez
certeiro no coração.
— Se o senhor não me chamou aqui para falar da
morte da minha amiga, então para que foi,
investigador? – indago, sentindo um iceberg inteiro na
barriga.
— Para te informar que temos total certeza de
que você é a próxima vítima do assassino de
prostitutas, Paula Souza – dá o segundo tiro sem dó
nem piedade, e a minha alma sai lentamente do corpo.
— Eu, a próxima vítima desse maluco? Você só
pode estar tirando uma com a minha cara, mano. –
Solto uma gargalhada alta, mas sem graça alguma.
— Eu nunca brinco com coisa séria, moça –
afirma o investigador. — Você não tem muito tempo,
precisamos trabalhar juntos para encontrar esse
psicopata antes que ele te encontre.
— Isso não pode estar acontecendo comigo! –
Entro em pânico.
De um segundo para o outro a minha vida se
transformou em um oceano tempestuoso, onde cada
onda carrega a angústia de saber que os meus dias
estão contados.
Porra! Eu estou muito fodida.
— Você entendeu o que eu disse, senhorita
Paula? – O investigador Siqueira franze o cenho.
— Eu... – Mexo os lábios, mas não sai
absolutamente nada.
— Se não quiser fazer companhia à sua
amiguinha prostituta enterrada debaixo de sete
palmos de terra em um caixão bacana no cemitério São
João, pago por algum bom samaritano misterioso, é
bom que pare de chilique e escute o que tenho para
dizer – grita o velho apontando o dedo na minha cara,
estremeço assustada.
— Vai com calma aí, Siqueira! Não queremos
deixar a moça ainda mais em choque com tanta
informação pesada de uma vez só, não é mesmo? – O
loiro bonitão, o tal investigador Eduardo Souza, que,
por coincidência, tem o mesmo sobrenome que o meu,
olha feio para o seu parceiro.
Bom, pelo visto, ao menos alguém nessa dupla
tem compaixão pela dor do próximo e não fala
qualquer merda que vem na cabeça.
— Ah, cale essa boca, Souza! Não me diga como
fazer o meu trabalho. – Siqueira bate a mão fechada
em punho sobre a mesa e o barulho ecoa pelas quatro
paredes da sala. — Eu devia ter dado um tiro no meio
das suas fuças quando te peguei na cama com a minha
filhinha, seu tarado.
— A sua filhinha tem trinta e quatro anos,
Siqueira. E eu estou completamente apaixonado por
ela, então, não se intrometa mais na minha relação
com a Miranda.
Os dois investigadores começam uma discussão,
esquecendo totalmente que não estão só os dois
presentes na sala.
— Já chega vocês dois, Souza e Siqueira! Este
não é o momento para lavarem roupa suja, temos um
assunto sério aqui para tratar. – O delegado Avilar
acena com a cabeça na minha direção, mas não faço
nada além de chorar.
— Paula já está morta de toda forma mesmo,
delegado. É só questão de tempo para esse cara botar
as mãos nela e todos aqui sabemos o que vai
acontecer, não é? Nada é capaz de parar um psicopata
até ele conseguir o que quer. – Siqueira dá de ombros,
indiferente.
— Meu Deus! Eu estou fodida. – Meu estômago
revira, sinto que vou colocar tudo para fora a qualquer
momento.
— Nós vamos fazer todo o possível para proteger
você, Paula, não se preocupe. Você tem a minha
palavra – Souza tenta contornar a situação, mas é tarde
demais, eu já entrei no modo pânico total.
— Mas por que logo a Valentina e eu? Porra! –
praticamente grito olhando para cima como se
estivesse falando com Deus.
— É isso o que queremos descobrir, Paula. Você
e a sua amiga são as únicas vítimas escolhidas por esse
desgraçado que têm um vínculo mais próximo além do
trabalho, precisamos descobrir o que ele viu de tão
especial em vocês duas.
— Eu não faço a menor ideia, delegado.
Valentina e eu não temos nem clientes importantes,
somos apenas prostitutas de rua como qualquer outra
que sai com o primeiro que tira a carteira do bolso. –
Abraço o próprio corpo, totalmente vulnerável.
— Pense melhor, Paula. Esse psicopata pode ser
um cliente estranho que você e a sua amiga tinham em
comum – insiste o delegado.
— Impossível! Valentina e eu nos demos bem
desde a primeira noite que nos conhecemos no
calçadão e prometemos uma para a outra não misturar
os negócios com a nossa amizade. – Começo a chorar,
cobrindo o rosto com as duas mãos.
Ainda não consigo acreditar que a minha amiga
se foi, ela era um amor de pessoa e não merecia um
fim tão triste.
— Coincidências não existem em casos como
este, moça. Então, para o seu bem, pode começar a
abrir o bico. O que está escondendo sobre você e a sua
amiguinha assassinada? Aposto que tem algum agiota
no meio, ou um cafetão violento, ou até mesmo
traficantes de drogas – acusa Siqueira com a testa
enrugada.
— Valentina era viciada, mas não vendia. Nós
nunca nos metemos com gente barra pesada, se é isso
que o senhor está insinuando.
— E por que eu deveria acreditar em você,
senhorita Paula?
— Eu não estou nem aí para o que o senhor
acredita ou não, investigador. Isso tudo é uma loucura,
esse psicopata não pode estar atrás de mim também.
– Entro de cabeça com tudo no primeiro estágio da
negação, não tem nada mais apavorante do que saber
que está na mira de um assassino frio e calculista.
— Nós temos certeza do que estamos falando,
porque o próprio assassino fez questão de enviar essa
mensagem direto aqui para a delegacia. – O delegado
estica o braço e me entrega um envelope branco,
minhas mãos tremem sem parar.
Paro de respirar quando abro o envelope e vejo
o que tem dentro, é a minha tal foto que o assassino
de prostitutas tinha pegado. A câmera está bem focada
no meu rosto. Eu estava andando na rua, totalmente
distraída com os fones no ouvido, indo buscar a minha
filha na escola, sem fazer a menor ideia que estava
sendo observada. O desgraçado fez um “X” enorme
vermelho bem na minha testa e, atrás da foto, está
escrito com uma letra elegante:
“Para não dizerem que não ajudo a polícia, aqui
está a identidade da minha próxima vítima. Vejo você
em breve, Paula Souza, minha linda cordeirinha”.
Deixo a foto cair no chão, o desgraçado está
falando diretamente comigo. Isso não é um recado
para a polícia, é para mim. Ele sabia que essa foto
chegaria até as minhas mãos de um jeito ou de outro.
Além de ter me escolhido como sua próxima vítima,
ainda queria que eu soubesse disso.
Mas que droga!
— Eu preciso ficar sozinha por um segundo, eu
mal consigo respirar nessa sala.
Aperto ainda mais a alça da bolsa pendurada no
meu ombro e me levanto, cambaleando em direção à
porta.
— Pare onde está agora mesmo, senhorita
Paula! – ordena Siqueira antes de eu chegar à porta. —
Se quer continuar viva, a partir desse momento você
não sai mais das vistas da polícia e vai fazer tudo o que
eu mandar.
— E se eu não quiser fazer tudo o que o senhor
mandar, investigador Siqueira? – O enfrento olho no
olho, está para nascer o macho que vai mandar em
mim, ainda mais um escroto desse porte.
— Se não fizer as coisas do meu jeito, a sua
filhinha linda vai ficar órfã muito em breve. Não é
triste? – Calmo, o velho arrogante tira um charuto
cubano de dentro do bolso do casaco, coloca no canto
da boca e acende.
Se eu não confiava nesse investigador Siqueira
antes, agora não o suporto nem um pouco. Usar uma
criança numa situação como essa só para me persuadir
a fazer o que ele quer é algo deplorável.
— Não precisa se preocupar com a minha filha,
seu velho escroto do caralho, porque eu sempre cuidei
muito bem dela sozinha. – Ergo o queixo, petulante. —
Nunca precisei da ajuda da polícia para porra
nenhuma, e agora não será diferente.
— Por favor, Paula, não faz isso! – implora Léo.
— Eu faço o que eu quiser da minha vida,
Leônidas Rafael, por isso vou continuar trabalhando
mesmo com esse psicopata à solta – dou o meu
veredito. — E se o filho da puta vier mesmo atrás de
mim, vou estar preparada para acabar com a raça dele.
— Você não terá a mínima chance contra um
assassino desse porte, com experiência na arte de
matar.
— É o que veremos, delegado! – Sorrio irônica.
— Tenham um bom dia, senhores! – despeço-me dos
quatro cavalheiros presentes, vou embora rebolando e
bato a porta ao sair.
Mas, depois que saio da delegacia, começo a me
perguntar se fiz a coisa certa...Eu sempre fui orgulhosa
demais e no final sempre me fodo por conta disso, mas
nesse momento estou zangada demais para voltar
atrás e admitir que cometi o maior erro da minha vida
ao não aceitar a ajuda da polícia.
Capítulo 2

Pedro

— NÃO! – Acordo assustado em um grito agudo,


fazendo o meu gato Hércules saltar de cima da cama,
todo arrepiado de susto.
Estou ensopado de suor e perdido em meio a
uma bagunça de lençóis brancos. Esta é a segunda vez
só nessa semana que tenho o mesmo pesadelo que me
assombra há mais de duas décadas da minha vida. É
sempre a mesma coisa, a imagem embaçada de uma
mulher misteriosa imersa em um lago de águas
sombrias. Os fios negros e longos do seu cabelo
flutuam lentamente em volta do lindo rosto pálido
como se tivessem vida própria, a única coisa que eu
consigo ver com clareza são os lábios grossos e
curvilíneos pintados de vermelho-sangue, dando um
contraste envolvente ao vestido todo branco que traja.
Sempre fico todo arrepiado só de lembrar dessa
mulher misteriosa do meu sonho. Para mim, ela é um
anjo caído enviado direto do céu e eu preciso encontrá-
la antes que seja tarde demais. É exatamente assim
que me sinto. Mas o meu irmão mais velho, Romeu, diz
que estou louco. Me fez ir em vários terapeutas,
especialistas em hipnose e até mesmo psiquiatras,
porém, nenhum deles conseguiu resolver o meu
problema. E os pesadelos continuam cada vez mais
intensos, como uma tortura que já dura vários anos.
Para mim, a parte mais terrível do sonho é quando vejo
a mulher sumindo nas profundezas de um lago
profundo e não consigo salvá-la. Não importa o quanto
eu corra, sempre acordo no exato momento em que
estou a um passo de chegar até ela, e isso é muito
frustrante para mim.
É como se não importasse o quanto eu me
esforçasse, no final, aquela mulher sempre termina
morta, porque esse é o destino dela. E eu não posso
fazer nada além de ficar ali, olhando aquela cena
aterrorizante como se estivesse preso em um filme de
terror que nunca tem fim.
— Porra, cara! Essa merda tem que acabar,
precisa tirar essa mulher da cabeça. – Suspiro
pesadamente com as mãos sobre o peito em uma
conversa séria comigo mesmo, olhando para o teto de
gesso.
Estou frustrado e sem sono.
Passei mais da metade da minha vida obcecado
por uma pessoa que nem existe de verdade, apesar de
que, outro dia, dirigindo em frente à praia de Ipanema,
tive a impressão de ver a mulher misteriosa do meu
sonho andando pelo calçadão. Parei o carro bem no
meio do tráfego e desci eufórico, correndo feito um
louco atrás dela, mas, naquela manhã, a orla carioca
estava lotada e a perdi de vista.
Fiquei arrasado!
Só que, no fundo, sabia que tudo provavelmente
não passara de uma fantasia muito louca da minha
cabeça. Ainda mais que, na noite anterior, eu havia
bebido feito um bastardo na despedida de solteiro do
irmão do meu amigo Gonzales, acordei no dia seguinte
com uma ressaca do cão e por isso estava tendo
alucinações. Essa era a única explicação lógica.
— Mas, se essa mulher não existe, por que ainda
continuo tendo esses sonhos estranhos com ela? –
Cabisbaixo, viro de lado na cama, apoio a mão debaixo
do rosto e aprecio a vista da janela panorâmica da
minha suíte.
Três cartões-postais diferentes do Rio de Janeiro
compõem a paisagem de quase todos os cômodos
dessa cobertura luxuosa que me custou uma fortuna,
mas valeu a pena. Fica no bairro mais nobre da Cidade
Maravilhosa, é o prédio mais alto e moderno
construído nos últimos anos e me dá a impressão de
estar morando em meio às nuvens. Graças à mente
brilhante de um arquiteto conceituado, o meu
cantinho preferido no mundo tem janelas de vidro
gigantes que se estendem de uma ponta a outra nos
cômodos principais da casa, permitindo-me apreciar a
vista do Cristo Redentor, do Pão de Açúcar e do Museu
de Arte Contemporânea de Niterói — projetado por
ninguém menos que Oscar Niemeyer.
Eu comprei esse lugar exatamente por essa vista
dos sonhos de qualquer carioca, sou um filho da puta
de muita sorte por ter o privilégio de morar nessa casa.
Meus planos eram me casar com uma mulher incrível
e criar os nossos filhos lindos aqui, mas todas as minhas
relações amorosas fracassaram. No último
relacionamento sério que tive, cheguei a ficar noivo,
mas, semanas antes do nosso casamento, peguei a
minha noiva na cama com o cafajeste do meu primo, e
eu era apaixonado por aquela desgraçada. Sempre fui
muito emocionado, o tipo romântico à moda antiga
que se apaixona logo na primeira noite. Por isso, agora
tomo cuidado para não me apegar a alguém
novamente e ter o coração quebrado outra vez.
Já faz cinco anos que peguei a minha noiva me
traindo com o meu primo, mas ainda guardo traumas
disso e nunca mais me envolvi com ninguém
sentimentalmente.
— Talvez o nosso destino seja ficar sozinho para
sempre nessa casa dos sonhos, Hércules. Acho que o
cupido não gosta muito de nós. – Puxo o meu gato de
volta para a cama e ele esfrega a cabeça debaixo do
meu queixo, ronronando como se me consolasse por
ter uma vida amorosa de merda.
Hércules é um gato velho de doze anos e está
comigo desde a época da faculdade de direito, quando
o achei ainda filhotinho, abandonado na rua em um dia
frio de chuva. Desde então, não nos separamos mais,
somos mais que melhores amigos. Ele está sempre
comigo nos bons e maus momentos.
— É, parceiro, eu sei que você me ama. – Faço
cócegas na sua barriga e ele abana o rabo enquanto
tenta abocanhar os meus dedos, o bichano adora
brincar.
Depois de revirar de um lado para o outro na
cama sem conseguir dormir, decido que uma ducha
seria a melhor maneira de relaxar e me livrar do suor
que me envolve dos pés à cabeça. Deixo Hércules
deitado em meio à bagunça de lençóis e me levanto.
Antes de ir para o banheiro, paro em frente à janela do
meu quarto e me perco por um instante olhando a
imensidão do horizonte. Já é possível ver as luzes
alaranjadas aparecendo discretamente no céu, dando
sinais de que o sol já está se preparando para nascer e
dar início a mais um belo dia na Cidade Maravilhosa do
Rio de Janeiro.
— E você mal pregou os olhos ainda, promotor
Pedro Alcântara. – Bocejo, coçando o peito enquanto
caminho até o banheiro a passos pesados, cada
fragmento do pesadelo que tive ainda fresco em minha
mente.
Ligo a água do chuveiro, deixando-o aquecer
enquanto eu me dispo lentamente. O box está
preenchido com o vapor, isso é tudo o que eu preciso
neste momento. Quando finalmente entro debaixo da
ducha, a água quente escorre suavemente sobre mim,
criando uma sensação de alívio imediato. Fecho os
olhos e inclino a cabeça para baixo, deixando que
massageie os meus ombros rígidos. Cada gota que cai
parece lavar as preocupações e os horrores do
pesadelo que tanto me assombra, purificando a minha
alma. Aos poucos, os meus pensamentos começam a
se acalmar. A mulher misteriosa ainda está lá, na minha
mente, mas agora menos ameaçadora.
Termino o banho me sentindo bem melhor e
saio do banheiro assobiando, com uma toalha enrolada
na cintura. Me jogo de volta na cama, mas o sono ainda
não vem. Resolvo descer para o meu escritório e
repassar mais uma vez os relatórios de um caso que
tem me atormentado nos últimos meses, o do
assassino de prostitutas.
Porém, antes passo na cozinha e pego uma
garrafa de cerveja na geladeira porque essa manhã
promete ser longa.
— Miauuuu... – Hércules vem atrás de mim e fica
dando voltas entre as minhas pernas, ele quer que eu
volte para a cama.
— Desculpa, amigão, mas o papai tem muito
trabalho para fazer por aqui. – Brinco um pouco com o
meu gato.
Depois abro a minha cerveja e pego na gaveta
todas as anotações que fiz sobre o assassino de
prostitutas, começo a revisar página por página em
busca de algo novo que eu possa ter deixado passar. Já
perdi a conta de quantas vezes fiz isso nas últimas
semanas, mas não vou desistir.
Mas eu fiz uma promessa de que vou pegar esse
filho da puta. E quando coloco uma coisa na cabeça,
não paro até conseguir.
— Preciso fazer justiça por cada uma de vocês,
ou nunca terei paz outra vez. – Olho para as fotos das
32 vítimas do assassino de prostitutas que colei na
parede do meu escritório.
Mesmo sem ter conhecido nenhuma dessas
moças com vida, cada uma delas é muito importante
para mim. Em especial a vítima de número 28.
— Valentina Ribeiro... – Sorvo um longo gole da
minha cerveja, parado em frente à foto da adolescente
de apenas dezessete anos, a vítima mais jovem do
assassino de prostitutas.
Mas não foi só por isso que o caso da Valentina
se destacou para mim entre os demais. Estive na cena
do crime quando o seu corpo foi encontrado e garanto
que será algo que vai me aterrorizar para sempre.
Como promotor de justiça, já vi muita coisa pesada, o
que fez de mim um homem frio em questão de mortes
violentas. Mas o caso dessa pobre garota realmente
mexeu comigo. Senti tanta empatia por ela, poderia ser
minha irmã ou até mesmo filha.

Quando descobri sobre o passado de Valentina,


me senti ainda pior. A coitada nasceu em uma família
abusiva que nem ao menos quis fazer o seu velório, a
própria mãe disse na minha cara que a morte da filha
era menos um problema para ter que lidar e nos deu
permissão para enterrá-la como indigente para não ter
que arcar com nenhum custo. Lembro de sair daquela
casa enojado com tudo o que ouvi, estava decidido a
eu mesmo dar um enterro decente para aquela jovem
abandonada em uma gaveta do necrotério da polícia.
Organizei tudo no anonimato, ninguém na
promotoria ou no departamento da polícia sabe que
fui eu que cobri todos os gastos com o enterro da
Valentina. Por alguma razão, o investigador chefe do
caso do assassino de prostitutas, Licanor Siqueira, não
vai muito com a minha cara. Ele deixou bem claro que
me quer bem longe das suas investigações e proibiu
toda a sua equipe de me passar informações
privilegiadas, e ninguém tem coragem de bater de
frente com aquele velho carne de pescoço.
Em poucas palavras, Licanor Siqueira é o cara!
Até os juízes topetudos metidos a besta abaixam
a crina para ele, essa é a verdade. Mas como seria
diferente? Com mais de três décadas trabalhando
como investigador da polícia, Siqueira nunca perdeu
nenhum caso, ele tem faro para rastrear bandido e
uma bagagem enorme de experiência no ramo,
fazendo dele o melhor no que faz. Então, só porque sou
o promotor mais jovem que conhece e venho de uma
família abastada, o velho chato não acredita na minha
capacidade e pensa que sou um playboyzinho
brincando de ser homem da lei. Já ele, bem diferente
de mim, veio de baixo e não teve nenhuma ajuda de
pais milionários e lutou, e muito, para conquistar o
respeito de todos no meio jurídico.
O caso do assassino de prostitutas é o último
antes da tão sonhada aposentadoria do Siqueira, ele
quer fechar a sua carreira na polícia como investigador
com chave de ouro. E, por isso, só quer os melhores
dos melhores trabalhando ao seu lado na caçada do
assassino. Quanto a mim, mesmo tendo uma atuação
impecável como promotor dessa comarca, o meu
nome nem sequer passou pela cabeça dele. Mesmo
assim, nem ele nem ninguém vai me impedir de pegar
esse assassino em série e cumprir a promessa que fiz
sobre o caixão da Valentina.
— Por isso vou continuar com a minha
investigação particular, não importa quantas noites eu
tenha que passar revisando todos esses relatórios. –
Suspiro ao olhar para a pilha enorme de folhas à minha
espera.
Começo a revisar tudo do zero, mas chega uma
hora que o cansaço fala mais alto e acabo dormindo
sentado, com a metade do corpo debruçado sobre a
mesa do meu escritório e a cara enfiada em meio a
uma pilha sem fim de folhas.
— Virgem Maria, que bagunça essa aqui, sô
Pedro? – Alguém cutuca o meu ombro e eu acordo
assustado.
— Bom dia, Odete, por que a senhora veio mais
cedo hoje?
Esfrego os olhos em um bocejo longo, sentindo
a língua molhada do Hércules lambendo a minha
bochecha, ele dormiu aqui comigo no escritório.
— Oxe, menino, eu vim no mesmo horário de
sempre. Você que dormiu demais, já é quase dez horas
da manhã. – Hércules salta da mesa para o colo da
Odete, ele é um puxa-saco e só quer saber dela quando
está aqui em casa.
Mas a verdade é que nem eu sei o que seria de
mim sem a dona Odete aqui em casa, ela é minha
diarista e vem fazer faxina pelo menos três vezes na
semana. Essa criatura maravilhosa, com menos de um
metro e meio de altura, cheia de amor no coração,
trabalha comigo faz um bom tempo e já faz parte da
minha família. Eu a adoro, é como se fosse uma
segunda mãe para mim.
Odete é uma pessoa muito simples e teve uma
vida sofrida, ainda assim, vive sorrindo e cuidando das
pessoas ao seu redor.
— Droga! Estou atrasado para ir para a
promotoria, era para eu estar lá há muito tempo. –
Levanto e saio correndo.
— Não está esquecendo de nada não, sô Pedro?
– ouço o resmungo da Odete antes de eu chegar até a
porta. Se a conheço bem, está de braços cruzados,
batendo um dos pés no chão.
— Desculpa, Odete, eu esqueci de te
cumprimentar direito. – Volto correndo, apressado, e
a abraço. Preciso me inclinar porque ela é baixinha
demais. – Desejo que você e o Hércules tenham um
ótimo dia e nem pensa em limpar essa bagunça no meu
escritório, você sabe que gosto do jeitinho que está. –
Beijo o seu rosto.
Me arrumo na velocidade da luz e dirijo o mais
rápido que consigo até a promotoria. Odeio chegar
atrasado no trabalho.
— Bom dia, doutor! Pensei que não viria hoje –
cumprimenta o porteiro do prédio da promotoria há
mais de vinte anos, simpático como sempre.
— Bom dia, senhor José, como vai a dona Maria?
– Aperto a mão dele.
— Está bem, meu filho, a patroa está feliz da vida
com a chegada do nosso primeiro neto na semana que
vem.
— Meus parabéns! Eu quero ver a foto do
garotão depois, hein, senhor José! – Aceno antes de
subir.
Mal piso na promotoria e o meu assessor já está
de prontidão à minha espera, pronto para darmos
início a mais um dia intenso de trabalho suado em prol
da defesa do direito público. Quando estamos na
promotoria a minha equipe e eu vivemos apenas para
isso.
— Bom dia, doutor Pedro! – cumprimenta o meu
assessor, um rapaz pouco mais novo do que eu, mas
que se veste e fala sempre de maneira formal como o
meu pai. Ele mantém o cabelo comprido na altura do
ombro e a barba farta, os óculos de grau fundo de
garrafa completam o seu visual nerd.
— Bom dia, E... – Do nada, me dá um branco e
esqueço o nome do rapaz.
Esse é o preço de passar noites em claro
trabalhando na investigação no caso do assassino de
prostitutas e enchendo o bucho só de álcool e
porcarias, minha memória está uma merda. Mas, em
minha defesa, faz pouco tempo que o meu assessor se
juntou à nossa equipe e eu nunca fui bom em lembrar
nomes. Para datas de aniversário, então, mal lembro a
minha.
— Meu nome é Eduardo, senhor. – Franze o
cenho por cima dos óculos de grau fundo de garrafa
com a armação redonda, o modelo mais nerd que já vi
até hoje.
Não é à toa que esse cara passou em primeiro
lugar no concurso público, e, para a minha sorte,
escolheu trabalhar nessa comarca na vaga de meu
assessor, em pouco tempo aqui já se tornou o meu
braço direito. Ele é muito prestativo, inteligente e
educado.
Logo na sua primeira semana já pegou o ritmo
de como as coisas funcionam por aqui, se deu bem com
todo mundo da equipe e está sempre com um sorriso
no rosto, pronto para ajudar.
— Eduardo Ferreira, é claro que sei o nome do
meu assessor. Só estava brincando com você, cara. –
Disfarcei, batendo a mão nas suas costas.
— Eu sei, doutor, não se preocupe. – Ri comigo,
não sei se porque acreditou no que eu disse, ou o
oposto disso.
— Certo, Edu, mas agora chega de brincadeiras
e vamos trabalhar porque temos muitos atendimentos
para fazer hoje.
— Certo, promotor Pedro! O pessoal do primeiro
atendimento ao público já chegou e está esperando
para falar com o senhor, eles chegaram mais cedo que
a hora marcada.
— Tudo bem! Não quero que eles esperem mais,
vou atendê-los agora mesmo.
— Vou pedir que entrem no seu gabinete, só um
minuto. – Me entrega a ficha do caso, faço uma rápida
leitura e me preparo.
Esse foi o primeiro atendimento ao público de
diversos que faço ao longo do dia, nem tenho tempo
de sair e respirar um pouco. Se o Eduardo não tivesse
comprado o meu almoço, eu teria morrido de fome.
Ainda bem que tenho o melhor assessor do mundo.
— Finalmente o dia acabou, doutor. – A
secretária traz os últimos documentos que faltam para
eu assinar.
— Nem me fale, Bruna! Acho que esse foi o
maior dia do ano. Ou melhor, da minha vida. – Faço
uma careta engraçada.
— Nós vamos passar naquele barzinho da
esquina que o senhor gosta para tomar uma antes de ir
embora, você vai com a gente, não é, promotor?
— Eu adoraria, mas dessa vez não posso! Já
tenho planos para hoje à noite.
— Aposto que tem mulher no meio, Bruninha! –
meu assessor grita da sala dele, que fica de frente para
a minha, e ambas as portas estão abertas, consigo ver
ele enfiado em duas telas de computador ao mesmo
tempo, digitando freneticamente.
— Na verdade, tem várias mulheres no meio,
sim, Eduardo! Mas não do jeito que vocês dois, com
essa mente suja, estão pensando. – Pego o meu paletó
nas costas da cadeira e visto.
— Como assim, doutor? Explica melhor esse
babado para a gente, vai! – Ela e o Eduardo trocam
sorrisinhos, esses dois amam uma fofoca.
— Deixa de ser curiosa, senhorita Bruna! – Ajeito
algumas coisas dentro da minha maleta, aos risos. —
Aproveitem a cerveja por mim, vejo vocês amanhã. –
Vou embora deixando o meu assessor e a secretária
confusos.
Não posso de maneira nenhuma contar a eles
que as mulheres que pretendo encontrar essa noite
são, na verdade, o máximo de prostitutas que eu
conseguir. Minha investigação no caso do assassino em
série será em campo, quero fazer algumas perguntas
para essas moças de maneira informal. Talvez algumas
delas conheçam uma das vítimas e com muita sorte me
deem alguma pista, a esperança é a última que morre.
— Seja o que Deus quiser! – Estaciono o meu
carro em uma vaga qualquer e ando pelas ruas escuras
do Rio de Janeiro, sentindo o peso de cada passo que
dou.
A noite começa abafada e, após caminhar alguns
minutos, vejo algumas garotas de programa batendo
ponto em uma esquina. Tento falar com uma,
encostada em um poste, fumando um cigarro e
olhando distraída para o movimento fraco na rua, seus
olhos têm aquele brilho de quem já viu coisas demais
nessa vida.
— Boa noite, senhorita! – digo, minha voz calma
e controlada, não quero assustá-la.
— Oi, gato. — Ela me olha de cima a baixo,
avaliando se sou cliente ou problema. — Tá
procurando diversão?
— Na verdade, eu gostaria de te fazer algumas
perguntas.
— Não precisa perguntar nada, porque eu faço
de tudo e bem gostoso! Adoro um anal, seu pau grande
vai adorar o meu buraco apertadinho. – Enrola o dedo
no cabelo loiro desbotado.
Sua maquiagem pesada está toda borrada,
parece o Coringa, mas o que mais me incomoda é o
bafo de cigarro barato na minha cara.
— Você não entendeu, moça. Eu...
— Shiiii. – Ela agarra a minha gravata com essas
unhas enormes pintadas de vermelho. — Eu entendi,
sim, você quer socar em mim bem gostoso a noite
toda. – Leva a mão nas minhas partes íntimas.
— Eu não estou atrás de sexo, senhorita. – Tiro a
mão dela de mim. — Preciso de informações, você
conhecia alguma dessas moças? – Tiro as fotos das
vítimas do assassino de prostitutas do bolso de dentro
do meu paletó e as mostro.
— Droga! Você é da polícia! – Deixa o cigarro cair
de sua mão, dando um passo para trás, nervosa.
— Eu estou investigando o caso do assassino de
prostitutas, mas não sou da polícia e posso pagar bem
caso você me dê alguma informação importante – jogo
a isca.
— Seja quem você for, eu não sei de nada, cara.
Enfia esse seu dinheiro no rabo e me deixa em paz,
cara! – Vai embora correndo.
O mesmo acontece com todas as outras
prostitutas que encontro, assim que começo a fazer
perguntas sobre o assassino em série, elas se assustam
e fogem correndo pensando que sou da polícia. Mas
não desisto. Vou virar a noite vagando pelas ruas do
Rio de Janeiro se for preciso, mas não vou para casa
sem conseguir pegar o depoimento de pelo menos
uma garota de programa.
Capítulo 3

Paula

— A senhora tem mesmo que trabalhar essa


noite, mamãe? – Maria faz um biquinho fofo, ela está
sentada na pia do banheiro, abraçada com a Josefina
enquanto me olha terminar de me maquiar.
Josefina é uma boneca de pano feia pra cacete
que o padrinho da minha filha deu a ela quando
nasceu, desde então Maria carrega esse troço velho
para todo lado e as duas só dormem juntas.
— Tenho sim, meu amor, mas prometo voltar
para você o mais rápido possível. – Me abaixo para
ficar da sua altura e encho o seu rosto de beijos,
fazendo-a gargalhar.
Às vezes nem consigo acreditar que a minha
filha já está com seis anos e é a criança mais linda, doce
e amorosa desse mundo. Ela puxou a pele escura do
pai, que é o preto mais lindo que já vi na vida, mas não
vale um tostão furado, diga-se de passagem. O que tem
de bonito, o babaca do DG tem o dobro de malandro.
Maria também puxou o cabelo bem cacheadinho do
pai, e o sorriso que desarma qualquer ser humano
nesse mundo, é assim que ela consegue ganhar tudo o
que quer de mim sem nenhum esforço a danadinha.
A única coisa que a minha filhota herdou de mim
mesmo são os famosos Amber Eyes, tipo olhos de lobo
cor de mel com alguns riscos esverdeados dependendo
da iluminação ambiente, ou quando o nosso humor
muda para algo mais intenso, o que, no meu caso,
acontece quase sempre, tenho o pavio curtíssimo. De
resto, a beleza dos traços negros marcantes da Maria
vieram todos do embuste do pai dela que nunca quis
saber da filha.
Azar o dele, que não faz questão de participar da
vida da melhor coisa que ele provavelmente fez nesse
mundo.
— Quando a senhora voltar traz um presente
para mim, mamãe? – Faz uma carinha fofa que é
impossível dizer não.
— Eu vou pensar em algo bem legal, eu
prometo! – Pisco para ela.
— Ebaaa! Eu te amo, mamãe. – Abraça o meu
pescoço e os meus olhos se enchem de lágrimas, tenho
tanto medo de não conseguir cumprir a promessa de
voltar para a minha filha.
— Eu também te amo, filha! Seja uma boa
menina e obedeça a sua babá, está bem? – Toco a
pontinha do seu nariz arrebitado.
— Eu sempre me comporto bem, meu padrinho
disse que eu e a Josefina somos boas meninas. – Beija
a cabeça da sua boneca feia e depois a abraça bem
forte, essas duas são mesmo inseparáveis.
— E eu assino embaixo do que o seu padrinho
Léo disse, meu amor. – A babá da Maria aparece na
porta do banheiro.
A dona Elza é uma ótima pessoa que nunca me
julgou por ser mulher da vida, ela trabalha comigo
desde que a minha filha era um bebê e é como se fosse
uma avó para a Maria.
— Ótimo, meninas, mas agora eu preciso ir para
o trabalho porque já estou atrasada. – Beijo o rosto das
duas.
— Se ver a tia Val no trabalho, diz que eu mandei
um beijo. – Maria sorri inocente.
Depois que saí da delegacia eu me sentei em um
banco numa praça e chorei até todas as minhas
lágrimas secarem, não conseguia acreditar que a
minha amiga se foi. Entretanto, precisava seguir em
frente, então enxuguei o rosto e fui buscar a minha
filha na escola, mas não tive coragem de contar para
ela sobre a morte da Valentina. Sabia que ia sofrer
demais, assim como eu.
— Eu digo sim, filha. – Me despeço com um
abraço apertado e saio praticamente correndo do
banheiro antes que ela fizesse mais perguntas.
— A tia Val não vai voltar, não é, Paula? – A babá
da minha filha vem atrás de mim.
— Não vai, dona Elza! – Tenho um ataque de
choro, não dá para segurar.
— A senhora precisa contar para a menina, ela
pergunta quando a Valentina vai voltar todo santo dia.
— Eu sei! Mas vou contar para a Maria quando
estiver pronta, prometo. – Enxugo as lágrimas com
cuidado para não borrar a minha maquiagem. — Mas
agora preciso mesmo ir trabalhar, a senhora lembra do
que eu disse?
— Manter todas as portas e janelas trancadas e
não atender ninguém além de você, certo?
— Isso mesmo, dona Elza, vejo a senhora mais
tarde.
— Se cuida, Paula!
— Eu vou, não se preocupe. – Forço um sorriso
e saio de casa para bater ponto no calçadão como em
tantas outras vezes.
Mas nessa noite será diferente porque sei que a
minha vida está em jogo, preciso ficar com todos os
meus sentidos em alerta para o caso do psicopata
aparecer. Não vou mentir que estou me cagando toda
de medo, mas, como eu disse ao pé no saco do
investigador Siqueira, sei me cuidar muito bem sozinha
e não vou deixar ninguém mandar em mim. Além do
quê, estou mais que preparada para enfrentar o
assassino de prostitutas, na minha bolsa tem um spray
de pimenta e uma arma de choque. Fora as minhas
unhas grandes e afiadas que sei usar muito bem
quando quero desfolhar o rosto de alguém, esse cara
não perde por esperar.
Ele escolheu errado a sua próxima vítima!
— É isso aí! Eu não tenho com o que me
preocupar. – Retoco o meu batom vermelho antes de
descer do ônibus em frente ao calçadão, lugar onde
tem sido o meu ponto de trabalho há anos.
— Ei, Paula, que bom que você chegou, sua
putinha safada. – Uma das minhas colegas de trabalho
acena para mim, seu nome de guerra é Debi Furacão,
porque ela arrasa com tudo por onde passa.
— Oi, Debi, por que tanta surpresa em me ver?
Sabe que não sou de faltar ao batente. – Dou uma
voltinha mostrando o meu uniforme novo de trabalho,
um vestido curtíssimo branco transparente no estilo
bem piranha.
— Pensei que, como a maioria das meninas, você
amarelaria e não viria com medo desse tal assassino de
prostitutas cuzão, por causa dele o movimento aqui no
calçadão baixou muito. – Olha à sua volta desanimada,
de fato o mar não anda muito para peixe por aqui.
— Até parece que você não me conhece, sua
vaca! – Bato a minha bunda na dela quase toda à
mostra em uma sainha jeans ainda mais curta que o
meu vestido. — Eu não tenho medo de nada, nem
mesmo da morte. — Abro um sorriso amarelo,
mantendo a pose de durona.
Mudo de assunto e começo a me insinuar para
os carros que passam, só que essa noite tudo e todos
parecem tão suspeitos para mim. O clima mais frio do
que o normal e o céu fechado sem nenhuma estrela.
Não consigo deixar de sentir que estou me arriscando
demais ao deixar o orgulho falar mais alto e vir
trabalhar, mas a ideia de fugir ou me esconder também
não me desce pela garganta. Sou uma mulher de fibra,
nada e nem ninguém é capaz de me deter. Nem
mesmo um assassino em série psicopata.
— Mas conta para a gente, mulher, você tem
alguma notícia da Valentina? – pergunta outra
prostituta, uma travesti com um corpão violão de dar
inveja em qualquer mulher.
— Nada ainda, Ruby, acho que ela se cansou da
gente e se mudou para outra cidade. – Engulo as
lágrimas a seco e desvio o olhar.
É melhor manter em segredo tudo o que a
polícia me contou sobre a Val, não quero assustar
ainda mais as minhas colegas de trabalho.
— Tomara que essa menina tenha mais sorte
onde quer que ela tenha ido, ainda é jovem e tem um
bom coração. Merece seguir um futuro diferente do
nosso, esse bando de puta velha fodida. – Ruby apoia
a cabeça no meu ombro, enchendo a minha roupa com
a purpurina colorida da sua maquiagem.
— Eu tenho certeza de que a Valentina está em
um lugar muito melhor agora, Ruby. Pode apostar! –
Sorrio olhando para o céu escuro acima da minha
cabeça.
— Ei, meninas, acho que é a nossa noite de sorte.
– Debi ajeita os silicones de olho em um grupo de
amigos vindo na nossa direção, com cara de quem está
a fim de muita putaria.
— Eu passo essa, meninas, não estou no clima de
suruba hoje.
— Paula Souza recusando trabalho nessa crise?
– Ruby arqueia a sobrancelha. — Alguma coisa está
mesmo muita errada por aqui. – Me dá um tapa na
bunda e sai rebolando pronta para o ataque ao grupo
de amigos.
As meninas acabam fechando um programa com
os rapazes, eu fico para trás sozinha no calçadão,
arrumando motivo para recusar todo cliente que
aparece.
— Merda! O que eu estou fazendo? Vir trabalhar
essa noite foi loucura. – Sinto a atmosfera pesada à
minha volta, um pressentimento ruim crescendo em
mim.
Decido dar meia-volta e voltar para casa o
quanto antes, mas quando estou passando em uma
esquina deserta até o ponto de ônibus que vai para o
meu bairro, a luz do poste se apaga e a rua fica escura.
Sinto um frio na nuca e começo a correr rápido, alguma
coisa não está certa.
— Droga! Acho que tem alguém me seguindo. –
Ouço passos atrás de mim, quando olho para trás vejo
a silhueta de um homem alto andando a passos
rápidos.
Ele está bem-vestido, com um terno caro e
sapatos que brilham sob a luz fraca da lua. Sua postura
é altiva, e ele se move com a confiança de quem não
tem medo de nada. Algo nele me faz parar de respirar
por um segundo.
Porra! O assassino de prostitutas me encontrou.
— Ei, pare aí, moça! – o homem grita em um tom
de autoridade.
Ignoro o comando, meus pés batendo forte
contra a calçada, o som do meu salto fino abafado pela
batida acelerada do meu coração. Corro o mais rápido
que posso, mas sinto que ele está se aproximando.
— Socorro! Alguém me ajuda – começo a gritar
desesperada, mas não aparece uma alma viva para me
socorrer.
— Eu só quero fazer algumas perguntas – insiste
o desgraçado, cada vez mais próximo.
Corro mais rápido ainda, entro em uma rua à
esquerda e, para o meu azar, ela não tem saída.
— Merda! – Fico sem saber o que fazer, então
me escondo atrás de um contêiner de lixo.
Pego a arma de choque na bolsa e o spray de
pimenta, minha respiração está pesada, cada
inspiração parecendo rasgar meus pulmões. Mas
mantenho a cabeça erguida, esperando o momento
certo para atacar.
— Deus, eu sei que não mereço, mas me ajude,
por favor! – sussurro tremendo de medo quando ouço
os passos pesados dele se aproximando.
— Eu sei que você está aí, moça. – A voz grossa
ressoa na escuridão. — Não precisa ter medo, só quero
ajudar. – Tem a cara de pau de dizer.
Eu fecho os olhos, segurando o choro que
ameaça explodir. Isso é uma armadilha. Preciso ficar
quieta, não fazer nenhum som. Os passos dele ecoam
cada vez mais próximos. Ele está me caçando, como
um predador que já saboreia a captura.
— Não vou machucar você, eu juro! – garante, a
voz perigosamente calma.
— Quem vai te machucar sou eu, meu bem! –
Saio do meu esconderijo e vou para cima do infeliz, ele
pode até me matar, mas vou dar muito trabalho a ele
antes.

Se é para morrer, eu morrerei lutando!

Capítulo 4

Pedro

— Porra! Ficou maluca, mulher? – Levo um susto


quando a onça brava salta de trás do contêiner de lixo
e joga spray de pimenta nos meus olhos, me cegando
completamente.
A ardência é imediata e brutal. Meus olhos
queimam como se tivessem sido enfiados em fogo.
Mesmo assim tento abri-los e ver o rosto da mulher,
mas a dor é insuportável. Tudo que consigo ver são
manchas embaçadas de luz e escuridão.
— Isso é por todas as mulheres inocentes que
você matou! – Me dá um chute no meio no saco, caio
de joelhos sentindo uma dor do caralho.
Maldita hora que eu decidi seguir essa doida
varrida!
Depois de várias tentativas falhas de pegar o
depoimento de pelo menos uma garota de programa,
decidi ir embora e descansar depois do dia longo que
tive. Estava a caminho de casa, passando em frente ao
calçadão de Ipanema, quando eu a vi...
Uau!
Foi a única palavra que consegui formular
quando vi uma morena linda com um corpão de tirar o
fôlego, o cabelo negro como a noite, liso, abaixo da
cintura fina. Ela estava em meio a outras prostitutas
que não tinham um terço da sua beleza, andando de
um lado para o outro pelo calçadão com seu salto fino
e um vestido branco transparente curto e sexy, tão
justo que parecia uma segunda camada de pele,
moldando as suas curvas generosas e acentuadas. Não
consegui ver o seu rosto direito por causa da distância,
mas imaginei que deveria ser tão bonito quanto o resto
do corpo. Atravessei a rua passando em meio aos
carros indo na direção da bela mulher, parecia
hipnotizado.
Um caminhão quase me atropelou e eu me
distraí com a buzina. Quando olhei para o calçadão a
bela morena não estava mais lá. Comecei procurá-la
feito um louco, a encontrei indo pela minha esquerda
andando rápido, parecia assustada e isso chamou mais
a minha atenção. Estaria ela em perigo? Fiquei
preocupado, então fui atrás dela. Mas, ao passar por
uma esquina deserta, a luz do poste apagou e a mulher
parecia que havia visto um monstro e saiu correndo
desesperada, deixando um rastro do seu perfume
delicioso para trás.
Aumentei o passo atrás da garota de programa
tentando falar com ela, precisava saber do que a moça
estava com tanto medo. Do assassino de prostitutas,
talvez? Foi o que pensei, e estava certo. O problema é
que ela pensa que eu sou esse psicopata e por isso me
atacou, cegando-me com spray de pimenta nos olhos,
e possivelmente castrado também, com um chute bem
dado no meu pau.
— Eu acho que você quebrou o meu pau, porra!
– Seguro o meu amigão lá embaixo, gemendo de dor.
— O chute foi pelas mulheres que você matou,
seu desgraçado, mas isso é por mim. – A maluca ainda
não tinha terminado, ela enfia uma arma de choque no
meu pescoço.
Caio no chão me contorcendo igual a uma
minhoca no asfalto quente enquanto escuto o som do
salto da mulher cada vez mais distante fugindo, acabo
apagando ali no chão de uma rua escura não sei por
quanto tempo. Quando acordo o meu pau ainda dói
muito e os olhos queimam como se pegassem fogo.
Com dificuldade, consigo me arrastar e me sentar com
as costas apoiadas no contêiner.
— Não acredito que eu, um homem com quase
dois metros de altura, levou uma surra de uma mulher!
– Puxo o celular do bolso, demoro para conseguir
entrar na lista de contatos, não consigo enxergar quase
nada. Ligo para o primeiro número que encontro,
torcendo que seja alguém que possa me ajudar.
— E aí, mano, beleza? – meu irmão caçula diz
alegre do outro lado da linha.
Com tantas pessoas, eu fui ligar logo para o
abusado do Vinicius. Ele vai me zoar pelo resto da
minha vida por conta disso.
Que maravilha!
— Oi, Vini. – Minha voz está rouca e tento limpar
a garganta. — Preciso que você me busque. Agora!
— Não posso, cara, estou no meio de um date
com uma gata que conheci no trabalho e pretendo
levá-la para a cama essa noite. – Dá uma risadinha
maliciosa.
— Agora, Vinicius Alcântara! Eu estou em uma
situação complicada, preciso da sua ajuda.
— Pedro? O que aconteceu? Você tá bem? – A
voz de Vini soa preocupada, mas também cheia de
curiosidade.
— Não, não estou bem. Uma prostituta maluca
me cegou com spray de pimenta, chutou o meu saco e
enfiou uma arma de choque no meu pescoço, okay? –
conto logo de uma vez, piscando para tentar clarear a
visão enquanto escuto meu irmão rindo do outro lado
da linha.
— Sério mesmo? Você, o grande promotor
Pedro Alcântara, apanhou de uma prostituta? –
Gargalha mais alto ainda.
— Larga de ser abusado e vem logo, Vini – peço,
frustrado, depois envio a minha localização em tempo
real.
Nunca imaginei que a minha noite terminaria
dessa forma, comigo todo fodido pedindo ajuda para o
meu irmão caçula para ir para casa. Fora que ainda
teria que pedir para buscarem o meu carro depois, isso
se eu lembrar o local onde o deixei estacionado.
— Já estou indo, seu empata-foda – resmunga,
aposto que revirando os olhos.
Trinta minutos depois, vejo as luzes do carro de
Vini se aproximando pela rua escura. Ele estaciona ao
meu lado e agradeço a Deus por isso.
— Caramba, irmão! O que você estava fazendo
com essa moça nesse lugar escuro? Essa história está
muito mal contada. – Vini me ajuda a entrar no seu
carro ainda rindo da minha cara, sinto o alívio imediato
do ar-condicionado no meu rosto. — Você parece que
saiu de uma briga com uma onça furiosa.
— E foi isso mesmo, mano! – Acabo rindo
também. — E com um perfume delicioso. – Sorrio, com
o cheiro dela grudado na minha mente.
— Pelo menos ela era gostosa? Sempre tive
fantasia sexual com uma prostituta.
— Tinha um corpaço, mas infelizmente não
consegui ver o rosto dela – lamento em um suspiro. —
Quando tentei me aproximar para fazer algumas
perguntas sobre um caso que estou trabalhando, ela se
assustou pensando que era o assassino de prostitutas
e me atacou.
— O Romeu está certo, cara, essa sua
investigação sobre esse assassino em série ainda vai
acabar te matando. – Me ajuda com o cinto de
segurança.
Pensando melhor, ainda bem que eu liguei para
o Vini e não para o chato do nosso irmão mais velho
Romeu, porque ele iria fazer uma cena por conta disso
e até colocaria os nossos pais no meio.
— Se você contar para ele, Vini, nunca mais falo
contigo.
— Eu não vou contar para o Romeu, mas vou
tirar uma foto por garantia caso eu precise te
chantagear algum dia. – Quase termina de me cegar de
vez com um flash na minha cara, esse moleque não
tem jeito mesmo.
— Agora já chega, Vinicius! Só me leva para casa.
— Está bem, promotor, mas fique sabendo que
eu não sou seu motorista particular, ok?
— Só dirige, criatura!
— Como quiser, senhor chute no saco. – Vini
continua rindo de mim durante todo o caminho para
casa, mas deixo passar.
Minha mente está longe, pensando em toda a
coragem daquela mulher selvagem, que enfrentou um
homem do meu tamanho mesmo pensando que eu era
um assassino perigoso.
Porra!
Acho que estou fascinado por ela, pena que
nunca mais a verei novamente.

Capítulo 5
Paula
Depois do meu encontro tenso com o assassino
de prostitutas, vou para casa mais rápido do que jamais
pensei ser possível. As ruas parecem um borrão
enquanto corro com a adrenalina ainda fluindo nas
veias, e quando finalmente fecho a porta do
apartamento atrás de mim, estou completamente sem
fôlego. Meu coração está batendo tão forte que sinto
como se fosse sair pela boca. Confiro as trancas de
todas as portas e janelas, até mesmo aquelas que mal
se abrem. Se pudesse, trancaria até as cortinas.
— Essa foi por pouco! – murmuro para mim
mesma, jogando as costas na porta.
Preciso ser mais cuidadosa, porque da próxima
vez posso não ter a mesma sorte dessa noite.
— Está tudo bem, dona Paula? Parece que viu
um fantasma. – A babá da minha filha me olha
assustada.
— Está tudo bem, sim, Elza. – Ajeito o cabelo e a
roupa toda desalinhada.
— A senhora chegou cedo essa noite, Paula. –
Examina a minha aparência suspeita.
— O movimento estava fraco hoje no calçadão,
mas aqui está o pagamento por essa noite. – Tiro
algumas notas de dentro do meu decote e dou a ela.
— Muito obrigada, querida! Vejo você amanhã à noite.
– Acompanho-a, nos despedimos e assim que ela vai
embora eu tranco a porta imediatamente.
Passo o resto da noite dormindo espremida na
caminha da minha filha, mantendo a arma de choque
debaixo do travesseiro. Acordo no susto com um som
estranho. Parece que tem alguém dentro do
apartamento! Meu coração começa a bater de novo,
tão rápido quanto na noite anterior. Se aquele
psicopata decidiu me seguir até aqui, ele vai levar
outro choque de realidade nas fuças e dessa vez com
mais potência que o primeiro.

— Merda! Tem mesmo alguém aqui. – Vejo uma


sombra na sala, e é agora ou nunca.
Antes que ele tenha a chance de fazer qualquer
coisa, corro na direção da sombra e lhe dou uma
rasteira certeira, sabia que as aulas de capoeira que fiz
na adolescência valeriam para algo algum dia.
— Ahhhh! – Ouço um grito seguido de um som
de algo caindo no chão como um saco de babatas.
Respiro fundo, satisfeita por ter neutralizado o
inimigo. Só que aí, quando estou pronta para enfiar a
arma de choque no pescoço do invasor, minha visão se
ajusta no escuro e percebo que a tal sombra não é do
assassino. Na verdade, é o babaca do meu amigo Léo,
ele tem uma chave extra aqui de casa.
— Leônidas Rafael?! O que você tá fazendo aqui?
– Começo a rir.
— Isso não tem graça, Paula, endoidou de vez?
Porra! – Ele geme, ainda no chão, tentando recuperar
o fôlego.
— Eu pensei que fosse o assassino de prostitutas
de novo atrás de mim, caramba!
— Como assim de novo, Paula Souza?
— Não foi nada, cara! – desconverso. — Me fala
logo, o que veio fazer aqui entrando de mansinho na
minha casa como se fosse um criminoso? – Ajudo-o a
se levantar do chão.
— Eu só vim te ver, queria saber como você está
depois da sua saída malcriada da delegacia.
— Estou ótima, não está vendo? Já disse que sei
me cuidar sozinha. – Dou de ombros bancando a
durona.
— Eu vi como está bem, paranoica desse jeito.
Até arrumou uma arma de choque. – Olha para o
objeto na minha mão, pronto para uso.
— Desculpa, Léo! Mas que foi engraçado, foi! –
Não consigo segurar o riso.
— Vê se cresce, Paula! E faz um café fresco para
nós enquanto conversamos, trouxe pão da padaria da
esquina para nós.
— Café parece uma boa ideia. E, Léo... obrigada
por vir me ver, mesmo depois da maneira rude que
falei contigo na delegacia, sei que só quer me ajudar. –
Abraço meu amigo rabugento, por muito tempo ele
vem sendo a única família que Maria e eu temos e
sempre podemos contar.
— Por favor, Paula, me diga que vai parar de ser
orgulhosa e vai aceitar a ajuda da polícia. Não pode
andar por aí com a minha afilhada sabendo que tem
um assassino frio e calculista na sua cola. – Me dá um
leve tapinha nas costas.
— Eu não confio na polícia e você sabe muito
bem disso, esses homens da lei acham que são os
donos do mundo. – Vou para a cozinha e coloco a
chaleira no fogo. — Mas não passam de farinha do
mesmo saco e estão pouco se fodendo para putas de
rua iguais a mim e só querem me usar para fechar esse
caso por conta da pressão pública.
— Ai, Paula, eu não sei o que faço com você! É
muito difícil ser seu amigo, sabia? – resmunga o
motoqueiro tatuado encostado no balcão da minha
cozinha minúscula.
— Ah, vai se ferrar, Léo! Eu sou mó legalzona. –
Jogo um pano de prato na cara dele.
— A senhora falou um palavrão, mamãe. – Maria
aparece na cozinha esfregando o olho, sonolenta,
agarrada com a sua boneca Josefina.
— Olha quem acordou, a princesa do dindo. –
Léo pega a afilhada no colo e a joga para cima, ele faz
isso com ela desde que era só um bebezinho.
— A benção, padrinho! Eu estava com saudades
do senhor.
— Deus te abençoe, Maria, eu também estava
com muitas saudades suas. – Faz cosquinhas na barriga
dela, suas gargalhadas enchem a cozinha, o melhor
som desse mundo para mim.
— Eu também estou com muitas saudades da tia
Valentina, sabe? Mas ela não voltou mais aqui em casa,
acho que ela não gosta mais de mim. – Maria faz uma
carinha triste.
— Não é isso, meu amor, a tia Val só anda muito
ocupada – minto mais uma vez.
Não sei como contar para uma criança que mais
alguém que ela ama se foi, já basta a morte do filho do
Léo que era o seu melhor amiguinho.
— Muito ocupada, não é, Paula? – Léo me olha
feio, mas me faço de desentendida.
— O café está pronto, vamos tomar antes que
esfrie. – Arrumo a mesa.
Tomamos café da manhã juntos e graças a Deus
o Léo não tocou mais no assunto da polícia ou do
assassino de prostitutas, depois ele foi embora porque
tinha que trabalhar. Ficamos apenas minha filha e eu,
decidi não a levar para a escola hoje. Vamos passar o
dia inteiro trancadas em casa, único lugar no mundo
que me sinto segura no momento.
— A senhora não vai trabalhar essa noite,
mamãe? – pergunta Maria quando me vê colocar o
pijama após o banho. Depois dos acontecimentos de
ontem resolvi tirar um tempo de férias do calçadão.
Vou atender a domicílio apenas os clientes fixos
mais antigos, chega de colocar a cara a tapa na rua,
pelo menos por enquanto.
— A mamãe tirou a noite de folga, filha. Já liguei
para a dona Elza e avisei ela que não precisa vir, porque
quem vai cuidar da minha gatinha serei eu. – Corro
atrás dela, que se acaba de rir.
Mas de repente a campainha toca, já fico em
sinal de alerta e olho no olho mágico da porta para
saber quem é.
— Mas o que ela está fazendo aqui? – Abro a
porta.
— Por que você ainda não está arrumada,
mulher? Aposto que esqueceu do evento que vamos
fazer para um grupo de ricaços. – Sandra entra no meu
apartamento em cima do seu salto quinze agulha, toda
alvoraçada como sempre.
Sandra é uma espécie de organizadora de
eventos privados para adultos, homens podres de ricos
e poderosos que pagam uma fortuna para uma boa
noite de orgia com belas mulheres. Em poucas
palavras, uma cafetona de luxo. As meninas do
calçadão brigam feio para trabalhar nessas festas
secretas, porque o que ganhamos em uma noite
equivale a uma semana inteira de trabalho suado
rodando bolsinha nas ruas. Só que a Sandra escolhe a
dedo quem vai trabalhar para ela e cuida muito bem
das suas pupilas, sei disso porque já faço parte do seu
catálogo há tempo suficiente para ter conquistado a
sua confiança.
— Minha nossa, Sandra! Eu realmente me
esqueci que essa noite tem evento, me desculpa.
— Tudo bem, docinho, você pode pegar tudo o
que precisa e se arrumar no caminho. Todas as
meninas já estão lá embaixo na van esperando, falta só
você.
— Mas eu não tenho ninguém para deixar a
minha filha, acabei de dispensar a babá dela essa noite.
— Você que sabe, Paula, mas se você não for vou
ter que colocar outra garota no seu lugar e não sei
quando sairá outra vaga. – Ajeita o cabelo preso em um
aplique de rabo de cavalo loiro falso.
— Tudo bem, Sandra! Eu vou, mas será que
podemos deixar a Maria na casa do padrinho dela
antes? – Cedo por fim, mesmo nem um pouco a fim de
trabalhar essa noite, só queria ficar em casa com a
minha filha.
Mas não posso perder esse bico que faço com a
Sandra, ou nunca vou conseguir terminar de juntar a
grana para realizar o sonho de ter a minha casa própria
e sair do aluguel. Quero que a minha filha cresça em
um bairro bacana, seguro e perto de boas escolas.
— Claro que podemos, vai ser um prazer dar
uma carona para essa fofinha aqui. – Toca a ponta do
nariz da minha filha e ela sorri.
— Eba! Eu vou dormir na casa do meu padrinho.
– Maria sai correndo pegar a sua mochila e a sua
boneca.
Meia hora depois, estávamos batendo na porta
do Léo no meio da noite. Graças a Deus quem atendeu
foi a esposa dele, a querida da Dani. Quando vi essa
loira patricinha pela primeira vez, nunca imaginei que
ela e o meu amigo, que na época também trabalhava
como acompanhante de luxo, se apaixonariam de uma
maneira um tanto inusitada e hoje teriam essa família
linda.
— Tem certeza de que não tem mesmo
problema a Maria ficar aqui essa noite para eu
trabalhar? – sussurro, com medo do Léo escutar e vir
encher o meu saco.
— Você sabe que eu acho uma loucura ir
trabalhar com tudo o que vem acontecendo, mas eu
respeito a sua decisão. – Ela ajeita a sua bebezinha
linda, Blue Marcely, dormindo no seu colo. — Fora que
é uma alegria enorme toda vez que essa mocinha
dorme aqui em casa. – Dani pisca para a minha filha.
— Ei, Paula, vamos logo! Nós estamos atrasadas!
– Sandra aperta a buzina.
— Tchau, meu amor, a mamãe te pega amanhã
depois da escola. – Dou um beijo no seu rosto e um
abraço bem forte.
— Tchau, mamãe, eu te amo!
— Eu também te amo, filha!
— Vê se se cuida, amiga. – Dani me fita
preocupada.
— Eu vou me cuidar, não se preocupe. – Faço
carinho na bochecha gorducha e rosada da sua bebê
fofa.
Depois volto correndo e entro na van, sei que vai
dar tudo certo. Afinal, esses eventos privados são
apenas para homens poderosos e em lugares onde só
entra quem tem o nome na lista e a segurança é maior
do que nos presídios de segurança máxima.
Capítulo 6
Pedro

Abro o convite em um fim de tarde comum de


sexta-feira, daqueles dias em que o café está um pouco
mais amargo e os processos parecem se multiplicar
sobre a minha mesa. O envelope, porém, se destaca
entre os outros papéis, com um selo dourado e meu
nome impresso em letras cursivas elegantes. Abro-o
com cuidado e, para minha surpresa, de última hora
descubro que fui convidado para uma festa de
despedida. Não é qualquer festa, mas a aposentadoria
de um juiz renomado na cidade carioca, alguém que,
honestamente, sempre admirei de longe. Apesar de
cansado depois de um dia longo de trabalho, fico
animado.
Afinal, não tenho tantos anos de experiência no
meio jurídico, e ser convidado para um evento desse
porte significa que estou indo no caminho certo, que
meu trabalho como promotor está sendo notado por
gente do alto escalão. Mas há algo estranho. O convite
diz, em letras douradas e reluzentes, que a vestimenta
deve ser toda preta e de gala.
Mas o que me pega de surpresa é a máscara que
cai do envelope quando o viro. É uma máscara preta,
simples, mas de boa qualidade, com cordões de cetim
para amarrá-la.
— Intrigante... – penso alto, analisando a
máscara na minha mão.
— Será que a despedida do juiz Torres será um
baile de máscaras? Talvez algo temático, uma
brincadeira para animar a noite? – me pergunto, mas
decido que, seja o que for, eu vou.
Nessa festa vai ter muita gente importante e
nesse meio é sempre bom ter novos contatos, também
faz tempo que não saio para me distrair um pouco,
então vou matar dois coelhos com apenas uma
cajadada.
— Nada mal! – Ajeito a gravata-borboleta pelo
retrovisor antes de sair do carro, cheguei ao local do
evento pontualmente.
E a primeira coisa que noto é a segurança do
evento. Parece uma fortaleza. A mansão é imponente,
rodeada por guardas armados que se movem com uma
precisão quase militar. Na entrada, sou instruído a
deixar meu celular em um compartimento seguro. Não
esperava por isso, mas até faz sentido, considerando a
quantidade de "peixes grandes" do meio jurídico
presentes. Depois, um termo de confidencialidade é
colocado diante de mim. Leio por cima – linguagem
formal padrão, nada fora do comum – e assino, ainda
curioso.
Porém, o que mais me intriga é a revista
completa que dois seguranças realizam em mim.
Revistam-me com seriedade, como se estivessem em
uma missão secreta. Um exagero sem tamanho. A essa
altura, minha curiosidade é maior que a animação
inicial. Não que eu me sinta ameaçado, mas
definitivamente tem algo estranho aqui. Quando
finalmente passo pela última barreira de segurança,
entro em um salão amplo e luxuoso.
— Cacete! – solto quando entro e descubro o
verdadeiro tema da festa.
A cena à minha frente é tão absurda que me
deixa paralisado por um momento, todos os
convidados são homens engravatados, poderosos e
cheirando poder de longe. As luzes são baixas, criando
um ambiente de penumbra que realça o brilho das
máscaras que todos usam. Belas mulheres circulam
pelo salão, servindo drinks, vestidas apenas de lingerie,
salto alto e máscaras, só que na cor branca. O
ambiente é elegante, mas totalmente sexual. No palco,
ao fundo, um show de striptease está em andamento,
e o riso baixo dos convidados excitados preenche o ar.
Me movo pelo salão com cuidado,
cumprimentando alguns dos meus colegas de trabalho,
tentando manter a compostura. A cada passo, percebo
o quão envolvido todos estão, o quão normais essas
cenas são para eles. Talvez seja uma tradição antiga,
algo que os novos no meio jurídico, como eu, não
conheciam até agora.
— Ei, promotor, que bom que você veio! Bem-
vindo ao nosso clubinho especial só para homens. – O
juiz Torres acena para mim com duas loiras com os
peitos de fora agarradas ao seu pescoço.
Eu me aproximo dele com uma expressão polida,
mantendo o controle da situação, apesar de bastante
surpreso. Quem vê a seriedade do juiz Torres em ação
nos tribunais jamais imaginaria que ele, um marido
amado, pai de família e avô, é adepto desse tipo de
orgia.
— Parabéns pela aposentadoria, Excelência —
digo, estendendo a mão para o senhor de cabelos
brancos.
Ele a aperta firmemente, seu sorriso malicioso
alargando-se ainda mais.
— Obrigado, Pedro. Fico feliz que tenha vindo.
Você faz parte da nova geração que vai tomar conta
dos tribunais deste país. – Dá três tapinhas nas minhas
costas.
Forço um sorriso de agradecimento, mas a
verdade é que estou decidido a sair daqui o mais rápido
possível. Esse tipo de festa não é meu estilo. Tenho
coisas mais importantes para fazer, não posso perder
o foco com prazeres momentâneos. Além do mais,
pode parecer piegas, mas para eu ir para a cama com
alguma mulher, precisa ter algum tipo de conexão
além de tesão.
Sou o tipo romântico à moda antiga...
— Agradeço o convite, mas infelizmente não vou
poder ficar muito. Tenho uma audiência amanhã cedo
— justifico, tentando parecer sincero.
— Claro... claro, eu entendo, filho. Mas
aproveite um pouco antes de ir, tem mulheres aqui
para todos os gostos — ele diz, apertando a bunda das
duas loiras ao mesmo tempo.
A verdade é que eu não poderia estar mais
desconfortável, quase nauseado com a hipocrisia de
tudo isso. A maioria desses homens presentes são
casados, ou pelo menos comprometidos com boas
mulheres, que estão inocentes em casa nesse
momento, colocando os filhos deles para dormir.
— Eu prometo que vou ficar pelo menos para um
drink, senhor. – Forço um sorriso e me direciono para
o bar.
Mas, no meio do caminho, algo que vejo me faz
parar no mesmo instante.
— Uau! – Olho para a mulher rodeada por um
grupo de uns quatro homens sentados em um sofá
redondo, cada um segurando um copo de uísque
enquanto assistem ao pequeno show particular.
A bela morena de longos cabelos levemente
ondulados, quase negros, move-se com uma
sensualidade que parece sobrenatural. Ela está usando
uma máscara branca que cobre a parte superior do
rosto, deixando à mostra apenas seus lábios carnudos,
pintados de um vermelho profundo que combina
perfeitamente com a lingerie escarlate que abraça suas
curvas voluptuosas.
Seus olhos dourados brilham sob a luz baixa,
realçando cada movimento lento e deliberado de seu
corpo enquanto ela dança. Os cabelos longos deslizam
sobre seus ombros nus, às vezes cobrindo
parcialmente suas costas expostas. O sutiã vermelho
acentua o formato perfeito de seus seios, enquanto a
calcinha de renda se ajusta firmemente à sua cintura
esbelta. A cada giro, os saltos altos fazem um leve
clique no chão, marcando o ritmo de sua performance.
Todos os homens a observam, hipnotizados,
assim como eu, enquanto a morena se inclina para a
frente, exibindo-se para eles. O brilho dos olhos deles
é de desejo misturado com uma admiração silenciosa,
enquanto ela se aproxima mais, sem nunca perder o
ritmo ou a confiança. Com um movimento gracioso, ela
desliza uma mão ao longo de sua própria perna,
subindo lentamente da panturrilha até a coxa, antes de
dar uma meia-volta e empinar os quadris, oferecendo-
lhes uma visão que parece ser tanto uma provocação
quanto uma promessa.
Cacete!
Quando a morena se vira, o olhar dela encontra
o meu e por um momento meu coração perde uma
batida. É como se ela pudesse ler até a minha alma. E
o sorriso ousado que a diaba me dá ao me pegar
admirando a sua beleza, porra! Chega a ser uma
afronta de tão lindo.
Há algo nessa mulher que me é muito familiar.
— É ela! – Acontece um estalo na minha cabeça.
Eu reconheceria esse corpo magnífico em
qualquer lugar, essas curvas são únicas. A dançarina
sexy é a garota de programa maluca que me atacou
naquele beco escuro, confundindo-me com o assassino
de prostitutas. Aquela morena cuja bravura me deixou
fascinado mesmo com os olhos ardendo de spray de
pimenta.
— O destino realmente só pode estar tirando
uma comigo! – Minha mente corre.
Como é possível que nossos caminhos tenham se
cruzado de novo, e na festa de aposentadoria do juiz
Torres? Tento me convencer de que estou errado, que
é apenas uma coincidência, mas a certeza só aumenta
à medida que continuo observando-a dançar
provocante, contorcendo o corpo de maneira ardilosa
ainda com os olhos grudados aos meus.
— Vem aqui, gostosa, senta no colo do papai. –
Um dos homens a puxa pelo braço de maneira escrota,
quase torcendo o pulso da moça.
— Vai com calma aí, meu bem, ainda não
terminei o show. – A morena joga o cabelo para o lado,
tirando a mão do homem do seu corpo.
— É assim que eu gosto, arisca. – Outro babaca
levanta e dá um tapa na bunda dela, esfregando as
partes íntimas nela por trás.
— Vamos levar essa vadia para o quarto no
segundo andar, vamos ver se ela aguenta quatro
machos de uma vez só. – Os homens se tornam mais
agressivos, suas mãos buscando tocá-la de uma
maneira que a faz enrijecer.
Fico puto de raiva! Como um homem pode tratar
uma mulher assim? Só porque ela trabalha como
profissional do sexo, não quer dizer que precisem agir
de maneira tão desprezível.
— Tire as suas mãos sujas de mim, suruba não
está no meu contrato. – O empurra para longe dela.
— Olha como fala comigo, sua vadia! – Levanta
a mão para dar uma bofetada no rosto da moça.
— Não ouse fazer isso. – Seguro a sua mão no ar,
tomado por um impulso protetor incontrolável por
essa mulher que mal conheço.
— Ou o quê, cara? Por acaso você não faz ideia
de quem eu sou? – ameaça com arrogância.
— Seja lá quem for, não lhe dá o direito de
levantar a mão para uma mulher. – Torço o seu pulso
fazendo-o gemer de dor.
— Se quer tanto essa puta, pode ficar com ela!
Tem um monte aqui muito menos arisca para enterrar
o meu pau.
— Ótimo! Porque essa aqui já tem dono. –
Seguro na mão da morena e a puxo para longe
daqueles lobos selvagens, nem reparo quando
chegamos no segundo andar da mansão onde tem
casais transando por toda parte, os gemidos ecoando
pelo extenso corredor.
Abro a primeira porta que encontro e entramos
em um quarto luxuoso, longe de toda aquela bagunça
lá fora.
— Você está bem? — pergunto, a preocupação
finalmente quebrando a máscara de autossuficiência
que mantive até agora.
— Eu estou ótima! – Puxa a mão quebrando o
contato físico. — Mas você não precisava ter bancado
o herói e feito aquilo, sei muito bem lidar com aquele
tipo de macho escroto.
Alinha os ombros em uma postura defensiva,
mas dá para sentir o alívio na sua linda voz por eu tê-la
livrado de uma bela fria. Mas nunca admitiria, pelo
queixo erguido dá para ver o quanto é orgulhosa. E isso
só a deixa ainda mais sexy.
— Ah... tenho total certeza de que você sabe se
defender sozinha, moça. – Lembro da surra que ela me
deu na outra noite, um pouco mais de força naquele
chute e teria me tirado o sonho de ser pai algum dia.
— Olha, cara, não sou boba e sei que nada nessa
vida é de graça, então vamos resolver logo isso.
Em um movimento rápido, ela me empurra
contra a parede e fica de joelhos na minha frente, me
olhando de baixo para cima com esses olhos dourados
de um jeito safado detrás da máscara.
E ainda tem esse perfume delicioso que ela usa
que a partir de agora se tornou o meu favorito.
— Não precisa fazer isso, você não me deve
nada. – Seguro as suas mãos já abrindo o meu cinto,
ela é rápida e boa no que faz.
— Mas eu sinto que estou em dívida contigo,
então só aproveita o momento, meu bem. – Umedece
os lábios com a língua, provocando-me.
E consegue!
— Só que eu não estou a fim, ok? – minto na cara
dura, puxando-a pelo braço e obrigando-a a se levantar
antes que eu ceda à tentação do diabo.
— Não é o que parece, gato! – Sorri olhando para
a cabana que o meu pau duro formou debaixo da calça
apontando para o dedo, quase morro de vergonha.
— Opa! Me desculpe por isso, senhorita. – Tento
pensar em coisas broxantes enquanto ajeito o meu
amigão lá embaixo para não parecer tão visível, mas é
quase impossível.
— Senhorita? Minha nossa! Faz muito tempo
que não me chamam de maneira tão formal. – Revira
os olhos. — Mas agora, pensando melhor, a sua voz me
parece bastante familiar, por acaso já nos
encontramos antes, talvez?
— Acho pouco provável, não costumo
frequentar esse tipo de festas – minto, porque se ela
descobrir que sou o homem que a perseguiu na outra
noite, vai fugir de mim outra vez e eu não quero que
isso aconteça.
Tem algo de intrigante nessa mulher, que me
deixa irresistivelmente tentado a saber mais sobre ela.
— Que seja, cara! Mas já que você não está a fim
de um pouco de diversão essa noite, preciso voltar lá
para baixo e continuar o meu trabalho, ou não vou
receber a grana por essa noite. – Se vira para ir embora,
mas eu agarro o seu braço novamente.
— Eu pago o que você quiser para que fique
comigo essa noite – faço a proposta indecente.
— E por que você faria isso, cara? – Olha no
fundo dos meus olhos.
— Não preciso explicar, negócios são negócios. –
Tiro a carteira do bolso e pego todas as notas de
dentro. – É pegar ou largar.
— Mas o que vamos fazer aqui em cima, já que
nem ao menos um boquete vai rolar?
— Fique e descubra, morena... – Estico o maço
de dinheiro na sua direção, mas ela não pega, fica
apenas me encarando desconfiada.
Torço para que aceite a minha proposta, preciso
conquistar a confiança dessa moça, porque talvez
assim ela me conte tudo o que eu preciso sobre o que
acontece no mundo obscuro da prostituição que só
quem faz parte dele realmente sabe.
Sabendo como funciona, talvez eu consiga ter
uma ideia de como a mente do assassino de prostitutas
trabalha quando escolhe as suas vítimas.

Capítulo 7

Paula
— Eu topo! – Pego o monte de notas da sua mão.
— Mas, se isso for alguma pegadinha, vai se
arrepender amargamente – ameaço desconfiada.
Porque, quando a esmola é demais, o santo
desconfia. Primeiro esse playboy me salva daquele
grupo de caras sem noção, depois nega um boquete
como agradecimento. E agora, me paga essa grana
preta só para ficar aqui no quarto com ele fazendo não
sei o que, porque com esse estilo todo certinho,
putaria não deve ser.
— Ótimo! Você está com frio, morena? – Vendo
que estou toda encolhida com essa lingerie minúscula
que a Sandra obrigou a gente a usar no evento dessa
noite, ele tira o paletó gentilmente e coloca em volta
do meu corpo.
— Obrigada – respondo baixinho, não estou
acostumada com homens sendo gentis assim comigo.
— Tem mais alguma coisa que eu possa fazer
para que você se sinta mais confortável? – Fecha as
janelas para abafar o som alto da festa vindo do andar
de baixo.
— Tudo bem se tirarmos essas máscaras? É
estranho conversar sem poder ver o rosto da pessoa. –
Levo a mão no rosto.
— Não! – grita e eu paro no mesmo instante. —
Vamos manter a nossa identidade em segredo por
enquanto, isso torna tudo muito mais interessante.
— Como você quiser, afinal, pagou caro para
passar esse tempo comigo. – Dou de ombros.
De repente minha barriga ronca alto, me
matando de vergonha, acabei vindo trabalhar sem ter
comido direito, minha filha e eu passamos o dia
comendo apenas porcarias.
— Você está com fome? Espera aqui, já volto. –
Sai correndo e volta minutos depois com uma garrafa
de champanhe, duas taças e uma bandeja abarrotada
de aperitivos de todos os tipos e sabores.
— Isso foi muito gentil da sua parte, mas nós
acompanhantes de luxo somos proibidas de consumir
qualquer coisa em eventos grã-finos como este. – Olho
para um bolinho de camarão com água na boca.
— Que pena! Porque esse bolinho de camarão
está uma delícia. – Pega um e joga na boca na minha
frente, dando um gemido de prazer.
— Que se dane! – Meto um foda-se e começo a
comer, viro uma taça de champanhe inteira e encho
outra.
— Então, me fale um pouco sobre você, morena.
– Dá um gole na sua taça de champanhe, o tempo todo
me encarando como se me conhecesse a vida toda.
— O que alguém como você, que provavelmente
nasceu em berço de ouro, gostaria de saber de alguém
igual a mim, uma puta de rua barata? – falo de boca
cheia, esses aperitivos de gente rica são mesmo uma
delícia.
— Não tem medo de continuar trabalhando
mesmo com um assassino de prostitutas à solta? – sua
pergunta tão específica me pega de surpresa.
— Como eu disse, sou uma puta barata de rua.
Mesmo com um assassino em série à solta por aí, os
meus boletos não param de chegar todo mês. Então,
não tenho muita escolha. – Dou de ombros.
— Eu no seu lugar não pagaria para ver. Pelo que
tenho acompanhado nos jornais, esse cara já matou 32
prostitutas. – Pigarreia ao me analisar, atento. — E a
propósito, por acaso você conhecia alguma das
vítimas? — pergunta e lágrimas brotam dos meus
olhos.
A imagem da minha amiga Valentina continua
tão viva na minha cabeça, como se ela ainda estivesse
aqui, entre nós.
— Por que a pergunta? – Me levanto em um
rompante, em sinal de alerta. — Não estou gostando
dessa conversa, você por acaso é da polícia, hein, cara?
– Entro no modo defesa.
Não duvido nadinha que aquele velho escroto do
Siqueira colocasse algum dos seus homens na minha
cola para me vigiar, isso parece ser bem a cara dele.
— Eu não sou da polícia, morena. Me desculpa!
– Amacia o tom de voz. — Sou só um idiota curioso
demais, vamos mudar de assunto, tudo bem? Podemos
falar sobre o que você quiser, pode me fazer qualquer
pergunta.
— Você é gay não é? Aposto que deve passar o
dia inteiro ouvindo as músicas da Dua Lipa e a Lady
Gaga – pergunto de repente, fazendo-o engasgar-se
com um aperitivo que tinha acabado de colocar na
boca, mas essa é a única razão para esse cara estar
sendo tão legal comigo.
Talvez seja um gay encubado e não quer que
ninguém descubra, por isso me pagou para ficar aqui
nesse quarto com ele só para conversar. E não quer
que tiremos essa máscara porque tem medo que eu
revele o seu segredo, tirando-o à força do armário.
— Eu luto a favor dos direitos LGBTQIA+, mas
não sou gay! Por que a pergunta? – Fica indignado.
— Sei lá... você se veste bem. – Olho para o seu
terno caro de três peças e gravata-borboleta. —
Também é educado, gentil e respeita as mulheres.
— E só porque eu sou um cara legal não posso
ser hétero?
— Com todas essas qualidades, impossível! –
Sento-me na cama novamente.
— Pois fique sabendo que, além de tudo, ainda
sou romântico. – Ajeita a gravata-borboleta de queixo
erguido. — O combo perfeito!
— Você é gay sim, com certeza! Ou no mínimo
bissexual, talvez só não saiba disso ainda. – Rio na cara
dele.
— Isso não é engraçado, sabia? – reclama, mas
rindo junto comigo. — Apesar de raro, homens héteros
decentes ainda existem.
— Coloca raro nisso, na minha profissão você é
o primeiro que eu conheço. – Meu sorriso morre, já
passei tanta perrengue na mão de clientes escrotos
que tenho até vergonha de lembrar.
— Por que você entrou nesse mundo tão
perigoso da prostituição?
— Pelo mesmo motivo que a maioria das
meninas desse meio. – Desvio o olhar, envergonhada.
— A necessidade...
Dou um longo suspiro, lembrando do dia que os
meus pais me expulsaram de casa quando descobriram
que eu estava grávida, saí só com a roupa do corpo.
— Se você pudesse escolher, que profissão
teria?
— Eu sou completamente apaixonada por
vinhos, sabe? – Deito as costas na cama e fito o teto
com as mãos juntas sobre o corpo. — Quando era mais
nova, meu sonho era estudar para trabalhar como
degustadora profissional, mas, como vê, o destino
tinha outros planos para mim.
— Ainda bem que nunca é tarde para recomeçar,
você ainda pode estudar para realizar o seu sonho de
trabalhar com vinhos. – O homem misterioso também
joga as costas na cama e fita o teto.
— É mais fácil falar do que fazer. Quando se
entra no meio da prostituição e fica por muito tempo
nele, não é fácil sair.
— Nada é impossível quando se quer de
verdade. – Gira o rosto e olha para mim fixamente,
chego a perder o fôlego.
— Ainda por cima você é filosófico, fala sério! –
Reviro os olhos rindo.
— Eu te disse, sou uma edição limitada – brinca
em um bocejo longo, parece cansado.
— Droga! Eu preciso ir ao banheiro, acho que
bebi champanhe demais. – Levanto-me correndo e vou
até o banheiro da suíte.
— Eu vou estar bem aqui te esperando, morena
– garante.
No entanto, quando volto alguns minutos
depois, ele está dormindo pesadamente. Sinto uma
vontade tremenda de tirar a sua máscara e ver o seu
rosto, mas me contenho. Quando um cliente impõe
uma regra, nós garotas de programa profissionais
devemos respeitar os seus limites.
— Até que a noite foi muito melhor do que eu
esperava! – Tiro o bolo de notas de cem reais
escondido dentro do meu decote, fiz uma grana preta
só com uma conversa fiada com esse cara.
Depois de cobri-lo com o lençol e deixar o seu
paletó sobre as costas de uma cadeira, tiro as sandálias
de salto para não fazer barulho e saio do quarto
pisando bem de leve. A essa altura todos os convidados
já estão bêbados no andar de baixo ou trepando com
uma ou mais prostitutas, então Sandra me libera para
ir para casa. Como é de madrugada, chamo um táxi que
me deixa na porta de casa. Com um assassino em série
atrás de mim, achei melhor não me arriscar pegando
um ônibus, e como ganhei bem essa noite não tem
problema gastar um pouco com conforto e segurança.
Chego em casa exausta, tomo um banho e apago
na cama. Acordo tarde quase implorando por um café
preto, mas antes vou ao banheiro lavar o rosto.
Caminho pelo corredor esfregando os olhos, ainda
sonolenta, me inclino sobre a pia e jogo um jato de
água fria no meu rosto.
— Mas que porra é essa? – Levo um susto
quando ergo a cabeça e vejo uma mensagem escrita no
espelho com o meu batom vermelho.

“Sorria, cordeirinha, eu estou te filmando.”

Meu Deus! De alguma forma, esse maluco


estava me observando esse tempo todo na minha
própria casa.
— Mas que filho da puta! – Corro e pego uma
mala pequena debaixo da cama, coloco só o essencial
dentro dela, na velocidade da luz.
A primeira coisa que pego é todo o dinheiro que
guardo debaixo do colchão, e não é pouca coisa, são as
minhas economias de anos trabalhando no calçadão.
No entanto, agora terei que usá-lo para recomeçarmos
a nossa vida em outro lugar bem longe do Rio de
Janeiro, de preferência em uma cidade no outro lado
do país. Chega de bater de frente com esse psicopata,
vou colocar o plano B em ação e fugir.
O único problema é convencer a minha filha de
que precisamos mudar assim em cima da hora para
outro estado, ela não entende o que está acontecendo
e eu não sei como explicar para uma criança de sei anos
que a mãe dela está na mira de um assassino em série.
— Por que nós temos que deixar a nossa casa,
mamãe? Eu gosto de morar lá. – Maria para de andar
no meio da rua e me olha assustada com esses olhos
enormes cor de mel, tão parecidos com os meus.
Tive que buscá-la na escola no meio da aula,
estou agindo feito uma fugitiva e qualquer homem que
passa perto de mim me encarando por mais de dois
segundos eu já penso que é o assassino de prostitutas
me seguindo.
— Porque nós vamos recomeçar uma vida nova
em outro lugar, meu amor, não é legal? – Forço um
sorriso.
— Mas eu não quero uma vida nova, gosto da
nossa.
— Não seja teimosa, filha!
— Não, mamãe! Hoje, depois do recreio, a
professora vai levar a nossa turma para um piquenique
no parque, a senhora esqueceu? – Puxa a minha mão
na direção contrária, fazendo birra.
— Só que eu já comprei as passagens, não dá
para cancelar em cima da hora, Maria Alice Souza. –
Começo a puxá-la à força pela rua, nunca ajo assim
com a minha filha, mas hoje não tenho tempo para
conversa, estou com os meus nervos à flor da pele.
Não consigo relaxar olhando para todos os lados
o tempo todo, e qualquer homem que se aproxima de
mim eu penso que é o assassino pronto para me atacar
outra vez.
— Então vai só a senhora, ué! Eu vou ficar em
casa esperando a tia Val voltar, não podemos deixar ela
sozinha, vai pensar que nós a abandonamos. – Solta a
minha mão e deixa a sua mochila cair no chão de
propósito, só para me irritar.
Na verdade, além dos olhos cor de mel, a Maria
também herdou a minha teimosia.
— Eu não tenho tempo para isso agora, Maria
Alice, então, mova essas perninhas agora mesmo! –
peço entre os dentes, tentando não perder a paciência
de vez com ela.
— Não vou a lugar nenhum, Paula. Quero ficar e
esperar a tia Val, eu sei que ela vai voltar. – Senta-se na
calçada e cruza os braços, me chamando pelo nome.
Minha filha faz isso quando quer me irritar de verdade.
E o pior é que ela sempre consegue.
— A tia Val nunca mais vai voltar para casa,
porque ela está MORTA! – explodo em um grito
ensurdecedor, tão alto que chega a chamar a atenção
de algumas pessoas próximas a nós. Eu estava com ele
preso na garganta desde que saí daquela maldita
delegacia.
Primeiro, Maria paralisa com os olhos
arregalados, tentando assimilar o que eu disse, depois
os seus lábios começam a tremer e ela chora
incontrolavelmente. Isso parte o meu coração. Me
sinto a pior mãe do mundo, não queria ter dado essa
notícia horrível para a minha filha dessa forma
grotesca, partindo o seu coraçãozinho inocente.
— Então, quer dizer que a gente nunca mais vai
ver a tia Val, mamãe? – pergunta em soluços, eu
também não consigo segurar e acabo em lágrimas
junto dela.
— Infelizmente não, meu amor. – A pego no colo
e ajeito a saia azul cheia de pregas do seu uniforme da
escola. — O bicho-papão a pegou e agora está atrás da
mamãe também, por isso precisamos nos esconder em
outra cidade, está bem? – Assente com os olhinhos
marejados.
Maria tem os seus raros momentos de birra, mas
é esperta o suficiente para saber quando estou falando
sério.
— Está bem, mamãe, nós podemos recomeçar
em outra lugar. – Pega a sua mochilinha no chão e
segura a minha mão com firmeza, então enfim vamos
embora.
— Só um minuto, mamãe. – Maria para de andar
novamente.
— O que foi agora, filha?
— Eu esqueci de pegar a Josefina, não podemos
ir sem ela.
— Mas eu não esqueci, Maria, sei muito bem
que a minha bebezinha não dorme sem essa boneca
feia e a coloquei na mala. – Giro os olhos.
— A Josefina não é feia, meu padrinho disse que
a palavra é exótica.
— É a mesma coisa, mocinha. – Faço cócegas
nela até que a faço sorrir.
Depois enfim vamos embora, não faço ideia do
que o futuro reserva para mim e à minha filha, mas
estou determinada a mantê-la segura, assim como fiz
desde que descobri a sua existência, quando era
apenas uma sementinha crescendo no meu ventre.
Não permitirei que nenhum mal aconteça com a Maria,
nem que isso signifique que tenhamos que fugir pelo
resto de nossas vidas.
Mas antes de sairmos do Rio de Janeiro, nós
precisamos passar em um lugar muito importante.
— Você acha que a tia Val vai gostar da cartinha
que fiz para ela, mamãe?
Dentro do ônibus, Maria me mostra o pequeno
pedaço de papel escrito com um monte de letras
tortas, cada palavra feita com uma cor diferente, ela
fez o melhor que pôde.
— Está perfeita, filha, tenho certeza de que a tia
Val vai amar. – Faço carinho no seu rosto, e ela sorri
agarrada com a sua boneca.
O sol já começa a se pôr na Cidade Maravilhosa,
tingindo o céu de tons alaranjados quando Maria e eu
chegamos ao Cemitério São João, onde o investigador
Siqueira disse que a minha amiga está enterrada. Olhei
túmulo por túmulo até achar o nome dela, Valentina
Ribeiro, pois não podíamos partir sem nos despedir.
— Enfim eu te achei, amiga, pena que foi tarde
demais. – Me inclino e coloco o buquê de girassóis que
comprei para a Valentina em uma floricultura aqui
perto, eram as suas flores favoritas.
Meus olhos voltam a se encher de lágrimas ao
lembrar que a Valentina enlouqueceu quando viu na
internet que tem uma plantação de girassóis em uma
cidadezinha no interior do Rio. Acordei com aquela
criatura pulando em cima da minha cama toda
empolgada como uma adolescente normal da sua
idade, implorando para que fôssemos visitar o lugar.
Fomos naquela manhã mesmo, e ela e a Maria fizeram
a maior festa correndo pelos canteiros sem fim de
flores amarelas.
Fizemos um piquenique lá, comemos várias
besteiras e tiramos muitas fotos. Valentina disse que
aquele foi o dia mais feliz da sua vida, e eu me senti
honrada por fazer parte dele.
— Eu estou com saudades, tia Val, prometo que
nunca vou te esquecer. – Maria esfrega os olhinhos
com vontade de chorar, depois guarda a sua boneca
Josefina dentro da mala e abraça a lápide da Valentina,
a cena mais triste desse mundo.
— Eu também nunca vou te esquecer, amiga,
você sempre fará parte da nossa família. – Fecho os
olhos, sentindo uma dor tremenda rasgar o meu peito.
Não sou muito temente a Deus, mas rezo para
que a minha amiga enfim tenha encontrado a paz onde
quer que ela esteja agora. Só que de repente uma
sensação estranha interrompe a minha oração. Sinto
como se estivesse sendo observada, e um frio percorre
toda a minha espinha, fazendo moradia nas minhas
entranhas.
Ele está aqui...
— Temos que ir embora agora, filha. Diz tchau
para a tia Val. – Abro os olhos e observo ao nosso
redor, mas não vejo mais ninguém no cemitério além
de nós duas.
Mas, então, por que essa sensação ruim não
passa?
Resolvo confiar nos meus instintos.
Agarro Maria pela mão, pego a nossa pequena
mala e saio do cemitério o mais rápido possível. Tem
um ponto de ônibus ali perto que vai direto para um
terminal rodoviário interestadual, lá é seguro porque
está sempre lotado de pessoas e eu poderei escolher
com calma para onde iremos.
— Espera, mamãe, eu preciso entregar para a tia
Val a cartinha que fiz para ela. – Minha filha enfia a mão
no bolso do seu casaco, apressada, enquanto
corremos.
— Desculpa, meu amor, mas agora não dá mais
tempo. – Aumento a velocidade dos passos, Maria
tenta me acompanhar e, na hora da pressa, deixa a
cartinha que fez com tanto amor cair na saída do
cemitério.
Ao andarmos pela rua, continuo olhando para
todos os lados assustada e, para piorar, o meu celular
começa a tocar sem parar no meu bolso. Tem várias
ligações perdidas do meu amigo Léo, como se sentisse
que estou em perigo. Só que vejo que também tem
uma mensagem de um número estranho, levo um
tremendo susto quando abro. Tem uma foto minha e
da Maria de costas, indo em direção ao ponto de
ônibus, ela foi tirada segundos atrás.
Meu coração para quando vejo que tem alguém
digitando rápido, e logo em seguida envia a seguinte
mensagem:
“Achei você, cordeirinha”.

Eu estava certa, o desgraçado está aqui e muito


próximo de nós. Entro em pânico, e na hora do
desespero pego a Maria no colo e fujo, deixando a
nossa mala com tudo o que nos restou para trás. Só
penso em fugir com a minha filha, correndo sem rumo
o mais rápido que consigo.
Capítulo 8

Pedro

— Já faz um tempinho desde a última vez que eu


estive aqui, não é mesmo, meu anjo? Desculpa! As
coisas andam uma loucura na promotoria.
Inclino sobre o túmulo e deixo uma flor,
deslizando a mão sobre as letras douradas gravadas na
lápide de mármore escura.
“Aqui descansa em paz Valentina Ribeiro, um
anjo que voltou cedo demais para os braços de Deus”.
— Vejo que andou recebendo outras visitas,
mocinha. – Observo o buquê de flores frescas que foi
deixado aqui recentemente, são os girassóis mais
lindos que já vi, em um amarelo vibrante.
Sei que foi uma mulher que esteve aqui porque
ela deixou um rastro do seu salto fino cravado por toda
a grama do cemitério, e não é só isso. O aroma
delicioso do seu perfume La Victorie Intense, da
Eudora, ainda está impregnado no ar e, por
coincidência, é o mesmo da morena que fugiu de mim
ontem de novo. Eu estava tão cansado depois de um
dia longo de trabalho que acabei cochilando enquanto
ela foi no banheiro. Quando acordei, já com o dia
amanhecendo, não a vi mais no quarto.
E dessa vez duvido muito que o destino seja tão
generoso comigo e faça o nosso caminho se cruzar pela
terceira vez, se isso acontecesse seria quase um
milagre.
— Mas por que, depois de tanto tempo, alguém
viria visitar o seu túmulo, Valentina? – Fico intrigado.
No entanto, também fico feliz em saber que essa
pobre garota tem outras pessoas além de mim que se
importam com ela.
— Eu queria poder ficar mais tempo, meu anjo,
mas tenho uma pilha de trabalho me esperando na
promotoria. – Apoio a mão sobre a sua lápide. — Mas
prometo voltar em breve, combinado? E, com muita
sorte, talvez eu encontre a sua amiga cheirosa por aqui
– brinco.
Me despeço da Valentina e vou embora, mas,
quando estou saindo do cemitério, vejo um papel caído
no chão, dobrado com muito zelo. Me abaixo e pego, é
uma cartinha escrita toda errada, claramente por uma
criança.
“Tia Val, eu estou com muita saldade de você.
Obligada por sempre brincar comigo de boneca e me
fazer sorrir, eu te amo muintão”.
Ass: Maria

Assim finaliza o texto, cheio de pequenos


coraçõezinhos coloridos. Por algum motivo, decido
guardar o pedaço de papel no bolso do meu paletó e
sigo o meu caminho tranquilo assobiando. Depois de
sair do cemitério, pego o meu carro parado no
estacionamento que fica em frente e sigo para o
trabalho. Minha vida tem sido só isso ultimamente, de
casa para a promotoria. Faz tempo que não dou uma
boa foda, ando trabalhando demais e não tenho tempo
nem para os amigos, quem dirá para mulheres.
Faz meses que não vejo uma boceta, acho que
nem sei mais como se transa. Virei quase a merda de
um virgem outra vez, que vive apenas de se masturbar
debaixo do chuveiro.
— Que pensamento bravo é esse logo de manhã,
credo! – Resolvo ligar o rádio para passar o tempo,
música sempre é o remédio para tudo, até mesmo para
a falta de sexo.
Aumento o volume quando começa a tocar uma
música do embaixador Gusttavo Lima, para mim ele é
o melhor cantor sertanejo de todos os tempos.
Começo a cantar junto da letra enquanto dirijo, uma
sofrência sem tamanho.
“Ainda não me chame de meu nego
Ainda não me chame de bebê,
Porque era assim que ela me chamava,
E um apelido carinhoso é o mais difícil de
esquecer.”
— Mas que porra! – Piso fundo no freio quando
uma mulher maluca atravessa a rua correndo com uma
criança no colo.
Mesmo com todos os meus esforços, não
consigo parar o carro a tempo e acabo acertando as
duas em cheio. Aconteceu tudo muito rápido, quase
num piscar de olhos.
— Merda! O que foi que eu fiz? – Salto do carro
desesperado e vou ao socorro das duas.
— Por favor, mamãe, acorda! – Ouço o choro da
garotinha e isso me traz um alívio tremendo, pelo
menos ela está viva.
Juro que eu nem respirava quando cheguei na
frente do meu carro e vi aquela cena caótica, uma
mulher caída sobre o asfalto com um corte grande na
testa que está sangrando tanto que cobre os traços do
seu rosto, o deixando irreconhecível. Ela usa um
vestido preto simples e um sapato de salto alto, um par
de scarpins vermelhos, um permaneceu no seu pé, mas
o outro voou para o lado do seu corpo.
— Se acalme, princesa, vai ficar tudo bem com a
mamãe. – Me abaixo e levo a mão em um movimento
inseguro até o pescoço da mulher para conferir se
ainda tem pulsação e sinto uma enorme corrente
elétrica percorrer o meu corpo quando a ponta dos
meus dedos toca a sua pele macia e sedosa.
Nem precisei continuar a conferir a sua pulsação,
porque, depois que eu toquei a mulher, o seu coração
começou a bater tão rápido que era possível ver a caixa
torácica subindo e descendo rapidamente.
“Ela também sentiu toda aquela eletricidade
entre nós”.
— Oh, meu Deus! Espero que a moça esteja viva,
já liguei para o SAMU e estão enviando uma
ambulância. – Uma senhora simpática aparece para
ajudar e olha para nós com um semblante preocupado.
— Ela está viva, sim, senhora. Muito obrigado
pela ajuda! – digo sem conseguir tirar os olhos da moça
caída no chão. — Juro por Deus que, quando vi, as duas
já estavam na frente do meu carro, não foi minha
culpa.
Em um ato de cuidado, pego o par de scarpins
vermelho ao lado do seu corpo e coloco delicadamente
de volta no seu pé.
— E não foi mesmo, rapaz, eu estava passeando
na calçada com o meu cachorro quando vi essa moça
correndo desesperada com a criança no colo, como se
estivessem fugindo de alguém – contou um homem,
tirando um peso enorme da culpa dos meus ombros,
mas trazendo uma dúvida imensa.
— De quem você estava com tanto medo a
ponto de preferir se jogar na frente de um carro com a
sua filha? – Faço carinho no cabelo da mulher, sentindo
uma sensação absurda de que preciso protegê-la a
qualquer custo.
— Nós estávamos fugindo do bicho-papão,
minha mãe disse que ele quer pegar ela – diz a
garotinha entre os soluços do choro, é de partir o
coração ver um pinguinho de gente passando por um
momento tenso como esse.
— Bicho-papão? Você poderia me descrever
como ele era, baixinha? – indago, mas, quando ela ia
responder, o pessoal do SAMU chega com essa sirene
escandalosa ligada e assusta a menina.
— Nós precisamos trabalhar agora, pessoal, por
favor, se afastem – pediu um dos paramédicos
empurrando a multidão de curiosos que se formou em
volta de nós para trás.
— Não! Eu quero ficar com a mamãe – a
garotinha começa a gritar se agarrando ao corpo
desfalecido da mãe, que, com todo respeito, é o mais
escultural que já vi em toda a minha vida.
E os outros homens presentes pareciam ter a
mesma opinião que a minha sobre a ótima condição
física da moça, inclusive os paramédicos, que a fitavam
de cima a baixo de maneira inapropriada e nada
profissional. Então tiro o paletó do meu terno e coloco
sobre ela, mais incomodado do que devia por se tratar
de uma estranha.
— Alguém pode tirar essa criança daqui, por
favor? Ela está dificultando o nosso trabalho. – Um dos
paramédicos empurra a filha da mulher para trás de
qualquer jeito e o meu sangue ferve, queria dar um
murro no desgraçado.
— Encosta nessa criança de novo, parceiro, e eu
arranco a sua mão fora – cochichei no ouvido dele
discretamente, e ele chegou a engolir em seco, tenho
dois sobrinhos lindos e fico possuído só de pensar em
alguém os maltratando.
E o estranho é que não me sinto diferente em
relação a essa criança, e eu a conheço não tem nem
dez minutos.
— A minha mamãe vai morrer e eu vou ficar
sozinha, moço. – A pobrezinha se senta no chão com
as mãozinhas sobre o rosto e chora de um jeito tão
doído que até eu fiquei com vontade de chorar
também.
Como eu disse, sou um idiota emocionado. Sou
um homem grande e valente feito um touro para
defender os meus casos nos tribunais, mas, fora do
trabalho, sou fraco para qualquer coisa que envolva
fortes emoções.
— Ei, linda, a mamãe não vai morrer. E eu
prometo ficar do seu lado até que ela acorde, está
bem?
Me sento ao seu lado no chão, ela tira as
mãozinhas do rosto e me encara chorosa. Uma lágrima
cai e eu enxugo com o dedo polegar. A baixinha é uma
graça, tem a pele escura e lisinha igual de chocolate e
o cabelo bem cacheadinho, parece uma boneca de
porcelana de tão linda. Os olhos são cor de mel, as íris
como duas bolas de fogo gigantes.
— Você jura juradinho que não vai me deixar
sozinha até a mamãe acordar? – Me pega de surpresa
ao pular no meu pescoço e me abraça com força.
— Eu juro juradinho, baixinha. – A pego no colo
e a abraço, virando-a para o outro lado para que não
veja a cena da mãe sendo colocada dentro da
ambulância na maca, tem tanto sangue em toda parte
que nem eu que sou adulto consigo olhar.
— Alguém aqui conhece a vítima para ir com ela
para o hospital e preencher a ficha de entrada, por
favor? – pergunta o paramédico olhando diretamente
para mim, já que estou com a filha da mulher no colo
agarrada a mim como se a conhecesse desde que
nasceu.
— Pode deixar, eu vou com as duas. – Entro na
ambulância, deixando o meu carro para trás, isso não
tem mais a menor importância para mim.
Nada mais tem, sendo sincero.
Porque, de alguma forma, eu sabia que, a partir
daquele momento, o meu mundo inteiro se tornaria
aquela mulher desconhecida e a sua filhinha agarrada
no meu pescoço como se não fosse soltar nunca mais.

E de fato não soltaria...


O som das sirenes ecoa em meus ouvidos
quando chegamos no hospital, ainda estou
completamente atordoado com o acontecido. Sou um
estranho que atropelou uma jovem mulher, mãe de
uma garotinha linda, e minha consciência pesa como
chumbo. A ambulância mal estaciona na entrada do
pronto-socorro e os paramédicos já saltam do veículo,
arrastando a maca com a vítima, levada às pressas para
o atendimento médico, inconsciente e gravemente
ferida na cabeça.
E eu fico para trás, angustiado e cuidando da
filhinha dela, que segura a minha mão com força. Ela é
uma garotinha linda e doce que, durante o caminho até
o hospital, me disse que o seu nome é Maria Alice e
tem apenas seis anos.
— Quanto tempo a mamãe vai ficar aqui? – Olha
ao seu redor assustada. Assim como qualquer outra
criança, não gosta de hospitais.
Ainda mais nesse pronto-socorro lotado de
pessoas, todas em suas próprias pressas e
preocupações. Está sendo uma daquelas noites tensas
por aqui no hospital, a recepção é um mar de luzes
brancas e o som de passos apressados de enfermeiros
e médicos vindo dos corredores, indo para lá e para cá,
atendendo aos pacientes que chegam aos montes, é
constante. Estou totalmente perdido no meio dessa
bagunça, nem sei para onde devo ir primeiro.
Meu plano há trinta minutos era ficar de boa em
casa, numa noite tranquila, longe de quaisquer fortes
emoções.
— A mamãe não vai ficar muito tempo aqui,
linda, muito em breve vocês estarão juntas
novamente. Eu prometo! – afirmo, mas a verdade é
que nem sei se a mulher vai sobreviver.
— Eu não sei não, moço, porque, quando o meu
melhor amiguinho da escola entrou em um hospital,
ele foi morar com o papai do céu. – Esfregou os
olhinhos molhados, tão pequenininha e já teve que
superar a morte de alguém especial na sua vida.
— Eu sinto muito pelo seu amiguinho, Maria. –
Me abaixo para ficar da altura dela e a abraço, sempre
fui bom com crianças.
Na minha família, eu sou o tio solteirão preferido
dos meus sobrinhos, e eles, às vezes, preferem brincar
comigo a com o chato de galocha do meu irmão mais
velho, Romeu, pai deles.
— Ei, moço, é o senhor que está acompanhando
a mulher que foi atropelada por algum idiota? – uma
enfermeira vem falar comigo segurando uma
prancheta, sorrindo para mim.
Ela tem o cabelo vermelho beterraba, cheira a
cigarro e tem mais batom rosa-choque nos dentes do
que nos lábios.
— Sim! Eu sou o acompanhante e o idiota que
atropelou a mulher, enfermeira. Em que posso ajudar?
– digo, e o seu sorriso morre no mesmo instante.
— Preciso que preencha essa ficha de entrada,
quando terminar é só entregar para a secretária na
recepção. – Sorri sem graça, mas eu nem fiquei
zangado com o seu comentário.
Imagino a quantidade exorbitante de vítimas de
acidentes de trânsito cometidos por motoristas idiotas
que esse hospital deve receber. Muitos dirigem com
imprudência, bêbados ou sob efeito de todo tipo de
drogas, colocando as suas vidas e as de outras pessoas
em risco.
— Muito obrigado, enfermeira! – Me sento na
sala de espera com a Maria e olho para aquela folha de
papel em branco, e a sensação de impotência que eu
experimento é avassaladora.
Eu não sei como preencher a ficha de
emergência da mulher que atropelei, já que nem ao
menos sei seu nome.
— Aqui você coloca Paula Souza, esse é o nome
da minha mamãe. – Vendo que estou totalmente
perdido, a pequena garota sentada ao meu lado me
surpreende com sua inteligência e calma ao apontar o
dedinho na linha onde eu devo escrever na folha.
Ela sabe ler perfeitamente aos seis anos, isso me
fez voltar a ter esperança na educação nas escolas
desse país, seja pública ou particular, que, segundo os
índices de pesquisas feitas recentemente nessa área,
infelizmente não anda muito bem.
— E você também sabe quantos anos a mamãe
tem, baixinha? – Ela assente confiante, me olhando
com os seus grandes olhos castanhos, e diz:
— Mamãe tem vinte e cinco anos, ela diz que
engravidou de mim muito cedo, sabe? Mas não se
arrepende em nenhum momento, porque sou a
melhor coisa que fez na vida dela todinha – fala igual
gente grande, com um sorriso enorme.
Eu não consigo conter um sorriso olhando para
a Maria, estou perplexo com a esperteza dessa criança
e com o fato de sua mãe fazer questão de deixar bem
claro para a filha o quanto a ama.
— E sua mãe está certa, Maria! Dá para ver que
você é uma criança muito especial. – Bato a minha mão
na dela.
— A mamãe também diz que sou muito esperta,
por isso, me ensinou o número de telefone dela e do
meu padrinho para alguma emergência – explica no
seu tom inocente de criança, me deixando literalmente
de queixo caído.
Eu mal sei o meu número de telefone de cor,
quem dirá de terceiros. Minha cabeça nunca foi boa
para essas coisas, tenho um nível leve de TDAH e
preciso deixar sempre tudo anotado, ou me distraio
fácil e acabo esquecendo.
— Seu padrinho, Maria? Mas e quanto ao seu
pai, você não sabe o número dele? – Pigarreio
enquanto finjo terminar de preencher a ficha, mas
estou de ouvido em pé à espera da resposta, eu quero
saber absolutamente tudo sobre as duas.
— Eu não tenho pai, somos só eu e a mamãe. –
Dá de ombros. — É só a gente contra o mundo – diz e
ganha o meu coração todinho só com isso.
A profundidade da declaração daquela criança
me toca profundamente, não me perdoaria nunca se
fosse o responsável por separar ela e a sua mãe, o
amor entre as duas é lindo demais. Eu preciso fazer
tudo o que estiver ao meu alcance para ajudar Paula a
se recuperar, para que elas voltem a ficar juntas o mais
rápido possível.
— Certo, baixinha, agora vamos entregar essa
ficha na recepção. – Lhe estendo a mão e ela segura
sorridente.
Depois de entregar a ficha da Paula na recepção,
decido ligar para o padrinho da Maria e explicar o
ocorrido. Não faço a menor ideia de como dar para
esse cara a notícia de que atropelei a comadre dele, e
eu, um completo estranho, estou cuidando da sua
afilhada. É bem provável que ele me dê um soco nas
fuças assim que chegue ao hospital, já estou até vendo
a cena.
— Como que é o nome do seu padrinho, Maria?
– pergunto enquanto teclo os números fornecidos por
ela, que acertou logo de primeira, nem precisou pensar
muito.
— É Leônidas Rafael, ele é pai do meu amiguinho
que foi morar com o papai do céu – responde no
mesmo momento em que o homem atende à ligação.
Acerto a postura e firmo a voz como se estivesse
falando com ele olho no olho.
— Alô, aqui quem fala é o promotor Pedro
Alcântara, eu gostaria de falar que...
— O que você quer, Pedro? Eu não estou tendo
um bom dia hoje, então, se não for algo de vida ou
morte, me liga outro dia – me corta sem paciência. Fico
em silêncio por alguns segundos, porque conheço
aquela voz do outro lado da linha e ele também
reconheceu a minha.
— Léo? É você, cara, não acredito! – Fico
surpreso, porque conheço esse cara.
Conheci o Léo através de outros amigos meus
em comum, o delegado Avilar, juiz Thompson e o
advogado Gonzales. Inclusive, já bebemos juntos várias
vezes, isso é uma puta de uma coincidência. E, parando
para pensar, agora faz sentido o que a Maria disse
sobre a morte do seu melhor amiguinho. Léo tinha um
filho, o Marcelinho, que morreu de câncer há menos
de um ano, e ele contou que foi difícil demais para a
família dele, afinal, se tratava de uma criança que teve
uma passagem muito curta nesse mundo.
— Mas é claro que sou eu, cara! Quem mais
seria, já que ligou para o meu número? – Bufa do outro
lado da linha, ele realmente não está em um bom dia e
vai ficar ainda pior depois que souber que atropelei a
comadre dele.
Digamos que o Léo tem uma aparência meio
intimidadora, o cara é alto, forte, cheio de tatuagens e
ainda por cima é motoqueiro bem no estilo bad boy.
— Foi mal, parceiro, eu mudei de celular
recentemente e perdi a maioria dos meus contatos –
faço uma pausa tomando coragem –, mas alguém
muito especial me passou o seu número, ela está aqui
do meu lado com um sorriso lindo me ouvindo falar
contigo. – Pisco para a baixinha e o seu sorriso se
alarga, mostrando as covinhas profundas na bochecha.
— Não acredito que você me ligou a mando de
alguma mulher, Pedro! Ficou louco, irmão? – Eleva a
voz. — Se for alguma ex-cliente da época que eu era
acompanhante de luxo, pode dizer para me esquecer
porque saí do ramo já faz tempo e sou um homem
muito bem-casado agora e pai de família – fica puto,
sendo que, para começo de conversa, eu jamais
imaginaria em toda a minha vida que ele fazia esse tipo
de “serviço” no passado.
Não que eu seja contra ou preconceituoso, é
claro, mas confesso que estou bastante surpreso em
descobrir que Léo já foi acompanhante de luxo. E outra
coisa, nem sabia que o nome dele era Leônidas, pensei
que fosse Leonardo.
— O que é acompanlante de luxo, padrinho? –
pergunta a baixinha, confusa. Léo berrou tão alto que
acho que todo mundo na sala de espera do hospital
escutou.
— Maria, é você, princesa? – A voz durona do
bad boy suaviza em um tom acolhedor, é como se fosse
um alívio tremendo falar com a afilhada. — Estou feito
louco atrás de você e da maluca da sua mãe, já procurei
vocês por toda a cidade.
— A mamãe estava fugindo do bicho-papão
quando o carro atropelou a gente, agora estamos aqui
no hospital e não me deixam ver ela. – Começa a
chorar, então lhe entrego o celular para que o seu
padrinho possa falar com ela e a acalme.
— Está tudo bem, meu amor, não chora! O
padrinho está indo agora mesmo para o hospital com
a polícia e vai ficar tudo bem com você e a mamãe, está
bem? – diz com a voz embargada. Tem muito mais
coisa por trás da história dessa mulher e dessa criança.
E eu pretendo descobrir tudo.
— Está bem, padrinho. Eu te amo!
— Eu também te amo, docinho. – Eles se
despedem e Maria me entrega o celular de volta.
— Era eu que estava dirigindo o carro que
atropelou as duas, Léo. E eu super entendo o seu lado
de querer trazer a polícia, darei o meu depoimento
honesto sobre o ocorrido. – Me sinto pior ainda, nossos
amigos em comum ficariam putos comigo. — Mas já te
adianto que realmente atropelei a sua amiga sem
querer, ela pulou na frente do carro com a criança no
colo. Tentei frear, só que não consegui a tempo.
— Cala a boca e presta atenção porque a coisa é
séria, Pedro! Me diga em que hospital vocês estão? –
fala baixinho para que a sua afilhada não escute.
Eu lhe dou o endereço do hospital, mesmo não
entendendo porra nenhuma do que está acontecendo.
— Antes de desligar, Léo, só me diga se você faz
ideia de quem a sua amiga estava fugindo tão
desesperadamente?
— Ela estava fugindo do próprio diabo, Pedro!
Mas não tenho tempo de explicar agora, só peço que
não tire os olhos da Maria nem por um segundo. E peça
à direção do hospital que coloquem um segurança do
lado de fora do quarto da Paula, estou indo correndo
para aí com o delegado Avilar e te conto tudo. – Finaliza
a ligação na minha cara. Pela voz ofegante, ele estava
correndo e falando ao mesmo tempo.
Fico preocupado, sem saber o que de fato está
acontecendo, mas faço o que Léo pediu. Me apresento
na direção do hospital como promotor, digo que tem
uma paciente em situação de perigo e peço que
coloquem seguranças do lado de fora do quarto onde
a Paula está sendo atendida pela equipe médica.
Permaneço na sala de espera com a Maria perto de
mim o tempo todo, protegendo-a sem saber ao certo
de quem.
Quem é essa Paula Souza?
E quem está atrás dela e da sua filhinha?
Será que a polícia sabe de alguma coisa?
São perguntas que não param de martelar na
minha cabeça, até ligo para alguns contatos e não
encontro nenhuma informação sobre Paula Souza no
sistema. O jeito é esperar o Léo chegar mesmo e tirar
essa história a limpo direto com ele.
— Você está bem, grandão? Está com a testa
enrugada, tipo a mamãe quando está preocupada com
alguma coisa. – Maria me encara.
— Está tudo bem, baixinha, só estou cansado –
toco a ponta do seu narizinho, e ela sorri –, e que
história é essa de me chamar de grandão?
— Se você me chama de baixinha, eu vou te
chamar de grandão, ora essa! – constata, e eu me
acabo de rir, essa criança é mesmo fofa demais.
— Acho muito justo, baixinha. – Nós trocamos
apertos de mão.
— Perfeito, grandão! – Maria boceja, esfregando
os olhinhos e encostando a cabeça no meu ombro. Já é
noite lá fora, e ela está cansada.
Afago o seu cabelo enquanto fico com os meus
olhos grudados na porta, esperando que o Léo passe
por ela a qualquer momento, no entanto, para a minha
surpresa, quem aparece no hospital do nada é o
investigador Siqueira, acompanhado de dois policiais
mal-encarados. O velho casca-grossa faz uma cara mais
azeda do que de costume quando me vê sentado na
sala de espera com a menina no colo, que acabou
dormindo enquanto também esperava ansiosamente
pelo padrinho.
— Quantas vezes eu tenho que dizer para você
não se envolver no meu caso do assassino de
prostitutas, rapaz? – O homem já chega me atacando
com quatro pedras na mão, como sempre.
— Mas do que o senhor está falando,
investigador Siqueira? Eu não estou aqui no hospital
como promotor, mas, sim, por algo acontecido fora do
meu horário de trabalho – tento explicar o mais
educadamente possível.
— Então por que, nos seus braços, neste
momento, está a filha da mulher que o assassino de
prostitutas escolheu para ser a sua próxima vítima? –
Me encara feio e com o maxilar trincado.
Nem ao menos pisco, estou tentando assimilar o
que acabei de ouvir. Não consigo acreditar que,
mesmo com todos os esforços do investigador Siqueira
para me deixar fora do caso mais importante da sua
carreira, ele literalmente pulou direto na minha frente.
Porra! Se antes eu queria proteger a Paula e a filha
dela, agora que sei que esse psicopata maldito está
atrás das duas, viverei para impedir que ele sequer
pense em se aproximar delas novamente.
Nem que para isso eu tenha que matá-lo com as
minhas próprias mãos.
Capítulo 9
Pedro
— Você ouviu o que eu disse, rapaz? Esse caso é
meu, então deixe que a polícia faça o trabalho de
investigação em paz e fique longe dessa criança e da
mãe dela. – Enfia o dedo na minha cara adentro,
exaltado a ponto de espuma se formar no canto da
boca.
Tive uma ótima educação em casa e uma das
coisas mais importantes que aprendi com os meus pais
é que sempre devemos respeitar os mais velhos, mas,
às vezes, juro por Deus, que a minha vontade é dar um
soco no meio das fuças do Siqueira. O que esse velho
chato tem de bom investigador, tem o dobro de
irritante e não é pouca coisa. Mas me controlo porque
ele não dá um passo em falso, está me provocando de
propósito porque sabe que, se eu encostar um dedo
nele, a minha carreira como promotor irá ralo abaixo.
— Esse caso é de todos nós, Siqueira. Sei que o
senhor trabalha nisso há muito tempo, mas a polícia
não pode se negar a fornecer informações relevantes
de um caso em investigação para um promotor ou
procurador. A boa relação entre os policiais e a
promotoria é fundamental para a administração da
justiça e temos que trabalhar juntos como uma equipe,
afinal, estamos do mesmo lado — expliquei
calmamente o que ele já sabe de trás para a frente,
melhor do que eu.
— Isso não vale de nada quando a polícia não
confia no promotor da nossa comarca, rapaz – rosna,
mostrando os dentes caninos naturais brancos e
saudáveis, o que é bem impressionante para alguém da
idade dele, beirando aos sessenta anos. — Por isso,
farei o que estiver ao meu alcance para te manter
longe de todos os envolvidos no meu caso, a papelada
só irá parar na sua mão, na promotoria, depois que
tudo for solucionado.
— Você pode até não confiar em mim, Siqueira,
mas juro por tudo que é mais sagrado que dessa vez só
estou aqui nesse hospital porque a Paula apareceu do
nada e pulou na frente do meu carro com a filha. – Sou
o mais sincero que posso, não sei por que esse cara me
odeia tanto.
— E você apareceu lá do nada, promotor? No
exato momento em que a vítima 33 do assassino de
prostitutas estava em meio a uma fuga? Muita
coincidência. – Aponta o dedo na minha cara
novamente. — Não abuse da minha inteligência,
garoto.
— Eu disse a verdade, investigador, mas, se não
acredita em mim, não posso fazer nada para mudar
essa situação – respondo rude e de saco cheio dessa
conversa fiada.
— Mas eu posso fazer! E vou mexer agora
mesmo os meus pauzinhos para te tirar de perto da
Paula e da filha dela, começando pela criança. – Tira o
celular do bolso e faz uma ligação curta, falando baixo
para que eu não saiba o que está aprontando dessa
vez.
Não se passam nem ao menos cinco minutos e
uma mulher mais velha aparece na sala de espera do
hospital em um terninho de três peças num tom de
cinza deprimente, ela usa óculos de grau fundo de
garrafa, mas não fundo o suficiente para esconder a
sua cara azeda.
— Boa noite, eu sou Viviane Assis, assistente
social deste hospital, e vim buscar a menor em situação
de risco para ser entregue ao Conselho Tutelar o
quanto antes. – Ajeita o cabelo preso em uma trança
embutida na nuca. — Lá, encontrarão um abrigo
adequado para a criança até que sua mãe se recupere
do acidente e prove ter condições psicológicas para
cuidar da filha – disse a mulher, me deixando de boca
aberta.
— Isso foi cruel demais até para um coração frio
feito o seu, Siqueira. – Olhei para a pequena Maria nos
meus braços, vendo seu sono tranquilo e inocente, e o
meu coração se quebra em mil pedaços.
— Foi você mesmo, senhor promotor, que me
relatou que Paula Souza se jogou na frente do seu carro
com a filha, colocando a vida das duas em risco. –
Franze a testa com um sorrisinho maligno, usando as
minhas próprias palavras contra mim na frente da
assistente social.
O pior é que, infelizmente, eu não posso fazer
nada para impedir que levem a Maria. Agora que o
Siqueira notificou as autoridades competentes dessa
área, é só questão de tempo até o Conselho Tutelar vir
aqui remover a menor do ambiente de risco e colocá-
la em um abrigo, sabe lá Deus onde e por quanto
tempo. Essas investigações sobre os seus guardiões
legais costumam ser um processo lento e, na maioria
dos casos, a criança não volta para os pais biológicos e
vão definitivamente para algum orfanato.
— Não separe essa criança da sua mãe por causa
de um problema que o senhor tem comigo, Siqueira –
engulo a minha raiva e imploro. — Não é necessário
envolver o Conselho Tutelar nisso, liguei para o
padrinho da menina e ele já está a caminho do
hospital. Léo e a sua esposa podem cuidar dela até que
a Paula se recupere, eles são ótimas pessoas e...
— Entregue a criança para a assistente social,
promotor Pedro – me corta grosseiramente. — Não
obrigue os meus homens a intervirem e tornar essa
situação ainda mais tensa. – Cruza os braços e me
encara com esse olhar superior.
Não sei o que fiz para esse homem pegar tanto
no meu pé a ponto de não se comover vendo essa
pobre garotinha inocente dormindo no meu colo
enquanto a mãe está sendo atendida pela equipe
médica. Qualquer pessoa com um mínimo de
humanidade sentiria pena dela. Mas Siqueira, com sua
postura dura e antipatia evidente por mim, está
determinado a provar todo o seu poder ao conduzir a
situação do seu jeito, doa a quem doer. Me sinto um
merda por ele ter me deixado de pés e mãos atados,
prometi a Maria que ela e a mãe estariam juntas muito
em breve, porém, agora não poderei cumprir. Estou
entre a cruz e a espada, mas lutarei até o fim pelo bem-
estar dessa criança.
Eu não queria bater de frente com o investigador
Siqueira, pretendia só ficar na minha para não inflamar
ainda mais esse clima tenso entre nós, porém, já estou
farto de toda essa sua implicância comigo e chegou a
hora de me impor. Não sou nenhum moleque, e, sim,
a porra do promotor dessa comarca e exijo ser tratado
com respeito do mesmo modo que trato todo mundo.
— Desculpa, Siqueira, mas ninguém vai tirar essa
criança de mim, e fodam-se você e todos do
departamento da polícia do Rio de Janeiro – vou direto
ao ponto, sem nem ao menos filtrar as palavras que
vêm na minha cabeça antes de falar.
Os dois policiais que acompanham o velho
endiabrado me olham feio, a minha provocação foi
entregue com sucesso.
— Como um homem da lei, senhor promotor,
sabe melhor que ninguém que, em uma situação como
esta, o procedimento padrão é encaminhar a criança
para um abrigo temporário até que a situação da mãe
seja resolvida. Então, não complique mais as coisas
antes que eu te prenda por obstrução do cumprimento
da lei – ameaça Siqueira com voz firme e autoritária, já
puxando uma algema do bolso.
Parece até que ele já veio com a intenção de
montar todo esse circo e me prender. Seus olhos
endurecidos expressam determinação, e os dois
oficiais estão como cães de guarda do diabo ao seu
lado, também prontos para agir, com as mãos sobre as
armas na cintura. Mas não me deixo intimidar,
ninguém vai tirar essa criança de mim.
— Eu dei a minha palavra a essa menina que
ficaria ao seu lado até que a mãe dela voltasse para ela,
e eu nunca quebro uma promessa. – Dou um passo
para trás, não estou disposto a ceder, mesmo sabendo
que a minha carreira na promotoria está em risco.
— Tirem a menina dele à força e depois o
prendam, rapazes, isso é uma ordem! – Siqueira
aponta na minha direção.
Os dois policiais vêm para cima e tentam pegar a
Maria à força do meu colo, mas ela acorda assustada
no meio dessa confusão e começa a chorar.
— Não! Me solta, eu quero ficar com o grandão.
– A baixinha dá um tapa no rosto do policial que tenta
tirá-la de mim, enquanto o outro me imobiliza em uma
chave de pescoço por trás.
— Sossega, garota, e cala essa boca! – manda o
policial, furioso.
— Socorro! O policial malvado quer me levar –
Maria grita, desesperada.
— Mas que merda está acontecendo aqui? –
Investigador Souza, o novo parceiro do Siqueira,
aparece no hospital, chocado com a cena absurda que
encontra.
Souza é um cara legal e ótimo profissional que
veio de Belo Horizonte para assumir a vaga como
parceiro do Siqueira, já que nenhum investigador aqui
do Rio de Janeiro queria. Todos conhecem a fama
desse velho desgraçado, que vive infernizando a vida
dos outros no departamento de polícia. O próprio
Souza está comendo o pão que o diabo amassou
trabalhando com ele, ainda mais que, por ironia do
destino, no último Natal, o cara conheceu a bonitona
da Miranda Siqueira, filha do seu parceiro, e os dois se
apaixonaram e estão namorando, para a fúria do
sogrão.
— Eu estou me perguntando a mesma coisa,
investigador Souza. – Graças a Deus o delegado Avilar
também chega, acompanhado do Léo, ambos
surpresos com toda essa situação caótica.
— Eu fui obrigado a usar força policial, já que o
promotor se recusou a entregar a menina para a
assistente social do hospital para que ela seja
encaminhada ao Conselho Tutelar até que todo o
ocorrido do acidente seja devidamente investigado e
esclarecido com a mãe. – Siqueira faz o discurso de
merda dele de policial honesto.
Como se ele se importasse mesmo que a lei fosse
cumprida nessa situação estressante e completamente
desnecessária, visto que eu, um colega de trabalho
dele, já havia lhe dito que o padrinho da menina estava
a caminho para cuidar dela e não precisava armar toda
essa confusão.
— Conselho Tutelar? Mas de jeito nenhum que
vou deixar a minha afilhada ir para um abrigo. Paula
tinha razão, eu não devia ter acreditado nas boas
intenções da polícia em proteger ela e a Maria. – Léo
fica puto, e com toda razão.
— Esses policiais malvados queriam me levar à
força para longe da mamãe, padrinho. Mas o grandão
não deixou. – Maria abre os bracinhos na direção do
Léo, o seu rosto está coberto por lágrimas.
— Ei, meu amor, está tudo bem agora! O
padrinho não vai deixar ninguém te separar da mamãe.
– Pega a afilhada do meu colo e beija o rosto dela. Fico
aliviado por entregá-la para alguém de confiança que
sei que vai cuidar bem dela.
— Eu não acredito que você tentou tirar a filha
da Paula enquanto ela ainda está sendo atendida pela
equipe médica, Siqueira. – Souza balança a cabeça, tão
indignado quanto eu.
Ele é pai solteiro e sabe a dor que seria se
tirassem o Felipinho dele, então, entende melhor do
que ninguém o lado da Paula.
— Não enche o meu saco, Souza. Eu só estava
fazendo o meu trabalho. – Siqueira continua batendo
na mesma tecla.
— Já parou para pensar como a Paula ficaria
furiosa quando acordasse e soubesse que a menina
está em um abrigo, Siqueira? Nunca mais confiaria na
polícia e perderíamos qualquer chance de ela cooperar
conosco no caso do assassino de prostitutas, e nós
sabemos que essa mulher é a única pista que temos
desse psicopata. – O delegado coloca o velho no lugar
dele.
Ótimo!
Cruzo os braços sobre o peito e me delicio com a
cena do investigador Siqueira murchando feito uma
flor sob um sol escaldante, ele merece ouvir isso e
muito mais.
— Desculpa, delegado, você tem razão. –
Pigarreia o cínico como se estivesse com uma bola de
futebol entalada na garganta, é difícil demais para um
narcisista assumir que errou. — Mas não fiz por mal, só
estava mesmo pensando no bem-estar da criança –
tem a cara de pau de dizer, e o meu sangue ferve ainda
mais nas veias.
— Bem-estar da criança é o caralho, Siqueira! –
explodo, furioso. — Você é capaz de qualquer coisa
para esfregar na cara dos outros o seu poder no meio
jurídico, só armou esse tumulto todo para me atingir,
e nem ao menos se deu ao trabalho de olhar no rosto
da criança desde o momento que pisou nesse hospital.
— Cuidado com o que sai dessa sua boca, rapaz...
– me repreende, fitando-me pelo canto do olho.
— Ah, vai para o inferno, Siqueira! Eu estou de
saco cheio da sua implicância comigo sem nenhum
motivo. Todo mundo sabe que, mesmo sendo jovem,
sou um dos melhores promotores que já passaram por
essa promotoria.
— Relaxa, Pedro, vamos conversar com calma,
todos aqui estamos do mesmo lado – o delegado tenta
apaziguar a situação, mas é tarde demais para resolver
as coisas pacificamente, cheguei ao meu limite.
— Para o inferno você também, delegado Avilar,
pensei que éramos amigos, mas não passa de outro
pau-mandado desse velho desgraçado. – Deixo a fúria
falar por mim, e ele abaixa a cabeça, sabia que eu não
havia terminado ainda. — Você sabe muito bem da
importância desse caso para mim e, ainda assim,
escondeu o fato de que vocês, no departamento da
polícia, já sabiam quem é a próxima vítima escolhida
pelo assassino, então não fale mais comigo, seu traíra.
– Viro as costas e vou embora. Esse ambiente está tão
pesado que o ar parece estar contaminado, nem
consigo respirar direito.
Como deixei o meu carro para trás devido ao
acidente e provavelmente foi guinchado pela polícia
rodoviária, sou obrigado a pedir um táxi para ir para
casa. Chego tarde e estou exausto, tomo um banho e
me jogo na cama. Mas não consigo relaxar, meus
pensamentos estão todos na Paula, preciso descobrir o
que tem de tão especial nela para chamar tanto a
atenção do assassino a ponto de fazê-lo mudar o seu
modus operandi de atacar suas vítimas na calada da
noite para perseguir uma mulher em plena luz do dia,
acompanhada da filha pequena.
Esse cara é muito meticuloso, ele não comete
erros e, por isso, a polícia nunca encontrou ao menos
uma pista em nenhum dos diversos locais onde
desovou os vários corpos de suas vítimas em toda
parte da cidade.
— O que você tem de diferente de todas as
outras garotas de programa, Paula Souza? – me
pergunto em voz alta.
— Miauuuuuu... – choraminga Hércules, como
se se compadecesse da minha frustração.
— Eu sei, amigão, esse caso está ficando cada
vez mais complexo. – Abraço o meu gato em meio a um
bocejo longo, e acabo dormindo.
Mais uma vez tenho o pesadelo com a mulher
misteriosa, acordo de manhã todo suado com o meu
despertador aos gritos. Me arrumo para ir para o
trabalho, tomo café da manhã e converso um pouco
com a Odete antes de sair. Durante o caminho até a
promotoria ligo para o hospital e tento conseguir
notícias da Paula, mas a moça que me atendeu disse
que a polícia proibiu que dessem qualquer informação
desta paciente.
Sendo honesto, eu já imaginava que o
investigador Siqueira obrigaria todos os funcionários
daquele hospital a assinar algum termo de
confidencialidade sobre a estadia da Paula no local, no
lugar dele faria o mesmo.
— Bom dia, Eduardo. Está tudo bem por aqui? –
pergunto ao meu assessor ao chegar na promotoria,
ele parece inquieto.
Na verdade, todo mundo aqui está me
encarando de um jeito estranho desde que cheguei.
— Então o senhor ainda não viu as notícias na TV
do jornal dessa manhã, doutor Pedro? Não se fala em
outra coisa por aqui. – Coloca para rodar no seu celular,
e eu quase tenho um troço e caio duro ali mesmo, no
meio da recepção da promotoria.
No vídeo, o repórter mais fofoqueiro do Rio de
Janeiro, Léo Fontes, âncora do Jornal News, dá a
notícia em primeira mão da briga do promotor Pedro
Alcântara com o respeitado investigador Licanor
Siqueira numa sala de espera do hospital, onde a única
vítima sobrevivente de um atentado do assassino em
série de prostitutas está internada. Como se já não
fosse o suficiente, colocaram uma gravação do
momento mais caloroso da discussão, quando eu digo
aos berros para quem quiser ouvir que o velho
desgraçado adora esfregar o seu poder no meio
jurídico na cara das pessoas.
Eu estou mesmo fodido!
Porém, pelo menos, no momento da gravação
Maria já estava com o padrinho dela e não aparece nas
imagens. Se o Léo Fontes não divulgou a identidade
dela e da Paula, é porque não sabe quem as duas são.
— Mas que arrombado do caralho é esse
fofoqueiro Léo Fontes, ele sempre tem um furo
escondido na manga – esbravejo.
Esse repórter babaca é o terror de qualquer
pessoa pública, ele consegue descobrir qualquer coisa
sobre a vida de alguém, chega a ser surreal. Ele é o
inimigo número um da polícia, porque sempre é o
primeiro repórter a chegar na cena do crime, às vezes
até antes dos oficiais, por isso o Siqueira não pode nem
ouvir o nome dele. Foi assim com todas as vítimas do
assassino de prostitutas, e o desgraçado faz questão de
insinuar em rede pública e ao vivo que essas mulheres
mortas cruelmente são culpadas porque
automaticamente se colocaram em risco quando
escolheram essa profissão.
Afinal, se fossem casadas ou tivessem um
trabalho digno, estariam seguras em suas casas agora
e não debaixo de sete palmos de terra. Puro machismo.
Esse cara só fala merda, cada um decide o que fazer
com o seu corpo e ninguém tem nada com isso. Nada
justifica um maluco sair por aí torturando e matando
mulheres, algo assim nem deveria ser discutido, ainda
mais em rede nacional.
— Eu também odeio esse cara, doutor Pedro.
Pensa que só porque tem essa carinha de ator de
cinema hollywoodiano, com esse topete loiro enorme
e cheio de gel, pode falar o que quiser na televisão sem
pensar no quanto isso pode prejudicar as pessoas
envolvidas. – Edu revira os olhos, é difícil para qualquer
um engolir esse repórter.
— E essa matéria da minha briga vai me
prejudicar e muito, Eduardo. Você sabe como todo
mundo no meio jurídico paga pau para o Siqueira, ele
é o melhor investigador da história da polícia desse
país. – Trinco o maxilar, não tem como esse dia piorar.
— Se acalme, doutor, a gente vai resolver isso.
— Resolver como, Edu? Todos os policiais do Rio
de Janeiro vão se virar contra mim. Mexeu com um
deles, mexeu com todos.
— Calma, doutor, daqui a pouco a poeira abaixa
e todo mundo vai esquecer disso.
— É o que eu espero, Edu, e até isso acontecer,
vou ficar trancado na minha sala e não quero falar com
mais ninguém. Cancela todas as audiências de hoje,
por favor, diga que estou doente ou morri. Tanto faz!
— Sim, senhor!
— Ótimo! – Saio de cabeça baixa, arrasado,
quero ficar sozinho.
Contudo, é só colocar a bunda na minha cadeira
de couro preto e o meu celular começa a tocar sem
parar. Tem várias ligações perdidas dos meus pais, dos
meus irmãos e até avós. Desligo o meu celular, então o
telefone fixo começa a tocar também sem parar.
— Merda! Isso só pode ser brincadeira. – Penso
em puxar o fio da tomada, mas podia ser alguma
emergência do trabalho e acabo atendendo.
— Alô, promotor Pedro Alcântara falando, em
que posso ajudar?
— Por que você não atende a porra do celular,
Pedro? Mas que inferno! – delegado Avilar explode do
outro lado da linha.
— O que você quer, hein, Ricardo? Se for para
falar do vídeo que saiu no jornal da minha briga com o
Siqueira, eu não tenho nada a declarar. Tenha um bom
dia! – Já ia desligar na cara dele quando ele fala:
— Paula acordou essa manhã e disse na cara do
investigador Siqueira que só aceita cooperar no caso
do assassino de prostitutas se você for o mediador, ela
está irredutível quanto a isso. – Ouço a risada do
delegado do outro lado da linha, enquanto eu estou
paralisado com o telefone na mão.
Como assim a Paula só aceita falar comigo? Eu
nem imaginava que ela sabia quem eu sou.
— Mas por que eu, delegado? Se fui o homem
que a atropelou e quase matei ela e a sua filhinha –
pergunto, estupefato, nem em mil anos esperaria por
isso.
— Léo contou para a Paula que, além de você
socorrer as duas depois do acidente, ainda cuidou da
sua filha e enfrentou dois policiais para impedir que a
levassem para um abrigo. Por isso, ela só aceita falar
com o promotor Pedro Alcântara, até porque a moça
também não é muito fã do investigador Siqueira. E de
toda a polícia, na verdade – explica pausadamente.
— Diferente de você, não é mesmo, delegado?
Que está cheio de segredinhos com o Siqueira, seu
puxa-saco do caralho – alfineto, não podia perder essa
oportunidade.
— Vai se ferrar, Pedro! Sabe muito bem que sou
fiel aos meus amigos, e você, apesar de ser um pau no
cu às vezes, é um deles. – Fica irritado. — Se não te
contei nada sobre a Paula antes foi porque estava
preocupado contigo, cara, e não sou o único,
Thompson e Gonzales também estão, ok?
— Eu não acredito que vocês têm se encontrado
para falar de mim, Ricardo! – Fico mais puto ainda. —
Já estou até imaginando a cena, os três reunidos no
gabinete do juiz Thompson fazendo fofoca, que coisa
feia, delegado.
— Nós só estamos preocupados com você,
Pedro. Não percebe, mas está ficando doente por
causa desse caso do assassino e não tem feito o seu
trabalho na promotoria direito, e as notícias andam
rápido nesse meio. Por isso, quando for falar com a
Paula no hospital, aja profissionalmente, e não na
emoção, comprometendo as investigações, porque o
Siqueira vai te comer vivo, e com razão.
— Eu sempre ajo profissionalmente, Ricardo.
Apesar daquele velho insuportável sempre me tratar
como se eu fosse criança.
— Também não vou muito com a cara do
Siqueira, mas este é o último caso dele e quer fechar a
sua carreira impecável de mais de três décadas na
polícia com chave de ouro. Por isso não quer nenhum
franguinho novato metido a besta tirando o brilho
dele, entendeu?
— Franguinho novato é a puta que pariu, cara! –
Nós dois começamos a rir na ligação.
— Chega de papo furado e venha para o hospital
agora mesmo, franguinho novato – diz, ainda rindo.
— Eu já estou a caminho, palhaço. – Finalizo a
ligação e saio da promotoria com o coração batendo a
mil por hora.
Como é bom voltar para o hospital por cima
depois de ter saído tão humilhado pelo investigador
Siqueira. Ele vai ter que me engolir a seco goela abaixo,
querendo ou não. Mas, por outro lado, minha mente
está uma bagunça com os pensamentos confusos em
relação a Paula, a garota de programa marcada como
a próxima vítima do assassino em série de prostitutas.
— Só aja profissionalmente, como o ótimo
promotor que é, Pedro Alcântara! – digo para o meu
próprio reflexo no retrovisor antes de sair do carro, já
estacionado próximo ao hospital, acho que nunca dirigi
tão rápido na vida.
Como eu já esperava, depois da matéria que saiu
no jornal, deparo-me com uma horda de repórteres
ansiosos do lado de fora do hospital, ávidos por
qualquer detalhe sensacionalista sobre a identidade da
única vítima sobrevivente de um atentado do famoso
assassino de prostitutas. Léo Fontes é o primeiro da
barreira de abutres, com um microfone enorme, quase
do tamanho do topete loiro dele cheio de gel,
exatamente como o meu assessor disse. Delegado
Avilar, investigador Siqueira e o seu parceiro Souza
também estão lá no meio da muvuca, junto a um grupo
de policiais tentando conter a imprensa,
aparentemente sem muito sucesso.
Decido entrar pelos fundos do prédio, onde não
tem nenhuma agitação midiática. De cabeça baixa,
deslizo despercebido por uma entrada só de
funcionários. Quando dou por mim, já estou andando
pelos corredores do hospital. Quero aproveitar que o
investigador Siqueira está bem ocupado lá fora para eu
poder conversar com a Paula sem a pressão de muitos
olhares em cima dela, preciso ouvir da sua boca tudo o
que aconteceu até o momento do acidente. Só que
acabo me perdendo, tem várias alas enormes, então,
peço informações a uma médica simpática que passou
por mim pelo corredor.
Porém, infelizmente, ao me aproximar da porta
do quarto da Paula, vislumbro a figura de dois policiais
postados como sentinelas, os mesmos que tentaram
tirar a Maria dos meus braços ontem.
— Bom dia, policiais, o delegado Avilar me pediu
para vir ao hospital pegar o depoimento da senhorita
Paula Souza sobre o acidente, visto que ela deixou bem
claro que não aceita falar com mais ninguém além de
mim – explico da forma mais educada que posso.
— É, nós estamos sabendo... – disse um dos
policiais, o mais baixinho, barbudo, fitando-me dos pés
à cabeça com total desdém.
— Se quiserem ir tomar um café enquanto eu
recolho o depoimento da moça, podem ficar à
vontade, creio que vá demorar um pouco – ofereço
gentilmente.
Mas, na verdade, não queria que os dois puxa-
sacos do Siqueira ficassem de ouvido em pé na nossa
conversa do outro lado da porta.
— Agradeço a oferta, senhor promotor, mas o
investigador Siqueira disse para nós dois não
descolarmos o pé daqui nem por um segundo.
— Mas o promotor vai estar de olho nela para
nós, Almeida. E, além do mais, os outros dois policiais
que vão cobrir a gente estão previstos para chegar a
qualquer momento – rebate o outro policial, com os
olhos caídos e sonolentos.
Ambos deveriam estar varados de fome e
exaustos depois de passar a noite inteira ali acordados,
por isso estavam com aqueles olhos de peixe morto.
— E daí, Santos? Ordens são ordens – rebate,
mas não senti muita firmeza no que disse.
Porém, está bem claro aqui nessa dupla que o
policial bonzinho é o Santos, o cara alto de meia-idade,
de fala mansa e uma cicatriz no rosto, acredito que
ganhada em serviço. E o malvado é o Almeida, o
baixinho mal-encarado.
— Então fica você, Almeida, porque eu vou na
lanchonete do hospital pedir um café com misto-
quente, estou quase desmaiando de fome, esse café da
manhã do hospital não deu nem para o gasto. – Dá de
ombros. — Obrigado aí, promotor Pedro. E desculpa
pelo ocorrido ontem na recepção do hospital, nós só
estávamos obedecendo ordens do investigador
Siqueira. – Seus ombros se encolhem em uma postura
envergonhada.
— Tudo bem, policial Santos, eu até já esqueci.
Não precisa se desculpar. – Estendo a mão na sua
direção, e ele aperta com força, abrindo um sorriso,
parece ser um bom homem que deve comer o pão que
o diabo amassou como um dos subordinados daquele
velho insuportável.
— Certo, doutor, tenha um bom dia. Porque o
meu vai ser ótimo começando de barriga cheia. –
Policial Santos dá no pé sem olhar para trás.
Encaro o outro policial que ficou para trás e dou
a minha última investida:
— Você vai mesmo perder esse café fresco com
um misto quentinho, Almeida? – Arqueio a
sobrancelha.
— São só cinco minutos até os outros dois
policiais chegarem para cobrir a gente, não é mesmo,
promotor? Acho que não vai fazer mal eu acompanhar
o Santos na lanchonete. – O baixinho sai de cara
fechada atrás do parceiro.
Espero ele sumir no final do corredor para enfim
bater na porta, mas antes ajeito o cabelo e a gravata
para parecer mais apresentável.
Bato uma... duas... três vezes na porta.
Contudo, ninguém responde nada. Resolvo
entrar, talvez a Paula esteja dormindo e não ouviu.
— Com licença, senhorita Paula, eu sou o
promotor Pedro Alcântara e vim pegar o seu
depoimento – anuncio enquanto abro a porta
vagarosamente.
Só que, quando entro no quarto, deparo-me
com uma cena desconcertante: a cama vazia e os
lençóis em desordem. Isso gera uma onda de
desespero em mim enquanto meu olhar busca
freneticamente por respostas na bagunça deixada para
trás. A janela que dá em um beco escuro está aberta e
o vento balança as cortinas brancas, esse é o segundo
andar e alguém determinado poderia escalar
facilmente até ali.
O assassino poderia ter vindo até aqui e
sequestrado a Paula de alguma forma, então tudo
estaria perdido para ela.
— Oh, não! Será que cheguei tarde demais? –
Olho pela janela e não vejo nada suspeito.
Me viro e varro o quarto novamente com os
olhos em busca de qualquer sinal de Paula. Decido
conferir o banheiro e, ao girar a maçaneta com as mãos
trêmulas, já à espera do pior, sou recebido pelo som
constante do chuveiro. A visão do box embaçado
aumenta a minha ansiedade, mas agora por outro
motivo, sem nenhuma preocupação. Porque, mesmo
através do vidro embaçado do box, admiro a silhueta
perfeita de uma mulher nua e seu corpo delineado
pelas gotas d'água, uma imagem de tremenda beleza e
vulnerabilidade.
Você não devia estar aqui, Pedro!
A voz da razão ecoa dentro da minha cabeça,
porém, não conseguiria mover as minhas pernas nem
se eu quisesse. E este com certeza não é o caso. Todos
os músculos do meu corpo estão paralisados. Meus
olhos não desgrudam de Paula através do box
embaçado, ela está de costas para mim, dando-me um
ângulo perfeito de suas curvas acentuadas. Observo-a
massageando o cabelo cheio de espuma, uma imagem
perfeita que nunca sairá da minha mente nem em um
milhão de anos.
Que mulher maravilhosa!
Estou encantado admirando toda a sua beleza,
só que de repente ela se vira de frente para mim como
se tivesse sentido a minha presença. Eu levo um
tremendo susto ao ver o seu rosto através do vidro
parcialmente escondido por uma névoa densa
formada pelo calor do chuveiro dentro do pequeno
espaço do box, como um véu misterioso que embaça
os seus traços.
— Meu Deus, não pode ser – tenho a impressão
de estar vivendo um déjà-vu –, é ela!
Fico tonto por alguns segundos, totalmente
embriagado por lembranças que saltam na minha
mente. A semelhança entre Paula e a figura enigmática
da mulher misteriosa dos meus sonhos é inquietante,
como se a fantasia se entrelaçasse com a realidade de
maneira perturbadora bem diante dos meus olhos.
Meu coração pulsa cada vez mais forte dentro do peito,
em uma mistura de medo e fascinação.
Teria eu ficado louco de vez?
Essa, com certeza, é a hipótese mais provável,
mas como duvidar da verdade se a prova viva está em
carne, osso e belas curvas a menos de um metro de
distância de mim? Com apenas o vidro do box, uma
camada bem fina, nos separando.
— Eu sabia que você iria voltar para terminar o
trabalho, seu desgraçado! – Paula abre a porta do box
em um rompante, tomada pela fúria. — Mas dessa vez
não irei correr, vou acabar com a sua raça com as
minhas próprias mãos. – A mulher, mesmo cheia de
escoriações e com um curativo enorme na testa, pula
em cima de mim nua.
No entanto, Paula está tão fraca que nem sinto
o impacto dos seus golpes sobre mim, mal consegue
ficar de pé. Mas a mulher é valente, não desiste fácil e
está de fato disposta a me matar com as suas garras
afiadas, enquanto eu apenas continuo a admirá-la
completamente fascinado, tendo o vislumbre ao vivo e
em cores do seu belo rosto tão próximo ao meu.
Agora entendo o que Paula Souza tem de
diferente de todas as outras vítimas do assassino em
série de prostitutas, ela não é só mais uma mulher
linda. Existe algo irresistível nela. Um charme selvagem
que dá vontade de domá-la e não soltar nunca mais.
Sei disso, porque eu acabei de conhecê-la e já estou
completamente tomado por este mesmo sentimento
obsessivo.
Capítulo 10

Paula

O vapor do chuveiro envolve o pequeno espaço


do banheiro enquanto eu me permito desfrutar do
momento fugaz da água morna caindo sobre o meu
corpo dolorido. Ela se mistura com as minhas lágrimas,
que não param de cair. Toda vez que lembro do horror
que minha filha e eu passamos ontem, fugindo de um
assassino perigoso, tenho um ataque de choro. Tem
sido assim desde que acordei essa manhã sozinha em
uma cama fria de um quarto deprimente de hospital.
No entanto, dessa vez, engulo o choro quando sinto
aquela mesma sensação estranha do cemitério de
estar sendo observada por alguém.
Não pode ser!
Um arrepio percorre por toda a minha espinha
quando, pelo canto do olho, vejo uma sombra que se
insinua parada na porta do banheiro entreaberta. Me
viro lentamente, tomada por uma tensão instantânea.
Através do vidro embaçado do box, distingo a figura de
um homem me observando, seus olhos verdes fixos em
mim nem ao menos piscam. Me sinto como uma presa
sendo observada por um animal selvagem segundos
antes de atacá-la.
É ele!
O mesmo cara que correu atrás de mim naquela
rua escura sem saída.
Minhas pernas começam a tremer, estou
apavorada. Mas dessa vez não vou parar até que um
de nós dois saia morto dessa briga, devia ter terminado
com a raça desse desgraçado na primeira vez que tive
a oportunidade naquela rua escura sem saída. Ainda
bem que nunca é tarde para corrigir um erro.
— Você mexeu com a puta errada! – Em um
impulso de fúria, reúno o resto de força que ainda há
em mim.
Abro a porta do box em um estrondo, a água
ainda escorrendo pelo meu corpo. O miserável
estranhamente permanece imóvel, aproveito a
vantagem e me lanço determinada a não ser mais uma
presa fácil. Dou um golpe atrás do outro enquanto o
homem só tenta desviar, sem revidar. O empurro para
fora do banheiro, mas ele acaba se segurando no meu
braço sem querer e nós dois tropeçamos, grunhindo
em um amálgama de braços e pernas.
Me pergunto onde estão os idiotas daqueles
policiais que deveriam estar de vigia na minha porta e
não estão escutando esse barulho todo? É sempre
assim. Como nos filmes, quando realmente precisamos
da polícia, eles desaparecem.
— Não sou quem você está pensando, moça, me
deixa explicar, por favor.
— Eu não caio no seu jogo de mentiras, verme
nojento! Vou me vingar por todas as minhas colegas de
trabalho que você matou – garanto já com um plano
em mente.
Alcanço uma comadre, recipiente de aço que fica
debaixo da cama nos hospitais para coletar o xixi dos
pacientes de mobilidade reduzida, e bato na cabeça do
desgraçado com ele.
— Isso doeu, porra! – Esfrega o local dolorido
onde acertei o golpe. — Esse troço está aí há décadas,
deve estar cheio de bactérias mais velhas que a minha
avó – resmunga, não sabendo ele que eu estava só me
aquecendo.
— Sério mesmo que está preocupado com as
bactérias? – Sorrio irônica. — Esse é o menor dos seus
problemas, meu bem. – Em um movimento rápido,
subo em cima dele nua, prendendo o seu corpo,
colocando uma perna em cada lado e, com as duas
mãos, ergo a comadre de aço para cima, disposta a
esmagar os miolos desse miserável.
Só que pela primeira vez os meus olhos se
cruzam com os do homem e eu simplesmente paraliso.
Para ser sincera, naquela noite na hora da adrenalina
de chutar o saco dele e enfiar uma arma de choque no
seu pescoço, não tive a oportunidade de reparar em
como o assassino de prostitutas é tão lindo. Sua pele
bronzeada de quem gosta de surfar aos finais de
semana destaca-se sutilmente sob a luz dos raios de sol
que entram pela janela e refletem nos seus olhos
esverdeados, roubando-me completamente o fôlego
devido à intensidade que emana de dentro das duas
lagoas de águas cristalinas. A barba rasa delineia o
queixo quadrado, acentuando suas características
masculinas de maneira elegante e refinada.
Caramba!
Cada traço de seu rosto parece pintado com
maestria por Picasso, criando uma harmonia única. E o
sorriso tímido de canto que se forma ao notar sua
beleza sendo minuciosamente admirada por mim
acrescenta um toque de calor à sua expressão. Acho
que nunca vi um homem tão lindo e charmoso assim
antes, e olha que já dormi com centenas de homens de
todos os tipos e cores durante essa minha vida devassa
que levo. Não consigo controlar os meus olhos curiosos
que descem para o peitoral largo e musculoso debaixo
da camisa social branca de corte impecável, faltando
alguns botões que eu mesma arranquei.
Esse cara pode ser qualquer coisa, menos um
assassino. Ele faz o tipo ‘todo certinho’ que só anda por
aí engravatado, abre a porta para mulheres, envia
flores, se apaixona na primeira sentada e
provavelmente é pai de pet. Em poucas palavras, um
emocionado que não mataria uma mosca.
— Mas se você não é o assassino de prostitutas,
por que me perseguiu naquela rua escura e agora está
no meu quarto de hospital?
— Só um minuto, então você é a maluca que
quase me matou naquela noite? – Me fita tão surpreso
quanto eu. — Porra, não acredito que isso está mesmo
acontecendo.
— Eu pensei que você fosse o assassino de
prostitutas, caramba! Isso é o que dá perseguir
mulheres na rua.
— Eu só queria te fazer algumas perguntas
naquela noite, sou o promotor Pedro Alcântara, estou
trabalhando no caso do assassino de prostitutas... –
Tropeça nas palavras com as mãos abertas e erguidas
como se estivesse rendido. A respiração está ofegante
e os olhos, arregalados.
A verdade é que esse tigrão de olhos
esverdeados está com mais medo de mim do que eu
dele, devo ser a mulher mais louca que passou pela sua
vida.
— Promotor? Merda! O delegado Avilar me
avisou mesmo que o senhor vinha hoje para pegar o
meu depoimento. Mas esperava um cara velho e de
barba branca, não alguém quase da minha idade. –
Solto a comadre no mesmo instante.
— Na verdade, senhorita, já passei dos trinta
anos faz tempo. — Sua voz grossa molharia a minha
calcinha caso eu estivesse usando uma. — E sou eu que
peço desculpas pela minha indelicadeza ao entrar no
banheiro sem fazer barulho. Como não te achei no
quarto, pensei que algo de ruim pudesse ter
acontecido com você.
— Você não vai me prender por quase te matar
duas vezes, não é? Foi mal aí cara, desculpa! – Saio de
cima dele, morrendo de vergonha.
Eu estava tão dominada pela raiva que não parei
para pensar, já fui logo pulando pelada em cima do
homem pronta para matar.
— Nós estamos quites, afinal, eu era o motorista
que dirigia o carro que atropelou você e a sua filha
ontem – conta, sem graça.
— Nossa! Pelo visto os nossos caminhos têm se
cruzado bastante nos últimos dias, não é mesmo? –
Ergo a sobrancelha.
— Talvez mais vezes do que você imagina,
senhorita Paula – diz enigmático, e, parando para
pensar, a sua voz me parece bastante familiar.
Depois o bonitão levanta-se apressado com o
rosto vermelho e se vira de costas para evitar olhar
para o meu corpo nu. Como eu disse, ele faz mesmo o
tipo cavalheiro todo certinho. Fico surpresa, nem sabia
que esse tipo de homem ainda existia, pensei que
estavam todos extintos. Mas, pelo jeito, ainda sobrou
um. Só que mesmo assim mantenho a guarda alta, esse
promotor trabalha com a polícia, e eu não confio em
nenhum deles, mesmo tendo olhos lindos de doer
como esse na minha frente.
— Pode ficar de boa, promotor! Na minha
profissão, já estou acostumada com homens
desconhecidos me vendo nua o tempo todo – ironizo,
e ele fecha a cara, acho que não gostou muito do meu
senso de humor apocalíptico.
— Me desculpa, senhorita Paula, mas acho que
não vim em uma boa hora para pegar o seu
depoimento. – Alinha os ombros em um pigarreio,
tomando a postura de homem da lei sério. — Voltarei
mais tarde, quando estiver vestida adequadamente.
Com licença. – Escapa praticamente correndo, o cara
parece inquieto com alguma coisa.
— Obrigada por tudo o que fez pela minha filha,
senhor promotor. Eu teria morrido se a tivessem tirado
de mim. – Minha voz falha.
— Eu sei disso, Paula. Por isso eu faria qualquer
coisa para impedir que tirassem a Maria de você. – Ele
segura a maçaneta da porta, mas não gira. — Ela é a
criança mais inteligente e doce que já conheci.
Mesmo de costas para mim, pude sentir o seu
sorriso ao falar da minha filha.
— Pelo jeito, a minha filha já conquistou o
senhor com o charme que só ela tem, não é mesmo,
promotor?
— E ela não foi a única. – Gira a cabeça e me
encara por cima do ombro por alguns segundos de um
jeito penetrante, como se pudesse ler a minha alma
com aqueles olhos verdes incríveis.
Talvez pudesse...
Depois o promotor Pedro Alcântara vai embora,
me deixando para trás, intrigada em relação a tudo
sobre ele.
— Está tudo bem aí, senhorita Paula? O
acompanhante do quarto do lado disse que ouviu uns
gritos vindos daqui. – Os dois policiais mongoloides
enfim aparecem. Seja onde quer que estivessem,
vieram correndo porque estavam sem fôlego.
— Está tudo bem, sim, rapazes. Não se
preocupem!
Volto para o banheiro e, enfim, consigo terminar
o meu banho em paz. Bem, nem tão em paz assim,
porque aqueles olhos verdes penetrantes do promotor
bonitão não sairiam da minha mente tão cedo. Mas
isso não quer dizer que confio totalmente nesse cara.
Apesar de ter defendido a minha filha, ele vai precisar
de muito mais do que uma carinha bonitinha para me
convencer.
— Caramba! – Me assusto com o meu próprio
reflexo no espelho assim que saio do box.
O meu rosto está marcado por leves manchas
roxas, os olhos fundos, e há um curativo enorme na
minha testa. Fora o cabelo todo desgrenhado, feito um
ninho de pássaro abandonado. O conjunto da obra
completo se resume a uma zumbi que acabou de
levantar da cova, e nem é piada. Mas eu ainda
reconheço a mulher resiliente que olha de volta para
mim através do espelho, mais forte do que nunca.
Posso estar acabada e no fundo do poço, mas
ainda estou de pé e pretendo continuar lutando até a
última respiração.
— Nem pense em desconectar esse soro
novamente, mocinha! Suas veias são finas e muito
difíceis de encontrar – resmunga a técnica de
enfermagem Suzana, que acaba de chegar no quarto.
Ela me pegou saindo do banheiro enrolada em
uma toalha branca e deixando um rastro de sangue
para trás, gotejando do acesso conectado ao meu
braço. A agulha deve ter revirado toda dentro da
minha veia durante o ataque ao promotor, fico
morrendo de vergonha só de lembrar.
— Desculpa, Suzana, mas é que eu realmente
precisava de um banho – explico enquanto ela me
ajuda a voltar para a cama e vestir as roupas do
hospital limpas que trouxe para mim. — E a minha filha
está para chegar a qualquer momento, quero que ela
me veja apresentável.
Não tiro os olhos do relógio pendurado na
parede do quarto, estou contando cada segundo
ansiosamente para o horário de visitas. Mal posso
esperar para o Léo chegar com a minha filha. Quando
acordei esta manhã, a primeira coisa que perguntei foi
pela minha menininha linda e não sosseguei até que
falei com ela por telefone, mas não é a mesma coisa,
só vou ter paz quando tiver minha cria debaixo das
minhas asas.
— Desculpa, querida, hoje este hospital está
uma bagunça com esse monte de repórteres lá fora e
eu não consegui vir mais cedo para te ajudar com o
banho, como prometi. – Tira um pente de dentro do
bolso do jaleco e começa a pentear o meu cabelo
molhado. Mais cedo ela percebeu a situação
deplorável dele e já voltou preparada.
— Eu consigo ouvir esses abutres daqui, Suzana.
– Contorço as mãos sobre o colo. — Agora que sabem
que o famoso assassino de prostitutas já escolheu a sua
próxima vítima, todas as emissoras querem divulgar
em primeira mão a identidade da mulher que vai ter o
corpo encontrado em uma vala a qualquer momento.
— Credo, menina, que horror! Vira essa boca pra
lá! – Faz o sinal da cruz três vezes. — Mas em uma coisa
você está certa, nos jornais desta manhã só se fala da
primeira mulher que sobreviveu a um atentado do
assassino de prostitutas. – Dá um sorrisinho malicioso.
— Ahh... e também do vídeo do promotor bonitão
brigando com aquele investigador metido, Licanor
Siqueira, lá na recepção do hospital.
— Me fala mais sobre esse tal vídeo, Suzana.
Meu amigo Léo me contou o que o promotor fez pela
minha filha, só que não falou nada que alguém tinha
gravado a cena e divulgado na mídia.
Me sento na cama preocupada, não quero a
imagem da Maria sendo compartilhada por aí.
— Calma que a sua filha não aparece nas
imagens, querida, eu vou te mostrar. – Pega o celular
do bolso, coloca o vídeo para rodar e me entrega.
A primeira coisa que percebo é como o promotor
fica bem até na imagem de baixa qualidade da câmera,
chega a ser ridículo alguém ser tão gato assim, pois ele
tem a beleza e a postura viril de quem sabe o que quer.
Fico surpresa ao vê-lo enfrentando o crápula do
investigador Siqueira de cabeça erguida, não é
qualquer um que tem peito para isso.
— Desculpa, Paula, mas agora eu preciso ir fazer
a visita dos outros pacientes, volto mais tarde com o
seu almoço e para trocar o curativo, querida.
— Obrigada, Suzana, você é a melhor! – Entrego
o seu celular e a surpreendo com um abraço, que é
correspondido com carinho.
Suzana foi uma das poucas profissionais deste
hospital que não me olharam torto por ser prostituta,
porque o resto me tratou o tempo todo com cara de cu
e dirigia a palavra a mim para dizer apenas o
necessário, como se eu tivesse alguma doença sexual
contagiosa, mas sempre me cuidei em relação a isso. A
primeira regra, e a mais importante para mim no meu
trabalho, é a proteção. Depois de engravidar da Maria,
ao perder a virgindade, criei vergonha na cara e nunca
mais fiz sexo sem prevenção. Fora que morro de medo
de pegar alguma doença transmissível, não sou
nenhuma irresponsável de colocar a minha vida e a dos
meus clientes em risco. Nunca fiz ao menos um
programa sem camisinha, também nunca dei um beijo
na boca, esta é a segunda regra mais importante no
mundo da prostituição para evitar ligações emocionais.
Tenho ex-colegas de trabalho que se
apaixonaram e só se foderam, em todos os sentidos
dessa palavra. Uma delas teve uma depressão tão
profunda quando o seu amor foi rejeitado pelo seu
cliente que acabou internada em um manicômio após
tentar se matar três vezes para curar a dor de um
coração partido. Ainda bem que desse mal eu não
morro, nunca mais me apaixonei depois do pai da
Maria e pretendo continuar assim.
— Não precisa agradecer, querida, só estou
fazendo o meu trabalho. – Pega uma bolsa preta
debaixo do seu carrinho de remédios. — E antes que
eu me esqueça, aqui estão os sapatos e a roupa que
você estava usando quando chegou no hospital ontem.
– Deixa em cima do móvel perto da cama.
— Muito obrigada, Suzana – agradeço enquanto
ela, gentilmente, ajeita dois travesseiros nas minhas
costas.
Observo o pingente do cordão dourado no seu
pescoço no formato de duas crianças de mãos dadas,
uma menininha e um menino. Ela deve ter um casal de
filhos que devem ser muito amados e bem-cuidados
por ela, assim como trata os seus pacientes.
— De nada, meu amor! E vê se não fica pensando
muito no vídeo do promotor bonitão – fala, rindo ao
sair do quarto.
— Ele nem é tão bonito assim, sua boba – minto
descaradamente, porque bonito é pouco para escrever
a beleza do promotor Pedro Alcântara.
Um homem desse naipe, com o bolso cheio de
grana, cabelo na régua, roupa de marca e carrão
importado, não é para o bico de alguém como eu, nem
mesmo para um programa de uma horinha só por
diversão. Até porque alguém como ele não precisa
pagar por sexo, é só estalar os dedos que uma fila
infinita de mulheres maravilhosas se formará de
joelhos na sua frente.
— Esse cara deve ter uma namorada diferente
para cada dia da semana, aposto! – penso comigo
mesma, perdida nos meus devaneios sobre a vida
alheia, como se a minha já não tivesse problemas o
suficiente para lidar.
— Olha, se você estiver falando de mim,
senhorita, essa acusação não procede. – Um médico
brincalhão entra no quarto, totalmente diferente da
outra médica que veio me ver quando acordei de
manhã e fez vários comentários desnecessários sobre
a minha profissão.
— Desculpa, doutor, eu não ouvi quando o
senhor bateu na porta. – Ajeito o lençol sobre as
minhas pernas, totalmente sem graça.
— Tudo bem, senhorita Paula. Eu sou o doutor
Artur, estarei de plantão nessa ala nas próximas vinte
e quatro horas. – Concentrado, ele verifica os meus
sinais vitais e anota na sua prancheta.
Não é um homem alto e musculoso, mas tem a
postura confiante de um gigante com olhos escuros
penetrantes. Dá para ver que é o tipo de cara que se
cuida, cabelo em um corte impecável. Barba feita e
pele hidratada, gosto das suas mãos pequenas com
toques gentis e reconfortantes, quase como uma
carícia.
— Será que o senhor poderia me passar um
remédio para dor, doutor? Esse corte na testa está até
latejando.
— Tudo o que você quiser, Paula. Afinal, é a
paciente mais famosa desse hospital – diz divertido
enquanto dá uma olhada na ferida na minha testa.
— O senhor viu a multidão de repórteres lá fora,
não é? – Faço uma careta que faz ele soltar uma
gargalhada.
— Impossível não ver! Eu tive que estacionar o
meu carro a duas quadras daqui, pensei até que o Papa
tinha dado entrada no hospital.
— Desculpa por causar todo esse transtorno por
aí, sei que está atrapalhando o atendimento aos outros
pacientes.
— Não se preocupe, senhorita. Os pacientes
estão amando toda essa agitação por aqui,
principalmente as enfermeiras de olho nos dois
policiais boa pinta de vigia na sua porta. – Pisca para
mim, ele realmente tem uma vibe muito boa.
— Que bom que pelo menos algumas pessoas
estão vendo algum lado bom nessa situação, porque
eu não vejo nenhum. – Baixo a cabeça, triste.
— Ei, levanta essa cabeça, mulher, porque acho
que o seu dia está prestes a melhorar. – Dá um sorriso
charmoso e alguém bate na porta.
— Toque... toque. – Ouço a vozinha doce da
minha princesa do outro lado da porta, enchendo o
meu coração de alegria.
— Quem é? – pergunto com a voz embargada,
minha filha e eu sempre fazemos essa brincadeira lá
em casa.
— O amor – Maria responde com uma risadinha
fofa.
— Que amor? – Abro um sorriso enorme quando
a porta se abre e vejo Maria segurando um buquê de
flores maior do que ela.
Meu compadre Léo está ao lado dela com a sua
filhinha Marcely no colo, a nenê gorducha mais fofa
desse mundo.
— O amor da sua vida, mamãe. – Por trás do
buquê de flores se revela a figura sorridente da minha
filha amada, linda e com um vestido novo rosa-choque
cheio de babados, aposto que presente da esposa do
Léo.
— Bem, vou deixar você curtir a sua visita, Paula.
– Doutor Artur sorri simpático, depois vai embora.
— Oi, filha, vem aqui na mamãe, meu amor. –
Tento esboçar um sorriso ao abrir os braços na direção
dela, embora as lágrimas ameacem escapar pelo canto
dos olhos.
Finalmente, ter a Maria aqui comigo é como um
raio de sol em meio a toda essa atmosfera pesada da
situação tensa onde me tornei o foco principal para
todos.
— Oi, mamãe! – Se aproxima da cama,
segurando as flores com cuidado.
Seus olhos, cheios de preocupação para uma
criança tão pequena, fitam-me sobre uma cama de
hospital com um curativo grande na testa. Léo fica mais
afastado, brincando com a sua menininha no colo,
concedendo a mim e a Maria um momento íntimo só
nosso, de mãe e filha, mas seu olhar me transmite
apoio o tempo todo.
— Eu senti tanta saudade, filha. – Pego-a no colo
e a puxo para cima da cama, nunca mais tiro os meus
olhos dela outra vez.
— Também senti saudades, mamãe. – Esfrega o
nariz no meu em um beijo de esquimó. — O meu
padrinho me levou para comprar essas flores para a
senhora, não são lindas? Fui eu que escolhi.
— São lindas, sim, meu amor, obrigada. – Tiro
uma tulipa vermelha e coloco atrás da minha orelha.
— Você está linda, mamãe! – Faz carinho no meu
rosto, e eu começo a chorar só de lembrar que o
assassino chegou tão perto de nós e o pior poderia ter
acontecido com a minha menina.
— Desculpa, filha, por estarmos nessa situação,
isso tudo é culpa minha e das escolhas erradas que fiz
para a nossa vida. – Lágrimas sobem nos meus olhos.
— Vai ficar tudo bem, mamãe, não chora. –
Maria enxuga as minhas lágrimas. Em vez de eu a estar
consolando, ela é quem faz isso.
— Você é mesmo o amor da vida da mamãe, não
é, filha? – Faço cosquinhas nela, arrancando-lhe
gargalhadas. — Mas espero que não tenha feito muita
bagunça na casa do seu padrinho, sua danadinha. –
Faço cosquinha nela e suas gargalhadas ecoam pelo
quarto, chega de choradeira por aqui.
— Não seja boba, Paula, sempre é uma alegria
muito grande quando a Maria dorme lá em casa. – Dani
chega com uma mamadeira e entrega para a filha no
colo do pai. — Sei que não é a mesma coisa ficar lá sem
o Marcelinho, mas tenho certeza de que ela se divertiu
ficando acordada até tarde assistindo a todos os filmes
de princesa com a gente.
— E quando você diz todos, são todos os filmes
de princesa mesmo, meu amor. – Léo revira os olhos,
rindo.
— Pare de reclamar, querido, porque você até
chorou no final do filme “Valente” da Disney, quando a
mãe da princesa se transforma de urso para humana
novamente – entrega o marido bundão.
— Verdade mesmo, padrinho, eu também vi o
senhor chorando – confirma Maria às gargalhadas.
— Que duas mentirosas vocês, eu estava
chorando é de sono, já que essa gatinha aqui não
conseguiu dormir direito por causa de uma certa
boneca perdida chamada Josefina. – Léo aperta a
bochecha da Maria.
— Oh, não, eu perdi a minha mala antes do
acidente! – Minha ficha cai, tinha me esquecido desse
importante detalhe, que perdi tudo o que tinha
enquanto fugia do assassino de prostitutas.
Dentro daquela mala, além da boneca Josefina
da Maria, também estavam as economias de anos
trabalhando no mundo da prostituição. Deixei de fazer
tantas coisas para guardar essa grana, e agora não
tenho nem um real no bolso para comprar um doce
para minha filha.
— Fica calma, Paula! Talvez alguém tenha
achado a sua mala e deixado nos achados e perdidos,
então não entre em pânico por antecedência.
— Qual louco devolveria uma mala recheada de
grana, Léo? Acorda! Todas as minhas economias de
anos estavam ali.
— Eu não acredito que você ainda guardava toda
aquela quantia em casa, Paula! Tanto que te avisei para
colocar em uma conta poupança no banco.
— Para que o imposto de renda coma quase um
terço do meu dinheiro suado todo ano? De jeito
nenhum!
— Bom, pelo menos agora você não tem mais
nada para o imposto comer, não é mesmo? – rebate
irônico.
— Fica na sua, Léo! Não é hora para chutar
cachorro morto, ok?
— Já basta, vocês dois! – Dani intervém. –
Infelizmente eu acho muito difícil recuperar as suas
economias, Paula, mas nós somos seus amigos e te
ajudaremos com o que precisar até se reerguer e essa
loucura terminar, não é, amor? – Olha feio para o
marido.
— Mas é claro que vamos ajudar, desde que essa
maluca não guarde o dinheiro dentro de uma mala
novamente e saia andando nas ruas do Rio de Janeiro
acompanhada da minha afilhada – resmunga.
— Eu agradeço muito a generosidade de vocês
dois, mas vou me virar sozinha com a minha filha, como
sempre fiz. – Aqui estou eu, deixando o orgulho falar
mais alto outra vez, não aprendi a lição.
Sendo que realmente estou fodida dessa vez e
não tenho para onde correr, porque nem trabalhar
para recuperar tudo o que perdi eu posso, já que tem
um psicopata por aí de olho em mim. Fora que, com a
cara toda ferrada assim, nenhum cliente vai querer
fazer um programa comigo.
— Mas e quanto à Josefina, mamãe? Eu quero
minha boneca de volta. – Maria faz biquinho, com
vontade de chorar.
— Eu sinto muito, princesa, essa manhã eu até
procurei em várias lojas uma boneca igual à Josefina,
que te dei quando você ainda era um bebezinho, mas
elas não estão mais disponíveis para compra. – Léo
passa a filha ainda agarrada na sua mamadeira para a
mãe e vem até a Maria para pegá-la no colo.
— Está bem, padrinho, eu entendo. – Esfrega os
olhinhos cheios de lágrimas e depois deita a cabeça no
ombro do homem que foi a única figura paterna que
ela teve na vida até agora.
— Sabe que eu te amo, não é, princesa? – Léo
alisa suas costas com carinho.
— Eu também te amo, padrinho. – Sorri se
sentindo melhor.
— Obrigada, amigo, por ser tão bom para a
minha filha desde o dia que ela nasceu – agradeço a
ponto de ter mais um ataque de choro e isso me deixa
puta, nunca fui molenga assim.
Mas como não chorar diante dessa cena? Léo e
eu somos dois cabeças-duras que brigam o tempo
todo, mas nos amamos como irmãos. Sou muito grata
por tudo que ele sempre fez por mim e pela Maria.
— É isso o que os padrinhos fazem, não é? – Dá
de ombros, jogando a Maria para o alto, fazendo-a
voltar a sorrir.
— Que bom ver que pararam de brigar, porque
eu já estava pensando em colocar os dois de castigo –
brinca Dani, e nós duas rimos.
Aproveito cada segundo da visita deles, mas,
como tudo que é bom sempre acaba...
— Desculpe incomodar vocês, mas não podemos
mais esperar, Paula. – Depois de bater, delegado Avilar
abre apenas uma fresta na porta e coloca a cabeça para
o lado de dentro do quarto. — O promotor Pedro
precisa pegar o seu depoimento e tem que ser agora,
depois precisamos armar uma estratégia para te tirar
desse hospital antes que a situação com os repórteres
lá fora se agrave.
— Por mim tudo bem, delegado! – Olho para a
Dani e o Léo apreensivos, eles logo entendem que
precisam tirar a minha filha dali.
— E nós vamos tomar um sorvete bem grande
na sorveteria que tem aqui do lado do hospital
enquanto a mamãe fala com os policiais, o que acha,
Maria?
— Ebaaaa, tia Dani! – A pequena dá pulos de
alegria.
Me despeço da minha filha e dos meus amigos
com dor no coração, então, me preparo para dar o meu
depoimento sobre o que aconteceu no dia anterior.
Para mim, lembrar todo aquele horror será como
reviver tudo outra vez. Mas é necessário. Mesmo não
gostando da polícia, terei que trabalhar em parceria
com eles para pegar esse desgraçado.
Capítulo 11

Pedro

— Saiba que você só está aqui, rapaz, porque a


senhorita Paula insiste em falar apenas contigo, mas
basta uma gracinha sua e eu destruo a sua carreira
como promotor, bem assim. – Siqueira estala os dedos
bem nas minhas fuças, deixando bem claro quem é que
manda aqui.
Esse cara é mestre em fazer terror psicológico.
Imagino como deve ser terrível ser interrogado por ele
numa sala vazia da delegacia sob uma luz baixa,
deixando a sua fisionomia ainda mais assustadora do
que já é naturalmente.
— Ok, senhor investigador! – Massageio as
têmporas, sem paciência.
Estou muito nervoso e nem é pela encheção de
saco do Siqueira, mas, sim, devido a uma bela morena
que quase me matou com uma comadre de ferro
algumas horas atrás.
— Espero que tenha entendido mesmo! Porque,
se agir pelas minhas costas outra vez, haverá
consequências, e garanto que você não vai gostar
nadinha – continua com o seu discurso chato.
O velho está puto desde que descobriu que
dispensei os seus homens da porta do quarto da Paula
e tentei falar com ela sozinho, mas eu nem ouvi direito
o sermão que ele está me passando, andando
incansavelmente atrás de mim pelos corredores do
hospital.
— Certo, Siqueira, já entendi! Mas, se o senhor
me der licença agora, preciso ir ao banheiro. – Entro na
primeira rota de fuga que encontro e fecho a porta na
cara dele, estou a ponto de explodir a qualquer
momento.
Não lembro de ficar nervoso assim nem na
minha primeira audiência oficial como promotor, estou
nesse estado desde que coloquei os meus olhos na
Paula dentro daquele box apertado. E saber que falarei
com ela novamente em poucos minutos me deixa
ainda mais em pânico. Estou com medo de travar na
frente dela e não conseguir pegar o seu depoimento. A
sua semelhança com a mulher misteriosa dos meus
sonhos é incrível, mas, ao mesmo tempo, assustadora.
Porra! Eu não acredito que isso está mesmo
acontecendo logo nesse caso tão importante para
mim.
O destino já vinha tentando cruzar o meu
caminho com o da Paula há muito tempo, através dos
meus sonhos.
— Só respira, Pedro, você precisa se acalmar ou
estará tudo perdido – tento me policiar e voltar ao
controle da situação, mas estou suando frio.
Me aproximo da pia com as mãos trêmulas e
jogo um jato de água fria no rosto, a sensação do
líquido frio na minha pele quente é de puro desafogo.
Agora tudo faz sentido! Paula estava com tanto medo
de mim naquela noite, pensando que eu a estava
perseguindo, porque ela sabia que está na mira do
assassino de prostitutas, e eu preciso impedir a todo
custo que esse desgraçado a encontre novamente.
— Por isso você tem que tirar da cabeça a
semelhança da Paula com a mulher misteriosa dos seus
sonhos, cara – digo para o meu próprio reflexo.
Não posso me envolver com essa mulher de
maneira emocional, porque, como promotor neste
caso, isso seria totalmente antiético da minha parte e
uma burrice sem tamanho. Até porque, da última vez
que fiquei louco assim por uma mulher, terminei com
um belo par de chifres semanas antes do meu
casamento. Então é melhor deixar isso tudo de lado e
voltar a agir como o ótimo profissional que sou,
porque, como o próprio delegado Avilar, que é meu
amigo, me alertou, preciso agir com a razão e não com
a emoção.
Preciso mostrar que estou mais focado no
trabalho do que nunca, começando por tentar me dar
bem com o Siqueira para tirar a má impressão que
aquele maldito vídeo deixou de nós dois.
— Vai lá e arrasa, parceiro, você é o cara! – Ajeito
a minha gravata no espelho com a postura ereta, estou
no controle da situação outra vez.
Saio do banheiro me sentindo confiante e sigo
direto para o quarto da Paula, seja o que Deus quiser.
— Enfim a margarida apareceu, estava cagando
prego? – O velho chato me esperava no corredor.
— Não enche, Siqueira! – Saio andando rápido
na frente dele e acabo esbarrando em alguém que
deixa algumas folhas caírem, me abaixo e recolho para
a pessoa.
— Muito obrigado, promotor Pedro Alcântara. –
O homem de jaleco branco agradece, simpático.
— O senhor me conhece, doutor Artur? – Leio o
seu nome no seu jaleco.
— Quem não te conhece, promotor?
Ultimamente o seu rosto tem aparecido bastante nos
jornais e revistas, principalmente nas páginas de
fofoca. – Divide o olhar entre mim e o Siqueira, se
referindo claramente ao recente vídeo da nossa briga
que está rolando por aí.
— O senhor pelo visto anda com tempo de sobra
para ficar de olho nas fofocas, não é, doutor? – rebate
Siqueira, delicado feito um coice de mula.
— E a polícia também anda com tempo livre para
ficar batendo boca com os colegas de trabalho, não é,
investigador? – O médico responde à altura e eu quase
solto uma gargalhada.
— Quem pensa que é para falar assim comigo,
rapaz?
— Para o senhor, doutor Artur está ótimo! –
continua cortando o velho. — Acredito que estão indo
pegar o depoimento da Paula. Ela ainda não está cem
por cento bem, então peguem leve com ela.
— Nós iremos, doutor, não se preocupe! – Ele
acena a cabeça e segue o seu caminho.
Faço o mesmo, com o Siqueira resmungando no
pé do meu ouvido. Fico nervoso quando bato na porta
do quarto da Paula, louco para vê-la novamente.
— Pode entrar. – A voz aveludada da bela
morena soa lá de dentro e me causa um calafrio na
espinha.
Abro a porta e eu a vejo sentada nessa cama
desconfortável de hospital, com alguns travesseiros
apoiando as costas e uma tulipa vermelha presa na
lateral do cabelo. Meu coração dá um sobressalto
quando ela me recebe com um sorriso. No entanto, seu
sorriso é rapidamente substituído pelo desconforto ao
notar que não estou sozinho, tem uma sombra
indesejada atrás de mim de olho em nós dois, cuja
arrogância é capaz de tirar qualquer um do sério.
Paula franze a testa e estreita os olhos, deixando
clara a sua desaprovação pela presença do
investigador Siqueira, eu já esperava por isso.
— Desculpe incomodá-la bem no horário de
visitas, senhorita Paula, mas nós realmente precisamos
saber tudo o que aconteceu ontem antes do acidente
– começo em um tom educado, mas minha voz sai um
pouco trêmula devido ao nervosismo.
— E acho bom que seja rápido, porque a
senhorita já nos fez esperar o dia todo para falar com
a sua ilustre pessoa – ironiza o investigador filho do
cão. Esse homem parece que anda sempre com o
espírito provocador no corpo.
— O que a cópia barata do Denzel Washington
está fazendo aqui, promotor? Deixei bem claro que só
iria cooperar nesse caso se o senhor fosse o mediador
entre mim e a polícia.
— Eu sei, senhorita Paula. – Seguro o riso, o
apelido que deu ao Siqueira caiu feito uma luva. — Mas
a presença do investigador aqui é necessária, já que ele
é o chefe deste caso — explico calmo, tentando manter
a situação sob controle.
— Eu não vou falar uma palavra com esse cara
por perto, não confio nele — declara com firmeza, o
olhar desafiador, deixando claro que não está disposta
a ceder.
Suspiro percebendo a tensão no ar, os dois têm
a personalidade forte e com certeza o Siqueira também
não vai ceder, abrindo mão de fazer parte da coleta do
depoimento da Paula. Sinto que estou no meio desse
fogo cruzado, então resolvo apelar pelo bom senso.
— Paula, por favor, é muito importante que você
dê seu depoimento e tem que ser na presença do
investigador Siqueira. Então vamos tentar facilitar as
coisas para ambas as partes, ok? – peço com jeitinho,
e ela assente a contragosto.
— E como isso funcionaria? – Cruza os braços
sobre o vestido do hospital que está usando.
— Podemos fazer isso de uma maneira que deixe
você mais confortável, com a cópia barata do Denzel
Washington sentado lá no fundo do quarto. O que
acha? – Entro na onda do seu deboche e uso o apelido
bem original que ela deu ao investigador, fazendo com
que ela solte uma risada calorosa.
— Está bem, senhor promotor, mas, se ele abrir
a boca para me ofender uma única vez que seja, eu
mesma o expulsarei daqui com um chute no traseiro —
ameaça, e eu acredito que ela seria capaz de fazer isso
mesmo e muito mais, pois é o tipo de mulher que não
leva desaforo para casa.
Eu aceno com a cabeça, concordando com a sua
condição, enquanto o investigador Siqueira se afasta,
arrastando uma cadeira consigo para o canto do
quarto, com o maxilar trincado de raiva por não estar
no controle da situação. Posso ouvi-lo resmungando
alguns palavrões baixinho, mas tento ignorar a sua
presença, preciso focar no trabalho e tentar a todo
custo sobreviver ao forte impacto que a presença da
Paula causa em mim.
— Certo! Então começarei a colher o seu
depoimento. – Tiro um gravador do bolso e o ligo,
engolindo em seco, toda a minha confiança caiu por
terra em um segundo quando os meus olhos
encontraram os da Paula.
Sentado próximo à sua cama nesse quarto de
hospital quente pra cacete, tiro um lenço de seda do
bolso e enxugo a testa gotejando de suor novamente.
A luz filtrada pelas cortinas desenha padrões dourados
no chão desgastado. Esse calor opressivo torna as
paredes brancas quase sufocantes, nem consigo
respirar direito. Estou completamente sem ar, porém,
isso não tem nada a ver com o fato de este,
possivelmente, ser o dia mais quente do ano no Rio de
Janeiro, mas, sim, à tensão que essa mulher me causa,
com o poder de abalar todas as minhas estruturas.
Paula consegue ser fodidamente linda até mesmo
nesse vestidinho ridículo de hospital que obrigam a
gente a usar e com o rosto cheio de hematomas. Toda
vez que ela olha para mim sinto como se tivesse sido
acertado no peito por um trovão do martelo de Thor,
bem em cima do coração.
Sua beleza exibe uma aura de exotismo que a
destaca de maneira única, o tipo de deixar qualquer
homem hipnotizado. Seu cabelo negro sedoso e
profundo como uma noite estrelada cai em ondas
suaves ao redor dos ombros e desce pelas costas,
capturando reflexos bronzeados à luz. Os fios longos e
grossos parecem ter vontade própria, dançando
graciosamente com cada movimento seu, destacando
sua natural feminilidade de forma fervorosa e
cativante.
E aqueles olhos âmbar?
Meu Deus!
São intensamente dourados, idênticos aos de
sua filha e verdadeiramente raros e apaixonantes. Eles
carregam consigo uma profundidade e calor, como
uma janela para um mundo interior secreto nas cores
intensas do outono, envolto em mistérios que me
convidam a explorá-lo. Tudo em Paula é uma obra-
prima. Sua face é uma combinação harmônica de
traços perfeitos; as maçãs do rosto, delicadamente
esculpidas, conferem-lhe uma elegância que se
destaca. Um nariz refinado e lábios que carregam um
toque de sensualidade, os quais eu não me cansaria de
beijá-los por toda a eternidade.
Para com isso, Pedro! Se controla.
— De onde o senhor gostaria que eu começasse
o meu depoimento, promotor? – pergunta confusa, já
que eu fico paralisado a encarando sem falar nada,
feito um completo idiota.
— Comece contando desde quando soube que
está na mira de um assassino em série, senhorita Paula.
– Afrouxo o nó da gravata em um pigarreio, buscando
algum alívio no quarto abafado.
Vez ou outra observo o investigador Siqueira
sentado o tempo todo de olho em mim, um passo em
falso e ele acaba comigo. Por isso, por mais impactado
que eu esteja com a presença de Paula, não posso
deixar isso transparecer de maneira nenhuma.
— Dois dias atrás eu fui na delegacia no horário
marcado pelo investigador Siqueira, ele havia me
ligado na noite anterior, dizendo que tinha um assunto
sério para falar comigo. – Ela fita o velho de esguelha.
O som da respiração profunda de Paula
preenche o quarto, intercalado pelo rangido da cadeira
do Siqueira enquanto ele se move inquieto,
desconsiderando a proibição do hospital ao acender
um charuto dentro do quarto. Quando o assunto é
quebrar regras, só ele pode.
— O que rolou nessa conversa? – indago.
— O investigador Siqueira me disse, com uma
certeza aterrorizante, que eu seria a próxima vítima do
assassino de prostitutas. Nesse momento foi como se
o chão se abrisse debaixo dos meus pés. – Suas feições
tomam uma expressão de pavor.
— E você fez o que quando saiu da delegacia?
— Eu fui para casa, pensei que podia lidar com a
situação sozinha. Mas estava enganada! – Aperta os
lábios em uma linha reta. — Soube disso ontem de
manhã quando encontrei um recado do assassino de
prostitutas no espelho do meu banheiro, dizendo que
estava de olho em mim esse tempo todo.
— E de fato ele estava te observando esse tempo
todo, Paula. O delegado Avilar me contou que os seus
homens fizeram uma revista na sua casa hoje e
acharam várias câmeras escondidas.
— Mas que arrombado filho da puta! – Ela se
altera.
— Tente manter a calma, por favor, e continue o
seu depoimento.
— Sim, senhor, me desculpe! – Suas bochechas
ficam coradas. — Depois que achei o recado escrito
com batom vermelho no espelho, fui direto na escola
da minha filha buscá-la, meu plano era fugirmos para
bem longe do Rio de Janeiro, de preferência para outro
estado. Coloquei o básico que precisaríamos em uma
mala pequena, junto de todas as minhas economias de
anos de trabalho. – Aperta os olhos e balança a cabeça,
arrasada.
— Então você estava saindo do Rio de Janeiro
quando o acidente aconteceu? – Um nó se forma na
minha garganta.
Se a Paula tivesse conseguido ir para outro
estado, talvez os nossos caminhos nunca se cruzassem
e eu sequer saberia da sua existência. Pensar nisso me
incomoda muito mais do que deveria.
— Não exatamente, promotor. Antes de partir,
minha filha e eu paramos para nos despedir de uma
amiga muito especial para nós. – Seus lábios tremem e
ela segura o choro.
Seja quem for essa amiga da Paula, ela é
importante o suficiente para que, mesmo assustada
em meio a uma fuga com a filha para fora da cidade,
parou para se despedir dela.
— Espero que pelo menos tenha conseguido se
despedir da sua amiga antes de todo o trágico
ocorrido.
— Consegui chegar até ela, mas de repente tive
a impressão de estarmos sendo observadas. Peguei
minha filha e fomos para o ponto de ônibus mais
próximo, que ia para a rodoviária interestadual, mas
não cheguei nem na metade do caminho. – Dá um
longo suspiro.
— Por que não?
— Recebi uma mensagem aterrorizante no meu
celular de um número estranho, com fotos nossas em
tempo real andando na rua e uma frase que dizia: “Te
achei, cordeirinha”. – Abraça o próprio corpo,
apavorada ao lembrar de tais fatos.
Depois de uma longa pausa, Paula continua:
— Nesse momento entrei em pânico, peguei a
Maria no colo e corri, deixando a minha mala no meio
da rua com tudo o que tínhamos de valor. – Deixa
escapar um soluço, e eu sinto um aperto no peito,
queria poder abraçá-la e não soltar nunca mais.
— Agora entendo por que você atravessou a rua
correndo com uma criança, Paula. Agiu como uma mãe
desesperada, disposta a tudo para proteger a sua filha
de um monstro.
— Não pensei na hora, só corri sem rumo e
quase matei minha filha e eu. – Enxuga uma lágrima
que caiu. — Também quase matei o senhor e destruí o
seu carro, senhor promotor, me desculpe por isso. –
Chora mais ainda, e o aperto no meu peito aumenta.
— Eu não estou nem aí para o meu carro, Paula.
– Quando dou por mim, a minha mão já está sobre a
sua. — Minha prioridade agora é você e a Maria –
completo, olhando no fundo dos seus olhos dourados,
deixando-me levar pela porra do meu coração teimoso
e não pela voz da razão.
— Pensei que pegar o assassino de prostitutas
fosse a nossa prioridade, promotor Pedro. – O olhar de
Siqueira corta a fumaça do seu charuto enquanto ele
nos observa desconfiado.
Separo nossas mãos imediatamente, até tinha
esquecido que essa coruja astuta está presente nos
observando. Chego a engolir em seco com medo de ele
ter percebido algo, mas é bem provável, porque o
clima no quarto não poderia ser mais constrangedor.
Siqueira solta uma grande nuvem de fumaça que se
entrelaça com a tensão na sala, tão pesada que daria
para fatiar com uma faca, e nem precisava ser muito
afiada.
— Eu pensei que a cópia barata do Denzel
Washington não ia falar nada durante o meu
depoimento, doutor. – Paula lança um olhar fuzilante
na direção do investigador.
— Só o ignore, senhorita Paula! – Puxo sua
atenção de volta para mim. — E, por favor, me diga que
você ainda tem o celular com o tal número
desconhecido que te enviou as fotos – pergunto
esperançoso, rezando para que ela não tenha perdido
o aparelho durante o acidente.
— Tenho sim, senhor! Um enfermeiro encontrou
no bolso do meu vestido e me devolveu quando
acordei, só que a bateria acabou. – Pega o aparelho
desligado debaixo do seu travesseiro.
— Perfeito! Será que você poderia me emprestá-
lo por uns dias? Com muita sorte, poderemos rastrear
o número do desgraçado.
— Claro que posso, promotor! – Estende a mão
para me entregar o celular.
No entanto, antes que isso aconteça, o
investigador Siqueira entra em cena outra vez.
— Eu fico com isso, rapaz. – Enfia o celular no
bolso. — Como eu te disse, o trabalho de investigação
é da polícia.
— É. Eu sei, Siqueira! O senhor já deixou isso
muito claro, várias e várias vezes. – Sorvo uma longa
lufada de ar. — Voltando ao seu depoimento, Paula,
por acaso faz alguma ideia do porquê de toda essa
obsessão do assassino de prostitutas por você a ponto
de quebrar o padrão operante dele com todas as
outras vítimas? – indago.
— Eu não faço a menor ideia, senhor promotor.
Olhe para mim, sou apenas uma puta de rua ferrada
como qualquer outra. – Estende os braços como se
fosse óbvio.
Mas eu só consigo ver uma mulher
deslumbrante à minha frente, que claramente vem
levando muita rasteira da vida e por isso carrega tanta
tristeza no olhar.
— Tente lembrar de algo estranho que
aconteceu nas últimas semanas, talvez um cliente
insatisfeito ou apresentando algum comportamento
suspeito. – Forço mais um pouco, na esperança de que
ela me dê alguma pista sobre o desgraçado.
— Cliente insatisfeito, promotor? – Ela passa a
mão no cabelo e abre um sorriso provocador no estilo
dama da noite. — Impossível! Sou a melhor no que
faço, pode perguntar para quem quiser no calçadão,
sou a garota de programa mais requisitada pelos
clientes que passam por lá – afirma, e eu acredito
piamente.
Vários pensamentos inapropriados com essa
bela mulher surgem na minha mente, não consigo
evitar, o que faz o meu amigão lá de baixo dar sinal de
vida.
— Entendo, senhorita. – Engulo em seco mais
uma vez, afrouxando o nó da gravata em um ato de
puro tormento, acho que já é a quinta vez durante esse
depoimento. — Mas e quanto à questão de algum
cliente ter mostrado qualquer tipo de comportamento
estranho dos demais, que tenha lhe chamado a
atenção?
— Quase todos os meus clientes são estranhos,
se quiser, posso te dar uma lista com pelo menos 100
nomes que agiram de maneira suspeita comigo. – Dá
de ombros.
— 100 nomes? – quase grito.
Mas não porque seriam muitos homens para
investigar, e sim devido ao meu ego ferido em saber
que ela já dormiu com todos eles.
— Sim, promotor. – Ela desvia o olhar devido à
minha reação exagerada de surpresa. — E agora que
vocês já têm o meu depoimento, o que será de mim e
da minha filha? – pergunta para mim, mas é o enxerido
do Siqueira quem responde.
— Vocês entrarão no programa de proteção a
testemunhas, Paula. Mudarão de estado como você
queria, não é ótimo? Também vão mudar de nome,
começando uma vida totalmente do zero e honesta,
vai ter uma mesada do governo, então não vai mais
precisar vender o seu corpo – explica com um gesto de
desdém com a mão, deixando a moça envergonhada
ao citar sua profissão, pois nem ao menos olha a Paula
nos olhos enquanto fala do futuro dela e da sua filha,
que está prestes a mudar da água para o vinho daqui
para frente. Nunca conheci ninguém tão frio e sem
empatia pelos outros igual ao Siqueira, chega a ser
desumano.
— NÃO! – grito e ambos me fitam confusos.
— Não o quê, promotor? – Siqueira se vira para
mim, cruzando os braços.
— Não podemos tirar os olhos da Paula de
maneira nenhuma, Siqueira! Esse cara pode ter
contatos na polícia, ou pior, fazer parte dela e por isso
nunca deixa nenhuma pista para trás porque conhece
como o sistema funciona — digo, mas não sei se estou
sendo sincero, ou se é só o meu coração fazendo
merda de novo.
— E nós vamos fazer o que, já que não podemos
confiar nem no nosso pessoal, promotor? Levar a Paula
e a filhinha dela para a nossa casa? – Solta uma risada
irônica. — Porque na minha não cabe nem eu direito,
minha ex-mulher levou até as minhas cuecas depois do
divórcio – resmunga dramático.
— Mas eu moro em uma cobertura gigante no
bairro mais seguro do Rio de Janeiro, e não me importo
em hospedar mãe e filha na minha casa durante o
tempo que precisarem. Serão muito bem-vindas lá. –
Tenho uma ideia maluca, que pareceu ainda mais
estranha quando dita em voz alta.
— Você está brincando, não é? Eu estava sendo
irônico, garoto – Siqueira se exalta e começa a andar
de um lado para o outro pelo quarto, massageando o
queixo. — Abrigar uma vítima em situação de risco na
nossa própria casa é uma responsabilidade enorme,
fora que é algo totalmente ilegal.
— Por isso que é uma ótima ideia, o senhor sabe
que esse assassino é diferente de todos com quem já
lidou em toda a sua carreira e ele está sempre um
passo à nossa frente, por isso temos que agir
totalmente diferente do protocolo da polícia – insisto,
mesmo sabendo que poderei foder com toda a minha
carreira e o meu psicológico fazendo isso. — A essa
altura, não podemos confiar em mais ninguém.
— Não sei não, garoto... – Enrola a ponta do
bigode, pensando melhor no assunto.
Siqueira sabe que, por mais estranho que seja, o
que eu disse realmente faz sentido, e muito. A ideia é
insana, por isso é tão boa.
— Ninguém nunca desconfiaria que um
promotor de justiça colocaria a vítima do caso mais
importante da sua carreira debaixo do seu próprio
teto, afinal, até o senhor, que é o cara mais esperto que
conheço e tem décadas de experiência nessa área,
achou a ideia absurda. – Encho a sua bola, essa é a
melhor maneira de fazer com que pessoas narcisistas
concordem com você.
— Isso nunca daria certo, é uma loucura sem
tamanho! – persiste.
— Eu sei, Siqueira. Por isso, se tudo der errado,
assumirei completamente a culpa e provavelmente
perderei o meu posto de promotor. E o senhor vai
provar que sempre esteve certo quando disse que sou
apenas um playboy brincando de ser homem da lei –
jogo a isca. — O que acha?
— Humm... pensando melhor, acho que essa sua
ideia pode funcionar, promotor. Pelo menos por agora,
até que a poeira abaixe com toda a mídia em cima de
nós querendo saber a identidade da Paula – mudou de
ideia rapidinho com um sorrisinho cínico. — Mas eu
colocarei uma equipe de minha total confiança
fazendo ronda vinte e quatro horas no seu condomínio
de riquinhos, e você vai ter que garantir que eles
fiquem instalados próximo ao seu andar.
— Pode deixar que eu resolvo isso, senhor.
Agora só falta a Paula aceitar, porque o resto eu ajeito.
– Tanto o investigador Siqueira quanto eu a
encaramos, à espera de uma resposta.
— O senhor evitou que levassem a minha filha
de mim, então eu vou te dar esse voto de confiança e
vou ficar um tempo escondida na sua casa. – Paula sorri
para mim e o meu cérebro entra em pane, acho que
acabei de cometer o maior erro da minha vida.
Estou completamente fascinado por Paula Souza
desde a primeira vez que nos encontramos naquela rua
escura, mas o problema é que não sei quase nada
sobre o seu passado, o que faz de mim um verdadeiro
louco ao levar uma desconhecida para morar na minha
casa. Até porque vai ser quase impossível dividir o
mesmo teto com a mulher literalmente dos meus
sonhos sem querer agarrá-la toda vez que olhar para
ela, e o fato de eu estar sem sexo há meses só piora, e
muito, as coisas para o meu lado.
Mas preciso manter o controle e não perder de
maneira alguma esse voto de confiança que a Paula
depositou em mim.
Isso significa que devo manter em segredo o
nosso encontro um tanto estranho naquela festa
profana de aposentadoria do juiz Torres. Paula não
pode saber que sou o homem mascarado que pagou e
muito bem para apenas conversar com ela, não quero
que tenha uma ideia errada de mim. Então, é melhor
manter a imagem de promotor sério que a moça tem
de mim.

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