ANAIS
V Encontro Nacional de
Economia Política Internacional:
Disputas Geopolíticas Globais e
a Inserção Brasileira
ISBN: 978-65-01-09580-6
ANAIS
V Encontro Nacional de Economia Política Internacional:
Disputas Geopolíticas Globais e a Inserção Brasileira
ISBN: 978-65-01-09580-6
Rio de Janeiro, 29 de novembro a 1º de dezembro de 2023
Realização:
Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional
(PEPI-UFRJ)
Apoio:
Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
As posições expressas nos artigos, erros e omissões, são de exclusiva
responsabilidade de seus autores.
Comissão Organizadora V ENEPI Comitê Científico
Adriano França Fernandes Prof. Dr. Italo Barreto Poty (UFF)
Aline Velten de Melo Prof. Dr. Marcelo Pereira
Andréa Grion Hungaro Fernandes (UFRRJ)
Bruno Do Val Prof. Dr. Mauricio Medici Metri
Cassiano Schwantes Corrêa (UFRJ)
Danilo Silva Rodriguez Profa. Dra. Patrícia de Oliveira
Francisco Luiz Marzinotto Junior Matos (UNIFA)
Gabriela Tamiris Rosa Corrêa Prof. Dr. Ricardo Zortéa Vieira
Henrique Jorgielewicz Rogovschi (UFRJ)
Italo Barreto Poty Dra. Fernanda Pacheco de
Lucas Gualberto do Nascimento Campos Brozoski (UFRJ)
Marcelo Augusto Boscato Adriano França Fernandes
Marcus Vinicius da Silva Tavares Aline Velten de Melo
Matheus Bruno Ferreira Alves Andréa Grion Hungaro
Pereira Bruno Do Val
Mauricio Medici Metri Cassiano Schwantes Corrêa
Patrícia de Oliveira Matos Danilo Silva Rodriguez
Ricardo Zortéa Vieira Francisco Luiz Marzinotto Junior
Tainah Santos Pereira Gabriela Tamiris Rosa Corrêa
Thiago Ferreira Moreira D'amato Henrique Jorgielewicz Rogovschi
Lucas Gualberto do Nascimento
Organizadores dos Anais Marcelo Augusto Boscato
Francisco Luiz Marzinotto Junior Marcus Vinicius da Silva Tavares
Bruno Do Val de Oliveira Matheus Bruno Ferreira Alves
Pereira
Editoração Tainah Santos Pereira
Francisco Luiz Marzinotto Junior Thiago Ferreira Moreira D'Amato
Programação Visual
Camila Fonseca
Apoio Técnico
Guilherme de Lemos Aguiar
Sumário
Prefácio ................................................................................................................. 1
Seção 1: Artigos dos Grupos de Trabalhos .................................................... 5
A assimetria das relações entre China e Argentina: relação sul-sul ou
norte-sul? .............................................................................................................. 6
Ana Clara de Moraes Elias, Manoela Dias Clemente e Marcelo Pereira Fernandes
A disputa historiográfica pela redefinição de uma memória sobre a
Guerra Fria: uma crítica ao pós-revisionismo ............................................. 26
Flávio Alves Combat
A geopolítica do Mar do Sul da China: interesse chinês, recursos
energéticos e rotas comerciais ........................................................................ 54
Ester Gruppelli Kurz e William Daldegan
A Geopolítica Dos Projetos Globais De Infraestrutura ............................ 78
Daniel Campos Nunes da Silva
A Geração “U” dos Trabalhadores Estadunidenses: Precarização e
Sindicalização no Pós-Fordismo (2008-2022) ............................................... 97
Cassiano Schwantes Corrêa
A Gestação do Conflito Russo-Ucraniano: a Rússia sob a Grande
Estratégia Estadunidense no Pós-Guerra Fria ........................................... 124
Danilo Silva Rodriguez
A importância dos conceitos de lugar e de saber na interpretação e
estudo da globalização atual: da caracterização da situação crítica à
criação de uma visão crítica da globalização ............................................. 150
Oscar Esteban Herrera Florez e Maria Jose Benjumea Buelvas
A Nova Rota da Seda Enquanto Estratégia de Projeção Global da China:
uma análise através dos investimentos em energia na América do Sul
............................................................................................................................ 177
Gabriela Ferreira Chagas Reis e Carlos Renato da Fonseca Ungaretti Lopes Filho
A pobreza da geopolítica: ação imperialista e “guerras híbridas” na
Venezuela contemporânea ............................................................................ 206
Gustavo Melo Novais da Encarnação Lopes
A Política Externa da Alemanha Pós-Guerra Fria .................................... 230
Wagner Sousa
Adoção, adaptação ou resistência? A cláusula arbitral investidor-estado
em Tratados Bilaterais de investimento (BITs): análise comparada entre
Brasil e Argentina (1994-2021) ...................................................................... 246
Diêgo Domiciano Vieira Costa Cabral e Elia Elisa Cia Alves
Analisando a Inserção Internacional Imperialista da China a partir da
Teoria Marxista da Dependência: notas sobre as relações econômicas
sino-brasileiras no século XXI ...................................................................... 288
Danilo Augusto da Silva Horta
Autossuficiência econômica e política: a resposta interna da Ideologia
Juche na península Norte Coreana frente ao isolacionismo
internacional .................................................................................................... 325
Mayane Bento Silva Juliana Morgado Fernández e Juan Carlos Neves Pereira
Contribuição multilateral da China no financiamento da transição
energética.......................................................................................................... 352
Rafaela Mello Rodrigues de Sá e Cândido Grinsztejn Rodrigues d’Almeida
Entre o 'Ingroup' e o 'Outgroup': Clausewitz e a Complexidade da
Guerra a Partir de uma Perspectiva da Grande História ......................... 379
Daniel Ribera Vainfas e Beatriz Baiense Sadler Pimentel
Fascismo e dependência na periferia latino-americana no século XXI:
articulações teóricas ........................................................................................ 389
Mateus de Oliveira Martins da Silva e Maria Laura Andrade Franco
Geoeconomia do setor energético offshore: o caso chinês e
aprendizados para o Brasil ............................................................................ 414
Gabriel Ralile de Figueiredo Magalhães, Jorcelino Rinalde de Paulo e Thauan
Santos
Guerra doméstica, evolução humana e o problema dos outgroups
cognitivos ......................................................................................................... 442
Beatriz Pimentel
Hegemonia e imperialismo no sistema-mundo moderno: propondo um
modelo para pensar as relações centro-periferia no século XXI ............ 454
Bruno Hendler, Gabriela Tamiris Rosa Corrêa e Henrique Jorgielewicz Rogovschi
La Economía Política Internacional del relacionamiento China y el
Pacifico Sudamericano: del Auge a la Franja y la Ruta ............................ 483
Milton Reyes Herrera
Meio ambiente e inserção internacional do Brasil no terceiro governo
Lula: um balanço do primeiro ano .............................................................. 530
Nathan Morais Pinto da Silva e Pedro Allemand Mancebo Silva
O ajuste no Balanço de Pagamentos como um fator de equilíbrio
sistêmico: uma aproximação teórica entre Relações Internacionais e
Ciências Econômicas na Economia Política Internacional ..................... 551
Igor Estima Sardo
O choque de ondas e seus efeitos na Economia Política ......................... 570
João Boaventura Branco de Matos
O debate econômico pela ótica da Ecologia Política: desafios que
ameaçam a sustentabilidade das vias de desenvolvimento hegemônicas
e possíveis alternativas .................................................................................. 605
Bernardo França Santos, Daniel Augusto Rodrigues Barreto e Marco Aurélio
Dias Rezende
O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB): uma nova ordem financeira
construída pelo BRICS? ................................................................................. 634
Julia Driemeier Vieira Rosa
Política de capacitação integrada em inteligência como atividade de
assessoramento para atividades de segurança e defesa ........................... 656
Zoraia Saint´Clair Branco
Projeção naval do Brasil ................................................................................ 681
Esley Rodrigues De Jesus Teixeira
Racializando as teorias do desenvolvimento econômico: o caso de
Arthur Lewis em The Theory of Economic Growth (1955) e Racial
Conflict and Economic Development (1985) ............................................. 692
André de Jesus Torres
Reconfiguração da política de assistência dos EUA para Colômbia e
México: crescimento do nexo entre segurança e desenvolvimento ...... 718
João Estevam dos Santos Filho
Reforços institucionais à divisão internacional do trabalho?:as
interações do Brasil no comitê de subsídios e medidas compensatórias
da OMC (1995-2015) ........................................................................................ 740
Guilherme Fenício Alves Macedo, Lucas Milanez de Lima Almeida e Cristina
Carvalho Pacheco
Sinocentrismo, Interdependência e as mutações da Ordem
Internacional Liberal ...................................................................................... 768
Octávio Henrique Alves Costa de Oliveira
Thinking and Working Politically in Latin America: International
Organizations’ Decision-making Processes in the Context of
Institutional Fragility ..................................................................................... 793
Helena Morais, Fernanda Cimini e Bianca Guimarães
Uma leitura dos impactos da crise da COVID-19 na economia global e
no Ciclo Hegemônico Norte-americano ..................................................... 818
Patrícia Nasser de Carvalho e Elói Martins Senhoras
Seção 2: Banners do Fórum de Graduação ................................................. 850
Expansão dos Interesses do Capital Transnacional nas Estruturas
Fundiárias Brasileiras - Análise a Partir dos Governos FHC e Lula ..... 851
Ana Sofia Guimarães Menezes
O Governo de Rafael Correa no Equador (2007-2017) diante de um país
polarizado: o que mudou no setor externo? .............................................. 852
André Gouveia de Queiroz
O papel das ideias para a construção da agenda política nas instituições
internacionais: um estudo de caso sobre a quebra de patente da vacina
contra COVID-19 ............................................................................................ 853
Emanuelle Brito e Helena Morais
O que são cabos submarinos de fibra ótica e por que as Relações
Internacionais deveriam estudá-los: uma análise a partir do conceito de
poder estrutural ............................................................................................... 854
Giovanni Nicolace de Campos Bueno Benages
Projeção Econômica Chinesa na África no Século XXI ........................... 855
Lia de Macedo Gonçalves Albuquerque Marinheiro e Mariana Barreto Leite
*****
Prefácio
O V ENEPI e sua contribuição à Economia Política Internacional
no Brasil
É com grande satisfação que apresentamos os Anais do V
Encontro Nacional de Economia Política Internacional (ENEPI),
evento realizado entre os dias 29 de novembro e 1º de dezembro de
2023, no Palácio Universitário do campus Praia Vermelha da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Desde sua primeira edição em 2016, o ENEPI ocupa uma
posição singular na produção científica e difusão do conhecimento na
área de Economia Política Internacional (EPI) no Brasil, se destacando
não apenas pelo seu papel na promoção de debates sobre temas
cruciais para a EPI, mas também pelo seu esforço em fomentar a
criação de redes de intelectuais e conectar graduandos, pós-
graduandos, professores e pesquisadores de diversas instituições e
regiões do Brasil e da América Latina. Ao reforçar a
institucionalização da área, o ENEPI contribui significativamente
para o avanço do campo no país, integrando-se a iniciativas como a
Área Temática de EPI da Associação Brasileira de Relações
Internacionais (ABRI).
Originado como uma iniciativa discente no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Economia Política Internacional (PEPI-UFRJ),
o ENEPI tornou-se singular em seu gênero no país. A iniciativa
discente reflete o esforço contínuo dos pesquisadores pioneiros do
Grupo de Pesquisa em Economia Política (GEP) do Instituto de
Economia da UFRJ, responsáveis por conceber o PEPI-UFRJ em
conjunto com o Núcleo de Estudos Internacionais (NEI) em 2008,
1
sendo este um dos primeiros programas de EPI da América Latina. A
concepção acadêmica do PEPI resultou de um extenso processo de
pesquisa e elaboração teórica dos professores do GEP, iniciando na
década de 1980 com o trabalho pioneiro da professora Maria da
Conceição Tavares, intitulado “A retomada da hegemonia norte-
americana”, publicado na Revista de Economia Política (REP) em
1985.
O V ENEPI representa uma etapa crucial na retomada dos
encontros presenciais após os desafios impostos pela pandemia de
COVID-19. O evento deu sequência às edições anteriores, sendo a
primeira realizada em 2016 com o tema “As dinâmicas do poder e a
riqueza no mundo contemporâneo”; a segunda em 2017, que contou
com a presença ilustre do cientista político Eric Helleiner para
abordar o tema “Estruturas e conjunturas: crises e desafios à periferia
no sistema internacional”; a terceira edição em 2019, evento que
celebrou os 20 anos da publicação de “Estados e moedas no
desenvolvimento das nações”, um marco na EPI brasileira; e a quarta
edição em 2021, momento em que, mesmo diante das adversidades
impostas pela COVID-19, o ENEPI manteve-se resiliente discutindo o
tópico “Pandemia e a Disputa Geopolítica Global” em formato
virtual.
O retorno do ENEPI presencial não apenas celebra a resiliência
da comunidade acadêmica, mas também fortalece as redes de
colaboração entre pesquisadores, estudantes e profissionais de
diversas regiões do Brasil. O evento híbrido de 2023 teve como tema
central as “Disputas Geopolíticas Globais e a Inserção Brasileira”. A
programação desta edição destacou-se por seus temas atuais e
relevantes para compreensão das relações de poder no sistema
internacional contemporâneo.
Uma semana antes do início do evento, foram ofertados quatro
minicursos na modalidade virtual: 1) Estratégia Energética dos países
2
do BRICS: Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul; 2)
Institucionalismo e crises: reflexões críticas sobre o capitalismo
contemporâneo; 3) Inteligência Estratégica e Política Externa: uma
abordagem necessária; e 4) Diplomacias indígenas: pressupostos
teórico-metodológicos. Contamos com professores(as) da UNILA,
UERJ, UFRJ, UNIFAP e com mais de 80 alunos(as) ouvintes.
Já no primeiro dia do evento presencial, discutiu-se os temas
“Dinâmicas tecnológicas, geopolítica e inserção brasileira” e “O
sistema monetário internacional: uma nova (des)ordem em
nascimento?”, além de contarmos com a Mesa de Abertura de
homenagem aos Professores Eméritos José Luís Fiori e Carlos Aguiar
de Medeiros, figuras proeminentes que contribuíram
significativamente para a construção do campo da EPI no Brasil. No
segundo dia tivemos as mesas “A Vingança da Geopolítica” e “China
e América Latina no Quadro do Bicentenário da Doutrina Monroe”.
No último dia do evento, discutiu-se “O Campo Disciplinar da
Economia Política Internacional: diálogos e interditos”, além de
promovermos o lançamento de dois livros escritos por professores do
PEPI-UFRJ: “A reconfiguração do poder global em tempos de crise”,
da Professora Cristina Soreanu Pecequilo, e “História e diplomacia
monetária”, do Professor Maurício Metri, obras que contribuirão para
enriquecer o conhecimento e estimular novas pesquisas na área.
Ao longo dos três dias de evento, recebemos palestrantes de
instituições como MCTI, EGN, UFRJ, UFG, UFRRJ, UNICAMP,
UNIFESP, ECEME, UERJ, UFABC, UFU, PUC-RIO e UFPB. Foram
mais de 100 ouvintes circulando presencialmente e milhares de
visualizações na modalidade virtual do evento, que foi transmitido
no canal do Instituto de Economia da UFRJ no Youtube. As palestras
principais continuam acessíveis na íntegra no referido canal.
Além das mesas de debates principais, o V ENEPI também se
destacou por criar um espaço valioso para a apresentação de
3
trabalhos orais de alunos de graduação, pós-graduação e
pesquisadores em diversas sessões temáticas ao longo dos três dias
do evento, na modalidade presencial e virtual. Esse formato inclusivo
permitiu que participantes de diferentes níveis acadêmicos,
instituições e regiões do país compartilhassem suas pesquisas,
promovendo um rico intercâmbio de ideias. Dos trabalhos inscritos,
57 foram selecionados para apresentação oral através de avaliação a
cega por pares pela Comissão Científica. Deste montante, recebemos
autorização de 38 autores para publicação nos anais. Apresentaram
seus trabalhos professores e estudantes de instituições como ECEME,
UFMG, UERJ, FACAMP, UNICAMP, UNILA, UFRRJ, EGN, UFRGS,
UFPEL, ESPM, UFABC, UNAMA, UFSM, PUC-Equador, PUC-MG,
PUC-Rio, UFT, UFU, UNESP/UNICAMP/PUC-SP, USP, UFPB, UFF,
UFBA, UEPB, UNIPAMPA, UNB, UNIFAP, Faculdade La Salle
Manaus e UFRJ. A qualidade e a relevância das discussões resultaram
na publicação destes trabalhos nos Anais do evento, consolidando a
contribuição do ENEPI para o avanço do conhecimento na área de
EPI no Brasil.
Encerramos este prefácio agradecendo a todos os alunos,
professores, debatedores, palestrantes, técnicos envolvidos na
organização do evento e aos participantes que, com suas
contribuições, enriquecem cada vez mais o campo da Economia
Política Internacional no Brasil. Desejamos a todas e todos uma
excelente leitura dos Anais do V ENEPI!
Francisco Luiz Marzinotto Junior
Bruno Do Val de Oliveira
Representantes discentes da Comissão Organizadora do V ENEPI
4
*****
Seção 1
Artigos dos Grupos de Trabalhos
******
A assimetria das relações entre China e Argentina: relação sul-sul
ou norte-sul?
Ana Clara de Moraes Elias1
Manoela Dias Clemente2
Marcelo Pereira Fernandes3
Resumo: Em meio ao avanço da sua economia, a China vem
ocupando um espaço importante na economia global. Assim, o país
tem sido utilizado como ponte para inserção internacional de outros
países periféricos, como a Argentina, visando promover o crescimento
de sua economia e evitar seu isolamento. Para a China manter seu
ritmo de crescimento, faz-se necessário obter produtos primários.
Com isso, entra-se em debate a natureza dessa relação, pois a China é
considerada um país de eixo-Sul, pela OMC, porém mostra relações
comerciais de características Norte-Sul com a Argentina e outros
países da América Latina. Em suma, este trabalho visa debater a
natureza das relações comerciais entre China e a Argentina,
1
Graduanda em ciências econômicas pela Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro | [email protected]
2
Graduanda em ciências econômicas pela Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro | [email protected]
3Professor associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro |
[email protected]
6
analisando seus aspectos principais do comércio ao longo do século
XX e XXI.
Palavras-chave: China; América Latina; Argentina; Comércio
Internacional
Abstract: China has been making significant strides in its economy
and holding a significant position in the global economy. In order to
encourage economic progress and prevent isolation, the nation has so
served as a bridge for the international integration of other periphery
nations, including Argentina. China has to import primary products
in order to sustain its growth rate. This raises questions about the
nature of the connection because, although China is regarded by the
WTO as a South-axis nation, it has North-South trade ties with
Argentina and other Latin American nations. In summary, this study
aims to discuss the nature of the commercial relations between China
and Argentina, analysing its main aspects of trade over the course of
the 19th and 20th centuries.
Keywords: China; Latin America; Argentina; International Commerce
Introdução
Em meio ao notável crescimento da economia chinesa a partir
da vitória da revolução e especialmente com as reformas econômicas
do fim dos anos 1970, o país vem ocupando grande espaço na
economia internacional. Dessa maneira, a China possui diversos
planos de expansão econômica e aumento de sua zona de influência,
a exemplo da Iniciativa do Cinturão e Rota, também conhecido como
a Nova Rota da Seda. Além disso, é notável a tentativa de inserção
chinesa na América Latina, visto que é interessante para o gigante
asiático manter influência em regiões estratégicas e recorrer a uma
7
diplomacia robusta, além de manter suas obras de infraestrutura em
países periféricos.
A América Latina sofre influências em seu processo de
integração regional, em especial, pela China, dado o plano de
expansão chinês. A China se tornou um importante parceiro
comercial da América Latina, além de fornecer empréstimos e
financiamento para a região. Com o início dos anos 2000, a Argentina
inicia um notável processo de aproximação com a China, por meio da
estratégia chinesa going global, houve um fluxo significativo de
investimento externo direto (IED) que viabilizou projetos de
infraestrutura e desenvolvimento na região.
A China tornou-se um dos maiores financiadores de projetos de
infraestrutura na América Latina, com principal foco nos setores de
energia, dado que é um setor estratégico, e mineração. O IIRSA
(Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-americana),
criado no ano 2000, representa a preocupação com o déficit na
infraestrutura da região. Desse modo, o objetivo do IIRSA
concentrava-se na criação de obras de infraestrutura que interligasse
áreas comerciais da América do Sul e assim possibilitar a dinâmica de
integração regional, visto que diminuiria os custos de transporte
(Honório, 2017).
Outro ponto relevante está na questão cambial. O processo de
internacionalização do renminbi (RMB) através de diversos acordos
de swap cambial ao redor do mundo demonstra a tentativa chinesa de
enfraquecer a liderança estadunidense no sistema monetário
intenacional. Por consequência, a China tem sido utilizada como
ponte para inserção internacional de outros países em
desenvolvimento, como a Argentina. Nesse sentido, a integração
econômica é muito importante para a Argentina inserir-se
mundialmente, ao promover não apenas o crescimento de sua
economia, como também evitar seu isolamento (Santos et al., 2021).
8
No Modelo Centro-Periferia, observa-se que a China pode ser
considerada um país Centro, dado também sua estrutura produtiva
focada na exportação de bens de alto valor agregado. Para o país
asiático continuar a seu nível de crescimento e modernização, faz-se
necessário obter produtos primários de países em desenvolvimento.
A América Latina ocupa uma posição importante no mercado de
commodities e tornou-se uma fornecedora dos mesmos para a China
e, assim, o país virou o principal parceiro comercial de diversas
nações do continente, dentre elas, a Argentina.
Por sua vez, a China possui uma política de não interferência
nos assuntos internos de cada país e ascensão pacífica,
comportamentos que diferem de países imperialistas (Fernandes;
Wegner, 2018). Ademais, o gigante asiático celebra,
cooperativamente, diferentes iniciativas e cooperação com
características de integração regional, como o Mercosul, NAFTA,
UNASUL e ALBA (Santos et al., 2021).
O conceito de relação Sul-Sul está ligado a países em
desenvolvimento, considerados países do Sul global, que podem
estar subdivididos em uma coalizão internacional e cooperação
internacional. A coalizão internacional é caracterizada pela união de
grupos compostos países em desenvolvimento, visando harmonizar
suas posições e colaborar em acordos multilaterais. Bem como, a
cooperação internacional pode ser realizada em diversos âmbitos,
como o financeiro, tecnológico e científico, dessa maneira, há a
transferência de recursos para colaborar no desenvolvimento desses
países (NETO, 2014). Assim, esses países trabalham para reduzir sua
dependência, alcançando também um maior nível de participação em
atividades econômicas internacionais.
A relação Norte-Sul é definida por uma nação em
desenvolvimento com uma já desenvolvida. Similar ao conceito
Centro-Periferia, a relação desses países é pautada por uma diferença
9
no valor agregado das suas atividades econômicas, além de uma
diferença em sua posição internacional. Nesse caso, também há uma
relação de dependência tecnológica dos países em desenvolvimento.
A interferência de países Norte em assuntos internos dos países em
desenvolvimento é uma das características ligadas ao imperialismo e
resultado de uma das tendências da acumulação de capital.
Com isso, ainda em caráter exploratório, entra-se em debate a
real natureza dessa relação comercial, uma vez que a China é
considerada um país em desenvolvimento, pela Organização
Mundial do Comércio (OMC), porém evidencia relações comerciais
de características Centro-Periferia com a Argentina e os demais países
da América Latina. Em suma, faz-se necessário trazer o debate sobre
a natureza das relações comerciais entre China e a Argentina à tona,
analisando os aspectos principais do comércio entre esses dois países
ao longo do século XX e XXI.
O conceito centro-periferia no contexto das cadeias globais de valor
Uma das faces marcantes do desenvolvimentismo clássico, está
ligada intimamente com os autores cepalinos, como Prebisch e
Furtado. Nesse momento, a grande questão era superar o
subdesenvolvimento que possui origem institucional e estrutural
(FURTADO, 1976). Além disso, a CEPAL contribuiu fortemente para
entender a dependência-externa das nações latino-americanas. O
método histórico-estrutural ressalta a importância das estruturas
econômicas, históricas e sociais da América Latina, a fim de
proporcionar políticas econômicas adequadas a estes, de modo que
leve ao desenvolvimento econômico.
A crítica de Prebisch à teoria das vantagens comparativas,
também conhecida como teoria da “deterioração dos termos de
intercâmbio”, tornou-se um ponto importante para o pensamento
10
cepalino. O economista argentino entende que, países em
desenvolvimento que se especializam na produção de matérias-
primas e alimentos, teriam uma tendência à deterioração dos termos
de intercâmbio (PREBISCH, 1986). Essa deterioração dos termos de
intercâmbio significa que ao manter estável o volume de exportação,
haveria uma diminuição da capacidade de importar ao longo do
tempo. Há várias hipóteses para isso ocorrer, uma delas diz respeito
à distribuição de renda e a distribuição dos resultados do progresso
técnico de diferentes países, responsável pela amplitude dos ciclos
econômicos na periferia. Enquanto economias periféricas tem sua
exportação pautada majoritariamente em produtos primários, é
importante frisar que esses bens possuem uma baixa elasticidade-
renda, ou seja, a quantidade demandada desses produtos não altera
mesmo que haja oscilações de preço. Logo, quando há uma alta nos
preços das commodities, a receita das exportações desses países
também aumenta consideravelmente. Isso pode levar o país a um
crescimento econômico, todavia, o torna vulnerável às flutuações nos
preços das commodities. Em momentos de forte expansão da
economia mundial, haverá uma alta demanda por alimentos e entre
outras commodities, e consequentemente uma alta nos preços a curto
prazo, porém em tempos de crise mundial, esses países periféricos
tendem a ficar mais abalados (PREBISCH, 1986).
Todavia, os padrões de comércio sofreram mudanças a partir
da Segunda Guerra Mundial, principalmente durante a década de
1980. Desse modo, surge o conceito das Cadeias Globais de Valor
(CGVs), que discute a fragmentação das cadeias produtivas das
empresas. O fato é, embora a maior parte das empresas de alta
tecnologia tem origem nos países centrais, elas preferem concentrar
suas fábricas em países periféricos por questões de custos de
transação em geral, como salário dos trabalhadores, se as leis daquele
11
território facilitam a produção, tributos, entre outros (CARDOSO;
REIS, 2018).
A exclusividade no comércio de produtos primários ou de
produtos de alto valor agregado não é mais suficiente para explicar a
atual divisão centro-periferia, uma vez que os países centrais estão
presentes nas duas modalidades. Autores como Rodrik (2014),
Cattaneo et al (2010) e Gereffi (2018) argumentam que a
industrialização nacional se mantém sendo um fator importante,
porém, para uma melhor análise da estrutura Norte-Sul, é crucial a
compreensão do papel dos atores dentro das CGVs. Desta forma,
Cardoso e Reis (2018) questionam quais tipos de industrialização são
viáveis aos países do eixo Sul, e concluem que se trata da indústria de
transformação e de alta produtividade. Além disso, as relações
intraindústrias também ganham importância nos países em
desenvolvimento dentro do panorama das CGVs.
Sobre as características das economias em desenvolvimento e as
desenvolvidas apresentadas nas novas concepções da estrutura
Norte-Sul, a pesquisa de Cardoso e Reis (2018) apontam que os traços
marcantes dos países em desenvolvimento nesse contexto seria a
produção de bens menos sofisticados dentro da CGV — se trata de
bens de menor complexidade e maior grau de ubiquidade — ,
enquanto os países mais desenvolvidos participam das CGVs
fornecendo bens de maior sofisticação — de maior complexidade e
menor grau de ubiquidade.
As CGVs tornam-se atrativas para países em desenvolvimento
como uma via para inserção no comércio internacional. Contudo, o
papel dos países periféricos está limitado a agregar pouco valor em
determinada etapa das mercadorias, estando concentrada
majoritariamente na captação das matérias-primas, produção de
têxteis, entre outros. As etapas de desenvolvimento de tecnologias
costumam trazer mais valor ao produto. O posicionamento das
12
nações no comércio internacional frente às CGVs estão intrínsecos ao
seu perfil produtivo e comercial (ZHANG; SCHIMANSKI, 2014)
Tabela 1
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em World Integrated Trade Solution,
2023.
A América Latina, por sua vez, por manter sua pauta
exportadora focada na produção e exportação de matérias-primas,
não ocupa um lugar onde há muito valor para agregar nas CGVs. A
inserção América Latina nas CGVs não é favorável ao
desenvolvimento econômico. Produtos como o lítio, por exemplo, são
13
extraídos do continente para fabricação de baterias, porém a
produção das baterias e outras tecnologias no continente não é tão
forte quanto sua extração.
Para os países periféricos alcançarem o desenvolvimento no
novo cenário da estrutura Norte-Sul, se adiciona mais um trajeto
consoante ao processo de industrialização debatido nesta seção: a
busca por benefícios dentro das CGVs (CARDOSO, REIS, 2018;
RODRIK, 2014; CATTANEO et al, 2010; GEREFFI, 2018), como a
transferência de investimentos e de conhecimento e tecnologia
(CATTANEO et al, 2010). Desta forma, é possível obter ganhos de
produtividade derivados do aumento da escala de atuação e da
redução dos custos provenientes das relações intraindústrias
(KRUGMAN et al, 2001). No entanto, para desfrutar dos benefícios
das novas relações da estrutura econômica internacional, é crucial
que os países em desenvolvimento possuam gerenciamento eficiente
sobre seus posicionamentos nas CGVs e na gestão dos benefícios
adquiridos (GEREFFI, 2018).
Relação dos IED chineses na Argentina: o foco na infraestrutura
A Argentina passou a desenvolver uma relação significativa
com a China a partir dos anos 2000. Com a estratégia chinesa going
global, foram fortalecidos os laços entre a China e a América Latina, e
por meio do IED foram viabilizados projetos de infraestrutura e
desenvolvimento da região. Além disso, o going global focou na
internacionalização das empresas chinesas, expandindo seu mercado
consumidor.
Ademais, através desse plano a China busca investir em setores
estratégicos em diversos países, de modo que ela garanta não apenas
matéria-prima de alguns países, como manter um poder de
influência. Visto isso, Chen e Ludeña (2014) ressaltam haver três
14
caminhos para os IED, sendo eles, i) a participação em contratos
vinculados à participação de governos, ii) adquirindo ativos e, iii)
participando de licitações. Aqui, podemos fazer uma análise dos
locais e setores onde a China mais realizou IED dos anos:
Gráfico 1
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em The China Global Investment
Tracker, American Enterprise Institute, 2023.
Como podemos constatar no gráfico 1, a América Latina está em
sexto lugar, empatando com os Estados Unidos, em proporção de
destinos do IED chinês. Além disso, é totalmente compreensível que
o destino primordial seja em áreas próximas à China, pois não apenas
é uma região mais estratégica, como se torna fundamental para o país
manter boas relações com seus vizinhos e um poder de influência.
Gráfico 2
15
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em The China Global Investment
Tracker, American Enterprise Institute, 2023.
No gráfico 2, podemos perceber que o setor de energia sobressai
em relação aos outros, e em segundo e terceiro lugar estão metais e
transportes, respectivamente. O setor de energia é extremamente
estratégico e vital para o desenvolvimento de um país, sendo ele
melhor expresso pelos petróleo e carvão. Além disso, para o setor
energético são necessários muitos investimentos em setores
intrínsecos a ele para um bom aproveitamento, como os de metais e
de transportes.
Na busca por desenvolvimento, a América Latina encontrou na
China um enorme parceiro. De fato, não apenas o país asiático possui
uma política de não interferência nos assuntos internos, e
consequentemente não possui uma postura imperialista, como
também proporcionam uma relação de maior igualdade comparado
aos Estados Unidos.
O IED chinês na Argentina tem ligação direta com Iniciativa do
Cinturão e Rota (BRI). Por meio disso, a China encontrou uma forma
16
de participar e financiar diversos projetos de infraestrutura no país
latino, possibilitando à China não apenas uma entrada em novos
mercados, como possibilita maior participação de setores estratégicos
nessa região.
Tendo em vista que a inclusão da Argentina no BRI foi muito
recente, em fevereiro de 2022, podemos perceber que houve um salto
significativo no IED na Argentina. Também devemos considerar que
anteriormente houve a pandemia, e por isso os investimentos
diminuíram no ano de 2020. O tipo de política externa de cada
governo argentino também influência nessas questões, cabendo uma
análise mais profunda.
Gráfico 3
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em The China Global Investment
Tracker, American Enterprise Institute, 2023
Gráfico 4
17
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em The China Global Investment
Tracker, American Enterprise Institute, 2023
A partir do gráfico 4, podemos concluir que o setor da
Argentina que recebe maior atenção pelos chineses é o de energia. O
setor de energia abre portas para influência no desenvolvimento
econômico daquela região, além de proporcionar uma posição
estratégica, dado que boa parte dos setores de produção estão ligados
ao de energia.
Comércio internacional entre China e Argentina
À medida que a China se projetou no comércio internacional
como segunda maior potência econômica mundial, houve um
crescente número de parcerias comerciais importantíssimas com a
China, principalmente com a América Latina. Segundo dados do The
Observatory of Economic Complexity (OEC), a Argentina possui boa
parte de suas exportações em produtos primários, sendo os principais
produtos soja e milho. Assim, o Brasil ocupa o primeiro lugar dos
18
demandantes de produtos argentinos, seguido da China, que ocupa
o segundo lugar.
A partir dos anos 1970, houve um fortalecimento da
reprimarização da economia da Argentina e consequentemente um
abandono de políticas voltadas à industrialização. Em contraste, a
China percorreu caminho distinto, deixando a Argentina em posição
de desvantagem por não conseguir se inserir favoravelmente nas
CGVs, principalmente devido as políticas internas adotadas pelos
governos argentinos desde o começo dos anos 1990. Entretanto, as
obras de infraestrutura realizadas por meio do IED pela China
contribuem para a Argentina romper com o subdesenvolvimento e
avançar seu nível de industrialização.
Gráfico 5
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em World Integraded Trade
Solution, 2023
19
Como demonstra o gráfico 5, a China compra majoritariamente
produtos agrícolas advindos da Argentina. Esses produtos são
considerados bens de baixo valor agregado. Não há complexidade na
produção e por isso, não há um bom nível de industrialização que
possibilite a Argentina a venda de produtos de alto valor agregado.
Por conta dos acordos de swap cambial, a Argentina paga suas
importações com a China em yuan, substituindo o uso do dólar.
Gráfico 6
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados em World Integraded Trade
Solution, 2023
Comparando os gráficos 5 e 6, podemos ver uma discrepância
na pauta exportadora de ambos. Em total diferença com a Argentina,
a China posiciona-se no comércio internacional como um país
manufatureiro, de maneira que há um deslocamento das vendas de
commodities advindos de países subdesenvolvidos, devido à
ascensão chinesa, a Europa e Estados Unidos não são mais as
primeiras opções de parceria dos países latinos. Através da política
20
externa da China, que resultaram em profundas mudanças em seu
padrão de especialização, foi fundamental para torná-la um
importante fornecedora de bens de capital, além de ocupar 10% das
exportações de insumos industriais do mundo (BECKERMAN;
DULCICH; MONCAUT, 2013).
Considerações Finais
Este artigo se debruçou sobre as ambiguidades presentes nas
relações econômicas entre China e Argentina, emergindo um
panorama complexo quanto à natureza dessa interação. O debate
acerca da classificação da China como um país integrante do eixo
Norte, ou, por outro lado, como um participante-chave no contexto
Sul-Sul, revela-se como um ponto central de divergência nas
discussões econômicas contemporâneas. Os argumentos
apresentados ao longo deste trabalho evidenciam que as relações
comerciais entre China e Argentina não podem ser facilmente
enquadradas em uma dicotomia simplista.
Ainda, o dinamismo da China nas relações comerciais
manifesta-se na sua capacidade única de articular sua posição e
modalidade de cooperação tanto no contexto do eixo Norte-Sul
quanto no contexto Sul-Sul. A flexibilidade demonstrada pela China
ao longo do tempo é demonstrada desde a política de "China de
portas abertas" na década de 1970, onde foram estabelecidas relações
com a Argentina e outras nações latino-americanas sob a lente Norte-
Sul. No entanto, é observado com o passar dos anos, a partir da
implementação da política "Going Global", pela China mudanças
significativas que sugerem uma relação Sul-Sul.
Diante da observação de que a China tem adotado
mecanismos econômicos sofisticados, alinhados às experiências de
cooperação Sul-Sul, destaca-se a importância estratégica para a
21
Argentina em tirar o melhor proveito dessa relação. Torna-se crucial
que o país sul-americano saiba explorar plenamente os benefícios
proporcionados por essa parceria, gerenciando habilmente os ganhos
para fortalecer seu posicionamento nas CGVs.
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2023.
25
A disputa historiográfica pela redefinição de uma memória sobre a
Guerra Fria: uma crítica ao pós-revisionismo
Flávio Alves Combat1
Resumo: O objetivo do artigo é analisar criticamente as contribuições
centrais da corrente pós-revisionista ao debate historiográfico sobre a
Guerra Fria, centrando a reflexão nas contribuições do historiador
John Lewis Gaddis. A análise propõe uma comparação entre as teses
pós-revisionistas e as teses ortodoxas, de modo a sustentar a hipótese
de que o pós-revisionismo se converteu numa corrente historiográfica
antirrevisionista. Para tal, o texto está organizado em quatro seções.
Na primeira, é construída uma síntese sobre a origem da
historiografia ortodoxa, tomando como referência as teses seminais
de George F. Kennan. Na segunda seção, propõe-se uma análise das
críticas seminais de Gaddis às teses que ele atribuiu ao revisionismo,
destacando as suas limitações. Sustenta-se que, já na origem da
interpretação de Gaddis sobre a Guerra Fria, há uma visão distorcida
sobre o revisionismo, que converteu o pós-revisionismo em expressão
fiel de uma abordagem antirrevisionista. Na terceira seção, é
realizada uma comparação entre o pós-revisionismo e a historiografia
revisionista, tomando como referência as reflexões de Gaddis. A
1
Professor Adjunto da Universidade Federal Do Rio De Janeiro, Instituto De
Relações Internacionais e Defesa | [email protected]
26
análise introduz a própria identificação do pós-revisionismo como
uma síntese do debate historiográfico pregresso, do qual se dizia um
herdeiro rebelde e evoluído. Defende-se que as rupturas que Gaddis
identificou, em sua obra, entre as duas correntes são, na realidade,
expressão da própria cisão entre o revisionismo e a ortodoxia (e,
portanto, da cisão também com o pós-revisionismo, na medida em
que ele retomou as teses ortodoxas). Na última seção, sustenta-se que
a agenda de pesquisa defendida por Gaddis representou a reassunção
das teses ortodoxas, convertendo-se, na disputa historiográfica pela
redefinição de uma memória sobre a Guerra Fria, numa corrente
antirrevisionista.
Palavras-chave: Guerra Fria. Historiografia. Ortodoxia.
Revisionismo. Pós-revisionismo.
Introdução
O debate historiográfico entre as correntes ortodoxa,
revisionista e pós-revisionista ensejou uma vasta literatura sobre a
Guerra Fria e norteou uma intensa disputa pela redefinição de uma
memória sobre o período. Todavia, pouco esforço foi dedicado à
comparação e à análise crítica da historiografia pós-revisionista sobre
a Guerra Fria. Partindo da identificação dessa lacuna, o artigo se
propõe a analisar criticamente as teses centrais do pós-revisionismo,
tomando por base o pensamento do historiador estadunidense John
Lewis Gaddis, considerado o “pai” desta corrente historiográfica
(MUNHOZ, 2004).
Em The United States and the Origins of the Cold War, 1941-1947,
publicado em 1972 e considerado o precursor da historiografia pós-
revisionista, Gaddis defendeu que os Estados Unidos ou a União
Soviética não poderiam ser responsabilizados individualmente pelo
início da Guerra Fria. Na obra, Gaddis desenvolveu uma crítica ao
27
trabalho dos autores revisionistas (em especial, ao pensamento de
William Appleman Williams), que teriam falhado na tentativa de
entender o papel da política soviética, após 1945, para o início da
Guerra Fria.
Gaddis contestou a tese revisionista de que o expansionismo
norte-americano, desde o século XIX, seria o principal responsável
pelas tensões que contribuíram para a Guerra Fria e criticou a
hipótese de que a política soviética, após a Segunda Guerra Mundial,
era primordialmente defensiva, argumentando que Stalin possuía
condições e desejava expandir a influência da União Soviética pela
Europa Ocidental (GADDIS, 1978).
Nesse sentido, Gaddis reconheceu, em seus escritos iniciais, que
após a Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos se tornaram uma
“nação imperial” (GADDIS, 1972). Todavia, essa transformação não
teria sido motivada por imposições do sistema capitalista ou pelo
receio de uma nova depressão. Os Estados Unidos teriam se tornado
os “protetores do mundo ocidental” contra o expansionismo
soviético, assumindo, por decorrência, uma postura imperialista, a
pedido das nações que se sentiam ameaçadas pela União Soviética
após a Segunda Guerra2. Assim, mesmo que após 1945 a União
Soviética não desejasse e não pudesse expandir o seu poder por todo
o mundo (uma ideia originalmente defendida por Gaddis, tendo sido
posteriormente abandonada), o autoritarismo e a atração ideológica
exercidos por Moscou ameaçavam a Europa e a Ásia, justificando a
ação dos Estados Unidos.
2 Essa ideia corresponde exatamente à concepção de “empire by invitation”
desenvolvida por LUNDESTAD, G. (1986 e 1975). Lundestad empregou o mesmo
termo que Gaddis para designar a ideia de um “império consensual” e definiu a
natureza da liderança norte-americana no pós-guerra da mesma forma que o
“pai” do pós-revisionismo.
28
As mudanças de posicionamento de Gaddis sobre as suas
próprias ideias é uma marca de sua obra. Em seus escritos iniciais3, o
autor defendia que o sistema bipolar estabelecido após a Segunda
Guerra conduziu o mundo, quase que inevitavelmente, à Guerra Fria,
de modo que a tentativa dos ortodoxos e dos revisionistas de
identificar um culpado pelo conflito era improfícua. Assim, a origem
da Guerra Fria era explicada por Gaddis como o resultado da
combinação entre a erosão de poder no velho continente (que
impedia um equilíbrio de poder mais favorável aos europeus) e os
interesses conflitantes de norte-americanos e soviéticos nos assuntos
que se referiam à Europa após 1945 (GADDIS, 1972, p. 45).
Gaddis abandonou, em obras posteriores, sua explicação
original sobre a origem da Guerra Fria4. Segundo o autor, soviéticos
e norte-americanos possuíam diferentes objetivos ao final da Segunda
Guerra Mundial. Os soviéticos desejavam expandir a sua zona de
influência sobre o Leste Europeu, numa primeira fase, e sobre a
Europa Ocidental, numa etapa posterior. Os norte-americanos, em
contrapartida, estariam interessados no contexto geral da política
mundial, sobretudo na defesa da segurança e da paz internacionais.
Os interesses norte-americanos e soviéticos tornaram-se
incompatíveis conforme o desejo soviético de expandir a sua zona de
influência foi traduzido num expansionismo em potencial da União
Soviética sobre todo continente europeu, o que, à visão de Gaddis, era
uma etapa intermediária para a difusão mundial do poder soviético
(GADDIS, 1997). Face às condições que impediam que a Europa se
defendesse contra o expansionismo soviético, antigas alianças
3 Ver: GADDIS, J. Lewis. The United States and the Origins of the Cold War,
1941–1947 (1972); Russia, the Soviet Union, and the United States: An Interpretive
History (1978).
4 Ver: We Now Know: Rethinking Cold War History (1997) e The United States and the
End of the Cold War: Reconsideration, Implications, Provocations (1992).
29
transatlânticas foram, segundo Gaddis, reestruturadas e, a pedido
das nações europeias, os Estados Unidos assumiram a função de
guardiões do continente europeu. Gaddis concluiu que a União
Soviética foi a responsável pelo início e pela reprodução da Guerra
Fria, ao passo que aos Estados Unidos coube o fardo de defender as
nações capitalistas da Europa Ocidental da expansão do comunismo
(GADDIS, 1997).
Face ao objetivo de construir uma síntese da historiografia sobre
a Guerra Fria, Gaddis se propôs, em suas primeiras obras, a adotar
uma posição de neutralidade e imparcialidade em relação ao seu
objeto de estudo, passando então à análise das teses ortodoxas e
revisionistas. Entretanto, a suposta imparcialidade5 foi, como se
pretende demonstrar, abandonada a favor de uma perspectiva pró-
ocidental e de interpretações muito semelhantes às teses da ortodoxia
norte-americana6 (MUNHOZ, 2020). Pretende-se ainda demonstrar
que Gaddis não apenas se afastou de seu projeto de superação do
revisionismo, mas desenvolveu também uma abordagem claramente
antirrevisionista.
5 É importante frisar aqui a própria impossibilidade ontológica da
imparcialidade, nos termos pretendidos por Gaddis. As opiniões, as visões de
mundo, as crenças e os valores de um autor estão indissociavelmente
relacionadas as suas ideias. Portanto, a pretendida imparcialidade almejada por
Gaddis é, de fato, uma falácia.
6 Uma detalhada análise dessa questão também pode ser encontrada em
CUMINGS, Bruce. Revising post-revisionism or the poverty of theory in diplomatic
history. In: HOGAN, Michael. America in the World, 1995, op. Cit., p. 20-62.
Segundo Cumings, Gaddis nunca foi pós-revisionista, mas antirrevisionista. Veja
também: LEBOW, Richard N. We Still Know (resenha de We Now Know). In:
Diplomatic History, v. 22, n. 4, fall 1998, p. 627-632. Para literatura em língua
portuguesa, ver: MUNHOZ, Sidnei J. Guerra Fria: história e historiografia. São
Paulo: Appris, 2020.; e MUNHOZ, Sidnei J. Guerra Fria: um debate interpretativo.
In: TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O século sombrio: uma história geral
do século XX. Rio de Janeiro: Campus, 2004.
30
Nas próximas seções, analisarei as principais teses pós-
revisionistas propostas por Gaddis, estabelecendo uma comparação
com as teses da historiografia ortodoxa. Para tal, a primeira seção
propõe uma síntese da historiografia ortodoxa originalmente
desenvolvida por George F. Kennan, de modo a delimitar a base das
comparações que serão posteriormente estabelecidas. Na segunda
seção, analiso as críticas seminais de Gaddis aos quatro pilares que
ele identificou como a base do pensamento revisionista. Na
sequência, apresentarei a interpretação de Gaddis sobre as
continuidades e rupturas entre o revisionismo e o pós-revisionismo,
estabelecendo comparações entre as duas correntes historiográficas.
Na última seção, analisarei a agenda de pesquisa que Gaddis propõe
aos autores pós-revisionistas, ressaltando em quais aspectos as
novidades propostas pelo autor são, na realidade, a reassunção das
teses ortodoxas.
A origem da historiografia ortodoxa sobre a Guerra Fria
A ortodoxia norte-americana foi a primeira corrente
historiográfica a analisar e interpretar as relações entre Estados
Unidos e União Soviética, após a Segunda Guerra Mundial, na
tentativa de oferecer respostas sobre a origem e o desdobramento do
conflito, que foram essenciais para definir a política externa
conduzida por Washington nas décadas seguintes, com base na assim
denominada “Doutrina de Contenção do Comunismo”.
A presente seção é uma síntese da interpretação ortodoxa,
originalmente desenvolvida pelo diplomata George Frost Kennan,
sobre a Guerra Fria. Pretende-se delimitar o peso das ideias de
Kennan no debate historiográfico sobre a Guerra Fria, sobretudo para
a corrente pós-revisionista.
Em 1946, declarações feitas por Stalin de que a União Soviética
planejava uma reestruturação econômica e militar acirraram o clima
31
já comumente tenso no meio político dos Estados Unidos. Diante da
resistência de Moscou em cooperar com a constituição do Fundo
Monetário Internacional e do Banco Mundial, o Departamento do
Tesouro solicitou ao Departamento de Estado explicações sobre as
intenções soviéticas. O responsável por reportar a Washington a
dimensão dos projetos soviéticos foi George Frost Kennan, diplomata
encarregado de representar os Estados Unidos na embaixada norte-
americana em Moscou.
Especialista na política externa entre Estados Unidos e União
Soviética, Kennan preparou um célebre documento em que relatava
detalhadamente os planos soviéticos e expunha os fundamentos da
política de dissuasão permanente dos ideais comunistas que vigorou
durante a Guerra Fria. Transmitido ao Departamento de Estado
através do telégrafo em 22 de fevereiro de 1946, o documento ficou
conhecido como o “Longo Telegrama”.
Diante da complexidade para responder ao questionamento de
Washington sobre as intenções soviéticas, Kennan argumentou que o
projeto soviético, após 1945, era de longa duração. O perigo imediato
para os Estados Unidos e para os países em sua zona de influência
não era, nesse sentido, o Exército Vermelho, mas a atração ideológica
exercida por Moscou. Convencido de que as intenções conciliatórias
do governo Roosevelt em relação aos soviéticos eram, na melhor
hipótese, inocentes, Kennan aconselhou que a política externa norte-
americana direcionada à União Soviética no pós-Segunda Guerra não
deveria ser baseada na tentativa de aproximação, tampouco no
confronto bélico direto (KENNAN, 1946, p. 3).
Embora reconhecesse que, para a União Soviética, não era
possível uma coexistência pacífica com os países capitalistas no longo
prazo, Kennan recomendava enfaticamente uma “abordagem calma
e de longa duração” em relação aos problemas que polarizavam
norte-americanos e soviéticos. Para o diplomata, o temor de que os
soviéticos viessem a dominar a Europa Ocidental e o Japão no
32
imediato pós-Segunda Guerra era infundado, já que não havia
interesse ou mesmo condições materiais objetivas para a União
Soviética empreender uma ofensiva daquela magnitude.
Em seu telegrama ao Departamento de Estado, o diplomata
destacou que, desde antes da Segunda Guerra Mundial, era clara para
Stalin a oposição de interesses entre soviéticos e norte-americanos. O
líder soviético acreditava ainda na incapacidade de reprodução, no
longo prazo, das sociedades capitalistas, que sucumbiriam perante os
seus conflitos internos.
Em julho de 1947, após o detalhamento dos planos soviéticos ao
governo norte-americano, Kennan, sob o codinome de “Mr. X”,
publicou na revista Foreign Affairs um artigo intitulado The Sources of
Soviet Conduct, no qual expunha publicamente os seus argumentos e
ampliava a análise originalmente apresentada no Longo Telegrama.
O artigo, que se tornou referência na corrente ortodoxa e um norte
para a política externa dos Estados Unidos ao longo da Guerra Fria,
detalhava a chamada “Doutrina de Contenção do Comunismo”.
Ao analisar a base das ideias soviéticas, Kennan argumentou
que o principal “dogma” que influenciava o modo de pensar soviético
era o marxismo. Tomando por base um conjunto de premissas sobre
a União Soviética, Kennan apresentou ao Departamento de Estado
algumas diretrizes da política externa soviética no período. Dentre
elas, o diplomata sublinhava o interesse da União Soviética de
explorar todo tipo de rivalidade entre os países capitalistas para
fomentar conflitos dentro do bloco liderado pelos Estados Unidos.
Caso essas rivalidades culminassem em guerras, os soviéticos teriam
aí a oportunidade para incentivar levantes revolucionários mundo
afora.
Nesse sentido, Kennan sustentou que as ideias soviéticas sobre
os países capitalistas eram um meio eficiente de propagar e
consolidar uma permanente sensação de insegurança dentre o povo
soviético, de modo a evitar comparações entre o modo de vida
33
“arcaico” dos soviéticos e o modo de vida de “sociedades mais
competentes, mais poderosas e mais organizadas” (KENNAN, 1946,
p.3).
Kennan concluiu que, considerando-se as necessidades de
Stalin em justificar o seu poder e a “grande ignorância dos soviéticos
em relação ao mundo exterior”, os norte-americanos tinham como
desafio enfrentar “(...) uma força política fanaticamente
comprometida com a crença de que com os Estados Unidos não
poderia existir nenhum modus vivendi permanente” (KENNAN, 1946,
p. 7).
As considerações de Kennan retratavam ainda a magnitude dos
recursos econômicos e militares sob o comando de Stalin, alertando
Washington sobre a possibilidade de uma ampla ofensiva soviética
em áreas essenciais aos interesses norte-americanos. Todavia, a União
Soviética não teria pressa para colocar os seus planos em curso. Os
soviéticos deveriam, portanto, “ser contidos pela aplicação hábil e
vigilante de contraforças numa série de pontos geográficos e políticos
em constante mudança” (KENNAN, 1947, p. 5), com o propósito de
explorar as contradições inerentes ao modelo soviético. Se os norte-
americanos fossem pacientes e capazes de garantir a reprodução da
prosperidade e do sucesso de sua forma de organização social, então
o Marxismo cairia em descrédito e a “contenção” seria bem sucedida,
sem “necessidade de recorrer a qualquer conflito militar” (KENNAN,
1947, p. 5).
As ideias de Kennan tiveram grande impacto nos Estados
Unidos. “Contenção” transformou-se numa “palavra mágica” no
meio político e acadêmico norte-americanos, influenciando uma
longa disputa historiográfica dedicada a explicar a origem e os
desdobramentos da Guerra Fria.
34
A origem do pós-revisionismo: a contestação de J. L. Gaddis às teses
revisionistas
De acordo com Gaddis, a corrente historiográfica pós-
revisionista deveria ser entendida como “um novo consenso que se
baseia tanto na interpretação tradicionalista [ortodoxa] quanto na
interpretação revisionista, para apresentar uma explicação mais
balanceada sobre o começo da Guerra Fria” (GADDIS, 1983, p. 172).
Como observou o historiador:
[…] a nova literatura está promovendo algumas mudanças
fundamentais na nossa compreensão sobre o estágio inicial
da Guerra Fria, de tal forma que agora é geralmente
reconhecido que atingimos um terceiro estágio, além da
ortodoxia e do revisionismo, na historiografia daquele
período. […] o que está acontecendo é a emergência de uma
genuína síntese de pontos de vista anteriormente
antagônicos, baseada numa impressionante quantidade de
novas pesquisas. (WALKER, 1981, p. 207 apud GADDIS,
1983, p. 172, tradução própria)
Logo, na origem da corrente pós-revisionista, Gaddis se propôs
a refutar as teses centrais da historiografia revisionista, introduzindo
a sua própria interpretação sobre a origem e os desdobramentos da
Guerra Fria. De acordo com o autor, quatro teses são primordiais no
pensamento revisionista, diferenciando-o substancialmente da
abordagem ortodoxa:
(i) Gaddis sustentou que, para o revisionismo, a política externa
conduzida por Washington, após a Segunda Guerra Mundial,
recorria à expansão mundial do poder dos Estados Unidos para
assegurar a reprodução do capitalismo norte-americano, que
dependia de mercados e de oportunidades de investimento mundo
afora7.
7 Gaddis se contrapõe, neste ponto, à tese seminal do revisionismo, desenvolvida
por William Appleman Williams em The tragedy of American Diplomacy (1959).
35
(ii) Na interpretação de Gaddis, os revisionistas acreditavam
que a motivação interna para a expansão do “império americano”
implicava a impossibilidade dos Estados Unidos acomodarem os
interesses de segurança da União Soviética, o que teria levado ao fim
da cooperação entre norte-americanos e soviéticos, que perdurou
durante a Segunda Guerra Mundial.
(iii) Na interpretação revisionista, sustentou Gaddis, os Estados
Unidos impuseram o seu império coercitivamente, atando outros
países aos interesses norte-americanos por meio de alianças militares
e dependência econômica, e combatendo a oposição ao seu poder por
meio de intimidação, de operações secretas e de outros métodos
escusos.
(iv) Gaddis concluiu que, na interpretação sustentada pela
corrente revisionista, a expansão do poder dos Estados Unidos
ocorreu contra a vontade do povo norte-americano, que teria sido
manipulado para aceitar a política imperial conduzida por
Washington através da propagação do mito de que o comunismo
ameaçava a sobrevivência dos Estados Unidos.
Cabe, numa perspectiva crítica, destacar dois problemas com a
primeira tese atribuída por Gaddis ao revisionismo. Como observou
MUNHOZ (2020), a interpretação revisionista confere, de fato, uma
ênfase à análise dos objetivos econômicos que norteavam a política
externa conduzida pelos Estados Unidos durante a Guerra Fria.
Todavia, não há, no pensamento revisionista, o reducionismo
economicista sugerido por Gaddis. Ao contrário, os trabalhos
revisionistas partem de uma crítica aos reducionismos empregados
pela ortodoxia na explicação da origem da Guerra Fria, destacando,
alternativamente, o conjunto de motivações políticas, estratégicas,
militares, geopolíticas e, com maior ênfase, econômicas que
balizavam as decisões de Washington. Em segundo lugar, em clara
dissonância com a ortodoxia e com o pós-revisionismo, os autores
36
revisionistas não identificavam no fim da Segunda Guerra Mundial o
começo das tensões entre os Estados Unidos e a União Soviética (e,
antes dela, a Rússia), que ajudam a explicar a origem da Guerra Fria.
Nesse sentido, o historiador revisionista William Appleman Williams
(1959) remontou às tensões geradas pela expansão do capital norte-
americano no século XIX para explicar a origem dos conflitos que se
consolidaram na primeira metade do século XX e que estão na base
da Guerra Fria. Como observou Williams:
[…] a Open Door Policy foi de fato um brilhante golpe
estratégico que levou à extensão gradual do poder
econômico e político norte-americano através do mundo.
Se ela falhou, em última instância, não foi porque era tola
ou fraca, mas porque foi tão bem-sucedida. O império que
foi construído de acordo com a estratégia e as táticas das
Open Door Notes engendrou os antagonismos criados por
todos os impérios, e é essa oposição que colocou tantas
dificuldades [no caminho da] diplomacia norte-americana
na [primeira] metade do século XX. (WILLIAMS, 1959, p.
125, tradução própria)
Na origem do debate pós-revisionista, Gaddis criticou também
uma segunda tese atribuída ao revisionismo: a impossibilidade de
acomodação dos interesses de segurança dos soviéticos, face aos
imperativos de expansão do capital norte-americano. Gaddis
argumentou que a tese revisionista de que, após a 1945, a União
Soviética estava centralmente preocupada com a manutenção de sua
segurança e disposta a cooperar com os Estados Unidos para alcançar
esse objetivo era não apenas falaciosa, mas baseada “na fé, não em
pesquisa” (GADDIS, 1983, p. 175).
O autor afirmou que os revisionistas simplesmente tomavam
como pressuposto a disposição de Stalin de cooperar com os Estados
Unidos, em oposição à intransigência norte-americana diante dos
interesses de expansão econômica que, em tese, motivavam a política
externa de Washington. Gaddis concluiu que uma série de novas
fontes sobre o governo soviético, publicadas após a Guerra Fria,
37
revelou informações que permitiam invalidar a segunda tese
atribuída ao revisionismo. Assim, Gaddis sustentou que “Stalin em
nenhum momento estava disposto a confiar a segurança soviética no
pós-guerra a uma política de cooperação com o Oeste. Ao contrário,
ele estava, desde o princípio, determinado a buscar a segurança por
meios unilaterais (GADDIS, 1983, p. 175, tradução própria).
A crítica de Gaddis à suposta disposição de Stalin em cooperar
com os Estados Unidos vai além, ao considerar que, para o líder
soviético, não estava claro, após 1945, os limites das necessidades de
segurança da União Soviética. O expansionismo, sem limites pré-
definidos, atribuído por Gaddis à política externa soviética do pós-
guerra é uma expressão direta da reassunção de umas das teses
fundamentais do pensamento ortodoxo, que enxerga no
expansionismo descomedido de Moscou um risco à Europa e à
estabilidade da nova ordem em consolidação após a Segunda Guerra
Mundial.
[…] a causa fundamental da Guerra Fria foi a ambição
doentia de Stalin, a sua determinação em buscar segurança
de tal modo que restava pouca ou nenhuma segurança para
os demais atores da arena internacional. Uma causa
secundária foi o fracasso ocidental por não agir
suficientemente cedo para barrar Stalin. (GADDIS, 1983, p.
176, tradução própria)
A terceira tese atribuída por Gaddis aos revisionistas se
refere à imposição coercitiva do “império americano” após a Segunda
Guerra Mundial, por meio de alianças militares e de relações de
dependência econômica. O revisionismo, decerto, analisou o lado
coercitivo do poder norte-americano no pós-guerra, mas de forma
alguma negou a natureza hegemônica da liderança exercida pelos
Estados Unidos na nova ordem consolidada após 1945. Nesse sentido,
se por um lado, os Estados Unidos exerciam ativamente o seu poder
de convencimento ao defender os seus interesses (frequentemente
traduzidos como os interesses da maioria pela preservação da
38
liberdade e da democracia), por outro, não se acanhavam em
empregar meios coercitivos quando o poder de convencimento se
mostrava insuficiente.
Gaddis, de toda forma, advogou que a natureza do poder
exercido pelos Estados Unidos na Guerra Fria era primordialmente
consensual e, em grande medida, o “império americano” era bem
vindo e até mesmo desejado pelos países sob a influência de
Washington. As pesquisas pós-revisionistas dedicadas ao contexto da
política doméstica dos países da Europa Ocidental, do Mediterrâneo
e do Oriente Médio8 teriam comprovado, segundo Gaddis, “que a
esfera de influência norte-americana surgiu muito mais a convite do
que por imposição” (GADDIS, 1983; LUNDESTAD, 1975 e 1986;
KUNIHOLM, 1994). O mesmo “convite” à influência dos Estados
Unidos teria sido realizado pela Grã-Bretanha, num contexto em que
“a maior preocupação não era se os Estados Unidos seriam muito
agressivos, mas se seriam muito passivos” (GADDIS, 1983, p. 177).
Gaddis encerrou a sua extensa crítica ao revisionismo
contestando a tese de que a expansão do poder dos Estados Unidos
ocorreu contra a vontade do povo norte-americano, que teria sido
manipulado, com base no mito do perigo representado pelo
comunismo, para dar suporte à política externa conduzida pela Casa
Branca. Todavia, não há, na literatura dedicada à historiografia sobre
a Guerra Fria, uma única indicação que comprove tal afirmação. Ao
contrário, há um grande esforço na corrente revisionista pra elucidar
as ligações entre a política externa conduzida pelos Estados Unidos
durante a Guerra Fria e os seus determinantes domésticos, dentre os
quais o apoio ou a rejeição da população norte-americana e do
8 Gaddis mencionou duas pesquisas pós-revisionistas que teriam comprovado a
natureza consensual do “império americano”: LUNDESTAD, Geir. America,
Scandinavia and the Cold War (1980); e KUNIHOLM, Bruce. The origins of the
Cold War in the Near East (1994).
39
Congresso às diferentes iniciativas tomadas no contexto da Doutrina
de Contenção do Comunismo, nas diferentes fases da Guerra Fria.
Como destacou Munhoz:
Essa corrente [revisionismo] minimiza as questões
ideológicas, associa o posicionamento dos EUA às suas
políticas domésticas e enfatiza as ações soviéticas no campo
da construção da sua esfera de poder; por fim,
responsabiliza os EUA pelo início da Guerra Fria, pois
entende que a União Soviética, naquele contexto histórico,
buscava a cooperação internacional e não representava
ameaça à Europa ou ao mundo capitalista. Em adição,
defensores desse ponto de vista exploram o fato de a URSS
estar completamente devastada pela guerra e afirmam que,
em consequência, o país não poderia suportar um novo
conflito global prolongado. (MUNHOZ, 2020, p. 16)
Com base nesse conjunto de críticas às teses atribuídas ao
revisionismo, Gaddis se propôs a delimitar as continuidades e as
rupturas entre a interpretação revisionista e a interpretação pós-
revisionista sobre a origem da Guerra Fria.
Continuidades e rupturas entre o revisionismo e o pós-
revisionismo na visão de J. L. Gaddis
As evidentes semelhanças entre a interpretação pós-revisionista
e a interpretação ortodoxa sobre a Guerra Fria não escaparam à
observação de Gaddis, que reconheceu a similaridade entre as duas
correntes. O autor sintetizou os pontos em comum entre as duas
abordagens ao questionar:
O que há de novo, afinal de contas, sobre a visão de que os
oficiais norte-americanos estavam mais preocupados com a
União Soviética do que com o fato de que o capitalismo
estava destinado a conceber a política de contenção, sobre
a afirmação de que o expansionismo soviético era a causa
primordial da Guerra Fria, sobre o argumento de que os
aliados norte-americanos acolhiam de bom grado a
expansão da influência dos Estados Unidos como um
40
contrapeso aos russos, sobre a acusação de que o governo
era responsável pela manipulação da opinião pública?
Todas essas coisas já não haviam sido ditas anos antes? A
resposta é sim, mas elas foram afirmadas mais na base da
convicção política ou da experiência pessoal do que na base
de uma sistemática pesquisa arquivística. O que os pós-
revisionistas fizeram foi confirmar, por meio de
documentos, vários dos argumentos centrais da antiga
posição ortodoxa […]. (GADDIS, 1983, p. 180, tradução
própria)
O primeiro ponto supostamente compartilhado pelas
interpretações revisionista e pós-revisionista seria a tese de que os
Estados Unidos empregaram instrumentos econômicos para alcançar
fins políticos durante a Guerra Fria9. É importante ressaltar que essa
afirmação contradiz um argumento empregado pelo próprio Gaddis,
para quem os revisionistas teriam invertido a lógica em questão ao
afirmar que instrumentos políticos seriam utilizados para alcançar
fins econômicos. Como ressaltado na seção anterior, não há, no
pensamento revisionista, qualquer relação causal rígida entre o
político e o econômico da forma como é apresentada por Gaddis,
ainda que a predileção do revisionismo pela análise dos interesses
econômicos radicados na política externa norte-americana coloque a
possibilidade de críticas por aqueles que não consideram a
interpretação revisionista em sua totalidade (POLLARD, 1985).
O segundo ponto em comum entre o revisionismo e o pós-
revisionismo, identificado por Gaddis, se refere à inexistência de
qualquer projeto ou estratégia ideológica de longo prazo que
subsidiasse a política externa soviética, durante o governo de Stalin.
Gaddis defendeu, alternativamente, que o líder soviético explorava
as oportunidades que emergiam para expandir a influência soviética,
sem qualquer roteiro pré-determinado. Assim, atribuiu à política
9 Esse argumento é o centro da discussão pós-revisionista realizada por Robert
Pollard em seu Economic security and the origins of the Cold War, 1945-1950 (1985).
41
externa soviética da Guerra Fria, e ainda mais claramente durante o
governo de Stalin, um caráter meramente reativo.
Note-se que a afirmação de Gaddis abre a possibilidade de
questionamentos. Primeiramente, os revisionistas, de fato, chamam a
atenção para o caráter preponderantemente, mas não exclusivamente,
reativo da política externa soviética no imediato pós-Segunda Guerra,
ressaltando o diferencial de poder dos Estados Unidos e as condições
sociais e econômicas críticas da União Soviética, resultantes da guerra
contra a Alemanha Nazista. Naquele contexto, era claro que Stalin,
mas também todos os demais líderes do mundo, reagiam às
condições dadas, explorando as oportunidades abertas pelo declínio
da antiga ordem mundial e pelo período de transição. Foi assim,
certamente, com a política externa soviética com os países do Leste
Europeu, mas também com a política externa norte-americana na
Europa Ocidental. Esse caráter reativo, é fundamental frisar, não
significava a inexistência de projetos de longa duração para a nova
ordem em consolidação (como bem representado pela Doutrina de
Contenção do Comunismo, do lado norte-americano). Tampouco a
postura reativa deve ser vista como um sinal de ausência de projetos
de mais longo prazo do lado soviético, como revelam as políticas de
apoio aos movimentos comunistas na Europa, a decisão de Stalin de
excluir o bloco comunista do Plano Marshall ou mesmo a defesa dos
interesses e da influência soviéticas no coração da Europa, a
Alemanha (HOGAN, 1987). Stalin explorava as oportunidades
circunstanciais, como revela, por exemplo, o seu posicionamento
inicial e a posterior mudança de atitude durante o Levante de
Varsóvia, em 1944. Mas também possuía uma visão de longo prazo
sobre os interesses vitais da União Soviética que estavam em jogo na
Guerra Fria (CLAUDÍN, 1970).
O terceiro ponto em comum entre o revisionismo e o pós-
revisionismo, apontado por Gaddis, se refere à postura do governo
42
norte-americano em relação à opinião pública e ao Congresso dos
Estados Unidos (GADDIS, 1982). Ambas as correntes teriam
enfatizado a disposição dos líderes políticos em exagerar os riscos
externos à segurança norte-americana, com o objetivo de assegurar
apoio interno à política de contenção do comunismo. De fato, os
revisionistas verteram esforços para entender as relações entre a
retórica política interna e a política externa norte-americana durante
a Guerra Fria. Contudo, a diferença em relação aos pós-revisionistas
reside na crítica à hipótese de que o expansionismo soviético era uma
ameaça à assim designada “segurança nacional” dos Estados Unidos.
Observe-se que Gaddis mencionava apenas um “exagero” dos riscos
externos, assumindo, portanto, que tais riscos existiam realmente.
O quarto e mais importante aspecto supostamente
compartilhado pelas interpretações revisionista e pós-revisionista é,
segundo Gaddis, o argumento de que existiu um “império
americano”. Assim, a principal linha de continuidade entre o
pensamento revisionista e o pós-revisionista derivaria, precisamente,
do que Gaddis considerava a verdadeira evolução encerrada pela
nova abordagem historiográfica sobre a Guerra Fria, da qual é
representante.
Uma curiosidade da análise desenvolvida pelos revisionistas é,
segundo Gaddis, a ausência de comparações entre o “império
americano” e “impérios” de outras épocas e de outros lugares, o que
permitiria avançar na compreensão sobre o exercício do poder norte-
americano na Guerra Fria. A despeito da desconsideração do esforço
de William Appleman Williams em entender a projeção dos interesses
norte-americanos desde o século XIX e, por consequência, dos
desafios enfrentados nesse processo face ao poder do império
britânico e de outras potências coloniais, Gaddis sustentou que, por
não empreender uma análise comparativa (algo, vale citar, ausente na
literatura pós-revisionista), o revisionismo estaria alijado de qualquer
43
capacidade para explicar as profundas diferenças entre o “império
americano” e os outros impérios. Nesse sentido, por exemplo, o
revisionismo achava, segundo Gaddis, “difícil entender como um
império poderia emergir a partir do que os seus líderes percebiam
como razões defensivas” (GADDIS, 1983, p. 181, tradução própria) e
recorria, assim, à análise das forças econômicas a sustentar o
expansionismo norte-americano. Gaddis concluiu afirmando que:
[…]
a história de outros impérios sugere que eles podem
frequentemente emergir tanto por uma percepção de
insegurança externa quanto pela percepção de insegurança
interna: é uma característica das grandes potências que elas
geralmente tomem ações ofensivas por razões defensivas.
(GADDIS, 1983, p. 181, tradução própria)
Gaddis aprofundou a suas conclusões sobre a natureza dos
impérios asseverando que a novidade encerrada pelo pós-
revisionismo, ao analisar a natureza do “império americano”, foi a
comprovação de que “impérios podem emergir tanto a convite
daqueles que estão buscando segurança quanto pelas imposições dos
que a rejeitam [a segurança]” (GADDIS, 1983, p. 181, tradução
própria). O grande avanço pós-revisionista nesse tema seria,
portanto, a comprovação de que:
[…]
o império americano se encaixa mais precisamente no
modelo de expansão defensiva do que ofensiva, de convite
do que de imposição, de improvisação do que de
planejamento cuidadoso. (…) foi uma expansão com
limitações; foi um império operado, ao menos inicialmente,
ao longo de linhas defensivas e com alguma percepção de
barreiras. (GADDIS, 1983, p. 182, tradução própria)
A agenda de pesquisa pós-revisionista: o antirrevisionismo de J. L.
Gaddis
Na década de 1980, Gaddis argumentou que a tentativa de
superação das teses revisionistas sobre a Guerra Fria e de
44
consolidação de uma nova síntese historiográfica pós-revisionista
ainda não havia sido plenamente realizada. Portanto, as críticas às
teses revisionistas e a comprovação, pela análise de novas fontes, da
interpretação ortodoxa seriam o primeiro passo da agenda de
pesquisa pós-revisionista, que deveria, a partir de então, se dedicar à
responder um conjunto de questões que ainda estariam em aberto. A
análise da agenda de pesquisa proposta por Gaddis aos
pesquisadores do pós-revisionismo é, nesse sentido, central para
entender em que medida o autor retomou velhos paradigmas da
ortodoxia como expressão da nova corrente, assumindo ao mesmo
tempo uma postura antirrevisionista, combativa, que buscava
desqualificar as teses e as críticas do revisionismo, a partir de uma
perspectiva claramente ortodoxa, conservadora e pró-Estados
Unidos. Gaddis propôs, então, uma agenda de pesquisa pós-
revisionista.
A primeira questão para a qual os estudos pós-revisionistas
deveriam ser direcionados era, na visão de Gaddis, o grau de
compreensão dos Estados Unidos sobre a União Soviética, durante a
Guerra Fria. A questão central a ser respondida seria, nesse sentido,
até que ponto os policymakers de Washington percebiam a União
Soviética como um bloco unificado e uniforme (GADDIS, 1992). A
resposta a essa questão permitira avançar na compreensão das
estratégias empregadas pela Casa Branca para explorar as diferenças
dentro da União Soviética. Gaddis argumentou que os estudos pós-
revisionistas já permitiriam concluir que, a despeito da retórica
política, Washington “nunca considerou o comunismo como uma
força unificada dirigida por Moscou; e que, tanto no governo Truman
quanto no governo Eisenhower, esforços foram feitos nos bastidores
para tirar vantagem das diferenças que existiam dentro [do
comunismo]” (GADDIS, 1992, p. 183, tradução própria).
45
O primeiro ponto de pesquisa proposto por Gaddis reflete um
aspecto muito ressaltado pela análise da União Soviética,
originalmente desenvolvida por George F. Kennan, o principal
representante da corrente historiográfica ortodoxa. O diplomata
norte-americano enfatizava, em suas observações sobre a sociedade
soviética, a existência de diferentes realidades dentro do bloco
socialista, que deveriam ser exploradas, no longo prazo, pela política
externa dos Estados Unidos (KENNAN, 1947). Assim, na concepção
ortodoxa da Doutrina de Contenção do Comunismo, resgatada por
Gaddis, já estava presente a constatação de que a União Soviética não
era, sob nenhum aspecto, uniforme, o que abria, na visão de Kennan,
uma possibilidade para os Estados Unidos explorarem as fragilidades
decorrentes da heterogeneidade soviética.
A segunda questão que deveria, na interpretação de Gaddis,
figurar na agenda de pesquisa pós-revisionista seria a percepção dos
Estados Unidos sobre a balança de poder durante o estágio inicial da
Guerra Fria. Gaddis salientou que, na interpretação revisionista, o
grande diferencial de poder entre os Estados Unidos e o resto do
mundo, após a Segunda Guerra Mundial, seria uma prova suficiente
para atribuir aos norte-americanos a maior parcela de
responsabilidade pelo início da Guerra Fria. Embora reconheça o
diferencial de poder norte-americano, Gaddis sustentou que os
Estados Unidos “não se viam como detentores de uma clara
predominância de poder sobre a União Soviética no final da década
de 1940” (GADDIS, 1983, p. 184, tradução própria). Gaddis defendeu
que as primeiras pesquisas pós-revisionistas sobre o tema já teriam
demonstrado que as forças militares soviéticas eram muito maiores
do que as forças norte-americanas, após a Segunda Guerra e que,
além disso, o arsenal de armas nucleares controlado por Washington
tinha um poder muito limitado, até o começo da década de 1950. Esse
argumento, entretanto, é amplamente questionável, como apontou
46
LEFFLER (1993), ao analisar a diplomacia nuclear dos Estados
Unidos.
A suposta ignorância norte-americana a respeito do diferencial
de poder entre os Estados Unidos e o resto do mundo, ao final da
Segunda Guerra Mundial, é uma diferença importante entre a
corrente pós-revisionista e a ortodoxia. Kennan e os herdeiros de seu
pensamento ortodoxo reconheciam no diferencial de poder (não
somente militar, mas também econômico) sustentado pelos Estados
Unidos, após 1945, uma grande vantagem estratégica para a política
externa norte-americana, que deveria ser explorada tanto na versão
original da Doutrina de Contenção do Comunismo proposta por
Kennan, quanto na versão belicista colocada em curso pelo presidente
Harry Truman (KENNAN, 1985).
O terceiro ponto da agenda de pesquisa pós-revisionista
proposta por Gaddis se refere ao papel das burocracias e dos
burocratas na Guerra Fria. Gaddis sugeriu que uma análise do papel
desempenhado, por exemplo, pelos oficiais do Departamento de
Estado, durante os primeiros anos da Guerra Fria, seria fundamental
para entender o porquê da maior inclinação dos civis a uma escalada
militar do que os próprios militares do Departamento de Defesa, que
tiveram, supostamente, que ser convencidos a respeito da
necessidade de aumentar substancialmente o orçamento de defesa
dos Estados Unidos, no imediato pós-guerra. Gaddis buscava
reforçar, assim, o segundo ponto de sua agenda de pesquisa, segundo
o qual os Estados Unidos não percebiam com clareza o seu diferencial
de poder em relação aos soviéticos, após a Segunda Guerra Mundial
(ou, pelo menos, não de maneira uniforme entre os burocratas
envolvidos na formulação da política externa).
A quarta questão a qual os pós-revisionistas ainda deveriam
dedicar atenção se referia, na agenda de pesquisa proposta por
Gaddis, aos determinantes internos da política externa dos Estados
47
Unidos na Guerra Fria. A consideração dos determinantes domésticos
da política externa conduzida por Washington seria essencial para
entender em que medida o governo norte-americano influenciava a
opinião pública e o Congresso, de modo a apoiarem as ações
conduzidas mundo afora. Igualmente importante seria a análise da
influência dos grupos domésticos de interesse (econômicos,
acadêmicos, étnicos ou religiosos) sobre a política externa norte-
americana.
Um quinto ponto destacado por Gaddis em sua agenda de
pesquisa pós-revisionista diz respeito à necessidade de novos estudos
comparativos, que contribuiriam para desfazer o antigo mito do
excepcionalismo norte-americano na Guerra Fria (segundo o qual a
experiência dos Estados Unidos na Guerra Fria foi única, sem
paralelos). Gaddis acreditava que uma compreensão exata do
“império americano” dependia da comparação entre a experiência
dos Estados Unidos na Guerra Fria e a experiência de outros países.
Exemplos de pesquisas pós-revisionistas de caráter comparativo
bem-sucedidas poderiam ser encontrados no estudo da dissuasão do
comunismo antes e depois da criação de armas nucleares, ou na
comparação entre os impactos da política de contenção do
comunismo conduzida pelos Estados Unidos e a política externa dos
outros países no bloco capitalista (GADDIS, 1997). Gaddis também
elencou a relevância de estudos biográficos comparativos, sobretudo
do segundo escalão da diplomacia norte-americana, para entender a
forma como os policymakers de Washington interpretavam as ações
soviéticas (GADDIS, 1992).
Como um desdobramento do ponto anterior, Gaddis destacou
também a necessidade de ampliar o estudo sobre os impactos da
política externa dos Estados Unidos sobre outras sociedades. Nesse
aspecto, afirmou o autor, “o império americano, como outros
impérios na história, causou profundas transformações nos países
48
que entraram em contato com ele” (GADDIS, 1983, p. 187, tradução
própria), como foi o caso na Alemanha e no Japão, dentre os casos
mais extremos. Mas também em outras regiões do mundo
(nomeadamente, o Irã, a Índia, a Indonésia, a Islândia, a Grécia, a
Indonésia, a Coreia, o Paraguai e países da África e da América do
Sul), nas quais os impactos da política externa norte-americana foram
sentidos em graus variados, despertando, todavia, pouco interesse
das correntes historiográficas dedicadas à Guerra Fria. Mesmo em
relação aos países centrais da Europa (como a Itália, a França e a
Espanha), pouco esforço teria sido empenhado para desvendar os
resultados das políticas conduzidas por Washington após 1945.
Finalmente, Gaddis apresentou o último ponto da agenda de
pesquisa sugerida aos autores da corrente pós-revisionista,
remetendo ao próprio ofício dos historiadores. O autor defendeu,
assim, a necessidade de um maior esforço para entender o impacto
das interpretações históricas sobre a própria História. Tomando por
base que aquilo que se escreve e a forma como se escreve têm
influência sobre a própria História, então seria uma obrigação dos
historiadores “evitar a tentação de converter a história num
instrumento político, seja ele [um instrumento] da direita ou da
esquerda” (GADDIS, 1983, p. 189, tradução própria). O grande erro
do revisionismo, nesse sentido, teria sido se deixar levar pelo
“modismo ideológico de seu tempo” (em referência à intensificação
da contestação ao poder norte-americano, a partir dos anos 1960)
(GADDIS, 1983, p. 189, tradução própria), em vez de propor novas
interpretações com base em novas fontes.
Gaddis encerrou as suas sugestões para uma agenda de
pesquisa pós-revisionista reafirmando a visão de que o pós-
revisionismo é uma síntese e uma evolução do debate historiográfico
anterior a ele. Portanto, segundo o autor, o caminho percorrido desde
a “ortodoxia truculenta”, passando pelo “revisionismo militante” até
49
o estágio pós-revisionista da historiografia sobre a Guerra Fria é “o
caminho pelo qual a história é geralmente escrita em qualquer evento,
a despeito do tópico”. Por essa lógica, concluiu, “devem existir
estágios previsíveis da interpretação histórica, tal como Walt Rostow
sugeriu certa vez que existiram estágios do crescimento econômico”
(GADDIS, 1983, p. 189, tradução própria).
Conclusão
O artigo analisou as teses centrais da historiografia pós-
revisionista sobre a Guerra Fria, propondo uma crítica às ideias
defendidas pelo historiador John Lewis Gaddis. Sustentou-se que o
pós-revisionismo é, em sua essência, expressão das teses ortodoxas,
tendo assumido claramente uma postura antirrevisionista ao tentar,
sem sucesso, dar por superada a interpretação revisionista sobre a
Guerra Fria.
Na primeira seção, foi apresentada uma síntese das teses
seminais da Ortodoxia, que identificavam a União Soviética como a
responsável pelo início da Guerra Fria. Nesse sentido, a Doutrina de
Contenção do Comunismo converteu-se no fundamento da política
externa estadunidense durante a Guerra Fria, influenciando
centralmente o debate historiográfico sobre o conflito.
Na segunda seção, analisou-se a origem da corrente pós-
revisionista, com base na contestação das quatro teses que John Lewis
Gaddis identificou como os pilares do revisionismo. Assim, propôs-
se que, já na origem da interpretação pós-revisionista sobre a Guerra
Fria, há uma visão distorcida sobre o revisionismo, inclusive na
definição, apresentada por Gaddis, dos quatro pilares dessa corrente.
Analisou-se as críticas de Gaddis a cada uma das quatro teses
atribuídas por ele ao revisionismo e sustentou-se que a crítica de
Gaddis ao revisionismo, já em seus primórdios, era a expressão fiel
50
de uma abordagem antirrevisionista.
Na terceira seção, foram consideradas as continuidades e
rupturas que Gaddis identificou entre o revisionismo e o pós-
revisionismo. A análise introduziu a própria identificação do pós-
revisionismo como uma síntese do debate historiográfico pregresso,
do qual se dizia um herdeiro rebelde e evoluído. Defendeu-se que as
rupturas que Gaddis identificou entre as duas correntes são, na
realidade, expressão da própria cisão entre o revisionismo e a
ortodoxia (e, portanto, da cisão também com o pós-revisionismo, na
medida em que ele retomou as teses ortodoxas).
Na última seção, foi analisada a agenda de pesquisa proposta
por Gaddis na década de 1980, com um conjunto de temas que
exigiriam um maior esforço dos historiadores pós-revisionistas.
Defendeu-se que a fronteira do debate historiográfico sobre a Guerra
Fria, identificada por Gaddis nos anos 1980, representava a
reassunção de paradigmas da própria corrente ortodoxa.
Concluiu-se, portanto, que a síntese historiográfica concebida
por Gaddis sobre a Guerra Fria representou a retomada das
principais teses da ortodoxia: a responsabilização unilateral da União
Soviética pelo início do conflito; a ênfase no papel de Stalin como o
idealizador de um conjunto de políticas autoritárias, opressoras e
expansionistas, que colocavam em risco a segurança dos Estados
Unidos e da Europa Ocidental; a primazia da ideologia “Marxista
Leninista” como norteadora, por excelência, da visão “neurótica”
soviética sobre o mundo; a natureza primordialmente consensual e
“a convite” do império americano, em franco contraste com a
natureza autoritária do império soviético; e, por fim, a reafirmação da
tese, tão cara aos ortodoxos, de que os Estados Unidos assumiram,
durante a Guerra Fria, o fardo de guardiões da democracia, da
liberdade individual e do capitalismo.
51
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WILLIAMS, William Appleman. The Tragedy of American
Diplomacy. New York: Norton, 1988 (reedição da primeira versão,
publicada em 1959).
53
A geopolítica do Mar do Sul da China: interesse chinês, recursos
energéticos e rotas comerciais
Ester Gruppelli Kurz1
William Daldegan2
Resumo3: O trabalho parte do questionamento do porquê há
sobreposição de reivindicações de soberania sobre regiões do Mar do
Sul da China (MSC) feitas por China, Vietnã, Filipinas, Malásia,
Brunei e Taiwan, sendo uma fonte de tensão na região Ásia-Pacífico.
Assim, o objetivo do trabalho é compreender a importância do MSC
para a China no que tange às rotas comerciais e segurança energética.
Especificamente, analisar a estratégia chinesa de atuação nessa faixa
litorânea frente a conflitos de interesses. À China, interessa o alcance
de sua Zona Econômica Exclusiva, escoamento de produção e
recursos energéticos disponíveis. A análise se dará a partir da
assinatura do Tratado de Paz de São Francisco de 1951 que, apesar de
determinar a renúncia por parte do Japão a qualquer posse sobre as
1 Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCPol) da
Universidade Federal de Pelotas. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES) | E-mail:
[email protected]2 Doutor em Relações Internacionais pelo STD (UNESP, UNICAMP, PUC SP).
Professor do Instituto de Filosofia, Sociologia e Política (IFISP) e do Programa de
Pós-Graduação em Ciência Política (PPGCPol) da Universidade Federal de
Pelotas | E-mail:
[email protected]3 Versão preliminar foi apresentada no IX Encontro Brasileiro de Estudos
Estratégicos e Relações Internacionais.
54
ilhas que ocupava no MSC, não indica à qual nação cede o controle
da área. Partindo da análise das regras do Direito do Mar,
nomeadamente a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do
Mar e a Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China, e
de dados da Asia Maritime Transparency Initiative e Center for
Strategic and International Studies, o trabalho contribui para agenda
de pesquisa acerca do MSC, sobretudo a ação chinesa quanto ao
comércio internacional e à segurança energética, levando em conta
que quem domina a região pode influenciar rotas estratégicas do
comércio mundial.
Palavras-chave: Mar do Sul da China; Conflitos Marítimos;
Segurança Energética; Rotas Comerciais.
Introdução
Limitado ao norte pela China, a leste pelas Filipinas, a oeste por
Taiwan e ao sul por Brunei e Malásia, abrangendo também Indonésia,
Singapura, Vietnã, Camboja e Tailândia, o Mar do Sul da China (MSC)
possui cerca de 3,5 milhões de km². Com diversas ilhas
majoritariamente desabitadas, a região se conecta aos oceanos Índico
e Pacífico pelos estreitos de Taiwan, de Lombok e de Malaca. O MSC
é um espaço relativamente pequeno, com o tráfego marítimo mais
elevado do globo e circulação de mais da metade da produção global
de gás natural e quase 33% do petróleo não refinado, representando
um espaço estratégico em termos de recursos naturais, econômicos e
militares (PADULA, FERNANDES, 2020).
A sobreposição de reivindicações de soberania sobre ilhas e
Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE) no MSC feitas por China, Vietnã,
Filipinas, Malásia, Brunei e Taiwan são uma fonte de tensão na região
Ásia-Pacífico (SANTOS, 2017). A militarização do MSC ao longo do
século XXI e principalmente a partir de 2010, não apenas com ações
55
dos países do Sudeste Asiático, mas também com a dos Estados
Unidos (EUA) é outra fonte de preocupação (FAKHOURY, 2019). O
conflito de interesses é ilustrado pelos diferentes nomes que a região
recebe: é o Mar do Sul para a China, é o Mar Oriental para o Vietnã e
é o Mar das Filipinas Ocidental para as Filipinas.
Vietnã, China e Taiwan baseiam-se na história para dar sentido
às suas reivindicações territoriais. Malásia, Brunei e Filipinas
baseiam-se na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar
(CNUDM) para fundamentar as suas.
Dado o exposto acima, o trabalho parte do questionamento do
porquê há sobreposição de reivindicações de soberania sobre regiões
do Mar do Sul da China (MSC) feitas por China, Vietnã, Filipinas,
Malásia, Brunei e Taiwan, sendo uma fonte de tensão na região Ásia-
Pacífico. Assim, o objetivo é compreender a importância do MSC para
a China no que tange às rotas comerciais e segurança energética.
Especificamente, analisar a estratégia chinesa de atuação nessa faixa
litorânea frente a conflitos de interesses. Pois, assim como a China é
um país de proporções continentais, Li e Shaw (2018) apontam que a
economia e a política chinesas apresentam implicações mundiais
ligadas às economias fora das fronteiras chinesas, especialmente
aquelas no Sul Global. À China, interessa o alcance de sua Zona
Econômica Exclusiva, escoamento de produção e recursos energéticos
disponíveis.
A análise se dará a partir da assinatura do Tratado de Paz de
São Francisco de 1951 que, apesar de determinar a renúncia por parte
do Japão a qualquer posse sobre as ilhas que ocupava no MSC, não
indica à qual nação cede o controle da área. Partindo da análise das
regras do Direito do Mar, nomeadamente a Convenção das Nações
Unidas sobre o Direito do Mar e a Declaração de Conduta das Partes
no Mar do Sul da China, e de dados da Asia Maritime Transparency
Initiative (AMTI) e Center for Strategic and International Studies (CSIS),
56
o trabalho contribui para agenda de pesquisa acerca do MSC,
sobretudo a ação chinesa quanto ao comércio internacional e à
segurança energética, levando em conta que quem domina a região
pode influenciar rotas estratégicas do comércio mundial.
O texto está dividido em três seções. Primeiramente discutir-se-
á os conceitos e normas do Direito Internacional do Mar.
Posteriormente, serão analisados os aspectos que fazem do MSC uma
região tão importante para o Sudeste Asiático e quais os motivos das
disputas por soberania na região. Por fim, investigaremos o interesse
e a estratégia chinesa no MSC.
As normas do Direito Internacional
No Direito Marítimo Clássico, ou seja, anterior à Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM) de 1982, os espaços
marítimos eram divididos em águas interiores e mar territorial sob a
soberania do Estado costeiro. No alto mar existia o princípio da
liberdade de utilização e circulação para todos os Estados. Mas o
aumento das atividades comerciais e a crescente exploração dos
recursos naturais em alto mar tornaram necessário o
desenvolvimento de um novo quadro legislativo capaz de garantir ao
Estado exploração exclusiva dos recursos numa área mais vasta
(ONU, 1982).
Assim, na Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do
Mar de 1982, foram criadas e regulamentadas as águas internacionais
dos Estados e arquipélagos. A Convenção garante ao Estado costeiro
o direito para a exploração e gestão de quaisquer recursos naturais
em suas águas, permitindo a realização de atividades de
aproveitamento e exploração econômica, assim exercendo soberania
sobre a massa líquida, o espaço aéreo sobrejacente, o leito e o subsolo
de sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE) até 200 milhas náuticas. O
57
Mar Territorial de um Estado costeiro estende-se até 12 milhas
náuticas de seu território, sua Zona Contígua, assim como sua ZEE, é
de até 200 milhas náuticas.
A ZEE pode ser estendida até 350 milhas náuticas pela
Plataforma Continental, caso sejam apresentadas dados geologicos
que descrevam e comprovem o limite exterior da plataforma
continental do Estado costeiro. Nos casos em que ocorre a
sobreposição de ZEE nas delimitações de fronteiras em regiões
marítimas com um grande número de Estados, como é o caso do
MSC, a Convenção define que a demarcação das fronteiras deve ser
negociada entre os Estados sob uma base de equidade, considerando
os interesses dos Estados envolvidos e da comunidade internacional
(ONU, 1982).
Os Estados arquipelágicos poderão traçar as suas linhas de base
retas unindo os pontos mais afastados das ilhas, bem como os recifes
emergentes mais remotos, desde que as ilhas estejam incluídas nestas
linhas e esteja incluída a zona interior das linhas de base retas entre
1:1 e 1:9 da relação proporcional entre a superfície terrestre e a
superfície do mar. Além disso, a extensão destas linhas não deve
ultrapassar 100 milhas náuticas e, também, as linhas não devem
impedir que os demais Estados costeiros no entorno tenham saída
para o mar (ONU, 1982).
O Estado arquipelágico é soberano dentro dessas linhas, porém
embarcações de outros Estados têm direito de passagem inocente. Os
Estados arquipelágicos podem suspender temporariamente esta
passagem inocente, se tal suspensão for essencial para a proteção da
sua segurança (ONU, 1982).
O Estado tem o direito de estabelecer ilhas artificiais,
instalações e estruturas navais, realizar campanhas de investigação
marinha ou de prospecção de recursos naturais. A ZEE é regida por
58
leis internacionais e nela todas as unidades aeronavais têm liberdade
de navegação e sobrevoo. Quando forem estabelecidas ilhas artificiais
ou infraestruturas, o Estado pode estabelecer um perímetro de
segurança inferior a 500 metros que garanta a segurança da
navegação. No entanto, estes nunca poderão ser construídos quando
afetarem a utilização das rotas marítimas (ONU, 1982).
As rochas, formações geológicas que não são capazes de manter
a ahabitação de humanos nem uma vida economica, não possuem
ZEE nem plataforma continental, mas possuem mar territorial e zona
contigua (ONU, 1982)
O Mar do Sul da China
As reivindicações territoriais no MSC são feitas devido ao
interesse geoeconômico dos Estados, uma vez que a economia azul é
o motor da região e é parte do que facilita o dinamismo das nações
emergentes. A posição da Indonésia, Malásia, Tailândia e Vietnã
como países emergentes e a enorme densidade do tráfego marítimo
que passa nessas águas, somado a problemas com pirataria no
Estreito de Malaca, aumentam as tensões na região. Destaca-se que a
rota comercial que transita pela Ásia Oriental e atravessa o Sudeste
Asiático, o Oceano Índico e o Canal de Suez apresenta uma quantia
muito elevada do comércio marítimo total (GARAY, 2021).
As rotas marítimas do comércio internacional no MSC passam
através dos Estreitos de Luzon, Taiwan, Malaca, Sunda e Lombok. A
figura 1 ilustra o MSC, uma região pontilhada por numerosas ilhas,
recifes e rochedos, destacadamente Paracel, Spratly e Scarborough, as
principais áreas de disputa territorial. A região tem um importante
papel no escoamento e circulação de produtos asiáticos. Segundo
Padula e Fernandes (2020), mais da metade da frota mercante, da
produção de gás natural e quase um terço do petróleo não refinado
59
mundiais, passam nessas águas. Além de estarem localizados na
região metade dos 50 maiores portos do mundo, passam pelo MSC
cerca de US$ 5,3 trilhões do total anual do comércio mundial
(PAUTASSO, LEITE e DORIA, 2017).
O Estreito de Malaca, entre Singapura e Indonésia, é o principal
ponto de estrangulamento na Ásia, criando um gargalo natural com
potencial para colisões, encalhamentos ou vazamentos de óleo. Ele é
uma das principais rotas para o petróleo que sai do Oriente Médio em
direção ao Sudeste Asiático e por onde transitam 85% das
importações totais de petróleo não refinado da China (FAKHOURY,
2019). Sendo, portanto, uma zona estratégica para países que
dependem da importação e exportação de petróleo e outros bens.
Ademais, o MSC representa uma fonte de segurança energética
e econômica para os países do Sudeste Asiático pois possui reservas
de petróleo e gás natural. Entretanto, há divergências quanto à
quantidade de tais recursos. A Energy Information Administration
estimou que na região existem cerca de 190 trilhões pés cúbicos de
reservas de gás natural e 11 bilhões de barris de petróleo. Já a
estimativa da China National Offshore Oil Corporation é de 500 trilhões
pés cúbicos de gás natural e 125 bilhões de barris de petróleo de
reservas ainda não descobertas (EIA, 2013).
O MSC também tem um importante papel para a alimentação e
economia dos países no Sudeste Asiático uma vez que, de acordo com
Santos (2017), a região conta com 30% dos corais no mundo bem como
centenas de variedades de peixes, sendo que apenas em Spratly a
capacidade de produção pesqueira estimada por ano é de 7,5
toneladas por km². Segundo o autor (2017), cerca de 10% da pesca
mundial é proveniente do MSC, atingindo mais de 8 milhões de
toneladas de peixes por ano.
60
Por fim, destaca-se que as ilhas de Paracel e Spratly, localizadas
mais ao centro da região, como mostra a figura 1, possuem uma
localização estratégica no MSC, posto que, de acordo com Duarte
(2012), o Estado que controlar estas ilhas poderá controlar as rotas
marítimas que conectam o Oriente ao resto do globo. Ademais, esses
territórios também são estratégicos na medida em que a centralidade
das ilhas permite um melhor monitoramento das águas, que pode
possibilitar a interceptação de ações bélicas. Kane (2014) alerta para o
fato de que Spratly e Paracel não possuem ilhas com extensão para
atividades militares em larga escala, servindo então como entrepostos
para melhorar a navegabilidade.
61
Figura 1: O Mar do Sul da China. Reproduzido de: Cáceres (2014)
A Asia Maritime Transparency Initiative (AMTI) reúne imagens
de satélite de cada posto avançado e outras informações,
documentando o status da região. China, Malásia, Filipinas, Vietnã e
Taiwan ocupam quase 70 recifes e ilhotas e construíram mais de 90
postos avançados no MSC (AMTI e CSIS, 2023a).
A China possui 20 postos avançados em Paracel e 7 em Spratly
e controla Scarborough desde 2012 por meio da presença de sua
guarda costeira. Desde 2013 trabalha na construção de ilhas artificiais
em sete recifes em Spratly, colocando no topo dos recifes de coral
62
aproximadamente 12,8 milhões de m² de terra, a partir de milhões de
toneladas de coral dragado, rochas e areia (AMTI e CSIS, 2023b).
As Filipinas reivindicam as ilhas em Paracel e Spratly com base
em sua ZEE e Plataforma Continental definidas pela CNUDM. O país
está presente em Spratly, especificamente no Recife Commodore, nas
Ilhas Flat, Loaita, Nanshan, Thitu e West York, nas Ilhotas Loaita e
Northeast e no Baixio Second Thomas. A Ilha Thitu é a maior delas e
possui a única pista de pouso filipina no arquipélago (AMTI e CSIS,
2023d).
Taiwan, assim como a China, alega ter direito histórico sobre
áreas do MSC. Na Ilha Itu Aba fica o único posto avançado de Taiwan
em Spratly (AMTI e CSIS, 2023e). Entretanto, nenhum dos países da
região reconhece a soberania de Taiwan, o que, pela lei internacional,
é um empecilho a mais para as reivindicações da ilha. Apesar das
reivindicações marítimas que a República da China (Taiwan) faz
sobre o MSC, de acordo com os direitos concedidos pela CNUDM,
estas são infundadas uma vez que, legalmente, Taiwan é uma
província da República Popular da China. Portanto, nenhum direito
à água é reconhecido, sendo a República Popular da China quem
deteria a soberania sobre as suas águas. Se lhe fosse permitido definir
os seus limites marítimos, a sua soberania e legitimidade seriam
implicitamente reconhecidas (GARAY, 2021).
A Malásia ocupa, em Spratly, o Baixio Investigator e os Recifes
Ardasier, Erica, Mariveles e Swallow - todos na porção sul do
arquipélago (AMTI e CSIS, 2023c). Em 1991, visando o
desenvolvimento do turismo na região, construiu um resort e uma
pista de pouso em Swallow, o que suscitou protestos de Filipinas,
Vietnã, Brunei e China. Reafirmou sua reivindicação em 2009 por
meio de uma apresentação em conjunto com Vietnã à CNUDM sobre
os limites da plataforma continental, mantendo assim uma relação
63
menos conflituosa com a China (COUNCIL ON FOREIGN
RELATIONS, 2019).
O Vietnã possui instalações construídas em 21 rochas e recifes
em Spratly, além de 14 plataformas isoladas em seis margens
subaquáticas a sudeste das ilhas do arquipélago (AMTI e CSIS, 2023f).
Brunei, não ocupa nenhuma das ilhas nem tem presença militar
no MSC e, apesar de não ter feito nenhuma reivindicação formal nem
se envolvido em confrontos, reclama duas formações no sul de
Spratly com base em sua ZEE. Essas reivindicações se sobrepõem às
da Malásia e se estendem às da China, Vietnã e Filipinas (COUNCIL
ON FOREIGN RELATIONS, 2019).
Mello (2002) põe em evidência o valor do mar como fonte de
poder para os Estados devido sua potencialidade de projeção
econômica e militar por meio de rotas marítimas, bem como seus
recursos naturais. Nesse sentido, o MSC é de grande importância
para a geoestratégia chinesa, tendo em vista sua posição geográfica e
seus recursos no sentido apontado por Ratzel (1897) de raum e lage.
Para Ratzel (1897) há dois fatores geográficos que condicionam
a ação estratégica de um Estado: (1) o espaço (raum), que são todas as
características geográficas e recursos naturais disponíveis dentro do
seu território; e (2) a posição (lage), que diz respeito a localização de
um Estado em relação a mares, continentes e rotas comerciais. Ou
seja, basicamente importa para o Estado todos os recursos naturais,
econômicos e militares disponíveis dentro e fora de seu domínio, bem
como aqueles que poderia obter caso buscasse expandir seu território.
Além disso, o autor (1897) também ressalta a possibilidade de
utilizar-se a política, a economia e a cultura para alcançar o controle
sobre recursos e territórios em nível tanto nacional quanto
internacional.
64
Considerando os mares como uma peça de destaque no
tabuleiro das relações internacionais, Mahan (1890) defende que o
estabelecimento de um poder naval capaz de exercer controle sobre
os oceanos e mares, consequentemente, controlaria o mundo. Tal
pressuposto baseia-se na história dos séculos XVI a XIX,
demonstrando que a hegemonia no Sistema Internacional era sempre
exercida por uma potência naval, notadamente Portugal, Holanda e
Reino Unido. Deste modo, o controle do mar – da circulação de
pessoas e do comércio – é o fator decisivo para a vitória militar nos
conflitos entre grandes potências.
Já Mackinder (1904) propõe uma análise diferente da fonte do
poder de um Estado. O autor destaca uma área-chave no centro da
Eurásia que nunca foi conquistada por potências navais: o Heartland.
Uma região de difícil acesso por mar, rica em recursos naturais e de
energia. Mackinder (1904) postula que o Estado que controlar a
região, dando ênfase nos recursos territoriais, na localização
estratégica e na necessidade de integração territorial, além de buscar
saída para o Alto Mar, seria uma potência anfíbia que poderia
dominar o que ele denominava Ilha Mundo, um território
compreendido pela Eurásia e África do Norte, controlando assim
todo o continente Euro-Asiático.
Influenciado pelo trabalho de Mackinder, Spykman (1944)
também foca na Eurásia para pensar a influência da geografia nas
disputas globais. O autor (1944) desenvolve o conceito de Rimland,
regiões costeiras que contornam a Eurásia e que isolam o poder
marítimo e terrestre do Heartland. O Estado que detém o poder
mundial não é aquele que controla diretamente o Heartland, mas sim
aquele com a capacidade de cercá-lo.
65
Interesse e estratégia chinesa
O Leste Asiático é tido como uma forma de garantir o
crescimento econômico e a segurança nacional chinesas, baseado na
cooperação bilateral e multilateral por meio sobretudo de instituições
regionais. Devido ao seu crescimento econômico acelerado, sua
aproximação diplomática com seus vizinhos, seu incentivo à
cooperação econômica institucionalizada na região e sendo fonte de
investimento externo direto, a China tem aumentado sua influência
na região (BRESLIN, 2010).
A China reivindica toda a área contida na chamada Linha de
Nove Traços, que abrange 90% das águas do MSC. Pequim
argumenta que esteve presente na região durante mais de 2.000 anos,
seja com atividade de pesca, seja com atividades comerciais e de
segurança. No entanto, nos relatórios oficiais apresentados, a China
não conseguiu reunir os argumentos necessários para comprovar sua
presença na região e obter o reconhecimento de sua soberania
conforme previsto na CNUDM.
As reivindicações chinesas sobre a Linha de Nove Traços não
estão de acordo com o que estabelece a CNUDM, já que esta limita a
ZEE de um Estado em até 200 milhas náuticas e a Linha de Nove
Traços ultrapassa essa medida, contando como parte de seu mar
territorial rochedos que, pela decisão de 2016 do Tribunal de
Arbitragem sob a CNUDM, não constituem ilhas com ZEE, por serem
inabitáveis. As reivindicações também não estão de acordo com as
orientações da ASEAN em tentativas de resolver os conflitos pelas
reivindicações territoriais (COUNCIL ON FOREIGN RELATIONS,
2019).
Em 2013 o governo filipino encaminhou uma reclamação ao
Tribunal Permanente de Arbitragem (PCA) em Haia, na qual se opôs
à Linha de Nove Traços reivindicada por Pequim, por violar os
66
princípios de equidade e equidistância, bem como por incluir águas
localizadas a 50 milhas da costa filipina, entrando na sua ZEE. O
Tribunal determinou que a China não poderia reivindicar uma ZEE
sobre os afloramentos rochosos em Spratly, pois os pequenos grupos
de pescadores que vinham usando a região não eram capazes de
sustentar uma comunidade estável como é previsto na Convenção.
Algumas das áreas da Linha de Nove Traços estavam dentro da ZEE
filipina e, portanto, a China violou direitos filipinos ao interferir com
pescadores e equipes de exploração de petróleo do país na região.
Ademais, o veredito também apontou que o programa de ilhas
artificiais de Pequim violou as obrigações da CNUDM de proteção ao
meio ambiente (PERMANENT COURT OF ARBITRATION, 2016).
A China rejeitou a decisão do PCA porque a reclamação das
Filipinas não seguiu o procedimento da CNUDM sobre a resolução
de litígios pelo Tribunal Internacional, que é aplicável quando dois
Estados não chegam a um acordo. E, segundo o ministro chinês, os
dois Estados não mantiveram quaisquer negociações em matéria de
arbitragem (MINISTRY OF FOREIGN AFFAIRS OF THE PEOPLE´S
REPUBLIC OF CHINA, 2016).
A ASEAN vem tentando atenuar as tensões no MSC, mas não
parece atingir resultados significativos. Isto porque as votações no
bloco precisam de unanimidade e alguns países membros podem
temer contrariar o interesse chinês e ter seus próprios interesses
econômicos afetados, pois, de acordo com Mendes (2020), a China é o
principal parceiro comercial da ASEAN. Assim, as ações da ASEAN
são limitadas pelo interesse nacional particular de cada país e, mesmo
que o bloco e a China tenham feito algum avanço com a elaboração
de uma Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China,
em 2002, esta não é vinculativa e os conflitos na região seguem
ocorrendo.
67
A Declaração de Conduta das Partes no Mar do Sul da China
reafirma o compromisso dos Estados com a Carta da ONU e com a
CNUDM, estabelece a necessidade de resolução pacífica dos conflitos,
a promoção de diálogos e exercícios militares conjuntos, a proteção
ambiental das águas e prevê a adoção de um Código de Conduta
(COC) para o Mar do Sul da China. Entretanto, 20 anos depois este
ainda não foi finalizado. Isto porque, ao passo que para a China a
CNUDM não é capaz de abarcar todos os escopos sobre o mar,
particularmente, em relação aos direitos históricos, para a ASEAN a
CNUDM é o marco legal que delimita as atividades nos oceanos e
mares (ASEAN, 2022).
A estratégia chinesa para o MSC está cimentada tanto na
utilização de instrumentos econômicos como uma ferramenta
geopolítica, quanto no desenvolvimento de projetos de infraestrutura
para driblar as possíveis restrições impostas por potências rivais.
Esses projetos são conhecidos como parte do “Colar de Pérolas”: uma
série de bases aéreas e navais, portos comerciais e centros de
inteligência estrategicamente posicionados pela China para formar
um “cordão”, de modo a rodear e estrangular quatro importantes
penínsulas: a Indochina, a Indostânica, a Arábica e o Chifre da África
(PADULA e FERNANDES, 2020).
Lima (2018) destaca os quatro pilares da política externa chinesa
como sendo a manutenção de sua integridade territorial, a One China
Policy, propiciar o desenvolvimento econômico do país e aumentar
seu prestígio no âmbito internacional. O autor (2011) acrescenta que,
a médio prazo, a China será uma superpotência e que nos últimos
anos o país vem se esforçando para mostrar-se ao mundo como um
aliado político e comercial confiável, abrindo mão de sua postura de
baixo perfil e assumindo o lugar de uma potência que emergiu devido
ao esforço coletivo.
68
A China desenvolve sua presença no sistema internacional por
meio do discurso que garante desenvolvimento pacífico do país, a
construção de um mundo harmonioso, posicionando-se
contrariamente ao emprego da força como recurso prioritário e
insistindo na importância do diálogo, da cooperação e de relações que
promovam o benefício mútuo (PAUTASSO e DORIA, 2017). Mas,
apesar de evitar posicionamentos intervencionistas, o governo chinês
tem sido assertivo ao reafirmar a Lei sobre Mar Territorial e Zona
Contígua de 1992 e a Lei da Zona Econômica Exclusiva e das
Plataformas Continentais da República Popular da China de 1998.
Ambas reafirmam a soberania chinesa sobre todos os seus
arquipélagos e ilhas no MSC (THE STANDING COMMITTEE OF
THE NATIONAL PEOPLE'S CONGRESS, 1992, 1998). Nesse sentido,
destaca-se ainda o 12º Plano Quinquenal de Desenvolvimento
Oceânico que estabelece medidas para proteger e preservar os
recursos marinhos na região (CHINA, 2011).
A assertividade chinesa está presente em seus questionamentos
de normas marítimas e no desenvolvimento de uma força militar
capaz de ameaçar o acesso e a segurança no MSC (LEGRO, 2010).
Zhang e Tang (2005) chamam a atenção para o uso do comércio e dos
investimentos na Ásia como uma forma do país alcançar objetivos de
segurança, buscando estabelecer uma ordem econômica regional
sinocêntrica. Estabelecendo uma relação de dependência com os
países da região, podendo, assim, influenciar na geopolítica da
região.
O Council on Foreign Relation (2019) acrescenta que, nos últimos
anos, a China empreendeu esforços para dragar e recuperar milhares
de metros quadrados no MSC, além de ter implantado sistemas de
mísseis anti-navio e anti-aéreo nas ilhas em Spratly e ter construído
infraestrutura militar em várias ilhas artificiais, como pistas, edifícios
de apoio, cais de carga e instalações de comunicação.
69
Leite, Nascimento e Kuhlmann (2017) observam que desde 2012
a China tem buscado, por meio de sua política externa, tornar-se uma
potência marítima regional e, assim, tem trabalhado no
fortalecimento de sua força marítima. Os autores (2017) apontam
ainda que, apesar das construções possuírem infraestrutura militar e
civil o governo chinês afirma que as ilhas artificiais são voltadas para
utilização de portos para navios comerciais e prevenção de desastres
naturais, além de serem focadas para a defesa nacional chinesa, sem
qualquer pretensão de ataques aos países vizinhos.
Ao passo que a construção de ilhas artificiais no MSC aumenta
a presença chinesa na região, também diminui o tempo de reação das
forças militares chinesas em caso de conflito nas áreas de disputa.
Nesse sentido, Padula e Fernandes (2020) pontuam que, para além
das construções nas áreas disputadas no MSC, a construção da base
de submarinos na Província chinesa de Hainan também possibilita
uma resposta rápida aos desenvolvimentos na região.
Para além disso, estima-se que os países asiáticos em
desenvolvimento terão dobrado o consumo de energia até 2030,
sendo a China responsável por metade desse aumento (SANTOS,
2017). Nesta perspectiva, o MSC oferece um potencial significativo de
oferta de hidrocarbonetos, por isso as reivindicações de soberania não
têm em vista a expansão do território por si só, mas visam também a
segurança energética e econômica. O crescimento econômico chinês e
dos países periféricos do MSC, relaciona-se com a exploração dos
recursos da região, ao passo que o posicionamento estratégico dos
arquipélagos pode significar uma vantagem militar para a China para
controle das águas.
Acrescenta-se que “para a China, a questão do abastecimento
de petróleo é estratégica, e as autoridades do país não tecem grandes
considerações éticas, morais, humanitárias e ambientais antes de
assinar os acordos" (MENDONÇA, 2011 p. 277). Nessa perspectiva,
70
podemos interpretar que a liderança chinesa também não teria
escrúpulos para garantir o acesso à petróleo na região do MSC que
reivindica, podendo utilizar-se da força militar ou econômica para
pressionar seus vizinhos, apesar de seu discurso de política externa.
Hendler (2021) demonstra que a projeção do imperialismo
estadunidense deveu-se às ações diplomáticas e militares, à Doutrina
Monroe e à anexação de ilhas localizadas em pontos estratégicos. Do
mesmo modo, podemos interpretar o interesse chinês pelas ilhas e
recursos naturais do MSC como parte de uma estratégia de um país
que está em sua fase de ascensão, buscando executar sua estratégia
de modo a garantir a sua segurança nacional e desenvolvimento. A
China precisa proteger as rotas do MSC para o escoamento de suas
mercadorias e para que os itens necessários à fabricação dessas
mercadorias – petróleo, gás, metais preciosos e variadas commodities
– cheguem ao país.
Considerações finais
O MSC justifica sua relevância estratégica devido a mobilidade
comercial e militar e o desenvolvimento econômico e social dos
Estados, uma vez que a região oferece recursos vitais para o
abastecimento energético e alimentício, para o fluxo do comércio
marítimo e para a segurança dos países do Sudeste Asiático,
notadamente da China. Desta forma, o domínio das ilhas do MSC
mostra-se uma etapa lógica para o país que busca proteger seu
interesse nacional. Isto porque um bloqueio para o acesso dessa área
significaria um prejuízo tanto para países da região, quanto para a
economia mundial.
Partindo de uma perspectiva ratzeliana, que identifica o Estado
como um organismo territorial que mobiliza a sociedade em torno da
defesa de seu território, o MSC orbita diretamente o interesse não
71
apenas da China, como também de todos Estados no entorno da
região. Isto devido à posição geográfica privilegiada do MSC e de
seus recursos naturais que estariam à disposição do Estado que
dominar as águas da área. Da mesma forma, a análise de Mahan que
evidencia o poderio naval e o controle marítimo como fontes
principais de poder Estatal também dá destaque ao controle e
exploração das águas disputadas.
É possível adaptar a teoria do Heartland para o MSC, uma vez
que este também tem uma localização estratégica, recursos naturais
em abundância e trânsito de mercadorias essenciais, assim como o
controle da região é vital para a segurança do território, população e
economia dos Estados da região. Ao mesmo tempo, também
podemos traçar um paralelo entre a funcionalidade do Rimland e a
atuação tanto dos países no entorno do MSC quanto de outras
potências na região, podendo limitar ou sufocar a presença chinesa e
seus objetivos.
Pequim vem intensificando sua presença no MSC
principalmente por meio da construção de ilhas artificiais e de
movimentações militares na região. Assim, o MSC orbita a área de
interesse chinês pois as tensões na região abarcam esses elementos,
especialmente tendo em vista a dependência chinesa das rotas
marítimas para escoamento de sua produção, bem como sua
crescente necessidade por recursos energéticos. Devido à sua
disposição na região, as Ilhas Paracel e Spratly e o Baixio Scarborough
são pontos estratégicos para o controle do trânsito na área e, portanto,
a militarização dessas regiões possibilita à força aérea e naval chinesa
capacidade de operação sobre a quase totalidade do MSC.
O controle chinês sobre o MSC permitiria fortalecer seu
comércio e a segurança de suas rotas de energia, garantir seu acesso
futuro a recursos de petróleo e gás e realizar patrulhas marítimas.
Todos vitais para a economia e para a segurança nacional da China.
72
Portanto, a manutenção do poder geopolítico chinês e sua posição
como líder regional dependem da condução dos conflitos na região
que estão relacionados com sua integridade territorial, sua segurança
energética, sua integração regional e seu comércio exterior.
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77
A Geopolítica Dos Projetos Globais De Infraestrutura
Daniel Campos Nunes da Silva1
Resumo: O presente artigo pretende partir da compreensão que o
acirramento das tensões mundiais são resultando de um contexto de
caos sistêmicos no qual as disputas interestatais têm uma
multiescalaridade. A produção do espaço, nesse contexto, passa a ser
compreendida como umas das esferas no qual se desenvolve o que se
denomina como Guerra Mundial Híbrida e Fragmentada. Nesse
sentido, a produção do espaço é uma das determinações sociais da
totalidade. O complexo sistema interestatal contemporâneo tem na
produção do espaço, a partir das suas complexidades, um
instrumento de disputa de poder. As implementações de projetos de
infraestrutura em escala global só podem ser entendidos a partir
desse debate. O esforço nesse artigo é em demonstrar a dimensão
espacial dessa Guerra Mundial Híbrida e Fragmentada que apresenta
na geopolítica dos ajustes espaciais uma das suas dimensões
constituintes.
Palavras-chave: Infraestrutura - Poder - Caos Sistêmico
1Mestrando do Programa de Pós-gradução da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (PPGGEO - UERJ/FFP) -RJ,
[email protected];
78
Introdução
As primeiras décadas do século XXI foram marcadas por uma
série de situações e acontecimentos que acarretaram transformações
indicadoras de mudanças na ordem mundial em um contexto de caos
sistêmico. A posição dos Estados Unidos passa a ser questionada e a
sua liderança no sistema internacional muda qualitativamente. O
declínio dos EUA é acompanhado de uma proeminência da China na
ordem internacional e as disputas no interior do sistema interestatal
em curso são cada vez mais evidenciadas. O que está em jogo são um
conjunto de interesses que perpassam a liderança no sistema
interestatal. A busca de posições mais vantajosas para as dinâmicas
de acumulação de capital e poder pode ser observado na
implementação de projetos globais de infraestrutura financiados por
EUA, China e União Europeia e representam uma expressão
econômico-espacial da disputa do poder mundial.
O projeto de infraestrutura denominado Global Gateway,
lançado pela União Europeia, é uma clara resposta à expansão
geográfica promovida pela China em escala global. O mesmo pode se
afirmar do programa intitulado " Associação Global Para
Infraestrutura", articulado pelo G-7 e que prevê um investimento em
torno de 600 bilhões de dólares até 2027. O objetivo do presente
trabalho é analisar a inserção desses projetos globais de infraestrutura
no acirramento da disputa de poder em curso em um período de caos
sistêmico.
Aproximações entre espaço e economia podem ser trabalhadas
a partir de inúmeras contribuições do corpo teórico desenvolvido por
essas áreas do conhecimento. Para o diálogo proposto neste artigo
serão utilizadas algumas contribuições teóricas de Marx pela
economia e as contribuições de Harvey para o entendimento do
espaço na dinâmica econômica capitalista.
79
Nesse diálogo será explorado como a produção do espaço e
demanda efetiva entrelaçam-se como parte de uma totalidade.
Procura-se, dessa forma, o resgate de parte da totalidade social onde
a economia e o espaço são momentos dessa totalidade.
Economia política do espaço
A noção do espaço, como parte da totalidade social, ganha
importância maior a partir das formulações e entendimentos do
Milton Santos (1996) sobre a produção do espaço. Este, por sua vez,
tem em Lefbreve um privilegiado interlocutor sobre essas questões.
Ao refletir sobre a produção do espaço Lefbreve procura
compreender como se dá essa produção dentro de um modo de
produção capitalista. Para uma melhor compreensão dessa relação,
Lefbreve (2008) defende uma elaboração sobre uma economia política
do espaço que parta do entendimento da produção deste na relação
dialética de uma sociedade inserida em um modo de produção
determinado.
Dessa forma, Lefbreve compreende que a produção do espaço
se insere em uma totalidade de relações na qual a produção do espaço
constituí um dos elementos que compõe a determinação do todo
social. O conceito de formação sócio-espacial (SANTOS,1997)
possibilita essa compreensão totalizante do espaço. Milton Santos
procura, dessa forma, alçar o espaço como centralidade da análise
geográfica. A indissociabilidade do espaço em relação a totalidade
social é o que permite compreender a produção do espaço a partir do
movimento da sociedade. Para Lefbvre (2008, p.39):
Porque é possível que o espaço desempenhe um papel ou
uma função decisiva no estabelecimento de uma totalidade
social, de uma lógica, de um sistema, precisamente quando
não se pode deduzi-lo desse sistema, dessa lógica, dessa
80
totalidade. É preciso, ao contrário, mostrar sua função nesta
perspectiva (prática e estratégica).
Mas o movimento social ocorre em um espaço já existente no
qual deve ser compreendido como uma das determinações que
constituem o próprio movimento da sociedade. Sociedade e espaço
precisam ser compreendidos como pares dialéticos que se constituem
mutuamente. E essa relação ocorre em uma realidade concreta, em
um tempo histórico que tem suas especificidades, suas
singularidades, que por sua vez, partem de uma espacialidade
específica, que no movimento, produzirá uma nova espacialidade.
Harvey dedicou a sua vasta obra ao entendimento de como o
espaço é organizado e produzido no movimento constate de
reprodução do capital. A busca pelo espaço em Marx é parte constate
dos seus trabalhos. Ao analisar o movimento do capital observa-se a
formação de um desenvolvimento geográfico desigual como parte
indissociável da dinâmica de acumulação do capital (HARVEY,2014,
p.151).
Segundo Harvey (2018, p.130), “Marx reconheceu logo cedo que
criar o mercado mundial era inerente à própria natureza do capital,
mas que, ao fazê-lo, seria preciso produzir um novo tipo de espaço”.
Esse novo tipo de espaço passa a ser produzido a partir de uma lógica
de acumulação do capital que terá nessa produção do espaço um
elemento de centralidade. A transformação do espaço a partir de
ajustes espaciais será parte da lógica de atenuação das crises inerentes
á dinâmica de acumulação.
O conceito de ajustes espaciais é resultado da busca de Harvey
por uma teoria de acumulação do capital na qual o espaço apresenta
um importante papel nos momentos de acentuada redução na
reprodução do capital. Os ajustes espaciais realizam-se no território
do próprio país financiador dessas transformações espaciais ou em
81
outros territórios. As valorizações espaciais resultantes desses ajustes
são responsáveis por desvalorizações em outras localidades.
Ao contrário do que se imagina, essa maior velocidade e
amplitude para a dinâmica do capital se realizar no espaço não
diminui a importância deste. Esta, ao contrário, é reafirmada pois as
diferenças existentes em um espaço geográfico desigual tornam-se
ainda mais importantes para a lógica de poder e de acumulação
existentes. Sobre isso, afirma Harvey (2011,p.133):
A necessidade de assegurar a continuidade dos fluxos
geográficos do dinheiro, bens e pessoas exige que toda essa
diversidade esteja entrelaçada por meio de transportes
eficientes e sistemas de comunicação. A geografia
resultante da produção e do consumo é profundamente
sensível ao tempo e custo de atravessar o espaço. Esses
tempos e custos foram muito reduzidos pelas inovações
tecnológicas e organizacionais, além da queda nos custos
de energia. Os problemas de distância têm um papel cada
vez menor na limitação da mobilidade geográfica do
capitalismo. Isso não significa, porém, que as diferenças
geográficas não importam mais. Precisamente o contrário:
o capital altamente móvel presta muita atenção até mesmo
nas pequenas diferenças nos custos locais porque geram
lucros mais elevados.
A reorganização dos espaços em formas espaciais que
permitem maior fluidez nos diferentes territórios é resultado,
prioritariamente, dos investimos públicos realizados pelos Estados.
Esses investimentos tornam os espaços mais atraentes para a entrada
de investimentos externos diretos e permitem, ao mesmo tempo, um
ganho de competitividade para a produção local. A perda ou ganho
de dinamismo econômico por parte dos Estados configurará o
estabelecimento de um novo quadro de relações de poder que tem na
reorganização dos espaços internamente um elemento indissociável.
82
Espaço, demanda efetiva e o papel da circulação.
Harvey, ao dedicar sua obra em busca da dimensão espacial em
Marx, demostra como o processo geral de crescimento econômico se
insere em um quadro explícito de uma estrutura emergente de
relações espaciais. O entendimento da acumulação de capital assume
na obra de Marx uma centralidade observada em suas obras na qual
a análise de situações de restrição de oferta e demanda precisam ser
analisadas em sua condição histórica.
Sobre isso Crespo, Dvoskin e Mazat apontam que a literatura
econômica associa diretamente a relação existente entre maiores taxas
de crescimento econômico e menores taxas de reprodução de um bem
básico. Da mesma forma que sinalizam que a distinção entre bens
básico e não básicos são fundamentais para a compreensão de
dinâmicas de crescimento. O custo de reprodução desses bens deve
ser considerada na análise da dinâmica do crescimento econômico.
Consumo e produção são partes integrantes de um todo
dialético no qual a produção não tem sentido caso não possa ser
realizada a partir do consumo. Ou sela, situações de baixo ou
acelerado crescimento podem ser manifestadas tanto na produção
quanto no consumo. Segundo Marx (1973,p.93):
A produção não é apenas imediatamente consumo e o
consumo não é apenas imediatamente produção, a
produção não é apenas meio para o consumo e o consumo
não é apenas objetivo da produção [...] mas também, tanto
a produção quanto o consumo [...] criam o outro,
completando-se e criando-se enquanto o outro.
A dinâmica do capital é permeada por um conjunto de
contradições inerentes a sua reprodução na qual o processo de
acumulação gera crises ocasionadas tanto nos aspectos relacionados
a produção como ao consumo. Porém novos níveis de demanda
efetiva podem ser elaborados como forma de aumentar a capacidade
83
de absorção de produtos. Vários elementos podem ser destacados
nessa retomada da demanda efetiva e a expansão geográfica para o
exterior é um desses elementos. Nesse sentido, Pomeranz (2000)
observa como o colonialismo contribuiu para liberar imensas
quantidades de matérias primas como resultado dos processos de
exploração inerentes a esse processo histórico. Importante ressaltar
que o colonialismo representa uma expansão geográfica que se
intensifica com a Revolução Industrial possibilitando aos países
ocidentais uma maior oferta dos bens necessários a produção como a
abertura de mercados para a realização da produção através do
consumo. Segundo Hobsbawm, (1971, P.50-51)
Entre 1845-1849 e 1870-1875, as exportações britânicas de
ferro e aço para ferrovias mais do que triplicaram, enquanto
as de maquinaria aumentaram nove vezes. Durante esse
mesmo periodo, as exportações britânicas para as Américas
Central e do Sul, o Oriente Médio, a Ásia e a Australásia
aumentaram umas seis vezes. A rede que ligava as diversas
regiões da economia mundial a seu centro britânico estava
visivelmente ampliada e fortalecida.
Importante observar as questões em tela a partir do papel que
a circulação desempenha no processo de produção e como
constitutivo da própria produção. O aspecto relacionado a circulação
de movimento físico real de mercadoria do lugar de produção ao de
consumo e os custos inerentes a esse processo são parte dos custos
gerais de produção e o que permite a realização da produção no
consumo. E isso refere-se não apenas ao custo de deslocamento do
produto acabado até o consumidor como também aos custos de
circulação da matéria prima até o local de produção. Sobre isso, Marx
(1968, 533-4) afirma:
A indústria do transporte e da comunicação, que " vende
mudança de localização" é diretamente produtora de valor,
pois "economicamente considerada, a condição espacial, o ato
de trazer o produto ao mercado, pertence ao próprio processo
84
de produção. O produto está realmente acabado apenas
quando está no mercado.
Os ajustes espaciais são caracterizados também por
transformações espaciais internas que intensificam o tempo de giro
do capital. Harvey começa a ensaiar uma ampliação do conceito de
ajuste espacial ao dimensionar o papel que a reorganização interna
do espaço pode cumprir em contextos de sobreacumulação de capital.
Para tanto, cita os investimentos chineses em obras de infraestrutura
como uma solução para absorção de excedentes de capital
(HARVEY,2004; p.104). Ou seja, os ajustes deixam de ser uma solução
meramente externa para as contradições do capital para apresentar
uma multiescalaridade. Amplia-se, assim, a “compressão do espaço-
tempo” e a intensificação para uma movimentação mais rápida do
capital (HARVEY,2011, p.131)
Em 17 Contradições e o Fim do Capitalismo Harvey (2016)
enfatiza o papel dos investimentos internos como forma de solução
para as crises. Esses investimentos internos ocorrem a partir de
projetos de infraestrutura financiados pelo Estado em momentos de
crise como forma de reverter a perda de dinamismo econômico.
Harvey utiliza como exemplo os investimentos em obras púbicas pelo
governo dos Estados Unidos na década de 1930 como forma de
reverter os efeitos da crise de 1929. Os investimentos chineses com
projetos urbanos e obras e infraestrutura como forma de compensar
perdas advindas da crise de 2008 também são citados como forma de
reverter a perda de dinamismo e acelerar a realização da demanda
efetiva. Sobre essa questão, afirma:
Desse modo o capital desenvolve o que chamo de “ajustes
espaço temporais” para o problema da absorção de
excedente de capital e trabalho. “Ajuste” aqui tem dois
sentidos. Uma parte do capital total se ajusta literal e
fisicamente a determinado lugar por um período
relativamente longo. Mas “ajuste” também se refere
metaforicamente à solução (“ajuste”) das crises de
85
superacumulação do capital por meio de investimentos de
longo prazo na expansão geográfica (HARVEY, 2016,p.143).
Importante destacar que a expansão geográfica por meio de
ajustes espaciais e o próprio aumento da demanda teve a contribuição
da implementação de sistemas de crédito moderno inscrito em um
sistema interestatal cada vez mais competitivo. A expansão do crédito
contribuiu para o aumento dos investimentos necessários a uma
reorganização espacial e ao aumento da demanda. Essa
reorganização, como já apontado anteriormente, impacta na redução
do valor dos bens básicos tanto pela redução dos custos desses bens
na sua produção como na ampliação do acesso a esses bens com o
aumento escalar da expansão geográfica. De acordo com Marx (1968,
p.383-384):
O preço baixo dos artigos produzidos pela maquinaria e os
meios de comunicação e transporte aprimorados fornecem
armas para conquistar o mercado externo. Ao arruinar a
produção manual em outros países, a maquinaria converte-
os em campos de fornecimento de matéria-prima. Desse
modo [...] a Índia foi obrigada a produzir algodão, lã,
cânhamo, juta e anil para a Grã-Bretanha. Por tornar
constantemente “supérflua” parte da mão de obra, a
indústria moderna, em todos os países onde lançou raízes,
estimula a emigração e a colonização de terras estrangeiras,
que são, portanto, convertidas em terrenos de produção de
matéria-prima para a metrópole; assim como a Austrália,
por exemplo, foi convertida numa colônia para produzir lã.
Surge a nova e internacional divisão de trabalho, adequada
às exigências dos principais centros da indústria moderna,
que converte parte do globo num campo de produção
principalmente agrícola para suprir a outra parte, que fica
como terreno principalmente industrial.
A geopolítica dos projetos globais de infraestrutura
A aceleração do espaço nas últimas décadas não passou
despercebida para Harvey ao observar que existe uma compressão
86
espaço temporal, uma redução do espaço pelo tempo, no qual o
capital apresenta maior mobilidade. Essa aceleração do espaço
possibilita uma redução do tempo de giro do capital. Quanto menor
esse tempo de giro maior será a rentabilidade da mas valia. Nesse
sentido, a redução das fricções das estruturas espaciais representa a
retomada ou ampliação da dinâmica de acumulação.
Ao contrário do que se imagina, essa maior velocidade e
amplitude para a dinâmica do capital se realizar no espaço não
diminui a importância deste. Esta, ao contrário, é reafirmada pois as
diferenças existentes em um espaço geográfico desigual tornam-se
ainda mais importantes para a lógica de poder e de acumulação
existentes. Sobre isso, afirma Harvey (2011,p.133):
A necessidade de assegurar a continuidade dos fluxos
geográficos do dinheiro, bens e pessoas exige que toda essa
diversidade esteja entrelaçada por meio de transportes
eficientes e sistemas de comunicação. A geografia
resultante da produção e do consumo é profundamente
sensível ao tempo e custo de atravessar o espaço. Esses
tempos e custos foram muito reduzidos pelas inovações
tecnológicas e organizacionais, além da queda nos custos
de energia. Os problemas de distância têm um papel cada
vez menor na limitação da mobilidade geográfica do
capitalismo. Isso não significa, porém, que as diferenças
geográficas não importam mais. Precisamente o contrário:
o capital altamente móvel presta muita atenção até mesmo
nas pequenas diferenças nos custos locais porque geram
lucros mais elevados.
A reorganização dos espaços em formas espaciais que
permitem maior fluidez nos diferentes territórios é resultado,
prioritariamente, dos investimos públicos realizados pelos Estados.
Esses investimentos tornam os espaços mais atraentes para a entrada
de investimentos externos diretos e permitem, ao mesmo tempo, um
ganho de competitividade para a produção local. A perda ou ganho
de dinamismo econômico por parte dos Estados configurará o
87
estabelecimento de um novo quadro de relações de poder que tem na
reorganização dos espaços internamente um elemento indissociável.
Não será por acaso que na quadra histórica que atravessamos
observamos a implementação de um projeto de infraestrutura de
alcance global promovido pela China, conhecido como Nova Rota da
Seda.
O investimento Chinês em obras na Nova Rota da Seda
alcançou a cifra de 942 bilhões de dólares gastos em obras de
infraestrutura que envolvem, direta ou indiretamente, mais de 140
países. Esses investimentos possibilitam acesso a mercados e matérias
primas que fortalecem o posicionamento da China no sistema
internacional. Amplia o posicionamento geopolítico da China ao
mesmo tempo que fortalece e amplia o seu poder no sistema
interestatal. Esses vultosos investimentos externos são
acompanhados de um ajuste espacial adotado também no interior do
seu território. Segundo Harvey (2018, p.182-183):
A China absorveu uma quantidade maciça de mão de obra
promovendo um enorme programa de investimentos em
consumo produtivo no meio ambiente construído. Um
quarto de PIB veio somente da produção de moradias e
outro quarto ou mais veio de investimentos infraestruturais
em rodovias, sistemas hídricos, redes ferroviárias,
aeroportos etc. Cidades inteiras foram construídas (muitas
são "cidades fantasmas", que ainda precisarão ser
povoadas). A economia espacial da nação está mais bem
integrada, com rodovias e ferrovias de alta velocidade
ligando firmemente os mercados do sul e do norte e
desenvolvendo o interior para que tenha uma ligação
melhor com a costa. Embora o governo central já desejasse
realizar algo dessa natureza (o projeto da rede ferroviária
de alta velocidade é da década de 1990), ele mobilizou tudo
o que pôde nesse período para absorver a força de trabalho
excedente potencialmente revoltosa. Em 2007 não havia
nem um quilômetro de ferrovias de alta velocidade na
China. Em 2015 já havia quase 20 mil quilômetros ligando
todas as principais cidades do país.
88
A expansão geográfica promovida pela China em múltiplas
escalas promove um aumento da demanda efetiva relativa a sua
produção tanto no mercados externo como também pelo seu
poderoso mercado consumidor interno. Entrementes, essa produção
do espaço promove uma aceleração da compressão espaçotemporal,
o que torna o tempo de giro do capital menor. Aumenta, dessa forma,
as vantagens locacionais de se produzir na China e acentua a
desvalorização de outras regiões. Ocorre, dessa forma, uma dupla
acumulação: de capital e de poder (HARVEY,2004).
O anúncio por parte da comissão europeia de um projeto
bilionário de investimentos em infraestrutura denominado Global
Gateway (Valor econômico,2021) lançado no final de 2021, é uma clara
resposta a expansão geográfica promovida pela china em escala
global. O projeto Europeu tem uma previsão de alcançar países da
África, América Latina e Ásia. A inciativa revela uma estratégia na
geopolítica global que tem nos ajustes espaciais um dos seus alicerces.
Acentua-se a compressão espaçotemporal e a tensão entre Estados.
Justamente por isso Harvey (2020, p.125) comenta que " Além disso,
noto um renascimento do interesse em teoria geopolítica desde cerca
de 1970, assim como uma disposição renovada de reabrir o problema
da espacialidade a uma reconsideração geral". Esse renascimento da
geopolítica não passou despercebida pelo Guzzini (2020) ao também
afirmar que existe um interesse crescente sobre o tema.
Um outro exemplo claro no sentido de demostrar como a
produção do espaço está no centro das disputas geopolíticas é o
anúncio no último 26 de junho de 2022 de um programa de
infraestrutura global lançado pelos países do G7 (DW,2022). O
programa intitulado " Associação Global Para Infraestrutura" prevê
um investimento em torno de 600 bilhões de dólares até 2027 para
infraestrutura. A disputa geopolítica tornou uma disputa por ajustes
89
espaciais. Essa dimensão geopolítica do conceito já tinha sido
observada por Harvey (2016, p.146), que destaca:
Nesse caso, o ajuste espaçotemporal adquiri um significado
muito mais sinistro, transformando-se em exportação de
desvalorização local e regional e destruição do capital
(como ocorreu em larga escala no Leste e no Sudeste
asiático e na Rússia em 1997-1998). Como e quando isso
acontece, no entanto, depende tanto das formas explicitas
de ação política por parte do poder estatal quanto dos
processos moleculares de acumulação do capital no espaço
e no tempo.
A ação explicita do poder estatal na produção do espaço como
estratégia geopolítica está evidenciada na multiplicação de projetos
globais de infraestrutura lançados desde 2013 com a Nova rota da
Seda. Um projeto que tinha um alcance inicialmente "limitado" em
direção a África, Ásia e Europa e passa a ampliar a sua abrangência
para a América Latina.
Guerra mundial hibrida e fragmentada, ajustes espaciais e o papel
do Estado
O cenário observado na América Latina nessa primeira década
do século XXI, em que se constituiu uma mudança de época,
encontra-se em turbulência. As mudanças no quadro político da
América latina observadas nesse período podem representar uma
alteração da predominante concepção multilateral-global para uma
concepção bilateral hemisférica (CARMO; PECEQUILO, 2015). Esse
quadro fica ainda mais explícito ao se analisar a América do Sul.
Bolívia, Equador, Uruguai e Venezuela são os remanescentes do
período de mudança de época (ARKONADA; KLACHKO, 2017). O
quadro político contribuí para uma retomada da pauta neoliberal na
região. O processo de ruptura política no Brasil com o golpe judicial-
parlamentar implementado contra o governo da Dilma Roussef
90
representou uma inflexão nos processos de integração da América
Latina, principalmente na América do Sul, ao atingir projetos
políticos de inserção multilateral-global que tinha no Brasil o seu
principal articulador (AMORIM,2016).
O novo quadro geopolítico é mais um capítulo da histórica
ingerência estadunidense na América Latina. A perda relativa de
influência no seu entorno estratégico soma-se a outras situações que
se sucedem na geopolítica mundial. A presença chinesa somada a um
contexto de governos progressistas representou uma grave ameaça
aos interesses de Washington ao propiciarem a implementação de
ajustes espaciais que podem contribuir para precipitar o declínio do
ciclo de acumulação liderado pelos Estados Unidos (ARRIGUI, 2008).
As mudanças e as configurações de disputas por ajustes
espaciais na América latina não podem ser entendidas isoladas das
transformações geopolíticas desencadeadas pela crise de hegemonia
estadunidense iniciada em 2004. Essa crise de hegemonia acirrou a
disputa por espaços que configurassem por parte do bloco de poder
liderado pelos Estados Unidos uma retomada da hegemonia perdida.
Por outro lado, nota-se a continuidade da expansão de ajuste
espaciais promovidos pela China. Essas disputas assumiram a face de
um conflito direto entre Estados Nacionais, como no caso da Guerra
da Ucrânia, e, ao mesmo tempo, pelo aumento de tensões ou de
ajustes espaciais como no caso do Mar da China e dos projetos globais
de infraestrutura, respectivamente.
A disputa por ajustes espaciais é a espacialidade em
movimento continuo e elemento constitutivo de novas
geograficidades. Apesar de Ramos (2019.P.3) utilizar o conflito como
chave analítica da geografia para além do Estado e da necessidade de
se caminhar em direção “ da micropolítica, dos infrapoderes, e não
exclusivamente de uma perspectiva transcendente, dando
visibilidade a outros protagonismos sociais”, o papel do Estado, no
91
que tange ao contexto de disputas por ajustes espaciais, é de um
inegável protagonismo ao ser parte um complexo sistema interestatal.
Segundo Jaime Osorio (2019, p.10):
O capitalismo necessita de um sistema interestatal para se
reproduzir e a atual etapa de mundialização precisa do
Estado-nação para operar, tanto no centro quanto na
periferia do sistema mundial capitalista, fazendo dele um
ator fundamental das transformações econômicas e
políticas. Estamos longe da desintegração do Estado-nação,
já que, embora existam processos que parecem debilita-lo,
mais significativos são os que apontam para sua
reorganização, no sentido de fortalecê-lo, de modo que os
conflitos entre Estados se mantém, assim como os limites
para a gestão de um governo mundial.
A complexidade e as estratégias espaciais de poder adotada
por China e Estados Unidos e a compreensão de como contribuíram
para as mudanças político-espaciais na América Latina requer
esforços teóricos que perpassem as contribuições de diferentes áreas
do conhecimento. Nesse sentido, vale destacar o conceito de Guerra
Híbrida e Fragmentada desenvolvida pelo sociólogo Gabriel Merino.
Segundo o autor, ao comentar que devido ao arsenal das potências
uma guerra convencional estaria descartada, o cenário de disputa
apresenta outras características:
Como foi apontado, propomos situar todos esses conflitos
como parte de uma Guerra Mundial Híbrida e
Fragmentada (GMHyF). Ou seja, uma guerra de nova
geração, onde se combinam elementos de guerra
convencional ( entre Estados com exércitos regulares –
como vemos hoje entre a Ucrânia e a Rússia no território da
primeira) e de guerra não convencional e/ou irregular. Uma
guerra que envolve os principais polos do poder mundial e
tem como principal contradição as forças da velha ordem
mundial versus as emergentes forças contra-hegemõnicas
que tendem à formação de uma ordem multipolar. Esse
GMHyF é desenvolvido em todas as frentes: econômica,
tecnológica, financeira, comercial, infirmativa, psicológica e
virtual. É por isso que falamos de guerra comercial, guerra
92
de informação, guerra psicológica, guerra cibernética,
lawfare) e até, recentemente, guerra cognitiva. Uma
característica central é que a Guerra Híbrida é
completamente difusa: o limite entre o militar e o civil,
entre o começo e o fim, entre o público e o privado é
borrado. E observa-se que pode continuar a agravar-se,
aprofundando os confrontos a todos os níveis, sem que
possamos descartar outros cenários igualmente trágicos
(MERINO, p.9, 2022).
Conclusão
O cenário em que as disputar de poder interestatais se
desenvolve, atravessado por uma Guerra Mundial Híbrida e
Fragmentada, desafia a nossa capacidade de análise e requer o
desenvolvimento de ferramentas epistemológicas que contribuam
para o entendimento do caos sistêmicos no qual estamos situados.
Uma reemergência asiática protagonizada pela China tem
caracterizado as transformações em curso no sistema internacional.
Uma projeção chinesa que tem caminhado concomitantemente a um
ajuste espacial em dimensões e alcance superiores ao apresentado
pela Inglaterra, pelos Estados Unidos e os aliados ocidentais. Para
Arrighi (2008, p.225),
Uma das características mais essenciais (e teoricamente
negligenciadas) do capitalismo histórico é a “produção do
espaço”. Esse processo não só foi essencial para a
sobrevivência do capitalismo em conjunturas
especialmente difíceis, como defendeu Henri Lefebvre,
como também foi fundamental para a formação e o
aumento do alcance global do capitalismo como sistema
social histórico.
Os economistas e os geógrafos tendem a considerar todo o resto
subordinado ao econômico ou ao espaço, respectivamente. Essa
forma de pensamento, encontrada também em um tipo de marxismo
vulgar, ainda tem os seus apoiadores. A tentativa de subordinar o
espacial ou o econômico a essa lógica é não entender que não existe
93
economia fora do espaço e espaço fora da economia e que ambos, ao
serem produzidos, partem de uma dada realidade econômica e
espacial determinada e determinante de um conjunto de fatos sociais
de uma totalidade. Santos (1996, p.145) ao comentar sobre essa
questão afirma:
Quando se pretende subordinar o espacial ao econômico, a
primeira pergunta que acode é a seguinte: pode a economia
funcionar sem uma base geográfica? A resposta
naturalmente é não, mesmo se a palavra geográfica é
tomada na sua acepção mais equívoca, como um sinônimo
de condição natural. O fato, porém, é que muitos
economistas e tantos outros cientistas sociais somente
falam do espaço dentro dessa acepção estreita e errada.
Esse entendimento do espaço como sinônimo de natural ainda
é uma percepção comum quando se analisa a produção científica no
campo do internacional, das relações interestatais. As disputas por
ajustes espaciais se acumulam diante dos economistas e geógrafos.
Cabe a nós reafirmar as insuficiências em torno do diálogo entre
economia e espaço e das evidentes lacunas de qualquer análise que
parta de um espaço e uma economia produzidos pela sociedade, a
partir de uma espacialidade e realidades econômicas já existentes e
em constante transformação.
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96
A Geração “U” dos Trabalhadores Estadunidenses: Precarização e
Sindicalização no Pós-Fordismo (2008-2022)
Cassiano Schwantes Corrêa1
Resumo: A Geração “U”, como são denominados os novos
trabalhadores da década nos EUA, têm buscado formas de
reivindicar políticas de seguridade social. O fim do regime fordista
intensificou a flexibilização e desregulamentação das relações capital-
trabalho, o que tem aprofundado um processo de mercantilização e
precariedade da classe trabalhadora. Essa pesquisa tenta elucidar:
quais as dinâmicas político nacionais que, desde 1970, caracterizam o
mundo do trabalho da Geração “U”? De que modo o modelo pós-
fordista arrefeceu as mobilizações trabalhistas, em especial as
sindicalizações? Pode as crises do capital, como a financeira de 2008
e a sanitária de 2020, terem atuado como inflexões no processo de
declínio das sindicalizações, reaquecendo as agitações trabalhistas da
classe trabalhadora estadunidense? Essa pesquisa tem como objetivo
geral apresentar as dinâmicas trabalhistas pós-pandemia,
considerando as variações internas e estruturais da classe
trabalhadora perante o regime de acumulação pós-fordista nos EUA.
Concluindo que a queda das agitações não significou apatia por parte
1
Mestrando em Economia Política Internacional (PEPI/UFRJ). Bacharel em
Relações Internacionais (UNIPAMPA). Pesquisador Associado do Laboratório de
Estudos de Economia Política da China (LabChina/UFRJ).
[email protected].
97
da classe trabalhadora, ou até mesmo uma perda do poder de
barganha. A queda das movimentações de classe representa o
escancaramento da precarização do trabalho por meio das crises
geradas pelo regime de acumulação flexível, dinamizando as
reivindicações e as formas de luta da classe
Palavras-chave: EUA; capital-trabalho; sindicalização; precarização.
Abstract: Generation “U”, as the new workers of the decade in the
USA are called, have been looking for ways to demand social security
policies. The end of the Fordist regime intensified the flexibilization
and deregulation of capital-labor relations, which has deepened a
process of commodification and precariousness of the working class.
This research attempts to elucidate: what are the national political
dynamics that, since 1970, have characterized the world of work of
Generation “U”? How did the post-Fordist model cool labor
mobilizations, especially unionization? Could capital crises, such as
the financial crisis of 2008 and the health crisis of 2020, have acted as
turning points in the process of declining unionization, rekindling the
labor unrest of the American working class? This research has the
general objective of presenting post-pandemic labor dynamics,
considering the internal and structural variations of the working class
in the face of the post-Fordist accumulation regime in the USA.
Concluding that the decline in unrest did not mean apathy on the part
of the working class, or even a loss of bargaining power. The fall in
class movements represents the opening up of the precariousness of
work through the crises generated by the flexible accumulation
regime, dynamizing the demands and forms of class struggle.
Keywords: USA; capital-labor; unionization; precariousness.
98
Introdução
A Geração “U”2, como têm sido denominados os novos
trabalhadores da atualidade nos EUA, não tolera mais a constante
insegurança do ambiente trabalhista e, desse modo, têm buscado
formas de se sindicalizar em busca de melhores aparatos de proteção.
(COZZARELLI; HOFF, 2022). Gerou-se uma onda de demissões em
massa após a pandemia, principalmente motivada por: altas jornadas
de trabalho, ausência de saúde mental pelo desgaste no ambiente de
trabalho, inflexibilidade do empregador, precarização constante
diante da desregulamentação e, crises geradas ao longo dos anos
devido a flexibilidade do capital em um sistema cada vez mais
selvagem. Conhecida como “A Grande Renúncia”, esse
acontecimento foi resultado da exaustão dos trabalhadores
estadunidenses em seus respectivos trabalhos diante de uma falta
excessiva de proteção sanitária diante da pandemia de 2020 e uma
ausência ainda maior de proteções trabalhistas e salários justos.
O regime de acumulação fordista emergiu em 1914 e funcionou
como principal modelo de acumulação de capital até sua substituição
em 1970, caracterizava-se pela baixa especialidade do trabalho e
outras formas de reprodução da força do trabalho baseadas na
alienação e na ideia de reconfiguração do operário moderno a partir
de sua disciplina no ambiente fabril da linha de montagem
(HARVEY, 1992). O regime flexível, distinto em todos os âmbitos do
fordismo, caracterizou-se por uma desregulamentação dos processos,
mercados, produtos e setores do mundo do trabalho. A “compressão
do espaço-tempo”, como Harvey (1992) chama o processo rápido de
difusão de informações e mudanças na globalização, definhou a
relação do capitalismo com o trabalho, aumentando a pressão
2
“U” de Union.
99
competitiva e a mobilidade do capital em prejuízo da segurança do
trabalhador.
Para Beverly Silver (2005, p. 21), o deslocamento constante da
produtividade e do capital nesse sistema flexível de acumulação, em
conjunto da enorme competitividade entre os trabalhadores através
do individualismo, diminuíram o poder de barganha e se iniciou uma
“corrida ao fundo do poço em termos de salários e condições de
trabalho”. Os Estados se tornaram incapazes ou até mesmo, abriram
mão ao mercado de fornecer o welfare state para a classe trabalhadora,
seguindo a lógica de desregulamentação.
No contexto dos EUA, as relações capital-trabalho sofrem
dinâmicas específicas desde a criação do Departament of Labor (DOL)
criado em 1913 pelo presidente William Howard Taft (1909-1913). O
DOL apenas se estabeleceu como órgão consistente federal na década
de 1930/40 com as leis trabalhistas criadas a partir do New Deal, como
por exemplo; a National Labor Relations Act (NLRA) ou, Lei Wagner, a
Fair Labor Standards Act (FLSA), as quais estabeleceram e renovaram
um sistema de seguridade social, trabalhista, sindical e de empregos
diante da necessidade conjuntural de melhorias para a classe
trabalhadora após as greves e paralisações pós-guerras (GODOY,
2005; MCLAURY, 2023). Entretanto, desde 1970 tem se visto uma
precarização das relações trabalhistas e uma diminuição das leis de
proteção social que surgem com as diversas crises estruturais do
capital, tais como 2008 e 2020.
Os processos, mencionados acima, arrefeceram a sindicalização
dos trabalhadores estadunidenses em uma linha declinante ao longo
de todo o século XXI. Contudo, em 2022 o cenário pós-pandemia
apresentou uma alta nas buscas pelos trabalhadores para aderirem
aos sindicatos. O ponto de inflexão deste artigo será a pandemia de
2020 que desencadeou mobilizações sociais intensas e conquistas
100
importantes na área de sindicalização das grandes multinacionais.
Casos da Amazon e da Starbucks se tornaram importantes na luta
atual da classe, conquistando a criação de sindicatos em meio a um
processo de arrefecimento estrutural de lutas trabalhistas nos EUA
(TONCHEVA; BUCKNER, 2022).
Por ser acontecimentos em constantes transformações nos EUA,
essa pesquisa de caráter exploratório levanta algumas questões de
reflexão para elucidar esse mundo do trabalho nos EUA pós-
pandemia: quais as dinâmicas políticas nacionais que, desde 1970,
caracterizam o mundo do trabalho da Geração “U”? De que modo o
modelo pós-fordista arrefeceu as mobilizações trabalhistas, em
especial as sindicalizações? Pode as crises do capital, como a
financeira de 2008 e a sanitária de 2020, terem atuado como inflexões
no processo de declínio das sindicalizações, reaquecendo as agitações
trabalhistas da classe trabalhadora estadunidense? O objetivo central
é apresentar as dinâmicas trabalhistas pós-pandemia, considerando
as variações internas e estruturais da classe trabalhadora perante o
regime de acumulação pós-fordista nos EUA. Para isso, parte-se de
uma pesquisa sócio-histórica de classe a partir de uma visão marxiana
crítica sobre capital-trabalho, além de uma revisão de literatura
primária e secundária, utilizando de sites oficiais como o Bureau of
Labor Statistics e de artigos teórico-conceituais.
Percebeu-se como ponto de inflexão deste artigo que, portanto,
a pandemia de 2020 desencadeou mobilizações sociais intensas e
conquistas importantes na área de sindicalização das grandes
multinacionais, apesar do declínio constante desde 1970. Casos da
Amazon e da Starbucks se tornaram importantes na luta atual da
classe, conquistando a criação de sindicatos em meio a um processo
de arrefecimento estrutural. Concluiu-se que a queda das agitações
não significou apatia por parte da classe trabalhadora, ou até mesmo
uma perda do poder de barganha. A queda das movimentações de
101
classe representa o escancaramento da precarização do trabalho por
meio das crises geradas pelo regime de acumulação flexível,
dinamizando as reivindicações e as formas de luta da classe.
O mundo do trabalho nos EUA: mudanças e continuidades diante
do regime flexível de acumulação
Em 1919 com a chegada da I Guerra Mundial, os EUA
progrediram em direitos trabalhistas em uma tentativa de aumentar
a produtividade e garantir a estabilidade da classe em um cenário
instável de conflitos interestatais (MCLAURY, 1998). A partir disso,
segundo Ramos (2008), as conquistas trabalhistas foram exitosas e
deram passos significativos de progressismo até o surgimento da
Crise de 1929. Estes progressos se demonstraram por meio das leis e
atos desenvolvidos ao longo dos anos e que Ramos demonstra
apresenta:
Figura 01. Leis federais do trabalho nos EUA
Fonte: Ramos (1998).
Ainda que não sejam todas abordadas ao longo da pesquisa, a
maioria destes atos representou vitórias importantes no tecido
trabalhista em matéria institucional de direito à organização sem
102
interferência do legislador e de incipientes padronizações
relacionadas à salário e categorias de trabalhadores (RAMOS, 2008).
Esse conjunto de atos surgiu para fortalecer as regulações nos âmbitos
trabalhistas até certo ponto do modelo fordista, o qual perdurou até
meados dos anos 1970.
O modelo de acumulação de capital do século XX, o fordismo,
identificou-se por meio de; um modelo cooperativista, o que muito
potencializou as movimentações sindicais; de intensa produtividade;
divisão do trabalho robusta; produção e consumo em massa e novas
políticas de controle e gerência do trabalho; e hierarquia consolidada
nas fábricas. Entretanto, o modelo sofreu intensa influência das
consequências das Grandes Guerras e acabou por se reinventar com
as políticas keynesianas de intervencionismo estatal, as quais
salvaram o regime capitalista de uma crise duradoura,
principalmente devido a grande oferta ligada à intensa produção que
se viu diante de uma baixa demanda consequente dos conflitos
mundiais (HARVEY, 1992).
Ainda que as políticas de investimento keynesianas tenham
surtido efeitos significativos nas formas de vida dos trabalhadores,
originou-se uma crise fiscal, monetária e acima disso, mundial, que
impactaram diretamente o welfare dos trabalhadores estadunidenses
e deu-se início a uma radicalização dos movimentos trabalhistas,
influenciada também pela internacionalização das lutas sindicais
advindas das Revoluções de 19683. Nesse contexto, entretanto, o
modelo fordista começou a apresentar limites com o advento cada vez
maior de um mercado consumidor externo e de um cenário
internacional, por vezes, problemático com as crises mundiais tanto
3
Onda de movimentos sociais, políticos e epistemológicos que surgiu na França
e se internacionalizou, colocando em xeque as Ciências Sociais tradicionais e
diversas outras correntes políticas do mainstream.
103
do petróleo, do fim de Bretton Woods e da internacionalização dos
movimentos contraculturais, além dos baixos níveis de produção
internos que geraram estagflação (RAMOS, 1997).
O modelo fordista não alcançou mais os objetivos necessários
de produtividade e controle social para manter uma massa operária
que reivindicava maiores benefícios em um ambiente de baixos
custos produtivos. Desse modo, o próprio capital, segundo Antunes
(2002), precisou apresentar novas formas de dominação social por
meio de uma recuperação de sua hegemonia.
A reestruturação para o novo regime de acumulação mundial
flexível foi a resposta do capital para as novas relações produtivas
trabalhistas que se apresentaram diante da reconfiguração do Sistema
Internacional após 1973. Esse regime se distingue do fordismo por
sua flexibilidade nos mercados, na produção e nas relações
trabalhistas, caracterizando-se por um capitalismo mais volátil,
inseguro e contando com uma financeirização crescente, além de
constantemente propor um distanciamento das ideologias sindicais
de reivindicações por meio do individualismo. Um mercado instável
e flexível não pode contar mais com uma regulamentação rígida no
mundo do trabalho e, desse modo, as regulações jurídicas em prol da
classe são prejudicadas (RAMOS, 1997).
Para mais, o mundo do trabalho nos EUA é historicamente
formado por características liberais de individualismo e
conservadorismo desde as primeiras migrações calvinistas no
continente. Esses fatores moldaram a atual relação capital-trabalho,
potencializada pelo regime de acumulação, fundamentando
desregulamentação e pejotização, aumentando um cenário de
precarização em que os trabalhadores não mais se sentem seguros
diante de um welfare state (GODOY, s/a).
Para Kesselman (p. 72, 2010):
104
[...] o patronato compreendeu o interesse das novas formas
de emprego flexível em sua resistência às restrições
impostas às suas prerrogativas de gestão. O
desenvolvimento da precariedade na indústria alimentou-
se das ondas de reestruturações, de deslocalizações e de
desregulamentação (transporte aéreo, rodoviário), assim
como da lógica financeira subjacente (2010).
Nesse contexto, os sindicatos4 e as mobilizações trabalhistas
gerais sofrem uma queda das taxas de adesão e perdem espaço no
ambiente trabalhista que acolhe uma lógica empreendedora de
resoluções pacíficas mediante relação direta com o empregador.
Segundo o U.S Bureau of Labor Statistics (2023), entre os anos de 1950
e 1960, a média de paralisações trabalhistas era entre 200 e 300 e, o
número de trabalhadores era de 800 a 2000 no período. A partir de
1980 se vê uma queda considerável e, o número de paralisações em
2022 chega a 23 com apenas 120 trabalhadores. Abaixo, visualiza-se a
queda das taxas de sindicalização em queda no setor privado desde
1970, potencializada pela desregulamentação mencionada.
4
Grupo de dois ou mais funcionários que se unem para promover interesses
comuns, como salários, benefícios, horários e outros termos e condições de
emprego. Unindo - ou "agindo coletivamente" - os trabalhadores representados
pelos sindicatos têm uma voz poderosa que fortalece sua capacidade de negociar
com seu empregador sobre suas preocupações (U.S Department of Labor).
105
Figura 02. Taxa de filiação sindical do setor privado dos EUA (1929-
2019)5
Fonte: Economic Policy Institute (2021).
Assim, as gerações da classe trabalhadora estadunidense estão
em constantes modificações em suas dinâmicas devido às leis
internas e as próprias dinâmicas de acumulação internacional.
Contudo, a partir da última década, apesar da queda estrutural das
sindicalizações -utilizada nesta pesquisa como demonstração de
organização trabalhista-, percebeu-se inflexões nos níveis de apoio e
participação dos trabalhadores mais jovens da sociedade
estadunidense. A geração “U” que se apresenta como a nova classe
que nasceu a partir dos anos 2001 e que tem demonstrado apoio às
manifestações sociais e principalmente aos sindicatos, demonstra
uma possível inflexão nas relações capital-trabalho nos EUA. O
gráfico abaixo demonstra essa relação diante das outras 3 gerações
5
Essa pesquisa não focou no setor privado ou público em específico. Ainda que
o privado esteja mais presente, a pesquisa objetiva apresentar um panorama geral
inicialmente para melhor aprofundamento posterior.
106
passadas; Baby Boomers (1945-1964); Geração X (1965-1981); Geração
Millennials (1982-2000); Geração “U”6 (2001-atual) (GLASS, 2023).
Figura 03. Índice médio de aprovação de sindicatos por geração
(1972-2020)
Fonte: GLASS, 2023.
Ainda que o apoio não signifique inteiramente a sindicalização
de fato, essa ação pode representar uma incipiente mudança nas
formas de organização de classe e de lutas por poder de barganha.
Para Cox (2021), as classes trabalhistas estão diante de uma
fragmentação intensa entre os estáveis e os instáveis e sob uma
divisão internacional do trabalho dividida na dicotomia entre o
capital nacional e transnacional, protecionista e internacionalista. Ao
longo da pesquisa, alguns conceitos e análises podem auxiliar na
compreensão das relações capital-trabalho nas crises de 2008 e 2020,
6
Na literatura geral é Geração Z, porém utilizamos do termo Geração “U” nos
âmbitos desse artigo.
107
as duas como inerentes ao modelo flexível atual de acumulação,
perante essa nova geração da classe trabalhadora.
Precariedade: o arrefecimento dos sindicatos e a mobilidade do
capital
Para essa seção, explora-se o conceito de precarização para
entender as dinâmicas do trabalho e as variações que ocorreram após
as crises do capital de 2008 e 2020. Termo que começou a ser utilizado
com mais frequência nas relações capitalistas de trabalho atuais,
possui diversos debates quanto às suas terminações e ainda não
possui uma definição singular. Porém, segundo Nogueira e Carvalho
(2021), o termo surge com maior ênfase para se contrapor ao termo de
trabalho padrão que era utilizado durante o período fordista e que
tinha como características:
[...] um emprego ou vínculo estável, em tempo integral,
dependente e socialmente protegido, em que padrões
mínimos sobre a jornada de trabalho, remuneração,
seguridade social e representatividade sindical são
regulados por uma legislação ou acordos coletivos (2021).
A manifestação do trabalho precário, desse modo, dá-se a partir
da maior abrangência dos “contratos de trabalho temporários,
parciais, contingentes, intermitentes e etc” (NOGUEIRA;
CARVALHO, 2021) após a década de 1970 e 80 sob o novo modelo de
funcionamento da produção e da gestão do trabalho. Nesse sentido,
precário se entende como o contrário do trabalho seguro,
regulamentado e formal. No caso dos EUA, essa tipificação de
trabalho não foi freada através de legislações como ocorreu na
Europa. Kesselman (2010) destaca que após 1980 as agências de
trabalho temporário aumentaram e o status salarial de empregados
diminuiu conforme a redução das negociações coletivas com os
sindicatos.
108
Segundo uma pesquisa do economista Samir Amin (2018)
citada por Santos e Jakobsen (2020), há 50 anos atrás 80% dos
trabalhadores mundiais exerciam ocupações estáveis e apenas 20% se
encontravam em situações instáveis e, atualmente, os dados se
dividem em 40% estáveis e 40% instáveis, enquanto os outros 20% são
desempregados. Contudo, em termos nacionais nos EUA é difícil
medir a taxa de precarização devido os bons indicadores de emprego
e baixos de desemprego, característicos da economia estadunidense
que conta com um alto controle regulatório do capital por meio do
dólar, mas que tem, cada vez mais, apresentado instabilidades
estruturais em suas formações (KESSELMAN, 2010).
Quanto ao próprio processo de acumulação capitalista, para
Beverly Silver (2005) a “hipermobilidade” do capital flexível tornou o
mundo do trabalho um espaço competitivo entre os trabalhadores e
a própria massa se tornou desorganizada, o que diminuiu o poder
dos sindicatos de forma sistêmica. A crise financeira de 2008 e a crise
sanitária de 2020 se apresentaram como momentos de auge da
precariedade para a classe trabalhadora, o aumento da informalidade
e a ausência da eficiência do Estado em garantir políticas públicas
para a classe, são alguns fatores que demonstraram a “corrida para o
fundo do poço” e as respostas inerentes desse processo. Não é
surpresa que as movimentações sociais7 que se colocaram a partir de
2020 ganharam apoio e suscitaram novas formas de mobilização nos
EUA. Além disso, os novos sindicatos formados nas multinacionais
são exemplos, tratados aqui, dessas novas formas de lutas.
Para Mishel, Rhinehart, Windham (2008) nos EUA atualmente
é muito difícil criar um sindicato nos termos legislativos, é preciso
7
Aqui se destaca o Black Lives Matter que conseguiu aderir a outros diversos
ramos de organizações da classe trabalhadora.
109
perpassar por três fases que se colocam de maneira complicada aos
trabalhadores:
Primeiro, a menos que os trabalhadores possam persuadir
seus empregadores a reconhecer seu sindicato sem passar
pelo processo eleitoral, pelo menos 30% devem assinar
cartões sindicais ou petições pedindo ao governo que
realize uma eleição sindical. Em segundo lugar, os
trabalhadores devem vencer a eleição patrocinada pelo
governo por maioria de votos. Só então a lei exigirá que seu
empregador reconheça o sindicato dos trabalhadores e
negocie um contrato sindical “de boa fé”. O terceiro
obstáculo é conseguir que o empregador assine um
primeiro contrato (2008).8
Segundo os autores ainda:
Na década de 1940, os trabalhadores ganharam um
sindicato em 80% das eleições de representação do NLRB,
mas em 1977 os trabalhadores estavam perdendo mais da
metade dessas eleições. E, enquanto 86% dos trabalhadores
que escolheram um sindicato conseguiram um primeiro
contrato na década de 1950, essa parcela caiu para menos
de 70% na década de 1970. Na década de 1990, caiu para
56%. Juntando essas três peças - participação nas eleições,
eleições bem-sucedidas e conquista do primeiro contrato -
mostramos que, embora 0,46% da força de trabalho tenha
conseguido atravessar a linha de chegada da sindicalização
no período de 1966-1968, apenas 0,17% da força de trabalho
força de trabalho foi capaz de fazê-lo em 1978-1980
(MISHEL; RHINEHART; WINDHAM, 2008).9
8
First, unless workers can persuade their employers to recognize their union
without going through the election process, at least 30% must sign union cards
or petitions asking the government to hold a union election. Second, workers
must win the government-sponsored election by a majority vote. Only then will
the law require their employer to recognize the workers’ union and negotiate a
union contract “in good faith.” The third hurdle is getting the employer to sign a
first contract. (tradução própria, 2008).
9 In the 1940s, workers won a union in 80 percent of NLRB representation
elections, but by 1977 workers were losing more than half of these elections. And,
while 86% of workers who chose a union were able to win a first contract in the
110
Portanto, a própria ideia dos sindicatos como projetos de
proteção e seguridade dos trabalhadores foi sendo colocado de lado
no contexto dos EUA em que a ideia de “self made man”10 foi se
intensificando em consonância à ideia de afastamento do Estado
como indutor de políticas sociais de welfare. Para Silver (2005), o
termo “corrida ao fundo do poço” se coloca diante da pressão dos
agentes capitalistas em afastar o Estado destes investimentos, o que
os faz maximizar seus lucros nesses territórios. Além disso, a própria
organização da produção do regime flexível ocasionou uma classe
trabalhadora “desagregada [...] mais propensa à “política do
ressentimento” do que “aos sindicatos tradicionais de classe operária
e à política de esquerda” (SILVER, 2005, p. 22).
A geração “U” e os sindicatos: prospecções para o movimento
trabalhista norte-americano
Segundo os dados do U.S Bureau of Labor Statistics (2021), 10,3%
da força de trabalho estadunidense era sindicalizada em 2021,
totalizando 14 milhões de trabalhadores. É a mesma porcentagem de
sindicalizados em 1930, quando o número era baixíssimo comparado
à população. Hoje as taxas predominam no setor público em
comparação ao privado, Mccarthy (2022) apresenta que 37% dos
trabalhadores públicos pertencem a um sindicato, contra apenas 7%
do setor privado. A pesquisa realizada por Mccarthy, por meio do
Gallup, revelou que quanto mais formação um trabalhador ter, mais
1950s, that share declined to less than 70% in the 1970s. By the 1990s, it was down
to 56%. Putting these three pieces together—participation in elections, successful
elections, and winning a first contract—we show that while 0.46% of the
workforce was able to make it across the unionizing finish line in the 1966–1968
period, only 0.17% of the workforce was able to do so by 1978–1980 (tradução
própria).
10
O homem que triunfa pelo próprio esforço (GODOY, 2005).
111
propenso a se sindicalizar ele é, pois, a taxa de sindicalizados é de
18% entre os pós-graduados, enquanto a taxa de sindicalizados com
apenas ensino médio é de 8%. Além disso, os trabalhadores do Sul
são menos propensos a se sindicalizar, com apenas 6% respondendo
que pertencem. A figura 05 representa essa disparidade das
sindicalizações em níveis regionais.
Figura 05. Cobertura sindical por Estados em 2020
Fonte: Economic Policy Institute (2021).
Outro fator caracterizante se apresenta nas sindicalizações em
2022 por idade, demonstrando que os níveis entre os jovens de 16 a
34 ainda são os menores comparados aos mais velhos. Segundo o
Bureau of Labor Statistics (BLS, 2022), trabalhadores de 45 a 54 anos
possuem as maiores taxas, correspondendo a 12.6% de
sindicalizados, enquanto os jovens de 16 a 24 estão em 12,6%.
Todavia, na figura 06, os dados referentes aos benefícios que os jovens
ganham sendo membros sindicais são importantes para ressaltar que
o poder e as reivindicações dessa nova geração só virão por meio de
112
sua própria mobilização. E isso significa que novas dinâmicas devem
ser pensadas para se contrapor às investidas do capital.
Figura 06. Prêmio salarial para trabalhadores sindicalizados com
idades entre 18 e 34 anos, por raça ou etnia, 2016-2021
Fonte: GLASS, 2023.
Esses dados corroboram a queda estrutural permanente das
sindicalizações desde 1970, o que demonstra ainda uma forma do
capital preponderar nas relações. Mas ainda em termos qualitativos
das agitações nas grandes empresas principalmente após a pandemia,
tendo como exemplos os casos da Amazon e da Starbucks, estas
podem ter atuado como inflexões no processo de “sindicatos em
extinção”, potencializando os trabalhadores da Geração “U”.
Mccarthy (2022) apresenta que 71% da população norte-americana
aprova e apoia os sindicatos, sendo o maior índice desde 1965.
A Crise financeira de 2008 que explodiu após o estouro dos
subprimes imobiliários nos EUA destoou uma fase de reinvenção do
capitalismo global, gerou uma recessão econômica intensa na
economia internacional e os EUA sofreram com o desemprego
estrutural. Aproximadamente se extinguiram 22 milhões de postos de
trabalho na época (FIRMIANO, 2020). Como resultado, seguindo a
lógica de Silver (2005) de que “onde o capital vai, o conflito capital-
trabalho segue”, Golden (2011) apresenta diversas greves que
113
surgiram por meio da crise com o fechamento de fábricas e da rápida
demissão em massa, o que despertou uma alta nas taxas de
mobilizações pós-2008, ainda que tenham sido mínimas.
A figura 07, além de explicitar um pico de crescimento após
2008 tanto no setor público e privado, também demonstrou o
aumento divergente após 2020 nas taxas de sindicalização. Porém,
esse aumento se deve ao fato de que os trabalhadores não
sindicalizados foram mais atingidos pelas crises, o que os fez sofrer
em maior parte pelo desemprego do que os sindicalizados. Isso
explica esse aumento diferente em quatro décadas de declínio.
Figura 07. Organização sindical: declínio e pico de crescimento na
pandemia
Fonte: Pew Research Center (2021)
114
A Crise da Pandemia que surge em 2020 atuou também,
estruturalmente, como uma resposta da reinvenção do capitalismo
histórico. As mudanças inovadoras constantes, características do
regime flexível de capital, possuem um sentido de destruição criativa
- nas palavras de Schumpeter- em que a mobilidade, aceleração e
competitividade refletem diretamente sobre a precariedade da classe
trabalhadora que não possui mais um welfare state que regule essas
relações.
Farrel (2022) demonstrou na figura 08 as mobilizações
trabalhistas nos EUA entre 2012 e 2022, percebendo que o início da
pandemia arrefeceu essas manifestações em grande medida pelas
medidas de distanciamento, mas, em 2022 houve um
recrudescimento dos atos, ainda que menores dos que ocorreram em
2019.
Figura 08. Paralisações sindicalizadas nos EUA entre 2012 e
2022
Fonte: Farrel (2023).
115
Essas questões se refletiram também nas conquistas sindicais
nas grandes multinacionais nos EUA. Em 2022, depois de um árduo
processo que se estendia desde 2020, os trabalhadores do depósito
JFK811, da Amazon Inc, de Stanten Island conseguiram a aprovação de
seu primeiro sindicato após votação entre os trabalhadores. 4.785
votos favoráveis do total de 8mil trabalhadores deu voz ao primeiro
sindicato da empresa (TONCHEVA; BUCKNER, 2022). Desde o início
da organização desse sindicato em 2020, após os trabalhadores se
sentirem ameaçados pelas regras da empresa que violavam o
distanciamento social sem proteção básica de saúde, os empresários
da Amazon atuaram para reverter a organização trabalhista. Lobbies
anti-trabalho são normais nas empresas e não são proibidos por leis,
as próprias companhias contratam agentes para alienar os
trabalhadores por meio de conteúdos anti-sindicais (COZZARELLI;
HOFF, 2022).
Segundo o Esquerda Diário (2022), os bloqueios e boicotes são
constantes nas tentativas de sindicalização:
[...] Em Bessemer, Alabama, o National Labor Relations
Board (NLRB) rejeitou a última votação de sindicalização
devido a extensas técnicas ilegais de destruição de
sindicatos usadas pela Amazon, incluindo a colocação de
uma caixa de correio (para enganar os trabalhadores que
votam por meio de formulários de papel) na propriedade
da Amazon quando se indicou explicitamente que não o
fizessem (2022).
Outro caso que despertou sucesso sindical nos EUA é o da
Starbucks, em que recentemente nove lojas da empresa criaram ou
aderiram à um sindicato. Essas iniciativas partiram também no pós-
11
Seguindo a lógica federalista institucional dos EUA, os próprios sindicatos não
possuem aparatos nacionais e uniformes. O funcionamento sindical funciona por
meio dos depósitos das empresas e é restringido às leis estaduais e à condução
própria dos trabalhadores locais.
116
pandemia, após os trabalhadores relatarem casos de insalubridade e
ausência de materiais para as condições básicas de saúde e proteção
sanitária. Segundo Xavier (2021), a empresa também atuou e tem
atuado para impedir novos processos de sindicalização:
Rossann Williams, presidente da Starbucks North America,
e outros gerentes de loja e executivos têm preenchido listas
de eleitores sindicais qualificados, conduzindo sessões de
escuta anti-sindicais e dizendo aos trabalhadores que seus
benefícios desaparecerão se seus esforços de sindicalização
forem bem-sucedidos (2021).
Para Cozzarelli e Hoff (2022), esses dois processos estão indo
contrários à lógica tradicional dos sindicatos estadunidenses e
abrindo um novo caminho para lideranças sindicais dessa nova
geração, a qual passou por crises econômicas intensas que
reverberaram em suas condições de trabalho. A precarização
contínua na vida dos trabalhadores estadunidenses diante de um
cenário constante de flexibilidade do modelo de acumulação
potencializa as lutas de base dos trabalhadores. Esses atos devem
sinalizar uma nova maneira de adaptação não somente dos
sindicatos, mas das formas de luta da classe trabalhadora sob o
modelo flexível de acumulação de capital.
Considerações finais
As recentes mobilizações trabalhistas nos EUA podem estar
direcionando uma nova fase para os sindicatos, os quais podem ainda
estar estacionados em um período fordista. O modelo de acumulação
flexível tem apresentado constantemente novas formas de
funcionamento e inovação produtiva, o que acarreta diretamente na
relação capital-trabalho novas dinâmicas, em grande medida de
precariedade e “corrida ao fundo do poço”. A redução da
sindicalização é apenas uma demonstração de como a classe
117
trabalhadora se encontra desamparada e desorganizada diante de um
regime predatório de extração de mais-valia. Contudo, uma nova
geração tem se apresentado na direção contrária das últimas décadas
e, essa pesquisa tentou apresentar as dinâmicas que a Geração “U”
pode estar tomando nesse sentido.
Os estudos de Mishel, Rhinehart, Windham (2008) sustentam o
argumento que a redução das barganhas coletivas por meio da
sindicalização, em realidade, não tem se dado por; baixa crença do
trabalhador aos sindicatos por aumento da barganha de poder e/ou
de salários mais altos. A redução se deu diante de uma baixa
capacidade estatal e legislativa de proteger e atender as demandas
trabalhistas sindicais, as quais foram afetadas pelo novo regime
produtivo e que desincentivou o empregado a buscar meios de
reivindicação. Esse argumento vai ao encontro da desregulamentação
pesada das relações trabalhistas que vão na direção de diminuir
custos de produção e aumentar as taxas de lucro. As grandes
multinacionais dos EUA têm se aproveitado da baixa uniformização
legislativa e da alta condição de mobilidade de capital para conduzir
trabalhadores à mercantilização da mão de obra.
Para Kesselman (2010), por exemplo, os EUA possuem o
aparato suficiente para frear esse processo de desregulação em
matéria de emprego seguro e estável, mas para isso, seria necessária
uma vontade política que, dentro dos EUA, depende de lobby intenso
que envolve as multinacionais e suas inclinações imbricadas nos
interesses nacionais, sem deixar de lado a lógica estrutural do capital
por trás.
O que se percebeu, portanto, é que o arrefecimento das
mobilizações trabalhistas não significa menores capacidades de
poder de barganha da classe trabalhadora e, sim, representa um
cenário de intensificação da precarização e das condições básicas de
118
sobrevivência. Os conflitos capital-trabalho seguem para onde o
capital for, demonstrando que as crises estruturais do modelo
capitalista representam pontos de inflexão para o aumento das lutas
e reivindicações trabalhistas. Assim, os movimentos sindicais estão
seguindo rumos alternativos aos sindicatos tradicionais do último
século e isso se deve às mudanças contínuas do processo produtivo
da flexibilidade do regime atual capitalista.
Os casos da Amazon e Starbucks são apenas incipientes
fenômenos dessa nova geração, a qual preza por melhores condições
de trabalho e demanda novas formas de seguridade social e
trabalhista, exigindo por resultado uma pressão intensa contra as
estruturas institucionais e políticas do sistema estadunidense. O
Lobby empresarial que ocorre nas multinacionais está ligado
inteiramente ao sistema político e de policy maker. O que resta à classe
é incentivar novas formas de organização que correspondam às
contradições que o regime flexível coloca aos trabalhadores.
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123
A Gestação do Conflito Russo-Ucraniano: a Rússia sob a Grande
Estratégia Estadunidense no Pós-Guerra Fria
Danilo Silva Rodriguez1
Resumo: O conflito russo-ucraniano iniciado em fevereiro de 2022
deve ser mais bem compreendido como uma guerra por procuração
entre Estados Unidos e Rússia. Em termos das análises sobre a guerra,
a quase totalidade aponta a Rússia como culpada, atribuindo certo
revisionismo a mesma, com pequenas exceções como John
Mearsheimer. Em linha com a defesa de Mearsheimer, o objetivo
geral desse trabalho é identificar os eventos que levaram a escalada
das tensões entre Estados Unidos e Rússia no pós-Guerra Fria.
Ademais, busca-se compreender a razão pela qual tais eventos
ocorreram, sendo necessário analisar os mesmos sob a perspectiva da
grande estratégia estadunidense, além de caracterizá-la. Em suma,
pretende-se apresentar os motivos pelos quais os Estados Unidos
deveriam ser responsabilizados, em última instância, pelo conflito.
Para tal, a metodologia empregada será uma análise qualitativa
calcada nas estratégias de segurança nacional (National Security
Strategy - NSS) das distintas administrações estadunidenses no pós-
Guerra Fria, adicionada de outros documentos complementares que
se julgam importantes, além da utilização de artigos e livros que
abordem o tema em questão. Os resultados obtidos confirmam a
1Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Economia (PPGE-UFRJ) –
bolsista CAPES
124
culpabilidade estadunidense, uma vez que a assimetria de poder
relativo a favor dos Estados Unidos no “momento unipolar” era
demasiada e a política externa estadunidense buscou efetivá-la,
sobretudo nas duas primeiras décadas do pós-Guerra Fria, as custas
dos interesses russos. A partir dessa compreensão, a Rússia estaria
apenas respondendo às políticas agressivas de Washington.
Palavras-Chave: Estados Unidos; Grande Estratégia; Rússia; Ucrânia;
Guerra.
Introdução
O eclodir do conflito russo-ucraniano em fevereiro de 2022
jogou luz à dinâmica geopolítica da região. Aos olhos do observador
atento, o empenho do chamado “Ocidente”, isto é, o bloco
capitaneado pelos Estados Unidos em conjunto com os demais países
do G-7, em sustentar o esforço de guerra ucraniano demonstrou que
o confronto detinha outras camadas mais profundas, muito além de
ser uma questão puramente regional. Em outras palavras, aos moldes
das contendas ocorridas durante a Guerra Fria, tal confrontação se
mostrou como uma guerra por procuração (proxy war) entre o líder
do Ocidente, os Estados Unidos, e a Rússia. Assim como na época
anterior, a capacidade de retaliação nuclear “obriga” que essas
desavenças sejam terceirizadas, papel esse desempenhado pela
Ucrânia. De toda forma, alguns questionamentos surgem: de quem é
a culpa? Quais os motivos que levaram a esse conflito? Segundo a
narrativa dominante, não há dúvidas que a culpa seria da Rússia. Por
sua vez, as explicações fornecidas variam de caráter: alguns focam no
personalismo da figura de Vladimir Putin como um “novo Stálin”,
outros consideram que a Rússia busca reconstruir o império soviético,
enquanto outros atribuem à “herança russa” o “ímpeto por guerras”.
125
No entanto, as mesmas não parecem suficientes para esgotar a
compreensão acerca dos fundamentos do combate em questão.
Sendo tais argumentações bastante simplórias e repletas de
qualificações ad hoc, se faz necessário explorar de forma mais
profunda os possíveis motivos que geraram tal embate para, somente
depois, apontar uma eventual culpabilidade. Um importante passo
foi dado em 2014 por John Mearsheimer, no qual analisou o início da
escalada de tensões entre Rússia e Ucrânia referente à questão da
Crimeia. Em seu artigo intitulado “Why The Ukraine Crisis is The
West’s Fault?”, Mearsheimer identifica a expansão da OTAN, da
União Europeia e a política de promoção democrática como os
principais fatores causadores dessa confrontação, recaindo sobre os
Estados Unidos, sobretudo, a culpabilidade. Sem dúvidas, os motivos
apontados por Mearsheimer são substanciais e razoáveis, ainda que
pareçam insuficientes. Além de inúmeros outros motivos que
geraram discórdia nas relações russo-americanas (nesse artigo
chamados de “cismas”), o autor não explica a razão pela qual buscou-
se expandir essas instituições e promover a democracia. Dessa forma,
esse trabalho buscará traçar as razões pelas quais os Estados Unidos
perseguiram essas políticas no pós-Guerra Fria. Acredita-se que essas
políticas são função de mitos criados sobre a Guerra Fria, nos quais
geraram distorções que embasaram a política externa estadunidense
nesse período.
Os anos 1990 e as raízes da contestação russa: primazia, globalização
e ingerência internacional
Após a dissolução da União Soviética, os Estados Unidos
poderiam “[...] to promote our interests rather than simply defend
them [...]” (NSS, 1993, p.2), isto é, estabelecer o que chamaram de
“nova ordem mundial” calcada nos seus valores e ideais. A despeito
126
da cunhagem de “nova”, essa ordem seria um aprofundamento da já
existente hierarquia entre as democracias industriais estabelecida
desde o pós-Segunda Guerra Mundial (IKENBERRY, 2001, p.215). Tal
período foi caracterizado pela grande assimetria de poder a favor dos
Estados Unidos, o chamado “momento unipolar” (KRAUTAMMER,
1990/1991), favorecendo a capacidade estadunidense de
implementação da mesma. O governo Clinton exemplificaria o que
Smith (2007) chamou de fase do “Imperialismo Liberal”, no qual teria
se originado ao final da década de 1980 e se desenvolvido até 2001. O
imperialismo viria do fato dos Estados Unidos se sentirem cada vez
mais confortáveis em apoiar ações militares para promoção de
valores e instituições liberais sobre outras culturas. Ademais, destaca
Smith (2007, p.77): “Liberal internationalism was now calling itself
“scientific,” and like so many other crusading “sciences” before it [...]
it found the ability to use violence for the sake of “progress” in a
world it sought to remake to its heart’s desire”.
Em termos teóricos, três conceitos principais foram formulados:
a teoria da paz democrática, a democracia como valor universal e a
flexibilização do conceito de soberania. Resumidamente, “Enquanto
a busca pela instauração da democracia seria universal e a paz seria
alcançada se todos os países se tornassem democráticos, o direito
soberano dos Estados só seria justificado se os mesmos cumprissem
com certas normas” (RODRIGUEZ, 2021, p.68). De toda forma, essa
“nova ordem mundial” ou “imperialismo liberal” não teria alterado
os fundamentos centrais da geoestratégia estadunidense, isto é, sua
grande estratégia. Tendo a mesma surgindo durante a Segunda
Guerra Mundial (WERTHEIM, 2020) e se consolidado no pós-guerra,
a mesma se baseava na ideia de primazia dos Estados Unidos, por
vezes chamada de “hegemonia” ou “liderança”. Segundo Porter
(2018, p.9), a primazia teria quatro vetores centrais, a saber: a
preponderância militar; a defesa e contenção dos aliados; a integração
127
de outros Estados nas instituições internacionais criadas pelos
Estados Unidos e na economia internacional; e de prevenir a difusão
de armas nucleares. Em suma, as administrações do pós-Guerra Fria
buscaram alterar a forma pela qual a primazia seria mantida e
aprofundada e como seria apresentada internacionalmente, não seus
pilares estruturais.
Entre os mitos históricos e suas distorções
Sabidamente, a história é contada pelos vencedores com intuito
de angariar apoio doméstico e internacional para avançar seus
interesses pós-conflito. Nesse sentido, a Guerra Fria também teria
sofrido certa distorção. No que tange ao escopo desse artigo,
sobretudo relacionada ao seu término. A imprecisão começa
exatamente quando se mistura o fim da Guerra Fria com a dissolução
da União Soviética, eventos esses distintos e sequenciais. Foi
precisamente a cessação anterior da Guerra Fria que permitiu as
mudanças na União Soviética que geraram sua implosão em 1991. A
Guerra Fria tinha no fator ideológico sua diferença basilar e
aglutinadora, permitindo que o desaparecimento do mesmo pusesse
fim ao conflito. Dessa forma, “On December 7, 1988, Gorbachev
publicly called off the ideological Cold War” (MATLOCK, 2010, p.63),
em discurso na ONU, onde renunciou à Doutrina Brejnev2 e anunciou
a diminuição unilateral das tropas soviéticas. Em janeiro de 1989,
Reagan declara o fim da Guerra Fria (COHEN, 2009, p.191) e
Fukuyama escreve seu famoso “The End of History?”, no qual
profetizou a vitória do Ocidente e dos valores liberais. Ao se omitir a
terminação da Guerra Fria já ao final de 1988, suprimiram-se os
2Nas palavras de Medeiros (2007, p.204): “[...] a instabilidade num país socialista
seria considerada uma instabilidade política para todo o campo socialista,
justificando, deste modo, a intervenção militar”.
128
esforços soviéticos para a obtenção de tal desfecho. Portanto, vendeu-
se a ideia de que a disputa ideológica se deu até a implosão soviética
e a história “provou” qual lado estava correto. A resultante desse mito
foi o triunfalismo da democracia e do “liberalismo econômico” como
última alternativa político-econômica.
Em paralelo à distorção triunfalista, facções (neocons)
pertencentes a administração Reagan e George H. W. Bush detinham
uma interpretação sui generis da razão pela qual o bloco comunista
havia se desmantelado. Para os mesmos, a pressão militar
estadunidense seria causa principal desse evento. Entretanto, tal
compreensão seria uma deturpação histórica bidimensional: tanto na
relação soviética com os países do Pacto de Varsóvia quanto da União
Soviética com suas Repúblicas. A queda do Muro de Berlim é um bom
exemplo da primeira dimensão. Segundo Matlock (2010, p.77):
“Gorbachev created conditions that allowed the Germans to remove
the wall”, condições essas militares (retirada de tropas) e políticas
(liberdade de escolha política). Portanto, os soviéticos permitiram a
dissolução do Pacto de Varsóvia ao renunciarem à Doutrina Brejnev
e fomentarem a glasnost (abertura política) nos países satélites. Por
sua vez, a implosão da União Soviética teria sido função de aspectos
políticos internos, sobretudo advindos das reformas de Gorbachev e
da consolidação do poder de Iéltsin na Rússia (COHEN, 2009, p.119).
Mais além, a escalada da Guerra Fria trazida por Reagan não poderia
justificar o colapso soviético, apenas uma eventual redefinição de
estratégia (MEDEIROS, 2008, p.177). O fruto resultante desse mito
seria a necessidade dos Estados Unidos manterem sua primazia
militar, além da defesa de uma maior utilização do hard power
estadunidense em detrimento do soft power.
Somado às duas adulterações históricas prévias, uma terceira se
consolidou: a versão na qual a Guerra Fria seria uma Terceira Guerra
Mundial e a Rússia um país derrotado. Com relação ao primeiro
129
ponto, Matlock (2010, p.22) refuta: “[..] in fact, the Cold War was
totally unlike the two world wars: there was no direct conflict
between the principal antagonists and no surrender by one side”. Não
só o conflito foi considerado “frio” como seu fim se deu por meios
diplomáticos, sendo os mesmos decisão política da própria União
Soviética, não uma imposição estadunidense. Lateralmente, ao falar
sobre a União Soviética, Kissinger (1994, p.763, grifo nosso) confirma
a crítica ao mito criado: “No world power had ever disintegrated so
totally or so rapidly without losing a war”. Não obstante, mesmo se
a União Soviética tivesse perdido militarmente o conflito, o
tratamento da Rússia como país derrotado seria questionável. Como
ressalta Matlock (2010, p.22): “The Russian Federation of today was
not a party to the Cold War because it was at that time part of a
Communist empire, the Soviet Union, and therefore not an
independent actor. This myth conflates Russia and the old Soviet
Union”. O efeito dessa falsa narrativa seria uma política externa hostil
para com a Rússia, na qual justificava-se a ingerência nos seus
assuntos domésticos e se alienava seus interesses geoestratégicos.
Nesse sentido, nos conta Cohen (2009, p.171), os Estados Unidos
buscaram:
[...] to treat post-Communist Russia not as a strategic
partner but as a defeated nation, analogous to Germany
and Japan after World War II, which was expected to
replicate America’s domestic practices and bow to U.S.
international interests.
As estratégias de segurança nacional e a implementação das
distorções (1994-2001)
A administração Clinton (1993-2001) foi a primeira a governar
totalmente no pós-Guerra Fria. Nesse período, formulou-se sete
National Security Strategies em que suas principais ideias se
130
mantiveram constantes. A atualização da Grande Estratégia
estadunidense foi chamada de Engagement & Enlargement, na qual
partia do pressuposto que os Estados Unidos eram a “Nação
Indispensável”, refletindo o “Momento Unipolar” (NSS, 1994).
Enquanto o “engajamento” demonstrava a inclinação estadunidense
de ingerência internacional, o “alargamento” dizia respeito à
promoção da democracia nos demais países. Em outras palavras, a
estratégia seria expandir as democracias (alargamento) e fomentar a
transformação/ enquadrar os opositores (engajamento).
Visivelmente, as conclusões geradas pelos mitos estão presentes
nessa política externa: o triunfalismo do “modelo ocidental”
(democracia e liberalismo econômico) deveria ser fomentado
(ingerência) e garantido (primazia militar) pelos Estados Unidos.
Ademais, percebia-se claramente haver uma retroalimentação entre
os objetivos econômicos, militares e de valores. Ao comentar sobre a
questão democrática, afirma o Presidente Clinton: “[...] democratic
states are less likely to threaten our interests and more likely to
cooperate with the U.S. to meet security threats and promote
sustainable development” (NSS, 1994, Prefácio, grifo nosso).
Em termos estratégicos, os documentos deixam claro a
centralidade da estabilidade na Europa para a política externa
estadunidense. O objetivo final descrito seria uma Europa
democrática, pacificada e integrada com os Estados Unidos (Ibidem,
p.21). Para alcançar tal finalidade, o elemento mais importante seria a
segurança via força militar3, reforçando-se, assim, a centralidade da
manutenção e expansão da OTAN. Mais além, a OTAN deixaria de
conter apenas um caráter defensivo e se tornaria um proactive
instrument (Idem, 2001, p.5). Outro importante vetor seria a
consolidação da democracia e seus valores nos países do antigo bloco
comunista. Os documentos explicitam que “This is not a democratic
3
“The Cold War is over, but war itself is not over” (NSS, 1994, p.21).
131
crusade; it is a pragmatic commitment to see freedom take hold
where that will help us most” (Ibidem, p.19, grifo nosso). Sendo
assim, “Russia is a key state in this regard”, uma vez que “[...] we
must target our effort to assist states that affect our strategic interests,
such as those with large economies, critical locations, nuclear
weapons [...]. We must focus our efforts where we have the most
leverage” (NSS, loc. cit., grifo nosso). Em suma, a despeito da retórica,
existe um pragmatismo realista por trás da promoção da democracia
na Rússia. Os interesses estadunidenses na consolidação dessa
política e sua ingerência ficam evidenciados na seguinte passagem:
“Our economic and political support for the Russian government
depends on its commitment to internal reform and a responsible
foreign policy” (Idem, 2000, p.34).
Por trás das questões de segurança, economia e de valores,
estaria a questão energética (petróleo) e sua importância basilar. O
petróleo seria estratégico uma vez que, tanto para economia quanto
para as forças armadas, serve como fonte de energia e base para
fabricação de seus derivados, como plástico e químicos (KLARE,
2004). Dessa forma, desde o início da administração Clinton
enfatizou-se a dependência da importação de petróleo por parte dos
Estados Unidos e suas crescentes projeções. Não obstante, a
dependência era agravada pela grande quantidade importada do
Golfo Pérsico. Em vista os problemas trazidos pelos dois choques do
petróleo na década de 1970, os Estados Unidos deveriam buscar a
estabilidade do fluxo de petróleo e desenvolver novas fontes que
diversificassem seus riscos. Para além da garantia do seu próprio
suprimento, os Estados Unidos necessitavam assegurar a aquisição
dos mesmos por parte dos seus aliados e, quando entendido, negar o
acesso aos seus adversários. Nesse sentido, a Bacia do Mar Cáspio
começa a ganhar cada vez mais importância em vista seu potencial
energético (NSS, 1997, p.21). Não por acaso, em 1999 os Estados
132
Unidos assinaram o Acordo do Oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan (BTC),
pelo qual a produção petrolífera no Cáspio via Azerbaijão seria
escoado, além da Declaração do Gasoduto Transcaspiano (Idem,
2000, p.33). Coincidentemente, a Rússia e parte das ex-Repúblicas
Soviéticas estavam inseridas na dinâmica do Cáspio.
A formação dos cismas russo-americanos (1993-2000)
[...] the Cold War ended in Moscow, but not in
Washington (COHEN, 2009, p.171)
A administração Clinton (1993-2001) assume o governo
herdando a grande estratégia de primazia, na qual entende que o
“modelo americano” (república, instituições e modo de vida)
necessita de um ambiente internacional hospitaleiro (BRZEZINSKI,
1997). Para tal, “[...] the United States actively prevents the world
returning to competitive multipolarity. In particular, it seeks to
forestall the emergence of a hostile power seizing control of Eurasia’s
resources” (PORTER, 2018, p.19). Entretanto, Clinton detinha como
foco a questão doméstica, sobretudo a retirada dos Estados Unidos
da recessão econômica4 que se encontrava (MATLOCK, 2010, p.174).
Não havia, portanto, uma nova estratégia ou grandes objetivos para
a política externa, deixando a mesma a cargo do Conselheiro de
Segurança Nacional, Anthony Lake, e do Secretário de Estado,
Warren Christopher, fazendo com que sua administração fosse
acusada de funcionar “no piloto automático”5. Na realidade,
4 O slogan que permeou as eleições de 1992 era “It’s the economy, stupid”,
cunhada por Ross Perot.
5 John Lewis Gaddis, “Foreign Policy by Autopilot”, Hoover Digest, 2000.
133
ocorreram alterações secundárias que em nada ameaçaram a
manutenção da primazia estadunidense. Tais mudanças foram
bidimensionais, de direção e de modo, a saber: enquanto a Contenção
detinha um caráter defensivo, o enlargement era ofensivo; por sua vez,
o engajamento se faria prioritariamente pela via geoeconômica e pela
promoção democrática (PORTER, 2018, p.21). Em suma, o “momento
unipolar” foi utilizado para aprofundar a primazia estadunidense.
Com relação à política externa para com a Rússia, os Estados
Unidos teriam implementado uma dupla política: uma decorativa e
uma real. Ao mesmo tempo em que se dizia que a Guerra Fria havia
ficado para trás e a relação russo-americana agora seria estratégica e
amigável, “The real U.S. policy was different—a relentless, winner-
take-all exploitation of Russia’s post-1991 weakness” (COHEN, 2009,
p.168). Essa “política real” seria acompanhada de promessas
descumpridas, sermões e demandas por concessões unilaterais,
fazendo com que a mesma pudesse ser considerada ainda mais
agressiva que a política estadunidense para a União Soviética. A
execução em paralelo dessas políticas e os reais interesses
estadunidenses por trás das mesmas são visualizados a partir de duas
dimensões correlatadas: a política e a econômica. Em termos
econômicos, desde o início de 1992 um conjunto de economistas
americanos, capitaneados por Jeffrey Sachs, auxilia a transição
econômica na Rússia, a chamada “terapia de choque”. Apoiada por
Washington sob o mantra da livre iniciativa, da propriedade privada
e de um Estado enxuto, os resultados foram catastróficos para os
indicadores econômicos e sociais na Rússia (MAZAT & SERRANO,
2013). Por sua vez, a defesa e corroboração de Washington do governo
Iéltsin calcada nos valores democráticos era, claramente,
inconsistente. Já em 1993, Iéltsin ataca militarmente o parlamento
russo e o dissolve, impõe uma constituição que pouco limita o poder
executivo e frauda eleições (COHEN, 2009, p.170).
134
A justificativa para o tratamento da Rússia como país derrotado
(digno de ingerência externa) diz respeito à potencial ameaça russa.
Ao comentar a visão do lobby anti-russo em Washington, Tsygankov
(2009, p.21-22) afirma que o mesmo “[...] has viewed Russia with its
formidable nuclear power, energy reserves, and important
geostrategic location as a major obstacle in achieving this objective
[primacy]. [...] it was essential to keep Russia in a state of military and
economic weakness […]”. Por esse motivo, já no primeiro mandato
da administração Clinton, a expansão da OTAN passou a ser tratada
como questão de tempo, não de possibilidade (“not whether, but
when”). No contexto da reunificação alemã, a União Soviética teria
concordado que a nova Alemanha fosse membro da OTAN para que
se mantivesse “controlada” pelos Estados Unidos (“to keep the
Germans down”6). Contudo, a condicionante utilizada foi a garantia
das potências ocidentais da não expansão do bloco militar à leste (“not
one inch eastward”). Tais garantias são amplamente analisadas e
confirmadas pela análise do Arquivo de Segurança Nacional da
Universidade George Washington, onde são publicados documentos
relevantes desclassificados7. Entre os que reprovaram tal movimento,
destaca-se George Kennan8. O segunda cisma se deu quando, em
1999, a OTAN bombardeou a Sérvia sem aprovação do Conselho de
Segurança da ONU (MATLOCK, 2010, p.118). Consequentemente, a
OTAN passou a ser vista na Rússia como ofensiva e como tentando
substituir a autoridade do Conselho de Segurança (ZHEBIT, 2019,
p.435).
6
Lord Hastings Lionel Ismay, primeiro Secretário Geral da OTAN, caracterizou
a razão de existência da OTAN da seguinte forma: “[to ] keep the Soviet Union
out, the Americans in, and the Germans down”. Ver em
https://www.nato.int/cps/uk/natohq/declassified_137930.htm
7 Ver em https://nsarchive.gwu.edu/briefing-book/russia-programs/2017-12-
12/nato-expansion-what-gorbachev-heard-western-leaders-early
8 KENNAN, G. Foreign Affairs; Now a Word From X. New York Times, 1998.
135
Aprofundando os cismas russo-americanos e a “segunda guerra
fria” (2001-2022)
O governo de George W. Bush (2001-2009) pode ser definido
como a convergência do pensamento neoliberal (sobretudo
democrata) e neoconservador (principalmente republicano),
caracterizando o que Smith (2007) chamou de fase do “Liberal
Fundamentalist”. Um grande “pacto”, no qual os neoliberais
forneceram os pilares teórico-morais e os neocons o militar. Entre as
teorias do pilar moral, destacam-se: a teoria da paz democrática
(“democracias não guerreiam entre si”), a teoria da transição
democrática (“qualquer povo poderia se democratizar, especialmente
com ajuda externa”) e a responsabilidade de proteger (R2P)
(“legitimação de intervenção para proteção de população na qual o
governo local não conseguisse, não quisesse ou estivesse causando
sofrimento”) (SMITH, 2022, p.22). Por sua vez, o pilar militar defendia
a necessidade de se ter supremacia militar, além da sua centralidade
em relação ao soft power, culminando em um grande unilateralismo
militar. Não obstante, os componentes que caracterizariam a alcunha
de “fundamentalista” seriam outros, a saber: o maniqueísmo, o
messianismo e a demagogia. Resumidamente, enquanto o avanço das
democracias mundialmente era posto como uma luta entre o “bem”
e o “mal” (maniqueísmo) e que se prometia uma “era dourada” ao
fim (messianismo), não se permitia qualquer contestação a essa
narrativa (demagogia) (Idem, 2007, p.202).
Essa nova estrutura de política externa imperialista (“super
engajada internacionalmente”) teria sido mantida pela administração
Obama (2009-2017) (Idem, 2022, p.22) e causado grandes problemas,
sendo a relação com a Rússia um exemplo importante, ainda que
Obama tenha alterado os modos (ênfase na multilateralidade, no soft
power e na geoeconomia). Sobretudo nas duas primeiras décadas do
pós-Guerra Fria, a intepretação dominante em Washington era que a
136
Rússia não era mais relevante internacionalmente e que uma nova
Guerra Fria seria impossível, uma vez que a Rússia não conseguiria
recuperar seu grande status (COHEN, 2009, p.163). Uma mistura de
arrogância, triunfalismo e desconhecimento da dinâmica interna
russa permearam os Estados Unidos. Consequentemente, os Estados
Unidos negaram o reconhecimento de grande parte dos interesses
russos nesse período: seja interferindo diretamente na sua política
(anos 1990), seja demandando a subscrição russa as políticas
estadunidenses, uma espécie de “junior partner” (COHEN, 2009,
p.181). Em suma, enquanto os russos buscavam um tratamento entre
iguais, os Estados Unidos reforçavam a hierarquia do “momento
unipolar”. Após a ascensão de Vladimir Putin (2000-2008) e sua
política de recuperação da soberania russa, visualizou-se a crescente
insatisfação estadunidense e o início (2004 em diante) de editoriais
difamando a Rússia e seu presidente, assim como “constatando” uma
nova Cortina de Ferro (Ibidem, p.178).
As estratégias de segurança nacional no “novo século americano”
(2001-2022)
A administração George H. Bush (2001-2009) formula duas
estratégias de segurança nacional (2002 e 2006) que, na prática, se
inspiram em dois outros documentos: o Defense Planning Guidance
(1992) e o Rebuilding America’s Defenses: Strategy, Forces and Resources
for a New Century (2000). Os quatro documentos enfatizam a
unipolaridade estadunidense, a necessidade de se ter grande
supremacia militar, a busca pela expansão das democracias, a
centralidade de se evitar o surgimento de um peer competitor em uma
localidade estratégia para os Estados Unidos e o imperativo de se
constranger a difusão de tecnologia nuclear. Novamente, a grande
estratégia se mantém intacta, alterando-se apenas a forma e a retórica.
137
Como elemento novo, essa estratégia implementou o ataque
preventivo, no qual “[...] we recognize that our best defense is a good
offense [...]” (NSS, 2002, p.6). A “Doutrina Bush” pode ser considerada
a estratégia que mais buscou aprofundar as distorções trazidas pelo
pós-Guerra Fria. Com relação ao triunfalismo da democracia liberal,
a “vitória” na Guerra Fria teria estabelecido “[...] a single sustainable
model for national success: freedom, democracy, and free enterprise”
(Ibidem, prefácio). Militarmente, os Estados Unidos teriam uma
“força militar incomparável” (NSS, 2002, loc. cit.). Finalmente, ao se
comentar sobre a política para a Rússia (e a China), afirma-se:
“America will encourage the advancement of democracy and
economic openness in both nations, because these are the best
foundations for domestic stability and international order” (NSS,
2002, loc. cit.). Portanto, assim como Clinton, altera-se a direção
(transformando-se em ofensivo-expansiva), porém modifica-se o
modo (maior ênfase no hard power e no unilateralismo).
A administração Obama (2009-2017) assume tentando renovar
a legitimidade da hegemonia estadunidense que fora abalada pelo
unilateralismo da presidência anterior. Essa renovação de
legitimidade estaria vinculada a forma pela qual buscar-se-ia alcançar
os objetivos estratégicos, isto é, via multilateralismo e tratamento da
força como último recurso, não na grande estratégia em si. Dessa
forma, mantém-se a centralidade dos pilares da grande estratégia: a
primazia militar, a segurança e contenção dos aliados, a integração
dos demais países nas instituições internacionais e a prevenção da
proliferação nuclear (NSS, 2010, prefácio). A manutenção da grande
estratégia seria possível uma vez que os Estados Unidos ainda seriam
uma “nação indispensável” em meio ao “momento unipolar”,
fazendo com que seu engajamento internacional fosse essencial.
Permeando essa estratégia encontram-se algumas distorções trazidas
pelo pós-Guerra Fria, sobretudo a importância da supremacia militar
138
(Ibidem, p.1) e o triunfalismo das democracias liberais (Ibidem, p.5).
Por sua vez, no que diz respeito às relações com a Rússia, inicialmente
o objetivo seria apoiar a consolidação dos “valores democrático-
liberais”, uma vez que os mesmos construiriam uma Rússia “forte,
pacífica e próspera” que respeitaria as “normas internacionais”
(Ibidem, p.44). Contudo, na estratégia de segurança nacional de 2015,
a Rússia passa a ser vista como transgressora das normas
internacionais, sendo a resposta estadunidense um mix de apoio
político, reforço militar aos aliados próximos, aumento da segurança
energética europeia e sanções econômicas a Rússia com vias de impor
“custos significativos” (NSS, 2015, p.25). Em suma, quando a
ingerência indireta externa não mais se provou eficaz, uma ruptura
direta se estabeleceu.
A despeito do senso comum, a administração Donald Trump
(2017-2021) não rompe com a grande estratégia estadunidense. Na
mesma, mantém-se a importância dos aliados, da preponderância
militar, das instituições internacionais e da contenção da proliferação
nuclear, reforçando-se a liderança (primazia) dos Estados Unidos
(NSS, 2017, prefácio). Contudo, existe uma revisão das alterações
feitas no pós-Guerra Fria: no campo da direção, onde desde a
administração Clinton existe uma clara ofensividade (em detrimento
do caráter defensivo da Contenção), a administração Trump é muito
mais cautelosa; do ponto de vista da forma, a promoção democrática
advinda do triunfalismo do modelo liberal é suplantada pelo
pragmatismo calcado nos interesses nacionais estadunidenses. Nesse
sentido, rompe-se com o discurso liberal: “It is a strategy of principled
realism that is guided by outcomes, not ideology”(Ibidem, p.1). Não
obstante, algumas interpretações se mantêm: o mito da “vitória” na
Guerra Fria (Ibidem, p.2), o entendimento que a supremacia militar é
central para se negociar a partir de uma posição de força (“peace
through strength”) (Ibidem, p.26) e a visão que o modelo
139
estadunidense é superior (“a force for good”) (Ibidem, p.1). Das
distorções dos mitos trazidos pelo fim da Guerra Fria, apenas a
panaceia do triunfalismo foi rompido por Trump. Com relação à
Rússia, a mesma é vista como um país revisionista que ameaça à
segurança e prosperidade estadunidense, sobretudo na Europa,
buscando minar a credibilidade do comprometimento norte-
americano com o velho continente, além da soberania dos seus países
vizinhos (Ibidem, p.47). Assim, mantém-se a ruptura direta com a
Rússia e a importância das sanções como “punição” (Ibidem, p.34).
A presidência de Joe Biden (2021-) pode ser interpretada como
uma tentativa de conciliar as realidades expostas pela administração
anterior com o discurso liberal do pós-Guerra Fria. Nesse sentido,
reconhece-se a competição geopolítica contemporânea a partir da
perda da unipolaridade do pós-Guerra Fria, na qual é apresentada
pelo maniqueísmo da disputa entre democracias e autocracias (NSS,
2022, p.6). De toda forma, os Estados Unidos ainda teriam a primazia
e seguiriam engajados internacionalmente para mantê-la, reforçando-
se, assim, a continuidade da grande estratégia advinda do pós-
Segunda Guerra Mundial e a centralidade dos seus quatro pilares.
Com relação às três distorções dos mitos advindos do pós-Guerra
Fria, somente o triunfalismo é abandonado – mais por uma questão
prática que conceitual. A despeito da retórica sobre a competição
internacional, o pragmatismo dos Estados Unidos é visualizado
quando os mesmos buscariam apoio não somente dos seus aliados
democráticos, mas de países que, apesar de não possuírem tais
valores, dependessem e/ou apoiassem um “sistema internacional
baseado em regras” (Ibidem, p.8). Em outras palavras, “The most
pressing strategic challenge facing our vision is from powers that
layer authoritarian governance with a revisionist foreign policy”
(NSS, 2022, loc. cit.), sendo China e Rússia, respectivamente, seus
principais adversários. Mais especificamente sobre a Rússia, a mesma
140
é vista como uma “ameaça direta” mas circunscrita, sobretudo a
Europa, devido as suas “limitações estratégicas” e falta de across the
spectrum capabilities (Ibidem, p.11). Portanto, buscar-se-ia controlar as
exportações e sancionar os setores econômicos estratégicos da Rússia
como forma de impossibilitar a capacidade russa de travar futuras
guerras (Ibidem, p.39).
A “segunda guerra fria” e a eclosão dos cismas russo-americanos
A ascensão de Putin ao poder consolida a mudança na política
russa que já vinha sendo implantada com Yevgeny Primakov (1998-
1999) (ZHEBIT, 2019). Seu primeiro desafio foi lidar com o
separatismo da província da Chechênia, na qual estava sob o domínio
de grupos terroristas que permitiam inúmeras práticas contrárias aos
direitos humanos (TSYGANKOV, 2009, p.75-78). Enquanto Moscou
não considerava a liderança chechena nem moderada, nem legítima,
os Estados Unidos condenavam as medidas russas e insistiam que as
partes dialogassem. Aflorou-se, assim, o entendimento russo da
ingerência estadunidense nos seus assuntos domésticos, fortalecendo
os cismas que já vinham da década anterior. Os atentados de 11 de
setembro permitiram, ainda que brevemente, uma maior
aproximação russo-americana, uma vez que a sensibilidade
estadunidense com a questão terrorista se solidificou. A Rússia se
uniu aos Estados Unidos no combate ao terrorismo no Afeganistão,
fornecendo homens, inteligência e bases militares temporárias
(MATLOCK, 2010, p.258-259). Não obstante, a política de Washington
permanecia dúbia para com Moscou. Em paralelo, os Estados Unidos
anunciavam em dezembro de 2001 sua retirada unilateral do Tratado
de Mísseis Antibalísticos (ABM Treaty) e treinavam forças de rápida
reação na Geórgia para proteger o oleoduto Baku-Tbilisi-Ceyhan
(BTC). Contudo, “Killing two birds with one stone was hardly
141
possible after all, since the birds were flying in opposite directions”
(TSYGANKOV, 2009, p.81).
A invasão do Iraque em 2003 sem a aprovação do Conselho de
Segurança da ONU foi interpretada pela Rússia como um ataque a
soberania dos Estados Nacionais, tendo no discurso do combate ao
terrorismo uma maquiagem para o avanço de seus interesses
geoestratégicos. Ainda que condenasse a invasão, a Rússia sabia da
sua posição relativa desfavorável e buscou não se opor diretamente a
mesma. Entretanto, se tornou claro a necessidade de retomada da
influência russa nos assuntos internacionais. Nesse sentido, o boom
dos preços das commodities, sobretudo do petróleo, nos anos 2000
serviu como catalisador da recuperação econômica russa
(MATLOCK, 2010, p.259-260). Por sua vez, o não alinhamento russo
aos ditames de Washington serviu como desculpa ideal para o lobby
anti-russo qualificar a Rússia como não confiável e centrada nos seus
objetivos estratégicos (TSYGANKOV, 2009, p.81). Somado a essas
questões, a Rússia presenciou três ex-repúblicas soviéticas (Geórgia
(2003), Ucrânia (2004) e Quirguistão (2005)) sob sua influência
sofrerem mudanças de regimes, no que ficou conhecido por
“revoluções coloridas”. Através da utilização de ONGs, em grande
parte financiadas pela fundação público-privada National Endowment
for Democracy (NED), a política de promoção democrática de
Washington demonstrou a capacidade de ingerência externa dos
Estados Unidos (RODRIGUEZ, 2021). Para Krauthammer (2004),
esses acontecimentos eram fundamentalmente “[...] about Russia
first, democracy only second. [...] The West wants to finish the job
begun with the fall of the Berlin Wall and continue Europe's march to
the east”.
Os cismas cresceram à medida que a OTAN anunciou uma nova
onda de expansão, agora para países da Europa Oriental e,
principalmente, para os Países Bálticos. Quando na segunda
142
estratégia de segurança nacional da administração George W. Bush
retira-se a cooperação com Moscou e o apoio a entrada da Rússia na
OMC, termina-se com a dualidade. Ademais, sanciona-se a
Bielorrússia que, à época, negociava uma união supranacional com a
Rússia (COHEN, 2009, p.173). Em fevereiro de 2007, na Conferência
de Segurança de Munique, a Rússia reafirma seu papel como potência
internacional e denuncia a política hostil de Washington para com a
mesma. Nesse aspecto, vendeu-se o discurso de Putin como uma
declaração de uma “Segunda Guerra Fria”, ainda que a Rússia
estivesse reagindo dado ““[...] a refusal by the Bush administration to
take Russian interests and attitudes seriously” (MATLOCK, 2010,
p.261). Daí em diante, uma espiral de tensionamento entre Estados
Unidos e Rússia se estabeleceu. Na cúpula da OTAN em Bucareste,
em 2008, anuncia-se a intenção de admissão da Ucrânia e da Geórgia
na aliança militar. Em telegrama9 para Washington no mesmo ano, o
então embaixador para a Rússia William J. Burns “[...] noted that
Russia considered the entry of Ukraine and Georgia into NATO a line
that could not be crossed” (ABELOW, 2022, p.17). No entanto, as
forças georgianas armadas, treinadas e financiadas pelos Estados
Unidos atacaram a região semiautônoma da Ossétia do Sul,
rompendo um cessar fogo e matando forças de paz russa
estacionadas na região por acordos internacionais (MATLOCK, 2010,
p.262). Aos moldes da Guerra Fria, a Rússia intervém contra as forças
estadunidenses por procuração (Geórgia), arrasando seu exército e
reestabelecendo sua posição internacional.
Ao final do primeiro mandato de Barack Obama (2009-2014),
novamente os cismas afloraram. Seguindo o mesmo manual das
revoluções coloridas anteriores, a Ucrânia (2013-2014) passa por
várias convulsões sociais que, culmina, em fevereiro de 2014, em uma
mudança de regime. John Mearsheimer (2014) identifica claramente o
9
“Nyet Means Nyet: Russia’s NATO Enlargement Redlines” (BURNS, 2008).
143
papel dos Estados Unidos na orquestração e fomento desse golpe.
Como resposta, a Rússia anexa a península da Crimeia que detinha
sua base naval no porto de Sebastopol. Alcançado esse ponto de
inflexão, as provocações estadunidenses escalariam
exponencialmente. Inicialmente, os Estados Unidos começam um
grande programa de ajuda militar a Ucrânia (defensivo), superior a
quatro bilhões de dólares (ABELOW, 2022, p.20), além do aumento
significativo das sanções econômico-financeiras sobre a Rússia,
sobretudo aos seus setores estratégicos (ASLUND, 2019). Em
paralelo, os Estados Unidos instalam um escudo antibalístico (ABM)
na Romênia que, ainda que pudesse deter um caráter defensivo,
poderia ser convertido para algo ofensivo. Já na administração
Trump (2017-2021), os Estados Unidos passam a vender armas letais
para a Ucrânia, uma mudança da política até então (ABELOW, 2022,
p.21). Não satisfeito, os Estados Unidos saem unilateralmente em
2019 do Tratado sobre Armas Nucleares de Alcance Médio (1987) e
conduzem exercícios militares na fronteira com a Rússia (Estônia).
Por sua vez, a Rússia entra em 2015 na Guerra da Síria a favor do
governo sírio, em nova proxy war com os Estados Unidos. Por fim, em
2021 a OTAN conduz exercícios militares conjuntos com a Ucrânia, os
Estados Unidos assinam o U.S.–Ukraine Strategic Defense Framework e
ignoram os drafts de segurança enviados pela Rússia. Em fevereiro de
2022, a diplomacia é enterrada e a força empregada, culminando no
término das relações russo-americanas.
Conclusão
O pós-Guerra Fria presenciou a manutenção da grande
estratégia de primazia estadunidense, ainda que sob novos
parâmetros. Dado as mudanças do mundo bipolar para o unipolar, a
grande estratégia adquiriu um caráter ofensivo, se fazendo valer hora
144
do poderio militar, hora do poderio econômico, hora do discurso
democrático e, na maioria das vezes, das três dimensões
simultaneamente. Permeada por distorções históricas advindas de
mitos sobre a Guerra Fria, a política externa estadunidense se
caracterizou pelo super engajamento nos assuntos internacionais e
pela crença que a democracia poderia ser exportada, fomentada e
construída nos demais países. A despeito da narrativa moral, a
promoção democrática seria benéfica para os Estados Unidos uma
vez que avançaria seus interesses geoestratégicos. Nesse sentido,
teorias foram criadas para sustentar a viabilidade e justificativa da
promoção democrática. Não obstante, a real preocupação dos Estados
Unidos não seriam os Estados “autocráticos”, mas os que pudessem
ameaçar seus interesses geoestratégicos, no caso de Rússia e China
chamados de revisionistas. Em suma, carregados pela vontade de
primazia e obtendo um grande poder relativo (unipolaridade), os
Estados Unidos buscaram alargar seu modelo de ordem internacional
e intervir sempre que possível nos assuntos domésticos dos demais
países, sobretudo na Rússia.
Sobre as relações russo-americanas, os Estados Unidos partiram
do entendimento que a Rússia havia perdido a Guerra Fria e, por isso,
não somente não poderia deter uma zona de influência como não teria
o direito de ser completamente soberana. Ademais, não se acreditou
que a Rússia poderia se reerguer novamente. Inicialmente,
aproveitou-se a grande influência estadunidense no governo Iéltsin
para desarticular internamente a Rússia, criando-se um caos político-
econômico que quase levou a fragmentação do país e permitiu, dado
a fraqueza da mesma, o avanço de políticas contrárias aos interesses
russos. Com a ascensão de Putin, a Rússia passa por uma
reestruturação política, econômica e militar na qual reestabelece sua
soberania e sua capacidade de preservar seus interesses
geoestratégicos. Nesse sentido, quando os interesses russos e
145
estadunidenses começam a conflitar, a política de Washington se
torna cada vez mais hostil, seja fomentando golpes de Estado nas ex-
repúblicas soviéticas, seja expandindo a OTAN, seja rompendo
tratados internacionais, seja sancionando a Rússia. Em última
instância, os Estados Unidos buscaram guerras por procuração para
enfraquecer a Rússia, tendo na Geórgia o primeiro exemplo. A
despeito da alcunha de “Segunda Guerra Fria”, muito em função das
guerras por procuração e da rivalidade, a situação atual parece mais
delicada: os Estados Unidos não tratam a Rússia em pé de igualdade,
não respeitam suas legítimas preocupações de segurança e detêm
relações diplomáticas baixíssimas.
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149
A importância dos conceitos de lugar e de saber na interpretação e
estudo da globalização atual: da caracterização da situação crítica à
criação de uma visão crítica da globalização
Oscar Esteban Herrera Florez1
Maria Jose Benjumea Buelvas2
Resumo: O presente artigo apresenta um esquema teórico usando os
conceitos de lugar e saber do Milton Santos que permite entender o
contexto atual de globalização e as resistências, mas procurando
entendê-las só desde a lógica dos espaços luminosos, se não também
desde a dos espaços opacos. Nesse sentido se procura avançar no
entendimento das dinâmicas espaciais das cotidianidades e das
resistências.
1
Cientista político da Universidade nacional da Colômbia e estudante de
Mestrado em geografia Universidade Estadual de Campinas
[email protected]
2
Filosofa da Universidade nacional da Colômbia estudante da especialização em
politicas publicas para a igualdade em América Latina.
[email protected]
150
Introdução
O presente artigo tem a intenção de fazer uma caracterização
dos conceitos lugar e saber dentro do desenvolvimento da proposta
de Milton Santos para entender a globalização também como
possibilidade. Para isso, faz-se aqui, também, uma conexão com o uso
que Ana Clara Torres Ribeiro faz desses conceitos. Esperamos dessa
forma, plantear algumas reflexões sobre as capacidades e
particularidades dos conceitos para o entendimento da globalização
atual, os processos de mudança, os espaços opacos e as alternativas.
O artigo tem como objetivo fazer foco na leitura de alguns
textos dos autores e no funcionamento que têm os conceitos dentro
do aparelho teórico por eles propostos. Portanto, o artigo tem a
intenção de fazer uma reflexão principalmente teórica que procurará
sublinhar a função das ideias-conceitos de saber e lugar no emprego
do entendimento da realidade da globalização atual e na construção
da uma nova globalização, já que como diz Althusser (1968, p.20) “las
realidades de las luchas de clases están “representadas” por medio de
“ideas” que son “representadas” por medio de palabras.”
A globalização, como diz Milton Santos não se compõe de um
processo só, dentro dela acontecem múltiplos processos com
múltiplas direcionalidades e intencionalidades. Se bem o capital
procura comandar, transformar, e adequar os territórios, em função
de um motor único (2001, p.133), as tenções e contradições nunca
terminam e por tanto o espaço nunca termina de ser configurado para
o capital. Porém, o capitalismo tem a intenção de ser um projeto total
e totalizante. A heterogeneidade resulta da ação de abrir janelas de
possibilidade o tempo todo. Nesse sentido, torna-se necessário
estudar e entender não só os processos de desenvolvimento e
produção do espaço pelo capital se não também os processos que o
resistem. Ai a importância dos conceitos de saber e lugar.
151
Nesse sentido, sublinhando os conceitos de saber e lugar na
produção espacial na globalização como mito, perversidade e
possibilidade se pode ter a possibilidade como um lugar sempre
presente dentro dos projetos da cotidianidade e a cotidianidade
dentro dos projetos alternativos à globalização hegemônica.
O lugar e o saber na globalização como fabula
Há certamente uma intencionalidade da informação que é
produzida para articular o mundo sob o comando da globalização, a
atual globalização tem uma máquina que é uma “máquina ideológica
que sustenta as ações preponderantes da atualidade (e) é feita de
peças que se alimentam mutuamente e põem em movimento os
elementos essenciais à continuidade do sistema” (SANTOS, 2013,
p.9). Mas a ideologia procura não só reproduzir o sistema, senão
também dar sentido aos próprios erros do sistema.
Nesse sentido a globalização é principalmente uma promessa
que deve ser assumida como o sono do mundo. Embora os
desenvolvimentos técnico científicos são constantes, as riquezas são
cada vez maiores, e a produção de alimentos já é suficiente para
acabar com a fome do mundo -entre outras coisas, a vida cotidiana da
maioria do mundo não muda para ser o mundo promessa e o atual
modo de globalização não demostra ser a solução3. Mas, as pessoas
3
No informe da FAO sobre o seguimento de cumprimento dos indicadores dos
ODS diz que “El número de personas afectadas por el hambre a nivel mundial
ha aumentado lentamente desde el 2014. Las estimaciones actuales indican que
cerca de 690 millones de personas padecen hambre, es decir, el 8,9% de la
población mundial (un aumento de unos 10 millones de personas en un ano y de
60 millones en cinco años).” Inclusive nem as metas propostas pela ordem global,
com os métodos da ordem global, são cumpridas nem tem possibilidades de ser
cumpridas já que como diz o informe “el mundo no está em vias de alcanzar la
meta 2.1 de los ODS (poner fin al hambre) para 2030”.(2021, p.9)
152
de todo o mundo, especialmente do chamado “terceiro mundo”,
devem seguir acreditando na fábula da globalização como a grande
mudança para todos.
A globalização em sua falta de congruência tem como fundo
as fabulações que mobilizam uma parte do mundo que vive distante
das bondades da globalização, mas que trabalham para que quem
desfruta dos privilégios da globalização na atualidade os continue
desfrutando. A desigualdade e a pobreza atual são fundamentais
para a reprodução do modelo de globalização atual, mas só a
promessa de que algum dia os que hoje são pobres poderão desfrutar
das riquezas produzidas permite configurar a ordem atual. Como diz
Milton Santos “no lugar do fim da ideologia proclamado pelos que
sustentam a bondade dos presentes processos de globalização, não
estaríamos, de fato, diante da presença de uma ideologização maciça,
segundo a qual a realização do mundo atual exige como condição
essencial o exercício de fabulações” (2003, p.10). As fabulações são
produzidas pelo comando do motor único, a imagem e os desejos que
elas produzem geram contradições, principalmente com o espaço
herdado e a heterogeneidade de ações e intenções que nele se
desenvolvem. Assim, a
aldeia global tanto quanto espaço-tempo contraído
permitiriam imaginar a realização do sonho de um mundo
só, já que, pelas mãos do mercado global, coisas, relações,
dinheiros, gostos largamente se difundem por sobre
continentes, raças, línguas, religiões, como se as
particularidades tecidas ao longo de séculos houvessem
sido todas esgarçadas. Tudo seria conduzido e, ao mesmo
tempo, homogeneizado pelo mercado global regulador.
(Milton, Santos. 2003, p.21)
O local como ideia subordina às expressões do lugar como
realidade, e assim procura fazer cada vez mais estranho o saber do
território, e cada vez mais normal a localização do comando. Fazendo
com que na globalização atual a relação saber-lugar seja suplantada
153
pela relação local-comando e com que a lógica da horizontalidade
esteja sob a verticalidade. Assim, o capital explora e apropria o
produzido horizontalmente para concentrar e centralizar a riqueza
para crescer à lógica do comando central. As fabulas da globalização
faz achar que o desenvolvimento que se produz horizontalmente vai
dar um adiantamento social amplo, mas a realidade é outra, o que se
produz é acumulado e usado para desenvolver as capacidades do
controle do capital sobre os lugares.
Em nome da fantasia da globalização e do comando do motor
único se dá virtudes e faculdades excepcionais em detrimento dos
cidadãos e das instituições públicas. Cada vez mais os assuntos
públicos são decididos fora dos territórios de quem os vive, então o
sono da globalização arrebata aos cidadãos a possibilidade de criar
seus sonos próprios. A globalização como fabula existe como
necessidade para o capital e como limitação para o tecido do
território. É importante sublinhar que “Sem essas fábulas e mitos, este
período histórico não existiria como é: também não seria possível a
violência do dinheiro. Este só se torna violento e tirânico porque é
servido pela violência da informação.” (SANTOS. 2003, p.21)
A globalização que é articulada pela fabula tem a sua base na
violência da informação, porque as técnicas globais são agora mesmo
normas que organizam o território e a forma-conteúdo que é
configurada pela relação ideológica-política que há entre a técnica-
norma é atualmente a absolutização da ordem das empresas. A
aceitação atual da governabilidade empresarial4 é a expressão disso,
4
Usamos aqui o conceito de governo empresarial apresentado pelos autores
Pierre Dardot e Christian Laval no livro “A nova ração do mundo”, o qual é
definido como a transformação da ação pública, a qual torna “o Estado uma esfera
que também é regida por regras de concorrência e submetida a exigências de
eficácia semelhantes àquelas a que se sujeitam as empresas privadas. [...]
Embora o Estado seja visto como o instrumento encarregado de reformar e
administrar a sociedade para colocá-la a serviço das empresas, ele mesmo deve
154
a ação pública agora não tem a função de cumprir com as necessidades
e interesses dos cidadãos senão “ordenar as sociedades de acordo
com as exigências da concorrência mundial e das finanças globais”
(DARDOT & LAVAL. 2016, p. 284). Tem-se agora a convicção de que
os interesses e as necessidades das pessoas vão ser atendidas pelas
corporações -por tanto pelo mercado e seus mecanismos, e se volta as
capacidades do Estado para servir às necessidades delas, fazendo que
os interesses das empresas sejam pressupostos como os interesses
gerais.
A mudança na concepção da ação pública faz com que para o
Estado o cidadão com direitos seja convertido ao mero produtor de
mais valia, o melhor exemplo disto é que a política social já não
procura garantir o cobrimento das necessidades da população senão
“maximizar a utilidade da população, aumentando sua
‘empregabilidade’ e sua produtividade, e diminuir seus custos”
(DARDOT & LAVAL. 2016, p. 284). Em conclusão, as fabulações
fazem que a redução de direitos, a entrega do poder político e a
capacidade do Estado à gestão das corporações, sejam vistos como a
solução aos problemas dos países -principalmente dos países pobres,
embora a realidade e a experiência demostrem o contrário. As pessoas
continuam acreditando nas fabulações, e o poder hegemônico
continua a produção e a difusão da informação-ideologia que
desacredita o saber cotidiano para fazer dos princípios neoliberais
verdades absolutas.
curvar-se às regras de eficácia das empresas privadas.” (DARDOT & LAVAL.
2016, p.271-272) Então agora o Estado não trabalha para fazer cumprir os direitos
dos cidadãos senão para as empresas, as quais são agora quem distribuem aos
cidadãos (agora consumidores) mediante mecanismos de mercado os bem e
serviços que precisam. Então “o Estado tem agora uma responsabilidade
eminente no que se refere tanto ao apoio logístico de infraestrutura aos
oligopólios quanto a atração desses grandes oligopólios para o território
administrado por ele” (DARDOT & LAVAL. 2016, p.283)
155
O mundo desenhado para e pelas corporações faz com que o
motor único seja imposto como a ração do mundo, a possibilidade da
ação e do conhecer são preestabelecidos deixando só uma opção,
fechando e reduzindo a realidade. A tendência então da globalização
atual é o totalitarismo, o qual limita o lugar e suas múltiplas
dinâmicas horizontais à verticalidade do local, e o saber à razão
instrumental e à técnica que estandardiza os conhecimentos à
dinâmica de produção de mais valia para as grandes corporações.
O saber é então reduzido pelo conhecimento único, o qual
procura uma homogeneização que faz da diferença parte da
tendência única – a reprodução do capital, ou elimina-a. O resultado
é a reprodução de receitas técnicas para a aplicação nos diferentes
contextos existentes e a clonagem de contextos para fazer
operacionais as mesmas receitas em lugares diferentes. A
cotidianidade, e por tanto o lugar, tem diferentes formas de ser e de
entender os problemas e resolvê-los, mas, a diferença faz com que os
custos sejam mais altos e, na dinâmica de geração de lucro5, a redução
5A racionalidade do lucro tem como norma a estandardização das dinâmicas e a
redução das mesmas à única forma do uso possível e aceitável dentro da
dinâmica do motor único do capital, o valor de troca. Para fazer exitosa e
intensiva a expansão da dinâmica na globalização apresenta-se a técnica como
um valor global e irredutível, e assim “a técnica alimenta a estandardização,
apoia a produção de protótipos e normas, atribuindo ao método apenas a sua
dimensão lógica, cada intervenção técnica sendo uma redução (de fatos, de
instrumentos, de forças e de meios), servida por um discurso.” (Milton Santos.
2001, p.119) A capacidade de desenhar e desenvolver de forma estandardizada
as dinâmicas que respondem ao lucro, precisa de envolver e estandardizar o
conhecimento de uma racionalidade que tenha a expansão da verticalidade do
poder do capital como lei, e por tanto, como diz Milton Santos “A racionalidade
resultante se impõe às expensas da espontaneidade e da criatividade, porque ao
serviço de um lucro a ser obtido universalmente. É dessa forma que a técnica se
torna auto propulsiva, indivisível, auto expansiva e relativamente autónoma,
levando consigo a respectiva racionalidade a todos os lugares e grupos sociais.”
(SANTOS. 2001, p.119)
156
dos custos uma necessidade imprescindível. Nesse sentido, como diz
Byung-Chul Han, podemos afirmar que
a la globalización le es inherente una violencia que hace que
todo resulte intercambiable, comparable y, por ende, igual.
La comparación igualatoria total conduce em ultimo
termino, a una pérdida de sentido. El sentido es algo
incomparable. Lo monetario no otorga por si mismo
sentido ni identidad. La violencia global como violencia de
lo igual destruye la negatividad de lo distinto, de lo
singular, de lo incomparable que dificulta la circulación de
información, comunicación y capital. Donde dicha
circulación alcanza su velocidad máxima es precisamente
donde lo igual topa con lo igual. (2017, p. 23)
Na globalização o que prevalece é a dinâmica dos espaços iluminados
sobre o saber e a cotidianidade, o que consolida a forma perversa da
globalização atual, já que é principalmente formada pela violência
que é exercida pelos seus dois eixos que são
a forma como a informação é oferecida à humanidade e a
emergência do dinheiro em estado puro como motor da vida
econômica e social. (Essas) (...) duas violências centrais, (são)
alicerces do sistema ideológico que justifica as ações
hegemônicas e leva ao império das fabulações, a percepções
fragmentadas e ao discurso único do mundo, base dos novos
totalitarismos – isto é, dos globalitarismos – a que estamos
assistindo.” (SANTOS. 2003, p.19)
O lugar e o saber na globalização como perversidade
A perversidade do globalitarismo tem na relação
dialeticamente existente de comando vertical e tecido horizontal6
6
Usamos aqui os conceitos de verticalidade e horizontalidade apresentados pelo
Milton Santos no seu libro “A natureza do espaço”, os quais são definidos como
dois recortes que compõem o espaço e que apresentam as duas dinâmicas de
coprodução dele. O espaço entendido mediantes os conceitos de verticalidade e
horizontalidade tem uma noção particular de fluxo, já que “De um lado, há
extensões formadas de pontos que se agregam sem descontinuidade, como na
definição tradicional de região. São as horizontalidades. De outro lado, há pontos
157
outra expressão da contradição entre conhecimento hegemônico ou
de motor único e saber, e entre o localismo da globalização e o lugar.
Estas contradições têm uma dupla tendencia, por um lado no tecido
horizontal se produz elementos que são apropriados pelo capitalismo
para sua reprodução e crescimento, e por outro lado também são as
dinâmicas de apropriação, exploração e comando as que motivam
algumas das possíveis mudanças e alternativas ao capitalismo. Nesse
sentido, as horizontalidades são as dinâmicas que configuram o lugar
de forma diversa e que superam as intenções do desenho global de
reduzi-las a simples plataformas de reprodução do capital e do lucro
já que, como diz Milton Santos, “as horizontalidades são tanto o lugar
da finalidade imposta de fora, de longe e de cima, quanto o da
contrafinalidade, localmente gerada. Elas são o teatro de um
cotidiano conforme, mas não obrigatoriamente conformista e,
simultaneamente, o lugar da cegueira e da descoberta, da
complacência e da revolta” (2011, p.193).
Na cotidianidade as pessoas procuram formas alternativas ao
capitalismo para superar as privações e limitações que ele significa
para a maioria da população, mas também se produz muitas
mercadorias, práticas, e conhecimentos que depois são explorados e
apropriados pelo capitalismo, criando as novas fronteiras e os
recursos com os quais o capitalismo vai desenvolver suas novas
etapas, suas novas dinâmicas de lucro e perversidade.
no espaço que, separados uns dos outros, asseguram o funcionamento global da
sociedade e da economia. São as verticalidades.” (2001, p.119) A definição do
espaço como um sistema de ações e de objetos dinamizado e produzido pelos
fluxos, permite entender o lugar na dinâmica da globalização, e dizer, como
subordinado ao capital, mas também como a possibilidade e o germe da
alternativa ao capitalismo. Em poucas palavras, permite entender o lugar como
uma produção em movimento constante e permite estudar a realidade
socioespacial mais lá do que a hegemonia e academia hegemônica permite olhar.
158
Isso quer dizer que a globalização capitalista faz uma
constante apropriação das produções da cotidianidade7, entre as
produções apropriadas ao resultado de dinâmicas não propriamente
capitalistas ou pré-capitalistas. Contudo, há um elemento central
dentro da forma como a globalização atual dá um uso à diversidade
de coisas que apropria das formas cotidianas que não são
propriamente capitalistas, e é mediante processos hierarquicamente
desenhados que subordinam os conteúdos à racionalidade de lucro.
O saber, como elemento de heterogeneidade nos processos que são
comandados pelas dinâmicas e a racionalidade do capital, é
articulado de forma subordinada já que há “uma valorização das
coisas, por intermédio da organização, que comanda sua vida
funcional” (SANTOS, 1982, p.192), e por tanto a globalização atual
procura a criação de dependências hierarquizadas. O comando é
então sobretudo um fato político -e não somente técnico ou
7
Uma boa explicação disto é realizada pelo autor David Harvey com o conceito
de “acumulação por espoliação”, o qual procura explicar as dinâmicas de
ampliação do processo de acumulação do capital em épocas de crises de
sobreacumulação. As dinâmicas para solucionar os problemas de acumulação
são principalmente as dinâmicas que são nominadas pelo marxismo clássico de
“acumulação originaria” ou “acumulação primitiva”, as quais supostamente só
tem presença nas primeiras etapas de evolução do capitalismo. O que quer
sublinhar o Harvey com o conceito de acumulação por espoliação é que a
acumulação por espoliação é um fenômeno frequente e repetitivo durante a
história do capitalismo (Harvey, 2005). Um exemplo apresentado por Harvey,
que explica as formas de apropriação do produzido na cotidianidade pelo capital
são os mercados de propriedade intelectual e suas dinâmicas de geração de
mercadorias, dinâmicas que têm como marco de possibilidade as regulações
normativas impostas pelas instituições que representam o ordem global atual
como a OCDE, FMI e a OCM, já que “El énfasis en los derechos de propiedad
intelectual en las negociaciones de la OMC (el denominado acuerdo TRIPS*)
marca los caminos a través de los cuales las patentes y licencias de materiales
genéticos, plasma de semillas, y cualquier forma de otros productos, pueden ser
usadas contra poblaciones enteras cuyas prácticas de manejo ambiental han
jugado un papel crucial en el desarrollo de estos materiales.” (HARVEY, 2005,
p.114)
159
econômico como a ortodoxia neoliberal proclama, que cria e reproduz
relações de poder bem especificas no mapa de pontos e nós, onde
como diz Milton Santos “um incessante processo de entropia desfaz
e refaz os contornos e os conteúdos dos subespaços, a partir das forças
dominantes, impondo novos mapas ao mesmo território.” (1982,
p.193)
Os mapas novos são, em outras palavras, o resultado do
processo de clonagem de contextos para a homogeneização de usos e
a expansão da lógica do lucro, a perversidade da globalização se
baseia em fazer funcional os territórios e a vida da maioria do mundo
à uma elite corporativa, e a abstração do dinheiro, onde as
necessidades, preferencias, e usos são equiparados ao valor de troca
e subordinados à reprodução dele. A globalização como fabula é a
ideologia generalizada do que a existência e a abundância do
dinheiro na maioria de processos sociais os fazem mais produtivos e
eficazes, a perversidade da globalização é que essa eficácia e
produtividade não seja para cumprir com as necessidades,
preferencias, e usos da maioria das pessoas, se não para reproduzir
as necessidades, preferencias e usos do capital, e por tanto das
corporações.
A ideologia hegemônica insiste que os mecanismos de
mercado são a melhor ferramenta possível para solucionar as
necessidades das pessoas, ela suponha que o dinheiro é um regulador
das forças produtivas que tornam a vida mais eficiente para dar
solução as necessidades, assumindo por tanto que o dinheiro é um
simples meio, mas no capitalismo o dinheiro é o verdadeiro fim, e não
tanto as necessidades das pessoas, e por tanto as relações e desenhos
territoriais que o produzem de maneira extensiva e intensiva são o
fim. O dinheiro não pode ser esvaziado das relações e os poderes que
o reproduzem - como é entendido pela ortodoxia neoliberal, porque
ele mesmo é uma relação que configura relações e por tanto espaços.
160
Então, o dinheiro torna os lugares e as pessoas uma ferramenta para
seu desenvolvimento global, “a acumulação espalha a sua rede no
mundo em círculos sempre mais amplos, finalmente captando tudo e
todos dentro do processo de circulação do capital” (HARVEY, 1982,
p. 605). Assim, a globalização se torna perversidade.
O espaço como uma ferramenta do capital tende a desenvolver
as dinâmicas dele, o que significa uma centralização e concentração
constantes, o que encaminha as forças de produção para uma nova
etapa de desenvolvimento do capital e o que produz novas dinâmicas
de articulação e por tanto de homogeneização do território. Nesse
sentido, homogeneização e hierarquização são processos que têm
como corolário o aumento do controle sobre o lugar e a separação do
lugar do saber e, por tanto, a consolidação do andaime de
dependências com o capitalismo e com o comando central. A
globalização cria uma rede que afasta os lugares e os saberes dos
projetos locais, e os posiciona no desenho global, distante das
capacidades, intenções, necessidades e aspirações do território.8
Assim, como diz Milton Santos
o crescente processo de homogeneização se dá através de
um processo de hierarquização crescente. A
homogeneização exige uma integração dependente,
8
O atual modelo de financeirização representa uma etapa na qual o capitalismo
tem maior capacidades de exercer o comando central e fortalecer sua hierarquia
e desenho no mundo. As velocidades e a interconexão subordinada que produz
o atual modelo de financeirização permite localizar e deslocalizar atividades por
todo o mundo, gerando dependências e também produzindo por tanto um
governo corporativo que desenha as normas e técnicas nos territórios. (David
Havey,2005) O modelo financeiro tem então como eixo a violência exercida
mediante uma engrenagem de dependências que como afirma David Harvey são
utilizadas “para reorganizar las relaciones sociales de producción en cada país,
sobre la base de un análisis que favorezca la penetración de capitales externos.
Los regímenes financieros internos, los mercados internos y las empresas
prósperas quedaron así a merced de las empresas estadounidenses, japonesas o
europeas.” (2005, p.118)
161
referida a um ponto do espaço, dentro ou fora do mesmo
país. Nos outros lugares, a incorporação desses nexos e
normas externas têm um efeito desintegrador das
solidariedades locais então vigentes, com a perda
correlativa da capacidade de gestão da vida local. (2001,
p.193)
Não são poucos os processos que desorganizam e mudam as
dinâmicas da globalização nos territórios, mas são dois sobre os quais
as reflexões aqui se debruçam, principalmente com a intenção de
apresentar as consequências dos processos de desorganização para o
lugar e o saber. i) as práticas que são produto da relação entre saber e
lugar que configuram dinâmicas de uso particulares, por exemplo, as
práticas de plantio e colheita de alimentos nativos que dependem de
uma complexa rede e acumulação de saberes que têm relação direta
com um espaço herdado e a articulação de novas práticas desenhadas
desde o lugar. Estas práticas são desorganizadas devido ao fato de
que na globalização;
“as próprias técnicas são normas. Uma das
características da técnica é ser ela mesma norma. A
técnica normativa é normatizada no seu uso e é
normativa na sua repercussão sobre os agentes.
Repito: ela é normatizada na sua constituição
íntima, porque é uma forma particular de uso; e ela
é normativa quanto ao seu uso. E essas normas
procuram arrastar a existência de outros agentes –
as normas das técnicas” (SANTOS, 1999, p.20).
e ii) os processos organizativos que definem quem, como e quando
serão realizadas as atividades, e ditar, a relação entre política e técnica
que dão um sentido do lugar ao uso. Por exemplo, os exercícios de
governo territorial que decidem sobre o uso do território, a divisão e
articulação territorial, as dinâmicas de trabalho coletivo e a decisão
sobre o curriculum educativo das escolas.
162
Uma experiência que exemplifica esse processo é a do
Departamento da Guajira e da comunidade Wayúu no norte da
Colômbia, onde a corporação mineira chamada Carbones del
Cerrejón Limited chegou há quatro anos e nas palavras da
comunidade
“ha afectado nuestro territorio de manera irreparable. El
pueblo Wayúu vivía de la cacería, del cultivo, de la pesca,
hoy en día esas prácticas ya no se ven, ¿por qué no se ve el
cultivo? Porque nos estamos quedando sin territorio, nos
están matando las fuentes hídricas, la principal que es el río
Ranchería ya no es apta para el consumo, los peces que
antes había ya no se encuentran porque se han ido
muriendo.” (E produto disso) (…) También sufren por la
contaminación y el poco acceso al agua. “Antes había
mucho disfrute del agua, las comunidades eran las dueñas
de esa agua, no había escases”, evoca García. “Pero hoy
muchos territorios han sido ocupados por Cerrejón, ha
secado arroyos, ha impedido el disfrute del agua. Ha
afectado de manera directa el buen vivir. Ha enfermado,
despojado y desplazado varias comunidades” (Verdad
abierta, 2020).
Além das afetações acontecidas sobre o território, as
comunidades sublinham a diferença e a contradição existente entre o
espaço pensado desde as corporações e as necessidades do espaço das
comunidades. Neste caso, é possível evidenciar como as corporações
criam dinâmicas para desenvolver lógicas de lucro que limitam e
destroem o saber e as dinâmicas existentes no lugar. Além disso,
também faz uma clonagem de espaços que desenvolvem a intenção
de controle e de destruição das relações lugar e saber existentes, como
relata uma líder da comunidade Wayúu
“Ahí está la comunidad de Tamaquito, reubicados, sin agua,
en una casa estilo gringo donde no sueñan, donde no tienen
ni tierra para cultivar, donde no tienen agua para vivir. No
son condiciones dignas para vivir una comunidad Wayuu,
que está acostumbrada a vivir del pastoreo, a vivir del
cultivo”. (Verdad abierta, 2020)
163
A técnica tornada norma é parte da expansão e transformação
das redes do capital desde os fluxos verticais e tem sua base na ordem
hiper hierárquica da globalização atual. O exercício violento da
informação consegue o desenvolvimento de suas capacidades em
função das possibilidades de desorganizar e reorganizar o território
de cima para baixo, onde as prioridades do território e por tanto os
agentes políticos que as decidem são homogeneizados e escolhidos
desde o desenho global. Aqui nos importa sublinhar que o capital
agencia constantemente um processo de produção da instabilidade
do território “de cima” para “baixo”. Isto é, a produção da ordem
para as empresas e da desordem para todos os outros agentes, e para
o próprio território, incapaz de se ordenar porque ideologicamente
decidimos que essas grandes empresas são indispensáveis. Assim,
aceitamos a ideia de que o território tem que ser desorganizado.”
(SANTOS, 1999, p.21)
Umas das ferramentas recorrentes da globalização atual para
operacionalizar e expandir a técnica e o comando do motor único -e
que é um bom exemplo da dinâmica violenta da informação é o
discurso9 do “desenvolvimento”. Para entender o “desenvolvimento”
procura-se voltar à origem do discurso, o qual, como é conhecido
atualmente, foi usado pela primeira vez nos anos quarenta e
9
Segundo Arturo Escobar o discurso é definido como “el proceso a través del
cual la realidad social llega a ser, es la articulación del conocimiento y el poder,
de lo visible y lo expresable.” (2014, p.92) Nesse sentido o discurso não tem só
um baseamento em elementos linguísticos senão em um sistema de relações que
configuram as práticas e os sistemas de objetos, então “Para entender el
desarrollo como discurso es necesario mirar no a los elementos mismos sino al
sistema de sus relaciones recíprocas. Es este sistema de relaciones el que permite
la creación sistemática de objetos, conceptos y estrategias; él determina lo que
puede pensarse y decirse” (ESCOBAR, 2014, p.92). O discurso torna-se uma
relação que figura sistemas de objetos e relações no sentido de que o sistema
técnico e as dinâmicas de poder o consolidam como “una práctica discursiva que
determina las reglas del juego: quién puede hablar, desde qué puntos de vista,
con qué autoridad y según qué calificaciones.” (Arturo escobar, 2014, p.92)
164
cinquenta junto com os conceitos de subdesenvolvimento e terceiro
mundo, já que “fueron productos discursivos del clima de la segunda
posguerra. Estos conceptos no existían antes de 1945. Aparecieron
como conceptos de trabajo dentro del proceso en el cual Occidente, y
en formas distintas Oriente, se redefinió a sí” (ESCOBAR, 2014, p.81).
O princípio do desenvolvimento nesse marco histórico foi o
combate da pobreza, a qual foi definida dentro dos marcos da
economia do mercado, e dizer, muitas das intenções do
desenvolvimento foram e atualmente são a ampliação da economia
de mercado e suas lógicas pelo mundo para cumprir com a suposta
satisfação das necessidades das pessoas em relação ao consumo. Cabe
sublinhar aqui que a pobreza e expansão da lógica do mercado tem
uma intima relação já que como afirma Arturo Escobar
“es cierto que la pobreza masiva en el sentido moderno
solamente apareció cuando la difusión de la economía de
mercado rompió los lazos comunitarios y privó a millones
de personas del acceso a la tierra, al agua y a otros recursos.
Con la consolidación del capitalismo, la pauperización
sistémica resultó inevitable.” (2014, p.70)
O desenvolvimento como ferramenta técnica-discursiva do
capitalismo em nome da luta contra a pobreza abriu as possibilidades
de ampliar as dinâmicas de acumulação que no contexto de pós
guerra foram necessárias para superar as crises de acumulação,
consolidando uma rede institucional, de influência discursiva e de
dependência econômica e cultural – o que na prática significou uma
guerra aberta contra muitas dinâmicas do saber intrínsecas ao lugar,
que fundou as bases do atual modelo de comando e permitiu a
reconfiguração espacial, já que como lembra-nos Arturo Escobar
el tratamiento de la pobreza permitió a la sociedad
(burguesa occidental) conquistar nuevos territorios. Tal vez
más que del poder industrial y tecnológico, el naciente
orden del capitalismo y la modernidad dependían de una
política de la pobreza cuya intención era no solo crear
165
consumidores sino transformar la sociedad, convirtiendo a
los pobres en objetos de conocimiento y administración.
(2014, p.71)
Com a criação e expansão da influência do desenvolvimento e
suas instituições representativas, o desenho global, voltou-se uma
norma no mundo, todos os diferentes territórios só poderiam ser
considerados válidos ou capazes se cumprissem com o modelo único,
mas até que isso fosse possível um forte fluxo de informação desde os
centros do poder condicionaria as decisões políticas. Assim, “detrás
del interés humanitario y de la apariencia positiva de la nueva
estrategia comenzaron a operar nuevas formas de control, más sutiles
y refinadas. La capacidad de los pobres para definir y regir sus
propias vidas se erosionó más profundamente que antes”
(ESCOBAR, 2014, p. 90). A dinâmica do capital é violenta na medida
que não permite outras formas de existir. Desta forma, quando desde
o discurso do desenvolvimento considera-se que um território tem a
capacidade de decidir e porque “autonomamente” está decidindo e
liderando a ampliação da lógica do capital em seu território e em
outros, e dizer, porque reproduze perfeitamente os comandos do
motor único.
Finalmente, cabe sublinhar que o discurso do
desenvolvimento atualmente tem uma participação quase
onipresente nas dinâmicas do governo e decisão local -e um objetivo
o qual quase ninguém critica devido a que seu posicionamento
discursivo tem sido altamente exitoso, e que continua consolidando e
ampliando a lógica dos fluxos verticais e contribuindo para fortalecer
o pensamento único de que os interesses do capital são os mesmos da
maioria das pessoas e que o que oferece o desenvolvimento e o futuro
único possível. Nesse sentido, é importante lembrar que, como diz
Arturo Escobar
el desarrollo era, y sigue siendo en gran parte, un enfoque
de arriba abajo, etnocéntrico y tecnocrático que trataba a la
166
gente (, los territorios) y a las culturas como conceptos
abstractos, como cifras estadísticas que se podían mover de
un lado a otro en las gráficas del “progreso”. (…) No resulta
sorprendente que el desarrollo se convirtiera en una fuerza
tan destructiva para las culturas del Tercer Mundo,
irónicamente en nombre de los intereses de sus gentes.
(2014, p.96)
O lugar e saber na globalização como possibilidade
Mas, como diz Milton Santos “o denso sistema ideológico que
envolve e sustenta as ações determinantes parece não resistir à
evidência dos fatos” (2003, p.58). Para proporcionar um exemplo só
sobre o caso que foi apresentado anteriormente, depois de quatro
anos desde que chegou as corporações mineiras a Guajira os
resultados sociais e ambientais são que “Allí más de 25 comunidades
han sido desplazadas, confinadas y despojadas de sus territorios
ancestrales, y se han contaminado y/o desviado más de 17 arroyos
tributarios del Ranchería —único río del departamento” (CINEP web,
2021).
Embora os sistemas de informação tenham uma ampla
capacidade e o capital consiga quebrar e desarticular constantemente
as lógicas do saber e do lugar, e, por tanto, desorganizar e reorganizar
os espaços da cotidianidade, os fatos da cotidianidade sobrepassam a
engrenagem ideológico e informacional da globalização e “as
populações envolvidas no processo de exclusão assim fortalecido
acabam por relacionar suas carências e vicissitudes ao conjunto de
novidades que as atingem. Uma tomada de consciência torna-se
possível ali mesmo onde o fenômeno da escassez é mais sensível”
(SANTOS, 2003, p.58). O lugar como expressão do encontro entre os
fluxos verticais e horizontais então, não só é composto pelas
dinâmicas da globalização como fabula e perversidade, se não que
abriga as experiências da “horizontalidad cosida por prácticas de
167
cooperación (que) anula, o refracta, vectores de la verticalidad
dominante” (RIBEIRO, 2013, p.22). Um exemplo disto é, voltando ao
caso das comunidades Wayúu sobre as que falamos acima, a
equiparação simbólica que elas fazem da palavra desenvolvimento
(desarrollo em espanhol) com a palavra composta des-arroyo, a qual
significa perdida dos arroios. O jogo de palavras simbolicamente
significa a equiparação entre o desenvolvimento e destruição e
perdida do futuro.
“Sí, llegó, claro, pero el des arroyo (lo dice haciendo la
pausa), la desaparición de los arroyos. Esas promesas que
hicieron del cambio de vida para el pueblo Wayuu sí llegó,
pero para empeorarnos, llegó para acabarnos al pueblo
Wayuu, al afro y al campesino”, sostiene, con firmeza,
Mónica López Pushaina, lideresa del pueblo Wayúu en La
Gran Parada, una de las comunidades afectadas por la
desviación de un tramo del arroyo Bruno, uno de las más
importantes fuentes hídrica que desemboca en el río
Ranchería. (Verdad abierta, 2020)
Neste caso um simples jogo de palavras e uma importante
expressão da ruptura com a ideologia hegemônica e por tanto com as
dinâmicas da globalização como fabula e perversidade que destroem
e limitam o saber e o lugar. O que permite identificar a existência nos
lugares de forças e intenções alternativas às intenções do comando
central. Portanto, é possível reconhecer “rugocidades que impiden las
localizaciones anciadas por la accion hegemônica, lo que alimenta la
noción de territorio que deberá substituir la que orienta esta acción”
(RIBEIRO, 2013, p. 22).
A existência de rugosidades implica que o lugar não está
completamente subordinado à ordem do capital. Há muitas
expressões da heterogeneidade do território que não podem ser
limitadas pelas dinâmicas hegemônicas nem absorvidas pela lógica
do capital, uma vez que o lugar reúne dentro de sua configuração os
fluxos horizontais e verticais, é, por tanto “una determinada
168
manifestación de la tecnicidad exigida por la sobrevivencia, de un
activismo de la reproducción y de una resistencia de lo singular y de
lo diverso” (RIBEIRO, 2013, p. 23).
Assim o lugar tem em sua configuração influências que
conseguem coabitar com as influências do capital sem ser absorvidas,
gerando uma multiplicidade de fluxos que costuram e produzem
espaço continuamente e criam muitos sentidos e saberes que faz do
lugar uma expressão de um processo vivo que representa a
conjugação do passado (espaço herdado), do presente (eterna
novidade) e o futuro (espaço como possibilidade). Assim, o lugar
resulta ser “lo cotidiano siendo, al mismo tiempo, los futuros em los
contenidos, inclusive los que fueron negados en el pasado. Así, el
lugar es materialidad y sociabilidad, también, el conjunto de eventos
que las consiguen y transforman, por determinaciones oriundas de
diferentes escalas” (RIBEIRO, 2013, p.23).
Como Milton Santos apresenta frequentemente em sua obra,
desde que o lugar é configurado por dinâmicas múltiplas e o capital
em sua dinâmica procura acabar com elas para fazer dele a mera
localização e reprodução dos espaços homogeneizados do capital, o
lugar é configurado como expressão dialética de contradições,
encontros, lutas e subordinações, assim cabe lembrar que “se
constituem, paralelamente, uma razão global e uma razão local que
em cada lugar se superpõem e, num processo dialético, tanto se
associam, quanto se contrariam” (SANTOS, 2001, p.225).
O lugar então é configurado por processos que não é possível
interpretar só nas lógicas do capital, o que produz uma confrontação
é contradição com o modelo hegemônico atual, já que os fluxos que
não podem ser subordinados a ele normalmente são identificados
como o outro que precisa de mudança, como já explicamos com o
exemplo do desenvolvimento anteriormente. É importante destacar
que a confrontação dos lugares com a globalização atual não é só a
169
expressão da cotidianidade com suas formas espontâneas e
heterogêneas de sobrevivência, se não também expressões
organizativas que tem sua base em processos espaciais e temporais
complexos e fortes que produzem formas de organização política e
abrem a contradição não só a uma expressão de resistência e
sobrevivência, mas também de alteridade.
A alteridade nos lugares deve ser entendida especialmente
como possibilidade e a ampliação das dinâmicas horizontais até uma
horizontalidade maior e a criação de fluxos entre as horizontalidades
alternativas deve ser entendida como uma possibilidade de produzir
uma nova ordem desde a configuração horizontal que valorize as
necessidades e prioridades das pessoas universalmente e
particularmente, e desatacar que a globalização também pode ser
entendida como possibilidade. Assim, considerando que embora “a
tendência atual é a que os lugares se unam verticalmente e tudo é feito
para isso, em toda parte [...] os lugares também podem se unir
horizontalmente, reconstruindo aquela base de vida comum,
susceptível de criar normas locais, normas regionais... que acabam
por afetar as normas nacionais e globais” (SANTOS, 2001, p.174)
A relação saber-lugar permite a mudança e a possibilidade,
uma vez que a cotidianidade se volta recorrentemente movimento
porque na existência e co-criação de ambos elementos se dão a
configuração de uma série de tácticas e estratégias que são
materializadas em práticas que dotam de capacidade as pessoas que
habitam e produzem os espaços. Nesse sentido, é possível afirmar
que a união deles é então condição necessária e possibilidade da
revitalização da sociedade civil, e por tanto de limitar os fluxos
verticais que procuram expropriar as energias vitais -da terra e dos
humanos, e o produzido horizontalmente. As capacidades
revitalizadas dos territórios procuram adequar constantemente o
espaço para a produção de sociabilidades, quer dizer, a revitalização
170
produto da intensificação da relação lugar-saber faz possível que o
lugar seja comandado pelas forças internas constituídas
horizontalmente e, por tanto, o lugar que consegue retomar -em
muitos casos reconstruir ou criar, a relação com o saber, tem uma
forte vontade organizativa. Nesse sentido, é possível afirmar que “el
lugar es una expresión de la voluntad organizadora, que excede las
directrices administrativas de las organizaciones (hegemónicas)”
(Ribeiro, 2013, p.24).
Mas a organização como expressão de vontade é possível
desde que as dinâmicas do cotidiano possam conseguir refractar
alguns dos fluxos verticais que impõem uma ruptura entre o lugar e
o saber -por exemplo o “desenvolvimento”. Aliás, tendo em conta que
a reconfiguração constante entre saber e lugar é uma condição de
sobrevivência, é possível dizer que a vontade organizativa tem
diferentes escalas de realização, sendo a organização que faz da
relação saber-lugar uma condição para o exercício político e uma
expressão da escala mais distante da influência dos fluxos verticais, e,
por tanto, mais perto da criação de horizontalidades com tendencia à
ampliação.
A força do lugar e a importância de estudá-lo, além das
localizações verticalmente produzidas é que as múltiplas dinâmicas
que são constantemente produzidas nele são a expressão da
sobrevivência da maioria das pessoas à logica do capital, e dizer que
o lugar é constituído pelo presente -a situação crítica, e pela produção
de condições para superar o atual estado de necessidade -a visão
crítica. Assim, a força do futuro como possibilidade tem expressão no
lugar à medida que
por enquanto, o Lugar - não importa sua dimensão - é,
espontaneamente, a sede da resistência, às vezes
involuntária, da sociedade civil, mas é possível pensar em
elevar esse movimento a desígnios mais amplos e escalas
mais altas. Para isso é indispensável insistir na necessidade
171
de um conhecimento sistemático da realidade, mediante o
tratamento analítico do território, interrogando -o a
propósito de sua própria constituição no momento
histórico atual. (SANTOS, 2001, p.174)
Se bem a dinâmica de articulação produzida pela relação da
tríade conhecimento-informação-comando e a localização produz
dinâmicas no lugar e impõem uma lógica. O lugar, devido ao
cotidiano não é completamente subordinado. Nesse sentido, é
possível afirmar que as produções do lugar têm características
qualitativas diferenciais, por exemplo
No primeiro caso, a solidariedade é produto da
organização. No segundo caso, é a organização que é
produto da solidariedade. A ordem global e a ordem local
constituem duas situações geneticamente opostas, ainda
que em cada uma se verifiquem aspectos da outra. A razão
universal é organizacional, a razão local é orgânica. No
primeiro caso, prima a informação que, aliás, é sinónimo de
organização. No segundo caso, prima a comunicação.
(SANTOS, 2001, p.231)
Nesse sentido, sob a condição da relação existente entre lugar
e saber é possível criar diferentes tipos de dinâmicas políticas, e por
tanto, nas formas de sociabilidade que são criadas no lugar estão as
formas das alternativas à ordem atualmente hegemônica. A relação
saber-lugar é vital para pensar uma alternativa, de aí que a violência
informacional seja tão importante para o modelo atual porque só
mediante ela consegue impor um “não futuro” e a ideia de que só há
uma possibilidade do mundo. Então, nos esforços por unir, sublinhar,
criar e recriar a relação entre saber e lugar estão o gérmen da
alternativa, e por tanto da globalização como possibilidade.
Considerações finais
Uma leitura dialética do momento atual permite não só
complexar o entendimento da globalização como processo ampliado
172
e intensivo, senão também identificar uma ampla rede de
interconexões, dependências, violências e possibilidades dentro dela,
ou seja, permite-nos uma leitura crítica e a criação de uma visão
crítica da realidade. A leitura que oferece Milton Santo tem essa
característica, mas como ele mesmo diz, só uma leitura da totalidade
de sua obra permite olhar o movimento e as mudanças intrínsecas na
dinâmica atual. O movimento e a mudança não é só um tópico, mas,
dentro da obra dele, é um dos princípios analíticos fundamentais para
entender a realidade.
Mas, devido que a intenção é não somente entender a situação
crítica senão aportar a uma visão crítica, é importante sublinhar a
importância dos conceitos lugar e saber no entendimento da
atualidade, já que segundo Milton Santos e Ana Clara Torres eles são
conceitos que permitem realizar e qualificar de visão crítica o estudo
e entendimento da realidade. Assim, é importante ressaltar que eles
são conceitos nós que “son verdadeiros nortes reflexivos, que
posicionados el presente implican futuro” (RIBEIRO, 2013, p.17).
Na obra de Milton Santos, como foi apresentado neste artigo,
figura uma relação intrínseca no uso desses conceitos e o
entendimento da globalização como um período histórico que não
tem apenas uma face. Nesse sentido, se abre a possibilidade e se
convida a entender a atualidade desde suas múltiplas articulações e
por tanto propiciando análises complexas, as quais permitem
entender e construir conhecimento especialmente dos processos que
têm sua força nas dinâmicas desde baixo.
É importante lembrar que a relação lugar-saber têm uma
variedade ampla de dinâmicas e é epicentro de grandes
transformações ou cristalizações da realidade, e por tanto a relação
constitutiva entre eles figura uma unidade que dá vitalidade ao
espaço e ao estudo do mesmo, já que como afirma Ana Clara Torres
173
“el saber es la fuerza de los lugares, de la misma forma que el lugar es
la savia de diferentes saberes.” (RIBEIRO, 2013, p. 25) Mas essa
vitalidade, como foi apresentado aqui, tem como condição a
intensidade da relação entre o saber e o lugar, e, nesse sentido, os
fluxos horizontais e verticais que configuram o lugar têm uma escala
definida segundo a intensidade da relação saber-lugar.
Finalmente cabe ressaltar a implicação que têm os conceitos
dentro do fazer acadêmico, já que as ferramentas conceituais e os
métodos teóricos são elementos altamente carregados de sentido que
têm uma correlação dentro da realidade conflitual e móvel. Assim,
não é possível separar o produto do uso deles e a intenção do autor
por escolhê-los, ou seja, a realidade que se estuda e se acha que
merece atenção e a intenção sobre a realidade mesma. Os conceitos
lugar e saber são conceitos que sublinham as dinâmicas e relações que
a academia hegemônica procura ignorar, são conceitos que
evidenciam o cotidiano, as produções e as vidas dos que os modelos
de interpretação hegemônica entendem como meros recursos ou
ignorantes sem agência, poder ou capacidade alguma. O uso dos
conceitos saber e lugar, como diz Ana Clara Torres Ribeiro, são “ideas
que conversan con la renovación deseada para la geografía, con los
deberes del intelectual público y el valor atribuido a la acción.
Orientan la búsqueda del sujeto de la transformación y de un modelo
cívico que favorezca la real experiencia de la ciudadanía” (2013, p.18).
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176
A Nova Rota da Seda Enquanto Estratégia de Projeção Global da
China: uma análise através dos investimentos em energia na
América do Sul
Gabriela Ferreira Chagas Reis1
Carlos Renato da Fonseca Ungaretti Lopes Filho2
Em aproximadamente quatro décadas, a China se transformou
na segunda maior economia do mundo, uma potência exportadora
de bens, tecnologia e capital (Lima, 2018). O setor energético assumiu
uma função crucial na modernização do país, integrando-se ao
planejamento político-econômico como componente da estratégia de
desenvolvimento e inserção internacional (Yergin, 2014).
Entretanto, este modelo econômico criou desafios: o
crescimento da capacidade produtiva ociosa; a dependência externa
para a exportação de excedente e a importação de bens essenciais; e a
posição de maior consumidora de energia primária (26,5%) e
principal emissor global de CO2 (31,1%) (Mendonça et al, 2021; British
Petroleum, 2023).
1
Doutoranda em Estudos Estratégicos Internacionais na Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (PPGEEI/UFRGS). Bolsista CAPES.
2
Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (PPGEEI/UFRGS). Bolsista IPEA.
177
A combinação destes fatores impulsiona mudanças nas
políticas econômica e externa chinesas, reorientando-as em prol do
desenvolvimento sustentável e da atuação assertiva no cenário
internacional (Haffner; Reis, 2023). Paralelamente, a comunidade
internacional passa a discutir alternativas à crise climática,
traduzindo-se na Agenda 2030 (ONU Brasil, 2023).
Neste cenário, torna-se crucial para a China adotar projetos
alinhados a estes objetivos, incluindo a Nova Rota da Seda. A
iniciativa visa promover a integração econômica transcontinental
sustentável, criando redes de conexão terrestre, marítima, digital,
energética e humana, integrando as indústrias chinesas ao mercado
global (Shang, 2015). Assim, a BRI surge como uma estratégia para a
solução dos principais desafios enfrentados pela China (Dunford,
2021).
O objetivo deste artigo é analisar como a Nova Rota da Seda
contribui para a projeção global chinesa, especificamente através de
uma investigação dos investimentos em energia na América do Sul.
Utilizando uma metodologia exploratória, avaliamos inicialmente a
Nova Rota da Seda como estratégia de projeção global chinesa sob o
prisma da geoeconomia (Blackwill; Harris, 2016; Jaeger; Brites, 2020).
A segunda parte consistirá na análise dos investimentos em energia,
destacando como esse setor revela os interesses chineses na iniciativa.
Por fim, serão apresentadas as considerações finais.
Palavras-chave: Nova Rota da Seda; Projeção Global; China;
Investimentos de Energia; América do Sul.
178
Introdução
Entre 1978 e 2010, a China ascendeu para se tornar a segunda
maior economia mundial, consolidando-se como uma potência
industrial exportadora de bens, tecnologia e capital (Lima, 2018). O
setor energético, sobretudo o petrolífero, assumiu uma função crucial
no financiamento da modernização do país, integrando-se ao
planejamento político-econômico como componente das estratégias
chinesas de desenvolvimento e inserção internacional (Yergin, 2014).
O modelo econômico que impulsionou o crescimento chinês, no
entanto, também gerou contradições e desafios. Isso inclui o aumento
da capacidade produtiva ociosa, a dependência externa para
exportação de excedentes e a importação de bens essenciais, além da
posição da China como maior consumidora de energia primária, com
26,5% do total global, e principal emissor de CO2, com cerca de 31%
das emissões globais (Mendonça et al, 2021; British Petroleum, 2023).
Devido ao seu modelo fóssil, a China enfrenta um desafio duplo
na área energética. Por um lado, precisa atender à crescente demanda
energética para sustentar o desenvolvimento e manter sua posição na
economia global. Por outro lado, é imperativo reduzir as emissões de
CO2 para mitigar os impactos socioambientais negativos associados
ao seu modelo econômico de alta intensidade energética (Wu e
Nakano, 2016).
Deste modo, a combinação destes fatores impulsiona mudanças
nas políticas econômica e externa chinesas, reorientando-as em prol
do desenvolvimento sustentável e da atuação assertiva no cenário
internacional (Haffner e Reis, 2023). Paralelamente, a comunidade
internacional passou a discutir alternativas à crise climática,
traduzidas na adoção da Agenda 2030, que tem como objetivos a
redução das emissões de CO2 e a geração de energia acessível e limpa
(ONU Brasil, 2023).
179
Neste contexto, se torna imprescindível para a China a adoção
de políticas que estejam alinhadas com estes interesses, como a Nova
Rota da Seda – ou Iniciativa Cinturão e Rota (Belt and Road Initiative –
BRI). A iniciativa visa promover a integração econômica
transcontinental sustentável, criando redes de conexão terrestre,
marítima, digital, energética e humana, ao integrar as indústrias
chinesas ao mercado global e vice-versa (Shang, 2015). Sendo assim,
conforme argumentado por Dunford (2021), a Nova Rota da Seda
surge como uma estratégia para solucionar os desafios internos e
externos enfrentados pela China.
O objetivo deste artigo é analisar como a Nova Rota da Seda
contribui para a projeção global chinesa, especificamente por meio de
uma investigação acerca dos investimentos em energia na América do
Sul. Utiliza-se de uma metodologia exploratória e dos procedimentos
da revisão bibliográfica e da coleta e sistematização de dados
econômicos, bem como de uma perspectiva teórica associada ao
campo da geoeconomia.
O artigo está dividido em quatro partes, incluindo a introdução
e as considerações finais. Após esta breve introdução, avaliamos a
Nova Rota da Seda como estratégia de projeção global chinesa sob o
prisma da geoeconomia (Luttwak, 1990; Grevi, 2011; Blackwill e
Harris, 2016). Já na segunda parte analisamos os investimentos e
financiamentos chineses em energia na América do Sul, destacando
como esse setor revela os interesses chineses na iniciativa. Por fim, são
apresentadas as considerações finais.
A Nova Rota da Seda sob o Prisma da Geoeconomia
Desde os anos 1970, a importância da mudança na estrutura do
sistema internacional tem sido um ponto central nos debates sobre
ordem política e econômica global. No entanto, somente com o
180
término da Guerra Fria é que se alcançou um consenso acadêmico
sobre as significativas implicações geopolíticas que o
desenvolvimento econômico tem na ordem internacional (Beeson,
2018). Neste sentido, torna-se necessário analisar o fenômeno de
desenvolvimento mais notável da história recente e os impactos desse
processo, considerando o atual cenário socioeconômico e energético
da China, para compreendermos a direção em que a ordem global
está se encaminhando.
O prisma da geoeconomia, portanto, parece proporcionar
ferramentas analíticas para compreender as particularidades
decorrentes da confluência entre estruturas de mercado, atuação
estatal, interesses econômicos e motivações estratégicas presentes no
modelo político-econômico da China e em seu padrão de inserção
internacional. Contudo, antes de adentrarmos especificamente na
análise da Nova Rota da Seda enquanto estratégia geoeconômica de
projeção chinesa, é imperativo revisitar algumas premissas deste
framework teórico.
A geoeconomia, enquanto abordagem teórica, tem suas raízes
na geopolítica, sendo considerada uma extensão desta aplicada às
relações econômicas internacionais ou até mesmo um desdobramento
de sua fundamentação teórica. Assim, a abordagem está
intrinsecamente vinculada à competição geoestratégica entre
Estados, atribuindo, no entanto, uma relevância maior ao poder
econômico em sua análise (Jaeger e Brites, 2020).
O conceito de geoeconomia foi introduzido por Luttwak (1990),
por meio de um estudo sobre a posição dos Estados Unidos diante da
"ameaça" econômica e comercial representada pelo Japão ao final da
Guerra Fria. A partir desse ponto, o autor transpõe a ideia da
competição militar para a esfera do comércio internacional,
argumentando que, apesar da diminuição da lógica de conflito
181
armado, a natureza territorialista e expansionista dos Estados não
pode ser eliminada apenas pelo advento da globalização.
De acordo com Beeson (2018), como resultado do final da
Guerra Fria, houve um processo de diminuição da importância da
rivalidade estratégica ideológica. Isto significou a gradual transição
da priorização do desenvolvimento econômico por parte dos Estados,
o que rapidamente se transformou em uma nova arena de competição
interestatal. Dentro desta perspectiva, Luttwak (1990) propõe que se
torna necessário estudar os efeitos e as causas materiais das disputas
de poder entre diferentes atores para compreender como os Estados
têm utilizado seu capital para obter maior projeção internacional.
Neste contexto, para Blackwill e Harris (2016), a geoeconomia
pode ser entendida como o uso de instrumentos econômicos para
promover e defender os interesses nacionais e para produzir
resultados geopolíticos benéficos, bem como os efeitos das ações
econômicas de outras nações sobre os objetivos geopolíticos de um
país. Grevi (2011, p. 28, tradução nossa), por sua vez, sugere que a
geoeconomia “abarca tanto a conversão de ativos econômicos em
influência política quanto a mobilização de poder político para
alcançar objetivos econômicos por meio da competição ou
cooperação”.
Isto é, na lógica da abordagem geoeconômica, os fatores
econômicos passam a ser compreendidos não apenas como
mecanismos de obtenção de recursos de poder, mas "configuram-se
como recursos de poder per se, transformando a lógica da distribuição
de poder e o perfil da competição interestatal" (Jaeger e Brites, 2020,
p. 24, tradução nossa).
Em outras palavras, a perspectiva geoeconômica expande os
estudos das dinâmicas de poder para um filtro de análise de políticas
monetárias, fluxos de investimento e padrões de comércio.
182
Reconhece-se estes elementos como centrais para a compreensão das
relações entre Estados, em um contexto de aumento da relevância de
fatores econômicos e financeiros para a distribuição de poder no
sistema internacional.
Deste modo, podemos entender que, no caso da China, existe
uma convergência entre as necessidades socioeconômicas
domésticas, os imperativos de segurança energética e as
oportunidades de investimentos no mercado de construção, logística
e energia para a materialização dos interesses nacionais do país
(desenvolvimento sustentável e projeção global). Essa interrelação
torna-se mais clara ao analisar a Nova Rota da Seda.
A Iniciativa do Cinturão e da Rota (Belt and Road Initiative - BRI),
também conhecida como Nova Rota da Seda em português, consiste
em um megaprojeto de construção de infraestrutura para a integração
transcontinental econômica e sustentável, com o objetivo de integrar
por terra (belt - cinturão) e mar (road - rota), continentes e seus mares
adjacentes. A intenção da iniciativa é criar redes multidimensionais
de conexão terrestre, marítima, digital, energética e humana capazes
de integrar os mercados e empresas chinesas ao mundo e vice-versa
(BRI Portal, 2022).
A BRI foi proposta em 2013 e oficializada em 2015 pela China3,
visando aproveitar as rotas de transporte internacional existentes,
percorrer cidades centrais ao longo do trajeto e utilizar os principais
3
A Nova Rota da Seda foi inicialmente proposta pelo governo chinês em duas
ocasiões em 2013, ambas as vezes em discursos de Xi Jinping. Todavia, a
oficialização do megaprojeto ocorre somente com a publicação do documento
oficial "Visão e Ações para a Construção Conjunta do Cinturão Econômico da
Rota da Seda e da Rota da Seda Marítima do Século 21" por meio da Comissão
Nacional para o Desenvolvimento e Reforma (NDRC, em inglês), do Ministério
das Relações Exteriores (MFA, em inglês) e do Ministério do Comércio
(MOFCOM, em inglês) (Dunford, 2021).
183
parques industriais econômicos como hubs de cooperação.
Contempla, desta forma, a criação e a otimização de infraestrutura de
comércio, transporte, energia, mineração, tecnologia da informação,
comunicações, entre outras indústrias (BRI Portal, 2022).
Outrossim, a China propôs que a iniciativa fosse
ambientalmente sustentável. A “Rota da Seda Verde” (Green Silk
Road) aparece como pilar fundamental para efetivação da iniciativa,
bem como seu alinhamento à Agenda 2030, às metas do Acordo de
Paris (2015) e ao princípio chinês de Civilização Ecológica (CE)4 (Reis,
2022). Em concordância, Shang (2015) argumenta que o principal
interesse para a China levar a cabo a BRI é manter o seu
desenvolvimento sustentável, considerando especialmente a
necessidade de envolver todas as indústrias do país, para assim
mudar a concepção das empresas chinesas de produção para
operação.
Neste sentido, podemos compreender a Iniciativa do Cinturão
e da Rota como uma estratégia geoeconômica da China para
transformar o poder econômico associado à sua trajetória de
desenvolvimento em poder material e em influência política e até
mesmo ideacional no âmbito internacional. Portanto, entendemos a
BRI como um passo das políticas externa e econômica chinesa em
direção ao estabelecimento de uma "grande estratégia" pautada no
desenvolvimento econômico, contemplando as particularidades da
experiência do país como possível alternativa para o
desenvolvimento dos países do Sul Global (Beeson, 2018).
4
Refere-se à visão chinesa para o desenvolvimento sustentável. Busca
complementar as três dimensões centrais do conceito de desenvolvimento
sustentável - ambientais, econômicas e sociais - com características e aspectos
específicos da civilização chinesa. A ideia de CE busca o envolvimento
internacional chinês em foros ambientais e a formulação de políticas para o
desenvolvimento sustentável com características chinesas (Reis, 2023).
184
Deste modo, a iniciativa é desenhada de forma que os países
parceiros também tenham benefícios. Dunford (2021) argumenta que
a BRI possui implicações interessantes para o fomento do
desenvolvimento global, sobretudo no que tange às suas possíveis
soluções para os déficits de desenvolvimento, paz e governança
globais. Em primeiro lugar, porque a iniciativa oferece oportunidades
de investimento em um mundo que tem enormes carências de
infraestrutura e baixos níveis de investimento, o que torna os capitais
chineses ainda mais atrativos.
Em segundo lugar, a BRI busca diminuir os riscos associados à
falta de retorno em investimentos físicos irreversíveis, ao investir em
infraestruturas que removam os obstáculos ao desenvolvimento local
por meio de fomento à economia e ao mercado de trabalho local
(Shang, 2015).
Em terceiro lugar, se os objetivos de longo prazo da iniciativa
se efetivarem, alguns dos ganhos e benefícios compartilhados para os
Estados e/ou organizações parceiras podem incluir: aumento da
produtividade, economias de escala e ampliação de mercados,
diluição de riscos e incertezas, repercussões tecnológicas, melhorias
sociais e aumento da eficiência das cadeias de valor (Dunford, 2021).
Todavia, cabe mencionar que existem críticas que destacam os
possíveis riscos para os países parceiros ao se integrarem à Nova Rota
da Seda, tais como: a desestimulação do desenvolvimento tecnológico
dos países receptores de investimentos; a reprimarização das
exportações; a dependência econômica; e riscos à segurança nacional
devido ao controle da China sobre infraestrutura crítica. Estes
desafios são especialmente relevantes para o caso de países da
América do Sul, entretanto, os dados mostram que as negociações
sino-sul-americanas têm sido em alguma medida benéficas,
resultando em balanças comerciais positivas como nos casos do
185
Brasil, do Peru e do Chile, e em acúmulo maior de divisas. Além disso,
os países sul-americanos receptores dos investimentos chineses
experimentaram avanços e melhorias nos setores de infraestrutura e
energia (Carvalho, 2023).
Não obstante, entendemos que seria inevitável a adesão
massiva do Sul Global à Nova Rota da Seda, sobretudo em regiões
como a América do Sul - rica em recursos naturais e carente de
infraestrutura. Cabe destacar que o mercado energético sul-
americano é complementar ao know-how e as expertises chinesas,
especialmente, no âmbito da geração, transmissão e distribuição de
energia elétrica limpa, sobretudo, devido à vasta dotação natural de
recursos que o continente possui (Barbosa, 2020).
Ainda assim, os interesses chineses estão no centro dos
benefícios da efetivação da Nova Rota da Seda. Como podemos
identificar, a implementação da iniciativa traz algumas possíveis
soluções para os principais desafios político-econômicos enfrentados
pela China incluindo: o aumento da segurança energética e a
apresentação de alternativas para descarbonização da sua economia
por meio da diversificação de fontes e parceiros (Ahmed e Lambert,
2022); a redução de problemas de excesso de capacidade produtiva,
particularmente em infraestrutura e setores relacionados como
energia, construção e logística, devido ao aumento no acesso a novos
mercados e recursos (Mendonça et al, 2021); a redução das
vulnerabilidades associadas à dependência de rotas marítimas que
atravessam o Estreito de Malaca e o Mar do sul da China, dada a
construção de rotas terrestres alternativas (Dunford, 2021).
Outrossim, a implementação da BRI tem vantagens financeiras
claras para a China, como fazer uso mais efetivo de sua enorme
reserva de moedas estrangeiras, uma vez que os bancos chineses
podem financiar o IED necessário para construção de infraestruturas;
186
estabelecer acordos de livre comércio que aumentem o papel de
Renminbi (RMB) no mercado internacional; e a melhora da
conectividade das empresas e mercados chineses com o mundo
(Dunford, 2021).
Por fim, compreende-se que a China utiliza de sua política
externa e de seus investimentos como ferramentas para solucionar
problemas domésticos e desafios externos. Logo, podemos
compreender que a Nova Rota da Seda tem se configurado como uma
estratégia de rearranjo geoeconômico tanto para atender às questões
domésticas da China quanto para projetar influência internacional
por meio da oferta de soluções para desafios pertinentes ao Sul
Global. Apresentando um caminho que concilia diferentes
perspectivas, objetivos e necessidades, a iniciativa oferece novas
abordagens para o crescimento econômico ao adotar como princípio
orientador o conceito de ganha-ganha e vantagens mútuas, o que é
especialmente compreensível a partir da análise dos investimentos
em energia da BRI na América do Sul.
Em suma, argumenta-se que a partir de sua nova posição no
sistema internacional, a China está exercendo uma forma de
influência geoeconômica que está transformando a natureza das
relações internacionais no século XXI. Ou seja, se a Nova Rota da Seda
for concretizada, Pequim consolidará sua posição no centro das redes
de produção, resultando inevitavelmente em um significativo
aumento de poder econômico e geopolítico, assim sacramentando a
sua estratégia de projeção global (Beeson, 2018; Dunford, 2021;
Ahmed e Lambert, 2022).
187
Os Investimentos em Energia da Nova Rota da Seda na América do
Sul
Ao longo das últimas décadas, a China se converteu como
principal parceiro comercial da maioria dos países sul-americanos,
consolidando-se também como origem de Investimento Externo
Direto (IED), alternativa para financiamento de projetos de
desenvolvimento e construtor de infraestruturas. A China também
obteve êxito na expansão de suas iniciativas diplomáticas na América
do Sul, com a maioria dos países tornando-se signatários da BRI5,
apesar das notáveis exceções de Brasil e Colômbia (Amaral et al, 2022).
As relações entre China e América do Sul inicialmente se
pautaram pelo dinamismo comercial, com incremento das
exportações da região em resposta à demanda chinesa por recursos
minerais, energéticos e alimentares. Ao longo da última década,
observou-se um processo de desembarque de capitais chineses, com
manifestações diretas nos fluxos de investimento e financiamento,
além da exportação de serviços de construção e engenharia (Ungaretti
et al, 2022).
Os dados confirmam que o setor de energia tem exercido papel
central. Entre 2005 e 2022, as firmas chinesas investiram US$ 147
bilhões na América do Sul, dos quais US$ 87 bilhões se direcionaram
para o setor de energia (gráfico 1). Durante o mesmo período, setor
de energia recebeu cerca de 70% dos US$ 136 bilhões desembolsados
pelo Banco de Desenvolvimento da China (CDB, em inglês) e pelo
Banco de Exportação e Importação da China (Chexim, em inglês) na
América Latina (Ray e Myers, 2023). Entre 2010 e 2022, o setor de
energia predominou no âmbito dos projetos de infraestrutura,
5Os países da América do Sul que estão integrados à BRI são: Argentina; Bolívia;
Chile; Equador; Guiana; Peru; Suriname; Uruguai; Venezuela (Green Finance &
Development Center, 2023).
188
representando mais da metade dos US$ 83 bilhões em contratos de
construção obtidos por firmas chinesas na América do Sul (tabela 2).
Gráfico 1 – Distribuição setorial do IED chinês na América do Sul,
2005-2020. (Em %)
4%
3% 2%
8%
Energia
Metais
Transporte
24%
59% Agricultura
Financeiro
Outros
Fonte: American Enterprise Institute – AEI (2023).
Inicialmente, os fluxos de IED de firmas chinesas se
concentraram em atividades extrativas e envolveram operações de
fusão e aquisição (brownfield) nos setores de petróleo (Ludeña, 2017).
Entre 2005 e 2022, foram alocados aproximadamente US$ 30 bilhões
em investimentos no setor de petróleo, sendo que cerca de dois terços
disso realizados até o ano de 2015 (AEI, 2023).
Enquanto principal importador de petróleo e gás natural, a
aquisição de ativos por parte de empresas estatais no setor de
petróleo atende ao imperativo estratégico de assegurar o
fornecimento ordenado de recursos e diversificar os fornecedores de
energia (Santos e Milan, 2014). A busca por recursos (resource-seeking)
é componente central da projeção geoeconômica da China, bem como
fator determinante para integração da América do Sul à estratégia
chinesa de desenvolvimento internacionalizado (Wise, 2020).
Os investimentos no setor de petróleo atendem aos interesses
comerciais de empresas chinesas e necessidades de segurança
189
energética do Estado chinês (Jenkins, 2019), em última instância
responsável por coordenar a expansão da estratégia going global6
(Sauvant e Chen, 2014). Os dois bancos de política da China (policy
banks) – CDB e Chexim – são também engrenagens fulcrais neste
processo de internacionalização e igualmente apresentam uma forte
presença no setor de energia (tabela 1).
Tabela 1 – Distribuição setorial dos financiamentos do CDB e do
Chexim na América Latina, 2005-2022. (Em número de projetos e
US$ bilhões).
Número de
Setor projetos Montante (em US$ bilhões)
Energia 38 90,1
Infraestrutura 54 26,5
Outros 28 17
Mineração 3 2,1
Total 123 135,7
Fonte: Ray e Myers (2023).
Os bancos chineses mostraram-se como alternativa para
governos da região financiarem projetos de desenvolvimento, bem
como para empresas chinesas interessadas em expandir sua presença
internacional. Os emprestadores chineses firmaram acordos de
6Criada em 1999 e incorporada, em 2001, ao 10ª Plano Quinquenal (2001-2005), a
estratégia going global se caracteriza como um conjunto de políticas coordenadas
para estimular as empresas chinesas a se internacionalizarem (Ungaretti, 2022).
190
“empréstimos por petróleo” (loan for oil) com os governos da
Venezuela e do Equador, bem como com a Petrobras, visando reduzir
riscos de transação e assegurar o fornecimento ordenado de recursos
energéticos (Gallagher, 2016).
A maior parte dos financiamentos do CDB e Chexim para o
setor de energia se direcionaram para atividades de exploração e
extração (gráfico 2).
Gráfico 2 – Financiamentos do CDB e do Chexim no setor de
energia, por atividade, 2005-2020.
Eficiência energética 250
Transmissão e distribuição 1298
Geração de energia 7948
Exploração e extração 38389
0 5000 10000 15000 20000 25000 30000 35000 40000 45000
Fonte: China Global Energy Finance (CGEF)7.
O petróleo correspondeu a mais de 80% dos quase US$ 50
bilhões desembolsados pelo CDB e pelo Chexim, seguido pelo setor
hidrelétrico, com 14% do total, equivalente a cerca de US$ 7 bilhões.
Considerando a capacidade chinesa de ofertar projetos que
combinam financiamento, tecnologia e serviços (Bhandary et al, 2022),
o volume de desembolsos para o setor de energia encontra
7
Disponível em: https://www.bu.edu/cgef/.
191
correspondência na distribuição setorial dos projetos de
infraestrutura8 com envolvimento de firmas chinesas (tabela 2).
Tabela 2 – Distribuição setorial dos projetos de infraestrutura com
envolvimento chinês na América do Sul, 2010-2022. (Em número de
projetos e US$ milhões)
Montante (Em US$
Setor Número de projetos milhões)
Energia 64 42.915
Outros 32 6.038
Telecomunica
ções 11 4.157
Transportes 51 30.538
Total 158 83.648
Fonte: Red ALC-China9.
Não obstante, a partir de meados da década passada, os
investimentos e financiamentos chineses transitaram para o setor de
eletricidade. As firmas chinesas passaram a buscar por novos
mercados em decorrência da redução nos preços internacionais de
8Por “projetos de infraestrutura”, entende-se uma modalidade de negócio que se
diferencia em relação ao IED, à medida se caracterizam como um serviço entre
um cliente e um provedor mediante um contrato, no qual a propriedade é do
cliente (Dussel Peters, 2020)
9
Disponível em: https://bit.ly/473mLcz.
192
commodities e dos desequilíbrios do regime de crescimento chinês, em
especial o excesso de capacidade produtiva. (Dussel Peters, 2020).
Como resultado, a América Latina, e em particular a América do Sul,
passou a ser observada não apenas como fonte de recursos, mas como
mercado para exportação de bens, serviços e tecnologias (Wise, 2020).
Embora fora do escopo de países signatários da BRI10, o Brasil
foi o destino privilegiado desta transição, com as estatais China Three
Gorges (CTG) e State Grid elegendo o mercado do país como
preferencial em suas estratégias de expansão internacional (Barbosa,
2020). No Brasil, o setor elétrico respondeu por 45,5% do volume de
IED chinês entre 2007 e 2022, resultando em um acumulado de mais
de US$ 32,5 bilhões (Cariello, 2023).
A partir de 2018, a presença chinesa no setor de eletricidade se
expandiu para outros países sul-americanos, abrangendo aquisições
de ativos sobretudo nos mercados chileno e peruano (Ungaretti et al,
2022). No Chile, por exemplo, os aportes da State Grid tornaram a
empresa responsável por controlar 57% da distribuição regulada de
energia do país (Myers, 2023). Enquanto isso, a China Southern Power
Grid comprou os ativos da Enel no Peru, incluindo a totalidade da
distribuição de eletricidade na região metropolitana de Lima (Benza,
2023).
Entre 2005 e 2020, o setor de eletricidade correspondeu a 37%
do total das aquisições chinesas na América Latina, seguido pelos
setores de petróleo e gás e mineração, responsáveis por 28% e 16% do
total, respectivamente (Cepal, 2021). Embora inicialmente
10
É possível interpretar que o Brasil, mesmo não estando formalmente inserido
no marco da BRI, encontra-se de alguma forma integrado aos propósitos da
iniciativa, dado que o país se caracteriza por ser o centro gravitacional dos
investimentos chineses na América Latina. Ou seja, a Nova Rota da Seda está no
Brasil, a despeito do país não ter assinado Memorando de Entendimento com a
China (Ungaretti et al, 2023).
193
preponderantes, o setor extrativo perdeu importância relativa frente
ao avanço do setor elétrico, que respondeu por 70% dos US$ 44
bilhões investidos por empresas chinesas em operações de fusão e
aquisição entre 2017 e 2021 (Albright, Ray e Liu, 2022).
Os contornos mais recentes desse envolvimento sugerem a
maior relevância das energias eólica e solar (Amaral et al, 2023). Os
fluxos de IED da China e os contratos em energias alternativas,
excluindo hidrelétricas, mais do que triplicaram entre 2019 e 2022,
crescendo de US$ 1,7 bilhão para 5,5 bilhões (AEI, 2023).
Este movimento reflete a liderança da China nos
investimentos11 em manufatura, tecnologia e geração de energia a
partir de fontes renováveis. O país asiático é atualmente responsável
pela produção de pelo menos 80% de todas as etapas de fabricação de
painéis solares e 60% das turbinas eólicas (White, 2023; International
Energy Agency - IEA, 2022).
A expansão das energias renováveis na China ampliou a
capacidade do país de ofertar essas tecnologias para outros países
(Cabré, Gallagher e Li, 2018). Para Queiroz e Nogueira (2021),
interessa à China escoar seu capital verde e possivelmente assumir a
liderança na transição energética global. As motivações englobam a
exportação de excesso de capacidade produtiva, obtenção de ganhos
econômicos via inovação, expansão de mercados e promoção de
padrões tecnológicos (Barbosa, 2020; Grinzstejn, Rodriguez e Estill,
2022), além de maior influência na governança ambiental (Villa, 2022).
No Brasil, o interesse chinês por projetos de energia renovável
se manifestou sobretudo por meio de aquisições da China General
11
Em 2022, foram 546 bilhões em investimentos do país no desenvolvimento dos
setores de energias renováveis e transição energética, equivalente a cerca de
metade dos investimentos globais (BloombergNEF, 2023).
194
Nuclear Power (CGN)12, atualmente detentora do maior portfólio
solar do país (CGNBE, 2023). Para a Argentina, a China é a principal
fonte de financiamento para energias renováveis, bem como ator
relevante na construção de projetos sob o marco do programa
RenovAr13, criado pelo governo argentino em 2015 (Rubio e Jáuregui,
2022). Entre 2000 e 2020, estes fluxos somaram mais de US$ 3 bilhões
(Ugarteche, León e García, 2023).
Em 2019, a Trina Solar ganhou 100% dos parques solares
licitados pelo órgão responsável pelo planejamento energético da
Colômbia (Instituto das Américas, 2021). Enquanto isso, no Chile, a
State Power Investment Corp. (SPIC) tem capitaneado a construção
de projetos como o parque eólico de Punta Sierra e o parque híbrido
de Amolanas (Amaral et al, 2023).
Somado a estas tendências, salientam-se os anúncios de
investimentos de entidades chinesas em projetos de lítio e fábricas de
baterias e veículos elétricos (Albright, Ray e Liu, 2023). Assim como
verificado nas indústrias eólica e solar, esse movimento reflete a
liderança do país asiático nos investimentos e na produção de
tecnologias energéticas. A China atualmente responde por 60% da
produção global de baterias e veículos elétricos, contabilizando ainda
a maior parcela do processamento de minerais críticos, incluindo 65%
do lítio global (Schonhardt, 2023; White, 2023; Economist Intelligence
Unit, 2023).
12
A empresa adquiriu da italiana Enel três usinas de energia renovável na região
Nordeste do Brasil, incluindo duas das maiores usinas de energia solar do país
(Nova Olinda, no Piauí, e Lapa, na Bahia). (Andreoni, 2019).
13
Destaca-se a construção do parque solar de Caucharí pela Shanghai Electric e
Power China. O projeto contou com financiamento de US$ 331 milhões do
Chexim, além do fornecimento de 1,2 milhões de paineis solares pela Talesun
(Amaral et al, 2023).
195
O envolvimento chinês no chamado “triângulo do lítio”, região
dos Andres na América do Sul, entre Argentina, Bolívia e Chile, que
concentra os maiores depósitos de lítio identificados no mundo, têm
crescido nos últimos anos e despertado grande atenção (Ungaretti e
Coelho, 2023). Na Argentina, as companhias chinesas são os
investidores líderes em novos projetos (greenfield), com aportes que já
somam mais de US$ 2,7 bilhões (Sanderson, 2023). No Chile, a chinesa
Tianqi Lithium adquiriu 26% de uma das maiores produtoras de lítio
do mundo, Sociedad Química y Minera (SQM), por cerca de US$ 4
bilhões (Vásquez, 2023). Enquanto isso, um consórcio de firmas
chinesas firmou parceria com o governo boliviano para desenvolver
o imenso potencial de produção de lítio do país (Bouchard, 2023).
Observa-se também o envolvimento chinês no
desenvolvimento de indústrias verdes, particularmente de baterias e
veículos elétricos. A BYD anunciou investimentos para a construção
do primeiro complexo industrial destinado à fabricação de veículos
elétricos no Brasil (Nery, 2023). Na Argentina, um consórcio de firmas
chinesas pretende explorar o potencial de produção de lítio do país e
construir uma fábrica de baterias, cuja produção abasteceria uma
unidade de produção de veículos elétricos a ser construída pela
montadora Chery (Nicholls, 2023; Attwood, Gilbert e Durao, 2023).
O mercado de veículos elétricos na América Latina como um
todo é liderado pelas empresas chinesas, incluindo países caribenhos,
ao mesmo tempo em que vem crescendo as importações de ônibus
elétricos com origem na China por parte de países como Colômbia,
Chile e México (Ugarteche, León e García, 2023). De forma similar,
estima-se que 90% do total de tecnologias eólicas e solares instaladas
na América Latina tenha sido produzida por empresas chinesas
(Myslikova e Dolton-Thorton, 2023).
196
O engajamento em projetos de energia eólica e solar e indústrias
verdes reforça a liderança chinesa em atividades ligadas à transição
energética e revela interesses fundamentais da China na promoção da
Nova Rota da Seda, compreendida emblema da estratégia
geoeconômica empregada por Pequim. Os investimentos e
financiamentos chineses em energia na América do Sul contribuem
para exportação de padrões tecnológicos chineses e cimenta a
dominância do país sobre cadeias produtivas de paineis solares,
turbinas eólicas, sistemas de transmissão, baterias e veículos elétricos.
A transição para o setor de eletricidade e o recente enfoque em fontes
renováveis projetam a influência chinesa na América do Sul e colocam
o país como ator importante nas dinâmicas regionais de transição
energética, ao mesmo tempo em que implicam desafios e
oportunidades aos países da região.
Considerações finais
Dado que o desenvolvimento econômico da China implicou
mudanças na estrutura de poder e riqueza internacional, a
consideração de seu atual cenário socioeconômico e energético
mostrou-se fundamental para compreender os rumos da ordem
global e suas reconfigurações. A perspectiva geoeconômica emergiu
como instrumental para compreender as particularidades da
confluência entre estruturas de mercado, atuação estatal, interesses
econômicos e motivações estratégicas do desenvolvimento chinês e
de sua projeção global.
Considerando que os Estados utilizam de seu capital para obter
maior projeção internacional (Luttwak, 1990), bem como promover
interesses nacionais (Blackwill e Harris, 2016), argumentou-se que, no
caso da China, há convergências entre necessidades socioeconômicas
domésticas, imperativos de segurança energética e oportunidades de
197
investimento no Sul Global. A BRI, assim, se configura como
estratégia geoeconômica da China para transformar o poder
econômico associado à sua trajetória de desenvolvimento em poder
material e em influência política.
Os investimentos chineses no setor de energia da América do
Sul revelam interesses primordiais de Pequim em suas estratégias de
projeção geoeconômica. Inicialmente, os aportes chineses se
direcionaram ao setor de petróleo e gás, servindo ao propósito de
assegurar a segurança energética do país no longo prazo. Diante dos
desequilíbrios do regime de crescimento chinês, em particular o
excesso de capacidade produtiva, a América do Sul passou a ser
observada não somente como fonte de recursos minerais e
energéticos, mas como mercado para exportação de bens, serviços e
tecnologias (Wise, 2020), resultando em aquisições e construção de
projetos de infraestrutura em geração, transmissão e distribuição de
eletricidade.
Mais recentemente, as entidades chinesas passaram a exercer
um papel mais relevante nas dinâmicas de transição e mudança dos
sistemas de energia dos países da região (Ugarteche, León e García,
2023). Notou-se o crescimento dos investimentos e contratos no setor
de energias alternativas, bem como um crescente interesse em
projetos de lítio e indústrias verdes. Os investimentos e
financiamentos chineses em energias renováveis e transição
energética na América do Sul potencialmente impulsionam a difusão
de padrões tecnológicos, asseguram a projeção de influência por meio
de instrumentos econômicos e proporcionam às entidades chinesas
posições globalmente competitivas.
Para futuros trabalhos, defende-se a importância de
investigações acerca de como este processo repercute na competição
da China com outros Estados que igualmente aspiram à liderança e o
198
domínio sobre tecnologias e cadeias produtivas associadas à transição
energética, bem como um exame mais profundo acerca das
oportunidades e desafios aos países sul-americanos. Em particular,
salienta-se a crescente competição entre China e Estados Unidos e sua
reverberação para as dinâmicas de transição energética na América
do Sul, região dotada de enorme potencial de energia renovável e rica
em commodities centrais para transição energética, bem como
tradicional esfera de influência de Washington.
Por fim, destaca-se que neste espaço que tradicionalmente tem
sido considerado como a terceira fronteira estadunidense, a China
parece ter identificado uma lacuna para exercer a sua influência por
meio de investimentos e financiamentos em infraestrutura, e assim
tem aproveitado as oportunidades para exercer a sua estratégia
geoeconômica de projeção global.
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205
A pobreza da geopolítica: ação imperialista e “guerras híbridas”
na Venezuela contemporânea1
Gustavo Melo Novais da Encarnação Lopes2
Resumo: O presente artigo tem como objetivo a análise da ação
imperialista recente, praticada pelos Estados Unidos da América e
direcionada para a Venezuela. Inicia-se realizando uma breve
explanação histórica sobre o controverso conceito de guerra e de
como esse conceito não pode ser descontextualizado da dinâmica
geral da luta de classes visto que, na atualidade, é impossível
desassociar as motivações para esses conflitos das vantagens
econômicas que são obtidas por meio deles para os países que estão
na centralidade do processo de acumulação de capital. A partir dessas
reflexões, discute-se o fenômeno chamado de “guerra híbrida", cujas
limitações são constatadas quando se observa de perto o caso da
Venezuela.
Palavra-chave: Venezuela; Imperialismo; Geopolítica; Guerras
Híbridas.
1
Versão de artigo submetido à revista Reoriente (UFRJ).
2Pesquisador do Laboratório de Análise Política Mundial (LABMUNDO-BA).
Doutorando em Administração (NPGA-UFBA). Mestre em Relações
Internacionais (PPGRI-UFBA).
206
Introdução
A Venezuela, caracterizada com um país periférico-
dependente, o que significa estar presente em uma posição marginal
no processo de acumulação capitalista em escala mundial, possuindo
a sua estrutura econômica subdesenvolvida e os seus setores
produtivos estratégicos estrangulados pela centralidade da economia
mundial, vem sendo, recentemente, alvo de recorrente ação
imperialista, com destaque para a participação dos Estados Unidos
da América (EUA).
Essa ação imperialista se caracteriza pela combinação de uma
gama de fatores associados à política de guerra perpetrada pelos
países centrais e, no caso específico do país caribenho (vitimizada por
tal ação), a guerra econômica, materializada pelas sanções, bloqueios
e locautes orquestrados interna e externamente, e a desestabilização
política, a partir de financiamentos de instituições voltadas para a
“promoção da democracia” e dos “valores humanitários”, que se
traduzem pela interferência em processos eleitorais e pelas tentativas
de golpe. Nesse bojo, existe uma corrente que busca interpretar não
somente o caso venezuelano, mas também os diversos processos de
guerra, golpe, intervenção e insurreição ao redor do mundo a partir
do conceito de “guerra híbrida”.
O argumento defendido no presente artigo vai no sentido da
compreensão de que, apesar de tratar de alguns fenômenos reais,
existe uma limitação conceitual, hermenêutica e analítica bastante
acentuada, que se traduz a partir do descuidado com a dinâmica da
luta de classes no âmbito dos Estados nacionais.
Para isso, o artigo se divide em cinco seções, contemplando essa
concisa introdução e as considerações finais, além de uma seção que
aborda o debate sobre a dinâmica histórica de guerra no seio da
acumulação capitalista, uma seção que realiza uma contextualização
207
crítica sobre as “guerras híbridas”, “revoluções coloridas” e “guerras
não-convencionais” e, finalmente, uma seção sobre as ações recentes
do imperialismo estadunidense em relação a Venezuela.
As guerras: breve discussão histórica sobre um conceito
A guerra é um dos processos sociais mais complexos e mais
antigos que compõem as relações entre seres humanos, sejam elas
geograficamente limitadas a partir da interação conflituosa entre
Estados-nação, como durante a formação das “pazes” que
antecederam os firmamentos europeus no século XVII (Fiori, 2021),
ou a partir de conflitos mais amplos, envolvendo diversas formações
sociais na disputa por uma participação mais privilegiada no
tabuleiro geopolítico e na economia mundial.
Mesmo antes da compreensão da guerra como fenômeno que
construiu, dialeticamente, as relações entre os Estados dentro do
Sistema Internacional (SI), situada, nesse sentido, durante a duração
da Era Moderna, a guerra já constituía uma dinâmica
propulsionadora de mudanças territoriais, culturais e nas formas de
produzir riqueza da humanidade. Para Fiori (2018a, p. 76)
A pesquisa antropológica e arqueológica tem acumulado
evidências de que a “violência” nasceu junto com os
primeiros primatas, e foi companheira inexorável do homo
sapiens, através de todo seu processo evolucionário.
Primeiramente, na forma de violência “intersocietária”,
entre grupos nômades de até 50 membros, e
progressivamente entre tribos e etnias que reuniam até 500
ou mil coletores caçadores.
Seguindo a tradição da Escola dos Annales, sobretudo os
escritos elaborados por Giovanni Arrighi (2013), Fiori (2018a), é
sustentado que a guerra moderna compõe uma gama de fenômenos
associados à longa duração histórica do processo de constituição do
modo de produção capitalista em escala mundial, pelo menos desde
208
a chamada Paz de Vestefália, ocorrida no ano de 1648 e utilizada,
recorrentemente, como marco para o estudo das Relações
Internacionais.
Durante esse processo de constituição dos Estados vestefalianos
ocorreram diversos conflitos que, por mais que estivessem situados
dentro da limitação geográfico-histórica do que se concebeu chamar
por Europa Ocidental, surtiram grande influência ao redor do mundo
como um todo, levando em consideração que já no início do século
XVI os processos de colonização das Américas e de escravização de
seres humanos provenientes de diversas regiões do continente
africano já tinham ocorrido e foram, nesse sentido, aprofundados pela
necessidade de acumulação.
Alguns historiadores (Kennedy, 2017; Arrighi, 2013;
Hobsbawm, 2022) contribuíram para a compreensão de que não é
possível sustentar um argumento no sentido da dissociação entre a
acumulação capitalista e a expansão territorial a partir da guerra.
Apesar de partirem de posicionamentos teórico metodológicos
distintos (sem demérito para suas possíveis divergências), esses
autores compreenderam com o devido escrutínio que a guerra e a
acumulação de capital fizeram parte de um mesmo processo ou uma
mesma dinâmica a partir da influência das leis da dialética.
Como sustenta Fiori (2018a, p. 77), “[...] a guerra se transformou
– a partir do século XVI – em ‘peça sistêmica’ e ‘mola propulsora’ do
processo de expansão do poder e do território dos estados e do
próprio sistema estatal como um todo dentro e fora da Europa”.
Nesse sentido, a compreensão desenvolvida no presente artigo deriva
do fato de que “os fenômenos econômicos, sociais e políticos, mesmo
quando espontâneos, afiguram, resultam de mutações quantitativas e
qualitativas que se entretecem e se encadeiam” (Bandeira, 2016, p. 25)
209
Essa dinâmica, que aqui será chamada de Economia Política da
Guerra (EPG), faz referência às indissociáveis vantagens econômicas
que os conflitos trazem para os países que estão na centralidade do
processo de acumulação de capital em escala global. Essas vantagens
abarcam não somente os países que venceram de facto a contenda, mas
que de alguma maneira lucraram ou obtiveram um posicionamento
geopolítico privilegiado a partir da situação belicosa.
Quando se olha, por exemplo, para os EUA como peça
fundamental para as relações geopolíticas globais na
contemporaneidade, nota-se que somente entre o período que
compreende a independência do país (1776) e o final do século XX, foi
iniciado um novo conflito a cada três anos (Fiori, 2018a, p. 91). Com
isso, os EUA obtiveram vantagens cabais para a sua constituição
como hegemon mundial, sobretudo a partir das duas Grandes Guerras
ocorridas entre 1914 e 1945. Para Fiori (2023, p. 17),
O primeiro ensinamento é que o objetivo de todas as
guerras nunca foi a ‘paz pela paz’, mas sim a conquista de
uma ‘vitória’ que permitisse ao ‘ganhador’ impor a sua
vontade aos derrotados, junto a seus valores, suas
instituições e suas regras de comportamento, a serem
aceitos e obedecidos a partir da vitória consagrada pela
assinatura dos ‘acordos’ ou dos ‘tratados de paz’, que
passam a regular as relações entre vencedores e
perdedores.
É importante frisar, a partir desse ponto, que as transições
hegemônicas têm sido realizadas com base na ocorrência de conflitos
gerando uma espécie de caos no SI, sucedido por um reordenamento
internacional. Passando pelos quatro grandes hegemons (Arrighi,
2013) temos como exemplo a queda da hegemonia das cidades-
estados da Itália setentrional, a reorganização das Províncias Unidas
- região que hoje compreende os Países Baixos – e a sua mobilização
para a “paz de 1648”, a transição hegemônica para a Grã-Bretanha,
sobretudo a partir do desenvolvimento da primeira Revolução
210
Industrial entre os anos de 1780 e 1820, culminando na colocação dos
Estados Unidos como dinamizador da ordem internacional já no
século XX.
Não há como desconsiderar, inter alia, que não houve ascensão
hegemônica sem que houvesse a relação direta entre a financeirização
das relações mercadológicas, a arrecadação de tributos para as
campanhas de guerra e a posterior dominação (de fato e de direito)
dos territórios envolvidos nos conflitos. Nesse sentido, mister é a
necessidade de convencimento da população quanto à viabilidade do
conflito, que pode ser realizada a partir do convencimento ideológico
ou da coação propriamente dita (a partir dos aparelhos repressivos
de Estado). Para Martins (2018, p. 183), “o Estado tem a função de
apresentar os interesses privados como se fossem coletivos,
baseando-se, para isso, em última instância, no monopólio da
violência”.
Por isso, não há como descontextualizar a guerra da dinâmica
geral da luta de classes. Qualquer tipo de interpretação que tente
retirar o foco central da luta de classes no desenvolvimento dos
conflitos entre os Estados incorrerá no equívoco de tratar os
fenômenos como se a guerra pairasse sobre o que ocorre nos
processos de acumulação nas esferas dos Estados nacionais. Nesse
bojo, Lênin (2011, p. 230) lança uma pergunta retórica crucial: “[...] no
terreno do capitalismo, que outro meio poderia haver, a não ser a
guerra, para eliminar a desproporção existente entre o
desenvolvimento das forças produtivas e a acumulação de capital,
por um lado, e, por outro, a partilha das colônias e das esferas de
influência do capital financeiro?”.
Um outro ponto importante a ser frisado é a motivação que leva
os Estados que participam da dinâmica do SI - e de uma consequente
Ordem Internacional - ao conflito. Se tivermos como exemplo os
posicionamentos belicosos da Igreja Católica e de seus ideólogos, pelo
211
menos desde Santo Agostinho (Fiori, 2018a, p. 80), tem-se como
resultado o argumento da “guerra justa”, ou seja, aquela guerra em
nome de algo metafisicamente maior. Esse “algo maior”, que nas
entrelinhas pode ser associado com determinado princípio, virtude
ou vocação, determina duas coisas: primeiro, uma delimitação ética
(Fiori, 2018a) das motivações que levam à guerra e, por consequência,
em segundo lugar, a delimitação do outro (que será combatido) a
partir da não adequação àquele algo metafísico.
Nesse sentido, é com base em determinada “ética internacional”
que justifica a guerra, obviamente, sem prejuízo para os feitos
relacionados ao desenvolvimento durante o século XIX, que os EUA
vão formular a sua postura de liderança de forma consolidada entre
os demais países do SI no século XX.
O marco temporal supracitado, sem coincidências, refere-se à
ocorrência das duas Grandes Guerras já mencionadas. Nesse ínterim,
vários processos de ordem internacional ocorreram: a reorganização
do Sistema Financeiro Internacional a partir dos Acordos de Bretton
Woods, firmados em 1944, que colocariam os EUA numa posição de
grande privilégio internacional, como menciona o economista
americano Barry Eichengreen (2012), muito por conta da hegemonia
do dólar; a divisão da Europa a partir do desmembramento do
Império Austro-Húngaro (dando origem à Hungria, à Áustria, à
Tchecoslováquia e à Iugoslávia) e do antigo Império Russo (dando
origem à União das Repúblicas Socialistas Soviéticas [URSS], à
Finlândia, à Polônia, à Lituânia, à Letônia e à Estônia) durante a
Primeira Guerra Mundial e a remarcação das fronteiras de alguns
países na Europa Ocidental e Oriental com o final da Segunda Guerra
Mundial; e, finalmente, a criação da Organização das Nações Unidas
(ONU) no ano de 1945, que veio para substituir a quase inoperante
Liga das Nações (1919-1942). Este último marco histórico envolve a
212
necessidade de consolidar o desenvolvimento e a harmonia entre as
nações e trazer a paz para o SI.
A “paz”, assim como a guerra, também é um dos objetivos mais
controversos da história. Sem ter como horizonte a exaustão do
assunto, muito bem discutido por Fiori (2021), alguns apontamentos
se fazem necessários. Os EUA, logo após o fim da Segunda Guerra
Mundial, na sequência história denominada por Pax Americana, já se
empenham na Guerra da Coreia (1950-1953), tendo como objetivo o
controle da sua influência na região do pacífico - mesmo após, diga-
se de passagem, o crime contra a humanidade cometido a partir do
lançamento das bombas atômicas e nucleares em Hiroshima e
Nagasaki no ano de 1945. A interferência dos EUA nesse conflito teve
como um dos critérios, inter alia, a manutenção da paz na região a
partir da contenção do expansionismo chinês.
Outro exemplo emblemático pode ser encontrado na Guerra do
Vietnã (1955-1975), da qual os EUA saíram derrotados e em que o
argumento central, novamente, envolvia a lógica difusa de
manutenção da paz e de controle do “expansionismo comunista” em
território asiático. Nesse sentido, é importante destacar que logo
antes desse período o “mundo ocidental” presenciou o auge da
ideologia macarthista, que culminava na necessidade de contenção da
“ameaça vermelha”. É justamente durante o século XX, que a paz
estará vinculada, pari pasu, à supremacia dos valores liberais
defendidos pelos EUA, a se notar a condição sacrossanta da
propriedade privada, a “liberdade” irrestrita das relações
mercadológicas - que vêm incidindo negativamente sobre os
chamados países periféricos pelo menos desde o século XVI - e a
canonização do direito burguês como ferramental ideológico
capitalista.
É também com base nesse argumento - de manutenção dos
valores ocidentais e de combate ao comunismo - que a política externa
213
estadunidense foi construída em direção aos países da América
Latina (AL). Tirando alguns episódios de intervenção direta
perpetrados pela CIA, como nos casos da Guatemala (1954) e da
República Dominicana (1961), os EUA se fizeram presentes, seja por
meio de apoio de inteligência (tático-militar), de direcionamento de
recursos financeiros ou da combinação de ambos, em parte
considerável das ditaduras militares instaladas na região entre as
décadas de 1950 e 1980. Os objetivos, de fato, relacionavam-se com a
perpetuação da “América para os americanos” e da contenção de
potenciais mudanças em governos desenvolvimentistas que
ascendiam ao poder.
A partir da queda da URSS e da proclamação antidialética de
Francis Fukuyama em sua tese teleológica vulgar de “fim da história”
(Anderson, 1992), a necessidade de justificar a intervenção dos EUA
sobre os demais países passa por uma reformulação. Reformulação
essa que, pelo menos desde a Guerra do Afeganistão (1979-1989),
envolvia a luta contra o “fanatismo ou fundamentalismo religioso”,
mas, em síntese, tinha como pano de fundo e motivação primordial a
geopolítica do petróleo e o controle das regiões de influência para a
obtenção de recursos energéticos. A invasão ao Iraque durante a
Guerra do Golfo (1990-1991), que deixou um saldo de mortes de
milhares civis em pouquíssimos dias como consequência dos ataques
aéreos, patrocinada, inclusive, pela ONU, também teve como objetivo
a manutenção da paz e da ordem internacional.
Somente no ainda breve século XXI, pode-se fazer referência à
Guerra no Iraque (2003-2011), à Guerra do Afeganistão (2001-2021) e
à Guerra na Líbia (2001), com a participação dos EUA justificada sob
as mais diversas matrizes argumentativas: existência de armas
químicas, tráfico internacional de drogas, terrorismo etc. Em suma,
para conseguir a paz, a guerra se fazia necessária.
214
É nessa “dialética da guerra e da paz” que os EUA vêm
construindo a sua influência internacional, situada no âmbito da EPG,
e perpetuando uma hegemonia em decadência. Nesse sentido, na
contemporaneidade, não há a necessidade de manutenção de forças
militares norte-americanas ocupando e combatendo diretamente em
regiões fora da limitação geográfica da fronteira dos EUA. E, por isso,
não é de hoje que existem diversas formas de interferência com foco
na submissão direta de um Estado soberano. A dominação ideológica
através dos grandes meios de comunicação, a se notar os jornais de
repercussão mundial, a televisão e o próprio cinema, foram e
continuam sendo utilizados como ferramental de alienação, incentivo
ao consumo e de adequação a determinado padrão ético e moral.
O apoio já mencionado a facções de extrema direita (como no
caso da Venezuela, apontada mais adiante) em países periféricos
também ocorre com certa regularidade, seja por meio de
financiamentos diretos, pela CIA, um dos aparelhos de guerra mais
sujos dos EUA, seja por meio da atuação de Organizações Não
Governamentais (ONGs), que fomentam a reorganização política em
determinada formação social (Salgado, 2021).
Recentemente, os conceitos de guerra não-convencional e
guerras por procuração vivenciaram um renascimento em
decorrência dos conflitos ocorridos no Oriente Médio, no norte do
continente africano e na América Latina. Esses tipos de conflito, que
não envolvem a participação direta dos Estados patrocinadores,
ocorrem pelo menos desde o final da Segunda Guerra Mundial.
Porém, com o advento da revolução da microeletrônica e a ascensão
tecnológica obtida por meio da massificação do acesso a
computadores e mídias sociais, houve uma agudização da utilização
dessas modalidades. Sendo assim, é frequente a confusão no que se
refere à associação entre esses conceitos e a prática material dos EUA
vis-à-vis os seus alvos, incorrendo, inclusive, na total ignorância em
215
relação às dinâmicas internas (políticas, econômicas e culturais)
desses últimos.
É nesse contexto que surge o debate sobre a chamada “guerra
híbrida”, conceito aprofundado pelo internacionalista russo Andrey
Korybko cuja parte substancial da pesquisa versa sobre os conflitos
territoriais envolvendo a Rússia e a Ucrânia a partir do ano de 2013.
A guerra híbrida começaria com uma “revolução colorida”3,
caracterizada pela insuflação de determinado problema social a partir
da ação de ONGs e movimentos sociais financiados diretamente por
fundações internacionais ligadas ao governo americano e a grandes
corporações transnacionais. As características desse debate e as suas
limitações serão abordadas na seção seguinte.
Guerras híbridas: um conceito insuficiente
As guerras híbridas, de acordo com Korybko (2018, p. 33), se
caracterizariam pelo “caos administrado”. Os objetivos seriam:
derrubar governos instituídos e causar instabilidade política em
determinadas regiões que não estejam aliadas de forma política,
ideológica e ou econômica aos EUA e parte dos países da
Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), com fins de
submeter esses Estados às vontades dos países centrais. A partir das
revoluções coloridas (Korybko, 2018), conceito já tratado na seção
anterior, seriam formados grupos de adesão aos ideais norte-
americanos e contrários aos interesses nacionais. Na sequência das
revoluções coloridas, as guerras não-convencionais (Korybko, 2018),
3
A descaracterização dos processos políticos internos a partir do conceito de
revolução colorida é apontada pelo professor Vinicius Luiz Correa no artigo “O
potencial reacionário do conceito de revolução colorida”, disponível no seguinte
sítio eletrônico: https://lavrapalavra.com/2022/03/25/a-potencialidade-
reacionaria-do-conceito-de-revolucao-colorida/. Acesso em 10/09/2023 às 10h10.
216
envolvendo grupos mercenários e milícias privadas, entrariam no
jogo político para dar continuidade à desestabilização.
Esse segundo conceito é muito importante para o argumento
desenvolvido em torno das guerras híbridas, tendo em vista que
quando há o insucesso das revoluções coloridas, as guerras não
convencionais vão operar para tirar a estabilidade de facto dos
governos contrários aos interesses norte-americanos. Um exemplo de
guerra não-convencional envolve a contratação de mercenários, que
podem ser ex-militares ou membros das forças policiais que agem
como entes privados dos aparelhos repressivos de Estado. Outro
exemplo é a formação de milícias que surgem a partir da interferência
externa, mas com certa aparência de organicidade.
Sobre as vantagens dessa tática, Korybko (2018, p. 41) sustenta
que “[...] as forças convencionais do Estado-alvo nunca podem ter
total certeza da medida em ou de por quanto tempo são capazes de
controlar e resguardar vários territórios ou infraestruturas contra-
ataques, nutrindo assim incerteza sobre quando e onde mobilizar as
suas unidades. Isso, por sua vez, é usado para afetar o campo das
decisões do ciclo OODA4, evitando assim uma ação decisiva e
impedindo sua eficiência”. O autor e os defensores do conceito de
guerra híbrida vão dizer que essa é uma nova forma de praticar a
guerra sem que haja necessidade da interferência direta dos países
hegemônicos. Porém, há uma dinâmica que é marginalizada na
análise das guerras híbridas. Essa dinâmica, como mencionada na
seção anterior, envolve a luta de classes, bem como as contradições
geradas a partir do próprio desenvolvimento do capitalismo.
4
O ciclo OODA (refere-se ao acrônico de observar, orientar, decidir e agir) foi
desenvolvido pelo militar americano John Boyd e bastante difundido nos estudos
organizacionais, estratégicos e militares, abarcando processos de tomada de
decisão diante de uma possível situação-problema.
217
O autor vai afirmar, acertadamente, que não se pode interpretar
as posições geopolíticas dos EUA no século XX e no presente século
sem que sejam levadas em consideração as influências derivadas das
teorias geopolíticas clássicas (Korybko, 2018, p. 19). Mais
recentemente, uma das estratégias de atuação dos EUA envolveria a
ação dentro de entidades políticas já instáveis (a partir de uma
diversidade cultural, étnica e social), com o objetivo de alcançar alvos
em proximidade de tais entidades (como era o caso dos Balcãs e da
extinta URSS). Essa estratégia deriva da linha de pensamento
desenvolvida por Zbigniew Brzezinski, ex-Conselheiro de Segurança
durante a presidência de Jimmy Carter (1977-1981).
Então, a agudização dessas contradições seria utilizada pelos
EUA em busca de diversos objetivos, dentre eles: a obtenção de maior
prestígio e influência geopolítica na região alvo; acesso às fontes de
recursos naturais e energéticas anteriormente não alcançadas pelo
governo americano; ampliar o espectro da acumulação nacional a
partir da espoliação de outras formações sociais.
Ao contrário das intervenções convencionais, como ocorreram
nos casos do Iraque, do Afeganistão e do Panamá (Korybko, 2018, p.
35), os EUA começaram a agir, em determinados territórios
estratégicos, a partir das proxy wars, ou guerras por procuração, com
o objetivo de velar a sua participação, dando a aparência de que os
processos conflituosos surgiram no bojo dos Estados nacionais, sem
quaisquer tipos de interferência de origem internacional. Isso estaria
em consonância com a posição de dominação do espectro total dos
EUA (Korybko, 2018, p. 38), cujos objetivos envolveriam a persuasão
nos processos de paz, a decisão em situações de guerra e a
proeminência em qualquer forma de conflito.
Um outro ponto acertado pelo autor refere-se aos distúrbios aos
pleitos eleitorais perpetrados pelos EUA em diversos Estados-alvo,
como é o caso da Venezuela (Salgado, 2021; Rovai, 2007) sob a
218
liderança de Hugo Chávez (1998-2013), com o objetivo de minar
qualquer possibilidade de mudança política que contrarie os
interesses yankes. Esses boicotes eleitorais podem começar a se
desenvolver a partir da ação política de ONGs estrangeiras ou
simplesmente a partir do financiamento realizado pelo governo
americano.
Porém, para Korybko, esse processo só seria possível por meio
da disseminação de informação e contrainformação (envolvendo,
inclusive, as fake news) entre a população a partir de táticas de “guerra
neocortical reversa” (Korybko, 2018, p. 59), além de “técnicas não
violentas e inovadoras para a revolução colorida” (Korybko, 2018, pp.
63-65). Ademais, são desconsideradas as contradições internas do
Estado-alvo, que, por óbvio, não são formuladas somente a partir da
intervenção estrangeira, seja ela de qualquer espécie,
consubstanciando a falta de escrutínio sobre a situação da luta de
classes no país vítima. Ao mesmo tempo, o conceito de ideologia,
fundamental para a análise marxista, é marginalizado na teoria,
causando um vácuo explicativo quanto à ação e efetividade dessas
“operações psicológicas”.
Em suma, Korybko desconsidera tanto as teorias clássicas do
imperialismo e as suas asserções sobre a dinâmica de acumulação e
guerra (Lênin, 2011; Bukharin, 1984; Hobson, 1981), quanto as
interpretações mais recentes sobre o fenômeno (Harvey, 2005;
Wallerstein, 2004; Callinicos, 2009), que envolvem não somente a
análise da dinâmica da economia mundial como consequência da luta
de classes nos países imperialistas abarcando, inclusive, o sucesso ou
insucesso das suas ações com base na estrutura interna dos países-
alvo.
Nesse sentido e, para elucidar a limitação do conceito abordado
durante a presente seção, será apresentado brevemente o caso das
tentativas de intervenção, tentativas de golpe e guerra econômica
219
postas em prática pelos EUA em relação à Venezuela contemporânea,
e como esse processo segue a dinâmica de ação imperialista
estadunidense para o país, pelo menos, desde o final do século XX.
Venezuela: guerras híbridas ou continuidade da ação imperialista?
No dossiê Venezuela e as guerras híbridas na América Latina,
publicada pelo Instituto Tricontinental (2019), são abordadas
algumas das violências recentes sofridas pela Venezuela em
decorrência da ação imperialista dos EUA. Apesar de utilizarem o
conceito de guerra híbrida no título, as menções são bem difusas e se
configuram mais como uma análise de impacto do que a realização
de uma correlação teórica entre a conjuntura do país e as revoluções
coloridas sucedidas por guerras não-convencionais.
A Venezuela é alvo, pelo menos desde o início do século XX, de
grandes atenções por parte dos países da centralidade do capitalismo.
Isso se deu tanto em função da sua posição geográfica privilegiada,
implicando em interesses geopolíticos, quanto pela sua abundância
em recursos naturais, com destaque para o petróleo. Estima-se que,
hoje, a Venezuela possua a maior reserva em petróleo bruto do
mundo, superando os países do Oriente Médio.
Apesar disso, apresenta “todas as características estruturais de
uma economia subdesenvolvida” (Furtado, 2008, p. 36). Por conta de
sua abundância petrolífera, atraiu países cujas indústrias já possuíam
um grau relevante de desenvolvimento, como as de origem
estadunidense, por exemplo. Nesse contexto o país foi fruto de
intensa exploração tanto em relação aos recursos naturais, quanto em
relação à utilização da própria terra, culminando no desenvolvimento
de uma burguesia rentista e reacionária no país.
Mesmo após a derrocada da ditadura na Venezuela com o
estabelecimento do Pacto de Punto Fijo (1958), a dinâmica do país não
220
foi alterada e, mesmo apesar de possuir potencialidades visíveis
quanto ao seu desenvolvimento5, esse processo nunca pode ser
logrado. Além do domínio da indústria nacional e de uma legislação
que não protegia os interesses do país, havia uma adesão direta da
burguesia venezuelana em relação à política externa estadunidense.
Esse contexto culminou na mudança de dois panoramas: um
primeiro, mais radical, e um segundo mais moderado.
O primeiro se deu após a eleição de Hugo Rafael Chávez Frias,
em 1998, abarcando não somente uma reorganização da linha de
atuação do país frente ao imperialismo dos EUA, mas também
mudanças de teor jurídico-político que viriam a implicar na forma
como a extração de petróleo e acumulação capitalista se dariam
naquele Estado, inclusive se relacionando com a promulgação de
uma constituição no ano de 1999. A eleição de Chávez foi possível,
dentre outros fatores, por dois motivos principais: exaustão da
dinâmica política puntofijista e diversas revoltas ocorridas a partir da
política-econômica neoliberal implementada no país a partir da
década de 1980, a exemplo do Caracazo.
As mudanças colocadas em prática por Chávez afetaram,
decerto, os interesses das burguesias locais e do imperialismo norte-
americano. Como resposta, pode-se observar uma série de tentativas
de intervenção e de desestabilização do governo bolivariano,
avançando inclusive para a gestão de Nicolás Maduro, após a morte
do ex-militar, no sentido de suscitar a miséria política e econômica do
país.
Os EUA, que se colocam como “o povo escolhido”, a partir da
derrocada da URSS vão renunciar à “ideia de uma hegemonia ética e
5
Conceito aqui relacionado com a capacidade de distribuição do produto gerado
por um país para a grande parte da sua população, proporcionando graus de
existência humana minimamente dignos, envolvendo o acesso à alimentação,
saúde, habitação, moradia e lazer e cultura.
221
cultural universal e optam pelo uso da força e das armas, se
necessário, para impor seus interesses em todos os tabuleiros
geopolíticos e geoeconômicos do mundo. Mesmo que seja através da
mudança de governos e regimes que sejam considerados uma ameaça
política ou econômica aos interesses norte-americanos” (Fiori, 2018b,
p. 399).
Isso é perceptível pelo engajamento direto na derrubada de
governos em diversas regiões do mundo, como no Iraque, em 2003,
no Haiti, em 2004, em Honduras, em 2009, na Líbia e na Síria, em 2011,
na Bolívia e na Nicarágua, em 2019 (Emersberger e Podur, 2021, p.
14), dentre tantos outros de menor repercussão internacional, quanto
pela escalada discursiva em relação à Venezuela durante o Governo
Trump, com a afirmativa do então presidente sobre as intenções dos
EUA em relação à “tomada do petróleo venezuelano”6.
É particular o interesse dos EUA na Venezuela que, como
aponta Salgado (2021, p. 22), foi alvo de discussão em diversos
escalões do governo americano: “ao navegar pelo site do Wikileaks, é
possível perceber a importância que a política externa dos EUA deu
à Venezuela durante o período em estudo, uma vez que uma pesquisa
simples demonstra existir mais de 9.424 documentos diplomáticos
sobre a Venezuela, mais do que qualquer outro país da América
Latina, com exceção do Brasil, que conta com 9.633 documentos”.
As sanções econômicas e, pari pasu, a ação da mídia, da
burguesia interna e dos conglomerados empresariais internacionais,
estão dentro da postura imperialista estadunidense, pelo menos,
6
Além de se colocar diretamente contra o “desastre humanitário” e a “violação
de direitos humanos” na Venezuela, quando do insucesso da mudança de
regime, a administração Trump explicita os interesses dos EUA ao dizer que
“teria tomado todo o petróleo do país”. Para mais informações, visitar:
https://geopoliticaleconomy.com/2023/06/12/trump-venezuela-oil-coup/. Acesso
em 10/09/2023, às 14h44.
222
desde o século XX e, no caso específico da Venezuela, pelo menos
desde o final da década de 1990.
Se formos analisar as intervenções mais explícitas dos EUA no
país durante esse período, podemos ter como um número geral pelo
menos seis tentativas (Emersberger e Podur, 2021), tendo início no
ano de 2002 e culminando no reconhecimento ilegítimo e ilegal de
Juan Guaidó (2019), então líder da oposição na Assembleia Nacional,
como Presidente da República Bolivariana da Venezuela pelos EUA e
parte considerável dos países do ocidente, incluindo alguns sul-
americanos. Três dessas tentativas serão expostas aqui,
sinteticamente.
No início do ano de 2002, após o estabelecimento de alguns
decretos ordenados por Chávez, legais e em consonância com as Leis
Habilitantes que, dentre outras coisas, alteravam a dinâmica da
distribuição de terras e o processo tributário vinculado ao setor
petrolífero, a oposição ao Governo Chávez começou a realizar
movimentações internas com o objetivo de derrubar o governo
bolivariano. Após a demissão de alguns funcionários de alto escalão
da Petróleos de Venezuela S.A. (PDVSA), anunciada no programa Aló,
Presidente, a oposição, em conjunto com um fragmento do setor
militar, organizou uma marcha em direção ao Palácio de Miraflores
reivindicando que Chávez saísse do poder.
Após diversas manobras, Chávez foi retirado do poder e
sequestrado por dois dias, assumindo o então presidente da
Federación de Cámaras y Asociaciones de Comercio y Producción
(Fedecámaras), Pedro Carmona (que, inclusive, dissolveu a
Assembleia Nacional e autorizou um número significativo de prisões
ilegais de cunho político). Como aponta Salgado (2021, p. 86), houve
participação ativa dos EUA (que estavam, por óbvio, descontentes
com as Leyes Habilitantes chavistas) a partir do financiamento direto
da oposição no ano de 2001.
223
Esse golpe que, como Rovai (2007) aponta, teve participação
direta da mídia (comandada por Gustavo Cisneros que, inter alia, é
dono de um dos maiores conglomerados de telecomunicação da
América Latina), de corporações dos mais variados âmbitos e do setor
militar, não teve o seu sucesso prolongado em decorrência de parte
substancial da população venezuelana que apoiava o Governo
Chávez e se mobilizou de diversas formas (no geral, pacíficas) tendo
como objetivo o retorno do ex-comandante à presidência.
Mister aqui é a preponderância da complexidade da luta de
classes na Venezuela que, mesmo diante da organização da oposição
internamente e da atuação (direta e indireta) dos EUA, culminou na
impossibilidade de concretização de um golpe que, dentre outras
coisas, colocaria novamente o país caribenho à serventia da dinâmica
de acumulação (de capital e território) imperial. Assim, a dinâmica
fatalista e conformista que envolve algumas interpretações sobre a
ação das “revoluções coloridas” é posta em xeque.
Ainda no ano de 2002, uma segunda tentativa de golpe,
orquestrada na forma de locaute, foi realizada contando com apoio
tanto da oposição (Rovai, 2007) quanto de ONGs vinculadas ao
governo estadunidense (Salgado, 2021). Do locaute emergiu, por
parte da oposição, a tentativa de organizar um referendo revogatório
para retirar Chávez do poder.
Esse referendo, segundo Salgado (2021, p. 109), foi financiado,
parcialmente, pela Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional (USAID). Como aponta Salgado
(2021, p. 117),
[no] documento [...] Estratégia de Direitos Humanos para a
Venezuela [...] é possível perceber [que] os EUA tinham a
intenção de organização a oposição para os colocar em
melhores condições de vencer pleitos eleitorais, buscando
otimizar as campanhas eleitorais, as estratégias de
comunicação e o processo eleitoral. Para tal, foi destinada
224
uma soma de mais de 700 mil dólares para ‘fortalecer a
sociedade civil e as instituições democráticas’.
Mais uma vez, o apoio da população venezuelana ao projeto
chavista se mostrou presente, e a oposição, mesmo com apoio
internacional, não obteve o resultado esperado. Apesar disso, a partir
desse momento, como demonstra Salgado (2021), a oposição começa
a se articular de forma mais organizada, possuindo como uma das
características principais a associação aos interesses estadunidenses e
a ausência explícita de qualquer projeto de superação das
contradições estruturais da Venezuela.
Por fim, entre 2015 e 2017 várias sanções econômicas foram
implementadas com objetivo de enfraquecer economicamente a
Venezuela, como demonstrado por Sachs e Weisbrot (2019). Como
elucidado na obra Sanções econômicas como punição coletiva: o caso da
Venezuela, os indicadores econômicos do país decresceram
bruscamente durante o período supracitado e os cinco anos
subsequentes, surtindo impactos profundos na alimentação, saúde e
moradia das venezuelanas e venezuelanos. As sanções podem ser,
nesse sentido, caracterizadas por tentativas de desestabilização a
partir da prática de guerra econômica com fins de dominação, já
demonstradas anteriormente por Lênin (2011) e Harvey (2005).
Essas sanções, somadas aos efeitos deteriorantes de longa
duração na economia do país, tiveram como motriz discursiva a
“ajuda humanitária ao povo venezuelano” e o desrespeito aos
princípios democrático-liberais por parte de Nicolás Maduro. Como
apontam Emersberger e Podur sobre a postura da mídia internacional
durante o período (2021, p. 161),
The New York Times followed up with four more editorials about
Venezuela between March 31 and August 30—just before and
after four months of violent protests: “Venezuela’s Descent Into
Dictatorship” (March 31); “Pressuring Venezuela’s Leader to
Back Down” (April 4); “Mr. Maduro’s Drive to Dictatorship”
225
(August 3); “Exporting Chaos to Venezuela” (August 17). None
of the editorials had a harsh word to say about the opposition, even
though it was not clear which side had killed more people during
the protests. It was very clear, however, that protesters were
responsible for some grisly atrocities. Also note the Times’s
determination to stick the “dictator” label on Maduro. The
August 3 editorial said that Maduro “belongs” in the same
“rarefied company” as Bashar al-Assad and Kim Jong-un.4 And
even though the August 17 editorial expressed nervousness over
the Trump administration’s military threats against Venezuela,
it continued to demonize Maduro’s government— which is what
made those threats possible.
Ainda assim, como demonstram Salgado (2019) e Emersberger
e Podur (2021), a população venezuelana vê com maus olhos o apoio
da oposição às sanções econômicas impostas pelos EUA e, em 2019, a
“maior referência”, o líder oposicionista Juan Guaidó, era
desconhecido por 81% dos venezuelanos.
Considerações finais
É importante considerar minimamente, para qualquer análise
dentro do escopo das Ciências Humanas e Sociais, a conjuntura social
do objeto em questão que, dentro da literatura marxista, se relaciona
com a luta de classes. Assim, por mais que a Venezuela venha sendo
uma vítima recorrente das ações imperialistas, situação que se
concretiza (em decorrência das sanções econômicas) pelo aumento na
mortalidade populacional em 31% entre 2017 e 2018
(aproximadamente, 40.000 mortes), pelas mais de 300.000 pessoas em
situação de risco por conta da falta de remédios, pela desestruturação
do setor elétrico e da infraestrutura de transportes (Sachs e Weisbrot,
2019), deve-se ter cuidado com o tipo de análise que é realizada.
Esse cuidado deve ser tomado para não cair na armadilha
reacionária que delimita que qualquer tipo de movimentação dentro
de um Estado esteja, necessariamente, associado à ação
226
estadunidense (onde estaria, então, a ação da classe trabalhadora?).
Isso porque, processos como o Caracazo e as reivindicações da classe
operária (Bischain, 2014) durante o Governo Chávez fazem parte de
uma dinâmica que envolve a piora das condições de subsistência do
proletariado sob o capitalismo. Por isso, a análise rigorosa da
geopolítica e da economia mundial perpassam, necessariamente, pelo
escrutínio das relações sociais e materiais no campo nacional e
internacional, levando em consideração as suas interconexões e
contradições, potencialidades e limitações.
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Wallerstein, Immanuel. World-System Analysis – An Introduction.
Durham and London: Duke University Press, 2004.
229
A Política Externa da Alemanha Pós-Guerra Fria
Wagner Sousa1
Resumo: De país dividido em um mundo cindido em dois blocos
político-ideológicos, com fortes restrições à sua ação externa, a
Alemanha se viu, pela primeira vez desde sua fundação no século
XIX, sem se sentir ameaçada por parte dos vizinhos (e sem ser vista
como país hostil) e com amplas possibilidades de expansão. O Leste
Europeu tornou-se, na prática, sua periferia econômica, através,
sobretudo, dos investimentos de seu setor industrial. Menos
dependente da França, após o fim da URSS, e com interesses que
englobaram especialmente a Rússia e a China, a Alemanha
conseguiu, após a crise de endividamento de vários países europeus,
impor aos demais integrantes da zona do euro sua agenda de
austeridade fiscal, o que contemplou seu projeto de inserção na
economia global.
A crescente importância da geoeconomia e da geopolítica da
Ásia, com destaque para o crescimento econômico (com crescente
capacidade bélica) sem precedentes da China nas últimas décadas
somada à reafirmação militar da Rússia vão produzindo uma
reconfiguração no cenário global e um reposicionamento estratégico,
com os parceiros econômicos alemães da Eurásia se tornando,
1O autor é Pós-Doutorando em Economia Política Internacional na UFRJ onde
pesquisa a política externa alemã e suas relações com grandes potências (EUA,
China e Rússia). https://E-mail:%
[email protected]/
230
especialmente após o início da Guerra da Ucrânia e ao acirramento
das relações entre EUA e China, rivais, num cenário onde a Europa
aprofunda a sua dependência dos Estados Unidos.
Política e Economia
A reunificação da Alemanha gerou, em seu primeiro ano, forte
crescimento econômico propiciado pela absorção de 17 milhões de
novos cidadãos do leste, com a renda elevada aos padrões ocidentais
pela conversão dos ostmarks, a moeda da Alemanha Oriental, na
proporção de quase 1:1, para os deutschemarks ocidentais,
diferentemente do que defendiam muitos economistas e o
Bundesbank, o Banco Central da Alemanha, com taxas de 6, 9 e até 12
para 1. Foi uma decisão política, contudo, que impôs um custo, mas
ajudou a garantir a legitimidade da reunificação. O investimento
maciço na infraestrutura do lado oriental também incentivou a
construção civil e o país cresceu 4,5% no primeiro ano. Porém, já em
1992, o crescimento desacelera para 1,1% seguidos de recessão em
1993, com -1.1%. Segue-se um período difícil, experimentado após a
reunificação, com baixo dinamismo econômico e desemprego
elevado. A literatura econômica ortodoxa atribui estes problemas aos
altos custos da reunificação e aos problemas da transição da economia
planificada para a economia de mercado. No entanto, especialmente
a partir do início dos anos 1980, com a ascensão do conservador
Helmut Kohl, a política fiscal alemã já havia se tornado bem mais
restritiva, o que trouxe impactos para o crescimento econômico. Esta
política teve continuidade até os dias atuais, a despeito dos gastos
realizados no lado oriental.
No entanto, o país experimentou, a partir dos anos 2000,
período de maior crescimento econômico, incremento expressivo de
suas exportações e acentuada redução do desemprego, que alcançou
231
patamares historicamente baixos. Tal desempenho foi possível pela
combinação de um ambiente externo favorável, de forte demanda
pelos bens industriais alemães, com os ganhos de competitividade
advindos da adoção do euro, moeda mais fraca do que o antecessor
marco e, portanto, mais favorável ao setor exportador. Isto se somou,
em termos de competitividade econômica, à estagnação salarial na
própria Alemanha e à deslocalização de parte suas empresas
industriais, que puderam aproveitar a mão-de-obra especializada
bem treinada e mais barata, recém integrada à União Europeia, do
Leste Europeu, em países como Hungria, República Tcheca,
Eslováquia e Polônia. Automóveis e outros produtos industrializados
passaram a ter apenas a montagem final em território alemão. O fim
da “cortina de ferro” tornou a Alemanha novamente o centro da
geoeconomia europeia. Essa “grande Alemanha” representou
também um maior alinhamento destes países com a política alemã
para a União Europeia. A criação do euro também teve o efeito de
deixar os países do sul da Europa com uma moeda mais forte do que
suas antigas moedas nacionais (tornando-os, portanto, menos
competitivos em relação à Alemanha) e possibilitou o endividamento
destes com taxas de juros baixas, apenas um pouco acima das
cobradas dos alemães. Este endividamento também significou
encomendas às fabricas alemãs.
Como descrito por Hans Kundnami em “The Paradox of
German Power” a economia alemã da década de 1990, bastante
dependente do setor industrial e com um mercado de trabalho mais
regulado em comparação com outros países desenvolvidos era vista
por muitos economistas como “o doente da Europa”, despreparada
para competir com as indústrias de países de mão-de-obra barata
como a China e as nações do Leste Europeu. Kundnami aponta que
estes mesmos economistas defendiam que a Alemanha desregulasse
a sua economia e tivesse uma parte maior de seu crescimento
232
advindos da área financeira e dos gastos do consumidor, baixos em
comparação com outras economias desenvolvidas. No entanto, nesta
questão, o consenso político alemão, com a grande importância do
setor industrial e dos fortes sindicatos dos trabalhadores é de que o
sistema econômico do país, centrado na indústria, é “irreformável”.
O mesmo autor destaca que, numa mudança inesperada e notável,
sob o social-democrata Gehard Schröder, nos anos 2000, a Alemanha
teria sido beneficiada por uma combinação, nas palavras do
economista Barry Eichengreen, de “boa política e boa sorte.”
Schröder replicou na Alemanha, em boa medida, o que
significou o trabalhismo de Tony Blair para o Reino Unido. A política
centrista defendida pelo sociólogo Antony Giddens para o chamado
‘novo trabalhismo” representou uma guinada em relação às políticas
de corte mais estatizante dos anos 1970 e uma adaptação ao
capitalismo liberal de predominância financeira estabelecido por
Ronald Reagan e Margaret Thatcher a partir dos anos 1980. Na
Alemanha, o principal conselheiro econômico de Schröder, Bodo
Hombach, defendia uma “economia da oferta de esquerda.” Em
parceria com o membro do gabinete de Blair, Peter Mandelson,
escreveram a “Carta de Blair e Schröder” com o título “O futuro para
os social-democratas europeus” em que defendiam a adesão às
“reformas de mercado.” Logo no início do governo Schröder, o então
Ministro das Finanças e líder partidário social-democrata Oskar
Lafontaine, defensor de uma política de estímulos à demanda em
linha keynesiana, ao não conseguir apoio à estas políticas, anunciou
sua renúncia, em março de 1999. Seu substituto, Hans Eichel, adotou
severa política de corte de gastos. Ao final do primeiro período de
governo, em 2002, o desemprego encontrava-se praticamente estável,
no patamar elevado de nove por cento. O desempenho econômico
ruim não colaborou para que a Alemanha cumprisse o limite de
déficit público estabelecido em 1997 no Pacto de Estabilidade e
233
Crescimento, compromisso proposto pelo governo alemão para
efetivar a meta de austeridade fiscal proposta pelo Tratado de
Maastricht, que criou a União Europeia e a moeda comum. No
entanto, de forma bastante pragmática, os mesmos alemães (no que
foram acompanhados pelos franceses) que propuseram e utilizaram
do seu peso político para a criação desta regra, ignoraram o limite de
déficit estabelecido neste mesmo pacto. Anos depois cobrariam
disciplina fiscal de gregos, espanhóis, portugueses e italianos. Este
exemplo é bastante ilustrativo das relações de poder, das assimetrias
atinentes à estas relações e do jogo de interesses na definição da
aplicação dos regimes jurídicos internacionais ou “comunitários”.
A “boa política” mencionada por Eichengreen foi a redução dos
direitos trabalhistas na Alemanha. Para tanto, Schröder convidou o
diretor da Volkswagen, Peter Hartz, para chefiar a comissão que faria
as sugestões para “flexibilização” das leis do trabalho. Foi
estimulado, à semelhança do que já ocorria nos países anglo-saxões,
o trabalho em tempo parcial, foram dispensadas as contribuições
previdenciárias para remunerações de até 400 euros e foi facilitada a
dispensa de funcionários para pequenas companhias. A redução do
custo trabalhista, de fato, aliado a outros fatores, tornou a produção
industrial do país mais competitiva e isto se deu, e aí vem a “boa
sorte” citada pelo mesmo economista, no momento em que o mundo
vivia um ciclo de crescimento generalizado na década de 2000.
Período de forte demanda pelos bens que os alemães produzem com
grande competência como químicos, bens de capital e automóveis,
com destaque para os veículos de luxo. O desemprego,
diferentemente do que ocorreu em outros países europeus como
Itália, Espanha e França, cai continuamente a chega a mínimas
históricas. Isto ocorreu, contudo, com queda dos salários em termos
reais. Embora a taxa de desemprego tenha sido reduzida a percepção
entre os trabalhadores na Alemanha é de piora do nível de renda.
234
Na prática estas políticas significaram, no contexto da moeda
comum, uma “desvalorização interna” alemã frente aos seus
competidores europeus. Sua demanda doméstica não crescia para
equilibrar ou tornar menores as diferenças no saldo comercial com os
sócios da UE. Tal situação deu grande vantagem à Alemanha no
comércio europeu e foi um dos fatores que mais fortemente
contribuiu para a crise dos países da periferia europeia. Isto somado
a uma demanda global fortemente aquecida dos anos 2000 (no que
passou a ter especial destaque as compras por parte da China) deu
forte impulso ao crescimento alemão pela via das exportações.
A crise de 2008 fez, como também destacou Kundnami, muitos
alemães concluírem, especialmente na esquerda, que a opção de
Reino Unido e Estados Unidos pela “nova economia” e pelos serviços
financeiros estava equivocada e viram a crise como demonstração do
acerto da economia social de mercado alemã e sua opção pela
economia real e pelas exportações. Opção que se combina com outra:
a adoção de uma postura fiscalista e anti-keynesiana (o
keynesianismo é associado a economistas anglo-saxões). Em 2009,
uma emenda constitucional comprometeu o governo federal a cortar
o seu déficit estrutural e aos dezesseis estados a eliminá-lo
(Kundnami, p. 85, 2015) Aos pedidos de “rebalanceamento” da
economia global por parte de economistas anglo-saxões e mais gastos
para estímulo da demanda agregada por parte do primeiro-ministro
britânico Gordon Brown, o ministro das finanças alemão, o social-
democrata Peer Steinbrück respondeu como sendo “keynesianismo
vulgar”. A despeito dessas críticas, Steinbrück estabeleceu medidas
de estímulo. Estes e o crescimento gerado pelo grande pacote de
estímulo chinês em infraestrutura (de 586 bilhões de dólares) fizeram
com que a Alemanha se recuperasse rapidamente da crise financeira.
Muitos na Alemanha se tornaram ainda mais convencidos das
virtudes de seu modelo centrado na indústria, diferente de outras
235
nações desenvolvidas que se desindustrializaram (Kundnami, p. 86,
2015).
O sucesso relativo desta Alemanha dominante na Europa e,
num certo sentido, muito bem adaptada à globalização fez ressurgir
um triunfalismo e a ideia de um caminho próprio, que não
necessariamente segue as ideias anglo-saxãs. Porém essa nova
Alemanha, reunificada e mais poderosa, buscando seguir seus
interesses nacionais, constrói novas alianças e, ao mesmo tempo,
corrói o tecido que une os países da zona do euro e da União
Europeia.
Guerra e Paz: a peculiaridade alemã
A chamada “questão alemã” retornou com a reunificação. Esta
foi a razão do empenho do presidente francês François Miterrand em
fazer a Alemanha se comprometer com o projeto europeu, em
especial com a adoção de uma moeda para o bloco, que veio a ser o
euro. Este compromisso com a Europa sinalizava a opção reiterada
na Westbindung, também representada pela continuidade do país na
aliança militar liderada pelos EUA, a OTAN. Esta expressão em
alemão resume a “conexão com o Ocidente”, linha mestra da política
externa alemã desde o pós-guerra.
Na década de 1990, o Chanceler Helmut Kohl, manteve a
política europeia alemã apesar das crescentes pressões de aliados,
especialmente dos EUA, para o país assumisse mais
responsabilidades nas questões de segurança. Os conflitos étnicos,
especialmente nos balcãs, colocavam pressão para que o país atuasse
através de suas Forças Armadas nestes conflitos, em conjunto com as
demais forças da OTAN. Aos poucos o país vai adotando uma
política externa mais intervencionista, com a participação, em 1992 e
1993, nas missões humanitárias desarmadas das Nações Unidas,
236
respectivamente no Camboja e na Somália. É no conflito de secessão
iugoslavo, que se iniciou em 1991, que a Alemanha participa, pela
primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial, com seu aparato
militar armado, numa ação de intervenção em outro país.
Um debate que ganha força com a reunificação é o da
“renormalização” da política externa do país, tendo em vista as
grandes mudanças geopolíticas e o fim dos constrangimentos
impostos pela Guerra Fria. O país, na visão de vários analistas,
poderia voltar a ter uma política externa “normal” como outras
potências. Entretanto, isto pôs em questão a memória do Holocausto
na opinião pública nacional e a impopularidade de qualquer
concepção militarista na política externa. A Constituição do país
estabelece que as Forças Armadas devem atuar apenas na defesa
nacional. Contudo, uma nova interpretação da Corte Constitucional
permitiu que os militares alemães atuassem no exterior, desde que
em missões das Nações Unidas, estas necessariamente aprovadas
pelo Parlamento. Os temores com a reunificação foram dissipados e,
ao fim dos anos 1990, a Alemanha se encontrava fortemente atrelada
aos seus aliados ocidentais.
A dissolução da “cortina de ferro”, contudo, com a expansão
da União Europeia para o Leste Europeu e a aproximação com a
Rússia fez com que os interesses alemães e norte-americanos não mais
estivessem convergentes como no período do Guerra Fria. Em 2002,
quando os EUA de George W. Bush anunciaram sua intenção de agir
militarmente contra o Iraque pela suposta posse de armas de
destruição em massa, a Alemanha, pela primeira vez desde o pós-
guerra, se colocou contra os aliados norte-americanos e em oposição
à guerra no Iraque, no que teve o apoio de França, Rússia e China. O
Chanceler Gehard Schröder, também buscando recuperar a
popularidade, vocalizou a discordância do eleitorado alemão com a
promoção desta guerra.
237
A singularidade alemã manifesta-se em ser a maior potência
econômica da Europa sem a mesma importância como ator
estratégico, mesmo em relação a seus vizinhos europeus, França e
Grã-Bretanha, estes com presença militar em outras regiões do
mundo, além de serem potências nucleares. A traumática experiência
da derrota na Segunda Guerra Mundial e do Holocausto promovido
pelo regime nazista fazem do tema de possíveis ações militares da
Forças Armadas alemãs em intervenções no exterior algo muito
delicado na opinião pública nacional. Na década de 2000 os alemães
participaram de ações da OTAN no Afeganistão e as mortes de
soldados do país fizeram crescer entre os alemães a resistência à
atuação armada no exterior.
Política externa: a Europa e o mundo
A Alemanha se viu, portanto, ao fim dos anos 2000, em uma
posição de poder sem precedentes na Europa e pôde, na condição de
maior credor, quando da negociação do resgate dos países
endividados da zona do euro, impor as suas preferências, o que
estava assentado na recusa a qualquer forma de europeização da
dívida pública que implicasse em transferências dos países mais ricos
da região aos demais, o que significaria assumir a responsabilidade
pela maior parte destas transferências. Como também já colocado
anteriormente o país soube manejar, em proveito de suas exportações
industriais, a nova situação criada pelo alargamento da União
Europeia, a criação do euro e o impulso dado pelo crescimento na
primeira década do século 21.
Em relação à política europeia da Alemanha, uma discussão
bastante presente a partir de 2010, se deu sobre qual deveria ser o
papel do país na União Europeia, tendo em vista a reação política em
muitos países à duríssima posição alemã nas negociações dos planos
238
de resgate e exigências nestes de medidas draconianas de
austeridade. Reação que em países como a Grécia deram ensejo a um
forte sentimento popular anti-alemão, inclusive com a lembrança da
ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial e pedidos de
reparação, o que foi prontamente rechaçado por Berlim. Alguns
defenderam que a Alemanha precisa assumir posição semelhante à
dos EUA após a Segunda Guerra Mundial e descrita na “teoria da
estabilidade hegemônica.” Pensada por um membro do
Departamento de Estado, Charles Kindleberger, um dos
formuladores do Plano Marshall e pelo acadêmico Robert Gilpin, esta
preconiza que a estabilidade das relações internacionais depende de
um “poder estabilizador”, um Estado Nacional que forneça “bens
públicos” globais como moeda internacional, livre-comércio,
coordenação de políticas econômicas nacionais ou políticas
anticíclicas de eficácia global. Mas a comparação é inadequada A
teoria da estabilidade hegemônica foi construída por pensadores
norte-americanos tendo em consideração o papel dos Estados Unidos
e a estabilidade global.
A Alemanha não tem uma moeda com a penetração
internacional do dólar e nem força militar para se sustentar como
“hegemon”, mesmo no continente. A OTAN é comandada pelos
Estados Unidos e a segurança dos europeus depende da aliança com
os norte-americanos. A Alemanha exerce uma hegemonia econômica,
calcada na defesa dos seus interesses, no que teve êxito (até o conflito
na Ucrânia e suas consequências econômicas), porém ao custo de
fragilizar o projeto europeu.
A Alemanha da União Europeia no século XXI só se
comprometeria mais financeiramente com os vizinhos se o objetivo
fosse, de fato, aprofundar o projeto europeu e rumar a uma união
política. A União Europeia é, contudo, um espaço em que atuam
Estados Nacionais. Um espaço, sem dúvida, mais institucionalizado
239
do que em outras regiões do mundo, mas ainda assim, com
prevalência dos Estados, em especial, dos mais poderosos.
Concessões que buscassem um “equilíbrio” nas transações comerciais
entre a Alemanha e os pares europeus se conflitariam com sua
estratégia de inserção na economia global, que tem sido, em vários
sentidos, bem sucedida.
Houve uma alguma inflexão, recentemente, quando foram
acertados os termos do pacote de recuperação econômica pós-
pandemia de Covid-19. Pela primeira vez na história, a União
Europeia emitirá títulos conjuntos de dívida para captação no
mercado de 800 bilhões de euros até 2026 para capitalizar um fundo
de resgate. Parte dos recursos virão na forma de subsídios e parte
dívida assumida diretamente pelos países beneficiados, como Itália e
Espanha. Diferentemente dos pacotes de ajuda quando da crise de
endividamento, nos quais a Alemanha impôs duras condições aos
devedores e não aceitou qualquer medida de europeização de dívida,
desta vez, contudo, a pressão dos países do sul, em especial da Itália,
fortemente prejudicados pela pandemia, fez com que o governo
Merkel mudasse sua posição e, em coordenação com a França,
apoiasse este maciço plano de ajuda. Para tanto convenceu os países
com quais normalmente tem posições conjuntas em matéria
monetário-financeira: Holanda, Áustria, Finlândia e Suécia. A
Alemanha temeu pelo futuro do bloco, se o resgate com subsídios não
fosse efetivado. E a União Europeia tem importância central para a
política externa alemã e lhe dá um peso nas relações internacionais
que não teria atuando como país isoladamente.
Especialmente a partir do governo Schroeder, a política externa
alemã se torna mais pragmática e disposta a explorar as tradicionais
vantagens exportadoras da indústria do país, que se afirma, ainda
mais, como “export oriented”, além de investir mercados em forte
expansão, como o chinês. Como destacou o diário espanhol El País
240
“A interdependência econômica entre China e Alemanha é
brutal. Em 2019 a China foi o parceiro comercial mais importante da
Alemanha pelo quarto ano consecutivo. No ano passado, o comércio
bilateral atingiu pouco mais de 206 bilhões de euros (1,3 trilhão de
reais), à frente dos Estados Unidos e da Holanda. Dados da Federação
da Indústria Alemã (BDI) indicam ainda que há 5.200 empresas
alemãs na China. A Chanceler alemã, Angela Merkel, viajou uma
dúzia de vezes em visita oficial à China e tem dedicado um lugar
central às relações com o gigante asiático na atual presidência alemã
da UE, que começou em 1º de julho e termina no final de ano. A
grande cúpula UE-China, inicialmente marcada para setembro em
Leipzig, foi adiada, por enquanto, à espera de que a evolução do vírus
permita um encontro físico.” (El País, 2020)
Esta relação entre Alemanha e China tem ganhado mais
complexidade. A China continua sendo o principal mercado e o
principal parceiro comercial dos alemães, porém são vistos, cada vez
mais, como competidores econômicos, tecnológicos e estratégicos,
assim como da Europa e dos EUA.
Ainda nos anos 2000, Schröder estreitou as relações com a
Rússia, importador relevante dos produtos industriais alemães e
grande fornecedor de energia, especialmente gás natural. No seu
período como Chanceler iniciaram-se as tratativas para a construção
do gasoduto “Nord Stream 2”, fonte de desavenças com o governo
dos EUA (que sempre viu o projeto com forte desconfiança e nocivo
aos seus interesses, o que já o fez impor sanções a empresas
participantes da construção deste gasoduto, antes e depois da eclosão
da Guerra da Ucrânia, durante a qual essa infraestrutura é sabotada
por uma explosão, tornando-a inútil, indefinidamente, para o seu
fim). Esta aproximação com a Rússia fez com a Alemanha tivesse que
se equilibrar entre a manutenção dessas relações, com importantes
241
interesses econômicos, e as questões de segurança, no que tem maior
peso os laços com a OTAN e especialmente com os EUA. O novo
cenário pós-Guerra Fria deu à política externa da Alemanha
reunificada a possibilidade de estar menos preocupada com inimigos
ao redor e dar maior peso às relações econômicas e ao uso preferencial
da política externa para aferir ganhos econômicos. Angela Merkel
manteve o ativismo de Schoröder na promoção dos interesses
econômicos da Alemanha pelo mundo, porém de forma mais
matizada, buscando dar mais realce às preocupações com a segurança
e outros aspectos. A invasão russa da Ucrânia, entretanto, muda o
cenário e força a Alemanha a se distanciar da Rússia, a impor sanções,
retirar empresas do mercado russo e reduzir as compras de energia.
Conclusão
“Semi-hegemonia geoeconômica”. Esta é a expressão que
melhor definiu a posição alemã no contexto europeu, até a eclosão da
Guerra da Ucrânia. Um país que exerceu uma liderança regional,
porém sem os instrumentos do poder das armas (hard power) e sim
com a força da sua predominância econômica. A criação da
arquitetura institucional da União Europeia e da moeda comum,
embora tragam responsabilidades, que no contexto da pior pandemia
em um século se transformaram em um pacote de ajuda aos europeus
do sul com uma mutualização de dívida antes impensável, foram
muito benéficos aos interesses nacionais da Alemanha. O euro e a
mão de obra qualificada e barata do Leste Europeu, além da
estagnação dos salários no próprio país lhe trouxeram vantagens
competitivas ante os parceiros europeus e também fora da Europa e
o país se “descolou” dos demais, mesmo em relação à França, em
termos de desempenho econômico com o desemprego chegando a
níveis historicamente muito baixos. Contudo, ao custo de fragilizar o
242
projeto europeu e gerar grande descontentamento nos países do sul,
e também na França.
As relações com China e Rússia se intensificaram. Depois de
décadas, durante a Guerra Fria, comprometidos com o Ocidente, a
Alemanha busca laços mais fortes à Leste, embora a anexação russa
da Criméia tenha despertado temores em relação à segurança no
continente e Merkel tenha se colocado de forma crítica em relação à
intervenção do governo Putin. O contexto recente dado pela Guerra
da Ucrânia porém, com aumento brutal dos gastos militares
europeus, com destaque para a própria Alemanha e para a Polônia
(com apoio dos EUA), deflagrando corrida armamentista interna no
continente e incertezas nas relações com a Rússia, a China e os
próprios EUA (que tem em Donald Trump um ator político crítico da
aliança com os europeus) interromperam o período pacífico no qual
a Alemanha pôde estabelecer hegemonia regional centrada na força
econômica. Segue como a principal economia europeia, a despeito da
recessão atual e dos sérios problemas para a sua indústria. Mas o
cenário global, regional e mesmo interno da Alemanha (com a
ascensão da extrema-direita) em mutação trará uma nova ordem,
diferente desta das últimas duas décadas de hegemonia econômica
na Europa e projeção de poder no mundo pela força das exportações
e investimentos. É uma inserção mais difícil, com a geopolítica se
impondo sobre a geoeconomia.
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245
Adoção, adaptação ou resistência? A cláusula arbitral investidor-
estado em Tratados Bilaterais de investimento (BITs): análise
comparada entre Brasil e Argentina (1994-2021)
Diêgo Domiciano Vieira Costa Cabral1
Elia Elisa Cia Alves2
Resumo: Os casos de interesse desse trabalho são a adesão da
Argentina, em 1994, à Convenção de Washington (1965), que permite
a contratação de arbitragem entre Investidor e Estado nas disputas
que envolvam investimentos estrangeiros, e, de outro lado, a não
adesão pelo Brasil à referida convenção, estabelecendo regulamento
próprio, distinto do estado da arte internacional em relação à
1
Professor no Curso de Direito do Cnetro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.
Doutorando em Ciências Jurídicas na Universidad del Museo Social Argentino –
UMSA. Mestre em Gestão Pública e Cooperação Internacional pela Universidade
Federal da Paraíba – UFPB. Especialista em Direito Tributário e Processo
Tributário pelo Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ.
2 Professora adjunta no Departamento de Relações Internacionais (DRI) da UFPB
e no Programa de Pós Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional
(PGPCI) da UFPB. Doutora em Ciência Política pelo DCP (UFPE), com estágio
pós-doutoral na mesma instituição (PNPD, CAPES). Mestre em Ciências
Econômicas pela Unicamp (2012), Bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade de São Paulo (USP) (2008) e Bacharel em ciências econômicas pela
Unisul (2016). Atua como Vice-coodenadora do Bacharelado de RI da UFPB e do
Grupo de Estudos em Meio Ambiente, Política e Relações Internacionais -
MAPORI, do(a) Universidade Federal de Pernambuco. É pesquisadora do
Núcleo de Pesquisas em Política Comparada e Internacional (NEPI - UFPE) e
coordenadora da AT Ensino e Métodos da ABCP (2019-2023).
246
resolução de litígios em torno de IED. Para isso, empregando o
enquadramento teórico da Difusão de Políticas, pretende-se
investigar se a escolha por modelos distintos quanto à resolução de
litígios entre Investidor e Estado em BITs pela Argentina e Brasil se
deu por adoção, adaptação ou resistência. O método utilizado é a
análise comparada, de cunho qualitativo, com base em análise
documental, dados macroeconômicos e índices. As fontes de
pesquisa consistem em bases de dados e documentos oficiais dos
países, bem como de Organizações Internacionais. O recorte temporal
tem início em 1994, ano de entrada em vigor das regras da CW na
Argentina e fim em 2021, diante da disponibilidade de dados
completos. Nesse intervalo, destaca-se o ano de 2015, quando o Brasil
passou a adotar um modelo inédito no mundo: os ACFIs. Dentre os
resultados parcialmente encontrados, tem-se o mecanismo da
competição como o principal responsável por, inicialmente,
impulsionar os dois países à corrida por adesão à CW, resultando na
adesão da Argentina a esse acordo internacional e na inauguração de
processo legislativo para ratificação no Brasil, o qual não foi
concluído. Outros mecanismos de difusão são verificados
concomitantemente em cada país durante o recorte temporal
pesquisado. Fatores institucionais, políticos e econômicos sugerem
que o Brasil está um passo à frente de seus pares sul americanos
enquanto um polo atrativo ao investidor externo, o que pode ser uma
das respostas para explicar a posição distinta do Brasil em relação à
Argentina.
Palavras-chave: Difusão de políticas. BITs. Arbitragem investidor-
estado. ACFIs.
247
Abstract: The cases of interest of this work are the accession of
Argentina in 1994 to the Washington Convention (1965), which allows
the contracting of arbitration between investor and state in disputes
involving foreign investments, and, on the other hand, the non-
adherence by Brazil to the referred convention, establishing its own
regulation, distinct from the international state of the art in relation
to the resolution of disputes around FDI. For this, using the
theoretical framework of Policy Diffusion, it is intended to investigate
whether adoption, adaptation or resistance gave the choice of
different models for the resolution of disputes between investor and
state in bits by Argentina and Brazil. The method used is the
comparative analysis, qualitative, based on documentary analysis,
macroeconomic data and indexes. Research sources consist of
databases and official documents of countries as well as International
Organizations. The period begins in 1994, year of entry into force of
the CW rules in Argentina and end in 2021, given the availability of
complete data. In this interval, the year 2015 stands out, when Brazil
began to adopt a model unprecedented in the world: ACFIs. Among
the results partially found, there is the mechanism of competition as
the main responsible for, initially, driving the two countries to the
race for accession to the CW, resulting in the accession of Argentina
to this international agreement and the inauguration of a legislative
process for ratification in Brazil, which was not concluded. Other
diffusion mechanisms are checked concurrently in each country
during the time period studied. Institutional, political and economic
factors suggest that Brazil is ahead of its South American peers as an
attractive pole to the external investor, which may be one of the
answers to explain Brazil’s distinct position towards Argentina.
Keywords: Policy diffusion. BITs. Investor-state arbitration. ACFIs.
248
Introdução
A década de 1990 testemunhou acentuado incremento na
integração econômica entre Estados, fruto da crise da dívida dos anos
1980, tornando o investimento estrangeiro uma atraente fonte de
capital (VANDEVELDE, 2009). Isso fez com que ocorressem
mudanças no cenário político e econômico nos quais acordos
internacionais de investimentos estavam sendo negociados
(UNCTAD, 2000), em um contexto de competição entre os países e
ausência de instituições multilaterais para regular os fluxos de
investimento externo direto (IED)1 (Jandhyala et al, 2011). Assim,
difundiram-se os Tratados Bilaterais de Investimento (ou Bilateral
Investment Treaties, BITs em inglês, acrônimo empregado neste
trabalho), estabelecendo os termos e condições recíprocos sob os
quais cidadãos e empresas de um país podem fazer investimentos na
jurisdição de outro, resguardando os investidores de expropriações
nos países hospedeiros (NEWCOMBE; PARADELL, 2009).
Ao longo das décadas, os BITs passaram por diversas
adequações, ganhando facetas múltiplas. De modo geral, abrangem
três áreas principais: a) condições de admissão e estabelecimento para
investimento, b) o tratamento do Investimento Estrangeiro Direto -
IED uma vez investido e c) termos de solução de controvérsias
(BUTHE e MILNER, 2008). Nesse sentido, os investidores
internacionais recebem garantias sobre seus direitos de propriedade
por meio de cláusulas que preveem o direito de processar o governo
anfitrião se suas ações forem consideradas como uma expropriação,
mesmo que indireta, dos negócios da empresa (UNCTAD, 2000).
1
Investimento direto é uma categoria de investimento externo associado com o
residente de uma economia tendo o controle ou um grau significativo de
influência na administração de uma empresa em outra economia (FMI 2020, p.
100, tradução do autor), e se divide em duas grandes modalidades: a criação de
empresa em outro país a partir do zero (“greenfield”) ou a tomada de empresa já
existente por fusão ou aquisição (“M&A”).
249
A literatura de difusão de políticas, sugere que o aparato
jurídico-regulatório que acompanha o processo de liberalização
econômica de um país é influenciado pelo movimento em sua
vizinhança (POTRAFKE, 2013). Brasil e Argentina, apesar de
geograficamente vizinhos, inseridos em um contexto político-
econômico similar, partícipes da crise da dívida externa e da década
perdida nos anos 1980, com consequente processo de ampla
liberalização econômica nos anos 1990, adotaram trajetórias distintas
quanto à adoção de mecanismos de resolução de litígios entre
Investidor e Estado nos BITs que estabeleceram internacionalmente.
Considerando isso, essa pesquisa busca, a partir da
compreensão dos diferentes graus de convergência à normas
econômicas internacionais entre países imersos em um mesmo
contexto político-econômico internacional, investigar elementos do
contexto doméstico dos países pesquisados que influenciam na
adaptação de normas internacionais ao contexto nacional, mapeando
os vetores da difusão e/ou convergência internacional de políticas.
Em última análise, nos perguntamos quais elementos políticos,
econômicos e também regulatórios que permitiram que o Brasil
adotasse uma estratégia de competição internacional para atração de
investimento externo singular e muito distinta da Argentina.
Para isso, a metodologia empregada é uma análise comparada,
de cunho qualitativo, histórico-institucional, de dois modelos
regulatório-institucionais distintos, adotados entre 1994-2021, em
países imersos em contexto político-econômico internacional similar.
Przeworski e Tenue (1970) compreendem o método comparativo
como projeto de sistemas mais semelhantes, de modo que escolhem
como objetos de pesquisa os sistemas que são tão semelhantes quanto
possível, exceto no que diz respeito ao fenômeno de pesquisa de
interesse, seguindo a lógica do método de diferenças de Mill (1970), a
250
partir de um enquadramento teórico da Difusão de Políticas
Econômicas.
Apesar de importantes avanços na abordagem de difusão de
políticas nos estudos de economia política internacional destacados
por SISCÚ (2009), especialmente ao longo do Século XXI, Benson e
Jordan (2011) afirmam que ainda existe espaço para questões
empíricas, pois os motivos que fazem a difusão de políticas ocorrer
em um contexto e não em outro ainda não foram totalmente
abordadas na literatura sobre transferência de políticas.
Os casos de interesse são a adesão da Argentina à Convenção
de Washington (1965)2, em 1994, e, de outro lado, a não adesão pelo
Brasil à referida convenção, ao estabelecer um regulamento próprio,
distinto do estado da arte internacional em relação à resolução de
litígios em torno de IED3.
As fontes de pesquisa consistem em bases de dados e
documentos oficiais dos países, de Organizações Internacionais, além
de Tratados com disposições de investimento e disputas arbitrais que
envolvendo os países analisados.
O recorte temporal iniciou-se em 1994, ano de entrada em vigor
na Argentina das regras da Convenção de Washington permitindo a
contratação de arbitragem entre Investidor e Estado nas disputas que
2
A Convenção de Washington é instrumento jurídico internacional de referência
da proteção ao investimento estrangeiro, o que nos permite analisar a adesão de
um país a tal acordo a partir da abordagem teórica da difusão de políticas.
3 Muito embora se pondere que o Brasil possa ter começado a sua própria difusão
através da adoção dos ACFI’s (MORAES e HESS, 2018), entendemos que essa
hipótese explica menos, pois não acomoda amplamente o início do processo
legislativo brasileiro de adesão à arbitragem investidor-estado no âmbito dos
BIT’s, mesmo que não convalidado no país, como o foi da Argentina (REIS;
RIBEIRO, 2019). Nos parece, assim, que a hipótese da difusão para o Brasil
explica melhor o curso dos eventos políticos, senão até o presente momento, ao
menos até 2015, quando se implementou o novo modelo de acordos
internacionais.
251
envolvam investimentos estrangeiros. O marco temporal final é 2021,
diante da disponibilidade de dados completos quando da coleta para
a pesquisa. No intervalo temporal estudado, o ano de 2015 se destaca,
quando o Brasil passou a adotar um modelo inédito no mundo:
Acordos de Cooperação e Facilitação de Investimentos – ACFIs, os
quais estabelecem preferência por prevenção de disputas, reforçando
o afastamento do Brasil à intenção de aderir à Arbitragem Investidor-
Estado nos moldes previstos na Convenção de Washington.
Este trabalho está organizado em 5 seções, contando com a
introdução e as considerações finais. A primeira seção aborda os
Tratados Bilaterais de Investimento, a cláusula arbitral Investidor-
Estado, além do conceito de Arbitragem internacional, assinalando os
principais organismos de resolução de disputas entre investidor
externo e país hospedeiro. A segunda seção discute o que é e como se
caracteriza o processo de difusão internacional de políticas, refletindo
acerca dos institutos da adoção, adaptação e resistência. A seção
seguinte enfrenta a pergunta de pesquisa, a partir dos elementos de
difusão, observando o contexto internacional em que Brasil e
Argentina estavam inseridos no cenário da difusão da Convenção de
Washington, e refletindo sobre a influência da competição e da
coerção, no caso da Argentina, e da transformação da resistência em
adaptação, no caso do Brasil, justificando resposta diferenciada de
ambos os países em relação à Cláusula Arbitral Investidor-Estado nos
BITs.
Os Tratados Bilaterais de Investimento e a cláusula arbitral
Investidor-Estado
Desde que o primeiro BIT foi assinado em 1959, mais de 2.700
tratados adicionais desse tipo foram forjados envolvendo quase todos
os países do mundo (JANDHYALA, HENISZ e MANSFIELD, 2011).
252
Talvez a expressão considerável do número seja justificada por Elkins,
Guzman e Simmons (2006), que observaram que a assinatura de um
BIT torna um governo suscetível a danos substanciais à reputação se
optar por violar oportunisticamente os termos do tratado, reduzindo
o risco que um investidor enfrenta e, por outro lado, elevando a
probabilidade da taxa de retorno associada à um projeto de promoção
de IED, funcionando como uma ferramenta de fomento à
competitividade.
Guzman (2009) afirma que a adoção de acordos bilaterais de
investimentos é uma resposta para problemas de comportamento
oportunista (hold-up) ou de inconsistência temporal ou dinâmica nos
países em desenvolvimento tentando atrair investimentos
estrangeiros diretos, principalmente quando o IED envolve custos
irrecuperáveis. Logo, a finalidade dos BITs, dentre outras, é a de
viabilizar a sanção, internacionalmente, ante um mal tratamento que
o Estado receptor dê ao investimento estrangeiro e, por outro lado,
manifestar vontade política do Estado receptor de garantir uma
proteção adequada dos investimentos estrangeiros realizados em seu
território (Lima, 2008), criando, assim, um ambiente de segurança
jurídica para os investidores.
Seguindo a mesma lógica, Neumayer e Spess (2005) afirmam
que a assinatura do BIT pode atrair investimentos, eis que o acordo
bilateral dificulta a aplicação de leis dos países receptores do
investimento, que poderiam ser interpretadas como expropriação, ao
passo que expede claro sinal para os potenciais investidores no
sentido de que o país é geralmente sério sobre a proteção do
investimento estrangeiro.
A Tabela 1 reporta que entre 1980 e 2019 foram assinados ou
entraram em vigor 3228 (três mil duzentos e vinte e oito) BITs no
mundo.
253
Tabela 1. Número de Tratados Bilaterais de proteção a
Investimentos assinados, em vigor e terminados, por período
Número de novos
Total de eventos Número de BITs com
BITs com data de
Ano envolvendo BITs no data de rescisão no
assinatura ou entrada
período5 período6
em vigor no período4
1980 a 1989 175 238 NA
1990 a 1999 1.301 1.651 25
2000 a 2009 1.266 1.493 99
2010 a 2019 486 709 221
Total 3228 4091 345
Fonte: elaboração própria, a partir de UNCTAD (2022). Disponível em:
https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-
agreements/advanced-search. Acesso em 20 de outubro de 2023.
Jandhyala, Henisz e Mansfield (2011), ao pesquisarem sobre a
evolução histórica dos BITs e como eles se propagam pelo mundo,
apontam a existência de 03 (três) ondas globais transformativas em
4Disponível em:
https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-
agreements/advanced-search. Foram considerados acordos com status
“assinado” e “em vigor”.
5 Além de assinatura e vigência, acrescentou-se a “data de rescisão” como
mecanismo de busca e os status “Rescindido”, com suas subclasses (rescindido
por consentimento; expirado, substituído por novo tratado e denunciado
unilateralmente). Disponível em:
https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-
agreements/advanced-search
6 Busca selecionando “data de rescisão” e o status “Rescindido” com suas
subclasses (rescindido por consentimento; expirado, substituído por novo
tratado e denunciado unilateralmente). Disponível em:
https://investmentpolicy.unctad.org/international-investment-
agreements/advanced-search
254
torno do instituto. Na primeira onda, observada antes da segunda
guerra mundial, a única proteção externa existente para o
investimento estrangeiro era o direito internacional consuetudinário,
mostrando-se uma ferramenta inadequada ao utilizar-se de
mecanismos não legais de força militar e diplomacia
(VANDEVELDE, 2009). Nesse contexto, a grande maioria dos BITs foi
formada entre um país economicamente avançado, exportador de
capital, e um país em desenvolvimento, importador de capital.
A segunda onda, difundida a partir de meados da década de
1980, sob a forte influência do liberalismo econômico, apresentou
características distintas da primeira, com difusão de BITs
predominantemente entre países semelhantes. Nesse sentido,
passou-se a considerar a preparação para o mercado externo,
dispensando-se menor atenção aos custos e benefícios nacionais, em
detrimento do alinhamento com práticas adotadas por outros
Estados-nação e que potencialmente poderiam repercutir em
benefícios (FINNEMORE, SIKKINK, 1998).
A partir dos anos 1990, em meio a contextos internacionais de
instabilidade, a crise financeira asiática e a crise argentina de 1999-
2002, houve uma terceira onda de BITs. Nesta, denotou-se período de
maior reflexão quanto à aderência, especialmente por parte dos países
em desenvolvimento, fazendo com que estes ponderassem a relação
de custo e benefício da adesão, refreando a emulação cega às práticas
de seus pares e adotando base de cálculos mais racional para justificar
seus posicionamentos (JANDHYALA; HENISZ; MANSFIELD, 2011).
Nos anos 2000 e 2009 houve uma estabilização, com pequeno
decréscimo no número de BITs assinados ou vigentes: 1.266 (mil
duzentos e sessenta e seis). Já no intervalo compreendido entre 2010
e 2019, percebe-se drástica redução para o número de 486
(quatrocentos e oitenta e seis) novos BITs assinados ou vigentes. Além
da queda no interesse em aderir a BITs, as informações contidas na
255
última coluna da Tabela 1 permitem observar um movimento
rescisório de tratados ao passar dos anos.
Jandhyala, Henisz e Mansfield (2011) sugerem que os adotantes
no estágio de difusão rápida (do final da década de 1980 até cerca de
2000) diferem sistematicamente daqueles que adotaram inicialmente
os BITs (ROGERS, 1995). Em seus estudos sobre as três ondas dos
BITs, esses autores concluem que o cálculo político-econômico
racional para assinar os Tratados foi mais forte na primeira onda,
mais fraco na segunda e relativamente forte novamente na terceira,
em comparação com as sugestões de adoção por pares.
Esse tipo de acordo vem sofrendo críticas há décadas por
diversas motivos. Em especial, em razão da interferência na soberania
reguladora doméstica a que os países em desenvolvimento
sucumbem ao assinar BITs, submetendo-se a cláusulas de
mecanismos de solução de controvérsias previstas nos pactos. É nos
próprios BITs que encontramos estabelecidos os mecanismos
jurídicos para a solução de controvérsias, dentre os quais o mais
comum é a arbitragem internacional. Esta, por sua vez, pode ocorrer
sob a égide de diversos organismos de resolução de disputas e, a
depender se o litígio envolve Estado-Estado ou Investidor-Estado,
sofrerá influências quanto às suas diretrizes interpretativas e
aplicação de normas entre os litigantes.
Para a presente pesquisa, o foco permanece sobre a cláusula
que permite a Arbitragem entre o Investidor e o Estado hospedeiro,
concebida como fruto de um acordo por meio do qual o(s) Estado(s)
signatário(s) consente(m) com a submissão de eventuais litígios
envolvendo investimento estrangeiro à arbitragem internacional.
Comumente, essa modalidade de cláusula é a mais utilizada nos BITs.
Possuindo natureza de tratado internacional e sendo
plenamente vinculante entre as partes, o acordo arbitral entre
256
investidor e Estado se materializa no instante em que há a oferta,
aceitação e inclusão nos BITs. Porém, apenas se aperfeiçoa quando o
primeiro agente requer a instauração do procedimento arbitral, com
base na cláusula arbitral contida no BIT.
Dentro do cenário mais praticado nos BITs, ou seja,
considerando a inclusão de cláusula de resolução de disputas entre
investidor e o Estado hospedeiro, com indicação de uma Câmara de
Arbitragem especializada (arbitragem institucional), abre-se vasto
leque de possibilidades para a indicação de qual instituição de
resolução de disputas poderá gerir o procedimento arbitral. Isso se dá
em razão da existência de diversas Câmaras, tais como: International
Chamber of Commerce (ICC); International Center for Dispute Resolution
(ICDR), American Arbitration Association (AAA); International Center for
Settlement of Investment Disputes (ICSID); London Court of International
Arbitration (LCIA); e a Corte Permanente de Arbitragem de Haia.
A Convenção de Washington, assinada em 1965, surgiu em um
momento histórico no qual predominava a insegurança jurídica para
investidores estrangeiros. Estes, ao terem seus investimentos
desapropriados pelos países hospedeiros, tinham que se submeter
aos tribunais locais, à proteção diplomática ou mesmo militar7, não
dispondo de meio mais eficaz e equitativo para reaver o capital
apropriado ou receber indenização justa.
Vicente (2018) informa ser necessário um duplo consentimento
por parte do Estado, na medida em que não basta a ratificação da
Convenção de Washington, é necessário que haja a um acordo
posterior prevendo a utilização da arbitragem. Assim, a cláusula
arbitral pode ser expressa tanto em um contrato entre o Estado e o
investidor estrangeiro, quanto em uma Lei nacional sobre
investimentos estrangeiros ou em BIT.
7
Conhecida como Gunboat diplomacy.
257
Originário da Convenção de Washington, o ICSID possui
especial destaque em razão de ter sido, a partir da década de 1990,
um dos organismos mais incluídos em tratados internacionais para
gerenciar a resolução de disputas no contexto do investimento
internacional. Isso se justifica, segundo Saban, Stier-Mosess e Bonomo
(2010), em razão da difusão de políticas no contexto da liberalização
do capitalismo, por meio do mecanismo de competição.
Paralelamente ao processo de difusão e adoção de políticas
internacionais, alguns países conseguem amadurecer, adaptar e até
mesmo resistir a alguns mecanismos internacionais, especialmente
diante de incertezas quanto a seus efeitos. A literatura em difusão de
políticas muito avançou nas últimas cinco décadas buscando
explicações e enquadramentos teórico-analíticos para compreender
esses fenômenos, alguns dos quais serão apresentados na seção 2.
Adoção, adaptação ou resistência? O que é e como se caracteriza o
processo de difusão internacional de políticas?
Durante a segunda metade do Século XX, percebeu-se forte
crescimento da interdependência entre Estados e do processo de
liberalização econômica, com importantes efeitos sobre as políticas
públicas dos países. Em razão disso, esse processo tem sido
amplamente investigado, consolidando um campo teórico-analítico
para tratar fenômenos de compartilhamento internacional, tais como
a difusão8, a transferência e a convergência de políticas, analisadas
8
Apesar de diferentes na literatura especializada, os termos transferência,
convergência, harmonização e difusão de políticas referem-se, essencialmente, ao
mesmo fenômeno: unidades políticas diferentes adotando políticas públicas
similares. A difusão descreve uma tendência de adoção sucessiva ou sequencial
de uma prática, política ou programa, funcionando como uma consequência da
interdependência (BERRY, 1999) e, por isso, foi adotada neste trabalho. Dolowitz
e Marsh (2000) empregam o termo transferência que foi mantido neste trabalho.
258
por meio de mecanismos de recepção e construção, responsáveis por
acionar ou rejeitar o compartilhamento destas, quais sejam a
aprendizagem, a emulação, a coerção9 e a competição (DOLOWITZ E
MARSH, 2000).
Dentre os mecanismos, a competição pode ser definida como o
processo pelo qual os formuladores de políticas antecipam ou reagem
ao comportamento de outros países para atrair ou reter recursos
econômicos, influenciando uns aos outros na tentativa de atrair
recursos (Dobbin et al., 2007).
Quanto ao aprendizado, Gilardi (2010) afirma ser um processo
em que as políticas de uma unidade são influenciadas pelas
consequências de políticas semelhantes em outras unidades, a partir
de um processo de observação feito pelos formuladores de políticas.
A emulação, por sua vez, não está relacionada às consequências
objetivas de uma política. Em vez disso, as características simbólicas
e socialmente construídas das políticas são cruciais nesse mecanismo.
É a busca de legitimidade e status que motiva essa ferramenta.
Inspirada no institucionalismo sociológico, a conceituação deste
instrumento implica que as unidades tenham que se adequar ao seu
ambiente normativo, exigindo que os atores políticos mudem da
lógica de consequente sequências à lógica da adequação (CHECKEL,
2005). Assim, algumas políticas terão alta aceitação,
independentemente de serem ou não eficazes.
Já a coerção, pela perspectiva da economia política
internacional, pode ser compreendida como um mecanismo de
Desta forma, os vários termos apresentados serão utilizados de maneira
intercambiável, apesar de entendermos que são fenômenos sutilmente distintos.
9 Apesar de alguns autores não a compreenderem como tal, argumentando que a
mudança de política através dela não é voluntária, considera-se a coerção como
mecanismos de difusão (DOBBIN; SIMMONS; GARRETT, 2007). As quatro
categorias foram assim unidas por Simmons, Dobbin e Garrett (2006) para fins de
facilitação da compreensão da difusão internacional do liberalismo econômico.
259
imposição de uma política por organizações internacionais, com a
imposição de condicionalidades (DOBBIN; SIMMONS; GARRETT,
2007), tais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial já fizeram, países poderosos (EUA), blocos econômicos (UE),
sanções comerciais, ou mesmo por meio da força física (ALEMNA,
2020).
Apesar de os conceitos dos mecanismos de difusão não
possuírem maiores dificuldades interpretativas no campo teórico, a
sua aplicabilidade prática revela ambiguidades. Ao pesquisar sobre
posições distintas quanto à adoção de cláusula arbitral, consideramos
a possibilidade de ocorrência de mais de um mecanismo de difusão
de políticas funcionando ao mesmo tempo em cada país. Swank
(2008) afirma que, mesmo que a difusão de políticas seja propagada
por único padrão, não necessariamente precisa afetar todos os países
receptores de maneira semelhante.
No início dos anos 2000, Simmons e Elkins (2004) identificaram
um gap nos trabalhos sobre Difusão de Políticas, ao perceberem
negligência no papel da política internacional e das relações
internacionais na canalização dos IED. Anos depois, Jandhyala et al.
(2011) apontaram que os estudiosos da matéria não identificaram as
condições sob as quais a difusão seria impulsionada por um
mecanismo específico, nem os motivos de mudança ao longo do
tempo. Stone (2012) foi adiante ao criticar lacuna nos estudos de
Difusão de políticas ao não priorizarem como as políticas ou práticas
são alteradas durante os processos de adoção, negligenciando os
interesses políticos envolvidos na transferência e revelando um
fascínio, quase exclusivo, pelas condições de transferência e não pelo
conteúdo das novas políticas, não observando que “o que” está sendo
difundido às vezes se perde na preocupação com “como” a difusão
ocorre (HOWLETT; RAYNER 2008, p. 386).
260
Ao observar a difusão de políticas no contexto da economia
política internacional, Simmons e Elkins (2004) complementam que o
fenômeno pode ser analisado sob dois prismas: o primeiro em que a
adoção crescente de uma política altera os benefícios da escolha para
outros e o segundo em que as opções feitas por uns fornecem
informações políticas relevantes sobre os benefícios/malefícios de tal
escolha.
Shipan e Volden (2014), ao abordarem a resistência à difusão,
defendem que a presença e/ou ausência de uma rede profissional
vinculada a questões de especialização e limitações de tempo no
desenvolvimento de políticas pode influenciar na difusão. Para os
autores, os Estados são mais propensos a imitar outros que
demonstraram a capacidade de alcançar bons resultados. Isso se dá a
partir de um processo de aprendizado que pode depender da
experiência dos formuladores de políticas anteriores. Assim, a
experiência prolongada de sucesso dos agentes políticos de
determinado Estado aumenta a probabilidade de emular os sucessos
políticos encontrados em outros estados (SHIPAN; VOLDEN, 2014).
Observa-se, porém, que o processo de difusão não é inevitável
e nem ocorre de maneira homogênea: alguns Estados são menos
receptivos que outros (BERRY, 1999). Stone (2012) afirma que fatores
internos a um sistema, como a dinâmica de poder dos interesses
políticos e a composição social e histórica de uma política, podem ser
determinantes mais poderosos do que fatores externos para
compreender eventuais movimentos de resistência à difusão. Butler
et al. (2015) e Gilardi (2010) apresentam as preferências e a ideologia
dos formuladores de políticas como um fator adicional de embaraço.
Desta maneira, especialmente na perspectiva econômica,
considera-se importante observar o contexto econômico, político e
institucional interno de cada um dos países estudados, o que é feito
aqui de forma sucinta, para que se possa conjecturar acerca das
261
influências domésticas sobre políticas difundidas durante o recorte
temporal proposto.
A adoção da cláusula arbitral investidor-estado em BITs: uma
análise comparada do Brasil e da Argentina
Um dos possíveis enfoques de se estudar difusão de políticas
pela ótica da economia política internacional é o fenômeno de
abertura de mercados. Os trabalhos de Simmons e Elkins (2004), por
exemplo, mostram que a competição, mensurada através de dados
como importações e exportações proporcionais ao PIB, investimento
estrangeiro direto em relação ao PIB, e o nível de abertura financeira,
configurou-se como relevante para a compreensão do cenário em que
uma política pública se propaga. Nesse contexto, a presente seção
busca compreender como os mecanismos de difusão, internacionais e
domésticos, do Brasil e da Argentina podem contribuir na explicação
do caso comparado em tela.
Para tanto, iremos observar o contexto internacional em que
Brasil e Argentina estavam inseridos no cenário da difusão da
Convenção de Washington, bem como a capacidade de resposta
diferenciada de ambos os países, considerando os elementos de
resistência da difusão, nesse caso, para não adoção, compreendida
aqui como adaptação e, até, resistência, em relação à Cláusula
Arbitral Investidor-Estado nos BITs pelo Brasil.
262
A competição internacional e a Convenção de Washington
Em 1965, 29 países assinaram a Convenção de Washington -
CW.10 Em 2022, a convenção contava com a assinatura de 158 Estados,
o que equivale a cerca de 80% dos países do mundo.
Em termos relativos, as Américas (do Norte e Central)
representam juntas a região onde há mais países aderentes à CW: 21
países aderentes, de um total de 23. Respectivamente, em ordem
decrescente, estão África, Europa, Ásia, América do Sul e Oceania,
conforme se observa da Tabela 2.
Tabela 2. Proporção em termos relativos de adesão à CW por região:
quantidade de países componentes de cada região x quantidade de
países aderentes à CW por região
Quantidade de Quantidade de Proporção em termos
Região países, por países aderentes à relativos de adesão à
região CW por região CW por região
Américas
do Norte e 23 21 91,3%
Central
África 54 41 75,9%
Europa 50 34 68%
Ásia 49 33 67,34%
América
13 8 61,5%
do Sul
Oceania 24 8 33,33%
Fonte: elaboração própria, a partir dos dados do Banco Mundial (2022).
No caso da América do Sul, na ocasião da aprovação da
proposta do ICSID, em 1965, os países da região fizeram forte
Disponível em: https://icsid.worldbank.org/about/member-states/database-of-
10
member-states. Acesso em 31 de outubro de 2023.
263
oposição, unindo votos de 19 países contrário, fato conhecido como o
“não de Tokyo” (GOMEZ, 2011), “cláusula Calvo” ou mesmo
“doutrina Calvo”, em homenagem ao jurista argentino Carlos Calvo.
Calvo defendia que os investidores externos deveriam renunciar seus
direitos à proteção diplomática e resolver suas disputas com
nacionais nas cortes locais, onde receberiam o mesmo tratamento que
os nacionais. Conforme essa doutrina, permitir que estrangeiros
tivessem foro em jurisdição fora do país equivaleria a lhes conceder
direitos especiais (GARCIA, 2004, p. 318).
Nos anos 1980s e 1990s, com a difusão dos BITs, a doutrina
perdeu força na região, o que pode ser explicado pela crescente
competição por capitais estrangeiros, em um ambiente de escassez
global de capital (MIGA, 2002), de modo que, após a resistência
inicial, a maioria das nações sul-americanas aderiu à CW, com
exceção apenas de Brasil, Cuba e Suriname11, conforme ilustrado na
Figura 1.
11
Bolívia, Equador e Venezuela chegaram a ratificar a Convenção de Washington
e participaram ativamente das arbitragens no âmbito do ICSID (67 casos, ao
todo). Contudo, diante da insatisfação com esse mecanismo de solução de
controvérsias, acusado de parcialidade pró-investidor, essas três nações optaram
por denunciar o tratado.
264
Figura 1. Ano de entrada em vigência da Convenção de Washington,
(América do Sul)
Fonte: Elaboração própria, a partir de Banco Mundial (2022). Disponível em:
https://icsid.worldbank.org/about/member-states/database-of-member-states.
Acesso em 13 de agosto de 2023.
Guzman (1997) ilustra o paradoxo, ao lembrar que estes países,
que inicialmente eram hostis a comprometer suas soberanias, tiveram
que, em seguida, estabelecer acordos que minavam seus controles e
independência sobre investimentos externos, entrando em um
equilíbrio estratégico conhecido na teoria dos jogos por “dilema do
prisioneiro12”, onde a melhor estratégia individual (atrair
12Considere a existência de dois prisioneiros, A e B. É oferecido a eles o seguinte
acordo: se um deles confessar o crime, este será solto enquanto o outro ficará
preso por 6 anos. Se os dois confessarem, os dois ficarão presos por 3 anos. Se os
dois não confessarem, os dois ficarão presos por 1 ano. Nem um prisioneiro está
em contato com o outro, e como nem um dos dois pode garantir que o outro irá
cooperar, nem um dos dois possuem incentivos para arriscar, esse sistema
acabaria por premiar aquele que trai e punir aquele coopera com o traíra. A
situação na qual cada um toma a melhor estratégia, dada a atitude do outro, não
é a situação na qual se esgotaram as possibilidades de um melhorar a sua situação
sem piorar a situação do outro. Ambos poderiam melhorar as suas situações se
cooperassem.
265
investimentos antes que o vizinho atraia) comprometeria o melhor
resultado coletivo (resguardar a soberania da região através da
negociação em grupo, ou cartelizada).
O Brasil, por sua, vez, historicamente se desviou dos demais
países da América do Sul quanto à postura diante dos mecanismos de
resolução de disputas inseridos em BITs, ao não ratificar os BITs com
cláusulas que permitiam a arbitragem entre investidor externo e o
Brasil. O país nunca aderiu à Convenção de Washington. Tais fatos
colocam o Brasil como outlier da região no regime de solução de
controvérsias investidor-Estado.
A partir da segunda metade dos anos 2000, observou-se um
aparente movimento de ressurreição da doutrina Calvo na América
Latina. A Bolívia deixou a convenção em 2007, seguida do Equador
(2010) e da Venezuela (2012), com possíveis rumores de que a
Argentina também deixaria o ICSID (BOEGLIN, 2022).
Apesar disso, houve, no Brasil, um aumento no número de
autorizações legislativas para o uso de arbitragem por parte de
estatais em situações específicas, inclusive do Superior Tribunal de
Justiça - STJ, reconhecendo a validade de cláusulas arbitrais firmadas
com estatais brasileiras (LEE, 2006).
Em síntese, mesmo que o Brasil não tenha aderido formalmente
à cláusula arbitral investidor-estado, percebeu-se leve tendência em
flexibilizar a sua posição anterior. Este movimento levou o país a
desenvolver, a partir de 2013, um novo modelo de acordos de
investimento: os Acordos de Cooperação e Facilitação de
Investimentos (ACFIs), que foi implementado a partir de 2015.
Bas Vilizzio (2018) afirma que essa proposta sui generis do Brasil
constitui um primeiro passo na herança jurídica para a proteção da
atividade estatal, que se realiza em última instância no exercício da
266
soberania, excluindo o controle de legalidade por tribunais
internacionais de investimento.
Para compreender essa trajetória distinta do caso da Argentino,
que aderiu à cláusula arbitral sem ressalvas nos anos 1990, a próxima
seção busca investigar os diferentes elementos histórico-
institucionais domésticos de cada país. Embora localizados na mesma
região geográfica e imersos em um mesmo ambiente de competição
de liberalização econômica que promoveu um movimento de difusão
da cláusula arbitral globalmente, a literatura da não-difusão indica a
existência de fatores internos como mais poderosos do que fatores
externos. O que então poderia explicar as diferentes trajetórias da
difusão entre Brasil e Argentina?
Under pressure ou Copy and Paste? O que fez a Argentina aderir à
Convenção de Washington e quais os desdobramentos dessa decisão que
podem ter ensinado o Brasil a não fazer?
Observando o caso da adesão Argentina à cláusula arbitral,
podemos nos perguntar se aproxima-se a uma possível difusão pela
competição, na busca por atração de investimentos, somada à
coerção, diante de condições de reformas liberalizantes para obtenção
de financiamentos internacionais, sem desconsiderar a possibilidade
de emulação, quando grupos de cunho liberal assumiram governos
na terceira onda de redemocratização na América Latina, nos anos
1990.
Com a Argentina saindo de uma profunda crise institucional e
econômica no final dos anos 1980, incluindo uma crise monetária de
hiperinflação, o Presidente argentino Carlos Menem (1989-1999)13,
determinado a superar o modelo de substituição de importações,
13Político peronista, vinculado ao partido Justicialista, geralmente alinhado
políticas economicamente liberais.
267
começou a realizar reformas de estado, buscando consolidar um
ambiente para atração de investimento estrangeiro, impulsionando a
privatização de empresas públicas, a liberalização comercial, a
desregulação dos mercados, aderindo ao Plano Brady (1992),
modificando normas nacionais sobre investimentos externos,
assinando diversos BITs, além de aderir à submissão do estado
Argentino à arbitragem internacional, com a ratificação da
Convenção de Washington, em 1994 (ALONSO, 2013).
Tais medidas tiveram efeitos importantes no que tange à atração
de investimentos estrangeiros, especialmente até o final dos anos
1990, com a venda da YPF para a Repsol. Entretanto, essa entrada não
foi suficiente para honrar a dívida externa do país, com longo
histórico de descrédito ante a desonra de compromissos com credores
estrangeiros (1982, 1989, 2001, 2004, 2014 e 2020), tornando-se um
importante fator negativo para o país no contexto internacional.
Somado a isso, observou-se o agravamento da latente instabilidade
monetária. O país já havia ostentado inflação com dois dígitos em
períodos anteriores, de três ou quatro dígitos entre 1975 e 1990,
chegando ao pico de um índice anual de 5.000%, em 1989.
Na tentativa de combater o problema inflacionário, em 1991 o
país equiparou o dólar ao peso argentino, retirando poder da
autoridade monetária nacional (Ferguson, 2008). No final de 2001 e
início de 2002, diante da inviabilidade de manutenção da paridade do
peso com o dólar, revogou-se a lei de conversão. Nesse contexto, uma
série de investimentos estrangeiros foram abalados. Concessionárias
de energia, por exemplo, por meio da Lei nº 25.561 de 2002, não
poderiam reajustar suas tarifas e teriam de cobrar do consumidor em
pesos o mesmo numerário de tarifa em dólar, embora um peso
estivesse valendo menos que um dólar.
Ao levar contendas para a arbitragem internacional, os
investidores estrangeiros alegavam que teriam sido expropriados. As
268
reclamações contra a Argentina, à época, foram tão numerosas que o
país se tornou aquele com o maior número de demandas enfrentadas
no ICSID até então.
Como explica Goodman (2007), a maior parte dos casos que são
levados ao ICSID são consequência direta de cláusulas de BITs que
contém a aceitação dos estados contratantes à arbitragem junto ao
ICSID. Nesse cenário, embora a adoção de BITs possa se explicar
mediante processos de competição, é importante considerar que, em
uma situação de competição predatória, os jogadores simplesmente
aceitam as condições do jogo, o que dificilmente pode ser entendido
como uma decisão plenamente voluntária.
A força propulsora dos BITs induzindo os estados a aderirem
ao ICSID foi apresentada graficamente por Alonso (2013), como
podemos conferir da Figura 2.
Figura 2. Número de processos arbitrais conhecidos e decorrentes
de BITs em curso no ICSID (CIADI em português) - (1959-2009)
Fonte: Alonso (2013), p. 18. A partir de dados da UNCTAD (2010).
A partir disso, Garcia (2004) traz o relato de Jose E. Alvarez, um
ex-membro do time de negociação de BITs dos Estados Unidos, onde
269
ele relata as condições em que os países latino-americanos se
encontravam nas negociações dos acordos de investimento:
“Para muitos, um relacionamento em BIT dificilmente é
uma transação voluntária e sem coerção. Eles [parceiros dos
EUA nos BITs] sentem que eles devem entrar no arranjo, ou
que seriam bobos se não entrassem. Para países latino
americanos o BIT representa um retorno aos velhos dias de
confiança nos IED - antes deles aprenderem a temer se
tornarem dependentes. Mas a verdade é que até o momento
o modelo de BIT dos EUA tem sido tratado como, de
maneira geral, uma proposição “pegar ou largar”, com os
Estados Unidos dando as linhas e o parceiro do BIT como
suplicante. Uma negociação de BIT não é uma discussão
entre soberanos iguais. É mais como um seminário de
treino intensivo conduzido pelos Estados Unidos, nos
termos dos EUA, sobre o que seria necessário ser feito para
cumprir com o projeto dos EUA.” (apud Pilch, 1992)
Se tomarmos tal testemunho pelo valor de face, acabamos por
admitir que os BITs podem revelar-se como um mecanismo de
difusão de política coercitivo, pressionando os países latino-
americanos a entrar no ICSID. Haveria então coerção na adesão
argentina?
Gomez (2011) aponta ainda que, a partir dos anos 2000, houve
um crescente criticismo quanto ao ICSID por vários motivos, dentre
os quais: a pouca atenção ofertada a temas não comerciais (ambientais
ou de saúde pública), o viés do árbitro em favor do investidor, a
ausência de um processo de apelação, a incapacidade de levar em
consideração reveses econômicos sérios, falhas no seu sistema de
execução dos prêmios e a relação de dependência do órgão com o
Banco Mundial. Este último, reforça os argumentos anteriormente
levantados, validando a ideia de que, além da competição, a adesão
argentina à CW tenha se dado under pressure também.
270
O caso brasileiro: adaptação ou resistência?
Historicamente o Brasil se baseia em práticas econômicas de
caráter desenvolvimentista-intervencionista (BADIN, MOROSINI E
TRUBEK, 2019). Apesar disso, o programa de abertura econômica nos
anos 1990 fez com que o país voltasse a ser um importante país na
atração de IED (Gregory e Oliveira, 2005).
Morosini e Xavier Júnior (2015) apontam que desde o final dos
anos 1970, a posição brasileira em relação à regulação dos
investimentos oscilou. Em alguns momentos o país apresentou uma
posição mais conservadora, dominada pela lógica Norte-Sul e pela
predominância do Brasil enquanto Estado receptor. Em outras
ocasiões, verificou-se um protagonismo na formulação de normas
para o setor de investimentos, especialmente em casos de Estado
exportador de capitais a partir do eixo Sul-Sul.
Na década de 1990, em uma primeira onda influenciada pelo
contexto liberalizante do final da Guerra Fria, possivelmente
motivado pelo mecanismo de competição, o país acenou para a
inclusão da cláusula de resolução de disputas que permite a
arbitragem entre o investidor externo e o país hospedeiro. Isso se
verificou em 14 (quatorze) BITs que foram celebrados com
importantes países exportadores de capital14. Apesar disso, o referido
mecanismo de resolução de controvérsias não se efetivou, pois não
houve prosseguimento com a ratificação legislativa desses BITs (REIS;
RIBEIRO, 2019).
Wald (2014) aponta duas razões para a não ratificação dos
Acordos por parte do Brasil: uma de natureza jurídica e outra
econômica. A primeira, segundo o autor, é relacionada a problemas
14
Foram eles: Alemanha (1995), Bélgica/Luxemburgo (1999), Chile (1994), Coreia
do Sul (1995), Cuba (1997), Dinamarca (1995), Finlândia (1995), França (1995),
Itália (1995), Países Baixos (1998), Portugal (1994), Reino Unido (1994), Suíça
(1994) e Venezuela (1995).
271
quanto à remessa de lucros, ao regime da desapropriação e à
aplicação da arbitragem15, havendo desconfianças sobre as
negociações do Multilateral Agreement on Investiments, que visam
garantir um tratado não discriminatório para todos os investidores,
independentemente da sua nacionalidade. A segunda razão se
justificaria pelo fato de o Brasil ter volume de investimentos
estrangeiros satisfatório naquele período, de modo que não precisaria
aderir à cláusula.
A Figura 3, aponta que, em termos relativos, o Brasil esteve em
posição de competição com a Argentina no que tange à atração de
investimentos estrangeiros nos anos 1990. Contudo, em seguida, o
contexto econômico do Brasil deu ao país um respaldo ou policy space
para não precisar aderir à política tal qual seus vizinhos. Observa-se
que ao se estabelecer como a maior economia da América Latina e do
Caribe (CEPAL)16, o Brasil tornou-se um dos maiores receptores de
IED da região, nos anos 2000, chegando a ocupar o 5º lugar em 2010
e, em 2021, o 4º posto global17, mesmo não estando submetido aos
preceitos liberais da Convenção de Washington.
15
Tem-se o entendimento de que a arbitragem investidor-estado viola o princípio
constitucional da jurisdição una, negando ao poder judiciário a última palavra
sobre questões de justiça e, assim, beneficia os investidores estrangeiros às custas
dos investidores domésticos.
16 https://statistics.cepal.org/portal/cepalstat/index.html?lang=es
17 Dados disponíveis em
https://read.oecd-ilibrary.org/finance-and-investment/oecd-international-direct-
investment-statistics-2021_981db434-en#page1
272
Figura 3. Fluxo de entrada de IED por PIB, para Brasil e Argentina
Fonte: Elaboração própria. Dados: UNCTAD (2021)
Por isso, é importante considerar outros elementos que possam
ter viabilizado a resistência e posterior adaptação de políticas no
Brasil. Shipan e Volden (2014), por exemplo, ressaltam a importância
de uma rede profissional vinculada a questões de especialização no
desenvolvimento de políticas.
O Brasil, há época da difusão de BITs com cláusula arbitral
investidor-estado, apresentava condições que permitiram
fundamentar uma rede técnica especializada para ganhar tempo de
resposta e não necessariamente ficar constrangido às pressões
internacionais. Nesse contexto, por exemplo, o Consultor Jurídico do
Ministério das Relações Exteriores brasileiro, Augusto de Rezende
Rocha, em parecer que subsidiou a posição brasileira quando
elaboração da Convenção de Washington, considerou o mecanismo
como uma indevida interferência do “imperialismo econômico e
financeiro”. Para o Consultor, não era crível que um Estado soberano
com instituições jurídicas sólidas tenha de ceder competências para
273
tribunais internacionais, mormente em matéria regulatória de âmbito
estritamente interno18.
Apesar disso, essa posição brasileira em matéria de regras de
proteção de investimentos durou relativamente pouco. Nos anos
2000, o Brasil passou a exportar capital, especialmente para países da
África e da América Latina. Esse contexto, da crescente relevância de
acordos preferenciais, inter-regionais e plurilaterais, levou o país, em
2013, a desenhar os primeiros ACFIs, após anos de estudos do
Itamaraty, em conjunto com o Ministério da Fazenda, do então
Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e da Câmara
de Comércio Exterior - CAMEX (BADIN, MOROSINI E TRUBEK,
2019) e ainda, as contribuições do setor privado brasileiro (Amorim et
al, 2022).
Assim, em 2015, chegou-se a um modelo híbrido, com
influência de acordos multilaterais, especialmente no que atine às
garantias processuais (Amorim et al, 2022), fruto de considerações
originárias dos modelos até então existentes, fundamentando-se em
dois pilares: o primeiro relacionado às condições macroeconômicas a
que o Brasil se submetia, especialmente às externas que, no período,
eram favoráveis. O segundo relaciona-se à fragilização, em nível
internacional, dos tratados internacionais de investimento (Amorim,
Baccarini & Menezes, 2021).
18
“[...] seria a consagração do imperialismo econômico e financeiro, ainda que
disfarçada. (...) não é crível que qualquer Estado normalmente organizado,
apresentando instituições asseguradoras de uma ordem jurídica primária,
concorde de boa mente em sub-rogar funções públicas essenciais a um tribunal
internacional, que na sua organização e funcionamento será passível de sofrer
influências prejudiciais à própria soberania desse Estado. (...) nunca o Governo
brasileiro, em qualquer época, deixou de acolher, diplomática ou judicialmente,
as reivindicações de meritorious cases de estrangeiros que lhe fossem
apresentadas”. SOARES, Guido. Órgãos das soluções extrajudiciárias de litígios.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, pp. 80-82
274
No que tange ao primeiro aspecto, conforme ilustrado na Figura
4, observa-se que embora a Argentina fosse competitiva com o Brasil
no início dos anos 1990, ela perdeu essa posição e se igualou aos
demais países da região no início dos anos 2000, com os quais passou
a competir pelo investimento residual. Esse fator permitiu ao Brasil o
desenvolvimento de um aparato regulatório adaptado.
Figura 4. Distribuição relativa do fluxo de IED para a América do
Sul, por país e por ano.
Fonte: Elaboração própria a partir de dados da UNCTAD.
Nesse sentido, o modelo de ACFI brasileiro apresenta como
característica principal a ênfase à facilitação de investimentos,
definido de forma relativamente adstrita a expropriação,
incentivando a prevenção de disputas, excluindo, todavia, o uso de
mecanismo Investor-state dispute settlement (ISDS), preferindo
arbitragens entre Estados (Badin, Morosini e Trubek, 2019). Isso,
segundo Fernandes e Fiorati (2015), resulta em um formato mais
equilibrado, baseando-se em: a) mitigação de riscos; b) governança
institucional por órgãos permanentes; c) agendas temáticas para
cooperação e facilitação dos investimentos.
275
Apesar disso, o modelo brasileiro não está livre de críticas. Uma
das ponderações mais incisivas ao modelo dos ACFIs é a
possibilidade de sua politização, especialmente por se tratar de uma
opção centralizada no Estado. Instâncias decisórias como o Ponto
Focal e o Comitê Conjunto também são dependentes da atuação do
Estado.
Aparentemente, o Brasil aprendeu com o insucesso de seus
vizinhos, os quais enfrentaram arbitragens desfavoráveis, chegando
a, em alguns casos, cancelar a adesão à CW19. Apesar disso, o país
ainda acompanha as discussões do Grupo de Trabalho III da
UNCITRAL sobre reforma da solução de controvérsias investidor-
Estado20.
Brasil e Argentina em perspectiva comparada: os elementos da resistência
com adaptação
Ferramentas de difusão de políticas podem agir
concomitantemente em processos de transferência para determinado
local, havendo ainda que se conceber as influências no aspecto de
dimensão e profundidade das movimentações de políticas.
Brasil e Argentina possuem proximidades institucionais
históricas, políticas e econômicas, guardados alguns períodos de
distanciamentos. Ademais, estiveram submetidos à mesma onda de
difusão de cláusula arbitral investidor-estado no início da década de
19
Na América Latina, por exemplo, vemos o caso de Bolívia, Equador e Venezuela
que denunciaram a Convenção de Washington e Argentina que resistia, como
podia, a execução de sentenças arbitrais. Sobre o tema: VINCENTELLI, Ignacio
A. The Uncertain Future of ICSID in Latin America. Law and Business Review of
the Americas, vol. 16, n. 3, 2010, p. 409-456.
20 Relatórios das discussões podem ser acessados no sítio eletrônico da instituição:
http://www.uncitral.org/uncitral/en/commission/working_groups/3Investor_Sta
te.html.
276
1990. Em um primeiro momento, aparentemente, procederam de
forma similar, pois enquanto que a Argentina pôs em vigência os
termos da CW em seu território em 1994, no mesmo período o Brasil
encaminhou ao legislativo mais de 10 (dez) tratados internacionais
com cláusula arbitral investidor-estado para submissão e ratificação21.
Isso remete ao apontamento de que a difusão da cláusula arbitral
investidor-estado, entre 1994 e 1998, teria sido difundida, em um
primeiro momento, sob a influência dos mecanismos da emulação e
da competição no caso do Brasil, e, além desses, no caso da Argentina,
também da coerção.
A emulação é justificada em razão do contexto internacional na
América Latina. Em um contexto de redemocratização, em que
questões político-ideológicas ganham mais relevância, os países
sentiram pressão internacional por aceitação, necessitando adaptar-
se, ainda que tardiamente, à crescente adoção da política pública da
arbitragem internacional entre investidor externo e o estado
hospedeiro. Entretanto, a não ratificação no Brasil significou uma
importante resistência, motivada tanto pela dinâmica de poder dos
interesses políticos (Stone, 2012), quanto por um rearranjo das
preferências e a ideologia dos formuladores de políticas fatores
identificados tanto por Butler et al. (2015) quanto por Gilardi (2010).
No caso da Argentina, após o fim da Guerra Fria, Federico
Merke (2008) destaca a ocorrência do que chama de “realismo
periférico”22. Trata-se de uma transformação na política externa
21
Não se pode ignorar a possibilidade de a posição brasileira quanto ao tema ter
sido, desde os primórdios, um movimento simulado, com intenção deliberada
em assinar e não ratificar os tratados, para ganhar tempo, estratégia de resistência
também identificada pela literatura.
22 A partir de 1989, a Argentina abre espaço à implementação de um novo
paradigma de política externa, originado no espaço acadêmico argentino de
pesquisa, mais especificamente no Instituto Di Tella (ITDT) e na Faculdade
Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO) de Buenos Aires (ESCUDÉ,
1998, p. 79). Batizado de realismo periférico pelo acadêmico argentino Roberto
277
argentina, passando da periferia da resistência à periferia do
alinhamento. Esta passagem reflete a mudança abrupta pela qual
passou a agenda de política externa argentina com o início do
governo de Carlos Menem (1989-1999), com continuidade na gestão
de Fernando de la Rúa (1999-2001).
Explicando a resistência brasileira, Santos (2018) afirma que,
diferentemente do realismo periférico argentino, o paradigma que se
oficializou na academia brasileira como “institucionalismo
pragmático”23 não nasce de prescrições normativas acadêmicas, senão
da própria práxis política que se ajusta ao novo cenário internacional,
considerando a trajetória histórica (Stone, 2012) e fatores internos.
Ainda, pode ser percebida a ocorrência de aprendizado nos
primeiros anos do recorte temporal desta pesquisa. Justifica-se a
afirmação ante o cenário de equívocos praticados pela Argentina na
definição do conceito de investidor e de expropriação, indicando a
possível existência de informações incompletas, erradas ou ainda em
uma percepção equivocada dos atores da época quanto a
aplicabilidade de algumas políticas públicas importadas. O Brasil
aprendeu com as experiências negativas do país vizinho (Dolowitz e
Marsh; 2000), utilizando-se das ideias difundidas para direcionar
quais os conceitos e caminhos políticos ele não desejava seguir.
Ademais, a coerção branda sugerida apenas para a Argentina é
inicialmente originária de condicionalidades normalmente impostas
em razão de empréstimos ou de relações de dependência econômica
em geral, tais como presentes no Plano Brady. Nesse ponto pode
haver similitude com o mecanismo da competição, por se tratar de
Russell e desenvolvido pelo intelectual orgânico Carlos Escudé, essa doutrina
prescreve o alinhamento com as potências centrais como estratégia principal de
política externa para países pertencentes à periferia do sistema internacional.
23 O institucionalismo pragmático é um novo paradigma batizado por Pinheiro
(2000), ao observar elementos institucionalistas neoliberais e realistas na Política
Externa Brasileira Contemporânea.
278
uma condicionalidade originária de acordo internacional e com
anuência mútua.
Quadro 1. Elementos de difusão, resistência ou adaptação em
relação à adoção da Cláusula Arbitral Investidor-Estado nos BITs -
Brasil e Argentina
Elemento de influência à resistência
Brasil Argentina
identificados
Rede profissional vinculada a questões de
especialização e limitações de tempo no
x -
desenvolvimento de políticas pode influenciar
na difusão (Shipan e Volden, 2014)
Estados mais propensos a imitar outros após
analisar bons resultados da experiência
x -
prolongada (aprendizado) (Shipan e Volden,
2014 e Dolowitz e Marsh; 2000)
Dinâmica de poder dos interesses políticos
x x
(Stone, 2012) - fatores internos - resistência
Composição social (Stone, 2012) - fatores
- -
internos - resistência
Trajetória histórica (Stone, 2012) - fatores
x x
internos - resistência
Preferências e a ideologia dos formuladores de
- x
políticas (Butler et al., 2015; Gilardi, 2010)
Coerção originária de condicionalidades
- x
(DOBBIN; SIMMONS; GARRETT, 2007)
Fonte: Elaboração própria.
Desde 2013, ao desenvolver um modelo próprio, o Brasil passou
de resistência à adaptação política. A afirmação se baseia na criação
de um novo modelo de política pública de regulamentação das
tratativas internacionais envolvendo investimentos, os ACFIs,
279
inspirados nos antigos BITs da década de 1990, mas também em
acordos multilaterais desse mesmo período. O Brasil, neste quesito,
inovou ao criar esse novo modelo de Acordo, posicionando-se, como
um outlier no contexto internacional.
Considerações finais
Em uma análise longitudinal do contexto global e considerando
a influência de fatores domésticos na aderência à políticas públicas
internacionais em cada país pesquisado, observa-se a adoção de
posições contraintuitivas entre Brasil e Argentina. Diante disso, a
pesquisa buscou identificar quais elementos políticos, econômicos e
também regulatórios permitiram que o Brasil adotasse uma estratégia
de competição internacional para atração de investimento externo
singular e muito distinta da Argentina.
Observou-se que década de 1990, em uma primeira onda
influenciada pelo contexto liberalizante do final da Guerra Fria,
possivelmente motivados pelos mecanismos de competição e
emulação, ambos os países acenaram para a inclusão da cláusula de
resolução de disputas que permite a arbitragem entre o investidor
externo e o país hospedeiro.
Nesse cenário, embora a adoção de BITs possa se explicar
mediante processos de competição, é importante considerar que, em
uma situação de competição predatória, os jogadores simplesmente
aceitam as condições do jogo, o que dificilmente pode ser entendido
como uma decisão plenamente voluntária. Isso remete ao
apontamento de que a difusão da cláusula arbitral investidor-estado,
entre 1994 e 1998, teria sido difundida, em um primeiro momento,
sob a influência dos mecanismos da emulação e da competição no
caso do Brasil, e, além desses, no caso da Argentina, também da
coerção (under pressure).
280
Logo, observando o caso da adesão Argentina à cláusula
arbitral, podemos considerar a hipótese de que aproxima-se a uma
possível difusão pela competição na busca por atração de
investimentos, somada à coerção, diante de condições de reformas
liberalizantes para obtenção de financiamentos internacionais, sem
desconsiderar a possibilidade de emulação, quando grupos de cunho
liberal assumiram governos na terceira onda de redemocratização na
América Latina, nos anos 1990.
No que atine ao Brasil, destaca-se que o país esteve em posição
de competição com a Argentina no que tange à atração de
investimentos estrangeiros no início dos anos 1990. Contudo, em
seguida, o contexto econômico do país lhe deu respaldo, ou policy
space, capaz de avalizar a disposição de não aderir à política de
resolução de conflitos internacionais da CW, tal qual seus vizinhos e,
além disso, iniciar, em 2013, a criação de um novo modelo de acordos
de investimento: os ACFIs.
Observado isso, considerou-se analisar outros elementos
auxiliares à resistência que possam, à luz da literatura, igualmente,
ter influenciado a posição inicial brasileira quanto a adesão à CW, a
exemplo da importância de uma rede profissional vinculada a
questões de especialização no desenvolvimento de políticas, do
aprendizado ante a análise de bons resultados da experiência
prolongada, da dinâmica de poder dos interesses políticos,
composição social de cada país, da trajetória histórica de resistência
destes, além das preferências ideológicas dos formuladores de
políticas e de possível ocorrência de coerção originária de
condicionalidades. A partir das inflexões apresentadas, foi possível
concluir que, desde 2013, ao desenvolver um modelo próprio, o Brasil
passou de resistência à adaptação política.
281
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287
Analisando a Inserção Internacional Imperialista da China a partir
da Teoria Marxista da Dependência: notas sobre as relações
econômicas sino-brasileiras no século XXI
Danilo Augusto da Silva Horta1
Resumo: O imperialismo, entendido em termos teóricos, exerceu
grande influência nas discussões acadêmicas no século passado.
Embora tenha perdido espaço na academia e nas discussões políticas
por conta da ascensão do neoliberalismo e de outras vertentes teóricas
críticas, o imperialismo se mantém como um fenômeno relevante até
a atualidade. Dentro das teorias do imperialismo, a Teoria Marxista
da Dependência (TMD), oriunda da América Latina, constituiu-se
como uma de suas principais vertentes teóricas, sendo sua potência
incontestável. Os desenvolvimentos teóricos realizados por autores
como Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra nos permitiram tanto
compreender as especificidades das economias e sociedades latino-
americanas, marcadas pela dependência, quanto as dinâmicas e
tendências fundamentais do sistema econômico mundial. Dentre as
diversas contribuições dos teóricos marxistas da dependência, estão
aquelas que nos permitem analisar as relações desiguais existentes no
sistema capitalista mundial, que se processam em prejuízo das
economias periféricas/latino-americanas. Essas contribuições teóricas
1
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da
Universidade Estadual de Campinas (PPGCP/UNICAMP). E-mail:
[email protected]
288
(das teorias do imperialismo e da dependência) são fundamentais
para a compreensão e análise de distintos fenômenos
contemporâneos, que se processam a partir das mesmas dinâmicas
explicitadas por autores como Marini e Bambirra. Devido a essa
centralidade, o presente trabalho busca utilizar-se dos
desenvolvimentos teóricos da TMD para compreender e analisar as
relações econômicas existentes entre a China e o Brasil no século XXI,
com o objetivo de responder a seguinte pergunta: a China apresenta
uma postura imperialista nas suas relações econômicas com o Brasil?.
A hipótese que guia este trabalho é a de que a China apresenta uma
postura imperialista frente ao Brasil e que as relações entre os dois
países fortalecem a situação econômico-dependente do último. O
método de abordagem adotado foi o hipotético-dedutivo; os métodos
procedimentais foram: 1º) a pesquisa exploratória e 2º) a análise
explicativa. Com a pesquisa obtivemos dados quantitativos e
qualitativos que nos permitiram comprovar a hipótese apresentada.
Palavras-Chave: Teoria Marxista da Dependência; Imperialismo;
China; Brasil;
Introdução
As rápidas transformações observadas na economia e na
política internacional nas últimas décadas do século XX foram
fundamentais para formar e definir as principais dinâmicas e
tendências observadas nessas esferas no século XXI. Dentre os
diversos fenômenos característicos desses momentos históricos, o
intenso processo de desenvolvimento chinês foi, sem sombra de
dúvidas, um dos mais relevantes.
289
A centralidade do processo de desenvolvimento chinês para as
dinâmicas presentes na economia capitalista mundial e no sistema
internacional2 decorrem de dois fatores: 1º) por tratar-se,
efetivamente, de um processo no qual uma economia planificada
passa por uma transformação capitalista sem que se tenha alterações
no regime político e na dominância do Partido Comunista sobre este
e, 2º) por tratar-se de um processo que possibilita à China, uma
economia até então subdesenvolvida/semiperiférica3, ascender à
condição de potência econômica, impondo sérios desafios às demais
potências mundiais. Esses dois fatores, fundamentais para o que será
trabalhado neste artigo, aparecem como pressupostos teóricos
basilares que, por conta das limitações estruturais formais impostas a
este texto, não serão analisados profundamente; apesar disso, por
serem importantes, discutiremos-os sucintamente nesta introdução.
De maneira resumida, entendemos que as quatro
modernizações, projeto de reformas promovido por Deng Xiaoping
em 1978, fundamentais para a intensificação e dinamização do
processo de desenvolvimento econômico observado na China, foram
responsáveis por transformar o caráter da economia e do Estado
Chinês, cujas características passam a ser essencialmente capitalistas.
Isso se deve pois, com o processo de abertura, há a reintrodução da
lei do valor no seio da economia chinesa, de modo que os imperativos
do capital passam a ser dominantes no país, determinado as
dinâmicas econômicas existentes em todos os setores da economia,
2
Apesar dos termos sistema capitalista mundial e sistema internacional serem
abordados de maneira distinta por diferentes campos de estudos, os utilizaremos
como sinônimos, visto a compreensão da impossibilidade de dissociar as
dinâmicas econômicas das dinâmicas políticas existentes em nível nacional e em
nível internacional.
3
Utilizamos os termos subdesenvolvida e/ou semiperiférica para distinguir,
categoricamente, esta de uma economia dependente, cujas características
explicaremos posteriormente.
290
até mesmo naqueles controlados diretamente pelo Estado chinês4
(NABUCO, 2009)
A dominância e os imperativos do capital se ocultam sob o
slogan de socialismo de mercado, mas permanecem ativos e
determinantes nas dinâmicas socioeconômicas presentes na China, de
modo que observamos, até a contemporaneidade, uma intensa
exploração da classe trabalhadora; a produção e extração de mais-
valor dos trabalhadores nos processos produtivos; a manutenção do
caráter dual da mercadoria (valor de uso e valor) naquela sociedade
(sendo que esta mantém sua função de mediação social); a existência
de relações capitalistas no campo e nas cidades; a modernização e
desenvolvimento das forças produtivas em prol da lucratividade; o
aumento das desigualdades sociais (mesmo com o crescimento da
riqueza global); serviços públicos pagos; etc. (NABUCO, 2009;
SOUZA, 2018). Tal como destacado por Paula Nabuco (2009, p. 104):
No capitalismo a mercadoria tem um caráter dual, é
particular, enquanto valor de uso, e geral como forma de
mediação social. E o trabalho produtor de mercadorias, por
sua vez, é particular, trabalho concreto, produtor de valores
de uso; e socialmente geral, trabalho abstrato, como meio
para acessar a riqueza social, forma de mediação social. Fica
clara, portanto, a contradição intrínseca à idéia de
socialismo sem a supressão da lei do valor e suas
determinações. Pois o socialismo pressupõe o fim das
relações sociais medidas pelas mercadorias (estranhadas)
enquanto forma como os indivíduos passam a integrar a
sociedade.
4
Por reintrodução da lei do valor queremos apontar para o fato de que os
processos produtivos na China passam a ser guiados pela geração de mais-valor
e para o fato de que há a reintrodução do caráter dual da mercadoria, que passa
a aglutinar, novamente, valor e não somente valor de uso. Isso significa que, com
as reformas, a lógica de produção capitalista substitui a lógica produtiva
observada no período maoísta.
291
Se as reformas promovidas por Deng reintroduziram a lei do
valor na economia chinesa, com consequências diretas para as
dinâmicas socioeconômicas ali observadas, elas também modificaram
o caráter do Estado chinês, que se transforma de um Estado socialista
em um Estado capitalista com forte caráter desenvolvimentista, como
bem assinalado por Renildo Souza (2018):
Com Deng, para seu autoproclamado objetivo de
modernização socialista, recorria-se a um capitalismo
monopolista de Estado combinado – por mais estranho que
pareça – com a globalização neoliberal. Essa combinação
curiosa, com Deng, seria constituída por um tipo de Estado
desenvolvimentista e, ao mesmo tempo, pela liberalização
para o setor privado, para o mercado e para a integração à
economia mundial. De forma inteligente, a liderança do
PCC, com as reformas, aproveitou e usou a globalização
neoliberal para, paradoxalmente, alcançar os objetivos
nacional-desenvolvimentistas do Estado chinês. (SOUZA;
2018, p. 60)
Ressaltar o caráter capitalista da economia e do aparato estatal
chinês, fruto direto das reformas econômicas promovidas por Deng
Xiaoping em 1978, é fundamental pois é esse caráter que a leva a
atuar, com o desenvolvimento das suas capacidades produtivas,
como uma potência capitalista no sistema internacional. Ao mesmo
tempo em que observamos uma transformação do caráter da
economia e do Estado na China, no plano político há a manutenção
do regime político e do controle do Partido Comunista Chinês (PCC)
sobre a economia, sobre a sociedade e sobre a política na China, fato
este que constitui uma das principais especificidades do processo
histórico da China contemporânea.
O segundo ponto levantado, a saber, o fato do processo de
desenvolvimento ter possibilitado/assegurado à China condições
materiais e capacidades políticas, militares e econômicas para
292
ascender à condição de potência mundial em menos de sete décadas5,
é fundamental por uma série de razões. Importa destacar que, a
despeito de sua continuidade, o processo de desenvolvimento
econômico da China apresentou distintas fases, de modo que as
dinâmicas socioeconômicas determinantes do desenvolvimento se
modificaram ao longo do tempo. Tendo isso em vista, é importante
ressaltar que o processo de desenvolvimento chinês se baseou, em
grande medida, em uma rápida e intensa industrialização, em uma
acelerada urbanização e na expansão/modernização da infraestrutura
no país (MANZI; VIOLA, 2020; HIRATUKA, 2018; MEDEIROS, 2008;
RIBEIRO, 2013). Estes fatores asseguraram a existência de um
contínuo crescimento econômico (exceto em alguns períodos como
em alguns anos do Grande Salto adiante e da Revolução Cultural, em
que observamos certos níveis de decrescimento econômico) e
determinaram uma crescente inserção da China no sistema
econômico internacional.
A expansão das capacidades econômicas da China pode ser
verificada a partir da análise do crescimento de seu Produto Interno
Bruto (PIB) ao longo do tempo. O PIB chinês, calculado em dólares e
a preços constantes de 2015, elevou-se intensamente; de acordo com
os dados do Banco Mundial (2023): em 1961 o PIB da China era de
US$ 115,57 bilhões; em 1978 era de US$ 364,39 bilhões e em 2022 de
US$ 16,33 trilhões. Em outros termos, em 1961 a China foi responsável
por, aproximadamente, cerca de 1,01% do PIB global; em 1978 por
5
Sete décadas, pois entendemos que o processo de desenvolvimento chinês se
iniciou em 1949, com a vitória do Partido Comunista Chinês sobre as forças
nacionalistas no país na revolução chinesa. A tomada do Estado pelo PCCh
assegurou condições que possibilitam a industrialização e elevação das
capacidades materiais da China, embora esta ganhe fôlego após as reformas
promovidas por Deng Xiaoping. Dito isso, entendemos ser plausível defender
que a China já se colocava como uma das principais potências mundiais na
segunda década do século XXI.
293
aproximadamente 1,46% do mesmo e em 2022 por cerca de 18,19% do
produto mundial. Em termos de taxa de crescimento, de 1961 a 1978
a economia chinesa cresceu cerca de 5,36% ao ano; de 1979 a 2008,
essa taxa de crescimento foi de 9,96% ao ano e de 2008 a 2022 foi de
7,1% ao ano (WORLD BANK DATA, 2023).
A elevação das capacidades materiais da China levou este país
a ter crescente participação no comércio, nos investimentos e nas
finanças mundiais, de modo que suas ações passaram a causar
enormes reverberações sobre as distintas economias do sistema
capitalista mundial.
Apesar do crescimento econômico promover uma elevação da
inserção do país na economia mundial, foram as características do
processo de desenvolvimento sofrido pela China que determinaram
a forma e a intensidade pela qual essa inserção se processou. Como
dissemos, os motores do desenvolvimento chinês foram a
industrialização; a expansão e a modernização da infraestrutura do
país e a urbanização (fatores estes que pressupõem grande inversão
em formação bruta de capital fixo). Esses 3 motores do
desenvolvimento fizeram com que a inserção da China na economia
mundial fosse condicionada pelas seguintes necessidades: 1º) busca
por matérias-primas, recursos energéticos e bens alimentícios, para
suprir as demandas dos setores econômicos e as demandas
populacionais do país; 2º) busca por mercados consumidores dos
produtos industriais e manufaturados chineses, especialmente após
as reformas promovidas por Deng, que fortaleceram a importância
das exportações para a manutenção do desenvolvimento chinês; 3º)
busca por exportar capital, primeiramente a partir da estratégia de
internacionalização das empresas chinesas denominada de Going
Global e posteriormente como consequência dos efeitos maléficos da
crise de 2008 sobre a economia da China (MANZI; VIOLA, 2020;
CINTRA; PINTO, 2017; RIBEIRO, 2013). Esses aspectos da inserção
294
econômica da China foram e são fundamentais para assegurar a
manutenção e sustentação do processo de desenvolvimento no país.
Esses dois fatores fundamentais, que explicitamos
rapidamente, são de suma importância para o trabalho aqui
realizado, pois é a partir do pressuposto de que a China se constitui
enquanto uma potência econômica capitalista que discutiremos, à luz
das teorias do imperialismo e da dependência, as relações existentes
entre esse país e o Brasil. Resumidamente, reconhece-se que a China
é capitalista por conta das reformas promovidas por Deng Xiaoping,
que transformaram a estrutura e o caráter do Estado Chinês e
reconhece-se que a China é uma potência por conta de seu intenso
processo de desenvolvimento, cujas características impuseram e
impõem ao país uma intensa inserção na economia mundial a fim de
satisfazer suas demandas e assegurar a manutenção do seu processo
de desenvolvimento.
Feitas tais considerações, o presente trabalho se subdivide em 5
seções, contando com esta introdução. Na segunda seção buscamos
discorrer sobre os aspectos teóricos fundamentais da Teoria do
Imperialismo e da Teoria Marxista da Dependência, com foco na
produção de dois de seus principais autores: Ruy Mauro Marini e
Vânia Bambirra. Na terceira seção busca-se, de maneira sucinta,
discorrer sobre as relações sino-brasileiras ao longo do tempo,
apontando para o fato de que esta se desenvolve enormemente a
partir dos anos 1990, especialmente por conta da convergência de
interesses econômicos. Na quarta seção, buscamos analisar as
características das relações econômicas e financeiras existentes entre
Brasil e China no século XXI a luz dos pressupostos teóricos
discutidos na seção 2. Por fim, na quinta e última seção realizamos as
considerações finais.
295
A Teoria Marxista da Dependência enquanto uma teoria do
Imperialismo: uma articulação necessária entre Ruy Mauro Marini
e Vânia Bambirra
Discorrer acerca do imperialismo enquanto conceito teórico e
enquanto fenômeno político-econômico não é uma tarefa fácil.
Apesar da centralidade e da importância das discussões acerca deste
fenômeno, na contemporaneidade, é inegável que este constitui-se
enquanto um conceito plurívoco, que se modifica a depender do
referencial teórico mobilizado. Além de ser conceitualmente plural,
as discussões acerca do imperialismo são marcadas por distintas
concepções teóricas que analisam e dissertam sobre fenômenos
político-econômicos causados pelo imperialismo sem mobilizar o
conceito/referencial teórico do mesmo, em muitos casos para se
distanciar teoricamente do marxismo, tal como pode ser apreendido
dos debates acerca do colonialismo e/ou neocolonialismo. Além
destas dificuldades, outras surgem devido às distintas faces do
imperialismo, que vão além da esfera econômica, mas que mantém
relação direta com esta.
Tendo claro as dificuldades de se analisar o fenômeno do
imperialismo e de dissertar sobre suas diversas faces, faz-se
necessário discorrer sobre a abordagem teórica adotada neste
trabalho. Mas, antes disso, é indispensável realizarmos duas
considerações. Em primeiro lugar, as discussões teóricas adotadas
neste trabalho partem de concepções e referenciais teóricos marxista-
leninistas, de modo que procuramos nos distanciar das análises sobre
o imperialismo que mobilizam outros referenciais teóricos. Em
segundo lugar, compreendemos que o imperialismo se constitui
enquanto um fenômeno determinado, em grande medida, pelas
dinâmicas existentes na esfera econômica, sendo que suas outras
faces - culturais, militares, sociais - possuem relação direta com as
dinâmicas econômicas e são indissociáveis delas. Em terceiro lugar,
296
compreendemos que a Teoria Marxista da Dependência se constitui
como uma teoria do imperialismo, que avança e apresenta inúmeros
desenvolvimentos teóricos em relação às teorias clássicas acerca deste
fenômeno. Dito isso, explicitemos a perspectiva teórica que guiará a
análise aqui realizada.
Dentre os inúmeros autores clássicos da teoria do imperialismo,
Vladimir Lênin se sobressai por suas inúmeras contribuições teóricas
e avanços importantes para a compreensão desse fenômeno. Sua
obra, “O Imperialismo: etapa superior do capitalismo” constitui-se
em um dos textos mais relevantes e influentes sobre a temática,
mesmo na hodiernidade. Nesse livro, escrito em 1916 e lançado em
1917, Lênin busca analisar e explicitar as transformações ocorridas no
capitalismo que levaram as disputas interimperialistas que deram
origem à Primeira Guerra Mundial.
De maneira geral, entendemos que os principais argumentos
levantados nessa obra são: 1º) devido às tendências de centralização
e concentração do capital existentes, observa-se uma crescente
monopolização das firmas industriais e dos setores produtivos; ao
mesmo tempo em que se observa uma monopolização dos bancos; 2º)
a monopolização dos bancos e das firmas industriais gesta uma
crescente associação entre o capital bancário e o capital industrial,
associação que dá origem ao capital financeiro e, consequentemente,
a uma elite financeira; como consequência da crescente
monopolização dos bancos e das firmas e o consequente surgimento
da elite financeira, temos 3 tendências características do
imperialismo: 1º) a exportação de capitais, originadas devido a
existência de excedentes de capitais nas economias de capitalismo
avançado; 2º) a partilha do mundo entre as associações monopolistas
e 3º) a busca por dominar diretamente regiões do mundo, fato que
produz uma competição interimperialista por colônias e terras
(LÊNIN, 2011 [1917]). Esses argumentos são apresentados e
297
explicitados de maneira concisa nos famosos 5 traços fundamentais
do imperialismo descrito por Lênin, a saber:
1) a concentração da produção e do capital levada a um
grau tão elevado de desenvolvimento que criou os
monopólios, os quais desempenham um papel decisivo na
vida econômica; 2) a fusão do capital bancário com o capital
industrial e a criação, baseada nesse “capital financeiro” da
oligarquia financeira; 3) a exportação de capitais,
diferentemente da exportação de mercadorias, adquire
uma importância particularmente grande; 4) a formação de
associações internacionais monopolistas de capitalistas,
que partilham o mundo entre si, e 5) o termo da partilha
territorial do mundo entre as potências capitalistas mais
importantes. (LÊNIN, 2011 [1917], p. 218)
Apesar das diferentes críticas ao Imperialismo de Lênin e das
limitações existentes nesta obra6, compreendemos que o descrito pelo
autor assegura uma base sólida para pensarmos e analisarmos o
imperialismo enquanto fenômeno até a contemporaneidade. Alguns
dos traços apresentados pelo autor, em especial a dominância do
capital financeiro, a importância da exportação de capitais e a
competição entre monopólios, capitais e Estados imperialistas em
prol da lucratividade são fundamentais para compreendermos o
imperialismo e são importantes para o caracterizarmos. O fato a ser
levado em consideração é que, no Imperialismo, a importância das
economias periféricas/menos desenvolvidas para os países
imperialistas são minoradas por Vladimir Lênin (sendo que isso
ocorre por conta da enorme importância dada à dominação direta,
6
Em meu Trabalho de Conclusão de Curso, trabalhei e analisei os problemas
teóricos e as limitações do Imperialismo de Lênin de maneira mais detalhada.
Nele aponto para o fato de que a Teoria Marxista da Dependência soluciona
problemas teóricos existentes no Imperialismo, podendo fortalecer as
interpretações sobre esse fenômeno. Para isso ver Horta (2022) nas referências
bibliográficas.
298
colonização, pelo autor7). Nesse sentido, compreendemos que um
debate com os desenvolvimentos teóricos da Teoria Marxista da
Dependência (TMD), em especial com a obra de Ruy Mauro Marini e
de Vânia Bambirra, possam assegurar um melhor entendimento e
definição desse fenômeno.
A importância da TMD deve ser ressaltada, pois essa vertente
teórica trouxe inúmeras inovações para a compreensão das
especificidades das dinâmicas políticas, sociais, culturais e
econômicas existentes nas sociedades latino-americanas. De maneira
geral, os autores filiados ou definidos como pertencentes a essa
vertente teórica partem, em suas análises (que são heterogêneas), do
entendimento de que a situação de dependência se constitui em um
elemento fulcral das economias dependentes (em especial as latino-
americanas) e que a situação econômico-dependente tem relação
direta e é basilar e funcional para os processos de acumulação e
reprodução do capital que acontecem em nível global, sendo
portanto, fundamentais para a compreensão das distintas faces do
imperialismo. Dentre os autores dessa vertente, que conta com
relevantes teóricos, Ruy Mauro Marini e Vânia Bambirra se destacam
por suas produções.
Marini e Bambirra, em suas obras, definem a dependência de
maneira distinta, muito por conta dos distintos objetos e objetivos das
pesquisas de ambos. Compreendemos que as diferentes definições de
dependência não são conflitantes, ao contrário, elas apresentam graus
complementares que podem nos assegurar uma maior percepção das
dinâmicas envolvendo a situação dependente e as relações
econômicas internacionais.
7Isso é compreensível, visto o momento histórico em que a obra é desenvolvida
e os dados/experiências que basearam seu desenvolvimento.
299
As bases teóricas e conceituais do pensamento de Ruy Mauro
Marini sobre a dependência e suas relações com as dinâmicas do
sistema capitalista mundial estão presentes em seu texto seminal
“Dialética da Dependência”, cuja primeira edição foi lançada em
1973. Apesar do autor reconhecer no post-scriptum da obra, que a
Dialética nada mais é do que uma introdução a investigação
empregada por ele, é inegável que essa obra se constitua como uma
das principais obras da TMD, tal como ressaltado por Traspadini e
Stedile (2005, p. 30-31).
De maneira geral, podemos resumir os principais argumentos
da Dialética da Dependência da seguinte maneira: 1º) A inserção da
América Latina na economia mundial atende a uma demanda
fundamental para a expansão do capitalismo: a produção em larga
escala de bens alimentícios e matérias-primas a serem consumidas
nos países centrais; assim, a América Latina se especializa na
produção primário-exportadora a fim de atender demandas externas
por esses tipos de produtos e, em última instância possibilita a
industrialização nos países centrais; 2º) A expansão da produção e
exportação de recursos físicos (alimentos e matérias-primas) na
América Latina em direção aos países centrais se processa
paralelamente a uma diminuição dos preços desses produtos, fato
este que deriva da existência da troca desigual e se constitui enquanto
uma deterioração dos termos de troca dos produtos primários em
relação aos industriais produzidos no centro (de modo que o
comércio desigual se constitui enquanto um dos elementos que
formam e reproduzem a dependência); 3º) A existência da troca
desigual (entendida e definida como uma transgressão da lei do valor
em benefício dos países industrialmente mais avançados) no
comércio internacional gesta uma dinâmica econômica na qual os
países dependentes transferem valor para os países centrais; 4º) que a
existência da troca desigual gesta condições para a transformação do
300
eixo de acumulação nas economias centrais, de modo que estas
últimas passam, em seus processos produtivos, do eixo de
acumulação baseado no mais-valor absoluto para o eixo de
acumulação pautado no mais-valor relativo, de modo “que a
acumulação passe a depender mais do aumento da capacidade
produtiva do trabalho do que simplesmente da exploração do
trabalhador” (MARINI, 2017 [1973], p. 328); 5º) que a existência da
troca desigual e consequentemente da transferência de valor das
economias dependentes para as centrais, leva a existência, nas
economias dependentes, de mecanismos de compensação do mais-
valor transferido; esses mecanismos de compensação levam a uma
maior exploração da força de trabalho nas economias dependentes
(MARINI, 2017 [1973], p. 332), sendo essa maior exploração definida
como superexploração da força de trabalho por Marini. De acordo
com o autor:
Pois bem, os três mecanismos identificados — a
intensificação do trabalho, a prolongação da jornada de
trabalho e a expropriação de parte do trabalho necessário
ao operário para repor sua força de trabalho — configuram
um modo de produção fundado exclusivamente na maior
exploração do trabalhador, e não no desenvolvimento de
sua capacidade produtiva (MARINI, 2017 [1973] p. 334)
Além disso, importa assinalar que, nos três mecanismos
considerados, a característica essencial está dada pelo fato
de que são negadas ao trabalhador as condições necessárias
para repor o desgaste de sua força de trabalho: nos dois
primeiros casos, porque lhe é obrigado um dispêndio de
força de trabalho superior ao que deveria proporcionar
normalmente, provocando assim seu esgotamento
prematuro; no último, porque lhe é retirada inclusive a
possibilidade de consumo do estritamente indispensável
para conservar sua força de trabalho em estado normal. Em
termos capitalistas, esses mecanismos (que ademais podem
se apresentar, e normalmente se apresentam, de forma
combinada) significam que o trabalho é remunerado abaixo
301
de seu valor e correspondem, portanto, a uma
superexploração do trabalho. (MARINI, 2017 [1973], p. 334)
Nesse sentido, entende-se que a troca desigual e a
superexploração do trabalho constituem-se como elementos basilares
da situação econômico-dependente, sendo que estes fazem com que
observemos especificidades econômicas, políticas e culturais nos
países dependentes em relação a estas esferas nos países centrais.
O debate realizado por Marini (2017 [1973]) na Dialética é
fundamental pois nos possibilita definir e caracterizar,
conceitualmente e teoricamente o que constitui uma economia
dependente e sua função na economia mundial. A partir dos escritos
de Marini, defendemos que uma economia dependente apresente as
seguintes características: 1º) tenha seus setores econômicos voltados
a atender as demandas econômicas dos países centrais,
desenvolvendo sua produção em resposta aos estímulos recebidos
destas economias (apresentado elevados graus de especialização
produtiva); 2º) tenha relações econômicas desiguais com as potências
mundiais, exportando produtos primários e/ou industriais de baixo
nível tecnológico e importando bens manufaturados e industriais (de
baixo e/ou elevado nível tecnológico) e 3º) tenha, no seio de sua
economia, um mercado de trabalho onde persistem níveis elevados
de exploração da força de trabalho (a superexploração da força de
trabalho), o que pode ser averiguado a partir das características do
mercado de trabalho (observando-se por exemplo, a persistência do
setor informal na economia) e elevados níveis de desemprego (com
abundante mão-de-obra que possibilita a manutenção da
superexploração).
Importa apontar para o fato de que as economias dependentes
respondem a estímulos, demandas e interesses econômicos dos países
centrais, de forma que a forma pela qual a situação econômico-
dependente se processa/manifesta não é imutável, podendo-se haver
302
processos de desenvolvimento industrial nos países dependentes,
que entretanto, se processam sobre a base a da troca desigual e da
superexploração da força de trabalho (tendo todos os problemas que
isso acarreta). Dito de outra forma, com as transformações observadas
no sistema capitalista, as condições de dependência se alteram, mas
mantém suas bases estruturais: a persistência da troca desigual e a
superexploração da força de trabalho.
Partindo-se da compreensão de que as transformações
sistêmicas alteram a forma pela qual a situação econômico
dependente se manifesta, sem alterar as bases dessa situação (troca
desigual e superexploração) e sem alterar a centralidade das
economias dependentes para a acumulação e reprodução do sistema
capitalista mundial (especialmente no atendimento das demandas
dos países centrais e na transferência de mais-valor), acreditamos ser
possível e benéfico articular as concepções teóricas de Marini (2017 [
1973]) com as de Vânia Bambirra (2013).
Apesar da enorme produção teórica de Vânia Bambirra sobre
questões referentes à teoria marxista e à compreensão das
especificidades político-econômicas de distintos países latino-
americanos, a maior contribuição da autora para a Teoria Marxista da
Dependência se encontra expressa no livro “O Capitalismo
Dependente Latino-Americano”, escrito em 1970 e publicado pela
primeira vez em 1972, no Chile. Nesse livro Bambirra (2013) busca
analisar e compreender 1º) os motivos que levaram economias
dependentes latino-americanas a processos e níveis de
industrialização distintos; 2º) os efeitos das transformações sofridas
pelo sistema capitalista no pós-guerra, com a expansão das empresas
multinacionais e da elevação dos fluxos de investimentos estrangeiros
diretos para a América Latina sobre as economias dependentes latino-
americanas e 3º) a nova configuração da situação econômico
dependentes nos distintos países latino-americanos. De maneira
303
resumida, este livro é fundamental por dois motivos: A) por
demonstrar como as transformações sofridas no seio das principais
economias mundiais têm efeitos diretos sobre as economias
dependentes, modificando seus setores produtivos e ajustando-os a
fim de atender aos interesses dos capitais e capitalistas dos países
centrais/imperialistas8 e B) por demonstrar como as exportações de
capitais se transformam e adentram nos setores produtivos das
economias dependentes, gestando novas dinâmicas e relações entre
países dependentes e potências imperialistas9. O importante do ponto
B é que a análise realizada por Bambirra (2013) nos possibilita
compreender a centralidade que as exportações de capitais possuem
até a contemporaneidade para as economias imperialistas e para a
acumulação e reprodução do sistema capitalista, de modo a dialogar,
diretamente, com as teorizações de Lênin (2011) sobre o
imperialismo. Feitas tais considerações, analisemos a definição de
Bambirra sobre a dependência em seu livro:
Nesse trabalho se argumenta que: a) Em primeiro lugar,
devemos caracterizar a dependência como uma situação
condicionante. A dependência é uma situação na qual certo
grupo de países tem sua economia condicionada pelo
desenvolvimento e expansão de outra economia à qual se
encontra submetida. [...] Uma situação condicionante
determina os limites e possibilidades de ação e
comportamento dos homens. [...] b) Deste ponto podemos
chegar a nossa segunda conclusão geral introdutória: a
dependência condiciona uma certa estrutura interna que a
8
Interesses estes que vão além daqueles referentes a exportação de capital
propriamente dita; trata-se de interesses das empresas multinacionais em novos
mercados e também na elevação de sua competitividade; das atividades de
deslocalização produtiva e crescente formação das cadeias globais de valor.
9
Aqui ressaltamos que as relações financeiras existentes entre países
dependentes e imperialistas tomam novas formas, modificando e aprofundando
a situação de dependência, que passa a ter crescentemente uma dependência de
capital exportado e de tecnologias que são produzidas nos países centrais. Dito
de outra maneira, a dependência se altera mas a situação dependente não.
304
redefine em função das possibilidades estruturais das
diferentes economias nacionais. (BAMBIRRA, 2013, p. 38)
Na obra de Bambirra (2013) trata-se a dependência como uma
situação condicionante, em que as economias dos países dependentes
se encontram submetidas as dinâmicas e ditames de um centro
hegemônico, no caso da obra os Estados Unidos. O condicionamento
não é absoluto, mas impõe limites, restrições e expectativas em
relação ao desenvolvimento das estruturas domésticas das economias
dependentes. Essa definição é importante pois dá uma percepção de
mudança e movimento às economias dependentes, que se
transformam e se modificam de maneira condicionada em relação a
um determinado centro hegemônico. Apesar de Bambirra
desenvolver sua análise baseada nos movimentos da economia norte-
americana no pós-guerra, visto que este país se constitui como o
centro hegemônico do capitalismo contemporâneo, entendemos que
a conceituação de dependência descrita pela autora possa ser
estendida a outras potências capitalistas, cujas ações também
condicionam (não na mesma intensidade que o país hegemônico)
modificações nas estruturas econômicas das economias dependentes.
Portanto, defendemos que um diálogo entre a construção
teórica de Marini (2017 [1973]) e a construção teórica de Bambirra
(2013) seja produtivo para uma maior compreensão da situação
econômico-dependente. Realizamos esta defesa pois entendemos que
a “estrutura interna” condicionada pela situação de dependência é
uma estrutura interna cujas possibilidades estruturais de
transformação estão dadas pela troca desigual e pela superexploração
do trabalho.
Feitos os apontamentos sobre o imperialismo e sobre a
dependência nesse trabalho, entendemos que as relações existentes
entre uma potência imperialista e uma economia dependente são
caracterizadas por: 1º) exportação de capitais, tanto via empréstimo
305
quanto via Investimento Direto Estrangeiro, cuja aplicação tem
efeitos diretos sobre as economias dependentes, limitando seus graus
de autonomia político-econômica e desnacionalizando tais
economias; 2º) pelas trocas comerciais desiguais, onde determinada
economia dependente exporta produtos primários sem nenhum
processamento; produtos primários pouco processados e produtos
industriais leves (especialmente insumos industriais) e importa
produtos manufaturados e industriais de baixa, média e alta
tecnologia e 3º) pela utilização direta, por parte de empresas
multinacionais estrangeiras, da mão-de-obra superexplorada da
periferia nos processos produtivos, em geral ligados às cadeias
globais de valores. É a partir desse marco teórico que buscamos
discorrer sobre as relações econômicas e comerciais existentes entre
Brasil e China.
As relações sino-brasileiras em perspectiva histórica
As relações bilaterais existentes entre Brasil e China são
centenárias: elas tiveram início com o estabelecimento do Tratado de
Amizade, Comércio e Navegação 1881 (MINISTÉRIO DAS
RELAÇÕES EXTERIORES, 2021). Apesar de seculares, as conexões
existentes entre esses países enfrentaram diversos momentos de
distanciamento (causadas tanto por conta dos problemas domésticos
presentes nos dois países quanto por conta do cenário internacional,
especialmente durante a Guerra Fria). Após a ascensão do Partido
Comunista na China e o estabelecimento da República Popular da
China, as relações existentes entre Brasil e China foram rompidas e
seu restabelecimento foi dificultado pelo regime militar que se
estabeleceu no Brasil em 1964 (UEHARA, 2013).
Durante a Guerra Fria, com as transformações observadas na
estratégia dos Estados Unidos para conter a União Soviética na
306
década de 1970, que resultou em uma aproximação deste país da
China (que se encontrava isolada no sistema internacional, visto os
conflitos e disputas com a União Soviética), observamos um
reposicionamento e reordenamento das relações desta última em
relação aos países capitalistas ocidentais do mundo, fato este que
inclui o Brasil. Tal como ressaltado por Uehara (2013, p. 34):“O
restabelecimento das relações diplomáticas entre Brasil e China
ocorreu apenas em agosto de 1974, após a aproximação entre a China
e os Estados Unidos em 1972, essa retomada foi facilitada também
pela entrada da China como membro da ONU.”.
Apesar do restabelecimento das relações sino-brasileiras em
1974, essas só ganham fôlego a partir da década de 1990, momento
em que o processo de desenvolvimento leva a que a economia chinesa
demande, de maneira crescente, bens-alimentícios e matérias-primas
do mundo. Muitas das commodities demandadas pela China eram
produzidas pelo Brasil; paralelamente, por conta das políticas
empregadas na economia brasileira na década de 1990, este país
passou a consumir e demandar, de maneira crescente, produtos
industriais e manufaturados importados, muitos dos quais eram
produzidos pela China. A convergência econômica existente entre a
China e o Brasil se elevou enormemente desde 1990, tal como pode
ser observado nos gráficos 1 e 2, abaixo.
307
Gráfico 1 - Fonte: Elaboração do autor com base nos dados do IMF
Dots (2023)
Gráfico 2 - Fonte: Elaboração do autor com base nos dados do IMF
Dots (2023)
A rápida e intensa expansão das relações comerciais sino-
brasileiras é observada nos gráficos acima. Além de uma intensa
expansão das exportações brasileiras para a China e da importação
308
de produtos chineses pelo Brasil, a China se transformou,
especialmente a partir de meados de 2000, em um dos parceiros
comerciais mais importantes do Brasil, fato este que aponta para uma
crescente importância das dinâmicas chinesas sobre a economia
brasileira.
O fato de que, ao longo das últimas décadas, a China se
transformou em uma das principais parceiras comerciais do Brasil é
suficientemente conhecido, assim como o é o fato de que, na
hodiernidade, a potência asiática vem investindo, de maneira
crescente, na economia brasileira. Levando-se em consideração as
relações e vínculos econômicos existentes e os promovidos entre a
China e o Brasil, analisaremos as características dessas relações à luz
das teorias do imperialismo e da dependência discutidas na seção 2
deste trabalho.
Analisando o perfil das relações económicas sino-brasileira no
século XXI
Os elementos apresentados nas seções anteriores deste trabalho
constituem-se no pontapé inicial para pensarmos as relações
econômicas existentes entre China e Brasil. Conforme apresentado
pelos gráficos 1 e 2, a China se tornou, a partir da década de 1990, um
dos principais parceiros comerciais do Brasil, e conforme buscaremos
demonstrar, um ator cada vez mais relevante em termos de
investimentos no país. Nesse sentido, entende-se que, na
contemporaneidade, as dinâmicas existentes na economia chinesa e
as distintas ações que esse país emprega no sistema internacional tem
efeitos diretos e indiretos para a economia brasileira.
309
Partindo da concepção de que a China é uma potência
econômica e que suas ações têm efeitos diretos e indiretos10 sobre as
dinâmicas econômicas observadas na economia brasileira, faz-se
necessário destacar que essa situação se adequa a definição de
dependência advinda de Vânia Bambirra, visto que essa autora
compreende que “A dependência é uma situação na qual certo grupo
de países tem sua economia condicionada pelo desenvolvimento e
expansão de outra economia à qual se encontra submetida”
(BAMBIRRA, 2013, p. 38). Dado a enorme importância da China para
a economia brasileira, entendemos que esta última se encontra
condicionada às dinâmicas econômicas da economia chinesa, de
modo que é possível definir a China como um “centro hegemônico”11
cujas ações são decisivas para a economia brasileira, que responde
as suas movimentações no sistema capitalista mundial.
Apesar de ser possível mobilizar o referencial teórico de
Bambirra (2013) para caracterizar a relação sino-brasileira como uma
relação de dependência, o referencial teórico sobre o imperialismo e
dependência aqui mobilizado pretende ir além da definição dada pela
autora (embora incorporando-a). Conforme apontamos na segunda
seção deste trabalho, entendemos que as relações existentes entre
potências imperialistas e países dependentes podem caracterizadas a
partir de 3 elementos: 1º) pela exportação de capitais oriundos dos
10
Por efeitos indiretos queremos dizer aqueles efeitos que não são causados pela
China à economia brasileira de maneira direta, mas que por conta de suas ações
no sistema internacional acabam por afetar a economia do Brasil. Dito de maneira
mais clara, são os resultados das ações da China sobre terceiros que afetam a
economia Brasileira. Os exemplos desse tipo de efeito não ficam restritos à
dinâmicas econômicas, mas também a ações político-diplomáticas.
11
Usamos ”Centro Hegemônico“ para fazer referência a discussão de Bambirra
(2013). Entendemos que, apesar da China ser uma potência econômica na
atualidade, suas capacidades são inferiores as norte-americanas. Entretanto, suas
dinâmicas econômicas têm reflexos diretos sobre as economias latino-
americanas, na qual destacamos a economia brasileira.
310
países imperialistas e aplicados nos países dependentes,
especialmente nos setores econômicos mais lucrativos e/ou que
atendem a demandas dos países imperialistas; 2º) pelas trocas
comerciais desiguais, em que a potência imperialista importa
matérias-primas e bens-alimentícios de determinada economia
dependente e exporta bens industriais e manufaturados para ela;
visto as transformações existentes na situação de dependência, como
muito bem explicitado por Bambirra (2013), nas relações comerciais
existentes entre potência imperialistas e economias dependentes
também podem ser observados exportações de insumos
industrializados ou algum tipo de manufaturado produzido nas
economias dependentes para as economias imperialistas, sem que
isso elimine a situação de dependência; 3º) pela utilização direta, por
parte das empresas multinacionais dos países imperialistas, de mão-
de-obra superexplorada nos países dependentes.
Feitas tais considerações, analisemos as características das
relações comerciais existentes entre Brasil e China ao longo do século
XXI, tendo em mente a crescente importância que a última teve para
a economia brasileira, conforme apontado pelos gráficos 1 e 2.
Imagem 1 - O que o Brasil Exportou para a China de 2000 a 2021?
(em % do valor total das exportações)
Fonte: OEC (2023).
311
Conforme podemos analisar na imagem 1, as exportações
brasileiras para a China são compostas, sobretudo, de matérias-
primas, insumos industriais e bens alimentícios. Levando em
consideração os valores dos produtos exportados nos anos abarcados
pela imagem 1 (2000 a 2021), observamos que a Soja (33,7%); o
minério de ferro (29,2%) e o petróleo cru (14,2%) compõem grande
parcela do valor total das exportações brasileiras. Nesse sentido,
entende-se que a maior parte dos produtos exportados pelo Brasil
para a China são matérias-primas que não passaram por nenhum
processo de transformação. Além das matérias-primas e bens
alimentícios crus, o restante dos produtos exportados para a China
constitui-se de alguns alimentos e matérias-primas que sofreram
algum grau de transformação, como o Olho de Soja (1,09%); Açúcar
(1,51%); Ferroligas (1,33%); Sulfato de Celulose (3,76%) e Carnes (com
cerca de 4% considerando a soma dos diferentes tipos de carnes).
A análise dos principais produtos exportados pelo Brasil para a
China nos possibilita compreender que o primeiro apresenta, em
relação à última, uma pauta exportadora característica das primeiras
etapas da dependência cumprindo, portanto, funções clássicas
elucidadas na Dialética por Marini (2017 [1973]. Dito de outra
maneira, nas relações comerciais sino-brasileiras, o Brasil exporta
produtos de modo a atender os requisitos físicos da produção e
consumo da população chinesa. Dito isso, analisemos os produtos
importados da China pelo Brasil.
312
Imagem 2 - O que o Brasil Importou da China de 2000 a 2021? (em %
do valor total das importações)
Fonte: OEC (2023).
Diferente do observado em relação às exportações, os produtos
importados da China pelo Brasil são extremamente variados. A
grande maioria desses produtos são produtos industriais e
manufaturados, mas também observamos a importação de alguns
insumos industriais (matérias-primas trabalhadas) – em relação a
esse último tipo, tem-se uma dinâmica em que o Brasil exporta
matérias-primas sem nenhum processamento para a China e as
importa processadas. Analisando os produtos importados pelo Brasil
da China, temos que parcela considerável destes (os item azul-escuro
na imagem 2) são compostos por bens de consumo duráveis (como
telefones e computadores); peças de máquinas e equipamentos e bens
de capital – estes compuseram, em valor, cerca de 44,2% das
importações brasileiras da China. Produtos químicos (o roxo escuro
na imagem 2) foram responsáveis por 12% do valor dessas
importações no período, seguido pelos têxteis (verde escuro) que
compuseram cerca de 9,2% desse valor. A enorme variedade de
produtos industriais e manufaturados importados pelo Brasil,
demonstram a relevância desse mercado para distintos setores
313
chineses (especialmente quando o volume comercial tende a se
expandir de maneira intensa tal como observado nos gráficos 1 e 2).
De toda forma, importa assinalar que as relações comerciais
existentes entre China e Brasil parecem exemplares daquilo que
descrevemos como uma relação comercial desigual, onde existe
transferência de valor em detrimento da economia dependente tal
como apontado por Marini (2017 [1973]). O Brasil exporta para a
China, em sua grande maioria, matérias-primas e alimentos com o
nenhum ou com baixos graus de processamento, e importa produtos
industriais e manufaturados variados, de todos os graus tecnológicos.
Tal como apontado por Souza (2022, p. 127):
Em 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial
do Brasil, porém as relações entre os dois países têm sido
bastante desiguais: o Brasil exporta sobretudo produtos
primários e importa manufaturados. Logo, pouco mais de
uma década depois, a economia brasileira encontra-se mais
vulnerável às flutuações dos preços internacionais das
commodities e a queda da participação da indústria no PIB
afeta a geração de empregos, com a redução generalizada e
nas atividades mais qualificadas. Isto porque, apesar de a
ampliação do mercado mundial para commodities ter
favorecido o crescimento da economia, em especial nos
governos Lula, a demanda asiática por commodities
estimulou a especialização produtiva da pauta
exportadora, em prejuízo da atividade industrial, que ainda
perdeu mercados para os produtos industriais chineses,
nacional e internacionalmente.
Se o comércio sino-brasileiro pode ser descrito como desigual,
em que vigora um dos elementos característicos das relações
existentes entre uma potência imperialista e uma economia
dependente, faz-se necessário analisarmos outra dessas
características: a exportação de capital.
Como é conhecido, a China vem exportando volumes
crescentes de capital, seja via empréstimo seja via Investimento Direto
314
Estrangeiro (IDE) (MENDONÇA; LOPES FILHO; OLIVEIRA, 2021),
sendo que tais exportações vem ganhando, desde o início do século
XXI, crescente importância para a manutenção do processo de
desenvolvimento chinês12. Neste trabalho damos destaque aos fluxos
de IDE em nossa análise por conta do volume exportado pela
potência asiática e também pelos efeitos diretos na reestruturação das
economias dependentes, que se moldam e transformam a partir do
ingresso de IDE em seus setores econômicos, tal como apontado por
Bambirra (2013)13. O gráfico 3 demonstra o volume total de IDE
exportado pela China ao longo do século XXI.
Gráfico 3 - Fonte: World Bank Data (2023)
12
Especialmente quando consideramos a centralidade da exportação de capitais
para a realização dos megaprojetos de infraestrutura da China, tal como a Nova
Rota da Seda, cuja importância para o desenvolvimento econômico chinês no
longo prazo não pode ser marginalizada.
13 Apesar disso, é fundamental apontar que os empréstimos chineses também são
uma modalidade de exportação de capitais bastante utilizada pela China,
especialmente para países periféricos.
315
Se a China passou a exportar capitais de maneira cada vez mais
intensa, especialmente após 2008, conforme demonstrado pelo
gráfico 3, é importante ressaltar que a América Latina é uma das
regiões que menos recebe estes capitais (especialmente quando
desconsideramos os capitais exportados para offshores como a
Bahamas, as Ilhas Cayman e as Ilhas Virgens). A tabela 1 aponta os
destinos do IDE chinês ao longo do tempo; vale destacar que, a
participação de algumas regiões tem relação direta com os
megaprojetos de infraestrutura desenvolvidos pela China, em
especial a Nova Rota da Seda (MENDONÇA; LOPES FILHO;
OLIVEIRA, 2021).
Tabela 1 - Fonte: National Bureau of Statistics of China
(vários anos)
Regiões/ Países 2004 2010 2016 2019
Ásia 54,57% 65,20% 66,40% 81%
África 5,71% 3,07% 1,22% 2%
Europa 3,15% 9,83% 5,45% 7,70%
América Latina (excluindo
offshores) 0,87% 1,35% 0,72% 1,50%
Bahamas, Ilhas Cayman e Ilhas
Virgens 31,20% 13,95% 13,20% 3,13%
América do Norte 2,30% 3,80% 10,37% 3,15%
Oceania 2,20% 2,80% 2,64% 1,52%
316
Dentre os países latino-americanos, o Brasil é um dos que mais
recebeu investimentos chineses ao longo do século XXI (CHINA
GLOBAL INVESTMENT TRACKER)14. Apesar disso, a importância
chinesa no fluxo de IDE recebido pelo Brasil ainda é baixa,
especialmente quando comparada com os Estados Unidos e os países
da União Europeia (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2023). No
gráfico 4, demonstramos o fluxo de IDE chinês aplicado no Brasil,
onde é possível observar o crescimento exponencial deste ao longo do
tempo, especialmente na segunda década do século XXI.
Gráfico 4 - Fonte: Feito com os dados disponibilizados pelo Banco
Central do Brasil
14
Os dados da China Global Investment Tracker apontam que a China aplicou
US$76,68 bilhões em investimentos e na construção no Brasil durante o período
que se estende de 2005 a 2023. Apesar dos dados demonstrarem os investimentos
e as empresas chinesas que o fizeram, com os valores de cada investimento, optei
por utilizar os dados do Banco Central do Brasil nesta seção).
317
Gráfico 5 - Fonte:Feito com os dados disponibilizados pelo Banco
Central do Brasil
Conforme demonstrado pelos gráficos 4 e 5, o volume de capital
exportado pela China para o Brasil cresceu consideravelmente ao
longo do século XXI, muito embora essas capitais representem, para
o Brasil, apenas uma pequena parcela dos IDEs totais recebidos pelo
país (BANCO CENTRAL DO BRASIL, 2023). Apesar da baixa
participação da potência asiática no total de investimentos recebidos
pelo Brasil nas duas últimas décadas, é inegável que o fluxo de
capitais chineses para a economia brasileira tenha distintos efeitos
sobre esta, especialmente sobre os setores econômicos que os
recebem. De acordo com os dados do China Global Investment Tracker
(2023), grande parcela dos investimentos chineses realizados no
Brasil tiveram como destino os setores de energia; transporte;
agrícultura e os setor financeiro, fato que é corroborado pelos dados
disponibilizados pelo Banco Central do Brasil sobre os setores em que
os IDEs chineses são aplicados.
Importa atentar para o fato de que grande parcela desses
investimentos são aplicados em setores que atendem aos interesses
318
comerciais da China, de modo que os capitais aplicados não possuem
somente relevância por conta de sua lucratividade. Nesse sentido, é
possível apontar para uma convergência entre interesses comerciais
da China e os fluxos de IDEs chineses na economia brasileira.
Levando em consideração que a exportação de capitais se
constitui em um dos elementos característicos do imperialismo, tal
como apontam Lênin e Bambirra, é fundamental ter em mente que
uma potência imperialista exporta seus capitais a fim de serem
aplicados em setores econômicos dinâmicos/lucrativos das
economias dependentes e/ou nos setores que atendem aos interesses
comerciais e econômicos do país que exporta capitais. Nesse sentido,
entendemos ser possível defender que essa característica do
imperialismo esteja presente nas relações sino-brasileiras, embora a
China ainda não apresente a mesma dominância que outras potências
econômicas no país, especialmente os Estados Unidos.
A terceira e última característica do imperialismo, a saber, a
utilização direta de mão-de-obra superexplorada nas economias
dependentes por parte das multinacionais dos países imperialistas, é
a mais difícil de ser verificada em relação ao caso da China no Brasil15.
De toda maneira, acreditamos ter alguns elementos que nos
possibilitem defender que esse fator está presente nas relações sino-
brasileiras. Em primeiro lugar, tal como apontado por Souza (2022)
ao versar sobre os IDEs chineses aplicados no Brasil:
A forma de ingresso predominante no período de 2007 a
2020 foram as fusões e aquisições: “70% do valor dos
investimentos chineses confirmados, ou seja, US$ 46,3
bilhões”, ocorreram por meio da compra total ou parcial de
empresas brasileiras ou de estrangeiras que operavam no
15
Acreditamos ser necessário a realização de pesquisas específicas para analisar
esse aspecto, de modo que muitas das dificuldades de verificação são derivadas
da falta de dados específicos.
319
Brasil, com concentração dos investimentos nos setores de
eletricidade e de petróleo-gás. (SOUZA; 2022, p. 128)
A grande participação das fusões e aquisições apontam para o
fato de que o capital chinês alocado no Brasil tem por objetivo
produzir no país e explorar a lucratividade dos setores econômicos
nacionais, fato que pressupõe a utilização de mão-de-obra
superexplorada brasileira e a desnacionalização das empresas
brasileiras. Em segundo lugar, os dados dos investimentos chineses
levantados pelo China Global Investment Tracker (2023), apontam
para uma série de empresas e investimentos que, possivelmente, se
processaram ou se processam via utilização da mão-de-obra
superexplorada no país. Nesse sentido, com os dados que possuímos,
entendemos ser possível inferir que a terceira característica do
imperialismo esteja presente nas relações sino-brasileiras, embora
esse elemento necessite de mais pesquisas.
De toda maneira, os dados apresentados nessa seção nos
possibilitam responder à pergunta que guiou esta pesquisa de
maneira afirmativa, isto é, entendemos que a China apresenta uma
postura imperialista em suas relações com o Brasil e que essas
relações têm como consequência reforçar a situação econômico-
dependente do país.
Considerações Finais
Ao longo deste trabalho, buscamos responder à pergunta que
guiou esta pesquisa, a saber: a China apresenta uma postura
imperialista nas suas relações econômicas com o Brasil?. Para
responder essa pergunta, entretanto, foi necessário apontar para os
pressupostos que possibilitam a realização dessa análise, a saber: o
fato da China ser uma potência capitalista e o fato de que sua inserção
320
na economia mundial é condicionada por suas dinâmicas
socioeconômicas, também capitalistas.
Esses pressupostos são fundamentais pois, para os teóricos
clássicos do imperialismo e da Teoria Marxista da Dependência aqui
mobilizados, é teoricamente incoerente defender que um Estado
socialista seja imperialista, visto que o imperialismo é um fenômeno
originado das dinâmicas capitalistas e das imposições do capital.
Discorrer acerca do caráter capitalista da economia e do Estado
Chinês foi necessário pois há uma intensa tentativa de esconder tal
caráter sob o manto da defesa do socialismo de mercado. Após
realizar tais apontamentos, buscamos mobilizar autores do
imperialismo e da TMD a fim de conceituar o que compreendemos
por imperialismo e por dependência, e discorrer sobre as conexões
destes dois fenômenos.
Após realizar tal tarefa, buscamos apontar para os elementos
característicos das relações econômicas existentes entre uma potência
imperialista e uma economia dependente, a fim de utilizá-los para
avaliar as relações econômicas sino-brasileiras. Partindo dos
elementos apresentados e da análise realizada, defendemos que a
China apresenta uma postura imperialista em suas relações
econômicas com o Brasil, de modo que as relações sino-brasileiras
têm por efeito aprofundar a situação econômico-dependente da
economia brasileira.
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324
Autossuficiência econômica e política: a resposta interna da
Ideologia Juche na península Norte Coreana frente ao
isolacionismo internacional
Mayane Bento Silva 1
Juliana Morgado Fernández 2
Juan Carlos Neves Pereira 3
Resumo: A República Popular Democrática da Coreia (RPDC) é um
território envolto em mistério por parte das lentes da população do
Ocidente. Com o fim da Guerra Fria e a desintegração da União
Soviética, o país teve de se adaptar a um ambiente internacional com
empecilhos à sua sobrevivência. A supremacia dos Estados Unidos e
a entrada do país nas Nações Unidas em 1991 forçaram o regime a
buscar seus próprios meios de sobrevivência e novas formas de
negociação em meio a sanções e embargos econômicos, os quais
isolam e mistificam o país para o lado oposto do globo. Assim, a
ideologia Juche, que é um sistema de pensamento desenvolvido pelo
líder norte-coreano Kim Il-sung, representa uma filosofia de
autossuficiência e independência internacional no âmbito político,
1
Doutora em Relações Internacionais por meio do Instituto de Relações
Internacionais (IREL) - Universidade de Brasília (UnB);
2 Bacharel em Relações Internacionais - Universidade do Estado do Pará (UEPA);
3 Acadêmico de Relações Internacionais - Universidade do Estado do Pará
(UEPA).
325
econômico e militar. Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é
avaliar de que forma a Juche responde internamente às sanções e
embargos socioeconômicos que a RPDC sofre no cenário
internacional, levando em conta as configurações mundiais de
interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos. Já como
objetivos específicos buscamos discutir a base epistemológica que
tange à ideologia Juche de Kim Il-sung; analisar a influência
hegemônica estadunidense nas sanções e embargos político-
econômicos realizados ao país; e entender como tal filosofia responde
internamente ao isolacionismo internacional da RPDC. Por fim, como
resultado, buscamos compreender como a base econômica norte-
coreana se sustenta entre a dicotomia da Juche e do isolacionismo
internacional.
Palavras-chave: Coreia do Norte; Economia Política Internacional;
Sanções econômicas; Ideologia Juche; Relações Internacionais.
Introdução
A República Popular Democrática da Coreia (RPDC), que se
tornou mundialmente conhecida como Coreia do Norte após a
Guerra da Coreia, é uma nação estigmatizada pelo Ocidente, o que se
deve tanto ao difícil acesso às fontes de informação internas quanto à
opção pelos grandes veículos de mídia globais de criar esforços para
a manutenção de uma visão estereotipada do país. Tudo isso torna o
estudo sobre a Coreia do Norte uma tarefa complexa.
Conforme posto por Vizentini e Pereira (2014), a RPDC é um
dos Estados menos conhecidos e difíceis de compreender do mundo,
e uma das razões disso é a contínua criação política de narrativas
ideológicas caricaturais promovidas por atores ocidentais. Essa
realidade é, devido à condição da Coreia como uma nação
326
colonizada, indubitavelmente ligada à ideia do “orientalismo” de
Edward Said – a concepção de Oriente como, antes de categoria
geográfica, uma invenção ocidental que engloba as civilizações a leste
da Europa a partir da força e do poder do discurso cultural ocidental
sobre os povos outrora colonizados. (Said e Vieira, 2007)
A história da Península Coreana pré-colonização japonesa não
aponta indícios exatos dos motivos que levaram à separação
geográfica do território da forma que foi realizada, mas sabe-se que a
divisão ideológica no contexto da Guerra Fria (e, consequentemente,
as diferentes influências político-ideológicas exercidas nas porções
norte e sul do país) foram um fator decisivo. Portanto, a formação do
Estado norte-coreano se diferencia da formação sul-coreana,
principalmente em função da política de ocupação soviética. (Felippe,
2019)
À época da Guerra da Coreia (1950-1953), as duas porções da
península, cada uma sob a influência de uma superpotência global,
implementaram suas respectivas doutrinas. Ao Sul, sob influência
estadunidense, instaurou-se um regime capitalista de moldes
ocidentais. Já ao Norte, sob as influências chinesa e soviética, foi
instaurado o comunismo, acompanhado de medidas de estabilização
destinadas a prevenir futuras adversidades à Coreia do Norte.
(Pereira e Correia, 2017)
Segundo Vizentini e Pereira (2014), a guerrilha anti-japonesa
que se fortificava no país e os movimentos nacionalistas da Coreia
criaram diversos Comitês Revolucionários, que se reuniram em
assembleia em Seul e proclamaram a República Popular em 6 de
setembro de 1945. Dois dias depois, os EUA ocuparam o sul da
Coreia, enquanto dissolviam os Comitês, efetuavam prisões e traziam
dos EUA Syngman Rhee para formar um governo apoiado nos
notáveis pró-japoneses.
327
No norte, a República Popular continuou sob a liderança do
jovem comunista Kim Il-sung, com a implementação de uma reforma
agrária que garantiu o apoio ao regime. Ao mesmo tempo, uma
comissão da ONU reconheceu Syngman Rhee como governante do
sul, apesar da violência política ocorrida e apenas em 1948, os
soviéticos se retiraram do norte (Vizentini e Pereira, 2014). Com isso,
a península se dividiu entre a República da Coreia do Sul e a RPDC,
que passou a focar na eliminação dos vestígios feudais e coloniais e
na unificação do povo coreano, a favor da classe operária.
Após a Guerra da Coreia, tanto as Coreias quanto os países
vigilantes envolvidos (Estados Unidos da América, China e Rússia)
concentraram esforços na reconstrução da península,
desempenhando papéis significativos na moldagem da cultura e
sociedade coreana. Este período pós-guerra testemunhou a
emergência da doutrina Juche na Coreia do Norte, enquanto a Coreia
do Sul, em colaboração com os Estados Unidos, estabeleceu acordos
de cooperação com o Japão.
A divisão resultante da guerra desencadeou uma dicotomia
profunda, na qual a cultura coreana foi sobreposta pela influência da
Guerra Fria, refletida nas trajetórias distintas adotadas pelas duas
nações em termos de identidade cultural e estilo de vida (Pereira e
Correia, 2017). Porém, pode-se facilmente notar uma clara diferença
na percepção externa acerca da Coreia do Norte e da Coreia do Sul,
uma vez que a última, tendo sido aliada às potências do Japão e dos
Estados Unidos durante os conflitos do século XX, continua tendo um
espaço maior no cenário internacional – regido pelos interesses de
grandes potências capitalistas.
Tendo impacto em todas as esferas públicas (economia, política,
vida social, cultura), a configuração da Coreia do Norte no sistema
internacional desde o pós-Guerra Fria ainda é pouco discutida. Assim
328
sendo, propomos aqui uma discussão acerca da forma que a ideologia
Juche, filosofia político-econômica, desde 1972, responde
internamente às sanções e embargos socioeconômicos que a RPDC
sofre no cenário internacional, levando em conta as configurações
mundiais de interesses políticos e estratégicos dos Estados Unidos e
outras potências ocidentais.
A presente pesquisa é de natureza qualitativa, possui finalidade
básica e apresenta caráter exploratório. O método de abordagem
utilizado é a indução e o objetivo do estudo é de caráter exploratório.
Serão utilizados os procedimentos técnicos da pesquisa bibliográfica,
a partir de dados de origem secundária buscados, e da pesquisa
documental, partindo de dados de origem primária.
A Ideologia Juche (주체사상): As Origens Da Filosofia Política
A filosofia política denominada Juche se tornou a ideologia
estatal oficial da RPDC e do Partido dos Trabalhadores Coreano. É
tida, também, como a base para o desenvolvimento dos princípios e
diretrizes da revolução socialista norte-coreana. A Juche teve início no
contexto histórico da revolução nacional democrática liderada por
Kim Il-sung, em meados da década de 1950, e seus princípios foram
melhor desenvolvidos e sistematizados por seu sucessor Kim Jong-il
até o fim dos anos 1960, para ser oficialmente institucionalizada em
1972. (Yongchun, 2015)
De acordo com Lee (2003), Kim Il-sung, líder político da Coreia
do Norte desde a fundação do país em 1948 até à data da sua morte –
exercendo os cargos de primeiro-ministro (1948-1972) e presidente
(1972-1994) –, considerava que Juche significa ser o mestre da
revolução e da reconstrução no seu próprio país, ou seja, manter uma
posição independente e recusar a dependência dos outros, acreditar
329
na sua na sua própria força e demonstrar o espírito revolucionário de
autossuficiência. Em termos etimológicos, a palavra Juche não possui
uma tradução literal para a língua portuguesa, mas considera-se o seu
significado algo próximo a “dono de seu corpo, dono de si” – “ju”:
dono; e “che”: corpo. (MIA, 2020)
Acredita-se, na República Popular Democrática da Coreia, que
a Juche corresponde à aplicação dos princípios marxistas-leninistas
adaptada à realidade política moderna do país. Segundo os escritos
de Kim Jong-il (1982), sucessor de Kim Il-sung, a revolução em cada
país deve ser conduzida de maneira independente, sob a
responsabilidade do seu próprio povo, e em conformidade com a sua
realidade.
Essa ferramenta usada pelo governo norte-coreano teve sucesso
em seu objetivo de justificar políticas de autossuficiência e isolamento
internacional e o seu programa nuclear e de mísseis balísticos, além
de criar uma forte vontade nacional pela independência norte-
coreana. (Lee, 2003). Cabe ressaltar que tal ideário, combinado com
uma estrutura política de governo centralizado, foi implementado em
um contexto interno de estagnação econômica.
As três aplicações principais da Juche seriam a independência
política e ideológica, sobretudo em relação à União Soviética e à
China; a autossuficiência econômica; e um sistema viável de defesa
nacional. Esses princípios foram declarados por Kim Il-sung na
Assembleia Suprema dos Povos de 16 de dezembro de 1967, em um
discurso intitulado, em inglês, “Let Us Defend the Revolutionary Spirit
of Independence, Self-Reliance, and Self-defense More Thoroughly in All
Fields of State Activities”. (Lee, 2003, p. 105).
A independência político-ideológica interna e externa,
denominada chaju, respeita as normas e princípios internacionais de
igualdade entre as nações, e, de acordo com Lee (2003), a ideologia
330
assume que cada Estado tem o direito à autodeterminação como meio
de garantir a felicidade e prosperidade do seu povo.
Domesticamente, Kim Il-sung reforçava a importância de se construir
forças políticas que apoiassem o princípio da chaju.
According to juche as interpreted by the DPRK, yielding to
foreign pressure or tolerating foreign intervention would
make it impossible to maintain chaju, or the defense of
national independence and sovereignty. This in turn would
threaten the nation’s ability to defend the interests of the
people, since political independence is seen as being
absolutely critical for economic self-sustenance and
military self-defense. Kim Jong Il predicted that
dependence on foreign powers would lead to the failure of
the socialist revolution in Korea. (Lee, 2003, p. 106)
Com relação à independência militar, o princípio da chawi é,
também, essencial à filosofia Juche para compor a soberania do
Estado norte-coreano. De acordo com Kim Il-sung: “Nós não
queremos guerra, e tanto não a tememos quanto não imploramos por
paz aos imperialistas.” (Lee, 2003, p. 107, tradução nossa). A política
claramente beligerante de contra-ataque a qualquer suposta ameaça
imperialista de agressão e guerra foi considerada por Kim Il-sung a
melhor estratégia para defender a independência nacional e vencer a
causa revolucionária.
Sendo assim, a implementação desse sistema autossuficiente de
defesa envolve a mobilização de todo o país e um forte alinhamento
ideológico das forças armadas. Os cidadãos não envolvidos
diretamente em questões bélicas e de armamento devem contribuir
de outras maneiras à construção e manutenção da indústria militar
doméstica e manter-se ideologicamente alinhados, para que a
população permaneça unida em um senso de superioridade
sociopolítica. (Lee, 2003, p. 107)
331
Já o princípio referente à autossuficiência econômica, conhecido
como charip, serve como base ao princípio da chaju, haja vista que “[...]
uma economia nacional independente e autossuficiente é necessária
tanto para garantir a integridade política, quanto para alcançar a
prosperidade nacional.” (Lee, 2003, p. 106, tradução nossa). Kim Il-
sung temia que a dependência econômica na ajuda externa pudesse
tornar a Coreia um Estado-satélite de outros países, e acreditava que
seria impossível construir uma república socialista de sucesso sem
bases materiais e técnicas próprias. (Lee, 2003, p. 6)
O Isolacionismo Internacional Norte-Coreano e a Influência
Hegemônica Estadunidense
Antes de entendermos as complexidades envoltas no
isolacionismo norte-coreano em um contexto global, precisamos
destrinchar o debate que formata os princípios de poder e hegemonia
quando tratamos sobre as perspectivas da RPDC: os Estados Unidos.
É primordial compreender o papel desta grande potência ocidental,
uma vez que esta representa a ponta dicotômica dos maiores conflitos
ideológicos, militares e econômicos da história mundial e representa
um instrumento motor das problemáticas coreanas.
A perspectiva de Robert Cox (1986) sobre hegemonia destaca
dois sentidos: um restrito, referente à dominação de um Estado sobre
outros, e outro mais amplo, alinhado ao conceito de Antonio Gramsci.
Gramsci, segundo Cox, compreende a hegemonia como o processo
em que a classe dominante exerce liderança moral e intelectual na
sociedade civil, baseando essa liderança no consenso com outras
frações burguesas e classes dominadas.
A visão gramsciana, inspirada em leituras de Lenin e
Maquiavel, ressalta a dualidade do poder como um "centauro" de
332
força e consciência. Embora inicialmente aplicado às formações
sociais capitalistas, Antonio Gramsci sugere sua relevância nas
relações internacionais, considerando que estas seguem as relações
sociais fundamentais.
Cox (2007), influenciado por Gramsci, propõe a aplicação do
conceito de hegemonia nas relações internacionais, destacando
quatro períodos históricos, sendo o último (1965 até o presente)
caracterizado pela crise da ordem mundial liderada pelos Estados
Unidos. O autor argumenta que um Estado torna-se hegemônico ao
estabelecer uma ordem mundial reconhecida pelos demais Estados,
envolvendo não apenas aspectos estatais, mas também forças sociais
do capitalismo operando globalmente. A expansão externa dessa
hegemonia, segundo Cox, forma uma ordem mundial baseada na
liderança de um Estado sobre outros.
A manutenção dessa hegemonia requer a incorporação de
países periféricos, que absorvem aspectos econômicos e culturais do
núcleo hegemônico sem alterar substancialmente suas estruturas
políticas (Pereira, 2011). Essa dinâmica resulta em regimes
autoritários nos países periféricos orientados para o desenvolvimento
capitalista. A hegemonia, assim, é mais intensa e coerente entre os
países centrais e mais contraditória na periferia. Essas considerações
de Cox oferecem uma lente teórica para entender a complexidade das
relações internacionais, especialmente no contexto da influência
hegemônica dos Estados Unidos no isolacionismo norte-coreano.
Já Arrighi (2007), ao adotar o conceito gramsciano de
hegemonia, identifica historicamente três hegemonias do capitalismo:
holandesa, britânica e norte-americana. A hegemonia, segundo
Arrighi, refere-se ao poder exercido por um Estado para
desempenhar funções governamentais sobre um sistema de estados
soberanos; mais do que dominação, implica o exercício de uma
333
liderança moral e intelectual, alinhado aos termos gramscianos. A
noção de poder associada à hegemonia, inspirada em Maquiavel e
Gramsci, abrange coerção (força) e consentimento (consciência).
No contexto das relações internacionais, a liderança
hegemônica envolve a capacidade de um Estado de apresentar-se
como representante do interesse geral de outros Estados (Arrighi,
2001) – o requer a construção de consenso em torno de interesses
compartilhados. Gramsci destaca a distinção entre dominar e liderar,
argumentando que a liderança requer concessões da classe
dominante aos grupos subordinados, preservando o essencial de seu
poder econômico.
Essas considerações teóricas de Arrighi, ancoradas na
construção de uma ordem econômica liberal, fornecem uma lente
analítica para compreender como a hegemonia estadunidense pode
influenciar o isolacionismo norte-coreano. A liderança moral e
intelectual exercida pelos Estados Unidos, em busca de consenso e
construção de uma ordem econômica liberal, pode moldar a dinâmica
geopolítica que impacta a postura isolacionista da Coreia do Norte.
Segundo a teoria de Gilpin da estabilidade hegemônica, a
potência hegemônica busca estabelecer normas de uma ordem
econômica liberal, baseada no livre mercado e na não-discriminação.
Essa ordem depende do compromisso da potência hegemônica com
o liberalismo e, para o seu funcionamento, três requisitos são cruciais:
hegemonia, ideologia liberal e interesses comuns entre estados
poderosos. A liderança hegemônica implica não apenas força, mas
também consenso ideológico, denominado "hegemonia ideológica".
O hegemon deve apresentar sua liderança como benéfica para outros
estados, mantendo um equilíbrio entre custos e vantagens.
A teoria destaca dois momentos históricos de liderança
hegemônica: a Grã-Bretanha no século XIX até a I Guerra Mundial e
334
os Estados Unidos após a II Guerra Mundial, evidenciado pela criação
de instituições internacionais. Esses períodos foram marcados por
uma expansão do mercado internacional e interdependência
econômica global.
O autor expressou sua apreensão diante das primeiras
manifestações da crise global após o colapso do sistema de Bretton
Woods e a retirada dos Estados Unidos do Vietnã, considerando o
declínio do hegemon estadunidense com o ocorrido. Suas
preocupações centraram-se na perspectiva de uma recorrência da
crise semelhante à década de 1930, atribuindo-a à ausência de uma
liderança global (Menozzo, 2008).
Segundo o renomado historiador contemporâneo Eric
Hobsbawm, em uma entrevista à Folha de São Paulo acerca de seu
recente livro de ensaios intitulado "Globalisation, Democracy and
Terrorism" (Globalização, Democracia e Terrorismo), o declínio do
imperialismo estadunidense é inevitável, afirmando que "o mundo
hoje é muito complicado para que apenas um país o domine."
Hobsbawm enfatiza que a atual superioridade dos Estados Unidos é
efêmera na história, comparando-a a fenômenos temporários de
impérios passados, e sustenta que, ao longo do tempo, não há espaço
para uma única potência dominante no planeta.
Eugênio Pereira (2011, p. 242) explica que a teoria da
estabilidade hegemônica estabelece uma ligação intrínseca entre os
elementos de hegemonia e uma ordem econômica liberal. Nessa
perspectiva, o sistema opera de forma interdependente, com a
promoção de interesses comuns voltados para a expansão das
relações de mercado. O autor destaca, ainda, a importância de o
Estado exercer sua liderança de maneira a proporcionar benefícios e
ser favorável aos outros Estados, pois a falta disso pode enfraquecer
o sistema. Pereira enfatiza que a formação de alianças e a oferta de
335
benefícios são fundamentais para assegurar a sustentabilidade da
hegemonia, e que quando os benefícios são satisfatórios, a
estabilidade da hegemonia permanece inalterada. (Pereira, 2011, p.
242)
A ascensão dos Estados Unidos da América como potência
hegemônica está intrinsecamente relacionada ao pós-guerra e à sua
consolidação após o término da Guerra Fria, conforme apontado por
Cruz, Souza, Reis (2012). Essa ascensão se deve, em parte, ao fato de
os EUA não terem se envolvido diretamente nos conflitos,
permitindo-lhes desenvolver-se sem grandes perdas ou danos
territoriais. Além disso, o país obteve lucros significativos com a
venda de armamentos para os aliados, o que contribuiu para sua
dominação na economia mundial.
Entender o dilema entre Estados Unidos e Coreia do Norte
implica diretamente em entender os paradigmas hegemônicos
estadunidenses que cercam o ocidente e o mundo globalizado.
Essencialmente, a Coreia do Norte designa os Estados Unidos como
seu principal inimigo, legitimando assim a priorização de recursos
para a militarização, visando uma proteção reforçada contra a
suposta ameaça estadunidense.
Ao longo de sua história, a Coréia do Norte tem se posicionado
de maneira enfática a favor da retirada dos EUA da península
coreana, acreditando que a presença americana dificulta e impede a
reunificação com o Sul. A subsequente busca pela nuclearização
reflete a postura norte-coreana em relação ao seu rival, justificando o
desenvolvimento de armamentos como uma medida de autodefesa.
Em outubro de 1994, ambas as nações buscaram formalizar seu
primeiro acordo diplomático na tentativa de reduzir as crescentes
tensões, mas essa iniciativa revelou-se ineficaz posteriormente.
Posteriormente, entre 2003 e 2009, ocorreram os Diálogos a Seis, um
336
grupo dedicado a buscar soluções pacíficas para as questões
relacionadas ao programa nuclear norte-coreano. Os participantes
incluíam China, Japão, Rússia, Estados Unidos, Coreia do Sul e
Coreia do Norte.
Pyongyang buscava interromper seu processo de nuclearização
em troca de benefícios econômicos, diplomáticos e garantias de
segurança. No entanto, essas negociações estagnaram em 2008,
levando a Coréia do Norte a realizar testes nucleares até janeiro de
2016. Diante do fracasso das tentativas de cooperação com a
comunidade internacional, a desnuclearização da RPDC tornou-se
improvável, exigindo que os Estados Unidos adotassem uma
abordagem semelhante como pré-requisito. Um artigo jornalístico de
Charlie Campbell, intitulado "A War of Fiery Words, for Now, Between
North Korea and the U.S." (2017), destaca o enraizamento do clima
hostil entre a Coréia do Norte e os Estados Unidos, mencionando a
ameaça periódica de aniquilação das forças norte-americanas pela
"nação empobrecida de 25 milhões".
Enquanto nenhum presidente anterior havia respondido a essas
intimidações, Donald Trump, em 8 de agosto de 2017, declarou que
os EUA desencadeariam "fogo e fúria como o mundo nunca viu"
contra o regime de Kim Jong-un. Ratificando Garcia ao citar Gilpin:
Segundo o autor, uma guerra hegemônica caracteriza-se
por: contestação direta entre poder dominante e Estados
revisionistas; mudanças na natureza e na governança do
sistema; e meios de violência quase ilimitados. [...] As
grandes transformações na história mundial foram
derivadas de guerras hegemônicas entre rivais políticos, cujo
resultado é o reordenamento do sistema a partir de ideias e
valores do Estado vencedor. (1981, apud Garcia, 2010)
Dessa forma, é notório analisarmos a balança de poder existente
quando um Estado questiona o poder hegemônico, seja político, seja
bélico de uma potência global. Como consequência, busca-se garantir
337
a conquista do poder e a manutenção do Estado superior
principalmente quando se há estabelecido fatores macros de
interesses e valores aos regimes internacionais de Krasner (2012), em
que para Keohane e Nye (1977, p. 19), redes de regras, normas e
procedimentos que regulam comportamentos dos atores e controlam
os seus efeitos como o caso de Conselho de Segurança da Organização
das Nações Unidas.
Alisson Nascimento (2009) destaca que, durante o período da
Guerra Fria, os Estados Unidos, ao limitarem espontaneamente seu
poder na política externa de segurança internacional, renunciaram a
uma abordagem de intervenções unilaterais. Em vez disso, adotaram
uma postura multilateral centrada no Conselho de Segurança da
ONU, evidenciando seus interesses estratégicos de liderança
hegemônica por meio de uma política cooperativa e
liberal/democrática na manutenção da ordem mundial. Com isso,
podemos definir este regime internacional como uma das forças
sociais do capitalismo que operam globalmente para o sustento da
hegemonia, como moldagem de uma ordem mundial baseada na
liderança de um Estado sobre outros, segundo Robert Cox (2007).
A legitimação obtida pelos EUA na ONU foi utilizada para criar
consensos e justificar intervenções armadas em nações consideradas
"instáveis" e de menor proeminência global, aproveitando a
assimetria de poder em relação aos demais atores do sistema
internacional (Nascimento, 2009). Com isso, pode-se inferir que o
Conselho de Segurança da ONU configura-se como uma extensão do
hegemon americano por meio de um regime internacional (Krasner,
2012) factível, embora Gilpin (1980) e também Hobsbawm (2007)
tenham inferido sobre o declínio desta em textos já citados acima.
Para além de intervenções armadas, outro mecanismo
simbólico utilizado por meio do Conselho de Segurança pelos
338
Estados Unidos são as sanções econômicas. No mundo
contemporâneo, o uso de sanções econômicas tornou-se altamente
atraente para os governos porque são vistas como meios eficazes para
atingir objetivos políticos sem a necessidade de guerra (Bienen e
Gilpin, 1980). Ao longo dos anos, Pyongyang tem proclamado que
Washington impõe sanções imprudentes com a intenção de
desestabilizar o regime norte-coreano (Correia, 2019).
Isso posto, a República Popular Democrática Coreana sofre
sanções econômicas que a impedem de se desenvolver
economicamente e socialmente por intermédio da arena
internacional. No quadro abaixo, estão contidas algumas das
resoluções que dizem respeito ao país e em que aspectos estes geram
impactos socioeconômicos à sua estrutura política.
Quadro 1: Impactos à economia norte-coreana por meio de
resoluções do Conselho de Segurança da Organização das Nações
Unidas
Resolução Ano Impactos econômicos à RPDC
● Proibiu novas cargas ou crédito à Coreia do Norte, exceto
1874 2009
para fins humanitários ou de desenvolvimento;
● Bloqueou o regime da Coreia do Norte de transferências
de dinheiro em massa;
2094 2013
● Restringiu os laços da Coreia do Norte com sistemas
bancários internacionais;
● Proibiu estados de abrir novas instituições financeiras ou
agências bancárias na Coreia do Norte;
● Proibir os estados membros da ONU de acolher
2270 2016 instituições financeiras norte-coreanas que possam apoiar
atividades de proliferação na Coreia do Norte;
● Inspeções obrigatórias em cargas destinadas ou originárias
da Coreia do Norte;
339
● Suspendeu a cooperação científica e técnica com a Coreia
do Norte, exceto para fins médicos
● Proibiu a exportação de minerais, como cobre, níquel,
prata e zinco;
2321 2016 ● Proibiu a venda de estátuas, helicópteros, venda ou
transferência de ferro e minério de ferro, com exceções
para fins de subsistência e a venda ou transferência de
carvão em quantidades que excedam um determinado
limite anual;
● Proibiu a exportação de carvão, ferro e minério de ferro,
2371 2017
frutos do mar, chumbo e minério de chumbo;
● Proíbe totalmente as exportações de têxteis;
● Limita as importações de produtos petrolíferos refinados a
2 milhões de barris por ano;
● Congela a quantidade de importações de petróleo bruto;
2375 2017 ● Proíbe todas as importações de gás natural e condensado;
● Impõe congelamento de bens a outras entidades norte-
coreanas, incluindo o Departamento de Orientação
Organizacional, a Comissão Militar Central e o
Departamento de Propagação e Agitação;
● Limita as importações de petróleo refinado da Coreia do
Norte em 500 mil barris por ano;
● Estabelece um limite anual de importação de petróleo
bruto em quatro milhões de barris por ano;
● Obriga o Conselho de Segurança a impor limites
adicionais às importações de petróleo se a Coreia do Norte
testar outra arma nuclear ou ICBM;
2379 2017 ● Orienta os países a expulsarem todos os trabalhadores
norte-coreanos imediatamente, ou no máximo em dois
anos;
● Proíbe as exportações norte-coreanas de alimentos,
produtos agrícolas, máquinas minerais e equipamentos
elétricos;
● Proíbe a Coreia do Norte de importar maquinaria pesada,
equipamento industrial e veículos de transporte;
Fontes: https://www.armscontrol.org/. Acesso em: 05 nov. 2023.
Elaborado por meio de resumos de resoluções do Conselho de
Segurança da Organização das Nações Unidas.
340
Com isso, podemos analisar que as sanções do Conselho de
Segurança da ONU impactam diretamente na economia da RPDC,
estendendo-se para refletir como palanque ideológico neoliberal
hegemônico estadunidense. Mantendo sua resiliência ao longo das
décadas, a Coreia do Norte busca um acordo de paz, ecoando os
esforços durante o governo Clinton nos anos 90.
A estratégia dos EUA, adotada durante os governos Bush e
Obama, consistiu em aguardar o colapso autônomo do rival, devido
à fragilidade econômica e à ausência de apoio internacional. No
entanto, apesar das expectativas, Pyongyang permaneceu forte,
preservando seu programa nuclear e frustrando notavelmente os
planos de Washington e criando tensões preocupantes internacionais
de uma possível guerra nuclear durante o governo Trump (Correia,
2019).
Resposta da RPDC às Sanções Econômicas Internacionais a Partir
da Estruturação da Ideologia Juche
Atualmente, pode-se depreender que as bases do princípio
econômico da Juche ainda são, em parte, uma realidade na RPDC – a
exemplificar-se pelo dossiê elaborado pelo Centro de Estudos da
Política Songun (2020) fornece informações básicas sobre a economia
na RPDC. De acordo com o documento, prevalecem, no país, relações
socialistas de produção e a economia é planejada, e o Estado aplica
tarifas aduaneiras para proteger a economia nacional autossuficiente.
Internamente, todos os impostos foram abolidos nos anos 1970 e o
Estado assegura a todos os trabalhadores, plenas condições para a
alimentação, vestuário e moradia.
O Estado norte-coreano aplica o sistema de autofinanciamento
na administração econômica e leva em conta os custos de fabricação,
341
preços, rentabilidade e outros indicadores. Ademais, fomenta a
gestão empresarial comanditária e associada dos organismos,
empresas e organizações nacionais com pessoas naturais e jurídicas
estrangeiras, assim como estabelecimento de diversas empresas nas
Zonas Econômicas Especiais. Os investimentos estrangeiros,
previstos em lei desde 1984, advêm principalmente da Coréia do Sul,
da China, da Rússia e de norte-coreanos residentes no exterior.
(CEPS, 2020)
Todavia, apesar da conclusão normalmente tomada de que a
ideologia Juche de Kim Il-sung previa, desde o início, o isolamento
político e econômico, é importante ressaltar que o líder, na verdade,
acreditava que construir uma economia nacional independente com
base nos princípios Juche não é sinônimo de criar uma economia a
portas fechadas. Inclusive, Lee (2003) aponta que, observando a
enorme ajuda estadunidense à Coreia do Sul – equivalente ao PIB
norte-coreano no período pós-guerra –, Kim Il-sung reconhecia que a
Coreia do Norte não seria capaz de se auto sustentar sem o apoio
significativo de aliados comunistas.
“[...] Thus, he encouraged close economic and technical
cooperation between socialist countries and newly-emerging nations
as an aid in economic development and ideological unity.” (Lee, 2003,
p. 107). Ou seja, o pensamento original de Kim Il-sung enfatiza a
oposição à subjugação econômica e abraça a cooperação econômica
internacional, especialmente com países socialistas, como meio
crucial para alcançar a autossuficiência e fortalecer o poder
econômico. (Il-sung, 2018)
Kim Jong-il, em seu livro “Sobre a Ideia Juche” (2018), se refere
ao já mencionado princípio da autossuficiência econômica da
ideologia Juche – segundo o qual somente levantando-se uma
economia nacional sustentada sobre suas próprias bases e que sirva
342
ao seu povo será possível aproveitar de maneira racional e global os
recursos naturais do país para desenvolver rapidamente as forças
produtivas e melhorar incessantemente a vida da população, firmar
as sólidas bases materiais e técnicas do socialismo e ampliar o poderio
do país nos planos político, econômico e militar. Além disso, segundo
a obra,
[...] na esfera das relações internacionais pode-se exercer
plenamente a soberania e igualdade no aspecto político e
no econômico, além de fazer aportes ao crescimento das
forças anti-imperialistas, independentes e socialistas do
mundo. Sobretudo, a construção de uma economia
nacional autossuficiente se apresenta como um problema
vital naqueles países que no passado ficaram atrasados no
plano econômico-tecnológico devido à dominação e ao
saque dos imperialistas. Somente edificando tal economia é
possível rechaçar a política neocolonialista dos
imperialistas, libertar-se por completo do seu domínio e
exploração, liquidar a desigualdade em relação a outras
nações e avançar com brio pelo caminho do socialismo (p.
1).
A busca por parcerias econômicas alternativas e a diversificação
de relações internacionais visam atenuar o isolamento causado pelas
sanções. Sendo assim, atualmente, a análise da reação da RPDC às
sanções internacionais destaca uma notável dependência econômica
com a China. Segundo o El País (2017), a China é responsável por 82%
das exportações e 85% dos produtos que entram no país. Destinos
adicionais para exportações incluem Índia, Paquistão e Angola.
As práticas de comércio internacional da RPDC têm
evidenciado uma notável concentração na China – que é, como
mostrado anteriormente, sua principal parceira comercial,
caracterizando uma relação de dependência praticamente absoluta e
resultando em um déficit significativo em sua balança de pagamentos
(García, 2018). Em 2015, a China assumiu uma posição dominante,
contribuindo com 83,82% do volume total de comércio da Coreia do
343
Norte, uma proporção substancialmente superior às participações de
outros parceiros comerciais, tais como a Índia, que representou
apenas 3,27%, a Rússia, com uma contribuição de 1,33%, e a Tailândia,
com uma parcela modesta de 1,28% (Observatório da Complexidade
Econômica, 2016).
As principais commodities importadas pela RPDC incluem
medicamentos embalados, totalizando US$ 19,1 milhões, tabaco
processado com um valor de US$ 16,4 milhões, pneus de borracha
avaliados em US$ 15,2 milhões, fertilizantes minerais ou químicos
mistos alcançando US$ 13 milhões, e fertilizantes nitrogenados
atingindo US$ 11,2 milhões. A China se destaca como o principal país
de origem dessas importações, totalizando um montante significativo
de US$260 milhões. Outros fornecedores relevantes incluem os
Emirados Árabes Unidos, Tailândia, Hong Kong e Zâmbia.
(Observatório da Complexidade Econômica, 2021).
Isso posto, a expressiva contribuição da China para o volume
total de trocas comerciais da Coreia do Norte, em 2015, reforça a
dinâmica desigual nas transações comerciais, conforme preconizado
pela Teoria da Dependência de Prebisch. Essa dependência é
evidenciada pela significativa disparidade nas contribuições dos
parceiros comerciais, onde a China assume uma posição dominante.
Guggiana (1999) destaca que essa teoria aborda não apenas o
comércio, mas também a assimetria nas relações econômicas globais,
o que é refletido na dependência da Coreia do Norte em relação à
China como fornecedora primária.
Embora um dos princípios da Juche reforce que para
materializar o princípio de autossuficiência na economia é necessário
construir uma economia nacional independente (Il-sung, 2018),
percebemos que o país, atualmente, demonstra necessidade de
inserir-se nas dinâmicas comerciais internacionais para a manutenção
344
de um sistema econômico estável. No entanto, isso é altamente
dificultado pelas sanções que criam barreiras fortificadas para o
ingresso deste país no xadrez econômico ocidental global.
Considerações Finais
Nos estudos de economia política e Economia Política
Internacional, Silva, Nogueira e Costa Silva (2023) ressaltam a
importância da reflexão proposta por Grosfoguel (2008), que, em
consonância com as ideias de Cox (1981), destaca que a perspectiva
teórica é inseparável da posição situada em estruturas de poder.
Nesse sentido, a teorização não é apenas uma atividade intelectual,
mas um processo que contribui para a produção e reprodução de
realidades sociais, podendo ser orientado tanto para a manutenção
do status quo quanto para a busca pela emancipação social, com
poder total de influência na trilha ideária da formulação da tese.
A esse respeito, o presente estudo ainda é estruturado,
sobretudo, a partir da produção acadêmica ocidental, o que se deve à
dificuldade de acesso a bases de dados e informações precisas acerca
da estrutura sociopolítica e econômica da RPDC. Apesar desse
impasse, buscamos inicializar esta discussão de extrema importância
para entender as nuances dos ideários hegemônicos que prevalecem
no sistema e suas consequências ao redor do globo. As teorias de Cox,
Arrighi, Gramsci, Gilpin e outros pensadores acerca do conceito de
hegemonia oferecem lentes analíticas valiosas para compreender a
relação entre o dinamismo para além do pragmatismo entre EUA e
RPDC.
A ascendência dos Estados Unidos como potência hegemônica
pós-Guerra Fria é crucial para entender o embate com a Coreia do
Norte, e a busca pela estabilidade hegemônica, fundamentada em
345
uma ordem econômica liberal, molda a atuação dos EUA no cenário
global. Embora a análise da história recente, incluindo a crise após o
colapso do sistema de Bretton Woods, aponte para desafios e
questionamentos sobre a durabilidade da hegemonia estadunidense
– conforme expresso por Hobsbawm –, entende-se que os resquícios
ainda existentes deste hegemon reverberam em demasia nos regimes
internacionais ocidentais poderosos.
A análise das resoluções do Conselho de Segurança da ONU
revela como as medidas econômicas impactam diretamente a
economia da RPDC, refletindo os interesses do hegemon americano;
por isso, infere-se que o conflito entre EUA e Coreia do Norte reflete
não apenas diferenças ideológicas, mas também estratégias
geopolíticas. Ainda assim, o sistema político, econômico e ideológico
norte-coreano Juche de autossuficiência pode ser interpretado como
uma resposta à relutância em se submeter às regras estabelecidas
pelos regimes internacionais que tanto afastam e isolam o país dos
centros de trocas comerciais.
Já a análise dos postulados de Gilpin acerca dos regimes
internacionais na governança global e nas relações econômicas entre
os Estados nos faz enxergar a RPDC como um mártir de relutância
em uma arena internacional intrínseca a regimes e instituições
internacionais sob a hegemonia ocidentalista – fato que impacta em
sua economia diretamente, uma vez que a ocorrência de sanções
econômicas e políticas decaem e regressam as relações econômicas do
país.
No geral, a análise da resposta da RPDC destaca uma notável
dependência econômica da China, um país que representa grande
parte das transações de comércio internacional norte-coreanas devido
à compatibilidade ideológica e proximidade geográfica entre as
nações. Todavia, é essencial pontuar que a procura de alternativas e
346
a adaptação às circunstâncias é imperativa para a RPDC,
especialmente dadas as barreiras impostas pelas sanções como meio
de sobrevivência na arena internacional. O desafio principal é
encontrar um equilíbrio entre a preservação dos princípios Juche e a
necessidade de realizar transações comerciais internacionais frente ao
dinamismo e multilateralismo de interdependência presente no
contexto internacional contemporâneo.
Em última análise, o dilema entre EUA e Coreia do Norte é um
microcosmo das complexidades da geopolítica contemporânea, em
que a hegemonia, o consenso e os interesses econômicos moldam as
relações internacionais. A compreensão desses elementos é essencial
para decifrar os rumos do isolacionismo norte-coreano e as respostas
do hegemon americano em meio a um cenário global em constante
transformação.
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351
Contribuição multilateral da China no financiamento da transição
energética
Rafaela Mello Rodrigues de Sá1
Cândido Grinsztejn Rodrigues d’Almeida2
Resumo: A atual transição energética é parte do mais amplo processo
de descarbonização, que objetiva a trajetória rumo a uma economia
mundial menos intensiva em carbono, sendo fundamental para o
combate às mudanças climáticas. Em resumo, a transição em curso é
baseada na substituição do uso de fontes de energia fósseis por
energias renováveis. A China vem se destacando nesse processo, em
função da acelerada difusão das renováveis na sua matriz energética,
bem como pela produção em larga escala de tecnologias chave para a
transição. Tendo em vista a grande relevância do processo de
transição energética e o importante papel da China neste, cabe refletir
sobre a inserção do setor energético nas questões da geoeconomia a
nível global. Neste contexto, é possível examinar uma crescente
demanda por financiamento de projetos de infraestrutura voltados à
energia, que vem sendo suprida, em parte, pelos novos bancos
1
Professora Assistente no IRID/UFRJ e Mestre em Relações Internacionais pelo
IRI/PUC-Rio. E-mail: [email protected]
2
Mestrando em Relações Internacionais no IRI/PUC-Rio e Assistente de Pesquisa
no BRICS Policy Center. Email: [email protected]
352
multilaterais, direcionados a projetos de infraestrutura sustentável.
Com base neste panorama, questiona-se: de que forma a China
apresenta seus esforços geoeconômicos no âmbito da energia em
escopo multilateral? Portanto, a pesquisa tem como objetivo a
compreensão de como a China vem contribuindo para o processo de
transição energética a partir de seus mecanismos multilaterais,
principalmente através dos financiamentos dos novos bancos de
desenvolvimento. A análise irá abranger os esforços do Banco
Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) e o Novo Banco de
Desenvolvimento (NBD), por serem considerados bancos fundados
pela China ou com participações chinesas em sua constituição. O
artigo irá se basear, por um lado, em uma metodologia qualitativa,
buscando avaliar quais os objetivos e as ações dos bancos a partir das
linhas de financiamento e de documentos e relatórios. Por outro lado,
analisará, em termos quantitativos, projetos, setores e países
beneficiados pelos financiamentos.
Palavras-Chave: Transição Energética; China; Novos Bancos
Multilaterais; Geoeconomia; Descarbonização.
Introdução
Com a crescente relevância das mudanças climáticas na agenda
internacional, os esforços em direção à redução das emissões de
carbono estão sendo cada vez mais implementados e financiados
pelos mais variados atores, de empresas e agentes privados, a Estados
e instituições públicas.
Um dos setores que se destaca neste âmbito é o setor energético.
O atual processo de transição energética é considerado parte de uma
trajetória mais ampla voltada à descarbonização da economia, a fim
de constituir uma economia mundial menos intensiva em carbono,
353
sendo fundamental para o combate às mudanças climáticas. Em
resumo, a transição em curso é baseada na substituição do uso de
fontes de energia fósseis por energias renováveis.
A China vem se destacando nesse processo, em função da
acelerada difusão das renováveis na sua matriz energética, bem como
pela produção em larga escala de tecnologias chave para a transição.
Tendo em vista a grande relevância do processo de transição
energética e o importante papel da China neste, cabe refletir sobre a
inserção do setor energético nas questões da geoeconomia a nível
global. Desse modo, diversas instituições de financiamento acabam
atuando como instrumentos relevantes das estratégias
geoeconômicas deste importante player internacional, desde bancos
locais ou nacionais, até instituições financeiras de escopo regional e
global.
Com a crescente demanda por financiamento de projetos de
infraestrutura voltados à energia, torna-se importante compreender
como estas iniciativas vêm sendo financiadas, principalmente pelos
novos bancos multilaterais de desenvolvimento, direcionados a
projetos de infraestrutura sustentável, dentre eles o Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de
Desenvolvimento (NDB), conhecido como Banco dos BRICS. Ambos
esses bancos multilaterais iniciaram suas operações em 2016, com o
principal objetivo de atender à crescente demanda por investimentos
em infraestrutura nas economias emergentes.
Com base neste panorama, questiona-se: de que forma a China
apresenta seus esforços geoeconômicos no âmbito da energia em
escopo multilateral? Portanto, a pesquisa tem como objetivo a
compreensão de como a China vem contribuindo para o processo de
transição energética a partir de seus mecanismos multilaterais,
principalmente através dos financiamentos dos novos bancos de
354
desenvolvimento, abrangendo as ações do AIIB e do NDB, por serem
considerados bancos fundados pela China ou com participações
chinesas em sua constituição.
O artigo irá apresentar os resultados do mapeamento e da
seleção dos projetos de financiamento de ambas as instituições. O
artigo irá se basear, por um lado, em uma metodologia qualitativa,
buscando avaliar quais os objetivos e as ações dos bancos a partir das
linhas de financiamento e de documentos e relatórios. Por outro lado,
analisará, em termos quantitativos, projetos, setores e países
beneficiados pelos financiamentos.
Com base nisso, a pesquisa é composta de três seções, além
desta introdução e das considerações finais. A primeira seção irá
abordar uma discussão teórica sobre as interações entre os conceitos
de geopolítica e geoeconomia com o processo global de transição
energética. Logo depois, a segunda seção irá apresentar o
posicionamento da China neste cenário, avaliando os esforços de
financiamento chinês em diversos níveis e distribuídos ao redor do
mundo. Por fim, a terceira seção terá como foco as operações dos dois
bancos multilaterais de desenvolvimento em questão - o AIIB e o
NDB, com o objetivo de compreender as principais tendências de
financiamento e contribuição destas instituições.
Transição energética sob a ótica geoeconômica: o caso da China
Transições energéticas são processos graduais e de longo prazo
nos quais ocorrem mudanças significativas na composição das fontes
de energia utilizadas para que um país supra as suas necessidades
energéticas. A transição energética em curso, muitas vezes
denominada de transição energética verde, se trata de uma das
muitas que ocorreram e se caracteriza, de forma geral, pela
substituição das fontes de energia fóssil por fontes de energia
355
renováveis na matriz energética3 global visando reduzir a intensidade
de carbono das economias.Contudo, ela se difere das outras
transições pretéritas pelo fato de ser dotada de um caráter
emergencial, visto que é uma dimensão crucial no combate às
mudanças climáticas, em função do setor energético ser responsável
por uma parte considerável das emissões de gás carbônico mundiais.
Duas grandes características do processo de transição implicam
consequências significativas para a geopolítica da energia: a
distribuição espacial das reservas de minerais e materiais essenciais
para a transição energética e a desigualdade nas capacidades
científico-tecnológicas relacionadas à produção de tecnologias de
energia renovável.
Na atual transição, que é intensiva em minerais, a distribuição
das reservas de minerais críticos têm grande relevância. Minerais
como cobre, lítio, nióbio, cobalto, entre outros, mas também materiais
como a madeira de balsa, são empregados na produção de uma série
de tecnologias chave para a transição energética, como linhas de
transmissão, baterias de carros elétricos, painéis solares, turbinas
eólicas.
Dessa forma, o acesso a esses recursos naturais é uma questão
de importância geoestratégica, tanto para os países nos quais estão
concentradas as reservas, bem como para os países que buscam
acessá-las. No caso dos países que detém as reservas, a sua exploração
(caso se opte por ela) deve ser conduzida com cautela de modo a não
trazer impactos socioambientais significativos e também deve-se
buscar desenvolver ou adquirir via transferência tecnológica os meios
para a transformação dessas matérias primas em produtos com alto
valor agregado.
3
Conjunto de fontes de energia que um país ou região utiliza para sanar suas
necessidades energéticas.
356
Mais relevante do que simplesmente o acesso aos materiais
essenciais para as tecnologias relacionadas com a transição energética
é a capacidade científico-tecnológica para produzir tecnologias
verdes em larga escala. Tal capacidade engloba o processamento dos
minerais críticos e a sua utilização na fabricação de produtos
industrializados.
A desigualdade nas capacidades científico-tecnológicas que
são indispensáveis para o desenvolvimento e a produção de
tecnologias de energia renovável, entre outras convergentes para a
transição, que são preponderantes neste processo no qual a inovação
tem um papel crítico. Dessa forma, a geopolítica da energia que vem
emergindo com a atual transição tem uma interface muito grande
com a geopolítica do conhecimento. Até agora poucos países
dominam essa produção, sendo a China um caso emblemático.
O país asiático é um dos atores mais importantes no cenário
energético global. A China é o principal consumidor de energia a
nível mundial, respondendo por 157,65 Exajoules ou 26,5% do
consumo mundial de energia primária, superando os Estados Unidos
e a Europa (BP, 2022, p. 8). Em relação à geração de energia elétrica,
o país também representa 30% do total da geração mundial de energia
elétrica, o equivalente a 8534,3 Terawatt-hora (BP, 2022, p. 50). Cabe
ressaltar que o consumo de energia primária per capita chinês ainda
se encontra muito aquém dos patamares da Europa e,
principalmente, dos Estados Unidos (BP, 2022, p. 11) .
Já no que tange às emissões de CO2 provenientes do consumo
de derivados de petróleo, de gás natural e de carvão em atividades
relacionadas à combustão, a China é o principal emissor,
concentrando 31,1% das emissões atualmente (BP, 2022, p.12). A
utilização em larga escala do carvão na China é o principal
contribuidor para essas emissões.
357
A China vem se consolidando como uma liderança no processo
de transição energética global nas últimas duas décadas. Tal liderança
vem sendo constituída através de três frentes: o acelerado processo
interno de transição energética na China; os investimentos externos
diretos e financiamentos chineses no exterior e a produção em larga
escala de tecnologias chave para a transição energética.
A China tem uma histórica dependência do carvão para suprir
suas necessidades energéticas. O país tem abundantes recursos
carboníferos, os quais são utilizados em larga escala tanto para
alimentar segmentos fortes e energo-intensivos da sua indústria -
como a siderurgia e o cimento - como para a geração de energia
elétrica, estando assim fortemente presente na matriz energética e na
matriz elétrica chinesa. Destacamos que a permanência do uso em
larga escala do carvão é o principal entrave para o avanço da transição
energética na China.
Na presente análise focaremos nossa atenção na matriz elétrica
e nos avanços que foram realizados nesta, tendo em vista a transição
rumo a uma economia menos intensiva em carbono. Tal opção se
justifica pelo fato de que a atual transição vem se dando por meio de
um duplo movimento caracterizado pela substituição das fontes de
energia fóssil por fontes de energia renováveis e pela eletrificação de
setores que tradicionalmente não são movidos por eletricidade, como
o setor de transportes e alguns segmentos da indústria, especialmente
a produção de cimento e a siderurgia. Ambos movimentos
contribuem para o alargamento da matriz elétrica, por isso a transição
em curso vem sendo denominada por alguns autores como transição
elétrica (RLIE, 2021, p. 12).
O ritmo acelerado do processo de transição energética na China
pode ser observado através da análise da evolução das participações
das fontes que compõem a sua matriz elétrica, mas também do
358
crescimento do seu setor elétrico. Em 2009, o país gerava 3715
Terawatt/hora de eletricidade (BP, 2021, p.2). O carvão, a principal
fonte da China para a geração de energia elétrica, respondia por mais
de ¾ da geração de eletricidade na China, enquanto que as renováveis
(somando energia eólica e solar) representavam apenas 1,3%, como
indicado no gráfico abaixo. A hidreletricidade4 assume um papel
importante, sendo a segunda principal fonte na produção de
eletricidade na China.
Fonte: BP Statistical Review 2022
Em 2021, o setor elétrico chinês mais do que dobrou, em termos
de produção de energia elétrica, gerando 8534,1 terawatts hora.
Apesar de ter seguido aumentando em números absolutos, o carvão
teve sua participação reduzida para 62,6% na geração de energia
elétrica. As renováveis, especialmente a solar e a eólica aumentaram
de forma notável a sua participação, respondendo por 13,5% da
geração de eletricidade em 2021, conforme pode se observar no
gráfico abaixo (BP, 2022, p. 50-51).
4
Em função dos impactos significativos envolvidos na construção de
hidrelétricas, inserimos esse tipo de fonte de energia em uma categoria à parte,
distinguindo-a das outras renováveis.
359
Fonte: BP Statistical Review 2022
No âmbito da transição energética verde, a China utiliza
habilmente os seus investimentos externos diretos, os seus
financiamentos, mas também o comércio exterior para avançar seus
interesses geoeconômicos. Utilizaremos aqui definição de
geoeconomia desenvolvida por Blackwill & Harris, que a definem
como “a utilização de instrumentos econômicos para promover e
defender os interesses nacionais e para produzir resultados
geopolíticos benéficos; e os efeitos das ações econômicas de outras
nações nos objetivos geopolíticos de um país” (BLACKWILL;
HARRIS, 2016, p. 20).
Através do planejamento de longo prazo e do estabelecimento
de uma estratégia econômica consistente, a China foi capaz de
desenvolver capacidade tecnológica na produção tecnologias verdes,
isto é, tecnologias convergentes com os imperativos da transição
energética, de forma a vir se consolidando como uma das principais
lideranças nesses processo por meio da exportação do seu padrão
tecnológico via comércio exterior, mas também pelo financiamento
de projetos que utilizam a suas tecnologias no exterior.
Se destaca como marco institucional no planejamento para o
estabelecimento de uma indústria chinesa de tecnologias de energias
360
renováveis a Lei de Energia Renovável (2004), que introduziu uma
série de subsídios e incentivos para o desenvolvimento de capacidade
tecnológica nesse campo específico, que possibilitou uma inserção
muito positiva da China das cadeias globais de valor de tecnologias
associadas à transição, e alavancou a difusão das renováveis na
matriz energética chinesa (WENG et. al, 2015, p. 25). Além da Lei de
Energia Renovável, o desenvolvimento das energias renováveis é
uma preocupação que se reflete nos últimos planos quinquenais
chineses.
O desenho de uma estratégia econômica por parte da China fica
ainda mais evidente quando se observa a capacidade de produção e,
especialmente de processamento de minerais essenciais para a
transição energética. A China domina o processamento de uma
variedade desses minerais críticos, concentrando a maior parte da
oferta global de minerais críticos processados, como grafite natural,
disprósio, cobalto, cobre, neodímio, manganês e lítio em seus estágios
refinados (IRENA, 2023, p. 40).
Dessa forma, ao concentrar a capacidade de processamento de
minerais críticos e a capacidade de produção de larga escala de
tecnologias - chave para a transição energética, a China tem se
beneficiado da exportação rentável dessas rentável e de um
posicionamento privilegiado nas cadeias globais de valor associadas
à transição energética verde, que é compreendida no presente
trabalho como um campo no qual a disputa hegemônica entre China
e Estados Unidos se manifesta.
Em termos de transição energética para economias menos
intensivas em carbono é interessante a noção de tempo geoeconômico
avançada por Hall, que o concebe como:
“O tempo geoeconômico fornece foco tanto no futuro quanto no
passado. Ele é o que enquadra o futuro relevante para a análise
económica do aquecimento global. O futuro quadro geoeconómico
361
baseia-se nas expectativas da interação dos recursos geológicos
(incluindo stocks de combustíveis fósseis) no contexto das forças
económicas e das opções tecnológicas. (HALL, 1996 apud EGLER,
2009, p. 50, tradução nossa).
É de extrema importância enfatizar o papel central do Estado
para a concepção de economia adotada aqui, sendo ele o protagonista
da construção de estratégias geoeconômicas, como pontua De Lima:
“De fato, o Estado é o cérebro da geoeconomia. O Estado pode
articular, estimular e promover, propositalmente, interações
econômicas que resultarão em consequências estratégicas,
econômicas, políticas e de defesa positivas para o aumento das
cinco expressões de seu Poder Nacional e, consequentemente, de
seu poder relativo no sistema internacional. Seus bancos e
empresas, mesmo abrindo mão do lucro ou do melhor negócio em
um primeiro momento, ao sincronizar as suas estratégias com as do
Estado, ocupam espaços no mercado internacional que, no longo
prazo, trarão retorno econômico diferenciado” (DE LIMA, 2018, p.
17).
Na próxima seção analisaremos, especificamente como os
financiamentos que têm forte participação chinesa direcionados para
projetos relacionados com a transição energética realizados por dois
bancos multilaterais, O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o
Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII) têm
contribuído para avançar interesses econômicos do país asiático.
Esforços chineses no financiamento da transição energética
A China é uma importante fonte de financiamento de projetos
de geração de eletricidade ao redor do mundo através de variados
veículos, como os seus robustos “policy banks”, mas também por
meio de bancos multilaterais que ela participa ativamente. segunda
seção irá apresentar o posicionamento da China neste cenário,
avaliando os esforços de financiamento chinês em diversos níveis e
distribuídos ao redor do mundo.
362
Os dois principais “policy banks” chineses - o China
Development Bank e o China Export-Import Bank - tem um papel de
destaque no financiamento para projetos de geração de energia
elétrica ao redor do mundo, acumulando US$ 80,3 bilhões nesse tipo
de projetos no período de 2000 a 2020 (BOSTON UNIVERSITY, 2022).
A alocação dos financiamento que totalizaram US$ 80 bilhões
no período em questão foi dominada pelo direcionamento para
projetos de geração de hidreletricidade ou de usina termelétricas
movidas à carvão (especialmente na Ásia) e se deu da seguinte forma,
no que tange a divisão entre as fontes de energia financiadas: US$ 29,7
bilhões foram direcionados para a construção de 72 projetos
hidrelétricos; US$ 698 milhões voltados para 7 projetos energia solar;
US$ 649 milhões voltados para 4 projetos energia eólica (sendo 3 no
Leste da África - Etiópia e Somália); US$ 60 milhões empregados em
1 projeto de biomassa; US$ 3,5 bilhões para 11 projetos movidos a gás
natural; US$ 1 bilhão direcionados para 6 projetos movidos a
derivados de petróleo; US$ 28,4 bilhões alocados em 53 projetos
movidos a carvão (concentrados no Vietnam e na Indonésia) e US$
16,2 bilhões em 4 projetos de energia nuclear (BOSTON
UNIVERSITY, 2022).
Nota-se assim que a única fonte de energia renovável que tem
destaque no financiamento chinês, a partir dos dois bancos públicos
supracitados é a energia hidrelétrica, tendo a energia solar e eólica
um papel mais marginal e mais recente. Por outro lado, o carvão,
apesar de ser a segunda fonte com maior valor em financiamentos
concedidos, vem apresentando uma tendência declinante em meio ao
estabelecimento de compromissos climáticos do governo chinês (YI,
2021).
O financiamento desses projetos de geração de eletricidade no
exterior por parte China possibilita para o país a exportação da sua
363
sobrecapacidade de construção de projetos de geração de energia
elétrica, além de aumentar, em alguns casos, a sua influência política
e econômica sobre o país receptor (CHEN et al. 2022).
Com base na consideração dos esforços chineses a nível
nacional, com a atuação dos seus bancos públicos, é importante
também avaliar a contribuição das iniciativas no escopo multilateral
da China em relação aos seus países parceiros.
No contexto das instituições globais de financiamento ao
desenvolvimento, destacam-se dois instrumentos nos quais a China
desempenha um papel significativo: o Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura (AIIB) e o Novo Banco de
Desenvolvimento (NDB), conhecido como Banco dos BRICS. Ambos
esses bancos multilaterais iniciaram suas operações em 2016, com o
principal objetivo de atender à crescente demanda por investimentos
em infraestrutura nas economias emergentes. Isso facilitou o acesso
das economias em desenvolvimento a financiamentos para projetos
de infraestrutura.
O NDB ganhou destaque por ser o primeiro banco multilateral
fundado exclusivamente por economias emergentes em seu processo
de estabelecimento, com a ambição de operar globalmente. Em
contraste, o AIIB é caracterizado pela forte liderança chinesa desde
sua concepção, buscando estabelecer-se como um banco regional na
Ásia. Essas instituições refletem o contínuo crescimento e a crescente
importância da China no cenário internacional, especialmente no que
se refere ao financiamento e desenvolvimento de projetos de
infraestrutura em países emergentes.
Os bancos multilaterais de desenvolvimento desempenham um
papel crucial ao facilitar o acesso dessas economias a recursos
financeiros destinados a atender a expressiva demanda por
investimentos em infraestrutura. No entanto, os bancos multilaterais
364
convencionais enfrentam limitações tanto em sua capacidade
financeira quanto em questões administrativas e políticas
(HUMPHREY, 2020, p. 02). Essas instituições tradicionais, devido à
predominância de países desenvolvidos em sua governança,
“negligenciam, intencionalmente, as necessidades de investimento
em infraestrutura dos países em desenvolvimento” (ZHU, 2020, p. 79,
tradução própria).
Ao mesmo tempo, as economias emergentes encontravam-se
em uma fase de notável crescimento econômico, contando com
reservas internacionais substanciais e recursos financeiros
acumulados, os quais poderiam ser empregados para mitigar a
significativa demanda por investimentos em infraestrutura nestes
países (GRIFFITH-JONES, 2015, p. 02). Foi nesse cenário que o Novo
Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Banco Asiático de Investimento
em Infraestrutura (AIIB) foram estabelecidos.
As ações dos dois bancos sediados na China acabam
convergindo com as ações geoeconômicas chinesas no financiamento
do processo global da transição energética, uma vez que estes bancos
multilaterais dão continuidade ao objetivo dos policy banks chineses.
Nesse sentido, a próxima seção irá detalhar e apresentar as
características e tendências da atuação desses bancos multilaterais no
financiamento da transição energética.
Financiamentos em energia dos novos bancos multilaterais
Esta seção tem como objetivo apresentar as operações dos dois
bancos multilaterais de desenvolvimento em questão - o AIIB e o
NDB, a fim de compreender as principais tendências de
financiamento destas instituições e a participação da China no
financiamento da transição energética.
365
Nesse sentido, será realizada uma análise qualitativa das
estratégias, dos documentos e materiais institucionais de ambas as
instituições, e uma análise quantitativa dos projetos financiados no
setor energético.
A partir disso, a intenção é avaliar de que forma a China vem
contribuindo para avanços no processo de transição energética, em
seu território e em todo o mundo, por meio do financiamento através
dos bancos multilaterais.
A compreensão detalhada dos projetos financiados pelos
bancos multilaterais foi possível pelo mapeamento das operações
aprovadas por ambas as instituições, seguindo os seguintes critérios:
(a) seleção dos projetos do setor de energia, não incluindo projetos
multi-setor ou de outras categorias; (b) avaliação apenas dos projetos
aprovados desde o início das operações até outubro de 2023.
Cabe destacar que foram construídas categorias para identificar
os sub-setores destes projetos para que fosse possível identificar
tendências e a distribuição dos recursos financeiros para seus
determinados objetivos5. Dessa maneira, os projetos se dividem em:
● Energia Renovável (quando não há detalhamento da
fonte)
● Energia Solar
● Energia Eólica
● Hidrelétrica
● Gás Natural
● Eficiência Energética
5
Alguns projetos possuem objetivos que se sobrepõem, nesse sentido, foi
definido o objetivo central e predominante da operação para que fosse possível
implementar a análise.
366
● Distribuição, Modernização e Transmissão
As subseções a seguir apresentam os detalhes sobre a atuação
de cada um dos bancos, iniciando com informações sobre o banco do
BRICS e, posteriormente, avaliando as particularidades do AIIB.
Financiamentos em Energia do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB)
O Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como
Banco dos BRICS, foi criado em 2014, durante a Cúpula de Fortaleza.
Suas atividades são materializadas apenas em 2016, com o início das
operações na sua sede em Shanghai, na China.
Apesar da construção igualitária das estruturas decisórias da
instituição, a presença do banco na China amplia possibilidades de
aproximação com o mercado financeiro chinês e acaba favorecendo o
estabelecimento de projetos. A expansão e maior distribuição dos
projetos para os outros países foi favorecida com a abertura de
escritórios regionais em cada um dos países BRICS.
Em relação à sua atuação, o NDB foi delineado para ampliar os
financiamentos em projetos de infraestrutura e desenvolvimento
sustentável para os países BRICS e para economias emergentes. Nesse
sentido, o banco já nasce com um direcionamento para questões
sustentáveis.
Para avaliar suas características foram avaliados dois
documentos centrais que destacam as principais características da
atuação do NDB: a Estratégia Geral (2017-2021) e a Estratégia Geral
(2022-2026). Ambos os documentos apresentam os objetivos do banco
desde seus primeiros anos, permitindo compreender como as
questões relacionadas à transição energética estão inseridas no banco.
367
No primeiro documento, é ressaltado o foco operacional da
instituição em direcionar esforços em direção à infraestrutura e ao
desenvolvimento sustentável, sendo um dos principais objetivos
estratégicos desse período era atingir que 2/3 dos projetos financiados
estivessem voltados para este fim (NDB, 2017, p. 12). Além disso, há
o destaque do setor de energia limpa como um dos áreas-chave de
operação do banco.
O segundo documento apresenta um balanço dos resultados
alcançados durante o escopo da estratégia anterior, de modo que os
projetos voltados ao ODS 7 sobre Energia Limpa e Acessível
representam 13% das operações do banco até 2021 (NDB, 2022a, p.
15). Desse modo, é possível compreender que houve uma priorização
para os setores de energia limpa e eficiência energética, sendo a
terceira área com mais projetos.
Nesta estratégia, o setor de energia limpa e eficiência energética
continua sendo um dos pilares de atuação, com a constituição da
meta da estratégia atual de “direcionar 40% do financiamento total
para projetos que contribuam para a mitigação e adaptação à
mudança climática, incluindo a transição energética, entre 2022 e
2026” (NDB, 2022a, p. 28, tradução própria).
No mapeamento realizado na pesquisa sobre os financiamentos
do NDB, foi identificado que 14 projetos relacionados com o setor de
energia, representando US$ 3,7 bilhões em financiamentos de
energia, de um total de 87 projetos se todos os setores. Essas
operações foram distribuídas entre os 5 países fundadores, assim
como apresenta a figura abaixo. Percebe-se que China e África do Sul
possuem mais projetos direcionados ao setor energético, tanto em
valores, quanto em número de projetos.
368
Distribuição por país dos Financiamentos no Setor Energético (NDB)
por número de projetos e valores (US$)
Fonte: Lista de Projetos do NDB (2023)
No que tange às categorias de subsetores, é possível
compreender um destaque para os financiamentos de projetos de
energia renovável, nos casos em que não há detalhamentos de qual
fonte renovável irá ser adotada. Demonstra-se que a energia limpa é
uma área prioritária do banco.
No entanto, é importante salientar a predominância de projetos
para o Gás Natural, principalmente voltados para a China, com um
destaque para os valores financiados para os 2 projetos.
369
Distribuição por Subsetor dos Financiamentos no Setor Energético
(NDB) por número de projetos e valores (US$)
Fonte: Lista de Projetos do NDB (2023)
Financiamentos em Energia do Banco Asiático de Investimento em
Infraestrutura (AIIB)
O AIIB está sediado em Pequim, China. Foi estabelecido em 16
de janeiro de 2016, após um processo colaborativo de 15 meses, no
qual os 57 membros fundadores contribuíram para definir sua
filosofia central, princípios, políticas, valores e plataforma
operacional.
Contando com a liderança chinesa no estabelecimento da
instituição, o banco também é caracterizado pelo direcionamento
inicial de aumentar sua legitimidade internacional, atraindo assim
países europeus para se tornarem membros fundadores. Atualmente,
o AIIB conta com 106 membros, dos quais 92 são membros plenos e
14 são membros candidatos, e continua aberto para receber novos
integrantes (AIIB, 2023a).
370
O propósito do AIIB é promover um futuro mais promissor
para bilhões de pessoas por meio de investimentos em infraestrutura
sustentável na Ásia e em outras regiões. Dessa forma, os
investimentos são voltados para a infraestrutura e outros setores
produtivos, de modo que estejam alinhados e agreguem valor nas
seguintes quatro temáticas prioritárias: (1) infraestrutura verde; (2)
conectividade e cooperação regional; (3) infraestrutura habilitada por
tecnologia e (4) mobilização de capital privado (AIIB, 2023b). A partir
disso, é possível compreender que o banco busca fomentar o
desenvolvimento sustentável, criar riqueza e melhorar a
conectividade da infraestrutura, priorizando investimentos em
infraestrutura verde.
No último relatório divulgado pela instituição em 2023, foi
destacado que o setor de energia é a área com maior número de
projetos ao longo da história das operações do AIIB, representando
mais de 40 investimentos de um total de 200 projetos (AIIB, 2023c, p.
16).
Neste mesmo documento, a estratégia corporativa da
instituição também evidencia os efeitos positivos para mitigar as
mudanças climáticas através de diversas iniciativas: expansão de
projetos de energia renovável, melhoria da infraestrutura de
transmissão e distribuição de eletricidade e apoio a medidas de
eficiência energética (AIIB, 2023c, p. 16). Com base nisso, a instituição
apresenta a meta de atingir ou superar até 2025 uma participação de
50% no financiamento efetivamente aprovado para a mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas (AIIB, 2023c, p. 70).
Além disso, é relevante apresentar detalhes sobre a estratégia
do banco para o setor energético, que foi publicada em 2022. O
documento examina os 6 princípios que guiam as operações do banco
nas questões relacionadas ao setor energético, que são:
371
1: Promover o acesso e a segurança energética;
2: Apoiar a transição para um sistema de energia limpa;
3: Realizar o potencial de eficiência energética;
4: Gerenciar a poluição local e regional;
5: Mobilizar o capital privado;
6: Promover a conectividade e a cooperação regional.
Ademais, esta estratégia reitera o compromisso do banco em
estar alinhado com o Acordo de Paris, de modo que afirma que “não
financiará a mineração de carvão, centrais eléctricas e de aquecimento
a carvão ou projectos que estejam funcionalmente relacionados com
o carvão” (AIIB, 2022, p. 19, tradução própria).
Em relação ao setor petrolífero, só irá financiar em
circunstâncias excepcionais para melhorar o acesso à energia básica e
controlar as emissões de carbono. Por fim, o documento avalia a
utilização do gás natural papel transitório nos seus sistemas
energéticos, para reduzir a utilização de petróleo e carvão (AIIB, 2022,
p. 19).
No que tange o mapeamento e a seleção dos dados de
financiamentos do AIIB realizado na pesquisa, foi possível concluir
que há 52 projetos relacionados com o setor de energia, de um total
de 231 projetos, que representam US$ 8 bilhões de dólares em
financiamentos de energia.
No gráfico a seguir é possível perceber o grande destaque de
três países na quantidade de projetos financiados para o setor de
energia: Índia (9 projetos), Turquia (7 projetos) e Bangladesh (6
projetos).
372
Distribuição por país dos Financiamentos no Setor Energético (AIIB)
por projetos
Fonte: Lista de Projetos do AIIB (2023)
Já em relação à distribuição pelos subsetores, há um destaque
para as áreas de Energia Renovável (quando o projeto não apresenta
detalhamentos ou abarca mais de uma fonte), Gás Natural e
Transmissão/Modernização - todos os três subsetores com 11 projetos
cada, diferenciando apenas os valores distribuídos.
Distribuição por Subsetor dos Financiamentos no Setor Energético
(AIIB) por número de projetos e valores (US$)
Fonte: Lista de Projetos do AIIB (2023)
373
Além do incentivo às renováveis, o banco asiático também
direciona esforços para o Gás Natural, uma vez que na China e Ásia
no geral, está sendo considerado um primeiro passo para transição
energética, substituindo o carvão por fontes menos poluentes com o
objetivo de reduzir as emissões, mesmo não sendo considerada uma
fonte de energia renovável.
Ademais, há muitas iniciativas de Transmissão e
Modernização, com a construção e reforma de infraestrutura de
transmissão de energia elétrica, além de modernização do sistema
elétrico em diversos países. É fundamental essa modernização dos
sistemas elétricos para que eles lidem com uma crescente expansão
das fontes intermitentes de energia como uma etapa de preparação
para o processo de Transição Energética e aumento de eficiência
energética.
Considerações Finais
A transição energética se coloca como um grande desafio para
a China, que busca reduzir seu consumo de carvão, expandir
aceleradamente a participação de fontes renováveis e diminuir a
dependência de recursos energéticos importados, bem como se
aproveitar dos benefícios econômicos da posição privilegiada que o
país assumiu nas cadeias globais de valor relacionadas a transição
mediante a construção e condução de uma estratégia geoeconômica.
Pelo fato de que as mudanças em curso no sistema energético global
terão consequências econômicas, geopolíticas e geoeconômicas de
longo prazo, a transição energética se configura como campo de
disputa hegemônica.
Nesse sentido, a China se destaca como uma importante fonte
de financiamento para projetos relacionados à transição energética,
seja por meio de seus policy banks ou por meio da sua ativa
374
participação em bancos multilaterais de desenvolvimento, como o
NDB e BAII. O País asiático também se beneficia dos aportes
financiados pelas duas instituições multilaterais, utilizando os
instrumentos financeiros destas instituições para avançar seu próprio
processo de transição energética, sendo o país que mais realizou
financiamento na área de energia no NBD, e o segundo com maior
valor financiado no BAII, apenas atrás da Índia.
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378
Entre o 'Ingroup' e o 'Outgroup': Clausewitz e a Complexidade da
Guerra a Partir de uma Perspectiva da Grande História
Daniel Ribera Vainfas1
Beatriz Baiense Sadler Pimentel2
Resumo: A teoria da guerra proposta por Clausewitz constitui a
teoria seminal do campo de estudos da Guerra. Clausewitz apresenta
uma visão centrada na faceta política do conflito entre os Estados,
colocando as implicações políticas e sociais no centro da sua
conceituação. O elemento definidor do fenômeno, cristalizado na
citação célebre da “política por outros meios” (CLAUSEWITZ, 1989,
p.87) foi lido de diversas formas pelos comentadores posteriores. A
intenção deste trabalho é propor uma interpretação calcada no
contraste entre a definição clausewitziana de guerra e sua
manifestação na sociedade de chimpanzés, na qual guerra e política
apresentam um inescapável antagonismo, sendo a guerra justamente
o espaço anti-político (antissocial) por excelência.
Introdução
No presente trabalho buscamos explorar a hipótese de que a
teoria clausewitiziana da guerra pode ser compreendida como uma
complexificação de duas dinâmicas primatas antagônicas, a sutileza
1
Doutor pelo Programa de Pós-Graduação em Economia / UFRJ – Pesquisador
do Laboratório de Grande História (LABH/UFRJ)
2 Bacharel em Defesa e Gestão Estratégica Internacional / UFRJ – Pesquisadora do
Laboratório de Grande História (LABH/UFRJ)
379
da sociabilidade interna e a simplicidade e agressividade da
antissociabilidade externar.
Na primeira parte, exploramos a visão de Clausewitz sobre a
guerra e sua abordagem da mesma como um duelo entre dois
Estados. Exploramos alguns conceitos chaves, como a trindade
clausewitziana e sua noção de política, que nos permitem estabelecer
alguns pontos de apoio para as comparações subsequentes, também
enfatizamos a distinção do autor entre as sociedades “bárbaras” e as
“civilizadas”, que nos serve de ponte para pensar a relação entre
política dentro e fora do grupo social.
A segunda parte do trabalho discute a dinâmica social dos
chimpanzés, particularmente sua política interna e interações com
outros grupos de chimpanzés. Aqui exploramos a complexidade da
sociedade chimpanzé, masrcada por estruturas hierárquicas e uma
política interna dinâmica. As formações de coalizões para disputar
aprovação e subir na hierarquia, juntamente com a regulação do
conflito interno compõem as bases para a análise e o contraste com a
relação mais direta e determinísitca com o outgroup com suas guerras
de aniquilação.
Na terceira parte do trabalho buscamos estabelecer paralelos
entre guerras entre Estados e guerras entre chimpanzés, destacando
semelhanças como a competição por recursos e território. No entanto,
também existem diferenças, sobretudo na complexificação trazida
por Clausewitz.
Guerra em Clausewitz
Clausewitz foi um general prussiano do século XIX, o caldo
sociocultural no qual estava imerso informa sua visão acerca do
fenômeno de formas muito marcadas e claras. Os grandes conflitos
da época, em especial as Guerras Napoleônicas foram eventos
seminais na construção imagética e teórica daquilo que Clausewitz
descreve como guerra. Uma das características mais importantes do
pensamento de Clausewitz é a ideia de guerra como um duelo entre
dois Estados, “[w]ar is nothing but a duel on a lerger scale”
380
(CLAUSEWITZ, 1989, p.75) , aqui, o autor puxa simultaneamente um
elemento pré-moderno, o duelo, e um elemento típico da
modernidade, o Estado.
Estados são construções políticas e teóricas, não são um ente
animado capaz de pegar em armas e travar um duelo como dois
cavaleiros medievais num torneio, trata-se necessariamente de uma
metáfora. Ao projetar a guerra com um duelo, Clausewitz consolida
duas ideias básicas, de um lado que existe um agente capaz de travar
a guerra (o Estado, em especial na figura das suas forças armadas) e
esse agente é, se não idêntico ao seu oponente, ao menos simétrico a
ele, e de outro que o fenômeno necessariamente deve ter um conjunto
de regras, tal qual um duelo.
Simultaneamente, Clausewitz elabora essa questão da não
uniformidade interna dos Estados na sua concepção da Trindade, isto
é, na divisão do Estado em três manifestações distintas: povo,
governo e forças armadas. (CLAUSEWITZ, 1989, p.89)
Cada um desses elementos representa um aspecto da guerra, ao
povo cabe a “força natural cega” associada à “violência primordial, o
ódio e a inimizade” (CLAUSEWITZ, 1989, p.89, tradução nossa), o
governo traça os objetivos políticos e racionaliza o conflito enquanto
meio para o fim político e as forças armadas se ocupam dos aspectos
práticos do exercício da violência circunscrevendo esse aspecto às
tropas que matam e morrem.
Essa ilustração cria e reforça a distinção clausewitizana entre
um inimigo próximo, civilizado, contra o qual é possível fazer guerra
em oposição ao inimigo máximo, os povos que Clausewitz descreve
como bárbaros ou incivilizados.
Ingroup e Outgroup em chimpanzés
Apesar de ser, em muitos aspectos, um expoente do
racionalismo em voga no século XIX, sobretudo na construção de
uma oposição de essências entre os civilizados europeus e os bárbaros
selvagens (“[s]avage peoples are ruled by passion, civilized peoples
381
by the mind”), Clausewitz também reconhece as limitações da
proposta racionalista a qual se filia (“Even the most civilized of
peoples, in short, can be fired with passionate hatred for each other.
Consequently, it would be an obvious fallacy to imagine war between
civilized peoples as resulting merely from a rational act on the part of
their government (...) That would be a kind of war by algebra.”).
(CLAUSEWITZ, 1989, p.76)
Podemos aqui, a título de exercício específico desse trabalho,
nos debruçar sobre um contraexemplo ao racionalismo
clausewitziano ao nos debruçar sobre a guerra feita por agentes não-
humanos, que, no espectro proposto por Clausewitz, estariam muito
além da sociedade menos civilizada possível.
Tomemos como exemplo a sociedade chimpanzé. Esses
primatas, assim como nós, possuem uma sociedade complexa
permeada por diversas expressões e relações sociais A sociabilidade
é um aspecto crucial da vida dos chimpanzés. Como primatas
altamente inteligentes, esses animais possuem complexas estruturas
sociais, semelhantes às de grupos humanos. E, assim como em nossa
sociedade, a dinâmica interna desses grupos de primatas também
possui elementos de hierarquia e disputa por dominância.
A sociedade chimpanzé é marcada por uma profunda
complexidade nas relações sociais dentro do bando, embora
apresente uma radical antissociabilidade para membros externos.
(STANFORD, 2018)
Nas dinâmicas internas, a política se manifesta como uma
forma de orientar as agendas conflitantes dos membros do bando,
criando uma forma de ascensão social sem derramamento de sangue.
Nesse contexto, o elemento central é a busca por dominância sem
entretanto o dano físico aos demais membros do grupo.
O vencedor dessa disputa assume posições mais altas na
hierarquia que se convertem em benefícios materiais, mas também
em custos. Uma das medidas apontadas pela literatura é de que
marcadores de estresse são mais presentes nos líderes de bando do
que nos chimpanzés subordinados, indicando que a posição da
382
hierarquia é sempre precária e sujeita a contestações. (STANFORD,
2018)
O mais interessante da sociabilidade chimpanzé é que, apesar
de haver uma disputa pela posição do topo, os confrontos dentro do
grupo são regrados e não resultam em mortes, como acontece nos
conflitos externos. Na dinâmica política os chimpanzés tendem a
formar coalizções para disputar por aprovação dos outros membros
e galgar ou perder espaço na hierarquia. Essas coalizões se
estabelecem mediante ameaças e concessões, embora tanto
vencedores quanto perdedores permaneçam integrados ao bando,
isto é, eles possuem um status próprio que não pode ser
completamente estirpado mesmo que o indivíduo seja continuamente
derrotado nas disputas que ocorrem.
No entanto, quando falamos em disputas externas, a dinâmica
é completamente diferente. Um chimpanzé de um outro grupo, um
outgroup, não possui nenhum status dentro do grupo e sequer é
percebido como um chimpanzé, o estrangeiro ocupa um lugar
ambíguo de presa ou predador (a depender das circunstâncias) mas
não de semelhante.
Pensando em termos clausewitzianos, essa descrição torna
impossível postular a guerra chimpanzé como um fenômeno político
porque a política precisa ser praticada entre unidades semelhantes.
Não é trivial que Clausewitz eleja o Estado como unidade de análise
que opera simultaneamente os conceitos de guerra e política, afinal,
se a guerra é uma expressão da política, ambas precisam ser exercidas
pelo mesmo agente e, da mesma forma que na visão clausewitziana é
impossível para um Estado fazer política com um ente não estatal,
também é impossível fazer guerra com um não-Estado. Guerra e
política são operações que envolvem entes semelhantes, a relação
com o diferente (o “bárbaro” ou o “incivilizado”) precisa de outro
conceito.
Se pensarmos que Clausewitz reiteradamente propõe que o
objetivo da guerra é a submissão do inimigo e não a sua destruição,
teremos ainda outro diferencial em relação à guerra chimpanzé.
Conforme Wrangham (1999) propõe, a guerra chimpanzé se pauta
383
pelo que ele definiu como Hipótese do Desequilíbrio de Poder
(Imbalance of Power Hypothesis). Segundo essa teoria, conflitos entre
grupos só ocorrem se houver uma grande chance de vitória de um
lado, ou seja, um grupo só entrará em guerra contra outro se acreditar
que tem força o suficiente para aniquilar o grupo inimigo, posto que
guerras chimpanzés são guerras de aniquilação.
Aqui a conceituação do que pode se entender como o
pensamento militar chimapanzé é a díade entre raid e border patrol.
Enquanto a border patrol constitui uma ação eminentemente defensiva
e consiste no patrulhamento das áreas mais afastadas do território
controlado pelo bando, as raids são incursões caractaristicamente
ofensivas, nas quais os membros do bando agressor deliberadamente
invadem o território controlado pelo outro bando a fim de causar o
maior dano possível.
O que parece diferenciar a tendência para uma ou outra atitude
é a composição demográfica dos bandos, conforme aponta Mitani
(2006), numa equação simples, bandos maiores podem ser mais
agressivos porque o elemento-chave para determinar se um ataque
será realizado ou não é a percepção da probabilidade de encontrar
um chimpanzé inimigo desacompanhado, o que torna os bandos
menores os alvos preferenciais.
Aqui começamos a ver outra faceta do diálogo com Clausewitz,
pois parece haver uma séria racionalidade no cálculo militar dos
chimpanzés, não apenas na noção geral do uso do máximo de força
possível, mas também no sentido de um objetivo político da atuação
militar.
Ainda que o inimigo chimpanzé não desfrute do status de gente
(chimpanzé) isso não significa que a guerra entre eles não possua
significância política para a dinâmica dos membros de um bando.
Massaro et al. (2022) aponta que há benefícios na disputa por
hierarquia dos chimpanzés que atuam na guerra.
De acordo com Massaro et al. (2022), apesar do conflito ser uma
situação de estresse para os primatas, ele também pode ser visto por
um prisma positivo. A fronteira, locus onde ocorre a guerra é também
384
terreitório de oportunidade, participar das atividades militares (raids,
mas sobretudo border patrols) está fortemente correlacionado a
participar da vida política do bando, além de ser também um espaço
propício para a caça, que confere benefício material imediato e
palpável para o indivíduo que participa.
Existe, portanto, uma dualidade no conflito, ao mesmo tempo
em que se trata de um elemento causador de custo para o bando na
forma de elevação nos níveis de estresse, mortalidade infantil e
redução na taxa de natalidade (MORRIS-DRAKE et al., 2022) é
também um conjunto de oportunidades individuais e coletivas,
especialmente porque a agressividade e a territorialidade são
dispositivos que permitem o acesso e a extração de mais recursos de
novos territórios (WRANGHAM, 1999).
Nesse desenho, a vida militar deve ser entendida como um
elemento da vida social mais ampla e, portanto, da vida política como
um todo, contudo, essa dimensão política não estabelece uma relação
direta com o Outro que permanece como inimigo absoluto a ser
aniquilado.
Síntese e tensões: guerras entre Estados e chimpanzés
A partir do breve panorama traçado na seção anterior, podemos
traçar alguns paralelos entre as guerras interestatais do século XIX e
as guerras entre chimpanzés.
No campo das semelhanças, é evidente que ambas as
manifestações do fenômeno envolvem a disputa por territórios e
pelos recursos materiais que existem neles. Também é possível
identificar uma instrumentalização do conflito pelos atores políticos,
uma vez que a guerra é meio (ainda que haja diferenças nos
mecanismos operacionais) de ascensão na hierarquia política.
Conflito e fronteira são oportunidades para pressionar e alterar o
status quo da classe política ou para as lideranças se manterem contra
eventuais desafiantes.
385
Ainda nas semelhanças, mas pelo viés dos custos, a sociedade,
humana ou chimpanzé, absorve os custos da guerra de forma
desigual. A literatura aponta que existe uma forte correlação entre a
pressão do outgroup sobre um bando chimpanzé e menores taxas de
fecundidade e redução da taxa de sobrevivência dos indivíduos mais
novos. Em termos humanos, diríamos que a guerra cobra mais caro
das mulheres e das crianças.
Olhando agora para as diferenças, precisamos retomar a
proposição fundamental da guerra como um duelo. Nessa
formulação, os Estados em guerra operam numa ficção de que ambos
possuem o mesmo status, de forma que a disputa entre eles necessita
de regras que determinem também que a guerra não pode ser de
extermínio, mas deve ser de subordinação.
Essa descrição é muito semelhante à disputa por hierarquia
intra-bando dos chimpanzés. Apesar disso, os mecanismos pelos
quais se opera a disputa são os mesmos da disputa com o outgroup,
isto é, o uso da violência física letal contra o inimigo é pemritido na
guerra mas não na política interna.
Não faz sentido, em termos chimpanzés, a ideia de guerra como
política por outros meios, tratam-se de universos muito distintos, de
modo que há uma originalidade humana na formulação
clausewitziana.
Clausewitz confunde, isto é, mistura, duas dinâmicas primatas
diferentes, a sociabilidade interna e o extermínio do estrangeiro.
Nesse sentido, parece surgir uma terceira categoria cujos conceitos de
operação tensionam elementos dessas duas realidades. O alvo da
guerra nunca é um inimigo pleno, mas também nunca é um membro
do grupo.
Pensando em termos históricos, a noção de guerra interestatal
calusewitziana complexifica a dinâmica de sociabilidade chimpanzé
para operar em um contexto específico. Os prussianos ocupam a
posição de ingroup, membros plenos com os quais é possível projetar
toda a complexidade social. No outro extremo, os povos “bárbaros”
e “incivilizados” ocupam o espaço do outgroup, são aqueles cuja
386
relação é impossível, a anti-política por excelência. Mas surge entre
ambos um espaço novo, povoado por personagens com os quais é
possível manter uma relação política peculiar que não compreende a
totalidade da nuance do ingroup mas que também não requer a
aniquilação absoluta do outgroup, nesse espaço é possível colocar os
demais estados alemães e europeus com os quais a psique prussiana
estava ocupada.
Conclusão
Partindo de uma perspectiva primatológica para a guerra, em
especial a partir do que podemos entender como a vida militar dos
chimpanzés, podemos explorar uma nova possibilidade de leitura da
tese clausewitziana sobre a guerra.
Ao propor a guerra como duelo entre Estados, Clausewitz
enfatiza a similaridade entre os agentes belicosos, afastando-se da
proposta chimpanzé que não reconhece no estrangeiro um
coespecífico, tratando-o ou como predador ou como presa. Ao mesmo
tempo, esse elemento novo na teoria clausewitziana não exclui a
violência letal das interações possíveis.
Assim, a dimensão política da guerra constitui a projeção de
elementos da sociabilidade interna típica dos primatas sociais como
nós e os chimpanzés e da antissociabilidade externa, notadamente a
violência letal, criando uma espécie de categoria intermediária entre
a dicotomia tradicional de ingroup e outgroup.
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1999.
388
Fascismo e dependência na periferia latino-americana no século
XXI: articulações teóricas
Mateus de Oliveira Martins da Silva1
Maria Laura Andrade Franco2
Resumo: Por meio de método teórico-histórico, busca-se estabelecer
(na primeira sessão) o fascismo, enquanto objeto analisado, a partir
da síntese de diversas abordagens do campo crítico; em sequência (na
segunda sessão), estabelece-se o argumento geral da teoria da
dependência em algumas de suas categorias específicas: capitalismo
dependente, superexploração do trabalho, centro e periferia; por fim,
busca-se articular (na terceira sessão) ambos os conceitos, enquanto
processos, tendo como objetivo possibilitar a análise da estrutura
políticoeconômica e social, em seu movimento e em suas tendências,
1
Discente do Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais do
Instituto de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de
Uberlândia (IERI/UFU), Uberlândia, Minas Gerais, e-mail: [email protected]
2
Discente do Programa de Graduação em Relações Internacionais do Instituto
de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Uberlândia
(IERI/UFU), Uberlândia, Minas Gerais, e-mail: [email protected].
389
típica da economia política marxista, aplicada ao países periféricos no
século XXI. A pergunta que nos move aqui é: qual a implicação da
situação de dependência para o processo de fascistização de
sociedades periféricas na divisão internacional do trabalho
contemporânea?
Palavras-chave: Fascismo, Teoria da Dependência, Periferia,
Economia Política, América-latina.
Introdução
O fascismo, enquanto forma política, é frequentemente tratado
pela mídia burguesa como um fenômeno totalitário, policialesco e
“irracional”. Mesmo que em determinadas quadras históricas
movimentos muito semelhantes — e mesmo que prestem
homenagem aos fascistas “clássicos” italianos e alemães — por vezes
a caracterização como fascista não é evocada, sendo num geral
identificada como um fenômeno “datado”, “superado”, e que
portanto seria supostamente reservado apenas à história.
Pouco se avança em relação a caracterizar seus agentes como
algo mais que contraditórios e preconceituosos (o que de fato são),
mas passa-se à larga distância de críticas sistemáticas a respeito do
por quê há grande respaldo (de um discurso extremamente violento
e reacionário) não apenas entre populações de classe média e baixa
(que seriam cooptadas por populistas), mas também entre inúmeros
representantes de grandes empresas e agentes públicos — pressupõe-
se aqui que deve haver em última instância uma lógica
fundamentalmente econômica para tal, e não simplesmente
“cultural”.
No campo crítico, não é exatamente novidade a correlação entre
a ideologia burguesa liberal e a ideologia fascista. Em grande medida,
390
entretanto, a análise do fenômeno sociopolítico do fascismo, dentro
da conjuntura material da economia política latinoamericana, é ainda
pouco empreendida, isto é, a análise do fascismo em suas bases
materiais em um modo de produção e consumo capitalista sui
generis, periférico. O fascismo, parte-se desta percepção, não pode ser
encarado apenas como movimento reacionário obscurantistas, fruto
de uma sociedade ainda grandemente retrógrada (em suas diversas
expressões anti-emancipatórias, como o machismo, o racismo, a
aporofobia), mas, além disso e através disto, um movimento com
agendas econômico-políticas mais ou menos coesas enquanto
expressão do interesse por lucro de grandes grupos econômicos,
tradicionais e estrangeiros.
Enquanto o papel do Estado capitalista como garantidor último
da dominação de classe burguesa não é necessariamente suprimido
dentro de conjunturas políticas democráticas (como é amplamente
reconhecido na literatura crítica, mesmo não marxista), o
ressurgimento de movimentos declaradamente fascistas, num
contexto de expressa “crise democrática” por vezes não leva em
consideração a limitação estrutural da proposta fascista frente aos
parâmetros sistêmicos capitalistas — o fascismo enquanto resposta e
meio de sobrevivência de capitais nacionais em conjunturas de
acirramento da competição econômica e política internacional, que
inevitavelmente, ao levar às últimas consequências as necessidades
de reprodução ampliada, historicamente resultaram na catástrofe
civilizatória.
Em um esforço para caracterizar melhor a forma política do
fascismo — dentro dos arranjos socioeconômicos e culturais,
fundamentalmente históricos, que estruturam o capitalismo
latinoamericano —, neste artigo busca-se articular diferentes
abordagens teóricas a respeito do fascismo à discussão de economia
391
política latinoamericana engendrada pela teoria marxista da
dependência.
Fascismo
Qualquer análise que se dedique a compreender o fascismo
enquanto “fenômeno” político deve recorrer à análise do mesmo em
sua gênese histórica. Parte-se aqui do pressuposto de que, ainda que
as condições conjunturais se alterem, a apreensão de características
essenciais a respeito dos movimentos políticos fascistas serve de
modo a analisar com maior rigor e clareza movimentos políticos
contemporâneos de tendência antidemocrática. Este artigo busca
revisitar literatura crítica a respeito do movimento fascista por parte
de alguns de seus coetâneos críticos, de diversos espaços dentro da
esquerda política.
Evguiéni Pachukanis, jurista soviético, escreve sobre o fascismo
desde meados da década de 1920, quando Mussolini havia pouco se
consolidado como primeiro-ministro italiano. Sua crítica à época já se
debruçava sobre questões importantes como a relação entre fascismo
e parlamentarismo, do movimento com as classes sociais e com o
grande capital. Em relação ao parlamentarismo ou à democracia
burguesa, há algumas considerações importantes do autor a se
apontar. O fascismo, em sua tática política, como aponta o autor, de
fato “não se orienta pela vitória por meio dos votos, mas pela
conquista direta do poder. Na relação com opositores políticos,
emprega toda e qualquer forma de violência (...). Ao se tornar o
partido dirigente, não renunciaram a esses métodos (...)”
(Pachukanis, 2020, p.59).
Em sua doutrina de Estado, prossegue o autor, o fascismo
determina uma negação dos princípios democráticos e liberais: ao
invés da liberdade pessoal, vigora a disciplina; ao invés da
392
eletividade, a hierarquia e escolha aristocrática, etc. Como coloca o
autor:
Em geral, o regime fascista pode ser definido como a
ditadura da grande burguesia, levada a cabo não com a
ajuda de meios sutis da mecânica eleitoral, não por meio da
alternância entre diferentes partidos, plataformas e
camarilhas políticas, mas pelo domínio aberto e direto de
um único partido político, apoiado diretamente na força
armada (Pachukanis, 2020, p.59-60).
Deve-se apontar, entretanto, que a oposição prática do fascismo
ao parlamentarismo não é necessariamente a expressão de uma
oposição essencial aos valores democráticos. O que de fato ocorre é
que, principalmente, o fascismo é a ofensiva violenta contra a classe
trabalhadora, e a democracia não é passível de continuar existindo,
mesmo como pelego, o “fato de que, com isso, definham os restos da
democracia burguesa, que se reduz a nada até naqueles países onde
ela existe ainda nas palavras, no papel (...) deriva de um produto
secundário da linha fundamental, decisiva, da ofensiva de classe
contra o proletariado” (Pachukanis, 2020, p.65).
Qual o fator que leva ao surgimento da necessidade de uma
ofensiva contra o proletariado? É ilustrativa a representação do autor
a respeito da conjuntura socioeconômica internacional em que vivia
grande parte do mundo capitalista:
Quando no Brasil jogam-se milhões de quilos de café no mar,
em países coloniais como a Índia, a Indonésia, o Ceilão
suspende-se a colheita de chá, na ilha de Cuba extingue-se o
estoque de açúcar (...), quando na América do Sul abandona-
se na terra toda a colheita de batatas, ao mesmo tempo,
milhões passam fome — e isso, é claro, não pode deixar de
influenciar a psicologia das camadas de trabalhadores mais
atrasadas e oprimidas. O capitalismo percebe que, agora, ele
se tornou odiado. Essa consciência penetrou até mesmo
entre a burguesia e a intelectualidade burguesa (Pachukanis,
2020, p.67).
393
Manifestam-se então a correlação entre o fascismo e as
necessidades do grande capital. Trata-se então de um movimento que
não é um reacionarismo irracional militaresco, mas de fato uma
resposta sistêmica racional encontrada com fins de possibilitar a
perpetuação da acumulação capitalista em crise insolvente, tanto em
sua relação com a disputa intra-burguesa quanto em relação com as
camadas trabalhadoras. A contribuição do fascismo para a ditadura
da burguesia, como bem aponta o autor, é substituir as antigas
instituições políticas parlamentares por formas novas, “organizações
terroristas do capital, paramilitares e militares instrumentos para a
condução da guerra civil, sob a forma do assim chamado partido
fascista único” (Pachukanis, 2020, p.82).
Clara Zetkin confirma esta percepção, para a autora alemã, a
deterioração ou decadência da economia capitalista, é expressada
fundamentalmente no cenário de devastação da Primeira Guerra
Mundial. O fascismo, que surge nesse pós-guerra, se nutre das
massas desiludidas e frustradas com os desenvolvimentos a que suas
sociedades levaram. As classes médias, degradadas e
“proletarizadas”, sem sua superioridade econômica mantida, em
grande medida compostas por ex-oficiais, são as que mais
compuseram as fileiras fascistas (Zetkin, 1923, não paginado).
Como Daniel Guérin, anarco-comunista francês que estudava o
fascismo à época, ajuda a elucidar, o fascismo não pode ser
compreendido como puro movimento de reação burguesa. A partir
do momento em que tal fenômeno é capaz de articular milhões de
seres humanos, suas razões não podem ser encaradas de maneira
simplista. Como provoca o autor: “Mesmo com todo seu ouro, os
magnatas capitalistas jamais teriam sido capazes de “pôr de pé” tais massas
humanas se, antes disso, um estado de instabilidade ou descontentamento
não as predispusesse a serem conquistadas”(Guérin, 2021, p.49).
394
Usando do pressuposto de que o fascismo foi uma reação
desesperada da burguesia diante da iminente revolta proletária,
Errico Malatesta, ativista italiano, que vivenciou a ascensão de
Mussolini, vai dizer:
A burguesia, ameaçada pela maré proletária que subia,
incapaz de resolver os problemas tornados urgentes pela
guerra, impotente para se defender com os métodos
tradicionais da repressão legal, via-se perdida e teria
saudado com alegria um qualquer militar que se tivesse
declarado ditador e tivesse afogado em sangue qualquer
tentativa de desforra (Malatesta, 1922, não paginado).
Na devastação econômica experienciada no pós-primeira
guerra, a inquietação das massas trabalhadoras se tornou cada vez
mais ameaçadora às elites burguesas, nisso, o autor tem o fascismo
como um defensor do capitalismo, e com ele a burguesia. Indo contra
a visão de que o fascismo foi uma revolta cultural e de classe contra o
liberalismo econômico capitalista, o autor afirma que o fenômeno foi
o contrário, uma ferramenta de perpetuação do capitalismo e suas
instituições opressoras, que adotou uma falsa identidade,
demagógica, de um movimento revolucionário para agregar apoio
popular:
(...) há também subversivos que dizem que «os fascistas
ensinaram-nos como se faz a revolução». Não, os fascistas
não nos ensinaram coisa nenhuma. Eles fizeram a
revolução, se revolução se quer chamar, com a permissão
dos superiores e ao serviço dos superiores (Malatesta, 1922,
não paginado).
Tendo a defesa dos interesses do grande capital como um
pressuposto, para que o fascismo seja capaz de mobilizar grandes
massas trabalhadoras, o mesmo deve inevitavelmente recorrer a o
que Pachukanis nomeia de demagogia fascista. Num primeiro
momento, mesmo a fraseologia fascista deve ser quase adaptada à
uma imagem quase-socialista, que deve ser entretanto logo
395
abandonada assim que se instala no poder o governo fascista
(Pachukanis, 2020, p.67-68).
Guérin corrobora à esta crítica apontando o comportamento
demagógico da própria burguesia — enquanto geralmente o laissez-
faire democrático-liberal é defendido pelas elites econômicas, em
tempos de crise econômica e incerteza a respeito da manutenção dos
lucros, tudo é passível de ser relativizado:
Durante o período anterior, a “democracia” era vantajosa
para o capitalismo. Conhece-se a cantilena: a democracia é o
governo menos custoso; o espírito empreendedor só pode
florescer na liberdade; (...) Quando o festim é abundante, é
possível, sem prejuízos, deixar o povo catar as migalhas.
Mas no período atual, na fase de declínio do capitalismo, a
classe dominante é levada a pôr na balança as vantagens e os
inconvenientes da “democracia” (Guérin, 2021, p.26).
A demagogia fascista via de regra se dá num ataque à
plutocracia e outras elites identificáveis, mas o faz apenas para a
mobilização das massas, sem intenção transformativa de fato
(Pachukanis, 2020, p.57) — há uma significativa introdução de
políticas tendo em vista o favorecimento da alta classe burguesa: o
fim do imposto sobre herança, a introdução do imposto sobre salários
apenas aos médios proprietários, diminuição do aparelho estatal
(abolindo ministérios), a desnacionalização de inúmeros setores da
economia e mesmo o aumento da jornada de trabalho (Pachukanis,
2020, p.41).
Isto evidentemente significa não apenas um esmagamento
significativo do proletariado em prol dos interesses burgueses, mas
mesmo as frações mais elevadas entre os trabalhadores, a chamada
classe média, sofre um grave processo de pauperização. Este processo
é significativo pelo papel que as classes médias significativamente
assumem em relação ao fascismo.
396
Classe média e fascismo
O movimento fascista fica caracterizado então como não apenas
uma reação política de forma a garantir uma “perpetuação do
capitalismo” genérica, mas especificamente a perpetuação dos
ganhos das esferas mais altas de capitais nacionais —
fundamentalmente atrelados a capitais industriais. O economista
polonês Michal Kalecki em seu texto seminal “Aspectos Políticos do
Pleno Emprego” aponta sobre o aspecto diferencial do fascismo em
relação à economia política da democracia burguesa: a remoção de
impedimentos por parte da burguesia ao pleno emprego (Kalecki,
2020, não paginado).
Com o fascismo, a máquina estatal é em grande medida sujeita
a um controle direto do grande capital, com isto, há uma grande
“securitização dos riscos” políticamente garantida pelo regime aos
interesses privados. Dentro da democracia burguesa, como aponta o
autor, apesar dos níveis inferiores ao pleno emprego serem sub-
ótimos de um ponto de vista dos lucros de capital, há um grande
receio por parte da elite burguesa em alcançar o pleno emprego. Esta
temeridade sobre três questões fundamentais:
“não gostam da interferência do governo na questão do
emprego como tal; (...) da direção dos gastos do governo
(investimento público e subsídio ao consumo); (...) das
mudanças sociais e políticas decorrentes da manutenção do
pleno emprego” (Kalecki, 2020, não paginado).
O fascismo é capaz de dar resposta a todas estas questões de
uma só vez: a interferência governamental não atua de forma a
competir com a iniciativa privada (“interferindo na economia”), mas,
em estrita coordenação com esta age de forma a priorizar os lucros
privados; os gastos de investimento são orientados para o fomento às
indústrias representantes destes grandes capitais, marcadamente as
397
indústrias de base/ de armamentos; e em terceiro, as mudanças
sociais e políticas temidas não ocorrem, pois a ordem é garantida pela
pura pressão política sobre a classe trabalhadora (Kalecki, 1990, não
paginado).
O que o argumento de Kalecki ajuda a compreender é que sob
a democracia burguesa o desenvolvimento econômico não é capaz de
atingir níveis ótimos pelo receio da classe burguesa de que isto
acompanha, contraditoriamente, um aumento da consciência e do
poder político da classe trabalhadora: em tal nível a ameaça da
demissão se perde, e o trabalho organizado tende a se fortalecer
(Kalecki, 1990, não paginado).
A síntese fascista resultante garante então os níveis de lucros do
pleno emprego com a segurança sobre a propriedade privada
propiciada pelo regime ditatorial. Enquanto isto ocorre de forma a
esmagar a classe trabalhadora, ainda mais acentuadamente as classes
médias (heterogeneamente compostas por trabalhadores
especializados e pequenos-burgueses) são afetadas.
O referido acima reafirma o argumento de que esse fenômeno
não abrangeu a burguesia como um todo, e enxergá-la como uma
massa homogênea se mostra um equívoco — como por exemplo
diante do exposto por Gramsci em seu texto “A crise italiana’’, no qual
ele explicita o caráter “traidor’’ do fascismo. Na chamada “Crise da
classe média italiana’’, o autor vai mostrar como a grande burguesia
sacrificou a média e pequena burguesia, em uma tentativa
desesperada de evitar as consequências da crise econômica:
O monopólio do crédito, o regime fiscal, a legislação dos
aluguéis destruíram a pequena empresa comercial e a
indústria: constatou-se uma verdadeira transferência de
riquezas da pequena e da média burguesia para a grande
burguesia, sem que se desenvolvesse ao mesmo tempo o
aparato de produção; o pequeno produtor nem sequer se
tornou um proletário, não é mais que um faminto
398
permanente, um desesperado sem expectativas de um
futuro melhor (Gramsci, 1924, não paginado).
Ocorre uma “absorção’’ da riqueza da média e pequena
burguesia, por parte da grande burguesia, e simultaneamente nesse
processo, os detentores de toda a riqueza e meios de produção, que
agora eram composto majoritariamente pela grande burguesia,
marginalizaram mais ainda o proletariado:
A possibilidade de salvação do aparato de produção
industrial reduzido se deu pela diminuição no nível de vida
da classe operária por meio do rebaixamento dos salários,
do aumento da jornada de trabalho e o crescimento do
custo de vida: tudo isso provocou uma emigração de
trabalhadores qualificados, o que equivale a um
empobrecimento das forças humanas de produção que
eram uma das grandes riquezas nacionais (Gramsci, 1924,
não paginado).
Como apontado acima em Gramsci, o fascismo agiu então de
forma a “securitizar” socialmente os riscos e prejuízos advindos das
crises econômicas do entre-guerras, contribuindo para um cenário de
rápida degradação da qualidade de vida sentido principalmente nas
classes médias. Daniel Guérin reforça a mesma posição ao estudar
tanto o caso alemão quanto o italiano. As classes médias
características do século XX já eram diferentes das suas antepassadas,
ao invés da independência do pequeno artesão ou comerciante, que
rapidamente desapareciam, os técnicos e gerentes, nova classe média
em ascensão, eram estritamente ordenados sob o comando do capital
industrial — ainda assim não eram “proletários”: seus salários mais
elevados, com alguma renda, e sua posição de “dirigentes” no
processo econômico os possibilita (de maneira muito frágil)
identificar-se mais “como burgueses”, supostamente acima dos
proletários, pauperizados (Guérin. 2021, p.51).
Como justamente aponta o autor, no início da década de 1920,
mesmo antes do fascismo entrar em poder na Itália e Alemanha, a
399
concentração de capital e a crise econômica já atuavam de maneira a
corroer completamente o prestígio dessas classes médias, no mesmo
momento que os pequenos rentistas praticamente caem na miséria,
trabalhadores intelectuais, como professores, passam a receber
menos que proletários normais, minimamente ainda protegidos por
contratos coletivos e alguma organização sindical (Guérin, 2021,
p.52).
O fascismo se utiliza desse ressentimento reacionário das
classes médias, principalmente na forma de milícias organizadas,
contra o proletariado para garantir a manutenção dos interesses do
grande capital, mas também em alguma medida os “privilégios de
classe” dessa classe média associada a ele — mantendo seu prestígio,
seja como técnicos e gerentes, seja como milicianos.
Os burgueses, como aponta o autor, identificam esta tendência
reacionária nas classes médias, que não aceitam “se tornarem
proletárias”: baseando-se tanto na ignorância revolucionária dos
mesmos quanto em artifícios como o “nacionalismo”, a alta burguesia
é capaz de convocar a classe média sob sua tutela em nome da
“conciliação” ao invés da “luta de classes” prometida pelos
trabalhadores. Quando as milícias fascistas começam a receber
pesados investimentos por parte da elite industrial, ocorre apenas o
envernizamento (apesar deste verniz ser fundamental) de um
processo de fascistização significativamente profundo sobre essas
massas (Guérin, 2021, p.55-57). A partir do “recrutamento’’ da antiga
classe média, o fascismo consegue anular a ameaça representada por
essas massas, que agora não só se mostrava complacente, por parte
dos intelectuais e burgueses, mas também estava à disposição, e
pronta para exercer a violência característica do Estado fascista, por
parte dos ex-militares. Diante disso, essa ação serviu não só para
neutralizar uma possível revolta liderada pela classe média, mas
também para incorporá-los ao regime, contribuindo para o
400
fortalecimento e estabilidade do fascismo (Zetkin, 1923, não
paginado).
Dependência
Até o momento se demonstrou a necessária correlação entre os
empreendimentos fascistas e as necessidades dos principais atores
econômicos nas sociedades capitalistas. A literatura crítica articulada
até aqui, entretanto, se debruçou sobre países no cenário europeu;
tendo em vista que este trabalho tem como objetivo conferir melhor
exatidão às análises das tendências sociopolíticas (mais
especificamente do fascismo) em países periféricos contemporâneos,
principalmente na américa latina, destaca-se como interessante a
utilização do conceito de capitalismo dependente para caracterizar
tais economias.
Na literatura marxista, pode-se apontar resumidamente que a
força de trabalho de um trabalhador tem seu valor medido pela soma
do valor dos bens necessários para sua manutenção e reprodução em
condições normais: minimamente, suas roupas, sua alimentação, seu
abrigo, higiene, etc. tendem a compor o valor de determinada força
de trabalho. O valor pago ao trabalhador, pela sua força de trabalho,
expressa (de maneira mais ou menos elástica) estes valores enquanto
um salário. Obviamente, o preço exato do salário é elástico e
submetido a inúmeras questões subjetivas às condições da luta de
classes num determinado país/região/cidade — mas tende
fundamentalmente a representar minimamente a manutenção e
reprodução da força de trabalho.
Somado a isto, é fundamental apreender que, partindo do
princípio de que apenas o trabalho pode ser responsável pela geração
de novos valores, todo e qualquer lucro capitalista é inicialmente
produzido enquanto mais-valor por trabalhadores. O mais-valor
401
(também nomeado trabalho excedente) diz respeito a todo aquele
valor produzido para além da reposição dos valores despendidos na
contratação da própria força de trabalho (o que convenciona-se
nomear trabalho necessário). Daí deriva o lucro; do ponto de vista do
trabalhador é tudo apenas trabalho não-pago (Marx, 2020. p. 293-294).
Sendo o trabalho o único gerador de valor, as possibilidades de
aumento dos valores gerados incidem fundamentalmente sobre a
forma como o trabalho ocorre. Há a possibilidade de aumentar a
produtividade do trabalho, inicialmente (de um ponto de vista
histórico), em termos absolutos: aumenta-se a intensidade do
trabalho, e/ou aumenta-se a jornada de trabalho. Como exemplo,
duas empresas distintas podem produzir um mesmo produto, mas a
que submeter seus trabalhadores a um regime de trabalho mais
intenso (desgastante) e longo irá ser capaz de se apropriar de uma
massa maior de valores. Uma terceira forma de aumento da
produtividade diz respeito à apropriação, por parte do capitalista, de
uma parte do próprio trabalho necessário para a reprodução da força
de trabalho, processo que discorreremos mais abaixo (Marini, 2000,
p.125).
Ainda referente à produtividade do trabalho, é também
possível aumentá-la em termos relativos, o que é, como se demonstra
historicamente, a maneira mais eficaz para o aumento da
produtividade do trabalho. Este aumento se dá pelo aumento da
composição orgânica do capital, isto é, pelo aumento do capital
despendido na forma de “bens de capital” (principalmente
maquinário, mas pode-se considerar softwares, ferramentas, etc.) —
o aumento da produtividade do trabalho por meio da introdução de
maquinário possibilita a realização de uma massa enorme de bens a
preço (e valor) muito baixos, altamente competitivos e mais
facilmente realizáveis/vendíveis. É sob esta lógica que ocorreram as
402
sucessivas revoluções industriais, mobilizando montantes de capital
cada vez maiores (Marini, 2000, p.114).
O processo descrito acima, que diz respeito ao aumento relativo
da produtividade, é o movimento que o capitalismo percorreu em
alguns poucos grandes centros: Inglaterra, França, Alemanha —
inicialmente, mas logo também Japão e China, por exemplo.
Entretanto, tal não é o processo que ocorreu na imensa maioria dos
países do globo e, numa totalidade, na América Latina (Marini, 2000,
p.111-112).
É fundamental destacar, finalmente, a complementaridade
entre o capitalismo desenvolvido no centro e na periferia. De fato,
percebe-se através da discussão da teoria marxista da dependência
que ambos modelos de produção se complementam a nível global,
negando um suposto processo evolutivo entre um capitalismo
periférico atrasado e um capitalismo central avançado.
Na América Latina, o processo de acumulação se deu, desde o
período colonial, fundamentalmente sob a lógica da exploração da
força de trabalho em termos absolutos, isto é, através do aumento da
intensidade e da jornada de trabalho. Esta forma de expansão da
produtividade claramente só pode se dar até um máximo — não é
possível um trabalho que desconsidere a âncora do humanamente
possível em termos de jornada e intensidade; mesmo dentro de
limites muito flexíveis, tais ganhos de produtividade ainda tendem a
ser inferiores aos ganhos sobre a mais-valia relativa (dos países
centrais) que tentam compensar. Somado a isto, o monopólio
comercial e tecnológico que os países centrais detêm significa na
prática uma relação extremamente desigual. Marini aponta:
De fato, à medida que o mercado mundial alcança formas
desenvolvidas, o uso da violência política e militar para
explorar as nações fracas se torna supérfluo e a exploração
internacional pode descansar progressivamente na
403
reprodução de relações econômicas que perpetuam e
ampliam o atraso e a debilidade dessas nações (Marini, 2000,
p.119).
Os países latinoamericanos e dependentes num geral
configuram-se então como economias fundadas exclusivamente na
maior exploração do trabalhador. É este caráter que dá a forma sui
generis dos capitalismos latinoamericanos. Dentro disto, a
apropriação de parte do trabalho necessário, como apontada
anteriormente, se apresenta como um elemento chave. Esta
apropriação significa que os trabalhadores são remunerados “abaixo
do valor” de sua força de trabalho, e em termos práticos a nível abaixo
do mínimo necessário para a reposição do desgaste que o processo
produtivo o imputa — “expressa na redução progressiva da vida útil do
trabalhador, assim como em transtornos psicofísicos provocados pelo excesso
de fadiga (Marini, 2000, p.163)”.
Tendo em mente a característica principal do capitalismo
periférico ser a acumulação através da exploração da força de
trabalho, para além de suas capacidades de recuperação, o
capitalismo dependente se baseia numa dinâmica particular: a da
formação de um vasto exército industrial de reserva. Enquanto o
exército industrial de reserva não é característica nova na acumulação
de capital, ocorrendo mesmo nos países centrais, nestes o
desenvolvimento das relações de produção se deu de forma a
possibilitar o pleno emprego — em alguns casos, justamente, através
do aumento da dominação política por parte do Estado fascista; nos
países periféricos, tal questão aparece de forma mais controversa,
aqui é interessante propor uma síntese entre os conceito trazidos para
tratar do fascismo dependente.
404
Síntese
A síntese entre fascismo e economia dependente precisa
compreender ambos os conceitos de forma não-dogmática, em suas
particularidades de um movimento geral da acumulação capitalista.
Como se pode reforçar mais uma vez em Guérin, o fascismo não
ocorre tanto para exatamente sufocar um movimento revolucionário
ascendente, é significativo que tanto na Itália quanto na Alemanha
não havia “perigo revolucionário imediato” (Guérin, 2021, p.26).
Mais concreta é sua relação direta com a garantia dos interesses
do capital industrial-financeiro em momentos agudos de recessão. O
cenário onde as taxas de lucro tendem a zero impõe à classe
trabalhadora, por meio do Estado, uma “grande penitência”: redução
de salários e encargos sociais, aumentos de impostos (sobre consumo,
principalmente) — todo tipo de política de esmagamento da classe
trabalhadora; tanto para, por um lado, pauperizá-la e deixá-la mais
dócil à subordinação econômica, quanto por outro, mais diretamente
sugar-lhes as economias de forma a financiar as empresas em risco
(Guérin, 2021, p.27).
É de se destacar que, por motivos que excedem o escopo deste
trabalho, obviamente outras sociedades capitalistas à época, mesmo
europeias, não necessariamente recorreram a um processo de
fascistização para garantir a perpetuação de seus capitais. Mas um
elemento central que deve ser levado em consideração é que Itália e
Alemanha eram países em grave crise econômica à época, em grau
tendencialmente pior em comparação a Inglaterra, França e Estados
Unidos. Destaca-se ainda que eram países historicamente
“desprivilegiados” (de um ponto de vista imperialista) em questão de
domínios coloniais (Santos, 1977, p.184).
Baseados em grande medida na grande indústria pesada (mais
que na indústria leve), tais Estados enxergavam que a perpetuação da
405
acumulação de capitais significava incorrer em medidas de
estruturação de suas economias internas tendo em vista a competição
internacional a respeito de mercados cada vez mais disputados. Para
garantir a competitividade das indústrias nacionais, todo o peso
deveria ser naturalmente despejado sobre a classe trabalhadora em
sua máxima capacidade, o pleno emprego é uma manifestação dessa
necessidade industrial.
Nas economias periféricas, por sua vez, a situação de
“penitência” da classe trabalhadora é muito menos uma situação de
crise, mas sim de regra. Os salários esmagados, o imposto sobre
consumo, os lucros exorbitantes das empresas são a normalidade. De
fato, as indústrias dependentes (e suas economias em geral) se
estabelecem de forma a atenderem não um mercado interno, mas
externo: o consumo interno é mantido tendencialmente em níveis
mínimos. Daí surge que os capitais dos países dependentes se
comportam de maneira menos autônoma, mas sim mais
decididamente subordinados aos interesses dos grandes capitais dos
países centrais (Marini, 2000, p.147-148).
Este cenário complexifica a questão trazida até então. De fato,
ocorre uma exploração brutal da força de trabalho, e a acumulação de
capital ocorre principalmente através disto, mas os capitais não se
organizam internamente de forma a competir de maneira
interimperialista — ao menos num primeiro momento de análise.
Como Theotônio dos Santos aponta, as burguesias nacionais nos
países dependentes vão sendo convencidas (através da concorrência)
pelo capital internacional a se integrarem e se subordinarem ao
mesmo (Santos, 1977, p.186).
Historicamente, este processo é significativo, pois os projetos de
desenvolvimento pautados pelas burguesias locais (associadas ao
capital industrial) foram se constituindo com base num movimento
406
de massas que englobava pequeno-burguesia e proletariado, em
caráter nacionalista — como ilustram Vargas e Perón — isto fora
possível num momento de contração e refluxo da economia
internacional, tendo em vista a crise de 1929 e a provocada pela
própria segunda guerra mundial; com a subordinação das burguesias
já restabelecida, as perspectivas de desenvolvimento nacionalistas se
encontram apenas no movimento de massas proletário e de frações
da pequeno-burguesia, assumindo cada vez mais um caráter não
apenas nacionalista-democrático, mas também estatista,
intervencionista e anti-imperialista (Santos, 1977, p.184).
Com a conjuntura internacional econômica e política da guerra
fria, cada vez mais se apresentavam, para este movimento
nacionalista, as limitações do desenvolvimento burguês, quando os
capitais “locais”, em muitos países já não existiam como nada além
da presença de empresas multinacionais estrangeiras do centro do
capitalismo. A revolução cubana, que assume caráter socialista
apenas após um período inicial, representava — para muitos dos
países latinoamericanos e periféricos mais frágeis — a limitação do
projeto de desenvolvimento liberal burguês em termos práticos
(Santos, 1977, p.186).
Surgia então, para os “capitais nacionais”, que na prática são
capitais estrangeiros, a necessidade de articularem-se de forma
coordenada, a nível continental, na contramão do processo de
emancipação social — ainda que difuso, descoordenado, e em grande
medida de caráter apenas reformista. Para tal articulação, o
imperialismo norte-americano tinha de ser envolvido, através de
inúmeras agências intermediárias. Via de regra, as classes militares
latinoamericanas foram identificadas como atores ideais a serem
cooptados: uma elite política fundamentalmente pequenoburguesa
com interesses modernizadores não exatamente nacionalistas,
intrinsecamente entreguistas e pró-monopólios (Santos, 1977, p.187).
407
Os regimes encabeçados pelas elites militares na américa latina,
unificadas sob as “doutrinas de segurança nacional”, são
manifestações diversas do fascismo clássico: imposto igualmente de
cima para baixo, os regimes são menos centrados na figura de um
líder que por uma elite cívico-militar tecnocrata (Pinochet neste
sentido é um caso de continuidade); não há a figura legitimadora do
líder, mas a presença da repressão e “ordem” como fatores fundantes
do desenvolvimento se mantém na mais pura tradição fascista.
Mantém-se plenamente a propriedade privada, a organização
empresarial (agora acoplada em maior ou menor grau ao capital
estrangeiro) e o direito civil burguês (ao menos enquanto não impede
a atuação do regime): na prática, é o mesmo avanço da concentração
de capital e a securitização do mesmo capital, num tipo de
parasitismo subordinado ao capital estrangeiro. Apesar de sua forma
totalitária, mantém a mesma continuidade com o liberalismo que
possibilitou (e em grande medida ainda possibilita) a entrega de
poder ao regime fascista (Santos, 1977, p.182).
O caráter de massa do fascismo é bastante fragilizado pelo
arranjo político-econômico-institucional que possibilita o regime
militar: economicamente, o grande capital estrangeiro tende a
preferir e fomentar a repressão direta à qualquer política de massa;
institucionalmente, a falta de legitimidade do Estado fascista, em
continuidade com os casos clássicos, impõe a necessidade de
expressar-se como Estado de exceção, na prática suspensão completa
de um aparato jurídico que possa interferir na prática do terror contra
a classe trabalhadora (Cueva; García; Marini; Santos, 1978, não
paginado).
Entretanto, uma nuance a se destacar é de que, justamente pelo
caráter de massa ser muito débil nesses regimes, o uso de milícias e
grupos paramilitares é mais contido, reservado num geral às ações
408
mais torpes da repressão (o Comando de Caça aos Comunistas é um
exemplo preciso disto) (Santos, 1977, p.187).
O regime fascista, no caso dos países dependentes, periféricos,
expressou historicamente, de maneira extrema, a subordinação
destas às economias centrais e seus agentes, no caso as empresas
multinacionais. Isto não significa que regimes fascistas de tipo
“clássico” não possam surgir: se trata aqui é de que estes se tornam
extremamente inviáveis pois as próprias burguesias nacionais, que
são chave para o desenvolvimento e impulsionamento do fascismo,
se encontram subordinadas aos interesses das burguesias
estrangeiras (principalmente americanas) — isto quando
simplesmente existem, pois há em economias mais débeis a
possibilidade de inexistirem, e os próprios capitais locais serem
puramente empresas estrangeiras.
O fascismo dependente não dá conta, desta forma, de se tornar
um movimento de massa consistente, inclusive pelos próprios
interesses estratégicos de manterem a subordinação a nível
internacional. Devido a isto, uma contestação ideológico-política
(revolucionária) não deixa de existir, tanto no proletariado quanto em
frações de classes médias que se percebem (assim como no caso
clássico do fascismo) esmagadas pelo entreguismo aos monopólios
estrangeiros. Em resposta a isto, o regime fascista dependente só pode
responder com o uso ainda mais intenso do terror (Santos, 1977,
p.187-188).
Surge aqui a possibilidade de se apontar que, nos casos
clássicos, os objetivos econômicos fascistas eram em grande medida
atrelados aos investimentos estatais sobre armamentos, no caso dos
países dependentes, subordinados à economia americana, é em
grande medida ao complexo industrial-militar americano que os
investimentos estatais nacionais devem necessariamente tender.
409
Como todo o exposto acima indica, o fascismo dependente se
mostra mais frágil e débil que o fascismo clássico, as contradições do
regime são muito mais afloradas e perceptíveis, e se mantém num
geral pela “apatia” provocada através do uso extensivo do terror à
classe trabalhadora num geral e às classes médias. Enquanto o
fascismo clássico se preocupa em possibilitar o pleno emprego de
forma a garantir um fornecimento pleno ao menor preço possível aos
capitais industriais, sua forma dependente tende dar maior
importância a perpetuar as dinâmicas já engendradas pela
dependência econômica e não necessariamente devem sugerir um
cenário de pleno emprego — como o exército industrial de reserva é
fundamental para a reposição rápida da mão de obra perdida pela
superexploração, em termos teóricos pode-se afirmar que é este o caso
(a instituição ativa de um nível de desemprego).
De forma sintética, a situação dependente, então, colabora para
uma situação de fascistização da sociedade, na medida em que a
debilidade socioeconômica, cultural, política e institucional são
provocadas, tendencialmente, pela economia fundada na
superexploração da classe trabalhadora. Isto se dá tanto num plano
interno quanto internacional, e as mesmas necessidades,
nomeadamente a manutenção dos lucros de monopólio e
centralização de capitais, via de regra são o que impulsionam este
movimento.
Assim sendo, a luta antifascista dependente assume
característica nacionalista, internacionalista (considerando o cenário
continental latinoamericano), anti-imperialista, estatista,
intervencionista. O próprio terror provocado pelo fascismo assume
forma cada vez mais instrumental, pois se torna sua principal
sustentação e traço definidor, tendencialmente para além do terror
provocado pelo fascismo clássico, que ainda contava com a
estabilidade de certo grau de “legitimidade” entre massas — em
410
grande medida possibilitadas pelo seu projeto industrial imperialista,
o que não tende a não ser possível em economias dependentes.
Assim sendo, o fascismo, ao ser compreendido em seu
movimento geral, tem grande continuidade nos regimes militares
latinoamericanos, mas transformado, numa forma dependente. Isto é
teoricamente coeso, ao se determinar, desde o início, o caráter
fundamentalmente instrumental que o fascismo mantém como forma
de garantidor da perpetuação, por meio do terror ou da demagogia,
do modo de produção capitalista em crise insolvente; ou seja, sua raíz
fundamentalmente econômica tende a se apresentar frutos
dependentes em países de economia dependente. Para além da
simples diferença formal, deve-se apontar que a própria constituição
da situação de dependência, como se objetivou demonstrar nesta
seção, colabora com o esgarçamento mais acelerado do tecido social,
com a piora do quadro geral civilizatório de uma sociedade e com a
sua gradativa fascistização.
Conclusão
O fascismo é um fenômeno histórico complexo e que exige
grande manejo teórico e histórico. A sua investigação já ocorria desde
seus primeiros passos, como evidenciado na própria literatura aqui
articulada. A sua análise pode se dar de inúmeras formas e por
diferentes métodos, com diferentes pressupostos. Baseamo-nos aqui
no pressuposto da instrumentalidade do fascismo enquanto
expressão política-institucional (e mesmo cultural) das necessidades
fundamentalmente econômicas de grupos específicos,
nomeadamente o grande capital, principalmente em sua forma
industrial, e a classe média pequeno-burguesa.
A articulação do ferramental teórico marxista possibilitou
identificar então justamente as características mais centrais que
411
ajudam a definir o fascismo e como elas se manifestam
diferentemente em configurações históricas (em modos de produção)
diferentes. Entretanto, surge a necessidade de, feita a análise a nível
teórico, mesmo através de um ferramental marcadamente
historiográfico, testar o movimento teórico com base em dados
econômicos, que por razão de exequibilidade não foram
desenvolvidos aqui. Tal processo não deve ser empreendido
simplesmente tendo em vista a abstrata investigação do passado, mas
sim a importância política prática que o estudo do fascismo
representa na contemporaneidade. Os processos econômicos práticos
por trás dos movimentos fascistas, clássicos e dependentes, devem ser
dotados de maior substância para possibilitar o refinamento do
argumento teórico. Outros estudos, que investigam essas correlações,
mais recentes, devem ser incorporados e criticados em escritas
futuras, tendo em vista o movimento aqui feito através de
significativa articulação do cânone sobre o assunto. Estudos que se
debruçam sobre a crise democrática, ainda que distantes
conceitualmente das teorias aqui articuladas, podem e devem ser
também incorporados de maneira crítica tendo em fim a discussão
contemporânea no centro capitalista.
Por fim, considerando a perspectiva aqui elencada da teoria
marxista da dependência, a discussão sobre a situação dependente de
economias latinoamericanas se renova e se complexifica. Isto ocorre
tanto de como um processo acadêmico quanto político; a consciência
de classe, causa e efeito do processo emancipatório, assume instâncias
mais amplas e desta forma mais radicais. É significativo que, da
mesma forma que o terror capitalista se transforma e complexifica,
contraditoriamente a luta emancipatória se avoluma e se concretiza
na soma das inúmeras determinações revolucionárias, sejam estas
socioeconômicas, culturais, institucionais ou políticas.
412
Referências bibliográficas
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Sociología, [s. l.], v. 39, n. 2, p. 469, 1977.
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MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro 1: O
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https://www.marxists.org/portugues/zetkin/1923/08/fascismo.htm.
Acesso em: 18 out. 2023.
413
Geoeconomia do setor energético offshore: o caso chinês e
aprendizados para o Brasil
Gabriel Ralile de Figueiredo Magalhães1
Jorcelino Rinalde de Paulo2
Thauan Santos3
Resumo: O presente artigo analisa como a geoeconomia de um país
pode ser influenciada pela inserção das energias renováveis em sua
matriz energética, particularmente considerando o avanço recente da
energia eólica offshore. Nesse sentido, levando em consideração que
a China está entre os líderes mundiais do setor, sobretudo do ponto
de vista tecnológico e operacional, e que o Brasil emerge como uma
das apostas globais para a indústria, este trabalho traz um estudo de
caso que busca evidenciar como o país asiático vem desenvolvendo a
implementação e a utilização da fonte eólica offshore no contexto da
atual transição (da segurança) energética, bem como quais
ensinamentos podem ser úteis para a introdução desse mercado no
contexto brasileiro. A metodologia da pesquisa possui natureza
exploratória, através de revisão bibliográfica e documental,
1
Mestrando em Estudos Marítimos (PPGEM – EGN) |
http://lattes.cnpq.br/6520230601050390 | [email protected]
2
Doutorando em Estudos Marítimos (PPGEM – EGN) |
http://lattes.cnpq.br/1192010077384290 | [email protected]
3 Professor Adjunto do PPGEM/EGN | http://lattes.cnpq.br/9144501805319886 |
[email protected]
414
sobretudo pela análise dos documentos da IRENA, GWEC, EPE e de
literatura brasileira e chinesa sobre o tema, com base na interface
entre a teoria da transição energética e o conceito de geoeconomia,
defendido por Blackwill e Harris. Dessa forma, ponderando a
possibilidade de cooperação no âmbito do BRICS, busca-se
identificar, mapear e analisar como as estratégias adotadas pela
China no período de 2007 a 2023, considerando também os reflexos
das políticas adotadas na década de 1990, podem influenciar a
introdução da indústria eólica offshore no Brasil. Os resultados
preliminares apontam que o estabelecimento de um arcabouço
regulatório, a disponibilidade tecnológica e o desenvolvimento de
uma cadeia de valor são elementos chaves no caso chinês, devendo
ser devidamente desenvolvidos no Brasil.
Palavras-chave: Energia Eólica Offshore; Geoeconomia; China.
1 Introdução
Este artigo explora o impacto das energias renováveis na
geoeconomia de uma nação quando integradas à sua matriz
energética. A análise se concentra principalmente nos mais recentes
avanços da energia eólica offshore no mundo.
Considerando a posição da China como líder global no setor de
energia eólica offshore, especialmente em tecnologia e operações, e o
surgimento do Brasil como um participante importante nessa
indústria, este estudo apresenta uma análise da implementação e
utilização da energia eólica offshore na China com o objetivo de
mostrar seu desenvolvimento no contexto da transição (da
segurança) energética. Além disso, busca-se identificar lições para o
desenvolvimento desse mercado no Brasil.
Usando uma metodologia exploratória, este artigo examina o
impacto potencial das estratégias da China no estabelecimento do
415
setor eólico offshore no Brasil. Essa análise se concentra
especificamente na cooperação potencial no contexto do BRICS e
envolve a identificação e o mapeamento de fatores-chave por meio de
uma revisão da literatura e documental.
Analisa-se o período de tempo entre 2007 e 2023 no qual vem se
desenvolvendo o setor de energia eólica offshore na China,
ressaltando também as políticas implementadas desde os anos 1990
com os reflexos na atualidade. Os documentos analisados são
sobretudo os relatórios feitos por entidades de referência no setor
como a IRENA, GWEC e EPE (a destacar o Roadmap sobre energia
eólica no Brasil de 2020), bem como literatura específica brasileira e
chinesa sobre a questão energética com ênfase dada ao setor eólico
offshore. O artigo está estruturado da seguinte forma: após esta breve
introdução, a seção 2 apresenta o marco teórico, centrado sobretudo
no conceito de geoeconomia de Blackwill e Harris, amarrando-o à
atual discussão sobre a transição energética em curso; na seção 3,
aborda-se a estratégica energética da China com foco no setor eólico
offshore; e, na seção 4, aborda-se o caso brasileiro ante os possíveis
aprendizados auferido do cas chinês. Por fim, são apresentadas
algumas conclusões, propondo recomendações para o caso brasileiro
baseadas na experiência chinesa, seguida das referências
bibliográficas.
2 Marco teórico
2.1 Do conceito de geoeconomia
O conceito de geoeconomia carece de uma definição clara e é
frequentemente considerado uma subcategoria da geopolítica,
chamada de "geopolítica econômica". Em sua análise da China,
Amineh e Guang (2018, p. 25) utilizam o princípio do poder territorial
e da lógica do poder capitalista de David Harvey para compreender
416
o estágio atual do sistema global. De acordo com os autores, essa fase
envolve o nexo da expansão capitalista (economia geopolítica) sob
uma lógica de poder territorial (geopolítica) e a lógica de poder
capitalista (geoeconômica).
Essa noção, portanto, baseia-se no conceito de geopolítica. No
entanto, Blackwill e Harris (2016) elucidam que a geoeconomia pode
ser percebida como uma estratégia analítica e uma política nacional.
Dessa forma, eles a definem como o emprego de instrumentos
econômicos para apoiar e proteger os interesses nacionais, gerar
resultados geopolíticos favoráveis e avaliar a postura econômica de
outros países em relação aos objetivos geopolíticos de um Estado.
Os autores destacam que a geopolítica abrange uma série de
interpretações e se refere a um conjunto de suposições relativas ao
exercício de controle de um país sobre seu território, quais elementos
constituem esse poder e como ele é ampliado e usado. Blackwill e
Harris fazem referência ao argumento de Luttwark (1993) de que as
preferências e metodologias geoeconômicas estão ganhando
precedência nas atividades nacionais e que isso reflete a competição
histórica das nações por novos recursos industriais (2016, p. 26).
Os autores destacam a ausência de consenso em relação à
variedade de ferramentas geoeconômicas disponíveis e aos fatores
que determinam a adequação do estado para sua implementação
efetiva. No entanto, eles concordam que essas ferramentas devem ser
interpretadas dentro dos contextos dos aspectos tradicionais da
política externa militar e diplomática, mesmo quando se consideram
ferramentas novas, como as tecnologias do ciberespaço, ou setores
tradicionais transformados, como o de energia.
Blackwill e Harris (2016, p. 39-48) identificam várias mudanças
facilitadas pelo uso da geoeconomia; ou seja, surgem novas opções
políticas. Logo, é possível uma aceitável reformulação da diplomacia
417
e dos mercados, de modo que os acordos geopoliticamente motivados
desempenham um papel importante na determinação da política
externa, e as tensões econômicas e de segurança, antes distintas, agora
se reforçam mutuamente. Ainda de acordo com os autores, entre as
ferramentas da geoeconomia, as mais usadas incluem a política
comercial, a política de investimentos, as sanções econômicas, a
utilização de ferramentas cibernéticas, a ajuda econômica, a política
financeira e monetária, bem como as políticas nacionais sobre o setor
de energia e matérias-primas.
A título de exemplo, os autores se referem à redução do
fornecimento de energia pela Rússia para partes da Europa como
uma tática geoeconômica dependente do setor de energia em 2006 e
2008. Esse comportamento teria sido executado cerca de cinquenta
vezes após o colapso da União Soviética (2016, p. 85). Do mesmo
modo, observam uma tendência comparável na China, que
implementou proibições de exportação de metais de terras raras em
2010 para expressar descontentamento com as políticas das nações
vizinhas em torno dos mares do Sul e do Leste da China.
Isso indica que o déficit de energia e recursos da China
desempenha um papel fundamental na formação da política global
na época pós-Guerra Fria (BLACKWILL; HARRIS, 2016). A situação
da nação asiática é particular, pois seu desenvolvimento é dirigido
pelo Estado, permitindo a coordenação harmonizada de vários
aspectos econômicos por uma autoridade solitária (AMINEH;
GUANG, 2018).
No setor de energia, Lind e Press (2018, p. 174, 185) destacam a
utilização do "Mercantilismo Energético". Esse termo se refere a um
conjunto abrangente de políticas implementadas para garantir o
acesso a recursos energéticos, salvaguardando a economia de um
Estado e sua capacidade de exercer poder sobre nações estrangeiras,
ao mesmo tempo em que diminui essa capacidade em outros países.
418
Como resultado, o Mercantilismo Energético é considerado uma
estratégia geoeconômica de autoridade estatal elevada, em oposição
a uma perspectiva liberal de ação desobstruída pelas partes
interessadas.
Lind e Press (2018), por sua vez, afirmam que as políticas de
mercantilismo energético da China reduziram muito a exposição do
país à escassez de energia, especialmente em épocas de restrições ou
bloqueios à importação de petróleo. Portanto, as políticas econômicas
servem como instrumentos para a implementação de estratégias
geoeconômicas que vão além dos domínios econômico e de
segurança.
2.2 Interface com a teoria da transição energética
Entre várias definições, a ideia de transição energética,
vinculada a modificações substanciais na estrutura da matriz
energética primária mundial, pode ser compreendida como uma
progressão multifacetada em direção a uma economia de baixo
carbono e com reduzido impacto ambiental (EPE; MME, 2020, p. 34).
Gaspar Filho e Santos (2022) observam que o entendimento
tradicional implica alterações no suprimento nacional de energia ou
a descoberta de novos recursos energéticos, enquanto as
interpretações contemporâneas abrangem mudanças na distribuição
de energia, nos dispositivos de consumo e nos sistemas de
infraestrutura do mercado de eletricidade.
Nesse contexto, é importante enfatizar que as modificações na
matriz de energia primária representam apenas o aspecto mais visível
das transições de energia. Outras mudanças significativas envolvem
alterações na base tecnológica dos conversores, nos padrões de
consumo, bem como nas relações socioeconômicas e ambientais (EPE;
MME, 2020, p. 34). Além disso, a viabilidade técnica e econômica da
419
exploração de recursos é fundamental para uma transição energética
bem-sucedida (EPE; MME, 2020, p. 19). Isso também implica garantir
a segurança energética, assegurando o acesso ininterrupto a recursos
energéticos acessíveis (TOLMASQUIM, 2022, p. 28).
Gaspar Filho e Santos (2022) argumentam que definir segurança
energética é um desafio, dada a sua natureza interdisciplinar. Um
exemplo de definição é fornecido por Amineh e Guang (2018, p. 14),
que baseiam seu trabalho na pesquisa de Yergin (1998) e no Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). De acordo com
os autores, segurança energética significa garantir que a energia em
diferentes formas esteja disponível em todos os momentos, em
quantidades adequadas e a preços razoáveis e acessíveis, sem causar
danos inaceitáveis ou irreversíveis ao meio ambiente.
No entanto, ainda de acordo com Gaspar Filho e Santos (2022),
o conceito de segurança energética compreende cinco dimensões:
disponibilidade de energia, acessibilidade econômica,
desenvolvimento tecnológico, sustentabilidade e regulamentação.
Em paralelo, Blackwill e Harris (2022) observam que a busca pela
segurança energética tem influenciado a diplomacia e as guerras
globais há mais de um século. Atualmente, novos recursos estão
sendo utilizados em todo o mundo, inclusive nas regiões marítimas
da Austrália, do Brasil e da África. Essa mudança na produção global
de energia, afastando-se dos fornecedores tradicionais da Eurásia e
do Oriente Médio, é significativa.
É essencial observar que a diversificação ajuda os países a
aumentar sua segurança energética, reduzindo sua suscetibilidade a
distúrbios específicos (LIND; PRESS, 2018). Além disso, para garantir
o acesso a recursos estratégicos, é fundamental estabelecer uma
cadeia de valor. Nesse contexto, os minerais críticos, ou seja, minerais
e metais amplamente considerados como insumos cruciais para uma
transição baseada em energia renovável, são proeminentes (IRENA,
420
2023, p. 23), posto sua relevância como recurso base para diversas
tecnologias relacionadas à indústria energética, tal como as do setor
eólico offshore. Atualmente, poucas tecnologias de produção de
energia limpa não utilizam esses metais em algum estágio de sua
cadeia produtiva, pois são essenciais para as cadeias de valor de uma
economia nacional, de um setor ou de uma empresa (FIZANINE,
2014 apud GASPAR FILHO; SANTOS, 2022).
De acordo com a Agência Internacional de Energia Renovável
(IRENA, 2023), prevê-se que a demanda por minerais essenciais
aumente rapidamente com a mudança para a energia renovável,
apesar de seu valor econômico não ser tão substancial quanto o dos
combustíveis fósseis. Também é válido mencionar que há uma
mineração global concentrada desses minerais, especialmente na
Austrália, no Chile, na China, na Indonésia e no continente africano.
Dessa forma, esses recursos fazem parte do estabelecimento de uma
cadeia de valor que dê suporte ao processo de transição energética.
No contexto da transição para a energia renovável, o relatório
da IRENA (2021) sugere que as fontes de energia renovável offshore,
como as energias eólica, solar e oceânica, podem apoiar o
desenvolvimento sustentável no longo prazo. Essas fontes podem se
alinhar estreitamente com a Agenda 2030 das Nações Unidas para o
Desenvolvimento Sustentável e seus Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS) globais.
Ainda, constata-se que no setor há uma sinergia significativa
com a indústria de petróleo e gás já estabelecida, particularmente em
termos de tecnologia e oportunidades de transição de empregos,
resultando em uma pegada ambiental reduzida e maior
descarbonização do setor (IRENA, 2021, p. 83). Com relação a esse
assunto, Braga et al. (2022) descobriram, em seu exame do cenário
brasileiro, que as despesas de eliminação da instalação e as despesas
de capital (CapEx) para projetos de energia eólica offshore eram
421
substancialmente equivalentes. Isso indica que transformar
instalações offshore do setor de petróleo e gás em novos
empreendimentos de energia, em vez de desativá-las, é mais
vantajoso do ponto de vista econômico e ajuda a manter as
oportunidades de emprego e o crescimento social.
Dessa forma, observa-se um caráter intersetorial atrelado à
questão energética, o que enseja também o diálogo entre diferentes
setores econômicos. Nesse contexto, conforme analisa Santos (2019),
em se tratando de economia política internacional relacionada ao
mar, deve-se considerar uma análise pautada em fatores econômicos,
políticos, estratégicos e geográficos, posto se tratar de espaço que
representa uma via de expansão da soberania dos Estados para além
de suas fronteiras nacionais. Nesse sentido, estratégias de
desenvolvimento de fontes de energia renováveis se inserem como
um desses fatores.
O desenvolvimento energético dentro da transição energética
abrange fatores econômicos, tecnológicos, ambientais e de segurança
para um país, inclusive tendo estreita relação com outras atividades,
tais como a mineração. Isso contribui para sua importância
geoeconômica, o que pode implicar autonomia energética ou
dependência de terceiros, conhecimento tecnológico, proficiência na
cadeia logística e crescimento sustentável.
3 Geoeconomia da energia na China
3.1 A estratégia energética chinesa
Blackwill e Harris (2016) observam que a China é comumente
reconhecida como líder global em geoeconomia, levando a uma
mudança de ênfase do exercício militar para o econômico na projeção
de poder regional e global. Amineh e Guang (2018) destacam que a
422
tentativa de a China de dominar amplamente a economia e os
recursos globais está encapsulada na estratégia "Going Out". Essa
abordagem visa a promover o investimento em empreendimentos
estrangeiros, com foco especial no setor de energia.
Notavelmente, o setor de energia ganhou importância
estratégica significativa durante a década de 1990. Li et al. (2018)
afirmam que a aversão ao risco de energia foi incorporada à estratégia
nacional de segurança energética em 1996 devido à dependência das
importações de petróleo bruto e ao impacto ambiental das emissões
de gases de efeito estufa (GEE) dos combustíveis fósseis.
A rápida industrialização da China levou ao crescimento da
riqueza e do poder internos, empurrando a população camponesa
para o trabalho industrial, além de aumentar a renda per capita e a
capacidade militar (AMINEH; GUANG, 2018). Entretanto, os autores
destacam que essa transformação resultou em desafios internos
decorrentes da escassez de recursos e de demandas sociais não
atendidas.
A vulnerabilidade energética da China é destacada por Lind e
Press (2018, 187), que observam que, apesar do acesso da China a
carvão abundante, o crescimento constante do consumo e das
importações de petróleo indica um portfólio energético desfavorável.
Além disso, os autores destacam que a frágil proeminência da China
em áreas primárias de produção de petróleo, a probabilidade de seus
prováveis oponentes explorarem o petróleo como arma e sua
capacidade militar insuficiente para proteger sua cadeia de
suprimento de petróleo são fatores contribuintes que aumentam a
suscetibilidade da China.
Deve-se observar que a China, devido à sua grande população,
consome quantidades significativas de eletricidade e continua a
depender muito do uso de fontes de energia não renováveis, inclusive
423
carvão e derivados de petróleo, o que resulta em um aumento
substancial dos níveis de poluição ambiental (WU et al., 2018). Para
endereçar esse problema, o país optou por buscar uma cooperação
internacional pacífica (AMINEH; GUANG, 2018). Sob a já
mencionada estratégia "Going Out", a política nacional evoluiu para
um projeto de expansão da conectividade, do comércio e da
influência chineses, predominantemente no continente asiático,
intitulado Belt and Road Initiative (LIND; PRESS, 2018), ou BRI.
Proposta pelo Presidente Xi Jinping em 2013, a iniciativa se
concentra principalmente no estabelecimento do Cinturão
Econômico da Rota da Seda, que conecta a China com a Ásia Central
e do Sul e, eventualmente, com a Europa. Além disso, a Nova Rota
Marítima da Seda liga a China às nações do sudeste asiático, aos
países do Golfo, ao norte da África e à Europa (UMBACH, 2019 apud
LIAO, 2019). Ge et al. (2019) destacam a importância da cooperação
no âmbito da BRI.
A China emergiu como o principal consumidor e importador
de energia do mundo, acentuando a importância da elaboração de
cadeias de valor de energia. Para além disso, devido sua importância
na cadeia de valor energética, bem como abundância regional, os
minerais críticos também assumiram protagonismo na condução de
políticas desse setor na China. Para mitigar os riscos energéticos,
devido à sua proximidade com recursos abundantes nos países da
BRI que superam as necessidades domésticas, a Iniciativa se esforça
para estabelecer relações amistosas com essas nações.
Além disso, Ge et al. (2019) destacaram que os membros da BRI
estão situados nos aspectos de oferta e demanda do comércio de
energia, o que leva à interdependência regional. Essa
interdependência forma uma base viável para a colaboração
energética. Portanto, é evidente que os países da BRI estão prontos
para se beneficiar dessa cooperação.
424
No entanto, apesar da ampla expansão desde 2013 com o
estabelecimento da BRI, evidências da estratégia moderna podem ser
observadas já na década de 1990, quando a China empregou o setor
de energia para garantir a segurança energética em sua fronteira
ocidental, reconhecendo o assunto como um aspecto crucial de sua
agenda global (LIAO, 2019). A esse respeito, de acordo com Blackwill
e Harris (2016), é digno de nota que a estratégia geoeconômica da
nação na Ásia visa principalmente a aumentar os custos para os
países que desafiam a China em disputas territoriais, perturbar o
sistema de alianças dos EUA na área e manter laços de amizade com
aliados tradicionais como Camboja, Laos e Mianmar.
Assim, fica claro que a agenda energética da China está
intimamente ligada à sua estratégia de projeção internacional e
segurança nacional por meios econômicos. De acordo com Lind e
Press (2018), a China pretende adquirir mais controle e influência
sobre fornecedores, refinadores e distribuidores de combustíveis
fósseis, além de buscar a diversificação energética, a capacidade de
produção e o desenvolvimento da cadeia logística.
3.2 O caso da energia eólica offshore
3.2.1 A experiência da China
Para ter sucesso nos programas de promoção do
desenvolvimento de energias renováveis, Li et al. (2018) explicam que
a China implementou uma série de políticas regulatórias, incentivos
fiscais e planos de demonstração de casos para várias tecnologias
renováveis.
Como resultado desses esforços, a China atualmente lidera o
mundo em capacidade instalada de energia eólica offshore (GWEC,
2023). O país também desponta na vanguarda global do ranking de
425
novas instalações eólicas offshore no período compreendido entre
2018 e 2022, com destaque para o ano recorde de 2021. (Figura 1)
Figura 1: Ranking global de novas instalações eólicas offshore
18.000
16.000
14.000
12.000
Megawatts
10.000
8.000
6.000
4.000
2.000
0
2018 2019 2020 2021 2022
Período em anos
China Outros Países da Ásia Alemanha Reinho Unido Outros Países da Europa
Fonte: Adaptado do GWEC (2023)
Nesse contexto, o desenvolvimento da energia eólica offshore
na China começou em 2007 com a instalação de um único projeto
piloto de turbina de 1,5 MW em Suizhong, na Baía de Bohai (WU;
WANG; WANG, 2014). Entretanto, foi somente em 2010 que o
Shanghai Donghai Bridge, o primeiro parque eólico offshore em escala
comercial da China, entrou em operação, com 34 turbinas e
capacidade de 102 MW (Sahu, 2018). Esse desenvolvimento é
significativo, pois representa o primeiro parque eólico offshore da
China - primeira experiência fora do continente europeu (Yang et al.,
2018).
No entanto, o governo chinês implementou políticas e
regulamentações desde 2002 para promover o crescimento da energia
eólica offshore no país. Os aspectos subsequentes são descritos por
426
Zhang et. al. (2018): (a) Medidas provisórias foram elaboradas em
2010 para o gerenciamento do desenvolvimento e da construção de
energia eólica offshore. Em seguida, foi criada a Estrutura do Sistema
Padrão de Energia Eólica (2010) e o Plano de Desenvolvimento de
Equipamentos de Engenharia Offshore (2012). Em 2014, foi
implementada a Política de Eletricidade de Energia Eólica Offshore,
seguida pela Política de Imposto sobre Valor Agregado de Energia
Eólica Offshore em 2015. Em 2016, foram introduzidas medidas de
gerenciamento para o desenvolvimento e a construção de energia
eólica offshore. Por fim, o Plano de Desenvolvimento para o Beibu
Gulf City Group foi lançado em 2017.
De acordo com Sahu (2018), a promulgação da Lei de Energia
Renovável em 2006 teve uma importância significativa para a
expansão do setor de energia eólica offshore na China, no que diz
respeito ao seu impacto político, técnico e econômico.
Consequentemente, o governo chinês propôs uma campanha para
reduzir as emissões de carbono em 40% a 45% até 2020. No entanto,
o uso de fontes de energia renováveis representou menos de 10%
(ZHAO; REN, 2016).
A geração eólica offshore demonstrou seu potencial como uma
abordagem favorável para atingir os objetivos e, ao mesmo tempo,
reduzir os efeitos das mudanças climáticas e aumentar a segurança
energética da China (ZHANG et al., 2018). Ou et al. (2018) afirmam
que, para proteger os ecossistemas costeiros, é imperativo que os
projetos de parques eólicos offshore não estejam a menos de 10
quilômetros da costa. Um dos principais benefícios dessa fonte de
energia é sua proximidade com os principais centros de consumo
(YANG et al., 2018). Cabe destacar que o zoneamento marítimo é
necessário para a instalação de parques eólicos offshore na China,
uma vez que regula os diversos usos do mar e proíbe o uso de áreas
427
portuárias, ancoradouros, canais, áreas de navegação e rotas
estabelecidas (MENG; XU, 2018).
A posição de liderança da China na cadeia de valor de minerais
cruciais oferece uma vantagem significativa. O disprósio e o
neodímio, que são vitais para o setor eólico e estão em abundância na
China, são exemplos notáveis. No entanto, apesar dessa vantagem, a
China continua sendo um dos importadores de minerais mais
importantes do mundo (IRENA, 2023).
3.2.2 Procedimento de concessão de parques eólicos offshore na China
Na China, os principais órgãos governamentais responsáveis
pelos processos regulatórios e de consentimento dos parques eólicos
offshore são a Administração Estatal de Energia (NEA) e a
Administração Oceânica Estatal (SOA), conforme declarado nas
"Regras de Implementação de Medidas Provisórias para a
Administração do Desenvolvimento e Construção de Energia Eólica
Offshore" de 2011 (KORSNES, 2014). Contudo, as preocupações
contínuas com a segurança ao longo da costa chinesa destacam uma
característica interessante na regulamentação das usinas de energia
eólica offshore. Especificamente, as empresas estrangeiras só podem
deter 49% do capital, sendo que os 51% restantes são
obrigatoriamente detidos por uma empresa chinesa (XILIANG; DA;
STUA, 2012). Como resultado, de acordo com Hua et al. (2013), há
uma participação de mercado limitada na China e as empresas eólicas
offshore são estatais.
A primeira rodada de concessões de parques eólicos offshore na
China ocorreu em 2010 (WYATT et al., 2014). No entanto, a
coordenação inadequada entre as entidades incluídas foi reconhecida
como um fator crucial que impede a autorização e a criação de
parques eólicos offshore (HE et al., 2016).
428
A regulamentação da energia eólica offshore na China envolve
vários departamentos e agências, inclusive entidades militares, o que
cria desafios para a coordenação, especialmente em termos de
processos de planejamento e aprovação (ZHAO; REN, 2016). Wyatt et
al. (2014) também documentam que a Administração Nacional de
Energia (NEA) aumentou a autoridade delegada para aprovação de
projetos de energia eólica offshore aos governos provinciais em 2013,
para apoiar o objetivo do primeiro-ministro de "reduzir os direitos de
consentimento do governo central".
De acordo com a análise abrangente de Meng e Xu (2016) sobre
os procedimentos regulatórios e de consentimento para parques
eólicos offshore na China, o processo inicial envolve a solicitação de
direitos de uso e a aprovação do projeto, juntamente com a
implementação de medidas para a área marítima e a proteção
ambiental marinha. Eles afirmam que as principais regras
implementadas são: a) Medidas Provisórias de Desenvolvimento de
Energia Eólica Offshore e Gestão de Construção; b) Regulamento de
Execução de Medidas Provisórias de Desenvolvimento de Energia
Eólica Offshore e Gerenciamento de Construção; c) Lei da República
da China sobre a Administração do Uso de Áreas Marinhas; e d) Lei
de Proteção Ambiental Marinha do Povo da República da China.
Em média, são necessários no mínimo dois anos para obter a
aprovação completa do governo para a construção de um parque
eólico offshore na China (WYATT et al.; 2014). Recentemente, a China
reforçou sua concentração em energia sustentável, principalmente
devido ao objetivo "30-60" introduzido pelo governo chinês em 2020,
visando a atingir o pico de emissões até 2030 e alcançar a neutralidade
de carbono até 2060 (GWEC, 2023). Além disso, em 2022, o mercado
de energia renovável da China avançou para um estágio avançado. O
apoio às energias renováveis na China mudou da tarifa feed-in (FiT)
para o modelo de "paridade de rede", em que as fontes renováveis de
429
energia recebem remuneração igual à das fontes de energia não
renováveis. Isso indica a consolidação do setor de energia renovável
na China (GWEC, 2023).
A energia eólica offshore na China tem se expandido de modo
significativo recentemente, impulsionada por sua possível
contribuição na transição para recursos energéticos sustentáveis e
neutros em carbono. Apesar disso, o consumo atual é de apenas 0,4%
das necessidades energéticas gerais do país. Portanto, o principal
obstáculo está na abordagem dos desafios tecnológicos, econômicos e
institucionais para superar as questões (DENG et al., 2022).
3.2.3 Considerações atuais da geração eólica offshore na China
A China fez investimentos significativos no desenvolvimento
de energia eólica offshore para reduzir as emissões de dióxido de
carbono e avançar em direção a fontes de energia mais limpas. Com
recursos naturais abundantes e vários projetos em andamento, o país
é um participante de grande importância no setor de energia eólica
offshore (CHEN; LIN, 2022).
Hong Kong, por exemplo, está investindo em eólicas offshore,
com o objetivo de cumprir as metas de baixo carbono e aumentar a
resiliência energética. Embora haja impactos sobre a vida marinha na
localidade, o desenvolvimento consciente pode aliviar esses efeitos.
Estudos recomendam o reforço da política para aproveitar os
recursos eólicos locais (DELINA, 2022).
No entanto, a descarbonização e o desenvolvimento do setor de
energia eólica offshore no país asiático, entre 2022 e 2025, pode ser
substancialmente afetado pelas políticas de subsídio e pelas
capacidades do sistema. Contudo, um cenário de política abrangente
sob a abordagem de desenvolvimento coordenado de energia e meio
ambiente pode estimular o progresso do setor de energia eólica
430
offshore e melhorar substancialmente a proteção ambiental (CHEN et
al., 2022a).
Embora a China tenha um potencial significativo para a
produção de energia limpa, ela ainda é o maior emissor de carbono
do mundo. A implementação da Lei de Energia Renovável foi vital
para o enfrentamento das mudanças climáticas e a promoção do
desenvolvimento sustentável no país. Porém, ainda assim, a China
está enfrentando pressão para atingir o pico de emissões de carbono
até 2030 (CHEN et al., 2022b).
Portanto, é imperativo analisar o contexto dos esforços
colaborativos globais para a transição energética motivada por
preocupações com a segurança energética e a preservação ambiental.
Todavia, no caso da China, os principais obstáculos decorrem da
natureza indeterminada da estrutura colaborativa e da necessidade
de aprimoramento das políticas. Desse modo, avaliações estratégicas
indicam os benefícios da colaboração, bem como a necessidade de
procedimentos de negociação, alinhamento de interesses, proteção
legal e troca de conhecimentos especializados (LIU; HEI, 2022).
4. Ponderações para o brasil
4.1 Cenário brasileiro e aprendizados para o país
O Brasil é amplamente reconhecido como um país abundante
em recursos naturais. Com relação à sua matriz energética, diverge
significativamente de outros países por depender mais de fontes
renováveis, superando a média mundial (EPE, 2023).
Conceitualmente, a matriz elétrica compreende todas as fontes que
geram eletricidade. No caso brasileiro, ela é mais renovável do que a
matriz energética, pois utiliza principalmente a energia hidrelétrica e
431
não impede o crescimento de outras fontes, como a energia eólica
(EPE, 2023).
O Brasil se destaca por ter uma matriz energética com uma
quantidade substancial de fontes de energia renováveis. Assim,
embora as emissões de gases de efeito estufa (GEE) sejam baixas em
comparação com outras nações, espera-se que, com o crescimento
econômico sustentável no longo prazo e o consequente aumento do
consumo de energia per capita, as emissões aumentem até 2050 (EPE;
MME, 2020).
Em relação ao potencial energético em escala nacional
(estimativa quanto à disponibilidade total de recursos renováveis e
não renováveis presente no País), os estudos realizados no âmbito do
Plano Nacional de Energia (PNE) destacaram uma quantidade
estimada de quase 280 bilhões de toneladas equivalentes de petróleo
(tep) no período até 2050. Espera-se que os recursos não renováveis
cheguem a aproximadamente 21,5 bilhões de tep, enquanto os
recursos renováveis têm o potencial de gerar 7,4 bilhões de tep
anualmente ao longo de 35 anos (EPE, MME, 2020).
A energia eólica tem grande potencial para os recursos
energéticos offshore do Brasil. De acordo com as estimativas de Ortiz
e Kampel (2011 apud MATSUMURA, 2019), o Brasil poderia gerar
energia eólica offshore entre 57 GW e 1.780 GW, com base na
localização costeira ou na profundidade da água. Consequentemente,
há um potencial significativo para o desenvolvimento nacional.
Nesse sentido, o debate quanto à sua implementação tem sido
desenvolvido no contexto nacional, sendo uma das produções mais
recentes de destaque o documento de 2020 ‘Roadmap Eólica Offshore
Brasil” da Empresa de Pesquisa Energética (EPE). O documento tem
como objetivo identificar possíveis barreiras e desafios a serem
432
enfrentados para o desenvolvimento da fonte eólica offshore no País
e apontar algumas recomendações.
No entanto, a ausência de regulamentações específicas para a
geração de energia eólica offshore é a principal restrição atual para
seu desenvolvimento e integração no Brasil, entre outros fatores
(BARBOSA, 2018). Por isso, nos últimos anos, houve avanços
significativos na estrutura regulatória brasileira nesta indústria. Em
particular, em 25 de janeiro de 2022, foi publicado o Decreto nº
10.946/2022, referente à transferência de espaços físicos e ao uso de
recursos naturais para geração de eletricidade offshore. Além disso,
houve progresso no debate de projetos de lei no Congresso.
No âmbito do BRICS, um grupo inicialmente formado por
Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, mas que agora possui
outros seis membros, o Brasil poderia obter vantagens ao estabelecer
conexões com os principais países da cadeia global de energia e
minerais de alta prioridade, especialmente a China e a Rússia. A
partir do exemplo chinês, que oferece percepções valiosas para o
Brasil com relação à estrutura regulatória nacional, cuja discussão é
feita por diferentes setores, a busca pelo estabelecimento de uma
cadeia de suprimentos, pela mitigação coordenada de impactos
ambientais, e pelo crescimento de parcerias para desenvolvimento
tecnológico, além de incentivos e investimentos são oportunidades
que o Estado brasileiro possui junto ao BRICS.
Quanto ao bloco, cabe destaque ao trabalho realizado por
Losekann e Tavares (2021) sobre o potencial de cooperação no
contexto de transição energética. Nele, constatam os autores a
possibilidade de desenvolvimento de uma cooperação multilateral,
seja entre si ou intra-grupos; e bilateral, nas quais as
complementaridades energéticas apresentam possibilidades de
colaboração, sobretudo permitindo ao Brasil acesso a tecnologias de
ponta sobretudo da China e Rússia. Nesse contexto, destacam
433
também a criação da Plataforma de Cooperação em Pesquisa
Energética do BRICS, em 2018, e o estabelecimento de um plano de
ação para cooperação energética até 2025.
Do mesmo modo, o Brasil pode aprender relevantes lições com
o país asiático, em especial quanto ao desenvolvimento da Belt and
Road Initiative (BRI), a promulgação da Lei de Energia Renovável e a
alocação de áreas de projetos eólicos offshore que demonstram ser
componentes de uma política coesa que visa a alavancar o setor de
energia, além de aumentar a influência global do país e, ao mesmo
tempo, garantir sua segurança energética e sua sustentabilidade
ambiental. Outro ponto a ser elencado é que o progresso tecnológico
e os incentivos ao investimento são fatores importantes ligados à
capacidade de explorar recursos, conforme evidenciado pelo
histórico e pelas políticas regulatórias da China. O desenvolvimento
de um processo de zoneamento do uso do mar é crucial.
No entanto, no Brasil, a falta de um Planejamento Espacial
Marinho (PEM) representa um enorme desafio, principalmente pela
ausência e dispersão de dados ecológicos, sociais e ambientais, além
dos dados das atividades marítimas que ocorrem no extenso
ambiente marinho nacional. Além disso, a coordenação eficaz entre
as agências representa um outro poderoso obstáculo para o país.
Desse modo, é possível notar que, em termos de cooperação
internacional, é possível absorver ensinamentos advindos da China,
que se beneficia de um processo de cooperação regional,
especialmente por meio da Iniciativa Belt and Road. Assim, o Brasil
poderia projetar e garantir, ao longo do tempo, uma cadeia de valor
mais bem organizada, garantindo consequentemente uma vantagem
competitiva no cenário internacional. Portanto, conforme observado
no caso chinês, o estabelecimento de parcerias diversas e estratégicas,
juntamente com o acesso contínuo a recursos, pode fornecer uma
434
ferramenta geoeconômica robusta para a segurança energética
brasileira.
5 Considerações Finais
Este artigo explorou as ramificações da integração de fontes de
energia renovável, especialmente a energia eólica offshore, na matriz
energética e na economia da China, bem como sua relação
contributiva para a entrada do Brasil nesse campo. Foi possível
analisar que a adoção da energia eólica offshore pela China, a partir
do mapeamento dos principais desafios e políticas chaves, contribui
com percepções e insights para o desenvolvimento desta indústira no
Brasil.
O estudo demonstrou a importância de uma estrutura
regulatória, a disponibilidade tecnológica e o avanço da cadeia de
valor no contexto da China. No entanto, no caso brasileiro, as atuais
barreiras regulatórias impedem o progresso da energia eólica
offshore. Embora tenha feito progressos no refinamento de sua
estrutura regulatória recentemente, os desafios persistem,
especialmente na criação de uma cadeia de suprimentos, na
abordagem das apreensões ambientais e no incentivo ao
investimento.
Por fim, a infraestrutura regulatória e a comunicação entre
agências da China oferecem lições valiosas para o Brasil. Além disso,
a China se beneficia da cooperação regional e de uma cadeia de valor
bem-organizada por meio de iniciativas como a Belt and Road Initiative
(BRI), garantindo assim a segurança energética. Da mesma forma, foi
possível evidenciar indícios de que o Brasil pode obter ganhos com a
formação de vínculos com nações importantes no setor de energia,
como a China, dentro do grupo BRICS.
435
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org/10.1016/j.renene.2015.03.077.
441
Guerra doméstica, evolução humana e o problema dos outgroups
cognitivos
Beatriz Pimentel1
Resumo: O presente trabalho visa investigar como as habilidades
cognitivas de ingroup e outgroup dos Homo sapiens se relacionam com
a narrativa de guerra doméstica em cidades como o Rio de Janeiro.
Ainda no século XX, devido ao inchaço populacional, formaram-se as
favelas cariocas, e por meio de uma construção simbólica ao longo do
tempo, esses espaços foram entendidos como algo à parte, e em
extensão, seus moradores e quaisquer atividades realizadas, como
fora da sociedade. O conflito entre forças estatais e facções muitas
vezes ocorre nestes espaços e é um tema de interesse de autores das
Relações Internacionais, visto que representam tanto um problema
para a segurança pública quanto uma questão acadêmica, visto à
indefinição do fenômeno como uma guerra legítima. Entretanto, tais
conflitos já permeiam as notícias e o imaginário coletivo como uma
guerra moderna, e é o objetivo deste estudo entender como tal
narrativa se constrói e se fortalece, com a hipótese de estar
relacionada a um constante reforço da imagem de um outgroup. Para
chegar a esse objetivo, recorreremos às literaturas de guerra
intraestatal, formação cognitiva de ingroups e outgroups e violência
coalizacional intersocietária, além de utilizarmos métodos
1
Laboratório de Big History (UFRJ) | [email protected]
442
qualitativos, como entrevistas em profundidade e análise temática
para acessar a nível pessoal a manifestação de um inconsciente
coletivo. Acreditamos que a principal contribuição deste estudo é
elucidar um fenômeno atual e de relevância nacional à luz da Big
History, dessa forma acessando sua construção cognitiva e
reprodução pessoal.
Palavras-Chave: Guerra; Violência Urbana; Facções; Polícia; Big
History
Apresentação do tema
A guerra como fenômeno político e social é um objeto de estudo
de diversas áreas do conhecimento. Nas Relações Internacionais, por
exemplo, as primeiras teorias, como o Realismo (CARR, 2001 [1939];
MORGENTHAU, 2003 [1945]) e o Liberalismo (KEOHANE, 1987;
MORAVCSIK, 1997), foram enquadradas em contextos de guerras
mundiais e com um grande interesse de entender como elas se
formaram e evitar que voltassem a acontecer. Ainda nessa área do
conhecimento, recentemente, alguns autores (LIND, 2004; MOURA,
2005; HOFFMAN, 2007; GROS, 2009) observaram uma mudança no
fenômeno da guerra: desde o fim da Guerra Fria, com o marco da
queda do Muro de Berlim, o mundo estaria vendo uma nova face da
guerra, sendo agora notada em novos cenários, como nos países do
Sul Global, e ocorrendo dentro do país dos dois (ou mais)
beligerantes. Trata-se muitas vezes, então, de um conflito intraestatal,
entre o Estado e uma ou mais força não-estatal. Entretanto, tal conflito
em grande parte não é lido ou oficializado pelas RIs como uma guerra
legítima, visto que: i) não se enquadra na definição tradicional de
guerra; ii) o Estado não vive em condição declarada de guerra e iii)
segundo os autores, devido a uma falta de interesse acadêmico em
fazê-lo, visto que não ocorre em países nos centros de poder. Além
443
disso, não parece haver um consenso entre os autores
contemporâneos das RI quanto à definição e caracterização desse
fenômeno atual, dadas às suas divergências epistemológicas
exemplificadas em Pimentel (2022).
Enquanto existe esse problema acadêmico por parte das RI,
outros autores chamam a atenção para o problema de segurança
pública que esse fenômeno representa. É explicado tratar-se de uma
violência letal contemporânea (KRAUSE, 2016), por ser um fenômeno
recente e devido ao número de mortos que esse conflito produz. Tal
como em 2016, quando registrou-se no Brasil 62 mil mortes violentas,
o equivalente a 30 mortes a cada 100 mil habitantes (NITAHARA,
2018). Em outro estudo (KRAUSE, 2016), notou-se que o Brasil se
tornou o 16º país com o maior número de mortes violentas a cada 100
mil habitantes, com cerca de 25 (dados de 2007-2012). Ao retirar desse
mesmo ranking os países em guerra no período, o Brasil se
encontraria em 11º lugar. O que os dados nos fazem refletir, então, é
a proximidade do cenário de violência letal em Estados que não
vivem em guerra declarada com os que estão, principalmente devido
ao número de mortes, mas também aos recursos empregados
(MOURA, 2005).
Dessa forma, o tema central deste trabalho é esse conflito
moderno, que tanto tem interessado pesquisadores e provocado
discussões acadêmicas, mas a partir da lente da Big History, que será
trazida nas seções a seguir.
À luz desta pesquisa inicial e do que a literatura nos indica, tem-
se como hipótese inicial a pergunta central do trabalho - por que os
conflitos entre policiais e facções no Brasil são tratados como guerra?
- que o reforço e estiramento de um outroup a um nível repetido e
extremo torna mais receptível uma narrativa de guerra. Homo sapiens
e seu ancestral comum, o chimpanzé, têm uma característica
444
filogenética (BARREIROS, 2018), que é a formação cognitiva de um
outgroup. É algo que será explorado na seção seguinte, mas
resumidamente, consiste na habilidade de registrar um outro
indivíduo como não sendo parte do seu grupo ou até em alguns casos
da sua espécie (VAINFAS, 2018). Essa projeção não é necessariamente
restrita ao momento de um conflito violento, pois pode ser vista
também em tempos de não-violência, o que é o caso da relação com
as favelas e seus habitantes. Os enxergar como outgroups é
demonstrado como um processo anterior aos conflitos, mas é a
hipótese inicial desta obra que o reforço desse outgroup, de maneira
verbal, visual, geográfica e midiática ao longo dos anos, pavimentou
cognitivamente que um coletivo aceitasse e reproduzisse uma
narrativa de guerra intraestatal.
Teoria
A partir do fim do século XX e da conclusão da Guerra Fria,
teóricos das Relações Internacionais que estudavam o fenômeno da
guerra começaram a investigar a aparente mudança em seu caráter.
Isso levou a diversos estudos e diferentes nomenclaturas e definições
sobre um mesmo objeto, como Lind (2004), que se referiu a elas como
Guerras de Quarta Geração. Para ele, a partir dos anos 1990,
estaríamos vendo no mundo um tipo de guerra em que são culturas
em conflito, não mais Estados, como segundo ele existia até então.
Com o caso emblemático das guerras do Iraque e Afeganistão, ele
aponta que hoje o Estado perde o monopólio do uso legítimo da força
- constituído desde Westfália, em 1648 -, pois passa a dividir com e
até em alguns casos perder o conflito para forças não-estatais, como
grupos paramilitares ou organizações terroristas. Já Moura (2005),
que as define como novíssimas guerras, discute que essa nova face da
guerra começou a ser vista a partir dos anos 1980 e que ela acontece
445
em países que vivem em uma macro paz, mas que internamente, em
micro-espaços, os conflitos ocorrem. A autora destaca o caso que será
trabalhado neste trabalho, inclusive, o das favelas no Rio de Janeiro.
Ela exemplifica sua teoria das novíssimas guerras ao mencionar
países como o Brasil, marcados pela desigualdade social e que não se
encontram em guerra declarada, mas que violências inúmeras
ocorrem nesses espaços urbanos entre diferentes grupos,
ocasionando números de mortes e com recursos empregados muito
similares a uma guerra convencional.
Hoffman (2007) também comenta sobre as novas guerras,
mencionando-as como guerras híbridas. Para ele, os conflitos globais
a partir do século XXI seriam híbridos, pois combinam diferentes
atores - como grupos auto-financiados ou financiados por Estados -
com diferentes métodos. Logo, a guerra atual (re)utiliza recursos e
abordagens já empregadas, mas se torna nebulosa devido a tantos
atores que dela participam, o que segundo ele é dificultado de ser
gerenciado pela ausência de limites e leis que abordam esse novo tipo
de conflito. Um ponto interessante levantado pelo autor é a
desatualização do Estado sobre esse tipo de guerra, que segundo ele,
mesmo hoje não projeta nas suas Forças Armadas o entendimento de
que a guerra não é mais uma atividade restrita à esfera militar ou
incorpora em suas forças novas táticas e capacidades condizentes às
guerras híbridas. Como último autor a mencionar, Gros (2009) trata
do fenômeno como os estados de violência, em que a partir da queda
do Muro de Berlim, observamos conflitos anárquicos, globais, com
novos atores e em novos teatros. É explicado, então, que a guerra não
é mais política ou justa, por não ser mais conduzida somente por
Estados e não obedecer a uma doutrina militar, e que vemos muito
mais protagonismo de atores privados, como os mercenários.
Mencionados os principais autores das RI que falam sobre a
temática deste trabalho, entendemos alguns pontos de concordância
446
e fundamentais para o andamento da pesquisa: que há uma mudança
do caráter da guerra após o século XX, exemplificado por novos
conflitos principalmente em países desiguais, como os da América
Latina, e protagonizado por grupos não-estatais que podem se
enfrentar ou enfrentar o Estado, ocasionando um alongamento do
conflito e não cobrimento por parte das normas internacionais, já que
não são declarados oficialmente como guerra.
Dentre os estudos de autores contemporâneos que tratam sobre
a guerra já citados (GROS, 2009; HOFFMAN, 2007; LIND, 2004;
MOURA, 2005), nota-se um predomínio de temas que orbitam
assuntos como: segurança pública, criminalidade, paz e segurança.
Tais assuntos, não coincidentemente, também foram estudados neste
século por outros autores com maior profundidade (KRAUSE, 2016,
2019; MIRANDA, 2019; SALVADORI, 2020). O que é observado em
consenso é que atualmente não se tem uma definição se o que se vive
em alguns países é uma guerra (MIRANDA, 2019) e isso é
exemplificado de algumas maneiras.
Krause (2016), por exemplo, realiza um profundo estudo sobre
a violência no mundo. Ao comparar a média do número de mortes
violentas por ano em diversos países, se nota um valor tão alto quanto
os números de mortes comuns em guerras. No caso do Brasil, ao olhar
a média anual, o país é o 16º no mundo com o maior número de
mortes violentas a cada 100 mil habitantes (dados de 2007-2012). Ao
retirar desse ranking os países em guerra, o Brasil já se encontra em
11º lugar. Mais recentemente, em 2016, o país registrou 62 mil mortes
violentas por ano, em termos absolutos, ou seja, em relação ao total
de sua população, o que equivale a 30,3 mortes para cada 100 mil
habitantes, em termos relativos (NITAHARA, 2018). Krause (2016)
explica que essa violência letal contemporânea não está, como se
poderia imaginar, em zonas de conflito nem nos Estados que fazem a
guerra. O que se vê atualmente, segundo Krause (2016), é uma
447
diminuição das guerras interestatais e um aumento da violência
política organizada, que tem em seu fundamento uma relação entre o
macro/político e o micro/privado.
Outro motivo que exemplificaria a nebulosidade são os atores.
Ao passo que Forças Armadas, que deveriam executar funções de
defesa, e Forças Policiais funções de segurança, essas Forças
Singulares têm por vezes, juntas, exercido a função de segurança
pública, o que leva a uma certa porosidade entre atores e funções
(SALVADORI, 2020). Nesse cenário, os atores intraestatais não-
militares ocupam o vácuo de poder deixado pelo Estado a respeito de
necessidades básicas e bens coletivos, principalmente em
microrregiões como as favelas, com o objetivo principalmente de
lucro financeiro, não necessariamente de ocupar o local de poder do
Estado (MIRANDA, 2019). O autor Miranda (2019) também comenta
que esses atores não-militares, como as facções, apesar de não
ocuparem essa função militar oficialmente, também têm passado por
um aumento em sua militarização, assim como os próprios militares.
Nessa configuração, o uso da força por atores militares é visto como
legítimo, enquanto a violência dos atores não-militares como
ilegítimo (KRAUSE, 2016).
Os autores citados corroboram com esse estudo ao elucidar o
fenômeno da guerra no nível intraestatal e sugerir que o que se vive
em alguns Estados é semelhante a uma guerra devido aos atores
envolvidos e os níveis e características da violência. Agora, iremos
trazer os autores que tratam da violência em seu caráter mais
ancestral, a coalizacional intersocietária, e o entendimento de ingroups
e outgroups cognitivos para o andamento da pesquisa.
Ao olhar para uma característica predominante da guerra, a
violência, Lorenz (2002) chega em observações muito pertinentes
para esse estudo. Após estudar o comportamento de peixes e
448
humanos, Lorenz (2002) nota que quando há uma violência mais
agressiva e letal, ela ocorre predominantemente dentro da mesma
espécie, mas entre diferentes grupos formados. Isso significa que a
violência legítima ocorre apenas entre humanos, por exemplo, mas a
partir da formação e coalizão de pelo menos dois grupos distintos.
Isso é interessante pois será posteriormente observado por autores da
Big History para confirmar a mesma observação entre chimpanzés
(BARREIROS, 2018) e usar deste cenário um exemplo de
manifestação de um Outro (VAINFAS, 2017).
O Outro que mencionamos é definido como “um elemento
arquétipo, isto é, uma manifestação de um inconsciente coletivo de
uma coletividade, associado a experiências universais e
geneticamente herdado” (VAINFAS, 2017, p. 26 e 74 apud PIMENTEL,
2022, p. 36). No caso da guerra e da violência coalizacional
intersocietária, o Outro é personificado pelo outro ou outros grupos
com quem a violência é direcionada e sua existência muitas vezes
também é a motivação do conflito. Entretanto, Vainfas (2017) nos
explica que somos capazes de projetar Outros, também chamados de
outgroups, mesmo em contextos de não-violência, ou seja, que eles
existem mesmos em momentos que não existe conflito, mas que a
violência pode ser uma das maneiras que encontramos de lidar com
a sua existência. Além disso, os autores nos mostram que, a medida
que a única maneira de lidar com o Outro para chimpanzés, por
exemplo, é o confronto, para Homo sapiens, devido a formulação de
uma ética, a forma de lidar com esse indivíduo pode ser contornada,
buscando evitar o conflito, apesar de haver diferentes manifestações
violentas de tratamento do Outro em ambas espécies.
Ademais, visto que o Outro é um elemento arquétipo, uma de
suas características que será relevante para este estudo é o fato da sua
origem ser de uma repetição, apontada por Vainfas (2017, p. 26): “ele
[o arquétipo] se desenvolveu por meio das experiências cotidianas,
449
repetidas e sistemáticas de nossos antepassados”. Tal insight será
adiante um dos apoios teóricos para o outgroup presente no contexto
desta pesquisa.
MÉTODO
Como buscamos nos aproximar do fenômeno estudado a partir
de um entendimento dos seus níveis pessoais e estruturais,
entendemos que a abordagem mais pertinente é a qualitativa e
multimétodo. Primeiramente, faremos entrevistas em profundidade
(BELK et al., 2012), que nos permitem acessar as motivações e
posicionamentos do indivíduo, com aqueles que estão mais próximos
do fenômeno, a saber: policiais militares, moradores das ou próximos
às comunidades, população geral e jornalistas. O que se procurará
entender é como veem e vivenciam o fenômeno a partir de um roteiro
de entrevista semi-estruturado. Para aumentar a amostra a partir da
indicação de outros entrevistados, utilizaremos o método bola de
neve (MALHOTRA et al., 2008). A seguir, coletaremos e analisaremos
reportagens que abordam o conflito dentro de um período temporal
definido, para assim destacar os códigos que se desenham sobre o
fenômeno de um ponto de vista estrutural.
Por fim, adotaremos a análise temática (BRAUN; CLARKE,
2006) para analisar o que as entrevistas e reportagens nos disseram.
Este é um método adequado para um grande conjunto de dados e que
envolve “identificar, analisar e reportar padrões (temas) dentro de
um conjunto de dados.” (BRAUN; CLARKE, 2006, p. 79, tradução
nossa). Neste método, a seleção e a prevalência de temas cabem ao
pesquisador e é com foco em suas escolhas e percepções que se
desenvolve. A partir do levantamento de códigos iniciais, os
agruparemos em subcategorias e depois em categorias, mediante a
450
afinidade entre os resultados. Com isso, chegaremos em categorias
robustas que representarão os resultados da pesquisa.
Justificativa Da Pesquisa
Como pudemos observar pela literatura, diversos autores
contemporâneos estudaram o fenômeno, mas com um foco para os
dados e métodos empregados neste conflito. A proposta e justificativa
desta pesquisa é então poder acessar as motivações de origem
cognitiva para contribuição a fim de uma base teórica e robusta sobre
o tema, permitindo um entendimento de como um fenômeno
cognitivo pode facilitar ou legitimar um conflito moderno.
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VAINFAS, D. R. O Arquétipo da Guerra: a alquimia entre o etológico
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Curso de Economia Política Internacional,Instituto de Economia,
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453
Hegemonia e imperialismo no sistema-mundo moderno:
propondo um modelo para pensar as relações centro-periferia no
século XXI
Bruno Hendler1
Gabriela Tamiris Rosa Corrêa2
Henrique Jorgielewicz Rogovschi3
Resumo: Este artigo tem como principais objetivos: (a) realizar uma
breve análise do debate em torno dos conceitos de imperialismo e
hegemonia por meio da proposição de um modelo heurístico que
contribua para pesquisas empíricas direcionadas a esse tema; e (b)
efetuar uma análise dos artigos mais citados no campo de estudos
sobre imperialismo, examinando-os à luz do modelo heurístico
proposto. Neste estudo, observamos os seis artigos contemporâneos
mais citados no banco de dados Scopus, encontrados a partir da
pesquisa dos radicais “Imperialism”, “Capitalism” e “State”. Com base
no modelo proposto, que caracteriza o imperialismo como uma
1
Professor no Curso de Relações Internacionais e no Programa de Pós-Graduação
em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria
(PPGRI/UFSM). Contato: [email protected].
2
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Economia Política
Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ). Contato:
[email protected].
3 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Economia Política
Internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PEPI/UFRJ). Contato:
[email protected].
454
intersecção entre a acumulação por espoliação e a extorsão, nossas
descobertas revelaram que: (a) os seis artigos identificados enfatizam
a lógica de acumulação de capital, materializada pela construção de
monopólios e pela busca por lucros extraordinários, como um
elemento central do imperialismo; (b) três dos seis artigos também
consideram expressões relativas ao militarismo, como o uso da força
e a extorsão de regiões periféricas por países centrais, como elementos
cruciais do fenômeno imperialista. Portanto, observa-se que, ao
discutir o imperialismo no século XXI, há uma convergência dos
autores sobre a centralidade da acumulação de capital por vias de
espoliação em processos imperialistas. Contudo, a projeção de poder
por meio da extorsão se coloca como um elemento de dissonância.
Assim, a nossa proposição de elaborar um modelo heurístico que
estabeleça as fronteiras conceituais entre projeção hegemônica e
imperialista permitiu a identificação dessa lacuna, suscitando a
importância de se discutir a dialética centro-periferia a partir de
categorias analíticas definidas.
Palavras-Chave: Capitalismo; Estados Unidos; Hegemonia;
Imperialismo; Militarismo.
Introdução
Payne e Silver (2022) utilizam a definição de Charles Tilly para
postular que, durante o auge de sua expansão (1945-1973), os EUA
foram um “protetor legítimo”, por se caracterizarem como “alguém
que oferece um escudo necessário, mas tem pouco controle sobre o
surgimento do perigo”. Nas décadas pós-guerra, mantiveram uma
hegemonia gramsciana, sendo vistos pelos aliados como uma
liderança consensual e benéfica para a coletividade. Contudo, desde
os anos 1970, o país parece estar adotando uma postura mais
extorsiva e imperial do que hegemônica, como um racketeer, ao
455
produzir instabilidade e “perigo para, por um preço, oferecer sua
proteção”. Os autores destacam o governo Trump (2016-2020) como
o exemplo mais notório dessa face extorsiva, tanto em relação a
antigos aliados como Alemanha e Coréia do Sul, quanto em relação a
países alvo de intervenções, como Síria, Iraque e Afeganistão.
Este artigo parte da discussão em torno dos limites conceituais
entre imperialismo e hegemonia4 e estabelece os seguintes objetivos:
(a) conduzir uma análise do debate em torno dos conceitos de
imperialismo e hegemonia; (b) propor um modelo heurístico, que
visa aprimorar a base conceitual para pesquisas empíricas voltadas a
compreender os processos de imperialismo, ao mesmo tempo que
estabelece um contraste com os processos gramscianos de liderança
hegemônica; e (c) realizar uma análise dos artigos e tópicos mais
frequentemente citados na área de estudos sobre imperialismo,
explorando-os à luz do modelo desenvolvido. Trata-se um trabalho
de natureza qualitativa, que se utiliza de revisão bibliográfica e
análise bibliométrica para a sua realização.
O trabalho está dividido em duas seções, para além da
introdução e das considerações finais. Primeiro, há a proposição do
modelo heurístico à luz da discussão teórica entre hegemonia e
imperialismo. Segundo, tem-se a realização da análise do estado da
4
Sobre o debate, consultar: PANITCH, Leo; GINDIN, Sam. Global Capitalism
and American Empire. Socialist Register, v. 40, p. 1-42, 2004. NEXON, Daniel H.;
WRIGHT, Thomas. What’s at stake in the American Empire debate. American
Political Science Review, v. 101, n. 2, p. 253-271, 2007. SAULL, Richard. Empire,
Imperialism, and Contemporary American Global Power. International Studies
Perspectives, v. 9, p. 309-318, 2008. DESTRADI, Sandra. Empire, Hegemony, and
Leadership: Developing a Research Framework for the Study of Regional
Powers. GIGA Working Papers, nº 79, 2008. MILIOS, John; SOTIROPOULOS,
Dimitris P. Rethinking Imperialism: a study of capitalist rule. Nova Iorque:
Palgrave Macmillan, 2009. 248 p. PRYS, Miriam; ROBEL, Stefan. International
Studies Perspectives. Journal of International Relations and Development, v.
14, p. 247–279, 2011.
456
arte da produção acadêmica acerca do imperialismo a partir da
análise qualitativa dos seis artigos mais citados. Por fim,
desenvolvemos as considerações finais, trazendo à tona o debate
sobre a importância das discussões teórico-conceituais e do
desenvolvimento de dispositivos heurísticos para compreender o
debate sobre hegemonia e imperialismo dentro do campo da
Economia Política Internacional.
A definição de fronteiras entre os conceitos de hegemonia e
imperialismo no século XXI: propondo um modelo heurístico
A figura abaixo consiste na proposição de um modelo heurístico
que diferencia a projeção hegemônica da prática imperialista pelos
países centrais. O modelo parte da premissa fundamental de que o
sistema-mundo moderno é dividido em dois subsistemas distintos:
(1) o sistema interestatal, composto por Estados que operam sob a
lógica territorialista de acumulação de poder; e (2) a economia-
mundo capitalista, formada por empresas que seguem a lógica
capitalista de acúmulo de poder, isto é, da busca incessante pela
acumulação de capital (WALLERSTEIN, 2006; ARRIGHI, 1996). A
interseção entre os dois subsistemas consiste no cenário onde ocorre
a projeção, de forma hegemônica ou imperialista, das nações centrais
sobre as periféricas. O modelo a seguir é uma simplificação teórica
com o intuito de facilitar a compreensão e oferecer uma explicação
para o comportamento hegemônico e/ou imperialista de grandes
potências.
457
Figura 1. As fronteiras entre hegemonia e imperialismo a partir das
lógicas capitalista e territorialista de acumulação de poder
Fonte: elaboração dos autores.
Imperialismo e hegemonia na lógica capitalista
No canto superior direito do modelo, encontram-se as áreas em
azul e verde, que representam o subsistema da economia-mundo
capitalista, a qual funciona sob a lógica capitalista do poder. A região
azul corresponde à fronteira competitiva entre os principais modelos
de negócios, onde prevalece a dinâmica dos fluxos de capital. Neste
espaço, empresas se unem, desaparecem, mudam de localização,
adaptam seus nichos de produtos, redes de produção e, por vezes,
adentram o mercado financeiro (HARVEY, 2005; SILVER, 2014). Esse
ambiente é caracterizado pela aplicação da fórmula marxiana de
acumulação de capital: dinheiro-mercadoria-mais dinheiro/capital
(D-M-D´). Devido à tendência de queda nas taxas de lucro, as
empresas são impelidas a explorar novas oportunidades de
acumulação.
As perspectivas clássicas sobre o imperialismo sustentam que a
exportação de capital surge como resultado das crises econômicas nas
nações metropolitanas onde vigora o capitalismo pleno, e que elas se
458
tornam imperialistas devido à saturação de seus mercados
domésticos. Consequentemente, as regiões periféricas funcionam
como “válvulas de escape”, aliviando as pressões das revoltas
trabalhistas e conflitos entre as nações industrializadas, enquanto
também resolvem o desafio da queda nas taxas de lucro das empresas
(HOBSON [1902] 1981; LUXEMBURGO [1913] 1970; LENIN [1917]
2005). Boron (2007) desafia essa visão ao demonstrar que a expansão
econômica de países centrais sobre os periféricos pode ocorrer não
apenas em momentos de crise, mas também durante períodos de
prosperidade material, como exemplificado pelo caso da exportação
de capital pelos EUA no período do pós-guerra (1945-1973).
Dessa forma, seja em momentos de crise ou de prosperidade
econômica doméstica, as empresas dos países centrais tendem a
projetar sua lógica de acumulação de capital sobre a periferia. Isso
estabelece uma condição necessária, embora não suficiente, para a
manifestação de comportamentos imperialistas ou hegemônicos.
Enquanto os autores clássicos do início do século XX identificavam a
exportação de capital como o principal indicador de imperialismo, ao
longo do tempo esse processo se tornou mais complexo,
incorporando outros elementos, como serviços financeiros
(empréstimos e doações), comércio, integração produtiva por meio de
cadeias globais de valor, acordos de cooperação cambial, serviços de
construção civil e a própria exportação de capital através de
investimento direto no exterior (FONTES, 2015; ROBERTS, 2021).
Seguindo a lógica capitalista de acumulação de poder,
conforme delineada por Arrighi (1996), é crucial analisar a projeção
de capital dos países centrais sobre os periféricos através da função
dinheiro-território-mais dinheiro (D-T-D'). Nessa dinâmica, o
controle de territórios estrangeiros via projeção de poder sobre o
espaço geográfico pelos países centrais serve como um meio para
atingir o objetivo final de garantir a interminável acumulação de
459
capital de suas empresas. Ou seja, o propósito é assegurar que os
processos capitalistas que ocorrem na periferia (seja em um país
soberano, um protetorado ou uma colônia) evitem a queda nas taxas
de lucro e propiciem a criação de monopólios que garantam lucros
extraordinários das empresas dos países centrais.
À luz do “Pêndulo de Polanyi” acerca das mudanças na
organização econômico-social, Silver (2014) argumenta que a
influência econômica exercida pelas empresas dos países centrais
sobre os países periféricos tende a manifestar-se de duas maneiras.
Por um lado, existem arranjos em que prevalece um contrato social
que protege os trabalhadores dos efeitos do mercado, reduz as
disparidades de classe e impõe ao capital a internalização dos custos
socioambientais da acumulação. Nesse contexto, o pêndulo se inclina
em direção às forças do trabalho, corroborando a legitimidade da
organização econômico-social em vigor (SILVER, 2014). Isso é
exemplificado pelo desenvolvimento a convite sob a égide do Estado
keynesiano, predominante na Europa Ocidental e no Japão no pós-
guerra. Nessas situações, a atuação do capitalismo norte-americano
resultou em níveis sem precedentes de progresso socioeconômico
para seus aliados, solidificando o caráter hegemônico da sua
liderança.
O segundo polo de influência econômica é caracterizado pela
superexploração da força de trabalho e pela acumulação que envolve
uma apropriação injusta de recursos. Silver (2014, p. 58, tradução
própria) argumenta que a incapacidade do modelo hegemônico de
acumulação em prover o desenvolvimento igualitário entre Estados
centrais e periféricos leva à “uma profunda crise de legitimidade para
o capitalismo”. Isso, combinado à uma queda nas taxas de lucro dos
países do centro, resulta numa inclinação do pêndulo em direção às
forças de mercado, ocasionando na substituição da proteção social
pela liberdade do capital. Tem-se, assim, um aumento nas taxas de
460
lucro (sem justiça social), à repressão salarial e à coletivização dos
impactos ambientais, um processo que Harvey (2005) denomina de
“acumulação por espoliação”.
Ellen Wood (2003) infere que o caso seminal deste processo é a
projeção da Inglaterra sobre a Irlanda no século XVII. Em um
primeiro momento a Inglaterra tem sua agricultura incorporada à
lógica de mercado com o boom do mercado imobiliário rural, o
aumento da produtividade e da lucratividade das terras e a alienação
do trabalhador do fruto do seu trabalho, que passa a ser medido em
salário/hora e não em produção bruta. Com isso, surgem inovações
econômicas e jurídicas como a diferenciação entre terra produtiva e
improdutiva; a melhorias na fertilidade da terra; os cercamentos; e
novas concepções de direitos de propriedade. Em um segundo
momento, aristocratas e advogados ingleses passam a pressionar os
monarcas a ocupar a ilha da Irlanda para garantir a expansão dos
lucros agrícolas. Logo, haveria dever moral, direito divino e
oportunidade de lucro ao “civilizar” a Irlanda, cogitando levar
camponeses ingleses e escoceses (e até mesmo mouros da Espanha)
para implantar a agricultura capitalista na ilha vizinha. O trecho a
seguir é retirado de uma carta da elite endereçada à monarquia
inglesa e ilustra esta visão:
Again, his majesty may take this course in conscience
because it tendeth to the good of the inhabitants many
ways; for half their land doth now lie waste, by reason
whereof that which is habited is not improved to half the
value; but when the undertakers [the settlers] are planted
among them (...) and that land shall be fully stocked and
manured, 500 acres will be of better value than 5000 are
now.
Portanto, o critério não é falta de ocupação ou de cultivo da
terra na Irlanda, e sim o valor no sentido inglês, de não ser lucrativa
e produtiva nos padrões da agricultura capitalista, na proporção de
10 para 1. Argumentamos que é precisamente esta lógica que se insere
461
na acumulação por espoliação e que adquire diversas roupagens ao
longo dos séculos. Isto é, há uma espécie de “carga genética” do
capitalismo que vai do mapeamento da Irlanda por cartógrafos
ingleses no século XVII ao geoprocessamento da fronteira agrícola da
Amazônia brasileira por satélites e drones no século XXI: a busca pela
acumulação incessante de capital via externalização de custos e
superexploração da mão de obra que, conforme visto no próximo
tópico, se combina ao uso da força contra grupos e países que se
oponham a esses movimentos.
Diferentemente do desenvolvimento a convite, países nessa
situação foram forçados à periferia da economia-mundo capitalista,
limitando-se ao fornecimento de produtos primários para as nações
centrais. Tentativas de implementação de medidas protecionistas, de
promoção de desenvolvimento autônomo e de nacionalismo
econômico amplo tendem a ser restringidas. Este é o caso da maioria
dos aliados dos EUA no antigo Terceiro Mundo, bem como das
antigas colônias europeias, dentre elas, a América Latina, a África e a
Ásia, caracterizando um tipo de projeção econômica imperialista
sobre a periferia. Como exemplo dessa projeção destaca-se a
intervenção da CIA para derrubar o governo da Guatemala em 19545.
Portanto, ao contrário do que argumentam Payne e Silver
(2022), não se trata de uma mudança no Pêndulo de Polanyi ao longo
do tempo, ou seja, de uma transição do desenvolvimento a convite no
pós-guerra (projeção hegemônica) para a ascensão do neoliberalismo
e da acumulação por espoliação a partir dos anos 1970 (projeção
5
Ao analisar a contribuição das multinacionais nas práticas imperialistas
contemporâneas, Litvin (2003), por exemplo, destaca a atuação da United Fruit
Company no golpe da Guatemala em 1954. Para proteger os seus lucros, a empresa
se engajou em práticas de lobby para que o governo dos EUA derrubasse o então
presidente guatemalteco Jacobo Árbenz. O governo norte-americano, que via a
Revolução Guatemalteca como um perigo comunista, empreendeu, através da
CIA, a operação PBSuccess, derrubando o governo da Guatemala.
462
imperialista). A distinção fundamental repousa no espaço e não no
tempo, pois esses dois modelos coexistiram: o hegemônico
prevaleceu na Europa Ocidental e no Japão, enquanto o imperialista
vigorou na América Latina, África e Ásia. Portanto, a dinâmica não
se resume a uma fase hegemônica seguida de outra imperialista, mas
sim à coexistência de duas faces da liderança norte-americana: uma
hegemônica, que tolera o protecionismo com aliados centrais, e outra
imperialista, caracterizada pela exploração e extorsão de aliados e
adversários na periferia.
Dessa forma, uma condição necessária para a manifestação de
hegemonia ou imperialismo reside na maneira como as empresas
centrais se projetam sobre a periferia no contexto da acumulação de
capital (D-M-D'). Em outras palavras, nos cenários em que a
acumulação de capital envolve arranjos que incorporam a proteção
social e a internalização de custos, temos uma condição necessária,
embora não suficiente, para a hegemonia. Por outro lado, em
situações onde predominam as forças de mercado, a acumulação por
espoliação e a externalização de custos, nos encontramos diante de
outra condição necessária, porém igualmente insuficiente para o
imperialismo. Para alcançar a suficiência, esses processos devem ser
complementados pela esfera político-militar do poder. Portanto, o
foco agora se direciona à análise da outra esfera do sistema-mundo
moderno: o sistema interestatal e a gestão de conflitos armados e
disputas geopolíticas.
Imperialismo e hegemonia na lógica territorialista
As áreas em amarelo e laranja do modelo heurístico
representam a segunda esfera do sistema-mundo: o sistema
interestatal, onde os Estados operam sob uma lógica territorialista.
Isto é, a expansão (diplomática ou militar) é feita com o objetivo de
463
aumentar as áreas de influência do hegemon ou do império. A área
em amarelo corresponde aos instrumentos de projeção dos países
centrais sobre os periféricos, podendo variar entre diplomacia e uso
explícito da força. Em nosso modelo, a diplomacia está vinculada a
uma projeção do tipo hegemônica, tendo como base uma
convergência entre elites e a utilização de incentivos. O uso da força
se associa a uma projeção do tipo imperialista, concentrando-se em
medidas punitivas para obtenção do resultado desejado. Isso culmina
na fórmula território-guerra-mais território (T-G-T'), como delineado
por Fiori (2004).
A área em laranja corresponde às duas formas de projeção das
grandes potências sobre regiões periféricas: proteção consensual e
extorsão. De acordo com Tilly (1985), os governos desempenham o
papel de protection rackets. Este termo se refere a um “sistema
criminoso de obtenção de dinheiro de pessoas em troca da promessa
de não causar danos físicos a estas ou ao seu patrimônio”
(CAMBRIDGE DICTIONARY, [2023], tradução própria). O
monopólio da violência é o instrumento para efetuar a prática do
racketeering, independentemente da sua legitimidade. Dado que a
legitimidade se define pela probabilidade de que outras autoridades
obedeçam às decisões da autoridade superior, Tilly (1985) coloca a
primazia da violência sobre a legitimidade no cerne do protection
rackets (TILLY, 1985, p. 171).
Logo, a noção de proteção tem dois sentidos. O primeiro diz
respeito ao abrigo e à defesa oferecidos por um aliado poderoso
contra possíveis ameaças. O segundo assemelha-se à prática de
gangues que coagem residentes e comerciantes a pagar uma taxa em
troca de proteção, mesmo que essa ameaça seja representada pela
própria gangue (TILLY, 1985). Portanto, existe uma fronteira tênue
entre a proteção consentida (legítima), e a proteção coagida (imposta
sob a ameaça de punição). A primeira tem origem no conceito de
464
hegemonia de Gramsci, que ocorre quando um ator político detém
superioridade coercitiva sobre seus subordinados, mas se baseia
predominantemente na habilidade de exercer poder por meio de
mecanismos mais brandos, como a cooptação econômica e ideológica
(AUGELLI; MURPHY, 2007, p. 205; ARRIGHI; SILVER, 2001, p. 35).
Nesse caso, o líder é percebido como benéfico para a coletividade. Por
outro lado, a segunda forma de proteção é caracterizada pelo
predomínio da coerção e do uso da força, o que Gramsci denomina
de “dominação” e Tilly de “extorsão”.
Sustentamos que essas duas conotações de proteção estariam na
raiz não apenas da formação dos Estados modernos (TILLY, 1985),
mas também na relação de hierarquia entre eles. A assimetria na
capacidade de conduzir conflitos armados e de extrair recursos
econômicos resulta em uma série de relacionamentos desiguais entre
o ator mais poderoso (A) e o mais fraco (B), oscilando entre as facetas
de proteção e coerção. Dessa forma, ao aplicar os conceitos de Tilly
(1985) às relações internacionais, concluímos que quando a dimensão
da proteção consensual predomina, estamos diante de uma projeção
do tipo hegemônica. Por outro lado, quando prevalece a face
extorsiva, estamos diante de um dos elementos característicos da
projeção imperialista.
Após distinguirmos entre as dinâmicas de proteção
(hegemônica) e extorsão (imperialista), avançamos para o próximo
passo: compreender que, dentro desse ambiente de competição entre
grandes potências e sua projeção sobre as periferias, a lógica da
guerra permanece presente, mas, devido à assimetria de riqueza e
poder, ela gradativamente se alinha com a lógica capitalista. Isto é, a
fórmula território-guerra-mais território (T-G-T') é complementada
pela função território-dinheiro-mais território (T-D-T’), de modo que
a extração de recursos da periferia impulsiona a expansão territorial
(seja formal ou informal) do Estado mais poderoso (ARRIGHI, 1996;
465
FIORI, 2004; HARVEY, 2005). Portanto, a competição entre as grandes
potências, com base em suas capacidades materiais de poder, é
influenciada por uma disputa por zonas de influência nas periferias
do sistema. Essa disputa é moldada por alianças consensuais e/ou
extorsões. A motivação subjacente a essas ações não se limita apenas
à ampliação territorial por meio da guerra, mas também à
acumulação de capital e à imposição monetária por parte da entidade
mais forte, que busca acesso a recursos, mercados, mão-de-obra e
outros insumos.
No que diz respeito a Estados soberanos, cabe destacar, por
exemplo, a diferença de relevância que a Alemanha Ocidental e o
Vietnã do Sul tiveram para os EUA na Guerra Fria. A primeira
desempenhou um papel duplo: por um lado, foi um bastião na
contenção geopolítica da URSS e, por outro, um dos principais
mercados para as empresas transnacionais norte-americanas. Por seu
turno, o segundo tornou-se um Estado fantoche no qual os EUA
despejaram grandes quantias de dinheiro e recursos humanos, mas
com retornos de capital limitados, sendo a principal motivação a
contenção da influência soviética. Portanto, no caso da Alemanha
Ocidental, vemos um exemplo típico em que a lógica T-G-T' se projeta
de maneira consensual e se combina à lógica T-D-T', ao transformar-
se em uma extensão do capitalismo norte-americano. Isso resultou em
um estado de bem-estar com proteção social capaz de evitar o
surgimento de partidos socialistas e amparado no escudo militar dos
EUA.
Por outro lado, o Vietnã do Sul representa um exemplo típico
de extorsão, que se tornou evidente com o assassinato do presidente
Ngô Đình Diệm com a anuência da CIA em 1963, quando o governo
de Kennedy chegou à conclusão de que o ditador sul-vietnamita não
era mais capaz de lidar com a ameaça comunista. Nesse caso, a lógica
territorialista (T-G-T') não foi complementada de forma eficaz pela
466
lógica território-dinheiro-mais território (T-D-T'), já que a projeção
dos EUA no Vietnã do Sul culminou na derrota militar em 1975.
Assim, quando a face extorsiva é predominante, temos uma condição
necessária, embora não suficiente, para projeção imperialista
(combinação de uso da força e extorsão). Por outro lado, quando a
face da proteção consensual prevalece, temos uma condição
necessária, mas não suficiente, para a prevalência da projeção
hegemônica (uma combinação de diplomacia e proteção).
As tentativas do Estado mais fraco de escapar desse
enquadramento geralmente enfrentam repressão dentro da lógica
território-dinheiro-território (T-D-T'), resultando em extorsão por
meio de práticas econômicas e jurídicas, como boicotes, sanções,
processos e pressões em organizações internacionais. Como exemplos
relativos à projeção imperialista norte-americana, destacam-se,
contemporaneamente, Cuba e Irã. Em casos extremos, essas tentativas
podem levar a ações militares, seguindo a lógica território-guerra-
mais território (T-G-T'), como golpes e guerras coloniais e
neocoloniais. O caso mais notório é a invasão norte-americana no
Iraque. Por outro lado, os governos que reconhecem como legítima e
benéfica a proteção recebida, tendem a se transformar em
protetorados, formais ou informais. No caso da projeção hegemônica
estadunidense, Porto Rico se destaca como um protetorado formal,
enquanto o Japão como um protetorado informal, dado à relevância
da proteção norte-americana ao seu território.
A dialética entre coerção e capital nas relações centro-periferia
Nosso argumento reside na dialética, do centro em direção à
periferia, entre a lógica expansiva dos Estados e a lógica de
acumulação de capital e extração de mais-valia. A afirmação de que o
imperialismo é uma consequência do capitalismo monopolista do
467
setor bancário-industrial, como argumentado por Hilferding ([1910]
1985) e Lênin ([1917] 2005), abrange apenas parte da questão, uma vez
que os Estados operam sob uma lógica própria de expansão e
competição por poder e território. Portanto, a anexação de territórios
ultramarinos por potências europeias no final do século XIX foi, de
fato, uma estratégia para obter matérias-primas para as indústrias em
crescimento na Europa. No entanto, também representou um
movimento de disputa pelo controle de pontos estratégicos e, no
limite, de preparação para guerras.
Desse modo, o imperialismo decorre da interseção entre
práticas de espoliação econômica e uso da força, sempre assumindo
novas formas. David Harvey (2005) destaca o papel crucial do “novo
imperialismo” surgido na década de 1970 em resposta à crise do
sistema capitalista e à reconfiguração espaço-temporal subsequente.
Desde então, o projeto neoliberal tem desempenhado um papel
fundamental enfraquecendo os Estados periféricos e tornando-os
mais vulneráveis às crises sistêmicas. A privatização tem sido central
na acumulação por espoliação, envolvendo a capitalização de bens
essenciais, como a água, o deslocamento de comunidades rurais e a
substituição da agricultura familiar pelo agronegócio. Instituições
internacionais como o FMI, o Banco Mundial, a OMC e os acordos de
propriedade intelectual apoiam esse tipo de acumulação, limitando a
competição justa e forçando a abertura de mercados, com o respaldo
dos EUA. Nesse contexto, as opções de coerção disponíveis aos EUA
se ampliam, incluindo golpes militares, intervenções diretas e ações
fiscais do FMI em países periféricos (HARVEY, 2005).
Na mesma linha, em “Império do Capital”, Ellen Wood (2003)
argumenta que, apesar da aparente separação entre o poder político
e econômico devido à influência do capital, o Estado mantém um
papel fundamental na proteção dos interesses da classe capitalista e
na manutenção da ordem social necessária à acumulação de capital.
468
No imperialismo capitalista contemporâneo, a coerção econômica
desempenha um papel predominante, embora o uso de força
extraeconômica (política, militar ou judicial) também seja crucial para
manter essa ordem. O endividamento estatal é o principal
instrumento deste tipo de imperialismo, utilizado por organizações
internacionais, como o FMI e o Banco Mundial, para impor ajustes
estruturais que tornam as economias periféricas mais vulneráveis às
pressões do capital global (liderado pelos EUA). Wood (2003) destaca
a necessidade de um poder militar esmagador para administrar a
ordem social propícia à acumulação de capital, mantida atualmente
pelos EUA.
Então, o imperialismo do século XXI mantém seu objetivo de
explorar a periferia em favor da acumulação de capital, no entanto,
assume uma nova roupagem. Trata-se de um fenômeno complexo,
que engloba dimensões políticas, econômicas e militares
interdependentes. No âmbito político, as estratégias de controle e
influência dos países centrais sobre os periféricos visam explorar seus
recursos e mercados, enfraquecendo lideranças locais por meio da
aplicação de políticas neoliberais. Estas estratégias são
operacionalizadas por meio de instituições e acordos internacionais
desiguais que limitam a autonomia de desenvolvimento dos países
periféricos. Na dimensão econômica, há a exploração dos recursos
naturais e da mão-de-obra, frequentemente, através da exportação de
capitais por multinacionais, com o objetivo de acumular capital.
Ainda, a dimensão militar é evidenciada pelo poder bélico e
intervenções promovidas pelos países imperialistas para
salvaguardar seus interesses.
Em suma, os autores do debate contemporâneo sobre o
imperialismo no século XXI (CALLINICOS, 2007; HARVEY, 2005;
WOOD, 2003) reconhecem a intersecção entre as dimensões do
capitalismo e do militarismo como elemento formador do
469
imperialismo. Isto é, os autores denotam a centralidade da busca por
novas formas e novos espaços de acumulação de capital, ao mesmo
tempo em que retomam o protagonismo do Estado para garantir esse
processo. Isso implica no reconhecimento de uma dinâmica dupla na
projeção imperialista, em que a competição intercapitalista e a
competição interestatal coexistem em meio às disputas por influência,
poder e riqueza. Portanto, nossa proposta com o modelo heurístico
foi identificar esses dois tipos de dialéticas: (1) na economia-mundo
capitalista há a dialética entre o desenvolvimento a convite e a
acumulação por espoliação; e (2) no sistema interestatal há a dialética
entre proteção e extorsão. A tabela abaixo sintetiza o nosso
argumento.
Tabela 1. Projeção hegemônica e imperialista no Sistema-Mundo
Moderno
Subsistemas
Dimensão Hegemonia Imperialismo
do SMM
Desenvolvimento a Acumulação por
Economia-
convite e internalização espoliação e
mundo Econômica
de custos dos bens superexploração do
capitalista
públicos trabalho
Sistema Política e
Proteção Extorsão
interestatal Militar
Fonte: elaboração dos autores.
Os clássicos do imperialismo do início do século XX analisaram
as dinâmicas de sua época, marcadas pelo aprofundamento das
contradições de classe, o surgimento de ideais revolucionários e a
intensificação da rivalidade entre as grandes potências. Esses autores
destacaram elementos comuns em suas análises, como: a exportação
de capitais dos países centrais para as regiões periféricas (visando
aumentar a taxa de acumulação), a formação de monopólios
econômico-financeiros, o surgimento de classes financeiras
470
(rentistas), a coexistência de sistemas de produção híbridos (relações
capitalistas e não capitalistas, como a escravidão) e o papel central do
militarismo (uso da violência) ligado à busca por poder
(HILFERDING, [1910] 1985; LUXEMBURGO, [1913] 1970; KAUTSKY,
1914; LENIN, [1917], 2005; BUKHARIN, [1918] 1984). Esses elementos
convergem em dois conjuntos específicos, o capitalismo e o
militarismo. Quando se relacionam à acumulação por espoliação, à
superexploração do trabalho e à extorsão, esses dois conjuntos
denotam uma projeção imperialista nas relações centro-periferia,
conforme argumentamos no modelo proposto anteriormente.
O estado da arte da produção sobre imperialismo: análise
qualitativa
Para analisar se as produções contemporâneas sobre o
imperialismo abordam as duas dimensões analíticas do termo, ou
seja, o capitalismo (com foco na acumulação por espoliação e na
superexploração do trabalho) e o militarismo (que envolve a
extorsão), na próxima seção conduzimos uma análise qualitativa dos
artigos mais citados encontrados no banco de dados Scopus.
Utilizamos os termos de pesquisa "Imperialism", "Capitalism" e
"State" nos títulos, resumos e palavras-chave dos documentos. Após
a aplicação dos filtros relevantes6, identificamos um total de 375
trabalhos sobre o tema, com o primeiro documento datado de 1962.
Realizamos uma análise qualitativa dos seis artigos mais citados7,
com o objetivo de identificar (i) o conceito de imperialismo utilizado
6
Selecionamos as áreas de "Social Sciences", "Arts and Humanities", "Economics,
Econometrics and Finance" e "Business, Management and Accounting" e
limitamos a pesquisa a documentos finais, ou seja, a trabalhos que já foram
publicados, não incluindo trabalhos em andamento.
7 A busca na Plataforma Scopus foi realizada durante o mês de outubro de 2022.
A seleção dos seis artigos mais citados decorre da limitação de espaço para a
inclusão de novos trabalhos neste manuscrito.
471
e (ii) o argumento desenvolvido ao longo dessas obras com base nesse
conceito.
Em "Life as Surplus: biotechnology and capitalism in the
neoliberal era" (728 citações), Melinda Cooper (2008) argumenta que
o neoliberalismo reforçou a aliança entre o Estado norte-americano, o
mercado de novas tecnologias e o capital financeiro, impulsionando
pesquisas nas ciências da vida. De acordo com a autora, as regras
comerciais e de propriedade intelectual sob influência dos EUA
favorecem suas indústrias farmacêutica, de agronegócio e de
biotecnologia. Ademais, apesar dos déficits comerciais e da dívida
pública, a posição central do dólar permite a atração de capital para
os EUA. Isso dá origem a um ciclo vicioso de imperialismo da dívida,
no qual os países periféricos são forçados a se endividar para garantir
sua segurança biológica, mas não têm meios de arcar com os custos
elevados de produtos patenteados pelo centro. Ao mesmo tempo, as
pesquisas relacionadas às ciências da vida contribuem para a geração
de tecnologias militares. Assim, o trabalho de Cooper (2008) ilustra
como a biotecnologia se encontra na intersecção entre extorsão e
acumulação por espoliação. A extorsão se manifesta por meio de
armas biológicas, enquanto a espoliação é evidente nos monopólios
das empresas farmacêuticas, que garantem lucros extraordinários.
No artigo "Food Regimes and the Production of Value: some
methodological issues” (107 citações), Farshad Araghi (2003) destaca
a relação entre o regime alimentar global e o imperialismo. Ele
argumenta que a ascensão do neoliberalismo levou à perda da
capacidade dos Estados periféricos (principalmente africanos e
asiáticos) de suprir suas necessidades alimentares. Isso ocorre devido
à especialização na produção de commodities primárias, exploradas
por multinacionais agroindustriais, que tornam esses países
dependentes das exportações em detrimento do consumo interno. A
partir do conceito de imperialismo embutido, o autor ressalta que o
472
imperialismo está arraigado nas relações globais de valor,
envolvendo Estados, mercados globais e regimes de trabalho em
busca de lucros. Sob o neoliberalismo, essa dinâmica cria uma
dicotomia entre o superconsumo e a superabundância, em contraste
com o subconsumo forçado e a fome. O estudo de Araghi se concentra
na espoliação, não abordando sua relação com a extorsão e o uso da
força pelos Estados centrais.
No artigo "Imperialism and resistance: Canadian mining
companies in Latin America" (94 citações), Todd Gordon e Jeffery R.
Webber (2008) discutem o conceito de acumulação por espoliação de
David Harvey como uma ferramenta útil para compreender as
práticas predatórias das mineradoras canadenses na América Latina
desde 1990. A partir do conceito de imperialismo capitalista, os
autores evidenciam que a procura por novos espaços de acumulação
resulta em processos violentos e forçados de reorganização das
comunidades locais. Esses grupos se submetem involuntariamente
aos interesses do capital, apoiados pelo poder do Estado-sede das
empresas multinacionais e pelo Estado receptor desses
investimentos. As imposições de políticas de ajuste estrutural pelo
FMI, por exemplo, resultam na submissão dos países periféricos, ao
eliminar barreiras comerciais e de investimento, reduzir serviços
públicos e subsídios aos produtores locais, e catalisar a privatização
de terras comunitárias. Esse processo resulta da convergência entre
extorsão e espoliação.
No artigo “Beyond the Theory of Imperialism: global capitalism
and the transnational state” (86 citações), William I. Robinson (2006)
argumenta que o capitalismo entrou em uma fase transnacional
desde os anos 1990. Para ele, o imperialismo contemporâneo é
caracterizado pela cooperação e confronto entre capitais
genuinamente transnacionais, que utilizam instituições
transnacionais, como o FMI e a OMC, para impor seus interesses. A
473
competição entre essas classes capitalistas transnacionais ocorre
através de grandes conglomerados globais, independentemente do
país de origem, e nem sempre se expressa na rivalidade entre Estados.
Ele ilustra isso com o exemplo da rivalidade entre a IBM e a
Cognizant Technology Solutions, ambas empresas americanas que
competem por contratos de terceirização na Índia. Além disso, as
instituições internacionais, ao imporem políticas de ajuste estrutural,
facilitam a entrada de capitais transnacionais em países
subdesenvolvidos, permitindo a exploração da mão de obra local e
dos recursos naturais. Portanto, no imperialismo transnacional, a
exploração ocorre de forma mais sutil, com o apoio de instituições
internacionais que promovem a paz e a complementaridade entre as
nações, dispensando ferramentas de extorsão entre países do centro e
da periferia.
No artigo “Digital Colonialism: US empire and the new
imperialism in the Global South” (85 citações), Michael Kwet (2019)
argumenta que os EUA estão reinventando o colonialismo no Sul
Global através do domínio da tecnologia. Esse controle se dá através
do controle das Big Techs norte-americanas sobre o ecossistema
digital, abrangendo software, hardware e conectividade de rede. Esse
monopólio permite aos EUA controlar os aspectos culturais, políticos
e econômicos da vida social global, ao violar a privacidade dos
usuários, direcionar propagandas e estabelecer um capitalismo de
vigilância, catalisado pela parceria entre as agências de inteligência e
as corporações multinacionais. Kwet argumenta que o imperialismo
das big techs, em conjunto com o colonialismo digital, confere aos
EUA um poder político, econômico e social sem precedentes. A
assimilação dos produtos tecnológicos dos EUA pelos países
subdesenvolvidos resulta desse colonialismo digital, em que as
corporações tecnológicas do centro minam as indústrias locais,
dominam os mercados e extraem receitas. A visão de Kwet (2019) se
474
concentra principalmente no aspecto econômico do imperialismo
contemporâneo, prescindindo de práticas extorsivas diretas.
No artigo "Return to Empire: the new U.S. imperialism in
comparative historical perspective" (75 citações), George Steinmetz
(2005) analisa as ações dos EUA no Iraque. O seu conceito de
imperialismo não territorial/informal denota uma interseção entre
atributos econômicos e político-militares. No âmbito econômico,
enfatiza os monopólios científico-tecnológicos e produtivos dos EUA
que garantem mercados e matérias-primas, facilitados pela expansão
do neoliberalismo. Politicamente, destaca a difusão de práticas e
identidades do centro para as periferias dominadas, com ênfase em
conceitos universalizantes, como direitos humanos, democracia e
livre-mercado, reduzindo as capacidades estatais na periferia e
aumentando a vigilância do centro sobre ela. Militarmente, aborda o
caráter pós-fordista/flexível do novo estilo americano de guerra, com
armamentos precisos e ocupações pontuais, visando à acumulação de
capital permanente e à promoção dos valores norte-americanos.
Assim, o imperialismo não territorial/informal resulta da
convergência entre espoliação e extorsão.
A tabela a seguir categoriza os seis artigos analisados conforme
o modelo proposto na primeira seção do manuscrito. A primeira
coluna apresenta o nome do autor ou autora do trabalho. Na segunda,
encontra-se o conceito de imperialismo adotado. A terceira destaca o
tema central explorado no artigo, justificando o uso do termo
"imperialismo". Por fim, na quarta coluna, estão as categorias do
nosso modelo, vinculadas às duas esferas do sistema-mundo
moderno: a economia-mundo capitalista e o sistema interestatal. Elas
estão relacionadas à lógica capitalista (espoliação) e à lógica
territorialista (extorsão) de acumulação de poder. De acordo com o
nosso modelo, somente quando essas duas lógicas se entrelaçam
475
(capitalismo e militarismo) é possível identificar práticas
imperialistas por parte de países centrais em regiões periféricas.
Tabela 2. Categorização dos artigos mais citados na plataforma
Scopus conforme o modelo heurístico proposto
Autor(a) Conceito-chave Tema SMM
O papel das ciências da vida no
imperialismo dos EUA no século XXI:
Cooper Imperialismo da Extorsão e
endividamento da periferia, ascensão do
(2008) Dívida espoliação
neoliberalismo, e militarização da
biotecnologia
Atuação de empresas mineradoras
Gordon;
Imperialismo canadenses na América Latina: atividades Extorsão e
Webber
Capitalista predatórias, apoio estatal e reorganização espoliação
(2008)
forçada das comunidades locais
O imperialismo norte-americano como
contraposição ao colonialismo: a
utilização de instrumentos econômicos,
Steinmetz Imperialismo Extorsão e
militares e políticos (como a cultura e a
(2005) Não-Territorial espoliação
difusão de valores universalizantes) para
o espraiamento do regime de acumulação
flexível
Regime alimentar global: superexploração
Araghi Imperialismo de terras na periferia, e dicotomia entre
Espoliação
(2003) Embutido abundância de alimentos e subconsumo
forçado
Imperialismo das A reinvenção do colonialismo pela
Kwet Big Techs e dominação das tecnologias: o controle
Espoliação
(2019) Colonialismo imperial norte-americano através do
Digital ecossistema digital
A transnacionalização do capital como
Robinson Imperialismo
elemento catalisador da dominação Espoliação
(2006) Transnacional
capitalista sobre o sistema interestatal
Fonte: elaboração dos autores.
476
Nos três primeiros artigos (COOPER, 2008; GORDON;
WEBBER, 2008; STEINMETZ, 2005), observamos uma convergência
no conceito de imperialismo que abarca as duas esferas do sistema-
mundo moderno: a economia-mundo capitalista e o sistema
interestatal. Neles, o imperialismo é abordado considerando tanto a
acumulação de capital quanto a disputa interestatal e a extorsão. Por
outro lado, nos três últimos artigos (ARAGHI, 2003; ROBINSON,
2006; KWET, 2019), o foco recai principalmente na economia-mundo
capitalista, com menor ênfase na disputa entre Estados e no uso da
força. Estes trabalhos abordam o imperialismo como uma parte
integral da acumulação de capital, prescindindo das dimensões
territoriais e extorsivas do poder.
Percebe-se, portanto, que o conceito de imperialismo
incorporado nos estudos sobre (1) o monopólio norte-americano nas
ciências da vida (COOPER, 2008), (2) as atividades predatórias de
mineradoras do centro na periferia (GORDON; WEBBER, 2008), e (3)
a utilização de instrumentos econômicos, políticos e militares para a
difusão dos valores ocidentais (STEINMETZ, 2005), denotam a
intersecção entre extorsão e espoliação. Além disso, destaca-se que
nos estudos sobre (1) regime alimentar global (ARAGHI, 2003), (2)
controle sobre o ecossistema digital (KWET, 2019), e (3)
transnacionalidade do capital (ROBINSON, 2006), utilizam um
conceito de imperialismo em que prevalece o enfoque na acumulação
de capital (espoliação), sem um uso explícito da força.
Portanto, destaca-se que nos seis trabalhos analisados, o
elemento comum consiste na ênfase da acumulação por espoliação,
tendo como base a dinâmica de subordinação da periferia pelo centro
através da externalização de custos e do monopólio científico-
tecnológico. Então, quais são as implicações deste estudo? A partir da
análise qualitativa dos seis artigos mais citados, verificamos que as
discussões contemporâneas sobre o imperialismo versam sobre uma
477
agenda ampla de temas (como big techs e biotecnologia),
diferentemente da agenda clássica, centrada na exportação de capital,
no apoio do Estado à ampliação de monopólios, e nas rivalidades
interestatais. Além disso, inferimos que nos artigos analisados não há
uma convergência conceitual em torno do imperialismo. Isto é,
enquanto três apresentam intersecção entre extorsão e espoliação,
outros três enfatizam apenas a dimensão da acumulação de capital,
diferindo do conceito clássico do imperialismo, formado pela
confluência do capitalismo com o militarismo.
Considerações finais
Os objetivos deste artigo foram: (a) realizar uma breve análise
do debate em torno dos conceitos de imperialismo e hegemonia,
através da proposição de um modelo heurístico que contribua para
pesquisas empíricas direcionadas à esse tema; e (b) realizar uma
análise dos artigos mais citados no campo de estudos sobre
imperialismo, examinando-os à luz do modelo heurístico proposto.
No primeiro objetivo, propomos um modelo heurístico que contrasta
dois tipos de enquadramento da periferia pelo centro: o imperialismo
e a hegemonia. Enquanto alguns autores, como Fiori, enfatizam a
disputa interestatal por poder como a força motriz do sistema, outros,
como Wallerstein, apontam para a divisão internacional do trabalho
na economia-mundo capitalista como o elemento central. Sugerimos
a existência de uma relação dialética entre as duas esferas,
argumentando que ambas são interdependentes e representam
arenas de enquadramento da periferia pelo centro. Isso pode ocorrer
via liderança consensual e internalização de custos (hegemonia) ou
via extorsão pela força e externalização de custos através da
espoliação (imperialismo).
478
No segundo objetivo, exploramos o debate contemporâneo
sobre imperialismo. Por meio da análise de conteúdo dos seis artigos
mais citados no Scopus, identificamos que em três deles, a dimensão
do militarismo, caracterizada pelo uso da força e pela extorsão de
regiões periféricas, esteve presente. Adicionalmente, constatamos
que nos seis artigos a lógica de acumulação de capital, perpetrada por
meio do estabelecimento de monopólios e da busca por lucros
extraordinários, foi um aspecto central. Além disso, através da
categorização dos artigos analisados na Tabela 2, destacamos a
emergência de novos temas relacionados ao imperialismo. Estes
incluem tópicos como biotecnologia, regime alimentar global,
atividade de empresas mineradoras, organizações internacionais e
empresas transnacionais, ecossistema digital e difusão de valores e
princípios ocidentais. Embora não fossem originalmente o foco da
pesquisa, essa descoberta incidental amplia o horizonte para futuras
investigações sobre o tema.
Este estudo demonstra a relevância do modelo heurístico
proposto, uma vez que permite identificar a convergência das duas
esferas fundamentais do sistema-mundo moderno: a economia-
mundo capitalista e o sistema interestatal. Isto é, ao resgatar as duas
dimensões centrais do debate clássico sobre o imperialismo
(capitalismo e militarismo), o modelo proposto denotou a
importância de se estabelecer fronteiras conceituais entre termos que
apresentam similaridades, neste caso, os de imperialismo e
hegemonia. A partir da análise dos seis artigos mais citados, essa
importância ficou ainda mais evidente, ao salientar a falta de
consenso em torno do conceito de imperialismo, visto que alguns
autores reconhecem apenas a espoliação como sua característica
central. Esse trabalho ressalta a importância da realização de análises
teórico-conceituais, a fim de instrumentalizar ao pesquisador a
479
análise de fenômenos empíricos, evitando a dubiedade entre
projeções hegemônicas e imperialistas.
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482
La Economía Política Internacional del relacionamiento China y el
Pacifico Sudamericano: del Auge a la Franja y la Ruta
Milton Reyes Herrera1
Resumen: Este trabajo desde una interpretación interdisciplinaria
centrada en la Economía Política Internacional (EPI) analiza la
relación entre la República Popular China y los estados del Pacífico
sudamericano; para lo cual se realizará, como antecedentes, una
revisión de los deferentes momentos (movimientos) de la proyección
política China en la Región el periodo 2002-2015 (año de auge de la
relación birregional tomando en cuenta la región ampliada de
Sudamérica). Posteriormente se analizará de manera comparativa el
relacionamiento de los complejos estado-sociedad de la subregión
hasta el primer semestre de 2023; lo cual, incluye la revisión de
elementos trasversales como la Pandemia y Postpandemia, los
cambios políticos en la región; para finalmente revisar el estado de la
Iniciativa Franja y La Ruta (IFYR) en la subregión. El método
propuesto es de corte histórica estructural, desde la EPI crítica, y se
articulará con una lectura geopolítica de corte realista.
1
Instituto de Altos Estudios Nacionales / Pontificia Universidad Católica del Ecuador
483
Antecedentes
Latino América, Sudamérica, la Subregión Andina, y el Pacifico
Sudamericano (PSA) pueden ser consideradas como parte del anillo
tercero o cuarto de seguridad de la Proyección Política de la
República Popular China, PPC, sin intereses estratégicos directos en
el sentido de defensa.
Así, dicha proyección se centra en un discurso que parte del
Soft Power Chino (SPC) entendido como una forma particular de
actualizar el pensamiento y guía de acción estratégica presente en la
tradición confuciana, y también como estrategia económica:
Comercio, Inversión Extranjera Directa (IED), financiamiento - y
otros mecanismos crediticios como los loans for oil -; cooperación, y
mecanismos de diálogo político, de lo cual se puede deducir una
orientación a generar atracción que desde la perspectiva estratégica
tradicional china preferentemente se orienta al largo plazo
La región ampliada de Latinoamérica, o la unidad aquí
estudiada, al igual que el “sur global”, tendrían -de manera general-
para la PPC, potencialidades que pueden fortalecer su
posicionamiento estratégico global, tales como: a) oportunidad de
asociación política en instituciones internacionales que le permitan
responder a los retos del orden mundial, y el tipo de competencia que
se le viene planteando desde el centro hegemónico Estados Unidos a
partir de la administración Trump; así como, a b) abundantes
recursos, que más allá de tributar a la producción (movilización,
industria civil – militar) etc., son requeridos para fortalecer la
seguridad multidimensional, como por ejemplo, la seguridad
alimentaria, que son vitales para su población, en un contexto además
de competencia global por recursos cada vez más escasos.
A pesar de los intereses concretos como gran potencia en medio
de una competencia por el poder global, éstos están mediados por
484
formas de procesarlos que dialécticamente recogen elementos de su
propia tradición, así como planteamientos discursivos enmarcados a
no adherirse a la hegemonía de las grandes potencias (sin plantear
una reforma total del orden de la globalización liberal); así también,
como en una reapropiación de elementos propios de las teorías y
prácticas del neoliberalismo en las relaciones internacionales, tales
como: el apego a la institucionalidad, normativa y habitus de los
regímenes internacionales creados en el orden Bretton Woods - a lo
que además suma la construcción de nuevas instituciones
internacionales, como su Banco Asiático de Inversión
en Infraestructura (AIIB por sus siglas en inglés).
Así, China intenta proyectarse políticamente en su
reemergencia, como un jugador que no genere una imagen ni de
“potencia”, ni orientada a consolidar y procesar su poder como en el
caso del “poder de comando” de potencias anteriores.
Aquí, es necesario puntualizar que ya que China, así como otros
actores del OM, ven a la adscripción de los países APS a) en la
Comunidad Andina de Naciones (CAN), y también con los de
Alianza del Pacífico (AP); pero también se señala que existiría para
China otra relación de doble dimensión. Una limitada a una visión de
región sin intermediación de la CAN o AP (en propuestas regionales
más amplias), y otra, basada en las relaciones bilaterales.
En el caso de la CAN, incluye programas de capacitación y de
intercambio político y académico específicamente para
representantes de sus países. Este tipo de intercambios no están
orientados a generar un diálogo del más alto nivel, pero si intentan
promover, la comprensión de la realidad económica, política y
cultural de China y también permite generar insumos para la
comprensión de los procesos políticos de esos países, y de la
percepción que se tiene en estos sobre China. (REYES, 2015).
485
En el caso de cuando la intermediación es vía AP, además de lo
anterior, hay una centralidad en un discurso pragmático en términos
de intercambio especialmente económico (comercio y hasta 2015: IED
especialmente en Perú)
Un nivel más alto de la intermediación de los anteriores, es esa
relación a través de los foros con organismos de integración de más
largo espectro como CELAC y la anterior UNASUR; mientras que
opera en la relación bilateral específica con cada país de la subregión
APS, se debe reconocer - de manera general- algunos elementos
básicos que pueden ser caracterizados desde el pragmatismo y la
construcción cultural china, y que son transversales a su política
exterior: China resuelve el tipo de relación según cómo las proponen
las iniciativas de cada país. Visión que se desprende del principio de
no interferencia en los asuntos políticos internos de otros países. Por
lo tanto, China promueve las relaciones de largo plazo; y reconoce a
los estados como la contraparte legítima frente al estado chino
(principio jerárquico de iguales); lo cual, tiene enorme influencia en
lo referente al diálogo político, y oportunidades económicas.
En ese mismo sentido, China comprende las particularidades
de la relación con cada país y que éstas también se desprenden de la
dinámica planteada desde la concepción político económico de los
diferentes proyectos de estados y correlación de fuerzas dentro de
cada país andino.
Finalmente, en este acápite se puede señalar que, como parte de
la dinámica de la PPC, la IFR sería parte de la generación de una
fuerza centrípeta de carácter pacífico, que aquí, se va a desplegar en
primer lugar en su zona de interés natural; ampliándose
posteriormente en su trayecto hacia la región de Eurasia (a través de
los carriles sur y centro) hasta llegar al extremo occidental de la
misma, para finalmente por otro lado incluir a África. El proyecto así
486
se desplegaría en lo que el geopolítico inglés Mackinder (1904)
denominaría “Isla-Mundial”. La inclusión de la iniciativa para Latino
América y para la subregión del Pacífico Sudamericana incluyendo el
Pacífico Andino), es todavía una propuesta en permanente
reconstrucción
Por otra parte, y en relación a la caracterización del PSA, Como
primer punto se señala algunos datos preliminares sobre este espacio
geográfico humano
Caracterización de la subregión Pacífico Sudamericano
Como primer punto revisamos una corta caracterización en
términos geopolíticos.
Cuadro N.1 Caracterización subregión andina: espacio,
habitantes y PIB
País Habitantes Superficie % %
/Indicador aprox. 2021 Km2 Crecimiento Crecimiento
PIB (2020) PIB (2022)
Chile 19.212.400 756.700 -6,1% 2.4%
Colombia 51.265.800 1.141.748 3.28% 7,3%
Ecuador 17.888.500 256.370 0.01% 2,9%
Perú 33.359.400 1.285.216 2.20% 2,7 %
Total 121.726.100 3.440.034 -0,1525% 3,825%
Fuente: CAN (S/F), CEPAL (2021), BCE.FIN.EC (2023), DATOSMACRO
(S/F), WORLDBANK.ORG. Elaboración propia
Los países de la subregión PSA, que alguna vez conformaron
parte del Pacto Andino – ahora CAN - (1969 a inicios de los 1970´s)
representan - el 20% (19,30% aproximadamente) del territorio total de
Sudamérica (17.820.000 km2); sin embargo, su población es cerca del
28% del total estimado a 2021: 434.254.119 hbts.); a lo cual, se deben
sumar los siguientes elementos relevantes:
487
Su posición (como en Ratzel, 1975) puede ser caracterizada en:
a) superficie y población que pudiere estar orientada a las costas (en
el sentido también de Mahan, 2013) en este caso del Pacífico; b) la
salida a Caribe por la condición bioceánica de Colombia, c)
posibilidades de proyección al Pacífico, sin choke points, además con
recursos pesqueros, naturales -incluido posibilidad de recursos
energéticos - y de proyección marítima (puertos, interconexión,
logística, etc.); d) proyección a la Amazonía - interconexión bioceánica
hacia al Atlántico brasilero (incluso vía las proyecciones de IRSSA en
el eje Amazonas, Eje Bioceánico Central, y eje Mercosur-Chile) o
nuevas interconexiones propuestas por la Franja y la Ruta (IFYR)
como en el caso peruano (Puerto Chancay); e) posición estratégica de
Colombia y las Islas Galápagos ecuatorianas en referencia al canal de
Panamá, f ) la proyección bioceánica en el resto del Cono Sur por la
posición de Chile en relación al Estrecho de Magallanes, y g)
proyección de las unidades políticas y de la subregión hacia la
Antártida; entre otras. Sin embargo, recordemos que los Andes sigue
siendo una barrera para la continuidad geográfica Sudamericana y
para superar la contraposición Pacífico- Atlántico (FIORI; PADULA;
VATER, 2013)
Sus potencialidades en términos de recursos estratégicos,
como continuo del conjunto del espacio Sudamérica, por lo que son
históricamente de interés de las grandes potencias, tal y como por
ejemplo los intereses castizos lusitanos en el periodo colonial, o como
el interés de la metrópoli inglesa posindependencia, o por el que ya
se presenta en levantamientos de información presentes sobre
recursos estratégicos en el trabajo del geopolítico holandés
estadounidense Spykman (1944).
Complementariamente, consideremos que, al ser parte de
Sudamérica, los países PSA comparten continuidad con la Amazonía
y/o Los Andes, por lo que mucho de los recursos que no están
488
“enlistados”, pudieran ser también hallados o “descubiertos” en
nuevas exploraciones.
Tabla N.1 Reservas minerales y estratégicos en Sudamérica y países
del Pacífico Sudamericano
Reserva minerales Sudamérica Minerales estratégicos en la Subregión
Pacífico Sudamericano
98,16% Niobio 14,56% Zinc
62,12% Litio 13,6% hierro - Bolivia: (Antimonio).
53,8% Renio 12,59% Níquel - Colombia: (Columbita-Tantalita).
53,3% Barita 11,8% Tantalio - Perú: (Cobre)
50,7 % Grafito 10,91% Cadmio - Colombia: (Níquel).
40,99% Cobre 10,91% Plomo - Perú y Bolivia: (Bismuto).
37,33% Plata 9,88% Manganeso - Perú (Molibdeno).
31,66% Selenio 9,47% Berilio - Perú: (Boratos).
24,58% Estaño 7,5% Bismuto - Bolivia, Perú (Tungsteno).
24% Yodo 6,67% Magnesio - Chile: (Litio), las reservas más grandes del
20,64% Boro 6,14% Potasio mundo están en. Junto con Argentina, y
20,45 % 5,71% Titanio Bolivia, conocido como triángulo de Litio.
Molibdeno 5,58% Circonio Con una explotación ya plena del recurso
16,92% Tierras 3,49% Fosfato de - Chile: Cobalto, Cobre, tierras raras
raras Roca - Chile Primer productor de cobre, nitratos
16,88% 1,62% Tungsteno naturales, yodo y litio
Antimonio 1,18% Cobalto
15,48% Bauxita *Nota: No se incluyen las reservas energéticas de
15,27% Oro petróleo de Ecuador y Colombia, Así mismo, se
15% Telurio puede reportar la presencia de Uranio en el
oriente ecuatoriano que colinda con el Perú en la
“cordillera del Condor”
Fuente: Luis Lara, 2019, tomado del Estudio prospectivo Suramérica 2025,
Centro de Estudios Estratégicos de Defensa (CEED), Consejo de Defensa
Suramericano, UNASUR (CEED, 2015). infodefensa.com, 2019 Elaboración:
Propia
Caracterización Relación 2002-2015
Este periodo este marcado por el inicio de la profundización
acelerada de las relaciones multidimensionales de China con la región
Sur y Latinoamericana, incluida la subregión PSA, hasta llegar en el
489
2015 a un primer éxtasis de la relación con el establecimiento del
China-CELAC, a pesar de que ya se habían establecido relaciones
formales en décadas anteriores. Relaciones diplomáticas que se
establecen curiosamente con los del Pacífico Sudamericano - Sur en el
inicio de los 70s, y con los del Norte en el mismo año 80.
Cuadro N.1 Desarrollo establecimiento de relaciones Diplomáticas
China-PSA
PAÍS Fecha de Observaciones
Establecimiento
(DD/MM/AA)
Chile 15.12.1970 Gobierno socialista de Salvador Allende
Perú 02.11.1971 Gobierno de Juan Velasco Alvarado, denominado
Gobierno Revolucionario de la Fuerza Armada del
Perú,
Ecuador 02.01.1980 Jaime Roldós. Antecedente: En 1971, el Ecuador ya se
había pronunciado en la Asamblea General de la ONU
a favor de conferir a la República Popular China la
legítima representación del pueblo chino2
Colombia 07.02.1980 Gobierno Liberal de Julio César Turbay Ayala
Fuente: Ministerio de Asuntos Exteriores de la RPC apud Rodríguez, 2008.
Elaboración: Propia
Desde ahí en los periodos subsiguientes podemos señalar que
la PPC procesa las particularidades de la relación con cada país
considerando la dinámica planteada por los diferentes proyectos
políticos y correlación de fuerzas de cada contraparte.
En el contexto del crecimiento de las relaciones económicas,
comerciales y políticas, desde 20023 identificamos dos tendencias.
Una en Colombia y Perú, Chile (confluyendo en Alianza del Pacífico,
AP); y otra: Ecuador, quien confluía en el ALBA (sin la efervescencia
2BORJA, 2015.
3Cuando China da un salto crucial pasa de ser la octava a ser la sexta economía
más grande del mundo y en el 2006, la cuarta.
490
de Venezuela), pero también que confluía con Colombia y Perú en la
Comunidad Andina de Naciones, CAN. Todas, sin embargo también
se articulaban con mayor o menor grado a los esfuerzos de
integración de corte político de UNASUR y la CELAC; y esto, en
pleno auge de las relaciones birregionales con China, hasta 2015.
La PPC en la subregión, sigue un patrón general con el resto de
Sudamérica; si bien, la concreción de las relaciones se darán acorde a
las preferencias de los propios complejos estados-sociedad (en el
sentido coxiano) de cada país.
A nivel comercial, podemos encontrar que del 2002 al 2017, hay
un salto en el comercio birregional de 1.988,2 mm a 38.300 mm USD
(DIT/DBEIS-UK). China para los países de la CAN y de PSA pasó a
ocupar cada quinquenio una mejor posición como mayor mercado de
exportación e importación. Así, hasta 2017, China ocupaba la posición
de 1° o 2° como mayor mercado de importación; pero, además, se
encuentra entre el 1° al 8° como mayor mercado de exportación. En el
caso concreto de Chile en por lo menos los últimos 10 años es el
primer socio comercial neto.
Cuadro N.2 Posición de China en la relación comercial con los
países del PS, 2002-2017
Largest export market /% Largest import market /%
of country exports of country imports)
Country 2002 2017 2002 2017
Colombia 38th / 0.2% 3rd / 5.3% 7th / 4.2% 2nd / 19%
Ecuador 28th / 0.3% 8th / 4.1% 8th/ 3.4% 2nd / 18.6%
Perú 3rd / 7.8% 1st / 26.3% 4th / 6.2% 1st / 22.3%
Fuente: DIT / DBEIS-UK Database. Elaboración: propia
491
Cabe también recordar que hasta 2015 entre los países de la
refion PSA, solo Chile, mantenía un superávit comercial con China;
mientras que, Ecuador, Colombia, tenía déficit (latinamericahoy.es,
2016), además de Perú.
Al observar el porcentaje de las importaciones y exportaciones
en el año 2014 y 2015, a pesar de la contradicción entre algunas cifras
-según la fuente- podemos encontrar los siguientes resultados:
Porcentaje sobre el total de importaciones y exportaciones 2014
/2015 por país
País Importaciones 2014 Importaciones Exportaciones 2014 2015
Latinamericahoy 2015 Datasur Latinamericahoy (LH) Datasur
(LH) (DS) Datasur (DS) (DS)
Datasur (DS)
Chile China: 1er proveedor China: 2º China: 1º mercado LH China: 1 º
LH (21%) proveedor (25%) mercado
*DS datos 10.62 % China: 1º mercado DS (26.39%)
contradictorios 24.55%
Colombia China: 2º proveedor China: 2º China: 2º mercado LH China: 3º
LH (18%) proveedor (10%) mercado
China: 2º proveedor 13.78% China: 2º mercado DS (6.35%)
DS 12.89% 10.27%
Ecuador China: 2º proveedor China: 2º China: 12º mercado China: 8º
LH (17%) proveedor LH (2%) mercado
China: 2º proveedor 12.84 % China: 9º mercado DS (3.41%)
DS 11.35% 2.35%
Perú China: 1º proveedor China: 2º China: 1 º mercado LH China: 1 º
LH (21%) proveedor (18%) mercado
China: 3º proveedor 9.32% China: 1 º mercado DS (21.82%)
DS 8.61% 18.30%
Fuentes: LATINAMERICAHOY.ES, 2016 / Datasur (Ds). Elaboración: propia
A 2015 China era el primer origen de importaciones de Chile y
Perú, y el primer destino de las exportaciones de dichos países
(LATINAMERICAHOY.ES, 2016). Aquí encontramos tres dinámicas
492
en la subregión APS en relación a la dinámica de intercambio
comercial y sus resultados; así existiría:
a) Un primer grupo, siguiendo a Pinto y Cintra (2015, p. 20)
Chile y Perú, “impactado apenas de forma positiva em virtude de exportar
commodities e de não sofrer pressão competitiva das manufaturas chinesas,
uma vez que estes países não possuem uma estrutura industrial complexa.
Esse grupo obtém apenas o bônus da relação com a China”;
b) Un país como el Ecuador, para quien el boom de exportación
de commodities significó una relativa mayor exportación de materias
primas, aunque más efectivamente en el recurso petróleo; pero todo
esto dentro de un marco acompañado por un déficit comercial
elevado. Sin embargo, de lo anterior, el país también pudo
beneficiarse de tecnología, bienes de capital, y materias para sus
propias industrias con costos menores de sus tradicionales socios
comerciales (EEUU y Europa); se estima un 20% de ahorro (DIAZ,
2019); a la vez que aplicó salvaguardas a manufacturas chinas que
pudieren competir con las de producción propia, sin que existiera
ningún impase diplomático.
c) El caso de Colombia que no tuvo un intercambio extenso
como los anteriores países, probablemente por el alineamiento
político económico empresarial identitario con Washington (sin que
necesariamente hubieren presiones del líder hemisférico).
Paralelamente aquí nos encontramos que los países más
orientados a una intermediación menor del estado en su economía,
ya existían firmas de tratados de libre comercio (TLC): con Chile
(2006), y Perú (2011) (RIOS, 2016), El de Chile-China, el primero
firmado por un país de la región, fue fruto también de un continuo de
relaciones económicas que evolucionó de un primer joint venture en
1987 (Ibid., p. 44). Al final del perido en diciembre de 2015, Chile y
493
China celebraron negociaciones técnicas con el objetivo de ampliar y
profundizar su acuerdo existente (SICEOEA, s/f)
Si bien, “el TLC más básico fue el negociado entre China y Chile,
mientras que el más comprensivo fue el de China y Perú, que incluye
amplias cláusulas de facilitación del comercio… sin embargo,
(también) durante los últimos años (a 2016), China y Chile han
actualizado el TLC inicialmente firmado, lo que lo ha hecho
equivalente al negociado con Perú. (CEAP-EAFIT, 2016). Por otro
lado, ttambién se deben tomar en cuenta la segunda dimensión:
particularidades de la relación bilateral; así:
- En el caso chileno, además de la complementariedad, Chile ha
centrado tradicionalmente su relacionamiento económico - político,
basado en el nivel comercio, y ese es el campo donde China opera su
proyección de una manera pragmática, pero tomando en
consideración elementos de reciprocidad generados por las
relaciones bilaterales históricas, tales como el hecho de que Chile fue
el primer país en reconocer a la RPC diplomática dentro de la región
e incluso como economía de mercado.
- En el caso Perú, además de complementariedad y de
consideraciones similares al caso Chile, qui existe el elemento de
presencia china de ultramar, quienes facilitaron nuevas actividades
(por lo menos, comerciales en un primer momento). Dicha presencia,
considerando la perspectiva tradicional reconstruida de “familia
china”, que incluye despliegue del Guānxì de corte identitario y
afectivo, y el reconocimiento de los chinos de ultramar como un anillo
de interés importante dentro de la nación china, incrementan los
intercambios, pero también de confianza a largo plazo de los
acuerdos; algo importante para reconocer en las posibilidades de la
Iniciativa de la Franja y la Ruta (IFYR)
494
Por otro lado, se debe señalar que no existe presión para el
establecimiento de los TLC, ni este periodo, ni en los posteriores; es
más si bien los TLC con países aperturistas fueron bien recibidos por
parte del discurso oficial chino, en la práctica, países que no lo no lo
firmaron del Atlántico: Argentina y Brasil, habían ganado terreno “en
las colocaciones de bienes que siguen siendo de poco proceso, y no en
productos de baja o media tecnología” (BARTESAGHI, 2015, p. 17);
es decir, en el campo de especialización de los países
complementarios con políticas aperturistas del Sur del Pacífico
Sudamericano; lo cual, ratifica que China no propone, o por lo menos
no intenta imponer, ningún instrumento de manera vertical en sus
relaciones bilaterales.
Sobre la IED China cabe señalar una primera caracterización
de la relación destinos - montos, a través de la muestra 2011-2013.
Destinos de Inversión China en PSA
Monto de inversión 2011-2013 País
Entre USD 100 millones y USD 1000 Ecuador, Perú,
millones
Entre USD 10 millones y USD 100 Chile, Colombia
millones
Fuente: CEAP-EAFIT (2016)4 Relaboración para Sudamérica:
Propia
En el primer nivel, se observa que Ecuador mantenían una
orientación de intermediación fuerte del Estado (reformismo o matriz
desarrollista); en el caso Perú, con un proyecto con un rol de
intermediación del estado de menor alcance (matriz aperturista),
tendría acceso a un nivel mayor de inversiones –en relación a otros
4A partir de datos del Boletín Estadístico de Inversión Extranjera de China del
2014, publicado por el Ministerio de Comercio de la República Popular China
(2015).
495
similares-, tanto por la abundancia de recursos, como por las
facilidades para la inversión en actividades extractivistas, pero
también por las relaciones de larga data.
En el caso de los otros dos países de la subregión, Colombia por
su particularidad y alineamiento político no presentaba interés en
elevar el rango de intereses mas ala d las relaciones comerciales, y en
el caso chileno, no existía una contraparte estatal fuerte que pudiere
dialogar con los representantes chinos (recordemos la centralidad de
las relaciones estado -estado para la civilización china, por lo menos
presente hasta este periodo
Ahora bien, si revisamos las IED en este periodo mas
detenidmane, vemos que
la gran mayoría de IED chinas en Sudamérica y el PSA
empiezan en 2005, podemos revisar una primera presentación de
datos en relación a los sectores:
Flujos externos de IED China 2005-2015 en Mil Millones de US$
País Chile Colombia Ecuador Perú TOTAL
Sector Sudamérica
Energía 0,19 1,65 9,79 3,79 69,15
Metales 2,46 0 2,69 14,17 24,62
Transporte 0 0,26 0,47 0 7,23
Agricultura 0 0 0,39 0 5,87
Bienes Raíces 0 0 0,42 0 4,13
Finanzas 0 0 0 0 2,89
Químicos 0 0 0 0 2,66
Tecnología 0 0 0,25 0 1,3
Otros 0 0 0 0,21 0,32
Total 2,65 1,91 14,01 18,17 118,17
Fuente: China Global Investment Tracker (aei.org) Elaboración: Propia
Chile y Colombia (matriz aperturista), atrajeron un rango
pequeño de IED en relación a otros países, el primero centrado en
496
energía y metales, comprensible por su estructura productiva y
proyecto político económico orientado a la exportación de materias
primas; mientras que Colombia, además de centrarse en la captación
de IED en el sector energía, pudo captar una inversión modesta en el
sector transporte.
Sumario Agrupación Sectores Asociados Bienes Primarios
Sector País N. de Subsectores / Comentarios
proyectos actividades
Chile 2 1 Exploración, 1 no NSRF
se detalla
Ecuador 1 Exploración y Año 2012. Precio de
adquisición para adquisición en el 2010.
MINERÍA producción Más pago de USD 100
millones por derecho a
yacimiento, compromiso
de invertir USD 1.400
millones durante 5 años
Perú 7 Exploración, 1 en año 1992, 5 entre
explotación, 1 no años 2012 y 2015, 1 NSRF
reportada
PETRÓLEO Colombia 2 Adquisición y 1 en 2006, 1 NSRF
adquisición parcial
Ecuador 2 Adquisición, Misma compañía. Según
Inversión, información oficial de
Producción Andes, {esta fue creada
en 2006 con capital chino
de CNPC y China
Perú 3 1 desarrollo, 1 1 año 1997, 1 año 2003, 1
adquisición bloques, año 2013
1 no se detalla
Chile 1 Viñedo NSRFs
AGRICULTURA Perú 2 Pesca Entre años 2006 y 2011;
una incluye adquisición
de 36 empresas con flotas
y procesadoras de
pescado)
Fuente: Análisis de proyectos identificados por Ellis (2014a) / actualizado a octubre
del 2015 por CEAP-EAFIT (2016). Relaboración para PSA: Propia.
497
En el sector manufactura podemos encontrar el siguiente
escenario.
Sector Manufactura
País N. de Subsectores / actividades Comentarios
proyectos
Colombia 5 Transporte (autos, motos), 1 en año 1997, 1 en año 1998, 1
Insumos (guantes médicos), en año 2007, 1 año 2012, 1 año
Apoyo a Producción Industrial 2014 (Apoyo a Producción
Industrial: Parque Industrial)
Ecuador 1 Apoyo Desarrollo Industrial Planta de Acero, año 2014
Fuente: Análisis de proyectos identificados por Ellis (2014a) / actualizado a octubre
del 2015. CEAP-EAFIT (2016).Relaboración para Sudamérica: Propia.
Colombia y Ecuador recibieron IEDC incluso para el apoyo del
desarrollo industrial a través de fondos para el desarrollo de Parques
Industriales; Ecuador captó inversiones para el desarrollo
siderúrgico, base para el apoyo de a sectores asociados a la
posibilidad de cambio de la matriz productiva que planteaba este
país; mientras que en los Sectores Asociados a Servicios no se
presenta en la subregión PSA IED en el sector BANCARIO ni
TELECOMUNICACIONES hasta 2015
Aquí se puede omar en cuenta las y los principales resultados
del banco de datos a nivel de empresa de la IED de China en América
Latina y el Caribe de Dussel y Ortiz (2017), que complementa los
esfuerzos realizados por CEPAL y Pérez (2017). Todo lo cual conduce
a presentar los siguientes datos:
498
IED china en Sudamérica por país de destino PSA (2001-2015)5
País OFDI (millones de dólares) Empleos generados
(número de empleados)
2001- 2010- 2001- 2015 2001- 2010- 2001- 2015
2009 2015 2015 2009 2015 2015
Chile 2488,5 604,7 3093,2 286 328 418 746 175
Colombia 730 1197,8 1927,8 0 554 956 1510 0
Perú 3071,4 12751,6 15823 0 8120 9815 17935 0
Ecuador 2377 643,94 3020,94 0 2143 22311 24454 0
Total 15198,0 23864,9
seburegion 8666,9 4 4 286 11145 33500 44645 175
TOTAL 9419,4 56399,3 65818,7 2386,0 20867 11655 13742 15020
SUDAME 8 8 5 8 5
RICA
TOTAL 12209,57 65919,4 78129 3628,5 33394 14051 17391 26300
ALC 3 5 6 0
Fuente: Ortiz (2017), con base en Monitor de la OFDI de China en ALC (2017).
Elaboración: Propia
Como se observa en el anterior cuadro, existe un acelerado
incremento de las inversiones a partir en el segundo periodo (2010-
2015), esto tras la crisis financiera global del 2008-2009; la cual generó
nuevas oportunidades para la PPC en el tema de inversiones
(incremento de casi un 600%). De acuerdo a esta metodología,
incremento, en subregión en, Perú y Colombia; mientras que Ecuador
y Chile reciben menos IED china en el mismo periodo (2010-2015)
comparado al anterior.
Se puede señalar que China en ese momento concreto : a)
aprovechaba las oportunidades presentadas, bajo una lógica y
retórica tecnocrática de ganancias y acumulación de capital, tomando
en cuenta que los sectores públicos son direccionados por el Estado
5
En este cuadro, no se registra a Bolivia y Uruguay (que si están incluido en el
Monitor de OFDI en: resto de ALC); así como Paraguay, el cual no está incluido
en base de datos; para complementar la información revisar el anexo 1).
499
para generar rentabilidad similar a la de las empresas privadas, según
la cual “que los fondos provienen de recursos públicos, y como
públicos pertenecen al pueblo chino”6; al mismo tiempo que b)
ocupaba espacios que no han podido ocupar otros países o, que van
dejando otros países, especialmente las grandes economías.
Complementariamente, podemos observar y anotar que:
-En el caso de economías aperturistas, la IED, se realiza en gran
volumen en Perú, especialmente en el sector extractivo y actividades
pesqueras, y en Chile en el sector agrícola (vinícolas), por lo que el
TLC, no garantizó las oportunidades en los volúmenes de inversión
esperada por los tratados; mientras que Colombia, sin contar con
TLC, recibió IED en el sector manufacturero,
- En lo referente a inversión y crédito de la banca pública china,
la relación sería posible de ser desarrollada casi-monopólicamente
por relaciones bilaterales formales; lo cual sería parte de las
características de la PPC hasta esa década. Por ejemplo, a pesar de las
excelentes relaciones entre China y Chile, especialmente en lo
comercial; el entonces director del CASS-ILAS, por ejemplo, cuando
fue preguntado en un foro de alto nivel biregional, del porqué de las
baja inversión en Chile, respondió: “Para las misiones chinas es difícil
realizar negociaciones si no existe una contraparte estatal, los
proyectos de inversión son parte de la proyección china”7.
Con lo que respecta al financiamiento se reproducían tres
relacionamientos diferentes: a) Colombia, que aquí presenta una
articulación prácticamente nula (menos del 1% concedidos a la
región); b) Ecuador, que a 2015 era uno de los 4 países que receptaban
prácticamente el 91% de los créditos y financiamiento de la región
6MRH, Notas de campo, funcionario público chino alto nivel, Quito, 2010.
7Notas de campo: Milton Reyes Herrera, intervención Director del ILAS-CASS,
Wu Baiyi, 2014.
500
Latinoamericana (junto a Venezuela, Brasil, y Argentina); además,
contando con el mecanismo loans for oil que facilitaba el
financiamiento, y promovía asegurar suministro a plazos más
amplios a la contraparte china; y c) Perú y Chile
En este último caso, ambos países a 2012 con un modelo
económico más aperturista, recibieron bajísimos montos de créditos
de la banca estatal china orientados al sector gubernamental; sin
embargo, la orientación fue a compañías mineras: Chile (2005) y Perú
(2008) por ejemplo. En el caso peruano, el crédito (2.000 millones
USD) en 2008 fue a una compañía con intereses chinos, por lo que fue
considerado como préstamos dentro del Gobierno chino
(GALLAGHER; IRWIN; KOLESKI, 2013). A 2015, así según la CEPAL
(2016), Chile sólo fue receptor del 0.1% de los préstamos chinos de la
región América Latina (150 millones USD, incluso menos que en el
caso colombiano), destinados principalmente a infraestructuras
(mejora de la red de comunicaciones); mientras que Perú, recibió
cerca de 300 millones para sector transporte, medio ambiente y
energía; y otros, como uno comercial de 150 millones USD.
Por otro lado, como estrategia financiera china, cabe mencionar
que en mayo de 2015, durante una visita del exprimer ministro Li
Keqiang - dentro de una gira a Brasil, y a los miembros
sudamericanos de la Alianza del Pacífico -, Chile firmó con
China un swap cambiario de hasta 22.000 millones de yuanes (3.600
millones de USD al tipo de cambio de la época), y firmó un convenio
para facilitar el uso del yuan en transacciones bilaterales; lo que
parecía ser parte entonces de un esfuerzo de experimentar pequeños
pasos para internacionalizar la divisa china. Esfuerzo que, en el
periodo posterior, por lo menos en la región se habría temperado.
Cabe señalar, otras iniciativas que planteaban convertir a Chile
en plataforma financiera regional: a) el Banco Central de China,
designó al Banco de Construcción de China como ente de liquidación
501
en Chile (24HORAS.CL, mayo de 2015). "La facilidad de efectuar
pagos en RMB (yuanes), directamente en Chile, permitirá reducir los
costos de transacción de las operaciones de financiamiento y pagos
de comercio exterior, y servicios financieros en general, denominados
en dicha moneda" (Ibíd.). según el primer ministro chino; b) se calificó
a Chile, dentro de Programa Chino de Inversores Institucionales
Extranjeros Calificados en Renminbi (RQFII, por sus siglas en inglés),
que permite a las empresas de las ciudades elegidas por China,
invertir en los mercados valores y adquirir activos financieros
denominados en yuanes, mediante cuotas adjudicadas por el
regulador bursátil (NOYOLA, 2014), y que no tenía antecedentes en
la región; acordando China acordó otorgar a Chile una cuota de
50.000 millones de yuanes de un programa que permite a
inversionistas institucionales extranjeros calificados invertir
directamente en el mercado de valores de ese país. Este mecanismo
permitirá que inversionistas (...) (como bancos, fondos de pensiones,
compañías de seguro y fondos mutuos, entre otros) puedan realizar
inversiones en distintos instrumentos denominados en RMB
directamente en el mercado onshore en China (24HORAS.CL, mayo
2015).
Finalmente se puede señalar que en este periodo durante la
visita de 2015 del ex primer ministro chino, además de Brasil se visitó
oficialmente a los países sudamericanos de la Alianza del Pacífico,
con los cuales y con cada uno de ellos se plantearon acuerdos
ventajosos, y al parecer dentro de un escenario de “competencia” que
obligaba generar en esos países una mayor relación con China y así
“atemperar” la articulación de éstos al proyecto del TPP (Trans Pacific
Partnership): proyecto que era parte de la estrategia de la
Administración Obama influenciada por los intereses
estadounidense en la región Asia Pacífico como forma de contener a
China.
502
Con lo que respecta a la cooperación y al diálogo político, cabe
señalar que se analizarán a estos dos temas de manera trasversal en
el siguiente acápite, dado lo trasversal de estos dos movimientos para
la PPC; sin embargo, cabe reconocer cierto desconocimiento de la
región en buena parte de las dos década primera del siglo sobre la
lógica de la PPC; ya que por ejemplo paran 2008 (y posteriormente en
2016) cuando China, presentó el denominado Libro Blanco, que
estableció algunas iniciativas que fueron enunciadas para
efectivamente ser fortalecidas, incrementadas y/o desplegadas; sin
embargo, ni la región, ni sus países respondieron de manera proactiva
ni formal; a excepción de las respuestas más bien académicas de
Chile en la región PSA, y algo escuetas de Brasil en Sudamérica-.
China- PSA: del cambio de correlación de fuerzas, a la pos-
pandemia
Como antecedente podemos señalar que a partir de 2015
comienza un relativo cambio de fuerzas dentro de la región
sudamericana (Protestas en Venezuela “La salida en 2014; Triunfo de
Macri en Argentina, 2015, Golpe de Estado en Brasil en mayo de 2016,
por ejemplo), mientras que en los países PSA, a partir de 2016, se
inicia un periodo pos-reformista, donde paulatinamente se va
recortando el rol de intermediación del estado de corte desarrollista.
Cambio de correlación que también impacta en los espacios de
integración como UNASUR, y en el talante de los foros regionales que
se venían construyendo. Por otro lado, al retomar el carácter
trasversal de las relaciones birregionales, encontramos dos
dimensiones que se despliegan Alianza del Pacífico - AP (Chile, Perú,
Colombia), CAN: Ecuador, Colombia, Perú)
Sobre esta relación (bi-subregional) cabe señalar que China
además de los movimientos ya señalados (Comercio, IED,
503
Financiamiento), ha venido desarrollando presencia en la
institucionalidad regional, como forma de generar cooperación y
diálogo político. Aunque, en el caso de la CAN, si bien a 2000, China
era parte de la fundación del mecanismo de consultaría política y
cooperación China-CAN; posteriormente al analizar más
detenidamente la relación, se puede concluir que ésta ha sido poco
profunda desde la fundación del organismo, y prácticamente nula
entre 2005-2022.
Las relaciones con AP, también se han venido enfriando,
especialmente desde el ascenso en una tercera parte (México) con el
gobierno de López Obrador, en un proyecto que no parecería estar
interesado en un tipo de neo-regionalismo abierto en Latinoamérica.
Así en el periodo pos-auge biregional, para la PPC primarían
las relaciones de corte bilateral; mientras que las de corte birregional,
son intermediadas por los esfuerzos limitados de la CELAC (con un
relativo declive desde 2015 – tras la primera cumbre China CELAC,
en medio ese contexto de cambio de correlación de fuerzas políticas
en la región sudamericano); mientras que desde 2017, se ha
consolidado este último escenario, tras la caída de UNASUR; lo cual,
ha significado una reducción de efectividad en espacios de diálogo
político bi-regional.
Así, por ejemplo, las relaciones birregionales de alto nivel, a
través del espacio institucional CAN, incluso hasta el auge (2015),
eran prácticamente inexistentes, esto vinculado a la diversidad de
proyección de los países, donde 2 de sus 4 miembros restantes
mantenían una posición más aperturista y menos regionalista en el
sentido cepalino (Perú y Colombia); Aquí, cabe señalar, que en los
últimos años Ecuador sería el tercer país que se iría sumando a una
perspectiva más aperturista desde el gobierno posreformista de
Moreno, y especialmente durante la administración Laso, en que se
firmó un acuerdo de Libre Comercio con China, aún no ratificado
504
por el congreso (que tras su disolución, en mayo de 2023 entra a
operar nuevamente a partir de finales de noviembre de 2023)
Con respecto al otro órgano subregional de los países PSA,
podemos señalar que AP: contenía a 2 de los 4 países de la CAN y
contemplaba a 3 de los 4 países de la totalidad de la propia AP;
además posteriormente ha ido transitando desde una proyección
hacia el Transpacific Partnership, a una hacia el Asia en general, y
China en particular. Esto hasta reducir a 2023 su dinamismo como
bloque, dado el cambio de correlación de fuerzas políticas en sus
miembros: López Obrador en México, sexenio iniciado en diciembre
de 2018; Petro en Colombia en agosto de 2022; y, además, los
conflictos generados entre los gobiernos de México y el que se
estableció en el Perú por la salida del expresidente Castillo.
Así, podemos señalar que la CELAC, ha intentado convertirse
en un intermediario legítimo y potenciar los intereses regionales. Por
otro lado, ya que la CAN ha reducido su interlocución y AP su
coordinación; solo se revisará la relación bilateral China-países de la
Subregión PSA, en un momento general pre-pandemia y uno hasta la
IFYR
En el primer caso, se puede señalar que a nivel general
Colombia, Perú, y Chile continúan con un relacionamiento similar
que previo a 2015, en lo que se refiere a un incremento al Comercio,
existiendo en el caso chino un interés por el desarrollo económico y
oportunidades con los 3 países al ser parte de AP, visto en ese
entonces (y especialmente tras la caída del TPP bajo el gobierno de
Trump) como un espacio pragmático que favorecía al intercambio
birregional y bilateral. El volumen de las relaciones comerciales sigue
incrementándose, las Inversiones Directas crecen bajo y
paulatinamente hasta 2018, y el de créditos, especialmente en
Colombia y Chile, no se reportan grandes cambios.
505
En el caso ecuatoriano, las relaciones comerciales siguen
creciendo como es la constante incluso previo al periodo reformista
(2006- 2017), pero a nivel de IED, y de créditos se desacelera hasta
2018 (con un interludio en temas de cooperación por el terremoto que
sufrió el país andino en abril de 2016). Esto se puede observar entre
2015-2017, aún con el gobierno reformista de Correa (por una
proyección de reorientación para enfrentar el déficit y enfriamiento
de la economía, entre otras; y también por que parecía que por el
cambio de correlación en la región, China marcaba un compás de
cautela en las relaciones crediticias); pero también en otra tesitura,
por el momento posreformista del gobierno Moreno, donde hay una
reorientación hacia los organismos multilaterales, y solo se solicita
una línea de crédito en diciembre de 2018 por alrededor de 800
millones de USD, en el contexto de la visita presidencial a Beijing. Así,
concretamente en el sector financiero, si bien el Ecuador llegó
especialmente desde 2007, a ocupar el puesto 3 en Sudamérica, luego
de 2018, no ha habido reportes de nuevos accesos crediticios, aunque
si de operaciones truncas debido a los lineamientos de Washington
por promover el recorte de relaciones financieras entre China y los
países de la región.
Aquí, es interesante anotar, a nivel de intentos de orientación
para el relacionamiento birregional, dialogo político, y cooperación se
emprenden algunas iniciativas como el el lanzamiento del Libro
Blanco de China en 2016. Sin embargo, también hay que mencionar
otros planteamientos que provenían del periodo anterior, como por
ejemplo, la iniciativa 1+3+6 planteada ya por Xi, en el marco del
encuentro de los BRICS en Brasil en junio de 2014; el cual va a
complementarse como modelo de cooperación birregional: “el 3×3””
propuesto por Li Qeqiang, en visita de mayo de 2015; y que proponía
la cooperación entre empresas, sociedades y gobiernos (3) de China y
de América Latina en logística, generación, energética y tecnología
506
de información (3); y que establecía un fondo por 10.000 millones de
USD en septiembre del mismo año. Sin embargo, en junio de 2016 y
ya bajo otro contexto político en la región, el fondo planteaba la
sostenibilidad, es decir, “que se deben lograr considerables beneficios
derivados de la inversión y asegurar el control de riesgos de los
proyectos”, según Han Deping (gerente general de la compañía del
Fondo). En ese sentido, el mismo funcionario señaló que: “este fondo,
constituye un tipo de fondo comercial sin ningún interés deducido
estatal, y no funciona concediendo préstamos favorables ni tampoco
es un fondo de asistencia. Por lo tanto, los proyectos del fondo deben
dar ganancias económicas y la proporción de beneficios internos tiene
que alcanzar el nivel exigido para que sea duradero”. Proponiéndose
así una lógica pragmática de mercado, pero podría también generar
oportunidades en ambas partes; donde se reproduce una lógica y
retórica tecnocrática que parece que es superada por la posterior
operación de la IFYR, y que en la región para este periodo hasta 2018,
a pesar de ya ser propuesta por China, todavía no es concretada por
la firma de los países PSA, y por el bajo interés. Recordemos que en
mayo de 2017 cuando se realizó el primer Foro de Cooperación de la
Franja y la Ruta, participaron países de todos los continentes, siendo
Chile el único representante de la subregión SPA; y junto a Argentina
los dos únicos que representaron a América Latina
(CENTROESTUDIOSINTERNACIONALES.UC, s/f).
En este punto, y ya tomando en cuenta un contexto
internacional en el cual el Orden Mundial debe ser también revisado
bajo el signo de la presidencia Trump, y el inicio de nuevos elementos
de competencia global frente a China propuestas por éste (y
continuados por la administración Biden), a continuación, aquí
revisamos escenarios referente al periodo: De la Prepandemia a la
pospandemia
507
En lo que se refiere al Comercio, se puede señalar que para el
2020, en plena pandemia, el comercio con China, siguió siendo muy
importante. Si bien vemos un decaimiento, tanto en las exportaciones
como en las importaciones, en relación a 2019; para 2021, se da una
recuperación del comercio como un dinamismo similar al de 2019;
esto, a excepción de Colombia, que no recupera su nivel de
exportaciones, y más bien supera en más de 30% sus importaciones
en relación a 2019. El año 2022 también hay una caída fuerte en
exportaciones y un nivel altísimo de importaciones.
Cuadro N.3 Comercio países PS y China, Escenario Pre y Pandemia,
millones USD
País Actividad 2019 2020 2021 2022
Chile Exportación 22,147 28,685 36,524 38.447
Importación 16,457 16,431 27,515 26.413
Balanza
Comercial 5,69 12,254 9,009 12.034
Comercio
Bilateral 38,604 45,116 64,039 64.860
Colombia Exportación 4.600 2.800 3.700 2.154
Importación 11.000 10.400 14.800 18.699
Balanza -6.400 -7.600 -11.100 -16.105
Comercial
Comercio 15.500 +- 13.100 18.500+ 20.853
Bilateral +- -
Ecuador Exportación 2.900 3.300 4.100 5.843
Importación 3.800 3.900 6.000 6.452
Balanza -940,9 -624.1 -2.000 -609
Comercial +-
Comercio 6.700 7.300+. 10.100 12.295
Bilateral
Perú Exportación 13.500 12.224 18,000 20,791
Importación 10.300 9.679 14.600 15.782
Balanza 3.300 2.545 3.400 5.009
Comercial
Comercio 23.800 21.903 32.600 36.573
Bilateral
Fuente: DIT / DBEIS-UK Database, 2019, 2020. 2021. 2022. Elaboración:
propia
508
Con la recuperación subregional mencionada, se puede
observar que el dinamismo de las relaciones comerciales no se
detiene, pese a que, en lo referente a IED y financiamiento, entre 2015
a 2019 parecía haber existido un relativo enfriamiento.
Por otro lado, en el Ecuador es importante señalar que las
exportaciones no petroleras crecieron especialmente desde la
postpandemia e incluso a un 77% entre enero y octubre de 2022,
siendo un buen porcentaje para el consumo alimentario como el camarón;
esto permite reducir su déficit a unos 1400 millones USD en relación
a 2021; sin embargo, por composición y desarrollo, la balanza no
mantiene carácter de sustentabilidad hacia la reducción.
En el caso de Chile, sigue siendo el país por excelencia
superavitario en la subregión PSA y Sudamérica, siendo sus
productos estrella los mineros y recursos estratégicos y bienes de
consumo como frutas y vino (en este último, incluso se han disparado
IED chinas),
En el caso del Perú también se observa que, si bien ha existido
en periodos anteriores, cambiantes superávits y déficits comerciales,
en este periodo parece convidarse un ciclo a favor del país andino.
Por otro lado en los que respecta a la IED China se puede
observar que en el caso Colombia, , según ProColombia en el
acumulado de 2000 a 2020, China registró un flujo directo de IED de
USD 297,6 millones, ubicándose en el puesto 31 entre todos los países
que invierten; sin embargo, se ha desplegado una estrategia de
relacionamiento en este nivel vía gobiernos locales chinos, incluso
dentro del propio gobierno Duque que reproducía junto a sus
antecesores una visión e alineamiento solido con Washington.
Para sólo el año en 2022 se alcanza 265 millones de dólares, un
218% más que el 2021, “gracias a las licitaciones de grandes proyectos
de infraestructura y energías limpias que han ganado empresas
509
chinas, entre ellas la construcción del primer metro de Bogotá. (VOZ DE
AMERICA, 2023)
Al contrario, en el caso ecuatoriano, y en el marco de un
realineamiento al tradicional socio EEUU y el regreso a los
multilaterales, así como una baja en términos de inversión pública en
el periodo pos-reformista, se profundiza la caída en las IEDC, la
misma que había alcanzado incluso la segunda posición entre 2011 y
2014; para luego descender al octavo y décimo lugar en 2018 y 2019,
(CASTRO, s/f). Aunque temporalmente para los dos primeros
trimestres de 2021 alcanzaría una reanudación como sexto inversor
(BCE, 2021). Posición altamente volátil.
En el caso de Perú, OSTERLOH (2021) reporta que desde 2015,
China ha invertido en nuevos sectores como telecomunicaciones,
energía hidroeléctrica, infraestructura de transporte, etc. Siguiendo el
registro de “China Investment Tracker”, (IBÍD.); a 2021, cuenta con
IEDC de 29 mil millones de dólares, el 63% se concentra en el sector
de los metales, el 31% en energía y el 4% en transporte.
Aquí cabe señalar, que dado los intereses chinos y la
composición de los intereses de las fuerzas sociales de los estados
economías nacionales del Perú y Chile (más allá de los TLC),
podemos señalar que éstas son el segundo y tercer país receptor
(después del Brasil en toda la región): Perú con más de 170 compañías
operaban en el país andino al primer semestre de 2022, con más de
US$ 30 mil millones, siendo la minería el sector con mayor enfoque y
más diversificado. (DFSUD, 2022); mientras que, en el caso chileno,
hay una notable diferencia con el perido anterior; esto se debe a una
readecuación del relaconamiento de la PPC en el ámbito IED donde
ya no hay una centralidad monopolica de la intermediación estado-
estado, y:
“también se ha perfilado dentro de la estrategia global de “muy
largo aliento”… “En Chile los grandes inversionistas chinos
510
han venido desplegando un trabajo bastante responsable, de
carácter consultivo y exploratorio, que obviamente comenzó de
una manera muy tímida, pero que ahora podríamos afirmar que
está alcanzando cierta madurez, dentro de los respectivos
canales legales”, …según datos oficiales, la empresa State Grid
Corporation (apuesta a) adquirir CGE y Chilquinta por unos US$
3 mil millones y más de US$ 2.200 millones, respectivamente.
Después se ubica la minera Tianqi, que hace unos años adquirió
el 24% de SQM por un total de US$ 4.276 millones.” (IBID).
Sin embargo, de la información recogida, sería necesario
también validar la cantidad que pudiera ser considerada como
Inversión Extranjera Directa plena.
Por otra parte, sobre La dinámica financiera china en la
subregión PSA, se puede observar que esta dentro de la realidad
Latinoamérica, tendiendo a la baja
BRUZZONE, 2023.
Así, también podemos señalar que tanto el crédito chino y loans
for oil (en el caso ecuatoriano) tiene altibajos hasta el 2018; y cae a
números mínimos un año antes y durante la pandemia. En plena
Pandemia, el gobierno necesitado de crédito, anunció el 29 de mayo,
un preacuerdo de “alrededor de USD 2.400 millones con una
operación crediticia y otra comercial, incluyendo la firma de un
contrato de venta de crudo a largo plazo administrado por la empresa
511
pública Petroecuador” (EL COMERCIO, 2020); Sin embargo, la
articulación de intereses entre Estados Unidos y actores locales
reposicionaron a los multilaterales para financiar los problemas
económicos ecuatorianos. A septiembre de 2020, Ecuador obtuvo un
nuevo crédito del FMI por 6.500 millones USD, con un desembolso
inmediato de 2.000 millones (CASTRO, s/f). En el caso de los otros
países se reproduce un relacionamiento financiero anterior, no se
reporta mayor actividad peor en el nivel que lo mantuvo Ecuador.
Así también, cabe señalar que el escenario político ha cambiado
en Chile en los 3 países de la CAN dados los cambios de
administración. A 2022, en el caso de en el caso ecuatoriano,
Guillermo Lasso (desde el 24 de mayo, 2021) no modificó la política
iniciada en 2020 (multilaterales y aceptación crediticia y supervisora
del FMI); siendo que la deuda con China ha descendido desde 8.143
millones de USD en 2016 a 5.188 millones USD a julio de año 2021
(ANGULO, 2021), y esto debido principalmente a los pagos que se
han ido realizado a los loans for oil. Es más, durante la visita del
presidente Lasso en 2022, se anunció una renegociación de algunos
tramos de la deuda restante; mientras que en los otros 3, pese a los
cabios de gobierno, salvo ciertos lineamientos de carácter domésticos,
no ha existido mayores cambios de orientación en la proyección de
esos estados
En este punto, es necesario además señalar que con respecto al
diálogo político, se ha dado una baja de intensidad de los foros de
dialogo birregional (CELAC y UNASUR), y escaso con lo subregional
(CAN); mientras se ha incrementado la relación bilateral; así, Perú y
China firman una asociación cooperativa general en el año 2005.
Después de ella, podemos encontrar un 2do tipo de asociatividad.
512
Tabla N.2 Segundo tipo de Asociación estratégica China – países del
PS
Country Tipo de relación Año
establecimiento
Perú Asociación estratégica integral 2013
Ecuador Asociación estratégica 2015
Ecuador Asociación estratégica integral Nov. 17 de 2016
Chile Asociación estratégica integral Nov. 22 de 2016
Colombia No estratégica
*Las firmas de las dos asociaciones en 2016, fueron durante visita del presidente
X Jjinping
Fuente: Oviedo (2014) and Ecuadorian Foreign Ministry. Elaboración:
propia
En el caso colombiano, se mantienen relaciones de amistad,
aunque en 2022, el expresidente Duque llamó a buscar elevar el status
a una asociación estratégica integral.
Iniciativa Franja y ruta
Hace una década, China estableció el Fondo de la Ruta de la
Seda; y en 2015, la Comisión Nacional de Desarrollo y Reforma, el
Ministerio de Comercio y el Ministerio de Asuntos Exteriores,
emitieron conjuntamente el documento Perspectivas y Acciones para
promover la construcción conjunta de la IFYR a lo largo de la Ruta de
la Seda y de la Ruta de la Seda Marítima del Siglo XXI. En 2016, se
funda el AIIB, organismo que, para 2017, aglutinaba a 57 países,
incluyendo a 5 de América Latina: Brasil, Bolivia, Chile, Perú y
Venezuela (Zotelle y Wei 2017, 43) (todos de Sudamérica); mientras,
paralelamente, como ya se ha obervado en mayo de 2017, se realiza el
Foro de la Franja y la Ruta para la Cooperación Internacional, que se
celebró en Beijing, solo con la presencia de Chile (región PSA) y
Argentina, ambas por Sudamérica
513
En sentido amplio, la FYR como iniciativa puede ser leída desde
dos ámbitos que confluyen: uno institucional, en donde existen
directrices y documentos oficiales que se traducen en procedimientos
formales y normativos; y otro, que parte desde las particularidades
de la proyección china asentada en la tradición de su propia
construcción civilizatoria, en que el pragmatismo se manifiesta para
resolver la proyección estratégica Estado y su voluntad por un
despliegue de cooperación multidimensional y omnidireccional; lo
cual, permite que sectores dentro de China y sus contrapartes puedan
desplegar iniciativas concretas orientadas por el espíritu de la
Iniciativa, las cuales serán a la vez fortalecidas por el asentamiento de
las formalidades institucionales necesarias para la consolidación de
la IFR .
El camino hasta aquí, para la región ha sido espasmódico.
Recordemos, en primer lugar, que China ha planteado que ALC es la
extensión natural. Sin embargo, más allá de las razones esbozadas a
favor o de manera critica a lo pertinente de la anterior caracterización;
aquí, es necesario admitir que este planteamiento -como concepto-
todavía no se presenta absolutamente claro para varios de los
especialistas latinoamericanos ni sudamericanos; aunque bien, se
reconozca la importancia de las relaciones históricas del trayecto
oceánico del denominado Galeón de Manila (o Galeón de Acapulco o
Nao de la China).
A lo cual, también se debe reconocer que, en el caso
latinoamericano, sudamericano, e inclusive andino, nos encontramos
con un límite frente al propuesta que tiene que ver con que la región
vive una escasa articulación entre las distintas visiones de proyectos
políticos de los países (competencia entre matriz aperturista y matriz
desarrollista, atravesados por un accionar poco flexible a nivel táctico
frente al OM); aunque en la relación con China, esto puede ser
514
superable dado a que China operara según como las contrapartes
propongan.
Ahora bien, cabe recordar para el caso subregional PSA que
para el 2017 “El AIIB contaba con 57 países, incluyendo Chile, Perú;
en enero de 2018, para China invitó a ALC a sumarse a la IFYR
iniciativa, solo un país en Sudamérica había firmado acuerdos de
cooperación con ese proyecto Bolivia; ninguno de la subregión PSA
Pero, a partir de septiembre de 2018, Chile firmó un acuerdo de
Participación, en noviembre; y Ecuador en diciembre de 2018, lo cual,
permitía percibir un vigorización del interés en la iniciativa. Que con
tinua en abril de 2019, con la firma del memorándum por parte de
Perú
Para julio de 2022, según fuentes chinas oficiales se reporta que
“149 countries had signed documents to join China's BRI, around nine
countries more than in January 2021. (STATICS.COM, 2022), contándose
ya 9 países de América del Sur y 19 países de América Latina y el
Caribe ya lo hicieron desde 2017 (aunque) Colombia (es parte) de los
principales países de la región que aún no han firmado”
(MERCOSURABC.COM.AR, 2022). Situación que se mantiene en
reportes de marzo de 2023: donde casi todos los países de la región
en Sudamérica se han sumado, incluso de Guyana y Surinam; y tan
solo, con la no incorporación de Brasil, Colombia y Paraguay.
Si bien Colombia, no ha firmado su adhesión a la IFYR, pero
existiría una decisión del gobierno de Gustavo Petro, ya que “incluso
el predecesor, Iván Duque… consideró unirse a IFYR durante una
visita a Beijing en 2019 (THEDIALOGUE.ORG, 2022)
Proyectos y límites
Colombia no es reportada formalmente, pero en caso de su
adhesión, algunas de los proyectos bilaterales (estado-estado,
515
gobierno local-gobierno local), muy probablemente se enlistarán
retroactivamente, tal como ha sucedido en otros países de la región
Como primer punto, de 167 ítems como proyectos reportados
en total, hasta 2021 y proyectados (aunque en pocos casos hasta 2022
-2026) en la región PSA, 25 ítems se encuentran en los países PSA
(GLOBAL-BRI-TABULAR-DATA, 2021), curiosamente 8 menos que
la CAN, donde no se adscribe Chile.
Tipo de Financiamiento N. de proyectos por país
Inversión 2
Prestamos 12 Perú 3
Contratos 5 Chile 4
Imprecisos 6 Ecuador 18
Fuente: Global_BRI_Tabular_Data_Clean, 2021 / Elaboración propia
Tipo de Actividad
Infraestructura 5
Energía sustentable 13
médico 2
Recursos naturales 3
energía- general 2 *en Perú
Fuente: Global_BRI_Tabular_Data_Clean, 2021 / Elaboración propia
Por otro lado, se puede observar que de esos ítems, apenas
alrededor de 4 (ver anexo 1) se dan o continúan, o se amplían como
actividades luego de 2018, cuando se inicia la adhesión subregional;
lo cual, indicaría que, la iniciativa -en el caso concreto de la región-
más bien recoge proyectos ya en marcha, y los enmarca dentro de un
espacio institucional que puede ser procesado más allá de las lógicas
organizacionales y formalidades (propuestas institucionalizadas)
que venían operando dentro de los 5 movimientos del
relacionamiento chino ya mencionado (Comercio, IED,
516
financiamiento, cooperación y diálogo político); y que
discursivamente se pueden registrar en las declaraciones recogidas
en el marco 3x3 en el anterior su acápite.
Por otro lado, aquí también cabe señalar que, a pesar del
escenario general de créditos señalados en anteriores momentos ( y
más aún necesarios para iniciativas como la IFYR), y que operaban
bajo lógica de relación estado-estado;, aquí ya existiría un
relacionamiento que como en la IED se está flexibilizando; y, que
parecería transitar como hipótesis de una pública a una privada
(BRUZZONE, 2023). Bajo esa lógica
“la nueva estrategia ‘dual circulation’ financiera de China, que
está concentrando la financiación pública de sus bancos
institucionales en impulsar la autosuficiencia económica …
mientras promueve la financiación privada de sus bancos
comerciales o, más bien, su participación en préstamos
sindicados junto a otras entidades de crédito internacionales de
reconocida solvencia, posiblemente para atenuar y diversificar el
riesgo financiero asumido en los años anteriores (IBID.)
Ahora bien, si cruzamos lo anterior con el hecho de la creciente
adhesión de los países de la región a la IFYR, y que esta última más
bien se basa en la generación de facilidades para superar las
restricciones de las formalidades del relacionamiento anterior
(relativa rigidez tecnocrática que como en 1+3+6 o 3x3); podemos
señalar que la PPC se encuentra en un periodo de flexibilización que
le permita profundizar sus iniciativas macro regionales (IFYR no
estaría disociada de nuevas formas de financiamiento en exploración
como los mencionados) .
En ese mismo sentido, si observamos que el crecimiento de la
financiación privado que ha aumentado de las fusiones y
adquisiciones (M&A) capitaneadas por empresas chinas
exponencialmente con la apertura del ‘leveraged finance’ o
apalancamiento (BRUZZONE, 2023); ha permitido que China (a
través de sus “bancos institucionales) mantengan su actividad
517
económica a través de “fondos o empresas como vehículos
financieros en lugar de financiar de forma directa a las
administraciones o empresas públicas de Latinoamérica como hacían
en 2005-2019” (IBID.); también nos encontramos que parecería que
China procesa su proyección financiera intentando también navegar
por fuera del radar del poder de comando norteamericano que
propone que la región reduzca e evite el financiamiento bajo la figura
de las “trampas del crédito chino”. A pesar de que los mecanismos se
siguen desarrollando y flexibilizando, cabe señalar que la relación
política permite la consecución de los objetivos estratégicos de la PPC
y la iniciativa clave para generar una articulación de largo plazo con
la región, y más aún con el pácifico sudamericano como espacio
geográfico estratégicos; así por ejemplo en octubre de 2023, en visita
oficial el presidente de China Boric Junto con el presidente de la
Comisión Nacional China de Desarrollo y Reforma, firmó el Plan de
Cooperación para la Promoción del Cinturón Económico de la Ruta
de la Seda y la Ruta Marítima de la Seda del Siglo XXI, el cual define
las áreas de cooperación y los mecanismos de implementación para
avanzar en el contexto de la Franja y la Ruta (para lo cual es necesario
reconocer que) la fima mejorara la cooperación en economía digital y
un memorando de entendimiento para promover la inversión y la
cooperación industrial MINISTERIO DE RELACIONES
EXTERIORES DE CHILE, 2023). Recordando que la IFYR propone
una ruta digital, y que Chile es importante también en el sector digital
en tanto su proyecto de cable submarino transpacífico (aunque fuera
construido con Japón y no con China como estaba originalmente
previsto).
En este punto, también se debe señalar algunos puntos
importantes para complementar el análisis de la PPC a través de la
IFYR, y esto tiene que ver con los elementos de resolución de
controversias, prevención y resolución de crisis.
518
Dado que no se ha podido acceder a los documentos de Chile
y Perú, aquí se tomará en cuenta el caso de Bolivia y Ecuador en
términos de que mantienen una lógica que se reproduciría en los
demás países de la subregión
1.- en el párrafo V de ambos “memorando de entendimiento, se
plantea la resolución de interpretación e implementación mediante o
negociaciones amistosas (Ecuador), o de forma directa por vía
diplomática (caso boliviano), como único punto formal; que da
cuenta que el dialogo político directo, en este marco concreto, puede
minimizar o resolver cualquier desencuentro
2.- existen algunos otros artículos y acápites que contribuyen a
comprender el tipo de resolución que pueden desplegarse por la
mediación de la figura de la IFYR (tomando en cuenta que varios
proyectos ya en ejecución previo a estas firmas, ahora están incluidos
dentro de este marco):
- En lo referente a objetivos, directrices y principios rectores de
la cooperación en ambos memorandos: en el artículo 1, acápite I, (i),
se plantea que los principios estarán guiados por los principios de
consulta extensa (o amplia), contribución conjunta y beneficios
compartidos; lo cual, no establece mecanismos plenamente
institucionalizados, sino eleva nuevamente las soluciones al diálogo
político dentro del propio marco.
- En el mismo artículo en el (ii), se apela a que de conformidad
a las legislaciones y reglamentaciones nacionales; y, a los
compromisos y obligaciones internacionales, las Partes garantizarán
el progreso seguro y fluido de los proyectos (dentro del marco de la
IFYR). Lo cual, nuevamente, además ser parte de los elementos
discursivos propios de la perspectiva de la teoría y práctica de las
RRII neoliberales (funcional para la proyección política de ambas
partes), no traslada la resolución de conflictos y prevención de crisis
519
a espacios por fuera de la auto referencialidad del propio marco de la
IFYR, y diálogo político.
Aquí, sin embargo, si tomamos en cuenta una perspectiva
realista, podríamos interpretar que, al mencionar las normas y
legislación nacional, existiría una rendija para que la asimetría en las
relaciones bilaterales signifique una primacía de los intereses chinos;
sin embargo de aquello, esta hipótesis no se puede demostrar porque
no hay antecedentes de que los desencuentros se hubieren resuelto en
cortes chinas, por ejemplo.
3.- Finalmente en el Artículo VI (Ecuador) o párrafo 6 (Bolivia).
Entrada en Vigencia, Enmienda y Terminación, a que: “El presente
Memorando de Entendimiento finalizará por mutuo acuerdo de las
partes. La terminación del Memorando de Entendimiento no afectara
la ejecución de los programas de cooperación, mismo que
continuaran de conformidad con el cronograma aprobado”; siendo
clave el termino de cooperación, que incluye un elemento amistoso y
diplomático en si mismo orientado a desactivar escaladas por
discrepancias.
Ahora bien, como se observa, los elementos propuestos se
enmarcan en un talante autorreferencial, que lleva a minimizar los
desencuentros dentro del propio espacio discursivo y practico
propuesto por los memorandos de entendimiento bilateral; pero
además, en el capítulo o párrafo 1, acápite iii, sobre cooperación, la
relación se proyecta a articular mecanismos de cooperación, y que
pueden al mismo tiempo ampliar a la propia IFYR y ser un
mecanismo de solución de desencuentros: “De conformidad con el
concepto de cooperación, desarrollo y progreso de beneficio mutuo
en el marco de la Iniciativa de construcción conjunta de la Franja y la
Ruta, las Partes utilizarán plenamente los mecanismos de
cooperación bilateral existentes, los mecanismos multilaterales a los
520
que se han unido y la cooperación regional efectiva, plataformas para
formar sinergia y proporcionarse mutuo apoyo.”
Así, además se comprueba que IFYR se inscribe dentro de un
continuo táctico que parte de la perspectiva tradicional china por:
asegurar una relación de largo plazo con la región y que puede
articularse a una orientación a prevenir y resolver elementos críticos
en la dinámica del relacionamiento birregional y binacional. Y esto en
un marco en donde ni la región ni sus subregiones generan intereses
que amenacen a la soberanía, y a la seguridad china en su área de
influencia directa8; y es que, la región, para la perspectiva china,
representa retos estratégicos de distinto cuño, que áreas contiguas o
lo que le significan otras regiones y grandes potencias. (REYES, 2018)
Conclusiones
Sudamérica y los países APS tendrían para la PPC
potencialidades de interés estratégicos, tanto a nivel de posición,
como de asociación política (frente a los retos que impone el orden
mundial, como por ejemplo: las amenazas a la soberanía e integridad
territorial); así como, abundantes recursos, que más allá del apoyo al
campo de producción y consumo chino, son necesarios para el
desarrollo y/o apoyo a las capacidades materiales orientadas al sector
seguridad y defensa, incluidas las relacionadas al campo militar; y
además aquellas que tienen que ver con el campo de la competencia
productiva y comercial, pero también son una de las patas del poder
estructural alrededor de los TICS, el 5g, el 5.5 g y el 6g, así como todas
las potencialidades económicas y por supuesto también en el ámbito
de la seguridad y defensa,
8Y es que según Shi Yinhong, China no tiene intereses estratégicos militares
ofensivos o defensivos en Latinoamérica. El país sí tiene intereses estratégicos en
Asia, por cuestiones geográficas (REYES; PEREZ, 2010).
521
Ahora bien, retomando la contrastación entre las declaraciones
e intenciones con los avances, podemos señalar que la política exterior
china desarrolla espacios de atracción de corte pacífico, que se
evidencias en las relaciones bilaterales y birregionales. En la IFYR,
como se ha revisado preliminarmente, se puede encontrar propuestas
de articulación de infraestructuras y de iniciativas económicas,
comerciales, de inversión y financieras; a la vez que, se puede orientar
a generar no solo movilidad, y comunicación sino también procesos
de crecimiento económico: creación de empleo – aumento de
demanda – efecto multiplicador – posibilidad de empujar a la oferta
y nueva generación de empleo; dándose, también paso a iniciativas
tales como incluso educación.
En sentido amplio, la franja y ruta como iniciativa se presentan
dos ámbitos que confluyen:
1. una institucional, en donde existen directrices y
documentos oficiales que se traducen en procedimientos
formales y normativos;
2. pero también otro, que parte desde las particularidades de
la proyección china asentada en la tradición de su propia
construcción civilizatoria, donde el pragmatismo se
manifiesta para resolver la proyección estratégica de la
conducción política del Estado y su voluntad por un
despliegue de cooperación multidimensional y
omnidireccional;
3. Esto permite que sectores dentro de China y sus contrapartes
puedan desplegar iniciativas concretas orientadas por el
espíritu de la Iniciativa, las cuales serán a la vez fortalecidas
por el asentamiento de las formalidades institucionales
necesarias para la consolidación de la IFR. Así, aquí,
podríamos encontrar otro elemento preventivo para posibles
desencuentros en iniciativas conjuntas
522
Así mismo, a pesar de que existen propuestas que no se ha
concretado, lo avanzado junto a la proyección de las posibilidades,
incrementan la oportunidad para asegurar una relación política-
económica de largo plazo, y puede ser una ventana de oportunidades,
a pesar de la existencia de asimetrías concretas dentro de las
relaciones bilaterales y birregionales
Finalmente, a pesar de los anterior cabe reconocer que la PPC
en los periodos aquí revisados no ha estado orientada a construir
condicionalidades orientadas hacia una conversión política que
confluya con los propios principios chinos ; y tampoco, a la
concepción coxiana de hegemonía (1993): ya que aquí no se reproduce
un resultado donde los intereses chinos (y la forma de procesarlos) se
presentan como intereses universales.
Como se ha observado, las dinámicas chinas están atravesadas
por iniciativas de construir un marco cooperativo, en un juego donde
se presentan nuevas oportunidades, y son las contrapartes, según sus
propios intereses y forma de procesar la proyección de sus
respectivos complejos estado-sociedad, las que deciden la forma,
profundidad o no acoplamiento de las distintos proyectos e
iniciativas de la relación.
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Anexo 1 Actividades IFYR Subregion PSA
Funder BRI Financial Dollar Countr Activity Activity Activity
Activity Name Type Status Activity Type Type Amounts y Date 1 Date 2 Status
Other
Chinese Under
Inversión
Chaglla Hydro Institutio Energy - $1,390,000,000 08/00/201 constructio
project n 1,5 general USD Peru 7 NA n - on time
527
Under
San Gaban Energy - Préstamo $365,000,000 09/01/201 constructio
III Project CDB 1,5 general USD Peru 7 NA n - on time
Sandia Other
Hydropower Institutio Energy - Contrato 07/26/200
Plant n 9 sustainable N/A Peru 7 11/05/2009 Completed
Coca Codo Energy - Ecuado
Préstamo
Sinclair Dam CHEXIM 1,1 sustainable $2.600.000.000 r 2010 11/00/2016 Completed
Mazar-Dudas Under
Hydroelectric Energy - Préstamo $41,600,000 Ecuado 03/01/201 constructio
Complex CDB 1,1 sustainable USD r 1 N/A n - delayed
Quijos Under
Hydroelectric Energy - Préstamo $94,700,000 Ecuado constructio
plant CDB 1,1 sustainable USD r 01/2012 N/A n - delayed
Other Under
Toachi Pilaton Institutio Energy - Contrato USD Ecuado constructio
Dam n 1,5 sustainable $240,000,000 r 2008 N/A n - delayed
Sopladora
Hydroelectric Energy - Préstamo Ecuado 04/26/201
Project CHEXIM 1,3 sustainable $571.000.000 r 1 08/00/2016 Completed
Minas San Energy - $312,400,000 Ecuado 12/00/201
Préstamo
Francisco Dam CHEXIM 1,2 sustainable USD r 1 15/1/2019 Completed
Delsitanisagua
Hydroelectric Energy - Préstamo USD Ecuado
power plant CDB 1,1 sustainable $335,000,000 r 12/2011 21/12/2018 Completed
Cañar and Other
Naranjal flood Institutio Energy - Préstamo Ecuado
control project n 1,3 sustainable $298.9 million r 24/7/2013 12/1/2016 Completed
Other
Chinese
Impreciso
Mirador Institutio Natural $1,400,000,000 Ecuado 21/12/201
Mining Project n 1,4 Resources USD r 5 07/18/2019 Completed
Other
San Carlos Chinese
Impreciso
Pantantza Institutio Natural $3,000,000,000 Ecuado
Copper Mine n 1,2 Resources USD r Vague N/A Delayed
Other
Chinese
Inversión
Rio Blanco Institutio Natural $20,000,000 Ecuado 04/00/201
Mine n 3 Resources USD r 8 N/A Delayed
Under
Manabí Préstamo $800,000,000 Ecuado 00/00/201 constructio
Hospital CDB 1,1 Medical USD r 6 N/A n - delayed
Eloy Alfaro Under
International constructio
Contrato
Airport $25,200,000 Ecuado 30/11/201 n -
Reconstruction CHEXIM 1,3 Airport USD r 7 N/A unknown
$5,000,000 Ecuado 11/30/201 Under
Impreciso
Canuto Bridge CHEXIM 1,3 Bridge USD r 7 N/A constructio
528
n -
unknown
Under
Quinide-Las constructio
Impreciso
Golondrinas Ecuado 30/11/201 n -
Highway CHEXIM 1,3 Road N/A r 7 N/A unknown
Under
constructio
Impreciso
Pimpiguasi $5,000,000 Ecuado 11/30/201 n -
Bridge CHEXIM 1,3 Bridge USD r 7 N/A unknown
Under
Pedernales Préstamo $16,400,000 Ecuado 11/27/202 constructio
Hospital CDB 1,2 Medical USD r 1 N/A n - on time
Other
Segmental Institutio Préstamo $101,400,000 Ecuado 14/10/200
Bridge n 9 Bridge USD r 9 09/26/2011 Completed
Nido de Under
Aguilas Other constructio
Hydroplant Institutio Energy - 00/00/201 n -
Project n 3 sustainable Contract $280.000.000 Chile 5 N/A unknown
Chacayes Other
Hydropower Institutio Energy - 00/00/200
Project n 9 sustainable Contract $450.000.000 Chile 8 00/00/2011 Completed
La Higuera Other
Hydropower Institutio Energy - 00/00/200
Project n 9 sustainable Loan N/A Chile 6 00/00/2010 Completed
La Confluencia Other
Hydropower Institutio Energy - 00/00/200
Project n 9 sustainable Vague N/A Chile 6 00/00/2010 Completed
529
Meio ambiente e inserção internacional do Brasil no terceiro
governo Lula: um balanço do primeiro ano
Nathan Morais Pinto da Silva (PPGRI/UERJ)
Pedro Allemand Mancebo Silva (IRI/PUC-Rio)
Resumo: A eleição e subsequente posse de Luiz Inácio Lula da Silva
para seu terceiro mandato como presidente são marcadas por muitas
viradas discursivas e práticas. Um dos campos onde a virada é mais
evidente é o tratamento da questão ambiental, tanto no plano
doméstico como externo. Após 6 anos de retração e desmonte da
política ambiental brasileira, mudanças no posicionamento
internacional do Brasil e de um governo abertamente negacionista,
temos o retorno de uma postura baseada em evidências científicas e
que busca elaborar e concretizar ações ambientais estatais e
internacionais. O presente artigo visa discutir a virada no discurso e
na postura ambiental da política externa brasileira que se opera com
a eleição de Lula e no período de um ano entre o discurso da vitória
eleitoral até outubro de 2023, visando compreender continuidades e
rupturas com relação ao governo anterior, mas também com relação
aos posicionamentos do período de 2003 a 2010. Partimos da hipótese
de que no plano discursivo e internacional, o governo Lula 3
apresenta algumas mudanças no tratamento da questão ambiental,
em especial ao compreender a importância da transição ecológica
para o combate às desigualdades e para repensar e reorientar a
530
inserção internacional do Brasil. No plano das políticas públicas, no
entanto, algumas velhas tensões se mantêm, especificamente a tensão
entre uma nova visão das questões ecológicas e os imperativos de
uma visão desenvolvimentista da política econômica. Para discutir tal
hipótese, analisaremos discursos relevantes de Lula em eventos
nacionais e internacionais sobre a temática ambiental desde sua
eleição e suas principais ações nesse período de um ano, utilizando
um método de process-tracing que busca identificar quais são as
chaves centrais para a visão ambiental do terceiro governo Lula e
quais as disputas que se apresentam em torno dos projetos
econômicos e ambientais do atual governo.
A política externa brasileira no campo ambiental: antecedentes
históricos
Em decorrência tanto dos seus atributos naturais e geográficos
quanto das suas ações no plano internacional, o Brasil adquiriu ao
longo dos anos o status de país relevante no âmbito das negociações
climáticas e na área ambiental como um todo. O Brasil tem sido
caracterizado como uma grande potência climática ao lado de atores
como Índia, Japão e Coreia do Sul, e apenas um degrau abaixo de
superpotências como Estados Unidos, China e a União Europeia. Isso
quer dizer que o país está colocado em uma posição de modo que não
possui capacidade de veto em acordos, mas ainda pode acelerar ou
obstruir determinados processos de acordo com seu interesse, assim
tendo à disposição poder tanto para “construir” quanto para
“destruir” a agenda climática global (Viola; Franchini, 2013;
Hochstetler; Inoue, 2019).
Os primeiros sinais do protagonismo brasileiro em temas
ambientais se manifestaram durante e após a Conferência das Nações
Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, a Conferência de Estocolmo,
531
realizada na capital sueca no ano de 1972. Nesta ocasião, a delegação
brasileira adotou uma postura combativa, argumentando que a
agenda climática em construção proposta pelos países desenvolvidos
era prejudicial aos países em desenvolvimento, pois esta obstruía as
suas possibilidades de crescimento (Duarte, 2003). Esta posição era
coerente com as linhas gerais da política externa brasileira do
período, pautadas na denúncia do “congelamento do poder
mundial” (Castro, 1972) entre as grandes potências e da desigualdade
entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Outros países do
então Terceiro Mundo, como China e Índia, se aliaram ao Brasil nesta
ocasião.
Ainda na década de 1970, a agenda ambiental começou a
ganhar fôlego no país, tanto no âmbito doméstico quanto na política
externa. Em 1973, foi criada a Secretaria Especial do Meio Ambiente,
então subordinada ao Ministério do Interior, precursora do que viria
a se tornar o Ministério do Meio Ambiente. Em decorrência dos dois
choques internacionais do petróleo da década, o país desenvolveu
esforços para a produção em larga escala de biocombustíveis como o
etanol de modo a atenuar a sua dependência de combustíveis fósseis,
a partir do Programa Nacional do Álcool (Proálcool), estabelecido em
1975. Também destaca-se nesse sentido o Tratado de Cooperação
Amazônica, firmado entre o Brasil e os outros países amazônicos em
1978 com o objetivo de promover o desenvolvimento sustentável da
região.
Ao longo da década de 1980, durante os últimos momentos da
ditadura empresarial-militar no país, o Brasil começou a ser
percebido na comunidade global como um vilão ambiental, com a
ampla divulgação internacional sobre as queimadas na Amazônia, as
péssimas condições de vida dos povos indígenas e a repercussão do
assassinato do ambientalista Chico Mendes, entre outros fatos. As
crises econômicas que marcaram a década inibiram maiores reações
532
por parte do país, que só ocorreram nos primeiros anos do regime
democrático. Após a redemocratização, em 1985, o presidente José
Sarney elevou a então Secretaria de Meio Ambiente ao status de
ministério.
Após a produção do Relatório Brundtland em 1987, a agenda
ambiental adquiriu maior protagonismo no âmbito multilateral. Uma
nova conferência internacional foi convocada pelas Nações Unidas
para o ano de 1992, de modo a revisitar a agenda criada em
Estocolmo, e o Brasil se dispôs a sediar este encontro. A ideia de
sediar a conferência se deu não apenas com a intenção de reconstruir
a credibilidade do país nos temas ambientais, mas também pela
vontade do Brasil de se inserir como um global player e ocupar um
papel de destaque como negociador e mediador de acordos
internacionais (Duarte, 2003). A Conferência das Nações Unidas para
o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ou simplesmente ECO-92 (ou
Rio-92), aconteceu no Rio de Janeiro em junho de 1992. Um dos fatos
mais relevantes em torno da conferência foi a criação da Convenção-
Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (CQNUMC,
ou UNFCCC, em inglês), em um contexto onde o consenso científico
sobre as mudanças climáticas e os efeitos da ação humana sobre o
planeta já se consolidava. A partir de então, a mudança do clima se
tornou um tema central da agenda ambiental no âmbito multilateral.
O Brasil mostrou protagonismo não apenas sediando a conferência,
mas também se envolvendo ativamente nas negociações, enfatizando
a legitimidade da participação da comunidade científica nas
discussões, além do caráter político e econômico dos acordos
(Kiessling, 2018).
A partir da década de 1990, uma série de novos atores e temas
passaram a compor o repertório da política externa brasileira,
reforçando a sua caracterização como uma política pública (Milani;
Pinheiro, 2013). Um desses novos temas que tomavam lugar no
533
debate público era justamente a questão climática, que passou a ser
uma agenda importante tanto para as agências estatais formuladoras
de políticas quanto para a sociedade civil. Nesse contexto, o país teve
um papel central nas negociações que levaram à assinatura do
Protocolo de Quioto, em 1997, com o objetivo de criar compromissos
de redução das emissões de gases de efeito estufa (Kiessling, 2018).
A eleição de Lula da Silva e a nomeação de Marina Silva para o
Ministério do Meio Ambiente em 2003 marcaram uma mudança de
estilo na diplomacia brasileira para assuntos ambientais e climáticos.
Nesse contexto, o MMA passou a ter maior envolvimento nos
processos de formulação e implementação de política externa
relativos a esta matéria (Kiessling, 2018). O primeiro governo Lula
consolidou uma transição na política climática brasileira, em meio à
qual o Brasil deixou de ser uma potência conservadora e se colocou
como uma potência conservadora moderada, devido ao salto
qualitativo observado no grau de compromisso climático no país
durante o período (Viola; Franchini, 2013). Uma das principais
iniciativas diplomáticas brasileiras em relação a esta questão durante
o período foi a criação do grupo BASIC, em conjunto com África do
Sul, Índia e China, às vésperas da Conferência das Nações Unidas
sobre as Mudanças Climáticas de 2009 (COP15) em Copenhague. O
grupo agiu de modo a articular as posições dos países em
desenvolvimento nesta conferência. No mesmo ano, foi estabelecida
a Política Nacional sobre Mudança do Clima, com o objetivo de
coordenar os esforços de redução das emissões de gases de efeito
estufa no país.
No ano de 2012, aniversário de vinte anos da ECO-92, o Brasil
voltou a sediar uma grande conferência climática, a Conferência das
Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, ou Rio+20. A
conferência teve como objetivo discutir e expandir as agendas
estabelecidas em ocasiões anteriores, com foco na agenda do
534
desenvolvimento sustentável. As discussões do evento serviram
como base para o estabelecimento dos Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável das Nações Unidas e da Agenda 2030, três anos depois.
Em 2015, durante a COP21, foi celebrado no âmbito da
CQNUMC/UNFCCC o Acordo de Paris, que tem como finalidade
promover a redução da emissão de gases de efeito estufa de modo a
limitar o aumento da temperatura média global a menos de 2ºC (e
preferencialmente, a menos de 1,5ºC) acima dos níveis pré-
industriais. O Brasil, presidido por Dilma Rousseff à época das
negociações do Acordo, foi um dos seus países signatários,
ratificando-o em agosto de 2016, já no governo de Michel Temer. No
entanto, a eleição de Jair Bolsonaro em 2018 se provaria como um
obstáculo de difícil superação para a continuidade das políticas
climáticas brasileiras, incluindo a própria adesão ao Acordo de Paris,
à medida que o novo governo promoveu uma transformação radical
na definição do lugar das agendas ambiental e climática na vida
política nacional.
O desmonte da agenda internacional ambiental brasileira no
governo Bolsonaro
A política ambiental como um todo perdeu importância aos
olhos do governo durante a administração Bolsonaro (2019-2022).
Foram inúmeras as denúncias sobre o desmonte da política
ambiental, e o desprestígio desse campo de políticas públicas é visível
desde a escolha de um ministro do meio ambiente condenado por
crimes ambientais até a escolha de um chanceler negacionista da crise
climática. Nessa seção, faremos um breve apanhado de ações do
governo Bolsonaro que demonstram a retração do Brasil do debate
ambiental global.
535
Dada a gravidade da crise climática, é importante ter em mente
que o desmonte mais geral do Estado já é, por si só, um agravante
para a atuação do Estado. A transversalidade da questão ambiental e
da sustentabilidade sócio-ecológica da vida humana faz com que o
desmonte de qualquer área - educação, trabalho, cidades etc - já
configure um ataque à agenda ambiental. A deliberada redução do
escopo e capacidade de atuação estatal impede a atualização
necessária das políticas públicas e a inserção e valorização da pauta
ambiental nas ações do Estado.
O período Bolsonaro é marcado por uma piora sensível em
todos os indicadores ambientais. O relatório final da transição afirma
que houve um aumento de 60% na taxa de desmatamento da
Amazônia, além de perseguição e/ou abandono das políticas para
comunidades tradicionais. Um dos desdobramentos internacionais
disso foi a quebra da credibilidade do setor produtivo brasileiro e a
imposição de barreiras a exportações brasileiras. Além disso, um dos
vetores da cooperação para a produção e financiamento de políticas
ambientais - o Fundo Amazônia, mantido em parceria com - teve seus
recursos paralisados. Além dos efeitos de reputação, algumas
decisões desse período relativas à condução da política externa
também contribuíram para a piora e retração do Brasil das arenas de
debate e formulação da política ambiental no plano internacional.
A postura negacionista com relação à crise climática se
materializou antes mesmo da posse de Bolsonaro, com a retirada da
candidatura do Brasil para sediar a COP-25. Ao retirar a candidatura,
o então presidente eleito alegou que pediu que se evitasse o evento
“porque está em jogo o Triplo A nesse acordo. O que é o
Triplo A? É uma grande faixa que pega do Andes, a
Amazônia e Atlântico, de 136 milhões de hectares, que
poderá fazer com que percamos a nossa soberania nessa
área” (Silva, Bresciani e Souza, 2018).
536
Como típico da campanha e do governo, a alegação não tem
base alguma na realidade e mobiliza a ideia de soberania como forma
de restringir e afastar críticas às posturas e políticas ambientais do
governo. Na formação do governo, Bolsonaro também declarou a
intenção de fundir as pastas do Meio Ambiente e Agricultura,
colocando a política ambiental subordinada à Agricultura.
Além disso, a nova postura negacionista e anti-ambiental
também se expressava na perseguição a servidores públicos e
aparelhamento de instituições - do qual a nomeação do advogado e
ativista anti-ambiental Ricardo Salles para o Ministério do Meio
Ambiente é emblemática - e em discursos e falas que visavam
minimizar a importância ou colocar em dúvida a existência dessa
crise. Um dos casos emblemáticos do primeiro exemplo foi a
perseguição ao cientista Ricardo Galvão, então diretor do INPE, cuja
credibilidade foi colocada em xeque ao divulgar o aumento do
desmatamento aferido pelos dados de satélites. Outro exemplo da
guerra contra as evidências do governo Bolsonaro é a fala do general
Augusto Heleno - figura de grande influência no governo - sobre a
manipulação de dados de desmatamento.
“A Amazônia é brasileira e quem tem que cuidar dela
somos nós. Esses índices de desmatamento são
manipulados. Se você somar os porcentuais que já
anunciaram até hoje de desmatamento na Amazônia, a
Amazônia já seria um deserto.” (Carmo, 2019)
Além do desconhecimento estatístico, a fala revela um viés
soberanista, que busca restringir a política ambiental e a ação
climática com base em uma noção de “propriedade” do território por
parte do Estado - sem falar em uma visão do direito de abuso e
deterioração dessa “propriedade” uma vez que ela se encontrava
relativamente preservada.
537
O Ministério das Relações Exteriores (MRE) também
desempenhou papel importante nessa retração. Além de uma maior
“ideologização” da política externa do período, percebe-se também
uma guinada para o negacionismo explícito. Silva (2023) aponta que,
com a nomeação de Ernesto Araújo, vê-se um processo de
institucionalização do negacionismo ambiental no MRE, que pela
primeira vez passou a informar a política externa, em detrimento da
histórica parceria entre diplomacia e ciência que orientava a política
externa brasileira diante das questões ambientais até então.
Isto ocorre em um contexto de ascensão do fenômeno do
negacionismo climático no Brasil, impulsionado por setores como o
agronegócio e a bancada ruralista no Congresso Nacional, atores que
estabeleceram ligações com cientistas negacionistas da mudança
climática ao longo dos anos anteriores à eleição de Bolsonaro. Estas
conexões se tornaram mais evidentes durante e após a eleição
presidencial de 2018, destacando-se a candidatura a deputado federal
do climatologista negacionista Ricardo Felício em 2018 pelo PSL,
partido de Bolsonaro; e o envio de uma carta a membros do novo
governo, como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
denunciando cientistas e organizações ambientais e divulgando teses
negacionistas.
Em sua “luta contra o globalismo”, Araújo olhava com
desconfiança para qualquer consenso vindo do sistema das Nações
Unidas e o Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas não
foi exceção. A referência ao “climatismo” e as tentativas de
desacreditar e semear dúvidas sobre a mudança climática1 também
influenciaram a atuação do ministério, como no envio de um
diplomata para participar de uma conferência climatocética
1“Não acredito em aquecimento global. Vejam que fui a Roma em maio e estava
tendo uma onda de frio enorme. Isso mostra como as teorias do aquecimento
global estão erradas. Isso a mídia não noticia”
538
promovida por um think tank conservador norte-americano já em
2019. No mesmo ano, Araújo discursou em um evento de uma outra
instituição aliada ao governo Trump, pondo em dúvida o caráter
antropogênico das mudanças climáticas no discurso proferido na
ocasião. Destaca-se também neste sentido a instrumentalização da
Fundação Alexandre de Gusmão, vinculada ao MRE, que passou a
organizar encontros e palestras de teor conspiratório e abordando
temas conservadores, incluindo a questão climática.
A combinação de uma atuação ambiental destrutiva no plano
interno com uma política externa negacionista colheu seu resultado
inexorável: piora em indicadores ambientais e isolamento e retração
do papel do Brasil no debate ambiental global. A resistência oferecida
por organizações da sociedade civil e por servidores particulares,
embora importante em termos de arquivar e denunciar os males
dessas posturas, pouco puderam fazer contra a máquina estatal.
Eventos e falas marcantes desse período como o “Dia do Fogo”
ou a fala da ministra Teresa Cristina sobre o “boi bombeiro” são
importantes para mostrar o que Daniel Cunha (2019) denomina de
“carbofascismo” e ajudam a caracterizar bolsonarismo como uma
política do capitalismo de fronteira. Cunha (2019) coloca o Brasil
como parte das fronteiras globais de mercadorias (Moore, 2015),
regiões fundamentais para a acumulação capitalista por
representarem um contrapeso à tendência de queda da taxa de lucro
- especialmente por meio da incorporação de novos espaços à lógica
do capital, uma zona de apropriação gratuita em constante expansão.
A fronteira da soja, do petróleo e da mineração são cruciais e, com a
crise capitalista do século XXI, o “asselvajamento da necessidade de
capital circulante barato” (Cunha, 2019), reforça o papel sistêmico da
fronteira na continuidade e viabilidade da acumulação capitalista.
539
Dentro desse contexto, é necessário compreender que a agenda
ambiental, bem como povos e comunidades tradicionais,
representam barreiras à expansão das fronteiras extrativas. O
desmonte das capacidades estatais nessas arenas podem, então, ser
situadas contra o pano de fundo histórico-mundial da crise
contemporânea do capitalismo, bem como a retração da posição
internacional do Brasil. Esse rebaixamento da agenda ambiental
respondia a um projeto de inserção internacional do Brasil em posição
subalterna, aceitando o lugar primário-exportador do país na
economia-mundo, sem esforços para reverter os efeitos negativos
desse tipo de inserção. Assim, a subordinação da questão ambiental
à lógica das relações comerciais demandava uma retração da posição
brasileira nos debates ambientais globais. Se faz necessário, também,
compreender em que medida a troca do governo de plantão pode ou
não reverter e redirecionar a política ambiental para metas sociais
mais amplas, democráticas e pautadas.
O governo Lula III e a revalorização da agenda ambiental
Em uma trajetória especular, a campanha e o plano de governo
de Luiz Inácio Lula da Silva trouxeram uma revalorização da pauta
ambiental. A vitória de Lula na eleição de 2022 foi seguida de uma
série de falas e participações de Lula como presidente eleito em que
ele delineia a visão de política ambiental que informaria o novo
governo. Nessa seção, nos dedicaremos a reconstruir essa visão a
partir dos discursos de Lula no dia da vitória, em sua participação em
evento paralelo da COP 27, na cerimônia de posse, no G7 e na
abertura da Assembleia Geral da ONU, para então contrastar com as
tensões políticas que cercam a agenda ambiental do atual governo.
Quatro elementos são centrais para entender a visão ambiental
do novo governo Lula. A primeira é a vinculação dos problemas
540
ambientais e seu enfrentamento com o enfrentamento das
desigualdades nacionais e globais, em uma tentativa de superar a
antinomia “meio-ambiente X desenvolvimento”. O segundo é uma
compreensão da necessidade de cooperação internacional para
enfrentar as crises sócio-ecológicas e da necessidade de fortalecer os
mecanismos de governança global do clima e do meio ambiente -
criando um direcionamento claro para a diplomacia climática. Por
fim, e como consequência dos outros dois elementos, há um
reposicionamento do Estado diante da pauta ambiental, trazendo
para si a responsabilidade por desenvolver, implementar e gerir
iniciativas de enfrentamento aos problemas ambientais, postura
encapsulada no lema “o Brasil voltou”. Por fim, as falas de Lula sobre
a questão ambiental trazem um foco em um problema ambiental
concreto: o desmatamento da Amazônia e a necessidade de buscar o
desmatamento zero.
No discurso da vitória em 30 de outubro de 2022, por exemplo,
Lula fala sobre “retomar o protagonismo na luta contra a crise
climática”, assim como sobre o “compromisso com os povos
indígenas, com os demais povos da floresta e com a biodiversidade.”
(Lula, 2022) quando fala sobre o meio ambiente e sobre a promoção
do desenvolvimento sustentável. De forma semelhante, a questão dos
povos indígenas e tradicionais volta a ser citada no discurso da posse
vinculada à questão ambiental:
Os povos indígenas precisam ter terras demarcadas e livres
de ameaças de atividades econômicas ilegais e predatórias,
precisam ter sua cultura preservada, sua dignidade
respeitada, e sustentabilidade garantida. Eles não são
obstáculo ao desenvolvimento. São guardiões de nossos
rios e florestas e parte fundamental da nossa grandeza
enquanto nação. Por isso estamos criando, estamos criando
o Ministério dos Povos Indígenas para combater 500 anos
de desigualdade. (Lula, 2023, grifo nosso)
No discurso da COP 27, o então presidente-eleito declara que
541
(...) o Brasil está pronto para se juntar novamente aos
esforços para a construção de um planeta mais saudável.
De um mundo mais justo, capaz de acolher com dignidade
a totalidade de seus habitantes – e não apenas uma minoria
privilegiada.
Essa ideia volta a aparecer de forma importante em outros
discursos, mostrando a importância da cooperação ambiental e do
entendimento de que não se enfrentará a crise climática sem um
enfrentamento das desigualdades. O discurso na COP 27 também
apresenta uma cobrança importante sobre o cumprimento dos
acordos e promessas de investimento nas iniciativas de
enfrentamento à crise climática. Ecoando o discurso da posse, Lula
volta a tratar da questão da desigualdade: “não existem dois planetas
Terra. Somos uma única espécie, chamada Humanidade, e não haverá
futuro enquanto continuarmos cavando um poço sem fundo de
desigualdades entre ricos e pobres.”. Aqui, vê-se a centralidade do
combate às desigualdades na agenda ambiental do atual governo.
No plano doméstico, a revalorização proposta da agenda
ambiental foi amplamente bem recebida. Ao nomear Marina Silva
para o ministério do Meio-Ambiente e criar o Ministério dos Povos
Indígenas, o governo Lula buscou uma maior institucionalização de
agendas socioambientais. Além disso, Lula ainda sinalizou a criação
de uma Autoridade Nacional para a Segurança Climática. Na posse
de Marina Silva como ministra do Meio Ambiente, foi anunciada a
criação dessa Autoridade, bem como de um conselho para a
governança do clima a ser presidido pelo presidente da República e
com participação de estados, municípios e da sociedade civil. A
composição de forças que elegeu Lula, bem como o reforço do poder
político de setores ligados ao capitalismo de fronteira - especialmente
do agronegócio - se tornam obstáculos à essa institucionalização.
Governos anteriores do PT, bem como figuras importantes do
atual governo, tendem a adotar políticas desenvolvimentistas
542
clássicas, pautadas em uma busca pela industrialização, no
aproveitamento do potencial econômico dos recursos naturais do
Brasil. Por mais que tais políticas tenham trazido frutos importantes
em termos de industrialização, no século XXI isso significa não
apenas maior pressão sobre recursos naturais, como também maior
pressão sobre as fronteiras extrativas internas do Brasil. Em um país
primário-exportador, projetos de viés industrialista ainda esbarram
na necessidade de negociar seus avanços com forças sociais ligadas
aos setores extrativistas, em especial o agronegócio e a mineração.
Essa tensão é central para a disputa do sentido da inserção
internacional do Brasil e de outros países periféricos, primário-
exportadores. E é essa tensão que precisa ser navegada nas
negociações internas e externas da agenda ambiental e no debate da
inserção internacional do Brasil.
No plano externo, a retomada da agenda ambiental tem sido
importante para restaurar a posição vanguardista do Brasil nessa
área. Ao olhar o plano doméstico, no entanto, é possível ver se e como
a agenda ambiental está sendo um catalisador para disputar uma
nova inserção internacional do país ou se as forças sociais
hegemônicas - e que ganharam poder sob Bolsonaro - conseguem
perpetuar uma inserção subalterna, pautada em uma economia
extrativa e em uma relação predatória com a natureza. Os debates em
torno da exploração de petróleo nos campos da Margem Equatorial e
da Foz do Amazonas são reveladoras das tensões que correm dentro
do próprio governo, bem como a disputa pelas competências dos
ministérios, com especial atenção para o MMA e o MPI, e pela
definição de critérios para demarcação de terras indígenas, como no
Marco Temporal.
Em Maio de 2023, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e
Recursos Renováveis (IBAMA) negou um pedido da Petrobras para a
exploração de petróleo na região conhecida como Margem
543
Equatorial. O Instituto alegou preocupação com o atendimento da
fauna em caso de emergências, bem como com os impactos da
exploração sobre três terras indígenas. A exploração do petróleo na
Margem Equatorial é uma região importante para o planejamento
estratégico da Petrobras entre 2024 e 2027. A negativa fez com que
atores do próprio governo se engajassem na relativização da decisão
do IBAMA. Alexandre Padilha (ministro das relações institucionais)
afirmou ser necessário “ver como a gente combina a necessidade do
desenvolvimento econômico, da exploração de riquezas naturais
importantes, como o petróleo, com a preservação ambiental” (Poder
360, 2023). De forma semelhante, o ministro da Casa Civil, Rui Costa
disse que “[c]om investimentos, pesquisa que a Petrobras vai manter,
vai intensificar porque ali acena-se com a possibilidade de ser um
novo grande novo reservatório de gás e óleo para o Brasil” (Poder
360, 2023b). Ambos revelam uma visão instrumental da natureza,
vista como fonte de recursos, relativizando a proteção ambiental em
prol das possibilidades do desenvolvimento.
Nessa controvérsia, é importante a dissonância entre as
posições de Padilha e Costa com a posição do próprio presidente
Lula, que declarou que “[s]e explorar esse petróleo tiver problemas
para a Amazônia, certamente não será explorado” - ainda que
reproduza aqui o foco estreito na bioma amazônico. Além disso, a
polarização IBAMA-Petrobrás, espelho da polarização meio
ambiente-desenvolvimento, foi mais criada pela atitude de figuras do
governo ao buscarem relativizar a negativa do licenciamento. O
próprio IBAMA fez recomendações e o presidente do instituto
declarou que não se recusaria a rever o posicionamento do instituto
caso a Petrobrás. Aqui vemos como além da resistência de forças
sociais localizadas na oposição ao atual governo, a agenda ambiental
mais ousada anunciada por Lula também sofre resistências dentro do
próprio governo.
544
A agenda de atração de investimentos verdes - da reativação do
Fundo Amazônia à criação dos green bonds em setembro de 2023 - é
um vetor importante dessa renovada inserção internacional do Brasil.
Ao adotar essa postura, o governo Lula III buscou conjugar objetivos
econômicos domésticos com metas globais para financiar a retomada
da agenda ambiental do Brasil. Ao retomar as atividades do Fundo
Amazônia, o governo sinaliza para uma abordagem de cooperação
para o meio ambiente, bem como para uma política de atração de
novas parcerias (e reativação das antigas) em prol desse bioma em
particular. O restabelecimento do Comitê Orientador do Fundo
Amazônia representou a possibilidade de destravar os recursos
aportados por Alemanha e Noruega, mas também foi utilizado como
oportunidade de atrair novas parcerias. A ministra do Meio
Ambiente, por exemplo, já disse ter recebido sinalização de interesse
de França, Espanha e União Europeia em participar do Fundo
(Gandra, 2023). Além disso, ao longo de 2023, o presidente dos EUA
anunciou aporte de US$ 500 milhões ao Fundo Amazônia (Agência
Brasil, 2023).
A estratégia de restabelecimento e fortalecimento do Fundo
Amazônia é uma forma de direcionar recursos disponíveis para
objetivos ambientais para a proteção da Amazônia. Paralelo a isso, o
governo brasileiro assumiu uma postura importante de cobrar
publicamente o cumprimento de acordos e metas definidos em fóruns
internacionais, bem como a necessidade de fortalecimento da
governança global do meio ambiente. Em uma arena mais ampla,
desde julho de 2023, agentes do governo, com destaque para o
Ministro da Fazenda Fernando Haddad, têm anunciado a construção
de um plano de transição ecológica para o Brasil. O plano, a ser
apresentado na COP 28, seria um conjunto de medidas para tratar de
questões ambientais de forma compreensiva. Além disso, o
Ministério da Fazenda tem feito esforços importantes para buscar o
545
financiamento de medidas ambientais no geral por meio dos títulos
verdes soberanos. A atuação de Haddad tem colocado ênfase nos
instrumentos de política e financeiros necessários à consecução dos
objetivos do plano de transição ecológica.
Considerações finais - a política externa e a superação do
capitalismo de fronteira
Com a ascensão de Bolsonaro, podemos observar a dominação
desvelada de forças sociais que cresceram a partir do “capitalismo de
fronteira” brasileiro. Forças cuja base material está localizada na
expansão contínua e violenta de fronteiras extrativas conectadas a
cadeias globais de valor e acumulação de capital. A derrota eleitoral
de Bolsonaro na eleição de 2022 trouxe ao Executivo uma coalizão de
forças sociais comprometidas com alguns valores centrais básicos e
que tensionam e disputam outras pautas. A pauta ambiental é, de
longe, a mais disputada no seio do governo, mas também nas diversas
instâncias da política brasileira. Junte-se a isso o poder político
acumulado pelo capitalismo de fronteira no Congresso e em outros
instrumentos e espaços de pressão e temos a origem da tensão entre
a postura externa e interna do governo.
Os tensionamentos da política ambiental, até o momento,
prejudicaram a agenda ambiental apresentada na eleição, ao menos
no âmbito doméstico. A Autoridade Climática - inovação institucional
importante - apesar de anunciada algumas vezes foi descartada, ao
menos por enquanto. Decisões como a constitucionalidade do Marco
Temporal para demarcação de terras indígenas e mesmo a definição
de competências dos ministérios foram contestadas com algum
sucesso pelo Congresso, enfraquecendo o Ministério dos Povos
Indígenas e o Ministério do Meio Ambiente. A retomada da agenda
ambiental na política externa trouxe frutos importantes. A atração de
546
novas parcerias, os anúncios de novos aportes ao Fundo Amazônia e
mesmo o empenho de agentes do governo em promover um plano de
transição ecológica são importantes e demonstram como a política
ambiental se torna, cada vez mais, incontornável. Diante das
demandas do presente século, é necessário não só pensar uma
inserção internacional do Brasil a partir da transição ecológica, como
também o papel de Estados e da diplomacia na consolidação desse
plano.
Diante da necessidade de enfrentar a crise climática e fazer jus
à posição vanguardista do Brasil, o governo negocia os avanços da
agenda climática por meio de uma política externa de atração de
recursos voltados especificamente para iniciativas de cunho
socioambiental - como a emissão de títulos verdes soberanos, a
regulamentação do mercado de créditos de carbono e a retomada e
atração de novos parceiros para o Fundo Amazônia. Essas medidas
são importantes por angariar recursos para políticas de mitigação e
enfrentamento à crise climática, mas também por trazer para o Estado
a responsabilidade por gerir tais recursos e buscar criar uma estrutura
de incentivos à transição ecológica por mecanismos de mercado.
Finalmente, consideramos que o caso em tela evidencia o
caráter “interméstico” - localizado na interseção dos ambientes
internacional e doméstico, que muitas vezes se interpenetram e se
confundem - das temáticas ambiental e climática enquanto assuntos
de política externa. Neste sentido, é importante discutir a dissonância
entre o governo Lula “de dentro” e o “de fora”. Enquanto o de fora
promove debates globais importantes e tem cobrado países
desenvolvidos - causadores das emissões históricas e dos processos
que trouxeram a crise ecológica -, o governo “de dentro” parece
vacilante em colocar em prática políticas para tratar desses problemas
no cenário doméstico. Ao mesmo tempo, no entanto, vemos o Estado
brasileiro tomando para si responsabilidades importantes tanto em
547
liderar o processo de transição ecológica como em criar instrumentos
para viabilizar as políticas ambientais. Este descompasso entre as
políticas doméstica e externa para questões ambientais e climáticas
no terceiro governo Lula nos parece emblemático no sentido de
ressaltar a importância de se considerar a configuração das relações
entre as forças sociais internas ao Estado nos processos de análise de
política externa.- especialmente no caso brasileiro, cujos padrões de
relações entre Estado e sociedade aparentam ser cada vez mais
complexos e repletos de contradições.
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550
O ajuste no Balanço de Pagamentos como um fator de equilíbrio
sistêmico: uma aproximação teórica entre Relações Internacionais
e Ciências Econômicas na Economia Política Internacional
Igor Estima Sardo1
Resumo: O trabalho se insere na área temática de Economia Política
Internacional e tem como objeto o poder em Economia Política
Internacional (EPI) e no Sistema Internacional (SI). Neste setido, a
pesquisa pergunta qual seria a maneira ideal de se mensurar o poder
de um Estado mediante o enfoque analítico da EPI, levando em conta
o suporte teórico das Relações Internacionais (RI) (Nogueira; Messari,
2005) e das ciências econômicas (Brue, 2005; Hunt; Lautzenheiser,
2012). Como hipótese principal, sugere-se que na EPI o índice de
vulnerabilidade externa (IVE) de Reinaldo Gonçalves (2005) serve
como uma medida inversa de poder na EPI, isto é, os Estados buscam
minimizar seu IVE a fim de maximizar seu poder no SI. Sendo assim,
o objetivo principal do trabalho é propor uma abordagem sistêmica
da EPI, mediante uma aproximação teórica entre os dois principais
campos do conhecimento que a compõem: as RI e as ciências
econômicas. Como metodologia, o trabalho se utiliza de revisão
bibliográfica e análise descritivo-analítica para se chegar aos
resultados. Conclui-se, portanto, que a EPI se trata de em enfoque
1
Aluno de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Estudos Estratégicos
Internacionais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil.
E-mail: [email protected]
551
analítico das RI, uma vez que o ator principal e o sistema são os
mesmos, ou seja, o Estado e o sistema de Estados, ou, simplesmente,
SI. Contudo, nas RI, enquanto o fator de (des)equilíbrio do sistema é
a guerra, na EPI, tal fator se trata do ajuste no Balanço de Pagamentos
(BP), com cada Estado tentando minimizar seu IVE, para minizar o
ajuste e, logo, maximizar seu poder. Uma terceira conclusão,
finalmente, é que os Estados, com vistas a diminuir seu IVE, se
utilizam de estratégias econômicas (Armijo; Katada, 2015).
Palavras-chave: Ajuste. Balanço de Pagamentos. Economia Política
Internacional.
Introdução
A Economia Política Internacional (EPI) não se constitui
enquanto um campo teórico próprio, mas, na verdade, um enfoque
analítico dentro do campo maior das Relações Internacionais (RI)
(Gilpin, 1987; Gonçalves, 2005). Neste sentido, é impossível realizar
uma teoria própria de EPI, uma vez que esta não é um campo próprio
e, logo, qualquer pesquisa em EPI deve concluir algo não sobre,
especificamente, EPI, mas sim sobre RI, isto é, a relação de poder entre
os Estados no Sistema Internacional (SI). Neste âmbito, este trabalho
indaga se é possível usar o enfoque analítico da EPI para medir poder
nas RI? A hipótese principal do trabalho é de que os Estados possuem
vulnerabilidades econômicas externas e, portanto, cada ator do
sistema tenta minimizar tais vulnerabilidades ao máximo, temendo o
ajuste no Balanço de Pagamentos (BP).
Como hipóteses suplementares, o trabalho argumenta que,
primeiramente, uma maneira sofisticada de se calcular a
vulnerabilidade econômica dos atores do sistema é mediante o índice
de vulnerabilidade externa (IVE) desenvolvido por Reinaldo
Gonçalves (2005), o qual considera indicadores econômicos das
552
esferas comercial, produtivo-tecnológica e monetário-financeiro. Em
segundo lugar, o IVE só é útil de maneira comparativa, e, desta forma,
o cálculo de poder na EPI proposto neste trabalho é mais útil ao se
comparar competidores reais, em vez de comparar todo o conjunto
do sistema.nSendo assim, o objetivo principal do trabalho se
concentra em analisar o objeto, o sistema, os atores e a mudança no
enfoque analítico da EPI. Como objetivo secundário, este trabalho
busca elucidar como o IVE pode ser uma boa medida de poder dentro
da EPI.
Como metodologia, o trabalho se utiliza de revisão bibliográfica
e análise descritivo-analítica para argumentar a favor do IVE e do
ajuste no BP como pontos fulcrais da análise de EPI. Ademais, a coleta
de dados para medição de indicadores e índices foi feita por meio do
Banco Mundial (BM), da Conferência das Nações Unidas para o
Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), do Fundo Monetário
Internacional (FMI) e do Departamento do Tesouro dos EUA. O
trabalho se justifica por seu caráter inovador. Mesmo que a
metodologia de IVE não seja nova, não há bibliografia especializada
em IVE após a publicação de Reinaldo Gonçalves na área (2005). Ao
se fazer uma busca, até outubro de 2023, nos motores de busca da
SciELO, do Portal Periódico CAPES e do Google Scholar pelas
palavras-chave “vulnerabilidade externa Estados Unidos” e “external
vulnerability United States”, não se encontrou trabalho semelhante a
este, seja no problema de pesquisa, sejam nos objetivos.
A dicotomia entre Sistema Internacional e Economia Mundial
As RI são campo de estudo constituído, tendo, portanto, um
objeto de estudo, que se desdobra em um sistema, formado por
agentes, e um elemento de mudança que dá a dinâmica do sistema.
Esta descrição bastante abstrata, no entanto, se aplica a uma miríade
553
de ciências sociais e, não à toa, Kenneth Waltz (2002) derivou toda sua
teoria mediante analogias com a microeconomia clássica. Contudo,
enquanto as RI podem se afirmar como um campo próprio, a EPI, que
busca entender, na maioria dos casos, a dinâmica entre moeda e
poder (Gilpin, 2002; Kindleberger, 1970; Strange, 1994), não se arroga
da mesma prerrogativa. O que ocorre é que a EPI se ancora tanto nas
RI quanto nas ciências econômicas, uma dicotomia entre SI e
economia mundial.
Entretanto, no mundo acadêmico, qualquer pesquisa científica
precisa concluir algo sobre o objeto que se está estudando. Ainda que
haja interseções difíceis de se separar, os resultados de uma pesquisa
precisam dizer respeito a um objeto específico. Desta forma, a EPI não
pode concluir simultaneamente sobre o Sistema de Estados e o
mercado mundial. À primeira vista, pareceria óbvio, mas para o
mainstream teórico2 das RI, a medição clássica de poder se dá
mediante as capacidades militares dos Estados, enquanto o aspecto
da economia fica relegado a um papel subsidiário. Poder-se-ia
resumir a EPI como uma lente econômica das RI, mas, ainda assim, a
tentativa de relação entre moeda e poder seria prejudicada pela falta
de relação com o poder real dos Estados. Neste intuito, ao se fazer
uma aproximação teórica entre os dois campos que constituem a EPI
‒ as RI e as ciências econômicas ‒ pode-se extrair inferências valiosas.
Como exposto anteriormente, as ciências sociais possuem uma
estrutura semelhante ao organizar a realidade social em um sistema
constituído de agentes. A maneira como os agentes influem no
sistema é, normalmente, caracterizada por poder e, logo, a
distribuição de poder dentro do sistema é vital para se entender a
2
Assume-se aqui como mainstream teórico de RI, as teorias que trabalham com as
noções de Estado como ator principal, Sistema de Estados como objeto, o
equilíbrio como estrutura do sistema e a guerra como distúrbio do equilíbrio
(Nogueira; Messari, 2005).
554
estrutura do sistema e como este pode mudar. Por exemplo, Max
Weber define poder como “[...] a probabilidade de que um ator dentro
de uma relação social esteja em posição de realizar a sua própria
vontade apesar da resistência, independentemente da base sobre a
qual esta probabilidade se baseia.” (Weber, 1964, p. 152, traduçã o
nossa)3. Por extensão, a política, para Weber, se trata da
“[p]articipação no poder ou a luta para influir na distribuição de
poder, seja entre Estados ou entre grupos dentro de um Estado.”
(Weber, 1974, p. 98).
Tanto as RI quanto as ciências econômicas se guiam de maneira
similar. Para o mainstream teórico das RI, o objeto de estudo é o SI,
constituído por Estados maximizadores de segurança que se
equilibram uns aos outros. A estrutura do SI é determinada pelo tipo
de equilíbrio do sistema, isto é, o número de polos (Grandes
Potências) e o fator de distúrbio do equilíbrio se trata da guerra. Isto
é, inclusive, referendado nas principais teorias do maisntream,
difenrenciando elas para que direção o sistema caminha: para o
Institucionalismo neoliberal, o sistema caminha o equilíbrio, contanto
que haja instituições e regimes internacionais que mitiguem a
anarquia internacional (Keohane, 1984); para o realismo defensivo, o
sistema pode caminhar ao equilíbrio, mas a guerra é sempre uma
possibilidade, independentemente da existêmncias de instituições e
regimes internaiconais (Waltz, 2002); por fim, para o realismo
ofensivo, o sistema caminha para o desequilíbrio, ndependentemente
da existêmncias de instituições e regimes internaiconais
(Mearsheimer, 2001).
3
No original: “[...] the probability that one actor within a social relationship will
be in a position to carry out his own will despite resistance, regardless of the basis
on which this probability rests.” (Weber, 1964, p. 152).
555
Para o maisntream teórico4 das ciências econômicas, seu objeto é
a economia, constituída por agentes econômicos atomizados
maximizadores de utilidade - satisfação ou lucro. A estrutura da
economia, ou seja, o tipo de equilíbrio, é determinada pela
quantidade de firmas capazes em influir no preço das mercadorias.
Por fim, o fator perturbador do equilíbrio é a crise. Da mesma forma
que nas RI, o mainstream de ciências econômicas comunga nesta base
comum, mas discorda na direção do equilíbrio: para os neoclássicos,
contanto que haja flexibilidade de preços e salários e que os fatores de
produção se aloquem livremente, não há possibilidade de crise
(Marshall, 1997; Walras, 1954); para os novo-keynesianos, o sistema
caminha para o equilíbrio, mas a crise é uma possibilidade (Hicks,
1937); por fim, para os pós-keynesianos, o sistema caminha para o
desequilíbrio, sendo a crise sempre uma possibilidade, se não for
evitada (Minsky, 2008).
Entrementes, os autores da EPI concordam que, de fato, a EPI
se trata de um enfoque eclético que mistura métodos analíticos e
perspectivas teóricas (Gilpin, 2002; Gonçalves, 2005; Kindleberger,
1970; Strange, 1994). Porém, novamente, fica pergunta se a EPI
conclui mais a respeito de RI ou de ciências econômicas. No aspecto
teórico, fica evidente que a EPI recebe um aporte muito maior de
teorias derivadas das RI. Para Gilpin (2002), as principais teorias que
servem à EPI são a Teoria Dual, derivada da ideologia liberal (Hicks,
1969), a Teoria do Moderno Sistema Mundial (Wallerstein, 2005) e a
Teoria da Estabilidade Hegemônica (Kindleberger, 1970; Gilpin,
2002). Contudo, cada um das três tem focos diferentes: a Teoria Dual
4
Assume-se aqui como mainstream teórico de ciências econômicas, as teorias que
trabalham com as noções de indivíduo atomizado maximizador de utilidade
como ator principal, a economia como objeto e sistema, o equilíbrio como
estrutura do sistema e a crise como destúrbio do equilíbrio (Brue, 2005; Hunt;
Lautzenheiser, 2012).
556
tem por foco economias nacionais; a Teoria do Moderno Sistema
Mundial enfoca a luta de classes de cada Estado; e, por fim, a Teoria
da Estabilidade Hegemônica foca o SI (Gilpin, 2002).
Desta forma, conquanto a EPI se sirva de um arranjo teórico
eclético, não possui nenhuma teoria própria, porquanto, mais uma
vez, não se constitui em um campo próprio. Neste sentido, é preciso
buscar os elementos que lhe são mais comuns na literatura de EPI.
Neste âmbito, é lugar-comum afirmar que para a maioria dos autores
de EPI, o Estado é o principal ator, se não o único relevante, em
análise (Gilpin, 2002; Gonçalves, 2005; Kindleberger, 1970; Strange,
1994). A partir desta afirmação, as demais decorrências são naturais:
o conjunto de Estados, isto é, a estrutura em análise, só pode ser o SI.
Logo, tanto o objeto quanto o ator principal da EPI são os mesmos das
RI. Assim, o enfoque teórico da EPI nada mais é do que uma lente
subsidiária às principais teorias de RI. Para Susan Strange (1994), este
é, de fato, o caso, uma vez que “[...] a escola de pensamento realista
nas relações internacionais tem defendido que, em último recurso, o
poder militar e a capacidade de usar a força coerciva para obrigar o
cumprimento dos outros devem sempre prevalecer. Em última
instância, isso é inegavelmente verdade.” (1994, p. 31-32, tradução
nossa)5. Sendo assim, a análise de distribuição de poder que a EPI faz,
se não puder ser convertida em poder material e militar, pouco diz
respeito às RI.
Todavia, embora os Estado manipulem o mercado para seus
fins de acumulação de capital para, então, convertê-lo em poder
militar, há um aspecto temporal interessante que faz da EPI uma
ferramenta poderosa de análise. De fato, no longo prazo, os Estados
5
No original: “For example, the realist school of thought in international relations
has held that in the last resort military power and the ability to use coercive force
to compel the compliance of others must always prevail. In the last resort, this is
undeniably true.” (Strange, 1994, p. 31-32).
557
manipulam, ou pelo menos tentam manipular, o mercado para seus
fins de acúmulo de riqueza e, logo, de poder militar, ainda dentro da
lógica da guerra como o distúrbio do equilíbrio internacional. Porém,
no curto prazo, o Estado se preocupa com indicadores muito mais
oscilantes que, no agregado, interferem no acúmulo de capital, isto é,
em políticas macroeconômicas que gerem choques externos
(Gonçalves, 2005).
Sendo assim, no curto prazo, o que os Estados temem em seu
horizonte é o ajuste no BP e como gerenciá-lo. Infere-se, desta
maneira, que o que é próprio da EPI, dento do campo das RI, é como
os Estados lidam com o ajuste no BP no longo processo de acúmulo
de capital para convertê-lo em segurança nacional. No entanto, o
ajuste no BP precisa ter um olhar holístico, uma vez que o BP se
constitui em uma contabilidade nacional de trocas entre residentes e
não residentes em esferas tanto reais quanto monetárias da economia.
O que a literatura de economia internacional, muitas vezes, mais
focaliza são aspectos mais monetário-financeiros, negligenciando
outros aspectos da economia real (Eichengreen, 2003; Cohen, 2015;
Cohen 2019). Ao se negligenciar os aspectos da economia real, se
esquece do caráter de longo prazo da EPI e das RI. Por exemplo, ao
enfrentar a as turbulências financeiras dos anos 1970 e 1980, os EUA
optaram por fazer uma política do dólar forte, financeirizando sua
economia. Obtiveram êxitos em diminuir sua vulnerabilidade
financeira, mas se desindustrializaram e aumentaram
vulnerabilidades comerciais e produtivas (Gilpin, 2002). Neste
intuito, uma maneira alternativa de medir e comparar o poder
relativo dos Estados pela lente da EPI é mediante o cálculo de índices
de vulnerabilidade externa (IVE) de Reinaldo Gonçalves (2005).
558
A vulnerabilidade econômica externa
A proposta de Gonçalves (2005) para medir o poder na EPI
difere já de início por seu caráter defensivo e passivo. Diferentemente
da medição típica de poder das RI, na qual o poder dos Estados é
usado, muitas vezes, de maneira ativa para alterar o equilíbrio
regional ou mundial a seu favor, a proposta de Gonçalves (2005) é
mais no sentido de quanto menores o IVE do Estado, mais forte e
resistente é sua economia para enfrentar o ajuste no BP e, logo, manter
o acúmulo de capital.
Para Gonçalves, há quatro esferas da economia nacional que
estão em contato com a economia mundial:
a) A esfera comercial diz respeito “ao sistema mundial de
comércio de bens e serviços.” (Gonçalves, 2005, p. 17);
b) A esfera produtivo-real diz respeito “ao deslocamento de
produtores de bens e serviços de um país para outro via
investimento externo direto.” (Gonçalves, 2005, p. 18);
c) A esfera tecnológica diz respeito à “transferência internacional
de ativos intangíveis e conhecimento. Trata-se também dos
direitos de propriedade intelectual e industrial e de know-
how.” (Gonçalves, 2005, p. 18);
d) A esfera monetário-financeiro diz respeito “aos fluxos de
capitais internacionais, na forma de empréstimos,
financiamentos e investimentos.” (Gonçalves, 2005, p. 18) e “[...]
significa para o investidor a aquisição de direitos e para o
receptor, a cessão de direitos.” (Gonçalves, 2005, p. 18).
Entretanto, o cálculo do IVE geral se constitui de uma média de
outros três índices que sumarizam as quatro áreas, sendo o índice de
vulnerabilidade comercial (IVCO), o índice de vulnerabilidade
559
produtivo-tecnológica (IVPT)6 e o índice de vulnerabilidade
monetário-financeira (IVMF). Para se chegar a cada índice é preciso
calcular, antes, as médias dos índices relativos de indicadores
econômicos específicos. Tais indicadores são (Gonçalves, 2005, p. 131-
132):
■ Esfera comercial (5 indicadores): exportação de
bens e serviços/PIB; crescimento real do comércio
(exportação + importação) de bens e serviços –
crescimento do PIB real; índice de concentração
das exportações; reservas internacionais líquidas
[exclusive recursos do FMI]/importação de bens e
serviços; e taxa de crescimento de longo prazo do
valor das exportações de bens.
■ Esfera produtivo-tecnológica (6 indicadores):
estoque de investimento externo direto [IED]/PIB;
estoque de IED/exportação de bens e serviços;
estoque de IED em serviços/estoque de IED total;
gastos com pesquisa e desenvolvimento
tecnológico/PIB; exportação de produtos
intensivos em tecnologia/exportação de
manufaturados; e pagamento de tecnologia/ gastos
com P&D.
■ Esfera monetário-financeira (5 indicadores):
dívida externa total/exportação de bens e serviços;
dívida com FMI/dívida externa total; renda
líquida/exportação de bens e serviços; serviço da
dívida pública e garantida pelo setor
6
De acordo com Gonçalves (2005), o IVPT teve de reunir as esferas produtivo e
tecnológica pela escassez de dados. Ademais, a união foi facilitada pela
semelhança entre as duas esferas.
560
público/exportação de bens e serviços; e ajuda
externa/importação de bens e serviços.
Os indicadores Exportação de bens e serviços, Importação de
bens e serviços, PIB, Crescimento do PIB real, Reservas internacionais
líq. (exclusive recursos do FMI), Exportação de produtos intensivos
em tecnologia, Pagamento de tecnologia, Dívida externa total, Dívida
com FMI, Renda líquida, Serviço da dívida pública e garantida pelo
setor público são facilmente encontrados, para a maioria dos países,
no World Development Indicators do site do BM. Os indicadores
Crescimento real do comércio (exp. + imp.) de bens e serviços, Taxa
de crescimento de longo prazo do valor das exportações de bens,
Gastos com pesquisa e desenvolvimento tecnológico e Exportação de
manufaturados podem ser facilmente deduzidos de outros
indicadores encontrados no mesmo site do BM (Gonçalves, 2005).
O Índice de concentração das exportações (ou Índice de
Herfindahl-Hirschmann) e o estoque de investimento externo direto
(IED) podem ser facilmente encontrados no site da UNCTAD
(Gonçalves, 2005). Infelizmente, o estoque de IED em serviços é um
coeficiente de difícil acesso e, portanto, normalmente, fica de fora da
análise no exemplo deste trabalho. Por fim, o indicador relativo à
ajuda externa, normalmente, é desconsiderado, porque Grandes
Potências não recebem ajuda externa.
Tabela 1. Fontes dos indicadores
Indicador Em inglês Código do BM Fonte
Exportação de bens Exports of goods BX.GSR.GNFS.CD World Bank
e serviços / PIB and services (BoP, / Group, 2023
current US$) / GDP NY.GDP.MKTP.C
(current US$) D
561
Crescimento do GDP growth NY.GDP.MKTP.K World Bank
PIB real (annual %) D.ZG Group, 2023
Índice de Herfindahl index - UNCTAD, 2023a
concentração das
exportações (ou
Índice de
Herfindahl-
Hirschmann)
Reservas Total reserves FI.RES.TOTL.CD / World Bank
internacionais líq. (includes gold, BM.GSR.GNFS.CD Group, 2023
(exclusive recursos current US$) /
do FMI) / Imports of goods
Importação de bens and services (BoP,
e serviços) current US$)
Estoque de IED FDI stock - UNCTAD, 2023b
Gastos com Research and GB.XPD.RSDV.GD. World Bank
pesquisa e development ZS Group, 2023
desenvolvimento expenditure (% of
tecnológico / PIB GDP)
Exportação de High-technology TX.VAL.TECH.MF. World Bank
produtos exports (% of ZS Group, 2023
intensivos em manufactured
tecnologia/Exporta exports)
ção de
manufaturados
Pagamento de Charges for the use BM.GSR.ROYL.CD World Bank
tecnologia of intellectual Group, 2023
property,
payments (BoP,
current US$)
Dívida externa External debt DT.DOD.DECT.CD World Bank
total stocks, total (DOD, Group, 2023
current US$)
562
Dívida com FMI Use of IMF credit DT.DOD.DIMF.CD World Bank
(DOD, current Group, 2023
US$)
Renda líquida Net primary BN.GSR.FCTY.CD World Bank
income (BoP, Group, 2023
current US$)
Serviço da dívida Public and publicly DT.TDS.DPPG.XP. World Bank
pública e garantida guaranteed debt ZS Group, 2023
pelo setor service (% of
público/Exportaçã exports of goods,
o de bens e serviços services and
primary income)
Fonte: elaborado pelo autor
Estranhamente, o BM não fornece a Dívida Pública, o Crédito
no FMI e Dívida Externa Total dos EUA. Desta forma, foi preciso
recorrer ao Departamento do Tesouro Americano (DOT, 2023a;
2023b) e ao FMI (2023) para conseguir os dados. Uma vez calculados
os indicadores de cada Estado em análise, é preciso ordená-los entre
os indicadores que obtiveram o melhor desempenho na amostra dos
que obtiveram o pior desempenho. É por isso que é impossível
mensurar o IVE de maneira isolada, apenas de forma relacional.
Assim, o índice de cada indicador é calculado levando em conta:
Imagem 1. Cálculo de índice
Fonte: Gonçalves, 2005, p. 130
563
Entretanto, é preciso saber o que é um bom desempenho de
cada indicador para poder ordená-los. É possível classificar os
indicadores em:
a) Grau de abertura comercial (ou Exportação de bens e
serviços/PIB) demonstra o impacto do comércio internacional
como instrumento de expansão da demanda agregada. Estados
tendem a diminuir o grau de abertura comercial para
minimizar seu IVE (Gonçalves, 2005);
b) Grau de integração na economia mundial (ou Crescimento real
do comércio (exportação + importação) de bens e serviços –
Crescimento do PIB real) mostra a dependência do Estado ao
comércio exterior e, logo, os Estados tendem a diminuir este
indicador para minimizar seu IVE (Gonçalves, 2005);
c) Índice de concentração das exportações (ou índice de
Herfindahl-Hirschmann) demonstra o quão vulnerável o
Estado é diante das oscilações de preço e quantidade do
comércio internacional e, assim, estes tendem a diminuí-lo para
minimizar seu IVE (Gonçalves, 2005);
d) Grau de proteção da atividade econômica é o nível que o Estado
se encontra protegido de mudanças na conjuntura externa e,
logo, os Estados tendem a aumentá-lo para minimizar seu IVE
(Gonçalves, 2005);
e) Taxa de crescimento de longo prazo do valor das exportações
de bens mostra o quão competitivo o Estado é na esfera
comercial. Quanto maior este indicador, menor o IVE
(Gonçalves, 2005);
f) Grau de desnacionalização econômica (ou Estoque de IED/PIB)
expressa o controle do parque industrial por não residentes.
Assim, quanto maior este grau, maior o IVE (Gonçalves, 2005);
564
g) Comprometimento da receita de comércio exterior com o
capital produtivo externo (ou Estoque de IED/Exportação de
bens e serviços) demonstra o passivo externo do país em relação
a sua capacidade de exportar. Quanto maior este indicador,
maior o IVE (Gonçalves, 2005);
h) Gastos com P&D como proporção do PIB expressa o quanto o
Estado inova nas esferas produtiva e tecnológica. Sendo assim,
quanto maior este índice, menor o IVE do Estado (Gonçalves,
2005);
i) Capacidade de absorção da tecnologia proveniente do exterior
(Pagamento de tecnologia/Gastos com P&D) se refere à
habilidade do país em reverter à condição de periférica
tecnológica. Portanto, quanto menor este indicador, menor o
IVE (Gonçalves, 2005);
j) Influência da tecnologia no padrão de comércio (ou Exportação
de produtos intensivos em tecnologia/Exportação de
manufaturados) expressa a influência da tecnologia no padrão
de comércio e, desta forma, quanto maior o indicador, menor o
IVE do Estado (Gonçalves, 2005);
k) Desequilíbrio de estoque (ou Dívida externa total/Exportação
de bens e serviços) é um proxy do endividamento externo.
Quanto mais elevado, maior a vulnerabilidade externa
(Gonçalves, 2005);
l) Dependência dos recursos do FMI (ou Dívida com FMI/Dívida
externa total) revela o grau de dependência a um instrumento
dos EUA. Quanto menor o indicador, menor o IVE (Gonçalves,
2005);
m) Absorção da receita de exportação pelo serviço do passivo
externo (ou Renda líquida/Exportação de bens e serviços)
expressa o quanto o Estado consegue reter de divisas frente ao
565
passivo externo (lucros e juros). Logo, quanto maior o
indicador, maior o IVE (Gonçalves, 2005);
n) Comprometimento das receitas de comércio exterior com a
dívida externa (ou Serviço da dívida pública e garantida pelo
setor público/Exportação de bens e serviços) é, na verdade, um
termômetro típico de vulnerabilidade financeira externa.
Assim, quanto maior o indicador, maior o IVE (Gonçalves,
2005).
A partir da análise dos indicadores já é possível perceber que a
proposta de Gonçalves (2005) para mensuração de poder na EPI não
é isenta de imprecisões. Mensurar o poder dos EUA frente a seus
pares é de difícil precisão, uma vez que muitos destes indicadores se
referem a uma estrutura criada pelos próprios EUA, isto é, a
predominância do dólar no Sistema Monetário-Financeiro
Internacional e o uso do FMI como instrumento de política externa.
Esta característica estrutural do poder estadunidense na economia
mundial já foi percebida antes por Susan Strange (1994) e Benjamin J.
Cohen (2015; 2019), característica que, inclusive, dá capacidade aos
EUA de defletir e postergar eventuais ajustes no BP. Porém, mesmo
que os EUA tenham esta capacidade estrutural, sua economia fica
vulnerável nas esferas que negligencia a partir de sua política externa,
logo, a análise de Gonçalves (2005) pelo cálculo de IVE ainda é válida,
mesmo que incompleta.
Conclusão
O trabalho conseguiu atingir satisfatoriamente seus objetivos,
respondend à pergunta de pesquisa com a hipótese principal. De fato,
a menusração do IVE de Gonçalves (2005), mediante a análise de
indicadores e índices de variáveis macroeconômicas que estão
relacionadas entre a economia nacional e internacional, é uma
566
medidad eficaz de poder nas RI, por meio do enfoque analítico da
EPI. Ademais, inferiu-se, utilizando- se de revisão bibliográfica e
análise descritivo-analítico, que o ajuste no BP se revela como um
distúrbio no equilíbrio de poderes pela lente da EPI, sendo uma
ameaça no horizonte dos Estados, preocupados com a acumulação de
capital e a segurança nacional.
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569
O choque de ondas e seus efeitos na Economia Política
João Boaventura Branco de Matos1
Resumo: Este trabalho foi desenvolvido no contexto da elaboração
dos trabalhos de doutoramento e de pós-doutoramento no IMS-UERJ.
Sua intenção é contribuir para a investigação da existência de uma
avassaladora mudança global no papel do Estado e suas instituições,
bem como uma acelerada e não menos contundente mudança no
modo de produzir bens e serviços. Constatou-se, a partir de todos
estes estudos, a existência de um choque resultante dessas diferentes
ondas (estado e mercado), que produz uma energia ímpar, capaz de
impor grandes transformações, ameaças e oportunidades nos mais
variados setores.
Um ponto de partida das reflexões aqui propostas é a ideia de
que o modelo de organização do Estado Provedor (doravante EP),
desenvolvido na esteira da pós-crise de 1929 e sancionado pelo
advento das instituições multilaterais no pós II Guerra, se encontra
em processo de franca substituição por outro tipo de organização de
governança ainda em construção. Assim como no campo da
organização política, na esfera da produção o modelo de organização
econômica, baseado na organização industrial/fordista, tem dado
1
ANS; ESPM-RJ e Mackenzie-Rio ([email protected]).
570
lugar a um novo paradigma de novas tecnologias e modo de
organização administrativa.
Também é um ponto de partida a ideia de que as crises
sistêmicas provocam ameaças e oportunidades para os Estados
nacionais e para as organizações econômicas (setores e empresas).
Uma dessas crises se manifesta atualmente, onde convivem um
paradigma político senil e um paradigma econômico emergente. Esta
realidade tem gerado impactos nas diversas formas de organização
do Estado brasileiro, na qual já se verificam importantes indícios de
que este processo transformador virá a exigir do Estado uma efetiva
capacidade de articulação e coordenação de interesses das esferas
pública e privada. A análise de tendência aqui desenvolvida se apoia
em metodologia analítica da retrospectiva desse processo
transformador. O uso dessa ferramenta analítica permitiu verificar a
emergência de uma nova configuração de Estado baseada na
intermediação das relações de poder e a perspectiva de uma nova
inserção do Brasil no cenário geopolítico internacional.
Perspectiva da política
Examinando este processo desde os anos da belle époque2 é
possível verificar que, não obstante a sua pujança econômica e de seu
elevado grau de maturidade da organização do Estado Liberal-
burguês (doravante EL), a disseminação do utilitarismo levou a
consequências que suscitariam críticas e questionamentos cada vez
mais frequentes na sociedade da época. Isso se traduziria em ações,
que iriam desde revoltas isoladas de núcleos de organização operária
até movimentos mais abrangentes como a Comuna de Paris. Essa
crítica ao utilitarismo e à disseminação das desigualdades se revelaria
2Entendida a aqui como período que se desenrola a partir de meados do Século
XIX até início do Século XX.
571
na imposição de transformações na organização do EL. Essas
mudanças iriam resultar em diferentes matizes de intervenção: das
mais radicais, e nesse sentido não burguesas, até as menos críticas ao
status quo liberal, mas nem por isso não intervencionistas.
A conversão do capital mercantil em capital financeiro fora
comandada pela Inglaterra, com a utilização da Libra como padrão
monetário para o estabelecimento de contratos, trocas e preços
internacionais. O funcionamento do sistema monetário internacional
estaria, a essa altura, baseado no papel que o país central exerce o
papel de moeda reserva. Para que a estabilidade do sistema se
mantenha, é indispensável que o país central não possua déficits
crônicos em conta corrente e não desvalorize sua moeda. Assim, a
ruptura destes limites seria base para a contestação e a quebra do
padrão monetário vigente. Neste sentido, convém aqui destacar que
a guerra comercial ora em curso, especialmente entre EUA e China,
não se trata de algo inédito ou inesperado.
Autores como Hobsbawm e Polanyi destacam que não obstante
o livre-comércio fosse dogmaticamente defendido, os países
passariam a desenvolver toda uma sorte de barreiras alfandegárias,
cotas de importação e moratórias, buscando, em última análise, a
defesa de suas moedas. A guerra cambial se transformaria numa
guerra comercial, e mais tarde numa guerra militar. A quebra do
padrão libra-ouro3, em 1914, nesse sentido removeu os liames de um
contrato social tácito estabelecido entre os diferentes povos da
Europa.
Crises financeiras passaram a ocorrer e com elas a ascensão de
novos atores na dinâmica do poder. Na Rússia, a destruição do Rublo
3
O padrão ouro como instituição legal data de 1819, quando o parlamento inglês
aprovou o Resumption Act (Lei que exigia que o Bank of England assumisse a
administração da troca notas por ouro). No padrão ouro, os países relacionam
suas moedas ao ouro, o que confere maior estabilidade às taxas de câmbio.
572
foi a senha para a dissolução do poder czarista. Nas hiperinflações da
Alemanha, Hungria, Polônia e tantos outros países, esse processo não
foi diferente, variando apenas os matizes ideológicos das coalizões
hegemônicas que se estabelecem e o nível de participação nos
conflitos que se deflagram no âmbito da Primeira guerra mundial.
Posteriormente, o sucesso do desenvolvimento planificado na Rússia,
e do capitalismo oligopolizado dos EUA, demonstraram que um
novo modo de participação da figura do Estado na vida social e
econômica se consolidava. Com isso, a definitiva dissolução do EL
como categoria relevante de análise viria com a crise de 1929. Esse
período, mais do que um momento de troca de posições relativas
entre os atores, aliás, comum em todas as crises, foi um momento de
mudança da principal posição do sistema em direção ao outro lado
do Atlântico4.
Um novo padrão intervencionista se inauguraria a partir da
crise de 1929 e se materializaria em coalizões com efetivo grau de
intervenção: o Estado Provedor – EP seguiria o seu curso no decorrer
do Século XX com participação ora mais efetiva no controle social e
da produção, com fascismo e o bolchevismo, ora em menor grau com
as coalizões políticas de corte keynesiano que caracterizaram a
política dos EUA e da Europa Ocidental. A força desse novo padrão
se espraiaria até mesmo às fronteiras de um novo capitalismo
periférico tal como o brasileiro. A partir de 1930, se estabeleceria no
Brasil um developmental lead state, baseado na substituição das
4
“Uma economia-mundo aceita sempre um polo, um centro, representado por uma cidade
dominante, outrora uma cidade-estado, hoje uma capital, entenda-se, uma capital
econômica (nos EUA, Nova Iorque, não Washington). Aliás, podem existir, inclusive de
modo prolongado, dois centros simultâneo numa mesma economia-mundo: Roma e
Alexandria ao tempo de Augusto, Antônio e Cleópatra; Veneza e Gênova ao tempo da
guerra de Chioggia (1378-1381); Londres e Amsterdam no século XVIII, antes da
eliminação definitiva da Holanda. Pois um desses dois centros acaba sempre por ser
eliminado. Em 1929, o centro do mundo, com um pouco de hesitação, passou assim, sem
ambiguidade, de Londres para Nova Iorque”. (BRAUDEL, 1985, p. 69).
573
importações e na forte participação do capital estatal no
desenvolvimento econômico.
Não obstante a evolução do EP seguisse seu curso, sua
maturidade estaria ainda sujeita a uma onda de nacionalismos e
radicalismos, os quais a Primeira guerra não havia sido suficiente
para equacionar. Nesse rumo, a Segunda grande guerra mundial
deixaria em pratos limpos o papel dos vencedores e perdedores de
um processo cuja gênese fora desencadeada a partir do ocaso do EL.
Os EUA emergem da Segunda guerra com poder político, militar e
financeiro incontestáveis. Diante desta nova realidade, antes mesmo
de a guerra acabar, já eram negociadas as novas bases da ordem
geopolítica mundial que se materializam nas organizações
multilaterais de Bretton Woods. Essa nova forma de pacto global se
desenharia em diferentes frentes e propósitos, capitaneadas por
variadas instituições como FMI, GATT/OMC e ONU, esta última com
várias agências internacionais especializadas, tais como a OMS, e a
UNICEF.
O sucesso do EP se materializaria em versões mais planificadas,
como a soviética, até as mais diferentes tonalidades de formato
keynesiano com as da Europa Ocidental ou dos EUA ou do Brasil. A
partir da formação OTAN e do Pacto de Varsóvia e da constituição do
novo arcabouço institucional, representado pelas agências
multilaterais, o que se vê em termos de conflito são disputas
localizadas, mas, nem por isso, pouco intensas entre os Estados
Unidos e a URSS5. Nesta fase, o sistema seria impulsionado por
vigoroso crescimento econômico, em parte decorrente da estabilidade
das regras institucionais emanadas das agências multilaterais. Entre
5
A Revolução Comunista na China em 1949, a Guerra da Coréia entre 1950 e
1953, a Crise do Canal de Suez e o Levante húngaro em 1956, a Revolução
Cubana de 1959 e Guerra do Vietnã, e Primavera de Praga são sinais evidentes
de que não houve um processo pacífico no período que sucede o pós-guerra.
574
essas regras, figura uma de fundamental relevância: o retorno do
padrão-ouro, desta vez vinculado ao Dólar americano6. Um período
de boom econômico, conhecido como a era de ouro do capitalismo, se
caracterizou pela crescente oligopolização dos mercados. Trata-se de
um contexto de expansão vertiginosa da produção, consumo de
massas e de elevados ganhos de escala na produção.
No Brasil, os impactos deste crescimento econômico foram
sentidos com a chegada das empresas multinacionais, ávidas por
desbravar novas fronteiras de mercado em função da saturação dos
mercados nos seus respectivos países. O primeiro boom de
investimentos diretos e externos no Brasil ocorreria com o governo
Kubitschek. O Brasil finalmente entraria no padrão industrial de
desenvolvimento fordista, deflagrado pelas economias centrais desde
o final do século XIX. Começava a se formar no Brasil uma sociedade
de consumo de massas, que mais tarde demandaria novos arranjos
institucionais em diversas áreas, entre elas a Saúde.
O compromisso político do Welfare State, associado ao sistema
moeda-crédito, permitiu sustentar os fluxos de renda necessários
para o crescimento econômico vertiginoso do período. Todavia, essa
construção monetário-financeira se sustentou enquanto fragilidades
não se explicitavam, levando a uma crescente contestação da
conversibilidade Dólar-ouro por parte dos países que faziam parte do
Sistema Financeiro Internacional. Na medida em que a guerra-fria se
intensificava e os EUA colecionavam fracassos militares, como o do
Vietnã, crescia entre as hostes conservadoras estadunidenses a ideia
da necessidade de que investimentos militares vultosos,
6
Desde a convenção de Bretton Woods, o mundo instituíra o padrão Dólar-ouro
como expediente de controle das finanças internacionais. A proposta do Lorde
Keynes de criação de uma grande agência financeira internacional, que teria
poder regulador mais efetivo sobre a liquidez internacional não saiu vitoriosa.
575
emblematizados àquela época pelo Projeto Guerra nas Estrelas7,
transgredissem a regra do padrão-ouro. Na visão conservadora, esses
investimentos seriam indispensáveis à manutenção da pax americana.
A solução encontrada foi alterar de forma unilateral as regras do jogo,
quebrando a vinculação do Dólar ao ouro em 1971, e com ela todo o
mecanismo de contenção da reprodução financeira internacional
desmedida. A leniência do FMI a esse movimento é um marco da
inflexão do papel das agências internacionais.
Além do processo de acumulação de passivos e do aumento
vertiginoso do fluxo da dívida nos períodos mais recentes,
observamos que no fim da década de 1980 houve uma reversão
transitória dos desequilíbrios, favorecida pelo Acordo de Plaza de
1985, por meio do qual os EUA obtiveram de seus principais parceiros
comerciais à época (Japão e Alemanha) a garantia de uma
desvalorização ordenada do Dólar como forma de conter a
intensificação do processo de endividamento e a crise de confiança
que se materializaria em episódios como o do mini-crash de 1987.
No vácuo do baixo crescimento da Europa e do Japão, a China
surge a partir da década de 1990 como um novo grande player no
cenário internacional, combinando dois elementos frontalmente
contraditórios ao mainstream neoliberal: intervenção do Estado na
economia; e moeda fortemente desvalorizada em relação ao Dólar (e
em decorrência disso às demais principais moedas). Diversas
iniciativas, no sentido de uma reedição do Acordo de Plaza, têm
partido da diplomacia americana. Desta feita o alvo para valorização
de sua moeda tem sido prioritariamente a China, maior credor e
7
“O projeto consistia no uso de armas de energia dirigida: feixes de partículas
atômicas ou raios laser que têm velocidade superior à dos mísseis
convencionais (...). Segundo os defensores do projeto, seria essa a única forma
de neutralizar um ataque nuclear nos cincos primeiros e cruciais minutos a
partir do seu lançamento.” (http://www.colegioweb.com.br/historia/guerra-
nas-estrelas.html.)
576
parceiro comercial dos EUA na atualidade. Todavia, as condições
negociais da China são algo diferentes das condições de outrora de
Japão e Alemanha: em primeiro lugar estes países tiveram seu
desenvolvimento a convite dos EUA, num momento em que esses se
encontravam devastados pela Segunda Grande Guerra; em segundo,
em parte decorrente do primeiro, eram países com limitada ação
diplomática e militar no contexto internacional.
A China da segunda década do século XXI, em termos de Poder
de Paridade da Moeda (PPM), já ultrapassou os EUA e é a primeira
economia mundial, além de contar com poderio militar
significativamente distinto de Alemanha e Japão. Mesmo sem
considerar a PPM, em 2018 de acordo com dados recentemente
divulgados pelo Banco Mundial8 apontam que a economia chinesa já
representa mais de dois terços da economia norte americana e mais
de três vezes a do Japão. Isso torna a posição de devedor sistemático
dos EUA uma questão difícil de resolver, a não ser pela tradicional
via da desvalorização monetária, gerando impactos sobre toda a
periferia. Ou pela eclosão de uma guerra comercial com a China como
a iniciada por Trump em 2017. Nesse contexto, as economias
periféricas são suscetíveis a terem suas moedas constantemente
submetidas a variações bruscas decorrentes dos efeitos da guerra
cambial deflagrada.
Assim, a ponta do iceberg do neoliberalismo que vimos a partir
de Thatcher e Reagan é ulterior ao processo de desarticulação das
instituições que se consolidaram em Bretton Woods. Com efeito, a
ordem neoliberal tem funcionado mais como um elemento
revolucionário, destruidor de uma ordem estabelecida, do que de
construção de uma nova organização, não obstante os prognósticos
de implantação de uma nova ordem suprema e monolítica, que
8 Ver: https://datos.bancomundial.org/indicador/ny.gdp.mktp.cd. Acesso em
2/4/2019.
577
dispensaria até mesmo a dinâmica dialética da história, como quis
Fukuyama. Parturient montes, nascetur mus!9
A cena atual aponta para uma situação em parecemos estar de
volta a uma era de polarizações e da reprodução descontrolada do
capital financeiro, que virou a página do EL e novamente ensaia virar
a página do EP. De fato, o início do novo milênio se renova a
importância de autores como Polanyi e Minsky. O primeiro deles por
explicar como a quebra do padrão Libra-ouro concorreu para o
descontrole das finanças internacionais, que desaguou na Grande
Depressão de 1929; o segundo, por descrever como a incidência de
bolhas especulativas no setor privado está ligada ao equilíbrio das
finanças públicas, já que os estados nacionais são convocados a atuar
nos momentos de crise aguda. O exame desses fatos passados, aliado
à observação da tendência atual, nos ensina que as finanças
internacionais podem estar muito próximas de um momento de
ruptura, embora seja praticamente impossível definir ou predizer que
nível insustentável é esse para as finanças dos Estados Unidos e para
o futuro das instituições multilaterais que a sustentam.
Contemplamos um processo de desmantelamento de uma ordem
institucional, que vem dando lugar a um mundo ainda órfão de
estruturas e eivado de ameaças, mas também de oportunidades.
O desmantelamento da ordem vigente se manifesta por
discussões estéreis entre torcedores da fracassada ordem liberal do
EL e da ordem intervencionista do EP. Neste teatro de desatinos
surgem até mesmo discussões sobre a filiação ideológica de
movimentos autoritários, como o fascismo e nazismo, que pontuaram
a transição do primeiro para o segundo paradigma. A dificuldade de
compreensão do fenômeno do surgimento de um novo paradigma
9 Expressão atribuída ao pensador Horácio para ilustrar algo parecido com a
ideia de que montanha pariu um rato ou o nosso “de onde muito se espera é
que não sai nada mesmo”.
578
ora em voga produz interpretações curiosas e até prosaicas como a do
atual representante da chancelaria nacional sobre a possibilidade de
o nazismo ser um movimento de ser um movimento de “esquerda”.
Essa demonstração inequívoca da miopia que as lentes usuais não
conseguem se ajustar, mesmo em alto nível da administração federal
do Brasil. Põe-se em voga a necessidade de reflexão sobre a
importância de uma nova clivagem sobre o processo de transição de
paradigma ora vivido. Está posta a necessidade de (re) construção de
uma nova ordem, pautada pela vida, pelo desenvolvimento
sustentável e pelo reconhecimento de que direitos básicos como
educação e a Saúde, cujos estados nacionais e as agências
multilaterais têm a missão de assegurar.
Essas constatações de uma ruptura de fundo ideológico,
associadas ao insucesso das pressões do poder hegemônico junto ao
seu principal parceiro comercial para mitigação de desequilíbrios,
levam-nos à presunção de que hoje se encontram preenchidos
importantes requisitos para a eclosão de uma nova crise financeira
internacional. Possivelmente, os efeitos da crise de 2008 ainda serão
sentidos de maneira recidiva e amplificada nos próximos anos. Deste
modo, o que se quer reforçar aqui é a hipótese da existência de uma
nova crise como um marco da inflexão de um padrão de organização
do estado para outro. Já sob nossas vistas, ou em algum instante de
um futuro muito próximo, novas formas de articulação entre o papel
das agências multilaterais e dos Estados Nacionais evidenciará o
inelutável devir de um novo arcabouço político em escala mundial.
O avanço das inovações no campo da microeletrônica e das
telecomunicações permitiu o ingresso de novos atores em diferentes
instâncias do poder decisório. Desse novo tipo de arranjo não farão
parte apenas os estados-nação, mas, por direito próprio, cidadão,
organizações privadas, públicas estatais e não estatais, ONGs etc. O
caráter meta institucional do sistema global se configura numa
579
instituição maior que abarca uma significativa quantidade de
instituições menores. Um exemplo disso são as declarações, tratados
e instituições organizacionais diretamente ligadas às Nações Unidas,
como a UNCTAD, ou fora dela, como a OCDE. Talvez por essa razão,
diversos autores têm falado em “governança global”. (Bresser-
Pereira, 2009). Interessante ressaltar que a ideia de governança global
não é um elemento estranho à Saúde no Brasil, já que o SUS, desde
sua constituição, prevê a necessidade de convivência, inter-relação e
participação no processo decisório entre diferentes atores.
Uma faceta indesejada deste caráter meta institucional,
entretanto, se revelou recentemente pelo surgimento das fake news no
bojo dos processos eleitorais. A perspectiva de se encurtar o tempo
despedido no processo de prospecção, análise, checagem e
divulgação das notícias se mostrou uma alternativa sedutora ainda
que pouco confiável. O pragmatismo midiático resultou em respostas
simples e imediatas para os anseios dos cidadãos, e se consolidaram
em inesperados arranjos de soluções sobre diferentes temas. Esses
arranjos buscaram fazer sentido à sociedade, e o fizeram, ainda que
fossem ideologicamente incompatíveis à luz do espectro ideológico
tradicional.
Mais do que construir uma concepção ideológica inédita ou
buscar soluções intermediárias entre oponentes, o pragmatismo
contemporâneo busca combinar, mesmo com radicalismos, soluções
à direita ou à esquerda, de acordo com o nível de aceitação ou
tolerância do público diante dessas opções. A busca pelo “novo”,
aliada à fragilidade dos partidos políticos tradicionais tem permitido
que candidatos “outsiders”, ainda que flagrantemente despreparados
para a função que reivindicam, possam combinar soluções até então
diametralmente antagônicas.
580
Por exemplo, propostas como a de legalização do aborto podem
ser combinadas com a redução da maioridade penal; ou ainda, um
amplo programa de privatizações combinado com a tributação sobre
fortunas e ampliação dos gastos sociais. Longe das soluções de fato
inovadoras, ou as intermediárias que outrora apontavam para o
caminho do centro, estamos a ver o surgimento de uma resultante
central10 composta, geralmente, por um inusitado agregado de
proposições tradicionalmente opostas. O termo “Resultante Central”
foi cunhado a partir da percepção deste autor de que as propostas do
centro tradicional, que buscavam uma posição intermediária entre
dois extremos (geralmente oriundos da esquerda ou direita
tradicionais) passaram a dar lugar a diferentes combinações que, de
acordo como tema em voga, pendiam para uma das extremidades.
Dessas diferentes escolhas de preto ou branco, passamos a ter, como
resultante central, diferentes tons de cinza.
Este fenômeno esteve presente na eleição de Trump, Bolsonaro,
na acachapante derrota do Partido Democrata italiano no primeiro
pleito em 2019, na reeleição polonesa e mais recentemente na
perspectiva de vitória da extrema direita na Argentina nas eleições de
2023.
Mesmo considerando a presente de volta do pêndulo para
formas mais citadinas de governança, o que deverá ocorrer em algum
momento do futuro, remanescerá a concertação e o pragmatismo no
cerne do Estado Coordenador (doravante EC). Nesta nova lógica,
diferentes combos ideológicos serão buscados a cada novo embate
nas arenas de disputa. Na consolidação do EC, ainda que ao longe se
pareçam com cinza, de perto, a cada nova disputa, serão estabelecidos
novos tons de preto ou branco. Dessa resultante, se materializarão
10 Ver artigo: “Um único tom de cinza nas próximas eleições”.
https://www.jb.com.br/pais/artigo/2018/09/5181-um-unico-tom-de-cinza-nas-
proximas-eleicoes.html
581
novas estratégias de regulação de uma atividade social e econômica
em constante transformação.
Perspectiva do mercado
Do ponto de vista da organização do mercado, um pressuposto
central é a ideia de que o modelo de organização da produção fordista
já cedeu lugar um novo paradigma de formas de produção,
tecnologias e modo de organização administrativa. Também é uma
ideia central no texto o raciocínio de que as crises sistêmicas, tenham
elas origem de natureza política ou da produção, provocam ameaças
e oportunidades para os Estados nacionais e para as organizações
econômicas (setores e empresas). Uma dessas crises se manifesta
atualmente, onde se convive com um paradigma econômico
emergente, porém ainda não plenamente estabelecido, e um
paradigma político em franca desagregação conforme já
anteriormente examinado.
Este ambiente de grandes transformações tem gerado impactos
nas diversas formas de organização econômica de diversos setores, e
em particular na Saúde, no qual já se verifica importantes indícios da
chegada de um processo transformador que virá a exigir do Estado
uma efetiva capacidade de articulação e coordenação de interesses
nas esferas pública e privada.
A análise de tendência dos padrões produtivos procura
localizar a trajetória das fontes primárias de acumulação que
ensejaram diferentes arranjos políticos, tais com a ascensão e que
queda do EL, o intervencionismo característico das políticas
keynesianas, ou a mais recente discussão sobre os rumos de uma nova
configuração política a partir dos escombros resultantes da ação do
neoliberalismo. Para Schumpeter (1984), ao inovar o empresário cria
uma vantagem monopolista temporária que lhe permite auferir
582
lucros. Esses lucros ensejam a acumulação de capital e,
consequentemente, o crescimento do produto. Na visão marxista,
fenômeno semelhante se dá numa perspectiva mais ampla, entre
classes sociais. Exatamente a partir desta perspectiva é que se
presenciou a transição do poder feudal para a burguesia.
A primeira etapa da industrialização evoluiu da produção
artesanal, limitada ainda pelas dificuldades de escala de produção
advindas da baixa produtividade das máquinas, estas desenvolvidas
a partir das ligas de metal utilizadas nos implementos agrícolas. Os
materiais utilizados eram de baixíssima durabilidade e flexibilidade,
comprometendo o desempenho de todos os experimentos realizados
com o intuito de acelerar e automatizar, ainda que de forma
incipiente, o processo produtivo.
Com a evolução do processo químico de produção de ligas de
aço, no qual o Reino Unido foi pioneiro, é que se tornou possível o
advento de máquinas com maior grau de resistência e sofisticação
como a máquina a vapor de James Watt e o tear mecânico. Com estas
inovações: se multiplicaram fábricas e bancos; os motores de
combustão interna modernizaram a navegação marítima; e os
grandes barcos navegaram rumo aos quatro pontos cardeais,
universalizando a expansão industrial inglesa. O pioneirismo inglês
pode ser tratado sob diferentes ângulos, entre os quais se destaca a
liberalização da produção e do comércio, em substituição ao sistema
de corporações de ofício, mas sua origem do ponto de vista da
produção está inequivocamente associada à energia a vapor, que foi
utilizada na extração de minério, na indústria têxtil e na fabricação de
uma grande variedade de bens que, antes, eram feitos à mão. Em
suma, navio a vapor substituiu a escuna e a locomotiva substituiu os
vagões puxados a cavalo.
583
A produção manufatureira inglesa e as transformações sociais
características da Primeira Revolução Industrial evoluíram e se
tornaram um importante laboratório de observação e análise, por
Adam Smith e mais tarde por Marx, do fenômeno da divisão do
trabalho e do aumento da produtividade. O estoque de capital e a
acumulação resultante da Primeira Revolução Industrial permitiram
investimentos em pesquisa e desenvolvimento, que ensejaram a
transformação dos padrões produtivos.
Uma série de novos desenvolvimentos na indústria, nos setores
da química, elétrica, de petróleo e de aço, veio por possibilitar a
produção siderúrgica em grande escala. O miolo do Século XIX
revelaria uma interessante transição de um padrão produtivo
maduro, baseado na divisão do trabalho, para um padrão emergente,
também inspirado na divisão do trabalho, mas sustentado pela
acumulação de capital e articulado pelos frutos de intensos
investimentos em pesquisa e desenvolvimento com ampla
participação dos estados nacionais. Esse rito de passagem se
personifica em grandes inventores como Thomas Edison, Graham
Bell, Karl Benz, irmãos Lumière etc.
Inovações, ainda em estágio incremental, podem se transformar
em inovações radicais. Estas, por sua vez, podem estabelecer um
agrupamento ou um cluster de inovações, que poderá até mesmo se
configurar em um novo paradigma produtivo. Foi assim que o
automóvel pôde substituir as carroças (incremental), mudar as
paisagens das grandes cidades (radical), alterar as relações de
produção envolvendo outros setores como siderurgia, produção de
borracha, vidros, química, elétrica etc. (estabelecendo um novo
cluster), até finalmente se constituir em um novo paradigma
produtivo. Uma safra de novos projetos alcançou rapidamente a
áreas como a da produção de eletrodomésticos, têxtil, aviação,
telecomunicações, e toda uma gama diferenciada de serviços, entre
584
outras atividades. As inovações passam a incluir a introdução de
navio de aço movidos a vapor, o desenvolvimento do avião, o
enlatamento de comidas, refrigeração mecânica, outras técnicas de
preservação de alimentos, encurtando distâncias geográficas e
liberando ainda mais a mão de obra feminina para o mercado de
trabalho.
As novas tecnologias da II Revolução Industrial, desenvolvidas
a partir dos meados do Século XIX, propiciaram o desenvolvimento
da produção em massa de bens de consumo, emblemáticas do
período do fordismo. O método fordista de gestão da produção é
caracterizado por um modelo mecanicista, com foco na “organização
como um conjunto de partes ligadas por uma rede de comando e
controle” (Wood, 1992). Um exemplo da disseminação da cultura
fordista é o filme Tempos Modernos, de Chaplin, que retrata
criticamente esse processo de massificação da produção, que
transforma os homens em apêndices das máquinas e do processo
produtivo. Após o sucesso da produção Ford Modelo T, Henry Ford
veio por inovar ainda mais, desenvolvendo o Ford Modelo A em 1927,
que resultou num boom da produção, totalizando de mais de quatro
milhões de automóveis. Com a crescente expansão da indústria de
produção seriada e já sob a égide da produção taylorista-fordista, as
unidades de produção demandavam crescentes economias de escala,
o que impôs o surgimento das grandes plantas fabris como forma de
reduzir os custos unitários, demandando o aumento da
racionalização e especialização do trabalho. Assim, a padronização de
produtos e partes componentes, aliada à concepção de linha de
montagem de Henry Ford, deram cores finais àquele paradigma de
produção em massa, consolidando a Escola Clássica da
Administração, inspirada nas ideias de Taylor e Fayol.
Este movimento coroa uma era de predominância da lógica de
oferta sobre a demanda. No plano da teoria econômica, esse
585
predomínio se caracterizou como um mecanismo sancionador da Lei
de Say11. Na racionalidade fordista aqui apresentada, a padronização
da oferta12 deliberadamente se sobrepõe às necessidades
individualizadas dos consumidores.
Paradoxalmente, o sucesso do fordismo e a evolução dos meios
de comunicação em massa e das telecomunicações possibilitaram o
fortalecimento e a organização do consumidor como ator social
relevante. Foi precisamente a partir dessa nova correlação de forças
que a rigidez do fordismo passou a ser uma das principais causas de
seu declínio, já que modelo de produção em massa de produtos
homogêneos foi substituído por uma oferta flexível de produtos
diversificados. Um indício dessa transformação foi quando a GM
passou a adotar o sistema de gestão flexível na produção de
automóveis, com diversos modelos e cores, tornando-se, àquela
época, a maior montadora do mundo.
O fortalecimento da demanda seguiria seu curso turbinado pelo
ingresso de novas mídias, como a TV, e pela disseminação de formas
de comunicação não mais restritas à recepção de mensagens pelo
público, mas resultantes da própria interação entre diferentes
instâncias e organizações de consumidores. O consumidor se
fortaleceria como um ator social de peso no processo decisório da
produção. Esta mudança de poder exigiria, pois, novas estratégias
empresariais voltadas para a eliminação de desperdícios de matéria-
11
A Lei de Say é um princípio atribuído a Jean-Baptiste Say, que indica que não
pode haver demanda sem oferta. Para Say, a produção total de bens em uma
sociedade implica numa demanda agregada que é suficiente para comprar
todos os bens que se oferecem.
12
"O carro é disponível em qualquer cor, contanto que seja preto."A controvertida frase
de Henry Ford traduzia um objetivo central de massificar o consumo via
redução de custos: o departamento de pintura da Ford não dispunha de lugar
para a secagem de tantos automóveis fabricados com diferentes cores. A
solução foi adotar a cor preta por possuir uma secagem mais rápida.
586
prima e tempo de mão de obra na correção de defeitos do produto.
Um indício de um novo paradigma produtivo apareceria numa
fábrica de automóveis no Japão, que revelaria um novo sistema de
produção baseado na qualidade total: o toyotismo.
As fábricas excessivamente centralizadas, como as da extinta
URSS ou as da Ford, que ocupavam um enorme espaço, passaram a
dar lugar a novos tipos de arranjo que não necessitam de grande área
para estoque. Um novo tipo de organização da produção
descentralizado funciona em menores proporções, e é interligado por
sistemas de informação, tecnologias de informação e comunicação
cada vez mais sofisticados. Esta sofisticação ocorreria na mesma
proporção em que novas tecnologias ligadas à microeletrônica e às
telecomunicações começassem a surgir a partir dos anos de 1960.
Mais tarde, a fusão das telecomunicações com a informática e a
microeletrônica, propiciaria o surgimento da internet, que conferiria
em definitivo uma nova dinâmica ao novo paradigma produtivo que
se iniciava.
O novo modo de pensar a produção sofreu forte influência do
engenheiro estadunidense W. Edwards Deming, que atuou como
consultor das forças de ocupação dos EUA no Japão após a Segunda
Guerra. Deming argumentava que melhorar a qualidade não
diminuiria a produtividade. Em contraposição ao sistema de massa
da produção fordista, essa outra concepção de produção delegaria
aos trabalhadores a ação de estabelecer a melhor alternativa de rotina
de produção, inovando o processo. Para tanto, o trabalhador já não
seria mais um apêndice da máquina.
No paradigma emergente, o trabalhador deve estar capacitado
para qualificar suas habilidades e competências, o que antes não era
necessário. O modelo flexível de produzir recebeu diversas
denominações, como modelo de produção japonês, Toyotismo,
587
Ohnismo13 ou produção enxuta. Além da Toyota, esse modelo foi
disseminado por outras grandes empresas japonesas (como a Honda,
a Sony, a Mitsubishi e a Nissan), e amplamente difundido pelo
mundo a partir da década de 70 (Druck, 1999). Em contraste à rigidez
do modelo Fordista, em que as organizações eram vistas como
máquinas para a produção em massa, o Toyotismo é caracterizado
pela visão das organizações como organismos para a ascensão da
produção flexível, num modelo organicista/contingencialista, que
trouxe os conceitos de integração ao ambiente, estrutura matricial,
flexibilidade e motivação (Wood, 1992).
Vale destacar que dois dos pilares que permitiram o sucesso
desse novo paradigma de produção: a ideia de “time” e o conceito de
“qualidade total” na produção. No trabalho realizado por equipes
(teamwork), quando um problema aparece toda a equipe é
responsável. Quando ocorre um defeito na montagem de uma peça,
a equipe horizontalmente se organiza na busca de maneiras de
resolvê-lo sem a necessidade remissão às instâncias hierárquicas
superiores. Há, nesse sentido, uma cobrança entre os pares para que
cada membro atue de uma maneira que não prejudique os
companheiros. Algumas fábricas chegam até mesmo ao ponto de
delegar à equipe a função de demitir ou de admitir novos
funcionários.
Para Peter Drucker (1988), o símbolo de futuro do modelo
organizacional pode ser associado a uma orquestra sinfônica (alta
especialização individual com coordenação e sincronismo
temperados por um caráter artístico). Mais à frente, Wood (1992)
proporia como referência uma banda de jazz, caracterizada pela
primazia do senso comum (ao invés da importância do maestro), pelo
pequeno porte, pelo espaço para improvisação, pela valorização dos
13 Referência ao principal mentor do modelo, o engenheiro de produção Taiichi
Ohno (ver: Castels, 1999).
588
trabalhadores e pelo prazer na execução. Independentemente do
caráter maduro a que venha atingir esse novo tipo de organização da
produção, um fato marcante é que a Toyota se tornaria, já em 2007, a
maior montadora de veículos do mundo. Um pouco do que se pode
assegurar para um futuro próximo é que essas possibilidades são
condicionadas pelo desenvolvimento do novo ciclo inovador das
tecnologias de comunicação e da informação, caracterizado por pela
microeletrônica, computadores, telecomunicações, materiais sob
encomenda, robótica e biotecnologia. É o que muitos autores
denominam, ainda que de forma difusa e heterogênea, de Terceira
Revolução Industrial14.
O desenvolvimento da informatização e da comunicação
impulsiona mudanças do modelo de gestão da produção, entre as
quais se destacam a redução dos estoques (sistemas just in time),
horizontalização da cadeia produtiva ou terceirização de atividades
internas, virtualmente incompatíveis com a estrutura da grande
empresa fordista-taylorista. A informática e as tecnologias da
informação possibilitam a coordenação remota de muitos
fornecedores independentes, sem necessidade de integrá-los sob o
mesmo comando. Essa nova realidade interativa condenou o
gigantismo burocrático da empresa típica do Século XX a uma
inevitável redução de estruturas e de custos.
O modelo de produção chinês, dada sua crescente importância
nas exportações mundiais, se destaca como estudo de caso referencial
e para as reflexões sobre o futuro. Esta transformação teve como base
o aprofundamento do planejamento e pesquisa de engenharia e de
14
O termo “Quarta Revolução Industrial” já é utilizado na literatura para ilustrar
o novo ciclo de inovações ocorrido a partir da disseminação da internet na década
de 1990 (Schwab, 2016). De todo modo, a preferência pelo termo “terceira
revolução industrial” se mantém em função da ideia de que o padrão de
acumulação ora vigente é derivado do conjunto de inovações da era pós fordista.
589
logística para a produção em massa. Em geral, isto levou a definição
de plantas industriais flexíveis e verticalmente integradas, com
gigantescas economias de escala e de escopo. (Nonnenberg et al,
2008). A intensa busca de inovações, por meio de pesquisas de
engenheiros relativamente baratos em relação aos parâmetros
mundiais, se caracteriza pela flexibilidade da planta industrial e pela
diversificação de produtos. Há aqui uma busca pela multiplicação das
possibilidades na produção, incluindo a combinação de diferentes
gerações de tecnologia e trabalho artesanal. Estruturas complexas e
altamente hierarquizadas começam a ser radicalmente substituídas
pelo minimalismo organizacional.
Essas novas formas de produção se destacam como mola
propulsora das transformações nas relações econômicas mundiais.
Do mesmo modo que o esplendor vitoriano facilitou o aparecimento
de uma safra de inovações ao longo do século XVIII, era chegada a
vez dos capitais da chamada era de ouro do capitalismo revelarem os
frutos de seus empreendimentos em pesquisa e tecnologia. Não são
poucas as inovações ligadas ao complexo militar-industrial e ao
campo da (micro) eletrônica, da robótica e das telecomunicações
ocorridas nesta fase: o primeiro computador comercial de grande
escala - Universal Automatic Computer (UNIVAC) em 1951 nos EUA;
o primeiro satélite, o Sputnik, lançado em outubro de 1957 pela União
Soviética; e doze anos após, a primeira viagem para a Lua em 1969.
Ainda na década de 1960, com a introdução dos circuitos integrados,
surgem conceitos como memória virtual, multiprogramação e
sistemas operacionais complexos. Em 1975, Paul Allen e Bill Gates
criaram a Microsoft e o primeiro software para microcomputador. Em
1977, Steve Jobs e Wozniak criaram o microcomputador Apple.
A China tem se consolidado como o novo grande player no
cenário internacional ao utilizar largamente os conceitos da terceira
revolução industrial em sua estratégia de desenvolvimento. Este país
590
tem colocado a inovação como eixo central de suas estratégias de
desenvolvimento. Essa centralidade das políticas de ciência,
tecnologia e inovação, tem promovido inflexões decisivas na disputa
com os Estados Unidos pela hegemonia mundial.
É precisamente neste processo de contestação de hegemonia
que se revela a crise. O centro do poder mundial enseja a
possibilidade de, mais uma vez, cruzar o oceano, desta feita o
Pacífico. Os novos players no jogo mundial que souberem explorar
melhor essas oportunidades em momento de crise serão aqueles que
ascenderão, a exemplo do que fizeram EUA, URSS, Alemanha e Japão
na segunda revolução industrial. Como requisito, além de uma
estratégia de desenvolvimento nacional, a terceira revolução
industrial, exigirá forte grau de flexibilidade criativa e de
experimentalismo, o que só se viabiliza com a existência de redes
sociais e comerciais integradas pelas tecnologias da informação e pela
internet.
O choque de ondas da cena atual e seus reflexos
A análise de tendência das transformações de longo prazo,
ocorridas na esfera das organizações políticas e econômicas em
âmbito global, tornou possível a identificação de um padrão de
comportamento na evolução dessas organizações. Verificou-se que
este movimento se dá pela sucessão de ondas, ou paradigmas, que
atingem uma fase de maturidade e depois se enfraquecem. Conforme
mais à frente será demonstrado, foi possível verificar que as
instâncias do estado e do mercado assumem uma trajetória
assíncrona, alternando fases de maturidade com fases terminais, e
produzindo assim um choque de ondas que resulta em instabilidades
ou em crises sistêmicas.
591
A partir desse pano de fundo foi que se verificou que a cena
atual é um momento especialmente conturbado, capaz de produzir a
proliferação de conflitos e a possibilidade de um deslocamento no
eixo do poder global. Estamos no curso de grandes transformações
tanto no campo da organização do estado como na produção. As
vertiginosas mudanças de paradigma nessas duas categorias
analíticas têm provocado uma verdadeira avalanche em praticamente
todos os setores de atividade. Aqui está presente a ideia de que o
modelo de organização do Estado passa por transformações através
da sucessão de ciclos15 (ou paradigmas de longuíssimo prazo). Da
mesma forma em que a organização política absolutista deu lugar ao
EL, o EP, desenvolvido na esteira da crise do EL e da pós-crise de
1929, se consolidou com as instituições multilaterais no pós II Guerra.
É fato que o EP hoje se encontra em processo de franca substituição
por outro tipo de organização de governança ainda a ser construído,
o EC.
Logicamente, essas mudanças de paradigma não se dão
linearmente, mas através de marchas e contramarchas até que a nova
ordem se consolide. Reflexos dessas idas e vindas se materializam na
conjuntura, seja no plano global, através nas disputas de poder.
Examinando pela ótica da Política, o EP, baseado na organização
industrial/fordista, tem dado lugar a um novo paradigma de formas
de produção, tecnologias e modo de organização gerencial e
administrativa: o EC. Caberá ao EC, o duplo desafio de suprir a
lacuna das políticas sociais e ao mesmo tempo conviver com
estruturas produtivas flexíveis, que exigem arranjos regulatórios
peculiares, muito presentes na Saúde. Vale aqui ressaltar o aspecto
vanguardista que caracteriza a Saúde, já que, mesmo em ambiente
econômico e político adverso, revelou traços marcantes de um novo
15
Ver Modelski, G. & Thompson, W., R. (1989).
592
paradigma que anos à frente começa a se consolidar, especialmente
após a experiência da pandemia de 2020.
Paradigmas produtivos são causa e efeito de fontes primárias
de acumulação, que acabam por influenciar (e serem influenciadas)
em diferentes arranjos políticos. Ambos os paradigmas apresentam
uma tendência de evolução em formato de ondas, marcados por fases
de ascensão, maturidade e declínio. Num primeiro momento, do
processo de industrialização evoluiu da produção artesanal, mas
ainda limitado às dificuldades de escala de produção. A produção de
ligas de aço tornou possível o advento de máquinas com maior grau
de sofisticação como a máquina a vapor e o tear mecânico, levando o
Reino Unido através do EL ao topo da liderança mundial. A
acumulação de capital daí resultante ensejou aprimoramentos na
indústria química, elétrica, de petróleo e de aço. Essas inovações, ao
se reunirem às técnicas administrativas de Taylor e Fayol e às grandes
plantas industriais, se constituíram no fordismo, especialmente
quando essa lógica de produção da indústria automobilística se
espraiou para outros setores. Os métodos do fordismo alcançaram
rapidamente áreas como a da produção de eletrodomésticos, têxtil,
aviação, transportes, saúde e comunicações.
A evolução dos meios de comunicação em massa, por seu turno,
possibilitou a interação e o fortalecimento do papel do consumidor
como ator social relevante, passando a colocar em xeque a rigidez
característica das organizações fordistas. Produção rígida e
centralizada, como a da extinta URSS, deu lugar a um novo tipo de
organização, mais descentralizada, minimalista e interligada por
sistemas de informação e de comunicação cada vez mais sofisticados.
Posteriormente, a fusão das telecomunicações, informática e
microeletrônica, resultou na internet e numa miríade de inovações
associadas.
593
O choque de ondas aqui tratado se verifica a partir das inter-
relações entre estruturas política e produtiva. Assim, é possível
identificar pontos de atrito entre as duas categorias (estado e
mercado) ao longo do seu processo histórico de ascensão e queda, o
que não raro provoca um fenômeno característico dos tempos atuais:
a crise. Importante desde já destacar que este texto não estabelece
uma ordem de determinação da dimensão política sobre a produtiva
ou vice-versa.
O descompasso entre as dimensões política e produtiva ao
longo de todo processo revela, especificamente na cena atual, uma
fluidez política, institucional e econômica. Trata-se de um clássico
fenômeno de destruição criativa (Schumpeter, 1984) no qual, novas
estruturas empresariais e governamentais surgem em substituição a
outras que não conseguiram acompanhar as exigências dos novos
tempos. Na ótica da demanda, consumidores, dotados de uma
postura ativista de exercício da cidadania, a cada vez mais presente,
vêm aumentando seu poder de vocalização e ação. A Figura 1 a seguir
ilustra o entrelaçamento das curvas de maturidade das
transformações no tempo, evidenciando uma interessante entre as
fases de ascensão e queda de cada uma das ondas anteriormente
apresentadas.
Figura 1: Ondas da organização do Estado e da Produção
594
O esquema da Figura 1 mostra uma alternância das ondas e
exprime situações curiosamente antagônicas ao longo da tendência.
É curioso notar que quase ao mesmo tempo em que Rousseau
preconizava a importância de harmonizar e dar a sincronia aos
poderes, submetendo a vontade individual à vontade geral da
sociedade, Adam Smith se debruçava sobre as fábricas britânicas para
diagnosticar que um paradigma produtivo já maduro, baseado na
divisão do trabalho, que seria capaz de gerar elevação da
produtividade e, consequentemente, riqueza. Mais adiante, no limiar
da Belle Époque, na plenitude material, retratada por autores como
Tocqueville e John Stuart Mill, o mundo conviveria com intensos
movimentos de lutas de classe, que se espalhariam por toda Europa,
terreno fértil sobre o qual se fundamentou a crítica ao Estado burguês
e à transformação de relações sociais em relações econômicas do
capitalismo, tão bem ilustradas por Marx e Engels.
A dinâmica de produção das grandes corporações, baseada no
padrão fordista, amadureceria nas primeiras décadas do Século XX,
retratadas pelo estudo dos tempos e movimentos de Taylor, e pela
concretude empreendedora de Ford. Lord Keynes, contemporâneo de
Ford, não tardaria a diagnosticar a falência das políticas emanadas
pelo EL, abrindo as cortinas para a entrada em cena do EP e das
grandes corporações. O Welfare State, associado ao sistema de Breton
Woods, permitiu sustentar o que mais tarde seriam os chamados anos
de ouro do capitalismo. As instituições multilaterais e a construção
monetário-financeira do Dólar-ouro se sustentaram até que as
crescentes despesas militares com a guerra-fria viessem a ensejar um
rompimento do padrão metálico pelo governo republicano dos EUA
em 1971, personificado pelo seu presidente Nixon e pelas políticas
liberalizantes da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman.
Nesta mesma quadra, o crescente empoderamento da
demanda, personificado pela difusão das comunicações de massa e
595
pelas redes sociais, encontraria no advento da internet a senha para o
desenvolvimento de um novo paradigma organizacional,
substitutivo ao fordismo. Kotler e Schumpeter, à frente do tempo,
destacariam a importância da criação de sistemas de inovação e da
destruição criativa como mecanismos de subversão da ordem
produtiva rígida e burocrática então vigente.
A partir dessas tendências gerais está criada a cena atual. Desta
feita, sob a ótica da organização política, estamos diante de uma
ordem político-institucional agônica, representada pelo EP, que em
algum momento do futuro dará lugar ao Estado Coordenador – EC.
Do ponto de vista da organização produtiva, sobre os escombros do
fordismo estamos a ver a rápida consolidação do novo paradigma da
produção da terceira revolução industrial. É possível constatar ainda
que, na convivência entre a fase descendente de uma onda e fase
ascendente de outra, ocorrem intensas contendas hegemônicas como
a que vemos ora em curso. Interessante observar que este momento
de choque de ondas parece produzir uma energia que cedo ou tarde
irá se materializar em destruição do velho, e posterior consolidação
de um novo paradigma.
Figura 2: O choque de ondas
596
O círculo 1 da Figura 5 ilustra um momento de disputa
hegemônica entre a Grã-Bretanha e o Continente Europeu. Essa
guerra sancionaria o poder da Inglaterra, que exerceria o seu domínio
imperial característico do período vitoriano. O círculo 2 enseja uma
disputa na Europa, que mais à frente revelaria ao mundo a estreia dos
EUA como player efetivo no xadrez geopolítico internacional e como
grande fornecedor de produtos industrializados e armamentos. Não
obstante a Inglaterra, França e seus aliados também tenham saído
vencedores deste conflito - e a Alemanha a grande perdedora - o fato
mais relevante é que o Tratado de Versalhes não evitou uma nova
guerra, na qual os EUA, desta feita, concluiriam o processo de
transferência do centro do poder mundial que cruzaria o Atlântico. O
círculo 3 traduz uma contenda que se materializou na consolidação
do EUA e se dá a partir da Segunda Guerra Mundial, em cujos
estertores se deu a (nova) ordem mundial de Breton Woods, que se
consolidaria na chamada era de ouro. Destaque-se que as principais
instituições multilaterais tiveram sua criação neste período: FMI e
Banco Mundial em 1944; ONU em 1945; e GATT em 1947.
O círculo 4 é a cena atual, onde se assiste a convivência de um
processo de amadurecimento de novas técnicas de gestão e da
produção, como no início do século passado, sem que ainda tenha
ocorrido a substituição da velha ordem política. O presente
enfraquecimento da supremacia da economia americana, associada
ao esmaecimento do poder político dos EUA e suas tentativas de
rivalização com o poder Chinês, Russo e Europeu continental, se
traduz no atual cenário de crise e de guerra comercial e agora guerra
militar declarada, tendo como marco a invasão da Ucrânia em 2022 e
o conflito em Gaza em 2023. Conjunturalmente, essas crises também
podem ser atribuídas à necessidade de estruturas minimamente
estáveis de poder para a realização de investimentos e geração de
riquezas e estabilidade.
597
Importante ressaltar que aqui não há uma oposição entre as
instâncias de mercado e estado. Evidentemente, o capital não
prescinde do mercado, mas este por sua vez não prescinde do estado.
Em meio às questões atuais sobre poder e a hegemonia da moeda,
outras agendas não menos importantes surgem, tais como a questão
do meio ambiente, novas fontes de energia, combate à miséria e ao
terrorismo. Por fim, o fato de as forças contendedoras terem ido às
vias de fato nas ocasiões anteriores, não indica que, necessariamente,
a história há de se repetir. Em que pese o mundo hoje conviva com
arsenal atômico considerável, existe a perspectiva de que as atuais
disputas se materializem e se restrinjam em contendas pontuais: no
Leste Europeu, Sudeste Asiático ou no Oriente Médio, como nos
tempos da guerra-fria. A Figura 2 permite ainda observar, no tempo
presente, a intensa desagregação do EP, potencializado pela
desarticulação das finanças internacionais e pelo desmonte do
Welfare State pela obra de seu algoz neoliberal. De todo modo, o
mundo ainda não se credenciou a consolidar o novo padrão
hegemônico de intervenção em substituição ao EC.
Há ainda que se destacar a aceleração dos tempos
compreendidos por cada ciclo ou onda, seja no paradigma político ou
produtivo. A primeira onda política, caracterizada pelo Estado-
Absolutista durou cerca de 250 anos (Figura 2) e é seguida pelo EL
com duração aproximada de 180 anos, sendo que a perspectiva de
duração do EP é de cerca de 100 anos. Do ponto de vista da Produção,
a I Revolução Industrial permaneceu hegemônica por cerca de 200
anos, ao passo que o da Segunda Revolução Industrial, na perspectiva
aqui tratada, durou cerca de 120 anos. A aceleração do tempo
histórico das mudanças aqui abordados é um assunto intensamente
discutido por autores como Hobsbawn, Arrigh, entre outros. Trata-
se, entretanto, de tema ainda pouco explorado e passível de
598
investigações futuras que não se constituem no cerne da análise aqui
proposta.
Assim é que, de uma nova correlação de forças, emergirá a
expectativa de um novo arranjo caracterizado por variados atores.
Essa tem sido uma obra ainda recém-esboçada, esculpida sob a
iminência de uma crise de grandes proporções e sustentada por um
sistema produtivo púbere, ainda incapaz de conferir a acumulação
necessária à uma nova dinâmica estável do desenvolvimento
mundial.
É exatamente neste ambiente eivado de ameaças e
oportunidades, que se revela um grande desafio ao Brasil de
aproveitar o ambiente de grandes transformações para desempenhar
um papel de liderança e pioneirismo na construção de novas
instituições de governança global. Naturalmente, esta inserção não
poderá ser viabilizada sem o desenvolvimento econômico, que, por
sua vez, da deflagração de um novo ciclo de crescimento sustentado
na economia brasileira. O Brasil conta com uma posição de
pioneirismo em alguns setores-chaves que poderão ser
potencializados, especialmente com o com o anúncio do PAC3,
quando o governo federal anunciou um valor previsto de R$ 1,7
trilhão, com a expectativa de desembolsos até 2026 de R$ 1,4 trilhão.
Esse aumento dos investimentos tem a potência de elevar a taxa de
investimentos para algo em torno de 21,5% do PIB e teria efeitos
multiplicadores ensejando a oportunidade de um novo ciclo de
reindustrialização ou neoindustrialização, entendendo-se este
processo como a reedição da indústria em novos setores sustentáveis,
nos quais o Brasil poderá ter maiores vantagens competitivas.
Detentor da melhor matriz energética do mundo, além de
futuro produtor com saldo de carbono zero e exportador de energia
sustentável, o Brasil tem potencial para se destacar como ofertante
599
internacional de produtos verdes, especialmente diante da tendência
em curso da consolidação de uma nova matriz energética, baseada no
hidrogênio verde16. Esses fatores podem ainda ser potencializados a
partir das sinergias com a produção do agronegócio e com o aumento
da preocupação mundial com a aceleração das mudanças climáticas.
Também no complexo industrial da Saúde, a recente pandemia
permitiu uma reflexão mais profunda do desenvolvimento deste
setor como um dos potencializadores de um novo ciclo de
desenvolvimento. Decerto que há óbices relevantes para a consecução
desta nova etapa de desenvolvimento. Primeiramente, é
indispensável a participação do capital privado nacional e
internacional no processo, mas estes dependem, logicamente, da
construção de um relativo consenso político a respeito da importância
do tema. Outra questão relevante é a superação de alguns gargalos
no transporte e na infraestrutura (aero)portuária, a da falta de
qualificação no Brasil, que não dispõe da oferta de ensino de
qualidade, além da reduzida presença de jovens brasileiros nas
universidades.
Todavia, a análise da longue durée aqui apresentada nos revela
um contexto a partir do qual o Brasil poderá canalizar positivamente
a energia gerada a partir do choque de ondas em curso. Nesse
contexto não são desanimadoras as oportunidades de uma nova
inserção e integração brasileira e latino-americana no Sistema
Internacional e no desenvolvimento no século XXI.
16
O hidrogênio verde (H2V) é obtido por meio da eletrólise da água, utilizando
energia limpa e renovável, sem emissões de CO2. Esse processo separa
hidrogênio e oxigênio da água através de corrente elétrica, exigindo fontes limpas
como solar, hídrica ou eólica. Ver:
https://www.portaldaindustria.com.br/industria-de-a-z/hidrogenio-verde/
(acesso em 5/11/2023).
600
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O debate econômico pela ótica da Ecologia Política: desafios que
ameaçam a sustentabilidade das vias de desenvolvimento
hegemônicas e possíveis alternativas
Bernardo França Santos1
Daniel Augusto Rodrigues Barreto2
Marco Aurélio Dias Rezende3
Introdução
Ao longo da história brasileira, particularmente a partir da
República, ocorreram diversas discussões a respeito de quais
diretrizes econômicas deveriam ser seguidas pelo Estado com o
objetivo de buscar o desenvolvimento. É importante salientar que se
consolidou uma concepção monolítica de desenvolvimento, que
equipara, inclusive, povos tradicionais a pessoas que vivem em
condições de miséria e pobreza nas cidades ou no campo,
simplesmente porque os modos tradicionais de vida não contam com
os mesmos aspectos pelos quais se julga que uma dada locação é
desenvolvida, como anos de educação formal e renda per capita, para
citar alguns exemplos. Observa-se na história republicana, apesar das
diferentes tendências ideológicas, uma oposição entre tendências
liberais e desenvolvimentistas, as quais, em linhas gerais, podem ser
expressas pelas diferentes atribuições que são dadas ao papel do
1 Mestrando PPG IGC/UFMG
2 Mestrando PPAMSA IGC/UFMG
3 Cientista Social FAFICH/UFMG
605
Estado e do mercado enquanto instâncias indutoras do
desenvolvimento. Enquanto os liberais defendem um menor
intervencionismo estatal na forma de proteção da indústria ou outros
setores nacionais (LISBOA e PESSÔA, 2016), os desenvolvimentistas
consideram que é necessário que o Estado seja interventor e pratique
a proteção de setores para que o Brasil possa desenvolver expertise em
diferentes atividades econômicas (BRESSER PEREIRA e GALA,
2010). Um dos pontos mais expressivos desse impasse intelectual é
que, enquanto os primeiros defendem que o Brasil consolide sua
inserção nas cadeias globais de valor como um país exportador de
matérias primas, os segundos são defensores da implementação de
políticas industriais para que o setor se sofistique e seja o carro-chefe
da economia (GALA e RONCAGLIA, 2019).
Em ambos os casos, a tônica é capitalista, de modo que o ponto
de divergência reside em como funciona o sistema. Isto posto,
significa que não há uma tendência a questionar o modo de produção,
apenas definir quais agentes devem ser preponderantes no
capitalismo brasileiro. É importante salientar, também, que a história
republicana do Brasil consiste num período que acompanhou
enormes transformações disruptivas no próprio sistema capitalista.
Diversas atividades econômicas incorporaram novas técnicas e
tecnologias ao longo do tempo, resultando em expressivo ganho de
produtividade. Além disso, muitas mudanças ocorreram no comércio
internacional, de modo que o processo de globalização e a ideia de
cadeias globais de valor modificaram profundamente a posição do
país no mundo (MACHADO, 2019). Por fim, é necessário fazer
referência à ordem geopolítica contemporânea, que acabou por
ascender novas potências em escala mundial e regional. Assim sendo,
por mais que essas duas tendências econômicas, liberal e
desenvolvimentista, sejam identificáveis em períodos distintos da
história do país, elas foram constantemente alteradas e adaptadas a
606
novas circunstâncias sociais, econômicas e políticas (GIAMBIAGI et
al., 2011).
Aliado a esse desafio, surgem as urgências ambientais de escala
global, com consequências desastrosas a ecossistemas, biomas,
cidades e zonas rurais, com destaque às populações mais vulneráveis,
marcadas pela desigualdade de renda, uma característica cada vez
mais marcante e profunda da era do capitalismo ultra-financeirizado
(DOWBOR, 2017). Nessa estrutura, encontram-se principalmente as
populações mais pobres dos países da periferia e semiperiferia do
capitalismo, somados à iminência cada vez mais forte das mudanças
climáticas antropogênicas.
Figura 1 - retirado de live virtual produzido por Costa (2021)
A ocorrência cada vez mais frequente e intensa dos eventos
climáticos extremos, somados às possíveis inundações costeiras com
o consequente aumento do nível do mar, colocando centenas de
cidades do globo em risco de perda de vidas e de seu território
607
habitável, encontra populações urbanas cada vez maiores e em
expansão, inclusive das camadas pauperizadas e suas infraestruturas
vulneráveis. As mudanças climáticas são apenas um dos limites
planetários em crise (figura 1), concomitante a outros sistemas
terrestres em situações ainda piores, como foi verificado no artigo da
Revista Nature “A safe operating space for humanity” (ROCKSTROM et.
al., 2009) e atualizado por Sternet et. al. (2019), ideias que remontam
décadas de discussão sobre os limites do crescimento (CMMAD,
1988).
Visando um modelo de operação seguro, embora isso implique
a reversão urgente de algumas tendências, os estados-nação e as
organizações internacionais têm se mobilizado em fóruns,
conferências e instituições globais que demandam a cooperação e
participação conjunta de todos os entes envolvidos. A Conferência
das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas de 2015, foi 21.ª
sessão anual culminando com o Acordo de Paris para todos os países
signatários da ONU, comprometendo 196 entes (o Brasil entre eles) a
reduzir em 50% das emissões de gases estufa até 2030 e zerar estas até
2050, com o objetivo de cumprir a meta climática estipulada por
cientistas como um risco menos catastrófico, de não esquentar o
planeta à mais que 1.5°C.
Fica evidente a incompatibilidade de tais metas com os modelos
hegemônicos de desenvolvimento, isto é, observados desde o início
da era industrial, os quais apresentam crescimento em escala
geométrica, provocado por expansões de produção e demanda e
modos de vida urbano-industriais, de tal modo que o metabolismo
urbano (LASCHEFSKI, 2019) exige um consumo extraordinário de
matéria prima e energia. Ao mesmo tempo, não se pode negligenciar
a pobreza massiva dos países subdesenvolvidos como o Brasil, onde
dezenas de milhões sofrem de insegurança alimentar e baixo acesso a
infraestruturas básicas de saúde, transporte e saneamento básico,
608
demandas humanitárias urgentes que implicam em parte no gasto de
energia e também matéria.
Dessa forma, à luz do que foi comentado acima, sobre como
povos tradicionais e seus estilos alternativos de vida são julgados pela
visão única de desenvolvimento, pode-se levantar a seguinte questão:
como as duas correntes principais do debate econômico brasileiro
podem ser lidas pela perspectiva da ecologia política e seus
pressupostos alternativos? Para responder à pergunta, o trabalho terá
como objetivo analisar, com base nos aspectos teóricos suscitados, as
correntes econômicas liberal e desenvolvimentista.
DESENVOLVIMENTO
Neo-extrativismo: novas técnicas, hierarquias parecidas no mundo
dividido - um motor ou uma trava do desenvolvimento?
O passado colonial brasileiro, ocorrido através da invasão,
subalternização, extermínio e escravidão de povos indígenas, bem
como tráfico humano de povos escravizados do continente africano,
trouxe consigo a imposição de novos modos de vida, bem como o
controle do território e seus recursos naturais e sua utilização a partir
de uma racionalidade de acumulação. Tais princípios, de certa forma,
jamais foram abandonados, uma vez da chegada dos europeus em
terras brasileiras, mas de fato, várias transformações e adaptações
ocorreram, alcançando hoje, centenas de anos e vários períodos de
evolução técnica depois, um modelo que mantém um padrão de
divisão internacional do trabalho e de produção de mercadorias para
as chamadas cadeias globais de valor, sob uma aceleração
reprodutiva cada vez mais acrescida.
Trata-se da mesma base de acumulação, através do trânsito
desigual e subordinado entre centro e periferia, na qual esta última
609
serve como um estoque de bens primários e recursos naturais para as
economias industriais do centro, utilizarem as matérias-primas para
se industrializar e gerar riqueza (WALLERSTEIN, 1974). Neste
contexto, o trabalho das economias secundárias sempre tenderá à
subvalorização e os padrões de acesso a serviços públicos essenciais
para a sobrevivência e qualidade de vida, conviverão com a escassez.
Como veremos, a teoria por mais antiga que seja, convive com um
período de reforçamento de suas dinâmicas, em uma parte
considerável do globo, bastante associado ao neo-extrativismo e às
estruturas internacionais de intervenção, formais (Banco Mundial,
FMI, OMC etc) ou pelas colonialidades acadêmicas e midiáticas.
Alguns países desta grande periferia (considerando a semi),
principalmente no sudeste asiático, vem fugindo destes padrões
(MARTINS, 2015).
A natureza, que para as racionalidades dos modos de vida
indígenas era vista como moradia, fonte de vida, coletividade e meio
de sobrevivência, passou, logo nos primeiros assentamentos
coloniais, a ser abordada como um recurso a ser explorada sob essa
lógica e dinâmica supracitadas (MIGNOLO, 2016). Ao passo que a
técnica foi evoluindo e o modo de vida urbano-industrial, apropriado
por um regime de acumulação cada vez mais robusto e eficaz
(Capitalismo), os processos de exploração e como seu efeito colateral,
a degradação ambiental foram acelerados deixando os países
coloniais (em certa altura, pós-coloniais), apenas com os ônus desse
610
modo de produção. No entanto, viradas políticas de causa e
consequência globais e internas, alteraram a evolução dos
desequilíbrios produtivos, alternando momentos de tentativas de
industrialização forçada e reprimarização da economia. Tais
fenômenos não são exclusividade brasileira, mas de todo o mundo
pós-colonizado, em consonância ao nosso tempo, os países vizinhos
da América Latina. O que vale lembrar é que essa região do globo,
nunca deixou de ser um forte primário-exportador de bens e
consequentemente alimentar a dinâmica centro-periferia.
Na análise de Gudynas (2016), os impactos do extrativismo são
locais, ainda que se insiram na cadeia global de valor. Há uma
tradição liberal no Brasil que, amparada na ideia ricardiana de
vantagens comparativas, defende uma maior inserção comercial do
país através de produtos que o país já apresenta uma determinada
expertise produtiva e que são vistos como capazes de competir no
comércio internacional. No entanto, há sempre um discurso que
acompanha essa constatação de que é necessário aumentar a
produtividade, o que possibilitaria um maior extrativismo sem
implicar em maiores impactos ambientais causados por desperdícios.
Muito embora seja repetido que o agronegócio brasileiro é um dos
mais sustentáveis do mundo e de que supostamente cresce muito sua
produtividade sem precisar desmatar grandes áreas, dados empíricos
como os coletados por Rajão et al. (2020) mostram que existem
diversas inconsistências entre o cadastro ambiental rural e o que é
possível constatar através de imagens de satélite, demonstrando que
muitos estados apresentam um expressivo número de desmatamento
ilegal não detectado pelas autoridades. Além disso, é notável que, no
caso da mineração, cuja extração nacional tem sua maior parcela
proveniente dos estados de Minas Gerais e Pará, ela seja tão forte no
discurso neo-extrativista, a despeito dos impactos ambientais severos
e crimes ambientais praticados.
611
O debate ecológico é relativamente recente quando comparado
à idade da degradação ambiental compulsória do período industrial,
e vale lembrar que esta antecede inclusive o advento das máquinas,
como já tratado neste texto. Portanto, não importa qual seja a
orientação política-governamental do período histórico brasileiro, o
meio ambiente nunca escapou da lógica desenvolvimentista
(LASCHEFSKI, 2019), isto é do seu uso como recurso para provocar
enriquecimento e prosperidade econômica e social.
Neste contexto, alguns fatores provocaram e vem provocando
uma extensa ampliação das explorações do território, chamado por
Laschefski como “landnahme” (apropriação de terras) ou mesmo da
subversão de modos de vida que convivem de maneira harmônica
com a natureza. São eles 1) A grande demanda insustentável da
sociedade urbana-industrial-capitalista por mercadorias e energias
não-renováveis, que obriga a uma constante ampliação da base
produtiva para atender as explosões urbanas e as necessidades de
consumo; 2) As inovações técnicas das indústrias agroextrativas que
permitem um aproveitamento produtivo cada vez maior dos
territórios e seus biomas variados – estes por sua vez quase sempre
atrelados a severos esforços governamentais em Pesquisa e
Desenvolvimento a partir das Universidades e Institutos de pesquisa
e fomento como a EMBRAPA ou as próprias empresas estatais ou
empresas incubadas e postumamente adquiridas pelo setor privado,
já dotadas de um grau de infraestrutura e tecnologia. Ou seja, fortes
vínculos institucionais-cognitivos, chamados por Albuquerque et. al.
(2015) de Historical Roots ao analisar as matrizes atuais de cooperação
entre áreas do conhecimento da Universidade e setores da economia
e retomar leituras de Celso Furtado (1980) sobre desenvolvimento
induzido dos governos da América Latina; 3) A capacidade política
de instituições com viés ultra-acumulativista de penetração, controle
e permissão sobre os territórios, como o mercado financeiro e a
612
subordinação cada vez maior dos estados nacionais aos seus
propósitos (vide grupos políticos com grande presença e influência
no poder legislativo – “Bancada do boi” e 4) A criação por esses dois
últimos (estados e seus setores ligados ao capital neo-extrativo,
financeirizado), de métodos de avaliação e certificação ambiental,
bem como de flexibilizações de leis que outrora atendiam a
propósitos ecológicos, em função de um suposto “Desenvolvimento
Sustentável” que na prática muito se assemelha ao desenvolvimento
econômico clássico que sempre esteve presente no modelo de
expansão urbano-industrial, dado que são formulados
estrategicamente para criar um sistema bastante permissivo com as
atividades agroextrativistas (ZHOURI, 2018). Tais flexibilizações
podem gerar consequências pós-locais, a partir dos “Efectos derrame”
(GUDYNAS, 2016) isto é, ampliar a exploração e generalizada em
vários outros lugares do território, condicionados ao mesmo
arcabouço legal do país.
A preocupação ecológica, não é algo que esteve sempre
presente no contexto político, durante a expansão deste modelo, e na
verdade boa parte dos conhecimentos sobre a degradação ambiental
e suas possíveis consequências catastróficas, apenas foram
descobertos ao fim do século XX, de maneira que tais descobertas e
previsões continuam sendo atualizadas conforme os métodos de
pesquisa vão avançando. Problemas como as mudanças climáticas,
perda da biodiversidade, escassez de recursos hídricos,
contaminações dos mais diversos tipos, foram aos poucos ganhando
espaço no debate público, com destaque pro debate sobre o
Aquecimento Global e suas possíveis condenações a vários de tipos
de vida no Planeta Terra, inclusive a humana.
613
Financeirização e transformação do território a partir da crise
climática - um desafio de nosso tempo
As agendas sobre desenvolvimento sustentável eclodiram por
todo o globo, trazendo consigo muitos discursos e matrizes a serem
seguidas, porém com uma dificuldade muito grande na concretude
de suas realizações. Naturalmente o Capitalismo abraçou tais
discursos, de maneira a inclusive a transformar a degradação
ambiental em novos mercados de acumulação (LASCHEFSKI, 2009
apud CHESNAIS, SERFATI, 2003,p.42), mas não de maneira a alterar
sua aceleração expansiva ou mesmo de mudar práticas estritamente
nocivas ao meio-ambiente que não necessariamente iriam impedir
seu funcionamento, como a obsolescência programada.
Desse modo, a aproximação de países da periferia do
capitalismo com a face mais financeirizada do capitalismo, isto é, os
mercados especulativos e as bolsas de valores, que se dá no momento
histórico do Neoliberalismo, condiciona estados já fragilizados, com
problemas de soberania popular, a sujeitar seu funcionamento em
prol de modelos de acumulação degradantes pra biosfera desses
países. A grande contradição, é que existe, visto o avanço dos debates
e das conferências internacionais sobre meio-ambiente e a emersão
dos consensos climáticos, uma tendência global, que é repercutida
nesse mesmo mercado como algo importante, embora ele mesmo
esteja bastante distante da materialidade das estratégias de
sustentabilidade que de fato fossem surtir algum efeito ecológico.
Trata-se de uma característica clássica dos mercados
financeiros, descrita por Keynes (1985), como a “teoria do concurso
de beleza”, na qual a entidade mercado, marcada pela pasteurização
de seus atores, heterogêneos, mas subordinados a uma lógica de
conformação e profetização, acabam escolhendo investimentos e
especulações a partir daquilo que se acredita que serão as “tendências
614
de manada”. O mercado exige um grau de performação e fantasia que
atenda a suas expectativas abstratas, por isso se explica o
estranhamento deste com o Governo Bolsonaro (considerado “ultra-
liberal”) e suas noções ultra-predatórias sobre os recursos naturais, ao
mesmo tempo em que ele se enriquece e pressiona por flexibilizações
ambientais.
Ao contextualizar a fase atual do capitalismo e sua vigência
expressada no processo de reprimarização das economias periféricas,
com a modernização de seus processos e produtos e a consequente
insuficiência do que é prometido por seus atores e propulsores (vide
agroindústria 4.0), colocamos a financeirização em voga. Isto é, este
período marcado pelo protagonismo das atividades bancárias, dos
mercados especulativos, dos fluxos de capitais intensificados pelo
globo e portanto, a maior influência de tais setores nas decisões
públicas e comuns, as chamadas “governanças corporativas”
(DOWBOR, 2017).
É necessário investigar o papel dessas finanças poderosas na
ecologia política, sua capacidade de mudar os rumos das atividades
extrativistas e agrárias, bem como das consequências socioambientais
que tais setores carregam consigo. Colocaremos mais a frente, a
importância que tem a universidade, como ponto central da geração
de conhecimento e inovação da sociedade moderna, para infiltrar-se
nessa discussão, ativamente e criticamente. Knuth (2020) atenta por
exemplo para as mudanças adaptativas promovidas pelo capital
imobiliário, na iminência da crise climática que é vista como uma
ameaça ao seu modelo de rentismo, transformando o mercado de
seguros, em um previsor de desastres, inclusive em vias da extração
de valor a partir destes. Além disto a infiltração dessas corporações
nas Geografias Fiscais, mudam os padrões de ocupação e regimes
fundiários em movimentos legislativos repentinos.
615
O que implica ressaltar que nesta etapa, a financeirização possui
um papel central de direção das ações no território e como
consequência alimentar as racionalidades do processo de
urbanização planetária e sua consequente: o que vai ser produzido,
quais recursos naturais serão explorados, onde ficará maior parte da
renda, quem acumulará os riscos ambientais e quem ficará mais
“protegido” deles.
Ainda hoje, replica-se um discurso de transferir a
responsabilidade ambiental apenas para o Norte, numa tentativa de
justificar a negligência brasileira para com o desmatamento da
Amazônia, Cerrado e, até mesmo, do Pantanal. Um argumento
comum é dizer que os países do Norte não protegeram suas florestas,
ignorando a biodiversidade incomparável que existe no Brasil, muito
maior do que nos países ricos. Além disso, percebe-se que um
discurso de desenvolvimento a todo custo é muito mais forte do que
a percepção de que se deve manter a qualidade ambiental. Acredita-
se que a geração de energia é um imperativo, assim como a
industrialização e o aumento nos hectares do agronegócio. As terras
indígenas são postas em dúvida diante da urgência de projetos
minerários, algo recorrente na história brasileira.
O metabolismo urbano como impasse para o desenvolvimento
sustentável e possíveis alternativas
Levando em consideração a evolução histórica das hierarquias
e desigualdades da Economia-mundo, em especial a inserção colonial
brasileira nesse sistema e sua sucessiva dependência econômica
atualizada pelo neo extrativismo, torna-se evidente a resolução de
dois desafios, que embora para a racionalidade desenvolvimentista,
pareçam contraditórios, podem abrir possibilidades inovadoras e de
fato mais condizentes com os conceitos de justiça socioambiental.
616
Em primeiro lugar, existe no Brasil uma das maiores
desigualdades socioeconômicas experimentadas em todo o mundo, e
é reconhecido, mesmo entre o mainstream das Ciências Sociais, que a
desigualdade é um problema tão grande ou maior que a pobreza em
si, (ALESINA; PEROTTI, 1996; DABLA NORRIS, 2015) até porque
ambas estão sempre associadas e se alimentam. As desigualdades
podem ser ainda mais problematizadas quando se referem à direitos
básicos de cidadania, por uma ótica constitucionalista, o
cumprimento das obrigações do Estado, no caso com a Constituição
Federal de 1988.
Vale lembrar que somente o quesito renda como um parâmetro
de desigualdade não é o suficiente e pode entrar em conflito com a
discussão aqui enunciada. O esgotamento dos limites planetários,
caracterizado pelo Antropoceno, isto é, a nova era geológica marcada
pelas transformações profundas e em alguns casos, irreversíveis, das
atividades humanas, estão inerentemente ligadas à expansão
econômica: da produção, da riqueza, da renda, da demanda e
consequentemente da extração natural e da queima de matéria, o
suficiente para retroalimentar ciclos destrutivos, não apenas
climáticos, como da perda da diversidade genética, dos fluxos
biogeoquímicos e das mudanças de uso da terra em níveis de risco
ainda mais acentuados que os do aquecimento global, como já visto.
Laschefski e Zhouri (2019), tratando sobre o novo-
desenvolvimentismo, que marcou as duas primeiras décadas do
século XXI no Brasil, demonstraram que, apesar de os governos
petistas de 2003-2016 terem um discurso mais à esquerda no espectro
político, na prática, acabaram por não representar os interesses
territoriais de povos indígenas e comunidades tradicionais. A
mentalidade neo-desenvolvimentista buscou, após a década de 90, a
qual foi marcada por abordagens econômicas liberais, retomar a
participação ativa do Estado na economia, como indutor do
617
desenvolvimento a partir de grandes investimentos e projetos. Com
o PAC, que teve início em 2007, o governo Lula passou a valorizar
grandes obras como de hidrelétricas, sendo que a geração de energia
foi um dos focos do programa.
Como se sabe, projetos de hidrelétricas acabam por atingir
muitas comunidades, bem como geram impactos ambientais severos,
como a inundação de áreas (ZHOURI, 2011). Dessa forma, por mais
que o governo apresentasse um discurso mais solidário aos povos
indígenas e comunidades tradicionais que seus antecessores,
sobremaneira os governos militares, acabou por persistir na lógica
que os igualava a “pobres” e “miseráveis”, simplesmente por não
estarem vinculados a um estilo de vida formalizado, como de
trabalhadores urbanos, que foram relativamente mais beneficiados,
dado que integraram programas sociais de transferência de renda e
moradia. Além disso, a população urbana acabou por ser alienada da
realidade subjacente à sua melhora nas condições de vida, pois
muitas comunidades foram desalojadas para garantir projetos
incentivados pelo governo. Assim sendo, deve-se admitir que houve
um consenso de amplo espectro na política brasileira que diz respeito
a qual modelo de desenvolvimento se deve adotar, sendo que, na
prática, a disputa entre esquerda e direita diz respeito mais ao meio
do que ao objetivo, ainda que a direita seja extremamente mais
agressiva e irresponsável para com povos indígenas e comunidades
tradicionais.
Laschefski (2014) menciona alguns períodos
desenvolvimentistas da história brasileira, como o regime militar e o
neodesenvolvimentismo que teve início no governo Lula dois, os
quais trouxeram diversos problemas no âmbito ambiental pelo
incentivo a obras "faraônicas", grandes projetos inseridos em
contextos socioambientais sensíveis. A usina de Belo Monte dá
continuidade a uma tradição que remonta ao governo Geisel, sendo
618
que os impactos da expansão desordenada rumo à fronteira
amazônica na época não foram avaliados antes de se insistir em
políticas descontroladas para a região. Além disso, é notável o mesmo
descaso e indiferença que é dispensado, pelo poder público, às
comunidades vulneráveis que se colocam contra os grandes
empreendimentos.
A história revela que inúmeros mega-projetos dessa natureza
foram realizados por regimes autoritários, como o próprio regime
militar brasileiro - vide os severos impactos ambientais associados à
construção da Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas. O
contexto atual, ainda que valorize a estrutura democrática acaba, no
entanto, por perpetuar problemas similares. Observa-se a leniência
do poder público para combater casos de violência extrema no
campo, ao passo que essas mesmas regiões registram o interesse de
exploração econômica da parte de empresas multinacionais. O
Ministério Público, que se tornou instância preferencial para defender
os interesses do povo, passou a ser criticado pela morosidade de
licenciamentos ambientais. Ao longo do tempo, o MP teve que se
sujeitar à lógica hegemônica das demais instituições para buscar o
consenso na resolução de conflitos. Este cenário afasta a possibilidade
de que questões críticas para alguns segmentos sejam vistas como
inegociáveis, fazendo com que as situações pendam para o lado mais
forte da "negociação".
No caso das mudanças de uso da terra, tratam-se das
transformações de maior importância para o contexto brasileiro.
Primeiro por se tratar de um processo que alimenta, direta e
indiretamente, todos os anteriores, vide o fato de as emissões de gases
estufa nacionais serem realizadas em sua grande maioria, por
queimadas, desmatamento e práticas agropecuárias no geral. A julgar
pelo exemplo da perda da diversidade genética e consequente dos
fluxos biogeoquímicos, o Brasil é famoso justamente por ser o país
619
mais biodiverso do mundo, marcado pelos domínios paisagísticos
próprios do clima tropical e suas variações latitudinais e altimétricas,
os quais são atingidos diretamente pelo setor primário e suas
demandas de grandes áreas de cultivo e, portanto, destruição de
ecossistemas.
Fica evidente, então, o segundo desafio, que é também atrelado
aos objetivos atribuídos ao Brasil a partir da Contribuição
Nacionalmente Determinada (NDC) em consonância com o Acordo
de Paris (2015), de reduzir suas emissões de gases estufa a 50% do
total emitido em 2005, que passa, consequentemente, por mudanças
profundas nas bases produtivas e o uso do território como recurso
econômico. É um desafio que o Brasil compartilha com as demais
nações empenhadas em tornar o planeta ainda habitável até o fim do
século, mas é necessário lembrar que a maioria esmagadora dessas
nações também compartilham do mesmo sistema econômico
expansionista, embora com suas variações geográficas.
Portanto, dentro do desafio ecológico, é preciso reconhecer a
incompatibilidade do modelo de produção e acumulação vivenciado
no país até hoje, com a manutenção das condições seguras do planeta
para a perpetuação das espécies biológicas, como a humana,
passando pela interrupção do processo de extinção em massa do
Antropoceno. Para tais objetivos, tanto o ecológico como o social,
duas possibilidades práticas e complementares estão sendo
levantadas para debate neste artigo:
A primeira passa pelo reconhecimento cultural e político dos
modos de vida tradicionais e indígenas, isto é, livelihoods de
comunidades não urbanas (LASCHEFSKI; ZHOURI, 2019), que
possuem racionalidades e metabolismos bastante diferentes do modo
de vida urbano. Possuem uma convivência harmônica com a natureza
e seus processos produtivos muitas vezes não passam pelas esferas
620
mercadológicas, o que inclusive invalida suas possibilidades
exemplares de desenvolvimento (MIGNOLO, 2016). Os saberes e
conhecimentos produzidos e perpetuados por essas comunidades
inclusive será útil para o argumento a seguir, a lembrar sempre dos
direitos de terra e propriedade intrínsecos à existência delas.
Sob a perspectiva do desenvolvimento clássico, no qual a
pobreza é sempre medida através de bases monetárias,
frequentemente sendo mensurada pelas ciências econômicas
mainstream pela quantidade de “dólares por dia” ao se referir a uma
população específica, vivências como essa sempre serão
inviabilizadas. Outras métricas padrão das ciências modernas
também poderão falhar, como expectativa de vida, anos de
escolaridade, acesso à infraestruturas etc
Existem esforços intrinsecamente científicos a serem feitos, para
que essas comunidades e suas racionalidades possam coexistir e
prosperar junto com o modo de vida moderno em uma relação
mutual de trocas de saberes e técnicas. As teorias do Decrescimento
(OLIVEIRA, 2010) podem contribuir com esse diálogo, dado que a
economia e distribuição dos recursos nessas comunidades não
acompanha as lógicas produtivistas do metabolismo urbano
industrial. Como já reconhecido até aqui, pensar desenvolvimento
como é tido por economistas como “catching-up”, isto é, copiar o
modelo do Norte Global (ou Centro) para os países renda média ou
baixa, para que se alcance os mesmos indicadores socioeconômicos,
como é investigado pelo importante e famoso livro “Chutando a
escada” de H. J. Chang (2004), há de se reconhecer antes, a
impossibilidade física-biológica-planetária para que isso seja
identicamente copiado por todos os países subdesenvolvidos no
mundo:
“the so-called developed countries are the main polluters to
such a degree that, if the rest of the world climbs the ladder
621
that leads to that place, an environmental catastrophe is
unavoidable.”(AROCENA et. al., 2018, p.15)
No entanto, deve-se sempre reconhecer que o crescimento
econômico no meio urbano ainda é desejável para as classes baixas
que demandam geralmente direitos básicos de cidadania e a ruptura
rápida e completa com essa ferramenta é impraticável com tais
objetivos que veremos aqui, como essenciais (FOSTER, 2009).
“That will not be easy. Moreover, even if economic growth could
be halted, that could be an undesirable solution: “[E]conomic
growth will still matter a great deal in the coming century: it is
the most powerful tool for reducing global poverty and inequality
(as it is, also, for reducing national poverties).”(Milanović2016:
232)” (2018, p.25)”
O modelo em países de renda média ou baixa (periféricos ou
Sul Global) de maioria urbana ainda precisa ser reconhecido com
muito cuidado, para que a recessão econômica, atrelada a aumento
de desemprego, taxas de juros, alguns casos a inflação e outros
problemas da falta de crescimento econômico do capitalismo
tradicional não sejam capturados por estratégias supostamente
ecológicas. No entanto, algo a se priorizar nesse momento é com a
manutenção dos territórios ocupados por esses modos de vida
harmônicos com a natureza, que demandam menos gasto energético
e conseguem suprir os direitos culturais das comunidades,
geralmente racializadas e endógenas.
Os discursos de integração dessas populações aos modos de
vida urbano, como saída do desenvolvimento nacional, já utilizados
por toda a história brasileiro, mas que ainda são frequentes, hoje tem
um motivo a mais para serem interrompidos. Mas, mesmo que
congelassem o êxodo rural, isto é, a expansão urbana, que está longe
de ter sido completada no resto do mundo, ainda teríamos problemas
relacionados com a demanda expandida por energia e matéria da
população e é nessa onde a busca por igualdade e justiça ambiental
se unem novamente.
622
Não há como fugir do fato de que, embora as bases monetárias
sigam se expandindo, movidas pelos sistemas de alavancagem do
setor financeiro, teremos cada vez menos matéria e energia
disponíveis caso tentemos manter os limites naturais para a
manutenção da espécie. Fica evidente que, por mais que isso seja
ignorado, em um certo momento se tornará uma questão de
sobrevivência coletiva. Portanto, serão menos recursos para uma
população cada vez maior e cada vez mais consumista, o que leva a
cenários próximos ou do acostamento de uma fração recorde da
população mundial na miséria ou da distribuição mais igualitária e
de demandas reduzidas.
A segunda estratégia utiliza a troca das comunidades
tradicionais, seus saberes e possibilidades de ajuda para com as
comunidades urbanas e seus desafios de redução de desigualdades
constitucionais e o iminente racionamento de recursos, para realizar
uma lenta e profunda transição de metabolismos ao mesmo tempo
que insere o país em novas indústrias sofisticadas de adaptação e
mitigação dos problemas ambientais. A indústria verde e a
bioeconomia, muito mais possíveis de coexistir com a preservação
dos biomas do que as indústrias tradicionais (energia, transporte,
transformação etc), deve perseguir justamente o retorno das
paisagens naturais e a absorção dos conhecimentos que essas podem
interagir para a resolução de problemas das paisagens antrópicas
(NOBRE, 2019).
“Saleh (2011) chama esses grupos comunidades low-carbon, cuja
ecossuficência do “buen vivir”, baseada em parâmetros
qualitativos para o bem-estar, em vez de em critérios
quantitativos sobre os bens materiais e o capital acumulado (...).
As tecnologias endógenas de povos tradicionais poderiam ajudar
a enfrentar as mudanças climáticas, (...) precisamos de decisões
conscientes para formular políticas públicas que visam reduzir a
nossa pegada ecológica, em que o sentimento comunitário
prevalece sobre a acumulação individual de bens materiais.”
(LASCHEFSKI, 2019, p. 489)
623
Neste passo, ambos regimes, de decrescimento com viés
ecológico, geração de emprego e redução de desigualdades, exigem o
confronto direto com estruturas cristalizadas do capitalismo
moderno: as hierarquias supranacionais ilustradas através do
Sistema-Mundo e exercidas por vários meios, historicamente
inclusive pela coerção bélica-militar, atualmente mais pela
diplomacia, institucionalidades (como FMI, Banco Mundial),
colonialidades (acadêmicas, midiáticas). Isto acontece sobretudo a
partir do Sistema Financeiro, que se transformou em um macro-
sistema corporativo que produz governanças e poderes de tomada de
decisão (DOWBOR, 2017) que inviabilizaram modelos sustentáveis
de economia social como os propostos.
Considerações finais - as contribuições que (neo)liberalismo e
(neo)keynesianismo podem oferecer
Retomando o início deste trabalho, precisamos entender que o
debate econômico existente no capitalismo está, de certa maneira,
polarizado sobre essas duas correntes, e que o exercício do
intercâmbio entre as teorias tem muita importância, sobretudo para
as economias emergentes (ou periféricas, ou do Sul). O
neoliberalismo tem funcionado como um grande impasse ao modo
de inserção destes países, como o Brasil, nas Cadeias Globais de valor
e impedido as benesses que uma economia industrializada pode
oferecer para a população, como maiores taxas de ocupação, salários
mais altos, maior qualidade de vida e acessos a bens e serviços
essenciais.
No entanto, algumas lógicas do liberalismo teórico, sobretudo
o clássico, podem ter utilidade para um novo modelo político-
econômico sustentável, se forem vistas sobre uma perspectiva crítica.
Por exemplo, o princípio da não intervenção, personificada pela
624
teoria do laissez-faire, pode confrontar às insistências não mais
compatíveis com os limites planetários, das teorias keynesianas, de
realizar êxodos rurais, urbanizar e industrializar regiões preservadas,
realizar obras faraônicas de integração nacional, isto é, produzir
demandas de metabolismo urbano a comunidades tradicionais e
indígenas. Até porque uma reivindicação constitucional de respeito à
propriedade alheia, neste caso não individual, mas comunal ou
compartilhada, mais um princípio que dialoga com o liberalismo.
Mas, sabemos que, para realizar a produção de conhecimento e
tecnologias verdes, que promovam transições e adaptações, inclusive
a outros modelos de metabolismo urbano, entendendo as
impossibilidades do curto e médio prazo, de reversão demográfica
em direção ao rural ou natural, é necessário acessar as correntes
keynesianas e alguns princípios básicos sobre intervenção estatal, gasto
público anticíclico, afrouxamento monetário e muitas outras medidas
que promovam a redução das desigualdades: políticas,
socioeconômicas, regionais, raciais, de gêneros e sexualidades.
Entender que precisamos viver com menos recursos e energia,
implica em reconhecer que as desigualdades atuais do modelo
expansionista neoliberal não serão praticáveis nesta nova realidade,
bem como os desperdícios do processo industrial. A menos que
convivamos com taxas recorde de miséria e pobreza pelo mundo e
um cenário de terra arrasada, inclusive nos países desenvolvidos.
(AROCENA et. al., 2018)
Seguindo outra tendência da Globalização contemporânea, a
demanda pelo conhecimento e inovação, como fonte, trabalho e
produto para enfrentar a crise e propor alternativas materiais, mesmo
que para tal, utilizamos de aprendizados endógenos das
comunidades, dialoga com mais princípios intervencionistas. O
financiamento à Pesquisa e Desenvolvimento, é um gasto um tanto
quanto ingrato, uma vez que os cenários de incerteza são bastante
625
altos e possibilidades de retorno, geralmente de longa maturação, o
que limita por exemplo, a atuação do setor privado na participação
destes investimentos e coloca os holofotes para as políticas
orçamentárias, uma vez que o investimento estatal é protagonista
neste tipo de atividade de produção inovativa. (CAVALCANTE et. al.,
2020, cap. 12)
A era da “economia/sociedade do conhecimento” (VALE, 2009;
TUNES, 2016), em contradição com os padrões recorde de
desigualdade e as emergências ambientais, obrigam revisões nos
arcabouços técnicos da economia mainstream, que receita a
austeridade, o equilíbrio fiscal, superávit primário a não intervenção
estatal nos mercados e menos ainda as políticas de proteção à
indústria infante. Resende (2020), expõe que como em resposta da
crise de 2008, o Quantitative Easing, isso já vem acontecendo na
maioria dos países, principalmente do mundo desenvolvido, embora
haja um apego oportunista da classe política com as teorias
supracitadas.
Fica evidente, portanto, que em meio às crises, abre-se uma
janela de oportunidades para alguns países da Periferia, que passam
a conviver mais com entraves endógenos, isto é, a disputa política-
administrativa que tende a beneficiar os setores de maior acumulação
(financeiro e agro-extrativo). No entanto, o cenário global apresenta
nessas tendências, urgências que forçarão grandes investimentos dos
setores públicos, visto que o setor privado tende a se proteger dos
riscos. O Green new deal (Knuth, 2020) se apresenta para o mundo
como uma grande virada de página para as diretrizes econômicas,
que estavam impregnadas pelas teorias neoclássicas. A universidade
tem um papel crucial em contribuir e convidar outros setores,
principalmente os mais silenciados, para as necessidades de nosso
tempo.
626
No caso brasileiro, um desses setores historicamente silenciados
são os povos indígenas. Um expoente intelectual destes é Ailton
Krenak, ativista e pensador contemporâneo que discute, entre outras
coisas, justamente as possibilidades de futuro para a humanidade
diante do avanço do desenvolvimento capitalista e da emergência
climática.
Para (Krenak, 2020), pensar o futuro a partir de novas formas de
desenvolvimento capitalista é, em primeiro lugar, não abrir mão da
ideia de “utilidade da vida”, de que a vida humana existe senão para
o trabalho e para a reprodução da Capital. Essa lógica é por princípio
avessa aos modos de vida tradicionais. Desse modo, uma de suas
sugestões é não somente articular novas formas de desenvolvimento,
mas também novas formas de racionalidade na relação ser humano e
natureza que ultrapassem a forma mercadoria e que valorizem a
“experiência de fruir a vida”. Em outras palavras, para o autor, a vida
humana, a natureza e o amanhã não podem estar para sempre à
venda.
Outro trabalho interessante a título de conclusão e indicação é
“A queda do céu: Palavras de um xamã yanomami”. Escrita em uma
parceria entre o antropólogo Bruce Albert e o Xamã Yanomami Davi
Kopenawa, o livro explora o universo do povo Yanomami de acordo
com os relatos de um líder xamânico que tenta transpor no papel o
conhecimento e a realidade cosmológica que circunscrevem a
vivência de um povo que a muito luta por sua existência.
O texto funciona, de certo modo, como um manifesto ao mundo
ocidental no sentido de evidenciar a existência de mundos outros que
o do capitalismo. Ou seja, a ideia de que os Yanomami são o exemplo
vivo da humanidade em condições primitivas já não se sustenta
quando lidas as palavras de Kopenawa. Elas descrevem um sistema
cosmológico complexo e coerente nos seus termos e apresentam um
627
mundo onde a floresta tem vida e, diferentemente do que as atitudes
dos homens brancos capitalistas afirmam, não está ali simplesmente
para suprir as demandas materiais humanas.
Portanto, olhar para a intelectualidade indígena brasileira é
também um horizonte necessário na medida em que os povos
originários do Brasil estão a séculos convivendo com a catástrofe e
com “o fim do mundo” que agora nos assombra. Escutá-los, depois
de séculos de silenciamento, faz-se necessário.
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633
O Novo Banco de Desenvolvimento (NDB): uma nova ordem
financeira construída pelo BRICS?
Julia Driemeier Vieira Rosa
Mestranda em Estudos Estratégicos Internacionais
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Resumo: Na conjuntura atual, observa-se a crescente demanda de países
do Sul Global por uma ampla reforma da arquitetura financeira
internacional, a fim de garantir uma maior representação de seus interesses
nos processos decisórios de instituições financeiras tradicionais e ampliar o
seu acesso a fontes de concessão de crédito. O presente artigo se situa neste
contexto, tendo como objetivo analisar a capacidade do BRICS de fomentar
uma ordem financeira internacional alternativa à vigente por meio da
atuação do Novo Banco de Desenvolvimento (NDB). Para tanto, olha-se
para a capacidade do NDB em promover um espaço de atuação alternativo
viável para economias emergentes em comparação com outros bancos
multilaterais de desenvolvimento, sobretudo o Banco Mundial, e o
processo de entrada de novos membros ao banco. Para seu
desenvolvimento, o trabalha conta com uma análise estrutural da
capacidade do BRICS em promover transformações na arquitetura
financeira internacional a partir do provimento de bens materiais,
ideacionais e posicionais a seus membros. Em quesitos metodológicos, o
trabalho se baseia em uma revisão bibliográfica e a análise de documentos
oficiais. Além disso, apresenta-se dados secundários coletados em
plataformas abertas como o World Bank Open Data, o site oficial do NDB, e
634
o World Bank Group Finances. Como resultados iniciais, é possível afirmar
que os BRICS não detém poder estrutural suficiente para prover uma
ordem alternativa por meio do NDB, mas que, ainda assim, existe um
projeto anti-hegemônico proposital por trás da atuação e os objetivos do
banco que visa reverter este quadro.
Introdução
Originalmente uma estratégia do mercado financeiro para
atração de investimentos externos, o acrônimo BRICS - Brasil, Rússia,
Índia, China e África do Sul1- foi lançado em 2001 pelo economista
Jim O’Neill, então do banco Goldman Sachs, ao produzir um relatório
que destaca o potencial de crescimento destas economias frente às do
G7 até 2050. Nos anos seguintes, entretanto, o agrupamento evoluiu
para além do seu aspecto financeiro após a identificação de
oportunidades de atuação conjunta em frentes político-diplomáticas
como forma de ampliar a respectiva influência dos países em seus
entornos estratégicos imediatos e no palco internacional em si
(Damico; Baumann et al, 2015). Na conjuntura atual, o grupo
representa muito mais do que inicialmente imaginado por O’Neill,
sendo capaz de promover uma visão alternativa à organização do
sistema financeiro global e das estruturas de poder internacionais.
Em 2014, o bloco fundou o Novo Banco de Desenvolvimento
(NDB), também conhecido como o banco do BRICS, como resposta
aos desafios enfrentados pelas economias emergentes nas principais
instituições financeiras internacionais, sobretudo o Fundo Monetário
1
O processo de adesão da África do Sul ocorreu em 2011. Embora a nação não
apresentasse um peso na economia mundial comparável aos demais membros
dos BRICS, a aprovação da sua adesão decorreu da vontade de incluir uma nação
africana no grupo para que pudessem ter representatividade em todas as regiões
do mundo (Baumann; Baumann et al, 2013).
635
Internacional (FMI) e o Banco Mundial. O banco passou a incorporar
as reivindicações do Sul Global nas frentes de maior
representatividade das suas demandas em fóruns multilaterais
financeiros de peso e o seu acesso ampliado a fontes de concessão de
créditos para destinação em projetos de desenvolvimento. Desde sua
fundação, o NDB financiou diversos projetos chaves para os países
BRICS e, mais recentemente, teve a sua membresia expandida com a
entrada de novos sócios, os quais identificam formas de alavancar a
sua projeção política e econômica, além de meios para assegurar
fontes de crédito alternativas, por meio da instituição.
Neste sentido, o presente artigo tem como objetivo analisar a
capacidade do BRICS de fomentar uma ordem financeira
internacional alternativa à vigente por meio da atuação do Novo
Banco de Desenvolvimento. Para tanto, olha-se para o funcionamento
interno do banco e os benefícios gerados para países do Sul Global ao
ingressar como membro em comparação com instituições financeiras
tradicionais. Em quesitos metodológicos, o trabalho conta com uma
revisão bibliográfica e análise de documentos oficiais. Além disso,
conta-se com a apresentação de dados secundários coletados em
plataformas como o World Bank Open Data, o site oficial do NDB, e o
World Bank Group Finances.
A pesquisa, portanto, é dividida em duas seções principais além
da presente introdução e as considerações finais. Primeiro, analisa-se
a necessidade da criação do NDB, junto com princípios básicos do seu
funcionamento interno, diante do contexto de crescente dificuldade
encontrada por bancos multilaterais de desenvolvimento tradicionais
em responder às demandas do Sul Global. Na segunda seção, olha-se
para a capacidade do NDB em empregar um projeto “anti-
hegemônico” efetivo em contraposição à ordem financeira vigente ao
analisar os principais benefícios gerados para seus membros a partir
636
da sua atuação e a sua consequente capacidade de promover
mudanças estruturais.
Novo Banco de Desenvolvimento (NDB): surgimento e funcionamento
Durante as décadas de 1990 e 2000, o mundo passou por
transformações significativas que permitiu a aproximação entre os
países do BRICS e a possibilidade de cooperação em áreas de
interesse coletivo. Em um contexto de reconfiguração da ordem
internacional pós-Guerra Fria, observou-se a ascensão comercial e
política da China, seguida do crescimento econômico do Brasil e da
Índia. Semelhantemente, a Rússia e a África do Sul passaram por
respectivos momentos de reconfiguração interna que despertaram
períodos posteriores de estabilidade econômica (Fontenele Reis;
Pimentel, 2013).
Tabela 1: PIB total (US$) dos BRICS e Mundial
Membro PIB (US$)/ANO
1990 2000 2010 2020
Brasil 464,99 bn 655,45 bn 2,21 tn 1,48 tn
Rússia 516,81 bn 259,71 bn 1,52 tn 1,49 tn
Índia 320,98 bn 468,39 bn 1,68 tn 2,67 tn
China 360,86 bn 1,21 tn 6,09 tn 14,69 tn
África do Sul 126,05 bn 151,75 bn 417,36 bn 337,62 tn
Mundo 22,86 tn 33,85 tn 66,62 tn 85,22 tn
Fonte: elaboração própria com base em dados do World Bank Open Data (2023).
637
Apesar das profundas diferenças entre os países, sobretudo em
aspectos históricos, culturais e linguísticos, destaca-se o
compartilhamento de fortes tradições diplomáticas e a construção de
políticas externas pautadas na autonomia e independência, com
aprecio pelo multilateralismo e defesa do direito internacional, que
favorecem a cooperação entre o grupo (Fontenele Reis; Pimentel,
2013). Além disso, nota-se semelhanças no aspecto geográfico, tanto
pela dimensão territorial dos países BRICS quanto pelo seu tamanho
populacional:
Tabela 2: População Total e Área Total (km²) dos BRICS (2022)
POPULAÇÃO ÁREA TOTAL
MEMBRO
TOTAL (km²)
Brasil 215,313,498 8,515,770
Rússia 143,555,736 17,098,250
Índia 1,42 bn 3,287,260
China 1,41 bn 9,600,013
África do Sul 59,893,885 1,219,090
Fonte: elaboração própria com base em dados do World Bank Open Data (2023).
Ao mesmo tempo em que o BRICS ganhava destaque,
observou-se o aumento da demanda do Sul Global pela
reconfiguração das instituições Bretton Woods, principalmente por
meio dos acordos de reforma do FMI e do Banco Mundial, frente aos
baixos níveis de representatividade nos processos decisórios e de
votação em organizações financeiras internacionais, que não
acompanhavam as transformações em poder mundial pós-Segunda
Guerra Mundial nem a influência política e econômica considerável
que países em desenvolvimento passaram a exercer, e a crescente
dificuldade de acesso a investimentos em infraestrutura necessários
para a promoção do seu desenvolvimento (Vestergaard; Wade, 2014).
638
Desta forma, os países dos BRICS passaram a incorporar a
reivindicação das economias emergentes na sua atuação dentro de
fóruns financeiros internacionais, a fim de promover “maior
estabilidade, previsibilidade e diversificação no sistema monetário
internacional” (Damico; Baumann et al, pg 62, 2015; Baumann, 2017).
Consequentemente, nas primeiras Cúpulas dos BRICS,
observou-se a vontade primordial dos membros em abordar temas
econômicos e financeiros, mesmo que, com o tempo, as reuniões
também passaram a abordar assuntos de cunho social, político e
ambiental. Entretanto, a preocupação com a volatilidade da economia
internacional nos encontros é recorrente, sendo de principal interesse
dos países BRICS a coordenação macroeconômica mundial e a
reforma da governança financeira internacional (Damico; Baumann et
al, 2015). Em alguns pontos notáveis, a coordenação política do BRICS
surtiu efeitos positivos, como na transformação das instituições
Bretton Woods em relação à reforma de quotas no FMI e no Banco
Mundial (Pimentel; Pimentel, 2013; Acioly, 2019) .
Apesar desses avanços, ainda existe uma demanda por
investimentos em infraestrutura por países em desenvolvimento que
bancos multilaterais tradicionais apresentam crescente dificuldade
em suprir (Baumann, 2017). Esta realidade, resumida na necessidade
de reverter o desequilíbrio do sistema financeiro internacional em
prol de maior representação de economias emergentes em processos
decisórios e na facilitação de seu acesso a crédito e investimentos,
levou ao aumento do número de bancos multilaterais desde o início
do século XXI, incluindo o estabelecimento do Novo Banco de
Desenvolvimento (NDB) em 2014 (Reisen, 2015; Baumann, 2017;
Acioly, 2019).
Torna-se importante, portanto, discorrer brevemente sobre o
funcionamento de bancos multilaterais de desenvolvimento e os seus
639
propósitos centrais. No período posterior à Segunda Guerra Mundial,
os bancos multilaterais de desenvolvimento surgiram para endereçar
a procura massiva por financiamento voltado à reconstrução
econômica pós-conflito na Europa. Nas décadas de 1980 e 1990, esta
demanda se deslocou para as economias emergentes, sobretudo na
América Latina e na África Sub-Sahariana. No cenário econômico
pós-2008, considerando a fragilização da reconversão econômica
global e o questionamento crescente da capacidade de economias
centrais em responderem à demanda por investimento, tornou-se
essencial apoiar abordagens de desenvolvimento mais
autossuficientes (UNCTAD, 2016).
Desse modo, os bancos multilaterais de desenvolvimento
atuam como meios de intermediação financeira, recorrendo aos seus
aforradores e distribuindo os seus fundos arrecadados para o
financiamento de projetos desenvolvimentistas oriundos de um
portfólio diverso de áreas estratégicas, como infraestrutura, saúde e
tecnologia, caracterizados como empreendimentos com prazo
extenso de maturação. Sendo assim, estes investimentos envolvem
riscos significativos, os quais governos nacionais e o setor privado
não têm capacidade de acatar, tornando crucial assegurar
mecanismos de gestão de recursos eficientes e conhecimento acerca
das flutuações no volume de capital disponível. Além disso, essas
instituições também oferecem conhecimento técnico e científico
necessário para empreendimentos de infraestrutura em larga-escala
(UNCTAD, 2016; Acioly, 2019).
A experiência após 2008 demonstra que as nações em
desenvolvimento precisam adotar estratégias de desenvolvimento
mais independentes, buscando fontes alternativas de financiamento
para alcançar esse objetivo. Segundo dados do Atlantic Council
(2022), a lacuna de financiamento público em projetos de
infraestrutura é estimada em torno de US$15 trilhões, cuja demanda
640
reside sobretudo em países de baixa renda, sem perspectiva de
aumento de capital disponível para instituições multilaterais
existentes investirem em projetos do setor a curto prazo (Baumann,
2017).
Neste contexto, proposto pela Índia em 2012, o NDB se
configura como a representação institucional dos BRICS,
considerando a ausência de um tratado constitutivo do grupo
(Damico; Baumann et al, 2015; Acioly, 2019). Segundo o art. 1º do seu
acordo constitutivo, o chamado “banco dos BRICS” visa
“complementar os esforços existentes de instituições multilaterais e
regionais para o crescimento e desenvolvimento global” por meio da
mobilização de recursos financeiros destinados a projetos de
infraestrutura e desenvolvimento sustentável (NDB, pág.1, 2014).
Para tanto, um capital subscrito de US$50 bilhões e um capital inicial
de US$100 bilhões foi aprovado no momento da fundação do banco,
igualmente distribuídos entre os cinco membros fundadores e sujeito
a revisão pelo Conselho de Governadores a cada 5 anos (NDB, pág.3-
4, 2014). Segundo Acioly (2019):
“O banco foi apresentado como sendo o
aperfeiçoamento da arquitetura de financiamento
global, especificamente voltado para o estreitamento
do déficit de infraestrutura dos países em
desenvolvimento e apoio a projetos ambientalmente
sustentáveis, compensando, dessa forma, a
insuficiência de crédito nas principais instituições
financeiras internacionais” (Acioly, pág.17, 2019).
Em linha com seu objetivo principal, o NDB provê
investimentos em oito áreas: infraestrutura de transporte, energia
limpa e eficiência energética, água e saneamento, proteção ambiental,
infraestrutura social, infraestrutura digital, áreas múltiplas e
assistência emergencial COVID-19. Estes visam “apoiar o
crescimento econômico de seus membros, promover a sua
competitividade, facilitar a criação de emprego, e criar uma
641
plataforma de conhecimento compartilhado entre países em
desenvolvimento” (Almeida; Silva, pág.26, 2018).
Conforme abordado, o termo BRICS tem evoluído ao longo das
últimas duas décadas para muito mais do que a sua concepção
original. A institucionalização do grupo por meio da fundação do
NDB tem permitido a ampliação da influência dos seus membros no
cenário mundial, destacando “a vontade do Sul Global e a
importância de cooperação Sul-Sul” (Almeida; Silva, pág.26, 2018).
Sendo assim, é possível analisar o processo de expansão dos membros
do banco, junto com os motivos para tal movimentação, os benefícios
de adesão para países prospectivos e o que a ampliação
possivelmente significa para a ordem financeira internacional.
O NDB como uma alternativa para o Sul Global
Os primeiros países a serem aceitos como membros do Novo
Banco de Desenvolvimento fora do agrupamento do BRICS foram
Bangladesh, os Emirados Árabes Unidos e o Uruguai2, seguido do
Egito, em 2021, marcando o início da fase de expansão do banco
(NDB, 2021). Conforme previsto no seu acordo constitutivo, a entrada
de novos integrantes ao banco está condicionada à aprovação do
Conselho de Diretores e ao pagamento completo do depósito inicial
exigido. Qualquer país signatário das Nações Unidas pode solicitar
adesão ao banco (NDB, 2014). Sendo assim, a estrutura de capital e
subscrição dos acionistas ficam divididos da seguinte forma:
2
O Uruguai ainda se encontra em processo de formalização da sua entrada no
banco mediante a finalização do pagamento de seu depósito de entrada.
642
Tabela 3: Estrutura de Capital e Subscrição de Acionistas NDB (2023)
CAPITAL
AÇÕES
VOTOS SUBSCRITO PORCENTAGEM
MEMBRO SUBSCRITAS
EXERCÍVEIS (MILHÕES DE DO TOTAL
(NÚMERO)
US$)
Brasil 100,000 100,000 100,000 18.98%
Rússia 100,000 100,000 100,000 18.98%
Índia 100,000 100,000 100,000 18.98%
China 100,000 100,000 100,000 18.98%
África do
100,000 100,000 100,000 18.98%
Sul
Bangladesh 9,420 9,420 942 1.79%
Egíto 11,960 11,960 1,196 2.27%
Emirados
Árabes 5,560 5,560 556 1.06%
Unidos
Fonte: elaborado pela autora em base de dados disponibilizados no site do NDB (2023).
Em relação à divisão de votos, Acioly (2019) destaca que este é
um ponto sensível no processo de entrada de novos membros do
NDB, visto que sua distribuição igualitária e justa “está relacionada
ao objetivo de se evitar a repetição das assimetrias presentes em
instituições multilaterais similares em termos de poder de voto e voz
dos países desenvolvidos e emergentes” (pág.43). Desta forma, a
participação conjunta dos membros fundadores do NDB não pode
cair abaixo de 55%, mesmo com a entrada de novos membros, a fim
de assegurar que os valores constitutivos e os princípios norteadores
do banco não sejam sacrificados.
643
Entre os motivos publicados pelos governos dos novos sócios
do NDB, alguns pontos convergentes são possíveis de assinalar,
analisados a partir das declarações oficiais disponíveis no site do
banco (NDB, 2021). Primeiro, os países reconhecem a capacidade do
NDB de atuar como uma alavanca para a sua projeção política e
econômica no palco mundial, junto com o seu papel de promoção do
multilateralismo no cenário internacional, reforçado principalmente
pelas declarações dos Emirados Árabes Unidos e do Egito. Segundo,
os membros recentes e prospectivos entendem que o banco oferece
um caminho viável para assegurar investimentos em linha com os
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações
Unidas, além de incentivar maior cooperação e integração comercial
nas relações Sul-Sul.
Conforme pontuado pelo economista Paulo Nogueira Batista
Jr.3, em entrevista com a revista Estudos Avançados (2016), a
diversificação geográfica do NDB é um passo significativo para a
concretização de seu objetivo de promover uma “”multipolarização”
da arquitetura econômica e financeira mundial” (pág. 180). Assim, a
expansão dos seus associados permite: i) o aumento de capital
disponível para financiar projetos, além de acesso a uma base de
recursos financeiros fortalecida; ii) uma maior aproximação à
portfólios de projetos diversificados, bases de talento profissional e
técnico expandidas e conhecimento de experiências de
desenvolvimento mais abrangentes (NDB, 2021).
A entrada de novos membros ao NDB também faz parte do
plano do BRICS como bloco político de contestar a arquitetura
financeira internacional contemporânea e oferecer uma alternativa
viável que reflete as demandas do Sul Global, centrada nos princípios
3
Paulo Nogueira Batista Jr. foi diretor executivo no FMI (2007 - 2015) e vice-
presidente do NDB (2015-2017).
644
do multilateralismo e do respeito à soberania nacional. Batista Jr.
(Sawaya, 2016), neste sentido, descreve essa movimentação como um
projeto “anti-hegemônico” proposital, visando estabelecer uma
instituição que de fato consegue acompanhar as transformações do
cenário econômico e financeiro global de forma mais dinâmica em
comparação ao FMI e ao Banco Mundial.
Ao mesmo tempo, o NDB reconhece que o processo de
contestação é incremental, sendo a sua principal atuação atual
caracterizada como complementar ao de bancos multilaterais de
desenvolvimento tradicionais, sobretudo ao Banco Mundial, e não da
sua substituição direta. Este fato é refletido, por exemplo, pela
comparação dos valores totais desembolsados pelo NDB e o Banco
Mundial aos países BRICS no ano de 2021, na qual é possível observar
a crescente importância dos investimentos oriundos do NDB:
Tabela 4: Comparação valor total desembolsado (milhões USD) entre o
NBD e o Banco Mundial (2019 - 20214)
NDB BANCO MUNDIAL
MEMBRO DESEMBOLSO DESEMBOLSO
(MILHÕES USD) (MILHÕES USD)
2019 2020 2021 2019 2020 2021
BRASIL 550 833 1328 602 618 241
RUSSIA 2216 1968 114 23 22 13
INDIA 1980 5092 1472 2431 2946 3127
CHINA 3233 4811 2114 1870 1494 1753
ÁFRICA DO
480 1558 1562 46 55 24
SUL
4
Anos da primeira e última publicação anual do NBD disponível para consulta
pública informando desembolsos por membros.
645
Fonte: elaborado pela autora baseado em reportes anuais do NBD e nos dados
disponibilizados em plataforma digital aberta pelo Banco Mundial (2023).
Neste sentido, apesar de se encontrar em seus estágios iniciais,
como Batista Jr. destaca, o movimento de criar uma configuração
financeira alternativa viável já pode ser observado (Sawaya, 2016).
Sendo assim, torna-se fundamental refletir sobre a capacidade
estrutural que o BRICS possui para de fato influenciar a agenda
financeira internacional. Segundo Strange (1998), o poder estrutural
de um ator se refere a sua capacidade de influenciar, moldar e
determinar as estruturas de economia política internacional, ou seja,
de ditar “as regras do jogo”.
Para a autora britânica, existem quatro estruturas da economia
política internacional interdependentes: segurança, finanças,
produção e conhecimento. Em relação à de finanças especificamente,
esta é composta pela capacidade de um ator de criar crédito e regular
os sistemas monetários que lhe confere valor. Mesmo se um ator não
seja diretamente responsável pela geração de crédito, Strange
entende que este ainda pode demonstrar poder significativo caso
tenha influência evidente sobre sua alocação e distribuição (May,
1996).
Para Duggan, Azalia e Rewizorski (2022), a análise de Strange
(1998) pode ser complementada com a inserção de elementos
ideacionais à sua definição de poder estrutural, baseados em uma
compreensão construtivista da economia política internacional. Para
estes, o poder estrutural é construído por meio da interação social
entre atores e os contextos culturais que estão inseridos, ressaltando
a sua capacidade em influenciar estruturas subjacentes em linha com
seus interesses a partir de considerações sócio-materiais e
normativas. Em relação à estrutura de finanças, os autores afirmam
que esta tem evoluído para além da concepção inicial de Strange,
centrada, sobretudo, em aspectos macroeconômicos limitados, para
646
incluir também a discussão acerca do financiamento de
desenvolvimento.
Além disso, a ampliação da definição de Strange (1998) a partir
de uma compreensão construtivista da economia política
internacional leva à identificação de outros dois tipos de bens além
do material que um ator detém ou objetiva possuir por meio da sua
influência estrutural: o ideacional e o posicional. O primeiro se refere
aos valores e às normas que constituem a identidade de determinado
ator ou grupo social. Não se trata, portanto, da aquisição e gestão de
recursos físicos, mas sim por bens que são criados a partir da
interação social e a geração de expectativas identitárias mútuas. No
caso do NDB, a geração de bens ideacionais implica a provisão de
legitimidade tanto à instituição em si quanto aos seus associados
(Duggan; Azalia; Rewizorski, 2022).
Os bens posicionais, por sua vez, tratam de um tipo de recurso
com significativa escassez social, visto que seu valor deriva do seu
grau de utilização final. O NDB, deste modo, objetiva assegurar bens
posicionais que elevam a colocação social dos seus membros dentro
da ordem financeira internacional, como a partir de maior
representatividade em instituições multilaterais por meio da
ampliação do seu poder decisório e o peso de seus votos nestas. Esta
busca pode ser resumida como:
“Ao combinar bens materiais e exit-voice pressure5, ao
criar instituições alternativas às suas contrapartes
ocidentais estabelecidas e em prover soluções para
5
Entende-se aqui que os países BRICS possuem um alto grau de exit-voice pressure
quando se organizam coletivamente para manifestar sua insatisfação com a
organização de instituições financeiras internacionais contemporâneas. Este
termo se refere ao custo derivado da saída de atores influentes de determinados
espaços multilaterais, o que acaba restringindo a capacidade normativa destes e
abrindo caminho para o estabelecimento de instituições alternativas (Duggan;
Azalia; Rewizorski, 2022).
647
problemas de ação coletiva, como a lacuna de
investimento em infraestrutura global, o BRICS se
esforçam para assegurar determinados bens em
organizações internacionais ou o acesso a clubes
globais informais que são ‘sistematicamente
significantes’” (Duggan; Azalia; Rewizorski, pág, 500,
2022).
Desta forma, é possível separar a compreensão acerca do
impacto estrutural do NDB em dois sentidos opostos: transformador
e desafiador da arquitetura financeira internacional. Em relação ao
primeiro, o NDB seria enquadrado como uma instituição capaz de
criar novos valores e normas dentro da governança financeira global.
Embora o BRICS consiga prover alguns bens ideacionais por meio da
atuação do banco, como a partir da mobilização coletiva de seus
membros por maior representatividade em espaços multilaterais e a
busca por acesso ampliado a fontes crédito para destinação a projetos
em infraestrutura, sua oferta de bens posicionais ainda se encontra
bastante limitada considerando a dominância ocidental nestas
instituições. Sendo assim, o NDB ainda não desempenha um papel
transformador da configuração financeira internacional, visto que
continua condicionado à arquitetura normativa e dos princípios
ordenadores da mesma para garantir sua própria legitimidade e
funcionamento efetivo. (Duggan; Azalia; Rewizorski, 2022).
Em relação ao seu sentido desafiador da arquitetura financeira
internacional, o NDB atua para intensificar a pressão internacional
acerca das reformas necessárias para tornar a governança econômica
global mais reflexiva da distribuição de poder do sistema financeiro
contemporâneo e atuante em prol do multilateralismo. Em ambas as
caracterizações, o NDB não se enquadra como um mecanismo do
BRICS para “mudar o jogo” em si, mas, na primeira, para melhorar
as regras pré-existentes para sua vantagem e, na segunda, de se
beneficiar das estruturas de poder existentes para conquistar uma
posição privilegiada no palco internacional, a qual tem o potencial de
648
avançar a consolidação dos interesses nacionais de seus membros.
(Duggan; Azalia; Rewizorski, 2022).
A partir desta análise, entende-se que o BRICS ainda não detém
influência estrutural suficiente para transformar a ordem
internacional em uma opção alternativa em linha com seus principais
interesses e objetivos. O NDB, deste modo, está condicionado às
regras do sistema financeiro internacional para a sua atuação,
funcionando, no melhor dos casos, como um mecanismo
complementar às instituições tradicionais e que desafia os seus
principais pressupostos, mobilizando o Sul-Global no processo e
pressionando estas a adotarem medidas de reforma. Entretanto,
ainda faltam capacidades sobretudo materiais e posicionais para o
banco oferecer uma substituição direta à atuação destas (Duggan;
Azalia; Rewizorski, 2022).
De qualquer forma, é possível afirmar que o BRICS está
tomando medidas concretas para reverter o quadro descrito acima e
avançar o que Batista Jr. (Sawaya, 2016) descreve como um processo
incremental em linha com o projeto “anti-hegemônico” do NDB.
Primeiro, destaca-se que os financiamentos providos pelo banco se
baseiam na moeda local do país beneficiário. Esta decisão tem duas
implicações centrais: por um lado, “esse mecanismo ajudará a
promover a cooperação econômica entre seus países, mitigar os riscos
cambiais, aumentar o comércio e facilitar para as empresas o acesso
aos mercados de capitais dos cinco países” (Acioly, pág.35, 2019).
Por outro lado, a preferência pelo uso de moedas locais nas
operações do NDB evidencia o processo encaminhado pelo BRICS em
desafiar a hegemonia do dólar. Apesar da moeda estadunidense
ainda representar maior parte dos ativos de reserva internacionais e
está presente em grande parte dos contratos comerciais e financeiros
ao redor do mundo, este mecanismo do banco do BRICS atua para
649
ampliar o uso de moedas emergentes, sobretudo o renminbi chinês, e
às fortalecer diante do mercado monetário global. Entretanto,
especialistas alertam que, apesar deste processo estar em andamento,
a substituição do dólar como moeda dominante não se concretizará a
curto-prazo (Acioly, 2019; Cunha; Peruffo; Ferrari, 2023).
Outra medida apontada que avança o poder estrutural do
BRICS é o processo de ampliação dos seus membros, discutido na sua
15ª Cúpula na África do Sul entre 22 e 24 de Agosto de 2023 e a
expansão da membresia do próprio NDB. Na reunião, os países
anunciaram a entrada de seis novos membros ao BRICS - Arábia
Saudita, Argentina, Egito, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e o Irã -
a partir de janeiro de 2024 (MRE, 2023). Em relação a como o processo
impacta o NDB, não foram publicadas informações específicas acerca
do ingresso dos novos membros ao banco6. Entretanto, é possível
compreender que a decisão serve para deslegitimar o domínio do
dólar a longo-prazo e avançar as reivindicações do Sul-Global acerca
das reformas das instituições financeiras internacionais tradicionais e
da salvaguarda do multilateralismo (Cunha; Peruffo; Ferrari, 2023),
ações que acabam beneficiando diretamente os objetivos centrais do
NDB. A entrada de novos sócios ao banco, sendo estes parte do BRICS
ou não, conforme explorado anteriormente, também amplia a
capacidade de atuação da instituição.
Em suma, o BRICS como coalização política ainda não detém
do poder estrutural suficiente para empregar o NDB como um
mecanismo capaz de fomentar uma arquitetura financeira
internacional alternativa à atual. Desta forma, o banco acaba se
beneficiando das instituições vigentes, junto com as suas normas e
princípios, para alavancar a sua posição no palco global, oferecendo
6
Vale destacar novamente que os Emirados Árabes Unidos e o Egito já são sócios
do NDB.
650
uma alternativa viável para o Sul-Global acessar fontes de concessão
de crédito destinados ao financiamento de projetos essenciais para
seu desenvolvimento nacional, além de fornecer um espaço para
ampliar a projeção política e econômica de economias emergentes.
Este processo acaba pressionando instituições financeiras tradicionais
a adotarem reformas reivindicadas por países em desenvolvimento,
porém oferece capacidade limitada de substituição direta destas.
Considerações Finais
O presente artigo teve como objetivo analisar a capacidade do
BRICS de fomentar uma arquitetura financeira internacional
alternativa à vigente por meio da atuação do Novo Banco de
Desenvolvimento. Para tanto, o banco foi fundado a fim de responder
às fragilidades da arquitetura financeira internacional e às demandas
do Sul Global frente destas, como a partir da busca por fontes
alternativas de concessão de crédito para projetos de
desenvolvimento, sobretudo na área de infraestrutura, e a ampliação
da sua representatividade nos processos decisórios e na reforma do
sistema de votação nas principais instituições financeiras
internacionais, descrito como um projeto “anti-hegemônico” que visa
a multipolarização da ordem financeira.
Conforme abordado, a partir de uma compreensão centrada na
inclusão de elementos ideacionais e posicionais na definição de poder
estrutural de Strange (1998), é possível afirmar que o BRICS não
possui influência estrutural suficiente para empregar o NDB como
instrumento transformador da ordem financeira vigente, mas sim
para desafiar a sua configuração atual por meio da mobilização do
Sul Global em prol de reformas que visam a sua multipolarização e a
representação efetiva do peso e das demandas de economias
emergentes. Este processo é refletido, portanto, pela entrada de novos
651
membros ao banco e pelo aumento de capital destinado ao
financiamento de projetos chaves, complementando o trabalho do
Banco Mundial.
Apesar destas limitações, compreende-se que o BRICS está em
processo de avançar os seus interesses anti-hegemônicos no palco
internacional conforme evidenciado pelo anúncio da expansão dos
membros do bloco na sua 15ª Cúpula. Embora planos da associação
dos novos membros ao NDB não tenham sido especificados, é
possível entender que o processo serve também para fortalecer o
banco, visto que evidencia a sua atuação como um espaço multilateral
viável para o Sul Global. Para acompanhar este cenário, será
necessário avaliar como o banco atuará frente à tendência do
fortalecimento e ampliação da influência do BRICS, e se esse processo
de fato trará oportunidades para fomentar normas, princípios, e
instituições financeiras que substituem as vigentes.
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Global Policy, 2014. v.6. n.1. p.1 - 12. Disponível em:
https://doi.org/10.1111/1758-5899.12178
655
Política de capacitação integrada em inteligência como atividade de
assessoramento para atividades de segurança e defesa
Zoraia Saint´Clair Brancoi
Resumo: A questão que leva à presente proposta é: Há necessidade de uma
capacitação específica para cada área da inteligência vista como uma
atividade de assessoramento de tomadores de decisão na esfera da
segurança e da defesa de um Estado Nacional ou é possível que se tenha
um corpo básico de componentes curriculares e a partir desses
componentes criarem-se tantos e quantos níveis de capacitação e de
treinamento forem necessários? No Brasil já há a inserção do analista de
inteligência como ocupação, no Código Brasileiro de Ocupações (CBO), o
que representa um avanço para que haja profissionalização e a inserção da
atividade de inteligência na Constituição Federal Brasileira. Antes proposta
a criação de uma agência que concentre o planejamento da capacitação em
inteligência no âmbito da segurança pública em nível nacional, vai-se além,
mostra-se ser necessário que haja construção de política de capacitação de
forma federalizada visando formações e treinamentos em âmbito de defesa,
na esfera militar e na de segurança pública. Assim sendo, os tomadores de
decisão precisam de pessoas capacitadas em análise de risco, em cyber, em
diplomacia, em operações de informações ou de inteligência ou coleta de
dados, como se tem divulgado contemporaneamente, principalmente em
estados com histórico de estado de exceção, também em geopolítica,
história da guerra, filosofia, psicologia, dentre outras áreas. Com
656
metodologia bibliográfica e documental, nacional e ainda do que se tem
apresentado como formação em países da América do Norte, vê-se como
possível a integração entre as três esferas, nacional em matéria de defesa e
militar, assim como estaduais e municipais quanto à segurança pública. Tal
arranjo favoreceria políticas, estratégias e planejamento na esfera da
educação profissional em inteligência, sabendo-se da importância da
Academia, das Universidades e dos projetos de Pós-graduação para a
devida amplitude necessária na formação desses agentes.
Introdução
Inteligência é um tema que suscita dúvidas, discussões e remete a
memórias de suspeita com o tema em um país com histórico de regime de
exceção, como a República Federativa do Brasil.
Para este trabalho que visa a responder à pergunta orientadora do
problema: Há necessidade de uma capacitação específica para cada área da
inteligência vista como uma atividade de assessoramento de tomadores de
decisão na esfera da segurança e da defesa de um Estado Nacional ou é
possível que se tenha um corpo básico de componentes curriculares e a
partir desses componentes criarem-se tantos e quantos níveis de
capacitação e de treinamento forem necessários? Identificamos a hipótese
de que mostra-se ser necessário haver construção de uma política de
capacitação (ensino-aprendizagem em nível profissional) de forma
federalizada visando formações e treinamentos em âmbito de defesa, na
esfera militar e na de segurança pública. Tomadores de decisão precisam
de pessoas capacitadas em análise de risco, em cyber, em diplomacia, em
operações de informações ou de inteligência ou coleta de dados, como se
tem divulgado contemporaneamente, principalmente em estados com
histórico de estado de exceção, também em geopolítica, história da guerra,
filosofia, psicologia, dentre outras áreas.
657
As Políticas Nacionais, tanto de Defesa, quanto de Inteligência
mencionam o aspecto da capacitação. Contudo há que se preservar uma
unidade de pensamento e de atuação planejada e consertada entre
Segurança e Defesa, entre Estado Federal, em nível militar e civil e nos
níveis estaduais e municipais.
Kitchell, já declarava que o ritmo das mudanças em que vivemos é que
torna o mundo diferente. Acrescentava que “As mudanças são tão rápidas
que já não é mais possível, por exemplo, treinar o indivíduo para enfrentar
uma dada situação – é preciso educá-lo para enfrentar quaisquer mudanças
que ocorram.” (1967, p. 76)
O artigo está desenvolvido da seguinte forma: primeiro aborda-se a
administração pública e processos de capacitação, em seguida conceitua-se
inteligência. na terceira seção o apontam-se indicativos para uma política de
educação profissional no brasil para após explanar-se acerca de uma
proposição de criação e alinhamento nacional para educação profissional
de inteligência. conclui-se o artigo com sugestões para serem efetivadas m
âmbito nacional, estadual e municipal, seja militar, seja civil.
A administração pública e processos de capacitação
A tentativa de superação da administração pública burocrática veio
acompanhada da modernização do Estado com reformas econômicas
orientadas para o mercado, reformas na previdência social e reformas em
seu próprio aparelho, visando a aumentar sua capacidade de implementar
políticas públicas nas diversas áreas de atuação. Na elaboração do Plano
Diretor da Reforma do Aparelho do Estado – PDRAE, em 1995, atenção
especial foi dada às suas áreas hard, como segurança pública, fiscalização e
seguridade social básica, denominadas áreas exclusivas do Estado. A
administração pública gerencial passou a ter seu lugar de destaque, ou seja,
foi dada ênfase às questões de planejamento e avaliação constante de
658
recursos materiais, financeiros e com especial destaque para a gestão
estratégica de pessoas. Como Fleury (1997) destaca em seu artigo, Reforma
Administrativa: discutindo os instrumentos, passa a se modificar a
articulação entre Poder Público e sociedade, o que em 2021 com tantos
novos formatos de relacionamento social com afastamentos, isolamentos,
uso de máscaras, maior conscientização quanto à higiene pessoal só vem a
corroborar esse destaque. Em 2023, há um retorno ao antigo formato de
convívio, contuso com certos receios de doenças desconhecidas.
Permanecem atitudes e culturas da gestão burocrática no Estado. O
Estado tem, em seu sistema de produção, a formalização da hierarquia, a
profissionalização e a especialização em setores produtivos, e assim, fala-
se em especialização. O serviço público opera segundo o modelo burocrata
com tendências e muitos avanços para as questões gerenciais.
Dentro de uma concepção histórica, o Estado tem serve para garantir
os contratos realizados por meio de um aparato organizacional e legal.
Para entender seu significado há que se observar duas correntes de
entendimento: a) histórico- indutiva e b) lógico-dedutiva. A primeira o
conceitua como uma “estrutura organizacional e política que emerge da
progressiva complexificação da sociedade e da sua divisão em classes
destinada a manter a ordem dentro da sociedade, e, portanto, manter o
sistema de classes vigente” (BRESSER PEREIRA, 1995, p. 08) -
entendimento encontrado em Aristóteles, São Tomás de Aquino, Vico,
Hegel, Marx e Engels e filósofos pragmáticos norte-americanos. A segunda
o entende como “resultado político-institucional de um contrato social
através do qual os homens cedem uma parte de sua liberdade a esse Estado
para que o mesmo possa manter a ordem ou garantir os direitos de
propriedade e a execução dos contratos” (BRESSER PEREIRA, 1995, p. 09)
– assim entendem Hobbes, Rousseau e Kant.
Ambas as correntes se complementam na tentativa de conceituação de
Estado. Logo, a necessidade de uma estrutura política que tenha um poder
659
organizado no qual se realizem pactos políticos e coligações de classes para
o atendimento às necessidades dos diversos grupos de interesses, justifica
sua existência.
Nessa linha de raciocínio os organismos militares e serviço público
relacionado à segurança pública são instituições organizadas segundo o
modelo burocrático descrito por Weber que contam com um corpo de
funcionáriosii selecionados pelo sistema de mérito para ocupar cargos em
carreiras estruturadas que administra bens públicos. Agentes militares e
públicos têm de trabalhar em função dos interesses e necessidades
públicas, respeitando normas e leis que prescrevem as atitudes e os
comportamentos que devem ser adotados em cada caso. Por outro lado, o
modelo gerencial tem visão de mercado, ou seja, objetiva atender às
necessidades impostas pelos clientes ou usuários, aqueles que consumirão
os bens e serviços produzidos pelas empresas privadas.
O que se pretende dos agentes militares e públicos é a mesma busca
pela prestação de serviços com alto nível de qualidade e que satisfaçam às
necessidades dos usuários-cidadãos. Para tanto é necessária a formação,
especialização e uma capacitação sólida e com parâmetros curriculares que
atendam aos fins desejados, aqui, no caso de aplicação a profissionais de
inteligência, uma vez que chefes do Poder Executivo, assim como dos
demais Poderes precisam estar atentos ao que podem e devem decidir.
Processos de capacitação em inteligência demandam saber,
inicialmente do que se está a falar.
Inteligência: do que se está a falar?
O que é inteligência? Que tipos existem? Essas duas perguntas
podem levar uma pessoa a pensar em vários conceitos diversos por
natureza e por fontes. Palavra polissêmica, pode-se falar de inteligência
pelo viés da psicologia, pelo viés antropológico – cultural, da
660
aprendizagem, ou esta a que estamos a abordar, que é o das ciências da
informação, como veem alguns pesquisadores, ou da ciência jurídica, como
analisam outros; já ao ver desta pesquisadora pode-se verificar pontos de
toque também com a administração e a filosofia, pois que deseja-se
ser metódico e organizado, além de atender a uma finalidade: a de
assessorar tomadores de decisão. A obra clássica do Professor de Yale,
Sherman Kent, da década de 1940, Informações Estratégicas, nos dá três
acepções sobre o termo inteligência, a concepção trina: produto, processo
e organização, sendo o produto o conhecimento,
o processo a atividade em si e a organização, o serviço secreto.
Para esta pesquisa, atividade de Inteligência receberá a definição
consagrada na Doutrina Nacional de Inteligência de Segurança Pública,
editada em 2009 e a única doutrina de âmbito nacional que se indica citar e
referenciar em documentos acadêmicos como este:
A atividade de ISP é o exercício permanente e sistemático de
ações especializadas para a identificação, acompanhamento e
avaliação de ameaças reais ou potenciais na esfera de Segurança
Pública, basicamente orientadas para produção e salvaguarda de
conhecimentos necessários para subsidiar os governos federal e
estaduais a tomada de decisões, para o planejamento e à
execução de uma política de Segurança Pública e das ações para
prever, prevenir, neutralizar e reprimir atos criminosos de
qualquer natureza ou atentatórios à ordem pública. (BRASIL,
2009, p. 13)
Essa definição é adequada a qualquer esfera da inteligência, seja ela de
defesa ou de segurança pública, salvaguardando-se a diferenciação
necessária aos aspectos distintivos de finalidade e de possibilidades de uso
de técnicas, ações e instrumentos próprios a cada uma devido à esfera em
que se encontrem. Por exemplo, a esfera militar ocupa-se de Defesa
Química, Biológica, Radiológica e Nuclear (DQBRN), o que já não ocorre
como missão para com a segurança pública; outro exemplo, nesta feita de
instrumentos, algumas esferas da área militar não podem realizar
661
interceptações telefônicas, mas algumas da esfera de segurança pública já
podem efetivá-las, e por óbvio, com a devida autorização judicial. Já há
questões que são de interesse de todos, e ter agentes públicos e militares
especializados e em colaboração conjunta e contínua, segundo políticas,
estratégias e planos de ensino-aprendizagem em nível profissional, traz
enlace de propósitos, comunicação facilitada, além de possibilidade de
planejamento conjunto a fim de orientar execução de processos de
capacitação. Ao final serão evidenciadas algumas propostas, sendo certo
que alguns componentes curriculares põem e devem ser de conhecimento
de todos que desenvolvem esta atividade.
O Law Enforcement Intelligence: A Guide for State, Local, and Tribal Law
Enforcement Agencies dos Estados Unidos da América ao explicitar sobre
inteligência alerta-nos para o fato de que
O plano da International Association of Chiefs of Police, Criminal
Intelligence Sharing, fundado pelo Office of Community Oriented
Policing Services observa que; ... inteligência é a combinação de
informação confiável com análise de qualidade — informação
que foi avaliada e da qual se tiraram conclusões. (CARTER, 2009,
p.13)iii.
A Global Intelligence Working Group, nos Estados Unidos da América,
que é um projeto criado pelo Office of Justice Programs e é parte do Global
Justice Information, dos Estados Unidos, em Michigan, observa a reunião e
a análise de informações no conceito dessa atividade que fará parte da
tomada de decisão tanto no nível tático quanto no estratégico. (CARTER,
2009, p.13).
Já a International Association of Law Enforcement Intelligence Analysts,
Estados Unidos da América, estatui que a inteligência “deriva significados
de fatos” (CARTER, 2009, p. 13), destaque-se que “o tomador de decisão na
área da segurança pública precisa estar atento para os diferentes papéis e
para os diferentes contextos ao interpretar as informações” (CARTER,
2009, p. 13, tradução livre).iv
662
A Política Nacional de Inteligência (PNI) traça como Pressupostos da
Atividade de Inteligência alguns conceitos (tais como assessoramento,
especialização e ética, abrangência, permanência), o que a Doutrina de
Inteligência – DNISP, traz como princípios. Ainda podemos verificar que a
DNISP também identifica características; na lição do Cel Romeu Antônio
Ferreira, principal desenvolvedor da Doutrina de Inteligência em
Segurança Pública no Brasil, visto ter editado no Estado do Rio de Janeiro
a primeira Doutrina de Inteligência de Segurança Pública, em 2005, sendo
a DNISP datada de 2009, características “[...] são os aspectos distintivos e
as particularidades que a identificam e a qualificam como tal. As
características dizem o que a ISP é.” (FERREIRA, 2014, p. 1).
Indicativos para uma política de educação profissional no brasil
Um dos fundamentos trazidos pela PNI é a especialização, que por si
só demanda capacitação específica para desenvolver atividades. Além dos
fundamentos, ainda identifica instrumentos em seu ítem 5, a saber: “[...] h) a
formação, a capacitação e o desenvolvimento de profissionais para a
atividade de inteligência de segurança pública; i) a pesquisa e o
desenvolvimento tecnológico no âmbito da inteligência e da
contrainteligência de segurança pública; [...]”, instrumentos esses que
demonstram a necessidade de atividades educativas específicas para tal
fim. É necessário conhecer e compreender como é estruturado o ensino no
Brasil.
A Educação Profissional no Brasil está amparada na Lei de Diretrizes
e Bases da Educação Nacional (LDBEN) nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996
(BRASIL, 1996) e regulamentada por meio do Decreto nº 5.154/2004
(BRASIL, 2004). Tais normas estabelecem a estrutura da Política de
Educação Profissional e norteiam a organização das ações educativas
voltadas para formação do trabalhador. Para isso, instituem instrumentos
de vinculação do mundo do trabalho e da escola, de modo que o
663
desenvolvimento profissional impulsione o desenvolvimento do próprio
Estado e da economia nacional.
De acordo com a LDBEN (BRASIL, 1996), a educação profissional
pode ser realizada em todos os níveis de ensino, desde o nível fundamental
até o nível superior. Assim, os cursos abrangem a formação inicial e
continuada ou qualificação profissional, a educação profissional técnica de
nível médio e a educação profissional tecnológica de graduação e pós-
graduação.
A educação profissional técnica de nível médio pode tanto ocorrer de
forma articulada com o ensino médio, quanto subsequente para aqueles
que concluíram esse nível de certificação. Neste patamar podemos inserir
processos de ensino aprendizagem que alcancem cargos públicos que
tenham esse nível de formação, mas não somente identificar esses
profissionais como aptos para tão somente participarem de capacitações
em nível não superior.
No ensino superior, a educação profissional tecnológica é realizada por
meio dos cursos superiores de tecnologia, do mestrado e doutorado
profissional. Além da educação profissional, a LDBEN (BRASIL, 1996)
também normatiza a educação superior por meio da qual são formados
profissionais de diversas áreas, tanto no nível de graduação, quanto no de
pós-graduação lato e stricto sensu. Para tanto, regula a existência de cursos
sequenciais por campo de saber, de graduação, de especialização, de
aperfeiçoamento, de extensão, de mestrado e doutorado, cada qual
contendo níveis próprios de exigência segundo os critérios estabelecidos
pelo Ministério da Educação (MEC).
De acordo com os artigos 1º e 3º do Decreto nº 5.154/2004 (BRASIL,
2004), os programas de qualificação profissional para formação inicial e
continuada de trabalhadores podem ser realizados por meio da capacitação,
do aperfeiçoamento, da especialização e da atualização, em todos os níveis
de escolaridade. Tais programas podem ser ofertados de acordo com
664
itinerários formativos, visando ao desenvolvimento de aptidões para a
vida produtiva e social.
Além disso, tal aporte legal estabelece que a educação profissional será
organizada por áreas profissionais, em função da estrutura sócio-
ocupacional e tecnológica; será articulada com outras áreas da educação,
do trabalho e emprego, da ciência e tecnologia; tomará o trabalho como
princípio educativo e partirá da indissociabilidade entre teoria e prática,
conforme estipulado no artigo 2º do Decreto acima citado (BRASIL, 2004).
Esses aspectos são norteadores dos processos educativos a serem
executados por quaisquer órgãos de ensino que atuem na educação
profissional.
A importância da Política de Educação Profissional está evidenciada
na centralidade que esta ocupa desde que foi instituída no Brasil e na sua
possibilidade de aplicação em todos os níveis e modalidades de ensino. É
a partir da adequada implementação da educação profissional que uma
área profissional efetiva seu próprio desenvolvimento e qualifica o
trabalhador. Diante deste entendimento, é preciso considerar o profissional
de ISP e sua qualificação para prática laboral. Isso, a fim de entender o
agente de inteligência como um profissional e não como uma pessoa que
desenvolve um ofício.
Devemos conhecer a definição que a Classificação Brasileira de
Ocupações (CBO) concede ao Profissional de Inteligência. De acordo com a
CBO, instituída pela Portaria do Ministério do Trabalho nº 397/2002
(BRASIL, 2002), sob a família Profissionais de Inteligência (oficial de
inteligência e oficial técnico de inteligência) – Cód. 2429:
665
Atuam no planejamento, execução, coordenação,
supervisão e controle das atividades de Inteligência, das
ações de salvaguarda de conhecimentos sensíveis, das
operações de Inteligência, das atividades de pesquisa e
desenvolvimento científico ou tecnológico direcionadas à
obtenção, à análise de dados e à segurança da informação
e do desenvolvimento de recursos humanos para a
atividade de Inteligência. Atuam na gestão técnico-
administrativa e na logística da atividade de Inteligência.
Desenvolvem e operam máquinas, veículos, aparelhos,
dispositivos, instrumentos, equipamentos e sistemas
necessários à atividade de Inteligência (MINISTÉRIO DO
TRABALHO, 2020, [texto em html]).
Já os Técnicos de Inteligência (agentes de inteligência e agentes
técnicos de inteligência) – Cód. 3519, são profissionais que:
Oferecem suporte no planejamento, execução,
supervisão, coordenação e controle das atividades de
Inteligência. Prestam apoio na capacitação de recursos
humanos. Operam equipamentos, instrumentos e
sistemas necessários à atividade de inteligência
(MINISTÉRIO DO TRABALHO, 2020, [texto em html]).
Sempre que uma determinada ocupação ou um tipo de
trabalhador começa a ser mais conhecido e mais demandado no
mercado, surge a necessidade de se classificá-la. A CBO é o
documento normalizador desse reconhecimento, nomeando,
descrevendo e codificando, tais ocupações. Essa classificação e
codificação é utilizada em documentos públicos como na Declaração
do Imposto de Renda de Pessoa Física e em pesquisas, como no
Censo Demográfico, na Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad) e tais alterações acerca dos profissionais de
inteligência ocorreu em 2012/2013, há 10 anos, portanto. Contudo
não há divulgação nos meios desta atividade.
Nessa mesma classificação, estão os profissionais militares e
civis, pois que assume a mesma orientação de produção de
conhecimento especializada e segundo método próprio visando a
666
assessoramento decisório. Sendo certo que os profissionais das
Forças Armadas têm sua destinação própria; neste trabalho verifica-
se que não há designação específica para agentes de inteligência
militares. Sua qualificação para desempenho da atividade não conta
com uma política própria de educação profissional, com definição
estrutural dos níveis e modalidades de ensino, de diretrizes
específicas, dos tipos de cursos, da definição de currículos e de uma
política pedagógica alinhada com o perfil de concluinte adequado à
atuação na atividade de inteligência. Eis a necessidade que este
trabalho vem apontar.
A educação profissional em inteligência, tradicionalmente, tem
sido realizada por órgãos de ensino vinculados a agências de
inteligência ou órgãos da estrutura do atual Ministério da Justiça e
Segurança Pública, das Agências estaduais e dos Centros de Ensino
Militares especificamente para a área de inteligência, seguindo o
norteamento próprio desses órgãos e de suas doutrinas de
inteligência, sem contar com um alinhamento que direcione e
uniformize essa qualificação, seja em âmbito municipal, estatal nem
mesmo em âmbito federal.
Nos estados em que não há uma Doutrina própria de
Inteligência de Segurança Pública, a Doutrina Nacional de
Inteligência de Segurança Pública (DNISP) deverá ser observada,
pois é ali que se encontram os fundamentos doutrinários, a
metodologia para a produção de conhecimento, as técnicas
acessórias que deverão ser utilizadas para a produção de
conhecimento útil e oportuno, dentre outros aspectos, já na esfera
militar existem documentos específicos, todos eles em caráter não
ostensivo. O Estado do Rio de Janeiro conta com sua Doutrina de
Inteligência de Segurança Pública (DISPERJ) desde o ano de 2005,
documento alinhado com a DNISP e que orienta as atividades
educativas efetivadas no estado do Rio de Janeiro, sendo devida a
667
realização de Plano de Ação, de Ensino, seja qual o nome a ser dado
para uma ação anual. Pode ocorrer de dirigentes máximos das
organizações não permitirem sua elaboração ou mesmo não os
divulgarem, o que é desaconselhável devido à necessidade de
trabalho conjunto para enfrentamento de ameaças das quais o país
possa enfrentar.
De se evidenciar que a atividade docente na área de inteligência
conta com a participação efetiva, muitas vezes voluntária, de agentes
de inteligência mais experientes e com desejo de socializar seu
conhecimento com os colegas, mas é desejável que haja competência
para o ensino.
No estado do Rio de Janeiro, a Escola de Inteligência de
Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ESISPERJ), primeira
escola de Inteligência de Segurança Pública (ISP) no Brasil, foi criada,
no âmbito da Subsecretaria de Inteligência (SSINTE), da extinta
Secretaria de Estado de Segurança (SESEG), por meio do Decreto
Estadual nº 40.254/2006 (RIO DE JANEIRO, 2006), alterado pelo
Decreto Estadual nº 44.528/2013 (RIO DE JANEIRO, 2013), quando
foi implementada. Pode- se dizer que iniciou suas atividades antes
mesmo de ter sido documentada, em 01 de março de 2004, com o
desenvolvimento do 1º Curso de Inteligência de Segurança Pública
(1º CISP), efetivado a partir de 15 de junho daquele ano, capacitando
profissionais na área de Inteligência de Segurança Pública (ISP), área
de trabalho na esfera de segurança pública ainda recente à época. Na
ocasião já era evidente que havia a necessidade de se formar pessoas
para que exercessem o trabalho de Inteligência de modo a atender as
necessidades de assessoramento, tanto no nível estratégico
(governamental e estadual), quanto no nível tático (no âmbito das
duas esferas ligadas à então Secretaria de Segurança Pública – Polícia
Militar e Polícia Civil) e no operacional (batalhões e delegacias)
668
visando a uma identificação, monitoramento e desmantelamento do
crime no estado.
A ESISPERJ foi criada em vista da permanente necessidade de
ampliar e aprimorar o ensino de ISP, específico e dinâmico pela sua
própria natureza; da constante transformação social; e,
consequentemente, da necessidade de se atualizar e qualificar os
recursos humanos, a doutrina e a pesquisa no âmbito da ISP. A partir
de 2019, com a reestruturação da segurança pública nesta unidade
federativa por meio do Decreto nº 46.547/2019 (RIO DE JANEIRO,
2019a), a ESISPERJ, bem como a SSINTE, da qual faz parte, foi
subordinada à Secretaria de Estado de Polícia Civil (SEPOL). A
SSINTE permaneceu como Agência Central do Sistema de
Inteligência de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro
(SISPERJ), conforme estabelece o Decreto nº 46.633/2019 (RIO DE
JANEIRO, 2019b), sendo que desta vez na linha organizacional de
uma das Secretarias de Estado ligadas ao assunto de segurança
pública.
Proposição de criação e alinhamento nacional para educação
profissional de inteligência
Pela carência de orientações de caráter geral para a educação
profissional em Inteligência cada órgão de ensino acima mencionado
tem a prerrogativa de qualificar agentes, desde que conte com
estrutura própria para tal. Pode-se verificar a existência de algumas
atividades inerentes ao subsistema de desenvolvimento de pessoas
e necessárias ao desenvolvimento da própria atividade em si, à
medida que as demandas intensas e constantes por qualificação dos
agentes precisam de investimento em tempo desses órgãos de ensino
que precisam realizar Levantamentos de Necessidades de
Treinamento (LNT) ou Diagnósticos de Competências (DC) internos
669
e gerais em âmbito nacional, visando à identificação de necessidades
setoriais ou estaduais de educação.
Nesse sentido, a proposição de uma política que oriente a
educação profissional em inteligência é uma medida que pode
contribuir para o avanço da qualificação de pessoal. Tal como ocorre
com a Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas – PNDP,
segundo edição do Decreto nº 9991/2019, que “Dispõe sobre a
Política Nacional de Desenvolvimento de Pessoas da administração
pública federal direta, autárquica e fundacional, e regulamenta
dispositivos da Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990, quanto a
licenças e afastamentos para ações de desenvolvimento.” (BRASIL,
2019). A Política Nacional de Desenvolvimento de Profissionais de
Inteligência de Segurança Pública ou o melhor nome que se possa
dar a um tal documento, deve contar com a participação de todos os
entes federativos para sua realização, prática já costumeira e
desenvolvida no Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP)
para a edição de documentos que reflitam demandas e ações por
todo o país.
A proposição de diretrizes gerais para educação profissional em
inteligência, fundamentada em princípios e valores próprios da
atividade, a partir de uma política pedagógica adequada, e a
orientação pedagógica para formulação de conteúdos curriculares
necessários ao desenvolvimento de competências, habilidades e
atitudes de acordo com o perfil profissiográfico para atividade de
ISP são necessárias para fortalecer o planejamento do ensino em ISP.
Para tanto sugere-se observar o CBO apresentado linhas acima no
que pertine aos profissionais de inteligência.
Por outro lado, o desenvolvimento da atividade está também
relacionado à complexificação da vida em sociedade nos contextos
contemporâneos marcados pelo avanço da Ciência e Tecnologia
(C&T) e da Pesquisa e Desenvolvimento (P&D). Consequentemente,
670
a valorização e o desenvolvimento da educação formal como
mecanismo de desenvolvimento humano voltado à própria
concepção de cidadania e democracia exigem a organização e
adequação das atividades de educação profissional na área de
segurança pública às políticas e regulações educacionais do Estado.
Para além do trabalho educativo desenvolvido por diversos órgãos
que têm atuado na área de educação profissional em inteligência,
vislumbram-se medidas adicionais que podem fortalecer o trabalho
realizado.
A melhoria da educação no serviço público na área de
Segurança Pública e de Inteligência de Segurança Pública perpassa
pela adaptação dos seus processos de educação profissional aos
notórios avanços da política educacional nas últimas décadas. Nesse
contexto, o aumento do número de Escolas de Governo tem suprido
a demanda por qualificação especializada em diversos setores.
Escolas de Governo são instituições públicas que têm a
finalidade de formar, aperfeiçoar e profissionalizar agentes públicos,
com vistas à ampliação da capacidade executiva do próprio Estado.
Note-se ainda que, de acordo com o artigo 2º da Resolução
CNE/CES/MEC nº 07/2011 (BRASIL, 2011), tais instituições de ensino
gozam da prerrogativa de oferta de cursos em nível de pós-
graduação lato sensu, o que eleva o ensino de ISP a um patamar de
especialização ampliado.
A demanda por formação nesse nível de ensino na área de
inteligência é evidente pela procura dos agentes de inteligência por
cursos nessa área no âmbito de Instituições de Ensino Superior (IES)
privadas, por vezes, custeados com recursos próprios. Contudo, as
especificidades da atividade, sobretudo no que diz respeito ao sigilo
do conhecimento tão necessário para que se atinjam os preceitos
constitucionais contidos no Título I da Constituição da República
Federativa do Brasil (CRFB), fornecem características diferenciadas
671
aos cursos por IES privadas pela própria impossibilidade de
divulgação de alguns conhecimentos de inteligência. Tendo, esses
cursos, o mérito de socializarem dados e informações acerca do
exercício e do trabalho desenvolvido pelos profissionais de
inteligência.
Enfim, a demanda de organização de uma política de educação
profissional em inteligência, em nível nacional e estadual, com
diretrizes pedagógicas e curriculares, com capacidade de extensão
ao nível de pós-graduação que possuam componentes curriculares
comuns a todos os agentes de inteligência, pode auxiliar no
desenvolvimento da própria atividade de ISP, bem como na
atividade docente para qualificação de profissionais de ISP.
Uma proposta que merece destaque é a de qualificação
específica em Docência em inteligênciav, que pode e deve dotar os
profissionais que já trabalham com o tema e têm domínio sobre as
das técnicas materiais e imateriais, para o exercício da docência e da
pesquisa que alavancarão o serviço prestado pelas Agências de
Inteligência. Tal atividade educativa já foi planejada pela autora,
sendo idealizada desde 2014/2015 quando ainda Coordenadora de
Ensino à época, editada em 2020, e conta com matriz curricular que
visa a capacitar o professor de ISP no domínio de técnicas e
processos educativos de áreas do conhecimento que confluam para
um aprimoramento do profissional que já conta com classificação na
CBO.
Sugere-se que os órgãos centrais responsáveis pelos Sistemas de
Inteligência respectivos tenham funções regulatórias e de
acompanhamento da qualidade dos procedimentos realizados pelos
órgãos de ensino e pesquisa em inteligência, de modo a que o Brasil
esteja alinhado em relação à temática nacional e internacionalmente,
e ainda assim respeitando as diferenças culturais e regionais e os
672
modos diversos que cada região precisa apresentar de
enfrentamento e combate ao crime.
Uma outra sugestão é a construção de um documento de
melhores práticas que possa ser socializado entre todas as agências
que comportem educação profissional na área. Tal documento
precisaria ser construído com a experiência de agências de
inteligência, sob a orientação central da agência central do SISP,
como responsável pelas políticas de ISP.
Nos Estados Unidos, na The Catholic University of America,
existe o The Intelligence Studies Program, no Departamento de
Política, isntruindo pessoas comuns a verem fatos e não ficções,
sobre as realidades de ameaças ao estado. Os cursos têm como
professores antigos oficiais do Federal Bureau of Intelligence
visando atender pessoas que desejem trabalhar na área. Assim como
esta universidade, muitas outras têm programas na esfera da
Inteligência.
Considerações finais e sugestões
Verifica-se a necessidade de uma Política de Educação
Profissional em Inteligência, tendo os órgãos centrais dos Sistemas
de Inteligência como principais articuladores. Todos os entes da
federação devem estar em apoio ao desenvolvimento das ações que
precisam ser realizadas, mas há necessidade de planejamento e
acompanhamento das ações a serem desenvolvidas.
A questão orientadora foi: Há necessidade de uma capacitação
específica para cada área da inteligência vista como uma atividade
de assessoramento de tomadores de decisão na esfera da segurança
e da defesa de um Estado Nacional ou é possível que se tenha um
corpo básico de componentes curriculares e a partir desses
componentes criarem-se tantos e quantos níveis de capacitação e de
673
treinamento forem necessários? A resposta a esta questão é a de que
há possibilidade de haver a organização de componentes
curriculares que atendam a um programa específico de nivelação de
conhecimentos e que servirá de troca de aprendizados e de
compartilhamento de materiais, reforçando a rede de profissionais no
que é conhecido como Comunidade de Inteligência.
Foram sugeridas algumas ações como propiciar a criação de
Escolas de Inteligência de Inteligência de Segurança Pública nos
estados, como existente já no Rio de Janeiro desde 2006, contudo,
incentiva-se a que sejam, todas, Escolas de Governo.
É interessante que seja confeccionado e socializado entre as
agências de inteligência um material com melhores práticas de cada
local a fim de se efetivarem estudos de caso e viabilizarem atividades
educativas com base em estudo do caso e storytelling, por exemplo.
Enfim, a sociedade brasileira precisa estar informada e
compreender o que é Inteligência de Segurança Pública, e
profissionais bem formados, especializados na temática, além de
produzirem conhecimento de ainda melhor qualidade do que já o
fazem, ainda poderão contar com maior apoio social.
Ratificam-se as seguintes sugestões:
1. A criação de uma política nacional de capacitação em
assuntos relacionados à inteligência militar, civil e que sirva
de eixo norteador para os processos de ensino-
aprendizagem na área. Tal documento traria os
fundamentos do ensino profissional indicando os ambientes
em que atuaria, apontando quais seriam as esferas da
federação que estariam com a responsabilidade de
desenvolvimento de quais competências, visando ao amplo
conhecimento de todos os entes para que possam assessorar
os tomadores de decisão nas três esferas de governo e no três
674
poderes da União;
2. Tal política poderia se mirar em ações desenvolvidas nos
Estados Unidos da América, por exemplo, não excetuando
outras nações que tenham identificação de capacitação de
forma privada ou pública;
3. Elaboração de diagnósticos de competências instaladas em
cada estado da federação em nível federal, além do
municipal, para uma melhor proposta de alinhamento
formativo e de especialização
4. Criação de cursos de docência específica para professores
atuarem em atividades educativas de inteligência, com sua
malha curricular alinhada a cada prática necessária à
formação do profissional de inteligência, existindo elenco de
componentes comuns a todos os profissionais da área.
Se é que se pode ter uma certeza é a de que há muito trabalho
a ser feito, muitas ideias a serem planejadas e executadas, muitos
profissionais a serem ouvidos acerca de suas ideias de possibilidade
de capacitação e muito trabalho de ensino- aprendizagem a ser
executado.
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2002. Aprova a Classificação Brasileira de Ocupações - CBO/2002,
para uso em todo território nacional e autoriza a
sua publicação. Brasília, DF, 2002.
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ESISP – e inclui, nos subitens 2 e 3, do Anexo I ao Decreto nº 33.503,
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transferência da Subsecretaria de Inteligência - SSINTE e da
Delegacia de Repressão às Ações Criminosas Organizadas e
Inquéritos Especiais - DRACO/IE, da extinta Secretaria de Estado de
Segurança - SESEG, para a estrutura básica da Secretaria de Estado
de Polícia Civil - SEPOL, e dá outras providências. Rio de Janeiro, RJ,
2019a.
678
. Decreto nº 46.633 de 04 de abril de 2019. Dispõe sobre a
estrutura do Sistema de Inteligência de Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro – SISPERJ, revoga o Decreto nº 08, de 25 de maio
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Studies Program. Disponível em:
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2021.
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<https://www.dhs.gov/xlibrary/asset/rma-risk- management-
fundamentals.pdf>. Acesso em: 10 mar. 2017.
VERGARA, Sylvia Constant. Projetos e relatórios de pesquisa em
administração. São Paulo: Atlas, 1997.
i Discente do Programa de Pós Graduação em História em nível de
Doutoramento, Delegado de Polícia do Estado do Rio de Janeiro desde 1994,
Ex Diretora Geral da Escola de Inteligência de Segurança Pública do Estado
do Rio de Janeiro (ESISPERJ) de 2019 a 2023, quando solicitou exoneração do
cargo, Idealizadora e Editora Chefe da Revista de Inteligência de Segurança
Pública do Estado do Rio de Janeiro (RISP). Contatos:
[email protected](sem o.br)
ii A CRFB de 1988 denomina servidor o funcionário público, pois ele serve à
sociedade.
iii the International Association of Chiefs of Police Criminal Intelligence Sharing
plan funded by the Office of Community Oriented Policing Services observes
that: ...intelligence is the combination of credible information with quality
analysis—information that has been evaluated and from which conclusions
have been drawn
679
iv Law enforcement executives need to be aware of the different roles and the
different context when interpreting information.
V No dia anterior ao da decretação do estado pandêmico seria assinado o
Curso que a autora criou para o fim de Docência de ISP, específico para
profissionais que conhecem o tema, porém não têm o domínio didático-
pedagógico para desempenhar a função de professor com maior excelência.
Em conversa entre a autora, que exercia o cargo de Diretora Geral da Escola
de Inteligência de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro (ESISPERJ)
e o Subsecretário de Inteligência d SEPOL, órgão ao qual a ESISPERJ é
subordinada até hoje (2023), decidiu-se aguardar para momento oportuno,
após o período por que o mundo passou. Infelizmente, não houve autorização
posterior pelos demais Subsecretários até a data da solicitação de exoneração
da autora.
680
Projeção naval do Brasil
Esley Rodrigues De Jesus Teixeira1
Resumo: Durante sua história, a Marinha do Brasil se manteve como
força responsável pela defesa e segurança peremptoriamente da
região costeira e domínios fluviais e lacustres do território,
observando, de tempos em tempos, tarefas distintas como a caça a
navios negreiros, defesa do comércio de cabotagem, controle da foz
do Amazonas e do Prata, e imposição da lei, que se consubstanciam
nas quatro tarefas básicas do poder naval, hoje positivadas em sua
doutrina de emprego. A crescente globalização do comércio nacional
e sua ascendente importância como global player exigem do Brasil uma
postura mais assertiva no cenário internacional, impondo à sua força
naval esforços de readequação de meios e reposicionamento
estratégico. Quais meios e qual postura, portanto, deveria a Marinha
do Brasil assumir em tais condições? O presente trabalho tem por
objetivo apresentar, baseado nas teorias marítimas contemporâneas,
em quais meios e postura poderia a Marinha do Brasil doravante se
apoiar. Observar-se-á uma metodologia qualitativa, através de larga
revisão bibliográfica de teóricos do poder marítimo, além da análise
dos documentos de alto nível da defesa e do poder naval. Como
conclusão, será sugerida a criação de arranjos marítimos regionais,
1Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências Militares (PPGCM)
do Instituto Meira Mattos da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército.
Não bolsista. e-mail:
[email protected] 681
considerando-se a teoria dos complexos regionais de segurança,
tendo por pilar uma aliança marítima da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa.
Palavras-Chave: Defesa, Estratégia Naval, Geopolítica.
Introdução
O Brasil em sua história foi forjado como um potencia regional,
moldando suas elites militares e políticas a se enxergarem como
subproduto da política global, ou, quando muito, como replicadores
de doutrinas e estratégias ocidentais. A maior participação do Brasil
no cenário internacional, mesmo que chancelada pela participação
brasileira nas guerras mundiais e em diversas missões de paz, não
permite que se diga que se trata o Brasil de um player global,
preponderantemente por conta de sua fraqueza relativa quanto às
expressões econômica e militar do poder nacional.
Apesar de seu recente processo de globalização econômica
(iniciado sobretudo na Gestão Collor, no início da década de 1990), o
Brasil não conseguiu evoluir da mesma forma quanto ao seu poder
naval, fato que amiúde se apresenta como grande passivo em sua
ascendência ao seu “lugar ao sol”, buscado, pelo menos, desde a
gestão Arthur Bernardes. Como exemplos, podemos citar a
famigerada Guerra da Lagosta, as constantes pescas ilegais em nosso
território marítimo, e a incapacidade da Marinha em realizar uma
evacuação de não combatentes em local tão caro à nossa economia
energética como o Oriente Médio.
Faz-se mister, portanto, que haja melhor direcionamento
político quanto ao desenvolvimento do poder naval, e,
consequentemente, de sua projeção global. O presente trabalho tem
por objetivo apresentar estas dificuldades, propondo uma nova
682
interpretação do conceito de entorno estratégico, e,
consequentemente, do alcance da Marinha do Brasil e da sua
capacidade de projeção de poder, tendo por base o Título I de nossa
Constituição Federal. O artigo se apresenta dividido em três partes,
ale’m desta introdução e da conclusão. A primeira apresenta as
considerações para a completa globalização do alcance naval
brasileiro, segundo a expansão de nossa economia; a segunda
apresenta um novo conceito de entorno estratégico; a terceira propõe
uma maior integração entre os países de língua portuguesa, ora
constituídos na Comunidade de Países de Língua Portuguesa.
Utilizar-se-á o método qualitativo de revisão bibliográfica.
Conclui-se que o Brasil deve refletir, em sua projeção naval, seu
alcance econômico, sendo capaz de atuar nos oceanos e nas áreas a
eles contíguas, de maneira a impedir que quaisquer obstáculos a seu
desenvolvimento econômico possa prosperar, ao mesmo tempo que
procede com um papel de apoio à segurança dos países da CPLP e de
seus parceiros comerciais.
Segurança nacional, regional ou global?
A postura defensiva do Brasil, tão alardeada na Doutrina
Militar Naval (Marinha do Brasil, 2017; p. 3-3), pode ser verificada
através da análise dos relatórios dos Secretários e Ministros d’Estado
dos Negócios da Marinha na época do Império. Neles é notória a
preocupação do Brasil em cumprir quatro principais tarefas: o
combate ao tráfico negreiro, a defesa da costa e perenidade do
comércio, imposição interna da lei e a dissuasão.
A diminuição das distâncias globais tem gerado transformações
substanciais nas condições de segurança dos países. O aumento
considerável de importância dos Estados outrora tidos como não
influentes, aliado ao terrorismo transnacional, migrações e
683
comunicações em massa transformaram o ambiente internacional,
ameaçando a soberania, territorialidade e o nacionalismo dos Estados
(Acharya e Buzan, 2019; p. 262).
O mundo hodierno exige que os países hajam de maneira a
garantirem o consenso e o processo democrático (haja vista as
constantes deliberações da Assembleia Geral da ONU), ao mesmo
tempo que reflete um mundo realista com um grupo de países capaz
de definir o norte da derrota, detendo verdadeiro papel de sheriff,
além da necessidade de se incluir em todos os pontos chave da
política global (Gray, 2007; p. 274).
Entorno estratégico?
A teoria do “, entorno estratégico, que teve seu fio condutor
ligando desde Mario Travassos a Golbery do Couto e Silva, ainda
perdura em nosso arcabouço teórico como uma importante base para
o entendimento do papel não só dos militares mas do poder nacional
no desenho de um ambiente propício ao melhor desenvolvimento da
potência nacional.
Após analisar duas definições “incompletas” do termo, e
havendo percebido que o termo, apesar de citado nos documentos de
alto nível2, não é neles definido, Da Sois (2015) lança uma definição
própria que abarca “regiões geográficas estratégicas em torno do
Brasil consideradas prioritárias pelas autoridades nacionais”, que
devem permanecer sob o controle a fim de que o país possa
livremente “exercer influência e projetar poder”, tendo em vista a
manutenção, ou construção, de sua “liderança militar, política,
diplomática e econômica” (p. 569). Esta definição, apesar de bastante
2A política nacional de defesa (PND) define o Entorno Estratégico como “[á]rea
de interesse prioritário para o Brasil”.
684
completa, permite lacunas que se tornam fluidas e se tornam
dependentes de mudanças de governo, meios matérias disponíveis, e
das capacidades econômicas.
É comum compararmos o conceito com os constructos do início
do século XX, quando os geopolíticos primários passaram a observar
melhor a influência do homem e do ambiente na construção da nação.
Há, contudo, a necessidade de se definir melhor este conceito, que,
forjado em um outro momento, não consegue, hoje, exprimir as reais
necessidades de uma potência com interesses espalhados nos cinco
continentes do globo. Esses interesses podem ser tão somente
econômicos (como a necessidade de se manter a liberdade de
navegação do estreito de Málaca e do Cabo da Boa Esperança, por
onde passam boa parte de nosso comércio internacional) ou
humanitários, como a necessidade recente de se retirar os nacionais
brasileiros da Faixa de Gaza. Além disso, a “projeção e poder” deve
abranger as cinco expressões do poder nacional, “capacidade que tem
a Nação para alcançar e manter os objetivos nacionais, em
conformidade com a vontade nacional”: “a política, a econômica, a
psicossocial, a militar e a científico-tecnológica” (Marinha do Brasil,
2017; p. 1-1). As considerações orçamentárias são, portanto,
extremamente relevantes (Gray, 2016; p. 129).
Em outras palavras, a influência brasileira nos países de seu
entorno estratégico precisa garantir, de acordo com as definições
correntes, a defesa dos interesses brasileiros nestas cinco vertentes,
não apenas na militar. Para isso, portanto, deve-se haver, antes de
mais nada, uma comparação entre as políticas externa, de defesa,
econômica e de ciência, tecnologia e inovação, fato que se torna
hercúleo quando se verifica que não há documentos de alto nível que
exponha didaticamente a que cada uma delas se dispõe atingir, com
exceção da de defesa e de ciência e tecnologia. Apenas após isso, seria
possível que fosse gestada uma Política Naval e, então, uma estratégia
685
naval, levando-se em conta o conhecido princípio da subordinação
estratégia em relação às considerações e norteamentos políticos
(Gray, 2016; p.18), mormente os contidos no Título I de nossa Magna
Carta (Brasil, 1988; Título I), na ausência de sous-document que a possa
detalhar.
Esta compreensão demanda uma utilização bastante assertiva
das ferramentas de que dispõe o Brasil em diversos lugares, muito
além dos ora considerados3: Estados Unidos, China e União Europeia
representam importantes parceiros comerciais; os Estados partícipes
da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP) oferecem
grande abertura no que tange à cultura de nossas raízes filológicas; o
BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) hoje representam
um bloco coeso que, além de emitir suas próprias diretrizes, também
representam larga oportunidade econômica de desenvolvimento
econômico e científico-tecnológico para seus respectivos povos. É
bastante perceptível, portanto, que o conceito outrora bastante
compartilhado de entorno estratégico, cuja gênese remonta a Guerra
Fria, já não pode, no ambiente hodierno, refletir a real necessidade do
Brasil.
Esta constatação pode ser visualizada muito bem já no fim do
século XX e início do século XXI, correspondendo, portanto, ao
período de final da Guerra Fria. O Brasil passou a enviar
observadores militares para Moçambique (1992-1995),
Uganda/Rwanda (1993), Iugoslávia (1996) e Timor Leste (1999 até o
presente) (Costa, 2005; p. 53), ao mesmo tempo que mantém forte
ligação econômica com União Europeia, China e Sudeste Asiático, e
Estados Unidos da América. Quanto à ciência e tecnologia,
3De acordo com a PND, “América do Sul, o Atlântico Sul, os países da costa
ocidental africana e a Antártica”.
686
Chega-se, finalmente, a como deve o Brasil projetar seu Poder
Naval, objetivo do presente artigo. Levantar a questão dos meios e da
postura, em outras palavras, em qual estratégia o Brasil
contemporâneo precisa se fiar para garantir a plenitude de seus
interesses não pode variar com governos, inclinações ideológicas ou
vertentes filosóficas. Mesmo sabendo-se da fraqueza das
considerações estratégicas frente às decisões políticas, a construção
da Marinha de Guerra deve levar em consideração o norteamento
político. Os fins (políticos) precisam definir os caminhos
(estratégicos) que definem os meios (militares). (Gray, 2015; p. 49). A
definição política do “entorno estratégico” deve vir em primeiro
lugar.
Propõe-se para este artigo que consideremos esta definição,
portanto: O entorno estratégico consiste na reunião de áreas
geográficas que contenham pontos de importância política, militar,
econômica (nisso inclusa a vertente científico-tecnológica), e cultural
que permitem, através da superioridade relativa brasileira, em
determinado momento específico, o atendimento pleno dos
princípios básicos de cada política específica. Desta forma, podemos
incluir a China dentro do entorno estratégico brasileiro, e suas
políticas sanitárias para a entrada dos produtos de exportação
brasileiros um ponto de interesse; a Suécia e a França como
exportadores de tecnologia sensível a nossa defesa aeroespacial e
marítima; o Oriente Médio, no presente momento, como necessidade
de atuação para a retirada de nossos nacionais de uma Zona de
Conflito; a Rússia na questão dos fertilizantes tão caros às nossas
lavouras.
Neste contexto, o mar reflete o maior condutor da globalização,
pois que define a capacidade das nações de manter o fluxo de
mercadorias e de informações, além de representar importante fonte
687
de recursos ainda inexplorados (Till, 2018; p. 306) e que precisam ser
defendidos.
Complexo naval de segurança
Isto definido, faz sentido que se proponha a estratégia que deve
adotar e os meios que deve possuir a Marinha do Brasil. Dadas as
apresentadas zonas de atuação, os princípios inerentes ao poder
naval (permanência, versatilidade, flexibilidade e mobilidade das
forças navais) precisam ser mantidos (Marinha do Brasil, 2017; p. 1-
5), mesmo frente as constantes e crescentes dificuldades
orçamentárias. As diversas ameaças à livre navegação4 não podem ser
combatidas por apenas uma força armada, mesmo que tenha ela
poder global. Há a necessidade de maior sinergia entre os atores
envolvidos, a dizer as marinhas de cada país com que o Brasil possui
relevantes ligações no ensejo das expressões do poder nacional. É
importante que o Brasil mantenha, por exemplo, o comércio com a
China e os Estados Unidos livre de interferências que possam
impedira a troca física de mercadorias, ou a manutenção das
comunicações submarinas.
Neste cômputo, alarga a importância dos países componentes
da CPLP5, o que permite aos meios navais de todos estes países a
garantia de portos amigos em todos os oceanos do globo,
corroborando com a tendência global relativa à construção de
organizações de colaboração internacional (Speller, 2014; p. 164). A
formação de um Complexo Naval de Segurança abarcando as
4
Guerras locais, terrorismo, pirataria, desastres ambientais não intencionais,
tráfico de pessoas e de drogas” (Till, 2018; p. 315), além de problemas
econômicos, políticos, ambientais e sociais que possam por em risco a boa ordem
no mar (Speller, 2014; p. 151).
5 Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, Timor Leste
e São Tomé e Príncipe
688
marinhas da CPLP parece ser uma saída bastante eficaz para os
problemas i) orçamentários; ii) diplomáticos e iii) tecnológicos, o que,
em tese, contempla as expressões do poder militar.
Os problemas com orçamento, que envolvem diretamente o
público interno, podem ser relevados através das economias de escala
que podem ser atingidas através de programas combinados de
construção de navios, aproveitando-se tecnologias autóctones e
projetos desenvolvidos internamente, e aprovados por um conselho
de autoridades capazes de tomar decisões de auto nível, sejam elas
militares ou políticas.
As constrições diplomáticas hoje latentes em qualquer
aproximação militar entre os BRICS também seriam mitigadas, haja
vista o caráter peremptoriamente pacífico internacionalmente dos
países envolvidos. Além disso, as ameaças comuns (Till, 2018; p. 388)
presentes nos oceanos do mundo colocam em risco o
desenvolvimento de todos, que precisam estar unidos na mitigação
destas mesmas ameaças, através de custos pequenos e aceitáveis
internamente. Observando as constantes diminuições nos níveis de
matérias primas, e as lições da história mundial, a construção de uma
coalisão de países da CPLP também garante a construção de uma
mútua dissuasão (Till, 2018; p.389) frente a Estados que porventura
desejem reativar sua cultura colonialista.
A questão tecnológica, por certo uma das mais profundas frente
às tecnologias desenvolvidas nas “grandes potências marítimas”
também poderia ser uma forma de garantir-se a independência
tecnológica, através de uma estratégia de inovação tecnológica
conjunta (Till, 2018; p. 178) e de suprimentos. Cabe que se lembre que
a batalha naval no futuro (e já no presente) abarca diversos
689
ambientes6, cujas barreiras tecnológicas impedem que países menos
avançados tecnologicamente possam alcançar os níveis adequados a
se lançar em um combate naval.
Conclusão: uma estratégia marítima brasileira
Em ordem a garantir sua plena projeção, o Brasil demanda
diversos meios e novas tecnologias. Dadas as dificuldades
orçamentárias e tecnológicas, cabe ao Brasil buscar mitigar estas
dificuldades, abrindo uma porta para uma maior sinergia entre a
Marinha do Brasil e a Marinha de diversos países também
interessados na manutenção da boa ordem no mar e na mitigação de
crimes transfronteiriços que terminem ou comecem no mar.
Tendo sua história muito levada à continentalidade e à
segurança costeira, o Brasil é hoje um país global, cujos interesses,
longe do que se acreditou ser seu entorno estratégico, abarca diversos
países do mundo. Neles, os pontos focais se revestem de importância,
e uma Marinha de capacidade global apenas consegue subsistir
através de uma larga rede de apoio e cooperação. A CPLP pode dar
esta guarida a esta estratégia, incluindo o desenvolvimento
tecnológico e diplomático, que permitirão a projeção não somente do
Poder Naval, como também das demais expressões do Poder
Nacional.
Referências
Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília:
Congresso Federal, 1988.
6 Superfície do mar, profundezas, o espaço, o ar, campo eletromagnético,
ciberespaço e o campo informacional (Speller, 2014; p. 172-173).
690
Da Sois, Tullio Damin.O Brasil e a segurança no seu entorno
estratégico : América do Sul e Atlântico Sul. III Congresso de Pesquisa
e Extensão da FSG e I Salão de Extensão & I Mostra Científica.
Brasília: Ipea, 2014. p. 567-578.
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Speller, Ian. Understanding naval warfare. New York: Routledge,
2014.
691
Racializando as teorias do desenvolvimento econômico: o caso de
Arthur Lewis em The Theory of Economic Growth (1955) e Racial
Conflict and Economic Development (1985)
André de Jesus Torres1
Resumo: Arthur Lewis dedicou sua carreira como Economista,
Professor e Conselheiro econômico de países pobres à superação do
subdesenvolvimento, consagrando-se como Pioneiro da Economia do
Desenvolvimento e vencedor do Nobel de Economia, sendo o único
negro a integrar qualquer um dos grupos. Neste artigo, comparamos
analiticamente sua obra mais conhecida, “The Theory of Economic
Growth” (1955), e sua última, “Racial Conflict and Economic
Development” (1985), com o objetivo de refletir sobre a concepção de
raça e desenvolvimento do autor nas duas obras. A partir da crítica
ao eurocentrismo das chamadas epistemologias do Sul, enquanto
abordagem teórica, adotamos como fundamentação teórica, Frantz
Fanon, Aníbal Quijano e Walter Rodney e, como recortes analíticos,
cultura, sociedade e geopolítica, enquanto elementos centrais da
relação entre raça e desenvolvimento. Concluímos que, embora
socialmente tenha lutado pelo desenvolvimento dos subalternos,
epistemologicamente, Arthur Lewis o fez munido da razão
econômica dominante, eurocêntrica e liberal, capaz de distorcer a
1
Doutorado em Economia Política Mundial (PPG-EPM) na Universidade Federal
do ABC (UFABC)
692
compreensão da realidade até mesmo daqueles mais dedicados à
transformá-la.
Palavras-chave: desenvolvimento econômico; raça; Arthur Lewis;
economia do desenvolvimento; história do pensamento econômico.
Introdução
William Arthur Lewis (1915-1991) nasceu e cresceu na ilha
caribenha de Santa Lúcia, colônia agroexportadora de população
majoritariamente negra dominada pelo Império Britânico e
governada por uma elite agrária branca (LEWIS, 1939). Filho de
professores, ele recebeu uma educação privilegiada aos moldes
britânicos (TIGNOR, 2020), sendo contemplado em 1932 com uma
bolsa de estudos para a London School of Economics (LSE), tornando-
se o primeiro aluno de sua cor. Após graduar-se com distinção e obter
o PhD, Lewis ocupou cargos em várias universidades renomadas,
incluindo a Manchester (1948-1958), das Índias Ocidentais (1958-
1963) e Princeton (1963-1983). Além disso, ele desempenhou funções
como Conselheiro Econômico do Colonial Office britânico,
assessorando países como Nigéria, Gana, Trinidad e Tobago, Jamaica
e Barbados, e como Presidente do Banco de Desenvolvimento do
Caribe (1970-1973). Em reconhecimento às suas contribuições para a
Economia do Desenvolvimento2, campo do qual é considerado um
2
No pós-Segunda Guerra Mundial, enquanto o centro do capitalismo vivia sua
era de ouro, a periferia enfrentava a persistência do subdesenvolvimento. Da
inconformidade com essa contradição, em meio à crítica da Revolução
Keynesiana à ortodoxia econômica, surge um campo dedicado a superá-la, ainda
que sem romper epistemologicamente com a racionalidade do centro: a
Economia do Desenvolvimento. Seus principais autores, chamados de Pioneiros
do Desenvolvimento, são Rosenstein-Rodan (Polônia, 1902–1985), Ragnar
Nurkse (Estônia, 1907-1959), Gunnar Myrdal (Suécia, 1898-1987), Albert
Hirschman (Alemanha, 1915-2012), Hans Singer (Alemanha, 1910-2006), Michal
Kalecki (Polônia, 1899-1970), Arthur Lewis (Santa Lúcia, 1915-1991), Raul
693
dos Pioneiros, foi agraciado com o título de cavaleiro pelo Governo
Britânico em 1963 e recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 1973,
mesmo ano em que Santa Lúcia conquistou sua independência
(SPENCER e MACPHERSON, 2020). Lewis morreu em 1991 em
Bridgetown, Barbados, e foi enterrado no jardim do colégio
comunitário nomeado em sua homenagem na sua terra natal, onde
seu epitáfio destaca sua máxima: “The fundamental cure for poverty
is not money but knowledge”.
Para ele, tanto a ortodoxia macroeconômica quanto a
macroeconomia keynesiana não eram adequadas para enfrentar os
desafios específicos do subdesenvolvimento. Suas obras mais
influentes, "Economic Development with Unlimited Supplies of
Labour" (1954) e "The Theory of Economic Growth" (1955), constroem
um modelo teórico-analítico próprio, segundo o qual o
desenvolvimento de países pobres depende da transição da
superpopulação subempregada nos setores de subsistência, de baixa
produtividade, para os setores capitalistas de alta produtividade.
Esse processo criaria um ciclo virtuoso de expansão do capital,
aumento do investimento e geração de empregos, até que toda a
oferta de mão de obra não especializada fosse absorvida, elevando os
níveis de renda e qualidade de vida. Lewis enfatizou a necessidade
de intervenção estatal direta para modificar a distribuição funcional
da renda, privilegiando os lucros dos empresários em detrimento da
renda dos proprietários de terras, uma transformação estrutural
capaz de acelerar a acumulação de capital por meio da
industrialização, de modo a romper com o ciclo vicioso da pobreza e
suas consequências cumulativas (CARDOSO, 2018).
Prebisch (Argentina, 1901-1986) e Celso Furtado (Brasil, 1920-2004) (CARDOSO,
2018).
694
Como negro, Lewis teve sua vida e obra fortemente
influenciadas por elementos políticos relacionados à raça. Desde
jovem, tendo sido exposto à Universal Negro Improvement
Association (UNIA), organização antirracista fundada por Marcus
Garvey, ele sabia que apesar de ser um prodígio (formando-se dois
anos adiantado), segundo o próprio, ele sabia que suas
oportunidades de se tornar um Engenheiro tal qual almejava eram
limitadas devido ao racismo presente no governo colonial e nas
plantações de cana (TIGNOR, 2020). Em Londres, ele se envolveu com
a intelectualidade caribenha, colaborando com figuras como Cyril
Lionel Robert James, George Padmore, Eric Williams e Amy Jacques
Garvey. Em Manchester, foi um dos fundadores de instituições como
o South Hulme Evening Center e o West Indian Sports & Social Club,
que lutavam contra a discriminação e promoviam o desenvolvimento
da comunidade afro-caribenha pobre local (MOSLEY e INGHAM,
2013). Em Princeton, em 1981, tendo escrito artigos para revistas
universitárias sobre racismo na época das manifestações pelos
direitos civis no início dos anos 1970, ele elaborou um relatório sobre
desigualdades raciais de renda e desemprego nos EUA,
encomendado pela Fundação Rockefeller, no qual destacou o déficit
educacional, a marginalização no mercado de trabalho e a segregação
socioespacial como obstáculos à ascensão social dos negros técnicos
(INGHAM e MOSLEY, 2013). Essas ideias foram posteriormente
expandidas em suas palestras na Universidade de Harvard,
conhecidas como as W.E.B. Du Bois Lectures, que foram compiladas
e publicadas no livro "Racial Conflict and Economic Development"
(1985), sua última obra publicada3, e a única centrada na dimensão
racial.
3Obra dividida em nove capítulos: Economic Inequality, Interracial Goals,
Investment in Underdeveloped Groups, Discrimination in Employment, Upward
695
A literatura econômica existente sobre Lewis muitas vezes
negligencia a importância da dimensão racial, tanto em sua trajetória
intelectual e política quanto no contexto do subdesenvolvimento
periférico. De acordo com Sueli Carneiro (2005), filósofa feminista
negra, o sucesso de pessoas negras em qualquer campo do
conhecimento é um paradoxo que desafia os estigmas que
marginalizam os negros da vida intelectual e acadêmica. Prevalece
nas ciências econômicas, incluindo no campo da Economia do
Desenvolvimento, uma falta de atenção e compreensão sobre a
relação entre raça e desenvolvimento; essa ausência da questão racial
evidencia como o racismo pode obstruir a compreensão de aspectos
cruciais da realidade, mesmo para aqueles que genuinamente
desejam transformá-la (ALMEIDA, 2019).
Este artigo sintetiza as contribuições a esse debate produzidas
pela Dissertação de Mestrado do autor que vos fala, a qual revisitou4
o pensamento econômico de Arthur Lewis de uma perspectiva
epistemológica do Sul Global focalizada na relação intrínseca entre
raça e desenvolvimento. O objetivo foi responder se houve uma
mudança na concepção de raça e desenvolvimento de Arthur Lewis
entre 1955 e 1985, investigando se seu enfoque inédito em questões
raciais na segunda estaria relacionado a uma transformação em sua
Mobility, Unemployment, Entrepreneurship, Colonial Relations e Aftermath of
Independence.
4
“Para evitar esse dilema entre atitudes anti-sociais, conscientes ou inconscientes,
da parte dos economistas com responsabilidade na política econômica, é mister
que alcancemos um mais alto grau de independência no plano das formulações
teóricas. É necessário que realizemos um esforço continuado no sentido de
enriquecer e vivificar as teorias econômicas que nos chegam e mesmo no
reformulá-las, toda vez que as hipóteses convencionais não possuam o poder
explicativo necessário para abarcar a realidade sobre a qual devemos atuar”
(FURTADO, 1962, p. 70-71).
696
perspectiva racial sobre o desenvolvimento econômico em
comparação com a primeira.
À luz da Economia Política Mundial das relações étnico-raciais
contemporâneas, argumentamos que toda teoria econômica sobre o
subdesenvolvimento pressupõe, reproduz ou denota uma teoria
racial do desenvolvimento; isso porque, conscientemente ou não,
qualquer leitura científica do mundo que reconheça sua divisão
conforme a dinâmica centro-periferia (isto é, em moderno e atrasado,
rico e pobre, ou em quaisquer outros termos) carrega consigo uma
perspectiva teórico-metodológica específica acerca dos sistemas de
dominação, intrinsecamente interseccionais (e portanto raciais),
materializados nessa divisão assimétrica.
Raça, Racismo e Desenvolvimento
Conforme a proposta epistemológica das Epistemologias do
Sul, especificamente quanto ao diálogo horizontal de conhecimentos
críticos ao eurocentrismo, e, através da fundamentação teórica em
Fanon, Quijano e Rodney, enquanto manifestações dessa crítica, esta
seção delimita como recortes analíticos os elementos que
consideramos indispensáveis à compreensão da relação entre raça e
desenvolvimento econômico e, portanto, para a análise comparativa
de perspectivas raciais do desenvolvimento de The Theory of Economic
Growth (LEWIS, 1955), e Racial Conflict and Economic Development
(LEWIS, 1985): o cultural, o social e o geopolítico. As próximas duas
seções serão estruturadas por meio desses recortes.
Segundo Frantz Fanon (1952), o racismo enquanto cultura nega
violentamente a universalidade humana do colonizado negro, cuja
cultura, outrora dinâmica e profunda, se encontra mumificada em
estado vegetativo, de modo que ele e sua sociedade não podem se
desenvolver senão apática e inercialmente. Incapaz de enegrecer o
697
mundo na esperança de se humanizar, resta a ele a tentativa de
embranquecer seu corpo e pensamento vestindo múltiplas camadas
de linguagem, relacionamentos, psiquê, enfim, de todas as formas
colonizadas de existir que o impedem de se enxergar com seus
próprios olhos. Conforme o conceito de mimetismo cultural de Celso
Furtado (FURTADO, 1974), subjugar o sentido econômico da
sociedade à reprodução de padrões de desenvolvimento dos países
capitalistas avançados a desvia do seu sentido básico que é identificar
as possibilidades que o avanço da ciência abre às necessidades
fundamentais da coletividade; o desenvolvimento se compromete
pela subserviência da estrutura produtiva e principalmente dos
processos decisórios internos ao centro, na tentativa de mimetizá-lo.
Em suma, "Ser como o centro versus ser como nós mesmos" (DEVÉS-
VALDÉS, 2008, p. 12) é um dilema existencial e universal do negro
que atravessa a intelectualidade africana, e que viria a constituir a
essência do pensamento africano e periférico. Por essas razões, em
termos culturais e institucionais, englobando temas e problemas
relativos à assimilação cultural e descolonização – como valores
culturais, instituições, ética do trabalho branco/negro, horizontes
limitados e esforço econômico – adotamos “cultura” como primeiro
recorte analítico.
Para Aníbal Quijano (2005), a raça, enquanto modo básico de
classificação social universal, foi um eixo fundamental das relações
de dominação impostas pela expansão colonial europeia, a qual
originou uma racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse novo
padrão de poder mundial implicou a colonização de perspectivas
cognitivas, modos de produzir e conferir sentido à experiência
material ou subjetiva, das relações intersubjetivas. Sob a
colonialidade do poder, o desenvolvimento passa a ser entendido
unicamente pela oposição entre pré-capitalismo vs capitalismo, não-
europeu vs europeu, primitivo vs civilizado, tradicional vs moderno,
698
e tido como uma evolução linear, unidirecional, uma linha reta entre
o estado de natureza e a sociedade moderna européia (QUIJANO,
2005). Complementarmente, o conceito de modernização
conservadora, segundo marxistas negros como Clóvis Moura, explica
como o processo de modernização capitalista manteve estruturas
arcaicas não como anomalias, mas como parte integrante dessa lógica
de desenvolvimento histórico específica (ALMEIDA, 2019); o racismo
não seria, portanto, um mero reflexo de estruturas arcaicas que
poderiam ser superadas com a modernização, pois a modernização é
em si racista. Por essas razões, em termos biológicos e civilizacionais,
englobando temas e problemas relativos à modernidade e
embranquecimento - como desigualdade (de raça, mas igualmente de
classe e gênero), inclusão e exclusão (do sistema educacional e
mercado de trabalho), relações de trabalho e salário, e mobilidade
social – definimos “sociedade” como nosso segundo recorte.
De acordo com Walter Rodney (1972), desenvolvimento e
subdesenvolvimento são fenômenos dialéticos e raciais, pois
historicamente o desenvolvimento da Europa Ocidental e o
subdesenvolvimento do mundo colonial estão inexoravelmente
vinculados por processos materiais e históricos fundados
ideologicamente sobre o racismo. Essa relação étnico-racial de
dominação e exploração de indivíduos e países racializados,
fundamental ao modo de produção capitalista, tem sido responsável
desde o colonialismo pelo desenvolvimento branco e
subdesenvolvimento negros em todos os tempos e espaços, nas
escalas individual, nacional e internacional. Conforme o conceito de
racismo estrutural, tal qual apresentado por Silvio Almeida (2019), a
tese de Rodney de que “Não há desenvolvimento capitalista sem um
processo de subdesenvolvimento criado, fabricado, orquestrado
pelos “desenvolvidos”, processo em que o racismo tem grande
relevo” (ALMEIDA, 2019, p. 194), implica que o desenvolvimentismo
699
não pode prescindir de um projeto antirracista; em um país como o
Brasil, um projeto nacional que não ataque o racismo como um
fundamento não apenas ético mas essencialmente econômico do
subdesenvolvimento, deveria ser impensável. Por isso, em termos
históricos e políticos, englobando problemáticas relativas à soberania
e dependência – tais quais imperialismo e neocolonialismo,
nacionalismo, comércio internacional, capital e ajuda externa –
adotamos “geopolítica”5 como nosso terceiro e último recorte
analítico.
Para demonstrar a aplicabilidade desses recortes, convém
caracterizar sucintamente o que seria, segundo as críticas dos autores
supracitados, uma perspectiva racial eurocêntrica de
desenvolvimento, presente na teoria econômica hegemônica.
Distorcendo a compreensão de que valores culturais regem relações
sociais e econômicas (constituindo institucionalmente variáveis
relevantes do processo de desenvolvimento econômico), defende-se
que o desenvolvimento do centro se deve a superioridade cultural
essencialmente branca, de modo que a superação do
subdesenvolvimento periférico depende diretamente da mimetização
desses valores, ou seja, pela assimilação cultural do subdesenvolvido.
Defende-se sua modernização via higienização, distorcendo a
compreensão da desigualdade racial de modo a condicionar a busca
por igualdade do negro à sua homogeneização social pela sociedade
branca, inclusive via miscigenação. Por fim, distorcendo a
compreensão dos desafios do subdesenvolvimento periférico de
modo a inferir a incapacidade da periferia em se autodesenvolver,
defende-se a abdicação da soberania geopolítica em troca de um
5Nosso uso de “geopolítica” não se refere à disciplina científica em si, mas à
dimensão de relações internacionais de poder pressupostas pela Economia
Política Mundial.
700
desenvolvimento consentido, ainda que dependente e associado, ao
centro.
The Theory of Economic Growth (1955)
A perspectiva racial de desenvolvimento de The Theory of
Economic Growth (LEWIS, 1955) pode ser definida da seguinte forma.
Culturalmente, pela hipótese central de que a persistência de
valores e tradições culturais próprios, não-eurocêntricos, restringe os
horizontes de desejo e consumo, o valor do trabalho, o esforço
econômico, e, consequentemente, as transformações estruturais
rápidas e complexas nas quais consiste o desenvolvimento. As
diferenças comportamentais e, portanto, institucionais entre os
grupos humanos não devem ser explicadas biologicamente, mas
culturalmente, de modo que raça, de uma perspectiva cultural, é um
determinante direto do grau de desenvolvimento ou
subdesenvolvimento de cada sociedade. Como vimos, para Lewis
(1955), não se pode esperar a abolição da pobreza, do analfabetismo
e da doença sem se abolir os hábitos e arranjos sociais que seriam sua
causa.
Socialmente, pela hipótese central que considera a transição
para a modernidade capitalista a melhor, senão única, forma das
sociedades primitivas, cuja organização se dedica enormemente à
luta pela subsistência, superarem séculos de fome, enfermidade, alta
mortalidade infantil e baixa expectativa de vida. Custe o que custar,
o progresso econômico liberta o homem das mazelas da natureza,
eleva os padrões de vida e amplia suas possibilidades de escolha,
dando liberdade para melhor aproveitar o tempo economizado com
os saltos de produtividade e emprego crescente da força mecânica
conquistados pela industrialização. Como visto, para Lewis (1955),
assim como a própria escravidão livrou os negros das aldeias na selva
701
da África Ocidental, não se deve condenar os líderes estadistas que
usam de quaisquer meios necessários, inclusive coação, para
transformar suas sociedades, independentemente das dores do
crescimento, em nome do bem maior dos coagidos.
Geopoliticamente, pela hipótese central segundo a qual para os
povos subdesenvolvidos de nada vale um autogoverno independente
e nacionalista, interessado no bem-estar comum, porém desprovido
do conhecimento técnico eurocêntrico necessário para promovê-lo via
crescimento econômico, quando a dependência neocolonial (direta ou
indireta) proveria governos estáveis e eficientes, capazes, ainda que
de forma autoritária, de empreender as reformas estruturais
(culturais e sociais eurocêntricas) necessárias ao crescimento. Se
liberdade política é um preço a se pagar pela liberdade humana, então
mais vale um desenvolvimento dependente que desenvolvimento
nenhum. Como visto, para Lewis (1955), ao invés de resistir à
exploração do imperialismo, os países subdesenvolvidos deveriam
aproveitar as diversas oportunidades de crescimento econômico (via
capital e administração estrangeiros) oferecidas por ele.
Racial Conflict and Economic Development (1985)
Esse capítulo analisa comparativamente a perspectiva racial do
desenvolvimento presente em Racial Conflict and Economic
Development (LEWIS, 1985) em relação à presente em The Theory of
Economic Growth (LEWS, 1955).
Antes de adentrar na comparação, porém, convém definir raça,
racismo e desenvolvimento segundo Lewis (1985), conceitos cujas
relações não eram explicitadas pelo autor em Lewis (1955), apesar de
não-declaradamente centrais em seu pensamento econômico (como
demonstramos no capítulo anterior), mas que passaram a ser trinta
anos depois.
702
Para Lewis (1985), apesar de anteriormente ter sido parte, por
exemplo, dos confrontos dos espanhóis com os indígenas na América
do Sul, a raça assume importância mundial a partir da introdução da
escravidão africana nas Américas e do comércio de escravizados no
Atlântico no século XVII, pois um empreendimento dessa magnitude
teria exigido um suporte ético à altura, capaz de contrariar a fé cristã
que há muito proibira a escravidão na Europa, e assim foi preciso
argumentar que o africano era, em algum sentido, não inteiramente
humano, logo desprovido dos mesmos direitos que os homens. Nos
últimos cinco séculos, graças ao seu expansionismo sobre o restante
do mundo, anexando regiões menos ocupadas das Américas e
Oceania, matando e inferiorizando seus habitantes (gerando
problemas duradouros para as populações dominadas), os europeus
teriam conseguido preservar sua homogeneidade racial.
Agora, a divisão do mundo em brancos e raças de cor que
produziram, a qual resistiu ao fim da escravidão e dos próprios
impérios, estaria ameaçada pela atração de massas de imigrantes
motivados pelo padrão de vida dos países desenvolvidos
(remuneração, educação, instalações médicas, redes de bem-estar
social) e pela possibilidade de fome nos países subdesenvolvidos.
Como resultado, no final do século XX, antagonismos violentos
imprevisíveis à filosofia política europeia estariam em ascensão, na
forma de conflitos raciais.
O primeiro é a onipresença do conflito racial neste planeta.
A situação racial é melhor nas Américas do Norte e do Sul
agora do que em, digamos, 1960; em qualquer outro lugar
do mundo, o inverso é verdadeiro. Onde quer que ocorra,
o conflito racial é amargo, implacável e assassino. A esse
respeito, não deve ser medido na mesma escala que o
703
conflito de classes, que é muito menos difundido e não tão
violento6 (LEWIS, 1985, p. 119, tradução nossa).
Nas novas nações recém-independentes, estadistas educados
na filosofia política europeia (segundo a qual o principal motor da
sociedade é o conflito de classe), como Kwame Nkrumah e o indiano
Jawaharlal Nehru, se surpreendiam ao perceber que a maior divisão
de seus países era em torno da língua, religião e associação tribal, com
as quais nunca aprenderam a lidar, enquanto nos EUA, por sua vez,
estaria em curso um processo de assimilação cultural que reduziria o
risco de uma explosão racial, evitável a depender da razão entre a
pressão dos subordinados por postos de trabalho de classe média
versus o ritmo de concessão de seus privilégios pelos dominantes
(LEWIS, 1985). Ambos os conflitos ainda podiam escalar muito antes
de começarem a diminuir rumo a uma convivência pacífica lado a
lado, razão pela qual parte do propósito da obra é sugerir como
organizar uma filosofia política adequada a estados multiétnicos. Até
lá, para Lewis (1985), a questão posta seria em que medida
movimentos rumo à equidade7, através do desenvolvimento
econômico, poderiam mitigar o conflito racial.
6
“First is the ubiquity of racial conflict on this planet. The racial situation is better
in North and South America now than it was in, say, 1960; everywhere else in the
world the reverse is true. Wherever it occurs, race conflict is bitter, ruthless, and
murderous. In this respect it is not to be measured on the same scale with class
conflict, which is much less widespread and not so violent” (LEWIS, 1985, p. 119).
7
Segundo o primeiro capítulo da obra (Economic Inequality), equidade é a
condição em que membros de ambas as raças ocupam igualmente todos os níveis
sociais. Não seria incompatível nem com especialização racial (grupos diferentes
não precisam ser igualmente representados em cada indústria, como sino-
americanos no setor de restaurantes, afro-americanos em serviços
governamentais, etc), nem com desigualdade de renda, a qual não decorre
necessariamente de discriminação (os grupos podem se distinguir em idade,
educação, ocupação, propriedades e região de residência).
704
Desigualdade econômica, de acordo com o primeiro capítulo
homônimo (LEWIS, 1985), está correlacionada diretamente com
classe, raça e relações étnicas, assim como indiretamente, através da
cultura (religião, língua, vestuário, estruturas familiares e dinâmicas
de relacionamento), sendo que “Pessoas no topo das classes sociais
discriminam aqueles nas baixas muito da mesma forma que uma
etnia ou grupo racial discrimina o outro” (LEWIS, 1985, p. 3-4,
tradução nossa)8. Essa discriminação se daria individualmente,
favorecendo seus membros na indicação para melhores trabalhos,
repudiando casamento entre grupos, segregando as habitações e
assim por diante e, sistematicamente, criando barreiras que
impediam a mobilidade social ascendente desses grupos.
Tal desigualdade exacerbava o conflito racial de quatro
maneiras: primeiro, reduzindo o respeito pelos subordinados, logo
permitindo livremente sua exploração pelos membros da raça que
concentrava desproporcionalmente o capital privado; nos EUA, por
exemplo, muitos brancos não teriam se oposto aos ataques do
Presidente Reagan aos pobres pois acreditavam que isso afetaria
majoritariamente os negros, quando estes na verdade constituíam
apenas um terço dos americanos abaixo da linha de pobreza.
Segundo, facilitando a exploração, minando as armas que os
subordinados poderiam usar para acrescer seu poder de barganha,
como dinheiro e influência, sem os quais não poderiam reivindicar a
mesma escolaridade, terras, infraestrutura, saneamento, crédito, etc.
(LEWIS, 1985). Terceiro, gerando inveja às diferenças raciais, em
especial quando, ao longo do desenvolvimento, processos históricos,
como o advento do comércio ou a revolução industrial, beneficiam
certos grupos tradicionalmente especializados na atividade em
8
"People in the top social classes discriminate against people in the lower social
classes in much the same way as one ethnic or racial group discriminates against
another" (LEWIS, 1985, p. 3-4).
705
destaque, elevando a tensão para com os empobrecidos,
especializados agora em atividades menos competitivas e modernas,
algo que teria ocorrido entre diferentes povos do Oriente Médio ao
longo do século XIX. Quarto, na medida em que empregadores,
negociantes e senhores de terra manipulam um grupo contra o outro,
furando greves, promovendo boicotes e outras práticas industriais
nocivas, pois mesmo que os líderes trabalhistas de qualquer um dos
lados divididos concordassem que a união é a melhor estratégia, ela
poderia não ser mais viável pois seus membros foram doutrinados
pelo racismo (LEWIS 1985).
Em suma, a raça desempenha a função de ferramenta de
exploração, “mantendo uma oferta abundante de exploração de mão
de obra não qualificada” e, simultaneamente, “oferecendo a baixa
renda do grupo subordinado como evidência de que eles não
poderiam usufruir inteligentemente de mais liberdade” (LEWIS,
1985, p. 9, tradução nossa)9. Para Lewis (1985), apesar de aterradoras,
essas desigualdades simultaneamente econômicas e raciais que se
acumulam e se retroalimentam no tempo seriam remediáveis em
algumas gerações, sendo possível e desejável instituir políticas
destinadas a equiparar oportunidades de desenvolvimento
econômico.
Se o racismo prevalece, então deve-se atacar suas
raízes psicológicas, as quais sobreviveriam mesmo
que a renda fosse equalizada. Ao passo que, se a
economia prevalecer, então seria no mercado que
as forças econômicas acabariam por derrubar toda
estrutura do racismo. Tal polarização parece
9
“Race also serves more generally as a tool of exploitation, maintaining an
abundant supply of unskilled labor, while at the same time offering the low
income of the subordinate group as evidence that it could not use more freedom
intelligently” (LEWIS, 1985, p. 9).
706
desnecessária. Dada a natureza das sociedades
humanas, interdependência mútua parece mais
provável que dominação linear. Equidade
econômica é necessária, mas não condição
suficiente para paz racial. As raízes psicológicas do
racismo devem também ser diretamente
destruídas, assim como por ação econômica e
política indiretas (LEWIS, 1985, p. 9, tradução
nossa10).
Por fim, é preciso entender que o conceito de Lewis (1985) de
“grupos subdesenvolvidos”, objeto central de estudo da referida
obra, engloba tanto países subdesenvolvidos (sobretudo os africanos,
caribenhos e latino-americanos) quanto comunidades
subdesenvolvidas em países desenvolvidos avançados (sobretudo a
população negra nos EUA), contemplando simultaneamente
indivíduos (trabalhadores, estudantes, intelectuais) e agregados
(povos, sociedades, países) brancos e não-brancos, sobretudo negros.
Assim, Lewis (1985) analisa as relações econômicas entre raça,
racismo e desenvolvimento alternando constantemente entre as
escalas local, regional e internacional. Essa perspectiva global,
adotada de modo semelhante por esta dissertação, se justifica
metodologicamente pela fundamentação teórica apresentada no
nosso primeiro capítulo, segundo a qual racismo e
10"If racism is dominant, then one must attack the psychological roots of racism,
which would survive even if income were equalized. Whereas, if the economy is
dominant then it would be in the marketplace that economic forces would
ultimately bring the whole structure of racism crumbling down. Such
polarization seems unnecessary. Given the nature of human societies, mutual
interdependence seems more likely than unilinear domination. Economic
equality is a necessary but not a sufficient condition for racial peace. The
psychological roots of racism have also to be destroyed directly, as well as by
indirect economic and political action" (LEWIS, 1985, p. 9).
707
subdesenvolvimento, bem como as desigualdades e assimetrias
sociais e mundiais que lhes aprofundam e dão forma, estão histórica
e materialmente interconectadas.
Isso posto, a perspectiva racial de desenvolvimento de Racial
Conflict and Economic Development (LEWIS, 1985) pode ser definida da
seguinte forma.
Culturalmente, pela hipótese central de que existe uma ética do
trabalho própria dos trabalhadores brancos dos países capitalistas
avançados pela qual os grupos subdesenvolvidos deveriam ser
aculturados em seu esforço por desenvolvimento. Assim como é
preciso atacar as raízes psicológicas e econômicas do racismo, que
impõe hereditariamente a inferioridade aos indivíduos e povos
negros, os grupos subdesenvolvidos devem fazer o melhor uso de
seus recursos, começando por revolucionar ideologicamente seus
valores culturais rumo ao Iluminismo. Como vimos, segundo Lewis
(1985), os grupos subdesenvolvidos precisam da transformação
ideológica em direção aos ideais iluministas de serviço e
empreendedorismo dos países avançados.
Socialmente, pela hipótese central de que, diante de uma
estrutura de forças cumulativas agindo contra grupos subordinados
racial ou etnicamente, impondo falhas estruturais à concorrência no
mercado de trabalho (sem a qual não se assegura o triunfo do mérito),
a busca pela equidade econômica capaz de evitar o conflito racial
exige reformas estruturais, inclusive através de ações afirmativas.
Porém, para romper o ciclo vicioso - dentro do qual as desigualdades
inibem seu maior poderoso destruidor, o crescimento econômico -
cabe às comunidades e povos negros se organizarem socialmente de
modo a reproduzir a civilidade e modernidade dos povos e
comunidades brancas, fundadas em princípios dualistas e
evolucionistas como competição, meritocracia e progresso. Como
708
vimos, segundo Lewis (1985), pessoas da classe trabalhadora e
grupos minoritários ascenderam socialmente por mérito próprio (isto
é, esforço, inteligência, empreendedorismo e competência próprias)
em muitas partes do mundo sem ação especial em sua defesa, o que,
no entanto, não significa que ações afirmativas não sejam necessárias.
Geopoliticamente, pela hipótese central de que, mesmo após as
independências nacionais, os povos subordinados podem e devem se
beneficiar das relações coloniais persistentes para se desenvolverem,
de modo que os líderes nacionalistas não podem se interpor à
rentabilidade dos desenvolvidos sobre o subdesenvolvidos, seja pelo
investimento externo ou pelos termos de troca de sua produção. Ao
contrário de combatida, a dependência assimétrica do comércio
internacional, sem a qual não teria havido a divisão racial do mundo
em países brancos ricos e não-brancos pobres, deve ser explorada ao
máximo, contando ou não com a cordialidade dos dominantes.
Quaisquer mudanças potenciais nessas relações não podem ser
estruturais (ou porque são impossíveis ou porque não seriam
estratégicas), limitando-se a alguma equalização da produtividade do
trabalho e, portanto, dos níveis salariais, bem como da estabilização
dos fluxos migratórios, sobretudo de trabalhadores qualificados.
Como vimos, para Lewis (1985), historicamente a relação entre
brancos e não brancos vinha mudando significativamente, com a
maioria dos países subdesenvolvidos reconhecendo que,
independentemente da generosidade ou mesquinhez dos países
industrializados, o maior esforço para o desenvolvimento deveria
partir deles próprios.
Conclusão
Sob um recorte analítico cultural fundamentado em Frantz
Fanon (1961), podemos afirmar que a perspectiva racial de
709
desenvolvimento de Lewis em The Theory of Economic Growth (1955)
compactuou com o resultado global perseguido conscientemente
pelo domínio colonial de convencer os nativos de que o colonialismo
representava desenvolvimento e a liberdade significaria o regresso à
barbárie e animalização, pacto parcialmente contestado em Racial
Conflict and Economic Development (1985), que transfere ao negro a
responsabilidade e capacidade de revolucionar ideologicamente sua
inferioridade cultural, rumo ao desenvolvimento.
De um recorte social fundamentado em Aníbal Quijano (2005),
é possível afirmar que a perspectiva racial de desenvolvimento de
Lewis (1955) era de que o subdesenvolvimento e a inferioridade racial
das nações pobres são manifestações naturais do fato de a civilização
humana ser uma trajetória do estado de natureza à Europa moderna,
enquanto que na obra de 1985 a inferiorização social dos grupos
subdesenvolvidos é entendida como uma estrutura arcaica contrária
ao próprio capitalismo contemporâneo, a ser superada através da
ascensão econômica desses grupos, condicionando a sua adequação
aos valores de progresso próprios dessa modernidade.
De um recorte geopolítico fundamentado em Walter Rodney
(1972), afirmamos que, ao ignorar a natureza de sua exploração em
defesa da dominação colonial visando a reprodução de padrões de
desenvolvimento euro ocidentais, Lewis (1955) demonstra uma
perspectiva racial do desenvolvimento própria dos porta-vozes
acadêmicos dos opressores, adaptando e reforçando tal posição em
1985, quando, tendo reconhecido o caráter neocolonial da
dependência assimétrica na economia internacional pós-
independências nacionais, advoga pela dependência como uma nova
janela de oportunidade para o crescimento econômico dos oprimidos,
a qual eles próprios deveriam explorar estrategicamente para se
desenvolverem.
710
Na obra de 1985, raça, racismo e subdesenvolvimento são
corretamente entendidas como uma estrutura pluridimensional
envolta de interdependências cumulativas e hereditárias,
representando ao mesmo tempo um conjunto de falhas de mercado
(de trabalho, habitação, educação e diversos outros) que devem ser
corrigidas economicamente, e de injustiças cujas raízes psicológicas
requerem transformações culturais e sociais, tanto ao nível individual
quanto geopolítico, nas esferas pública e privada, exigindo especial
atenção dos líderes políticos às circunstâncias raciais específicas de
cada contexto. Entretanto, além de permanecer atrelando o sentido
do desenvolvimento a reprodução, pelo colonizado, da forma
civilizatória do colonizador, tal transformação estrutural segue
condicionada, direta ou indiretamente, aos critérios de assimilação,
modernização e dependência – no limite, embranquecimento e
ocidentalização - postulados em 1955. Em suma, para Lewis,
independentemente de qualquer noção de dívida histórica, cabe aos
negros, em suas comunidades e nações, fazer jus11 aos postos que
desejam ocupar na escala social e global (LEWIS, 1985).
Convicto de que "A cura fundamental para a pobreza não é
dinheiro, mas conhecimento", sua máxima e epitáfio, fato é que Lewis
dedicou sua vida e obra, intelectual e politicamente, à produção dessa
11
Visão indissociável de sua educação familiar e formação intelectual sob
dominação britânica, a primeira numa colônia, uma ilha subdesenvolvida
majoritariamente negra dominada por uma elite branca, em um lar
intelectualmente privilegiado cujos filhos todos conseguiram, através das
dificuldades, prosperar, a segunda no epicentro do Império, em uma instituição
que materializava a teoria econômica dominante responsável pela ordem
econômica internacional. Conhecer essa trajetória evidencia na leitura de Racial
Conflict and Economic Development (1985) a crença do autor (proferida em uma
palestra na Universidade de Trinity em 1984 em celebração ao Prêmio Nobel) de
que “Sempre tive como certo que o que mais importa para o crescimento é fazer
o melhor uso dos recursos próprios, e que os eventos externos são secundários”
(SPENCER e MACPHERSON, 2020, sem página, tradução nossa).
711
cura, dedicação nítida em The Theory of Economic Growth (1955) e
Racial Conflict and Economic Development (1985). Ocorre que, a partir
de uma perspectiva crítica como a proposta por esta dissertação com
base na proposta epistemológica das Epistemologias do Sul (SOUSA
SANTOS, 2010), todo conhecimento se situa ou no lado dominante ou
no subalterno das relações de poder, sendo que lugar social e lugar
epistêmico não coincidem necessariamente (GROSFOGUEL, 2008).
Assim, apesar de socialmente ter lutado pelo desenvolvimento
dos subalternos, Lewis o fez munido da razão dominante,
epistemologicamente eurocêntrica e economicamente liberal12, a qual
distorceu sua interpretação de aspectos decisivos da realidade. Ao
contrário do que pensava Lewis (1955, 1985), cujos óculos de Pioneiro
da Economia do Desenvolvimento ainda não haviam sido ajustados
por interpretações menos eurocêntricas da realidade, como as de
Aníbal Quijano, Frantz Fanon, Walter Rodney e tantos outros
pensadores do Sul Global, o conhecimento econômico eurocêntrico
não pode curar a pobreza, pois pressupõe a supressão violenta de
qualquer prática social de conhecimento contrária à dinâmica
colonial do modo de produção capitalista.
Nossa consideração final é de que essas posições, a princípio
contraditórias, não são raras nas elites intelectuais das colônias
europeias subdesenvolvidas cujos membros estudaram e se
formaram nas desenvolvidas metrópoles, logo tampouco exclusivas
de Lewis. Esses aparentes paradoxos, se analisados criticamente (e
sobretudo racialmente), só tem a enriquecer, e não deslegitimar
pensamentos como o econômico lewisiano, o qual, sob essa ótica, se
12
Visto que escolas de pensamento enraizadas em teorias sociais em alguma
meida eurocêntricas, como o marxismo negro por exemplo, ao questionarem o
liberalismo político e econômico (enquanto ideologia que rejeita
sistematicamente a intervenção do Estado sobre as desigualdades
socioeconômicas interseccionais, urgentes e persistentes), ao invés de
compactuarem com ele, pretendem-se anti-hegemônicas.
712
torna uma excelente expressão da complexidade epistemológica do
desenvolvimento econômico, podendo servir de ferramenta para
decifrá-la.
Respondendo à pergunta de pesquisa, é inegável, diante dos
resultados alcançados, que houve diversas mudanças notáveis nas
concepções de raça e desenvolvimento entre The Theory of Economic
Growth (1955) e Racial Conflict and Economic Development (1985).
Concluímos, contudo, que tais mudanças não foram profundas o
suficiente para romper com o eurocentrismo racista, modernista e
imperialista de trinta anos que separam as obras analisadas, o que
denotaria uma transformação estrutural de sua compreensão racial
do desenvolvimento - apesar de indicarem, sem sombra de dúvida,
uma tendência à reorientação epistemológica. Com algum tempo,
talvez, seu lugar social e epistêmico acabassem, enfim, por coincidir.
Por fim, pensar racialmente o desenvolvimento, por mais
distorcido pelo eurocentrismo que tal pensamento possa ter sido,
permitiu a Arthur Lewis (1985) reconhecer que a razão hegemônica é
incapaz de endereçar apropriadamente conflitos raciais, momento em
que manifesta o intuito de vir a construir uma filosofia política
alternativa que contemple o conflito racial para além do de classe,
capaz de guiar a humanidade em um século ainda mais complexo,
como fica claro na última página de Racial Conflict and Economic
Development (1985):
No final, a economia não é suficiente. Pessoas de diferentes
raças, religiões e culturas devem aprender a viver
pacificamente umas com as outras e a desenvolver
instituições pluralistas e federais onde este é o único
caminho. O progresso econômico ajudará decisivamente,
mas o racismo tem suas próprias fontes psicológicas
profundas que devem ser drenadas diretamente. Aprender
713
a viver pacificamente um com o outro vai levar muito
tempo (LEWIS, 1985, p. 121, tradução nossa13).
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13
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cultures have to learn to live peacefully with each other, and to develop
pluralistic and federal institutions where this is the only way. Economic progress
will help decisevely, but racism has its own deep psychological springs that must
be drained directly. To learn to lve peacefully with each othe is going to take a
long time” (LEWIS, 1985, p. 121).
714
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717
Reconfiguração da política de assistência dos EUA para Colômbia
e México: crescimento do nexo entre segurança e desenvolvimento
João Estevam dos Santos Filho1
Resumo: O trabalho tem como objetivo compreender o que levou os
EUA a reconfigurar sua política de assistência de segurança para
Colômbia e México de um viés militarizado para uma ênfase maior
no nexo entre segurança e desenvolvimento. A hipótese identificada
é que essa mudança foi realizada com o objetivo de avançar o apoio
norte-americano à construção de uma ordem social neoliberal nesses
país para uma nova fase, focando na construção das relações sociais
de produção em territórios de instabilidade. A metodologia
empregada envolveu a análise dos programas de assistência de
segurança dos EUA através de seus dados numéricos em termos de
variação no volume de recursos transferidos para os dois países e do
conteúdo dos programas de assistência. Além disso foram analisados
os objetivos da nova assistência de segurança mediante análise
documental de relatórios de agências governamentais
estadunidenses. Para guiar a análise do trabalho, foi adotado um
referencial teórico baseado no conceito de nexo segurança-
desenvolvimento e de pacificação. Os resultados encontrados
indicam que a hipótese inicial pode ser corroborada, havendo uma
ligação entre as mudanças na assistência de segurança dos EUA para
1 PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP)
[email protected] 718
Colômbia e México e a construção de um ordenamento interno de
mercado nesses países.
Palavras-chave: Estados Unidos; Assistência de Segurança; América
Latina.
Introdução
Ao longo da segunda metade do século XX, os programas de
assistência de segurança dos EUA para países latino-americanos foi
um mecanismo importante na ordenação do sistema regional em
torno da hegemonia norte-americana, garantindo assim o apoio a
interesses norte-americanos nessas sociedades, especialmente no que
se refere à dinâmica do conflito bipolar (FITCH, 1993). A partir da
década de 1990, esses programas passaram por uma transformação,
menos por apresentarem um viés militarizado do que pela
modificação de seu conteúdo, agora voltado para o combate ao crime
organizado transnacional na região e à migração indocumentada –
ainda que a ajuda para o combate aos grupos armados internos ainda
continuasse. Essa política dos EUA foi consagrada na chamada nova
agenda de segurança hemisférica, para a qual Colômbia e México são
países fundamentais (LOVEMAN, 2006).
Entretanto, a partir dos anos 2010, uma nova orientação foi dada
aos programas de assistência estadunidenses para esses dois países
através de uma ênfase no entrelaçamento entre garantia da segurança
nesses países (e nos próprios EUA) com políticas de desenvolvimento
socioeconômico. Nesse sentido, o objetivo deste trabalho é
compreender o que levou a essa modificação. A hipótese identificada
é que essa mudança foi realizada com o objetivo de avançar o apoio
norte-americano à construção de uma ordem social neoliberal nesses
país para uma nova fase, focando na construção das relações sociais
de produção em territórios de instabilidade.
719
A fim de guiar o entendimento sobre o papel desempenhado
pela assistência de segurança na construção da ordem social interna
foi realizada foram empregado o conceito de pacificação, conforme
abordado por Neocleous (2011) e Baron et al (2019), a fim de
identificar o modo como a segurança é empregada na conformação
das relações sociais – inclusive as cristalizadas nas instituições de
Estado –, tratando, portanto, da conformação das relações entre os
diferentes grupos sociais internos. Além disso, a análise da assistência
voltada para o desenvolvimento socioeconômico é realizada com
ajuda do conceito de nexo segurança-desenvolvimento, conforme
empregado por Duffield (2001; 2007) e Sanahuja (2012).
No que se refere à metodologia empregada, foram coletados os
valores da transferência dos recursos dos programas de assistência de
segurança para Colômbia e México, juntamente com os números das
quantidades de militares treinados através de bases de dados
internacionais, como o Security Assistance Monitor e o SIPRI Arms
Transfers Database. Com essas informações, tem-se uma maior
dimensão do conteúdo da assistência de segurança, podendo
identificar o grau de sua militarização, bem como seus objetivos
gerais.
Além disso, foram realizadas análises de documentos públicos
sobre as políticas de assistência norte-americana para Colômbia e
México, como os relatórios do Congress Research Service e da
USAID. Através desses documentos, foram coletadas informações
sobre as modificações implementadas na ajuda dos EUA por essas
instituições, a fim de determinar seu conteúdo e sentido. Também
com esses documentos foi possível analisar alguns termos-chave que
explicam os interesses dos tomadores de decisão na execução dessas
políticas de assistência tanto no caso colombiano, quanto no
mexicano.
O presente artigo está dividido em cinco seções, sendo a
primeira esta introdução. Na segunda seção, é realizada uma
720
discussão sobre a estruturação da assistência de segurança dos EUA
de modo geral, bem como é elaborado o referencial teórico a ser
utilizado no trabalho, especialmente a partir do conceito de
pacificação. Na terceira seção, é identificado como foi elaborada a
assistência militarizada para Colômbia e México nas décadas de 1990
e 2000, bem como o sentido desse tipo de ajuda. Já na quarta seção, é
analisada a nova etapa de assistência de segurança, baseada em um
maior nexo entre segurança e desenvolvimento e como esse
fenômeno entrelaça-se com a criação de uma ordem social interna de
mercado. Por fim, a quinta seção aborda as considerações finais do
trabalhando, avaliando a hipótese de trabalho.
Assistência de segurança e construção da ordem interna
De maneira geral, é entendido que a assistência de segurança
pode ser empregada para influenciar o contexto político doméstico
do país receptor. Nesse sentido, Fitch (1993) argumenta que existem
duas formas mais tradicionais de compreender essa influência: há
uma visão mais direta, também denominada de “barganha”, segundo
a qual um Estado influenciaria o outro por meio de programas de
assistência de segurança mediante incentivos/desincentivos ao outro,
o que consistiria em uma barganha política. Por outro lado, haveria
outra forma de influência mais indireta, identificada com a
“doutrinação”, ou seja, a compreensão de que um Estado exerce esse
poder sobre o outro mediante esses programas alterando a própria
subjetividade dos atores, a fim de encaixarem-se com os interesses do
Estado que proporciona a ajuda.
Apesar dessa dicotomia na forma de enxergar o papel político
dos programas de assistência de segurança, seria válido interpretá-
las em termos função social exercida por elas, ou seja, de que forma
influenciam as bases sociais e econômicas do ordenamento político
dos países receptores. Nesse sentido, Kaldor (1986) já identificava que
721
a incorporação de tecnologia militar no aparato produtivo do Estado
que recebe a assistência, especialmente quando se tratar de países
periféricos, tem-se um processo similar àquele da manutenção da
posição de dependência dessas sociedades no sistema econômico
internacional, a partir das alterações na própria estrutura social e
econômica daquele Estado. Da mesma forma, Jaguaribe (1979)
também entendia que esse processo levava a uma posição de
dependência estratégica do Estado em relação à potência hegemônica
do sistema, sobretudo no que tange ao papel exercido pelas forças
militares de país periférico – ou seja, torna-se alinhada aos interesses
do Estado hegemônico naquele sistema regional ou internacional.
Em que pese esses autores visualizem elementos mais
profundos da assistência de segurança, sua concepção está muito
focada no aspecto militar – sem compreender a segurança dos
Estados de uma perspectiva mais holística. Em primeiro lugar, cabe
afirmar que quando se trata da segurança, esta deve ser entendida
como matéria de mais de uma instituição, sendo possível abarcar
forças militares, polícias e o aparato judicial do Estado. Dessa forma,
teríamos um todo não de todo coeso, mas respondendo a objetivos
similares, que podemos denominar aparelhos de segurança do
Estado2.
Em segundo lugar, diferentemente da compreensão de autores
que compreendem o papel desses aparelhos como sendo
principalmente o de reprimir as reivindicações da classe
trabalhadora, conforme o entendimento de Althusser (1980) e
Poulantzas (1977), entende-se aqui que seu objetivo central está
ligado à criação e reprodução de uma ordem social interna, o que tem
se ligado historicamente a própria criação de uma sociedade
capitalista. Conforme elaborado por Foucault (2016), o objetivo das
2Não se considera aqui que esses aparelhos de segurança possuem um mesmo
objetivo, sendo praticamente indistinguíveis uns dos outros, como afirmado por
Althusser (1990).
722
formas sociais que assumem um papel punitivo está vinculado ao
aparato produtivo não através meramente do exercício da repressão,
mas buscando fixar os indivíduos nesse mesmo aparato através de
uma série de instâncias de poder punitivas e de vigilância, cujo
objetivo é a criação de uma nova subjetividade nos indivíduos,
modelando seus comportamentos de acordo com os interesses
ligados a esse aparato. Desse modo, o papel dos aparelhos de
segurança de um Estado está vinculado com a reprodução e
manutenção de um determinado tipo de ordem social que, por sua
vez, é definida a partir do aparato produtivo que a estrutura.
Assim, pode-se afirmar que o objetivo trazido pela assistência
de segurança não trata apenas de induzir as forças militares a um
determinado objetivo político, mas de contribuir com a própria
manutenção do ordenamento social interno que está sendo criado e
que é apoiado por atores de outras sociedades, mas que possuem
interesse nessa ordem, como no caso das elites políticas e econômicas
dos EUA (AVILÉS, 2017). Nesse sentido, a assistência de segurança
atua como um processo de pacificação; segundo Neocleous (2011),
esta se destina à criação de uma ordem social capitalista baseada na
propagação das relações sociais de produção de mercado. Esse
fenômeno é feito através de duas dimensões: a primeira de cunho
mais negativo (destrutivo), voltado para a eliminação dos grupos
sociais e fenômenos geradores de instabilidade para aquela ordem.
Ao mesmo tempo, tem-se uma dimensão positiva (construtiva), na
medida em que esses aparelhos de segurança criam as condições
sociais e institucionais para a proliferação desse sistema de relações
sociais de produção.
Predomínio da assistência militarizada
A partir da década de 1980, a política dos EUA para a América
Latina focou na assistência militarizada na área de segurança como
723
forma de responder a existência de grupos armados de esquerda e o
incremento no tráfico de drogas. Isso ficou ainda mais patente com a
nova agenda hemisférica de segurança durante a década de 1990,
segundo a qual as principais preocupações dos tomadores de decisão
no continente deveriam ser o aumento do crime organizado
transnacional e da imigração indocumentada (HERZ, 2002). Nesse
sentido, a assistência de segurança norte-americana especificamente
para Colômbia e México durante a década de 2000 esteve
fundamentada em um contexto mais amplo de incremento da ajuda
militar com vistas a combater o que eram consideradas como fontes
de instabilidade para os países da região e, consequentemente, dos
próprios EUA.
No que se refere às relações com Colômbia, o principal meio de
assistência dos EUA para o país foi o Plano Colômbia, criado em 1999
e implementado a partir de 2000. Inicialmente pensado como um
mecanismo de ajuda ao desenvolvimento econômico do país andino,
por pressão dos tomadores de decisão norte-americanos, o plano
passou a ser uma resposta militarizada inicialmente para o combate
ao narcotráfico e, a partir de 2003, um apoio ao Estado colombiano na
luta contra as organizações guerrilheiras, especialmente as FARC
(ROJAS, 2015). Em que pese essa separação tenha ocorrido
formalmente como requerimento do Congresso dos EUA, na prática,
a assistência prestada por técnicos estadunidenses às tropas
colombianas não faziam distinção entre ação antidrogas e
contrainsurgente – o que permitiu que parte dos recursos
administrados pelo Plano Colômbia fossem utilizados na luta contra
as guerrilhas, ainda que informalmente (AVILÉS, 2017).
Em termos quantitativos, em 2000 foram transferidos um total
de US$ 999,5 milhões para ajuda contra o narcotráfico não apenas
para Colômbia, mas também para Bolívia, Brasil, Equador, Panamá,
724
Peru e Venezuela3. Entre 2001 e 2007, a assistência norte-americana
para a Colômbia passou de US$ 229,5 milhões para US$ 1,4 bilhão –
tendo caído nos anos seguintes. Desses valores, até 2007, grande parte
dos recursos eram destinados para o combate militarizado ao crime
organizado por meio dos programas International Narcotics Control
and Law Enforcement (INCLE) e Section 1004 Counterdrug
Assistance (CIP, 2023a). Além dos recursos financeiros, foi visto um
aumento significativo no número de militares treinados por técnicos
norte-americanos4 entre 2000 e 2007, passando de 1.241 para 14.408
(CIP, 2023b).
Em termos qualitativos, a assistência destinou-se
principalmente para o envio de armamentos e outros equipamentos
tecnológicos voltados para o combate contrainsurgente e antidrogas,
como aeronaves de combate e de transporte, especialmente
helicópteros; radares baseados em terra e a serem acoplados em
aeronaves e embarcações fluviais (SIPRI, 2023). Além do mais, parte
da assistência norte-americano foi voltada para fortalecer o sistema
nacional de inteligência da Colômbia, especialmente através de ajuda
à Central de Inteligência Conjunta, a partir de equipamentos e
treinamentos proporcionados pelo Comando Sul dos EUA
(SOUTHCOM) (ROJAS, 2015).
Além disso, a assistência de segurança norte-americana durante
a década de 2000 focou na ajuda à criação de novas unidades
operacionais das Forças Armadas colombianas, como no caso da
Força Tarefa Conjunta do Sul; a Brigada Antidrogas do Exército
Nacional; a Brigada de Aviação do Exército, a Força de Emprego
3
Posteriormente, a assistência de segurança para esses países seria realizada
através de um programa próprio, denominado Iniciativa Regional Andina (IRA)
(PIZARRO; GAITÁN, 2006).
4 A maior parte desses treinamentos ocorrem em academias militares norte-
americanas – sendo os treinamentos destinados principalmente para os oficiais
das Forças Armadas colombianas (CIP, 2023b).
725
Rápido, bem como batalhões de forças especiais e uma brigada
juntamente com um batalhão móvel, ambos destinados à proteção
das instalações do oleoduto Caño-Limón5 (VARGAS, 2012; ROJAS,
2015). Dessa forma, o propósito da assistência de segurança dos EUA
para o país andino na década de 2000 – especialmente até 2007 – foi
apoiar a reforma militar em curso para torna-la mais efetiva contra as
fontes de instabilidade que ameaçavam a construção da ordem social
de mercado, que vinha se desenvolvendo desde a década de 1980.
Por sua vez, no que se refere ao caso do México, ainda que tenha
havido algumas diferenças envolvendo o montante dos valores e seu
próprio conteúdo, a assistência norte-americana também foi marcado
por um processo de militarização, visando assegurar a proteção do
Estado mexicano e da ordem social de mercado que estava sendo
criada, contra os grupos guerrilheiros atuantes no sul do país, bem
como em relação aos cartéis de drogas. Nesse sentido, com a
mobilização do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) em
Chiapas e do Exército Popular Revolucionário (EPR) no sul do
território, a assistência norte-americana durante a segunda metade da
década de 1990 também focou no combate contrainsurgente, através
do apoio tecnológico e doutrinário à criação das duas principais
unidades de operações especiais das Forças Armadas mexicanas: os
Grupos Aermóveis de Forças Especiais (que atualmente denominam-
se Corpos de Forças Especiais) e os GANFES (Grupos Anfíbios de
Forças Especiais) (TURBIVILLE JR., 2010).
Entretanto, durante a década de 2000, a maior parte da
assistência de segurança dos EUA para o México focou dois temas
centrais: em primeiro lugar (e com maior prioridade), o esforço contra
o crime organizado, especialmente os grupos ligados ao narcotráfico
e, em segundo lugar, a imigração indocumentada nas fronteiras norte
5As instalações do oleoduto (um dos principais do país e pertencente à BP) foram
alvos de ataques das FARC e do ELN na luta armada.
726
(com EUA) e sul (com América Central). Nesse último caso, houve
uma atenção especial para os países do Triângulo Norte (El Salvador,
Guatemala e Honduras). Já no início da década foram criados dois
principais marcos na cooperação entre os dois países em matéria de
segurança interna: a primeira foi a assinatura dos Acordos de
Fronteiras Inteligentes em 2002, no contexto de início da Guerra
Global ao Terror e a segunda foi a criação da Aliança para a Segurança
e Prosperidade da América do Norte (ASPAN) em 2006 (BENÍTEZ,
2009).
Entretanto, o programa de assistência de segurança dos EUA
para o México nesse período foi a Iniciativa Mérida, que esteve
centrada na transferência de recursos tecnológicos (armamentos e
demais equipamentos militares e de segurança) e no aumento do
treinamento de militares mexicanos. A iniciativa foi dividida em três
componentes principais: combate ao terrorismo, combate ao
narcotráfico e segurança de fronteira; segurança pública e estado de
direito e, por fim, fortalecimento de instituições e procuração de
justiça – sendo o primeiro componente, o que mais recebeu recursos
nos dois primeiros anos de vigência da Iniciativa Mérida (cerca de
US$ 500 milhões). De maneira similar ao Plano Colômbia, a
assistência de segurança através foi realizada mediante a
transferência de aeronaves de transporte, patrulha e reconhecimento;
equipamentos de visão noturna; hardwares e softwares para escanear
e analisar indivíduos em portos no território mexicano –
especialmente em regiões de fronteira; instalação de rede satelital e
integração parcial dos sistemas de inteligência dos EUA, México e
América Central (LUNA, 2010; PINZÓN, 2016).
Em termos quantitativos gerais, a assistência de segurança dos
EUA para o México na segunda metade da década de 1990 sofreu
relativo decréscimo entre 1996 e 2000, passando de US$ 41,5 milhões
para US$ 22,8 milhões – apesar de ter sofrido aumento em 1997,
chegando a US$ 75,2 milhões nesse ano. Entretanto, a partir de 2004
727
esses valores começam a aumentar, passando de US$ 26,9 milhões em
2003 para US$ 291,7 milhões em 2010 – tendo chegado a US$ 743,3
milhões em 2009, ou seja, no segundo ano de execução orçamentária
da Iniciativa Mérida (CIP, 2023a). Como visto, grande parte desses
valores foi destinada para o apoio às Forças Armadas e a instituições
de segurança pública, com a finalidade de lutar contra a violência
ligada ao narcotráfico, bem como a imigração indocumentada. Isso
pode ser visto inclusive pela variação de militares mexicanos
treinados por técnicos estadunidenses, que cresceu de 520 para 801
em 2010 – tendo alcançado a quantidade de 5.637 em 2009 (CIP,
2023b).
Os dados sobre a assistência de segurança dos EUA para
Colômbia e México indicam que a transferência de recursos pelas
instituições governamentais norte-americanas, especialmente do
Departamento de Estado e do Departamento de Defesa privilegiou o
apoio à resposta militarizada das forças de segurança dos dois países
latino-americanos de acordos com suas respectivas ameaças à
segurança interna. Tanto no primeiro quanto no segundo casos,
enfocou-se o combate aos grupos guerrilheiros e ao narcotráfico –
ainda que no México apenas o segundo fenômeno tenha sido
enfatizado na década de 2000. Digno de nota é o fato de que em
nenhum dos casos o combate aos grupos paramilitares surgidos na
década de 1990 recebeu tanta atenção por parte das forças de
segurança dos dois Estados, tendo inclusive recebido apoio expresso
ou velado durante esse período e ainda na década seguinte.
Essa dinâmica de assistência de segurança dos EUA para os
dois casos pode ser compreendida como a primeira etapa de um
processo de construção de uma ordem social de mercado (neoliberal)
que tinha se iniciado nas décadas de 1980 e 1990, respectivamente,
nos casos de Colômbia e México. Como afirma Estrada (2006; 2015), a
militarização da segurança interna é um dos componentes da
construção de uma ordem neoliberal na Colômbia, na medida em que
728
a escalada do conflito armado colocava em ameaça a própria
existência do Estado capitalista e das relações sociais de produção que
o fundamentam. Assim, a partir da década de 1990, “o bloco de poder
contrainsurgente adquiriu novos traços e produziu uma nova
disposição tática dos objetivos de preservação e reprodução do poder
de classe” (ESTRADA, 2015, p. 34), o que implicou na reformulação
dos componentes do esforço contra as insurgências. Nesse contexto,
a inserção do conflito armado colombiano na estratégia regional
norte-americana através dos novos programas de assistência de
segurança, especialmente o Plano Colômbia, foi um dos componentes
dessa nova disposição tática contrainsurgente.
No que tange ao México, apesar das diferenças políticas
internas, também aqui a construção de um ordenamento social
neoliberal ensejava a militarização da sociedade. Dessa forma, tanto
Watt e Zepeda (2012), quanto Paley (2014) afirmam que a assistência
de segurança dos EUA para a guerra às drogas no México é um
mecanismo que visa o controle social e a redução na mobilidade das
populações, permitindo que espaços ainda não incorporados pela
acumulação de capital sejam integrados a um sistema de relações de
produção tipicamente de mercado e, no caso do processo que se deu
durante a primeira década do século XXI, de cortes neoliberais.
Além das dinâmicas sociais próprias do território mexicano,
convém destacar que a implementação de um projeto político
neoliberal de alcance regional, tanto através do NAFTA, quanto pelo
acordo CAFTA-DR acaba levando a uma série de constrangimentos
socioeconômicos sobre as populações dessas localidades. O resultado
desse processo é o aumento de deslocados internos
concomitantemente ao da imigração indocumentada, fazendo-se por
isso necessário a militarização da segurança fronteiriça como forma
de reduzir a instabilidade especialmente no centro desenvolvimento,
nesse caso, os EUA. Por isso, Mercille (2011) fala da Iniciativa Mérida
como uma “blindagem” do NAFTA.
729
Portanto, é possível entender a militarização da assistência de
segurança norte-americana para os dois Estados latino-americanos
citados como uma primeira etapa no processo de construção de um
ordenamento político-social neoliberal. Essa primeira etapa liga-se
com o conceito de pacificação, conforme elaborado por Neocleous
(2011), pois consiste no uso da violência armada em uma dimensão
destrutiva, na medida em que se destina a reprimir os focos de
instabilidade social contra a construção de um sistema de relações de
produção de mercado no interior das sociedades em questão.
Importante lembrar que, por meio dessa pacificação, é garantida a
segurança não somente da propriedade privada e das classes que
gravitam em torno de seu sistema de relações de produção, como
também do próprio ordenamento social como um todo, já que ele é o
meio pelo qual o próprio processo de acumulação é engendrado.
Cabe agora identificar como se articulou a segunda etapa dessa
pacificação, ou seja, por meio de um maior nexo entre segurança e
desenvolvimento.
Nova política de assistência de segurança
A partir do final da década de 2000 e, principalmente, desde a
década de 2010, ou seja, durante a administração de Barack H. Obama
(2009-2017), a política de assistência dos EUA para a América Latina
passou por uma significativa modificação. Primeiramente, houve
uma diminuição nos níveis da ajuda de segurança em relação à
década anterior (CIP, 2023a). Por outro lado, principalmente em
relação aos principais receptores, seu conteúdo passou a apresentar
uma redução no componente especificamente militar, o que deu a
entender que a política securitária dos EUA para a região estaria
passando por uma mudança de paradigma, o que fica ainda mais
claro na análise dos casos de Colômbia e México.
730
Quanto ao primeiro, em termos quantitativos, a assistência de
segurança passou por uma diminuição total entre 2010 e 2020,
declinando de US$ 437,3 milhões para US$ 248,3 milhões (CIP, 2023a).
Em termos específicos, houve uma diminuição do componente
militar do Plano Colômbia, especialmente da Section 1004
Counterdrug Assistance e do Foreign Military Financing, ao mesmo
tempo em que a iniciativa passou a contar com valores destinados ao
Economic Support Funding, ou seja, ao programa de ajuda
econômica a partir de 2008 (BEITTEL, 2010; 2019). Por outro lado, foi
verificado um declínio na quantidade de militares colombianos
treinados por técnicos norte-americanos, que passou de 4.249 para
1.586 entre 2010 e 2019 (CIP, 2023b).
Em termos qualitativos, o que se viu foi um aumento do apoio
norte-americano a projetos de desenvolvimento socioeconômico
voltados para áreas afetadas pelo conflito armado interno,
especialmente aqueles ligados ao Plano Consolidação do governo
colombiano, iniciado a partir de 2008, como demonstrado pela criação
do Colombia Strategic Development Initiative entre 2009 e 2013
(ROJAS, 2015; BEITTEL, 2019). Com esse programa, os tomadores de
decisão nos EUA apoiaram os investimentos socioeconômicos do
Estado colombiano em territórios antes dominados pelas guerrilhas.
Embora iniciado em 2008, o Plano Condolidação continuou durante
o governo de Juan Manuel Santos (2014-2018), continuando a ser
apoiado pelos EUA, sobretudo a partir da USAID e do Departamento
de Estado – as duas principais instituições que mantiveram
transferências de recursos para programas de assistência de
segurança em direção ao país andino (BEITTEL, 2019).
Outro programa significativo nesse momento foi o Country
Development Cooperation Strategy (CDCS), que tem contado com
duas edições: uma para os anos de 2014 a 2018 e a segunda para 2020
a 2025. Ambos programas têm sido voltados para continuar os
investimentos realizados em áreas marginalizadas do país, o que tem
731
sido realizado via capitais privados, vinculados a empresas nacionais
e transnacionais. Esses investimentos têm incluído as áreas de
agricultura, construção civil, prospecção de mercados, inserção no
mercado de trabalho, energia sustentável, dentre outras (USAID,
2014; 2020).
Outro programa de assistência de segurança significativo para
a Colômbia na década de 2010 foi o Paz Colômbia, criado em 2016, no
mesmo ano de conclusão e assinatura dos Acordos de Havana entre
o Governo Nacional e as FARC. Essa iniciativa atingiu o valor de US$
391,3 milhões e a maior parte dos recursos foram direcionados para
ajuda socioeconômica, sobretudo no apoio às vítimas do conflito e
comunidades indígenas e afro-colombianas e para a reforma de
instituições de segurança civis do Estado, especialmente o setor
judicial. Nesse sentido, uma parcela pequena – equivalente a US$ 59,5
milhões – foi destinada à assistência militar antidrogas e
contrainsurgente (BEITTEL, 2019).
No referente ao México, em termos quantitativos, houve uma
diminuição significativa da assistência de segurança entre 2010 e
2020, tendo passado de US$ 291,7 milhões para US$ 107,9 milhões –
tendo chegado inclusive a meros US$ 8,9 milhões no ano seguinte
(CIP, 2023a). Também aqui cabe afirmar que o componente
militarizado da Iniciativa Mérida sofreu uma queda, com o
componente representado pelo Foreign Military Financing sendo
excluído a partir de 2012, ao mesmo tempo em que a ajuda econômica
(Economic Support Funding) cresceu durante o período; ademais,
desde a segunda metade da década de 2010, a Development
Assistance ganhou espaço na ajuda norte-americana ao Estado
mexicano (SEELKE; FINKLEA, 2017). De semelhante modo, houve
uma diminuição importante na quantidade de militares mexicanos
treinados por instrutores estadunidenses: apesar de entre 2010 e 2014
ter havido um aumento substancial de 801 para 3.213, entre 2015 e
2019, houve uma queda vertiginosa de 2.874 para 223 (CIP, 2023b).
732
Na dimensão qualitativa, a assistência de segurança para o
México passou por uma transformação similar ao do caso
colombiano, pois também neste caso, foram criados projetos de
desenvolvimento socioeconômico, voltados para a reestruturação de
localidades afetadas pela violência armada no país. Dessa forma, a
Iniciativa Mérida foi reformulada no governo Obama a partir de
quatro pilares: ruptura dos grupos de crime organizado;
institucionalização do império da lei com proteção de direitos
humanos; criação de uma fronteira do século XXI e construção de
comunidades fortes e resilientes (SEELKE; FINKLEA, 2017). Esses
pontos implicavam no apoio à militarização da segurança interna
mexicana – ainda que sob bases quantitativas menores –, porém com
uma renovada ênfase na criação de projeção de inserção das
populações das regiões de fronteiras e de comunidades afetadas pela
violência do crime organizado. Esse objetivo foi mantido na nova
parceria entre EUA e México na área de segurança, denominada
Enquadramento Bicentenário, criada em 2021, no governo de Joseph
Biden (SEELKE, 2022).
Atrelado a essa nova perspectiva da assistência de segurança
norte-americana para o país asteca, foram criadas duas edições do
CDCS. Em que pese na primeira edição os projetos vinculados à
temática do desenvolvimento sejam implementados a partir do
paradigma da transição energética e da economia sustentável, na
segunda edição é possível observar uma modificação dessa ênfase.
Isso ocorre porque, na edição de 2020-2025, é verificada uma
preocupação maior com o apoio a produtores locais, tanto empresas
em ambientes urbanos, quanto agricultores mexicanos. Também é
tratada da inserção da população jovem nas relações sociais de
produção via inclusão no mercado de trabalho e é dado um apoio aos
projetos de desenvolvimento do Estado mexicano para os países da
América Central (USAID, 2022). Esses fatos indicam que a assistência
de segurança dos EUA para o México tem compreendido os temas de
733
instabilidade, como narcotráfico e imigração indocumentada, a partir
do nexo entre segurança e desenvolvimento.
A análise dos programas de ajuda estadunidense a partir da
década de 2010 até o momento atual permite visualizar uma dupla
dinâmica: em primeiro lugar, consolida-se a diminuição ou
estagnação da assistência especificamente militar tanto para
Colômbia, quanto para México – em que pese esses processos não
sejam totalmente coincidentes em marco temporal, pois no caso
colombiano esse fenômeno é visto mais cedo (mais precisamente, já a
partir de 2008, no último ano do governo Bush). Por outro lado, tem-
se o incremento da assistência que atrela a garantia da segurança à
promoção do desenvolvimento, o que demonstra a liderança da
USAID e do Departamento de Estado nesse processo.
Quanto a esse duplo processo, cabe duas avaliações:
primeiramente, é significativo compreender que a temática do
desenvolvimento a partir desses programas possui um sentido
essencialmente “mercadocêntrico”, como demonstra a própria
origem dos capitais arregimentados pela USAID nos CDCS e em
outros programas de assistência. É dessa maneira que é buscada a
autossuficiência nas sociedades periféficas de que fala Duffield
(2007). Ou seja, o que é visado não é a construção de um Estado de
bem-estar ou uma estrutura institucional análoga a ele, mas o
fomento à resiliência e autossuficiências das comunidades a partir da
estruturação das relações sociais de mercado.
Em segundo lugar, o apontamento feito no parágrafo anterior
consiste na própria dimensão positiva (construtiva) do processo de
pacificação engendrado pela assistência norte-americana à Colômbia
e ao México. A integração de populações antes marginalizadas dos
circuitos de produção, troca e consumo através de uma nova
socialização – bem como uma nova subjetivação – através do
mercado, criando dessa forma, indivíduos que se inserem em
contextos sociais onde a competição é o principal referente de
734
socialização é a própria essência da criação de um ordenamento social
neoliberal. Assim, criar comunidades resilientes (termo enfatizado
pelos documentos da USAID) e autossuficientes significa criar um
novo ordenamento social nesses países. Portanto, completa-se nesta
nova etapa da assistência de segurança o processo iniciado na década
de 1990 pela ajuda militarizada a esses Estados.
Considerações finais
O presente trabalho teve como objetivo compreender a
modificação sofrida pelos programas de assistência de segurança dos
EUA destinados a Colômbia e México entre meados da década de
1990 a até o presente momento. A hipótese preliminar postulava que
essa mudança se deveu à implementação de uma nova etapa no
esforço norte-americano de dar suporte à construção de uma ordem
social neoliberal em ambos países.
Como foi visto, esse processo ocorreu em dois momentos: entre
a década de 1990 e 2000, foi mais significativo o componente negativo
(destrutivo) do processo de pacificação vigente nessas sociedades –
destinado a neutralizar a ação e existência dos grupos e fenômenos
sociais que apresentavam ameaça à reprodução da ordem social de
mercado. Isso foi visto a partir da elaboração e execução de
programas de assistência de segurança, cujo conteúdo apresentava
um forte componente de militarização e dos quais os principais
exemplos foram o Plano Colômbia e a Iniciativa Mérida.
Já a partir da década de 2010, foi verificada uma reversão do
componente militarizado, que deu maior espaço para uma ênfase
socioeconômica, destinada à inclusão das populações afetadas pela
violência armada provinda dos confrontos ligados ao crime
organizado e aos conflitos armados internos com os grupos
guerrilheiros. Através de projetos capitaneados pela USAID e pelo
Departamento de Estado e com a criação de novos programas de
735
assistência para Colômbia e reconfiguração dos já existentes no caso
mexicano, o que houve nesse momento pode ser descrito como a
inauguração e consolidação de uma nova etapa desse processo de
pacificação nessas sociedades, focado na integração daquelas
populações às relações sociais de produção de mercado, ou seja, de
corte especificamente neoliberal. Dessa forma, entende-se que a
hipótese inicialmente aventada tem sido corroborada pela presente
pesquisa.
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739
Reforços institucionais à divisão internacional do trabalho?: as interações
do Brasil no comitê de subsídios e medidas compensatórias da OMC
(1995-2015)
Guilherme Fenício Alves Macedo1
Lucas Milanez de Lima Almeida2
Cristina Carvalho Pacheco3
Resumo: Ao considerar as novas particularidades do regime multilateral
do comércio no pós-OMC, este trabalho tem por objetivo avaliar, sob uma
perspectiva dependentista-marxista, o comportamento multilateral da
delegação brasileira no Comitê de Subsídios e Medidas Compensatórias
da OMC (CSMC-OMC), entre 1995 e 2015. Neste ínterim, a presente
investigação, de abordagem quanti-qualitativa, de método hipotético-
indutivo, se deu mediante a Análise de Conteúdo (AC) de técnica de
codificação temática e a Revisão de Literatura não-sistemática (RL), tendo
como estratégia de pesquisa o modelo de estudo de caso único. No
primeiro momento foram apresentadas as definições teórico-
1
Mestrando pelo Programa de Relações Internacionais da Universidade Estadual da
Paraíba (PPGRI-UEPB), guilhermefení[email protected], João Pessoa, Brasil.
2
Professor do Programa de Relações Internacionais da Universidade Estadual da
Paraíba (PPGRI-UEPB), [email protected], João Pessoa, Brasil.
3Professora do Programa de Relações Internacionais da Universidade Estadual da
Paraíba (PPGRI-UEPB), [email protected], João Pessoa, Brasil.
740
metodológicas adotadas. No segundo momento foram explorados e
categorizados um total de 61 documentos oficiais de comunicação entre o
Brasil e os Estados-Membros no CSMC-OMC, coletados através do
sistema eletrônico da organização. Os resultados apontam que apesar de
um comportamento unilateral omisso em determinadas políticas de
subsídios com o objetivo de atender as demandas do bloco no poder ao
longo do marco contemporâneo da economia política brasileira, a
delegação brasileira foi enquadrada a uma posição defensiva em função
dos questionamentos emitidos pelos países do centro capitalista global,
em especial a setores vinculados à produção de bens de médio-alto e alto
emprego técnico.
Palavras-chave: Dependência; OMC; Brasil; Subsídios.
Introdução
Ao longo das décadas que sucederam o nascimento da Teoria
Marxista da Dependência (TMD), muitos estudos têm se voltado às ações
dos países centrais nas instituições econômicas internacionais, as quais
evidenciam práticas de fiscalização e vigilância destes acerca do
comportamento governamental dos países periféricos e do seu lugar na
divisão internacional do trabalho. Além da ação dos oligopólios globais
contra a ascensão de novos concorrentes, a crítica da TMD sobre os rumos
que trilham a contínua adaptação da estrutura produtiva na periferia
global no intercâmbio global de bens tem endossado a validade de
categorias da TMD paraa análise do capitalismo dependente brasileiro e
do subimperialismo.
Considerados como um importante instrumento político comercial,
os subsídios têm sido observados como uma questão cara à evolução e
consolidação do Sistema Multilateral de Comércio ao longo das últimas
décadas (Thorstensen, 1998; Stoler, 2009). Neste sentido, Thouvenin
741
(2004)4 compreende a utilização de subsídios como uma prática que
abrange uma ampla categorização de iniciativas de políticas públicas de
comércio, cujos efeitos perpassam países com diferentes níveis de
desenvolvimento. De modo sintético, Goyos Júnior (2003) conceitua
subsídios como a somatória de incentivos e auxílios concedidos pelo
Poder Público, que, de modo direto ou indireto, concedem benefícios aos
atores econômicos domésticos, sejam eles consumidores ou produtores.
Além do mais, quando aplicados à prática de exportação, estes objetivam
conceder maior competitividade dos produtos nacionais no mercado
global, ou mesmo de proteger a produção doméstica da concorrência
externa (Martins, 2007; Guedes; Pinheiro, 2002).
Por outro lado, no atual momento das relações de comércio global,
é possível observar que se impera uma visão defendida, sobretudo, pelos
países centrais de que quando destinados à prática de exportação, estas
classes ou volumes de subsídios podem desconfigurar os termos de
competitividade diante da perda de produtores de outras economias
nacionais, levando a um quadro de excesso de unidades disponíveis no
mercado global, afetando os preços de determinados produtos e serviços
no mercado internacional (Barral, 2000; Viana; Marques, 2007). Desta
forma, fundamentadas no regime jurídico internacional vigente, as
medidas compensatórias são o mecanismo que visa salvaguardar ou
sanar, por meio da adoção tarifária extra, os efeitos da existência ou
ameaça de riscos decorrentes da tanto da utilização de subsídios
proibidos, quanto da aplicação irregular de subsídios permitidos, ou
também denominados subsídios recorríveis (Sykes, 2003).
4
De acordo com o autor, os subsídios podem ser elencados em seis categorias:
subsídios à prática de exportação; subsídios domésticos; subsídios para a promoção
industrial; subsídios ao desenvolvimento regional; e subsídios para pesquisa e
desenvolvimento produtivo (Thouvenin, 2004).
742
O novo aparato institucional que passou a disciplinar a matéria
dentro do Sistema Multilateral de Comércio, estabeleceu, de modo prévio
aos procedimentos de investigação e de solução de solução de
controvérsias, a criação de um sistema de notificações e consultas entre os
Estados-membros, o qual se refere à utilização de quaisquer programas de
subsídios e à aplicação ou mudanças legais no tratamento de ações de
direitos compensatórios (Cozendey, 2016; Singh, 2017). Este sistema de
notificação e comunicação entre as delegações foi atribuído a competência
do Comitê de Subsídios e Medidas Compensatórias da OMC (CSMC)
(Barral, 2000; Miyamoto, 2000; Nasser, 2002).
É neste contexto, que a presente dissertação busca explorar os
comportamentos externos do Brasil, um país periférico, nesta instância do
Sistema Multilateral de Comércio. A partir destes, a pesquisa foi: (a)
quanti-qualitativa quanto à abordagem; (b) descritiva quanto aos fins, e;
(c) documental e bibliográfica em relação aos meios, considerando o uso
de fontes primárias e contribuições acadêmicas relevantes sobre a
temática. Ademais, esta pesquisa tem como estratégia de pesquisa o
modelo de estudo de caso único e interpretativo, tendo como ferramentas
metodológicas a Revisão de Literatura (RL) e a Análise de Conteúdo (AC).
Neste sentido, o recorte temporal da pesquisa compreende o marco inicial
da participação do Brasil no CSMC-OMC, em 1995, até 2015, ano que
marcao início da eliminação dos subsídios para exportação de produtos
agrícolas, mediante a decisão final da X Conferência Ministerial da OMC,
em Nairobi.
Definições teórico-metodológicas
À priori, observa-se que a discussão referente às relações globais de
comércio tem lugar fundamental na compreensão da TMD acerca dos
743
conceitos de dependência, subdesenvolvimento e bloco no poder5 na
EPI. De modo gradual, a leitura sobre o papel do vigente sistema
multilateral de comércio e sua relação com o aprofundamento da
dependência comercial e tecnológica requer uma compreensão prévia de
algumas das premissas e conceitos da TMD. A interlocução entre estes
conceitos indica um caminho progressivo para a noção de que as
dimensões tecnológica e comercial da dependência se amparam e se
interligam na vigente configuração do sistema multilateral de comércio,
uma vez que o funcionamento e a disciplina legal da OMC sobre as
diferentes barreiras comerciais não-tarifárias se dá em função da própria
reprodução do capital transnacional no marco da Revolução Científica-
Técnica da globalização neoliberal (Chimni, 1999).
Para Marini (2000), a ampliação da superexploração do trabalho na
periferia é então considerada como um aspecto de contratendência aos
desdobramentos da revolução científica e técnica. Isto se deve ao passo
que tal mecanismo se torna a via principal para a manutenção de
5O conceito de bloco no poder consiste num dos principais pontos de intersecção entre
as contribuições teóricas de Nicos Poulantzas e Karl Marx se deve ao olhar sobre processo
interativo e dinâmico entre sociedade civil e o Estado, o qual assume a função
coconstitutiva do sistema em suas dimensões econômica - de acumulação do valor - e
política - de dominação, cena e práticas políticas de classes e frações de classe (Pinto et
al., 2016). Para Codato e Perissinotto (2001), a análise do nível concreto-real do Estado
precede a necessidade de se considerar a cisão entre “poder do Estado” e “poder de
classe”, uma vez que a própria perspectiva paulantziana concebe uma diferenciação da
dimensão política não somente entre cena e práticas, mas também da própria luta política
entre classes e frações de classe (Codato; Perissinotto, 2001), haja considerado que a
pluralidade de setores da classe dominante adveio da própria fragmentação do capital
(Poulantzas, 1997). Em função desta convergência quanto a concepção relacional do
Estado, o arcabouço teórico-conceitual da perspectiva poulantiziana permite estender a
análise a diferentes quadros históricos-espaciais em que há variação tanto da capacidade
decisória estatal quanto de seus direcionamentos nos diferentes eixos da acumulação
dadas as adaptações na configuração do bloco no poder em função da dinâmica de
classes e frações, podendo assim o aparato estatal apresentar momentos de maior ou
menor influência de frações específicas e também de interesses segmentos da classe
dominada (Pinto et al., 2016; Poulantzas, 1977).
744
determinadas atividades econômicas, atividades estas controladas por
grandes trustes nos países centrais, caso haja outros estímulos além das
características estruturais que fomente os movimentos do capital
estrangeiro para produção. Desta forma, uma das principais condições de
estímulos oferecidos pelos governos das países periféricos é a própria
desoneração dos custos de produção de bens caso as unidades sejam
transladadas do centro para a periferia global (Dos Santos, 1994).
Féliz e López (2010) abordam que além dos componentes da
superexploração cujos se apresentam como condições estruturais
favoráveis à acumulação de capital na periferia, os diferentes meios de
incentivos providos por instâncias governamentais nos países periféricos
estimulam os desígnios associativos entre as classes dominantes da
periferia e do centro. A observação dos subsídios no comércio global atrela
a análise do aprofundamento da dependência pelo seu papel de reforço às
condições estruturais na periferia (Féliz; Lópes, 2010).
No cenário de globalização neoliberal, para atender os interesses
dos grandes monopólios corporativos do centro capitalista global, torna-
se necessário o direcionamento de incentivos fiscais, financeiros, infra-
estruturais e institucionais dosEstados periféricos em prol da manutenção
e do aprofundamento da dependência (Dos Santos, 2004). Esta narrativa é
traduzida na inclinação do poder público para incentivar setores
econômicos cujos bens não integram as grandes cadeias globais de valor
e, ao mesmo tempo, proporcionar a instalação em território nacional de
unidades produtivas controladas por corporações trans e multinacionais
de países do centro (Solis, 2011).
Ao tomar como exemplo o colapso dos projetos nacional-
desenvolvimentista e desenvolvimento-associado que predominaram no
pensamento político brasileiro do século, a dependência ganha nova
feição, sobretudo no que se refere à composição produtiva doméstica sob
o modelo liberal periférico (Filgueiras; Gonçalves, 2006). Dos Santos (2016)
745
observa que o advento da liberalização comercial como um dos pilares das
reformas estruturais herdadas da década de 90, bem como a
desregulamentação do sistema financeiro internacional, conferiu grandes
fluxos de capital estrangeiro direto nas economias periféricas. Esta
tendência, iniciada ainda durante as décadas finais à dissolução da ordem
internacional difusa, foi permeada não só como solução para a redução de
custos de produção via a fragmentação das etapas de produção e
distribuição, mas também para a consolidação destes mercados como
plataformas de consumo capazes de absorver parcela considerável da
produção e, simultaneamente, oferecer um espaçode supervalorização de
capitais mediante a remessa de lucros e valores decorrentes de obrigações
legais de propriedade intelectual (Filgueiras; Gonçalves, 2006).
De modo a prover uma avaliação das interações multilaterais da
delegação Brasileira no CSMC-OMC através dos documentos de
comunicação de modo a interligar os resultados com as categorias e
premissas da TMD, torna-se necessário a adoção de uma metodologia
pautada na referenciação sistemática de fragmentos documentais a partir
de diferentes categorias (códigos), possibilitando assim uma identificação
dos agentes (delegações) em interação. Neste sentido, a análise de
conteúdo, segundo Janis (1982) é a metodologia que consiste na
classificação e categorização do conteúdo presente numa ação
enunciativa, de qualquer natureza documental, sendo, por exemplo,
aplicável a análise de documentos governamentais, discursos, jornais,
entrevistas, revisões literárias, entre outros. De acordo com Neuendorf
(2002), a análise de conteúdo se consolidou como metodologia ao longo
da Segunda Guerra Mundial, mediante as contribuições dos estudos
sistemáticos de comunicações para fins estratégicos e securitários, sendo
esta uma divisão experimental do Congresso estadunidense sob comando
de HaroldLasswell.
746
Dentre as diferentes técnicas da análise de conteúdo, Bardin (2011)
argumenta que a categorização temática é aquela técnica da análise de
conteúdo que visa classificar e categorizar características ou elementos
fracionados no corpo do conteúdo de modo a evidenciar elementos-chave
a serem comparados entre si. Aautora define o processo analítico em três
etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento de resultado.
Para a codificação dos documentos de comunicação entre o Brasil e
os Estados-Membros da OMC foram desenvolvidos três conjuntos de
códigos. O primeiro conjunto de códigos se trata da identificação dos
Estados-Membros, tanto remetentes de documentos de comunicação
quanto pautados nas comunicações emitidas pelo Brasil. Na etapa de
tratamento dos dados, foram identificados países das três classificações de
desenvolvimento, conforme o sistema geral de preferências da OMC,
sendo assim Países Desenvolvidos (PDs), Países em Desenvolvimento
(PEDs) e Países de Menor Desenvolvimento Relativo (PMDRs). Já o
segundo conjunto foi referente a natureza da matéria apontada nos
documentos de comunicação, sendo esta segmentada em dois
subconjuntos de códigos: questões relativas a leis e regulamento e
questões referentes a iniciativas de subsidiação. Por fim, o terceiro
conjunto de códigos se referiu ao inteiro teor das unidades de
questionamento, ou perguntas, as quais foram codificadas isoladamente.
Foram observadas questões cujo teor equivaleu a razões distintas,tais
como os setores econômicos beneficiados por tais iniciativas, informações
sobreorçamento, duração e vigência, entre outros.
Avaliação das notificações de comunicação da delegação brasileira no
CSMC-OMC
Os resultados da análise de conteúdo temática documentos de
interações entre os EMs e a delegação brasileira apontam para uma
discussão sobre a condição de dependência comercial, tecnológica
747
produtiva-real do Brasil no âmbito das relações globais de comércio, a
qual deve abranger a correlação do comportamento diplomático brasileiro
e os distintos conjuntos de agentes avaliados. De início, conforme o
gráfico abaixo, observa-se a proporção entre os documentos de
comunicação recebidos e enviados pela delegação brasileira no CSMC-
OMC:
Gráfico 1 — Proporção de documentos de comunicação
emitidos entre adelegação brasileira e os Estados-Membros no
CSMC-OMC (1995)
Fonte: Elaboração própria.
Ao considerar tal proporção, é visto que o comportamento
multilateral da delegação brasileira no CSMC-OMC foi caracterizado por
um perfil defensivo em suas interações com os Estados-membros. Dentro
desta relação de predominância, destaca-se o fato de que as delegações
diplomáticas dos países centrais formaram o espectro central do total de
emissão de questionamentos à delegação brasileira no referido órgão. Isto
por sua vez conota reflexo da condição de dependência produtiva-
comercial, uma vez que a configuração das interações do Brasil no âmbito
multilateral evidencia uma tendência em que os países centrais exercem,
748
por meios institucionais, pressão e contingência as políticas domésticas
criadas e implementadas no Brasil, principalmente na esfera de incentivos
do poder público. Esta conduta partilhada entre as delegações dos países
centrais no CSMC-OMC evidencia como as instâncias institucionais do
sistema multilateral de comércio são utilizadas pelos países centrais como
reforço à condição de dependência em sua dimensão produtiva e
comercial (Peet, 2003; Chimni, 1999).
Ao tomar por ínicio a avaliação dos resultados da categorização
temática dos documentos de comunicação das delegações dos EMs no
CSMC-OMC ao Brasil, foi observada a propensão de solicitação de
variadas informações referentes aos distintos programas, tanto aquelas
notificadas quanto as não-notificadas, questionando assim adequação
destas iniciativas aos compromissos assumidos pelo Brasil nos acordos
que integram o regime jurídico internacional de subsídios e medidas
compensatórias. Além disso, no que concerne aos objetivos dos subsídios,
estes questionamentos apresentaram maior associação com as políticas de
subsídios relacionados a incentivos às exportações, a PCT e fomento à
produção. Neste ínterim, a nuvem de frequência de palavras abaixo
mostra que estes assuntos estiveram associados a constantes
interrogações acerca dos meios de concessão de incentivos, bem como
setores e agentes econômicos beneficiados.
749
Figura 1 — Nuvem de frequência de palavras nos documentos de
comunicaçãoemitidos pelos Estados-Membros ao Brasil no CSMC-
OMC (1995-2015)
Fonte: Elaboração própria
O reflexo externo da dependência e o controle exercido por países
do centro global pode ser ainda observado na distribuição do total de
documentos de comunicação — isto é, de itens de codificação —
direcionados ao Brasil entre todas as delegações dos EMs no CSMC-OMC.
Os gráficos 11 e 12 a seguir apresentam taldistribuição de comunicação
por delegação diplomática no CSMC-OMC:
750
Gráfico 2 — Número de itens de codificação (documentos)
emitidos pelosEstados-Membros ao Brasil no CSMC-OMC
(1995-2015)
Fonte: Elaboração própria.
Gráfico 3 — Proporção de documentos de comunicação
emitidos pelosEstados-Membros ao Brasil no CSMC-OMC
(1995-2015)
Fonte: Elaboração própria.
751
Conforme observado acima, as delegações dos países do centro
representaram maioria qualificada do total de documentos de
questionamentos destinados à delegação brasileira no CMSC-OMC. Esta
proporção pode ser compreendida a partir da noção de que apesar da
posição de subordinação das economias dependentes na ordem
econômica global, o sistema multilateral do comércio se propõe como um
importante recurso das diferentes frações da burguesia interna dos países
do centro global para advertir, constranger e fiscalizar a conduta
doméstica de países da periferia global, ao caso do Brasil. Nesse sentido,
ao considerar a visão dependentista-marxista acerca do funcionamento
dos regimes e instituições internacionais que constituem a ordem
econômica internacional, o CSMC-OMC deve ser observado, no âmbito da
disciplina multilateral de subsídios e contramedidas, como um reforço à
tendência de formação do padrão exportador de especialização produtiva
que, conforme apresentado no capítulo, já se materializou em diferentes
iniciativas brasileiras.
A exemplo do caso avaliado, a discussão acerca dos reflexos da
dependência nas relações diplomáticas entre EMs no CSMC-OMC
endossa a visão de Dos Santos (s/d, p. 02), de que “a globalização é produto
de uma intervenção colossal dos Estados Nacionais no processo econômico
internacional, que se corporifica no surgimento da OMC, cujo objetivo é regular
o comércio planetário”. Neste sentido, a avaliação acerca destas interações
abrange o sentido de que muito embora os subsídios brasileiros estejam
direcionados no sentido de reprodução ramificada do capital produtivo
transnacional em prol da acumulação da capitalista, possibilitada,
sobretudo, através da superexploração do trabalho (Marini, 1996), os
questionamentos das delegações dos países centrais acerca das iniciativas
brasileiras evidenciam o CMSC-OMC como espaço performático da
condição de dependência.
752
O gráfico a seguir apresenta a relação entre os assuntos pautados
nas perguntas dos EMs ao Brasil e o assunto ou razão associado. É possível
observar que o assunto que esteve mais presente nos questionamentos dos
EMs a delegação brasileira foi a existência de iniciativas de subsídios ou
mudanças no trato do direito compensatória que não haviam sido
notificadas ao CSMC-OMC. Em sequência, estiveram as questões
referentes aos meios de concessão dos incentivos públicos, seguido das
questões que solicitaram informações de quais os ramos dos setores
econômicos que haviam sido contemplados com as iniciativas brasileiras
de subsidiação. Outros assuntos também foram frequentemente pautados
nos questionamentos, tais como explanações acerca dos critérios e
exigências para a concessão de incentivos públicos e informações sobre
valores orçamentários destinados às políticas brasileiras.
Gráfico 4 — Número de referências de codificação por inteiro teor
(razão) dosquestionamentos emitidos pelos EMs ao Brasil no
CSMC-OMC (1995-2015)
Fonte: Elaboração própria
753
Quanto aos questionamentos associados aos setores econômicos
beneficiados pelos subsídios brasileiros, notificados ou não, o gráfico a
seguir aponta que houve uma predominância do número de solicitações
de informações sobre quais os setores industriais contemplados em
relação aos setores da produção agrícola e pecuária. Os questionamentos
sem distinção setorial de atividades econômicas foram categorizados
como não identificados.
Gráfico 5 — Número de referências de codificação por segmentos
produtivos dasiniciativas brasileiras questionadas no CSMC-
OMC (1995-2015)
Fonte: Elaboração própria.
Esta relação recorre ao argumento de que as instâncias multilaterais
da OMC são espaços instrumentalizados pelas burguesias dos países do
centro para averiguar o comportamento dos países periféricos e sua
regularidade na divisão internacional do trabalho (Peet, 2003; Jawara;
Kwa, 2003). Simultaneamente a isto, os diferentes organismos
institucionais da OMC conferem a observação do ímpetode reprodução
da acumulação de capital nos países da periferia global mediante o
processo de transnacionalização das estruturas produtivas nacionais, com
754
destaque do setor industrial de diferentes níveis de intensidade
tecnológica (Desai, 2012; Greaves; Hill; Greaves, 2007).
A noção de superação do subdesenvolvimento tem se tornado cada
vez mais endossada no funcionamento da OMC, haja visto que, para
Velasco e Cruz (2005), a institucionalização do regime multilateral de
comércio se ampara sobre as mudanças nas estratégias de acumulação no
capitalismo contemporâneo, o que portanto condiz a adaptação do
arcabouço jurídico vigente face a ação do capital transnacional e os
estímulos a este necessários. Desde a criação da OMC, estas mudanças têm
refletido constrangimentos externos diante da defesa dos interesses de
parcerias entre frações da burguesia interna vinculadas ao setor industrial,
sejam elas de maior participação do capital nacional ou estrangeiro
(Velasco; Cruz, 2005).
Estes registros convergem a análise de Osório (2012), sobre o
comportamento de grandes conglomerados multinacionais e a
instrumentalização daprodução em países periféricos como estratégia de
acumulação em função também das disposições do sistema geral de
preferências da OMC sobre diferentes políticas comerciais. Ademais, a
análise de Dos Santos (1987) sobre a restrição e controle do capital
transnacional à RCT complementa a compreensão acerca dos resultados
que apresentam o comportamento predominantemente defensivo da
delegação brasileira no CSMC-OMC. Logo, com base nos indicadores
esboçados a seguir, é possível observar que a trajetória brasileira no
CSMC-OMC se figura num cenário em que os países do centro capitalista
global se utilizam dos parâmetros de investigação estabelecidos no
sistema multilateral de comércio para aplicação de medidas
compensatórias contra países semiperiféricos.
Ainda no cerne avaliativo das interações da delegação brasileira no
CMSC-OMC, é possível recorrer a interpretação de Campos (2010), de que
desde a década de 90, em que houve uma exponencial abertura comercial
755
da economia brasileira, parte majoritária das pequenas e médias empresas
nacionais criticaram do modo veemente as novas políticas de subsídios,
uma vez que, a exemplo dos ramos da indústria de transformação e da
construção civil, a grande maioria do aporte foi direcionada a grandes
corporações altamente vinculadas ao capital transnacional6. Mesmo
considerando as transformações da formação econômica no recorte da
globalização neoliberal e de abertura dos mercados, torna-se possível
estabelecer o nexo analítico de que a configuração institucional da OMC e
o aparato jurídico internacional realçaram a tendência de concessão da
parte majoritária dos incentivos aos grandes conglomerados industriais
vinculados a produção de bens de médio e alta intensidade tecnológica,
em detrimento dos agentes econômicos domésticos de capital
predominantemente nacional (Mavroidis; Sapir, 2023).
Em sua análise sobre a inserção internacional do capitalismo
dependente brasileiro, Santos (2019) avalia que os fenômenos da
reprimarização das exportações e de desindustrialização têm profunda
ligação com a ampliação da transnacionalização produtiva. Segundo Dos
Santos (1987), esta imbricação resulta num cenário nas economias
periféricas caracterizado não somente pela intensificação de atividades
econômicas vinculadas à produção de bens primários e de bens
industrializados de baixo-médio e médio valor agregado, mas também
pelo advento de uma fração na produção industrial responsável pelo
fornecimento de produtos de médio-alto e alto valor agregado que não
significa o avanço endógeno desses setores no localidade em que se
reproduzem.
Ao que concerne aos subsídios brasileiros apontados nos
questionamentos, o gráfico a seguir esboça a relação entre as iniciativas
6É necessário também considerar que a própria transnacionalização da economia
brasileira se deu mediante a crescente restrição do mercado consumidor interno
(Marini, 2000).
756
brasileiras e o número de vezes que estas foram elencadas nos
questionamentos. De modo geral, a sistematização dos apontamentos
feitos ao Brasil se configurou por uma grande variedade de iniciativas,
incluindo iniciativas que não haviam sido notificadas pela delegação
brasileira nos documentos de informação, conforme observado no
comportamento unilateral brasileiro versado no capítulo anterior.
Gráfico 7 — Número de referenciação por iniciativas pautadas
brasileiras nosdocumentos de comunicação dos Estados-Membros
(1995-2015)
Fonte: Elaboração própria.
Neste sentido, é possível constatar que os subsídios à exportação,
representados pelo PROEX, foram os mais apontados pelas delegações no
757
CSMC-OMC, seguido daquelas iniciativas sem título, isto é, subsídios dos
quais os EMs não dispunham de certeza acerca da existência, portanto
sendo questionados de forma generalista. Os subsídios à exportação são
considerados como um ponto de grande contradição na formação
econômica dos países do centro global, uma vez que sua vigente restrição
se contrasta com um passado de intensa utilização destes pelos governos
nacionais das potências industriais centrais (Chimni, 1999). Os pontos de
interação entre o Brasil e diferentes delegações, em especial dos EUA,
Canadá, UE, Japão e Coreia do Sul, acerca da concessão de subsídios
brasileiros a distintos ramos da produção industrial demonstram como os
estímulos à atividade exportadora de determinados produtos industriais
passou a ser aferida de modo compulsório7. Este cenário assevera a
disparidade das condições de produção e concorrência inerentes ao
funcionamento do comércio global, e que portanto devem ser
confrontadas em função de sua a-historicidade infundada acerca das
relações globais de comércio (Chimni, 1999).
Quanto aos questionamentos referentes à produção aeroespacial,
Martinez (2007) aborda que, além das questões da agenda de defesa e
segurança nacional, as possibilidades de investimentos na indústria
aeronáutica representam para o Japão, EUA e UE uma grande
oportunidade de inovação e produção adjunta de outros setores
produtivos estratégicos, sobretudo de eletroeletrônicos. Desta forma, em
função destes “transbordamentos” em inovação e pesquisa, estas
economias se propõem como grandes investidoras em capacitação
tecnológica do segmento aeroespacial (Martinez, 2007). Neste ínterim, os
questionamentos direcionados às iniciativas brasileiras vinculadas ao
setor, em especial aquelas referentes a estímulos às exportações, pode ser
7
A exemplo disso, a partir do painel Canadá-Brasil sobre setor aeroespacial, Stehmann
(1999) aborda como as condicionalidades impostas a utilização de subsídios
industriais de fomento à produção e a exportação se reverberaram sobre o comércio
de bens de alta intensidade tecnológica.
758
observado de modo paralelo aos painéis no OSC contra a empresa
brasileira Embraer levado a cabo por corporações dos EUA eCanadá.
Por outro lado, os subsídios a PCT devem ser compreendidos não só
como recursos para manutenção da transferência de valor pelo mecanismo
de intercâmbio desigual de bens e serviços, mas a também associado a
execução da transferência de valor a partir das remessas de lucro e do
pagamento de obrigações referentes possibilitados pelo controle dos
países centrais sobre os avanços tecnológicos. Para Marini (1996), a
globalização neoliberal apresenta duas principais tendências de
extroversão em função da ascendente redução dos custos de produção
decorrentes da ampliação e aprimoramento do conhecimento técnico-
científico. A primeira foi a tendência de expansão global da indústria
guiada por incentivos para maximização de maior-valor, tais como a
busca por economias que disponham de níveis de salários inferiores, bem
como de outros aspectos estruturais. A segunda tendênciafoi a crescente
qualificação da mão-de-obra especializada nos países do centro e a
posterior alocação das etapas de menor qualificação para a periferia global
(Marini, 1996).
A partir desta visão, é válido compreender as implicações da divisão
internacional do trabalho a atividade de distribuição global de bens, a qual
deve ser considerada como uma etapa fundamental na dinâmica de
intercâmbio internacional.Isto porque além da desigualdade dos termos
de intercâmbio como resultado da desigualdade dos termos de produção,
é necessário considerar o controle profuso exercido das economias do
centro sobre a totalidade dos processos de comercialização global de bens
(Marini, 1973).
Por outro lado, o conjunto de questionamentos emitidos pelos EMs
ao Brasil no CSMC-OMC lança luz a um aspecto intrínseco ao argumento
de Berringer (2014), de instrumentalização do Estado em favor dos
interesses fração industrial nacional, a qual se intensificou mais
759
especificamente a partir do segundo Governo Lula, apresentando
continuidade no período Dilma. O que de fato reforça esta leitura é a
subnotificação intencional como estratégia do aparato burocrático
brasileiro em favor da proteção desta fração da burguesia interna.
Ora considerada a leitura jurídica crítica, de que o CSMC-OMC é um
instrumento de vigilância e averiguação do capital transnacional, a
subnotificação, isto é, a omissão de informações sobre iniciativas de
subsidiação se constitui como estratégia de defesa dos interesses das
frações comercial e industrial da burguesia interna. Isto porque o sistema
de prestação de informações de políticas públicas de subsídios e alterações
na sua defesa comercial da OMC se enquadra como via institucional para
facilitar os procedimentos de consulta e investigação do processo de
solução de controvérsias. Neste caso, a subnotificação por parte da
delegação brasileira se constituiu como uma evidência no âmbito
multilateral daquilo que Berringer (2014) e Pinto et al. (2016) argumentam
acerca da passagem entre os Governos Lula e Dilma, de uma inclinação
do Estado na promoção dos interesses das frações do capital vinculadas
aos setores industrial e comercial, paralelo ao desgaste do Poder Executivo
com a fração bancário-financeira.
Considerações finais
Dentro desta discussão, é possível observar que a subnotificação de
políticas públicas de subsidiação contemplou interesses tanto da grande
burguesia nacional, quanto das expressões regional e local do
empresariado brasileiro. No âmbito nacional, evidencia-se um conjunto
heterogêneo de subsídios esteve ausente nos documentos de informe
prestados pelo Brasil, conforme observado na seção anterior, que avaliou
o comportamento unilateral brasileiro no CSMC-OMC. Mediante as
informações conferidas nos recursos produzidos pelo processo de
codificação, tais políticas a nível federal abrangeram não somente os
760
programas Recof8, Recap9, Inovar-Auto10 e Plano Brasil Maior, mas
também a totalidade de iniciativas do BNDES e do Banco do Brasil (BB),
bem como da suposta ação do MRE, e das inúmeras políticas de
subsidiação de Zonas Econômicas Especiais (ZEEs), as quais estão mais
vinculadas a proporção local das frações comercial e industrial.
Por outro lado, a subnotificação de iniciativas de subsídios cujos
objetivos se ativeram mais ao estímulo à produção, e a objetivos
considerados proibidos - substituição de importações e incentivo a
exportações, a notificação de políticas públicas mais alinhadas com os
interesses do capital transnacional. Esta leitura propõe a importância da
construção de uma percepção dos interesses do capital estrangeiro acerca
da conduta das políticas industriais nos países periféricos da relação
contraditória que mantém com a fração industrial nacional da burguesia
brasileira.
O principais exemplos são aquelas políticas categorizadas a antiga
classe de subsídios considerados “limpos” ou irrecorríveis, (políticas de
desenvolvimento regional - fundos públicos para o
(sub)desenvolvimento, que são por si próprios a materialização da fusão
do capital produtivo ao capital financeiro, sendo orientados para a
ampliação da transferência de valor a totalidade do território económico
nacional; e políticas de pesquisa, ciência e inovação, também
denominados P&D, que conforme vistos na seção anterior, impulsionam
8
Regime Aduaneiro Especial de Entreposto Industrial sob Controle Informatizado.
9
Regime Especial de Aquisição de Bens de Capital para Empresas Exportadoras.
10
Quanto aos embates sobre o setor automotivo, considera-se que a ação das delegações
dos países do centro, sobretudo do Japão, da UE e dos EUA, sobre as iniciativas
brasileira ao mercado automobilístico como reação ao aumento dos custos fiscais a
corporações multinacionais concorrentes, uma vez que tais iniciativas como o INOVAR-
AUTO conferiram proteção tanto as produção de multinacionais no âmbito nacional
quanto aos pequenos e médios produtores nacionais de insumos voltados a este ramo
(Vargas; Pinto, 2018).
761
a acumulação do capital transnacional mediante a “promoção” da
inovação técnica, que, em termos reais, se vincula tanto a reprodução da
dependência tecnológica via absorção do conhecimento experimental da
atuação das filiais nos territórios das economias periféricas, reduzindo
assim os custos de produção, quanto ao próprio endossamento da
dependência comercial, mediante a reiteração da posição subordinada da
industrial nacional nas cadeias globais de produção haja vista a
transferência dupla de valor, tanto pela ação expropriatória do mercado
internacional, pela determinação social do valor da produção oriunda da
periferia, quanto pela própria dinâmica intersetorial de distinção de
composição-valor entre produtos intercambiados.
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767
Sinocentrismo, Interdependência e as mutações da Ordem
Internacional Liberal
Octávio Henrique Alves Costa de Oliveira1
Resumo: A participação chinesa na Ordem Internacional Liberal
(OIL) é um tema de crescente relevo na Economia Política
Internacional. O surgimento do Banco de Investimento em
Infraestrutura Asiático (AIIB) e o Novo Banco de Desenvolvimento
(NDB) nos anos 2010 suscitaram análises sobre as possíveis mutações
da ordem, sendo o AIIB a primeira instituição internacional liderada
pela China e o NDB a primeira instituição multilateral não-ocidental,
representando, aparentemente, um potencial contra-hegemônico. Seu
racional de criação pressupunha trazer inovações ao Financiamento
Multilateral para o Desenvolvimento (FMD), atendendo a demandas
de países do Sul Global. Dentro das discussões sobre as mudanças na
ordem, este artigo questiona se estas duas instituições representam
uma ameaça, reforma ou perpetuação da OIL. Para tanto, analisamos
a governança destes dois bancos em termos de design, no que diz
respeito à estrutura de governança; staff; examinando o background
dos seus funcionários; e empréstimos, analisando os padrões de
1
Doutorando no Instituto de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro (IRI / PUC-Rio). Pesquisador associado ao Grupo de
Estudos sobre os BRICS (GEBRICS) da USP; ao Laboratório de Estudos da Ásia
(LabÁsia/CNPq/UERJ); e ao Laboratório de Estudos de Mídia e Relações
Internacionais (LEMRI/CNPq/UERJ). E-mail: <[email protected]>. Orcid:
<https://orcid.org/0000-0002-1743-9365>.
768
aprovação, atores envolvidos e Estruturas Ambientais e Sociais
(ESFs). A hipótese é de que o ímpeto inovador deste bancos é
amortecido pelo chamado ‘isomorfismo institucional’, tido como o
processo pelo qual diferentes instituições em um determinado campo
tornam-se semelhantes em níveis estruturais e comportamentais ao
longo do tempo. A primeira seção do artigo discute as diferentes
formas pelas quais instituições podem influenciar as mudanças de
uma ordem, utilizando o conceito de institutional statecraft como
mobilizador teórico para categorizar tais mudanças. A segunda
desenvolve as bases teóricas do conceito de isomorfismo
institucional. A última seção se dedica a analisar a maneira pela qual
estes dois bancos atuam, indireta e diretamente, como perpetuadores
da OIL. Conclui-se que estes bancos não representam inovações ou
ameaças, mas complementos, demonstrando a resiliência da Ordem
Liberal Internacional em incorporar novos atores do sistema
internacional.
Palavras-Chave: Ordem Internacional Liberal; China; AIIB; NDB;
Isomorfismo Institucional.
Introdução
Um dos principais elementos que caracterizou a hegemonia
estadunidense desde o pós-Segunda Guerra Mundial (II GM) foi a
criação de uma série de instituições internacionais que viabilizassem
o estabelecimento de um ordem global, objetivando a necessária
estabilidade após duas guerras mundiais seguidas no século XX.
Instituições de Bretton Woods como o Fundo Monetário Internacional
(FMI) e o Banco Mundial (BM), bem como a Organização das Nações
Unidas (ONU) foram cruciais para esta empreitada. Este primeiro
momento pode ser identificado como a Ordem Internacional Liberal
1 (OIL I), desde o fim da II GM até o fim da Guerra Fria, caracterizado
769
pelo multilateralismo baseado em regras; seguido pela Ordem
Internacional Liberal II (OIL II), e o seu aumento da autoridade
supraestatal no alcance dos elementos liberais constitutivos da ordem
(Börzel; Zürn, 2021).
Desde então, inúmeras mudanças decorreram no sistema
internacional, levando a múltiplas interpretações acerca do papel que
novos atores passaram a desempenhar nele, sobretudo a China. Neste
sentido, este trabalho procura adereçar a questão posta por
Finnemore et al. (2021) e os demais autores da edição 75 da revista
International Organization, no que tange a contestação ou reificação da
concepção de ordem internacional. Especificamente, dada a
centralidade que a China possui enquanto ator com crescentes
atribuições no sistema, este trabalho procura traçar os rastros do
futuro próximo reservado à esta ordem, em um cenário
crescentemente pós-ocidental (Stuenkel, 2016).
Juntando-se a uma vasta literatura que se imbui da tarefa de
entender o papel chinês no Sistema Internacional2, nos situamos na
esteira daqueles que observam ‘desafio chinês’ à ordem como uma
forma de complementar seus elementos constitutivos, alargando e
promovendo a OIL II, em uma reforma que não representa o
surgimento de uma terceira ordem, neste momento, mas de um
aggiornamento intermediário, o qual aqui chamamos de OIL 2.5. O
argumento se centra em dois pressupostos; o primeiro, de que as
contestações à Ordem Internacional Liberal, tanto na primeira quanto
na segunda fase, não demonstram a sua ineficácia, mas a sua
resiliência (Finnemore et al., 2021); e o segundo, de que a China,
embebida das instituições, normas e regras que possibilitaram sua
própria ascensão, não intenta desmantelá-la, mas complementá-la.
2Para uma atualização recente sobre este debate, ver a lista fornecida no primeiro
e quarto rodapé de Lim e Ikenberry (2023, p. 2)
770
Para tanto, inúmeros aspectos da participação chinesa na ordem
podem ser analisados para traçar seus possíveis rumos, como o papel
chinês nas Operações de Paz da ONU (Yuan, 2022) ou as suas
contribuições junto à Organização Mundial do Comércio (OMC)
(Weinhardt; Tem Brink, 2019), para citar alguns. Contudo, por
questões de escopo, para os termos deste trabalho, analisaremos o
papel chinês junto ao Financiamento Multilateral para o
Desenvolvimento (FMD), desde a sua participação em dois Bancos
Multilaterais de Desenvolvimento (BMDs), o Banco Asiático de
Investimento em Infraestrutura (AIIB) e no Banco dos BRICS
(também conhecido como Novo Banco de Desenvolvimento − NDB).
Este desenho de pesquisa se dá pela centralidade e
representatividade que estas duas instituições, criadas em 2015 e
2014, respectivamente, exercem analiticamente para entendermos os
rumos da atual OIL, sendo o AIIB a primeira instituição liderada pela
China, e o NDB a primeira instituição não-ocidental, neste sentido,
representando, aparentemente, um racional contra-hegemônico.
Desta forma, através da análise das normas e padrões de governança
destes dois bancos, procuramos demonstrar que mesmo quando
novas instituições de ímpeto reformista são criadas, com a ideia de
promover mudanças normativas, o isomorfismo institucional atua como
um amortecedor dessas inovações, uma espécie de buffer que garante
a perpetuação da ordem. Este conceito trata do processo pelo qual
diferentes organizações ou instituições, em um determinado campo,
tornam-se estruturalmente e comportamentalmente semelhantes ao
longo do tempo
Assim sendo, a primeira seção do artigo discute as diferentes
formas pelas quais instituições podem influenciar as mudanças de
uma ordem, utilizando o conceito de institutional statecraft como
mobilizador teórico para categorizar tais mudanças. A segunda
desenvolve as bases teóricas do conceito de isomorfismo
771
institucional, chave interpretativa para entender a forma pela qual o
AIIB e o NDB, na sua tentativa de promoverem reformas na ordem
vigente, acabam por perpetuá-la. A última seção se dedica a analisar,
de forma específica, a maneira pela qual estes dois bancos atuam,
indireta e diretamente, como perpetuadores da OIL. Conclui-se que
estes bancos não representam inovações ou ameaças, mas
complementos, demonstrando a resiliência da Ordem Internacional
Liberal em incorporar novos atores do sistema internacional.
Institutional Statecraft: estratégias institucionais para mudanças na
OIL
Desde a Queda do Muro de Berlim, em 1989, uma série de
acontecimentos interferiram na Ordem Internacional Liberal,
levantando debates acerca da sua necessidade, credibilidade e
funcionalidade, caracterizando a transição de um multilateralismo
liberal (OIL I) para um liberalismo pós-nacional (OIL 2)3, no qual as
frágeis instituições liberais do pós II GM se tornaram mais
autoritárias. Esta maior intromissão causou uma série de contestações
à ordem, que tem de enfrentar a proliferação dos nacionalismos,
fundamentalismos religiosos e a ascensão de potências como Rússia
e China (Börzel; Zürn, 2021; Lake; Martin; Risse, 2021). Estes dois
últimos atores possuem crescente influência nos rumos desta ordem.
3 As interpretações acerca da divisão entre as diferentes mutações da Ordem
Internacional Liberal não são consensuais. Ikenberry (2009), embora também se
encontre na discussão sobre o que seria esta transição da OIL 2 para 3, identifica
duas ordens anteriores diferentes, sendo a OIL I caracterizada pelo
‘wilsonianismo’ pós Primeira Guerra Mundial, e a OIL 2, identificada pelo
internacionalismo liberal desde o pós II GM até o fim da Guerra Fria. Embora nos
aproximemos de Johnston (2019) ao não entender a OIL como uma entidade
singular, mas como uma junção de diferentes ordens de diferentes esferas (como
a militar, de comércio, direitos humanos etc), ainda nos atemos a divisão de
Börzel e Zürn (2021) como forma de entender a macro configuração do sistema,
de forma transversal às diferentes configurações e domínios existentes.
772
Enquanto o primeiro sempre teve protagonismo como revisionista –
tanto enquanto União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) na
OIL I, quanto como Federação Russa, na OIL 2 −, desafiando os
pressupostos mais básicos da ordem, o segundo atingiu apenas
recentemente um posto de centralidade em espaços multilaterais os
quais anteriormente não possuía relevância, em vezes, nem mesmo
acesso.
Separativamente, e em seus próprios termos, a URSS
representou desafios específicos para a OIL I, assim como a China
representa para a OIL 2. Enquanto a primeira gerava uma disputa de
visões de mundo, eventualmente não sendo bem-sucedida na
tentativa de bifurcação ao liberalismo do seu tempo (Börzel; Zürn,
2021), a segunda desafia a ordem a partir da própria ordem, não
visando competir, mas sim reformular e complementar o liberalismo
da ordem internacional (Ikenberry; Lim, 2017; Johnston, 2019; Jones,
2018).
Diferentemente das incursões materiais russas no caso de
Guerra da Ucrânia (2014 - ), a China reivindica sua voz no sistema a
partir do seu Institutional Statecraft (Ikenberry; Lim, 2017; Liang,
2021). Por statecraft – estadística, em tradução livre −, podemos
entender “o uso de instrumentos a disposição da autoridade política
central para servir a fins de política externa. Os instrumentos de
statecraft normalmente são divididos em três categorias: diplomática,
militar e econômica” (Mastanduno, 2016, p. 222, tradução nossa). Se
tratando da análise de dois BMDs, focaremos na terceira forma de
statecraft.
Como o próprio nome sugere, o conceito de institutional
statecraft se limita aos instrumentos institucionais disponíveis para o
Estado atingir seus objetivos. Ikenberry e Lim (2017, p. 7) analisam as
diferentes possibilidades de estadística institucional chinesa,
773
identificando cinco diferentes estratégias possíveis. Pela primeira,
status-quo stakeholder, ocorre apenas o aceite das normas e regimes
existentes. Subindo nos níveis de influência, temos a authority-seeking
stakeholder, na qual se busca maior voz dentro de uma instituição,
como o desejo chinês por um número maior de votos no FMI. A
terceira, institutional obstruction, onde o ator procura obstruir
diretamente as normas de uma instituição. Enquanto as três primeiras
estratégias envolvem a participação em instituições que já existem, a
quarta – external innovation − denota uma atuação mais independente
e direta, envolvendo a construção de uma nova instituição, como no
caso do AIIB e NDB. Por fim, a forma mais brusca de institutional
statecraft, na visão dos autores, pressupõe uma oposição direta, ou não-
participação em um arranjo institucional. Para este último caso, eles
entendem que a atuação chinesa no Mar do Sul da China construindo
ilhas artificiais e bases militares configura uma oposição direta às
normas e regimes internacionais concernentes às disputas da região.
É importante mencionar que a transição chinesa da sua atuação
como participante da OIL 2, até se tornar uma criadora de instituições
próprias, não se dá no vazio. Ao realizarmos um paralelo da ascensão
material chinesa com as suas estratégias de institutional statecraft, se
torna evidente a crescente assertividade chinesa, conforme
exemplifica a tabela 1.
774
Tabela 1 - O crescente Institutional Statecraft chinês na Ordem
Internacional Liberal
Estabelecimento
Participação
Reforma das Busca ao de novas
em
Período Exemplos instituições multilateralismo instituições
instituições
multilaterais e regionalismo multilaterais e
multilaterais
regionais
Entrada no FMI, Banco
Anos 1980 - 2000 X
Mundial e OMC
2000 - 2010 Reforma do FMI e OMC X X X
2010 - 2019 AIIB, NDB, RCEP, CMIM4 X X X X
Fonte: Liang, 2021, p. 4, tradução nossa.
Embora a criação de novas instituições possa não somente
reposicionar atores com cambiantes capacidades de poder normativo,
como também promover mudanças nas normas e regimes
internacionais, este é um processo moroso, que enfrenta inúmeros
entraves institucionais. Sobretudo, as novas instituições criadas
enfrentam a pressão que as antigas exercem sobre elas, capazes de
causar processos isomórficos que impedem a totalidade das suas
ambições originais.
Isomorfismo institucional e difusão de normas
Um elemento chave acerca da função das instituições
internacionais é a sua capacidade de criar as concepções do que será
tido como normal, o chamado poder normativo (Manners, 2002, p. 239).
Por normal, entendemos os comportamentos, padrões e normas5 que
4
A Iniciativa Chiang Mai (CMIM) é um mecanismo de swap cambial entre os
membros da Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), a China,
Japão e Coreia do Sul, firmado em 2000 (CUNHA, 2004).
5 Segundo Finnemore (1996), as normas são “expectativas compartilhadas sobre
o comportamento apropriado mantido por uma comunidade de atores. Ao
contrário das ideias que podem ser mantidas privadamente, as normas são
compartilhadas e socializadas; eles não são apenas subjetivas, mas
775
serão tidos como exemplos, como o padrão de comportamento
esperado a ser executado pelos atores envolvidos. Dentro dos estudos
institucionalistas, uma corrente dos anos 80 e 90 buscou estudar de
maneira crítica essas instituições, valores e as relações de poder que
elas incorporam, não tomando sua existência como um fato dado – tal
qual era feito entre os anos 30 e 70, sob o chamado “Antigo
Institucionalismo” −, mas como subproduto da ação humana,
evoluindo e se transformando de acordo com a agência dos atores
envolvidos. Esta corrente ficou conhecida como “Novo
Institucionalismo”, possuindo diferentes lentes, como os
institucionalistas normativos, históricos, das escolhas racionais,
empíricos, internacionais, feministas, construtivistas e sociológicos
(Lowndes; Roberts, 2013, p. 28 - 39)6. Embora cada uma destas lentes
forneça instrumentais úteis para a compreensão das instituições,
focaremos especificamente nas duas últimas.
Os institucionalistas construtivistas dão atenção não apenas as
relações interestatais, mas as condutas internas das Organizações
Internacionais (OIs), bem como suas dinâmicas organizacionais e
como elas reproduzem significados intersubjetivos entre os atores
envolvidos (Koch; Stetter, 2013). Eles consideram “o Estado em
termos das ideias e do discurso que atores usam para explicar,
deliberar e/ou legitimar a ação política no contexto institucional de
acordo com a “lógica da comunicação” (Schmidt, 2006, p. 99, tradução
nossa).
intersubjetivas” (p. 22, tradução nossa). O que não significa dizer que elas “são
juridicamente vinculativas ou podem ser sancionadas.” (Koch; Stetter, 2013, p. 8,
tradução nossa).
6 Schmidt (2006, p. 115 – 116) realiza uma divisão mais sintética destas correntes,
separando os novos institucionalistas em somente quatro categorias: os da
escolha racional; históricos; sociológicos e discursivos – também conhecidos
como construtivistas −.
776
Os institucionalistas sociológicos, por sua vez, enxergam as
instituições como atores que oferecem e restringem oportunidades de
acordo com o contexto organizacional (DiMaggio; Powell, 1983;
1991). Para eles, existe uma “lógica de apropriação” dentro do
universo das instituições, no qual as normas são seguidas pois são
tidas como naturais, justas, esperadas ou legitimas, mesmo que estas
não sejam, necessariamente, as normas mais eficientes ou
moralmente aceitas (March; Olsen, 2004, p. 4).
Ambas as abordagens tratam de como as “ideias constituem as
normas, narrativas, discursos e quadros de referência que servem
para (re)construir a compreensão dos interesses dos atores e
redirecionar suas ações nas instituições do Estado.” (Schmidt, 2006,
p. 112, tradução nossa). Elas têm o foco no aspecto normativo do
discurso, indagando como e porque as ideias reproduzem ou
reavaliam valores nacionais dentro de uma lógica de apropriação, ou
seja, de normalização de certas ideias (March; Olsen, 1989; Schmidt,
2000). A diferença entre as duas abordagens reside no objeto de
explicação. Enquanto construtivistas focam nas ideias, no discurso e
na comunicação de um modo geral, os sociológicos dão mais atenção
às normas e a cultura organizacional, e como são criadas OIs cada vez
mais similares entre si (Schmidt, 2006)
Sobre este último aspecto, dois autores da vertente sociológica
do Novo Institucionalismo valem ser mencionados, Paul DiMaggio e
Walter Powell. Em seu artigo de 1983, “The Iron Cage Revisited:
Institutional Isomorphism and Collective Rationality in Organizational
Fields”, os autores revisitam a ideia da “jaula de ferro” da “Ética
Protestante e o Espírito do Capitalismo” de Max Weber, na qual a
sociedade estaria presa no sistema capitalista até “que cesse de
queimar a última porção de combustível fóssil.” (Weber, 2004, p. 165).
A partir dela, eles discutem a noção de burocratização em Weber
(1978), tida como a manifestação do espírito organizacional
777
irreversível do capitalismo. Para Weber, a burocratização possui três
causas: a competição entre firmas capitalistas em um mercado; a
competição interestatal, de modo a aumentar o número de
governantes para controlar seus funcionários e sua cidadania; e as
demandas burguesas pelos direitos iguais perante a lei. Os autores
argumentam que as causas da burocratização do tempo de Weber
mudaram, sugerindo que, na atualidade
[...] a mudança estrutural nas organizações parece cada vez
menos impulsionada pela concorrência ou pela necessidade
de eficiência. Em vez disso, iremos argumentar, a
burocratização e outras formas de mudança organizacional
ocorrem como resultado de processos que tornam as
organizações mais semelhantes sem necessariamente torná-
las mais eficientes. (DiMaggio; Powell, 1983, p.147,
tradução nossa)
Isso ocorre sobretudo por uma lei quase que geral nas teorias
organizacionais e que tem a ver com a experiência adquirida em um
campo organizacional7. A criação de um campo organizacional novo
promove a emergência de diversas estruturas que, ao adquirirem
experiência no meio ao qual se inserem, se burocratizam e
aperfeiçoam cada vez mais, perdendo sua diversidade ao ponto de se
tornarem homogêneas. Como Rothstein (1996, p. 152) argumenta, os
custos, incertezas e riscos atrelados à mudança institucional fazem
com que, mesmo que existam soluções mais eficientes para certos
problemas, os bônus da mudança pereçam em detrimento da
estabilidade institucional. DiMaggio e Powell (1983, p. 157) utilizam
inúmeros exemplos para ilustrar esse argumento, como o
7
“Por campo organizacional, entendemos aquelas organizações que, em
conjunto, constituem uma área reconhecida da vida institucional: fornecedores,
consumidores de recursos e produtos, agências reguladoras e outras
organizações que produzem serviços ou produtos semelhantes” (DiMaggio;
Powell, 1983, p. 148, tradução nossa). O Financiamento Multilateral para o
Desenvolvimento seria o exemplo de um campo organizacional, sendo os BMDs
as organizações que o compõem.
778
desenvolvimento de formas dominantes e homogêneas de
organização na indústria do rádio, das escolas públicas e dos
hospitais nos Estados Unidos no século XX. Segundo os autores, a
inovação institucional, que inicialmente era motivada pelo aumento
da eficiência, atinge um limite, a partir do qual a legitimidade
prepondera:
Estratégias que são racionais para organizações individuais
podem não ser racionais se adotadas em grandes números.
O próprio fato de que elas são normativamente sancionadas
aumenta a probabilidade de sua adoção. Assim, as
organizações podem tentar mudar constantemente; mas,
depois de um certo ponto na estruturação de um campo
organizacional, o efeito agregado da mudança individual é
de diminuir a extensão da diversidade dentro do campo.
(DiMaggio; Powell, 1983, p. 148 – 149, tradução nossa).
Quanto maior a experiência colhida dentro de um campo
organizacional, maior o domínio e a homogeneização dentre os atores
envolvidos nele. Para entender, então, de que forma este processo se
materializa, os autores utilizam o conceito de “isomorfismo”, que
deriva do campo da ecologia humana, e diz respeito a restrição que
força uma unidade em uma população a se assemelhar a outras
unidades que enfrentam o mesmo conjunto de condições ambientais
(Hawley, 1968 apud DiMaggio; Powell, 1983). Segundo DiMaggio e
Powell (1983, p. 149), existem duas formas de isomorfismo: o
competitivo e o institucional.
O isomorfismo competitivo pressupõe um ambiente de livre e
aberta concorrência, onde os atores adotam políticas de modo a
competir com a maior eficiência possível. Esta é a visão mais simplista
dos processos de mudanças organizacionais, como Weber observava
na disputa original entre capitalistas pelo alcance dos mercados. Ao
aplicarmos esta perspectiva para as OIs contemporâneas − como os
BMDs −, a explicação puramente econômica, da disputa de livre-
mercado entre competidores buscando a eficiência máxima, não leva
779
em consideração fatores como a luta pelo poder político ou a
legitimação institucional (Park, 2014). Enquanto as causas da
burocratização weberiana derivavam, sobretudo, da busca pela
eficiência, as mudanças nas estruturas organizacionais
contemporâneas ocorrem pela necessidade de homogeneização, o
que não pressupõe, necessariamente, as práticas mais eficientes
(DiMaggio; Powell, 1983, p. 147).
Contemplando as mudanças sistêmicas no campo
organizacional, o conceito de isomorfismo institucional se insere no que
diz respeito a forma pela qual as operações das OIs são normalizadas,
onde sua cultura organizacional se torna cada vez mais similar umas
às outras, por conta da influência social, coercitiva, persuasiva e de
socialização dessas organizações (Bazbauers; Engel, 2021; Acharya,
2004; 2009; Finnemore; Sikkink, 1998; 2001; Park, 2006; 2014). A partir
desta forma de isomorfismo, três forças motivam a institucionalização
e os processos de isomorfismo institucional: o isomorfismo coercitivo,
que deriva de pressões formais como regulações, exercidas para que
os atores aceitem um comportamento específico; o isomorfismo
mimético, onde os novos atores tendem a se modelar a partir das
instituições pré-estabelecidas; e o isomorfismo normativo, associado
com a profissionalização e o alcance de padrões ocupacionais que
reproduzam conformidade dentro do campo organizacional
(DiMaggio; Powell, 1983; Bazbauers; Engel, 2021).
O isomorfismo coercitivo pode ocorrer de maneira formal ou
informal, pela força ou persuasão. Para o institucionalismo
sociológico, a mudança organizacional pode ser efeito direto da
pressão expressa de um ator, como uma manifestação da sociedade
civil e outras OIs, ou de uma mudança de regime − como é o caso das
políticas públicas de controle de poluição para as indústrias. Por
exemplo, apesar dos países industrializados e as empresas
consumidoras de combustíveis fósseis não desejem alterar suas
780
políticas ambientais por vontade própria, elas são legalmente
obrigadas a fazê-lo. Mesmo que estas deliberações, muitas vezes,
pareçam ser apenas cerimoniais, elas não são inconsequentes
(DiMaggio; Powell, 1983, p. 150).
O isomorfismo mimético deriva da incerteza. Isso tende a ocorrer
com novas instituições com escassa experiência, atores incertos sobre
o melhor curso de ações, procedimentos e objetivos dentro do campo
sob qual está inserido. Por este motivo elas tendem, então, a imitar,
se modelar a partir das instituições tradicionais (Zhu; Hu, 2021, p. 9).
A modelagem, como usamos o termo, é uma resposta à
incerteza. A organização modelada pode desconhecer a
modelagem ou pode não ter o desejo de ser copiada; ela
serve apenas como uma fonte conveniente de práticas que
a organização pode usar. Os modelos podem ser
difundidos involuntariamente, indiretamente, através da
transferência de empregados ou rotatividade, ou
explicitamente, por organizações como empresas de
consultoria ou associações comerciais da indústria. Até a
inovação pode ser explicada pela modelagem
organizacional. (DiMaggio; Powell, 1983, p. 151, tradução
nossa)
O isomorfismo normativo possui um caráter profissionalizante,
de definição de normas e condições básicas de trabalho. Diz respeito
ao estabelecimento das bases cognitivas para que o trabalho seja
normalizado entre os envolvidos. Para isso, dois aspectos são
fundamentais: a educação formal e legitimada por especialistas
universitários; e a criação de redes profissionais (DiMaggio; Powell,
1983, p. 152). Isso é muito importante ao observarmos o staff das
principais OIs existentes. Como será abordado no caso dos BMDs,
comumente, funcionários de um BMD mudam para outro, ocupando
posições similares, levando seu know-how e influenciando seu
funcionamento interno.
781
A depender do caso analisado, instituições novas podem estar
sujeitas a estes processos por múltiplas formas de isomorfismo, em
vezes ocorrendo simultaneamente. Entender a forma sob a qual um
novo ator dentro de um campo organizacional será atraído para
seguir um agrupamento de normas diz muito a respeito da estrutura
de poder presente neste campo, permitindo com que se compreenda
o grau de coesão e homogeneidade em que um campo organizacional
se encontra.
AIIB e NDB: contestações, reformas ou reificações da OIL 2?
O contexto de criação destes dois bancos liderados pela China
decorre da ideia de representar as transformações ocorridas no
âmbito da economia política global, em um contexto do surgimento
dos BRICS, além de facilitarem o acesso à crédito para países do Sul
Global por não terem as mesmas condicionalidades de BMDs
ocidentais (Wang, 2017). Criado em 2015, o AIIB teve como um de
seus objetivos
[...] mudar o padrão de desenvolvimento econômico,
promover reformas e inovações, liberar o potencial da
demanda doméstica, poder de inovação e a vitalidade do
mercado, aprofundar a integração das cadeias industriais e
de valor e ajudar a região da Ásia-Pacífico a assumir o
liderar globalmente na formação de novos clusters
industriais para o crescimento (China, 2013b, tradução
nossa).
Inicialmente, sua criação foi alvo de críticas dos EUA, que
desincentivou a participação de aliados como a Alemanha, Itália e
França no banco, argumentando que os seus prováveis padrões de
governança e salvaguardas socioambientais não estariam de acordo
com as melhores práticas do meio, além de verem a entidade como
um rival do BM (Sobolewski; Lange, 2015). Como resultado, o banco
adotou as salvaguardas do BM, medida com relação direta a
782
necessidade de adesão dos europeus na instituição, como forma de
legitimar a existência do banco perante o sistema (Serrano Oswald,
2019).
Analisando as diferentes influências do AIIB, Gransow e Price
(2018), Serrano Oswald (2019) e Apolinario Junior e Jukemura (2022)
identificam processos de isomorfismo institucional sob todas as três
diferentes formas abordadas. A formulação do seu Quadro Social e
Ambiental – Environmental and Social Framework (ESF, na sigla em
inglês) – pode ser observada neste sentido (Apolinario Junior;
Jukemura, 2022), uma vez que
[...] houve muitas vozes dos Estados membros fundadores
dentro do AIIB e de ONGs internacionais, profissionais e
grupos das Nações Unidas e a sociedade civil pressionando
por salvaguardas ambientais e sociais mais fortes para os
projetos do AIIB. Uma vez que essas vozes alertaram para
o potencial risco reputacional, o ESF pode ser visto como
uma concessão às expectativas da sociedade e, portanto,
como uma expressão de isomorfismo coercitivo (Gransow;
Price, 2018, p. 303, tradução nossa, grifo nosso).
Não obstante, processos de isomorfismo normativo são
claramente perceptíveis se observarmos o staff do AIIB e dos demais
BMDs. Os profissionais que trabalham no AIIB são, em sua maioria,
alumni de instituições internacionais de grande prestígio dentro do
mainstream financeiro, sendo em sua maioria graduados da Ivy
League estadunidense. Um número significante destes profissionais
são ex-funcionários do Banco Mundial e outros BMDs, (Serrano
Oswald, 2019). O próprio presidente do AIIB, Jin Liqun, foi vice-
presidente do Banco Asiático de Desenvolvimento (ADB, na sigla em
inglês), além de ter ocupado o cargo de diretor executivo alternativo
do Banco Mundial (Gransow; Price, 2018; Wan, 2016). No caso do ESF
do banco, não somente as pressões formais caracterizam uma forma
de isomorfismo, mas o próprio processo de criação do ESF do AIIB,
que contou com a expertise de profissionais do Banco Mundial
783
(Gransow; Price, 2018), caracterizando uma forma de isomorfismo
normativo.
Se trata também de um caso de isomorfismo mimético, na
medida em que a modelagem do banco se inspira hibridamente nas
institucionalidades do Banco Mundial e do ADB, como forma de
ganhar legitimidade no campo dos BMDs (Wan; 2016; Gransow;
Price, 2018). O caso do AIIB é apenas um dentre outros 28 BMDs
dentro do campo do Financiamento Multilateral para o
Desenvolvimento que foram influenciados por processos isomórficos
decorrentes da influência que o Banco Mundial exerce como ator
político, intelectual e financeiro (Pereira, 2016).
O NDB possui uma retórica de complementariedade e
complacência governamental semelhante, algo evidente desde a
quarta cúpula dos BRICS na Índia, em 2012, no qual o banco foi
pensado para mobilizar
[...] recursos para infraestrutura e projetos de
desenvolvimento sustentável nos BRICS e em outras
economias emergentes e países em desenvolvimento, para
complementar os esforços existentes de instituições
financeiras multilaterais e regionais para o crescimento e
desenvolvimento global (India, 2012, tradução nossa, grifo
nosso).
Como Chin (2014) observa, a linguagem diplomática utilizada
pelo NDB, ainda na ocasião da Cúpula de Durban, em 2013, foi
cuidadosa ao não transparecer uma imagem ameaçadora para os
demais BMDs, ainda que ficasse subentendido uma crítica ao
mercado global de capitais e os BMDs existentes como incapazes de
prover os recursos necessários para investimentos infraestruturais.
Esse tom conflitante entre a crítica e a complacência é definidor do
NDB, uma vez que esses países possuem importantes relações com os
EUA, não estando em seu interesse um confronto direto à influência
estadunidense no FMD (Glosny, 2010), caracterizando uma forma de
784
isomorfismo coercitivo indireto, o qual impactou no grau de inovação
do NDB em relação aos demais BMDs.
Embora estes dois bancos sejam produto de um ímpeto
reformista por parte da China, principalmente, mas também de uma
série de países do Sul Global, eles ainda estão embebidos da
influência que o principal BMD exerce sobre eles, o BM. Não somente
o discurso, mas a própria governança destes bancos é fruto direto
deste processo. Ao observamos o grau de isomorfismo institucional
recebido por estes dois bancos, fica evidente a influência que o BM
exerce na sua governança, garantindo a perpetuação da Ordem
Internacional Liberal.
A preponderância do Banco Mundial perante os demais BMDs
é representativa da resiliência e perpetuidade que a Ordem
Internacional Liberal detém. Enquanto uma instituição de Bretton
Woods, com quase 80 anos de existência, ela continua a influenciar
diretamente os padrões e normas do FMD, sendo extremamente
difícil o seu desmantelamento, pois quaisquer atores que procurem
atuar de forma revisionista terão de enfrentar não somente todo o
aparato institucional estabelecido, mas também as capacidades
materiais dos atores que os financiam e perpetuam (Rothstein, 1996,
p. 153).
Logo, é perceptível que existe uma lógica expansionista na
difusão de normas, na qual organizações internacionais procuram
normatizar uma configuração específica de ideias, valores, regras e
normas. Historicamente, países em desenvolvimento não-ocidentais8
comumente são alvos da órbita de normas dessas instituições, em um
processo quase catequético de ‘ocidentalização’ desses países
8 Neste caso, assim como no texto original de Barnett e Finnemore, fazemos
referência aos países do Sul Global, em termos políticos e socioeconômicos, não
nominalmente geográficos.
785
(Barnett; Finnemore, 1999). Dentro desta discussão, o AIIB e o NDB
são apontados como bancos inovadores, que podem desafiar o
sistema do Financiamento Multilateral para o Desenvolvimento.
Todavia, conforme fora brevemente exposto através dos processos de
isomorfismo institucional ocorridos entre os BMDs, este cenário não
aparenta ser tão simples, ainda sendo majoritariamente dominado
pelas potências responsáveis pelo estabelecimento da OLI II.
Conclusão
As Relações Internacionais, em especial os estudiosos do
institucionalismo e da EPI, decorrem de uma crônica ansiedade
cartesiana na busca pelos rumos da Ordem Internacional. Mesmo
antes da ascensão sino-russa, inúmeros outros atores já ameaçavam a
estabilidade dos elementos constitutivos da ordem, caracterizada por
fatores como a segurança de coparticipação, hegemonia recíproca,
semi-soberania e grandes potências parciais, abertura econômica e
identidade cívica (Deudney; Ikenberry, 1999).
Embora a ascensão sino-russa e o estabelecimento de novas
instituições representem, em um primeiro momento, um desafio à
OIL 2, a estrutura normativo-institucional assentada desde a OLI I
impõe barreiras extremamente eficientes em garantir sua
perpetuação. Não pretendendo adentrar no pensamento do filósofo
italiano Antonio Gramsci, as sutis e morosas transformações que
ocorrem no sistema representam este ‘novo que não pode nascer’,
pois as concessões realizadas aos atores reformistas garantem que
ordem hegemônica se perpetue. Mesmo que se creia que o ‘velho está
morrendo’, ele – a ordem – se mostra resiliente, tendo enfrentado uma
– ou duas, na visão de Ikenberry (2009) − guerra mundial, inúmeras
crises financeiras, diversas crises humanitárias, além de uma
pandemia.
786
Analisando a constituição, governança, retórica e normas de
duas instituições criadas com o intuito de trazer reformas à ordem,
essa resiliência se torna mais evidente. Enquanto discussões acerca da
necessidade de atualização da Ordem Internacional Liberal para que
ela represente melhor a configuração atual do Sistema Internacional
– racional constitutivo dos BRICS, por exemplo – levaram a diferentes
estratégias de institutional statecraft por potências emergentes, elas
estão sujeitas à influência de instituições tão antigas quanto as de
Bretton Woods, como o Banco Mundial.
Em última análise, assim como outras iniciativas
aparentemente ‘contra-hegemonicas’, o AIIB e o NDB não objetivam
superar o sistema institucional existente, mas sim aperfeiçoá-lo para
melhor adereçar as demandas globais, intentando-o por meio de um
melhor posicionamento dentro do sistema, aspirando para atuarem
como rule-makers, não rule-takers (Duggan, 2015). Contudo, desde sua
formação e estrutura de governança, não há elementos de ruptura
com a ordem, pelo contrário, há complementos às limitações que a
crescente autoridade liberal, demonstrando a resiliência que esta OLI
II, ou 2.5, possui. Se trata de uma ordem “easy to join and hard to
overturn” (Lim; Ikenberry, 2023, p. 2)
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Journal, v. 16, n. 3, 2021.
792
Thinking and Working Politically in Latin America: International
Organizations’ Decision-making Processes in the Context of
Institutional Fragility
Helena Morais (CEDEPLAR/UFMG)
Fernanda Cimini (CEDEPLAR/UFMG)
Bianca Guimarães (FACE/UFMG)
Development programs require politics. Over the last decades,
International Organizations (IOs) have been paying attention to the
particularities of the countries and their institutions to tackle structural
weaknesses and enhance the efficiency of their projects. The objective of
this paper is to analyze how institutions have been thought of by IOs in
the context of economic development projects in Latin America (LA).
Ios such as the UK Department for International Development
(DFID), the World Bank (WB), the United States Agency for International
Development (USAID), and Sweden's Agency for Development
Cooperation (SIDA) have been active proponents of introducing
“political-economy analysis” (PEA) in the field of development. Under the
umbrella of “thinking and working politically” (TWP), these
organizations intend to ‘look behind the facade’ of formal institutions and
to pay more attention to ‘politics’. If political factors are not taken
seriously, the perpetuation of a de-politicized development machine can
reinforce existing power asymmetries. Meaningful transformation
793
requires ambitious institutions that allow new kinds of redistributive
politics – where barriers to entry are reduced and new societal groups
emerge as relevant political actors.
In this sense, we analyze the “policy guidelines” of the IOs with
active and relevant action in Latin America to evaluate their level of
“institutional and political awareness”. The research relies on existing
definitions from the epistemic community of PEA to assess the level of
TWP in LA countries' development projects. Therefore, we conduct a
content analysis in order to extract inferences from the texts.
In this paper, we assess how IOs’ decision-making processes work
regarding lending and grants for development programs in Latin
America. Do they take into account political factors in order to deal with
the institutional fragilities of the region?
794
Thinking and Working Politically in Latin America: International
Organizations’ Decision-making Processes in the Context of
Institutional Fragility
Abstract: Political dynamics are crucial for achieving meaningful
transformation and reducing power imbalances. This research evaluates
the institutional and political awareness of International Organizations by
analyzing their policy guidelines. It employs established definitions from
the PEA community to assess the level of political integration in
development programs and decision-making processes using content
analysis. By examining IOs' guidelines, this study contributes to
understanding how IOs incorporate political awareness into their
documents, particularly in the context of Latin America's institutional
fragilities.
Keywords: Development – International Organizations – Institutions –
Projects – Latin America.
Introduction
Paraphrasing the famous quote by Peter Gourevitch (1986),
development programs require politics. Over the last decades,
International Organizations (IOs) attempted to enhance the efficiency of
their projects. This paper analyzes how IOs have thought of politics and
institutions in the context of development projects.
Numerous IOs have introduced "political-economy analysis" (PEA)
in the field of development. Under the umbrella of "thinking and working
politically" (TWP), these organizations’ purpose is understanding formal
institutions and paying more attention to 'politics'. If political factors are
not considered, the development machine will reinforce power
asymmetries.
795
In this context, we examine the "policy guidelines" of the IOs that are
actively involved in Latin America to understand their level of
"institutional and political awareness", using existing definitions of PEA.
Then, aiming to assess how lending and grands for development
programs in Latin America work, do the IOs consider political factors to
deal with the institutional vulnerabilities of the region?
The paper is organized into five sections. The first and second
sessions review the literature about institutions and development as well
as TWP. The following session explains the methodology and the data of
the empirical analysis. Session 5 concludes the paper.
Institutions and Development
As Evans (2005, p. 90) stated, "[...] economic analysis of development
has taken an institutional turn." The institutional turn has highlighted the
importance of institutional arrangements, culture, and power in shaping
developmental outcomes (ACEMOGLU et al., 2005; NORTH, 1990),
undermining the previously held view that capital accumulation is the
primary driver of development. Although accumulating capital remains
essential to economic growth, the politics of institutional change has
become the key to development theory, challenging current economic
governance and, sometimes, the preferences of the powerful.
Thus, since the Cold War's end, aid provided by international
organizations has been used to advance the promotion of "good
governance" and "democracy" in developing nations, making it one of the
most politically charged aspects of international development
(WILLIAMS, 2019). Nevertheless, despite the theoretical efforts,
development initiatives frequently encounter setbacks due to a need for
more understanding of the political context in which they operate.
796
In practice, development promoters face challenges in navigating
the political dimensions of their programs due to several reasons. Firstly,
the notion that development is apolitical has long dominated the field,
ignoring power dynamics among funders, beneficiaries, and local actors
(GARCÍA-LÓPEZ, 2019; KASHWAN; MACLEAN; GARCÍA-LÓPEZ,
2019; UNSWORTH, 2009; VENUGOPAL, 2022). As a result, donors'
attempts to build institutions can reinforce existing power asymmetries.
Secondly, no consensus exists on which types of institutions are crucial or
which institutional domains should be addressed alongside development
initiatives. Thirdly, there is a lack of clarity regarding integrating political
analysis into project cycles, leading to institutional barriers that hinder
agencies from working politically despite the consensus on the
importance of doing so. Introducing politics to project cycles can add an
element of unpredictability that development bureaucracies are not
equipped to handle (UNSWORTH, 2009; VENUGOPAL, 2022). Last but
not least, institutional transformations shake the power structures and
may be significantly resisted (ROBINSON, 1997).
Although scholars and practitioners have yet to reach a theoretical
consensus on the types of institutions crucial for development initiatives,
there has been a remarkable agreement within the aid sector that
implementing generally "liberal" forms of governance was a vital factor in
achieving development success. (WILLIAMS, 2019) In this context, the
paradigm known as the Washington Consensus endorses that the market
is a universally effective mechanism for allocating resources and facilitates
economic expansion. As a result, international financial institutions, such
as the International Monetary Fund (IMF) and the World Bank, have
advocated eliminating government regulatory interventions for a long
time. (HAYAMI, 2003)
This unprecedented attempt to universalize a governance model
implies that a profound change happened in international politics after the
797
1980s, resulting in the pursuit of global liberal governance as a common
goal. First, the United States and its allies achieved a privileged
geopolitical and economic position that facilitated the imposition of a
specific perspective on politics and development. Also, during the 1980s
and 1990s, many developing countries experienced significant economic
and political upheaval, which favored aid agencies to advance political
reform in developing nations (WILLIAMS, 2019).
Initially, neoliberalism aimed to reduce government intervention to
allow market institutions to operate freely, but by the 2000s, there was a
new consensus that "getting institutions right" was essential for
development. However, the conceptualization of inequalities and power
asymmetries is narrow. Institutions are inseparable from power, and
although the institutionalist literature has grown, few studies have paid
adequate attention to the issue of power in institutions (KASHWAN;
MACLEAN; GARCÍA-LÓPEZ, 2019). The view of good governance meant
strengthening the accountability of governments by pursuing the
reduction of corruption, imposing a strict rule of law, constructing sound
democratic institutions, and promoting a favorable business environment.
However, this plan has been more challenging than the IOs
previously pictured. It is now evident that implementing "good
governance" and democracy in developing countries is not a
straightforward process. Various international funders pursued their own
projects and priorities and different IOs had distinct accounting, auditing,
and procurement requirements. Given the limited resources of developing
countries' governments, this placed a significant burden on local officials,
and many struggled to track the aid they received. (WILLIAMS, 2019).
Moreover, many things could be improved in the operationalization
of international aid. The primary challenge lies in ignorance about the
local context. "Donors often did not realize, nor did they pay sufficient
attention to the ways in which attempts to intervene in the governing
798
processes in developing countries would become part of those countries'
politics." (WILLIAMS, 2020, p. 231). Although donors may acknowledge
that development challenges are not solely financial and technical but
political as well, there is a gap between the rhetoric about politics and the
practical agenda that is widely accepted (UNSWORTH, 2009).
In Latin America, the context of institutional fragility poses more
challenges to the IOs willing to put forward developmental projects.
Given some differences, most countries from the region suffer from a low
state capacity, defined as "[the] ability to manage basic functions, impose
core public policies, and regulate private behavior." (KURTZ, 2013, p. 3).
However, it is essential to note that this lack of institutional power is not
defined solely by the countries' income or economic structure, so not all
underdeveloped states present the same fragilities. In this sense, IOs need
to understand the states' structures and correlations of power and act
differently according to each local context. (TSIE, 1996)
The Consensus of Washington's idea of a universal liberal system to
promote development in any economy has failed, and many significant
contributions highlighting the importance of forming appropriate
institutions have gained prominence since then (HAYAMI, 2003). Hence,
we argue that implementing liberal forms of governance, frequently seen
as the gold standard of international aid for development, especially in a
context of low state capacity, is insufficient and do not deliver the expected
goals. Instead, International Organizations must think and work
politically.
Thinking and Working Politically
Since development is a political process, it is necessary to build
programs considering political factors when dealing with development
assistance (UNSWORTH, 2009). Development assistance originated after
the Second World War when people believed that "underdevelopment"
799
was linked to the lack of resources (ROSTOW, 1960). However, this idea
led to ineffective development projects, showing the necessity of a
different perspective to tackle underdevelopment (DASANDI et al., 2019).
Under this context, the literature of "Thinking and Working
Politically" (TWP) is emerging as an alternative to enhance the efficiency
of international aid. The approach considers the local context seeking to
reach the developmental goals. The operationalization of the TWP may
occur through Political Economy Analysis (PEA) (DASANDI et al., 2019).
Taking politics into account matters due to several reasons. Firstly,
since politics is at the center of the development debate, in order for the
interventions to be successful, International Organizations should not
ignore it. Secondly, from a political perspective, it is easier to notice
unconventional opportunities for development. Moreover, understanding
political factors leads to a better allocation of resources by the IOs,
increasing their actions' productivity. Nevertheless, the implementation of
TWP is complex because the primary debates regarding development
assistance are still apolitical (UNSWORTH, 2009).
In this context, PEA emerges as a methodology that aims to
comprehend, in a practical way, the interactions among power forces, as
well as economic and social factors, and their impact on development
actions (CASSIDY et al., 2018, p.3). Therefore, a group of donors, such as
the DFDI, SIDA, and the World Bank, has decided to apply PEA in
development projects around the world, seeking to find out the causes of
the weak state capacity and governance in numerous countries, which is
related to factors as history, geography, economy, social and cultural
aspects as well as government economic structures (UNSWORTH, 2009).
It is paramount to notice numerous challenges to effectively
implementing PEA in development projects. Firstly, in fragile states, there
may be a lack of reliable data, it is challenging to keep up with the changes
in situations due to the unstable context of the countries, and finally, it is
800
not easy to have a deep knowledge of how intern factors work.
Furthermore, international factors also difficult the implementation of
these ideas. For instance, international donors are inserted in contexts
where technical and financial aspects are overvalued, even though they
know that politics impacts development deeply. Finally, changing actors'
perspective about proposing development takes time and a certain
openness of these people (UNSWORTH, 2009).
According to Roberts et al (2008), a basic building block in designing
PEA is stakeholder analysis (Reich 1996). Stakeholder analysis involves
the identification of the relevant groups and individuals, the assessment
of their political resources and their relative power and, finally, the
evaluation of the intensity of their commitment and their current position
on the proposed policy or project, which also depends on their perception
and ethics. For this reason, the authors emphasis four factors that are
particularly important in understanding how to manage political analysis
(Roberts et al, 2008, p.68):
1. Players (stakeholders): the set of individuals and groups who are
involved in the reform process, or who might enter the debate over
the policy’s fate;
2. Power: the relative power of each player in the political game (based
on the political resources available to each player);
3. Position: the position taken by each player, including whether the
player supports or opposes the policy, and the intensity of
commitment for or against the policy for each player (i.e., the
proportion of resources that the player is willing to expend on
promoting or resisting the policy);
4. Perception: the public perception of the policy, including the
definition of the problem and the solution, and the material and
symbolic consequences for particular players.
801
Therefore, the PEA is paramount to donors' action in development
projects. Through PEA, donors may acquire a more profound knowledge
of how the country works internally to take actions that result in more
reliable projects of development assistance worldwide (UNSWORTH,
2009).
An example of the operationalization of TWP and PEA is DFDI's
actions in Nigeria. The IO acted through a program - the FOSTER - in the
country for five years, aiming to enhance the quality of the natural
resource governance there. The primary sector concerned was the oil
sector, and their work was to increase transparency, provide technical
assistance to governments, understand the challenges in the oil sector and
work with the Parliament in legislative matters. Nigeria was one of the
pioneers of PEA in the 2000s, and their main goal was to make politicians
responsible for public services and not for the distribution of patronage
benefits and the proposals were put in place in different levels of
government in the country (MCCULLOCH, 2019).
To summarize, PEA is an approach that designs and implements
development actions considering political aspects to enhance power
distribution in society. In the next section, we provide our analysis of some
international organizations' documents aiming to answer the question:
Are their policies aligned with the most recent contributions to the
development literature, i.e., do they take political and institutional aspects
into account?
Materials and Methods
Content Analysis
The goal of a text is to inform people, but it does not speak for itself.
Content Analysis has a central role, as it is the idea of conjecturing, making
a hypothesis and inferences from a text, a phrase, or a group of words
802
(KLOTZ; PRAKASH, 2008). It has long been used in the social sciences
aiming to analyze the discourse in a specific context, revealing
characteristics of their producers and the institutions to which they belong
(KRIPPENDORFF, 1989). There are many approaches to conducting
content analysis, and choosing how to proceed is directly contingent upon
the research type and objectives and the researcher's choices. (SILVA;
HERNÁNDEZ, 2020)
In order to achieve this goal, Laura Bardin (1977) divides content
analysis into four main parts: pre-analysis, coding, categorization, and
inference. Firstly, in the pre-analysis part, we need to choose the
documents to be analyzed by defining a corpus, understanding the mean
research question by creating a hypothesis, detecting the nature of the
analysis (quantitative or qualitative), and proposing indicators that will be
helpful to come to conclusions (KLOTZ; PRAKASH, 2008). The research
question may be answerable and provide some possible alternatives to the
problem, which will be tested and validate or not the hypothesis.
Secondly, in the coding part, it is necessary to transform the data by
rules. It requires the selection of units of analysis and the choice of the
rules under which these units will be analyzed, such as the choice of the
units, the choice of the rules of counting, and the choice of rules of
aggregation and rating. These choices aim to visualize the connections
between the corpus and the possible answers to the questions carefully
(KRIPPENDORFF, 2003).
In addition, Bardin (1977) writes about the Categorization part,
which means rating units of a corpus based on their elements in common.
After grouping and categorizing the units of analysis with or without the
help of software, the last part is making trustable inferences (which are
frequently hidden) from the results aiming to understand the real
meaning of the corpus chosen.
803
The text mining technique can be used for many purposes, but its
application in the economic and political science literature is recent. One
example is the work by Fang (2022), who reviewed the economic
development literature from 1959 to 2020 to show how the concept has
evolved. The author selected 6,589 studies containing almost 4 million
words, which were ranked and clustered, and found that new topics have
gained importance recently in the framework of development studies,
such as "sustainable development", "climate change", and "developing
countries".
Moretti and Pestre (2015) conducted a content analysis based on
World Bank's Reports. The study's primary goal is to understand the
changes in the discourse of the International Organization over time, from
1958 to 2008. In the first half of the time considered, the author shows the
Bank's concerns about infrastructure and industrialization in less
developed countries by Rostow's concept of a take-off in these countries.
Contrarily, since the 1990s, the study proposes a different way of investing
in developing countries, such as having them as clients, and human factors
become central in the analysis (education, training). In order to make these
conclusions, the reports are quantified by the construction in « clusters »,
such as Finance, Management, and Governance. These words were chosen
due to their importance for the Bank's actions. Each cluster has a group of
words found in the reports, and the content analysis makes their
interpretation much more manageable. It is possible to see, then, that the
Bank's concerns change over time, and it was noticed by a change in the
strategy of the World Bank as a whole (MORETTI; PESTRE, 2015).
Then, our main goal is to understand if IOs take politics into account
when planning developmental projects in Latin America, using content
analysis and, more specifically, text mining techniques. The next section
presents the data and procedures we used to reach that objective.
804
Data and Procedures
In our research, we chose 8 International Development Aid Agencies
that act in Latin America to analyze. It was impossible to consider all IOs
due to the scope of the project. We then selected the ones that conduct
development projects in the region, which are the following: The World
Bank, The Inter-American Development Bank (IADB), The New
Development Bank of Latin America (CAF), The Caribbean Development
Bank (CDB), The Central American Bank for Economic Integration
(CABEI), The U.S. Agency for International Development (USAID),
Sweden's Agency for Development Cooperation (SIDA), the New
Development Bank (NDB) and the Development Bank of Latin America
(CAF).
Also, we selected three sorts of documents to conduct the content
analysis: the "Bank Policies", the "Environmental and Social Policies", and
the "Sector Policies". These categories are named according to the World
Bank classification. The names are different in each IO, but we chose the
documents considering the technical features seen in the World Bank
categories:
1. Bank Policies: the IOs' procedures and regulations.
2. Environmental and Social Policies: documents that assure the
importance and the implementation of social and environmental
aspects into the IO's behavior and projects.
3. Sector Policies: guidelines regarding each sector of operation of the
IO.
We understand that these guidelines will enable a comprehensive
and assertive analysis of how the International Development Aid
Agencies' decision-making processes work regarding lending and grants
for development programs in Latin America.
805
Table 1. IOs and documents
Number of
IO Document Category
documents
Bank Policies 28
Word Bank Environmental and Social Policies 25
Sector Policies 5
Bank Policies 52
Central American Bank for Economic
Environmental and Social Policies 4
Integration
Sector Policies 31
Bank Policies 3
Development Bank of Latin America Environmental and Social Policies 2
Sector Policies 0
Bank Policies 19
Caribbean Development Bank Environmental and Social Policies 3
Sector Policies 7
Bank Policies 21
Inter-American Development Bank Environmental and Social Policies 11
Sector Policies 22
Bank Policies 13
New Development Bank Environmental and Social Policies 1
Sector Policies 1
Bank Policies 1
The Swedish International Development
Environmental and Social Policies 1
Cooperation Agency
Sector Policies 98
Bank Policies 144
The United States Agency for International
Environmental and Social Policies 2
Development
Sector Policies 7
Source: Authors’ own elaboration.
806
In order to understand the IOs, we conducted a content analysis of
the documents. Firstly, we downloaded the documents explained above
for all International Organizations. Secondly, we isolated the units of
analysis (words) using the text mining technique in the RStudio Software
to understand them better. Then, we categorized the words by IOs and by
type of document. Thirdly, based on Reich's PEA concepts, we built 2 tiers
or clusters of words - tier number 1 is broader, and number 2 is more
specific. According to Michael Reich (2019), when conducting a PEA
analysis in Development Aid Projects, we need to consider 6 main
categories: interest groups, political leaders, donors, bureaucracies,
financial decision-makers, and beneficiaries, considered as stakeholders or
players. We also added three other categories based on the work of
Roberts et al (2008) to help us to understand certain nuances of the politics
of policy implementation by IOs. These factors are: power, position, and
perception. Table 2 shows all tiers built into the research and the words
included in each category. Altogether, there are three tiers in our work: 1)
PEA categories, 2) Specific groups, and 3) Words (units of analysis).
To choose the analysis units, the researchers discussed and decided
which words (tier 3) would fit better in each category. The same process
took place for tier 2 - specific groups.
Thus, aiming to clarify our interpretation of the results, we divided
the analysis into two main groups: the IOs and the documents. We ranked
the words and calculated their density, considering the words of each tier
and the total of words in the documents. After that, we could understand
better how frequently PEA’s main topics appear in the documents.
807
Table 2. Bag of Words
Tier 1 Tier 2 Tier 3 (word search)
1. Stakeholder, Stakeholders, NGO,
NGOs, Activist, Media, Party, Actors,
Partner, Private, Business, Companies,
Advocacy, University, Universities,
Academics
1. Interest groups 2. Bureaucrats/ Bureaucracy, Ministry,
Stakeholders Manager, Executive, Institution,
2. Bureaucrats + Financial Organization, Government
The set of individuals decision-makers 3. Governor, Mayor, Minister, President,
and groups involved in Senator, Deputy, Authority, Authorities,
the reform process, or 3. Political leaders Leader
who might enter the 4. Beneficiary, Beneficiaries, Population,
debate over the policy’s 4. Beneficiaries Women, Gender, Children, Indigenous,
fate. Ethnic, Race, Black, Color, Racial,
5. External actors Residents, Identitarian, Livelihood,
Livelihoods, Social, Affected, Vulnerable,
People, Peoples, Community, Human,
Poor, Communities
5.Donor/Donors, Funder/Funders,
Multilateral, External, Multinational
1. Leadership, Governance, Democracy,
Democratic, Authoritarian, Politics,
Political, Management, Capacity,
Harmonization, Integration,
Power/ Influence Coordination, Decentralization, Reform,
Regulation, Regulatory, Power, Influence,
The relative power of 1. Governance Distribution, Lobby, Participatory,
each player in the Participation, Enforcement, Interest,
political game (based on 2. Information and Research Interests, Legitimacy, Coalition,
the political resources Transparency, Votes, Vote, Corruption
available to each player). 2. Information, Survey, Publication,
Technology, Technologies, Dataset, Data,
Intelligence, Research, Surveillance, Skill,
Skills, Statistics, Expertise, Knowledge,
Software, Statistical
1. Legitimacy, Engagement, Engage,
Position and
Commitment, Promotion, Compliance,
Commitment
Incentive, Incentives, Favorable,
1. Positive positions Favourable, Feasible, Motivation,
The position taken by
Motivate, Compliance, Support
each player, including
2. Negative positions
whether the player
2. Unfavourable, Critical, Resistance,
supports or opposes the
Resist, Conflict, Conflicts, Opposition,
policy.
Oppose, Infeasible, Critical, Bargain
808
Perception and Ethics
The public perception of
1. Perceive, Position, Perception, Opinion,
the policy, including the 1. Perception
Perceptions
definition of the problem
and the solution, and the 2. Ethics
2. Ethical, Ethics, Moral, Values
material and symbolic
consequences for
particular players.
Source: Authors’ own elaboration.
Results and Discussion
After the operational part of the content analysis, we built a table
containing the density of the words of each cluster. The average presence
of the words related to PEA was small, which is already an important
result. In this section, we will analyze the presence of these words per IO
and document.
Analysis by IO
The average density of PEA categories in our corpus is 5,59%, with
USAID showing the lowest value (4,10%) and SIDA the highest value
(6,82%). This result contradicts what was expected, since USAID is known
for the adoption of PEA. This result can indicate that although USAID
supports the adoption of PEA, it has not been translated into its policy
guidelines.
When we look at each category, we don't find a significant difference
across IOs. Mentions to stakeholders shows an average of 2.79% of the
total words. The most frequent content within this category is related to
the group of beneficiaries (1,50%), which include words such as
"beneficiaries" and "communities". Considering the overall content of
these documents, the mention of the beneficiaries of the policies is
expected and doesn't necessarily point to political economic awareness.
809
Mentions to bureaucrats (0,58%), interest groups (0,52%), political leaders
(0,15%) and external actors (0,04%) present less density. As policy
guidelines apply to the whole organization and not to specific countries
or projects, this result is also expected since the mention of specific players
should appear in the context of specific policies.
As we move to the next categories of "power and influence",
"position and commitment", and "perception and ethics", the value of
density decreases. This decrease is also expected, considering the size of
the bag of words. The category "power and influence" accounts for an
average density of 2,19%, with "governance" accounting for 1,36% and
"information and research" for 0,84. The group of "position and
commitment" represents the average density of 0,61% while the group of
"perception and ethics" only accounts for 0,10%.
Table 3. Results by IO
Position and
Perception and Ethics Power and Influence Stakeholders
Commitment
Neg. Posit. Info. + Extern. Inter. Political
Ethics Perception Total Total Govern. Total Benef. Bureac. Total
Pos. Pos. Research actors Groups Leaders
CABEI 0.14% 0.07% 0.21% 0.16% 0.48% 0.64% 1.22% 0.69% 1.91% 1.30% 0.77% 0.04% 0.63% 0.09% 2.82%
CAF 0.12% 0.04% 0.16% 0.07% 0.46% 0.53% 1.80% 0.76% 2.56% 1.44% 0.58% 0.01% 0.63% 0.13% 2.80%
CDB 0.07% 0.04% 0.11% 0.15% 0.74% 0.89% 1.46% 0.79% 2.25% 1.73% 0.30% 0.07% 0.70% 0.12% 2.92%
IADB 0.02% 0.03% 0.05% 0.08% 0.46% 0.54% 1.48% 1.05% 2.54% 2.16% 0.31% 0.03% 0.51% 0.04% 3.06%
NDB 0.02% 0.05% 0.06% 0.05% 0.49% 0.55% 1.30% 0.30% 1.60% 1.20% 1.08% 0.04% 0.41% 0.21% 2.93%
SIDA 0.02% 0.03% 0.05% 0.27% 0.51% 0.77% 1.64% 0.96% 2.61% 2.46% 0.25% 0.04% 0.60% 0.05% 3.39%
USAID 0.04% 0.06% 0.10% 0.06% 0.38% 0.43% 0.97% 1.13% 2.09% 0.29% 0.51% 0.05% 0.35% 0.29% 1.48%
WB 0.01% 0.05% 0.06% 0.13% 0.38% 0.51% 0.96% 1.01% 1.98% 1.43% 0.84% 0.08% 0.31% 0.27% 2.93%
Authors’own elaboration
810
Analysis by document category
When we compare the density of PEA categories across different
types of documents, we also don't see a significant difference. We would
expect to see more elements of PEA in documents of environment and
social policies rather than bank policies and sector policies. However, the
average density of PEA categories in the corpus of "Environment and
Social Policies" is 6,33%, while in the corpus of "Bank Policies" and "Sector
Policies" is 4,42% and 6,50%, respectively. Yet, the density of stakeholders
is slightly higher in "Environment and Social Policies" documents (3,28%),
with a considerable difference within categories, with beneficiaries
presenting a density of 2.43%, interest groups (0.5%), bureaucrats (0.28%),
political leaders (0.05%) and external actors (0.03%). This result is expected
since this type of document intends to delineate policies for dealing with
communities and affected people of project interventions. However, the
few mentions of interest groups, bureaucracies and political leaders may
indicate the absence of a political analysis approach.
Regarding the category "power and influence", we observe that
sector policies present the highest density (2,49%). When we compare
within this category, we find that sector policies present the highest
density of "governance" (1,56%), while bank policies have the highest
density of " information/research" (1,06%). This result might indicate that
issues related to governance are taken more as a sectoral approach rather
than a general framework of TWP. In fact, since the 1990s, many
international organizations have introduced "governance" as a thematic
agenda along with infrastructure and social policies. Similar results were
found for "position and commitment", with Sector Policies showing the
highest density (0,74%).
The category "Perception and Ethics" is denser in bank policies
(0,14%). However, this result might be biased by the words "value/values",
811
which have the double meaning of "moral values" and "amount". This
confusion should be clarified further.
Table 4. Results by Document Category
Perception and Ethics Position and Commitment Power and Influence Stakeholders
Info. + Extern. Inter. Political
Ethics Perception Total Neg. Pos. Posit. Pos. Total Govern. Total Benef. Bureauc. Total
Research actors Groups Leaders
BP 0.08% 0.07% 0.14% 0.09% 0.40% 0.50% 1.02% 1.06% 2.09% 0.31% 0.69% 0.05% 0.37% 0.26% 1.69%
ESP 0.02% 0.03% 0.05% 0.09% 0.49% 0.58% 1.47% 0.95% 2.42% 2.43% 0.28% 0.03% 0.50% 0.05% 3.28%
SP 0.02% 0.03% 0.05% 0.22% 0.52% 0.74% 1.56% 0.92% 2.49% 2.20% 0.27% 0.05% 0.65% 0.05% 3.22%
Authors’own elaboration
Note: BP = Bank Policies; ESP = Environmental and Social Policies; SP = Social
Policies.
812
Final remarks
Over the past few decades, it has been increasingly
acknowledged that the root causes of development failures are
predominantly political rather than economic or technical.
Consequently, politics has gained greater prominence in both the
theory and practice of development (VENUGOPAL, 2022). However,
there are still many challenges to incorporating political thinking into
the IOs.
In Latin America, the challenge of institutional fragility presents
significant obstacles for international organizations (IOs) seeking to
promote developmental projects, as most countries struggle with low
state capacity even though not all underdeveloped states face the
same vulnerabilities.
Therefore, IOs must understand the unique structures and
power dynamics within each state (TSIE, 1996). The failure of the
universal liberal approach and the emergence of alternative
perspectives emphasizing the importance of appropriate institutions
demonstrate that implementing liberal governance alone is
insufficient to achieve desired developmental goals, particularly in
low-capacity contexts. Consequently, international organizations
must adopt a politically informed approach to their work.
Within this context, studies on TWP have emerged as a
promising paradigm to augment the efficacy of international aid
interventions. In addition, the operationalization of TWP is
frequently facilitated by applying Political Economy Analysis (PEA)
as a valuable analytical tool (DASANDI et al., 2019).
The main result of our content analysis is that none of the
documents we analyzed mentioned "Political Economy Analysis"
directly. So, we tried to identify elements related to PEA that could
indicate some level of institutional and political awareness in the
813
policy guidelines of the IOs with active and relevant action in Latin
America. We found that words related to PEA categories account for
an average of 5,59% of our corpus. We did not find a consistent
difference among the IOs analyzed. In fact, the IO most active in the
field of PEA (USAID) has shown the lowest density of words related
to PEA. This result might indicate that although USAID supports the
adoption of PEA in the technical level, it has not incorporated the
principle of TWP in its general rules.
When we consider the analysis by type of documents, we find
that documents of sectoral policies are more likely to have words
related to PEA. This result might indicate that IOs treat issues related
to governance and institutions as sectoral policies and not as an
encompassing approach for all sectors.
The analysis presents some limitations. As the tiers have
distinct numbers of words, the biggest ones are expected to have
higher density. Another point worth mentioning is the different
quantity of documents of the IOs, which may create a possible bias in
the densities, but it is frequent in the content analysis methodology.
One interesting path for future work is analyzing the evolution of the
PEA content in IOs documents throughout time and across different
sectors.
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817
Uma leitura dos impactos da crise da COVID-19 na economia
global e no Ciclo Hegemônico Norte-americano
Patrícia Nasser de Carvalho1
Elói Martins Senhoras2
Resumo: Com base no referencial teórico que considera perspectivas
estruturais de longo prazo dos ciclos e transições de hegemonias
mundiais, o objetivo deste artigo realizar uma leitura interpretativa
dos impactos das recentes transformações das relações internacionais
sobre a hegemonia mundial dos Estados Unidos a partir da análise
dos impactos econômicos da pandemia de Covid-19. Como hipótese
sustenta-se que embora a situação gerada pelo citado evento tenha
profundos e negativos impactos na economia e na geopolítica global
e represente uma tempestade perfeita para a hegemonia norte-
americana, visto que o país está sendo desafiado por diversos e
inéditos fatores de forte magnitude e de efeitos adversos, de fato, a
pandemia de Covid-19 não é capaz de gerar uma crise terminal
imediata da hegemonia norte-americana. Análises da conjuntura e da
estrutura do Sistema Internacional demonstram que existem
evidências de que há algumas décadas está em curso uma fase de caos
do atual ciclo hegemônico mundial e que a pandemia de Covid-19 se
1
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) –
[email protected]
22
Universidade Federal de Roraima (UFRR) – [email protected]
818
configura como novo vetor de desestabilização da ordem multilateral
de curta e média duração, embora suas repercussões não são
suficientes para chancelar uma transição definitiva hegemônica
mundial. Dessa forma, os Estados Unidos continuam sendo a única
grande potência global com condições de manter seu status
hegemônico em razão da sua grande capacidade de acumulação de
capital e de inovação tecnológica, além da imensa capacidade do seu
poder militar, embora precisem lidar cada vez mais com os desafios
colocados pela China. Para tal discussão, este texto está estruturado
da seguinte forma: a primeira seção traz uma análise teórica e
conceitual dos ciclos hegemônicos mundiais desde o início do
capitalismo até a hegemonia norte-americana a partir de uma
perspectiva de longa duração; as seções seguintes discutem
separadamente a pandemia de Covid-19 e os seus impactos sobre o
atual Ciclo hegemônico Norte-americano. A última seção faz uma
reflexão sobre a tempestade perfeita vivenciada pelos norte-
americanos e relaciona a conjuntura de eventos disruptivos com a
perspectiva dos ciclos hegemônicos para verificar a hipótese.
Introdução
Interpretações sobre a dinâmica das relações internacionais têm
sido objeto de estudo de uma ampla gama de perspectivas teóricas e
históricas que floresceram ao longo do tempo e contribuíram para a
construção desse campo epistemológico. Em geral, através de marcos
conjunturais e estruturais, elas analisam diferentes atores, forças e
fatos que impactam no curto, médio e longo prazos sobre a
redistribuição de poder e de riqueza entre os Estados Nacionais e
sobre o Sistema Internacional e podem levar à transição de ciclos
hegemônicos mundiais.
819
A mais recente crise internacional gerada pela pandemia do novo
coronavírus, denominado SARS-CoV-2, causador da doença Covid-
19 – acrônimo em inglês para Coronavirus Disease 2019 – tem
consequências significativas para a humanidade, para a dinâmica da
economia global e para a atual hegemonia norte-americana,
tornando-se uma nova conjuntura crítica e um marco histórico capaz
de transformar as relações internacionais. Por ser uma ameaça
perturbadora, configurando-se como uma nova variável atípica para
a dinâmica das transições dos ciclos hegemônicos mundiais de
repercussão multifacetada em nível global.
Levando em conta os amplos spillovers trazidos pela crise da
pandemia de Covid-19 e com base em um arcabouço teórico cujas
perspectivas consideram elementos contextuais e estruturais de
longo prazo dos ciclos hegemônicos mundiais e as transições de
poder hegemônico ao final de cada um deles, o objetivo deste
trabalho é trazer uma interpretação acerca do impacto contínuo e
potencial da pandemia de Covid-19 à luz de um prisma histórico e
conjuntural, além de analisar criticamente como a hegemonia norte-
americana está sendo testada por diversos fatores de forte magnitude
e de efeitos adversos. Além disso, busca-se pensar cenários possíveis
que consideram o potencial de ascensão de outras potências globais e
até de outro hegemon.
A hipótese é de que a crise da pandemia de Covid-19 impacta
profunda e negativamente a economia global e se agrega a outros
fatores e eventos que formam uma tempestade perfeita, cujas
consequências negativas para a sua posição internacional são
derivadas de uma crise múltipla. Com efeito, esse choque exógeno
contribui como um novo episódio conjuntural para a desaceleração
do atual ciclo hegemônico norte-americano, uma vez que tem efeitos
políticos, econômicos e sociais nos Estados Unidos e no mundo. No
entanto, ela não gerará uma crise terminal imediata do ciclo
820
hegemônico norte-americano. Em outras palavras, a crise da
pandemia de Covid-19 tem implicações no declínio do poder relativo
dos Estados Unidos, o que pode abrir uma janela de oportunidade
para potências globais em ascensão, com consequente e relativa
desestabilização do Sistema Internacional multilateral. Nesse sentido,
admite-se que a atual crise tem potencial para desencadear a ascensão
de outra potência hegemônica mundial apenas no longo prazo.
Com base nas perspectivas teóricas dos ciclos hegemônicos
mundiais das relações internacionais, este estudo caracteriza-se
metodologicamente como um trabalho explicativo e descritivo de
acordo com seus fins e como uma pesquisa qualitativa de acordo com
seus meios. Esta interpretação do impacto da crise da pandemia de
Covid-19 na economia global e no ciclo hegemônico norte-americano
está estruturada da seguinte forma: a primeira seção traz o referencial
teórico-conceitual dos ciclos hegemônicos mundiais, contemplando
uma perspectiva histórica e uma discussão contextual das
consequências macro e microeconômicas e das políticas da pandemia.
A segunda seção abrange uma revisão bibliográfica para
levantamento de dados e uma abordagem internacionalista
hermenêutica para a análise no que se refere aos impactos da
pandemia de Covid-19 no atual ciclo hegemônico norte-americano.
Ela também aborda as fases anteriores de contestação da hegemonia
dos Estados Unidos e o potencial crescente de outras potências
globais na ordem mundial a fim de discutir amplamente a crise atual.
A terceira seção traz uma leitura interpretativa dos efeitos no curto,
médio e longo prazo da pandemia e traça possíveis cenários,
especialmente considerando os elementos de conjuntura. A conclusão
faz uma reflexão final sobre o impacto da pandemia de Covid-19 na
economia global, concluindo que, a despeito da forte magnitude
desestabilizadora, ela não significa uma crise terminal imediata dessa
hegemonia e, portanto, a transição de ciclo hegemônico.
821
Considerações Teóricas e Conceituais
As transições cíclicas de poder hegemônico mundial têm sido
analisadas por uma pluralidade de perspectivas teóricas e históricas
nos campos epistemológicos das Ciências Sociais e Humanas. Elas
refletem as discussões de conceitos e pontos de vista dos ciclos
hegemônicos a partir de interpretações analíticas divergentes e de
diferentes matrizes ideológicas. Portanto, o estado da arte sobre os
ciclos hegemônicos mundiais nas relações internacionais é permeado
por um conjunto diversificado de paradigmas ideológicos e teóricos
sobre a acumulação de poder e de riqueza, como a Teoria dos Longos
Ciclos, a Teoria dos Sistemas Mundiais, a Teoria dos Sistemas de
Acumulação, a Teoria da Transição Sistêmica, a Teoria da Transição
de Poder e a Teoria da Estabilidade Hegemônica (Arrighi, 2010;
Kohout, 2003; Boswell; Sweat, 1991; Organski, 1968; Wallerstein, 2004;
Gilpin, 1981; Modelski, 1987), que em sua maioria admitem discursos
racionalistas e análises históricas da redistribuição de poder entre os
Estados Nacionais e entre outros atores no Sistema Internacional. De
outro modo, as pesquisas dos ciclos hegemônicos mundiais
abrangem bases ecléticas, pois envolvem discussões críticas
neomarxistas e passa pelas abordagens liberais antes de chegar aos
debates realistas.
Essas leituras baseiam-se nas contribuições analíticas desses
diferentes referenciais teóricos, no que diz respeito às transições de
distintos ciclos hegemônicos mundiais, caracterizados por uma
formação histórica evolutiva de distintos sistemas de poder
hegemônico, periodizados por arquiteturas institucionais
assimétricas compostas de minissistemas descentralizados (família,
clãs, tribos, feudos, cidades-estados) e macrossistemas centralizados
(civilizações, impérios e Estados Nacionais). Nesse contexto e
fazendo uma arqueologia do conhecimento sobre esses sistemas de
poder hegemônicos mundiais dinâmicos, pode-se dizer que desde o
822
século XV ocorreram quatro longos ciclos: o Ciclo Genovês (Pré-
Capitalismo Mercantil), o Ciclo Ibero-Holandês (capitalismo
mercantil e comercial), o Ciclo Inglês (capitalismo industrial e
comercial) e o Ciclo Norte-Americano (capitalismo oligopolista e
financeiro), cujas naturezas dos processos de centralização e
acumulação político/de poder e econômico/capital foram
relativamente síncronas no longo prazo (Senhoras, 2015).
Ao longo desses quatro ciclos hegemônicos, que impactaram
tanto a estruturação política das relações internacionais quanto a
construção das relações econômica interestatais capitalistas, percebe-
se que a origem das transições hegemônicas mundiais tem sido
geralmente compreendida por razões geopolíticas ou identificadas
por dinâmicas conflituosas e guerras ou por questões econômicas,
ligadas a inovações revolucionárias e/ou crises produtivas e
financeiras e/ou de mercado.
Mais recentemente, a disseminação multilateral da pandemia do
novo coronavírus trouxe uma dinâmica diferente para o ciclo
hegemônico norte-americano, pois corrobora um quadro que pode
conduzir ao declínio relativo dos Estados Unidos como hegemonia
mundial e à aceleração da projeção internacional da China como
potência global. Esta última mostra cada vez mais capacidade para
ser a potência hegemônica mundial, uma vez que é notória a sua
ascensão de forma incremental nas últimas décadas, sobretudo em
meio à crise da pandemia deCovid-19, que trouxe uma dinâmica
diferenciada em termos de fortalecimento da transição da hegemonia
mundial se comparada às crises preexistentes: a crise provocada pelos
atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 e a crise do mercado
imobiliário, que começou em 2007 nos Estados Unidos e atingiu o
investimento financeiro e bancos em todo o mundo em 2008
(Senhoras; Carvalho, 2009). Ambas afetaram com força o poder
hegemônico dos Estados Unidos antes da pandemia de Covid-19.
823
Nesse contexto, a pandemia de Covid-19 é uma variável atípica
na dinâmica de transição dos ciclos hegemônicos mundiais, uma vez
que é moldada por causas sanitárias e com consequências políticas e
econômicas, as quais imediatamente conduziram à securitização da
saúde por meio de estratégias horizontais e verticais de isolamento
social, que geraram uma série de efeitos negativos com repercussões
político-econômicas diretas e em larga escala. Desde fevereiro de
2020, a pandemia de Covid-19 contribui para a configuração de uma
crise econômica global profundamente grave, com efeitos políticos,
econômicos e sociais intranacionais e internacionais, incluindo o atual
hegemon, os Estados Unidos.
A magnitude e as especificidades do impacto econômico gerado
pela pandemia do coronavírus transformam esse evento em um
“cisne verde” (Elkington, 2020) ou “cisne ambiental” ou, ainda, “cisne
negro climático” – uma analogia ao drama gerado da peça de balé
Cisne Negro – e adaptado pelo Bank of International Settlements (BIS)
para descrever eventos adversos fora do escopo das expectativas
regulares com impacto amplo ou extremo. Assim, o conceito vai além
da crise sanitária e da quebra logística no abastecimento das cadeias
globais de valor e das cadeias de consumo devido às incertezas desse
surto viral porque foi gerada forte volatilidade no mercado financeiro
internacional. O “cisne verde” causado pela irrupção da pandemia de
Covid-19 levou a recorrentes ataques especulativos em diferentes
bolsas de valores e contra diferentes moedas, bem como a uma guerra
comercial e pânico aos mercados. No início de 2020, analistas do BIS
sugeriram que as consequências da pandemia de Covid-19
conformam mais um risco global para além das relacionadas às
mudanças sanitárias e climáticas, que não foram totalmente
consideradas nem precificadas com antecedência. A pandemia
poderia colocar a humanidade em risco mais do que a crise financeira
anterior, pois a crise da pandemia de Covid-19 tem fortes
824
externalidades negativas relacionadas a mudanças nos ecossistemas
naturais (Silva, 2020, p. 1-2) e ameaçam a economia global de forma
ainda mais complexa, imprevisível e destrutiva.
A pandemia de Covid-19 representa um “cisne verde” ou “cisne
ambiental” com impactos nos ciclos hegemônicos da microeconomia
empresarial, pois ela repercute na implosão de estruturas arcaicas ou
de baixa competitividade produtiva, levando à morte de um conjunto
de empresas e setores pertencentes à economia tradicional da 1ª, 2ª e
3ª Revolução Industrial, ao mesmo tempo que promove o crescimento
de empresas ligadas à nova economia global da 4ª Revolução
Industrial. Graças aos grandes avanços tecnológicos, a sociedade
mundial está mais preparada do que nunca para responder à
pandemia e está superinterconectada. Pode-se dizer que a pandemia
de Covid-19 está acompanhada pela destruição criativa de Joseph
Schumpeter (1943), em um contexto em que muitas empresas faliram
devido ao choque exógeno por não conseguirem se ajustar. A
economia tradicional acelera sua falência inercial vis-à-vis o crescente
dinamismo capitalista de poucos setores inovadores materializados
por um grupo restrito de empresas que antes estavam
estrategicamente posicionadas ou que se posicionaram muito
rapidamente na nova economia para enfrentar a crise.
Dessa forma, a pandemia tem potencial de impacto estrutural na
aceleração da transição do ciclo hegemônico norte-americano, visto
que se observa desde a década de 1980 um forte desafio competitivo
aos Estados Unidos por Japão e Alemanha na economia, seguido pela
China a partir da década de 2010. A transição pode acontecer na
esteira do rápido progresso tecnológico e de inovações, uma vez que
há aumento da competição no mercado internacional que se reflete
em inovações revolucionárias nas seguintes áreas: automação
industrial (robótica, impressoras 3D, nanotecnologia); energia
renovável (fontes alternativas de energia); biotecnologia (engenharia
825
genética); tecnologia da informação (big data, novas mídias, internet
das coisas); finanças (fintechs e criptomoedas para obter menores
custos de transação); transporte (drones e carros inteligentes); e no
comércio eletrônico.
Consequentemente, os Estados Unidos estão sendo desafiados
pela competição global por inovações tecnológicas, investimentos,
fluxos de dados e digitalização de processos produtivos, além de
recursos e influência globais (Linn, 2018), especialmente pela China.
A reação do governo norte-americano no caso da empresa de
tecnologia chinesa Huawei, em 2019, mostrou claramente o medo dos
Estados Unidos de perder suas vantagens para os chineses na corrida
global à tecnologia 5G. À época, o presidente norte-americano,
Donald Trump, impôs um bloqueio comercial a empresas e entidades
consideradas perigosas, alegando fins de segurança nacional para
proteger o mercado norte-americano da concorrência chinesa e
internacional. A competição nesse tipo de rede móvel de 5ª geração é
somente um exemplo de como as tecnologias evoluem rapidamente.
Se por um lado esse episódio mostrou como os Estados Unidos ainda
têm mecanismos para conter a evolução da tecnologia chinesa, por
outro, com a eclosão da crise pandêmica, a China canalizou todos os
recursos à sua disposição para implantar tecnologias inovadoras a
fim de mitigar rapidamente os efeitos do vírus de forma significativa
(Chaturvedi, 2020).
A pandemia de Covid-19 também pode ser identificada como um
choque exógeno na macroeconomia e nas relações internacionais,
reforçando o problema da estabilização econômica e da política
externa unilateral do centro hegemônico mundial vigente antes do
surto da doença, com consequente desestabilização multilateral da
ordem mundial. A pandemia, que ceifou mais de 25 mil vidas nos
Estados Unidos somente em 2020 e teve um impacto econômico
devastador com cerca de 22 milhões de pessoas desempregadas nos
826
primeiros dois meses (Haass, 2020), também teve consequências
profundas para o mercado de ações norte-americano, anulando no
mesmo período quase três anos consecutivos de ganhos (Miller,
2020). Embora os Estados Unidos ainda tenham supremacia
financeira global e o dólar seja uma moeda muito forte e segura, uma
vez que o valor do índice da moeda americana tenha subido para
níveis recordes desde o início da pandemia de Covid-19, houve
profundas consequências para a economia norte-americana e para a
economia global no primeiro ano da pandemia. Outra delas é a
inflação crescente a partir de agosto de 2020 em função das flutuações
de demanda.
Os efeitos econômicos da crise pandêmica somaram-se à
desaceleração das principais economias do mundo, cujo desempenho
já vinha piorando principalmente devido aos avanços do
neoprotecionismo comercial (Senhoras, 2020), liderados desde 2018
pelo presidente norte-americano, Trump, e pelo líder chinês, Xi
Jinping. Antes da pandemia, havia também uma tendência mundial
de rápido aumento do desemprego e da dívida pública norte-
americana, com efeitos no aumento da velocidade das mudanças
microeconômicas nos ciclos empresariais e tecnológicos hegemônicos
rumo à nova economia da 4ª Revolução Industrial. Em função dos
gastos maciços em resposta à pandemia de Covid-19, a dívida pública
se elevou para níveis não vistos desde a Segunda Guerra Mundial nos
Estados Unidos (McBride; Siripurapu, 2021). Na área social, de forma
resumida, é possível mencionar que houve no país aumento da
insegurança alimentar, sobretudo infantil (Bauer, 2020), dos sinais de
fragilidade no mercado de trabalho (Aaronson; Edelberg, 2020),
especialmente no caso das mulheres negras com baixa escolaridade e
dificuldades de um percentual significativo da população para lidar
com suas despesas domésticas no primeiro ano da pandemia e,
827
consequentemente, aumento da pobreza nos Estados Unidos
(Carman; Nataraj, 2020).
Em termos políticos, o multilateralismo global desacreditado pela
liderança norte-americana havia colocado o país em posição de
isolacionismo econômico e (geo)político antes mesmo da pandemia
de Covid-19. No ano de 2017, os Estados Unidos anunciaram que
deixariam de apoiar o Acordo de Paris Contra as Mudanças
Climáticas, decisão que entrou em vigor apenas em 2020. Em maio e
junho de 2020, o presidente Trump retirou quase um terço das forças
armadas norte-americanas estacionadas na Alemanha e todas no
Afeganistão, e anunciou a saída dos Estados Unidos da Organização
Mundial da Saúde (OMS). Em novembro daquele mesmo ano, os
norte-americanos se retiraram formalmente do Open Skies Treaty
(Sanger, 2020), alegando preocupações sobre a conformidade russa ao
tratado, para não mencionar a piora nas relações transatlânticas. O
bloco europeu é um tradicional aliado dos Estados Unidos, embora
as suas relações se deterioraram durante todo o mandato de Trump,
e onde em contrapartida houve ampliação da percepção do aumento
das fragilidades dos Estados Unidos como hegemonia mundial.
Desde que se tornou presidente dos Estados Unidos, Trump fez
discursos sobre a falta de eficiência da Organização Mundial do
Comércio (OMC) e trabalhou para levar a organização a uma
paralisia ao boicotar a nomeação de novos árbitros para o Órgão de
Apelação. Na Organização das Nações Unidas (ONU), o aumento das
tensões e a competição estratégica entre os Estados Unidos, a Rússia
e a China também bloquearam os esforços para lidar com crises. O
presidente Trump decidiu ainda que o seu país deixaria de ser
membro da Organização das Nações Unidas para a Educação, a
Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Conselho de Direitos Humanos
das Nações Unidas (UNHRC), antes da pandemia, em outubro de
2017 e junho de 2018, respectivamente, além de ter defendido muito
828
menos os direitos humanos como valor importante do que os
governos anteriores. De modo geral, houve enfraquecimento do
poder norte-americano para lidar com questões transnacionais.
Sem dúvida, essas ações em termos de política externa ajudaram
a enfraquecer a ordem liberal global que a hegemonia norte-
americana liderou no pós-Segunda Guerra. Recorrentemente, Trump
se expressava de maneira cética sobre os benefícios das instituições
multilaterais e do comércio global e os discursos sobre a necessidade
do uso da força para manter a paz. Como consequência disso, muitos
observadores acreditaram que a ordem mundial sob a hegemonia
norte-americana estaria chegando ao fim e que uma grande mudança
estaria ocorrendo na posição dos Estados Unidos no mundo, abrindo
espaço para um novo período de desglobalização e de conflitos (Nye,
2019), que poderia resultar na ascensão de um novo hegemon.
Diante desse contexto e dentro de um espectro de análises de
longo prazo das transições hegemônicas cíclicas, é possível tomar a
disseminação da pandemia de Covid-19 como uma tempestade
perfeita que conforma uma conjuntura inesperada e imprevisível
para os Estados Unidos. Além das consequências na área da saúde,
como a perda de milhares de vidas humanas, a crise atual é uma
combinação de diferentes forças negativas, com efeitos políticos,
econômicos, ambientais e sociais intranacionais e internacionais nos
Estados Unidos e em muitos países do mundo. Esses fatores afetam a
capacidade de os Estados Unidos como potência hegemônica afetar
outros atores como os líderes norte-americanos gostariam e a própria
ordem mundial que eles lideram desde a Segunda Guerra Mundial.
Essa nova crise desencadeada pela pandemia admitida como um
“cisne verde” entrará para a história como uma crise de forte
magnitude em termos da dinâmica das relações internacionais, dos
desdobramentos ambientais e de seu grave impacto recessivo em
termos multidimensionais ainda não totalmente identificados. O
829
impacto da pandemia de Covid-10 é estrutural, uma vez que que
persiste por décadas e causa profunda depressão econômica global
com efeitos assimétricos. Ela tem, também, potencial para se tornar
um gatilho de aceleração da transição do ciclo hegemônico norte-
americano e da projeção internacional da China como potência
global.
O Ciclo Hegemônico norte-americano e o impacto da crise da
pandemia de COVID-19
A pandemia de Covid-19 repercutiu de modo multifacetado na
realidade de indivíduos e de nações, impactando de forma adversa e
contrastante diferentes transformações nos campos sanitário,
ambiental, social, político e econômico devido à ressonância de
diversos vetores negativos vis-à-vis alguns positivos.
Os efeitos de curto prazo da pandemia de Covid-19 na economia
internacional trouxeram consigo imediatos impactos conjunturais que
se manifestaram por uma grave recessão econômica de natureza
multilateral, oriunda justamente das estratégias nacionais de
isolamento social da população, fechamento de economias e
fronteiras em todo o mundo para retardar a propagação do
coronavírus. Pode-se dizer que os efeitos foram também uma relativa
autarquia das relações internacionais diante das quebras no consumo
global de commodities, na produção de insumos e no comércio
internacional, repercutindo de modo assimétrico no aumento do
desemprego e no aumento das dívidas públicas. A partir de
dezembro de 2019, com a detecção do vírus na China, a pandemia
repercutiu amplamente na escassez de matérias-primas e produtos
acabados no mercado internacional, nas dificuldades de transporte e
na mobilidade limitada de pessoas. Tudo isso afetou diversos
processos comerciais, além de todo o abastecimento cadeias
830
produtivas com elevação de custos e a necessidade de garantir
medidas adicionais de saúde e de segurança para todos os
participantes (OCDE, 2020).
As consequências da pandemia de Covid-19 também foram
percebidas de forma díspar no curto e no médios prazos entre
diferentes atores no que diz respeito ao aparato da diplomacia
econômica e científica (nos Estados Nacionais e organizações
internacionais), da paradiplomacia econômica (indivíduos e
empresas) e no sistema global (Senhoras, 2013). Manter o comércio de
insumos médicos essenciais fluindo significava eliminar barreiras aos
medicamentos e bens essenciais para o combate à doença numa altura
em que eram crescentes as barreiras comerciais à troca desses tipos
de bens (Evenett, 2020), a maioria delas relacionados com os
requisitos sanitários e fitossanitários. A pandemia de Covid-19
demonstrou ainda que a sociedade internacional precisa da ciência
nas decisões políticas e econômicas e de cooperação para a realização
de pesquisas e diálogos multidisciplinares.
Como já mencionado, a arquitetura do poder hegemônico
mundial nas relações internacionais passa a sofrer as consequências
da pandemia de Covid-19 devido aos impactos incrementais e
consecutivos das transições hegemônicas no longo prazo. Como
choque exógeno contribui como um novo episódio conjuntural para
a desaceleração do atual ciclo hegemônico norte-americano. No
entanto, até aqui, não há demonstração de uma inflexão irruptiva
definitiva da hegemonia mundial, pois continua a tendência de
confluência inercial de crise das instituições multilaterais globais e de
migração do centro dinâmico do capitalismo do Atlântico para o
Pacífico. Em outras palavras, do ponto de vista conjuntural, a rápida
difusão da Covid-19 é uma tempestade perfeita, cujas consequências
negativas para a sua posição internacional são derivadas de uma crise
múltipla, visto que é um novo episódio para a desaceleração do atual
831
ciclo hegemônico norte-americano. No entanto, ela não gera uma
crise terminal do ciclo hegemônico norte-americano, mas sim desde a
década de 1980 corrobora a tendência do declínio relativo dos Estados
Unidos e uma transição hegemônica (Carvalho; Senhoras, 2013).
Além dos elementos domésticos relacionados à posição norte-
americana que levam a uma maior desestabilização e ao declínio
relativo do seu poder, o ritmo de crescimento da produtividade na
região Ásia-Pacífico aumentou mais rapidamente em relação ao
Atlântico, e ainda mais significativamente em relação aos centros
tradicionais de acumulação capitalista no Ocidente antes mesmo do
início da pandemia.
Nesse sentido, alguns países asiáticos podem se recuperar mais
rapidamente da crise pandêmica de Covid-19 em comparação ao
Ocidente e seguindo o que parece ser uma tendência de
transformações estruturais do século XXI. O “Século Asiático”,
liderado pela China, Índia e vários outros países do Leste Asiático,
são economias que apresentam melhores indicadores de
produtividade em termos de maior grau de competitividade na nova
economia em comparação com o mundo ocidental. Antes da
pandemia, a região tem participação global crescente no comércio
internacional, no mercado de capitais, nos fluxos de pessoas, de
conhecimento e recursos (Woetzel; Seong, 2019).
Em outras palavras, em uma perspectiva de conjuntura crítica, na
esteira da atual tempestade perfeita que afeta a posição dos Estados
Unidos como hegemonia mundial, o choque exógeno Covid-19 nas
relações internacionais poderia ser lido a partir de uma dinâmica das
transições políticas e econômicas cíclicas da potência hegemônica,
sem conformação imediata de sua crise terminal baseada na
concepção da ordem mundial unimultipolar sob a hegemonia norte-
americana. Os Estados Unidos convivem com a ascensão de outros
polos de poder desde o final da Guerra Fria. Somente no longo prazo
832
se poderia dizer com certeza que esse relativo declínio dos Estados
Unidos teria impacto em uma transição hegemônica e que uma
potência asiática a superaria decisivamente.
Na verdade, a pandemia de Covid-19 representa mais uma fase
de contestação da posição norte-americana após três anteriores. Em
todos os momentos anteriores, crises impactaram o país, gerando
espaços para a ascensão de outras potências no âmbito econômico
sem ruptura da arquitetura de funcionamento da ordem mundial em
vigor. Portanto, a despeito do questionamento da hegemonia dos
Estados Unidos nos ciclos pretéritos, o país persistiu como um poder
central do Sistema Internacional, especialmente devido às suas
proezas militares, tecnológicas, financeiras e monetárias. Portanto, no
início do século XXI, os Estados Unidos persistem como hegemonia
mundial, apesar da existência de outras potências globais, de polos
de cooperação e de conflito distintos nos níveis econômico, político e
cultural (Huntington, 1999), embora a pandemia de Covid-19 esteja
abalando significativamente o poder relativo dos Estados Unidos no
curto e no médio prazos com potencial para romper o ciclo
hegemônico e abrir ainda mais espaço para projeção/ascensão da
China e outros países asiáticos no longo prazo.
As fases ou ciclos de contestação à hegemonia norte-americana e
suas características estão resumidas a seguir:
833
Tabela 1. Contestações à hegemonia norte-americana
O primeiro ciclo de contestação à hegemonia
possuía uma natureza econômica, pois surgiu
no contexto da década de 1980 diante da maior
competitividade e crescimento do Japão e
Alemanha Ocidental, sendo respondida por
1º Ciclo de uma agenda neoprotecionista pelos Estados
1980
Contestação Unidos nos anos de 1980, bem como na década
Hegemônica de 1990 por meio da emergência da III
Revolução Industrial no Vale do Silício,
fundamentada nas Tecnologias de Informação,
Comunicação e Biotecnologia e pelo
aprofundamento nas agendas multilaterais
durante a administração Clinton.
A natureza da segunda onda cíclica de
contestação à hegemonia internacional
estadunidense possuía uma natureza político-
cultural. Após os ataques terroristas do 11 de
2º Ciclo de Setembro de 2001 emergiram contestações à
2000
Contestação hegemonia político-militar dos Estados Unidos,
Hegemônica as quais foram muito rapidamente respondidas
pelo movimento neoconservador comandado
pela administração Bush, o qual rompeu com a
lógica multilateral em detrimento de uma
agenda unilateral e plurilateral.
A terceira onda possui novamente uma natureza
econômica em função das crises financeiras nos
Estados Unidos nos anos de 2007 (mercado
mobiliário) e 2008 (bancos de investimento),
bem como dos indicadores de maior
competitividade e produtividade na Ásia,
3º Ciclo de repercutindo em uma crescente
2010
Contestação desindustrialização nos Estados Unidos diante
Hegemônica da conformação de redes internacionais de
produção integrada com epicentro na Ásia. As
respostas a essa contestação hegemônica
repercutiram com a chegada de Donald Trump
ao poder, por meio de uma agenda
neoprotecionista e fundamentada no
plurilaterialismo.
Fonte: elaboração própria.
834
É possível concluir que essas três fases de contestação da
hegemonia mundial estadunidense e o choque exógeno provocado
pela crise da pandemia de Covid-19 demonstram que forças
negativas têm sido introjetadas para reforçar a desestabilização
multilateral da ordem mundial, anteriormente em curso devido a
outros fatores do cenário internacional (Carvalho; Senhoras, 2013).
Na história de longo prazo, as transições hegemônicas não são
processos lineares, mas são suscetíveis a avanços e retrocessos, além
de serem caracterizadas por momentos cíclicos de ganhos e perdas,
ou mesmo de ordem e desordem mundial e gatilhos de estabilização
e desestabilização do Sistema Internacional, demonstrando assim que
os episódios de crise política nos Estados Unidos, como a Guerra do
Vietnã, após as crises econômicas dos anos de 1970, e os ataques de
11 de setembro de 2001, confrontaram o poder e os valores ocidentais.
Dessa forma, a difusão de potências econômicas concorrentes, como
Japão e Alemanha Ocidental na década de 1980, ou China na década
de 2010, representa contestações à hegemonia dos Estados Unidos
dentro do ciclo hegemônico norte-americano, embora nenhuma delas
até hoje tenha tido capacidade para conduzir a uma transição
hegemônica clara e direta. Em todas elas os norte-americanos
conseguiram manter a sua posição, seja pelo seu poder político,
militar, cultural ou econômico-financeiro.
No entanto, o poder norte-americano está passando por um
declínio relativo que, ao mesmo tempo, abre uma janela de
oportunidade para as potências globais em ascensão. Nesse contexto,
a crise da pandemia de Covid-19 é um fator adicional importante que
deve ser considerado na análise do ciclo hegemônico norte-americano
em andamento.
835
Efeitos no Curto Prazo e no Longo Prazo
Como mencionado, os efeitos negativos da crise da pandemia de
Covid-19 são multifacetados e não uniformes, pois dependem da
gravidade da disseminação do coronavírus e do perfil das políticas
sanitárias e econômicas adotadas em cada país. Ela repercute
imediatamente na aceleração do declínio geral micro e
macroeconômico nos negócios, no aumento do desemprego e na
dívida pública e se manifesta em cenários recessivos, de crise ou de
depressão. As repercussões da crise provocada pela pandemia foram
identificadas por analistas econômicos como uma crise internacional
de magnitude muito maior do que a crise financeira de 2007/2008
(Tooze, 2020), e com impactos deflacionários ainda menores do que
uma depressão internacional, como o Crack de 1929. Para piorar, há
falta de certeza no uso e nas respostas das políticas econômicas, da
vontade de coordenação internacional e do potencial e tempo de
recuperação econômica.
Em 2020, organismos multilaterais, como o Fundo Monetário
Internacional (FMI) e o Banco Mundial, previram que em um cenário
positivo a crise econômica iniciada em 2020 poderia evoluir para uma
situação de recuperação lenta, com a economia global apresentando
em média uma baixa taxa de crescimento, embora a Índia e a China
pudessem ser polos de maior dinamismo econômico em relação aos
países desenvolvidos. Em um cenário negativo, a crise econômica que
transborda da pandemia de Covid-19 poderia eventualmente levar o
mundo a uma depressão (Roubini, 2020), se a situação de tempestade
perfeita fosse amplificada pela situação catastrófica com a
continuidade das incertezas pandêmicas e medos de novas “ondas”
de contágio de doenças, por insuficientes políticas econômicas
anticíclicas e pela sequência de uma série de potenciais choques
exógenos.
836
Entre ambos os cenários está a realidade, conformada por um
contexto econômico global pré-pandemia, que já era recessivo e com
baixo crescimento econômico. De fato, a economia global vinha
perdendo com o protecionismo sino-americano desde 2018 e com a
desconstrução do atual Sistema de Comércio Internacional
multilateral, em nome do “comércio justo” (Hur, 2018) e dos
interesses nacionais em primeiro lugar. Um número crescente de
novas restrições e distorções, desde aumentos de tarifas entre os
principais mercados comerciais, até forte apoio e proteção
governamentais significativos em setores-chave (OCDE, 2020), para
além das assimetrias existentes entre as nações, já caracterizava as
relações comerciais antes do início da pandemia. No contexto de crise
pandêmica, o mantra America First foi reforçado pelo presidente
norte-americano. Simultaneamente, o discurso de Make America Great
Again provocou instabilidade do Sistema Internacional multilateral
impulsionado por uma agenda proativa do poder hegemônico, que
buscou se ajustar unilateralmente desde as eleições presidenciais de
2015 nos Estados Unidos e que acabou tornando um país mais
isolacionista e protecionista, enfraquecendo suas alianças.
Em 2020, além de o presidente norte-americano Trump declarar
guerra ao “vírus chinês” e colocar a China no lugar de “rival
sistêmico” (Xi; Bernal-Meza, 2021), o ambiente sociorracial
intranacional ficou tensionado nos Estados Unidos, em razão de uma
série de protestos contra o assassinato do cidadão negro George
Floyd por ação indevida da polícia. A maior parte da opinião pública
nacional e mundial criticou as respostas às manifestações de Trump
e provocou mudanças na lei dos estados federais e nos procedimentos
das empresas para evitar novos episódios raciais violentos. Nas
relações políticas internacionais, certamente esse fato prejudicou a
imagem dos Estados Unidos como líder mundial defensor da moral
e da liberdade. Assim, foram gerados vetores para a desestabilização
837
nacional e internacional da própria posição hegemônica dos Estados
Unidos.
No que tange à desestabilização internacional, ela é uma
tendência na medida em que é dinamizada por uma agenda proativa
do centro hegemônico, que procurou, em um primeiro momento,
ajustar-se unilateralmente, o que acabou projetando um discurso
isolacionista e protecionista, repercutindo assim na projeção de
menor demanda para as exportações oriundas dos demais países do
mundo, e, por conseguinte, aprofundando a própria desaceleração da
economia nacional.
As previsões do FMI para o final de 2020 indicavam que o mundo
estava em alerta devido às contrações das economias em várias
regiões do mundo. O Mapa 1 mostra uma comparação do
crescimento projetado do Produto Interno Bruto (PIB) para as
economias mundiais para o mesmo ano do início da pandemia:
Mapa 1. Projeção comparada do crescimento do PIB no mundo em
2020
Fonte: FMI (2020).
A instabilidade causada pelas rivalidades comerciais entre os
Estados Unidos e a China talvez seja o ponto mais sensível na relação
838
entre esses dois países nos últimos anos, pois tem repercussões mais
diretas na mídia e, portanto, na opinião pública. De fato, os norte-
americanos têm um enorme déficit comercial com os chineses há
muito tempo e várias empresas norte-americanas estão em
movimento, transferindo sua produção ou parte dela para os países
asiáticos desde a década de 1980. Pela forma como se apresentavam
as dificuldades em relação à China, os Estados Unidos optaram por
deixar claro que o país asiático era uma ameaça ao sistema de
comércio internacional, já que os chineses não respeitam as regras
multilaterais de comércio. Aliás, há alguns anos, a China se tornou a
principal parceira comercial de dezenas de nações, desbancando a
posição dos Estados Unidos, inclusive com a União Europeia.
Diante dos graves problemas sanitários e da falta de
equipamentos médicos e de proteção para os profissionais de saúde
lidarem com a pandemia, e o alto nível de contaminação no território
norte-americano, o presidente Trump tratou tais obstáculos como
questões políticas, colocando a China de volta no centro das atenções
(Fischer, 2020). Na continuidade da guerra comercial na pandemia,
os Estados Unidos incluíram uma ordem executiva para agências
federais do país, como os Departamentos de Saúde e de Defesa, para
obterem equipamentos e suprimentos médicos de fabricantes norte-
americanos, embora a China seja o maior produtor mundial desses
tipos específicos de bens e o maior exportador mundial de bens de
consumo.
As ressalvas de Trump foram muito além porque o presidente
entendia que os chineses estavam empenhados em avançar em um
projeto de poder que já vinha fazendo rápido progresso nas áreas
tecnológica e militar, e, de alguma forma, ameaçando o espaço da
indústria norte-americana de bens e de serviços. Lançado em 2015
pelo governo centralizado da China, o Projeto Made in China 2025 visa
tornar as manufaturas chinesas mais competitivas globalmente por
839
meio da introdução de inteligência artificial e automação, com metas
de investimentos em pesquisa e desenvolvimento (P&D) e ênfase em
inovação tecnológica. Na visão de Trump, para que os Estados
Unidos protegessem a sua posição relativa nas relações
internacionais, o lugar da China teria que ser diminuído e a forma
mais óbvia de fazer isso seria desqualificando esse país.
Ao mesmo tempo, a China se tornou uma rival geopolítica para
os Estados Unidos porque cada vez se capacita em termos militares,
o que pode ser verificado pelas incursões chinesas especialmente no
Mar do Sul da China (Palatino, 2020), onde recuperou ilhas as quais
reivindicam sua soberania. Embora os Estados Unidos continuem
sendo a maior potência militar do mundo, os norte-americanos estão
percebendo que a China sob Xi se tornou significativamente mais
assertiva e bem-sucedida para alcançar um lugar mais destacado no
Sistema Internacional (Xing; Bernal Meza, 2021) e busca garantir suas
capacidades necessárias para isso. A China não deixou de se colocar
de forma enfática na área diplomática, especialmente em resposta às
acusações ou críticas abertas do governo Trump à atuação do governo
central ou do regime chinês antes e depois da pandemia.
É também nesse sentido que a crescente presença de Pequim na
África e na América Latina é vista pelos Estados Unidos e outros
países capitalistas centrais como uma tentativa da China de reintegrar
essas regiões ao sistema chinês de acumulação. O grande projeto
bilionário de infraestrutura chinês, a Iniciativa Cinturão e Rota da
Seda, é interpretado pelos Estados Unidos como um desafio à ordem
mundial liderada pelos norte-americanos (Meltzer, 2017). Com efeito,
a China é o maior provedor de financiamento do mundo, oferecendo
mais empréstimos do que o Banco Mundial, e é o ator mais proativo
para realizar investimentos em infraestrutura em países em
desenvolvimento (Xing; Bernal Meza, 2021).
840
As reações do governo Trump pareceram reforçar as dificuldades
que os Estados Unidos tiveram para lidar com as várias repercussões
e fragilidades que a crise gerada pela pandemia evidencia ou até
mesmo aprofunda. As rivalidades comerciais com a China talvez
constituam o ponto mais sensível da relação entre os dois países nos
últimos anos porque têm repercussões mais diretas na mídia. Com
efeito, os Estados Unidos têm enormes déficits comerciais com o
mercado chinês há muito tempo e várias empresas norte-americanas
transferiram a sua produção para o país asiático nas últimas décadas.
Contudo, dada a forma como foram apresentadas as contrariedades
em relação à China, os Estados Unidos escolheram transparecer que
o país asiático é uma ameaça para si em vários sentidos. As ressalvas
dos norte-americanos foram muito além porque seus governantes
sabem que os chineses estão fortemente empenhados em realizar
avanços tecnológicos e em muitas questões transnacionais, incluindo
as mudanças climáticas, a estabilidade financeira ou as normas para
governar a internet, o poder militar pode não ser a resposta (Nye,
2019, p. 79). O Projeto Made in China 2025 é um grande exemplo disso
e pode ser uma fonte de irrupção do atual ciclo hegemônico norte-
americano no longo prazo.
Para completar o quadro sobre o impacto da pandemia na
hegemonia dos Estados Unidos, o país manteve políticas econômicas
neoliberais em outras áreas como as finanças, embora tivessem se
deparado com a atual necessidade de intervenção do Estado para
garantir a recuperação da economia e a proteção da sociedade. Nesse
sentido, o país, governado por um líder liberal-conservador até o final
de 2020, não teve escolha a não ser anunciar pacotes de ajuda de
trilhões de dólares a cidadãos, empresas e bancos, além de altos
investimentos urgentes no equipamento de hospitais e unidades de
saúde. Adicionalmente, os efeitos da crise decorrente da pandemia no
setor norte-americano de serviços públicos deram demonstrações de
841
que a escolha por medidas estáticas de eficiência por meio da
terceirização, privatização e de cortes de gastos na área, realizados
nos últimos anos dentro do projeto pró-mercado desde antes da
eleição de Trump, eram fracas demandas internas. O seu governo
mostrou que estava despreparado para responder aos problemas
colocados. Contrariando o credo liberal, tão propagandeado pelos
Estados Unidos desde os anos de 1980, mais uma vez, o Estado deu
demonstrações de que tem um papel vital na solução de crises e não
pode se furtar de suas responsabilidades (Mazzucatto; Guaggioto,
2020), até mesmo em países cuja hegemonia foi calcada no mantra
liberal.
O presidente norte-americano que sucedeu Trump no início de
2021, Joe Biden, tão logo tomou posse começou a trabalhar para
reverter as várias ordens executivas a fim de reintegrar os Estados
Unidos às organizações internacionais multilaterais e aos acordos
internacionais. No entanto, os ecos do isolacionismo e do
nacionalismo norte-americanos ainda são significativos para a sua
posição hegemônica. Na área comercial, a política permanece
essencialmente protecionista, apesar de diferente, embora Biden
busque reatar as relações com aliados e trabalhar com eles para
pressionar a China a mudar seu comportamento na economia.
A China, por sua vez, parece que conseguiu superar a crise
provocada pela pandemia com menos conflitos, a despeito de que
também tenha sofrido com ela. Foi o primeiro país do mundo onde a
população padeceu com os efeitos da doença e do rígido isolamento
social e aporta volumosos recursos em pesquisa e desenvolvimento
para a descoberta da vacina contra a Covid-19. Diferentemente dos
Estados Unidos, nesse caso, o Estado chinês tem um papel forte e
centralizador. Após ter vencido o pior momento, os chineses
colocaram em prática ações cooperativas – tanto por parte do governo
quanto de empresas privadas chinesas – com países de outras regiões,
842
desenvolvidos e em desenvolvimento, que passaram a sofrer mais
quando o vírus se espalhou. Aliás, o uso de modo pragmático do
discurso do multilateralismo no espaço da governança global e a
liderança na criação de instituições internacionais, como o Novo
Banco dos BRICS, em 2014, completam o quadro de ações chinesas
que preenchem o vácuo deixado pelos Estados Unidos nas relações
internacionais e compõem parte da estratégia de longo prazo de
poder da China.
Por um lado, é possível que esse ato seja interpretado como um
sinal sincero de ajuda a outros países, embora, por outro, pode ser
visto como uma ação de soft power (Mulakala; Jongbo, 2020), mais
uma faceta de poder chinês, que tem se fortalecido nos últimos anos.
Contudo, a partir de uma mirada mais ampla, é possível verificar que
os chineses estão aproveitando a chance de se colocar no vácuo
deixado pelos Estados Unidos nesse momento de crise, até mesmo
porque retomaram a abertura de sua economia antes do Ocidente. No
contexto específico da crise da pandemia de Covid-19, depois de
comprar grande parte do suprimento mundial disponível de
equipamentos médicos de proteção em janeiro, a China se engajou em
uma política de preços altos de suas exportações de equipamentos
médicos, muitos deles de má qualidade (Chellaney, 2020).
Tais reações chinesas à crise pandêmica de Covid-19, se
incorporadas às incursões do país nas relações internacionais, é
notório que nos últimos tempos a China se posiciona de forma mais
enfática na área da diplomacia internacional e deixa claro que não
aceita críticas ao seu regime. Todos esses fatos agravam o atual
estágio de desestabilização multilateral da ordem mundial, mas não
têm força suficiente para conduzir a uma transição hegemônica no
curto prazo.
843
Conclusão
Com base em um arcabouço teórico que considera uma
perspectiva estrutural de longo prazo dos ciclos hegemônicos
mundiais e transições de potências globais a partir de interpretações
analíticas divergentes e diferentes matrizes ideológicas, bem como
em uma análise conjuntural crítica, esta leitura interpretativa dos
efeitos da crise da pandemia de Covid-19 traz evidências que
corroboram para um relativo declínio do poder dos Estados Unidos
como hegemonia no âmbito no 4º ciclo hegemônico mundial. De fato,
os Estados Unidos vivem uma tempestade perfeita cujas
consequências negativas para a sua posição internacional são
derivadas de uma crise múltipla, uma vez que a pandemia de Covid-
19 é considerada uma variável atípica na dinâmica de transição dos
ciclos hegemônicos mundiais e trouxe grande impacto no curto e
médio prazo para a sustentação da hegemonia norte-americana. Por
outro lado, de acordo com as explicações que consideram elementos
contextuais e estruturais de longo prazo dos ciclos hegemônicos
mundiais e as transições de poder hegemônico ao final de cada um
deles, a crise de Covid-19 abre uma janela de oportunidade para
potências globais em ascensão. Nesse sentido, há sinais de que há
queda do poder relativo dos Estados Unidos desde a década de 1980
após três fases distintas de contestação e, portanto, a crise atual da
pandemia de Covid-19, que transforma o evento em um “cisne
verde”, implica que seus impactos moldem uma nova fase de
contestação hegemônica dos Estados Unidos e no curto prazo e no
médio prazo aceleram a projeção internacional da China como
potência global.
Nesse sentido, diferentemente de outras transições hegemônicas
mundiais, que geralmente foram compreendidas por razões
geopolíticas ou identificadas por dinâmicas conflituosas e guerras ou
por questões econômicas, ligadas a inovações revolucionárias e/ou
844
crises produtivas e financeiras e/ou de mercado, a pandemia de
Covid-19 é mais um vetor conjuntural de desestabilização
multilateral da economia global, que agrega diferentes características,
embora não signifique que conduzirá a uma crise terminal imediata
da hegemonia norte-americana. A transição cíclica hegemônica
exigirá mudanças mais definitivas na estrutura e não apenas na
conjuntura das relações internacionais (Carvalho; Amorim, 2019),
pois persiste uma ordem internacional baseada em uma concepção
unimultipolar, apesar de que a China caminha em ritmo acelerado de
mudança em termos econômicos, políticos e militares. Apesar do
progresso do país, ainda há limitações nas suas condições político-
militares e monetárias para superar as dos Estados Unidos como
potência hegemônica e iniciar um novo ciclo de acumulação de poder
e de riqueza. Isso indica que os cenários possíveis dependem e estão
acoplados às locomotivas atuais do capitalismo nessa transição do
centro dinâmico de acumulação do Atlântico para o Pacífico.
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Seção 2
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Expansão
EXPANSÃO dos Interesses
DOS INTERESSES do Capital
DO CAPITAL Transnacional
TRANSNACIONAL nas Estruturas
NAS ESTRUTURAS FUNDIÁRIAS
BRASILEIRAS - ANÁLISE A PARTIR DOS GOVERNOS FHC E LULA1
Fundiárias Brasileiras - Análise a Partir dos Governos
AnaFHC e Lula Menezes
Sofia Guimarães
Graduanda em Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins | [email protected].
1. INTRODUÇÃO
O processo de mundialização do capital é compreendido tendo em vista as
políticas neoliberais operadas na economia internacional durante as últimas
décadas, que concretizou a reforma dos modos de produção e de
acumulação sistemáticas no globo – centralizada no capital financeiro. O
trabalho tem como objetivo compreender a dinâmica dessa nova lógica
global de expansão lucrativa nas cadeias produtivas do agronegócio
brasileiro, que direciona as terras nacionais como ativos globais e
mercadorias. É examinado como o capitalismo tem territorializado seus
interesses, dada sua capacidade política e de realojamento dos
investimentos, para a construção de uma gama de infraestruturas que
representam seu potencial de domínio nos espaços globais, e que adentram
as políticas econômicas e as estratégias de desenvolvimento do país,
afetando territórios e flexibilizando direitos sociais .
2. MÉTODOS Fonte: INCRA (2020); elaborado por MENEZES (2023).
A partir da combinação de abordagens quantitativas e qualitativas, ocorreu Gráfico 02 – Número de famílias assentadas pela reforma agrária por ano
e mandato presidencial entre 1995 e 2010
uma investigação de parte documental e parte exploratória descritiva.
Primeiramente uma revisão bibliográfica foi disposta, em seguida foram
verificados comparativamente os cenários macroeconômicos e os dados da
realidade agrária durante os Governos FHC e Lula (1995-2010). As
variáveis foram extraídas das bases do INCRA e IBGE, além de livros,
artigos e outros relatórios. Parte-se de um prisma de análise na Teoria
Crítica que é disposta sobre a Economia Política Internacional.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
O Estado brasileiro, dependente e subordinado, tem criado as condições
jurídicas e políticas para abertura aos fluxos financeiros internacionais e
para a permanência da base econômica no caráter agroprodutor,
fortalecendo o agronegócio como condutor da acumulação ampliada na
atual estrutura redimensionada de produção e extração de valor. Os são Fonte: INCRA (2021); elaborado por MENEZES (2023).
territórios intensamente apropriados pela prática mercantil e propostos
4. CONCLUSÃO
como localidade de estabelecer os investimentos transnacionais, é neste
sentido que são percebidos 3.9 milhões de hectares controlados
O atual processo de acumulação ampliada do capital é voltado para
formalmente por estrangeiros (gráfico 01). Isto é consequência do projeto
corresponder a noção de desenvolvimento que surge a partir das mudanças
de ordenação da economia mundial que transcorreu em larga escala ao Sul
ocorridas na economia global contemporânea, incorporando espaços
Global – tendo como dirigentes o FMI e o BM – no começo da década de
desiguais nos circuitos produtivos, sendo neste sentido que o
1990. A partir disso, as estruturas fundiárias de países periféricos são
expansionismo agrícola e a estrangeirização de terras transcorrem no
direcionadas para concretizar esse ideal de desenvolvimento e produção,
Brasil. A verificada contenção da Reforma Agrária é mandatória para manter
aprofundando o processo da financeirização atual nesses territórios. Com o
o campo de acordo com os projetos capitalistas, já que conserva velhas
estudo das políticas de reforma agrária (gráfico 02), percebeu-se que
estruturas fundiárias e subjuga certos direitos sociais, e garantir sua
mesmo que tenham sido as administrações que mais assentaram famílias
reprodução.
no total, não ocorreu o rompimento e reestruturação da configuração de
terras no Brasil. Deste modo, a lógica dos fluxos do mercado financeiro
5. REFERÊNCIAS
internacional controla as dinâmicas neste âmbito, ao passo que a posse de
terras no Brasil tende a satisfazer as demandas maximizadas no campo do CHENAIS, F. A Mundialização do capital. São Paulo: Xamã, 1996.
processo de acumulação integrado em níveis transnacionais.
INCRA. INSTITUTO NACIONAL DE COLONIZAÇÃO E REFORMA
Gráfico 01 – Distribuição por região das terras sob posse de estrangeiros AGRÁRIA. NOTA TÉCNICA Nº 360/2021/GABT. Brasília: 2021.
no Brasil até 2020
GIOVANAZ, D. Raio X: onde estão os 3,9 milhões de hectares sob
controle estrangeiro no Brasil. Brasil de Fato, São Paulo: 2021.
1
O presente trabalho foi realizado com o apoio do CNPq – Brasil. Orientado pela Profa. Dra. Fabiana Scoleso, Curso de Relações Internacionais, Universidade Federal do
Tocantins, [email protected].
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O Governo de Rafael Correa no Equador (2007-2017) diante de um país polarizado:
o que mudou no setor externo?
O GOVERNO DE RAFAEL CORREA NO EQUADOR (2007-2017) DIANTE DE UM PAÍS
DOLARIZADO: O QUE MUDOU NO SETOR EXTERNO?
André Gouveia de Queiroz
Graduando do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/UnB)
[email protected]1. INTRODUÇÃO
Quando o Equador adotou o dólar como moeda
oficial, em 2000, o país sul-americano perdeu o
controle de sua própria política monetária e
cambial. O sucre, moeda anterior, foi
abandonado, dando lugar ao dólar e
submetendo o poder de emissão ao FED.
Rafael Correa, presidente do Equador entre
2007 e 2017, avalia a dolarização como uma
perda de soberania econômica do país. Será
traçado o caminho percorrido por Correa para
afirmar uma agenda política de reparação
social e medidas de contingência a choques
externos. 4. CONCLUSÃO
Medidas do governo Correa aplicadas entre
2007 e 2017 objetivaram reparar o impacto da
2. MÉTODOS dolarização no setor social. A governança para
Os artigos publicados por Correa anteriormente o setor externo determinou a prioridade política
a seu governo demonstram a postura crítica do para o retorno social e a redução da pobreza.
mandatário sobre a dolarização. Indicadores A busca por autonomia econômica e redução
sociais e econômicos, ações do poder da pobreza guiaram a implementação de
legislativo equatoriano e as políticas aplicadas políticas e a postura diplomática do governo
pelo governo Correa guiam o estudo, tendo em Correa. Seu governo reconheceu o impacto da
vista as inovações institucionais realizadas. dolarização nestes objetivos, mas o mandatário
As medidas implementadas serão observadas priorizou uma postura moderada de
a partir da problemática inerente à dolarização. manutenção do equilíbrio macroeconômico.
São expostos os efeitos econômicos, sociais e REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
políticos na medida em que se correlacionam
com a política cambial ausente de controle MONIZ BANDEIRA, Luiz (2002). As políticas
neoliberais e a crise na América do Sul. RBPI 45 (2).
interno.
CORREA, R. (2004). Dolarización y desdolarización:
más elementos para el debate. Comentarios al
dossier de Íconos 19. Íconos - RCS (20).
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O papel das ideias para a construção da agenda política nas instituições
internacionais: um estudo de caso sobre a quebra de patente da vacina contra
COVID-19
O papel das ideias para a construção da agenda política nas instituições internacionais: Um estudo de caso sobre a
quebra de patente da vacina contra COVID-19
Emanuelle Brito
Graduanda em Relações Econômicas Internacionais, Universidade Federal de Minas Gerais.
[email protected] Helena Morais
Pós-graduanda no Cedeplar, Universidade Federal do Rio de Janeiro |
[email protected]1. INTRODUÇÃO A mudança de posicionamento e discurso dos Estados
Unidos na metade das negociações foi um dos fatores que
A pandemia da COVID ressaltou as discrepâncias influenciou a alteração nas regras do Acordo TRIPS,
políticas e econômicas entre os países do mundo. devido ao exercício do poder estrutural. Nota-se também
Em virtude da escassez das vacinas nos países mais a importância das coalizões formadas entre os dois
pobres, houve uma assimetria na proporção da grupos para fortalecer os argumentos no debate.
cobertura vacinal no mundo. Sendo assim, o debate 4. 4. CONCLUSÃO
sobre a quebra de patentes da vacina dentro da 5. O ponto chave não é estabelecer os ganhadores e
Organização Mundial do Comércio (OMC) visou uma perdedores do debate em questão, mas sim de verificar a
resposta efetiva para solucionar os gargalos de importância das ideias para a construção da agenda
imunização nos países mais pobres, por se tratar de política no âmbito das instituições internacionais. No
uma questão de saúde pública global. Sendo assim, contexto da quebra de patentes da vacina COVID-19
o trabalho busca compreender qual o papel das verificou-se o papel ativo das ideias desde a construção
ideias para a construção da agenda política no das narrativas no Conselho TRIPS de forma estratégica.
âmbito das instituições internacionais, Os objetivos normativos foram clarificados durante todos
particularmente no contexto da quebra de patentes os discursos dos grupos conflitantes, paralelamente, os
da vacina contra a COVID-19, e como os discursos interesses instrumentais foram descobertos enquanto as
de diferentes agentes influenciam os arranjos delegações buscavam coalizões para fortalecer seu
políticos das organizações, bem como na aplicação argumento. Os agentes/estados utilizam as ideias para
das regras em momentos de crise. alcançar autoridade epistêmica e institucional,
demonstrando o poder ideacional para estabelecer
2. MÉTODOS domínio nas relações internacionais.
Com a presente pesquisa descritiva, em forma de 6. 5. REFERÊNCIAS
estudo de caso, deseja-se verificar qual foi a OMC, Conselho para os Aspectos dos Direitos de
influência do debate na OMC sobre a quebra de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio,
patentes da vacina COVID-19 entre os países em Conferência Ministerial, Décima Segunda Sessão
desenvolvimento, notadamente, Índia e África do Sul Genevax’ em 12-15 de Junho de 2022, WT/MIN(22)/30
e os países desenvolvidos, principais detentores das WT/L/1141.
patentes, Estados Unidos e Reino Unido. SELL, S. K.; PRAKASH, A. Using Ideas Strategically: The
Contest between Business and NGO Networks in
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO Intellectual Property Rights. International Studies
O desfecho das negociações na OMC significou uma Quarterly, v. 48, n. 1, p. 143–175, 2004.
tímida vitória para os países em desenvolvimento ALTHABHAWI, N. M.; KASHEF AL-GHETAA, A. A. The
que tiveram sua proposta de renúncia aceita, porém COVID-19 vaccine patent: a right without rationale.
de forma reduzida em relação ao objetivo inicial. Medical Humanities, p. medhum-2022-012386, 6 maio
(OMC, 2022). 2022. Disponível em:
https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC9108436/.
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O que são cabos submarinos de fibra ótica e por que as Relações Internacionais
deveriam estudá-los: uma análise a partir do conceito de poder estrutural
O que são cabos submarinos de fibra ótica e por que as Relações Internacionais deveriam
estudá-los: uma análise a partir do conceito de poder estrutural
Giovanni Nicolace de Campos Bueno Benages
Graduando em Relações Internacionais, Faculdades de Campinas (FACAMP) | [email protected]
1. INTRODUÇÃO Em 2020, dos 475 cabos submarinos em atividade,
279 eram propriedade de apenas empresas
Apesar dos cabos submarinos serem considerados privadas, representando assim 59% de todos ao
uma infraestrutura crítica e serem responsáveis pelo redor do mundo. Ao considerar os consórcios
fluxo de 95% das informações do mundo, eles não formados em parceria com empresas públicas, em
têm recebido a devida atenção nos estudos de maioria com a China, a participação privada chega a
Relações Internacionais. A transnacionalidade quase 80% dos cabos (Sherman, 2021, p. 9);
geográfica dos cabos e a fundamentalidade deles
para o funcionamento das redes de O vazamento de documentos sigilosos da National
telecomunicação e sistemas financeiros, destaca o Security Agency revelaram uma série de programas
Estado como um ator interessado importante para de espionagens estavam em execução, a partir de
sua gestão. Por meio de suas empresas, em maioria cabos submarinos. Houve a reação dos BRICS, que
privadas, a gestão dos cabos submarinos pode iniciaram o projeto de desenvolvimento de um cabo
conferir poder de decisão a quem domina o setor. submarino próprio para contornar essas práticas.
Nesse sentido, a partir da ótica da Economia
Política Internacional, é crível que os cabos podem 4. CONCLUSÃO
servir como um meio de manifestação de poder Os cabos submarinos não têm recebido a devida
estrutural, a partir de Strange (1994), que o entende atenção nos estudos de Relações Internacionais,
como o poder de definir como os atores operam. apesar do seu caráter estratégico transnacional e
2. MÉTODOS importância crítica para os Estados. Entretanto, o
debate sobre cabos submarinos não é esvaziado de
Essa pesquisa é bibliográfica e documental, na política. Os cabos submarinos são um meio de
medida que serão usadas bibliografias anteriores manifestação do poder estrutural dos Estados, pois
sobre cabos submarinos e poder estrutural, e quem domina a infraestrutura, também tem o
também fontes primárias, como relatórios e controle sobre os fluxos de informação, e de definir
declarações dos atores responsáveis pela gestão os termos que esse regime deve operar. Assim, os
dos cabos. A abordagem será qualitativa. Estados, em conjunto com suas empresas privadas,
manifestam poder estrutural, pois juntos são
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO responsáveis pela gestão de cabos submarinos.
Strange (1994) apresenta a dimensão do 5. REFERÊNCIAS
conhecimento do poder estrutural como a
capacidade de “desenvolver ou adquirir e negar o SHERMAN, J. Cyber Defense Across the Ocean
acesso de outros a um tipo de conhecimento Floor: The Geopolitics of Submarine Cables
respeitado e procurado pelos outros”. Nesse Security. Atlantic Council, Washington, DC, 2021, 36
sentido, ao tratar da infraestrutura das TICs, quem p.
ganha destaque são as empresas privadas, que são STRANGE, S. States and Markets. New York:
os principais atores que determinam a agenda por Continuum, 1994. 278 p.
elas dominarem as informações e técnicas sobre os WINSECK, D. The Geopolitical Economy of the
cabos submarinos; Global Internet Infrastructure. Journal of
International Policy, USA, v. 7, p. 228-267, 2017.
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Projeção Econômica Chinesa na África no Século XXI
PROJEÇÃO ECONÔMICA CHINESA NA ÁFRICA NO SÉCULO XXI
Lia de Macedo Gonçalves Albuquerque Marinheiro
Graduanda em Relações Internacionais, Faculdade La Salle Manaus |
[email protected] Mariana Barreto Leite
Graduanda em Relações Internacionais, Faculdade La Salle Manaus |
[email protected] 1. INTRODUÇÃO rodovias, capacitação de profissionais de áreas
diversas, como saúde e educação (Pautasso, 2016).
O presente artigo tem como objetivo
A estratégia chinesa pode ser entendida através do
entender: como ocorre a projeção econômica
termo bandwagon (Waltz, 1979) a partir do
chinesa na áfrica? Tendo o Projeto Belt and Road
momento em que a mesma procura parceiros
Initiative (BRI) como objeto de análise, para enfim
geograficamente próximos e países em
analisar a influência da China no continente
desenvolvimento para criar acordos e tratados.
Africano, compreender o movimento chinês no
sistema internacional e avaliar a interdependência
4. CONCLUSÃO
entre os países sob a ótica realista. O avanço das
relações diplomáticas entre os países do Sul Global Diante dos assuntos abordados no artigo, é possível
colocam em risco as superpotências, sobretudo ver que a projeção econômica da China na África
ocidentais, logo este artigo pretende identificar as dá-se, principalmente, pelos investimentos estatais
maneiras em que a China, em especial, tem e pelas instalações fabris e estruturais sob todo o
adotado para uma futura disputa pelo hegemon. Dito continente africano. Ademais, é possível notar que
isso, é de extrema importância o estudo sobre o as ações da China no sistema internacional podem
caso, tendo em vista as atuais movimentações no ser caracterizadas pelo termo bandwagon, uma vez
em que o país encontra-se acomodado e mantendo
sistema internacional.
relações comerciais com países vizinhos e em
desenvolvimento.
2. MÉTODOS
5. REFERÊNCIAS
A metodologia utilizada é a análise
qualitativa, com base em dados do Belt and Road KOTZ, Ricardo Lopes; OURIQUES, Helton. A Belt
Portal, artigos, livros e matérias jornalísticas de and Road Initiative: uma análise sobre a
portais nacionais e internacionais. projeção global da China no século xxi. Estudos
Internacionais: revista de relações internacionais da
PUC Minas, [S.L.], v. 9, n. 2, p. 96-113, 28 jun. 2021.
3. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
O projeto Belt and Road Initiative foi criado
WALTZ, Kenneth N. Theory of International
pelo governo chinês com o objetivo de desenvolver Politics. Long Grove, Ill., Waveland Press, 1979.
economicamente o próprio país e os países
membros, escolhidos estrategicamente pela posição PAUTASSO, D. O PAPEL DA ÁFRICA NA NOVA
geográfica favorável ao deslocamento de recursos ROTA DA SEDA MARÍTIMA. Revista Brasileira de
Estudos Africanos, [S. l.], v. 1, n. 2, 2017. DOI:
até a China (Kotz; Ouriques, 2021). O investimento
10.22456/2448-3923.67028. Disponível em:
chinês na África antecede o projeto Belt and Road. https://seer.ufrgs.br/index.php/rbea/article/view/6702
Desde a década de noventa, a China mantém 8.
parcerias comerciais com países africanos, além de
investimentos em construção de escolas, hospitais e
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