Meu maior pesadelo
Todas as noites, antes de adormecer, ouvindo os ruídos dos ratos e os distantes
rumores da rua, contemplava o ambiente em que vivíamos.
Detestei quando tivemos que nos arranjar numa casa justamente no Bairro do
Cemitério, o mais soturno de Glória, cuja menção já causava arrepios. Mas era
o que cabia no ordenado de meu pai, depois que o álcool lhe desarranjara a
existência. Na verdade, a denominação do bairro era outra, apesar de todos se
referirem a ele daquela forma por razões óbvias. Seu nome oficial era Nova
Esperança. Isso não mudava muito seu efeito sobre as pessoas, pois o adjetivo,
aparentemente promissor, anunciava algo de fúnebre sobre a esperança, afinal,
por que o imperativo de novidade, precisamente naquele lugar? Só podia ser
uma alusão à vida além-túmulo, aos que vagam ou retornam. Mas o aluguel
daquela casa era o mais barato. Dizem que seu proprietário passou a ter
dificuldade de locá-la depois que uma antiga inquilina tinha encontrado a nova
esperança de forma fatídica.
Qualquer um teria receio de dormir naquele quarto. À noite, o único feixe de luz,
vindo débil da cozinha, atravessava pegajoso as gretas da porta, invadia o
cubículo que nos recolhia e projetava uma sombra sinistra da cabeceira da cama
de meu irmão mais velho nos últimos pedaços de reboco da parede oposta, em
que ficava a cama do mais novo. Exatamente ali costumava notar um estranho
vulto.
Devo confessar que um calafrio me percorria a coluna sempre que o via no
cômodo sombrio, cintilando sinuoso sobre a cama em minha frente. Claro que
isso brotava da minha imaginação. Com certeza, eram reflexos adormecidos da
luz, distorcidos pelos quatro graus de miopia e por meu receio adolescente do
inexplicável. Sempre que coisas estranhas surgiam na penumbra do quarto, as
rédeas da razão me puxavam de volta à realidade: "bobagem da minha cabeça!".
SANTOS, J. H. V. Meu maior pesadelo. In: JÚNIOR, A. F. de S.; SANTOS, J. H. V. (org.). Contando
histórias: medo, espanto e maravilhas (contos). Aracaju: Ed. Brasil Casual, 2017. p.121-125.
Revisado.
Naquela noite, no entanto, não havia acontecido ainda nada de incomum.
Enquanto os rumores dos ratos e da rua iam se distanciando e pressentia uma
noite de sonhos, fui penetrando indolente no terreno surreal das sinapses
mentais. Era, talvez, uma das poucas noites em que, sereno, adormeci.
Tinha os olhos fechados, mas podia perceber a porta envelhecida, as paredes
desgastadas, a sombra da cabeceira sobre a outra cama. Era um sonho estático
em que me encontrava no mesmo lugar e na mesma posição de antes de
adormecer. Sabia que estava sonhando e, mesmo assim, experimentava uma
plena consciência do corpo e do entorno.
Quando o vulto apareceu dessa vez, não me provocou calafrios, pois juguei que
não era real. Pairou como de costume entre a sombra sobre a cama do mais
novo e permaneceu ali por alguns instantes até que, súbito, voltou-se para mim.
Não pude distinguir suas feições, apenas os olhos rubros, que me estremeceram
quando se fixaram em mim. Começou a se mover em minha direção. Ia
ganhando contornos mais nítidos até que pude perceber uma figura feminina
repulsiva, disforme. Engoli a seco uma ânsia de saliva, que me arranhou a
garganta, quando avançou rápido sobre meu pescoço. Num instante, o ar já me
fugia dos pulmões e o meu peito ardia. Em vão forcei um grito, apenas meus
lábios se moviam. A pressão das mãos frias em meu pescoço era intensa e
aumentava. Petrificado, fitava aqueles olhos escarlates enquanto o visgo de sua
saliva descia fétido e lento, ameaçando pingar em minha boca. Corri os olhos
pelo quarto, meus irmãos dormiam profundo. Ninguém para me acudir. Num ato
de extrema coragem, tentei retirar as garras de meu pescoço, mas ao tocar sua
pele de sapo meus dedos perderam a vontade. Sob a pressão daquelas garras
e de um tremor imenso, crescente e indescritível, consegui abrir os olhos,
assombrado.
Vi o quarto, a porta, as paredes, meus irmãos, tudo no lugar... tinha sido um
sonho.
Inflei os pulmões como o mergulhador que emerge de águas profundas. Segurei
na lateral do colchão para me certificar de sua existência e permaneci imóvel
não sei por quanto tempo. Ao passo que o oxigênio voltava lento a minha
circulação sanguínea, a certeza da realidade me confortava. Sem saber no que
SANTOS, J. H. V. Meu maior pesadelo. In: JÚNIOR, A. F. de S.; SANTOS, J. H. V. (org.). Contando
histórias: medo, espanto e maravilhas (contos). Aracaju: Ed. Brasil Casual, 2017. p.121-125.
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pensar, não busquei entender o que tinha acontecido, apenas tentei esquecer.
A noite ia alta. Os roedores pareciam dormir. O silêncio. A imobilidade. As
batidas do meu coração começaram a desacelerar, até que fui novamente
mergulhando no espaço onírico da consciência.
Sei que adormeci. Sabia que estava em minha cama. Sabia que acabara de
despertar de um pesadelo estranho e que tornara a adormecer. Tamanha era
minha certeza, que ainda estavam vívidos em minha mente os olhos vermelhos,
as garras, a pele abominável. Mas, para meu espanto, toda a cena começou a
se repetir. De olhos cerrados, via o quarto, a porta apodrecida, as paredes
velhas, a sombra da cabeceira e... Meu Deus!
O espectro demoníaco outra vez sobre mim! Seus olhos de fogo, suas garras
gélidas, o arder do peito, calafrios, a tentativa inútil do grito. Meus olhos correram
para o lado suplicando por meus irmãos, mas...
O gelo penetrou a medula de meus ossos: a mesma criatura que estava me
sufocando, agora, inexplicavelmente duplicada, também o fazia com meu irmão
mais velho, cujos olhos arregalados, em vão, me imploravam socorro. Como
aquilo era possível? Agonia dilatada... desespero ampliado... abrir os olhos...
abrir os olhos... precisava acordar, sabia que era a única maneira de fugir àquele
pesadelo bizarro. As pálpebras, porém, se recusavam a me obedecer, pesadas,
como se uma força as impedisse. Abrir os olhos, abrir os olhos.... Sabia que
somente deixando a realidade invadir minha consciência aquele tormento
acabaria. Não sei como reuni forças que nem imaginava possuir e, num esforço
sobre-humano que me estremeceu todo o corpo, consegui abri-los.
A visão do caçula dormindo em sua cama e de todas as coisas em seu devido
lugar era reconfortante, a certeza na qual me agarrei, ainda aflito. Tinha sido
outro sonho. Um fruto bizarro de minha mente. Enxuguei com a coberta o suor
frio da testa. Tive receio de me levantar, de me sentar na cama, ou mesmo de
estender a mão para me certificar de sua existência. Numa ação mecânica, como
se aquilo pudesse me proteger, cobri rapidamente a cabeça e encolhi as pernas,
trêmulo. Em posição fetal e todo embrulhado pela coberta, tendo apenas as
narinas expostas, tentava respirar compassadamente, a fim de acalmar as
palpitações e voltar plenamente à realidade.
SANTOS, J. H. V. Meu maior pesadelo. In: JÚNIOR, A. F. de S.; SANTOS, J. H. V. (org.). Contando
histórias: medo, espanto e maravilhas (contos). Aracaju: Ed. Brasil Casual, 2017. p.121-125.
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Como era possível? Sonhar em capítulos? Uma criatura duplicada? Que
estranho caminho a história começava a tomar? Que significado poderia ter?
Permaneci de olhos bem abertos, evitando dirigi-los à parede sobre a cama do
caçula. Fixei o olhar no ponto mais escuro, assim não veria nada. Tentei pensar
em outras coisas, precisava me distrair, mas só me vieram ideias sem sentido e
desconexas.
Primeiro me veio o nome do bairro, que tratei logo de descartar, não era o
momento de pensar nessa bobagem. Depois, a imagem vaga de um envelope
de carta amassado no qual só era possível distinguir Rua Manoel Pereira dos
Santos. Depois, o rosto de Clodoaldo, olhos arregalados, fixos no infinito,
contando uma de suas histórias.
Essa figura que emergiu das profundezas da memória era um amigo de infância
que tinha mania de me atemorizar com histórias macabras, narradas sempre que
faltava energia. Eu sabia que eram inventadas, lendas da região, mas quando
ele garantia ter acontecido com algum parente, pairava aquela dúvida no ar. Isso
era o que me assustava.
Por que, justamente ali, quando deixava correr solto o pensamento, para evitar
ser arrastado pelo sono de volta às garras daquele ser medonho, emergiram da
mente os "causos" de Clodoaldo? Que rua era aquela? Por que o bairro? Que
tinha a ver uma ideia com a outra? Mesmo assim, a estratégia estava
funcionando. Acordado, mais calmo, distraía-me revirando memórias confusas.
Num tom de voz carregado, Clodoaldo contava que sua prima, visitada por uma
alma penada, submeteu-se a atender seu pedido e desencavar, à meia-noite e
sozinha, uma botija enterrada próximo à cova da finada, para que seu espírito
descansasse em paz. Disse, com os olhos arregalados sobre mim, em tom de
profecia: "As almas retornam apenas por duas razões: pedir ajuda, ou vingar-
se". Mas, apesar de sua prima ter cumprido a tarefa e ajudado aquela alma,
nunca mais a coitada recobrou o juízo e passou a viver assombrada, vendo
coisas que ninguém mais via.
Que ironia! Acho que sorri. Uma narrativa que alimentou meus medos e me
secava o sono na infância era no que me agarrava agora, e para quê? Para
afugentar o sono e o medo! Foi depois de ouvir essa história que me acostumei
SANTOS, J. H. V. Meu maior pesadelo. In: JÚNIOR, A. F. de S.; SANTOS, J. H. V. (org.). Contando
histórias: medo, espanto e maravilhas (contos). Aracaju: Ed. Brasil Casual, 2017. p.121-125.
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a dormir em posição fetal, achava que encolhido na cama estaria seguro. Nessa
época também Clodoaldo me dava as primeiras notícias daquele bairro. Dizia
que por ali morava um viúvo com seus três filhos. O xodó do pai era a menina
mais nova. Mas quando este precisava viajar, os meninos perdiam o limite das
brincadeiras. Jogavam ratos em sua cama assim que ela adormecia. Chegaram
a amarrá-los à sua cintura só para vê-la correr e gritar desesperada. Não fossem
as ameaças, a menina até os delataria ao pai, mas, depois que quase a cegaram
com pimenta e água sanitária, limitava-se a justificar seus hematomas e
ferimentos referindo-se a insólitos incidentes domésticos. Uma noite a
enforcaram com a própria coberta. A fim de garantir a verossimilhança de sua
narrativa, Clodoaldo insistia em me dizer até o nome da rua, que... Meu Deus!
Mas como isso era possível?
A criatura demoníaca outra vez em meu pescoço, mas como? Suas garras
frígidas...um tremor descontrolado devorando minhas forças... seus olhos de
sangue... mas eu estava acordado? Sua pele asquerosa... como? Como poderia
estar acontecendo aquilo? Precisava respirar... precisava respirar... precisava
respirar... Comecei a sentir o corpo caindo, caindo, infinitamente, o suor gelado
me envolvendo enquanto um peso me comprimia o peito que caía, caía, caía,
até que... meus olhos, finalmente, se abriram. Estava, de fato, em meu quarto,
em minha cama. Via a porta, meu irmão mais velho dormindo sem remorso e a
cama vazia de minha irmã caçula. Na garganta, um nó amargo, impossível de
desatar.
SANTOS, J. H. V. Meu maior pesadelo. In: JÚNIOR, A. F. de S.; SANTOS, J. H. V. (org.). Contando
histórias: medo, espanto e maravilhas (contos). Aracaju: Ed. Brasil Casual, 2017. p.121-125.
Revisado.