Dissertação Eddy Lincolln
Dissertação Eddy Lincolln
FORTALEZA
2012
EDDY LINCOLLN FREITAS DE SOUZA
FORTALEZA
2012
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Universidade Federal do Ceará
Biblioteca de Ciências Humanas
CDD 372.87
EDDY LINCOLLN FREITAS DE SOUZA
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Dr. Pedro Rogério (UFC)
Presidente da banca
_____________________________________________
Dr. Luiz Botelho Albuquerque
Examinador (UFC)
_____________________________________________
Dr. Elvis de Azevedo Matos
Examinador (UFC)
_____________________________________________
Francisco José Gomes Damasceno
Examinador (UECE)
Dedico aos meus pais, Celina Aparecida
Freitas e Alberto Lima de Souza, a minha filha
Leticia, ao meu filho David, e a minha amada
esposa, Amanda Montenegro.
AGRADECIMENTOS
This dissertation analyzes the constitution of the guitar field in Higher Educational
Institutions of Ceará – HEI and the habitus of professors who work in those spaces. Pierre
Bourdieu’s praxeology composes the main theoretical support of the research. Based on the
categories of habitus, field and capitals, one develops an analysis that discusses the agents’
path until they reach the faculty post in universities, which initiated a specific field in such
spaces of construction and legitimation of knowledge. Under this perspective, semi-structured
interviews were carried out among professors from the HEI of Ceará, which suited as an
important tool for data collection. The inquiries to the documentary sources provided another
important contribution to the analysis and interpretation of the facts. To unveil the object in a
contextualized and relational way, one developed a brief historical retrospect involving the
guitar. Such retrospect deals with how the instrument was used, from the non-school spaces
until it reaches Brazilian universities. From a reality within the national scope, one moves to
the local context. Before the teaching of guitar arrived at universities in Ceará, professional
guitarists already worked at radio stations. Later on, the Alberto Nepomuceno Music
Conservatory played an important educational role, that time with the agents who are
analyzed herein. The inclusion of guitar teaching into universities (UFC and UECE) enabled
the agents to get hold of an institutionalized capital, which was accumulated together with
others already acquired through a series of incorporated arrangements (habitus) since their
family daily life. The presence of an individual in a school or university reminds the idea of
curriculum and training, and in that sense, one finds out that the habitus is a category that
explains choices, pathways, tastes, objectives and intimacy with what is taught in a school
context. In the agents’ path, the accumulation of cultural and social capital was fundamental
so that they could reach the faculty posts in HEI of Ceará. The categories of habitus, field and
capitals are thereby intertwined. That is how they are articulated in the history of the agents
who unveil the object of this research.
1
Desde o ano de 2009 o pesquisador exerce a atividade de professor do Curso Técnico em Instrumento Musical
do IFCE. Anteriormente atuou como professor substituto de violão na UERN (Universidade Estadual do Rio
Grande do Norte) e UFPB (Universidade Federal da Paraíba).
15
Nesse sentido a presente pesquisa desenvolve essas reflexões, lembrando que as mesmas
partiram de questionamentos em torno próprio pesquisador. Já nas primeiras experiências
como professor de violão no Ensino Superior, foi possível perceber que eram necessários
alguns pré-requisitos para ingressar como docente em uma universidade. Possuir uma
graduação, mestrado, doutorado, artigos publicados, recitais, experiência de ensino; tudo isso
conta no momento da avaliação em concursos públicos. A partir de leituras das obras de
Pierre Bourdieu, foi possível perceber que as seleções já começam a acontecer desde a
primeira infância. Nesse sentido, o habitus é uma categoria que permite analisar a relação
entre o percurso dos agentes, suas escolhas, os níveis de sucesso ou insucesso escolar e o
porquê de terem se tornado o que são. Tomando por base essa categoria, a qual se discute de
forma mais detalhada no decorrer da pesquisa, pôde-se constatar que existem fatores ocultos e
que contribuem em larga escala para a manutenção de costumes, crenças e posições ocupadas
pelos agentes no espaço social.
A constituição do campo violonístico no Ceará foi um importante dado que surgiu na
pesquisa e que também é discutido. Considera-se dessa forma que campo e habitus são
categorias indissociáveis e diretamente ligadas aos agentes e as instituições. Conforme já dito
anteriormente, será apresentado a seguir um breve relato em torno da trajetória do
pesquisador. No momento posterior com as entrevistas junto aos agentes, suas trajetórias
serão observadas de forma mais minuciosa, desvelando o habitus, o campo violonístico no
Ensino Superior e que capitais foram necessários para ocupar a posição de professores de
violão na universidade.
Desde criança eu fui apaixonado por música e minha avó, Alba Afonso Lima de
Souza, foi a primeira grande incentivadora. Havia em casa uma radiola 2, discos e um violão.
Quando eu comecei a aprender os primeiros acordes no instrumento, veio a sugestão para que
eu fosse estudar em uma escola de música. Minha mãe – a professora Celina Aparecida
Freitas também foi responsável pelo início da constituição do meu habitus musical, ela tinha
discos de Roberto Carlos, Maria Betânia, Chico Buarque e de outros compositores brasileiros.
Ainda na infância, eu tinha o costume de ouvir músicas de diversos artistas, e assim, sem
pretensões fui me formando músico desde criança.
2
Foto de uma radiola portátil no Anexo A.
16
Houve também a influência do meu pai, o médico e violonista Alberto Lima de Souza.
Por meio dele foi mais fácil, junto ao meu interesse de tocar violão, aprender aquelas músicas
que eu gostava de ouvir, e que eram muito bem tocadas por ele. Esse momento foi marcado
por um despertar mais atento para a música, somando-se ao interesse acentuado com relação à
arte de tocar bem violão: Como tirar aquele som do instrumento? Fazê-lo soar de forma tão
agradável? Naquela época eu ainda não conhecia os grandes compositores de obras para
violão por nome, mas ouvia muitos deles por meio do meu pai.
Tocar à noite, nos bares, foi uma escola para muitos violonistas, e não foi diferente
comigo. Conheci nessa fase com mais intimidade a música de Tom Jobim, Chico Buarque,
Edu Lobo, Caetano Veloso, João Bosco e outros. Tinha aí 16 anos, foi quando percebi haver
um universo sonoro muito amplo na chamada MPB 3. A ideia de estudar violão de forma mais
séria veio a partir de um recital que assisti em um projeto patrocinado pela Secretaria de
Cultura da cidade de Fortaleza, intitulado “Um banquinho, um violão” 4. Em uma das ocasiões
se apresentou o violonista e professor Rogério Lima, cuja performance ao violão prontamente
me despertou muito interesse. Lembro muito bem da última música que foi “La Catedral”, do
compositor paraguaio Augustin Barrios 5. Saí de lá querendo estudar violão com o Rogério
Lima, foi quando eu procurei a Escola de Música Tocata onde ele era professor e diretor.
Minha mãe deu total apoio e foi comigo para me matricular na referida escola. Foi lá onde
aprendi a ler partitura e tocar as primeiras músicas por meio da leitura musical. Tinha as
minhas aulas e depois ficava estudando por lá. Em virtude do meu progresso fui convidado
para ser monitor naquela escola de música. Esse foi o meu primeiro emprego.
3
O pesquisador Marcos Napolitano (2005) aponta que a sigla MPB surgiu em 1965 como se fosse um gênero
musical, mas tratava-se na verdade de um estilo de canção moderna que unia a tradição dos morros, do sertão e
as conquistas cosmopolitas da bossa nova, sintetizando dessa forma “toda” a tradição musical popular
brasileira. O referido autor também expõe fatos plausíveis que ajudam a entender o contexto em que se deu o
surgimento dessa sigla. Ele lembra que o mercado musical sofria na virada da década de 1960 para a de 1970
uma grande reestruturação. Havia uma tendência de segmentação do consumo musical e que definia o lugar
dos artistas nesse mercado e o tipo de “produto” a ser oferecido aos consumidores. “No topo da hierarquia
musical da época havia a MPB, tida como música “culta”, aberta a várias tendências, desde que chanceladas
pelo “bom gosto” dos setores intelectualizados ou pelas “ousadias” das vanguardas jovens” (NAPOLITANO,
2005, p.70).
4
No anexo B consta um folder do projeto “Um banquinho, um violão”. A programação contava com recitais
quinzenais às terças feiras no antigo Teatro São José, localizado na Praia de Iracema, em Fortaleza-CE.
5
Soares (1982) aponta Augustin Pío Barrios como o maior compositor violonista das Américas de seu tempo.
Nasceu em São João Batista, Paraguai, a 29 de agosto de 1885 e sua atuação foi de muita importância para a
divulgação do instrumento. Durante 40 anos realizou recitais e audições íntimas em inúmeras cidades de países
sul- americanos – Paraguai, Uruguai, Venezuela, Colômbia e Brasil. Esse violonista teve uma passagem pela
capital cearense, que é descrita da seguinte maneira: “Em 1930 visita Fortaleza. Apresentou-se no Cine
Majestic, Cine Moderno, Sala Juvenal Galeno e Clube dos Diários. Gostou da capital cearense, demorando-se
um mês” (SOARES, 1982, p.70).
17
No ano de 2001, o meu tio Eugênio Lima de Souza 6 veio de férias a Fortaleza e me
vendo tocar disse: Com o que você toca, se tentasse o bacharelado em violão dava para
passar no teste de aptidão. Essa frase mudou o rumo da minha vida, porque era tudo o que eu
queria naquele momento; estudar música! Ingressei no curso de bacharelado em música com
habilitação em violão na turma de 2002.1. Isso despertou ainda mais a minha percepção para
um universo de possibilidades que até então eu não conhecia. O que foi muito importante
nesse período, além dos conhecimentos adquiridos no contexto escolar, foi o convívio regular
que passei a ter com outros músicos.
Primeiras reflexões
6
Eugênio Lima de Souza é professor de violão da escola de música da UFRN (Universidade Federal do Rio
Grande do Norte) desde 1981.
18
ser professor de violão na universidade? Tal questionamento que envolve o nosso objeto
busca por meio da teoria, enxergar uma realidade que até então não era percebida. Nessa
perspectiva, o trabalho desvela uma estrutura de relações e de compreensão das trajetórias de
professores de violão do Ensino Superior, que são agentes detentores de capitais específicos
que os investem de poder simbólico. Ele é descrito como um “[...] poder invisível o qual só
pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos
ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2010, p.07-08).
Na presente pesquisa buscou-se entender, descrever e explicar percursos de formação
que conduziram a uma escolha profissional, bem como, a gênese e o funcionamento do campo
violonístico no Ensino Superior do Ceará. Tivemos a preocupação de tratar as realidades
históricas de forma respeitosa, diferente de um curioso que se interessa pelos exotismos.
Diante disso houve o intuito de refletir e considerar o que Bourdieu (1996) nos ensina ao
afirmar que:
Por meio da análise dos percursos de formação dos professores de violão do Ensino
Superior no Ceará, compreende-se sociologicamente, como determinadas escolhas,
oportunidades e disposições interferem nas escolhas e nos caminhos dos sujeitos. Algo não
menos importante diz respeito ao acúmulo de capital que porventura pôde ser convertido em
vantagem no campo. Esse processo proporcionou aos agentes ocuparem uma posição de
domínio já que, ao se tornarem docentes na universidade, passam a ter um poder delegado por
uma instituição que há séculos tem o poder multiplicar, validar e legitimar o conhecimento.
Partindo dessa premissa pudemos lançar outros questionamentos, como por exemplo: Quais
as consequências da distribuição desigual dos capitais e do habitus adquirido na realização de
determinadas escolhas? O lugar que ocupamos no espaço social é decorrência do que
escolhemos, ou isso é em parte decorrente do que nos foi proporcionado ao longo de nossos
percursos?
20
Desse grupo estudado três atuam na UFC e um na UECE, são eles: Marcos Maia que é
professor da UECE, e os professores da UFC Marco Túlio (campus Fortaleza), Weber dos
Anjos (campus Cariri) e Marcelo Mateus (campus Sobral). A ordem com que apresentamos os
agentes se dá tendo por base o momento de ingresso dos mesmos na docência do Ensino
Superior.
As entrevistas realizadas obedeceram a um roteiro em anexo 8 que teve como objetivo
elucidar algumas questões diretamente relacionadas à pesquisa. Essas interrogações por sua
vez tinham como foco conhecer a origem familiar, a forma como ocorreram os primeiros
contatos com a música, o início do processo de escolarização, o percurso formativo e o porquê
da escolha de se tornar professor de violão. Algumas entrevistas aconteceram na casa dos
próprios sujeitos como foram as de Marcos Maia e Weber dos Anjos, a de Marco Túlio
ocorreu na Faculdade de Educação da UFC em Fortaleza, Marcelo Mateus foi entrevistado na
residência do pesquisador, na ocasião de uma visita sua a Fortaleza.
Os entrevistados foram bastante solícitos antes e no momento da realização das
entrevistas. Busquei explicar a cada um deles um pouco da natureza do trabalho e dos
objetivos. Comecei a entrevistá-los sempre a partir de um breve diálogo, e com o
consentimento dos entrevistados iniciávamos a entrevista. A seguir apresento os agentes da
nossa investigação.
Marcos Maia é professor de violão da UECE, tendo ingressado no ano 1988. Ele teve
o início de sua formação musical no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno,
posteriormente cursou a licenciatura em música na UECE mestrado em práticas
interpretativas na UNICAMP 9. Esse agente foi o primeiro professor de violão de uma
instituição de Ensino Superior no Ceará. Isso implica que antes da criação do curso de
licenciatura em música da UFC 10 quase todos os formados em música no Estado do Ceará
foram alunos de violão do professor Marcos Maia.
Marco Túlio é formado em música pela UECE onde concluiu sua graduação no ano de
1989. Ele é mestre em performance pela Northern IIIinois University (2004) e Doutor em
Educação pela UFC (2010). Foi professor de violão da antiga Escola Técnica Federal do
Ceará onde atuou no Curso Técnico em Música. Na UFC foi professor de violão em cursos de
extensão e atualmente leciona no Curso de Licenciatura em Música na mesma instituição –
(campus Fortaleza).
8
Ver anexo C.
9
Universidade Estadual de Campinas.
10
Universidade Federal do Ceará.
23
Weber dos Anjos é professor de violão da UFC (campus Cariri) onde ingressou no ano
de 2010. Formado em música pela UECE, mestre em História pela mesma instituição e
doutorando em Educação pela UFC. Antes de ingressar como docente na UFC Weber foi
músico do corpo de bombeiros de Fortaleza e professor substituto de violão na UECE. Ele
também realizou atividades como docente na Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN), ali chegou a coordenar um quarteto de violões, e lecionou as disciplinas de violão,
música brasileira e estética.
Marcelo Mateus é formado em música pela Universidade Federal do Ceará desde o
ano de 2008 e mestre em educação pela UFC (2012), onde é também professor de violão. Sua
formação inicial se deu no Conservatório de Música Alberto Nepomuceno com o professor
José Mário de Araújo. No período de graduação ele foi aluno do professor Marco Túlio e fez
parte do quarteto de violões da UFC.
Como pesquisador e também professor de violão, é possível afirmar que sou mais um
integrante do campo violonístico cearense. Isso é até certo ponto relevante para o resultado da
pesquisa já que, como ensina Bourdieu (2010, p. 32), “O raciocínio analógico, que se apoia na
intuição racional das homologias (ela própria alicerçada no conhecimento das invariantes dos
campos), é um espantoso instrumento de construção do objeto.”
Para uma maior compreensão por parte do leitor, o próximo passo será discorrer sobre
os conceitos de campo, habitus e capitais. Isso se faz necessário por entender que essas
categorias são centrais, para interpretar os dados e responder os questionamentos propostos na
pesquisa.
24
3 ILUMINANDO A PESQUISA
A noção de habitus tem uma longa história nas ciências humanas e remonta a
Aristóteles, passando por São Tomás, Durkheim, Weber, dentre outros. Essa categoria
explica, por exemplo, que para compreender o que alguém vai fazer não basta apenas
conhecer o estímulo (BOURDIEU, 2011). Ainda de acordo com o referido autor:
A teoria do habitus posteriormente foi sistematizada por Pierre Bourdieu. Ela surgiu
diante da necessidade de apreender as relações de afinidade, entre a prática dos agentes, as
estruturas e os condicionamentos sociais. Essa forma de pensar compreende que os objetos de
conhecimento são construídos mediante a incorporação de uma série de estruturas,
26
internalizadas nas práticas, gerando a partir daí representações e valores. Nessa perspectiva
Bourdieu assim nos ensina:
Digo que para compreender uma produção cultural (literatura, ciência etc.)
não basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se
ao contexto social contentando-se em estabelecer uma relação direta entre o
texto e o contexto. O que chamo de “erro do curto-circuito”, erro que
consiste em relacionar uma obra musical ou um poema simbolista com as
greves de Fourmies ou as manifestações de Anzim, como fazem certos
historiadores da arte ou da literatura. Minha hipótese consiste em supor que,
entre esses dois polos, muito distanciados, entre os quais se supõe, um pouco
imprudentemente, que a ligação possa se fazer, existe um universo
intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico,
isto é, o universo no qual estão inseridos os agentes e as instituições que
produzem, reproduzem ou difundem a arte, a literatura ou a ciência. Esse
universo é um mundo social como os outros, mas que obedece a leis sociais
mais ou menos específicas. A noção de campo está aí para designar esse
espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis
próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não
são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe,
com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada
(BOURDIEU, 2004, p.20).
Nesse aspecto Bourdieu (2004) levanta uma questão importante que surge a propósito
dos campos (ou dos subcampos); ela gira em torno do grau de autonomia que eles usufruem.
Para o referido autor “uma das manifestações mais visíveis da autonomia do campo é sua
capacidade de refratar, retraduzindo sob uma forma específica as pressões ou as demandas
27
externas” (BOURDIEU, 2004, p.22). Quanto mais autônomo for um campo maior será o seu
poder de refração e as imposições externas serão transfiguradas a ponto de se tornarem
irreconhecíveis. Vale também lembrar que esse espaço comporta relações de força e
dominação entre agentes e instituições.
Na obra intitulada O poder simbólico, Bourdieu (2010) apresenta uma série de
reflexões em torno das relações que ocorrem em um campo. Ele alerta para o fato de que este
poder é possível de ser identificado em toda parte, embora nem sempre seja percebido:
É necessário saber descobri-lo onde ele se deixa ver menos, onde ele é mais
completamente ignorado, portanto reconhecido: o poder simbólico é, com
efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o
exercem (BOURDIEU, 2010, p. 09).
considerada, já que os agentes aqui analisados estão inseridos em uma rede de relações,
marcadas por conhecimento e reconhecimento dentro de um conjunto. Mediante essa questão
Bourdieu (1980) irá apontar que:
A pesquisa irá apontar adiante de fato para essas ligações que se estabeleceram entre
os agentes e as instituições. O capital social é importante para que se possa refletir, que as
vantagens adquiridas e posições ocupadas no campo, também dependem das relações sociais
que se estabelecem no seu interior. Um ponto comum entre os agentes estudados na presente
pesquisa reside no fato de que eles se tornaram professores de violão do Ensino Superior.
Pergunta-se então como e por que os agentes se tornaram o que são e que contribuição eles
deram para a constituição desse campo específico?
No intuito de responder os questionamentos que se apresentam na presente
investigação considera-se o habitus uma categoria importante. Ela ajuda a entender o porquê
das disposições que conduziram os agentes a realizar escolhas, e em consequência disso
ocuparem posições similares no campo. Esse espaço por sua vez é marcado por relações e
conflitos no qual se encontram presentes os agentes e as instituições. Somando-se a essas
categorias o capital adquirido ao longo do percurso é um fator determinante para definição
dessa estrutura e das posições ocupadas pelos agentes nesse espaço de disputas e exercícios de
poder.
A noção de capital cultural se impôs “[...] como uma hipótese indispensável para dar
conta da desigualdade de desempenho escolar de crianças provenientes das diferentes classes
sociais [...]” (BOURDIEU, 2012, p.73). Isso acontece na medida em que se pensa na
distribuição dessa espécie de capital entre as classes, o que por sua vez ocasiona uma ruptura
com os pressupostos inerentes à visão comum que considera o fracasso ou sucesso escolar
como efeito das “aptidões” naturais (BOURDIEU, 2012). Para o auxílio na análise das
entrevistas junto aos agentes, considera-se importante o conhecimento em torno da existência
das três formas em que se apresenta o capital cultural; são elas:
29
“capital cultural” não se dissocia das causas e efeitos da dominação, isso decorre do lugar
proeminente da cultura nos processos de hierarquização e distinção social. Na obra intitulada
O poder simbólico, Bourdieu (2010) conceitua cultura – ou os “sistemas simbólicos” (mito,
língua, arte e ciência), como instrumentos de construção do mundo, dando inteligibilidade aos
objetos e definindo o que é bom ou ruim.
É importante considerar que não é apenas o fato de possuir, acumular ou não capital
que determina a posição de vantagem ou desvantagem no interior do campo. Compreendemos
que o fato de ocupar uma posição favorável ocorre a partir do momento em que se capitaliza e
converte em vantagem aquilo que se busca ou se dispõe no campo, considerando inclusive o
preço pago para ocupar tal posição. Em outras palavras “pode-se compreender que a natureza,
obedecendo à lógica da troca de dons, não concede seus benefícios senão àqueles que lhe dão
sua pena como tributo” (BOURDIEU, 2009, p.194).
O capital cultural pode ser pensado como o mais oculto determinante social dos
investimentos educativos. Nesse ponto Bourdieu (2012) alerta para a transmissão doméstica
do capital cultural. Nas palavras do autor:
O capital cultural é um ter que se tornou ser, uma propriedade que se fez
corpo e tornou-se parte integrante da "pessoa", um habitus. Aquele que o
possui "pagou com sua própria pessoa" e com aquilo que tem de mais
pessoal, seu tempo. Esse capital "pessoal" não pode ser transmitido
instantaneamente (diferentemente do dinheiro, do título de propriedade ou
mesmo do título de nobreza) por doação ou transmissão hereditária, por
compra ou troca. Pode ser adquirido, no essencial, de maneira totalmente
dissimulada e inconsciente, e permanece marcado por suas condições
primitivas de aquisição. Não pode ser acumulado para além das capacidades
de apropriação de um agente singular; depaupera e morre com seu portador
(com suas capacidades biológicas, sua memória, etc.). Pelo fato de estar
ligado, de múltiplas formas, à pessoa em sua singularidade biológica e ser
objeto de uma transmissão hereditária que é sempre altamente dissimulada, e
até mesmo invisível, ele constitui um desafio para todos aqueles que lhe
aplicam a velha e inextirpável distinção dos juristas gregos entre as
propriedades herdadas (ta patrôa) e as propriedades adquiridas (epiktèta),
isto é, acrescentadas pelo próprio indivíduo ao seu patrimônio hereditário; de
forma que consegue acumular os prestígios da propriedade inata e os méritos
da aquisição (BOURDIEU, 2012, p.74-75).
Entende-se aqui que a pesquisa deva buscar articulação entre o referencial teórico que
a sustenta e a metodologia adotada, para que dessa forma possamos viabilizar sua
operacionalização. De acordo com Silva (2010), existe uma correspondência entre teoria e
realidade. Do ponto de vista desse autor, quando descrevemos um objeto acabamos por
inventá-lo com o auxílio da teoria. Dito em outras palavras, o objeto descrito pela teoria é
produto da sua criação, e é dessa forma que o objeto de pesquisa passa a existir, no curso
deste processo em que se articula teoria e realidade. O discurso teórico é o que efetivamente
produz o objeto (SILVA, 2010).
Bourdieu (2010) entende que se deve recusar completamente a divisão entre teoria e
metodologia, já que “não se pode reencontrar o concreto combinando duas abstrações” (Id. ,
p.24). Desse modo, buscou-se não dissociar o estudo que envolve o objeto e o seu suporte
teórico da etapa metodológica. Na etapa de operacionalização de uma pesquisa, não é
desejável a ausência de um pensar relacional entre objeto, conceitos teóricos e metodologia.
Sendo assim, Bourdieu (2010) orienta que a noção de campo pode vir a ser importante na
construção do objeto, por meio da perspectiva relacional que envolve essa categoria. Ele nos
ensina que:
O pensar relacional tem também as suas dificuldades sob o ponto de vista de Bourdieu
(2010). Para ele, a dificuldade reside no fato de “não ser possível apreender os espaços sociais
de outra forma que não seja a de distribuições de propriedades entre indivíduos. É assim
porque a informação acessível está associada a indivíduos” (BOURDIEU, 2010, p.29). Diante
disso tornou-se essencial para a presente investigação interrogar os agentes, situá-los no
campo, desvelar os seus habitus, buscar semelhanças e diferenças entre os discursos, entender
a posição que ocupam e quais os percursos e capitais foram necessários para o ingresso no
magistério do Ensino Superior. Desse modo adoto uma sugestão de Bourdieu (2010) que é o
quadro dos caracteres pertinentes de um conjunto de agentes ou de instituições 11, a descrição
e justificativa do procedimento vem a seguir:
[...] inscreve-se cada uma das instituições em uma linha e abre-se uma
coluna sempre que se descobre uma propriedade necessária para caracterizar
uma delas, o que obriga a pôr a interrogação sobre a presença ou a ausência
dessa propriedade em todas as outras – isto na fase indutiva da operação;
depois, fazem-se desaparecer as repetições e reúnem-se as colunas que
registram características estrutural ou funcionalmente equivalentes, de
maneira a reter todas as características – e essas somente – que permitem
descriminar de modo mais ou menos rigoroso as diferentes instituições, as
quais são, por isso mesmo, pertinentes. Esse utensílio, muito simples, tem a
faculdade de obrigar a pensar relacionalmente tanto as unidades sociais em
questão como as suas propriedades, podendo estas ser caracterizadas em
termos de presença ou de ausência (sim/não). Mediante um trabalho de
construção dessa natureza – que não se faz de uma só vez, mas por uma série
de aproximações – constroem-se, pouco a pouco, espaços sociais os quais –
embora só se ofereçam em forma de relações objetivas muito abstratas e se
não possa tocá-los, nem apontá-los a dedo – são o que constitui toda a
realidade do mundo social (BOURDIEU, 2010, p.30).
11
O quadro se encontra na conclusão do trabalho (p.113) e contribuiu significativamente para análise do objeto.
33
As fontes orais aliadas aos conceitos de campo, habitus e capitais, auxiliaram a refletir
sobre o que envolve o ingresso na docência no Ensino Superior, e as relações que se
estabelecem entre os agentes e instituições. Nesse processo o impacto da oralidade é
percebido por Thompson (2002) como uma forma que permite examinar questões críticas, que
anteriormente eram restritas ao universo dos sujeitos.
A seguir será apresentada a revisão de literatura. Nela constam reflexões que
contribuem no sentido de compreender a noção que se tem de violão clássico, popular, e o que
envolve essas questões, bem como, os desdobramentos que convergem rumo ao objeto.
Conforme já foi exposto, a produção do campo e sua história são aspectos relevantes
para que possamos compreender a estrutura do seu funcionamento.
O violão nem sempre esteve presente no Ensino Superior, durante um longo período
ele foi inclusive associado à marginalidade. Para ter espaço em uma instituição que tem o
poder de consagrar e multiplicar conhecimentos como é o caso das universidades, se fizeram
necessárias disputas, utilização de estratégias para o reconhecimento, organização, e pessoas
dispostas a jogar o jogo.
Para compreendermos o habitus e o campo violonístico nas instituições de Ensino
Superior do Ceará, entendemos a necessidade de tomarmos como ponto de partida o
conhecimento no que concerne ao violão em um contexto macro. Pensando desse modo
aborda-se a seguir um pouco da história do violão no Brasil, considerando o momento da
inserção do seu ensino nas instituições de Ensino Superior do País.
instrumento aos setores marginalizados foi o principal argumento daqueles que defendiam a
impossibilidade do violão tornar-se um instrumento digno de ser apresentado em salas de
concerto (TABORDA, 2011).
A partir do que foi exposto percebe-se que o violão foi considerado marginal por
aqueles que tinham o poder de consagrar e proclamar valores. Essa prática ocorre a partir de
regras específicas aos campos, que são constituídos pelos agentes e instituições. Nessa lógica
entendemos que “o princípio da eficácia de todos os atos de consagração não é outro senão o
próprio campo, lugar da energia social acumulada, reproduzido com a ajuda dos agentes e
instituições através das lutas [...]” (BOURDIEU, 2008, p.25).
Ao discutirmos aspectos relacionados a chegada e difusão do violão no Brasil,
entendemos que não foi apenas o instrumento visto como objeto, mas o uso que se fez dele
que gradativamente foi proporcionando a sua inserção em todos os setores da cultura
brasileira (TABORDA, 2011). A citação a seguir discorre sobre esse fato:
Quando chegou ao Brasil era ainda uma viola de arame de quatro ordens de
cordas, instrumento indispensável na orquestra jesuítica, nas mãos dos
curumins da catequese, e que também acompanhou em Pernambuco as
cantorias de Bento Teixeira, autor da “Prosopopeia”, obra inaugural da
literatura brasileira do século XVI. No século seguinte, já com cinco ordens
de cordas, fez na Bahia as delícias de Gregório de Matos, poeta que
acompanhava à viola os bailados das mulatas do Recôncavo. No século
XVIII, a mesma viola de arame fazia o encanto das açafatas da corte de D.
Maria, rainha de Portugal. Enquanto na Europa as cantigas de Caldas faziam
furor, aqui no Brasil as violas estavam tão difundidas que até nos
testamentos de bandeirantes eram muitas vezes arroladas. Durante o Império,
já agora com seis cordas simples, foi a velha viola batizada de violão, e
tornou-se a grande, ou melhor, o grande metamorfoseador das danças
europeias (valsas, polcas, schottisches, mazurcas etc.) em danças brasileiras
de idêntica denominação. Foi também o violão constante acompanhador dos
12
Ordens são cordas duplas afinadas em uníssono.
37
O músico francês Pierre Laforge, que por volta de 1834 estabeleceu negócio
no Rio de Janeiro dedicando-se à impressão regular de peças musicais, foi o
responsável pela introdução na sociedade carioca do primeiro método de
ensino de viola francesa, já por essa época denominada violão. Na seção de
música do Jornal do Commercio de 1º de março de 1837 publicou o
anúncio: “Na imprensa de música de Pierre Laforge na Rua da Cadeia nº89,
acabam-se de imprimir as seguintes peças: Método de violão, segundo o
sistema de Carulli e Nava, traduzido do italiano por J. Crocco” (TABORDA.
2011, p.73).
38
Figura 3: Capa do método completo para estudo da guitarra, do italiano Ferdinado Carulli
Figura 4: Capa do método para violão de Canhoto (Américo Jacomino), publicado em 1920.
quem foi dedicado o Concerto de Aranjuez para violão e orquestra (1939). Vale lembrar que
essa obra acabou tornando famoso o grande compositor espanhol Joaquin Rodrigo (SADIE,
1994) 13.
Sobre a trajetória do violão no Brasil, Pereira (2007) se referindo a alguns violonistas
considerados como “populares”; que “o reconhecimento da obra desses violonistas só está
sendo postergado por falta de partituras e de se criar uma tradição de estudar também essas
peças” (PEREIRA, 2007, p.12). Percebe-se que a escrita musical pode ser nesse caso uma
instância de consagração, já que nesse caso, o aprendizado dessas composições não estaria
restrito a oralidade. Nos espaços acadêmicos a transmissão de conhecimentos ainda está muito
ligada a fontes escritas, e nos conservatórios, a partitura é uma fonte importante para a difusão
da cultura musical, por meio das execuções públicas e programas de ensino voltados a prática
instrumental.
Quero alertar para o fato de que é comum ouvirmos denominações do tipo violão
clássico e violão popular. Por violão clássico entende-se o estilo de tocar o instrumento que se
baseia em uma escola, normalmente de tradição europeia e que adota um repertório
tradicional europeu. Na história da música, por volta do século XVII, existiram grandes
guitarristas e didatas que escreveram obras significativas para guitarra, além de métodos
destinados ao aprendizado e aperfeiçoamento no instrumento. Dentre eles podemos citar os
italianos Matteo Carcassi e Mauro Giuliani e o espanhol Fernando Sor 14. Um dos maiores
compositores brasileiros, Heitor Villa Lobos 15, tocava violão, e sabe-se que ele conhecia e
tocava obras musicais dos métodos tradicionais (NEVES, 1977).
A expressão violão popular refere-se ao estilo de tocar o instrumento que não se
baseia em uma escola, e que tem o repertório de música brasileira como principal foco. Ele
está presente normalmente em gêneros como choro, samba e bossa nova, entre outros. O
violão popular está muito mais associado à forma que se aprende; comumente autodidata. É
um erro, no entanto, pensar que o termo popular se refere a algo que não possui valor musical.
Existem violonistas brasileiros, tidos como populares que tem obras de imenso valor e com
uma considerável dificuldade de execução. Destaco aqui nomes como os de João
Pernambuco, Garoto e Américo Jacomino. No Ceará também temos personalidades
13
Para maiores informações ver Sadie (1994, p.792).
14
Para conhecer melhor sobre esses violonistas didatas e compositores, assim como também suas contribuições
para o violão ver Soares (1982, p.45-56); Dudeque (1994, p.61-75).
15
Heitor Villa Lobos (1887-1959) escreveu obras significativas para violão, que são comumente tocadas por
violonistas ao redor do mundo. Para esse instrumento ele escreveu: Choros nº1 (1920), 12 estudos para violão
(1924-1929), 5 Prelúdios (1940), a Suíte Popular Brasileira, composta de peças escritas entre 1908 e 1923 e um
concerto para violão e orquestra (1951). Para saber mais ver também Sadie (1994, p.992-993); Pereira (1984,
p.17-26).
41
Como pôde-se perceber, as fronteiras entre violão erudito e popular não aparecem
bem delimitadas mesmo nos dias de hoje. O repertório europeu é que sempre foi associado à
música erudita, muito embora nomes como Bach (1685-1750) 17, Vivaldi (1678-1741) 18 ou
Beethoven(1770-1827) 19 tenham composto simplesmente a música do seu tempo, sem
necessariamente pensarem em dar as suas composições algum tipo de rótulo. Atribuições do
tipo erudito ou popular podem ser compreendidas como construções históricas utilizadas para
a distinção de classes. No Brasil a música europeia esteve por muito tempo no teatro enquanto
a popular estava na rua, nas rodas de choro, nos terreiros, nas feiras, etc. Pensando assim não
é de causar estranhamento que o piano tenha chegado primeiro ao Ensino Superior, ele esteve
antes que o violão no teatro e nas sociedades artísticas. A distinção se faz presente na arte, no
gosto e mais especificamente na música e nos instrumentos musicais. Esse tipo de discussão
não é o foco central de nossa pesquisa, mas lança para nós questionamentos em torno da
natureza das disputas que ocorrem no campo musical.
Sobre as atividades violonísticas no Ceará, a pesquisa de Costa (2010) é um importante
registro que situa o instrumento na cidade de Fortaleza. Em seu trabalho sobre o Violão Clube
16
A autora se refere nesse caso a João Pernambuco, Mozart Bicalho, Levino da Conceição e Quincas Laranjeira.
17
Para informações sobre esse compositor ver Sadie (1994, p.60-61).
18
Ibid. , p.1003-1004.
19
Ibid. , p.88-90.
42
O violão no Ceará tem nomes importantes como por exemplo: Afonso Aires 20, Zé 21
Menezes, Francisco Soares 22 e Aleardo Freitas 23; todos esses já falecidos. Eles foram os
primeiros violonistas a se profissionalizarem dando início à constituição de um campo
violonístico. Nesse momento o instrumento ainda não estava presente no Ensino Superior do
Ceará. Para falar em campo é necessário que haja a existência dos agentes, dispostos a jogar
20
Afonso Aires (1907-1952) atuou por muitos anos na Ceará Rádio Clube – PRE-9, sendo chefe do conjunto
regional daquela emissora. Disponível em: < http://catadoradeversos.blogspot.com.br/2011/06/quem-ja-ouviu-
falar-emonso-aires.html>. Acesso em: 08/07/2012.
21
Zé Menezes de França (1921). Compositor, multi-instrumentista; toca violão de seis e sete cordas, violão tenor,
bandolim, banjo, cavaquinho, viola de dez cordas, guitarra amplificada, guitarra portuguesa e contrabaixo.
Disponível em: http://www.dicionariompb.com.br/ze-menezes. Acesso em: 08/09/2012.
22
Francisco Soares de Souza (1907-1986). Foi um importante violonista e compositor cearense, o primeiro a
gravar um disco solo de violão no Ceará. Disponível em: < http://www.mariadoceu.com/francisco.html>.
Acesso em: 0809/2012.
23
Aleardo Freitas Guimarães (1914-1994). Compositor violonista que atuou na antiga Ceará Rádio Clube PRE-
9. <Disponível em: http://www.ceara.pro.br/fatos/MenuHistoriaVerbete>. Acesso em 08/09/2012.
43
de acordo com as regras específicas desse espaço, assim como também as instituições, lugar
de legitimidade, produção de conhecimento e disputas de poder.
A chegada do ensino de violão em algumas universidades no Brasil é o momento de
consagração, a partir dessas instituições que gozam de grande poder e reconhecimento perante
a sociedade. É sobre esse momento que se fala a seguir, considerando que o contexto
envolvendo a chegada do instrumento no Ensino Superior de diversas capitais no Brasil,
acarretou em consequências para o campo violonístico no Ceará.
De acordo com Alfonso (2009, p.117), o violão foi incluído nos cursos superiores de
música na década de 1970. Segundo a autora, “até então, não havia no Brasil nenhum
violonista formado e os professores que assumiram os cargos nos cursos de graduação
receberam autorização do Conselho Federal de Educação ou por meio do título de Notório
Saber”. As investigações da autora atestaram que nesse período “[...] no Rio de Janeiro, São
Paulo, Bahia, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, os papéis para a inclusão da cadeira de
violão nas faculdades estavam em trâmites”. O trecho a seguir revela um pouco da história da
inclusão do instrumento no Ensino de Nível Superior do Brasil:
24
A partir desse momento será utilizada a sigla CMAN
46
Nesse momento fala-se da trajetória de alguns violonistas que atuaram nas emissoras
radiofônicas em Fortaleza. A partir da difusão do violão nesse espaço que teve uma grande
importância social, o instrumento passou a ocupar mais espaços na sociedade cearense.
Exemplo disso foi a criação do Violão Clube do Ceará 25 e posteriormente do Círculo
Violonístico Villa Lobos 26. Será a partir das consagrações no campo musical que o violão
chegará ao Ensino Superior no Estado do Ceará. Elas ocorreram por meio de um processo que
teve início nas rádios, passando pelas sociedades artísticas e pelo CMAN. Esses espaços são
dotados de regras, capitais específicos para afirmação dos agentes perante o campo, a fim de
se legitimarem perante a sociedade e outras instâncias formadoras.
Assim como em outros estados do País, muitos músicos iniciaram sua trajetória
profissional nas emissoras radiofônicas. Esta instância proporciona relações e saberes
musicais adquiridos sem a mediação de um educador musical. Isso decorre da “troca
constante entre sujeitos e cultura ambiente [...] esse saber musical possível trata-se de um
processo cuja ativação ocorre, de qualquer modo, de maneira implícita, automática e
involuntária” (NANNI, apud, FIALHO, 2003, p.71). Diante disso é possível perceber que na
sociedade todos os lugares podem proporcionar diversas aprendizagens (SOUZA, 2001).
No início da era do rádio essa instância passou a ser um importante instrumento
facilitador de comunicação com o público, favorecendo relações sociais e divulgando as
diversas manifestações artísticas. A citação a seguir ajuda a contextualizar esse momento:
25
A pesquisa de Costa (2010) é a principal referência sobre o Violão Clube do Ceará.
26
Ainda não existe pesquisa publicada sobre essa sociedade artística que perdurou ao longo da década de 1970.
Adiante serão apresentadas fotografias e uma matéria publicada na revista violão e mestres que atesta essa
atividade violonística na cidade de Fortaleza.
47
possibilitou a vinda de nomes famosos do rádio brasileiro ao Ceará, como por exemplo:
Francisco Alves, Orlando Silva, Silvio Caldas e Dorival Caymmi.
Também foram lançados artistas locais como Humberto Teixeira e Lauro Maia. Esse
último ingressa no Rádio em 1935 apresentando um programa de músicas regionais e
nordestinas, “Lauro Maia e seu ritmo”.
Figura 7 – Lauro Maia
Diante do cenário que se configurava eram necessários músicos que pudessem atuar
nas emissoras radiofônicas, acompanhando cantores ou contribuindo de outras maneiras com
as atividades que envolvessem música dentro da programação. É na rádio que surgem os
48
27
O estudo científico do desenvolvimento de uma língua ou de famílias de línguas, em especial a pesquisa de
sua história morfológica e fonológica baseada em documentos escritos e na crítica dos textos redigidos nessas
línguas (p.ex., filologia latina, filologia germânica etc.); gramática histórica. Etimologia: lat. philologìa,ae
'amor às letras, instrução, erudição, literatura, palavrório', do gr. philología,as 'necessidade de falar,
conversação', talvez pelo fr. philologie (sXIV) 'id.'; ver 1fil(o) -e -logia; f.hist. 1597 philologia.
49
que esse espaço contribuiu para agregar os sujeitos, dando início dessa forma a constituição
do campo violonístico no Ceará.
O site pessoal de Zé Menezes disponibiliza sua biografia 28. Por meio dela foi possível
saber que ele começou sua carreira artística aos oito anos de idade quando, a convite do
maestro Arlindo Cruz, passou a se apresentar de forma profissional em um cinema na cidade
de Juazeiro do Norte – CE. O ano de 1938 marcou o início do seu percurso como violonista
da Ceará Rádio Clube. Tendo ficado nessa emissora por quatro anos, criou nesse tempo um
conjunto regional. Em seu site também consta a informação de que Zé Menezes foi ouvido em
1943 por Cesar Ladeira, um importante locutor carioca que em turnê artística visitava o
Ceará. Foi a partir desse fato que ele foi convidado para ir ao Rio de Janeiro onde atuou na
28
Disponível em <http://www.abz.com.br/zemenezes/>. Acesso em: 06/07/2011.
50
Rádio Mayrink Veiga, dirigindo então dois programas semanais em que tocava violão,
cavaquinho, bandolim, violão tenor e guitarra.
Zé Menezes ainda chegou a atuar no ano de 1946 na Rádio Globo, e em 1947 foi
contratado pela Radio Nacional onde era solista. Nessa importante rádio (a maior da América
Latina), tocava com as formações de orquestra e acompanhava grandes artistas da época como
o cantor Francisco Alves.
O destaque na carreira desse ilustre cearense no tempo em que atuou no rádio foi o
momento em que integrou o Quarteto Continental, um grupo formado pelo maestro Radamés
Gnatalli 29no piano, Luciano Perrone na bateria e Pedro Vidal no contrabaixo. Essa formação
tocou por vários países europeus. Nesse período Radamés dedicou a Zé Menezes o “Concerto
carioca”, composto para guitarra elétrica e orquestra, o primeiro escrito para esse tipo de
formação.
Figura 9 – Capa do LP Concerto Carioca nº1
Disponível:<http://orquestra.ia.unesp.br/teses_de_pos/dissertacoes_musica/2007/dissertacao_mg
uedescorrea.pdf>. Acesso em: 11 Set. 2012.
violonistas. Essa afirmação tem como base a estreita relação que esse músico teve com
Francisco Soares, outro importante nome do Violão Clube do Ceará e que também integrou o
Círculo Violonístico Villa Lobos.
Figura 10 – Zé Menezes; José Menezes de França (1921).
Francisco Soares foi outro importante violonista cearense. Atuou na antiga Ceará
Rádio Clube acompanhando os grandes cantores e instrumentistas que por lá se apresentavam.
Como solista interpretava ao violão músicas de compositores como Francisco Tárrega30, Isaac
Albeniz 31, Beethoven 32, Listz 33, Chopin 34, Bach 35, além de arranjos para violão das músicas
de Ernesto Nazareth36 e Pixinguinha 37 (GOMES, apud, VASCONCELOS, 2003). Esse
violonista foi também foi o primeiro cearense a gravar um disco solo de violão. Em 1961 com
a ajuda do amigo e violonista Zé Menezes, a Philips gravou o LP Um recital no Clube do
Violão 38. Inicialmente esse long play também iria incluir faixas de nomes consagrados da
história da música, mas por orientação da gravadora que queria algo mais popular, ele acabou
30
Francisco Tárrega (1852-1909). Famoso guitarrista e compositor espanhol. Para mais informações ver também
Sadie, (1994, p.931).
31
Issac Albéniz (1860-1909), compositor e pianista espanhol e é considerado uma das figuras mais importantes
da história musical da Espanha. Ibid. , p.16-17.
32
Ludwig Van Beethoven (1770-1827), compositor alemão, considerado como um dos maiores da história da
música ocidental. Ibid. , p.88-90.
33
Franz Liszt (1811-1886), compositor e pianista húngaro. Ibid. , p.541-543.
34
Frédéric François Chopin (1810-1849), compositor e pianista polonês. Ibid. , p.193-194.
35
Johann Sebastian Bach (1685-1750), compositor e organista alemão, considerado como o último grande
representante da era barroca. Ibid. , p.60-61.
36
Ernesto Nazareth (1863-1934), compositor e exímio pianista. Captou o esquema rítmico e melódico do gênero
choro e o levou para o piano, estilizando-o de forma original. Para saber mais consultar Severiano (2008, p.38-
41).
37
Alfredo da Rocha Viana (1897-1973), compositor, arranjador e multi-instrumentista é uma das maiores
personalidades da música brasileira. Ver também Severiano (2008, p.81-87).
38
Disponível em: <http://fotolog.terra.com.br/redeceara:1551>. Acesso em: 05 Set. 2011.
52
gravando exclusivamente suas próprias composições que incluíam choros e valsas (GOMES,
2003). A interferência da gravadora influiu nesse caso no interesse do próprio artista. O seu
desejo inicial era o de incluir no LP compositores já consagrados. Sua vontade esbarrou no
fato da existência daqueles que enxergam na obra de arte a possibilidade de obtenção de
lucro, podendo nesse caso acarretar implicações. O fato é que “as características do
empreendimento comercial e as características do empreendimento cultural, como relação
mais ou menos denegada ao empreendimento comercial, são indissociáveis” (BOURDIEU,
2008, p.31).
Figura 11 – Francisco Soares de Souza (1907-1986) apreciando a capa do seu LP “Um recital
no clube do violão”.
Outro violonista atuante no rádio foi Aleardo Freitas. Gomes (2003) afirma que “na
década de 60 foi fundada a sexta emissora de rádio em Fortaleza: a Rádio Assunção.
Inspirado no “Clube do Violão”, onde era presença constante, Aleardo Freitas apresenta
durante 2 anos o programa‘Aleardo Freitas e seu violão’ ”(GOMES, 2003, p.09). Aleardo
estudou violão com Oscar Cirino e piano com Lauro Maia, com quem veio a desenvolver o
ritmo denominado Balanceio, considerado precursor do baião de Luiz Gonzaga 39. Foi também
fundador do Clube do Violão e como compositor possui mais de 48 peças para violão.
39
Disponível em: < http://fotolog.terra.com.br/redeceara:1551>. Acesso em: 05/07/2011. Para mais informações
ver também Nirez, (1999, p.127-129).
53
Esses violonistas foram elencados aqui por se considerar como os mais importantes
que atuaram no rádio dentro do Estado do Ceará. O critério de escolha foram as suas
estratégias utilizadas de conhecimento e reconhecimento no campo. Alguns desses nomes,
como foi o caso de Zé Meneses e Francisco Soares, atuaram também fora do Estado e pelos
seus feitos, conquistaram maior reconhecimento dentro do campo. Afirma-se isso com base
nas edições das obras de Francisco Soares 40, algumas delas fora do país, e das gravações de
algumas das suas composições, realizadas por importantes intérpretes da atualidade como
Sebastião Tapajós e Cristina Azuma. Zé Meneses ainda está atuante no cenário musical da
atualidade e se apresenta com frequência em vários festivais e eventos musicais do País. No
ano de 2011 ele tocou na 12ª edição do Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga - CE,
estando nessa ocasião com 89 anos de idade e muita vitalidade 41.
40
Consta nos anexos a capa de uma dessas edições, publicada em Paris.
41
A noite também contou com choros de Zé Menezes, representante do primeiro time de compositores dogênero
musical essencialmente brasileiro. No alto de seus 89 anos, mostrou vitalidade, interpretando músicas
marcantes de sua carreira, acompanhado pelo teclado de Marcelo Caldas e por Daniela Spilman no sax e na
flauta. Foram 13 choros executados. Entre eles, “Terra quente” e “Frevo pra Dani”.“O violão tenor é um
instrumento praticamente em extinção. Tenho este desde 1935 e tenho mais ciúme dele que da mulher e das
minhas filhas”, contou Menezes durante sua apresentação. Disponível em: <
http://blog.opovo.com.br/temporeal/2011/03/08/1046/>. Acesso em: 11 Set. 2012.
54
Figura 13 – Zé Menezes toca em seu violão tenor no 12º Festival de Jazz e Blues de Guaramiranga.
Nessa perspectiva, é possível concluir que o campo produz e reproduz por meio do seu
funcionamento e das suas regras específicas, a crença compartilhada pelos membros ativos e o
que aspiram ser, de que a arte é um domínio “sagrado” e que se mantém a parte,
transcendendo inclusive as condutas mundanas e os interesses materiais (WACQUAND,
2005; BOURDIEU, 1979; 1983; 1987). É ainda Wacquand (2005) que ensina alguns passos
que são indispensáveis, quando se propõe analisar obras culturais em termos de campo. Ele
sugere três operações que são estreitamente ligadas e muito relevantes para esta pesquisa:
Dessa maneira compreende-se que existe uma relação indissociável entre os agentes
que compõem o espaço social, as instituições, e o habitus daqueles que fazem parte de um
campo específico. Para entender como os agentes ingressaram no magistério do Ensino
Superior, dando início dessa maneira a constituição de um campo, foram considerados
aspectos relevantes como: O habitus, o conhecimento em torno da história e das instituições
pelas quais os sujeitos passaram, a maneira como os agentes começaram a se envolver com o
violão, as experiências pedagógicas, a maneira como atuam no campo de produção artística, e
por fim, que tipos de capitais acumulados eles detêm.
Os pontos acima discriminados ajudam a compreender como os agentes ocupam o seu
espaço e que estratégias (conscientes ou não) foram utilizadas para esse fim. Vale lembrar que
o habitus dos sujeitos exerce grande influência nesse processo já que para alguns,
determinadas práticas podem ser mais comuns (estudar, ir a congressos, ler e comprar livros,
adquirir partituras, ensinar, etc.), enquanto que para outros, isso pode não ter o mesmo nível
de relevância. A seguinte colocação nos esclarece:
Pensando dessa maneira, é preciso compreender que existe uma predisposição por
parte dos agentes para ocuparem determinadas posições no campo. É fato que também por
outro lado, pode ocorrer que mesmo àqueles que herdam certas disposições, não desejem
ocupar um espaço que lhes seria natural. É realidade que “custa cada vez mais ser um
‘herdeiro’, em termos financeiros, mas, sobretudo, no que se refere aos custos emocionais e
mesmo vivenciais” (CATANI, 2011, p.04).
A universidade é um espaço que vem sendo procurado por alguns nomes conhecidos e
que já atuam há algum tempo na noite da cidade de Fortaleza 44. Percebe-se com isso que
44
Como agente do campo, tenho percebido que são cada vez mais frequentes os casos de músicos que já atuam
profissionalmente na cidade de Fortaleza, e mesmo tendo o seu trabalho reconhecido, buscam no espaço da
58
universidade legitimar suas atividades, por meio da aquisição de um capital acadêmico e do título de
Graduado, Mestre ou Doutor em Música.
45
É o tipo de notação musical mais utilizada na música popular. No violão entende-se também que é a
representação dos acordes por meio de desenhos do braço do instrumento.
59
de violão em um contexto institucional se tornou uma realidade, a partir disso alguns agentes
por meio de estratégias (conscientes ou não), passaram a buscar inserir o instrumento no
currículo de instituições como o CMAN e as universidades (UFC e UECE).
A partir de agora se observa como alguns acontecimentos incidiram no fato da
inserção do ensino de violão no currículo do CMAN, e posteriormente no Ensino Superior.
Será possível perceber a existência de uma estreita relação entre o campo, os agentes e as
instituições, o que por sua vez acarretará em mudanças significativas, delineando novos
espaços e demandas no interior do espaço social.
Percebemos até aqui que os violonistas profissionais tiveram o rádio como a primeira
instância empregadora. A importância disso se relaciona ao fato de que a partir desse período,
tornou-se possível profissionalizar-se tocando violão no Ceará. Apesar dessa realidade, o
ensino de instrumento ainda não estava presente no Ensino Superior do Ceará.
A partir da era do rádio as sociedades artísticas também desempenharam um papel
importante, no que concerne a difusão cultural na sociedade de Fortaleza. Nas primeiras
décadas do século XX a capital cearense passava por um conjunto de reformas sociais e
administrativas. Dentre elas a do campo das artes teve grande importância na construção
cultural de uma elite que surgia (Schrader, 2002). Apesar disso não podemos afirmar que
havia um ensino institucionalizado de música, a exposição a seguir assim esclarece:
Antes disso, ainda no ano de 1919, tem-se o registro da iniciativa que foi pioneira na
tentativa de fundar uma escola de música em Fortaleza. Nesse momento o maestro Henrique
Jorge cria a primeira escola de música, a Escola de Música Alberto Nepomuceno (Schrader,
2002). Anos depois quando veio a falecer, os companheiros de trabalho não conseguiram dar
continuidade as atividades da escola. O trecho a seguir nos esclarece sobre o momento em que
as atividades musicais são retomadas na escola. Em decorrência dessa iniciativa surge o
Conservatório de Música Alberto Nepomuceno e, em um momento posterior, é criado o
primeiro Curso Superior de Música da região Norte e Nordeste.
46
O piano é um instrumento tipicamente europeu e que representou por muitos anos a elite dos grandes centros e
demais capitais.
47
Com relação a essa citação, existe uma nota de rodapé no trabalho de Schrader (2002) que informa ao leitor a
fonte dessa informação, no caso em questão o jornal O Povo de 28/09/1966, p.09.
61
48
Em sua pesquisa Schrader (2002) nos informa que até o momento não havia sido possível encontrar a
documentação referente a incorporação do Conservatório à Universidade Federal do Ceará. Apesar disso ele
apresenta o projeto de lei enviado ao Congresso Nacional pelo presidente da república. A origem desse fato é
apresentada pelo pesquisador em questão que apresenta uma nota presente no jornal O Povo de 22/06/1964
onde consta: Ao chegar ontem em Fortaleza, integrando a comitiva presidencial, o Sr. Flávio Suplicy de
Lacerda, Ministro da Educação, disse a reportagem: o governo trouxe para o Ceará, em comemoração ao
centenário de Alberto Nepomuceno, uma contribuição de seu reconhecimento – a federalização do
Conservatório de Música Alberto Nepomuceno através de sua integração na Universidade do Ceará, o que
proporcionará a esta mais uma ajuda no desempenho da grande missão social que lhe cabe.
49
Essas estratégias podem ser conscientes ou não. O fato é que o intuito do trabalho não é de discutir sobre essa
questão, mas apresentar os fatos e discorrer sobre a consequência deles para a constituição de um campo
violonístico no Ensino Superior.
50
Consta no Anexo E uma foto dos integrantes do Círculo Violonístico Villa Lobos.
62
Barroso e que teve como aluno o professor José Mário de Araújo 51. O fato do ensino de
violão ter se inserido no CMAN, possibilitou aos violonistas tomarem posse de um capital
institucionalizado, permitindo inclusive o contato direto com outros agentes do campo.
Deve-se também resaltar que o espaço ocupado por esses músicos era conhecido e
reconhecido perante a sociedade de Fortaleza, sendo nesse sentido um lugar de consagração.
Os documentos abaixo estão contidos na revista “Violão e Mestres” de 1968, um meio
importante de difusão da cultura violonística no âmbito nacional naquela época. Percebe-se
com isso que o cenário do instrumento na cidade de Fortaleza buscava se afirmar. Os
contatos mantidos com esse meio de comunicação são uma prova verídica desse fato; a
reportagem noticia o evento relacionado ao primeiro recital do Círculo Violonístico Villa
Lobos, o programa do concerto, fotos dos seus integrantes. Em outro anúncio o professor
Miranda Golignac fala do curso livre de violão que ele mantinha em Fortaleza e do seu
desejo de continuar recebendo outros exemplares da revista “Violão e Mestres”. As fotos
abaixo traçam um breve retrospecto histórico em torno dos fatos aqui apontados.
Fonte: A VERSTILIDADE do violão através dos séculos. Violão e Mestres, Rio de Janeiro, V. 2, n.
9, Jul. 1968. Magazine.
51
Essa informação foi dada pela Srª Cleomar, esposa de José Mário de Araújo.
63
Fonte: Círculo Violonístico Villa Lobos. Violão e Mestres, Rio de Janeiro, V. 2, n. 9, Jul.
1968. Magazine.
Figura 16 – Matéria que trata sobre o primeiro recital do Círculo Violonístico Villa Lobos
Fonte: Círculo Violonístico Villa Lobos. Violão e Mestres, Rio de Janeiro, V. 2, n. 9, Jul.
1968. Magazine.
64
Fonte: Círculo Violonístico Villa Lobos. Violão e Mestres, Rio de Janeiro, V. 2, n. 9, Jul.
1968. Magazine.
Figura 18 – Juanita Maria Golignac e José Mário de Araújo tocam em duo no primeiro recital
do Círculo Violonístico Villa Lobos.
Fonte: Círculo Violonístico Villa Lobos. Violão e Mestres, Rio de Janeiro, V. 2, n. 9, Jul.
1968. Magazine.
65
Figura 19 – Nota publicada na revista Violão e Mestres de 1977; o autor é Miranda Golignac.
Como se pôde perceber no tempo do Círculo Violonístico Villa Lobos existiam vários
violonistas que se faziam presentes no campo. Comparando o resultado da pesquisa de Costa
(2010), no que se refere ao que era tocado no Violão Clube do Ceará, com o programa do
primeiro recital do Círculo Violonístico Villa Lobos, percebe-se que houve uma mudança
com relação ao repertório executado pelos violonistas. Neste momento prevaleceram obras de
compositores já consagrados no repertório violonístico, tais como Villa Lobos, Bach, Tárrega
e Carcassi. É possível constatar que nesse novo momento, o violão buscava se afirmar como
instrumento de concerto na cidade de Fortaleza. O fato de tocar obras de compositores já
consagrados proporcionava essa legitimidade, associando dessa forma a ideia de “violão
clássico” a instrumento de concerto, o que seria fundamental para a sua inserção no currículo
do CMAN.
Pode-se dizer que professor José Mário de Araújo desempenhou um papel importante
no início da constituição de um campo envolvendo o violão em um contexto
institucionalizado. Na entrevista de Marco Túlio ele revela a insistência de José Mário, no
intuito de que o ensino de violão se consolidasse no CMAN. Zé Mário como era conhecido,
foi professor dos agentes aqui investigados. Durante um longo período ele foi à principal
figura de referência no ensino de violão no Ceará. Na década de 1970 participou dos
66
seminários de violão do Liceu Palestrina em Porto Alegre – RS 52. Esses eventos reuniam os
maiores nomes do violão no mundo em atividade naquele período como: Abel Carlevaro, os
irmãos Sérgio e Eduardo Abreu, Carlos Barbosa Lima, Eduardo Fernandez, dentre outros 53.
A verdade é que José Mário de Araújo conseguiu certa repercussão na sociedade
cearense e até mesmo em Porto Alegre sobre sua ida aos seminários de violão. Ele obteve o
apoio de bancos e outras instâncias para que pudesse na ocasião levar uma delegação,
constituída por alunos de violão do CMAN 54. Dessa maneira era capitalizou em vantagem
essas idas ao seminário, o que lhe rendeu prestígio como professor e um maior
reconhecimento no campo. Uma pergunta intrigante que esteve presente junto ao pesquisador
se refere ao porque de José Mário não ter ingressado como professor no Ensino Superior. Em
entrevista realizada junto a sua esposa 55 ela relatou o seguinte sobre essa indagação.
Dei muito apoio ao Mário para que ele fosse dar aula na universidade, mas
ele nunca quis. Na época ele tinha muitos alunos de violão no conservatório,
e ele sempre questionava sobre quem iria desempenhar o papel que ele fazia
caso ele saísse de lá. Depois ele também não quis se submeter a novos
exames, preferiu ficar onde estava, era algo certo e ele estava satisfeito com
o que fazia. Depois quem acabou entrando na universidade foram ex-alunos
dele, o Marcos Maia é exemplo disso. (Cleomar).
Diante desse fato é possível perceber que o CMAN gozava de prestígio na sociedade
cearense e proporcionava a José Mário a possibilidade de viver de música. Esse professor veio
do interior do Estado do Ceará e se radicou na capital cearense. Concluiu o curso de música
no CMAN em 1964, atuou em escolas de música antes de ingressar como professor no
conservatório. Sua importância maior está no fato de que ele deu uma projeção ao violão
como instrumento de concerto na capital cearense. Ao fundar a cadeira de violão clássico no
conservatório ele também possibilitou aos agentes tomarem posse de um capital
institucionalizado.
52
Apresentamos nos anexos da pesquisa fotografias do jornal Acordes, gentilmente cedidas pelo violonista e
médico Alberto Lima de Souza. Essa publicação discorre sobre os Seminários de Violão do Liceu Palestrina no
RS.
53
Achou-se relevante anexar alguns programas de recital desses festivais. Isso conduziu a algumas reflexões que
serão expostas no decorrer do trabalho.
54
Foram encontrados jornais de época que atestam nossa afirmação. No que concerne aos alunos que foram
selecionados para ir ao Seminário destacamos Marcos Maia, que atualmente é professor de violão da UECE e
Paulo Goés, atualmente professor de violão do CMAN (Ver Anexos F e G).
55
Por motivo de saúde José Mário de Araújo está impossibilitado de realizar entrevista, daí muitos de nossos
questionamentos terem sido direcionados a sua esposa que na época já era casada com ele. Ela nos relata que
deu muito apoio a José Mário na época dos seminários da Faculdade Palestrina. “Eu assumia tudo por aqui já
que o seminário durava um mês, dizia que ele podia ir que por aqui eu cuidava Do que precisasse” (Srª
Cleomar).
67
Existem notícias de vários eventos importantes relacionados à ida desse agente aos
seminários de violão em Porto Alegre. A partir dos referidos seminários é possível afirmar
que existem fortes indícios que houve uma mudança na maneira de tocar, de pensar a técnica
violonística e de ensinar violão. Pretende-se aprofundar essa investigação adiante, por hora é
possível afirmar que José Mário deu um maior status ao violão no campo musical cearense.
Ele soube adquirir capitais e convertê-los em vantagem, com isso abriu as portas para que o
ensino do instrumento chegasse às universidades cearenses. Coincidentemente foi Marcos
Maia, um dos alunos que foi destaque nas suas turmas de violão do conservatório e
frequentou os seminários de violão em Porto Alegre, tornou-se o primeiro professor de violão
no Ensino Superior do Ceará. Dessa forma, é possível afirmar que existe uma forte ligação
entre o campo, os agentes e as instituições. A partir do professor José Mário houve uma maior
demanda pelo ensino de violão, o que fez com que a universidade tivesse a necessidade de ter
no quadro de professores do curso de música um professor desse instrumento. A seguir por
meio das entrevistas, analisa-se o percurso formativo, o habitus e a relação dos agentes com o
campo violonístico nas IES do Ceará. Será possível perceber que o acúmulo de capitais tem
algum tipo de relação com o habitus, principalmente se eles são convertidos em vantagem
pelo agente no interior do campo. A partir disso os sujeitos passam a ocupar o seu espaço, e é
o nível de capital adquirido e convertido em vantagem que orienta qual posição o sujeito
poderá ocupar no campo. Percebe-se que a influência familiar para a música é um fator
preponderante no que se refere ao gosto musical e as escolhas posteriores. Os capitais
adquiridos no percurso também são apontados, a partir deles os agentes se situam no campo e
assim, de forma quase que inconsciente, eles foram se tornando o que são.
68
56
Algumas músicas estão disponíveis para serem ouvidas gratuitamente no perfil de Marcos Maia no myspace
em < http://www.myspace.com/marcos.maia/music > Acesso em 07/09/2012.
57
Texto fornecido pelo autor. Disponível em: <http://www.myspace.com/marcos.maia>. Acesso em 01 Jul.2012.
69
58
O movimento massa-feira reuniu no Teatro José de Alencar em Fortaleza entre os dias quinze e dezoito de
março de 1979, mais de duas centenas de artistas cearenses numa verdadeira confraternização musical.
Aglutinou vários processos de criação, compositores, músicos e intérpretes, emergindo como um momento de
renovação e ampliação dos espaços musicais. Tendo como produtor geral Ednardo e como coordenador
Augusto Pontes, o movimento culminou com a gravação de um álbum duplo na Épic Gravadora CBS-Rio, sob
a direção artística, produção e estúdio de Ednardo, uma co-produção de Augusto Pontes e coordenação musical
de Rodger Rogério, Petrúcio Maia e Stálio Valle. Informação disponível em
<http://musicadoceara.blogspot.com.br/2007/05/massafeira-livre.html> Acesso em: 06 Jul. 2012.
70
Isso leva a constatar que o fato de ter tido esse ambiente musical favorável já no
convívio familiar, contribuiu para um maior grau de intimidade com o currículo e o universo
musical do CMAN. Essa afirmação está associada à ideia de Bourdieu (2012), que relaciona a
diferença no resultado escolar em crianças de diferentes classes sociais, a forma desigual
como ocorre a distribuição do capital cultural. Esse ponto de vista nos é apresentado pelo
referido autor como uma ruptura, tanto com os pressupostos que consideram o êxito ou o
fracasso escolar efeitos de aptidões naturais, quanto com a teoria economicista, que relaciona
esses resultados com o investimento educativo em dinheiro e o tempo dedicado ao estudo.
Para Bourdieu (2012) os economistas ao lançarem suas interrogações sobre a relação entre a
"aptidão" (ability) para os estudos e o investimento nos estudos, provam ignorarem que a
"aptidão" ou o "dom" são também produtos de um investimento em tempo e em capital
cultural (Id.,2012).Nessa perspectiva não poderíamos deixar de alertar para a contribuição que
o ensino pode trazer para a reprodução social, considerando que não é apenas o investimento
monetário ou tempo que determina o êxito escolar. Devemos considerar que a transmissão
doméstica do capital cultural é um importante parâmetro que não deve ser negligenciado,
desse modo Bourdieu (2012) ensina que:
Mediante o que nos foi apresentado, na análise da entrevista com Marcos Maia
constatamos que o aprendizado musical já houvera se iniciado antes do CMAN, por meio do
convívio familiar. Os estímulos e oportunidades contribuíram significativamente para oferecer
a esse agente um maior nível de intimidade com a linguagem e os códigos exigidos nas
instituições de ensino. Em uma análise condizente com a praxiologia de Bourdieu, podemos
afirmar que a transmissão doméstica do capital cultural, o habitus, os investimentos, o tempo
e as oportunidades foram determinantes no percurso formativo de Marcos Maia. Nessa
perspectiva compreendemos que não foi o “dom” que favoreceu os melhores rendimentos, em
parte foi o acesso ainda cedo a um capital cultural específico que facilitou um maior grau de
intimidade com o que estava sendo ensinado no espaço escolar. Esse fato é constatado pelo
próprio Marcos Maia quando ele relata sobre o seu ingresso no CMAN:
Então minha mãe é que levou para me matricular, e foi uma experiência
interessante porque foi um mergulho numa outra família, num outro lar,
numa outra casa, com outro universo sonoro. Então como eu já tinha, já
vinha de um lar com um ambiente sonoro, não foi muito difícil me adaptar,
foi uma situação muito semelhante ao ambiente que eu já vivi [...] (Marcos
Maia).
A exposição anterior orienta que não basta apenas habitar as instituições para se
apropriar delas na prática. O habitus que é constituído ao longo de uma história exerce papel
fundamental na apropriação, reativação e transformações desses espaços. O que nos é
72
apresentado por Marcos Maia confirma essa afirmação. Ele foi submetido a um convívio que
desde a infância lhe proporcionou a aquisição de saberes que mais tarde, lhe dariam a
possibilidade de se apropriar na prática do que estava sendo ensinado no espaço escolar. Esse
habitus musical permitiu não apenas uma maior afinidade com o currículo, mas também a
possibilidade de negá-lo num dado momento em que foi buscar outras vertentes que não
estavam sendo oferecidas no ambiente do CMAN. Exemplo disso é a prática em guitarra
elétrica, os outros gêneros musicais que esse agente queria explorar, mas que não encontrava
abertura no currículo do conservatório.
O fato é que esse agente não ocupa a sua posição no campo por acaso. Tendo um
habitus que lhe permitiu se apropriar sem estranhamento daquilo que estava a disposição nas
instituições pôde habitar, se apropriar delas e modificar uma maneira de pensar o violão na
universidade. A colocação que fazemos tem como base o desejo desse agente em tocar música
popular, criar um bacharelado em violão popular, algo que ainda é restrito nas universidades
brasileiras. Quando falamos do estudo violonístico em um curso de bacharelado, a tradição é
que prevaleça o repertório tradicional europeu. Esse dado reforça o que nos foi dito por
Bourdieu no que concerne e a apropriação, revisão e transformação das instituições.
A presença no CMAN e o curso de licenciatura em música da UECE permitiram a esse
agente, por meio de um capital escolar e acadêmico adquirido e incorporado nesses espaços,
diferenciar-se de outros agentes do campo que percorreram caminhos diferentes. Bourdieu
(2004) nos conta que “aquilo que define a estrutura de um campo num dado momento é a
estrutura da distribuição do capital científico entre os diferentes agentes engajados nesse
campo” (BOURDIEU, 2004, p. 26). Nessa perspectiva se torna cada vez mais necessário
pensar maneiras de democratizar o acesso à educação. Trata-se de não apenas favorecer o
acesso à escola, mas de possibilitar verdadeiramente ao educando o contato com novas formas
de ver e conhecer o mundo, por meio do conhecimento que se constrói e reconstrói nas
relações sociais saudáveis, em ambientes favoráveis a emancipação humana.
Sobre o violonista e professor de violão Marcos Maia entendemos que a posição que é
ocupada por esse agente no campo violonístico não se deu pelo simples fato de ter um dom. A
seguinte fala nos esclarece o momento do ingresso no conservatório e como se deu o processo
de aquisição de alguns capitais, como as aulas semanais de violão com professor José Mário
de Araújo, as de teoria musical, coral e musicalização.
Então 1975 foi o ano que eu ingressei no conservatório, onde eu passei a ter
aulas semanais de violão com o professor José Mário de Araújo, tinha aula
de teoria musical com a professora Keite Lage, já falecida também, tinha
73
Futuramente isso iria contribuir para esse agente ocupar o seu espaço, já que esses
saberes adquiridos por meio de uma instituição lhe proporcionariam um maior
reconhecimento no campo musical cearense. Vale ressaltar também que antes do ingresso na
escola ele teve um período de aulas com seu irmão e um ambiente musical favorável no seu
lar. Desse modo podemos afirmar que o habitus adquirido no convívio familiar exerceu papel
importante no que se refere ao grau de intimidade desse agente com o aprendizado musical no
CMAN e posteriormente no Curso de Licenciatura em Música da UECE.
Em decorrência do fato de Marcos Maia ter tido esse contato prévio com a música
antes da escola, ele nos relata que sempre se questionou sobre o porquê de não poder estudar
música no seu colégio e para essa finalidade ter de procurar outra escola.
[...] era uma coisa que eu nunca entendia, porque que eu precisava ir para
outra escola pra estudar música, por que eu não podia estudar esta música
também no meu colégio, juntamente com as outras disciplinas? Matemática,
português, geografia, etc. Por que eram duas escolas diferentes? (Marcos
Maia).
O educador musical inglês Swanwick (2003) afirma que “a educação musical não é
problemática até que venha à superfície em escolas e colégios, até que se torne formal,
institucionalizada” (p. 50). Ele também alerta para o fato de que aqueles que aprendem
música nos espaços não escolares podem copiar alguns padrões de gravações, perguntar aos
amigos sobre padrões de acordes ou digitações, aprender por imitação. Para ele “a educação
formal pode não ser necessária, embora para alguns esses sistemas formais possam ser pontos
de acesso cruciais” (SWANWICK, 2003, p.51). A exposição de Swanwick (2003) nos leva a
considerar que de fato, a educação musical nos espaços formais pode ser para alguns um
ponto de acesso crucial, mas não apenas ao aprendizado musical como ele tem a intenção de
afirmar. Nossa leitura nos leva a constatar que o aprendizado musical de Marcos Maia no
meio familiar e posteriormente em outros espaços informais seriam insuficientes para que ele
se tornasse professor de violão do Ensino Superior. O fato de ele ter cursado o CMAN foi
importante num dado momento, mas o título adquirido em uma instituição de Ensino Superior
é que foi fundamental para o seu ingresso como professor nessa mesma modalidade de ensino.
Sobre isso ele nos conta:
[...] a licenciatura permite que você faça concursos para ensinar, e coincidiu
que quando eu terminei o curso da UECE, houve a abertura de um concurso
74
Como vimos o título de licenciado em música é que permitiu a esse agente prestar
concurso público para professor da disciplina de prática instrumental. Nesse momento é
possível perceber que as instituições também ocupam posições distintas no campo. O título
que seria obtido ao concluir os estudos no CMAN seria insuficiente para que Marcos Maia
pudesse prestar o concurso público que foi a via de acesso para o seu ingresso como professor
de violão da UECE.
O agente em questão não houvera concluído o curso no CMAN em virtude de não ter
se adaptado ao modelo daquela instituição, questão essa que iremos abordar adiante. O fato é
que isso não chegou a lhe trazer prejuízo no que se refere à atuação profissional como músico.
Dito em outras palavras, é possível atuar no campo musical em alguns espaços sem os títulos
e os reconhecimentos dados por algumas instituições. No caso específico de ocupar a posição
de professor universitário, é fundamental inicialmente ser estudante de uma universidade, se
submeter ao seu currículo e adquirir o diploma. Vale lembrar que ao mesmo tempo em que a
universidade tem do poder de consagração, ela também possui os seus rituais e suas regras
específicas, o que faz com que aqueles que queiram fazer parte dela, a ela se submetam. Dessa
forma existe uma hierarquia e a posição a ser ocupada pelo agente estará de acordo com a
posse de capital herdado e adquirido.
Nesse caso o habitus incorporado se choca com o conteúdo programático que deveria
ser apreendido em uma instituição dotada de um currículo específico. A música popular já
estava muito presente na vida de Marcos Maia, assim como a vontade de estar em um
ambiente musical que lhe proporcionasse outros aprendizados. Paralelo a essa realidade o
CMAN não abria espaço para a música brasileira, a exceção eram os choros tocados ao
violão, mas isso era pouco para a pluralidade musical que era buscada pelo agente em
questão. Como já havia um gosto incorporado mediante experiências musicais prévias, o
currículo fechado a novas possibilidades contribuiu para a saída do agente daquela instituição.
A seguinte colocação nos faz refletir sobre o papel de casa na formação dos princípios
geradores do gosto e dos julgamentos que fazemos dele:
O espaço habitado – e em primeiro lugar a casa – é o lugar privilegiado da
objetivação dos esquemas geradores e, pelo intermédio das divisões e das
hierarquias que estabelece entre as coisas, entre as pessoas e entre as
práticas, esse sistema de classificação feito coisa inculca e reforça
continuamente os princípios da classificação constitutiva do arbitrário
cultural (BOURDIEU, 2009, p.126).
Um fato relevante é que o modelo conservatorial por muito tempo esteve restrito a um
ensino tutorial e com finalidade de formar virtuoses. Nessa perspectiva buscavam valorizar os
mais dotados de aptidões ou dito de outra forma, dom. Essa forma de compreender se choca
com a inclusão da música popular no conservatório já que:
Outro ponto relevante no percurso formativo desse agente é o fato dele ter decidido
deixar de estudar no conservatório para se dedicar a guitarra elétrica. A influência do seu
irmão Zé Maia é mais uma vez apresentada pelo agente como determinante; “[...] o Zé Maia
tocou violão, tocou guitarra, violino, bandolim e eu também fui me interessando pela guitarra
[...]” (Marcos Maia).
Foi possível perceber que eventos importantes que ocorreram na vida desse agente e
que ganharam relevância no seu percurso formativo são relacionados a pessoas importantes
para ele. Em um momento posterior o nascimento do seu filho acarretaria em outra mudança
significativa, já que a partir desse momento ele não moraria mais com os pais e teria de buscar
estratégias de sobrevivência. Dessa forma ele passou a desempenhar outras atividades
profissionais como músico e sobre esse momento ele nos conta:
Isso tem uma influência direta na minha vida profissional porque eu ainda
estava em formação, eu ainda fazia a licenciatura em música porque após o
abandono do conservatório, quando eu concluí os estudos do colégio, fiz
vestibular, entrei no curso de música, no curso superior, licenciatura em
música da Universidade Estadual do Ceará. Então, não tinha ainda um
emprego, estava ainda em formação, fui para as alternativas profissionais do
músico, aquelas alternativas: tocar na noite, acompanhar artistas, ir para
estúdio, gravar, e todas essas atividades que o músico se desdobra para poder
pagar as contas (Marcos Maia).
É fato que o habitus pode influir nas escolhas e nos níveis de intimidade que se tem
com os capitais, mas o que diferencia indivíduos que tiveram condições de vida similares são
os eventos pessoais que são frutos de um percurso. As alternativas profissionais do músico
que nos são apresentadas por esse agente como tocar na noite, acompanhar artistas ou gravar
também compõem o seu currículo, já que consideramos que o processo formativo se dá nos
múltiplos espaços e a partir de experiências diversas.
O que também nos chamou atenção na entrevista desse agente foi a dicotomia
apresentada por ele entre ser artista músico e professor.
77
59
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
60
Centro Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
79
Quando eu fui fazer o vestibular, o colégio que eu estudei foi o ___ 61,
localizado na Aldeota, Fortaleza. Na lista de cursos disponíveis e que foi
fornecida por eles eu não vi música. E foi uma coisa que até hoje eu não
entendo muito bem, eu não sabia que existia um curso superior de música
em Fortaleza. Eu não fiquei sabendo através do meu colégio, meu colégio
não informou isso (Marcos Maia).
E aí o que foi que eu fiz; uma coisa engraçada: Eu não queria fazer nada,
você tem que fazer vestibular pra alguma coisa: Quando eu olhei assim,
bom: - Eu não quero fazer nada, não quero ser engenheiro, não quero ser
médico, e não tem música. Aí eu lembro que escolhi... – tem que fazer
alguma coisa não é? Mundo capitalista. – Ah já sei, vou fazer Engenharia de
Pesca, de repente vai rolar umas praias, foi o meu pensamento: - É uma coisa
menos traumatizante, é, vou fazer Engenharia de Pesca. Aí fiz o vestibular,
tirei o primeiro lugar [...] (Marcos Maia).
61
Por questão ética optou-se por não mencionar o nome do colégio, considerando que essa informação não é
relevante para a pesquisa, mas o fato em si.
80
Diante do que já foi exposto aqui, Marcos Maia ingressou na graduação. Antes disso
vale lembrar que ele teve os seus primeiros contatos com a música no ambiente familiar,
posteriormente foi aluno durante cinco anos do CMAN, após esse período teve uma série de
experiências profissionais como músico. O ano de 1988 marca o ingresso desse agente como
professor do Ensino Superior da UECE por meio de concurso público. Três professores
estavam presentes e um candidato de fora, no final Marcos Maia ficou com a vaga para
ensinar a disciplina de prática instrumental (violão).
Os capitais necessários para pleitear a vaga de docente foram adquiridos ao longo de
um percurso. Nesse caminho a música popular, o choro, o jazz e a música erudita estiveram
presentes. Quero alertar que a música popular que tanto esteve presente no convívio familiar,
contribuiu para a sua saída do conservatório e ainda hoje está presente na prática desse agente.
Uma prova disso é o seu desejo em criar um bacharelado em violão popular, desejando
inclusive levar trabalho semelhante para um estudo em nível de doutorado.
81
Francisco Weber dos Anjos é violonista e professor de violão da UFC desde 2009.
Natural de Fortaleza-CE estudou violão com Rogério Lima na Sociedade Musical Henrique
Jorge, com José Mário de Araújo no CMAN e Marcos Maia na UECE. Concluiu a
licenciatura em música na UECE no ano de 1999, e na mesma instituição o mestrado em
história 62. Antes do ingresso como professor efetivo de violão da UFC atuou como professor
substituto na UECE entre os anos de 2001 e 2010, e no ano de 2005 foi aprovado mediante
concurso público para a vaga de docente na UERN, permanecendo nesta universidade entre
2006 e 2009. Atualmente dentre outras atividades, Weber dos Anjos é coordenador do
PIBID 63 música da UFC campus Cariri.
A história de envolvimento com a música, e mais especificamente com o violão por
parte desse agente começou ainda no ambiente familiar. O professor Weber dos Anjos conta
que em sua casa havia um violão e que ele costumava "brincar" com o instrumento, mas sem
haver ainda alguma intenção clara de aprendizado. Paralelo a isso suas experiências musicais
ocorreram por meio da audição de discos de vinil. Esse momento é descrito pelo próprio
agente da seguinte maneira:
62
Título: Ramos Cotoco e seus "Cantares Bohêmios": trajetórias (re) compostas em verso e voz (1888 -
1916),Ano de Obtenção: 2009.
63
Programa institucional de bolsa de iniciação à docência.
82
pensamento de Howard (1984) que atenta para o fato de que a herança pode existir fora dos
caracteres humanos gerais. Podemos afirmar desse modo que a hereditariedade é algo que não
se apresenta de forma individual, nem muito menos se manifesta a partir de um indivíduo. A
herança familiar chegou a conduzi-lo de forma inconsciente a um percurso que possibilitou
outros contatos e acabaram consolidando um gosto musical que já havia sido despertado, o
que de certa forma se refletiria nas futuras escolhas do agente. O trecho a seguir esclarece que
aquilo que somos é fruto de caracteres herdados socialmente:
Essa afirmação é importante perante a resposta do agente com relação ao que este
costumava ouvir. Ele relatou que havia um ambiente favorável para a escuta musical; a mãe
gostava de música e lhe proporcionou as primeiras experiências musicais, o seu pai também
era um apreciador, os seus tios, havia também uma prima. A influência familiar aparece como
uma importante realidade para a constituição do habitus desse agente, posteriormente isso se
refletiu na sua trajetória, nas escolhas, nos gostos musicais. As primeiras experiências
musicais aparecem associadas aos parentes, o que nos faz pensar em uma herança familiar de
capital simbólico; nesse caso específico os discos, o ambiente musical, o convívio com outras
pessoas que gostavam de ouvir música. A seguir transcrevo o relato do professor Weber dos
Anjos que conta sobre um momento importante que remete a ideia de habitus:
64
Essa música está contida no álbum “Fruto proibido” da banda “Tutti Frutti”; lançado pela gravadora Som
Livre em junho de1975. Esse foi o quarto álbum da cantora Rita Lee e o segundo dela com a banda “Tutti
Frutti”. A música em questão está escrita no disco com a grafia “Esse tal de rock enrow” e é produto de uma
parceria entre Rita Lee e Paulo Coelho. O álbum teve uma vendagem inicial de 200 mil cópias e está entre as
obras mais significativas do rock no Brasil. Disponível em:
<http://pt.wikipedia.org/wiki/Fruto_Proibido_(%C3%A1lbum_de_Rita_Lee)>. Acesso em 04 Jul. 2012.
65
Essa música faz parte do disco “Ronnie Von 2” de 1973 e de uma coletânea intitulada “A voz de Ronnie Von”
de 1981. Após várias pesquisas não foram encontrdas maiores detalhes com relação a ficha técnica desses
álbuns.
84
Após essas primeiras experiências sonoras a música iria se tornar algo significativo na
vida desse agente. Podemos constatar que nesse momento já havia um gosto musical
85
incorporado, o que fez com que por conta própria ele tenha procurado ingressar em uma
escola de música. Esse momento é descrito pelo agente como um marco, já que de acordo
com o seu relato, foi a partir daí que a música tomou um espaço ainda maior na sua vida.
Sobre esse momento ele nos conta que:
[...] quando eu entrei em uma escola de música ouvia rock e tinha vontade de
tocar guitarra; eu busquei a música por causa do rock. Eu tinha aquele sonho
de adolescente, de querer ser um rock star, tocar em uma banda e viver
daquilo. Bom, eu sempre ouvi que o cara que queria ser um bom guitarrista
tinha que estudar violão clássico, eu acabei ficando com isso na cabeça.
Primeiro eu procurei os métodos, nesse tempo tinha as livrarias sendo que a
parte de música era muito reduzida. Mesmo assim encontrei um método de
violão que tinha as músicas clássicas que eu queria e era com partitura.
Comprei esse método e tentei aprender sozinho; eu entendia a lógica, mas
era um sacrifício, eu escrevia a nota em cima de cada bolinha (sol, dó, ré), e
acabei achando aquilo muito penoso, foi quando decidi procurar uma escola
(Weber dos Anjos).
66
A sociedade musical Henrique Jorge foi fundada em 17 de setembro de 1950 pelo então governador do Estado
do Ceará Paulo Sarasate. A escola está situada na Rua Sólon Pinheiro nº60 no Centro em Fortaleza-CE.
67
Rogério Felismino Lima é atualmente professor e diretor e proprietário da Escola de música Tocata.
86
68
Ilustre professor de violão falecido em 2011. É autor de livros como ”Ciranda das seis cordas”, “Violão, um
olhar pedagógico”, “Iniciação ao violão” e “Curso progressivo de violão”. Suas obras foram publicadas no
Brasil e exterior e ao longo de sua vida exerceu intensa atividade didática. Disponível em:
<http://hpviolao.sites.uol.com.br/>. Acesso em: 05 Jul. 2012.
87
69
Sérgio Abreu junto com o seu irmão Eduardo Abreu foram considerados o maior duo de violões do mundo.
Com o término do grupo Sérgio passou a se dedicar a construção de violões.
88
O relato anterior revela que existia uma dúvida sobre o curso a ser escolhido no
momento de prestar vestibular. O convívio com outros músicos em um espaço que agregava
outros agentes foi importante no momento da escolha. Naquele momento o objetivo era a
performance musical já que o agente ainda não sabia no que consistia a diferença entre um
curso de licenciatura e bacharelado em música 72. Sua fala também nos faz constatar que essa
diferença está clara na sua maneira de pensar atualmente.
70
Durante a década de 1970 até o começo da de 1980 a cidade de Porto Alegre se transformava na capital
mundial do violão. Tal fato se dava em virtude dos seminários de violão que ali aconteciam e que reuniam os
mais importantes nomes do violão no mundo.
71
Violonista australiano que se estabeleceu na Inglaterra. Muitos compositores escreveram para ele. Fez extensas
turnês, interessa-se pela combinação do violão com os recursos eletrônicos e vale-se de idiomas populares e
não ocidentais. Fonte: Dicionário Groove de Música.
72
A diferença consiste principalmente nos objetivos principais das modalidades de licenciatura e bacharelado. A
primeira tem como foco principal formar o professor de música, a segunda o músico voltado para a
performance musical de excelência.
89
Nessa fala percebemos que o agente em questão teve uma importante experiência,
relacionada ao fato de poder tocar violão coletivamente. Isso aponta para uma aprendizagem
no instrumento de forma coletiva, algo que se tornaria mais tarde relevante na sua maneira de
ensinar violão. Por meio dessa atividade ele passou a receber uma bolsa que lhe possibilitava
fazer outros investimentos. Como ele mesmo nos fala, foi a partir daquela experiência como
bolsista da FUNCAP que ele percebeu que estudar valia a pena, e que junto a isso poderiam
vir recompensas.
O período em que Weber dos Anjos esteve na graduação foi de seis anos e como
relatado por ele, muita coisa aconteceu. Nesse tempo ele prestou concurso e ingressou como
guitarrista na banda de música do corpo de bombeiros. Sua lembrança se remete aos ensaios,
aos bailes em que ele tocava, mas um detalhe que o agente fez questão de frisar foi o fato de
que ele sobrevivia de música, e que a sua carteira atestava uma função profissional; a de
sargento músico. O fato de prestar concurso público mostrou um desejo do agente de viver de
música, o relato sobre esse fato, nos mostra que isso foi de fato importante, era um estilo de
vida 74 que estava em jogo. Sobre esse fato a citação de Bourdieu (2003) nos faz pensar que as
tomadas de decisão dependem do habitus e que este foi importante na escolha feita naquele
momento, o que acarretaria numa mudança significativa no estilo de vida e na nova posição
que este passaria a ocupar, a de sargento músico.
73
Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
74
O estilo de vida para Bourdieu (2003) é uma expressão que se relaciona diretamente com a condição de
existência do agente.
90
Apesar dessa nova função que lhe dava estabilidade, o que acarretou em uma posição
diferente no campo, ele concluiu a graduação em música. Após o seu término é possível
afirmar que havia um capital acadêmico acumulado, experiências significativas relacionadas
ao ensino e aprendizagem de violão, a performance musical, atestada por meio de uma
instituição de fomento a pesquisa que é a FUNCAP.
Esses capitais adquiridos contribuíram para o interesse por parte do agente de cursar
um mestrado interinstitucional, que ocorreu mediante um convênio estabelecido entre a
UECE e a UFBA 75. Houve uma tentativa de ingresso, mas não sem sucesso. Apesar disso ele
conta que não desistiu de cursar uma pós-graduação, foi aí que ele tomou conhecimento de
uma especialização em arte educação pelo CEFET, na qual fez a seleção e pôde dessa forma
ingressar no curso.
O momento a que nos referimos anteriormente marca outro evento importante no
percurso desse agente, o do seu ingresso no Ensino Superior como professor substituto. Ele
relata que anteriormente já havia prestado outra seleção, tendo perdido a vaga para um
mestrando. A experiência de estar em uma pós-graduação foi importante para o seu êxito
nessa nova seleção, e assim se deu o seu ingresso em uma instituição de Ensino Superior, no
caso em questão a UECE. Essa universidade viria a exercer um papel importante no percurso
desse agente, pelo fato dele ter passado alguns anos como professor substituto e ainda ter
obtido nesta mesma instituição o título de mestre em história. Uma questão que o leitor
poderá levantar é do porque dele ter escolhido fazer mestrado nessa área. Ele relata que isso
se deu a partir da sua experiência como docente no Curso de Licenciatura em Música da
UECE, onde ele ministrou a disciplina de música brasileira. Do ponto de vista do agente, ele
buscou aliar essa experiência prévia a um tema de seu interesse, acarretando dessa forma uma
ligação entre história e música.
Antes da obtenção do título de mestre em história, a titulação de especialista permitiu
ao agente em questão prestar um novo concurso público, dessa vez para professor efetivo de
violão da UERN. Esse momento é lembrado pela dificuldade, tendo em vista que ele estava
mais distante da área da performance, em virtude dos caminhos profissionais que estavam
sendo seguidos que, embora ligados a música, não se relacionavam diretamente com o estudo
do instrumento. Vale lembrar que um concurso público para professor de violão consta de três
fases; a primeira onde o candidato faz uma prova escrita, a segunda onde o candidato ministra
75
Universidade Federal da Bahia.
91
uma aula seguida da performance no instrumento, e por último uma prova de títulos. É
possível para nós afirmar que o capital outrora adquirido como as aulas de violão, a
experiência didática, o fato de já ter prestado concurso público, as experiências no grupo de
violões da UECE, contribuíram para que esse agente obtivesse êxito nesse novo concurso.
Aliado a isso vem o capital acadêmico; na época o candidato já havia sido bolsista, tinha o
título de especialista em arte educação e publicado alguns artigos científicos.
O ingresso como docente na UFC veio alguns anos depois. Apesar de Weber dos
Anjos já ser professor efetivo em uma universidade, a UERN estava localizada em Mossoró, a
uma distância de aproximadamente 250 km de Fortaleza. Havia alguns empecilhos como o
fato da sua residência estar em Fortaleza e de sua esposa ser funcionária pública do Estado do
Ceará. O concurso da UFC no Cariri permitiria o ingresso em uma instituição no Ceará, o que
também permitiria a transferência de sua esposa, tendo em vista que a mudança seria para o
mesmo Estado. Esse momento é marcado pelo fato de que já havia muitos capitais adquiridos
ao longo do seu percurso; os anos como docente no Ensino Superior atuando como professor
de violão, o título de especialista, de mestre 76e os vários artigos publicados.
O ingresso como docente da UFC se deu a partir de um percurso, sendo este até certo
ponto consequência do habitus, que por sua vez gera estilos de vida condizentes com esta
categoria. Nossa última indagação ao agente objetivou responder como ele compreende que o
seu percurso influi na sua prática docente. A seguir transcrevo a fala do agente:
76
Parte das exigências para esse concurso era o candidato ser detentor do título de mestre.
77
Em um momento da entrevista o agente nos fala de uma tradição oral associada ao ensino de violão. Essa se
relaciona a forma como o professor pensa nos aspectos posturais, de execução, interpretação, os exercícios para
o desenvolvimento técnico do violonista, dentre outros. Parte desse conhecimento ele adquiriu por meio de
seminários de violão, em um deles, citado pelo próprio agente, o I Festival Internacional de Música realizado
em Natal-RN, no ano de 1999.
92
Em casa meus irmãos ouviam muito Pink Floyd 78, assim como outras bandas
inglesas, mas de todas Pink Floyd era a que eles ouviam mais, e isso foi uma
coisa que me marcou profundamente desde criança até hoje. Lembro
também de um coral de igreja que, embora a orientação não fosse das
melhores, a iniciativa era muito boa. A ideia era juntar crianças para cantar
na missa do domingo de manhã (Marcelo Mateus).
78
Banda de rock inglesa que vendeu mais de 200 milhões de cópias e que foi fundada no ano de 1965. Sobre
esse grupo consultar também consultar: <http://www.pinkfloyd.com/> . Acesso em: 07/09/2012.
94
Desse modo pode-se compreender que essa maneira de pensar, considera a relação
entre as práticas, a forma de falar, pensar o mundo, e os princípios que as originaram. Essas
disposições se atualizam e são reproduzidas na medida em que se interioriza o que é externo e
se exterioriza o que já está interiorizado. Quando o agente diz que começou a ouvir música
em casa e que essa experiência se faz presente até hoje, constata-se que também a partir daí
teve origem um habitus, entendido aqui como uma categoria capaz de explicar as práticas,
conforme ensina Bourdieu (2003):
Considerando que antes mesmo de chegar à escola o sujeito passa quase todo o seu
tempo no convívio familiar, e que no período escolar a influência da família ainda se exerce
no cotidiano do indivíduo, é possível afirmar que o aparecimento do habitus se deve muito a
essa instância formadora. Assim aparecem articulados, o habitus, os capitais e o campo; este
último um espaço de lutas, obrigações, regras e exercícios de poder.
95
A família desse agente exerce outro papel importante; eles o presentearam com o seu
primeiro violão de boa qualidade 79, esse fato é descrito da seguinte maneira:
Além da influência dos meus irmãos com as bandas que eles ouviam minha
mãe e meu irmão mais velho que me levou ao conservatório sempre
apoiaram muito [...] a minha mãe o meu irmão, e o professor José Mário,
foram eles que me presentearam com o meu primeiro violão bom (Marcelo
Mateus).
A partir desse contato com o universo musical e o apoio familiar o agente em questão
foi estudar no CMAN. A partir desse momento o professor José Mário de Araújo também
exerce uma importância significativa no percurso desse agente. Além das aulas de violão que
se converteram em capitais importantes80, no que concerne ao fato de que ele futuramente
viria a ser professor de violão em uma IES 81, ele ajudou na compra de um bom violão, algo
fundamental para o desenvolvimento de um violonista. Antes de chegar ao conservatório para
estudar música, é importante frisar que seu ingresso na instituição se deu com o incentivo do
seu irmão, a fala seguinte discorre sobre esse momento:
79
É comum no início do aprendizado de violão que o instrumento não seja de boa qualidade. Em um momento
da entrevista ele inclusive relata isso, que na primeira aula com o professor José Mário de Araújo, este lhe
alertou que adquirisse outro instrumento. O desenvolvimento do violonista depende também da qualidade do
seu instrumento.
80
Vale frisar que as aulas no CMAN permitiram ao agente tomar posse de um capital institucionalizado, algo de
suma importância para o reconhecimento perante as instituições.
81
Instituição de Ensino Superior.
96
[...] eu tinha quase 15 anos, meu irmão mais velho sempre insistia que eu
fosse ao Conservatório, mas eu acabava não indo. Essa escola era a
referência dele no ensino de música e um dia nós estávamos passando perto
e ele disse: vamos parar aqui. E nessa ocasião eu conversei com o Mário, o
professor José Mário de Araújo. Na época tinham as opções de estudar com
o José Mário e o Marco Túlio. Lembro que o próprio Zé Mário indicou que
eu estudasse com o Marco Túlio, mas eu queria estudar o que o pessoal
chamava de violão clássico, e por isso eu me interessei em estudar com o Zé
Mário (Marcelo Mateus).
Esse fato foi significativo no percurso do agente em questão. Naquele momento ele
era levado pelo irmão para estudar em uma escola que era considerada de referência no ensino
de música da cidade de Fortaleza. A compra de um violão fora outro importante capital,
objetivado nesse caso em um suporte material, possível de ser transmitido na sua
materialidade. A apropriação daquilo que envolve esse bem e suas utilidades é que se torna
intransferível, dependendo nesse caso de outros aspectos ligados a capitais internalizados
previamente. Compreende-se nesse caso que:
Para possuir máquinas, basta ter capital econômico; para se apropriar delas e
utilizá-las de acordo com sua destinação específica (definida pelo capital
científico e tecnológico que se encontra incorporado nelas), é preciso dispor,
pessoalmente ou por procuração, de capital incorporado (BOUDIEU, 1979,
p.77).
Na fala do agente mais uma vez nos deparamos com as primeiras experiências
musicais que se fazem presentes. Ao integrar o coral da igreja ele teve a possibilidade de
conhecer um grupo musical católico que chamava a sua atenção pelos arranjos, que eram na
opinião dele bem elaborados. O violonista embora tocasse de palheta 82 fazia os acordes e a
melodia simultaneamente. O agente por meio do seu relato nos faz constatar que o resultado
sonoro lhe despertava muito interesse. Com 15 anos de idade ele já tinha algumas referências
musicais, e o violão popular estava associado a uma má execução 83. A escolha pelo violão
clássico se deu em virtude da sua maneira de percebê-lo, associando-o a um estilo que exige
um maior grau de sofisticação e aprimoramento técnico. No momento da escolha ele também
se remete ao violonista que tocava com uma boa execução musical na igreja, assim, acaba
optando pelo estudo do violão clássico. Dessa forma é possível constatar que o habitus
outrora incorporado por meio da família e de uma trajetória social, exerceu forte influência na
escolha do agente para estudar violão clássico.
A partir da sua escolha o agente passa a estudar violão com o professor José Mário de
Araújo. Esse fato ficou marcado no percurso profissional do agente pelas influências musicais
que estão presentes até hoje na sua maneira de tocar. A seguinte fala, que discorre sobre a
experiência de estudar no CMAN com o professor José Mário de Araújo, atesta nossa
explanação:
Foi muito bom porque estudar com o Mário foi uma coisa sensacional, o tipo
de toque que eu tenho e o jeito de tocar, isso eu devo muito a ele, além do
gosto de ouvir música (Marcelo Mateus).
82
A técnica do violão tradicional não consiste em tocar de palheta, ela propõe o toque com os dedos indicador,
médio e anelar (mão direita). A maneira de tocar utilizando os dedos e palheta é chamada de técnica híbrida.
Essa técnica específica foi abordada como objeto de estudo na dissertação de mestrado de Marcos Maia da
Silva. Disponível em: <http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=vtls000432841&opt=3>.
Acesso em 15/05/2012.
83
A referência é descrita por ele; tratava-se dos amigos que tocavam violão popular. Sabemos que as fronteiras
entre violão clássico e popular não são bem estabelecidas. Existe uma distinção relacionada ao tipo de
repertório que é tocado (tradicional ou de música popular). O fato de tocar música popular não quer dizer que
exista por parte do intérprete uma má execução. Exemplos de violonistas que tocam música popular com uma
ótima execução não são difíceis no Brasil, a exemplo: Marcus Tardelli, Paulo Bellinati, Marco Pereira,
Alessandro Penezzi, dentre outros.
98
Essas preocupações em torno do envolvimento com a música por parte dos jovens, da
intenção musical, da prática de atividades como a composição, refletem uma maneira de
pensar do hoje professor Marcelo Mateus. Ele considera importante uma escuta ativa e se
mostra reflexivo diante da metodologia adequada ao ensino musical. No trecho a seguir ele
tece mais algumas críticas, direcionadas ao modelo de ensinar de alguns professores do
CMAN.
Essa crítica é relevante quando pensamos que uma boa escuta pode estar associada ao
fazer musical consciente. O educador musical inglês Swanwick (2003) ensina que o bom
professor de música deve sempre ter a preocupação de despertar a consciência musical do
aluno. Ele assim nos orienta:
99
No meu caso eu percebo hoje que fui ter uma escuta mais apurada quando
comecei a me envolver com o canto coral na UFC. Antes eu me preocupava
muito com aspectos técnicos, mas pouco com os elementos musicais. Em um
dos festivais de violão que eu participei o João Luís 84 ouviu os estudantes
tocarem e eu estava entre eles. O que acontecia é que geralmente ele ouvia
os estudantes tocarem e dizia: - tecnicamente está perfeito, mas vamos fazer
música. Aquilo me deixava intrigado, mas o fato é que ele tentava explicar o
sentido das frases, dar outro sentido a interpretação, e acabava deixando a
música mais agradável de ouvir; isso mudou a minha maneira de pensar
como músico e professor (Marcelo Mateus).
Na fala do agente é possível perceber, que a partir das experiências por meio do canto
coral, ele passa a ter outras preocupações no momento em que se estabelece o discurso
musical. A questão não era mais apenas resolver problemas técnicos relacionados à execução,
mas tornar a música agradável, extraindo dela os recursos necessários para esse fim. Nessa
perspectiva Swanwick (2003) afirma que, “o método específico de ensino não é tão
importante quanto nossa percepção do que a música é ou o que ela faz”(SWANWICK, 2003,
p.58). Para o referido autor “ao lado de qualquer sistema ou forma de trabalho, está sempre
uma questão final – isso é, realmente, musical? Existe um sentimento que demanda caráter
expressivo e um senso de estrutura naquilo que é dito?” (Ibid., p.58).
Relacionando a fala anterior do agente e a citação de Swanwick (2003), é possível
constatar que as experiências de Marcelo Mateus no canto coral da UFC passaram a influir em
uma forma de pensar enquanto músico, professor e violonista. A figura do professor se
apresenta como alguém crítico, que passou a vislumbrar outras formas de aprender e ensinar
84
João Luís de Rezende é um dos expoentes do violão na contemporaneidade. Ao lado de Douglas Lora forma o
“Brasil Guitar Duo”, um duo de violões que tem se apresentado com frequência no palcos do Brasil e exterior.
100
música. Essa nova forma se perceber como músico e de compreender o discurso musical, foi
sendo construída a partir das experiências no CMAN e no coral da UFC. Como professores de
violão Marcelo Mateus aponta dois que foram os principais. José Mário de Araújo no CMAN
e Marco Túlio no período em que esteve no curso de licenciatura em música da UFC.
Pesquisando sobre a vida de José Mário foi possível constatar que antes do
conservatório o ensino de violão se dava por meio dos cursos livres. Ele foi aluno de Oscar
Cirino, um violonista e professor cearense que se dedicou ao ensino do instrumento. Em 1964
ele ingressou no CMAN e após a sua formatura ele fundou a cadeira de violão clássico 85
nessa mesma instituição. José Mário obteve muito reconhecimento como violonista por meio
das suas idas aos Seminários internacionais de violão na Faculdade Palestrina, no Rio Grande
do Sul. No Jornal O Povo de 28 de agosto de 1978, temos o registro de quando se começou a
pensar diferente sobre a postura do violonista em relação ao instrumento em Fortaleza.
Percebemos por meio de outros jornais que o professor José Mário foi uma figura
muito importante no ensino de violão de Fortaleza. Marcelo Mateus que foi um de seus alunos
relata que mesmo entre outros professores de violão seu trabalho gozava de reconhecimento.
Por meio do seu discurso e de outras fontes, foi possível constatar que havia duas maneiras de
pensar o violão e que eram tidas como distintas: o violão clássico e o popular. Nesse relato ele
conta que:
O Marco Túlio incentivava que estudássemos com o José Mário, ele dizia
que isso iria ajudar muito. Mas hoje eu vejo que essa forma de pensar pode
ser um problema, essa maneira de pensar o violão de forma muito separada,
85
Fonte: Jornal Diário do Nordeste de 26/03/1992.
101
o violão erudito e o violão popular. Minha opinião é que isso pode até limitar
o músico violonista. No meu percurso de violonista houve experiências
importantes; a de ter estudado com o Zé Mário, com o Marco Túlio e de ter
tocado no quarteto de violões da universidade, até porque hoje eu também
ensino música em conjunto na universidade, só que eu faço arranjos
específicos para eles. Componho para os alunos pensando em algo mais
agradável de ouvir e ao mesmo tempo fácil de tocar. Com o Zé Mário, o
Marco Túlio e até no quarteto a leitura era o aspecto principal, hoje eu
priorizo a escuta, a técnica exigida é mais simples e a leitura é algo que vem
depois (Marcelo Mateus).
em um importante capital que aliado a outros fatores, foi capaz de se traduzir em uma posição
de domínio que é ocupada pelo agente dentro do campo 86.
As primeiras experiências musicais de Marco Túlio se aliaram a outras posteriores e
juntas, possibilitaram-no transitar com muita desenvoltura enquanto instrumentista, por
diversos gêneros e estilos brasileiros 87. O fato de ser professor da UFC, autor do livro “Para o
violão popular” (1995), de ter realizado a revisão musical e o prefácio da obra “14 peças para
violão” do violonista cearense Nonato Luiz 88, são alguns feitos que apontam para a posição de
domínio ocupada pelo agente no campo universitário. Na obra intitulada Homo academicus,
Bourdieu (2011) aponta alguns indicadores que podem conduzir um agente a ocupar posições
dominantes no campo universitário: O habitus, o capital econômico e cultural, o
estabelecimento de ensino frequentado, o fato de pertencer a uma instituição ou comitê,
participações em bancas de concurso, as citações, publicações, são alguns exemplos.
Antes de chegar à docência do Ensino Superior ocorreram alguns fatos importantes na
vida desse agente. Pensando na relação entre o percurso formativo e o espaço ocupado por ele
no campo, pretende-se defender o argumento de que não é apenas no concurso público que
ocorre a seleção para docente. As oportunidades, os níveis diferenciados de capital adquiridos,
as experiências prévias com situações que tenham relações diretas e indiretas com a escolha
profissional, são alguns fatores importantes que devem ser analisados. Os primeiros contatos
com a música e onde eles se deram é algo relevante para a análise do pesquisador. Pensando
dessa forma é que já no início da entrevista, buscou-se conhecer sobre a maneira como
ocorreram as primeiras experiências com a música. Isso é relatado pelo agente da seguinte
forma:
Foram em casa por meio do meu pai que gostava muito de escutar música, e
eu ficava muito tempo com ele. Foi por meio dele que eu conheci
86
Na obra intitulada Homo Academicus Bourdieu (2011) afirma que os professores universitários estão em uma
posição de relativo domínio no campo da produção cultural. Isso decorre até certo ponto do fato deles
possuírem uma forma institucionalizada de capital cultural, que lhes assegura uma carreira burocrática e
rendimentos regulares, deixando-os assim próximos dos altos funcionários que gozam de respeitabilidade,
condecorações, títulos de oficial de reserva, etc. Pensando dessa forma, é possível afirmar que eles estão em
um lado oposto aos escritores e artistas que se chamam “livres” ou free-lance.
87
O pesquisador faz essa afirmação tendo como base alguns shows do violonista e professor Marco Túlio em
que se fez presente. O agente em questão além de professor da UFC toca em casas noturnas, acompanhando
cantores e outros instrumentistas no cenário musical de Fortaleza.
88
Nonato Luiz é um renomado compositor e violonista cearense, dono de uma obra musical com atualmente
cerca de 540 composições. Seu repertório violonístico contempla desde gêneros e estilos “universais” (valsas,
minuetos, prelúdios, estudos) e estrangeiros (blues, flamenco) até os gêneros tipicamente nordestinos (baiões,
xotes e frevos). Devido ao seu convívio com a música erudita, iniciado na adolescência, e sua admiração
especial pela música barroca, observa-se que, além de todas as linguagens musicais citadas, muitas de suas
peças guardam também fortes relações com esse universo musical. Disponível em www.nonatoluiz.com.br.
Acesso em 06/08/2012.
104
Pixinguinha, Noel Rosa, Lamartine Babo, Ary Barroso. Ele fazia uma
coleção chamada de MPB que eram uns discos que nós escutávamos em uma
radiola de pilha que tinha em casa [...] (Marco Túlio).
Uma análise mediante a praxiologia de Bourdieu não pode deixar de considerar esse
aspecto tão relevante que é a influência familiar. As primeiras experiências e contatos com
determinadas situações orientam o sujeito no sentido de dotá-lo de um senso prático. Este por
sua vez, consiste em um sistema de preferências, de percepções e disposições em torno do que
se faz e de como proceder diante das situações. Ele é capaz de proporcionar a capacidade de
fazer previsões a partir da intimidade que se tem com as regras do jogo – “como escolher
entre um estabelecimento de renome em declínio e uma escola inferior em ascensão?”
(BOURDIEU, 1996). Pensando nesse sentido, o habitus é uma categoria importante dentro
desse processo e traz consigo “[...] a lei de sua direção e de seu movimento, o princípio da
‘vocação’ que as orienta em direção a tal instituição ou a qual disciplina [...]” (BOURDIEU,
1996, p.43).
A origem familiar e o capital adquirido por meio dessas relações são fatores de muita
relevância, para investigar o habitus e o percurso formativo do agente. A posição ocupada no
campo depende em parte dos níveis diferenciados de capitais, das oportunidades e vivências
que somados, são fatores que explicam em parte o porquê das escolhas, dos objetivos
almejados e posteriormente alcançados. Na entrevista realizada junto a esse agente ficou
constatado que havia um ambiente musical muito favorável na família. O pai era arquiteto e
também um grande apreciador de música, tinha coleção de discos e frequentava espetáculos
musicais. O violão era um instrumento apreciado por ele e conforme o relato do entrevistado:
o pai foi a um recital em que se apresentou o violonista Dilermando Reis 89. Sobre esse fato o
agente relata:
Meu pai era arquiteto, mas ele gostava muito de música. Ele se formou na
época no Rio de Janeiro porque não tinha arquitetura aqui, e ele me conta
que lá assistiu a um show do Dilermando Reis, volto a dizer que ele gostava
muito de música embora não tocasse nenhum instrumento. Lembro que ele
disse que no show o Dilermando tocou uma música com o violão deitado e
eu nunca esqueci essa história (Marco Túlio).
Esse evento é descrito pelo agente como algo muito significativo; ele nunca esqueceu
a história de que Dilermando tocou com o violão deitado, tendo inclusive na ocasião da
89
Violonista e compositor. Foi professor de violão do ex-presidente do Brasil Juscelino Kubitschek. Atuou na
Rádio Clube do Brasil e posteriormente na Rádio Nacional. É provavelmente um dos instrumentistas ligados
ao violão mais populares no Brasil. Algumas de suas composições estão disponíveis na internet, sendo
executadas por violonistas consagrados no cenário mundial.
105
entrevista gesticulado a maneira com que o seu pai outrora lhe demonstrou. Diante do que já
foi exposto é possível afirmar que a influência familiar possibilitou ao agente importantes
experiências musicais. A ida do pai a um concerto de Dilermando Reis é relatado como algo
marcante e não por acaso, mais tarde Marco Túlio viria a se interessar pelo violão, se
tornando inclusive em um momento posterior professor desse instrumento. Na entrevista
também foi possível perceber outro momento importante; trata-se das interações musicais
com os colegas que residiam próximo a ele, foi a partir daí que ele começou a tocar
instrumentos musicais. Isso é descrito da seguinte maneira:
Depois, junto com os meus amigos vizinhos de infância, nós tínhamos dois
hobys; jogar futebol e batucar, só que na batucada não tinha instrumento de
corda, aí por conta disso eu comprei um cavaquinho e fui tentar aprender. Eu
só sabia 3 ou 4 acordes e tinha um outro amigo que sabia as letras. Ele ficava
cantando e eu tentando acompanhar. Depois de um tempo teve uma pessoa
que apareceu tocando violão, e quando eu vi o instrumento pela primeira vez
de cara eu tive muito interesse. Depois essa pessoa disse para eu levar o
violão para casa e toquei para o meu pai e minha mãe. Ela me vendo tocar
disse que se eu quisesse aprender eu não ia ser na rua, tinha que ser no
conservatório (Marco Túlio).
Além do pai, o irmão de Marco Túlio é outra influência que marcou o percurso desse
agente. Ele relata que com o irmão foi assistir ao primeiro show, na mesma fala também
revela um pouco sobre como ele aprendia as músicas no violão, e de como foi sendo
incorporado o seu gosto musical.
O primeiro show que eu fui na minha vida foi com o meu irmão, foi do
Milton Nascimento, “Sentinela”, eu nunca esqueci. Ele disse que de que era
o show de um artista conhecido, o Milton Nascimento, aí eu disse que não
conhecia, foi quando ele começou a cantar as músicas e eu percebi que as
conhecia, só não sabia que eram do Milton Nascimento. Rapaz eu me lembro
demais desse show, ele estava todo de branco, boné branco e o nome do
show “Sentinela”. O pessoal da minha rua tinha um gosto musical que era
Ivan Lins, Elis Regina, Milton Nascimento, João Bosco, Chico Buarque,
Toquinho, Vinícius; eu cresci tocando esses caras, eu tinha vigu 90 que da
Elis Regina, Ivan Lins, Milton Nascimento, Gonzaguinha. Essas vigus eram
umas revistas maiores que tinham as cifras. Então o gosto musical da gente
era esse aí, eu também toquei muito Fagner. Nessa época a coisa era bem
diferente do que é hoje, muitas músicas tínhamos que aprender ouvindo
porque não tinha livro, internet e o disco, você tinha que ficar voltando a
agulha, tudo isso dava muito trabalho, isso tudo foi muito importante na
minha formação (Marco Túlio).
90
Revistas contendo a letra e a cifra das músicas. Cifra é a representação dos acordes por meio de desenhos do
braço do instrumento. Muitos violonistas que começaram a aprender tocando música popular tiveram esses
vigus. Nos dias de hoje a aprendizagem ocorre também por outros meios: Vídeo aula, internet, programas de
computador são alguns exemplos.
106
Nesse relato é possível perceber que depois da família, os amigos de infância também
tiveram relativa importância para o agente. O fato de aprender muitas músicas ouvindo,
proporcionou ao agente desenvolver sua percepção musical antes mesmo de ingressar em uma
instituição especializada no ensino de música. Esse capital adquirido provavelmente se
converteu em vantagem no momento em que ele precisou dessa habilidade no contexto
escolar. Vale lembrar que Percepção musical, teoria e solfejo são algumas disciplinas que
estão diretamente relacionadas à escuta musical. Para se tornar um bom músico é importante
não apenas saber tocar, mas ter uma escuta apurada. No momento em que Marco Túlio
revelou que aprendia muitas músicas ouvindo, o pesquisador fez uma associação entre essa
prática e as disciplinas anteriormente citadas. É provável que esse treinamento anterior tenha
lhe proporcionado maior familiaridade e um consequente sucesso nas disciplinas relacionadas
à teoria e percepção musical, dentro do contexto escolar.
Algo também digno de ser resaltado, já que aparece nas falas anteriores do agente, é o fato de
que no universo da música popular é comum o músico acompanhar cantores e outros
instrumentistas. Ele também descreve suas primeiras experiências nessa prática de
acompanhamento e diz que ao tocar violão para seus pais, a sua mãe lhe sugeriu que o
aprendizado do instrumento ocorresse no conservatório. Sobre esse episódio importante ele
conta:
A minha mãe foi muito importante. Embora o meu pai fosse um cara com
mais escolaridade; ele falava inglês, francês, foi estudar no Rio de Janeiro na
década de 1950, era filho de deputado, foi a minha mãe, que era professora
primária, que teve a lucidez de dizer que se eu quisesse aprender não ia ser
na rua, seria no conservatório (Marco Túlio).
Percebe-se aí que o CMAN gozava de prestígio não apenas entre os músicos, tendo em
vista que a mãe do agente não tocava nenhum tipo de instrumento musical. Por meio desse
relato percebe-se que a mãe do agente considerava importante o aprendizado dentro de um
contexto escolar. Essa escolha foi de fato muito importante, porque o ingresso no CMAN
permitiu ao agente adquirir uma forma institucionalizada de capital cultural, algo
imprescindível na carreira de professor universitário.
A partir do ingresso no conservatório esse agente começa a adquirir essa espécie de
capital cultural institucionalizado, algo reconhecido por quem tem o poder de dar
reconhecimento perante a sociedade 91. Na época em que o agente se matriculou no
91
Pierre Bourdieu em sua obra “A reprodução”, aponta a escola como uma instância capaz de proporcionar
ascensão social, ao mesmo tempo em que também contribui para manter as diferenças existentes.
107
conservatório o curso tinha a duração de 8 anos, nesse período ele também ingressou no
Curso Superior de música da UECE, ele assim relata:
Esse pequeno relato possibilita constatar que o habitus musical adquirido se chocou
com o currículo musical oferecido no conservatório, no que se refere ao ensino de violão. Ele
afirma que o seu gosto estava voltado para tocar música popular, mas que o ensino de violão
clássico não proporcionava essa prática. No início do presente trabalho falou-se um pouco
dessa diferença entre violão clássico e popular, algo que na prática não existiu desde que o
violão começa a se afirmar como instrumento de concerto no Brasil.
No processo de pesquisa, foi possível constatar que a cadeira de violão clássico foi
criada no CMAN em um momento em que o instrumento buscava se afirmar nessa instituição.
O CMAN tinha forte tradição no ensino de piano e como o seu repertório era de origem
europeia, entende-se que para inserir o violão nessa instituição seria necessário que ele
estivesse ligado a um repertório de concerto tradicional92.
José Mário de Araújo foi o fundador da cadeira de violão clássico no CMAN, numa
época em que o instrumento buscava se inserir em uma instituição de referência no ensino de
música em Fortaleza. É possível afirmar que foi com o professor José Mário que começou o
ensino institucionalizado de violão em Fortaleza. No CMAN houve inicialmente a cadeira de
violão clássico, mais ligado a um repertório de tradição europeia, posteriormente Marco Túlio
92
Dudeque (1994) considera o século XX o mais importante período para história do violão. No final do século
XIX o luthier Antônio Torres Jurado (1817-1892) desenvolveu o violão dentro dos padrões conhecidos
atualmente. Francisco Tárrega (1852-1909) deu contribuições muito valiosas para o desenvolvimento técnico
e musical do instrumento, sendo estas fundamentais para o que foi chamado por muitos como o
“renascimento do violão”. Já no século XX Andrés Segovia foi a maior personalidade ligada ao instrumento
e teve um duplo papel no desenvolvimento do violão: “[...] o de ampliar o repertório através de obras por ele
comissionadas a outros compositores e o de grande divulgador destas obras. Segovia alcançou seus objetivos,
conseguindo firmar o violão como um instrumento sério de grande prestígio nas salas de concerto”.
(DUDEQUE, 1994, p.85). No contexto do CMAN constatamos por meio de algumas fontes encontradas, que
o professor José Mário de Araújo provavelmente percebeu que o chamado “violão clássico” funcionaria
como uma estratégia importante para inseri-lo em uma instituição que prezava muito o repertório de tradição
europeia. Rotulando de violão clássico haveria de forma natural uma associação entre o instrumento e um
repertório tradicional de concerto. Não é por acaso que o ensino de “violão popular” só faria parte do
currículo muito tempo depois, por meio do professor Marco Túlio. Atualmente no CMAN não há essa
dicotomia, existe a cadeira de violão.
108
deu início ao ensino de violão popular. É dentro de um contexto histórico e social que passa a
existir a divisão entre violão erudito e popular no Ceará. Para melhor explicar esse fato vale
lembrar que o trabalho de Costa (2010)93 mostrou que a vinculação do Clube do Violão a
escola de Tárrega foi uma estratégia para dar legitimidade aquela sociedade artística. A
escola de Tárrega era reconhecida e tinha legitimidade no meio violonístico, daí eles terem
tido a ideia de vincular o Clube do violão a essa suposta escola 94. José Mário de Araújo deu
um passo importante para a inserção do ensino de violão na universidade a partir da fundação
da cadeira de violão clássico no CMAN. Dentro de uma instituição como o CMAN, onde
prevalecia o ensino de piano, este por sua vez ligado principalmente a um repertório de
tradição europeia, o termo violão clássico deu maior legitimidade a um instrumento que
historicamente teve uma forte ligação com a música popular no Brasil. A partir do momento
em que o ensino de violão teve início no CMAN, a prática pedagógica ligada a esse
instrumento passou a ser institucionalizada.
O primeiro curso de música em nível Superior no Ceará foi o da UECE. Ele começou
a funcionar sem um professor de violão e com vários professores de piano. Pensando nesse
contexto a fala de Marco Túlio esclarece:
Essas questões estão ligadas a uma série de fatores que se relacionam a constituição de
um campo violonístico no Ceará, e que foram se revelando no decorrer da pesquisa. Na
revisão de literatura foi visto que o violão era um instrumento marginalizado antes de entrar
na academia. No Ceará, não foi muito diferente, a prática violonística passou a ter maior
legitimidade quando passa a fazer parte do currículo do CMAN, e mais tarde da universidade.
Dentro desse contexto não se pode deixar de mencionar, que o maestro Orlando Leite deu
uma grande contribuição no que se refere à inserção e à difusão do ensino de violão no Ceará,
quando deu o seu apoio enquanto diretor do CMAN, para que naquela instituição fosse criada
a cadeira de violão clássico.
93
Marco Túlio Ferreira da Costa é o agente em questão.
94
O pesquisador fala em “suposta escola” pelo fato de Tárrega não ter deixado nenhum método que abordasse os
seus princípios técnicos interpretativos.
109
[...] quando eu era mais novo, tinha uns 14 ou 15 anos minha mãe me
matriculou em um curso de inglês. Fiz o primeiro semestre e passei apertado,
o segundo também, e depois eu fui reprovado. Muito tempo depois quando
deu essa vontade de estudar fora eu comecei a fazer o curso do IBEU e dessa
vez eu fiz e paguei o curso todo, paralelo a isso eu também fiz o curo das
casas de cultura da UFC. Depois disso teve um americano que foi tocar
violino lá no conservatório e tinha uma pessoa que foi acompanhar; era o
Dustan Galas que era um guitarrista muito bom que morou na Europa e
EUA. Aí eu fui falar com o Dustan e disse que o meu sonho era ir para os
EUA. Ele disse que conhecia um professor que era perfeito para mim porque
já tinha me visto tocar e sabia que esse professor seria muito bom e sugeriu
que eu escrevesse para ele. Bem, eu passei cinco anos em contato com esse
professor até eu ir aos EUA. Na primeira vez que eu fui tentar o TOEFL eu
fui reprovado, depois eu fui ter aulas de inglês com uma professora que tinha
95
O título de notório saber supre a exigência do título de doutor para atuação como docente e orientador em
programas de pós graduação “strictu sensu”. Para ilustrar a maneira como se adquire um título dessa natureza
transcrevo o Art. 2º da resolução nº 28/98 da UFRGS. Ele determina que: O título de "notório saber" poderá
ser concedido a docentes e pesquisadores que tenham experiência e desempenho que os coloquem entre as
lideranças do país em suas respectivas áreas de conhecimento, tenham realizado trabalhos reconhecidamente
importantes em escala nacional e internacional, com contribuição significativa para o desenvolvimento da
área no país, e cujas atividades continuadas contribuam para a formação de novos pesquisadores, nucleação
de grupos de pesquisa reconhecidos e fortalecimento de instituições de pesquisa no país. Disponível em:
<http://www.ufrgs.br/cepe/legislacao/Res28-98.htm>. Acesso em 29 Ago 2012.
96
Sobre esse fato temos mais duas versões. A Srª Cleomar, esposa de José Mário de Araújo relatou que na
época ele tinha muitos alunos no conservatório, e que por esse motivo não quis sair daquela instituição. O
médico e violonista Alberto Lima de Souza afirmou que José Mário por não ter o grau de escolaridade
exigido ficou impossibilitado de ensinar na universidade, e que Antônio Crivelaro, então diretor dos
Seminários internacionais de violão de Porto Alegre lhe propôs um curso a distância, para que José Mário
adquirisse a titulação exigida. Algumas fotografias e matérias de jornal atestam a visita de Antônio Crivelaro
a Fortaleza e sua ligação com o professor José Mário de Araújo. Vale também lembrar que José Mário
frequentou algumas edições dos seminários internacionais de violão de Porto Alegre e que por meio de fontes
documentais o pesquisador pôde tirar algumas conclusões no que se refere ao ensino e difusão do
instrumento no Ceará. Sobre essa temática pretende-se realizar uma pesquisa futura.
110
mestrado em língua inglesa, isso lá nos EUA e fiz 12 aulas com ela. Na
época eu não tinha bolsa, mas coincidentemente a minha esposa conseguiu
um estágio lá; eu aproveitei para estudar já que eu tinha as cartas de
aceitação da universidade, mas faltava a proficiência em língua estrangeira.
(Marco Túlio).
Alguns pontos são importantes nessa fala. O primeiro se refere ao fato de que quando
o agente optou estudar inglês de forma mais séria, essa não era uma língua totalmente
desconhecida, fato esse que de alguma maneira pode ter sido favorável. O segundo foi o
contato com o guitarrista Dustan Galas, que a partir das suas experiências na Europa e EUA
pôde indicar um professor adequado para suas pretensões, voltadas para o estudo da música
popular. O terceiro foi a sua esposa ter conseguido um estágio nos EUA, que facilitou ao
agente estudar inglês com uma professora nativa, além do contato diário com a língua daquele
País. Esses três pontos foram muito importantes para o agente, no sentido de dotá-lo de
importantes capitais que foram muito importantes para o seu ingresso no magistério superior.
A partir dessas escolhas cabe alertar que elas não foram em si o produto final, fruto de uma
decisão momentânea. Elas partiram de algo já incorporado e que contribuíram para esses
acontecimentos. Nesse sentido Bourdieu (2007) ensina que:
Observando o percurso de Marco Túlio até aqui é possível perceber que o habitus, as
experiências musicais prévias e os contatos que ele teve com outros agentes no campo
levaram-no a fazer escolhas importantes para a sua vida profissional. No início falou-se que
houve um apoio por parte da família para que o agente estudasse música. A partir do
momento em que houve a necessidade de realizar uma escolha profissional, não houve o
mesmo apoio familiar. Por esse fato, paralelo ao Curso Superior de música na UECE ele fez
economia na UFC, o questionamento principal da família era, como ele faria para viver de
música? Nesse sentido fica evidente que a origem social familiar não estava de acordo com
uma formação que não proporcionasse certo status. Bourdieu (2010) tratou da hierarquização
entre disciplinas, e ainda nos dias de hoje é possível perceber níveis de prestígio diferentes
entre cursos no interior da universidade. A escolha por parte do agente de prestar concursos
111
públicos se dá a partir das interações sociais no interior do campo. Ele contou em entrevista
que, essa opção se deu sob a influência da esposa de Marcos Maia, que alegando a
possibilidade de um salário fixo conseguiu convencê-lo a tomar essa decisão. Todo esse
momento é descrito da seguinte maneira:
[...] embora eu gostasse de música e tivesse decidido por ela, a família toda
era contra. A pergunta principal era: Como é que você vai viver de música?
Como você vai pagar as contas? Bem, eu até entendo isso baseado no
mercado da música; tenho uns amigos que vivem de tocar e aí se eles tocam
em uma semana tudo bem, se não, aí coisa fica difícil, ou seja, eles vivem do
apurado. E aí o que é que eu fiz? Primeiro eu fiz um curso paralelo ao de
música, primeiro matemática e depois economia, depois, com um ano e meio
cursando economia eu optei por me dedicar só a música, mas mesmo assim
ainda foi muito difícil porque eu fiquei muito confuso. Faltando um semestre
para terminar o curso de música eu fiz uma viagem, que também foi muito
importante. Eu fui a Inglaterra com um amigo que até ficou mais tempo por
lá. Eu percebi que se ficasse por lá eu iria ter que fazer o que outras pessoas
que eram estrangeiras faziam: Lavar pratos, vender sorvete, etc, e isso eu
realmente não queria. Voltando ao Brasil terminei o curso da UECE e aí
houve uma série de concursos para educação artística, já que não havia
concursos para professor de música na época. Eu passei no Maracanaú e no
Estado, e quem me alertou sobre esses concursos foi a mulher de um amigo
meu, a Cristina, esposa do Marcos Maia. Ela disse: Marco Túlio faz o
concurso do Estado; e eu perguntei quanto pagavam, e ela tanto; eu aleguei
que ganhava mais tocando e dando aula, mas ela rebateu dizendo que era
melhor eu ter um dinheiro certo todo mês, eu fui pensar e vi que ela tinha
razão. Depois apareceu o concurso da Escola Técnica e eu fiz, mas era para
ir ao Cedro e como o salário era mais atrativo e eu não tinha nada certo eu ia,
mas na última hora conseguiram uma transferência para Fortaleza e na
Escola Técnica de Fortaleza eu fiquei 3 anos e meio; gostei muito de
trabalhar por lá. Nesse período me convidaram para dar aula no curso de
extensão em música na UFC e eu fui, no mesmo período eu também dava
aula no conservatório. [...] Após um período de 6 meses abriram um
concurso para professor de violão na UFC e foi quando eu ingressei na
universidade. Primeiro eu fiquei trabalhando nesse curso de extensão, depois
com a criação do Curso Superior de música eu fui lotado para lá. No ano de
2002 eu ingressei no mestrado nos EUA, e após voltar ingressei no
doutorado em educação na UFC onde terminei em 2010 (Marco Túlio).
ocupada pelo agente no campo. Sabe-se da complexidade dos fatos sociais e sabendo disso é
que não existe a pretensão de afirmar aqui algo que seja a verdade em si, mas um caso
particular do possível.
113
[...] os bens culturais podem ser objeto de uma apropriação material, que
pressupõe o capital econômico, e de uma apropriação simbólica, que
pressupõe o capital cultural. Por consequência, o proprietário dos
instrumentos de produção deve encontrar meios para se apropriar ou do
capital incorporado que é a condição da apropriação específica, ou dos
serviços dos detentores desse capital. Para possuir máquinas, basta ter capital
econômico; para se apropriar delas e utilizá-las de acordo com sua
destinação específica (definida pelo capital científico e tecnológico que se
encontra incorporado nelas), é preciso dispor, pessoalmente ou por
procuração, de capital incorporado.
[...] o José Mário quebrou muitas fronteiras porque antes o conservatório era
um espaço de pianistas, se você observar as estatísticas dos professores você
vai observar que no começo, a maior parte era de piano. O Zé Mário na
década de 70 ficou insistindo com o ensino de violão e ele teve o apoio do
Maestro Orlando Leite que na época era diretor e deu total apoio para a
criação da cadeira de violão clássico no conservatório. Posso dizer que nessa
época o violão era marginalizado e estava associado a boemia e se você
analisar, em 1975 o curso de música da UECE era formado por professores
do conservatório. E por que não tinha professor de violão na UECE?
Simplesmente porque os meus professores da UECE eram os mesmos do
conservatório (Marco Túlio).
entende-se que José Mário foi de suma importância para chegada do Ensino de Violão no
Ensino Superior do Ceará. Todos os agentes aqui entrevistados foram seus alunos, tendo sido
Marcos Maia o primeiro a ingressar como professor de violão na universidade. A formação
violonística desse agente se deu principalmente no CMAN, mas ele também frequentou os
seminários de violão da faculdade Palestrina no Rio Grande do Sul com apoio do professor
José Mário de Araújo, que chegou inclusive a integrar o seu corpo docente 97.
Os agentes que foram aqui estudados apresentaram pontos em comum no que se refere
à formação musical. Todos eles tiveram uma influência familiar importante para a música,
posteriormente estudaram mediante o apoio familiar no CMAN, e por último, ingressaram nas
universidades cearenses (UFC e UECE) para adquirirem o título de Graduados em Música.
Após a obtenção desse título eles buscaram uma maior ascensão no campo acadêmico. A
partir daí cursaram mestrado e doutorado, três se tornaram Mestres e um agente obteve o
título de Doutor. Em decorrência disso os agentes adquiram capital cultural no seu terceiro
estado; o institucionalizado, fato esse que lhes permitiu prestarem concursos públicos para o
ingresso no Magistério Superior. Os títulos conferidos pelas instituições de Ensino Superior
permitem aos seus detentores se distinguirem e ingressarem nesse espaço de legitimação e
produção de saberes. Pensando desse modo Bourdieu (2012) ensina de forma muito pertinente
que:
A relação entre o habitus dos agentes e as instituições fica ainda mais evidente quando
se pensa no que elas esperam de seus egressos e o que estes têm a oferecer. Existe um desejo
para ingressar na universidade que é mais comum para uns, enquanto que para outros é algo
que nem sempre é vislumbrado, e quando existe esse objetivo, o processo é muito mais difícil.
Os cursos superiores na maior parte das vezes selecionam os que nele querem ingressar,
esperando que aqueles que passaram por esta seleção tenham uma maior familiaridade com
aquilo que lhes é ensinado. Dessa maneira, os níveis de sucesso ou insucesso escolar têm suas
variantes nos diferentes índices de capital cultural e social, herdados e adquiridos.
O quadro de caracteres dos agentes permitiu ao pesquisador, identificar uma série de
aspectos comuns. A influência familiar para a música, o exercício de atividades musicais, os
títulos de natureza acadêmica, as publicações, revisões de obras musicais e as instituições
frequentadas, possibilitaram aos agentes adquirirem capitais que foram relevantes para o
ingresso no magistério do Ensino Superior; o quadro exposto abaixo nos ajuda a perceber.
118
Professores
de violão do Ambiente Exercício de Títulos de Participação Publicações Participação Instituições
Ensino musical atividades natureza em gravações, de artigos, em grupos de frequentadas
Superior no favorável na como violonista acadêmica recitais e livros e violão antes
Ceará / família e professor outras revisão de do ingresso
Caracteres antes do atividades obras na docência
ingresso no musicais musicais do Ensino
Ensino Superior
Superior
Por meio do Sim. Tocou Graduação em Sim. Possui Sim Sim CMAN
pai conheceu a acompanhando Música, gravações e
obra de artistas e foi Mestrado em realizou UECE
renomados professor do Performance e diversas (Graduação)
compositores CMAN e da Doutorado em apresentações
Marco Túlio brasileiros. antiga Escola Educação musicais como Northern
Eles ouviam Técnica Federal instrumentista IIIinois
música juntos, do Ceará, hoje University
mas foi a sua Instituto Federal (Mestrado)
mãe que o de Educação,
levou para Ciência e UFC
estudar no Tecnologia do (Doutorado)
CMAN Ceará – IFCE.
Na sua casa a Foi músico da Graduação em Sim, participou Sim Sim CMAN
música sempre banda do corpo Música, da gravação do
esteve de bombeiros de Mestrado em primeiro disco UECE
presente. A Fortaleza, atuou História e de Marcos (Graduação)
mãe exerceu como professor doutorando em Maia e realizou (Mestrado)
influência e na sociedade Educação diversas
Weber dos rádio é musical apresentações UFC
Anjos descrito pelo Henrique Jorge musicais como (Doutorado)
agente como e como instrumentista
um professor
instrumento substituto na
que muito UECE e efetivo
favoreceu as UERN
suas primeiras
experiências
musicais.
Essa acumulação de capital cultural se deus nos três estados (incorporado, objetivado,
institucionalizado). No estado incorporado ele está associado diretamente ao habitus,
pressupondo nesse caso um trabalho de inculcação e assimilação. “Sendo pessoal, o trabalho
de aquisição é um trabalho do ‘sujeito’ sobre si mesmo (fala-se em cultivar-se)”
(BOURDIEU, 2012, p.74). O estado objetivado tem uma forte relação com o capital cultural
em sua forma incorporada. Pode-se afirmar que ele está associado aos bens materiais, esses
por sua vez, possíveis de serem transmitidos na condição de propriedade jurídica, mas a
apropriação específica dependerá de instrumentos que permita desfrutá-los, exigindo assim
um capital outrora incorporado. Por fim, no estado institucionalizado, o diploma, tido como
certidão de competência, permite a conversão de capital cultural em econômico, junto ao
mercado de trabalho. O quadro abaixo demonstra que os agentes da pesquisa acumularam
capital cultural nos seus três estados. Nesse processo eles foram favorecidos por um habitus,
que lhes permitiu transitarem no campo musical com bastante desenvoltura. Eles herdaram e
adquiram materiais importantes para um professor de música, tais como livros e discos, em
decorrência do habitus incorporado, eles puderam de fato apropriar-se desses bens. As
instituições frequentadas pelos agentes lhes permitiram ter um diploma, que os habilitou a
prestarem concursos públicos, além de tornarem suas competências reconhecidas e não mais
postas à prova. Nesse momento eles também puderam converter capital cultural em
98
Segue-se que, de todas as medidas do capital cultural, as menos inexatas são aquelas que tomam por padrão de medida o
tempo de aquisição - com a condição, certamente, de não o reduzir ao tempo de escolarização e de levar em conta a
primeira educação familiar, dando-lhe um valor positivo (de um tempo ganho, de um avanço) ou negativo (de um tempo
perdido e, duplamente, uma vez que será necessário gastar tempo para corrigir seus efeitos) segundo a distância em
relação às exigências do mercado escolar (Seria necessário dizer, para evitar qualquer mal-entendido, que essa proposição
não implica em qualquer reconhecimento do valor dos veredictos escolares e limita-se a registrar a relação que se
estabelece, nos fatos, entre um certo capital cultural e as leis do mercado escolar? Talvez não seja inútil, todavia, recordar
que as disposições marcadas com um valor negativo no mercado escolar podem ter um valor altamente positivo em
outros mercados - e, em primeiro lugar, claro, nas relações internas à sala de aula).
99
Ibid. , 2012, p.74.
120
Outro aspecto importante diz respeito ao fato de que a posse do diploma permite a
comparação entre diplomados, à sucessão de uns pelos outros, além da convertibilidade entre
o capital cultural e o econômico, garantindo valor em dinheiro de determinado capital escolar
(BOURDIEU, 2012).
Por fim a pesquisa permitiu concluir que o habitus dos agentes exerceu uma forte
influência no que se referem às escolhas profissionais, caminhos, relações sociais e acúmulo
dos capitais necessários ao ingresso na docência do Ensino Superior. A partir do momento em
que o ensino de violão se insere na universidade cria-se um campo específico, considerando
que a razão de sua existência reside nas relações que se estabelecem entre os agentes e as
instituições. Essas categorias aparecem na pesquisa de forma indissociável, e foram
fundamentais na maneira de perceber as realidades, apresentadas aqui sob o ponto de vista do
pesquisador. Essas foram algumas dentre as muitas maneiras de interpretar os fatos, e é daí
que advém a complexidade das ciências sociais.
122
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