questões eleitorais
O ENIGMA DO VOTO
É hora de pensar a democracia para além da forma tradicional de representação
Miguel Lago | Edição 220, Janeiro 2025
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O
ano de 2024 foi marcado por eleições importantes no mundo inteiro. Em muitos
países ocidentais, governantes em exercício perderam nas urnas, no que parece
ter sido uma onda de punição aos incumbentes. No Brasil, inclusive, a questão
central a respeito das últimas eleições parece ser uma só: “Por que a esquerda está
perdendo e a direita está vencendo?”
A indagação é compreensível. Desde 2023, importantes governos de esquerda ou de
centro tiveram que ceder o poder à oposição. Foi assim na Argentina, em Portugal, nos
Estados Unidos e, mais recentemente, na Alemanha – a coalizão de esquerda e centro,
depois de alguns anos de atuação discreta, surpreendeu pela queda precoce. No Reino
Unido, os trabalhistas venceram os conservadores, mas o voto para a esquerda foi
menor do que em 2019. Na França, apesar da vitória parcial da esquerda nas eleições
minha conta a revista fazer logout
legislativas convocadas por Emmanuel Macron, o presidente se recusou a nomear um
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primeiro-ministro desse campo político: optou por uma aliança com a direita,
nomeando
Quer primeiro
Saber Qual umÉconservador
o Seu QI? e, depois, um centrista.
Responda Abrir
Tambéma se
20viu
perguntas para descobrir.
que a extrema direitatest-
veio para ficar. No Brasil, a coalizão governista
iq.org
teve um desempenho pífio nas eleições municipais. Ainda que o grande vencedor do
pleito de 2024, no conjunto, seja o chamado Centrão, nas grandes cidades o vitorioso
foi o PL de Jair Bolsonaro, presente na maioria dos segundos turnos. Nos Estados
Unidos, Donald Trump obteve uma vitória inequívoca, arrebatando a Presidência, o
Senado e a Câmara dos Deputados, além de ter nas mãos a chance de ampliar sua
maioria na Suprema Corte.
Diante desses eventos, fica a impressão de que a esquerda está sendo solapada, e que
grande parte do mundo se voltou para a direita (ou até para a extrema direita). Os
principais jornais dos Estados Unidos e do Brasil têm buscado explicar a queda dos
progressistas. Analistas políticos sugerem que a vitória de Trump “demonstra que o
eleitorado é de direita” ou que o grande derrotado, de fato, é um setor hoje influente
dentro do progressismo: a “esquerda canceladora”.
É possível reunir as diferentes análises em dois grandes blocos explicativos. Alguns
comentaristas, de visão mais liberal, adotam a lógica de mercado – de oferta e
demanda – em suas explicações: o eleitorado “x” demanda “y”. Se uma determinada
força política não tem sucesso eleitoral junto ao público “x”, isso ocorre porque ela não
está respondendo à demanda “y”. Essa dedução supõe que o eleitorado articula todas
as suas demandas de maneira consciente e organizada. Segundo essa perspectiva, a
esquerda vem perdendo espaço porque está desatualizada em relação às demandas do
eleitorado por mais empreendedorismo, mais espaço para a religião e mais respeito à
moral conservadora.
De acordo com essa linha de raciocínio, a esquerda teria aversão ao
empreendedorismo – sentimento que, segundo segmentos da mídia, causou a derrota
de Guilherme Boulos à Prefeitura de São Paulo. Os progressistas não estariam vendo
que o eleitor mudou e que ele não deseja mais empregos formais, e sim melhores
condições para empreender por conta própria. Ao passo que a esquerda só tem a
oferecer mais regulação do trabalho.
Os progressistas também estariam pecando por excesso de laicismo, sendo incapazes
de ver que o eleitorado brasileiro é cada vez mais evangélico. Com isso, passam a
estigmatizar o eleitor religioso como obscurantista, sendo incapazes de dialogar com
ele.
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Outro argumento dos formadores de opinião diz que a maioria do eleitorado é
essencialmente conservadora e se assusta com a agenda identitária ou woke dos
progressistas. Há quem afirme, inclusive, que a esquerda se preocupa exclusivamente
em usar o Estado para defender identidades subalternizadas – as chamadas minorias
–, tendo abandonado completamente as demandas de melhoria de vida e de poder de
compra da classe trabalhadora.
Tendo em vista essas três questões que cito como exemplo, prescreve-se que a
esquerda, se tivesse sido mais moderada, teria conquistado os eleitores de centro e os
indecisos, inclusive nas eleições americanas. Alguns analistas chegaram a afirmar que
a derrota de Kamala Harris se deve aos chamados “identitários”. A esquerda teria se
radicalizado, alimentando uma polarização que só beneficiaria a direita e perdendo
assim a chance de atrair os indecisos e moderados. É uma perspectiva curiosa, que não
leva em conta que Kamala Harris conquistou o apoio de quadros históricos do Partido
Republicano, como Dick Cheney, um dos principais responsáveis pela política
devastadora dos Estados Unidos no Oriente Médio.
O
utro bloco de interpretações vem daqueles com formação marxista, que
entendem a política pela perspectiva da luta de classes, e não do mercado. Eles
organizam o eleitorado de acordo com sua posição na ordem produtiva,
classificando-o conforme a classe social e entendendo a política como reflexo da
estrutura socioeconômica. Sua análise da situação atual se baseia em três grandes
argumentos: a falência da esquerda neoliberal, a perda do radicalismo essencial da
classe trabalhadora e a emergência da direita truqueira.
À luz do primeiro argumento, as derrotas da esquerda se devem ao fato de ela ter, ao
longo do tempo, abraçado o neoliberalismo e passado a gerenciar o capitalismo, em
vez de enfrentá-lo. Foi o que ocorreu com líderes alinhados à tradição social-
democrata que, no entanto, adotaram a agenda de reformas liberais com muito mais
entusiasmo do que os conservadores: Tony Blair, Gerhard Schröder, Fernando
Henrique Cardoso, Felipe González, François Hollande, Barack Obama e tantos outros.
O neoliberalismo teria matado a esquerda por dentro e feito com que ela adotasse a
defesa do capital, abandonando a classe trabalhadora.
O segundo argumento alega que a esquerda está perdendo porque se aproximou
demasiado do centro. Por se moderar demais, Boulos deixou de ser ele mesmo. Logo, a
esquerda deve voltar a radicalizar. “A direita está radicalizando, e está dando certo”,
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dizem alguns. O postulado implícito é parecido com o dos liberais, pois aponta para
mais uma essência atribuída à classe trabalhadora: neste caso, a essência
revolucionária. Mas, como a esquerda não tem revolução alguma a oferecer, a classe
trabalhadora teria migrado para a direita.
Existem análises sociológicas que corroboram esse argumento. Na França e na Itália, o
eleitorado historicamente comunista agora vota na extrema direita, ao passo que, nos
Estados Unidos, estados com massa operária migraram para Trump em 2016, e
novamente agora. Mas será que uma plataforma de esquerda radical conseguiria ter
sucesso eleitoral? Aliás, existe espaço para uma esquerda radical, depois da queda do
Muro de Berlim? Ainda mais nos Estados Unidos, onde o Partido Comunista sempre
foi inexpressivo e a esquerda em geral nunca obteve retorno nas eleições nem acolhida
junto aos democratas? Haverá algum presidente americano democrata que possa ser
considerado de esquerda, mesmo Barack Obama?
A terceira linha de raciocínio argumenta que a direita controla narrativas e blinda o
cidadão do conhecimento das boas realizações dos governos progressistas, inundando-
o com desinformação. Segundo essa visão, Joe Biden teria feito um excelente governo,
assim como Lula atualmente estaria realizando um bom trabalho, mas ambos
enfrentam dificuldades para transmitir seus feitos de maneira tão eficaz quanto a
oposição para divulgar suas críticas. Não é que os progressistas tenham deixado de
representar a classe trabalhadora: a questão é que não conseguem mais comunicar
suas realizações a ela por falta de habilidade em usar as redes sociais, o que a direita
teria de sobra. Nesse caso, a direita estaria “manipulando os pobres”, pois se supõe
que nenhum pobre poderia ser de direita.
Embora a avaliação sobre as redes sociais seja verdadeira, ignora-se que Biden teve à
sua disposição uma grande máquina de comunicação, assim como Lula ainda tem. Na
mesma linha, observa-se um peso excessivo dado às razões materiais. Atribui-se a
vitória da direita nas eleições municipais brasileiras à transferência maciça de recursos
financeiros para governos locais, fora do controle direto do Executivo. Uma avaliação
relevante, mas que desconsidera que o partido que mais recebeu emendas, o pt,
apresentou resultados medíocres no pleito de 2024.
E
ssas análises, ainda que tenham alguma pertinência, são claramente
insuficientes e incompletas para compreender o que está acontecendo. Pior
ainda quando se superdimensiona um dos aspectos, o que empobrece o debate e
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confunde a ação. A insistência, por exemplo, em culpar o identitarismo e conclamar os
progressistas a abandonarem essa pauta revela mais sobre o incômodo que ela causa
nos analistas do que propriamente um plano de ação para a esquerda. Também
aqueles que culpam o neoliberalismo (que, aliás, já não parece ser tão hegemônico
quanto nos anos 1990) por todos os problemas e defendem uma nova radicalização da
esquerda parecem não ter se reerguido da brutal queda sofrida pelos socialistas em
1989, com o início da derrocada da União Soviética.
Mas essas análises têm muito em comum. Elas focam essencialmente no eleitorado,
negligenciando o papel dos agentes e dos dispositivos políticos. A consequência é
superestimar a explicação pela ideologia política, como se esta fosse capaz de tudo
revelar: “Porque a direita isso…”, “porque a esquerda aquilo…” Empregam-se
conceitos que pressupõem uma série de premissas nem sempre pertinentes. Um
exemplo é o peso excessivo dado à questão da polarização, termo insuficiente e que se
tornou explicação fácil para tudo. Sociedades democráticas sempre foram polarizadas.
O que vivemos hoje é algo muito mais profundo e grave do que uma simples
polarização ideológica: trata-se de uma verdadeira fratura social.
Outro exemplo é a discussão sobre a derrota do progressismo ou da esquerda. O que
significa ser progressista? O que significa ser de esquerda? Kamala Harris é de
esquerda? Lula é um progressista? E o que dizer de Dick Cheney – ele também é
progressista agora? As críticas feitas à esquerda ou ao campo progressista são válidas
até certo ponto, mas se estendem também a liberais e conservadores. Elas podem ser
aplicadas ao estamento político como um todo, e não apenas a uma de suas partes.
Esquerda, direita e centro têm sofrido derrotas importantes nos últimos anos. E,
quando triunfam, não é por razões ideológicas, mas sim transacionais. A memória
eleitoral de Lula explica sua vitória em 2022, apesar de aquela eleição ter sido a pior no
âmbito legislativo e estadual para a esquerda desde 1998. Os partidos do Centrão
venceram em 2024 muito mais por questões transacionais – o controle das máquinas
municipais fortalecidas por emendas parlamentares – do que por qualquer afinidade
ideológica do eleitorado com os valores do centro ou da direita.
Os centristas dizem que a esquerda perdeu porque se radicalizou, porque abraçou o
identitarismo e abandonou sua base. Mas o centro está ganhando? Onde está a força
dos moderados para apaziguar nosso cenário de ódio e a fratura social cada vez mais
acentuada? As ideologias centristas possuem real força eleitoral? Seus valores estão
ancorados na sociedade? E a direita? Os valores conservadores estão presentes na
sociedade? Somos uma sociedade que respeita as instituições e hierarquias
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constituídas? O que estão fazendo os conservadores para conter a revolução que a
extrema direita promove em todo o mundo?
Mais uma vez, há confusão na classificação: as análises chamam de conservadores
aqueles ligados à extrema direita, quando existem diferenças importantes entre eles. O
conservadorismo é contrarrevolucionário, cético e crítico da modernidade,
fundamentado muito mais na gramática de deveres do que na de direitos. É o oposto
do que advogam os trumpistas e bolsonaristas: ruptura institucional, histeria contra
qualquer limitação do direito de se expressar, transgressão das normas, ímpeto
revolucionário e adoção indiscriminada da tecnologia. Mas, como parte da extrema
direita se alimenta do ódio a determinados grupos e dos preconceitos muito ancorados
na sociedade, acaba por advogar por alguns temas que, por acaso, também são dos
conservadores.
Atualmente, apenas dois temas caros ao conservadorismo triunfam no debate público:
a limitação do direito à interrupção voluntária de gravidez e dos direitos da população
LGBTQIA+. É muito pouco para afirmar que os valores conservadores estão em alta
numa sociedade marcada por rupturas, transgressão da ordem e modernização
desenfreada.
Deixando o debate social e mirando a performance eleitoral, pode-se dizer que os
partidos conservadores estão em franca decadência. Em países como França, Itália,
Alemanha e Reino Unido, onde os conservadores governaram a maior parte do tempo
desde a Segunda Guerra Mundial, os grandes partidos conservadores estão
claudicantes. Na França e na Itália, eles se tornaram linha auxiliar ora do centro, ora da
extrema direita. No Reino Unido e na Alemanha estão em evidente declínio. Nos
Estados Unidos, os conservadores clássicos do Partido Republicano foram em parte
expelidos ou passaram a apoiar Kamala Harris. Na Argentina e no Chile, foram
engolidos pela extrema direita. Talvez o último partido conservador forte no Ocidente
seja o espanhol, e isso porque se aproxima cada vez mais da extrema direita, ao
incorporar seu discurso, suas propostas e seus gestos. As críticas feitas à esquerda,
portanto, também se aplicam perfeitamente ao centro e à direita.
Essas três forças – esquerda, centro e direita – compõem nosso tabuleiro político
porque saíram vitoriosas da Segunda Guerra Mundial. A luta contra o nazifascismo
envolveu um amplo espectro de correntes ideológicas, dos comunistas aos
conservadores. Winston Churchill e Charles de Gaulle eram políticos notoriamente de
direita. O governo constituído na França logo após a libertação de Paris (em 1944)
refletia essa diversidade ideológica: era um comando de união nacional, com todos os
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espectros representados, exceto a extrema direita, derrotada militarmente. Sob a
liderança de De Gaulle, conservador e simpatizante da monarquia, formado na direita
ultraconservadora católica, o governo foi composto em grande parte por democratas-
cristãos, socialistas, liberais e comunistas. Mas aquela era uma época em que não se
insultavam os conservadores, associando-os à extrema direita, como faz hoje a
imprensa liberal brasileira numa tentativa de normalizar o bolsonarismo e, ao mesmo
tempo, estigmatizar o conservadorismo. O bolsonarismo parece ter mais semelhanças
com o liberalismo que é hegemônico na imprensa do que com o conservadorismo.
O tabuleiro político do pós-guerra já não faz mais sentido. Enquanto centristas dizem à
esquerda o que ela deveria fazer, e a direita diz ao centro como agir, forças fora desse
jogo tradicional se movem, redesenhando a partida por completo. São essas forças
vivas que emergem vitoriosas nas eleições. Se os atores do tabuleiro tradicional já não
são mais os protagonistas e se as dinâmicas políticas não repetem padrões do passado,
faz sentido questionar se está havendo uma transição de regime político.
Vale ir além das análises feitas por liberais e marxistas. Pois, por mais que destoem uns
dos outros, ambos partem dos mesmos postulados sobre o que significa o “político”.
Realizam todas as análises a partir de uma visão preconcebida do eleitorado. Se
Trump venceu, foi porque ele teria sabido responder melhor a um eleitorado
supostamente “anti-woke”, antineoliberal, conservador, fundamentalista religioso ou
revolucionário. Não se considera a capacidade de Trump de constituir um novo
eleitorado. Tanto as visões liberais quanto as marxistas subordinam a política a um
papel instrumental, fazendo dela sempre o ponto de chegada, nunca o ponto de
partida. Existe sempre um “antes” da política: seja a classe social, os determinantes
culturais ou a atividade econômica. É como se a política fosse apenas uma
consequência lógica de algo que a precede.
E se adotássemos outra leitura? E se considerássemos a hipótese de que não há um
“antes” da política? Que a política, ao contrário, pode ser constitutiva dos laços
sociais? Que a política tem o poder de criar novos medos, desejos e identidades? Que
ela é constitutiva do social, e não o oposto? De que não existem tantas essências
preestabelecidas nos eleitores? Quem parte dessa perspectiva pode interpretar as
eleições tendo por base não um eleitorado fixo, mas atores e dispositivos políticos
capazes de constituir um novo eleitorado.
D
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esde o século XIX, estamos presos a dois conceitos políticos interconectados: as
eleições por meio do voto e o Estado-Nação. O primeiro consiste em um
mecanismo de alternância pacífica de poder entre elites. O segundo restringe o
locus da política a uma nação e a um território. É dentro dos limites do Estado-Nação
que opera a democracia representativa. Esses dois dispositivos não caíram do céu. Eles
foram construídos num contexto determinado, talhados para uma cultura específica,
para as condições de produção e a arquitetura de comunicação existentes no século
XIX.
A partir do fim da Primeira Guerra Mundial, o direito ao voto foi progressivamente
ampliado, assim como se expandiram os novos meios de comunicação. A
consequência disso foi a popularização dos regimes competitivos. O rádio e
posteriormente a tevê contribuíram para constituir uma arena pública propícia à
chamada democracia de massas na escala do Estado-Nação. Mas, com o fim da Guerra
Fria, a globalização crescente e uma nova arquitetura de comunicação, que passou da
lógica de broadcast (de um para muitos) para outra, multidirecional, tanto o voto
quanto o Estado-Nação se fragilizaram.
Para entender essa fragilização, vale se perguntar: qual é a finalidade do voto? O de
definir qual das elites políticas terá o controle de uma determinada máquina estatal
por um determinado período de tempo. Por décadas, essas elites se organizaram em
partidos políticos que reproduziam em alguma medida os antagonismos existentes
dentro da sociedade industrial: um ou mais partidos que representam os interesses dos
que produzem, um ou mais partidos que representam os interesses daqueles que
organizam a produção. O conflito capital-trabalho estava claro – e passava,
progressivamente, a repercutir nas eleições. O conflito distributivo reverberava nas
escolhas das políticas públicas, reduzindo progressivamente a jornada de trabalho,
ampliando os direitos e universalizando o acesso à saúde e educação.
Governos tinham capacidade de responder às crises. Se houvesse desemprego, era
possível ações concretas para combatê-lo. Se houvesse dificuldade no acesso ao
sistema de saúde, ampliava-se o acesso. A oposição, quando criticava o governo, podia
fazê-lo através de jornais, tevês ou de rádios, atingindo uma parte relevante da
população. As sociedades ora decidiam pela esquerda, ora pelo centro ou ainda pela
direita. O mundo de hoje é diferente. Os antagonismos na sociedade são muito mais
multifacetados e não se dão apenas a partir da base produtiva. A própria estrutura
produtiva está minguando nos países ocidentais: dispõe agora de robôs ou depende
das indústrias dos países asiáticos. O operariado definha. As estruturas religiosas se
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multiplicaram e se dividiram: na Europa, prospera a confissão islâmica; nas Américas,
os evangélicos substituem as igrejas históricas e mais centralizadoras (em particular a
católica ou as protestantes).
Somos sociedades mais plurais, portanto os conflitos já não funcionam como antes. As
associações se fazem de maneira fragmentada e interativa. Em paralelo, os partidos
políticos deixaram de se ancorar nas suas bases sociais (tanto à esquerda como à
direita) e passaram a se apoiar nas estruturas estatais. Um exemplo é o financiamento
público de campanhas no Brasil, que faz com que os partidos se preocupem mais em
conquistar nacos da burocracia estatal do que em representar comunidades. Com o
aumento do acesso a instrumentos poderosos de divulgação, novas elites políticas se
constituíram e agora desafiam os antigos donos da bola.
Também o Estado-Nação vive uma crise profunda desde os anos 1980. Os governos já
não detêm o mesmo grau de soberania de cinquenta anos atrás e, com isso, enfrentam
uma crescente incapacidade de resolver os grandes problemas coletivos. As políticas
públicas não são mais formuladas como antes. À medida que os problemas
enfrentados pelas populações assumem dimensão cada vez mais interdependente e
multinacional – como as grandes decisões de investimento, a criação de empregos, as
condições de saúde da população, a violência urbana associada ao narcotráfico
internacional, desastres ambientais e mudanças climáticas –, torna-se impossível
resolvê-los apenas em nível nacional. O que pode o governo de um país fazer depois
da decisão de uma multinacional de transferir uma fábrica? Como reagir a uma guerra
entre facções que disputam uma rota de tráfico internacional? E o que pode ser feito
diante de um aumento considerável da severidade de queimadas, tempestades e
ciclones, consequências de décadas de emissões de gases de efeito estufa por países
industrializados?
Eis o impasse da governabilidade contemporânea: enquanto as decisões que afetam as
vidas das pessoas saíram do locus do Estado-Nação, o único espaço onde as pessoas
podem – através do voto – expressar sua indignação continua sendo o Estado-Nação.
O voto de hoje vale menos do que o dos anos 1960. Tem menos consequência do que já
teve. Sua capacidade de incidir sobre os problemas que afetam as pessoas é muito
menor. Para os governos, sobrou a atividade de alocar recursos (cada vez mais
escassos), promover “incentivos” ou criar mais normas. Cabe a eles decidir sobre o que
não importa, e ter que lidar com as consequências do que não decidiu.
A deterioração do Estado-Nação afeta diretamente o dispositivo de eleições, e vice-
versa, num círculo vicioso que erode essas duas bases da democracia representativa. A
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eleição tem um componente transacional muito importante, por meio do qual os
cidadãos delegam poder aos candidatos, que, por sua vez, se comprometem a
defender os interesses dos eleitores e solucionar seus problemas. A partir daí, surge a
questão central: como os governos, sem os instrumentos necessários para solucionar os
principais problemas da sociedade, conseguem se reeleger? Como fica a questão do
dispositivo eleitoral diante desse impasse da ação coletiva?
O voto é um dispositivo complexo porque opera em tempo diferido. Primeiro, o
candidato se compromete a resolver certos problemas da população. Depois de eleito,
forma seu governo. E, então, tenta cumprir as promessas. Porém, diante dos
frequentes impasses, muitos problemas acabam sem solução. Isso nos leva a
questionar: o que se torna o objeto das campanhas políticas? O que passa a ser
prometido?
U
ma vez que áreas como economia, clima, saúde e segurança já não estão sob o
controle do Estado-Nação – cuja margem de manobra é cada vez menor –, onde
então sobrevive a soberania? Sobrevive nas fronteiras e na definição de quem
pertence à comunidade política e quem não pertence. As fronteiras permanecem sob a
autoridade do Estado-Nação, o que impulsiona os soberanistas, que fazem da
imigração um problema central. E essa promessa eleitoral é factível: o controle de
fronteiras pode ser realizado com maior financiamento, ainda que desafie as leis
internacionais, pois continua sob o guarda-chuva do Estado-Nação.
Quando os soberanistas atribuem à imigração a origem de todos os males, estão
falando de um dos poucos problemas que governos ainda podem enfrentar de forma
direta. Evidentemente, reduzir a imigração não solucionará todas as questões sociais
da Europa ou dos Estados Unidos, mas é uma promessa possível de ser cumprida.
Além dos soberanistas, o outro grupo que se beneficia da redução da capacidade de
governar são os “demolidores”. Diante da incapacidade do Estado-Nação de entregar
soluções, eles propõem a destruição do próprio Estado, permitindo que os indivíduos
– especialmente os mais fortes – exerçam suas vontades livremente, sem impedimentos
ou regulações.
A agenda do desmantelamento do aparelho estatal ou do Estado administrativo é
relativamente fácil de implementar. É, portanto, uma promessa realizável, num
contexto em que poucas promessas são. Essa estratégia é mais do que ideológica. É
também política, pois permite aos demolidores afirmarem que estão entregando
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resultados tangíveis e diretos, enquanto os partidos tradicionais se debatem para
realizar políticas públicas complexas e sem eficácia. Os demolidores promovem, assim,
uma volta ao estado de natureza, pré-hobbesiano. É o caso de figuras como Javier
Milei e Jair Bolsonaro, cujo vocabulário é permeado pela palavra “destruição”. Já os
soberanistas encontram-se representados por Viktor Orbán, Giorgia Meloni e Marine
Le Pen. Curiosamente, Trump conseguiu reunir os dois discursos: ele é ao mesmo
tempo soberanista e demolidor, combinando as agendas de ambos os grupos em uma
única retórica.
Se fôssemos qualificar ideologicamente os soberanistas e os demolidores, poderíamos
situá-los na extrema direita. No entanto, restringi-los a essa dimensão ideológica
mascara as diferenças significativas entre eles e, sobretudo, oculta suas estratégias de
ação. Enquanto o inimigo dos soberanistas é o “estrangeiro”, o inimigo do demolidor é
o fragilizado: os primeiros fantasiam um mundo no qual Estados fortes protegem seus
nacionais (adotando uma lógica de nacionalidade digna do século XIX) das supostas
“hordas de imigrantes”; os segundos imaginam um mundo no qual a ausência de
Estado e normas permita que os mais fortes triunfem.
A partir de agora, esses grupos terão sempre a vantagem do voto, pois restam poucas
alternativas para os governos. Aliado a essa vantagem eleitoral está o fato de que as
eleições foram originalmente concebidas para sociedades com meios de comunicação
de massa e partidos políticos estruturados. Em um contexto em que a mídia é
totalmente fragmentada e descontínua, sem possibilidade de uma esfera pública – que
pressupõe valores comuns e regras compartilhadas – e os partidos políticos foram
convertidos em legendas digitais, também fragmentadas, o elemento de
entretenimento se intensifica no voto. Vota-se não mais para que o governo realize
ações concretas. Vota-se, isso sim, por identificação ou simpatia com o candidato.
Grande parte dos eleitores tem um perfil nas redes sociais. Esse perfil precisa ter
opinião sobre tudo, reagir a tudo, conectar-se com o que está sendo discutido. E,
principalmente, precisa construir uma autoimagem para projetar perante os outros. O
voto torna-se, então, apenas mais um dos vários sinais utilizados para compor o perfil,
um elemento tão profundo para a pessoa quanto uma foto no Instagram, um meme ou
um like. Por isso, vota-se não pensando na capacidade de governar do candidato, mas
por identificação com o perfil digital encarnado pelo candidato e o tipo de imagem que
esse voto projeta no próprio perfil do eleitor. Por isso, candidatos mais histriônicos,
contrários ao senso comum e que se destacam dos demais tendem a ter sucesso.
“Candidatos memes” são muito mais atraentes, nessa perspectiva, do que candidatos
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sérios e profissionais.
Nesse contexto, tirar grandes conclusões sobre o que o resultado das eleições diz sobre
determinada população é uma atitude precipitada. Talvez as pessoas tenham votado
em Trump porque o consideram cativante, engraçado, ou porque o relacionam a uma
marca de sucesso com a qual desejam associar seu próprio perfil. Talvez queiram mais
votar em Trump do que trazê-lo de volta à Casa Branca. Ou talvez tenham votado nele
por causa de algum desconforto ou frustração. Existem tantas motivações para votar,
especialmente em um contexto em que o voto, no fundo, não parece ter grande
impacto.
O fato de a maioria da população americana ter votado em Trump não significa que
nos Estados Unidos haja uma maioria de golpistas, supremacistas brancos ou
negacionistas climáticos. Trump é claramente racista, e ainda assim obteve votação
recorde entre latinos e negros. Ele já fez inúmeras declarações islamofóbicas e
restringiu o direito de entrada de muçulmanos no país, mas, devido à conjuntura em
Gaza, recebeu o apoio de várias lideranças muçulmanas no estado de Michigan. Por
isso a pergunta: será que o voto em Trump, Bolsonaro ou Milei não revela mais sobre a
natureza do voto do que sobre o eleitorado?
A
qui temos uma segunda característica do voto, provavelmente a mais grave e
perigosa. O voto é uma foto; a vida é um filme. As políticas públicas também
são um filme. O voto ocorre em um dia e horário específicos. Ele confere
legitimidade e lastro, por alguns anos, a um equilíbrio de forças extremamente frágil e
volátil. O resultado global da eleição de Trump foi devastador. Mas, se observarmos os
resultados dos estados-pêndulo, a diferença a favor de Trump foi mínima: 30 mil votos
a mais em Wisconsin, 80 mil votos em Michigan, 120 mil votos na Pensilvânia. É
possível, portanto, que qualquer detalhe tenha feito a diferença. Talvez até o apoio de
Dick Cheney a Harris tenha sido suficiente para reverter alguns votos da comunidade
árabe em favor de Trump.
Nesse contexto, é bom lembrar que o congelamento de forças políticas proporcionado
pelo voto foi o que permitiu consolidar o nazismo. Nas eleições de julho de 1932, o
Partido Nazista obteve 37,3% dos votos. Não fez maioria, mas tornou-se a maior
legenda política da Alemanha. No entanto, nas eleições seguintes, em novembro de
1932, os nazistas perderam terreno, obtendo 33,1% dos votos. O historiador
Christopher Browning menciona que, depois do declínio eleitoral no final de 1932, os
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jornais conservadores começaram a comemorar o fim do Partido Nazista.
Ironicamente, foi nesse momento de baixa que Hitler chegou ao poder. Ao se aliarem
ao Zentrum (Centro), um dos partidos de direita clássica, os nazistas conseguiram
assumir o governo. Se essa aliança não tivesse sido formada, o nazismo teria chegado
ao poder? Será que perderia ainda mais apoio na eleição seguinte? De nada adianta
especular. No entanto, o fato é que a eleição congela um momento de equilíbrio de
forças e lhe confere um poder desproporcional de destruição. Por mais quatro anos,
pelo menos, os Estados Unidos terão no controle dos botões nucleares um grupo
político disposto a destruir o que for necessário. Se o voto perdeu muito da capacidade
que tinha de contribuir para a melhoria de vida das pessoas, seu potencial destrutivo
permanece intacto.
Se a única coisa que o sistema político tem a oferecer são eleições nacionais, ficaremos
agora à mercê de soberanistas e demolidores (pois são os únicos com capacidade de
entregar o que prometem) e de figuras carismáticas e divertidas (pois são aquelas com
as quais os perfis se identificam mais). O completo desprendimento do dispositivo do
voto dos motivos que o levaram a ser criado e a transformação deste recurso político
num fim em si mesmo podem ajudar a explicar a crise por que passamos. Se
continuarmos nesse caminho, teremos figuras cada vez mais abjetas e absurdas
dominando as eleições. Em 2018, ficamos chocados com Bolsonaro. Em 2022, ficamos
chocados com um Bolsonaro ainda mais assustador e todos os seus seguidores que
ganharam governos estaduais e cadeiras no Congresso. Em 2024, alguém ainda mais
radical e violento do que Bolsonaro surgiu. O que esperar para 2026? O que pode ser
ainda mais aviltante do que Pablo Marçal? Uma hiena? O fato é que candidatos do
antigo tabuleiro político seguem um conjunto de regras que se convencionou chamar
de “civilizadas”, como, por exemplo, chamar os candidatos adversários pelo próprio
nome – e não de “Chatabata” ou “Boules” (como fez Marçal, referindo-se a Tabata
Amaral e Guilherme Boulos) – e ficam abalados quando “candidatos memes”
transgridem tais regras, tanto na forma quanto no conteúdo.
Uma vez que o dispositivo do voto caducou, é necessário repensá-lo para que isso não
cause a morte da própria democracia. A democracia é muito mais do que seus
dispositivos de funcionamento: ela é feita de valores universais e perenes. Cabe aos
dispositivos se adequarem aos sinais dos tempos. Para além do voto, há vários outros
dispositivos que permitem ampliar a participação da população: orçamento
participativo, referendos, recall, sorteio. A democracia representativa está em crise há
décadas. Para se salvar, a representação está matando a democracia. Cabe, portanto,
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aos democratas imaginar a democracia para além da representação.
Miguel Lago
É cientista político e diretor executivo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde
(Ieps). Cofundador do Meu Rio e do Nossas, lecionou na Universidade Columbia e na
Escola de Saúde Pública T.H. Chan da Universidade Harvard.
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