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40 Anos Do Golpe de 1964 Ditadura Nunca

O artigo analisa as comemorações dos 40 anos do golpe de 1964, destacando os conflitos entre diferentes memórias sociais e a importância da defesa da democracia no debate político-historiográfico atual. A discussão envolve a produção social da memória e a relação entre história e memória, enfatizando a necessidade de uma 'memória das ditaduras' para combater o esquecimento. O autor argumenta que a memória deve servir para a libertação e não para a servidão dos homens.

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O artigo analisa as comemorações dos 40 anos do golpe de 1964, destacando os conflitos entre diferentes memórias sociais e a importância da defesa da democracia no debate político-historiográfico atual. A discussão envolve a produção social da memória e a relação entre história e memória, enfatizando a necessidade de uma 'memória das ditaduras' para combater o esquecimento. O autor argumenta que a memória deve servir para a libertação e não para a servidão dos homens.

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40 ANOS DO GOLPE DE 1964: DITADURA NUNCA MAIS!

Antônio Fernando de Araújo Sá

Departamento de História da UFS

Doutor em História Cultural pela UnB

RESUMO

Este artigo objetiva pensar as comemorações dos 40 anos do golpe de 1964 a partir dos

confrontos dos atores sociais em torno da produção da memória do acontecimento. Reitero,

nesta avaliação sobre os confrontos entre as memórias, a importância da defesa da

democracia como valor universal no debate político-historiográfico contemporâneo.

Palavras-chave: Golpe de 1964, memória, história.

ABSTRACT

This article goal is to think 40 years of the 1964 coup d’état commemoration, having as a

departing point the battles of social actors around the production of event memory. In this

assessment of the conflict between memories, I stress the importance of taking democracy

as an universal value in contemporary debate political and historical.

Keywords: 1964 coup d’état, memory, history.


“A memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura

salvar o passado para servir o presente e o futuro. Devemos trabalhar de

forma a que a memória colectiva sirva para a libertação e não para a

servidão dos homens”

Jacques Le Goff (1984: 47)

Desde a publicação do monumental trabalho organizado por Pierre Nora (NORA,

1997), tem se tornado um lugar comum na cultura contemporânea afirmar que vivemos

numa “era das comemorações”. Há na passagem para o novo século uma revalorização das

práticas e usos da memória, que a transforma em um “negócio tão grande” que a

celebração torna-se auto-referida, memória lembrando memória (OLIVEIRA, 2000). Isto

pode ser percebido no mundo ocidental, tanto na França desde as comemorações do

Bicentenário da Revolução Francesa (1989) e do Maio de 1968, quanto no Brasil, a partir

das comemorações do centenário da Abolição da Escravidão, em 1988, e da Proclamação

da República, em 1989. No caso brasileiro, os últimos anos foram marcados por eventos

comemorativos, pela criação de diferentes espaços e lugares de memória e pela proliferação

de estudos sobre a memória.

Proveniente do latim commemorare, que significa trazer à memória, fazer recordar,

lembrar junto, comemoração pode ser definida “como uma acção de falar ou escrever sobre

recordações bem como a reencenação formal do passado a que geralmente nos referimos

quando usamos a palavra” (FRENTRESS & WICKMAN, 1992, p. 8). É sob ambos os

aspectos, é que se demarca na memória coletiva aquilo que deve ser lembrado, daquilo que
deve ser esquecido, através da comemoração. O que reitera que debater sobre memória, é

discutir a disputa em torno do controle do passado. Portanto, uma questão de poder.

Assim definida, a comemoração se insere naquilo que pode ser chamado a

“produção social do passado”, o que a coloca como elemento central da construção da

identidade e está fundada na memória, na medida em que envolve a coordenação das

memórias individuais e coletivas, cujos resultados podem parecer consensuais quando eles

de fato são o produto de processos de intensa contestação, luta, e, em alguns casos, de

aniquilação (FERREIRA, 1997, p. 157; GILLS, 1996, p. 5). Comemorar deve ser entendido

aqui como um ato de problematizar a memória instituída e não solidificá-la, inscrevendo-a

nas contradições da história dos homens em suas múltiplas e possíveis leituras.

Ora, para se evitar mal entendidos teóricos, é necessário estabelecer uma tipologia

sobre os três grandes tipos de discursos que organizam os vestígios do passado no presente:

o da testemunha, o do historiador, o do comemorador. Segundo Tzvetan Todorov, a

testemunha refere-se “ao indivíduo que convoca suas lembranças para dar uma forma,

portanto um sentido, à sua vida, e constituir assim uma identidade”. Ao historiador, ele

designa “o representante da disciplina cujo objeto é reconstituição e a análise do passado; e,

de modo mais geral, toda pessoa que procure realizar esse trabalho escolhendo como

princípio regulador e como horizonte último não mais o interesse do sujeito, mas a verdade

impessoal”. Quanto ao comemorador, Todorov afirma que, como a testemunha, o

comemorador é guiado pelo interesse, mas, como o historiador, produz seu discurso no

espaço público - escola, meios de comunicação de massa, debates parlamentares etc. -

apresenta-o dotado de uma verdade irrefutável. A comemoração, neste sentido, é a

adaptação do passado às necessidades do presente.


Mas quanto ao historiador e ao comemorador é importante sublinhar uma diferença

de fundo: enquanto a história complica nosso conhecimento do passado, a comemoração a

simplifica. A primeira é sacrílega, a segunda, sacralizante. Daí seu alerta de que o “passado

pode alimentar nossos princípios de ação do presente; mas nem por isso nos revela o

sentido desse presente.” Tanto a sacralização do passado o priva de toda a eficácia no

presente, como “a assimilação pura e simples do passado ao presente nos deixa cegos

diante dos dois, e por sua vez provoca a injustiça” (TODOROV, 2002, p. 151-156 e 207).

Para se pensar as comemorações dos 40 anos do Golpe de 64, inseri duas dimensões

que reputo como fundamentais. Primeiro, tais comemorações precisam ser pensadas no

campo da história do tempo presente. Segundo, situá-lo a partir da expansão global de uma

cultura e de uma política da memória, associada ao fim das ditaduras latino-americanas, ao

“apartheid” na África do Sul e a derrubada do Muro de Berlim (HUYSSEN, 2000). Então,

o Golpe de 64 pode ser pensado como um “passado que não quer passar”, no qual os

atores sociais em luta buscam, na conjuntura memorial do presente, reiterar a necessidade

de se fortalecer a democracia, não obstante a política de esquecimento colocada em prática

pela conciliação da transição democrática.

1.

Mesmo em países como a França, onde o desenvolvimento da história do tempo

presente encontra-se, atualmente, institucionalizada, houve um longo embate

historiográfico para que se desfizesse o estigma de objeto de estudo problemático,

constantemente questionado em sua legitimidade. Inclusive, Pierre Nora chegou a afirmar

que a história contemporânea tornou-se uma história sem historiadores.


René Rémond propõe três itens que comprovam a legitimidade científica e a

relevância social da história do tempo presente. Primeiro, não há diferença entre a atividade

de um historiador da Guerra do Peloponeso e a daquele que se interessa pela II Guerra

Mundial. A proximidade não impossibilita a busca da verdade e o rigor da pesquisa é igual

ou maior do que de outros períodos. Segundo, diz respeito à delimitação do campo que

constitui o objeto próprio da história do tempo presente. Os historiadores do tempo presente

devem rever continuamente a delimitação do seu campo de pesquisa, pois as mudanças

provocadas pela aceleração da história trazem novos temas, novos objetos, novas

abordagens, como é o caso da Guerra Fria, do comunismo, da descolonização, que, em

pouco tempo, deixou de ser história do tempo presente para se tornar objeto do passado.

Por fim, qual é o impacto da reintegração do tempo presente na perspectiva do

historiador? Quais os efeitos sobre o seu ofício e a prática de seus métodos? De um lado,

com relação às fontes, os arquivos perderam seu caráter exclusivo, na medida em que se

recorreu as fontes orais, visuais, da imprensa etc. O historiador que trabalha com o tempo

presente tem a desvantagem da abundância das fontes ao invés da penúria. Por outro lado,

segundo Rémond, o historiador do tempo presente varreu os últimos vestígios do

positivismo, tanto quando ele sabe que sua objetividade é frágil, quanto sobre sua

importância para a construção dos fatos (RÉMOND in FERREIRA & AMADO, 1996).

Como um dos grandes temas da história do tempo presente foi o estudo da presença

incorporada do passado no presente das sociedades, Roger Chartier afirma que a

contemporaneidade de seu objeto possibilita ao historiador do tempo presente partilhar

“com aqueles cuja história ele narra as mesmas categorias essenciais, as mesmas

referências fundamentais”. Por isso, este historiador é, pois, “o único que pode superar a
descontinuidade fundamental que costuma existir entre o aparato intelectual, afetivo e

psíquico do historiador e o dos homens e mulheres cuja história ele escreve” (CHARTIER

in FERREIRA & AMADO, 1996, p. 216).

A propósito, continuamente os historiadores do tempo presente são confrontados

com a palavra do testemunho pessoal daqueles que viveram o que está sendo relatado pelo

profissional de história, muitas vezes interpelando-os com vibrantes recordações e

indagações sem resposta. Como ressalta Arlette Farge, o “testemunho e a objectividade da

história parecem então contradizer-se ao mesmo tempo que ameaçam estabelecer um

conflito, por vezes doloroso, entre memória e história” (FARGE, 1999, p. 99-100).

O confronto entre memória e história, entre testemunha e relato, não seria por conta

de “a história nem sempre estar apta a trabalhar a palavra de outrem?” Farge responde

que a “palavra em história serve demasiado facilmente o relato como simples episódio,

desgarramento do discurso, e não é freqüente ela intervir como lugar principal de onde

jorra a interrogação historiadora” (FARGE, 1999, p. 100-101).

Mas se memória não é história, a sua irrupção, muitas vezes, incomoda o historiador

pelo transbordamento de sensibilidades, sentimentos, enfim da subjetividade, que acaba por

dificultar o ordenamento lógico da fabricação de determinado discurso histórico, marcado

pelo relato coerente, ordenado e verídico, ora distraindo-o ou mesmo desviando-o.

Como bem observou François Dosse,

“Longe de estar confinada ao estatuto de resíduo ilusório, mistificado, de atores

manipulados, a memória convida a levar em consideração os atores, suas

competências, e nos lembra de que ela freqüentemente comanda a história que se faz”

(DOSSE, 2003, p. 291-292).


Neste sentido, Raphael Samuel propõe que a memória é uma força ativa e dinâmica,

relacionando-se dialeticamente com o pensamento histórico, ao invés de ser apenas uma

espécie de seu negativo. Sob o seu ponto de vista,

“(...) a memória é historicamente condicionada, mudando de cor e forma de acordo

com o que emerge no momento; de modo que, longe de ser transmitida pelo modo

intemporal da ‘tradição’, ela é progressivamente alterada de geração em geração. Ela

porta a marca da experiência, por maiores mediações que esta tenha sofrido. Tem,

estampadas, as paixões dominantes de seu tempo. Como a história, a memória é

inerentemente revisionista, e nunca é tão camaleônica como quando parece

permanecer igual” (SAMUEL, 1997, p. 41-45).

No caso brasileiro, a história do tempo presente torna-se extremamente relevante na

medida em que o esquecimento tem sido empregado como uma arma pelos responsáveis

pela ditadura e pelos condutores das transições em direção à democracia, com o objetivo

de, em nome de uma suposta unidade nacional, destruir a memória dos anos de chumbo

como foi o caso do Riocentro e da Guerrilha do Araguaia. Como ressaltou o professor

Francisco Carlos Teixeira da Silva, a história do tempo presente no Brasil encontrou

inúmeros obstáculos para o seu desenvolvimento acadêmico, ora por certo preconceito

acadêmico, ora pelo acesso restrito aos documentos - além da ação da censura política. Mas

o mais importante na luta contra o esquecimento é a insistência numa “memória das

ditaduras”, que possibilite, de um lado, a emergência de uma multiplicidade de lugares de

fala dos diversos atores como enunciadores de uma memória da violência e do arbítrio e, de
outro, o engajamento na luta pela salvação de acervos, depoimentos e lugares de memória

(SILVA in ASSIS, 2001).

Tal iniciativa se faz mais do que necessária na medida em que o Decreto 4553,

assinado em 27 de dezembro de 2003, pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e

mantido pelo governo Lula, afirma que “o prazo de duração de classificação ultra-secreto

poderá ser renovado indefinidamente, de acordo com o interesse da segurança da sociedade

e do Estado” (CARNEIRO, 2003). Esta medida, além de inconstitucional e

antidemocrática, praticamente inviabiliza a possibilidade de se escrever sobre a história do

tempo presente no Brasil, pois o dispositivo ampliou os prazos de segredo de todas as

categorias de documentos e ainda permite, no caso dos chamados ultra-secretos, a

renovação do sigilo indefinidamente.

2.

Os estudos dedicados às modalidades de construção e institucionalização das

memórias contemporâneas foram decisivos para o início de novas pesquisas que tentam

identificar, além do mero discurso histórico, as formas múltiplas e, possivelmente,

conflitantes de rememoração e utilização do passado. Neste sentido, a história do tempo

presente interpõe o desafio de enfrentar a questão da responsabilidade social do pesquisador

na abordagem de temas controversos e que ainda tocam indelevelmente a vida das pessoas,

como é o caso do golpe de 1964. Utilizando a imagem do palimpsesto, Bédarida afirma que

“o tempo presente é reescrito indefinidamente utilizando-se o mesmo material, mediante

correções, acréscimos, revisões”, num constante processo de reescrita (BÉDARIDA in

FERREIRA & AMADO, 1996).


Construída num espaço de lutas, a memória de 64 impõe aquilo que Ricoeur

chamou de “dever de memória”, ao propor um entrelaçamento entre história, memória e

justiça, na qual a memória dos testemunhos (dos sobreviventes) dialoga com a história dos

historiadores. Ao lado da pretensão de condenar os excessos da memória por parte dos

historiadores, o autor defende uma política de “justa memória”, na condição de tema cívico

da maior importância, na medida em que possibilita estabelecer a idéia de um “dever de

memória” e de uma “dívida” em relação às vítimas da história, sem, contudo, retirar da

história sua autonomia e sua “função corretiva de verdade” (SILVA, 2002, p. 437).

Então, Ricouer defende uma relação “indecisa” entre a memória e a história, na

medida em que ambas constituem modalidades essenciais de afirmação da consciência

histórica e que as suas narrações não são uma mimese do espaço e do tempo reais, porque

referenciam “objetos ausentes”. Assim, “a recordação e a historiografia constroem re-

presentificações que interrogam os indícios e traços que ficaram do passado”. Nesta leitura,

apesar do traço da anamnese individual ser interior, é possível ser ela provocada pelo

testemunho do documento que “religa memória e história, através de interrogações que o

historiador formula em função da sua própria existência, isto é, das suas retrospectivas e

esperanças”. É que “o acontecido já não existe, no campo das re-presentificações, ele

continua a ter futuro” (CATROGA, 2001, p. 45).

Os historiadores do tempo presente têm, então, se confrontado com situações que

dizem respeito ao trabalho da lembrança e do luto, que carregam consigo os traumas da

memória (individual e coletiva). Isto possibilita pensar as comemorações dos 40 anos do

golpe de 1964 a partir dos confrontos dos atores sociais em torno da produção da memória

do acontecimento. O processo de transição à democracia trouxe consigo questões que


fizeram com que militares e os militantes de esquerda repensassem suas visões sobre o

golpe de 1964.

A memória militar sobre o golpe de 1964 só recentemente recebeu a devida atenção

por parte dos historiadores. Talvez porque os próprios militares não tinham interesse em

rememorar a experiência vivida pela intervenção militar no cenário político. A necessidade

de intervir na memória coletiva pode ser buscada ao longo do processo de transição à

democracia, quando a imagem dos militares encontrava-se arranhada pela violência e o

terror implementado pela ditadura militar.

Nos depoimentos colhidos por Maria Celina D´Araújo, Gláucio Soares e Celso

Castro (1994) vislumbram-se o papel central do anticomunismo na explicação dos motivos

que levaram ao golpe. Contudo, esta intervenção militar deve ser inserida no contexto da

Guerra Fria, na medida em que os depoimentos dos militares relevam que, ao lado da

Indochina, Argélia, Cuba, “1964 é visto como mais um episódio da grande guerra

ideológica entre comunismo e capitalismo”. A visão destes militares conduz a uma leitura

de um “‘contragolpe’ ao golpe de esquerda que viria, provavelmente assumindo a feição de

uma ‘república sindicalista’ ou ‘popular’”. Para eles, o pecado capital da esquerda foi a

quebra dos princípios da hierarquia e da disciplina militar como o apoio a revolta dos

sargentos em 1963 e a dos marinheiros e fuzileiros navais em março de 1964. Isto por si só

seria motivo para a intervenção militar, segundo alguns. Por outro lado, no depoimento de

Leônidas Pires Gonçalves, “a Revolução saiu sob pressão da sociedade civil”, pois,

assustados com a possibilidade de a esquerda tomar o poder, a Igreja, empresários e classe

média foram cúmplices do golpe. Neste mesmo depoimento, o general expõe sua mágoa ao

afirmar que “(...) hoje em dia a mídia não se cansa de nos jogar na cara que nós somos
torturadores, que somos matadores (...). Acho que há muita injustiça” (D´ARAÚJO,

SOARES & CASTRO, 1994).

Talvez o ponto mais interessante destes depoimentos seja o fato de que o golpe

apareça como o “resultado de ações dispersas e isoladas, embaladas, no entanto, pelo clima

de inquietação e incertezas que invadiu a corporação” (Idem). Assim, não havia um projeto

de governo entre os vencedores, sendo o mesmo moldado ao longo do exercício do poder,

especialmente para conter os excessos da chamada linha dura como forma de garantir a

unidade militar.

A memória dos militantes da esquerda sobre o golpe de 64 se construiu com base na

compreensão de sua derrota. Segundo Dênis de Moraes, há quatro linhas interpretativas

sobre a derrocada das forças progressistas. A primeira é que a política de alianças do bloco

nacional-reformista superaria a ofensiva conservadora e golpista. Tal idéia criava a ilusão

de que as reformas de base eram inevitáveis por conta da mobilização popular. A segunda

tese propõe que as forças de esquerda não conseguiram estabelecer uma plataforma

comum, mostrando a incapacidade de elaboração estratégia e tática para convencer a

sociedade brasileira como um todo da necessidade de se implementar as reformas de base.

Terceiro, “as contradições entre as próprias forças de esquerda impediram que elas

impusessem a sua direção político-ideológica ao bloco nacional-reformista. Em

conseqüência, revelaram-se impotentes para debelar a articulação do complexo conservador

(IPES, ESG etc.) por uma reordenação do sistema capitalista no Brasil”. Por fim, a quarta

linha interpretativa “transfere para o Presidente Goulart a responsabilidade maior pela

derrota” (MORAES, 1989, p. 361-164).

Tais teses convergem para dois dados fundamentais para a compreensão da derrota

da esquerda no contexto do golpe de 1964. De um lado, “as contradições entre as forças


progressistas superam a busca de um consenso que respalde a unidade de ação nas questões

centrais ao avanço democrático” e a “subestimação do valor da democracia” (Idem). Talvez

o mais importante desta memória traumática para a esquerda seja a possibilidade de rever

sua idéia de democracia, que, naquela época, era eminentemente instrumental, isto é, era

apenas um meio para atingir o poder e não um fim em si. Hoje podemos afirmar que a

democracia pode ser considerada um “valor universal” no seio da esquerda brasileira.

Mas gostaria aqui de destacar que, na disputa mnemônica entre a memória militar e

a da esquerda, pelo menos do ponto de vista simbólico, a esquerda teve a capacidade de

repassar sua memória de 64, derrotando, assim, a memória dos militares. Mesmo submetida

a uma violência extrema e mantida na clandestinidade, a memória subterrânea dos

militantes de esquerda dos anos 1960-1970 souberam construir uma rede simbólica e

marginal na família e nos círculos de amizades que possibilitou a sua emergência no

processo de redemocratização, denunciando as cassações, prisões e torturas a que foram

submetidos.

Essa disputa continua e de modo recorrente tem emergido nos contextos

comemorativos como é o caso dos 40 anos do Golpe de 1964. Sua importância deve ser

aqui reiterada pelo fato de que o fracasso da solução institucional para as reformas

propostas em 1964 se deveu ao fraco compromisso com a manutenção das regras

democráticas, tanto por parte da direita como da esquerda, pois nenhum “dos dois grupos

mostrava-se disposto a assumir as implicações da incerteza de resultados embutida na

noção de democracia” (FIGUEIREDO in TOLEDO, 1997, p. 53). Reiterar a democracia

como “valor universal” hoje talvez seja o melhor caminho, tanto para a direita como para a

esquerda, para que possamos afirmar, em alto e bom som: DITADURA NUNCA MAIS!
3.

À guisa de conclusão, no confronto das memórias, a esquerda brasileira conseguiu

produzir uma leitura que privilegiou a importância da construção de uma consciência

democrática e de cidadania, tentando evitar a política de esquecimento produzido por

diferentes grupos sociais em luta no processo de transição democrática. Tal fato pode ser

explicado, em parte, pela negligência de parte significativa da esquerda sobre a questão

democrática nos anos 1960 e que foi revisto na luta democrática.

Ao contrário, a memória militar viu-se imersa nas contradições ocasionadas pelo

envolvimento direto dos militares no exercício do poder, configurando uma imagem

negativa de toda a corporação, ligando-a a prisão, a tortura, ao assassinato de oponentes, ao

terrorismo de Estado, enfim, a toda a prática de violência e repressão vinculada aos porões

da ditadura militar.

As questões aqui levantadas possibilitam discutir o papel do historiador e da história

no confronto das memórias coletivas e a sua importância no contexto da dominação social

no mundo contemporâneo. O direito à memória torna-se, assim, dimensão fundamental da

cidadania, pois a preservação dos registros da história e do seu livre acesso aos diversos

sujeitos sociais depende da maior participação da sociedade civil nos quadros decisórios.

Assim, o historiador deve, enquanto trabalhador da memória, colaborar, como mencionado

na epígrafe do trabalho, “... de forma a que a memória colectiva sirva para a libertação e

não para a servidão dos homens” (LE GOFF, 1984).


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