FILOSOFIA
3 licenciatura a distância
A Origem da Ontologia na Metafísica Grega
Nazareno Eduardo de Almeida
É doutor em Filosofia pela
PUC - Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul.
Atualmente é Professor Associado
do Departamento de Filosofia da
Universidade Federal de Santa
Catarina - UFSC, com atuação na
área de Metafísica.
A ORIGEM DA ONTOLOGIA
NA METAFÍSICA GREGA
Nazareno Eduardo de Almeida
A ORIGEM DA ONTOLOGIA NA
METAFÍSICA GREGA: PARMÊNIDES,
PLATÃO E ARISTÓTELES
Nazareno Eduardo de Almeida
Florianópolis, 2024.
GOVERNO FEDERAL
Presidente da República: Luiz Inácio Lula da Silva
Ministro de Educação: Camilo Santana
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
Reitor: Irineu Manoel de Souza
Vice-reitora: Joana Célia dos Passos
Pró-reitora de Ensino de Graduaçãoe Educação básica PROGRAD: Dilceane Carraro
Pró-reitora de Extensão (Proex): Olga Regina Zigelli Garcia
Pró-reitor de Pesquisa e Inovação (Propesq): Jacques Mick
Pró-reitor de Pós-Graduação (PROPG): Werner Kraus
Pró-reitor de Administração (Proad): Vilmar Michereff Junior
Pró-reitora de Permanência e Assuntos Estudantis (Prae): Simone Sobral Sampaio
Pró-reitora de Desenvolvimento e Gestão de Pessoas (Prodegesp): Sandra Regina Carrieri de Souza
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL - UFSC
Secretária de Educação a Distância: Susan Aparecida de Oliveira
Coordenadora do Núcleo da Universidade Aberta do Brasil: Jaqueline Zarbato
Coordenador Adjunto da Universidade Aberta do Brasil: Rafael Pereira Ocampo Moré
Coordenador de Tutoria: Isaías Scalabrin Bianchi
Equipe Técnica Núcleo UAB: Ana Carla Andrada dos Santos; Andrey Anderson dos Santos; Sérgio
Machado Wolf
CURSO DE LICENCIATURA EM FILOSOFIA NA MODALIDADE A DISTANCIA
Chefe do Departamento: Franciele Bete Petry
Coordenador de Curso: Jaimir Conte
Técnica-Administrativa em Educação: Sienna Pedrotti
Copyright © 2024 Licenciatura a Distância FILOSOFIA/EAD
/UFSC. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida,
transmitida e gravada sem a prévia autorização, por escrito, da
Universidade Federal de Santa Catarina.
Catalogação na fonte pela Biblioteca Universitária
da
Universidade Federal de Santa Catarina
A447o Almeida, Nazareno Eduardo de
A origem da antologia na metafísica grega [recurso eletrônico]:
Parmênides, Platão e Aristóteles / Nazareno Eduardo de Almeida. –
Florianópolis: Licenciatura à Distância Filosofia/EAD/UFSC, 2024.
382 p. – (Licenciatura à distância).
E-book (PDF)
ISBN 978-85-8328-278-5
1. Ontologia. 2. Platão, 427-347 a.C. 3. Aristóteles. I. Título. II. Série.
CDU: 111
Elaborada pela bibliotecária Dênira Remedi – CRB 14/1396
Núcleo UAB/UFSC
Secretaria de Educação a Distância – SeaD
R. Dom Joaquim, 757 – Centro, Florianópolis – SC, 88015-310
SUMÁRIO
Apresentação 11
CAPÍTULO 1 PANORAMA DA HISTÓRIA DA ONTOLOGIA ANTIGA COMO
PARTE DA HISTÓRIA DA METAFÍSICA 15
A –Texto básico: a história da ontologia antiga e posterior
como parte da história da metafísica e da filosofia 16
1. Esclarecimento inicial dos termos ‘metafísica’, ‘ontologia’ e
‘henologia’…………………………………..………...……….. 16
2. A história da ontologia como parte da história da metafísica e
as cinco fases da história da metafísica……………………… 20
B –APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES 26
1. O ressurgimento da ontologia no século XX e a noção de
história da metafísica.…………………………..…………….. 26
2. A recepção da Metafísica de Aristóteles como ponto de
partida adequado para estabelecer as noções de história da
metafísica e história da ontologia……………….……………. 30
2.1. Introdução: os períodos da história da metafísica a partir
da recepção da Metafísica de Aristóteles na filosofia
posterior……………………………....……………..….….…. 30
2.2. O primeiro período da história da metafísica: do
surgimento da Metafísica de Aristóteles (séc. I a. C.) até sua
recepção na filosofia islâmica (séc. IX d. C.)…………....……. 32
2.3. O segundo período da história da metafísica: da recepção
da Metafísica na filosofia islâmica (séc. IX d. C.) até as
Disputas metafísicas (1597) de Francisco Suárez…………….. 34
2.4. O terceiro período da história da metafísica: das Meditações
metafísicas (1641) de Descartes até a Crítica da razão pura
(1781) de Kant….…………………………..……………….... 38
2.5. O quarto período da história da metafísica: das primeiras
interpretações da proposta kantiana de transformação da
metafísica até os nossos dias……………….……………..…. 41
3. As interpretações teológica e ontológica da Metafísica de
Aristóteles e os problemas sobre a coerência e unidade da
obra…………………………...……………..………….…….. 46
6 Nazareno Eduardo de Almeida
4. A Metafísica de Aristóteles como ponto de partida para
compreender a história da metafísica pré-aristotélica…....…. 51
4.1. O aspecto intrinsecamente histórico da Metafísica de
Aristóteles…………...……….…………………………….….. 52
4.2. A linhagem henológica e a linhagem ontológica da
metafísica antiga……………...………………………………. 54
CAPÍTULO 2 O NASCIMENTO DA ONTOLOGIA NO POEMA DE
PARMÊNIDES 65
A –TEXTO BÁSICO 66
1. A importância e a estrutura do poema de
Parmênides……………………………………………..…….. 66
2. Os dois (ou três) caminhos de investigação e a identidade
entre pensar e ser……………………….………………..…… 68
3. As características intrínsecas do ser e a identidade como
característica primeira…………………..………………......... 73
B –APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES 79
1. Uma tradução dos fragmentos do poema de
Parmênides………………………………………………….... 79
2. A estrutura do poema Sobre a natureza…….……..…….….... 84
2.1. O proêmio 85
2.2 O caminho da verdade 85
2.3 O caminho da opinião 86
3. A importância de Parmênides na história da filosofia e da
metafísica gregas…………...……………………...….………. 88
4. Exposição geral da ontologia de Parmênides………………… 95
4.1. Os dois (ou três) caminhos de investigação da verdade, o
postulado-imperativo da identidade entre pensar e ser e a
diferenciação entre pensar, perceber, aparecer e ser…...…….. 95
A – Os dois (ou três) caminhos de investigação da verdade…..... 95
B – O postulado imperativo da identidade entre pensar e ser….. 104
C – A diferenciação entre pensar, perceber, aparecer e ser.…….. 110
4.2. As características intrínsecas do ser, a metodologia
axiomática e a identidade como característica fundamental... 114
A – As características intrínsecas do ser…………………...…..... 114
B – A metodologia axiomática de Parmênides…………..……… 122
C – A identidade como característica fundamental do ser…...… 127
CAPÍTULO 3 O DIÁLOGO SOFISTA E A ONTOLOGIA EM PLATÃO 131
A –TEXTO BÁSICO……………………………………………… 132
1. Introdução: as duas fases da ontologia de Platão….……..…… 132
2. A recepção da ontologia parmenídica nos diálogos da
maturidade………………………………..………………….. 134
A origem da ontologia na metafísica grega 7
3. O diálogo Sofista como crítica e reformulação da ontologia
parmenídica…………...………………………...………….. 138
3.1. A primeira parte do diálogo: o Estrangeiro de Eleia e as
primeiras tentativas de definição do sofista e sua técnica…… 138
3.2. O sofista como ilusionista e a questão da falsidade e do
não-ser……………….……………………………………….. 140
3.3. A revisão das concepções do ser e o problema da
predicação…………………………………………………...... 142
3.4. A dialética como “gramática” das Formas, os gêneros
supremos e a definição do não-ser como alteridade ou
diferença…………………………………………………...…. 144
B –APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES 150
1. Introdução: a importância e o papel de Platão na história da
metafísica e da ontologia………..……………………………. 150
2. Sobre a apropriação da ontologia parmenídica nos diálogos
da maturidade…………….…………………………..……..... 152
3. A reformulação da herança ontológica parmenídica no
diálogo Sofista……………………………………………………. 161
3.1. Introdução: a crítica à teoria das Formas no diálogo
Parmênides e sua reformulação no Sofista:………………….... 161
3.2. A primeira parte do Sofista: o método da divisão e os seis
candidatos à definição de sofista:…………….…………….. 165
3.3. A sofística como falsa aparência de conhecimento universal
e o sofista como produtor de simulacros:………...………...... 168
3.4. O problema do erro e a questão do não-ser:………...……… 172
3.5. O “parricídio” de Parmênides e o interlúdio sobre as
concepções ontológicas anteriores ao Sofista:……….……….. 175
3.6. O problema da predicação e a dialética………………...…... 177
3.7. Os gêneros supremos, suas relações mútuas e a definição do
não-ser como alteridade (diferença):……….…………..….. 179
3.8. A falsidade do discurso e da opinião e o retorno à definição
do sofista………….………………………….………...……… 183
CAPÍTULO 4 O LIVRO IV DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES COMO
MODELO HEGEMÔNICO DA ONTOLOGIA POSTERIOR 187
A –TEXTO BÁSICO 188
1. Introdução geral à ontologia aristotélica…………...……….... 188
2. A primeira versão da ontologia aristotélica no tratado
Categorias…………………………………………………………. 189
2.1. Introdução: a estrutura do texto e o sentido do conceito de
categorias……………………...………………………………. 189
2.2. O capítulo 1: homonímia, sinonímia e paronímia……...…... 190
2.3. O capítulo 2: o quadrado ontológico aristotélico……..…….. 192
2.4. O capítulo 5: a hierarquia ontológica entre as categorias a
8 Nazareno Eduardo de Almeida
partir da categoria de substância……….….…………..……... 194
3. A ontologia aristotélica no Livro IV da Metafísica……...…….. 197
3.1. Introdução: as duas partes do Livro IV da Metafísica e o
contraste com a ontologia de Categorias…...………………….. 198
3.2. O capítulo 1 do Livro IV: a ontologia aristotélica como
ciência universal do ser enquanto ser por si mesmo……....… 203
3.3. O capítulo 2 do Livro IV: a ciência do ser enquanto ser
como ciência dos conceitos fundamentais…...…...………….. 204
I. Introdução: as partes do capítulo 2…………………………..... 204
II. A primeira parte do capítulo 2: a substância como
significação focal dos múltiplos sentidos do conceito de ser .. 205
III. A segunda parte do capítulo 2: a ontologia aristotélica como
ciência dos conceitos fundamentais………………....…..…... 208
(A) A primeira linha de argumentação: a ciência do ser
enquanto ser como ciência dos múltiplos sentidos do
conceito de unidade……………..………………………….... 208
(B) A segunda linha de argumentação: a ciência do ser
enquanto ser como ciência da totalidade dos conceitos
fundamentais…………………………………….…..………... 210
3.4. O capítulo 3 do Livro IV: a ontologia aristotélica como
ciência dos princípios ontológicos primários…….………….. 212
I. A primeira parte do capítulo 3: os “axiomas” como princípios
do ser enquanto ser…………...………………..……………... 213
II. A segunda parte do capítulo 3: as características do princípio
primário do ser enquanto ser……………………….…….….. 215
III. A terceira parte do capítulo 3: a enunciação do princípio da
não-contradição como princípio primário e sua primeira
defesa………………………………………………………….. 217
3.5. O capítulo 4 do Livro IV: os sete argumentos em defesa dos
princípios primários………………….…………………..….. 220
3.5.1. Introdução: a forma lógica do PNC, a tese do adversário e
a metodologia argumentativa de Aristóteles no capítulo 4….. 220
3.5.2. Uma exposição sinóptica das partes do capítulo 4……….. 225
3.5.3. Conclusão sobre o capítulo 4 …………………..…………. 237
3.6. Os capítulos 5 e 6 do Livro IV: a defesa dos princípios
primários contra o relativismo…………….…………………. 238
3.6.1. Introdução: a divisão dos capítulos 5 e 6 e sua unidade
como refutação do relativismo………………………...….….. 238
3.6.2. O capítulo 5: os argumentos para “curar” os adversários
de boa-fé………………………………………………………. 239
(A) A primeira parte do capítulo 5: o relativismo de Protágoras
e a divisão dos adversários relativistas……………..…….…... 239
(B) A segunda parte do capítulo 5: o diagnóstico e a “cura” dos
adversários de boa-fé…………………………………………. 241
3.6.3. O capítulo 6: os argumentos para “constranger” os
adversários de má-fé …………………………………..……... 245
A origem da ontologia na metafísica grega 9
B –APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES 251
1. Introdução: a ontologia aristotélica no Livro IV da Metafísica
como ciência dos conceitos e princípios fundamentais……... 251
2. A primeira parte do Livro IV: a ontologia como ciência dos
conceitos fundamentais relacionados com o ser como
substância……………………………………………………. 255
2.1. Capítulo 1: a apresentação e o sentido geral da ciência do
ser enquanto ser……………..……..…………………..……... 255
2.2. O capítulo 2: a ciência do ser enquanto ser como ciência
dos conceitos fundamentais…….………………………...….. 261
2.2.1. A primeira parte do capítulo 2: a teoria da significação
focal do conceito de ser como fundamento da ciência do ser
enquanto ser……………………………..…………………..... 262
2.2.2. A segunda parte do capítulo 2: a teoria da significação
focal aplicada ao conceito de unidade e aos demais conceitos
fundamentais referidos ao ser e à unidade………..…………. 271
I. Introdução: a importância do aspecto henológico presente na
segunda parte do capítulo 2……..………………………..…... 271
II. A primeira linha de argumentação: a aplicação da
significação focal à polissemia do conceito de unidade….….. 274
III. A segunda linha de argumentação: a aplicação da
significação focal a todos os conceitos fundamentais
relacionados com os pares de conceitos de ser/não-ser e
unidade/multiplicidade………………...……………...…….... 277
2.2.3. Apontamentos gerais sobre a teoria da significação focal... 287
3. O capítulo 4 como núcleo da segunda parte do Livro IV…….. 290
3.1. A lógica subjacente nas demonstrações por refutação do
PNC e os limites da argumentação aristotélica….……….…... 290
3.2. Uma análise de três argumentos do capítulo 4…...…….….... 301
3.2.1. O primeiro argumento (1006a 28-1007a 20): argumento
da unidade da significação …………………….………..….... 302
3.2.2. O segundo argumento (1007a 20-1007b 18): argumento
da distinção entre substância e acidente…………….……….. 316
3.2.3. O quarto argumento (1008a 2-34): o argumento a partir
da defesa do terceiro excluído (PTE)………………...…...….. 333
3.3. Conclusão da análise dos três argumentos em defesa do
PNC: o sentido henológico presente defesa do PNC………... 349
APÊNDICE Uma tradução do Livro IV da Metafísica, caps. 1-6……... 352
BIBLIOGRAFIA ………………………………………………………...…..……... 379
APRESENTAÇÃO
Este livro visa fazer uma apresentação introdutória da ontologia na
filosofia antiga, particularmente na filosofia grega, e ainda mais
especificamente, nas filosofias de Parmênides, Platão e Aristóteles.
Inicialmente, é um texto voltado para os/as estudantes da disciplina Ontologia
I do Curso de Filosofia a distância (EaD) promovido pelo Departamento de
Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina em parceria com a
Universidade Aberta do Brasil (UAB). Mas como se trata de um texto que é de
domínio público, este livro procura também fazer uma exposição um pouco
mais avançada desta temática. Por conta disso, mesmo sendo um texto
introdutório, visa um duplo público: um público de estudantes iniciais, mas
também pessoas com maior interesse na ontologia antiga, quer sejam essas
pessoas os/as docentes da disciplina, quer sejam estudantes do próprio curso a
distância ou de curso de graduação ou mesmo de pós-graduação que se
interessem pelo assunto para além dos afazeres acadêmicos usuais.
Essa dupla finalidade se reflete na estrutura do texto. No início de cada
capítulo, são encontrados os textos básicos que visam a primeira leitura
dos/das estudantes iniciantes no assunto. Na segunda parte de cada capítulo,
encontram-se os textos que compõem a parte de discussões e
aprofundamentos. Nesta chave de leitura e estudo, o livro se compõe de quatro
capítulos. O primeiro capítulo apresenta um panorama sobre a história da
metafísica em geral e mais especificamente da metafísica grega para poder
situar em seu âmbito a história da ontologia grega. O segundo capítulo
apresenta e discute o surgimento da ontologia nos fragmentos do poema Sobre
a natureza (Peri physeôs) de Parmênides de Eleia. O terceiro capítulo
apresenta e discute o que se pode considerar como a ontologia de Platão,
especialmente no tocante ao diálogo Sofista. O quarto e mais longo capítulo
faz uma apresentação da discussão sobre a ontologia em Aristóteles tal como
ela se configura nos capítulos 1, 2 e 5 do tratado Categorias e, principalmente,
como ela se apresenta nos capítulos 1-6 Livro IV de sua Metafísica.
12 Nazareno Eduardo de Almeida
Independentemente do conteúdo deste livro, em minha experiência como
docente de cursos de ontologia (antiga e contemporânea) constatei que há uma
dificuldade específica neste campo da filosofia: é impossível tratar dos temas
da ontologia sem passar por conceitos e teses pertencentes a outros campos
da filosofia, em especial os campos da epistemologia, da filosofia da mente, da
lógica e da filosofia da linguagem. Por conta disso, os/as estudantes que
iniciam a leitura deste livro e os estudos para a disciplina de Ontologia I
devem estar cientes desta dificuldade desde o início e tê-la em vista durante
todo o período de leitura e estudos. Procurei minimizar e facilitar ao máximo
essas intersecções com outros campos da filosofia. Apesar disso, para diminuir
esta dificuldade inerente ao estudo da ontologia em geral e da ontologia grega,
é recomendável que os/as estudantes procurem fazer uma primeira leitura dos
textos básicos identificando conceitos e temas que não compreendem bem,
consultem dicionários, textos introdutórios e/ou pessoas com mais
conhecimento sobre os mesmos, e depois refaçam a leitura do texto básico ou
dos textos de aprofundamento e discussão.
Procurei reduzir ao máximo o conteúdo essencial nas exposições e
explicações presentes nos textos básicos de cada capítulo. Por causa disso,
diminuí o quanto me foi possível o uso de notas de rodapé e referências
bibliográficas. Mas mesmo nas partes de discussão e aprofundamento também
evitei o quanto pude essas notas e referências, pois ainda que se trate de uma
exposição mais detalhada, tenho em mente pessoas que se interessam pela
ontologia grega sem necessariamente quererem se especializar nesta área da
filosofia. Por conta disso, não foi possível mostrar de modo mais detalhado
onde meus pontos de vista convergem com as interpretações dos autores, com
os textos e temas tratados e onde divergem deles. Somente quem
eventualmente queira fazer um estudo de outras obras sobre o tema poderá
perceber com mais clareza onde se encontram essas convergências e
divergências. Assim, para que o texto ganhasse em clareza expositiva e
narrativa, foi necessário deixar de lado a discussão mais especializada.
Alguns esclarecimentos prévios são necessários aqui. Em primeiro lugar,
não utilizei os termos gregos em sua grafia original, mas na forma de
transliterações. O sistema de transliteração usado é aquele mais comum em
língua inglesa. Neste sistema, não são marcados os acentos nas palavras
gregas. O uso do acento circunflexo (‘^’) marca apenas a diferença entre as
vogais longas e breves que existem no alfabeto grego e não no alfabeto
português, ou seja, o ‘e’ longo (denominado ‘eta’) e o ‘o’ longo (denominado
A origem da ontologia na metafísica grega 13
‘ômega’) são grafados nesta transliteração, respectivamente, por ‘ê’ e ‘ô’,
enquanto o ‘e’ breve (denominado ‘épsilon’) e o ‘o’ breve (denominado
‘ómicron’) ficam sem o acento circunflexo. Além disso, neste sistema, o iota
subscrito – presente na grafia grega original, mas que não é pronunciado –
aparece entre parênteses.
Em segundo lugar, ao longo do texto uso as seguintes traduções para os
termos gregos centrais na ontologia antiga: ‘to on’ (ou ‘to einai’) (‘o ser’, ‘o ente’
‘o que-é’), ‘to mê on’ (‘o não-ser’, ‘o não-ente’, ‘o que-não-é’), bem como suas
formas no plural ‘ta onta’ (‘os seres’, ‘os entes’, ‘as coisas que são’) e ‘ta mê onta’
(‘os não-seres’, ‘os não-entes’, ‘as coisas que não são’). Em outros contextos, uso
também como sinônimos destas traduções os termos ‘entidade’, ‘entidades’,
‘objeto’ e ‘objetos’ e, em outros contextos, mesmo os termos mais vagos ‘coisa’ e
‘coisas’. Essas opções de traduções distintas permitem reduzir a repetição de
palavras, mas também estão filosoficamente justificadas por não existir
diferença entre ‘ser’ e ‘ente’ na filosofia grega, ao contrário do que certas
perspectivas contemporâneas sugerem.
Em terceiro lugar, procurei apresentar os textos citados em minhas
próprias traduções. Estas traduções usam com frequência os parênteses retos
(‘[...]’) para introduzir esclarecimentos breves iniciados pela sigla ‘sc.’ que
abrevia a expressão latina ‘scilicet’, que significa ‘a saber’, ‘isto é’. Essas
traduções evitam ter de entrar em questões mais especializadas sobre as
interpretações que inevitavelmente estão na base das traduções dos textos
filosóficos gregos. Tanto as traduções quanto o recurso aos parênteses retos
permitem evitar notas de rodapé, como seria de esperar em textos acadêmicos
mais especializados sobre os temas tratados.
Em quarto lugar, os símbolos lógicos que são usados especialmente no
capítulo sobre Aristóteles são explicados no contexto em que aparecem e todas
as fórmulas lógicas são “traduzidas”, de modo que o seu significado filosófico
se torna claro para qualquer leitor/a atento, mesmo que iniciante. Embora
possa parecer estranho à primeira vista para leitores/as iniciantes, a
simbolização é um instrumento indispensável que permite um grau de
clareza, precisão e concisão que seria muito difícil sem seu uso na explicação
de certos aspectos dos argumentos, em especial no caso dos argumentos da
ontologia de Aristóteles.
Por fim, conforme se pode constatar pelo índice, procurei dividir ao
máximo em partes breves cada um dos capítulos através de seções e subseções
para facilitar a leitura e compreensão dos temas expostos. Com isso, exceto
14 Nazareno Eduardo de Almeida
algumas seções dos aprofundamentos e discussões, a maioria das partes do
texto podem ser lidas em um tempo relativamente curto, permitindo a
otimização do tempo de estudo e a compreensão das partes.
Este livro é o resultado de aproximadamente vinte e cinco anos de estudo
da história da metafísica em geral e particularmente da metafísica antiga,
assim como de mais de dez semestres em que ministrei a disciplina de
Ontologia I no curso de graduação presencial de Filosofia na Universidade
Federal de Santa Catarina. Sou grato a muitas pessoas com quem tive diversos
diálogos durante este tempo, mas aqui vai um agradecimento especial a
todos/as os/as estudantes de graduação que frequentaram meus cursos, sem
os/as quais eu não teria conseguido desenvolver minha interpretação da
ontologia grega e, de modo geral, torná-la mais clara para os fins didáticos de
introdução e explicação das aulas. Foi durante este desenvolvimento que
surgiram as anotações que serviram como base para o presente livro. Por fim,
gostaria de fazer um agradecimento especial ao Prof. Jaimir Conte pela
excelência de suas sugestões de modificação e pelo esmero em sua editoração
deste texto.
Nazareno Eduardo de Almeida
◆ CAPÍTULO 1 ◆
PANORAMA DA HISTÓRIA DA ONTOLOGIA
ANTIGA COMO PARTE DA HISTÓRIA DA
METAFÍSICA
16 Nazareno Eduardo de Almeida
A – TEXTO BÁSICO: A HISTÓRIA DA ONTOLOGIA ANTIGA E
POSTERIOR COMO PARTE DA HISTÓRIA DA METAFÍSICA E DA
FILOSOFIA
1. Esclarecimento inicial dos termos ‘ontologia’, ‘metafísica’ e ‘henologia’
O termo ‘ontologia’ significa, literalmente, um discurso ou uma teoria
(-logia) sobre o ser/o ente ou, como diríamos atualmente, sobre o conceito
de ser/ente (onto-). Ainda que o verbo ‘ser’ estivesse presente na língua grega
desde seus primórdios (assim como em outras línguas do tronco linguístico
indo-europeu), a formação e tematização explícitas do conceito de ser
surgem na história da filosofia apenas no poema Sobre a natureza, escrito
por Parmênides de Eleia no século VI a. C. O tema deste livro é apresentar
uma introdução (em dois níveis) de alguns dos momentos mais importantes
da história da ontologia antiga, especialmente da ontologia grega, tal como
esses momentos se apresentam em Parmênides, Platão e Aristóteles. Embora
atualmente marquemos o início da ontologia na obra de Parmênides, a
palavra ‘ontologia’ só surge no início do século XVII d. C. Não obstante isso,
esta palavra surge como um tipo de nome abreviado para se referir ao que
Aristóteles chamou, no início do Livro IV da Metafísica, de “ciência do ser
enquanto ser e das propriedades que lhe pertencem por si mesmo” (1003a
20-21)1. É a partir desse quadro que, no século XVII, começa-se a associar
mais fortemente os termos ‘metafísica’ e ‘ontologia’. No entanto, como
veremos abaixo, esses termos marcam conceitos distintos. Para entendermos
isso do modo mais rápido e mais básico, tomemos como fio narrativo certos
aspectos da história da recepção da Metafísica de Aristóteles.
A Metafísica de Aristóteles é uma obra que teve, como é possível
verificar na parte dos aprofundamentos e discussões deste capítulo, uma
longa e complexa recepção na tradição filosófica posterior ao seu
aparecimento. O termo ‘metafísica’ não foi criado pelo próprio Aristóteles,
mas surgiu no século I a. C. para dar título a um conjunto de textos do
1
Essa numeração é a numeração padrão usada para fazer referência aos escritos de Aristóteles.
Ela é chamada de ‘numeração Bekker’, pois foi estabelecida quando o filólogo alemão
Immanuel Bekker publicou a edição crítica das obras de Aristóteles em 1831. Até hoje essa
numeração é usada para padronizar as referências às partes do texto de Aristóteles.
A origem da ontologia na metafísica grega 17
Estagirita2 quando os seus escritos desaparecidos pouco depois de sua morte
foram novamente encontrados. Coube a um filósofo chamado Andrônico de
Rodes fazer a edição desses escritos para pô-los novamente em circulação.
Dentre estes escritos, alguns deles não se encaixavam na divisão então
corrente da filosofia em lógica, ética e física. Usando essa classificação,
Andrônico denominou esses escritos pelo título ‘Metafísica’. No grego, essa
palavra é uma abreviatura da seguinte expressão descritiva ‘ta (bibla) meta
ta (bibla) physika’, ou seja, “os (livros) após os (livros) da física’. Com isso,
segundo os melhores estudos recentes, Andrônico indicava o lugar destes
textos na ordem dos estudos da obra então reeditada de Aristóteles, ou seja,
que esses textos deveriam ser estudados após o estudo dos textos que
compõem a física aristotélica.
De modo geral e didático, pode-se dizer que esses textos apresentam
o conteúdo e a estrutura do que o próprio Aristóteles chamava de ‘filosofia
primeira’ (prôtê philosophia). Aliás, a expressão ‘filosofia primeira’ passou a
ser tomada na tradição posterior como um sinônimo do termo ‘metafísica’.
Na realidade, o surgimento explícito do termo ‘ontologia’ no século XVII –
para denotar a parte mais básica da metafísica ou filosofia primeira – já é o
resultado da prevalência de uma perspectiva de interpretação da Metafísica
de Aristóteles, interpretação que se formou a partir do século X, durante a
recepção desta obra na filosofia islâmica. Essa perspectiva de interpretação
surge especialmente com os filósofos Al-Farabi e Avicena, desdobrando-se
na filosofia cristã posterior, especialmente a partir de Duns Scotus. Havia,
porém, outra perspectiva de interpretação da Metafísica de Aristóteles que
entendia a filosofia primeira como sendo uma teologia. Essa perspectiva se
forma a partir dos filósofos Al-Kindi e Averróis, desdobrando-se na filosofia
cristã posterior, especialmente a partir de Tomás de Aquino.
Portanto, o surgimento do termo ‘ontologia’ no século XVII
representa, de certo modo, uma vitória da perspectiva de interpretação
iniciada por Al-Farabi e Avicena. Entre os séculos XVII e XVIII, a filosofia
moderna acaba por cristalizar a imagem da metafísica como sendo
composta por duas partes. De um lado, como sua parte mais básica, a
metafísica geral como sinônimo conceitual da ontologia. De outro lado,
baseada na primeira parte, a metafísica especial, dividida entre psicologia
racional (cujo tema é a natureza da alma), cosmologia racional (cujo tema é
2
O termo ‘Estagirita’ é um nome próprio alternativo de Aristóteles. Em termos gramaticais, ele é
um topônimo, pois provém da cidade em que Aristóteles nasceu, a cidade de Estagira,
pertencente, então, à Macedônia.
18 Nazareno Eduardo de Almeida
a estrutura mais geral do mundo) e a teologia racional (cujo tema é a
natureza de Deus). Por conta da crítica à metafísica nesta configuração
moderna realizada por Kant no final do século XVIII, a ontologia passa a
um segundo plano nas propostas de metafísica do século XIX, tais como
aquelas do idealismo alemão (Fichte, Schelling e Hegel) e de Schopenhauer.
A noção de ontologia só ressurge plenamente como campo de debates e
investigações no início do século XX, particularmente por causa de Edmund
Husserl e Bertrand Russell. A partir de meados do século XX,
principalmente na perspectiva da filosofia analítica surgida com Russell,
diversos autores entendem parte de seus trabalhos como pertencente à
ontologia e acabam por usar os termos ‘ontologia’ e ‘metafísica’ como
sinônimos.
Este brevíssimo panorama foi exposto justamente para mostrar que,
historicamente, os termos ‘ontologia’ e ‘metafísica’ não são sinônimos. Por
isso, como veremos logo mais, a história da metafísica contém em si o que
podemos chamar de história da ontologia, mas não se reduz a ela. Já a partir
desse panorama, percebemos que o termo ‘ontologia’ representa certa
interpretação da noção de metafísica, a qual começa a deixar de ser o título
de uma obra de Aristóteles para se tornar um campo de debates e
investigações filosóficas a partir da filosofia islâmica no século IX d. C.
Como acabamos de ver, uma parte dos filósofos medievais tendia a pensar a
metafísica principalmente como teologia. Já no século XVIII, a teologia era
vista como uma parte da metafísica, ladeada pela cosmologia e pela
psicologia. É também por conta dessas mudanças históricas que é preferível
pensar a história da metafísica como contendo a história da ontologia.
Mas antes de passarmos à exposição do sentido dos conceitos de
história da metafísica e de história da ontologia, é preciso ainda fazer o
esclarecimento de outro termo mais recente, mas que cumpre hoje um papel
fundamental, especialmente na compreensão da metafísica antiga. Este é o
termo ‘henologia’. O termo é formado a partir da palavra grega ‘to hen’, que
denomina o conceito de unidade ou uno. Ele foi primeiramente proposto
por Étienne Gilson em sua obra O ser e a essência, publicada em 1948. A
motivação de Gilson para propor este termo foi chamar a atenção dos/das
intérpretes para os desdobramentos da metafísica neoplatônica em uma
parte da filosofia medieval, especialmente naquela fase da filosofia medieval
anterior ao início da influência da metafísica aristotélica a partir do século X
A origem da ontologia na metafísica grega 19
d. C.3 A metafísica neoplatônica, a partir de Plotino (c. 205-270 d. C.), se
concebe primariamente como uma teoria sobre a relação entre unidade e
multiplicidade (uma henologia) e somente dentro e em relação a esta teoria
inclui a ontologia ou teoria sobre o ser.
Depois do sentido dado por Gilson ao termo ‘henologia’, outros
estudiosos começaram a perceber que não apenas em Plotino (e em seus
sucessores neoplatônicos, cristãos e muçulmanos), mas também na obra de
Platão – tal como interpretada pelos neoplatônicos e na própria Metafísica
de Aristóteles – a metafísica parece estar mais próxima, em certos aspectos,
de uma henologia do que de uma ontologia. Em particular, essa ênfase é
dada pela chamada ‘Escola Tübingen-Milão’, que propõe interpretar a
filosofia de Platão a partir dos testemunhos remanescentes do que se
convencionou chamar de ‘doutrinas não-escritas’. Para esses intérpretes,
dentre os testemunhos mais importantes desse ensinamento oral de Platão
se encontrariam justamente aquelas partes da Metafísica nas quais
Aristóteles expõe a filosofia de seu mestre como estando ligada aos conceitos
de limite (peras) e ilimitado (apeiron), conceitos de ordem mais henológica
(e matemática) do que de ordem ontológica.
Ainda mais recentemente, com a crescente consciência de que a
ontologia como campo de investigação filosófica só emerge com
Parmênides, tem crescido também a adesão à tese segundo a qual a
metafísica elaborada pelos primeiros filósofos gregos se baseia nos conceitos
henológicos de unidade e multiplicidade e não nos conceitos ontológicos de
ser e não-ser. Essa tese é especialmente visível no caso dos fragmentos de
Heráclito, cuja tese fundamental é justamente que ‘tudo é um’ (hen panta),
ou seja, a multiplicidade das coisas do mundo nos apresentaria
manifestações visíveis (sensíveis) de um único princípio invisível
(suprassensível, metafísico).
A partir desse quadro de novas interpretações da metafísica antiga,
percebe-se que a henologia seria a característica da metafísica anterior a
Parmênides, podendo ser encontrada também em Platão e sendo a forma
predominante da metafísica antiga a partir de Plotino, além de seus
desdobramentos posteriores na primeira fase da filosofia medieval. Este
quadro também nos permite perceber que a concepção comum até há
3
Mesmo com o início da influência da metafísica aristotélica no século X, as elaborações e
conceitos da metafísica neoplatônica se fazem sentir até o século XVI, em particular na
retomada do neoplatonismo nas filosofias do Renascimento, dentre as quais cumpre destacar as
de Marsílio Ficino, Pico della Mirandola e Giordano Bruno.
20 Nazareno Eduardo de Almeida
poucas décadas (e ainda hoje difundida) segundo a qual a metafísica antiga
se esgotaria no estudo da ontologia provém da prevalência da perspectiva
interpretativa da Metafísica de Aristóteles e da metafísica em geral como
sendo basicamente ontologia, uma interpretação que só se cristaliza e se
torna aparentemente óbvia a partir do século XVII.
2. A história da ontologia como parte da história da metafísica e as cinco
fases da história da metafísica
Com este esclarecimento inicial dos termos ‘ontologia’, ‘metafísica’ e
‘henologia’, podemos perceber que o estado da arte das pesquisas mais
recentes sobre a história da filosofia nos conduz a estabelecer uma
hierarquia do seguinte tipo: (1) de modo mais geral, temos a história da
filosofia; (2) dentro desta situamos a história da metafísica; e, por fim, (3)
dentro da história da metafísica situamos a história da ontologia. Para
compreendermos que a história da filosofia é mais ampla do que (e, por isso,
contém) a história da metafísica basta recordarmos das filosofias céticas que
se contrapõem a qualquer tipo de metafísica, assim como os campos de
investigação e debates filosóficos como a ética, a política, a epistemologia, a
estética, que mesmo quando em alguns casos assumem conceitos e teses
provenientes da metafísica, não se reduzem a eles. Como já vimos na seção
anterior, a história da metafísica é claramente mais ampla do que a história
da ontologia, como fica claro tanto no caso da metafísica neoplatônica (que
se concebe primariamente como uma henologia), assim como das
metafísicas medievais que interpretam a filosofia primeira principalmente
como teologia.
A partir desse quadro derivado das pesquisas recentes, devemos ver a
história da ontologia como uma parte da história da metafísica. No caso
específico da metafísica antiga, já percebemos que ela se divide ao menos em
duas linhagens conceituais: aquelas primariamente ligadas aos conceitos
ontológicos de ser e não-ser e aquelas primariamente ligadas aos conceitos
henológicos de unidade e multiplicidade. Todavia, como veremos nos
próximos capítulos, aquilo que podemos chamar de ontologia em
Parmênides, Platão e Aristóteles já é, na realidade, uma mistura dessas duas
linhagens de conceitos. Mesmo assim, para simplificar nossa exposição, a
narrativa filosófica que ofereceremos depois desse capítulo se focará
primariamente nas metafísicas gregas em que a linhagem ontológica é
A origem da ontologia na metafísica grega 21
predominante, embora seja necessário tocar, em alguns momentos
(principalmente nas partes de aprofundamento e discussão), nos aspectos
henológicos presentes nestas concepções ontológicas.
No tocante à noção de história da metafísica, a maneira mais ampla,
segura e neutra para estabelecermos suas fases é através da divisão das
épocas de recepção da Metafísica de Aristóteles, uma vez que é a partir de
seu impacto na história da filosofia que emerge gradativamente a
possibilidade de falarmos do próprio conceito de metafísica para além do
conteúdo da obra assim intitulada. A partir deste critério, podemos dividir a
história da metafísica (depois de Aristóteles) em quatro fases.
A primeira fase da história da metafísica começa efetivamente com o
ressurgimento dos textos de Aristóteles agrupados sob o título Metafísica no
século I a. C. e se estende até o início da recepção desta obra na filosofia
islâmica no século IX d. C. Para além dos três comentários (todos parciais)
ao texto da Metafísica – realizados, respectivamente, por Alexandre de
Afrodísias (séc. III d. C.), por Siriano de Alexandria (sécs. IV-V d. C.) e por
Asclépio de Trales (séc. VI d. C) –, o fato mais importante neste período
consiste na apropriação de muitos conceitos e teses da Metafísica de
Aristóteles na filosofia neoplatônica de Plotino e, a partir dele, no
neoplatonismo posterior. Essa apropriação é importante como um tipo de
ponto de partida desde o qual a Metafísica de Aristóteles seria retomado na
filosofia islâmica.
A segunda fase da história da metafísica começa com a recepção da
Metafísica de Aristóteles na filosofia islâmica a partir do século IX d. C. e se
estende até a chamada escolástica tardia, em especial com a monumental
obra de Francisco Suárez intitulada Disputas metafísicas, publicada em 1597.
É nesta fase que começa a surgir a noção da metafísica como um campo de
investigações e debates, especialmente a partir do Tratado de filosofia
primeira do filósofo Al-Kindi – que toma elementos da Metafísica de
Aristóteles, mas os coloca dentro da visão neoplatônica (henológica) da
teologia muçulmana – e principalmente na importantíssima obra de
Avicena intitulada originalmente Tratado sobre as coisas divinas, mas que foi
batizada posteriormente de Metafísica de Avicena. Essa obra escrita nos
primeiros anos do século XI d. C. veio a ser traduzida para o latim no século
seguinte, antes mesmo de uma tradução completa da Metafísica de
Aristóteles. Essa fase se encerra com a obra há pouco mencionada de
Francisco Suárez porque nela há uma sistematização dos inúmeros debates
22 Nazareno Eduardo de Almeida
(as disputas) em torno dos problemas de algum modo ligados à Metafísica
de Aristóteles durante toda esta fase. Nesta sistematização de Suárez já se
prefigura o surgimento da próxima fase da história da metafísica.
A terceira fase da história da metafísica começa com a publicação das
Meditações metafísicas de Descartes em 1641 e se encerra com a publicação
da Crítica da razão pura de Kant em 1781. É justamente nesta fase que
emerge o termo ‘ontologia’ como nome da parte mais básica da metafísica, a
partir do início do século XVII. Para além das concepções metafísicas mais
conhecidas atualmente – especialmente aquelas elaboradas por Espinosa,
Locke, Berkeley, Hume e Leibniz –, durante este período devemos
mencionar as obras menos conhecidas de Christian Wolff e Alexander
Baumgarten, nas quais se cristaliza a estrutura antes mencionada da
metafísica dividida em metafísica geral (sinônimo da ontologia) e metafísica
especial (dividida em psicologia, cosmologia e teologia). É justamente esta
estrutura que Kant toma em consideração em sua crítica à metafísica
moderna pós-cartesiana. Em termos muito gerais, a Crítica da razão pura
procura mostrar que a metafísica em sua configuração pós-cartesiana não
poderia ser uma ciência do mesmo modo que a matemática e a física. Em
lugar das tentativas modernas de fundamentar a metafísica como
conhecimento similar à matemática e à física, Kant entende que ela só
poderia se tornar uma ciência se se voltasse ao campo da ética. Essa “virada
ética” na metafísica é justamente aquilo que Kant procura estabelecer em sua
Fundamentação da metafísica dos costumes (1785) e em sua Crítica da razão
prática (1788).
A quarta e última fase da história da metafísica é aquela que se inicia
logo depois de Kant com o idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel,
bem como com a metafísica “pessimista” de Schopenhauer, estendendo-se
até nossos dias. Nesta fase, desaparece inicialmente a noção de ontologia,
substituída por uma metafísica da subjetividade. Por conta do positivismo e
do neokantismo de meados do século XIX, até mesmo o termo ‘metafísica’
passa a ser entendido, durante algum tempo, de modo puramente negativo.
Como já dissemos, é somente no início do século XX, com as Ideias para
uma fenomenologia pura (1913) de Edmund Husserl e com A filosofia do
atomismo lógico (1918) de Bertrand Russell que ressurgem, em novas
roupagens, as noções de ontologia e metafísica.
Todavia, neste brevíssimo panorama das quatro fases principais da
história da metafísica falta ainda uma fase que foi anunciada no título desta
A origem da ontologia na metafísica grega 23
seção. Essa fase é, na realidade, aquela compreendida entre os primeiros
filósofos gregos e a elaboração, por parte de Aristóteles, dos textos que
viriam a receber o título Metafísica cerca de duzentos e cinquenta anos após
sua morte. Do ponto de vista que usamos para periodizar as fases da história
da metafísica, este primeiro período deveria ser chamado de “pré-história”
da metafísica. Contudo, quando lemos atentamente o conteúdo da própria
Metafísica de Aristóteles, percebemos que a filosofia primeira nela
constituída é inseparável de uma história de quase toda a filosofia grega
anterior a ele. Não é apenas no célebre Livro I que encontramos uma
“história” da filosofia anterior, mas também nos demais Livros que
compõem esta obra, especialmente os Livros III, IV, VII, IX, XII, XIII e XIV.
Aliás, estes dois últimos são praticamente “históricos”, uma vez que se
dedicam principalmente à crítica das filosofias de Platão, dos platônicos
Espeusipo e Xenócrates, bem como dos pitagóricos. Em suma, a
fundamentação da metafísica (filosofia primeira) aristotélica só é possível
através de sua releitura de uma parte considerável da filosofia a ele anterior e
contemporânea. Por conta disso, tomando a perspectiva interna da
Metafísica, a história da metafísica começa efetivamente junto com o início
da história da filosofia grega. Dado o impacto desta obra na filosofia
posterior, e, a partir dela, da formação explícita da noção de metafísica
como um campo da filosofia, torna-se necessário conceber a primeira fase
da história da metafísica como aquela que vai dos primeiros filósofos até o
próprio Aristóteles.
Mesmo assim, se ficássemos restritos à perspectiva tradicional
proveniente desta obra, a tendência seria pensar que esta fase inicial da
história da metafísica coincidiria com uma história da ontologia, uma vez
que várias vezes o próprio Aristóteles se refere aos seus antecessores como
“que empreenderam a investigação sobre os seres” (Livro I, cap. 3, 983b 2).
Como dito antes, à luz das pesquisas recentes, essa visão “ontologizante”
sugerida por Aristóteles não mais se sustenta, em especial porque essas
pesquisas nos alertam que atribuir concepções sobre os conceitos de ser e
não-ser (algum tipo de ontologia) aos pensadores anteriores e
contemporâneos a Parmênides parece ser um anacronismo insustentável.
Não obstante esta tendência presente na Metafísica, dentro desta
mesma obra, quando lida a partir do ponto de vista das pesquisas mais
recentes sobre a vertente henológica da metafísica grega, percebemos que a
leitura crítica de Aristóteles sobre a filosofia (metafísica) de uma parte dos
24 Nazareno Eduardo de Almeida
pitagóricos, do próprio Platão e seus continuadores imediatos sugere
fortemente que ele as entende como primariamente centradas nos conceitos
henológicos de unidade e multiplicidade, em especial na perspectiva
matemática de compreensão desses conceitos. Essa observação, na realidade,
nos sugere que sua longa crítica a essas filosofias tem como um dos seus
objetivos, justamente, suplantar essa visão predominantemente henológica
da filosofia primeira, de modo a suplantá-la em uma visão primariamente
ontológica, na qual – como veremos na análise do Livro IV da Metafísica – a
ontologia englobaria e seria capaz de apresentar uma teoria correta sobre os
conceitos henológicos de unidade e multiplicidade, “corrigindo” assim os
supostos exageros de alguns dos pitagóricos e dos platônicos. Com isso, a
visão recente sobre a presença de uma linhagem henológica ao lado da e
entrelaçada (de vários modos) com a linhagem ontológica ganha uma base
na própria Metafísica de Aristóteles.
Mas uma vez estabelecida retrospectivamente esta primeira fase da
história da metafísica a partir da própria Metafísica de Aristóteles, podemos
reconfigurar a extensão cronológica da história da metafísica antiga. Como
vimos, a primeira recepção e incorporação dos conceitos da Metafísica de
Aristóteles ocorre na filosofia neoplatônica a partir de Plotino. Em suas
Enéadas, mesmo retomando principalmente e de um modo peculiar a
filosofia de Platão, Plotino tanto incorpora a ontologia de Aristóteles ao seu
modo, quanto a insere como parte de sua henologia, concebida claramente
como uma metafísica da relação entre o Uno primordial e a totalidade do
mundo, totalidade dividida entre um “mundo das Ideias” e um “mundo
sensível”. Essa leitura da Metafísica aristotélica persistirá (com variações)
através de seus sucessores, em especial Porfírio e Proclo, bem como explica a
motivação dos já mencionados comentários à Metafísica de Aristóteles feitos
pelos neoplatônicos Siriano e Asclépio.
Assim, de modo análogo a como podemos estabelecer uma primeira
fase da história da metafísica a partir da estrutura interna da Metafísica de
Aristóteles, podemos também estender o todo da história da metafísica
antiga até os filósofos neoplatônicos por causa da estrutura interna das
Enéadas de Plotino. Esta dupla perspectiva retrospectiva – proveniente da
ligação entre a Metafísica de Aristóteles e as Enéadas de Plotino – nos
permite estabelecer um tipo de linha cronológica que se estende dos
primeiros filósofos gregos até os últimos neoplatônicos, de tal modo que a
história da metafísica antiga coincide aproximadamente com o todo da
A origem da ontologia na metafísica grega 25
filosofia antiga, usualmente datada entre 585 a. C. – ano do eclipse previsto
por Tales de Mileto – e 529 d. C. – ano em que a Academia de Platão em
Atenas é fechada por ordem do imperador Justiniano.4
Independentemente de detalhes destas divisões, o que o/a leitor/a
deve ter claro neste momento é que, desde uma perspectiva contemporânea,
a metafísica antiga pode ser compreendida (mas não necessariamente
reduzida) através de duas linhagens conceituais que se entrelaçam de vários
modos a partir de Parmênides: a linhagem henológica (centrada nos
conceitos que “giram” em torno dos conceitos de unidade e multiplicidade) e
a linhagem ontológica (centrada nos conceitos que “giram” em torno do
conceito de ser).
Agora que temos uma visão geral do que significa a história da
metafísica antiga e do lugar que a ontologia possui dentro desta, o presente
texto se foca principalmente na narrativa dos três principais pensadores da
ontologia grega, a saber: Parmênides, Platão e Aristóteles. E isso por três
razões. Em primeiro lugar, por razões de economia textual. Em segundo
lugar porque o tema central do livro é a ontologia antiga (especialmente
grega) e não a metafísica antiga. Em terceiro lugar, porque a interpretação
ontológica da metafísica antiga se consolidou a partir do século XVII e
ainda permanece a mais comum. Apesar disso, como já dissemos,
especialmente nas partes de aprofundamento e discussão de cada capítulo,
será preciso tratar parcialmente dos aspectos henológicos presentes nestes
três pensadores e sem os quais não podemos compreender de modo mais
adequado e contemporâneo as suas ontologias.
4
Essa linha cronológica é mais frágil no caso das escolas filosóficas helenísticas que se
desenvolvem entre o século III a. C. até o século II d. C., em especial a escola epicurista e a
escola estoica. Nessas escolas, a filosofia compreendia três partes articuladas entre si: a lógica
(no sentido de uma metodologia geral englobando, para além da lógica propriamente dita, a
filosofia da linguagem e a epistemologia), a física e a ética. Nesta divisão não havia espaço para
o que Aristóteles denomina ‘filosofia primeira’. Mesmo assim, de um ponto de vista
retrospectivo, podemos falar (e se tem falado) de uma ontologia ou metafísica presente nessas
escolas, particularmente no caso das escolas epicurista e estoica. Além disso, outra escola
filosófica helenística é a escola cética (tanto em sua linhagem pirrônica quanto acadêmica), que
rejeita todas as teorias que ultrapassam o que nos é dado empiricamente, sendo, por princípio,
crítica de qualquer ontologia e metafísica.
26 Nazareno Eduardo de Almeida
B – APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÃO
1. O ressurgimento da ontologia no século XX e a noção de história da
metafísica
Seria temerário e talvez equivocado tentar apresentar uma definição
única e simples do termo ‘metafísica’. Isso é assim porque – mais do que
outras áreas da filosofia como a ética, a filosofia política ou a epistemologia –
esta palavra adquiriu múltiplas significações ao longo da história da filosofia,
desde significações mais positivas até significações bastante negativas. Entre
meados do século XIX e o início do século XX, por exemplo, o termo
‘metafísica’ adquiriu uma significação bastante negativa, a tal ponto que
chamar alguma teoria filosófica de ‘metafísica’ equivaleria a dizer que era
indigna de atenção. Uma similar significação negativa persistiu e em parte
ainda persiste até nossos dias em alguns círculos filosóficos.
Contudo, a partir de certo momento do pensamento de Edmund
Husserl e de Bertrand Russell, começou uma retomada da noção de
metafísica associada a um possível sentido positivo para o conceito de
ontologia. Da retomada da ontologia por Husserl, surgiram as propostas de
ontologia ligadas a certas obras de Roman Ingarden, uma parte da obra de
Martin Heidegger, Nicolai Hartmann, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-
Ponty e Hans-George Gadamer, autores geralmente agrupados pelo epíteto
de ‘filósofos continentais’.5 Da retomada proposta por Russell, surgiram
perspectivas de compreensão da ontologia ligadas às obras de Willard van
Orman Quine, Rudolph Carnap, Nelson Goodman, Peter Strawson, Saul
Kripke, Alvin Plantinga, David Lewis e Peter van Inwagen, autores
usualmente agrupados pelo epíteto de ‘filósofos analíticos’. 6 Embora sejam
bastante distintas em suas pressuposições, em suas intenções e em seus
5
O sentido geral (embora um tanto vago) das expressões ‘filosofia continental’ e ‘filósofos/as
continentais’ indica um estilo de fazer filosofia ligado principalmente às tradições filosóficas
alemã, francesa e italiana, embora esse estilo tenha se espalhado por vários outros países, como
uma parte da comunidade filosófica brasileira.
6
O sentido geral (embora, como também o de filosofia continental, um tanto vago) das
expressões ‘filosofia analítica’ e ‘filósofos/as analíticos/as’ indica um estilo de fazer filosofia
ligado principalmente às tradições filosóficas austríaca, inglesa e estado-unidense, mesmo que
tenha se espalhado por vários outros países, como uma parte da comunidade filosófica
brasileira.
A origem da ontologia na metafísica grega 27
desdobramentos, ambas estas linhagens possuem em comum a ideia de que
a ontologia seria um tipo de sinônimo de metafísica.7
Na filosofia recente, há um conjunto bastante amplo de propostas e
debates que se concebem como discussões em metafísica ou ontologia, em
especial no âmbito da chamada ‘filosofia analítica’, mesmo que também no
campo da chamada ‘filosofia continental’. Todavia, apesar de tal divisão
ainda ser hegemônica, encontramos propostas de ontologia que misturam
conscientemente elementos destas duas linhagens.8 Além disso, nos dias
atuais, propostas de ontologia tornam-se cada vez mais comuns, indo desde
as perspectivas mais gerais, até perspectivas mais específicas, nas quais, por
exemplo, se discutem a ontologia da matemática, a ontologia da física
(quântica ou relativística), a ontologia da biologia, a ontologia da história, a
ontologia das obras de arte e dos artefatos etc.
Em parte por causa dessa recente multiplicação de propostas
filosóficas em ontologia, nas últimas duas décadas formou-se um campo de
investigações e de debates chamado de ‘meta-ontologia’ ou – assumindo a
sinonímia entre ontologia e metafísica – ‘meta-metafísica’. Neste campo de
debates e investigações ainda em desenvolvimento, são discutidas em
especial as questões sobre quais seriam ou deveriam ser os conceitos
fundamentais da ontologia ou metafísica contemporânea, qual sua correta
interpretação, bem como sobre quais seriam os critérios para podermos
arbitrar e decidir sobre a validade ou força dos argumentos apresentados nas
diferentes e divergentes perspectivas de ontologia ou metafísica que se
digladiam em torno desta ou daquela questão. Por conta disso, o/a leitor/a
pode entender minha afirmação inicial de que uma “definição” única e
simples de metafísica, no contexto atual, é algo temerário, senão equivocado,
uma vez que uma suposta definição acabaria por ser apenas uma
7
De modo algum esse panorama pode ser considerado exaustivo. Ele apenas apresenta as duas
tendências mais difundidas e contínuas ao longo do século XX. Em especial, uma tendência
que tem crescido no campo da metafísica ou ontologia a partir da década de 1980 é a retomada
da teoria dos objetos proposta pelo filósofo austríaco Alexius Meinong e seus colaboradores,
uma perspectiva heterodoxa que pode ser considerada como alternativa em relação às duas
tendências mencionadas. Autores nesta perspectiva são Terence Parsons, Richard Routley,
Edward Zalta, Dale Jacquette e Francesco Berto. Encontramos também propostas de ontologia
e/ou metafísica que se vinculam a certos aspectos da filosofia de Kant, do idealismo alemão e
do pragmatismo norte-americano, como no caso dos filósofos Norman Whitehead, Clarence
Lewis, Wilfrid Sellars, Hilary Putnam, dentre outros. Além disso, mais recentemente,
encontramos propostas de ontologia retomando certas intuições vindas de Aristóteles, tais
como David Wiggins, Jonathan Lowe e Kit Fine.
8
Exemplos dessas propostas “mistas” são as obras de ontologia de Roderick Chisholm, Amie
Thomasson, Peter Simons, Kevin Mulligan e Barry Smith.
28 Nazareno Eduardo de Almeida
caracterização parcial do conceito de metafísica já alinhada a alguma dessas
perspectivas recentes.
Mesmo assim, a partir desta retomada recente da metafísica ou
ontologia como campo “legítimo” dos esforços filosóficos, é possível oferecer
duas caracterizações provisórias e aproximadas do significado de ‘metafísica’,
particularmente como ela tem sido desenvolvida a partir de autores/as que
adotam o estilo analítico, embora também venha crescendo o número de
propostas “mestiças”, nas quais elementos da ontologia analítica e da
ontologia continental se misturam. Uma dessas caracterizações é mais geral
e a outra mais específica. Todavia, ambas são necessariamente vagas e
flexíveis, sendo preenchidas com conteúdos distintos, conforme as
perspectivas filosóficas diferentes que participam deste “renascimento”
recente da metafísica.
A caracterização mais geral que pode ser encontrada em vários textos
deste campo de investigações e debates é a seguinte: a metafísica é o campo
filosófico de investigações que procura apresentar perspectivas teóricas sobre a
estrutura mais geral e os componentes mais básicos da realidade. Essa
caracterização geral também se apresenta na seguinte forma: a metafísica é o
campo filosófico de investigação sobre os tipos de entidades que existem e
como elas compõem a realidade como um todo. A ênfase no conceito de
existência mostra como essa retomada recente acaba por entender a
metafísica como sinônimo de ontologia, uma vez que o conceito de
existência é tomado como a forma mais evidente do tema clássico da
ontologia: o conceito de ser, ente ou entidade. Nesta maneira de entender,
fazer e discutir a metafísica, encontramos, por exemplo, a discussão sobre se
a realidade seria composta de substâncias, coisas particulares perceptíveis,
entidades materiais atômicas, eventos espaço-temporais, processos que
persistem ao longo de certo tempo, conjuntos de partes agrupados segundo
certa ordem etc. Uma linha mais recente procura determinar não apenas
quais as entidades que primariamente compõem a realidade, mas também
qual a hierarquia de fundação (grounding) que se estabelece ou se pode
estabelecer entre os diferentes tipos de entidades que se admite como
compondo a realidade.
A caracterização mais específica da metafísica consiste em ver as
discussões da metafísica em campos mais delimitados do conhecimento.
Nesta acepção mais específica, situam-se as discussões sobre a ontologia
pertencente a algum suposto campo de objetos da realidade. Essa
A origem da ontologia na metafísica grega 29
caracterização pode ser assim expressa: a metafísica é um campo filosófico de
investigações e debates sobre quais seriam os tipos mais básicos de coisas
(entidades) dentro de algum domínio de objetos estudado por alguma
ciência particular. Assim, em tempos recentes, há diversas discussões de
metafísica ou ontologia da física, da matemática, da biologia, da história, das
obras de arte e dos artefatos etc. Na expressão vinda do já clássico texto
intitulado Sobre o que há (1948), escrito pelo filósofo estado-unidense
Willard van Orman Quine, cada teoria científica pertencente a uma das
ciências possuiria certos compromissos ontológicos com a existência de certos
tipos de objetos ou entidades para que essa mesma teoria possa ser
considerada verdadeira. Neste sentido, caberia à metafísica explicitar e
discutir a ontologia pressuposta nestas teorias científicas.
Essas caracterizações ainda bastante rudimentares de duas maneiras
mais comuns de entender atualmente o que seria a metafísica servem apenas
para entendermos em que medida, nessas discussões recentes – ligadas
principalmente a certos desdobramentos da chamada filosofia analítica – a
metafísica passou a ser tomada como sinônimo de ontologia. Em paralelo
com essa retomada da metafísica entendida como sinônimo de ontologia, a
partir da década de 1930 começou a crescer também a consciência da
necessidade de se fazer investigações mais aprofundadas e rigorosas sobre a
noção de história da metafísica. Inicialmente, a noção de ‘história da
metafísica’ começou a se difundir por causa de seu uso em várias obras de
Heidegger, as quais ganharam ampla repercussão a partir dos anos 1940.
Heidegger assumia uma pressuposição – atualmente insustentável – segundo
a qual a história da filosofia seria equivalente à história da metafísica, e esta
última seria equivalente à história da ontologia. Nas obras pertencentes à
sua segunda fase (as do chamado ‘segundo Heidegger’), este filósofo se
propõe a fazer uma crítica geral e uma superação da metafísica, proposta
que tem sido seguida por vários/as filósofos/as até os dias atuais. Apesar de
algumas exceções, a noção de história da metafísica foi mais ou menos
amplamente usada em sua acepção heideggeriana até meados da década de
1970.
Todavia, com os desdobramentos e os debates sobre ontologia na
segunda metade do século XX, começaram a surgir trabalhos de
interpretação da história da metafísica cada vez mais rigorosos e livres dos
equívocos presentes no uso da expressão por parte de Heidegger e dos que o
seguiam de algum modo. Gradativamente, os historiadores da filosofia –
30 Nazareno Eduardo de Almeida
voltando-se para a compreensão mais atenta e rigorosa das obras em que de
algum modo o conceito de metafísica se desenvolve ao longo da história da
filosofia – começaram a perceber que a identificação entre metafísica e
ontologia tomada como óbvia a partir de Husserl e Russell não reflete aquilo
que, de fato, acontece nesta história.
Na realidade, começou-se a perceber que o conceito de metafísica, ao
longo de sua evolução histórica, não apenas estava ligado ao conceito de
ontologia, mas também estava associado aos campos da teologia, da
epistemologia e da ética, bem como (em uma perspectiva mais
contemporânea) aos campos da filosofia da física, da filosofia da
matemática, da filosofia da lógica, da filosofia da mente, da filosofia da
história e mesmo da filosofia da arte e da estética. Por causa dessa
constatação oriunda das pesquisas em história da filosofia, o campo de
estudos e debates que atualmente podemos chamar de ‘história da
metafísica’ está ainda em construção e somente ganhou uma maior nitidez a
partir das duas últimas décadas do século XX. Neste sentido, o que vou
apresentar a partir de agora, provém de pesquisas bastante recentes, as quais
nos impõem fazer uma diferenciação entre a história da filosofia, a história
da metafísica e a história da ontologia, conforme já indiquei antes.9
2. A recepção da Metafísica de Aristóteles como ponto de partida
adequado para estabelecer as noções de história da metafísica e história
da ontologia
2.1. Introdução: os períodos da história da metafísica a partir da
recepção da Metafísica de Aristóteles na filosofia posterior
Como já indicado antes, a forma mais segura e historicamente
objetiva para fazer uma caracterização adequada das noções de história da
metafísica e de história da ontologia se encontra tanto na análise dos textos
de Aristóteles intitulados de Metafísica quanto na história de sua recepção
na filosofia posterior. Pouco após sua morte, em 322 a. C., os escritos através
dos quais atualmente conhecemos o pensamento de Aristóteles se tornaram
9
Dentre os diversos textos que tratam da história da metafísica surgidos nas últimas décadas, três
são interessantes por sua abrangência: NEF, Frédéric. Qu’est-ce que la métaphysique? Paris:
Gallimard, 2004. FERRARIS, Maurizio (org.) Storia dell’ontologia. Milão: Bompiani, 2008.
MOORE, Adrian William. The Evolution of modern metaphysics. Cambridge: Cambridge
University Press, 2011.
A origem da ontologia na metafísica grega 31
inacessíveis ao grande público. Esses escritos só foram novamente
encontrados no início do século I a. C., tendo de ser novamente editados
para serem postos em circulação. Essa tarefa editorial coube a um seguidor
da escola de Aristóteles (o Liceu), chamado Andrônico de Rodes. Usando a
divisão da filosofia então mais aceita em lógica, ética e física, Andrônico fez
a organização desses escritos. Dentre esses escritos, porém, havia uma parte
que não se “encaixava” nesta divisão tripartite da filosofia. Esses escritos
tratavam, de modo geral, do que Aristóteles chamou em vários de seus
escritos de ‘filosofia primeira’ (prôtê philosophia). De fato, ao longo da
história da filosofia, um dos nomes usados como sinônimo de ‘metafísica’
tem sido justamente ‘filosofia primeira’.
Contudo, nesses escritos também encontramos outras denominações
do que seria esse saber. Dentre elas, as principais são: ‘sapiência’ (sophia),
‘ciência do ser enquanto ser’ (que veio a ser rebatizada na modernidade pelo
nome ‘ontologia’) e ‘filosofia teológica’ (que foi entendida pelos medievais e
modernos pelo nome simples de ‘teologia’). Diante dessa diversidade de
denominações, Andrônico de Rodes (provavelmente seguindo algo já
presente na escola de Aristóteles) resolveu atribuir a este conjunto de
escritos um nome mais neutro, a saber: “os (livros) após os (livros) físicos”.
Em grego essa expressão é a seguinte: ta (bibla) meta ta (bibla) physika, ou,
na forma abreviada: ta meta ta physika. Mais adiante falaremos diretamente
sobre os “Livros” que compõem essa obra. Por ora, esse ponto não é
relevante.
Com o passar do tempo, essa expressão descritiva acabou por se
tornar um nome, justamente o nome ‘metafísica’. Conforme as pesquisas
históricas mais recentes, esse nome não é apenas (como se pensava no
século XIX e parte do XX) uma classificação biblioteconômica (onde colocar
esses textos na prateleira da biblioteca, por assim dizer), mas reflete a
concepção dos peripatéticos (assim eram e ainda são chamados os
seguidores diretos de Aristóteles) sobre o momento em que esses textos
deveriam ser estudados, a saber: após se estudar os livros da física
aristotélica. Como veremos melhor logo mais, desde seu nascimento, esta
obra de Aristóteles possui uma unidade estrutural problemática. Essa
unidade problemática é a primeira razão pela qual a ideia do que seria o
objeto, a finalidade e o método da metafísica se tornaram temas de disputas
e controvérsias ao longo da história da filosofia e, dentro desta, da história
da metafísica.
32 Nazareno Eduardo de Almeida
Antes de podermos discutir um pouco melhor essas ambiguidades do
texto, é preciso descrever em traços bastante largos e gerais a história de sua
recepção na filosofia posterior, uma vez que essa história nos explica como
se formou a própria ideia de metafísica como um campo da filosofia e não
apenas como o título de uma das obras de Aristóteles. Além disso, é
justamente esta história da recepção da Metafísica que nos permite
estabelecer, de um ponto de vista rigoroso (e, portanto, não arbitrário), o
sentido na noção de história da metafísica.
Como já dissemos, tomando a recepção da obra de Aristóteles como
fio narrativo mais adequado, podemos dividir a história da metafísica
(depois de sua publicação no século I a. C.) em quatro períodos. O primeiro
período começa quando a coletânea de textos intitulados Metafísica é posta
em circulação no século I a. C até o início de sua recepção e interpretação na
filosofia islâmica do século IX d. C. O segundo período começa justamente
na filosofia islâmica do século IX e se estende até a publicação das Disputas
metafísicas de Francisco Suárez, em 1597. O terceiro período começa com a
Escolástica tardia (católica e protestante) do início do século XVII e
especialmente com a publicação das Meditações metafísicas de Descartes
(em 1641), estendendo-se até a publicação da Crítica da razão pura de Kant,
em 1781. O quarto período, por fim, é o que vem de Kant até nossos dias.
Contudo, conforme já indicado antes, mais adiante acrescentaremos
um outro período na história da metafísica, justamente aquele anterior à
elaboração da Metafísica de Aristóteles, uma vez que, nesta obra, o mestre
do Liceu estabelece uma nova perspectiva de leitura de toda a filosofia grega
que o antecede, dentro da qual podemos situar a metafísica de Parmênides e
de Platão, as quais abordaremos neste livro antes de falar da ontologia de
Aristóteles.
2.2. O primeiro período da história da metafísica: do surgimento da
Metafísica de Aristóteles (séc. I a. C.) até sua recepção na filosofia
islâmica (séc. IX d. C.)
Desde o momento em que esse texto surgiu, no século I a. C., até a
filosofia islâmica do século IX d. C., o termo ‘metafísica’ foi compreendido
principalmente como o título de uma obra de Aristóteles. Entretanto, neste
intervalo de quase mil anos, é importante marcar que esta obra foi objeto de
ao menos três importantes comentários. Em ordem cronológica, o primeiro
A origem da ontologia na metafísica grega 33
e mais importante comentário foi aquele feito por Alexandre de Afrodísias,
que viveu no século III d. C. e que é considerado como o último dos
seguidores da escola de Aristóteles. Deste comentário ainda temos a parte
dedicada aos cinco primeiros Livros. O comentário do restante da obra
(Livros VI-XIV), durante séculos atribuído a Alexandre de Afrodísias, é
atualmente considerado pelos estudiosos como obra de outra pessoa:
provavelmente do filósofo bizantino Miguel de Éfeso, que viveu no século XI
d. C., embora seja também provável que ele tenha tomado o comentário de
Alexandre como base para o seu. Também em ordem cronológica, o
segundo comentário é aquele de Siriano de Alexandria, um neoplatônico
que viveu entre os séculos IV e V d. C. Deste comentário só nos chegou a
parte dedicada aos Livros III e IV e aos Livros XIII e XIV, sendo possível que
tenha escrito comentários sobre outras partes da obra que não chegaram até
nós. Por fim, o terceiro comentário da obra foi feito por outro neoplatônico,
Asclépio de Trales, que viveu entre os séculos V e VI d. C. Deste comentário,
possuímos atualmente a parte dedicada à sequência dos Livros I-VII, sem
que saibamos se realizou o comentário dos demais textos desta obra.
A menção desses comentários é relevante para percebemos duas
coisas. A primeira delas é que a obra – juntamente com outras que entraram
novamente em circulação a partir da edição de Andrônico de Rodes – não
passou despercebida aos filósofos anteriores ao advento da filosofia islâmica.
Nesses textos de interpretação, já percebemos que esses comentadores
procuram resolver de algum modo o problema que posteriormente surgiria
de forma mais explícita, a saber: qual o sentido geral, a estrutura e o tema
central da obra. A segunda observação, mais importante que a anterior,
consiste em notar que os dois últimos comentários à obra aos quais nos
referimos foram feitos não por filósofos pertencentes à escola de Aristóteles,
mas por filósofos neoplatônicos, ou seja, por seguidores da maneira como a
filosofia de Platão passou a ser interpretada a partir do século II d. C.
Essa interpretação da filosofia de Platão que dominou os últimos
séculos da filosofia pagã – e que seria de grande importância para o
surgimento da filosofia cristã e islâmica – foi sistematizada por Plotino de
Licópolis (c. 205-270 d. C). O pensamento de Plotino foi preservado em
uma única e extensa obra intitulada Enéadas, organizada e “publicada” por
seu discípulo direto, Porfírio de Tiro (c. 234-304/309 d. C.). Tanto pelos
temas discutidos ao longo das seis partes das Enéadas quanto por uma
observação encontrada no texto Vida de Plotino escrita por Porfírio (parte
34 Nazareno Eduardo de Almeida
14, linhas 16-17), sabemos que Plotino incorporou inúmeros dos conceitos e
teses que estão presentes na Metafísica. Por isso, deve-se conceber que o
pensamento de Plotino é o primeiro marco filosófico (e não apenas
interpretativo) de incorporação de uma parte do que Aristóteles propõe em
sua Metafísica. Com efeito, a primeira recepção da obra de Aristóteles
(incluindo a Metafísica) entre os filósofos islâmicos está profundamente
marcada pelo neoplatonismo, em especial aquele de Plotino, mas também
daquele que é considerado o segundo mais importante filósofo
neoplatônico, Proclo de Constantinopla (412-485 d. C.). É graças a essa
importância da Metafísica de Aristóteles no pensamento de Plotino e, a
partir dele, dos neoplatônicos que podemos entender a razão pela qual os
seus continuadores – neste caso, Siriano e Asclépio – realizaram seus
comentários a esta obra, mesmo que (e talvez por isso mesmo) neles
encontremos também críticas ao pensamento aristotélico.
Neste sentido, o primeiro período de incorporação da Metafísica de
Aristóteles na tradição filosófica pode ser considerado como um período de
recepção neoplatônica, não apenas em nível do comentário, mas
especialmente no tocante ao modo como Plotino incorpora os conceitos e
teses desta obra em sua própria filosofia que, conforme já dito antes, pode
ser considerada como uma metafísica de caráter henológico, uma vez que se
concebe como uma teoria sobre a relação entre o Uno primordial e a
multiplicidade do mundo (quer o mundo das Ideias, quer o mundo
sensível), teoria henológica na qual está contida uma ontologia ou teoria
sobre o ser. Assim, apesar da importância dos comentários mencionados,
por conta da incorporação dos conceitos da Metafísica de Aristóteles, as
Enéadas de Plotino merecem o posto de primeira obra relevante na história
da metafísica, embora isso só se torne claro a partir da recepção da obra de
Aristóteles na filosofia islâmica, sobre a qual falaremos rapidamente a partir
de agora.
2.3. O segundo período da história da metafísica: da recepção da
Metafísica na filosofia islâmica (séc. IX d. C.) até as Disputas metafísicas
(1597) de Francisco Suárez
Apesar da importância desse primeiro momento de recepção e
incorporação da Metafísica na obra de Plotino e dos neoplatônicos que o
sucedem, é somente na filosofia islâmica que podemos marcar
A origem da ontologia na metafísica grega 35
explicitamente a passagem do sentido do termo ‘metafísica’ como o título de
uma obra de Aristóteles para o sentido que marca um campo de
investigação e debates filosóficos. A primeira manifestação dessa
transformação se encontra em uma obra (da qual nos resta apenas uma
parte) escrita por aquele que é considerado o primeiro grande filósofo
islâmico: Al-Kindi, que viveu na passagem do século VIII ao IX d. C.
Mesmo não tendo conhecimento direto da língua grega, Al-Kindi foi um
dos diretores da Casa do Saber de Bagdá, uma instituição que pode ser
aproximada das universidades medievais, uma vez que nela se estudavam e
pesquisavam disciplinas como medicina, astronomia, matemática, música e
filosofia.
Com efeito, as primeiras traduções da Metafísica foram feitas,
provavelmente a partir de versões siríacas, sob a direção e supervisão de Al-
Kindi. Tendo acesso não apenas à Metafísica (ou ao menos a parte dela), mas
também às Enéadas de Plotino, bem como às discussões e interpretações
filosóficas do Alcorão, Al-Kindi escreveu um livro que passou a ser
intitulado Sobre a filosofia primeira. Diferentemente dos comentários
mencionados acima e da incorporação de conceitos importantes da
Metafísica por parte de Plotino e outros neoplatônicos, Al-Kindi concebe
pela primeira vez – no que estamos chamando aqui de história da metafísica
– a ideia de um campo de investigações e debates filosóficos denominado
como ‘filosofia primeira’. Embora o livro use diversos conceitos e teses da
Metafísica de Aristóteles, de forma alguma pode ser considerado um
comentário a esta obra. Al-Kindi está tomando a noção aristotélica de
filosofia primeira e dando a ela uma nova versão, na qual ele mistura de
modo próprio elementos da Metafísica de Aristóteles com conceitos e teses
da filosofia neoplatônica, bem como com conceitos e teses da teologia
muçulmana. Um aspecto muito importante consiste em que, nesta obra, a
interpretação sobre o sentido do conceito de filosofia primeira tende
fortemente a identificá-la como uma teologia filosófica, ou seja, com uma
investigação sobre a natureza de Deus e de sua relação com o mundo.
Foi já a partir dessa nova visão da metafísica ou filosofia primeira que
se tornou possível o surgimento de uma importantíssima obra que marcaria
toda a tradição filosófica posterior, tanto a tradição islâmica quanto a
tradição cristã: trata-se da obra Metafísica de Avicena (c. 970-1037 d. C.),
um gênio universal que é considerado por diversos estudiosos (com os quais
estou de acordo) como o maior dos filósofos medievais, uma vez que
36 Nazareno Eduardo de Almeida
determinou os rumos não apenas de toda a filosofia islâmica posterior, mas
também de toda a filosofia cristã e europeia a partir do século XII. Não
podemos nos deter aqui na discussão da Metafísica de Avicena, que é a parte
final de uma obra enciclopédica escrita em sua fase final de desenvolvimento
intelectual e intitulada A cura. Embora, literalmente, a obra se intitule O
livro sobre as coisas divinas, por conta do título geral da obra da qual faz
parte proveio a denominação usual de ‘Metafísica da Cura’. Mesmo que esta
obra de Avicena tenha a Metafísica de Aristóteles como seu principal pano
de fundo teórico e conceitual, é uma obra profundamente original que
marca – muito mais do que a obra de Al-Kindi há pouco mencionada – o
fortalecimento da noção de metafísica como um campo da filosofia e não
apenas como o título de uma obra de Aristóteles.
Uma das coisas mais importantes desta obra de Avicena – em
contraste com aquela de Al-Kindi – consiste em conceber a filosofia
primeira ou metafísica como tendo uma acepção primariamente ontológica
e não teológica. Essa interpretação do sentido da obra de Aristóteles por
Avicena é tributária de um pequeno, mas muito importante texto de outro
grande filósofo islâmico: Al-Farabi, que viveu entre o século IX e X d. C.
Para entendermos essa relação, é interessante rememorar uma curiosa
anedota contada pelo próprio Avicena em sua autobiografia. Neste texto,
Avicena relata ter lido o texto da Metafísica de Aristóteles quarenta vezes,
sem ter entendido qual seria seu sentido geral. Quando já estava quase
desistindo, relata Avicena que estava passeando em um bazar e encontrou
um pequeno escrito (ainda hoje existente) de Al-Farabi intitulado Sobre o
objetivo da Metafísica de Aristóteles. Tendo-o lido, diz-nos Avicena que
finalmente compreendeu o sentido geral da Metafísica de Aristóteles. Em
contraste com a visão presente em Al-Kindi, Al-Farabi defende que a
filosofia primeira ou metafísica de Aristóteles é primeiramente uma ciência
do ser enquanto ser (o que posteriormente foi abreviado pelo nome
‘ontologia’), uma ciência que contém em si a teologia como sua parte
culminante.
Desses apontamentos muito gerais, percebemos que a metafísica –
como campo de investigações e debates filosóficos – começa a ser concebida
por Al-Kindi como uma teologia que englobaria elementos ontológicos
dentro de si. Mas, em seguida, ela é concebida por Al-Farabi e Avicena como
uma ontologia que englobaria a teologia como sua parte culminante. Para
além da concepção teológica da metafísica em Al-Kindi, outro grande
A origem da ontologia na metafísica grega 37
filósofo islâmico também defenderia essa interpretação: trata-se do filósofo
Averróis, que viveu no século XII d. C. Tanto em seu extenso Comentário à
Metafísica de Aristóteles quanto em sua Epítome da Metafísica (um texto
mais breve apresentando sua compreensão do sentido e da estrutura da
Metafísica de Aristóteles), Averróis apresenta e defende sua interpretação
teológica da filosofia primeira. Assim, no decisivo período da recepção da
Metafísica de Aristóteles na filosofia islâmica, formam-se as duas vertentes
de compreensão da metafísica na filosofia medieval: a interpretação da
metafísica como sendo primariamente uma teologia, embora também
contendo conceitos de ordem ontológica (com Al-Kindi e, sobretudo,
Averrois) e a interpretação da metafísica como sendo primariamente uma
ontologia, mas contendo a teologia como sua parte culminante (com Al-
Farabi e, sobretudo, Avicena).
No campo da filosofia e teologia cristãs de língua latina, a Metafísica
de Aristóteles só começa a ser conhecida a partir do século XII em
traduções feitas inicialmente do árabe, juntamente com a tradução para o
latim da Metafísica de Avicena, realizada pelo filósofo e tradutor espanhol
Domingos Gundissalvi, membro da importante escola de tradução situada
em Toledo (atual Espanha) e o primeiro a introduzir o termo ‘metafísica’ na
filosofia cristã de língua latina como nome de uma parte da filosofia e não
apenas como o título de uma obra de Aristóteles. É neste mesmo século que
tanto o Comentário à Metafísica de Aristóteles e a Epítome da Metafísica
escritos por Averrois são traduzidos para o latim, também na escola de
tradução de Toledo. A partir daí, os filósofos e teólogos cristãos assumirão
uma das duas interpretações mencionadas. Como maior representante da
interpretação primariamente teológica da metafísica, temos Tomás de
Aquino, que viveu e escreveu no século XIII d. C. Como maior
representante da interpretação primariamente ontológica da metafísica
temos Duns Scotus, que viveu no final do século XIII e início do século XIV.
Do século XIII em diante, forma-se na Europa cristã de língua latina
a Escolástica, intimamente associada ao florescimento e consolidação das
Universidades. Ao longo desse tempo, surgem inúmeras controvérsias em
torno da Metafísica de Aristóteles e da própria ideia de filosofia primeira
como campo autônomo da filosofia. Essas controvérsias encontram um
certo tipo de fechamento em uma obra imensa, quase um tipo de
enciclopédia, intitulada Disputas metafísicas (Disputationes metaphysiquae),
escrita pelo filósofo, teólogo e jurista jesuíta Francisco Suárez e publicada
38 Nazareno Eduardo de Almeida
em 1597. Nessa obra imensa, Suárez acaba por consolidar a interpretação
ontológica da Metafísica de Aristóteles e, por consequência, da metafísica ou
filosofia primeira como campo de investigações e debates. Essa obra teve
grande impacto tanto na sistematização das posições cristãs católicas,
quanto sobre as posições cristãs protestantes no que se refere ao sentido
geral da metafísica como parte da filosofia.
É justamente nesta última tradição (usualmente chamada de
Escolástica protestante) que o termo ‘ontologia’ surge pela primeira vez em
1613, difundindo-se a partir texto Léxico filosófico (Lexicon philosophicum),
escrito pelo filósofo protestante Rudolph Göckel (ou Rodolphus Goclenius,
em sua forma latinizada).10 Para além dos detalhes e peripécias históricas
que não cabe mencionar aqui, desde a primeira sistematização das disputas
sobre o conceito de metafísica apresentada por Suárez, passando por sua
apropriação nos autores da Escolástica protestante, as discussões sobre a
estrutura da metafísica ou filosofia primeira chegam, nas primeiras décadas
do século XVIII, à seguinte configuração: a metafísica ou filosofia primeira
estaria dividida em duas partes. A primeira parte seria a metafísica geral
(metaphysica generalis), constituída pela ontologia como teorização do ser
enquanto ser, assim como dos conceitos e princípios fundamentais a ele
relacionados. A segunda parte seria a metafísica especial ou específica
(metaphysica specialis), dividida em três partes: a teologia racional (theologia
rationalis), cujo tema seria a demonstração da existência de Deus e a
determinação racional (argumentativa) de sua natureza; a cosmologia
racional (cosmologia rationalis), cujo tema seria a determinação racional da
ordem e da estrutura causal e mais geral do mundo como criação de Deus; e,
por fim, a psicologia racional (psychologia rationalis), cujo tema seria a
demonstração racional da imortalidade da alma e da liberdade humanas.
Essa é a estrutura moderna da metafísica que se apresenta especialmente na
obra de Christian Wolff e Alexander Baumgarten, dois filósofos de
inclinação racionalista fortemente influenciados pela filosofia de Leibniz.
2.4. O terceiro período da história da metafísica: das Meditações
metafísicas (1641) de Descartes até a Crítica da razão pura (1781) de
Kant
10
Recentemente se descobriu que o termo ‘ontologia’ foi usado pela primeira vez, antes de
Göckel, em um tratado do filósofo Jacob Lorhard publicado em 1608, mas esse fato não teve
repercussão na filosofia posterior, ao contrário do texto de Göckel.
A origem da ontologia na metafísica grega 39
Esta menção a Leibniz nos permite inserir um importante capítulo na
história da metafísica moderna que se encontra entre Suárez e Kant, este
último que transformará radicalmente o sentido da metafísica moderna.
Trata-se do surgimento e difusão da filosofia de Descartes. Dentre as obras
deste célebre filósofo, devemos destacar, sobretudo, sua obra mais ambiciosa
e que causou, ao lado do Discurso do método, um impacto profundo e
duradouro em toda a filosofia moderna: trata-se das Meditações metafísicas,
obra escrita originalmente em latim com o título Meditationes de prima
philosophia (literalmente, Meditações sobre filosofia primeira), publicada em
1641. O intento de Descartes é o de apresentar uma nova fundamentação de
todo o conhecimento humano através de um método rigoroso de
investigação inspirado na matemática. Essa nova fundamentação se
encontra expressa na célebre máxima: “penso, logo existo” (cogito ergo sum).
A partir dessa certeza defendida como indubitável, Descartes procura
estabelecer os argumentos que considera decisivos para determinar a
possibilidade da imortalidade da alma e provar a existência de Deus. É isso,
aliás, que se encontra expresso no título completo da obra: Meditações sobre
filosofia primeira: nas quais se demonstram a existência de Deus e a distinção
da alma e do corpo.
O impacto do texto de Descartes na filosofia de sua época e posterior
é enorme, sendo mais evidente em filósofos que procuraram desenvolver a
metafísica a partir do problema do conhecimento. Nomes bem conhecidos
que assumiram tal visão da metafísica na época moderna são: Espinosa,
Locke, Leibniz, Berkeley e Hume. A distinção entre racionalistas e
empiristas, neste aspecto, pode ser considerada como uma distinção entre
duas maneiras distintas de levar à frente o horizonte cartesiano de
desenvolvimento da metafísica. Por conta disso, as Meditações metafísicas de
Descartes deve ser considerada como a obra que marca o início da terceira
fase da história da metafísica. É justamente na linhagem de Leibniz que
Christian Wolff e Alexander Baumgarten, citados anteriormente, defendem
a divisão da metafísica em metafísica geral (ontologia) e metafísica especial
(psicologia, cosmologia e teologia) que vimos há pouco. Mas essa
sistematização da estrutura da metafísica no século XVIII não é apenas
tributária da Escolástica (católica e protestante), mas também (senão
sobretudo) do advento da metafísica de espírito cartesiano.
40 Nazareno Eduardo de Almeida
Como último momento desta brevíssima narrativa sobre os períodos
da história da metafísica a partir da Metafísica de Aristóteles, cumpre falar
brevemente sobre a transformação da noção de metafísica na obra de Kant.
Depois de uma primeira fase de sua obra na qual ainda se considerava
vinculado à metafísica de Leibniz, Wolff e Baumgarten, Kant nos conta que
a leitura da obra de Hume o teria “despertado do sono dogmático” em que
se encontrava na fase inicial de sua filosofia. A partir do impacto da obra de
Hume (e também da de Rousseau), Kant começa a elaborar sua própria
filosofia, a filosofia crítica ou idealismo transcendental, exposta inicialmente
em sua Crítica da razão pura, cuja primeira edição data de 1781, e a segunda
edição, com modificações relevantes, surge em 1787. É nesta obra que Kant
abre um caminho dentro do qual apresentará as suas duas outras críticas: a
Crítica da razão prática (1788) e a Crítica da faculdade de julgar (1790).
O tema fundamental da Crítica da razão pura consiste justamente em
fazer uma nova fundamentação da metafísica através da crítica às propostas
modernas anteriores de estabelecer a metafísica como uma ciência, tanto na
tradição racionalista quanto na tradição empirista. O intento de Kant é
mostrar que a metafísica não é possível como uma ciência ao modo como o
são a matemática e a física. Antes, a possibilidade de fundamentar a
metafísica como ciência se encontra no campo da ética, uma vez que as
Ideias de liberdade, imortalidade e Deus (temas centrais da metafísica), só
possuem uma validade e aplicação como Ideias reguladoras da ação moral,
através daquilo que Kant denomina de imperativo categórico. Enquanto
Ideias reguladoras, elas não possuem nenhuma correlação direta com
objetos do mundo dados em nossa percepção, tal como no caso dos objetos
da matemática e da física.
Independentemente de outros aspectos que não nos cabe abordar
aqui, é importante notar que a crítica que Kant faz à metafísica moderna
precedente já toma a metafísica na estrutura que indicamos há pouco, ou
seja, como se dividindo em metafísica geral (ontologia) e metafísica especial
(composta por psicologia, cosmologia e teologia racionais), uma divisão que
– conforme nos mostram as pesquisas recentes sobre a história da metafísica
– provém da prevalência da interpretação ontológica da Metafísica iniciada
por Al-Farabi e Avicena, interpretação levada à frente por Duns Scotus e que
se cristaliza em Suárez.
A origem da ontologia na metafísica grega 41
2.5. O quarto período da história da metafísica: das primeiras
interpretações da proposta kantiana de transformação da metafísica até
os nossos dias
A proposta kantiana de transformação da metafísica recebeu
diferentes interpretações já no final do século XVIII e especialmente ao
longo do século XIX. Inicialmente, essas interpretações se encontram no
idealismo alemão de Fichte, Schelling e Hegel, nos quais a proposta de Kant
é compreendida (e criticada) como indicando a necessidade de deslocar a
metafísica de sua forma tradicional (ligada com as ciências naturais) para a
análise das estruturas fundamentais da subjetividade e de suas relações com
a objetividade.
No que segue, falarei de um modo apenas indicativo e puramente
didático (senão mesmo simplório) dessas perspectivas de metafísica. Em
Fichte a metafísica se apresenta inicialmente como uma doutrina da ciência
(Wissenschaftlehre), na qual se pretende mostrar como a estrutura da
subjetividade (simbolizada pelo conceito de ‘eu’) é fundadora dos diversos
campos da objetividade (o mundo genericamente significado pelo termo
‘não-eu’). Em suma, o sujeito (do conhecimento e da ação) é o ponto de
partida e de chegada de um círculo em que a objetividade do mundo é
gradativamente “incorporada” pela subjetividade do eu em seu sentido
transcendental, ou seja, de um eu que está presente em todos nós, mas não
se identifica com nenhum de nós. Com isso, Fichte defende que o mundo é
“produzido” como conhecimento e como ação pela subjetividade. Assim, os
âmbitos da natureza e da sociedade são determinados pela estrutura
intrínseca da subjetividade.
No caso de Schelling, a metafísica é a busca das estruturas da
subjetividade que podem se tornar idênticas e fundamentar os diversos
âmbitos do mundo. Ao longo da obra de Schelling essa busca começa
tratando da correlação entre subjetividade e natureza, passando em seguida
pela correlação entre subjetividade e arte, chegando, por fim, à correlação
entre subjetividade e religião. Diferentemente de Fichte, o que importa para
Schelling é mostrar como há uma correlação entre subjetividade e
objetividade que está fundada na primeira, de tal modo que a subjetividade
encontra sua “justificação” no modo como determina (e é determinada) pela
objetividade, quer na forma da natureza, quer na forma da arte, quer ainda
na forma da religião.
42 Nazareno Eduardo de Almeida
Em Hegel, a metafísica é compreendida a partir de uma “ciência da
lógica” que é capaz de exprimir a estrutura geral do desenvolvimento do
espírito absoluto (sinônimo de Deus) através da natureza e especialmente
através da história da humanidade em seus diversos âmbitos, em especial na
história da ético-política (na forma do direito), na história da arte, na
história da religião e na história da filosofia. A metafísica de Hegel,
diferentemente daquela de Fichte e Schelling, procura determinar como um
mesmo princípio fundamental (o espírito absoluto) rege e se manifesta
através da história, sem se reduzir a ela, princípio fundamental que conduz o
mundo e a história em direção a uma finalidade última, tanto em sentido
ético-político, religioso, artístico e filosófico. Esta finalidade última tem uma
dupla forma: de um lado, se apresenta na forma do conhecimento que Hegel
denomina de saber absoluto; e, de outro, se apresenta em uma forma moral,
que é a realização da liberdade de toda a humanidade. Em termos bastante
simplificados, a metafísica de Hegel é uma historicização da relação entre
subjetividade e objetividade que aponta para um fim último da humanidade,
tanto em termos do conhecimento quanto da moralidade.
Outra linhagem de interpretação dessa transformação kantiana da
metafísica se encontra em três filósofos usualmente (e talvez erroneamente)
classificados como irracionalistas: Schopenhauer, Kierkegaard e Nietzsche.
Apesar de suas diferenças, seu ponto comum consiste na radicalização da
dimensão ética que Kant apontara como âmbito legítimo dos conceitos
metafísicos. Falemos muito resumidamente da metafísica de cada um deles.
A metafísica de Schopenhauer subordina o nível da ciência e mesmo
da arte ao nível da ética, de tal forma a resolver a contradição surgida entre
o mundo que se manifesta na representação racional e consciente (cujos
resultados são a ciência e a arte) e o mundo que se manifesta na pulsão de
vida que gera o sofrimento (dimensão situada no campo dos problemas e
dilemas éticos). A suposta conciliação entre esses níveis inicialmente
contraditórios se encontraria em anular ao máximo possível a própria
vontade, de forma a que somente restasse o nível contemplativo da
representação racional, cessando assim o sofrimento a que a vontade nos
condena.
O segundo desses filósofos (e também teólogo) é Kierkegaard. A
partir de uma visão crítica em relação à filosofia de Hegel, o filósofo
dinamarquês defende uma concepção metafísica da subjetividade humana
que a coloca em âmbitos mutuamente conflitantes: os estágios estético, ético
A origem da ontologia na metafísica grega 43
e religioso. Contudo, é apenas neste último estágio que a existência humana
pode encontrar um sentido pleno, mas ao preço de um salto de fé que não é
justificável do ponto de vista racional. Mesmo assim, a angústia e o temor
sobre o sentido da existência humana sempre permanecem, mesmo que
alguém tenha realizado o salto da fé. A metafísica da subjetividade,
portanto, está colocada para além de toda certeza definitiva, mesmo aquela
da fé.
Pouco depois, tomando tanto a filosofia de Kant quanto a de
Schopenhauer, Nietzsche elabora inicialmente uma metafísica da
subjetividade humana de caráter ético-estético centrada no conflito entre o
impulso apolíneo à verdade, à ordem e à racionalidade e o impulso
dionisíaco ao gozo, à ilusão da arte e à vida. Contudo, radicalizando a
inversão kantiana da metafísica moderna para o campo da ética, em uma
fase posterior de sua obra elabora sua crítica à metafísica tradicional,
compreendida como uma falsificação e decadência dos impulsos vitais por
meio de abstrações de origem platônica e cristã, abstrações que se
manifestam especialmente no nível da história da moral, mas que também
se encontram ao longo de boa parte da história da filosofia. No tocante a esta
segunda fase de seu pensamento, é controverso o quanto Nietzsche teria
abandonado a metafísica em geral (entendida como forma do platonismo)
ou a teria substituído por uma metafísica centrada nos conceitos de vontade
de poder e de eterno retorno.
Outra linhagem proveniente da transformação kantiana da metafísica
é aquela encontrada nos neokantianos, que repudiam ao mesmo tempo o
positivismo e o naturalismo (os quais defendiam a substituição da filosofia
pelas ciências), assim como o idealismo alemão e o irracionalismo de
Schopenhauer (os quais supostamente afastavam a filosofia das ciências e da
racionalidade para aproximá-la da arte e de uma atitude de vida). Malgrado
as diferenças entre os diversos autores dessa importante corrente, os
neokantianos viam em Kant uma substituição da ontologia pela teoria do
conhecimento, bem como a substituição das outras partes da metafísica
moderna pela teorização dos conceitos fundamentais da experiência estética
e da ação moral. Neste sentido, de acordo com os neokantianos, Kant teria
estabelecido uma nova divisão da filosofia, livre dos impasses da metafísica
tradicional. Esta divisão é a seguinte: epistemologia/lógica (teoria do
conhecimento), ética e estética. Tal divisão corresponde, aproximadamente,
a cada uma das já mencionadas três críticas de Kant. Mas, de modo geral, os
44 Nazareno Eduardo de Almeida
neokantianos (de modo similar aos positivistas) rejeitam não apenas um
conteúdo positivo para a ontologia, mas para a própria metafísica em geral,
vendo na filosofia de Kant esse momento de superação.
Este panorama (conscientemente limitado e caricatural) de algumas
“respostas” ao projeto kantiano de transformação da metafísica visam
mostrar que em nenhuma dessas linhagens de interpretação encontramos
espaço para a ontologia, salvo, em uma pequena medida, na primeira parte
da Ciência da lógica (1812-16) de Hegel. Como já indicamos, é somente com
Edmund Husserl – a partir de sua obra Ideias para uma fenomenologia pura
e filosofia fenomenológica (1913) – e com Bertrand Russell – com sua obra A
filosofia do atomismo lógico (1918) – que os termos ‘ontologia’ e ‘metafísica’
são retomados no panorama da filosofia recente. Mas mesmo no caso da
filosofia analítica que toma Russell como um de seus fundadores, as noções
de ontologia e metafísica ainda passariam por sérias críticas e uma visão
negativa por parte dos membros do neopositivismo lógico nascido no
círculo de Viena, especialmente nas figuras de Moritz Schlick e Rudolph
Carnap.
As noções de ontologia e metafísica somente viriam a começar a se
consolidar como temas positivos em filosofias de inspiração analítica a
partir do início dos anos 1950. Do outro lado, parece acontecer exatamente
o inverso. As filosofias inspiradas na fenomenologia de Husserl começam a
elaborar suas propostas de ontologia e metafísica a partir dos anos 1920 até
1960; mas, a partir daí, essas propostas são comumente substituídas por um
discurso de crítica e superação da metafísica tradicional em prol de uma
visão supostamente não mais metafísica do mundo e da história humana.
Em resumo, a ontologia e metafísica que florescera na dita tradição da
filosofia continental a partir de Husserl começa a declinar aproximadamente
na mesma época em que a ontologia (metafísica) inicialmente proposta por
Russell começa a florescer e está ainda hoje em desenvolvimento e discussão
na assim chamada filosofia analítica.
Mas qual é a “moral da estória” que podemos extrair desse panorama
bastante geral da história da metafísica? A principal “moral” consiste em
confirmar que a história da metafísica na tradição posterior a Aristóteles (e
mesmo antes deles) não se resume ou se reduz a uma história da ontologia.
Bem antes, tudo isso nos indica que a história da ontologia é uma parte da
história da metafísica desde que os textos de Aristóteles intitulados pelo
nome Metafísica começaram a percorrer seu longo e complexo caminho de
A origem da ontologia na metafísica grega 45
recepção através da história da filosofia, desde a antiguidade até o mundo
moderno; e, como veremos logo mais, mesmo antes desses textos
repercutirem de modo decisivo na filosofia posterior.
Como indicado antes, a história da metafísica está inicialmente
vinculada à sua incorporação na metafísica henológica dos neoplatônicos.
Em seguida, liga-se às suas interpretações teológica e ontológica
inicialmente na filosofia islâmica, e posteriormente na filosofia cristã-
europeia de língua latina. Na filosofia moderna, a partir de Descartes, a
metafísica começa a ser associada diretamente com a epistemologia ou
teoria do conhecimento. No século XVIII, antes de Kant, para além de sua
vinculação com a ontologia e com a teologia, são associadas a ela certa
abordagem da física (cosmologia) e uma noção inicial de psicologia. Com
Kant, a história da metafísica não apenas se associa mais fortemente com a
epistemologia, mas também com a ética. No século XIX, como vimos há
pouco, a partir da centralidade da noção de subjetividade, a história da
metafísica se vincula ainda com a estética. Por fim, no século XX, a
metafísica se vincula, de um lado, com certa compreensão do humano
ligada às ciências humanas (especialmente no caso de Heidegger, Sartre,
Merleau-Ponty e Gadamer) e com a filosofia da linguagem e da lógica
(especialmente nos autores vinculados à filosofia analítica).
Além disso, poderíamos relacionar a história da metafísica a partir do
século XIX com as críticas dirigidas à própria ideia de metafísica, críticas
que começam com Kant, mas que se desdobram no positivismo, em parte da
filosofia de Nietzsche, no marxismo, no neopositivismo, no estruturalismo e
nas filosofias geralmente consideradas pós-modernas. Tudo isso nos mostra
que a associação ainda usual da história da metafísica com a história da
ontologia é uma simplificação que não mais se sustenta na perspectiva de
uma história da filosofia feita rigorosamente.
No entanto, conforme já expusemos em traços gerais no texto básico,
devemos acrescentar uma quinta fase para além dessas quatro fases da
história da metafísica a partir da recepção da Metafísica de Aristóteles na
filosofia posterior ao século I a. C. Essa quinta fase é, na realidade, a
primeira fase da história da metafísica, justamente aquela que vai do início
da filosofia grega até o momento em que Aristóteles elaborou os textos que
mais tarde foram reunidos com o nome Metafísica. De um lado, se
considerada à luz do que acabamos de ver, esta fase é um tipo de “pré-
história” da metafísica. De outro lado, porém, do ponto de vista interno aos
46 Nazareno Eduardo de Almeida
textos que compõem a Metafísica de Aristóteles, essa fase precisa contar
como a primeira desta história. Mas para podermos entender de modo
adequado este duplo aspecto, antes de falarmos sobre esta primeira fase da
história da metafísica, precisamos fazer um conjunto de considerações
gerais sobre a própria estrutura dos textos que compõem a Metafísica de
Aristóteles.
3. As interpretações teológica e ontológica da Metafísica de Aristóteles e
os problemas sobre a coerência e unidade da obra
Como já indiquei acima, a Metafísica de Aristóteles é composta por
um conjunto de textos reunidos por Andrônico de Rodes no século I a. C.
Tanto quanto outras obras da filosofia antiga (como a República de Platão),
costumamos falar que a Metafísica é composta de Livros e não de capítulos,
tal como estamos habituados no mundo moderno. Essa maneira de dividir a
obra se torna mais compreensível quando constatamos que cada um dos
Livros que compõem a Metafísica é composto de capítulos. Na forma como
a conhecemos, a Metafísica é composta por quatorze Livros.11
O que cabe enfatizar neste momento é a existência de muitas dúvidas
sobre a coerência e unidade textuais e mesmo conceituais destes Livros. Já
mencionei antes as duas diferentes interpretações da obra que começaram a
surgir nos primeiros comentários remanescentes da obra e especialmente no
contexto de sua recepção e interpretação na filosofia islâmica: a
interpretação que defende ser a filosofia primeira ou metafísica
primariamente uma teologia (englobando a ontologia como uma de suas
partes) e aquela outra que defende ser a filosofia primeira ou metafísica uma
ontologia (englobando a teologia como uma de suas partes).
A interpretação teológica da Metafísica usualmente toma como seu
ponto de apoio o Livro VI, especialmente seu primeiro capítulo. Nele,
Aristóteles estabelece que a filosofia primeira é uma ciência do ser enquanto
ser, mas o sentido do conceito de ‘ser enquanto ser’ é reservado para o que
chama de filosofia teológica, situada acima da filosofia física e da filosofia
11
Na organização moderna, há duas maneiras de numerar estes Livros. Uma delas, que usarei
aqui, é através da numeração romana. A outra é através da numeração grega. Nesta última, a
sequência da numeração é distinta por se usar a letra alfa para os dois primeiros Livros: o
primeiro sendo chamado de ‘Alfa maior’ e o segundo de ‘Alfa menor’. Por causa disso, na
numeração grega, o Livro III é chamado de Livro Beta, seguindo-se a mesma assimetria para os
demais. Assim, para evitar equívocos, adoto a numeração romana.
A origem da ontologia na metafísica grega 47
matemática. Em outras palavras, neste contexto, a noção de ‘ser enquanto
ser’ significa o estudo do ser em seu sentido mais elevado e distinto dos
demais sentidos e tipos de ser, ou seja, o ser enquanto ser entendido como
causa de todas as coisas: como sinônimo do divino. Essa ciência seria mais
universal do que as outras porque trata do ser primeiro que é causa de todos
os demais seres, os quais seriam estudados pela física (denominada de
‘filosofia segunda’) e pela matemática (que parece ser considerada como um
tipo de filosofia do terceiro nível). Assim, a filosofia primeira, segundo essa
breve descrição da hierarquia das ciências, se identificaria com uma
teologia, que complementaria em um nível superior a ontologia encontrada
especialmente na física, entendida como filosofia segunda. O restante do
breve Livro VI (caps. 2-4) nos apresenta uma análise dos vários sentidos do
conceito de ser, excluindo do escopo de tratamento da ciência projetada o
estudo do ser no sentido do ser acidental (do qual só se pode ter opinião e
não ciência) e do ser como verdade (sobre o qual compete à psicologia, à
epistemologia e mesmo à lógica tratar).
Em contraste, a interpretação ontológica da Metafísica usualmente
toma como seu ponto de partida o Livro IV, no qual Aristóteles procura
estabelecer que há uma ciência que teoriza o ser enquanto ser e suas
propriedades intrínsecas. Essa ciência deve ser considerada, por contraste
com as demais, como uma ciência universal, pois não trata do ser enquanto
algum gênero particular (o ser enquanto ser físico, o ser enquanto ser
matemático, o ser enquanto ser biológico etc.), mas do ser enquanto ser por
si mesmo. Todavia, diferentemente do Livro VI, no Livro IV a noção de ‘ser
enquanto ser por si mesmo’ não significa o ser divino (deus ou os deuses
como causa de todos os outros seres), mas o gênero de ser primário
denominado por Aristóteles através do termo ‘substância’ (ousia). Conforme
o texto do capítulo 2 do Livro IV, que teremos de analisar posteriormente, a
substância é o sentido primário do ser enquanto ser porque todos os outros
tipos de ser (distribuídos nas demais categorias e modos de ser) dependem
da substância para serem o que são e como são. A partir do capítulo 3 até o
seu final, o Livro IV nos apresenta esta ciência do ser enquanto ser (centrada
na substância) como sendo também uma ciência dos primeiros princípios
de todos os seres enquanto seres, em especial os princípios da não-
contradição e do terceiro excluído.
Essas duas descrições distintas da ciência do ser enquanto ser –
entendida como o núcleo da noção de filosofia primeira – acabam por
48 Nazareno Eduardo de Almeida
constituir uma espécie de dilema, o qual, como já indicamos há pouco,
conduziu às duas interpretações da Metafísica: uma interpretação teológica e
outra interpretação ontológica. Assim, de um lado, a interpretação baseada
na descrição encontrada no Livro VI entende a filosofia primeira como uma
teologia que acaba por englobar os conceitos e as teses de caráter ontológico
como uma parte complementar às determinações do ser divino, assumido
como sentido fundamental da noção de ser enquanto ser. E, de outro lado, a
interpretação baseada na descrição encontrada no Livro IV entende a
filosofia primeira como uma ontologia que engloba os conceitos e teses de
caráter teológico como um tipo de parte culminante da teoria da substância,
assumida como sentido primário da noção de ser enquanto ser.
Diante desse clássico dilema interpretativo, nós optaremos, como tem
feito a tradição dominante desde Al-Farabi e Avicena, pela interpretação da
Metafísica em chave ontológica, ou seja, assumindo que a noção de filosofia
primeira é regida pelo que nos fala o Livro IV; embora, como veremos no
momento oportuno, haja muitas questões interpretativas delicadas e difíceis
no tocante a esta parte da obra. O que importa tomar em atenção neste
momento é justamente que este dilema é um tema incontornável e uma
dificuldade interpretativa que perpassa toda a história da recepção desta
obra. Mas para além da necessidade de optar por uma das partes do dilema,
esta necessidade traz implícita em si um outro tema tão ou mais importante
do que este: o tema da coerência conceitual e da unidade textual da obra.
Durante séculos, especialmente a partir da interpretação proveniente
de Averróis, a filosofia aristotélica foi considerada por muitas pessoas como
um sistema coerente e acabado. Provém de Averróis a ideia de que
Aristóteles seria ‘o Filósofo’, no sentido de ter alcançado a perfeição no
tocante à realização da filosofia. Neste sentido, Averróis e boa parte da
tradição interpretativa posterior considerou que a Metafísica deveria ser lida
como uma obra plenamente coerente e que os quatorze Livros que a
compõem constituiriam uma unidade orgânica e perfeita. Apesar das
inúmeras críticas feitas a Aristóteles na filosofia renascentista e moderna,
essa visão permaneceu viva até meados do século XIX. Com a nova edição
crítica das obras remanescentes de Aristóteles feita no século XIX e seu
estudo segundo métodos históricos, filológicos e filosóficos mais rigorosos,
começaram a vir à tona os questionamentos dessa imagem do filósofo
perfeito difundida a partir de Averróis, sendo tais questionamentos ainda
mais agudos no que diz respeito aos textos que compõem a Metafísica.
A origem da ontologia na metafísica grega 49
Como a culminação desse processo de estudo, o célebre helenista
alemão Werner Jaeger publicou em 1923 o livro intitulado Aristóteles: linhas
fundamentais de seu desenvolvimento intelectual. De modo geral, neste texto,
Jaeger defende que as incoerências encontradas e catalogadas pelos
estudiosos desde o século XIX poderiam ser explicadas por meio do que
veio a ser chamado de análise genética da obra de Aristóteles. Em termos
mais simples, as contradições e incompatibilidades encontradas entre as
obras do Estagirita poderiam ser explicadas por um fato muito simples:
Aristóteles não concebeu sua filosofia como um sistema em que todas as
partes estariam perfeitamente “encaixadas” umas nas outras, mas alterou
suas concepções filosóficas ao longo de seu desenvolvimento intelectual.
Em particular, no caso da Metafísica, Jaeger procura mostrar que os
textos que a compõem não formam um todo coerente nem internamente,
nem em relação às outras obras, de modo que estes textos não possuem uma
unidade sistemática nem interna nem externa. Antes, os compiladores, a
começar por Andrônico de Rodes, reuniram em uma mesma obra textos de
distintos períodos do desenvolvimento intelectual de Aristóteles.
De acordo com Jaeger, as etapas de desenvolvimento da filosofia de
Aristóteles começam com posições mais próximas da filosofia de Platão e
gradativamente dela se afastam. Segundo essa imagem do desenvolvimento
do pensamento aristotélico, alguns dos textos que compõem a Metafísica
seriam da primeira fase e outros da segunda, de maneira que seria inútil
procurar uma unidade sistemática nestes textos, pois pertenceriam a
momentos em que Aristóteles havia tomado posições distintas acerca da
noção de filosofia primeira. Segundo Jaeger, somente a sequência dos Livros
VII-IX (excluindo o último capítulo deste) e XIII-XIV pertencem à fase final
do pensamento aristotélico, no qual predomina uma concepção mais
“empirista” e anti-platônica da noção de substância (ousia), devendo-se
considerar, grosso modo, os demais Livros como pertencentes à primeira fase
de seu pensamento, fase na qual o Estagirita ainda estaria mais próximo
(mesmo com diferenças importantes) da filosofia de Platão.
Diante disso, podemos estabelecer, em termos didáticos, o contraste
entre o Aristóteles de Averróis – o Filósofo perfeitamente sistemático – e o
Aristóteles de Jaeger – para quem a obra ainda hoje acessível a nós revela um
filósofo de primeira grandeza e um pesquisador incansável, mas sempre
pronto a alterar seus pontos de vista ao longo da investigação. Por analogia,
poderíamos falar de uma leitura averroísta da Metafísica, que procura
50 Nazareno Eduardo de Almeida
dissolver as contradições internas e externas desta obra em uma
interpretação sistemática perfeita, e de uma leitura jaegerina da Metafísica,
que procura mostrar antes as suas lacunas, incoerências e contradições
internas, bem como as suas incompatibilidades com outras de suas obras
remanescentes.
Depois de Jaeger, cuja leitura foi amplamente criticada a partir dos
anos 1960, formaram-se duas leituras (interpretações) distintas da
Metafísica. De um lado, a chamada leitura aporética e, de outro, a chamada
leitura fragmentada. A leitura aporética – representada emblematicamente
pela interpretação de Pierre Aubenque em seu clássico O problema do ser em
Aristóteles (1962) – procura mostrar que a obra é composta de textos que
não se coadunam entre si e também com outras obras, sem lançar mão,
como no caso de Jaeger, de um pano de fundo biográfico para tentar explicar
esses problemas. De outro lado, a leitura fragmentada aponta para um tipo
de interpretação na qual os/as intérpretes abdicam de defender algum tipo
de concepção sobre o todo da obra e se dedicam a investigar um ou apenas
alguns de seus Livros, deixando em suspenso a coerência interna dos textos
e a concordância ou não dos mesmos com outras obras, bem como o que
seria a unidade textual e filosófica da obra como um todo.
Em contraste com essas duas formas de interpretar a obra, minha
posição é a de que é possível estabelecer certo tipo de unidade sistemática de
uma parte da obra. Em um espírito algo aristotélico, acredito que é possível
defendermos uma leitura da Metafísica que fica em um meio termo entre os
dois extremos representados pelo Aristóteles absolutamente sistemático e
perfeito de Averróis e o Aristóteles fragmentário e carente de unidade, tal
como assumido por intérpretes recentes. Nesta perspectiva intermediária,
entendo que a Metafísica contém textos de duas etapas distintas de
compreensão e investigação acerca do significado da filosofia primeira. Uma
primeira etapa mais incipiente, formada pelos Livros II, VI e parte do Livro
XI (capítulos 6-12), na qual Aristóteles concebia a filosofia primeira como
exclusivamente teológica, excluindo de sua teorização alguns dos sentidos
do conceito de ser e centrando sua concepção no ser em sentido primário
como o ser divino entendido enquanto substância imaterial e, por isso,
como causa primeira de todas as coisas do mundo. Na segunda etapa, mais
madura, Aristóteles concebia a filosofia primeira como estando centrada na
ontologia, e mais especialmente, na teoria da substância em geral,
denominada no vocabulário técnico dos/das intérpretes recentes de
A origem da ontologia na metafísica grega 51
‘ousiologia’. Nesta etapa madura, em consonância com a interpretação de Al-
Farabi, Avicena e Duns Scotus, a teologia (como estudo das substâncias
imateriais primárias) é uma parte culminante da ciência do ser enquanto ser.
Nesta segunda etapa mais madura podemos agrupar (não sem problemas
filosóficos e textuais internos) os Livros I, III, IV, VII, VIII, IX, X, XII, XIII e
XIV. Nesta perspectiva, o Livro V e a primeira parte do Livro XI (capítulos
1-5) são considerados como textos compostos entre essas duas fases. De um
ponto de vista metodológico, essa interpretação nos permite procurar algum
tipo de unidade textual e sistemática abrangendo dez dos quatorze Livros da
Metafísica, o que me parece uma perspectiva promissora quando
contrastada com os problemas encontrados nos extremos representados
pelas leituras averroísta e pela leitura fragmentária.
Quem está lendo estas páginas pode estar se perguntando sobre a
relevância dessas considerações acerca das interpretações da Metafísica de
Aristóteles no contexto de um livro introdutório de ontologia grega. A
resposta é simples: assim como não podemos assumir de modo ingênuo que
a história da metafísica – constituída ao longo da recepção da Metafísica de
Aristóteles – é uma história da ontologia, assim também, diante das
tendências recentes de interpretação desta obra, não podemos assumir de
forma ingênua e acrítica que a única leitura possível ou correta deste texto
clássico é aquela que o interpreta como um texto de ontologia e como um
texto que possuiria uma unidade estrutural interna e uma coerência
completa com os outros escritos remanescentes de Aristóteles.
Na realidade, diante desta posição intermediária na interpretação,
nem mesmo a “escolha” pela interpretação ontológica da Metafísica é
suficiente para reduzir o conteúdo da parte supostamente mais sistemática
da obra ao que recentemente se entende de modo geral como o significado
da noção de ontologia. Com efeito, a partir de uma leitura contemporânea
da Metafísica de Aristóteles e da metafísica antiga, tornar-se-á mais claro
que a própria compreensão da história da metafísica anterior a Aristóteles
não se resume ou se reduz a uma história da ontologia, mas é constituída
por uma linhagem henológica e uma linhagem ontológica, e, sobretudo, pela
mistura de ambas.
4. A Metafísica de Aristóteles como ponto de partida para compreender a
história da metafísica pré-aristotélica
52 Nazareno Eduardo de Almeida
4.1. O aspecto intrinsecamente histórico da Metafísica de Aristóteles
Ao contrário do que por vezes se supõe, todas concepções filosóficas
que se tornaram relevantes na história da filosofia só alcançaram seu grau de
relevância e se tornaram interessantes ou mesmo inevitáveis para um
público mais amplo na medida em que adotam algum tipo de posicionamento
original diante do passado e do presente da filosofia. Em termos mais simples,
toda filosofia sempre já se posiciona dentro e diante da história da filosofia
passada e presente. O que vale para a filosofia em geral, vale também para as
concepções metafísicas. Assim, não há apenas uma história da metafísica,
que descrevemos em traços largos acima, mas também sempre há algum
tipo de relação que cada uma das concepções metafísicas estabelece
internamente com a história passada e presente da metafísica.
Essa constatação é muito importante para podermos justificar aquilo
que já apontamos antes: que o primeiro período da história da metafísica, na
realidade, não começa unicamente a partir do surgimento da Metafísica de
Aristóteles no século I a. C.: a partir do conteúdo interno dos textos que
compõem essa obra, a primeira etapa dessa história coincide com o próprio
início da filosofia grega, ou seja, a primeira fase da história da metafísica tem
seu início nos primeiros filósofos que usualmente chamamos de pré-
socráticos. De modo ainda mais específico, isso é assim porque o Livro I da
Metafísica de Aristóteles começa por estabelecer o conceito de sapiência
(sophia) (uma das formas com as quais o Estagirita fala da filosofia primeira)
não apenas reivindicando que essa ciência seria a culminação do saber
humano em geral (caps. 1-2), mas também através de uma ampla
interpretação crítica de muitos de seus antecessores, interpretação que
perfaz o restante deste Livro I (caps. 3-10). Implicitamente, isso significa que
Aristóteles entende sua proposta de filosofia primeira (o que chamamos de
sua metafísica) como a realização plena de algo que já havia sido tentado por
seus antecessores; embora, aos seus olhos, tais tentativas tenham
permanecido incompletas e, em vários aspectos, erradas. Contudo, essa
“camada histórica” do projeto metafísico de Aristóteles não se restringe ao
início do texto. Na realidade, ela está presente em muitas partes da obra.
Façamos uma lista sumária dos momentos mais importantes em que
Aristóteles insere a história da filosofia grega anterior na Metafísica, de
forma a que essa história passa a contar como a primeira fase da história da
metafísica.
A origem da ontologia na metafísica grega 53
No Livro III, Aristóteles apresenta quatorze (para alguns quinze)
problemas (aporias) que a “ciência procurada” (epistêmê dzêtoumenê) teria
de solucionar para se estabelecer de modo legítimo como sapiência (sophia)
ou filosofia primeira. Todavia, a exposição desses problemas não se faz em
termos puramente conceituais, mas em vários deles são mencionadas
discussões e concepções de seus antecessores. No Livro IV, sobre o qual
ainda falaremos depois, Aristóteles não apenas menciona, mas sobretudo
discute com seus antecessores ao longo de quase todos os capítulos. No
Livro VII, no qual procura estabelecer a significação correta do conceito de
substância (ousia) (em certo sentido, o conceito mais importante da
Metafísica), Aristóteles tanto menciona quanto discute criticamente com
inúmeros de seus antecessores, em particular apresenta uma interpretação
crítica da teoria das Ideias de Platão. No Livro IX, no qual discute e procura
estabelecer a ordem correta das várias significações dos conceitos de
potência (dynamis) e efetividade (energeia), em dois importantes capítulos,
Aristóteles discute diretamente a concepção sobre esses conceitos de uma
escola filosófica a ele contemporânea, a escola dos megáricos. No célebre
Livro XII, no qual Aristóteles expõe sua teologia – entendida na presente
interpretação como parte culminante de sua metafísica da substância –, o
último capítulo é todo dedicado a uma discussão sobre a cosmologia de seus
antecessores, interpretada como o modo pelo qual eles teriam visto a relação
entre o divino e o mundo. Para encerrar essa lista sumária, cumpre
mencionar os Livros XIII e XIV – que encerram a obra – são totalmente
dedicados à discussão crítica das concepções metafísicas (ontológicas e
henológicas) de Platão e dos platônicos, bem como dos pitagóricos, uma vez
que, na visão de Aristóteles, há uma relação direta entre o platonismo e o
pitagorismo.
Essa lista muito sucinta mostra com muita clareza que Aristóteles só
consegue estabelecer de modo original as suas concepções sobre a filosofia
primeira nos textos que compõem a Metafísica ao conseguir vincular essas
concepções com boa parte da tradição filosófica a ele anterior. É justamente
a partir da importância que a Metafísica adquiriu através de sua recepção
posterior – como vimos há pouco – que podemos falar, a partir desse
aspecto histórico presente nesta obra, que ela nos permite falar
retrospectivamente da história da metafísica como praticamente
coincidindo com a tradição filosófica anterior a Aristóteles.
54 Nazareno Eduardo de Almeida
4.2. A linhagem henológica e a linhagem ontológica da metafísica antiga
Uma vez justificada de modo breve a ideia de uma história da
metafísica grega antes de Aristóteles, é importante apresentar uma distinção
de duas linhagens que marcam a metafísica antiga desde os primeiros
filósofos até o neoplatonismo presente nos séculos finais da filosofia antiga.
Como já exposto no texto básico, essas linhagens são a linhagem henológica
e a linhagem ontológica. Também conforme indicado antes, a ideia geral
contida no termo ‘henologia’ engloba em si uma parte importante da
metafísica antiga que não está centrada apenas nos conceitos de ser e não-
ser (os conceitos fundamentais da ontologia), mas precisa ser compreendida
também como uma teorização centrada nos conceitos de unidade e
multiplicidade (os conceitos fundamentais da henologia).
Essa nova visão da história da metafísica antiga se impôs,
inicialmente, por causa do estudo histórico mais rigoroso da filosofia
neoplatônica, estudo que se intensifica somente em meados do século XX.
Como dito antes, as Enéadas de Plotino devem ser consideradas como a
primeira grande obra da história da metafísica depois da Metafísica de
Aristóteles. Todavia, os conceitos fundamentais da metafísica de Plotino são
os de unidade e multiplicidade e não, como no caso da Metafísica de
Aristóteles, os conceitos de ser e substância. Isso significa que a metafísica
de Plotino é primariamente uma henologia e somente secundariamente uma
ontologia.
Em um momento decisivo das Enéadas (VI, 9, 1, 1-2 ss.), Plotino
marca explicitamente essa subordinação do conceito de ser ao conceito de
unidade ao dizer que todos os entes do mundo existem e possuem um
determinado tipo e modo de ser porque possuem um determinado tipo e
modo de unidade, mas a relação causal não pode ser invertida, ou seja, não é
porque cada ente do mundo existe e possui um determinado tipo e modo de
ser que ele possuiria determinado modo de unidade. Em suma, em última
instância, para Plotino, a unidade é a causa do ser das coisas que são (os
entes), e não é o ser que é a causa da unidade das coisas que são (os entes).
Contudo, essa tese filosófica nos mostra também que não se pode falar, em
muitos casos, que haja uma exclusão mútua entre esses dois campos da
metafísica antiga. O correto é falarmos que há formas distintas de relação
entre ontologia e henologia. De qualquer modo, no caso de Plotino e dos
neoplatônicos depois dele, suas concepções metafísicas explicitamente
A origem da ontologia na metafísica grega 55
subordinam a teorização do ser (a ontologia) à teorização sobre a unidade (a
henologia).
Mas o caso dos neoplatônicos a partir de Plotino é apenas o final da
história da metafísica antiga. Na realidade, há muitas evidências de que a
história da filosofia e da metafísica gregas começam justamente sob o signo
dos conceitos henológicos de unidade e multiplicidade. Isso pode ser
corroborado inicialmente por um importante texto do helenista inglês
Francis Cornford sobre aquele que é considerado o primeiro filósofo
propriamente dito da história da filosofia grega: Anaximandro de Mileto (c.
610-546 a. C.). O texto é o capítulo intitulado “O sistema de Anaximandro”,
pertencente ao seminal livro Principium sapientiae: as origens do pensamento
filosófico grego, publicado em 1952. Segundo Cornford, a pergunta
fundamental que Anaximandro estaria procurando responder com sua
filosofia é a seguinte: “Como surgiu, do estado primitivo das coisas, este
mundo multiforme e ordenado?”12 No correr do texto, Cornford claramente
indica que o significado da expressão ‘estado primitivo das coisas’ significa o
período inicial do mundo, no qual as múltiplas coisas que vemos a nossa
volta estavam unidas em uma única massa material, a qual Anaximandro
chamou de apeiron, um termo polissêmico que podemos traduzir
inicialmente por ‘indeterminado’ ou ‘indefinido’. Entretanto, para
Anaximandro, o apeiron não é apenas o princípio entendido como
momento inicial em que todas as coisas estavam unidas, mas também (e
talvez sobretudo) o princípio único que rege e organiza toda a multiplicidade
das coisas que compõem o mundo que percebemos a nossa volta. O apeiron,
portanto, é princípio no duplo sentido de ser o início do mundo e de ser a lei
que rege todas as suas transformações e os seus ciclos cósmicos ao longo da
eternidade.
Como já é amplamente aceito, o conceito de apeiron proposto por
Anaximandro não é apenas um conceito fundamental da física filosófica
grega, mas também o primeiro conceito metafísico da filosofia antiga. Ele é
um conceito metafísico justamente porque nos indica que o princípio de
todas as coisas do mundo físico é distinto de todas essas coisas, caso
contrário não poderia ser princípio (início e lei regente) dessas mesmas
coisas. Mas o ponto mais importante, aqui, consiste em perceber que o
conceito metafísico do apeiron não é um conceito com sentido ontológico,
12
CORNFORD, Francis. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico grego; trad.
Maria M. R. dos Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989, p. 258; grifos acrescentados.
56 Nazareno Eduardo de Almeida
mas com sentido henológico, uma vez que marca o modo como
Anaximandro compreende a relação entre a unidade do princípio eterno e a
multiplicidade das coisas do mundo que dele se geram e para ele retornam.
No entanto, se a interpretação da metafísica de Anaximandro como
uma metafísica de espírito henológico tem ainda certo caráter conjectural,
outra filosofia mostra mais claramente como a metafísica grega iniciou no
marco da henologia e não da ontologia. Trata-se da filosofia de Heráclito de
Éfeso (c. 540-470 a. C.). Que o seu pensamento possui claramente um
aspecto metafísico é evidente através de um de seus breves e poderosos
fragmentos: “a ordem invisível domina a (ordem) visível” (frag. 54)
É sempre difícil traduzir os fragmentos remanescentes de Heráclito.
Aqui, o filósofo de Éfeso denomina essa ordem pelo termo grego ‘harmoniê’,
donde provém nosso termo ‘harmonia’, de modo que o texto grego está
fazendo uma comparação implícita da ordem do mundo com a ordenação
correta dos sons que nos faz identificar a estrutura que ordena os sons na
música. Nesta comparação, a ordem visível que percebemos no mundo é
dominada a partir de uma ordem invisível que não é perceptível por nós,
mas que pode ser alcançada pela inteligência ou racionalidade humana,
desde que devidamente usada. Essa é uma forma bastante intuitiva de
começarmos a compreender um dos principais sentidos do termo
‘metafísica’: que o mundo físico percebido diretamente por nós é regido por
um ou mais princípios (leis) subjacentes que somente são compreensíveis
através do pensamento racional e não através da percepção sensível imediata
e das opiniões diretamente derivadas desta percepção. Nessa acepção geral,
poderíamos dizer que mesmo as teorias científicas são metafísicas na
medida em que postulam princípios explicativos que não são imediatamente
dados na percepção, mas demandam a descoberta de leis subjacentes aos
fenômenos teorizados.
O fragmento citado acima nos mostra o caráter metafísico presente
no pensamento de Heráclito. Contudo, esse sentido metafísico não está
associado diretamente à ontologia, mas à henologia. Como veremos logo
mais, o nascimento da ontologia na filosofia e na metafísica antigas se deve à
obra de Parmênides de Eleia, contemporâneo de Heráclito, embora vivendo
no outro extremo geográfico do mundo grego antigo, pois enquanto Éfeso se
situava na atual costa da Turquia, Eleia era uma cidade situada no atual sul
da Itália. Essa observação visa mostrar que a metafísica de Heráclito ainda
não opera com os conceitos de ser e não-ser que marcam o nascimento da
A origem da ontologia na metafísica grega 57
ontologia na história da filosofia e da metafísica gregas. Neste sentido,
Heráclito pode ser considerado como o filósofo que desenvolve a mais radical
forma de henologia na história da metafísica grega, uma vez que sua
metafísica não está associada ou se centra nos conceitos de ser e não-ser,
como será o caso dos filósofos que elaboram suas metafísicas depois de
Parmênides.
Para mostrar esse sentido radicalmente henológico da metafísica de
Heráclito, basta tomarmos em atenção mais um de seus fragmentos. Trata-se
do fragmento de número 50, segundo a numeração de base
consensualmente adotada a partir do trabalho dos filólogos alemães
Hermann Diels e Walter Kranz, trabalho encontrado na obra intitulada Os
fragmentos dos pré-socráticos, uma obra em três volumes longamente
elaborada e aumentada desde sua primeira edição em 1903 até sua última
edição em 1951. Na tradução de José Cavalcante de Souza, este fragmento
nos diz: “Não de mim, mas do logos tendo ouvido é sábio homologar: tudo é
um.”13 Fazer uma explicação adequada desse fragmento nos levaria muito
longe e exigiria adentrarmos nos meandros da filosofia de Heráclito. Mesmo
assim, podemos enfatizar duas coisas, uma relativa à primeira parte e a outra
à segunda parte do fragmento.
No tocante à primeira parte, o tradutor brasileiro deixou
propositalmente não traduzido o termo grego logos, um termo altamente
polissêmico e que simboliza um dos conceitos fundamentais no pensamento
de Heráclito, tendo sido ele o primeiro filósofo a trazer essa palavra da
língua grega comum para o âmbito do vocabulário filosófico que começava a
se formar em sua época. Em geral, para simplificarmos, costumamos
traduzir inicialmente o termo ‘logos’ por ‘discurso’. Nessa tradução, podemos
começar a entrar na profundidade característica do pensamento de
Heráclito e que se manifesta neste importante fragmento. Usando essa
“versão” da palavra ‘logos’, teríamos uma segunda tradução do fragmento:
“Não de mim, mas do discurso tendo ouvido é sábio homologar: tudo é um.”
Nessa versão/interpretação inicial do fragmento, Heráclito está nos pedindo
para escutar o sentido de seu discurso e não o fato de ele, um homem
particular de Éfeso, tê-lo dito. É somente assim que se pode ser sábio: ao
homologar o sentido do logos ele mesmo, independentemente de ter sido
proferido pela pessoa de Heráclito. Note-se, como acontece em vários
13
HERÁCLITO. Fragmentos; trad. José Cavalcante de Souza. In SOUZA, J. C. (org.) Os pré-
socráticos. São Paulo: Abril, 1973, p. 90.
58 Nazareno Eduardo de Almeida
fragmentos, o jogo de palavras (trocadilho) entre a palavra logos e o termo
homo-logar (no grego original ‘homologein’). No contexto do fragmento, o
termo ‘homologar’ significa: estar de acordo com o logos (discurso). Assim,
teríamos uma terceira versão do fragmento na seguinte forma: “Não de
mim, mas do logos (discurso) tendo ouvido é sábio estar-de-acordo-com-o-
logos (discurso): tudo é um.” Na realidade, essa breve análise nos permite
apontar para o fato de que a palavra logos presente na primeira parte do
fragmento marca um dos conceitos fundamentais do pensamento de
Heráclito, sobre o qual não podemos falar aqui. Mas para entendermos essa
posição fundamental do logos na filosofia e na metafísica de Heráclito,
cumpre passarmos à observação sobre a segunda parte do fragmento.
Aquilo que é para nós importante sobre essa segunda parte é
justamente a expressão ‘tudo é um”, que no grego peculiar de Heráclito
aparece na forma ‘hen panta’. Esse par conceitual é justamente aquele que
marca de modo explícito o tema da henologia: como explicar as formas de
relação entre a unidade (hen) e a multiplicidade de coisas que compõem a
totalidade do mundo (panta). Na realidade, essa é a expressão fundamental
da metafísica de Heráclito e, ao mesmo tempo, simboliza do modo mais
breve possível toda a questão da henologia grega. Através dessa expressão
temos um tipo de chave interpretativa direta para conseguirmos
compreender um dos aspectos mais complexos do pensamento de Heráclito:
que a unidade se manifesta através de muitas formas.
Assim, em diversos fragmentos, o termo ‘um’ (hen) é substituído por
Heráclito por outros conceitos que lhe são fundamentais. Dentre eles, os
principais são os seguintes: ‘conflito’ (polemos), ‘fogo’ (pyr), ‘divino/deus’
(theos), ‘a coisa sábia’ (to sophon) e também – talvez como o mais importante
de todos os “nomes da unidade” – justamente o termo logos, que aqui
traduzimos como ‘discurso’, mas que pode significar várias outras coisas.
Uma maneira de começar a entender o sentido do logos em Heráclito é
justamente notarmos que um discurso é uma unidade por ter um certo
sentido que compreendemos como único, mas essa unidade é composta por
uma multiplicidade de letras, sílabas, fonemas e palavras distintas.
Agora, à luz das duas observações anteriores, podemos encerrar essa
brevíssima análise do fragmento 50, apresentando uma interpretação
unitária do mesmo e apontando para o sentido geral da metafísica de
Heráclito como sendo uma henologia e não uma ontologia. Heráclito está
nos dizendo que para sermos de algum modo sábios (ou filósofos),
A origem da ontologia na metafísica grega 59
precisamos estar de acordo (homologar) com o sentido do seu discurso
(logos), ouvindo este sentido do próprio logos (discurso) e desconsiderando
que foi a pessoa particular chamada Heráclito que o proferiu e escreveu.
Mas qual é esse sentido do logos (discurso) ele mesmo, que pode nos
conferir algum tipo de sabedoria, independente de ser proferido pela pessoa
Heráclito? Esse sentido é justamente a compreensão do sentido filosófico da
expressão ‘tudo é um’, um sentido que, neste momento, poderíamos explicar
inicialmente da seguinte forma: a totalidade das coisas distintas e múltiplas é
estruturada pela unidade como princípio ordenador, princípio que se
manifesta de diferentes modos e, por isso, recebe diferentes nomes, sendo o
mais célebre de todos, justamente o temo ‘logos’.
Diante do que foi exposto, percebemos que o sentido henológico que
ainda estava implícito na metafísica dos primeiros filósofos, especialmente
em Anaximandro, se explicita no pensamento de Heráclito. Por óbvio, essa
interpretação do pensamento de Heráclito está de acordo com as pesquisas
de história da filosofia antiga mais recentes, que desfazem aquela outra
interpretação enviesada (mas ainda corrente) que nos fala de Heráclito
como o filósofo que se limitaria a uma afirmação radical da transitoriedade e
da perpétua transformação das coisas do mundo, uma imagem geralmente
resumida pela comparação do mundo com um rio, a tal ponto de se ter
formada a expressão (bela, mas por vezes entendida de modo reducionista e
enganoso): “o rio de Heráclito”. Na realidade, essa interpretação parcial de
Heráclito se deve ao sucesso e predomínio do pensamento de seu
contemporâneo Parmênides sobre a filosofia posterior. O Heráclito do eterno
fluxo (o “devir”) é a imagem formada a partir do contraste de sua filosofia (e
podemos dizer agora, também, de sua metafísica de cunho henológico) com
a filosofia de Parmênides, interpretado como o filósofo que defende a
imutabilidade do ser. Diante disso, não é correta a imagem tradicional que
opõe o pensamento de Heráclito, como o filósofo do devir e do movimento,
ao pensamento de Parmênides, como o filósofo do ser e da imobilidade;
uma imagem principalmente forjada por Platão.
Contudo, há um fundo de verdade nessa imagem distorcida, e esse
fundo pode ser expresso assim: com Heráclito se encerra a primeira fase da
metafísica grega (ainda regida em termos puramente henológicos pelo par
conceitual unidade-multiplicidade), pois o seu contemporâneo Parmênides
inicia uma nova etapa do pensamento metafísico grego ao instaurar pela
primeira vez a ontologia, ou seja, a metafísica centrada nos conceitos de ser e
60 Nazareno Eduardo de Almeida
não-ser. Isso também significa que, a partir de Parmênides, a metafísica
grega passará a “misturar” a matriz henológica na qual começara com a
matriz ontológica que começa com ele. Essa mistura já é visível em filósofos
posteriores a Parmênides, tanto em seus discípulos diretos (Zenão de Eleia e
Melisso de Samos) quanto em Empédocles, Anaxágoras, Leucipo,
Demócrito, e também na sofística de Górgias e Protágoras. E essa mistura
ganha uma nova, mais ampla e mais célebre forma justamente com Platão e
Aristóteles.
A questão que se pode colocar para esta concepção contemporânea
sobre essas duas linhagens da metafísica grega anterior a Aristóteles é se ela
tem alguma base de apoio dentro da própria Metafísica de Aristóteles, uma
vez que já assumimos anteriormente que uma parte considerável dessa obra
deve ser interpretada a partir da ontologia. De fato, como já dissemos,
Aristóteles agrupa todos os seus antecessores através de expressões como:
“aqueles que antes de nós se dirigiram à investigação dos seres (tôn ontôn) e
filosofaram sobre a verdade.” (983b 1-3).
Primeiramente, esse tipo de expressão nos mostra o sucesso da
“mudança de paradigma” realizado na história da metafísica antiga por parte
de Parmênides. Em certo sentido, depois de Parmênides, a filosofia grega,
especialmente aquela de Platão e de Aristóteles, tende a “ontologizar” ou
“parmenidizar” o todo da filosofia e da metafísica gregas, desconsiderando
que a existência e o uso explícitos dos conceitos de ser e não-ser somente
são inequívocos na e a partir da filosofia de Parmênides. Essa transformação
é visível depois de Parmênides: inicialmente pela admissão, por parte de
vários filósofos, de uma sinonímia entre os conceitos de ser e de coisa, uma
sinonímia que se apresenta em vários usos dos termos ‘coisas’ (chrêmata) ou
‘todas as coisas’ (panta) como equivalentes às expressões ‘coisas que são’ ou
‘os entes’ (ta onta) ou ‘todas as coisas que são’ (panta ta onta). Neste aspecto,
cumpre notar que não encontramos tal sinonímia nos vários fragmentos em
que Heráclito usa os termos ‘coisas’ (chrêmata) e ‘todas as coisas’ (panta).14
Esse último fato é ainda mais importante quando lembramos que Heráclito
é um contemporâneo de Parmênides.
Apesar dessa predominância inegável da linhagem ontológica em
Aristóteles, não é difícil encontrar na Metafísica a presença da linhagem
14
A única exceção é o fragmento 7, no qual encontra-se a expressão ‘panta ta onta’. Contudo, o
fragmento é citado justamente por Aristóteles, para quem tal sinonímia já está em vigor, sendo,
muito provavelmente, uma paráfrase e não uma citação ispis litteris.
A origem da ontologia na metafísica grega 61
henológica da metafísica grega.15 Essa presença se encontra especialmente
na descrição que o Estagirita apresenta de uma parte dos pitagóricos e,
sobretudo da filosofia de Platão e de seus seguidores imediatos,
especialmente Espeusipo e Xenócrates. Tanto no Livro I (caps. 5-6, 8-9)
quanto no todo dos Livros XIII e XIV, percebemos que Aristóteles apresenta
a filosofia primeira (metafísica) dos pitagóricos, de Platão e de seus
seguidores primariamente como uma henologia e apenas secundariamente
como uma ontologia. Embora com conteúdos distintos, Aristóteles deixa
claro que pitagóricos e platônicos concebem o ser e o não-ser a partir de
conceitos diretamente ligados às teorias matemáticas, conceitos tais como os
de limitado (peras) e o ilimitado (apeiron), bem como de uno (hen, monada)
e díade indefinida (dyados aoristos), os quais são claramente manifestações
do par conceitual unidade/multiplicidade, central para a linhagem
henológica da metafísica antiga. Essa leitura de um predomínio da
henologia sobre a ontologia nas filosofias pitagórica e platônica aparece com
muita clareza e como que em miniatura no seguinte trecho do capítulo 6 do
Livro I da Metafísica:
“Dado que <para Platão> as Formas são causas para <todas> as outras
coisas, os elementos daquelas <Formas> são concebidos como
elementos de todos os seres (stoicheia pantôn tôn ontôn). De um lado,
como princípios da matéria [sc. causa material] <determina> o grande
e o pequeno; e, de outro, como <princípio> da substância/ser (ousian)
[sc. causa formal] <estabelece> a unidade, pois <concebe> que as
Formas e os números provêm daqueles [sc. do grande e do pequeno]
por participação na unidade. Ao <conceber> a unidade como
ser/substância – não sendo a unidade dita de algum outro ser distinto
<da própria unidade> [sc. esta é a posição de Aristóteles] – disse-o de
maneira similar aos pitagóricos, e do mesmo modo que estes
<concebe> os números como sendo causa da substância/ser de <todas>
as outras <coisas>. Mas isto é próprio <de Platão>: ter posto a díade no
lugar do ilimitado <que os pitagóricos derivavam> da unidade, e <ter
derivado> o ilimitado do grande e do pequeno.” (988a 18-27; tradução
própria, grifos acrescentados)
15
Uma interpretação pioneira no reconhecimento da presença da henologia na Metafísica de
Aristóteles se encontra em COULOUBARITSIS, Lambros. L’être et l’un chez Aristote. Revue de
Philosophie Ancienne, vol. 1, n. 1, vol. 1, n. 2, 1983, p. 49-98; p. 143-195.
62 Nazareno Eduardo de Almeida
Deixando de lado os complexos detalhes implícitos, esta passagem,
particularmente nos trechos grifados, nos mostra que Aristóteles critica os
pitagóricos, Platão e os platônicos por terem elaborado sua ontologia
unicamente a partir dos conceitos henológicos ligados à matemática, uma
vez que (1) as Formas são os elementos e causas dos seres e (2) as Formas
derivam do grande e do pequeno (símbolos da multiplicidade) enquanto
estes participam da unidade. Em resumo, a metafísica pitagórica e platônica
é uma mistura entre henologia e ontologia, mas na qual prevalece como base
conceitual a primeira sobre a segunda. Há controvérsias sobre a que parte da
obra escrita de Platão estaria aqui se referindo Aristóteles, ou se estaria
remetendo às chamadas ‘doutrinas não-escritas’ (agrapha dogmata), que
supostamente teriam sido ensinadas apenas oralmente por Platão a seus
ouvintes na Academia.
Independentemente desta controvérsia, quando abordarmos a
ontologia de Platão através da análise de algumas partes do diálogo Sofista,
perceberemos que o mestre da Academia coloca os conceitos henológicos de
identidade e diferença no mesmo nível que o conceito de ser, defendendo
que somente assim seria possível justificar o conceito ou Ideia de não-ser.
Além disso, quando tratarmos do capítulo 2 do Livro IV da Metafísica
(donde a tradição medieval e sobretudo moderna retira a noção de
ontologia), perceberemos que Aristóteles vai na direção inversa daquela
vista na citação anterior, procurando explicar os conceitos henológicos a
partir do conceito ontológico de substância (ousia), conceito este
estabelecido como sentido primário tanto do conceito de ser quanto do
conceito de unidade. À luz dessas considerações gerais, percebemos que o
neoplatonismo – especialmente a partir de Plotino – assume de modo
explícito a posição que Aristóteles atribui a Platão: que a organização dos
conceitos ontológicos de ser e não-ser só se torna possível quando são
subordinados aos conceitos de unidade e multiplicidade.
Se assumimos estas rápidas considerações sobre as duas linhagens da
metafísica antiga, bem como que a história da metafísica grega começa a
partir da linhagem henológica centrada nos conceitos de unidade e
multiplicidade, é possível perceber que a linhagem ontológica da metafísica
antiga iniciada com Parmênides já é um tipo de mistura de ambas, pois,
como veremos melhor no próximo capítulo, os conceitos de ser e não-ser só
podem emergir no poema de Parmênides pela correlação que este filósofo
estabelece entre os conceitos de ser, verdade e identidade. É justamente a
A origem da ontologia na metafísica grega 63
partir de Parmênides, até nossos dias, que toda ontologia acaba sempre
tratando de algum modo do conceito de identidade, um conceito que estava
ausente da filosofia anterior a ele. Contudo, o conceito de identidade,
conforme o próprio Aristóteles reconhece no Livro IV da Metafísica, é um
conceito primeiramente alinhado ao conceito de unidade, de modo que
pode ser visto como o primeiro resultado da síntese parmenídica entre a
linhagem henológica anterior e contemporânea a ele com a linhagem
ontológica da metafísica começada exatamente com ele. Em suma, embora o
fio da narrativa filosófica deste livro siga os passos da ontologia grega como
parte da metafísica antiga, será inevitável tratarmos dos conceitos
henológicos em alguma medida, caso contrário corremos o risco de deixar
de lado aspectos importantes da própria ontologia que se inicia com
Parmênides.
◆ CAPÍTULO 2 ◆
O NASCIMENTO DA ONTOLOGIA NO POEMA
DE PARMÊNIDES
66 Nazareno Eduardo de Almeida
A – TEXTO BÁSICO:
1. A importância e a estrutura do poema de Parmênides
A partir da retomada dos estudos aprofundados sobre a filosofia pré-
socrática no século XIX, Parmênides de Eleia (c. 530-460 a. C.) passou a ser
reconhecido como um dos mais importantes filósofos pré-socráticos, senão
como o mais importante dentre eles. Seguindo tanto o filósofo Nietzsche
quanto o historiador da filosofia Jonathan Barnes, podemos dividir o
período pré-socrático entre o período anterior e o período posterior ao
surgimento de Parmênides e sua filosofia. Pelo que sabemos, Parmênides
escreveu apenas um texto, na forma de um poema, usando o título mais
comum dos textos produzidos pelos pré-socráticos, a saber: Sobre a natureza
(Peri physeôs).
Esse poema é usualmente dividido em três partes: uma introdução
(ou proêmio), o caminho da verdade e o caminho da opinião. A primeira
parte é uma introdução ou (na linguagem técnica) um proêmio. Essa parte é
composta pelo que chamamos atualmente de fragmento 1. Nesta introdução,
Parmênides descreve, em forma alegórica, sua jornada com uma biga até a
morada da deusa que vem a ser a protagonista e narradora do poema em sua
quase totalidade. Ao final dessa jornada descrita nas primeiras linhas do
proêmio, a deusa (cujo nome não é revelado, mas quem é plausível
considerar como uma personificação da verdade) começa a falar,
apresentando aquilo que são os dois (ou três) objetivos da narrativa exposta
no poema. A segunda parte é costumeiramente chamada de caminho da
verdade e é considerada a mais importante do poema desde a antiguidade. É
nela que encontramos a ontologia de Parmênides e sobre a qual falaremos
logo mais. Essa parte é composta pelos fragmentos 2-8, indo até a linha 50
deste último. Aliás, como se trata de um poema, é padrão que suas edições
numerem suas linhas. A terceira parte, por fim, é denominada de caminho
da opinião. Nela, a deusa apresenta inicialmente uma crítica à forma como o
senso comum (composto pelo que o poema chama de ‘mortais’) estabelece
dualidades entre ser e não-ser. Depois desta crítica, ela esboça um tipo de
cosmologia. Essa parte é composta pelas linhas finais do fragmento 8 até o
último fragmento, o de número 19. Há muitas controvérsias interpretativas
sobre esta parte do poema, tanto por conta da relação de seu conteúdo com
A origem da ontologia na metafísica grega 67
a parte anterior, quanto pela escassez de fragmentos preservados. De todo
modo, essas controvérsias não nos interessam neste texto, pois trataremos
exclusivamente da parte central do poema.
Como já indicamos antes, a importância de Parmênides se encontra
justamente em ter ele realizado a introdução do conceito de ser no
vocabulário conceitual da filosofia grega. Embora o verbo ‘ser’ esteja
presente na língua grega desde os seus primórdios, é Parmênides quem
transforma esse verbo em um substantivo ou nome. Esse procedimento de
substantivar verbos é ainda comum para nós quando, por exemplo, usamos
expressões como ‘o olhar’, ‘o pensar’, ‘o falar’. Parmênides faz algo parecido
quando transforma duas formas ou conjugações do verbo grego ‘ser’ em
substantivos. A primeira e mais comum é a conjugação do verbo ‘ser’ na
forma ‘eon’ (que no grego posterior será apenas ‘on’). Essa forma é a
conjugação neutra e singular do particípio do verbo grego ‘ser’. Parmênides
torna essa forma um substantivo ao antepor a ela o artigo neutro ‘to’, que
traduzimos pelo artigo masculino ‘o’, uma vez que não temos o gênero
neutro em nossa língua, tal como ocorre no grego antigo. Daí, então, temos
‘o ser’. Mas a forma ‘eon’ também pode ser traduzida pelos termos ‘ente’ ou
‘que-é’, de modo que se tornou comum traduzir essa expressão criada por
Parmênides através dos termos ‘o ente’ e ‘o que-é’. Será justamente nesta
forma que a filosofia posterior usará quase sempre o conceito de ser. Mas
Parmênides também transforma outra forma do verbo grego ‘ser’ em
substantivo: trata-se da forma do infinitivo ‘einai’. Usando o mesmo
procedimento de anteposição do artigo neutro ‘to’, forma-se a expressão ‘to
einai’, que traduzimos diretamente como ‘o ser’. Por várias razões que não
cabe aqui expor, essa forma se tornou menos usual que a primeira tanto no
contexto do poema de Parmênides quanto na filosofia posterior. Assim, em
geral, quando falamos do conceito de ser na filosofia antiga, estamos
supondo o uso mais frequente do termo ‘to eon’, que viria a ser usado na
forma ‘to on’ pelos filósofos a partir da época de Platão. Séculos mais tarde,
será justamente do termo grego ‘on’ que se formará a expressão ‘ontologia’.
Como dito acima, nosso intento, neste texto (tanto em sua parte
básica quanto nas discussões e aprofundamentos) é fazer uma exposição e
discussão da ontologia de Parmênides encontrada na parte do poema que
usualmente chamamos de caminho da verdade.
68 Nazareno Eduardo de Almeida
2. Os dois (ou três) caminhos de investigação e a identidade entre pensar
e ser
O caminho da verdade (a parte central do poema) começa nos
fragmentos 2 e 3 do poema. Nestes fragmentos são expostos dois tópicos
centrais para entendermos como Parmênides introduz os conceitos de ser e
não-ser na filosofia grega. O primeiro tópico é a apresentação dos dois
caminhos de investigação que são dados ao pensamento humano. O
segundo tópico é a postulação da identidade entre pensar e ser. Esses dois
tópicos ainda não são propriamente parte da ontologia de Parmênides, mas
momentos preparatórios de caráter mais lógico-linguístico, epistemológico e
mesmo metodológico. Como foi dito na introdução, uma das dificuldades
peculiares da ontologia como campo de debates e investigações na filosofia
consiste no fato de essa “área” da filosofia usualmente trazer consigo
também temas e discussões pertencentes à lógica, à epistemologia e à
filosofia da linguagem. Feita essa observação, vamos à exposição dos dois
tópicos citados.
Para termos mais clareza na exposição, façamos a citação do
fragmento 2 em seu todo, mas já com os acréscimos e ênfases necessários
para facilitar sua compreensão:
“Então vamos! Eu te falarei, e tu, escutando a narrativa (mython),
acolhe-a; os únicos caminhos (hodoi) de investigação que há para
pensar (noêsai): de um lado, que <algo> é e que não é <possível> não
ser, da persuasão é a via (pois acompanha a Verdade/Realidade); [5]
de outro lado, que <algo> não é e é necessário não ser; esta eu te
indico ser vereda de todo insondável: pois nem conhecerias o não-ser
(to mê eon) (pois isto não é factível) nem o poderias indicar.”16
Note-se que quem conduz a narrativa (mythos) é a deusa e quem
escuta (e transcreve) é Parmênides. Na linha dois do fragmento citado, a
deusa nos diz que há apenas dois caminhos possíveis para a investigação da
verdade por parte de nosso pensamento. O primeiro caminho é apresentado
nas linhas 3-4. Esse é justamente aquele que em sentido estrito pode ser
16
A barra reta (‘’) é usada nas citações para marcar a divisão das linhas (os versos) do poema,
através das quais se costuma fazer referência às partes dos fragmentos do poema.
A origem da ontologia na metafísica grega 69
chamado o caminho da verdade. Ele consiste em pensar “que <algo> é e não
é <possível> não ser.” Há muitas interpretações desta frase, mas como se
trata de uma exposição introdutória, tomaremos apenas uma delas. Nessa
interpretação, o que a deusa está nos dizendo através de Parmênides é que a
investigação da verdade deve começar supondo que alguma coisa é. Mas
essa suposição é imediatamente especificada com a expressão “e que não é
<possível> não ser”. Essa especificação significa o mesmo que: ‘e que
necessariamente é’, pois a definição do ser necessário é justamente ‘o que não
pode não ser’. Como veremos logo mais, as características do ser em si
mesmo (ingênito, imperecível, eterno etc.) são suas características
necessárias e, podemos também dizer, essenciais, ou seja, elas são
características que o ser em si mesmo não poderia não possuir para ser o que
ele é em si mesmo. Logo após enunciar este caminho, na linha 4, a deusa
qualifica-o como sendo a via da persuasão porque a acompanha a verdade
ou realidade. Essa descrição já nos aponta claramente que este é o caminho
correto de investigação e que ele será percorrido ao longo da narrativa
poética da deusa na parte central do poema. De modo geral, este caminho
também é chamado de ‘caminho do ser’.
Logo em seguida, nas linhas 5-8 do fragmento citado, a deusa nos
apresenta o segundo caminho para investigar a verdade. Nesse caminho,
nosso pensamento começa supondo “que <algo> não é e é necessário não
ser.” Isso significa: começamos supondo não apenas que algo não existe, mas
que necessariamente não existe. Note-se que a expressão ‘necessário não ser’
equivale à noção de ‘impossível ser’. Em outras palavras: que essa coisa não
pode ser. Nas linhas seguintes, esse caminho é caracterizado negativamente
como um caminho que não pode nos conduzir a alcançar a verdade ou
realidade, uma vez que não é possível conhecer ou dizer (indicar) o não-ser.
É comum chamar este caminho de ‘caminho do não-ser’. Este caminho é
proibido porque ele nos leva ao oposto da verdade, ou seja, nos conduz ao
erro e à contradição. Note-se que já há uma contradição em pensar algo e
dizer que este algo não é, uma vez que se pensamos, segundo o que veremos
logo mais, já supomos que o algo por nós pensado é alguma coisa. Isso se
torna ainda mais problemático, segundo a concepção do poema, na medida
em que supomos que esse mesmo algo não somente não é, mas
necessariamente não é.
Uma parte dos/das intérpretes modernos do poema de Parmênides
acredita que além dos dois caminhos apresentados no fragmento 2, haveria
70 Nazareno Eduardo de Almeida
ainda um terceiro caminho, supostamente apresentado no fragmento 6. Esse
caminho é usualmente chamado de ‘caminho dos mortais’. De acordo com
essa interpretação, esse seria o caminho que confunde ser e não-ser, uma vez
que nas duas linhas finais desse fragmento é dito que os mortais
“consideram como sendo o mesmo (tauton) ser e não-ser /e <em seguida>
como não o mesmo; e de tudo é reversível o caminho.” Nesta interpretação,
essa afirmação seria a prova de que o pensamento dos mortais (o que
chamaríamos hoje de ‘senso comum’) oscilaria entre o caminho do ser e o
caminho do não-ser. Esse é ainda um problema em aberto, mas uma outra
interpretação (com a qual me alinho), vê no fragmento 6 apenas as
consequências de se tomar o segundo caminho exposto no fragmento 2.
Como indicamos acima, o segundo caminho, por sua própria suposição de
que algo não é (e que necessariamente não é) nos conduz a confundir ser e
não-ser. De todo modo, esse ponto não é algo indispensável para a
exposição introdutória da ontologia de Parmênides, embora não se possa
deixar de assinalar essa controvérsia interpretativa, uma vez que diversos
textos introdutórios ao pensamento de Parmênides assumem que no poema
seriam expostos três caminhos.
Mas passemos à exposição da tese sobre a identidade entre pensar e
ser. De modo geral, os/as intérpretes do poema de Parmênides entendem
que o fragmento 3 do poema é constituído pela seguinte afirmação da deusa:
“pois o mesmo é pensar e ser”
Nesta breve frase, encontramos a primeira expressão mais simples do
postulado da identidade entre pensar e ser. Esse fragmento é usualmente
colocado como o terceiro por causa do ‘pois’ que o abre, de modo que essa
frase explicaria em termos positivos aquilo que o final do fragmento 2 havia
explicado em termos negativos, a saber: que não devemos seguir o caminho
do não-ser não apenas porque não podemos conhecer ou dizer (indicar) o
não-ser, mas também (e, na realidade, sobretudo) porque devemos supor
(postular) como verdade primária a identidade entre pensar e ser. A verdade
que podemos encontrar através do primeiro caminho (o caminho do ser)
consiste justamente em alcançar a identidade entre o pensamento e aquilo
que é por ele pensado, aquilo que Parmênides indicará pelos termos ‘o ente’
e ‘o ser’.
A origem da ontologia na metafísica grega 71
Note-se que se trata de uma exigência lógica e, sobretudo,
epistemológica bastante forte. Mais tarde, quando falarmos sobre o diálogo
Sofista, veremos que Platão terá de enfraquecer essa exigência
epistemológica para poder explicar como podem existir pensamentos e
enunciados falsos, em especial aqueles produzidos pelos sofistas. É deste
enfraquecimento (também realizado, de modo distinto, por Aristóteles) que
surgirá, no campo da discussão filosófica, a concepção ainda hoje
dominante de verdade, a concepção da verdade como correspondência entre
pensamento e realidade. Essa noção de correspondência, porém, é mais
fraca do que a identidade postulada no poema de Parmênides. Ela é mais
fraca porque a noção de identidade postulada por Parmênides acaba por
restringir o conceito de verdade ao nível abstrato do ser, de tal forma que o
conceito de ser, como ainda veremos, não deveria ser aplicado aos objetos
sensíveis a que temos acesso em nosso dia a dia, embora isso acabe
ocorrendo na linguagem comum.
Em outras palavras, já se encontra implícita no postulado da
identidade entre pensar e ser uma das teses pelas quais Parmênides e seus
seguidores (Zenão de Eleia e Melisso de Samos) se tornarão conhecidos: o
ser é radicalmente distinto daquilo que nos aparece na sensação (os
fenômenos), de tal forma que o ser é imóvel, indivisível e, por isso,
absolutamente uno, algo que contraria nossas crenças do senso comum
sobre os fenômenos que estão à nossa volta, os quais estão sempre em
transformação, se dividem e são múltiplos. É justamente por isso que se
convenciona dizer que com Parmênides e seus discípulos diretos surgem as
distinções entre ser e aparecer (fenômeno), bem como entre ser e devir (vir-
a-ser, movimento, transformação).
Deixando de lado esse aspecto, a identidade entre pensar e ser não é
apenas enunciada neste momento do poema, mas aparece explicitamente
também em dois outros momentos. O primeiro deles se encontra nas duas
primeiras linhas do fragmento 6, que nos diz:
“É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam, pois <o> ser é (esti gar
einai) e <o> nada (mêden) não é; isto eu te ordeno considerar.”
Embora não seja evidente à primeira vista, a parte inicial da primeira
linha apresenta a identidade necessária entre pensar e ser, ajuntando a ela
72 Nazareno Eduardo de Almeida
aquela do dizer que expressa essa identidade. A sequência da primeira linha
e a primeira parte da segunda explicam o porquê dessa identidade através de
um princípio que até hoje é considerado como um dos princípios que
confere a originalidade do pensamento de Parmênides: “o ser é e o nada (=
não-ser) não é”. Esse princípio resume aquilo que é obtido através do
primeiro caminho exposto no fragmento 2 e que nos obriga a evitar o
caminho do não-ser. Uma parte dos/das intérpretes entende que essa é a
primeira aparição do que seria mais tarde batizado como ‘princípio de
identidade’, um dos princípios basilares da lógica tradicional. Com a
aceitação desse princípio, também compreendemos que o poema de
Parmênides é o primeiro momento da história da filosofia onde se
manifestam outros dois princípios basilares da lógica tradicional: o princípio
da não-contradição e o princípio do terceiro excluído, sobre os quais ainda
teremos de falar quando da exposição da ontologia de Aristóteles presente
no Livro IV da Metafísica.
O outro momento do poema de Parmênides onde a identidade entre
pensar e ser aparece como um tipo de fechamento da exposição das
características do ser se encontra nas linhas 34-38 do fragmento 8:
“O mesmo é pensar (noein) e aquilo em vista do que é
pensamento/pensado (noêma).
Pois sem o ente (eontos), graças ao que <o pensamento> é enunciado
em palavra,
não encontrarás o pensar (noein): pois nada era, é ou será
fora do ente/do que-é (eontos), de modo que Moira (Destino) o
encadeou
a ser inteiramente imóvel.”
Não é o caso de fazemos uma análise minuciosa dessa passagem.
Basta apenas fazer alguns apontamentos gerais. Primeiramente, nela
também é expressa a identidade entre pensar e ser, mas agora na acepção
que antes já indicamos: a identidade entre o pensar (o ‘noein’ como
atividade cognitiva superior da mente humana) e o pensado (o ‘noêma’
como aquilo que é o objeto ou conteúdo dessa atividade). Como nos
indicam as linhas seguintes: (1) é graças ao ser (ao ente, ao que-é) que o
pensamento pode se tornar linguagem (e, principalmente, linguagem que
A origem da ontologia na metafísica grega 73
exprime a verdade); (2) que o pensamento não existe sem o ser, pois o ser é a
finalidade do pensamento; (3) e isto porque o pensamento nada seria sem o
ser, de tal modo que – quando se identifica com este – o pensamento está,
por assim dizer, fora do tempo (“nada era, é ou será”); (4) e isto precisa ser
assim porque a divindade do Destino (‘Moira’ como sinônimo de
necessidade absoluta) mantém o ser na completa imobilidade.
A partir do que expusemos brevemente acima, percebemos que o
caminho do ser, enquanto caminho correto para atingir a verdade
(diferenciado do caminho do não-ser, como caminho do erro e da
contradição) é acompanhado pela postulação da identidade entre pensar e
ser como aquilo que é atingido ao final da jornada por este caminho. Dito
isso, passemos à exposição sumária da ontologia de Parmênides.
3. As características intrínsecas do ser e a identidade como característica
primeira
Os aspectos lógico-linguísticos e epistemológicos expostos acima são
como que o prelúdio necessário para entendermos melhor o que podemos
chamar de ontologia de Parmênides. Depois de afastar nosso pensamento do
caminho do não-ser, enquanto caminho que não é capaz de nos levar à
verdade (entendida como identidade entre pensar e ser), o fragmento 8 (o
mais importante do poema) começa com as seguintes palavras:
“Unicamente a narrativa (mythos) de um caminho resta: que <algo> é;
neste caminho há evidências/sinais (sêmat’easi) e são muitíssimos: que
ingênito sendo também é imperecível, inteiro (oulon), uniforme
(monogenes), inabalável (atremes) e também perfeito (teleion).”
A primeira linha e o início da segunda exprimem justamente que o
caminho do não-ser já foi recusado e que resta apenas um dos dois
caminhos expostos no fragmento 2, o caminho do ser: “que <algo> é”,
menção que implicitamente já contém o sentido desse algo: ‘e que não é
<possível> não ser’. O trecho citado continua nos dizendo que há muitas
evidências ou muitos sinais deste caminho. Essas evidências ou sinais
(sêmata) são justamente aquilo que estamos aqui chamando de
74 Nazareno Eduardo de Almeida
características intrínsecas do ser. As primeiras características aparecem já
nas duas últimas linhas da citação. Que o ‘algo que é’ – preenchido desde o
fragmento 6 pelo conceito de ser (to eon) – é ingênito (sem nascimento),
imperecível (sem morte), inteiro, uniforme, inabalável e perfeito. As linhas
seguintes a estas nos apresentam outras características, tais como uno,
indivisível, contínuo, pleno e igual.
De modo geral, as linhas do poema depois daquelas citadas há pouco
nos apresentam o esboço de duas demonstrações por redução ao absurdo de
algumas das características do ser. A primeira redução ao absurdo visa
demonstrar que o ente é ingênito e imperecível, de tal modo que,
implicitamente, podemos dizer que é eterno. A segunda redução ao absurdo
visa mostrar que o ente é indivisível, o que, implicitamente, indica que ele é
imóvel e imutável. Esse ponto é importante porque Parmênides introduz
pela primeira vez na história da filosofia o argumento por redução ao
absurdo como método lógico para demonstrar alguma tese.
Em linhas muito gerais, o método ou procedimento lógico da
redução ao absurdo (ou ao impossível) consiste em provar uma tese através
da refutação de sua tese contrária. Em outras palavras, para provar a tese A,
postula-se inicialmente como verdadeira a tese contrária (não-A). Mostra-se
que essa tese contrária conduz a conclusões absurdas ou impossíveis
(necessariamente falsas). Assim, uma vez que supor como verdadeira a tese
contrária (não-A) nos conduz a conclusões falsas (o que é uma contradição),
mostra-se, indiretamente, que a tese A precisa ser tomada como verdadeira.
No contexto da primeira redução ao absurdo apresentada no poema
(fragmento 8, linhas 5-21), a redução ao absurdo procura mostrar que o ente
é ingênito (sem nascimento) e imperecível (sem morte). Para tanto, postula-
se que o ser nasceu ou teve origem em algum momento. Mostrando os
absurdos surgidos dessa postulação, mostra-se que é verdade que ele é
ingênito (sem nascimento). Uma vez que se prova por redução ao absurdo
que o ente não nasceu, também é absurdo que ele venha a perecer
(“morrer”), pois só perece aquilo que nasceu. Para quem tenha interesse, na
parte das discussões e aprofundamentos deste capítulo, são apresentadas de
forma esquemática essas duas reduções ao absurdo. Neste momento, o que
importa notar é que esse método de argumentação estabelece um padrão
demonstrativo inédito na filosofia grega e, especialmente, no campo da
ontologia. Esse padrão demonstrativo é ainda hoje um tipo de ideal usado
em diversas concepções de ontologia.
A origem da ontologia na metafísica grega 75
Outro aspecto relacionado com essas características intrínsecas do
ser consiste em interpretar o seu sentido. Note-se que essas características
são múltiplas. No entanto, Parmênides (ou a deusa através dele) não está
falando de múltiplos seres ou entes (como vários filósofos o farão depois).
Bem antes, o poema, claramente, está falando de uma única coisa que é, está
falando do ser (o ente, o que-é). No contexto do fragmento 8, isso fica claro
pelo fato de Parmênides demonstrar que o ser é indivisível, de tal modo que
não pode haver senão um único ser. A princípio, portanto, as múltiplas
características apresentadas ao longo do fragmento 8 são todas elas
características de uma mesma e única “coisa”, são todas características do ser.
No entanto, essas características múltiplas do ser não são como as
características que constatamos nas coisas sensíveis, uma vez que as
características dos objetos que percebemos pelos cinco sentidos são
características muitas vezes passageiras e parciais, ou seja, são características
que denominamos de contingentes porque não são constantes nem definem
a essência desses objetos. Assim, por exemplo, dizemos de uma determinada
pessoa que tem a característica de ser um/uma estudante do curso de
Filosofia. No entanto, essa característica é passageira, pois essa pessoa nem
sempre foi estudante de um curso de Filosofia e posteriormente pode deixar
de sê-lo. Além disso, é preciso ressaltar que a característica ‘ser estudante de
um curso de Filosofia’ é uma propriedade que não define essa pessoa, uma
vez que definimos a essência de uma pessoa como um ser vivo racional e
não pela propriedade de ser um/uma estudante de um curso de filosofia.
A partir disso, podemos compreender que as características
intrínsecas do ser encontradas no fragmento 8 não são características
contingentes, mas necessárias. Lembremos que o caminho do ser
apresentado no fragmento 2 era composto não apenas pela descrição ‘que
algo é’, mas também pela descrição ‘e não é possível não ser’, descrição esta
que equivale ao conceito de necessidade. Assim, as múltiplas características
do ser apresentadas no fragmento 8 são características necessárias do ser.
Mas não apenas isso. Retomando o exemplo dado acima, dissemos que uma
pessoa se define pela descrição ‘ser vivo racional’. Na teoria clássica das
definições (vinda principalmente de Aristóteles), esse tipo de definição de
uma espécie (‘ser humano’) nos apresenta a composição entre um gênero
(‘ser vivo’) a que esta espécie pertence e uma diferença específica (‘ser
racional’), que a diferencia de outras espécies pertencentes ao mesmo
gênero. No caso das características do ser apresentadas no poema de
76 Nazareno Eduardo de Almeida
Parmênides, não temos esse esquema de gênero, espécie e diferença
específica. O ente ou ser apresentado no poema de Parmênides (ao contrário
do que será aquele apresentado por Aristóteles, como veremos depois) não
se divide em diferentes gêneros. Aliás, isso é dito implicitamente numa das
características enunciadas no início do fragmento 8: o ser é uniforme. O
termo grego traduzido por ‘uniforme’ é ‘mono-genes’, que significa,
literalmente, “de um único gênero”.
Tendo isso em vista, percebemos que as características intrínsecas do
ser (ingênito, imperecível etc.) expostas no fragmento 8 não apenas
identificam o ser, mas também e sobretudo são idênticas a ele. A situação é
aqui similar àquela de nomes que são sinônimos de uma mesma coisa.
Assim, a expressão ‘a estrela da manhã’ é um outro nome para o planeta
Vênus, tanto quanto a expressão ‘a estrela da tarde’ é ainda outro nome deste
mesmo planeta. Mesmo assim, o nome ‘estrela da manhã’ não apenas
nomeia o planeta Vênus, mas também apresenta para ele uma característica,
a saber: ‘ser o último corpo celeste visível que desaparece na aurora’.
Portanto, o nome ‘a estrela da manhã’ não apenas nomeia Vênus, mas
também o caracteriza de determinado modo. À luz disso, podemos
compreender que as características intrínsecas (necessárias) do ser
apresentadas no fragmento 8 são, de um lado, “nomes descritivos” do ser e,
de outro, esses nomes são sinônimos de uma única e mesma coisa. Por
conseguinte, dizer que o ser é ingênito significa o mesmo que substituir o
nome ‘o ser’ pelo nome ‘o ingênito’. O mesmo se aplica a cada uma das
outras características do ser, como, por exemplo, a característica de ser
indivisível, que é um nome ao mesmo tempo descritivo (no sentido de ‘ser o
que não se divide’) e sinônimo de ser, de maneira que dizer ‘o ser’ equivale a
dizer ‘o indivisível’.
Esse segundo aspecto das características do ser nos permite passar à
última parte desta exposição geral da ontologia de Parmênides: a identidade
como característica primeira do ser. Já vimos que a identidade entre pensar e
ser é um requisito lógico e epistemológico da ontologia de Parmênides. Esse
requisito, porém, se mostra como um tipo de contrapartida na ordem do
pensamento e da linguagem de algo que está presente no próprio ente: a
identidade do próprio ser que é pensado e dito quando percorremos o
caminho do ser prescrito pela deusa, o caminho que nos promete a
possibilidade de alcançar a verdade em sentido pleno e apreender a
realidade em seu sentido primário. A explicitação da identidade como
A origem da ontologia na metafísica grega 77
característica primeira do ser se encontra nas linhas 29-31 do fragmento 8
do seguinte modo:
“O mesmo e no mesmo (tauton t’en tautô(i)), permanecendo em si
mesmo (kath’heauto) jaz, assim firmemente ali-mesmo (authi)
permanece: pois a poderosa Necessidade o mantém nos grilhões de
limite que o encerra em todos os lados.”
Reparemos na repetição, por quatro vezes e em diferentes formas
gramaticais, do termo ‘mesmo’, que exprime em grego o conceito de
identidade. É para essa identidade, justamente, que as múltiplas
características do ser apontam enquanto nomes ao mesmo tempo
descritivos e sinônimos do termo ‘o ser’. O pensamento que apreende e
compreende o ser através dessas múltiplas características apreende e
compreende a identidade absoluta do ser. A citação ainda nos apresenta um
tipo de justificação teológica ou mitológica dessa identidade: a deusa
Necessidade. Essa deusa personifica aqui, alegoricamente, aquela
necessidade sobre a qual já falamos algumas vezes e que já está presente na
primeira exposição do caminho do ser como o único caminho que permite
ao nosso pensamento chegar à verdade (realidade), verdade esta que, como
já vimos, é concebida como a identidade entre esse pensamento e o ser que é
por ele pensado (conhecido). Além disso, é precisamente porque a
identidade é o nome primeiro do ser que todas aquelas características são
nomes simultaneamente descritivos e sinônimos do ser. Por fim, a
identidade, como característica primeira do ser, é outra maneira de exprimir
aquilo que antes já vimos na breve exposição do início do fragmento 6: “o
ser é e o nada não é”. Agora isso significa: o ser, em sentido primário, é
identidade que exclui o não-ser (ou o nada) como o totalmente outro, como
o indizível e impensável.
Com isso, encerramos nossa exposição básica da ontologia de
Parmênides, que, rigorosamente falando, é a primeira ontologia da história
da metafísica grega. Embora não seja possível explicar em detalhes,
podemos entrever neste fato algo muito importante: que Parmênides
consegue inserir o conceito de ser no vocabulário da filosofia grega e posterior
justamente ao introduzir – também pela primeira vez nesta mesma história –
o conceito de identidade, bem como associar ambos esses conceitos ao de
78 Nazareno Eduardo de Almeida
verdade. A grandeza de poema de Parmênides, portanto, encontra sua
justificação na correlação que conseguiu fazer (e que ainda hoje está em
vigor, embora de modos distintos) entre os conceitos de ser, identidade e
verdade.
Embora também não possamos nos deter sobre isto neste momento,
cumpre notar que o conceito de identidade é um conceito de ordem
henológica, na medida em que significa uma nova forma de conceber a
unidade. Assim, vislumbramos aqui o que já dissemos antes: a fundação da
ontologia em Parmênides realiza uma “mistura” da linhagem conceitual
henológica da metafísica grega que o antecede e envolve com a linhagem dos
conceitos ontológicos que ele próprio está instaurando pela primeira vez. O
“resultado” dessa mistura é a “criação” da correlação entre os conceitos de
ser e identidade, uma correlação que será discutida por toda a ontologia e
metafísica posteriores, até nossos dias.
A origem da ontologia na metafísica grega 79
B – APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES
1. Uma tradução dos fragmentos do poema de Parmênides
Para facilitar a quem lê este texto o acesso ao pensamento de
Parmênides, apresento aqui uma tradução dos fragmentos remanescentes do
poema intitulado Sobre a natureza (Peri physeôs). Além disso, essa tradução
evita discussões aqui desnecessárias sobre as inevitáveis opções filosóficas
quando se traduz e interpreta um texto notoriamente denso e difícil como
este. Por fim, mesmo que estes aprofundamentos e discussões tratem
principalmente dos fragmentos da segunda parte do poema, resolvi
apresentar a tradução de todos eles para que se possa compreender melhor a
sinopse sobre as partes do poema que se encontra logo após a presente
tradução; e também para disponibilizar a quem tenha interesse a íntegra das
partes do poema atualmente acessíveis a nós. Como de costume, esta
tradução se baseia no texto grego encontrado em Os fragmentos dos pré-
socráticos (Die Fragmente der Vorsokratiker) de Hermann Diels e Walter
Kranz, embora adote algumas alterações propostas por outros estudiosos do
texto. A numeração entre colchetes retos (‘[...]’) marca a cada cinco linhas o
poema traduzido. Essa numeração das linhas é importante para podermos
fazer a referência correta às partes dos fragmentos.
SOBRE A NATUREZA
Fragmento 1
As éguas me conduzem até onde meu espírito/ânimo (thymos) é capaz
de ir, pois me guiaram rapidamente para o caminho afamado
da divindade, que leva o mortal com conhecimento por todas as cidades;
por este <caminho> era levado; por ele me levavam as mui sensatas éguas,
[5] impelindo a biga, pois por virgens através do caminho era guiado.
E então o eixo no centro das rodas solta um silvo de uma flauta,
incandescendo (pois era impulsionado por duas poderosas
rodas de ambos os lados), quando se apressavam a me acompanhar
as virgens, filhas do Sol, deixando para trás a morada da Noite
[10] em direção à luz, e com suas mãos retiravam os véus da cabeça.
Lá estão os pilares dos caminhos da Noite e do Dia,
encimados por uma <grande> verga e com pétreas soleiras.
80 Nazareno Eduardo de Almeida
Estes <pilares> no céu elevado são completados por portas;
das quais a Justiça, de duras penas, possui as chaves que lhe dão acesso.
[15] A ela, as virgens encantaram com dizeres ditosos,
persuadindo-a, com hábeis palavras, a que a tranca aferrolhada
depressa abrisse dos pilares; e as portas
produziram um vasto abismo com suas dobradiças de bronze,
um por um <os batentes da porta> ao girarem
[20] nas cavidades do umbral ajustados; e célere através deste <abismo>
diretamente as virgens levaram pela via a biga e os cavalos.
E aí a deusa afavelmente me recebeu, <em suas> mãos a <minha> mão
destra acolheu, e assim falando a mim se dirigiu:
“Ó jovem, acompanhante de imortais guias,
[25] que com éguas foste trazido à nossa morada,
salve! Porque não foi destino ruim que te impeliu a percorrer
este caminho (pois ele está afastado das trilhas humanas);
bem antes, <impeliram-te> a lei e a justiça. É preciso que de tudo te instruas:
de um lado, do coração inabalável da Verdade (Alêtheiês) bem-redonda;
[30] e, de outro, das opiniões (doxas) dos mortais, nas quais não há fé verdadeira.
Além dessas <vias>, aprenderás como os objetos da opinião (ta dokounta)
precisam ser testados (dokimôs), atravessando <com a mente> tudo através de tudo.”
Fragmento 2
Então vamos! Eu te falarei, e tu, escutando a narrativa (mython), acolhe-a;
os únicos caminhos de investigação (hodoi didzêseos) que há para pensar (noêsai):
de um lado, que <algo> é e que não é <possível> não ser,
da persuasão é a via (pois acompanha a Verdade);
[5] de outro lado, que <algo> não é e é necessário não ser;
esta eu te indico ser vereda de todo insondável:
pois nem conhecerias o não-ser (to mê eon) (pois isto não é factível)
nem o poderias indicar.
Fragmento 3
..., pois o mesmo é pensar (noein) e ser (einai).
Fragmento 4
Mas olha no pensamento/intelecto (noô(i)) como as coisas ausentes (apeonta)
estão[firmemente presentes (pareonta):
pois não poderás separar o ente/o que é (to eon) de manter-se no ente/no que é (tou
eontos)
nem totalmente dispersando-o por tudo de todo modo no mundo (kosmon) nem
reunindo-o.
Fragmento 5
A origem da ontologia na metafísica grega 81
... comum é, para mim,
o lugar de onde começarei, pois novamente retornarei para este mesmo <lugar>.
Fragmento 6
É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam, pois <o> ser é (esti gar einai)
e <o> nada (mêden) não é; isto eu te ordeno considerar,
por este primeiro caminho de investigação <tu começarás>17;
e depois por aquele dos mortais que nada sabem,
[5] errantes, bicéfalos/duplas-cabeças (dikranoi): pois a falta de entendimento neles
dirige em seu íntimo errante pensamento (noon), pois se conduzem
tal qual surdos e cegos, aturdidos; multidão sem-discernimento,
eles consideram como sendo o mesmo (tauton) ser e não-ser
e <em seguida> como não o mesmo; e de tudo é reversível o caminho.
Fragmento 7
Pois de modo algum isto se imponha: serem os não-entes/as coisas que não são (einai
mê eonta);
mas tu, afasta o pensamento (noêma) deste caminho de investigação;
nem o hábito de muita experiência (polypeiron) por este caminho te force
a conduzir um olho sem foco e ruidosos ouvido
[5] e língua; antes, discerne pela razão (krinai logo(i)) a controversa
refutação/argumentação (elenchon)
por mim exposta.
Fragmento 8
Unicamente a narrativa (mythos) de um caminho
resta: que <algo> é; neste caminho há evidências/sinais (sêmat’easi)
e são muitíssimos: que ingênito sendo também é imperecível,
inteiro (oulon), uniforme (monogenes), inabalável (atremes) e também perfeito
(teleion).
[5] Nem em algum momento era nem será, pois é agora todo igual (homou pan),
uno (hen), contínuo (syneches): pois de que modo investigarás a sua gênese?
como e donde teria crescido? Nem “surgiu a partir do não-ser (mê eontos)”
permitirei que digas nem que penses, pois não é dizível nem pensável (noêton)
aquilo que não é; pois qual necessidade o teria impelido
[10] a nascer mais cedo ou mais tarde se tivesse se originado do nada (medenos)?
Assim, ou é preciso que seja absolutamente ou que não (seja).
17
O termo ‘começarás’ é uma emenda para a lacuna nos manuscritos que contêm a citação deste
fragmento. Ela foi proposta por Alexander Nehamas e Néstor Cordero, e contrasta com aquela
mais tradicional proposta por Hermann Diels e seguida por muitas das edições do texto dos
fragmentos do poema. A emenda de Diels é ‘<te afastarás>’, baseada na ocorrência desta
mesma expressão no fragmento 7. Essa mudança é importante porque com ela se torna
possível interpretar que o fragmento 6 não estaria apresentando um terceiro caminho para
além daqueles dois expostos no fragmento 2.
82 Nazareno Eduardo de Almeida
Nem jamais a partir do não-ente (mê eontos) será dito pela força da crença
que algo tenha nascimento a partir dele; por isso nem nascer
nem perecer permitiu a Justiça, <como se> afrouxasse as amarras,
[15] mas <antes as> mantém <firmes>; porém a decisão sobre isto está nisto:
<algo> é ou não é; contudo, já está decidido, conforme a necessidade:
que um <caminho> seja impensável (anoêton) <e> inominável (pois não é verdadeiro
caminho); e que o outro <caminho> é real e autêntico.
De que modo o ente (to eon) viria a ser <no futuro>? De que modo ele teria vindo a
ser?
[20] Pois se veio a ser <no passado>, <então> não é, nem também será se for no futuro.
Portanto, a geração <do ser> está excluída e é incompreensível <seu> perecimento.
Nem é divisível (diareton), porque é completamente igual/homogêneo (homoion):
nem é algo maior, o que o impediria de manter sua continuidade,
nem algo menor, pois é completamente repleto/pleno de ser (eontos).
[25] Por isso é completamente contínuo, pois o ser ao ser adere (eon eonti peladzei).
Mas também imóvel (akinêton) nos limites de grandes liames
é sem-início (anarchon) e sem-pausa (apauson), porque geração e perecimento
foram afastados para longe, rechaçados pela fé verdadeira.
O mesmo e no mesmo (tauton t’en tautô(i)), permanecendo em si mesmo (kath’heauto)
jaz,
[30] assim firmemente ali-mesmo (authi) permanece: pois a poderosa Necessidade
o mantém nos grilhões de limite que o encerra em todos os lados.
Por isso, está estabelecido que o ente não é incompleto;
pois não carente <de nada>; pois em sendo, de tudo careceria.
O mesmo é pensar (noein) e aquilo em vista do que é pensamento/pensado (noêma).
[35] Pois sem o ente (eontos), graças ao que <o pensamento> é enunciado em palavra,
não encontrarás o pensar (noein): pois nada era, é ou será
fora do ente/do que-é (eontos), de modo que Moira (Destino) o encadeou
a ser inteiramente imóvel; [e por causa disso todas <as coisas> foram nomeadas,
tantas coisas quantas os mortais instituíram, convictos de ser verdade,
[40] gerar-se e perecer, ser e também não(-ser),
mudar de lugar e alterar a cor brilhante.]18
Mas como o limite é supremo, <o ente> é inteiramente completo (tetelesmenon),
em tudo semelhante ao volume da esfera bem-redonda,
em todas as partes equilibrada em relação ao centro; pois nem algo maior
[45] nem algo menor é necessário ser desta ou daquela maneira.
Pois nem há não-ser (ouk eon) que o impeça de chegar
ao igual, nem <há> ente que fosse a partir do ente
aqui mais e ali menos, pois é completamente inviolável;
pois igual (ison) em tudo <a si mesmo>, de modo idêntico (homôs) permanece em seus
18
Alguns/Algumas estudiosos/as (com os quais tendo a concordar) consideram que esta parte
posta entre parênteses retos está fora de lugar, devendo ser inserida entre as linhas 59 e 60 do
fragmento 8. Deixarei de lado esta discussão, mas o trecho faz mais sentido filosoficamente
diante do contexto do poema como um todo quando deslocado para esta posição.
A origem da ontologia na metafísica grega 83
[limites.
[50] Neste <ponto> encerro para ti o discurso (logon) e o pensamento (noêma)
em torno da verdade; a partir de agora, sobre as opiniões dos mortais
aprende, escutando a ordem enganosa de minhas palavras.
Pois decidiram nomear duas formas (morphas),
das quais uma não é necessária – no que estão em erro –;
[55] em contrários separaram o compacto e sinais estabeleceram
separados uns dos outros: de um lado, fogo etéreo da chama,
sendo suave, para si mesmo em tudo o mesmo,
mas não o mesmo em relação ao seu outro; e este outro é também por si mesmo,
o contrário <do anterior, nomearam> noite escura, denso na aparência e pesado.
[60] A ordem do mundo, verossímil em toda parte, eu te indico/revelo,
de modo que nenhum juízo de mortais te supere.
Fragmento 9
Uma vez que tudo recebeu o nome de luz e de noite,
e às coisas foi dado este ou aquele, segundo seus poderes,
tudo está igualmente repleto de luz e noite simultaneamente,
ambas iguais, uma vez que nada está fora de ambas.
Fragmento 10
Conhecerás a natureza do éter [sc. a parte mais elevada do céu] e de todos
os sinais/signos (sêmata) que estão no éter [sc. as constelações] e da pura e brilhante
luz solar, as obras invisíveis e de onde elas provêm,
e também aprenderás as obras da rotação circular da lua
[5] e <sua> natureza, e conhecerás ainda o céu que tudo envolve,
de onde nasceu e também como a Necessidade que o conduz encadeado,
mantendo os limites dos astros.
Fragmento 11
... <e> de que modo Terra, Sol e a Lua,
o éter comum, e a Via-Láctea e o Olimpo
supremo, assim como o calor dos astros foram forçados
a vir-a-ser/nascer (gignesthai).
Fragmento 12
Os <anéis> mais estreitos enchem-se de fogo sem mistura
e os <anéis> que os seguem de noite; mas entre eles escapa uma porção de chamas;
e no meio destes <anéis> a divindade que tudo dirige;
pois de todas as coisas o terrível parto e união governa/rege,
[5] impelindo a fêmea a se unir ao macho, e inversamente
o macho à fêmea.
84 Nazareno Eduardo de Almeida
Fragmento 13
Antes de todos os demais deuses concebeu Amor.
Fragmento 14
[sc. a Lua] Noturna-luz, em torno da Terra, com luz alheia.
Fragmento 15
[sc. a Lua] sempre olhando inquieta para os raios do Sol.
Fragmento 16
Pois assim como cada <pessoa> possui uma mistura/um composto de membros
errantes,
assim o intelecto/pensamento (noos) está presente nos seres humanos; pois o mesmo
é aquilo que entende (phroneei) e a natureza dos membros nos seres humanos,
em todos e em cada um; pois o pensamento/pensado (noêma) é pleno [ou: pois o
pensamento/pensado é completo].
Fragmento 17
À direita os rapazes, à esquerda as moças.
Fragmento 18
Quando a mulher e o homem misturam simultaneamente as sementes de Vênus
a força que forma nas veias a partir de sangues diversos,
mantendo o equilíbrio, gera corpos bem formados.
Se, contudo, misturados os sêmens, as forças se opõem,
[5] e não fazem unidade, misturados no corpo, cruéis,
atormentam o sexo da criança com duplo sêmen.
Fragmento 19
Assim, segundo a opinião, nasceram estas <coisas> e agora são
e depois crescerão e terão um fim;
a elas os seres humanos instituíram um nome assinalando cada uma.
2. A estrutura do poema Sobre a natureza
Desde a antiguidade até nossos dias, o poema Sobre a natureza de
Parmênides costuma ser dividido em três partes: o proêmio, o caminho da
verdade e o caminho da opinião.
A origem da ontologia na metafísica grega 85
2.1. O proêmio
O proêmio, prólogo ou introdução do poema é composto pelo
fragmento 1. Nesta parte inicial, Parmênides apresenta uma alegoria poética
que mostra a jornada do pensador até a morada da deusa (possivelmente a
deusa Verdade). Já nas linhas finais desta introdução a deusa começa a falar
usando Parmênides como um mediador entre suas palavras e nós, que
somos denominados geralmente no poema como ‘os mortais’. É já nesta
exposição geral que encontramos a base para a divisão do poema em duas
ou três partes. Inicialmente a deusa diz que Parmênides deve aprender algo
sobre “o coração inabalável da Verdade bem-redonda” (frag. 1, linha 29).
Mas que também deve aprender algo sobre as “opiniões dos mortais, em que
não há fé verdadeira” (frag. 1, linha 30). Essas duas afirmações justificam a
tradicional visão segundo a qual o poema se divide no caminho da verdade
e no caminho da opinião. Contudo, há uma outra afirmação, muito
discutida pelos/as intérpretes, que parece apontar para uma outra função do
poema. Ela se encontra no seguinte trecho: “Além dessas <coisas>,
aprenderás como os objetos da opinião (ta dokounta) precisam ser testados
(dokimôs), atravessando <com a mente> tudo através de tudo.” (frag. 1,
linhas 31-32). Na interpretação que adoto (juntamente com outros/as
estudiosos/as), esta frase indica que o poema não apenas vai expor um
conteúdo determinado, mas ensinará um tipo de método para a investigação
filosófica que, dentre outras coisas, permite uma crítica das opiniões
comuns.
2.2. O caminho da verdade
Na ordenação dos fragmentos restantes do poema, a segunda parte se
encontra nos fragmentos 2 até as linhas 49-50 do longo fragmento 8. Ela é
considerada a parte mais importante do poema desde a antiguidade. É nela
que, propriamente, encontramos o que podemos chamar de nascimento da
ontologia, uma vez que será estabelecido nesta parte o conceito de ser, ente
ou o que-é (to eon) como o objeto primeiro (ou último) para que o
pensamento humano alcance a verdade. Em uma descrição bastante
esquemática e didática, podemos descrever esta parte do seguinte modo. No
fragmento 2, a deusa (através de Parmênides), estabelece que há somente
dois caminhos possíveis para o pensamento (noein) humano investigar a
verdade. Um desses caminhos é descrito como o caminho que nos leva a
verdade. Usualmente o chamamos de ‘caminho do ser’ ou ‘caminho da
86 Nazareno Eduardo de Almeida
verdade’. O outro caminho é caracterizado pela deusa como uma via que não
nos conduz à verdade, mas sim ao erro e à falsidade. Usualmente o
chamamos de ‘caminho do não-ser’. No fragmento 3, a deusa expõe o que
podemos chamar de um ‘postulado imperativo’ para justificar sua exclusão
de um dos dois caminhos como um falso caminho. Esse postulado
imperativo é expresso na importantíssima sentença: “pois o mesmo é pensar
e ser.” Em uma breve interpretação, essa sentença significa que o
pensamento humano em sua forma mais elevada só pode atingir a verdade
(sua meta intrínseca) quando se identifica com o objeto que é pensado,
objeto que em um momento posterior do poema será justamente
determinado como o ser ou ente (to eon). Na sequência dos fragmentos 4 até
7, o poema apresenta (embora seja provável haver lacunas em relação ao
texto original) uma justificação do porquê o caminho do não-ser não nos
conduz à verdade, mas apenas à confusão e ao erro. A parte principal do
caminho da verdade, na qual se explicita o sentido do caminho do ser
(indicado no fragmento 2), é constituída pela maioria do fragmento 8 (da
linha 1 até a linha 49). É aí que são apresentados, de modo bastante
condensado, os argumentos que nos conduzem às características intrínsecas
do ser: que ele é ingênito (não nasceu), imperecível (não morre), eterno,
uno, contínuo etc. Dentre essas características, na interpretação que exporei
a seguir, a principal delas é justamente a característica de o ente ser idêntico.
Além dessas observações sobre a parte central do poema, cumpre assinalar
que uma parte dos/das intérpretes considera que haveria um terceiro
caminho para além dos dois assinalados no fragmento 2. Esse terceiro
caminho seria aquele descrito na segunda parte do fragmento 6, na qual a
deusa descreveria o que tais intérpretes chamam de caminho dos mortais
(“senso comum”), os quais estariam em permanente erro por confundirem
os conceitos de ser e não-ser. Em minha leitura, sigo a vertente
interpretativa de acordo com a qual, nesta parte do poema, Parmênides
apresenta apenas dois caminhos. De todo modo, na exposição que farei, esse
aspecto não será de grande importância para nós. Importa notar que a
exposição a seguir se detém exclusivamente nesta parte do poema, deixando
de lado aspectos presentes nas outras duas.
2.3. O caminho da opinião
A terceira parte do poema (sobre a qual não trataremos neste texto)
apresenta o que se costuma chamar de caminho da opinião. Esta parte
A origem da ontologia na metafísica grega 87
começa na linha 51 do fragmento 8 e se estende até o fragmento 19.
Infelizmente, os fragmentos que possuímos desta parte do poema são mais
escassos do que os que possuímos da parte referente ao caminho da verdade,
de tal modo que sua interpretação sempre envolve uma boa dose de
conjecturas, gerando diferentes perspectivas de entendimento desde a
antiguidade até nossos dias. Não obstante este fato, alinho-me com
aqueles/as intérpretes modernos que consideram essa parte do poema como
contendo dois momentos distintos:
A) A crítica ao modo de pensar do senso comum: O primeiro momento
parece apresentar uma crítica às opiniões mortais sobre o mundo. Essa
crítica se volta contra o hábito dos mortais (“senso comum”) de distinguir,
na natureza formas, objetos ou propriedades contrárias, concebendo que um
desses contrários representaria o ser e o outro o não-ser. Essa crítica se
baseia naquilo que foi exposto no caminho da verdade em dois aspectos. O
primeiro consiste na defesa de que nenhum pensamento capaz de alcançar a
verdade pode atribuir o conceito de não-ser a qualquer coisa do mundo
(algo expresso pela proposição “o não-ser não é”). O segundo aspecto
consiste em ter mostrado que o ser não se identifica com nenhum dos
objetos da experiência sensível, ou seja, que o ser é algo que está para além
das ou subjacente às aparências. Esta crítica parece estar contida nas linhas
finais do fragmento 8 (linhas 50-61), bem como nos fragmentos 9 e 19.
B) A cosmologia verossímil: O segundo momento apresenta alguns
vestígios da cosmologia de Parmênides, uma vez que na maioria dos
fragmentos desta parte encontramos descrições dos objetos celestes, bem
como descrições de caráter biológico e mesmo antropológico. Esta parte
parece estar contida nos fragmentos 10-18. Para além da escassez dos
fragmentos desta parte do poema e mesmo dos testemunhos indiretos sobre
seu conteúdo, o problema filosófico desta parte consiste no fato que ela
apresenta apenas uma ordenação verossímil da estrutura do mundo (aí
incluído o ser humano). Essa indicação é feita pela própria deusa na última
frase do fragmento 8, quando diz: “A ordem do mundo, verossímil em toda
parte, eu te indico/revelo, de modo que nenhum juízo de mortais te supere.”
(frag. 8, linhas 60-61; grifo acrescentado). De qualquer forma, esses
problemas sobre o sentido e a estrutura do chamado caminho da opinião
estão fora do escopo deste livro.
88 Nazareno Eduardo de Almeida
3. A importância de Parmênides na história da filosofia e da metafísica
gregas
Parmênides de Eleia (c. 530-460 a. C.) é considerado pela maioria
dos/das estudiosos/as como o mais importante filósofo pré-socrático, a tal
ponto que por vezes se fala de um período pré-parmenídico e um período
pós-parmenídico. Fazendo um uso um tanto livre da noção de paradigma,
podemos dizer que Parmênides estabelece um novo paradigma no percurso
da filosofia antiga justamente ao introduzir o par conceitual ser e não-ser (=
nada). Este par conceitual se torna fundamental para toda a filosofia e
metafísica posteriores, de tal modo que o mais correto é falar não apenas da
ontologia de Parmênides, mas também que esta ontologia instaura o
paradigma ontológico da metafísica antiga e posterior.
Como já dissemos na parte dos aprofundamentos e discussões do
capítulo anterior, a filosofia e a metafísica antigas começam com teorias
filosóficas centradas nos conceitos de unidade e multiplicidade,
especialmente no caso de Heráclito de Éfeso, que viveu aproximadamente na
mesma época de Parmênides. Como também já dissemos antes, esse
paradigma inicial é denominado pelos estudiosos recentes pela palavra
‘henologia’, paradigma no qual as teorias filosóficas se centram na relação
entre unidade e multiplicidade. A partir de Parmênides, os conceitos
centrados na relação entre unidade e multiplicidade acabam sendo
“traduzidos”, incorporados e transformados dentro do novo paradigma,
centrado nos conceitos de ser e não-ser/nada.
De modo geral, há dois aspectos interconectados que nos permitem
compreender essa transformação realizada por Parmênides. Um aspecto é,
por assim dizer, linguístico ou gramatical. O outro é mais propriamente
filosófico. O aspecto linguístico ou gramatical consiste na introdução dos
termos ‘ser’ e ‘não-ser’ no vocabulário filosófico grego e posterior. O aspecto
filosófico consiste em ter estabelecido a relação intrínseca entre os conceitos
de ser, verdade e identidade, este último que também foi introduzido pela
primeira vez na filosofia antiga pelo próprio Parmênides. Passemos a uma
rápida explicação destes dois aspectos.
Se é verdade que o verbo ‘ser’ é um verbo fundamental do idioma
grego desde os tempos dos poemas homéricos, também é verdade que
somente com Parmênides acontece a formação do substantivo ‘o ser’ ou ‘o ente’
(to eon) no então nascente vocabulário filosófico grego. Isso significa que é
A origem da ontologia na metafísica grega 89
Parmênides quem estabelece pela primeira vez ou, ao menos, introduz no
campo da filosofia esse termo denotando um conceito fundamental que
seria incorporado pela tradição filosófica posterior. Do ponto de vista
gramatical, o termo grego ‘to eon’ é definível como a substantivação do
particípio singular neutro do verbo ‘ser’. Assim, Parmênides realiza a
passagem do termo ‘eon’ de uma forma de conjugação do verbo ‘ser’ (na
forma do particípio singular neutro) para transformá-lo em um substantivo.
Antes de e na mesma época de Parmênides, o termo ‘eon’ e principalmente
sua forma plural ‘eonta’ aparecem nos registros ainda existentes da língua
grega principalmente com um significado mais verbal e adjetivo do que
substantivo.19
Em paralelo com a substantivação da forma verbal ‘eon’, Parmênides
também transforma em substantivo a forma infinitiva do verbo grego ‘ser’,
que é expressa na forma ‘einai’, implicitamente na forma ‘to einai’, que
poderíamos traduzir literalmente como ‘o ser’. Mesmo assim, por várias
razões que não cabe mencionar aqui, a forma gramatical mais comum do
conceito tanto em Parmênides como na filosofia posterior é a forma ‘to eon’,
que se expande especialmente no dialeto ático (também chamado de grego
clássico) na forma ‘to on’.
Para compreender essa função verbal do termo ‘eon’, tomemos o
esquema semiformal ‘S é P’, no qual ‘S’ significa algum sujeito e ‘P’ um
predicado qualquer atribuído a este sujeito. Esse esquema foi introduzido
pelos filósofos medievais para marcar a função lógica e predicativa do verbo
19
O termo ‘eon’ é a forma do dialeto jônico usado por Parmênides. No grego clássico
(representado sobremodo pelo dialeto ático ou ateniense encontrado nos diálogos de Platão), o
termo é ‘on’, sem o épsilon inicial. A partir desse dialeto se difunde a forma comum ‘to on’,
donde surgirá, posteriormente, o termo ‘ontologia’. Antes de Parmênides, o termo ‘eonta’ (o
plural de ‘eon’), com o significado de ‘as coisas que são’ aparece em Homero para marcar as
coisas que são presentemente e em Hesíodo para falar da vida eterna dos deuses enquanto ‘são
sempre’ (aei eonta). Neste último significado, aparece no fragmento 1 de Heráclito a expressão
‘aei eon’ (‘que é sempre’) para qualificar o logos, provavelmente inspirado no uso feito por
Hesíodo. Este é um significado entre verbal e adjetivo. Pouco tempo depois de Parmênides, em
Heródoto, o termo ‘eon’ aparece com o significado de ‘o que é real’ ou ‘o que é verdadeiro’.
Neste significado, é possível que este termo já estivesse em circulação na língua grega comum
antes de Parmênides, mas esse significado também é mais verbal e adjetivo do que substantivo.
Somente em Parmênides a forma singular ‘eon’ aparece na forma de um substantivo, um novo
uso que é explicitamente marcado como aparecendo na linha 35 do fragmento 8 do poema em
um dos mais respeitados léxicos da língua grega antiga: LIDDELL, Henry George; SCOTT,
Robert; JONES, Henry Stuart. Greek-English Lexicon. Oxford: Clarendon, 1996, p. 488. Por fim,
para ser rigoroso, mesmo no poema de Parmênides os termos ‘eon’ e ‘einai’ nem sempre
aparecem acompanhados pelo artigo neutro ‘to’. Mesmo assim, é inequívoco (pelo contexto
sintático e semântico) que são usados como substantivos e não em suas formas verbais e
adjetivas como nas outras ocorrências mencionadas.
90 Nazareno Eduardo de Almeida
‘ser’. Usando este esquema, constatamos que no idioma grego anterior a
Parmênides encontramos a forma ‘S eon P’, o que poderíamos traduzir,
aproximadamente como: ‘S sendo P’ ou ‘S que é P’. Deixando de lado as
peculiaridades do tempo particípio no sistema verbal do grego antigo, o que
Parmênides faz é transformar essa forma verbal do verbo ‘ser’ em grego em
um substantivo, justamente através da introdução do artigo neutro do grego
expresso pelo termo ‘to’. Assim surge, no contexto do discurso filosófico
antigo, a expressão ‘to eon’ (que no grego posterior será apenas ‘to on’), a
qual traduzimos usualmente por ‘o ser’, ‘o ente’ e – em tempos mais recentes
e no contexto das discussões especializadas – ‘o que-é’.
Uma vez estabelecido o termo para denominar o conceito de ser,
Parmênides também introduz o seu contrário no vocabulário filosófico
grego de três formas. Uma delas, mais comum é pela introdução de uma
partícula negativa, da qual resulta a expressão ‘to mê eon’, que traduzimos
como ‘o não-ser’ ou ‘o não-ente’. A outra expressão, menos comum e
equivalente, é através da substantivação do pronome distributivo negativo
neutro ‘nenhum’, na forma ‘to mêden’, que usualmente traduzimos como ‘o
nada’. A terceira, ainda mais rara (tanto em Parmênides como depois) é pela
expressão ‘to mê einai’ e, por vezes, ‘to ouk einai’, a qual só pode ser
traduzida pela expressão ‘o não-ser’.
Deste modo, por meio de uma transformação gramatical e linguística
do sentido do verbo ‘ser’ no grego antigo, Parmênides institui o que
podemos chamar de vocabulário ontológico na filosofia antiga. A partir de
Parmênides, embora em sentidos distintos, os principais filósofos gregos se
veem na necessidade de tratar dos conceitos de ser e não-ser (ou nada) em
suas filosofias. Dentro deste contexto, todas as filosofias antigas depois de
Parmênides que desenvolvem alguma concepção metafísica sobre o mundo
– ou, no caso dos céticos, que criticam essas concepções – sempre possuem
alguma concepção sobre os conceitos de ser e não-ser, ou seja, alguma
concepção ontológica.
Passemos ao esclarecimento básico do aspecto filosófico através do
qual Parmênides instaura o paradigma ontológico na filosofia e metafísica
antigas. Esse aspecto complementa o anterior, pois não basta que um/a
filósofo/a introduza um novo termo, mas é também necessário que mostre
como este novo termo expressa no nível da língua um novo conceito.20
20
A rigor, todo discurso filosófico só consegue introduzir novos conceitos através de determinada
língua ao introduzir novos esquemas conceituais, ou seja, novas correlações entre conceitos,
correlações estas que aparecem nos novos argumentos que são elaborados no discurso filosófico de
A origem da ontologia na metafísica grega 91
Afinal, embora o discurso (“linguagem”) seja a “matéria prima” da filosofia,
o que realmente conta na atividade filosófica é a apresentação e discussão de
conceitos e correlações conceituais que são expressos através de
determinada(s) língua(s) e traduzíveis às demais. O aspecto filosófico que
acompanha a (e está por trás da) inovação linguística de Parmênides consiste
em ter conseguido introduzir o conceito de ser (e de não-ser) ao estabelecer
uma relação deste conceito com os conceitos de verdade e identidade.
É certo que já encontramos no pensamento de Heráclito uma
concepção que relaciona as noções de verdade e mundo, na qual a verdade
(como sinônimo do mundo filosoficamente pensável e dizível) precisa
ultrapassar o nível das opiniões e crenças do senso comum. Todavia, é a
partir de Parmênides que encontramos no campo do discurso filosófico a
primeira correlação explícita entre as noções de verdade e realidade,
justamente através da correlação entre os conceitos de ser e identidade.
Podemos explicar do seguinte modo essa equivalência entre verdade e
realidade: a partir de Parmênides e, a partir dele, para toda a filosofia grega
posterior a noção de dizer a verdade passa a significar e ser entendida como
equivalente a dizer o que realmente é, independentemente das variações de
opinião sobre as coisas do mundo. Em outras palavras, em boa parte da
filosofia (grega e posterior) a partir de Parmênides, dizer a verdade passa a
equivaler a dizer o ser em si mesmo das coisas sobre as quais podemos
pensar e falar. Esse ‘em si mesmo’ enfatizado significa justamente o conceito
de identidade. Como veremos melhor em seguida, tal conceito aparece
explicitamente pela primeira vez na filosofia antiga justamente no poema de
Parmênides. Essa introdução só é possível pela introdução do conceito de
ser, de tal modo que ambos são conjuntamente introduzidos no discurso
filosófico grego por Parmênides.
Depois de Parmênides, todas as teorizações filosóficas sobre o
conceito de verdade passam necessariamente por algum tipo de
posicionamento sobre a relação entre os conceitos de ser e identidade. Em
termos mais simples, dizer o que é determinada coisa e, por isso, dizer a
determinado/a autor/a. Em suma, todo discurso filosófico não “cria” novos conceitos isolados, mas
“cria” (e “recria”) novos esquemas conceituais e argumentos, nos quais se inserem os novos
conceitos. Deixaremos de lado este aspecto do discurso filosófico, mas é preciso ter em mente que
é justamente isto que efetivamente faz Parmênides quando introduz (como veremos rapidamente
a seguir) os conceitos de ser e identidade em mútua correlação, assim como em correlação com o
conceito filosófico de verdade, um conceito que então começava a surgir e contrastava com seu
uso comum no restante da cultura grega anterior e mesmo contemporânea ao surgimento do
discurso filosófico grego.
92 Nazareno Eduardo de Almeida
verdade sobre esta coisa equivale a determinar de algum modo a sua
identidade, o seu ser em si mesmo, tanto além de suas transformações quanto
além das variações de opinião sobre este ser. Assim, por exemplo, dizer com
verdade o que é o ser humano equivale a estabelecer, no nível do discurso e
do pensamento, o seu ser em si mesmo, ou seja, a sua identidade diante de
todas as outras coisas.
Mesmo assim, como veremos, essa forma de explicar a relação entre
ser, verdade e identidade já é posterior a Parmênides. Como já indicado no
texto básico deste capítulo, no seu poema, ao contrário, a relação entre ser,
verdade e identidade não se aplica às coisas sensíveis a que temos acesso
através de nossa percepção. Em outras palavras, o modo como acabamos de
explicar a relação entre ser, verdade e identidade já resulta de uma
transformação do modo como essa mesma relação é primeiramente
estabelecida por Parmênides. Como veremos melhor abaixo, a filosofia de
Parmênides também se tornou famosa e se estabeleceu como um “ponto de
virada” da filosofia e da metafísica antigas por ser uma filosofia paradoxal,
no sentido literal do termo ‘paradoxo’: como um pensamento que se põe
contra (para) as opiniões ou intuições comuns (doxa), em especial as
intuições comuns que nos dizem que o mundo é constituído por múltiplas
coisas que estão em transformação. Em termos mais recentes, também
denominamos esse sentido paradoxal dizendo que a filosofia de Parmênides
é ‘contraintuitiva’, ou seja, que vai contra as intuições do senso comum.
Mas como, então, essa filosofia estranha, paradoxal e contraintuitiva
se impôs a tal ponto que quase todas as filosofias posteriores se viram
obrigadas a se posicionar diante dela? A resposta se encontra não apenas na
força intrínseca pertencente à relação dos conceitos de ser, verdade e
identidade, mas também pela força do modo de argumentação filosófica
instaurada por Parmênides e seus discípulos. Como já é consenso entre
os/as intérpretes, Parmênides não apenas se torna um momento
incontornável para a filosofia posterior por conta dos conceitos e relações
conceituais que propõe, mas também pelo modo como ele o faz. Em certa
medida, podemos dizer que o nascimento da ontologia em Parmênides
coincide com o nascimento da lógica na filosofia antiga. Isso não significa
que o pensamento filosófico anterior e contemporâneo a Parmênides seja
“ilógica”, mas que é neste pré-socrático que encontramos o primeiro uso
explícito da lógica dedutiva como método (e modelo) filosófico (e científico)
para alcançar a verdade em sentido estrito.
A origem da ontologia na metafísica grega 93
Em termos mais específicos, para estabelecer a sua concepção sobre a
relação entre ser, verdade e identidade, Parmênides introduz no discurso
filosófico aquilo que veio a ser chamado posteriormente de metodologia
axiomática de argumentação. Portanto, apesar de sua estranheza, a filosofia
de Parmênides se impõe como um tipo de desafio para toda a filosofia
posterior não apenas por seu conteúdo, mas também por ter criado ou
introduzido na filosofia grega um novo padrão de argumentação. 21 Este
padrão costuma ser chamado de dedutivo ou demonstrativo. Esse será o
núcleo para o desenvolvimento da lógica a partir de Platão e, sobretudo, de
Aristóteles. Já na época de Platão e Aristóteles, esse padrão aparece no que
chamamos de ‘método axiomático’ porque os matemáticos (especialmente
os geômetras) passam a chamar os princípios de suas demonstrações de
‘axiomas’, como ainda veremos ao falar da ontologia de Aristóteles. De modo
algo simplificado, podemos dizer que axiomas são proposições ou
enunciados que são logicamente evidentes (verdadeiros) e supostamente
inegáveis para qualquer pessoa que pretenda argumentar em termos
considerados como rigorosamente racionais pelos investigadores que
tomam a lógica e a matemática como padrão inferencial mais básico e
correto.
O surgimento do método axiomático no poema de Parmênides e,
portanto, na filosofia ocidental, se apresenta no uso que este filósofo faz do
que veio a ser chamado por Aristóteles de argumento por redução ao
impossível (apagogê eis adynaton) e, mais tarde, de redução ao absurdo
(reductio ad absurdum). Embora a lógica posterior a Parmênides tenha
descoberto diversos outros tipos de argumentos dedutivos, o argumento por
redução ao absurdo é um dos tipos que foram mais utilizados pelos filósofos
ao longo da história da filosofia. Para que esse argumento possa ser
empregado, são justamente necessários os princípios de não-contradição e
do terceiro excluído, assim como o princípio da dupla negação. E, de certo
modo, todos esses princípios pressupõe a validade do princípio de
identidade. Logo mais, veremos melhor uma versão didática desse tipo de
argumento e como ele é usado e preenchido nos argumentos presentes em
uma parte do poema de Parmênides.
21
Para certos/as intérpretes, Parmênides teria sido o primeiro a introduzir no discurso filosófico
público o padrão dedutivo ou demonstrativo já existente nas ciências matemáticas. Para
outros/as, ele teria criado pela primeira vez esse padrão, não apenas para a filosofia, mas
também para as ciências matemáticas.
94 Nazareno Eduardo de Almeida
É impressionante que uma filosofia inicialmente paradoxal ou
contraintuitiva (escrita na forma de um poema) seja considerada como o
primeiro momento de nascimento explícito de três princípios lógicos que
foram denominados, no século XVIII, como ‘leis fundamentais do
pensamento’, princípios que são justamente: o princípio do terceiro excluído,
o princípio de não-contradição e o princípio de identidade. Somente na
lógica do século XX surgiram propostas de sistemas lógicos em que esses
princípios foram colocados em questão. Um dos proponentes desses
sistemas lógicos, o filósofo, lógico e historiador da lógica polonês Jan
Lukasiewicz, chamou os sistemas lógicos que assumiam esses princípios
como fundamentais de ‘lógica aristotélica’; justamente ao propor a
construção de sistemas de lógica não-aristotélicos. É por conta dessa
proposta que Lukasiewicz apresenta sua leitura crítica de alguns capítulos do
Livro IV da Metafísica, leitura sobre a qual ainda teremos de tratar na parte
deste livro dedicada à ontologia de Aristóteles. Tomando essa caracterização
da história da lógica apresentada por Lukasiewicz, podemos acrescentar que
a origem da lógica de espírito aristotélico se encontra justamente na lógica
que inicialmente é aplicada por Parmênides em sua instauração da
ontologia. Neste sentido e com poucas exceções, a história da lógica até o
século XX foi uma história da lógica parmenídica e não apenas aristotélica.
O importante dessas considerações consiste em ter em mente um fato
de dupla face. De um lado, a filosofia de Parmênides foi seguida
rigorosamente por poucos filósofos posteriores. A rigor, apenas pelo seu
discípulo direto, Zenão de Eleia, e por Melisso de Samos, bem como,
segundo alguns/algumas intérpretes, parcialmente pela Escola dos
Megáricos. Isso não causa espanto, uma vez que, em seu conteúdo mais
estrito, foi considerada uma filosofia demasiadamente paradoxal e contrária
às intuições do senso comum. De outro lado, porém, a filosofia de
Parmênides será constantemente retomada (direta ou indiretamente) por
quase todas as filosofias posteriores. Essa referência constante, como
indicamos antes, se deve ao fato de ter instituído a ontologia como novo
paradigma da filosofia e especialmente da metafísica antigas, e essa
instauração se dá (i) através da introdução do vocabulário do ser (e do não-
ser), (ii) da introdução da relação entre os conceitos de ser, verdade e
identidade; e, por fim, (iii) da introdução do método axiomático de
argumentação. Os efeitos de seu pensamento são de muitas formas visíveis
nos filósofos e sofistas que o sucedem, bem como nas filosofias de Platão,
A origem da ontologia na metafísica grega 95
Aristóteles, dos estoicos e dos neoplatônicos, ou seja, em todos os momentos
decisivos da metafísica dentro da história da filosofia antiga. Em outras
palavras, se poucos depois de Parmênides defenderam sua concepção do ser,
quase todos se sentiram compelidos a constituir algum tipo de concepção
do ser. Assim, mesmo quando é criticado, Parmênides se torna um ponto de
referência para quase toda a filosofia antiga e, portanto, para toda a
metafísica antiga que o sucede; o que conduz, indiretamente, os efeitos de seu
pensamento a boa parte da metafísica posterior.
4. Exposição geral da ontologia de Parmênides
4.1. Os dois (ou três) caminhos de investigação da verdade, o postulado-
imperativo da identidade entre pensar e ser e a diferenciação entre
pensar, perceber, aparecer e ser
A – Os dois (ou três) caminhos de investigação da verdade
Como já dissemos no texto básico, a parte do poema de Parmênides
chamada de caminho da verdade se inicia no fragmento 2. Convém citar
novamente o fragmento para começarmos a exposição da ontologia de
Parmênides. Eis a tradução já apresentada acima, com itálicos
acrescentados:
Então vamos! Eu te falarei, e tu, escutando a narrativa (mython),
acolhe-a; os únicos caminhos (hodoi) de investigação que há para
pensar (noêsai): de um lado, que <algo> é e que não é <possível> não
ser, da persuasão é a via (pois acompanha a Verdade); [5] de outro
lado, que <algo> não é e é necessário não ser; esta eu te indico ser
vereda de todo insondável: pois nem conhecerias o não-ser (to mê
eon) (pois isto não é factível) nem o poderias indicar.
Inicialmente, a deusa convoca Parmênides a escutar e acolher sua
narrativa (mythos). É interessante notar o uso do termo ‘mythos’,
especialmente em se tratando de um poema onde emergem explicitamente
na filosofia não apenas a ontologia, mas também a lógica dedutiva como
96 Nazareno Eduardo de Almeida
parâmetro de racionalidade para a argumentação filosófica. Isso nos indica
que devemos ser cautelosos/as ao assumir a concepção comum segundo a
qual o nascimento da filosofia seria a passagem do mito ao logos (razão).
Embora esta concepção não esteja equivocada de todo, é preciso
percebermos que essa passagem não é abrupta, mas sim como um processo
gradual, processo este que não exclui do discurso filosófico greco-romano (e
posterior) o elemento religioso ou teológico, a partir do qual esse discurso
surgiu no mundo antigo.
Relacionado a este ponto, há quem diga que o uso da forma poético-
religiosa por Parmênides seria apenas um recurso literário-retórico a fim de
tornar mais acessível um pensamento de caráter lógico e ontológico
abstrato. Daí se diz que o poema de Parmênides seria um ‘poema didático’.
Embora esta expressão tem um significado profundo no contexto cultural da
Grécia antiga, mais prudente é vermos que Parmênides realmente entende
que o conteúdo de seu pensamento compartilha com a poesia anterior
(especialmente de Homero e Hesíodo) um tipo de inspiração divina,
apresentando, sim, algo que é similar a uma revelação que está acima das
opiniões do senso comum.22
Assim, longe de estranharmos o uso do conceito de mito (narrativa
ou relato poético com inspiração divina), devemos entender que
Parmênides participa de uma apropriação criativa e transformadora do
discurso mitológico por parte do discurso filosófico, uma apropriação que,
apesar da existência de pensadores agnósticos e ateus já na antiguidade, não
cessa de ocorrer ao longo de boa parte da história da filosofia antiga e
posterior. Independente deste ponto, cumpre notar também que o
nascimento da ontologia em Parmênides é marcado por uma pretensão que
atravessará boa parte da história da metafísica antiga e posterior: ser capaz
de apresentar uma teoria desde um ponto de vista universal (muitas vezes
equivalente ao ponto de vista divino) que ultrapassa o conflito das opiniões
presentes no senso comum e mesmo no campo dos debates filosóficos.
O segundo aspecto contido na tradução do fragmento 2 acima
apresentada se encontra em dois conceitos presentes em sua segunda linha:
o conceito de ‘caminhos de investigação’ (hodos didzêsios) e ‘pensar’ (noêsai).
22
Malgrado as grandes diferenças de conteúdo, um espírito similar de crítica ao senso comum (e,
por isso, de elevação acima deste) se encontra também no pensamento de Heráclito e de outros
filósofos pré-socráticos anteriores e posteriores a Parmênides. É importante marcar isso para
percebermos que a filosofia de Parmênides não apenas rompe com as filosofias anteriores e de
sua época, mas também possui diversos pontos de convergência com elas, mesmo que com um
conteúdo diferente.
A origem da ontologia na metafísica grega 97
No que concerne ao primeiro conceito, encontramos pela primeira vez de
modo claro na história da filosofia a noção de método. 23 Obviamente o
termo ‘caminho’ não é usado em sua acepção literal como um percurso que
podemos fazer fisicamente, mas em um sentido que indica um modo de
pensar sobre algo. Esse sentido é marcado justamente pelo acréscimo da
noção de ‘investigação’ ao substantivo ‘caminho’. O termo ‘método’, cuja
aparição explícita ocorre somente em Platão, etimologicamente, é formado
pela união do prefixo grego ‘meta’ e do substantivo ‘hodos’, significando,
assim, em seu sentido etimológico ‘caminho (hodos) para (meta)’. Embora o
termo ‘método’ não apareça no fragmento 2 citado acima, a noção de
‘caminho de investigação’ marca claramente a primeira ideia de exposição de
um método enquanto caminho de investigação para se tentar alcançar a
verdade, algo que para nós se tornou mais familiar a partir da filosofia de
Descartes.
O segundo conceito presente nesta linha do fragmento, como
mencionado há pouco, é o conceito de ‘pensar’. Logo mais discorreremos
um pouco sobre esse conceito por ocasião da interpretação do fragmento 3.
Mesmo assim, é importante notar que já na primeira linha propriamente
dita do caminho da verdade, esse conceito é mencionado como sendo
aquele tipo de capacidade mental humana que deve “percorrer” um dos dois
caminhos apontados pela deusa no restante do fragmento 2. A rigor,
costumamos traduzir o verbo ‘noein’ – que aparece na linha em discussão na
forma conjugada do infinitivo aoristo ‘noêsai’ – por ‘pensar’ unicamente por
certa comodidade de compreensão e questões específicas de tradução que
não nos interessam neste momento.
Todavia, a amplitude e variedade de significados com que
empregamos modernamente a palavra ‘pensar’ ou ‘pensamento’ não é
adequada para captar a especificidade do uso da noção filosófica grega
expressa pelo verbo ‘noein’ e suas formas cognatas. Apesar de não podermos
dizer que se trata propriamente de um termo técnico, os significados do
termo ‘noein’ e suas formas cognatas na filosofia grega apontam mais para
algo que poderíamos entender como sinônimo de ‘razão’ ou ‘pensamento
racional’. Note-se que desse verbo grego (e suas formas substantivas)
surgirão, na transmissão latina da filosofia grega, os conceitos de intelecto,
inteligência e inteligível, estando, por isso, associado à origem do conceito de
23
Este “espírito metodológico” já estava implícito nos pensadores pré-socráticos anteriores e
aparece de modo mais proeminente em Heráclito. Todavia, é somente no poema de
Parmênides que o termo ‘caminho’ é usado explicitamente em uma acepção metodológica.
98 Nazareno Eduardo de Almeida
razão e racionalidade teórica, enquanto capacidade de pensar através de
conceitos universais e padrões lógicos abstratos. Não é difícil de perceber,
portanto, que o termo grego ‘noein’ está na origem dos conceitos que
marcam aquilo que seria assumido como a forma tipicamente humana de
pensar para boa parte da história da filosofia e mesmo da ciência. Tudo isso
é dito para marcarmos desde o início que o fragmento não está se referindo
ao conceito de pensamento em sua significação mais ampla, que inclui os
atos de imaginar, lembrar, opinar, refletir etc. Assim, em termos gerais e
didáticos, podemos dizer que a noção de ‘pensar’ que já aparece no início do
caminho da verdade aponta para um processo mental de entendimento e
raciocínio que, se ou quando bem-sucedido, termina na apreensão e
compreensão de alguma verdade que pode ser expressa discursivamente.
Mas passemos à análise dos dois caminhos de investigação
propriamente ditos. Como já indicado antes, o primeiro deles é o caminho
do ser, caminho que é exatamente aquele que se identifica com a
denominação desta parte do poema pelo nome de ‘caminho da verdade’. Ele
é apresentado nas linhas 3-4 do fragmento 2:
de um lado, que <algo> é e que não é <possível> não ser, da persuasão
é a via (pois acompanha a Verdade);
Note-se, primeiramente, que duas palavras foram acrescentadas ao
texto original (acréscimos que ocorrem nos parênteses angulares ‘<’, ‘>’).
Não podemos nos deter demais nas razões para esses acréscimos.
Resumidamente, o acréscimo do termo ‘algo’ na expressão literal ‘que é’ se
deve à ausência de um sujeito explícito da expressão, uma vez que é natural
perguntarmos diante da expressão ‘que é’: “mas o que é?” Inúmeras
propostas de interpretação já foram apresentadas para essa ausência,
inclusive a proposta de interpretação segundo a qual não haveria
necessidade de introduzirmos algum sujeito para compreender o sentido da
expressão; entendendo-a, assim, na forma de um verbo impessoal similar
aos verbos ‘chover’ ou ‘nevar’.
Dentre essas propostas, a mais comum até tempos recentes era a de
suplementar o sujeito oculto pelas palavras ‘ser’ ou ‘ente’, de modo que
teríamos, na primeira linha citada, a seguinte versão: “de um lado, que <o
ser/ente> é e que não é <possível> não ser”. Diversas críticas foram
A origem da ontologia na metafísica grega 99
apresentadas sobre esta interpretação, em especial a crítica segundo a qual o
fragmento está nos apresentando ainda caminhos para investigação e não o
resultado dessa investigação. De fato, ao final da exploração deste caminho,
a deusa nos mostrará que o ser é o objeto de investigação que preenche de
modo adequado o sujeito implícito na expressão ‘que é’. A proposta
interpretativa (que adoto aqui) de introduzir o termo ‘algo’ no lugar do
sujeito implícito na expressão ‘que é’ resolve essa crítica, para além de ter
razões de ordem gramatical que não convém aludir aqui. Tal proposta foi
apresentada e fundamentada por Allan Coxon, um dos principais
intérpretes recentes de Parmênides, em uma obra que se tornou
indispensável para quem queira estudar a fundo o pensamento deste pré-
socrático.24
O segundo acréscimo nesta mesma linha é o da palavra ‘possível’.
Também não é possível nem conveniente em um texto introdutório nos
determos nas razões que fundamentam parte dos/das intérpretes e
tradutores/as a propor este acréscimo. Dentre as razões mais evidentes,
encontra-se o fato de a enunciação do segundo caminho – sobre o qual
ainda falaremos logo mais – conter explicitamente a expressão ‘é necessário’.
Outra razão mais filosófica (relacionada com partes do fragmento 8 e já
mencionada no texto básico deste capítulo) consiste no fato de a expressão
‘não é <possível> não ser’ equivaler (em termos ontológicos e lógicos) à
expressão ‘necessariamente ser’. Em outras palavras, não basta que o
caminho investigue ‘que <algo> é’, mas também que este algo
necessariamente é. Isso indica uma relação forte entre as noções de ser e de
necessidade, uma relação que perpassa boa parte da ontologia e da
metafísica posteriores. Em suma, o primeiro caminho de investigação para
podermos pensar algo indica que devemos pensar que algo é e que
necessariamente é (= não é possível não ser).
Por fim, na perspectiva da deusa, a linha do fragmento que se segue à
anteriormente comentada mostra que este é o caminho correto de
investigação para “pensar” algo, o que se exprime quando ela diz: “da
persuasão é a via (pois acompanha a Verdade)”. Nesta linha, cumpre
enfatizar a noção epistemológica de ‘persuasão’, bem como a noção lógica e,
sobretudo, ontológica de ‘Verdade’ (com inicial maiúscula no original). A
noção de persuasão é importante porque ela aponta para um tipo de estado
24
COXON, Allan. The fragments of Parmenides. Las Vegas/Zurique/Atenas: Parmenides
Publishing, 2009 (1986), p. 290-92.
100 Nazareno Eduardo de Almeida
mental (cognitivo) e epistemológico que podemos caracterizar como:
convencer-se por meio de argumentos racionais que algum discurso sobre algo
é verdadeiro. Segundo a deusa, é somente neste caminho que podemos
atingir este estado mental e epistemológico.
A explicação do uso da noção de persuasão para qualificar este
primeiro caminho se encontra justamente no uso da noção de verdade no
final desta linha. Note-se, porém, que a palavra é escrita com inicial
maiúscula, ou seja, ‘Verdade’. Como já assinalaram diversos/as intérpretes, a
noção de verdade aparece aqui (como em outras partes do poema) não
apenas como um conceito em sentido lógico, mas também e talvez
sobretudo em sentido ontológico. Em sentido lógico, a verdade é uma
propriedade presente primariamente em frases, enunciados, discursos ou
pensamentos. Esse é o sentido implícito na expressão cotidiana ‘dizer a
verdade’. De modo complementar, em seu sentido ontológico, a verdade
aponta para aquilo que entendemos como sinônimo do conceito de
realidade. É justamente no poema de Parmênides que começa a emergir a
noção metafísica e ontológica (e não apenas lógica) segundo a qual ‘dizer a
verdade’ significa dizer as coisas tal como elas são em si mesmas. Assim, esse
caminho é aquele que nos permite atingir o estado mental (cognitivo) e
epistemológico da persuasão porque é o caminho que acompanha a verdade
enquanto sinônimo da realidade (das coisas tal como elas são em si
mesmas).
Mas passemos à exposição do segundo caminho apontado no
fragmento 2, tal como o apresentam as linhas 5-8 deste fragmento:
de outro lado, que <algo> não é e é necessário não ser; esta eu te
indico ser vereda de todo insondável: pois nem conhecerias o não-ser
(to mê eon) (pois isto não é factível) nem o poderias indicar.
Diante do que já expusemos sobre o primeiro caminho, a análise
deste segundo caminho se torna mais fácil. Como já dissemos, este caminho
tem sido denominado como ‘caminho do não-ser’. Ele é evidentemente
apresentado de modo negativo. Embora possamos começar uma
investigação através desse caminho, como vários/as intérpretes já
assinalaram, essa investigação não conduzirá nosso “pensamento” à sua
finalidade última: a verdade/realidade. Isso é assim porque através dessa via
A origem da ontologia na metafísica grega 101
nosso pensamento está, literalmente, em estado de errância, uma vez que
partir da suposição de que algo não é (e necessariamente não é) significa, em
última instância, não pensar nada e, por isso, pensar coisa nenhuma. Em
suma, este é um caminho que não apenas não nos conduz à verdade, mas, a
rigor, também não nos leva a lugar nenhum ou, mais literalmente, nos
conduz a coisa nenhuma. Esse lugar nenhum e essa coisa nenhuma
correspondem ao que podemos chamar, de um ponto de vista lógico e
epistemológico, de falsidade e contradição.
Por mais estranho que pareça à primeira vista, no senso comum, o
pensamento humano adentra diversas vezes neste caminho sem fim ou cujo
fim é a falsidade e a contradição. Dizemos que algo era no passado, mas não
é mais no presente. Dizemos ainda que algo será ou poderá ser no futuro,
mas ainda não é no presente. E concebemos, mesmo implicitamente, que
tais coisas passadas ou futuras necessariamente não são no momento
presente. Além disso, dizemos que certo objeto x não é tal ou tal; e também,
por vezes, que certo objeto x necessariamente não é tal e tal. Em suma, os
usos comuns do verbo ‘ser’ e de sua forma negativa nos conduzem,
inevitavelmente, a pensar que algo não é e que necessariamente não é. Neste
ponto, percebemos em que sentido o poema de Parmênides está nos
apresentando os conceitos de ser e não-ser (ou nada) de modo distinto
daquele usado na língua grega anterior e contemporânea a ele, inclusive a
língua grega usada na filosofia.
Embora tomemos esses modos de pensar como válidos, na
perspectiva filosófica defendida no poema de Parmênides esse modo de
pensar e falar é interditado como algo que nos conduz à falsidade e à
contradição. A explicação de como esse caminho nos leva ao erro se
encontra na parte final da citação acima. Essa explicação é que não podemos
conhecer nem podemos dizer (indicar, nomear) o não-ser (to mê eon).
Assim, adentrar pelo caminho que afirma que algo não é e é necessário não
ser, segundo as palavras da deusa transmitidas por Parmênides, tem como
consequência afirmar uma contradição flagrante: que o não-ser é e,
inversamente, que o ser não é. Esse é o impasse que se forma entre a
proposta do poema e nossos hábitos de pensamento e linguagem. Ainda
veremos que Platão procurará conciliar nossos hábitos comuns de pensar e
falar de algo que não é com a possibilidade de falarmos e conhecermos o ser
(a realidade). Isso nos mostra, sob um novo ângulo, como o poema de
Parmênides nos apresenta uma filosofia paradoxal ou contraintuitiva. No
102 Nazareno Eduardo de Almeida
momento, não nos cabe dissipar ou tentar afastar essa estranheza, mas
compreendê-la.
O fragmento 2, portanto, nos apresenta os dois únicos caminhos que,
inicialmente, parecem ser possíveis para nosso pensamento. Contudo, destes
dois, apenas um pode satisfazer aquilo que nosso pensamento (racional)
deseja por princípio: chegar a apreender e compreender a verdade
(realidade) de modo definitivo. Em um trocadilho linguístico de espírito
didático, podemos dizer que no fragmento 2 a deusa nos apresenta uma via
inevitável – se queremos alcançar o que está pressuposto como impulso
intrínseco de nosso pensamento (a verdade ou realidade) – e uma via
inviável – justamente porque nos conduz ao oposto do impulso inerente ao
pensamento humano de alcançar a verdade e manifestá-la no nível do
conhecimento (epistemológico) e do discurso (lógico).
Apesar disso, o poema de Parmênides parece nos indicar que os
mortais (o “senso comum”), em sua quase totalidade, acabam por assumir o
segundo caminho. Essa interpretação se apoia no que é considerada a
segunda parte do fragmento 6. Para percebermos que o contraste entre o
primeiro caminho e o segundo retorna neste fragmento, vamos apresentá-lo
em seu todo, deixando a análise de sua primeira parte para a próxima seção:
É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam, pois <o> ser é (esti gar
einai) e <o> nada (mêden) não é; isto eu te ordeno considerar, por
este primeiro caminho de investigação tu <começarás>; e depois por
aquele dos mortais que nada sabem, [5] errantes, bicéfalos/duplas-
cabeças (dikranoi): pois a falta de entendimento neles dirige em seu
íntimo errante pensamento (noon), pois se conduzem tal qual surdos
e cegos, aturdidos; multidão sem-discernimento, eles consideram
como sendo o mesmo (tauton) ser e não-ser e <em seguida> como
não o mesmo; e de tudo é reversível o caminho.
A mencionada segunda parte do fragmento começa na linha 4. Nela,
vemos que a deusa descreve a situação do pensamento dos mortais de forma
bastante negativa. Ao final do fragmento, esse estado “errante” do
pensamento dos seres humanos no nível do senso comum é explicado:
tomam o ser e o não-ser como sendo o mesmo, mas em seguida dizem que
não são o mesmo.
A origem da ontologia na metafísica grega 103
Neste ponto, precisamos fazer uma parada e analisar uma
interpretação inicialmente comum sobre a segunda parte do fragmento 6.
Uma parte dos/das intérpretes consideram que nesta parte do poema a
deusa (através de Parmênides) apresentaria um terceiro caminho distinto do
caminho do ser e do caminho do não-ser que foram expostos no fragmento
2. Outra parte dos/das intérpretes (com os quais me alinho) considera que o
caminho aqui descrito é o mesmo que aquele segundo caminho (“a via
inviável”) exposta no fragmento 2. A interpretação dos três caminhos tem
como base textual a aceitação da proposta de Hermann Diels como uma
emenda para preencher uma lacuna no manuscrito. O estudioso propõe
preencher essa lacuna pelo termo grego ‘eirgô’, que usualmente é traduzido
por ‘te afasto’ ou ‘te afastarás’. Com essa leitura do texto, a segunda parte do
fragmento 6 acrescentaria um outro caminho para além dos dois indicados
no fragmento 2. Em contraste com essa interpretação, Alexander Nehamas e
Néstor Luis Cordero apresentam boas razões para preencher a lacuna do
manuscrito com o termo grego ‘arxô’ ou ‘arxei’, que são traduzíveis,
respectivamente, por ‘começarei’ e ‘começarás’. 25 Apesar de parecer um
detalhe, com essa emenda a segunda parte do fragmento 6 está apenas
descrevendo o fato de os mortais (o “senso comum”) usualmente acabarem
por percorrer o segundo caminho, ou seja, o caminho do não-ser; de tal
modo que é preservada a interpretação do fragmento 2, de acordo com o
qual só há duas vias para a investigação da verdade, sendo a primeira a
correta e a segunda a incorreta.
Na interpretação que vê no poema apenas dois caminhos (e não três),
quando os mortais tomam o caminho do não-ser, assumindo que algo não é
e que necessariamente não é, é inevitável que se acabe confundindo ser e
não-ser, embora, se perguntadas, essas pessoas digam que são conceitos
necessariamente distintos. Essa confusão, que será melhor entendida na
próxima seção do texto, consiste no fato de que, para Parmênides (ou para a
deusa), todo pensamento já se dirige necessariamente para algo que é, ou
seja, só é possível pensar algo porque já pressupomos que esse algo possui
algum ser. Assim, quando adentramos o caminho que assume que algo não
é, já estamos confundindo ser e não-ser, mesmo que em um momento
posterior venhamos a dizer que não se deve confundi-los. É por isso que o
fragmento citado nos apresenta a forma como os mortais exercem seu
25
Uma extensa defesa desta interpretação por parte do segundo autor mencionado se encontra
em CORDERO, Néstor Luis. Sendo, se é: a tese de Parmênides; trad. Eduardo Wolf. São Paulo:
Odysseus, 2011.
104 Nazareno Eduardo de Almeida
pensamento como “errante”, caracterizando essa errância como um tipo de
cegueira, surdez e falta de discernimento. Como dissemos, pressupor que
algo não é e que necessariamente não é equivale a não dirigir nosso
pensamento para a realidade, uma vez que, em última instância, tentamos
falar de coisas que não existem (= que não são).
É claro que até os nossos dias, nossa prática comum de falar de
objetos não existentes na realidade é um tema de vivo e intenso debate no
campo da metafísica e da ontologia. Mesmo que não concordemos com a
“solução” um tanto estranha (porque radical) defendida no poema de
Parmênides, não podemos negar que esse problema só passa a existir
justamente através deste texto.
B – O postulado imperativo da identidade entre pensar e ser
Aquilo que acabamos de ver sobre os dois caminhos de investigação
(ou três, conforme uma parte das interpretações do poema), mostrou apenas
um tipo de justificação negativa ou crítica para defender que o primeiro
caminho é aquele que nos promete alcançar a verdade como finalidade
natural do impulso intrínseco de nosso pensamento. A justificação positiva
(ou propositiva) do apelo da deusa para escolhermos o primeiro caminho se
apresenta inicialmente naquele fragmento numerado como o terceiro
pelos/as intérpretes modernos do poema. A brevidade deste fragmento é
inversamente proporcional à sua importância na história da metafísica e da
ontologia, não apenas antiga quanto moderna e contemporânea. Eis sua
tradução mais simples:
“pois o mesmo é pensar e ser.”
Os ecos dessa breve frase se fazem ouvir de distintos modos em
Górgias, Protágoras, Platão, Aristóteles, Plotino, Avicena, Tomás de Aquino,
Descartes, Kant, Hegel, Nietzsche, Frege e Tarski, para citar apenas os mais
evidentes pensadores em que ela terá novas versões, embora esteja
implicitamente presente. Deixando essa posteridade de lado, podemos
perceber a estranheza presente neste enunciado parafraseando-o do seguinte
modo:
A origem da ontologia na metafísica grega 105
pois o mesmo é pensar e aquilo que é pensado
Nesta versão, percebemos algo paradoxal porque, no senso comum,
usualmente pressupomos como óbvio que deve haver uma diferença entre o
processo do pensamento e o objeto que é visado por este processo. Em
contraste com este pressuposto, a frase nos diz que pensamento e pensado
são idênticos ou, na linguagem comum, “são a mesma coisa”. Se tomamos a
sentença a partir de nossa intuição comum, então ela expressa algo
impossível, pois supomos (quando paramos para pensar) que o pensamento
e o objeto pensado são “coisas” distintas. Entendemos facilmente essa
diferença com um gracejo filosófico grego segundo o qual quando dizemos a
palavra ‘leão’, um leão não sai de nossa boca, ou seja, parece óbvio que há
uma diferença entre as palavras (e os pensamentos nelas expressos) e as
coisas às quais essas palavras se referem. E para tornar mais grave a
estranheza do que é dito nesta frase, ela é expressa no tom categórico de
uma afirmação e não no tom conjectural de uma hipótese. Este tom
categórico é visível pela conjunção explicativa ‘pois’ que está em seu início.
Para entendermos adequadamente esse tom categórico, é importante
notarmos que essa frase possui um duplo sentido: de um lado, ela se
apresenta como um postulado, e, de outro, como um imperativo. Um
postulado, segundo a versão usual da matemática, é um enunciado ou
proposição que é assumida como verdadeira para que as demonstrações
matemáticas possam ser realizadas. Se não assumirmos como verdadeiro
um postulado, então as demonstrações feitas a partir dele não são possíveis,
ou seja, se queremos realizar alguma demonstração matemática, precisamos
assumir como verdadeiro tal ou qual postulado. No contexto do poema, isso
significa: do ponto de vista das demonstrações que a deusa apresentará
sobre as características intrínsecas do ser, a identidade entre pensar e ser (o
que é pensado) precisa ser tomada como um postulado, de modo similar ao
papel dos postulados nas demonstrações matemáticas. Contudo, do ponto
de vista do pensamento comum (nas palavras do poema “dos mortais”), esta
sentença deve ser vista como um imperativo a ser perseguido
metodologicamente por nosso pensamento. Desta perspectiva, a sentença
acima pode ser assim parafraseada:
pois deve ser o mesmo pensar e ser
106 Nazareno Eduardo de Almeida
No contexto do poema e do ponto de vista de quem começa a
investigação pelo caminho do ser, isso significa que nosso pensamento (o
pensamento dos mortais) – na maioria das vezes “errante” – deve seguir pelo
caminho do ser para que possamos realizar essa sentença como uma
finalidade (um dever ser epistemológico) de nossa investigação. Não se trata
de uma tarefa simples, uma vez que, como sugere o poema, devemos sair de
nossos modos comuns de pensar em direção a uma perspectiva que, a rigor,
é um ponto de vista usual apenas para os deuses, representados aqui pela
deusa que conduz a narrativa de quase todo o poema.
Portanto, a sentença “pois o mesmo é pensar e ser” é tanto um
postulado que está pressuposto como verdadeiro nas demonstrações sobre
as características intrínsecas do ser (situadas na parte central do fragmento 8
e sobre as quais ainda falaremos), quanto é um imperativo para nós que
supostamente queremos atingir a verdade que é demonstrada pela deusa.
Neste sentido, compreendemos melhor a afirmação de Richard McKirahan
quando propõe que um poema de espírito inegavelmente lógico pode ser
entendido, ao mesmo tempo, como um tipo de revelação divina, na medida
em que este poema está “tentando descrever o poder divino da lógica.” 26 De
fato, há algo de “divino” no poder da lógica, uma vez que, do ponto de vista
racional, uma vez que uma demonstração – mesmo versando sobre algo
extremamente abstrato, como no caso das demonstrações presentes no
poema de Parmênides – tem um poder análogo ao poder dos fatos, ou, no
contexto grego, um poder similar ao dos deuses que determinam o mundo e
a existência humana dentro dele.
Feitos esses comentários gerais, retomemos o fio narrativo de nossa
exposição para chegar a uma conclusão. A relação (aceita pela maioria
dos/das intérpretes modernos) entre os fragmentos 2 e 3 é o de um tipo de
justificação positiva do primeiro caminho. No presente contexto, isso
significa: se queremos atingir a verdade (enquanto finalidade última do
pensamento racional), então devemos assumir que a verdade só pode ser
encontrada quando pensar (noein) e ser (einai) são idênticos. Em outras
palavras, a verdade do pensamento racional é sua identidade com o que ele
pensa. No poema de Parmênides, portanto, a verdade é a identidade (sem
restos ou diferenças) entre o pensamento e aquilo que é por ele pensado (o ser).
26
McKIRAHAN, Richard. A filosofia antes de Sócrates; trad. Eduardo Wolf Pereira. São Paulo:
Paulus, 2013, p. 265.
A origem da ontologia na metafísica grega 107
Como já indicamos no texto básico, não devemos confundir a noção de
verdade como identidade com a noção mais comum a partir de Platão e
Aristóteles: a da verdade como correspondência ou adequação entre o
pensamento e o que é pensado. Logo mais, veremos que, no diálogo Sofista,
Platão apresenta a primeira versão da noção de verdade como
correspondência na medida em que enfraquece a noção de verdade como
identidade explicitamente remetida à filosofia de Parmênides.27
Retomando a análise de Parmênides, temos duas confirmações dessa
interpretação em outros momentos de seu poema. O primeiro momento já
foi citado há pouco: trata-se da primeira parte do fragmento 6. Retomemos
esta parte para entender sua relação com o fragmento 3:
“É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam, pois <o> ser é (esti
gar einai) e <o> nada (mêden) não é; isto eu te ordeno considerar,
por este primeiro caminho de investigação <tu começarás>.”
A expressão inicial ‘é necessário’ foi enfatizada para marcar o caráter
imperativo presente na identidade entre pensar e ser, incluindo nesta
identidade o dizer, pois o indizível e impensável, segundo o poema, é
justamente o não-ser. No presente contexto poderíamos facilmente
acrescentar nesta frase inicial do trecho citado:
É necessário que o dizer, o pensar e o ser sejam <o mesmo>
E a explicação dessa identidade entre pensar, ser e dizer é justificada
por algo que podemos considerar como o axioma que será tomado como
fundamental para as demonstrações das características do ser na parte
central do fragmento 8. Este axioma é justamente um tipo de tautologia que
segue imediatamente o imperativo da identidade entre pensar, dizer e ser, a
saber: “pois <o> ser é (esti gar einai) e <o> nada não é (mêden ouk esti)”.
Aqui já podemos entrever algo que teremos de comentar depois: é por causa
da identidade do ser (que nos obriga a aceitar como verdade a inexistência
do não-ser) que devemos buscar a identidade do pensar e do ser na
27
A noção de verdade como identidade ressurge na filosofia recente a partir de Frege e das
análises recentes de sua crítica à noção de verdade como correspondência, mas sobre isso não
temos como falar neste texto.
108 Nazareno Eduardo de Almeida
linguagem, caso queiramos alcançar a verdade, entendida no poema como
sinônimo de realidade e, pela primeira vez na história da filosofia, entendida
como equivalente à noção de ser em si mesmo. Em uma tradução “lógica” do
argumento, a posição textual se inverte, ou seja, assumindo como verdade
que o ser é e o nada não é, então é necessário que o pensar, o dizer e o ser
sejam idênticos. Por fim, como nos diz o final da citação, a deusa ordena
começar por este caminho.
Mas para além da primeira parte do fragmento 6, encontramos ainda
uma outra parte do poema na qual se explicita a identidade de pensar e ser,
expressa inicialmente no fragmento 3. Trata-se do seguinte trecho do
fragmento 8 (linhas 34-38):
“O mesmo é pensar (noein) e aquilo em vista do que é
pensamento/pensado (noêma). Pois sem o ente (eontos), graças ao
qual <o pensamento> é enunciado em palavra, não encontrarás o
pensar (noein): pois nada era, é ou será fora do ente/do que-é
(eontos), de modo que Moira (Destino) o encadeou a ser
inteiramente imóvel.”
A importância dessa passagem para entendermos o postulado-
imperativo da identidade entre pensar e ser consiste no fato dela aparecer
depois que a deusa já apresentou as linhas gerais de suas demonstrações
sobre as características intrínsecas do ser, sobre as quais logo mais
falaremos. Feitas essas demonstrações, a deusa reitera que elas são
verdadeiras quando assumimos como um postulado geral dessas
demonstrações a identidade entre o pensar racional e aquilo que é pensado
(o ser em suas características intrínsecas). Na frase inicial do trecho citado,
temos a justificação do que antes dissemos: o ente é aquilo que é pensado.
Isso é assim porque o termo ‘noein’ (traduzido genericamente por ‘pensar’) é
ao mesmo tempo relacionado e diferenciado do termo ‘noêma’ (traduzido
aqui tanto por ‘pensamento’ ou ‘pensado’). Essa diferenciação aponta para a
distinção entre o ato ou processo mental do pensar e aquilo que é o objeto
ou conteúdo deste ato ou processo. Assim, depois de feitas as demonstrações
sobre as características do ser, torna-se evidente, dentro do contexto do
poema, que o ato ou processo mental do pensar se mostra idêntico ao que é
pensado por esse ato ou processo mental.
A origem da ontologia na metafísica grega 109
A justificativa dessa afirmação se encontra nas linhas seguintes da
citação acima: o ente é aquilo graças ao que o pensamento pode ser expresso
em palavras, o que equivale ao ‘dizer’ (legein) do início do fragmento 6. O
ser é a causa do dizer (com sentido e com verdade) porque não há nada fora
do ser. Em outras palavras: pensar é sempre pensar algo, pensar algo é
sempre pensar algo que é. Em termos ainda mais simples, na perspectiva do
poema: todo pensar é pensar direcionado ao ser. Assim, quando o pensar
não se dirige ao ser, ele “se perde”, está “errante”, ou seja, está no erro, na
falsidade e, no fundo, em contradição consigo mesmo porque contraria sua
finalidade intrínseca.
A sequência da citação justifica essa identidade pela atemporalidade
tanto do ser quanto do pensamento que o apreende, de tal modo que não
cabe dizer e pensar o ser usando o sentido temporal do verbo ‘ser’, “pois
nada era, é ou será fora do ente/do que-é (eontos)”. Como ainda teremos de
analisar mais adiante, essa atemporalidade do ser e do pensamento que o
apreende indica – provavelmente pela primeira vez na história da filosofia –
a distinção explícita entre o sentido temporal e o sentido atemporal do
termo ‘é’ na estrutura ‘S é P’. Neste momento, cumpre ressaltar que ao se
identificar com o ser (o pensado (noêma)), o pensamento se coloca fora do
tempo, uma vez que essa identidade entre o pensar e o pensado atinge a
própria identidade do ser em si mesmo, uma identidade que é sinônimo de
imutabilidade. Aliás, nas linhas finais da citação acima, essa atemporalidade
do ser (que se torna a atemporalidade do pensar que o atinge) é
explicitamente associada à completa imutabilidade através do que podemos
descrever como um tipo de justificação teológica encontrada na evocação da
deusa Moira: a deusa do destino que, dentre as suas descrições, foi
considerada como dominando inclusive a vida eterna dos deuses.28
À luz do que acabamos de ver de modo bastante rápido, estamos em
condições de compreender de que maneira o fragmento 3 justifica de forma
positiva que para o pensamento realizar sua finalidade intrínseca (alcançar a
verdade ou a realidade), ele precisa escolher o primeiro caminho, a saber:
que <algo> é e não é <possível> não ser (= necessariamente é). Esse é o
caminho que pode nos levar à “Verdade”, entendida como sinônimo da
realidade e como o ser como ele é em si mesmo. Esse caminho passa,
necessariamente, pela compreensão do axioma que nos diz: o ser é e o não-
28
Cf. BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico, vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 140-41.
Essas justificações teológicas ocorrem em vários momentos em que, no poema, são evocadas
diversas divindades, em geral associadas às noções de necessidade e lei.
110 Nazareno Eduardo de Almeida
ser (o nada) não é. Quem toma o outro caminho (que, de fato, é um
descaminho), acaba assumindo, mesmo sem sabê-lo, a contradição segundo
a qual o ser não é e o não-ser é. Conforme falamos na breve análise da
segunda parte do fragmento 6, este é o caminho mais fácil, que acaba por ser
tomado pela maioria dos seres humanos. E ele é também o caminho que não
nos conduz ao que naturalmente desejamos saber: a verdade. Mas enquanto
para a deusa a identidade entre pensar e ser (expressa no dizer verdadeiro) é
tomada como um tipo de postulado lógico das demonstrações que narra na
parte central do poema (porque inerente ao seu ponto de vista superior),
para nós, mortais, sempre inclinados ao caminho do não-ser, a identidade
entre pensar e ser é um imperativo epistemológico que precisamos assumir
como verdadeiro para podermos sair de nossa condição errante e confusa e
tentarmos nos aproximar do ponto de vista que está acima do conflito
errante das opiniões humanas.
C – A diferenciação entre pensar, perceber, aparecer e ser
A menção ao caminho usual dos mortais (que representa o modo de
pensar do senso comum) nos permite falar de outro tópico, de grande
importância para a filosofia a partir de Parmênides: a diferenciação entre
pensar e perceber, assim como entre aparecer (fenômeno) e ser. Boa parte
das filosofias posteriores a Parmênides irão se realizar tomando algum tipo
de posição sobre este tópico. Enquanto a separação entre pensar e perceber é
um tema mais ligado à epistemologia ou à filosofia da mente, a separação
entre aparecer (fenômeno) e ser é um tema eminentemente ontológico.
Contudo, tanto em Parmênides quanto em seus sucessores, estes dois temas
se mostram intimamente ligados.
A parte do poema onde a necessidade desta separação epistemológica
entre pensar e perceber e entre aparecer e ser se mostra de maneira mais
clara é no fragmento 7. Ei-lo:
“Pois de modo algum isto se imponha: serem os não-entes/as coisas
que não são (einai mê eonta); mas tu, afasta o pensamento (noêma)
deste caminho de investigação; nem o hábito de muita experiência
(ethos polypeiron) por este caminho te force a conduzir um olho sem
foco e ruidosos ouvido [5] e língua; antes, discerne pela razão (krinai
A origem da ontologia na metafísica grega 111
logo(i)) a controversa refutação/argumentação (elenchon) por mim
exposta.”
É consenso entre os/as intérpretes que este fragmento é um tipo de
preâmbulo ou introdução ao fragmento 8: a parte mais importante e mais
longa preservada do poema e na qual encontramos o núcleo da ontologia de
Parmênides. Sobre esta parte ainda teremos de falar logo mais. As duas
primeiras linhas do fragmento citado reiteram a proibição de não tomarmos
o segundo caminho, no qual se confundem ser e não-ser. Mas é a parte
destacada na citação que mais nos interessa neste momento. Nela, a deusa
nos adverte justamente para não tentarmos adentrar pelo caminho do não-
ser por causa do “hábito de muita experiência” (ethos polypeiron),
mencionando em seguida dois dos nossos sentidos: o ver e o ouvir, este
último diretamente associado à fala.
Em contraste com este “deixar-se levar” pela percepção para formar
nossos pensamentos, a deusa pede a Parmênides (e, portanto, a quem lê o
poema) que tome uma decisão unicamente pela razão (logô(i)) sobre a
argumentação por meio de refutação que compõe o núcleo do fragmento 8.
Como já indicamos no texto básico, essa argumentação por meio de
refutação se realiza através de um tipo de argumento que se tornou
conhecido como redução ao impossível ou redução ao absurdo. Por
conseguinte, conforme a parte frisada do fragmento 7, é somente na medida
em que nosso pensamento percorre o caminho do ser que ele se afasta da
percepção e, por isso, se torna capaz de apreender as características
intrínsecas do ser. Assim, é unicamente através do raciocínio lógico que o
pensamento humano se torna capaz de alcançar o ser, e não a partir da
percepção, uma vez que esta nos mostra unicamente coisas que são geradas
e se corrompem, que são divisíveis e descontínuas, que se transformam e são
diferentes umas das outras, características pertencentes aos objetos sensíveis
que serão justamente negadas ao ser em si mesmo no fragmento 8. Isso nos
mostra que o postulado-imperativo da identidade entre pensar e ser só pode
se realizar na medida em que afastamos nosso pensamento de nossa
sensação. Isso nos indica que o ser, necessariamente, é distinto do que
aparece em nossa percepção direta do mundo que nos cerca. A isso que
aparece em nossas sensações, a filosofia grega posterior a Parmênides
112 Nazareno Eduardo de Almeida
batizou pelo termo ‘o fenômeno’ (to phainomenon), o qual significa,
literalmente, ‘o que aparece’.
Para entendermos melhor essa separação entre ser e aparecer,
podemos usar um esclarecimento semântico e filosófico de Aristóteles a
respeito do conceito de fenômeno (Metafísica, Livro IV, cap. 6) e sobre o
qual falaremos no texto básico do último capítulo. Conforme este texto, o
que aparece em nossa percepção não é algo em si mesmo, mas algo que é
(existe) em relação a quem o percebe. Isso é assim porque não basta dizermos
que algo aparece, mas necessariamente temos de falar do que aparece para
quem aparece, como aparece, quando e enquanto aparece. Em outras
palavras: o fenômeno só existe na sua relação com quem o percebe: uma
relação que se manifesta no como, quando e enquanto o fenômeno aparece
para quem o percebe. Assim, se o ente não é o que aparece (fenômeno),
então o pensamento só pode se identificar com o ser na medida em que se
afasta da percepção ou se põe além dela. Com isso, ao estabelecer as
separações entre pensar e perceber e entre fenômeno e ser, Parmênides
institui a necessidade de uma instância metafísica, tanto a nível
epistemológico quanto ontológico: de um lado, a instância epistemológica do
pensar (noein) que pode e deve se separar do nível da percepção corpórea (e
das opiniões geradas por ela); e, de outro, a instância ontológica do ser que
está necessariamente separada do nível das aparências (dos fenômenos).
Por conseguinte, em termos gerais e aproximativos, podemos dizer
que a relação entre percepção e fenômeno se encontra no que podemos
chamar de nível físico, enquanto a relação de identidade que é necessário
alcançar entre pensar e ser se encontra no que podemos chamar de nível
metafísico. É somente neste segundo nível que se pode falar de
conhecimento em sentido estrito, ou seja, de conhecimento verdadeiro e
absolutamente seguro e definitivo, conhecimento obtido quando pensar e
ser (= o que é pensado) são idênticos.
Com isso, entendemos que uma das consequências do erro dos
mortais em tomar o caminho do não-ser consiste em confundir essas
instâncias, de tal modo que aplicam o conceito de ser aos objetos que
aparecem na percepção sensível imediata, ou seja, aplicam o conceito de ser
aos fenômenos e acabam por pressupor, de algum modo, que o não-ser é,
bem como que o ser, de algum modo, não é. Isso é facilmente exemplificado
pelo modo de falar ordinário, no qual dizemos que algo é agora assim, mas
não era antes, tanto quanto que algo que agora é tal ou qual não será deste
A origem da ontologia na metafísica grega 113
ou daquele modo no futuro. Como veremos, segundo a narrativa da deusa
no poema de Parmênides, o ser, em si mesmo, é necessariamente imutável.
E a partir dessa espécie de gênese do erro dos mortais,
compreendemos também uma das teses mais famosas e mais controversas
defendidas pelos discípulos de Parmênides: que, do ponto de vista
ontológico, o movimento, a transformação e a multiplicidade não existem
ou são ilusões. A mais célebre defesa dessa tese se encontra justamente nos
paradoxos de Zenão de Eleia, dentre os quais, o mais conhecido é o
paradoxo da impossibilidade de Aquiles (conhecido pelos gregos como um
rápido corredor) ultrapassar uma tartaruga (símbolo da lentidão). Assim, em
Parmênides temos o nascimento, no contexto da filosofia dita ocidental, da
distinção entre ser e movimento (= devir, mutabilidade, transformação, vir-a-
ser), pois as múltiplas coisas que nos aparecem (os fenômenos) estão sempre
em movimento e transformação.
Portanto, conforme Parmênides e seus seguidores (os chamados
eleatas e, segundo certos/as intérpretes, os megáricos), para termos algum
conhecimento do ser, é necessário separá-lo do aparecer e, por conseguinte,
do âmbito das múltiplas coisas sensíveis, as quais estão em constante
transformação e movimento. Comparadas com o objeto último do pensar (o
ser/o ente), todas essas coisas perceptíveis ou percebidas pelos cinco
sentidos são ilusórias, pois sobre elas não é possível alcançar um
conhecimento em sentido absoluto, dado que elas possuem características
opostas àquelas que, como veremos abaixo, pertencem unicamente ao ser
em si mesmo.
Ademais, esse esquema de separação entre ser e aparecer (devir) nos
mostra que a relação entre unidade e multiplicidade – que, como vimos no
primeiro capítulo, é o centro da henologia como início da metafísica grega –
é agora ressignificada para os termos da ontologia instaurada por
Parmênides: a unidade pertenceria unicamente ao ser, cabendo aos objetos
sensíveis a multiplicidade, uma vez que se diferenciam uns dos outros e sua
unidade é sempre algo provisório e precário. Logo mais, veremos que essa
unidade absoluta do ser em si mesmo é pela primeira vez na história da
filosofia determinada por Parmênides através do conceito de identidade.
Tendo essas observações em vista, podemos “desenhar” o seguinte
diagrama, em que as pontas caracterizam os termos metafísicos e o meio os
termos sensíveis (“físicos”):
114 Nazareno Eduardo de Almeida
Pensar ≠ Perceber = Aparecer ≠ Ser
Este diagrama mostra aquilo que estávamos dizendo acima sobre a
necessária separação entre pensar e perceber, e entre aparecer e ser, bem
como a necessidade do pensar, para alcançar o conhecimento e a verdade, se
tornar idêntico ao ser através de um tipo de “salto” por sobre o nível
perceptivo e fenomênico apresentado no centro do diagrama.
Este diagrama também é fundamental para entendermos várias das
perspectivas e polêmicas epistemológicas e ontológicas após Parmênides,
especialmente as de seus discípulos – Zenão de Eleia, Melisso de Samos e,
em certa medida, os megáricos – e de seus críticos e/ou continuadores –
especialmente Empédocles, Anaxágoras, Leucipo, Demócrito, Górgias,
Protágoras, Platão e Aristóteles. Nesses discípulos e sucessores, essas
correlações conceituais estabelecidas a partir do poema de Parmênides são,
de modos distintos, discutidas e analisadas. Essa posteridade das distinções
mencionadas nos mostram, sob um novo ângulo, a transformação
incontornável que a ontologia de Parmênides impôs a todo o pensamento
filosófico posterior.
4.2. As características intrínsecas do ser, a metodologia axiomática e a
identidade como característica fundamental
A – As características intrínsecas do ser
Agora que já vimos, rapidamente, como a deusa apresenta os dois
caminhos de investigação, rechaçando um deles como um caminho do erro
e da falsidade, podemos passar a uma análise panorâmica do mais célebre e
mais extenso dos fragmentos do poema de Parmênides: o fragmento 8.
Para podermos entender melhor os aspectos centrais deste
fragmento, convém retomarmos o fragmento 7 parcialmente discutido há
pouco, mas agora visto enquanto uma introdução geral do fragmento 8:
A origem da ontologia na metafísica grega 115
“Pois de modo algum isto se imponha: serem os não-entes/as coisas
que não são (einai mê eonta); mas tu, afasta o pensamento (noêma)
deste caminho de investigação; nem o hábito de muita experiência
(ethos polypeiron) por este caminho te force a conduzir um olho sem
foco e ruidosos ouvido [5] e língua; antes, discerne/julga pela
razão/discurso (krinai logo(i)) a controversa refutação/argumentação
(elenchon) por mim exposta.”
A primeira parte do fragmento reitera (conforme já indicado antes) a
proibição de tomar o segundo caminho de investigação, denominado de
caminho do não-ser. Na expressão propositalmente contraditória que
enunciamos antes, este caminho é uma via inviável, ou seja, em lugar de ser
um caminho, ele é, de fato, um descaminho, pois não conduz o pensamento
para sua finalidade: a verdade/realidade. A sequência do fragmento, porém,
é bastante elucidativa, pois nos diz que é justamente a “sedução” presente no
modo de pensar associado à percepção corpórea que nos leva a contrariar a
interdição enunciada no início do fragmento. Em outras palavras, é o hábito
(ethos) das múltiplas formas que se apresentam em nossa experiência
cotidiana que acaba por nos conduzir ao caminho do não-ser, que é o
caminho do erro e da contradição. No final do fragmento, a deusa apresenta
as condições ou “critérios” para acompanhá-la em suas demonstrações:
deixar para trás as supostas “evidências” do senso comum e julgar
unicamente pela razão (lógica) sua controversa argumentação/refutação
(elenchos). A palavra ‘elenchos’ passou a significar, a partir de Platão,
‘refutação’, mas também pode ser traduzida, em vários contextos, por
argumentação. Na realidade, como veremos logo mais, trata-se de uma
argumentação por meio de refutação. Essa argumentação por refutação é
descrita no fragmento 7 como controversa justamente porque ela nos
conduzirá a teses que, do ponto de vista do senso comum, são estranhas.
Feita essa introdução, coloquemos diante dos olhos o início do
fragmento 8:
“Unicamente a narrativa (mythos) de um caminho resta: que <algo>
é; neste caminho há evidências/sinais (sêmat’easi) e são muitíssimos:
que ingênito sendo também é imperecível, inteiro (oulon), uniforme
116 Nazareno Eduardo de Almeida
(monogenes), inabalável (atremes) e também perfeito (teleion).”
O início do texto já pressupõe que a via ou o caminho do não-ser foi
considerado, por várias razões, inviável para atingirmos a verdade, tendo
sido, portanto, abandonado. Por isso o fragmento começa dizendo que
apenas a narrativa (mythos) de um caminho de investigação ainda resta
dentre os dois inicialmente apresentados: que <algo> é. Neste momento,
podemos tocar em uma questão discutida nos debates entre os/as intérpretes
e que não foi possível abordar no texto básico: a questão sobre o sentido da
palavra ‘é’ na expressão ‘que <algo> é’. Durante algum tempo, no contexto
das interpretações modernas, acreditou-se que o sentido do termo ‘é’ nesta
expressão equivaleria ao conceito de existência, de modo que a expressão
‘que <algo> é’ significaria algo como ‘que <algo> existe’.
Dentre as diversas críticas que se levantaram contra essa investigação,
no presente contexto de exposição, a principal delas consiste no fato de
Parmênides (ou a deusa através dele) não apenas usar essa forma intransitiva
do verbo ser, mas também (senão sobretudo) a forma transitiva deste
mesmo verbo. Em outras palavras, mesmo que a forma como o caminho do
ser se apresenta no fragmento 2 sugira à primeira vista algo como ‘S é/existe’,
as diversas demonstrações que encontramos no fragmento 8 sugerem a
forma ‘S é P’, onde o ‘S’ (simbolizando o sujeito da frase) é substituído pelo
termo ‘ente’ ou ‘ser’, e o ‘P’ (simbolizando o predicado da frase) é preenchido
pelas propriedades ou características intrínsecas deste mesmo ente, tomado
como sujeito da frase. Assim, embora à primeira vista o fragmento 2 sugira
uma interpretação existencial do termo ‘é’ na expressão ‘que <algo> é’, o
fragmento 8 mostra que essa interpretação é, no mínimo, complicada, pois
são atribuídas diversas propriedades ou características ao ser, conforme
podemos perceber pelas linhas 2-4 da citação acima: que o ser é ingênito,
imperecível, inteiro etc.
Para resolver esse impasse, certos/as intérpretes recentes têm
indicado que o sentido do ‘é’ na expressão ‘que <algo> é’ indica não apenas
algum tipo de atribuição qualquer de um predicado a um sujeito, como na
frase ‘João é brasileiro’. Bem antes, o sentido transitivo do verbo ser que
encontramos nas várias demonstrações do fragmento 8 indicam o sentido
que recentemente chamamos de ‘sentido identitário’ do verbo ser.
Inicialmente, este sentido identitário é compreensível através dos
A origem da ontologia na metafísica grega 117
enunciados de definição, como, por exemplo, no enunciado “água é H2O”,
significando que a água, em sua essência físico-química, é idêntica à
molécula constituída por dois átomos de hidrogênio e um átomo de
oxigênio.29 Isso também está de acordo com o que complementa a expressão
‘que <algo> é’. Como vimos antes, esse complemento, no fragmento 2, é
apresentado por meio da expressão: ‘e não é <possível> não ser’; um
complemento que nos indica que não basta investigarmos que algo é, mas
que este algo necessariamente é. Assim, quando o poema expressa que o ente
é ingênito, este ‘é’ já pressupõe, obviamente, que o ente existe, e que ele existe
necessariamente como algo ingênito. A partir dessa interpretação,
compreendemos que as múltiplas características atribuídas ao ser na forma
‘o ser é...’ são determinações de sua identidade, de modo análogo a como uma
definição, se for verdadeira, determina a identidade essencial do que é
definido. A partir disso, podemos fazer um primeiro esclarecimento da
relação entre o caminho do ser apresentado no fragmento 2 e as
características intrínsecas do ser demonstradas no fragmento 8 do seguinte
modo: o fragmento 2 não nos diz apenas ‘que <algo> é e não é <possível>
não ser (= e necessariamente é)’, mas nos diz, implicitamente, ‘que <algo> é
<F, G, H...> e não é <possível> não ser <F, G, H...> (= e necessariamente é F,
G, H...)’.
Não obstante isso, como indicamos no texto básico, é preciso
distinguir o sentido identitário do verbo ‘ser’ presente no poema de
Parmênides do sentido identitário do mesmo verbo presente nas definições.
Inicialmente, como vimos rapidamente na parte sobre a identidade entre
pensar e ser, essa identidade conduz o pensamento a um tipo de estado
atemporal, estado este em que se encontra o próprio ser que é pensado.
Como dissemos naquele contexto, este é provavelmente o primeiro
momento em que se manifesta explicitamente o que filósofos posteriores
chamarão de sentido ou uso atemporal do verbo ‘ser’ nos enunciados do
tipo ‘S é P’. Esse sentido é bem visível quando dizemos, por exemplo, que ‘O
triângulo é uma figura geométrica de três lados’. Neste enunciado, o ‘é’ não
tem o sentido de falar de algo presente que não teria sido no passado ou
poderia não ser no futuro. O exemplo do triângulo difere daquele antes
dado da definição de água, pois enquanto o triângulo é, em sentido estrito e
por princípio, uma entidade atemporal, o mesmo não se aplica para a água,
29
O estudo mais importante que apresenta esta perspectiva pela primeira vez é: MOURELATOS,
Alexander. The Route of Parmenides. Las Vegas/Zurique/Atenas: Parmenides Publishing, 2009
(1970).
118 Nazareno Eduardo de Almeida
que representa um objeto sensível espaço-temporalmente determinado.
Mesmo assim, a definição de água desconsidera esse caráter e procura dar
uma definição universal e necessária que se aplica a tudo o que foi, é e será
água em qualquer lugar e momento. Trata-se, portanto, de um outro sentido
de atemporalidade, talvez expresso por um tipo de “omnitemporalidade”
pretendida na definição de água. Diante disso, pelo que já vimos sobre a
separação parmenídica entre ser e aparecer, a atemporalidade do ‘é’ que se
encontra nos enunciados como ‘o ser é ingênito’ se aproxima muito mais
daquela atemporalidade em sentido estrito presente na definição de
triângulo do que da omnitemporalidade pretendida na definição de água.
Mas o sentido atemporal do ‘é’ no ‘S é P’ que encontramos nos
enunciados que preenchem esta estrutura no fragmento 8 possui um
significado ainda mais forte do que o sentido atemporal do ‘é’ nos
enunciados de definição, mesmo no caso das definições de entidades
matemáticas. Como também já dissemos no texto básico, o início do
fragmento 8 indica, dentre as características do ser, que ele é uniforme,
termo que em grego é ‘monogenes’, o qual, literalmente, significa ‘de gênero
(-genes) único (mono-)’. Talvez pudéssemos fazer uma tradução dessa
característica pelo termo ‘monogênico’, mas em um sentido distinto daquele
que adquiriu na moderna biologia genética. Essa característica indica que
não há espaço para a distinção entre gênero e espécie no conceito parmenídico
de ser. A associação do conceito de ser às noções de gênero e espécie, como
veremos logo mais, é algo que se torna comum a partir de Platão e de
Aristóteles. Na realidade, tanto na definição de água quanto de triângulo
(desconsiderando a diferença que mencionamos há pouco), o que sucede o
‘é’ da definição apresenta um tipo de delimitação dessas entidades por meio
de sua inserção como uma espécie dentro de um gênero. No caso da espécie
denotada pelo termo ‘água’, sua definição se dá dizendo que esta espécie se
encontra no gênero de coisas que são moléculas, apresentando a composição
dos átomos que compõem este tipo de molécula. No caso da espécie
denotada pelo termo ‘triângulo’, situa-se esta espécie de entidade abstrata
situando-a no gênero denotado pela expressão ‘figura geométrica’, marcando
sua especificidade pelo fato de ser um tipo de figura composta por três
lados.
Em contraste com esses dois exemplos, no caso das características do
ser que são demonstradas no fragmento 8, não encontramos algo desse tipo.
Isso é assim não apenas porque o ser é caracterizado como ‘monogênico’,
A origem da ontologia na metafísica grega 119
mas porque essas características funcionam ao mesmo tempo como nomes e
descrições do ser, sem recorrer à relação entre gênero e espécie, como no
caso das definições. A atemporalidade do ‘é’ na forma ‘S é P’ que aparece no
fragmento 8 se aproxima do procedimento de estabelecer a sinonímia direta
entre um nome e uma descrição definida que se aplica a uma única coisa, tal
como quando, por exemplo, dizemos que ‘Rafael é o pintor de A escola de
Atenas’. Apesar do uso de um gênero (pintor) na descrição definida, não
temos, aqui, uma definição em sentido clássico, pois não existem definições
de indivíduos, apenas de classes (espécies ou gêneros) que são compostas de
múltiplos indivíduos.30 Outro exemplo desse tipo é o seguinte enunciado: ‘o
número dois é o segundo número natural’. Tanto no caso da expressão ‘o
pintor de A escola de Atenas’ quanto na expressão ‘o segundo número
natural’ não estamos definindo os indivíduos que são denotados pelos nomes
‘Rafael’ e ‘o número 2’. O que estamos fazendo é apresentar um tipo de
“nome descritivo” (ou, no jargão técnico recente, de descrição definida) mais
extenso destes mesmos indivíduos e que se aplicam apenas a eles. Por isso,
nada além de Rafael é o pintor de Escola de Atenas, tanto quanto nada além
do número 2 é o segundo número natural.31
O que importa manter em mente agora é que o ‘é’ presente na forma
‘S é P’ aplicada ao ser (implicitamente no fragmento 2 e explicitamente no
fragmento 8) significa um ‘é’ atemporal em sentido mais estrito (similar à
atemporalidade das entidades matemáticas). E também que, em nível lógico,
este ‘é’ estabelece a identidade entre um nome e outros “nomes descritivos”
ou descrições definidas que se aplicam a uma única coisa, de tal forma que
este estabelecimento de identidade é distinto do que costuma acontecer nas
definições, onde se estabelece uma relação de inclusão de uma classe de
objetos (espécie) em uma classe maior (gênero) por meio de alguma
30
Quando dizemos, por exemplo, ‘Sócrates é humano’, não estamos “definindo” Sócrates, mas
indicando a que gênero ou tipo natural este indivíduo pertence. A definição que se aplica a
Sócrates é a definição da espécie humana, tanto quanto se aplica a todos os outros indivíduos
humanos.
31
O exemplo clássico deste tipo de identidade lógica entre nomes e descrições definidas provém
de Frege, que começa seu clássico texto Sobre o sentido e a referência (1892) com o exemplo
‘Vênus é a estrela da manhã’ e ‘Vênus é a estrela da tarde’. Procurei variar os exemplos para
indicar que esse tipo de sentido do ‘é’ de identidade se aplica a infinitas coisas. Mesmo assim, é
interessante lembrar que Diógenes Laércio atribui justamente a Parmênides a descoberta (no
mundo grego) de que Vênus é a estrela da manhã e também a estrela da tarde. Se esse fato é
real, então corrobora a interpretação aqui apresentada sobre o uso deste tipo de sentido
identitário do verbo ‘ser’ ao caso da relação entre o ente e as suas características no fragmento 8
do poema.
120 Nazareno Eduardo de Almeida
característica que a diferenciaria de outras classes (espécies) pertencentes a
esta mesma classe maior.
Feitos esses esclarecimentos iniciais sobre o sentido identitário na
forma do ‘é’ da estrutura ‘S é P’, voltemos ao texto do início do fragmento 8
acima citado. Ele nos diz que uma vez excluído o caminho do não-ser
(exclusão que acontece na sequência dos fragmentos 3-7), unicamente resta a
narrativa (mythos) de um único caminho, aqui abreviado pela reiteração:
‘que <algo> é’. A sequência do texto nos diz que desse caminho há
muitíssimos sinais (sêmat’eiasi polla malla). A palavra ‘sinais’ (sêmata)
significa aqui tanto ‘evidências’, no sentido de coisas que se deve reconhecer,
quanto ‘aquilo que pode ser demonstrado’, no sentido das características do
ser que é encontrado como o objeto do único caminho que pode conduzir o
pensamento humano à verdade. Algumas (mas não todas) características ou
evidências (sinais) do ente são listadas no trecho citado: que o ente é
ingênito (não nasceu), imperecível (não morre), inteiro, inabalável e
perfeito. Segundo o que acabamos de indicar, essas características não são
algo que pertence ao ser tal como o ‘ser brasileiro’ é uma característica que
pertence (de modo contingente) a certo número de seres humanos; nem são
essas características gêneros ou mesmo espécies distintos a que pertenceria
o ser e que o definiriam, pois isso contrariaria a característica do ser
denotada pelo conceito de ‘monogênico’ (‘uniforme’/‘monogenes’).
Bem antes, cada uma dessas características é um nome descritivo ou
descrição definida que só se aplica a uma única “coisa”, que é o ser. Em outras
palavras, cada uma dessas características é idêntica ao ente, mesmo
descrevendo-o de distintos modos. Se quisermos exprimir isso, diríamos que
o nome descritivo (descrição definida) ‘o ingênito’ (ou ‘o que é ingênito’) é
um outro nome para ‘o ser’, assim como também o são ‘o imperecível’ (ou ‘o
que é imperecível’), ‘o inteiro’ (ou ‘o que é inteiro’) ou ‘o perfeito’ (ou ‘o que é
perfeito’) etc. Retomando o que dissemos há pouco e fazendo uma síntese, o
caminho do ser (o único viável para nosso pensamento alcançar a
verdade/realidade) nos conduz a dizer ‘que o ser é: o <que é> ingênito, o
<que é> imperecível, o <que é> inteiro, o <que é> monogênico/uniforme, o
<que é> perfeito etc.’.
Na próxima seção, veremos um pouco melhor como essas
características são demonstradas por meio do método lógico de redução ao
absurdo ou ao impossível. Neste momento, o que é preciso enfatizar é
justamente que as demonstrações nos fornecem as características ou
A origem da ontologia na metafísica grega 121
propriedades que são sinônimas ou idênticas ao ser. Assim, uma vez provado
que o ser é ingênito, o predicado ‘ser ingênito’ significa uma característica
idêntica ao ser considerado em si mesmo. Essas características são “nomes”
distintos que apresentam de distintos pontos de vista uma única e mesma
coisa, coisa que leva o nome geral de ‘o ser’ (‘to eon’). E uma vez obtidos
esses nomes descritivos, o pensamento que tem em vista esse objeto único se
torna idêntico ao objeto pensado. Além disso, pela distinção radical do ser
em relação às múltiplas coisas que nos aparecem na percepção, reforça-se
que todas essas características se aplicam e pertencem a uma única e mesma
coisa.
Novamente, percebemos a centralidade do conceito de identidade. Já
vimos que a identidade entre pensar e ser é considerada no poema como a
garantia de que o pensamento humano racional atingiu a verdade, uma
verdade que, como também já vimos, é atemporal em sentido pleno e que,
por isso, é o único objeto a ser pensado, de tal modo que está separado da
variedade e da “confusão” das opiniões dos mortais (senso comum), pois o
pensamento destes se volta para os múltiplos objetos sensíveis, acreditando
erroneamente que o conceito de ser se aplicaria a esses objetos, tanto quanto
o conceito de não-ser. Agora, porém, diante do fragmento 8, percebemos
que a identidade não é apenas a garantia lógica e epistemológica da verdade
de nosso pensamento, mas “emana” das próprias características intrínsecas
do ser enquanto este é o único objeto por excelência do pensamento racional
humano (noein). Vejamos rapidamente como isso é indicado no fragmento
8, o “coração” do poema ditado a Parmênides pela deusa.
Como promete o início do fragmento 8, as características (evidências,
sinais) do caminho do ser são muitas. Não apenas o ente é determinado
como ingênito, imperecível, inabalável e perfeito, como está presente no
texto citado, mas ele também é determinado como uno, contínuo,
indivisível, pleno, eterno (sem-início) etc. Não me parece pertinente a
seguinte questão colocada por certos/as intérpretes, a saber: qual a lista
completa das características do ser? Em primeiro lugar, essa questão não é
pertinente porque aquilo que o fragmento 8 nos apresenta não são
demonstrações completas dessas características, mas esboços de
demonstração de algumas delas. Em segundo lugar, no percurso desses
esboços de demonstração, novas características são apresentadas para além
daquelas inicialmente listadas. Mesmo assim, tais novas características se
reforçam mutuamente, assim como reforçam as características inicialmente
122 Nazareno Eduardo de Almeida
listadas. Essa mútua corroboração de cada uma das características por todas
as demais indica um tipo particular de circularidade em que as
características encontradas no percurso das demonstrações retomam em
outros sentidos aquilo que é propriamente objeto da demonstração. É
provavelmente esse tipo de circularidade que a deusa enuncia no fragmento
5 do poema ao dizer:
“... comum é, para mim, o lugar de onde começarei, pois novamente
retornarei para este mesmo <lugar>.”
Este fragmento indica que as demonstrações partem do mesmo
ponto para a ele retornar, embora percorrendo percursos diferentes. Dada a
natureza única do objeto das demonstrações e a sinonímia de todas as
características em relação a este objeto (o ser), percebemos que esta
circularidade, no contexto do poema, não é viciosa, mas algo inevitável.
Embora não seja possível aprofundar esse ponto aqui, é preciso marcar que
o fato de os esboços de demonstração dessas características se realizarem
por meio da redução ao absurdo significa que não é possível recorrer a
algum princípio superior àqueles que são: (1) que o ser é não pode não ser
(= que é necessário ser), e que (2) o não-ser não é e não pode ser (=
necessariamente não é). O uso da redução ao absurdo como método para
demonstrar as características do ser e o fato dessas características serem
sinônimos do ser nos conduzem àquela que é a característica fundamental
do ser: a identidade. Mas antes de podermos explicitar melhor esta
característica primária do ser, precisamos entender melhor o método lógico
operado nas demonstrações do fragmento 8.
B – A metodologia axiomática de Parmênides
Como já falamos, um dos aspectos que conferem a Parmênides uma
importância decisiva na filosofia, na metafísica e na ontologia antigas e
posteriores consiste em ter sido o primeiro a usar o que podemos chamar de
metodologia axiomática de argumentação. Em termos bastante simples,
como também já dissemos, a metodologia axiomática é um tipo de
procedimento de prova que parte de princípios assumidos como verdadeiros
por si mesmos e que procura demonstrar quais as possíveis consequências
A origem da ontologia na metafísica grega 123
que se seguem necessariamente desses princípios. A mais célebre realização
dessa metodologia na antiguidade se encontra na exposição axiomática da
geometria por parte de Euclides de Alexandria em sua obra Os elementos. É
possível que essa metodologia já estivesse em uso por parte dos pitagóricos
antes de Parmênides, justamente em suas investigações sobre os objetos
matemáticos da aritmética e da geometria e suas propriedades. Contudo,
desse possível uso só temos evidências indiretas. É somente no poema de
Parmênides que encontramos o primeiro uso dessa metodologia no campo
da argumentação filosófica.
A metodologia axiomática de Parmênides se revela no uso, doravante
muito comum por parte dos filósofos, do argumento por redução ao
absurdo ou redução ao impossível. De modo geral, este tipo de argumento é
caracterizado como um procedimento lógico de prova indireta. Repetindo
aqui a caracterização informal e didática que já apresentamos no texto
básico, esse procedimento pode ser assim descrito: para se provar uma tese
A, assume-se hipoteticamente a sua negação (não-A) como verdadeira e
procede-se, por meio de axiomas ou teoremas já aceitos, a derivação de
consequências absurdas ou impossíveis a partir da verdade hipoteticamente
atribuída à tese não-A. Dado que de premissas tomadas como verdadeiras
não é possível se seguir alguma conclusão falsa, então a hipótese não-A tem
de ser tomada também como necessariamente falsa, e sua oposta –
justamente a tese A que se queria provar – tem de ser tomada como
necessariamente verdadeira.
Para que esse método de prova possa funcionar, é preciso admitir três
princípios que são fundamentais na lógica clássica: o princípio da dupla
negação, o princípio do terceiro excluído e o princípio da não-contradição.
Como já foi assinalado por vários/as intérpretes, esses princípios não apenas
estão implícitos no uso inequívoco desse método de prova no fragmento 8,
mas podem ser encontrados em outras partes do poema. Vejamos
rapidamente como e onde.
O princípio da dupla negação pode ser expresso em um esquema
semiformal e simbólico do seguinte modo:
É necessário que: (A) se, e somente se, (não (não-A))
124 Nazareno Eduardo de Almeida
Isso significa que da verdade de (A) podemos derivar a verdade de
(não (não-A)), assim como, inversamente, da verdade de (não (não-A))
podemos derivar a verdade de (A). Este princípio se encontra já presente na
enunciação do caminho do ser, na linha 3 do fragmento 2, justamente na
expressão ‘e não é <possível> não ser.’; que também significa, de modo mais
simples: se algo é, então não é não ser.
O princípio do terceiro excluído pode ser expresso, também em um
esquema semiformal e simbólico do seguinte modo:
É necessário que: algo é F ou não é F
Isso significa que para algo (na acepção de ‘qualquer coisa’) possa ser
tomado como um sujeito de um enunciado, é necessário que essa algo
possua ou não possua determinada propriedade, simbolizada aqui pela letra
‘F’. Este princípio se encontra enunciado por duas vezes no fragmento 8. A
primeira vez na linha 11, do seguinte modo: “Assim, ou é preciso que seja
absolutamente ou que não (seja).” E logo abaixo, nas linhas 15-16: “porém a
decisão sobre isto está nisto: /<algo> é ou não é.”
Por fim, o princípio da não-contradição (sobre o qual falaremos
bastante no capítulo sobre a ontologia de Aristóteles) pode ser expresso,
ainda em um esquema semiformal e simbólico do seguinte modo:
É impossível que: algo é F e não é F
Isso significa que é impossível (= não é possível) que algo (= qualquer
coisa) simultaneamente possua e não possua uma propriedade qualquer,
simbolizada aqui pela letra ‘F’. Este princípio se encontra expresso na parte
final do fragmento 6 (sobre o qual já falamos antes), quando a deusa diz que
o caminho do não-ser tomado pelos mortais conduz ao absurdo
(impossibilidade) de dizer que o ser é o mesmo que o não-ser. Em outras
palavras, o caminho do não-ser leva ao absurdo de transgredir o princípio
da não-contradição; uma transgressão que, aliás, também viola o princípio
do terceiro excluído.
Para além desses princípios necessários para a realização dos
argumentos por redução ao absurdo, Parmênides (ou a deusa através dele)
estabelece um axioma que representa a primeira formulação do que veio a
A origem da ontologia na metafísica grega 125
ser chamado de princípio de identidade. Este “axioma” tanto permite a
Parmênides a formulação dos três princípios expostos acima quanto lhe
permite mostrar as consequências absurdas das hipóteses sobre as quais
falaremos logo mais. Este axioma ou princípio é enunciado explicitamente
nas linhas 1-2 do fragmento 6: “o ser é e o nada não é.”, o que equivale a
dizer: o ser é e o não-ser não é. Em termos de uma possível esquematização
semiformal e simbólica, isso poderia ser assim expresso:
É necessário que: se algo é F, então é F; e, se algo não é F, então não é
F
Dessa expressão semiformal podemos “derivar” tanto o princípio do
terceiro excluído quanto o princípio da não-contradição através da negação
desta expressão, mas sobre isso não nos cabe falar neste texto. De fato, no
contexto do poema de Parmênides, os três princípios acima mencionados
são princípios que confirmam e respeitam este axioma. Note-se, portanto,
que também no nível lógico a identidade já é tomada como uma
característica fundamental do ser e, por isso, é aquela característica que será
confirmada pelas demonstrações do fragmento 8.
Feitos esses esclarecimentos sobre os princípios que regem o método
axiomático e demonstrativo presente no fragmento 8, podemos fazer uma
reconstrução dos dois principais argumentos por redução ao absurdo que
aparecem na sequência das linhas 5-28 deste fragmento. Trata-se de uma
reconstrução porque há controvérsia entre os intérpretes sobre os passos
efetivos e sobre a estrutura dessas demonstrações. Na realidade, como já
indicado antes, temos nesta parte do poema mais um tipo de esboço das
linhas gerais dessas demonstrações do que demonstrações em sentido
estrito, tal como encontramos, em sentido mais rigoroso, nos paradoxos
gerados pelos argumentos de Zenão de Eleia, discípulo direto de
Parmênides. Na perspectiva de interpretação que estamos expondo aqui,
isso indica que a deusa está mais propriamente sugerindo como essas
demonstrações podem ser feitas do que efetivamente realizando-as diante de
Parmênides e, portanto, de nós.
Na primeira delas (linhas 5-21), a deusa demonstra, por redução ao
absurdo, que o ente é ingênito e imperecível, sendo, por isso, eterno. Na
segunda delas, demonstra-se que o ser é imóvel e indivisível, sendo,
126 Nazareno Eduardo de Almeida
portanto, uno em sentido estrito (22-28). Vejamos, de modo esquemático,
como é possível reconstruir cada um desses argumentos.
Primeira redução ao absurdo: o ser é ingênito e imperecível, e, assim, eterno
(I) Por hipótese, postula-se que o ente é gerado.
(1) Se é gerado, então:
(1.1) Ou é gerado a partir do que não é (do não-ser);
(1.2) Ou é gerado a partir do que é (do ente);
(II) Mas (1.1) é absurdo, pois como pode coisa nenhuma gerar alguma coisa?
E (1.2) também é absurdo, pois se o ente foi gerado a partir do ente, então ele
já era ao ser gerado, e assim ao infinito.
Portanto, se é absurdo que é gerado, então é verdadeiro que não é gerado (é
in-gênito).
(III) Se o ente não é gerado, não pode ser perecível, pois só é perecível o que
foi gerado, e se é falso que foi gerado, então é verdadeiro que não é perecível
(é im-perecível).
(IV) O que não nasceu (é ingênito) e que também não morre (é imperecível) é
algo eterno.
Segunda redução ao absurdo: o ser é imóvel e indivisível, e, assim, uno e contínuo
(I) Por hipótese, postula-se que o ser se move.
(1) Se ele se move, então passa do estado A ao estado B.
(2) Para que isso aconteça:
(2.1) ou ele passa do ser ao não-ser (pois A não é B, e B não é A);
(2.2) ou ele passa do não-ser ao ser (pois A não é B, e B não é A);
(II) Mas tanto (2.1) quanto (2.2) são absurdos, pois já foi aceito como sempre
verdadeiro (necessário) que o ser é e o não-ser não é (princípio de
identidade), e como sempre falso (impossível) que o ser não-é e o não-ser é
(princípio da não-contradição);
Portanto, o ser não passa do estado A ao estado B e, assim, não se move (é
imóvel)
(III) Para que o ser pudesse ser dividido, teria de passar de um estado A
(antes da divisão) para um estado B (depois da divisão). Mas já foi visto que
não pode passar de um estado A para um estado B; logo não pode ser
dividido (é in-divisível).
(IV) O que não se move nem se divide (não se transforma) é definível como
uno e contínuo em sentido estrito.
Essas reconstruções são tentativas interpretativas de nos
aproximarmos de modo mais didático de uma parte fundamental do poema.
A origem da ontologia na metafísica grega 127
No entanto, nas linhas 5-28 do fragmento 8 que são objeto destas
reconstruções, o poema nos apresenta outras características do ser ao longo
destas duas reduções ao absurdo que são mais facilmente visíveis para uma
leitura atenta. Como já dito antes, devemos ver as múltiplas características
do ser como se reforçando mutuamente, e, por isso, não se restringindo
àquelas que são enunciadas no início do fragmento 8 analisado antes. Mas
independentemente de outras reconstruções da argumentação contida nesta
parte, não há dúvida entre os/as intérpretes de que Parmênides é o pioneiro
no uso da redução ao absurdo como método de argumentação e prova de
suas teses filosóficas, de tal modo que é o primeiro a estabelecer um método
axiomático como modelo para tentar estabelecer a verdade de uma teoria.
C – A identidade como característica fundamental do ser
Chegamos ao fim dessa exposição da ontologia de Parmênides. Este
encerramento apresenta aquela que é a característica fundamental do ser ou
ente: a identidade. Todas as análises filosóficas anteriores nos prepararam
para esse momento, uma vez que já falamos extensamente do conceito de
identidade e como ele está presente em vários momentos do poema. Em
certa medida, quando o poema enuncia que “o ser é e o nada não é” no
início do fragmento 6 como condição da identidade entre pensar e ser
(expressa no dizer), assim como ao indicar que as diferentes características
do ser são sinônimos (‘nomes descritivos’) do ser (entendido como ‘o
ingênito’, ‘o imperecível’, ‘o uno’, ‘o contínuo’ etc.) já estávamos indiretamente
apontando para a identidade como a característica fundamental do ser.
Todavia, essa característica é expressa em um ponto culminante do
fragmento 8 (linhas 29-33), do seguinte modo:
“O mesmo e no mesmo (tauton t’en tautô(i)), permanecendo em si
mesmo (kath’heauto) jaz, [30] assim firmemente ali-mesmo (authi)
permanece: pois a poderosa Necessidade o mantém nos grilhões de
limite que o encerra em todos os lados. Por isso, está estabelecido que
o ente não é incompleto; pois não carente <de nada>; pois em sendo,
de tudo careceria.”
128 Nazareno Eduardo de Almeida
Note-se a repetição, por quatro vezes, do conceito de identidade nas
duas primeiras linhas da citação acima. Curiosamente, poucos/as intérpretes
notaram essa recorrência do termo grego ‘tauton’ e suas variações. Por
vezes, os/as intérpretes procuram suplementar com adjetivos as ocorrências
deste conceito para adaptá-lo aos seus propósitos de análise. Essas emendas
interpretativas algo conjecturais passam ao largo de um fato que foi
percebido apenas por Allan Coxon em sua obra inestimável sobre
Parmênides: que a noção de ‘em si mesmo’ (kath’heauto) – vital em filosofias
posteriores – aparece pela primeira vez no discurso filosófico grego justamente
neste momento do poema.32 Com efeito, Anaxágoras irá dizer que o Intelecto
(Nous), enquanto ser que é princípio gerador e regente de todas as coisas, é
por si mesmo ou em si mesmo, apontando para o fato de ser ele o único ser
separado e idêntico dentre todos os seres do mundo. Em Platão, as Ideias ou
Formas são o equivalente do ser parmenídico e são constantemente
caracterizadas, por contraste com as coisas do mundo sensível, como sendo
por si mesmas, marcando assim a identidade constante e eterna dessas
entidades unicamente acessíveis pelo pensamento. Por fim, Aristóteles
marcará que o ser em sentido primeiro, a substância (ousia), é o único tipo
de ser que é por si mesmo, indicando que a identidade das coisas sensíveis,
para além de suas transformações, se encontra em sua substância.
Para além deste fato linguístico-filosófico de primeira grandeza, o
texto citado menciona que essa identidade, reiterada de diversas formas, é
garantida pela deusa Necessidade (Anankê), a qual, segundo certas
interpretações do poema, é a divindade mais elevada para Parmênides,
juntamente com a divindade do destino (Moira). E como corroboração
dessa identidade, o texto citado ainda alude a um argumento por redução ao
absurdo segundo o qual: ou o ser não é de modo algum incompleto (= é
necessariamente completo) ou, se fosse carente de alguma coisa
(provavelmente das características anteriormente demonstradas), então de
tudo careceria, ou seja, seria igual ao não-ser, o que é absurdo. Note-se que
se trata de um uso do princípio do terceiro excluído que pode ser resumido
do seguinte modo: ou o ser é carente ou não é carente; mas é absurdo que é
carente, então não é carente e, portanto, completo (= não é in-completo). Na
realidade, temos aqui um uso do que, a partir da lógica megárica e estoica
foi chamado de ‘silogismo disjuntivo’, que pode ser assim esquematizado na
forma como aparece aqui: A ou não-A; mas não não-A; logo A.
32
COXON, Allan. The fragments of Parmenides. Las Vegas/Zurique/Atenas: Parmenides
Publishing, 2009, p. 329.
A origem da ontologia na metafísica grega 129
Com isso, é possível perceber que a identidade exigida como
característica epistemológica do pensamento racional e como característica
lógica dos enunciados que exprimem o conhecimento verdadeiro do ser, é
complementada pela garantia de que todas as múltiplas características do ser
(ingênito, imperecível, contínuo etc.) são nomes com sentidos distintos de
um mesmo e único objeto que é visado pelo pensamento racional para atingir
a verdade, ou seja, a realidade para além das aparências mutantes que nos
circundam.
O coroamento desta visão (curiosamente, tanto lógica quanto
“mística” (teológica)) da identidade do ser se encontra na única imagem por
analogia que a deusa propõe para tornar mais compreensível suas
demonstrações abstratas: a esfera matemática (frag. 8, linhas 43-49). Se
pensarmos com atenção, a esfera matemática é a metáfora perfeita da
identidade do ser. Mais do que o ponto, que não tem dimensões e do círculo,
que é ainda algo bidimensional com características limitadas, a esfera nos dá
uma imagem da identidade do ser porque ela possui um número imenso de
características, embora todas elas confirmem a unidade (identidade) do
mesmo objeto.
Com a indicação da função da esfera matemática como imagem
analógica da identidade do ser, terminamos a parte de aprofundamento e
discussão da ontologia de Parmênides. Como conclusões, podemos
confirmar aquilo que dissemos anteriormente à luz de nosso percurso.
Primeiramente, que Parmênides instaura a ontologia como um novo
paradigma na filosofia e na metafísica antigas ao introduzir gramatical e
filosoficamente os conceitos de ser e não-ser. Em segundo lugar, que essa
introdução do vocabulário do ser ocorre através da correlação entre os
conceitos de ser, verdade e identidade. Em terceiro lugar, que o conceito de
identidade entre pensar e ser (que se exprime no discurso verdadeiro) é
tanto um postulado lógico quanto um imperativo epistemológico que
perpassa a parte central do poema. Em quarto lugar, que o caminho do ser
(pressupondo o postulado-imperativo da identidade de pensar e ser) conduz
à demonstração das características intrínsecas do ser. Em quinto lugar, que
essas características devem ser vistas como sinônimos do ser, de tal modo
que são idênticas a ele. E, por fim, que a identidade é a característica mais
fundamental do ser, característica que permite tanto postularmos a
identidade lógica e epistemológica entre pensar e ser quanto a identidade
das diferentes características como nomes descritivos distintos (que se
130 Nazareno Eduardo de Almeida
corroboram mutuamente) do ser em si mesmo. Neste sentido, se
entendemos uma ontologia como um discurso que nos apresenta alguma
concepção sobre o ser (e também do não-ser), então a ontologia de
Parmênides não é apenas a primeira ontologia, mas é também uma
“tautologia”, ou seja, seu discurso sobre o ser é um discurso ou teoria, ao
mesmo tempo, sobre a identidade (to auto, tauton) necessária do que
podemos, no sentido mais radical e mesmo paradoxal possível, denominar
pela palavra ‘ser’.
A partir de Parmênides, o conceito de identidade entra decisivamente
na filosofia grega e posterior, de tal modo que onde encontramos alguma
discussão ontológica, também encontramos algum tipo de discussão sobre o
conceito de identidade. Que tais discussões ainda estão em nossos dias vivas
nas teorizações ontológicas, é visível, por exemplo, no célebre lema
ontológico forjado pelo filósofo norte-americano Willard van Orman Quine
(1908-2000): “Nenhuma entidade sem identidade.” (“No entity without
identity”). Se entendemos que a noção de identidade é uma reformulação da
linhagem henológica da metafísica antiga sobre a qual já falamos e ainda
falaremos, então a presença ainda hoje do conceito de identidade como
tema da ontologia nos mostra que toda ontologia, depois de Parmênides,
também já contém um elemento ou traço henológico. Portanto, longe de
destruir ou excluir a linhagem henológica da metafísica antiga, o poema de
Parmênides a transforma e a inclui em qualquer discussão da ontologia na
medida em que nessas discussões se apresenta a necessidade de considerar o
conceito de identidade. Essa última conclusão se tornará mais clara na
análise que faremos nos próximos capítulos sobre a ontologia em Platão e
em Aristóteles.
◆ CAPÍTULO 3 ◆
O DIÁLOGO SOFISTA E A ONTOLOGIA EM
PLATÃO
132 Nazareno Eduardo de Almeida
A – TEXTO BÁSICO
1. Introdução: as duas fases da ontologia de Platão
Não é exagero dizer que a figura de Platão (427-347 a. C.) dispensa
apresentações. Ao menos nas sociedades mais vinculadas à cultura europeia,
a maioria das pessoas já ouviram falar desse filósofo. O que muitas dessas
pessoas talvez não saibam é que ao fundar sua Academia, Platão se tornou o
pioneiro do que viriam a se tornar as universidades, a tal ponto que os
termos ‘academia’ e ‘acadêmico/a’ passaram a ser sinônimos aproximados da
vida intelectual das instituições de ensino superior. Seguindo seu exemplo,
Aristóteles fundaria o seu Liceu, Epicuro o seu Jardim e os estoicos o seu
Pórtico (Stoa). Por fim, tomando elementos tanto da Academia de Platão
quanto do Liceu de Aristóteles, foi fundado, no início do século III a. C., o
Museu de Alexandria, que em vários sentidos se aproxima ainda mais do
modelo institucional das universidades medievais e modernas. Assim,
Platão está na origem do que chamamos usualmente de ‘vida universitária’
ou ‘vida acadêmica’.
Além disso, talvez também a maioria das pessoas não saiba que em
paralelo com seu pioneirismo na instituição de um novo tipo de educação,
Platão é o primeiro filósofo grego a dedicar uma parte considerável de sua obra
para refletir e tentar definir a noção de filosofia. Embora seja muito provável
que o termo ‘filosofia’ já circulasse na época de Platão, foi efetivamente ele
quem estabeleceu os traços mais gerais que ainda hoje determinam em parte
o modo como entendemos essa tão singular quanto variada atividade
intelectual e atitude de vida no contexto das culturas historicamente
vinculadas ao mundo grego. Em termos mais simples, a filosofia de Platão é
a primeira filosofia a se colocar o problema sobre quem é e o que faz o/a
filósofo/a no contexto da cultura (polis) em que vive. Apenas esses dois
aspectos (dentre muitos outros) já são suficientes para entendermos por que
Platão é tão conhecido. De modo geral, podemos dizer que Platão refundou
a filosofia, a tal ponto que muitos de seus sucessores imediatos
reconheceram nele uma espécie de marco e novo ponto de partida para boa
parte da filosofia posterior, a começar do restante da filosofia antiga.
A origem da ontologia na metafísica grega 133
A história da recepção (interpretação e apropriação) da obra de
Platão perpassa toda a história da filosofia “ocidental” posterior. 33 É por isso
que podemos falar de uma presença constante de sua obra e de seu
pensamento ao longo dos mais de dois milênios que nos separam de sua
vida. Não obstante essa longa história de recepção, nosso estudo atual da
obra de Platão é marcado pela retomada de sua obra a partir dos modernos
critérios científicos de rigor historiográfico surgidos no século XIX. A partir
de então, os diálogos de Platão costumam ser agrupados em três distintas
fases, embora a disposição exata dos diálogos dentro dessas fases seja tema
bastante controverso. Essas três fases são, respectivamente, a fase dos
diálogos de juventude (também chamados socráticos ou aporéticos); a fase
dos diálogos de maturidade (também chamados de intermediários ou
dogmáticos); e, por fim, os diálogos da velhice (também chamados de finais
ou críticos).
Tomando esse mapa geral que delimita as múltiplas interpretações do
fundador da Academia, é comum assumirmos que a célebre teoria das Ideias
ou Formas estaria ausente dos diálogos da primeira fase, nos quais se supõe
que Platão apresentaria um modo de fazer filosofia que se aproximaria de
um tipo de descrição da atividade do Sócrates histórico. 34 Apenas nos
diálogos intermediários (da maturidade ou dogmáticos) encontraríamos a
primeira formulação da teoria das Formas. É nesta fase que também
podemos encontrar as primeiras formulações do que modernamente
podemos chamar de ontologia platônica, a qual é inseparável de sua teoria
das Formas. É por causa dessa teoria que a obra de Platão conta como um
dos “monumentos” fundamentais da história da metafísica e, dentro dela, da
história da ontologia. Nessa fase de sua obra, como veremos logo mais, os
33
Uso aqui a expressão ‘ocidental’ entre aspas porque ela é bastante vaga e, a rigor, a filosofia
platônica se tornou um dos pilares da filosofia árabe ou islâmica, que em certo sentido é
denominada como uma tradição filosófica “oriental”. Essa observação é importante também
porque a divisão entre filosofia ocidental e oriental tem sido questionada como parâmetro para
determinar a existência ou não da filosofia em culturas que não foram e não são usualmente
incluídas no adjetivo ‘ocidental’. Esse questionamento tem a ver com as recentes críticas ao
eurocentrismo. De todo modo, usamos aqui o adjetivo ocidental para marcar que a história da
filosofia centrada na tradição europeia – e, mais rigorosamente, circum-mediterrânea – foi (e ainda
é) profundamente marcada pela recepção da obra e do pensamento de Platão.
34
A partir deste momento, seguindo a convenção dos/das intérpretes recentes de Platão, usaremos
de preferência a expressão ‘teoria das Formas’ e não, como é mais corrente no senso comum,
‘teoria das Ideias’. Essa convenção se deve ao fato de a palavra ‘ideia’ ter adquirido (na filosofia
moderna a partir de Descartes) diversas acepções incompatíveis com sua concepção platônica do
conceito de Ideia ou Forma. Além disso, a palavra é escrita em maiúsculo para marcar sua
singularidade e distinção em relação à noção comum de forma.
134 Nazareno Eduardo de Almeida
traços de sua leitura da ontologia de Parmênides se fazem visíveis nas várias
apresentações da teoria das Formas.
Contudo, como bom filósofo que era, Platão submete essa mesma
teoria a uma autocrítica, a qual se costuma situar na primeira parte de seu
diálogo intitulado – note-se bem – Parmênides. Neste diálogo, Platão cria
um ficcional Parmênides que dialoga com um igualmente ficcional jovem
Sócrates. Encontramos na primeira parte deste diálogo vários argumentos
que põem em xeque alguns dos conceitos basilares do que podemos chamar
de primeira versão da teoria das Formas encontrada nos diálogos da
maturidade. É comum na interpretação recente da obra de Platão situar este
diálogo autocrítico como a abertura da terceira e última fase de sua obra.
Em vários dos diálogos comumente agrupados nesta fase, encontramos
reformulações e modificações da primeira versão da teoria das Formas. O
diálogo Sofista, sobre o qual falaremos logo mais, é um dos diálogos
comumente colocados nesta terceira fase. No espírito das reformulações da
primeira versão da teoria das Formas, o diálogo Sofista reformula
especificamente aquilo que podemos chamar de concepção ontológica
associada a esta teoria. Assim, no texto que segue, apresentaremos
inicialmente alguns dos traços da ontologia platônica nos diálogos da
maturidade – mais próximos da ontologia de Parmênides – para depois
podermos entender adequadamente como o diálogo Sofista apresenta uma
nova concepção da ontologia platônica, na qual encontramos uma crítica a
certas teses fundamentais da ontologia parmenídica.
2. A recepção da ontologia parmenídica nos diálogos da maturidade
Como indicado há pouco, podemos dividir a interpretação que
Platão faz da ontologia de Parmênides em duas fases distintas. Nesta seção,
apresentarei os traços mais gerais dessa interpretação nos chamados
diálogos intermediários ou da maturidade, nos quais Platão apresenta uma
primeira versão de sua teoria das Formas. Dentre os diálogos comumente
agrupados na fase da maturidade (ou intermediários), encontramos aqueles
que talvez sejam os diálogos mais famosos de Platão: o Fedro, o Fédon, o
Banquete e, sobretudo, a República. Além de serem consumadas obras-
primas do diálogo como gênero literário, neles encontramos as primeiras
formulações do que se convenciona chamar de teoria platônica das Formas.
A origem da ontologia na metafísica grega 135
Diferente do que se poderia pensar à primeira vista, não é tarefa
simples apresentar uma caracterização das Formas.35 Uma maneira de fazê-
lo consiste em dizer que elas são objetos inteligíveis (noêta) porque são
unicamente acessíveis ao intelecto ou inteligência (nous). Esses objetos são
distintos e de algum modo separados dos objetos sensíveis (aisthêta),
acessíveis a nós por meio da sensação ou percepção (aisthêsis). É vital notar
que, esta separação entre as Formas (enquanto objetos inteligíveis) e os
objetos sensíveis retoma e transforma a distinção parmenídica que antes
vimos entre pensar e perceber e entre ser e aparecer. Ela retoma a distinção
parmenídica porque as Formas são o equivalente platônico do que
Parmênides denominava o ser (to eon): de um lado, porque, tal como o ser
parmenídico, as Formas estão além do aparecer sensível; e, de outro, porque,
também como no caso do ser parmenídico, as Formas só são
epistemologicamente acessíveis a nosso pensamento ou intelecto (noein,
nous) na medida em que este mesmo pensamento ultrapassa o nível da
percepção imediata e dos fenômenos (aparências). Note-se, porém, que a
distinção entre Formas e objetos sensíveis transforma a distinção
parmenídica entre ser e aparecer porque as Formas são múltiplas, enquanto o
ser parmenídico, como vimos, é um único objeto. Assim, tomando exemplos
dos diálogos mencionados há pouco, Platão fala das Formas do Bem, do
Belo, do Justo, do Igual, dentre várias outras. Além disso, para além da
noção de separação entre as Formas e os objetos sensíveis, Platão acrescenta
– diferentemente do poema de Parmênides – que também deve haver algum
tipo de participação dos objetos sensíveis nas Formas. Vejamos um pouco
melhor como se dá essa transformação.
Inicialmente, as Formas são distintas entre si. Em termos
simplificados, cada uma dessas Formas é um ser ou entidade. Em certo
sentido, cada uma dessas Formas possui certas características que
Parmênides atribuía ao ser único sobre o qual falamos antes: em especial,
cada uma dessas Ideias é idêntica a si mesma, sendo distinta das demais e
dos objetos sensíveis. Aliás, estes objetos sensíveis são compreendidos por
Platão nestes diálogos intermediários como estando em perpétuo fluxo e
transformação. No entanto, esses objetos sensíveis múltiplos e mutáveis só
ganham algum tipo de ser e de estabilidade na medida em que participam
das Ideias ou Formas.
35
Para uma apresentação ao mesmo tempo rigorosa e inicial da teoria das Formas, recomendo a
leitura de MORAVCSIK, Julius. Platão e platonismo: aparência e realidade na ontologia, na
epistemologia e na ética; trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2006, cap. 2.
136 Nazareno Eduardo de Almeida
Assim, por exemplo, as múltiplas coisas sensíveis que qualificamos
como iguais de algum modo (no tamanho, no número, no formato etc.)
possuem essa propriedade de serem iguais por participarem da Forma do
Igual, a qual se mantém constante e idêntica, diferentemente das coisas
sensíveis, que são iguais apenas parcial, temporariamente e sob certo
aspecto. Assim, nesta primeira versão da teoria, seguindo o exemplo em
análise, apenas a Forma do Igual é igual em sentido absoluto e completo,
enquanto todas as coisas sensíveis que são iguais só o são em sentido relativo
e incompleto, na medida em que participam da Forma do Igual. O mesmo
se aplica às demais Formas. Notemos que essa é uma reformulação da tese
da identidade do ser que vimos no capítulo sobre Parmênides, dado que
para este o ser é necessariamente distinto e sem qualquer tipo de relação
com as coisas sensíveis.
Portanto, ao elaborar sua primeira versão da chamada teoria das
Formas nos diálogos da maturidade, Platão se apropria da ontologia de
Parmênides do seguinte modo:
1. Cada uma das Formas representa um ser por si mesmo, sendo cada
uma delas eterna e idêntica. Assim, em lugar de um único ser, as Formas são
múltiplos seres ou entes, que se distinguem entre si e, sobretudo, estão
separadas dos objetos sensíveis.
2. A totalidade das Formas representa propriamente a região ou
âmbito do ser. Esta região precisa ser concebida como separada da região
dos objetos sensíveis, entendidos enquanto aparências ou fenômenos em
constante fluxo e transformação e que compõem a região do devir
(mudança, transformação, multiplicidade sensível).
3. Uma vez separada a região do ser da região do devir, os objetos da
região do devir, não são propriamente entes ou seres, mas aparências que
têm algum tipo de estabilidade apenas na medida em que participam das
Formas. Assim, por exemplo, as múltiplas coisas sensíveis às quais aplicamos
o predicado ‘belo’ são belas porque participam de algum modo da Forma do
Belo.
4. O conhecimento em sentido estrito significa o conhecimento das
Formas, pois somente elas permanecem idênticas e constantes enquanto as
coisas sensíveis estão em constante transformação, não sendo possível o
conhecimento do que está neste estado. Sobre as coisas sensíveis, portanto,
temos opiniões, as quais podem ser verdadeiras ou falsas, ao contrário do
conhecimento, que, por princípio, só pode ser verdadeiro.
A origem da ontologia na metafísica grega 137
Essas características da ontologia platônica presente na primeira
versão da teoria das Formas desenvolvida nos diálogos intermediários são
sintetizadas no seguinte diagrama descrito no Livro V da República (486a-
490a)36:
Ser/ Ideias/Formas (eidê) Conhecimento (epistêmê)
Aparência (to doxadzein) Opiniã o (doxa)
Nã o-ser (mê on) Ignorâ ncia (agnoia)
Em seu lado esquerdo, este diagrama nos apresenta o que os/as
intérpretes modernos de Platão convencionaram chamar de “doutrina dos
graus de ser”. Em seu lado direito, o diagrama apresenta os estados
epistemológicos correspondentes a estes “graus” de ser. Note-se,
inicialmente, que o lado esquerdo nos apresenta a primeira concepção geral
de Platão sobre o não-ser. Essa concepção, em linhas gerais, reitera a
impossibilidade de conhecer o não-ser que foi estabelecida no poema de
Parmênides, fazendo o não-ser corresponder ao estado epistêmico da
ignorância, estado este que pode ser entendido tanto como a completa
ausência de conhecimento ou como a completa falsidade da opinião.
Ademais, assim como em Parmênides, o conhecimento em sentido estrito
(aqui denotado pelo termo grego epistêmê) consiste na identidade entre o
pensamento racional ou intelecto (noein, nous) com o ser.
Todavia, Platão se distancia de Parmênides na parte intermediária do
diagrama. Enquanto para Parmênides não se poderia atribuir verdade às
36
Esta numeração é usada universalmente para fazer referência aos textos de Platão,
independentemente das diferentes edições e traduções. É a chamada ‘numeração de Stephanus’,
que foi inicialmente estabelecida na edição da obra de Platão publicada em 1578 por Henri
Estienne (ou, na versão latina de seu nome, Henricus Stephanus), edição que contava com a
tradução para o latim de Jean Serres. Essa numeração foi retomada na moderna edição do
texto grego de Platão que ainda é tomada como base atualmente, edição feita pelo helenista
inglês John Burnet e publicada em cinco volumes entre 1900 e 1907.
138 Nazareno Eduardo de Almeida
opiniões humanas, para Platão pode haver algum tipo ou grau de verdade
nas opiniões, na medida em que estão em algum tipo de relação com o
conhecimento em sentido estrito, embora elas possam também ser falsas,
contendo algum tipo de ignorância. Analogamente, enquanto para
Parmênides a aparência sobre a qual versam as opiniões não teria nenhuma
relação com o ser, Platão concede à aparência algum tipo de ser, mesmo que
as aparências também contenham a possibilidade da ilusão por conterem
algo do não-ser.
Contudo, o ponto mais importante para entendermos posteriormente
como o diálogo Sofista modifica esta visão inicial da teoria das Formas
consiste no fato de que o digrama mostra que o ser é visto como o contrário
do não-ser, tanto quanto o conhecimento é o contrário da ignorância. No
Sofista, por contraste, Platão estabelecerá uma relação entre os conceitos de
ser e não-ser distinta da relação de contrariedade que aqui se apresenta.
Contudo, o germe dessa modificação já se encontra implícito no diagrama
apresentado acima. Esse germe se encontra, de um lado, no fato de Platão
conceber a aparência como um tipo de “mistura” entre o ser presente das
Ideias e o não-ser em sentido absoluto. De outro lado, esse germe se
encontra no fato de Platão conceber a opinião como uma mistura de
ignorância e conhecimento e, portanto, como podendo ser verdadeira ou
falsa. Para manter essa concepção da aparência e da opinião como instâncias
intermediárias entre ser e não-ser e entre verdade e falsidade, Platão terá de
modificar radicalmente sua concepção sobre o ser e o não-ser, assim como
sobre a verdade e a falsidade. Vejamos como isso acontece.
3. O diálogo Sofista como crítica e reformulação da ontologia
parmenídica
3.1. A primeira parte do diálogo: o Estrangeiro de Eleia e as primeiras
tentativas de definição do sofista e sua técnica
Os “diálogos-irmãos” Sofista e Político são geralmente considerados
como fazendo parte da última fase de elaboração da filosofia platônica. Em
ambos, não é Sócrates o protagonista central, mas um enigmático
Estrangeiro de Eleia.37 Logo no início do diálogo Sofista, este personagem é
37
O termo grego é ‘xenos’ pode ser traduzido não apenas por ‘estrangeiro’, mas também por
‘visitante’ ou ‘hóspede’. Essa última opção foi aquela escolhida na melhor tradução disponível
A origem da ontologia na metafísica grega 139
apresentado por Teodoro e Teeteto como um autêntico filósofo, pertencente
ao círculo de Parmênides e de Zenão de Eleia. Pouco depois, uma vez que o
Estrangeiro foi apresentado como um filósofo, Sócrates pede a ele que defina
o sofista e o político para poder diferenciá-los do filósofo, uma vez que o
senso comum confunde essas figuras. O diálogo Sofista e o Político cumprem
uma parte do pedido inicial de Sócrates, sendo uma questão em aberto o
porquê Platão não escreveu o diálogo destinado a definir o filósofo.
Em termos de sua estrutura, como aponta Moravcsik 38, o diálogo
pode ser entendido como tendo duas “camadas”: inicialmente, uma “camada
externa” que diz respeito à discussão sobre a definição da técnica sofística e
do sofista. Em seguida, uma “camada interna” que compreende o núcleo ou
“miolo” do diálogo, onde se faz uma crítica às concepções de ser (em
especial a concepção parmenídica ou eleata) a partir da questão sobre o
sentido do conceito de não-ser, apresentando a concepção platônica de ser e
não-ser através da teoria do entrelaçamento ou comunidade dos gêneros
supremos ou Formas primárias. Em termos de uma apresentação mais linear
dos principais estágios do diálogo, podemos dividi-lo assim: (i) o prólogo e
as tentativas de definição do sofista; (ii) o problema do não-ser e a discussão
crítica das concepções de ser “pré-platônicas”; (iii) os traços gerais da
concepção de ser e não-ser platônica através da comunidade ou
entrelaçamento dos gêneros supremos; (iv) a aplicação da concepção
platônica do não-ser à questão sobre os discursos, opiniões e imagens falsas,
aplicação que justifica a definição do sofista como produtor de ilusões
(simulacros/phantasmata). Do ponto de vista dramático, os diálogos Sofista
e Político são posicionados por Platão logo após o diálogo Teeteto. De fato,
no final deste último diálogo (dedicado à definição do conceito de
conhecimento (epistêmê)), Sócrates se despede de Teodoro e Teeteto (seus
dois interlocutores no diálogo) com a promessa de se encontrar com eles no
dia seguinte para prosseguirem suas conversações. O Sofista começa
justamente com as palavras de Teodoro se referindo a este compromisso do
dia anterior, dizendo que além de Teeteto traz consigo o Estrangeiro de
Eleia.
no português: O sofista; trad. Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e José Trindade Santos;
introdução de José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011. Neste texto, usarei a
tradução do termo por ‘estrangeiro’.
38
MORAVCSIK, Julius. Platão e platonismo: aparência e realidade na ontologia, na epistemologia
e na ética; trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola, 2006, p. 185-86.
140 Nazareno Eduardo de Almeida
Tomando Teeteto como interlocutor, o Estrangeiro de Eleia se põe no
caminho de estabelecer quem é o sofista ao definir o que é a técnica sofística.
Inicialmente, expõe o método que será usado para essa definição: o método
de divisão. Para exemplificar o uso desse método, começa procurando
definir a arte da pesca com anzol. Depois de fazê-lo por meio de um
conjunto amplo de divisões das artes/técnicas humanas, o Estrangeiro passa
a procurar, pelo mesmo método, a definição do sofista, ou melhor, do que
seja a arte/técnica sofística. A partir da divisão das artes/técnicas já usada na
definição da arte de pesca com anzol, o Estrangeiro toma outras bifurcações
e estabelece nada menos do que quatro possíveis definições: (1) o sofista
como caçador de jovens ricos; (2) o sofista como comerciante (vendedor) de
conhecimentos; caracterização que se divide em duas (2.1) o comerciante de
segunda mão (de conhecimentos produzidos por outros) e (2.2) o
comerciante de primeira mão (de conhecimento produzidos por ele
próprio); (3) o sofista como erístico (disputador argumentativo) mercenário;
(4) o sofista como refutador.39 Todas essas caracterizações são candidatas à
definição do sofista e sua arte. Na realidade, todas essas são formas que
encontramos nos sofistas efetivamente existentes na época de Platão.
3.2. O sofista como ilusionista e a questão da falsidade e do não-ser
Contudo, como todas essas caracterizações falham na tentativa de
uma definição geral que seja capaz de apreender o sofista e sua arte, uma
nova tentativa é feita. É essa nova tentativa que conduzirá o diálogo para a
discussão sobre o discurso falso e, a partir dela, dos conceitos de ser e não-
ser. Essa parte do diálogo começa caracterizando o sofista como um tipo de
ilusionista, uma vez que ele, por meio de seus discursos de refutação, se faz
passar como alguém que teria um conhecimento (epistêmê) sobre todas as
coisas (233c). No entanto, conforme o diálogo, esse conhecimento universal
só é possível para a divindade. Por isso, esse suposto conhecimento do
sofista só pode ser uma falsa aparência de conhecimento universal. Com
isso, o sofista é comparado aos pintores que criam imagens que simulam
objetos em três dimensões em superfícies bidimensionais. Portanto, por
meio de sua técnica discursiva, o sofista produz simulacros (phantasmata) de
39
Em diversos textos interpretativos, fala-se de seis e não de quatro tentativas de definição do
sofista, uma vez que se considera as subdivisões aqui feitas da segunda definição como sendo
definições distintas.
A origem da ontologia na metafísica grega 141
conhecimento das coisas sobre as quais fala, de modo análogo a como
pintores simulam em suas imagens a aparência dos objetos sensíveis
tridimensionais em superfícies bidimensionais.
Portanto, neste momento do texto, o Estrangeiro determina o
discurso do sofista como discurso falso e enganoso, embora pareça ser
verdadeiro para algumas das pessoas que o escutam. Todavia, prossegue o
Estrangeiro, há aqui dois problemas correlacionados. O primeiro deles
consiste no fato de o sofista negar a possibilidade e a existência do discurso
falso. O segundo (diretamente relacionado com o primeiro) é o problema de
como definir o discurso falso. Tomemos brevemente em atenção cada um
destes problemas. O primeiro problema provém justamente de uma
interpretação sofística da filosofia de Parmênides. Ela pode ser resumida no
seguinte raciocínio:
I. Pensar é sempre pensar algo;
II. Pensar algo é sempre pensar algo que é;
III. Se sempre pensamos o que é, então todos os nossos discursos dizem algo que é;
IV. Se sempre dizemos algo que é, então sempre dizemos a verdade, uma vez que
dizer a verdade, em uma primeira definição, consiste em dizer as coisas como
elas são;
V. Conclusão: assim, é impossível dizer algo falso, pois para tanto seria necessário
pensar e dizer algo que não é (pensar e dizer o não-ser), o que parece ser
impossível.
Esse argumento coloca, então, o segundo problema: como definir o
discurso falso. Segundo o Estrangeiro, para que seja possível definir o
discurso falso (à luz do argumento anterior), é necessário contrariar
Parmênides e ter a ousadia de defender que há um ser do não-ser. Em
outras palavras: que, de certo modo, o não-ser é e, também de certo modo, o
ser não-é. Com isso, o diálogo, em sua parte central, consistirá em criticar
aquilo que antes chamamos de primeira formulação do princípio de
identidade no poema de Parmênides. Na realidade, conforme o texto, sem
essa ousadia, nem mesmo seria possível falar da falsidade de qualquer
pensamento, opinião ou imagem. É justamente nesta suposta
impossibilidade da existência do falso (no pensamento, nos discursos e nas
imagens) que o sofista se refugia, não permitindo aplicar a ele e à sua
técnica/arte a caracterização de uma falsa aparência de conhecimento
universal (de todas as coisas).
142 Nazareno Eduardo de Almeida
3.3. A revisão das concepções de ser e o problema da predicação
O momento seguinte do diálogo consiste em mostrar que para
determinar o que é o não-ser, é necessário fazer uma revisão das concepções
de ser. A princípio, poderia parecer que se trata de uma crítica às
concepções de ser anteriores a Platão. No entanto, esta crítica também se
voltará contra a concepção platônica inicial de ser, uma concepção atribuída
àqueles que são chamados de ‘amigos das Formas’ (eidôn philous; 248a). De
modo muito esquemático e didático, são criticadas as seguintes concepções
de ser:
I. Os pluralistas e mobilistas: esta concepção, aparentemente
atribuída aos sucessores de Parmênides, como Anaxágoras e Empédocles, é
criticada por identificar o ser da totalidade a pares de contrários, tais como o
quente e o frio. Ela é problemática porque se atribui o conceito de ser a
contrários, de tal modo a gerar contradições. Por exemplo, ao dizer que o ser
é quente e também é frio, então terá de ser verdade que o quente é igual ao
frio, o que é um absurdo.
II. Os monistas e imobilistas: esta concepção, inicialmente de
Parmênides, é criticada por identificar o ser à unidade absoluta e imóvel.
Essa concepção é problemática porque considera que a totalidade do ser é
uma única coisa. Porém, a noção de todo está indissociavelmente
relacionada à noção de partes, que necessariamente são múltiplas.
III. Os materialistas: essa concepção – talvez atribuída aos atomistas
Leucipo e Demócrito – é criticada por identificar o ser ao que é corpóreo.
Ela é problemática porque não é capaz de explicar como atribuímos ser a
objetos incorpóreos ou abstratos, tal como a noção de justiça.
IV. Os “imaterialistas” ou ‘amigos das Formas’: essa concepção –
claramente apontada como sendo a versão inicial da Teoria das Formas
encontrada nos diálogos intermediários (e anteriores ao diálogo Sofista) – é
criticada porque identifica o ser às Formas, entendidas como entidades
totalmente impassíveis, imóveis e separadas dos objetos sensíveis. Esta
concepção seria incapaz de explicar, por exemplo, como nosso pensamento
pode ter relação com essas Formas (ser afetado por elas), bem como pode se
dar a relação das Formas entre si, relações necessárias para se poder
defender a existência e a função explicativa dessas entidades abstratas.
A origem da ontologia na metafísica grega 143
Os problemas levantados contra essas concepções de ser convergem
para a colocação do que se costuma chamar de problema da predicação, a
saber: como uma mesma e única coisa pode possuir múltiplas e diferentes
propriedades; o que, no nível da linguagem, equivale ao problema de explicar
como se pode atribuir com verdade múltiplos e diferentes predicados a um
único e mesmo sujeito. Na realidade, esse problema se relaciona com a
discussão sobre o conceito de ser discutido nesta parte do diálogo através do
seguinte problema.
Como explicar que podemos atribuir, com verdade, o conceito de ser
a sujeitos de predicação diferentes e mesmo contrários entre si? Tal é o caso
da atribuição do ser à unidade e à multiplicidade, uma vez que parece
evidente ser verdade que a unidade é (existe e possui certas características) e
que a multiplicidade é (existe e possui certas características). No entanto,
conquanto seja verdadeiro, em separado, atribuir o conceito de ser à
unidade e à multiplicidade, de modo algum se segue que a unidade é
multiplicidade ou vice-versa, pois isso é uma contradição flagrante. Tal é o
caso, também, do movimento e do repouso, uma vez que também parece
evidentemente verdadeiro dizer que o movimento é (existe e possui certas
características) e que o repouso também é (existe e possui certas
características). No entanto, tal como no caso da unidade e da
multiplicidade, da atribuição verdadeira do conceito de ser ao movimento e
ao repouso não se segue que o movimento é o repouso ou vice-versa, pois
isso seria um absurdo manifesto (uma contradição evidente).
Esse problema conduz o diálogo a assumir uma posição
intermediária entre duas posições insustentáveis. Como parece absurdo
tanto defender que nada se relaciona com nada (pois isso inviabilizaria
quase todas as predicações que temos como verdadeiras), quanto defender
que tudo se relaciona com tudo (pois isso tornaria todas as predicações,
mesmo aquelas contraditórias, verdadeiras), então é preciso tomar a posição
intermediária como verdadeira, ou seja, que certas coisas se relacionam entre
si e outras coisas não podem se relacionar. Assumindo essa posição
intermediária, será preciso, de um lado, apresentar uma solução que nos
permita explicar como se dão as predicações verdadeiras e, por conseguinte,
as predicações falsas. Essa solução, de outro lado, precisa mostrar como o
conceito de ser pode se relacionar não apenas com conceitos distintos, mas
até mesmo contrários entre si, sem, com isso, gerar contradições
manifestamente falsas.
144 Nazareno Eduardo de Almeida
A primeira conclusão derivada dessa via média é que o conceito de
ser se relaciona como o de repouso e com o de movimento, uma vez que
tanto o repouso é (existe e possui certas características) quanto o
movimento é (existe e possui certas características). No entanto, movimento
e repouso não se relacionam entre si, uma vez que são contrários. Por isso, o
conceito de ser se mostra irredutível a um ou a ambos.
3.4. A dialética como “gramática” das Formas, os gêneros supremos e a
definição do não-ser como alteridade ou diferença
Com a determinação da via média entre as teses errôneas de que tudo
se relaciona com tudo e de que nada se relaciona com nada, o diálogo chega
ao seu momento decisivo. Essa via intermediária no tocante ao problema da
predicação conduz o Estrangeiro de Eleia e Teeteto a estabelecerem uma
ciência por meio de uma analogia: assim como a gramática é a ciência que
conhece os elementos básicos de uma língua (letras, sílabas, tipos de
palavras e tipos de frases), e que, por isso, nos diz quais deles podem se
combinar entre si corretamente e quais não, assim também deve haver uma
ciência que estude quais as Formas básicas (sobre as quais logo mais
falaremos), e que, por isso, nos diz quais Formas podem se correlacionar e
quais não podem. Essa ciência é determinada como sendo, justamente, a
dialética.
A introdução da dialética coloca toda a discussão anterior em um
outro nível. Com ela, os problemas sobre o conceito de ser antes discutidos
se encontram no plano platônico das Formas, mas agora evitando os
problemas apontados na crítica às diversas concepções de ser, incluindo os
problemas presentes na concepção dos ‘amigos das Formas’, que
representam a primeira versão da teoria platônica das Formas. Esses
problemas são evitados porque a dialética é agora descrita, nos termos da
analogia há pouco mencionada, como um tipo de “gramática” das Formas.
Diferentemente da concepção dos diálogos da maturidade já mencionados
(particularmente no Livro VII da República), nos quais se atribui à dialética
a tarefa de procurar a definição de cada Forma isoladamente, a dialética no
diálogo Sofista já parte do fato de que as Formas se relacionam entre si e
somente assim são compreensíveis e capazes de explicar a questão da
predicação antes apresentada. Neste espírito, a dialética é assim descrita:
A origem da ontologia na metafísica grega 145
“haverá necessidade de uma ciência que nos oriente através dos
discursos (dia tôn logôn), se quisermos apontar com exatidão quais os
gêneros que são mutuamente concordantes e quais os outros que não
podem suportar-se, e mostrar mesmo, se há alguns que, estabelecendo
a continuidade através de todos, tornam possíveis suas combinações, e
se, ao contrário, nas divisões, não há outros que, entre os conjuntos,
são os fatores dessa divisão.” (253b-c; tradução própria).
Em primeiro lugar, a descrição nos mostra a dialética diretamente
associada aos discursos, ou seja, como uma ciência que precisa tomar a
linguagem comum (e, com ela, o problema da predicação acima exposto)
como o seu meio de atuação. Mas, em segundo lugar, diferentemente da
gramática, a dialética procura conhecer quais gêneros se relacionam entre si
e quais não, no nível metafísico do conhecimento da própria realidade como
um todo. Embora ocorra em outros diálogos de Platão, o termo ‘gênero’
(genos), aqui, recebe uma significação nova. Ele é usado como um novo
modo de caracterizar a noção de Forma. Notemos que a palavra ‘Forma’, no
grego é ‘eidos’. A partir desse momento, quando esta palavra se junta com a
noção de gênero, ela passa a significar também o termo ‘espécie’.
Estamos vendo nascer aqui um par conceitual que será explorado por
Aristóteles, conforme ainda veremos depois, na noção de categoria, mas em
um sentido distinto do apresentado aqui por Platão, dado que o Estagirita
negará que possamos considerar o conceito de ser como um gênero. A partir
de Aristóteles, o esquema ‘gênero-espécie’ passa a toda a filosofia e ciência
posterior e ainda hoje está em pleno uso. Como já indicado no capítulo
sobre Parmênides, esse esquema terá uma sobrevida importante como parte
da teoria clássica das definições. Dentre outras, a importância do diálogo
Sofista consiste em ser o seu lugar de nascimento. Com efeito, o uso da
noção de gênero permite a Platão pensar que há Formas primárias em
relação às demais, Formas que, por isso, estão na base e abarcam outras
Formas como suas espécies. É isso que está exposto na parte final da citação,
quando se fala de gêneros que estabelecem continuidade e gêneros que
estabelecem as diferenças ou divisões entre as Formas. A dialética, assim, é
um tipo de “gramática” das Formas, a começar pelas “Formas-gênero”, para
então passar às “Formas-espécie” que estariam contidas nas primeiras ou
delas separadas por fazerem parte de outras “Formas-gênero”.
146 Nazareno Eduardo de Almeida
Uma vez introduzida a concepção das Formas na relação ‘gênero-
espécie’, o diálogo prossegue na direção de determinar quais seriam as
Formas que cumprem o papel de gêneros mais importantes, também
chamados de gêneros supremos (megistê genê). Os três primeiros são
retirados diretamente da discussão anterior, a saber: o ser (to on), o repouso
ou imobilidade (hê stasis) e o movimento ou mobilidade (hê kinêsis). Já foi
visto que o conceito de ser se aplica com verdade tanto ao movimento
quanto ao repouso, mas que isso não faz com que o movimento seja idêntico
ao repouso. Contudo, implicitamente motivados pela discussão do já
mencionado problema da predicação, o Estrangeiro e Teeteto logo chegam a
dois outros gêneros supremos necessários para se compreender os tipos de
relação que podem se dar entre os três primeiros gêneros supremos, a saber:
o mesmo ou a identidade (tauton ou to auton) e o outro ou a diferença
(thateron ou to heteron).
A partir da analogia entre a gramática e a dialética, estes cinco
gêneros supremos são usualmente chamados pelos/as intérpretes de ‘Formas
vogais’, uma vez que as vogais são aquelas letras mais básicas que permitem
todas as relações entre as demais letras (consoantes) para formar as sílabas,
das quais resultam todas as palavras de uma língua. Na realidade, diante dos
desdobramentos da discussão, dentre esses cinco gêneros, são três aqueles
que mais perfeitamente cumprem essa função análoga às das vogais: o ser, o
mesmo (ou a identidade) e o outro (ou a diferença). 40 Isso é assim porque já
foi visto que movimento e repouso não se relacionam, mas ambos estão em
relação com os outros três gêneros supremos, os quais por sua vez, se
relacionam entre si.
No espírito da linguagem do diálogo, essa combinatória pode ser
expressa do seguinte modo: (1) o ser é o mesmo que ele mesmo e outro em
relação aos demais gêneros; (2) o mesmo é o mesmo que ele mesmo e outro
em relação aos demais gêneros; (3) o outro é o mesmo que ele mesmo e
outro em relação aos outros gêneros. E, subsidiariamente, (4) o movimento
é o mesmo que ele mesmo e outro em relação aos demais gêneros; assim
como (5) o repouso é o mesmo que ele mesmo e outro em relação aos
demais gêneros. Note-se que em todos os enunciados acima encontramos os
três gêneros supremos mais básicos: o ser, o mesmo e o outro. É inclusive
graças a esses três gêneros que podemos justificar as frases banais (mas
40
Sobre isso, veja-se MORAVCSIK, Julius. Platão e platonismo: aparência e realidade na
ontologia, na epistemologia e na ética; trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola,
2006, cap. 5, p. 200-204.
A origem da ontologia na metafísica grega 147
evidentemente verdadeiras): “o movimento não é o repouso” e “o repouso
não é o movimento.”
A propósito, nessas duas frases encontramos uma via de acesso
didática para entendermos como a teoria dos gêneros supremos nos fornece
uma definição do não-ser. O ponto chave para entendermos que o não-ser
“provém” dessa combinatória consiste em notarmos que cotidianamente
admitimos de modo natural predicações negativas verdadeiras, tais como
“Garrincha não é catarinense”, ou ainda “Machado de Assis não é branco.”
Mas o que o diálogo, neste momento, está tentando nos mostrar é
justamente a “origem” da Forma do não-ser, a qual nos permite passar do
nível abstrato e universal dos gêneros supremos até chegarmos a essas frases
negativas verdadeiras e cotidianas. Inicialmente, essa gênese se encontra na
relação entre o gênero do ser e o gênero do outro ou da diferença. Na
medida em que todos os demais gêneros participam de ambos (pois cada
gênero tem um determinado ser, mas é diferente dos demais), e que o
gênero do ser evidentemente é (mas é outro que o gênero do outro), então é
por meio dessa relação originária entre ser e outro que se espalha para todas
as demais Formas (a começar pelas outras três Formas primárias) a Forma
do não-ser. Esta Forma do não-ser se mostra como necessária para
descrever, inicialmente, as relações de identidade e alteridade de cada um
dos cinco gêneros supremos.
Em termos mais simples, na concepção elaborada nesta parte do
Sofista, a Forma do não-ser se mostra necessária inicialmente para
identificar cada um dos gêneros supremos como possuindo um ser e, ao
mesmo tempo, para diferenciar cada um deles, pois sem essa diferenciação
cairíamos em contradições evidentes. Mas a Forma do não-ser se mostra
necessária também para podermos identificar qualquer outra das Formas e
dos objetos sensíveis por meio de sua diferenciação umas em relação às
outras. A Forma do não-ser, portanto, é definível como aquela que permite
diferenciar toda e cada uma das coisas sobre as quais podemos falar, a
começar pelos gêneros supremos em suas relações mútuas de participação e
de separação.
A sequência do diálogo passa então a mostrar como a Forma do não-
ser permite distinguir pensamentos, opiniões e discursos verdadeiros e
falsos. Tomando apenas o caso do discurso (que exprime nossos
pensamentos e nossas opiniões), um discurso qualquer é verdadeiro se diz
das coisas que são (os entes) que elas são e das coisas que não são (os não-
148 Nazareno Eduardo de Almeida
entes) que elas não; inversamente, um discurso falso é tanto aquele que diz
das coisas que são que elas não são, quanto aquele que diz das coisas que não
são que elas são. Assim, contrariamente ao que inicialmente alegava o
sofista, a falsidade é, sim, possível e real no âmbito do pensamento e do
discurso. Com isso, a caracterização do sofista como aquele que possui uma
falsa aparência de saber universal pode ser justificada.
Notemos que a concepção platônica do ser como um dos gêneros
supremos só em parte é uma ontologia no sentido de um discurso sobre o
ser. Na realidade, para contar o ser como umas das Formas fundamentais (um
gênero supremo), ele precisa estar no mesmo nível que os gêneros do mesmo
(ou a identidade) e do outro ou a diferença). Não há dúvida de que se trata de
uma teoria metafísica, na medida em que lida com conceitos que
ultrapassam o nível da percepção material. Contudo, essa concepção não se
reduz a uma ontologia, uma vez que pensa o conceito de ser como uma
Forma ao lado de ao menos duas outras Formas igualmente fundamentais.
Assim, a “ontologia” elaborada por Platão no Sofista faz parte de sua
metafísica como uma teorização sobre as Ideias, aquilo que poderia ser
denominado (literalmente e no sentido positivo) pelo termo ‘ideologia’ (um
discurso ou teoria (-logia) sobre as ideias (ideo-)), mas sobre isso falarei na
parte dos aprofundamentos e discussões deste capítulo.
Deixando de lado essa consideração geral sobre a “ontologia”
platônica no Sofista, podemos estabelecer um importante contraste entre
Platão e o que antes falamos sobre Parmênides. Neste diálogo, Platão
defende que somente podemos fazer uma justificação de nossos usos
verdadeiros e legítimos da negação na linguagem comum (na forma ‘S não é
P’) se assumimos que o conceito de ser não está apenas relacionado com o
conceito de identidade, mas que também deve estar em relação com o conceito
da alteridade ou diferença. Podemos perceber isso retomando o diagrama
antes apresentado, no qual está inscrita a apropriação platônica da ontologia
parmenídica nos diálogos da maturidade. No diálogo Sofista, em lugar de
compreender os conceitos de ser e de não-ser como conceitos opostos ou
contrários (como simbolizado naquele diagrama), Platão passa a concebê-
los como conceitos complementares e, de certo modo, relacionados. Essa
mudança é marcada explicitamente neste diálogo como uma contraposição
à ontologia de Parmênides, mas, implicitamente, é uma contraposição à sua
própria perspectiva de compreensão dos conceitos de ser e não-ser nos
diálogos intermediários. Todavia, como já dito antes, essa mudança é
A origem da ontologia na metafísica grega 149
necessária para que Platão possa manter (com outro sentido) sua concepção
inicial sobre o caráter misto da aparência (como um tipo de intermediário
entre ser e não-ser) e sobre o caráter misto da opinião (que pode ser
verdadeira ou falsa porque colocada entre conhecimento e ignorância). Com
isso, encerramos a exposição básica sobre a ontologia de Platão no diálogo
Sofista, mostrando em que medida ela prossegue suas investigações
anteriores sobre as Formas e em que medida ela as modifica.
150 Nazareno Eduardo de Almeida
B – APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES
1. Introdução: a importância e o papel de Platão na história da metafísica
e da ontologia
A obra de Platão é, sem dúvida alguma, uma das mais importantes na
história da filosofia. No século XX, o filósofo, lógico e matemático Alfred
Whitehead chegou ao ponto de dizer que toda a história da filosofia
ocidental não passaria de um conjunto de notas de rodapé à obra de Platão.
Mesmo sendo algo exagerada, essa afirmação não deixa de ter um fundo de
verdade. De fato, como já indicado no texto básico deste capítulo, Platão
transforma radicalmente a filosofia a partir dele, também por incluir a
necessidade de pensarmos filosoficamente sobre o sentido e o papel do fazer
filosófico no contexto da cultura (polis). Isso também é assim no que toca à
história da metafísica e, portanto, à história da ontologia. Com efeito, a
Metafísica de Aristóteles, em grande medida, só pode ser pensada como um
diálogo crítico com a filosofia de seu mestre.
No entanto, a metafísica de Platão, cujo centro é aquilo que se
convencionou chamar de ‘teoria das Ideias’ ou ‘teoria das Formas’ contém
uma ontologia, mas não se resume a ela, como já apontado rapidamente
antes. Como já vimos na parte dos aprofundamentos e discussões do
capítulo 1, levando em consideração a descrição da metafísica de Platão
encontrada na Metafísica de Aristóteles, ela está mais próxima de uma
henologia do que de uma ontologia. Segundo Aristóteles, a metafísica de
Platão (centrada em sua teoria das Formas) tinha como fundamento a
postulação de dois princípios complementares: o uno primordial (também
chamado de limite (peras)) e a díade indefinida (também chamada de
ilimitado (apeiron)). Portanto, para seu mais famoso discípulo, a metafísica
de Platão seria primariamente uma henologia centrada em uma
interpretação dos conceitos de unidade e multiplicidade através da teoria
das Formas e só secundariamente uma ontologia centrada nos conceitos de
ser e não-ser. Em certa medida, como veremos ao analisar o Livro IV da
Metafísica de Aristóteles, a postulação da filosofia primeira como uma
ciência do ser enquanto ser (expressão mais tarde sintetizada na palavra
‘ontologia’) é um tipo de resposta crítica à metafísica primariamente
henológica de Platão.
A origem da ontologia na metafísica grega 151
Deixando de lado as controvérsias sobre esta descrição aristotélica da
metafísica de Platão (e dos primeiros platônicos que o sucedem na
Academia), é justamente essa imagem da metafísica platônica que prevalece
na importante escola dos neoplatônicos, especialmente a partir de Plotino
de Licópolis (c. 205-270 d. C.). Segundo Plotino, a henologia está acima da
ontologia e a contém. Essa hierarquia da metafísica de Plotino (e dos
neoplatônicos posteriores a ele) é evidente pela seguinte tese de Plotino:
“todos os entes são entes por causa da unidade” (panta ta onta tô(i) heni
estin onta) (Enéadas VI, 9, 1, 1). Essa tese é central na metafísica de Plotino e
dos neoplatônicos: o Uno primordial é causa de existência de todos os seres,
estando, por isso, acima ou além do ser. Ao se estabelecerem como
autênticos intérpretes e continuadores de Platão na etapa final da filosofia
antiga, Plotino e os neoplatônicos depois dele entendem que a metafísica
platônica é constituída primariamente por uma henologia que contém uma
ontologia, mas não se reduz a ela. Essas observações gerais marcam a
importância de Platão tanto (inicialmente) na Metafísica de Aristóteles,
quanto (posteriormente) na metafísica henológica dos neoplatônicos.
Portanto, ao falarmos da ontologia de Platão, devemos ter em conta este
aspecto, muitas vezes negligenciado por intérpretes que acabam por
“aristotelizar” (ou “ontologizar”) demasiadamente sua interpretação da
metafísica platônica.
Todavia, apesar da importância dos testemunhos de Aristóteles sobre
a metafísica de seu mestre e da leitura neoplatônica do final da filosofia
antiga iniciada por Plotino, devemos ser cautelosos/as. Isso porque essas
leituras se baseiam em uma interpretação do percurso filosófico de Platão,
um percurso que a história da filosofia dos últimos dois séculos já mostrou
ser mais complexo do que se imagina à primeira vista. Uma maneira de
assumirmos que, de fato, Platão desenvolve uma metafísica através de sua
teoria das Formas, mas que tal metafísica talvez não seja redutível ou
identificável nem a uma ontologia ou a uma henologia consiste em pensar
que a metafísica platônica é uma “ideologia”. Para que não haja equívocos,
dada a ambiguidade dessa palavra no contexto recente, dizer que a
metafísica platônica é uma “ideologia” consiste tão-somente em dizer que
ela é um conjunto de discursos filosóficos em defesa da necessária existência
das Ideias, sobre suas características e suas relações entre si e com os objetos
e fatos que pertencem ao mundo sensível à nossa volta. Aliás, como já
indicado antes e como veremos melhor logo mais, Platão proporá no
152 Nazareno Eduardo de Almeida
diálogo Sofista que não apenas os objetos sensíveis “ganham” seu ser por
participarem das Ideias ou Formas, mas que as próprias Ideias ou Formas
ganham seu ser por um tipo de mútua participação entre si.
Seguindo o horizonte das interpretações recentes sobre a “evolução”
do pensamento de Platão ao longo de sua vida, essa mútua participação das
Formas entre si que encontramos no diálogo Sofista (e em outros diálogos
da última fase da filosofia platônica) é o resultado de uma reformulação da
interpretação filosófica de Parmênides feita por Platão ao longo de vários
diálogos. De qualquer modo, deixando de lado a interpretação aristotélica e
neoplatônica da metafísica de Platão, o diálogo Sofista mostra que aquilo
que podemos chamar de ontologia de Platão está envolvida em uma nova
etapa de investigação sobre a natureza e as características das Formas.
Usando a expressão que inserimos acima, a ontologia platônica encontrada
no diálogo Sofista representa uma parte da metafísica platônica entendida
como um conjunto de discursos teóricos sobre as Ideias, ou seja, pode (e
defendo que deve) ser encarada como parte da metafísica platônica
enquanto “ideologia”.41
Como já indicado antes e como veremos melhor na próxima seção,
podemos dividir a recepção (interpretação) da ontologia de Parmênides por
parte de Platão em duas fases: uma encontrada nos diálogos intermediários
e outra encontrada nos diálogos tardios, em especial no diálogo Sofista.
Com essa interpretação da posição da ontologia no desenvolvimento da
metafísica platônica evitamos recair em uma visão demasiado estática desta
filosofia, uma visão que tem se mostrado difícil de sustentar diante da
riqueza e complexidade dos diálogos deste filósofo fundamental.
2. Sobre a apropriação da ontologia parmenídica nos diálogos da
maturidade
Já falamos antes de algumas características da recepção de
Parmênides nos diálogos da maturidade de Platão. Mostramos que na
República, diálogo central desta fase (e de toda a obra de Platão), a presença
do pensamento de Parmênides se encontra primeiramente no Livro V desta
obra. Com efeito, o diagrama que apresentamos antes será retomado na
41
Para mais detalhes sobre esta interpretação da metafísica platônica, veja-se DE ALMEIDA,
Nazareno Eduardo. “A metafísica platônica como método das Formas”; Dissertatio, vol. 49,
2019, p. 175-245.
A origem da ontologia na metafísica grega 153
parte final do Livro VI, naquilo que se convenciona chamar de metáfora da
linha segmentada, a qual será “ilustrada” através da célebre Alegoria da
caverna no início do Livro VII. Essa progressão mostra a importância do
esquema ontológico e epistemológico sobre o qual só pudemos aludir
rapidamente no texto básico deste capítulo. A sequência que começa na
parte mencionada do Livro V até o final do Livro VII é de suma importância
porque é nesta parte da República que Platão estabelece a primeira imagem
geral do que significa ser filósofo/a e como se deve fazer filosofia.42
Por conta disso, a apropriação platônica da ontologia parmenídica é
uma parte fundamental dessa construção da imagem geral do/da filósofo/a e
da filosofia na obra de Platão. Na parte final dessa sequência encontramos
aquela que é considerada a primeira apresentação do conceito de dialética
como culminação da educação filosófica. Cabe à dialética, nesta parte da
obra de Platão, o papel de conduzir o/a filósofo/a ao conhecimento das
Ideias ou Formas em si mesmas.
Assim, é a dialética que realiza a relação entre o conhecimento em
sentido estrito (epistêmê) e o ser que está no topo do diagrama antes
apresentado. Notamos, portanto, que as Formas “substituem”, na filosofia
platônica, o conceito de ser inicialmente introduzido na filosofia grega por
Parmênides. Contudo, reiterando o já dito várias vezes antes, a metafísica
platônica associada à chamada teoria das Formas não se restringe à
ontologia. No contexto da República, as Ideias são entes ou seres, mas a Ideia
mais elevada de todas, a Ideia do Bem, é claramente determinada como
estando além ou acima do ser. Convém citar esta passagem tão importante
do Livro VI:
“Sócrates – Mas observa ainda melhor a imagem do Bem. Glaucon –
Como? Sócrates – Reconhecerás que o Sol proporciona às coisas
visíveis, não só, segundo julgo, a capacidade de serem vistas, mas
também a sua gênese, crescimento e alimentação, sem que seja ele
mesmo a gênese. Glaucon – Como assim? Sócrates – Logo, para os
42
Nunca é demais lembrar que Platão afirma claramente na República que a filosofia não deveria
ser restringida aos homens, mas que também as mulheres deveriam receber a mesma educação
na cidade ideal; e caso se mostrassem aptas, deveriam prosseguir em direção à educação
propriamente voltada para fazer filosofia, o que, no contexto deste diálogo, significa que
também deveriam se tornar governantes da cidade ideal. Em outras palavras, Platão é o
primeiro filósofo a reconhecer explicitamente que há e deve haver filósofas, embora esse
reconhecimento já estivesse implícito na tradição pitagórica anterior a Platão.
154 Nazareno Eduardo de Almeida
objetos do conhecimento [sc. as Ideias ou Formas], dirás que não só a
possibilidade de serem conhecidos lhes é proporcionada pelo Bem,
como também é por ele que o ser (to einai) e a essência (ousian) lhes
são adicionados, apesar de o Bem não ser uma essência, mas estar acima
e para além da essência, pela sua dignidade e poder.” (509b 1-10; grifos,
parênteses retos e termos gregos acrescentados)43
Essa passagem foi extremamente valorizada pelos filósofos
neoplatônicos, a começar por Plotino. De fato, para Plotino, o Uno
primordial (donde todas as coisas provêm) está acima do ser, e justamente
por causa desse trecho da República é chamado de ‘Bem’. Este trecho mostra
com a máxima clareza possível que a metafísica platônica das Formas inclui,
mas não se restringe a uma ontologia. Na realidade, embora possamos
criticar em vários aspectos a apropriação neoplatônica da obra de Platão,
parece inegável que a relação entre os objetos sensíveis e as Ideias, bem
como a relação das Ideias com a Ideia suprema de Bem perfaz uma relação
henológica entre a unidade primária e absoluta da Forma do Bem e a
multiplicidade das outras Formas, assim como há uma relação henológica
entre a multiplicidade incontável dos objetos sensíveis que manifestam
determinada Forma e a unidade desta mesma Forma. Usando um exemplo
dado pelo próprio Platão em uma passagem da República pouco anterior
àquela citada há pouco (507b), as múltiplas e incontáveis coisas que se
apresentam a nós como belas no mundo perceptível são belas por causa de
sua participação em uma única Forma da beleza. Mas esta Forma coexiste
com muitas outras Formas, sem que com elas se confunda. Essa
multiplicidade de Formas, por sua vez, é unificada por sua relação com uma
única Forma suprema: a Forma do Bem. Podemos representar essa
hierarquia de unidade e multiplicidade – no estilo encontrado nos
neoplatônicos – por meio da seguinte figura:
43
PLATÃO. República; trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1996,
p. 312.
A origem da ontologia na metafísica grega 155
Forma do Bem
Múltiplas
Formas
Incontáveis objetos sensíveis
Esta figura esquemática mostra mais claramente a hierarquia
henológica entre unidade e multiplicidade, hierarquia que se organiza desde
a unidade absoluta da Forma do Bem até a multiplicidade incontável dos
objetos sensíveis que estão em torno de nós. Inicialmente, a Forma do Bem,
no topo da pirâmide, representa uma única Forma suprema que está para
além do ser porque é sua causa. Como mencionado na citação apresentada
há pouco, essa posição é ilustrada na analogia entre a Forma do Bem e o Sol
do mundo sensível, sendo o Bem um tipo de “Sol das Formas”, e, por isso,
um tipo de causa transcendente para o ser uno de cada uma das outras
Formas. Em seguida, na parte intermediária da pirâmide, temos as múltiplas
Formas (o belo, o justo, o igual etc., que compõem o chamado “mundo das
Ideias”), sendo cada uma destas Formas separada das demais, bem como
dos múltiplos objetos sensíveis. Por fim, na base da pirâmide, temos os
incontáveis objetos sensíveis (que compõem o chamado “mundo sensível”),
objetos que participam de modo imperfeito, parcial e provisório das
Formas.44 Veremos logo mais, quando analisarmos o diálogo Sofista, que
essa concepção de uma única Forma suprema acima de todas as outras será
alterada.
A partir dessa figura esquemática, podemos estabelecer que na versão
inicial da teoria das Formas o conceito de ser, em sentido estrito, se encontra
na parte das múltiplas Formas. Segundo algumas passagens do diálogo
44
Coloquei as expressões ‘mundo das Ideias’ e ‘mundo sensível’ entre aspas porque, a rigor, Platão
não usa essas expressões, que se tornaram correntes a partir da interpretação neoplatônica de
seus diálogos. No Livro VII da República, Platão fala apenas de uma “região inteligível” (topos
noêtos; 517b 5), em contraste implícito com o que seria uma região dos objetos sensíveis. Mas
ambas as regiões podem ser pensadas como as partes de um mesmo mundo, como o fazem
vários/as intérpretes recentes. De qualquer modo, uso essas expressões por estarem já bastante
difundidas na “vulgata” da teoria platônica das Formas.
156 Nazareno Eduardo de Almeida
Crátilo e do diálogo Teeteto, é provável que Platão tenha assumido uma
posição tipicamente parmenídica segundo a qual não seria correto aplicar o
conceito de ser aos objetos sensíveis, uma vez que estes estariam em constante
transformação. Em lugar de usar o verbo ‘ser’ (einai) para falar desses
objetos, o correto seria usar o verbo ‘tornar-se’ (gignesthai). Isso significa
que na fase intermediária do pensamento platônico é provável que os
objetos sensíveis não fossem considerados como entes ou seres em sentido
próprio. Apesar disso, aquilo que os objetos sensíveis podem ter de estável em
sua existência passageira e efêmera eles o obtém por sua participação nas
Formas. De qualquer modo, somente de maneira subsidiária e relativa (em
muitos casos de modo equivocado) poderíamos chamar os objetos sensíveis
de seres ou entes. Assim, a ontologia platônica dos diálogos intermediários se
restringe mais propriamente ao nível das múltiplas Formas, mas não se
aplicaria nem à Ideia de Bem, nem propriamente aos objetos sensíveis, que
estão em constante processo de transformação e movimento.
Tudo isso justifica aquilo que foi dito na seção anterior: em um
sentido amplo, a metafísica de Platão, indiscutivelmente ligada à sua teoria
da Formas, certamente inclui uma ontologia, mas também, pelo que estamos
vendo, não se reduz a uma ontologia. Por conseguinte, embora as indicações
implícitas de Aristóteles e explícitas dos neoplatônicos de interpretar a
metafísica platônica das Formas como uma henologia (que incluiria uma
ontologia) pareçam mais próximas do esquema que estamos vendo, talvez
elas não captem vários aspectos associados a esta figura esquemática.
Por conta disso, foi antes indicado que uma denominação mais
neutra e abrangente para a metafísica platônica poderia ser encontrada na
palavra ‘ideologia’, entendida em seu sentido literal: um discurso teórico
sobre as Ideias ou Formas. A insistência neste ponto não é gratuita, mas
procura mostrar que certas concepções correntes que assumem sem
discussão a identificação entre metafísica e ontologia podem nos conduzir a
equívocos e distorções na interpretação de textos indispensáveis para a
história da metafísica. Como já dissemos, em termos historiográficos e
interpretativos rigorosos, a história da ontologia está contida dentro da
história da metafísica. Agora estamos vendo que este é o caso da metafísica
platônica. De qualquer modo, a ontologia que podemos encontrar na
filosofia platônica, sem dúvida alguma, é de extrema importância para a
história da ontologia.
A origem da ontologia na metafísica grega 157
Feitos esses esclarecimentos e observações, podemos tomar em
atenção como a concepção platônica das Formas (exceto a do Bem) nos
diálogos da maturidade incorpora, sim, vários aspectos da ontologia
parmenídica. Para mostrar isso, lançaremos um rápido olhar sobre outro
diálogo que a maioria dos/das intérpretes situa nesta mesma fase do
pensamento platônico: o diálogo O banquete. Trata-se de um dos mais
conhecidos e mais belos dentre os diálogos platônicos. Depois de uma
introdução situando o cenário no festejo na casa do poeta Agatão, seguem-
se os vários discursos dos convivas sobre o amor. Logo após o discurso sobre
o amor proferido por Agatão, chega o momento de Sócrates fazer seu
discurso. Sócrates, inicialmente, realiza seu costumeiro diálogo refutador
contra certas teses contidas no discurso do poeta que o precedeu. Em
seguida, propõe relatar aos presentes um diálogo que teria tido com Diotima
de Mantineia45, no qual ela o teria instruído sobre a natureza do amor.
É deste texto que deriva a expressão ‘amor platônico’. Contudo, o
amor descrito por Diotima não corresponde ao sentido atual dessa
expressão. Na realidade, em seu momento máximo o ‘amor platônico’
coincide com o amor às Ideias ou Formas. É com esse amor às Formas que
Platão estabelece um possível sentido do termo ‘filo’ (‘amor’, ‘desejo’) na
expressão ‘filosofia’, de tal modo a inseri-lo no contexto teórico de sua
própria filosofia e prosseguindo aquilo que antes já dissemos: seu esforço
pioneiro de fundamentação filosófica da filosofia como um tipo de fazer
humano dentro da cultura.
Convencionou-se chamar o processo descrito no discurso de Diotima
como a scala amoris (‘escada do amor’). Em linhas gerais, a escalada feita
por esta escada passa pelos seguintes estágios: (1) o amor à beleza do corpo
de determinada pessoa; (2) o amor à beleza dos corpos em geral; (3) o amor
à beleza da alma de certas pessoas (contida em seus conhecimentos); e, por
fim, (4) o amor à própria Ideia ou Forma da beleza, que confere a beleza à
alma e aos corpos humanos, bem como a tudo o que há ou pode haver de
belo no mundo. O trecho que citaremos a seguir se refere a este último
estágio na ascensão em direção à própria Forma da beleza. Eis o belo trecho
do discurso de Diotima relatado por Sócrates:
45
Há muita controvérsia sobre se Diotima teria existido ou se seria apenas uma personagem
ficcional criada por Platão. E no caso de ter existido de fato, se teria defendido o que o texto
platônico lhe põe na boca. Como quer que seja, o fato de Platão introduzir uma personagem
feminina no momento culminante de seu diálogo corrobora o que dissemos antes sobre sua
defesa da filosofia como atividade não restrita ao gênero masculino.
158 Nazareno Eduardo de Almeida
“Tenta agora, disse-me ela [sc. Diotima], prestar-me a máxima atenção
possível. Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as
coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já
chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de
maravilhosamente belo em sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a
que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo
(aei on), sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois,
não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto
a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns
fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe-á o belo
como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo,
bem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a
existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu,
ou em qualquer coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si
mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme (auto kath’hauto
meth’hautou monoeides aei on), enquanto tudo o mais que é belo dele
participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é
belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre.” (210e-211b;
termos gregos e ênfases acrescentados)46
Inicialmente, note-se as partes grifadas em negrito. A primeira
passagem em negrito atribui à Forma da beleza (o que pode se estender às
demais Formas) a característica da eternidade. Como vimos na parte sobre a
ontologia de Parmênides, esta é uma das características do ser demonstrada
pela deusa que conduz a narrativa do poema. A segunda passagem em
negrito atribui à Forma da beleza (e, por extensão, às outras Formas),
justamente aquela que indicamos antes como a característica mais
fundamental do ser parmenídico: a identidade em sentido primário.
Notamos ainda no texto acima um claro eco das repetições do conceito de
‘mesmo’ ou ‘identidade’ (tauton, to auto) no poema de Parmênides (frag. 8,
linhas 29-30). Isso mostra que o ser das Formas (representadas aqui pela
Forma da beleza) é marcado – tanto quanto o ser único de Parmênides –
pela identidade em sentido primário. Essa característica é acompanhada por
outro conceito também usado por Parmênides: a uniformidade.47
46
PLATÃO. O banquete; trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: editora Abril, 1973, p. 48.
47
O conceito é o mesmo, embora o termo usado por Parmênides seja ‘monogenes’ (frag. 8, linha
4), que significa literalmente ‘de único (mono-) gênero (-genes)’. Em contraste, o termo usado
por Platão no trecho citado é ‘monoeides’, que significa literalmente ‘de única (mono-) forma (-
A origem da ontologia na metafísica grega 159
Mas além de encontrarmos nesta passagem um exemplo emblemático
da apropriação platônica da ontologia de Parmênides, também encontramos
uma ótima oportunidade de entendermos melhor, através da descrição da
Ideia de belo, o sentido geral dos conceitos platônicos de Ideia e Forma tal
como estes conceitos são elaborados nos diálogos da maturidade e mesmo
dos diálogos da velhice. Nossa palavra ‘ideia’ é uma transliteração do termo
grego ‘idea’. Já a palavra ‘forma’ é a tradução mais comum do termo grego
‘eidos’. Na realidade, em grego, essas duas palavras pertencem a uma mesma
família de termos. Em certa medida, são sinônimas já no idioma grego
anterior a Platão, assim como em seus diálogos são tomadas como termos
sinônimos para denominar os objetos inteligíveis. Os dois termos gregos
provêm do mesmo verbo, que é o verbo ‘eidô’, usado tanto no sentido de
‘ver’ quanto no sentido de ‘saber’. A partir de sua base gramatical e
etimológica, a palavra grega ‘idea’ pode ser traduzida filosoficamente como
‘a forma sem-fundo do que se vê ou do que se sabe’. No mesmo espírito, a
palavra ‘eidos’ pode ser traduzida filosoficamente como ‘a forma daquilo que
se sabe’.
Note-se que, de modo geral, nós vemos e passamos a saber sobre algo
dado em nossa percepção sempre em um contexto determinado e desde
uma determinada perspectiva, ou seja, nosso saber perceptivo sempre tem
acesso às formas das coisas a partir de um determinado fundo. Aliás, uma
corrente da psicologia moderna, a chamada ‘Escola da Gestalt’, desenvolve
toda uma teoria sobre a psique humana a partir do par conceitual fundo-
forma. Em contraste com esse fato banal, as noções platônicas de Ideia e
Forma enfatizam que o verdadeiro saber é aquele que se adquire quando
conseguimos sair deste saber perceptivo sempre situado em e relativo a um
contexto. É justamente este o contraste feito na passagem citada. A Forma da
beleza que atribuímos às coisas sensíveis está sempre colocada em
circunstâncias (aparece a partir de um fundo), de tal modo que em
determinado momento uma pessoa considera algo belo, mas em outro
momento esta mesma pessoa considera a mesma coisa como feia. Além
disso, entre pessoas diferentes, uma considera algo como belo e outra como
feio. E ainda, uma mesma pessoa pode olhar uma coisa de determinado
ângulo e considerá-la bela, mas olhando a mesma coisa de outro ângulo
pode considerá-la feia. Por fim, atribuímos o conceito de beleza a múltiplas
eides)’. Apesar dessa diferença, o sentido do conceito é o mesmo, ainda que expresso de modos
distintos. Como veremos logo mais, no diálogo Sofista, Platão usará o termo grego ‘genos’
(gênero) como um tipo de sinônimo do termo ‘eidos’ (forma).
160 Nazareno Eduardo de Almeida
coisas totalmente distintas, como mostram os exemplos contidos no texto
citado: a rostos, mãos, a um determinado corpo, a determinado animal, e, de
modo mais abstrato, a determinado discurso e a determinado
conhecimento.
Em contraste com todas essas múltiplas, variadas, parciais e
provisórias maneiras como “vemos” a beleza no âmbito sensível, a Ideia ou
Forma da beleza permanece sempre a mesma e não se identifica com
nenhuma das infindáveis e variáveis maneiras como a beleza se manifesta a
nós nas coisas acessíveis pela percepção e, em parte, ao pensamento
associado a algo perceptível. Aquilo que Platão está apontando aqui é que o
saber em sentido estrito sobre que é o belo não se adquire através dos modos
como a beleza se manifesta nas coisas e circunstâncias particulares. A Ideia
ou Forma, portanto, embora se manifeste nos objetos sensíveis, não se
identifica com nenhum deles e deve ser considerada como estando separada
destas manifestações sempre particulares, parciais, provisórias e transitórias.
Neste ponto, entendemos que a Ideia ou Forma é o objeto propriamente dito
e o objetivo (finalidade) último de nosso processo de obtenção do saber ou
conhecimento.
Por isso, no diagrama apresentado no texto básico, o saber das
Formas ou Ideias é o único possível sinônimo do conhecimento (epistêmê)
em sentido estrito. Na medida em que nosso saber permanece apenas no
nível das manifestações particulares e imperfeitas das Ideias ou Formas nos
objetos sensíveis, esse saber se mantém apenas como opinião, sempre sujeita
a falsidade e ao erro. Em um trocadilho relevante, isso significa: a Ideia deve
ser postulada como o ideal a ser atingido pelo saber humano para que este
possa ser considerado conhecimento em sentido próprio. Por isso, não é
casual que Platão use os termos gregos ‘idea’ e ‘eidos’ como nomes desses
objetos abstratos, pois eles estão intimamente associados ao verbo ‘eidô’ que
significa principalmente ‘ver’ e ‘saber’. Quando e se nosso saber (enquanto
um tipo de visão da inteligência) atinge a Ideia ou a Forma em si mesma,
então esse saber encontra sua finalidade, de modo análogo a como a deusa
no poema de Parmênides nos sugere que nosso pensamento alcança a
verdade e o conhecimento quando atingimos o ser em si mesmo.
Isso também nos permite compreender como a ontologia de Platão é
inseparável de sua epistemologia, de tal modo que entendemos o porquê o
diagrama antes exposto no texto básico e retirado do Livro V da República
coloca em correlação simétrica os dois lados de uma mesma linha: um lado
A origem da ontologia na metafísica grega 161
ontológico e outro epistemológico. Em suma, as palavras ‘Ideia’ (‘idea’) e
‘Forma’ (‘eidos’) – com as quais Platão mais comumente fala dos objetos
inteligíveis – contêm implicitamente a noção de que as Formas ou Ideias são
o objeto propriamente dito e o objetivo (finalidade) do saber humano. Além
disso, as Formas ou Ideias em si mesmas são os entes mais básicos na
medida em que são o fundamento do possível ser dos objetos sensíveis,
naquilo que estes objetos podem ter de estável e, portanto, naquilo que pode
justificar parcialmente a aplicação do nome ‘entes’ ou ‘seres’ a eles.
Em resumo, nesta seção, entendemos melhor: (1) como a metafísica
platônica dos diálogos da maturidade possui aspectos henológicos e
ontológicos em seu discurso teórico sobre as Ideias ou Formas (sua
“ideologia”); (2) como a parte propriamente ontológica da metafísica
platônica se encontra na determinação das características das Ideias ou
Formas, excetuando-se a Ideia de Bem e, em certa medida, os objetos
sensíveis que participam das Formas ou Ideias; (3) como as Formas ou
Ideias representam objetos inteligíveis que possuem certas características
ontológicas retiradas da ontologia de Parmênides; e, por fim, (4) que os
nomes ‘Forma’ (‘eidos’) e ‘Ideia’ (‘idea’) – aplicados a estes entes abstratos e
inteligíveis – possuem implicitamente uma motivação na epistemologia de
Platão. Estamos agora em condições de passar a uma análise do diálogo
Sofista capaz de mostrar em mais detalhes como este texto altera a ontologia
platônica presente nos diálogos da maturidade.
3. A reformulação da herança ontológica parmenídica no diálogo Sofista
3.1. Introdução: a crítica à teoria das Formas no diálogo Parmênides e
sua reformulação no Sofista
Nessa parte do texto, assumirei uma concepção partilhada por
muitos/as intérpretes de Platão. Essa concepção argumenta que a passagem
da segunda para a terceira fase do desenvolvimento filosófico de Platão é
realizada no diálogo Parmênides. Nesta perspectiva de interpretação, o
diálogo Sofista representa uma resposta ao diálogo Parmênides. O diálogo
Parmênides é reconhecido como uma das mais complexas obras de Platão.
Por conta disso, o que direi aqui sobre ele é apenas um resumo muito geral
(e até simplista) de uma de suas partes. O Parmênides é geralmente dividido
162 Nazareno Eduardo de Almeida
em duas partes. A primeira parte contém alguns célebres argumentos que
apresentam uma forte crítica a certas teses centrais da teoria das Ideias tal
como ela se apresenta nos diálogos da maturidade. A segunda parte consiste
em um longo e complexo “exercício” de argumentação dialética centrado em
oito ou nove hipóteses que investigam diferentes perspectivas sobre as
relações dos conceitos (Formas) de unidade, multiplicidade, ser e não-ser,
mas que se espraiam por inúmeros outros conceitos associados com estes.
Do ponto de vista dramático, Platão cria um cenário ficcional em que
coloca em diálogo um já idoso Parmênides (precedido brevemente por seu
discípulo Zenão) e um jovem Sócrates. Na sequência textual, o diálogo
começa indicando que Zenão teria ido a Atenas com seu mestre para fazer
uma leitura de seus escritos. O jovem Sócrates do diálogo teria chegado no
final da leitura, pedindo a Zenão que relesse a primeira hipótese do primeiro
argumento e logo após expõe a sua compreensão do mesmo, exposição que
Zenão considera correta. Em seguida, o jovem Sócrates afirma que os
argumentos de Zenão visam fazer uma defesa da tese de Parmênides
segundo a qual o todo do ser é uno, não havendo espaço para a existência da
multiplicidade. Zenão concorda e diz que seus argumentos procuram
corroborar a tese de seu mestre, mostrando os absurdos em que recaem
aqueles que defendem que o ser se aplica à multiplicidade das coisas
sensíveis. É então que o jovem Sócrates passa a querer refutar a
argumentação de Zenão através da teoria das Formas, sugerindo que esta
teoria seria capaz de conciliar os conceitos de ser, unidade e multiplicidade.
A partir disso, Sócrates considera ter refutado a perspectiva de Zenão e,
indiretamente, aquela de Parmênides.
É depois da argumentação de Sócrates que Parmênides toma a
palavra e apresenta um conjunto de argumentos críticos à teoria das Formas,
tal como exposta pelo jovem Sócrates. Dentre estes vários argumentos, dois
deles são os mais destrutivos e os mais discutidos pelos/as intérpretes desta
parte do texto: o argumento da simetria ou transitividade da participação e
o argumento que, a partir de seu uso por Aristóteles, passou a ser chamado
de ‘argumento do terceiro homem’.
Muito resumidamente, o argumento da simetria da participação nos
diz o seguinte. Se a relação das coisas sensíveis com as Formas é uma relação
de participação, então a Ideia perde a sua unidade e se torna múltipla. Isto é
assim no caso de admitirmos, conforme o uso comum do verbo ‘participar’,
que se A participa de B, então B participa de A. Portanto, se um objeto
A origem da ontologia na metafísica grega 163
sensível A participa da Forma B, então essa Forma B também participa deste
objeto sensível A. Assumida essa premissa, e se diferentes objetos sensíveis
podem participar de uma mesma Forma, então essa Forma se torna múltipla
por participar de múltiplos objetos, dado que as partes dessa Forma se
distribuem por distintos objetos sensíveis. Portanto, duas consequências
absurdas se seguem: (1) uma mesma Forma é una e múltipla; e (2) as
Formas, por definição consideradas separadas dos objetos sensíveis, também
estão unidas a estes objetos.
Também de um modo muito resumido, o argumento do terceiro
homem, em seu núcleo, nos diz o seguinte. Tomando uma determinada
Forma e considerando-a separada dos objetos sensíveis, para que um objeto
sensível possa participar dessa Forma, serão necessárias infinitas Formas
intermediárias, de tal modo que não haverá apenas uma Forma para um
determinado conjunto de objetos sensíveis, mas infinitas. Isso pode ser
basicamente explicado assim: para que uma Forma A se mantenha separada
de um conjunto B de objetos sensíveis que dela participam, é necessário que
haja uma Forma C que se aplica apenas a este conjunto B, mas para que a
Forma C se aplique ao conjunto B e tenha relação com a Forma A, então
será necessária a existência de outra Forma D e assim ao infinito. Em outra
interpretação, para que uma Forma A se mantenha separada de todos os
objetos sensíveis que dela participam, será necessário que exista uma Forma
distinta para cada um dos objetos sensíveis que dela participam, de modo
que haveria tantas Formas quanto são os objetos sensíveis singulares. Mas
como podemos estabelecer um número infinito de objetos sensíveis, então
haveria uma Forma para cada um desses infinitos objetos sensíveis.
É importante lembrar que esses argumentos atingem de modo
devastador dois dos principais conceitos da teoria da Formas, tal como ela se
apresenta nos diálogos anteriores ao Parmênides, a saber: os conceitos de
separação e participação. Para defender que existem Formas ou Ideias como
objetos que possuem um estatuto ontológico distinto dos objetos sensíveis, é
indispensável que as Formas ou Ideias estejam separadas desses objetos
sensíveis. Contudo, para que as Formas não sejam objetos totalmente
inacessíveis ao nosso pensamento e sem nenhuma função explicativa em
relação às coisas sensíveis do mundo, é necessário que haja algum tipo de
relação de dependência ontológica dos objetos sensíveis e de nosso
pensamento com as Formas; ou, nos termos da teoria platônica, é necessário
164 Nazareno Eduardo de Almeida
que nossos pensamentos e os objetos sensíveis, de algum modo, participem
das Formas.
Também é importante notar que esses argumentos são apresentados
pelo próprio Platão contra a primeira versão da teoria das Formas que ele
mesmo havia elaborado, um fato que pode ser interpretado como a
indicação de que aquilo que chamamos usualmente de “teoria” das Formas
não é exatamente uma teoria no sentido de ser um corpo conceitual fechado
e acabado, tal como o são a geometria de Euclides ou a teoria da relatividade
de Einstein. Assim, segundo uma interpretação recente (com a qual estou de
acordo), aquilo que usualmente chamamos de “teoria” das Formas se parece
muito mais a um conjunto aberto de teorizações sobre uma hipótese
metafísica que procura dar conta de diversos problemas filosóficos
fundamentais. Na medida em que passamos da visão ainda usual de uma
teoria das Formas para uma visão na qual encontramos nos diálogos
diversas teorizações da hipótese das Formas, então entendemos que o diálogo
Parmênides está apresentando em sua primeira parte um conjunto de
argumentos que exigem uma reformulação dessa hipótese metafísica.48
Nesse espírito, o diálogo Sofista aparece como uma das respostas a
essas (auto)críticas presentes na primeira parte do Parmênides. Essa
perspectiva de compreensão adotada no presente texto e partilhada por
diversos/as intérpretes é muito bem e sinteticamente expressa por Julius
Moravcsik no título de um dos capítulos de seu importante e já citado livro
sobre Platão: “a teoria das Formas à prova de eleatas no Sofista.”49 Nesta
perspectiva, podemos compreender por que a reformulação da metafísica
platônica das Formas (especialmente em sua parte ontológica) encontrada
no Sofista não é apenas conduzida por um ficcional discípulo de Parmênides
(o enigmático Estrangeiro de Eleia), mas apresenta uma crítica à ontologia
de Parmênides que retoma, em novas bases, a crítica delineada na primeira
parte do diálogo Parmênides. Contudo, como mais uma das sutilezas que
caracterizam Platão, essas novas bases já estão lançadas na segunda parte do
Parmênides, quando este personagem platônico se lança em uma complexa
argumentação mostrando que não é possível compreender as Formas senão
quando as colocamos em relação umas com as outras, deixando de lado a
48
Para mais detalhes sobre esta interpretação da metafísica platônica, veja-se DE ALMEIDA,
Nazareno Eduardo. “A metafísica platônica como método das Formas”; Dissertatio, vol. 49, 2019,
p. 175-245.
49
MORAVCSIK, Julius. Platão e platonismo: aparência e realidade na ontologia, na epistemologia
e na ética; trad. Cecília Camargo Batalotti. São Paulo: Loyola, 2006, cap. 5.
A origem da ontologia na metafísica grega 165
“imagem” das Formas recorrente nos diálogos anteriores como entidades
que não apenas estão separadas dos objetos sensíveis, mas umas em relação
às outras. Feitos esses breves esclarecimentos preliminares sobre o diálogo
Parmênides, podemos passar ao Sofista.
3.2. A primeira parte do Sofista: o método da divisão e primeiras
tentativas de definição da sofística
Inicialmente, o Estrangeiro de Eleia (que conduz a narrativa do
diálogo) apresenta o método que considera adequado para definir o sofista e
a técnica sofística: o chamado ‘método de divisão’. Esse método já havia sido
mencionado no diálogo Fedro (249b-c; 265d-266c), mas lá fora usado ainda
de modo subsidiário no fluxo narrativo desta obra. No contexto do Sofista, o
método de divisão ganha total centralidade como método para alcançar
definições. Além disso, o conceito geral através do qual se ramificam as
divisões é o conceito de técnica ou arte (technê).50 Na realidade, Platão está
aqui (assim como fará no diálogo Político) introduzindo um novo sentido do
conceito de técnica ou arte. Essa introdução é motivada, no fundo, pela
admissão de que o sofista possui algum tipo de arte peculiar ao lado de
outras artes humanas desenvolvidas na polis (cidade/cultura).
Contudo, este novo sentido do conceito de técnica cumpre um papel
ainda mais importante, pois é graças a ele que o diálogo, de modo implícito,
correlaciona as Formas e os objetos sensíveis. Isso é assim porque no
conceito geral de arte se fundem as ações humanas com os objetos com os
quais essas ações lidam. Implicitamente, o sucesso ou a perícia de qualquer
arte depende de um conhecimento sobre o ser das coisas que estão
envolvidas no seu processo de produção, seja a produção de algo material,
seja a produção de algo mais abstrato, como no caso de um discurso. Assim,
quando a realização técnica é bem-sucedida, já se possui algum tipo de
conhecimento das Formas que estão implícitas na relação entre quem realiza
uma técnica, as coisas envolvidas nessa realização e o resultado desse
processo.
50
É muito importante termos em mente que a tradução do termo grego ‘technê’ por ‘arte’ não tem o
significado eminentemente estético com o qual usamos este último. Com efeito, a noção de
técnica ou arte no mundo grego e medieval indica uma forma de saber que se exprime através da
realização adequada de alguma coisa, quer seja algo material, quer seja algo de ordem intelectual.
Por isso, também traduzimos esta palavra grega pelo termo português ‘técnica’.
166 Nazareno Eduardo de Almeida
Essa função mediadora entre as Formas e os objetos materiais
sensíveis que nos circundam se confirma com a concepção platônica do
mundo como um tipo de “obra de arte” resultante do saber divino. Nesta
perspectiva platônica, as artes humanas “imitam” em menor medida e de
modo limitado a arte divina, cuja obra é o próprio mundo em seu todo. Essa
concepção parece ser corroborada no diálogo Político, quando se faz recurso
ao mito da divindade que de tempos em tempos ordena a matéria rebelde do
mundo, dando-lhe uma ordem e direção (268d ss.). Ademais, essa
concepção retoma em novas roupagens a narrativa filosófica do mundo
sensível como obra do Artesão divino (demiourgos) que aparece no Livro X
da República. Este mesmo Artesão divino é novamente retomado e
desempenha um papel central no importantíssimo diálogo Timeu. Essa
concepção do saber humano e divino como essencialmente relacionado com
a noção de técnica ou arte é também central no diálogo Sofista, em
particular para a determinação da arte ou técnica sofística como uma arte de
produzir simulacros (phantasmata). Por tudo isso, o conceito de técnica ou
arte é como que um tipo de pano de fundo que percorre todo o diálogo,
aparecendo mais claramente em determinados momentos.
Depois de exercitar o método de divisão para chegar à definição da
arte da pesca com anzol, começa-se a “caça” ao sofista através da definição
do que seria a técnica sofística. O interessante é que as tentativas de
definição retomam as bifurcações que ficaram implícitas na definição da
pesca com anzol, indicando que haveria um único quadro complexo de
divisões ramificadas de todas as artes humanas. Nessa espécie de labirinto de
divisões percorridas nesta parte do diálogo, como já indicamos no texto
básico, são apresentados seis enunciados como candidatos à definição da
técnica sofística: (1) o caçador interesseiro de jovens ricos; (2) o comerciante
de ciências; (2.1/3) o comerciante de ciências de primeira mão; (2.2/4) o
comerciante de ciências de segunda mão; (3/5) o erístico (disputador
argumentativo) mercenário; e (4/6) o refutador.
Deixando de lado a discussão sobre cada uma destas propostas de
definição (algo que não é relevante no presente texto), é indispensável
lembrarmos aqui que em muitos de seus diálogos Platão enfrenta direta ou
indiretamente figuras e ideias centrais do movimento sofístico. Cada um
desses enunciados pode ser remetido a diferentes diálogos onde
encontramos esses confrontos argumentativos. Agora, porém, Platão não
está mais discutindo com determinado sofista ou com determinada
A origem da ontologia na metafísica grega 167
concepção sofística sobre este ou aquele assunto, mas está procurando uma
definição unificada da técnica sofística. Neste sentido, este diálogo pode ser
visto como um tipo de “coroamento final” dessa longa confrontação
platônica com o movimento sofista.
Todavia, por mais que os cinco primeiros enunciados propostos para
“capturar” o sofista em uma única definição contenham aspectos
interessantes, é sobretudo o último enunciado que causa surpresa. Isso
porque a descrição do sofista enquanto refutador assemelha-se muito com a
figura e com o procedimento realizado por Sócrates. A arte da refutação é
descrita como um tipo de arte de purificação (katharsis) da alma e
considerada como tendo uma finalidade educativa capaz de constranger
pessoas inicialmente resistentes a admitir sua ignorância, libertando-as das
falsas opiniões que antes da refutação tinham como verdadeiras. A certa
altura, descrevendo por analogia o refutador como um tipo de médico das
almas, que lhes administraria um tipo de método (“remédio”) purgativo, diz
o Estrangeiro:
“Interrogam sobre as coisas que alguém julga que diz, sem nada dizer;
questionam com facilidade as opiniões erráticas e, conduzindo-as com
argumentos para um mesmo alvo, comparam umas com as outras e
demonstram que se acham em contradição consigo mesmas acerca das
mesmas coisas, em relação a elas e segundo elas mesmas. Ora, vendo
isso, os questionados irritam-se contra si próprios e amansam-se em
relação aos outros; desse modo, liberam-se das suas próprias opiniões,
grandiosas e obstinadas, e esta liberação é de todas a mais agradável de
ouvir e a mais segura para quem a experimenta.” (230b-c)51
Logo após essa descrição da técnica de purificação por refutação, o
Estrangeiro e Teeteto sentem receio de conceder demasiada honra ao sofista.
Mesmo assim, reconhecem que se trata da “estirpe da genuína sofística”
(231b). Não há consenso entre os/as intérpretes sobre se essa descrição da
técnica sofística seria mantida ou não depois da elaboração da definição no
restante do diálogo, bem como se ela seria ou não uma caracterização do
método socrático como um método sofístico. Deixando de lado essa
polêmica, o fato é que esta descrição da sofística acaba por motivar aquela
51
PLATÃO. O sofista; trad. Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e José Trindade Santos;
introdução de José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2011, p. 190.
168 Nazareno Eduardo de Almeida
que a sucede e que será considerada, ao final do diálogo, como a definição
propriamente dita do sofista.
Não obstante essa questão delicada, outro problema ainda mais sério
é colocado por essa multiplicidade de tipos de artes nomeadas como
‘sofística’: até este momento do diálogo, os termos ‘sofista’ e ‘sofística’ se
mostram ambíguos, no sentido de serem termos que não denotam uma
única espécie de técnica, mas várias espécies distintas, não passíveis de uma
única descrição comum. Por conta disso, se a investigação parasse aqui, o
filósofo não seria capaz de “capturar” o sofista em sua “rede conceitual”, de
modo que seu método de definição por divisão falharia em dar uma definição
filosófica da sofística. Esse problema é claramente expresso na seguinte
passagem:
“Não pensas que, quando um perito (epistêmôn) se mostra assim de
múltiplas <formas>, ainda que seja designado pelo nome de uma única
arte (technê), trata-se de um simulacro (phantasma) que não é natural,
e que é evidente se impor em relação a certa arte porque não
conseguimos enxergar aquilo que dá unidade a esses múltiplos saberes
(mathêmata), de modo que teríamos de designá-los por meio de
múltiplos nomes antes do que por um só?” (232a; tradução própria)
Já foi indicado que este momento do diálogo platônico prenuncia
aquilo que Aristóteles, como veremos depois, entende como as coisas ditas
de modo homônimo, as quais não perfazem a unidade de uma classe
(gênero ou espécie), ou seja, as coisas que têm em comum apenas uma
forma de denominação, mas que não possuem uma única definição.
Todavia, como é comum na trama dos diálogos platônicos, a leitura atenta
da passagem citada já nos insinua a resposta a este problema, para a qual a
argumentação do diálogo se encaminhará: a sofística como técnica de
produzir simulacros (phantasmata) por meio da argumentação e de fazê-los
passar por um conhecimento autêntico.
3.3. A sofística como falsa aparência de conhecimento universal e o
sofista como produtor de simulacros
A origem da ontologia na metafísica grega 169
Uma vez reconhecido o problema colocado pela multiplicidade dos
enunciados que caracterizam a técnica sofística sem conseguir defini-la de
modo unificado, o Estrangeiro reanima Teeteto e sugere que a última
caracterização parece mostrar o sofista mais do que as anteriores. Embora
sutil, a leitura atenta dessa retomada da investigação mostra que a sofística
como arte da refutação voltada a purificar as almas de sua ignorância dá
lugar ao sofista como um contraditor (antilogikon; 232b), ou seja, à técnica
sofística como uma “técnica de contradição” (antilogikê technê; 232e). Essa
passagem é sugestiva, pois em lugar de o sofista se parecer com Sócrates, ele
agora, de modo explícito, se assemelha a Protágoras (c. 490-415 a. C.), o
qual, aliás, é explicitamente citado (232d), embora o Estrangeiro procure
dizer que essa técnica é também a dos outros sofistas. Assim como
acontecera no diálogo Teeteto, neste momento do Sofista, Protágoras aparece
como o representante simbólico de toda a sofística. Conforme as
reconstruções a partir de testemunhos da obra atualmente perdida de
Protágoras, percebemos que é ele quem o diálogo visa a partir de agora, uma
vez que esse contraditor procura ensinar a quem o procura a técnica da
contradição sobre todos os assuntos: (1) sobre as coisas divinas e ocultas; (2)
sobre a geração e sobre o ser; (3) sobre as leis e questões políticas; (4) e sobre
os meios de contraditar os conhecimentos das artes particulares. Em suma,
os que ensinam a técnica de contradição se apresentam como se fossem sábios
sobre todas as coisas (panta sophoi, 233c).
Entretanto, retomando uma tese frequente nos diálogos de Platão, o
Estrangeiro e Teeteto assumem que apenas a divindade poderia ter um tal
saber, pois este coincidiria com a possibilidade de produzir (poiein) todas as
coisas. Como o sofista (e qualquer outro mortal) evidentemente é incapaz
disso, então o sofista é, a princípio, definível como alguém que possui a
“falsa aparência de ciência/conhecimento universal” (doxastikên peri pantôn
epistêmên all’ouk alêtheian) (233c-d).
Contudo, surge a questão: como o sofista convence algumas pessoas
de que possuiria tal conhecimento? É neste ponto que se estabelece a
analogia da técnica sofística com as artes miméticas (mimêtikê), em especial
a técnica da pintura (graphikê technê). Aquilo que o sofista produz, portanto,
não são entes (onta), mas imitações/cópias (mimêmata) e homônimos
(homônyma) dos entes (234b). Em suma, assim como o pintor imita em
simulacros imagéticos as coisas efetivas, assim também o sofista produz
170 Nazareno Eduardo de Almeida
simulacros (phantasmata) dos entes por meio de palavras, sendo também
caracterizado como um mágico (goêta) e imitador (mimêtên) (235a).
No entanto, a arte mimética (por meio de imagens e de palavras) não
se reduz à produção de simulacros. Neste momento, o Estrangeiro propõe
que arte de produzir imagens (eidôlopoiikês), se subdivide em duas artes
distintas:
(1) De um lado, temos a arte da cópia (eikastikê), que produz imagens fiéis
(eikôna) e conforme as proporções corretas (symmetrias) do modelo
(paradeigmatos) que é copiado (235d-e). Embora não seja explicitado aqui,
esse será o tipo de arte de imitação próprio ao saber filosófico, uma vez que o
filósofo também é mortal e, como tal, não pode possuir a ciência universal,
que somente pode pertencer à divindade. Em outras palavras, a técnica da
filosofia, em analogia com a pintura, será um tipo de arte da verdadeira
aparência do saber/conhecimento universal, pois procura imitar os seres (as
Formas) segundo suas corretas proporções. Essa caracterização implícita da
filosofia converge com a posterior caracterização explícita da filosofia como
dialética, sobre a qual falaremos adiante.
(2) De outro lado, temos a arte de produzir imagens que é uma arte do
simulacro (phantastikê), que produz imagens ilusórias e falsas em relação às
proporções do original imitado, ou seja, que produz simulacros
(phantasmata) com o intuito de impressionar e iludir os seus espectadores,
dando a estes a impressão equivocada de que representam as coisas como
elas são. No caso dos pintores, essa é justamente a arte de produzir pinturas
que simulam em duas dimensões os objetos e eventos em três dimensões. É
neste tipo de arte de produção de imagens que se encontra o
saber/conhecimento aparente do sofista; mas em lugar de produzir simulacros
para os olhos, ele produz simulacros conceituais por meio de discursos.
A parte central do diálogo será destinada justamente a encontrar as
bases conceituais e os argumentos para justificar essa caracterização do
sofista como aquele que possui a falsa aparência do conhecimento
universal, de modo análogo a como o pintor que produz imagens que
simulam os objetos em três dimensões dá a impressão a quem as olha de que
possui o conhecimento das coisas pintadas deste modo.
A origem da ontologia na metafísica grega 171
Todavia, o Estrangeiro de Eleia nos apresenta do seguinte modo a
complexa problemática pressuposta na jornada argumentativa necessária
para fundamentar filosoficamente esta caracterização do sofista (236d-
237a):
“Estrangeiro – É que, jovem feliz, estamos diante de uma investigação
(skepsei) de suma dificuldade; pois mostrar-se e parecer sem ser, dizer
algo sem, todavia, dizer com verdade, tudo isso está cheio de grandes
dificuldades (aporias), tanto hoje, como ontem e sempre. Pois como
diríamos ser necessário que o dizer ou o opinar falsos sejam
reais/existentes sem que, ao proferi-lo, já estejamos incorrendo na
contradição (enantiologia(i))? <Essa questão>, Teeteto, é de uma
dificuldade extrema. Teeteto – Por quê? Estrangeiro – A audácia de
um tal discurso (logos) é supor o não-ser como ser; e, na realidade,
nada de falso é possível sem essa condição” (tradução própria; grifos
acrescentados)
Esse é o ponto em que a definição do sofista e de sua técnica se
encontram com o problema ontológico que obriga o curso narrativo do diálogo
a uma longa discussão sobre o conceito de não-ser e, com ela, sobre o próprio
conceito de ser. O problema central para justificar que o sofista parece ser
sábio sobre todas as coisas, mas realmente não o é repousa na necessidade de
fundamentar a realidade (ser) do não-ser, de tal modo a se poder dizer que
existe a falsidade, não apenas no discurso, mas também nas opiniões e nas
imagens. Esta formulação retoma em outros termos um problema que
Platão discute em outros diálogos, em especial no Eutidemo e no Teeteto, a
saber: o problema sobre como é possível e qual a realidade do erro ou
engano que dão materialidade ao conceito de falsidade. Entretanto,
diferentemente destes outros diálogos, no Sofista, Platão entende que este
não é apenas um problema lógico e epistemológico, mas só pode ser resolvido
através de uma discussão de caráter ontológico ou metafísico. Será essa
discussão que o levará a modificar sua posição sobre os conceitos de ser e
não-ser – exposta no diagrama sobre o Livro V da República que vimos
antes – para poder manter sua posição de que a opinião (e o discurso que a
exprime) é um tipo de “mistura” de conhecimento e ignorância e que a
aparência é um tipo de “mistura” de ser e não-ser. No contexto do diálogo
Sofista esta caracterização da opinião e da aparência só pode ser mantida se
172 Nazareno Eduardo de Almeida
os conceitos de ser e não-ser (bem como de conhecimento e ignorância) não
forem mais considerados como contrários, mas como possuindo algum tipo
de relação de complementaridade.
3.4. O problema do erro e a questão do não-ser
Esta parte do diálogo inicia com a citação do interdito de
Parmênides, citação que, atualmente, é listada como parte do fragmento 7
do poema sobre o qual falamos antes:
“Pois de modo algum isto se imponha: serem os não-entes/as coisas
que não são (einai mê eonta); / Mas tu, afasta o pensamento (noêma)
deste caminho de investigação.” (tradução própria; 237a-b)
O interdito do poema é bastante claro na primeira parte da citação:
não é possível que o não-ser seja de qualquer modo. O diálogo, porém,
aponta que para podermos justificar a existência (realidade) da falsidade em
geral torna-se necessário dar algum tipo de ser ao não-ser e, inversamente,
algum tipo de não-ser ao ser. Todavia, nos termos do poema de Parmênides,
essa necessidade significa uma contradição, ou seja, uma falsidade
necessária. Contra isso, porém, o diálogo Sofista explicita um tipo de
contradição implicitamente contida na própria formulação do interdito
parmenídico acima citado. Essa contradição se apresentará na forma de uma
antinomia, ou seja, de uma situação em que duas posições acerca do não-ser
parecem separadamente verdadeiras, mas que, quando postas em
conjunção, geram uma contradição. Eis os dois lados da antinomia:
(1) De um lado, este interdito está baseado nos seguintes argumentos.
Dizer é sempre dizer algo, dizer algo é dizer uma coisa, e dizer uma coisa é
dizer alguma coisa que é. Com isso, estabelece-se um tipo de equivalência
entre as seguintes noções, aproximadamente do seguinte modo:
‘algo’ (ti) = ‘um/unidade’ (hen) = ‘ser’ (on).
Portanto, seria impossível dizer o não-ser, pois, por definição, ‘não-ser’
significa o mesmo que ‘não-ser alguma/uma coisa’, ou ainda ‘não-ser um algo’.
A origem da ontologia na metafísica grega 173
Assim, tentar dizer o não-ser equivaleria a dizer coisa nenhuma, ou seja,
dizer o não-ser seria o mesmo que não dizer nada, pois seria falar sobre coisa
nenhuma. Nas palavras do diálogo: “esforçar-se por dizer o não-ser é nada
dizer.” (tradução própria; 237e) Relembrando o que falamos sobre o
caminho do não-ser exposto na segunda parte do fragmento 2 do poema de
Parmênides, esta equivalência parece ser aquela efetivamente colocada pela
deusa para quem segue por esse (des)caminho: não é possível conhecer ou
dizer (indicar) o não-ser.
(2) De outro lado, porém, o Estrangeiro mostra que os argumentos de
(1) podem ser contrapostos pelos seguintes contra-argumentos.
Inicialmente, parece que a unidade e a multiplicidade (os números) só
podem se aplicar ao ser e aos seres, os quais, por isso, poderiam se
relacionar de diversas formas na relação de unidade e multiplicidade.
Contudo, quando pronunciamos o nome ‘o não-ser’, já o pressupomos como
uma unidade, tanto quanto, ao pronunciamos o seu plural ‘os não-seres’ (=
‘as coisas que não são’/ ta mê onta), já os pressupomos múltiplos. Com
efeito, se a citação do poema feita antes está correta, é o próprio Parmênides
quem estaria falando do não-ser na forma plural, uma vez que usa a
expressão ‘as coisas que não são’ ou ‘os não-seres’. Assim, quem defende ser
impossível dizer e pensar o não-ser ou os não-seres, encontra-se
imediatamente em contradição, pois já falou sobre o não-ser ou sobre os
não-entes e, em alguma medida, já o(s) pensou, pois o(s) associou, ao
nomeá-lo(s) à unidade e à multiplicidade.
Conforme esclarece o Estrangeiro (238c-239b), caímos
inevitavelmente em contradição quando afirmamos e pensamos que o não-
ser ele mesmo e em si mesmo (to mê on auto kath’hauto) é impensável e
indizível. Em outras palavras, dizer que o não-ser é indizível e impensável já
é, de algum modo, dizê-lo e, portanto, pensá-lo. Isto se agrava ainda mais se
admitimos ser possível não apenas exprimir com algum sentido
compreensível sua forma no singular (o não-ser), mas também na forma do
plural (os não-entes/as coisas que não são (ta mê onta)).
Com isso, podemos resumir a antinomia e a contradição encontradas
nos dois argumentos anteriores do seguinte modo. De um lado, parece ser
verdade que (1) é impossível dizer e pensar o não-ser; e, de outro, também
parece ser verdade que (2) é possível dizer e pensar o não-ser. Formada a
contradição entre essas duas vias, será necessário defender como verdade
apenas uma delas. E, de fato, será na defesa da verdade da segunda via que o
174 Nazareno Eduardo de Almeida
diálogo se desenvolverá, o que obrigará a uma refutação da tese de
Parmênides.
Independentemente desta escolha, o texto indica que é justamente
nesta contradição que o sofista se refugia contra quem afirma ser ele um
produtor de discursos ou opiniões falsas acerca dos entes sobre os quais fala.
O argumento do sofista é o seguinte: se é impossível dizer e pensar o não-ser e
que mesmo tentar dizer que é impossível dizer o não-ser conduz à falsidade
necessária (contradição), então é impossível que ele produza discursos ou
opiniões falsos (= que não são verdadeiros) sobre qualquer coisa. Em outras
palavras, a falsidade dos discursos, das opiniões (e das imagens) que se referem
a alguma coisa seria impossível. Segundo o diálogo, o ponto fundamental
para se conseguir aplicar a noção de falsa aparência ao sofista (enquanto
alguém que tem a falsa aparência de conhecimento universal) consiste em
mostrar que: a imagem é algo e, ao mesmo tempo, não é aquilo de que é
imagem. Portanto, para que algo seja imagem de algo e, ao mesmo tempo,
não seja igual àquilo de que é imagem, então é preciso que, na imagem, haja
um entrelaçamento (symplokê) entre ser e não-ser (240c). E seguindo a
analogia proposta no diálogo, o que vale para a imagem, também vale para o
discurso e para a opinião, entendidos, respectivamente, como um tipo de
imagem discursiva sobre o que fala e de uma imagem mental sobre o que é
pensado.
Este ponto é importante e deve ser exposto de um outro ângulo para
entendermos melhor todo o objetivo da discussão sobre os conceitos de ser
e não-ser no restante do diálogo. Se a arte ilusionista do sofista é a de
produzir falsas aparências (imagens) do ser através do discurso, então o
efeito dessa arte equivale à opinião falsa na alma que é iludida, de tal
maneira que a opinião falsa equivale a uma imagem errada das coisas de que
é imagem. Portanto, a opinião falsa é implicitamente definida no diálogo
como aquela que acredita em coisas que não são como se elas fossem; ou, de
forma mais direta, acredita que o não-ser é; e, portanto, mesmo sem sabê-lo,
qualquer pessoa que tem uma opinião falsa já acredita que o ser (o que é
real) não é. Em suma, a opinião errada é uma imagem falsa em que se
“confundem” o ser e o não-ser. Por conseguinte, se (no nível metafísico ou
“ontológico”) o ser e o não-ser não se relacionassem de algum modo, então (no
nível epistemológico) não seria possível que ocorressem opiniões falsas (que são
imagens onde o ser e o não-ser se confundem), e, por isso, seria impossível
dizer (com verdade) que o sofista é um ilusionista, ou seja, que é alguém capaz
A origem da ontologia na metafísica grega 175
de produzir opiniões falsas em outras pessoas através das “imagens
discursivas” que cria sobre a realidade (os entes). Enfim, para que se possa
dizer que há opiniões falsas (equivalentes por analogia a imagens falsas
sobre o ser e o não-ser), é necessário cometer o parricídio da tese de
Parmênides.
3.5. O “parricídio” de Parmênides e o interlúdio sobre as concepções
ontológicas anteriores ao Sofista
Logo após tornar clara a enorme dificuldade metafísica implícita na
justificação de algo tão corriqueiro quanto as noções de imagem, opinião e
discurso falsos, segue-se uma célebre passagem em que o Estrangeiro de
Eleia pede a Teeteto que não tome sua refutação como se ele estivesse
cometendo um parricídio do “pai Parmênides”. De qualquer forma, sem
refutar o interdito parmenídico antes citado, seria impossível justificar a
falsidade em geral no âmbito das imagens, dos discursos e das opiniões,
sendo, por isso, impossível definir a sofística como uma técnica de produção
de imagens discursivas falsas.
Uma vez que se postulou que a opinião falsa é um âmbito onde,
necessariamente, há algum tipo de entrelaçamento entre ser e não-ser, é
necessário compreender o não-ser de modo distinto daquele estabelecido
por Parmênides (como impensável e indizível), procedendo-se uma revisão
sobre as concepções anteriores sobre o ser, e não apenas sobre a concepção de
Parmênides e seus discípulos. De modo geral, diz o Estrangeiro sobre os
proponentes dessas concepções: “Parece-me que cada um deles nos narra
uma fábula/um mito (mython... diêgeisthai), como se fôssemos crianças”
(tradução própria; 242c). A ironia dessa metáfora visa mostrar que essas
concepções de ser não se preocupam em mostrar como este conceito e o de
não-ser efetivamente são operados na linguagem e no pensamento
cotidianos. A partir deste ponto de vista, Platão fará um tipo de suspensão
crítica para examiná-las e mostrar que tais concepções são ainda demasiado
simples diante da complexidade do tema.
Sem entrarmos em detalhes irrelevantes para nós neste texto, são
quatro as concepções sobre o ser apresentadas e criticadas: (1) a concepção
pluralista e mobilista; (2) a concepção monista e imobilista; (3) a concepção
materialista; e (4) a concepção imaterialista (atribuída aos “amigos das
Formas”). Apresentemos resumidamente cada uma delas.
176 Nazareno Eduardo de Almeida
(1) Os pluralistas e mobilistas defendem que o ser é múltiplo e está presente
nos contrários que tornam possível o movimento e a transformação das
múltiplas coisas ao nosso redor. A totalidade destas coisas, segundo essa
concepção, contém em si os contrários, tais como quente e frio. Assim,
afirmam coisas como “O todo é quente e frio”. Contudo, afirmações desse
tipo geram rapidamente contradições, pois se o quente é o contrário do frio,
e se tanto o quente e o frio são, então o quente é o frio. Mais adiante, esta
concepção representará a tese inviável segundo a qual todas as coisas se
relacionam com todas.
(2) Os monistas e imobilistas defendem que o ser é uno e não possui
contrários, de tal modo que essa unidade tem de ser imóvel (imutável).
Todavia, tais concepções também conduzem a problemas. A principal
contradição dessa posição (que parece representar Parmênides e seus
seguidores), pode ser expressa do seguinte modo: se o termo ‘ser’ se aplica à
noção de todo, então o ser não pode significar algo único, pois a noção de
todo significa um conjunto divisível e múltiplo de partes, de tal modo que se
o conceito de ser se aplicar à noção de todo, então não pode ser uma única
coisa, pois não será indivisível. Mais adiante, esta concepção representará a
tese inviável segundo a qual nada se relaciona com nada.
(3) Os materialistas defendem a concepção segundo a qual o ser se reduz ao
que é corpóreo e, por isso, unicamente ao que nos é acessível através da
percepção. Contudo, não conseguem reduzir facilmente ao nível do
corpóreo as propriedades que – ao menos do ponto de vista da linguagem e
das crenças comuns – são incorpóreas, tais como as propriedades morais e
intelectuais como a justiça, a sensatez e a sabedoria. Há dúvidas entre os/as
intérpretes sobre quem realmente seria representado nesta posição.
Aparentemente, trata-se dos atomistas Leucipo e Demócrito, mas essa
identificação é problemática, uma vez que os átomos são considerados por
estes filósofos como sinônimo do ser, mas não são acessíveis pela percepção,
unicamente através do pensamento e do raciocínio. De qualquer modo, a
crítica a essa posição pode ser entendida como indicando que não se pode
reduzir o conceito de ser ao que é corpóreo e empírico.
A origem da ontologia na metafísica grega 177
(4) Por fim, os imaterialistas (que também parecem ser imobilistas). A esses
o Estrangeiro de Eleia chama de “amigos das Formas” (248a), em uma clara
alusão crítica aos platônicos, ou àqueles que aderem às hipóteses platônicas
expostas nos diálogos da maturidade. Para eles, há uma separação completa
entre o ser (as Formas) e o devir (as coisas dadas na percepção). O ser
possui identidade e não se relaciona com nada além de si mesmo. Contudo,
com tal concepção não são capazes de explicar a relação entre as Formas,
nem a relação das Formas com o pensamento humano, uma relação que
pressupõe algum tipo de potência (dynamis) para agir e padecer, sem a qual
as Formas seriam não apenas inúteis como fatores explicativos do mundo
sensível, mas também seriam inatingíveis pelo pensamento e sem relações
umas com as outras. O conceito de ser, portanto, precisa se estender
também ao que se move e ao devir, ou seja, aos objetos sensíveis a nossa
volta.
Como corolário deste interlúdio crítico sobre as concepções de ser
anteriores (incluindo a do próprio Platão dos diálogos intermediários),
chega-se à conclusão de que elas são falsas porque nos apresentam visões
parciais e reducionistas deste conceito. Por conta disso, a noção de ser se
relaciona com as noções de movimento e repouso, bem como com as noções
de unidade e multiplicidade, mas não se identifica nem se reduz a nenhuma
delas, pois essas reduções e identificações nos conduziriam a contradições
(falsidades). Assim, é preciso recolocar o problema em novas bases, as quais,
como veremos logo mais, devem estabelecer uma relação entre o nível dos
conceitos de ser e não-ser com o nível da linguagem comum, pois é neste
nível que efetivamente utilizamos esses conceitos. Note-se, de passagem, que
Platão está abrindo o caminho para a análise que mais tarde Aristóteles fará
desses conceitos a partir de seu uso na linguagem cotidiana, tal como
veremos no próximo capítulo. Este caminho que se abre aqui é ainda mais
visível nos próximos passos do diálogo.
3.6. O problema da predicação e a dialética
Uma vez mostrados os problemas e aporias das concepções de ser,
Platão coloca o problema da predicação. Em termos gerais e didáticos, esse
problema pode ser assim apresentado: dado que unidade e multiplicidade são
noções contrárias, como é possível que uma única e mesma coisa possa
178 Nazareno Eduardo de Almeida
receber um conjunto múltiplo de predicações verdadeiras? Com efeito, esse é
o problema de fundo em todas as concepções de ser anteriormente
analisadas e criticadas.52 Lembremos que esse também foi o problema que
motivou as críticas à versão inicial da teoria das Formas na primeira parte
do diálogo Parmênides. É um fato que, por exemplo, determinado ser
humano é tomado como uma unidade, mas que ele possui múltiplas
características. Contudo, essa relação entre unidade e multiplicidade – que
perpassa toda a nossa fala sobre as coisas do mundo – não nos autoriza a
confundir ou identificar as noções de unidade e multiplicidade.
A maneira de resolver esse problema é através da redução ao absurdo
de duas posições extremas e, a partir disso, proceder a fundamentação de
uma “via intermediária” entre elas. De um lado, é absurdo tanto no nível das
coisas quanto no nível da linguagem que todas as coisas possam se unir a
todas as coisas, pois se isso fosse assim, então teriam de ser verdadeiros
enunciados tão absurdos quanto que ‘o movimento é repouso’ ou ‘o uno é
múltiplo’. De outro lado, é também absurdo tanto no nível das coisas quanto
no nível da linguagem que nada se relacione com nada, pois, de um lado, a
própria enunciação dessa tese já é uma correlação de diferentes palavras, e,
de outro lado, o próprio mundo a nossa volta desmente essa posição,
mostrando-nos coisas distintas que se relacionam entre si. Portanto, se
ambas as posições são absurdas, então a negação de ambas é verdadeira, a
saber: que algumas coisas se relacionam entre si e outras não se relacionam.
Neste momento, o diálogo apresenta uma analogia. Assim como a
gramática é a ciência que nos mostra quais letras e sílabas podem se unir
para formar palavras com sentido em uma língua e quais não podem, bem
como nos mostra que algumas letras (as vogais) são aquelas que tornam
possíveis todas as combinações nas sílabas e nas palavras, assim também
deve haver uma ciência que nos mostre quais conceitos (gêneros, Ideias,
Formas) podem se combinar entre si para formar proposições com sentido e
verdadeiras e quais não podem. Como já apresentamos, esta ciência é
justamente aquela chamada de dialética. Segundo esta analogia, a dialética é
um tipo de “gramática” das Formas. Neste ponto do diálogo, afirma-se
explicitamente que tal é a ciência do filósofo, de tal modo que ao procurar a
definição da técnica sofística, acabou-se por encontrar a definição da técnica
filosófica. Isso, talvez, explique por que Platão não escreveu o terceiro
52
Um ótimo texto abordando o diálogo Sofista a partir do problema da linguagem e da
predicação se encontra em DE SOUZA, Eliane Christina. Discurso e ontologia em Platão: um
estudo sobre o Sofista. Ijuí: Unijuí, 2009.
A origem da ontologia na metafísica grega 179
diálogo para definir o filósofo, conforme se havia prometido no início do
diálogo Sofista.
É importante ter em mente que esta caracterização da dialética por
analogia com a gramática difere da caracterização da dialética encontrada
no Livro VII da República, onde se sugere que a dialética (em analogia com
a matemática) seria a técnica/ciência capaz de nos apresentar a definição
verdadeira e final de cada uma das Formas em si mesmas e, acima de todas,
que nos permitiria apreender a natureza da Forma mais elevada de todas: a
Ideia de Bem. Agora, por contraste, a dialética nos é apresentada como o
saber que estabelece quais a relações entre as Formas e, principalmente,
quais as várias relações primárias que são permitidas e quais não o são entre
Formas primárias, chamadas de ‘gêneros supremos’ (megistê genê).
Note-se, portanto, que a dialética não visa mais (como no Livro VII
da República) apreender e definir a identidade isolada das Formas e, acima
de todas, apreender e definir a única Forma suprema do Bem. Além disso, o
conceito de participação não se restringe mais apenas à relação das coisas
sensíveis com cada uma das Formas, mas se estende agora também à
participação das Formas umas com as outras. Tudo indica que, para o Platão
do Sofista, é somente com essas modificações na concepção sobre o método
dialético (sinônimo platônico da filosofia) e sobre a natureza das Formas
que o problema da predicação pode ser resolvido e, portanto, que os
argumentos críticos apresentados no início do Parmênides podem ser
superados.
3.7. Os gêneros supremos, suas relações mútuas e a definição do não-ser
como alteridade (diferença)
Depois da discussão crítica das concepções de ser, da exposição do
problema da predicação como problema nelas implícito e da nova versão da
dialética e das Formas, chegamos ao momento decisivo do diálogo Sofista.
Nesta parte será estabelecida a base metafísica para reformulação da
ontologia platônica dos diálogos intermediários através de uma crítica à
ontologia parmenídica. Essa reformulação e crítica se apresentam justamente
na possibilidade de definir o não-ser como uma Forma necessária para a
justificação da falsidade na imagem, na opinião e no discurso, e através da
qual se poderá justificar a definição da sofística como falsa aparência de
saber universal.
180 Nazareno Eduardo de Almeida
Já foi mostrado no texto básico que são estabelecidas cinco Formas
mais básicas dentre todas as demais Formas. Essas Formas são denominadas
como ‘gêneros supremos’ (megistê genê). Não convém repetir aqui o que foi
dito lá, mas apresentar uma discussão mais aprofundada sobre o sentido
desses conceitos.
A partir desses cinco gêneros supremos é possível definir o que é o
não-ser, que agora será concebido como uma Forma ou Ideia com uma
função muito importante. Inicialmente, a Forma do não-ser é definida
através da correlação entre os gêneros do ser e do outro (ou diferença).
Esses gêneros se relacionam entre si, mas não se identificam, pois isso
conduziria a contradições e absurdos. Todavia, como o ser e o outro se
relacionam com os outros três gêneros (o mesmo (ou a identidade), o
movimento e o repouso), então o não-ser é definido como a diferença que
permite dizer que nenhum dos gêneros supremos é idêntico aos demais e que
cada um deles é outro em relação a todos os demais. Por fim, como os cinco
gêneros supremos se aplicam a quaisquer outros gêneros subordinados e a
todas às coisas sensíveis que podem participar das Formas, então o não-ser
está presente toda a vez em que se diz com verdade que uma coisa qualquer x
não é outra coisa qualquer y, embora, tomadas por si mesmas, x e y sejam
alguma coisa que possui certa identidade. Com isso, a partir das correlações
primárias entre as Formas mais básicas (os gêneros supremos), a Forma do
não-ser está presente sempre, por assim dizer, como o “espaço” que
diferencia todas as Formas e, por isso, que diferencia todas as coisas
sensíveis que participam dessas Formas. A Forma do não-ser, portanto, está
sempre presente como Forma da alteridade e diferença que permite
identificar cada uma das diferentes Formas e cada uma das coisas sensíveis,
tornando possíveis as suas relações e também as suas separações, mantendo
suas identidades e suas diferenças.
Portanto, a partir do entrelaçamento (symplokê) entre as Formas
básicas do ser e do outro em si mesmas, e de todas as outras Formas e dos
infinitos objetos sensíveis com essas Formas básicas, de certo modo infinitas
vezes o ser em si mesmo não é as outras Formas e as outras Formas em si
mesmas são distintas do ser em si mesmo e de todas as infinitas coisas
sensíveis, tanto naquilo que estas são quanto naquilo que não são. Conforme
conclui o Estrangeiro: “de sorte que o ser, incontestavelmente, milhares e
milhares de vezes não é, e as outras <Formas e coisas sensíveis>, quer
A origem da ontologia na metafísica grega 181
individualmente, quer em sua totalidade, de múltiplos modos são, e de
múltiplos modos não são.” (tradução própria; 259b; ênfases acrescentadas)
Podemos retirar algumas conclusões dessa “sublime” e abstrata
combinatória de Formas e coisas sensíveis. Em primeiro lugar, ao menos na
perspectiva dessa renovada teoria das Formas, chega-se a determinar não
apenas que há um ser do não-ser, mas que o não-ser é uma Forma ao lado
das demais (258c). Com isso, justifica-se falar que, de certo modo, o não-ser
é. A partir disso, podemos dizer que o não-ser é a diferença que se encontra
entre todas as Formas (a começar pela relação de participação e diferença
entre a Forma do ser e a Forma do outro) e entre todas as coisas sensíveis às
quais se aplicam também as Formas do ser (porque elas são de algum
modo), do outro (porque reconhecemos que há diferença entre as múltiplas
coisas sensíveis) e do mesmo (porque reconhecemos também que cada coisa
possui algum tipo de identidade que permite diferenciá-la de todas as
demais).
Em segundo lugar, podemos concluir duas coisas complementares: de
um lado, que a Forma do ser se relaciona com todas as demais Formas e
também com cada uma das coisas sensíveis; mas, de outro, ela também não
se confunde com nenhuma delas, de tal modo que o ser não é idêntico a
nenhuma das outras Formas com as quais necessariamente se relaciona e
também não é idêntico a nenhuma das coisas sensíveis com as quais pode se
relacionar. Por isso, também se justifica dizer que, de certo modo, o ser não
é, no sentido em que não se identifica com nenhuma das Formas que
participam do ser nem se identifica com nenhuma das coisas sensíveis que
também participam de algum modo da Forma do ser.
Em terceiro lugar, que a Forma do não-ser se apresenta sempre onde
há algum tipo de diferença entre as Formas e entre as coisas sensíveis. Por
isso, o diálogo reitera várias vezes, contra o interdito de Parmênides e contra
a primeira versão da teoria das Formas, que o conceito de não-ser não pode
mais significar o contrário do conceito de ser, mas é apenas diferente dele de
um modo complementar (257b; 258a-b; 258e-259a). Na lógica interna ao
diálogo Sofista, é essa mudança na relação entre os conceitos de ser e não-ser
que permite a Platão defender que não é uma contradição dizer que há um
ser do não-ser e um não-ser do ser. Essa tese exprimiria apenas que há uma
relação e uma diferença entre essas Formas.
Em quarto lugar, nessa combinatória de Formas, percebemos que
Platão modifica a relação que Parmênides havia estabelecido entre os
182 Nazareno Eduardo de Almeida
conceitos de ser, identidade e verdade. Para justificar a existência do falso
(em seus vários aspectos), Platão se vê obrigado a estabelecer uma relação
dinâmica e complexa entre os conceitos de ser, identidade e diferença
(alteridade). Essa introdução do conceito de diferença com uma das Formas
primárias (um dos gêneros supremos) leva Platão também a mostrar (contra
Parmênides) a necessidade de estabelecer a diferença entre o conceito de ser e
de identidade. Assim, o conceito de ser não é sinônimo do conceito de
identidade, mas na medida em que o ser se aplica ao conceito de alteridade
(diferença) sem se identificar com ele, o conceito de ser também se aplica à
diferença em três níveis: na diferença entre as Formas, na diferença entre as
Formas e os objetos sensíveis, e, por fim, na diferença entre os próprios
objetos sensíveis. Isso também permite a Platão justificar a existência de
múltiplas Formas distintas, embora elas se relacionem (e, por isso, se
prediquem) entre si, sem serem nomes distintos de uma única e mesma
coisa, tal como na ontologia de Parmênides eram as características
intrínsecas do ser.
Por fim, tudo isso nos permite compreender o porquê em seu belo
livro sobre o diálogo Sofista, Marcelo Pimenta Marques tem razão em
enfatizar que Platão é o primeiro pensador a introduzir de modo radical na
filosofia o conceito de diferença.53 Entretanto, dando um passo além deste
intérprete, diante do que vimos, Platão é realmente o primeiro pensador a
estabelecer um lugar central para o conceito de diferença na história da
filosofia porque estabeleceu o papel fundamental do conceito de relação. É
justamente por colocar ao lado da Forma básica do ser tanto a Forma básica
da identidade (o mesmo) e da diferença (o outro) que se torna necessário
estabelecer que essas Formas estão em correlação necessária entre si e com
todas as demais Formas, a começar pelas formas do movimento
(transformação) e do repouso (imutabilidade). Assim, ao se tornar o
pensador da diferença, Platão se torna também o pensador da relação.
Explicado de um modo breve, isso significa: sem o conceito de relação, não
há nem identidade de qualquer coisa em relação consigo mesma ou com
outras coisas, nem há diferença entre quaisquer coisas postas em relação.
Este papel central da noção de relação se torna visível na última parte
do diálogo em que a Forma do não-ser recém-conquistada é decisiva para se
poder determinar a verdade e a falsidade como tipos de relação entre as
53
Cf. MARQUES, Marcelo Pimenta. Platão, pensador da diferença: uma leitura do Sofista. Belo
Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
A origem da ontologia na metafísica grega 183
opiniões, os enunciados e as imagens com os objetos, bem como para se
justificar a definição do sofista como um produtor de imagens discursivas e
opiniões falsas (simulacros) sobre os entes. Façamos uma breve análise desta
parte final do diálogo para encerrar essa discussão do Sofista.
3.8. A falsidade do discurso e da opinião e o retorno à definição do sofista
De posse dessa fundamentação metafísica tanto da Forma do não-ser
quanto de sua necessária relação com o ser, o Estrangeiro aplica essa base
metafísica inicialmente ao nível lógico-semântico do discurso/enunciado e,
em seguida, ao nível epistemológico da opinião. Para mostrar que o não-ser
se aplica ao discurso/enunciado (logos), o Estrangeiro inicialmente
determina o que este é em sua forma mais básica. Em primeiro lugar, para
existir um discurso/enunciado, necessariamente tem de haver uma união
adequada de ao menos um nome (onoma) e um verbo (rhêma). Não pode
haver discurso com a simples justaposição de nomes ou com a simples
justaposição de verbos. Os enunciados que mostram algo (dêlounta ti) são
adequados, os que não significam nada (sêmainonta mêden) são
inadequados. Em outros termos: se um discurso/enunciado tem sentido (é
significante), então fala sobre algo; e, portanto, se não fala de algo, não tem
sentido e não é discurso. Em segundo lugar, uma vez formado um
discurso/logos adequado (relacionando adequadamente nomes e verbos),
ele não pode ser concebido como se fosse um nome complexo de algo, tal
como, implicitamente, acontece no caso da ontologia parmenídica. Bem
antes, neste momento do Sofista, Platão estabelece que um enunciado (desde
sua forma mais básica) deve ser entendido como circunscrevendo
(perainein) o ser (einai) ou o torna-se (gignesthai) de algo. Usando a letra ‘F’
para simbolizar um predicado (“verbo”) qualquer atribuído a algo (“nome”),
podemos sistematizar as possibilidades mais básicas do enunciado do
seguinte modo: um enunciado pode circunscrever (1) que algo é F ou não é
F, assim como (2) que algo se torna F ou não se torna F; e, neste último caso,
(2.1) que algo foi ou não foi, ou (2.2) que algo será ou não será. Essas são,
neste contexto, as formas sintáticas (com sentido) mais básicas que o
discurso/enunciado pode adquirir. Deste modo, contrariamente à tese
mencionada antes e que conduzia à impossibilidade de dizer o não-ser, o
dizer (legein) nunca pode ser apenas dizer algo, mas dizer algo de alguma
coisa.
184 Nazareno Eduardo de Almeida
Além disso, havendo um discurso significativo que diz algo sobre
alguma coisa, esse discurso pode possuir duas propriedades semânticas: ser
verdadeiro ou ser falso.54 O discurso verdadeiro “diz os entes/as coisas que
são como são” (legei ta onta hôs estin; 263b) e o falso diz “as coisas
diferentes/outras das que são” (hetera tôn ontôn; 263b). Chega-se, com isso,
à definição verdadeira do discurso falso do seguinte modo: “Assim, o
conjunto formado de verbos e nomes, que enuncia (...) o outro como sendo o
mesmo, e o que não é como sendo, eis, exatamente, ao que parece, aquele
conjunto que, verdadeiramente, constitui um discurso falso.” (263d;
tradução própria; grifos acrescentados). Portanto, o discurso/enunciado
falso existe e é significativo. O seu ser falso se encontra em dizer algo que não
é de algo que é, ou seja, um enunciado é falso quando diz algo diferente do
que as coisas que realmente são.
Uma vez determinada a existência real (o ser) da falsidade no
discurso, segue-se que também é possível a existência da falsidade no
pensamento (dianoia), na opinião/crença (doxa) e na imaginação
(phantasia). Inicialmente, a falsidade pode existir no pensamento porque
“pensamento e discurso são, pois, a mesma coisa, salvo que é ao diálogo
interior e silencioso da alma consigo mesma que chamamos
‘pensamento’/‘com-preensão’ (dia noia).” (263e; tradução própria)55 Do
mesmo modo, a opinião/crença é um tipo de cristalização final de um
processo de pensamento que se apresenta na forma de uma afirmação ou
negação. Por conseguinte, se o falso existe nos enunciados afirmativos ou
negativos (como vimos há pouco), então necessariamente já existe na
opinião e no pensamento. Por fim, na medida em que toda opinião é
acompanhada pela imaginação e a imaginação é uma primeira forma de
54
Estamos usando o termo ‘semântica’ na acepção que se tornou usual na maior parte da filosofia
da linguagem recente, a saber: a análise das possíveis relações corretas (“verdadeiras”) que
existem entre palavras e frases sintaticamente significativas com os objetos ou estados de coisas
que são por elas significados, uma análise a partir da qual se estabelece também quando tais
relações são incorretas (“falsas”). Nesta concepção, a noção de semântica está necessariamente
associada aos conceitos de verdade e falsidade.
55
É muito difícil fazer uma tradução exata da expressão ‘dia noia’ presente no texto original. A
tradução usual por ‘pensamento’ não capta a sutileza do contexto, que está fazendo uma
analogia entre os termos gregos ‘dialogos’ (‘diálogo’) e ‘dianoia’ (‘pensamento’). Tomando
como base a tradução do verbo grego ‘noein’ por ‘a-preender’, o termo ‘dianoia’ pode ser
aproximadamente vertido por ‘com-preensão’ para marcar o sentido do sufixo ‘dia’, que indica
um tipo de relação que se dá através e por causa de duas coisas. O importante é perceber que
Platão está marcando que o pensamento é uma forma interior do discurso (logos) que se
estabelece na relação (dia) entre as próprias palavras, ou seja, na forma mais básica do diá-
logo como aquilo que se dá através (dia) do discurso (logos), forma básica que está intimamente
relacionada com a caracterização da dialética como “gramática” das relações entre as Formas.
A origem da ontologia na metafísica grega 185
imagem na alma, então a falsidade (o não-ser) também pode se manifestar
nas imagens produzidas pela imaginação e que acompanham a opinião e,
portanto, o pensamento e o discurso/enunciado. Este último ponto é
importante para entendermos que as imagens falsas (os simulacros)
produzidas pelos pintores estão fundadas e são originadas na capacidade de
imaginação que todas as pessoas possuem, bem como que os sofistas podem
produzir imagens discursivas falsas das coisas sobre as quais falam na
imaginação (phantasia) de seus interlocutores.
A conclusão do diálogo pode agora retornar à caracterização unitária
da sofística como falsa aparência de conhecimento universal e determinar o
sofista como um produtor de simulacros ou imagens falsas (phantasmata),
pois essas imagens distorcem o ser ou não ser das coisas sobre as quais falam e,
por isso, podem gerar ilusões e erros na alma de outras pessoas. A partir disso,
a última parte do diálogo retoma a divisão das técnicas/artes (tipos de
produção) do início do texto. Mas agora, essa divisão dá um passo atrás e
começa pela divisão entre a técnica de produção divina e a humana. A
produção divina se divide entre a produção de coisas efetivas (as coisas
efetivamente existentes na natureza) e a produção de imagens dessas coisas
(imagens nos sonhos e nos espelhos). Do mesmo modo, a produção humana
se divide entre a produção de coisas (como o arquiteto que produz uma
ponte) e a produção de imitações/cópias destas coisas ou por meio de
imagens em sentido comum (os pintores) ou por meio de palavras (como no
caso do sofista e do filósofo). Esta divisão da produção humana de
imitações/cópias das coisas se subdivide entre a imitação de quem conhece a
coisa imitada – a chamada ‘mimética sábia’ 56 – e a imitação feita de quem
tem apenas opinião sobre a coisa imitada. Dentre os que imitam as coisas
segundo a opinião, uns acreditam que sua opinião é conhecimento
(miméticos ingênuos), e outros ao menos desconfiam que não têm
conhecimento da coisa (miméticos irônicos). Dentre esses últimos, há
aqueles que imitam a coisa em reuniões públicas (oradores de assembleia) e
há aqueles que imitam em reuniões privadas por meio de argumentos
voltados à refutação. Este último é chamado ‘sofista’ (sophistês) porque imita
e, por isso, se reveste com a aparência de quem é e deve ser chamado de
‘sábio’ (sophos).57
56
Implicitamente, encontra-se aqui a técnica da cópia fiel, que provavelmente indica a arte de
produção de imagens verdadeiras e segundo as proporções da coisa, uma arte que seria aquela
da filosofia.
57
Platão está aqui fazendo uma diferenciação filosófica entre os sentidos de dois termos etimológica
e ordinariamente muito próximos. Etimologicamente, é provável que o termo ‘sofista’ (sophistês)
186 Nazareno Eduardo de Almeida
Chega-se, assim, à justificação adequada da definição do sofista como
um praticante de um tipo de arte de produção, por meio do discurso, de
imagens das coisas que aparecem como verdadeiras para algumas pessoas,
mas que na realidade são imagens falsas (simulacros) das coisas sobre as quais
falam. Como muitos outros diálogos de Platão, o Sofista nos conduz através
de um tipo de labirinto de argumentos: um labirinto cujas encruzilhadas
passam por muitos temas para se alcançar uma temática central.
derive do termo mais antigo ‘sábio’ (sophos), especialmente na acepção de alguém que é
considerado um perito sobre determinado assunto sobre o qual outras pessoas podem ser
consideradas leigas. É provável que, no contexto social de Platão, vigorasse essa identificação
entre ‘sábio’ (sophos) e ‘sofista’ (sophistês). Neste momento do diálogo, é justamente esta
identificação que Platão está criticando ao explicar que o sofista apenas parece sábio (tem a
aparência do saber universal), sem sê-lo de fato.
◆ CAPÍTULO 4◆
O LIVRO IV DA METAFÍSICA DE ARISTÓTELES
COMO MODELO HEGEMÔNICO DA
ONTOLOGIA POSTERIOR
188 Nazareno Eduardo de Almeida
A – TEXTO BÁSICO
1. Introdução geral à ontologia aristotélica
Chegamos ao capítulo final e mais longo deste livro: a exposição e
discussão da ontologia de Aristóteles (384-322 a. C.). Com o passar dos
séculos, ela se tornou gradativamente o modelo para boa parte da ontologia
posterior. Esse processo foi lento, porém irreversível a cada momento da
história da recepção da obra de Aristóteles. Inicialmente, a partir do século
II d. C., esse processo começa com a incorporação dos conceitos e
argumentos contidos no tratado Categorias. Em um segundo momento, com
a crescente incorporação e discussão dos conceitos e argumentos da
Metafísica, a partir dos neoplatônicos e principalmente a partir do século IX
d. C., inicialmente na filosofia islâmica e depois na filosofia europeia de
língua latina centrada na escolástica. A partir da incorporação da escolástica
na filosofia moderna, como dissemos antes, no início do século XVII o
termo ‘ontologia’ é criado para se referir àquilo que o Livro IV da Metafísica
denomina de ‘ciência do ser enquanto ser’, que enquanto sinônimo de
‘ontologia’ passa a ser compreendida como a parte mais fundamental da
metafísica. Por sua vez, neste momento da história da filosofia, o próprio
termo ‘metafísica’ já deixara de ser sinônimo da metafísica aristotélica
presente em sua Metafísica, muito embora esta obra ainda fosse um tipo de
modelo de fundo para as teorias metafísicas, especialmente desde que a
Metafísica de Avicena surgiu e se difundiu nas filosofias islâmica e cristã.
Este brevíssimo panorama histórico nos permite compreender que o que
chamamos de metafísica e ontologia aristotélicas possui uma história de longa
duração como modelo privilegiado da metafísica e ontologia posteriores.
Nosso objetivo neste texto básico é expor em linhas gerais esta teoria
tão importante. Apresentaremos inicialmente os traços mais gerais da
primeira versão da ontologia aristotélica encontrada em Categorias, uma vez
que boa parte dos/das intérpretes recentes consideram ser esta uma obra
pertencente à primeira fase do desenvolvimento da filosofia de Aristóteles,
mas também porque essa primeira forma da ontologia aristotélica será
retomada e reformulada na versão madura da ontologia aristotélica que
encontramos na Metafísica, especialmente no célebre Livro IV (Gama), que
é o tema principal deste capítulo. Apesar das diferenças entre essas fases da
A origem da ontologia na metafísica grega 189
ontologia aristotélica, ambas procuram apresentar teorizações que sejam
capazes de lidar com uma mesma tese: a polissemia do conceito de ser, cuja
expressão mais famosa se encontra na frase “o termo ‘ser’ se diz em
múltiplos sentidos.” (to on legetai pollachôs).
2. A primeira versão da ontologia aristotélica no tratado Categorias
2.1. Introdução: a estrutura do texto e o sentido do conceito de categorias
O tratado Categorias possui quinze capítulos, que passaram
tradicionalmente a ser divididos em três partes. A primeira parte, composta
pela sequência dos capítulos 1-4, trata de conceitos básicos para se
compreender a proposta aristotélica das categorias. A segunda parte,
composta pelos capítulos 5-9, versa sobre as categorias propriamente ditas,
mas se restringe à abordagem de quatro dentre as dez categorias listadas no
capítulo 4, a saber: as categorias de substância (ousia), quantidade (poson),
relação (pros ti) e qualidade (poion). A terceira parte, composta pelos
capítulos 10-15, versa sobre conceitos que se aplicam a mais de uma ou a
todas as categorias, tais conceitos são os de opostos, contrários, simultâneos,
anterior-posterior, encerrando com uma abordagem dos conceitos de
movimento e posse ou ter (echein). O que nos interessa nesta exposição
sumária são apenas três capítulos do texto: os capítulos 1-2 e o capítulo 5. A
partir do que é neles apresentado, podemos compreender os traços mais
gerais da primeira formulação da ontologia aristotélica.
Mas antes de passarmos a esta exposição, é preciso esclarecer o
sentido geral do termo ‘categoria’, o qual, em português, é um tipo de
“decalque” aproximado do termo grego ‘katêgoria’. Literalmente, este termo
significa ‘predicação’ ou ‘predicamento’, pois provém do verbo grego
katêgoreuô na acepção de predicar (dizer) algo de algo ou de alguém. Esse
significado literal indica o método pelo qual Aristóteles chega às suas
categorias. Este método consiste em tomar a forma dos enunciados
predicativos afirmativos, forma que passou a ser conhecida na filosofia
posterior pelo esquema semiformal ‘S é P’, onde ‘S’ simboliza o sujeito da
frase ou enunciado e ‘P’ simboliza o predicado que é atribuído a este sujeito.
Embora esse esquema possa ser preenchido por infinitos exemplos,
Aristóteles está à procura de um número finito de tipos mais gerais de
190 Nazareno Eduardo de Almeida
termos que preenchem este esquema. Esses tipos mais gerais de termos são
justamente o que Aristóteles denomina pelo termo ‘categorias’ (katêgoriai).
Nos tratados Categorias e Tópicos, a lista dessas categorias é em número de
dez: substância (ousia), quantidade (poson), qualidade (poion), relação (pros
ti), tempo (pote), lugar (pou), hábito (hexis), disposição (diathesis), ação
(poien) e paixão (paschein). Nem em Categorias, nem nos Tópicos esse
número é justificado e em outros textos a lista é menor. Mesmo assim,
tornou-se comum falar das dez categorias de Aristóteles.
Embora o seu nome sugira que são classes de termos (e, portanto,
classes lógico-linguísticas), para Aristóteles as categorias – quando ocorrem
em enunciados predicativos verdadeiros (na forma ‘S é P’) – refletem no nível
da linguagem e do pensamento as estruturas gerais e constantes da realidade
sobre as quais esses enunciados falam. É por isso que as categorias não são
apenas classes gerais de termos, mas são também e primariamente classes de
entes ou, como o próprio Aristóteles diz em outros textos, são os ‘gêneros de
ser’. Assim, por meio do exame dos tipos mais gerais de termos que podem
preencher o esquema ‘S é P’, Aristóteles chega a uma maneira de entender a
tese “o termo ‘ser’ se diz em múltiplos sentidos”, ou seja, o termo ‘ser’ se diz
em ao menos dez sentidos diferentes, ou seja, o que preenche a parte ‘é P’ (em
enunciados da forma ‘S é P’) é uma das dez categorias. Isso mostra um
modo de fazer ontologia que até nossos dias tem seus adeptos: por meio de
uma análise lógico-semântica de certas estruturas da linguagem são obtidos
conceitos de caráter ontológico. Feito este esclarecimento geral sobre o
sentido ontológico do conceito aristotélico de categoria, podemos passar à
exposição de alguns aspectos de seus capítulos iniciais.
2.2. O capítulo 1: homonímia, sinonímia e paronímia
O capítulo 1 de Categorias nos apresenta três modos pelos quais as
coisas podem ser agrupadas de acordo com seu modo de nomeação: as
coisas ditas de modo homônimo, as coisas ditas de modo sinônimo e as
coisas ditas de modo parônimo. Na interpretação posterior, também se usa
abreviar essas expressões, respectivamente, pelos termos ‘homonímia’,
‘sinonímia’ e ‘paronímia’. As coisas ditas de modo homônimo são aquelas
que possuem apenas o nome em comum, possuindo diferentes definições de
sua essência (ousia). Um exemplo em nossa língua de coisas ditas de modo
homônimo é o da palavra ‘escorpião’, que denomina um tipo de animal e
A origem da ontologia na metafísica grega 191
uma constelação celeste. Essas coisas são denominadas pela mesma palavra,
mas possuem evidentemente definições distintas, pois pertencem a classes
distintas. Esse tipo de coisas ditas de modo homônimo é importante porque
no tratado Categorias e em outros textos (ainda anteriores ao Livro IV da
Metafísica), Aristóteles entende que o já mencionado lema – “o termo ‘ser’ se
diz em múltiplos sentidos” – significa que o termo ‘ser’ é um termo
homônimo, ou seja, que as coisas às quais se aplica o termo ‘ser’ ou ‘ente’ (to
on) não possuem uma definição em comum porque pertencem a classes
distintas de entidades. Essas classes distintas são justamente aquilo que
Aristóteles denomina pelo termo ‘categorias’.
Por sua vez, as coisas ditas de modo sinônimo são aquelas que
possuem tanto um nome em comum quanto que possuem uma mesma
definição de seu ser ou essência. No exemplo usado no texto, o nome
‘animal’ é dito de modo sinônimo de um ser humano e de um boi, pois
ambas essas coisas possuem uma definição comum de seu ser (essência), a
definição de animal. A importância dessa noção consiste em que ela marca
as coisas que pertencem a uma mesma categoria ou gênero de ser. Assim,
todas as coisas que pertencem, por exemplo, à categoria de quantidade são
coisas ditas de modo sinônimo pelo termo geral ‘quantidade’, pois a todas
elas se aplica a definição do ser quantitativo. A noção de coisas ditas de
modo sinônimo (ou sinonímia) também é importante para a teoria
aristotélica da ciência, uma vez que só pode haver ciência das coisas que
pertencem a uma mesma classe: inicialmente as coisas que pertencem a um
mesmo gênero de ser (categoria), mas também das coisas que pertencem a
alguma das múltiplas espécies contidas nesse gênero. Assim, por exemplo, a
aritmética trata de uma das espécies da categoria de seres quantitativos (os
números enquanto quantidades contáveis ou discretas), enquanto a
geometria trata de outra espécie da categoria de seres quantitativos (as
figuras geométricas enquanto quantidades contínuas).
Por isso, uma vez que – segundo o quadro conceitual de Categorias –
o termo ‘ser’ ou ‘ente’ é um homônimo, durante algum tempo Aristóteles
defendeu que não era possível uma ciência única sobre o ser. Nesta fase de
seu pensamento, aquilo que de melhor poderíamos saber sobre o ser é
justamente aquilo que as diferentes ciências nos dizem sobre os seres das
categorias de entidades que investigam. Como veremos logo mais, essa
concepção se altera justamente no Livro IV da Metafísica, onde Aristóteles
defende que é possível uma ciência única sobre o ser, mesmo mantendo-se
192 Nazareno Eduardo de Almeida
neste texto a tese já mencionada de que “o termo ‘ser’ se diz em múltiplos
sentidos.”
Por fim, o capítulo 1 nos apresenta as coisas que são ditas de modo
parônimo. Sobre esta noção, há divergências sobre se é uma noção
puramente linguística ou se, como as anteriores, possui um caráter
ontológico. Deixando de lado essa controvérsia, vou apresentar esta noção
como possuindo este caráter ontológico e não apenas linguístico. As coisas
ditas de modo parônimo são aquelas denominadas conforme algum tipo de
caso (ptôsis) derivado de um nome geral. Os exemplos do texto são os
seguintes: do substantivo ‘gramática’ deriva como um caso o adjetivo
‘gramático’ e do substantivo ‘coragem’ deriva como um caso o adjetivo
‘corajoso/a’. Dentro do quadro conceitual de Categorias, a paronímia se
apresenta como uma explicação do porquê é correto dizer, por exemplo, que
‘Sócrates é corajoso’, mas é errado (e mesmo absurdo) dizer ‘Sócrates é
coragem’. Isso indica que a paronímia é o meio para explicar como diferentes
categorias de ser podem se aplicar à categoria mais básica de ser: as
substâncias primeiras, representadas na linguagem pelos nomes próprios e
determinadas enquanto sujeitos primários de todas as predicações possíveis,
pois elas não podem ser predicadas de nada. Assim, a diferença de aplicação
segundo os casos (passagem do substantivo geral a um adjetivo), se
apresenta como um tipo de “meio termo” entre a homonímia e a sinonímia,
embora seja controverso o modo como esse modo intermediário de
denominação efetivamente se apresenta no texto de Categorias.
2.3. O capítulo 2: o quadrado ontológico aristotélico
O capítulo 2 de Categorias nos apresenta o que os/as intérpretes
recentes têm chamado de ‘quadrado ontológico’ de Aristóteles. Esse
quadrado nos apresenta os quatro modos pelos quais se pode ordenar em
um tipo de hierarquia as entidades pertencentes às diferentes categorias em
relação àquele tipo mais básico de entidades que já mencionamos no final da
seção anterior: as substâncias primeiras. Esses quatro tipos são organizados
segundo uma combinatória dos conceitos de ‘ser dito de’ e ‘estar em’. Como
resultado dessa combinatória temos os quatro tipos seguintes:
(I) Os seres que não são nem ditos de outros, nem estão em outros,
como, por exemplo, Sócrates ou Platão. Estes seres não são nem ditos de
outros nem estão em outros porque todos os outros tipos de ser ou são ditos
A origem da ontologia na metafísica grega 193
deles ou estão neles. São justamente estes os seres que, no capítulo 5,
Aristóteles denomina de ‘substâncias primeiras’, que inicialmente são os
indivíduos aos quais podemos dar algum nome próprio único ou aos quais
podemos aplicar, em sentido estrito, o demonstrativo ‘isto’.
(II) Os seres que são ditos de outros, mas não estão neles, como, por
exemplo, a propriedade ‘humano’ dita de Sócrates e Platão. Esta propriedade
não está em Sócrates ou Platão porque ela os define e, por isso, não pode ser
considerada apenas como alguma propriedade ou algum atributo que está
neles. A este segundo tipo pertence o que o capítulo 5, como logo veremos,
denomina de ‘substâncias segundas’.
(III) Os seres que estão em outros, mas não são ditos deles, como, por
exemplo, a qualidade ‘branco’ que está em Sócrates. Na tradição de
interpretação, esse tipo de seres foi denominado de ‘acidentes particulares’,
pois pertencem a múltiplos indivíduos, mas são incapazes de defini-los.
Nesse tipo de entidades também encontramos uma razão para a introdução
do conceito de paronímia no capítulo 1, uma vez que dizemos com verdade,
por exemplo, que ‘Sócrates é branco’, mas não é a brancura. Em um jargão
recente, estes acidentes particulares são denominados de tropos, como é o
caso quando falamos da ‘brancura de Sócrates’, contrastando-a com a noção
geral e abstrata de brancura, que pode estar em muitas outras coisas além de
Sócrates.
(IV) Por fim, Aristóteles fala dos seres que são ditos de outros e estão
em outros. O exemplo dado no texto é o seguinte: a ciência é dita da alma e é
dita estar na gramática. Um modo de interpretar esse exemplo é o seguinte:
a ciência é uma qualidade dita da alma humana, mas a alma humana não
possui a ciência em geral, mas alguma espécie de ciência, como a gramática.
Na tradição de interpretação, este tipo de seres foi denominado de ‘acidentes
universais’. Há controvérsias quanto ao modo de interpretar exatamente este
tipo, mas ele pode ser entendido como indicando o modo pelo qual as
diferentes categorias de ser se relacionam com a categoria primária da
substância. Assim, a ciência, que é um gênero específico pertencente à
categoria (gênero mais amplo) da qualidade, é dita da alma do ser humano
em geral (que é uma substância segunda), mas também está em alguns
indivíduos humanos (substâncias primeiras) em alguma de suas espécies,
como no caso do exemplo da gramática enquanto uma espécie de ciência
que é possuída por certas pessoas.
194 Nazareno Eduardo de Almeida
Este segundo capítulo de Categorias é importante porque, mais do
que o primeiro, procura determinar de modo geral uma hierarquia entre
tipos de entes segundo os modos como eles se apresentam em tipos distintos
de enunciados e não apenas através do modo como são denominados. Feita
essa breve exposição do capítulo 2, podemos passar ao capítulo 5, onde
vários aspectos já mencionados nesta seção se tornarão mais claros.
2.4. O capítulo 5: a hierarquia ontológica entre as categorias a partir da
categoria de substância
Não é nosso objetivo nesta exposição fazer uma análise de todas as
partes do capítulo 5 de Categorias, que é o mais longo e, em certo sentido, o
mais importante desta obra. Nosso objetivo nessa exposição consiste apenas
em mostrar como Aristóteles estabelece uma hierarquia entre as várias
categorias em relação à categoria da substância e, dentro desta, em relação
ao tipo de substância que é denominado ‘substância primeira’.
Antes de expor a hierarquia das categorias, convém apresentar alguns
aspectos do que Aristóteles, neste capítulo, determina como sendo a
substância (ousia). São duas as características principais da substância. A
primeira característica é assim expressa: “toda substância parece significar
um certo isto (tode ti)” (3b 10). O conceito de ‘um certo isto’ marca que o ser
como substância deve ser considerado primariamente como algum objeto
individual que pode ser percebido e que, por isso, recebe um nome próprio
ou ao qual se pode aplicar, em sentido estrito, o demonstrativo ‘isto’. A
concepção da substância como um certo isto significa que o tipo mais básico
de ser se encontra em algo determinado e individual. Embora Categorias
seja atualmente considera uma obra da primeira fase do pensamento
aristotélico (composta durante sua permanência na Academia de Platão ou
logo depois de sua saída), essa característica da substância marca que já na
sua primeira versão da ontologia, Aristóteles está elaborando sua crítica à
concepção platônica do conceito de ser, o qual, como vimos, se aplica às
Formas universais e separadas dos indivíduos particulares. Em contraste,
para Aristóteles, o conceito de ser se aplica primariamente aos indivíduos
particulares ou singulares (as substâncias primeiras).
A segunda característica das substâncias é assim expressa: “Mais do
que tudo, porém, o que parece ser próprio da substância, sendo idêntica e
una por número, é ser capaz de portar os contrários.” (4a 10-11; tradução
A origem da ontologia na metafísica grega 195
própria e grifo acrescentado) Já vimos antes que a partir de Parmênides, a
maior parte das concepções ontológicas precisa estabelecer uma relação
entre os conceitos de ser e de identidade. Justamente neste momento, vemos
que Aristóteles considera a substância (como ser em sentido primário) como
aquilo que possui identidade no sentido da unidade numérica. Mas essa
segunda característica também nos mostra que Aristóteles estabelece a
substância como aquilo que é capaz de explicar as transformações e
diferenças que vemos nas coisas sensíveis, pois uma mesma e única
substância é capaz de portar, em momentos distintos de sua existência,
propriedades contrárias. Por causa dessa capacidade, em outro momento do
capítulo (3b 24-32), é dito que a substância não possui contrário, justamente
porque os contrários só podem existir ao longo do tempo de existência das
substâncias enquanto o tipo de entidade que possui, mais do que os demais
tipos, uma identidade numérica que persiste ao longo de certo tempo. Essa
característica da substância indica que Aristóteles procura aproximar ao
máximo as noções de ser, fenômeno e devir. Essa aproximação marca a
diferença da concepção aristotélica do ser (centrada na noção de substância)
em relação às concepções de Parmênides e Platão, nas quais essas noções são
distinguidas, embora de modos diferentes. Feita esta breve exposição sobre
as duas principais características da substância, podemos passar à exposição
da hierarquia das categorias.
Basicamente, Aristóteles estabelece uma dupla hierarquia de
dependência ontológica entre as categorias. O conceito de dependência
ontológica (bastante discutido na metafísica e ontologia contemporâneas)
significa que um determinado tipo de ser só pode existir por causa de algum
outro tipo mais básico de ser. Essa hierarquia de dependência ontológica
entre as categorias possui dois níveis distintos. No primeiro nível, Aristóteles
estabelece a relação de dependência entre o que chama de substâncias
segundas em relação ao que chama de substâncias primeiras. Já indicamos
antes que as substâncias primeiras são os indivíduos concretos que recebem
nomes próprios (como ‘Sócrates’, ‘Platão’) ou são designados por meio dos
pronomes demonstrativos ‘isto’, ‘este’ e ‘esta’. A característica de ser ‘um certo
isto’ (tode ti) já nos antecipou tal tipo de substância. Conforme a divisão dos
tipos de seres do capítulo 2, este tipo de substância equivale ao tipo de ser
que não é nem dito de outro nem está em outro ser, precisamente porque
todos os outros tipos de ser (categorias) se dizem das e/ou estão nas
substâncias primeiras. Mas dentre esses tipos de ser, aquele que se diz das
196 Nazareno Eduardo de Almeida
substâncias primeiras são as substâncias segundas. Assim, por exemplo,
dizemos dos indivíduos (substâncias primeiras) nomeados como ‘Sócrates’ e
‘Platão’ que são humanos e animais (substâncias segundas).
As substâncias segundas, portanto, identificam e definem o que são
estes indivíduos. Justamente por isso as substâncias segundas não são ditas
estar nas substâncias primeiras, dado que se o ser humano e o ser animal
estivessem em Sócrates e em Platão, eles apenas os caracterizariam de modo
passageiro ou contingente. Assim, embora as substâncias primeiras sejam
um certo isto (tode ti) elas também sempre possuem uma essência (to ti
estin), essência que é determinada pelas substâncias segundas porque estas
identificam e definem a espécie e/ou gênero ao qual pertencem as substâncias
primeiras. Por conta disso, o sentido primário das noções de espécie e
gênero se encontra determinado pelo conceito de substância segunda.
Somente em sentido derivado podemos falar das demais categorias como
sendo gêneros de ser que possuem, dentro de si, espécies, tal como falamos
que a quantidade é uma categoria (gênero de ser) que possui ao menos duas
espécies: as quantidades contáveis ou discretas (os números) e as
quantidades contínuas (as figuras geométricas). Em outras palavras, em
sentido primário, as espécies e gêneros são aquilo que determina as classes a
que pertencem as substâncias primeiras enquanto indivíduos. Isso também
indica que, em sua primeira significação, os conceitos universais (espécies e
gêneros) só podem existir “encarnados” (instanciados/exemplificados) em
indivíduos concretos, ou seja, as substâncias segundas dependem das
substâncias primeiras para existir.
Temos agora como falar do segundo nível da hierarquia de
dependência ontológica entre as categorias. Ele se estabelece entre as demais
categorias e a categoria de substância. Em termos gerais, esse segundo nível
se estabelece por meio da seguinte analogia: assim como na categoria de
substância as substâncias segundas dependem das substâncias primeiras
para existirem, assim também todas as demais categorias dependem da
categoria de substância para existirem. Portanto, só pode haver entidades que
designamos como quantidades, qualidades, relações etc. enquanto estas
entidades se apresentam como propriedades das substâncias. Assim, por
exemplo, só existe o que chamamos de cor laranja (um tipo de ser
qualitativo) enquanto uma propriedade pertencente às substâncias. Embora
possamos definir a cor laranja como algum tipo de mistura entre a cor
amarela e a cor vermelha, essa definição do ser laranja (ou da “laranjidade”)
A origem da ontologia na metafísica grega 197
é apenas uma abstração posterior à existência da cor laranja como
propriedade que caracteriza (mas não define) certo número de substâncias
primeiras (indivíduos). Em uma explicação mais geral, podemos dizer que
todas as quantidades, qualidades, relações, lugares, tempos etc. só podem
existir como tipos de entidades que estão nas substâncias primeiras
(indivíduos) e que podem ser ditas das substâncias segundas; mas as
substâncias segundas, por sua vez, só existem enquanto podem ser ditas das
substâncias primeiras.
Tomando ambos os níveis da hierarquia de dependências ontológicas
entre as categorias temos o seguinte quadro geral: todas as substâncias
segundas são as espécies e gêneros pelos quais é possível identificar e definir
a essência (to ti estin) das substâncias primeiras que são um certo isto (tode
ti), enquanto todas as outras categorias são classes gerais de ser (gêneros e
espécies em sentido derivado) que caracterizam as e/ou estão presentes nas
substâncias primeiras e segundas. Portanto, embora o termo ‘ser’ se diga em
múltiplos sentidos (divididos nas dez categorias como “gêneros supremos”
do ser), essa multiplicidade de sentidos está organizada hierarquicamente na
sequência crescente: substâncias primeiras, substâncias segundas e as
demais categorias. Em termos de dependência ontológica, as demais
categorias de ser não poderiam existir se não existisse a categoria de
substância e, “dentro” desta categoria, as substâncias segundas não poderiam
existir sem a existência das substâncias primeiras, de tal modo que nenhuma
das categorias de ser poderia existir sem a existência das substâncias
primeiras, entendidas como indivíduos concretos que são um certo isto
(tode ti) e que são os portadores de uma identidade e unidade numérica que
persiste ao longo das transformações que se dão entre propriedades
contrárias.
Com essa dupla hierarquia de dependência ontológica entre as
categorias, temos uma visão geral de como o tratado Categorias organiza a
multiplicidade de sentidos do conceito de ser, uma organização que
representa a primeira versão do que podemos chamar de ontologia
aristotélica. No entanto, veremos abaixo que essa primeira versão se altera
consideravelmente na segunda versão da ontologia aristotélica encontrada
no Livro IV da Metafísica.
3. A ontologia aristotélica no Livro IV da Metafísica
198 Nazareno Eduardo de Almeida
3.1. Introdução: as duas partes do Livro IV da Metafísica e o contraste
com a ontologia de Categorias
Temos, agora, de fazer a exposição geral da ontologia aristotélica tal
como ela se configura no Livro IV da Metafísica. Na perspectiva de
interpretação desta obra que estamos adotando aqui, o Livro IV é o seu
início propriamente dito. Esse início é preparado pelos Livros I e III. No
Livro I, Aristóteles apresenta a necessária existência de uma ciência mais
elevada dentre todas as ciências (aquela que é chamada em sentido estrito de
‘sapiência’ (sophia)) enquanto ciência dos primeiros princípios e das
primeiras causas de todas as coisas. Essa necessidade é exposta tanto em
relação à noção mais geral de saber humano (caps. 1-2) quanto em relação
às investigações filosóficas sobre as causas e princípios dos seres realizadas
por seus antecessores, desde os primeiros filósofos gregos até Platão (caps. 3-
10). No Livro III, Aristóteles estabelece que esta “ciência procurada”
(epistêmê dzêtoumenê) terá como tarefa resolver um conjunto de problemas
(aporias) que tinham se formado a partir das controvérsias de seus
antecessores em suas investigações metafísicas sobre a estrutura da
realidade. Depois desses dois Livros introdutórios, é justamente no Livro IV
que Aristóteles se põe no caminho de apresentar o conteúdo desta ciência
primária.
De modo geral, a tradição interpretativa considera que é no Livro IV
que encontramos a ontologia madura de Aristóteles, aquilo que aqui
estamos chamando de segunda versão da ontologia aristotélica. No entanto,
de um ponto de vista mais contemporâneo, o conteúdo da ontologia
aristotélica encontrado neste texto pode ser caracterizado de modo mais
preciso como uma ciência dos conceitos e princípios fundamentais. Essa
caracterização mais recente nos permite entender de modo mais adequado o
conteúdo do Livro IV em suas duas partes.
Na primeira parte do texto, constituída pelos capítulos 1-2,
Aristóteles nos apresenta as razões pelas quais essa ciência é uma ciência dos
conceitos fundamentais enquanto conceitos que se organizam em uma
hierarquia metafísica que os remete ao sentido mais básico da expressão ‘ser
enquanto ser’, sentido que se encontra no ser como substância (ousia). Em
contraste com a ontologia presente em Categorias, esses conceitos
fundamentais incluem, mas não se limitam às categorias.
A origem da ontologia na metafísica grega 199
Na segunda parte do texto, constituída pelos capítulos 3-8, Aristóteles
nos apresenta as razões pelas quais essa ciência é também uma ciência dos
princípios fundamentais do ser enquanto ser, em especial os princípios da
não-contradição (caps. 3-6) e o do terceiro excluído (caps. 7-8). Em
contraste com a ontologia presente em Categorias, esta segunda parte do
Livro IV apresenta algo que só de modo muito distante lembra a parte final
daquele tratado, na qual se discutem alguns conceitos que se aplicariam a
várias ou a todas as categorias, tais como os conceitos de oposição,
contrariedade, simultaneidade e anterioridade.
Para facilitar ainda mais a compreensão do todo e de suas duas
partes, façamos uma sinopse rápida de cada um dos capítulos do Livro IV.
O capítulo 1 nos apresenta de modo geral o sentido e o propósito da
ciência do ser enquanto ser. Essa ciência é distinta das outras porque trata
do ser enquanto ser de modo universal, ao passo que as demais ciências
tratam apenas de partes do ser. Assim, por exemplo, a aritmética trata do ser
enquanto número; a biologia trata do ser enquanto ser vivo; a astronomia
trata do ser enquanto corpo celeste. Portanto, as ciências particulares
recortam partes do ser e as estudam. Mas assim como toda ciência é ciência
das causas que regem e organizam as partes do ser que estudam, também a
ciência do ser enquanto ser deve tratar das causas do ser enquanto ser,
embora ela seja distinta das demais ciências por sua universalidade.
O capítulo 2 (um dos mais importantes do texto) pode ser dividido
em duas partes, sendo a segunda delas composta por duas linhas de
argumentação que se entrelaçam intimamente. Em ambas as partes nas quais
Aristóteles nos apresenta a estrutura geral da ciência do ser enquanto ser como
uma ciência dos conceitos fundamentais. A primeira parte, que inicia o
capítulo, apresenta uma nova solução para a polissemia do conceito de ser,
indicando que os múltiplos sentidos deste conceito se organizam em torno
de um sentido primário que é o sentido do ser como substância. A segunda
parte, como dito, é composta pelo entrelaçamento de duas linhas de
argumentação. Uma destas linhas mostra como também cabe à ciência do
ser enquanto ser tratar dos múltiplos sentidos do conceito de unidade,
indicando como esses múltiplos sentidos podem ser organizados em torno
do ser como substância.58 A segunda linha de argumentação mostra que
58
Notemos aqui, de passagem, a presença da henologia (teoria sobre os conceitos de unidade e
multiplicidade) sobre a qual falamos antes. Um dos objetivos de termos introduzido essa
discussão foi termos os elementos e esclarecimentos conceituais necessários para entendermos
o papel da henologia no Livro IV da Metafísica, especialmente em seu segundo capítulo.
200 Nazareno Eduardo de Almeida
também compete a esta ciência o estudo dos múltiplos conceitos que se
relacionam com os conceitos primários de ser e unidade, de tal modo que
esta é não apenas uma ciência do ser enquanto ser, mas de todos os
conceitos fundamentais que se relacionam com os conceitos mais básicos de
ser e unidade, assim como de seus contrários, os conceitos de não-ser e
multiplicidade.
O capítulo 3, que abre a segunda parte do Livro IV, começa
estabelecendo que esta ciência não deve apenas tratar dos conceitos
fundamentais relacionados com o ser enquanto ser e com a substância, mas
também deve tratar dos princípios fundamentais que se aplicam a eles. Esses
princípios são aqueles comumente chamados pelos matemáticos de
‘axiomas’, embora não caiba propriamente nem aos matemáticos nem aos
físicos tratar desses princípios, pois eles não consideram o ser enquanto ser
de modo universal, tal como o faz a ciência proposta por Aristóteles. No
entanto, em lugar de tratar de vários princípios deste tipo, Aristóteles alega
que o filósofo é capaz de apresentar o princípio mais fundamental de todos.
Este princípio teria de ser indubitável, anterior aos demais e, por isso, não-
hipotético. Depois de estabelecer as características desse princípio
primordial, o texto apresenta três versões deste princípio, que é aquele
atualmente chamado de princípio da não-contradição. O capítulo se encerra
com o esboço de um argumento em defesa desse princípio contra possíveis
críticas inspiradas no pensamento de Heráclito.
O capítulo 4 é o mais longo e mais complexo de todo o Livro IV. Seu
objetivo central é apresentar um conjunto de argumentos contra um suposto
adversário que nega a validade universal e necessária do princípio da não-
contradição. Em linhas bastante gerais, este capítulo pode ser dividido em
oito partes: uma introdução e a exposição (por vezes muito abreviada) de
sete argumentos contra este suposto adversário, argumentos que procuram
mostrar a validade (ao menos parcial) e o caráter primário do princípio da
não-contradição.
O capítulo 5 retoma a defesa do princípio da não-contradição, mas
agora dividindo em dois grupos os adversários que negam seu caráter
primário (sua validade universal e necessária): os adversários de boa-fé e os
adversários de má-fé. A maior parte do capítulo é destinada a apresentar as
causas de os adversários de boa-fé terem se equivocado e chegado a algum
tipo dúvida contra o princípio da não-contradição, indicando quais seriam
A origem da ontologia na metafísica grega 201
os argumentos necessários para corrigir os erros que os levaram a essas
dúvidas.
O capítulo 6 continua a tarefa iniciada no anterior, apresentando os
argumentos para forçar os adversários de má-fé (representados pelo
relativismo de Protágoras) a admitir o caráter primário e a validade
universal do princípio da não-contradição. Ao final do capítulo, é
apresentada uma conclusão geral da sequência dos capítulos 3-6, dando por
provado que o princípio da não-contradição deve ser considerado o mais
fundamental de todos os princípios do ser enquanto ser.
O capítulo 7 retoma a discussão dos princípios primários, mas agora
defende o caráter primário e fundamental do que chamamos modernamente
de princípio do terceiro excluído. Depois de argumentos gerais em defesa
desse princípio, este capítulo se encerra com uma crítica de certas teses de
Heráclito e Anaxágoras.
O capítulo 8 prossegue os argumentos em defesa do princípio do
terceiro excluído, mas agora se voltando à crítica de duas posições
extremadas: a posição segundo a qual todos os enunciados seriam
verdadeiros (associada a Heráclito) e a posição segundo a qual todos os
enunciados seriam falsos (associada a Anaxágoras). É indicado que essas
posições, no nível lógico-epistêmico, se autorrefutam e em última instância
representam duas posições extremas do ponto de vista ontológico, a saber: a
posição de acordo com a qual todas as coisas estariam em movimento e a
posição de acordo com a qual todas as coisas seriam imutáveis.
Através desta brevíssima sinopse do Livro IV, já percebemos duas
diferenças entre a primeira e a segunda versão da ontologia aristotélica. A
primeira diferença, que se tornará mais clara abaixo, consiste em que a
ontologia aristotélica presente no tratado Categorias não era considerada
como uma ciência, mas “apenas” como um tipo de conhecimento
metodológico prévio para a possibilidade de construção adequada das
diversas ciências que teorizam os diferentes gêneros de ser (categorias) como
seus domínios próprios de estudo. Em contraponto com esta visão inicial, a
ontologia que se delineia no Livro IV não é apenas considerada como uma
ciência em sentido estrito, mas como uma (a) ciência mais fundamental do
que todas as demais.
Essa diferença em termos epistemológicos entre a primeira e a
segunda versão da ontologia aristotélica reflete uma diferença na
interpretação da já citada tese expressa no lema: “o termo ‘ser’ se diz em
202 Nazareno Eduardo de Almeida
múltiplos sentidos” (to on legetai pollachôs). Enquanto no quadro conceitual
e argumentativo de Categorias essa tese significava que o termo ‘ser’ é dito
de modo homônimo, no Livro IV da Metafísica ela significa que o termo
‘ser’ é dito em relação a um sentido primário, que é o sentido do ser como
substância. Como veremos logo mais, essa nova forma de compreender a
polissemia do conceito de ser foi batizada a partir dos trabalhos de G. E. L.
Owen pela expressão ‘significação focal do ser’ (focal meaning of being).59
Embora a noção de significação focal do conceito de ser tenha certas
semelhanças com a hierarquia ontológica entre as categorias que expusemos
antes, ela difere desta mesma hierarquia na medida em que Aristóteles
entende que através da significação focal do ser (e de outros conceitos
fundamentais) torna-se possível uma ciência unificada sobre o conceito de
ser, algo que a hierarquia ontológica apresentada em Categorias não
autorizava. Na melhor das hipóteses, aquela hierarquia estabelecia apenas
uma distinção entre ciências que tratam de substâncias segundas (os gêneros
e espécies das substâncias primeiras) e as ciências que tratam de entidades
pertencentes a outras categorias.
A fim de abreviar a exposição da ontologia aristotélica delineada no
Livro IV da Metafísica, deixaremos de lado os capítulos 7-8, onde Aristóteles
defende o princípio do terceiro excluído como um princípio fundamental
desta mesma ontologia. Para além da intenção de abreviar a exposição, essa
limitação na exposição também se justifica pelo fato de que –
contrariamente ao que pensa uma parte da tradição interpretativa – a defesa
do princípio do terceiro excluído como um princípio fundamental da
ontologia aristotélica já está presente na defesa do princípio da não-
contradição realizada nos capítulos 3-6. Nesta perspectiva de interpretação,
o princípio do terceiro excluído é a outra face do princípio da não-
contradição e ambos estes princípios, em sua correlação necessária, são
como que as duas faces de um mesmo princípio primário. Portanto, os
capítulos 7-8 do Livro IV representam a continuação da defesa do princípio
primário na forma do terceiro excluído, algo que já havia sido feito nos
capítulos 3-6, embora de modo indireto. Além disso, a exposição dos
capítulos 1-6 do Livro IV será feita do modo mais breve possível, deixando
para a parte de aprofundamentos e discussões um tratamento mais detido
de aspectos que não são relevantes na exposição do texto básico.
59
OWEN, Gwilym Ellis Lane. Lógica e metafísica em algumas obras iniciais de Aristóteles; trad.
Luis Márcio Nogueira Fontes. In ZINGANO, Marco Antonio (org.) Sobre a Metafísica de
Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2005, p. 177-204.
A origem da ontologia na metafísica grega 203
3.2. O capítulo 1 do Livro IV: a ontologia aristotélica como ciência
universal do ser enquanto ser por si mesmo
Como dito há pouco, os capítulos 1-2 do Livro IV compõem a sua
primeira parte, na qual Aristóteles finalmente começa a expor a “ciência
procurada” como uma ciência universal dos conceitos fundamentais. O
capítulo 1 inicia justamente dando um tipo de “nome” para esta ciência: “Há
uma ciência que teoriza o ser enquanto ser e <as propriedades> que lhe
pertencem por si mesmo.” (1003a 20-21; tradução própria) Logo mais
entenderemos um pouco melhor o sentido dessa afirmação. Na sequência
imediata desta frase, Aristóteles marca que mesmo sendo uma ciência, ela é
uma ciência distinta de todas as demais, uma vez que todas as outras
ciências teorizam (estudam, investigam) apenas partes ou aspectos acidentais
(symbebêkota) do ser enquanto ser, e somente esta ciência teoriza o ser
enquanto ser de modo universal. Estabelece-se, assim, o contraste entre as
ciências particulares do ser e a ciência universal do ser enquanto ser.
É justamente a expressão ‘ser enquanto ser’ que nos permite uma via
de acesso intuitiva para a universalidade atribuída a esta ciência. Para tanto,
podemos dar os seguintes exemplos. A aritmética teoriza (estuda, investiga)
o ser enquanto quantidade contável ou, em uma expressão mais simples, o
ser enquanto ser numérico. A astronomia teoriza o ser enquanto ser celeste. A
biologia teoriza o ser enquanto ser vivo. Em relação ao ser enquanto ser por
si mesmo, o ser numérico, o ser celeste e o ser vivo significam apenas
acidentes do ser, ou seja, não são propriedades intrínsecas que pertencem ao
ser por si mesmo. Isto é expresso no capítulo do seguinte modo: “Dado que
procuramos os princípios e as causas mais elevados de todos (akrotatas), é
evidente que necessariamente estes são <princípios e causas> de alguma
natureza <considerada> por si mesma (kath’hautên).” (1003a 26-28; tradução
própria, grifo acrescentado).
Por meio dessa passagem, bem como do contraste entre a ciência
proposta aqui e as ciências particulares, entendemos que a expressão
‘enquanto ser’ e a expressão ‘por si mesmo’ são tomadas como
complementares, de tal modo que esta ciência não é apenas a ciência do ser
enquanto ser, mas a ciência do ser enquanto ser por si mesmo. Ademais, a
universalidade dessa ciência não significa que ela substitui as demais
ciências particulares, mas que ela terá de teorizar (estudar, investigar,
determinar) as causas e os princípios mais elevados de todos, tal como já
204 Nazareno Eduardo de Almeida
havia sido prescrito no Livro I para a sapiência (sophia). Portanto, esses
princípios e essas causas mais elevados do ser enquanto ser por si mesmo
devem ser determinados a partir de uma perspectiva universal (porque mais
elevada) de considerar o ser, uma perspectiva que necessariamente
ultrapassa as diversas perspectivas particulares das ciências, que teorizam as
causas e princípios que se aplicam exclusivamente às classes particulares de
ser (ser numérico, ser celeste, ser vivo etc.).
O capítulo se encerra fazendo uma alusão aos seus antecessores que,
de algum modo, investigaram os “elementos” (partes fundamentais) do ser.
Essa alusão é importante como uma retomada (em um novo nível) da
análise crítica que Aristóteles fez desses antecessores nos capítulos 3-10 do
Livro I. Essa alusão permite esclarecer a ambivalência da ciência proposta
aqui por Aristóteles. De um lado, essa ciência foi de certo modo procurada
por esses antecessores. De outro lado, porém, por conta de seus erros e suas
visões ainda parciais, esses mesmos predecessores não foram capazes de
alcançar esta ciência, tal como Aristóteles entende que está fazendo aqui.
3.3. O capítulo 2 do Livro IV: a ciência do ser enquanto ser como ciência
dos conceitos fundamentais
I. Introdução: as partes do capítulo 2
Uma vez estabelecido o caráter universal da ciência do ser enquanto
ser por si mesmo, o capítulo 2 apresentará a primeira parte do conteúdo
desta ciência. À primeira vista, poderia parecer que esta ciência trata apenas
do conceito de ser. No entanto, o capítulo 2 apontará para algo muito mais
amplo do que isso. Podemos dividir o capítulo 2 em duas partes. Na
primeira parte, Aristóteles indica as linhas gerais de como a ciência do ser
enquanto ser é uma ciência de todos os múltiplos sentidos do conceito de
ser. A segunda parte do capítulo, por sua vez, contém duas linhas de
argumentação que se “entrelaçam”. Em uma primeira linha de
argumentação, a ciência do ser enquanto ser também deverá tratar da
unidade enquanto unidade, dado que ser e unidade são determinados como
conceitos inseparáveis e complementares. Em uma segunda linha de
argumentação, dado que toda ciência estuda os conceitos contrários, a
ciência do ser enquanto ser e da unidade enquanto unidade também terá de
teorizar os conceitos contrários a estes, ou seja, os conceitos de não-ser e de
A origem da ontologia na metafísica grega 205
multiplicidade. Contudo, como todos os conceitos contrários estão em
algum tipo de relação com os pares de contrários ser/não-ser e
unidade/multiplicidade, então esta ciência será também a ciência de todos os
conceitos fundamentais.
Essa vertiginosa expansão da ciência do ser enquanto ser só se torna
possível, segundo Aristóteles, porque a significação focal (pros hen
legomenon) não se aplica apenas ao conceito de ser, mas também ao conceito
de unidade, bem como aos pares conceituais de contrários ser/não-ser e
unidade/multiplicidade, e, a partir destes, aplica-se a todos os pares de
contrários que estão em relação de dependência com estes pares primários
de conceitos contrários. Por conseguinte, esta ciência tem no conceito de ser
o seu ponto de partida, mas a partir dele se estende aos conceitos de não-ser,
unidade, multiplicidade e a todos os demais que estão em algum tipo de
relação com estes. É uma questão em aberto o quanto este projeto delineado
no capítulo 2 é efetivamente realizado no restante dos textos que compõem a
Metafísica. De qualquer modo, é este o quadro que efetivamente
encontramos no capítulo 2 do Livro IV. Passemos à exposição dessas duas
partes deste capítulo.
II. A primeira parte do capítulo 2: a substância como significação focal
dos múltiplos sentidos do conceito de ser
A primeira parte do capítulo 2 inicia-se retomando explicitamente a
tese mencionada várias vezes, a saber: “o termo ‘ser’ se diz em múltiplos
sentidos” (to on legetai pollachôs). Contudo, essa retomada é feita em uma
nova perspectiva, distinta daquela presente em Categorias e em outras obras
anteriores ao Livro IV da Metafísica. Tomemos o trecho em atenção: “O
<termo> ‘ser/ente’ se diz em múltiplos sentidos (to on legetai pollachôs), mas
em relação a algo uno (pros hen) e <em relação> à certa natureza uma/única
e não de modo homônimo.” (1003a 33-34; tradução própria, grifos
acrescentados) Assim, enquanto em Categorias (e outros textos) Aristóteles
entendia que a polissemia do conceito de ser equivalia ao modo de
significação por homonímia (que já esclarecemos antes), agora o Estagirita
nega expressamente esta compreensão anterior. Em seu lugar, introduz o
que se convenciona chamar – a partir da interpretação do helenista G. E. L.
Owen – de ‘significação focal do ser’ (focal meaning of being), uma expressão
que traduz filosoficamente a expressão grega ‘pros hen legomenon’
206 Nazareno Eduardo de Almeida
(literalmente, ‘o que é dito em relação a um’). Há muita controvérsia sobre
este conceito, que é aqui aplicado para explicar a polissemia do conceito de
ser. Deixarei a discussão de alguns aspectos dessa controvérsia para a parte
dos aprofundamentos deste capítulo.
A sequência da passagem citada nos explica a significação focal do
conceito de ser por meio de uma analogia com dois exemplos. O primeiro
exemplo é o da relação das coisas ditas pelo adjetivo ‘saudável’ (hygienon)
com o conceito geral de saúde (hygieia). Algumas coisas são ditas saudáveis
por conservarem a saúde (uma dieta, por exemplo), outras são ditas
saudáveis por produzirem a saúde (um remédio, por exemplo), outras coisas
são ditas saudáveis por serem sinais de saúde (a capacidade de correr, por
exemplo). O segundo exemplo é o da relação das coisas ditas pelo adjetivo
‘medicinal’ (iatrikon) com o conceito geral de medicina (iatrikê). Algumas
coisas são ditas medicinais por possuírem a ciência da medicina (um
médico, por exemplo), outras coisas são ditas medicinais por serem aptas à
medicina (um bisturi, por exemplo), outras coisas são ditas medicinais por
serem obra da medicina (uma cirurgia, por exemplo). Embora o texto
afirme que outros exemplos poderiam ser aduzidos, o que lemos em seguida
é a transposição deste tipo de significação para o caso do conceito de ser. Eis
o trecho que desde a antiguidade gerou inúmeras interpretações:
“Assim também o <termo> ‘ser/ente’ (to on) é dito em múltiplos
sentidos, mas todos eles em relação a um único princípio: pois as
<coisas> são ditas ‘seres’ (onta) ou porque são substâncias (ousiai), ou
porque são afecções (pathê) da substância, ou porque são caminho
(hodos) para a substância, ou <porque são> corrupções (phthorai) ou
privações (sterêseis) ou qualidades (poiotêtes) ou produtoras (poiêtika)
ou geradoras (gennêtika) da substância, ou então das <coisas> que são
ditas em relação à substância, ou ainda <porque são> negações
(apophaseis) destas <coisas> ou da substância: por isso também
dizemos que o não-ente (to mê on) é não-ente.” (1003b 5-10; tradução
própria, grifos acrescentados)
A primeira coisa que se deve observar neste trecho é que todos os
sentidos em que aplicamos o termo ‘ser’ ou ‘seres’ estão em relação com um
sentido primário de ser, aquilo que é a significação focal desses múltiplos
sentidos: o ser como substância. Assim, o que primariamente se diz pelos
A origem da ontologia na metafísica grega 207
termos ‘ser/ente’ (to on) ou sua forma plural ‘seres/entes’ (ta onta) é a
substância (ousia). Em segundo lugar, depois de indicado este sentido
primário ou significação focal, encontramos uma lista de outros sentidos do
conceito de ser e suas formas de relação com o sentido primário. Como
diversos/as intérpretes já perceberam, essa lista não coincide com a lista das
categorias. O mais provável é que esta lista de categorias seja indicada pela
noção de afecções (pathê) da substância e/ou pela noção de qualidades
(poiotêtes) das substâncias.
Com efeito, encontramos nos outros Livros da Metafísica diferentes
quadros de organização dos múltiplos sentidos do conceito de ser. Isso
mostra que Aristóteles alterou sua compreensão inicial da polissemia do
conceito de ser, compreensão especialmente vinculada às múltiplas
categorias. Em um desses quadros de organização, encontrado no início do
capítulo 10 do Livro IX, Aristóteles apresenta três tipos gerais de sentidos do
conceito de ser: (i) o ser de acordo com as diferentes categorias que se
configuram nos enunciados da forma ‘S é P’; (ii) o ser de acordo com a
potência (dynamis) e a efetividade (energeia) dessas configurações
categoriais; e (iii) o ser de acordo com a verdade ou falsidade dessas
configurações. Se comparamos este modo de dividir os tipos gerais de
sentidos do conceito de ser, percebemos que ele se “encaixa” um pouco
melhor (mas não perfeitamente) na lista apresentada no trecho citado, uma
vez que temos nesta lista conceitos de caráter mais físico e ontológico
(produtores, geradores, corrupções) e conceitos de caráter mais lógico
(privações e negações), conceitos estes que se alinham melhor aos sentidos
do ser como potência e efetividade e aos sentidos do ser como verdade e
falsidade. De todo modo, essa é apenas uma especulação interpretativa. O
que, de fato, temos na passagem é a indicação de uma multiplicidade de
tipos de relações dos múltiplos tipos de entidades (que não são substâncias)
com o tipo básico de entidade representado pelas substâncias e que, por isso,
ocupa o posto de sentido primário do conceito de ser.
Para além dessas questões interpretativas, o que importa perceber é
que o entendimento da polissemia do conceito de ser através da noção de
significação focal pretende apresentar a possibilidade da ciência proposta no
primeiro capítulo, indicando que o sentido primário da expressão ‘ser
enquanto ser por si mesmo’ se encontra no tipo de entidade que é o ser
enquanto substância. Contudo, que este seja o seu sentido primário, não
significa que a ciência do ser enquanto ser teorizará apenas a substância. Já
208 Nazareno Eduardo de Almeida
neste primeiro nível, a ciência do ser enquanto ser precisará mostrar como
os vários sentidos do conceito de ser estão relacionados com o conceito de
substância. Na segunda parte do capítulo 2, veremos que este escopo será
muito ampliado.
III. A segunda parte do capítulo 2: a ontologia aristotélica como ciência
dos conceitos fundamentais
Conforme já antecipamos, a segunda parte do capítulo 2 nos
apresenta uma enorme ampliação da ciência proposta no capítulo 1 e
inicialmente fundamentada na primeira parte do capítulo 2. Como também
já dissemos, essa segunda parte entrelaça duas linhas de argumentação. A
primeira delas procura mostrar que a ciência do ser enquanto ser não se
restringe a determinar os modos como os múltiplos sentidos do conceito de
ser estão relacionados com o sentido primário ou a significação focal do ser
como substância, mas também que esta ciência deve determinar os modos
como os múltiplos sentidos do conceito de unidade estão relacionados com
a significação focal deste conceito. A segunda linha de argumentação vai
ainda mais longe e mostra que se qualquer ciência tem de tratar dos
conceitos contrários, então a ciência do ser enquanto ser deverá tratar dos
pares de contrários ser/não-ser e unidade/multiplicidade. Contudo, como
Aristóteles entende que todos os outros pares de conceitos fundamentais
estão relacionados com estes dois pares primários de contrários, competirá a
esta mesma ciência a determinação dos modos como os vários sentidos de
todos os conceitos fundamentais (organizados em pares de contrários) se
relacionam com os pares primários contrários: ser/não-ser e
unidade/multiplicidade. Dada a complexidade desta segunda parte, teremos
de nos limitar neste texto básico a esquematizações muito gerais destas duas
linhas de argumentação.
(A) A primeira linha de argumentação: a ciência do ser enquanto ser
como ciência dos múltiplos sentidos do conceito de unidade
Esta linha de argumentação parte da seguinte tese, considerada como
uma evidência: os conceitos de ser e de unidade (to hen) são indissociáveis.
Essa indissociabilidade, porém, não é simples. Obviamente os conceitos de
A origem da ontologia na metafísica grega 209
ser e de unidade possuem sentidos diferentes. No capítulo 6 do Livro V e no
capítulo 1 do Livro X da Metafísica, Aristóteles apresenta análises que
procuram organizar os múltiplos sentidos do conceito de unidade. Sem
entrar nos detalhes desses textos, eles evidenciam que Aristóteles concebe o
conceito de unidade como possuindo sentidos diferentes daqueles do
conceito de ser.
Todavia, o capítulo 2 do Livro IV explicita que ambos os conceitos
(em qualquer de seus sentidos) se aplicam às mesmas coisas, pois tudo o que
possui algum tipo de ser possui também algum tipo de unidade. No jargão
da filosofia atual, isso significa que os conceitos de ser e unidade possuem
sentidos distintos, mas possuem a mesma referência. Eles são, por isso,
conceitos coextensivos. Podemos entender isso de modo simples por meio de
um exemplo. O conceito de ter rins e o conceito de ter coração possuem,
obviamente sentidos distintos; contudo, todos os animais que possuem
coração também possuem rins. Por isso, esses conceitos possuem sentidos
distintos, mas são coextensivos, pois ambos se aplicam ou se referem aos
mesmos indivíduos. No caso do texto que estamos analisando, a evidência
linguística disso é apresentada pelo fato de que nenhuma propriedade é
adicionada ao termo ‘humano’ quando acrescentamos a ele as palavras ‘ser’ e
‘um’, ou seja, não há mudança no significado do termo ‘humano’ quando
dizemos ‘um humano’, ‘ser humano’ ou ‘humano que é’, ou ainda ‘um ser
humano’ ou ‘um humano que é’. Em uma perspectiva mais ampla, para
qualquer coisa, esta coisa é algo e, ao mesmo tempo, é uma coisa. No jargão
criado pelos medievais para esta concepção, o ser e a unidade se convertem
mutuamente. Por causa dessa “conversibilidade”, o texto conclui que todos os
tipos de ser são também tipos de unidade e todos os tipos de unidade são
também tipos de ser.
Mas algo tão importante quanto isso é indicado rapidamente no
mesmo contexto de argumentação: que a substância possui, por essência (e
não de modo acidental), ser e unidade. Isso é muito importante porque
mostra que não apenas os vários sentidos do conceito de ser, mas também os
múltiplos sentidos do conceito de unidade estão relacionados com a
substância. É justamente por causa disso que a substância, como núcleo da
ciência do ser enquanto ser, permite que esta ciência seja também ciência da
unidade enquanto unidade, pois a significação focal ou o sentido primário da
unidade se encontra justamente na substância. Com isso, o texto apresenta
como exemplos de sentidos (espécies) do conceito de unidade os conceitos
210 Nazareno Eduardo de Almeida
de identidade, semelhança e igualdade. Portanto, cabe a esta ciência o
estudo desses conceitos para além dos conceitos que estão vinculados ao
conceito de ser.
Somente de passagem, cumpre notar que esta parte do Livro IV
evidencia aquilo que antes falamos sobre a história da metafísica antiga: que
nela, a partir de Parmênides, se entrelaçam conceitos de linhagem
ontológica e conceitos de linhagem henológica. Como já foi dito por alguns
intérpretes recentes, aquilo que chamamos de ontologia aristotélica seria
impossível se ela não incorporasse uma enorme gama de conceitos
henológicos. A “coincidência” da substância como significação focal dos
conceitos de ser e de unidade (neste momento apenas indicada) será
desdobrada na abordagem detida do conceito de substância nos Livros VII e
VIII da Metafísica, abordagem que se realiza combinando intimamente
conceitos de linhagem ontológica e conceitos de linhagem henológica, mas
não é possível falar no presente texto. Além disso, não parece ser um fato
irrelevante que a teoria da significação focal esteja mais próxima da
henologia do que propriamente da ontologia, pois propõe que os múltiplos
sentidos de algum conceito polissêmico estão em algum tipo de relação com
um (pros hen) sentido primário deste mesmo ou de outro conceito.
(B) A segunda linha de argumentação: a ciência do ser enquanto ser
como ciência da totalidade dos conceitos fundamentais
A segunda linha de argumentação é realizada por meio de dois
passos. Um primeiro passo é dado por meio de um argumento por analogia
que pode ser assim esquematizado: dado que todas as ciências particulares
teorizam conceitos contrários (a medicina teoriza a saúde e a doença, a física
teoriza o movimento e o repouso, a aritmética teoriza os números pares e os
ímpares etc.), assim também a ciência do ser enquanto ser não teoriza apenas
o conceito de ser e de unidade, mas também os seus contrários, ou seja, os
conceitos de não-ser e de multiplicidade. O segundo passo é dado por um
argumento cuja fundamentação se encontra em um texto atualmente
perdido de Aristóteles, intitulado Sobre a divisão dos contrários. Apesar
dessa lacuna em relação à sua fundamentação teórica, no contexto em
análise o argumento pode ser descrito do seguinte modo. Se todos os
conceitos fundamentais ordenados por meio de pares de contrários –
identidade e alteridade, semelhança e dessemelhança, igualdade e
A origem da ontologia na metafísica grega 211
desigualdade etc. – em última instância remetem seus múltiplos significados
aos pares de contrários primários ser/não-ser e unidade/multiplicidade, então
a ciência do ser enquanto ser também tem de determinar os modos pelos quais
os múltiplos sentidos desses conceitos se relacionam com os pares de contrários
primários.
Deixaremos para a parte dos aprofundamentos a discussão sobre as
indicações de como essa monumental “pirâmide conceitual” poderia se
realizar, tendo o conceito de substância em seu cume. O que importa
perceber é justamente que a noção de significação focal inicialmente aplicada
ao conceito de ser é evidentemente estendida à totalidade dos conceitos
fundamentais, conceitos estes que são determinados no contexto da segunda
parte do capítulo 2 como “espécies” ou tipos subordinados aos conceitos de
ser e de unidade, bem como dos pares primários de conceitos contrários que
são justamente os pares ser/não-ser e unidade/multiplicidade. Usando a
metáfora da pirâmide, podemos representar este projeto aproximadamente
pelo seguinte diagrama, onde as setas que apontam para cima indicam que a
significação focal é o que permite essa “arquitetura conceitual”:
Substâ ncia
Ser
Unidade
Ser/Não-ser
Unidade/Multiplicidade
Todos os outros conceitos fundamentais
(ordenados em contrários e correlativos)
Essa expansão do escopo de investigação da ciência do ser enquanto
ser é explicitamente enunciada na conclusão deste capítulo:
“Com efeito, por causa <de tudo que se disse>, é evidente que <cabe> a
212 Nazareno Eduardo de Almeida
uma única ciência teorizar o ente enquanto ente e as <propriedades>
que pertencem a ele enquanto ente; e que ela teoriza não apenas as
substâncias e <as propriedades> que lhe pertencem, mas também os
<conceitos> mencionados [sc. não-ser, unidade, multiplicidade,
identidade, alteridade etc.] e ainda <os conceitos> de anterior e
posterior, gêneros e espécies, todo e partes, assim como todos os outros
<conceitos> deste tipo.” (1005a 13-18; tradução própria)
Como dito antes, não é claro o quanto esse projeto de uma ciência de
todos os conceitos fundamentais é efetivamente realizado nos demais textos
que compõem esta complexa obra. Mas se é duvidoso o quanto Aristóteles
consegue cumprir este ambicioso projeto em sua Metafísica, não se pode
duvidar que toda a metafísica posterior se encarrega de realizá-lo de
diferentes modos, a tal ponto que ainda hoje é comum encontrarmos quem
defenda que a metafísica (como ontologia ou em outra configuração) é um
saber (filosófico ou científico, pouco importa aqui a diferença) que se dedica
à investigação e análise dos conceitos fundamentais para o restante do saber
humano.
3.4. O capítulo 3 do Livro IV: a ontologia aristotélica como ciência dos
princípios ontológicos primários
Com o capítulo 3, inicia-se a segunda parte do Livro IV da Metafísica.
Nesta parte, a ciência do ser enquanto ser – delineada nos dois capítulos
iniciais como uma ciência dos conceitos fundamentais – também será
considerada como uma ciência dos princípios fundamentais. Em sua
estrutura, o capítulo 3 apresenta-se dividido em três partes: (a) na primeira,
argumenta-se que cabe à mesma ciência tratar da substância e dos primeiros
princípios de todas as inferências, algo que só parcialmente é feito pelos
matemáticos e pelos físicos; (b) na segunda parte são enumeradas as
características que o princípio primário deve possuir; e (c) na terceira parte
enuncia-se qual é este princípio (aquele atualmente chamado ‘princípio da
não-contradição’) e é apresentado um primeiro argumento contra quem não
o aceita como princípio primário. Vamos fazer uma exposição bastante geral
de cada uma dessas partes, deixando outros detalhes para a parte dos
aprofundamentos e discussões deste capítulo.
A origem da ontologia na metafísica grega 213
I. A primeira parte do capítulo 3: os “axiomas” como princípios do ser
enquanto ser
A primeira parte do capítulo 3 inicia mencionando uma das aporias
(problemas) do Livro III, a saber: se a substância e os princípios primários
das inferências são tema de uma mesma ciência ou de ciências distintas
(996b 26 ss). Mas enquanto no Livro III a aporia fica em aberto, no início do
capítulo 3, Aristóteles afirma que é evidente serem temas de uma mesma
ciência: aquela que trata do que os matemáticos chamam de ‘axiomas’ e da
substância. Segundo Aristóteles, esses princípios devem ser tratados pela
mesma ciência porque eles se aplicam ao ser enquanto ser,
independentemente de suas divisões por gêneros. Os matemáticos, porém,
não são capazes de tratar desses princípios porque eles apenas os usam para
realizar suas demonstrações nos gêneros particulares de coisas sobre os
quais versam essas demonstrações, de tal modo que eles não compreendem
o seu real alcance e seu pleno sentido ontológico fundamental.
O texto prossegue mencionando que alguns filósofos de orientação
física se aproximaram mais do que os matemáticos de compreender essa
abrangência e o sentido ontológico desses axiomas. Embora não mencione
nomes, é possível que Aristóteles tenha aqui em vista Parmênides e alguns
dos seus seguidores eleatas, pois, como vimos antes, estes filósofos
pensavam a identidade do ser através do uso de axiomas.
Independentemente de quem esteja sendo referido aqui, o Estagirita
também aplica a mesma crítica a eles: pensaram que tratavam da totalidade
do ser (do ser de modo universal) ao pensar o ser como natureza. Contudo,
nos diz o texto, a natureza é apenas um gênero de ser e não o ser em sua
totalidade. Por isso, a física é uma sapiência (sophia), mas não de caráter
primário, tal como o é, segundo Aristóteles, a ciência que está propondo no
Livro IV da Metafísica. Essa passagem, aliás, foi usada pela posteridade para
dar um sentido conceitual mais preciso ao termo ‘metafísica’. Como vimos
no primeiro capítulo, este título não foi dado pelo próprio Aristóteles, mas
por seus discípulos, provavelmente com a finalidade de indicar qual a
posição de estudo dos textos reunidos com este título. Nesta passagem,
porém, o título ganharia um conteúdo mais filosófico, uma vez que a ciência
que está sendo aqui proposta seria aquela ciência que trata do ser para além
(meta) do gênero físico de seres.
214 Nazareno Eduardo de Almeida
Em conclusão, embora os axiomas ou primeiros princípios das
inferências (syllogismoi) sejam parcialmente considerados pelos
matemáticos e também por alguns dos físicos, cabe ao filósofo (na acepção
que Aristóteles lhe dá no Livro IV) teorizar sobre estes e “sobre a totalidade
da substância” (1005b 6).
O que é mais importante perceber nesta primeira parte do capítulo 3
consiste na atribuição de um sentido ontológico para princípios que em outras
obras de Aristóteles tinham mais propriamente um sentido lógico-linguístico e
epistemológico. Já no Livro III, quando da apresentação da aporia que é aqui
discutida, Aristóteles alude aos princípios da não-contradição e do terceiro
excluído, que serão os princípios conjunta e sucessivamente discutidos na
segunda parte do Livro IV. Em tratados do Organon, tais como Sobre a
interpretação, Primeiros Analíticos e Segundos Analíticos, Aristóteles opera
com esses princípios e discute o seu valor fundamental no tocante à lógica e
à epistemologia. Embora nesses tratados tais princípios já possam ser vistos
com algum sentido ontológico, é somente no capítulo 3 do Livro IV (e nos
que lhe seguem) que esse sentido ontológico recebe uma posição decisiva na
medida em que cabe à ciência do ser enquanto ser o seu estudo em conjunto
com o estudo da substância.
Essa observação é de suma importância para entendermos que os
argumentos que serão apresentados nos capítulos 4-6 procuram defender o
sentido ontológico fundamental desses princípios, e não apenas seu caráter de
princípios lógicos e epistemológicos fundamentais, como já era o caso nas
obras há pouco mencionadas. É com essa observação que temos condições
de responder em parte uma leitura crítica muito importante feita desta
passagem do Livro IV pelo lógico e filósofo polonês Jan Lukasiewicz (1878-
1956). Este pensador publicou em 1910 um livro em polonês com uma
análise crítica dos argumentos de Aristóteles em defesa do princípio da não-
contradição. Neste mesmo ano, as linhas gerais deste livro foram resumidas
em um artigo em alemão intitulado Sobre a lei de contradição em
Aristóteles.60 Foi através deste artigo que essa leitura crítica se tornou
imediatamente conhecida até que em tempos mais recentes o livro em
polonês foi traduzido para outras línguas.
O intento de Lukasiewicz em ambos os textos é mostrar as
insuficiências dos argumentos aristotélicos para provar que o princípio da
60
LUKASIEWICZ, Jan. “Sobre a lei de contradição em Aristóteles”; trad. Raphael Zillig. In
ZINGANO, Marco (org.) Sobre a Metafísica de Aristóteles: textos selecionados. São Paulo:
Odysseus, 2005, p. 1-24.
A origem da ontologia na metafísica grega 215
não-contradição seria o primeiro princípio de todas as inferências
logicamente válidas. Esta leitura crítica é atualmente incontornável para
todas as pessoas que queiram fazer um estudo da segunda parte do Livro IV
da Metafísica. Contudo, por mais importante e indispensável que o texto e as
críticas de Lukasiewicz sejam, um caminho de resposta a esta leitura
consiste em mostrar que este autor acaba por tomar a segunda parte do
Livro IV (a começar pelo capítulo 3) como se fosse principalmente um texto
de filosofia da lógica, quando, na realidade, se trata de um texto de
ontologia.
Em contraponto a esta interpretação, a interpretação que assumimos
aqui nos mostra que os argumentos de Aristóteles (não isentos de lacunas e
problemas) não estão procurando defender, como sugere Lukasiewicz, o
caráter lógico e mesmo epistemológico primário do princípio da não-
contradição; mas, antes, tais argumentos procuram defender que este
princípio é um princípio ontológico fundamental. Esta alusão à interpretação
de Lukasiewicz no texto básico é necessária tanto por causa de sua
importância quanto para marcar o real “espírito” que anima a primeira parte
do capítulo 3 e, a partir dela, os demais capítulos da segunda parte do Livro
IV. Portanto, de modo geral e em resposta à interpretação de Lukasiewicz, é
preciso ter em mente que os argumentos de Aristóteles procuram mostrar
que o princípio da não-contradição e o do terceiro excluído (embora
Lukasiewicz não perceba isto) são princípios lógicos e epistemológicos
fundamentais porque são primariamente princípios ontológicos fundamentais,
ou seja, que são princípios do ser enquanto ser em sua totalidade e que, por
isso, devem se aplicar primariamente à substância como sentido primário
(significação focal) do ser enquanto ser e, como acabamos de ver, de todos
os outros conceitos fundamentais.
II. A segunda parte do capítulo 3: as características do princípio
primário do ser enquanto ser
Passemos à análise da segunda parte do capítulo 3. Nela, Aristóteles
empreende uma importante transição: deixa de falar de princípios
fundamentais para defender que o filósofo (na acepção deste conceito que
está sendo proposto neste texto) deve ser capaz de enunciar qual é o
princípio mais fundamental de todos. Note-se que, embora implicitamente,
está em jogo aqui novamente a noção de significação focal do seguinte
216 Nazareno Eduardo de Almeida
modo: deve haver um primeiro princípio fundamental do ser enquanto ser ao
qual todos os demais princípios se referem de algum modo.
Mas deixando esse aspecto de lado, a segunda parte do capítulo
antecede a enunciação deste princípio ao apresentar quais devem ser suas
características essenciais. Embora haja diferentes interpretações, podemos
dizer que são duas as características desse princípio supremo: (a) ele é
condição primeira para conhecermos qualquer coisa e (b) ele é não-
hipotético. Enquanto condição para conhecermos qualquer coisa, é
impossível nos enganarmos sobre a verdade deste princípio, pois se assim
fosse, nenhum conhecimento seguro (definitivo) da realidade seria possível.
Também por isso, este princípio precisa ser não-hipotético porque se ele o
fosse, então todo o nosso conhecimento do mundo seria hipotético e,
portanto, poderia tanto estar errado quanto dependeria de algum princípio
desconhecido e mais fundamental, com o risco de cairmos em um regresso
ao infinito na ordem dos princípios que tornam possível nosso
conhecimento do mundo, especialmente nosso conhecimento científico
(demonstrativo).
Por mais breve que seja essa segunda parte, ela possui um significado
histórico de primeira grandeza. Podemos compreender esse significado por
três fatos associados a esta parte. O primeiro é que Aristóteles está
retomando aqui, em novos termos, a caracterização do conhecimento
seguro que Platão atribui ao método dialético no Livro VII da República,
corroborando a hipótese interpretativa de G. E. L. Owen, segundo a qual o
Estagirita retomaria em novas bases a pretensão platônica da ciência
universal, uma pretensão que criticou em uma fase anterior de sua obra. O
segundo fato é que Aristóteles está antevendo aqui as objeções que os céticos
levantarão contra as pretensões da filosofia e da ciência gregas, em especial
aquelas objeções que serão sistematizadas pelos chamados ‘tropos de Agripa’.
E, por fim, relacionado com este último fato, certos intérpretes recentes
veem aqui uma antecipação do projeto de Descartes – exposto em suas
Meditações metafísicas (1641) – para encontrar um princípio absolutamente
indubitável para todo o conhecimento, princípio que o filósofo moderno
indica ser aquele resumido na célebre frase “penso, logo existo”. Estes três
fatos filosóficos associados com as características do princípio primário do
ser enquanto ser nos indicam que a ontologia aristotélica está associada
tanto à metafísica anterior quanto será tomada como um ponto de partida
para a metafísica moderna que ganha uma nova direção com Descartes,
A origem da ontologia na metafísica grega 217
mostrando ainda aquilo que dissemos no início deste livro: que a ontologia
(e a metafísica em geral) sempre tem associada a si questões e temas de
caráter lógico e epistemológico.
III. A terceira parte do capítulo 3: a enunciação do princípio da não-
contradição como princípio primário e sua primeira defesa
Chegamos à terceira, última e mais célebre parte do capítulo 3.
Depois de apresentar as características que o princípio primário do ser
enquanto ser deve possuir, Aristóteles apresenta qual é este princípio, a
saber: aquele que atualmente chamamos ‘princípio da não-contradição’,
doravante também abreviado pela sigla ‘PNC’.61 Seguindo em parte a
proposta de Lukasiewicz no texto mencionado acima, podemos identificar
três formulações desse princípio: uma formulação ontológica, uma
formulação lógica e uma formulação epistêmica.
Na realidade, as formulações ontológica e lógica estão contidas em
uma mesma passagem do texto lida e traduzida de modos distintos.
Literalmente, o princípio da não-contradição é apresentado nos seguintes
termos: “é impossível que o mesmo simultaneamente pertença e não
pertença ao mesmo segundo o mesmo.” (1005b 19-20) Deixando de lado o
aspecto henológico presente no uso do conceito de identidade (marcado
pelo uso da palavra ‘mesmo’), essa enunciação “crua” pode ser
complementada tanto em uma perspectiva ontológica quanto em uma
perspectiva lógica. Na perspectiva ontológica, essa formulação nos diz: “é
impossível que a mesma <propriedade> simultaneamente pertença e não
pertença ao mesmo <sujeito ontológico> segundo o mesmo <aspecto>.” Já na
perspectiva lógica de sua leitura, essa formulação nos diz: “é impossível que
o mesmo <predicado> simultaneamente pertença e não pertença ao mesmo
<sujeito lógico> segundo o mesmo <sentido>”.
Note-se a diferença de nível entre os conceitos usados para
complementar a formulação “crua” do texto: de um lado, temos os conceitos
ontológicos de propriedade, sujeito ontológico e aspecto; de outro, temos os
conceitos lógicos de predicado, sujeito lógico e sentido. Esse paralelismo
entre o nível ontológico e lógico nos lembra da correlação entre lógica e
61
Até meados do século XX, este princípio era também chamado de ‘princípio da contradição’ ou
‘lei da contradição’. É através desta última denominação que Lukasiewicz se refere a ele no já
mencionado texto.
218 Nazareno Eduardo de Almeida
ontologia que já estava presente na ontologia aristotélica de Categorias e
sobre a qual já falamos antes.
Para além disso, porém, notamos que a interpretação de Lukasiewicz
mencionada há pouco complementa a enunciação “crua” do princípio
primariamente em sentido lógico. Todavia, pelo que vimos antes sobre a
primeira parte do capítulo 3, é mais provável que Aristóteles a entenda em
sentido primeiramente ontológico e, a partir deste sentido, em um sentido
lógico. Não é ocioso reiterar o que foi dito há pouco: a argumentação em
defesa do PNC que começa no capítulo 3 e se estende até o capítulo 6
consiste em defender que ele (e, como veremos logo mais, o princípio do
terceiro excluído) é um princípio lógico e epistemológico fundamental
porque é primariamente um princípio ontológico fundamental, ou seja, é
porque ele é um princípio das “coisas” (da realidade, do ser) que ele é
também um princípio da linguagem (lógico) e um princípio do pensamento
(epistemológico).
Esta última observação nos permite passar à formulação
epistemológica do PNC. Textualmente, esta formulação é a seguinte: “é
impossível que qualquer pessoa acredite/tenha como verdadeiro
(hypolambanein) que a mesma coisa é e não é.” (1005b 23-24) No texto já
mencionado acima, Lukasiewicz denomina esta formulação de ‘formulação
psicológica’ do PNC e empreende uma crítica severa a Aristóteles por,
supostamente, tentar provar a verdade de um princípio lógico a partir de um
princípio psicológico. Nos termos da filosofia da lógica de sua época, esse
tipo de tentativa era severamente criticado, sendo denominado de
‘psicologismo em lógica’. De fato, vários autores do final do século XIX e
início do século XX mostraram que a tentativa de vincular ou reduzir a
lógica à psicologia incorria em graves erros. Neste espírito, Lukasiewicz
atribui ao argumento, sobre o qual logo mais falaremos, a seguinte forma
lógica geral: se o PNC é um princípio psicológico, então ele deve ser um
princípio lógico e ontológico.
Essa interpretação “psicologista” da terceira formulação do PNC se
deve à leitura do verbo ‘hypolambanein’ na expressão textual dessa versão do
princípio como um verbo de ordem psicológica. De fato, esse verbo possui,
na obra de Aristóteles, uma acepção psicológica, mas também (e sobretudo)
possui uma acepção epistemológica. Daí, contrariamente à denominação
dada por Lukasiewicz, usarmos a denominação de ‘formulação epistêmica’.
Ela é epistêmica porque não está falando de estados psicológicos, mas de
A origem da ontologia na metafísica grega 219
uma posição epistemológica fundamental que é preenchida por uma
infinidade de estados psicológicos, os quais “traduzem” ou simbolizam
nossa pressuposição mais básica sobre a verdade das proposições que
perfazem nosso conhecimento das coisas. Por isso, podemos traduzir o
verbo ‘hypolambanein’ tanto pelo termo ‘crença’, mas também pelo aspecto
epistemológico (e não psicológico) do conceito de crença, aspecto que
significa ‘ter como verdadeiro que’.
Com essa observação crítica à interpretação de Lukasiewicz,
podemos passar a exposição sumária do primeiro argumento que o capítulo
3 apresenta contra certas pessoas que eventualmente não aceitam o PNC
como um princípio ontológico primário. Contrariamente à reconstrução da
estrutura lógica deste argumento proposta por Lukasiewicz e mencionada
há pouco, o que efetivamente Aristóteles faz é o inverso, a saber: se o PNC é
um princípio ontológico e lógico primário, então ele também é um princípio
epistemológico primário. Essa interpretação do argumento é aquela indicada
por David Ross na parte de comentários que complementa a sua já clássica
edição crítica do texto grego da Metafísica.62 A estrutura geral do argumento
(contido em 1005b 26-32) pode ser esquematizada do seguinte modo:
(a) Premissa 1: Assumindo como verdade que nenhuma coisa do
mundo pode possuir, simultaneamente, propriedades contrárias
(formulação ontológica do PNC).
(b) Premissa 2: Assumindo que proposições (com um mesmo sujeito
‘S’ e um mesmo predicado ‘P’) do tipo ‘S é P’ e ‘S não é P’ são assumidas
como verdadeiras por crenças que são contrárias entre si.
(c) Conclusão: Segue-se que: é impossível que uma mesma pessoa
tenha como verdadeiro (acredite) que ‘S é P’ e, simultaneamente, tenha como
verdadeiro (acredite) que ‘S não é P’ (esta é justamente a formulação
epistêmica do PNC presente no texto); pois se assim fosse, então haveria
alguma coisa no mundo (a mente de uma mesma pessoa) que possuiria
propriedades contrárias (crenças contrárias) simultaneamente, algo que já
foi excluído pela aceitação da formulação ontológica do PNC na primeira
premissa.
(d) Corolário: Com isso, a verdade da conclusão corrobora a verdade
da premissa 1, assim como mostra como a verdade da formulação epistêmica
62
Cf. ROSS, David. Aristotle’s Metaphysics, vol. 1. Oxford: Clarendon, 1996 (1924), p. 262.
220 Nazareno Eduardo de Almeida
do PNC deriva da verdade da formulação ontológica e lógica do mesmo
princípio.
Diante deste argumento e para encerrar a exposição do capítulo 3,
percebemos que Aristóteles já está assumindo neste argumento o princípio do
terceiro excluído (doravante também abreviado pela sigla ‘PTE’) como a
“outra face” do princípio da não-contradição, pois, no caso do argumento que
defende a formulação epistêmica do PNC, se é impossível que qualquer
pessoa, ao mesmo tempo, acredite (tenha como verdadeiro) que uma
mesma coisa é tal (S é P) e que não é tal (S não é P), segue-se imediatamente
que é necessário que qualquer pessoa acredita (tem como verdadeiro) que
uma mesma coisa é tal (S é P) ou não é tal (S não é P), não havendo uma
terceira opção (terceiro excluído). Uma parte dos/das intérpretes entende
que a defesa do PTE somente se daria nos dois últimos capítulos do Livro IV
(caps. 7-8).
Contudo, essa presença implícita do PTE já no capítulo 3 e ao longo
de vários momentos dos argumentos do capítulo 4 nos mostra que a defesa
do PNC como princípio primário do ser enquanto ser (como princípio
ontológico) já é ao mesmo tempo uma defesa do sentido ontológico primário
do PTE. Por conseguinte, a defesa mais explícita do PTE nos capítulos 7-8
do Livro IV é um tipo de apêndice de sua defesa já na sequência dos capítulos
3-6. Assim, embora Aristóteles escolha o PNC como princípio que atende as
características sobre as quais falamos na exposição da segunda parte do
capítulo 3, juntamente com ele já se encontra o PTE como a outra face deste
mesmo princípio primário. Em outras palavras, trata-se de um único
princípio primário com uma dupla face, de tal modo que Aristóteles
defenderá a formulação deste princípio ontológico primário na forma do
PNC também se valendo da forma do PTE e, como veremos em um dos
argumentos do capítulo 4, defenderá a forma do PTE através do PNC.
3.5. O capítulo 4 do Livro IV: os sete argumentos em defesa dos
princípios primários
3.5.1. Introdução: a forma lógica do PNC, a tese do adversário e a
metodologia argumentativa de Aristóteles no capítulo 4
A origem da ontologia na metafísica grega 221
O capítulo 4 é o mais longo e mais complexo dos capítulos do Livro
IV da Metafísica. Sobre ele há uma enorme literatura, bem como várias
controvérsias interpretativas, em especial sobre sua primeira parte. Tudo o
que vamos apresentar neste texto básico são apenas os traços mais gerais
deste tão complexo e discutido capítulo. A fim de entendermos de modo
mais esquemático a introdução e os sete argumentos apresentados contidos
no capítulo 4, convém apresentarmos a forma lógica dos princípios de não-
contradição e do terceiro excluído para podermos ver os aspectos mais
gerais da metodologia de argumentação proposta por Aristóteles.
Acabamos de ver na exposição geral do capítulo 3 as três formulações
do PNC: a formulação ontológica, a lógica e a epistêmica. Deixando esta
última de lado, os/as intérpretes recentes do texto apresentam as seguintes
versões das formulações ontológica e lógica do PNC, segundo a simbologia
desenvolvida na lógica formal moderna:
~ ◊ (∃ x) (∃ F) (F x ∧ ~ F x)
Essa fórmula simbólica pode ser “traduzida” em linguagem filosófica
do seguinte modo: “Não é possível que exista um indivíduo x e que exista
uma propriedade F, tal que x seja F e simultaneamente x não seja F.”
Com isso, podemos ver que: o símbolo ‘~’ significa a negação
(correspondente aproximadamente ao nosso ‘não’); o símbolo ‘◊’ significa o
operador modal de possibilidade (correspondente à expressão ‘é possível
que’); o símbolo ‘∃’ significa o quantificador existencial (correspondente ao
nosso conceito de existir ou haver, e lido como ‘existe um’ ou ‘existe ao
menos um’); o símbolo ‘x’ representa uma variável que pode ser substituída
por algum indivíduo pertencente a uma classe ou conjunto de coisas; o
símbolo ‘F’ funciona como uma variável que pode ser substituída por
alguma propriedade expressa por algum predicado (como por exemplo ‘ser
vermelho’ ou ‘ser humano’) que se atribui a algum indivíduo x; e finalmente,
o símbolo ‘∧’ representa o operador de conjunção (correspondente ao nosso
‘e’ que exprime a conjunção de duas “coisas” simultâneas, como em ‘João é
brasileiro e humano’).
Mas apesar de essa ser a tradução lógico-simbólica mais próxima das
formulações ontológica e lógica do PNC que aparecem no texto, ela ainda
não exprime adequadamente a pretensão que Aristóteles atribui a este
222 Nazareno Eduardo de Almeida
princípio: a pretensão de que ele seja um princípio universal e necessário.
Para exprimir essa pretensão, temos uma formulação logicamente
equivalente (não apenas para os parâmetros da lógica moderna, mas
também segundo os próprios parâmetros da lógica aristotélica) que é a
seguinte:
□ (∀ x) (∀ F) ~ (F x ∧ ~ F x)
Esta formulação pode ser traduzida em linguagem filosófica do
seguinte modo: “É necessário que, para todo e qualquer indivíduo x, para
toda propriedade F, não é o caso que x seja F e simultaneamente x não seja
F”.
Os novos símbolos lógicos introduzidos aqui para além dos outros que
já explicamos antes são: o símbolo ‘ □’, que representa o operador modal de
necessidade (correspondente às nossas expressões ‘é necessário que’ e
‘necessariamente’) e o símbolo ‘∀’, que representa o quantificador universal
(correspondente às nossas expressões ‘todo’ ‘toda’, ‘para todos/as’ ou, como
aqui traduzido, ‘para todo e qualquer’). Para entendermos a mudança entre
o uso de ‘não é possível que’ da primeira versão e o uso de ‘é necessário que’
nesta última, basta notarmos que na lógica de modalidades de Aristóteles e
moderna, há uma equivalência lógica entre ‘é impossível ser’ e
‘necessariamente não ser’. Além disso, Aristóteles (assim como a lógica
modal moderna), de um lado, aproxima a noção de possibilidade ao
quantificador existencial e, de outro, a noção de necessidade ao
quantificador universal. Com isso, entendemos de modo básico como a
segunda formulação usa o quantificador universal enquanto a primeira o
quantificador existencial.
A partir dessas duas versões lógico-simbólicas do PNC conseguimos
perceber com mais clareza que Aristóteles entende este princípio como se
aplicando necessariamente a todos os sujeitos (lógicos e ontológicos) e a
todas as propriedades que estes mesmos sujeitos podem possuir. Em outras
palavras, o Estagirita defende que o PNC não possui exceções porque se aplica
a tudo o que possamos denominar pelo termo ‘ser’ ou ‘ente’, e, obviamente,
pelas formas deste termo no plural (‘seres’ ou ‘entes’). Todas essas mesmas
coisas para as quais aplicamos o termo ‘ser’ ou ‘ente’ são, primeiramente,
sujeitos ontológicos que possuem certas propriedades e não possuem outras,
A origem da ontologia na metafísica grega 223
quer temporária, quer permanentemente. A partir disso, entendemos que
estes mesmos entes podem ser e são representados na linguagem natural como
sujeitos lógicos dos quais afirmamos e negamos (de modo verdadeiro)
predicados que representam as propriedades que estes eles possuem ou não
possuem, ou seja, esses sujeitos ontológicos e as propriedades que possuem
ou não possuem podem ser expressos em enunciados predicativos
verdadeiros do tipo ‘S é P’ e ‘S não é P’.
Diante disso, compreendemos melhor a necessidade e universalidade
que Aristóteles atribui às formulações ontológica e lógica do PNC. E
também compreendemos que o PNC é um princípio que se aplica a todas
possíveis classes de entidades que efetivamente existem no mundo, assim
como se aplica às propriedades que as entidades (“as coisas”) pertencentes a
essas classes possuem ou não possuem. Neste aspecto, o PNC está na base
mesma da concepção aristotélica do conceito de verdade, tanto no sentido
lógico (em que a verdade significa que enunciados declarativos afirmativos
ou negativos (nas formas ‘S é P’ e ‘S não é P) correspondem aos fatos sobre os
quais fala), quanto no sentido ontológico (em que a verdade é sinônimo
daquilo que é efetivamente real no mundo).
Mas além de nos mostrarem o caráter universal e necessário do PNC,
essas simbolizações deste princípio na linguagem da lógica moderna
(especialmente a segunda) nos permitem entender como Aristóteles procederá
aquilo que chama de ‘demonstrar por refutação’ (apodeixai elenktichôs) do
PNC. No cenário argumentativo do capítulo 4, Aristóteles nos apresenta, de
modo geral e hipotético, um adversário que não aceita ser o PNC um
princípio ontológico primário, e que, por isso, demanda que a verdade dessa
concepção seja provada/demonstrada. Contudo, em sentido tradicional, essa
prova/demonstração é impossível, pois para fazer isso Aristóteles teria de
recorrer a algum princípio que seria mais fundamental e anterior ao PNC.
No entanto, a tese aristotélica é justamente a de que não existe nenhum outro
princípio mais fundamental do que o PNC. Além de a demanda desse
hipotético adversário levar à negação da tese aristotélica sobre o PNC, o
texto deixa claro que essa demanda também poderia gerar um regresso ao
infinito no campo da argumentação, algo que equivale a negar a existência
de qualquer princípio que seja primário em relação a todos os demais
princípios, ou seja, não haveria um princípio que (conforme dito na segunda
parte do capítulo 3) fosse absolutamente seguro e indubitável, conforme
Aristóteles propõe que o seja o PNC, já no capítulo anterior a este.
224 Nazareno Eduardo de Almeida
Dada esta impossibilidade de apresentar uma demonstração direta do
PNC como princípio primário, para provar sua tese, Aristóteles procederá
pelo método que chama de ‘demonstrar por refutação’. Esse método é uma
aplicação do que se chama de redução ao absurdo ou redução ao impossível,
método lógico do qual já falamos no capítulo sobre a ontologia de
Parmênides. No contexto específico do capítulo 4, esse método lógico será
aplicado do seguinte modo. Aristóteles supõe que o adversário de sua tese se
compromete com o que certos/as intérpretes recentes têm chamado de
negação forte do princípio da não-contradição. O conteúdo dessa negação,
supostamente, defenderia que necessariamente todas as coisas possuiriam
simultaneamente propriedades contrárias, ou ainda, para simplificar, que
todas as coisas seriam contraditórias. Essa tese pode ser representada em
termos lógico-simbólicos modernos do seguinte modo:
□ (∀ x) (∀ F) (F x ∧ ~ F x)
No mesmo espírito da tradução em linguagem filosófica que fizemos
acima, essa forma simbólica pode ser lida assim: “Necessariamente, para
qualquer indivíduo x e para qualquer propriedade F, o indivíduo x é F e
simultaneamente não é F”.
A partir disso, o adversário da tese de Aristóteles estaria se
comprometendo com o que podemos chamar, literalmente, de princípio da
contradição, que pode ser resumido na expressão ‘tudo é necessariamente
contraditório’.63 É justamente esta posição atribuída ao seu adversário que os
argumentos de Aristóteles no capítulo 4 refutam, e, assim o fazendo,
demonstram (indiretamente) a verdade do sentido ontológico primário do
PNC, que é exatamente a tese defendida neste cenário argumentativo.
Conforme a lógica aristotélica e a lógica clássica em geral, para mostrar que
essa tese supostamente defendida pelo adversário é absurda, basta mostrar
que esse adversário já admite alguma coisa que não é contraditória, ou seja,
que, na realidade, ele já acredita, de algum modo, que nem tudo é
contraditório. Com isso, esse mesmo adversário já estaria se comprometendo
com a verdade, mesmo que parcial, do princípio da não-contradição. Que
63
O uso da expressão ‘coisa contraditória’ é meramente didático. Em Aristóteles, a noção de
contradição se aplica apenas ao nível da linguagem e do pensamento que são expressos em
enunciados da forma geral ‘S é P’ e ‘S não é P’. No âmbito ontológico existem propriedades ou
“coisas” contrárias e, portanto, em sentido estrito não há “coisas” contraditórias.
A origem da ontologia na metafísica grega 225
essa é a lógica implícita ou subjacente nos argumentos de Aristóteles se
mostra no uso reiterado da expressão ‘nem tudo é assim e não assim’ (ou pas
echein kai mê echein), bem como de expressões similares ou logicamente
equivalentes que encontramos ao longo de seus argumentos.
No capítulo 4, à parte a citação esporádica de Anaxágoras e
Protágoras em um dos argumentos, este adversário não é nomeado. A
interpretação recente tem posto em dúvida se existiria, de fato, algum
filósofo grego que defenderia explicitamente a tese que Aristóteles atribui a
este adversário. Dentre os “candidatos” para preencher o papel deste
adversário, os mais “promissores” são os seguintes: no capítulo 3, Heráclito;
e, no capítulo 5, o relativismo de Protágoras e um discípulo radical de
Heráclito chamado Crátilo, que foi um dos professores do jovem Platão.
Todavia, quando olhamos para a filosofia de Heráclito e para o relativismo
de Protágoras, parece improvável que eles tenham defendido alguma tese
com o sentido do que chamamos acima de princípio da contradição (= que
todas as coisas são contraditórias). Talvez apenas Crátilo pareça se
aproximar da defesa dessa posição, mas, como o próprio Aristóteles
menciona, este filósofo teria deixado de falar para ser coerente com a tese
segundo a qual tudo está em constante fluxo. Menção feita a essa polêmica
interpretativa, vamos deixá-la de lado para fazer uma exposição sumária das
partes do capítulo 4. Mesmo assim, convém manter em mente que o
adversário enfrentado por Aristóteles em suas demonstrações por refutação
talvez seja uma ficção filosófica criada para os fins de sua argumentação.
3.5.2. Uma exposição sinóptica das partes do capítulo 4
Como o objetivo deste texto básico (tanto quanto o dos anteriores) é
apenas fazer uma exposição geral da ontologia aristotélica, apresentarei
abaixo um tipo de exposição sinóptica das partes e dos argumentos presentes
no capítulo 4. Essa exposição visa simplesmente delinear os traços mais
gerais dos argumentos apresentados por Aristóteles em defesa do sentido
ontológico do PNC, mas que, conforme indicado antes, são também
argumentos que estabelecem o sentido ontológico do PTE, em especial no
tocante ao quarto argumento contido no capítulo 4. Essa divisão do capítulo
se inspira em uma divisão feita por David Ross em sua obra já mencionada.
Mesmo assim, ela é parcialmente diferente daquela encontrada neste
intérprete. As diferenças são motivadas, sobretudo, pela tentativa de uma
226 Nazareno Eduardo de Almeida
visão mais orgânica e unitária da argumentação aristotélica. Para quem
tenha interesse no tema, poderá encontrar na parte dos aprofundamentos e
discussões desse capítulo uma análise mais minuciosa de três dos sete
argumentos apresentados por Aristóteles: o primeiro, o segundo e o quarto
argumentos.
(A) Introdução (1005b 35-1006a 28): os adversários do PNC e os aspectos
gerais da demonstração por refutação
Na introdução do capítulo, Aristóteles apresenta os adversários do
PNC enquanto princípio ontológico primário. Eles são descritos como
aquelas pessoas “sem-educação” (apaideusia) lógica para reconhecer – como
o próprio Aristóteles aponta em seus Segundos Analíticos – que é preciso
haver princípios (ou próprios a uma ciência, ou comuns a várias, ou comuns
a todas as ciências) que não podem ser demonstrados, uma vez que são os
princípios das demonstrações (seja as de uma determinada ciência, seja as de
um grupo de ciências ou mesmo de todas).
No entanto, conforme o Estagirita e como indicado na seção anterior,
existe um meio para provar que a negação da verdade ontológica primária
do PNC é impossível. Esse meio de prova é o que ele chama de “demonstrar
por refutação” (apodeixai elenktichôs). Esse procedimento difere da
demonstração em sentido próprio porque se alguém quisesse demonstrar
diretamente a verdade ontológica primária do PNC, cairia em uma petição
de princípio (que é um tipo de raciocínio circular), uma vez que seria
necessário recorrer diretamente ao PNC para demonstrar a verdade deste
mesmo princípio.
De acordo com o texto, essa demonstração se realiza por meio da
refutação do adversário que pede para demonstrar a verdade ontológica
primária do PNC. Segundo Aristóteles, a demonstração por refutação da
verdade ontológica do PNC não deve começar pedindo que o adversário
“diga que algo é ou não é”, pois é justamente isto que o adversário pede que
seja provado. Assim, aquilo que Aristóteles pretende mostrar, como já
indicado no capítulo 3, é justamente a verdade ontológica primária do
princípio da não-contradição. Este ponto é de vital importância, pois em seus
argumentos Aristóteles recorre a versões lógico-linguísticas, epistemológicas
e mesmo éticas do PNC para provar sua verdade ontológica primária. Em
outras palavras, para provar que qualquer coisa do mundo não pode, ao
A origem da ontologia na metafísica grega 227
mesmo tempo, ser F e não ser F, é preciso começar os argumentos
mostrando que todos nós (incluindo o adversário) já sempre pressupomos a
verdade do PNC quando pensamos qualquer coisa e quando nos referimos a
ela pela linguagem, assim como quando lidamos com esta mesma coisa em
nossas ações e condutas.
Para tanto, segundo Aristóteles, a demonstração por refutação da
verdade ontológica primária do PNC deve começar forçando quem nega esta
verdade (o adversário) a significar/dizer algo com sentido para si mesmo e
para outrem, pois neste caso ele já admite que há algo determinado no
mundo, uma admissão que deriva do fato de o adversário admitir que não
pensa e fala deste algo do mundo como simultaneamente sendo e não sendo
tal ou qual. Assim, a admissão de uma significação não-contraditória das
palavras e dos pensamentos conduz à conclusão de que as coisas do mundo
sobre as quais o adversário fala e pensa não podem simultaneamente ser e
não ser.
Com isso, Aristóteles entende que, de um lado, o adversário já admite
que há algum princípio que não precisa de demonstração, evitando,
portanto, a regressão ao infinito na ordem dos princípios de prova; mas
também entende, de outro lado, que o adversário já estaria admitindo
juntamente com isso que o PNC pode ser considerado como um princípio
cuja verdade é primária e não depende de prova ulterior. Por conseguinte, o
adversário supostamente já estaria admitindo o PNC como princípio
ontológico primário. Em outras palavras, o adversário já teria de aceitar o
PNC não somente como princípio lógico (no nível da linguagem) e
epistemológico (no nível do pensamento), mas também e sobretudo como
princípio que caracteriza a própria realidade que pode ser pensada e dita, e
com a qual nos relacionamos em nossas ações e condutas.
Essa descrição direta do procedimento de demonstração por refutação
na introdução do capítulo é seguida pela exposição de sete argumentos que
configuram esse procedimento de diferentes modos e a partir de diferentes
pontos de vista. Em cada um desses argumentos também se apresenta a
estrutura lógica da redução ao absurdo que já foi exposta na seção anterior,
ou seja, cada um desses argumentos demonstra o PNC ao refutar a tese
supostamente defendida pelo adversário (que tudo é contraditório),
mostrando tanto as consequências absurdas no caso de se assumir esta tese
quanto que, por causa dessas consequências absurdas, o próprio adversário
não acredita nesta tese e, portanto, já se compromete, em algum sentido,
228 Nazareno Eduardo de Almeida
com a verdade do PNC. Vejamos agora, de modo sucinto, a estrutura geral
de cada um desses sete argumentos.
(B) Primeiro argumento (1006a 28-1007a 20): o argumento da unidade
da significação
Dentre os sete argumentos, este é o argumento mais longo e aquele
que mais controvérsia gerou entre os/as intérpretes. Há várias propostas de
reconstrução de sua estrutura e seu sentido gerais. Deixarei de lado essas
controvérsias e apresentarei aqui uma possível reconstrução de sua estrutura
e seu sentido.64
Essa reconstrução pode ser esquematicamente exposta do seguinte
modo:
(a) Pede-se ao adversário do PNC que signifique algo uno para si e para outrem
(especialmente para quem o questiona);
(b) Este pedido vem na forma de uma pergunta dialética do tipo:
“É verdadeiro ou é falso que isto (provavelmente o próprio adversário) é
denominado pelo termo ‘humano’?”;
(c) O adversário responde (admite/significa) que isto é denominado pelo termo
‘humano’;
(d) O adversário admite que ‘humano’ significa o mesmo que ‘animal bípede’;
(e) Se, necessariamente, ‘humano’ significa o mesmo que ‘animal bípede’, então,
necessariamente, se isto é denominado pelo termo ‘humano’, então isto é um
animal bípede;
(f) Então, se necessariamente isto é humano e o significado de ‘ser humano’ é
equivalente ao significado de ‘ser animal bípede’, então não é possível que isto
não seja animal bípede, e também não é possível afirmar com verdade que isto é
humano e não é humano ao mesmo tempo, pois pela definição de significar
algo uno: ou isto é humano ou isto não é humano;
Consequência geral das premissas: logo, é impossível (necessariamente falso) que
tudo seja assim e não-assim ao mesmo tempo, tal como supostamente defende o
adversário do PNC; o que também significa que este adversário já pressupõe a
verdade do PNC que pretendia negar.
64
Esta estrutura geral é justificada em um artigo de minha autoria e, para quem tenha interesse
maior, é exposto em maiores detalhes na parte dos aprofundamentos e discussões deste
capítulo. Cf. DE ALMEIDA, Nazareno Eduardo. Os princípios de verdade no Livro IV da
Metafísica de Aristóteles. Princípios, vol. 15, n. 23, 2008, p. 5-63.
A origem da ontologia na metafísica grega 229
Corolário: indiretamente o PNC está provado contra a tese do adversário, desde
que ele aceite significar algo uno (com sentido) para si mesmo e para aquela
outra pessoa com a qual está dialogando.
Essa é uma maneira de reconstruir o primeiro argumento que conta
como a primeira demonstração por refutação do PNC. Se esta reconstrução
da estrutura do argumento está correta, então ele se baseia
fundamentalmente na noção de significar algo uno (sêmainein hen). Essa
noção é introduzida por Aristóteles na seguinte frase: “Primeiramente, é
evidentemente verdadeiro por si mesmo [sc. sem necessidade de prova] que
o termo denotativo (onoma) significa o ser ou o não ser de determinada
coisa, de modo que nem tudo é assim e não-assim.” (1006a 28-31; tradução
própria, parêntese reto e ênfase acrescentados) Logo em seguida é dado o
exemplo usado no argumento: o termo denotativo (onoma) ‘humano’
(anthrôpos), cujo significado é considerado equivalente ao enunciado
explicativo (logos) ‘animal bípede’. A partir dessa equivalência de
significados, o argumento como um todo pode chegar à sua conclusão geral.
Para fundamentar a noção de significar algo uno, Aristóteles a
diferencia da noção de significar de algo uno (sêmainein kath’hen). Com
efeito, o termo denotativo ‘humano’ pode ser substituído por enunciados
explicativos com o mesmo significado, tais como ‘animal racional’, ‘animal
político’, ‘animal que ri’ etc. Uma vez que esta lista seja finita, essa variedade
de enunciados explicativos equivalentes ao termo denotativo ‘humano’ não
gera problemas para o argumento. Mas para que essa lista de enunciados
explicativos seja finita, é preciso que outros termos denotativos não sejam
equivalentes em significado ao termo ‘humano’. Assim, por exemplo, de
determinado humano, como Sócrates, é possível falar com verdade não
apenas que é humano, mas que é branco, que é ateniense, que é filósofo etc.
Todavia, estes últimos termos denotativos possuem distintos significados em
relação ao significado que é suposto para o termo ‘humano’, mesmo que
todos eles também signifiquem de algo uno, neste caso, de Sócrates. Com
isso, a noção de significar algo uno indica que um termo denotativo possui
algum significado por si mesmo antes mesmo de ser predicado de algo uno.
Sem essa distinção, o adversário poderia apresentar o seguinte argumento:
(1) Falamos com verdade o enunciado ‘Sócrates é humano’
(2) Falamos com verdade o enunciado ‘Sócrates é branco’
230 Nazareno Eduardo de Almeida
(3) Mas também é verdade que o significado de ‘ser branco’ não é o significado de
‘ser humano’, ou seja, é verdade que ‘ser branco não é ser humano’
(4) Conclusão: logo, a partir de (1), (2) e (3), podemos falar com verdade que
‘Sócrates é humano e, simultaneamente, não é humano’.
É justamente para poder barrar este tipo de argumento que
Aristóteles estabelece a diferença entre o significado uno pertencente aos
termos denotativos e o significar de algo uno quando estes termos são
conjuntamente predicados de uma determinada coisa. Mas é também com
esta distinção que o próprio argumento de Aristóteles pode chegar à
conclusão que refuta o adversário e estabelece de modo indireto a verdade
ontológica do PNC ao tomar como base a necessária unidade da significação
dos termos denotativos. Esta unidade da significação – baseada na diferença
entre significar algo uno e significar de algo uno – serve como um ponto de
partida para aquilo que será o tema central do segundo argumento, sobre o
qual passamos a falar agora.
(C) Segundo argumento (1007a 20-1007b 18): argumento da distinção
entre substância e acidente
De acordo com Aristóteles, ao negar a verdade ontológica do PNC, o
adversário destrói também as bases para os conceitos de substância (ousia) e
essência (to ti en einai), assumindo que todas as propriedades que
pertencem a qualquer sujeito ontológico do mundo são propriedades
acidentais, algo que se transferiria imediatamente para o nível lógico das
predicações. De modo geral, podemos dizer que o argumento de Aristóteles
defende sua versão do que recentemente foi denominado de ‘essencialismo’
contra uma posição do adversário do PNC que podemos chamar de
‘acidentalismo’. Para fins puramente didáticos, esta posição pode ser
aproximada de uma forma radical de nominalismo, segundo a qual só
existem indivíduos que são somas de propriedades, de modo que nada
possui uma essência, pois qualquer uma dessas propriedades ou qualquer
conjunto formado por elas poderia ser tomado como um sujeito ontológico
e lógico ao qual podemos atribuir outras propriedades ou predicados. Se
esta forma radical de nominalismo representada pelo acidentalismo for
aceita como verdadeira, então os conceitos de substância e essência não se
A origem da ontologia na metafísica grega 231
aplicariam a nada no mundo, ou seja, não existiriam substâncias enquanto
unidades ontológicas básicas da realidade.
Mas se, ao contrário do que afirma o acidentalismo, efetivamente
existem estas unidades ontológicas básicas da realidade (as substâncias),
então elas necessariamente são expressas por meio de definições completas
de certas propriedades intrínsecas (essenciais) que compõem essas
substâncias e que se diferenciam de todas as outras (virtualmente infinitas)
propriedades acidentais que uma coisa pode possuir. Em um exemplo
didático, tomando Sócrates como uma substância (uma unidade básica da
realidade), certas propriedades desta substância definem sua essência (ser
humano ou ser animal, por exemplo), enquanto outras propriedades estão
fora desse núcleo essencial de propriedades, sendo, por isso, propriedades
acidentais (como, por exemplo, ser branco, ser filósofo, ser ateniense etc.).
Contra essa posição aqui denominada de acidentalismo, Aristóteles
estabelece um argumento mostrando que não é possível que os acidentes
possam ser sujeitos ontológicos primários, mas apenas sujeitos lógicos
relativos e dependentes lógica e ontologicamente de sujeitos ontológicos
primários, os quais são justamente as substâncias, as quais possuem uma
essência no sentido estrito deste conceito, ou seja, que possuem
propriedades que lhe são intrínsecas, permanentes e necessárias.
Conforme este argumento, no máximo e apenas em sentido lógico-
linguístico (não em sentido ontológico) podemos falar de acidentes de
acidentes. Essa possibilidade meramente lógico-linguística ocorre quando
falamos, no exemplo do texto, que ‘o/este branco é músico’ ou ‘o/este músico
é branco’, pois neste tipo de enunciados tomamos acidentes como
predicados de outros acidentes, quer na posição de sujeito, quer na posição
de predicado da frase. Mesmo assim, essa possibilidade lógico-linguística
depende do fato de ambos os acidentes (que são ocasionalmente tomados
como sujeitos de predicação) serem propriedades de um sujeito ontológico
autêntico (uma substância), que não é um predicado de outra coisa porque
todos os acidentes são predicados dele. Deixando de lado outros detalhes
(que serão tratados na parte de aprofundamentos e discussões), com esse
argumento, Aristóteles não somente pretende provar a necessária distinção
entre substâncias/essências e acidentes, mas pretende sobretudo evitar a
negação da verdade ontológica do PNC, uma negação que deriva da defesa
do acidentalismo.
232 Nazareno Eduardo de Almeida
(D) Terceiro argumento (1007b 18-1008a 2): argumento da distinção
entre potência e atualidade/efetividade
Neste argumento, Aristóteles mostra que certas teses ontológicas de
seus antecessores conduzem à negação da verdade ontológica primária do
PNC porque essas teses não distinguem o sentido do ser em potência
(dynamis) e o sentido do ser em atualidade/efetividade (energeia); assim
como, por isso, não compreendem que o ser em potência sempre
dependente do ser em atualidade. As teses mencionadas aqui são a de
Protágoras e a de Anaxágoras. Segundo o Estagirita, essas teses conduzem a
uma mesma concepção de fundo, concepção segundo a qual todas as coisas
seriam uma única coisa indistinta contendo simultaneamente todas as
propriedades. No contexto do capítulo 4, essa concepção é expressa pela
frase “tudo é um” (hen panta einai).
De um lado, a tese de Protágoras aqui aludida é aquela que se
costuma chamar de ‘relativismo protagórico’, e que é expressa na célebre
máxima: “o ser humano é a medida de todas as coisas, das que são enquanto
são e das que não são enquanto não são”. De acordo com Aristóteles, se esta
tese fosse verdadeira, então tanto a crença/opinião (doxa) de que um ser
humano não é um barco (crença verdadeira) quanto a crença/opinião
contrária de que o ser humano é um barco (crença falsa e absurda) seriam
simultaneamente verdadeiras. De outro lado, a tese de Anaxágoras aludida
aqui é expressa pela seguinte máxima: “todas as coisas estão misturadas em
todas”, uma tese que defende não haver, em última instância, uma distinção
real entre as coisas do mundo, podendo, por isso, ser denominada da ‘tese
da indistinção’. Se ela fosse verdadeira, então ela teria como consequência
dizer que a mesma coisa contém todas as demais coisas do mundo, o que
faria com que o mundo fosse uma única coisa indistinta e que a afirmação e
a negação de um predicado sobre um mesmo sujeito fossem ambas
simultaneamente verdadeiras e falsas. Note-se que, malgrado as diferenças
destas duas teses, elas conduzem a uma mesma consequência: “todas as
coisas são uma só coisa” ou “tudo é um”.
Para Aristóteles, a causa do equívoco de ambas estas teses se encontra
em que estes pensadores (e os que as aceitam de algum modo) imaginam
falar do ser quando, efetivamente, estão falando do não-ser e do
indeterminado/indefinido (aoristos), pois o ser em potência é um tipo de
A origem da ontologia na metafísica grega 233
não-ser e de indeterminação em relação ao ser em ato/efetividade, que é
sinônimo de um ser determinado.
Com efeito, Aristóteles admite que é possível algo ser e não-ser
simultaneamente em certos tipos de potências: as potências que chama de
‘racionais’ (logistikon), tais como aquelas que se apresentam para nossas
ações, mas que também existem em certo âmbito da natureza, tal como nos
fenômenos meteorológicos. Contudo, para o Estagirita, valem duas teses
sobre a distinção entre potência e efetividade: (1) que a conjunção de duas
possibilidades contrárias e ainda não realizadas não é uma contradição em
termos lógicos; e que (2) todo ser em potência é sempre precedido e sucedido
por um ser em ato (em efetividade), de modo que não é possível haver
contradições na realidade efetiva do mundo.
Para além dessas características destas posições apresentadas neste
argumento, elas conduzem também à tese que será refutada no próximo
argumento e que nega a verdade ontológica primária do PTE. Em uma
forma mais detalhada, o núcleo deste mesmo argumento será retomado no
capítulo 5, assim como outras de suas partes serão retomadas no final do
capítulo 7.
(E) Quarto argumento (1008a 2-34): argumento a partir da defesa do
terceiro excluído (PTE)
De acordo com Aristóteles, quem nega a verdade ontológica primária
do PNC também nega que seja necessário afirmar ou negar, ou seja, nega o
princípio do terceiro excluído (PTE). Na realidade, e como já indicamos,
para Aristóteles, quem admite a verdade ontológica primária do PNC
também precisa admitir a verdade ontológica primária do PTE, e vice-versa.
Isto é visível do seguinte modo (usando a letra ‘F’ como símbolo de uma
propriedade qualquer): é impossível (necessariamente falso) que uma
mesma coisa simultaneamente seja F e não seja F se, e somente se, é
necessário que esta mesma coisa, em determinado momento, seja F ou não
seja F. Assim, a verdade ontológica do PNC implica a verdade ontológica do
PTE, e, inversamente, a verdade ontológica do PTE implica a verdade
ontológica do PNC. Dessa mútua implicação, segue-se que há uma bi-
implicação (expressa por ‘se, e somente se,’) entre o PNC e o PTE. A partir
disso, pode-se resumir essa correlação assim: PNC se, e somente se, PTE.
234 Nazareno Eduardo de Almeida
Tendo em vista este pano de fundo, o argumento possui dois tipos de
adversários como foco de sua refutação: (i) aqueles que negam parcialmente
o PTE e (ii) aqueles que negam totalmente este mesmo princípio. No que se
refere ao primeiro tipo de adversários do PTE, Aristóteles mostra que eles já
se comprometem com a verdade do PNC porque sua negação apenas parcial
do PTE os conduz à conclusão suficiente para provar o PNC, a saber: que
nem todas as coisas são contraditórias.
No que concerne ao adversário que nega totalmente o PTE, este pode
assumir duas posições, as quais, de diferentes modos, se autorrefutam. A
primeira posição é a de afirmar e negar a existência de determinada
propriedade de um mesmo sujeito em separado, ou seja, diz-se em um
momento ‘S é P’ e, no momento seguinte, ‘S não é P’. Essa posição se
autorrefuta porque está desdizendo tudo o que disse inicialmente, tornando-
se autocontraditória sucessivamente.
A outra posição, a mais extremada de todas, é aquela que diz serem
simultaneamente verdadeiras a afirmação e a negação de um predicado ditas
em conjunto, ou seja, que seria verdade dizer, em um mesmo enunciado, ‘S é
P e S não é P’ (v.g. ‘João é humano e João não é humano’ ou, de forma
abreviada, ‘João é humano e não é humano’). Mas para ser coerente com sua
posição, esse adversário teria de tomar a conjunção anterior de enunciados
contraditórios como sendo um único enunciado afirmativo e teria de negá-
lo, ou seja, dizer que ‘nem S é P e nem que S não é P’ (v. g. ‘João não é nem
humano nem não é humano’). Neste caso, a autorrefutação (e, portanto, a
autocontradição) é simultânea aos próprios enunciados produzidos por este
adversário, de tal modo que ele teria de dizer, em última instância, que é
verdade que ele próprio existe e não existe. Mas, de acordo com Aristóteles,
com (e contra) este tipo de adversário radical nem valeria a pena
argumentar, uma vez que (como também é dito no primeiro argumento) ele
não seria diferente de uma planta, ou seja, se colocaria fora dos critérios
mínimos para qualquer argumentação racional tipicamente humana.
(F) Quinto argumento (1008a 34-1008b 10): o argumento a partir da
definição de verdade e falsidade, e da pressuposição da natureza
(“verdade”) das coisas
Este argumento está dividido em duas partes: uma introdução de
caráter lógico, que leva a uma petição de princípio; e outra parte de caráter
A origem da ontologia na metafísica grega 235
epistemológico e ontológico que se desvia da petição de princípio indicada
na primeira parte. A primeira parte apresenta a definição de verdade e
falsidade que será novamente discutida no capítulo 7. No presente contexto,
essa definição se apresenta da seguinte maneira: (1) uma afirmação (na
forma ‘S é P’) é verdadeira se, e somente se, sua negação (na forma ‘S não é
P’) é falsa; inversamente, (2) uma negação é verdadeira se, e somente se, sua
afirmação é falsa. Assumindo essa definição como premissa, então não é
possível que a afirmação e a negação sejam simultaneamente verdadeiras e,
implicitamente, também não é possível que sejam simultaneamente falsas.
Mas é justamente isso que o PNC nos diz, de modo que nesta parte inicial
do argumento, Aristóteles admite que este argumento cometeria uma
petição de princípio, ou seja, que tentaria demonstrar o PNC diretamente a
partir do próprio PNC que está contido na definição de afirmação e negação
verdadeiras e de afirmação e negação falsas.
Na segunda parte, esta petição de princípio é corrigida ao se
explicitar mais uma das consequências absurdas da negação do PNC, uma
consequência expressa na seguinte pergunta: que sentido haveria em
pressupormos que existe uma natureza das coisas sobre a qual pensamos e
falamos se fosse igualmente verdadeiro afirmar e negar uma propriedade de
um mesmo sujeito? Casso fosse assim, qualquer afirmação ou negação sobre
a natureza das coisas seria indiferentemente verdadeira, de modo que o
mundo não teria nenhuma natureza (sentido ontológico deste absurdo); ou
mesmo que a tivesse, ela seria inacessível para nós (sentido epistemológico
deste absurdo). Este argumento é retomado nos capítulos 7 e 8 do Livro IV
em relação à defesa do PTE como princípio igualmente primário ao lado do
PNC e diretamente associado à definição da verdade e da falsidade.
(G) Sexto argumento (1008b 10-31): argumento a partir das condutas e
avaliações práticas
Neste argumento, Aristóteles nos indica que as ações e condutas de
todas as pessoas estão baseadas em avaliações das coisas que estão
envolvidas nestas mesmas ações e condutas. Quando, por exemplo, alguém
se encaminha para determinado lugar porque quer encontrar determinada
pessoa. Essa ação se realiza porque a primeira pessoa avalia (julga) ser útil,
necessário ou bom encontrar a outra, de tal modo que não avalia (julga), ao
mesmo tempo, que este encontro desejado seria inútil, desnecessário ou
236 Nazareno Eduardo de Almeida
ruim. Assim, de modo geral, mesmo sem termos um conhecimento seguro
sobre a natureza das coisas com as quais lidamos em nossas ações e
condutas, nós avaliamos estas mesmas coisas como tendo tal ou qual valor
para nós, e não, simultaneamente, como não tendo este valor que lhes
atribuímos.
Por conseguinte, segundo Aristóteles, as escolhas e avaliações sobre
as coisas envolvidas em nossas ações e condutas já pressupõem o PNC como
verdadeiro (ontologicamente), mesmo que essa pressuposição se manifeste
no que podemos chamar de uso prático do PNC. Portanto, as escolhas e
avaliações que explicam o sentido das ações e condutas do adversário do
PNC mostram que essas mesmas ações e condutas desmentem sua própria
negação deste princípio como um princípio ontológico primário, de modo
que o próprio adversário já pressupõe este princípio como verdadeiro sem
necessidade de demonstração. Este argumento também será retomado com
uma “roupagem” distinta nos capítulos 5 e 6 do Livro IV.
(H) Sétimo argumento (1008b 31-1009a 5): argumento da aproximação
da verdade
Por fim, Aristóteles lança mão do mais fraco de todos os argumentos
que encarnam a demonstração por refutação do PNC: o argumento da
aproximação da verdade. O núcleo do argumento é o seguinte: mesmo que
todos os nossos enunciados contraditórios sobre o mundo fossem
simultaneamente verdadeiros, o PNC ainda teria uma validade relativa que
estaria presente em nossa avaliação epistemológica de que um enunciado
está “mais errado” do que outro porque um deles está mais próximo do
“alvo” e outro está mais distante. Usando o exemplo do texto, quando duas
pessoas erram um mesmo cálculo, mas uma delas se aproxima mais do
resultado verdadeiro, costumamos dizer que ela está “menos errada do que a
outra” e mais próxima da verdade. Este é o argumento mais fraco porque
para podermos determinar quem está mais próximo/a da verdade, já
teríamos de ter acesso à verdade propriamente dita. No entanto, o
argumento começa justamente admitindo hipoteticamente a tese do
adversário, ou seja, que não teríamos acesso à verdade (realidade) das coisas.
Nesta interpretação, é possível pôr em dúvida se este argumento é realmente
uma demonstração por refutação do PNC, pois não conseguiria,
efetivamente, refutar a tese do adversário.
A origem da ontologia na metafísica grega 237
3.5.3. Conclusão sobre o capítulo 4
Temos agora uma visão sinóptica do capítulo 4 do Livro IV. Através
dela, entrevemos a riqueza argumentativa e, ao mesmo tempo, a concisão
extrema de um texto que nas traduções modernas não costuma ocupar mais
do que dez páginas. Não obstante isso, esse punhado de páginas se
multiplica exponencialmente quando os/as intérpretes procuram analisar
seus detalhes. O mais importante a se observar em uma exposição didática e
inicial como esta é que Aristóteles está defendendo – por meio de
argumentos que se valem de premissas lógicas, ontológicas, epistêmicas e até
éticas – a validade universal, necessária e ontológica do princípio primário,
principalmente na forma do que chamamos atualmente de princípio da não-
contradição, mas também na forma do que chamamos atualmente de
princípio do terceiro excluído. Em outras palavras, se o princípio aqui
defendido é primariamente verdadeiro das coisas do mundo, justamente por
isso ele também deve ser concebido como verdadeiro no campo de nossa
linguagem e de nosso pensamento. Assim, o capítulo 4 nos mostra a
argumentação em defesa de um princípio que permitiria a própria relação de
nosso pensamento e nossa linguagem (e mesmo de nossas ações) com o mundo.
Dentre os sete argumentos resumidos, há ao menos três que merecem
uma análise mais detida de quem pretende se aprofundar um pouco mais na
ontologia aristotélica: o primeiro, o segundo e o quarto argumentos. É o que
será feito na parte dos aprofundamentos e discussões deste capítulo. Mesmo
assim, os argumentos em seu conjunto nos mostram que Aristóteles está
abrindo aqui um horizonte de investigações que a metafísica posterior
explorará de diferentes modos. Este horizonte é aquele da metafísica como
um campo de debates e investigações sobre princípios fundamentais que
tornam possível as diversas formas da relação entre pensamento, linguagem
e mundo.
Aquilo que veremos agora sobre os capítulos 5 e 6 do Livro IV
confirma que esse horizonte de investigações dos princípios fundamentais
não se encerra em si mesmo, mas se expande para a discussão de
concepções que envolvem não apenas a ontologia, a lógica, a epistemologia e
a ética, mas também envolvem concepções que atualmente situaríamos no
campo da filosofia da mente, da filosofia da linguagem e mesmo da
antropologia filosófica. Em outras palavras, os argumentos de Aristóteles
certamente nos apontam para a necessidade de compreender a metafísica
238 Nazareno Eduardo de Almeida
(aristotélica e pós-aristotélica) como um dos campos de debate e
investigação da filosofia; mas este campo, por seus argumentos e por sua
pretensão de universalidade, também certamente intersecciona com
diversos outros campos filosóficos de debate e investigação.
3.6. Os capítulos 5 e 6 do Livro IV: a defesa do princípio primário contra
o relativismo
3.6.1. Introdução: a divisão dos capítulos 5 e 6 e sua unidade como
refutação do relativismo
Chegamos na parte final do texto básico sobre a ontologia aristotélica
no Livro IV da Metafísica. Como conclusão, faremos uma exposição
conjunta dos capítulos 5 e 6, que prosseguem em novas direções a defesa do
sentido ontológico do princípio primário iniciada nos capítulos 3 e 4. De
modo geral, podemos dividir o capítulo 5 em duas partes. A primeira parte é
composta de uma introdução que apresenta o relativismo de Protágoras e
que faz uma divisão entre dois tipos de adversários do princípio primário: os
adversários de boa-fé e os adversários de má-fé. A segunda parte é composta
pelo restante do capítulo, onde se encontram entrelaçadas duas linhas de
argumentação complementares. Uma dessas linhas mostra que os
adversários de boa-fé acabaram assumindo posições análogas à do
relativismo de Protágoras por causa de suas concepções ontológicas. A outra
linha mostra que esses mesmos adversários acabaram assumindo posições
análogas à do relativismo de Protágoras por causa de suas concepções acerca
da natureza da alma humana e sobre a verdade.
Já o capítulo 6 procura apresentar argumentos contra os adversários
de má-fé. Esses argumentos são basicamente para refutar o relativismo de
Protágoras e as teses que estão com ele associadas. Em termos aproximados,
esses argumentos são de dois tipos: um deles mostra que mesmo admitindo
hipoteticamente o relativismo, mantém-se a validade do PNC (e, portanto,
do PTE); o outro tipo mostra os absurdos derivados do relativismo.
No entanto, de modo geral, ambos os capítulos (e também parte dos
capítulos 7-8) podem ser considerados em conjunto como a apresentação de
argumentos contra as concepções filosóficas que são (1) diretamente
relativistas ou que (2) conduzem ao relativismo. A diferença entre essas
A origem da ontologia na metafísica grega 239
concepções é apenas que os adversários de boa-fé adotam posições
relativistas errôneas sem sabê-lo e por não terem se dado conta das
consequências dessas posições; enquanto os adversários de má-fé
(representados principalmente por Protágoras) conscientemente defendem
os argumentos do relativismo e pretendem que eles sejam verdadeiros,
mesmo que essa suposta verdade os conduza a negar a validade ontológica
do PNC e mesmo a assumir que todas as coisas são contraditórias (aquilo
que antes foi denominado de princípio da contradição). Assim, em ambos
os capítulos encontramos um conjunto de argumentos contra algumas
formas de relativismo, desde formas mais moderadas até a forma mais
explícita encontrada em Protágoras.
Todavia, dentre os argumentos associados ao relativismo que
aparecem nos capítulos 5 e 6, de um ponto de vista retrospectivo,
percebemos que alguns deles já antecipam o que, a partir de Pirro de Élis (c.
360-270 a. C.), passou a ser conhecido pelo nome de ceticismo. Note-se que
Pirro nasce ainda durante a vida de Aristóteles (384-322 a. C.). Apesar disso,
não temos nenhuma evidência concreta de que Aristóteles chegou a ter
conhecimento das posições de Pirro, provavelmente por este último nada ter
escrito, tendo seu pensamento gerado frutos a partir de seus seguidores.
Apesar disso, conforme podemos ver em vários momentos da obra de Sexto
Empírico (c. 160-210 d. C.), o relativismo é expressamente considerado
como uma posição bastante próxima do ceticismo. Independentemente
dessas questões históricas, o fato é que nos capítulos 5 e 6, Aristóteles aponta
argumentos que viriam a ser sistematizados e usados pelos céticos, em
especial nos dez tropos de Enesidemo (séc. I a. C.) e nos cinco tropos de
Agripa (séc. I d. C.). Portanto, podemos perceber que os argumentos de
Aristóteles se voltam diretamente contra as posições filosóficas que apontam
para o relativismo (especialmente aquele de Protágoras), mas também,
indiretamente, contra certas posições filosóficas que poderíamos aproximar
do ceticismo então nascente. Apesar da importância histórico-filosófica
desta proximidade, deixaremos esse aspecto presente nos capítulos 5 e 6 de
lado nesta exposição, embora ele seja digno de menção e deva ser levado em
conta por quem pretenda realizar um estudo filosófico mais aprofundado
desta parte do Livro IV.
3.6.2. O capítulo 5: os argumentos para “curar” os adversários de boa-fé
240 Nazareno Eduardo de Almeida
(A) A primeira parte do capítulo 5: o relativismo de Protágoras e a
divisão dos adversários relativistas
O capítulo 5 inicia apresentando a teoria/tese (logos) de Protágoras
como fazendo parte daquelas doutrinas que negam a verdade ontológica do
PNC. Como já indicado antes, essa doutrina é modernamente denominada
‘relativismo protagórico’. Ela é exposta na seguinte proposição da obra de
Protágoras: “o ser humano é a medida de todas as coisas, das coisas que são,
como/enquanto são (tôn ontôn hôs estin), e das coisas que não são,
como/enquanto não são (tôn ouk ontôn hôs ouk estin).” (fragmento 1 na
numeração de Diels e Kranz; tradução própria). Essa tese, geralmente
nomeada como ‘tese do homem-medida’ (ou, em latim, ‘homo mensura’) é o
princípio do relativismo de Protágoras e, como podemos perceber em sua
leitura, é uma tese ontológica, uma vez que concede aos seres humanos o
papel de critério (medida) que determina o ser ou o não ser das coisas do
mundo.
Para Aristóteles, se a teoria de Protágoras for verdadeira, então,
virtualmente, todas as coisas são e não são ao mesmo tempo, pois (1) se
alguém acredita que uma certa coisa é F e outra pessoa acredita que esta
mesma coisa não é F; e (2) se cada pessoa é a medida do ser e do não-ser de
todas as coisas; (3) então, segue-se necessariamente que ambas as crenças
contrárias sobre uma mesma coisa têm de ser verdadeiras. A noção de
crença é também expressa pela noção de opinião (doxa), de tal modo que,
na visão de Aristóteles, esse argumento equivale a dizer que todas as opiniões
são verdadeiras simultaneamente, mesmo que as pessoas, individualmente,
pensem que somente as suas opiniões são verdadeiras e aquelas que lhes são
contrárias são falsas; pois, no conjunto, todas as pessoas consideram que
suas opiniões são verdadeiras. E se todas as opiniões são verdadeiras, então os
seres (sobre os quais se formam as opiniões contrárias) possuem em si
mesmos simultaneamente propriedades contrárias. Nesta interpretação, o
relativismo protagórico parece corresponder do modo mais pleno à posição
do adversário que nega o PNC, pois se compromete com a verdade da tese
segundo a qual todas as coisas são contraditórias, ou seja, acaba por
defender o que antes chamamos de ‘princípio da contradição’.
Mas depois dessa introdução sobre o relativismo de Protágoras, a
sequência do capítulo sugere que tal tese é apenas a último exemplo mais
extremado de uma linhagem de concepções ontológicas que,
A origem da ontologia na metafísica grega 241
surpreendentemente, remonta até Homero! Nessa linhagem, porém, seria
necessário distinguir aqueles que assumem alguma forma de relativismo de
modo involuntário e aqueles que assumem o relativismo de modo
voluntário e consciente. Segundo Aristóteles, a argumentação contra esses
dois tipos de adversários é diferente. Os do primeiro tipo precisariam ser
persuadidos do erro de seus pensamentos, mostrando-lhes a verdade sobre
os temas em que se equivocaram. Os do segundo tipo, porém, teriam de ser
forçados ou constrangidos a admitir o absurdo de sua posição, refutando suas
palavras, pois Aristóteles entende que estes últimos só defendem essa
posição, por assim dizer, “da boca para fora” ou, na expressão grega
equivalente usada no texto, “falam pelo prazer de falar” (logou charin legousi;
1009a 21).
Na realidade, os do primeiro tipo são os filósofos que antecedem
Aristóteles e que recaíram em algum tipo ou grau de relativismo por não
terem conseguido resolver de modo adequado certos problemas filosóficos.
Já os do segundo tipo são alguns dos sofistas que, seguindo Protágoras,
assumem o relativismo por lhes ser mais conveniente ou simplesmente pelo
prazer de defender uma posição excêntrica. Em suma, os do primeiro tipo
são aqueles que se pode chamar de adversários de boa-fé, enquanto os do
segundo tipo são aqueles que se pode chamar de adversários de má-fé. A
partir daqui, o restante do capítulo 5 apresenta os argumentos para
persuadir os adversários de boa-fé e torná-los conscientes de seu erro. Os
argumentos para forçar ou constranger os adversários de má-fé e o
relativismo de Protágoras são tema do capítulo 6.
(B) A segunda parte do capítulo 5: o diagnóstico e a “cura” dos
adversários de boa-fé
Sabemos que Aristóteles descendia de uma família de médicos e que
seu pai, Nicômaco, fora médico na corte de Filipe da Macedônia. Essa
origem explica em parte sua enorme paixão pelo estudo dos seres vivos,
paixão que o levou a escrever diversos livros sobre os animais, sendo
considerado por causa dessas obras o fundador da biologia como ciência,
em particular da zoologia. Mas também aqui, no capítulo 5, sua inspiração
na tradição médica familiar se manifesta, pois os argumentos para persuadir
os adversários de boa-fé assumem o caráter de diagnósticos sobre as causas
dos erros desses adversários. Assim, Aristóteles não se dedica a uma análise
242 Nazareno Eduardo de Almeida
pormenorizada das concepções que, sem o saber, aproximaram esses
antecessores da posição relativista de Protágoras. Antes, agrupa-as de acordo
com as causas que os levaram a estas concepções equivocadas. Depois de
indicar as causas (o diagnóstico) desses equívocos, Aristóteles apresenta
também de modo bastante sucinto os argumentos que podem saná-los e
corrigi-los (o prognóstico).
São duas as causas principais desses equívocos, embora elas estejam
intimamente relacionadas entre si. A primeira delas é que consideraram a
natureza do ser unicamente a partir do aparece na percepção, ou seja, se
guiaram apenas pelos entes perceptíveis ou sensíveis (aistheta). Vendo que
as propriedades contrárias (e, portanto, os enunciados contraditórios que as
exprimem) provêm das mesmas coisas, e admitindo que é impossível que o
não-ser provenha do ser, concluíram que essas propriedades contrárias
devem subsistir juntas na mesma coisa (1009a 23-26). Em resumo, ao
investigarem a verdade sobre os seres, acreditaram que existiam unicamente
os entes perceptíveis, nos quais subsiste em grande medida o indeterminado
(aoriston) (1010a 1-4). A segunda causa, derivada da primeira, é que
conceberam ser necessariamente verdadeiro o que aparece (phainomenon)
para a sensação porque assumiram como verdade/acreditaram
(hypolambanein) que a racionalidade (phronêsin) é como a sensação
(aisthêsis), e que esta última é uma contínua alteração (alloiôsis) (1009b 12-
15).
No que concerne à “cura” dos equívocos provocados pela primeira
causa, Aristóteles apresenta um conjunto de argumentos de caráter
ontológico.
(1) Em primeiro lugar, eles deveriam ter diferenciado entre o ser em
potência (dynamis) e o ser em ato ou efetividade (energeia). Tendo em vista
esta distinção, então é possível dizer, num sentido qualificado e não
contraditório, que o ser provém do não-ser: no sentido de que o que está em
efetividade surge do ser potencial, que é um tipo de não-ser quando
considerado em relação ao ser em ato. Assim, em alguns casos, as
propriedades contrárias se encontram juntas no ser em potência, mas nunca
se apresentam juntas no ser em ato (1009a 32-36).
(2) Em segundo lugar, é preciso mostrar a eles que, dentre os seres do
mundo, há um outro tipo de substância para além das coisas que se geram e
que se corrompem, um tipo de substância que, portanto, não está sujeita à
geração e à corrupção, como é o caso das substâncias sensíveis à nossa volta.
A origem da ontologia na metafísica grega 243
Embora o texto não o diga, são dois os candidatos a este tipo de substância
na obra de Aristóteles: (1) ou os corpos celestes, que são considerados pelo
Estagirita como eternos e imutáveis; (2) ou as substâncias não-sensíveis, que
são os moventes não-movidos e, sobretudo, o primeiro movente não-
movido (1009a 36-37; 1010a 32-35). Com efeito, Aristóteles determina de
modo geral o que são estas substâncias suprassensíveis no Livro XII da
Metafísica.
(3) Em terceiro lugar, em continuidade com este argumento, julgaram
a totalidade dos seres sensíveis como se fossem do mesmo tipo dos seres
sensíveis que nos circundam, os quais estão em constante transformação,
deixando de considerar os seres sensíveis celestes, os quais (na concepção
cosmológica de Aristóteles) são constantes e eternos. Seria mais correto que
tivessem considerado a totalidade dos seres sensíveis a partir dos entes
sensíveis celestes, pois os que estão mais próximos de nós são a minoria dos
entes sensíveis (1010a 25-32).
(4) Em quarto lugar, mesmo que as coisas perceptíveis em nosso
entorno estejam em constante transformação, possuem certo grau de
continuidade e identidade neste processo, pois podemos identificar que uma
mesma coisa, durante o tempo em que existe com certa identidade, ganha
certas propriedades e perde outras. Além disso, Aristóteles indica que essa
mesma coisa veio a ser a partir de outra que possuía certa estabilidade para
poder gerá-la, bem como que este processo precisa ter certas causas últimas
(que seriam constantes), caso contrário o processo de geração iria ao infinito
(1010a 15-22).
(5) Em quinto lugar, é preciso distinguir entre a alteração qualitativa e
a alteração quantitativa. Que os seres sensíveis estejam constantemente se
alterando quantitativamente não implica que estejam se alterando
qualitativamente. E dentre as qualidades dos seres está a forma, cuja
identidade persiste ao menos durante o tempo em que uma coisa individual
existe (1010a 22-25).
(6) Em sexto lugar, por fim, para quem concebe que o ser e o não-ser
existem simultaneamente na mesma coisa seria mais adequado defender que
as coisas estão em repouso e não em movimento, como parece acontecer a
quem assim concebe. De fato, não haveria realmente mudança se os
contrários já estivessem juntos na mesma coisa (1010a 35-1010b 1).
No que concerne à “cura” dos equívocos provocados pela segunda
causa, Aristóteles apresenta um conjunto de argumentos de caráter
244 Nazareno Eduardo de Almeida
epistemológico e psicológico. A tese geral que esses argumentos procuram
provar é resumida por Aristóteles na seguinte frase: “acerca da verdade,
<devemos mostrar> que nem tudo o que aparece (phainomenon) é
verdadeiro” (1010b 1-2; tradução própria, grifo acrescentado). Essa frase
representa, obviamente, a proposição contraditória da tese a ser refutada e
que resume a causa do segundo tipo de equívocos, a saber: tudo o que
aparece é verdadeiro.
(a) Em primeiro lugar, embora as qualidades percebidas por cada um
dos sentidos sejam necessariamente verdadeiras enquanto se apresentam a
eles (por exemplo: não posso deixar de ver a cor verde que enxergo
enquanto a enxergo, não posso deixar de ouvir o som que escuto enquanto
escuto etc.), isso não significa que todas as coisas que aparecem sejam desse
modo. Um exemplo disso são as coisas que aparecem na imaginação
(phantasia), as quais nem sempre são verdadeiras. Assim, nem todas os seres
que aparecem (phainomena) são verdadeiros (reais) (1010b 1-3).
(b) Em segundo lugar, tomando as qualidades percebidas por cada
um dos sentidos, essas qualidades são verdadeiras apenas nos limites do
sentido que as apreende e não sobre outros. Assim, por exemplo, uma
mesma coisa pode aparecer como agradável para o olfato e desagradável
para o paladar, mas isso não significa que a coisa seja, sob o mesmo aspecto e
simultaneamente, agradável e desagradável. Portanto, o que é verdadeiro
para uma sensação não é verdadeiro para a outra e vice-versa, de modo que
nem tudo o que aparece é simplesmente verdadeiro (1010b 14-19).
(c) Em terceiro lugar, considerando-se que uma mesma coisa possa
aparecer de modos distintos em momentos distintos, disso não se segue que
a mesma coisa seja e não seja. No exemplo do texto, o mesmo vinho pode
parecer doce em um momento e amargo em outro, quer porque o vinho
avinagrou, quer porque quem o bebe se alterou fisiologicamente. Desse
modo, as qualidades do ser doce e do ser amargo não são simultaneamente
verdadeiras de uma mesma coisa ou para uma mesma pessoa, mas
verdadeiras no momento em que são experimentadas (1010b 14-26).
No final do capítulo, Aristóteles apresenta dois argumentos gerais
voltados contra os dois tipos de equívocos (considerar que existem apenas
os seres sensíveis e que tudo o que aparece é verdadeiro sem qualificações).
O primeiro desses argumentos indica que ambos os tipos de equívocos
provêm do fato de considerarem que coisa nenhuma possui uma substância,
de tal modo que nada nas coisas é necessário. Se postulassem a existência da
A origem da ontologia na metafísica grega 245
parte substancial das coisas, teriam de postular algo que nelas é necessário, e
o que é necessário não pode ser e não ser simultaneamente (1010b 26-30).
O outro argumento indica que ao considerarem como existentes
apenas os seres perceptíveis (aisthêta), acabam por assumir (mesmo sem
sabê-lo) que as coisas são todas relativas ao modo como são percebidas e
que existem por causa da existência dos seres capazes de percepção
(aithêmata). Ora, se fosse assim, a própria relação entre as coisas percebidas
e a sua percepção seria destruída, pois a percepção existe por causa da coisa
percebida e não a coisa percebida por causa da percepção. Assim, é somente
pressupondo que a coisa percebida existe antes da percepção e possui
características próprias que é possível percebê-la. Em outras palavras a
relação entre percepção e percebido possui neste último a sua causa, de
forma que deve haver no objeto percebido algo em si mesmo que seja
anterior à relação de percepção (1010b 30-1011a 2).
3.6.3. O capítulo 6: os argumentos para “constranger” os adversários de
má-fé
Poderíamos pensar que o capítulo 6 apresenta novos argumentos em
relação àqueles há pouco vistos no capítulo 5 para constranger os
adversários de má-fé a abandonarem o relativismo ou, ao menos, para
mostrar sua falsidade necessária. Todavia, não é exatamente isso o que
ocorre. O que vemos no capítulo 6 é a retomada e aprofundamento de
alguns dos argumentos do capítulo anterior. A diferença, aqui, portanto, não
é exatamente no conteúdo, mas no direcionamento dos argumentos. Como
dito na introdução do capítulo 5, os argumentos contra os adversários de
boa-fé se dirigem ao seu pensamento (dianoia), na esperança de persuadi-los
de seu equívoco. No caso dos argumentos contra os adversários de má-fé (os
relativistas confessos), estes procuram constrangê-los, voltando-se contra seu
discurso (logos), a fim de mostrar que não acreditam realmente neste
mesmo discurso. Por isso, os argumentos apresentados no capítulo 6 não
diferem muito daqueles do capítulo anterior em conteúdo, mas em sua
finalidade. Em particular, são dois os argumentos voltados contra os
adversários de má-fé. O primeiro argumento procura mostrar que os
relativistas, se forem consequentes com a noção de aparência, aceitam uma
versão do PNC (1011a 21-1011b 1). O segundo argumento aparece em dois
momentos distintos do texto e retira as consequências absurdas do
246 Nazareno Eduardo de Almeida
relativismo (1011a 17-20; 1011b 4-12). Façamos a exposição sumária de
ambos.
No primeiro argumento, Aristóteles assume implicitamente a tese do
relativismo para mostrar que, se o relativista aceita a correta determinação
da noção de aparência (phainomenon), então se compromete, de certa
forma, com a verdade ontológica do princípio da não-contradição. Vejamos
a estrutura do argumento. De acordo com o texto, os relativistas dizem que
tudo o que aparece (phainomenon) é verdadeiro, e, portanto, que o ser é
igual ao aparecer. Entretanto, se repararem bem, essa tese é ainda
inconsistente com respeito ao conceito de aparência. Com efeito, não
deveriam dizer apenas que o ser é igual ao aparecer, pois tudo o que aparece
sempre aparece para uma certa pessoa, como aparece para ela, quando
aparece para ela e enquanto aparece para esta pessoa. Assim, assumindo o
discurso do relativismo, o aparecer de qualquer coisa sempre está colocado
sob esses condicionantes.
Se é assim, então não é possível dizer que a mesma coisa
simultaneamente é e não é. Ao contrário, para quem aparece, como aparece,
quando aparece e enquanto aparece, a coisa que aparece possui certas
propriedades e não simultaneamente as propriedades contrárias. Em outras
palavras, para um mesmo indivíduo, segundo uma mesma sensação, em um
mesmo tempo e sob um mesmo aspecto, uma mesma coisa que aparece não
pode simultaneamente ser e não-ser o que ela é em seu aparecer. Portanto,
mesmo aceitando a tese relativista que identifica o ser ao aparecer, por trás
das diferenças de opinião entre pessoas – das diferenças entre o aparecer de
algo para diferentes sensações e das diferentes sensações de uma mesma
pessoa em diferentes tempos – uma mesma coisa não pode simultaneamente
ser F e não ser F, onde ‘F’, como já usado antes, simboliza uma propriedade
qualquer. Em outras palavras, no instante preciso do aparecer de algo com
todas as suas condicionantes, vigora o princípio da não-contradição e,
portanto, também o princípio do terceiro excluído. É preciso reiterar que
Aristóteles não aceita essa versão, por assim dizer, solipsista ou subjetivista
do PNC (e do PTE), mas ela é suficiente para refutar o discurso relativista
contra este princípio, mostrando que este adversário não acredita realmente
que tudo é contraditório, mas apenas defende esta tese da boca para fora ao
assumir o discurso relativista.
Passemos à exposição do segundo argumento. Como dissemos, ele
procura retirar as consequências absurdas do relativismo, em especial
A origem da ontologia na metafísica grega 247
retomando e aprofundando um argumento já exposto no capítulo 5: aceitar
que o ser (e, portanto, a verdade) é igual ao aparecer implica aceitar que
todas as coisas existem apenas como coisas relativas e que não existe nada
no mundo que seja em si e por si mesmo, ou seja, algo que existe para além
da relação perceptiva. O absurdo da tese de que todas as coisas são relativas
depende de uma premissa implícita no contexto do argumento: que o
conceito de relativo é um conceito simétrico, ou seja, se A é relativo a B, então
B é relativo a A. Em outras palavras, A só existe se B existe e B só existe se A
existe. Portanto, em uma relação em sentido estrito, as coisas
correlacionadas dependem ontologicamente uma da outra para serem o que
são.
Em um primeiro exemplo, o texto apresenta o absurdo gerado por
isso através de dois termos relacionados que evocam implicitamente a tese
do homem-medida de Protágoras: o ser humano (anthrôpos) e o objeto de
opinião (to dozadzomenon). Assim, se um ser humano é o objeto de sua
própria opinião, então aquele que emite a opinião e a opinião emitida são
mutuamente dependentes para existirem, de modo que, em última instância,
são a mesma coisa. No entanto, aceitamos como verdadeiro (e
provavelmente o próprio relativista) que a opinião sobre si mesmo e o si
mesmo sobre o qual se opina são coisas distintas. Mas se tudo é relativo e as
coisas relativas existem apenas umas em relação às outras, então o ser
humano que opina só existe por causa da opinião que emite sobre si mesmo.
O segundo exemplo apenas generaliza a mesma situação do seguinte
modo. Se tudo é relativo, então não apenas as coisas sobre as quais opinamos
existem em relação a nós, mas também (pela simetria do conceito de
relação) nós só existimos na relação com as coisas sobre as quais opinamos.
Portanto, uma mesma coisa (a pessoa que opina) é relativa a e somente
existe por causa de um número infinito de coisas, o que conduz a dividir
esta mesma coisa (quem opina) em um número infinito (os objetos de
opinião).
De modo geral, neste segundo argumento, chega-se a absurdos
justamente ao se tomar hipoteticamente como verdade a tese relativista
segundo a qual todas as coisas só existem enquanto estão em relação. A
conclusão implícita é justamente que, por tais impossibilidades (absurdos),
nem tudo existe em relação e, portanto, devem existir algumas coisas que
são em si e por si (auta kath’hauta; 1011a 16-17). Ora, essas coisas são
justamente o que Aristóteles chama de substâncias. Não à toa, diversos/as
248 Nazareno Eduardo de Almeida
intérpretes desde Lukasiewicz apontam que a defesa de um sentido
ontológico do PNC (e do PTE) está intimamente ligada com a defesa da
existência das substâncias como tipo primário de entidade e, por isso, como
significação focal do conceito de ser.
Percebemos que o combate de Aristóteles contra os relativistas
confessos faz parte dessa defesa da existência de substâncias como entidades
que existem independentemente da relação que se estabelece entre a
aparência e sua percepção. Neste ponto, podemos retomar o esquema que
antes apresentamos na parte dos aprofundamentos e discussões do capítulo
sobre Parmênides:
Pensar ≠ Perceber = Aparecer ≠ Ser
Se notarmos bem, este esquema presente em Parmênides é análogo
àquele defendido por Aristóteles em sua argumentação sobre o relativismo,
tanto no capítulo 5 quanto no capítulo 6. Modificando este esquema, temos
como compreender o que significa o relativismo de Protágoras e seus afins
do seguinte modo:
Pensar = Perceber = Aparecer = Ser
É justamente contra essa continuidade imediata entre pensamento e
percepção, bem como entre aparência e ser que Aristóteles estabelece seus
argumentos. Todavia, a complexidade desses argumentos se encontra no
fato de que Aristóteles (diferentemente de Parmênides e Platão) procura
conciliar (e não separar) percepção e pensamento racional, assim como
conciliar o ser ao aparecer. Como vimos antes, na parte sobre a ontologia
delineada em Categorias, a substância não pode ser algo distinto dos
indivíduos concretos que percebemos. Portanto, a percepção é, sim, um
caminho para nosso conhecimento da substância e, por isso, do ser.
Notemos que isso contrasta com a concepção de conhecimento de
Parmênides (para quem o ser está completamente separado do aparecer),
bem como com aquela concepção de conhecimento de uma parte da obra de
A origem da ontologia na metafísica grega 249
Platão (na qual o conhecimento do ser em si mesmo das Formas só pode
ocorrer quando nos afastamos do que nos é dado na percepção).
Essas observações são necessárias a fim de entendermos de modo
geral qual a concepção de Aristóteles sobre a relação entre pensamento,
percepção (opinião), aparecer e ser, em suma, sua concepção sobre a relação
entre pensamento, linguagem e realidade. Para Aristóteles, se nosso
pensamento não pode ser idêntico aos processos perceptivos e às opiniões
provenientes desses processos, também não pode ser simplesmente
separado desses processos e das opiniões por eles geradas. De modo
análogo, se não é possível identificar o ser com o aparecer, tampouco isso
significa que temos de tomar a posição extremada que os separa
completamente. Como de costume, Aristóteles está procurando uma via
média entre o extremo representado por Parmênides e o extremo
representado por Protágoras. Por isso, dos argumentos para mostrar que
nem tudo o que aparece é verdadeiro (e, por isso, de que o ser não é igual ao
aparecer), não se segue que nada que aparece é verdadeiro (e, por isso, que o
ser é completamente diferente do aparecer). Em contraste, Aristóteles está
apontando para a existência de aparências verdadeiras (que permitem ao
nosso pensamento o acesso ao ser em si mesmo das coisas, especialmente ao
ser como substância) e para a existência de aparências falsas (que desviam
nosso pensamento do conhecimento do ser e da substância).
Com isso, o esquema que exprime sua concepção sobre a relação
entre pensamento e ser, bem como entre percepção e aparência difere
daquele proposto por Parmênides e que foi aceito em uma parte da obra de
Platão. Talvez a forma aristotélica do esquema possa ser representada do
seguinte modo:
Pensar Perceber Aparecer Ser
O símbolo ‘’ representa aqui que há uma via de mão dupla entre
estes âmbitos, uma via em que cada um dos âmbitos relacionados possui um
papel determinado em nossa procura pelo conhecimento, mas de tal modo
que as relações entre perceber e aparecer precisam estar devidamente
mediadas pelas corretas relações entre pensar e ser, nas quais este último
250 Nazareno Eduardo de Almeida
(respeitando o espírito do realismo) possui precedência, uma vez que o
pensar não pode existir sem o ser, mas o ser pode existir e de fato existe sem
o pensar. De todo modo, o conhecimento do ser só é possível através do
pensar, que somente chega a este conhecimento ao se valer de modo crítico
do perceber e do aparecer; sem, no entanto, excluí-los como instâncias
necessárias para a investigação da verdade sobre o ser.
Em contraste com as posições de Parmênides e de uma parte da obra
de Platão, a concepção aristotélica aponta para um tipo de compreensão
mais complexa da relação de identificação entre pensamento e ser que
necessariamente passa por um longo processo lógico e epistemológico de
avaliação da percepção (e das opiniões dela derivadas) bem como das
aparências. Afinal, um dos lemas metodológicos assumidos por Aristóteles é
o de que uma teoria, no mínimo, deve “salvar os fenômenos” (tithênai ta
phainomena). Portanto, a defesa do PNC contra os relativistas (involuntários
ou voluntários) não é nem uma rejeição dos fenômenos (aparências) ou das
opiniões, nem uma rejeição relativista da existência de algum tipo de relação
entre nosso pensamento e o ser em si mesmo das coisas, um em si mesmo
primariamente encontrado nas substâncias. Para Aristóteles, somente
aceitando o sentido ontológico do PNC (e do PTE) é possível encontrar essa
via média que preserva as boas relações entre pensamento, percepção
(opinião), aparência e ser; boas relações que, por isso, nos afastam das
posições extremadas.
A origem da ontologia na metafísica grega 251
B – APROFUNDAMENTOS E DISCUSSÕES
1. Introdução: a ontologia aristotélica no Livro IV da Metafísica como
ciência dos conceitos e princípios fundamentais
Embora o texto básico tenha apresentado uma exposição geral dos
capítulos 1-6 do Livro IV, nesta parte trataremos apenas dos capítulos 1-2 e
de alguns aspectos e argumentos do capítulo 4. Isso se faz necessário,
inicialmente, para não estender demasiadamente o presente livro. Mas
também faremos isso porque a discussão e aprofundamento nestas partes do
Livro IV são suficientes para mostrar algo sobre o qual já falamos antes: que,
em certo sentido, a ontologia aristotélica presente nas duas partes do Livro IV
é uma parte de uma ciência que ultrapassa a teorização do conceito de ser,
apresentando-se como uma ciência dos conceitos e dos princípios
fundamentais para todas as demais ciências, mesmo que essa ciência tenha
como seu núcleo mais básico a teorização do conceito de ser (enquanto ser),
e que este núcleo esteja centrado na significação focal do conceito de ser
representado pelo ser como substância (ousia). Mas antes de passarmos à
análise dessas partes do Livro IV, convém fazer alguns esclarecimentos
prévios sobre a posição privilegiada deste texto no conjunto dos Livros que
compõem a Metafísica, bem como sobre a diferença entre a ontologia
aristotélica presente em Categorias e aquela presente no Livro IV. Estes
esclarecimentos prévios são complementares àqueles já feitos no texto
básico deste capítulo.
Na parte dos aprofundamentos do primeiro capítulo (seção 3), já foi
apresentada a interpretação sobre a estrutura da Metafísica que adotamos
aqui. Retomando e complementando esta interpretação, podemos situar o
Livro IV como o início efetivo da Metafísica. Vejamos rapidamente por que
isso é assim. O Livro I se configura como um tipo de introdução geral e
primeira discussão da noção de sapiência (sophia), particularmente através
de uma análise sobre como os predecessores de Aristóteles teriam tratado as
quatro causas e os princípios de todas as coisas. Podemos resumir o sentido
geral da argumentação do Livro I do seguinte modo: se todas as ciências são
sempre ciências sobre causas e princípios de determinado âmbito do mundo,
então deve existir uma ciência mais elevada que é ciência dos primeiros
princípios e das primeiras causas de todas as coisas do mundo tomado em seu
252 Nazareno Eduardo de Almeida
todo. Essa ciência é aquela que deve receber, mais do que todas as outras
ciências, o nome de sapiência (sophia). A análise dos filósofos anteriores a
Aristóteles procura mostrar que eles, de certa forma, já haviam procurado
por esta ciência primeira, mas suas abordagens sobre as causas e princípios
de todas as coisas se mostrou ainda incompleta e, também por isso,
equivocada em vários aspectos.
Depois dessa introdução inicial e histórica, o Livro III se configura
como uma primeira apresentação dos problemas mais gerais que a sapiência
ou filosofia primeira deverá responder para poder ganhar cidadania como
ciência. É interessante notar que a sapiência ou o que mais usualmente
chamamos de filosofia primeira é chamada tanto no Livro I quanto no Livro
III de “ciência procurada” (epistêmê dzêtoumenê). Tal ciência deve dar
respostas seguras a um conjunto de problemas que, em parte, foram
deixados em aberto pelos predecessores de Aristóteles em sua busca
malograda da sapiência. Esses problemas se apresentam sempre na forma de
“dilemas”, ou seja, são problemas que se configuram, de modo geral, na
forma de questões que exigem a defesa de um sim ou não. Eles são
chamados, literalmente, de ‘aporias’, termo que pode ser traduzido, no
contexto do Livro III, por ‘impasses’. Cada um deles deverá ser objeto de um
tratamento que permita encontrar uma passagem (diaporêsai) para se chegar
a alguma solução (euporia).
Depois desses dois Livros introdutórios, a Metafísica realmente tem
seu começo no Livro IV. Ele inicia fazendo uma primeira apresentação
positiva sobre o conteúdo da “ciência procurada” como uma “ciência do ser
enquanto ser e das propriedades que pertencem a ele por si mesmo”, uma
expressão que, como já vimos, a tradição posterior abreviou pelo nome
‘ontologia’. Porém, conforme dito há pouco, essa ciência do ser enquanto ser
não se limita a teorizar o conceito de ser. Essa amplitude é visível pelo fato
textual incontestável de o Livro IV apresentar as linhas gerais para a solução
de três problemas expostos no Livro III.
O primeiro problema é “se a teorização das causas <é própria> de
uma única ou de muitas ciências” (995b 5-6; tradução própria). O segundo é
“se é <próprio> de <uma única> ciência considerar os princípios primeiros
da substância ou também acerca dos princípios a partir dos quais todos
fazem demonstrações, como, por exemplo, se é possível afirmar e negar
simultaneamente um mesmo <predicado> de um único <sujeito>, assim
como acerca dos outros <princípios> deste tipo.” (995b 7-10; tradução
A origem da ontologia na metafísica grega 253
própria). O terceiro problema é o seguinte: “se a teoria é apenas sobre as
substâncias ou também sobre as propriedades por si mesmas das
substâncias, mas também em relação aos <conceitos> de identidade,
alteridade, semelhança, dessemelhança e contrariedade, e também sobre <os
conceitos> de anterior e posterior e todos os outros deste tipo.” (995b 19-23;
tradução própria).
Como veremos, o primeiro e o terceiro destes problemas terão suas
“soluções” apresentadas nos capítulos 1-2. No tocante ao primeiro problema,
a primeira parte do Livro IV determina que a ciência do ser enquanto ser é a
ciência capaz de teorizar, de modo unificado, as causas. Isto é assim porque
ao estabelecer que o conceito de ser enquanto ser é capaz de ordenar em
uma hierarquia todos os seres (na medida em que todos eles estão em uma
relação de dependência com o ser como substância), Aristóteles entende que
a teorização das substâncias como causas do ser em geral equivale à ciência
unificada de todas as causas. Em relação ao terceiro problema, o capítulo 2
nos mostrará que a teoria da significação focal pode se aplicar não apenas à
polissemia do conceito de ser (organizada em relação à substância), mas
também a todos os conceitos fundamentais. Como já apontamos no texto
básico, isso é possível na medida em que todos os conceitos fundamentais
estão em uma relação de dependência com o conceito de ser e, portanto, em
última instância, com a substância enquanto significação focal do conceito
de ser. No que concerne ao segundo problema do Livro III mencionado há
pouco, ele é resolvido ao longo de toda a segunda parte do Livro IV, mas em
especial nos capítulos 3-4. Como já vimos no texto básico, o capítulo 3 se
abre mencionando este problema e apresentando sua resolução ao
considerar que os princípios primeiros das demonstrações só podem sê-lo
porque são princípios do ser enquanto ser. O capítulo 4, por sua vez,
procura “provar” que o princípio da não-contradição (e, implicitamente, em
correlação direta com este, o princípio do terceiro excluído) é o princípio
que se aplica tanto ao ser como substância quanto a todos os outros seres do
mundo.
Agora que vimos o lugar do Livro IV em sua relação com os Livros I
e III como textos introdutórios, cumpre indicar em que a ontologia
aristotélica do Livro IV se assemelha e em que se diferencia da ontologia
presente em Categorias. Já se tornou visão corrente entre os/as intérpretes
que o Livro IV apresenta as linhas mais gerais da segunda versão da
ontologia aristotélica, cuja primeira versão se encontra em Categorias,
254 Nazareno Eduardo de Almeida
versão esta que expusemos sumariamente no texto básico deste capítulo. Em
Categorias, a ontologia aristotélica se apresenta como uma concepção sobre
os múltiplos sentidos do conceito de ser entendidos como categorias ou
gêneros supremos de ser, os quais estão em uma relação de dependência
com o gênero primário da substância e, dentre as substâncias, com as
substâncias primeiras enquanto indivíduos. No Livro IV, em contraste, a
ontologia aristotélica envolve não apenas uma nova concepção sobre a
polissemia do conceito de ser, mas também a teorização de outros conceitos
fundamentais (especialmente os conceitos de unidade e multiplicidade)
relacionados com o conceito de ser (e, no fundo, com o ser como
substância), bem como a teorização de princípios fundamentais (centrados
nos princípios de não-contradição e do terceiro excluído) entendidos como
princípios ontológicos primários. Notamos, portanto, que a segunda versão
da ontologia aristotélica é muito mais ampla do que uma teoria das
categorias.
Além disso, é muito importante notar que a ontologia aristotélica
presente em Categorias não é concebida como uma ciência; bem antes, esta
primeira versão da ontologia aristotélica tem como objetivo ser apenas um
tipo de esclarecimento metodológico-conceitual geral e prévio, necessário para
a construção das ciências particulares. Por isso, desde a antiguidade, o
tratado Categorias é considerado como a primeira dentre o conjunto de
obras que compõem o Organon, conjunto que recebe este nome porque é
concebido como um amplo leque de instrumentos metodológicos e
argumentativos para ser aplicado nas ciências particulares. Em contraste com
isso, o Livro IV da Metafísica apresenta a ontologia aristotélica como uma
ciência, e, como veremos, como “a” ciência mais universal de todas.
Assim, enquanto a ontologia de Categorias era um tipo e preâmbulo
para as ontologias efetivamente realizadas nas ciências particulares, o Livro
IV apresenta a ontologia como ciência necessária e mais fundamental do
que estas ontologias particulares presentes nas diferentes ciências, na
medida em que estas ciências “recortam” a totalidade do ser em diversas
classes distintas de entidades, classes que são, ao menos, tantas quantas as
categorias entendidas como “gêneros supremos” do ser. Usando uma
distinção derivada do filósofo Edmund Husserl, enquanto a ontologia
presente em Categorias reconhecia, em sentido próprio, apenas a existência
de ontologias regionais (aquelas que determinam o ser em diferentes regiões
ou domínios do mundo), a ontologia apresentada no Livro IV da Metafísica
A origem da ontologia na metafísica grega 255
contrasta com essas ontologias regionais por se conceber como uma
ontologia fundamental capaz de nos fornecer o conhecimento dos conceitos
e princípios fundamentais que se aplicam (de diferentes modos) a todas as
regiões do ser.
De um lado, essa ontologia fundamental não substitui, mas
complementa as ontologias regionais elaboradas pelas ciências particulares,
ou seja, a ontologia fundamental apresentada no Livro IV de forma alguma
elimina a necessidade da existência das ontologias regionais elaboradas pelas
ciências particulares. Com isso, Aristóteles está apenas acrescentando uma
nova ciência ao rol das ciências que já havia reconhecido e para as quais
tanto contribuiu, ciências tais como a física, a matemática, a biologia, a
ciência política etc. De outro lado, porém, essa ontologia é fundamental
porque se coloca como uma ciência que torna possível a ordenação
hierárquica de todas as outras ciências e das ontologias regionais que
compete a elas desenvolver. Em outras palavras, todas as ontologias
regionais só conseguem determinar e delimitar diferentes domínios do ser
porque são antecedidas e se valem de modo parcial e limitado dos conceitos e
princípios cuja determinação cabe à ontologia fundamental, entendida como
ciência que preenche e dá sentido à ideia de uma filosofia primeira ou
sapiência (sophia).
Não obstante isso, como já indicamos, o Livro IV não apresenta
senão as linhas gerais de um projeto de ontologia fundamental, um projeto
que (talvez) só parcialmente se realiza em uma parte dos demais Livros da
Metafísica. Longe de termos de ver esse inacabamento como um defeito,
talvez seja justamente ele aquilo que estimulará filósofos posteriores (até
nossos dias) a tentar completar este projeto de diferentes modos. Neste
sentido, a ontologia aristotélica esboçada no Livro IV da Metafísica se
transforma em um tipo de modelo privilegiado para um conjunto amplo de
perspectivas e propostas teóricas no campo da ontologia e da metafísica
posteriores.
2. A primeira parte do Livro IV: a ontologia como ciência dos conceitos
fundamentais relacionados com o ser como substância
2.1. Capítulo 1: a apresentação e o sentido geral da ciência do ser
enquanto ser
256 Nazareno Eduardo de Almeida
Na edição oficial da obra de Aristóteles (elaborada pelo erudito
alemão Immanuel Bekker e publicada em 1831), o capítulo 1 do Livro IV é
composto por doze linhas. Ele cumpre o papel de uma introdução geral e
muito densa da ciência que havia sido chamada de “ciência procurada” nos
Livros I e III. Essas doze linhas, porém, nos apresentam dois temas
intimamente correlacionados. O primeiro tema é aquele que diz respeito à
postulação da existência de uma ciência do ser enquanto ser. O segundo
tema concerne ao sentido da expressão ‘ser enquanto ser e as propriedades
que lhe competem por si mesmo’ (on hê(i) on kai ta toutô(i) hyparchonta
kath’hauto), uma expressão que poderíamos abreviar por ‘ser enquanto ser
por si mesmo’. No núcleo deste tema se encontra a questão fundamental
sobre o caráter universal dessa ciência em comparação com as outras
ciências, consideradas ciências particulares. Tomemos em atenção, de modo
muito breve, esses dois temas do capítulo 1.
Aristóteles inicia o capítulo dizendo: “Há uma ciência que teoriza o
ser enquanto ser e as propriedades que lhe pertencem por si mesmo.” (1003a
20-21; tradução própria) Essa frase sugere que uma tal ciência já existe.
Contudo, quando olhamos essa afirmação à luz tanto dos Livros I e III
quanto da própria sequência do Livro IV, constatamos que essa ciência ainda
não existe, precisamente porque Aristóteles pretende ser o primeiro a
construí-la. Tomando uma distinção usada nas ciências jurídicas, o verbo
‘haver’ usado na primeira frase desse capítulo indica que essa ciência existe
de direito e não de fato. Ela só passa a existir de fato através da elaboração
proposta por Aristóteles. No entanto, antes mesmo disso, ela existe de direito
porque o Estagirita não a está simplesmente inventando. Na concepção
realista do conhecimento científico defendida por Aristóteles, cada uma das
ciências que podemos desenvolver é apenas a expressão lógica e
epistemológica de um domínio de objetos da realidade, um domínio
necessariamente pré-existente à sua investigação científica. Portanto, o fato
de Aristóteles estar construindo essa ciência pela primeira vez significa que
ele apenas está exprimindo (teorizando) no campo da linguagem e do
pensamento um campo da realidade já existente. Neste sentido, o ‘há’ da
frase citada acima significa também um ‘precisa haver/existir’.
Mesmo assim, como já apontado na parte dos aprofundamentos do
primeiro capítulo (seção 4), a Metafísica de Aristóteles é um texto com um
componente histórico inegável, ou seja, a construção da metafísica ou
A origem da ontologia na metafísica grega 257
filosofia primeira nesta obra de Aristóteles faz uma releitura de toda a
filosofia grega anterior, uma releitura que se tornou a tal ponto importante
na filosofia posterior que nos permite, a partir dela, falar de uma história da
metafísica e da ontologia anteriores a Aristóteles, história que remonta aos
primórdios da filosofia grega. Neste espírito, embora Aristóteles se veja
como o legítimo fundador desta “nova” ciência, ele nos sugere que ela realiza
de modo correto aquilo que era o objetivo implícito de seus predecessores,
um objetivo que eles não teriam conseguido perceber claramente e, por isso,
não teriam conseguido alcançar de modo adequado. Isso é sugerido pela
seguinte frase do capítulo 1:
“Se também os que investigavam os elementos dos seres estavam à
procura desses princípios, necessariamente estes elementos eram do ser
não por acidente, mas <do ser> enquanto ser. Por isso, também nós
devemos tratar das primeiras causas do ser enquanto ser.” (1003a 28-
31; tradução própria)
Logo mais veremos o sentido do contraste entre a noção de ser por
acidente e a noção de ser enquanto ser. O que importa agora é justamente
perceber que, por um lado, Aristóteles se compreende como fundador de
fato desta ciência, mas, de outro lado, entende que sua construção realiza
aquilo que foi apenas esboçado de modo ainda confuso por seus
antecessores, de tal modo que esta ciência já existia de direito nesses esforços
ainda parciais e equivocados.
Passemos à discussão do segundo tema: o sentido geral da expressão
‘ser enquanto ser por si mesmo’ e como este sentido explica a universalidade
desta ciência diante das demais. A expressão literal do texto é um pouco
mais complexa: ‘ser enquanto ser e as propriedades que lhe pertencem por si
mesmo.’ A forma simplificada ‘ser enquanto ser por si mesmo’ proposta aqui
provém da leitura de um dos momentos fundamentais da teoria aristotélica
da ciência, presente no capítulo 4 do Livro I dos Segundos Analíticos. Neste
importante capítulo, Aristóteles estabelece quais os conceitos mais básicos
que qualificam qualquer ciência. Em primeiro lugar, uma ciência deve poder
expor e explicar os conceitos ou propriedades que pertencem a todos (kata
pantos) os objetos do domínio de objetos por ela estudado, ou seja, a
finalidade de cada ciência deve ser o conhecimento das propriedades
258 Nazareno Eduardo de Almeida
universais pertencentes a todos os objetos do domínio teorizado. Em
segundo lugar, esses conceitos devem pertencer aos objetos daquele
domínio, tomados por si mesmos (kath’hauto), enquanto tais (hê(i) auto) e
não por acidente (kata symbebêkos). Assim, uma ciência não deve apenas
descobrir e explicar as propriedades universais (que se aplicam a todos os
objetos de um domínio), mas também deve descobrir e explicar por que
essas são propriedades necessárias destes mesmos objetos.
Ilustremos essas determinações epistemológicas básicas de qualquer
ciência por meio de um exemplo. Tomemos os seres humanos como um
domínio de objetos que pode ser estudado por diferentes ciências. Na
biologia, os seres humanos devem ser estudados como uma espécie de ser
animado ou vivo. Nesta perspectiva, a propriedade ser vivo ou animado é
uma propriedade universal e necessária dos seres humanos por si mesmos e
enquanto seres vivos. Deste ponto de vista biológico, o fato de os seres
humanos se organizarem em diferentes tipos de sociedades é uma
propriedade acidental (= não necessária) dos mesmos, ou seja, ela é uma
propriedade que eles possuem, mas não enquanto seres animados ou vivos.
Em contraste com isso, quando os seres humanos são investigados pela
ciência política, a propriedade de se organizarem em vários tipos de
sociedade pode e deve ser tomada como uma propriedade universal e
necessária dos seres humanos por si mesmos e enquanto seres políticos.
Embora seja necessário que os seres humanos estejam vivos para constituir
suas organizações sociais, essa propriedade é acidental do ponto de vista em
que a ciência política investiga os seres humanos.
À luz desse exemplo, retomemos o esclarecimento da expressão ‘ser
enquanto ser e as propriedades que lhe pertencem por si mesmo’ e como ela
contém o sentido da universalidade proposta para esta ciência diante das
demais ciências. A sequência imediata da primeira frase do capítulo 1 nos
diz:
“Ela [sc. a ciência do ser enquanto ser] não é idêntica a nenhuma das
chamadas <ciências> particulares, pois nenhuma destas examina o ser
enquanto ser de modo universal; mas, delimitando alguma parte deste
[sc. do ser enquanto ser], teorizam sobre esta parte o <que é> acidental
(to symbebêkos) <ao ser enquanto ser>, como, por exemplo, no caso
das ciências matemáticas. E dado que procuramos os princípios e as
A origem da ontologia na metafísica grega 259
causas mais elevadas, é evidente que estes, necessariamente, são
<princípios e causas> de certa natureza por si mesma.” (1003a 21-28;
tradução própria, grifos acrescentados)
Devemos prestar a máxima atenção possível ao movimento
argumentativo contido no trecho citado. E isso porque ele nos apresenta
dois aspectos distintos. Um deles é a retomada da noção de propriedades
universais e necessárias dos objetos por si mesmos, noção proveniente do
capítulo dos Segundos Analíticos acima mencionado. O outro aspecto,
porém, é uma ampliação e transformação da teoria aristotélica da ciência.
No tocante ao primeiro aspecto, Aristóteles está reivindicando que a ciência
do ser enquanto ser por si mesmo cumpre os requisitos mais básicos de
qualquer outra ciência, a saber: ela trata o seu domínio de objetos
procurando as propriedades universais e necessárias destes mesmos objetos
tomados por si mesmos porque desconsiderando outras propriedades que
não cumprem esses requisitos e que, por isso, devem ser tomadas como
propriedades acidentais.
O outro aspecto, talvez o mais importante, consiste em uma
transformação e ampliação da teoria aristotélica da ciência. Essa ampliação e
transformação é necessária para que Aristóteles possa defender que a ciência
do ser enquanto ser não é apenas uma dentre as demais ciências, mas a
ciência mais universal de todas. Vejamos melhor esse ponto, que é de suma
importância para compreendermos o estatuto da “nova” ciência proposta
por Aristóteles no Livro IV da Metafísica.
Na teoria aristotélica da ciência que encontramos nos Segundos
Analíticos, nada nos autoriza a defender a existência de uma ciência que seria
a mais universal do que todas as outras. No quadro conceitual desta obra, o
que temos são as diversas ciências e, em alguns casos, as ciências
particulares dentro de outras. Assim, por exemplo, como ciências gerais
temos a física, a matemática e a biologia. Dentro da física, podemos
encontrar partes (a astronomia, a teoria do movimento etc.), tanto quanto
dentro da matemática (a aritmética, a geometria etc.) e dentro da biologia (a
zoologia, a botânica, a teoria da reprodução animal etc.). Contudo, de modo
geral, todas as ciências mais amplas estão postas, por assim dizer, umas ao
lado das outras. Neste momento da obra de Aristóteles (como já indicado
antes), se queremos saber algo sobre o ser, devemos olhar para o que cada
260 Nazareno Eduardo de Almeida
ciência fala sobre cada uma das “regiões” (partes) do ser. Além disso, como
indicado pelo capítulo 4 dos Segundos Analíticos que evocamos antes, a
universalidade e a necessidade são características do conhecimento que
devem ser encontradas em todas as ciências, de tal modo que não há espaço
para alguma ciência mais universal do que todas as demais.
Em contraste com essa imagem inicial da teoria aristotélica das
ciências, o capítulo 1 do Livro IV está postulando que há uma ciência mais
universal do que todas as demais. Essa é a ciência do ser enquanto ser e das
propriedades que lhe pertencem por si mesmo. Do ponto de vista desta
ciência, as propriedades universais e necessárias que as ciências particulares
descobrem e explicam nas classes de entidades que investigam se tornam
apenas propriedades acidentais do ser enquanto ser. Por isso as aqui
chamadas ciências particulares não tratam as propriedades universais e
necessárias do ser enquanto ser. Na terminologia introduzida aqui, por
exemplo, a astronomia trata do ser enquanto ser celeste, a biologia trata do
ser enquanto ser vivo, a aritmética trata do ser enquanto ser numérico, a
ciência política trata do ser enquanto ser social, e assim por diante. Quando
comparadas às propriedades que cabe à ciência do ser enquanto ser teorizar,
estas propriedades (ser celeste, ser vivo, ser numérico, ser social) são
propriedades acidentais do ser enquanto ser, considerado enquanto tal e por
si mesmo.
Essa ampliação e transformação da teoria aristotélica da ciência gera
vários problemas. Talvez o principal deles seja aquele exposto por Pierre
Aubenque em seu já clássico livro O problema do ser em Aristóteles (1962).
Este problema surge da (aparente ou real) incompatibilidade entre três teses
aristotélicas, que são as seguintes: (1) o conceito de ser não delimita um
gênero; (2) toda ciência é ciência de um gênero de ser; e (3) há uma ciência
do ser enquanto ser.65 Para uma parte dos intérpretes do Livro IV (dentre os
quais me incluo), a nova teoria sobre a polissemia do conceito de ser
apresentada no capítulo 2 do Livro IV procura sair deste dilema. Essa saída
se dá mostrando que embora o conceito de ser não denote um gênero de
todas as coisas (pelos motivos que já expusemos antes), há um gênero
primário de ser (o gênero ou a categoria das substâncias), gênero que nos
permitiria falar de uma ciência unificada dos múltiplos sentidos do conceito
de ser, ciência esta que mostraria como todos esses sentidos estão
65
AUBENQUE, Pierre. O problema do ser em Aristóteles: ensaio sobre a problemática aristotélica;
trad. Cristina de Souza Agostini, Dioclézio D. Faustino. São Paulo: Paulus, 2012 (1962), p. 195-
235.
A origem da ontologia na metafísica grega 261
necessariamente relacionados com o gênero primário de ser composto pelas
substâncias.
Deixando de lado esse problema, percebemos que os dois aspectos
acima discutidos brevemente nos mostram que Aristóteles estabelece sua
ontologia por meio de uma argumentação por analogia, um procedimento
argumentativo que será novamente usado várias vezes no capítulo 2 do
Livro IV. Essa analogia possui duas dimensões. Por um lado, ela procura
mostrar que a ontologia aristotélica é uma ciência que preenche os requisitos
básicos de todas as demais ciências: explicar as propriedades universais e
necessárias dos objetos de um domínio, tomados por si mesmos. De outro
lado, porém, essa analogia procura mostrar que a ontologia proposta por
Aristóteles é a ciência mais universal de todas, de tal modo que, diante dela,
todas as demais ciências são ciências particulares que tratam apenas de partes
do ser enquanto ser.
Se esta ciência pode ser assim legitimada epistemologicamente ou
não o pode é uma questão que extrapola os limites deste texto. De qualquer
modo, Aristóteles parece acreditar na possibilidade e na legitimidade
epistemológica dessa ampliação para fundamentar esta nova ciência mais
universal do que todas as demais. Assim, como veremos melhor logo mais,
Aristóteles acredita que aquilo que valia para dentro de cada gênero de ser (e
para as ciências particulares destes gêneros) pode valer também para a
totalidade dos gêneros de ser: assim como há propriedades por si mesmas
das entidades pertencentes a cada um dos gêneros de ser, assim também
deve haver propriedades por si mesmas que se aplicam a todos os gêneros de
ser, desde que se possa estabelecer um certo tipo de relação de dependência
ontológica (e, a partir dela, lógica e epistêmica) de todos os gêneros (e modos)
com um gênero (e modo) primário de ser. É justamente este o tema do
capítulo 2, sobre o qual passamos a falar agora.
2.2. O capítulo 2: a ciência do ser enquanto ser como ciência dos
conceitos fundamentais
Há uma enorme quantidade de textos que tratam do capítulo 2 do
Livro IV da Metafísica. Todavia, em sua maioria, esses textos discutem
apenas partes deste célebre capítulo. Fazer uma exposição ao mesmo tempo
breve e didática de seu todo é algo difícil, tanto por causa de sua
complexidade interna quanto por causa das múltiplas interpretações de suas
262 Nazareno Eduardo de Almeida
partes. Tudo o que se dirá a seguir é necessariamente uma simplificação que
procura deixar em segundo plano essas controvérsias, situando-se dentro de
uma interpretação específica deste texto. Esclarecido isso, podemos fazer
uma divisão aproximativa deste capítulo em duas partes, como já dissemos
no texto básico.
A primeira parte do capítulo apresenta a nova teoria aristotélica sobre
a polissemia do conceito de ser, ou seja, apresenta uma nova perspectiva
sobre o lema já citado diversas vezes: “o <termo> ‘ser/ente’ se diz em
múltiplos sentidos.” (to on legetai pollachôs). Essa nova teoria visa mostrar
que – diferentemente da primeira versão da ontologia aristotélica – este
lema pode servir como o ponto de partida de uma ciência do ser enquanto
ser. A possibilidade de uma ciência única do ser enquanto ser, como
veremos logo mais, repousa no que se tem chamado de significação focal
(focal meaning) do conceito de ser.
A segunda parte do capítulo nos apresenta uma dupla expansão da
ciência do ser enquanto ser, expansão que a transforma, como indicamos
rapidamente antes, em uma ciência dos conceitos fundamentais. Esta parte,
como já dito no texto básico, possui duas linhas de argumentação que se
entrelaçam. A primeira consiste em aplicar a teoria da significação focal
também para o conceito de unidade. A segunda linha de argumentação,
intimamente associada à primeira, consiste em mostrar que a ciência do ser
enquanto ser não apenas engloba a polissemia do conceito de unidade, mas
também de todos os conceitos fundamentais que se associam a estes dois
conceitos e aos seus contrários: os conceitos de não-ser e de multiplicidade.
Como já indicado no texto básico deste capítulo, essa expansão – que
teremos de abordar de modo mais aprofundado a partir de agora – só é
possível graças à aplicação da teoria da significação focal a todos os
conceitos fundamentais.
2.2.1. A primeira parte do capítulo 2: a teoria da significação focal do
conceito de ser como fundamento da ciência do ser enquanto ser
Comecemos nossa análise do capítulo 2 tomando diretamente em
atenção o texto que já gerou inúmeras perspectivas de interpretação ao
longo dos séculos:
A origem da ontologia na metafísica grega 263
“[I] O <termo> ‘ser/ente’ se diz em múltiplos sentidos (to on legetai
pollachôs), mas em relação a algo uno (pros hen) e <em relação> à certa
natureza uma/única e não de modo homônimo. [II] Assim como todas
as coisas saudáveis estão em relação com a saúde (ou por preservá-la,
ou por produzi-la, ou por ser sinal de saúde ou por ser apta a recebê-la)
e <assim como> o medicinal está em relação com a medicina (pois ou é
dito medicinal por possuir <a arte> medicinal, ou por ser naturalmente
apto a ela, ou ainda por ser obra da medicina); e ainda podemos
encontrar outras coisas ditas do mesmo modo; [III] assim também o
<termo> ‘ser/ente’ é dito em múltiplos sentidos, mas todos eles em
relação a um único princípio: pois as <coisas> são ditas ‘seres’ (onta) ou
porque são substâncias (ousiai), ou porque são afecções (pathê) da
substância, ou porque são caminho (hodos) para a substância, ou
<porque são> corrupções (phthorai) ou privações (sterêseis) ou
qualidades (poiotêtes) ou produtoras (poiêtika) ou geradoras
(gennêtika) da substância, ou então das <coisas> que são ditas em
relação à substância, ou ainda <porque são> negações (apophaseis)
destas <coisas> ou da substância: por isso também dizemos que o não-
ente (to mê on) é não-ente.” (1003a 33-1003b 10; tradução própria,
grifos e numeração acrescentados)
O texto citado foi dividido em três partes para facilitar nossa
visualização de sua estrutura. No trecho [I], reencontramos o lema
aristotélico já mencionado: “o <termo> ‘ser/ente’ (to on) é dito em múltiplos
sentidos.” Em momentos anteriores de sua obra, Aristóteles interpreta este
lema como indicando que as coisas ditas através do termo ‘ser’ ou ‘ente’
seriam coisas ditas de modo homônimo. Nesta interpretação, este lema
indica que não poderia haver uma “ciência do ser”, pois não pode haver uma
única ciência de coisas ditas de modo homônimo, uma vez que elas
pertencem a gêneros distintos de entidades. Todavia, na passagem agora em
análise, Aristóteles modifica essa interpretação, pois apesar de manter que o
conceito de ser se diz em múltiplos sentidos, essa polissemia não equivale,
como antes, à significação por homonímia. Conforme o contexto, o termo
‘ser’ é dito em relação a algo uno (pros hen legomenon). Essa estranha
expressão já foi traduzida de diversos modos. Todavia, como já apontado no
texto básico, sua tradução filosófica atualmente mais difundida é aquela
proposta pelo helenista G. E. L. Owen através do conceito de significação ou
sentido focal (focal meaning). Com isso, parte da interpretação recente
264 Nazareno Eduardo de Almeida
considera que Aristóteles está expondo nesta passagem sua teoria da
significação focal do conceito de ser. Essa tradução é boa porque nos revela de
modo mais intuitivo a concepção que está contida na expressão ‘o que é dito
em relação a algo uno’ (pros hen legomenon), inicialmente aplicada aos
múltiplos sentidos do termo ‘ser’ ou ‘ente’, a saber: todos estes múltiplos
sentidos estão focados em uma significação primária do conceito simbolizado
no termo ‘ser’ (to on).
Para entendermos isso, passemos à análise da parte [II] da citação
acima. Nela, Aristóteles nos dá dois exemplos deste tipo de significação: (i) o
exemplo das coisas que são ditas ‘saudáveis’ (hygieinon) em relação ao
conceito de saúde, e (ii) o exemplo das coisas ditas ‘medicinais’ (iatrikon) em
relação ao conceito de medicina. Em cada um desses exemplos, há diferentes
causas para se estabelecer as relações entre as diversas significações de
‘saudável’ e a significação primária da noção de saúde, tanto quanto para se
estabelecer as relações entre as diversas significações de ‘medicinal’ e
significação primária da noção de medicina.
No caso da polissemia do termo ‘saudável’, certas coisas são assim ditas
porque preservam a saúde, outras porque produzem a saúde, outras porque
são sinais da saúde e outras ainda porque são aptas a terem saúde. No caso
da polissemia do termo ‘medicinal’, certas coisas são assim ditas porque
possuem a arte médica, outras porque estão naturalmente aptas para ela, e
outras porque são obras da medicina. Essas diversas significações e suas
relações com uma significação primária já nos mostram que a teoria da
significação focal não é pensada por Aristóteles como algo que diria respeito
apenas ao conceito de ser, mas – conforme nos diz o final do trecho [II] –
porque se aplica a muitos conceitos. Como veremos logo mais, Aristóteles
considera que a mesma teoria se aplica ao conceito de unidade e, na
realidade, a todos os conceitos fundamentais que podem estar em algum
tipo de relação com os conceitos de ser e unidade.
À luz desses dois exemplos, o trecho [III] nos apresenta como a teoria
da significação focal se aplica aos múltiplos sentidos do conceito de ente,
simbolizado na expressão grega ‘to on’. Assim, as coisas para as quais,
primariamente, aplicamos o termo ‘seres’ ou ‘entes’ (ta onta) são as
substâncias (ousiai). Isso quer dizer que todos os múltiplos sentidos do
conceito de ser possuem uma significação focal primária: a significação do ser
como substância. Em outras palavras, todos os demais sentidos possíveis do
A origem da ontologia na metafísica grega 265
conceito de ser devem ser compreendidas em relação a esta significação
focal.
No entanto, diferentemente do que pensam certos/as intérpretes, a
lista que Aristóteles apresenta não é mais, como no caso da ontologia que
vimos em Categorias, uma lista de categorias. A enumeração desses outros
sentidos de ser (para além do sentido primário de ser como substância)
provavelmente inclui as categorias sob as rubricas de afecções (pathê) ou
qualidades (poiotêtes) da substância. Isso é assim porque a concepção sobre os
múltiplos sentidos do conceito de ser que Aristóteles tem em mente ao escrever
esta passagem não está mais restrita apenas às categorias. Em vários
momentos da Metafísica (v. g. Livro V, cap. 7; Livro IX, cap. 10), o Estagirita
entende que além das categorias, o ser se diz ainda segundo a potência
(dynamis) e a efetividade ou atualidade (energeia), e também na acepção do
ser-verdadeiro (alêthes) e do ser-falso (pseudes). Essa visão que abrange
também os sentidos de ser como potência e ato, assim como do ser
verdadeiro e do ser falso, como dissemos antes, parece estar mais próxima
da lista encontrada no trecho citado acima, uma vez que nele se falam de
entes que são caminhos, corrupções, privações, geradores e produtores da
substância (sentidos que parecem se aproximar do ser em potência e do ser
em ato), tanto quanto de entes que seriam negações desses sentidos (que
parecem se associar ao sentido do ser como verdade e falsidade). Apesar
dessa aproximação possível, não é o caso de entrarmos nessa discussão, que
nos levaria muito longe. Cumpre apenas indicar que a multiplicidade de
sentidos do conceito de ser (para além da substância) mencionados na
passagem citada não parece mais se restringir às várias categorias.
Tendo em mente estes esclarecimentos gerais, cumpre ainda notar
que os múltiplos sentidos do conceito de ser ditos em relação à significação
focal do ser como substância se vale de uma analogia. Essa analogia foi
marcada na tradução do trecho citado pelas palavras grifadas em negrito:
‘assim como ..., assim também’. Essa analogia presente no texto levou alguns
intérpretes medievais (sendo Tomás de Aquino o mais célebre) a considerar
que a unidade dos múltiplos sentidos do conceito de ser se identificaria com
um tipo de analogia. Essa interpretação se tornou conhecida pela expressão
‘analogia do ser’ (analogia entis). De modo geral, segundo Tomás de Aquino,
diferentemente da analogia em seu tipo mais comum (a analogia de
proporção do tipo: A está para B, assim como C está para D), a analogia
aplicada por Aristóteles seria um tipo especial de analogia: a analogia de
266 Nazareno Eduardo de Almeida
atribuição. No exemplo que se tornou já clássico, essa analogia do ser se
daria do seguinte modo: assim como todas as coisas criadas são ditas
‘criaturas’ porque criadas por Deus, assim também todas as coisas ditas
‘entes’ assim o são por causa das substâncias. Percebemos agora que essa
interpretação se equivoca porque toma o método argumentativo usado por
Aristóteles no texto como se fosse o conteúdo da teoria que ele elabora por
meio deste método. Todavia, não podemos entrar aqui em uma exposição
desta interpretação medieval do texto em análise, uma interpretação que foi
dominante até meados do século passado.
Para além da noção de analogia, outras interpretações argumentaram
que os exemplos dos pares ‘saudável-saúde’ e ‘medicinal-medicina’ nos
conduziriam a pensar a teoria exposta por Aristóteles como se ele estivesse
aproximando a relação entre os termos ‘ser-substância’ à significação por
paronímia, apresentada antes no contexto da exposição dos capítulos 1 e 2
de Categorias. Essa interpretação também se equivoca porque a relação dos
termos parônimos (como o adjetivo ‘filósofo’ proveniente do substantivo
‘filosofia’) é uma relação de derivação (segundo o ‘caso’ (ptôsis)), enquanto a
relação aqui exposta é de dependência e referência. Ademais, embora os
termos gregos ‘to on’ (‘o ser’ ou ‘o ente’) e ‘hê ousia’ (‘a substância’) sejam
termos gramaticalmente aparentados, não é possível estabelecer entre eles
uma relação de derivação como no caso dos termos que exprimem a
paronímia.
Outras interpretações mais recentes (embora baseadas em
comentários antigos ao texto de Categorias), procuram amenizar a forma
negativa ‘e não de modo homônimo’ encontrada no trecho [I], propondo
que a significação focal seria um novo tipo positivo de significação por
homonímia. Contudo, essa interpretação é problemática por duas razões. A
primeira é a seguinte: em todos os momentos nos quais Aristóteles menciona
a significação por homonímia em sua obra ele o faz sempre em termos
negativos, indicando em todos os casos que é impossível haver uma única
ciência das coisas ditas de modo homônimo. Seria estranho que ele estivesse
conferindo, a única vez em toda a sua obra, um sentido positivo a esse modo
de significação, ainda mais em se tratando do momento em que está
propondo a ciência mais universal de todas. A segunda razão é a seguinte:
em dois outros momentos da Metafísica, Aristóteles aplica a teoria da
significação focal ao conceito de ser através da rejeição explícita da
homonímia. O primeiro desses sentidos do conceito de ser é aquele do ser
A origem da ontologia na metafísica grega 267
como essência (to ti ên einai / to ti estin), tratado no capítulo 4 do Livro
VII.O segundo desses sentidos do conceito de ser é o sentido do ser
potencial, tratado no capítulo 1 do Livro IX. Portanto, seria no mínimo
incoerente que a significação homônima se aplicasse à totalidade dos
sentidos do conceito de ser, mas não se aplicasse a dois tipos fundamentais
de sentidos de ser como o são os sentidos de ser essencial e ser potencial.
Por fim, outras interpretações também recentes (das quais se
aproxima a interpretação defendida neste livro), procuram mostrar que a
significação focal do ser elaborada nesta passagem não pode ser entendida
nem pelo quadro conceitual do capítulo 1 de Categorias, nem mesmo por
meio da analogia. O que vemos aqui é uma nova abordagem da polissemia
do conceito de ser através de um modo de significação que Aristóteles, em
outros momentos de sua obra, havia aplicado (até onde sabemos) apenas ao
caso da polissemia do conceito de amizade na Ética Eudêmia (Livro VII,
cap.2). Essa nova abordagem apenas faz alusão ao quadro dos tipos de
termos denotativos de Categorias para indicar que ele está sendo substituído
por um novo quadro conceitual.
Aliás, a sequência imediata do trecho citado sugere que a significação
focal deve ser compreendida não em paralelo com a homonímia ou com a
paronímia, mas como um complemento da significação por sinonímia, que
é justamente aquela presente nas ciências particulares. Eis o trecho:
“[I] Com efeito, assim como há uma única ciência de todas as coisas
saudáveis, do mesmo modo também nos outros casos <similares>. Pois
é próprio de uma única ciência teorizar não apenas as coisas ditas de
acordo com algo uno (kath’hen legomenon), mas também as coisas que
são ditas em relação a uma única natureza (pros mian legomenôn
physin), pois, de certo modo, estas coisas também são ditas segundo algo
uno. [II] Portanto, é evidente que os entes serão teorizados por uma
única <ciência> enquanto entes. Em todos os casos e principalmente, a
ciência é acerca do que é primário, aquilo do que as outras coisas <de
um gênero> dependem e pelo que são ditas <serem parte deste gênero>.
Assim, se esta coisa [sc. primária sobre todos os gêneros de ser] é a
substância, o filósofo deverá possuir <o conhecimento> dos princípios
e causas das substâncias.” (1003b 11-19; tradução própria, grifos e
divisões acrescentados)
268 Nazareno Eduardo de Almeida
Na terminologia técnica proveniente da teoria aristotélica da ciência
encontrada nos Segundos Analíticos, a expressão ‘coisas ditas de acordo com
algo uno’ (kath’hen legomenon) equivale à noção das coisas ditas de modo
sinônimo (ou sinonímia), tipo de significação já exposta quando falamos do
capítulo 1 de Categorias. O que a parte [I] do trecho citado acrescenta e
altera nesta mesma teoria da ciência é que qualquer ciência não apenas trata
dos objetos de seu domínio através da significação sinônima dos mesmos
(como pertencentes a um mesmo gênero ou espécie), mas também trata
desse domínio mostrando que estes objetos possuem algum tipo de significação
focal dentro dos seus respectivos domínios. Em suma: o trecho sugere que a
significação focal já pode ser encontrada dentro de cada uma das classes
(gêneros e espécies) de entidades investigadas pelas ciências.
Contudo, o passo filosófico mais arriscado dado por Aristóteles se
encontra na parte [II] da citação. Este passo consiste em aplicar esse “novo”
tipo de significação também para o conceito de ser, muito embora se mantenha
a concepção segundo a qual há múltiplos gêneros e espécies (classes) de ser.
Inicialmente, a passagem grifada em [II] é clara em dizer que todas as
ciências precisam estabelecer, dentro da classe de entidades que estudam,
aquilo que conta como primário dentro dessa classe. E este primário é
determinado justamente como aquilo do que todas as coisas de um gênero
dependem para dele fazer parte e também como aquilo pelo qual todas essas
coisas são ditas por meio de algum termo geral. Podemos dar um exemplo
disso. No gênero dos números, estudado pela aritmética (grega), uma
entidade que é primária para todos os outros números é, por exemplo, o
número um, dado que todos os números naturais dependem do número um
por serem conjuntos de unidades e somente assim todos os números podem
ser ditos pelo termo geral ‘número’.
Por fim, assumindo que cada uma das ciências tem de descobrir e
explicitar algo primário dentro do gênero de coisas por ela estudado,
Aristóteles propõe que o gênero das substâncias deve ser considerado o
gênero primário dentre todos os gêneros de ser (categorias). Essa
interpretação está plenamente de acordo com a ideia expressa na primeira
passagem citada nesta seção, a saber: todas as coisas que chamamos de
‘entes’ ou ‘seres’ (ta onta) dependem das substâncias para serem parte de uma
mesma ciência e são assim ditos por causa da aplicação do termo ‘ente’ ou
‘ser’ primariamente para as substâncias. Notamos novamente uma analogia
do seguinte modo: assim como há uma significação focal das coisas que
A origem da ontologia na metafísica grega 269
pertencem a uma mesma classe (gênero ou espécie) de entidades, assim
também o gênero das substâncias é a significação focal de todas as outras
possíveis classes e modos de ser.
Diante do que expusemos até aqui, percebemos que a expressão ‘ser
enquanto ser e as propriedades que lhe pertencem por si mesmo’ possui ao
menos dois sentidos gerais mais básicos. De um lado, o ser enquanto ser por
si mesmo equivale ao gênero das substâncias, uma vez que este gênero é a
significação focal da qual todos os demais sentidos de ser dependem para
ser considerados também como propriedades por si mesmas das
substâncias. De outro lado, na medida em que todos os outros gêneros e
modos de ser se dizem em relação ao gênero primário do ser como
substância, também a eles se aplica, mesmo que secundariamente, a noção
de ser enquanto ser. Por isso, cabe a uma única ciência tratar de tudo o que
está contido na extensão (a mais universal de todas) do conceito de ser
enquanto ser. Assim, o conceito de ser enquanto ser é análogo a um gênero,
embora não seja exatamente um gênero. Esse sentido análogo ao de um
gênero atribuído à extensão do conceito de ser enquanto ser se encontra
explicitamente expresso na última passagem que fecha a primeira parte do
capítulo 2 nas seguintes palavras:
“Para todo e cada um dos gêneros há uma única sensação e uma única
ciência; assim, por exemplo, a gramática, sendo uma única <ciência>,
teoriza todas as palavras (phonai); por isso também do ser enquanto ser
há uma ciência única por gênero que teoriza suas espécies e também as
espécies das espécies.” (1003b 19-22; tradução própria, grifos
acrescentados)
Para começar a análise do trecho, lembremos do final da última
passagem citada antes desta, na qual se concluía que se a substância
representa o gênero primeiro de todos os demais gêneros e modos de ser,
então o filósofo deve ter conhecimento dos princípios e causas da
substância, pois é este o gênero primário e, por isso, a significação focal do
conceito de ser. Esta conclusão diz respeito ao primeiro sentido da expressão
ser enquanto ser. Compare-se isto, agora, com que é dito no trecho há pouco
citado. Novamente, a passagem inicia falando de uma característica que
Aristóteles atribui a toda e qualquer ciência. Na sequência, essa generalidade
270 Nazareno Eduardo de Almeida
epistemológica é exemplificada por meio da gramática, que é uma única
ciência que tem como tarefa teorizar (explicar) a multiplicidade das palavras.
Notemos que a gramática realiza essa tarefa estabelecendo as unidades
fonéticas, morfológicas e sintáticas que permitem construir e analisar todas
as possíveis formações linguísticas, entendidas como a classe (“gênero”) de
coisas estudadas pela gramática. Nesta perspectiva, todas as palavras de uma
língua dependem das unidades fonéticas básicas por causa das quais são
denominadas ‘palavras’ todas e cada uma das entidades que pertencem a esta
classe. Em exemplo mais simplificado, todas as múltiplas palavras de uma
língua são compostas a partir das letras e sílabas como unidades mais
básicas de uma língua. Por fim, em analogia com a gramática (e com todas
as ciências particulares), o trecho conclui que é uma única e mesma ciência
por gênero que deve teorizar (estudar e explicar) todas as espécies e as
espécies das espécies pertencentes ao ser enquanto ser, que é considerado aqui
como se fosse um gênero.
A analogia se estabelece do seguinte modo: assim como há uma
ciência única para cada gênero de entidades (ou, como diríamos hoje, para
cada domínio de objetos) e cabe a esta ciência explicar cada uma das partes
(espécies) que compõem este gênero – assim como, se for o caso, as partes
destas partes (as espécies das espécies ou subespécies) –, assim também no
caso do ser enquanto ser, cabe a uma única ciência explicar todos os gêneros
e modos de ser como se fossem espécies e espécies de espécies do ser
enquanto ser. Portanto, embora seja essencial o conhecimento dos
princípios e causas das substâncias (como gênero primário de ser), também
é necessário que a partir desse gênero primário se estude como os demais
gêneros e modos de ser – de forma análoga às espécies e subespécies de um
único gênero – se relacionam com este gênero primário do ser enquanto ser.
Percebemos novamente o recurso a outra analogia para estabelecer esta
ciência mais universal do que todas as demais ciências.
Para encerrar esta seção, vale a pena notar, rapidamente, que
Aristóteles usou até aqui nada menos do que quatro vezes o argumento por
analogia: (1) a analogia entre a universalidade e a necessidade nas ciências
particulares e a universalidade e necessidade na ciência do ser enquanto ser;
(2) a analogia entre a significação focal de termos como ‘saudável’ e
‘medicinal’ e do termo ‘ser’; (3) a analogia entre a significação focal dentro
das diversas classes (gêneros e espécies) e a significação focal que
correlaciona todas as classes de ser com uma classe primária; e (4) a analogia
A origem da ontologia na metafísica grega 271
entre a unidade por gênero das ciências particulares e unidade como que por
gênero da ciência do ser enquanto ser.
Logo mais, veremos que esse procedimento será novamente usado
para ampliar o domínio desta nova ciência para outros conceitos
fundamentais e, na realidade, virtualmente para todos eles. A analogia é um
procedimento conhecido por seus riscos, dado que coloca em comparação
objetos e domínios de objetos inicialmente considerados distintos. Mas ele é
também reconhecido como um dos principais procedimentos operados na
criação de novas palavras e novas ideias. Por isso, não é de se estranhar que
Aristóteles faça uso deste caminho de pensamento para reformular sua visão
sobre a polissemia do conceito de ser e propor para ela uma nova ciência
acima das demais.
2.2.2. A segunda parte do capítulo 2: a teoria da significação focal
aplicada ao conceito de unidade e aos demais conceitos fundamentais
referidos ao ser e à unidade
I. Introdução: a importância do aspecto henológico presente na segunda
parte do capítulo 2
Logo após estabelecer as bases para a ciência do ser enquanto ser
através da teoria da significação focal aplicada à polissemia do conceito de
ser, Aristóteles se volta para a aplicação desta mesma teoria a uma enorme
gama de conceitos, a começar pelo de unidade. Como já dissemos, a
segunda parte do capítulo 2 possui duas linhas de argumentação que se
entrelaçam. Na primeira linha de argumentação, aplica-se a teoria da
significação focal à polissemia do conceito de unidade. Na segunda linha de
argumentação, expande a aplicação da teoria da significação focal à
totalidade dos conceitos fundamentais, na medida em que estes conceitos
podem ser vistos como alinhados aos conceitos de ser e de unidade, bem
como aos contrários destes conceitos: os conceitos de não-ser e de
multiplicidade. Por conseguinte, através destas duas linhas de argumentação,
Aristóteles acaba por transformar a ciência do ser enquanto ser em uma
ciência da totalidade dos conceitos fundamentais.
Como já foi observado por vários/as intérpretes, de certo modo,
Aristóteles está apresentando o projeto de sua filosofia primeira ao longo do
272 Nazareno Eduardo de Almeida
Livro IV da Metafísica como um tipo de substituto crítico da dialética
platônica, em especial como esta dialética se configura nos Livros VI e VII
da República e nos diálogos Parmênides e Sofista. Não por acaso, ainda no
capítulo 2, o Estagirita compara o conceito do filósofo que está delineando
com o dialético (entendido como o conceito platônico da filosofia) e com o
sofista (explicitamente caracterizado nos termos do diálogo Sofista) (cf.
1004b 17-26). Essa retomada crítica da pretensão platônica da filosofia como
ciência da totalidade das Formas (“conceitos”) dá razão para a hipótese de
G. E. L. Owen, a saber: que depois de um período inicial de ceticismo em
relação à possibilidade de uma ciência universal (nesta fase identificada com
a pretensão da dialética platônica), Aristóteles procura neste texto uma nova
versão dessa ciência universal, mas agora sem os problemas que considera
existirem na concepção platônica desta mesma ciência.66
Em complemento a esta hipótese de Owen e retomando o que já
dissemos antes sobre as duas linhagens da metafísica antiga, podemos dizer
que Aristóteles procura mostrar como o seu projeto de filosofia primeira
(centrado na ciência do ser enquanto ser) é uma ontologia que é capaz de
englobar a henologia enquanto teoria sobre os conceitos de unidade e
multiplicidade. Isso mostra que Aristóteles concebe a henologia como parte
intrínseca de sua ontologia e não a ontologia subordinada à henologia.
Diversas partes da Metafísica nos sugerem fortemente que Aristóteles
atribuía esta última posição à filosofia de Platão. Mas se esta interpretação é
questionável no caso de Platão, a subordinação da ontologia à henologia será
explícita e inequivocamente assumida pelos neoplatônicos a partir de
Plotino.
Independente disso, se a ciência proposta por Aristóteles retoma os
traços gerais da dialética platônica descrita nos Livros VI e VII da República,
a realização mais específica dessa proposta se assemelha muito mais com a
dialética que encontramos na segunda parte do diálogo Parmênides e no
diálogo Sofista. Isso é assim porque em lugar de pensar os conceitos
fundamentais separados uns dos outros (como na concepção sobre as
Formas encontrada na República), Aristóteles claramente procura
determinar a ordem hierárquica de correlações entre os conceitos
fundamentais a partir da correlação necessária entre os primeiros conceitos
66
OWEN, Gwilym Ellis Lane. Lógica e metafísica em algumas obras iniciais de Aristóteles; trad.
Luis Márcio Nogueira Fontes. In ZINGANO, Marco Antonio (org.) Sobre a Metafísica de
Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2005, p. 177-204.
A origem da ontologia na metafísica grega 273
fundamentais de ser, unidade e substância; uma tarefa se assemelha bem
mais à imagem da dialética presente nos diálogos Parmênides e Sofista.
Nesta perspectiva de interpretação, parece que a teoria da significação
focal aplicada à totalidade dos conceitos fundamentais deve ser
compreendida como uma metodologia geral, a qual, por um lado, se
assemelha à dialética platônica enquanto “gramática” das Formas presente
no Sofista; mas, por outro lado, rivaliza e procura superar esta mesma
dialética, supostamente determinando a correta hierarquia de correlações
entre todos os conceitos fundamentais.
Além disso, ao estabelecer a correlação primária dos conceitos de ser
e unidade com o conceito de substância, a teoria da significação focal parece
retomar em alguma medida a dialética da segunda parte do Parmênides, na
qual são analisadas hipoteticamente as correlações de muitas Formas a partir
das possíveis correlações entre as Formas do ser, do não-ser, da unidade e da
multiplicidade. Mas, diferentemente da dialética hipotética exercitada no
diálogo Parmênides, a teoria aristotélica das correlações entre todos os
conceitos fundamentais pretende ser uma determinação científica
(gnôristikê) que contrasta com o caráter meramente ‘ensaístico’ (peirastikê))
da dialética platônica (cf. 1004b 25-26).
Como especificações da tese geral de Owen antes mencionada, essas
observações nos mostram que a aplicação da teoria da significação focal
presente na segunda parte do capítulo 2 está retomando e, ao mesmo tempo,
pretendendo superar aspectos fundamentais da dialética platônica,
especialmente como esta se configura nos Livros VI-VII da República e nos
diálogos Parmênides e Sofista. Não por acaso, esses textos de Platão estão
entre aqueles mais valorizados pelos neoplatônicos (a partir de Plotino),
pois é justamente a partir deles que esta escola filosófica elabora sua
interpretação da metafísica platônica (e a deles próprios) como sendo
primariamente uma henologia que engloba em si a ontologia. Na direção
inversa, a metafísica aristotélica se apresenta como sendo primariamente uma
ontologia que engloba em si a henologia, especialmente como esta se tinha se
configurado na dialética platônica.
Esses comentários gerais sobre a segunda parte do capítulo 2 são
necessários e importantes para mostrar que a linhagem henológica da
metafísica antiga (presente antes mesmo de Parmênides) se encontra também
presente no que, até tempos recentes, considerava-se apenas como ontologia de
Aristóteles. Como também já dito antes, a compreensão adequada (quase
274 Nazareno Eduardo de Almeida
uma redescoberta) desta linhagem henológica na metafísica grega é algo
bastante recente, datando de meados do século passado. É somente a partir
dessa perspectiva recente de interpretação que conseguimos enxergar em
toda a sua amplitude a importância da segunda parte do capítulo 2 do Livro
IV da Metafísica, diversas vezes relegada a um segundo plano pelos/as
intérpretes desta obra.
II. A primeira linha de argumentação: a aplicação da significação focal à
polissemia do conceito de unidade
Imediatamente depois da última citação analisada na seção anterior,
Aristóteles introduz a primeira linha de argumentação que compõe a
segunda parte do capítulo 2: a aplicação da teoria da significação focal à
polissemia do conceito de unidade. Para além dos apontamentos gerais
sobre esta polissemia contidos neste texto, Aristóteles dedica dois
importantes capítulos de outros Livros da Metafísica para expor e organizar
os múltiplos sentidos do conceito de unidade: o capítulo 6 do Livro V e o
capítulo 1 do Livro X. Este último Livro, aliás, é todo ele dedicado a analisar
os conceitos que estão relacionados com o conceito de unidade, tais como os
conceitos de multiplicidade, diferença, contrariedade etc. Em ambos os
capítulos citados, Aristóteles diferencia entre a unidade por acidente e a
unidade por si mesma. A unidade por acidente é aquele tipo de unidade que
se manifesta pela união de propriedades de diferentes categorias em um
mesmo indivíduo. No caso da unidade por si mesma, há diferenças entre as
análises do capítulo 6 do Livro V e aquelas do capítulo 1 do Livro X. Os
sentidos presentes em ambas as análises são: a unidade como ser contínuo
(synechês), a unidade como o ser inteiro (holon), a unidade por número, a
unidade por espécie e a unidade por gênero. Mas o sentido mais básico da
unidade se encontra na noção de ser indivisível (adiairetos) e na noção de
ser a primeira medida (metron) de uma classe (gênero ou espécie) de
entidades.
Essa breve menção às análises aristotélicas dos múltiplos sentidos do
conceito de unidade serve apenas para complementar o que é dito sobre essa
polissemia na parte do capítulo 2 que estamos abordando e dar uma ideia
vaga do que nela está pressuposto. Passemos ao trecho que introduz o
primeiro momento da segunda linha de argumentação. Este trecho é a
continuação imediata da última passagem citada na seção anterior:
A origem da ontologia na metafísica grega 275
“[I] O ser e a unidade são idênticos e uma única natureza por
acompanharem um ao outro (assim como princípio e causa), mas não
como se fossem expressos por uma única explicação/definição (heni
logo(i)) (embora não faça diferença se assim os concebêssemos, o que
até facilitaria o trabalho). Pois é o mesmo ‘um humano’ e ‘humano’, e
também ‘humano que é’ (anthrôpos ôn) e ‘humano’, e nada diferente é
significado pela expressão ‘um homem’ ampliada em ‘um homem que
é’ (e é evidente que <ser e unidade> não se distinguem nem na geração
nem na corrupção <de alguma coisa>); e do mesmo modo no caso do
que é uno. Portanto, é manifesto que o acréscimo nestas <expressões>
significa a mesma <coisa>, e que a unidade não é nada distinto para
além do ser. E ainda: que cada substância é una não por acidente, e do
mesmo modo é um certo tipo de ser. [II] Por conseguinte, tantas
quantas são as espécies de unidade, tais são também <espécies> do ser,
acerca das quais cabe à mesma ciência teorizar o que é <cada uma
delas>. Digo, por exemplo, acerca <das espécies de unidade que são> o
idêntico, o semelhante e os outros <conceitos> deste tipo.” (1003b 22-
36; tradução própria, grifos e divisões acrescentados)
Esta passagem apresenta pela primeira vez na história da metafísica
aquilo que os medievais chamarão de ‘conversibilidade de ser e unidade’.
Para entender isso, tomemos inicialmente a parte [I] da citação. O conceito
de ser e o de unidade são idênticos e constituem uma única natureza
(realidade) porque sempre acompanham um ao outro, tal como os conceitos
de princípio e causa acompanham-se mutuamente. Assim, segundo
Aristóteles, onde quer que identifiquemos algum tipo ou modo de ser,
também identificaremos algum tipo ou modo de unidade; e vice-versa: onde
quer que identifiquemos algum tipo ou modo de unidade, também
identificaremos algum tipo ou modo de ser. Todavia, não parece possível
que tenhamos uma única teoria (explicação/definição) que seja a mesma
para ambos.
Em termos contemporâneos, isso significa que os conceitos de ser e de
unidade são coextensivos, mas possuem sentidos distintos. Dois conceitos
coextensivos, mas com sentidos distintos, são, por exemplo, o conceito de
ter rins e o de ter coração: todos os seres vivos que possuem rins também
possuem coração. Contudo, é óbvio que não explicamos a propriedade ter
rins e a propriedade ter coração com uma mesma definição. Do mesmo
276 Nazareno Eduardo de Almeida
modo, conforme a concepção aristotélica, embora tudo o que podemos
pensar como tendo algum tipo de ser, ao mesmo tempo, tenha algum tipo
de unidade não quer dizer que uma explicação/definição (teoria) sobre os
tipos de unidade seja idêntica à explicação sobre os tipos de ser. Apesar de
conjecturar que uma mesma explicação poderia servir para ambos os
conceitos (e até facilitaria o trabalho), Aristóteles evidentemente concebe-as
como teorias distintas.
Para exemplificar essa identidade em extensão (e não em sentido) dos
conceitos de ser e unidade, Aristóteles recorre a uma evidência linguística:
se acrescentamos ao nome ‘humano’ quer o conceito de unidade (dizendo
‘um humano’) quer o conceito de ser (dizendo ‘humano que é’), esses
acréscimos linguísticos não alteram o significado do termo ‘humano’. Na
mesma linha de raciocínio, não há distinção de significado entre a expressão
‘um humano’ e ‘um humano que é’. Percebemos aqui que Aristóteles está
retomando aquela equivalência sobre a qual já falamos nos
aprofundamentos sobre o diálogo Sofista, a saber: ‘algo’ = ‘um’ = ‘ser’. Ou
seja, falar (e pensar) sobre algo já pressupõe que pensamos algo que tem
certa unidade e que tem certo ser. Se substituímos o ‘algo’ pelo exemplo do
‘humano’, entendemos melhor o argumento em análise aqui.
A partir disso, Aristóteles determina que unidade e ser não se
separam em qualquer coisa no espaço compreendido entre seu nascimento
(geração) e sua morte (corrupção). Porém, mais importante ainda do que
isso é a observação segundo a qual a unidade e o ser são propriedades
necessárias (não acidentais) para qualquer substância. Isso é importante
porque aponta para o fato de que, na ontologia aristotélica, a substância não
é apenas a significação focal do ser, mas também é a significação focal da
unidade. Embora essa indicação seja feita de modo passageiro no contexto
do capítulo 2, ela é de extrema importância para entendermos como várias
outras partes da Metafísica (como os Livros VII, VIII e IX) farão diversos
tipos de síntese entre os conceitos ontológicos e os conceitos henológicos para
construir uma teoria da substância, aquilo que os/as intérpretes recentes
batizaram pelo termo ‘ousiologia’.
Por conta disso (conclui a parte [II] da citação acima), embora
tenhamos explicações (teorias) distintas sobre os sentidos dos conceitos de
ser e de unidade, no modo como esses conceitos se manifestam nas coisas,
podemos fazer um tipo de equivalência e conversão de um ao outro. Assim, as
espécies (tipos) de unidade podem ser consideradas também como espécies
A origem da ontologia na metafísica grega 277
(tipos) de ser, e vice-versa: as espécies (tipos) de ser podem ser consideradas
como espécies (tipos) de unidade. Por meio desse engenhoso argumento,
Aristóteles engloba no escopo da ciência do ser enquanto ser aqueles
conceitos que inicialmente seriam próprios da henologia. Dois desses
conceitos são mencionados no final da citação: o conceito de identidade
(tauton) e o conceito de semelhança (homoios), sendo adicionado pouco
abaixo da passagem citada também o conceito de igual ou igualdade (isos).
III. A segunda linha de argumentação: a aplicação da significação focal a
todos os conceitos fundamentais relacionados com os pares de conceitos
de ser/não-ser e unidade/multiplicidade
Depois de englobar na ciência do ser enquanto ser o estudo do
conceito de unidade e dos conceitos diretamente correlacionados com ele,
Aristóteles indica uma ampliação ainda maior do escopo de estudo dessa
mesma ciência. Para facilitar a compreensão desta linha de argumentação,
ela pode ser sumariamente resumida do seguinte modo: uma vez que todas
as ciências teorizam os conceitos contrários dentro dos gêneros que
estudam, assim também a ciência do ser enquanto ser terá de teorizar os
conceitos de multiplicidade e não-ser. Mas assumindo que os pares
conceituais ser/não-ser e unidade/multiplicidade são conceitos básicos aos
quais todos os outros conceitos fundamentais se referem, segue-se que a
ciência do ser enquanto ser terá de investigar todos os conceitos
fundamentais. Passemos, agora, à exposição mais detida da argumentação
que realiza esta expansão.
De um modo geral, essa ampliação possui dois conjuntos de
argumentos complementares. O primeiro conjunto de argumentos,
novamente, se configura na forma de uma analogia com as ciências
particulares. O segundo conjunto de argumentos se configura na forma de
uma aplicação da teoria da significação focal a todos esses conceitos
fundamentais, uma vez que eles, assim como os conceitos de ser e unidade,
se dizem em múltiplos sentidos. Façamos uma exposição geral de cada um
desses conjuntos de argumentos.
O primeiro conjunto de argumentos se configura em torno de uma
analogia que pode ser assim descrita: assim como cabe às ciências
particulares teorizar o seu domínio de objetos a partir de conceitos
contrários, assim também a ciência do ser enquanto ser terá de teorizar os
278 Nazareno Eduardo de Almeida
conceitos contrários aos de ser e unidade, ou seja, terá como tema de estudo
também o conceito de multiplicidade (contrário ao de unidade) e o conceito
de não-ser (contrário ao de ser). A primeira parte da analogia pode ser
exemplificada do seguinte modo: a medicina não estuda apenas a saúde, mas
também a doença; a física não estuda apenas o movimento, mas também o
repouso ou estabilidade; a aritmética (grega) não estuda apenas os números
pares, mas também os números ímpares. A partir dessa tese aplicada às
ciências particulares, a segunda parte da analogia assume que se a teorização
do ser enquanto ser tem o estatuto de uma ciência, também ela terá de
investigar conceitos contrários. Essa transposição, porém, é uma analogia
porque ainda que a ciência do ser enquanto ser tenha seu centro no gênero
da substância, ela versa sobre conceitos que ultrapassam as delimitações dos
gêneros particulares de entidades e se aplicam a todos esses gêneros, a
começar pelos conceitos de ser e unidade. Em outras palavras, a analogia
feita é entre dois tipos distintos de ciência: as ciências particulares e a ciência
fundamental e universal.
O segundo conjunto de argumentos, mais complexo do que o
primeiro, se agrupa em torno da aplicação da teoria da significação focal a
todos os conceitos fundamentais. Essa aplicação se dá em dois passos. O
primeiro passo consiste em aplicá-la aos conceitos de multiplicidade e de
não-ser. O segundo passo é estender essa aplicação aos outros conceitos que
se correlacionam e se referem a estes pares primários de contrários. Vejamos
um pouco melhor cada um desses passos.
Primeiramente, a teoria da significação focal é aplicada aos conceitos
de multiplicidade e não-ser enquanto conceitos contrários aos de unidade e
ser. Essa aplicação se baseia em uma regra lógico-semântica que Aristóteles
estabelece nos Tópicos e que nos diz: se um conceito x se diz em múltiplos
sentidos, então o conceito y que lhe é contrário também se diz em múltiplos
sentidos. Portanto, se os conceitos de ser e unidade se dizem em múltiplos
sentidos, também os conceitos de não-ser e multiplicidade se dizem em
múltiplos sentidos. Além disso, Aristóteles entende que ao menos uma parte
dos conceitos contrários deve ser compreendida na forma de uma negação
dependente. A negação dependente significa que em um par de conceitos
contrários, um deles deve ser tomado como o parâmetro de significação
para se compreender a significação do outro. No caso dos pares de
contrários ser/não-ser e unidade/multiplicidade, são os conceitos de ser e
A origem da ontologia na metafísica grega 279
unidade os parâmetros para compreender o sentido dos seus contrários,
entendidos como negações dependentes dos primeiros.
Portanto, os múltiplos sentidos dos conceitos de não-ser e de
multiplicidade só são compreensíveis e determináveis por referência aos
múltiplos sentidos do conceito de ser e de unidade. No caso do conceito de
não-ser isso é evidente pelo próprio nome deste. Assim, cada um dos
sentidos do conceito de não-ser é sempre determinado como a negação de
algum sentido do conceito de ser. Do mesmo modo, cada um dos sentidos
do conceito de multiplicidade é sempre determinado como a negação de
algum sentido do conceito de unidade. Portanto, os sentidos dos conceitos
de não-ser e de multiplicidade têm a sua significação focal nos sentidos dos
conceitos de ser e unidade.
O segundo passo do argumento que aplica a significação focal a todos
os conceitos fundamentais se realiza ao se assumir que todos esses conceitos,
ordenados por meio de pares contrários, se referem ou remetem, em última
instância, aos pares primários de conceitos contrários, que são justamente
ser/não-ser e unidade/multiplicidade. Essa “arquitetura” conceitual assume
que os conceitos de ser e unidade (e seus contrários) são os conceitos mais
universais dentre os conceitos fundamentais. Por conta disso, na perspectiva
aristotélica, todos os demais conceitos são, por assim dizer, “manifestações”
ou “modalidades” desses conceitos mais universais. Isso pode ser
compreendido através de uma tese que Aristóteles defende sobre os
conceitos de ser e unidade: que eles possuem sentidos distintos conforme se
manifestem em cada uma das categorias (gêneros mais amplos) de ser.
Assim, o ser e a unidade na categoria de quantidade possuem sentidos
distintos do ser e da unidade na categoria de substância. O mesmo se aplica
aos conceitos de não-ser e de multiplicidade. A partir disso, todos os
conceitos contrários que se referem e remetem (“se alinham”) ao par de
contrários unidade/multiplicidade e, por isso, podem ser entendidos como
manifestações dos distintos sentidos desse par de conceitos. Do mesmo
modo, todos os conceitos contrários que se referem e remetem ao par de
contrários ser/não-ser são manifestações dos distintos sentidos desse par de
conceitos.
Nesta perspectiva, os conceitos de ser e unidade (e seus contrários
dependentes) assumem um papel análogo ao de um gênero e os conceitos
fundamentais organizados em pares de contrários são entendidos como se
fossem espécies desse gênero. Diante do que já vimos antes sobre a noção
280 Nazareno Eduardo de Almeida
aristotélica de espécies e de espécies de espécies do ser enquanto ser, agora
os conceitos fundamentais são como que espécies e espécies de espécies dos
pares contrários primários que são os conceitos de ser/não-ser e
unidade/multiplicidade. Por isso, estes pares de contrários primários
adquirem a posição de significação focal de todos os conceitos fundamentais
que “se alinham” com eles. Usando os exemplos encontrados no texto em
análise, a identidade (em seus múltiplos sentidos) se converte em uma
espécie da unidade, assim como a diferença (em seus múltiplos significados)
se converte em uma espécie da multiplicidade, uma vez que a diferença é o
conceito contrário ao de identidade.
Com esses passos argumentativos, Aristóteles realiza a expansão da
ciência proposta no início do Livro IV: desde o núcleo que teoriza o ser
enquanto ser a partir das substâncias até se tornar a ciência dos conceitos
fundamentais. Feita esta exposição mais geral, podemos apresentar uma
tradução da parte do capítulo 2 mais representativa dessa ampliação:
“[I] Dado que uma <mesma ciência> teoriza os contrários, e que à
unidade se opõe o múltiplo – cabe a uma <mesma ciência> teorizar a
negação e a privação porque ambas são teorizadas <como> negação e
privação de algo uno (pois ou dizemos que algo não existe em algo
pura e simplesmente [sc. negação] ou <que não existe> em algum
gênero [sc. privação]; neste último caso, acrescenta-se a diferença a
alguma unidade, ao contrário da unidade na negação, pois a negação é
ausência daquilo <que é negado de alguma unidade> enquanto na
privação subsiste alguma natureza da qual a privação é predicada) –,
segue-se que também os contrários das noções supra mencionadas [sc.
identidade, semelhança e igualdade] (<ou seja>, a alteridade, a
dessemelhança, a desigualdade e quantos outros <conceitos> que são
ditos ou segundo estes <conceitos> ou segundo a multiplicidade e a
unidade) são objetos de conhecimento da ciência sobre a qual estamos
falando. Dentre estes <conceitos> também está o <conceito> de
contrariedade, pois a contrariedade é certo <tipo de> diferença, e a
diferença <é certo tipo de> alteridade. [II] Por conseguinte, dado que a
unidade se diz em múltiplos <sentidos>, então também esses <conceitos>
serão ditos <em múltiplos sentidos>, e do mesmo modo todos eles são
objetos de conhecimento de uma única <ciência>. Porque não é por
serem ditos em múltiplos <sentidos que serão objeto> de distintas
<ciências>, mas apenas se as explicações <desses sentidos> não
A origem da ontologia na metafísica grega 281
remetessem [anapherontai] nem <a algum conceito que se diz>
segundo algo uno [sc. significação por sinonímia] nem <a algum
conceito que se diz> relação a algo uno [sc. significação focal]. [III] E
dado que todos <os sentidos desses conceitos> estão em relação de
remissão [anapheretai] com o <sentido> primário – uma vez que todos
os <sentidos do conceito> de unidade são ditos em relação ao
<sentido> primário de unidade – o mesmo se deve dizer sobre <os
sentidos dos conceitos de> identidade, alteridade e dos <sentidos dos
conceitos> que possuem contrários. Portanto, tendo distinguido em
quantos <sentidos> cada um <desses conceitos> se diz, cumpre
apresentar de que modo <esses sentidos> são ditos em relação ao
<sentido> primário em cada categoria <de ser>: alguns serão ditos por
possuir aquele <sentido primário>, alguns por produzi-lo e alguns
segundo outros modos deste tipo. [IV] Portanto, é evidente que
(conforme dissemos no <Livro> das aporias [sc. Livro III, caps. 1 e 2])
é próprio de uma única <ciência> possuir o discurso sobre estes
<conceitos> e sobre a substância (este era um dos problemas
discutidos), e que é próprio do filósofo ter a capacidade de teorizar sobre
todos <estes conceitos>.” (1004a 9-1004b 1; tradução própria, grifos e
divisões acrescentados)
Fazer uma análise minuciosa de todos os elementos da passagem
citada nos levaria muito longe, mesmo para um texto de aprofundamento.
Por isso, a análise que segue é apenas um esboço geral. Na parte [I],
Aristóteles retoma a tese de que toda ciência, de algum modo, trata de
conceitos contrários, de tal modo que a teorização dos múltiplos sentidos do
conceito de unidade também deverá se estender à teorização dos múltiplos
sentidos do conceito de multiplicidade. Esta tese é rapidamente justificada
ao se falar da diferença entre a negação e a privação, sugerindo que os
conceitos contrários teorizados por uma mesma ciência são aqueles da
ordem da privação, pois enquanto a negação em geral pode simplesmente
excluir um predicado de um determinado sujeito, a privação nega um
predicado que pode pertencer a um sujeito em certa circunstância. Esta
diferença entre a negação em geral e negação privativa se torna mais
compreensível do seguinte modo. Uma negação – primariamente na forma
‘S não é P’ – nos diz, por exemplo, que ‘João não é uma pedra’. Trata-se de
uma negação verdadeira, mas ela simplesmente exprime (de modo puro e
simples) a exclusão de um predicado que não pode pertencer a nenhum ser
282 Nazareno Eduardo de Almeida
humano. Já a negação privativa – principalmente na forma ‘S é não-P’ – nos
diz, por exemplo, ‘João é in-justo’ ou ‘João é não-justo’, indicando que João
está privado de uma propriedade que poderia pertencer a ele porque pode
pertencer à espécie humana. Portanto, a negação privativa significa (embora
nem sempre) que um determinado sujeito (pertencente a uma determinada
classe (gênero e/ou espécie)) está privado de uma propriedade que poderia
ter ou eventualmente já teve: no caso do exemplo, a propriedade afirmativa
do ser justo. De modo análogo, o conceito de multiplicidade (to plethos) é
contrário ao de unidade, mas é um conceito contrário que se relaciona com o
de unidade na forma da privação, ou seja, de modo geral e inicialmente, o
sentido do conceito de multiplicidade é determinado como privação do
conceito de unidade. Nesta parte, é ainda incluído o próprio conceito de
contrariedade (enantiotês), pois Aristóteles entende ser a contrariedade um
tipo de diferença (diaphora) (a diferença máxima dentro de um mesmo tipo
de entidades), assim como entende ser a diferença um tipo de alteridade
(heterotês).
Na parte [II] da citação, Aristóteles estabelece que se o conceito de
unidade se diz em múltiplos sentidos, então também os conceitos que
remetem à unidade (identidade, semelhança, igualdade etc.) e os conceitos
contrários a estes (alteridade, dessemelhança, desigualdade etc.), que se
referem à multiplicidade, se dizem em múltiplos sentidos. Isso é assim
porque esses conceitos são, por assim dizer, espécies de unidade e de
multiplicidade. Em outras palavras, a identidade (em seus vários sentidos) é
uma espécie de unidade, sendo entendida, neste contexto, como se fosse um
gênero, embora efetivamente não o seja, pois, efetivamente, a unidade
adquire diferentes sentidos através das categorias (gêneros supremos) de ser.
De modo análogo, a alteridade (em seus vários sentidos) é uma espécie de
multiplicidade, também entendida, neste contexto, como se fosse um gênero,
embora efetivamente não o seja, pois, como a unidade, adquire diferentes
sentidos através das categorias de ser.
É somente na parte [III] que Aristóteles esclarece como se dá essa
hierarquia entre os vários sentidos dos conceitos contrários que remetem,
em última instância, aos conceitos de unidade e multiplicidade: assim como
os múltiplos sentidos do conceito de unidade se dizem em relação a um
sentido primário (se dizem no modo da significação focal) e que, embora
implicitamente, os vários sentidos do conceito de multiplicidade se digam
em relação a um sentido primário, assim também os vários sentidos dos
A origem da ontologia na metafísica grega 283
conceitos de identidade, alteridade, semelhança, dessemelhança, igualdade,
desigualdade e outros deste tipo também serão ditos em relação a algum
sentido primário desses conceitos em alguma das categorias de ser. Em
outras palavras, tal como a significação focal se aplica aos múltiplos sentidos
dos conceitos de unidade e de multiplicidade, também se aplicará aos
múltiplos sentidos dos conceitos que se dizem segundo a unidade e a
multiplicidade.
Por fim, a parte [IV] retira a consequência mais geral desta
argumentação: é uma e a mesma ciência que teoriza a substância (como
significação focal dos conceitos de ser e de unidade) e todos os conceitos
fundamentais, de tal forma que cabe ao filósofo (na acepção que Aristóteles
lhe confere neste contexto) teorizar todos esses conceitos. Como já dissemos
na introdução desta seção, conforme uma corrente de interpretação recente
(assumida por nós neste texto), depois de passar por um período de
desconfiança em relação à pretensão platônica da dialética como ciência
universal da totalidade dos conceitos fundamentais (no caso de Platão, as
Formas), Aristóteles delineia aqui a sua versão desta “ciência universal”.
Também como já dissemos, se este projeto de arquitetura conceitual
hierárquica é cumprido ou não nos demais Livros que compõem a
Metafísica, permanece uma questão em aberto. Independente desta última
questão, parece ser evidente que é este o projeto efetivamente delineado
nesta segunda parte do capítulo 2.
Uma maneira de tornar mais clara a argumentação de Aristóteles é
tomarmos as partes grifadas na citação anterior, excluindo as indicações de
explicação que as intercalam. Com isso temos o seguinte texto:
“[I] Dado que uma <mesma ciência> teoriza os contrários, e que à
unidade se opõe o múltiplo (...), segue-se que também os contrários das
noções supra mencionadas (...) são objetos de conhecimento da ciência
sobre a qual estamos falando. (...) [II] Por conseguinte, dado que a
unidade se diz em múltiplos <sentidos>, então também esses <conceitos>
serão ditos <em múltiplos sentidos>, e do mesmo modo todos eles são
objetos de conhecimento de uma única <ciência>. (...) [III] E dado que
todos <os sentidos desses conceitos> estão em relação de remissão com o
<sentido> primário – uma vez que todos os <sentidos do conceito> de
unidade são ditos em relação ao <sentido> primário de unidade – o
mesmo se deve dizer sobre <os sentidos dos conceitos de> identidade,
284 Nazareno Eduardo de Almeida
alteridade e dos <sentidos dos conceitos> que possuem contrários.
Portanto, tendo distinguido em quantos <sentidos> cada um <desses
conceitos> se diz, cumpre apresentar de que modo <esses sentidos> são
ditos em relação ao <sentido> primário em cada categoria <de ser>. [IV]
Portanto, é evidente que (...) é próprio de uma única <ciência> possuir o
discurso sobre estes <conceitos> e sobre a substância (...), e que é próprio
do filósofo ter a capacidade de teorizar sobre todos <estes conceitos>.”
Depois dessa passagem, Aristóteles apresenta um conjunto de
argumentos adjacentes para corroborar que cabe a uma mesma ciência (a
ciência por excelência do filósofo) tratar da substância, dos já mencionados
conceitos e ainda de outros. Em primeiro lugar (1004b 1-8), se não coubesse
ao filósofo tal ciência, então se formariam confusões insolúveis, tais como
determinar se é o mesmo Sócrates e Sócrates sentado. Por mais estranha que
esta questão possa parecer à primeira vista, ela diz respeito ao problema da
determinação das unidades básicas da realidade. Assim, se não houvesse
uma unidade intrínseca de Sócrates (a sua substância, que é, de certo modo,
independente de outras propriedades exteriores a ela), então teríamos de
aceitar que é o mesmo dizer ‘Sócrates’ e ‘Sócrates sentado’. Todavia, se
aceitássemos essa identidade, então também deveríamos aceitar a identidade
entre ‘Sócrates’ e ‘Sócrates sentado dialogando com seus discípulos em
determinada casa da cidade de Atenas na hora x, do dia y do ano z’, e assim
por diante, ao infinito. Dito de modo mais direto: se fosse o mesmo dizer
‘Sócrates’ e ‘Sócrates sentado (etc.)’, então uma mesma coisa será múltipla (e
mesmo infinita); uma conclusão que nos conduz rapidamente a
contradições. Por conseguinte, é graças ao conhecimento que o filósofo
possui da correta correlação semântica entre os vários sentidos dos
conceitos contrários que questões como essa podem ser resolvidas. Sem esse
conhecimento, não seria possível distinguir entre as ciências que estudam o
ser enquanto fogo (física) ou a unidade enquanto número (aritmética) e a
ciência que trata dos conceitos fundamentais como propriedades do ser
enquanto ser e da unidade enquanto unidade.
Em segundo lugar e por conta do primeiro argumento (1004b 8-17),
Aristóteles nos diz que é justamente por ter o conhecimento da substância
que o filósofo (tal como o entende), é capaz de diferenciar os sentidos dos
conceitos fundamentais na medida em que remetem ao ser e à unidade por
contraste ao modo como são delimitados apenas pelas ciências particulares,
A origem da ontologia na metafísica grega 285
em especial as ciências físicas e as ciências matemáticas. Segundo
Aristóteles, os filósofos anteriores acabaram por entender o ser e a unidade
apenas em seus aspectos físicos e matemáticos, sendo, por isso, incapazes de
teorizar o ser enquanto ser e a hierarquia correta dos múltiplos sentidos dos
conceitos fundamentais em suas relações de remissão à substância como
sentido primário (significação focal) do ser e da unidade. Esse argumento
retoma com novas premissas a diferenciação que havia sido feita no capítulo
1 entre a ciência do ser enquanto ser e as ciências particulares.
Em terceiro lugar (1004b 17-26), o Estagirita põe em contraste
hierárquico o filósofo (em sua acepção), o dialético (representando a
concepção platônica do filósofo) e o sofista. Os três, aparentemente, tratam
dos conceitos fundamentais. Contudo, enquanto o filósofo é capaz de
conhecer a verdadeira arquitetura e ordenamento entre eles, o dialético
apenas possui um saber ensaístico e provisório (peirastikê) sobre os mesmos.
Por sua vez, quando contrastado com o filósofo e com o dialético, o sofista
possui apenas um saber aparente sobre estes conceitos, além de escolher um
modo de vida distinto daquele do filósofo, indicando implicitamente que o
sofista apenas se vale desses conceitos para seus fins (por vezes de modo
capcioso) sem querer conhecê-los propriamente. Note-se que Aristóteles
retoma aqui, ainda que de modo latente, a caracterização da sofística que
antes vimos no tratamento do diálogo Sofista, de Platão, a saber: o sofista é
aquele que possui uma falsa aparência de ciência/conhecimento universal.
Todavia, da perspectiva aristotélica, embora o dialético procure teorizar a
totalidade dos conceitos fundamentais, ele apenas o faz de um modo
provisório e ensaístico e não do modo “científico” prescrito neste momento.
A partir dessa retomada do diálogo Sofista, poderíamos conjecturar que
enquanto o sofista possui uma falsa aparência do saber universal sobre estes
conceitos, o dialético possui apenas a verdadeira aparência de um tal saber,
mas, neste contexto, é somente o filósofo que pode alcançar o conhecimento
real de cada um desses conceitos fundamentais e de sua correta hierarquia.
Por fim, em quarto lugar (1004b 27-1005a 13), Aristóteles argumenta
que seu projeto de ciência universal realiza aquilo que já estava apenas em
potência e de modo incompleto nos seus antecessores. De modo análogo
(mas sem a mesma capacidade), “quase todos os filósofos estão de acordo
que os entes e a substância (ta onta kai ousian) são constituídos a partir de
contrários.” (1004b 29-30). Mas, de modo latente, o trecho nos diz que esses
filósofos anteriores não chegaram a compreender que todos os contrários “se
286 Nazareno Eduardo de Almeida
referem (anagetai) ao ser e ao não-ser e à unidade e à multiplicidade” (1004b
27), ao que poderíamos acrescentar que estes contrários primeiros se
referem à significação focal do ser e da unidade que é a substância. Neste
momento, menciona como exemplos os contrários defendidos pelos
pitagóricos (par e ímpar), por Parmênides (quente e frio 67), por Platão e seus
defensores imediatos (limite e ilimitado68), e, por fim, por Empédocles
(amizade e discórdia). E conclui (não sem um tom similar ao “Vim, vi e
venci” de César):
“E também todos <estes contrários> e ainda outros parecem se referir
(anagomena) à unidade e à multiplicidade (...), de modo que,
universalmente, os princípios <propostos> da parte dos outros
<filósofos> recaem nestes <dois> gêneros [sc. ser/não-ser e
unidade/multiplicidade]. Por conta disso, é evidente que <é próprio>
de uma única ciência teorizar o ser enquanto ser. Pois todos <os
princípios> ou são contrários ou provém de contrários, mas os
princípios dos contrários <são> a unidade e a multiplicidade” (1004b
33-1005a 5)
Neste trecho, Aristóteles está, em certa medida, dizendo que sua
ciência engloba e realiza os esforços de praticamente todos os seus
antecessores, uma vez que, supostamente, todos eles teriam pensado os entes
a partir de princípios contrários. No entanto, esses esforços estariam ainda
no nível de tentativas malfadadas. Assim, em um movimento argumentativo
que mais tarde será reapropriado por Hegel, Aristóteles justifica seu próprio
projeto metafísico ao dizer que ele é a correta realização da metafísica
anterior, a qual ainda estaria em um estágio de errância e incompletude.
Como já citamos no texto básico, o capítulo se encerra concluindo, a
partir do conjunto anterior de argumentos, que é evidente ser a mesma a
ciência da substância (como significação focal dos conceitos de ser e
unidade) e de todos os demais conceitos fundamentais (organizados
hierarquicamente em relação à substância).
67
Trata-se de uma remissão à interpretação da filosofia de Parmênides que Aristóteles apresenta
no capítulo 5 do Livro I da Metafísica. Todavia, do ponto de vista dos estudos modernos, essa
interpretação é controversa e contestável.
68
Trata-se, novamente, da interpretação da filosofia de Platão e dos seus discípulos imediatos que
encontramos na Metafísica, especialmente nos Livros I e XIII. Também sobre essa
interpretação há bastante controvérsia entre os/as intérpretes.
A origem da ontologia na metafísica grega 287
2.2.3. Apontamentos gerais sobre a teoria da significação focal
Em um resumo sinóptico e retomando algo já indicado no texto
básico, é com a teoria da significação focal que Aristóteles entende ser capaz
de englobar e ordenar a multiplicidade de sentidos do conceito de ser, assim
como de englobar e ordenar a totalidade dos conceitos fundamentais,
entendidos como se fossem espécies do ser enquanto ser e da unidade
enquanto unidade. Já foi mencionado antes que esta teoria é uma ampliação
da teoria aristotélica da ciência. Na teoria inicial (baseada em Categorias e
desenvolvida nos Segundos Analíticos), toda ciência só poderia tratar de
coisas ditas de modo sinônimo ou por sinonímia, ou seja, de coisas que
possuem tanto uma denominação quanto uma definição comum sobre o seu
ser. Esta mesma concepção conduziu Aristóteles a pensar, durante algum
tempo, que não seria possível uma ciência única do ser, pois as coisas ditas
pelo termo ‘ser’ (to on) não possuiriam essa definição em comum, tal como
as coisas que pertencem a uma mesma classe (gênero ou espécie).
Entretanto, no capítulo 2 do Livro IV Aristóteles indica que as coisas
que pertencem a uma mesma classe (especialmente a um gênero e, em
última instância, a uma mesma categoria) não são ditas apenas segundo algo
uno (kath’hen legomenon) ou por sinonímia, mas essas mesmas coisas são
ditas serem o que são (números, figuras geométricas, palavras etc.) em
relação a algo uno (pros hen legomenon), ou seja, dentro de cada classe de
entidades, para além da sinonímia que engloba essas entidades sob uma
mesma definição comum, tais entidades são ditas em relação a entidades
primárias dentro de sua classe, tal como os números como um todo são ditos
em relação ao número um, as figuras geométricas em relação ao ponto e a
linha, as palavras em relação às letras e fonemas etc. Nesta perspectiva
interpretativa, a significação focal é concebida aqui como uma forma de
unidade das entidades pertencentes a uma classe (gênero/espécie) que não
se dá apenas “de cima para baixo” ou por sinonímia (acepção presente na
preposição grega ‘kata’ na expressão ‘kath’hen legomenon’), mas também,
por assim dizer, “de baixo para cima” ou por significação focal (acepção
presente na preposição grega ‘pros’ na expressão ‘pros hen legomenon’). Em
outras palavras, não é apenas pela definição comum que se dá a unidade
ontológica de uma classe de entidades, mas é também pela dependência
ontológica das entidades complexas em relação com as entidades mais
simples e primárias desta classe. Assim, o capítulo 2 do Livro IV nos sugere
288 Nazareno Eduardo de Almeida
que a significação focal complementa e mesmo fundamenta a significação
por sinonímia mais ou menos do seguinte modo: as coisas pertencentes a
uma classe de entidades são ditas por meio de uma denominação comum
(por sinonímia) porque essa denominação se aplica primariamente a certas
entidades básicas dessa classe (por significação focal), de tal forma que a
totalidade das entidades desta classe depende destas entidades básicas para
existir.
Essa nova maneira de conceber a unidade das coisas de uma classe de
entidades é expressa várias vezes no capítulo 2 através dos verbos gregos
‘anapherô’ e ‘anagô’ e seus derivados, marcados já quando de suas
ocorrências nas citações feitas acima. Respectivamente, estes verbos
significam, em uma tradução filosófica e contextualizada, ‘fazer remissão a
algo anterior’ e ‘fazer referência a algo superior’. 69 De modo geral, eles
representam tipos de relação de referência semântica que indicam uma relação
de dependência ontológica.
Na parte sobre Categorias contida no texto básico deste capítulo, já
vimos que Aristóteles concebia uma hierarquia ontológica das categorias em
relação à categoria de substância e, dentro desta, às substâncias primeiras.
No capítulo 2 do Livro IV, porém, essa hierarquia é transformada através da
teoria da significação focal. Como já dissemos, em Categorias a dependência
ontológica das categorias em relação à categoria de substância (e, afinal, em
relação às substâncias primeiras) não era concebida como um instrumento
para uma ciência unificada do ser. Antes, apontava para um tipo de
esclarecimento prévio e propedêutico que acabava por concluir que o
melhor conhecimento sobre o ser se encontrava nas diversas ciências que
investigam e determinam as propriedades das entidades pertencentes às
diversas categorias de ser.
Agora, porém, por meio da teoria da significação focal, Aristóteles
não apenas propõe uma ciência do ser enquanto ser como ciência focada
69
Note-se que é do verbo ‘anapherô’ que provém o conceito de anáfora, conceito que, de modo
geral, pode ser explicado como o fenômeno linguístico no qual um termo (em geral os
pronomes) substitui e faz remissão a termos anteriores em uma sequência de frases. Por
exemplo, tome-se a sequência das seguintes duas frases coordenadas: “Maria é brasileira, pois
ela é catarinense.”. Aqui, o pronome ‘ela’ significa de maneira anafórica neste contexto porque
remete ao nome próprio ‘Maria’. Todavia, não devemos confundir a significação focal com a
remissão ou referência anafórica, pois embora algo similar esteja em jogo, a remissão que
Aristóteles parece ter em mente aqui não é entre palavras da língua, mas primariamente entre
sentidos dos conceitos, o que pode não ter uma correspondência linguística exata. Assim, por
exemplo, determinado sentido do conceito de identidade remete, em última instância, a
determinado sentido do conceito de unidade, tanto quanto determinado sentido do conceito
de qualidade remete, em última instância, a determinado sentido do conceito de ser.
A origem da ontologia na metafísica grega 289
primeiramente no gênero das substâncias, mas apresenta todos os conceitos
fundamentais como se dizendo em relação a este gênero primeiro de ser.
Essa aplicação é possível graças a uma analogia tão importante
historicamente quanto problemática filosoficamente. Essa analogia é a
seguinte: assim como cada classe (gênero e espécie) de entidades não apenas
possui unidade por todas as entidades que lhe pertencem se dizerem por
sinonímia (‘segundo algo uno’), mas também por todas elas se dizerem por
meio da significação focal (‘em relação a algo uno’); assim também a
unidade de todas as classes (gêneros e espécies) de entidades se estabelece em
suas múltiplas relações com uma classe primária de entidades representada
pelas substâncias. Além disso, todos os conceitos fundamentais que se aplicam
em diferentes sentidos em cada classe de entidades (identidade, alteridade,
diferença, contrariedade, semelhança, dessemelhança, igualdade,
desigualdade etc.) – na medida em que seus vários sentidos remetem aos
sentidos primários do ser, da unidade e de seus contrários – também podem
ser unificados através da significação focal.
É certo que essa hierarquia “piramidal” – como já representada
diagramaticamente no texto básico deste capítulo – é bastante complexa
para quem inicia sua compreensão do projeto metafísico aristotélico e, na
realidade, até para quem já está com ele habituado. Contudo, será este
projeto que animará ao menos uma parte dos outros Livros da Metafísica,
assim como boa parte da história da metafísica posterior que toma esta obra
de Aristóteles como modelo.
Ademais, como apontado antes, a teoria da significação focal não se
aplica apenas à unificação dos conceitos fundamentais em torno do ser e da
substância, mas também se estende à segunda parte do Livro IV, uma vez
que, no capítulo 3, Aristóteles inicialmente fala dos princípios fundamentais
que também deveriam ser teorizados por esta mesma ciência, mas ao final
deste mesmo capítulo estabelece um único e mais básico princípio
fundamental, ao qual todos os que realizam demonstrações se referem
(anagousin; 1005b 32). A teoria da significação focal, portanto, é a chave
para Aristóteles fazer o “desenho” mais geral de sua ontologia (que inclui em
si a henologia), um desenho que se tornou um “desígnio” sempre novamente
perseguido – mesmo quando transformado e criticado – por boa parte da
história da metafísica posterior na medida em que a metafísica ou a
ontologia até nossos dias, quando concebida como possível, é considerada
como a teorização filosófica dos conceitos e princípios fundamentais.
290 Nazareno Eduardo de Almeida
3. O capítulo 4 como núcleo da segunda parte do Livro IV
3.1. A lógica subjacente nas demonstrações por refutação do PNC e os
limites da argumentação aristotélica
Juntamente com o capítulo 2, o capítulo 4 do Livro IV da Metafísica é
uma das passagens mais discutidas, influentes e controversas deste clássico
texto. Neste capítulo, Aristóteles apresenta um conjunto de argumentos para
defender aquilo que já foi exposto no capítulo 3, a saber: que o princípio da
não-contradição (‘PNC’) é o primeiro dos princípios primários e, por isso, o
primeiro de todos os princípios do ser enquanto ser. Como já apontamos no
texto básico, a intenção de Aristóteles no capítulo 4 é “provar” a verdade
ontológica do PNC. Todavia, segundo as características pertencentes a este
princípio expostas no capítulo 3, ele deveria ser aceito sem questionamento.
Não obstante isso, como também já vimos, no início do capítulo 4,
Aristóteles apresenta um adversário que não aceita esse caráter primário e
indemonstrável atribuído ao PNC. Na expressão do texto, trata-se de alguém
‘sem-educação’ (apaideusia). Todavia, apesar da menção oblíqua a Heráclito
no capítulo 3, no início do capítulo 4 este adversário não é identificado com
nenhum filósofo em particular. Como já vimos no texto básico deste
capítulo, a identificação deste adversário é problemática. Independentemente
disso, tal adversário (real ou ficcional) cumpre um papel indispensável na
argumentação aristotélica, uma vez que sem ele simplesmente não haveria
argumentação em defesa do PNC. No cenário lógico-argumentativo
instaurado pela oposição entre Aristóteles e o adversário, o problema central
consiste no seguinte. De um lado, Aristóteles alega que o PNC é o princípio
primário de todas as inferências válidas e, portanto, também de todas as
demonstrações científicas, uma vez que é o princípio mais elevado do ser
enquanto ser. De outro lado, porém, o adversário não está convencido deste
caráter primário do PNC e pede que também esse caráter seja demonstrado.
Assim, Aristóteles se encontra em um tipo de dilema diante do
pedido deste adversário. Uma parte do dilema é o seguinte: se atender ao
pedido, procurando demonstrar em sentido estrito que o PNC é o princípio
primário através de outro princípio, então o PNC não seria mais o princípio
primário, pois já seria provado por outro princípio superior a ele, o que não
apenas falsearia sua tese, mas também poderia levar a um regresso ao
infinito. A outra parte do dilema é a seguinte: se assume o PNC como
A origem da ontologia na metafísica grega 291
princípio primário sem nenhum outro acima dele, mas, mesmo assim,
procura apresentar uma demonstração deste princípio, tal demonstração só
poderia ser feita usando o próprio PNC, o que gera uma petição de princípio.
Aparentemente, não há como escapar de um dos lados do dilema, a não ser
que ambos os contendores o deixem como está e abdiquem de qualquer
argumentação, mantendo o impasse irresoluto. Isso é constrangedor porque
é o próprio Aristóteles quem aponta (no capítulo 3 do Livro I dos Segundo
Analíticos) que tanto o regresso ao infinito quanto a petição de princípio são
dois tipos de inferência que não podem ser considerados de modo algum
como demonstrações.
A controversa “solução” de Aristóteles para este dilema consiste em
elaborar um tipo novo de argumentação filosófica, que denomina de
“demonstrar por refutação” (apodeixai elenktichôs). Segundo Aristóteles,
demonstrar por refutação é diferente de demonstrar em sentido usual. Se ele
próprio quisesse demonstrar que o PNC é o primeiro de todos os princípios,
então haveria uma petição de princípio, como o próprio Aristóteles
reconhece. Contudo, se o culpado (responsável) pela petição de princípio for
o adversário, então haveria uma demonstração do PNC por meio da
refutação do próprio pedido do adversário como sendo algo impossível.
Segundo Aristóteles, ao demandar demonstração da verdade do PNC, esse
adversário se compromete, queira ou não, com a negação do PNC. Portanto,
a demonstração do PNC como princípio primário só pode ocorrer através
da refutação da negação deste mesmo princípio, negação que o adversário
inevitavelmente assume ao pedir para demonstrar a verdade do PNC.
Em suma, conforme esta interpretação da demonstração por
refutação, é refutando como impossível (absurda) a negação do adversário que
se torna possível demonstrar o PNC como princípio primário. Todavia, como
veremos depois, há duas formas de negar o PNC: uma negação que é forte e
uma negação que é fraca. Veremos que Aristóteles consegue demonstrar o
PNC ao refutar a negação do adversário apenas quando este adversário o
nega de modo forte. Mas não haveria demonstração por refutação no caso
de o adversário assumir a negação fraca do PNC. Independente disso, como
indicado há pouco, Aristóteles está consciente de que para realizar essa
refutação da negação do adversário, tal refutação já terá de usar o PNC, de
modo que, em última instância, o procedimento argumentativo construído
pelo Estagirita é uma petição de princípio, embora o culpado de tal petição
seja o próprio adversário. Parece-me que é justamente isso que Aristóteles
292 Nazareno Eduardo de Almeida
expressa ao dizer: “pois ao destruir o argumento, <o adversário> se submete
ao argumento.” (1006a 26).
Tudo isso nos indica que a proposta de demonstração por refutação do
PNC – como já apontou Lukasiewicz no já clássico texto citado no texto
básico – é um tipo especial de redução ao absurdo. Em outras palavras: os
argumentos de Aristóteles em defesa do PNC supõem hipoteticamente
como verdadeira a negação deste princípio e retiram as consequências
absurdas desta negação, concluindo assim, indiretamente, pela verdade do
PNC como princípio primário. Já dissemos antes, mas convém repeti-lo
aqui, para que uma redução ao absurdo possa se realizar são necessários o
princípio de dupla negação (resumidamente, de ‘não não-A’, segue-se ‘A’, e
vice-versa), o princípio do terceiro excluído (‘PTE’) e o princípio da não-
contradição. Assim, para demonstrar por refutação a verdade do PNC como
princípio primário, Aristóteles usa este mesmo princípio como parte da
redução ao absurdo da posição do adversário que nega este mesmo
princípio (ao pedir que ele seja demonstrado).
Este é o cenário inicial da argumentação que se apresenta na história
das interpretações recentes, desde a interpretação crítica feita por
Lukasiewicz. A partir desse cenário inicial, vários tipos de interpretações
deste conjunto de argumentos têm sido propostos. Seria impossível
resenharmos esses vários tipos de interpretação aqui. O que farei será
apresentar uma possível interpretação deste procedimento argumentativo,
interpretação que se vale de uma leitura tanto de passagens chave do próprio
capítulo 4 quanto de teses e estruturas conceituais presentes em outras obras
de Aristóteles. A hipótese central desta proposta de interpretação consiste
em ver (em parte contra Lukasiewicz) que Aristóteles não está tentando
provar que o PNC é o princípio primário de todos os princípios lógicos, mas
que ele está tentando provar que o adversário construído na argumentação
não pode negar a verdade ontológica primária do PNC. Expliquemos um
pouco melhor este ponto.
Na presente interpretação (já delineada no texto básico ao falarmos
da primeira parte do capítulo 3), entende-se que Aristóteles já assume sem
prova que o PNC é um princípio lógico e epistemológico primário para
demonstrá-lo (por meio da refutação do adversário) que ele também é um
princípio ontológico primário e inegável. Aos olhos de Aristóteles, é
justamente assim que se pode corroborar indiretamente que ele é um
princípio lógico e epistemológico primário. Em certo sentido, isso atenua a
A origem da ontologia na metafísica grega 293
petição de princípio cometida ao se usar a redução ao absurdo para provar a
impossibilidade (absurdo) da negação do PNC, uma vez que Aristóteles se
vale da verdade lógica e epistemológica do PNC para provar sua verdade
ontológica. Portanto, apesar dos limites que logo mais apontaremos na
argumentação aristotélica, na presente interpretação, uma parte da crítica
feita por Lukasiewicz não se justifica. Esta parte da crítica do filósofo
polonês pode ser assim resumida: Lukasiewicz alega que Aristóteles
assumiria a verdade lógica do PNC para provar a verdade lógica deste
mesmo princípio.70 Em contraste, a interpretação que será aqui apresentada
pode ser assim resumida: Aristóteles assume a verdade lógica do PNC para
provar a verdade ontológica deste mesmo princípio.
Ademais, outro aspecto da presente interpretação (desta vez ignorado
por Lukasiewicz e pelos que o seguem) consiste em mostrar que o PTE é
considerado na argumentação do capítulo 4 como equivalente ao PNC,
sendo ambos, por assim dizer, as duas faces de um mesmo princípio
ontológico primário. O fato de se usar um tipo de redução ao absurdo para
refutar o adversário já mostra isso, uma vez que também o PTE está suposto
em qualquer redução ao absurdo. Mas deixaremos a discussão deste aspecto
para o final desta seção, pois é somente ao expor a lógica subjacente à
argumentação aristotélica em defesa do PNC que ele poderá se tornar mais
claro.
Feitas essas observações iniciais, podemos nos dedicar ao tipo de
prova que é obtida nas demonstrações por refutação do PNC nos
argumentos por redução ao absurdo encontrados no capítulo 4. A fim de
entender melhor como Aristóteles procede em seus argumentos, retomemos
a formulação do PNC aristotélico que apenas apresentamos de modo geral
no texto básico do presente capítulo.
Em termos textuais, o PNC é expresso por Aristóteles através da
noção de impossibilidade. Usando a simbologia da lógica de predicados e da
lógica modal moderna (símbolos já explicados no texto básico), os/as
intérpretes o exprimem do seguinte modo:
70
De modo geral, esta crítica de Lukasiewicz depende de um tipo de “desvio” que consiste em
equiparar a formulação lógica e a formulação ontológica do PNC. No entanto, apontar os
problemas da interpretação do texto de Aristóteles por parte do lógico e filósofo polonês não é
possível neste texto. Um desses problemas já foi apontado no texto básico sobre o capítulo 3, no
qual se mostrou como este autor se equivoca na interpretação que faz sobre o primeiro
argumento em defesa do PNC apresentado no final do referido capítulo.
294 Nazareno Eduardo de Almeida
~ ◊ (∃ x) (∃ F) (F x ∧ ~ F x)
Essa fórmula simbólica pode ser “traduzida” em linguagem filosófica do
seguinte modo: “Não é possível que exista um indivíduo x e que exista uma
propriedade F, tal que x seja F e simultaneamente x não seja F.”
Como também já dito no texto básico, apesar de essa ser a tradução
lógico-simbólica mais próxima da letra do texto, ela ainda não exprime a
pretensão que Aristóteles efetivamente atribui a este princípio, a saber: a
pretensão de que ele seja um princípio universal e necessário. Para exprimir
essa pretensão, temos uma formulação logicamente equivalente – tanto para
os parâmetros da lógica moderna quanto para os próprios parâmetros da
lógica aristotélica – que é a seguinte:
□ (∀ x) (∀ F) ~ (F x ∧ ~ F x)
Esta formulação pode ser traduzida em linguagem filosófica do seguinte
modo: “É necessário que, para todo e qualquer indivíduo x, para toda e
qualquer propriedade F, não é o caso que x seja F e simultaneamente x não
seja F”.
Para provar este princípio, Aristóteles suporá que o adversário de sua
tese se compromete com o que certos/as intérpretes têm chamado de
negação forte do princípio da não-contradição.71 O conteúdo dessa negação,
supostamente, defenderia que necessariamente todas as coisas possuiriam
simultaneamente propriedades contrárias, ou ainda, para simplificar, que
todas as coisas seriam contraditórias. Essa tese pode ser representada em
termos lógico-simbólicos do seguinte modo:
□ (∀ x) (∀ F) (F x ∧ ~ F x)
No mesmo espírito da tradução em linguagem filosófica que fizemos
acima, essa forma simbólica pode ser lida assim: “Necessariamente, para
todo e qualquer indivíduo x e para toda e qualquer propriedade F, o
indivíduo x é F e simultaneamente não é F”.
Como já dissemos no texto básico, esta tese atribuída ao adversário
do PNC pode ser chamada, em sentido estrito, de ‘princípio da contradição’
A distinção entre uma negação forte e uma negação fraca do PNC foi inicialmente proposta em
71
DANCY, Russell. Sense and contradiction: a study in Aristotle. Dordrecht/Boston: Reidel, 1975.
A origem da ontologia na metafísica grega 295
(doravante também nomeado pela sigla ‘PC’). Assim, para provar a verdade
ontológica do princípio da não-contradição, Aristóteles procura mostrar a
falsidade ontológica do princípio da contradição, que seria defendido pelo
adversário do PNC. Mais do que isso, Aristóteles pretende mostrar a
impossibilidade ontológica do PC, de tal modo que isso garantiria a
necessidade ontológica do PNC. Relembrada essa oposição já antes indicada,
a partir dela podemos nos aprofundar na e discutir a lógica subjacente
presente no procedimento aristotélico de demonstração por refutação do
PNC.
Se tomamos o quadrado lógico aristotélico (que está na base de sua
lógica silogística e de sua teoria da argumentação dialética), percebemos que
a tese aristotélica (o PNC) e a tese do adversário (o PC) são enunciados
contrários. No quadrado lógico, os enunciados contrários são aqueles da
forma ‘Todo S é P’ e ‘Nenhum S é P’, chamados, respectivamente, de
enunciados universais afirmativos e enunciados universais negativos. Uma
maneira de simplificar o PC supostamente defendido pelo adversário e o
PNC defendido por Aristóteles se encontra em percebermos que o primeiro
é um enunciado universal afirmativo do tipo ‘Todas as coisas são
contraditórias’, enquanto o segundo é um enunciado universal negativo do
tipo ‘Nenhuma coisa é contraditória’. Também tomando o quadrado lógico
de Aristóteles, vemos que os enunciados contraditórios em relação aos
enunciados universais afirmativos são os enunciados do tipo ‘Nem todo S é
P’ ou ainda, em uma versão negativa ‘Algum S não é P’. Esse tipo de
enunciado é comumente chamado de enunciado particular negativo.
Se observarmos com atenção vários momentos do texto do capítulo
4, perceberemos que Aristóteles usa a expressão ‘nem tudo é assim e não-
assim’ (ou pas echein kai mê echein) ou alguma expressão a ela equivalente
como uma forma de abreviar suas conclusões contra a tese do adversário,
tese esta que implicitamente defende algo como ‘tudo é assim e não-assim’,
ou, como já vimos há pouco, que ‘tudo é contraditório’. Ora, essa expressão
aristotélica recorrente é uma reformulação do enunciado particular negativo
(‘Nem todo S é P’), que é justamente o tipo de enunciado contraditório em
relação ao tipo de enunciado na forma universal afirmativa (‘Todo S é P’).
No quadrado lógico, os enunciados contraditórios são aqueles em que,
necessariamente, se um deles é verdadeiro, então o outro é falso. Assim,
necessariamente, se o enunciado universal afirmativo é verdadeiro, então o
enunciado particular negativo é falso; e, inversamente, se o enunciado
296 Nazareno Eduardo de Almeida
particular negativo é verdadeiro, necessariamente o enunciado universal
afirmativo é falso.
Nesta perspectiva de interpretação, ao mostrar os absurdos derivados
do PC defendido pelo adversário (que ‘Todas as coisas são contraditórias’ ou
‘Tudo é assim e não-assim’), Aristóteles consegue provar a seguinte
conclusão: ‘nem tudo é assim e não-assim’; conclusão com a qual estaria
indiretamente “provando” que sua própria tese é verdadeira, ou seja, que não
apenas o PNC é verdadeiro, mas também que é universal e necessário. Em
outras palavras, nesta estrutura lógica de fundo, o primeiro passo de
Aristóteles consiste em demonstrar a falsidade necessária (= a
impossibilidade) da tese segundo a qual todas as coisas são contraditórias
através da contraditória desta tese, a saber: que nem todas as coisas são
contraditórias. A partir dessa demonstração (que equivale a uma refutação),
o segundo passo é a demonstração (indireta e por generalização) da verdade
necessária de que nada (nenhuma coisa) é contraditório, o que equivale à
pretensão universal e necessária do PNC. Esse procedimento, como veremos
no caso do primeiro argumento, inicia em um nível lógico-semântico para
concluir em um nível ontológico, ou seja, começa no nível da linguagem e
do pensamento para concluir no nível da realidade, de tal modo que ao
admitir a validade do PNC em sua fala e em seu pensamento, o adversário já
se compromete com a validade ontológica deste mesmo princípio.
No entanto, a exposição dessa estrutura lógica subjacente na
argumentação nos conduz ao que podemos considerar como os limites das
provas fornecidas por Aristóteles em uma parte de seus argumentos. Isto
ocorre porque, conforme o quadrado lógico aristotélico, embora enunciados
universais afirmativos e negativos contrários (na forma ‘Todo S é P’ e
‘Nenhum S é P’) não possam ser ambos verdadeiros simultaneamente, em
alguns casos eles podem ser simultaneamente falsos. Assim, dado que a versão
do PNC defendida por Aristóteles é necessária e universal, para que esta
versão possa ser incontestavelmente provada como verdadeira, não é
suficiente mostrar que o PC defendido pelo adversário é falso. Em suma, se
Aristóteles consegue efetivamente provar que nem tudo é contraditório, ele
não consegue provar que nada no mundo é contraditório, pois se houver
(mesmo que ainda não o saibamos) ao menos uma única coisa efetivamente
contraditória, então o PNC não vale ontologicamente de modo universal e
necessário.
A origem da ontologia na metafísica grega 297
Independentemente dos detalhes, o que importa notar aqui é que ao
provar que é impossível que tudo seja contraditório (a tese supostamente
defendida pelo adversário) Aristóteles é capaz de provar de modo muito
forte que uma boa parte das coisas do mundo são não-contraditórias, ou
seja, que nem tudo é contraditório. Esse limite, porém, contrasta com a
pretensão de universalidade e necessidade presente em sua versão do PNC,
segundo a qual nada no mundo é contraditório, ou ainda, em termos mais
aristotélicos, não há no mundo nenhuma coisa que possua simultaneamente
propriedades contrárias.
Se observamos com atenção o pano de fundo da argumentação
aristotélica, percebemos que se ele é capaz de refutar o PC como negação
forte do PNC, parece praticamente impossível que ele consiga refutar a
negação fraca do PNC, que é expressa pelo enunciado rigorosamente
contraditório (não contrário) à versão aristotélica do PNC, a saber:
◊ (∃ x) (∃ F) (F x ∧ ~ F x)
Fórmula esta que pode ser filosoficamente traduzida do seguinte
modo, conforme sua significação no presente contexto: “É possível que
exista ao menos um sujeito ontológico x, e que exista ao menos uma
propriedade F, tal que x possua a propriedade F e, simultaneamente, não
possua a propriedade F.”72
A rigor, para que Aristóteles pudesse refutar essa negação fraca do
PNC (que podemos chamar, literalmente, de princípio da contradição fraco
ou ‘PC fraco’), talvez fosse preciso assumir a posição da (hipotética) mente
de Deus, que é, por definição, capaz de observar não apenas todas as coisas
existentes, mas todas as coisas possíveis do mundo. Por isso (ao menos de
um ponto de vista humano), parece impossível refutar esta tese porque
Aristóteles supõe que não há como provar diretamente o PNC, e como não há
uma prova direta deste princípio, então não é possível refutar
completamente sua negação fraca. Muitas outras coisas poderiam ser
acrescentadas a estas limitações da argumentação aristotélica, mas este não é
o lugar para isto. O que importa ter em mente, nesta perspectiva de
interpretação, são justamente os limites do procedimento aristotélico de
72
Na lógica modal aristotélica (e também em muitas das atuais) vale que a forma contraditória de
‘não é possível p’ (equivalente a ‘é im-possível p’) se encontra em ‘é possível p’; onde ‘p’
representa uma proposição qualquer.
298 Nazareno Eduardo de Almeida
demonstração por refutação do PNC, especialmente em seu sentido
ontológico.
Para encerrarmos essa seção sobre a lógica subjacente na
argumentação aristotélica, é preciso ainda falarmos de algo já indicado antes
e que é pouco notado nas interpretações do capítulo 4: que a argumentação
filosófica de Aristóteles em defesa do PNC é também uma argumentação em
defesa princípio do terceiro excluído. Para a maioria dos/das intérpretes, essa
defesa se encontraria apenas nos capítulos 7-8 do Livro IV. Em contraponto
com esta visão, na presente interpretação, a defesa do sentido ontológico do
PNC nos capítulos 4-6 já é também uma defesa do sentido ontológico do PTE.
Isso se mostrará mais claramente em um dos argumentos do capítulo 4 que
será analisado logo mais. Isso pode parecer estranho quando cotejado com a
enunciação aristotélica, no capítulo 3, daquele que seria o princípio mais
elevado de todos, uma enunciação que corretamente identificamos com o
que chamamos atualmente de princípio da não-contradição.
Essa estranheza desaparece se compreendemos que, para Aristóteles,
o PTE é uma outra forma do PNC. Em termos metafóricos, o princípio
primeiro é único, mas possui uma dupla face. Isso explica também o porquê
de o Livro IV terminar retomando explicitamente o PTE nos capítulos 7 e 8.
Ao contrário do que pode parecer, esses dois capítulos finais não estão
acrescentando um outro princípio que seria derivado e secundário em
relação ao PNC. Trata-se tão-somente de tornar mais explícita essa outra
face do mesmo princípio primário. Na realidade, o PTE já está presente no
capítulo 4 como uma outra formulação do princípio primário. Não é o
momento para expor de modo detalhado essa correlação entre o PNC e o
PTE como duas formas do mesmo princípio. Bastará agora ver somente
alguns aspectos dessa correlação necessária, deixando o complemento dessa
exposição inicial para as análises que faremos abaixo da estrutura lógica de
três argumentos do capítulo 4, em especial na análise do quarto argumento.
Já na parte introdutória do capítulo 4, quando está apresentando o
procedimento de demonstração por refutação, Aristóteles nos diz: “o ponto
de partida em relação a todos <os argumentos> deste tipo não é pedir <para
o adversário> dizer que algo é ou não é (pois rapidamente este <adversário>
compreenderia que isso é uma petição de princípio)” (1006a 18-21; tradução
própria, grifos acrescentados). De modo geral, segundo esta citação, aquilo
que se deve provar é que, contra sua suposta negação, ao pensar e falar, o
adversário já aceita implicitamente a verdade ontológica do PNC. Mas, para
A origem da ontologia na metafísica grega 299
provar isso, é preciso não partir disso, pois tal seria uma petição de
princípio. Por isso, como já indicamos e como veremos em mais detalhe
depois, é preciso partir do nível da linguagem e do pensamento para chegar
a esta conclusão. Todavia, se prestamos atenção ao texto citado, ela não nos
apresenta uma formulação do PNC, mas, antes, uma versão ontológica do
PTE, algo que é marcado justamente pelo ‘ou’ que foi grifado em negrito.
Portanto, esse trecho – situado na passagem entre a introdução do capítulo e
o primeiro argumento – nos mostra que Aristóteles entende esses princípios
como equivalentes. Na realidade, de modo análogo ao que foi dito sobre os
conceitos de ser e unidade na discussão anterior do capítulo 2, no presente
contexto, podemos dizer que Aristóteles considera o PNC e o PTE como
princípios coextensivos, embora possuam sentidos distintos, ou seja, para tudo
quanto se aplica o primeiro, também se aplica o segundo, mesmo que ambos
possuam sentidos diferentes. Essa coextensividade é compreensível do
seguinte modo: assumindo a impossibilidade de que uma mesma coisa
simultaneamente seja e não seja, segue-se imediatamente que necessariamente
esta mesma coisa é ou não é; e vice-versa.
Do ponto de vista lógico, essa correlação pode ser compreendida se
tomamos em atenção um aspecto da fórmula simbólica do PNC que
apresentamos acima, a saber:
□ (∀ x) (∀ F) ~ (F x ∧ ~ F x)
Se passamos a negação que antecede o parêntese final (simbolizada
por ‘~’), seguindo uma das atualmente chamadas ‘leis de De Morgan’
(operadas na lógica de Aristóteles), então obtemos exatamente a versão
aristotélica do PTE, a saber:
□ (∀ x) (∀ F) ~ (F x ∨ ~ F x)
Fórmula simbólica que pode ser filosoficamente “traduzida” para o
contexto do Livro IV como dizendo: “Necessariamente, para todo e
qualquer sujeito ontológico x, e para toda e qualquer propriedade F, x possui
a propriedade F ou não possui a propriedade F.” Em relação às formulações
simbólicas anteriores, nesta introduzimos o símbolo ‘’, que representa o
operador de disjunção, aproximadamente correspondente a nossa palavra
‘ou’, quer em seu sentido mais forte (exclusivo), quer em seu sentido mais
300 Nazareno Eduardo de Almeida
fraco (inclusivo), no qual se aproxima de nosso uso da palavra ‘ou’ na
acepção de ‘e/ou’.73
Igualmente, a partir dessa mesma formulação, podemos obter a versão
aristotélica do PNC, embora não seja o caso de apresentar aqui essa
derivação. A partir disso, podemos compreender que na argumentação
aristotélica do capítulo 4 está em jogo, embora não de modo imediatamente
visível, a seguinte equivalência:
□ (PNC ↔ PTE)
Essa fórmula pode ser lida assim: “Necessariamente, o princípio da
não-contradição se, e somente se, o princípio do terceiro excluído”. Ou seja,
necessariamente, se assumimos como verdade o PNC, então temos de
assumir como verdade o PTE; e, inversamente, se assumimos como verdade
o PTE, então temos de assumir como verdade o PNC.
Essa correlação necessária também é compreensível por algo que já
falamos antes: que as demonstrações por refutação, realizadas por
Aristóteles, são tipos especiais de argumentos por redução ao absurdo. Ora,
para que qualquer redução ao absurdo possa se realizar são indispensáveis
três princípios lógicos: o princípio da dupla negação (grosso modo, de não
não-A, segue-se A; e vice-versa), assim como os princípios da não-
contradição e do terceiro excluído. Contudo, o que é mais importante notar
aqui é justamente que se o PNC é um princípio primário, e se a demonstração
por refutação é uma forma peculiar de redução ao absurdo, então o PTE não
pode ser um princípio superior ao PNC para ser usado no procedimento
aristotélico da demonstração por refutação. Deste modo, o PTE só pode ser
um princípio tão primário quanto o PNC. Isso evidencia que ambos são as
duas faces complementares e inseparáveis do princípio primário que é
defendido por Aristóteles.
Essa complementaridade e inseparabilidade será vista ao longo dos
três argumentos do capítulo 4 que analisaremos a seguir, mas é sobretudo no
último deles (o quarto na lista dos sete contidos neste capítulo) que esse fato
73
Sem entrar em maiores detalhes, no caso dessa fórmula, o operador de disjunção tem o sentido
do que se costuma chamar de disjunção exclusiva, na qual, necessariamente, uma e apenas uma
das partes separadas pela disjunção é verdade e a outra, necessariamente, falsa. Além desse
sentido do operador de disjunção, a lógica clássica admite um sentido mais fraco (próximo do
‘ou’ com a acepção de ‘e/ou’), no qual o conjunto conectado e regido pelo operador de disjunção
pode ser verdadeiro no caso de as partes separadas por ele serem ambas verdadeiras, embora o
conjunto seja falso no caso de ambas as partes serem falsas.
A origem da ontologia na metafísica grega 301
se torna mais explícito. Essa interpretação não apenas torna mais claro o
papel dos capítulos 7 e 8 (sobre o qual não tratamos neste texto) no todo do
Livro IV, mas também torna este texto mais coerente com outros momentos
da obra de Aristóteles, onde ambos os princípios aparecem em correlação
como princípios de todas as demonstrações e inferências, tal como
explicitamente é dito nos capítulos 10-11 do Livro I dos Segundos Analíticos.
Mas neste mesmo sentido, se uma das inovações que encontramos no
Livro IV em relação a outras obras de Aristóteles consiste em que nele se
defende um sentido ontológico fundamental para o PNC, à luz do que
acabamos de expor, essa inovação também se encontra na defesa de um
sentido ontológico fundamental para o PTE, algo que se tornará mais claro
nas páginas que seguem.
De modo geral, esta parece ser a lógica subjacente que serve como
um pano de fundo para as demonstrações por refutação, presentes em seis
dos sete argumentos expostos por Aristóteles. Digo isto porque esta lógica
subjacente parece não estar presente no sétimo argumento, que apela para a
noção de “graus” de falsidade. Dentre os argumentos que parecem exibir
essa lógica subjacente, tomaremos em atenção três deles, porque se mostram
como os mais bem elaborados e os mais importantes para o propósito geral
de mostrar que a ciência do ser enquanto ser é não somente uma ciência dos
conceitos fundamentais, mas também dos princípios fundamentais.
Por fim, a exposição da lógica subjacente na argumentação
aristotélica presente no capítulo 4 nos mostra que essa argumentação possui
mais complexidades e sutilezas do que muitas vezes supõem as
interpretações tradicionais. A explicação dos três argumentos que faremos a
seguir procura tornar explícita uma parte dessas complexidades e sutilezas,
servindo assim, ao menos, para nos exercitar e melhorar nossa capacidade
de argumentação filosófica.
3.2. Uma análise de três argumentos do capítulo 4
Feita essa introdução geral à estrutura lógica subjacente na
argumentação aristotélica desenvolvida ao longo do capítulo 4, podemos
passar à prometida análise de três dos sete argumentos nele encontrados. Na
ordem dos argumentos já apresentada no texto básico deste capítulo, esses
argumentos são: o primeiro, o segundo e o quarto. Cada um desses
302 Nazareno Eduardo de Almeida
argumentos exibe uma demonstração por refutação do princípio primário e,
como já dissemos há pouco, cada um deles “encarna” de diferentes modos a
forma geral da redução ao absurdo.
Mesmo assim, destes três argumentos que tomaremos em atenção,
apenas o primeiro exibe em sentido completo o método da demonstração
por refutação, na qual se começa pedido ao adversário do PNC que
signifique algo com sentido (algo uno) para si e para outrem. No segundo (a
partir da distinção entre substância e acidente) e no quarto argumento (a
partir da defesa do PTE), Aristóteles já começa assumindo a tese atribuída
ao adversário (o PC forte) para mostrar que ela conduz a absurdos e, por
isso, esse mesmo adversário já está comprometido com a validade (ao
menos parcial) do PNC, ou seja, que ele não acredita realmente que tudo é
contraditório. Nesta apresentação da estrutura destes três argumentos,
deixaremos de lado se tal adversário se identifica com algum filósofo
particular ou se é apenas uma ficção conceitual criada para os fins da
argumentação filosófica elaborada por Aristóteles no capítulo 4.
3.2.1. O primeiro argumento (1006a 28-1007a 20): argumento da
unidade da significação
(A) Divisão textual: Textualmente, o primeiro argumento é o maior dentre
os sete que compõem o capítulo 4. Também em termos textuais, ele pode ser
dividido em cinco partes74:
(I) (1006a 28-31) A enunciação da premissa geral e da conclusão a que se
pretende chegar. A premissa geral é a seguinte: qualquer “nome” ou termo
denotativo (onoma) significa o ser ou não ser de algo. A partir do que está
contido nessa ou do que deriva dessa premissa, o argumento pretende
chegar à seguinte conclusão: nem tudo pode simultaneamente ser e não
ser.
(II) (1006a 31-1006b 13) Aristóteles apresenta a necessária diferenciação
entre significar algo uno (sêmainein hen) e significar de algo uno
74
Giovanni Reale o divide em quatro partes. Cf. REALE, Giovanni. Metafísica de Aristóteles, vol.
2; trad. Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2000, p. 147-153. Sigo aqui a divisão textual
proposta por Christopher Kirwan. Cf. KIRWAN, Christopher. Aristotle Metaphysics Books
Gamma, Delta and Epsilon. Oxford: Clarendon, 1993, p. 09-11.
A origem da ontologia na metafísica grega 303
(sêmainein kath’hen). Certos termos denotativos (“nomes”) podem
significar algo uno e também de algo uno; enquanto outros termos só
podem significar de algo uno.
(III) (1006b 13-28) Feita essa diferenciação dos dois modos de significação
dos termos denotativos, ela é aplicada ao exemplo do termo denotativo
‘humano’ para diferenciar sua significação em relação a outros termos
contidos na extensão do termo denotativo ‘não-humano’.
(IV) (1006b 28-34) Retira-se a consequência desta diferenciação no caso do
termo denotativo ‘humano’ em relação ao termo ‘não-humano’ do
seguinte modo: se o termo ‘humano’ significa o mesmo que ‘animal
bípede’, então é impossível que determinada coisa significada pelo termo
‘humano’ não seja um animal bípede.
(V) (1006b 34-1007a 20) Extensão da distinção ao caso do termo ‘não ser
humano’ e conclusão geral do argumento. Inicialmente, Aristóteles indica
que o argumento anterior aplicado à extensão dos termos compreendidos
por termos indefinidos (‘ser não-X’) se aplica também à extensão
compreendida pelas negações (‘não ser X’). Depois, Aristóteles expõe de
modo mais claro que a demanda ao adversário do PNC para significar
algo uno para si e para outrem vem na forma da pergunta dialética ‘é
verdade ou não que tal coisa é denominada pelo nome (termo
denotativo) X?’. Por fim, Aristóteles explica que o adversário não pode
acrescentar que determinada coisa é também significada por algum
termo distinto ou contrário ao nome X, pois neste caso não responde
aquilo que lhe é perguntado e não dialoga com quem lhe faz a pergunta.
(B) A estrutura do argumento: Embora a divisão textual seja importante
para entendermos certos aspectos do argumento, ela não é suficiente para
entendermos a sua estrutura lógica, pois esta estrutura não segue a sequência
textual. Já apresentamos antes esta estrutura, mas é necessário repeti-la aqui.
Ela é a seguinte:
(a) – Pede-se ao adversário do PNC que signifique algo uno para si e para
outrem (especialmente para quem o questiona);
304 Nazareno Eduardo de Almeida
(b) – Este pedido vem na forma de uma pergunta dialética do tipo:
“É verdadeiro ou é falso que isto (provavelmente o próprio adversário) é
humano?”;
(c) – O adversário responde (admite/significa) que isto é humano;
(d) – O adversário admite que o termo denotativo ‘humano’ significa o
mesmo que ‘animal bípede’;
(e) – Se, necessariamente, ‘humano’ significa o mesmo que ‘animal bípede’,
então, necessariamente, se isto (determinada coisa ou pessoa) é humano,
então isto é um animal bípede;
(f) – Então, se, necessariamente, isto é humano e ‘humano’ é igual a ‘animal
bípede’, então não é possível que isto não seja animal bípede e, portanto,
não é possível afirmar com verdade que isto é humano e não é humano ao
mesmo tempo; pois pela definição de significar algo uno: ou isto é
humano ou isto não é humano;
Consequência geral das premissas: logo, é impossível (necessariamente
falso) que tudo seja assim e não-assim ao mesmo tempo, tal como
supostamente defende o adversário do PNC; o que também significa que
este adversário já pressupõe a verdade do PNC que pretendia negar ao
significar algo uno para si e para outrem.
Corolário: indiretamente o PNC está provado contra a pessoa que o nega de
modo forte, desde que ela aceite significar algo uno para si mesma e para
aquela outra pessoa com a qual está dialogando.
(C) Análise e explicação dos passos do argumento
(1) A premissa geral e a conclusão almejada
A premissa geral e a conclusão a que o argumento pretende chegar
são expressas de saída do seguinte modo:
“Primeiramente, é evidente que isto é verdadeiro em si mesmo: que o
termo denotativo (onoma) [30] significa o ser ou o não ser de algo
determinado (todi), de modo que nem tudo seria assim e não assim.”
(1006a 28-31; tradução própria, grifos acrescentados)
A origem da ontologia na metafísica grega 305
Tomemos inicialmente em atenção a premissa geral do argumento.
Ela é caracterizada como verdadeira por si mesma. No entanto, essa verdade
considerada evidente será objeto de explicações ulteriores, em especial
através da distinção entre significar algo uno (sêmainein hen) e significar de
algo uno (sêmainein kath’hen), sobre a qual falaremos logo mais. Neste
momento cabe esclarecer o sentido da noção de termo denotativo. Em
vários casos, a palavra grega ‘onoma’ é geralmente traduzida pelo termo
português ‘nome’. No entanto, em Aristóteles, esta palavra não possui apenas
este sentido usual que damos à palavra ‘nome’, a saber: que se trataria de um
nome próprio. Antes, o Estagirita dá à palavra grega ‘onoma’ o sentido geral
de qualquer expressão que tenha ou possa ter uma função denotativa de um
sujeito lógico qualquer em enunciados declarativos na forma afirmativa (‘S é
P’) e negativa (‘S não é P’), sendo o termo denotativo aquilo que pode
preencher o símbolo ‘S’. No jargão usual da gramática recente, a noção de
termo denotativo não apenas inclui substantivos gerais e abstratos (como é o
caso do exemplo ‘humano’ que é usado no argumento), mas também, por
mais que isso soe estranho para nós, inclui “nomes negativos”, tal como se
torna visível pelo uso do termo ‘não-humano’ ainda no primeiro argumento.
É por isso que a premissa nos diz que um termo denotativo (onoma) não
apenas pode significar o ser de alguma coisa, mas também o seu não-ser.
Essa é uma concepção do “nomear” que já se encontra implícita em
Parmênides e Platão, mas que só se torna explícita no tratado Sobre a
interpretação de Aristóteles, particularmente nos capítulos 2 e 10 desta obra.
Mas o aspecto mais importante contido nessa premissa geral consiste
tanto em sua similaridade quanto em sua diferença em relação ao que é dito
poucas linhas antes: que não se deve começar a demonstração por refutação
pedindo para o adversário “que diga que algo é ou não é (pois rapidamente
um tal <adversário> asseveraria (hypolaboi) ser isto uma petição de
princípio [sc. pedir para aceitar o que se deve demonstrar])” (1006a 19-21;
tradução própria e grifo acrescentado). Note-se que aquilo que se deve
demonstrar por refutação como algo que o adversário aceita, malgrado sua
posição contra o princípio primário, é justamente que alguma coisa é ou não
é. Como já dito acima, esta é uma formulação do princípio na forma do PTE
e não propriamente do PNC.
Mas, para além disso, o que se pretende demonstrar é a verdade
ontológica do princípio primário. Para tanto, Aristóteles nos diz que a
argumentação deve começar pedindo que o adversário signifique algo uno e
306 Nazareno Eduardo de Almeida
esse início se apoia na premissa segundo a qual os termos denotativos
significam o ser ou não ser de algo determinado ao qual se aplicam. Nesta
premissa já se encontra uma versão lógico-semântica do PTE (como forma do
princípio primário equivalente ao PNC). Dito de modo mais simples, a
significação dos termos denotativos já respeita o PTE. Com isso, partindo-se
do nível lógico-semântico necessário para o adversário falar com outras
pessoas e consigo mesmo, procura-se chegar a concluir a verdade ontológica
do princípio primário. Ou seja, partindo-se da verdade lógico-semântica do
princípio primário na forma do PTE “embutida” na aceitação da premissa
geral sobre o modo de significação dos termos denotativos, chega-se à
verdade ontológica deste mesmo princípio na forma do PNC.
Essa conclusão é enunciada logo depois da premissa geral da seguinte
maneira: “de modo que nem tudo seria assim e não assim” (1006a 30-31).
Como dissemos na parte sobre a lógica subjacente à argumentação, essa
conclusão exprime a proposição contraditória em relação à tese que é
atribuída ao adversário, aquilo que chamamos de negação forte do PNC e
que se exprime no que, literalmente, seria um tipo de princípio da
contradição forte, princípio que pode ser expresso simplificadamente como
‘tudo é contraditório’, ou, no jargão aristotélico usado no capítulo 4, ‘tudo é
assim e não assim simultaneamente.’ Todavia, se sustentasse realmente este
princípio (como Aristóteles supõe que o faz), não conseguiria responder a
uma pergunta simples como aquela que é tomada como o ponto de partida
do primeiro argumento ora em análise: “É verdadeiro ou é falso que isto
(provavelmente o próprio adversário) é humano?”. Diante do que acabamos
de esclarecer sobre os termos denotativos, temos como entender melhor essa
pergunta como supondo algo como ‘é verdade ou não que isto
(provavelmente o próprio adversário no diálogo) é denominado ‘humano’?
Os passos que seguem essa pergunta serão melhor explicitados logo mais.
Usando um tanto livremente uma terminologia proveniente do
filósofo estadunidense Willard van Orman Quine, o que importa ressaltar
neste momento é que – na enunciação de sua premissa geral e da conclusão
pretendida – o argumento procura mostrar que se o adversário admitir a
verdade lógico-semântica do princípio primário como já presente nos
termos denotativos que usa em seu próprio discurso, então é possível
mostrar seu compromisso com a verdade ontológica deste mesmo princípio
A origem da ontologia na metafísica grega 307
que ele pretendia negar.75 Deste modo, esse adversário entra em contradição
com sua própria tese (segundo a qual tudo é assim e não assim
simultaneamente), porque, ao final do argumento, é forçado a admitir que
nem tudo é assim e não assim simultaneamente. Essa conclusão é obtida ao
constranger este adversário a admitir que ao denominar certa coisa pelo
termo denotativo ‘humano’ não pode simultaneamente denominá-la pelo
termo denotativo oposto expresso em ‘não-humano’.
Embora haja diferenças entre o primeiro e os demais argumentos do
capítulo 4, todos eles exibem uma mesma estrutura geral, que é a seguinte:
partir de premissas lógicas e epistemológicas admitidas pelo adversário para
obrigá-lo a admitir que – contra sua intenção de negar a verdade ontológica
do PNC e do PTE – ao falar, ao pensar e ao agir ele já se compromete com a
verdade ontológica do princípio primário. Portanto, de certo modo, a
enunciação da premissa geral e da conclusão desejada no primeiro
argumento já nos aponta para o procedimento que, de diferentes modos,
será também usado nos subsequentes argumentos.
(2) A distinção entre significar algo uno (sêmainein hen) e significar de
algo uno (sêmainein kath’hen)
No entanto, para garantir a passagem da premissa geral para a
conclusão desejada, Aristóteles precisa garantir que o adversário aceite
certas premissas adicionais. Essas premissas adicionais se baseiam na
distinção entre significar algo uno (sêmanein hen) e significar de algo uno
(sêmanein kath’hen). Neste ponto, há uma controvérsia interpretativa que só
poderemos mencionar rapidamente aqui para marcar em que direção
faremos a leitura dessa distinção.
De modo geral, são dois grupos de intérpretes nessa controvérsia. O
primeiro grupo (que segue Lukasiewicz) entende que essa distinção já indica
que Aristóteles usaria nas premissas aquilo que ele pretende demonstrar, de
tal modo que o argumento acabaria por recair em uma petição de princípio
porque já pressuporia nas premissas algo que deveria estar na conclusão. Do
ponto de vista que estamos assumindo aqui, para este grupo não haveria
diferença ou diferença relevante entre esta distinção no primeiro argumento
75
Trata-se aqui da noção de compromisso ontológico (ontological commitment), a qual pode ser
expressa do seguinte modo: os compromissos ontológicos de uma teoria são aquelas entidades
que essa teoria tem de assumir como existentes para que as teses e enunciados que a compõem
possam ser verdadeiros.
308 Nazareno Eduardo de Almeida
e o todo do segundo argumento, sobre o qual falaremos logo mais e no qual
Aristóteles menciona explicitamente as noções de substância/essência e
acidente para defender o PNC.76
O segundo grupo (com o qual me alinho de modo peculiar), entende
que a distinção entre significar algo uno e significar de algo uno não comete
esta petição de princípio. Isto é assim porque a distinção entre significar algo
uno e significar de algo uno se move exclusivamente no nível da linguagem
para chegar à uma conclusão que seria de caráter ontológico.77 Assumindo
aqui a perspectiva desse segundo grupo (ainda que com uma posição
peculiar dentro dele), podemos dizer que a distinção entre significar algo uno
e significar de algo uno estabelece a distinção indispensável entre o uso
primariamente denotativo e o uso secundariamente predicativo de um termo
denotativo em relação a alguma coisa. Nesta perspectiva de interpretação, a
noção de significar algo uno equivale a dizer que qualquer termo denotativo
possui uma unidade de sentido (ou um número finito de sentidos), unidade
semântica que supõe a unidade ontológica de ser da coisa que é denotada.
Por contraste, a noção expressa por significar de algo uno equivale ao
sentido que um termo denotativo possui ao ser predicado de alguma coisa,
independentemente de qual seria a unidade dessa coisa.
Tomando a estrutura do argumento que antes expusemos, quando se
pergunta ao adversário se é verdade ou não que determinada coisa é
denominada (e não apenas predicada) pelo termo ‘humano’, e se ele admite
que isso é verdade, então ele está se comprometendo com a necessidade de
que o significado do termo ‘humano’ (qualquer que seja esse significado)
denomina (e não apenas predica) este algo. Assim, é necessário que este algo
denominado pelo termo ‘humano’ signifique o mesmo que assumimos como
o enunciado explicativo (logos) deste termo, ou seja, se o adversário admite
que é verdade que algo é denominado pelo termo ‘humano’, então não é
possível que o enunciado explicativo que assumimos como a unidade de
76
LUKASIEWICZ, Jan. “Sobre a lei de contradição em Aristóteles”. trad. Raphael Zillig. In
ZINGANO, Marco (org.) Sobre a Metafísica de Aristóteles: textos selecionados. São Paulo:
Odysseus, 2005, p. 11-13. ANSCOMBE, Gertrude Elizabeth Margaret; GEACH, Peter. Three
philosophers: Aristotle, Aquinas and Frege. Ithaca/Nova Iorque: Cornell UP, 1961, p. 39 ss.
Embora com diferenças, vai na mesma direção o artigo de ANGIONI, Lucas. Princípio da não-
contradição e semântica da predicação em Aristóteles. Analytica, v. 4, n. 2, 1999, p. 121-158.
77
Dois textos que vão nesta direção (embora com detalhes distintos) são: ZINGANO, Marco.
Notas sobre o princípio de não-contradição em Aristóteles. Cadernos de História da Filosofia e
da Ciência, vol. 13, n. 1, 2003, p. 07-32. ZILLIG, Raphael. Significação e não-contradição: o
papel da noção de significação na defesa do princípio de não-contradição em Metafísica Gama
4. Analytica, vol. 11, n. 1, 2007, p. 108-126.
A origem da ontologia na metafísica grega 309
sentido do termo ‘humano’ simultaneamente se aplique e não se aplique à
coisa que assim denominamos, de modo que, ainda no nível da significação,
não é possível supor que a mesma coisa que denominamos pelo termo
‘humano’ simultaneamente seja denominada pelo termo ‘não-humano’.
Neste contexto, Aristóteles responde a uma objeção à noção de
significar algo uno e, com ela, mostra a necessidade de diferenciar essa
noção da noção de significar de algo uno. Esta objeção é a seguinte. O termo
denotativo (onoma) ‘humano’, por exemplo, possui múltiplos enunciados
explicativos (logos) além do enunciado explicativo (logos) ‘animal bípede’
que é assumido no argumento. Com efeito, além do enunciado explicativo
‘animal bípede’ usado no texto, o próprio Aristóteles apresenta em outras de
suas obras enunciados explicativos para o termo ‘humano’. Alguns exemplos
são os seguintes: ‘animal racional’, ‘animal político’ e ‘animal que possui
intelecto (nous)’. Todos esses enunciados explicativos podem ser tomados
como equivalentes ao termo denotativo ‘humano’. Conforme Aristóteles, a
existência dessa multiplicidade de enunciados explicativos para um mesmo
termo denotativo em nada afeta seu argumento, desde que eles sejam em
número finito, pois se fossem em número infinito, acabariam por destruir a
própria possibilidade de os termos denotativos terem alguma unidade de
sentido e, por isso, significarem algo distinto de outros termos denotativos.
Como nos diz no contexto do argumento, se assim fosse, então todas as
coisas seriam uma só coisa, de forma que ‘humano’, ‘branco’ e ‘barco’ (etc.),
no fundo, significariam a mesma coisa, o que parece absurdo em relação ao
nosso uso comum da linguagem, no qual supomos significados (enunciados
explicativos) distintos para estes termos denotativos.
No entanto, Aristóteles não se limita a defender o conceito de
significar algo uno através da necessária unidade semântica para que os
termos denotativos possuam algum significado determinado, mesmo
quando são polissêmicos por possuírem vários enunciados explicativos. O
Estagirita apresenta ainda um argumento por redução ao absurdo no nível
do pensamento (diríamos hoje, no campo da filosofia da mente) para
constranger o adversário a admitir tal distinção. O argumento é o seguinte:
“Contudo, se não se estabelecesse <um número finito de enunciados
explicativos>, mas se se dissesse <que ‘humano’> significa infinitas
<coisas>, então é claro que não haveria nenhum enunciado explicativo
310 Nazareno Eduardo de Almeida
<para ‘humano’>; pois o não significar algo uno é significar coisa
nenhuma, uma vez que <se> os termos denotativos não são
significantes (mê sêmainontôn), destrói-se <a possibilidade de>
dialogar com os outros e, na verdade, consigo mesmo, pois não é
possível pensar (noein) coisa nenhuma se não se pensa algo uno
(noounta hen), mas se é possível <pensar algo uno>, então se
estabeleceria um termo denotativo único para a coisa <que é pensada>
(toutô(i) tô(i) pragmati hen). Assim sendo, conforme foi dito no início,
o termo denotativo (onoma) significa algo (sêmainon ti) e significa algo
uno (sêmainon hen): de modo que não é possível que o ser para
humano [sc. neste caso, o enunciado explicativo ‘animal bípede’]
signifique exatamente aquilo que <significa> o não ser para humano, se
o <termo> ‘humano’ não apenas significa de algo uno, mas também
<significa> algo uno.” (1006b 5-15; tradução própria; grifos
acrescentados)
Note-se que o argumento indica que a noção de significar algo uno
repousa na necessidade de se pensar algo uno. Sem isso, não haveria diálogo
possível, quer com outras pessoas, quer conosco mesmos. Mas admitindo-se
que é possível (e necessário) pensar algo uno, então deve haver um termo
denotativo que significa a unidade da coisa que é pensada. Assim, se e
quando pensamos algo com o termo denotativo ‘humano’, pensamos em
algo uno que possui, neste ato de pensamento, um enunciado explicativo
que lhe equivale e que difere de outros enunciados explicativos equivalentes
(desde que em número finito). Em outras palavras, quando pensamos algo
denominado pelo termo ‘humano’, neste ato de pensamento, assumimos
algum enunciado explicativo como representando o significado uno deste
termo. Assim, no exemplo usado no contexto, quando pensamos algo
denotado pelo termo ‘humano’, podemos supor seu significado uno através
do enunciado explicativo ‘animal bípede’, o qual, neste caso, equivale ao
neste pensamento ao ‘ser para humano’. É essa unidade de significação do
termo ‘humano’ que, segundo a citação, permite o diálogo entre nós e, na
realidade, o próprio diálogo interior que mantemos conosco mesmos. Por
fim, conforme o argumento citado, isso é assim porque o termo ‘humano’
não apenas significa de algo uno (não apenas é predicado de algo), mas
porque significa algo uno, ou seja, porque já possui um significado antes
A origem da ontologia na metafísica grega 311
mesmo de ser predicado de algo, sendo tal significado suposto por nós como
o ser para a coisa que é significada pelo termo denotativo ‘humano’.
Por conseguinte, Aristóteles ainda não está apelando nas premissas
do argumento para uma essência que estaria suposta na noção de significar
algo uno (como o fará no segundo argumento), mas está apenas mostrando
que – ao usarmos (e pensarmos) qualquer termo denotativo – já
pressupomos um determinado sentido (ou número finito de sentidos) como
significando o ser para a coisa que é denotada por este termo, antes mesmo
de predicarmos este termo da unidade de alguma coisa particular.
(3) Aplicação da distinção entre significar algo uno e significar de algo
uno ao caso do termo denotativo ‘humano’ e a conclusão do argumento
Uma vez assegurada a verdade da premissa geral – que qualquer
termo denotativo significa o ser ou não ser do que é denotado – por meio da
distinção entre significar algo uno e significar de algo uno, Aristóteles
apresenta o núcleo do argumento. Como indicado há pouco, o adversário
concorda ser verdade que ele próprio (o conteúdo do pronome
demonstrativo ‘isto’ presente na pergunta inicial) é denominado pelo termo
denotativo (onoma) ‘humano’. Em seguida, ele concorda que este termo
denotativo equivale ao enunciado explicativo (logos) ‘animal bípede’ tomado
como o sentido do ‘ser para humano’ (to antrôpô(i) einai), mesmo que haja
outros enunciados explicativos que podem ser tomados como equivalentes
ao ser para humano.
A partir dessa admissão, Aristóteles apresenta o centro gravitacional
do argumento, centro que esquematizamos antes pelos passos (e) e (f), os
quais podemos transcrever aqui, com algumas ênfases contextuais:
(e) – Se, necessariamente, ‘humano’ significa o mesmo que ‘animal bípede’,
então, necessariamente, se isto é humano, então isto é um animal bípede;
(f) – Então, necessariamente, se isto é humano (e ‘humano’ é igual a ‘animal
bípede’), então não é possível que isto não seja animal bípede e, portanto,
não é possível afirmar com verdade que isto é humano e não é humano ao
mesmo tempo, pois pela definição de significar algo uno: ou isto é
humano ou isto não é humano.
312 Nazareno Eduardo de Almeida
Notemos, inicialmente, que o argumento passa do nível lógico-
semântico geral da significação equivalente entre ‘humano’ e ‘animal bípede’
para a aplicação desta equivalência ao nível ontológico específico de algo que
se admite como sendo verdade denotar (significar de modo uno) como
humano, muito provavelmente a própria pessoa do adversário. Essa
passagem pode ser expressa nos termos da lógica moderna
aproximadamente do seguinte modo (simbolizando ‘humano’ por ‘H’ e
‘animal bípede’ por ‘B’):
□ (∀ x) (∃ y) (H x ↔ B x) → (H y → B y)
Esta formulação que pode ser “traduzida” filosoficamente do seguinte modo:
Necessariamente, para todo x, existe ao menos um y, tal que se (x é humano
se, e somente se, x é animal bípede), então (se y é humano, então y é animal
bípede).78
No trecho em exame, Aristóteles está se valendo da definição de
necessidade que estabelece em sua lógica de modalidades e que descreve no
capítulo 12 do tratado Sobre a interpretação e opera em outras de suas obras.
Esta definição é a seguinte: ‘é necessário que algo seja o caso se, e somente
se, não é possível que algo não seja o caso’. Em símbolos lógicos atuais:
□p↔~◊~p
Por conseguinte, embora a formulação mais geral do PNC não seja
repetida aqui (pois nesta formulação geral ela deve valer para todo e
qualquer predicado possível), o argumento se aplica não apenas à pessoa do
adversário, mas também e sobretudo se aplica, necessariamente, a todo e
qualquer ser humano. Em outras palavras, mesmo não aparecendo no
sentido máximo de sua universalidade, o PNC é aqui aplicável com
necessidade lógica e, por isso, ontológica a todas as coisas que são denotadas
pelo termo ‘humano’, desde que o ser para humano signifique o mesmo que é
expresso por algum de seus enunciados explicativos; neste caso, ao
enunciado explicativo ‘animal bípede’. Portanto, não é possível (= é
impossível) que qualquer uma das coisas denotadas com verdade pelo termo
78
Esta formulação contém implícita em si uma versão (em lógica de segunda ordem) do que, a
partir de Leibniz, veio a ser chamado de princípio da identidade dos indiscerníveis, um princípio
já formulado por Aristóteles nos primeiros capítulos do Livro VII dos Tópicos. Deixaremos de
lado este aspecto para abreviar nossa exposição do argumento. Para mais detalhes sobre o uso
desse princípio (considerado uma formulação próxima do princípio de identidade), veja-se DE
ALMEIDA, Nazareno E. Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles.
Princípios, vol. 15, n. 23, 2008, p. 5-63.
A origem da ontologia na metafísica grega 313
‘humano’ simultaneamente seja e não seja um animal bípede; pois se assim
fosse, então o ser para o que é denominado pelo termo ‘humano’ significaria o
mesmo que o ser para o que pode ser denominado pelo termo ‘não-humano’.
Isso que acabamos de dizer se encontra na consequência geral e no
corolário que antes esquematizamos e que convém citar novamente aqui
para o bem da clareza:
Consequência geral das premissas: logo, é impossível (necessariamente
falso) que tudo seja assim e não-assim ao mesmo tempo, tal como
supostamente defende o adversário do PNC; o que também significa que
este adversário já pressupõe a verdade do PNC que pretendia negar.
Corolário: indiretamente o PNC está provado contra a pessoa que o nega de
modo forte, desde que ela aceite significar algo uno para si mesma e para
aquela outra pessoa com a qual está dialogando.
Em relação à consequência geral, ela nos diz que o adversário – que
supostamente defende que tudo é contraditório, ou, no jargão aristotélico,
que tudo é assim e não-assim – já se compromete com a verdade não apenas
lógica, mas também ontológica do PNC que pretendia negar. Isso também
equivale a dizer que o adversário, ao usar termos denotativos que significam
o mesmo que algum enunciado explicativo, já assumiu que há coisas que são
verdadeiras sem demonstração e, na realidade, que o PNC (e o PTE que o
acompanha) é um princípio já assumido sem demonstração para podermos
usar a linguagem com sentido em qualquer diálogo, quer seja com outrem,
quer seja conosco mesmos/as.
No que diz respeito ao corolário, convém ressaltar que esta “prova” do
PNC é apenas indireta e feita por meio de um exemplo particular, mesmo
que este exemplo seja aplicado à totalidade dos seres humanos.
Implicitamente, o argumento tem um certo sentido indutivo que pode ser
expresso do seguinte modo: aquilo que vale para o termo denotativo
‘humano’ vale também para todos os outros termos denotativos, de forma que
se fôssemos capazes de aplicar o mesmo argumento para todos estes termos,
chegaríamos a ter de aceitar a universalidade e necessidade com que o PNC
é enunciado por Aristóteles. Contudo, isto é um tipo de argumento indutivo
por enumeração ou generalização que ainda não é capaz de excluir a
possibilidade da existência de termos denotativos para os quais este
314 Nazareno Eduardo de Almeida
argumento se mostraria falho. Assim, a prova apresentada por Aristóteles só
é capaz de dizer que é impossível que todas as coisas sejam contraditórias,
mas isto é apenas uma prova indireta do PNC, uma vez que se mostrou que
ele se aplica a uma quantidade muito grande de termos denotativos, mas
ainda não é capaz de provar que o mesmo vale para todos eles.
Como adendo final à exposição mais detalhada das partes do
primeiro argumento, cumpre tomarmos em atenção uma última objeção do
adversário que é respondida por Aristóteles ao final do texto onde
encontramos este argumento. A exposição desta resposta não é apenas
relevante por ser uma reiteração da necessária distinção entre significar algo
uno e significar de algo uno, mas também porque se constitui em um tipo de
introdução geral ao segundo argumento que analisaremos em seguida.
Conforme Aristóteles, mesmo tendo admitido os passos do argumento, o
adversário poderia dizer que a mesma coisa que é denominada com verdade
pelo termo denotativo ‘humano’ é também denominada com verdade pelos
termos ‘branco’ e ‘grande’.
Implicitamente, isso significa que o adversário quer mostrar que a
mesma coisa, simultaneamente, é humana e não é humana, pois os
predicados ‘branco’ e ‘grande’ estão contidos na extensão do termo denotativo
‘não-humano’. Com isso, se é obviamente verdade que ‘branco’ não significa o
mesmo que ‘humano’ (= ‘animal bípede’), então uma mesma coisa poderia ser
denotada com verdade e simultaneamente pelos termos ‘humano’ e ‘não-
humano’ porque esta mesma coisa simultaneamente é humana e não-humana
(por ser também branca e grande).
Mesmo que admitíssemos parcialmente este argumento do adversário
(suspendendo a distinção entre significar algo uno e significar de algo uno),
ainda assim o adversário se comprometeria a enunciar todos os acidentes que
acompanham algo que é denominado como ‘humano’, pois somente assim
ele conseguiria enunciar todos os predicados verdadeiros que pertencem à
extensão infinita do termo ‘não-humano’, dado que este último termo abarca
tudo o que não é humano em sua significação. Com isso, a admissão da
demanda do adversário conduz a um absurdo, e se ele efetivamente se
pusesse a enunciar todos os acidentes que algo possui ou não possui, não
seria mais capaz de dialogar consigo mesmo ou com outrem. Eis a passagem
em que esta resposta se encontra:
A origem da ontologia na metafísica grega 315
“Contudo, se acrescentar ao que é simplesmente perguntado também
as negações <do que responde>, então não responde ao que foi
perguntado. Pois nada impede que a mesma <coisa> seja humano,
branco e milhares de múltiplas outras coisas. Entretanto, ao ser
perguntado se é verdade enunciar que isto é humano ou não é, deve
responder algo com significado único (to hen sêmainon) e não
acrescentar que também é branco e grande. E dado que é impossível,
efetivamente, enumerar os infinitos entes por acidente, então que
enumere todos eles ou nenhum. Do mesmo modo, se a mesma <coisa>
é milhares de vezes humano e não-humano, ao ser perguntado se é
humano, não deve responder que também é ao mesmo tempo não-
humano, a não ser que responda aqueles outros <predicados> que são
acidentais/que vêm junto com (symbebeke): quantas coisas <este algo>
é ou não é, mas se fizer isso não dialoga.” (1007a 8-20; tradução
própria, grifos acrescentados)
Em primeiro lugar, esta passagem final torna explícito o tipo de
pergunta que inicia o argumento, conforme apresentei anteriormente.
Contra certas interpretações exageradas do argumento, não basta que o
adversário diga qualquer coisa para que a demonstração por refutação possa
ocorrer. Antes, o adversário precisa dizer algo em resposta a uma pergunta
inicial, e essa pergunta inicial deve ser feita de tal modo que o adversário
seja obrigado a responder (dizer/significar/denotar) algo uno. Com isso,
Aristóteles visa mostrar que se o adversário se recusar a responder a esta
pergunta inicial, ele deixa sua condição humana e, enquanto não responde,
assemelha-se a uma planta (1006a 14-15), ou seja, não mais consegue
dialogar com outras pessoas e, em última instância, não conseguiria dialogar
consigo próprio, indo contra as regras que tornam possível o discurso em
geral.
Em segundo lugar, convém notar, de passagem, que Aristóteles usa
duas vezes a disjunção ‘ou’ para marcar que a resposta do adversário à
pergunta que abre o argumento já está colocada sob a égide do PTE como
princípio equivalente ao PNC. Assim, se quiser tomar o caminho de
apresentar os termos que são predicados de algo para além daquele a que a
pergunta inicial se refere, deve enumerar todos ou nenhum, ou seja, deveria
enumerar todas as coisas que o algo sobre o qual foi perguntado é ou não é.
Esse ponto antecipa algo que veremos na análise do quarto argumento: a
316 Nazareno Eduardo de Almeida
necessária unidade da afirmação e da negação, unidade que exige sua mútua
distinção, conforme exige o PTE.
Por fim, Aristóteles menciona aqui, pela primeira vez, a noção de
acidente (symbebêkos) como aquela que equivale aos predicados que não são
capazes de significar algo uno, embora signifiquem de algo uno, ou seja, o
uso predicativo dos termos denotativos. Essa menção ao conceito de
acidente antecipa o tema central do segundo argumento em defesa do PNC,
sobre o qual passamos a expor a partir de agora.
3.2.2. O segundo argumento (1007a 20-1007b 18): o argumento a partir
da distinção entre substância/essência e acidente
(A) A divisão textual e argumentativa
Uma parte dos/das intérpretes do Livro IV considera que aquilo que
estou assumindo aqui como um segundo argumento seria apenas a última
parte do primeiro argumento. Isso ocorre porque, de fato, há um claro
vínculo de continuidade entre essas partes do texto e, na leitura que
proponho, dos argumentos nelas contidos. De todo modo, tomado como
um segundo argumento, esta demonstração por refutação depende em
grande medida da anterior, como fica claro pelas primeiras linhas do texto
em análise. Contudo, diferentemente do anterior, o segundo argumento não
parte da demanda para que o adversário signifique algo uno para si e para
outrem. Na realidade, este argumento já parte da tese atribuída como aquela
defendida por este adversário, a saber: o princípio da contradição forte,
segundo o qual necessariamente todas as coisas possuem simultaneamente
propriedades contrárias, de tal modo que seria simultaneamente verdadeiro
dizer que algo é F e não é F, sendo ‘F’ o símbolo de um predicado qualquer
que significa uma determinada propriedade.
Em termos textuais, o segundo argumento pode ser dividido em duas
partes, divisão que, diferentemente do primeiro argumento, também pode
ser considerada como expondo a estrutura lógica do argumento:
(I) (1007a 20-1007b 1) A primeira divisão começa mostrando que quem
nega o PNC também suprime as noções de substância (ousia) e essência
(to ti ên einai), levando essas pessoas a se comprometer com a posição
segundo a qual tudo seria acidental. Chamarei esta tese ontológica
A origem da ontologia na metafísica grega 317
atribuída aos adversários do PNC de ‘acidentalismo’. Por fim, Aristóteles
indica que o acidentalismo, caso fosse aceito, suprimiria a unidade e a
identidade do sujeito ontológico primário que porta múltiplas
propriedades e, portanto, nos conduziria necessariamente ao regresso ao
infinito na série de predicações.
(II) (1007b 1-18) A segunda parte do argumento consiste em fazer uma
redução ao absurdo do acidentalismo assumido pelos adversários do
PNC através da explicação dos dois únicos sentidos do conceito de
acidente, sentidos que pressupõem a existência necessária de algo como a
essência (to ti ên einai) e, sobretudo, como substância (ousia).
(B) Esclarecimento geral sobre a noção de acidente (symbebêkos) em
Aristóteles
Embora o termo grego ‘symbebêkos’, usualmente traduzimos por
‘acidente’, tenha certos usos esparsos registrados antes de Aristóteles, é
somente como termo técnico de sua gramática filosófica que ele entra em
circulação na filosofia e mesmo fora dela nos séculos posteriores.
Etimologicamente, o termo é a substantivação do adjetivo verbal derivado
do passado perfeito do polissêmico verbo ‘symbainô’. Em uma tradução
etimológico-filosófica aproximativa, poderíamos dizer que to sumbebêkos
significa algo como ‘aquilo que vem/ocorre junto com’.
Essa tradução aproximativa nos mostra que em grego o termo já
aponta para um complemento que Aristóteles consagra através do novo
sentido que atribui para o termo tipicamente platônico ‘ousia’, traduzido em
seu uso aristotélico, a partir do século XIII, pelo latim ‘substantia’ e que gera
nosso termo ‘substância’. Embora o próprio Aristóteles reconheça que o
termo symbebêkos possui, dentre seus vários sentidos, aquele que atribuímos
comumente ao termo ‘acidente’ como algo fortuito e casual, o Estagirita o
usa frequentemente na expressão grega ‘por acidente’ (kata symbebêkos), que
faz par e contrasta com a noção de ‘por si mesmo’ (kath’hauto).79
79
Cf. Metafísica, Livro V, cap. 30. Por conta dessa acepção mais ampla, intérpretes modernos
preferem por vezes traduzi-lo pelos termos ‘concomitante’ (Lucas Angioni) e ‘coincidente’
(Christopher Kirwan). De todo modo, a tradução usual consagrada por ‘acidente’ (do latim
accidens) pode ser usada desde que saibamos ter este termo uma acepção distinta daquela que
amiúde associamos ao termo em nossa linguagem ordinária.
318 Nazareno Eduardo de Almeida
Nesta acepção geral, aquilo que é por acidente é secundário e
dependente daquilo que é por si mesmo. Se olhamos a acepção etimológica
do termo symbebêkos compreendemos mais facilmente este par conceitual
construído filosoficamente por Aristóteles: aquilo que é por acidente (kata
symbebêkos) é aquilo que vem/ocorre junto com aquilo que é por si mesmo
(kath’hauto). No nível ontológico, o que é por acidente congrega todas
aquelas propriedades de um sujeito ontológico real – primariamente
identificado com a substância (ousia) – que não pertencem à unidade de sua
essência. No nível lógico, o que é por acidente congrega todos os predicados
de um sujeito lógico (especialmente aquele que representa alguma a
substância) que não podem ser incluídos nas descrições e enunciados que
exprimem a definição de sua essência.
A partir desse esclarecimento terminológico, entrevemos ser o
segundo argumento uma corroboração filosófica da distinção – proveniente
justamente da obra de Aristóteles – entre essência/substância (como
significado primário do que é por si mesmo) e acidente (como aquilo que só
pode existir juntamente com o que é por si mesmo). Também a partir deste
esclarecimento, podemos justificar a tradução o verbo ‘symbainô’ no
segundo argumento por ‘o que vem/ocorre junto com’.
(C) Análise das partes do argumento
(1) A supressão da substância e da essência e o acidentalismo como
regresso ao infinito na série das predicações
A introdução do argumento aristotélico começa constatando que:
“De modo geral, os que argumentam deste modo destroem a
substância (ousian) e a essência (to ti ên einai). Por conta disso,
necessariamente eles sustentam que todas as coisas são acidentais (panta
gar anankê symbebêkenai faskein autois) e que não há o que
precisamente <é> o ser para humano (hoper anthrôpô(i) einai) ou o
que precisamente <é> o ser para animal. Pois se houver algo que é
precisamente o ser para humano, isto não será nem o ser para o não-
humano nem o não-ser para humano (pois são estas as suas negações):
pois era algo uno o que significava <o termo denotativo>, e isto era a
A origem da ontologia na metafísica grega 319
substância/essência (ousia) de algo. Com efeito, significar a
substância/essência <de algo> é <dizer> que nada outro é o ser para esta
mesma coisa (to ti einai autô(i)).” (1007a 21-27; tradução própria e
grifos meus)
Logo no início da citação, Aristóteles aponta para aquilo que chamei
acima de acidentalismo: a defesa da tese segundo a qual todas as coisas
existem de modo acidental, tese esta que o Estagirita procura mostrar como
absurda (necessariamente falsa) com o argumento que estamos analisando.
Dentre as partes grifadas, é importante notar o uso da partícula grega
‘hoper’, que traduzi por ‘o que precisamente’ e que tem o sentido de ‘aquilo
por causa do que’ ou ‘justamente por causa disso’.
Essa partícula marca uma importante mudança em relação ao sentido
em que o argumento anterior usava a expressão ‘ser para X’, onde ‘X’ está por
um termo denotativo. No primeiro argumento, esta expressão marcava
algum dos possíveis enunciados explicativos que significam o mesmo que
determinado termo denotativo. No caso do exemplo usado no primeiro
argumento (e também neste) a expressão ‘ser para humano’ (anthrôpô(i)
einai) significa o mesmo que ‘animal bípede’. Todavia, no presente
argumento, a partícula hoper marca que a noção de ‘ser para X’ não está
mais sendo usada apenas em um sentido lógico-semântico, mas como a
causa ontológica real que nos permite procurar a essência propriamente de
algo como sendo expressa por um único enunciado explicativo equivalente a
um termo denotativo. Em outras palavras, essa partícula nos fala que deve
existir algo na própria coisa designada por um termo denotativo qualquer que
seja a causa de seu ser: é isto que Aristóteles aponta como sendo, em sentido
próprio, a substância (ousia) e/ou a essência (to ti en einai) da coisa referida
pelo termo denotativo, o qual, neste início do segundo argumento, é
exemplificado pelos termos ‘humano’ e ‘animal’.
Portanto, como já indicado antes, o segundo argumento dá um passo
além do primeiro ao explicitar que a noção de ‘ser para X’ no nível lógico-
semântico pressupõe a existência de um conjunto finito de propriedades na
própria coisa que preenchem de modo estrito o sentido primário dos conceitos
de substância ou essência da coisa que é, em última instância, denotada por
algum termo denotativo.
320 Nazareno Eduardo de Almeida
Cumpre, porém, marcar pela primeira vez aqui que o uso do termo
‘ousia’ neste trecho não necessariamente está marcando apenas a noção
estrita de substância, mas também a de essência de modo mais geral. Esse
uso é razoavelmente comum na obra de Aristóteles. Assim, por exemplo, na
Poética, Aristóteles usa a expressão ‘ousia da tragédia’, na qual o termo
‘ousia’, obviamente, significa a ‘essência da tragédia’. Também no primeiro
capítulo de Categorias, Aristóteles caracteriza as coisas ditas de modo
sinônimo como aquelas que possuem em comum não apenas o nome, mas
também ‘a definição da essência’ (logos tês ousias), uma expressão que se
aplica primariamente à categoria das substâncias, mas também a todas as
entidades de outras categorias que possuem a unidade de uma mesma
definição, como é o caso da definição da essência dos números como
quantidades discretas ou contáveis.
Neste sentido, o trecho que acabamos de citar está apontando para a
concepção segundo a qual cada termo denotativo (mesmo que se aplique a
coisas que estão fora da categoria de substância) precisa possuir um único
enunciado explicativo que exprima a unidade de sua essência, essência em
torno da qual outras propriedades contarão como seus acidentes. É
provavelmente por isso que Aristóteles começa a passagem citada
mencionando tanto o termo ‘ousia’ quanto o termo ‘to ti ên einai’. Este
último termo marca tanto a essência pertencente às substâncias
propriamente ditas (as essências substanciais) quanto a essência de qualquer
termo denotativo que denote entidades pertencentes a outras categorias (as
essências não substanciais, como é o caso da definição de número evocada
há pouco). Isso significa que a negação do PNC não consiste apenas na
negação da existência das substâncias (e, por isso, das essências
substanciais), mas também a negação da essência de qualquer outra
entidade pertencente a outras categorias. De todo modo, no argumento,
serão tomados exemplos da categoria de substância porque as essências, em
sentido primário, pertencem às substâncias, mesmo que, secundariamente,
possamos falar da essência de entidades de outras categorias. Mas ainda
teremos de explicar melhor este ponto abaixo.
A sequência da passagem que acabamos de analisar rapidamente
apresenta as razões pelas quais a negação da verdade ontológica do PNC
conduz aqueles que a sustentam ao acidentalismo:
A origem da ontologia na metafísica grega 321
“Mas se forem o mesmo aquilo que precisamente <é> o ser para o
humano e aquilo que precisamente <é> o ser para o não-humano ou
precisamente o não ser para humano, então <o ser da própria coisa>
será outro, de modo que para eles será necessário dizer que de coisa
nenhuma há uma definição (logos) deste tipo [sc. do ser da coisa em si
mesma], mas que todas as coisas são por acidente (panta kata
symbebêkos). Pois é nisto que se encontra a distinção entre substância e
acidente: o branco ocorre juntamente com (symbebêken) o humano que
é efetivamente branco, mas <o ser para humano> não é precisamente
aquilo que (hoper) o branco é [sc. o ser para o branco ou essência do
branco].” (1007a 27-33; tradução própria, grifos acrescentados)
Lendo atentamente o trecho traduzido, percebemos que a negação
forte do PNC conduz a aplicar a uma mesma coisa tanto o ser para ela
quanto aquilo que é o não-ser para ela, de modo que não pode mais haver
um ser da coisa por si mesma, ser por si mesmo representado pelos conceitos de
substância e essência. Por exemplo, se o ser para humano e o ser para não-
humano (ou o não-ser humano) se aplicarem simultaneamente e com
verdade a Sócrates, então não há alguma coisa que significa a substância
e/ou a essência de Sócrates. De modo mais claro, se isso ocorrer, então dizer
que Sócrates é humano e animal (propriedades que supomos serem
essenciais a ele) não é distinto de dizer que Sócrates é branco ou ateniense
(propriedades acidentais que supomos não serem essenciais a ele). Com isso,
tornar-se-ia falsa a suposição da existência de um tipo de ser por si mesmo
de algo: ser por si mesmo que equivale à existência de algum tipo de unidade
e identidade permanentes, unidade e identidade capazes de serem
distinguidas de um conjunto de propriedades que é acidental e contingente
em relação ao que esta coisa é essencialmente.
Se fosse assim, conforme o argumento, todas as propriedades de fato
existentes em algo seriam exclusivamente acidentais porque nenhuma delas
poderia definir ou determinar este algo em si mesmo. Neste caso, por
exemplo, se a propriedade de ser branco identificasse Sócrates tanto quanto
a propriedade de ser humano, e se ser branco pertence à extensão do que
significa o ser para não-humano, então não haveria possibilidade de definir
a substância e a essência de Sócrates através do fato de ser humano (ou de
ser animal), uma vez que ser humano não seria distinto de ser branco, ser
ateniense, ser músico e todos as demais propriedades que pertencem a
322 Nazareno Eduardo de Almeida
Sócrates e que, por isso, podemos atribuir a ele com verdade. Mas, como já
dito na conclusão do primeiro argumento, essas propriedades são em
número infinito, de modo que uma única e mesma coisa teria infinitas
determinações de seu ser, não podendo ser, por isso, uma única e mesma
coisa que permanece idêntica através de todas as suas transformações ao
longo do tempo.
Este número infinito de acidentes nos aponta para o problema central
apontado na primeira parte do segundo argumento: o regresso ao infinito na
série de predicações, que corresponderia à falta de unidade e fundamento
último daquilo sobre o que falamos. Eis o trecho:
“Mas se tudo é dito por acidente (kata symbebêkos legetai), não haverá
nenhum <algo> primário sobre o qual <se fala> (prôton to kath’hou),
visto que o acidente sempre significa um predicado/propriedade
(katêgorian) de algum subjacente (kath’hypokeimenou). Portanto, seria
necessário ir ao infinito.” (1007a 33-1007b 1; tradução própria, grifos
meus)
Na realidade, o trecho nos mostra uma consequência em nível lógico-
linguístico da adoção da tese ontológica do acidentalismo. Essa
consequência pode ser explicitada assim: se todas as coisas são compostas
por propriedades acidentais, então todas as predicações verdadeiras
presentes em nosso discurso sobre qualquer coisa são ditas desta coisa por
acidente; e, neste caso, o sujeito lógico-gramatical ao qual atribuímos (ou
negamos) um predicado qualquer não representa nenhum sujeito ontológico
real do mundo, de forma que não há propriamente algo último na realidade
que represente um sujeito ontológico real, algo que não é predicado de nada
outro e que é o sujeito último de todas as nossas predicações verdadeiras.
Vemos aqui que Aristóteles está retomando um tema já tratado no
segundo capítulo de Categorias. Como vimos na parte do texto básico sobre
este capítulo, o Estagirita procura mostrar que os sujeitos ontológicos
primários (e, por isso, também últimos) de todas as predicações são as
substâncias individuais. A determinação destas substâncias individuais,
enquanto sujeitos últimos ou primeiros de predicação, era justamente que
elas não se predicam de nada outro porque tudo o mais se predica delas. No
caso do argumento que estamos analisando, o acidentalismo não aceita a
A origem da ontologia na metafísica grega 323
existência destes sujeitos ontológicos básicos que comporiam o fundamento
último da realidade sobre a qual falamos.
Se o acidentalismo estiver correto, então não haveria ponto de partida
primeiro ou ponto de chegada último na ordem das predicações, ou seja, as
predicações prosseguiriam ao infinito, de maneira que, neste quadro
conceitual, tudo poderia ser predicado de tudo com verdade, inclusive que
determinada coisa simultaneamente é e não é F, onde ‘F’ simboliza um
predicado qualquer. Com isso, tudo o que em um enunciado é um sujeito de
predicação, poderia se tornar, em outro enunciado um predicado dito de
outro sujeito e este, por sua vez, poderia se tornar um predicado em outro
enunciado e assim indefinidamente.
Como veremos logo mais, a segunda parte do argumento consiste em
mostrar que isso é impossível por meio de uma redução ao absurdo do
acidentalismo, mostrando que toda predicação pressupõe algum tipo de
sujeito ontológico real que é o ponto de partida ou de chegada de qualquer
série de predicações, sendo este sujeito ontológico real justamente a
substância e/ou a essência do algo sobre o qual se fala. A preocupação de
Aristóteles em relação à tese ontológica do acidentalismo consiste no fato
que se ela for verdadeira, poderia ser verdadeira a alegação do adversário
apresentada na parte final do primeiro argumento, alegação segundo a qual
seria possível dizer com verdade e simultaneamente de Sócrates, por
exemplo, não apenas que é humano e animal, mas também branco, músico,
filósofo, ateniense etc. Mas se o ser para branco, o ser para músico, o ser para
filósofo, o ser para ateniense (etc.) são propriedades que pertencem à
extensão do termo denotativo ‘não-humano’, então, necessariamente, seria
verdade dizer, por exemplo, de Sócrates que é humano e que é não-humano
(ou que não é humano).
Com isso, se tornaria plausível e aceitável defender o PC forte, ou
seja: a tese atribuída ao adversário segundo a qual, necessariamente, todas as
coisas possuiriam propriedades contrárias simultaneamente. Assim, para
Aristóteles, a defesa de sua versão do PNC (e do PTE) é acompanhada pela
inevitável defesa da existência real de substâncias e essências como
características dos sujeitos ontológicos primários, sendo as propriedades
substanciais e/ou essenciais necessariamente distintas das propriedades
acidentais que existem nestes sujeitos, mas que são incapazes de denotar a
unidade e identidade destes sujeitos.
324 Nazareno Eduardo de Almeida
(2) Os únicos dois sentidos possíveis para o ser acidental e a
impossibilidade do acidentalismo
Como já antecipamos, toda a segunda parte do argumento consiste
em provar (por redução ao absurdo) que este regresso ao infinito na série
das predicações (derivado da tese ontológica do acidentalismo) é impossível.
A prova da impossibilidade dessa tese, tem como objetivo provar
(indiretamente) a necessária existência de substâncias e essências das coisas
sobre as quais falamos, as quais existem porque são distintas das
propriedades que são acidentais, na medida em que as propriedades
acidentais são aquelas que vêm/ocorrem junto com a substância ou essência
das coisas do mundo. Com isso, não apenas se mostra a impossibilidade do
acidentalismo, mas também que os acidentes só podem existir se,
primeiramente, existirem a substância e a essência das coisas sobre as quais
falamos. Ademais, ao provar a impossibilidade do acidentalismo, Aristóteles
acredita demonstrar por refutação o PNC, assim como mostrar que também o
adversário, ao fazer predicações, já pressupõe a verdade ontológica deste
princípio, na exata medida em que este princípio tanto assegura a existência
de substâncias e essências quanto é assegurado por essa existência.
Mas antes de passarmos à análise do argumento, convém fazer um
esclarecimento mais aprofundado do conceito de essência do que aquele que
já fizemos inicialmente. A expressão grega criada por Aristóteles é ‘to ti ên
einai’. Traduzida literalmente, ela significa ‘o que era ser’. De modo geral,
essa expressão é equivalente a outra também criada por Aristóteles, a
expressão ‘to ti estin’, muitas vezes traduzida por ‘quididade’, mas que,
literalmente, significa ‘o que é’. Independente de suas diferenças linguísticas,
ambas as expressões significam o conceito de essência de algo, essência esta
entendida como o conjunto finito de propriedades que pertencem
necessariamente a algo e lhe conferem sua unidade e identidade através de
todo o tempo de sua existência. Este conjunto finito de propriedades se
diferencia de todas as outras infinitas propriedades que podem pertencer a
esta coisa e que, em geral, são propriedades transitórias ou contingentes, as
quais são chamadas, justamente por isso, de propriedades acidentais de algo.
Em nível lógico-semântico e linguístico, a essência ou quididade de algo é
aquilo que se exprime por uma definição em seu sentido estrito.
Contudo, é também importante notar que não apenas as substâncias
possuem essência, embora o conceito de essência (ou quididade)
A origem da ontologia na metafísica grega 325
pertencente às substâncias seja considerada como o sentido primário deste
conceito. Essa distinção entre essências substanciais e essências não-
substanciais é o tema do capítulo 4 do Livro VII da Metafísica e comporta
questões controversas sobre sua interpretação. Na perspectiva interpretativa
que adoto aqui, essa diferenciação é feita através da aplicação da teoria da
significação focal ao conceito de essência. Esta aplicação é necessária na
medida em que este conceito é dito em múltiplos sentidos, multiplicidade
que se distribui, ao menos, para todas as entidades divididas nas diferentes
categorias de ser. Nessa perspectiva, também as propriedades pertencentes às
outras categorias que não à categoria da substância (quantidade, qualidade,
relação etc.) possuem essências, uma vez que também possuem um certo tipo
de unidade e identidade. Entretanto, a essência dessas propriedades é
secundária e dependente das essências substanciais. Assim, por exemplo, a
propriedade ‘ser branco/a’ – pertencente à categoria de qualidade – possui
uma essência que permite identificá-la em todas as suas ocorrências como
propriedade de substâncias. No caso da propriedade ‘ser branco/a’, podemos
estipular sua essência pela definição ‘ser a mais clara das cores’. Por
contraste, a propriedade ‘ser a cor da neve’ pode ser uma propriedade dita de
‘branco’, mas não define a sua essência.
Assumindo esta perspectiva de interpretação, a alusão dos conceitos
de substância e essência no segundo argumento (como aquilo que é
destruído pelo acidentalismo) indica que para o adversário do PNC não
apenas as substâncias não possuiriam essência, mas também todas as demais
propriedades acidentais (em relação às substâncias em sentido estrito) não
teriam uma essência que lhes conferisse algum tipo de unidade e identidade
em todas as suas ocorrências. E a suposta ausência dessa unidade e
identidade das essências de propriedades não substanciais também tornaria
impossível a diferenciação geral e mais básica entre as substâncias e os
acidentes.
É justamente isso que está subentendido em um trecho já citado
antes, a saber: “Pois é nisto que se encontra a distinção entre substância e
acidente: o branco ocorre juntamente com (symbebêken) o humano que é
efetivamente branco, mas <o ser para humano> não é precisamente aquilo
que (hoper) o branco é [sc. o ser para o branco ou essência do branco].”
(1007a 30-33; tradução própria, grifo acrescentado). Em outras palavras, é
porque o ‘ser branco’ possui uma essência distinta da essência do ‘ser
humano’ (esta última que é uma essência substancial) que podemos dizer
326 Nazareno Eduardo de Almeida
que o ‘ser branco’ é um acidente do ou algo que ocorre junto com o ‘ser
humano’.
Feitos esses esclarecimentos sobre a relação entre os conceitos de
substância e essência, podemos retomar a análise do argumento para
mostrar a impossibilidade do regresso ao infinito na série de predicações.
Este argumento é realizado principalmente através de um esclarecimento
lógico-semântico dos dois únicos sentidos possíveis do conceito de acidente.
E apenas em um desses sentidos é possível existirem acidentes de acidentes.
Vamos à exposição destes dois sentidos. Segundo Aristóteles, a série de
predicações acidentais (predicar acidentes de acidentes) não pode passar de
uma mútua predicação de dois acidentes. Tomemos o texto em atenção:
“Mas isto é impossível [sc. a regressão ao infinito na série das
predicações], pois não se pode conectar mais do que dois <acidentes>
um ao outro, uma vez que o acidente não é acidente de um acidente, a
não ser porque ambos ocorrem juntamente (symbebêke) em um mesmo
<sujeito>; digo, por exemplo, que o branco é músico e o músico é
branco porque ambos ocorrem juntamente (symbebêken) no humano.
Porém, não é deste modo que Sócrates é músico, como se ambos
ocorressem junto em/fossem acidentes de (symbebêken) algum outro
<sujeito>. Dado que os acidentes ora são ditos neste <sentido>, ora
naquele outro, aqueles que se dizem <no sentido> como o branco
<dito> de Sócrates não podem ser infinitos na direção para cima, como
se <fosse possível> acrescentar ao <sujeito> Sócrates-branco algum
outro acidente, pois <deste modo> não se gera algo uno (ou gignetai hen
ti) a partir <da soma> de todos <os acidentes>. Portanto, não será
possível que algo outro seja acidente do branco, como por exemplo o
músico, pois este [sc. músico] não é mais acidente daquele [sc. do
branco] do que aquele [sc. branco] deste [sc. de músico]. Ao mesmo
tempo, está determinado que algumas coisas são acidentais deste modo,
mas algumas outras <são acidentais> como o musical em Sócrates; e
aqueles acidentes <ditos> deste <último> modo não são acidentes de
acidentes, apenas aqueles <ditos do primeiro modo>. Portanto, não se
poderá afirmar que tudo é por acidente; e, por conseguinte, haverá algo
que significa substância/essência (ousian). E se é assim, está
demonstrado que é impossível que se possa predicar (katêgoreisthai)
simultaneamente <e com verdade> os <predicados> contraditórios <de
um mesmo sujeito>.” (1007b 1-18; tradução, grifos meus)
A origem da ontologia na metafísica grega 327
Fiz questão de apresentar a tradução do trecho inteiro para mostrar
que adequadamente vertido e com os devidos complementos ele é bastante
claro no modo como apresenta sua argumentação. Procurei traduzir
literalmente os usos verbais associados ao termo ‘symbebêkos’ (‘acidente’)
porque a tradução deste modo nos ajuda a entender como Aristóteles está
usando o verbo grego ‘symbainô’ para descrever o sentido filosófico do
conceito de acidente. Nesta tradução mais literal, é mais diretamente visível
que a noção de acidente representa o conjunto de propriedades ou
predicados que precisam pressupor algo que é por si mesmo, aquilo que é
justamente o significado dos conceitos de substância e essência. Em outras
palavras, nesta tradução mais literal, torna-se mais compreensível que o
acidental denota aquilo que, de modo quase sempre contingente, ocorre junto
com a substância ou essência de algo. Façamos agora uma análise das duas
partes do argumento contido no trecho traduzido, bem como de sua
conclusão.
Em primeiro lugar, somente em um sentido bastante específico é
possível falar de um acidente predicado de outro acidente, como no caso dos
enunciados ‘o branco é músico’ (ou ‘este branco é músico’) e, inversamente,
‘o músico é branco’ (ou ‘este músico é branco’), enunciados nos quais tanto
‘branco’ quanto ‘músico’ assumem, alternadamente, o papel de sujeitos e
predicados gramaticais, sem serem, porém, sujeitos ontológicos genuínos.
Isso é assim porque, inicialmente, já pressupomos que ‘branco’ e ‘músico’
são ambos predicados de um sujeito gramatical, neste caso, o sujeito
gramatical ‘humano’. Esta ordem hierárquica pressuposta por nós no nível
linguístico reflete o fato de que ‘branco’ e ‘músico’ são propriedades que
ocorrem juntamente com um sujeito ontológico, neste caso o ser humano em
geral, o qual, por sua vez, é a espécie que é dita dos seres humanos
singulares. Neste sentido, é ao ser um humano em geral que ocorre, dentre
muitas outras coisas, ser músico e ser branco. Portanto, somente neste nível
é possível falar, de modo apenas lógico-linguístico, de acidentes de
acidentes, parando aí a cadeia de predicações entre acidentes. Assim, por
exemplo, se dissermos algo como ‘o/este ateniense é filósofo’ e ‘o/este filósofo
é ateniense’, esses enunciados só são legítimos porque pressupomos que
ambos se referem ao ser humano como aquele sujeito ontológico que, de
fato, é o portador de ambas as propriedades acidentais, a saber: ‘ser
ateniense’ e ‘ser filósofo’. Assim, só podemos dizer que ‘o/este ateniense é
filósofo’ ou que ‘o/este filósofo é ateniense’ (entendidos como a atribuição de
328 Nazareno Eduardo de Almeida
um acidente a outro) porque já pressupomos enunciados do tipo ‘o/este ser
humano é filósofo’ e ‘o/este ser humano é ateniense’.
Em segundo lugar, Aristóteles aponta no trecho citado o segundo
sentido de acidente, no qual é impossível que até mesmo um acidente possa
ser dito de outro. Esse é o caso da relação entre uma determinada substância
individual (v.g. Sócrates) e as propriedades acidentais que ocorrem em
conjunto nela. Note-se que Aristóteles está aqui pressupondo que universais
– que, na terminologia de Categorias 5, são substâncias segundas, tal como o
exemplo de ‘humano’ usado no trecho – pressupõem que mesmo sendo
sujeitos ontológicos (substâncias) eles só existem na medida em que são
ditos de substâncias primeiras, tal como o exemplo de ‘Sócrates’ usado na
segunda parte do argumento. Em outras palavras, contra a tese platônica da
existência separada de universais (as Formas ou Ideias), Aristóteles defende
que universais só existem instanciados em indivíduos concretos, sendo tais
indivíduos aquilo que o texto de Categorias chama de substâncias primeiras,
conforme já vimos na parte do texto básico dedicado a esta obra.
Justamente neste caso, quando os acidentes são predicados de uma
substância individual, não é possível que haja acidentes de acidentes, tal
como vimos acima ser parcialmente possível quando os acidentes são ditos
de uma substância segunda, como é o caso da substância denotada pelo
termo ‘humano’. Usando o exemplo apontado por Aristóteles, podemos
dizer com verdade que ‘Sócrates é branco’ e que ‘Sócrates é músico’, mas a
partir daí não podemos dizer com verdade ‘Sócrates-branco é músico’ ou
‘Sócrates-músico é branco’. Se assim fizéssemos, seria gerado um processo
que nos levaria a um regresso ao infinito e à formação de sujeitos
gramaticais que são somas de número indefinido e, virtualmente, infinito de
acidentes.
Além disso, esse processo levaria até mesmo a considerar o nome
próprio ‘Sócrates’ como podendo ser um acidente predicado de algo outro.
Esse processo é barrado porque, segundo Aristóteles, da soma desses
acidentes não se gera algo uno. Nesta premissa não apenas está presente a
noção de significar algo uno que vimos antes, mas também a noção segundo
a qual, quando falamos, já pressupomos certa unidade básica do sujeito de
predicação, uma unidade que seria perdida se qualquer soma aleatória de
acidentes pudesse ser tomada como um sujeito de predicação. Segundo
Aristóteles, isto é impossível tanto no sentido ontológico (pois neste caso
não haveria unidade individual de nada) quanto no sentido lógico-
A origem da ontologia na metafísica grega 329
gramatical (dado que neste caso qualquer agregado de nomes seria um
sujeito para novas predicações). Com isso, embora no nível das predicações
atribuídas às substâncias segundas seja possível haver acidentes de acidentes
(mas sem que isso leve a mais do que dois acidentes predicados um do
outro), no nível das substâncias individuais não é possível sequer tomar um
acidente como sujeito para outro acidente.
Como conclusão, Aristóteles acredita que o argumento prova que
nem tudo pode ser acidental e, por isso, deve haver algo real no mundo que
seja substância e essência e cuja unidade ontológica garante a possibilidade de
diferenciar os predicados acidentais e os predicados essenciais. A partir dessa
diferenciação, Aristóteles conclui com uma versão lógica do PNC, a saber:
que é impossível aplicar com verdade e simultaneamente os predicados
contraditórios a um mesmo sujeito gramatical. E, portanto, a verdade da
distinção lógico-semântica entre substância/essência e acidente garantiria a
verdade ontológica do PNC.
(3) Conclusão: breves considerações sobre o essencialismo aristotélico e
as versões essencialistas do PNC e do PTE supostas no segundo
argumento
Na perspectiva interpretativa aqui assumida, um aspecto associado a
este segundo argumento – e que o diferencia do primeiro – é aquele
relacionado com o que, a partir do já citado filósofo Willard van Orman
Quine, passou a ser chamado de ‘essencialismo aristotélico’. Quine forja esta
designação como uma crítica ao que ele considera como sendo um
compromisso ontológico inevitável se aceitamos os sistemas de lógica modal
surgidos ao longo do século XX. Conforme este filósofo, este compromisso
se coloca em conflito com uma interpretação ontológica nominalista e com
uma interpretação epistemológica empirista que pareciam então as mais
adequadas à lógica de predicados desenvolvida antes do surgimento das
lógicas modais, particularmente através das obras dos lógicos e filósofos
Charles Peirce e, sobretudo, Gottlob Frege, Bertrand Russell e Alfred
Whitehead.80
80
No quadro conceitual recente, boa parte das lógicas modais são consideradas como extensões
da lógica de predicados, embora tais extensões demandem algumas alterações parciais de
alguns aspectos da lógica de predicados.
330 Nazareno Eduardo de Almeida
Para Quine, isto ocorre porque as modalidades (necessidade,
impossibilidade, possibilidade e contingência) acabam por nos conduzir a fazer
uma diferenciação entre tipos de predicados, algo que está ausente na lógica
de predicados não modalizada. Usando os exemplos apresentados há pouco,
na lógica de predicados não modalizada não haveria diferença hierárquica
entre os predicados ‘humano’ e ‘branco’ ditos de um sujeito lógico qualquer.
Na perspectiva de Quine (e outros), no campo da ontologia, isso significa
que não há diferença entre propriedades essenciais e propriedades
acidentais, uma posição que pode ser classificada como um tipo de
nominalismo.81 Além disso, essa indiferenciação ontológica entre as
propriedades também estaria de acordo com uma posição epistemológica
empirista, posição esta que capta a visão moderna segundo a qual as teorias
científicas sempre estão sujeitas a mudanças tanto por causa da variação na
quantidade e na qualidade dos dados empíricos que temos dos objetos
quanto por causa do desenvolvimento de diferentes “paradigmas” (modelos)
para organizar esses mesmos dados. Com isso, esta posição empirista acaba
por pressupor e/ou defender que não há divisões absolutas presentes na
própria realidade, tal como o são as divisões por gênero e espécie centrais na
ontologia de Aristóteles.
A fusão desta concepção ontológica nominalista e desta concepção
epistemológica empirista pode ser caracterizada como uma perspectiva
antirrealista para a qual os conceitos de essência e substância não fazem
sentido. Em certa medida, esta perspectiva antirrealista de Quine (que o leva
a rejeitar as lógicas modais) poderia ser aproximada do que chamamos antes
de acidentalismo, mas expor essa aproximação (com suas semelhanças e
diferenças) não é possível nem relevante no presente contexto. O que
importa notar aqui é que – em consonância (parcial) com a observação de
Quine – o uso aristotélico dos conceitos modais e da lógica de modalidades
está efetivamente associada à defesa de certo tipo de essencialismo.
81
Há diversas formas e versões do nominalismo na história da filosofia, particularmente a partir do
nominalismo defendido por Guilherme de Ockham, no início do século XIV. De modo muito
geral e apenas didático, os nominalistas entendem que a realidade é composta apenas por “coisas”
individuais, não havendo, no mundo real, “coisas” universais (v. g., “a” humanidade, “a”
animalidade, “a” cor etc.), uma vez que estas últimas só existem no nível do pensamento e da
linguagem. Ainda em termos didáticos, no contexto medieval e em sua retomada recente, o
nominalismo é considerado como uma das posições possíveis na chamada ‘querela dos
universais’, sendo a outra posição chamada de ‘realismo’, a qual, dentre suas várias versões, era
dividida entre o ‘realismo platônico’ (que defendia a existência separada dos universais ao lado
das coisas individuais) e o ‘realismo aristotélico’ ou ‘conceitualismo’ (que defendia a existência dos
universais, por assim dizer, “dentro” de cada uma das coisas individuais).
A origem da ontologia na metafísica grega 331
É certo que há controvérsia entre os/as intérpretes de Aristóteles
sobre se e o quanto o sentido que Quine associa ao conceito de
essencialismo aristotélico seria encontrado efetivamente na obra do
Estagirita. Mesmo assim, o segundo argumento parece mostrar que a defesa do
PNC através da distinção entre substância/essência e acidente inevitavelmente
vincula a versão aristotélica do PNC a algum tipo de essencialismo. Usando o
aparato lógico exposto antes, uma maneira de entender essa relação entre a
versão aristotélica do PNC e seu essencialismo poderia ser simbolizada do
seguinte modo:
PNC essencialista: (∀ x) (∀ F) ~ (□ F x ∧ ~ □ F x)
Essa formulação simbólica pode ser traduzida filosoficamente do
seguinte modo: “Para todo e qualquer sujeito x, para toda e qualquer
propriedade F, não é o caso que x é necessariamente F e não
necessariamente F”.
Mas para além dessa formulação essencialista mais forte do PNC, se
assumimos como verdadeira a “afinidade lógica” que já explicitamos entre o
PNC e o PTE aristotélicos, podemos formular também uma versão
essencialista do PTE do seguinte modo:
PTE essencialista: (∀ x) (∀ F) (□ F x ∨ ~ □ F x)
Essa formulação simbólica poderia ser traduzida filosoficamente do
seguinte modo: “Para todo e qualquer sujeito x, para toda e qualquer
propriedade F, x é (possui) necessariamente F ou não necessariamente é
(possui) F”.
Essas formulações essencialistas do PNC e do PTE indicam que para
Aristóteles qualquer propriedade deve ser uma propriedade essencial
(necessária) de algo ou uma propriedade acidental (não necessária) de algo;
o que implica que uma mesma propriedade não pode ser, ao mesmo tempo,
uma propriedade essencial e acidental de algo.82 Na terminologia clássica
82
Para simplificar a exposição, deixarei de lado o fato de Aristóteles efetivamente diferenciar
entre propriedades essenciais e propriedades necessárias, pois, conforme o capítulo 4 do Livro I
dos Segundos Analíticos, todas as propriedades essenciais de algo são necessárias, mas nem
332 Nazareno Eduardo de Almeida
(proveniente das discussões de lógica modal medieval), a passagem do
operador de necessidade do início da fórmula para dentro do parêntese
indica que a modalidade é entendida aqui não mais como estritamente
lógica ou alética (de dicto = do que é dito), mas como uma modalidade
ontológica (de re = da própria coisa). Em outras palavras, em lugar de
modalizar a pretensão de verdade de toda a fórmula, a modalidade da
necessidade e sua negação contraditória (o não-necessário) modalizam aqui o
tipo de relação que intercorre entre o predicado e o sujeito lógico do qual é
afirmado ou negado. Todavia, como já apontamos várias vezes no contexto
do Livro IV da Metafísica, essa modalização dos tipos de relação entre os
predicados e os sujeitos lógicos corresponderia aos tipos de relação entre um
sujeito ontológico qualquer e as propriedades que ele possui.
A presença implícita dessas versões essencialistas do PNC e do PTE
no segundo argumento é reforçada pela conclusão de caráter lógico: se
existe, na própria realidade sobre a qual falamos, algo que conta como a
substância ou essência de algo (distinto do que lhe é acidental), então é
impossível que os predicados contraditórios sejam ditos simultaneamente com
verdade do mesmo sujeito lógico. Se esta leitura do pano de fundo do
argumento está correta, então a noção de predicados contraditórios, em
última instância, depende das versões ontológicas essencialistas do PNC e
do PTE do seguinte modo. De acordo com a versão essencialista do PTE,
qualquer propriedade pertencente a um sujeito ontológico real é uma
propriedade necessária (essencial) ou é uma propriedade não-necessária
(acidental) deste mesmo sujeito. E, isto é assim porque, de acordo com a
versão essencialista do PNC, esta mesma propriedade pertencente a um
sujeito ontológico não pode ser uma propriedade essencial e,
simultaneamente, uma propriedade acidental deste mesmo sujeito.
Nesta perspectiva, a defesa do PNC através da necessária admissão da
distinção entre substância/essência e acidente aponta para estas formulações
ontologicamente mais fortes do PNC e do PTE. Assim, propriedades de
essências substanciais ou de essências não substanciais são aquelas
propriedades necessárias para algo ser o que é, enquanto as propriedades
acidentais (que ocorrem juntamente com a substância e/ou essência de algo)
são propriedades acidentais porque não-necessárias (contingentes) para este
todas as propriedades necessárias são essenciais. A partir dessa distinção aristotélica, os filósofos
contemporâneos Kit Fine e Fabrice Correia (além de outros) têm proposto uma lógica da
essência que possui características distintas das lógicas modais, mas sobre este tema não nos
cabe falar aqui.
A origem da ontologia na metafísica grega 333
mesmo algo ser o que é. Em um exemplo didático, a propriedade de ser
racional é essencial (necessária) para algo ser humano, enquanto a
propriedade de ser branco é não-essencial (acidental e contingente) para
algo ser humano. Com isso, Aristóteles aponta para uma cisão geral entre
dois tipos de predicados lógicos e, por isso, entre os dois tipos de
propriedades reais que esses predicados exprimem discursivamente: os
predicados essenciais (vinculados primariamente à substância, mas também
presentes nas definições das propriedades essenciais de entes não-
substanciais) e os predicados não-essenciais ou acidentais.
Se essas considerações estão corretas, não é no primeiro, mas no
segundo argumento em defesa do PNC que percebemos mais claramente
aquilo que é defendido no capítulo 3, a saber: que cabe a uma mesma ciência
tratar da substância e dos primeiros princípios das demonstrações. Neste
sentido, podemos propor que a segunda demonstração por refutação que
acabamos de analisar parece pressupor as formulações essencialistas do
PNC e do PTE apresentadas há pouco, de tal maneira que, mesmo tendo um
alto teor lógico, o texto do capítulo 4 do Livro IV mantém sempre em vista a
defesa de uma concepção ontológica dos princípios primários em estreita
relação com os conceitos de substância e essência, entendidos como conceitos
nucleares da ontologia aristotélica. Por conseguinte, a defesa do PNC e do
PTE através do essencialismo revela de um novo modo alguns aspectos do
realismo ontológico e epistemológico tradicionalmente atribuídos a
Aristóteles. Na análise geral do próximo argumento, essa posição realista em
termos ontológicos e epistemológicos se tornará ainda mais clara.
3.2.3. O quarto argumento (1008a 2-34): o argumento a partir da defesa
do terceiro excluído (PTE)
(A) Introdução: a “afinidade lógica” entre o PNC e o PTE na quarta
demonstração por refutação
Por fim, seguindo a divisão já mencionada do capítulo 4 do Livro IV
da Metafísica, analisaremos agora o quarto argumento em defesa da verdade
ontológica do princípio primário. Como já vimos antes, Aristóteles está
refutando um adversário que nega de modo forte o PNC. Ao fazê-lo,
segundo Aristóteles, este adversário se compromete com a tese “lógica” de
que todas as contradições são verdadeiras e, portanto, também estaria se
334 Nazareno Eduardo de Almeida
comprometendo com a tese ontológica de que tudo é contraditório, ou, na
expressão aristotélica, que tudo é assim e não-assim. É ao refutar esta tese
lógica e ontológica do adversário que Aristóteles entende demonstrar a tese
contrária, contida em sua versão do PNC, a saber: a tese lógica de que
nenhuma contradição é verdadeira, bem como a sua contraparte ontológica,
segundo a qual nada é contraditório.
Conforme o segundo argumento que acabamos de expor, a negação
forte do PNC conduz o adversário a negar a existência de essências e
substâncias. No quarto argumento que analisaremos a partir de agora,
Aristóteles aponta que a negação do PNC conduz à negação da verdade
universal e necessária do princípio do terceiro excluído (PTE). Isso é
indicado com a seguinte frase: “Com efeito, estas são as consequências [sc.
referindo-se ao terceiro argumento] para os que defendem tal discurso [sc. a
negação forte do PNC], e também que não é necessário ou afirmar ou
negar.” (1008a 2-4; tradução e grifos meus) A parte grifada da citação é
justamente a negação de uma das formulações com as quais Aristóteles
resume o PTE, a saber: “é necessário afirmar ou negar”.
Em diversos momentos anteriores, já indiquei que Aristóteles
entende sua versão do PNC como equivalente à sua versão do PTE. Já na
introdução do capítulo 4, quando da apresentação da estrutura da
demonstração por refutação, o Estagirita adverte que não se deve pedir ao
adversário que diga que algo é ou não é, pois é justamente isso que deve ser
demonstrado a este adversário (1005b 19-21). Em seguida, no início do
primeiro argumento e como já vimos em sua análise, Aristóteles estabelece
como premissa geral necessariamente verdadeira por si mesma que qualquer
termo denotativo (onoma) significa o ser ou não-ser daquilo a que se
referem. Apesar dessas evidências textuais, uma parte ainda considerável
dos/das intérpretes assume que a defesa aristotélica do PTE estaria restrita
aos capítulos 7-8, que encerram o Livro IV. Em contraste com essa
interpretação, tenho procurado mostrar que o PTE é a outra face do PNC e
que ambos formam um único princípio primário de dupla face, já defendido
no capítulo 4 deste texto. É justamente no quarto argumento que
encontramos a mais explícita evidência dessa “afinidade lógica” entre o PNC
e o PTE.
Com efeito, em termos lógicos, a negação forte do PNC significa
simultaneamente a negação forte do PTE, pois ao supostamente defender que
todas as coisas são contraditórias, este adversário suprime completamente a
A origem da ontologia na metafísica grega 335
necessidade de afirmar ou negar de um sujeito qualquer algum predicado
determinado, uma vez que ele simultaneamente afirma e nega este predicado
de um mesmo sujeito. Como veremos logo mais, ao defender que é possível
(e mesmo necessário) afirmar e negar com verdade de um mesmo sujeito
um mesmo predicado, o adversário está suprimindo a própria unidade e
distinção entre afirmação e negação porque, no fundo, nega a própria noção
de unidade e identidade das coisas sobre as quais falam a afirmação e a
negação. Com isso, em última instância, esse adversário está diluindo
qualquer distinção entre verdade e falsidade. Assim, no quarto argumento em
defesa do princípio primário, Aristóteles antecipa em germe a defesa do PTE
que fará nos capítulos 7-8. Essa defesa que começa, no início do capítulo 7,
com as seguintes palavras:
“Com efeito, não é possível haver um <termo> intermediário (metaxy)
entre os <predicados> contraditórios (antiphaseôs), mas é necessário
ou afirmar ou negar um único <predicado> de um único <sujeito>
qualquer. Isso é evidente, primariamente, pelas determinações
(horisamenois) do que é o verdadeiro e o falso: pois, de um lado, dizer
não ser o que é ou <dizer> ser o que não é <significa> o falso; e, de
outro, <dizer> ser o que é e <dizer> não ser o que não é <significa> o
verdadeiro, de tal modo que quem diz <algo> ser ou <diz algo> não ser
dirá a verdade ou a falsidade.” (1011b 23-28; tradução própria, grifos
acrescentados)
Nesta passagem, percebemos em primeiro lugar, a formulação do
PTE que já está em jogo no quarto argumento do capítulo 4, a saber: ‘é
necessário afirmar ou negar’. Logo depois, essa formulação é corroborada
pela célebre “definição” de verdade e falsidade. Foi precisamente tomando
como base filosófica esta “definição” que Alfred Tarski (1901-1983) elaborou
um método lógico-matemático para determinar de modo rigoroso o
conceito de sentença verdadeira nos sistemas lógicos formais, um método
que se tornou conhecido pela denominação de ‘concepção semântica da
verdade’. De qualquer modo, a discussão sobre o PTE e sobre os conceitos de
verdade e falsidade nos capítulos 7-8 do Livro IV são antecipadas
especialmente na estrutura do quarto argumento do capítulo 4,
evidenciando, por isso, que a defesa do PNC já contém em si a defesa do
PTE. Além disso, como já indicado antes, o tratamento do quarto
336 Nazareno Eduardo de Almeida
argumento do capítulo 4 nos permite deixar de lado a abordagem dos
complexos argumentos dos dois capítulos finais do Livro IV. Feitas essas
considerações introdutórias passemos a análise do argumento.
(B) Divisão textual, estrutura argumentativa e tradução do texto
Assim como no caso do segundo argumento antes analisado, a
divisão textual do quarto argumento corresponde, aproximadamente, à
divisão estrutural do argumento. Em sua divisão mais geral, ele possui duas
partes:
(I) (1008b 2-7) Nesta parte, Aristóteles enuncia a premissa geral do
argumento e sua conclusão: a premissa geral é a negação do PTE, enquanto
a conclusão é o absurdo gerado por esta premissa, a saber: a destruição da
distinção entre afirmação e negação, bem como (implicitamente) a
destruição da distinção entre verdade e falsidade.
(II) (1008b 7-34) Nesta parte, encontramos dois conjuntos de
argumentos por redução ao absurdo. Um primeiro conjunto é regido pela
derivação das consequências absurdas da negação total do PTE (simbolizada
na tradução a seguir pela letra minúscula ‘a’). Esse primeiro conjunto, por
sua vez, se divide em dois. Um desses subconjuntos (simbolizado por ‘a1’)
consiste em retirar as consequências absurdas da asserção separada da
afirmação e da negação, ou seja, esse adversário diz que ‘S é P’ e, em seguida,
diz que ‘S não é P’. O outro subconjunto (simbolizado por ‘a2’) consiste em
retirar as consequências absurdas da asserção simultânea da afirmação e da
negação, na forma da conjunção ‘S é P e não é P’. Segundo Aristóteles, se o
adversário se mantém coerente com sua negação total o PTE, esta conjunção
precisa ser tomada como uma única afirmação, a qual teria como sua
negação contraditória algo como ‘S não é P nem não-P’, o que Aristóteles
expressa ao dizer ‘nem assim nem não-assim’. O segundo conjunto de
argumentos é regido pela refutação da tese adversária ao mostrar as
consequências da negação parcial do PTE (conjunto simbolizado pela letra
minúscula ‘b’). Neste caso, o adversário falsearia a negação forte do PNC
(que é também, como dito acima, uma negação forte do PTE), pois
admitiria que há alguma coisa não-contraditória no mundo, para a qual o
PTE já teria validade. Ademais, para cada um desses dois conjuntos,
Aristóteles apresenta uma versão ontológica do argumento e uma versão
lógica.
A origem da ontologia na metafísica grega 337
Em resumo, podemos dizer que a negação do PTE se apresenta em
duas posições. Uma equivale ao adversário dizer que nem sempre é
necessário afirmar ou negar, posição que é a negação parcial do PTE. A outra
posição equivale ao adversário dizer que nunca é necessário afirmar ou
negar, pois estaria defendendo que é necessário, em todos os casos, afirmar e
negar, o que é a negação total do PTE. Além disso, o argumento apresenta
dois níveis de refutação dessas duas formas de negação do PTE, um nível de
refutação da tese em sua versão ontológica e outra refutação da tese em sua
versão lógica.
Diferentemente da análise dos argumentos anteriores, precederei a
análise deste apresentando inicialmente a tradução completa do trecho
textual que o contém, acrescentando a esta tradução complementos de
esclarecimento e índices a fim de marcar cada uma das teses e suas
subdivisões e consequências, pois deste modo se torna mais fácil entender
de modo sinóptico a estrutura completa do todo e das partes deste denso e
complexo argumento. Para facilitar ainda mais sua compreensão, podemos
esquematizá-lo no seguinte diagrama:
Negação do PTE
(a) Negação total do PTE (b) Negação parcial do PTE
(a1) Negação separada (a2) Negação simultânea
Apresentado o diagrama que expõe a estrutura geral da
argumentação, passemos à tradução do trecho:
“(I – apresentação da premissa geral e sua conclusão) Com efeito,
estas são as consequências para os que defendem tal discurso [sc. da
necessária contradição de todas as coisas], e também que não é
necessário ou afirmar ou negar. Pois se é verdade que <algo é>
humano e <que é> não-humano, <então> evidentemente também
338 Nazareno Eduardo de Almeida
será <verdade dizer> que não é humano nem não-humano, pois para
as duas <afirmações correspondem> duas negações [sc. nem humano,
nem não-humano]; e se se forma uma <afirmação> composta
daqueles <enunciados> juntos [sc. da afirmação e da negação], então
esta última <negação> [sc. nem humano e nem não-humano] seria a
sua oposta.
(II – apresentação do argumento em sua versão ontológica) A partir
disso, (a) ou todas as coisas se comportam deste modo [sc. são
necessariamente contraditórias] (e <a mesma coisa, ao mesmo
tempo,> é branca e não-branca, e também é e não é (on kai ouk on), e
no tocante às outras afirmações e negações ocorrerá do mesmo
modo); (b) ou não <é assim para todas as coisas>, mas, de um lado,
<é assim> para algumas coisas [que são contraditórias], e, de outro
lado, não <é assim> para outras coisas [que são não-contraditórias].
E, portanto, se não é assim para todas as coisas, <então> estas [que
não são contraditórias] seriam concedidas <pelo adversário>.
(III – apresentação do argumento em sua versão lógica e redução ao
absurdo da negação parcial do PTE) Mas, ao contrário disso [que se
acaba de concluir], se é assim para todas as coisas, então (a) ou
daquilo de que se pode afirmar <com verdade algum predicado>
também se pode negar <com verdade o mesmo predicado> e daquilo
de que se pode negar <com verdade algum predicado> também se
pode afirmar <com verdade o mesmo predicado>; ou (b) <de todas>
aquelas coisas de que se pode afirmar <com verdade algum
predicado>, pode-se também negar <com verdade este mesmo
predicado>, mas de nem todas aquelas coisas sobre as quais se pode
negar <com verdade algum predicado> se pode também afirmar
<com verdade este mesmo predicado>. E se é assim, <então> haverá
algo que certamente não é, e esta seria uma opinião segura, e se o
não-ser de algo é seguro e também cognoscível, então a afirmação
oposta <a esta negação segura> seria ainda mais cognoscível.
(IV – redução ao absurdo das duas possibilidades da negação total
do PTE) Mas se (a), de igual modo, de tudo que se pode negar
<algum predicado> também se pode afirmar, <então>,
necessariamente, (a1) ou será verdade dizer <a afirmação e a
negação> separadas, como, por exemplo, dizer que <algo> é branco e,
em seguida, dizer que não <é branco>, (a2) ou não <será verdade>. E
(a2) se não é verdade dizer em separado, (i) <então este adversário>
não diz esses <enunciados> e, de fato, <ele próprio> não é coisa
A origem da ontologia na metafísica grega 339
nenhuma [= não existe] (estin outhen) (e como coisas que não-são (ta
mê onta) poderiam falar e andar?); e, ainda, (ii) todas as coisas
seriam uma só, como já dissemos anteriormente, e serão idênticos
<os predicados> ‘humano’, ‘deus’, ‘barco’ e os seus contraditórios [sc.
‘não-humano’, ‘não-deus’, ‘não-barco’] (pois se cada um deles é o
mesmo <que os outros>, nada haverá que os diferencie uns dos
outros, e se há algo que os diferencia, isto será verdadeiro e próprio
<de cada um deles>). Porém, (a1) se é verdade dizer <a afirmação e a
negação> separadamente, <então> também se segue o que foi dito
[sc. que todas as coisas são uma só]; e, além disso, <segue-se
também> que (iii) todas as pessoas estariam dizendo a verdade e
todas estariam mentindo, e ele mesmo [sc. o adversário] admite estar
mentindo.
(V – conclusão geral do argumento) Disso tudo em conjunto, é
evidente que a discussão (skepsis) com esta <pessoa> não trata sobre
nada, pois ela nada diz. Nem diz que <as coisas> são assim, nem diz
que não são assim; mas <pretende dizer> que são assim e também
não são assim, e, em seguida, que não são assim nem não-assim; pois
se não <defendesse essa posição> já haveria algo determinado [sc.
conforme se concluiu de ‘b’].” (1008b 2-34; tradução própria; grifos,
complementos e divisões acrescentados)
(C) Análise da estrutura do argumento
I – Apresentação da premissa geral e sua conclusão
Como já antecipei acima, esta parte do texto apresenta a premissa
geral que deverá ser refutada por meio das reduções ao absurdo contidas no
corpo do argumento. A premissa geral adotada hipoteticamente na
argumentação é: ‘não é necessário afirmar ou negar’. Nos termos do que
apresentamos antes, esta é a negação contraditória da versão aristotélica do
PTE, pois nessa versão se assevera que este princípio é necessário, ou seja, ‘é
necessário afirmar ou negar’.83
Mas ao se comprometer com a negação contraditória do PTE,
conforme já dito acima, o adversário pode assumir duas posições possíveis:
83
Lembremos que a negação contraditória de ‘é necessário ser o caso’ (ou ‘necessariamente p’) é
‘não é necessário ser o caso’ (ou ‘não necessariamente p’); e não, como por vezes
equivocadamente pensamos, ‘é necessário não ser o caso’ (ou ‘necessariamente não-p’), o que
equivale a ‘é impossível ser o caso’ (ou ‘não é possível p’).
340 Nazareno Eduardo de Almeida
uma negação total do PTE e uma negação parcial do PTE. A negação total
do PTE é aquela compatível com a negação forte do PNC e foi indicada por
(a). Já a negação parcial do PTE, como indica Aristóteles na tese (b), mostra
que o adversário não nega de modo forte o PNC, mas apenas restringe sua
validade para algumas coisas, não sendo válido para outras. Essa posição é,
como já vimos, aquela que é garantida pelas demonstrações por refutação
apresentadas por Aristóteles. É por isso que a tese (b) ocupa um menor
espaço no todo do argumento, tanto em sua versão ontológica quanto em
sua versão lógica.
Por conta disso, a conclusão geral a que o argumento deve chegar é
aquela que refuta a tese (a). A premissa, portanto, é entendida em seu
sentido mais forte, correspondente à negação total do PTE. Neste caso, o
absurdo que se gera é a própria destruição da distinção entre afirmação e
negação, bem como, implicitamente, da própria distinção entre verdade e
falsidade. Isso é assim porque a negação total do PTE se compromete com os
seguintes passos: (i) a afirmação ‘S é P’ é verdadeira e também é verdadeira a
sua negação, ‘S não é P’ (por exemplo, ‘João é humano’ e ‘João não é
humano’ são ambas verdadeiras). Mas se o adversário assume a negação
total do PTE, (ii) é possível formar uma nova afirmação da conjunção da
afirmação e da negação anteriores, ou seja, ‘S é P e não é P’ (v. g. ‘João é
humano e não é humano’), mas se afirmações e negações são
simultaneamente verdadeiras (conforme a negação total do PTE), então
também deverá ser verdadeira a negação da afirmação por conjunção, ou
seja, (iii) também terá de ser verdadeiro que ‘Snão é nem P e nem é não é P’
(v.g. ‘João não é nem humano nem não é humano’). Ora, como o argumento
mostra, isso significa que toda asserção feita pelo adversário se autodestrói,
pois afirma e nega ao mesmo tempo, afirmando a negação e negando a
afirmação feita. Dado que tal conclusão derivada da negação total do PTE é
absurda (necessariamente falsa), segue-se que não é possível defender que
não é necessário afirmar ou negar, o que também equivale a dizer: é
necessariamente verdadeiro que se deve afirmar ou negar. Como a negação
total do PTE equivale à negação forte do PNC (ao defender o princípio da
contradição forte (PC forte)), segue-se que, indiretamente, a versão
aristotélica do PNC é verdadeira.
II – Apresentação do argumento em sua versão ontológica
A origem da ontologia na metafísica grega 341
O segundo trecho do texto traduzido apresenta o que chamei de
versão ontológica do argumento. A evidência deste sentido ontológico se
encontra nas primeiras palavras desta parte: ‘ou todas as coisas se
comportam deste modo’. Na realidade, este segundo trecho da citação
explicita qual é o alvo mais geral do argumento como um todo: demonstrar
por refutação a verdade ontológica do PNC através da admissão da verdade
ontológica do PTE, mesmo que admitida parcialmente. Note-se que esta
versão ontológica coloca uma alternativa: ou é assim para todas as coisas
(tese que foi simbolizada por (a)), ou não é assim para todas as coisas, mas
apenas para uma parcela delas (tese que foi simbolizada por (b)).
A primeira coisa a observar nessa alternativa é justamente a aplicação
do PTE no argumento contra quem nega este mesmo princípio. Isso mostra
que a versão ontológica do argumento já assume a verdade lógica do PTE.
Como indicado anteriormente, Aristóteles diversas vezes assume, nas suas
premissas, alguma forma do sentido lógico ou epistemológico do PNC e do
PTE para poder concluir (ou corroborar) seu sentido ontológico. É
justamente este sentido ontológico do PNC e do PTE que permite a
Aristóteles defender que a ciência do ser enquanto ser (centrada no sentido
do ser como substância) é também a ciência que trata dos princípios
primários de todas as inferências e, dentre elas, de todas as demonstrações
que compõem as ciências particulares.
A segunda coisa a observar é que, de modo proposital, a alternativa
(a) (= a negação total do PTE) é deixada de lado nesta parte porque será
abordada nas partes (III) e (IV) do argumento. Assim, o centro do trecho se
encontra na explicitação da consequência geral derivada da alternativa (b):
se o adversário do PTE nega a validade deste princípio em relação a algumas
coisas, mas aceita que é válido para outras, então ele não pode mais se
comprometer com a negação forte do princípio da não-contradição (PNC), de
tal modo que ele já assume este princípio como verdadeiro sem
demonstração (assim como o PTE), mesmo que parcialmente. Portanto, a
redução ao absurdo mostra a falsidade de defender que todas as coisas
sejam contraditórias ao concluir, na expressão aristotélica, que ‘nem tudo é
assim e não-assim’. A consequência da aceitação de (b), portanto, já é uma
demonstração por refutação da negação forte do PNC.
342 Nazareno Eduardo de Almeida
III – Apresentação do argumento em sua versão lógica e redução ao
absurdo da negação parcial do PTE
Os trechos (III) e (IV) apresentam uma versão lógica do argumento
aristotélico. Mesmo assim, seria um equívoco pensarmos que ele se
desenvolve em termos puramente lógicos. Bem antes, embora sua
terminologia seja hegemonicamente lógica, há um tipo de “costura” ou
“zigue-zague” entre o âmbito lógico-semântico e o âmbito ontológico. Isso é
evidente na premissa inicial: “se é assim para todas as coisas”; premissa de
caráter ontológico a partir da qual se retirará as primeiras consequências no
nível lógico-semântico.
A primeira parte do trecho se resume a novamente explicitar o
conteúdo da alternativa (a), sem retirar nenhuma conclusão da mesma, o
que só será feito no trecho (IV). A tese ontológica segundo a qual todas as
coisas simultaneamente são e não são, resulta, no nível lógico-semântico, que
se afirmamos com verdade um predicado F de qualquer sujeito x de
predicação, então podemos negá-lo também com verdade, e vice-versa, se
negamos com verdade um predicado F de um sujeito x de predicação, então
podemos também afirmá-lo do mesmo sujeito com verdade. Em suma, no
nível lógico-semântico, todos os predicados contraditórios são
simultaneamente verdadeiros ditos de um mesmo sujeito qualquer. Isso
equivale, em nível ontológico, a defender que um mesmo sujeito ontológico
possui simultaneamente propriedades contrárias.84
A parte mais importante do trecho consiste em apresentar a versão
lógica da alternativa (b), antes apresentada em termos ontológicos. Embora
seja textualmente complexo, em sua estrutura o argumento é bastante
simples. Consiste em mostrar que a negação parcial do PTE consiste em
dizer que para certas coisas vale o que dissemos há pouco da alternativa (a),
ou seja, que sobre determinados sujeitos de predicação, a afirmação e a
negação são simultaneamente verdadeiras; mas, para outros sujeitos de
predicação, nem sempre a afirmação e a negação são simultaneamente
verdadeiras.
Em palavras mais próximas do texto, para certos sujeitos de
predicação pode-se negar com verdade aquilo que se afirma com verdade;
84
Neste ponto é importante relembrarmos que, na gramática filosófica de Aristóteles, não existem
propriedades contraditórias, pois as propriedades somente são contrárias. O que efetivamente
temos são predicados contraditórios, os quais formam enunciados ou proposições
contraditórias na forma de afirmações e negações.
A origem da ontologia na metafísica grega 343
mas, inversamente, nem sempre se pode afirmar com verdade aquilo que se
nega com verdade. Neste caso, haveria ao menos certas negações que são
verdadeiras sem que as afirmações que lhes são contraditórias também
sejam verdadeiras.
A parte mais obscura do trecho são suas palavras finais porque
trazem implícita uma teoria lógica aristotélica exposta em outros textos.
Retomemos o trecho para esclarecê-lo em seus pressupostos implícitos: “E
se é assim, <então> haverá algo que certamente não é, e esta seria uma
opinião segura, e se o não-ser de algo é seguro e também cognoscível, então
a afirmação oposta <a esta negação segura> seria ainda mais cognoscível.”
Aristóteles quer dizer aqui que se o adversário nega apenas parcialmente o
PTE ao admitir que há negações verdadeiras, então ele também já terá de
admitir que há certas afirmações verdadeiras.
Isso é assim porque, para Aristóteles, toda negação pode ser convertida
em uma afirmação com predicado indefinido. Em termos mais simples e
usando um exemplo bastante comum do próprio Aristóteles: se é verdadeira
a negação que diz ‘a diagonal de qualquer quadrilátero não é comensurável
com qualquer de seus lados’ (ou, em sua forma simplificada, ‘a diagonal não
é comensurável’), então é verdade a afirmação que diz ‘a diagonal de
qualquer quadrilátero é não-comensurável com qualquer de seus lados’ (ou,
em sua forma simplificada, ‘a diagonal é não-comensurável’). Mas essa
afirmação de um predicado indefinido equivale ao enunciado ‘a diagonal de
qualquer quadrilátero é in-comensurável com qualquer de seus lados’ (ou,
na forma simplificada ‘a diagonal do quadrado é in-comensurável’). Esses
passos nos mostram como uma negação verdadeira pode ser convertida em
uma afirmação verdadeira.
De modo análogo, embora com menos força lógica do que o exemplo
da diagonal, se é verdade que ‘O ser humano não é uma planta’, segue-se
dessa negação verdadeira a seguinte afirmação verdadeira: ‘O ser humano é
uma não-planta’. Esse tipo de conversão da negação em uma afirmação tem
uma menor força lógica do que no caso da diagonal porque a denotação da
expressão negativa ‘não-planta’ é necessariamente vaga, pois esse termo
indefinido contém uma infinidade de coisas em sua extensão. Em contraste,
o predicado ‘ser in-comensurável (com qualquer lado de um quadrilátero)’ é
um predicado “negativo” com sentido preciso que pode ser afirmado com
verdade de determinado sujeito lógico de predicação. Mesmo assim, isso não
nos impede a possibilidade lógica de atribuir um valor de verdade
344 Nazareno Eduardo de Almeida
determinado para o enunciado em que se encontra um termo indefinido
predicado de algum sujeito de predicação. Com isso, respeita-se a validade do
PTE mesmo neste tipo mais vago de enunciado, pois se é verdade que o ser
humano é uma não-planta, então não pode ser simultaneamente verdade que
ele é uma planta.
Esse exemplo nos mostra aquilo que já indicamos no contexto de
análise da primeira demonstração por refutação: que Aristóteles está
trabalhando com termos denotativos negativos da forma ‘não-X’,
principalmente como predicados indicadores de um certo não-ser daquilo a
que esses termos denotativos negativos se aplicam com verdade. A partir
desses esclarecimentos, percebemos ser suficiente para os propósitos do
argumento que o adversário admita a existência dessas negações
verdadeiras, pois neste caso já admite logicamente a existência das
afirmações verdadeiras formadas pelo processo de conversão acima descrito.
Por fim, de modo análogo ao trecho (II), o trecho (III) em análise é
suficiente para mostrar que se o adversário nega apenas parcialmente o PTE,
então ele não pode mais negar de modo forte o PNC, ou seja, ele já admite
que nem todas as coisas são contraditórias, o que já é uma demonstração por
refutação (indireta) da verdade do PNC. Note-se, de passagem, o uso de
termos epistemológicos como parte desta conclusão: ‘opinião’, ‘seguro’,
‘cognoscível’ e ‘mais cognoscível’. Isso mostra que Aristóteles não está apenas
operando seus argumentos no nível lógico, mas também no nível
epistemológico, mesmo que estejamos deixando esse nível dos argumentos
em segundo plano para simplificar sua exposição.
IV – Redução ao absurdo das duas possibilidades da negação total do
PTE
Chegamos, enfim, ao trecho (IV), o mais denso e complexo do
argumento, no qual Aristóteles retira as consequências absurdas derivadas
da negação total do PTE. Inicialmente, é interessante notar que essas
consequências absurdas (de certo modo, reiteradas na conclusão encontrada
no trecho (V)) da negação total do PTE são muito parecidas e em certos
casos coincidem com as consequências absurdas derivadas da negação forte
do PNC, ou seja, da tese do adversário segundo a qual todas as coisas são
contraditórias.
A origem da ontologia na metafísica grega 345
Para cercar todas as possibilidades do adversário, Aristóteles divide
em duas posições possíveis a negação total do PTE, mesmo que de ambas
estas posições derivem as mesmas consequências absurdas. Assim, essas
duas posições são, por assim dizer, dois caminhos distintos que chegam no
mesmo lugar. De um lado, haveria quem defende serem simultaneamente
verdadeiras a afirmação e a negação, mas proferidas separadamente, o que
simbolizei por (a1). Nesta posição, a negação total do PTE diria que o
enunciado afirmativo ‘João é humano’ é verdadeiro e, em seguida, diria que
também é verdadeiro o enunciado negativo contraditório àquele, ou seja,
‘João não é humano’ ou ‘João é não-humano’. Na terminologia do trecho
traduzido, essa é a posição que defende serem os enunciados contraditórios
verdadeiros proferidos separadamente. De outro lado, haveria quem defende
serem simultaneamente verdadeiras a afirmação e a negação proferidas
conjuntamente, ou seja, (usando o mesmo exemplo) a afirmação e a negação
expressas na forma ‘João é humano e não é humano’ ou ‘João é humano e
não-humano’. Simbolizei essa posição (a mais extremada das duas) por (a2).
É justamente esta posição que é primeiramente refutada.
A refutação da posição (a2) se apresenta por meio de duas
consequências absurdas dela derivadas. A primeira consequência (marcada
na tradução por (i)) consiste, inicialmente, em que esse adversário “não diz
esses <enunciados>”. Essa asserção breve significa: se afirmação e negação
são ambas verdadeiras ditas em conjunto, então o adversário está dizendo e
ao mesmo tempo desdizendo os enunciados que profere, em algo parecido
ao que na filosofia contemporânea recente se chama de ‘autocontradição
performativa’. Um exemplo de autocontradição performativa apropriado
para o nosso contexto atual é o seguinte: ‘eu não estou falando agora’ ou ‘eu
não estou lendo agora’.
Implicitamente, Aristóteles subentende aqui o que já explicitou na
introdução do argumento e que retomará na sua conclusão: quem se coloca
na posição de negar de modo completo o PTE não apenas profere
enunciados contraditórios, mas precisa também enunciar os enunciados
contraditórios desses contraditórios. Isso significa dizer que não basta que
esta pessoa diga ser verdade que ‘S é P e não é P’, mas ele também precisa
dizer que é verdadeira a negação dessa conjunção de contraditórios, ou seja,
que também é verdade dizer que ‘nem S é P nem não é P’. Esse é, em última
instância, o sentido implícito quando Aristóteles nos diz que esta pessoa
346 Nazareno Eduardo de Almeida
“não diz esses <enunciados>”; passagem que poderia ser vertida também
por “não assevera esses <enunciados>”.
Note-se que se pressupõe aqui um princípio lógico-semântico
fundamental, a saber: que toda asserção ou asseveração de um enunciado do
tipo ‘S é P’ ou ‘S não é P’ já possui uma pretensão de verdade intrínseca no
ato mesmo da asserção ou asseveração. Essa pretensão de verdade das
asserções ou asseverações que está implícita no proferimento dos
enunciados afirmativos ou negativos pode ser explicitada do seguinte modo:
‘É verdade que (S é P)’ ou ‘É verdade que (S não é P)’. Portanto, em termos
lógicos, o ato de asseverar ou asserir enunciados (afirmativos ou negativos)
não possui um oposto. Só há duas possibilidades epistemológicas para o ato
de asseverar ou asserir enunciados: o erro (ou engano) e a mentira. No
primeiro caso, a própria pessoa ou outra reconhece – em determinado
momento posterior ao ato da asseveração – que sua asserção inicial era falsa,
embora não soubesse disso ao proferi-la. No segundo caso, quem mente já
tem conhecimento, mesmo que esconda isso de outrem, do enunciado que é
verdadeiro. Assim, embora seja evidente que existem enunciados
verdadeiros e falsos que se opõem na forma ‘S é P’ e ‘S não é P’, é também
evidente que não há um oposto lógico-semântico do ato de asseverar ou
asserir, ato que, portanto, sempre e necessariamente carrega uma pretensão de
verdade. Em suma, no nível lógico-semântico, não existe nem pode existir
uma pretensão de falsidade.
No caso limite que estamos analisando aqui, aquele que nega de
modo total o PTE vai contra a própria natureza da asseveração presente em
qualquer enunciado predicativo e, por isso, não diz os enunciados que
profere, ou melhor, diz e simultaneamente desdiz o que disse. Essa situação
extrema leva Aristóteles ao extremo dessa posição: se, hipoteticamente, essa
posição fosse verdadeira, então a pessoa que a assume teria de considerar
como verdadeiro o enunciado autocontraditório ‘eu não existo’, de sorte que
seria evidentemente paradoxal que algo que não existe (um não-ser) pudesse
falar e andar.
A segunda consequência absurda derivada dessa posição (marcada na
tradução por (ii)) é a reiteração de uma consequência já derivada tanto no
primeiro quanto no terceiro argumentos: que todas as coisas seriam uma só.
Conforme o exemplo dado por Aristóteles, não apenas os predicados
‘humano’, ‘deus’ e ‘barco’ poderiam ser ditos com verdade de uma mesma
coisa tomada como sujeito dessas predicações, mas também os predicados
A origem da ontologia na metafísica grega 347
contraditórios destes se diriam com verdade desta mesma coisa, ou seja, os
predicados ‘não-humano’, ‘não-deus’ e ‘não-barco’. Pois se é verdadeira a
conjunção de dois enunciados contraditórios e também a negação dessa
conjunção, então não há nada capaz de distinguir – na própria realidade
referida pela linguagem – as múltiplas coisas que denotamos através de
termos distintos. Aqui, novamente, intervém a necessidade da unidade da
significação que vimos no primeiro argumento como uma condição
absolutamente necessária para a existência do pensamento e da linguagem,
tanto individualmente quanto em comunidade. Portanto, a negação total do
PTE (como contrapartida necessária da negação forte do PNC) é
completamente absurda (= impossível ou necessariamente falsa) porque
destruiria nossa pressuposição basilar sobre a existência de coisas distintas,
cada uma das quais possui seus critérios de identidade ontológica que estão
na base de sua identificação pelo pensamento e pela linguagem.
Na parte final do trecho (IV), Aristóteles refuta rapidamente a
posição (a1), que parece querer evitar essas consequências absurdas ao
defender a verdade de afirmações e negações contraditórias separadamente.
Contudo, esse desvio é natimorto, pois dessa posição também se seguirá a
consequência (ii). Portanto, se quem adota essa posição evita o absurdo
lógico de desdizer o que diz em um mesmo enunciado (como caso mais
agudo da autocontradição performativa), essa pessoa não pode evitar a
consequência ontológica de serem todas as coisas uma única coisa só, o que
contraria nossas intuições comuns e nosso modo de falar cotidiano. Mas,
segundo Aristóteles, essa posição ainda deriva a consequência absurda de
acordo com a qual todas as pessoas simultaneamente dizem a verdade e
todas essas mesmas pessoas mentem, de modo que se conclui que a defesa
dessa posição é também falsa.
Já falamos sobre essa consequência (associada principalmente ao
relativismo de Protágoras) em nossa análise resumida do capítulo 6 no texto
básico deste capítulo. Mas essa mesma consequência também será analisada,
de outro ângulo, no capítulo 7 e, sobretudo, no capítulo 8, que encerra o
Livro IV. O tratamento desta consequência no capítulo 8 pode ser expresso
de modo muito resumido da seguinte maneira: se uma determinada pessoa
A diz que determinada coisa x é F e outra pessoa B diz que essa mesma coisa
x não é F, temos o caso que os enunciados contraditórios são ditos
separadamente. Mas se ambos os enunciados são verdadeiros, ambos estão
falando a verdade. Contudo, se a pessoa A disser que o enunciado dito pela
348 Nazareno Eduardo de Almeida
pessoa B é falso, então o enunciado dito pela pessoa A tem de ser
verdadeiro; e, inversamente, se a pessoa B disser que o enunciado dito pela
pessoa A é falso, esse enunciado terá de ser verdadeiro. Deste modo, todos
dizem a verdade e todos mentem. Na realidade, essa é uma formulação do
paradoxo do mentiroso, para o qual Aristóteles apresenta, de modo muito
sucinto, uma solução no capítulo 8 do Livro IV, mas sobre isso não temos
como falar aqui.85
V – Conclusão geral do argumento
A partir dessas várias refutações, a parte (V) do trecho citado conclui
o que já antecipara na introdução do argumento. Essa conclusão – expressa
com certo acento dramático – é similar àquilo que já havia sido dito do
adversário na introdução do capítulo 4, onde o Estagirita apresenta o
sentido geral da demonstração por refutação: se o adversário não responde
aquilo que lhe é perguntado, enquanto assim procede, é semelhante a uma
planta. Entretanto, no contexto do quarto argumento, o suposto adversário
do PNC e do PTE prossegue falando em defesa de uma posição que o
conduz a destruir sua própria possibilidade de falar com sentido e com
verdade com outras pessoas e consigo próprio. Por isso, de acordo com o
Estagirita, é inútil argumentar contra quem defende a negação total do PTE,
pois para ser coerente com essa negação deve sempre desdizer aquilo que
disse inicialmente. Um tal adversário estaria, por assim dizer, fora dos limites
do pensamento e do discurso racionais, pois ao negar de modo total o PTE,
destrói a distinção básica entre afirmação e negação, indo contra a própria
pretensão de verdade necessária para asserir ou asseverar qualquer enunciado
afirmativo ou negativo. Somente se ele se colocasse na posição de uma
negação parcial do PTE ainda seria possível algum possível diálogo com este
adversário, mas neste caso ela já estaria pressupondo que há algo determinado
no mundo e que ao menos em certos debates sobre certas coisas seria possível
distinguir quem diz a verdade e quem não.
Para além da engenhosidade lógica e filosófica contida no quarto
argumento, sua importância se encontra na visão clara de que a versão
aristotélica do PNC está intimamente associada à sua versão do PTE. Isso
mostra, de forma a meu ver definitiva, o equívoco de uma parte dos/das
85
Apresento uma análise detalhada do modo como esse argumento é desenvolvido nos capítulos
7 e 8 em DE ALMEIDA, Nazareno E. Uma solução aristotélica para o paradoxo do mentiroso
em Metafísica IV, 8. Veritas, v. 58, n. 3, 2013, p. 429-466.
A origem da ontologia na metafísica grega 349
intérpretes ao acreditar que a defesa do PTE estaria restrita aos capítulos 7-8
deste texto. Com efeito, ao final deste argumento, fica claro que a negação
forte do PNC equivale à negação total do PTE e que, por isso, ambos são as
duas faces de um mesmo princípio primário.
3.3. Conclusão da análise dos três argumentos: o sentido henológico
presente na defesa do PNC
Depois dessa análise de três argumentos (dentre os sete) em defesa do
PNC e do PTE no capítulo 4 do Livro IV da Metafísica, confirmamos algo
que dissemos antes: que a ontologia aristotélica não é apenas uma ciência dos
conceitos fundamentais, mas também uma ciência dos princípios
fundamentais. Contudo, mostramos que o capítulo 2 consegue fazer essa
ampliação da ontologia de uma ciência do ser enquanto ser para uma
ciência de todos os conceitos fundamentais ao aplicar a teoria da
significação focal não apenas ao conceito de ser, mas também ao conceito de
unidade e, a partir deste, aos demais conceitos fundamentais de algum
modo a eles referidos. Como dissemos, isso mostra que e como a ontologia
de Aristóteles engloba em si os conceitos de ordem henológica tratados na
metafísica grega anterior.
Mas essa incorporação dos conceitos henológicos em sua ontologia
também se encontra na segunda parte do Livro IV, na qual se defende que
essa é também uma ciência dos princípios fundamentais. A partir das
análises que fizemos, podemos perceber que o conceito de unidade é
fundamental nos três argumentos que acabamos de analisar. No primeiro
argumento, é justamente através da defesa da necessária unidade da
significação pertencente aos termos denotativos que se torna possível
demonstrar por refutação o PNC. Essa unidade da significação é marcada
pela necessidade de todo termo denotativo significar algo uno e não apenas
significar de algo uno, ou seja, que um termo denotativo precisa possuir
algum sentido unificado e por si mesmo, ainda antes de sua aplicação como
predicado dito de alguma coisa. No segundo argumento, a demonstração por
refutação do PNC está intimamente associada à defesa da necessária
existência da unidade e identidade ontológicas das propriedades finitas que
compõem a substância/essência de algo, contrastada com a multiplicidade (e
mesmo infinidade) das propriedades acidentais que este mesmo algo possui
ou pode possuir. Assim, a necessária unidade lógico-semântica da
350 Nazareno Eduardo de Almeida
significação dos termos denotativos (defendida no primeiro argumento)
aponta para a existência necessária de algum tipo de unidade ontológica das
coisas denotadas por esses termos (sua essência/substância), unidade
ontológica esta que evita uma regressão ao infinito na ordem das
predicações (conforme defendido no segundo argumento). Por fim, no
quarto argumento, através dos absurdos derivados da negação total do PTE,
a defesa do PNC passa pela defesa da necessária unidade da afirmação e da
negação, sem as quais não se poderia distingui-las e também não seria possível
distinguir verdade e falsidade. A unidade da afirmação e da negação é
necessária para que nosso discurso sobre o mundo possa ter algum sentido e
algum valor de verdade na medida em que corresponde ou não corresponde
às formas de unidade que pertencem à própria realidade sobre a qual
falamos.
Curiosamente, nesses três argumentos (e também em outros),
Aristóteles reitera que a negação forte do PNC (e do PTE) acaba por
conduzir o adversário para uma posição metafísica denotada por meio de
uma expressão originalmente forjada por Heráclito: que todas as coisas são
uma (hen panta einai). Em reação a esta posição henológica e ontológica
considerada absurda e contraintuitiva, Aristóteles defende sua própria
posição ontológica e henológica, na qual procura estabelecer a ligação entre
as noções de ser, unidade e identidade da totalidade dos entes determinados
pelos princípios da não-contradição e do terceiro excluído, os quais, para
Aristóteles, exigem a defesa da existência necessária da unidade, do ser e da
identidade em seus sentidos primários: justamente a unidade, o ser a
identidade que se encontram nas substâncias e essências.
Portanto, de modo análogo a como vimos em Parmênides e Platão, a
ontologia de Aristóteles não seria possível sem um uso peculiar dos conceitos
da linhagem henológica da metafísica antiga. Em certo sentido, a própria
formulação ontológica do PNC que aparece no capítulo 3 e que é defendida
nos argumentos que acabamos de analisar é marcada pelo papel proeminente
da noção henológica de identidade, uma vez que nessa formulação se repete
por três vezes a noção de ‘mesmo’ (to auto). Retomando essa formulação, ela
nos diz: “é impossível que a mesma <propriedade> simultaneamente
pertença e não pertença ao mesmo <sujeito ontológico> segundo o mesmo
<aspecto>.” Por conseguinte, o PNC pode contar como um princípio
ontológico fundamental porque também é um princípio henológico
fundamental, na medida em que estabelece, ao modo aristotélico, a
A origem da ontologia na metafísica grega 351
identidade necessária para qualquer entidade efetivamente existente no
mundo.
Assim, apesar de suas severas críticas a Parmênides, aos eleatas e a
seu mestre Platão, Aristóteles prossegue em novas bases a defesa da relação
necessária entre ser, identidade e verdade que esses antecessores de sua
ontologia já haviam inicialmente discutido, cada qual a seu modo. A partir
desse entrelaçamento entre os conceitos ontológicos e henológicos, torna-se
mais compreensível que Plotino (e os neoplatônicos que o sucederam)
tenham proposto em sua metafísica de orientação henológica um tipo de
síntese que consolida a posição de Parmênides, Platão e Aristóteles como os
filósofos fundamentais da metafísica antiga, prosseguindo o longo caminho
que os conduz ao mundo medieval e moderno, chegando até nós. Essa
narrativa filosófica reforça a sugestão de aprofundarmos a perspectiva
interpretativa recente que redescobre e nos faz ver que a metafísica antiga,
mesmo quando se apresenta inicialmente como uma ontologia, nunca
prescinde dos conceitos henológicos na construção efetiva de suas teses e de
seus argumentos.
◆ APÊNDICE ◆
UMA TRADUÇÃO DO LIVRO IV DA METAFÍSICA, CAPÍTULOS 1-6
Observações gerais sobre a tradução
Como no caso da tradução dos fragmentos do poema de Parmênides,
também esta tradução é feita pelo fato de eu ter assumido uma determinada
interpretação do texto de Aristóteles em maior ou menor medida distinta de
outras. O texto grego para esta tradução é aquele estabelecido por David Ross:
Aristotle Metaphysics; vol. 1. Oxford: Clarendon, 1996 (1924). Contudo, a
divisão das partes em parágrafos é distinta daquela sugerida nesta edição.
Mantive as partes acrescentadas por meio dos parênteses angulares (‘<...>’)
para que se perceba claramente as opções interpretativas sempre necessárias
nas traduções dos textos de Aristóteles – famosos por sua extrema concisão – e,
em particular, na Metafísica. Em alguns casos esses acréscimos são apenas
de caráter didático e apenas explicitam algo que está bastante claro no
contexto onde aparecem. Em outros casos, porém, esses acréscimos são
fruto de uma perspectiva particular de interpretação filosófica dos contextos
nos quais são inseridos. Como já dito na apresentação deste livro, uso os
parênteses retos (‘[...]’) com a abreviatura ‘sc.’ (do latim ‘scilicet’, que significa
‘a saber’ ou ‘isto é’) para marcar breves esclarecimentos que tornam o texto
mais claro para a leitura e evitam o uso de notas de rodapé. Também uso o
mesmo tipo de parênteses para marcar as divisões da numeração Bekker, que é
consensualmente adotada para a divisão e referência do texto original.
Contudo, essa numeração é apenas aproximativa, pois a estrutura do grego em
A origem da ontologia na metafísica grega 353
geral e do grego de Aristóteles em particular impõe modificações na ordem da
construção das frases para torná-las de mais fácil leitura no português e evitar
complexidades para além daquelas de ordem conceitual e argumentativa. Em
alguns casos, os parênteses retos aparecem na sequência do texto porque
marcam certas passagens postas em dúvida por David Ross em sua edição do
texto. Traduzi todas essas passagens, mantendo a marcação das dúvidas
lançadas por este editor do texto grego original.
Os termos gregos são postos entre parênteses comuns (‘(...)’).
Relacionado com isso, a menção de termos e partes de frases no grego visa
mostrar as inevitáveis escolhas de tradução e tornar mais claras tais opções.
Em particular, procurei mencionar todas as ocorrências do verbo
‘hypolambanô’ (e termos correlatos), bem como dos verbos ‘anapherô’ e
‘anagô’ (e termos correlatos) porque eles têm sido traduzidos diversamente por
diferentes intérpretes. De modo similar, marco várias das ocorrências do verbo
‘symbainô’ quando utilizado por Aristóteles diretamente associado ao conceito
de acidente (symbebêkos). De minha parte, em quase todas as vezes em que
ocorre, traduzo o verbo ‘hypolambanô’ (e correlatos) por ‘ter por verdadeiro’
enquanto sinônimo de uma de suas traduções mais comuns por ‘acreditar’. No
tocante ao verbo ‘anapherô’, traduzo-o sempre por ‘fazer remissão a’. No
tocante ao verbo ‘anagô’ (e termos correlatos), traduzo-o por ‘referir a’ ou
‘fazer referência a’. Marquei sua tradução porque eles são verbos decisivos para
compreender um aspecto fundamental da noção de significação focal. No
tocante a outros termos técnicos recorrentes, procurei o quanto possível
padronizar sua tradução, evitando variações possíveis, mesmo que ao preço de
tornar essa versão do texto um pouco repetitiva em relação a outras versões.
Por fim, no que diz respeito ao verbo ‘symbainô’, (conforme o que já foi
explicado no capítulo sobre Aristóteles) procurei enfatizar que sua tradução
através da noção de ‘o que vem/ocorre junto com’ torna mais claro o sentido
básico do já clássico conceito de acidente, entendido por Aristóteles, de modo
geral, como denotando aquelas propriedades (e os predicados que as
representam na linguagem) que vêm/ocorrem junto com o que é por si mesmo
(identificado com as noções de essência e substância).
Além disso, não apresento aqui a tradução dos capítulos 7-8 do texto
porque os deixei de fora da exposição e dos aprofundamento e discussões, de
modo que uma tradução dos mesmos acabaria por estender este livro
desnecessariamente com partes não tratadas e que possuem dificuldades
próprias. Ademais, somente introduzi notas de rodapé quando absolutamente
354 Nazareno Eduardo de Almeida
necessário. Por fim, embora tenha tentado apresentar uma tradução o mais fiel
possível segundo a perspectiva de interpretação que defendo, por vezes escolhas
inevitáveis da tradução tiveram mais um espírito didático do que filosófico,
especialmente por tal tradução não poder ser acompanhada de notas
explicativas e visar um público iniciante.
A origem da ontologia na metafísica grega 355
TRADUÇÃO DO LIVRO IV (GAMA) DA METAFÍSICA, CAPS. 1-6
Capítulo 1
[1003a 20] Há uma ciência que teoriza o ser enquanto ser (to on hê(i)
on) e as <propriedades> que lhe pertencem por si mesmo. Ela não é idêntica
a nenhuma das chamadas <ciências> particulares, pois nenhuma destas
examina o ser enquanto ser de modo universal; mas, delimitando [25]
alguma parte deste [sc. do ser enquanto ser], teorizam sobre esta parte o
<que é> acidental (to symbebêkos) <ao ser enquanto ser>, como, por
exemplo, no caso das ciências matemáticas. E dado que procuramos os
princípios e as causas mais elevadas, é evidente que estes, necessariamente,
são <princípios e causas> de certa natureza por si mesma. Se também os que
investigavam os elementos dos seres estavam à procura desses princípios,
necessariamente estes elementos [30] eram do ser não por acidente, mas
<do ser> enquanto ser. Por isso, também nós devemos tratar das primeiras
causas do ser enquanto ser.
Capítulo 2
[1003a 33] O <termo> ‘ser/ente’ se diz em múltiplos sentidos (to on
legetai pollachôs), mas <é dito> em relação a algo uno (pros hen) e <em
relação> à certa natureza una/única (mian tina physin) e não de modo
homônimo (mê homônymôs). Assim como todas as coisas saudáveis [35]
estão em relação com a saúde (ou por preservá-la, ou por produzi-la, ou por
ser sinal de saúde ou por ser apta a recebê-la) [1003 b 1] e <assim como
todo> o medicinal está em relação com a medicina (pois ou é dito medicinal
por possuir <a arte> medicinal, ou por ser naturalmente apto a ela, ou ainda
por ser obra da medicina); e ainda podemos encontrar outras coisas ditas do
mesmo modo; [5] assim também o <termo> ‘ser/ente’ é dito em múltiplos
sentidos, mas todos eles em relação a um único princípio (pros mian
archên): pois as <coisas> são ditas ‘seres’ (onta) ou porque são substâncias
(ousiai), ou porque são afecções (pathê) da substância, ou porque são
caminho (hodos) para a substância, ou <porque são> corrupções (phthorai)
356 Nazareno Eduardo de Almeida
ou privações (sterêseis) ou qualidades (poiotêtes) ou produtoras (poiêtika) ou
geradoras (gennêtika) da substância, ou então das <coisas> que são ditas em
relação à substância, ou ainda <porque são> [10] negações (apophaseis)
destas <coisas> ou da substância: por isso também dizemos que o não-ente
(to mê on) é não-ente. Com efeito, assim como há uma única ciência de
todas as coisas saudáveis, do mesmo modo também nos outros casos
<similares>. Pois é próprio de uma única ciência teorizar não apenas as
coisas ditas de acordo com algo uno (kath’hen legomenon), mas também as
coisas que são ditas em relação a uma única natureza (pros mian legomenôn
physin), pois, de certo modo, estas coisas também [15] são ditas segundo
algo uno.
Portanto, é evidente que os entes serão teorizados por uma única
<ciência> enquanto entes. Em todos os casos e principalmente, a ciência é
acerca do que é primário, aquilo do que as outras coisas <de um gênero>
dependem e pelo que são ditas <serem parte deste gênero>. Assim, se esta
coisa [sc. primária sobre todos os gêneros de ser] é a substância, o filósofo
deverá possuir <o conhecimento> dos princípios e causas das substâncias.
Para todo e cada um dos gêneros há uma única sensação [20] e uma única
ciência; assim, por exemplo, a gramática, sendo uma única <ciência>,
teoriza todas as palavras (phonai); por isso também do ser enquanto ser há
uma ciência única por gênero que teoriza suas espécies e também as espécies
das espécies.
O ser e a unidade são idênticos e uma única natureza por
acompanharem um ao outro (assim como princípio e causa), mas não como
se fossem expressos [25] por uma única explicação/definição (heni logo(i))
(embora não faça diferença se assim os concebêssemos, o que até facilitaria
o trabalho). Pois é o mesmo ‘um humano’ e ‘humano’, e também ‘humano
que é’ (anthrôpos ôn) e ‘humano’, e nada diferente é significado pela
expressão ‘um homem’ ampliada em ‘um homem que é’ (e é evidente que
<ser e unidade> não se distinguem nem na geração [30] nem na corrupção
<de alguma coisa>); e do mesmo modo no caso do que é uno. Portanto, é
manifesto que o acréscimo nestas <expressões> significa a mesma <coisa>, e
que a unidade não é nada distinto para além do ser. E ainda: que cada
substância é una não por acidente, e do mesmo modo é um certo tipo de ser.
Por conseguinte, tantas quantas são as espécies de unidade, tais são também
<espécies> do ser, acerca das quais cabe [35] à mesma ciência teorizar o que
é <cada uma delas>. Digo, por exemplo, acerca <das espécies de unidade
A origem da ontologia na metafísica grega 357
que são> o idêntico, o semelhante e os outros <conceitos> deste tipo. E
quase [1004a 1] todos os contrários remetem (anagetai) a este mesmo
princípio; mas já teorizamos estas <remissões> no <tratado> Sobre a divisão
dos contrários.86
E tantas são as partes da filosofia quantos são <os tipos> das
substâncias, de modo que necessariamente haverá dentre elas alguma
<parte> primeira e assim por diante. Pois o ente [e a unidade] possuem [5]
imediatamente gêneros: por isso as ciências acompanham estes <gêneros>.
Pois o <termo> ‘filósofo’ é dito como o <termo> ‘matemático’, porque
também esta [sc. a matemática] possui partes, e uma <delas é> ciência
primeira e <outra parte é ciência> segunda e as outras seguem por
consecução (ephexês) nos conhecimentos matemáticos (mathêmasin).
Dado que uma <mesma ciência> teoriza [10] os contrários, e que à
unidade se opõe o múltiplo – cabe a uma <mesma ciência> teorizar a
negação e a privação porque ambas são teorizadas <como> negação e
privação de algo uno (pois ou dizemos que algo não existe em algo pura e
simplesmente [sc. negação] ou <que não existe> em algum gênero [sc.
privação]; neste último caso, acrescenta-se a diferença a alguma unidade, ao
contrário da unidade na negação, pois [15] a negação é ausência daquilo
<que é negado de alguma unidade> enquanto na privação subsiste alguma
natureza da qual a privação é predicada) –, segue-se que também os
contrários das noções supra mencionadas [sc. identidade, semelhança e
igualdade] (<ou seja>, a alteridade, a dessemelhança, a desigualdade e
quantos outros <conceitos> que são ditos ou segundo estes <conceitos> ou
segundo a multiplicidade e a unidade) [20] são objetos de conhecimento da
ciência sobre a qual estamos falando. Dentre estes <conceitos> também está
o <conceito> de contrariedade, pois a contrariedade é certo <tipo de>
diferença, e a diferença <é certo tipo de> alteridade. Por conseguinte, dado
que a unidade se diz em múltiplos <sentidos>, então também esses
<conceitos> serão ditos <em múltiplos sentidos>, e do mesmo modo todos
eles são objetos de conhecimento de uma única <ciência>. Porque não é por
serem ditos em múltiplos <sentidos que serão objeto> de distintas
<ciências>, mas apenas se as explicações <desses sentidos> não remetessem
[anapherontai] nem <a algum conceito que se diz> segundo algo uno [sc.
significação por sinonímia] nem <a algum conceito que se diz> [25] em
relação a algo uno [sc. significação focal]. E dado que todos <os sentidos
86
Este é o título de uma obra perdida de Aristóteles, da qual possuímos pouquíssimos fragmentos.
358 Nazareno Eduardo de Almeida
desses conceitos> estão em relação de remissão [anapheretai] com o
<sentido> primário – uma vez que todos os <sentidos do conceito> de
unidade são ditos em relação ao <sentido> primário de unidade – o mesmo
se deve dizer sobre <os sentidos dos conceitos de> identidade, alteridade e
dos <sentidos dos conceitos> que possuem contrários. Portanto, tendo
distinguido em quantos <sentidos> cada um <desses conceitos> se diz,
cumpre apresentar de que modo <esses sentidos> são ditos em relação ao
<sentido> primário em cada categoria <de ser>: alguns serão ditos [30] por
possuir aquele <sentido primário>, alguns por produzi-lo e alguns segundo
outros modos deste tipo. Portanto, é evidente que (conforme dissemos no
<Livro> das aporias [sc. Livro III, caps. 1 e 2]) é próprio de uma única
<ciência> possuir a explicação (logon) sobre estes <conceitos> e sobre a
substância (este era um dos problemas discutidos), e que é próprio do
filósofo [1004b 1] ter a capacidade de teorizar sobre todos <estes conceitos>.
Pois se não é <próprio> do filósofo, quem será aquele que examina se
é Sócrates e Sócrates sentado é <algo> idêntico; ou se para cada um <dos
conceitos há> um único contrário, ou ainda o que é o contrário ou em
quantos <sentidos> é dito? E de modo similar acerca dos outros
<problemas> deste tipo. [5] E, portanto, se estes <conceitos> são
propriedades (pathê) intrínsecas/por si mesmas (kath’hauta) da unidade
enquanto unidade e do ser enquanto ser, mas não <do ser e da unidade>
enquanto números ou linhas ou fogo, <então> é evidente que <é próprio
desta> ciência conhecer o que são aqueles [sc. o ser enquanto ser e a unidade
enquanto] e também os seus atributos (symbebêkota) [sc. os conceitos
mencionados]. E não é por não terem filosofado que erram aqueles que
investigaram estes <conceitos>, mas porque a substância é anterior <a todos
estes conceitos>, [10] e acerca dela nada disseram. E assim como há
propriedades próprias (idia pathê) do número enquanto número – tais como
paridade, imparidade, comensurabilidade, igualdade, excesso, falta – e estas
<propriedades> pertencem aos números, tanto <tomados> por si mesmos
quanto <tomados> uns em relação aos outros (e, do mesmo modo, há
outros <atributos> que são próprios ao sólido e ao imóvel [15], e também ao
que se move, ao que tem peso e ao que não tem peso); assim também há
certos <atributos> próprios ao ente enquanto ente, acerca dos quais <cabe>
ao filósofo investigar a verdade.
Um sinal <disso é o seguinte>: os dialéticos e os sofistas se revestem
da mesma figura <peculiar> ao filósofo, pois a sofística é uma sapiência
A origem da ontologia na metafísica grega 359
(sophia) apenas aparente, e os dialéticos [20] dialogam sobre todos <os
conceitos antes apresentados>. <O tema> comum a todos eles [sc. filósofos,
dialéticos e sofistas] é o ser, e dialogam sobre estes <conceitos> porque
evidentemente eles são próprios da filosofia. Portanto, a sofística e a dialética
se voltam ao mesmo gênero <de objetos> que a filosofia. Porém, uma [sc. a
dialética] difere da <filosofia> pelo modo de sua capacidade e a outra [sc. a
sofística] [25] pela escolha do modo de vida: a dialética é apenas capaz de
ensaiar (peirastikê) acerca do que a filosofia é capaz de conhecer (gnôristikê),
enquanto a sofística <é conhecimento> em aparência, não sendo real
<conhecimento>.
Além disso, na série dos contrários, um dos dois é privação <do
primeiro>, e todos se referem (anagetai) ao ser e ao não ser, assim como à
unidade e à multiplicidade, como, por exemplo, o repouso <se refere> à
unidade e o movimento <se refere> à multiplicidade. E os entes e a
substância, [30] quase todos <os filósofos anteriores> estão de acordo que
são compostos a partir dos contrários; mas, efetivamente, todos <eles>
dizem que os princípios são contrários: pois alguns <dizem ser os
princípios> o par e o ímpar, outros o quente e o frio, outros o limite e o
ilimitado, e outros a amizade e o ódio. E também todos <estes contrários> e
ainda outros parecem se referir (anagomena) à unidade e à multiplicidade
(assumimos <como verdadeira> [1005a 1] esta referência (anagôgê)); de
modo que, universalmente, os princípios <propostos> da parte dos outros
<filósofos> recaem nestes <dois> gêneros [sc. ser/não-ser e
unidade/multiplicidade]. Por conta disso, é evidente que <é próprio> de
uma única ciência teorizar o ser enquanto ser. Pois todos <os princípios> ou
são contrários ou provêm de contrários, mas os princípios dos contrários
<são> a unidade [5] e a multiplicidade. Estes [sc. unidade e multiplicidade]
<são tema> de uma única ciência, quer sejam ditos segundo algo uno
(kath’hen legetai) [sc. de modo sinônimo], quer não <o sejam>, como de fato
é o caso. Mas mesmo se a unidade é dita em múltiplos <sentidos>, todos os
outros <sentidos> serão ditos em relação ao <sentido> primário [sc. por
meio da significação focal], e de igual modo os contrários <destes sentidos>.
[E também por isso] se o ser e a unidade não são algo universal e idêntico
em todos <os seres> ou [10] algo separado (como de fato não o são), porém
<são ditos> em relação a algo único (pros hen) ou por consecução (tô(i)
ephexês) <a partir de algo uno>. Por causa disso, não <é próprio> do
geômetra teorizar o que <são> o contrário ou o completo/perfeito (teleion)
360 Nazareno Eduardo de Almeida
ou a unidade ou o ser ou o idêntico ou a alteridade, a não ser de modo
hipotético (ex hypotheseôs).
Com efeito, por causa <de tudo que se disse>, é evidente que <cabe>
a uma única ciência teorizar o ente enquanto ente e as <propriedades> que
pertencem a ele enquanto ente; e que ela teoriza [15] não apenas as
substâncias e <as propriedades> que lhe pertencem, mas também os
<conceitos> mencionados [sc. não-ser, unidade, multiplicidade, identidade,
alteridade etc.] e ainda <os conceitos> de anterior e posterior, gênero e
espécie, todo e partes, assim como todos os outros <conceitos> deste tipo.
Capítulo 3
[1005a 18] Devemos agora dizer se <é próprio> de uma única ou de
diferentes ciências <teorizar> sobre o que nas matemáticas se denomina de
‘axiomas’ e sobre [20] a substância. É evidente que a investigação destes é
<própria> de uma única <ciência>: a <ciência> do filósofo. Pois <os
axiomas> pertencem (hyparchei) a todos os seres e não <apenas aos seres>
de algum gênero separado e distinto dos demais. Com efeito, todos <os
investigadores> fazem uso <dos axiomas> porque são <próprios> do ser
enquanto ser, e cada um dos gêneros [25] <é gênero de> ser. Contudo, cada
qual <dos investigadores> os usa até onde lhes é suficiente, isto é, até onde se
estende o gênero sobre o qual realizam suas demonstrações. Por
conseguinte, dado ser evidente que <os axiomas> pertencem a todas as
coisas enquanto entes (pois isto [sc. o ser] é o comum a todas elas), <é
próprio> de quem procura o conhecimento sobre o ser enquanto ser
também a teoria sobre estes <axiomas>. Por isso, nenhum dos que
examinam alguma parte <do ser> se dedica a dizer algo sobre eles, se são
verdadeiros ou não, nem o geômetra nem o aritmético; mas apenas alguns
dentre os <filósofos> físicos parecem fazê-lo, pois consideravam serem os
únicos a examinar o todo da natureza e o ser. Todavia, há alguém acima do
físico (pois a natureza é um gênero particular do ser), <de modo que>
àquele que teoriza [35] sobre <o ser> de modo universal e sobre a substância
primeira [1005b 1] também seria <próprio> o estudo destes <axiomas>,
dado que a física é certa sapiência (sophia), mas não <sapiência> primeira.
Quanto àqueles que discutem sobre a verdade <dos axiomas/princípios>, de
que modo se deve aceitá-la, assim o fazem por causa de sua falta de
educação (apaideusian) acerca dos Analíticos: pois sobre estes
<axiomas/princípios> se deve [5] chegar com conhecimento prévio
A origem da ontologia na metafísica grega 361
(proepistamenous) e não <os> procurar enquanto escutam <estes
argumentos>. Portanto, é evidente que <é próprio> do filósofo – aquele que
teoriza acerca da substância enquanto tal (hê(i) pephyken) em sua totalidade
– também fazer a investigação sobre os princípios das inferências
(syllogistikôn archôn).
Àquele que possui o conhecimento mais elevado acerca de cada
gênero <de ser> convém dizer os princípios mais seguros [10] da coisa
(pragmatos) <que investiga>, de modo que também aquele <que possui o
conhecimento mais elevado> sobre os entes enquanto entes <deve dizer> os
<princípios> mais seguros de todos <os entes>. E este é o filósofo. E o
princípio mais seguro de todos é aquele acerca do qual é impossível estar
enganado (diapseusthênai): pois necessariamente um tal <princípio> é o
mais conhecido <de todos> (uma vez que em todos <os casos> nos
equivocamos sobre as coisas que não conhecemos) e também <é um
princípio> não-hipotético (anypotheton). [15] Pois aquele <princípio> que
necessariamente deve possuir quem compreende (xynienta) qualquer um
dos entes não é uma hipótese; mas aquilo que necessariamente se há de
conhecer ao se conhecer qualquer coisa, necessariamente já se possuía ao
chegar <ao conhecimento>. Com efeito, é evidente que este é o mais seguro
de todos os princípios.
Qual é este <princípio>, digamo-lo após estes <esclarecimentos>: é
impossível a mesma <propriedade> pertencer e [20] não pertencer
simultaneamente ao mesmo <sujeito> segundo o mesmo <aspecto> (e
quantos outros acréscimos que possamos aduzir contra as querelas lógicas).
Este é, dentre todos, o mais seguro dos princípios, pois contém as
determinações antes ditas. Com efeito, é impossível que qualquer pessoa
tenha como verdade/acredite (hypolambanein) que a mesma <coisa> é e não
é, conforme [25] algumas pessoas julgam ter dito Heráclito. Pois não é
necessário que alguém também acredite/tenha como verdade
(hypolambanein) aquelas <coisas> que diz. Se não é possível que as
<propriedades> contrárias pertençam simultaneamente ao mesmo <sujeito>
(acrescentando-se a esta proposição/premissa (protasei) as costumeiras
<determinações contra as querelas lógicas>), <e se> é contrária a uma
opinião a opinião (doxa) da <crença> contraditória, <então> é manifesto
que é impossível que a mesma <pessoa> simultaneamente [30]
acredite/tenha por verdade (hypolambanein) que a mesma <coisa> é e
<simultaneamente> não é; pois <neste caso> possuiria simultaneamente as
362 Nazareno Eduardo de Almeida
opiniões contrárias quem estivesse enganado (ho diapseusmenos) sobre isto.
Por causa <de tudo que se disse>, todos os que fazem demonstrações
(apodeiknyntes) se referem (anagousin) a esta a esta crença/opinião (doxa)
última; pois, por natureza, este é o princípio de todos os outros axiomas.
Capítulo 4
[1006a 35] Conforme dissemos, há alguns que afirmam ser possível
[1006b 1] a mesma <coisa> ser e não ser, e também <afirmam> acreditar
nisto/ ter isto como verdade (hypolambanein houtôs). Valem-se deste
discurso muitos dos que <teorizam> sobre a natureza. Nós, ao contrário,
acabamos de assumir como sendo impossível que <algo> simultaneamente
seja e não seja, e através deste <discurso> mostramos que [5] este é o
princípio mais seguro de todos. Alguns, por causa de sua falta de educação
(apaideusian), pedem que este <princípio> seja demonstrado; pois é falta de
educação o não conhecer de quais <coisas> se deve procurar uma
demonstração e de quais não se deve; uma vez que é impossível haver
demonstração de todos <os princípios>, dado que se regrediria ao infinito, e
deste modo nem mesmo haveria demonstração. [10] Mas se de alguns
<princípios> não se deve buscar demonstração, tais <pessoas> não teriam
como dizer <qual> princípio julgam mais do que este <não ser
demonstrável>.
Contudo, há como demonstrar por refutação (apodeixai elenktikôs)
que isto [sc. a negação do princípio] é impossível, conquanto o adversário
diga algo (ti legê(i)); porém se nada <diz>, é ridículo procurar discutir
contra quem nenhum discurso sustenta, enquanto não o sustenta, [15] pois
este seria, enquanto assim permanece, semelhante a uma planta. Mas digo
que demonstrar por refutação é diferente de demonstrar <em sentido
estrito>, porque quem quisesse demonstrar <o princípio> pareceria estar
cometendo petição de princípio [sc. usando nas premissas o que se deve
concluir]; mas em sendo tal petição de outra <pessoa>, haveria uma
refutação e não uma demonstração. Todavia, o ponto de partida contra
todos os <adversários> deste tipo não é demandar que digam que algo [20] é
ou não é (pois rapidamente um tal <adversário> compreenderia (hypolaboi)
ser isto uma petição de princípio); mas, antes, <deve-se demandar> que
signifique algo para si mesmo e para outrem (sêmainein ti kai autô(i) kai
allô(i)), pois isto é necessário se <ele> quer dizer algo. Pois se <assim> não
<o fizesse>, para uma tal <pessoa> não haveria discurso, nem de si para si
A origem da ontologia na metafísica grega 363
mesma, nem em relação a outra <pessoa>. Porém, se este <adversário>
concede isto [sc. dizer/significar algo para si e para outrem], <então> haverá
demonstração, pois já haverá algo [25] determinado (hôrismenon). Contudo,
o responsável [sc. pela petição de princípio] não é quem demonstra, mas
quem se submete <à argumentação>, pois ao destruir o argumento (logon)
<o adversário> se submete ao argumento. Ademais, quem conceder isto [sc.
significar algo para si e para outrem] terá concedido que há algo verdadeiro
sem demonstração [, de modo que nem tudo seria assim e não assim].
Primeiramente, é evidente que isto é verdadeiro em si mesmo: que o
termo denotativo (onoma) [30] significa o ser ou o não ser de algo
determinado (todi), de modo que nem tudo seria assim e não assim. Assim,
se o <termo denotativo> ‘humano’ (anthrôpos) significa algo uno (sêmainein
hen), <então digamos que> seja isto o ‘animal bípede’. Digo que o ‘significar
algo uno’ é o seguinte: se ‘humano’ é tal coisa [sc. por exemplo, animal
bípede], <e> no caso de algo ser humano, então tal coisa será o ser para
humano (to anthrôpô(i) einai). (E não faz diferença se alguém disser que
<um termo denotativo> significa várias <coisas>, [1006b 1] desde que sejam
limitadas, pois neste caso, para cada enunciado explicativo (logo(i)) se
estabeleceria um outro termo denotativo (onoma). Quero dizer <com isso>,
por exemplo, que se se disser que o <termo> ‘humano’ não significa algo
uno, mas muitos <enunciados explicativos>, dentre os quais um deles é o
enunciado explicativo uno ‘animal bípede’, mesmo havendo vários outros
<enunciados explicativos do termo ‘humano’>, desde que limitados em
número [5], então, neste caso, se estabeleceria um termo denotativo próprio
para cada um desses enunciados explicativos. Contudo, se não se
estabelecesse, mas se se dissesse <que ‘humano’> significa infinitas <coisas>,
então é claro que não haveria nenhum enunciado explicativo <para
‘humano’>; pois o não significar algo uno é significar coisa nenhuma, uma
vez que <se> os termos denotativos não são significantes, destrói-se <a
possibilidade de> dialogar com os outros e, na verdade, consigo mesmo,
[10] pois não é possível pensar (noein) coisa nenhuma se não se pensa algo
uno, mas se é possível <pensar algo uno>, então se estabeleceria um termo
denotativo único para a coisa <que é pensada>). Assim sendo, conforme foi
dito no início, o termo denotativo (onoma) significa algo e significa algo
uno: de modo que não é possível que o ser para humano (to anthrôpô(i)
einai) signifique exatamente aquilo que <significa> o não ser para humano
(anthrôpô(i) mê einai), se o <termo> ‘humano’ não apenas significa de algo
364 Nazareno Eduardo de Almeida
uno, [15] mas também <significa> algo uno (pois não admitiremos isto:
<equivalerem> o significar algo uno (to hen sêmainein) e o <significar> de
algo uno (kath’ henos), pois neste caso <os termos denotativos> ‘músico’,
‘branco’ e ‘homem’ significariam uma só <coisa>, de modo que <se
admitirmos isso> todas coisas serão uma única (hen hapanta estai), pois
<serão ditas> sinônimas). E não acontecerá de a mesma coisa ser e não ser,
senão por homonímia, como se aquilo que [20] chamamos ‘humano’, outros
chamassem ‘não humano’. Mas o problema não é isto: se é possível,
simultaneamente, que um mesmo <ente> seja humano e não seja humano
<segundo> a designação (to onoma), mas <segundo> a coisa (to pragma)
<que é designada>. Assim, se não significam <algo> distinto o <termo>
‘humano’ e o <termo> ‘não humano’, é evidente que o não ser para humano
<também não será distinto> do ser para humano, de modo que [25] serão
<idênticos na realidade> o ser para humano e o não ser para humano, dado
que serão uma única coisa. Pois isto é o que significa o ser uma só coisa (to
einai hen): como no caso de ‘traje’ e ‘roupa’, se o enunciado explicativo
(logos) <da mesma coisa designada por nomes distintos> é um único;
<analogamente> se forem uma só coisa, significam algo uno o ‘ser para
humano’ e o ‘não ser para humano’. Mas foi mostrado que significam
<coisas> distintas.
Ora, necessariamente, se é verdade dizer que algo é humano, <então
este algo> é animal [30] bípede (pois foi isto que <estabelecemos> como
significado do <termo> ‘humano’). Mas se isto é necessário, então não é
possível que este mesmo <algo> não seja animal bípede (pois é isto significa
o ‘ser necessário’: o ‘ser impossível não ser’). Por conseguinte, não é possível
enunciar com verdade que o mesmo <algo> simultaneamente ‘é humano’ e
‘não é humano’. E o mesmo [1007a 1] argumento <vale> para o ‘não ser
humano’: pois o ‘ser para humano’ e o ‘não ser para humano’ significam
<coisas> distintas, tanto quanto o ‘ser branco’ e o ‘ser humano’ significam
<coisas> distintas, pois muito mais se opõem aqueles [sc. o ‘ser para
humano’ e o ‘não ser para humano’] do que <estes> [sc. o ‘ser humano’ e o
‘ser branco’]; portanto, <o ‘ser para humano’ e o ‘não ser para humano’>
significam <coisas> distintas.
Porém, se <o adversário> afirma que [5] o <termo> ‘branco’ significa
uma mesma coisa <que o termo ‘humano’>, novamente enunciaremos o que
antes foi dito: que todas as coisas serão uma única (hen panta estai) e não
apenas as coisas opostas (ta antikeimena). E se isso não é possível, segue-se o
A origem da ontologia na metafísica grega 365
que foi dito, desde que responda o que foi perguntado. Contudo, se
acrescentar ao que é simplesmente perguntado também as negações <do que
responde>, então não responde [10] ao que foi perguntado. Pois nada
impede que a mesma <coisa> seja humano, branco e milhares de múltiplas
outras coisas. Entretanto, ao ser perguntado se é verdade enunciar que isto é
humano ou não é, deve responder algo com significado único (to hen
sêmainon) e não acrescentar que também é branco e grande. E dado que é
efetivamente impossível enumerar os infinitos seres [15] acidentais (apeira
onta ta symbebêkota), então que se enumere todos ou <não se enumere>
nenhum. De modo similar, no presente caso, se a mesma <coisa> é milhares
de vezes humano e não-humano, ao ser perguntado se é humano, não deve
responder que também é ao mesmo tempo não-humano, a não ser que
responda aqueles outros <predicados> que ocorrem junto com (symbebeke)
<este mesmo algo>: quantas coisas <este algo> é ou não é, mas se [20] fizer
isso não dialoga.
De modo geral, os que argumentam deste modo destroem a
substância (ousian) e a essência (to ti ên einai). Por conta disso,
necessariamente eles sustentam que todas <as coisas> são acidentais
(symbebêkenai), e aquilo que precisamente é o ser para o humano ou para o
animal <simplesmente> não existem. Pois se há algo que é precisamente o
ser para o humano, isto não será <o mesmo que> o ser para o não humano
ou o não ser para o humano [25] (pois estas são as negações daquele [sc. do
que é precisamente o ser para o humano]): pois era algo uno o que
significava <o termo denotativo>, e isto era a substância/essência (ousia) de
algo. Com efeito, significar a substância/essência <de algo> é <dizer> que
nada outro é o ser para esta mesma coisa (to ti einai autô(i)). Mas se forem o
mesmo aquilo que precisamente <é> o ser para o humano e aquilo que
precisamente <é> o ser para o não-humano ou que precisamente <é> o não-
ser para humano, então <o ser da própria coisa> será outro, de modo que
para eles será necessário [30] dizer que de coisa nenhuma há uma definição
(logos) deste tipo [sc. do ser da coisa em si mesma], mas que todas as coisas
são por acidente (panta kata symbebêkos). Pois é nisto que se encontra a
distinção entre substância/essência e acidente: o branco ocorre juntamente
com (symbebêken) o humano que é efetivamente branco, mas <o ser para
humano> não é precisamente aquilo que (hoper) o branco é [sc. o ser para o
branco ou essência do branco]. Mas se tudo é dito por acidente (kata
symbebêkos legetai), não haverá nenhum <algo> primário sobre o qual <se
366 Nazareno Eduardo de Almeida
fala> (prôton to kath’hou), visto que o acidente [35] sempre significa um
predicado/propriedade (katêgorian) [1007b 1] de algum subjacente
(kath’hypokeimenou). Portanto, seria necessário ir ao infinito.
Mas isto [sc. a regressão ao infinito na ordem das predicações] é
impossível, pois não se pode conectar mais do que dois <acidentes> um ao
outro, uma vez que o acidente não é acidente de um acidente, a não ser
porque ambos ocorrem juntamente/são acidentes (symbebêke) em um
mesmo <sujeito>; digo, por exemplo, que o branco é músico e este [sc, o
músico] é branco [5] porque ambos ocorrem juntamente/são acidentes
(symbebêken) no humano. Porém, não é deste modo que Sócrates é músico,
como se ambos ocorressem junto com (symbebêken) algum outro <sujeito>.
Dado que os acidentes ora são ditos neste <sentido>, ora naquele outro,
aqueles que se dizem <no sentido> como o branco <dito> de Sócrates não
podem ser infinitos na direção para cima, como se <fosse possível>
acrescentar ao <sujeito> Sócrates-branco [10] algum outro acidente, pois
<deste modo> não se gera algo uno (ou gignetai hen ti) a partir <da soma>
de todos <os acidentes>. Portanto, não será possível que algo outro seja
acidente do branco, como por exemplo o músico, pois este [sc. músico] não
é mais acidente daquele [sc. do branco] do que aquele [sc. branco] deste [sc.
de músico]. Ao mesmo tempo, está determinado que algumas coisas são
acidentais deste modo, mas algumas outras <são acidentais> como o
musical em Sócrates; e aqueles acidentes <ditos> deste <último> modo não
[15] são acidentes de acidentes, apenas aqueles <ditos do primeiro modo>.
Portanto, não se poderá afirmar que tudo é por acidente; e, por conseguinte,
haverá algo que significa substância/essência (ousian). E se é assim, está
demonstrado que é impossível que se possa predicar (katêgoreisthai)
simultaneamente <e com verdade> os <predicados> contraditórios <de um
mesmo sujeito>.
Ademais, se todos <os enunciados> contraditórios são
simultaneamente verdadeiros <ditos> da mesma <coisa>, é evidente que
[20] todas as coisas serão uma única/serão uma só (hapanta estai hen). E
assim <será> o mesmo um barco87, um muro e um humano, se de cada uma
e de todas as coisas for possível afirmar e negar <um mesmo predicado>,
87
No texto original, Aristóteles usa o termo ‘triêrês’, que significa, literalmente, ‘trirreme’. Este
termo era o nome de um tipo de navio que era movido por uma sequência de três remos
superpostos em cada um dos seus lados. Para simplificar e facilitar a compreensão, usamos
aqui o termo genérico ‘barco’ uma vez que este termo, em seu uso comum, compreende o tipo
de navio antigo que era o trirreme.
A origem da ontologia na metafísica grega 367
conforme necessariamente dizem aqueles <que seguem> o discurso de
Protágoras. Pois se parece a alguém que um ser humano não é um barco, é
evidente que não é um barco; assim como também é <um barco>, caso [25]
a contradição <fosse> verdadeira. E também surgiu a partir <da tese de que
todas as coisas são uma só> o <discurso> de Anaxágoras, <segundo o qual>
todas as coisas estão misturadas (homou panta chrêmata), de modo que
nenhuma coisa realmente existe <por si mesma> (mêthen alêthôs
hyparchein).
De fato, parecem falar sobre o indefinido (aoriston), e julgando falar
do ser, <na realidade> falam do não-ser, uma vez que o ser em potência (to
on dynamei) e não <o ser> em efetividade (entelecheia(i)) é o indefinido.
Entretanto, estes mesmos <adversários do princípio> têm de acolher, ao
menos, em relação a todas <as coisas> [30] a afirmação ou a negação: pois
seria absurdo se pertencesse a cada <coisa> sua própria negação e não
pertencesse a ela a <negação> do que é distinto e não pertence <a ela>;
quero dizer com isso, por exemplo, que se é verdade enunciar <de um>
humano que não é humano, <então> evidentemente também <é verdade
enunciar> ou que é um barco ou <que> não é um barco. Com efeito, se
<pertence a ele> a afirmação [sc. que este humano não-humano é um
barco], necessariamente também <pertencerá> a negação [35] [sc. que este
humano não-humano não é um barco]; e se não pertence a afirmação [sc. se
não se admite que o humano não-humano é também um barco], ao menos a
negação pertencerá [1008a 1] mais do que a sua própria [sc. que este
humano não-humano é mais propriamente não-barco do que não-humano].
Portanto, se também esta [sc. sua própria negação na forma ‘este humano
não é humano’] pertence <a ele>, então pertencerá a <negação> de ser um
barco, mas se esta [sc. a negação de ser um barco] pertence a ele, então
também pertencerá a afirmação [sc. que este homem não-humano é
também um barco].
Com efeito, estas são as consequências para os que defendem tal
discurso [sc. da necessária contradição de todas as coisas], e também que
não é necessário ou afirmar ou negar. Pois se é verdade que <algo é>
humano e [5] <que é> não-humano, <então> evidentemente também será
<verdade dizer> que não é humano nem não-humano, pois para as duas
<afirmações correspondem> duas negações [sc. nem humano, nem não-
humano]; e se se forma uma <afirmação> composta daqueles <enunciados>
juntos [sc. da afirmação e da negação], então esta última <negação> [sc. nem
368 Nazareno Eduardo de Almeida
humano e nem não-humano] seria a sua oposta. – A partir disso, ou todas
as coisas se comportam deste modo [sc. são necessariamente contraditórias]
(e <a mesma coisa, ao mesmo tempo,> é branca e não-branca, e também é e
não é (on kai ouk on), e no tocante às outras afirmações e [10] negações
ocorrerá do mesmo modo); ou não <é assim para todas as coisas>, mas, de
um lado, <é assim> para algumas coisas [sc. que são contraditórias], e, de
outro lado, não <é assim> para outras coisas [sc. que são não-
contraditórias]. E, portanto, se não é assim para todas as coisas, <então>
estas [sc. que não são contraditórias] seriam concedidas <pelo adversário>.
Mas, ao contrário disso <que se acaba de concluir>, se é assim para todas as
coisas, então ou daquilo de que se pode afirmar <com verdade algum
predicado> também se pode negar <com verdade o mesmo predicado> e
daquilo de que se pode negar <com verdade algum predicado> também se
pode afirmar <com verdade o mesmo predicado>; ou <de todas> aquelas
coisas de que se pode afirmar <com verdade algum predicado>, pode-se
também negar <com verdade este mesmo predicado>, mas de [15] nem
todas aquelas coisas sobre as quais se pode negar <com verdade algum
predicado> se pode também afirmar <com verdade este mesmo predicado>.
E se é assim, <então> haverá algo que certamente não é, e esta seria uma
opinião segura, e se o não-ser de algo é seguro e também cognoscível, então
a afirmação oposta <a esta negação segura> seria ainda mais cognoscível.
Mas se, de igual modo, de tudo que se pode negar <algum predicado>
também se pode afirmar, <então>, necessariamente, ou será verdade dizer
<a afirmação e a negação> separadas, como, por exemplo, dizer que <algo>
[20] é branco e, em seguida, dizer que não <é branco>, ou não <será
verdade>. E se não é verdade dizer em separado, <então este adversário>
não diz esses <enunciados> e, de fato, <ele próprio> não é coisa nenhuma [=
não existe] (estin outhen) (e como coisas que não-são (ta mê onta) poderiam
falar e andar?); e, ainda, todas as coisas seriam uma só, como já dissemos
anteriormente, e serão idênticos <os predicados> ‘humano’, ‘deus’, [25]
‘barco’ e os seus contraditórios [sc. ‘não-humano’, ‘não-deus’, ‘não-barco’]
(pois se cada um deles é o mesmo <que os outros>, nada haverá que os
diferencie uns dos outros, e se há algo que os diferencia, isto será verdadeiro
e próprio <de cada um deles>). Porém, se é verdade dizer <a afirmação e a
negação> separadamente, <então> também se segue o que foi dito [sc. que
todas as coisas são uma só]; e, além disso, <segue-se também> que todas as
pessoas estariam dizendo a verdade e todas estariam mentindo, e ele mesmo
A origem da ontologia na metafísica grega 369
[sc. o adversário] admite [30] estar mentindo. Disso tudo em conjunto, é
evidente que a discussão (skepsis) com esta <pessoa> não trata sobre nada,
pois ela nada diz. Nem diz que <as coisas> são assim, nem diz que não são
assim; mas <pretende dizer> que são assim e também não são assim, e, em
seguida, que não são assim nem não-assim; pois se não <defendesse essa
posição> já haveria algo determinado.
Além disso, se quando a afirmação [35] for verdadeira, a negação é
falsa, e quando esta [sc. a negação] for verdadeira, a afirmação é falsa,
<então> não seria <possível> afirmar e negar simultaneamente [1008b 1]
com verdade o mesmo <predicado>. Mas, certamente, <o adversário>
declararia que isto é o que provém do princípio [sc. é uma petição de
princípio] – E ainda, porventura, de que maneira estarão em erro
(diapseustai) os que têm por verdadeiro/acreditam (hypolambanôn) que
<algo> se comporta assim ou não assim, enquanto estaria na verdade quem
<acredita que algo se comporta> de ambos os modos? Se <este último> está
na verdade, o que seria o pretender dizer (legomenon) que tal ou qual é a [5]
natureza dos seres? Porém, se <este último> não está na verdade, mas está
mais na verdade aquele que acredita/tem por verdadeiro (hypolambanôn)
<que as coisas são assim ou não assim>, então os seres já se comportariam
de certo modo, e isto já seria verdadeiro, e não simultaneamente não
verdadeiro. Todavia, se de igual modo todas as pessoas mentem (pseudontai)
e dizem a verdade, <então>, para quem <acredita nisso>, nem será
<possível> pronunciar nem falar <tal tese>, pois simultaneamente diz estas
<palavras> e [10] não as diz [sc. pois também diz a verdade e mente
simultaneamente].
E se nada tem por verdadeiro (hypolambanei), e de igual modo julga
(oietai) e não julga <tal ou tal coisa>, em que se comporta diferentemente de
uma planta? A partir disso é manifesto no mais alto grau que ninguém está
em tal condição, nem dentre as pessoas em geral, nem dentre os que
argumentam por esta tese. Pois por que caminha para Mégara em vez de
permanecer em descanso, quando julga [15] que deve caminhar <para
aquela cidade>? <E Por que>, logo ao acordar, não caminha na direção de
um poço ou de um precipício, acaso os encontra, mas parece precaver-se
<de não fazer isso>, de forma que não julga de igual modo ser bom e
<simultaneamente> não bom <neles> cair? Portanto, é evidente que tem por
verdadeiro/acredita (hypolambanei) que um deles é melhor [sc. não cair] e o
outro não é melhor. E se é assim, necessariamente acredita/tem por
370 Nazareno Eduardo de Almeida
verdadeiro (hypolambanein) que certa coisa é humana e certa outra não é
humana [20] e que certa coisa é doce e outra não é doce. Por isso, não são
todas as coisas que procura e tem por verdadeiras (hypolambanei) de igual
modo; tal como quando julga melhor tomar água e ver certa pessoa e em
seguida vai em busca dessas coisas. Todavia, realmente deveria <fazer o
contrário> se era <sua crença que algo> de igual modo é humano e não
humano. Mas, conforme dissemos, não parece <haver> ninguém que [25]
esteja precavido diante de (eulaboumenos) algumas coisas e de outras não.
Por conseguinte, ao que parece, todas as pessoas têm por verdadeiro
(hypolambanousin) que <as coisas> se comportam de determinado modo
(haplôs); e se não <é assim> acerca de todas as coisas, ao menos no que
concerne ao melhor e ao pior. E se <agem e julgam assim> por não terem
conhecimento (epistamenoi), mas com base na opinião (doxadzontes), muito
mais deveriam cuidar da verdade, tal como quem está doente <deve
preocupar-se mais com> a saúde do que quem está saudável; [30] pois quem
possui <apenas> opinião <sobre algo> em relação a quem tem
conhecimento <sobre este mesmo algo> está disposto em relação à verdade
como alguém que não está saudável.
E ainda, mesmo que todas as coisas se comportem assim e não-assim,
apesar disso o mais e o menos estão presentes na natureza dos entes, pois
nós não diríamos serem o dois e o três igualmente pares, nem <diríamos>
que se engana do mesmo modo quem julgar que [35] quatro <coisas> são
cinco e <quem julgar que quatro coisas> são mil. E se não <erram> do
mesmo modo, é evidente que um dos dois <erra> menos, de forma que está
mais próximo da verdade. E, com efeito, se <ocorre> [1009a 1] o estar mais
próximo, então haveria algo verdadeiro <por si>, do qual está mais próximo
quem está mais na verdade <do que no erro>. E se não há <algo verdadeiro
por si>, ainda assim já haverá algo mais seguro e mais verdadeiro <do que o
puro erro>, de modo que já estaríamos afastados deste discurso/argumento
(logon) desmesurado (akratou) que nos impede de definir alguma coisa
através do pensamento (dianoia(i)).
Capítulo 5
[1009a 6] Da mesma opinião também provém a tese/doutrina (logos)
de Protágoras, e necessariamente ambas são <verdadeiras> ou não são. Pois
se todos os objetos de opinião (ta dokounta) e todos os objetos que
aparecem (ta phainomena) forem verdadeiros, então, necessariamente, todas
A origem da ontologia na metafísica grega 371
<as opiniões e percepções> serão simultaneamente verdadeiras e falsas (pois
muitos acreditam/têm por verdade (hypolambanousin) <opiniões e
percepções> [10] contrárias uns em relação aos outros e eles consideram
estarem enganados aqueles que não têm opiniões idênticas às suas próprias;
do que se segue necessariamente que uma mesma coisa é e não é); e, se é
assim, necessariamente todos os objetos de opinião são verdadeiros (pois
opinam coisas contrárias uns aos outros os que estão na falsidade e os que
estão na verdade; de modo que se [15] os entes se comportam assim, todos
estarão na verdade). Que, efetivamente, do mesmo modo de pensar provêm
ambas as doutrinas (logoi) [sc. a do adversário anteriormente enfrentado e a
de Protágoras], é evidente.
Contudo, não é o mesmo o modo de se pôr contra todos os seus
defensores: alguns precisam ser persuadidos; outros, constrangidos. Os que
chegaram a ter tal <tese> como verdadeira (hypolabon houtôs) a partir de
dificuldades de investigação (ek tou aporêsai) podem ser facilmente curados
de sua ignorância (pois a contestação não é [20] contra seu discurso (pros
ton logon), mas contra seu pensamento (pros tên dianoian). Todavia, os que
assim argumentam pelo prazer de falar (logou charin legousin), a cura destes
é pela refutação (elenchos) do que é dito no discurso e em suas palavras.
Aos que <estão em erro> por causa de sua investigação (tois
diaporousin), foi a partir dos <entes> sensíveis que chegaram à opinião
segundo a qual os <enunciados> contraditórios e as <propriedades>
contrárias pertencem simultaneamente <às mesmas coisas> e ao observarem
que as <propriedades> contrárias [25] se geram a partir de um mesmo
<ente>.Com efeito, <assim raciocinaram>: se não é possível que o não-ser
gerar-se <a partir do ser>, <então> ambos preexistiam de igual modo no ser
da própria coisa (to pragma on). De acordo com <esse argumento>,
Anaxágoras disse que todas as coisas estão misturadas; e <também>
Demócrito, pois este <diz> que o vazio e o pleno subsistem igualmente em
toda parte, embora um destes seja ser [sc. o pleno] e o outro [30] é não-ser
[sc. o vazio]. Com respeito a estes que têm por verdadeira
(hypolambanontas) <esta opinião> a partir dessas <observações> diremos
que, de certo modo, falam corretamente, mas, de certo modo, estão na
ignorância: pois o ser se diz em dois <modos>, de tal forma que, em um
modo (tropon), é possível que algo <que é> surja a partir do não-ser, mas, de
outro modo, não <é possível>; e <, assim, é possível> que a mesma <coisa>
simultaneamente seja ente e não-ente, mas não segundo o mesmo <modo>,
372 Nazareno Eduardo de Almeida
pois [35] em potência (dynamei) é possível que uma mesma <coisa> seja
simultaneamente os contrários, mas em efetividade (entelecheia(i)) não <é
possível>. Além disso, demandaremos a eles que tenham por verdadeiro
(hypolambanein) que há outro tipo substância dentre os seres na qual, em
absoluto, não subsiste nem movimento, nem gênese, nem corrupção.
De modo semelhante, [1009b 1] no que concerne à verdade das
aparências (phainomena), alguns chegaram a <concebê-la> a partir dos
<seres> sensíveis. Julgam que a verdade <do que aparece> não chega a ser
decidida (krinesthai) nem pela maioria nem pela minoria <das pessoas>,
pois a mesma <coisa> parece ser a uns que a degustam doce, enquanto a
outros, amarga. Assim, que se todos adoecessem [5] ou todos ficassem
loucos (parephronoun), mas dois ou três estivessem saudáveis e na posse da
inteligência (noun), pareceria que estes estão doentes e loucos e os outros
<que efetivamente adoeceram ou enlouqueceram> não. Ademais, <alguns
sustentam> que a muitos dos outros animais [as mesmas <coisas>]
aparecem <de maneiras> contrárias <a como aparecem> para nós; e
também que para um mesmo indivíduo, em relação à mesma <coisa>, nem
sempre aparecem (dokein) as mesmas <propriedades> segundo <o tipo> de
sensação. Portanto, quais destas <aparências é> verdadeira [10] ou falsa,
torna-se algo obscuro, pois nenhuma delas é mais verdadeira do que a outra,
mas <todas> igualmente <são verdadeiras>. Por isso Demócrito disse que
ou nada é verdadeiro ou <a verdade> para nós é algo obscuro (adêlon).
De modo geral, <argumentam assim> porque tomam como
verdadeiro/acreditam (hypolambanein) que a razão (phronêsin) <é como> a
percepção (aisthêsin), e que esta é <idêntica à> alteração (alloiôsis), <e por
isso> afirmam que o que aparece (to phainomenon) conforme a sensação é
necessariamente verdadeiro. [15] Foi a partir dessas <pressuposições> que
Empédocles, Demócrito e, por assim dizer, cada um dos outros vieram a
acatar tais opiniões. Pois Empédocles afirma que transformando-se o estado
<corporal> transforma-se a razão (phronêsin) <como na seguinte frase>:
“pois em relação ao que está presente (pareon) <na percepção> cresce nos
seres humanos a sabedoria (mêtis).”88; e em outra <parte> diz que [20] “o
quanto alterando transmutam, assim para eles a razão (to phronein) de
modo alterado se apresenta.”89 E Parmênides declara do mesmo modo: “Pois
assim como cada <pessoa> possui uma mistura de membros errantes,
88
Fragmento 106 na numeração de Hermann Diels e Walter Kranz.
89
Fragmento 108 na numeração de Hermann Diels e Walter Kranz.
A origem da ontologia na metafísica grega 373
/assim a inteligência (noos) está presente nos seres humanos; pois o
mesmo /é aquilo que entende (phroneei) e a natureza dos membros nos seres
humanos, / [25] em todos e em cada um; pois o pensamento (noêma) é
pleno.”90 De Anaxágoras, pode-se recordar o dito (apophthegma)
pronunciado para alguns de seus discípulos, segundo o qual os entes seriam
para eles tais quais tiverem por verdadeiro/acreditarem (hypolabôsin). E
dizem que também Homero parece ter tido a mesma opinião, pois fez
Heitor, quando fora de si pelo ferimento <sofrido>, jazer com-pensamentos-
alterados (allophroneonta), como se os que estão desarrazoados/loucos
(paraphronounta) tivessem raciocínios (phronountas), mas não sobre as
mesmas <coisas>.91 É evidente que se ambos [sc. sensatos e loucos] <têm
igualmente> raciocínios (phronêseis), <então> também os seres se
comportam simultaneamente assim e não-assim.
Conquanto isso, o que resulta é gravíssimo, pois se os que mais
perscrutaram a verdade que nos é acessível – estes, de fato, [35] são os que
mais a investigaram e desejaram – têm essa opinião e declaram estas <teses>
acerca da verdade, <então> como não seria aceitável que desanimem os que
começam a filosofar? Pois <se estão certos>, procurar a verdade seria
<como> perseguir pássaros voando (ta petomena diôkein). [1010a 1] – Mas
a causa destes <pensadores> terem esta opinião é que embora tenham
investigado a verdade sobre os seres, tomaram como verdadeiro (hypolabon)
que os seres são apenas os <seres> sensíveis. Nestes, porém, subsiste de
modo intrínseco (enyparchei) em grande medida a natureza do indefinido
(aoristou) e do ser no modo como antes dissemos [sc. o ser em potência]. [5]
Por isso, de um lado, argumentam de modo verossímil (eikotôs), mas, de
outro, não argumentam de modo verdadeiro. (É assim que convém falar,
mais do que como Epicarmo contra Xenófanes).
Ademais, tendo observado que todas as coisas da natureza estão em
movimento, e <acreditando> que do que está em transformação nada de
verdadeiro pode ser dito, <concluíram> que não é possível dizer a verdade
acerca do que se transforma completamente em todos os aspectos. [10] E a
partir desta concepção (hypolêpseôs) proveio a opinião mais extremada
dentre as que foram mencionadas, aquela dos que afirmam heraclitizar
(hêrakleitidzein) e que foi sustentada por Crátilo, o qual acabou por julgar
90
Fragmento 16 na numeração de Hermann Diels e Walter Kranz.
91
Segundo as notas de David Ross ao trecho, a palavra ‘allophroneonta’ aparece na Ilíada, Livro
XIII, verso 698, mas não se refere a Heitor. Por isso, apesar da aparência, o trecho não é
considerado uma citação de Homero.
374 Nazareno Eduardo de Almeida
que nada deveria dizer, mas tão-somente apontar o dedo, e que censurou
Heráclito por ter dito que não é <possível> banhar-se duas vezes no mesmo
rio, [15] pois julgava que <não era possível> nem mesmo uma única vez.
De nossa parte, porém, em relação a estes argumento, diremos que o
que está em transformação, quando se transforma, dá algum suporte ao
argumento deles para julgar não ser <aquilo que se transforma>, embora tal
seja contestável, uma vez que o que está perdendo (apoballon) <algo de si>
mantém algo do que está sendo perdido, e necessariamente já é algo do que
está vindo a ser; e, em geral, [20] se algo está se corrompendo (phtheiretai),
<já> possuirá algum ser, e se algo está em geração (gignetai), aquilo a partir
do que é gerado necessariamente <já> é/existe, e isto não prossegue ao
infinito. Mas deixando esses <argumentos> de lado, podemos dizer que não
é o mesmo o transforma-se segundo a quantidade e segundo a qualidade: de
um lado, seja <concedido> que segundo a quantidade <a mesma coisa> não
é permanente; [25] mas, de outro, todas as coisas são por nós conhecidas
segundo a forma (eidos) [sc. a forma permanece constante ao longo das
transformações qualitativas]. Em seguida, porém, são dignos de ser
censurados os que têm por verdadeiras (hypolambanousin) estas <teses>
porque tendo observado dentre os <seres> sensíveis os que assim se
comportam e que são em menor número, defenderam acerca de todo o céu
<que se comporta> de igual modo; pois apenas em nosso lugar <dentro> do
<mundo> sensível <os seres> [30] estão em <contínua> geração e
corrupção, mas este <lugar>, por assim dizer, não é nem uma parte do todo;
de tal modo que seria mais justo, por causa daqueles <seres celestes>,
absolver estes <seres que nos cercam> do que, por causa destes, condenar
aqueles. Além disso, é evidente que contra estes <adversários> podemos
retomar aquilo que já foi dito antes [sc.1009a 36-38]: pois eles deverão
aceitar e ser persuadidos de que existe certa natureza imóvel/imutável
(akinêtos). [35] E, em verdade, segue-se para os que defendem que <tudo>
simultaneamente é e não é que deveriam afirmar que todas as coisas estão
em repouso e não que estão em movimento, pois <é neste caso que se pode
dizer que> todas as coisas subsistem em todas (hapanta hyparchei pasin).
[1010b 1] E no que concerne à verdade <devemos defender> que
nem tudo o que aparece (to phainomenon) é verdadeiro. Primeiramente, de
fato, se nenhuma sensação do que é próprio <a cada sentido> é falsa, a
imaginação (phantasia) não é idêntica à sensação. Além disso, são dignos de
espanto os que se colocam este <tipo> de problema: se as grandezas e as
A origem da ontologia na metafísica grega 375
cores são tais quais [5] estas aparecem aos que estão perto ou aos que estão
longe <das coisas percebidas>; e se <são tais quais aparecem> aos saudáveis
ou aos doentes; e se as coisas pesadas <são tais quais aparecem> aos fracos
ou aos fortes; e se são verdadeiras as <coisas que aparecem> aos que estão
dormindo ou aos que estão acordados. Que não julgam (oiontai) <essas
coisas assim>, [10] é manifesto: certamente ninguém, se tivesse por
verdadeiro (ean hypolabê(i)) à noite <, durante o sonho,> estar em Atenas
(mas estando, de fato, na Líbia), <ao acordar> caminharia para o Odeon. 92
Além disso, no que concerne às previsões, conforme nos diz Platão, sem
dúvida não têm a mesma autoridade a opinião do médico e a do ignorante
<na arte médica> sobre se alguém se tornará saudável no futuro. 93 E ainda,
dentre [15] as sensações, não têm igual autoridade as <que são> do <objeto>
alheio e as do <objeto> próprio <a cada sentido>, nem as que são de um
mesmo sentido e as que são de <um sentido> vizinho, mas a visão <tem
autoridade> sobre as cores, não o paladar, e o paladar <tem autoridade>
sobre o sabor, não a visão; e cada um dos <sentidos> nunca diz que o
mesmo <ente percebido>, ao mesmo tempo, se comporta assim e não assim.
Mas também em tempos [20] diferentes a afecção <do próprio> se mostra
discordante apenas no que tange ao acidente da afecção. Quero dizer, por
exemplo, que o mesmo vinho poderia aparecer – <caso> ele se
transformasse ou se o corpo <de quem percebe> se tivesse transformado –
como sendo doce ou como não sendo doce: mas o doce não se altera de
modo algum, tal como é quando <aparece>, mas é sempre verdadeiro [25]
acerca disso [sc. da doçura] e também, necessariamente, é de tal modo a ser
doce. Não obstante, aqueles <adversários do princípio> destroem estes
argumentos totalmente, dado que <para eles> não haverá substância de
coisa alguma, de maneira que nada é necessariamente nada, pois não é
possível que o necessário seja outra coisa e se comporte de outro modo; por
conseguinte, se algo necessariamente é, não se comportará de uma forma e
também [30] não desta forma.
De modo geral, se somente existe o <ente> sensível, coisa alguma
existiria se não existissem os <seres> animados, pois não existiria a
sensação. <Neste caso>, certamente é verdade que nem existiriam os <seres>
sensíveis nem as impressões sensíveis (aisthêmata) (pois estas são afecções
do senciente (aisthanomenou)). Todavia, é impossível que não existam os
subjacentes (hypokeimena) que produzem a sensação; e <precisam existir>
92
O Odeon era uma localidade perto da Acrópole de Atenas.
93
Este argumento aparece no diálogo Teeteto, 178b ss.
376 Nazareno Eduardo de Almeida
[35] sem a sensação. Com efeito, a sensação ela mesma não é <sensação> de
si mesma, mas é <sensação> de algo outro para além da sensação, e que
existe necessariamente antes da sensação, pois o que move é [1011a 1] por
natureza anterior ao que é movido; e ainda que estas coisas [sc. a sensação e
o sensível, o movente e o movido] sejam ditas umas em relação às outras,
<isto> em nada diminui <a verdade deste argumento>.
Capítulo 6
[1011a 3] Há alguns que colocam os seguintes problemas, seja dentre
os que estão persuadidos deles, seja dentre os que apenas argumentam por
argumentar: procuram saber [5] quem decide (krinôn) quem está saudável;
e, de modo geral, quem é capaz de decidir (krinounta) sobre cada <assunto>.
Todavia, colocar tais problemas é semelhante a problematizar se estamos
agora dormindo ou acordados. Mas todos esses problemas (aporiai) <têm> a
mesma <causa>: os que <os formulam> demandam que haja argumentação
(logos) <para demonstrar> todos <os princípios>, pois procuram um
princípio e só o aceitam [10] através da demonstração. Contudo, é manifesto
em suas ações que não estão persuadidos <disso>.
Mas, conforme já dissemos, esta é sua característica peculiar (to
pathos): procuram uma argumentação (logon) do que não há argumentação,
pois o princípio da demonstração não é uma demonstração. De um lado,
alguns deles seriam facilmente persuadidos disto (pois não é difícil
compreender isto [sc. que há princípios indemonstráveis]); [15] porém, de
outro lado, os que na argumentação estão à procura unicamente do
constrangimento (bian), procuram algo impossível; por isso consideram ser
válido (axiousin) dizer coisas contrárias, justamente por dizerem coisas
contrárias. Porém se nem todos <os entes> são relativos, mas se há alguns
<entes> que são em si e por si mesmos (auta kath’hauta), <então> nem tudo
o que aparece (to phainomenon) é verdadeiro, de modo que aqueles que
dizem que todas [20] as aparências são verdadeiras tornam todos os seres
relativos <à percepção>.
Por isso, aqueles procuram o constrangimento na argumentação e, ao
mesmo, tempo admitem se submeter à argumentação devem ter em conta
<o seguinte>: que o que aparece não é <pura e simplesmente verdadeiro>,
mas o que aparece <é verdadeiro> enquanto aparece, quando aparece,
enquanto <aparece> e como <aparece>. E ao se submeterem ao argumento,
mas sem [25] se submeterem deste modo, rapidamente terão como
A origem da ontologia na metafísica grega 377
consequência dizer coisas contrárias <ao que defendem>. Pois é possível que
a mesma <coisa> apareça como mel para a visão, mas não para o paladar; e
sendo os olhos dois, <é possível> que para cada um dos olhos não
<apareçam> as mesmas <coisas>, caso sejam desiguais [sc. que um veja
melhor que o outro]. Por isso e pelas causas que antes já dissemos, alguns
[30] defendem que o que aparece é verdadeiro, e que, por causa disso, todas
<as opiniões> são verdadeiras e falsas, <e defendem isto> porque para nem
todas as pessoas aparecem as mesmas <coisas>, nem para mesma <pessoa>
sempre <aparecem as mesmas coisas>, mas frequentemente <aparecem
coisas> contrárias ao mesmo tempo (dado que, <por exemplo>, de um lado,
o tato diz dois quando os dedos são cruzados, mas a visão <diz> um). –
Contudo, algo não <aparece de modos contrários> para a mesma <pessoa>
[35] segundo a mesma sensação, do mesmo modo e no mesmo tempo
[1011b 1]; de maneira que isto já seria verdadeiro <por si mesmo e não ao
mesmo tempo falso>. Mas justamente por isso é necessário àqueles que não
argumentam por causa do problema (aporian), mas <somente> pelo prazer
do argumentar, que digam que isto [sc. o que aparece] não é
<simplesmente> verdadeiro, mas verdadeiro para esta <pessoa
determinada>.
E, conforme dissemos antes, aqueles que tornam [5] todos <os entes>
relativos, necessariamente <dirão serem> relativos à sensação e à opinião; de
modo que nada teria surgido nem nada será <caso> ninguém tenha opinado
previamente (prodoxasantos) <sobre o que surgiu ou será>. Porém, se algo
surgiu ou será <sem que ninguém tenha opinado sobre isto, então> é
evidente que nem todos os entes seriam relativos à opinião. Ademais, se
<algo é> uno, <então é uno> em relação a algo uno (pros hen) ou em relação
a algo determinado (pros hôrismenon): e se o mesmo <ente> é metade e
igual, contudo, não <o é> em relação ao dobro e também ao igual. Assim, se
em relação a quem opina (to doxadzon) [10] é o mesmo um ser humano e o
conteúdo da opinião (to doxadzomenon), <então> não será um ser humano
quem opina, mas o conteúdo da opinião. E se cada <coisa> for relativa a
quem opina, <então> quem opina será relativo a <coisas> infinitas por
espécie.
Portanto, foram estabelecidas <as seguintes teses>: que a opinião
mais segura de todas (bebaiotatê doxa pasôn) é que enunciados opostos não
são verdadeiros simultaneamente; e o que acontece aos que [15]
argumentam assim e por que assim argumentam. Por isso, dado que é
378 Nazareno Eduardo de Almeida
impossível que os enunciados contraditórios (tên antiphasin) sejam ao
mesmo tempo verdadeiros ditos da mesma coisa, é manifesto que nenhuma
<das propriedades> contrárias pode pertencer (hyparchein)
simultaneamente à mesma <coisa>. Com efeito, uma das duas
<propriedades> contrárias não é menos <propriedade> que privação
(sterêsis), <sendo> privação da substância/essência (ousias); e a privação é
negação de algo de [20] algum gênero determinado. Por conseguinte, se é
impossível afirmar e negar simultaneamente de modo verdadeiro, <então> é
impossível que <as propriedades> contrárias existam simultaneamente, mas
ou ambas <existem> sob certo aspecto (pê(i)) <distinto da outra> ou uma
das duas <existe> sob certo aspecto e a outra <existe> pura e simplesmente
(haplôs).
BIBLIOGRAFIA
ANGIONI, Lucas. Princípio da não-contradição e semântica da predicação em
Aristóteles. Analytica, v. 4, n. 2, 1999, p. 121-158.
ANSCOMBE, Gertrude Elizabeth Margaret; GEACH, Peter. Three philosophers:
Aristotle, Aquinas and Frege. Ithaca/Nova Iorque: Cornell UP, 1961.
ARISTÓTELES. Aristotelis Categoriae et Liber de intepretatione; ed. Lorenzo
Minio-Paluello. Oxford: Clarendon, 2008 (1949).
__________. Aristotle’s Metaphysics, vol. 1; ed. Sir David Ross. Oxford: Clarendon,
1996 (1924).
__________. Metafísica de Aristóteles; trad. Giovanni Reale; Marcelo Perine; vol.
2. São Paulo: Loyola, 2000.
__________. Metafísica; trad. Vivianne de Castilho Moreira. Petrópolis: Vozes,
2024.
__________. Aristotle Metaphysics Books Gamma, Delta and Epsilon; trad.
Christopher Kirwan. Oxford: Clarendon, 1993.
AUBENQUE, Pierre. O problema do ser em Aristóteles: ensaio sobre a problemática
aristotélica; trad. Cristina de Souza Agostini, Dioclézio D. Faustino. São
Paulo: Paulus, 2012 (1962).
BRANDÃO, Junito. Dicionário mítico-etimológico, vol. 2. Petrópolis: Vozes, 2000.
COULOUBARITSIS, Lambros. L’être et l’un chez Aristote. Revue de Philosophie
Ancienne, vol. 1, n. 1, vol. 1, n. 2, 1983, p. 49-98; p. 143-195.
CORDERO, Néstor Luis. Sendo, se é: a tese de Parmênides; trad. Eduardo Wolf.
São Paulo: Odysseus, 2011.
380 Nazareno Eduardo de Almeida
CORNFORD, Francis. Principium sapientiae: as origens do pensamento filosófico
grego; trad. Maria M. R. dos Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1989.
COXON, Allan. The fragments of Parmenides. Las Vegas/Zurique/Atenas:
Parmenides Publishing, 2009 (1986).
DANCY, Russell. Sense and contradiction: a study in Aristotle. Dordrecht/Boston:
Reidel, 1975.
DE ALMEIDA, Nazareno Eduardo. A metafísica platônica como método das
Formas; Dissertatio, vol. 49, 2019, p. 175-245.
__________. Uma solução aristotélica para o paradoxo do mentiroso em
Metafísica IV, 8. Veritas, v. 58, n. 3, 2013, p. 429-466.
__________. Os princípios de verdade no Livro IV da Metafísica de Aristóteles.
Princípios, vol. 15, n. 23, 2008, p. 5-63.
DE SOUZA, Eliane Christina. Discurso e ontologia em Platão: um estudo sobre o
Sofista. Ijuí: Unijuí, 2009.
DIELS, Hermann; KRANZ, Walter. I presocatici; trad. Giovanni Reale et alii
(Grego-Italiano). Milão: Bompiani, 2012.
FERRARIS, Maurizio (org.) Storia dell’ontologia. Milão: Bompiani, 2008.
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert; JONES, Henry Stuart. Greek-English
Lexicon. Oxford: Clarendon, 1996.
LUKASIEWICZ, Jan. “Sobre a lei de contradição em Aristóteles”; trad. Raphael
Zillig. In ZINGANO, Marco (org.) Sobre a Metafísica de Aristóteles: textos
selecionados. São Paulo: Odysseus, 2005, p. 1-24.
MARQUES, Marcelo Pimenta. Platão, pensador da diferença: uma leitura do
Sofista. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2006.
McKIRAHAN, Richard. A filosofia antes de Sócrates; trad. Eduardo Wolf Pereira.
São Paulo: Paulus, 2013.
MOORE, Adrian William. The Evolution of modern metaphysics. Cambridge:
Cambridge University Press, 2011.
MORAVCSIK, Julius. Platão e platonismo: aparência e realidade na ontologia, na
epistemologia e na ética; trad. Cecília Camargo Bartalotti. São Paulo: Loyola,
2006.
MOURELATOS, Alexander. The Route of Parmenides. Las Vegas/Zurique/Atenas:
Parmenides Publishing, 2009 (1970).
A origem da ontologia na metafísica grega 381
NEF, Frédéric. Qu’est-ce que la métaphysique? Paris: Gallimard, 2004.
OWEN, Gwilym Ellis Lane. “Lógica e metafísica em algumas obras iniciais de
Aristóteles”; trad. Luis Márcio Nogueira Fontes. In ZINGANO, Marco
Antonio (org.) Sobre a Metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus, 2005,
p. 177-204.
PLATÃO. O sofista; trad. Henrique Murachco, Juvino Maia Jr. e José Trindade
Santos; introdução de José Trindade Santos. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
2011.
__________. República; trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste
Gulbenkian, 1996.
__________. Platonis opera, vols. 1, 2, 4; ed. John Burnet et alii. Oxford:
Clarendon, 1995 (1900-1907).
__________. O banquete; trad. José Cavalcante de Souza. São Paulo: editora Abril,
1973.
SOUZA, José Cavalcante (org.) Os pré-socráticos. São Paulo: Abril, 1973.
ZILLIG, Raphael. Significação e não-contradição: o papel da noção de significação
na defesa do princípio de não-contradição em Metafísica Gama 4. Analytica,
vol. 11, n. 1, 2007, p. 108-126.
ZINGANO, Marco (org.). Sobre a Metafísica de Aristóteles. São Paulo: Odysseus,
2005.
__________. Notas sobre o princípio de não-contradição em Aristóteles. Cadernos
de História da Filosofia e da Ciência, vol. 13, n. 1, 2003, p. 07-32.
FILOSOFIA
3 licenciatura a distância
A Origem da Ontologia na Metafísica Grega
A ORIGEM DA ONTOLOGIA
NA METAFÍSICA GREGA
Nazareno Eduardo de Almeida