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Teologia e Decolonial

O artigo discute a relação entre teologia, direitos humanos e pensamento decolonial, enfatizando a necessidade de uma teologia que reconheça a pluralidade cultural e religiosa. A proposta é de que a decolonização da teologia não apenas introduza novos conteúdos, mas também exija um novo tipo de teólogo, comprometido com a justiça social e os direitos humanos. O autor argumenta que o diálogo entre teologias progressistas e direitos humanos pode gerar práticas interculturais e emancipadoras.

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Teologia e Decolonial

O artigo discute a relação entre teologia, direitos humanos e pensamento decolonial, enfatizando a necessidade de uma teologia que reconheça a pluralidade cultural e religiosa. A proposta é de que a decolonização da teologia não apenas introduza novos conteúdos, mas também exija um novo tipo de teólogo, comprometido com a justiça social e os direitos humanos. O autor argumenta que o diálogo entre teologias progressistas e direitos humanos pode gerar práticas interculturais e emancipadoras.

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* HORIZONTE. Dossié: Religiao, Direitos Humanos e Direitos da Natureza - Artigo Original oO DOI ~ 10.5752/P.2175-5841.2017v15n47p697 Teologia, Direitos Humanos e Pensamento Decolonial Theology, Human Rights and Decolonial thinking Carlos Alberto Motta Cunha” Resumo No lvro Se Deus fosse um atvista dos ares humanos, Boaventura de Sousa Santos defende a dela de {que © didlogo entre os direitos humanos e as teologias progressstas é uma bea possibilidade para o esenvolvimento de préticas interculturais e emancipadoras (2014, p.113). Como a teologia pode contibuir para a reconstrusdo da humanidade dos direitos humans? A contemporaneidade com toda 2 sua complexidade reclama a construco de uma teologia consciente da pluralidade cultural ereligiosa capar de abracar dentro de seu horizante as experiéncias sécio-religiosas do conjunto da humanidade. A tatefa de decolonizar a teologia, e/ou de recriar seu contetido, n3o implica apenas uma novidade no objeto, mas exige também uma novidade no sujeito, ou sea, faz-se necessirio um nove tipo de tedlogo, com um novo tipo de consciénciae postura diante da atualidade. Na busca por respostas aproximativas, este artigo faz apontamentos sobre 0 processo necessério de decolonizagao da teologia cist almejando tuma inteleccdo da fé que seja publica e engajada nas causas do mundo e do humano. Palavras-chave: Teologia cristd. Direitos humanos. Teoria decolonial. Teologia publica. Teologia decolonial Abstract Inthe book If God were a human rights activist, Boaventura de Sousa Santos supports the idea that the Glalogue between human rights and progressive theologies provides a good opportunity for the development of intercultural and emancipatory practices (2014, p.113). How can theology contribute to the reconstruction of human rights? Contemporaneity, in all its complexity, demands the construction of 2 theology that is conscious of the religious and cultural plurality and capable of including in its horizon ‘the socio-religious experiences ofthe whole of humankind. The task of decolonizing theology and/or of recreating its contents is not only a new object of investigation, but also requires @ new kind of ‘theologian, with a new kind of conscience and posture before the current scenario. Searching for tentative answers, this article aims at raising @ few points concerning the necessary decolonization process of the Christian theology in order to produce a public intellection of faith that is committed to human and the world’s causes, Keywords: Christian theology. Human rights. Decoloni theology. theory. Publi theology. Decolonial ‘Artigosubmetdo em 22 de malo de 2017 e aprovado em 18 de setembro de 2017 Doutor em Teologia Sistemi pela AE, pesqusador do grupo de pesquisa Fé « Contemporanedade do CNPa e, atualmente, bobsta do PNPD da CAPES. Professor no PPG da FAIE no ISTA e autor de artigos elvros sobre teoogia de rontera numa prspectha ‘ecuméicae pba, Pais de Origem: Brasil. Email: calosamcO4@gmaiicom Horizonte, Belo Horizonte, v. 15, n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 697 Carlos Alberto Motta Cunha Introducao O décimo oitavo artigo da Declaragio Universal dos Direitos Humanos (DUDH) diz que: consciéncia e de religifo [...]”. Interessante como as palavras “pensamento”, “Toda pessoa tem direito 4 liberdade de pensamento, de “consciéncia” e “religiio” esto atreladas ao estado de ser livre. A liberdade para pensar/saber, ser/agir e crer, desde que nao prejudique o outro na relagio, 6 fundamental para 0 desenvolvimento nao s6 do individuo, com todas as suas particularidades, mas, sobretudo, para 0 cidadio que se coloca nos espagos piblicos de forma critica e construtiva. Revisitar a DUDH depois de 69 anos em que ela foi aceita pela Organizacio das Nagées Unidas (ONU), com 0 objetivo de discernir a crise da contemporaneidade e propor mudangas, parece ser um bom caminho para a teologia crista que almeja ter o que dizer/fazer nas culturas plurais da atualidade. A revisitagio engajada aos Direitos Humanos pressupde, por parte da teologia, 0 compromisso com a construcio de um novo mundo possivel onde a grande maioria da populacdo mundial deixa de ser objeto de discursos de direitos humanos para ser sujeito (SANTOS, 2014, p.15).. Boaventura de Sousa Santos defende a ideia de que o didlogo entre os direitos humanos e as teologias progressistas 6 uma boa possibilidade para o desenvolvimento de praticas interculturais e emancipadoras (SANTOS, 2014, p.113). A contemporaneidade com toda a sua complexidade reclama a construgio de uma teologia consciente da pluralidade cultural e religiosa capaz de abracar dentro de seu horizonte as experiéncias sécio-religiosas do conjunto da humanidade. A tarefa de decolonizar a teologia, e/ou de recriar seu contetido, niio implica apenas uma novidade no objeto, mas exige também uma novidade no sujeito, ou seja, faz-se necessdrio um novo tipo de tedlogo, com um novo tipo de consciéncia e postura diante da atualidade. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 698 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial Como a teologia pode contribuir para a reconstrugo da humanidade dos direitos humanos? A partir desta pergunta fundamental, buscamos fazer apontamentos sobre uma teologia decolonial compromissada com os direitos humanos e, ao mesmo tempo, critica de si mesma. Para este fim, primeiro, acolhemos as interpelagées feitas A teologia crist por Boaventura de Sousa Santos no livro Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos. No segundo momento, abordaremos a tarefa publica da teologia e, no terceiro e viltimo momento, clencaremos os desafios para a teologia com uma l6gica decolonial. 1 Deus, teologia e direitos humanos Gustavo Gutiérrez, tedlogo da libertagio, ao falar sobre a teologia como reflexo critica sobre a praxis, diz que a teologia crista “deve ser um pensamento critico de si mesmo, de seus proprios fundamentos” (GUTIERREZ, 2000, p.68). Espera-se que uma teologia relevante e libertadora seja capaz de romper com um modelo hegeménico com finalidades massivas e distorgdes de contetido. “O circulo hermenéutico de uma teologia libertada e libertadora deve passar pela suspeita sistematica” (SEGUNDO, 1978, p.252) e ideolégica a fim de manifestar até que ponto tal labor teolégico é um instrumento de colonizacao. Parece ser preocupante 0 crescente mimero de movimentos de renovacio (“renovaristas”, renewalists) que, ao contrario de uma teologia critica, reforgam modelos hegeménicos neoliberais e expansionistas dotados de uma postura evangelistica agressiva e conversionista. No Brasil, tais grupos esto presentes majoritariamente entre os pentecostais e “pseudo-pentecostais”! que, sem uma formagio critica, cooperam para a intolerdncia e priticas fundamentalistas. Por exemplo, Edir Macedo, lider da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), escreveu um livreto “A libertagiio da teologia” em que sugere ao fiel a niio se * speeudepentecostas”&0 nome dad por corentes de sociologa argentina 20 tratar sobre osurgimento da lgreja Universal do Reino de Deus ¢ congeners 2 partir da década de 1970. Eas igreasndo devem Ser compreendids como “neopentecostas", pols nao ha {elementos em comuns com um novo formato do pentecostalsma classic. A sua logics & de mercado e de sucesso. (CAVALCANTH, 2008), Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 699 Carlos Alberto Motta Cunha envolver com a reflexao critica e libertadora dos estudos da teologia (MACEDO, 1997). Crente sem formagio teolégica critica é sujeito 4 manipulagao ideolégica e sofre de raquitismo espiritual. No inicio da década de 1970, antes da TURD surgir, Juan Luis Segundo, importante tedlogo da teologia da libertagdo, publicou o livro “Libertagdo da Teologia” — curiosamente 0 mesmo titulo do livro do Macedo, mas com conteitdo completamente diferente -, onde afirma que as “teologias se distinguirdo e se oporiio metodologicamente ainda que nao o queiram nem sejam conscientes disso, segundo a maneira que tiverem de relacionar a mensagem cristd com ideias € condutas massivas ou minoritarias” (SEGUNDO, 1978, p. 248). Teologia digna ‘emerge do compromisso com a criagiio e com os seres humanos. O seu momento teologico, reflexivo, brota como ato segundo, posterior ao momento pré-teolégico, isto 6, como resposta aos dilemas por um mundo mais humano, justo ¢ fraterno. Esse tipo de teologia progressista tem desempenhado durante anos um “papel importante no reforgo do inconformismo perante a hipocrisia do pensamento e pritica convencional dos direitos humanos” (SANTOS, 2014, p.83). Coisa que a “teologia” (ideologia) da prosperidade, presente nos movimentos de renovagio, nao tem feito. A sua aproximagao com o fiel “é canalizada em processos individualistas, terapéuticos, visando 4 prosperidade financeira com fim em si mesma” (LIBANIO; CUNHA, 2011, p.92). Portanto, é a teologia progressista que possibilita um dislogo fecundo com 08 direitos humanos com 0 intuito de agdes propositivas. Boaventura de Sousa Santos afirma: que um didlogo entre os direitos humanos ¢ as teologias progressistas & no 86 possivel como provavelmente um bom caminho para desenvolver priticas verdadeiramente interculturais e mais _eficazmente emancipadoras. Por meio de um autoenriquecimento miituo, os direitos humanos as teologias politicas progressistas podem aprofundar o potencial emaneipador de ambos. O resultado seré uma ecologia de concepgdes de dignidade humana, algumas seculares, outras religiosas, Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 700 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial produto daquilo a que noutro lugar chamei hermenéutica diatépiea, um exerefcio de interpretagdo transformadora, orientada para a pritiea social ¢ politica, entre os topoi dos direitos humanos e os topoi da revelacao e libertagao das teologias politicas progressistas (SANTOS, 2014, p.113). A participagdo de teologias progressistas em foruns sobre direitos humanos tem sido uma constante. O didlogo entre teologias da libertacio e a luta por “outro mundo possivel” alimenta engajamentos teolégicos contextualizados social ¢ culturalmente. Um exemplo claro dessa relacdo pode ser visto no surgimento do Forum Mundial de Teologia e Libertacio (FMTL) que, desde 2003, juntamente com o Férum Social Mundial, insere-se “no novo contexto mundial de sensibilidade ecolégica, de pluralismo religioso, de movimentos sociais”. (SUSIN, 2006, p.9). 0 livro Teologia para outro mundo possivel, organizado pelo tedlogo Luiz. Carlos Susin, testifica sobre 0 esforgo da teologia em “contribuir para aprofundar a consciéncia critica de pessoas e grupos sociais concretos, oprimidos por formas igualmente muito concretas de relagdes desiguais de poder” (SANTOS, 2014, p.124). O livro faz um panorama da teologia ao redor do mundo levando em consideragao os contextos e propondo reflexes sobre: a) outro mundo possivel, b) Deus para outro mundo possivel, ¢) religiio para outro mundo possivel, e d) teologia para outro mundo possivel. Diversos tedlogos e tedlogas e pesquisadores de areas afins fazem apontamentos a partir de lugares subalternos. Santos reconhece a importancia de teologias progressistas no fomento da globalizacao contra-hegeménica, ou globalizagio a partir de baixo: Os movimentos sociais e organizagdes nao governamentais (ONGs) que, por meio de artieulagdes locais, nacionais e transnacionais, lutam contra 0 capitalismo e a. opressdo colonialista, a desigualdade social e a discriminagdo, a destruigao ambiental e de modos de vida decorrente da voracidade da extragio dos recursos naturais, a imposicio das normas, culturais ocidentais e a destruicdo das nao ocidentais causada ou agravada pela globalizacao hegeménica (SANTOS, 2014, p.32). A intelecgao da f8 que emerge desses espacos é marcada por uma teologia de fronteira. No 4mbito cultural, “fronteira” d4 a ideia da totalidade dos espacos existentes nas linhas fronteirigas entre os saberes. Segundo Homi Bhabha, as Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 701 Carlos Alberto Motta Cunha regides fronteirigas so ideais para a construgdo de identidades porque favorecem a num movimento de deslocamento e articulagio de diferengas cultura sobreposigio de diferengas. Segundo ele, “esses ‘entre-lugares’ fornecem o terreno para a elaboragdo de estratégias de subjetivacdo — singular ou coletiva — que dao infcio a novos signos de identidade e postos inovadores de colaboragio e contestagio” (BHABHA, 2013, p.20). Jé na linguagem teol6gica, 0 espago do “entre-lugares”, seria como um evento kairdtico, em que a esperanga do “além” entre os que dialogam, alimenta a expectativa da novidade por outro lugar. “f, ser parte de um tempo revisionario, um retorno ao presente para redescrever nossa contemporaneidade cultural; reinscrever nossa comunidade humana, histérica; tocar o futuro em seu lado de ca” (BHABHA, 2013, p.27). Santos assinala para a importancia dos lugares intermediarios como espago ideal para cooperacao conjunta (SANTOS, 2014, p.52). Teologias pluralistas progr de energia radical para as lutas contra-hegeménicas dos direitos humanos” (SANTOS, 2014, p.145). E mais: , que habitam espagos de fronteira, podem “funcionar como uma fonte ssi Desde os anos de 1960 tém vindo a emergir teologias pluralistas & progressistas e priticas religiosas baseadas na comunidade, para as quais Deus se revela no sofrimento humano injusto, nas experiéneias de vida de todas as vitimas de dominacio, opressio ou diseriminagio e nas lutas de resisténcia que elas promovem. Como consequéncia, prestar testemunho a este Deus significa denunciar este sofrimento e lutar contra ele. Tanto a revelacdo quanto a redencdo, ou antes, libertacao, tém lugar neste mundo, sob a forma de uma luta por outro mundo possivel. Aqui reside a possibilidade de ligar o retomo de Deus a um humanismo transmoderno conereto (SANTOS, 2014, p.112,113). Parafraseando Johann Baptist Metz, o Deus da teologia cristé nao é um Deus de conquistadores, mas um Deus dos marginalizados. O cristianismo e a sua teologia deve se despir da roupagem ocidental/colonial e assumir com o empobrecido (social, cultural, financeiramente e etc.) a “Iuta contra a opressio e 0 6dio que impedem vastas populagées em muitas partes do mundo de se tornar sujeitos e experimentar 0 mundo como coisa propria” (SANTOS, 2014, p.115). Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 702 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial 2 Atarefa publica da teologia Parece estranho abragar os direitos humanos de forma efetiva a partir de lugares provincianos, Teologias provincianas, de gueto, nao dao conta de abarcar os problemas da contemporaneidade. No mundo atual, a teologia estritamente fechada, privada, monoconfessional, esta condenada a nao ser ouvida e a nao ser sequer entendida pela sociedade. Diante da complexidade das culturas contemporaneas, tal teologia se mostra incapaz de dirigir-se a sociedade atual. Nao 6 possivel encetar didlogos de qualquer tipo com a opiniao publica da sociedade como conjunto e pretender fazé-lo a partir das referéncias exclusivas de uma religifo ou confissao. O te6logo precisa estar enraizado na fé de uma religido, mas se permanece somente ali ele nao estara “a altura daquilo que seu trabalho exige dele. Nao estaré fazendo teologia no mundo, neste mundo pluralista de hoje; nao estaré perseguindo a verdade que inclui, mas a que exclui a outros”, afirma Paul Knitter (KNITTER, 1985, p.224). Os conteitdos revelados da 6 so transmitidos por sujeitos contextualizados. Nao existe teologia nao inculturada. Ela é sempre um produto humano, inevitavelmente ligado ao paradigma de uma época. A consciéncia do momento atual é 0 ponto de partida para mudangas profundas e a irrupeao de um novo paradigma teol6gico que dé conta das demandas dos novos tempos. Em tempos de mudanea, a teologia adquire uma nova configuracao. Teologia crista é publica conforme sua propria pretensio, assinalada pela tradigfio joanina: “Declarou-lhe Jesus: Eu tenho falado francamente ao mundo; ensinei continuamente tanto nas sinagogas como no templo, onde todos os judeus se retinem, e nada disse em oculto” (Jo 8,20). A teologia piiblica esté identificada com uma comunidade religiosa, mas nao se restringe a ela e, muito menos, busca interesses particulares. Ela milita pelos direitos de todas e todos, independente da tradigio religiosa, em busca de condigdes de vida melhor para os seres humanos e toda criagio. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 703 Carlos Alberto Motta Cunha Nao hé teologia piblica uniforme e monolitica fora e dentro do Brasil. Nao ha um tinico significado sobre ela que sea autoritativo e nem uma forma normativ: Unica de fazé-la. Como a defini¢ao nunca é uma linguagem vazia ou conceito puro, mas uma construgdo interpretativa, é imprescindivel para a definigao da teologia piiblica pereeber quem, por que e a partir de qual lugar socioepistémico o termo é elaborado. A diversidade de pesquisadores ocupados com o tema trouxe consigo uma diversidade conceitual de modo que nao ha uma teologia publica universal, mas somente teologias que procuram abordar 0 ambito sécio-politico dentro de localidades particulares. Para o tedlogo protestante Jiirgen Moltmann, a teologia crista é publica por causa do Reino de Deus. Deve fazé-lo sempre de forma correlativa. Ela deve ser, a0 mesmo tempo, conforme a Escritura e contextual. Ela torna-se uma teologia pAblica, que compartilha os sofrimentos desta época e que formula suas esperancas ‘em Deus no lugar em que vivem os seus contempordneos. A novidade e diversidade do Reino, que nao cabem nas igrejas, exigem que a teologia seja publica (MOLTMANN, 2004, p.17-34). J4 para David Tracy, tedlogo catélico, que busca relevancia da teologia piiblica na contemporaneidade, toda teologia é um discurso pitblico. Se se pretende mostrar o cardter ptiblico de toda teologia, torna-se imperativo estudar primeiro os “puiblicos” do tedlogo. Tracy argumenta que o desafio da teologia sistematica, para demonstrar a publicness (discurso piblico) da teologia crista, consiste em gerar, com base na imaginagéo analégica, uma nova interpretagao do evento Cristo, presente nos clissicos religiosos ¢1 crista baseados na Biblia (TRACY, 2006, p.513-573)- 10s, ou seja, os grandes textos da tradi¢fo Moltmann e Tracy nos ajudam a entender as perspectivas que fazem da teologia pablica um novo paradigma teolégico. Para Moltmann, teologia publica € ser fiel &s convicgdes de fé. Para ser relevante no mundo, a teologia nao abre mao da sua confessionalidade. Para Tracy, teologia piblica é ser relevante no mundo; € ter 0 que dizer aos questionamentos da contemporaneidade. Assim, entendemos Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 704 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial “teologia piblica”, nao uma disciplina da teologia, mas sua praxis, isto é, sua ago crista refletida engajada nas causas humanas ¢ ecolégicas. No Brasil, ha instituicdes empenhadas na elaboragdo da teologia publica®. Uma delas 6 0 Instituto Humanitas, érgio transdisciplinar da Unisinos, universidade jesuitica em Sio Leopoldo — Rio Grande do Sul, que organiza anualmente simpésios, publica livros e artigos sob o titulo de “Teologia Publica”. 0 Instituto define teologia piblica como: © Programa Teologia Péblica propde-se_a abrir e articular novas possibilidades de engajamento da teologia no ambito académico e sociocultural propondo uma Teologia que participa ativamente nos debates que se desdobram na esfera pitblica da sociedade e da academia e explicitando a relevincia piblica da teologia e da f€ crista. Nessa perspectiva busca articular a reflexio teologica em didlogo com as cigncias, culturas e religides, de modo interdiseiplinar e transdisciplinar, atenta aos desafios e possibilidades que se apresentam na vida social, politica, econdmiea e cultural da sociedade, bem como na vida eclesial, hojes Voltada para a comunidade universitéria, mas no restrita a ela, a teologia pitblica proposta pelo Instituto busca contribuir para o debate da relevancia da transcendéncia na construgio de uma sociedade justa e igualitaria, No decorrer da modernidade, a teologia se tornou cada vez mais restrita aos muros ecle: se destinada ao consumo interno dos sujeitos religiosos. Seu caréter académico e piblico perdeu visibilidade, enquanto as ciéncias positivistas ganharam fora e se institucionalizam no ambito das universidades, nas suas mais variadas especializacdes e aplicagdes técnicas. Mesmo admitindo certa legitimidade ao religioso, enquanto op¢o individual inscrita no Ambito dos valores que nao devem interferir no exercicio da razio, a comunidade cientifica dispensou a teologia de suas buscas e atividades interdisciplinares. Assim, a teologia se refugiou no exilio sem ter 0 que dizer ao sujeito dotado de uma razio técnico-cientifica. Ela se ‘Além do nstuto Humanitas (Unisines) destacamos também o grupo de pesquisa em teologia publica do PPG em Teologa de Escola Superior de Teolola (EST) que, desde 2007, aticula estudos sobre o tema a eaborario de estudos nos grupes temstcos dos congress da Socledade de Telogia e lenis da ReligZo(SOTER) e da Assoca¢zo Nacional dos Programas de Pés-Graduaco em “ealogae Cini da Regio (ANPTECRE), * Sobre a define de “teologa publica" no ste do MU (2017), Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 705 Carlos Alberto Motta Cunha encontrava em uma situacio paradoxal, em termos de sua legitimidade epistemolégica. A teologia sai do exilio quando a critica bate as portas da pretensao objetivista e empirista da concepgio positivista da ciéncia. A suspeita hermenéutica ¢ ideolégica questiona a experiéncia cientifica moderna mostrando a incapacidade da apropriagéo de um dado puro. Todo dado é interpretado e mediado pela linguagem. Além disso, a suspeita ideolégica revelou que todo conhecimento reflete interesse. Assim, a concepgio positivista de ciéncia comega a ruir. Por revelar visio interessada, absoluta e apoditica, torna-se equivocada (CUNHA, 2016, 240-41). Nesse cenfrio, a teologia sai da periferia e retorna A praca piblica onde acontecem as grandes discussdes existenciais. Ela retoma a sua condigao como ciéncia da inteleeco da f8 capaz de dialogar com 0 mundo. Para isso, propde-se a abrir nov, possibilidades de engajamento da teologia no Ambito académico sociocultural, caracterizando-a como teologia publica. Os problemas e desafios dos Direitos Humanos sao problemas e desafios da teologia também, Caso contrério, a teologia deixa de ter relevancia publica e perde © seu sentido de ser. E empobrecedor para a intelecgao da fé ficar restrita aos muros eclesiais envolvida somente com as demandas das Igrejas. A funcao da teologia nao se restringe ao Ambito intraeclesial, pois a Igreja nao existe para si mesma. Igreja, ekklesia, palavra grega composta pelo prefixo “ek”, da ideia de movimento para fora: “reunidio”, “assembleia” ou “congregacao”, voltada para fora. A Igreja 6 essencialmente missionAria, de portas abertas, voltada para o mundo, em sintonia com as necessidades concretas da vida das pessoas e em obediéncia a missio de Deus, missio Dei. Essa missio, na perspectiva da teologia do dilogo inter-religioso, nao se faz por meio de “oposigées”, acentuando as diferengas ¢ reforgando colonizagées do ser, do pensar e do poder. O didlogo entre as religides abre nao s6 a possibilidade de legitimagio de cada cultura e da sua tradigdo de 6 como propde novos modelos Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 706 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial de missio. No novo jeito de fazer missio, “de posigao”, o cristianismo e a teologia deveriam se posicionar junto a outras religides no esforgo de recuperar a humanidade dos direitos humanos (SANTOS, 2014, p.113). A ideia de “salvagio", que emerge da teologia do “ecumenismo mais ecuménico” (Raimon Panikkar), nao esta limitada a redengao da alma do ser humano, como afirma alguns segmentos da antropologia teoldgica dicotémica ou tricotémica. Na tradi¢do judaico-crista, o ser humano é um ser integral, indivisivel. A salvacao abarca também a realidade material, fisica e corporal, das mulheres e dos homens e toda criagéio. Empenhar-se pela salvacfio da humanidade significa lutar por seus direitos, pela sua dignidade, por sua libertagao e cura, Este é um elemento em comum entre as religides. Num sentido geral: religides de salvacio. Segundo Claude Geffré: Religides de salvacdo, no sentido de estarem & busca de uma libertago em relacao ao que é 0 limite do eu ou o limite do mundo das aparéncias em contraste com a Realidade tltima. Portanto, toda atitude religiosa auténtiea coincide com um certo descentramento de si mesmo’ em proveito de uma Realidade iiltima, quer seja ela apreendida com um Ser pessoal, como 0 Deus de Israel, 0 Deus Trindade ou Ald, ow através do coneeito de Absoluto, de Vazio ou de Tao (GEFFRE, 2004, p.151).. A teologia publica é portadora de uma inteligéncia aberta, disposta a refazer 0s seus proprios contetidos quando interpelada pelos dilemas da humanidade. Nao 6 uma teologia crista divoreiada da vida concreta das pessoas, mas preocupada com a relevincia das boas novas de Jesus Cristo na realidade dos seres humanos de hoje. Nao hé espaco nesse tipo de intelecedo da f6 para formulagdes dogmaticas indispostas a redizer para a atual geraco o valor da substancia visada nos simbolos da f6 e a formulagiio cultural do dogma e da tradigaos. “Important dar que a plawras "dogma" e“radcdo” st posthas, abertase polstmicas. dos extremes ds terms, dogmatismo «wadicionalsme, 580 terms negatives e apontam para a mumifeagSo do dogma e 6 rads, Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 707 Carlos Alberto Motta Cunha 3 Descolonizando a teologia Além da sua tarefa piblica, a teologia deve ser critica de si mesma para manter 0 foco nos processos libertadores do mundo todo. Caso contrario, ela s6 reforea a condicio de estar atrelada a um tipo de cristianismo contido nas cinco ideologias da modernidade/colonialidade, As outras sao liberalismo, marxismo, conservadorismo e colonialismo (MIGNOLO, 2007, p.34). A libertagao da teologia acontece quando ela se submete ao exercicio libertador das suas ideias e métodos arcaicos proprios de uma intelec¢o da fé encerrada em sua torre de marfim. Remexer a base da teologia cristd, a partir das demandas do mundo contemporaneo e exigir que ela tenha uma palavra/agio efetiva, parece ser fundamental para uma teologia que anseia ser contextual. Para isto, Juan Luis Segundo propde um exercfcio de libertago da teologia: primeiro, a suspeita ideol6gica; segundo, aplicagio da suspeita a toda superestrutura e A teologia; terceiro, nova maneira de experimentar a realidade teolégica levando & suspeita exegética e, quarto, uma nova hermenéutica. Quatro momentos importantes de um circulo hermenéutico para uma teologia livre e libertadora que passa pela “suspeita sistemética de que tanto a teologia vivida, como sua expressio académica, tém sido desviadas para finalidades massivas, com sua correspondente distorga0 de contetidos (SEGUNDO, 1978, p.252). A consciéncia da decolonizacio da teologia crista na atualidade é fruto do ‘oloni ismo que, a partir da metade do século XX, empenh: és se na independéncia, libertagio e emancipagio das sociedades exploradas pelo imperialismo e neocolonialismo, especialmente nos paises do sul global. Associado com os estudos pés-estruturais, desconstrutivistas e pés-modernos, 0 pés- colonialismo propde uma “epistemologia critica As concepgdes dominantes da modernidade” (COSTA, 2006, p.83-84) ao identificar uma relagio antagénica entre 0 colonizado eo colonizador. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 708 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial A percepgao dessa relagao de colonizagio e exploragao atravessou varias areas do saber, inch ive a teologia. “Mesmo que nao linear, disciplinado e articulado, o argumento pés-colonial em toda sua amplitude historica, temporal, geogrifica e disciplinar percebeu a diferenca colonial e intercedeu pelo colonizado” (BALLESTRIN, 2013, p.91). A produgio de reflexes a partir do colonizado nos livros Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador (1947), de Albert ‘Memmi, Discurso sobre o colonialismo (1950), de Césaire, Os condenados da terra (1961), de Franz Fanon, Orientalismo (1978), de Edward Said e Pode o subalterno falar? (1988), de Gayatri Spivak foram seminais na intercessao pelos colonizados e contribufram para uma transformagio epistemolégica das ciéncias sociais. Os Grupos de Estudos Subalternos que dai surgiu, tanto no sul da Asia, Africa e América Latina, reforgavam o pés-colonialismo como um movimento epistémico, intelectual e politico contra-hegeménico e na legitimacao das culturas subalternas. © documento do Grupo Latinoamericado de Estudos Subalternos (1998) da uma nogio da proposta: © trabalho do Grupo de Estudos Subalternos, uma_organizagio interdiseiplinar de intelectuais sul-asiéticos dirigida por Ranajit Guha, inspirou-nos a fundar um projeto semelhante dedicado ao estudo do subalterno na América Latina. O atual desmantelamento dos regimes autoritérios na América Latina, o final do comunismo e 0 consequente deslocamento dos projetos’ revolucionirios, os processos de democratizagio, as novas dindmicas criadas pelo efeito dos mefos de comunieagdo de massa e a nova ordem econdmica transnacional: todos esses so processos que convidam a buscar novas formas de pensar e de atuar politicamente. Por sua vez, a mudanga na redefini¢ao das esferas politica e cultural na América Latina durante os anos recentes levou a varios intelectuais da regio a. revisar_epistemologias previamente estabelecidas nas ciéncias sociais e humanidades. A tendéncia geral para uma democratizagio outorga prioridade a uma reconceitualizagao do pluralismo e das condigées de subalternidade no interior das sociedades plurais (Grupo Latinoamericano de Estudos Subalternos apud BALLESTRIN, 2013, p.94). Na década de 1990, surge, nos Estados Unidos, 0 Grupo Modernidade/Colonialidade (Grupo M/C) formado por intelectuais latino- Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 709 Carlos Alberto Motta Cunha americanos ¢ americanistas} inspirados nas reflexdes dos Grupos de Estudos Subalternos. 0 Grupo M/C aos poucos vai sendo estruturado sob a inspiragéo de te6ricos, dentre eles o sociélogo peruano Anibal Quijano para quem a modernidade oculta a colonialidade, isto é, atrés da “modernidade”, do discurso da salvacao, do progresso, da modernizacéio e do bem comum esté a ldgica colonial encoberta impondo o controle, a dominac&o e a exploragio. Segundo Quijano, nao existe modernidade sem colonialidde (QUIJANO, 2000, p. 342-386). Além do pensamento de Quijano, o Grupo M/C Encontrou inspiragdo em um amplo ntimero de fontes, desde as teorias criticas europeias e norte-americanas da modernidade até o grupo sul- asidtico de estudos subalternos, a teoria feminista chicana, a teoria pos- colonial e a filosofia africana; assim mesmo, muitos de seus membros operaram em uma perspectiva modificada de sistema-mundo. Sua prineipal forca orientadora, no entanto, é uma reflexao continuada sobre a realidade cultural e politica latino-americana, incluindo o conheeimento subalternizado dos grupos explorados e oprimides (ESCOBAR, 2003, P53) Segundo Ramé6n Grosfoguel, a colonialidade se reproduz em uma tipla dimensio: a do poder, do saber e do ser impondo “a continuidade das formas coloniais de dominagao apés o fim das administragdes coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo _capitalista moderno/colonial” (GROSFOGUEL, 2008, p.126). Os povos periféricos nao- europeus e ndo-estadunidenses, ainda que nao estejam sujeitos a uma administragao colonial, vivem numa situagéo colonial imposta por paises ¢ agéncias que detém o poder. E 0 caso das intervengdes dos Estados Unidos, do Fundo Monetério Internacional, do Banco Mundial, do Pentégono e da OTAN sobre os paises “subdesenvolvidos”, Além das criticas politicas, econdmicas e sociais feitas pelo Grupo M/C, ha também a critica & geopolitica do conhecimento — tema recorrente no Grupo e * podemosdestacar Anibal Qujano, Enrique Ousel, Walter Mignlo, Immanuel Walletln, Santiago Casto-Géme, Nelson Maldonado: Torres, Rann Grstéguel, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Femando Coren, Catherine Walsh, Boaventura Santos, Zuma Palermo Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 710 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial motivo de separacio dos Grupos de Estudos Subalternos. Mignolo critica 0 “imperialismo” dos estudos pés-coloniais e subalternos por nfo provocarem uma ruptura com o referencial te6rico de autores eurocéntricos (MIGNOLO, 1998). E preciso um “giro decolonial” (Nelson Maldonado-Torres) proposto pelos estudos descoloniais como resisténcia tedrica e pritica, politica e epistemoldgica, a légica da modernidade/colonialidade. Mignolo aponta para a emergéncia de novos lugares de enunciagio, uma “gnose liminar” que ¢ expresso de uma razio subalterna lutando para afirmacdo dos saberes historicamente subalternizados. Para ele, estamos vivendo a emergéncia de um “outro pensamento”, um pensamento liminar que aponta para uma raziio pés-ocidental. Essa gnose ou pensamento liminar é uma reflexio critica sobre a produgao do conhecimento e implica na sua redistribuigao geopolitica até ento pautada na colonizagio epistémica e na subalternizacao de todas as formas de saberes, povos ¢ culturas que no ‘inones da ciéncia stivessem pautadas nos eurocéntrica. O deslocamento do lécus de enunciagio dos centros do sistema moderno- colonial para suas margens, para as fronteiras das diferentes historias locais no significa negar a importincia da ciéncia e das formas de saberes ocidentais hegeménicas. Nao se trata também de um relativismo cultural e epistémico. Esses projetos n&o sfo universais e abstratos, mas circunscritos nos limites das diferengas coloniais especificas na formagao do sistema-mundo moderno colonial. Mignolo diz que reconhecida a colonialidade, feita a critica a partir da sua perspectiva, 0 préximo passo indispensavel € 0 que Quijano chama de “desprendimiento” e que Mignolo batiza de “delink”, uma tradugio para o inglés do termo utilizado em espanhol e que atribuiu a seu projeto de mudanca epistemol6gica. Para o nosso semiético, foi no campo epistemol6gico que a retorica da modernidade ganhou forga por produzir e reproduzir discursos e narrativas que justificam a colonialidade. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 71 Carlos Alberto Motta Cunha Mignolo defende a decolonizacao epistémica, isto é, ela se desvincula dos fundamentos genuinos dos conceitos ocidentais e da acumulagao de conhecimento. desvinculamento epistémico nao significa abandono ou ignorancia do que jé foi institucionalizado por todo o planeta, mas um aprender a desaprender: Decolonizagao (da mente) deve revelar o totalitarismo da cumplicidade da retdrica da modernidade e a légica da colonialidade, a fim de abrir espaco para_a possibilidade [...] de “outro mundo”, em que muitos mundos coexistirao (MIGNOLO, 2007b, p.469). A decolonizagio pressupde 0 que Mignolo chama de border thinking como espago fronteirigo entre a diversidade das historias subalternas e suas correspondentes subjetividades, isto 6, 0 pensamento deve vir das margens. Apoiado no conceito de transmodernidade cunhado por Enrique Dussel, Mignolo afirma que a critica deve vir nao s6 de fora, mas da exterioridade: “onde a diferenca entre 0 ‘espago da experiénci aparente” (MIGNOLO, 2007, p.494). @ entre ‘o horizonte da expectativa’ torna-se A gnose liminar enquanto conhecimento € produzida na intersecio dos colonialismos modernos e do conhecimento produzido na perspectiva das modernidades coloniais. Uma forma de conhecimento construido nos espacos liminares, nas fronteiras da diferenga colonial, uma poderosa e emergente gnoseologia que, na perspectiva do subalterno, esta deslocando e absorvendo as formas hegeménicas do conhecimento. Nao se trata de sineretismo e nem de hibridismo, mas uma maneira de ser e de existir de todos aqueles que habitam a fronteira: Quem habita a fronteira do lado da colonialidade “sente”, cedo ou tarde, a diferenca colonial. A questi ¢ 0 que fazemos uma vez que estamos conscientes? Ha trés caminhos possiveis: tentamos nos assimilar, e boa sorte na assimilacdo; nos adaptamos o melhor que podemos, pois temos que viver; ou, a terceira, nos adaptamos e comecamos a construir projetos que apontam para outras formas de vida. Neste momento a consciéncia e 0 ser de fronteira transformam-se no pensamento fronteirigo em acdo, colocamos a experiéneia e o pensamento em acio. Alguns chamam isto de pensamento [ou posicionamento} critico fronteirico. O “eritico” esté sobrando porque 0 pensamento fronteirigo em agio é necessariamente Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 712 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial eritico e decolonial e distingue-se da teoria critica da Escola de Frankfurt (MIGNOLO, 2013). A teoria da decolonialidade é tanto um discurso critico que traz para 0 primeiro plano 0 lado colonial do sistema mundial moderno e a colonialidade do poder embutida na propria modernidade, quanto um discurso que altera a proporeiio entre os locais geohistéricos e a producéio de conhecimentos. A relacio entre a localizagio geografica e localizacao epistémica assinalam como essa relagao 6 estabelecida pela diferenca colonial e colonialidade do poder. O pensamento decolonial demanda o fazer decolonial, isto é, um giro com a pretensio de substituir a geopolitica de Estado de conhecimento de seu fundamento na historia imperial do Ocidente dos tiltimos cinco séculos, pela geopolitica de Estado de pessoas, linguas, religides, conceitos politicos econdmicos, subjetividades, ete., que foram negadas. Tal comprometimento propée: a) desvelar a légica da colonialidade e da reprodugdo da matriz colonial do poder; e b) desconectar-se dos efeitos totalitérios das subjetividades e categorias de pensamento ocidentais. Retomando o argumento de Boaventura de Sousa Santos no livro Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos, a saber, que 0 “didlogo entre os direitos humanos e as teologias progressistas 6 nfo s6 possivel como provavelmente um bom caminho para desenvolver priticas verdadeiramente interculturais e mais eficazmente emancipadoras” (SANTOS, 2014, p.113), vamos além e reforcamos que isto 6 possivel desde que tais teologias assumam uma l6gica decolonial. A teologia decolonial é desafiada a refundar o seu processo educacional com a necessidade de ouvir atentamente o clamor dos direitos humanos problematizando as dindmicas socioculturais e geopoliticas contempordneas e deixando transparecer os processos de colonizagao. A epistemologia que dat advém questiona os mecanismos hegemdnicos e, a0 mesmo tempo, da voz a pluralidade de * cn entrevista de Walter Mignolo: Decoloiadede como ocominho pora a cooperoj2e,(MIGNOLO, 2013), Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 713 Carlos Alberto Motta Cunha construgdes do conhecimento. A consciéncia da articulagdo entre os saberes nos ;pagos fronteirigos é condi niveis da realidade. 10 de possibilidade para nov: s relagdes nos varios A partir da critica decolonial, Nicolas Panotto assinala trés atitudes frente a situagdo da educagdo teolégica na América Latina: a) Uma atitude de profunda honestidade com respeito a situagao de crise da matriz. colonial que persiste em nossas instituigées e discursos, b) uma atitude de genuina sensibilidade para discernir a pluralidade de vozes e formas alternativas de ser, fazer, dizer e pensar e como isso se articula com novas epistemologias, ¢) uma atitude de ago intencional que logre mudangas profundas para que os espacos tradicionais de educagao teolégica empoderem as vozes emergentes (PANOTTO, 2016, p.7). A partir dessas atitudes, Juan José Tamayo chama a atengio para novos izontes para a claboragio de uma teologia decoloni: a) Intercultural, na elaboracdo de uma teologia intercultural em didlogo simétrico entre culturas; b) Inter-religioso, da superag&o da religiio Gnica, colonizadora, para o pluralismo religioso a partir das vitimas e com a pritica da libertagdo; ¢) Hermenéutico, da libertagio do discurso religioso fundamentalista, implicando a passagem da teologia como mera exegese de textos para uma teologia hermenéutica em busca de sentido; d) Feminista, questionadora do cardter patriarcal das crengas e da estrutura androcéntrica da teologia para a claboragao de reflexdes teolégicas empoderadas; e) Ecolégico, rompendo com a teologia antropocéntrica, que legitima o modelo de desenvolvimento cientifico-técnico da modernidade, para uma ecoteologia da criago. No lugar da exploragio, 0 cuidado; f) Etico-moral, a caridade como ato primeiro do labor teolégico. A teologia tem uma razao pratica. E preciso resgatar os processos histéricos a partir dos novos sujeitos: mulheres marginalizadas, etnias e racas subjugadas, culturas subalternas, religides sufocadas, povos, paises e continentes presos pelo lado oculto da globalizacao neoliberal; g) Da esperanga, para além da utopia dos esforgos politicos presentistas; h) Simbélico, questionando o absolutismo despético em que incide, as Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 714 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial vezes, a linguagem dogmatica e recuperando o simbolo como a linguagem mais propria da sobre a religides e da teologia; i) Da sexualidade, as questdes homossexualidade e sobre género interpelando a teologia cristd a se desinstalar do seu espaco heterossexual, patriarcal e machista para pensar outras possibilidades e ete. (TAMAYO, 2006, p.444-450). Os horizontes apontados por Tamayo sio fontes inesgotaveis de reflexdio teolégica empenhada na construgo dos direitos humanos. Exploré-los, um por um, é uma obrigacao da teologia intercultural e pertinente. Atualmente, ha tedlogas € teGlogos empenhados em tais projetos. So esforgos minoritérios, mas eficientes. desafio é enorme para a teologia crista. Dissemos que a teologia tem uma configuragio publica, portanto, transita entre e a partir da igreja, da academia e da sociedade. ‘Tem sido relativamente facil para a teologia mobilizar instancias académicas e sociais rumo ao projeto decolonial. J4 com relagio a igreja, “a casa do te6logo” (Paul Tillich), nao podemos dizer 0 mesmo. Conclusao ‘A pergunta fundamental norteadora da nossa reflexiio foi: como a teologia pode contribuir para a reconstrucéo da humanidade dos direitos humanos? Para respostas aproximativas e inconclusas, mostramos, a partir das interpelagdes colocadas no livro Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos de Boaventura de Sousa Santos, que a teologia cristd precisa assumir a sua tarefa publica no esforgo de reconhecer os seus interlocutores para ter o que dizer/fazer na contemporaneidade. Teologias cristalizadas pelo tradicionalismo e pelo ) da prosperidade dotadas de uma consciéncia alienada reforcam o estado de dogmatismo nao dao conta dessa tarefa e, pior, “teologias” (ideolo; colonizagao e opressio, principalmente sobre os excluidos. Além da teologia progressista, de tarefa publica, a intelecedo da f6 necessita de uma légica decolonizadora, que Ihe remexa as bases revelando a ontologia Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 715 Carlos Alberto Motta Cunha colonial e propondo agdes de empoderamento. A opgio pelo empobrecido pela colonialidade do poder, do saber e do ser, nos lugar ubalternos, passa a ser na atualidade o lécus ideal para teologias decoloniais. Os horizontes de reflexo e aco so amplos ¢ desafiadores. Uma teologia cristd que assume o seguimento de Jesus Cristo testemunha ao mundo a sua vocagio. Expresso disso se encontra na Constituigio Pastoral Gaudium et spes, do Coneflio Vaticano II: “Cristo manifesta plenamente o homem ao proprio homem e lhe confere a sua altissima vocacio” (GS 22). A divinizagio do ser humano no Deus-homem leva a humanizacio ao pice. A atuagio de Jesus visa promover e acolher 0 governo do Pai: provocar a consciéncia da liberdade de filhos e filhas, construir a sociedade justa, curar doengas e enfermidades, libertar do mal, dar animo e purificar a religiao. O Reino no é algo etéreo. O convite de acolher e “entrar” na dinamica do Reino implica conversiio profunda e deixar-se ser transformado e transformar a vida tal como Deus a quer. Aqueles que se associam ao projeto da implantagao do “governo divino” nao podem permanecer a mercé de um sistema que aliena e oprime o ser humano. “Nao podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24). Jesus introduziu novo modelo de comportamento social. Nao é possivel entrar no Reino de Deus sem sair do reino das riquezas (Mamon). A mudanga de vida em prol do bem de toda criagio é caracteristica do cidadio do Reino de Deus. Jesus anunciou o Reino do Pai: a transformacao radical deste mundo segundo o projeto libertador de Deus. Onde ha justica, liberdade e amor, af estiio as sementes do Reino. O tedlogo cristo, disefpulo de Cristo, no tem outro compromisso senao com o Espirito que nos anima na diregZo dessa esperanca. Horizonte, Belo Horizonte, v. 15,n. 47, p. 697-718, jul./set. 2017 ~ ISSN 2175-5841 716 Doss: Relig, Diretos HumanoseDretos da Naturera. Antigo: Teologl,Diretos Humanose Pensamento Decolonial REFERENCIAS BALLESTRIN, Luciana. América Latina ¢ o giro decolonial. 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