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ZANIRATO - Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em Tempos de Pandemia

O livro 'Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em Tempos de Pandemia' explora a interconexão entre questões sociais, ambientais e cidadania durante a pandemia de COVID-19. Organizado por diversos autores, o texto aborda temas como desenvolvimento sustentável, crises climáticas, desigualdades socioeconômicas e práticas cotidianas, propondo reflexões sobre o futuro pós-pandemia. A obra visa sensibilizar os leitores sobre a importância de uma abordagem integrada para enfrentar os desafios contemporâneos.

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ZANIRATO - Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em Tempos de Pandemia

O livro 'Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em Tempos de Pandemia' explora a interconexão entre questões sociais, ambientais e cidadania durante a pandemia de COVID-19. Organizado por diversos autores, o texto aborda temas como desenvolvimento sustentável, crises climáticas, desigualdades socioeconômicas e práticas cotidianas, propondo reflexões sobre o futuro pós-pandemia. A obra visa sensibilizar os leitores sobre a importância de uma abordagem integrada para enfrentar os desafios contemporâneos.

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SOCIEDADE, MEIO AMBIENTE E

CIDADANIA EM TEMPOS DE PANDEMIA


CONSELHO EDITORIAL
André Costa e Silva
Cecilia Consolo
Dijon de Moraes
Jarbas Vargas Nascimento
Luis Barbosa Cortez
Marco Aurélio Cremasco
Rogerio Lerner

Open Access
SOCIEDADE, MEIO AMBIENTE E
CIDADANIA EM TEMPOS DE PANDEMIA
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia
© 2022 Ana Paula Fracalanza, André Felipe Simões, Carla Morsello, Cristina Adams, Luciana
Gomes de Araujo, Marcos Bernardino de Carvalho, Pedro Henrique Campelo Torres, Silvia
Helena Zanirato e Sylmara Gonçalves Dias.
Editora Edgard Blücher Ltda.

Publisher Edgard Blücher


Editor Eduardo Blücher
Coordenação editorial Jonatas Eliakim
Produção editorial Aline Fernandes
Diagramação Joyce Rosa
Revisão de texto Samira Panini
Capa Laércio Flenic
Imagem da capa iStockphoto

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


(CIP) Angélica Ilacqua CRB-8/7057

Rua Pedroso Alvarenga, 1245, 4o andar Sociedade, meio ambiente e cidadania em tempos de
04531-934 – São Paulo – SP – Brasil pandemia / organizado por Ana Paula Fracalanza,
Tel.: 55 11 3078-5366 André Felipe Simões, Carla Morsello, Cristina Adams,
[email protected] Luciana Gomes de Araujo, Marcos Bernardino de
www.blucher.com.br Carvalho, Pedro Henrique Campelo Torres, Silvia
Helena Zanirato e Sylmara Gonçalves Dias. - São
Paulo : Blucher, 2022.
226 p.

Segundo o Novo Acordo Ortográfico, conforme 5. ed. Bibliografia


do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa,
Academia Brasileira de Letras, março de 2009. ISBN 978-65-5550-237-4 (impresso)
ISBN 978-65-5550-238-1 (eletrônico)

1. Desenvolvimento sustentável 2. Meio ambiente 3.


COVID19 (doença) – Aspectos sociais I. Jacobi, Pedro
Roberto II. Zanirato, Silvia Helena
É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer
meios sem autorização escrita da editora.
22-2737 CDD 333.72

Todos os direitos reservados pela Editora


Edgard Blücher Ltda. Índices para catálogo sistemático:

1. Desenvolvimento sustentável
Conteúdo

DEDICATÓRIA 11

AGRADECIMENTOS 13

APRESENTAÇÃO 15
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 15

1. PANDEMIAS E MUDANÇAS AMBIENTAIS GLOBAIS: QUAL É


A RELAÇÃO? 21
1.1 Introdução 21
1.2 O surgimento da covid-19 22
1.3 Outras pandemias na história 25
1.4 Razões que explicam o aumento na frequência de epidemias 29
1.5 A Amazônia pode se tornar novo epicentro do surgimento de
pandemias? 38
1.6 A Mata Atlântica como um importante centro de emergência de
zoonoses 41
1.7 O que podemos fazer para prevenir a próxima pandemia? 41
1.8 Questões para aprofundamento e discussão em grupo 42
Referências 43

2. FRONTEIRAS PLANETÁRIAS NO ANTROPOCENO 51


2.1 Introdução 51
2.2 O crescimento da população humana 52
2.3 As curvas exponenciais da atividade humana e da resposta do sistema
planetário 54
2.4 O Antropoceno 56
2.5 As fronteiras planetárias 57
2.6 Crise planetária e a pedagogia da Pandemia de covid-19 69
Referências 73

3. A CRISE CLIMÁTICA E A QUESTÃO ENERGÉTICA DIANTE


DA PANDEMIA DE COVID-19 – UMA REFLEXÃO COM FOCO
NO BRASIL E NA NECESSIDADE DE REDUÇÃO DAS
DESIGUALDADES SOCIOECONÔMICAS 77
3.1 Introdução e macro contextualização 77
3.2 Mudanças climáticas e a Pandemia de covid-19: A Crucialidade
temporal e o Brasil neste contexto 84
3.3 Fundamentação científica a respeito das mudanças climáticas:
origem, causas e impactos 85
3.4 Impactos na produção e no consumo de energia associáveis à
Pandemia de covid-19 88
3.5 A redução na emissão de CO2 à atmosfera devido à Pandemia de
covid-19 90
3.6 O Brasil como o único país relevante quanto a emissões de GEE que,
mesmo durante a vigente Pandemia de covid-19, registrou aumento em
tais emissões: O papel do desmatamento na Amazônia neste contexto 93
3.7 As energias renováveis como trunfo para que o antigo normal não
se reestabeleça plenamente 96
3.8 Discussão e considerações finais 98
Referências 106
4. PLURINACIONALISMO, BIEN VIVIR E MOVIMENTOS
DECOLONIAIS 113
4.1 O contexto e o lugar dessa discussão na edição especial de SMC,
pandemia de 2020/22 113
4.2 A importância da política e suas origens remotas 115
4.3 Das origens modernas às contemporâneas da ‘política’ 116
4.4 Outra cartografia do mundo político é possível: a política para além
do Estado Nacional 123
4.5 Novo Mundo, Nova Política: Desnorteada, Plurinacional, com Novos
Contratos e Direitos (Socais e Naturais) 125
4.6 Latinoamerica: La tierra no se vende/ Aqui se respira lucha 129
Referências 130

5. CONSUMO E RESÍDUOS: PRÁTICAS COTIDIANAS NO


CONTEXTO DA PANDEMIA DE COVID-19 133
5.1 Introdução 133
5.2 Como chegamos ao Antropoceno? 134
5.3 Que vestígios estamos deixando nessa Era? 138
5.4 Qual a mágica para transformarmos a realidade? 143
5.5 Quais caminhos possíveis diante das contradições do plástico? 149
5.6 Para finalizar 151
Referências 153

6. SANEAMENTO BÁSICO E ACESSO À ÁGUA 157


6.1 Desafios de categorização 159
6.2 Desafios de gestão no território 162
6.3 Desafios em territórios desiguais 164
6.4 Pontos para discussão 168
6.5 Questões sugeridas para debate 169
6.6 Vídeos complementares 170
6.7 Publicações sugeridas para aprofundar os temas tratados 170
Referências 170
7. SINDEMIA: NOVOS SENTIDOS PARA UMA CONHECIDA
REALIDADE. AS DESIGUALDADES SOCIOESPACIAIS NUM
CONTEXTO DE PANDEMIA POR COVID-19 NO BRASIL 173
7.1 Introdução 173
7.2 Sindemia 174
7.3 A pandemia no contexto brasileiro 176
7.4 Pandemia? Sindemia? 177
7.5 Sindemia? Um olhar para a metrópole paulista 182
7.6 Considerações finais 186
Referências 187

8. JUSTIÇA PLANETÁRIA E EQUIDADE FRENTE À COVID-19 191


8.1 Introdução 191
8.2 A Governança Disruptiva do Governo Federal face à covid-19 193
8.3 Movimentos antivacina e negacionismo em escala planetária 197
8.4 Aterrissando – as injustiças no território 198
8.5 Palavras finais 203
Agradecimentos 205
Referências 205

9. PÓS-PANDEMIA: PARA ONDE QUEREMOS IR? 207


9.1 Introdução 207
9.2 Dois fundamentos econômicos importantes 209
9.3 Mudanças em Sistemas Socioecológicos Complexos 214
9.4 A Economia do Século XXI 216
9.5 Concluindo 220
Agradecimentos 220
Referências 220

SOBRE OS AUTORES 223


DEDICATÓRIA

Dedicamos este livro às vítimas da covid-19, seus familiares, às pessoas que tive-
ram suas vidas fragilizadas pela pandemia,
A todas e todos os estudantes de Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania que nos
inspiraram e com quem aprendemos a partir do olhar da contemporaneidade,
Às/aos cientistas, pensadoras/es, lideranças populares e tantas outras pessoas que
não se renderam à insensatez dos que negam as pandemias, as injustiças sociais e a
violência da degradação do planeta.
AGRADECIMENTOS

Ao processo nº 2015/03804-9 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São


Paulo (FAPESP), que propiciou o apoio financeiro a esta obra.
APRESENTAÇÃO

SOCIEDADE, MEIO AMBIENTE E CIDADANIA EM TEMPOS DE


PANDEMIA
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania (SMC), é o nome de uma disciplina ofere-
cida às/aos estudantes de todos os cursos da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
da USP, a EACH ou USP Leste, em seu Ciclo Básico. É daquelas disciplinas que deno-
minamos de formativas gerais. Faz parte de um rol de matérias que, acreditamos, to-
dos os egressos da USP devem dominar, para serem profissionais antenados com os
assuntos e problemas mais importantes da atualidade, independentemente da opção
profissional de ingresso na Universidade.
As competências e os conhecimentos adquiridos em suas formações específicas
(são onze os cursos de graduação da EACH) capacitam nossas/os discentes para o
exercício da profissão escolhida no vestibular. Mas não é apenas o compromisso com
a qualidade dessas formações que nos move. Enquanto docentes de uma instituição
pública, gratuita e socialmente referenciada, como a Universidade de São Paulo, bus-
camos sensibilizar o nosso corpo discente para que coloquem as habilidades adquiri-
das em suas formações específicas e/ou especializadas, também a serviço dos interes-
ses mais amplos do coletivo social em que estamos inseridos, sobretudo quando temos
o privilégio de nos formarmos em uma universidade pública financiada por este cole-
tivo.
Em cada disciplina que ministramos, em cada projeto de iniciação científica que
tutoramos, tais objetivos ou tais metas de sensibilização social, podem e devem, estar
presentes. Mas, para nós, não bastam as profissões de fé e as boas vontades de cada
pessoa, nesse sentido. E por isso, na EACH, estruturamos um Ciclo Básico, comum a
16 Apresentação

todos os cursos, pelo qual deve passar todo o corpo discente, e consagramos, nos pro-
jetos pedagógicos institucionais de cada curso e também no Projeto Acadêmico Insti-
tucional da própria EACH, essa espécie de coluna vertebral que nos dá identidade e
que oferece esse espaço de sensibilização de todas e todos com as questões de interes-
se da sociedade e da cidadania.
Em nosso caso, – de SMC –, como sintética e carinhosamente nos referimos ao
quinhão que nos cabe nesse processo de sensibilização cidadã, pautamo-nos por di-
fundir e explicitar, com a abordagem de temas diversos, aquilo que a própria denomi-
nação da disciplina já indica.
E isso significa promover, entre as/os estudantes, a capacidade de percepção de que
as relações sociais estabelecidas, e as ações desencadeadas a partir disto nas dinâmi-
cas da natureza e nos seus diversos elementos, é que produzem a realidade socioam-
biental que nos envolve. Tal percepção justifica a reflexão sobre a questão da cidada-
nia, uma vez que são nas dimensões políticas e jurídicas que a compõem, – do
instituinte ao instituído –, que residem os poderes de calibrar a qualidade e as condi-
ções destas relações.
Há algum tempo, nós as/os docentes dedicadas/os a ministrar Sociedade, Meio
Ambiente e Cidadania e seu amplo leque de temas que interessam e caracterizam a
disciplina, temos buscado dialogar com o intuito de promover ações integradas e a
realização de atividades comuns, que potencializem e dinamizem as nossas aborda-
gens, a partir da contribuição de cada pessoa integrante desse grupo, de modo a me-
lhor cumprir os objetivos de sensibilização a que estamos comprometidos, sobretudo
este que há pouco sublinhamos: a de que as condições socioambientais estão direta-
mente relacionadas com a qualidade e a condição de nossas relações sociais.
Os princípios da disciplina, a começar daquele expresso em sua própria denomi-
nação é um chamado a essa atuação conjunta e integrada. Em anos passados não
deixamos de praticar isso. Da discussão de diretrizes programáticas comuns, à con-
fecção ou aprimoramento da ementa da disciplina, passando pelos inúmeros debates
que promovemos, com convidados, ou pelos diálogos em sessões de cine socioam-
biental em convênio com a Mostra Ecofalante, ou com a Sala Crisantempo, nunca
deixamos de agir de forma mais ou menos integrada.
Mas aí, aconteceu o que de certa forma sempre debatemos e alertamos em nossas
aulas, em nossos esforços de explicitação das relações entre Sociedade e Ambiente:
diante de relações sociais predadoras e precarizadoras, colheríamos catástrofes socio-
ambientais. Em 2020, uma pandemia atravessou-nos de norte a sul e de leste a oeste
do planeta, obrigando a Organização Mundial da Saúde a declarar essa condição a
partir de 11 de março daquele ano.
A história e os fatos que se processaram a partir daí todos nós vivenciamos e os
temos frescos na memória. No momento em que editávamos este livro, dois anos de-
pois, sequer a condição pandêmica havia sido revogada, apesar do grande arrefeci-
mento obtido no número de casos e mortes, principalmente com as campanhas de
vacinação e outras medidas adotadas.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 17

O fato é que a pandemia nos colocou a todas/os numa espécie de imersão, de curso
intensivo das relações sociedade-ambiente-cidadania. Do mundo real, de um cotidia-
no alterado, aos noticiários, passando pelas telas dos computadores e maquinários de
transmissão virtual a que todos estivemos (e estamos) submetidos nas 24 horas de
nossos dias, esta imersão envolveu a todas as pessoas. As desigualdades sociais e eco-
nômicas, as discriminações, os debates sobre as ciências, o negacionismo, os desequi-
líbrios ecossistêmicos, as mortes, os contágios, a solidariedade, a desfaçatez e o me-
nosprezo, assim como o senso de coletividade, entre muitos outros, foram valores e
discussões que afloraram e sucumbiram ao longo de todos os dias em que estivemos
afastados ou privados da convivência de sempre, enquanto outras tantas pessoas fo-
ram obrigadas a submeter-se aos riscos cotidianos, por uma questão de sobrevivência
ou de cuidado com nossa saúde.
Essa condição impôs a nós, docentes de SMC, e por mais contraditório que isto
possa parecer, um estreitamento de relações e uma vontade de um planejamento co-
mum, mais integrado ainda do que já havíamos logrado em anos anteriores. Dessa
forma, e como a nossa disciplina acontece tradicionalmente nos segundos semestres
de cada ano, passamos o primeiro semestre de 2020 envolvidos por essa disposição,
essa vontade de afinar integrações, em muitas e muitas reuniões. Todas virtuais, como
se impunha.
Disso resultaram as duas edições especiais da disciplina que promovemos em 2020
e 2021.
Organizamos essas duas edições especiais de SMC produzindo um programa de
curso, compartilhado pelas/os 9 docentes que concordaram em se integrar e assumi-
ram cerca de 30 turmas nesses dois anos (15 por semestre), estabelecendo uma sequ-
ência de abordagens temáticas que, a partir do tema gerador, – SMC e a Pandemia de
covid 19 –, permitisse-nos cumprir os objetivos gerais da disciplina, ministrada mes-
mo que de forma remota emergencial. Estabelecemos um programa único em que
cada um de nós, a partir de seus temas de interesses e pesquisas mais especializadas,
pudesse contribuir com a construção dessa abordagem ampla de SMC que a condição
pandêmica nos proporcionava e exigia. Essas contribuições correspondem exatamen-
te aos capítulos que compõem esse livro, na mesma sequência em que aqui os apresen-
tamos. Este livro registra a memória dessas edições especiais de SMC. Originalmente
cada um dos temas de capítulos que desenvolveremos a seguir, foram apresentados
como videoaulas produzidas pelas autoras e autores que os assinam. Semanalmente,
cada um de nós entrávamos em nossas respectivas turmas, compartilhávamos as vi-
deoaulas e estabelecíamos um debate a partir delas e das referências e textos indicados
para subsidiar as discussões. Dessa forma, sempre ao menos dois de nós estávamos
“presentes” em cada aula: uma/um docente por meio do vídeo que produziu; outra,
conduzindo a aula e os debates, na(s) turma(s) sob sua responsabilidade. Aqui é im-
portante registrar que contávamos sempre com o apoio precioso das/os seguintes bol-
sistas PAE, Programa de Aperfeiçoamento de Ensino, oferecido a estudantes de pós-
-graduação, que também estavam presentes nessas aulas e muito contribuíram para a
dinamização dos debates, além de oferecem interlocução extraclasse às pessoas que
18 Apresentação

as/os procuravam: Beatriz Besen, Priscila Viana Alves, Camila Sasahara, Leticia Ste-
vanato Rodrigues, Laércio Santos, Ana Claudia Sanches Baptista, Nataly Maria Perei-
ra Santos, Aline Lis Ramos, Lia Taruiap Troncarelli, Karla Sessin Dilascio e Dumara
Regina de Lima.
A riqueza desses debates, o tratamento e a profundidade de reflexões proporciona-
dos pelas videoaulas e pelos textos, além de sessões comuns que nos envolveram a
todos, em alguns sábados, é que nos estimulou a registrar a memória de tudo isso e
organizar este livro que ora apresentamos. Dessa forma, partimos dos roteiros das
aulas e dos conteúdos das videoaulas, enriquecidos pelos debates e reflexões propor-
cionadas e produzimos os nove capítulos que vem a seguir.
Havíamos pensado em uma estrutura de curso que começasse pela problematiza-
ção e reflexão sobre as origens da pandemia, evidenciando o tipo de relações sociais
que degeneraram na “enfermidade” do planeta, e nos conduzisse até a consideração de
quais ações e mudanças deveríamos promover para evitar essa nossa recorrente histó-
ria de catástrofes socioambientais sucessivas. Esse percurso se materializou nas abor-
dagens desenvolvidas no Capítulo 1, de autoria de Carla Morsello (em que se relacio-
nam as mudanças socioambientais e o advento da pandemia) e no derradeiro,
Capítulo 9, de autoria de Cristina Adams (onde se apontam possíveis saídas para a
crise instalada). Em todos os demais capítulos suas autoras e autores avaliam os aspec-
tos mais particulares desse percurso geral, como: o Antropoceno e o desrespeito aos
limites de fronteiras planetárias, de Luciana G. de Araujo; energia, mudança climática
e o muito que há por fazer nesse campo, de André F. Simões; o acesso desigual à água
e a absurda condição do saneamento no Brasil, de Ana P. Fracalanza; o “oceano” de
resíduos e a irresponsabilidade produtiva, de Sylmara G. Dias; fronteiras da política,
da bio e da sociodiversidade, de Marcos B. de Carvalho; sindemia e as desigualdades
socioespaciais, de Silvia H. Zanirato; as questões de justiça e equidade frente à pande-
mia, de Pedro H. Torres. Em todos eles, no entanto, não deixamos de imprimir a ca-
racterística que identifica o projeto de abordagem integrada como um todo, ou seja,
ao lado da caracterização de cada um dos problemas indicados, cujas abordagens se
sucedem nos vários capítulos, não deixamos de sugerir também possíveis saídas ou
soluções.
Essa preocupação, em não só pintar o quadro, já catastrófico – e a pandemia é
prova dessa condição –, mas sugerir também a reflexão sobre caminhos e soluções, é
preocupação pedagógica de quem está às voltas com a formação de pessoas e de quem
sabe da importância do assunto que estamos tratando e tem o dever de alertar para
essa condição perigosa em que nos encontramos, de flerte cotidiano com situações
limites, “situações de não retorno”, haja vista as condições de nossas florestas e bio-
mas, particularmente a Amazônia, dos povos indígenas e da massa de vulnerabiliza-
dos pela produção incessante de injustiças e racismos socioambientais que grassam
por aí, nos campos e nas cidades.
A ideia é a de fornecer os alertas, os estímulos e os instrumentos para que nos en-
gajemos em produzir situações que ajudem a evitar, como cidadãs/ãos e profissionais,
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 19

no mínimo, a ultrapassagem daqueles pontos limites, a partir dos quais as catástrofes


e as injustiças socioambientais se instalam.
Quando estávamos fechando este livro, em 7 de abril de 2022, a genial cartunista
Laerte publicou uma tira no jornal Folha de São Paulo, em que com meia dúzia de
palavras e o fino traço de seu desenho, sintetizou muito do que queríamos expressar
em nossas aulas e que aqui registramos em livro.
Ao pedirmos a autorização da artista para publicarmos sua tira em nosso livro,
imediata e simpaticamente ela aquiesceu, manifestando contentamento em poder
participar de nosso projeto. É com essa introdução da Laerte que queremos desejar a
todas as pessoas uma boa leitura e, sobretudo, que, caso os temas abordados nos capí-
tulos as sensibilizem para a importância da questão, engajem-se na perspectiva de
ação que o conhecimento das relações entre sociedade, ambiente e cidadania nos in-
dica e nos impõe.
CAPÍTULO 1
Pandemias e mudanças ambientais
globais: qual é a relação?

Carla Morsello
Isabel Tostes Ribeiro
Paula Ribeiro Prist

1.1 INTRODUÇÃO
A recente pandemia de covid-19 tem lançado luz sobre um argumento repetido há
mais de uma década por cientistas. As chances de despontarem doenças infecciosas
emergentes e reemergentes crescem a cada dia, especialmente em locais do mundo
que reúnem características capazes de propiciar interações entre seres humanos, ani-
mais silvestres e domésticos. É o caso de localidades da Ásia, mas também das flores-
tas tropicais com alta biodiversidade, por exemplo, as florestas tropicais da América
do Sul, como as florestas da Amazônia e Mata Atlântica. Em um mundo com altas
densidades populacionais e globalizado, a probabilidade de que essas doenças emer-
gentes se tornem pandêmicas é alta, dada a frequência de contatos e ampla circulação
de pessoas entre localidades e países. Para entender melhor esse processo, faremos
neste capítulo uma viagem da China ao Brasil, passando pela Amazônia e pela amea-
çada Mata Atlântica. Ao longo do caminho, analisaremos quais hipóteses explicam o
início da pandemia de covid-19, explorando por que eventos similares já eram previs-
22 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

tos e podem se tornar rotineiros. Por fim, analisaremos as evidências que sugerem que
a Amazônia pode se tornar um epicentro de novas epidemias, caso as mudanças no
uso da terra e taxas de desmatamento sejam mantidas, e mostraremos por que a Mata
Atlântica é considerada um importante hotspot mundial da emergência de zoonoses.

1.2 O SURGIMENTO DA COVID-19


A recente pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) tem lançado
luz sobre um argumento repetido há mais de uma década por cientistas. O aumento
da população humana e as mudanças ambientais globais favorecem a reemergência,
isto é, o reaparecimento de doenças que já foram controladas em parcela significativa
da população, ou a emergência, ou seja, o surgimento de doenças novas (Quadro 1).
Pode ser o caso de algumas zoonoses, doenças que são transmitidas de animais verte-
brados para os seres humanos e vice-versa (CHOMEL, 2009).
Doenças infecciosas de origem zoonótica são uma importante preocupação de
saúde pública, pois é duas vezes mais provável que doenças emergentes ou reemergen-
tes tenham uma origem animal do que tenham outro tipo de reservatório (e.g., solo,
água) (WOOLHOUSE; GOWTAGE-SEQUERIA, 2005). A febre amarela e a malária
são exemplos de zoonoses reemergentes transmitidas por vetores. Por sua vez, a doen-
ça do SARS-CoV-2 ou covid-19 (tradução do inglês coronavirus disease 2019; para
saber mais, ver: Quadro 1) é uma zoonose emergente. O SARS-CoV-2 foi identificado
pela primeira vez na China, na capital e maior cidade da província de Hubei, Wuhan.
Em dezembro de 2019, pacientes foram hospitalizados em Wuhan com sintomas pa-
recidos aos de uma pneumonia. A baixa resposta a tratamentos convencionais levou
médicos a encaminharem amostras para testes laboratoriais que apontaram para um
coronavírus causador de Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, Severe Acute
Respiratory Syndrome, em inglês). Em comum, alguns desses pacientes tinham visita-
do, em Wuhan, o Mercado Atacadista de Frutos do Mar de Huanan, local que parece
ter sido o centro de dispersão da doença. Por esse motivo, somente no final de janeiro
de 2020 houve confirmação de que a transmissão também ocorria de forma direta
entre humanos e que profissionais da saúde estavam entre os infectados (SIRLEAF;
CLARK, 2021).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 23


QUADRO 1 – CORONAVÍRUS E PROTEÍNAS SPIKE Mercados como o de Huanan são
muito parecidos com as feiras de rua
O prefixo corona, em coronavírus, significa coroa em do Brasil ou com mercados centrais
latim. Refere-se ao formato das proteínas superficiais de várias cidades de nosso país. Feiras
dos vírus, chamadas proteínas Spike, que se ligam às ou mercados desse tipo são conside-
células humanas no momento da infecção. Em algu- rados potencialmente importantes
mas vacinas já disponíveis são utilizadas moléculas para a emergência de doenças. A ra-
virais inofensivas que fornecem instruções ao nosso zão principal é que, frequentemente,
corpo para construir proteínas Spike. Quando pron- ocorre a comercialização de carne de
tas, essas proteínas são apresentadas ao nosso siste- caça, ainda que esta venda seja ilegal
ma imune que as reconhece como estruturas estra- em vários locais do mundo. Por
nhas ao nosso corpo. Com isso, a produção de
exemplo, um estudo mostrou que, en-
anticorpos é iniciada, além de outras células de defe-
tre maio de 2017 e novembro de 2019,
sa serem ativadas para eliminarem o que parece ser
uma infecção. Assim, em uma eventual infecção pelo
foram comercializadas 38 espécies de
coronavírus, o nosso corpo terá construído respostas animais silvestres ou selvagens (i.e.,
imunológicas para nos proteger, ao menos parcial- espécies nativas que vivem na nature-
mente, contra a covid-19 (CDC, 2021, 2022). za) nos mercados de Wuhan para fins
de alimentação e companhia (pets).
Muitos animais tinham condições de saúde e higiene preocupantes, além de a
maioria (31) ser espécies listadas como protegidas segundo a legislação chinesa e, por-
tanto, com comércio proibido, sujeito a multas e prisão por até quinze anos (XIAO;
NEWMAN; BUESCHING; MACDONALD et al., 2021).
Apesar de ilegal, algo similar ocorre no Brasil, ao menos na região norte, onde es-
pécies caçadas são comercializadas, inclusive aquelas protegidas pela legislação devi-
do ao grau de ameaça à extinção. Por exemplo, em feiras da tríplice fronteira amazô-
nica entre Brasil, Peru e Colômbia, estima-se que 473 toneladas de carne de caça sejam
comercializadas por ano. Espécies como a paca (Cuniculus paca), o porco-do-mato ou
cateto (Pecari tajacu), o veado-mateiro (Mazama americana) e a anta (Tapirus terres-
tris) estão entre as mais vendidas (VAN VLIET; QUICENO-MESA; CRUZ-ANTIA;
DE AQUINO et al., 2014). A última é classificada como Vulnerável na Lista Vermelha
da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN ou IUCN, em inglês)
(VARELA; FLESHER; CARTES; DE BUSTOS et al., 2019), lista que determina quais
espécies necessitam de maior atenção ou controle, pois estão ameaçadas de extinção.
Até o momento não é possível afirmar qual a origem zoonótica do SARS-CoV-2.
No entanto, existe evidência de que um vírus geneticamente similar (sarbecovírus)
circula em populações de morcegos-ferradura (família Rhinolophidae) que vivem em
regiões do leste a oeste da China, assim como no Sudeste asiático e no Japão. Essa
observação levou cientistas a lançarem a hipótese de que o vírus foi responsável por
disseminar o progenitor do SARS-CoV-2 em um hospedeiro intermediário. Os pan-
golins (Manis javanica) (Figura 1.1) são fortes candidatos à espécie intermediária, pois
são hospedeiros de linhagem de sarbecovírus que compartilha ancestral em comum
com o coronavírus causador da covid-19 (LYTRAS; XIA; HUGHES; JIANG et al.,
2021). Espécie criticamente ameaçada de mamífero do Sudeste asiático, os pangolins
24 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

são alvo de intenso tráfico internacional. São superexplorados tanto pelo comércio de
sua carne, tida como uma iguaria de luxo, quanto das escamas para uso em práticas
de medicina tradicional na China e no Vietnã (CHALLENDER; WILLCOX; PAN-
JANG; LIM et al., 2019)

Fonte: Frendi Apen Irawan, CC BY-SA 4.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/4.0, via


Wikimedia Commons.

Figura 1.1 – Pangolim (Manis javanica).

Apesar de inicialmente considerados fortes candidatos a serem o hospedeiro inter-


mediário do vírus da covid-19, uma investigação mais aprofundada do perfil genético
dos vírus refutou essa ideia. Descobriu-se que a linhagem humana do vírus é diferen-
te daquela do pangolim em certos receptores celulares específicos relacionados à in-
fecção que, no entanto, existem em morcegos. Essa informação se somou ao fato de
não terem sido encontrados pangolins ou morcegos nos mercados de Huanan (XIAO;
NEWMAN; BUESCHING; MACDONALD et al., 2021). A partir daí, foi levantada a
hipótese de que, em vez de hospedeiros duradouros, outros animais podem ter fun-
cionado como condutores da transmissão entre morcegos e seres humanos. Ou seja,
presume-se que um animal de cativeiro tenha entrado em contato com morcegos de
forma direta ou tenha se infectado antes da captura. A partir dessa ideia, considera-se
que os hospedeiros intermediários mais prováveis sejam o cão-guaxinim, o texugo e,
principalmente, a civeta, todos mamíferos susceptíveis às linhagens de sarbecovírus.
Os três animais são criados em larga escala para o uso da pele, além de serem comer-
cializados (por vezes vivos) em mercados de Wuhan, incluindo o de Huanan (LY-
TRAS; XIA; HUGHES; JIANG et al., 2021).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 25

1.3 OUTRAS PANDEMIAS NA HISTÓRIA


Apesar do grande foco midiático dado à covid-19, esta não é a primeira vez que o
mundo é afetado por pandemias (Figura 1.2). A primeira notícia que se tem de uma
situação similar corresponde à intitulada praga de atenas, de causa desconhecida, que
data de 429 a 426 a.C. A doença dizimou boa parte da população de Atenas, do norte
da África e do Oriente Médio, resultando em um total entre 75 e 100 mil mortes, apro-
ximadamente 25% da população da região na época. Em seguida, tivemos a peste
negra (ou bubônica), uma doença bacteriana,1 que causa inchaço dos gânglios linfáti-
cos. Durante três diferentes e duradouros períodos (nos séculos VI, XIV e XIX), a
doença levou entre 102 e 315 milhões de pessoas à morte (FEEHAN; APOSTOLO-
POULOS, 2021), ou cerca de 40% da população da Europa. Foi, portanto, a mais seve-
ra pandemia da história (DUNCAN; SCOTT, 2005). Atualmente, a peste tem trata-
mento, mas é endêmica em certos lugares do mundo, como em Madagascar, país
africano que sofre com recorrentes surtos, o mais recente em 2021 (WHO, 2021b).
Já na história humana recente, a pandemia
mais mortal foi aquela de influenza de 1918, tam-
bém conhecida como gripe espanhola (veja curio-
sidade no Quadro 2). À época, o vírus (H1N1) in-
fectou mais de 500 milhões de pessoas, o que
correspondia a um terço da população mundial. A
estimativa mais provável do número de mortos é
de pelo menos 50 milhões, mas pode chegar a 100
milhões, em três ondas sucessivas da doença. A
cifra é superior às mortes na 1ª Guerra Mundial e
equivale a cerca de 5% da população do mundo,
porcentagem aniquilada em poucos meses
(BREITNAUER, 2020).
Quadro 2 – QUARENTENA
A prática da quarentena nasceu no século XIV como for-
ma de proteger cidades costeiras da Peste negra. Tripu-
lantes que chegassem a Veneza de portos infectados de-
veriam esperar 40 dias antes de desembarcarem (CDC,
2022), período associado à incubação da doença (~32
dias). O termo surgiu, portanto, desses quarenta dias no
idioma italiano.

Quadro 3 – GRIPE ESPANHOLA


A gripe recebeu o nome de Espanhola não porque tenha
surgido naquele país, mas porque a Espanha permaneceu
neutra na Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Durante
a pandemia, jornais dos países Aliados e do Eixo foram
censurados para evitar que notícias sobre a gripe afetas-
Figura 1.2 – Linha do tempo do histórico sem o moral das pessoas. Enquanto isso, os jornais espa-
de pandemias. nhóis divulgavam notícias da nova doença. Por esse moti-
Fonte: FEEHAN e APOSTOLOPOULOS vo, países que passavam pelo blecaute midiático
(2021) assumiram que a doença teria surgido na Espanha.

1 Ou, para alguns autores (DUNCAN; SCOTT, 2005), uma febre hemorrágica de longo período de
incubação (32 dias).
26 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

Com início em março de 1918, a primeira onda era uma forma mais leve da doen-
ça. Foi também mal recenseada, tanto porque todos estavam distraídos com a guerra,
como porque informações eram suprimidas para evitar reduzir os esforços dos solda-
dos em guerra com novas preocupações. A segunda, de setembro a novembro, foi
extremamente fatal: pessoas chegavam a morrer poucas horas depois de infectadas,
sendo essa onda responsável pela maior parte das mortes durante essa pandemia. Em
janeiro de 1919, surgiu uma terceira onda mais moderada (BREITNAUER, 2020).
A alta virulência da gripe espanhola, ou seja, sua grande severidade e potencial de
causar danos é explicada por estudos mais recentes de reconstrução do vírus. Esses
estudos mostram que o que tornava o vírus de 1918 tão perigoso era uma combinação
única de genes. Por exemplo, estes possibilitavam alta velocidade de replicação e
maior capacidade de penetrar e infectar células saudáveis do pulmão. Além de carac-
terísticas genéticas do vírus, fatores sociais influenciaram a dispersão da gripe espa-
nhola. Por exemplo, a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que movimentou por
longas distâncias e mobilizou em espaços restritos grandes volumes de tropas, facili-
tou muito o contágio. A guerra também limitou o acesso da população civil a serviços
de saúde. Por exemplo, somente nos Estados Unidos, 30% dos médicos foram convo-
cados ao serviço militar. Por fim, vale ressaltar que vacinas não existiam e tratamen-
tos se restringiam a cuidados básicos (CDC, 2019).
Outra epidemia global de nossa época é a Síndrome da Imunodeficiência Humana
Adquirida (AIDS, sigla em inglês), causada pelo vírus da imunodeficiência humana
(HIV, sigla em inglês). Desde quando foi descoberta, em 1981, 79,3 milhões de pessoas
já se infectaram e 45,78% destas morreram em decorrência da síndrome (UNAIDS,
2021). O HIV possivelmente surgiu quando humanos caçaram um chimpanzé infec-
tado na República Democrática do Congo e entraram em contato com seu sangue
(KEELE; VAN HEUVERSWYN; LI; BAILES et al., 2006).

Fonte: Based on IEA data from IEA (2020) World Air Traffic Evolution, https://www.iea.org/data-and-s-
tatistics/charts/world-air-passenger-traffic-evolution-1980-2020, All rights reserved; as modified by I.
T. Ribeiro.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 27

Figura 1.3 – Evolução do tráfego aéreo mundial de passageiros (eixo y, em bilhões) de 1980 a 2020.

Infelizmente, os exemplos não param por aí. Somente nas duas últimas décadas, o
mundo enfrentou diversas outras epidemias de importância internacional. Primeiro,
em 2003, outro coronavírus, o SARS-CoV-1, atingiu 29 países e levou 774 pessoas à
morte, afetando principalmente o Leste e o Sudeste asiático. Por sorte, o desastre que
se esperava não se materializou. Em seguida, o vírus influenza H1N1, causador da
gripe suína, atingiu 122 países e, estima-se, provocou a morte de 151.700 a 575.400
pessoas durante o primeiro ano de circulação, em 2009. Outro coronavírus, o MERS-
-CoV (em inglês, Middle East Respiratory Syndrome coronavirus), afetou em, 2012 dez
países da península arábica e arredores, bem como outros 17 fora da península. Além
de infecções respiratórias, houve surtos importantes do vírus zika (ZIKV) nas Amé-
ricas a partir de 2014, incluindo no Brasil (2015-2016), e do ebola, causador de febre
hemorrágica, no oeste da África, entre 2014 e 2016 (SAÚDE, 2017; WHO, 2021a). Em-
bora o aparecimento dessas doenças tenha estimulado iniciativas em segurança da
saúde, a maioria das recomendações feitas durante diversos painéis globais de preven-
ção de doenças não foi cumprida, exceto em alguns dos países atingidos pelas epide-
mias anteriores à covid-19, como a própria China. Ainda que tenha havido ação rápi-
da no reconhecimento da doença, a falta de preparo para lidar com seu avanço e a
negação do problema levaram a covid-19 a proporções desastrosas na maioria dos
lugares. Em menos de três meses da sua descoberta, no dia 11 de março de 2020, o
SARS-CoV-2 havia chegado a 114 países com 118 mil casos notificados (SIRLEAF;
CLARK, 2021).
A globalização, processo de integração transnacional de atividades, foi fator im-
portante na disseminação da doença. O tráfego de passageiros aéreos nunca esteve tão
alto quanto logo antes da pandemia, quando chegou a transportar 4,64 bilhões de
passageiros (IEA, 2022) (Figura 1.3). De fato, países mais integrados à economia glo-
bal, com mais atividades de comércio de bens e serviços e turismo internacional, so-
freram com taxas de fatalidade por covid-19 mais altas (FARZANEGAN; FEIZI;
GHOLIPOUR, 2021). Até 29 de abril de 2022, a doença já havia infectado mais de 512
milhões de pessoas, ceifando 6,23 milhões de vidas, além de ter lançado a economia
mundial na pior recessão desde a Segunda Guerra Mundial.2
As evidências históricas apresentadas mostram que a pandemia de covid-19 não
foi uma surpresa. Epidemiologistas e outros cientistas já alertavam para o risco do
surgimento de novas doenças, assim como para o aumento no ressurgimento de do-
enças que já haviam sido eliminadas no passado, com um potencial risco de eclosão
de pandemias. Por exemplo, em 2008, um estudo na revista Nature investigou, a par-
tir de dados históricos, os eventos globais de emergência de novas doenças ou suas
variedades – por exemplo, variedades resistentes de bactérias. Os autores encontra-
ram que, desde os anos 1940, cresce o número de doenças que surgem por ano. No
total, 354 novos patógenos surgiram, sendo que 60% destes são de origem zoonótica.
Dentre as zoonoses, 70% surgem de espécies silvestres e o restante de animais domés-
ticos (JONES; PATEL; LEVY; STOREYGARD et al., 2008; ver: Figura 1.4). O monito-
2 Fonte: Our World in Data - https:// ourworldindata.org/explorers/coronavirus-data-explorer).
28 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

ramento realizado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) também indica que
doenças já conhecidas estão se tornando cada vez mais frequentes, o que causa preo-
cupação. Hoje, o site da OMS3 mostra informações sobre um surto atual de Dengue
no Timor Leste, além de outro recém-encerrado de ebola na República Democrática
do Congo e casos de diversas outras doenças espalhados pelo mundo. Dados de mo-
nitoramento são importantes para: evitar que os casos se transformem em emergên-
cias de saúde pública; ajudar a estabelecer prioridades e investigar a viabilidade de
uma intervenção, bem como acompanhar seu progresso.

Fonte: Elaborado por P. R. Prist a partir de


(JONES; PATEL; LEVY; STOREYGARD et al.,
2008.
Figura 1.4 – Estimativa da emergência de
doenças entre 1940 e 2000.

Historicamente, o surgimento e a disseminação de novas doenças estão associados


a mudanças sociais importantes, como exemplificado através da Gripe Espanhola,
que se espalhou pelo mundo com a Primeira Guerra Mundial. Isso porque mudanças
sociais podem alterar as dinâmicas populacionais humanas, afetando também a de-
manda por recursos naturais. Intervenções antropogênicas como essas impactam a
qualidade dos ecossistemas e, em consequência, a saúde humana e animal, podendo
levar ao aumento da emergência de doenças, principalmente zoonoses.
A seguir, detalhamos os principais fatores que favorecem a emergência de doenças
e epidemias, especialmente zoonóticas (ver síntese: Figura 1.5).

3 Disease Outbreak News (DONs): who.int/emergencies/disease-outbreak-news (Acesso: 23/02/2022).


Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 29

Figura 1.5 – Fatores que favorecem a emergência de doenças.


(Fonte: Elaborado por I. T. Ribeiro a partir de Zoonotic diseases and how to break the chain of
transmission: A scientific assessment with key messages for policy-makers (UNEP, 2020).

1.4 RAZÕES QUE EXPLICAM O AUMENTO NA FREQUÊNCIA DE


EPIDEMIAS

1.4.1 PERDA, FRAGMENTAÇÃO E DEGRADAÇÃO DE HÁBITATS


Os processos de perda, fragmentação – isto é, subdivisão em partes menores – e
degradação de hábitats estão associados à transformação de mais da metade dos hábi-
tats naturais terrestres (IPBES, 2019). São também os principais processos que favore-
cem a emergência de doenças zoonóticas em humanos, como no caso da aids, do
ebola e da zika, que provocam alta mortalidade e se originaram em paisagens naturais
alteradas do mundo. De fato, cerca de um terço das doenças emergentes no mundo
são resultado de mudanças rápidas nos usos da terra (DOBSON; PIMM; HANNAH;
KAUFMAN et al., 2020).
30 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

Regiões de florestas tropicais, as quais possuem alta biodiversidade e, frequente-


mente, sofrem mudanças no uso da terra pelo avanço da fronteira agrícola e urbani-
zação, possuem risco elevado de sofrer a emergência (i.e., surgimento para a espécie
humana) de doenças zoonóticas. Isso porque uma maior diversidade de espécies sig-
nifica também que existe um conjunto maior de patógenos a partir dos quais pode
emergir ou surgir uma epidemia (ALLEN; MURRAY; ZAMBRANA-TORRELIO;
MORSE et al., 2017). Além disso, o desmatamento, a fragmentação e o aumento das
zonas de borda entre florestas e hábitats antrópicos podem aumentar as chances de
contato entre espécies silvestres (i.e., selvagens) infectadas e seres humanos ou ani-
mais domésticos por diversos mecanismos. Três exemplos servem a ilustrar.
Primeiro, o desmatamento e a fragmentação de hábitats naturais podem afetar os
padrões de movimentação e forrageamento (i.e., busca por alimento) de espécies sil-
vestres transmissoras de doenças, como aquelas que tendem a se aproximar de comu-
nidades humanas, por exemplo, roedores, insetos vetores e morcegos frugívoros. Mui-
tos roedores são atraídos por grãos e alimentos estocados, liberando excretas e
excrementos infectados nesses locais, o que eleva o risco de transmissão de algumas
zoonoses, como a hantavirose (TORRES-PÉREZ; NAVARRETE-DROGUETT; AL-
DUNATE; YATES et al., 2004). Morcegos que se alimentam de frutas e insetos ten-
dem a regurgitar partes não digeridas dos alimentos, as quais muitas vezes servem de
alimento para animais domésticos. Processo similar foi observado quando do surgi-
mento de doenças como o ebola, o vírus de Nipah, dentre outras (DOBSON, 2005).
Ainda, insetos, como o barbeiro vetor da doença de Chagas, são atraídos pela grande
oferta de alimento que existe em áreas peridomiciliares (e.g., porcos, galinhas, dentre
outros), passando inclusive a habitar o interior das casas (ARGOLO; FÉLIX; COSTA;
PACHECO, 2008).
Segundo, o aumento de atividades humanas em zonas florestadas, como o desma-
tamento, fragmentação e a agricultura, ampliam o tamanho da borda de contato entre
hábitats naturais, onde vivem as espécies silvestres, e a área antropizada ou doméstica
(Figura 1.5). Estudos mostram que, quanto mais longas forem essas zonas de borda e,
por conseguinte, o uso dos hábitats naturais pelas pessoas, maior será a frequência de
contato entre espécies silvestres/selvagens, por um lado, e as pessoas ou espécies do-
mesticadas (e.g., gado, porcos, galinhas, dentre outros), por outro (BLOOMFIELD;
MCINTOSH; LAMBIN, 2020). Tal aumento amplifica o compartilhamento de pató-
genos entre os dois tipos de hábitats e a contaminação da população humana, tanto
diretamente (e.g., via consumo de carne de caça), como indiretamente (via animais
domésticos infectados). Por exemplo, pessoas podem se contaminar ao oferecer ali-
mentos a macacos silvestres que visitam suas residências ou porque o cachorro do-
méstico visitou as áreas de floresta e se contaminou.
Terceiro, perda, fragmentação e degradação de hábitats provocam declínio popu-
lacional ou até o desaparecimento de certas espécies, enquanto fazem outras, aquelas
mais resilientes aos distúrbios humanos, prosperarem (Figura 1.6). Espécies que se
mantêm com sucesso nesse contexto tendem a ser generalistas alimentares e de hábi-
tat, a serem pequenas e a terem ciclos de vida mais curtos. Já as espécies afetadas ne-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 31

gativamente pelas atividades humanas são comumente especialistas, ou seja, possuem


requerimentos alimentares ou de hábitat particulares, tendem a ser grandes, mais ra-
ras e a possuírem tempos de vida mais longos (GIBB; REDDING; CHIN; DONNELLY
et al., 2020). Como resultado, espécies mais sensíveis se tornam mais raras, enquanto
crescem as populações daquelas que suportam as mudanças ambientais.

Fonte: BLOOMFIELD; MCINTOSH; LAMBIN, 2020, p. 987.


Figura 1.6 – Aumento da zona de borda e do contato entre pessoas e fauna silvestre. Repare como a
perda de hábitat e sua subdivisão em porções menores estão associadas a maior probabilidade de
contato entre as pessoas e as espécies silvestres.

O problema é que justamente essas espécies que suportam mudanças ambientais


são aquelas que transmitem doenças (Figura 1.7). Além disso, essas espécies acabam
atingindo altas abundâncias populacionais, porque são as únicas que conseguem so-
breviver nesse tipo de ambiente e, por conseguinte, quase não existe competição por
alimento e espaço com outras espécies. O resultado é que a chance de um ser humano
ter contato com um animal que transmite doenças é muito maior nesse tipo de paisa-
gem.
Outro fator que explica o aumento do risco de transmissão em paisagens desmata-
das e degradadas é que a perda de espécies levaria a um efeito amplificador de patóge-
nos. Ou seja, espécies que transmitem doenças teriam uma chance maior de contato e
de infecção a partir de outras espécies infectadas, aumentando assim a taxa de infec-
ção nessa paisagem. Portanto, em paisagens desmatadas, seres humanos não só têm
maiores chances de encontrar um animal que transmite doenças, como também é
maior a probabilidade de que esse animal esteja infectado (UNEP, 2020). Isto é, a con-
versão de hábitats para usos humanos aumenta as chances de transmissão de doenças
infecciosas de animais silvestres para as pessoas (GIBB; REDDING; CHIN; DON-
NELLY et al., 2020).
32 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

Fonte: Elaborada por C. Morsello e I. T. Ribeiro e inspirada em https://revistapesquisa.fapesp.br/


da-floresta-para-as-cidades/.
Figura 1.7 – Ilustração das consequências temporais da perda e transformação de hábitat na prevalên-
cia de espécies hospedeiras de patógenos

1.4.2 POBREZA E DEPENDÊNCIA DE CARNE DE ANIMAIS


SILVESTRES
Outro fator que pode aumentar a probabilidade de surgirem novas pandemias é o
consumo de carne de animais silvestres. Milhões ou bilhões de pessoas no mundo,
especialmente os mais pobres habitantes de zonas rurais de países de baixa renda,
dependem de espécies silvestres para sua subsistência (BOOTH; CLARK; MILNER-
-GULLAND; AMPONSAH-MENSAH et al., 2021; CAWTHORN; HOFFMAN,
2015). Em localidades desses países, o consumo de carne de caça é frequentemente a
principal fonte de proteínas para populações de baixa renda, inclusive entre popula-
ções de áreas urbanas (BOOTH; CLARK; MILNER-GULLAND; AMPONSAH-
-MENSAH et al., 2021; CARIGNANO TORRES; MORSELLO; ORELLANA; AL-
MEIDA et al., 2022). Sendo assim, a piora nos níveis de pobreza pode resultar no
aumento do consumo de carne de animais silvestres e, consequentemente, turbinar a
emergência de doenças infecciosas. De fato, o manuseio de animais silvestres e o con-
sumo de sua carne é uma das origens mais comuns de epidemias (DOBSON; PIMM;
HANNAH; KAUFMAN et al., 2020).
O aumento na prevalência da pobreza no mundo, em decorrência da pandemia de
covid-19, pode, portanto, aumentar as chances de que emerjam novas doenças, em
um ciclo de retroalimentação do problema. Estima-se que, com a pandemia, ao menos
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 33

71 milhões de pessoas foram lançadas em condições de extrema pobreza (<US$1,90/


dia), podendo chegar a 100 milhões de pessoas em cenários mais pessimistas (WORL-
DBANK, 2020). A redução no poder de consumo das famílias, especialmente daque-
las em situação de vulnerabilidade alimentar, pode promover aumento na dependên-
cia da carne de caça, cujo custo de obtenção é menor. Com isso, podem aumentar as
chances de transbordamento de patógenos da fauna silvestre para os seres humanos.

1.4.3 CONTATO DIRETO E INDIRETO COM ANIMAIS SILVESTRES


O contato com animais silvestres é uma das formas mais comuns para a transmis-
são de zoonoses para as pessoas, o que pode ocorrer de duas formas. A primeira é
direta, por exemplo, quando ocorre o manuseio de um animal caçado que será consu-
mido ou comercializado. Alternativamente, a exposição humana pode advir de conta-
to indireto por exemplo, via animais domésticos. O comércio de animais silvestres
juntamente com aqueles domésticos, como aves e porcos, em mercados úmidos (i.e.,
feiras) é uma forma comumente atribuída para o surgimento de epidemias. Em mui-
tos países da Ásia, por exemplo, o comércio de aves domésticas vivas, como patos e
galinhas, ocorre juntamente com o comércio, frequentemente ilegal, de animais sil-
vestres nos mercados úmidos, como aquele de Wuhan na China (AGUIRRE; CA-
THERINA; FRYE; SHELLEY, 2020).
Outra forma de contato indireto é aquela que pode ocorrer em zonas rurais (Figu-
ra 1.8). Gatos e cachorros domésticos que perambulam por áreas naturais, ou animais
utilizados para caçar, podem carrear os patógenos para as pessoas e, até mesmo, atuar
como hospedeiros amplificadores de certos patógenos. Para a febre maculosa, por
exemplo, humanos adquirem a doença quando cães domésticos carregam carrapatos
infectados para suas residências adjacentes às áreas fragmentadas (PINTER; HORTA;
PACHECO; MORAES-FILHO et al., 2008). A criação de animais, como o gado, por-
cos e galinhas, em regiões próximas a áreas de florestas ou outros ecossistemas natu-
rais, também pode facilitar a transmissão de doenças a partir desses animais, uma vez
que a transmissão de patógenos é facilitada entre grupos mais próximos. Ou seja, es-
ses animais acabam se infectando a partir de animais silvestres, tornando-se hospe-
deiros amplificadores desses patógenos e, com isso, transmitindo-os para os seres
humanos.
34 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

Figura 1.8 – Caminhos do contato humano com doenças transmitidas por animais silvestres.

O comércio de animais silvestres, como já dito, é uma das vias que possibilita o
contato humano direto ou indireto com animais silvestres, bem como representa uma
origem importante das epidemias e pandemias. Apesar de sua grande dimensão,
quantificar de maneira robusta o comércio global de animais silvestres, em geral, ou
de carne de caça, em particular, é praticamente impossível. A razão é que as informa-
ções sobre esse comércio não fazem parte das estatísticas nacionais dos países (COAD;
FA; ABERNETHY; VAN VLIET et al., 2019), pois as transações incluem tanto eventos
informais, como presentear ou trocar produtos entre habitantes de áreas rurais e des-
tes com habitantes de localidades urbanas (MORSELLO; YAGÜE; BELTRESCHI;
VAN VLIET et al., 2015), até cadeias de suprimento nacionais e internacionais volta-
das às cidades.
O comércio de animais e carne de caça pode ter origem local, por exemplo, quando
animais caçados servem para suprir a ingestão de proteínas de populações urbanas ou
periurbanas de regiões remotas, por exemplo, em parte da Amazônia. Nesse caso,
caçar e comercializar podem ser motivados por suprir as necessidades proteicas, ou
para obtenção de renda monetária por parte de populações rurais pobres (MILNER-
-GULLAND; BENNETT, 2003). Quando em cidades, o consumo de carne de caça
pode representar um luxo e ser motivado por busca de status pessoal, como em loca-
lidades da África. Nesse contexto, o valor da carne de animais silvestres é alto, esti-
mulando habitantes rurais a caçarem mais animais e, inclusive, o surgimento de ca-
çadores especializados nesse segmento (COAD; FA; ABERNETHY; VAN VLIET et
al., 2019).
Já o comércio internacional e ilegal de animais silvestres supre de carne de caça
habitantes de grandes metrópoles da África, considerada um luxo nesses contextos,
mas também residentes na Europa (GLUSZEK; VIOLLAZ; MWINYIHALI; WIE-
LAND et al., 2021). Apesar desse consumo de luxo ser menos importante em termos
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 35

da quantidade consumida por pessoa, o tamanho populacional nas cidades é muito


maior. Sendo assim, a pressão desse tipo de consumo pode ser até maior do que aque-
le da zona rural. No total, as estimativas anuais giram em torno de 40 mil primatas, 4
milhões de aves vivas, 640 mil répteis abatidos e 350 milhões de peixes vivos comer-
cializados (KARESH; COOK; BENNETT; NEWCOMB, 2005), movimentando cifras
entre 7 e 23 bilhões de dólares (NELLEMANN; HENRIKSEN; KREILHUBER;
STEWART et al., 2016). Em paralelo ao tamanho, a importância desse comércio para
o controle da emergência de doenças é multiplicada por ser um caminho difícil de
controlar, devido à natureza frequentemente ilegal, especialmente quando se trata de
animais listados como ameaçados de extinção, os quais são submetidos a acordos in-
ternacionais de controle (i.e., CITES ou Convenção sobre o Comércio Internacional
das Espécies Silvestres Ameaçadas de Extinção, em português).4
Segundo estudos com modelos matemáticos (e.g., SWIFT; HUNTER; LEES; BELL,
2007), o risco de surgimento de epidemias por doenças emergentes e reemergentes
aumenta quando o comércio envolve áreas urbanas. Nesses casos, caçadores, comer-
ciantes de carne e consumidores têm algum grau de contato com o animal caçado.
Outros animais silvestres que são comercializados também são expostos temporaria-
mente, assim como animais domésticos e animais silvestres que se alimentam de car-
caças, como os urubus. Anualmente, essas cadeias de contato podem expor, segundo
KARESH; COOK; BENNETT; NEWCOMB, (2005), múltiplos de bilhão de pessoas e
animais. Nas áreas urbanas, o contágio é facilitado pela maior densidade populacio-
nal e pela realização das atividades diárias mais frequentemente em ambientes fecha-
dos, o que facilita o contágio por vírus transmitidos pelo ar. Além disso, é menos
provável que habitantes de áreas urbanas tenham tido exposição prévia a vírus de
animais silvestres e, sendo assim, estão mais suscetíveis a infecções (WOOLHOUSE;
GOWTAGE-SEQUERIA, 2005).

1.4.4 MUDANÇAS CLIMÁTICAS


O clima também afeta o risco de ocorrência de zoonoses. As precipitações impac-
tam diretamente as populações animais (ALENCAR; SERRA-FRIERE; MARCON-
DES; DOS SANTOS SILVA et al., 2010) por determinarem a presença e a abundância
de recursos, enquanto a temperatura pode afetar o desenvolvimento de mosquitos
vetores (LAMBRECHTS; PAAIJMANS; FANSIRI; CARRINGTON et al., 2011). Com
isso, o aumento na frequência de anomalias climáticas (e.g., enchentes, ondas de calor,
picos de temperatura, chuvas) pode afetar positivamente ou negativamente a trans-
missão dessas zoonoses. Por exemplo, estudos têm mostrado que incrementos de tem-
peratura aceleram o desenvolvimento das fases iniciais de vida dos vetores, aumen-
tando assim a densidade dos mesmos (LAMBRECHTS; PAAIJMANS; FANSIRI;
CARRINGTON et al., 2011).
Embora as mudanças climáticas já tenham aumentado a ocorrência de doenças em
alguns sistemas naturais e agrícolas do mundo (ALTIZER; OSTFELD; JOHNSON;
4 Ver: https://cites.org/eng (Acesso em: 27 fev. 2022).
36 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

KUTZ et al., 2013), os resultados do aquecimento em curso sobre a probabilidade de


emergência de doenças dependem de características específicas da mudança em
determinado local, bem como de detalhes dos sistemas hospedeiro-patógeno. Por
exemplo, certas doenças transmitidas por vetores podem ter a área de ocorrência au-
mentada em certas regiões, enquanto em outras partes do globo podem deixam de
existir.
Em certos casos, o aquecimento global pode favorecer a emergência ou o transbor-
damento de doenças de animais silvestres para humanos. Por exemplo, há evidência
de que um pico observado nos anos 1980 (ver Figura 1.4) na emergência de doenças
no mundo, período correspondente ao surgimento da AIDS, possa estar associado a
anomalias climáticas que iniciaram naquela época (JONES; PATEL; LEVY; STOREY-
GARD et al., 2008). De forma similar, as mudanças climáticas em curso, que alteram
condições ambientais (e.g., regime e quantidade de chuvas, temperatura e frequência
de ocorrência de eventos extremos), podem favorecer a incidência, transmissão sazo-
nal e distribuição geográfica de doenças. Por exemplo, incrementos no volume de
chuvas podem aumentar a probabilidade de que ocorram enchentes e, consequente-
mente, a transmissão de doenças humanas cujos vetores são roedores (e.g., leptospiro-
se, hantavirose). Outro exemplo se refere às doenças transmitidas por mosquitos,
como malária e dengue. Os insetos responsáveis pela transmissão dessas doenças são
extremamente sensíveis a variações no clima. Há evidências de que tais variações afe-
tem também os patógenos que esses mosquitos carregam. Por exemplo, no caso da
malária, incrementos nas temperaturas poderiam tanto aumentar a reprodução do
mosquito, quanto diminuir o período de incubação extrínseco do patógeno5 e, com
isso, favorecer a transmissão dessa doença (PATZ; OLSON; UEJIO; GIBBS, 2008).
Outro receio com as mudanças climáticas é o destino do permafrost (ou pergelis-
solo), tipo de solo congelado que ocorre principalmente na região do Ártico, ocupan-
do cerca de um quarto da superfície terrestre e atingindo até mil metros de profundi-
dade (MALAVIN; SHMAKOVA; CLAVERIE; RIVKINA, 2020). Nas últimas décadas,
essa região do mundo aqueceu duas vezes mais do que a taxa média global e a perda
de gelo está se acelerando (ALTIZER; OSTFELD; JOHNSON; KUTZ et al., 2013). O
permafrost representa um registro excepcional de épocas passadas, devido às tempe-
raturas constantemente abaixo de zero grau centígrado. Tal contexto explica por que
vários micro-organismos extintos foram descritos a partir de material da região. Um
exemplo dessa capacidade de conservação do permafrost foi a recuperação e o sequen-
ciamento de material genético do vírus da gripe espanhola de 1918, a partir do pul-
mão preservado de uma mulher da etnia Inuit enterrada a mais de dois metros de
profundidade no permafrost congelado do Alasca (REID; FANNING; HULTIN;
TAUBENBERGER, 1999). Teme-se, portanto, que o aumento das temperaturas mé-
dias no Ártico possa provocar o degelo desse solo congelado, revelando micro-orga-
nismos e vírus “adormecidos” com potencial infeccioso, como aqueles residentes em
cemitérios humanos do passado (MALAVIN; SHMAKOVA; CLAVERIE; RIVKINA,
2020).
5 Tempo entre a infecção do mosquito vetor e o momento em que passa a conseguir infectar outros
organismos, como os seres humanos.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 37

Apesar de o permafrost estar principalmente em áreas isoladas, diminuindo as


chances de contaminação humana por agentes infecciosos “descongelados”, a perda
de permafrost ártico próximo à superfície pode chegar a 65% até 2100, liberando pe-
rigos conhecidos e desconhecidos no ambiente global (MINER; D’ANDRILLI; MA-
CKELPRANG; EDWARDS et al., 2021). Por conta disso, o possível descongelamento
de patógenos aterrorizou a população da Rússia siberiana quando, em 2016, um surto
de antraz (Bacillus anthracis) matou cerca de duas mil renas, levou noventa pessoas à
hospitalização e uma criança à morte. Embora haja outras razões que possam explicar
a emergência do antraz nesse caso, o temor de que patógenos possam ser “acordados”
foi explorado pela mídia da Rússia e mundial como potencialmente causada pelo ve-
rão excepcionalmente quente daquele ano, que teria exposto uma carcaça de rena con-
taminada há mais de 75 anos (HUEFFER; DROWN; ROMANOVSKY; HENNESSY,
2020).

1.4.5 PRODUÇÃO DE CARNE


A produção massiva de proteína animal é outro fator indicado por epidemiologis-
tas, ecólogos e veterinários como capaz de potencializar a emergência de zoonoses. De
fato, inúmeras doenças infecciosas surgiram dessa forma, por exemplo a varíola, a
tuberculose e o vírus de Nipah (WOLFE; DUNAVAN; DIAMOND, 2007). Dois fato-
res principais explicam o porquê. Primeiro, o impacto negativo sobre o meio ambien-
te das práticas utilizadas para produção, que levam ao desmatamento e à degradação
ambiental, com perda de biodiversidade associada. Segundo, o aumento de contato de
animais silvestres com animais de criação. A produção intensiva de animais domésti-
cos aumenta significativamente os riscos de amplificação, propagação e mutação de
patógenos, uma vez que eles entram nas instalações agrícolas e encontram espécies
animais com maior proximidade genética àquelas silvestres (ESPINOSA; TAGO;
TREICH, 2020). Dessa forma, animais domésticos podem atuar como ponte para a
transmissão de patógenos e aumentar a exposição humana a estes.
Fazendas de produção intensiva frequentemente dispõem muitos animais domés-
ticos em áreas desmatadas próximas a áreas de hábitats naturais. Isso leva ao aumento
do contato entre animais domésticos e animais silvestres, multiplicando as chances de
transmissão de patógenos. Ainda, a alta densidade animal nesse sistema de produção
faz com que milhares de animais possam ser infectados em poucos dias (i.e., existe
uma alta disseminação de patógenos dentro das próprias instalações; CUTLER;
FOOKS; VAN DER POEL, 2010; GRAHAM; LEIBLER; PRICE; OTTE et al., 2008).
Em paralelo às altas densidades, a seleção das variedades mais rentáveis de animais de
criação levou a altos níveis de similaridade genética, o que facilita ainda mais a propa-
gação de patógenos. A razão é que todos os animais dessas fazendas são hospedeiros
imunologicamente idênticos, aumentando a probabilidade de epidemias catastróficas
(DREW, 2011; SPRINGBETT; MACKENZIE; WOOLLIAMS; BISHOP, 2003). Ade-
mais, a proximidade genética associada à alta densidade oferecem circunstâncias ide-
ais para que os patógenos sofram mutações e evoluam, o que aumenta os riscos de que
38 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

surja uma nova mutação transmissível aos humanos (ESPINOSA; TAGO; TREICH,
2020).
As fazendas intensivas também fazem uso massivo de antibióticos como forma de
evitar a contaminação de animais imunodeficientes, o que também multiplica o risco
de emergência de zoonoses. O uso em larga escala desses medicamentos pode supri-
mir o sistema imunológico desses animais, facilitando o surgimento de cepas patogê-
nicas resistentes a antibióticos (LAXMINARAYAN; DUSE; WATTAL; ZAIDI et al.,
2013; ROHR; BARRETT; CIVITELLO; CRAFT et al., 2019).
Em síntese, a produção intensiva de proteína animal amplifica os riscos de emer-
gência de zoonoses devido à degradação ambiental, alta densidade, proximidade ge-
nética, aumento da imunodeficiência e transporte vivo de animais de criação, pois
facilita as chances de transmissão e mutação dos patógenos. Exemplos disso são o
vírus de Nipah, na Ásia, cuja infecção em humanos esteve associada a atividades que
envolviam contato próximo e manuseio de suínos. Acredita-se que a transmissão
ocorreu através do contato direto de suínos com alimentos infectados por fezes de
morcegos e, por sua vez, do contato dos seres humanos com as fezes de suínos (BRE-
ED; FIELD; EPSTEIN; DASZAK, 2006).
A questão da produção intensiva de carne é especialmente delicada por outro fa-
tor: o consumo de variedades de proteína animal cresce continuamente. O Brasil, por
exemplo, produz 16% da carne bovina mundial e responde por 20% do comércio
mundial de carne bovina (USDA, 2020). Dado que esse mercado tende a crescer nos
próximos anos, é crucial levar essa questão em consideração para minimizar os riscos
de que o Brasil seja um berço comum do surgimento de epidemias.

1.5 A AMAZÔNIA PODE SE TORNAR NOVO EPICENTRO DO


SURGIMENTO DE PANDEMIAS?
As mudanças ambientais, como as transformações no uso da terra iniciadas pelo
desmatamento para a agropecuária ou por obras de infraestrutura (e.g., estradas, hi-
drelétricas), podem ampliar a área de circulação de zoonoses, como dito anteriormen-
te. As alterações aumentam as chances de encontros entre animais silvestres, de um
lado, com populações humanas e animais domésticos, de outro. O Brasil ocupa um
sombrio lugar de destaque nesses encontros, pois ao menos três fatores indicam que o
país tem altas chances de se tornar um epicentro do surgimento de pandemias no
futuro.
A presença de florestas tropicais de alta biodiversidade no Brasil, como aquelas da
Amazônia e Mata Atlântica, é o primeiro fator importante. Da mesma forma que a
riqueza no número de espécies animais e vegetais cresce no sentido dos polos ao
Equador, explicando a primazia da Amazônia na biodiversidade mundial, a riqueza
de patógenos (i.e., bactérias, vírus e parasitas) segue padrão similar. De fato, a Ama-
zônia abriga enorme biodiversidade de patógenos conhecidos (e.g., que causam malá-
ria, leishmaniose, raiva, febre amarela, doença de Chagas), além de muitos outros
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 39

desconhecidos (ELLWANGER; KULMANN-LEAL; KAMINSKI; VALVERDE-VIL-


LEGAS et al., 2020).
Além disso, o Brasil também lidera na diversidade dos grupos animais que, por
razões diferentes, contribuem para o potencial de emergirem doenças em nosso país.
Com 139 espécies, o Brasil é o país com o maior número de espécies de primatas não
humanos do mundo, sendo que a Amazônia abriga quase 80% desse total (ICMBIO,
2022). Esse grupo de mamíferos é o mais próximo evolutivamente da espécie humana,
o que aumenta a preocupação com a emergência de doenças a partir de suas espécies
hospedeiras (OLIVAL; HOSSEINI; ZAMBRANA-TORRELIO; ROSS et al., 2017). A
razão é que a proximidade evolutiva entre espécies, associada à sobreposição espacial
de hábitats, aumenta as chances de que essas espécies compartilhem patógenos (HAN;
KRAMER; DRAKE, 2016). Portanto, ao abrigarmos a maior diversidade de primatas
do mundo, temos no Brasil mais espécies com potencial de serem hospedeiras de pa-
tógenos capazes de afetar humanos.
Atrás apenas da Colômbia, o Brasil é também o segundo país do mundo em núme-
ro de espécies de morcegos (BERNARD; AGUIAR; MACHADO, 2011), abrigando
167 espécies (64 gêneros) no total (DOS REIS; PERACCHI; PEDRO; DE LIMA, 2007).
Morcegos são mamíferos reservatórios de doenças capazes de nos afetar, como é o
caso da raiva. São também hospedeiros de doenças emergentes altamente letais, por
exemplo, provocadas pelos vírus de Marburg e causador do ebola que emergiram na
Alemanha e África, respectivamente. Embora possamos pensar nos morcegos hema-
tófagos (i.e., comedores de sangue) ou “vampiros” como um risco, uma forma comum
de contaminação de outras espécies animais, a partir de morcegos, ocorre via alimen-
tos regurgitados. Morcegos frugívoros e insetívoros mastigam o alimento para retirar
os componentes energéticos e depois cospem os restos, o que se acredita ser necessário
para evitar peso que afete a aerodinâmica do voo nesses animais. Ao caírem no chão,
os restos regurgitados podem ser consumidos por outros animais que, dessa forma,
entram em contato com potenciais patógenos da saliva de morcegos (DOBSON, 2005).
Ainda, o Brasil possui alta diversidade de roedores e a maioria dessas espécies são
consideradas espécies de reservatório ou hiper-reservatório (HAN; SCHMIDT; BOW-
DEN; DRAKE, 2015), ou seja, tem capacidade de transmitir um ou mais patógenos
para seres humanos. Os roedores são a ordem mais diversa dos mamíferos, com 42%
da biodiversidade mundial (n=2277 espécies; BURGIN; COLELLA; KAHN; UPHAM,
2018). São também os hospedeiros mais importantes de doenças infecciosas do mun-
do, estando associados a mais de 80 doenças zoonóticas (HAN; KRAMER; DRAKE,
2016), além de terem alta capacidade de se adaptarem a ambientes alterados.
O segundo fator que aumenta as chances de surgimento de epidemias no mundo e
no Brasil são a perda, fragmentação e degradação de hábitats por ações antrópicas,
como dito anteriormente. Na Amazônia, esses três processos estão em curso, aumen-
tando a probabilidade de emergência de doenças zoonóticas. Após alcançar, em 2012,
o feito inédito de reduzir em 84% o desmatamento na Amazônia, em relação ao pico
histórico de 2004, a área desmatada voltou a crescer na região a partir de 2015 e, espe-
cialmente, desde 2019. De fato, a Amazônia brasileira é atualmente a região com as
40 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

mais altas taxas de desmatamento do mundo. Por exemplo, em 2001, o Brasil contri-
buiu com 40% da perda de florestas primárias do mundo.6 Superfície ainda maior
vem sofrendo degradação de hábitat, especialmente devido à fragmentação e aos efei-
tos de borda associados, à exploração seletiva de madeira e às queimadas (QIN; XIAO;
WIGNERON; CIAIS et al., 2021).
A terceira razão a explicar por que a Amazônia pode se tornar um epicentro de
novas pandemias é o aumento da densidade populacional humana na região. O cres-
cimento no número de pessoas leva a um maior desmatamento induzido por dinâmi-
cas locais de uso e ocupação do solo (e.g. garimpo, ampliação das cidades), com os
problemas associados à emergência de doenças que já foram descritos. Tal crescimen-
to pode estar ocorrendo em localidades circundadas por florestas, por exemplo, devi-
do ao avanço de garimpos em territórios indígenas. Já o surgimento de aglomerações
urbanas e, portanto, maior densidade populacional em regiões próximas às florestas
potencializa a rápida dispersão de doenças, o que multiplica as chances de surgimen-
to de epidemias. De fato, movimentos migratórios na Amazônia explicam surtos de
doenças infecciosas durante episódios importantes do desenvolvimento regional. É o
caso do ciclo da borracha (final do século XIX e início do XX) que atraiu milhares de
brasileiros e estrangeiros para trabalharem tanto na extração do látex, matéria-prima
da borracha, quanto na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré (EFMM
1907-1912) que auxiliava no escoamento do recurso. Somente durante o período de
construção da EFMM, estima-se que tenham ocorrido mais de 10 mil mortes causa-
das pela malária. Na segunda metade do século XX, outra grande onda migratória foi
provocada pelo Programa de Integração Nacional, criado pelo governo militar do
Presidente Médici. O programa buscava colonizar e implementar obras de infraestru-
tura na Amazônia (e.g., rodovia Transamazônica), empregando mão de obra vinda
principalmente do Nordeste e Sul brasileiros. Condições precárias de moradia e estru-
tura sanitária, associadas às aglomerações humanas e invasão da floresta, levaram a
mais um surto de malária que alcançou, por exemplo, em Rondônia 300 mil casos ao
ano no final da década de 1980 (KATSURAGAWA; GIL; TADA; PEREIRA DA
SILVA, 2008)
Mas o crescimento populacional continua a acontecer na Amazônia. Somente en-
tre 2000 e 2010, alimentado especialmente pelo êxodo rural, tivemos um aumento de
30% na população das cidades da Amazônia brasileira (em 2010, 71,5% da população
da região vivia em áreas com mais de 50 habitantes/km2) (TRITSCH; LE TOURNE-
AU, 2016). O problema é que o crescimento populacional e aumento de sua densidade
não foram acompanhados na mesma medida por melhorias na infraestrutura das ci-
dades amazônicas. Enquanto os aglomerados urbanos, por si só, já aumentam a pro-
babilidade de que ocorram epidemias, o problema é agravado pelo contexto amazôni-
co. Cidades cercadas por usos agrícolas da terra, particularmente em regiões tropicais
com maior diversidade de mamíferos, têm maiores chances de que emerjam doenças
infecciosas (SANTIAGO-ALARCON; MACGREGOR-FORS, 2020). Esse é o caso das
cidades amazônicas que, como visto, estão localizadas em contextos de alta biodiver-
6 Ver em World Resources Institute (WRI): https://wribrasil.org.br/pt/blog/perda-de-florestas-perma-
neceu-alarmantemente-alta-no-mundo-em-2021 (Acesso em: 29 abr. 2022).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 41

sidade de grupos de mamíferos, os quais são importantes hospedeiros de doenças


capazes de afetar humanos (ELLWANGER; KULMANN-LEAL; KAMINSKI; VAL-
VERDE-VILLEGAS et al., 2020). Outro fator que agrava o problema é o consumo de
carne de caça observado em áreas urbanas da Amazônia (CHAVES; VALLE; TAVA-
RES; MORCATTY et al., 2021), aspecto que facilita maior exposição a patógenos.

1.6 A MATA ATLÂNTICA COMO UM IMPORTANTE CENTRO DE


EMERGÊNCIA DE ZOONOSES
A Mata Atlântica brasileira, onde se localiza a maior parte das grandes cidades do
país, era uma das maiores florestas tropicais das Américas, cobrindo originalmente
cerca de 112 milhões de hectares. Entretanto, após cinco séculos de expansão huma-
na, esse é um dos ecossistemas tropicais mais ameaçados do mundo (TABARELLI;
AGUIAR; RIBEIRO; METZGER et al., 2010), com apenas 28% de vegetação nativa
remanescente (REZENDE; SCARANO; ASSAD; JOLY et al., 2018), em um estado al-
tamente fragmentado (RIBEIRO; METZGER; MARTENSEN; PONZONI et al.,
2009). A Mata Atlântica também abriga uma alta concentração de espécies endêmicas
e é considerada um hotspot de biodiversidade, aparecendo como o segundo bioma
mais rico em número de espécies do Brasil (i.e., a Amazônia tem a maior diversidade
do país) (MYERS; MITTERMEIER; MITTERMEIER; DA FONSECA et al., 2000).
Apesar desse bioma não sofrer atualmente com altas taxas de desmatamento, seu
estado muito fragmentado, a baixa superfície de florestas remanescentes e a alta di-
versidade de espécies a classificam como um dos grandes hotspots para doenças infec-
ciosas emergentes (ALLEN; MURRAY; ZAMBRANA-TORRELIO; MORSE et al.,
2017). Somado a isso, essa região brasileira é aquela que possui as maiores densidades
demográficas de todo o país, colocando seres humanos, animais silvestres e animais
domésticos em frequente contato. Apesar de ter um baixo potencial para o surgimen-
to de novos vírus, é um bioma onde surtos de zoonoses são recorrentes, contribuindo
com as maiores cifras do país em surtos da febre amarela, como ocorreu entre 2016 e
2018, assim como de hantavírus. Ambas as zoonoses estão associadas com mudanças
no uso do solo, como o aumento da produção de cana-de-açúcar, mas também com
incrementos nas zonas de borda das florestas que resultam do processo de fragmen-
tação (PRIST; TAMBOSI; MUCCI; PINTER et al., 2022; PRIST; URIARTE; TAMBO-
SI; PRADO et al., 2016). Tais fatores levam ao aumento da abundância dos animais
transmissores e elevam as chances de contato com seres humanos.

1.7 O QUE PODEMOS FAZER PARA PREVENIR A PRÓXIMA PAN-


DEMIA?
Ao longo do capítulo, vimos que a covid-19 e pandemias anteriores causaram
enormes perdas humanas, além de impactos econômicos. A maioria dos problemas
originou-se em doenças zoonóticas, o que se traduz na necessidade de cuidar melhor
42 Pandemias e mudanças ambientais globais: qual é a relação?

da interface entre saúde humana, animal e ambiental. Para tratar desse problema de
forma integrada, foi proposta a abordagem intitulada de Saúde Única (One Health, em
inglês). A Saúde Única é compreendida como um esforço colaborativo interdisciplinar
entre medicina, veterinária e gestão ambiental como forma de prevenir e lidar com
doenças infecciosas. Partindo desse conceito, o sucesso no controle de zoonoses de-
pende da ação da sociedade nas causas do problema, o que significa mudar compor-
tamentos individuais e coletivos relacionados ao uso de recursos e à conservação da
natureza.
Para contribuir com esse objetivo, a Organização das Nações Unidas (ONU), em
parceria com institutos de pesquisa e universidades, fez dez recomendações-chave
para agentes de saúde, governantes e empresários no enfrentamento e prevenção de
pandemias (UNEP, 2020) detalhadas no Quadro 4.

Quadro 4 – Recomendações Para O Enfrentamento E Prevenção De Pandemias (Unep)

(1) Aumentar o conhecimento sobre o risco de novas doenças em todos os níveis da


sociedade.
(2) Aumentar os investimentos em programas com abordagens interdisciplinares do
problema, como a Saúde Única.
(3) Expandir o conhecimento científico sobre a emergência de doenças, considerando suas
dimensões sociais, econômicas e ecológicas.
(4) Melhorar a capacidade de compreender e lidar com os custos financeiros das doenças,
a fim de aprimorar mecanismos de prevenção e resposta.
(5) Monitorar atividades que possam estar associadas ao surgimento de novas doenças,
como os sistemas de produção de alimentos, atentando para questões sanitárias.
(6) Incentivar sistemas alimentares que promovam a sustentabilidade e a segurança
alimentar, buscando controlar o consumo e comércio de animais silvestres.
(7) Melhorar as medidas de biossegurança no manejo e produção de produtos de origem
animal, tanto na escala industrial, quanto de pequena produção.
(8) Incentivar o manejo de paisagens, por meio de práticas integradas de produção e
conservação, por exemplo, através da agroecologia.
(9) Fortalecer e capacitar agentes de saúde em todos os países, para que possam
compreender as dimensões de Saúde Única e agir para melhorar resultados relacionados
a zoonoses.
(10) Divulgar e implementar adequadamente a abordagem de Saúde Única no modelo de
desenvolvimento sustentável.

1.8 QUESTÕES PARA APROFUNDAMENTO E DISCUSSÃO EM


GRUPO
• Como a espécie humana contribui para o surgimento de doenças zoonóticas?
• Quais localidades do mundo possuem maior risco de emergência de zoonoses
e, consequentemente, de surgimento de novas pandemias?
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 43

• Quais atividades no Brasil contribuem com a perda e degradação de hábitats


naturais e, portanto, podem facilitar a emergência de doenças e seus surtos?
• Caso essas atividades não possam ser evitadas, como o homem pode evitar a
infecção por micro-organismos zoonóticos?
• Como criar fazendas de produção intensiva de proteína tendo por base o con-
ceito de Saúde Única ou “One Health”?
• Caso a Amazônia se torne um novo epicentro de pandemias, quais popula-
ções serão mais afetadas negativamente?
• Quais ações governos podem tomar para prevenir doenças zoonóticas?
• Como associar desenvolvimento econômico, conservação e prevenção de do-
enças emergentes?
• Vocês já ouviram falar em Soluções Baseadas na Natureza (i.e., Nature-based
Solutions)? Sabem como elas podem contribuir para a prevenção de pandemias?
• Quais fatores (ambientais, sociais e outros) contribuem para a emergência de
doenças zoonóticas?

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CAPÍTULO 2
Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Luciana Gomes de Araujo

2.1 INTRODUÇÃO
O planeta Terra tem cerca de 4,5 bilhões de anos e uma história marcada por trans-
formações em sua crosta e atmosfera. A vida começou a florescer no planeta, nos úl-
timos 3,5 bilhões de anos (FOLEY,1993) e nós, seres humanos modernos (Homo sa-
piens) habitamos a Terra há cerca de 200 mil anos (VIDAL et al., 2022). O Holoceno é
a época geológica que marca o final da última glaciação vivida pelo planeta há cerca
de 10 mil anos, quando as temperaturas médias da superfície terrestre e as calotas
polares se estabilizaram. Foi essa estabilidade climática que permitiu o desenvolvi-
mento das civilizações modernas em todo o planeta (FOLEY, 1993; SALGADO-LA-
BOURIAU, 1994; ELLIS et al., 2016). A ciência tem registros de que o homem vem
domesticando plantas e animais, em diferentes regiões do planeta, desde cerca de
treze mil anos atrás, ou seja, no final do Pleistoceno. Mas é no Holoceno que o ser
humano encontra as condições climáticas adequadas para desenvolver a agricultura.
É a partir daí que se têm os primeiros registros de emissões de dióxido de carbono
(CO2) e de metano (CH4) na atmosfera, decorrentes de atividades humanas (ELLIS et
al., 2016).
52 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Ao longo do Holoceno o ser humano continuou a transformar o seu modo de vida,


dando início à industrialização na Europa, no século XVIII, fundamentalmente a
partir da Revolução Industrial correlata ao advento da máquina a vapor e a todo um
contexto de mudanças sociais, econômicas e ambientais no seio da sociedade (naque-
le momento, tão somente a sociedade europeia) (WATERS et al., 2016; VANWALLE-
GHEM et al., 2017). Já em meados do século XX, o período pós Segunda Guerra Mun-
dial marca uma mudança ímpar na ordem mundial, com a intensificação do uso de
recursos naturais, transformação da agricultura, dependência de combustíveis fósseis
e sociedades pautadas no consumo de bens manufaturados. É nesse período que as
concentrações de CO2 e CH4 na atmosfera começam a aumentar de forma mais acele-
rada (WATERS et al., 2016; RAWORTH, 2017).
Considera-se como o marco zero das emissões de carbono o início de atividades
dependentes da queima de carvão, a partir da Revolução Industrial em 1750. À época,
a concentração de CO2 na atmosfera era de 280 partes por milhão (ppm). Frisa-se que
nos últimos 800 mil anos, as concentrações nunca saíram da faixa entre 170 e 300
ppm, ultrapassando a marca de 300 ppm em 1912. Em 2019, de acordo com o Sexto
Relatório de Avaliação do Painel Internacional sobre Mudanças Climáticas (IPCC-
-AR6), as concentrações atmosféricas de CO2 atingiram o patamar de 410 ppm, o mais
alto valor dos últimos dois milhões de anos (Capítulo 3).

2.2 O CRESCIMENTO DA POPULAÇÃO HUMANA


As mudanças observadas na crosta e na atmosfera da Terra estão estreitamente
relacionadas ao aumento da população e ao consumo de energia pelas sociedades hu-
manas. Essas mudanças podem ser observadas em três diferentes datas – 1900, 1950 e
2010 (Figura 2.1). Inicialmente, o aumento é tênue e linear entre 1900 e 1950, resultan-
te do desenvolvimento industrial, predominantemente na Europa. A partir de 1950,
após a Segunda Guerra Mundial, o aumento da população humana e do consumo de
energia ganha um contorno exponencial (GRIGGS et al., 2014).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 53

Fonte: Autoria original da Figura 2.1: David Griggs, Mark Stafford Smith, Johan Rockström, Marcus C.
Öhman, Owen Gaffney, Gisbert Glaser, Norichika Kanie, Ian Noble, Will Steffen e Priya Shyamsundar,
em: Griggs, D. et al., 2014. An integrated framework for sustainable development goals. Ecology and
Society, 19(4): 49. http://dx.doi.org/10.5751/ES-07082-190449. Publicado sob a licença de Resilience
Alliance e Creative Commons Attribution 4.0 International License. A autora do capítulo traduziu os
subtítulos, originalmente publicados em inglês, para o português.
Figura 2.1 – Relação entre o crescimento da população humana (curva exponencial e circunferência
cinza) e consumo de energia (curva exponencial e circunferência rosa) na Terra, entre 1900 e 2010. Na
figura, o consumo de energia é usado para representar consumo e crescimento econômico.

Em 1700, éramos 600 milhões de habitantes no planeta, passamos a ser 1 bilhão


em 1803, 2 bilhões em 1925, 2,5 bilhões em 1950, 4 bilhões em 1974 e quase 8 bilhões
em 2020. De acordo com as Nações Unidas, seremos cerca de 9,7 bilhões em 2050
1
(Figura 2.2). O crescimento exponencial da população humana está ligado à expan-
são massiva do uso de combustíveis fosseis que impulsionou, entre outros setores, a
mecanização da agricultura e a produção de alimentos. A população mundial conti-
nua crescendo, mas a uma taxa decrescente a partir da década de 1970, quando au-
mentávamos a uma taxa de 1,95% ao ano (relativo ao período de 1970-1975) (UN,
2019). Essa taxa caiu para 1,09% ao ano no período entre 2015 e 2020 (UN, 2019) e está
projetada em 0,1% em 2100.2

1 https://ourworldindata.org/future-population-growth (Consulta realizada em 29/4/2022).


2 https://ourworldindata.org/future-population-growth (Consulta realizada em 29/4/2022).
54 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Fonte: elaborado por Helena Gomes de Camargo Neves, a partir de Hannah Ritchie, em https://www.
anthropocenemagazine.org/2020/07/the-human-population-curve-is-on-the-move; UN, 2019; e
https://ourworldindata.org/future-population-growth.
Figura 2.2 – Crescimento da população mundial.

Em algumas partes do planeta, as populações estão envelhecendo e em outras, a


participação da população jovem na população total ainda é predominante. Essa
constatação provoca reflexões sobre como os velhos serão cuidados no futuro e quais
oportunidades e condições de vida as populações jovens terão ao longo deste século
XXI. Para saber como é o planeta em que habitamos e refletir sobre qual planeta de-
sejamos deixar de herança aos jovens da atualidade, veremos a seguir, algumas das
marcas produzidas nele, resultantes de nossos modos de vida.

2.3 AS CURVAS EXPONENCIAIS DA ATIVIDADE HUMANA E DA


RESPOSTA DO SISTEMA PLANETÁRIO
Resultados de trabalhos científicos publicados em 2011 (STEFFEN et al., 2011)
mostram que, entre 1950 e 2000, a população mundial, a população urbana, o Produ-
to Interno Bruto (PIB) dos países, os investimentos internacionais, o uso de água, a
construção de grandes represas, o consumo de fertilizantes e de papel, o número de
lanchonetes McDonald’s, veículos motorizados e telefones, e o turismo internacional,
medidos por diferentes unidades, cresceram exponencialmente (Figura 2.3). Esses da-
dos ilustram o desenvolvimento das atividades econômicas no planeta combinado ao
crescimento populacional.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 55

Fonte: Adaptado de Steffen et al. (2011).


Figura 2.3 – Crescimento exponencial da população e de atividades econômicas entre 1950 e 2000.

O mesmo estudo de Will Steffen e colaboradores (2011) mostra as mudanças na


estrutura e no funcionamento de alguns dos sistemas biofísicos da Terra em escala
global, as quais são resultantes do aumento das atividades humanas a partir da Revo-
lução Industrial (Figura 2.4). Dentre os sistemas analisados, quatro indicam ações
humanas diretas, como a pesca oceânica, conversão de mangues em fazendas de car-
cinicultura (i.e., criação de camarões), desmatamento de florestas, conversão do uso
da terra. Outros dois sistemas – o aumento do fluxo de nitrogênio nas zonas costeiras
e a perda de diversidade biológica – são resultantes de diversas ações humanas, como
a agricultura e a urbanização. As mudanças nas concentrações de gases de efeito estu-
fa estão diretamente ligadas a fontes antrópicas, assim como as fontes de emissão de
substâncias químicas que degradam a camada de ozônio estratosférico. O aumento
das temperaturas no hemisfério norte e de grandes inundações tem relações com as
mudanças ambientais globais causadas pelo aumento dos níveis de gases de efeito es-
tufa (Figura 2.4). Essas mudanças nos ecossistemas terrestres e marinhos de todo o
planeta mostram as respostas ecológicas à forma como habitamos a Terra. Assim
como nas curvas que representam o crescimento da atividade econômica no mundo
(Figura 2.3), aqui o sistema planetário também responde com mudanças exponenciais
a partir de 1950. Nesses 50 anos, o ser humano conseguiu tirar o planeta de uma tra-
jetória de cerca de 10 mil anos de estabilidade, desde o início do Holoceno. Esse cená-
rio nos conduz à ideia de Antropoceno, apresentada a seguir.
56 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Fonte: Adaptado de Steffen et al. (2011).


Figura 2.4 – Mudanças em ecossistemas terrestres e marinhos, em escala global, como resultado do
aumento da atividade humana entre os anos de 1750 e 2000.

2.4 O ANTROPOCENO
O termo Antropoceno foi cunhado pelo biólogo Eugene Stoermer (1934-2012), na
década de 1980, quando vários pesquisadores começaram a usar este conceito para
definir uma época em que os efeitos da humanidade estariam impactando nosso pla-
neta em todos os continentes e oceanos. Somente em 2000, o uso do termo foi popu-
larizado pelo químico Paul Crutzen (1933-2021), que ganhou o prêmio Nobel de Quí-
mica em 1995 com outros dois cientistas, por trabalhos feitos sobre a formação e
decomposição do ozônio na atmosfera. No início da década de 1990, Crutzen publi-
cou uma série de artigos discutindo o que seria essa nova época geológica, na qual a
influência humana se mostra tão presente. Para ele, o começo do Antropoceno deve
ser estabelecido na última parte do século XVIII e deve, assim, coincidir com o início
da Revolução Industrial (CRUTZEN, 2002). Isso porque é a partir dessa época que a
ciência passa a ter dados da atmosfera, coletados do gelo polar, mostrando registros
crescentes da concentração global de CO2 e CH4 (ELLIS et al., 2013, 2016). Atualmen-
te, o conceito de Antropoceno é amplamente usado na literatura científica e fora dela.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 57

Pode-se definir Antropoceno como a época geológica na qual o ser humano cons-
titui o vetor dominante de mudanças na Terra. Dentre os elementos que sustentam a
proposta de uma nova época geológica, está a presença de fragmentos de materiais de
concreto, alumínio e plástico além de traços de agrotóxicos e outros compostos quí-
micos misturados à lama e areia, em todo o planeta (WATERS et al., 2016). Essa mis-
tura é recente e está cada vez mais abundante em camadas de sedimentos, solos e gelo.
O aumento das atividades de mineração, de emissão de CO2 na atmosfera, das tempe-
raturas na superfície terrestre e nos oceanos e da taxa de extinção de espécies de plan-
tas e animais sustenta a ideia de uma “época do humano”. Apesar disso, ainda não há
consenso entre cientistas das diversas áreas das ciências exatas, humanas e biológicas
sobre a data de início do Antropoceno. São quatro as datas propostas: o surgimento
da agricultura há cerca de dez mil anos; a Revolução Industrial que pode ser contada
a partir de 1712, 1750, ou 1760; a explosão da primeira bomba atômica em 1945 ou o
período pós-guerra a partir de 1950. Além da ausência de consenso científico, para
que o Antropoceno tenha status formal de época geológica, é necessário que ele seja
reconhecido e instituído por autoridades da Geologia, o que ainda não ocorreu (WA-
TERS et al., 2016).

2.5 AS FRONTEIRAS PLANETÁRIAS


As pressões exercidas pelo ser humano sobre o planeta produzem uma crise ecoló-
gica planetária sem precedentes, o que nos obriga a questionar os modelos de desen-
volvimento e de governança ambiental, adotados pelas sociedades modernas. É nesse
contexto de crise que a ideia de fronteira planetária foi concebida, em 2009, e revisada,
em 2015, por um grupo de 29 pesquisadores da área da Ciência da Sustentabilidade3,
liderado por Johan Rockström e Will Steffen (SRC, 2017).
As fronteiras planetárias representam subsistemas de funcionamento da Terra que
mantiveram o planeta em estado de estabilidade ao longo de todo o Holoceno, mas
atualmente encontram-se pressionados pela ação do ser humano. Esses subsistemas
são capazes de regular o funcionamento do planeta, portanto podem nos indicar zo-
nas seguras de operação e manutenção da vida. No entanto, à medida que o impacto
humano sobre esses subsistemas aumenta, arriscamos romper as fronteiras planetá-
rias, provocando instabilidades que podem ser devastadoras para a vida humana. Por
isso, a abordagem de fronteiras planetárias vem produzindo enorme interesse tanto
de cientistas como de formuladores de políticas públicas.
O conceito de fronteira planetária funciona como um guia que mostra os “limites
operacionais seguros para a humanidade em relação a questões críticas decorrentes

3 Influenciada pela Ciência Ambiental e pela ideia de desenvolvimento sustentável, a Ciência da Sus-
tentabilidade trata das interações entre sistemas ecológicos e sociais, buscando entender os complexos
mecanismos que levam esses sistemas à degradação, com consequências ecológicas e para o bem-estar
humano. A Ciência da Sustentabilidade integra ciência, sociedade e política e desenvolve caminhos
para a reconstrução de relações sustentáveis entre a sociedade humana e o meio ambiente (KATES,
2011; HEINRICHS et al., 2016).
58 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

da ocupação humana na Terra” (ARTAXO, 2014, p. 17). O grupo de cientistas liderado


por Johan Rockström e Will Steffen definiu nove fronteiras planetárias, determinadas
por medidas quantitativas a partir do conhecimento científico acumulado sobre o
funcionamento do planeta (ROCKSTRÖM et al., 2009ab; STEFFEN et al., 2015) (Fi-
gura 2.5). São elas:
• mudanças climáticas,
• integridade da biosfera (formada pela diversidade genética e diversidade fun-
cional),
• fluxos biogeoquímicos do nitrogênio e fósforo,
• mudanças no uso da terra,
• uso de água doce,
• acidificação dos oceanos,
• concentração de aerossóis atmosféricos,
• novas entidades e,
• diminuição do ozônio estratosférico.

Fonte: Crédito: J. Lokrantz/Azote, baseada em Steffen et al., 2015, adaptação de legendas em


português pela autora.
Figura 2.5 – As nove fronteiras planetárias.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 59

As medidas quantitativas de cada uma das fronteiras planetárias (Tabela 2.1) defi-
nem a separação de três zonas: a zona segura da fronteira (verde, Figura 2.5), a zona
de incerteza ou riscos crescentes (amarela, Figura 2.5) e a zona de alto risco ou perigo
(laranja, Figura 2.5), localizada para além da zona de incerteza. Por exemplo, a fron-
teira planetária das mudanças climáticas é medida pela quantidade de CO2 na atmos-
fera em partes por milhão (ppm). A zona segura dessa fronteira é definida em 350
ppm de CO2. A zona amarela localiza-se entre os valores de 350 e 450 ppm CO2 e
acima deste valor, está a zona laranja de alto risco (Figura 2.6).

Fonte: Adaptada de: J. Lokrantz/Azote, baseada em Steffen et al., 2015.


Figura 2.6 – Valores e atributos da fronteira planetária das mudanças climáticas.

Tabela 2.1 – As variáveis usadas para quantificar a fronteira planetária, o limite do espaço operacional
seguro (zona verde), o limiar (zona amarela ou de risco crescente), o valor atual e a zona de operação
de cada uma das nove fronteiras planetárias. a baseado no valor de referência do período pré-indus-
trial; b a variável que mede o funcionamento dos ecossistemas ainda não possui um valor global.

Fronteira Variáveis medidas Limite da zona Limiar (zona Valor Zona


planetária segura (zona amarela) atual
verde)a
Mudanças concentração de 350 ppm CO2 350-450 ppm CO2 410 ppm Risco
climáticas CO2 (ppm) CO2 (AR6 cres-
globais IPCC 2021) cente
Integridade diversidade < 10 extinções/ 10-100 extinções/ 100-1.000 Alto
da biosfera genética:b taxa milhão de milhão de espécies extinções/ risco
global de extinção espécies ano ano milhão de
de organismos espécies
dada pelo número ano
de extinções/
milhão de
espécies ano
60 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Fluxos fósforo global: 11 milhões de 11-100 milhões de ~22 Alto


biogeoquí- fluxo do sistema ton/ano ton/ano milhões de risco
micos do de água doce aos ton/ano
nitrogênio e oceanos (milhões
do fósforo de toneladas por
ano)
fósforo regional: 6,2 milhões ton/ 6,2 – 11,2 milhões ~14
fertilizante no solo ano ton/ano milhões
(milhões de ton/ano
toneladas por
ano)
nitrogênio reativo 62 milhões ton/ 62 – 82 milhões ton/ ~150
global: fertilizan- ano ano milhões
tes no solo ton/ano
(milhões de
toneladas por
ano)
Mudanças área florestada Global: 75%; Global: 75-54%; Global: Risco
do uso da em relação à Tropical: 85%; Tropical: 85-60%; 62% cres-
terra cobertura florestal Temperada: 50%; Temperada:50-30%; cente
original (%) Boreal: 85% Boreal: 85-60%

Uso de água consumo de água Máximo de 4.000 4.000-6.000 km3/ano ~2.600 Segura
doce azul (km3/ano) km3/ano km3/ano
porcentagem de vazão média vazão média mensal -
retirada de água mensal baixa: baixa: (25-55%);
azul de um rio, em 25%; vazão vazão média mensal
relação à vazão média mensal intermediá-
média mensal intermediária: ria:(30-60%); vazão
desse rio 30%; vazão média mensal alta:
média mensal (55-85%)
alta: 55%
Acidificação saturação média ≥80% Ωarag 80%-70% Ωarag ~84% Ωarag Segura
dos oceanos de aragonita
(carbonato de
cálcio) na
superfície
oceânica global
(Ωarag)
Concentra- Profundidade 0,25 AOD 0,25-0,50 AOD - -
ção de ótica do aerossol
aerossóis (AOD)
atmosféricos
Novas Novas entidades
entidades
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 61

Perda da concentração de < 5% de 275 DU 5-10% de 275 DU ~200 DU Segura


camada de ozônio estratosfé- (somente
ozônio rico (DU) na
Antártica,
na
primavera)

O cálculo dos limites das zonas seguras (também chamadas de espaços operacio-
nais seguros) das nove fronteiras planetárias é feito com base em valores de referência
do período pré-industrial no Holoceno. Dentro das zonas seguras, garantem-se a es-
tabilidade e a resiliência4 do planeta, em condições ecológicas e climáticas compatí-
veis às do Holoceno. Cabe às sociedades humanas desenvolver suas atividades econô-
micas, políticas, sociais e culturais de forma a não pressionar os limites dessa zona,
que é capaz de suportar níveis de perturbações antropogênicas com baixo risco de
desestabilização do planeta (STEFFEN et al., 2015).
A zona amarela é uma zona de incertezas, definida por um intervalo de valores
mensuráveis que guarda em si as limitações do conhecimento científico disponível na
atualidade. A incerteza nessa zona também se refere à complexidade inerente ao fun-
cionamento dos subsistemas planetários. A zona amarela é considerada como um li-
miar, uma zona imprecisa, onde os riscos de desestabilização são crescentes (STEF-
FEN et al., 2015). A transição de um subsistema planetário do espaço operacional
seguro (zona verde) para uma zona de riscos crescentes não se dá de forma imediata e
exata, por isso os cientistas determinaram intervalos de valores para a zona amarela,
que funciona como uma zona tampão ou zona de precaução. Transpor a zona verde
para a zona amarela não significa que mudanças indesejáveis ocorrerão instantanea-
mente, mas é certo que quanto mais distante da zona segura, maior o risco de deses-
tabilização de processos biofísicos, de perda de resiliência e de mudança de regime da
fronteira planetária em questão.
A zona de alto risco (zona laranja) é onde localizam-se os pontos de inflexão5 que
podem produzir graves impactos e efeitos irreversíveis no subsistema planetário, po-
dendo inclusive afetar outras fronteiras planetárias. Quanto mais afastada a humani-
dade estiver de uma zona verde, maior o risco de um determinado subsistema perder
resiliência ou sofrer mudanças irreversíveis em sua estrutura e função.
A seguir abordaremos cada um dos subsistemas planetários que representam as
nove fronteiras planetárias.

4 Resiliência é a capacidade de um sistema em lidar com mudanças e continuar a se desenvolver. Em


sistemas sociais, a resiliência é a capacidade de sociedades humanas de resistir, se reorganizar e se
recuperar de estresses, como mudanças ambientais ou convulsões sociais, econômicas ou políticas
(https://www.stockholmresilience.org/research/resilience-dictionary.html).
5 Um ponto de inflexão representa o início de uma realidade irreversível. Ao ultrapassar esse ponto,
perde-se o controle de uma situação ou do funcionamento de um dado sistema. Pode representar “um
caminho sem volta”.
62 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

As Mudanças Climáticas
Essa foi a primeira fronteira planetária definida por Rockström e colaboradores
(2009a) e considerada por eles, como a mais importante. Calculada com base na con-
centração de CO2 na atmosfera (em ppm), nos encontramos na zona de risco crescen-
te da fronteira (zona amarela, Figura 2.5), com 410 ppm de CO2 atmosférico (IPCC,
no prelo) (Tabela 2.1). Dados do Relatório Anual do Global Carbon Project (FRIE-
DLINGSTEIN et al., 2019) mostram que houve crescimento de 0,6% da emissão de
CO2 na atmosfera em 2019, em todo planeta, em relação ao ano anterior, devido, prin-
cipalmente, à queima de combustíveis fosseis (84,3%) seguida de mudanças do uso da
terra por desmatamento (14,5%). Cerca de metade do CO2 emitido é absorvida pela
atmosfera e o restante pelos oceanos, vegetação e solos (PIVETTA, 2020). A absorção
de grandes quantidades de CO2 pela atmosfera e oceanos contribui, respectivamente,
para o efeito estufa e a acidificação das águas oceânicas superficiais.
Os efeitos sentidos na atualidade decorrentes do limiar dessa fronteira planetária
são:
• Aumento da intensidade, frequência e duração de ondas de calor em todo o
planeta;
• Crescimento do número de eventos de chuvas torrenciais em diversas partes
do globo;
• Aumento de secas em algumas regiões do planeta, em consequência de mu-
danças nos padrões da circulação atmosférica e;
• Aumento da taxa de perda das mantas de gelo da Groenlândia e Antártica.
Caminho sem volta para o degelo das calotas polares?6

Estamos perdendo a cobertura de gelo dos polos norte e sul. A desestabilização da cobertura de
gelo da Groenlândia e Antártica é considerada pela Ciência como o ponto de inflexão mais grave do
sistema planetário. Dentre outras razões, porque as superfícies de gelo exercem uma função
essencial de resfriamento do planeta, ao refletirem a luz solar. A Groenlândia possui regiões onde a
calota de gelo chega a 3 km de espessura, no entanto, o gelo está derretendo e essa região está
perdendo cerca de 10 mil m3 de gelo por segundo. Ao derreter, os mantos de gelo diminuem e nas
porções mais finas, a superfície exposta ao sol adquire uma coloração mais escura. A mudança na
cor dessa superfície cria uma nova condição de absorção de calor, onde antes a luz do sol era
refletida. O que era um sistema de refrigeração está se transformando em um sistema de retenção
de calor. Ao se aquecer, a superfície polar faz com que o ar em contato com ela também se aqueça,
produzindo um mecanismo de retroalimentação positiva entre a superfície terrestre e a atmosfera,
que acelera o derretimento da calota polar. Embora a ciência ainda saiba pouco sobre esses
mecanismos de retroalimentação, sabe-se que ao se instalarem, induzem processos rápidos que
podem levar o sistema da Terra a um estado muito mais quente, elevando ainda mais o nível dos
oceanos. A probabilidade de termos chegado a um ponto irreversível de perda de gelo polar no
verão é bastante alta.

6 Baseado em SASGEN et al., 2020; 6º Relatório de Avaliação do IPCC-2021 e o documentário Rom-


pendo Barreiras: Nosso Planeta (com David Attenborough e Johan Rockström, disponível na platafor-
ma Netflix em https://www.netflix.com/br/title/81336476).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 63

A integridade da biosfera
A fronteira planetária da integridade da biosfera é definida pela biodiversidade,
que representa uma poderosa “engrenagem que mantém nossas sociedades”7 por meio
da produção de inúmeros serviços ecossistêmicos. Ela dá uma medida da capacidade
da biosfera em persistir e se adaptar a mudanças graduais e bruscas no longo prazo.
As mudanças nessa fronteira se dão no nível dos biomas terrestres, mares e oceanos e
dos grandes ecossistemas de água doce.
A integridade da biosfera é medida pela diversidade genética e funcional. A pri-
meira informa sobre a diversidade de vida que coevolui com os componentes abióti-
cos dos ecossistemas. A segunda expressa o funcionamento dos ecossistemas pelo
número, abundância e distribuição de organismos vivos no planeta. Os cientistas ain-
da não definiram valores viáveis para calcular a fronteira segura global da diversidade
funcional (STEFFEN et al., 2015). Para a diversidade genética, a medida usada é a taxa
global de extinção de organismos (Tabela 2.1). O limite da zona segura está abaixo de
10 extinções/milhão de espécies ano. O limiar da zona amarela está entre 10 a 100
extinções/milhão de espécies ano e o valor atual calculado por Steffen et al. (2015) está
entre 100 a 1.000 extinções/milhão de espécies ano, ou seja, nós estamos na zona de
alto risco (zona laranja), sujeitando os ecossistemas do planeta a mudanças bruscas
(Tabela 2.1, Figura 2.5).
As principais causas de perda de diversidade genética são a agricultura, os proces-
sos de urbanização, o aumento de incêndios de grandes proporções, a introdução de
espécies exóticas e a exploração de recursos naturais, como no caso da mineração. O
Relatório Final da Avaliação Global da Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos
(IPBES, 2019) aponta que os ecossistemas estão em declínio sem precedentes na histó-
ria humana, com taxas aceleradas de extinção de espécies e com graves impactos para
as sociedades ao redor de todo o planeta. As taxas de extinção de vertebrados, peixes,
répteis, anfíbios, aves e mamíferos vêm aumentando acentuadamente desde o começo
do século XX. De fato, cerca de 1 milhão de espécies animais e vegetais estão ameaça-
das de extinção, sendo mais de 40% das espécies de anfíbios e mais de um terço de
todos os mamíferos marinhos. Caso as tendências atuais de perda de espécies se man-
tenham, o planeta vivenciará a sexta extinção em massa de espécies de sua história,
com a previsão de que 65% das espécies animais e vegetais desaparecerão nos próxi-
mos séculos.
O trabalho invisível dos polinizadores

Entre as espécies de vertebrados polinizadores, um sexto delas está na lista vermelha de riscos de
extinção. A maioria dos animais polinizadores está representada por espécies silvestres. São cerca
de 20 mil espécies de abelhas, além de borboletas, mariposas, vespas e morcegos. Cerca de 90% das
plantas silvestres dependem da transferência de pólen feita por animais, para se reproduzirem. E
quanto às espécies cultivadas, três quartos das principais espécies cultivadas para alimentação no
mundo dependem de algum nível de polinização por animais (IPBES, 2016). No Brasil, das 141
culturas agrícolas brasileiras, 85 dependem de polinização por animais (BPBES, 2022).

7 Baseado no documentário Rompendo Barreiras: Nosso Planeta (com David Attenborough e Johan
Rockström, disponível na plataforma Netflix em https://www.netflix.com/br/title/81336476).
64 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Os ciclos do fósforo e do nitrogênio


Essa fronteira retrata a interferência humana sobre os ciclos biogeoquímicos do
fósforo e nitrogênio, principalmente pelo uso intensivo de fertilizantes na agricultura
e por atividades industriais. Atualmente, as atividades humanas convertem mais ni-
trogênio atmosférico em reativo do que todos os processos do ciclo natural desse ele-
mento. O excedente do nitrogênio reativo que não é absorvido pelas plantas se acu-
mula nos corpos hídricos, zonas costeiras e outros ecossistemas. O mesmo ocorre
com o fósforo que não é absorvido pelas plantas (ARTAXO, 2014).
Os valores do limiar entre a zona segura e de alto risco dos ciclos do fósforo e ni-
trogênio são calculados com base no fluxo de fósforo global do sistema de água doce
aos oceanos (milhões de toneladas por ano) e na quantidade de fósforo e nitrogênio
presente no solo, oriunda de fertilizantes (milhões de toneladas por ano) (Tabela 2.1).
Os valores atuais dessa fronteira estão localizados na zona de alto risco (Figura 2.5)
(STEFFEN et al., 2015), o que se explica pelo excesso de utilização de fertilizantes na
agricultura de larga escala. Embora a produção de fertilizantes contribua para a pro-
dutividade agrícola em todo o planeta, o excesso de compostos de nitrogênio e de
fósforo no ambiente provoca danos localizados que se acumulam, como no caso da
eutrofização de lagos e mares, e lentamente afetam os ciclos globais desses dois nu-
trientes (ARTAXO, 2014; ROCKSTRÖM et al., 2009a).
Mudanças do uso da terra
Essa fronteira representa todos os biomas terrestres, mas os cálculos realizados
para estimar o valor do limite da zona segura e do limiar (zona amarela) estão basea-
dos apenas nos biomas florestais. São eles que exercem maior influência de regulação
do clima, por meio de processos biofísicos (e.g., evapotranspiração) em escala regional
e global. As interações que ocorrem entre a superfície terrestre e a atmosfera nos três
principais biomas florestais – tropical, temperado e boreal8 – possuem um papel im-
portante de regulação da temperatura e umidade, em comparação a outros biomas
(SNYDER et al., 2004). O cálculo dos limites dessa fronteira está baseado em duas
medidas de cobertura florestal (Tabela 2.1). Uma delas é global e calculada pela razão
entre o remanescente de cobertura florestal em todo planeta e a área de florestas po-
tencialmente existente no Holoceno, sem interferência da ação humana. A outra me-
dida baseia-se na mesma razão, mas é calculada separadamente para as áreas flores-
tadas e cobertura florestal original de florestas tropicais, temperadas e boreais
(STEFFEN et al., 2015).
Globalmente esse subsistema planetário encontra-se em seu limiar (zona amarela),
onde os riscos de mudanças abruptas são crescentes (Figura 2.5, Tabela 2.1). Dentre os
biomas florestais, as florestas tropicais são as que possuem os mecanismos de retroa-
limentação climática mais fortes, que operam alterações na evapotranspiração (a
8 As florestas tropicais estão relacionadas a climas quentes e úmidos e são as florestas que possuem a
maior diversidade biológica no planeta; as florestas temperadas são quase homogêneas e decíduas (as
espécies arbóreas perdem as folhas em parte das estações do ano) e estão localizadas em latitudes mé-
dias (35o-45o), onde predominam os climas temperados e; as florestas boreais (ou taigas) localizam-se
na região subártica e são formadas por coníferas.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 65

transpiração das árvores) quando a floresta é convertida em outro sistema. A dimi-


nuição da cobertura florestal associada à redução da evapotranspiração favorece a
redução de chuvas, o que, por sua vez, favorece o desencadeamento de mais secas e
mortalidade de árvores (STEFFEN et al., 2015; LENTON et al., 2019). Já as mudanças
na distribuição espacial das florestas boreais afetam o albedo da superfície terrestre e,
em consequência, a troca de energia com a atmosfera, acarretando mudanças do cli-
ma em escala regional. As florestas temperadas, por sua vez, exercem influências mais
brandas sobre o sistema climático, por isso há diferenças nos valores das zonas segu-
ras e dos limiares desta fronteira para cada um dos três grupos de florestas (Tabela
2.1) (STEFFEN et al., 2015).
Amazônia: sumidouro ou fonte de CO2?

As florestas da Amazônia são componentes chave para o funcionamento climático da Terra, tanto no
nível regional, como globalmente. Em estudo realizado pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (INPE) e reportado na revista FAPESP em 2020 (PIVETTA, 2020), dados sobre a Amazônia
mostram que ela está passando de sumidouro de CO2 para fonte emissora de CO2 à atmosfera. Isso
significa que a quantidade de CO2 emitida pela floresta é hoje mais alta do que a quantidade que ela
absorve. Assim, entre 2010 e 2017, a Amazônia liberou em média, anualmente, algumas centenas
de milhões de toneladas a mais de carbono do que retirou do ar e estocou em sua vegetação e solo.
Na década de 2010, a capacidade da Amazônia em retirar carbono da atmosfera era 1/3 menor do
que nos anos de 1990. E em anos de fortes secas, a capacidade da floresta de retirar o carbono da
atmosfera diminui, favorecendo o aumento significativo da emissão de CO2. As secas na Amazônia,
que vêm se tornado mais severas e frequentes, também provocam aumento da mortalidade de
árvores. Com menos vegetação por causa do desmatamento e com plantas menos saudáveis por
causa de secas e efeitos de degradação florestal, as árvores fazem menos fotossíntese, o que
significa menos absorção de CO2. As queimadas, as secas, o aumento da temperatura e da mortali-
dade de árvores, e a queda da taxa de fotossíntese são processos interligados que se retroalimen-
tam. Por isso, a Amazônia é um exemplo de um sistema que está próximo de um limiar, o que
poderá levá-la a um processo de savanização (PIVETTA, 2020).

Uso de água doce


O espaço operacional seguro dessa fronteira planetária é definido por uma medida
global e outra na escala de bacia hidrográfica (Tabela 2.1). A medida global é dada pela
quantidade máxima de consumo de água azul (rios, lagos e águas subterrâneas) em
km3/ ano, e a medida de bacia hidrográfica é calculada pela porcentagem de retirada
de água de um rio, em relação ao fluxo médio mensal desse rio. Atualmente, o limite
dessa fronteira é dado apenas pela medida global, que situa o uso de água doce ainda
dentro da zona segura, com o consumo estimado em 2.600 km3/por ano (STEFFEN et
al., 2015) (Tabela 2.1, Figura 2.5).
O Brasil abriga duas das maiores áreas úmidas do planeta – o Pantanal e a Bacia
Amazônica e contém cerca de 12% da totalidade de recursos hídricos superficiais da
Terra. Apesar disso, o acesso à água potável no Brasil é muito desigual (Capítulo 6) e
há inúmeros desafios a respeito do uso adequado da água doce. Na região norte, ape-
sar da abundância hídrica, a qualidade da água ofertada nas cidades é baixa; na região
nordeste, a população enfrenta baixos índices de chuvas que ameaçam a produção das
66 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

lavouras; no Centro-Oeste o uso de agrotóxicos e fertilizantes ameaçam a qualidade


das águas e a vida dos rios; no Sudeste e Sul a alta demanda de água doce pelas popu-
lações urbanas desafia governos. Como em outras partes do planeta, as mudanças do
clima e do uso da terra e mais a poluição são as principais ameaças à conservação da
água doce no país (PIRES et al., 2019).
Acidificação dos oceanos
Cerca de 1/3 de todo o CO2 emitido pelo ser humano na atmosfera é absorvido
pelos oceanos por dissolução e absorção de carbono pela biota marinha. O dióxido de
carbono combinado à água do mar, que é originalmente alcalina, forma compostos
ácidos. O aumento contínuo da emissão de CO2 na atmosfera reflete-se na quantidade
de CO2 absorvido pelos oceanos e de compostos ácidos dissolvidos na água do mar,
que diminuem o pH da água, resultando no fenômeno da acidificação dos oceanos.
Nos últimos 200 anos, a acidez dos oceanos, medida pela concentração de íons de
hidrogênio, aumentou cerca de 30% (ARTAXO, 2014).
A fauna marinha que secreta carbonato de cálcio na forma de aragonita e calcita
para a formação de conchas e esqueletos é particularmente sensível ao aumento da
acidez das águas oceânicas porque os carbonatos de cálcio se dissolvem em meio áci-
do. São moluscos, corais, algas e plânctons que têm o desenvolvimento de suas con-
chas e esqueletos cada vez mais prejudicado pelo aumento de CO2 nas águas oceânicas
(GUINOTTE; FABRY, 2008; ARTAXO, 2014).
A fronteira planetária da acidificação dos oceanos é calculada em 80% de satura-
ção média de aragonita nas águas superficiais, em relação a valores estimados para o
período que antecede a Revolução Industrial (Tabela 2.1). Embora essa fronteira ainda
opere em zona segura (Figura 2.5), as alterações da atualidade afetam a cadeia trófica
de toda a comunidade marinha. O efeito do aumento de CO2 nos oceanos é regiona-
lizado e geograficamente heterogêneo, no entanto, interage com as demais fronteiras
planetárias que controlam o CO2, como as mudanças do uso da terra e do clima (STE-
FFEN et al., 2015).
Aerossol Atmosférico
Os aerossóis são partículas de poluição dispersas na atmosfera, que causam graves
efeitos nos organismos vivos e afetam a saúde humana produzindo um enorme núme-
ro de óbitos anualmente. O comportamento dos aerossóis depende da sua composição
química, localização geográfica e altura na atmosfera. Os aerossóis originam-se de
gases poluentes que se condensam em gotículas ou partículas juntamente com poeira
e fumaça. A carga de aerossóis na atmosfera pode conter carbono, além de sulfatos,
nitratos e outros compostos gerados pela queima de diferentes tipos de combustíveis.
A dispersão de aerossóis na atmosfera altera o comportamento da radiação solar que
incide sobre a superfície terrestre. Eles interagem com vapor d’água e afetam a forma-
ção de nuvens, o ciclo da água e os padrões regionais e globais de circulação atmosfé-
rica. Essa fronteira é medida pela profundidade ótica do aerossol (AOD, acrônimo em
inglês), mas não existem dados científicos para calcular uma fronteira global (RO-
CKSTRÖM et al., 2009a; STEFFEN et al., 2015) (Tabela 2.1, Figura 2.5).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 67

Novas entidades
As novas entidades são definidas como novas substâncias e formas de vida modi-
ficadas, com potencial de gerar efeitos geofísicos e biológicos indesejados. Elas reú-
nem substâncias tóxicas e persistentes, como poluentes orgânicos sintéticos, compos-
tos de metal pesado e material radioativo. Clorofluorcarbonos, plásticos,
microplásticos e nanoplásticos são exemplos de novas entidades. Atualmente, há mais
de 100 mil substâncias produzidas e comercializadas que podem ser classificadas
como novas entidades. A preocupação com elas se dá devido à sua persistência, mobi-
lidade e grau de impacto sobre os sistemas bióticos da Terra. As novas entidades po-
dem ter efeitos irreversíveis sobre organismos vivos e o ambiente, afetando inclusive a
atmosfera. Há, por exemplo, diversos estudos científicos que demostram que compos-
tos orgânicos persistentes causam reduções drásticas na abundância de populações de
aves e prejuízos de desenvolvimento e reprodução em mamíferos marinhos (STEF-
FEN et al., 2015; PERSSON et al., 2022).
Essa é uma nova fronteira planetária em termos geológicos que pode ter um amplo
impacto sobre os sistemas da Terra. As novas entidades estão entre as fronteiras não
quantificadas (Tabela 2.1, Figura 2.5), mas um estudo publicado em 2022 defende o
argumento de que já passamos a zona segura dessa fronteira (PERSSON et al., 2022).
Com atenção especial à poluição por plásticos, os autores desse estudo apontam que
já há evidências suficientes sobre as taxas crescentes de produção e descarte de gran-
des volumes de novas entidades (Capítulo 5), que geram inúmeros riscos potenciais
que excedem a capacidade das sociedades em conduzir avaliações e monitoramentos
confiáveis sobre o ciclo dessas substâncias (PERSSON et al., 2022).
Perda do ozônio estratosférico
Na estratosfera, o ozônio ocorre naturalmente e filtra a radiação dos raios ultra-
violeta que incidem sobre a superfície do planeta. Substâncias poluentes, como os
clorofluorcarbonetos, quando se combinam com os cristais de gelo na estratosfera,
desencadeiam reações químicas que destroem as moléculas de ozônio.
Essa fronteira planetária opera em um espaço seguro (zona verde), com exceção da
estratosfera sobre a Antártica durante a primavera (Tabela 2.1, Figura 2.5). O ozônio
estratosférico está estável há cerca de 15 anos e calcula-se que nas próximas décadas a
depleção (ou, para usar de linguagem coloquial, “o buraco”) da camada de ozônio
acima do polo sul seja minimizada ou mesmo eliminada (STEFFEN et al., 2015).
A gestão do problema da depleção da camada de ozônio é um exemplo bem-suce-
dido de como reverter uma condição de risco e indesejada com base em ações coleti-
vas no nível global. Em 1987 o Protocolo de Montreal, assinado pela maioria dos paí-
ses do mundo, instituiu o banimento gradual da produção e utilização de substâncias
degradadoras do ozônio estratosférico através da substituição por outras substâncias
menos nocivas (ROCKSTRÖM et al., 2009a). Vigorando desde 1989, o Protocolo de
Montreal foi revisado diversas vezes e é considerado o acordo ambiental internacional
mais bem-sucedido da história.
68 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

Das nove fronteiras planetárias, quatro já cruzaram seus espaços operacionais se-
guros: a integridade da biosfera (medida pela diversidade genética), os ciclos biogeo-
químicos do fósforo e do nitrogênio (ligado ao uso de fertilizantes agrícolas), as mu-
danças climáticas e as mudanças do uso da terra (Figura 2.5, Tabela 2.1). Esses
subsistemas estão perdendo resiliência, o que afeta não somente suas próprias estru-
turas e funções, mas também a dos subsistemas com os quais estão interconectados.
As fronteiras das mudanças climáticas e mudanças do uso da terra estão em seus li-
miares, ou seja, em zonas de risco crescente, onde alterações significativas podem le-
vá-las a novos regimes de funcionamento. As fronteiras do uso de água doce, acidifi-
cação dos oceanos e diminuição do ozônio estratosférico ainda operam em espaço
seguro, no nível global, mas sofrem influências dos demais subsistemas. Por exemplo,
o uso da água doce oriunda de rios, lagos, reservatórios e de aquíferos é diretamente
afetado por mudanças do uso da terra. No caso da acidificação dos oceanos, a estabi-
lização da emissão de CO2 atmosférico em 350 ppm (fronteira das mudanças climáti-
cas) asseguraria a manutenção da fronteira da acidificação dos oceanos dentro de sua
zona segura (zona verde) (STEFFEN et al., 2015).
As fronteiras planetárias operam ao longo de diferentes escalas, de oceanos e bio-
mas terrestres a bacias hidrográficas e mangues e produzem efeitos locais, regionais e
globais (ARTAXO, 2014; STEFFEN et al., 2015; LENTON et al., 2019). As nove fron-
teiras planetárias são interdependentes (Figura 2.7) e interagem de forma não linear,
podendo sofrer transformações abruptas, mudar sua estrutura e trajetória e afetar a
estrutura e o funcionamento de outras fronteiras. Tais interações se retroalimentam e
geram propriedades emergentes, que não são previstas pelo comportamento das par-
tes de um subsistema planetário, mas pelo resultado do funcionamento integrado de
todos eles (WALKER et al., 2004; ROCKSTRÖM et al., 2009a; LENTON et al., 2019).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 69

Fonte: Elaborada pela autora.


Figura 2.7 – Conexões entre as fronteiras planetárias. As setas indicam os efeitos de uma fronteira
planetária sobre a outra.

As mudanças do uso da terra interagem com as mudanças climáticas através do


aumento da emissão de CO2, com a integridade da biosfera, provocando perda de
biodiversidade e com o uso da água doce, por meio da degradação de bacias hidrográ-
ficas. Por exemplo, desmatamentos e incêndios de florestas tropicais impactam a ab-
sorção de carbono pela vegetação e solo, como visto anteriormente, mas também pro-
vocam perda de biodiversidade e degradação da vegetação que margeia e protege os
corpos de água doce. Os oceanos são particularmente sensíveis às interações entre as
fronteiras planetárias. A biota marinha está colapsando com o aumento da absorção
de CO2 atmosférico, o aquecimento gradual de suas águas e a eutrofização causada
por resíduos de fertilizantes. O branqueamento dos recifes de corais na Grande Bar-
reira de Corais da Austrália, que já matou metade desta comunidade, é um exemplo
dramático da atual fragilidade dos oceanos (LENTON et al., 2019).

2.6 CRISE PLANETÁRIA E A PEDAGOGIA DA PANDEMIA DE


COVID-19
As fronteiras planetárias constituem a base de um paradigma para a construção de
uma nova relação do ser humano com o planeta, capaz de integrar o desenvolvimento
das sociedades humanas e a manutenção dos sistemas planetários em um estado de
estabilidade (STEFFEN et al., 2015). A ideia das fronteiras planetárias é informar as
70 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

sociedades contemporâneas sobre a existência de zonas seguras de operação da vida


na Terra, reconhecendo que hoje já não possuímos as condições estáveis do Holoceno.
Portanto, a ideia do Antropoceno está totalmente incorporada às fronteiras planetá-
rias. Essa abordagem sobre a crise ecológica do planeta vem atraindo o interesse da
comunidade científica e produzindo debates sobre sua aplicação na governança e for-
mulação de políticas socioambientais. Os governos nacionais, por exemplo, podem
usar o arcabouço das fronteiras planetárias para avaliar suas responsabilidades pelos
impactos ambientais em seus países, em combinação com outras abordagens de go-
vernança. A ideia de fronteiras planetárias pode ser comunicada a diferentes setores
da sociedade para orientar a reflexão, debate e ação sobre os problemas socioambien-
tais enfrentados na atualidade. Essa abordagem pode ser combinada à ideia de um
espaço operacional seguro e justo para a humanidade, proposto pela Economia Do-
nut, idealizada pela economista inglesa Kate Raworth (Capítulo 9).
A Terra é capaz de passar por mudanças bruscas decorrentes de processos natu-
rais, como tsunamis, terremotos e erupções de vulcões. Esses fenômenos são parte de
sua história geológica, evolutiva e ecológica e os organismos vivos que habitam nosso
planeta coevoluem nessa trajetória. No entanto, os seres humanos estão interferindo
nos sistemas ecológicos da Terra com tal magnitude e rapidez que as mudanças decor-
rentes das atividades humanas, em especial aquelas realizadas a partir do final da
Segunda Grande Guerra Mundial, são incomparáveis a qualquer outro momento da
história humana e do planeta. Cortamos e queimamos florestas, matamos animais e
rios, poluímos o ar e destruímos ecossistemas inteiros. Com isso liberamos incontá-
veis e desconhecidos vírus e seus hospedeiros naturais. Nossa existência como espécie
neste planeta é sem precedentes, nunca houve um organismo de grande porte tão
abundante como os humanos. Hoje somos mais de 7,8 bilhões de indivíduos e nossa
abundância combinada aos distúrbios ecológicos que provocamos no planeta favore-
cem o aumento das trocas virais, primeiro de animal para ser humano (caracterizan-
do, assim, as zoonoses) e depois entre nós (QUAMMEN, 2020) (Capítulo 1).
Assumindo a existência da crise ecológica planetária e recordando que os subsis-
temas planetários estão interligados, quais relações podemos identificar entre essa
crise e a Pandemia de covid-19? Como vimos no Capítulo 1, as perturbações sobre os
ecossistemas naturais e comunidades ecológicas favorecem a emergência de doenças
infecciosas. Esse fenômeno está diretamente ligado ao comportamento das fronteiras
da integridade da biosfera, mudanças climáticas e mudanças do uso da terra. E o vírus
SARS-CoV-2, causador da covid-19, nos mostra que as condições de saúde dos huma-
nos e do planeta estão completamente conectadas e inter-relacionadas.

Surtos de doenças virais novas são como as bolinhas de aço de uma máquina
de pinball: você pode dar um tapa nelas com as palhetas, sacudir a máquina
e bater nas bolinhas para ouvir o tilintar do fliperama, mas onde elas acabam
caindo depende de onze variáveis, bem como de qualquer coisa que você faça.
Isso ocorre principalmente com os coronavírus: eles sofrem frequentes muta-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 71

ções à medida que se replicam, e podem evoluir tão rápido quanto um espírito
maligno saído de um pesadelo (QUAMMEN, 2020: 12).

No início da Pandemia de covid-19, acreditamos que o planeta experimentava uma


possível “pausa regenerativa”, devido às tantas quarentenas impostas visando romper
a transmissão viral. E, de fato, as ações antrópicas, ao menos durante os meses de
março, abril, maio e junho de 2020, quase que pararam e, assim, não sem motivo,
verificou-se uma breve queda na emissão de CO2 e nos níveis de poluição, provavel-
mente em todos os ecossistemas do planeta. Mas, a presença e persistência do vírus
foram maiores do que nossa capacidade de mudança de modo de vida. Se de um lado,
os deslocamentos para o trabalho e em viagens nacionais e internacionais diminuí-
ram, não observamos nenhuma mudança estrutural de comportamento e de políticas
públicas, por exemplo, para transformar o transporte coletivo, visando torná-lo efeti-
vamente sustentável ou, mais precisamente, menos intenso em carbono. Também ob-
servamos o aumento do consumo de máscaras, luvas, sacolas plásticas e embalagens
de plástico e isopor sem que essa mudança viesse acompanhada de alguma mudança
na produção e descarte desses materiais. Pelo contrário, todos vimos imagens de más-
caras em rios, mares e presas em animais. Enquanto esse vírus choca a humanidade,
ouvimos dos governantes o discurso sobre a recuperação econômica, mas não a do
planeta, como se a “mensagem ecológica do vírus” não tivesse sido ouvida pela huma-
nidade.
Enquanto a Pandemia de covid-19 é uma crise de progressão rápida, a crise plane-
tária é lenta. A respeito da resolução dessas crises, sabemos que esta pandemia será
revertida, mas a crise planetária nos apresenta inúmeras incertezas sobre sua reversi-
bilidade. A resposta à Pandemia de covid-19 foi dramática e de emergência (ao menos
em seu início, em 2020). Já a respeito da crise planetária, observam-se movimentos
lentos, decisões arrastadas e pouco ou nenhum avanço. O confinamento que o plane-
ta experimentou nesta pandemia poderá ser considerado brando comparado às exi-
gências de confinamento mais permanentes ou sazonais em algumas regiões do pla-
neta, em decorrência de mudanças climáticas severas (SOUZA, 2020).
A Pandemia de covid-19 nos alertou que o planeta não está bem e com isso nos deu
a oportunidade de refletir sobre o rumo que a humanidade está tomando. A ideia das
fronteiras planetárias traz esperança para a humanidade transformar as condições
instáveis e insustentáveis de vida na Terra. Essa ideia é como um facho de luz a guiar
os caminhos da humanidade. A janela de oportunidade para esses caminhos ainda
está aberta aos seres humanos. Aproveitemos.
Concluo com fragmentos de texto publicado pela jornalista Eliane Brum em mar-
ço de 2020, no El Pais, que se chama “O vírus somos nós (ou uma parte de nós)”:

No princípio era o vírus. Coronavírus. (...) Tornou-se onipresente no planeta,


ainda que tão invisível quanto certos deuses para olhos humanos. (...) Vamos
precisar derrotá-lo em nossos corpos, neutralizá-lo para reiniciar isso que
72 Fronteiras Planetárias no Antropoceno

chamamos de o outro mundo que virá. (...) O modo de viver precisa mudar.
Nossa sociedade precisa se tornar outra. O impasse imposto pela pandemia
não é novo. É o mesmo impasse colocado há anos, décadas, pela emergência
climática. (...) Todas as informações científicas apontam que é preciso pa-
rar de devorar o planeta, que há que se mudar radicalmente os padrões de
consumo, que a ideia de crescimento infinito é uma impossibilidade lógica
num mundo finito. (...) O efeito da pandemia é o efeito concentrado, agudo,
do que a crise climática está produzindo de forma muito mais lenta. É como
se o vírus desse uma palhinha do que viveremos logo mais. (...) O vírus não
permite fingimentos. Ele possivelmente saltou de um morcego, espécie cujo
habitat também destruímos, para se hospedar no organismo dos humanos.
Nada mais fez do que tocar sua vida de vírus. (...) E aí vem o vírus, que não
está interessado em nos passar nenhuma mensagem, só está mesmo cuidando
da própria vida, e mostra: vocês, humanos, não estão sozinhos nesse planeta
nem têm o controle que acreditam ter. (...) Aqueles que serão os mais atingidos
pelo superaquecimento global - negros e indígenas, mulheres e pobres - foram
os que menos contribuíram para provocar a emergência climática. E aqueles
que produziram a crise climática ao consumir o planeta em grandes porções e
proporções - os brancos ricos de países ricos, os brancos ricos de países pobres,
os homens, que nos últimos milênios centralizaram as decisões, nos trazendo
até aqui - são os que serão menos afetados por ela. (...) Na pandemia de coro-
navírus há o mesmo apartheid. (...) Se a pandemia passar e ainda estivermos
vivos, será no momento de recompor as humanidades que poderemos criar
uma sociedade nova. (...) uma sociedade preparada para compreender que
qualquer futuro depende de parar de esgotar o que chamamos de recursos
naturais — e que os indígenas chamam de mãe, pai, irmão. O futuro está
em disputa. No amanhã, demorando ou não a chegar, saberemos se a parte
minoritária, mas dominante, da humanidade seguirá sendo o vírus hediondo
e suicida, capaz de exterminar a própria espécie ao destruir o planeta-corpo
que a hospeda. Ou se barraremos essa força de destruição ao nos inventarmos
de outro jeito, como uma sociedade consciente de que divide o mundo com
outras sociedades. (...) A pandemia de coronavírus revelou que somos capa-
zes de fazer mudanças radicais em tempo recorde. (...) E por isso precisamos
nos unir em torno de um comum global que proteja a única casa que todos
temos. O vírus, também um habitante deste planeta, nos lembrou de algo que
tínhamos esquecido: os outros existem. (...) (BRUM, 2020).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 73

Leituras sugeridas

BRUM, Eliane. O vírus somos nós (ou uma parte de nós). 2020. Disponível em: https://brasil.elpais.
com/opiniao/2020-03-25/o-virus-somos-nos-ou-uma-parte-de-nos.html. Acesso em: 24 fev. 2022.

SOUSA SANTOS, Boaventura. A cruel pedagogia do vírus. Boitempo Editorial, 2020. 32 p. Disponível
em: https://www.abennacional.org.br/site/wp-content/uploads/2020/04/Livro_Boaventura.pdf.
Acesso em: 24 fev. 2022.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1a ed.: Companhia das Letras, 2019. 64 p.

Documentário sugerido

David Attenborough e Johan Rockström. Rompendo Barreiras: Nosso Planeta. Netflix (https://www.
netflix.com/browse).

Questões sugeridas para debate

1. Como você imagina que os governos nacionais, organizações internacionais, empresas, cidades
ou grupos de pessoas poderiam usar a abordagem das fronteiras planetárias?

2. Qual é a importância da conservação da Amazônia para a estabilidade do Sistema Terra?

3. Descreva e analise, criticamente, os efeitos das mudanças do uso da terra no município em que
você vive.

4. Quais são os compromissos firmados na atualidade, entre as nações, para o planeta não ultrapas-
sar o aumento de temperatura, em 1,5 ºC?

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CAPÍTULO 3
A crise climática e a questão energética
diante da Pandemia de covid-19 –
Uma reflexão com foco no Brasil
e na necessidade de redução das
desigualdades socioeconômicas

André Felipe Simões

3.1 INTRODUÇÃO E MACRO CONTEXTUALIZAÇÃO


Ao longo da história humana, particularmente a partir do início da Idade Média,
em vista de maiores adensamentos populacionais em cidades da Europa (principal-
mente), pandemias têm ocorrido. De fato, eventos classificados como pandemias1 fo-
ram observados durante o transcurso da história. A primeira pandemia de que se tem
notícia foi a chamada “Praga de Justiniano”,2 causada pela bactéria Yersinia Pestis, e

1 Pandemia, segundo a Organização Mundial da Saúde, a OMS, é a disseminação em nível mundial de


uma nova doença e o termo passa a ser adotado quando uma epidemia, surto que afeta uma região, se
espalha por diferentes continentes com transmissão sustentada de pessoa para pessoa (WHO, 2020).
2 Antes da Peste de Justiniano, ocorreram eventos importantes ou não desprezíveis em termos de nú-
mero de óbitos por conta de epidemias: Peste do Egito (430 a.C.), uma febre tifoide que vitimou cerca
78 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

que afetou as sociedades limítrofes ao Mar Mediterrâneo entre os anos de 541 e 544.
Já em fins da quarta década do século XIV, em plena Baixa Idade Média, ocorre a
chamada “Peste Negra”, a mais nefasta pandemia da história, a qual vitimou cerca de
75 a 200 milhões de pessoas na Eurásia, com pico de óbitos entre 1347 e 1351.3 Já em
fins da Primeira Grande Guerra Mundial, em 1918, eclode a Gripe Espanhola, uma
ampla e letal pandemia causada pelo vírus Influenza e que vitimou cerca de 50 mi-
lhões de pessoas, em todos os continentes (RODHAIN; SALUZZO, 2005).
Porém, nas últimas cinco décadas, a frequência de ocorrência de doenças virais de
grandes proporções mostrou-se bem maior do que em todos os períodos anteriores.
Nesse contexto, é possível mencionar: (1) Infecção por HIV, o vírus que causa a AIDS;4
(2) SARS, uma altamente contagiosa forma de pneumonia causada por um Coronaví-
rus SARS-CoV;5 (3) Gripe Aviária, cujo vírus foi descoberto em pássaros no Vietnã e
que é amplamente letal aos seres humanos; (4) Gripe Suína (ou “Gripe A”), doença
causada por uma combinação das cepas dos vírus aviário e humano, e que afetou
cerca de 75 países, incluindo o Brasil. Somente no caso da Gripe Suína, para a qual a
Organização Mundial da Saúde, a OMS, decretou como sendo uma pandemia em 11
de junho de 2009, registraram-se cerca de 700 milhões de contágios e, aproximada-
mente, 570 mil óbitos (SMETANA et al., 2018). Permeando esse período houve, tam-
bém, alguns surtos epidêmicos do vírus Ebola,6 em especial na África Ocidental.
Não por acaso, nessas últimas cinco décadas, por uma série de fatores, incluindo a
sofisticação de processos tecnológicos voltados à exploração e à extração de recursos
naturais (metais, combustíveis fósseis, produtos da agricultura, recursos pesqueiros,
carne de gados diversos, dentre outros), aumentou muito a capacidade de intervenção

de ¼ da população de Atenas; a Peste Antonina (165-180 d.C.), provavelmente causada pela varíola e
que ensejou alta letalidade, vitimando cerca de ¼ dos infectados; e a Peste de Cipriano (250-271 d.C.),
possivelmente causada pelo sarampo ou pela varíola e que se espalhou em parte do Império Romano,
chegando a vitimar cerca de 5 mil pessoas por dia em Roma em seu auge de infecção (WATTS, 1999).
3 A Peste Negra, também conhecida como Peste Bubônica, Grande Peste ou Praga, foi provocada pelo
bacilo Yercinia Pestis (também causador da citada Praga de Justiniano) e pode ter causado a morte
de cerca de 2/3 de toda a população da Europa. De fato, a mais devastadora pandemia de que se tem
notícia pode ter reduzido a população mundial de 475 milhões para 350-375 milhões ao longo do
século XIV. A transmissão deste bacilo está associada ao comércio internacional marítimo típico do
século XIV; afinal, nessa época, nos porões dos navios vindos do Oriente, chegavam milhões de ratos
à Europa, onde, devido às inadequadas condições de higiene e de saneamento, encontravam um am-
biente favorável para sua disseminação. Os ratos estavam contaminados e suas pulgas transmitiam um
agente etiológico aos homens através da picada (RODHAIN e SALUZZO, 2005).
4 Síndrome da imunodeficiência adquirida, ou AIDS na sigla em inglês.
5 A SARS, ou Síndrome Respiratória Aguda Grave, é a doença causada pelo Coronavírus SARS-CoV-1.
Tal doença, em geral, é grave, marcada inicialmente pelos seguintes sintomas: dor de cabeça, febre, dor
muscular. Os sintomas respiratórios incluem, principalmente, tosse, dispneia e pneumonia. No surto
de SARS de 2003, cerca de 9% dos pacientes com infecção por SARS faleceram. A taxa de mortalidade
foi tipicamente maior para aqueles pacientes com mais de 60 anos, com taxas de mortalidade próxi-
mas de 50% para tais pacientes (YANG et al., 2004).
6 O Ebola é uma zoonose, ou seja, uma doença ou infecção transmissível entre animais vertebrados e
seres humanos, e enseja altas taxas de letalidade (WHO, 2020).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 79

do ser humano sobre o meio ambiente. Concomitante, aumentaram, de modo quase


que exponencial, as desigualdades sociais e econômicas entre os países dos hemisfé-
rios norte e sul e no seio das populações destes países – tanto no caso de nações desen-
volvidas quanto no “Sul Global”, termo usualmente adotado em estudos pós-coloniais
ou aqueles ligados à compreensão e desconstrução do racismo, que pode referir-se
tanto ao Terceiro Mundo como ao conjunto de países em desenvolvimento, e que
também pode incluir as regiões mais pobres de países ricos (NASCIMENTO, 1978).
Dentre os principais fatores que se pode mencionar, nesse contexto, em especial no
que tange a uma crescente capacidade de intervenção antrópica no meio ambiente,
encontra-se o notório aumento no consumo de energia não renovável (ou seja, aquela
de origem fóssil, em especial, carvão mineral, petróleo e seus derivados e o gás natu-
ral) e o correlato avanço das mudanças climáticas, como resultado de crescentes emis-
sões, pelas atividades humanas, de Gases do Efeito Estufa (GEE) à atmosfera terrestre.
Nesse mesmo sentido, pode-se citar o agravamento das disparidades entre os consu-
mos de energia relativos às populações de países desenvolvidos (e as elites econômicas
de países em desenvolvimento) e do Sul Global. Por sua feita, no que se refere ao au-
mento da desigualdade social, é inconteste a contribuição do avanço de políticas eco-
nômicas neoliberais no agravamento desse quadro, em especial, a partir da ascensão
ao poder de uma certa dupla de líderes políticos apologista do chamado “Estado Mí-
nimo”: Ronald Reagan (1911-2004), 40º Presidente dos Estados Unidos da América
(EUA), que governou os EUA de 1981 a 1989 e Margareth Thatcher (1925-1913), Pri-
meira-Ministra do Reino Unido, de 1979 a 1990. Nesse contexto, urge mencionar que
o Papa João Paulo II, que foi o papa e o chefe da Igreja Católica de 16 de outubro de
1978 até 2 de abril de 2005, data de seu falecimento (PALLEY, 2005), em certa medida,
talvez menos explícito que Reagan e Thatcher, foi icônico apoiador de estratégias (tal
como o neoliberalismo) que culminassem no fim da União das Repúblicas Socialistas
Soviéticas, a URSS; e, como sabe, em fins de 1991, Karol Józef Wojtyła (o nome de
nascimento de João Paulo II), foi deveras exitoso neste sentido. De fato, o Vaticano
não é um estado com capacidade bélica, mas, a influência político-ideológica do papa
e desta cidade-estado cercada por Roma, ao menos no seio de parte da população do
Ocidente, é inconteste (ALONSO, 2011).
O neoliberalismo, no contexto atual (ou seja, como fruto de atualizações e/ou re-
formulações de teorias dos economistas clássicos liberais do século XVIII e de mea-
dos do século XIX, como Adam Smith, David Ricardo e Thomas Malthus), resumida-
mente, significa uma doutrina que defende a absoluta liberdade de mercado e uma
série de restrições à intervenção estatal sobre a economia, que só deve ocorrer em se-
tores imprescindíveis e, ainda assim, sob a égide de intervenção mínima. Essa doutri-
na político-econômica, caraterizada por demissão em massa de servidores públicos,
redução dos investimentos públicos, privatização de empresas estatais, enriquecimen-
to de restrita parcela da população e correlato empobrecimento da ampla maioria, em
boa medida, explica o quão desigual e perdulário se tornou o consumo de energia;
afinal, se o aumento de lucratividade e da rentabilidade aos acionistas é meta funda-
mental a ser perseguida e sob preceitos de mínima intervenção estatal (ou seja, sob a
égide, eventualmente, de restrita fiscalização ambiental), pouco importa se a lucrativa
80 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

construção de uma nova hidrelétrica na Amazônia ou de uma nova termelétrica a


carvão mineral no Brasil ou em algum país da Europa há de significar, também, uma
série de externalidades socioambientais negativas.
Destarte, a frase de Charlie Chaplin extraída do discurso final de seu personagem
Adenoid Hynkel, no filme “O Grande Ditador”, é emblemática no sentido de que se
possa refletir, no contexto da corrente Pandemia de covid-19, sobre algumas das tê-
nues relações entre energia (oferta e consumo/demanda), mudanças climáticas e desi-
gualdades sociais. Em boa medida, os tempos difíceis de Pandemia de covid-19 refle-
tem o que disse, em 1940, o personagem de Chaplin no citado icônico filme por ele
dirigido:

O caminho da vida pode ser o da liberdade e da beleza, porém nos extra-


viamos. A cobiça envenenou a alma dos homens… levantou no mundo as
muralhas do ódio… e tem-nos feito marchar a passo de ganso para a miséria
e os morticínios. Criamos a época da velocidade, mas nos sentimos enclausu-
rados dentro dela. A máquina, que produz abundância, tem-nos deixado em
penúria. Nossos conhecimentos fizeram-nos céticos; nossa inteligência, em-
pedernidos e cruéis. Pensamos em demasia e sentimos bem pouco. Mais do
que de máquinas, precisamos de humanidade. Mais do que de inteligência,
precisamos de afeição e doçura. Sem essas virtudes, a vida será de violência
e tudo será perdido.

Charlie Chaplin (1888-1977), em trecho do discurso proferido no final do


filme “O grande ditador”, de 1940.

De fato, mesmo com tanta capacidade tecnológica para produzir mais e mais,
como se a natureza fosse uma cornucópia incessante de recursos naturais7– uma das
premissas do capitalismo é baseada na ideia de crescente produção e consumo de bens
duráveis (ou, atualmente, cada vez menos duráveis) –, a sociedade tem experimentado
dificuldades atrozes para conter a Pandemia de covid-19. Isso talvez por ter se “esque-
cido” do quão importante foi (e é) ao longo de seu próprio processo evolutivo, desde
os ancestrais mais pretéritos do Homo Sapiens, atuar de forma colaborativa e coope-
rativa em prol do bem comum.8
7 A cornucópia é um símbolo da mitologia grega (Grécia Clássica) que representa a fertilidade e a abun-
dância, algo como fonte natural e eterna que fornece, gratuitamente e ilimitadamente, todos os bens
necessários à satisfação e às necessidades humanas, tal como num paraíso. Nesse contexto, o mito
da cornucópia faz parte dos sonhos dos otimistas que acreditam que o crescimento econômico pode
ocorrer de maneira infinita e sem restrições impostas pelo meio ambiente e, destarte, pela própria
disponibilidade de recursos naturais existentes na Terra (ALVES, 2012).
8 O Homo Sapiens,
Sapiens, a única espécie não extinta dentre todas as espécies do gênero Homo, provavelmente
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 81

Nesse contexto, cabe frisar que uma questão central que associa as mudanças cli-
máticas com a Pandemia de covid-19 é que os impactos são distribuídos de maneira
absolutamente desigual, embora afetem, de alguma forma, todos os países e pessoas.
Assim, os mais socialmente vulneráveis, em ambos os contextos, são os mais negati-
vamente afetados. Nesse sentido, países com discretos recursos para realizar a adap-
tação às mudanças climáticas ou para manter suas populações em lockdown ou em
algum outro nível de distanciamento social, em geral, são aqueles que não conseguem
evitar que parcelas relevantes de suas populações fiquem em situação de vulnerabili-
dade, tanto diante da covid-19 quanto perante os impactos das mudanças climáticas.
Portanto, fundamentalmente, os mais vulneráveis e os mais marginalizados por um
modelo de desenvolvimento socialmente excludente são também aqueles mais impac-
tados pela pandemia em curso e pelas consequências das mudanças climáticas. Nesse
sentido, por exemplo, os trabalhadores informais, os povos indígenas, a população
caiçara ou os habitantes de quilombos, no caso do Brasil, têm sido amplamente afeta-
dos por esses dois eventos que, sinergicamente, interagem entre si.
Cabe ainda ressaltar que, no caso das mudanças climáticas, os países e as popula-
ções que menos contribuíram para constituição e o agravamento desse problema de
magnitude global, são aqueles que mais sofrem e que mais hão de sofrer as mais seve-
ras consequências (DIMITROV, 2016). Por outro lado, os países desenvolvidos, que
foram os que mais contribuíram, historicamente (e a grande maioria também nos dias
atuais), para o aumento da concentração de GEE na atmosfera, são também os mais
capacitados para implementar exitosas estratégias de adaptação9 e de mitigação10 das
deveria observar e analisar mais seu próprio passado evolutivo (baseado, em boa medida, no coope-
rativismo) e de outras espécies humanas ancestrais, tal como o Homo Erectus que habitou este planeta
por quase 1 milhão de anos e que nos ensinou a arte da fabricação artificial do fogo (HOBSBAWM,
1996), de modo a ganhar mais resiliência diante do meio ambiente e de seus meios sociais e visando
ganhar mais tempo antes da, eventualmente inexorável, auto extinção.
9 Adaptação às mudanças do clima refere-se ao processo de ajuste de sistemas naturais e humanos
ao comportamento do clima no presente e no futuro. Em sistemas humanos, a adaptação objetiva
minimizar e evitar danos potenciais. Coteja, também, a prospecção de oportunidades benéficas asso-
ciáveis a tais mudanças no clima da Terra. Em sistemas naturais, a ação humana voltada à adaptação
almeja apoiar o ajuste destes sistemas ao clima atual e futuro e seus efeitos. A adaptação é necessária
independentemente do quanto a humanidade conseguir abater as emissões de GEE, afinal as emissões
históricas já alteraram o clima de modo que a temperatura média da superfície terrestre vem batendo
recordes a cada ano.
10 A mitigação das mudanças climáticas, por sua feita, é realizada através de ações que limitem a mag-
nitude ou o ritmo do aquecimento global e de seus impactos aos sistemas naturais e humanos. A
mitigação das mudanças climáticas, em geral, envolve a redução da emissão antrópica (ou seja, devido
às mais diversas atividades realizadas pelos seres humanos) de GEE à atmosfera. Poder-se-ia citar,
nesse contexto, por exemplo: estratégias e inciativas focadas no reflorestamento e na preservação de
florestas existentes; a aplicação de políticas públicas e privadas focadas na eletrificação dos sistemas
de transporte (de modo a reduzir o consumo de combustíveis líquidos fósseis/não renováveis); ou,
no caso de aterros sanitários, a captura e envio do metano naturalmente gerado para um flare (equi-
pamento destinado à queima de gases),
gases), onde tal o GEE é queimado (ou seja, sofre combustão) – e,
assim, converte-se o metano (CH4) em gás carbônico (CO2), o qual intensifica menos o problema do
aquecimento global.
82 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

mudanças climáticas. De fato, as emissões per capita de GEE, via de regra, são muito
maiores no caso das populações de países desenvolvidos do que naqueles em desen-
volvimento (DIMITROV, 2016). Afinal, os padrões de consumo, no caso das popula-
ções de países desenvolvidos, são tipicamente maiores do que no Sul Global. Isso não
seria o grande problema, não fossem as amplas diferenças que há entre esses blocos de
países (e regiões) do mundo, no que se refere à qualidade de vida e mesmo no que
tange ao atendimento às necessidades mais básicas da população (alimentação, saúde,
saneamento básico, acesso à energia elétrica, educação, moradia, dentre outras).
É, de fato, emblemática a relação entre desigualdades socioeconômica e vulnerabi-
lidades às mudanças climáticas. Nesse contexto, analisando-se, em particular, a ques-
tão das mortes previstas, até 2100, por ondas de calor extremo devido ao avanço de
mudanças no clima da Terra (impacto correlato ao aquecimento global e que impacta,
de modo mais contundente, a saúde de crianças e idosos), observa-se que os óbitos
devido a tais relevantes aumentos súbitos e persistentes de temperatura no seio de
populações de baixa renda e sob “clima quente”,11 tendem a superar, amplamente, as
mortes por epidemias e se equivalem às mortes causadas por câncer, tal como explici-
ta a Figura 3.1.

Fonte: LETRAS AMBIENTAIS, 2020; Climate Impact Lab, 2020.


Observação: As siglas “RCP 4.5” e “RCP 8.5” referem-se a duas famílias de cenários de emissões de
11 Ou seja, sob temperaturas tipicamente elevadas na maior parte do ano e diante de previsões inerentes
ao Sexto Relatório de Avaliação do IPCC (The Sixth Assessment Report – AR6), o qual foi publicado,
em três volumes, entre agosto de 2021 a fevereiro de 2022. Observa-se que o Sumário para Formula-
dores de Políticas inerentes ao AR6 “A Base Científica” (IPCC, 2021), resultado do Grupo de Trabalho
I do IPCC, encontra-se disponível, em português, a partir de acesso ao seguinte endereço eletrônico:
https://www.gov.br/mcti/pt-br/acompanhe-o-mcti/sirene/publicacoes/relatorios-do-ipcc/arquivos/
pdf/IPCC_mudanca2.pdf.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 83

tipicamente utilizados e analisados pelo IPCC (Intergovernmental Panel on Climate Change).12


Figura 3.1 – Óbitos estimados no seio da população mundial, até o ano de 2100, devido a ondas de
calor provocadas pelas mudanças climáticas diante de diferentes perspectivas (demográfica, renda per
capita e características climáticas com foco em temperaturas médias) e em comparação com os
principais episódios causadores de mortes.

Os dados da Figura 3.1 consolidam os resultados de robusto estudo produzido por


cientistas atuantes no Climate Impact Lab (2020) e que foram analisados pela LE-
TRAS AMBIENTAIS, uma instituição privada sem fins lucrativos sediada na cidade
de Maceió, Alagoas, e cuja finalidade é a defesa da conservação ambiental no Brasil.
Tal estudo aponta que os futuros riscos de óbitos entre seres humanos, por excesso de
calor, são diretamente definidos pelo nível de desigualdades sociais de uma região;
assim, quão mais pobre for a região do Globo, maior tende a ser o risco de morte no
seio daquela população diante de problemas de saúde associáveis a ondas de calor
(Climate Impact Lab, 2020; LETRAS AMBIENTAIS, 2020).
E, tal como ocorre com a Pandemia de covid-19, costumeiramente, as mortes cor-
relatas guardam relação direta com características de gênero, renda e cor da pele. De
fato, óbitos devido à covid-19 têm afetado mais fatalmente pessoas socioeconomica-
mente vulneráveis e que habitam em periferias urbanas (como as favelas brasileiras),
assim como indígenas, negros e mulheres. Equivalentemente, no caso das mudanças
climáticas, em regiões caraterizadas por insuficientes e/ou inadequados sistemas de
saúde e insuficientes e/ou inadequadas infraestruturas de proteção contra o calor ex-
cessivo, estima-se que as taxas de mortalidade hão de ser bem maiores do que no caso
dos países desenvolvidos (Climate Impact Lab, 2020; LETRAS AMBIENTAIS, 2020).
Frisa-se, ainda, que de acordo com o citado estudo produzido pelo Climate Impact
Lab, a redução das desigualdades tende a implicar numa diminuição da ordem de
60% na taxa de mortalidade, prevista devido ao calor extremo, até 2100 (Climate Im-
pact Lab, 2020; LETRAS AMBIENTAIS, 2020). Portanto, mitigar desigualdades so-
ciais entre e dentro dos países, com particular atenção ao Sul Global, é o mesmo que
evitar dezenas de milhões de mortes. Conclusivamente, tal trabalho, cujas estimativas
intrínsecas basearam-se em modelos climáticos e econométricos,13 explicita que os
(Representative Concentration Pathwas, ou, em tradução livre, Caminhos Representa-
12 Para cada RCP (Representative
tivos de Concentração),
Concentração), há uma típica geração de conjuntos de dados, espacialmente distribuídos,
sobre mudanças no uso da terra, emissões setoriais de poluentes do ar, concentrações anuais de GEE,
e as emissões antropogênicas destes gases até o ano 2100. O RCP 4.5 foi desenvolvido pela equipe de
(Pacific Northwest National Laboratory’s Joint Global Change Research Institu-
modelagem do JGCRI (Pacific
te)) dos EUA, e trata-se de um cenário caracterizado, resumidamente, por médias emissões de GEE
te
à atmosfera (Clarke et al., 2007; Wise et al.,
al., 2009). Já o cenário RCP 8.5 foi desenvolvido pela IIASA
(International Institute for Applied Systems Analysis)
Analysis) da Áustria; este RCP, frisa-se, representa um ce-
nário pessimista e é caracterizado pelo aumento das emissões de GEE ao longo do tempo (Riahi et
al., 2007). Assim, o RCP 4.5 associa-se a uma sociedade na qual o consumo de combustíveis fósseis
(particularmente carvão mineral, petróleo e seus derivados, e o gás natural) é menor do que no caso
da sociedade humana representada pelo cenário RCP 8.5, até o final do corrente século XXI.
13 Modelos matemáticos fundamentados em análises estatísticas e que relacionam, mutuamente, variá-
veis econômicas.
84 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

impactos das mudanças climáticas podem significar mais óbitos dentre os seres hu-
manos do que todas as atuais doenças infecciosas, incluindo malária, febre amarela,
tuberculose e HIV/AIDS (Climate Impact Lab, 2020; LETRAS AMBIENTAIS, 2020).

3.2 MUDANÇAS CLIMÁTICAS E A PANDEMIA DE COVID-19: A


CRUCIALIDADE TEMPORAL E O BRASIL NESTE CONTEXTO
Dentre todas as pandemias enfrentadas no passado pela humanidade, a mais re-
cente e ainda vigente provocada pelo novo Coronavírus (SARS-CoV-2) destaca-se de
maneira única, afinal, a crise econômica e de saúde proveniente do seu surgimento
somou-se a outras crises sistêmicas que ameaçam a sociedade, como o aquecimento
global, a financeirização da economia mundial (gerando acirramento do desemprego,
dentre outras consequências deletérias à grande maioria das pessoas), a perda da bio-
diversidade, a crise no abastecimento de água em muitos países e regiões do mundo
(por exemplo: norte da África, Oriente Médio e semiárido do Brasil), além de crises
humanitárias provocadas pelo aumento na concentração de renda e correlata expan-
são da pobreza e da miséria. E tudo isso justamente em um ano decisivo para a histó-
ria da humanidade.
De fato, 2020 significava, em boa medida, o necessário ponto de inflexão climáti-
co, a partir do qual as emissões de GEE só poderiam passar a declinar para que a
temperatura média da superfície terrestre não exceda 2 oC até o final do corrente sé-
culo XXI, ou seja, até 2100, em comparação com tal temperatura em períodos pré-in-
dustriais (ou seja, antes de 1770-1780).
O novo Coronavírus impôs, em pouco tempo, acentuada redução na atividade
econômica em todos os países do Globo. Concomitantemente, houve, globalmente,
declínio no consumo de combustíveis fósseis, em particular o petróleo e seus princi-
pais derivados (quanto à sua maior utilização), quais sejam: a gasolina e o óleo diesel
(no caso do Brasil, este quadro foi mais notado nos primeiros 3-4 meses iniciais da
pandemia). Como consequência, em especial por conta do contingenciamento global
do setor de transportes e da correlata bastante perceptível da redução no consumo de
combustíveis líquidos derivados do petróleo (em particular, gasolina, óleo diesel, óleo
combustível e querosene de aviação), as emissões de GEE entraram em declínio, mar-
cadamente nos meses iniciais da Pandemia de covid-19, ou seja, até por volta de julho
de 2020 (LIU et al., 2020).
Para exemplificar essa distópica realidade, cito que em 15 de fevereiro de 2022, de
acordo com a Organização Mundial da Saúde (WHO, 2020), o Brasil se consolidava
numa nada desejável posição: é o segundo país do mundo no que se refere ao número
total de mortes por covid-19 (638.913 óbitos), atrás somente dos Estados Unidos da
América (946.120 falecimentos). E, nesse contexto, o aspecto notoriamente dramático
é que mesmo diante desse quadro de sofrimento ampliado e crescente à população
brasileira em vista do avanço da Pandemia (em especial, no caso da parcela mais so-
cioeconomicamente vulnerável desta população), aparentemente, não houve e não há,
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 85

no âmbito do governo federal, consenso no sentido de que a vacinação represente a


forma mais rápida e segura de se reduzir o contágio no país. De fato, a atuação nega-
cionista diante da Ciência, de modo explícito e/ou implícito, neste contexto, causou e
causa a morte de milhares de pessoas e este quadro deveras preocupante e nitidamen-
te em prol da extinção humana tem se verificado não só no Brasil, mas também em
diversos países do Globo.
No caso do Brasil, parece ser a desigualdade social, fruto do modelo de (sub) de-
senvolvimento capitalista neoliberal adotado no país, um aspecto central que, no con-
texto da Pandemia de covid-19, caracteriza as complexas relações entre a oferta e con-
sumo de energia e as consequências socioeconômicas das mudanças climáticas.
Sob a égide de tais considerações, há a necessidade de se compreender como esse
cenário se delineia especificamente para o caso do Brasil contemporâneo, país carate-
rizado por amplas desigualdades e que experimenta distópica realidade socioeconô-
mica, socioambiental e mesmo existencial. Frisa-se, nesse contexto, que no presente
trabalho, cuja metodologia baseia-se em revisão bibliográfica sistêmica e em análises
críticas, por vezes, o Brasil foi escolhido como recorte espacial, mas similaridades
analíticas diversas são possíveis também no caso de países e outras regiões, em espe-
cial do Sul Global.

3.3 FUNDAMENTAÇÃO CIENTÍFICA A RESPEITO DAS MUDAN-


ÇAS CLIMÁTICAS: ORIGEM, CAUSAS E IMPACTOS
Foi a partir da Revolução Industrial14 que, gradativamente, o ser humano passou a
contar, de modo crescentemente visceral no que se refere a seu suprimento energético,
com os combustíveis fósseis (primeiramente, o carvão mineral, em fins do século
XVIII, depois o petróleo, a partir de 1859 e, na passagem do século XIX para o século
XX, também o gás natural), cuja combustão (leia-se, de modo coloquial, queima) gera
a emissão de GEE à atmosfera. Essa emissão antrópica de GEE se relaciona direta-
mente à constituição e intensificação do aquecimento global, o mais proeminente fe-
14 A Revolução Industrial significou um processo de amplas mudanças estruturais iniciado, central-
mente, nos últimos 25 anos do século XVIII e que, primeiramente, caracterizou-se pela adoção da
máquina a vapor e do correlato emprego do uso do carvão mineral como energético para propulsão
na indústria têxtil da Inglaterra. Tal processo, em boa medida, representou o triunfo da indústria
capitalista e da sociedade burguesa liberal, fazendo com que determinados países, como a própria
Inglaterra, o estado mais poderoso até então, e a França, avançassem na industrialização que se espa-
lhou por todo o mundo e perpetua até os dias atuais (HOBSBAWM, 1996). Antes de tudo, a Revolução
Industrial significou amplo processo de mudanças estruturais no seio da sociedade. De fato, a partir
de então todo um conjunto de importantes mudanças sociais, tecnológicas, econômicas e ambientais
foi se estabelecendo. A Revolução Industrial significou, também, uma mudança de paradigma em
relação à geração de impactos ambientais, dentre estes o início de uma emissão mais relevante de
GEE à atmosfera a partir da combustão do primeiro combustível fóssil de uso moderno, qual seja, o
carvão mineral. Nesse contexto, a Revolução Industrial pode ser considerada como sendo o macro
evento precursor das mudanças climáticas e de seu mais proeminente fenômeno precursor, qual seja,
o aquecimento global.
86 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

nômeno precursor associável às mudanças climáticas, o mais potencialmente deleté-


rio problema ambiental, de magnitude global, a ser enfrentado pela humanidade ao
longo do corrente século XXI.
A queima de combustíveis fósseis, portanto, gera emissão de GEE à atmosfera,
sendo os principais: dióxido de carbono15 (CO2), metano (CH4), óxido nitroso (N2O),
entre outros. Além da queima de combustíveis fósseis, o desmatamento, as atividades
ligadas à agricultura (em especial as monoculturas sob amplo emprego de fertilizan-
tes nitrogenados), processos industriais e a geração de resíduos, por exemplo, também
emitem GEE.
Os GEE são gases emitidos de forma natural e pela ação antropogênica. Tais gases
absorvem e emitem radiação infravermelha em comprimentos de onda específicos no
espectro da radiação emitido pela superfície terrestre, após reflexão da luz solar, à
atmosfera e às nuvens. Esse processo intensifica o Efeito Estufa, um processo natural
que mantém o calor abaixo da camada atmosférica (IPCC, 2014). Não fosse o Efeito
Estufa (enquanto processo natural), a temperatura média da superfície terrestre seria
próxima a -15 oC; mas, graças a esse processo, tal temperatura é próxima de 15 oC, o
que, em boa medida, explica a pujança de vida no planeta.
Ocorre que o aprisionamento excessivo do calor do Sol que tenta retornar ao Cos-
mo (após reflexão dos raios solares na superfície terrestre), por conta da presença, na
atmosfera, de uma quantidade adicional de GEE emitidos através das mais diversas
atividades humanas, significa uma retenção de calor extremamente elevada. Para se
ter uma ideia da magnitude dessa retenção adicional de calor, explicita-se que o aque-
cimento dos oceanos, por conta do avanço do fenômeno do aquecimento global, equi-
vale, por segundo, a 5 bombas atômicas, tal como aquela lançada pelos Estados Uni-
dos da América na cidade de Hiroshima, em 1945 (IPCC, 2014). Essa retenção
adicional de calor do Sol implica no chamado aquecimento global, o mais importante
(porém, não o único) fenômeno associável às mudanças climáticas. Nesse contexto, a
temperatura média da superfície terrestre, em relação a antes do início da Revolução
Industrial, já aumentou cerca de 1,1 oC (IPCC, 2018). Entretanto, é importante frisar
que esse aumento é médio, e que a variação de aquecimento em cada região do globo
varia (oceanos, em geral, aquecem bem menos do que regiões continentais, por
exemplo).
O nefasto lançamento de duas bombas atômicas, em agosto de 1945, uma em Hi-
roshima, e a outra em Nagasaki, ocorre no bojo dos eventos finais da Segunda Grande
Guerra Mundial. Foi a partir desse macro evento belicista de impactos sociopolíticos
diversos de magnitude global que o consumo de petróleo se tornou caracteristica-
mente crescente; afinal, a reconstrução da Europa (e do Japão) no pós-Segunda Gran-
de Guerra Mundial se realizou, centralmente, com base no consumo de grandes

15 O carbono é o elemento químico central na composição do petróleo e seus derivados e que, via com-
bustão, atinge a atmosfera na forma de CO2.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 87

quantidades desta energia fóssil sob os auspícios do Plano Marshall,16 e do Acordo de


Bretton Woods17 (BLOCK, 1977).
Por decisão da ONU e para compreender as causas e as consequências das mudan-
ças climáticas, em 1988, foi criado pelo Programa das Nações Unidas para o Meio
Ambiente, o PNUMA, e pela Organização Meteorológica Mundial (OMM), o Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, o IPCC (Intergovernamental Panel
on Climate Change), vinculado à Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mu-
danças do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês). Assim, há 34 anos, o IPCC publica
relatórios de avaliação que reúnem e sintetizam estudos publicados através de pesqui-
sas realizadas em todo o mundo para organizar o atual conhecimento sobre as mu-
danças climáticas. Para isso, conta com uma rede de milhares de cientistas, que traba-
lham de forma voluntária em torno de três eixos de trabalho: bases científicas;
impactos das mudanças climáticas, adaptação e vulnerabilidade; e formas de mitiga-
ção. Desde sua fundação, o IPCC representa a principal fonte de informações cientí-
ficas sobre as mudanças do clima.
Segundo o IPCC, em seu quinto relatório de avaliação, publicado em 2014, o aque-
cimento do sistema climático é um fato, sendo perceptível através do aquecimento
atmosférico e oceânico, das diminuições das calotas polares e aumento do nível oceâ-
nico (IPCC, 2014). Dados históricos indicam que houve crescimento médio de 0,85 ºC
da temperatura oceânica entre 1880 e 2012, apresentando variação de 0,65 a 1,06 ºC
(IPCC, 2014). E, refletindo o consenso científico recente a respeito do tema, a mais
nova edição do relatório de avaliação do IPCC, ou seja, o sexto relatório (Sixth Asses-
sment Report, AR6) estabelece, categoricamente, que a concentração atmosférica de
GEE desde 1750 é “inequivocamente” causada por atividades humanas (IPCC, 2021).
Descontando-se o cenário atual de Pandemia de covid-19, as crescentes emissões
de GEE tendem a causar aumento de 2 ºC antes de 2050, o que significa, com alta
probabilidade,18 que no centro-oeste do Brasil ou no sul dos Estados Unidos e na
16 O Plano Marshall, um aprofundamento da Doutrina Truman, foi o principal plano dos Estados Uni-
dos para a reconstrução dos países aliados da Europa nos anos seguintes à Segunda Guerra Mundial.
O Plano Marshall significou um aporte de 18 bilhões de dólares aos países europeus, utilizados para
a reconstrução de edificações e indústrias, importação de alimentos e mercadorias industrializadas,
bem como no financiamento da agricultura (BLOCK, 1977). A partir de então, a Europa se tornou
mais dependente dos Estados Unidos e passou a replicar, de modo mais claro, o chamado “American
way of life”, ou seja, um estilo de vida baseado em crescente consumo e tipicamente intensivo em car-
bono e, assim, caracteristicamente gerador de emissões de GEE.
17 O Acordo de Bretton Woods estabeleceu o funcionamento das políticas monetárias e econômicas
dos países no pós Segunda Guerra Mundial e definiu a forma que o capitalismo tomaria durante as
próximas décadas. Foi assinado, em 1944, na cidade homônima nos Estados Unidos (que deu origem
ao nome do acordo) por 45 nações aliadas. Significou, em boa medida, que os Estados Unidos assu-
miram o controle não só das relações financeiras entre os países, mas também sobre toda a economia
mundial (BLOCK, 1977). Outrossim, Bretton Woods, indiretamente, representa a constituição e o
fortalecimento de uma sociedade cada vez mais dependente do consumo de combustíveis, cada vez
mais geradora de GEE à atmosfera.
18 Alta probabilidade decorrente da considerável robustez associada à atual modelagem climática, em
relação à modelagem climática que havia há 10-15 anos, a qual já ensejava a manipulação computa-
88 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

maioria dos países do Mediterrâneo, a produção agrícola há de ser severamente im-


pactada, o que, inexoravelmente, implica no agravamento da fome em muitas das re-
giões do planeta (SENEVIRATNE et al., 2016). Na verdade, a compreensão majoritá-
ria da comunidade científica aponta que, caso a supracitada temperatura ultrapasse 3
oC, o mais provável é a ocorrência de amplos impactos irreversíveis aos sistemas bió-
ticos da Terra, ou seja, à vida humana e aos demais seres vivos (IPCC, 2018).
Dentre as consequências das mudanças climáticas que a comunidade científica,
com a chancela e avaliação do IPCC, aponta estão: secas, drásticas quedas na produ-
ção agrícola, redução da água contida em lençóis freáticos (ou seja, agravamento da
seca e suas consequências, em especial às populações mais vulneráveis), elevação do
nível dos oceanos (o que implica em grandes contingentes humanos de refugiados
climáticos, além de dificuldades amplas para o funcionamento dos portos e de ativi-
dades diversas em cidades costeiras), e pronunciadas variações do clima no curto pra-
zo, em especial no que tange ao aumento da incidência de eventos climáticos extre-
mos (tempestades/chuvas torrenciais, nevascas, furacões, ciclones, ondas de calor,
dentre outros) (IPCC, 2014).

3.4 IMPACTOS NA PRODUÇÃO E NO CONSUMO DE ENERGIA


ASSOCIÁVEIS À PANDEMIA DE COVID-19
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que a
covid-19, doença provocada pelo Coronavírus SARS-CoV-2, atingiu a categoria de
pandemia. A partir de então, na maioria das vezes seguindo recomendações da OMS,
medidas foram implementadas pelos diversos países atingidos, com variações desde o
chamado lockdown (ou seja, distanciamento social e paralisação de atividades não
essenciais) até a regulação de atividades profissionais e sociais. As medidas imple-
mentadas estabeleceram novas e, por vezes, inéditas formas de realizar tarefas co-
muns, como visitar amigos e familiares, realizar velórios e enterros, comprar alimen-
tos, trabalhar ou frequentar escolas e tantas outras unidades de ensino. Nesse
contexto, as medidas de lockdown provocaram redução abrupta no consumo dos mais
diversos itens. Assim, a quarentena em muitos países forçou o distanciamento social,
inviabilizando o contato social presencial com notórios impactos sobre empresas e
negócios que não puderam migrar para o ambiente digital com eficácia, como sho-
pping centers, cinemas, teatros, casas de shows, restaurantes, escolas, empresas dos
setores de turismo e de aviação civil. Nesse contexto, a atividade econômica da maio-
ria dos países foi severamente reduzida e a maioria deles, de fato, sofreu importante
recessão econômica em 2020 (MATTEI; HEINEN, 2020). Nesse sentido, o ritmo mais
lento ou a quase paralisação de muitos setores tem efeito direto sobre o insumo básico
para qualquer atividade social e econômica, qual seja, a energia.
Para além disso, as próprias medidas de restrição (lockdowns, bloqueios parciais e
confinamentos) transformam a vida das pessoas. Mas aquelas pessoas sem acesso à
eletricidade, quase 800 milhões no mundo, veem-se com dificuldades adicionais, ten-
cional de cerca de 500 mil variáveis reproduzindo a dinâmica da Terra.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 89

do comprometido o transporte, a comunicação e até a saúde dentro de casa para aque-


les que ainda dependem da queima de lenha ou carvão para cozinhar, ampliando sua
exposição a problemas respiratórios – contingente estimado em cerca de 2,7 bilhões
de pessoas, a grande maioria habitantes da África, da América Latina e do sul da Ásia,
em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica (IRENA, 2020).
No caso específico do Brasil, o impacto da covid-19 na atividade econômica é mui-
to expressivo. Desde o primeiro caso confirmado pelo Ministério da Saúde, em 26 de
fevereiro de 2020, as revisões do PIB, até recentemente, foram decrescentes. Frisa-se,
nesse contexto, que se comparando o PIB de 2020 com o PIB de 2019, a correlata va-
riação negativa foi de -4,1% (BANCO CENTRAL, 2020; IBGE, s.d.). Outrossim, dian-
te da inércia do governo federal em ampliar os investimentos públicos, em vista do
engessamento econômico imposto pelas políticas neoliberais recessivas em curso, tem
sido crescente a taxa de desemprego. De fato, em junho de 2021, no Brasil, a população
desempregada, em subemprego e mais os desalentados (aquela parcela da população
que desistiu de procurar um emprego) já era maior do que 50% da população econo-
micamente ativa no país (IBGE, s.d.).
De fato, a situação quanto ao emprego no Brasil, que já era dramática antes da
pandemia, se agravou sobremaneira, a tal ponto que, em outubro de 2020, num país
de cerca de 211 milhões de habitantes, havia cerca de 13 milhões de desempregados, 6
milhões de desalentados, e cerca de 31 milhões de pessoas em situação de emprego
informal. Além disso, tão somente 33 milhões de pessoas possuem emprego verificá-
vel, com horários regulares, com ou sem carteira assinada (IBGE, s.d.).
Nesse contexto, a demanda por leitos hospitalares equipados com sistemas de ven-
tilação e de monitoramento, como as Unidades de Terapia Intensiva (UTI), aumen-
tou, uma vez que o principal dano provocado pela covid-19 ocorre nas vias respirató-
rias superiores, o que exige o procedimento de intubação dos pacientes em estado
mais grave. É importante destacar a necessidade de garantir nos hospitais que tratam
de casos de covid-19 um adequado suprimento de energia elétrica, evitando a ocor-
rência de óbitos por falta de energia, o que, lamentavelmente, já ocorreu no Brasil em
tempos de pandemia. De fato, em maio de 2020, dois pacientes que estavam interna-
dos, devido à covid-19, no Hospital Mário Gazzola, em Acari, na Zona Norte do Rio
de Janeiro, faleceram por abrupta falta de energia elétrica nesta unidade hospitalar
(PALHANO, 2020).
Cabe ressaltar que medidas de controle baseadas no distanciamento social exigi-
ram o fechamento do comércio, o que ocasionou uma forte retração econômica e uma
notória diminuição no consumo de energia elétrica. Outro setor amplamente impac-
tado foi o de transportes, o que significou, em todos os países afetados pela Pandemia
de covid-19, forte retração no consumo de gasolina (afinal, as ruas e as estradas pas-
saram a contar com muito menos tráfego de automóveis), óleo diesel (na medida em
que caminhões e, principalmente, ônibus passaram a circular menos, em especial em
períodos de lockdown), querosene de aviação (e óleo combustível). Todo esse cenário
significou, em 2020 e nos primeiros meses de 2021, não desprezível redução nas emis-
sões globais de GEE.
90 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

A Agência Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), considerando o ano


de 2020 em um cenário que quantifica os impactos energéticos de uma recessão glo-
bal generalizada causada por restrições à mobilidade e atividade social e econômica,
apontou que a demanda por energia se reduziu em cerca de 6% (IEA, 2021); ou seja, a
maior queda em mais de 70 anos em termos percentuais e absolutos (IEA, 2020). Nes-
se contexto, o impacto da covid-19 na demanda global por energia, em 2020, foi cerca
de sete vezes maior do que o impacto causado pela crise financeira de 2008 (IEA,
2021). De maneira geral, 2020 correspondeu ao ano da mais profunda recessão pós
Segunda Guerra Mundial, com impactos amplos na indústria da energia. As restri-
ções impostas representam uma combinação desafiadora de oferta e demanda, afinal,
alguns setores interromperam quase 100% de suas atividades. Por outro lado, o co-
mércio eletrônico e a venda de equipamentos médicos são exemplos de raras ativida-
des que tiveram aceleração. De qualquer modo, em nível mundial, devido à Pandemia
de covid-19, houve (e, em diversos países, ainda há) um aumento muito significativo
do desemprego, com impactos na renda de consumidores.

3.5 A REDUÇÃO NA EMISSÃO DE CO2 À ATMOSFERA DEVIDO À


PANDEMIA DE COVID-19
Considerando todos os 196 cenários traçados pelo IPCC para os quais se pode li-
mitar o aquecimento médio global em comparação ao período pré-industrial, em ne-
nhum deles era admissível que o pico de emissões de gases de efeito estufa ocorresse
depois de 2020 (IPCC, 2018). Destarte, o impacto econômico e social que a Pandemia
de covid-19 traz ao mundo é notável. Nesse contexto, como mais uma externalidade
negativa da pandemia, pode-se mencionar as correlatas dificuldades diversas quanto
ao enfrentamento das mudanças climáticas, afinal, as discussões mundiais multilate-
rais lideradas pela ONU (e, em particular, pela UNFCCC) foram postergadas,19 assim
como a adoção de estratégias de adaptação e mitigação diante de tais mudanças no
clima da Terra.
De fato, nenhuma meta no âmbito do Acordo de Paris20 havia sido alcançada até
dezembro de 2020. Nesse contexto, em boa medida, a 25ª Conferência das Partes, a
COP 25, realizada em Madri, em fins de 2019, representava importante possibilidade
que ainda restava a respeito de uma diminuição caracteristicamente expressiva das
19 Devido à Pandemia de covid-19, não houve COP (Conferência das Partes da UNFCCC) em 2020, e
isto pela primeira vez desde 1995, quando, na Alemanha, realizou-se a COP 1. A COP só foi retomada
em 2021, quando a cidade de Glasgow, na Escócia, no Reino Unido, a abrigou.
20 O Acordo de Paris é um tratado mundial que possui um único objetivo: reduzir o aquecimento global.
Ele foi discutido entre 195 países durante a 21ª Conferência das Partes (COP 21), realizada em 2015,
em Paris. O compromisso internacional foi aprovado em 12 de dezembro de 2015 e entrou em vigor
oficialmente no dia 4 de novembro de 2016. O Acordo de Paris tem como principal objetivo reduzir as
emissões de gases de efeito estufa para limitar o aumento médio de temperatura global a 2ºC, quando
comparado a níveis pré-industriais. Além disso, o acordo orienta que sejam realizados todos os esfor-
ços possíveis no sentido de limitar esse aumento de temperatura a 1,5ºC até fins do corrente século
XXI (UNFCCC, 2020).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 91

emissões de GEE. Porém, principalmente devido a posições contrárias (por vezes,


nitidamente negacionistas) de governos como dos EUA, Japão, Austrália e Brasil, es-
forços globais maiores em prol de algum rápido abatimento em tais emissões associá-
veis à COP 25, lamentavelmente, fracassaram. Portanto, eram muitas as expectativas
depositadas na COP 26, a qual ocorreu em novembro de 2021, em Glasgow, na Escó-
cia; no entanto, boa parte destas expectativas, ao menos para os não muito otimistas,
também malogrou – a despeito de que, pela primeira vez em 27 anos, desde o início
das COP, a necessidade de redução no consumo de combustíveis fósseis em prol da
mitigação climática, ao menos sutilmente, foi incluída no relatório final da COP 26.
Curiosamente, o mesmo vírus capaz de paralisar a economia mundial paralisou,
também, devido ao isolamento social em diversos países, parte das emissões de GEE
em uma escala global. Nenhum esforço científico somado a campanhas lideradas pela
sociedade civil e mesmo todos os esforços diplomáticos foram capazes de diminuir a
emissão de GEE no mundo, desde a entrada em vigor do Acordo de Paris, em 4 de
novembro de 2016. Somente com a Pandemia de covid-19 é que a taxa de emissão de
CO2 sofreu perceptível e verificável queda (MARQUES, 2020). Evidentemente, mes-
mo que óbvio, cabe frisar que não há nexo em desejar que pandemias surjam como
“estratégia natural” de enfrentamento das mudanças climáticas ou mesmo de atenu-
ação de impactos ao meio ambiente.21
Nesse contexto, a Agência Internacional de Energia, em 30 de abril de 2020, previu
o impacto nas emissões de CO2 devido à crise associada à Pandemia de covid-19, su-
gerindo que as emissões poderiam cair 8% em 2020, ou seja, cerca de 2,6 gigas de to-
neladas de CO2 (Gt) (IEA, 2020). Mesmo esse patamar não chegaria perto de trazer o
limite de aumento na temperatura média da superfície terrestre de 1,5 °C ao nosso
alcance. De fato, as emissões globais de CO2 precisariam cair cerca de 7,6%, a cada
ano na corrente década, para limitar o aquecimento a menos de 1,5 °C acima das tem-
peraturas pré-industriais (IEA, 2020). Verificou-se, porém, que os níveis de carbono
atmosférico, em 2020, aumentaram – ainda que as reduções nas emissões de CO2,
devido à pandemia, tenham sido – e/ou estejam sendo, no caso de alguns países – ex-
pressivos.
As concentrações crescentes de CO2 e o aquecimento global correlato só se estabi-
lizarão quando as emissões anuais de GEE atingirem zero líquido.22 Mas a queda nas
emissões em 2020 resultou no nível mais baixo desde 2010. Essa redução anual foi a
maior de todos os tempos, e seis vezes maior que a redução precedente de 0,4 Gt, re-
gistrada, em 2009, devido à crise financeira, e duas vezes maior que todas as reduções
anteriores desde fins da década de 1940, o seja, desde poucos anos depois do fim da
Segunda Guerra Mundial (IEA, 2021). Nesse contexto, a Figura 3.2 reflete a perceptí-

21 Seria algo, no mínimo desumano e irracional, desejar que pandemias surjam “para que o planeta fique
livre de mais e mais humanos causadores de impactos ao meio ambiente”. É, porém, nessa linha de
pensamento que algumas pessoas têm se manifestado, tal como recentemente o fez a atriz francesa
Brigitte Bardot, ícone do cinema mundial das décadas de 1950 e 1960 (FOLHA, 2021).
22 As emissões de GEE atingem o chamado zero líquido quando se remove da atmosfera tanto gás de
efeito estufa quanto o que é emitido, de modo que a quantidade líquida adicionada é zero.
92 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

vel queda na demanda de consumo global de energia primária devido à Pandemia de


covid-19, quando comparada com quedas análogas anteriores.

Fonte: IEA, 2020.


Figura 3.2 – Taxa de variação no consumo mundial de energia primária, 1900-2020.

A Figura 3.2, implicitamente, apresenta uma possibilidade preocupante, qual seja:


que ocorra amplo aumento no consumo de energia (considerando todas as energias
presentes tanto na matriz de oferta de energia primária quanto na matriz elétrica)23 no
pós-Pandemia de covid-19. E, de fato, todas as avaliações preliminares da Agência
Internacional de Energia apontam que em 2021 o consumo global de energia – ainda
a ser verificado em definitivo –, ao que tudo indica, há de ser superior ao que foi regis-
trado para o ano de 2019 (IEA, 2021). Ou seja, a retomada econômica global tem sido
realizada, centralmente, a partir de amplo consumo de combustíveis fósseis; e, assim,
inexoravelmente, só se pode esperar aumento nas emissões de GEE e, de modo corre-
lato, intensificação do aquecimento global e avanço das mudanças climáticas e de
suas deletérias consequências à vida na Terra.
Na ânsia para voltar aos padrões de consumo de antes da Pandemia de covid-19 (o
antigo “normal”, ou seja, um modelo de vida que prioriza o consumo e, pior ainda, o
consumismo), pode ocorrer algo semelhante ao que se sucedeu em momentos pós-cri-
se inerentes ao transcurso do século XX. De fato, como se observa pelos dados da Fi-
gura 3.2, pouco depois da Gripe Espanhola e da Segunda Guerra Mundial, houve
aumento relevante na emissão global de CO2.
Uma análise quantitativa explicitada em relatório da Agência Internacional de
Energia focado na contemporânea Pandemia de covid-19, revela que as emissões de
CO2, comparando-se 2020 com 2019, caíram mais que a demanda por energia; afinal,
23 A matriz energética ou matriz de oferta de energia primária representa o conjunto de fontes de energia
disponíveis para movimentar os carros, preparar a comida no fogão e gerar eletricidade; já a matriz
elétrica é formada pelo conjunto de fontes disponíveis apenas para a geração de energia elétrica. Por-
tanto, a matriz elétrica é parte da matriz energética.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 93

os combustíveis com maiores emissões tiveram declínios maiores também (IEA,


2020). Regionalmente, as emissões diminuíram mais em regiões que sofreram maio-
res impactos, em especial é este os casos da União Europeia (-8%), China (-8%) e EUA
(-9%). De fato, há dados suficientes que atestam que houve redução bastante perceptí-
vel nas emissões diárias de CO2 devido à Pandemia de covid-19 (LIU et al., 2020).

3.5.1 O EFEITO CUMULATIVO INERENTE ÀS EMISSÕES DE GEE


COMO IMPEDITIVO À DESACELERAÇÃO DAS MUDANÇAS CLIMÁTI-
CAS MESMO DURANTE A PANDEMIA DE COVID-19
As concentrações médias anuais de CO2 na atmosfera, a despeito da Pandemia de
covid-19, aumentaram em 2020, ainda que as emissões deste GEE tenham se reduzido
de modo perceptível. Cientistas do Met Office, do Reino Unido, chegaram a essas
conclusões: o CO2 há de continuar a se acumular na atmosfera, embora a um ritmo
ligeiramente mais lento. Ao longo de 2020, destarte, os níveis de CO2 aumentaram em
cerca de 2,48 partes por milhão (ppm). Esse aumento é 0,32 ppm menor do que seria
sem os regimes de afastamento social. Embora as emissões globais sejam menores,
elas continuaram a ocorrer, porém, em um ritmo mais lento (MET OFFICE, 2020).
Ocorre que a concentração de GEE na atmosfera, que é resultante das emissões de
GEE antrópicas e não antrópicas (devido a ciclos climáticos naturais), significa a esta-
bilização destes gases na camada atmosférica. E esse processo se caracteriza por ser de
efeito cumulativo, ou seja, as emissões de GEE de todo o passado da sociedade huma-
na (a partir da Revolução Industrial, conforme analisado anteriormente neste traba-
lho) seguem contando e seguem provocando seus efeitos (em especial, a retenção adi-
cional do calor do Sol que tenta retornar ao Cosmo), independentemente da Pandemia
de covid-19. Assim, frisa-se que emissão de GEE é uma coisa e concentração de GEE
é outra, mas com conexões indiretas importantes.

3.6 O BRASIL COMO O ÚNICO PAÍS RELEVANTE QUANTO A


EMISSÕES DE GEE QUE, MESMO DURANTE A VIGENTE PANDE-
MIA DE COVID-19, REGISTROU AUMENTO EM TAIS EMISSÕES: O
PAPEL DO DESMATAMENTO NA AMAZÔNIA NESTE CONTEXTO
Ao contrário do que ocorre nos demais países, no Brasil as emissões de GEE au-
mentaram em cerca de 10%, no entanto sem uma relação direta com a Pandemia de
covid-19 (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2021). Diferentemente do que ocorre em
outras partes do mundo, a maior parte das emissões de GEE pelo Brasil advém de
mudanças no uso da terra. E, nesse contexto, devido ao (lamentavelmente) notável
aumento no desmatamento24 (muitas vezes realizados em terras públicas e associados
24 A maior parte do desmatamento no Brasil ocorre por meio de ações tipicamente ilegais na medida em
que grupos criminosos (atuando fora do arcabouço legal inerente à vigente Constituição Brasileira, ou
seja, a Constituição de 1988) usurpam, em prol de seus próprios (e escusos) interesses econômicos, as
florestas públicas, as quais são de posse e domínio públicos (bem público).
94 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

a incêndios nitidamente criminosos), durante 2020, na Amazônia, no Pantanal e,


eventualmente, também em outros biomas existentes no país (há necessidade de se
acompanhar ainda mais atentamente a evolução do desmatamento na Mata Atlântica,
por exemplo), o país registrou aumento de suas emissões de GEE em 2020, em relação
a 2019.
Assim, a diminuição em outros setores, por exemplo o de geração de energia e
transportes, não foi suficiente para compensar os aumentos na emissão de CO2 devi-
do ao desmatamento (OBSERVATÓRIO DO CLIMA, 2021). De fato, no Brasil, o des-
matamento e as queimadas são responsáveis por cerca de 44% do total de GEE emiti-
dos pelo país à atmosfera. Outro diferencial no que tange às emissões brasileiras de
GEE, são as emissões de metano (CH4) devido à fermentação entérica do gado bovino
(há mais cabeças de gado no Brasil do que pessoas) (OBSERVATÓRIO DO CLIMA,
2021).
Entre agosto de 2018 e julho de 2019, o desmatamento amazônico atingiu 9.762
km2, quase 30% acima dos 12 meses anteriores e o pior resultado dos últimos 10 anos,
segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o INPE, instituição científica
pública amplamente prestigiada pela comunidade científica mundial, mas nada pres-
tigiada pelo atual governo federal (INPE, 2020). E, no primeiro trimestre de 2020,
período do ano que tipicamente apresenta os níveis mais baixos de desmatamento, o
sistema Deter, do INPE, detectou um aumento de 51% em relação ao mesmo período
de 2019, o nível mais alto para este período desde o início da série, em 2016 (INPE,
2020). O mais preocupante é que no acumulado de agosto de 2019 até março de 2020,
o nível do desmatamento mais do que dobrou (INPE, 2020). Fato é que com a ausência
de políticas públicas eficazes direcionadas ao combate ao desmatamento, é bastante
provável que as emissões de CO2 geradas pelo Brasil continuem a crescer. Destarte,
tem sido tão acintosa a evolução do desmatamento na Amazônia em anos recentes
que a aparência linear da curva correlata se aproxima da representação gráfica de uma
equação exponencial, tal como se observa na Figura 3.3.

Figura 3.3 – Evolução do desmatamento acumulado, em km2, na Amazônia, de janeiro a dezembro –


2012 a 2021.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 95

Observação: Os dados explicitados na Figura 3.3 advêm do SAD, Sistema de Aler-


ta de Desmatamento, desenvolvido pelo IMAZON.25 O SAD utiliza imagens de saté-
lites (incluindo radar) para mensurar o desmatamento florestal. Os dados gerados
pelo SAD, a depender do interesse e do empenho governamental, auxiliam, sobrema-
neira, no planejamento e na realização de ações de combate ao desmatamento ilegal
no Bioma Amazônico (CONEXÃO PLANETA, 2022). E isso é fundamental conside-
rando-se que a Amazônia se apresenta numa gigantesca área de 4.196.943 Km², o que
corresponde a mais de 40% do território nacional e é constituída, majoritariamente,
por uma floresta tropical, ou seja, é a maior floresta tropical úmida do Planeta (Ama-
zon rainforest).
Já as emissões de GEE pelo Brasil podem ser observadas pela Figura 3.4, a seguir,
a qual apresenta as emissões de CO2e,26 por setores de emissões de GEE, entre 2017 e
2020. Observa-se que tais emissões têm sido crescentes, particularmente aquelas de-
vido ao setor de emissões alcunhado como “Mudança de Uso da Terra e Florestas”
(cor verde na Figura 3.4). Frisa-se que nos relatórios de avaliação do IPCC, a sigla re-
presentativa para este setor de emissões é “LULUCF”27– Land Use, Land-Use Change
and Forestry. Ressalta-se que as emissões totais de GEE pelo Brasil, em 2020, atingi-
ram o patamar de 2.160.663.755 toneladas de CO2e, sendo que 46, 2% destas emissões
(997.923.296 ton CO2e) são atribuíveis ao setor de LULUCF.
Destaca-se, ainda, que no caso do Brasil o setor de emissões “Agropecuária” (cor
amarela na Figura 3.4), assim como o setor LULUCF, também se relaciona amplamen-
te com o avanço do desmatamento no Brasil, em especial nos biomas Amazônia e
25 O IMAZON (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia) é uma instituição de pesquisa
sediada na cidade de Belém, no estado do Pará, e que se estrutura como Organização da Sociedade
Civil de Interesse Público, ou seja, uma OSCIP.
26 O CO2e representa uma medida métrica utilizada para comparar as emissões de diversos Gases do
Efeito Estufa (GEE) baseado no potencial de aquecimento global (Global Warming Potential – GWP)
de cada um destes gases. Assim, o dióxido de carbono equivalente, o CO2e, é o resultado da multipli-
cação das toneladas emitidas de gases de efeito estufa pelo seu potencial de aquecimento global. Por
exemplo, o potencial de aquecimento global do gás metano (CH4) é 21 vezes maior do que o potencial
do gás carbônico (CO2). Então, dizemos que o CO2 equivalente do metano é igual a 21. Desse modo,
as emissões unificadas de todos os GEE podem ser representadas pelas emissões de CO2e. Faz-se
analogia matemática e físico-química semelhante no caso da representação unificada de todas as fon-
tes primárias de energias em toneladas equivalentes de petróleo, ou seja, o tep. Assim, tep significa
uma unidade comum na qual se convertem as unidades de medida das diferentes formas de energia
utilizadas no Balanço Energético Nacional (BEN, publicado pela Empresa de Pesquisa Energética do
Ministério de Minas e Energia (EPE/MME) no caso do Brasil; neste contexto, frisa-se que cada país
publica seu próprio balanço energético nacional). Os fatores de conversão necessários ao cálculo do
tep (ou de quantidades de toneladas equivalentes de petróleo, por exemplo, consumidas em determi-
nado país) são calculados com base no poder calorífico superior de cada energético em relação ao do
petróleo, que é de 10.800 kcal/kg.
27 O uso da terra, mudança no uso da terra e silvicultura (LULUCF), também conhecido como Silvicul-
tura e outros usos da terra (FOLU), é definido pelo Secretariado de Mudanças Climáticas das Nações
Unidas como um “setor de inventário de gases de efeito estufa que cobre as emissões e remoções de
gases de efeito estufa resultantes do uso direto da terra induzido pelo homem, como assentamentos e
usos comerciais, mudanças no uso da terra e atividades florestais”.
96 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

Pantanal Mato-grossense e diante da crescente expansão da fronteira de áreas de pro-


dução de grãos e de carne para o interior destes tão caracteristicamente biodiversos
biomas. Ou seja, a extinção de espécies, uma externalidade ambiental evidentemente
muito negativa, também se relaciona a tal expansão de fronteiras (muitas vezes de
modo ilegal, em especial no caso do Bioma Amazônico) para a realização de ativida-
des econômicas.

Fonte: Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa (SEEG) (OBSERVATÓ-
RIO DO CLIMA, 2022).
Figura 3.4 – Emissões de CO2e, por setores de emissões de GEE, pelo Brasil, entre 2017 e 2020.

3.7 AS ENERGIAS RENOVÁVEIS COMO TRUNFO PARA QUE O


ANTIGO NORMAL NÃO SE REESTABELEÇA PLENAMENTE
De fato, o número de excluídos quanto ao acesso à energia elétrica ainda é grande.
No Brasil, por exemplo, há cerca de 3 a 4 milhões de pessoas sem esse tão fundamen-
tal direito, o qual pode propiciar, por exemplo, o funcionamento de escolas e de hos-
pitais à noite, em especial em locais onde o Sistema Interligado Nacional (SIN)28 não
28 Sistema Interligado Nacional, o SIN, com quase 135 mil quilômetros de extensão (ou seja, um dos
maiores sistemas de distribuição de transmissão de energia elétrica do mundo) é um sistema de coor-
denação e controle, formado pelas empresas de energia públicas e privadas das regiões Sudeste, Sul,
Centro-Oeste, Nordeste e parte da Região Norte, que compõe o sistema de produção e transmissão de
energia elétrica do Brasil. Trata-se de um sistema hidrotérmico de grande porte, com predominância
de usinas hidrelétricas e proprietários múltiplos, estatais e privados. Foi criado em 1988 através da
Resolução nº 351/98 do Ministério de Minas e Energia (MME). Tão somente cerca de 1,7% da capa-
cidade de produção de eletricidade do país encontra-se fora do SIN, em pequenos sistemas isolados
localizados principalmente na Região Amazônica (ou seja, na Amazônia Legal, a parte brasileira da
Floresta Amazônica). Os subsistemas do SIN são todos interligados entre si, de modo a aproveitar
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 97

consegue levar eletricidade, o que é muito comum em comunidades isoladas, peque-


nas cidades e vilarejos localizados na região norte do Brasil (ANEEL, 2016). E as ener-
gias renováveis, em especial a solar e a eólica, as mais maduras sob as perspectivas
tecnológica e econômica, dentre as demais energias renováveis, têm papel decisivo
neste contexto.
À medida que a covid-19 continue a se espalhar em países em desenvolvimento,
com sistemas de saúde mais frágeis e acesso limitado à eletricidade, torna-se evidente
a necessidade de aumento de investimentos públicos e privados que estimulem o de-
senvolvimento social e econômico de suas populações através de energias menos am-
bientalmente impactantes,29 ou seja, as energias renováveis.
Importante ressaltar, nesse contexto, que o setor de combustíveis fósseis, particu-
larmente os combustíveis líquidos derivados do petróleo (gasolina, óleo diesel, quero-
sene de aviação e óleo combustível), foi duramente atingido pela crise da covid-19,
com muitos países enfrentando, ao menos nos primeiros 5-6 meses de Pandemia de
covid-19, vigorosa queda na demanda por petróleo e seus derivados (em especial,
aqueles relacionáveis à energia para o setor de transportes, ou seja, gasolina, querose-
ne de aviação, óleo diesel e o óleo combustível) e na demanda por eletricidade geradas
a partir de termelétricas a carvão mineral e a gás natural. Esse quadro permitiu o
avanço das energias solar e eólica, particularmente no que se refere ao planejamento
e à implementação, para fins de geração de energia elétrica não dependente de fontes
energéticas fósseis (e, portanto, não renováveis), de novas usinas solares e eólicas. As-
sim, a despeito de todos os graves indicadores na economia durante a pandemia, a
demanda por energia renovável aumentou cerca de 1,5% no primeiro trimestre de
2020, impulsionada por novos projetos eólicos e solares que foram concluídos em
2019 (IRENA, 2020; IEA, 2020). Na maioria das vezes, as energias renováveis, com
custos operacionais mais baixos, recebem prioridade na grade de oferta de energia e
não ajustam sua produção à demanda, isolando-as dos impactos de menor demanda
por eletricidade. Com isso, a participação das energias renováveis na matriz elétrica
mundial passou de 26%, em 2019, para 27,5% no primeiro trimestre de 2020 (IEA,
2020). Frisa-se que houve queda para todas as outras fontes, incluindo carvão, petró-
leo, gás e energia nuclear.
A China, dentre todos os países do mundo, registrou a maior redução absoluta na
geração de eletricidade em termelétricas a carvão mineral. Na Europa, a parcela de
energias renováveis em eletricidade praticamente expulsou o carvão e o gás natural da
matriz elétrica europeia. Em algumas regiões, como no Reino Unido, pela primeira
vez houve oportunidade de troca de carvão mineral para gás natural com base nos
custos do combustível. De fato, na maior parte dos países, a geração de energia elétri-
melhor a sazonalidade dos rios e de permutar os excedentes de energia elétrica durante o período das
cheias em cada região. Frisa-se, ainda, que o órgão responsável por controlar e coordenar as operações
de instalações tanto de geração quanto de transmissão de energia elétrica do SIN é o Operador Nacio-
nal do Sistema Elétrico (ONS) (MME, 2020).
29 “Energia limpa” não é o termo mais adequado, afinal, não há forma de geração de energia que seja livre
de impactos ambientais mensuráveis. O termo “energia menos impactante”, por exemplo, poderia ser
usado nesse contexto.
98 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

ca a carvão mineral foi sensivelmente reduzida devido à pandemia; tal redução, no


primeiro trimestre de 2020, atingiu o patamar de 8% em relação ao mesmo período de
2019 (IEA, 2020).
Assim, a pandemia tem acelerado o desenvolvimento de novos modelos de negó-
cios pelas empresas de energia, direcionando suas atenções às energias renováveis.
Essa tendência pode levar o setor para a próxima etapa da transição energética em
direção à meta de muitos países da União Europeia de emissão zero de carbono até
2050 (IEA, 2020).
De fato, a transição energética tem sido considerada pela comunidade científica,
de forma majoritária, como a mais relevante estratégia de mitigação das mudanças
climáticas. Nesse sentido, a Agência Internacional de Energia, a Agência Internacio-
nal de Energias Renováveis e a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mu-
dança do Clima, reiteradamente, vêm apontando que é mister a descarbonização da
economia global. Nesse contexto, a citada transição (a qual consiste na migração de
uma matriz energética tipicamente composta pelos combustíveis fósseis – em espe-
cial, carvão mineral, petróleo e o gás natural – para uma matriz energética central-
mente composta pelas energias renováveis) deve ocorrer com base na concomitante
implementação de diversas ações, como: políticas públicas, desenvolvimento científi-
co e tecnológico, subsídios às energias renováveis, efetivo envolvimento do setor pri-
vado, educação ambiental, mudanças comportamentais, dentre outras.

3.8 DISCUSSÃO E CONSIDERAÇÕES FINAIS


A Pandemia de covid-19 tem explicitado toda ampla desigualdade social existente
no Brasil e no mundo. Trata-se de evento dramático a todos os seres humanos, em
particular aos mais socialmente vulneráveis. Mas, a despeito de tanto sofrimento que
vem sendo imposto à humanidade, não é improvável que, via vacinas eficazes, a atual
crise sanitária global seja dirimida e, quiçá, superada.
Já as mudanças climáticas, decorrentes principalmente do consumo de energia de
origem fóssil (carvão mineral, petróleo e gás natural, os quais juntos, há cerca de qua-
tro décadas, compõem entre 80 e 85% da matriz energética mundial), significam pro-
blema também de magnitude global, mas cujas consequências são experienciadas de
modo gradativo, o que tem permitido, até o momento, ao menos no caso das popula-
ções economicamente privilegiadas, razoável grau de acomodação, ou seja, de adapta-
ção às mudanças climáticas. Assim, por exemplo, não são principalmente pessoas de
elevado ou mesmo de mediano poder aquisitivo que têm sido impactadas pela maior
dificuldade no acesso à água potável em regiões áridas ou semiáridas do planeta, ou
por ciclones de alta intensidade que estão a ocorrer em maior profusão em países in-
sulares, como as nações-ilha Fiji ou Tuvalu, ambas localizadas no Pacífico Sul. Tam-
bém não são essas pessoas que, em geral, têm lidado com as maiores dificuldades para
acesso a leitos hospitalares no caso de contaminação pelo novo Coronavírus.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 99

Assim, enfrentar a Pandemia de covid-19 e as praticamente inevitáveis pandemias


vindouras, assim como mitigar as mudanças climáticas, significa o seguinte duplo
desafio necessário de ser superado: o estabelecimento de uma relação muito mais sus-
tentável e harmônica dos humanos para com o meio ambiente; e o combate intenso e
incessante das desigualdades sociais. São os caminhos possíveis e, muito provavel-
mente, os únicos em prol da própria sobrevivência da espécie humana.
Em ambos os casos, é fundamental que se atente para a eliminação das desigual-
dades no acesso a um meio ambiente preservado, que não signifique toda sorte de
danos, por exemplo à saúde dos seres humanos e dos demais seres vivos. Nesse con-
texto, os dados e informações inerentes à Figura 3.1 permitem vislumbrar que uma
melhor distribuição de renda (ou seja, com bem menos pessoas vivendo em condição
de “baixa renda”) significa coibir a morte de dezenas de milhões de seres humanos
devido às mudanças climáticas e aquelas mortes associáveis a eventuais epidemias e
pandemias vindouras. E, vale ressaltar, a citada melhor distribuição de renda tem de
ser ampla; e, assim, muito provavelmente, deve se associar a novos modelos sociopo-
líticos desvinculados do consumo excessivo de recursos naturais. Tais novos modelos
de sociedade, evidentemente, não compactuam com uma “vida de luxo” para quais-
quer parcelas da população mundial. Outrossim, esses modelos necessariamente vin-
douros em prol da preservação da vida na Terra devem ser incompatíveis com o con-
sumos de itens manufaturados para além do atendimento ao suficiente, considerando
as necessidades básicas necessárias ao “Bien Vivir”,30 como alimentação nutritiva-
mente adequada, saneamento disponível, residência digna, acesso à água potável e à
energia elétrica, assim como acesso à educação, aos benefícios das descobertas cientí-
ficas, à cultura e a um sistema de saúde pública confiável.
Nesse contexto, de modo direto e indireto, o êxito na luta contra o racismo, no
Brasil e no mundo, tende a significar combate ao avanço das mudanças climáticas.
Uma sociedade mais igual, justa e fraterna, tonar-se-á, inexoravelmente, mais resi-
liente. Destarte, é emblemática a frase pronunciada, em, 2018, por Mireille Fanon
Mendes-France, do Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Pessoas Afrodescen-
dentes:

(…) discussões sobre mudanças climáticas devem ser enquadradas tendo em


vista as desigualdades ambientais e devem levar em consideração os afrodes-
cendentes e africanos que vivem em todas as regiões do mundo, muitos dos
quais permanecem aprisionados numa invisibilidade estrutural e institucio-
nal.
“Bien Vivir”
30 A filosofia do “Bien Vivir” (“Bem Viver”, em português) alicerça-se num caminho em construção,
fundamentado na solidariedade e na fraternidade entre os seres humanos e a natureza. O Bem Vi-
ver representa uma oportunidade para se desenvolver coletivamente uma nova forma de organizar o
modo de viver no mundo. Tal filosofia de vida coaduna visões e práticas ancestrais andinas, debates
e propostas atuais, pensamentos críticos e lutas sociais que representam a busca por contrapontos
ao modelo de desenvolvimento contemporâneo, o qual, quase que hegemonicamente, é centrado no
capitalismo (ACOSTA, 2016).
100 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

De modo correlato, tal como recentemente comentou a jovem ativista ambiental


sueca, Greta Thunberg, “não é possível ter justiça climática sem ter justiça social ou
justiça indígena” (SAKAMOTO, 2020). Outro perspicaz comentário da jovem Greta
se deu durante a 24ª Conferência das Partes da UNFCCC, a COP 24, realizada em fins
de 2018, na cidade de Katowice, na Polônia: “Se é tão impossível achar a solução neste
sistema, talvez devêssemos mudar o próprio sistema” – tal como este autor, presencial-
mente, escutou (e propagou).
De fato, diante do que se analisou no presente trabalho, para minimizar a proba-
bilidade de ocorrência de novas pandemias originárias em zoonoses, tal como a Pan-
demia de covid-19, e para mitigar as mudanças climáticas, torna-se premente a des-
construção do sistema capitalista em prol da construção de outro ou de outros
modelos de desenvolvimento focados em ampla justiça social e na máxima harmonia
possível entre o ser humano e o meio ambiente. O desafio, obviamente, não é de pou-
ca monta, afinal a crise atual é de base existencial e, assim, toda uma mudança filosó-
fica no existir humano se faz necessária em direção a novas concepções de vida cen-
tradas no Biocentrismo, e não mais no Antropocentrismo.
Como se observou, a Pandemia de covid-19, por conta do efeito cumulativo asso-
ciado à concentração de GEE na atmosfera, tem exercido efeito não suficiente para
reduzir o avanço das mudanças climáticas. Ou seja, a pandemia, além de representar
o pior e menos desejável meio de se reduzir as emissões de GEE, não tem representado
contenção relevante diante do avanço das mudanças climáticas e de seu mais proemi-
nente fenômeno associável, qual seja, o aquecimento global.
Na verdade, para que a temperatura média da superfície terrestre não ultrapasse
1,5 oC até 2100 (o que está quase por ocorrer, a seguir as tendências de consumo de
energia fóssil atuais, em 15-25 anos), tal como preconiza o vigente Acordo de Paris em
sua meta mais cautelosa no sentido de evitar eventos climáticos extremos (e de conse-
quências imprevisíveis), seria necessário mais quase uma década de reduções nas
emissões de GEE, tal como esta decorrente da pandemia de covid-19. Obviamente,
como já comentado neste estudo, ninguém em sã consciência deve desejar novas pan-
demias para que as mudanças climáticas sejam contundentemente atenuadas.
Ocorre, porém, que na medida em que o modelo de desenvolvimento, quase que de
modo hegemônico, continua sendo este capitalismo tipicamente excludente em sua
faceta atual, ou seja, o financeiro e baseado em ampla e crescente degradação ambien-
tal, é inevitável que novas pandemias ocorram, eventualmente, ainda mais agressivas
do que a atual. Afinal, o aquecimento global, o desmatamento, a destruição dos habi-
tats selvagens, a domesticação e a criação de aves e mamíferos em padrões industriais
degradam e destroem o equilíbrio evolutivo entre as espécies, interferindo sensivel-
mente nas cadeiras tróficas, o que facilita muito as condições para saltos (spillovers)
desses vírus de uma espécie a outra, incluindo a espécie humana. Concorrem para o
agravamento desse quadro as vexatórias desigualdades sociais existentes no mundo,
as quais se tornaram ainda mais explícitas diante da Pandemia de covid-19.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 101

Como fruto direto da transformação do capitalismo financeiro em modelo hege-


mônico (ou da transformação do capitalismo industrial de base produtiva em capita-
lismo financeiro de base especulativa), em 2018, menos de 70 pessoas no mundo deti-
nham riqueza equivalente àquela possuída por cerca de metade da população mundial,
ou seja, algo em torno de 3,8 bilhões de seres humanos, de acordo com a Organização
Não Governamental Oxfam (OXFAM, 2020). E, cada vez mais, esse processo pirami-
dal de enriquecimento para algumas poucas pessoas em detrimento do aumento am-
plificado da pobreza, da miséria e da fome no mundo, vem se intensificando.
Para 2050, quando a ONU estima que sejamos cerca de 9,5 bilhões de viventes
humanos na Terra, na medida em que o capitalismo financeiro se tornar ainda mais
hegemônico, muito provavelmente ainda menos humanos hão de possuir riqueza
análoga àquela somada por mais e mais bilhões de (também) humanos. Não por aca-
so, os casos de suicídio no seio das comunidades indígenas do Brasil têm aumentado;
aparentemente, perceber-se desvalorizado e desabilitado para o livre viver, para o des-
frute e o revisitar da própria cultura (ou para a experienciação de relações mais har-
mônicas com a natureza), para alguns (em especial para as populações originárias)
pode ser absolutamente inaceitável, pode ser insuportável.
Nesse contexto, o revisitar constante a respeito das formas (tipicamente não mate-
rialistas) de existir das populações indígenas (felizmente) ainda presentes no Brasil,
torna-se fundamental em prol de que a própria “civilização moderna” continue a exis-
tir em médio e longo prazos. De fato, onde há povos indígenas, em geral, há, também,
maior preservação de matas nativas, mais cobertura florestal; e isto tem sido verifica-
do, desde 1988, através das observações realizadas pelo PRODES (Projeto de Monito-
ramento do Desmatamento) na Amazônia Legal por Satélite. Frisa-se que o PRODES,
um projeto do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), monitora o desma-
tamento por corte raso na Amazônia Legal, gerando, assim, dados sobre as taxas anu-
ais de desmatamento na região. Não despropositadamente, o INPE e, consequente-
mente, o PRODES, a despeito da elevada respeitabilidade perante a comunidade
científica internacional, vem sendo, cotidianamente, desacreditados pelo atual gover-
no federal, o qual tem se caraterizado, dentre outros aspectos, pelo combate ineficaz
ao desmatamento no Brasil, em especial na Amazônia e no Pantanal Mato-grossense
(vide os dados inerentes à Figura 3.3).
Importante mencionar, nesse contexto, que o agronegócio brasileiro, que tanto
ressalta que responde por alta geração de empregos (o que não é vero na medida em
que agricultura e pecuária deveras mecanizadas não são compatíveis com ampla ge-
ração de empregos) e por crescimentos do PIB do país, depende, visceralmente, de que
as regiões com campos ainda férteis (a despeito do uso intenso de fertilizantes quími-
cos e agrotóxicos) continuem a receber boa quantidade de chuvas e de modo relativa-
mente proporcional ao longo do ano. Ou seja, sem a preservação da Floresta Amazô-
nica, os “rios de vento” (“cursos de água atmosféricos”, formados por massas de ar
carregadas de vapor de água, muitas vezes acompanhados por nuvens, que são prope-
lidos pelos ventos) tendem a se tornar bem menos caudalosos e, assim, o avanço do
102 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

desmatamento na Amazônia, inexoravelmente, significa redução na produtividade


para a produção de grãos e carne (ou seja, perda de lucratividade para o agronegócio).
É pouco alentador ter de lembrar algo assim, afinal, a preservação ambiental deve-
ria ser, em tese, algo do interesse de toda a população brasileira. Ou seja, na medida
em que a vida humana dependa da preservação do meio ambiente, não há nexo em
focar no lucro com base na degradação ambiental (e, no caso, trata-se de lucro a curto
prazo e sem qualquer viabilidade econômica em médio ou longo prazos, a continuar
o aumento das taxas de desmatamento). No entanto, as externalidades socioambien-
tais negativas associáveis à desproteção ambiental no Brasil, por enquanto, têm im-
pactado muito mais as populações já vulnerabilizadas por motivos diversos.31 Esse
cenário pode ser caraterizado, por exemplo, pela cada vez mais frequente ocorrência
de deslizamentos de terra em regiões serranas do estado do Rio de Janeiro, ou mesmo
no Litoral Norte do estado de São Paulo. Destarte, tais eventos podem ser caracteriza-
dos como desastres relacionados a emergências climáticas.
Sob a égide de tais considerações, por certo, mais noções de cidadania dissemina-
das à população brasileira como um todo, assim como melhor acesso a uma educação
pública de qualidade e também voltada à compreensão das, digamos, grandes causas
nacionais,32 indubitavelmente, tornaria bem mais difícil a manutenção de um modelo
de sociedade centrado na geração de riqueza para alguns ao custo do empobrecimen-
31 Tal contexto pode ser exemplificado pela cada vez mais frequente ocorrência de deslizamentos de ter-
ra em regiões serranas do Rio de Janeiro, na Bahia, em Minas Gerais ou no Litoral Norte de São Paulo,
provocados por intensas enchentes associadas a chuvas torrenciais. Tais eventos, a despeito da neces-
sidade de que mais investigações científicas se realizem e com apoio de robusta modelagem climática
computacional (algo que o atual governo federal não tem priorizado), podem ser caracterizados, ao
menos parcialmente, como eventos climáticos extremos; e, neste sentido, como desastres socioam-
bientais correlatos à crise climática. De acordo com o Atlas Digital de Desastres Naturais no Brasil,
entre 1995 e 2019, houve 18.551 ocorrências de inundações, enchentes, enxurradas e deslizamentos
de terra, os quais causaram 6,629 milhões de desabrigados e desalojados e 67,516 milhões de pessoas
afetadas; já os danos materiais foram estimados em R$ 59,360 bilhões, em valores corrigidos (CEPED,
2022). Outrossim, quase 4 mil pessoas já morreram no Brasil, desde o início de 1988 a 8 de fevereiro
de 2022, devido a episódios de deslizamentos de terra: precisamente, foram 3.758 óbitos neste período
por conta de tais eventos, segundo levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas
(IPT) (2022). Há, atualmente, suficiente conhecimento científico, em diversas áreas do conhecimento,
que permitem afirmar que desastres desse tipo não podem ser caraterizados como acidentes naturais,
mas, sim, como resultante de uma deletéria e sinérgica soma dos seguintes fatores: ocupação irregular
e não planejada das cidades; crescente degradação ambiental (tal como o aumento do desmatamento
no Bioma Amazônico); avanço das mudanças climáticas; e, também, o descaso do poder público. De
fato, governos (esferas federal, estadual e municipal) deveriam e poderiam implementar muito mais
iniciativas focadas, por exemplo, no mapeamento de áreas de risco, políticas habitacionais efetivamen-
te atentas à segurança e à preservação da vida, contenção da degradação ambiental, assim como na in-
trodução de sistemas de alerta precoce (medidas simples e pouco onerosas, como sirenas e mensagens
nos celulares da população habitante em cidades sob situação de chuva intensa, podem evitar centenas
ou mesmo milhares de mortes).
32 Uso dos royalties do petróleo do Pré-Sal, Amazônia Legal, geração de eletricidade, saneamento básico
universalizado, saúde e educação como direitos a todas e todos, dentre outras questões fundamentais
ao desenvolvimento equânime do Brasil.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 103

to da massa de trabalhadores, do aumento do desemprego33 e de ampla degradação


ambiental.
O Brasil, país no qual os 5 cidadãos mais ricos detêm o equivalente à riqueza so-
mada da metade mais pobre da população de acordo com a Oxfam (2020), é triste-
mente exemplar no que se refere à desigualdade socioeconômica e às inúmeras e dele-
térias correlatas consequências (leia-se aumento do desemprego, miséria, insegurança
alimentar ou mesmo fome, dentre outras) aos socialmente mais vulneráveis.
Conforme analisado, a grave crise provocada pela Pandemia de covid-19, ao menos
até o momento, tem significado uma oportunidade para aumentar a participação glo-
bal de energias renováveis nas matrizes energéticas dos países. Afinal, as vantagens
das energias renováveis tornaram-se evidentes durante a pandemia, particularmente
em contextos offgrid (sem conexão com a rede interligada de distribuição de eletrici-
dade) e em resposta à necessidade de apoiar a operação das unidades de saúde. As
emissões de carbono apresentaram queda sem precedentes na história devido à pan-
demia e, concomitantemente, devido ao maior uso das energias renováveis (eólica e
solar) para geração de eletricidade.
Nesse contexto, no pós-Pandemia de covid-19, é fundamental acelerar muito mais
a necessária transição energética dos combustíveis fósseis para as energias renováveis,
em especial, a solar e a eólica. Para tanto, porém, há que se eliminar os vultosos sub-
sídios fornecidos pela maioria dos países às grandes corporações do setor de combus-
tíveis fósseis; tais subsídios, os quais ocorrem na forma de renúncias fiscais e reduções
diversas nos impostos (concedidos pelos governos, principalmente, à indústria petro-
lífera), dificultam sobremaneira o combate às mudanças climáticas. De fato, é muito
difícil construir um mundo menos dependente do carbono quando se sabe que, em
2019, os referidos subsídios, em nível mundial, atingiram o patamar de, no mínimo,
775 bilhões de dólares34 (OIL CHANGE INTERNATIONAL, 2020). Definitivamente,
pela perspectiva das poucas pessoas que se beneficiam economicamente desse mode-
lo e que se dizem defensores da vida na Terra, não passa de retórica falar em combater
as mudanças climáticas.
Observou-se, ainda, que o repique das emissões de GEE no pós-Pandemia de co-
vid-19 tende a ser maior que o declínio, a menos que toda uma onda de investimentos
para retomar a economia seja dirigida a uma infraestrutura energética menos am-
bientalmente impactante e, particularmente, menos centrada e dependente dos com-
bustíveis fósseis.
Cabe destacar, ainda, que o aparentemente irrefreável avanço do desmatamento na
Amazônia (a maior floresta tropical do mundo), aspecto que tão bem simboliza o

33 Fala-se aqui de perda de empregos dignos, que permitam uma vida digna (acesso à moradia, alimen-
tação, transporte, arte, cultura, dentre outros aspectos civilizacionais básicos), e não de subempregos
(“uberização”)
(“uberização ”) ou de empregos sem acesso a direitos trabalhistas.
34 O Brasil é, atualmente, o segundo país do mundo que mais concede subsídios à indústria petrolífera,
em especial às multinacionais e mesmo estatais de outros países; o primeiro, neste contexto, é a Arábia
Saudita.
104 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

atual governo federal, pode implicar que as próximas zoonoses sejam embrionadas no
Brasil.
Também urge citar certo emblemático pensador brasileiro como contraponto à
falaciosa e propalada inexorável necessidade de crescimento econômico (e correlata
crescente degradação ambiental, algo jamais explicitado nas propagandas de grandes
corporações empresariais veiculadas, diuturnamente, pela mídia convencional) como
meio de manter a sociedade humana capitalista e seus padrões de vida.35 Referimo-
-nos à Darcy Ribeiro (1922-1997), sociólogo, antropólogo, escritor e político brasileiro
deveras conhecido por seu foco em relação à importância de valorização da cultura e
dos povos indígenas e à educação (pública, gratuita e de qualidade) no Brasil. Sem
dúvida, as ideias de Darcy Ribeiro sobre a identidade latino-americana influenciaram
diversos estudiosos latino-americanos posteriores (muitos destes, ainda em curso).
Destarte, no intuído de explicitar a contundência sociopolítica e a contemporaneida-
de do pensamento de Darcy vis-à-vis a premência de enfrentamento das questões tra-
tadas no presente texto,36 explicitam-se, a seguir, duas de suas mais icônicas frases:

Ultimamente a coisa se tornou mais complexa porque as instituições tradicio-


nais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrina. A escola não
ensina, a igreja não catequiza, os partidos não politizam. O que opera é um
monstruoso sistema de comunicação de massa, impondo padrões de consu-
mo inatingíveis e desejos inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade
dessas populações

O Brasil, último país a acabar com a escravidão, tem uma perversidade in-
trínseca na sua herança, que torna a nossa classe dominante enferma de de-
sigualdade, de descaso.

Textos escritos entre 1995 e 1997, quando Darcy Ribeiro mantinha uma colu-
na semanal no Jornal Folha de São Paulo.

35 Hoje, mais de 45 anos depois dos chamados “30 anos de ouro do capitalismo” (entre 1945 e até por
volta de 1975) pode-se afirmar que a realidade de tais padrões se apresenta como muito negativa
quanto ao atendimento às necessidades básicas para parte expressiva da população mundial (na me-
dida em que a pobreza e a miséria têm aumentado, particularmente, no Sul Global).
36 Ou seja, com foco na urgente mitigação das mudanças climáticas concomitante à transição energética
socialmente justa e em prol de novos modelos sócio-políticos que viabilizem ampla redução das vi-
gentes desigualdades socioeconômicas (no Brasil e no mundo; enfim, no Sul Global) e que coíbam a
ocorrência de novas pandemias.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 105

Obras atemporais de Darcy Ribeiro, como os livros “Os índios e a civilização“ (Ri-
beiro, 1979) ou “O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” (Ribeiro, 1995),
de modo academicamente rigoroso (e em texto febril e sociopoliticamente deveras
crítico), nos fazem refletir com relação à necessidade de que os juruas37 se humildem
a aprender como viver sob a égide de bem mais harmonia diante da natureza e consi-
go mesmo. Além disso, diante da crise climática e da clara perspectiva de que novas
pandemias acometam a humanidade, os saberes indígenas (e, também, com tantos
outros povos originários do mundo) tornam-se peças-chave para que o ser humano e
a própria vida na Terra não se extinguiam.38 Nesse contexto, a Figura 3.5 intenta sim-
bolizar o quão mais iguais, respeitosos e meros aprendizes podemos e temos que ser
diante das (em geral, verdadeiramente sustentáveis) populações originárias do Brasil
e do mundo – isto se, de fato, desejamos prosseguir com a épica jornada humana na
Terra.

Fonte: RIBEIRO; RIBEIRO, 1957; SABOIA DE MELO, 2015.


Observação: Esta fotografia foi tirada pelo próprio Darcy Ribeiro, em 1951, no âmbito de expedição
científica aos índios Urubu-Kaapor, no estado do Maranhão.
Figura 3.5 – Darcy Ribeiro e índio Urubu, 1951.

Urge sonhar e realizar uma sociedade brasileira (e, também, latino-americana e,


quiçá, mundial) social, ambiental e economicamente justa, digna, fraterna e igualitá-

37 Os Guarani Mbyá, que vivem nos estados do sul e do sudeste brasileiros, usam comumente o termo
jurua, que quer dizer “boca com cabelo” para se referirem, atualmente, a todos os não indígenas. Tal
nome “jurua” é uma referência às barbas e bigodes dos conquistadores europeus.
38 Ao menos não antecipadamente e sem o uso amplo da razão humana em prol da cooperação mútua,
aspecto tão característico ao longo dos cerca de 300 mil anos de evolução do Homo Sapiens.
106 A crise climática e a questão energética diante da Pandemia de covid-19 – Uma reflexão com...

ria. Talvez pareça utópico mencionar algo assim considerando o avassalador avanço
da degradação do meio ambiente e as atuais abissais desigualdades socioeconômicas
intrínsecas ao Brasil e ao mundo. Mas, como diria o genial escritor uruguaio Eduardo
Galeano (1940-2015), “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se
afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu
caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não
deixe de caminhar”.

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CAPÍTULO 4
Plurinacionalismo, Bien Vivir e
movimentos decoloniais

Marcos Bernardino de Carvalho

4.1 O CONTEXTO E O LUGAR DESSA DISCUSSÃO NA EDIÇÃO


ESPECIAL DE SMC, PANDEMIA DE 2020/22
Neste capítulo nos propusemos a refletir sobre o tema sugerido para a aula intitu-
lada “Do estado nacional ao plurinacional: percurso, crise socioambiental e alternati-
va decolonial à economia-política” (edição especial da disciplina Sociedade Meio Am-
biente e Cidadania, ministrada por mim em duas edições durante a Pandemia
covid-19, com a colaboração de Beatriz Besen, em 2020, e Priscila V. Alves, em 2021,
estagiárias PAE).
Antes de entrar no tema da aula propriamente dita, importante localizá-la no con-
texto desta edição especial, incluindo a sequência de abordagens que já vinha sendo
desenvolvida pelas/os demais colegas participantes do esforço de condução coletiva da
disciplina, durante os dois anos de duração da Pandemia. Para isso basta realçar algu-
mas das seguintes questões, dentre as muitas destacadas nas aulas que foram anterio-
res a esta, por causa das conexões imediatas com o tema da aula e também por causa
do reforço aos argumentos que justificam o tratamento aqui desenvolvido.
114 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

Na abordagem produzida por Carla Morsello, sob o título “Covid-19 e o surgimen-


to de doenças emergentes”, que inaugurou a disciplina nos dois momentos em que foi
oferecida, são importantes os argumentos e os consequentes alertas sobre a possibili-
dade da Amazônia tornar-se o epicentro de pandemias futuras, em função de sua
imensa biodiversidade e da maior potencialidade, portanto, de abrigar os vetores (es-
pécies, vírus, bactérias) destas. Das ameaças à grande e principal floresta do planeta,
localizada nas regiões equatoriais, ao derretimento do permafrost das altas latitudes,
produzido pelo aquecimento global, o potencial pandêmico se multiplica, adverte-nos
Carla. O cuidado com a integridade desses espaços torna-se, consequentemente, um
imperativo e isso implica, necessariamente, na manutenção das diversidades étnico-
-culturais que, em grande parte, são responsáveis pela preservação e reprodução das
diversidades biofísico-naturais dos territórios em que habitam.
Já na reflexão produzida por André Simões, que veio na sequência, intitulada
“Energia, mudanças climáticas e desenvolvimento sustentável: Inter-relações no con-
texto da pandemia de Covid-19”, somos confrontados com a lentidão e incipiência de
nossas atitudes, diante da gravidade das crises que viemos produzindo, e independen-
temente de situações pandêmicas, ao constatarmos que, apesar de toda a desacelera-
ção de atividades provocada pela pandemia de 2020/21, reduzimos muito pouco as
nossas emissões, resultando em ação inócua sobre os problemas climáticos. Com isso,
não só se evidenciam os efeitos cumulativos dos desequilíbrios provocados no am-
biente global, mas explicita-se a relevância das dimensões políticas para a considera-
ção dos enfrentamentos dessa situação. Multilateralidade, internacionalismo, ou es-
forços transnacionais, ao lado do próprio questionamento da ordem geopolítica
internacional emergem obrigatoriamente de uma discussão em que as fronteiras dos
interesses econômicos e (inter)nacionais são confrontadas com aquelas que distin-
guem os limites das dinâmicas ecossistêmicas, por exemplo.
Partes desses temas foram aprofundados por Luciana Araújo em sua abordagem,
“Fronteiras planetárias e o uso de recursos naturais comuns no Antropoceno”, que
nos levou a refletir sobre essas fronteiras, em um sentido mais amplo do que aquele
ditado pela geopolítica dos países, sobretudo quando se consideram os diferentes li-
mites e territorialidades produzidos pelas forças bioculturais, os interesses socioeco-
nômicos, ou os processos histórico-culturais, e as tensões e consequências provocadas
pelos respeitos ou transgressões a esses limites, tanto para as pessoas, como para os
demais integrantes da natureza terrestre. A desconsideração disso, ou a subordinação
dessa condição complexa à simplificação (subjugação) promovida pela hegemonia de
um único tipo de fronteira (por exemplo, a dos estados nacionais/ países), é que esta-
ria por trás da trágica e constatada situação que levou o ecossistema amazônico a
passar da condição de sumidouro de CO2, para a de emissor desse gás estufa. Urge,
segundo Luciana, pensarmos na complexidade da situação, o que implicaria em uma
consideração mais adequada dos limites e das fronteiras planetárias, reequacionando,
sobretudo, aqueles produzidos pelas sociedades humanas, de modo a respeitar a com-
plexidade e a multiplicidade de todas as fronteiras existentes.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 115

Diversidade, multilateralidade/multinacionalidade, fronteiras e a importância do


espaço amazônico ou dos mananciais de biossociodiversidade, poderiam enfim com-
por o conjunto das palavras-chave que não só resumiriam o debatido até o momento
desta aula que me coube conduzir, como também poderiam ser ideias-força a anun-
ciar o que debateremos na sequência, ou pelo menos a indicar a importância do deba-
te que aqui propomos.
É o que faremos neste capítulo, que de alguma forma transcreve, amplia e atualiza
a abordagem que fizemos na ocasião da edição especial de SMC, nos dois momentos
que a oferecemos, em 2020 e 2021.

4.2 A IMPORTÂNCIA DA POLÍTICA E SUAS ORIGENS REMOTAS


Aqui, o argumento central é que a dimensão política (além das dimensões econô-
mica, social, cultural, antropológica, biológica, física, química etc.) é componente im-
portante da condição e das crises ambientais cultivadas/colhidas e está presente até
onde não parece estar, sobretudo em um mundo globalmente politizado, como vere-
mos, em que a política é o que define o principal mapa que retrata a cartografia deste
mundo. Dimensão política, sentido amplo, e fronteiras (nacionais ou que se vinculem
a quaisquer outros fenômenos que nos permitam visualizar distintos territórios ou
espacialidades em que esses fenômenos se expressam) guardam profundas relações.
Todos esses fenômenos produzem geografias que compõem mosaicos de paisagens
com fronteiras físicas, biológicas, culturais, econômicas, religiosas etc., indicando que
toda a geografia acaba sendo uma geografia de percepção dos limites e das inter-rela-
ções entre as fronteiras definidas pelas espacialidades e territorialidades dos fenôme-
nos.
Partamos então de algumas questões que nos permitirão precisar e ampliar a dis-
cussão do significado dessa ‘dimensão política’.
• Mas, que dimensão é essa?
• O que é política?
• Como ela se expressa?
• Como se materializa no planeta e nas crises?
• Quais são as fronteiras da política?
De início, e para não errar, vamos a um procedimento que é clássico, recorrendo
ao ‘pai da matéria’, – ao dicionário –, extraindo do verbete que nos interessa, as res-
postas a algumas dessas indagações. Aqui, no entanto, e considerando as exigências
do ambiente acadêmico de onde falamos, o ‘clássico’ seria não recorrer a um dicioná-
rio qualquer, mas diretamente àquele de autoria do reconhecido politólogo Norberto
Bobbio, que em seu portentoso Dicionário de Política, organizado por ele e mais dois
parceiros, editado no Brasil pela UNB, define essa expressão. Política, – segundo o
autor –, é termo “derivado do adjetivo originado de pólis (politikós), que significa tudo
116 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

o que se refere à cidade e, consequentemente, o que é urbano, civil, público, e até mes-
mo sociável e social”. (Bobbio, N. et al., 1998, p. 954).
Ainda segundo Bobbio, o “termo se expandiu graças à influência da grande obra
de Aristóteles, intitulada Política”, que, para ele “deve ser considerada como o primei-
ro tratado sobre a natureza, funções e divisão do Estado, e sobre as várias formas de
Governo, com a significação mais comum [p/ Política] de arte ou ciência do Governo,
isto é, de reflexão (...) sobre as coisas da cidade”. (Ibid.)
Como se vê, Bobbio nos apresenta aquela que é considerada a origem mais remota
da ideia de política, ao associá-la com a cidade-estado grega, que, como sabemos, era
o local onde se exerciam os direitos restritos (aos que eram considerados cidadãos).
Nas origens, portanto, o vínculo entre política, poder e restrição de direitos, prevale-
cia. Tanto os que não estavam na cidade, como os que, embora na cidade não eram
seus cidadãos, ficavam fora do alcance da política. Claro que essa concepção lastreada
pela origem remota não é a única que prevaleceu em nosso entendimento do que seja
a política hoje, embora essa associação entre poder, fronteiras de cidadania, ou de
exercício de direitos tenha se mantido, mesmo após a ampliação para além da relação
entre ‘política e cidade-estado’, para alcançar a relação ‘política e estado-país’. Ao lon-
go dos séculos que se sucederam desde essas origens, tais relações só se consolidaram
e se aprimoraram. Parte desses aprimoramentos, como veremos, também se deveu às
resistências oferecidas pelos movimentos daqueles que se perceberam como excluídos
das ações e interesses da política.
De condição vinculada às questões exclusivamente afeitas aos interesses dos cida-
dãos (no grego “polítikoi”) ou da cidadania (também derivado de civitas, cidade em
latim), restritos às “coisas [e aos habitantes livres] da cidade”, às concepções mais mo-
dernas e/ou contemporâneas, séculos de história e inúmeros processos contribuíram
para ampliar e consolidar o conceito de política e as ações que em seu nome se
exercem.
Em um primeiro momento consolidou-se a ideia e a compreensão da ‘política’ (que
em certo sentido prevalece até hoje), seja como campo de reflexões, seja como exercí-
cio de atividades, como aqueles fatos e fenômenos relacionados a quaisquer espaços e
territórios vinculados aos estados nacionais e suas “várias formas de governo”, segun-
do as fronteiras de suas jurisdições.

4.3 DAS ORIGENS MODERNAS ÀS CONTEMPORÂNEAS DA


‘POLÍTICA’
Para compreensão do que seja a política hoje, portanto, seria conveniente partir do
advento do Estado Nacional Moderno e percorrer as muitas revoluções, acontecimen-
tos e novidades interpostas a partir daí. As unidades geopolíticas que se assenhora-
ram do mundo, viabilizando o padrão de acumulação e organização social que igual-
mente dele se assenhorou, determinaram o sentido do que se entendeu e se fez (e em
certa medida continua se fazendo) em nome da política desde então.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 117

Mas quando isso se processou e o mundo tornou-se essa economia-política, como


costumavam denominá-lo alguns dos mais importantes filósofos do século XIX?
A expansão dessa geopolítica fundada nos Estados nacionais está na origem disso
tudo. Essa instituição viabilizou essa economia-política que o mundo se tornou desde
então, como a ele se referia, por exemplo em seus escritos, um dos grandes pensadores
do século XIX, Karl Marx.
Como em outras ocasiões já tivemos a oportunidade de a esse fenômeno nos refe-
rirmos (v. Carvalho 2018 e 2019), a Paz da Westphália, estabelecida em 1648, e seus
acordos, é que pode ser considerada como uma espécie de marco para o advento da
moderna concepção de política. É a partir daí que o reconhecimento dos estatutos de
soberania dos Estados nacionais, surgidos algum tempo antes, consolida-se.

Fonte: Sciences Po-Atelier de Cartographie/Cartotèque.

A construção do chamado ‘mapa-múndi político’, tal qual hoje o conhecemos, tem


a sua origem institucional consagrada a partir da Paz da Westphália. Essa cartografia,
que consolida a imagem do ‘mundo político’, consolida e qualifica também a política
como aquela representação do mundo em que as unidades geopolíticas, os chamados
países, os Estados nacionais territorializados, submetem a tudo e a todos os estatutos
de soberania dos Estados, ou aos acordos internacionais estabelecidos entre eles.
118 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

A menção a essa “paz” é apenas a referência a um marco de ordenamento e de


construção do que passou a ser considerado como o território da política que, ao lon-
go dos últimos séculos, veio sofrendo inúmeros aprimoramentos que outros marcos
poderiam nos lembrar. Das Revoluções Inglesas do mesmo século XVII, às ondas re-
volucionárias dos séculos XIX e XX, passando pelas Revoluções Americana e France-
sa do século XVIII, muitas foram as dimensões que compuseram esses aprimoramen-
tos das instituições que passaram a edificar o Estado nacional moderno, seja na
incorporação dos direitos e legalidades conquistados nos processos de resistência ao
seu domínio, seja na adesão aos estatutos desses edifícios.

Fonte: Sciences Po-Atelier de Cartographie/ Cartotèque.

Se olhamos para o denominado mapa-múndi político hoje (como esse da figura),


o que vemos é a configuração territorial dos cerca de 200 países que compõem o globo
da atualidade e que foram se constituindo ao longo dessa história e dos séculos que a
presidiram. Tamanhos, formas e histórias diversas caracterizam cada uma das unida-
des geopolíticas que vemos nesses mapas-múndi políticos. Mas não há nada, nem
ninguém que não esteja subordinado às determinações dessas fronteiras, seja por
exercício das soberanias de cada país, seja pelos acordos estabelecidos entre eles, que
se apropriaram das dinâmicas físicas e humanas conferindo-lhes nacionalidades,
subjugando-as, ou pretendendo assim proceder, o que, em muitos casos, semeou cri-
ses, encontrou resistências, provocou tragédias e desequilíbrios.
Até muito recentemente, esses países continuam se constituindo e determinando
os direitos de cidadania, quer dizer, os direitos políticos de cada habitante do planeta.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 119

Veja no gráfico a seguir a evolução do número de países nos dois últimos séculos.
Note que a maior parte deles se constituiu na segunda metade do século XX.

Fonte: Sciences Po-Atelier de Cartographie/ Cartotèque.

Em síntese, nesses períodos da história a que estamos nos referindo, o mundo se


organizou geopoliticamente, segundo a proposta de organização geopolítica produzi-
da na Europa, que inclusive foi responsável por nortear o planeta, ou seja, colocá-lo
em uma orientação tributária das pretensões europeias de dominação e ordenação do
espaço terrestre, até mesmo em sua representação. Lembremos que não era inusual a
representação do mundo, antes dos impérios europeus pretenderem submetê-lo, na
forma como a projeção de Marini (vide a seguir), por exemplo, costumava representá-
-lo, com o Sul na parte superior.
120 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

Fonte: http://www.mapas-historicos.com/jeronimo-marini.htm.

A inversão e enquadramento geopolítico do mundo que se passaria a partir dos


séculos XV/XVI, e que foi institucionalizado desde os acontecimentos que se segui-
ram aos acordos da Westphália, como abordarmos, também se fazia legitimar por
uma ideologia denominada por Boaventura S. Santos de “pensamento abissal”, mani-
festada não só nas ações efetivas de subjugação, enquadramento e dominação, mas
nas manifestações das próprias expressões artísticas que buscavam, por exemplo, de-
monizar o universo extra europeu, como bem demonstra uma pintura de época, de-
nominada de ‘O Inferno’, de autor desconhecido, mas feita em alguma data entre 1510
e 1520.

Fonte: Museu Nacional de Arte Antiga- Lisboa.


Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 121

Esse quadro que está exposto no Museu Nacional de Arte Antiga de Portugal, e faz
parte de seu acervo permanente, localizado em Lisboa, é assim descrito na ficha que
o acompanha na própria exposição (e no site do Museu):

A pintura propõe-nos uma imagem medieval do Inferno, inventariando os


suplícios eternos em relação com os pecados capitais (...) Esta diversidade
surge ainda na ligação do demoníaco ao universo extraeuropeu: Lúcifer ves-
te-se com um toucado de penas ameríndias, senta-se numa cadeira africana
e segura uma trompa de marfim de aparência africana [trechos extraídos
do site do Museu, na ficha descritiva do quadro, disponível em http://www.
museudearteantiga.pt/colecoes/pintura-portuguesa/o-inferno].

Na ficha de inventário da obra, a referência à provável identidade do demônio é


ainda mais explícita: “Sentado num trono, o rei dos demónios preside a esta cena ter-
rífica munido de uma enorme trompa e vestido como um índio brasileiro” [http://
www.matriznet.dgpc.pt/MatrizNet/Objectos/ObjectosConsultar.aspx?IdReg=24896].
Com esse tipo de justificativa estava aberto o caminho para o que veio depois. O
processo de (geo)‘politização’ do mundo, que os Estados nacionais (os países) propor-
cionaram, viabilizou boa parte disso, como sabemos.
Em ‘Para além do pensamento abissal’, Boaventura Souza Santos (2007) avalia as
consequências do norteamento que demonizou tudo aquilo que estivesse fora do uni-
verso europeu, consagrando pelo direcionamento e determinação das fronteiras im-
postas, os limites estreitos por onde toda a vida e todas as pessoas deveriam se condu-
zir a partir dessa politização do mundo, segundo os contornos estabelecidos para seus
territórios pelo processo colonial e pós-colonial. Tanto o texto de Boaventura, como a
sua ‘versão poética’, traduzida na música do professor de geografia e rapper Renan
Inquérito, merecem ser consultados e conhecidos. As referências do texto estão na
bibliografia; já o rap de Inquérito está disponível em https://www.youtube.com/wat-
ch?v=AlHnMgu_Hys.
Essa geometrização e consequente apropriação do mundo proporcionada pelo
pensamento abissal e pelas linhas/fronteiras que as cartografias expressam e/ou pro-
jetam, na realidade atropelam e desrespeitam inúmeras outras ‘fronteiras’ e limites
que identificam os diversos fenômenos e fatos das histórias socioculturais e físico-na-
turais que tiveram e têm lugar no devir planetário.
Basta comparar os mapas dos domínios dos Estados nacionais com aqueles que
nos indicam as diversidades e os limites, por exemplo, das fronteiras étnicas, ou das
bacias hidrográficas, ou dos biomas, ou das territorialidades de povos indígenas, ori-
ginários ou tradicionais, para entendermos quão crítico pode ser o resultado dessa
pretendida subordinação da diversidade planetária a um processo de colonização e
imposição de um único modelo de organização territorial, social e econômica, a esta-
122 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

belecer um padrão global de existência em um mundo cujas fronteiras são histórica e


naturalmente diversas, não coincidentes.
Desequilíbrios e crises, genericamente identificadas como ambientais (biocenóti-
cas, ecossistêmicas), ou como histórico-sociais, das religiosas às étnicas, passando por
todo o tipo de gravames identitários, políticos e socioculturais, e em todas as escalas
que observemos (daquelas estabelecidas como internacionais, nacionais, ou como lo-
cais e regionais), serão os resultados colhidos por este tipo de semeadura. E isso, entre
muitas razões, também ocorreu porque em todas essas dimensões, que não se contém,
na arrogância dos pretendidos continentes e de suas subdivisões territoriais, encon-
traremos algum tipo de resistência a essa imposição e enquadramento.
Seja no campo das formulações teóricas, seja nas catástrofes e fatos, envolvendo
processos chamados de físico-naturais, ou de humano-culturais, inúmeros seriam os
exemplos que aqui poderíamos enfileirar para ilustrar tais resistências, que, não raro,
configuraram (re)existências alternativas ao que estava imposto.
No campo das formulações teóricas, encontraremos desde aquelas reflexões que
nos remetem aos pensamentos pós-abissais, ou às ‘ecologias de saberes’, sugeridos
recentemente pelo mencionado Boaventura, como meio de insubordinação aos en-
quadramentos promovidos pelo ‘norteamento’ do mundo, como encontraremos tam-
bém aquelas outras, mais remotamente formuladas, que nos conduzem às exortações
produzidas desde o romantismo alemão, seja por seus protagonistas no século XVIII,
seja pelos diversos pensadores que de alguma maneira elaboraram teorias que nos
lembram as abordagens conectadas, insubordinadas e inconformadas com as frontei-
ras dos estados, das disciplinas e dos consequentes estreitamentos de ação e de per-
cepção que promovem. Do Manifesto de Marx e Engels, ao ‘A terra e a vida’, de F.
Ratzel, passando pelo Kosmos de Humboldt, ou pelo ‘A origem das espécies de Da-
rwin’, entre muitos outros que poderíamos aqui mencionar, há muitas manifestações
que indicam as resistências ao estreitamento e opressão promovidos pela imposição
da ideia e dos limites da política georreferenciada no domínio e subjugação da Terra e
de seu conteúdo, natural ou construído.
E no campo do que poderíamos enumerar para exemplificar os fatos e eventos
práticos desencadeados pelo atropelamento promovido por essa geografia imposta ao
mundo, não seriam poucas as guerras fratricidas, os conflitos étnico-religiosos, os
desastres e tragédias chamados de ambientais ou ‘naturais’ aos quais igualmente aqui
poderíamos nos referir.
Como já nos ensinou um dos autores mencionados, a realidade resulta da intera-
ção entre essas múltiplas dimensões (“o concreto é concreto porque é a síntese de
múltiplas determinações”, afirmou Marx em um de seus famosos escritos). O fato é
que, ao movimento das potências europeias em sua pretensão de dominação do mun-
do e de imposição de um sentido único para sua (geo)política, a resistência a que nos
referimos alargou o próprio conceito de política, ampliando a possibilidade de seu
entendimento. Isso é o que encorajou pensadores atuais, particularmente da América
Latina a revisitarem, inclusive na própria origem do conceito, a sua formulação.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 123

4.4 OUTRA CARTOGRAFIA DO MUNDO POLÍTICO É POSSÍVEL: A


POLÍTICA PARA ALÉM DO ESTADO NACIONAL
Carlos Walter Porto Gonçalves, geógrafo brasileiro, recupera um possível outro
significado para a ideia de política, ao indicar que mesmo tendo como origem a Pólis,
este não necessariamente estava determinado a ser um conceito de ação restrita aos
que desfrutavam o poder e os direitos de cidadania em uma cidade-estado grega, pois,
segundo Gonçalves, “pólis era o nome originalmente dado ao muro, ao limite entre
cidade e campo”. Só posteriormente, ainda segundo o autor, é que “se passou a desig-
nar pólis ao que estava contido nos muros, nos limites” (Gonçalves e Fernandes, 2007,
p. 19-20); – da cidade, acrescentaríamos. Daí a legitimidade de se ampliar o conceito
de política, como o fez Marcos Sorrentino, para algo menos subordinado ao poder
institucionalizado e territorializado do estado, e ampliado para o exercício e a práxis
de “regulação dialética sociedade-estado que favoreça a pluralidade e a igualdade so-
cial...”, estabelecendo a “pluralidade como condição da Política”, que teria por função,
“a conciliação entre pluralidade e igualdade” (Sorrentino et al., 2005, p. 288).
A redução da política, imposta pela geopolítica dos Estados Nacionais e dos privi-
légios de cidadania que essa realidade indica e proporciona aos que em seus interiores
estão contidos por vínculos “naturais”, amplia-se, dessa forma, tanto para abrigar o
alargamento do conceito e do exercício da política, produzido pelas próprias resistên-
cias ao exclusivismo institucional dos estados, de suas instituições e de suas regras,
como para incluir os movimentos e as dinâmicas que tensionam os limites desses
‘Estados’, de suas ‘instituições’ e de suas regras. Política deixa de ser assim, apenas
obediência às normas estabelecidas e/ou hegemônicas – subjugação e enquadramento
aos limites da “cidade”, ou do “estado”, ou da “nacionalidade” –, e passa a ser também,
com a legitimidade oferecida por uma nova arqueologia reconhecida de seu termo, a
consideração, o questionamento e a tensão exercida nos próprios limites e/ou ‘frontei-
ras’ que estabelecem tais enquadramentos. Transgredir os limites, ou propor e traçar
outros, passam a ser atitudes de equivalência e legitimidade tão reconhecidamente
políticas quanto o respeito e o enquadramento pretendem ser.
As realidades políticas, dessa forma, passam a ser resultantes das múltiplas deter-
minações que tanto os percursos institucionais, como os não institucionais, ou que
tanto os enquadramentos, como as transgressões, promovam, de acordo com os inte-
resses e com a correlação das forças envolvidas nos tensionamentos dos limites dessas
determinações.
O mundo de hoje é prenhe de exemplos nesse sentido, que são bastante ilustrativos
do que estamos observando, particularmente neste “canto” subalternizado e latino-a-
mericano onde nos encontramos.
Por aqui estão sendo gestadas novidades tão ou mais importantes do que aquelas
que se produziram em séculos passados, como as promovidas pela Paz da Westphália
nos séculos XV e XVI e que efetivamente desencadearam a (geo)politização do mun-
do, – norteada – segundo os padrões ditados a partir da Europa.
124 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

Da renomeação da América, rebatizada como Abya Yala, como assim denomina-


vam o nosso continente os Kuna, que habitavam os territórios que hoje correspondem
à Colômbia e ao Panamá, muito antes das fronteiras da geopolítica cindirem suas
terras em dois países, às novas organizações, instituições e constituições, já consagra-
das, ou em processo de institucionalização, muitas são as novidades para as quais
deveríamos prestar a nossa atenção. Tais novidades indicam promissores e positivos
impactos para o futuro socioambiental do planeta, a começar pelo que produzem nas
Américas, quer dizer em Abya Yala.
Essa denominação passou a ser adotada pelos povos originários da América, a
partir das diversas Cumbres por eles realizadas, com o intuito de “construir um sen-
timento de unidade e pertencimento” entre todos eles e seus territórios, conforme a
Enciclopédia Latino Americana, em verbete escrito pelo mencionado Carlos Walter
Porto Gonçalves. Segundo Gonçalves (2006), a expressão consagrou-se entre as repre-
sentações dos povos originários particularmente em duas dessas Cumbres: a ocorrida
em Quito (Equador) em 2004 e a ocorrida em Iximche (Guatemala) em 2007 (respec-
tivamente II e III Cumbres Continentales de los Pueblos y Nacionalidades Indígenas de
Abya Yala). Nesses encontros, os participantes, a partir de 2007, não só reafirmam as
autoconvocações como Abya Yala, mas constituem uma “Coordenação Continental
das Nacionalidades e Povos Indígenas de Abya Yala”, assim anunciada na Declaração
de Iximche:

Nos constituímos na Coordenação Continental das Nacionalidades e Povos


Indígenas de Abya Yala, como espaço permanente de enlace e intercâmbio,
onde possam convergir experiências e propostas, para que juntos enfrentemos
as políticas de globalização neoliberal e lutemos pela liberação definitiva de
nossos povos irmãos, da mãe terra, do território, da água e de todo patri-
mônio natural para viver bem (Declaração de Iximche, 10 de abril de 2007,
disponível em https://cimi.org.br/2007/04/25906/).

Nessa mesma Declaração indica-se também o apoio às muitas novidades, em ter-


mos de ordenamento geopolítico, que por aqui já vinham se gestando, exortando por:
“Consolidar os processos iniciados para fortalecer a refundação dos Estados – nação
e a construção dos Estados plurinacionais e sociedades interculturais, através das As-
sembleias Constituintes com representação direta dos povos e nacionalidades indíge-
nas” (ibid.).
Para os que estamos acompanhando os acontecimentos que tiveram lugar nos
anos finais do século XX e nessas décadas iniciais do XXI, é possível detectar em inú-
meros países e regiões da América, fatos e acontecimentos que se enquadrariam no
campo dessas novidades, a merecerem figurar no foco das atenções de quem esteja
interessado em alterar o curso de uma história de restrições e de enquadramento
como aquela que tem prevalecido.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 125

Há inúmeros exemplos de atitudes e formulações institucionais ou não, entre paí-


ses latino-americanos, já indicando passos de aprimoramento que nos conduziriam
para além dos enquadramentos e das reduções promovidas pelos Estados Nacionais,
pelos contratos apenas sociais e pelos ordenamentos socioculturais, exclusivamente
europeus, que lhes dão suporte, incluindo os saberes e as epistemologias que os justi-
ficam.
O Estado plurinacional, por exemplo, é uma dessas ousadias, das mais importan-
tes, e já em curso em diversos países, que deve merecer a nossa atenção. O princípio
do respeito à diversidade cultural, nacional e étnica, em oposição ao princípio da so-
berania e hegemonização de uma cultura sobre as demais, repercute na integridade
dos territórios e em suas dinâmicas socioambientais. O mesmo se passa com as pers-
pectivas do ‘Bem Viver’ e dos ‘Movimentos Decoloniais’ que dão suporte e lastro para
as novas institucionalidades indicadas pelos povos originários e por aqueles que reco-
nhecem e apoiam o processo civilizatório que advogam.

4.5 NOVO MUNDO, NOVA POLÍTICA: DESNORTEADA, PLURINA-


CIONAL, COM NOVOS CONTRATOS E DIREITOS (SOCAIS E NATU-
RAIS)
Nos aparatos constitucionais de alguns países da América Latina, como Equador e
Bolívia, a perspectiva do Bien Vivir já está incorporada, assim como a identidade plu-
rinacional foi por eles consagrada em suas novas constituições promulgadas em 2008
e 2009, respectivamente. Trata-se, sem dúvida, de um pioneirismo que aponta para
novos modelos de organização da geografia política do mundo.
Já em outros países, mesmo que a identidade plurinacional ainda não tenha sido
consagrada, como é o caso da Colômbia, a consideração da natureza e de seus compo-
nentes como “sujeitos de direitos”, na Carta de 1991, denominada “Constituición Eco-
lógica”, ou nas diversas sentenças expedidas pela Corte Constitucional daquele país,
indicam a inclusão do respeito às epistemologias e cosmologias dos povos originários,
ao adotar os novos horizontes propostos pelas referências de um ‘contrato’ que não
seja apenas social, mas igualmente ‘natural’. Esse foi o caso de uma famosa sentença
expedida pela Corte Constitucional da Colômbia, – T-622 de 2016 (https://redjusticia-
ambientalcolombia.files.wordpress.com/2017/05/sentencia-t-622-de-2016-rio-atrato.
pdf) –, que, demandada por diversas associações de populações originárias e tradicio-
nais contra o governo, apurou as responsabilidades pela poluição e contaminação do
Rio Atrato, um dos mais importantes do país. Nessa sentença a Corte colombiana
menciona as jurisprudências consagradas em sentenças anteriores, fundadas na
Constituição Ecológica da Colômbia (mas apoiando-se também nas Constituições de
Equador e Bolívia), e considerando o princípio de que “la naturaleza no se concibe
únicamente como el ambiente y entorno de los seres humanos, sino también como um
sujeto com derechos propios, que, como tal, deben ser protegidos y garantizados”, o
Rio Atrato é declarado como “sujeito de direitos”.
126 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

No Brasil, em 1988, promulgou-se a chamada “Constituição Cidadã”, que institu-


cionalizou o final da Ditadura Militar e consagrou muitos direitos sociais e culturais,
incluindo o de povos indígenas (o atual debate e julgamento, em curso no ano de 2021
e 2022, sobre o reconhecimento ou não de um ‘Marco Temporal’ para suas territoria-
lidades, pode consagrar esses direitos), dedicando um capítulo especial à questão am-
biental, internacionalmente reconhecido como avançado. Porém, nos países latino-a-
mericanos que estamos mencionando, deu-se um passo a mais, ampliando esses
“direitos de cidadania” a todos os demais elementos constituintes da natureza. Estes,
adotaram em seus textos constitucionais e nas sentenças expedidas por suas cortes, o
novo enfoque jurídico dos ‘direitos bioculturais’, que tem como premissa central o
reconhecimento da unidade e interdependência entre natureza e espécie humana, que
produz como consequência “un nuevo entendimiento socio-juridico en el que la natu-
raleza y su entorno deben ser tomados en serio y com plenitude de derechos. Esto es,
como sujeto de derechos” (ibid, p. 137). Esse novo enfoque está particularmente vin-
culado ao reconhecimento “dos vínculos dos modos de vida dos povos indígenas,
tribais e das comunidades étnicas com os territórios e a utilização, conservação e ad-
ministração de seus recursos naturais” (ibid, p. 18). Das consequências práticas dessa
abordagem, destaca-se o seguinte:

(...) los elementos centrales de este enfoque establecen uma vinculación intrín-
seca entre naturaleza y cultura, y la diversidade de la espécie humana como
parte de la naturaleza y manifestación de múltiples formas de vida. Desde
esta pespectiva, la conservación de la biodiversidade conlleva necesariamente
a la preservación y protección de los modos de vida y culturas que interactúan
com ella (ibid., p. 133).

Essas perspectivas encontram-se agora em um movimento de ascendente consa-


gração, tanto nos horizontes dos aparatos institucionais dos países mencionados, e
também em seus movimentos sociais (que souberam, por exemplo, reverter um risco
de retrocesso ocorrido na Bolívia, em 2019, corrigido em 2020), como em países que
recentemente sofreram mudanças importantes na condução dos seus processos, ainda
em curso de consolidação. É o caso do Peru e particularmente do Chile, com as novas
eleições presidenciais ocorridas em 2021 e início de 2022, envolvidos com a elabora-
ção de novas cartas constitucionais, em processos constituintes que, como no caso do
Chile, foi presidido em grande parte por liderança Mapuche, que se declarava tributá-
ria das perspectivas do Bien Vivir e do estado plurinacional. Em seu discurso de pos-
se, como presidenta da Convenção Constitucional do Chile em julho de 2021, decla-
rou Elisa Loncón:

Esta Convenção, que hoje me toca presidir, transformará o Chile em um Chi-


le plurinacional, em um Chile intercultural, em um Chile que não atenta
contra os direitos das mulheres, os direitos das cuidadoras. Esta Convenção
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 127

transformará o Chile em um Chile que cuida da Mãe Terra, em um Chile que


limpa as águas, em um Chile livre de toda dominação.

Temos que ampliar a democracia, temos que ampliar a participação, temos


que convocar até o último canto do Chile para ser parte deste processo. A
Convenção deve ser um processo participativo e transparente, que possam
nos ver desde o último canto de nosso território e nos escutar em nossas lín-
guas originárias que estão postergadas durante tudo o que foi o Estado-Nação
chileno. Pelos direitos de nossas nações originárias, pelos direitos das regiões,
pelos direitos da Mãe Terra, pelos direitos da água, pelos direitos das mulheres
e pelos direitos de nossas crianças [Disponível em https://www.ihu.unisinos.
br/78-noticias/611130-chile-discurso-completo-de-elisa-loncon-mulher-ma-
puche-presidente-da-convencao-constitucional).

Essas “originalidades” em curso nos países destacados – direitos da natureza, na-


tureza como sujeito de direitos, plurinacionalidade –, indicam outras referências para
a teoria e a ação políticas, ampliando os espaços e os direitos às ações plurais e estabe-
lecem um outro conceito para a política, vista também como a arte e a possibilidade
de construir o Bien Vivir, e não apenas como a forma de subjugar povos e postergar a
escuta “de nossas línguas [e saberes] originários”, como assinalou a líder Mapuche na
presidência da Convenção Constitucional do Chile.
Interessante constatar que Estado Nacional e Bien Vivir são ideias contemporâne-
as, como nos indica Anibal Quijano, dando-nos a medida da oposição e do potencial
de resistência que o segundo pode oferecer ao primeiro, sobretudo quando considera-
mos as dimensões que lhe dão sustentação ou que nessa ideia, – Bien Vivir – apoiam-
-se. Já vimos que o Estado Nacional moderno é um advento do século XVII e, segun-
do Quijano, é desse mesmo século a aparição da formulação indígena que se ofereceu
como resistência à colonialidade que estava se consolidando:

“Bien Vivir” y “Buen Vivir”, son los términos más difundidos en el debate del
nuevo movimiento de la sociedad, sobre todo de la población indigenizada
en América Latina, hacia una existencia social diferente de la que nos ha
impuesto la Colonialidad del Poder. “Bien Vivir” es, probablemente, la for-
mulación más antigua en la resistencia “indígena” contra la Colonialidad del
Poder. Fue, notablemente, acuñada en el virreinato del Perú, por nada me-
nos que Guamán Poma de Ayala, aproximadamente en 1615, en su Nueva
Crónica y buen gobierno. Carolina Ortiz Fernández es la primera en haber
llamado la atención sobre ese histórico hecho (Quijano, 2014, p. 847).
128 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

Não há dúvida que o processo lastreado nos Estados Nacionais ‘politizou’ o mundo
e viabilizou a economia-política que dele se assenhorou e cujos resultados podemos
colher hoje nas paisagens de degradação socioambiental que igualmente se espraia-
ram pelo mundo. Porém, a resistência dos povos indigenizados, inspirados nas pers-
pectivas do Bien Vivir, não cessou de se fazer presente, como nos indica essa contem-
poraneidade, constatada por Quijano, entre as duas perspectivas de ordenamento do
mundo e dos processos civilizatórios dos quais são tributários. E não só as recentes
conquistas e as novas propostas que mencionamos revelam isso e coroam um longo
processo de resistência, mas também a realidade das paisagens onde predominam as
territorialidades dos povos originários e tradicionais, quando confrontada com aque-
las de destruição, ilustram bastante bem isso. Em um certo sentido, particularmente
o da saúde socioambiental do planeta, esses refúgios de resistência não deixam de
estampar sua eficácia no mapa do mundo.
Basta comparar os mapas seguintes para constatar o que se diz.

Fonte: https://www.ambientebrasil.com.br/ G1/ https://www.sosma.org.br/.

Em um mapa, a condição do bioma amazônico na atualidade, que praticamente


segue sendo a mesma de condições originais (com uma perda aproximada de 20% da
cobertura original), apesar de todos os impactos sofridos. Em outro, as condições
atuais e as originais da mata atlântica em território brasileiro (restam pouco mais de
10% da cobertura original).
Certamente, muitas são as razões e os fatos que explicam essas diferenças compa-
rativas. Dentre esses, seguramente deve figurar a plurinacionalidade presente na re-
gião amazônica e a resistência oferecida à sua destruição pelas mais de 300 nações
indígenas que lá resistem com suas cosmologias e modos diversos de vida.
Modelos civilizacionais distintos, ordens políticas e sociais diversas podem produ-
zir paisagens de degradação, ou manter e produzir o principal manancial de sociobio-
diversidade do planeta. Nosso futuro depende do caminho e dos exemplos que esco-
lhermos seguir, pois a eficácia de um de outro já está mais do que comprovada.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 129

4.6 LATINOAMERICA: LA TIERRA NO SE VENDE/ AQUI SE RESPI-


RA LUCHA
Essa abordagem, em seu formato original que aqui nos propusemos a transcrever,
ampliar e atualizar, concluía-se com a indicação da música do Calle 13, Latinoameri-
ca, cujo videoclipe incorporamos à videoaula que foi por todos assistida e debatida.
Sugerimos aos que nos leem agora, que façam o mesmo. Linda música, lindo vídeo!
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=DkFJE8ZdeG8.
Parte da letra a reproduzimos aqui. Com ela se pode ter uma boa amostra dos sen-
síveis e belos ensinamentos sobre a América Latina que esses músicos porto-rique-
nhos nos proporcionam.

Soy, soy lo que dejaron


Soy toda la sobra de lo que te robaron
Un pueblo escondido en la cima
Mi piel es de cuero, por eso aguanta cualquier clima
Soy una fábrica de humo
Mano de obra campesina para tu consumo
Frente de frío en el medio del verano
El amor en los tiempos del cólera, ¡mi hermano!
Soy el sol que nace y el día que muere
(...)
Soy la fotografía de un desaparecido
La sangre dentro de tus venas
Soy un pedazo de tierra que vale la pena
(...)
Soy américa Latina, un pueblo sin piernas, pero que camina
¡Oye!
Tú no puedes comprar el viento
Tú no puedes comprar el sol
Tú no puedes comprar la lluvia
Tú no puedes comprar el calor
(...)
Tengo los lagos, tengo los ríos
Tengo mis dientes pa’ cuando me sonrio
La nieve que maquilla mis montañas
Tengo el sol que me seca y la lluvia que me baña
(...)
130 Plurinacionalismo, Bien Vivir e movimentos decoloniais

Todo lo que necesito, tengo a mis pulmones respirando azul clarito


(...)
Una viña repleta de uvas
Un cañaveral bajo el sol en Cuba
Soy el mar Caribe que vigila las casitas
(...)
La tierra no se vende
Trabajo bruto, pero con orgullo
Aquí se comparte, lo mío es tuyo
Este pueblo no se ahoga con marullo
Y se derrumba yo lo reconstruyo
Tampoco pestañeo cuando te miro
Para que te recuerde de mi apellido
La operación Condor invadiendo mi nido
Perdono pero nunca olvido
¡Oye!
Vamos caminando
Aquí se respira lucha
Vamos caminando
Yo canto porque se escucha
Vamos dibujando el camino
Vamos caminando
Aquí estamos de pie
¡Que viva la América!
No puedes comprar mi vida
(Calle 13, Latinoamerica, 2010)

REFERÊNCIAS
BOBBIO, N. et al. Dicionário de política. Brasília: Editora Universidade de Brasília,
1998.
CALLE 13 [Rafael Ignacio Arcaute / Eduardo Cabra / René Perez]. Latinoamerica,
2010. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DkFJE8Z-
deG8.
CARVALHO, M. B. Política: significados restritos, ampliados e exemplos latino ameri-
canos. Crítica Urbana, Nº 3, Noviembre, 2018, p. 9-14. Número 3, disponível
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 131

em: http://criticaurbana.com/politica-significados-restritos-e-ampliados-e-
-exemplos-latino-americanos.
CARVALHO, M. B. O renascimento da ecopolítica na América Latina. Memórias do
XVII Encuentro de geógrafos de América Latina, Quito, Equador, 2019.
GONÇALVES, C. W. P. Abya Yala http://latinoamericana.wiki.br/verbetes/a/abya-yala
in: Enciclopédia Latino Americana. São Paulo: Boitempo, 2006, disponível
em: http://latinoamericana.wiki.br/.
GONÇALVES, C. W. P. e FERNANDES B. M. Josué de Castro, Vida e obra. São Paulo:
Ed. Expressão Popular, 2007.
QUIJANO, A. Cuestiones y horizontes: de la dependencia histórico-estructural a la
colonialidad/descolonialidad del poder. – 1a ed. – Buenos Aires: CLACSO,
2014.
SORRENTINO, M. et al. Educação ambiental como política pública. In: Educação e
Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 2, p. 285-299, maio/ago 2005.
SOUZA SANTOS, B. Para além do pensamento abissal. Das linhas globais a uma eco-
logia dos saberes. In: Novos Estudos CEBRAP, 79, Novembro 2007, p. 71-94.
CAPÍTULO 5
Consumo e resíduos: práticas cotidianas
no contexto da pandemia de covid-19

Sylmara Gonçalves Dias


Camila Sasahara
Leticia Stevanato Rodrigues

5.1 INTRODUÇÃO
Este capítulo tem o objetivo de discutir as relações entre consumo e resíduos em
torno da problemática do plástico, considerando o contexto pandêmico da covid-19.
Escolhas de consumo envolvem convenções de normalidade e estão relacionadas a
práticas cotidianas de reprodução social. Resíduos resultam de processos e originam,
ou podem originar, novos processos. É necessário, portanto, um aprofundamento na
compreensão dos processos sociais relacionados, evitando análises simplistas e nor-
mativas. Nesse sentido, não cabe fragmentar o pensamento, isolando o “consumo” e o
“lixo” em instantâneos desconectados da cultura e da vida social. Este capítulo convi-
da a reflexões sobre:
• os impactos sociais, econômicos, políticos, culturais, legais e ambientais do con-
sumo e da geração de resíduos;
134 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

• os limites da relação entre consumo, cidadania e participação política; justiça


ambiental, desigualdades; e
• possíveis consequências das crises socioambientais, econômica e sanitária no
contexto de Sociedade e Meio Ambiente.
Por outro lado, a pandemia de covid-19 alterou a dinâmica cotidiana de grande
parte da população no mundo, forçando diversos países a adotarem o distanciamento
social ou lockdown. Nessa condição se estabeleceu preocupação em relação aos riscos
de contaminação associados ao gerenciamento dos resíduos sólidos, especialmente
pelo aumento de consumo de materiais descartáveis. Desse modo, a esfera doméstica
tornou-se central, o que exige uma compreensão mais cuidadosa sobre as práticas
cotidianas de abastecimento, usufruto de bens e geração de resíduos sólidos urbanos.
No caso brasileiro, as ações governamentais emergenciais têm revelado disputa de
ideias e interesses, cabendo destacar a importância da adoção de medidas coordena-
das e adequadas para a gestão de resíduos durante a pandemia. Por outro lado, o au-
mento do consumo e da geração de resíduos sólidos têm sido apontados como causa
de graves problemas sociais e ambientais no mundo contemporâneo.
O capítulo está organizado em cinco eixos. O primeiro eixo contextualiza como a
humanidade chegou ao estágio atual de degradação ambiental. O segundo eixo abor-
da quais vestígios estamos deixando em nossa era (o Antropoceno), trabalhando a
problemática e as conexões e consequências do consumo e do descarte do plástico
como um vestígio reconhecido pela literatura acadêmica como uma marca do Antro-
poceno. No terceiro eixo são apresentadas as contradições, avanços e retrocessos em
torno dessa problemática para que, no quarto momento deste capítulo, sejam feitas
reflexões sobre o que está por vir e o que fazer frente aos enormes desafios que a pro-
blemática de produção, consumo e descarte provoca nos tempos atuais. Por fim, o
quinto eixo apresenta algumas reflexões decorrentes das abordagens desenvolvidas
nos outros eixos.

5.2 COMO CHEGAMOS AO ANTROPOCENO?


Para responder essa pergunta, é preciso situar historicamente a presença da huma-
nidade em nosso planeta e os efeitos desencadeados por nossas ações. A Terra possui,
aproximadamente, 4,5 bilhões de anos e a presença do ser humano ocorreu nos últi-
mos 200 mil anos, período muito recente dentro desse marco temporal (MCDOU-
GALL; BROWN; FLEAGLE, 2005; VIDAL et al., 2022). Com a Revolução Industrial,
a relação da humanidade com os recursos naturais é modificada, a natureza começa a
ser vista como um recurso de produção e há uma crença de que a economia pode,
ilimitadamente, avançar sobre esses recursos. Mas essa transformação revela uma
grande contradição, porque esses recursos são limitados. Como um modelo econômi-
co, que é ávido por recursos dessa natureza, pode continuar sua curva ascendente em
uma realidade de recursos finitos?
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 135

Especialmente a partir da segunda metade do século XX, após a Segunda Guerra


Mundial, o avanço econômico sobre os recursos naturais tem crescido exponencial-
mente, momento que ficou conhecido como a “grande aceleração” (ARTAXO, 2014;
STEFFEN et al., 2015). O que também é denominado por Karl Polanyi (1944/2021)
como a “grande transformação”.1 Esse momento trouxe uma grande alteração na es-
cala de produção, consumo e descarte e o aumento exponencial de geração de gases de
efeito estufa na atmosfera (como o dióxido de carbono e o metano) (STEFFEN et al.,
2015). Após o final do século XX, essas transformações têm ganhado amplitudes in-
sustentáveis, levando cientistas a definirem que a humanidade possui efetivamente
força para alterar a geologia deste planeta, o que justificaria a denominação de uma
nova época, denominada Antropoceno (ARTAXO, 2014; STEFFEN et al., 2015).
O Antropoceno2 traz enormes desafios temporais e espaciais para a humanidade,
com causas e consequências multidimensionais para a nossa presença e sobrevivência
neste planeta, expressadas pelo avanço sobre os limites planetários (Capítulo 2). O
modelo econômico, que hoje contorna as nossas vidas, é um marco histórico estrutu-
ral dos rumos que a humanidade tem seguido. Esse modelo é ávido por recursos que
são retirados da natureza, processados como insumos de produção e fartamente
amontoados no final da linha de produção, consumo e descarte. Essa forma de produ-
zir e consumir se funda no modelo mental de “retirar” recursos da natureza, transfor-
má-los em produtos e depois jogá-los “fora”, gerando montanhas de materiais descar-
tados e de situações que ultrapassam os limites de regeneração de nosso planeta
(Capítulo 3).
1 A “grande transformação” é a obra mais importante do filósofo e historiador Karl Polanyi. Publicada
em 1944, trata das convulsões sociais e políticas que ocorreram na Inglaterra durante a ascensão da
economia de mercado. Karl Polanyi combina economia, história, antropologia e sociologia, descreve a
formação (no século XVIII), o desenvolvimento (no século XIX) e o colapso (na primeira metade do
século XX) de um projeto de civilização construído em torno de quatro pilares: o mercado autorregu-
lado, o padrão-ouro, o Estado liberal e o balanço de poder entre as potências do continente europeu. A
produção e a distribuição de bens materiais sempre existiram enraizadas em relações de natureza não
econômica. Com a “grande transformação”, os elementos mercantis, que existiam há milênios, foram
articulados em um domínio independente, “desenraizado” das demais instituições sociais, e absorve-
ram para dentro de si a força de trabalho e a terra – ou seja, o homem e a natureza –, fato inédito na
história. Tudo virou mercadoria. “Em vez de a economia estar embutida nas relações sociais, são as
relações sociais que estão embutidas no sistema econômico” (POLANYI, 2021, p. 77).
2 Há autores que contrapõem a concepção de Antropoceno e o início de seu registro histórico a partir da
Revolução Industrial, tal como argumenta o geógrafo e historiador Jason W. Moore. Segundo Jason, é
necessário compreender a crise ambiental a partir do modelo hegemônico de produção capitalista que
tem levado a humanidade ao limite geofísico e biológico de exploração da natureza. Nesse sentido, no
lugar de “Antropoceno” o autor propõe o conceito de “Capitaloceno”. Com base em teóricos latino-a-
mericanos, como Aníbal Quijano e Enrique Dussel, o autor pontua que a origem do Capitaloceno é
mais bem compreendida após o período de conquista de América, que ocorreu no ano de 1492, em
que as diferentes formas de exploração da natureza e de trabalho (incluindo a escravidão) permitiram
a emergência da Revolução Industrial na Europa e a crise ambiental e climática que a humanidade
se encontra. Para aprofundar a leitura sobre o pensamento de Jason Moore, acesse a apresentação do
livro “La trama de la vida en los umbrales del Capitaloceno. El pensamiento de Jason W. Moore” em:
https://youtu.be/5lqQgoL8-wM.
136 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

Esse contexto, que cerca nossa realidade em diferentes partes do mundo, tem gera-
do consequências e impactos tratados nos capítulos anteriores, como: perda da biodi-
versidade (Capítulos 1 e 2), mudanças climáticas (Capítulo 3), crise hídrica e poluição
da água (Capítulo 6), dentre outros. Conforme tem sido debatido pelas ciências há
algumas décadas, a ação humana é a principal força para a produção dessas consequ-
ências e seus vestígios têm sido reforçados e comprovados nos relatórios do Painel
Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), especialmente nos anos de
2021/2022.3
Estudos como o de Steffen et al. (2018) e de Rockström et al. (2009) estimam, de
forma mais precisa, os limites planetários e as consequências da ação humana sobre a
capacidade de regeneração de nosso planeta (Capítulos 2 e 3). A grande aceleração
traz consequências sistêmicas, especialmente, por causa da escala e do tamanho da
nossa produção, consumo e descarte em massa. Isso tem ameaçado todas as formas de
vida no planeta, o que nos leva a considerar que a grande aceleração coloca o sistema
Terra para além dos seus limites naturais. Nosso modo de produção é de embate, de
guerra declarada à natureza.
Paradoxalmente, esse modo de produção seduz ao ofuscar as relações humanas
com os rastros de devastações sobre a natureza, principalmente, porque as cidades e
as zonas onde estas devastações acontecem acabam ficando muito distantes. Até mes-
mo as pessoas que vivem em condições de trabalho precárias e degradantes se sentem
convidadas para esse “banquete” (COSTA, 2019). A questão é tão severa que há um
certo deslumbramento com a aquisição de bens de consumo descartáveis que se tor-
nam um sonho, um fetiche que tira a lucidez do caminho linear da produção, consu-
mo e descarte das coisas que compramos, usamos e descartamos. Essa necessidade,
muitas vezes, é falseada, artificial, alimentada por uma enorme indústria da comuni-
cação e financeira que torna o crédito barato para a aquisição de bens considerados de
“primeira necessidade” (BAUMAN, 2008, 2011; LIPOVETSKY, 2007). Esse movi-
mento leva a humanidade a louvar acriticamente o crescimento econômico ilimitado
e a impulsionar as disputas pela riqueza econômica e financeira (traduzida pelo Pro-
duto Interno Bruto (PIB) dos países), acreditando que o caminho está puramente no
crescimento do PIB (GORZ, 2005).
Essas contradições possuem alguns fatores que se relacionam com o que denomi-
namos por globalização, ou seja, a imposição e expansão do modelo universal de pro-
dução e pensamento moderno (ALIMONDA, 2011). A expansão na escala planetária
das cadeias produtivas (baseadas na produção-consumo-descarte) provocaram uma
ruptura entre os processos de produção e descarte degradantes e os locais de consumo
de fetiche/ilusão. Essa ruptura tem ofuscado a relação dos pontos de inflexão deste
modelo (MARTÍNEZ-ALIER, 2014).
A obra “Veias abertas da América Latina” do jornalista e escritor uruguaio, Eduar-
do Galeano, mostra a digressão sobre o outro lado do planeta, submetido à exploração
constante em condições extremamente degradantes, das quais, acadêmicos, como o
Professor Robert Bullard, denomina como “zonas de sacrifício” (BULLARD, 2013).
3 Os relatórios do IPCC podem ser acessados neste link: https://www.ipcc.ch/ar6-syr/.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 137

Esses locais foram representados por Galeano (2020) em sua obra pela realidade da
América Latina, mas que também está presente em África, Oriente Médio, Ásia e até
mesmo nos Estados Unidos. A concentração da produção mundial, especialmente na
China, que separa grande parte da produção dos centros consumidores ricos, mostra
essa distância das zonas de devastação e poluição de toda a ordem. O fetiche do con-
sumo ofusca as conexões entre os centros consumidores, como a cidade de São Paulo,
com o desmatamento e a mineração em outras regiões do Brasil. Sempre são “eles”,
nunca somos “nós”.
Essa lógica de separar o paraíso de consumo, de um lado, e as zonas de sacrifício,
de outro, é reproduzida em escalas de países, dos quais os maiores consumidores de
recursos são também os maiores descartadores de resíduos e poluentes de ar, solo e
água. Está presente também entre os países considerados “ricos” e os países conside-
rados “pobres”, marcados por intensas relações de desigualdades (COSTA, 2019;
MARTINEZ-ALIER, 2014). As próprias cidades também representam esse abismo: a
cidade rica e as bordas da cidade, o centro e a periferia (MARICATO, 2015).
Essas relações de desigualdade social e de degradação ambiental é caracterizada
pelo conceito de racismo ambiental que foi criado por meio da luta de movimentos
sociais contra o despejo de resíduos sólidos tóxicos nos locais ocupados majoritaria-
mente por populações negras (BULLARD, 2013) Em tempos de capitalismo global, o
conceito de racismo ambiental se alarga para todas as relações de produção-consumo-
-descarte que unem as vitrines sedutoras de Paris, Nova Iorque, Londres, entre outras
capitais, com as zonas de sacrifício que convivem umbilicalmente com esta realidade.
Essa relação está presente em todas as cidades, sejam elas de países ricos ou de países
pobres.
O racismo ambiental, em um sentido ampliado como “injustiça ambiental”, auxi-
lia a compreender a vulnerabilidade e a visibilidade de diversos grupos discriminados
e minoritários: mulheres, pessoas LGBTQIA+, povos originários e indígenas, refugia-
dos e imigrantes, latinos e asiáticos (PACHECO; FAUSTINO, 2013; SILVA, 2012). Em
zonas de sacrifício, os grupos marcados por traços físicos, culturais, políticos e econô-
micos que se distanciam do modelo branco, patriarcal, colonial e burguês, recebem,
de forma desproporcional, grande parte dos efeitos da degradação ambiental.
Esse modelo de pensamento e produção-consumo-descarte que foi historicamente
imposto em nosso cotidiano está representado na Figura 5.1, que mostra os diversos
movimentos de mobilização, resistência e resiliência que a luta por justiça ambiental
tem vinculado, desafiando o colonialismo tóxico, o racismo ambiental e o comércio
internacional de toda ordem de toxicidade neste planeta.
138 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

Figura 5.1 – Mapa com a localização dos movimentos por justiça ambiental nos diferentes países do
mundo. Cada ponto destacado no mapa reflete a uma iniciativa de mobilização por justiça ambiental
em curso e as variações de cores remetem à categoria específica da área que envolve o movimento,
como, por exemplo: gestão de resíduos, gestão da água etc. Para saber mais sobre o Atlas Global de
Justiça Ambiental, acesse: https://ejatlas.org/.

A Figura 5.1 apresenta as zonas de sacrifícios que envolvem conflitos ambientais


que foram identificados e mapeados pelo grupo de pesquisa do Professor Joan Marti-
nez-Alier, da Universidade Autônoma de Barcelona, Espanha. O Atlas Global de Jus-
tiça Ambiental possibilita conectar essa cegueira do consumo estampada nas vitrines
das lojas, que ofusca os rastros de seus produtos e resíduos deixados pelo caminho da
produção até o descarte (COSTA, 2019). Nesse sentido, o atlas tem a virtude de trazer
luz para esses pontos que estão ofuscados por essa cortina de fumaça de movimentos
que não se conectam: produção, consumo e descarte.

5.3 QUE VESTÍGIOS ESTAMOS DEIXANDO NESSA ERA?


Diante desse contexto, cabe refletir sobre os vestígios que a humanidade está dei-
xando durante o Antropoceno. Autores como Zalasiewicz et al. (2016) indicam que o
plástico pode ser um grande marcador da ação humana sobre o planeta Terra. O plás-
tico é um símbolo da era moderna, da conveniência, das facilidades que marcaram o
momento da grande aceleração. Mas, de onde ele vem? Para onde vão os inúmeros
materiais plásticos que a humanidade produz? A Figura 5.2 apresenta a quantidade de
plástico produzido de 1950 a 2020.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 139

Fonte: Adaptado de Zalasiewicz et al. (2016).


Figura 5.2 – Gráfico que mostra a curva ascendente de produção de plástico a partir da década de
1950 até 2020.

Observa-se que o plástico ganha escala exponencial de crescimento a partir dos


anos 1950, 20 anos após a sua criação na década de 1930, acompanhando a escala de
uso e degradação de outros recursos naturais, como exposto no Capítulo 2. O consu-
mo anual de 300 milhões de toneladas de plástico em 2020, conforme mostra a Figura
5.2, é preocupante. Portanto, a história do plástico possibilita revelar as contradições
do modelo de humanidade que está em curso e refletir sobre os caminhos possíveis
para sua superação, costurando o fio da meada entre produção, consumo e descarte.
Nos anos 1950, a sedução do plástico leve, barato, flexível parecia que não teria li-
mites às benesses que popularizaram esse material. Apesar dessas potências do plás-
tico, ele tem um lado perverso, de ser um material que persiste, que continua existin-
do por muito tempo. O que a humanidade produziu de material plástico ainda
continua no planeta por muito tempo, gerando um efeito acumulativo em aterros, li-
xões, ruas e oceanos. A projeção para o gráfico da Figura 5.2 é que a humanidade
aumente para 40% a produção de plástico virgem nos próximos 10 anos, podendo
chegar a 550 milhões de toneladas em 2030. O fator ainda mais preocupante é que essa
produção tem sido absorvida, majoritariamente, para embalar produtos de uso único
(alimentos, plásticos descartáveis etc.), representada pela primeira curva da Figura
5.3.
140 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

Fonte: Adaptado de Geyer, Jambeck e Law (2017).


Figura 5.3 – Gráfico que mostra, no eixo y, a dimensão do tamanho do consumo de plástico de acordo
com o uso destinado, e no eixo x, o tempo de vida desses materiais conforme oito setores: embala-
gens, consumo e institucional, têxteis e outros, elétricos e eletrônicos, transporte, indústria de
maquinaria e edificação e construção.

A primeira curva (em cor azul escuro) mostra o tamanho do consumo do plástico
para embalagens e o seu tempo de vida de segundos (GEYER et al., 2016). Segundo a
Carbon Tracker (2020) em meados dos anos 1960, uma pessoa consumia cerca de 7 kg
de plástico por ano. Atualmente, esse montante alcança 46 kg por pessoa, ou seja, são
350 milhões de toneladas de plástico por ano e que possuem sobrevida de 500 anos.4
Estamos literalmente sendo inundados pelo plástico.
Os efeitos colaterais do uso descontrolado do plástico têm aparecido aos poucos.
Primeiro em uma enchente, nas ruas e calçadas, mas hoje, os mares e oceanos estão
sendo inundados por materiais plásticos. Estudos desenvolvidos por cientistas, como
Jambeck et al. (2015) e Lebreton et al. (2017) revelam que as fontes de poluição que
carreiam esse material até os oceanos são múltiplas. Englobam desde a ausência de
saneamento básico (especialmente serviço de coleta de lixo), descarte irregular até
serviços de rede e pesca e outros fatores, sendo que a maioria desses plásticos são car-
reados pelas chuvas e cursos d’água até chegarem aos oceanos. A variedade de plásti-
cos que chegam nos oceanos é muito diversa: garrafas, pneus, equipamentos mari-
nhos, canudinhos, cigarros, sacolas plásticas, entre outros. Mas, somente é possível
visualizar a olho nu uma parte desses materiais, cerca de 6%, que aparecem superfi-
cialmente como poluição nos mares, o restante, 94%, está no “underground”, submer-
so, e grande parte em pequenas e micropartículas de plástico fragmentado (LEBRE-
TON et al., 2018).
Parte dessa poluição plástica retorna às praias, poluindo nossas encostas e baías,
chegando aos nossos pratos através da cadeia alimentar, com a ingestão de microplás-
ticos e de materiais plásticos pelos animais marinhos. Estudo conduzido pela Funda-
ção Ellen MacArthur (2016)5 revela que do total de 78 milhões de embalagens plásti-
4 Para acessar a nota técnica da iniciativa Carbon Tracker, acesse: https://carbontracker.org/reports/
the-futures-not-in-plastics/.
5 World Economic Forum, Ellen MacArthur Foundation and McKinsey & Company, The New Plastics
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 141

cas produzidas para embalagens: 40% foi parar em aterros, 32% em áreas verdes e
corpos d’água, 14% foi incinerado e de 14% que foram coletadas, apenas 2% das em-
balagens plásticas foram efetivamente recicladas, haja vista que há degradação do ma-
terial ao longo da cadeia de reciclagem.
Se pensarmos o plástico como um todo, as proporções desses descartes são bem
impactantes: 6,3 bilhões (71%) têm o acúmulo nos aterros sanitários, alguns com uma
porcentagem incinerada, apenas 600 milhões foram reciclados e apenas 2,6% conti-
nuam em uso. Estima-se que desde 1950 a humanidade tenha produzido 9 bilhões de
toneladas de plástico e que grande parte ainda continua sendo descartada na nature-
za. Observa-se que, o problema do plástico que antes era ‘só no meu quintal’, torna-se
um problema global. E a reciclagem, quando ocorre, é insuficiente para lidar com o
tamanho do problema (GEYER et al., 2016; BFFP, 2022).
Além disso, o transporte transfronteiriço de resíduos, principalmente, dos Estados
Unidos e Europa, para os países da Ásia, alimentam grandes lixões desse material.
Quando não estão em lixões, esses materiais plásticos são incinerados, criando outra
matriz de problema, porque os plásticos têm um potencial tóxico e uma queima extre-
mamente severa, com a emissão de metano, dióxido de carbono (CO2) e poluentes
orgânicos persistentes (POPs) que trazem danos à saúde humana, como efeitos muta-
gênicos e cancerígenos.
Estudos sobre o comércio internacional de material plástico revelam que os Esta-
dos Unidos, União Europeia e alguns países asiáticos (como a China) concentram o
fluxo de lixo plástico no mundo (PACINI et al., 2021) e que a circulação desse material
pelo mundo é hoje uma grande preocupação. Nesses fluxos, há concentrações dos
giros dos oceanos, que acumulam resíduo plástico e microplástico (LEBRETON et al.,
2018). Mas, os efeitos da poluição e acúmulo de materiais plásticos não se restringem
aos empreendimentos de produção do plástico, que poluem em âmbito local, mas em
escalas regionais e globais, porque esses materiais são transferidos para outros lugares
do planeta com muita facilidade. Por baixa reciclabilidade, há um grande fluxo de
transporte de lixo plástico para os países do Sul Global. Nessas circunstâncias, o ra-
cismo ambiental adquire escalas cada vez mais amplas e complexas. Além dos países
do Sul terem pouca capacidade institucional e tecnológica de cuidar do seu resíduo
plástico, lixões clandestinos são formados pela migração desse material dos países do
Norte para o Sul Global, como tem sido reportado pela INTERPOL (2020).
Essa situação se agravou nos últimos anos, porque a China sempre foi o grande fiel
depositário desse lixo plástico do mundo e, desde 2018, a China fechou as portas para
esses materiais plásticos. A partir disso, essa situação ficou caótica no mundo inteiro.
Em 2016, a China tinha recebido 7,3 milhões de toneladas de materiais plásticos, que
representava quase a metade da geração de plástico do mundo. Outros países asiáticos
(Malásia, Indonésia e Filipinas) passaram a ser alvo desses carregamentos, muitas
vezes irregulares (Figura 5.4). Com o surgimento da covid-19, em 2020, o fluxo de

Economy – Rethinking the future of plastics (2016). Para saber mais sobre o estudo, acesse: https://
archive.ellenmacarthurfoundation.org/explore/plastics-and-the-circular-economy.
142 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

resíduo plástico da Inglaterra para a Malásia aumentou 81% em relação a 2019 (UK ...,
2020).

Fonte: Adaptado de INTERPOL (2020).


Figura 5.4 – Mapa que apresenta as rotas de comércio transnacional de resíduo plástico no mundo,
incluindo o comércio entre regiões (América Sul, Ásia, Europa e América do Norte) e continentes (da
Europa e América do Norte em direção à Ásia).

Segundo o relatório da INTERPOL (2020), desde que a China proibiu a entrada


desses materiais plásticos em seu território em 2018, há um aumento de 40% de ater-
ros e tratamentos ilegais para o plástico, em países como: Austrália, Chile, República
Tcheca, França, Irlanda, Itália, Malaui, Malásia, Espanha, Suécia e Tailândia. Isso está
ocasionando uma grande corrida e disputas para tratamentos e grandes lixões de lixo
plástico pelo mundo.
A situação de alarde para o mundo acerca desses impactos do plástico é apenas a
pontinha do iceberg. Há custos e estragos expressivos que não são considerados no
preço desse material, mas que é possível calcular. Segundo a Carbon Tracker (2020) os
custos globais escondidos do plástico são:
➢ Cada tonelada de plástico custa para a sociedade mil dólares em dióxido de
carbono (CO2).
➢ O custo na saúde e na poluição dos oceanos é de 350 bilhões de dólares por
ano. Há o aumento de emissões de gases que contribuem substancialmente para as
mudanças climáticas.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 143

➢ Cerca de 46% dos plásticos são para uso único, jogados fora em frações de
segundos, como garrafas, canudinhos, pratos, talheres e outras embalagens.
➢ Do montante de plástico produzido, 40% vão para o ambiente, poluindo cida-
des, rios e oceanos.
➢ Mais de 90% dos plásticos escapam da reciclagem, e quando há uma taxa de
sucesso, somente 9% vai para reciclagem.
Nesse sentido, há uma pequeníssima parcela de plástico que está, realmente, retor-
nando ao ciclo produtivo. Existe alguma mágica que solucione nossos problemas?

5.4 QUAL A MÁGICA PARA TRANSFORMARMOS A REALIDADE?


Atualmente, apenas 9% do plástico produzido no mundo foi alguma vez reciclado.
Todo o resto permanece no ambiente em forma de poluição (GEYER et al., 2017; BFFP,
2022; CARBON TRACKER, 2020). Esse é um cenário bastante severo, para refletir-
mos e pensarmos sobre o que fazer. Qual é a mágica para transformarmos a realida-
de? Como trazer outras luzes a esse segmento?
Os mais apressados vão dizer que a grande saída é aumentar a reciclagem, fazer
com que esse circuito, essa economia circular do plástico aconteça. Há muitas incer-
tezas de que essa seja a saída para o problema. No planeta foram produzidas 8,3 bi-
lhões de toneladas de plástico nos últimos 65 anos, e apenas 9% foi reciclado (GEYER
et al., 2017). Esse é um sinal de alerta, de que a saída pela reciclagem não é mágica e
nem fácil de acontecer. E por que, não é?
Na perspectiva de “por que não se recicla?”, há muitos materiais, misturas e prin-
cipalmente muitos tipos de plástico, e cada um deles tem um processo e procedimen-
tos específicos. Isso faz com que 90% do plástico descartado não encontre escoamen-
to no mercado, o que nos induz a pensar na reciclagem como um “mito”. Um “mito”
para que possamos continuar com essa mágica ou acreditando no milagre, de que
podemos continuar consumindo ilimitadamente, porque é reciclável. Temos em vá-
rios produtos e materiais a identificação e simbologia de plásticos recicláveis. Porém,
a grande questão é que essa indicação, ‘de ser reciclável’, não significa que o produto
seja, de fato, reciclado.
Muitos dos plásticos fabricados atualmente não são recicláveis. São compósitos ou
possuem baixíssima qualidade para que tenham outros ciclos, dentre muitas outras
questões que envolvem essa não reciclabilidade (Figura 5.5). Muitas delas estão conec-
tadas com as indústrias de alimentos. Por exemplo, a indústria alimentícia, com in-
tensa fabricação de ultraprocessados, produz salgadinhos e outros itens, embalados
em invólucros laminados não recicláveis. Esses materiais se acumulam na natureza,
causando impactos.
Materiais, identificados como plástico reciclável, não têm mercado e não são co-
mercializados, não tendo reciclabilidade (MELO; DA SILVA; COELHO; CARVA-
LHO, 2019; ZAMORA et al., 2020). O estudo de Silva e Gonçalves-Dias (2018) apre-
144 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

senta um índice de comercialização de 50% do material, coletado e encaminhado à


cooperativa de catadores de materiais recicláveis, sendo o restante rejeito, majoritaria-
mente composto por plásticos (Figura 5.5).

Fonte: Silva e Gonçalves-Dias (2018).


Figura 5.5 – Materiais considerados recicláveis, não comercializáveis: garrafa PET (Politereftalato de
Etileno) multicamada; Garrafa PET aditivado colorida, embalagens flexíveis metalizadas (BOOP – poli-
propileno biorientado), usadas para empacotamento de salgadinhos, biscoitos, chocolates, barras de
cereais, entre outros produtos.

Outro exemplo são as garrafas plásticas brancas, que embalam leite e que não são
recicláveis. Possuem aditivos que impedem sua reciclabilidade. Essa é uma das con-
tradições do material que se diz reciclável, mas que, na verdade, não é. São acumula-
dos nas cooperativas, gerando depósitos de grande volume (Figura 5.6). Falta merca-
do para esse material, que não dispõe de valor comercial ou mesmo técnica de
reciclagem, para que seja, de fato, reciclado. Alguns advogam pelas cobranças de im-
postos para esses produtos, para que internalizem as externalidades do processo. Po-
rém, o custo é tão alto que, praticamente, inviabilizaria a comercialização de plástico.
Além disso, os conflitos de interesses dessa indústria, muitas vezes barram esses pro-
cedimentos.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 145

Foto: Felipe Torres, 2017.


Figura 5.6 – Cooperativa Catadores em SP – 50 Fardos de garrafas de leite, acumulados por falta de
mercado

O plástico não deixa dúvida de que a reciclagem não constitui uma saída para essa
situação. O ideal da economia circular do plástico está muito distante da efetivação
por questões técnicas, econômicas e logísticas. O processo é custoso e há um mito de
que a poluição do plástico é causada pela má gestão do resíduo. Na verdade, a poluição
do plástico é causada desde a sua fonte, o que nos leva a crer que vem a ser um produ-
to que não deveria sequer ser produzido. Essa geração e descarte exponenciais de re-
síduos plásticos, cumulativos (Figura 5.7), tem nos colocado próximos ao limite da
resiliência do sistema, que aponta à urgência de medidas, para além das mitigatórias,
como as de não produção.
146 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

Fonte: Adaptado de Geyer, Jambeck e Law (2017).


Figura 5.7 – Aumento da geração e descarte de resíduos plásticos cumulativos (em milhões de
toneladas).

Então, o que fazer com esse material que estamos empacotando e separando em
nossas casas? Apesar de haver incentivo ao aumento da reciclagem, há, por outro lado,
expectativa de que essa indústria quadruplique a produção até 2050. Isso traz muitas
contradições, entre as ações de prevenção do lixo plástico e o investimento industrial
deste setor. A saída é fechar a torneira, prioritariamente dos plásticos de uso único. A
Figura 5.8 apresenta uma imagem que representa a curva ascendente da escala de
produção, consumo e descarte para além da capacidade de suporte da Terra.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 147

Infográfico que mostra a escala ascendente de extração de recursos da natureza para produção e
consumo (representada pela água saindo da torneira) para além da capacidade de suporte e regene-
ração do planeta Terra (os limites planetários podem ser associados com a capacidade de litros de
água que a banheira comporta). O transbordamento da água para fora da banheira mostra a
montanha de resíduos plásticos que se acumulam no ambiente.
Fonte: BFFP (2022).

Figura 5.8 – Fechando a torneira.

A União Europeia aprovou, em março de 2019, a proibição da circulação de produ-


tos plásticos, principalmente aqueles largamente encontrados nas praias europeias, a
partir de 2021. O movimento global Break Free from Plastic Pollution (2021), de freio
do plástico de uso único, com representantes no mundo inteiro, tem feito forte pres-
são contra essa crise explosiva da poluição plástica, em uma guerra geopolítica capi-
taneada pelo governo dos Estados Unidos. Por outro lado, há um movimento de redu-
zir o uso ou substituir por outros produtos, fortemente estabelecidos em vários cantos
do planeta.
Poluição por plásticos não pode ser corrigida, apenas prevenida, dada a persistên-
cia desse material na natureza. A única medida eficaz deveria ser a não produção
desse material (BFFP, 2022). Para isso, há enormes desafios de institucionalização,
como decisões políticas de produção e consumo de materiais, necessidade de investi-
mentos, em conhecimentos e inovação tecnológica, para mudarmos essa relação com
a natureza. Representada pelo plástico, mas presente em todos os materiais ou escala
de produção, a mudança exigirá um exercício cooperativo entre Estado, iniciativa pri-
vada e organizações da sociedade civil.
Esses movimentos e mobilizações para forçar uma redução do uso do plástico,
ocorre em um cenário de pandemia, momento de inflexão, impulsionada pela situa-
ção sanitária em decorrência da covid-19 (LIMA; GUTIERREZ; CRUZ, 2022). Prote-
tores faciais, vasilhames, luvas, embalagens e outros produtos aplicados tanto em usos
148 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

hospitalares, quanto à população em geral, são produzidos com plástico, cujo destino
é o lixo, uma vez que não podem ser reciclados (CEMPRE, 2021).
Em uma conta rápida, se todos usassem uma máscara descartável por dia, ao longo
de um ano, o mundo produziria três trilhões de máscaras (BFFP, 2022). É algo que
precisa ser pensado. Mas como lidar com isso, frente a esta crise sanitária? O incenti-
vo do uso da máscara reutilizável tem sido bastante solicitado.
Dados da pesquisa “Everyday Plastic Survey”,6 realizada no Reino Unido durante
os três meses de lockdown, revelam que, em uma semana, foram coletados 22.891
itens plásticos, numa média de produção de 128 itens de plástico por domicílio. O
mais revelador foi que 68% desses itens eram para embalar, embrulhar ou consumir
alimentos e bebidas. Desses quase 23 mil itens plásticos, 65% eram de plásticos macios
e frágeis, que no limite não são recicláveis; o que acende sinal de alerta para que nos
atentemos ao que estamos fazendo, como estamos consumindo e para onde está indo
o nosso lixo.
Outro ponto de inflexão sofrido pela indústria de reciclagem, durante a pandemia:
redução em 20% dos negócios na Europa, 50% na Ásia e até 60% nos Estados Unidos.
No Brasil, as cooperativas de catadores também tiveram de paralisar a operação, exa-
cerbando o tsunami de materiais descartados de forma constante e ilimitada. Contra-
dição ainda mais alarmante é que, com a queda do preço do petróleo, os plásticos de
origem virgem ficaram cerca de 90% mais baratos do que os reciclados, agravando o
cenário.
Mostrando as contradições entre discursos e práticas na indústria do plástico:

A expectativa da indústria petrolífera é investir US$ 400 bilhões em fábricas para produção de
plástico virgem, nos próximos 5 anos; já a previsão de investimentos em programas de redução do
resíduo plástico é de US$ 2 bilhões.
O aumento da produção irá impactar no aumento da poluição, ao contrário do que tem dito os
executivos da indústria plástica, e da gestão do lixo e da reciclagem nos países que têm pouca
infraestrutura.
Incineradores como saída, principalmente na América Latina, África e a Ásia, para lidar com os
plásticos, amplificam o impacto, não restrito aos corpos hídricos, atingindo também a atmosfera,
pela emissão de gases com grande potencial tóxico.
A aliança pela redução do lixo plástico (Alliance To End Plastic Waste) é formada por 47 grandes
indústrias do plástico que somaram, só em 2019, US$ 2,5 trilhões em receita. No total, os compro-
missos anunciados pela Aliança representam menos U$$ 400 milhões por ano.
Movimentos globais de pressão para a redução de plásticos de uso único, concomitante à revogação
de legislações restritivas.

Fonte: elaborado pelas autoras a partir de BFFP (2022) e Carbon Tracker (2020).
Figura 5.9 – Mostrando as contradições entre discursos e práticas da indústria do plástico.

A intensificação do uso do plástico, em razão da pandemia, tem causado um retro-


cesso nas legislações. São questões importantes, que precisam ser verificadas, frente
6 Para saber mais sobre a pesquisa, acesse: https://www.everydayplastic.org/.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 149

ao manual (Figura 5.10), que tem sido elaborado pela indústria do plástico, para evitar
que essas legislações e políticas públicas se efetivem.

Fonte: BFFP, 2022.


Figura 5.10 – Manual das táticas usadas pelas corporações para evitar ações legislativas.

A figura 5.10 revela que existem diversos mecanismos para adiar, distrair e desviar
os nossos olhares da legislação. No entanto, a criação de mecanismos, organizaçoes
independentes e compromissos voluntários não darão conta das dimensões do pro-
blema da poluição por plastico.

5.5 QUAIS CAMINHOS POSSÍVEIS DIANTE DAS CONTRADIÇÕES


DO PLÁSTICO?
O que fazer diante de todas essas contradições? A primeira coisa é juntar as peças,
aprender. Aprender que o plástico, proveniente de fontes fósseis, está em franco cres-
cimento de produção e investimentos. Os Estados Unidos têm, hoje, um dos seus
grandes investimentos no Canadá e no próprio país, que quadruplicarão a produção
do plástico de origem virgem.
Todo esse processo precisa ser estritamente reconhecido. Ou seja, precisamos co-
nectar o uso do material plástico, por suas características e facilidades, a essa indús-
tria, que atualmente é uma das principais causas das mudanças climáticas. Uma in-
dústria que faz esse movimento para extração, através da renovação de suas fontes de
150 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

gás de xisto, entre outros, e que tem criado, na outra ponta, uma enorme dependência
desse material, que se diz extremamente barato.
O que se vê, em projeções e tendências, é o aumento vertiginoso. Um singelo copo
plástico descartável tem a perspectiva de continuar se multiplicando e depositando
em muitos lugares. A questão do plástico é um problema de poluição. Não podemos
pensar em uma saída fácil para o plástico, que não seja ‘fechar a torneira’. Para isso,
precisamos confrontar todos esses desafios e identificar os responsáveis, e verdadeiros
poluidores.
Auditorias de marcas tem sido feita pela rede global “Break Free From Plastic”,7 e
revelam as marcas que são as maiores usuárias e poluidoras de plásticos (Figura 5.11).
Esse levantamento é produzido a partir de grandes mobilizações de limpezas de
praias, recolhendo e mapeando informações de vários países.

Fonte: BFFP (2020).


Figura 5.11 – Marcas que mais contribuíram com a poluição por plásticos em 2019.

Os materiais que apareceram com maior frequência foram: as sacolas plásticas, os


sachês e as garrafas plásticas (Figura 5.12).

7 https://www.breakfreefromplastic.org.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 151

Fonte: Adaptado de BFFP (2022).


Figura 5.12 – Itens plásticos mais encontrados nas ações realizadas pelo movimento Break Free from
Plastic Pollution.

Assim, é importante ressaltar a conexão entre o material de origem fóssil, o mate-


rial de uso único e o lixo no mar.

5.6 PARA FINALIZAR


Precisamos pensar sobre a redução, não geração do plástico e substituição por ou-
tros tipos de materiais. É preciso conectar esse fio, costurar essas relações para pen-
sarmos em outra lógica, demandando tanto das grandes empresas, quanto dos nossos
governantes, mais transparência nesse ciclo de produção danoso. Engajar as comuni-
dades, a sociedade na busca de soluções coletivas, não individuais. Rever processos,
incluir pessoas, afeto, relações e informação, para transformar os dados, questões e
desafios em ação.
Refletir outra forma de usar os nossos bens materiais, que sejam mais duradouros,
que tenham mais conexão com a natureza. Resgatar os fios da meada, inovar, desco-
brir que na natureza não existem resíduos, tudo é nutriente, tudo é energia.
É nessa lógica que precisamos repensar, realocar e substituir o uso desses materiais
de ciclo de vida curto e obsoletos, que estão inundando nosso planeta de resíduos.
152 Consumo e resíduos: práticas cotidianas no contexto da pandemia de covid-19

Rever o nosso consumo, o quê e como consumimos. De onde vem as coisas que con-
sumimos? Qual é a origem desse material? Materiais sintéticos, materiais biodegradá-
veis, biomateriais...
Uma saída interessante tem sido substituir o uso dos materiais sintéticos pelos de
origem natural. É possível repensarmos a lógica para essa usina de possibilidades dos
materiais, que não sejam tão degradantes para a vida na terra; para que sejam mate-
riais que propiciem a resiliência da terra, na mesma velocidade que vamos precisar
reaprender o quanto consumimos. Para esse reaprendizado, Vandana Shiva (2020) faz
uma reflexão das lições que podemos aprender com esse momento da pandemia do
Coronavírus.
“Que lições podemos aprender graças ao Coronaví- Essa é Vandana Shiva, uma indiana,
rus? Sobre a nossa espécie humana, os paradigmas doutora, física, ambientalista, eco feminista
econômicos e tecnológicos dominantes e a terra? A que trabalha, estuda e pesquisa sobre
primeira coisa que o confinamento nos recorda é que outra lógica de estarmos nesta terra.
a terra é para todas as espécies e que esta pandemia
não é um desastre natural, assim como os fenômenos
climáticos extremos também não são. Todas as
emergências que na atualidade colocam em risco
vidas, têm sua origem na visão mecanicista, militarista
e antropogênica dos homens, como seres à margem
da natureza, como amos e senhores da terra que
podem dominar, manipular e controlar outras
espécies como fontes de lucro. Também tem origem
em um modelo econômico que considera os limites
ecológicos e éticos como obstáculos que devem ser
superados para aumentar o crescimento dos lucros
empresariais. Um pequeno vírus pode nos ajudar a
dar um grande passo à frente para fundar uma nova
civilização planetária e ecologista, baseada na
harmonia com a natureza. Ou, então, podemos
continuar vivendo a fantasia do domínio sobre a terra
e continuar avançando até a próxima pandemia. E, Fonte: https://encrypted-tbn3. gstatic.com.
por último, até a extinção” (Vandana, SHIVA, 2020).

Box – Que lições podemos aprender graças ao Coronavírus?

E uma última mensagem, para finalizar o nosso percurso: é preciso nos reconec-
tar, é preciso religare, religare com a nossa casa, com o nosso planeta.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 153

Referências Sugeridas para Aprofundar os Temas Tratados

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BAUMAN, Z. A ética é possível num mundo de consumidores? São Paulo: Zahar, 2011.
MARQUES, Luiz. Capitalismo e colapso ambiental. Editora da Unicamp, 2018.
VALENCIO, Norma; OLIVEIRA, Celso Maran (organizadores). COVID-19: crises entremeadas no
contexto de pandemia (antecedentes, cenários e recomendações). São Carlos: UFSCar/CPOI, 2020.
447 p.

Vídeos e links sugeridos

● Atlas Global de Justiça Ambiental – https://ejatlas.org/


● Atlas do Plástico, 2020. – https://br.boell.org/pt-br/2020/11/29/atlas-do-plastico.
● Break Free from Plastic – https://www.breakfreefromplastic.org
● Mapa de Conflitos e Injustiças Ambientais no Brasil – http://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.
br/
● Repensando o Plástico – webdocumentário NOSS USP – https://www.youtube.com/
channel/UCVo-Wy3Ih6VRTEf2bVy77lQ

Questões sugeridas para debate

1. Quais contradições caracterizam as relações de produção, consumo e descarte no


Antropoceno?
2. Qual a relação da pandemia provocada pela disseminação da covid-19 com a geração de
resíduos sólidos no mundo?
3. Quais soluções estão sendo tomadas para o enfrentamento do problema do resíduo
plástico no mundo?
4. Como a humanidade pode enfrentar a crise ambiental que estamos vivendo para além de
“soluções mágicas”?

REFERÊNCIAS
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Política latinoamericana. In: ALIMONDA, H. (coord.). La naturaleza coloni-
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BAUMAN, Z. A ética é possível num mundo de consumidores? São Paulo: Zahar,
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BAUMAN, Z. Vida para o consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio
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br.boell.org/pt-br/2020/11/29/atlas-do-plastico.
CAPÍTULO 6
Saneamento Básico e Acesso à Água

Ana Paula Fracalanza


Izabela Penha de Oliveira Santos
Estela Macedo Alves

“Ele [o rio Doce] não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da
nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde fomos
gradualmente confinados pelo governo para podermos viver e reproduzir as
nossas formas de organização (...)”

Ailton Krenak, Ideias para adiar o fim do mundo, 2019, p. 21

Neste capítulo vamos tratar do saneamento básico, em especial do acesso ao abas-


tecimento de água e ao esgotamento sanitário. Nesse contexto, a questão principal que
vai nortear o presente texto é: há desigualdade no acesso à água e a serviços de esgotos
no Brasil e no mundo?
O acesso à água, neste texto, refere-se à quantidade e qualidade de água necessá-
rias para que a população atenda suas demandas. Além disso, deve-se considerar a
158 Saneamento Básico e Acesso à Água

governança da água de forma que os atores sociais envolvidos – agentes governamen-


tais, usuários e prestadores de serviços – possam compartilhar sua gestão.
Atualmente, a água é considerada escassa em relação aos usos necessários para
manutenção dos padrões de vida da sociedade contemporânea. A escassez está rela-
cionada tanto à quantidade, como à qualidade. A escassez em quantidade relaciona-se
à falta de água para os vários usos que se faz dela e, a escassez em qualidade se dá
principalmente porque a água se encontra poluída, não atendendo aos padrões de
qualidade para o uso em todas as atividades humanas.
A escassez de água também é relativa em função da população que necessita usá-la
porque, muitas vezes, mesmo existindo o bem em quantidade e qualidade adequadas,
não há sistema de abastecimento de água para este grupo.
Assim, os diferentes usos das águas são dependentes intrinsecamente desses dois
fatores: quantidade e qualidade. A escassez de água está relacionada ainda à sua dis-
ponibilidade, à degradação de sua qualidade e à compatibilização entre os usos. As
restrições no acesso à água podem também estar associadas aos conflitos pelos usos
da água (FRACALANZA; SINISGALLI, 2009), em situações que afetam a disponibi-
lidade da água, como: uso e ocupação do solo; poluição; desastres ambientais, que
podem afetar a qualidade e fornecimento de água; inexistência de coleta adequada e
de tratamento de esgotos, que influencia na questão hídrica; e disposição de resíduos
sólidos.
Fracalanza e Sinisgalli (2009) ressaltam que, em cenários de escassez, a água passa
a ser compreendida como uma necessidade social, que depende das diferentes formas
de organização das sociedades e, portanto, das relações de poder de determinados
agentes pelo uso e apropriação da água. Em função da escassez hídrica, geram-se con-
flitos que se expressam sobretudo no espaço urbano, e que envolvem a apropriação da
água, seu uso e devolução ao meio ambiente, gerando mais valor econômico quando
se usa a água para o processo produtivo, ou gerando poluição hídrica. Além disso,
existem usos da água que são conflitantes entre si, por exemplo: o uso da água para
esgotamento sanitário em sua origem é conflitante com o uso da água para abasteci-
mento doméstico, caso não haja tratamento do esgoto.
Um exemplo relacionado ao conflito pelo uso da água se deu durante a crise de
abastecimento de água de 2014 a 2016 na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP),
quando houve um período de seca que impossibilitou o carregamento dos reservató-
rios do sistema de abastecimento da RMSP. Esse quadro, salienta-se, levou a Compa-
nhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) a racionar o abasteci-
mento público de água, impactando, principalmente, populações
socioambientalmente vulneráveis, ao mesmo tempo em que, grandes usuários manti-
nham o uso excessivo do bem (MARTIN, 2015; FORUM, 2015; FRACALANZA;
FREIRE, 2016).
O que está sendo feito atualmente pelos governos, principalmente no caso brasilei-
ro, em relação à questão do saneamento básico? Como vem sendo discutida a gestão
da água e do esgotamento sanitário, no Brasil? O que tem sido proposto quanto à le-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 159

gislação para minimizar problemas de serviços de saneamento básico para alguns


setores da população brasileira? Quais são os principais indicadores em relação a
abastecimento de água e esgotamento sanitário, no Brasil? Essas são algumas questões
centrais correlatas a esse assunto que este texto traz para reflexão.
Sob a égide de tais considerações, neste artigo discutiremos três tópicos: o primei-
ro intitulado “desafios de categorização da água”, que pretende responder quais são as
categorias que estamos utilizando. Ou seja, sobre o que estamos falando quando abor-
damos a gestão da água? O segundo trata dos “desafios de gestão e de governança no
território”. E o terceiro tópico “desafios em territórios desiguais”, considera o que tem
sido proposto para universalizar o acesso à água e ao esgotamento sanitário, no Brasil.
Além dessas três abordagens principais, o texto se volta para o tema da pandemia
de covid-19, que faz parte da realidade mundial desde março de 2020 e que, no Brasil,
tem se mostrado impactante dentro da realidade dos grupos sociais que já sofrem com
a escassez de água.
A covid-19 relaciona-se diretamente com a demanda por saneamento, em especial
em grandes centros urbanos como, no caso do Brasil, Rio de Janeiro e São Paulo
(MANFIO; ALVES, 2020). Segundo as autoras Manfio e Alves (2020), a intermitência
no abastecimento de água pela rede pública afeta as populações mais vulneráveis e
facilita o contágio por diversas doenças, entre as quais a covid-19.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a UNICEF (2020), abas-
tecimento de água potável e serviço de esgotamento sanitário são essenciais para o
controle de disseminação de doenças infecciosas, como a covid-19. A pandemia de
covid-19 deixou ainda mais evidente a desigualdade socioambiental, uma vez que
muitas comunidades vulneráveis ficaram mais suscetíveis ao contágio da doença por
não terem acesso à água para higiene pessoal e de objetos, conforme indicado pelos
protocolos de saúde (MANFIO; ALVES, 2020).

6.1 DESAFIOS DE CATEGORIZAÇÃO


Os desafios de categorização da água discutidos neste capítulo dizem respeito às
disputas de narrativas e, também, de gestão relacionadas à água, como um bem co-
mum e também como mercadoria.
Na legislação brasileira, a água é apresentada como um bem de domínio público
(Lei Federal nº 9.433/1997). Essa categorização consiste em defini-la no sentido de
essencial à vida ou não substituível (BAKKER, 2010).
No âmbito da economia, a água é considerada como bem comum, sendo não ex-
cluível e rival, ou seja, não há propriedade da água, de forma que não é possível que
um agente econômico impeça outros agentes de usarem esse bem. Por outro lado, o
fato de se usar em um determinado momento uma dada quantidade de água, impede
seu uso neste mesmo momento por outros agentes (MANKIW, 2001).
160 Saneamento Básico e Acesso à Água

Mesmo sendo considerada um bem essencial à vida e não substituível (bem de


domínio público), a Legislação Brasileira atribui valor econômico à água pela Política
Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997). Essa atribuição atrela a água a
uma ideia de mercadoria, no sentido que, para ser obtida, deve ser comprada e paga
em mercados de água. Na classificação de bens, mercadorias são bens excluíveis e ri-
vais. Excluível porque são excluídos do acesso ao bem aqueles que não pagam por ele;
e rival, conforme definido anteriormente. Um exemplo claro da água como mercado-
ria é a venda em galões ou envasada. Deve-se ressaltar que essa é uma mercadoria que
tem aumentado sua demanda no mercado em situações de escassez hídrica, como é o
caso do município de São Paulo durante a crise de abastecimento de água entre 2014
e 2016 (SINISGALLI et al., 2018). Nesse sentido, pode-se ver essa dualidade entre a
água disponível para todos (que é um bem comum) versus a água enquanto mercado-
ria.
Portanto, aquilo que seria uma água disponível a todos, direito de todos, passa a
ter característica de mercadoria, dotada de valor econômico de modo que só aqueles
que pagarem por ela terão acesso. Então, dentro da categorização da água se vê essa
dualidade. Afinal, se todos têm direito à água, mas se a parte da população que paga
mais por ela, tem maior acesso à água em quantidade e qualidade, quem determina o
acesso à água e sua gestão? Essa é a primeira discussão.
Se nem todos têm acesso ao serviço de abastecimento de água tratada, se aqueles
que pagam por esse serviço têm melhores condições de acesso a ele, configura-se uma
situação de injustiça hídrica,1 na qual as populações socioambientalmente vulneráveis
vão ter um acesso mais irregular ao seu fornecimento.
Cabe ressaltar que a noção de justiça hídrica incorpora, além da possibilidade de
acesso à água, o “direito de participação ou representação nos espaços decisórios e nas
definições das regras que garantem esse acesso à água”, bem como “a compreensão
das lutas e disputas travadas em torno dos direitos de propriedade ou de controle da
água” (TADEU; SINISGALLI, 2019, p. 53).
Um exemplo de acesso diferenciado à água foi vivenciado durante a crise de abas-
tecimento de água na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), também chamado
de “crise hídrica”, em que aqueles que não tinham caixa d’água para reservação de
água enfrentaram maiores dificuldades no seu acesso (FRACALANZA; FREIRE,
2016). Ou seja, populações socioambientalmente vulneráveis têm mais dificuldade de
obtenção de água, com uma regularidade de acesso. Por outro lado, aqueles que têm
capacidade de pagamento pela água, têm melhores condições de sua obtenção em
quantidade e qualidade mais adequadas para o seu uso.

1 O conceito de Justiça Hídrica está relacionado a mobilizações por redistribuição da água devido à
escassez física e econômica desse bem, mas também frisa as dimensões de acesso cultural e político
por meio do reconhecimento de culturas diversas e de participação nas definições políticas e gestão
da água, situando-se na arena dos conflitos por justiça socioecológica (ZWARTEVEEN; BOELENS,
2014). Portanto, a injustiça hídrica é verificada no não acesso material, econômico, político e cultural
da água.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 161

Na Tabela 6.1, os dados apresentados quanto ao volume operacional de água do


Reservatório Cantareira, principal reservatório que abastece a RMSP, nos mostra
como oscilou a quantidade de água armazenada no período de 2010 até 2022, e como
6 anos após anunciado o fim da crise de abastecimento de água, em fevereiro do cor-
rente 2022, o Reservatório ainda não havia recuperado seu volume de reservação. Ao
se observar o volume operacional armazenado ao longo dos 13 anos, na Tabela 6.1,
pode-se notar a relevante oscilação ao longo do tempo, e, concomitantemente, que
não houve um volume armazenado superior a 65%.
Tabela 6.1 – Volume operacional de água do Reservatório Cantareira 2010-2022

(%) hm3
17/02/2010 95,2% 937,27
17/02/2011 87,8% 862,59
17/02/2012 76,7% 753,17
17/02/2013 56,2% 551,94
17/02/2014 18,5% 181,59
17/02/2015 -21%* -205,84
17/02/2016 19,2% 188,11
17/02/2017 62,3% 611,96
17/02/2018 51% 500,94
17/02/2019 45,4% 445,46
17/02/2020 53,8% 527,92
17/02/2021 47,1% 462,72
17/02/2022 42,6% 418,71

Fonte: SABESP, 2022. *Uso do volume morto.

O que podemos considerar sobre esses dados? É que tendo ocorrido uma crise de
abastecimento de água entre 2014 e 2016 na RMSP, o Sistema Cantareira, até fevereiro
de 2022, estava recuperando muito lentamente sua capacidade de reservação de água,
e ainda se encontrava em uma situação de fragilidade em relação à capacidade de su-
prir o fornecimento de água para a região.
Sendo assim, o estudo apresentado no presente tópico e focado no acesso à água
demonstra que existem diferenças nesse acesso entre as populações, sendo um exem-
plo de que, ao existir um quadro de falta de água em uma determinada região, pode
haver injustiça hídrica na distribuição e em sua apropriação por parte da população.
Por fim, o exemplo do ocorrido na RMSP mostra como a gestão das águas é fun-
damental para minimizar a injustiça hídrica e tornar equitativa a distribuição de água
para a população. O estudo baseou-se na crise de abastecimento de água ocorrida
entre 2014 e 2016, mas atualmente há novas dificuldades no abastecimento que nos
162 Saneamento Básico e Acesso à Água

mostram a importância do Sistema de Gestão das Águas, como será apresentado no


item a seguir.

6.2 DESAFIOS DE GESTÃO NO TERRITÓRIO


A unidade de gestão da água é a bacia hidrográfica. Essa é uma unidade físico-ter-
ritorial de gestão que foi adotada desde a década de 1990 no Brasil. A bacia hidrográ-
fica não segue a divisão territorial político-administrativa dos municípios e estados
da federação. A Figura 6.1, a seguir, representa o estado de São Paulo, e as divisões
representam as Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos (UGRHIs). Con-
forme a Figura 6.1, pode-se notar que uma UGRHI é formada por uma ou mais bacias
hidrográficas. Quanto à gestão, cada UGRHI possui uma unidade correspondente a
um Comitê de Bacia Hidrográfica, responsável pela gestão participativa e descentra-
lizada dessa UGRHI.

Fonte: São Paulo (Estado). SIGRH. 2022.


Figura 6.1 – Unidades de Gerenciamento de Recursos Hídricos do estado de São Paulo.

Os Comitês de Bacia Hidrográfica foram criados a partir da década de 1990, por


legislação que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e as Políticas Estadu-
ais de Recursos Hídricos e têm a mesma proposta de gestão participativa inerente à
(vigente) Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Esses Comi-
tês são constituídos contando com a participação da sociedade civil, desde a sua for-
mação, e agem a partir da Unidade de Gerenciamento de Recursos Hídricos, portan-
to, com base na bacia hidrográfica que prevê a gestão descentralizada e integrada. Os
Comitês de Bacia Hidrográfica têm a mesma lógica de gestão descentralizada e parti-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 163

cipativa de outros conselhos, tal como os Conselhos de Saúde, de Habitação, de Edu-


cação, derivados da Constituição de 1988.
A participação nos Comitês de Bacia Hidrográfica na escala Federal se dá a partir
de três segmentos de agentes governamentais ou atores sociais: Estado, que corres-
ponde aos governos Federal, Estaduais, Municipais; Sociedade Civil; e, usuários. Os
usuários são os setores que fazem uso da água, por exemplo: o setor agrícola, o setor
industrial, os setores de abastecimento doméstico.
Quanto à quantidade de membros que compõem os comitês federais de bacia hi-
drográfica, frisa-se que há participação de: 40% de setores usuários dos recursos hí-
dricos; um mínimo de 20% de representantes de entidades civis; e um máximo de
40% que pertencem aos poderes públicos executivos (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios) (BRASIL (MMA; SRHAU, 2011)).
Sobre a composição dos Comitês, em relação à participação de representantes do
Estado, da sociedade civil e dos usuários, pode-se notar que há uma diferença entre os
Comitês quanto a esta participação. A Tabela 6.2 exemplifica essa situação. Enquanto
no Comitê do Alto Tietê há apenas 17,6% de participação de organizações da socieda-
de civil, no Comitê do Recôncavo Norte e Inhambupe, na Bahia, há 33,3% de partici-
pação dessas organizações.
Tabela 6.2 – Composição de alguns Comitês de Bacia Hidrográfica no Brasil

Comitê Poderes Públicos (%) Usuários (%) Organizações civis (%)


Alto Tietê (SP) 64,8 17,6 17,6
Velhas (MG) 50 25 25
Meia Ponte (GO) 36 43 21
Curu (CE) 40 30 30
Ceivap (MG, RJ e SP) 40 38 22
Recôncavo Norte e 33,3 33,3 33,3
Inhambupe (BA)
Lagos São João (RJ) 30 42 28
Alto Iguaçu e Afluen- 34 34 32
tes do Alto Ribeira (PR)
São Francisco 35 39 26

Fonte: Sites dos Comitês de Bacia Hidrográfica, fevereiro de 2022. Elaborado pelas autoras.

A formação dos Comitês de Bacia Hidrográfica representa um avanço quanto à


gestão participativa (e democrática) dos recursos hídricos. Sua inserção como arena
política consultiva e deliberativa em respeito às bacias hidrográficas surgiu a partir do
momento de redemocratização do estado brasileiro em meados da década de 1980 e,
também, da luta dos movimentos ambientalistas desta mesma época. Portanto, a exis-
tência e permanência desses espaços são essenciais para o controle social e garantia do
164 Saneamento Básico e Acesso à Água

uso justo das águas, ainda que, nos últimos anos, esses órgãos tenham sofrido com o
esvaziamento e a centralização da tomada de decisão pelo Estado, como recentemen-
te ocorreu com o Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (Decreto nº 10.000, de 3
de setembro de 2019).

6.3 DESAFIOS EM TERRITÓRIOS DESIGUAIS


Quanto ao terceiro e último dos desafios, há questões importantes a discutir:
Como universalizar o acesso à água? Como universalizar o acesso ao esgotamento
sanitário em face de desigualdades acentuadas e existência de injustiça hídrica?
Na legislação brasileira, o saneamento básico compreende quatro aspectos: abaste-
cimento de água, coleta e tratamento de esgoto, resíduos sólidos e drenagem, confor-
me se vê na Figura 6.2. Neste tópico vamos nos ater a dois desses aspectos: o abasteci-
mento de água e a coleta e o tratamento de esgotos.

Fonte: JACOBI, PAZ e SANTOS (2016).


Figura 6.2 – Etapas do saneamento básico no Brasil.

Água potável e esgotamento sanitário correspondem aos Objetivos do Desenvolvi-


mento Sustentável número seis (ODS 6): água limpa e saneamento. Nesse caso, cabe
observar que está sendo considerado como saneamento apenas o esgotamento sanitá-
rio. Então, um dos objetivos para que se atinja o desenvolvimento sustentável, segun-
do a Organização das Nações Unidas (ONU), é que as populações tenham água limpa
e esgotamento sanitário.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 165

No entanto, há falta de abastecimento de água adequado e de sistemas de coleta,


afastamento e tratamento de esgotos ao se considerar a realidade nacional, assim
como há desigualdades na oferta desses serviços em nível mundial.
De acordo com Relatório da OMS e UNICEF (2021), 2 bilhões de pessoas no mun-
do careciam de serviços seguros de água potável em 2020. Sobre o esgotamento sani-
tário, o Relatório apontou que 3,6 bilhões de pessoas careciam de serviços seguros
nessa área, sendo que 494 milhões de pessoas no mundo em 2020 defecavam a céu
aberto.
No caso do Brasil, os dados sobre serviços de esgotos também são bastante expres-
sivos das desigualdades: dos esgotos produzidos, 48,1% são coletados e tratados; 39,7%
não são coletados e nem tratados; e 12,15% são coletados, mas não são tratados (SNIS,
2020). Então, também se veem diferenças muito grandes no país entre o atendimento
às populações e a respeito de como os tratamentos são realizados.
As questões observadas quanto ao abastecimento de água e esgotamento sanitário
se expressam em escala nacional, mas também podem ser observadas em outras esca-
las, como as regionais e locais, denotando desigualdades na distribuição de serviços e
resultando em diversos problemas de saúde para as populações. A Tabela 6.3, a seguir,
permite observar algumas das desigualdades regionais.
Tabela 6.3 – Atendimento de água e esgotamento sanitário (Brasil)

Regiões Índice de atendimento Índice de Atendimento com Índice de tratamento


com Rede – Água rede – Coleta de esgotos dos esgotos (gerados)
N 58,9% 13,1% 21,4%
NE 74,9% 30,3% 34,1%
SE 91,3% 80,5% 58,6%
S 91,0% 47,4% 46,7%
CO 90,9% 59,5% 58,5%

Fonte: BRASIL (MDR; SNS; SNIS, 2021).

Analisando os dados da Tabela 6.3, pode-se verificar que, enquanto na região Nor-
te o atendimento de abastecimento de água através de rede era de 58,9%, na região Sul
esse mesmo serviço estava em 91% (BRASIL; MDR; SNS; SNIS, 2021). Quanto à rede
de coleta de esgotos, na região Norte o índice era de 13,1% em 2021, enquanto na re-
gião Sudeste era de 80,5%. E sobre o índice de tratamento dos esgotos gerados, en-
quanto na região Norte era de 21,4%, na região Sudeste era de 58,6%. Assim, a partir
dos dados apresentados na Tabela 6.3, pode-se concluir que, além dos problemas exis-
tentes na oferta dos serviços de saneamento básico no Brasil, há muita desigualdade
entre as regiões quanto à prestação de serviços de água e esgotamento sanitário. Isso
resulta em problemas de saúde pública para a população, além de injustiça ambiental
166 Saneamento Básico e Acesso à Água

e hídrica, uma vez que as populações vivenciam distintas realidades em âmbito local
e regional.
Quanto à legislação relacionada ao Saneamento Básico, cabe mencionar que em
2020 foi instituída a Lei Federal no 14.026, de 15 de julho de 2020, que alterou o Marco
Legal do Saneamento Básico (Lei Federal no 11.445 de 2007). A Lei no 14.026 apresen-
tou as metas de 99% de atendimento da população com serviços de água e de 90% de
atendimento com coleta e tratamento de esgoto da população a serem atingidas até
2033. Sobre essas metas, é importante questionar em que medida será possível atingi-
-las frente às disparidades regionais observadas anteriormente, sem contar ainda os
processos de privatização que estão sendo considerados a partir da proposta de imple-
mentação da Lei em questão.
A Lei referida expressa fragilidades fundamentais quanto à implementação do sa-
neamento no Brasil, que já tinha dificuldades anteriormente. A busca pela universali-
zação do saneamento no Brasil, tinha como ponto fundamental e possibilidades de
planejamento e controle social, o Marco Legal (Lei no 11.445 de 2007), que vinha sen-
do discutido desde então; e, gradativamente, este Marco vinha sendo implementado
de diversas formas nos municípios brasileiros, ainda que não de maneira ideal, mas
numa linha de pensamento focada na busca pelo planejamento participativo junto aos
conselhos municipais de saneamento, bem como considerando possibilidades de con-
trole pela sociedade civil organizada. A Lei Federal no 14.026 impõe uma quebra nes-
sa linha de ação que vinha sendo implementada e propõe um modo amplamente cen-
tralizador e voltado para interesses de mercado, de modo que nem minimiza as falhas
do Marco Legal de 2007, tampouco propõe algo que aprimorasse a Lei de 2007. A nova
Lei apenas permite que o saneamento se consubstancie como uma mercadoria, lança-
-o no mercado para empresas interessadas em lucrar com a privatização na prestação
dos serviços e não visa atender a todos, independente de poder de pagamento, condi-
ção de moradia, entre outros aspectos. Perdem o meio ambiente, perdem as cidades e
principalmente a população.
Deve-se ressaltar que, em geral, o termo privatização é empregado de forma gené-
rica, porém, pode favorecer diferentes arranjos para a participação privada no setor de
saneamento (PUGA; SILVA, 2021).
Ainda de acordo com essa nova Lei Federal, o Ministério da Economia passa a ter
a possibilidade de promover a lotação de servidores de órgãos e entidades da adminis-
tração pública federal na Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA, a
qual, em julho de 2020, substituiu a Agência Nacional de Águas).
No caso da regulação na prestação dos serviços em questão, cabe à ANA realizá-la.
Coube a essa Agência a responsabilidade pela regulação dos serviços públicos de sa-
neamento básico e, entre outras coisas, também pela regulação tarifária, visando, cen-
tralmente, a universalização do acesso ao saneamento básico e o equilíbrio econômi-
co-financeiro do setor.
Desse modo, com a nova Lei passou a ser papel da ANA regulamentar a prestação
de serviços de empresas privadas e públicas, retirando parte do poder dos municípios.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 167

Entendemos assim que há, de certa forma, a recentralização do setor de saneamento


no Brasil, que havia sido descentralizado, a partir das diretrizes da Constituição Fe-
deral de 1988.
Com isso fragiliza-se a autonomia municipal, e o município, poder concedente dos
serviços públicos de saneamento básico segundo a Constituição Brasileira, também é
fragilizado pois, em última instância, acaba-se criando insegurança jurídica em todo
o setor de saneamento, seja ele público ou privado. Isso faz com que muitos artigos da
Lei possam ser questionados legalmente, inclusive por inconstitucionalidade.
O Box 1, a seguir, apresenta definições importantes para a compreensão da priva-
tização do saneamento.
Box 1 – Tipos de arranjos da participação privada no setor de saneamento

Entre a provisão de saneamento puramente pública e puramente privada existem diversas configu-
rações que mesclam esses modelos econômicos, que variam de acordo com a legislação dos locais
onde serão implementados e também com as vantagens econômicas possíveis (PUGA; SILVA, 2021).

O gerenciamento das empresas e dos serviços podem ser públicos, mistos ou privados; ao mesmo
tempo, a propriedade da infraestrutura e outros ativos, podem ser também públicos, mistos ou
privados. Sendo assim, os diversos tipos de privatizações consistem na combinação desses fatores.
Por exemplo, gerenciamento privado e infraestrutura pública, consiste num tipo de gestão mista.
Outro exemplo: um caso extremo de privatização, em que o Estado vende a infraestrutura e deixa a
cargo da empresa também a gestão dos serviços (PUGA; SILVA, 2021).

No Brasil, o termo privatização tem sido mais utilizado como forma de qualificar o aumento da parti-
cipação privada no setor de saneamento, não necessariamente com venda dos ativos (infraestrutura
e outros bens).

Os contratos entre poder público e empresas privadas podem ser de: gestão; parceria; construção e
operação de serviços; contratação de prestador de serviços (terceirização) de alguma etapa do servi-
ço de saneamento; ou ainda pagamento por performance (serviços executados no período) da
empresa. Atualmente, predominam os modelos de concessão: a empresa fica responsável pela
expansão das redes, manutenção e prestação do serviço, por tempo definido em contrato, mas os
ativos (infraestrutura, estações de tratamento etc.) se mantêm como propriedade pública (PUGA;
SILVA, 2021).

Mais recentemente, tem ocorrido a financeirização do setor de saneamento; cabe observar que
esse setor é indispensável à vida humana e, nele, o lucro é garantido, a médio e longo prazos (PUGA;
SILVA, 2021). Assim, investidores apostam no saneamento como fonte de lucros futuros, ainda que
com base na exploração deste serviço fundamental à vida, através dos ganhos em forma de tarifas.

As diversas formas de contratos entre setores públicos e empresas privadas para a


realização de obras e serviços de saneamento colocam em risco a garantia dos Direi-
tos Humanos à água e ao saneamento, uma vez que, dependendo da forma indicada
168 Saneamento Básico e Acesso à Água

na legislação e do modelo econômico acordado, as empresas e o setor financeiro po-


derão sobrepor seus interesses de lucratividade – natural de qualquer empresa privada
–, sobre a vida humana, que depende do acesso ao abastecimento de água e ao sanea-
mento, nos principais centros urbanos e suas periferias.
A pandemia mostrou que ninguém pode ser excluído do acesso ao saneamento;
dessa forma, um elevado percentual de atendimento não é suficiente, é preciso que o
acesso seja universal, que todos tenham acesso, independente do tipo de moradia e da
classe social.
Para isso, é necessário o fortalecimento do papel do Estado no provimento, com
destinação de recursos orçamentários permanentes para esse fim, além de planeja-
mento participativo e possibilidades para a realização do controle social sobre os pla-
nos de investimento no saneamento.

6.4 PONTOS PARA DISCUSSÃO


O objetivo do capítulo foi discutir questões relacionadas ao Saneamento Básico e
ao acesso à água no contexto brasileiro. Para tanto, foram apresentados desafios para
a diminuição das desigualdades regionais, territoriais, de gestão e conceituais referen-
tes à água e aos serviços de abastecimento e esgotamento sanitário no cenário nacio-
nal.
Em função do apresentado, considera-se que a água, para que seja disponível a
todos, em quantidade suficiente e em qualidade para os usos necessários, não pode ser
tratada como uma mercadoria. Isso porque há populações vulneráveis do ponto de
vista socioambiental que vivenciam situações de injustiça hídrica e que terão, inexo-
ravelmente, maior dificuldade em obtê-la ao se tratar a água como uma mercadoria,
dotada de valor econômico.
A segunda conclusão é que os poderes locais, regionais, mais descentralizados,
neste momento, no cenário nacional, estão perdendo espaço frente a processos de
centralização das políticas de saneamento básico. As diferenças no acesso à água po-
derão se intensificar nos territórios, com os processos de privatização dos serviços de
abastecimento de água e esgotamento sanitário, fazendo com que a universalização
dos serviços seja dificultada para as populações de baixa renda e vulneráveis do ponto
de vista socioambiental.
Não se pode ignorar que já houve casos passados de privatização dos serviços de
saneamento realizados desde a década de 1980, em diversas cidades do mundo, e que
depois passaram pela reversão dos processos de privatização, com a remunicipaliza-
ção dos serviços de abastecimento de água. O observatório europeu Water Remunici-
palisation Tracker2 elaborou um mapeamento desses casos, destacando o importante
movimento de remunicipalização na França, em cidades e regiões administrativas
como: Paris, Lyon, Montpellier, Bordeaux, Nice, Grenoble, entre outras. Na Alema-
2 Remunicipalisation tracker: Documentation of cases and campaigns on remunicipalisation around
the world. Disponível em: www.remunicipalisation.org. Acesso em: 03 mar. 2022.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 169

nha, a remunicipalização atingiu Stuttgart, Potsdam, Berlin e Rostock. Nos Estados


Unidos, Atlanta e Pitsburg destacam-se entre os casos. Na América Latina, os casos
mapeados são Ramos Arizpe, no México; La Paz, El Alto e Cochabamba, na Bolívia;
Tumbes, no Peru; Santa Fé e Buenos Aires, na Argentina e a renacionalização dos
serviços no Uruguai. E por fim, no Brasil, houve remunicipalização no município de
Itu e retorno ao poder estadual em Tocantins. O sítio eletrônico do observatório euro-
peu já referido traz o histórico dos processos de retomada dos serviços pelo poder
público em cada região mapeada.
Por fim, observa-se que, em face às condições de existência e manutenção da pan-
demia de covid-19, a Organização Mundial da Saúde (OMS) preconiza uma frequente
e correta higienização das mãos; além disto, para prevenir a transmissão do vírus
SARS-CoV-2, causador da covid-19, o Guia da OMS ressalta a necessidade de adequa-
da gestão da água potável e esgotamento sanitário para o controle da pandemia. Mas
para além do controle da pandemia, as questões sobre a necessidade de Saneamento
Básico adequado das populações socioambientalmente vulneráveis mostram-se fun-
damentais, particularmente no tocante ao acesso à água potável e ao esgotamento
sanitário, para prevenção de problemas de saúde e de mortalidade dessas populações,
que são as mais atingidas pela pandemia.

6.5 QUESTÕES SUGERIDAS PARA DEBATE


- Como mapear o uso da água entre diferentes atores sociais e agentes econômicos? De que forma
esses agentes também se relacionam? Como é possível fazer um mapeamento entre esses vários
usos da água? Como os conflitos se colocam entre esses atores e influenciam a própria gestão da
água e a governança participativa dessa água?

- Como se fazer a governança, de fato, descentralizada e participativa? Como isso é possível em uma
realidade de desigualdade como no Brasil?

- De que modo o saber das comunidades indígenas e tradicionais pode auxiliar em uma gestão mais
democrática da água?

- De que modo se pode distribuir a água e ter esgotamento sanitário para que todas as populações
tenham acesso a esses serviços?
170 Saneamento Básico e Acesso à Água

6.6 VÍDEOS COMPLEMENTARES


“A NEGAÇÃO DA CRISE” 1º episódio da websérie do projeto VOLUME VIVO. Disponível via URL em:
https://www.youtube.com/watch?v=90mfhpWppHw&t=1s
“A ÁGUA DE DENTRO” 2º episódio da websérie do projeto VOLUME VIVO. Disponível via URL em:
https://www.youtube.com/watch?v=l2RoQpUjt70
“DE ONDE VEM A ÁGUA?” 3º episódio da websérie do Projeto VOLUME VIVO. Disponível via URL
em: https://www.youtube.com/watch?v=lKm-Nfg-l4k
“ENTRE RIOS”. Disponível via URL em:
https://www.youtube.com/watch?v=Xi9c_N8uFvY

6.7 PUBLICAÇÕES SUGERIDAS PARA APROFUNDAR OS TEMAS


TRATADOS
ALVES, E. M.; PAZ, M. G. A. e FRACALANZA, A. P. Frontiers in Sustainable Cities. Green gentrification
and Environmental Injustice: a discusión based on the New Pinheiros River Program, São Paulo,
Brazil. DOI: https://doi.org/10.3389/frsc.2021.683660. Online: 06/11/21.

ALVES, E. M. et al. Water International, v. 46, 2021 – Issue 6: Water insecurity and the State: Failure,
Disconnection and Autonomy. Water security in two megacities: observations on public actions
during 2020 in São Paulo and London. DOI: https://doi.org/10.1080/02508060.2021.1970376 .
Online: 06/10/21.

EMPINOTTI, V. L. et al. Water International, v. 46, 2021 – Issue 6: Water insecurity and the State:
Failure, Disconnection and Autonomy. Water security in two megacities: observations on public
actions during 2020 in São Paulo and London. DOI: https://doi.org/10.1080/02508060.2021.193790
1. Online: 14/07/21.

FRACALANZA, A. P.; PAZ, M. G. A. A Água como bem ‘comum’: um olhar para a crise hídrica na
metrópole paulista, São Paulo, Brasil. Waterlat Gobacit Network, v. 5, p. 53-73, 2019. Disponível via
URL em https://sandbox.zenodo.org/record/265283#.YiKGnOjMLIU. Acesso em: 4 mar. 2022.

PAZ, M. G. A. et al. Revista Estudos Avançados USP, n. 102. Mai-ago./2021. Os conflitos das políticas
da água e do esgotamento sanitário: que universalização buscamos? DOI: https://doi.org/10.1590/
s0103-4014.2021.35102.012. Online: 01/09/21.

REFERÊNCIAS
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Crisis. New York, Cornell University Press, 2010.
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neamento (SNS). Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS).
Diagnóstico Temático – Serviços de Água e Esgoto. Brasília: A Secretaria,
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 171

2021.
BRASIL. Ministério do Meio Ambiente (MMA). Secretaria de Recursos Hídricos e
Ambiente Urbano (SRHAU). Conjunto de normas legais: recursos hídricos.
– Brasília: MMA, 2011. 640 p. Disponível via URL em: file:///C:/Users/fraca/
Downloads/Conjunto%20de%20Normas%20Legais%20%E2%80%93%20Re-
cursos%20H%C3%ADdricos.pdf Acesso em: 03 maio 2022.
BRASIL. Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento. Painel de Saneamento.
Acesso em: 22 fev. 2020. Disponível via URL em http://appsnis.mdr.gov.br/
indicadores/web/agua_esgoto/mapa-esgoto/.
FORUM (Revista). Em plena crise hídrica, Sabesp vendeu água com descon-
to para “grandes clientes”. Disponível em: https://revistaforum.com.br/
news/2015/4/28/em-plena-crise-hidrica-sabesp-vendeu-agua-com-desconto-
-para-grandes-clientes-12403.html. Acesso em: 03 mar. 2022.
FRACALANZA, A. P.; FREIRE, T. M. Crise da água na região metropolitana de São
Paulo: injustiça ambiental, privatização e mercantilização de um bem comum.
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FRACALANZA, A. P.; SINISGALLI, P. A. A. Conflitos de uso da água do reservatório
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estado de São Paulo. São Paulo: Annablume, 2009. p. 61-86.
JACOBI, P. R.; PAZ, M. G. A. da; SANTOS, I. P. O. (orgs.). Metodologias para o for-
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Saúde; Universidade de São Paulo: USP, 2016.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras,
2019.
MANFIO, D. V.; ALVES, E. M. Deficiências no saneamento e a COVID-19: Estudo
de caso sobre falta de água, vulnerabilidade social e óbitos, no município de
São Paulo. Online. 2020. Disponível em: https://observatoriodasaguas.org/
deficiencias-no-saneamento-e-a-covid-19-estudo-de-caso-sobre-falta-de-a-
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MANKIW, N. G. Introdução à Economia: princípios de Micro e Macroeconomia. Rio
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PUGA, B. P. e SILVA, J. I. A. O. As diferentes formas e modelos de privatização no setor
de água e saneamento. Publicado em 07/07/2021. In: OBSERVATÓRIO NA-
CIONAL DOS DIREITOS À ÁGUA E AO SANEAMENTO (ONDAS). Textos
Privaqua. Online. Disponível em: https://ondasbrasil.org/as-diferentes-for-
mas-e-modelos-de-privatizacao-no-setor-de-agua-e-saneamento/. Acesso
172 Saneamento Básico e Acesso à Água

em: 03 mar. 2022.


SÃO PAULO (ESTADO). Sistema Integrado de Gerenciamento de Recursos Hídricos.
SIGRH. São Paulo, 2022. Disponível em: https://sigrh.sp.gov.br/divisaohidro-
grafica. Acesso em: 03 mar. 2022.
SINISGALLI, P. A. A.; FRACALANZA, A. P.; GIATTI, L. L.; TADEU, N. D. Consequ-
ências socioeconômicas da crise da água em São Paulo. In: BUCKERIDGE,
M.; RIBEIRO, W.C. Livro branco da água. A crise hídrica na Região Metropo-
litana de São Paulo em 2013-2015: Origens, impactos e soluções. São Paulo:
Instituto de Estudos Avançados, 2018. p. 74-88.
TADEU, N. D.; SINISGALLI, P. A. A. Escalas de injustiça hídrica: estudo de caso em
Ilhabela – Litoral Norte de São Paulo. In: Desenvolvimento e Meio Ambiente,
v. 52, p. 53, dezembro 2019.
WORLD HEALTH ORGANIZATION; UNITED NATIONS CHILDREN’S FUND
– WHO e UNICEF. Progress on Household Drinking Water, Sanitation and
Hygiene – 2000-2020. Five Years into the SDGs. Geneva: World Health Or-
ganization (WHO) and the United Nations Children’s Fund (UNICEF), 2021.
ZWARTEVEEN, M. Z.; BOELENS, R. Defining, researching and struggling for water
justice: some conceptual building blocks for research and action. In: Water
International, v. 38, n. 2, 2014.
CAPÍTULO 7
Sindemia: novos sentidos para uma
conhecida realidade. As desigualdades
socioespaciais num contexto de pandemia
por covid-19 no Brasil

Sílvia Helena Zanirato

7.1 INTRODUÇÃO
Este texto se coloca dentro do escopo das discussões encampadas pela disciplina
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania no contexto da pandemia que nos aflige desde
2020. A abordagem aqui inserida olha para essas questões a partir da perspectiva es-
pacial, de modo a mostrar como o lugar que ocupamos no espaço, particularmente o
urbano, nos predispõe a mais ou menos direitos de cidadania e de qualidade de vida.
Numa conjuntura de disseminação do coronavírus, o lugar onde moramos, o tipo de
moradia, os deslocamentos que fazemos, as políticas públicas de cuidados da saúde,
entre outras, são condicionantes para a nossa proteção, ou exposição à contaminação.
O olhar na perspectiva socioespacial contribui para entender essas relações e ter mais
dados acerca dos desafios a enfrentar para uma vida sem essa pandemia – o que ainda
nos parece distante.
174 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

Para tanto cabe lembrar que a pandemia de covid-19, doença infecciosa causada
pelo vírus SARS-CoV-2 – Coronavírus, percebida pela primeira vez em dezembro de
2019, na China, causou desde então e até dezembro de 2021, mais de 304 milhões de
casos e 5,4 milhões de mortes. No Brasil, nesse mesmo tempo, os números chegaram
a 22 milhões de casos e 619.056 mortes pela doença (JOHNS HOPPINKS, 2021).
O impacto da covid-19 para o mundo todo se tornou enorme, com perdas de vidas
e crise econômica. As consequências estão a aprofundar as assimetrias socioeconômi-
cas já existentes entre países mais pobres e mais ricos e entre os habitantes de um
mesmo país, particularmente naqueles já marcados por desigualdades sociais (OX-
FAM, 2022).
Essa é a assertiva que orienta o texto, a de que em países com cumulativas desi-
gualdades socioespaciais, a pandemia adquire aspectos de sindemia. A partir dela
busca-se entender o que significa uma sindemia, se, e como ela se expressa no Brasil.
Para tanto, o texto é estruturado de modo a considerar o conceito sindemia, em segui-
da as condições sociais do Brasil no período imediatamente anterior à chegada da
covid-19, em continuidade são considerados estudos da Organização Mundial da Saú-
de (OMS, 2020) que mostram as relações entre desigualdades sociais e maior incidên-
cia da doença e, na sequência, o recorte espacial que se circunscreve à Região Metro-
politana de São Paulo, que concentra não apenas o maior número de habitantes do
país, mas também a que registra até o momento da escrita deste texto, a maior inci-
dência de casos e de mortes decorrentes do coronavírus. A análise desse material fa-
vorece responder à pergunta se, e como a sindemia se manifesta em nosso meio.

7.2 SINDEMIA
Sindemia é um neologismo que combina sinergia e pandemia, um vocábulo que
considera a interação de problemas de saúde em populações e o contexto social e eco-
nômico que as envolve. O termo foi cunhado pelo antropólogo e médico estaduniden-
se Merrill Singer na década de 1990, para explicar a interação de aspectos sociais em
determinadas doenças, que fazia com que essas não se explicassem somente por co-
morbidades (SINGER, 2009).
Richard Horton, médico, professor da Escola de Medicina Tropical e Higiene de
Londres e editor-chefe da The Lancet, uma das mais antigas e prestigiadas publica-
ções científicas do mundo, em um artigo publicado no final do mês de setembro de
2020, aplicou o conceito em relação à pandemia causada pelo coronavírus (HORTON,
2020). Segundo ele, o vírus que provoca a doença não atua sozinho. Fatores sociais e
ambientais promovem e potencializam as implicações negativas da interação da do-
ença, e a desigualdade social tem papel-chave nisso, pois em contextos de disparidade
social e econômica, a doença exacerba seus efeitos. Considera Horton que, para conter
o avanço e o impacto do coronavírus, é fundamental atentar para as condições que
tornam certos grupos mais vulneráveis a ele.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 175

Fonte: Manrique Gusmán, 2020.


Figura 7.1 – Modelo da Sindemia.

Essa questão foi considerada por Félix León Martínez, Pesquisador do Grupo de
Protección Social del Centro de Investigaciones para el Desarrollo (CID) de la Univer-
sidad Nacional de Colombia, em 05/10/2020, examinando a incidência da pandemia
na Colômbia (León Martínez, 2020). Ela também foi contemplada pela epidemiologis-
ta Sharrelle Barber, escrevendo na Lancet,

Os negros representam 13% da população dos EUA, mas cerca de um quarto


das mortes de COVID-19 e têm quase quatro vezes mais probabilidade de
morrer de COVID-19 em comparação com os brancos ... Negros em todas as
faixas etárias têm quase três vezes mais probabilidade do que pessoas brancas
de contrair COVID-19 (BARBER, 2020 p. 903).

Ausência de plano de saúde, problemas nutricionais, moradias lotadas e condições


de trabalho que levam à exposição ao vírus são os principais condicionantes.
Richard Horton, por sua vez, argumenta que a associação não pode ser dada a
priori e que para poder associar pandemia e sindemia há que se examinarem as inte-
rações entre indivíduos, populações e os ambientes sociais, especialmente as condi-
ções de desigualdade e injustiça social que contribuem para o agravamento e intera-
ção da doença, bem como para a vulnerabilidade. Segundo ele: “a natureza sindêmica
da ameaça que enfrentamos exige que tratemos não apenas cada aflição, mas também
que abordemos urgentemente as desigualdades sociais subjacentes que as afetam”
176 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

(HORTON, 2020, p. 874), ou seja, a pobreza, a moradia, a educação e a raça, que são
fatores determinantes poderosos da saúde.
Essas considerações levam ao ponto seguinte que é ver se a sindemia pode se ex-
pressar no Brasil.

7.3 A PANDEMIA NO CONTEXTO BRASILEIRO


Ainda que não tenha empregado o conceito sindemia, estudos da Organização
Mundial da Saúde mostram as relações entre desigualdades sociais e maior incidência
da covid-19 em face de fatores como:
1- Dependência de transportes de massa;
2- Moradias com pouca infraestrutura e alta densidade populacional;
3- Condições precárias de saneamento;
4- Pouca efetividade de políticas públicas;
5- Aspectos culturais e comportamentais (OMS, 2020).

A análise desses fatores, associada ao conceito sindemia, permite se acercar da


possibilidade de uma condição sindêmica entre nós.
Para melhor explorar essa questão, é importante lembrar que a mobilidade é um
fator essencial na constituição de uma pandemia, o que faz com que cidades globais se
tornem “hubs” de contaminação a partir de deslocamentos aéreos. A mobilidade foi
condição para a disseminação do vírus de Wuhan, na China, para as principais capi-
tais europeias e delas para os demais países até configurar uma condição de pande-
mia.
Convém notar que a chegada do vírus no Brasil ocorreu quando se atingia no país
85% de pessoas morando em cidades, sendo que no Sudeste esses números chegavam
a 93% (IBGE, 2020). Naquele momento o país já registrava índices econômicos e so-
ciais preocupantes, como uma dívida pública acima de 80% do PIB e com o desempre-
go alcançando 12 milhões de pessoas (BANCO CENTRAL, 2020; IBGE, 2020). A taxa
de desemprego na população acima de 14 anos havia mudado de 6,8% em 2014 para
11,9% em 2019. A proteção previdenciária à população ocupada em idade ativa de
72,5% em 2014 havia caído para 70,3% em 2019. A população com renda abaixo da
linha da pobreza havia variado de 4,5% em 2014, para 6,3% em 2019, o que significava
que 4,3 milhões de brasileiros voltaram a viver na pobreza que, no total, atingiu 13,3
milhões de pessoas. Parte dessa população havia se convertido em morador de rua,
que de 105,3 mil em 2014, havia atingido 202,6 mil pessoas em 2019 (CASTRO, 2020).
Somados a isso se via um baixo investimento em infraestrutura urbana, ao redor de
menos de 2% do PIB, uma média inferior à de países em condições de desenvolvimen-
to semelhantes às do Brasil (BANCO MUNDIAL, 2018).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 177

Tais condições estruturais, associadas aos fatores destacados pela Organização


Mundial da Saúde (2020) que explicam a maior incidência da doença, permitem asso-
ciações com a sindemia, como pode se ver a seguir.

7.4 PANDEMIA? SINDEMIA?

7.4.1 DEPENDÊNCIA DE TRANSPORTES DE MASSA


As condições em que ocorre a mobilidade, como citado pela OMS, são fatores es-
senciais na constituição de uma pandemia e isso se verificou desde a chegada da co-
vid-19 no Brasil por portadores do vírus que chegaram pelo Aeroporto Internacional
de São Paulo e os deslocamentos aéreos de São Paulo para as demais capitais do país,
sem qualquer tipo de controle.
A disseminação da doença internamente está associada à opção feita pelo país nas
décadas de 1940-1950 pelo sistema rodoviário e de veículo individual, que relegou aos
que não têm condições de ter um veículo motorizado particular, a dependência do
transporte público coletivo.
O transporte público coletivo é o meio utilizado pela população mais pobre para
seus deslocamentos cotidianos de suas moradias nas periferias urbanas até o local de
trabalho nos centros das cidades. Esse transporte é, na avaliação da Agência Nacional
de Transporte Público, “mais lento, com menor confiabilidade, recursos e atendimen-
tos da demanda, tornando-se ‘mal necessário’ para as pessoas que não podem dispor
do veículo individual motorizado” (ANTP, 1999, p. 19). Ainda assim, é o meio respon-
sável por 50% das viagens motorizadas no país (ANTP, 2020), tendo como caracterís-
ticas marcantes a irregularidade de horários, a lotação e a insegurança (IPEA, 2011).
As pessoas que mais usam o transporte público são aquelas que residem em locais
distantes do trabalho e que realizam movimentos pendulares diários casa/trabalho/
casa. O tempo de deslocamento, as irregularidades na disposição dos veículos nos
períodos de maiores fluxos de viajantes e as aglomerações disso resultante, expõem
essa população aos riscos da contaminação.

7.4.2 MORADIAS COM POUCA INFRAESTRUTURA E ALTA DENSI-


DADE POPULACIONAL
Dados do IBGE de 2010 relativos às condições de moradia mostravam que os aglo-
merados subnormais, popularmente conhecidos como favelas, eram em torno de
6.300 e se faziam presentes em 323 municípios brasileiros. Isso correspondia a 6% da
população brasileira, ou a 11.425.644 moradores em favela (IBGE, 2010).
Localizadas em sua maior parte nas regiões periféricas das cidades e com edifica-
ções autoconstruídas, as moradias eram caracterizadas pela carência de serviços pú-
178 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

blicos essenciais, a saber: abastecimento de água, fornecimento de energia, coleta de


lixo, coleta e destinação do esgoto. Esse tipo de moradia se contrapõe ao que se enten-
de por moradia digna, que é aquela que

[...] dispõe de instalações sanitárias adequadas que garantam as condições de


habitabilidade, e que seja atendida por serviços públicos essenciais, entre eles
água, esgoto, energia elétrica, iluminação pública, coleta de lixo, pavimenta-
ção e transporte coletivo, com acesso aos equipamentos sociais básicos (SÃO
PAULO - Plano Diretor SP, 2002, art. 79, § único).

Se em 2010 havia 6.300 aglomerados subnormais no país, em 2019 esse número


saltou para aproximadamente 13.150, distribuídos por 734 municípios. Segundo o
IBGE (2020), isso ultrapassava 5,1 milhões de moradias, ou quase 8% dos domicílios
brasileiros. O estado de São Paulo era o que reunia o maior número desses domicílios,
quase três milhões de moradias nessa condição.
Cômodos pequenos com pouca ventilação e alta densidade ocupacional, associa-
dos às dificuldades de medidas de saneamento preconizadas para a não disseminação
do vírus ampliavam a possibilidade de contaminação dos moradores dessas localida-
des. Em Nota Técnica no início de 2020, o IBGE alertava que

[...] nos Aglomerados Subnormais, residem, em geral, populações com con-


dições socioeconômicas, de saneamento e de moradia mais precárias. Como
agravante, muitos aglomerados subnormais possuem uma densidade de edi-
ficações extremamente elevada, o que facilita a disseminação do COVID-19
(IBGE, 2020, p. 4).

Esses números se explicam em face da transformação do solo em mercadoria. Na


sociedade capitalista o acesso à terra é condicionado ao preço, e esse varia em função
da quantidade e qualidade de infraestrutura disponível para o local.
No Brasil, o processo de urbanização foi e é marcado por forte desigualdade social,
de modo que a urbanização é considerada uma tragédia (MARICATO, 2000). A tra-
gédia se explica uma vez que as periferias das cidades brasileiras tiveram no decorrer
do século XX um crescimento urbano intenso e extensivo, não acompanhado de po-
líticas públicas de fornecimento de habitação e de provimento de infraestrutura urba-
na. A carência de equipamentos urbanos em regiões periféricas tornou o preço do solo
mais barato nesses locais, e com isso a população de baixa renda se dirigiu esses espa-
ços, com menor preço no mercado de terras, muitos deles inadequados para moradia
(FERREIRA, 2011; MARICATO, 2008).
A concentração de pessoas pobres na periferia é assim resultante de um processo
histórico de exclusão social. E essa exclusão se agrava quando se considera o sanea-
mento disponibilizado a tais locais.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 179

7.4.3 CONDIÇÕES DE SANEAMENTO


Dados do Sistema Nacional de Informação Sanitária de 2018 mostravam que qua-
se 100 milhões de brasileiros não tinham acesso à coleta de esgoto e quase 35 milhões
estavam sem o acesso à água tratada (SNIS, 2018; TRATA BRASIL, 2020). Isso signi-
ficava 16,38% da população brasileira sem acesso ao abastecimento de água e 46,85%
não dispondo da coleta de esgoto, que era muitas vezes vertido para rios, riachos, la-
gos, mangues e praias. Condições como essas explicavam porque o país registrou em
2018 mais de 233 mil internações por doenças de veiculação hídrica, quase 50% em
crianças de 0 a 5 anos (DATASUS, 2018).
Na RMSP, em 2020, a oferta de água tratada atingia 98,2%, todavia como esclarece
Rodrigues em Nota Técnica do IPEA, a mera conexão à rede geral de água não garan-
te a frequência adequada no fornecimento nas favelas. Conforme a nota:

Embora não exista um levantamento específico sobre a construção das redes


de abastecimento de água nas favelas, é possível deduzir que as redes de água
são, atualmente, um misto/sobreposição dessas situações diversas: ligações re-
alizadas por meio de mutirões comunitários, ligações clandestinas e também
redes construídas pelas companhias de saneamento (estaduais) e/ou progra-
mas de urbanização de favelas, (em geral, municipais) (RODRIGUES, 2020,
p. 76/77).

Assim, ainda que percentualmente os dados possam indicar maior cobertura de


oferta de água, “a inconclusão das obras de urbanização de favelas, a falta de manu-
tenção das redes e o crescimento descontrolado dos assentamentos” (Idem, p. 77) não
garantem a oferta em tais locais. Dessa forma, como conclui a nota técnica referida, o
direito à cidade e à moradia compreende também a disponibilidade de serviços, infra-
estrutura e equipamentos públicos. A moradia deve ser conectada às redes de água,
saneamento básico, gás e energia elétrica; em suas proximidades espera-se que haja
escolas, creches, postos de saúde, áreas de esporte e lazer, bem como serviços de trans-
porte público, limpeza, coleta de lixo, entre outros.
A piorar a situação, não se pode esquecer que além do saneamento há outro fator
destacado pela OMS para a transmissão do coronavírus já ressaltado anteriormente,
que é a dependência de transportes de massa, posto que nas periferias está a moradia
da população de baixa renda e nas regiões centrais, a maior parte dos empregos for-
mais e informais. O transporte público, que não acompanha o ritmo da expansão
periférica, faz com que milhões de pessoas convivam com transportes coletivos inefi-
cientes e superlotados, resultando em maior propensão à contaminação. Tanto a falta
de programas habitacionais para a população de baixa renda, quanto as condições de
saneamento e de transporte público dizem respeito a políticas públicas, como se vê a
seguir.
180 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

7.4.4 EFETIVIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS


O penúltimo fator citado pela OMS é o que diz respeito à efetividade de políticas
públicas.
O que foi até então exposto permite compreender que a pouca efetividade de polí-
ticas de inclusão social no Brasil é histórica, o que explica os dados até aqui apresen-
tados. Essa pouca efetividade se concretiza na negação do direito à moradia digna, ao
saneamento e a um transporte em condições adequadas, que resultam em alta vulne-
rabilidade socioambiental de parte significativa de sua população.
O olhar retrospectivo permite perceber que, no que diz respeito a medidas gover-
namentais específicas para a covid-19, o aumento exponencial da contaminação se
deveu a essas condições políticas. Isso se verificou primeiramente nos deslocamentos
aéreos simultâneos à entrada do vírus no Brasil que, sem um controle efetivo, acaba-
ram por levar a contaminação de São Paulo para o restante do país. A partir do trans-
porte aéreo o vírus embrenhou-se pela rede intraurbana e se difundiu por outros mo-
dais (aquaviário, rodoviário ou ferroviário) nas escalas metropolitanas, intermunicipais
ou interestaduais (RODRIGUES, 2020a).
Uma vez instalada a transmissão comunitária, esperavam-se orientações do gover-
no federal para a adoção de medidas de controle da disseminação da doença, todavia
o que se viu foi um governo que acabou por minimizar a importância da covid-19,
com o representante maior da política do país “mantendo-se como um dos poucos
dirigentes mundiais que se recusam a reconhecer a ameaça que ela constitui” (AQUI-
NO et al., 2020, p. 2.430).
A descoordenação intergovernamental no enfrentamento da covid-19 não tardou
a se apresentar e se expressou no conflito em relação ao estabelecimento de medidas
para o isolamento social. Ainda que governadores e prefeitos de diferentes localidades
do Brasil tenham adotado medidas de isolamento, o presidente da República buscou
flexibilizar as medidas, no que foi desautorizado pelo Supremo Tribunal Federal
(ABRUCCIO et al., ago. 2020).
Incluem-se como problemas associados que ampliaram a disseminação da co-
vid-19 as estratégias de testagem da população, com exames apenas em casos especí-
ficos e com implicação direta nas subnotificações de casos. A forma de testagem,
agregada ao questionamento quanto ao uso de equipamentos de proteção como as
máscaras, a ênfase no tratamento precoce, a proliferação de falsas informações e ata-
ques à Ciência, a desautorização de orientações emanadas pelo Ministério da Saúde
em defesa de terapias sem validação científica, como a cloroquina e seus efeitos cola-
terais, ou a insistência de “isolamento vertical”, contrário às indicações da Organiza-
ção Mundial da Saúde (OMS) somados à demora em definir ações voltadas a garantir
a renda mínima às pessoas em vulnerabilidade, desestimularam o isolamento, agra-
varam a transmissibilidade e levaram a perdas de vida de centenas de milhares de
brasileiros. Tudo isso acompanhado pela “naturalização de um novo nível de exposi-
ção social à morte, à ausência completa de luto e comoção social pelas mortes” (SA-
FATLE, 2020, p. 11).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 181

Esses fatores, por sua vez, se relacionam com o último ponto, que diz respeito ao
comportamento social.

7.4.5 FATORES CULTURAIS E COMPORTAMENTAIS


Não há uma cultura homogênea. Renda, status profissional, posição política, edu-
cação formal, religião, entre outros afetam, de fato, o comportamento das pessoas e
influenciam na compreensão e interpretação da realidade à sua volta.
Vivemos desde meados da década de 2010 um clima de ceticismo crescente, de
descrença nas instituições que favoreceram a disseminação de teorias conspiratórias
e de negacionismos, encampados por governos com políticas escancaradamente anti-
científicas.
Nos primeiros dias de abril de 2020, com a covid-19 já instalada em nosso país, o
Datafolha mostrou que 76% dos entrevistados eram favoráveis à manutenção do dis-
tanciamento social para controlar a epidemia, mesmo que isso significasse prejuízos
econômicos (AQUINO et al., 2020). Todavia, a desautorização das normas de isola-
mento pelo governo federal, atendendo aos interesses do mercado, associada ainda ao
fato de que para grande parte da população mais pobre, ficar sob isolamento signifi-
cava o risco de não ter o que comer, não pagar aluguel, conta de luz, não poder com-
prar o botijão de gás, e ainda, ter filhos apinhados no espaço com ausência de cuida-
dos, contribuíram para a flexibilização do isolamento social (SPOSATTI, 2020).
A disseminação de entendimentos entre escolhas de salvar vidas ou salvar a eco-
nomia, na qual a defesa do mercado naturaliza a oposição entre economia e vida tam-
bém dificultou a prática de isolamento social. Isso fez com que “trabalhadores preca-
rizados e sem direito, pequenos empreendedores e desempregados, também
parece(sse)m ignorar a ameaça da epidemia” (CAPONI, 2020, p. 219). Os entendimen-
tos que se viam eram de que “cada um deve cuidar de sua própria vida, pois não po-
demos limitar o direito de ir e vir, o direito de comprar e vender, [pois] que o mercado
deve continuar funcionando, apesar de tudo” (Idem).
Em outubro de 2020, os indicadores mostravam que a população brasileira, com
precárias condições de isolamento social era composta por 12 milhões de desempre-
gados (IBGE, 2020), cerca de 50 milhões de informais (parte desempregados), 14 mi-
lhões de famílias, ou cerca de 45 milhões de pessoas em pobreza extrema (BRASIL,
CADÚnico/BOLSA FAMÍLIA, 2020) e perto de 150 mil moradores de rua. Ou seja,
em torno a 100 milhões de brasileiros. Essa população se expunha nas ruas em busca
de trabalho e ou renda para a sobrevivência.
A somatória dos cinco fatores destacados pela OMS que tratam das relações entre
desigualdades sociais e maior incidência da doença se fazem presentes no Brasil, difi-
cultam o cumprimento do distanciamento social recomendável, levam ao crescimen-
to do número de casos e mortes e explicitam as dificuldades para o controle da pan-
demia no país. A disseminação da covid-19 escancara a desigualdade brasileira e a
grande vulnerabilidade dela decorrente.
182 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

A dificuldade de enfrentar essa questão é enorme e remete às considerações de


Clóvis Ultramari (2006) a respeito de lugares que vivem crises cumulativas, uma con-
dição que se aplica aos países pobres e em contínuo processo de empobrecimento, que
convivem com crises consequentes da precariedade de assentamentos urbanos e da
incapacidade das localidades em se tornarem resilientes. São lugares onde os desastres
ocorrem em câmera lenta, onde não há pausas, onde se instala uma crise imperceptí-
vel em sua gravidade maior, seja pelo tempo, seja pelo hábito da convivência que não
mais surpreende.
As crises cumulativas que se colocam no país aprofundam a desigualdade social
expressa na hierarquia espacial nas cidades e mostram a cidade dual. De um lado a
cidade legal, que recebe infraestrutura, que registra menos casos e mortes pela doen-
ça; de outro, a cidade da ilegalidade, onde se aloja a população mais pobre e sobre a
qual as políticas públicas pouco incidem. A dualidade urbana revela a face mais per-
versa das desigualdades num contexto pandêmico: a grande mortalidade nas perife-
rias.

7.5 SINDEMIA? UM OLHAR PARA A METRÓPOLE PAULISTA


Na Região Metropolitana de São Paulo, de uma população total de 19.456.367 de
habitantes (IBGE, 2010), 2.169.502 vivem em setores subnormais e 652.318 vivem em
setores precários, totalizando uma população de 2.821.820 habitantes vivendo em si-
tuação de precariedade. Somente o município de São Paulo contempla 1.675.221 habi-
tantes em aglomerações subnormais, o que representa 15% da população do municí-
pio (IBGE, 2010).
Os aglomerados subnormais concentram-se a oeste e sul da RMSP, predominante-
mente nos municípios de Cajamar, Osasco, Carapicuíba, Cotia e em Mauá, Ribeirão
Pires e São Bernardo do Campo (BALTRUSIS; D´OTAVIANO, 2009). Essas regiões
foram também as que registraram maiores problemas relacionados ao abastecimento
de água no decorrer da pandemia, como diagnosticado pelo Laboratório Justiça Ter-
ritorial – Labjuta, da UFABC (LABJUTA, 2020). Nessas regiões havia entre 35% e 40%
das moradias com mais de duas pessoas por quarto, enquanto no Itaim Bibi, distrito
nobre de SP, estas não passam de 2% (OLIVEIRA, 2020).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 183

Fonte: Baltrusis e D´Otaviano, 2009.


Figura 7.2 – distribuição dos aglomerados subnormais na RMSP.

À periferização da moradia se soma a necessidade de deslocamentos diários. Isso


pode ser mais bem percebido quando se olha para o trajeto urbano da covid-19, ini-
ciado nas áreas mais ricas, nos hospitais particulares, e seu deslocamento para as pe-
riferias, regiões com moradias precárias, grande densidade populacional e transporte
público superlotado.
A população mais pobre é extremamente dependente do transporte coletivo; ne-
cessitando se deslocar por grandes distâncias em viagens de baixa qualidade. Pesqui-
sa origem destino de 2016 da Prefeitura Municipal de São Paulo mostrou que as popu-
lações das regiões leste e sul do município dispendiam mais de 60 minutos em ida de
sua casa para o trabalho. Nessas regiões, esse tempo de deslocamentos se apresentava
para 80 a 100% da população (PREFEITURA DE SÃO PAULO, 2016). 80,74% dos
usuários do transporte público ganhavam menos de dois salários mínimos (SÃO
PAULO, 2018).
Essa afirmativa pode ser constatada nos dados de 31 de março de 2020, do Boletim
Epidemiológico do município de São Paulo que dizia: “A distribuição de casos nos
territórios mais periféricos da cidade ainda é significativamente menor que no centro
expandido”. Em 08 de abril de 2020 esse cenário já havia mudado, como pode ser ve-
rificado pelo que foi divulgado pelo Centro de Vigilância Epidemiológica do Estado,
que mostrava que mais de um terço das mortes estava ocorrendo nas bordas da cidade
(PIAUI, 2020).
184 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

A periferia se converteu em lócus de concentração da covid-19. A pesquisa da Uni-


fesp/Fapesp em setembro de 2020 salientava que os usuários do transporte público
estavam entre os que mais morriam pela doença em São Paulo (EXAME, 2020).
Os dados da RMSP mostraram a relação entre idade e renda dos casos levados a
óbito e constatava-se que 66% dos óbitos ocorridos até 18 de maio de 2020 eram de
pessoas que moravam em casas com rendimento médio mensal de 0 a 3.000 reais.
Outros 21% eram de pessoas que tinham rendimento entre 3.001 e 6.500 reais. Já para
as famílias que ganhavam 19.000 reais ou mais, as mortes representavam 1,1% (OB-
SERVABR, 2020).

Fonte: OBSERVABR – Fundação Perseu Abramo, 2020.


Figura 7.3 – relação entre idade e renda e óbitos por covid-19.

Dados da Prefeitura de São Paulo de 17/09/2020, divulgados pela Rede Brasil, mos-
traram que o índice de contaminação da população negra estava em 17,4%, enquanto
o da população branca era de 10,7%. Já entre classes sociais, nas classes A/B a preva-
lência de contaminação era de 3,1%, enquanto nas classes D/E era de 18,7% (REDE
BRASIL ATUAL, setembro 2020).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 185

Fonte: G1, jun. 2020.


Figura 7.4 – Mortes por faixa de renda na RMSP.

A Rede Nossa São Paulo, em junho de 2020, revelava que em Moema e Jardim
Paulista com 130 falecimentos, a idade dos que perderam a vida para a doença estava
entre 80 a 81 anos, enquanto que nos distritos de Grajaú e Cidade Tiradentes, com 460
mortes, a idade dos falecidos situava-se entre 57 anos a 59, o que significava 3,5 vezes
mais óbitos que os dois distritos com maior idade média ao morrer. A mesma fonte
trouxe o “Mapa da Desigualdade”, divulgado em 21/10/2021, apresentando os dez pio-
res distritos em números de casos e morte pela doença, sendo que sete deles estavam
na região leste, principalmente na área mais periférica. Nos distritos de Grajaú e Ci-
dade Tiradentes, ao menos uma em cada cinco mortes foi causada pelo coronavírus
(REDE NOSSA SÃO PAULO, 2020).
A triste constatação de que a covid-19 foi propagada por meio do transporte e da
circulação das categorias definidas por trabalhadores essenciais, aqueles que não pu-
deram parar para que a outra parte da sociedade pudesse cumprir a quarentena foi
tratada por Raquel Rolnik, pesquisadora da FAU-USP, em julho de 2020: “A circula-
ção daqueles que precisam trabalhar e dependem do transporte público foi determi-
nante para o aumento de casos da doença nos bairros de Capão Redondo, Brasilândia,
Itaquera, Cidade Ademar, entre outros”. (JORNAL USP, 15/07/2020). De março de
2020 a março de 2021, a maioria das mortes por covid-19 foi de empregadas domésti-
cas, pedreiros, motoristas de aplicativos e de táxi (INSTITUTO POLIS, 2021).
186 Sindemia: novos sentidos para uma conhecida realidade. As desigualdades socioespaciais num...

Fonte: Outras Mídias – Instituto Polis, 2021.


Figura 7.5 – Mortes por categoria profissional.

Essa somatória de dados, se associada ao que a OMS e ao que Richard Horton con-
sidera como sindemia, permite afirmar que sim, a sindemia da covid-19 está no Brasil.

7.6 CONSIDERAÇÕES FINAIS


A expressão da sindemia no Brasil pode ser confirmada ao longo da exposição do
texto e se assenta nas condições sociais do Brasil no período anterior à chegada da
covid-19 e que mostraram as relações entre desigualdades sociais e maior incidência
da doença em face de fatores como transportes de massa, infraestrutura e densidade
populacional, condições de saneamento, efetividade de políticas públicas e aspectos
culturais e comportamentais. O recorte na Região Metropolitana de São Paulo e a
interpretação de dados específicos para essa região favoreceram responder à pergunta
se, e como a sindemia se manifesta em nosso meio.
Este texto se encerra ainda na continuidade da pandemia, que se agrava uma vez
mais diante de novas cepas que se formam. Desde dezembro de 2021 temos a varieda-
de ômicron da covid-19. Os números de casos e internações são novamente alarman-
tes, as mortes continuam a ocorrer, recaindo principalmente sobre os não vacinados e
na população periférica, e nos remetem uma vez mais ao texto de Richard Horton,
também reproduzido pela Fiocruz em outubro de 2020: “a menos que os governos
elaborem políticas e programas para reverter profundas disparidades sociais, socieda-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 187

des desiguais nunca estarão verdadeiramente protegidas da covid-19” (HORTON,


2020, p. 874). Horton tem claro que a sindemia precisa ser combatida desde a raiz,
“desde os problemas sociais como a desigualdade econômica e a carência de serviços
básicos”. Não se pode pensar no enfrentamento do problema e na construção de futu-
ros possíveis sem considerar a distribuição socioespacial desigual e seus efeitos na
pandemia, sob o risco de que se confirme o que disse a socióloga Maria Hermínia
Tavares em abril de 2020, no início da pandemia “quando a epidemia passar, o Brasil
estará mais triste, mais pobre e certamente mais desigual” (FOLHA DE S. PAULO,
16/04/2020).

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CAPÍTULO 8
Justiça Planetária e Equidade
frente à covid-19

Pedro Henrique Campello Torres

8.1 INTRODUÇÃO
O presente capítulo é referente à vídeo-aula número 8, que tem como título “Justi-
ça Planetária e Equidade frente à COVID-19”, parte da edição especial da disciplina
Sociedade Meio Ambiente e Cidadania (ACH0152), ministrada em colaboração com
docentes do curso de Gestão Ambiental da Escola de Artes, Ciências e Humanidades
(EACH), da Universidade de São Paulo (USP), em duas edições durante a Pandemia
de covid-19, a qual tive o privilégio de me juntar na segunda edição, de agosto a de-
zembro de 2021.
A disciplina foi compartilhada com os professores Ana Paula Fracalanza, André
Simões, Carla Morsello, Cristina Adams, que fecha o livro no próximo capítulo, Lu-
ciana Araújo, Marcos Bernardino, Silvia Zanirato, autora do capítulo anterior, e a
professora Sylmara Dias. Trata-se, portanto, de uma contribuição crítica original e de
abordagem híbrida, multidisciplinar, com a reunião de diversas áreas do conheci-
mento sobre um dos momentos mais críticos de nosso tempo presente: a pandemia da
SARS-CoV-2.
192 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

Meu ponto de partida e lugar de fala é a área das ciências sociais e do planejamen-
to urbano, em perspectiva interdisciplinar sobre temas relacionados às desigualdades
ambientais, justiça ambiental e planetária. O foco sobre a produção e reprodução das
injustiças e das desigualdades – bem como da luta por justiça – é o Norte que guia a
abordagem do presente capítulo, em diálogo com as lentes da justiça ambiental (AC-
SELRAD, 2010) e da justiça planetária (DRYZEK; PICKERING, 2019).
Justiça Planetária e Equidade frente à COVID-19, dialoga com o capítulo sobre
desigualdades socioespaciais e pandemia, da professora Silvia Zanirato, que aponta
para uma temática que os historiadores chamam de “História Imediata”, aquela que
está ocorrendo no tempo presente (FERREIRA, 2000). Mas qual tema é esse? O da
vacinação e imunização contra a covid-19, e toda série de complexidades, disputas,
narrativas, tragédias e desigualdades entorno deste processo – desde a produção, da
compra e da disponibilização do imunizante.
Mas não se trata aqui de fazer uma análise e discussão sobre o processo da vacina-
ção enquanto prática da imunização e seus aspectos epidemiológicos, mas os aspectos
vamos dizer assim, opacos, e os modos, que permeiam os meandros do processo de
produção, fabricação, venda e circulação desse imunizante, para conseguirmos regu-
lar nossa lupa com foco no tema das desigualdades.
Escrever e operar o campo história do tempo presente e imediata é sempre um
desafio. Afinal, estamos falando de uma história viva. Viva, mutante e desafiadora –
tanto do ponto de vista dos acontecimentos (histoire événementielle), do distancia-
mento temporal do objeto, quanto do uso acurado das fontes (DELACROIX, 2018). E
escrever sobre a pandemia de covid-19 nos faz refletir e encarar esse desafio. Por isso
mesmo, em primeiro lugar, este capítulo não tem a pretensão de apresentar um estudo
definitivo sobre a vacinação contra a SARS-CoV-2, até porque os dados vão mudando
e sendo atualizados em tempo real, o tempo imediato. Então, ao contrário, este capí-
tulo busca tecer uma contribuição que apresente pistas, indícios e sinais – em diálogo
com o clássico paradigma indiciário de Carlo Ginzburg (GINZBURG, 1989), sobre os
efeitos desiguais do vírus e do processo de vacinação contra ele, buscando tensionar a
escala local e global, bem como suas relações com o processo de produção e reprodu-
ção de vulnerabilidades e injustiça ambientais. Processos que, embora imediatos e do
tempo presente, são entendidos aqui como partes de uma estrutura de longa duração
(longue durée) que produz e reproduz as desigualdades em diferentes escalas.
O desafio e a complexidade de operar a história do tempo presente não devem
desencorajar tais estudos e pesquisas. Ao contrário, e como justifica o historiador Eric
Hobsbawm, a necessidade de realizá-la é imperativa, ainda que seja para salvar do
esquecimento – e talvez da destruição – as fontes que serão indispensáveis para os
próximos historiadores (HOBSBAWM, 1998). Ou seja, refletir nesses momentos sobre
os processos ocorridos durante a pandemia é fundamental, sobretudo, para uma his-
tória que está sendo construída por nós mesmos, com enorme dificuldade de acesso a
dados, fontes, pesquisa primária, ou mesmo com bases etnográficas.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 193

8.2 A GOVERNANÇA DISRUPTIVA DO GOVERNO FEDERAL FACE


À COVID-19
No filme Adeus, Lenin! do diretor Wolfgang Becker, lançado em 2003, a persona-
gem principal, uma comunista moradora da parte oriental da Alemanha, entra em
coma e acorda, um ano mais tarde, quando o Muro de Berlim havia caído. Seu filho,
com receio do que poderia representar para a mãe a descoberta do fim do regime co-
munista em seu país, passa a forjar a realidade de modo que ela acredite estar vivendo
ainda sob o regime comunista.
Imaginemos que alguém esteve, assim como no exemplo do filme citado, pratica-
mente fora do ar, em coma, nos dois primeiros anos da pandemia de covid-19, no
Brasil. Totalmente desligado dos acontecimentos e sem informação do que estava se
passando por aqui.
Ao olhar os dados de vacinação do Brasil hoje no Our World in Data,1 fonte de
dados que atualiza diariamente uma base global, tem-se a impressão de que o Brasil
não está mal em relação à vacinação contra o SARS-CoV-2. Em novembro de 2021,
por exemplo, a plataforma indicava o Brasil ocupando a 14ª posição entre os países
que mais aplicaram as duas doses da vacina, com 58,97% da população com duas ou
mais doses, ou com a dose única, e 75,51% com pelo menos uma dose ou a dose única
(Figura 8.1).

Fonte: Our World in Data.


Figura 8.1 – Percentuais de população por país vacinada com uma dose (verde claro), ou totalmente
imunizada (verde escuro), em 11 de novembro de 2021.
1 A plataforma pode ser acessada em https://ourworldindata.org/.
194 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

Reparem, ainda, que não por acaso, as últimas posições são ocupadas por países
pobres do que se convencionou chamar de Sul Global, com Tanzânia em último, pre-
cedida por Nigéria, Quênia, Egito, África do Sul. Todos países do continente africano.
Realidade que expressa de forma cruel o que aqui se entende como desigualdades em
escala planetária e, portanto, a imperativa necessidade de uma luta por justiça nesse
âmbito. Percebendo as permanências escalares – do local ao global, do território à
escala planetária – das desigualdades, autores como Dryzek e Pickering (2019) provo-
cam um instigante debate sobre a necessidade de se pensar a justiça ambiental em
escala planetária – uma justiça que vai além das fronteiras nacionais, das gerações e
também dos humanos. Na mesma direção está o que autores, como Kashwan et al.
(2020) definem como a necessidade de “priorizar os pobres na governança do sistema
terrestre”, reconhecendo um desequilíbrio de forças, reações e demandas em escala
planetária nacionais e subnacionais.
Durante a covid-19, isso pode ser percebido algumas vezes, principalmente no que
diz respeito à vacinação – desde a produção, comercialização e distribuição. As na-
ções mais pobres, principalmente da África e da América Latina, demoraram mais
para começar a vacinar e tiveram (e ainda têm) mais dificuldades para adquirir o
imunizante (TATAR et al., 2021). Por outro lado, iluminando espaços de resistência e
esperança, na escala local,2 ou em cooperação entre escalas, ações coletivas contribu-
íram para a busca de reações onde persistem as injustiças, o descaso e as desigualda-
des. Vários exemplos foram identificados no Sul Global durante a pandemia de co-
vid-19, incluindo redes de cidades e interação transacional entre atores sociais (BAI et
al., 2020).
A Figura 8.1, no entanto, traz dados do momento, uma espécie de foto, como fala-
mos anteriormente, de uma história viva, mutante, sobre os percentuais de vacinação
por país e que tem como primeiro lugar de cobertura vacinal a nação dos Emirados
Árabes Unidos, seguida por Portugal, Cuba, Singapura, Chile e Camboja. O objetivo
aqui, no entanto, é buscar não apenas a foto, mas o filme – a sequência dessas fotos
que nos trouxe até a presente conjuntura.
Mas essas desigualdades ocorrem apenas em escala internacional, planetária? A
resposta é não. No Brasil, por exemplo, o estado de São Paulo, atingiu em novembro
de 2021, 70% de vacinação com as duas doses de imunizante. A cidade do Rio de Ja-
neiro, no mesmo período registrava 92,8% da população maior de 18 anos com as
duas doses, ou a dose única (caso da vacina Jansen). E aí uma peculiaridade interes-
sante sobre o caso do Rio de Janeiro, inclusive para se pensar a gestão ambiental,
gestão urbana, gestão metropolitana, gestão pública, a governança da pandemia de
maneira geral: a cidade do Rio de Janeiro não pediu a comprovação de residência
como ocorreu em diversos municípios do estado São Paulo, inclusive na capital.

2 Ações importantes, em rede, foram registradas e reportadas em diversas favelas do Brasil, por exem-
plo, em que casos como os Prefeitos de Ruas em Paraisópolis. Registro importante, além da mídia
tradicional e as redes sociais, é o artigo de Ortega e Orsini de 2020 “Governing COVID-19 without
government in Brazil: Ignorance, neoliberal authoritarianism, and the collapse of public health leader-
ship”, publicado na Global Public Health.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 195

Isso criou uma complexidade na gestão da pandemia para diversos municípios da


Região Metropolitana do Rio, que não sabiam estimar, em certo momento, quantas
doses ou quanto tempo a “janela” de uma faixa etária teria que ficar aberta. E, como
há um movimento pendular muito grande de trabalhadores que saem de municípios
como Duque de Caxias, São Gonçalo, a própria Niterói ou cidades da Baixada Flumi-
nense para trabalhar no Rio de Janeiro, houve – entre outras questões – dificuldades
de aplicar a vacina no horário comercial nesses municípios, principalmente pelo fato
de o Rio de Janeiro não pedir o comprovante de residência, o que facilitava que as
pessoas se vacinassem na cidade de trabalho, não de residência. Por isso, como já
mencionamos anteriormente, a dificuldade no tratamento dos dados faz com que tan-
to a pesquisa, quanto a própria gestão do tema, sejam ainda mais complexas.
Voltando para o nosso caso imaginário, hipotético, de que alguém teria ficado
“fora do ar” nesse período todo de 2020-2021. Essa pessoa teria perdido grande parte
desse filme. Mas, nós não! Nós acompanhamos essa situação da covid-19 e sabemos
quão trágica e desigual foi essa história e é disso que tratamos aqui. E essa é a relevân-
cia também da história do presente, como aprendemos com Hobsbawm. Iluminar o
assunto para que isso fique como registro para discutir a posteriori, ou seja, como
mostra essa Figura 8.2, para mostrar que a vacinação contra a covid-19, no Brasil,
começou muito tardiamente, muito mesmo.

Fonte: Our World in Data. Acesso em fevereiro de 2022.


Figura 8.2 – Histórico de vacinação no Brasil em relação à covid-19.

Uma série de trocas e dificuldades no governo federal em fazer a compra ou ter


como prioridade a compra de vacinas – a CPI da covid-19 no Senado3 mostrou isso –
como foi tardia a negociação para a aquisição das vacinas, e no caso de um vírus como
o SARS-CoV-2, esse atraso infelizmente significou óbitos, custou vidas, e mostrou o

3 O Relatório final aprovado na CPI pode ser acessado na íntegra em: https://www12.senado.leg.br/
noticias/arquivos/2021/12/08/relatorio-final-da-ctcovid-19.pdf.
196 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

que Torres et al. (2022) chamaram de Governança Disruptiva da crise – proposital-


mente disruptiva.
De acordo com Pedro Hallal, epidemiologista e professor da Universidade Federal
de Pelotas, 4 em cada 5 mortes pela doença no país seriam evitáveis caso o governo
federal tivesse adotado outra postura. Ou seja, não só a vacina, mas também apoiando
o uso de máscara, o distanciamento social, fazendo campanhas de orientação e, so-
bretudo, acelerando a aquisição de vacinas.4 De acordo com o professor Hallal, esti-
mativas indicam que pelo menos 400 mil pessoas poderiam ter tido a morte evitada
se a gestão, a governança e a reação tivessem sido distintas. Isso ajuda a pensar que as
ações, estratégias e desigualdades são produzidas, ou seja, são produtos produzidos
por alguém, no caso aqui tratado, pelo próprio governo.
Fortalecendo o entendimento de uma governança disruptiva, o Instituto “Conec-
tas Direitos Humanos” e o Centro de Pesquisa de Estudos e Direitos Sanitário da Fa-
culdade de Saúde Pública da USP, consideraram que o governo federal não atuou de
forma apenas incompetente e irresponsável, mas sim que houve uma estratégia insti-
tucional reverberada para a propagação do vírus e que não foram apenas erros do
governo. Ao analisar o conjunto de atos normativos federais relacionados à covid-19,
o estudo liderado pela professora Deisy de Freitas Lima Ventura, da Faculdade de
Saúde Pública (FSP) da USP, apresenta dados bem robustos, tendo sido, inclusive, in-
corporados pela CPI da covid-19 em seu relatório final.
Os pesquisadores da FSP consideraram que houve uma violação do direito à saúde
e à vida coletiva, sem que os gestores tenham sido responsabilizados até o momento,
inclusive os pesquisadores estão buscando que sejam cobradas as responsabilidades.
Segundo a pesquisa, a estratégia do governo teve três dimensões:
1. O excesso de normas instituídas, muitas vezes contraditórias, que diminuem
direitos, pulveriza a regulação da emergência, limita o papel do poder legislativo e
favorece a judicialização da questão da saúde.
2. A obstrução aos atos de combate à pandemia dos demais entes federativos
revela a falta de articulação multinível.
3. A propaganda contra a saúde pública,
Assim, independentemente do caráter deliberado das soluções, as dimensões
apontadas reforçam a leitura de uma disruptividade do governo federal frente à pan-
demia, enfim, como já mencionado, a pesquisa está sendo utilizada para municiar as
ações jurídicas e também o relatório da CPI no Senado Federal.
Os ataques à ciência e à imunização se fizeram presentes e não cessaram ao longo
desses 2 anos, pelo contrário, em 25 de outubro de 2021, o presidente da república teve
a sua página na rede social Twitter suspensa pela associação que fez entre a vacina da

4 https://www.abrasco.org.br/site/noticias/cpi-da-pandemia-4-a-cada-5-mortes-por-covid-19-no-bra-
sil-sao-evitaveis-e-populacoes-vulnerabilizadas-sofrem-mais/60550/.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 197

covid e a AIDS (HIV).5 É isso que os pesquisadores, no 3° ponto levantado, entendem


como contrainformação.

8.3 MOVIMENTOS ANTIVACINA E NEGACIONISMO EM ESCALA


PLANETÁRIA
Mas, o negacionismo científico não é uma questão só brasileira, como a jabuticaba,
algo que só existe e só acontece no Brasil; também se veem imagens nos Estados Uni-
dos, como ficou muito marcado no período do presidente Donald Trump; na França,
Espanha, ou seja, em diversos lugares se vê um movimento de negacionismo à vacina-
ção, uma não compreensão do que é a covid. Por isso, a nossa discussão aqui não é
apenas focada no Brasil, mas é também uma discussão em escala planetária, ou do
exercício de tensionar as dinâmicas multiescalares do local ao global.
Por isso mesmo, temos que valorizar e enaltecer muitíssimo o trabalho dos servi-
dores do setor público do Brasil em face dos ataques à ciência, aos técnicos, aos gesto-
res, sobretudo a Fiocruz e o Instituto Butantã, bem como médicos e enfermeiros da
linha de frente de atuação. Porque, como diz a médica Luana Araújo, é justamente o
fato de o Brasil ter uma cultura de vacinação, graças às políticas anteriores e ao pró-
prio Sistema Único de Saúde – SUS, bem como a força das instituições públicas ainda
em pé, mesmo com os ataques já mencionados,6 que estamos conseguindo manter a
resistência aos atuais desmandos.
O movimento antivacina, apesar de contar com apoio e liderança de altos postos
do governo, não prospera tanto aqui no Brasil porque temos uma cultura muito forte
de vacinação para outras enfermidades. A questão é que de um lado podemos enalte-
cer e aplaudir a população por de alguma forma manter essa cultura, mas por outro,
infelizmente, temos que ter a clareza que estamos contando apenas com isso. Como se
viu o debate incidiu muitas vezes entre “kit covid” x “Vacinação”, não se discutindo
ou se planejando medidas mais restritivas, testagens em massa, distribuição de más-
caras PFF2/N95 em locais públicos, articulações regionais ou metropolitanas, entre
tantas outras possíveis ações coordenadas.
Ao fazer o esforço que aqui proponho, de olhar para o filme dessa história recente,
não apenas para a foto, vemos que em abril de 2021 estávamos em 73º no ranking
global de vacinação, hoje avançamos para o 14º lugar. Ou seja, a partir do momento
em que a vacina chegou, o Brasil conseguiu fazer um processo de aceleração da imu-
nização em um ritmo que nos colocou em uma posição à frente de outros países,
embora tendo começado muito tardiamente. E como já vimos, ter começado tardia-
mente pode ter-nos custado vidas, bem como problemas causados pela contaminação
de uma série de pessoas. Números do professor Hallal, já citados, apontam para pelo

5 https://sul21.com.br/noticias/saude/coronavirus/2021/10/sociedade-brasileira-de-infectologia-repu-
dia-associacao-entre-vacinas-e-aids-feita-por-bolsonaro/.
6 https://cultura.uol.com.br/noticias/24590_o-sus-e-uma-das-maiores-ferramentas-de-saude-publica-
-que-existe-no-mundo-diz-luana-araujo.html.
198 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

menos 400 mil óbitos que poderiam ter sido evitados nesse período. E isso tem a ver
com desigualdade, com equidade, com justiça.
Retomando nosso diálogo com as escalas, ou movimentos e processos com mais
ou menos zoom (como o zoom in – zoom out), o que acredito tem sido a tônica da
disciplina Sociedade Meio Ambiente e Cidadania desde a primeira aula pela professo-
ra Carla Morsello, abordando tanto aspectos globais, quanto aspectos regionais e lo-
cais, de questões específicas da China como questões da Amazônia. Ou seja, a relação
entre as escalas é um processo contínuo ao longo de todas as abordagens.
Por isso a provocação das lentes sobre o tema da vacinação não apenas pela ótica
da Justiça Ambiental, abordagem mencionada no capítulo “Consumo e Resíduos: Prá-
ticas cotidianas”, da professora Sylmara Gonçalves Dias que tratou do Racismo Am-
biental; como o esforço de lança-la à escala planetária – evocando uma justiça plane-
tária, nesse movimento de olhar o local e o global.
Em a “A microbiologia cega do capitalismo”, o professor Henri Acselrad (2020)
trabalha justamente a interligação entre as escalas do plano global e local, apontando
as contradições do neoliberalismo que, segundo o mesmo, busca naturalizar a epide-
mia e reforçar o otimismo tecnológico na gestão da crise sanitária. Ou seja, uma espé-
cie de modernização ecológica que advoga a crença de que os problemas ambientais
serão resolvidos apenas por uma questão tecnológica, aplicada à saúde pública. Acsel-
rad reforça a questão do neoliberalismo autoritário em uma sociedade mista, que tem
exposta situações de racismo e xenofobia, mostrando que com a covid-19 não foi dife-
rente. Quem não se lembra da “Vacina da China”, usada para se referir à Vacina do
Butantã, desenvolvida no Brasil a partir de um acordo do governador João Dória com
a farmacêutica chinesa Sinovac? Ou o uso preconceituoso do “Vírus da China”? O
preconceito contra os chineses ou os produtos chineses, enfim, isso foi – e tem sido –
muito forte.

8.4 ATERRISSANDO – AS INJUSTIÇAS NO TERRITÓRIO


Aproximando nossas lentes para um Zoom in na busca do diálogo com o capítulo
da professora Silvia Zanirato e aterrissando na escala local, no território, a Figura 8.3
representa um cruzamento espacializado das taxas de mortalidade por covid-19 e a
proporção de pessoas negras na cidade de São Paulo. Qual a ideia? Perceber as desi-
gualdades nas taxas de mortalidade e refletir sobre esses dados que poderiam ter sido
levados em consideração para as políticas e a gestão da priorização de vacinação, por
exemplo.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 199

Fonte: Torres et al. (2022).


Figura 8.3 – Taxa de Mortalidade da covid-19 e proporção de pessoas negras nos distritos de São
Paulo.

A essa distribuição desigual no território, que ilumina processos de desigualdades


ambientais, chamamos de injustiças ambientais e, em alguns casos – como no Brasil
– de Racismo Ambiental. Os dados do censo demográfico de 2010 indicam que São
Paulo tem uma desigualdade de até 10,3 vezes entre a proporção de populações negras
e pardas e entre regiões do próprio município. Enquanto a média da cidade é de 32,1%
de pretos e pardos no bairro de Moema, por exemplo, na Zona Sul a proporção é de
5,1%. Também na Zona Sul, que é muito mais distante do centro, a proporção é de
60,1%, ou seja, uma diferença localizacional muito grande. A ideia aqui é entender
qual o significado dessa diferença em outras variáveis.
Ainda, em relação à Moema, também está referido como o bairro de maior média
de expectativa de vida da cidade de São Paulo: 80,6 anos, bem acima da média total do
município que é de 68,7 anos. A Cidade Tiradentes, por exemplo, na Zona Leste, apre-
senta o pior índice: 57 anos. Ou seja, numa mesma cidade observamos um bairro em
que a expectativa de vida é em média 80 anos e outro que é de 57.
O tema das desigualdades, mas também do racismo, é nítido no estudo realizado
pelo Instituto Polis e demonstra que entre o período de 1º de março e 31 de julho de
2021, a taxa de população negra residente na capital paulista morta por covid-19 foi de
200 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

172 mortes por 100 mil habitantes, enquanto a taxa de mortalidade na população
branca foi de 115 mortes a cada 100 mil habitantes.7 Ou seja, uma desproporção entre
número de mortes por raça e por localidade. Existe uma geografia, uma distribuição
desigual das pessoas na cidade de São Paulo, mas não só na cidade de São Paulo, po-
deríamos pegar a cidade do Rio de Janeiro, Recife, Salvador, diversas cidades no Brasil
e não ver tanta diferença em relação a essas desigualdades, talvez apenas proporcio-
nalmente.
Na mesma direção apontam os resultados da pesquisa de Nisida e Cavalcante, de
2020, comparando taxa de mortalidade da população negra e branca nos diferentes
distritos de São Paulo. O estudo aponta maior mortalidade por covid-19 de pessoas
negras e a hipótese é de que essa maior incidência não tem relação com causas genéti-
cas, mas com a própria dinâmica das relações sociais. Em outras palavras, com a
produção social do risco, com a produção social de injustiças. E a pandemia estaria
desempenhando um papel agravante na produção e reprodução dessas desigualdades.
Ou seja, a situação de desigualdade e de injustiça na cidade é reforçada e agravada pela
covid-19.
A covid-19, portanto, não só traz novas desigualdades como aprofunda desigual-
dades existentes, ou seja, bairros e populações que fazem mais deslocamentos, pendu-
lares entre trabalho e casa são mais atingidos diante da necessidade de manter o fluxo
durante o período da pandemia se valendo do transporte público. Há aí uma dinâmi-
ca muito específica que os dados por si só não mostram. Por isso é importante cruzar
esses dados, em primeiro lugar pela questão da desigualdade e da injustiça, mas tam-
bém para pensar que a gestão pública tem acesso a esses dados, ou seja, a gestão públi-
ca tem esses dados, e não os usar é uma opção, bem como não o usar estrategicamen-
te pode produzir mais desigualdade. Essa é a nossa questão, porque a luta por justiça
é a luta para tentar oferecer novos meios e oportunidades de acesso para que se possa
diminuir a desigualdade. E não foi isso que foi feito, não só no caso de São Paulo, mas
de outros municípios do país. Ou seja, se produziram muitos dados durante a pande-
mia, a academia produziu muito conhecimento até pela ausência de dados mais espe-
cíficos e segregados por parte do próprio governo federal, estadual e municipal. Mas
o que foi incorporado na gestão?
A Figura 8.4 é um mapa produzido pelo LabCidade da USP – Laboratório Espaço
Público e Direito à Cidade, coordenado pela professora Raquel Rolnik, da FAUUSP,
que fez um acompanhamento da evolução das desigualdades no território e um ma-
peamento da vacinação na Região Metropolitana de São Paulo.8 A análise dos dados
nos faz refletir sobre a questão etária na priorização da vacinação, pois, como se ob-
serva, o território não foi coberto de forma homogênea, o que faz a gente pensar: se
não foi coberto de forma homogênea e ainda perpetuou ou produziu desigualdades,
será que foi a melhor escolha? Será que não poderíamos ter usado as informações para
adotar outra forma de gestão da vacinação que buscasse reduzir as desigualdades já
existentes no território priorizando grupos sociais mais vulneráveis, grupos de traba-
7 O estudo pode ser acessado na íntegra em: https://polis.org.br/estudos/raca-e-covid-no-msp/.
8 No site do Laboratório é possível encontrar diversas análises, produção cartográfica e dados sobre o
tema http://www.labcidade.fau.usp.br/tag/covid-19/.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 201

lhadores que ficam mais expostos ao transporte público e que não tiveram opção ao
trabalho remoto?

Fonte: LabCidade/USP, 2021.


Figura 8.4 – Mortalidade por covid-19, março de 2020 a março de 2021.

Os dados apresentados pelo LabCidade indicam que a opção pela seleção etária,
fez com que a vacinação ocorrida no munícipio de São Paulo mantivesse considerável
grau de desigualdade, uma vez que o território já desigual acabou influenciando e
sendo influenciado por outras dimensões sociais que não foram levadas em conside-
202 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

ração pelos tomadores de decisão: quem vai ser impactado, a forma como a vacinação
por priorização etária vai se dar na prática – principalmente para os trabalhadores
que estão no serviço no horário da aplicação da vacina. É o que reforça a análise da
representação entre a cobertura vacinal e os que contraíram covid-19, dados cruzados
pelo LabCidade, para São Paulo, na figura a seguir (5).

Fonte: LabCidade/USP, 2021.


Figura 8.5 – Casos de covid-19, versus cobertura vacinal no Município de São Paulo.

Ou seja, a conclusão da professora Raquel Rolnik e dos pesquisadores do LabCida-


des é de que a prioridade da vacinação acabou negligenciando a geografia da covid-19
em São Paulo. O que novamente nos faz refletir: foi usada a melhor estratégia? Não
havia dados para melhor contribuir com a tomada de decisão? Por que a opção de não
utilizar?
Casos semelhantes ocorreram na cidade de Nova York entre outras, ainda obser-
vando esse processo desigual da vacinação na escala local. Nova York foi um dos
epicentros de contaminação no início da pandemia de covid-19, em 2020. Figurava
em diversas páginas de jornal, redes sociais, de forma ampla, os portos e aeroportos,
os trens, o fluxo grande de pessoas e mercadorias. E, no início, o então governador
Andrew Cuomo, considerou que o problema principal da cidade em relação aos eleva-
dos índices de contaminação estava relacionado à alta densidade da cidade, onde os
grandes prédios de Manhattan, por exemplo, faziam a cidade ser o epicentro global da
covid-19.9 No entanto, começaram a ser processados dados e análises em Singapura,
Hong Kong, Cidade do México, entre outras localidades, e foi possível perceber que a
densidade por si só, não explicava ou justificava o que estava ocorrendo, pois, outros
territórios de cidades com áreas altamente densas não tinham tal grau de contágio
(TORRES; LINKE, 2020).
9 https://www.nytimes.com/2020/03/23/nyregion/coronavirus-nyc-crowds-density.html.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 203

Aqui, do ponto de vista metodológico, é imperativo o movimento de Zoom In qua-


se que microscópio, da microbiologia das cidades, para pegar a metáfora utilizada por
Acselrad em texto supracitado, ou o olhar com uma lupa de detetive buscando o pa-
radigma indiciário da cidade de Nova York. E, então, em cruzamento com as aborda-
gens por justiça ambiental aqui escolhidas como Norte de análise, perceber empirica-
mente que não eram as áreas mais adensadas da cidade onde ocorriam mais contágio
e óbitos pela covid-19. Pelo contrário, a área mais adensada, que é Manhattan, era
justamente onde se tinha menos contágio e óbitos. E áreas de baixíssima densidade,
como o Bronx, era onde se via o grau mais elevado de contágio e óbitos.
No percurso já mencionado de buscar sinais (GINZBURG, 1989) é preciso enten-
der e historicizar: Quais características, sociais, econômicas, culturais e ambientais
possuí o Bronx? A resposta é que se trata de um território de maioria de população
pobre; maioria de população negra e hispânica; maioria de população que faz pendu-
lar no transporte público de massa; maioria de população com comorbidade prévia
(como asma, diabete e obesidade); maioria de população com menos acesso à área
verde e espaços públicos de lazer. Ou seja, uma série de condicionantes que em diálo-
go com a lente do racismo ambiental aqui proposta, permite explicar muito mais as
desigualdades ancoradas na cidade como causas principais, do que a própria questão
do adensamento. Por isso mesmo, é imperativo o olhar com a lupa a partir de baixo, a
partir do território, para iluminar como esses processos são produzidos e perceber
que impressões e análises de momento podem indicar uma questão, mas com a ciên-
cia, a empiria, a pesquisa e o conhecimento do processo histórico, é possível uma
compreensão mais aprofundada – sobretudo quando lidamos com problemas e siste-
mas complexos de análise.
Esse exemplo dialoga diretamente com a questão do racismo ambiental, ou seja,
hispânicos imigrantes e a população negra do Bronx são os grupos mais afetados pela
covid-19 em Nova York.10 E esse é um padrão de desigualdade produzida já estabele-
cida e presente no território de São Paulo (como em várias outras cidades do país)
como mostraram os capítulos das professoras Silvia Helena Zanirato e Ana Paula
Fracalanza quanto ao acesso ao Saneamento e à água potável. Ou seja, quando no
início da pandemia a orientação era “lavem as mãos com água e sabão”, como faziam
aqueles que não tinham acesso a água e sabão? Ou seja, e como bem evidenciou o ca-
pítulo de Fracalanza, existe e é pregressa à pandemia de covid-19, a desigualdade no
acesso hídrico em São Paulo.

8.5 PALAVRAS FINAIS


Para concluir, gostaria de retomar o início do capítulo em relação à vacinação em
si e o processo de distribuição da vacina que priorizou primeiramente os países cen-
trais, e que hoje explica os países da África e outros do Sul Global bem atrás no
ranking da vacinação (Figura 8.1). Proponho um esforço final de cruzarmos as lentes
10 A plataforma Data for Progress coletou e produziu uma série de análises e levantamento de dados
sobre o tema https://www.dataforprogress.org/blog/5/18/bronx-is-epicenter-for-coronavirus.
204 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

zoom in e zoom out, pois, as desigualdades mencionadas na seção anterior (4) são ex-
pressas também na escala internacional (WEBSTER et al., 2022).
Artigo de Winnie Byanyima, diretora executiva do UNAIDS, publicado em março
de 2021 no The Guardian,11 alerta para o que a autora considera verdadeiro apartheid
ao se referir ao aumento da produção global de desigualdades a partir da covid-19 e da
vacinação ao vírus SARS-CoV-2. Byanyima afirma que no início da pandemia, lide-
ranças mundiais “faziam fila” para declarar que qualquer vacina contra a covid-19
deveria ser um bem público e hoje, diz a diretora executiva do UNAIDS, o que se
testemunha é um apartheid na circulação das vacinas, que prioriza os interesses de
grandes farmacêuticas, países ricos, grandes corporações e elites hegemônicas.
Logo, em escala planetária, há realmente um abismo, um fosso entre bilionários e
pobres que aumentou ao longo dessa pandemia. Relatório lançado em janeiro de 2022
pela organização não governamental internacional OXFAM, afirma que durante a
pandemia de covid-19, nos anos de 2020-2021, a renda média da população global
caiu consideravelmente (OXFAM, 2022), com mais de 160 milhões de pessoas sendo
empurradas para a extrema pobreza. Por outro lado, também destaca o relatório, uma
nova pessoa se tornou bilionária a cada 26 horas nesse mesmo período. A riqueza dos
mais ricos do planeta, todos homens brancos, cresceu US$ 5 trilhões no mesmo perí-
odo.
No Brasil, o fortalecimento das desigualdades é visível no dia a dia das cidades,
com desemprego em alta, precarização do trabalho, inflação galopante, com gás,
energia e gasolina aumentando em contraposição ao congelamento de salários, conge-
lamento de concursos, reposição do salário mínimo abaixo da inflação com conse-
quente aumento da extrema pobreza e da fome, da miséria.12
Byanyima, originária da África do Sul, diz em seu artigo que fica enojada com as
notícias que chegam do continente africano, principalmente de seu país, cujo históri-
co com a luta contra a HIV deveria ter ensinado lições para se pensar a gestão da crise.
É possível aprender com as crises (WEBSTER et al., 2022), é possível aprender com as
tragédias, embora não seja uma prática corrente, sobretudo em países como a África
do Sul ou o Brasil. A autora não se conforma, também, que a África do Sul tenha que
pagar mais do que o dobro do que é pago, por exemplo, pela União Europeia pela va-
cina da AstraZeneca. Como tantos outros países de baixa renda, a África do Sul en-
frenta hoje um cenário de vacinas e suprimentos esgotados, um poder de compra re-
duzido. De acordo com dados da UNAIDS, 9 em cada 10 pessoas que vivem nos países
mais pobres do planeta não foram vacinadas no ano de 2021. Isso é a expressão con-
creta do que estamos explanando aqui no capítulo com as injustiças e as desigualda-
des planetárias: 9 em cada 10 não foram vacinadas. Ou seja, enquanto 48% da popu-
lação mundial figura com pelo menos uma dose, com concentração nos países de alta
renda com 70% de cobertura vacinal, nos de baixa renda o patamar médio é 2%, um
fosso realmente muito grande.
11 https://www.theguardian.com/world/2021/mar/18/end-vaccine-apartheid-by-waiving-patents-and-
-save-us-all-from-covid-19.
12 https://www.dieese.org.br/boletimdeconjuntura/2021/boletimconjuntura29.html.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 205

Em As Três Ecologias Guatarri (2011) ensina que “não haverá verdadeira resposta à
crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma
autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção
de bens materiais e imateriais” (GUATTARI, 2011, p. 9). A resposta à crise pandêmica,
entrelaçada com as crises climáticas e de biodiversidade, que aprendemos nas aulas
das professoras Luciana Araújo e Carla Morsello, também deve ser guiada por respos-
tas planetárias, ancoradas em práticas, demandas e conhecimentos do território com
poder de reorientar o que Guatarri chama de “relações de forças visíveis em grande
escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, inteligência e desejo”
(GUATTARI, 2011, p. 9).

AGRADECIMENTOS
Em especial aos docentes da disciplina Sociedade Meio Ambiente e Cidadania
(ACH0152), pela acolhida para a segunda realização do curso no âmbito da Gradua-
ção em Gestão Ambiental na EACH-USP. À Pró-Reitoria de Pesquisa (PRP), da Uni-
versidade de São Paulo (USP), responsável pelo Programa de Atração e Retenção de
Talentos (PART). Assim como ao processo nº 2018/06685-9 da Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Agradeço, ainda, a leitura atenta e as
sugestões da professora Silvia Helena Zanirato.

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206 Justiça Planetária e Equidade frente à covid-19

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Sustainability 2022, 14.
CAPÍTULO 9
Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

Cristina Adams

9.1 INTRODUÇÃO
Este último capítulo traz uma reflexão sobre os rumos da humanidade pós-pande-
mia de covid-19, a partir das questões que foram trazidas nos capítulos anteriores.
Adotaremos aqui uma visão do planeta Terra como um sistema socioecológico com-
plexo, aprofundando as questões apresentadas no Capítulo 2 sobre os limites planetá-
rios. Os capítulos anteriores, ao tratarem dos diferentes aspectos suscitados pela pan-
demia, mostraram que a disseminação da covid-19 ocorreu em um cenário
preexistente de agravamento dos problemas socioambientais, que vinham se acumu-
lando desde a Revolução Industrial e, de forma mais acelerada, desde o início do An-
tropoceno (a partir do fim da Segunda Guerra Mundial). As desigualdades socioeco-
nômicas e o acúmulo de problemas socioambientais fizeram com que determinadas
parcelas da população ficassem mais vulneráveis à infecção pelo coronavírus, em um
processo sinérgico denominado sindemia (Capítulo 7). Na verdade, a sindemia da
covid-19 expôs de forma muito clara as consequências do atual modelo econômico e
como as desigualdades sociais, econômicas e ambientais agravam a disseminação da
doença. A essa altura, o leitor já deve estar se perguntando se existe alguma saída para
a humanidade e o planeta Terra, e o objetivo deste capítulo é apontar alguns dos ca-
minhos que vêm sendo pensados por economistas e outros cientistas e atores sociais,
208 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

esperando que as reflexões geradas possam influenciar as novas gerações de profissio-


nais e cidadãos.
Para isso, vamos começar situando a trajetória do sistema socioecológico Terra a
partir do início do Holoceno (12 mil anos atrás), com o fim do último período glacial.
Desde então, a partir do domínio do processo de domesticação de plantas e animais,
a espécie humana (Homo sapiens) passou a alterar os ambientes terrestres e aquáticos
de uma forma até então desconhecida, levando ao mundo economicamente globaliza-
do que conhecemos hoje. Conforme o gráfico de Steffen et al. (2018: 8254) que nos
mostra a estabilidade do sistema Terra (Figura 9.1) ao longo desse processo as ativida-
des humanas foram desviando o planeta de sua trajetória de equilíbrio dinâmico,
inicialmente de forma mais lenta, mas depois acelerada a partir do início do Antropo-
ceno (1950-60). Para esses autores, no atual momento a humanidade se encontra em
uma encruzilhada e o caminho que vai escolher depende de atitudes e decisões que
devem ser tomadas rapidamente, antes que seja tarde e as mudanças climáticas sejam
potencializadas de tal forma que comprometam os sistemas econômicos humanos e a
própria vida na Terra. Como veremos adiante, momentos de crise como o trazido pela
pandemia são propícios para esses redirecionamentos.

A bifurcação mostra que há dois caminhos diferentes que podem ser seguidos. Sistemas situados em
um estado altamente estável (“vales”) necessitam de grandes aportes de energia para saírem dessa
situação de estabilidade. Sistemas situados em estados instáveis (topo das curvas) possuem um alto
potencial energético, e requerem uma quantidade pequena de energia para serem deslocados para
situações de baixa energia potencial (fundos dos vales).
Fonte: Steffen et al. (2018: 8254).
Figura 9.1 – Gráfico de estabilidade mostrando o caminho percorrido pelo Sistema Terra desde o início
do Holoceno para fora dos limites do ciclo glacial-interglacial, até sua posição atual.

Segundo os autores, na encruzilhada onde nos encontramos há dois caminhos


possíveis. O primeiro, é continuar caminhando na trajetória atual (“business as usu-
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 209

al”), caracterizada pelo uso de combustíveis fósseis e emissão de gases de efeito estufa,
até chegarmos ao limite de 2 oC acima da temperatura média global pré-Revolução
Industrial, que é onde se situa o limite planetário. Nesse ponto, se nada for feito, o
sistema entra em uma trajetória irreversível de aquecimento que é retroalimentada
pelos ciclos biogeoquímicos (por exemplo, água ou carbono), sobre os quais não te-
mos nenhum controle. Ou então, podemos escolher o segundo caminho, em direção
a um sistema quase-estabilizado, através da governança de sistemas de retroalimenta-
ção humanos sobre os quais temos controle. Notem que esta posição já é diferente
daquela onde o planeta se situava no início do Holoceno, mas é uma posição segura se
cuidarmos bem do planeta e dos seus limites (Steffen et al., 2018).
Entretanto, a mudança de trajetória em sistemas socioecológicos complexos é sem-
pre muito difícil, pois existe uma capacidade de resiliência que precisa ser vencida
para sair da posição atual e mudar para uma nova situação de equilíbrio. Isso implica
quebrar os processos de retroalimentação entre os sistemas sociais e ecológicos que
estão produzindo os efeitos indesejáveis e criar novos processos de retroalimentação
socioecológicos que permitam que o sistema faça a mudança de rumo (Steffen et al.,
2018). Mas como fazer isso? Como fazer a transição para um sistema socioecológico
mais sustentável do que aquele no qual vivemos hoje?
Para tentar responder a essas perguntas e trazer algumas questões para o debate,
vou: 1) apontar duas questões econômicas que são importantes para entendermos
como a humanidade chegou à situação atual; 2) trazer a contribuição dos cientistas
que trabalham com mudanças em sistemas socioecológicos através do uso de um mo-
delo de transformação; 3) sugerir que a pandemia pode ser o choque que o Sistema
Terra estava precisando como um empurrão final para enfrentarmos a crise socioam-
biental; e 4) apontar caminhos que estão sendo sugeridos por economistas e outros
atores sociais que estão pensando “fora da caixinha”. Com isso, esperamos que os
leitores se sintam estimulados a pensarem e implementarem novas soluções, para que
voltemos a operar dentro dos limites planetários e com toda a humanidade usufruin-
do do bem-estar ou bem viver (Capítulo 4).

9.2 DOIS FUNDAMENTOS ECONÔMICOS IMPORTANTES


O primeiro problema sobre os fundamentos do atual modelo econômico se refere
à natureza da maior parte dos recursos naturais dos quais usufruímos, por exemplo o
pescado, as pastagens naturais, as florestas e a água doce. Para a Economia, eles são
considerados bens ou recursos comuns. Os bens comuns são aqueles recursos que
estão disponíveis para o usufruto de todos, mas cujo uso por uma pessoa deixa menos
para os próximos usuários. Diferente dos bens privados, os recursos comuns repre-
sentam um desafio para a Economia, pois devido às suas características, colocam os
usuários em um dilema. Racionalmente, a melhor solução para cada usuário indivi-
dual é extrair o máximo que puder para seu próprio usufruto, sem pensar no futuro,
nos outros usuários ou na conservação do recurso. Mas, para a sociedade, ou o con-
junto de usuários do recurso, essa é a pior solução possível. Em outras palavras, indi-
210 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

víduos agindo de forma independente e de acordo com os seus próprios interesses,


vão contra o interesse coletivo da sociedade no uso sustentável dos recursos comuns.
Como o controle dos usuários é normalmente muito difícil ou muito caro, existe uma
tendência à degradação dos recursos comuns em situações onde a regulamentação do
uso, o monitoramento e a fiscalização não são eficientes. Durante muito tempo, a
solução apontada pelos economistas para lidar com esse dilema social era através da
privatização dos recursos, criando mercados, ou de seu controle pelo Estado, através
da criação de áreas protegidas para conservar florestas, por exemplo.
A segunda questão econômica que fundamenta a crise socioambiental que esta-
mos vivendo atualmente é a visão de sistema econômico adotada pela economia neo-
liberal do século XX, que se tornou o sistema hegemônico global. A Figura 9.2 mostra
a representação macroeconômica1 convencional da organização da economia, da
mesma forma como ela é ensinada nos livros-texto para alunos de graduação em Eco-
nomia, até hoje.

Fonte: Adaptado de Mankiw 2005: 23.


Figura 9.2 – Representação macroeconômica convencional da organização da economia

A Figura 9.2 mostra os fluxos de bens e serviços e de rendas e receitas monetárias,


entre empresas, por um lado, e famílias, do outro. As empresas e as famílias produ-
zem e consomem bens e serviços, e matéria, energia e moeda circulam no interior do
sistema sem que se observe nenhuma troca com o ambiente. Ou seja, o modelo mostra
um sistema fechado e isolado do meio ambiente, como se ele pudesse funcionar inde-
pendentemente dos recursos naturais ou comuns. Na figura não estão representados
os recursos naturais que entram no sistema, nem os resíduos e a poluição que são
1 Na ciência econômica, a macroeconomia dedica-se ao estudo da economia na escala regional ou na-
cional.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 211

produzidos pelo sistema e externalizados para o ambiente. Mas, por que será que essa
visão tão simplista e irreal do sistema econômico é ensinada até hoje nos cursos de
Economia? Será mesmo que os economistas sempre ignoraram a contribuição da na-
tureza para a economia? Na verdade, não.
Adam Smith, considerado o pai da ciência econômica, pertenceu à geração dos
economistas clássicos que inauguraram a disciplina entre o final do século XVIII e
princípio do XIX, durante o período da Revolução Industrial inglesa. Os limites im-
postos pela natureza, principalmente para a produção de alimentos, eram centrais ao
pensamento de Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo, por exemplo. Mal-
thus apontava criticamente para a incompatibilidade entre o crescimento populacio-
nal humano e a produção alimentar.
Para Smith, uma das preocupações centrais era entender se o incipiente capitalis-
mo industrial que se instalava diante de seus olhos tinha condições de se firmar e
expandir, ou seja, de sustentar um crescimento econômico. Em sua formulação, a
economia deveria ser capaz de prover uma renda suficiente para a subsistência das
pessoas e prover o Estado ou a comunidade com uma renda suficiente para fornecer
os serviços públicos necessários para toda a sociedade. Nesse período, a Inglaterra
ainda era um país essencialmente agrícola, com uma agricultura pouco tecnificada
que ainda dependia fortemente da natureza. Portanto, os economistas clássicos não
tiveram dificuldade em reconhecer que o sistema econômico dependia do meio am-
biente, e prevalecia a chamada hipótese das dádivas gratuitas da natureza.
Essa visão de um ambiente natural neutro e passivo, fornecedor dos recursos ne-
cessários para a economia e absorvedor dos seus resíduos, vinha do fato que a escala
da economia inglesa ainda era muito pequena nessa época. Mesmo assim, Smith re-
conhecia que em algum momento no futuro a natureza acabaria impondo limites ao
crescimento econômico, levando a economia a um estado estacionário, mesmo que
este cenário ainda estivesse muito distante de seu tempo de vida. Na sua visão, o limi-
te seria imposto pela quantidade de terra agricultável disponível na Inglaterra e, por-
tanto, na sua capacidade de produzir alimentos para os operários que trabalhavam
nas fábricas e movimentavam a economia. Ou seja, a partir do momento em que o
patamar máximo de produção agrícola fosse atingido, a economia entraria em um
estado estacionário.
Já para os economistas neoclássicos, também chamados de clássicos da segunda
geração, que se consolidou a partir de meados do século XIX, a ideia de limites impos-
tos pela natureza ao crescimento econômico foi perdendo importância e a hipótese
das dádivas gratuitas da natureza passou a não ser mais explicitada no modelo neo-
clássico. Isso porque, nessa época, a Europa já havia assegurado um fornecimento
adequado de alimentos para sua população, principalmente através do mercado inter-
nacional com as colônias e ex-colônias. Assim, gradualmente os neoclássicos passa-
ram a tratar a economia como um sistema fechado e isolado. Um dos principais eco-
nomistas dessa época, John Stuart Mill, definiu a economia como uma ciência que
descreve as leis de fenômenos da sociedade, inaugurando a tendência de excluir seus
objetivos da definição do conceito. Com isso, desviava-se a atenção da sociedade para
212 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

as leis da economia, tentando aproximá-la da disciplina da Física para ganhar credi-


bilidade acadêmica. Ou seja, os objetivos colocados por Adam Smith (para que serve
a economia?) desaparecem na geração dos neoclássicos, que estavam mais interessa-
dos em entender as leis que explicassem o funcionamento da economia, e não em
perseguir seus objetivos. Mesmo assim, Stuart Mill também acreditava que o aumen-
to da riqueza não poderia ser ilimitado, e um dia o crescimento econômico alcançaria
o estado estacionário. Também para Karl Marx, o trabalho não era a fonte de toda a
riqueza; a natureza era a fonte dos valores de uso e, portanto, da riqueza material
(Marx, 2012).
No século XX, as ideias neoclássicas do século anterior foram aperfeiçoadas pela
escola neoliberal. Na primeira metade do século XX, três marcos importantes podem
ser destacados na construção desse conhecimento. Em primeiro lugar, acentuou-se o
uso de modelos matemáticos para explicar o funcionamento da economia, como que-
ria Stuart Mill. Um dos nomes mais influentes desta época foi von Newman, cujo
trabalho fundamenta os modelos neoclássicos utilizados desde então. Outro marco
importante é o completo abandono, pelos modelos neoliberais, da noção da existência
de limites naturais e do estado estacionário da economia que as primeiras gerações
haviam ressaltado. Com isso, a geração neoliberal passou a considerar que a economia
é capaz de um crescimento contínuo indefinido, apoiado apenas na expansão da força
de trabalho, por um lado, e na acumulação de capital físico construído, do outro, que
são características endógenas ao sistema econômico. Essa é a fundamentação da re-
presentação convencional da organização da economia (Figura 9.2) como um sistema
isolado, autocontido, que não depende nem de recursos naturais para funcionar, nem
da eliminação de resíduos e poluição. Segundo o ideário que sustenta essa concepção
de economia, a engenhosidade humana seria capaz de transcender à escassez de re-
cursos naturais e, no limite, não mais depender dela.
Por fim, o terceiro marco foi o estabelecimento do Produto Interno Bruto (PIB)
como uma métrica para avaliar e comparar a produção anual da economia america-
na, e depois de todos os países, fazendo com que o principal objetivo das políticas dos
países industrializados passasse a ser o crescimento do PIB. Em pouco tempo, o cres-
cimento passou a ser visto como uma panaceia, uma solução para resolver todos os
problemas sociais, econômicos e políticos, e a economia global passou a esperar, exi-
gir e mesmo depender do crescimento contínuo do PIB para seu funcionamento geral.
Nesse contexto, do início do século XX, a economia passou a ser definida como o es-
tudo de como a sociedade administra seus recursos escassos, enterrando de vez quais
deveriam ser seus objetivos, para se preocupar apenas com seu modo de funciona-
mento, ou seja, radicalizando as primeiras ideias dos economistas neoclássicos da ge-
ração anterior (Raworth, 2019).
Esses modelos foram utilizados na construção da agenda neoliberal que caracteri-
zou a segunda metade do século XX, a partir de uma importante reunião de econo-
mistas, historiadores, filósofos e cientistas políticos na pequena vila suíça de Mont
Pèlerin2 em 1947, quando foi fundada a Sociedade Mont Pèlerin. Este grupo obteve o
apoio de empresas e bilionários para financiar a difusão do ideário do livre mercado
2 Veja em https://www.youtube.com/watch?v=V2vN_fu-wns&feature=emb_logo&ab_channel=Dou-
ghnutEconomicsActionLab.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 213

através de bolsas de estudo, cátedras e “think tanks” nos países centrais. Na década de
1980, Ronald Reagan (EUA) e Margaret Thatcher (Reino Unido) adotam a agenda
neoliberal como política de governo, com a colaboração de vários membros da Socie-
dade Mont Pèlerin em suas equipes, alçando-a à posição hegemônica que ocupa desde
então (Raworth, 2019).
A radicalização da agenda neoliberal que se seguiu, em busca do crescimento eco-
nômico ilimitado, levou o sistema Terra à situação atual, e os capítulos anteriores
trataram dos vários impactos socioambientais decorrentes e de sua contribuição para
o surgimento e agravamento das consequências da pandemia de covid-19. Mas será
que não havia nenhum economista no século XX apontando os problemas decorren-
tes do modelo neoliberal, além dos ambientalistas? Claro que havia, mas a agenda
neoliberal é tão poderosa, que apesar de vozes dissonantes avançarem na construção
de novas perspectivas, não tiveram força para mudá-la.
Uma dessas pessoas foi a economista Elinor Ostrom e colaboradores, que mostra-
ram que a privatização ou o controle estatal dos recursos comuns para a sua conser-
vação não era a única saída. De fato, certas comunidades de usuários conseguem per-
feitamente se auto-organizar para utilizar os recursos de forma sustentável, como foi
demonstrado em vários estudos de caso pelo mundo. Outro economista importante
dessa época, que era também físico, foi Georgescu-Roegen, que demonstrou que o
crescimento contínuo da economia é uma impossibilidade, com base nas duas leis
fundamentais da termodinâmica que explicam o fluxo e a conversão de energia no
planeta, devido à dependência da humanidade do sol como fonte energética. Essas leis
físicas não foram refutadas até hoje, de forma que até prova em contrário existe um
limite natural para o crescimento da economia, mesmo que muitos não gostem de
encarar este fato. Já Amartya Sen (2010) advoga que o objetivo da economia deveria
ser o de ampliar as liberdades das pessoas, que incluem oportunidades econômicas,
liberdades políticas, facilidades sociais (educação, alimentação nutritiva), garantias de
transparência e segurança protetora.
Traçado esse breve histórico, podemos nos perguntar: como será a economia do
século XXI? Para onde caminhamos? A jornada da humanidade ao longo do século
XXI será conduzida pelos jovens nascidos neste século. Todavia, se a humanidade
continuar olhando pelo retrovisor e caminhando orientada por uma mentalidade
econômica enraizada em manuais de economia da década de 1950, baseados em teo-
rias de 1850, já está claro que caminharemos para um desastre socioambiental. Essa
situação foi, como sabemos, agravada pela chegada da pandemia de covid-19, que pro-
vocou um grande impacto no PIB global. Pois bem, mas como vamos mudar a manei-
ra como gerimos esse sistema complexo chamado planeta Terra? Como podemos ter
controle dos processos de retroalimentação entre os sistemas sociais e ecológicos que
estão produzindo os efeitos indesejáveis? Como voltar a uma trajetória planetária
mais equilibrada?
214 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

9.3 MUDANÇAS EM SISTEMAS SOCIOECOLÓGICOS COMPLEXOS


Para nos ajudar a refletir sobre o futuro pós-pandemia, os modelos de transforma-
ção de sistemas complexos que vêm sendo elaborados por pesquisadores que traba-
lham com sistemas socioecológicos podem ser úteis. Um dos mais recentes, elaborado
por Herrfahrdt-Pähle et al. (2000), mostra que os processos de transformação susten-
táveis podem ser divididos em três fases (Figura 9.3): preparação, navegação e estabi-
lização ou institucionalização, quando a resiliência do novo sistema vai sendo cons-
truída. Esse modelo será usado para argumentar que o atual momento histórico em
que vivemos permite apontar várias possibilidades de transformação de nosso atual
sistema planetário desbalanceado para um sistema socioecológico que, ao mesmo
tempo, se mantenha dentro dos limites planetários e atenda às necessidades de bem-
-estar de todos os seus habitantes.

Fonte: Traduzido e adaptado de Herrfahrdt-Pähle et al. (2020: 3).


Figura 9.3 – Mudanças multinível e em múltiplas fases, em sistemas socioecológicos complexos.

O modelo mostra que os processos de transformação dependem dos três níveis do


sistema: a paisagem, o regime e o nicho (Figura 9.3). A paisagem compreende os siste-
mas sociais e ecológicos que sustentam um determinado regime de governança,3 e
inclui nossos valores sociais, os recursos naturais e os problemas ambientais. As inte-
rações entre a paisagem e o regime normalmente são processos de longo prazo. Já o
regime descreve os atores políticos e econômicos dominantes, as estruturas e as práti-
cas que explicam o funcionamento do sistema social. Via de regra, o regime defende
seu status-quo, ou seja, procura evitar mudanças. Porém, os regimes podem ser in-
3 Governança pode ser definida como o conjunto de organizações públicas e privadas que governam
determinado recurso ou sistema, as regras (instituições formais e informais) utilizadas e a forma como
estas regras são criadas (Ostrom 2009).
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 215

fluenciados pelo surgimento de novas ideias ou tecnologias, que são gestadas nos cha-
mados nichos. Os nichos são espaços sociais mais delimitados e protegidos, onde as
experimentações e os pensamentos “fora das caixinhas” ocorrem. Os nichos se desen-
volvem quando os atores do sistema socioecológico em questão começam a questio-
nar o regime atual, e vão encontrando caminhos e espaços para inovação e experi-
mentação, testando diferentes configurações de regime (Herrfahrdt-Pähle et al.,
2000).
Na fase inicial de preparação, as interações entre a paisagem e o regime vão ocor-
rendo, e a vida das pessoas vai se desenrolando normalmente. Com o passar do tem-
po, o surgimento de crises ou percepções antecipadas de situações de risco, como a
crise socioambiental que estamos enfrentando nas últimas décadas, vão sendo traba-
lhadas, disparando iniciativas nos nichos onde novas práticas e modelos de governan-
ça dos recursos naturais são experimentados, para tentar lidar com os problemas ob-
servados. Dentro dos nichos os experimentos e as inovações geradas podem se
desenvolver isoladamente, ou se combinar com outras ideias e sistemas de conheci-
mento até que, em determinado momento, uma mudança abrupta ou um choque so-
cioecológico ou político, no nível da paisagem, gera uma demanda muito forte por
mudança. O choque abre a oportunidade para que a transição para novos modelos de
regimes de governança dos recursos naturais ocorra. Mas como isso ocorre? Os cho-
ques enfraquecem os regimes estabelecidos e fornecem uma janela de oportunidade
para que os grupos de atores, principalmente aqueles que estão trabalhando nos ni-
chos, promovam abordagens alternativas à governança dos recursos naturais que vêm
ocorrendo dentro desse sistema socioecológico (Herrfahrdt-Pähle et al., 2000).
Durante a fase de navegação, os modelos alternativos de governança que haviam
sido testados nos nichos na fase de preparação iniciam um processo de institucionali-
zação. Esse processo inclui a combinação de modelos, ideias e abordagens disponí-
veis, sejam esses novos ou trazidos da fase anterior, que podem até ser contrastantes
entre si e levar a conflitos. Além disso, a resiliência do sistema anterior, que faz com
que haja uma resistência do regime em aceitar mudanças, precisa ser vencida. Com o
tempo, essa fase pode levar a uma transformação positiva, mas isso vai depender das
alternativas escolhidas. Por fim, na fase de estabilização, a abordagem alternativa já
foi institucionalizada dentro dos novos regimes de governança, e esses já foram absor-
vidos pelos sistemas sociais e ecológicos. Portanto, é uma fase em que ocorre a conso-
lidação de novos valores sociais, a implementação e o monitoramento das novas re-
gras e regulamentações, e a incorporação das novas práticas à rotina das pessoas
(Herrfahrdt-Pähle et al., 2000).
Olhando para o modelo e o atual momento histórico, é possível argumentar que a
pandemia de covid-19 pode facilmente ser considerada como um desses choques e
que, portanto, tem um grande potencial para provocar mudanças no regime de uso
dos recursos naturais e do sistema econômico vigente neoliberal, a partir da experiên-
cia acumulada com a crise socioambiental do século XX e início do XXI. O modelo
também permite apontar as inúmeras abordagens e ideias alternativas que vêm sendo
gestadas em nichos (como universidades, organizações não governamentais, gover-
216 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

nos, comunidades, movimentos sociais) desde as últimas décadas do século passado,


onde os atores estão se permitindo pensar “fora da caixinha”, ou seja, fora do paradig-
ma econômico neoliberal do século XX. Mas quem seriam esses atores?

9.4 A ECONOMIA DO SÉCULO XXI


Há vários exemplos de economistas e outros atores sociais importantes que, nas
últimas décadas, estão pensando em abordagens econômicas inovadoras e fazendo
um esforço para superar o modelo neoliberal do século XX, que nos trouxe até a pre-
sente crise socioambiental. Essas novas propostas buscam trazer os objetivos da eco-
nomia de volta ao debate, invertendo a noção de que a sociedade deve seguir a rebo-
que do sistema econômico e que este é que deve servir à sociedade e ao meio
ambiente. Um desses atores, por mais inusitado que possa parecer, é o Papa Francisco,
que em 2019 fez um chamado global por uma outra economia, incluindo economistas
importantes como Joseph Stiglitz, Jeffrey Sachs e Kate Raworth e ativistas ambientais
como Vandana Shiva. Ele organizou um movimento com o objetivo de atrair jovens
de várias nacionalidades e crenças religiosas para discutir e repensar a economia atu-
al e humanizar a economia do amanhã, tornando-a mais justa e sustentável assegu-
rando assim uma nova proeminência para as populações atualmente excluídas. Ou
seja, o chamado do Papa é para uma busca de novos rumos e por uma governança
global da economia que nos leve a superar a crise ambiental, a desigualdade social e o
caos financeiro, a partir de uma visão sistêmica, exatamente como a visão de sistema
socioecológico que acabamos de apresentar.4
Outro movimento inovador que começou a ser discutido em nichos, mas que vem
ganhando escala, é o New Deal Verde (Green New Deal), apoiado por economistas e
outros pesquisadores como Noam Chomsky, Robert Pollin e Ann Pettifor. Inspirado
na política norte-americana das primeiras décadas do século XX, implementada para
lidar com os impactos da grande depressão pós-crise de 1929 (o New Deal), o New
Deal Verde foi lançado em 2007, nos EUA. O movimento engloba várias perspectivas
diferentes dependendo do proponente. Mas, de uma forma geral, o New Deal Verde
propõe um pacto global em favor da troca do uso de energias fósseis por fontes reno-
váveis, simultaneamente à restauração e conservação dos ecossistemas que captam
carbono, principalmente as florestas. Alguns de seus proponentes, como Ann Petti-
for, advogam a taxação das transações financeiras globais e o total abandono do cres-
cimento econômico como meta da economia.
Outros economistas brasileiros, como Ladislau Dowbor (2020a, 2020b), vêm tra-
balhando em novas propostas há várias décadas. Na visão de Dowbor, esses novos
caminhos buscam ultrapassar os antigos debates econômicos entre soluções ortodo-
xas ou heterodoxas, e são baseados em soluções mais pragmáticas centradas em valo-
res, no sentido de se buscar as melhores alternativas econômicas, independente das
eternas etiquetas de “solução de esquerda” ou “solução de direita”. O que importa é
4 Vejam a declaração em https://francescoeconomy.org/final-statement-and-common-commitment-
-pt/
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 217

que sejam baseadas em valores humanistas e pensadas em novas bases. Na mesma


direção, Ricardo Abramovay aponta que é preciso avançar para uma economia base-
ada na cooperação social e no esforço para preservar e regenerar os serviços ecossis-
têmicos dos quais a humanidade depende (Abramovay, 2012).5 José Eli da Veiga tam-
bém participa desse debate e sua obra tem contribuído para evidenciar a falácia da
dicotomia desenvolvimento e meio ambiente, e para a formação de novos profissio-
nais (Veiga, 2013, 2015, 2019a,b).
Em 2021, Partha Dasgupta publicou um importante relatório sobre a economia da
biodiversidade a pedido do governo britânico, reconhecendo os limites impostos ao
sistema econômico pela biosfera e apontando a dependência de trajetória que existe
entre os modelos econômicos atuais, construídos de forma incremental a partir dos
modelos neoliberais do século passado, que excluíam a natureza da equação (Dasgup-
ta, 2021). Na sua visão, a natureza é capital de suma importância, mas não pode ser
considerada meramente como um bem econômico convencional, pois ela não tem
apenas valor de uso, ela tem valor intrínseco. Comentando o relatório, o Ricardo
Abramovay ressalta que é impossível sinalizar, por meio do sistema de preços, a abun-
dância e a escassez dos serviços prestados pela natureza dado o fato de que a maioria
dos processos e dinâmicas naturais são difíceis de serem observados e, portanto, de
terem seus danos avaliados corretamente.
Outra abordagem econômica inovadora para superar os problemas da visão neoli-
beral que ganhou destaque no debate internacional nos últimos anos foi a da Econo-
mia Donut, idealizada pela economista Kate Raworth (2019), da Universidade de Ox-
ford. Resumidamente, ela propõe que os países substituam o crescimento do PIB
como meta para suas economias pelo gráfico do “donut”, ou rosquinha (Figura 9.4).
O “donut” é uma representação simplificada das condições sociais e ecológicas que
sustentam o bem-estar humano coletivo. A base social (círculo verde interno) estabe-
lece as condições básicas de vida humana das quais ninguém deve ser privado. Já o
teto ecológico (anel verde externo) marca os limites além dos quais a humanidade
coloca em risco os sistemas terrestres geradores de vida. Entre os dois anéis está o es-
paço ecologicamente seguro e socialmente justo para o qual a humanidade precisa se
direcionar. Os limites do teto ecológico são as fronteiras planetárias discutidas no
Capítulo 2. Já o alicerce social é formado por 12 das dimensões sociais (e suas metas e
indicadores) dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas
(ODS), criadas em acordo assinado em 2015 por todos os países membros, com metas
a serem alcançadas até 2030.

5 Veja também: https://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/332497/mais-importante-do-que-o-


-crescimento-economico-e-s.htm.
218 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

Fonte: Página 22 (2012).6


Figura 9.4 – Ilustração da Economia Donut e os alicerces sociais e ecológicos que delimitam o espaço
ecologicamente seguro e socialmente justo para onde a humanidade deve caminhar, na opinião de
Raworth (2019).

Para que toda a humanidade consiga se dirigir para o espaço ecologicamente segu-
ro e socialmente justo, Raworth propõe sete maneiras para repensar a economia como
um economista do século XXI. Ou seja, abandonando aquele conhecimento solidifi-
cado na segunda metade do século XX, e adotando como novas perspectivas:
a) substituir o objetivo da economia do PIB para o “donut”;
b) mudar de uma economia fechada e isolada do meio ambiente para uma eco-
nomia integrada;
c) mudar o foco da ficção do “homem racional neoliberal” para a ideia de seres
humanos sociais adaptáveis;
d) pensar o funcionamento do sistema econômico não através do equilíbrio me-
cânico que tem sua origem na física Newtoniana, mas da complexidade dinâmica;
e) abandonar a meta de redução das desigualdades de renda através do cresci-
mento da economia por uma economia que seja redistributiva desde a sua concepção;
f) substituir a economia degenerativa por uma regenerativa;
g) sermos agnósticos em relação ao crescimento do PIB. Ou seja, em algumas
situações determinadas, o crescimento do PIB pode e deve ser desejável, mas no geral,
não.
6 Disponível em: https://pagina22.com.br/2012/06/12/entre-o-piso-social-e-o-teto-ambiental/. Aces-
sado em: 24 abr. 2022.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 219

Das novas perspectivas que Kate Raworth (2019) traz ao debate é possível destacar
três que ficaram ainda mais em evidência durante a pandemia de covid-19 e que, de
certa forma, ratificam a importância da Economia Donut: o valor do trabalho domés-
tico e do cuidado, o papel do Estado e o cuidar de todos para o bem-estar de todos.
No modelo de fluxo circular da economia neoliberal mostrado anteriormente (Fi-
gura 9.2), as famílias são fornecedoras de mão de obra e capital para o mercado. Toda-
via, os economistas nunca se perguntam como, num passe de mágica, os trabalhado-
res e as trabalhadoras aparecem prontos todo dia para trabalhar na porta da fábrica
ou do comércio. Ou seja, ao se fixar na produtividade do trabalhador, o modelo escon-
de todo o trabalho não remunerado que torna possível sua existência no sistema eco-
nômico (Raworth, 2019). A saber, tudo aquilo que ocorre na chamada economia nu-
clear: cozinhar, lavar pratos, arrumar a casa e cuidar dos filhos, idosos e doentes, que
são trabalhos via de regra realizados pelas mulheres. Por ser um trabalho gratuito e
não remunerado, costuma ser subvalorizado e explorado, como é sabido, gerando de-
sigualdades na posição social, emprego, renda e poder entre homens e mulheres, as
quais podem ser perenes (Raworth, 2019). Mesmo aquelas mulheres que também es-
tão empregadas no mercado executam essas tarefas ao chegarem em casa, ampliando
em muitas horas a sua jornada semanal de trabalho em relação aos homens. Durante
a pandemia, esse fato amplamente conhecido ficou ainda mais evidente e impossível
de continuar sendo ignorado (Corsi; Ilkkaracan, 2022). Portanto, a economia do sécu-
lo XXI precisa adotar, como primeiro passo, a busca pela igualdade de gênero e o re-
conhecimento do caráter central da economia doméstica, sem a qual não estaríamos
conseguindo atravessar a pandemia.
Já no caso do papel do Estado, esse foi relegado pela economia neoliberal a um
mero garantidor da propriedade privada, da ordem jurídica e da segurança da nação.
Mas, para Raworth (2019), o seu papel deve ser o de provedor de bens públicos acessí-
veis a todos, apoiando o papel do agregado familiar, domando o mercado por meio de
instituições e regulamentações, permitindo que se promova o bem comum e o bem-
-estar da sociedade. A importância desses papéis do Estado, que andavam meio es-
condidos por conta da perspectiva neoliberal hegemônica, ficou óbvia durante a pan-
demia, desde a necessidade do fornecimento de um serviço universal de saúde, de
uma rede de notificação e produção de estatísticas em saúde, mobilização de hospitais
de campanha, fornecimento de servidores públicos e recursos nas áreas de saúde, pes-
quisa básica e aplicada, serviços funerários e de assistência social até a força política
em decisões de proteção para a população em geral e de medidas para amenizar a
crise econômica gerada pela covid-19. Portanto, a pandemia mostrou claramente que
o Estado precisa ganhar mais protagonismo do que vem tendo nas últimas décadas,
na economia do século XXI.
Por fim, a pandemia também deixou evidente a necessidade de uma atuação con-
junta de toda a sociedade para conter a transmissão do vírus e reduzir seus impactos
sobre a saúde, a renda familiar, e as desigualdades socioeconômicas preexistentes.
Desafios globais demandam sociedades menos desiguais. Embora os efeitos da pan-
demia tenham atingido com mais intensidade os mais pobres, a verdade é que os
220 Pós-Pandemia: para onde queremos ir?

economistas já sabem que a desigualdade prejudica todo o tecido social. As desigual-


dades corroem o capital social que serve de base para a ação coletiva, que é exatamen-
te o que é necessário para enfrentar os grandes desafios deste século, como as mudan-
ças climáticas e as pandemias. Além disso, sociedades mais desiguais têm
crescimento econômico mais lento e instável (Chancel et al., 2022). Ou seja, a econo-
mia do futuro precisa ser distributiva desde a sua concepção e não geradora de desi-
gualdades. Já está claro que o crescimento econômico medido pelo PIB não promove
a redução das desigualdades, mas, ao contrário, só as acentua.

9.5 CONCLUINDO
A esta altura espero que o leitor concorde que a pandemia de covid-19 pode ser o
choque capaz de transformar o pensamento econômico e a trajetória que o sistema
socioecológico do planeta Terra vem percorrendo nos últimos séculos. Um sistema
econômico hegemônico, a qualquer tempo, é produto do momento histórico em que
foi criado e, portanto, é perfeitamente passível de mudança. Já passou do momento de
repensarmos o modelo neoliberal gerador de desigualdades e impactos ambientais.
No século XXI, a economia precisa reassumir os limites planetários, abandonar a
neurose pelo crescimento e estar a serviço da sociedade, não o contrário. Só assim
caminharemos para uma sociedade mais justa, menos desigual, que caminhe para
dentro do espaço seguro do “donut”.

AGRADECIMENTOS
Agradeço ao Prof. Ricardo Abramovay (IEE-USP) pela revisão do capítulo e suges-
tões de melhoria. Os eventuais erros que tenham permanecido, são de minha autoria.
Questões sugeridas para debate

1. Quais devem ser os objetivos da economia de um país?


2. Como remunerar o trabalho doméstico?
3. Qual é o papel do Estado na economia do século XXI?
4. Como reduzir as desigualdades?

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VEIGA, J. E. 2019b. O Antropoceno e a Ciência do Sistema Terra. São Paulo: Editora
34.
Sobre os autores

Ana Paula Fracalanza é Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Hu-


manidades da Universidade de São Paulo (EACH-USP) desde 2005. Docente do Ba-
charelado em Gestão Ambiental e do Programa de Pós-Graduação em Mudança So-
cial e Participação Política da EACH-USP. Docente e Ex-Coordenadora do Programa
de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (Instituto de Energia e Ambiente/USP).
Participa do Grupo de Pesquisa Meio Ambiente e Sociedade do Instituto de Estudos
Avançados. Trabalha com os temas governança da água, políticas públicas ambientais
e saneamento básico.

André Felipe Simões é Professor Associado da Escola de Artes, Ciências e Huma-


nidades da Universidade de São Paulo – EACH/USP. Engenheiro Metalúrgico com
Mestrado em Engenharia Metalúrgica e Ciência dos Materiais, Doutor e Pós-Doutor
em Planejamento Energético. Na Graduação da USP atua como professor no curso de
Bacharelado em Gestão Ambiental da EACH. É professor dos seguintes programas de
pós-graduação: Sustentabilidade, na EACH-USP; Mudança Social e Participação Po-
lítica, o ProMuSPP, na EACH-USP; e Energia, no Instituto de Energia e Ambiente
(IEE/USP). Linhas de pesquisa: planejamento energético e ambiental, adaptação e mi-
tigação das mudanças climáticas, redução de pobreza via acesso à energia, geopolítica
da energia, história da energia, energia e sustentabilidade. Revisor contumaz de rela-
tórios do IPCC. Participou de diversas delegações oficiais do Brasil nas COP da UN-
FCCC. Em 2019 e 2020, atuou como Prof. Dr. Visitante, respectivamente, nas univer-
sidades de Maryland, nos Estados Unidos, e de Melbourne, na Austrália.

Camila Sasahara é Doutoranda em Ciência Ambiental (PROCAM/USP, 2020);


mestre em Ecologia Aplicada (ESALQ/USP, 2009); especialista em Perícia e Auditoria
224 Sobre os autores

Ambiental (UNINTER, 2018); tecnóloga em Gestão Ambiental (SENAC, 2005). Ex-


-presidente da Câmara Técnica de Resíduos Sólidos (COMDEMA – Indaiatuba, 2017).
Ex-assessora técnica de gabinete (SVMA-PMSP, 2015). Pesquisadora do Núcleo de
Pesquisa em Organizações, Sociedade e Sustentabilidade (NOSS-USP).

Carla Morsello, professora e orientadora de graduação e pós-graduação na EA-


CH-USP e no PROCAM-USP. Tem especialização em Gestão de Áreas Protegidas
pela Università degli Studi di Bologna (Itália), bem como mestrado e doutorado em
Ciências Ambientais na USP e University of East Anglia (Reino Unido), respectiva-
mente. Atua na interface entre a conservação biológica e o desenvolvimento local,
investigando especialmente os determinantes econômicos, psicológicos e ambientais
do uso, da conservação e da restauração de recursos naturais por populações indíge-
nas e rurais habitantes de áreas naturais. É editora associada de revistas internacio-
nais na área.

Cristina Adams é Professora Associada da Escola de Artes, Ciências e Humanida-


des (EACH) da Universidade de São Paulo (USP) desde 2005. Docente do Bacharelado
em Gestão Ambiental e dos Programas de Pós-Graduação em Modelagem de Siste-
mas Complexos (EACH), Interunidades em Ecologia Aplicada (ESALQ/CENA) e Ci-
ência Ambiental (PROCAM). Atua nas áreas de Ecologia Humana e governança de
sistemas socioecológicos florestais, bem como na interface entre ciência, políticas pú-
blicas e conhecimento ecológico local. Lead author no levantamento global da Plata-
forma Intergovernamental para a Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos: (IPBES).
Líder do grupo de pesquisa em Governança Florestal (GFF-USP).

Estela Macedo Alves é Pós-Doutora no IEA USP (USP cidades Globais) e na Fio-
cruz Minas Gerais (Privaqua). Representante do IAB-SP no CADES-AP. Pós-Doutora
IEE-USP (2019-2021). Doutora em Ciências PROCAM-IEE-USP (2018). Mestra em
Planejamento Urbano e Regional (FAUUSP, 2009) e graduada em Arquitetura e Urba-
nismo (FAUUSP, 2003).

Isabel Tostes Ribeiro é mestra e doutoranda em Ciência Ambiental pela Universi-


dade de São Paulo (USP). Possui graduação em Ciências Biológicas pela Universidade
Federal de Viçosa (UFV), tendo realizado intercâmbio na Aix-Marseille Université, na
França, onde cursou Mediação em Meio Ambiente e Comunicação Científica. Tem
experiência em estratégias fundamentadas nas Ciências Comportamentais para pro-
mover mudanças no comportamento humano que sejam benéficas ao meio ambiente
e à conservação da biodiversidade. Atualmente, pesquisa saúde e conservação em pro-
jeto para prever o risco de exposição a zoonoses, de modo a informar atores envolvi-
dos em políticas públicas em ambas as áreas.
Sociedade, Meio Ambiente e Cidadania em tempos de Pandemia 225

Izabela Penha de Oliveira Santos é Doutora em Ciência Ambiental pelo Progra-


ma de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) da Universidade de São
Paulo (USP). Engenheira Ambiental pela Universidade do Estado do Pará (UEPA).
Pesquisadora sobre mudanças climáticas e racismo ambiental. Experiência profissio-
nal voltada à pesquisa-ação para transformação social e engajamento socioambiental,
com ênfase em racismo e justiça ambiental, riscos associados a mudanças climáticas,
gestão de água e políticas participativas. Participou de projetos de cooperação inter-
nacional sobre redes de coalizão e governança da água, controle social no saneamento
e nexo água-energia-alimento.

Leticia Stevanato Rodrigues Doutoranda em Ciência Ambiental pelo Programa


de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) do Instituto de Energia e Am-
biente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Mestra em Ciências pelo PROCAM-
-IEE-USP. Bacharela em Gestão Ambiental pela Escola de Artes, Ciências e Humani-
dades (EACH) da USP. Diplomada Superior em Estudios Latinoamericanos y Caribeños
pelo Consejo Latinoamericano en Ciencias Sociales (CLACSO). Pesquisadora do Nú-
cleo de Pesquisa em Organizações Sociedade e Sustentabilidade (NOSS-USP). Atua
nas áreas de Justiça Ambiental, Ecologia Política Urbana, Resíduos Sólidos Urbanos e
Áreas Contaminadas.

Luciana Gomes de Araujo é pesquisadora de pós-doutorado do Instituto de Ener-


gia e Ambiente (IEE) da Universidade de São Paulo (USP). Professora Colaboradora
do Bacharelado em Gestão Ambiental e Ciclo Básico da Escola de Artes, Ciências e
Humanidades (EACH-USP) em 2020 e 2021. Integra os grupos de pesquisa em Gover-
nança Florestal (GFF-USP), Conservação e Gestão de Recursos de Uso Comum, da
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e do Laboratório de Ecologia Hu-
mana (LEHMA-UNICAMP). Tem se dedicado às áreas de Gestão e Conservação de
Recursos Naturais Comuns, Ecologia Humana e Etnoecologia.

Marcos Bernardino de Carvalho é geógrafo (bacharel e licenciado pela USP).


Professor Associado da Escola de Artes, Ciências e Humanidades/USP. Docente do
Curso de Gestão Ambiental (graduação) e dos Programas de Pós-Graduação em Mu-
dança Social e Participação Política (EACH-USP) e Geografia Humana (FFLCH-
-USP). É autor, entre outros, do livro ‘O que é Natureza’ (Col. Primeiros Passos, Ed
Brasiliense). Temas de atuação e investigação: geografia, abordagens integradas (so-
cioambientais), sociedade/ambiente, educação ambiental, epistemologia e história da
geografia e das ciências sociais.

Paula Ribeiro Prist é pesquisadora da EcoHealth Alliance, onde é responsável pela


equipe de pesquisa de Conservação e Saúde. Tem mestrado, doutorado e pós-douto-
rado em ecologia e epidemiologia de paisagem pela Universidade de São Paulo, com
226 Sobre os autores

período sanduíche na Columbia University e na Universidade de Queensland. Atua na


interface entre conservação e saúde humana, investigando como as mudanças climá-
ticas, o desmatamento, a mudança do uso do solo e a fragmentação dos ambientes
naturais afetam a saúde humana, principalmente a transmissão de doenças zoonóti-
cas. É editora associada da revista EcoHealth Journal.

Pedro Henrique Campello Torres é Doutor em Ciências Sociais pela Pontifícia


Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RIO), com estágio de pesquisa na Prin-
ceton University. É mestre em Planejamento Urbano e Regional pelo Instituto de Pes-
quisa e Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Foi Visiting Scholar na Bren School of Environmental Science & Mana-
gement, da University of California Santa Barbara (UCSB). Tem interesse nos temas de
pesquisas relacionados às desigualdades ambientais urbanas, justiça ambiental e cli-
mática, e planejamento ambiental.

Silvia Helena Zanirato é Doutora em História, Professora Associada da Escola de


Artes, Ciências e Humanidades/USP. Docente do Curso de Gestão Ambiental (EACH)
e dos Programas de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM) e de Mudança
Social e Participação Política (PROMUSPP). Investiga temas e problemas do processo
de urbanização brasileiro e os impactos ambientais dele derivados.

Sylmara Lopes F. Gonçalves Dias é Professora Associada da Escola de Artes Ci-


ências e Humanidades (EACH-USP) da Universidade de São Paulo. Docente do Ba-
charelado em Gestão Ambiental, Programa de Pós-Graduação em Sustentabilidade
(PPgSUS) e Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental (PROCAM). É líder
do Núcleo de Pesquisa em Organizações, Sociedade e Sustentabilidade (NOSS). Atu-
almente é Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Am-
biente e Sociedade (ANPPAS – 2019-2023). Doutora em Ciência Ambiental pelo Pro-
grama de Ciência Ambiental da Universidade de São Paulo (PROCAM-USP).
Doutora em Administração pela Escola de Administração de São Paulo da Fundação
Getulio Vargas (EAESP-FGV). Mestre em Administração pela Faculdade de Econo-
mia, Contabilidade e Administração USP (FEA-USP). Graduada em Administração
(PUC-MG) e Pedagogia (IEMG).

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