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Dialnet CriticaDeCinemaJornalismoERepressaoNosAnos70 8227139

O artigo analisa a crítica de cinema sob censura no jornal alternativo Opinião durante os anos 70, destacando as estratégias utilizadas pelos críticos para abordar filmes vetados. Apesar da extensa historiografia sobre a repressão à imprensa brasileira, a censura à crítica cinematográfica permanece pouco discutida. O estudo revela como a censura influenciou a forma textual e as estratégias discursivas que permitiram ao jornal participar do debate estético e político da época.
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Dialnet CriticaDeCinemaJornalismoERepressaoNosAnos70 8227139

O artigo analisa a crítica de cinema sob censura no jornal alternativo Opinião durante os anos 70, destacando as estratégias utilizadas pelos críticos para abordar filmes vetados. Apesar da extensa historiografia sobre a repressão à imprensa brasileira, a censura à crítica cinematográfica permanece pouco discutida. O estudo revela como a censura influenciou a forma textual e as estratégias discursivas que permitiram ao jornal participar do debate estético e político da época.
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14393/ArtC-V20n36-2018-1-12

e m a ,
d e c i n s s ã o
t i c a p r e
Crí s m o e r e
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74, pr o. 19
Opiniã
Jornal

Margarida Maria Adamatti


Doutora em Meios e Processos Audiovisuais pela Universidade de São Paulo (USP).
Pós-doutoranda na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), onde é também pro-
fessora colaboradora do Programa de Pós-graduação em Imagem e Som (PNPD/Capes).
Autora de Crítica de cinema e repressão: estética e política no jornal alternativo Opinião.
São Paulo: Alameda/Fapesp (no prelo). [email protected]
Crítica de cinema, jornalismo e repressão nos anos 70
Film criticism, journalilsm and repression in the 1970’s

Margarida Maria Adamatti

resumo abstract
Enquanto a historiografia sobre a re- While historiography on Brazilian press
pressão à imprensa brasileira durante censorship under the military regime is
o regime militar é extensa, o estudo das extensive, film criticism censorship re-
proibições à crítica de cinema perma- mains undebated. The aim of this paper is
nece à margem do debate. O objetivo to analyze film criticism under censorship
deste artigo é analisar a crítica de ci- in the underground newspaper Opinião
nema censurada do jornal alternativo (1972-1977), with an special interest in
Opinião (1972-1977), com especial inte- strategies developed by critics so they
resse pelas estratégias desenvolvidas could write about vetoed films. We stress
pelos críticos para escrever sobre filmes how meaning was produced, how previous
vetados. Observamos como se deu a censorship influenced textual forms and
produção de sentido, como a censura what discursive strategies allowed Opinião
prévia incidiu na forma textual e quais to participate in the aesthetic and political
estratégias discursivas permitiram ao debate about films.
1
Ver SIMÕES, Inimá. Roteiro da
intolerância: a censura cinema- semanário participar do debate estético
tográfica no Brasil. São Paulo: e político dos filmes.
Senac, 1999.
palavras-chave: crítica de cinema; keywords: film critic; censorship; Opi-
2
Ver K U C I N S K I , Bernardo. censura; jornal Opinião. nião newspaper.
Jornalistas e revolucionários: nos
tempos da imprensa alternati-


va. São Paulo: Página Aberta,
1991.
3
O montante de páginas veta-
das chegou a 100 mil laudas
ou 5 mil páginas. Ver Fim de
uma etapa. Opinião, n. 230, A historiografia sobre a censura à imprensa brasileira durante o
Rio de Janeiro, 1 abr. 1977, p.
6. Semanalmente, a equipe
regime militar é extensa e repleta de narrativas, geralmente em primeira
produzia uma quantidade de pessoa, sobre a presença dos censores nas redações. No campo do cinema,
páginas equivalente a duas a relação entre censura e crítica de cinema permanece em aberto, porque
a três edições do semanário,
na esperança de conseguir os trabalhos realçam a proibição dos filmes e os pareceres dos censores.
publicar suas tradicionais 24 Os casos de veto às obras brasileiras e os relatos sobre a exibição foram
páginas. A censura ao Opinião
era maior que o próprio jornal,
narrados por Inimá Simões,1 enquanto o projeto “Memória do cinema
o que pode ser comprovado a brasileiro” colocou à disposição dos pesquisadores farta documentação
partir da leitura das ordens de online, composta por críticas de jornais e pareceres da censura.
censura transcritas por Paolo
Marconi. Há uma recorrência A proposta deste artigo é analisar a produção de sentido da crítica
muito grande de proibições de cinema censurada do jornal alternativo Opinião (1972-1977). O sema-
à imprensa exatamente sobre
o Opinião. Assim os jornais
nário de Fernando Gasparian foi o mais importante veículo da imprensa
não podiam informar sobre as alternativa de base política,2 e sofreu com uma censura devastadora, que
apreensões do semanário de incluiu a prisão dos dirigentes quatro vezes, um atentado à bomba, inú-
Gasparian, nem transmitir as
declarações e prisões dos seus meras detenções dos editores e uma ameaça de morte ao proprietário.3 Se
dirigentes. Ver M A R C O N I , o artigo versa sobre as maneiras encontradas para escrever sobre um filme
Paolo. A censura política na
imprensa brasileira (1968-1978).
vetado, nosso foco principal é debater como a censura prévia ao Opinião
São Paulo: Global Editora, 1980. incidiu sobre a forma textual, e quais estratégias discursivas de transmissão

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de sentido permitiram ao semanário participar do debate estético e polí-

Dossiê História & Cinema


tico dos filmes, num contexto de acirrada repressão. A motivação inicial
partiu das escassas informações disponíveis sobre o tema, da ausência de
relatos dos críticos de cinema sobre a censura e da necessidade de obser-
var o quanto o discurso do jornal passa pela forma censurada dos textos.
Observamos, à maneira de Antonio Candido,4 como a estrutura social, no
caso censória, participa da organização formal do estilo de Opinião. Em
geral, os pesquisadores valem-se apenas do Opinião como fonte histórica
de acesso aos depoimentos dos cineastas e à recepção dos filmes. Contudo,
ao ocultar o papel da forma do texto censurado nesse debate, as frases do
jornal são usadas de maneira linear, incorrendo em conclusões, às vezes,
apressadas. A análise de um órgão da imprensa sob intervenção censória,
ou de uma entrevista com um cineasta durante o regime militar, exige
observar as formas de funcionamento da lacuna, da elipse, da negação e
da fragmentação de sentido. Portanto, o entendimento das camadas de
significação depende, em grande parte, dessas estratégias textuais frente
à censura, o que torna o nível da discussão fílmica muito mais complexo.
Não buscamos frisar o quanto a censura tornou-se um índice desa-
gregador ao conteúdo das notícias, mas como se deu sua presença na cons-
trução dos artigos. Sem realçar a mutilação imposta aos textos, procuramos
pelas estratégias encontradas pelos críticos para transmitir sentidos aos
leitores. Por causa desse contexto, às vezes os filmes serviam de pretexto
para comentar a situação política do país, em outros momentos as elipses
de sentido impostas pelo órgão censor tornavam os artigos mais abertos
às significações. Vez por outra, trazemos alguma informação comparativa
sobre a relação entre a censura e a crítica de cinema nos veículos da grande
imprensa, o que abre a possibilidade de compor, no futuro, um panorama
sobre a repressão à crítica de cinema nos anos setenta. Além disso, as en-
trevistas permitiram vislumbrar o peso do processo de autocensura sobre
os críticos. Um dado em especial não será realçado no decorrer do artigo,
mas faz parte intrínseca da significação incômoda da censura nas relações
de trabalho. Trata-se do uso do off nas entrevistas, seja nas indagações
sem resposta, nos silêncios ou na solicitação de não inclusão de detalhes,
quando as histórias envolvem relações de trabalho. Esse contexto revela
o peso da autocensura no dia a dia do jornalismo, mesmo passados mais
de quarenta anos. Se não detalhamos o histórico dos críticos por causa da
extensão do artigo, é importante lembrar o quanto o exercício da crítica
de cinema fazia parte da resistência ao regime. Em casos como o de Jean-
Claude Bernardet, a perseguição política e o trabalho na imprensa alterna-
tiva, com seus baixíssimos salários, impuseram a ele diversas dificuldades
materiais, que geralmente são desassociadas do tema da censura à crítica
de cinema. Cassado em 1969, pelo Ato Institucional Número 5, do cargo
de professor da USP, durante um bom período de tempo, Bernardet mo-
rou em albergues cariocas, e precisava se trancar entre grades para evitar
violências de todos os tipos.
Sem procurar por um receituário metodológico para dar conta do
nosso objeto, compusemos nossas conclusões a partir de formas de análise
de outros campos, interrogando o objeto pelo que surgia dele em sua ma-
terialidade, e especialmente pelo subtexto latente. Dessa forma, a própria
construção do objeto moldou formas de análise, que por sua vez permitem 4
Ver C A N D I D O , Antonio.
Literatura e sociedade: estudos de
avaliar os textos de cinema censurados da imprensa. Não propomos um teoria e história literária. Rio de
retrato panorâmico completo da relação entre crítica e censura, mas abrir Janeiro: Ouro sobre Azul, 2011.

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5
Ver O R L A N D I , Eni Puc- espaço para vertentes de pesquisa não canonizadas no campo do cinema.
cinelli. As formas do silêncio:
no movimento dos sentidos. Se a historiografia sobre a imprensa brasileira de cinema não realça a forma
Campinas: Editora da Uni- do texto censurado, tomamos de empréstimo da linguística o estudo sobre
camp, 2007.
as formas de comunicar sentido do silêncio proposta por Eni Orlandi5, e a
6
Ver DUCROT, Oswald. Dizer análise das formas de significação do implícito de Oswald Ducrot.6 Além
e não dizer: princípios de se-
mântica linguística. São Paulo: deles, a inspiração veio também do artigo de Zuenir Ventura, que cunhou
Cultrix, 1977. o termo “estética do silêncio”.7 No texto para a revista Visão, o jornalista
7
VENTURA, Zuenir. Os im- comentou diversas estratégias da imprensa frente à censura,
passes da cultura. Visão, v. 49, n.
6, São Paulo, ago. 1973, p. 101.
Talvez por isso a cultura brasileira esteja usando, para falar de certas coisas, uma
8
Idem, ibidem, p. 104.
linguagem quase incompreensível para os não iniciados [...]. Nossa arte e jornalismo
9
Ver SIMÕES, Inimá, op. cit. atuais - uma ‘obra aberta’ não prevista por Umberto Eco – estão a exigir, para sua
compreensão, uma inexistente estética do silêncio e do medo, um novo tratado de
semântica e uma reinterpretação das velhas figuras de retórica. [...]
Poucas vezes a língua portuguesa terá dado tantas voltas para sugerir o que não pode
dizer e insinuar o que não pode revelar. O que economizam em partículas negativas
e adversativas, a arte e o jornalismo esbanjam em metáforas, elipses, eufemismos,
perífrases, antíteses, circunlóquios, para dizer que o rei está nu, ou melhor, para
insinuar que estaria. Um jornalista europeu que recentemente esteve no Brasil
disse que o que mais o impressionara na nossa imprensa, que conhece e lê bem, era
a frequência dos condicionais: ‘Certos acontecimentos aqui não se realizam, não se
realizaram, nem se realizarão; apenas se realizariam.’ [...]. O condicional, com seu
(mal) caráter duvidoso e ambíguo de tempo e modo, é um atenuador que permite
dizer sem afirmar, informar sem se comprometer e rejeitar sem dizer não. É uma
forma que dá livre curso à imaginação e não exige comprovação.8

Se Zuenir não teorizou as formas de significação do silêncio na crítica


de cinema, ele abriu caminho para nossas indagações sobre as possibilida-
des de conectar o estudo sobre a censura, sobre a crítica de cinema e sobre
a forma jornalística dos textos.

A crítica ao filme censurado

Uma indagação inicial motivou a pesquisa. Era possível ao jornalista


comentar um filme censurado? A proibição da exibição significava sempre
a impossibilidade de nomear as obras? Mais forte do que a lembrança da
censura prévia ao cinema, os críticos citam mais as ordens de proibição do
órgão censor, que chegavam às redações dos jornais através de telefonemas
anônimos ou de bilhetes entregues por policiais. Quando questionados
sobre as táticas para burlar a intervenção, a conclusão geral é de que uma
crítica sobre um filme vetado tinha mínimas chances de ser publicada. Para
as obras recém-liberadas, a cautela e as frases subentendidas eram sempre
necessárias. Nomes como Glauber Rocha e Costa Gravas estavam prati-
camente banidos dos textos. José Carlos Avellar lembra que havia quase
uma proibição de comentar o filme Z (1969) de Costa Gravas. A obra só
foi liberada em 1980.9 Tanto na grande imprensa quanto no Opinião, para
ludibriar as proibições, os jornalistas costumavam indicar os filmes que
estavam em exibição no exterior, acrescentando uma frase sobre a impos-
sibilidade de a obra chegar ao Brasil.
Esse contexto explica melhor o quanto algumas estratégias do Opinião
significaram um passo além no enfrentamento à censura. Em dois momen-
tos, o crítico Sérgio Augusto publicou listas de filmes censurados. O sub-

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terfúgio foi possível até a edição posterior à instauração da censura prévia

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no Opinião, em janeiro de 1973. Trabalhando em três jornais censurados:
Opinião, Pasquim e Jornal do Brasil, Augusto chegou mesmo a condenar o
próprio sistema de censura, por ser retrógado.10 Talvez possamos ver nessa
tática a existência de algum espaço de manobra, que se tornou ainda mais
raro e lacunar com a entrada da censura prévia.
A ousadia de Sérgio Augusto não foi confirmada pelo próprio jorna-
lista em entrevista, mas no comparativo com o colega do mesmo JB, José
Carlos Avellar, se observa como a publicação da lista de censura podia
acarretar em maiores punições ao crítico. Certa vez, Avellar aproveitou a
tradicional lista dos melhores filmes do ano para inserir o nome de vários
filmes vetados ou recém liberados, como São Bernardo (1972), de Leon Hir-
zsman, Sacco e Vanzetti (1971), de Guiliano Montaldo e A classe operária vai
ao paraíso (1971), de Elio Petri. Além disso, elegeu O último tango em Paris
(1972), de Bernardo Bertolucci, como o melhor do ano numa provocação
nada sutil,

Aparentemente não faz sentido indicar como o mais importante acontecimento do


ano um filme que não foi exibido entre nós, e que nem mesmo tem possibilidade de
chegar às nossas telas - pelo menos em futuro previsível. Aparentemente não faz
sentido destacar um filme que apenas uns poucos privilegiados conseguiram ver.
Mas em verdade, apesar de conhecido na maioria dos casos, através de referências
imprecisas, o mais importante acontecimento cinematográfico do ano foi o filme de
Bertolucci. [...] Certo, aparentemente não faz sentido destacar um filme que não
foi nem será exibido, que não poderemos ver como tantos outros. Mas não será
exatamente isto o que mais caracteriza o ano do cinema?11

Quando o texto foi aprovado pela censura, Avellar provou para si


mesmo que não havia uma única regra para escrever sobre filmes vetados.12
E não havia mesmo; segundo Maria Aparecida de Aquino13, a censura
durante aquele período dependia do órgão da imprensa, do censor e do
momento político. O subterfúgio custou caro a Avellar. Com a reclamação
da censura à direção do jornal, ele foi afastado da função de crítico de
cinema por alguns meses. Foi exatamente essa a motivação para Avellar 10
Ver A U G U S T O , Sérgio.
começar a escrever em jornais alternativos, primeiro no Opinião, e num Ajuste de contas. Opinião, n.
contexto parecido, no Movimento. 10, Rio de Janeiro, 8 a 15 jan.
1973, p. 21.
Analisamos nesse artigo três estratégias da crítica de cinema do 11
AVELLAR, José Carlos. Ja-
Opinião para enfrentar a censura através da especificidade jornalística: o nela indiscreta. Jornal do Brasil,
estudo da migração de sentido político, o debate em torno dos gêneros do Rio de Janeiro, 29 dez. 1973.
jornalismo, e, por fim, a presença da autocensura no processo de edição 12
Para maiores informações
jornalístico. Entre os exemplos, procuramos realçar os textos que mais sobre as entrevistas realizadas,
ver A D A M AT T I , Margarida
oferecem possibilidades de análise da estética do silêncio, em especial rela- Maria. A crítica cinematográfica
tivos à produção de três cinemanovistas, que estavam na mira da censura: no jornal alternativo Opinião:
frentismo, estética e política
Glauber Rocha, Leon Hirzsman e Joaquim Pedro de Andrade.
nos anos setenta. Tese (Dou-
torado em Meios e Processos
As estratégias textuais de transmissão de sentido político Audiovisuais) – ECA-USP, São
Paulo, 2015.
13
Ver AQUINO, Maria Apa-
Em dezembro de 1972, Sérgio Augusto publicou uma lista com o recida de. Censura, imprensa,
nome e a sinopse de filmes censurados, incluindo São Bernardo (1972) de estado autoritário (1968-78) – o
Leon Hirzsman, Z (1969) de Costa Gravas, Bananas (1971) de Wood Allen, exercício cotidiano da dominação
e da resistência: O Estado de
Zabriskie point (1970) de Michelangelo Antonioni, Laranja mecânica (1971) de S. Paulo e Movimento. Bauru:
Stanley Kubrick, Decameron (1971) de Pier Paolo Pasolini e Prata palomares Edusc, 1999.

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14
Ver A U G U S T O , Sérgio. O (1970-1971) de André Farias.14 Alguns nomes da lista de Augusto eram pre-
que se pode ver. Opinião, n.
6, Rio de Janeiro, 11 a 18 dez. sença obrigatória entre os cineastas mais vetados,15 como François Truffaut,
1972, p. 19. Michelangelo Antonioni, Elio Petri, Costa Gravas, Louis Malle, Pier Paolo
15
Ver SIMÕES, Inimá, op. cit. Pasolini, Claude Chabrol e Jean-Luc Godard. No caso brasileiro, Glauber
16
Ver G R AVA S , Costa. A Rocha encabeçava a tabela dos diretores proibidos.
América Latina segundo Costa Contudo, ainda era possível comentar em Opinião o último filme de
Gravas. Entrevista concedida a
Marcel Niedergang. Opinião, n.
um diretor na mira da censura, geralmente quando os artigos fugiam de
15, Rio de Janeiro, 12 a 19 fev. temáticas políticas, e eram traduções de jornais do exterior. Costa Gravas
1973, p. 14. foi entrevistado por Marcel Niedergang pelo lançamento de O estado de
17
Ver SIMÕES, Inimá, op. cit. sítio (1972).16 Se o texto não foi vetado, a causa provável é que o filme não
18
Documento - a advertência foi sequer importado, por causa da imensa chance de interdição.17
do Ministério da Educação. É preciso fazer uma ressalva em relação aos filmes de Glauber Rocha e
Opinião, n. 66, Rio de Janeiro,
11 fev. 1974, p. 5. aos seus depoimentos na imprensa. Embora a seção de crítica de cinema de
19
Idem, ibidem.
Opinião não publique análises sobre a produção glauberiana, as declarações
dele sobre o país tinham visibilidade nos jornais. Cotejamos nesse artigo
dois casos centrados no cineasta. O primeiro demonstra como Opinião uti-
lizou uma brecha para narrar ao público o próprio mecanismo de censura,
criando um mecanismo de contra-argumentação da repressão. Enquanto
isso, o segundo exemplo mostra como através da diatribe, Glauber criava
estratégias de migração de sentido em dois jornais simultâneos, revelando
a existência da censura. Em 1974, a Divisão de Segurança e Informação do
Ministério da Educação e Cultura publicou um aviso oficial denominado
“Como eles agem”, que incluía diversas proibições da censura para a área
de cultura.18 Como o documento era oficial, Opinião aproveitou a brecha e
publicou com destaque o material na íntegra. O texto comentava como as
“organizações esquerdistas” utilizavam uma propaganda “sub-reptícia”
através das artes e música, atingindo meios ilegais como “sabotagem” e
“atos de terrorismo”. Os tópicos versam sobre educação, imprensa, teatro,
música e religião, e no caso do cinema não se oculta que,

Nos dias de hoje, cineastas de vários países, simpatizantes dos ideais do comunis-
mo internacional, vêm utilizando novas técnicas para difundir essas mensagens,
baseadas em temas políticos, onde a violência, a pornografia e a corrupção são
amplamente exploradas.
No Brasil essa forma vem sendo paulatinamente difundida e desenvolvida, enca-
beçada por alguns cineastas como Glauber Rocha, Rui Guerra, etc... Discípulos
e seguidores de Jean-Luc Godard, conhecido nos meios cinematográficos como o
‘professor que ensina as fórmulas de fazer politicamente o cinema político’.
Sob o rótulo ‘cinema novo brasileiro’, alguns produtores valem-se de temas regionais
para insuflar a luta armada contra o ‘poder opressor’ [...]. O próprio Glauber diz:
“o cinema novo do Brasil só terá sentido se estiver na vanguarda da mais agressiva
e imediata luta sem reconciliação. Temos de fazer o cinema da miséria, na cultura
da fome’.19

O trecho confere uma boa dimensão das resignificações possíveis


de um texto da repressão pelas mãos da resistência. A possibilidade de
reprodução de um documento oficial trazia a oportunidade de conhecer o
pensamento de Glauber Rocha. Mesmo ao transcrever frases com sentidos
construídos pelo regime, um dos trechos fornecia acesso ao pensamento
do cineasta, “temos de fazer o cinema da miséria, na cultura da fome”.
Assim, a declaração de Glauber tornava possíveis duas áreas de sentido.
Mesmo sob a pecha do “subversivo” trazida pelo texto oficial, o acesso à

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frase do diretor informava ao público algumas das proibições institucionais.

Dossiê História & Cinema


Dessa forma, uma versão do próprio regime militar tornava-se arma con-
tra a própria censura. Portanto, numa mesma zona discursiva, o discurso
da opressão convivia com a da resistência.20 Era através da estética do
silêncio que o “dizer mais do que vai escrito” podia se transformar numa
ferramenta de enfrentamento ao regime. Como destacou Eni Orlandi, “O
discurso de resistência produz uma reversão do discurso social, sem negá-
lo. Ele passa a significar pelo avesso, por seu duplo. Assim, não se diz o
senso comum, mas se refere a ele para dizer outra coisa”.21 O outro sentido
construído pelo texto da Divisão de Censura transformava-se no sentido
que a resistência fazia referência, porque através da alusão se dizia outra
coisa. Dada à capacidade polissêmica da linguagem, os novos sentidos são
sempre possíveis e escapam. Por causa disso, nunca haverá uma censura
completamente eficaz. Contudo, o entendimento do trecho dependia de
uma escolha do leitor em trabalhar as significações na fronteira do literal
e do implícito. Segundo Oswald Ducrot,22 o público começa sua ordem de
leitura pela significação literal até chegar ao implícito. O importante nesse
processo do texto censurado é que a responsabilidade do dizer não recaia
sobre o autor, atrelando o sentido somente à recepção.
Em oposição ao silêncio de Opinião à filmografia de Glauber, a im-
prensa era abastecida por declarações do cinemanovista, especialmente
sobre o Brasil. Uma das mais famosas polêmicas foi publicada na revista
Visão, quando o cineasta elogiou os militares como legítimos represen-
tantes do povo, e ainda chamou o general Golbery do Couto e Silva de o
“gênio da raça”.23 O texto causou um mal-estar no meio cinematográfico.
A esquerda ficou indignada com as declarações, enquanto os militares
desconfiaram do elogio desproporcional. Seguindo a estética do silêncio,
Glauber criava significações da resistência, ocultas por detrás de mensagens
cifradas. Ele construiu premissas argumentativas pouco convincentes para
reconstruir significados na sequência. Mas essa não foi a única estratégia
adotada pelo diretor. No jornal alternativo Crítica, ele fez acusações diretas
aos colegas cinemanovistas, que usavam o nome do Cinema Novo para
conseguir verbas na Embrafilme.24 Portanto, entre declarações polêmicas
ou transparentes, os textos de Glauber podiam ser vetados ou publicados,
dependendo do jornal escolhido.
Em 1976, Glauber concedeu uma entrevista ao jornal alternativo
20
Ver ORLANDI, Eni, op. cit.
Movimento,25cuja última parte foi totalmente vetada pela censura. Interessa-
21
nos, nesse caso, observar como foi preciso construir estratégias de migração Idem, ibidem, p. 113.

de sentido em dois jornais ao mesmo tempo, para transmitir com clareza 22


Ver DUCROT, Oswald, op. cit.
ao público quais eram as significações glauberianas. Num artigo para o 23
R O C H A , Glauber. Abaixo
alternativo O Pasquim, Glauber inverteu as bases entre o censor e o jornal a mistificação. Visão, n. 5, São
Paulo, 11 mar. 1974, p. 154-155.
censurado, e acusou Movimento de vetar suas ideias, e de cortar a última
24
Ver ROCHA, Glauber. Glau-
parte da entrevista, “Movimento em nome da revolução brasileira pede ber por Glauber. Crítica, n. 55,
minha cabeça porque eu esculhambei Machado de Assis”.26 Declarações Rio de Janeiro, 25 a 31 ago. 1975.
do cineasta, tais como, vivemos “num país democrático”, onde a censura 25
Ver ROCHA, Glauber. Nem
do governo “permite que eu publique materialismo dialético” são de uma Lênin, nem Mao, nem Stálin,
nem mesmo Machado de Assis.
clareza sem igual, exatamente pela negação da significação literal. A po- Entrevista concedida a Narciso
lêmica girava em torno da acusação de Glauber a Machado de Assis, por Lobo. Movimento, n. 55, São
ser o verdadeiro responsável pela censura, porque escreveu de maneira Paulo, 19 jul. 1976, p. 19.
26
compreensível aos censores. Esse foi o trecho proibido em Movimento pelo ROCHA, Glauber. Querem
me matar (ou votem no Arena).
órgão censor. Criando um verdadeiro fato midiático no Pasquim, Glauber O Pasquim, Rio de Janeiro, 13
argumentava que ao compor um texto com clareza, o autor queria ser ago. 1976.

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27
Ver DUCROT, Oswald, op. cit. censurado. Para provar a “imensa” liberdade brasileira, o cinemanovista
28
Ver A G U I A R , Flávio. E citava uma série de autores e obras que historicamente tiveram problemas
geme o sino em lúgubres re-
ponsos - pobre Glauber! po-
com a censura, como Gregório de Mattos, São Bernardo (1972) de Leon Hir-
bre Glauber! (ou ‘Nem Lenin, zsman ou Macunaíma (1969) de Joaquim Pedro de Andrade. Ao apontar
nem Stalin, nem Marx, nem obras na mira do órgão censor, o suposto “erro” da argumentação trazia
mesmo Machado de Assis’. E
muito menos Glauber Rocha). informações para o leitor poder reconstruir os significados. Especialista
Movimento, n. 53, São Paulo, 5 no uso das diatribes do jornalismo, Glauber elaborava suas frases através
jul. 1976.
do sentido lacunar. Assim ele iniciava polêmicas sofisticadas baseadas na
29
Idem, ibidem. significação do silêncio. O espanto gerado pelas premissas falsas funcionava
30
Idem, ibidem. através da noção de implícito do enunciado,27 transmitindo dados que não
31
DUCROT, Oswald, op. cit, se podia expor. Além disso, a argumentação falsa indicava a existência de
p. 20. outra causa implícita: a ação da censura. Assim a conclusão era entendida
32
AGUIAR, Flávio, op. cit. por dedução, e o silêncio conseguia significar, porque a ausência havia
33
Idem, ibidem. produzido uma presença.
34
AGUIAR, Flávio. A tréplica O editor de cultura do Movimento, Flávio Aguiar, fez um malabarismo
de Flávio Aguiar a Glauber. O retórico para tentar responder a Glauber num jornal mutilado pela censura,
Pasquim, Rio de Janeiro, set.
1976. com uma das únicas ferramentas possíveis naquele momento, a linguagem
lacunar.28 Usando as armas do reclamante, ele utilizou o implícito para
comentar a proibição da Polícia Federal. A compreensão do texto dependia
de um longo caminho de preenchimento do implícito, a partir das edições
anteriores e dos fios da memória. Havia ironia velada nas frases abertas ao
leitor, “[...] Falta de perspectivas? Sim, senhor, e todos nós sabemos muito
bem que o culpado disso não é Machado de Assis coisa nenhuma, [...] e
que dizer isso hoje é uma grosseira irresponsabilidade”.29 Na sequência,
Flávio Aguiar completava, “Ou será que a culpa daquelas e de outras Me-
mórias do cárcere também é do ‘medíocre’ Machado de Assis?”30 As frases
eram claras para quem havia lido o depoimento de Glauber, e indiretas
para quem desconhecia o assunto. A estratégia tentava obrigar o leitor a
continuar o discurso e trabalhar o subentendido, a maneira descrita por
Ducrot,31 “se X achou oportuno dizer Y” e não Z, “logo ele quis dizer W”.
Para alertar os leitores sobre a ação da censura, Aguiar chamava a aten-
ção que “o depoimento de Glauber não está completo, principalmente no
Movimento”.32Assim, a culpa ironicamente recaia sobre o próprio Macha-
do de Assis, duplo silencioso de Glauber, “Esse Machado”, dizia Aguiar
fechando o artigo.33
Para explicar aos leitores com todas as letras que a entrevista de
Glauber tinha sido vetada em Brasília, Flávio Aguiar precisou recorrer ao
Pasquim, recém-liberado da censura prévia: “Pensei que o artigo anterior,
que escrevi e publiquei em Movimento [...] deixasse claro que a entrevista
de Glauber Rocha fora cortada em Brasília pela censura prévia a que Mo-
vimento semanalmente se vê submetido.[...] Como o que acima vai exposto
teria dificuldade de ser publicado em nosso jornal, recorro ao espaço do
Pasquim para esclarecer de uma vez por todas (espero) a questão”.34
O trecho demonstra como num mesmo período histórico, O Pasquim
podia retornar ao texto jornalístico padrão, sem precisar recorrer à estética
do silêncio como forma de transmissão de significados.

Os gêneros jornalísticos e a entrevista como espaço


de migração de sentido

Para analisar o texto censurado da crítica de cinema é importante


avaliar o uso dos gêneros jornalísticos como forma de construção do dis-

184 ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018


curso editorial. Se as fronteiras entre o jornalismo informativo e o opinativo

Dossiê História & Cinema


são muito porosas, e atualmente vem sendo problematizadas no campo35,
sabemos que é impossível noticiar um fato sem o componente opinativo, e
vice versa. Durante a fase de elaboração do projeto editorial de Opinião36, a
escolha pelo jornalismo informativo respondia às convenções socialmente
sedimentadas de objetividade e neutralidade jornalística, mas também
servia de anteparo à ação da censura, através da possibilidade de maior
ocultação dos pontos de vista. Portanto, de uma forma ou de outra, a ação
censória se fazia presente através do gênero textual escolhido.
O entrosamento no Opinião entre o jornalismo informativo e o opina-
tivo gerou um produto final bastante complexo do ponto de vista textual.
Nosso objetivo nesse tópico é observar se os críticos de cinema recorriam
mais ao gênero informativo ou opinativo como estratégia para ludibriar a
censura, e se havia um entrelaçamento entre os dois polos, vez por outra.
Nesse estudo, a entrevista, pertencente ao gênero informativo, recebe
destaque por suas possibilidades de problematizar espaços de tensão
entre o entrevistado e o entrevistador. Além disso, procuramos avaliar se
o processo de autocensura ocorria durante a coleta dos depoimentos ou
posteriormente, durante a edição.
A estratégia mais comum para transmitir significações políticas aos
leitores num contexto de censura se dava através do gênero informativo.
A peculiaridade desse processo reside no uso unicamente das versões
oficiais. Sem acrescentar pontos de vista de terceiros, típicos da notícia, o
desaparecimento da disputa simbólica entre os agentes sociais no corpo 35
A tendência dos estudos
dos textos servia de aviso para o público compor sua leitura através de tem sido substituir os termos
saltos argumentativos.37 Dessa maneira, a ausência dos depoimentos da jornalismo informativo vs.
opinativo pela ideia de relato e
esquerda, por exemplo, procurava incomodar os leitores mais proficien-
comentário. Sobre as fronteiras
tes, demonstrando a necessidade de costurar as informações faltantes nos porosas entre os dois gêneros,
textos. Se nosso foco incide nas seções de cinema, encontramos as táticas ver C H A PA R R O , Manoel
Carlos da Conceição. Jornalis-
mais inovadoras para chamar a atenção do público exatamente fora desses mo, discurso em dois gêneros. Tese
espaços, através do layout com tarjas negras, de supostos “erros” na nume- (Livre Docência) – ECA-USP,
São Paulo, 1997.
ração e no uso de letras com corpo diferente. Por exemplo, por causa da
36
proibição de informar sobre a missa de sétimo dia do estudante Alexandre Fernando Gasparian tomou
inspiração no Guardian Weekly
Vanucchi, assassinado pelos órgãos da repressão, a única nota publicada para compor o Opinião. Cf.
em Opinião tinha como título “Missa para um estudante morto”.38 Se as KUCINSKI, Bernardo, op. cit.
informações básicas do jornalismo não estavam presentes, procurava-se 37
Os estudos sobre as formas
gerar uma sensação de estranhamento pela ausência do lead.39 Sem informar de leitura demonstram que o
processo não é linear e ocorre
o nome do aluno “desaparecido” ou a causa da morte, na outra ponta, sur- através de saltos entre as pala-
giam os comentários opinativos sobre o regime militar, através da metáfora vras. Cf. MANGUEL, Alberto.
A história da leitura. São Paulo:
do sermão do arcebispo de São Paulo, Dom Paulo Evaristo Arns,“Cristo, Companhia das Letras, 1997.
mesmo depois de morto foi devolvido aos familiares e amigos: essa justiça 38
Missa para um estudante
fez o representante do poder romano”.40 Dessa suposta falha no lead ou morto. Opinião, n. 22, Rio de
no tema recorrente do desaparecimento, o jornal tentava levar o público Janeiro, 2 a 9 abr. 1973, p. 5.
a completar os dados faltantes na segunda metade da página. Através da 39
Os dois primeiros parágrafos
“costura” de notícias fragmentadas, o leitor poderia deslocar seu olhar de uma notícia procuram res-
ponder ao lead, isto é, às seis in-
para uma imensa tarja negra com a inscrição “Leia e assine opinião”. A dagações básicas do jornalismo
faixa preta de dimensões ampliadas revestia-se de novo significado, o luto. sobre um fato: quem fez o que,
como, onde, quando e por que.
Abaixo dela, havia a seguinte manchete “Nota oficial sobre a morte do es-
40
Missa para um estudante
tudante Vanucchi”,41 onde se relatava apenas a versão oficial do regime. A
morto, op. cit.
narrativa apagava a presença de outros sujeitos sociais, procurando eximir 41
Nota oficial sobre a morte do
o jornal da responsabilidade pelos fatos apresentados. estudante Vanucchi. Opinião, n.
Esperávamos encontrar variados relatos das estratégias de enfren- 22, op. cit., p. 5.

ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018 185


42
Ver Um cinema edificante? tamento da censura, quando entrevistamos os críticos do Opinião. Com a
Opinião, n. 161, Rio de Janeiro,
5 dez. 1975. exceção das descrições detalhadas de José Carlos Avellar, os depoentes não
43
Idem, ibidem.
forneceram muitos exemplos. Evidentemente a busca por essas táticas não
44
começou com a realização das entrevistas, mas com a catalogação completa
Ver CANDIDO, Antonio. A
verdade da repressão. Opinião, do jornal. Nessa leitura, constatamos como o gênero informativo era o prin-
n. 11, Rio de Janeiro, 15 a 22 cipal recurso de resistência frente à censura. Essa peculiaridade confirma
jan. 1973.
a necessidade de adaptar a pesquisa sobre a crítica censurada ao estudo
45
Ver C A R O N E , Edgar. A dos gêneros jornalísticos. Se a crítica de cinema tende ao gênero opinativo
resistência contra a ditadura.
Opinião, n. 162, Rio de Janeiro, por excelência, a presença do órgão censor desequilibra o texto padrão,
12 dez. 1975. criando fronteiras entre o informativo e o opinativo que correm juntas no
46
Ver B A R T H E S , Roland. A interior dos artigos. Um texto sem autoria, ao que tudo indica escrito por
estrutura da notícia. In: Crítica Jean-Claude Bernardet, cita o filme histórico Independência ou morte (1972)
e verdade. São Paulo: Perspec-
tiva, 2003. de Carlos Coimbra para condenar o regime militar.42 A estratégia é sutil
e tende mais ao gênero opinativo. Temos acesso ao depoimento do então
presidente da Embrafilme, Roberto Farias, sobre como o filme histórico
estimula o sentimento nacionalista do povo pela evocação de fatos edifi-
cantes. Num jornal de resistência, a frase por si só possui um componente
irônico. Sem trazer uma condenação direta ao regime, o comentário surge
com força na última frase, “Como nos tempos da UFA?”.43 Se a pergunta
lançada talvez não fosse compreensível ao censor, provavelmente tenha
sido para os conhecedores das ligações entre o regime nazista e a indústria
de filmes Universum film aktiengesselschaft.
Levando o pêndulo para o lado do opinativo por excelência, Antonio
Candido aproveitou o lançamento do filme Investigação sobre um cidadão
acima de qualquer suspeita (1970) de Elio Petri para compor um artigo de
condenação ao sistema censório.44 A estratégia partia não só da crítica como
lugar privilegiado da opinião, mas também do uso da metáfora política na
obra literária. Sem supostamente falar do tempo presente, o estudo literário
sobre Balzac, Dostoievski e Kafka discorria sobre a censura, o Estado e a
política, trazendo observações facilmente transpostas ao contexto brasileiro.
Uma estratégia semelhante, que apelou à metáfora e ao gênero informativo
foi utilizada por Edgar Carone, para fazer alusão ao regime militar através
do Estado Novo.45 O título era sugestivo “A resistência contra a ditadura”.
Tomando a forma do fait divers decepcionado, havia uma abertura para
gerar significações a respeito do Brasil daqueles anos.46
A relação entre comentário e informação traz novas possibilidades
de construção de sentido nas entrevistas. O recurso era bastante utilizado
no semanário de Gasparian. Ao tratar dos temas da atualidade, sob a égide
de uma suposta neutralidade, muitas vezes a entrevista possibilita ocultar
a presença do mediador enquanto sujeito. A própria divisão protocolar
entre pergunta e resposta tem o potencial de camuflar o processo de in-
terpretação e de edição, porque toma a forma de um registro “real” sobre
uma conversa travada.
Procurando pelas estratégias para ludibriar a censura nos textos,
num primeiro momento, talvez o local menos evidente fosse o espaço
da entrevista, mas ele é também o mais sofisticado como fronteira móvel
entre a opinião e a informação. Além disso, o formato permite observar
duas tensões: 1. entre a autocensura e a resistência e, 2. entre o jornalista e
o entrevistado, num jogo de silêncios, perguntas não respondidas e saídas
pela tangente. Esses conflitos são constantes em Opinião, especialmente
quando o entrevistador é Jean-Claude Bernardet. Esse equilíbrio tênue
entre os dois lados torna-se mais complexo quando a conversa tem como

186 ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018


tema filmes recém liberados pela censura, como foi feito com São Bernardo

Dossiê História & Cinema


(1972) de Leon Hirzsman. O risco de escrever sobre uma obra como aque-
la, na mira dos censores pairava sobre o entrevistado e o entrevistador no
texto de 1974.47 Não era só o filme de Hirzsman que tinha sido vetado48;
o próprio Jean-Claude Bernardet era obrigado a assinar a entrevista com
o pseudônimo de Carlos Murao, porque durante algum tempo seus ar-
tigos para o Opinião foram completamente vetados pela Polícia Federal.
O pseudônimo garantia maior oportunidade para abordar temas sobre o
presente, enquanto os textos com sua assinatura diminuíam muito o espaço
de manobram, ou davam margem a um veto completo. Graças a esse an-
teparo, o crítico indagou de frente o cineasta, perguntando se o uso de um
livro clássico como o de Graciliano Ramos serviu como fonte para falar do
presente, através das alusões ao passado. Se não temos acesso à reação de
Hirzsman, a falta de resposta direta pode incomodar o leitor atento. Fu-
gindo literalmente das respostas, Hirzsman explicou apenas que os filmes
importantes falam da realidade brasileira, sem confirmar se São Bernardo
relacionava-se ao passado ou ao presente. Assim a significação do sentido
dependia muito da reelaboração feita pelos leitores. O silêncio do cineasta
procurava trazer a possibilidade do múltiplo e o caminho de novas signi-
ficações.49 Nesse sentido, a falta de respostas às perguntas encarregava-se
de trazer a polissemia ao texto, isentando o cineasta da responsabilidade
do dizer. Segundo Oswald Ducrot, “tem-se frequentemente a necessidade
de dizer certas coisas e ao mesmo tempo de poder fazer como se não as
tivéssemos dito, de dizê-las mas de modo tal que se possa recusar a sua
responsabilidade”.50
Contudo, para entender como São Bernardo citava o tempo presente,
era preciso ter assistido ao filme. Em casos de obras censuradas, Bernardet
se furtava a decompor as sequências das obras por causa do risco de uma
nova intervenção censória. Se esse temor apareceu nesta entrevista com
Hirzsman, o receio deve ter sido ainda mais forte quando São Bernardo per-
manecia censurado. Dois anos antes dessa entrevista, Bernardet escreveu
um artigo lacunar, onde só foi possível propor um quadro geral amplo aos
leitores.51 Lançando a ideia de que o filme fazia uma “análise da socieda-
de”, o crítico tomava a obra como uma “síntese das contradições sociais
brasileiras”. Ao jogar com a perspectiva lacunar, Bernardet considerava São
Bernardo uma interrogação lançada ao “público culto” sobre a “coisificação
do homem” pelo sistema econômico. O entendimento da frase dependia
de relacionar a opressão ao homem com as imagens documentais do filme, 47
Ver MURAO, Carlos (pseu-
revelando as condições precárias do trabalho “atual” dos agricultores. Era dônimo Jean-Claude Bernar-
det). Ninguém vai sozinho ao
assim que a crítica de cinema tentava participar do debate sobre política, paraíso. Opinião, n. 87, Rio de
dirigindo o raciocínio do leitor à distância. Janeiro, 8 jul. 1974.
48
São Bernardo foi retido na
A presença da autocensura nos processos de edição do jornalismo censura por sete meses. Só foi
lançado um ano e meio depois,
levando à falência a empresa
Os estudos sobre o newsmaking partem de técnicas de observação Saga, de propriedade do cine-
participante sobre as rotinas de produção do jornalismo. Sem essa possi- asta. SIMÕES, Inimá, op. cit.
49
bilidade real de tomar parte no dia a dia da redação do Opinião, tomamos Ver ORLANDI, Eni, op. cit.

inspiração nesses estudos como forma de obter acesso aos textos auto- 50
D U C R O T, Oswald, op. cit,
p. 13.
censurados, a partir do conceito de rastros comunicacionais de Marialva
51
Barbosa.52 Segundo a autora, o trabalho pode ser feito através de resquícios Ver B E R N A R D E T, Jean-
Claude. Uma voz inesperada.
de falas impressas, textos ficcionais, entrevistas de jornalistas, cartas do Opinião, n. 7, Rio de Janeiro, 18
passado, correspondências encaminhadas pelos leitores às publicações, a 25 dez. 1972, p. 22.

ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018 187


52
Ver B A R B O S A , Marial- imagens publicadas ou não. Dentro de nossas possibilidades, utilizamos
va. Por uma história cultural
latino-americana dos meios o acervo dos críticos de cinema do jornal para nos aproximar dos vestígios
de comunicação: um olhar deixados pela escrita autocensurada durante o processo de edição do jor-
sobre as práticas, processos e
nalismo. Se as oportunidades não são vastas nesse momento, elas abrem
sistemas de comunicação nas
últimas décadas do século novas possibilidades de pesquisa. Tendo como fonte o acervo de Jean-
XIX. Anos 90, v. 19, n. 36, Porto Claude Bernardet, localizado na Cinemateca Brasileira, encontramos seus
Alegre, dez. 2012.
rascunhos para o Opinião. O material é extenso e não temos a pretensão
53
BERNARDET, Jean-Claude.
Cinemateca Brasileira. Pasta
de esgotá-lo. Procuramos demonstrar nesse momento como a autocensura
DJ/13 (Acervo Jean-Claude Ber- incidia na elaboração da crítica de cinema, e quais são as variações de estilo
nardet). Anotações, rascunhos e ocasionadas pela ação censória.
textos originais publicados em
Opinião 1972-1973. O estudo da confecção crítica de Bernardet permite observar se sua
54
Para maiores detalhes sobre
forma de escrita já lançava mão de estratégias de autocensura e de suben-
Jean-Claude Bernardet como tendimento nos rascunhos, ou se o material era alterado durante a edição
líder de opinião, ver AD A - jornalística. Propomos a análise sobre Os inconfidentes (1972) de Joaquim
MATTI, Margarida, op. cit.
Pedro de Andrade, que permaneceu na mira da censura até ser liberado.
55
Ver B E R N A R D E T, Jean-
Claude. Com as armas do
Comparamos nesse subitem: 1. o rascunho de Bernardet para a edição
inimigo. Opinião, n. 127, Rio de número zero do Opinião, 2. a crítica publicada quase três anos depois so-
Janeiro, 11 abr. 1975. bre a obra do cineasta, e 3. o trabalho comparativo entre a entrevista de
Joaquim Pedro ao Opinião e à revista Visão, com o intuito de avaliar a ação
da autocensura e dos processos de edição do jornalismo.
A edição zero do jornal Opinião possui quatro páginas, destinadas a
apresentar a equipe e o projeto editorial. Bernardet preparou para o número
inicial um artigo sobre os filmes históricos, centrado em Os inconfidentes.
Sobre a relação desta obra com o tempo presente, o crítico declarava: “Os
inconfidentes têm uma certa aspiração popular, mas não passa de aspiração,
pois eles estão estruturalmente ligados, não ao povo, mas sim à aristocracia
local, à futura classe dirigente brasileira. [...] Os inconfidentes é um filme
mais interessado no intelectual de hoje no Brasil do que na Inconfidência
Mineira”.53
Se esse texto não foi publicado no Opinião, parte do conteúdo foi
usado em artigos futuros de Bernardet. Nesse sentido, o material permite
avaliar se o rascunho foi aproveitado depois, na íntegra, ou se serviu de ins-
piração para outras matérias. Notando a grande quantidade de rascunhos
não publicados, vê-se que em geral o material era utilizado como fonte de
informação para a equipe. A observação indica um trabalho de reescrita
contínuo. Além dele, informações anotadas a mão nesses papeis revelam
que os rascunhos muitas vezes eram solicitados pelos próprios editores,
como fonte de acesso aos bastidores do meio cinematográfico. Assim se
percebe o papel desempenhado por Bernardet também como formador
de opinião do jornal.54
Quase três anos depois da escrita desse primeiro rascunho, Bernar-
det publicou um artigo em Opinião, comparando Os inconfidentes (1972)
com Guerra conjugal (1974), ambos de Joaquim Pedro de Andrade.55 A
argumentação girava em torno das formas encontradas pelo cineasta para
produzir obras que atendessem a duas demandas do contexto: as imposi-
ções do regime militar e as preferências do público. O imperativo surgia
no texto pelo eufemismo de “aceitar as armas do inimigo” para poder
produzir, mas “voltá-las contra os objetivos almejados por esse parceiro”.
Sem relacionar Os inconfidentes ao presente, como tinha feito no rascunho
de 1972, Bernardet assinalava de maneira sutil como as contradições dos
intelectuais-cineastas apareciam no filme,

188 ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018


Em 1972, [...] Joaquim Pedro realiza um filme histórico sobre a inconfidência

Dossiê História & Cinema


mineira, aparentemente entrando na onda e atendendo às expectativas expressas
pelo governo. Em realidade, ele aceita as armas propostas pelo parceiro, mas é para
voltá-las contra os objetivos almejados por esse parceiro.
Joaquim Pedro finge aceitar a regra do jogo, penetra e mina por dentro. Os incon-
fidentes não apresentou uma concepção gloriosa e heróica, e no fundo marcada e
ingênua, da história do Brasil. Os inconfidentes representa o mais alto grau de
contradições a que chegaram os intelectuais-cineastas na época, e o grande valor do
filme é justamente o de ter feito aflorar claramente estas contradições.56

Provavelmente por causa da ação da autocensura, a crítica de 1975


ocultava a relação entre Os inconfidentes e o tempo presente, sem explicar
como as “contradições” afloravam nas cenas. Somente nos anos oitenta,
no texto “O caso Tiradentes, notas”, Jean-Claude Bernardet esmiuçaria as
estratégias utilizadas pelos Inconfidentes para abranger o tempo presente.57
Como no caso de São Bernardo, o crítico provavelmente tivesse como mo-
tivação não prejudicar a recente liberação do filme. Se a obra havia sido
autorizada para exibição, os censores ficaram intrigados com seu significa-
do.58 É exatamente em casos como este que o estilo de Bernardet se alterava
para não fornecer informações aos órgãos policiais.
Nos espaços móveis entre a autocensura e as estratégias de resistência,
há uma característica comum entre os rascunhos de Bernardet e a maior
parte dos textos dele publicados em Opinião. Em ambos, o estilo é claro,
direto e objetivo. Mas enquanto no rascunho, o crítico explicita com todas
as letras como Os inconfidentes diz respeito ao intelectual de “hoje”, o texto
publicado na imprensa alternativa é radicalmente diferente, exatamente
por causa da ação censória. No Opinião, há frases indiretas e supressão de
sentidos para não dar abertura à interdição da obra de Joaquim Pedro.
Uma das maiores impossibilidades para avaliar o newsmaking é a
falta de acesso integral aos depoimentos dos entrevistados. Nesse sentido,
a recepção de Os inconfidentes permite preencher algumas dessas lacunas e
elucidar uma parte das condições em que se davam as entrevistas.
No jornal Opinião, Joaquim Pedro de Andrade frisava que sem o apoio
da TV italiana, ele não teria feito Os inconfidentes.59 Mas não havia no texto
informações sobre como a censura afetava seu trabalho. Provavelmente
questionado sobre esse aspecto, a resposta publicada não foi direta. Sem
poder falar da censura diretamente sobre sua produção, o diretor comen-
tou: “O cinema que se faz hoje no Brasil reflete muito de perto as diversas
contingências políticas e sociais que o país vai atravessando. De um lado,
notamos a forte pressão que se exerce através da seleção de financiamentos
(roteiros aprovados) e também através de cortes e proibições. [...] O que 56
Idem, ibidem, p. 20.
observamos é o surgimento de uma espécie de hipocrisia, isto é, as pessoas 57
Ver B E R N A R D E T, Jean-
em cinema estão proibidas de tratar com verdade uma série de temas”.60 Claude. Piranha no mar de rosas.
Se Joaquim Pedro comentava a censura no cinema através da menção São Paulo: Nobel, 1982.
aos cortes e proibições, não havia informações se Os inconfidentes tinha sofri- 58
Ver SIMÕES, Inimá, op. cit.
do com esse processo. A relação explícita entre censura e Os inconfidentes só 59
Ver H O L A N D A , Heloisa
seria abordada dois meses depois na entrevista concedida à revista Visão,61 B. de e BRITO, Antonio Car-
los de. Dez anos de cinema
nacional. Opinião, n. 32, Rio de
Para fazer bom cinema hoje no Brasil é preciso, em primeiro lugar, resistir ao subor- Janeiro, 11 a 18 jun. 1973.
no e, em segundo lugar, sobreviver ao castigo. [...] as instituições governamentais 60
Idem, ibidem, p. 17-19.
financiam generosamente aqueles que por aplauso ou omissão se alinham com a 61
Ver V E N T U R A , Zuenir,
ideologia dominante (...). Quando, apesar disso, se consegue filmar, o castigo vem op. cit.

ArtCultura Uberlândia, v. 20, n. 36, p. 177-191, jan.-jun. 2018 189


62
Idem, ibidem. com os cortes ou a interdição da censura [...].
63
Ver K E N S K I , Vani Morei- O resultado é a liquidação do cinema que procura enfrentar de alguma maneira
ra. O fascínio de Opinião. Tese problemas que tenham importância maior para o país. Estamos proibidos de tratar
(Doutorado em Educação) –
FE-Unicamp, Campinas, 1990. dos assuntos que interessam [...].
64
Idem, ibidem. As possibilidades de fazer um filme como o que eu fiz, Os inconfidentes, de crítica
política, [...], são raras. [...]. O filme só foi liberado, depois de muito tempo na censura,
porque escolheu um caminho que tornava possível sua liberação: eu me abriguei
sob a veracidade histórica dos ataques da censura. E consegui um filme que podia
discutir, ainda que indiretamente, problemas atuais brasileiros, principalmente os
da resistência das ideias políticas de um homem, das ideias maiores que uma pessoa
pode ter debaixo de uma repressão forte e concreta - um problema bastante atual.62

Observamos como no trecho acima, sem rodeios, Joaquim Pedro


comenta como a realização de um filme no Brasil significava resistir ao
“castigo”, isto é, aos “cortes” e à “interdição da censura”, porque os órgãos
do governo financiavam os que se “alinham” à “ideologia dominante”.
Especificamente sobre seu filme, o cineasta explicava que a obra só foi
liberada depois de muito tempo na Polícia Federal, porque se abrigou dos
ataques da censura através da veracidade histórica.
Um depoimento assim explícito é inimaginável no semanário de
Fernando Gasparian. Na entrevista à Visão, Joaquim Pedro continuou a
fazer críticas ao governo. No Opinião, era preciso abrandar os comentários
na menção à “hipocrisia” da sociedade atual. Enquanto isso, em Visão, o
cineasta explicou como a linguagem do filme foi feita em função da cen-
sura. Nesse comparativo com Visão, fica evidente como a censura impedia
a transmissão de informações básicas na seção de cinema do Opinião. Fica
também mais patente quanto até os depoimentos tinham que ser traduzidos
para a “estética do silêncio”. Essa pequena prévia talvez indique que pro-
vavelmente o teor das entrevistas fosse alterado antes da ação da censura.
Obviamente não é possível saber com certeza se os realizadores davam
declarações lacunares aos críticos, prevendo a censura, ou se a redação
adequava as frases à estética do silêncio, através da supressão de sentido.
Mas se tomarmos a clareza do estilo direto de Jean-Claude Bernardet nos
rascunhos e na maioria dos textos publicados, assim como as declarações
dos mesmos cineastas na grande imprensa, estaremos mais inclinados a
concluir que as alterações ocorriam depois das entrevistas.
De tantas polissemias, a forma do texto censurado de Opinião cons-
titui quase uma obra aberta, extrapolando os significados mais imediatos.
Se os censores tentaram vetar o acesso à informação, eles não impediram
a elaboração histórica de sentido e as múltiplas significações. Contudo, a
linguagem codificada criava empecilhos à compreensão dos leitores. Muitos
não conseguiam compreender essas estratégias, porque a metalinguagem
de Opinião dependia da capacidade de conseguir extrapolar o sentido
linear do texto.63
Não resta dúvida quanto ao déficit entre as propostas criadas pelo
jornal e o entendimento geral do público. Afinal os processos descritos
aqui apontam para a necessidade de conectar constantemente as notícias,
com outras fontes de informação. Nessa briga entre os espaços da opressão
e da resistência, a censura parece sair ganhando. Ela conseguia mutilar
e frear tantos sentidos que o próprio ato de comunicar saía prejudicado.
Por outro lado, as zonas discursivas da resistência funcionavam para os
leitores fascinados pelo Opinião,64 como forma de decifração dos segredos

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do processo informativo.65 Se o silêncio da resistência tentava multiplicar

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sentidos, a ação dependia sempre da construção do leitor.

Artigo recebido em março de 2018. Aprovado em maio de 2018.

65
Idem, ibidem. Se a maior parte
do público não compreendia as
estratégias utilizadas pelo Opi-
nião, Kenski entrevistou mui-
tos leitores do semanário que
reliam os textos várias vezes,
procurando pelas informações
políticas cifradas e pelos sinais
de presença da censura.

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