O selo DIALÓGICA da Editora InterSaberes faz referência às publicações que
privilegiam uma linguagem na qual o autor dialoga com o leitor por meio de
recursos textuais e visuais, o que torna o conteúdo muito mais dinâmico. São
livros que criam um ambiente de interação com o leitor – seu universo cultural,
social e de elaboração de conhecimentos –, possibilitando um real processo de
interlocução para que a comunicação se efetive.
Série Estudos de Filosofia
dialógica
Entre a fé
e a razão
Deus, o mundo e o homem
na filosofia medieval
Everson Araujo Nauroski
dedicatória
Para Isadora e Raphael, meus filhos.
epígrafe
As nuvens da minha dor dissolveram-se e bebi na luz.
Com os meus pensamentos recobrados, virei-me para examinar a face da minha
médica.
Girei os olhos e os fixei nela, e vi que era a minha enfermeira, na casa de quem eu
fora cuidado desde a minha juventude – a Filosofia.
Boécio
apresentação
Este livro traz a história da filosofia medieval sob um recorte didático que busca
apontar alguns dos principais autores desse período. Seguimos uma referência
cronológica de modo a situar cada período histórico em seu contexto e apresentar
suas características. Ao procedermos dessa forma, buscamos proporcionar ao
leitor a compreensão de que na história da filosofia as fases e as etapas que se
sucedem conservam em si elementos da fase ou da etapa anterior,
caracterizando-se, assim, uma abordagem histórico-dialética.
A escolha dos autores apresentados neste livro não foi uma tarefa fácil, pois o
conjunto de filósofos e teólogos que fizeram parte dos mil anos de história do
pensamento no Medievo é vasto e variado. Todavia, nossa escolha recaiu sobre os
autores que deram uma relevante contribuição ao desenvolvimento do assunto
proposto, principalmente por meio de suas reflexões sobre a relação entre o
homem e Deus. Esse tema perpassou todo o pensamento produzido ao longo da
Idade Média e, por isso, merece nossa atenção e estudo. Também consideramos a
finalidade propedêutica deste livro, razão pela qual tivemos o cuidado de escolher
autores que representam as diferentes fases do Medievo, de modo a oferecer ao
leitor um panorama da discussão filosófico-teológica que girou em torno da
relação entre fé e razão.
O estudo da filosofia medieval constitui etapa importante na formação da cultura
filosófica dos estudantes e deveria ser de interesse do público em geral, pois
representa um pré-requisito essencial para a compreensão dos problemas que
fazem parte da filosofia moderna e contemporânea. Além disso, esses problemas
ultrapassaram as fronteiras da discussão teórica e estão presentes no cotidiano
da sociedade atual, algo bem visível na proliferação de novas igrejas e seitas, nos
conflitos religiosos pelo mundo e no obscuro e deletério fenômeno da intolerância
religiosa.
Temos, então, hoje, temáticas importantes que são objetos de debates e
controvérsias e que trazem sob novas roupagens os assuntos que estiveram no
centro da agenda filosófica do mundo medieval. Entre essas temáticas estão a
existência e os atributos de Deus, as maneiras como o homem pode se relacionar
com Deus e obter suas graças, as verdades de fé, o significado e as interpretações
da Bíblia, a organização burocrática em torno da administração do sagrado, os
lugares de adoração, a salvação do mundo e a redenção do homem, além das
complicadas relações entre filosofia e teologia, ciência e religião.
Para atendermos aos objetivos propostos, dividimos este livro em seis capítulos.
No primeiro, “A formação da cultura filosófica ocidental no contexto da Idade
Média”, abordamos o declínio da cultura clássica e o início da Idade Média, com a
consolidação do cristianismo como religião oficial do Império Romano. Também
são apresentados os elementos da cultura clássica antiga que estiveram na
gênese da religião cristã e as causas da tensão entre cristianismo e paganismo.
O segundo capítulo, “Helenismo e cristianismo: a transição para o pensamento
medieval”, traz os elementos da cultura helenista que influenciaram a formação
do cristianismo e da cultura ocidental. Destacamos a influência do estoicismo e
de sua visão teleológica do cosmos e da vida humana e a força que teve na
doutrina católica e em conceitos como logos e reta razão.
No terceiro capítulo, “O início do pensamento filosófico cristão: a patrística”,
examinamos as linhas mestras que orientaram a produção intelectual do período
medieval, no qual a Bíblia representou a principal fonte de interlocução com a
sabedoria dos filósofos antigos. Ainda nesse capítulo, organizamos um conjunto
de autores e seus posicionamentos a respeito da fé como conhecimento revelado
e da razão como conhecimento adquirido.
Na sequência, no quarto capítulo, “A escolástica”, procuramos evidenciar a
mudança de enfoque no debate entre fé e razão, abordando o pensamento de
Aristóteles presente nas obras de Santo Tomás de Aquino, que se destacou como
o grande autor escolástico por sua tentativa de síntese entre a filosofia grega de
viés aristotélico e a teologia católica.
O quinto capítulo, “A filosofia árabe e sua contribuição para a cultura ocidental”,
trata dos autores dessa tradição, entre os quais destacamos dois grandes nomes:
Avicena, também conhecido como Ibn Sina, e Averróis. Em ambos encontramos
uma forte presença do pensamento aristotélico, utilizado por eles na tentativa de
aproximar e até conciliar as verdades de fé do Alcorão com a filosofia.
No sexto e último capítulo, “A filosofia judaica na Idade Média”, analisamos a
contribuição do pensamento judaico, iniciando por Fílon de Alexandria e sua visão
hermenêutica da Bíblia judaica, passando pelo platonismo judaico de Isaac
Iudeus e finalizando com Moisés Maimônides e sua teologia negativa sobre Deus.
Vale registrar que a filosofia árabe e a filosofia judaica são tratadas nos dois
últimos capítulos por causa da organização didática do livro, a fim de facilitar os
estudos, pois, cronologicamente, os autores tanto de uma quanto da outra foram
precursores da produção filosófica da Idade Média.
Em atendimento à proposta didático-metodológica desta obra, inserimos ao longo
do texto um glossário complementar, formatado em boxes, com a função de
auxiliar o leitor na compreensão dos assuntos abordados.
Ao final de cada capítulo, apresentamos uma síntese com o objetivo de
recapitular as principais ideias que foram abordadas. Além disso, na seção
“Indicações culturais”, o leitor encontra sugestões de livros e textos
complementares brevemente resenhados, bem como de filmes e/ou
documentários acompanhados de uma sinopse explicativa. Por fim, propomos um
conjunto de atividades teórico-práticas de autoavaliação, pelas quais o leitor tem
a oportunidade de reforçar e testar os conhecimentos adquiridos.
Acreditamos que, seguindo as orientações de leitura e as sugestões de
complementação dos estudos, o leitor poderá compreender os autores que
formaram a base da cultura filosófica no período medieval.
Boa leitura e bons estudos!
Capítulo 1 - A formação da cultura filosófica ocidental no contexto da Idade Média
A conduta de Deus, que dispõe todas as coisas com suavidade, é colocar a
religião no espírito pela via da razão e no coração por meio da graça. Mas querer
colocá-la no espírito e no coração pela força e pelas ameaças contradiz o sentido
mais profundo da religião e leva ao terror.
Pascal
Neste capítulo, apresentaremos os aspectos mais importantes que marcaram a
formação da cultura e da filosofia medieval. Para isso, destacaremos a instituição
do cristianismo como religião oficial, a queda do Império Romano do Ocidente,
em 476 d.C., em decorrência das invasões dos povos bárbaros, e o surgimento de
um novo modelo de sociedade, o feudalismo.
Figura 1.1 – A intervenção das Sabinas
DAVID, J.-L. A intervenção das Sabinas. 1799. 1 óleo sobre tela, 385 × 522 cm.
Museu do Louvre, Paris, França.
Eram considerados bárbaros para os romanos todos os povos que viviam além
dos limites do Império e que não falavam o latim, ou seja, que não
compartilhavam da cultura romana. Entre os povos bárbaros mais conhecidos
estavam os habitantes da Germânia, como os vândalos, os francos, os saxões, os
anglos, os godos e os visigodos, entre outros.
O feudalismo teve início com a queda de Roma e se caracterizou por uma
sociedade agrária formada por três classes: a nobreza, o clero e a plebe. As
relações sociais e econômicas tinham como fundamento a vassalagem, isto é, a
autoridade e a obediência entre senhores e servos respectivamente.
Na Figura 1.1, temos a representação da sangrenta batalha entre romanos e
bárbaros. A destruição de Roma, que era o centro urbano mundial, a pilhagem e
as mortes que se seguiram às invasões indicam que o que houve durante as
invasões bárbaras foi uma ação violenta e destruidora, muito mais que uma
invasão de conquista e colonização. A lógica dos conflitos que levaram à
destruição de Roma teve a marca da revanche e da vingança contra décadas de
controle político e opressão aos povos que não aceitaram sujeitar-se ao domínio
romano (Le Go , 1983).
A queda do Império Romano do Ocidente marca o fim da Antiguidade e o início da
Idade Média. Mais do que isso, com o fim do Império Romano e ao longo do
período medieval, a Europa teve o desenho de suas fronteiras alterado com a
definição das nações que hoje fazem parte desse território. Além do aspecto
geográfico, na cultura medieval, identificamos elementos que contribuíram para a
gênese e a formação da atual Europa Ocidental: a cultura greco-romana e a
religiosidade judaico-cristã. Com isso, notamos que a Antiguidade Clássica
forneceu elementos formadores de uma visão de mundo pela qual o
conhecimento se tornou a base para o progresso da sociedade e a religiosidade
estabeleceu os princípios culturais, os valores, as crenças e os símbolos que, na
atualidade, ainda conservam sua força no mundo ocidental.
O desenvolvimento da filosofia e da ciência, assim como o progresso de diversos
outros ramos do saber humano, como a matemática, a astronomia, a química e a
física, ajudaram a formar o espírito racionalista que viria a ser predominante na
cultura ocidental. Por outro lado, a forte influência da religião judaica, seu
monoteísmo, seus livros sagrados, a tradição religiosa com seus profetas e
o messianismo se constituíram em elementos centrais da nova religião, o
cristianismo (Eliade, 2008).
O encontro dos ensinamentos da doutrina cristã com o paganismo fez com que os
primeiros padres da Igreja – como ficaram conhecidos os primeiros teólogos
defensores da fé – desenvolvessem um conjunto de teses e argumentos em
defesa dos dogmas católicos, diante das ideias e pregações divergentes e
consideradas heréticas naquela época. Assim, a filosofia medieval surgiu do
esforço desses padres em buscar na filosofia grega, principalmente nas ideias de
Platão e Aristóteles, os conceitos e os argumentos que formaram a base do
pensamento filosófico cristão. Do conjunto das doutrinas elaboradas por autores
que integram a plêiade de pensadores cristãos, podemos destacar as duas mais
conhecidas: a patrística e a escolástica.
O messianismo, presente no judaísmo e no Cristianismo, afirma a crença na
vinda, ou retorno, do messias, um libertador enviado por Deus para restaurar a
justiça e guiar a humanidade a uma era de paz e amor.
Os dogmas são verdades de fé que a Igreja colocava como fundamentos
inquestionáveis e infalíveis.
Heréticos, segundo as autoridades eclesiásticas medievais, eram todos aqueles
que não aceitavam os ensinamentos da Igreja ou que questionavam a sua
doutrina.
A grande questão que ocupou a agenda da filosofia medieval foi a controversa
relação entre a fé e a razão. Ou seja, interessava a relação entre a doutrina e o
conjunto de ensinamentos catequéticos sobre Deus, o mundo e o homem em
busca de uma explicação racional do cosmos e da realidade humana sem o
auxílio de forças sobrenaturais. A busca da filosofia medieval era tentar
harmonizar os ensinamentos bíblicos, especialmente os contidos nos
Evangelhos, e a cultura racional da filosofia, principalmente de matriz grega.
Segundo esta última, a adesão às verdades de fé é, em si mesma, uma negação
daquilo que constitui a própria essência da filosofia, que se funda em atitudes de
ceticismo, indagação, crítica e análise lógica dos conhecimentos, das tradições e
da realidade natural e humana. Devemos considerar que, desde muito cedo,
a Igreja Católica sentiu a necessidade de convencer as pessoas de que fazia
sentido acreditar nos ensinamentos que ela pregava. A Igreja tentou mostrar que
sua doutrina e seu evangelho não eram contrários à inteligência e à razão humana
e que fazia todo o sentido aceitar e acreditar naquilo que ela ensinava.
Na sequência, você terá uma visão do percurso histórico do pensamento medievo
com base em alguns eventos em ordem cronológica.
1.1
Principais acontecimentos que influenciaram o pensamento medieval
O filósofo Plotino (205 d.C.-270 d.C.) reelaborou a filosofia de Platão num sentido
místico e espiritual, o que ficou conhecido como neoplatonismo. Suas ideias
tiveram grande influência entre os filósofos cristãos. Em sua famosa
obra Enéadas, apresenta, entre outros, os conceitos de uno, a unidade divina a
partir da qual tudo tem origem, e nous, a inteligência de Deus presente no mundo
e no homem.
As datas e os acontecimentos listados a seguir servem como referência para
situar você, leitor, no contexto histórico mais significativo que envolveu a
formação do pensamento no período medieval.
250 d.C. – A filosofia de Plotino deu origem ao neoplatonismo, uma escola
filosófica de caráter místico e religioso que influenciou o pensamento
cristão, principalmente o de Santo Agostinho. Os neoplatônicos
acentuaram o aspecto místico e religioso das ideias de Platão e formaram
uma escola de pensamento com grande proximidade com a futura doutrina
cristã. A ideia de que Deus é um ser inefável e de que tudo o que existe são
emanações de sua essência ajudou a fortalecer a ideia de Deus como pai e
criador.
313 d.C. – Constantino promulgou o Decreto de Milão, pelo qual foi
permitida a liberdade de culto para os cristãos. Essa iniciativa criou uma
conjuntura que ajudou o catolicismo a se estabelecer como religião
hegemônica em Roma, favoreceu a institucionalização da Igreja e sua
organização hierárquica e burocrática. A medida tomada por Constantino
teve o objetivo político de favorecer o monarca, mas também possibilitou,
ao longo do tempo, que a Igreja estabelecesse um grande poder temporal
na Idade Média.
395 – Ocorreu a divisão do Império Romano entre o Ocidente e o Oriente.
Esse fato provocou, a médio prazo, o enfraquecimento militar da parte
ocidental do Império. Em função da pressão dos germânicos, com ataques
às fronteiras de Roma, houve uma fragilização social e econômica. Foi
nesse contexto que a Igreja se reorganizou, agindo com habilidade e com
um discurso religioso fervoroso e ameaçador que, mais tarde, converteria
os reis bárbaros.
398 – Santo Agostinho escreveu uma de suas obras mais
conhecidas, Confissões. Agostinho teve papel importante na cristandade
tanto pela sua produção literária quanto pela liderança que exerceu como
bispo da Igreja. Seus escritos ajudaram a embasar a doutrina cristã, e sua
figura santificada é um ícone de que mesmo um homem perdido e
orgulhoso pode alcançar a graça divina.
510 – O filósofo e teólogo Boécio traduziu a obra Lógica, de Aristóteles.
Graças a nomes como o de Boécio, a produção de Aristóteles não ficou
restrita ao uso intencional de sua metafísica para fundamentar conceitos
católicos. A propagação de seus escritos lógicos, políticos e literários
ajudou no desenvolvimento de outras áreas do saber.
618 – Na China, subiu ao poder a dinastia Tang. É importante registrar que
mesmo longe da Europa ocorreram mudanças interessantes. Nesse
período, a China, já unificada, experimentou um grande florescimento
cultural, e as ideias de Confúcio, seu mais famoso sábio, ajudaram a
formar um grande império.
622 – Teve início a era muçulmana, com a peregrinação de Maomé de Meca
a Medina. Foi com a unificação dos povos do deserto, sob a bandeira do
islã, a mais nova religião monoteísta criada por Maomé, que os árabes mais
tarde se espalhariam pelo mundo ocidental. No auge do Império Otomano,
os muçulmanos se tornaram grandes preservadores e divulgadores da
sabedoria clássica antiga dos gregos.
A Casa da Sabedoria foi criada no governo do Califa Harun al-Rashid, no século I,
em Bagdá, no Iraque. Logo se tornou mais do que uma biblioteca e foi considerada
um centro de estudos e irradiação da cultura, da ciência e da filosofia do mundo
árabe.
711 – Os turco-otomanos conquistaram a Península Ibérica invadindo
Portugal e Espanha. O movimento expansionista dos muçulmanos deixou
profundas marcas no desenvolvimento da cultura ocidental, com
inestimável contribuição no desenvolvimento das ciências, como a
filosofia, a medicina, a matemática e a química.
832 – Houve o florescimento da cultura árabe-muçulmana com a Casa da
Sabedoria, criada em Bagdá. A Casa da Sabedoria foi equivalente à
biblioteca de Alexandria, só que no Oriente Médio. Situada no Iraque,
tornou-se o principal centro de compilação e tradução da filosofia clássica
greco-romana.
1014 – O filósofo Avicena, também conhecido como Ibn Sina, escreveu sua
obra de referência, Kitab al-Shifa, que significa “O livro da cura”.
Considerado um dos maiores pensadores da era de ouro do islã, Avicena
teve papel importante na propagação da filosofia de Aristóteles. Sua
atuação como médico e intelectual colocou o pensamento filosófico árabe
como referência no período medieval.
1077 – Santo Anselmo da Cantuária escreveu sua obra Prosilogion, na qual
apresenta seu famoso argumento ontológico sobre a existência de Deus.
Foi com Anselmo que a metafísica cristã ganhou uma conotação mais
mística e espiritual.
1099 – Têm início as Cruzadas. O Papa Urbano II conclamou os cristãos a
libertar Jerusalém e o Santo Sepulcro do domínio muçulmano. Ao todo,
foram nove Cruzadas, motivadas muito mais por interesses políticos e
econômicos do que genuinamente religiosos. Em termos culturais, os
cruzados, ao recuperarem algumas das terras conquistadas pelos
muçulmanos, como Jerusalém, trouxeram também diversas obras da
filosofia clássica que haviam sido traduzidas do grego para o árabe,
ajudando, assim, a propagar a sabedoria dos filósofos antigos.
1347 – A peste negra assolou a Europa, matando um terço da população e
contribuindo para uma grave crise social e econômica. Considerada uma
das maiores epidemias que atingiu a humanidade, a peste negra foi vista
como uma ação divina para castigar os homens por seus pecados, um
aspecto que foi explorado pelo discurso religioso para reforçar sua posição
no controle social da população.
1445 – Já em um clima renascentista, Gutenberg inventou a imprensa,
acontecimento que mudou a história da leitura e da circulação de ideias e
conhecimentos na sociedade.
O arianismo constitui uma interpretação da natureza divina da Trindade que é
considerada erética pela Igreja. Formulado por Ário, um religioso cristão do século
IV, o arianismo postula que só existe Deus como criador único e eterno e que
Jesus não é consubstancial ao Pai, mas foi criado como instrumento de mediação
entre o espírito de Deus e o mundo material.
1453 – Após séculos de resistência diante da ofensiva otomana, caiu a
cidade de Bizâncio (Constantinopla), ocasionando o fim do Império
Romano na sua parte oriental.Antes de sua queda, no vasto império do
Oriente, sob domínio de imperadores católicos como Teodósio e seus dois
filhos, Arcádio e Honório, ocorreu a unificação religiosa de toda a
cristandade, combatendo o arianismo e fazendo desaparecer os focos de
seguidores do paganismo. A visão de mundo cristã sofreria um duro revés
com a tomada de Constantinopla pelos turcos e a expansão do islamismo.
1492 – O famoso explorador italiano Cristóvão Colombo cruzou o Oceano
Atlântico, iniciando a exploração das Américas. A descoberta do novo
território teve implicações geográficas importantes na compreensão da
navegação pelo Oceano Atlântico e na atualização da cartografia mundial.
Mais do que isso, a descoberta de Colombo ajudou na expansão da fé
católica, que foi acompanhada de consequências trágicas para os povos
do Novo Mundo, com os conflitos, a violência e o extermínio que fizeram
parte desse encontro.
Esses eventos nos fornecem alguns elementos de referência e nos ajudam a
formar uma visão panorâmica dos principais fatos, nomes e acontecimentos que
influenciaram o pensamento medieval. Precisamos ter em mente, contudo, que
não resumem a riqueza e a complexidade desse longo período histórico. Como
maneira de fornecermos ainda mais base para o estudo sobre essa época,
disponibilizaremos, ao final do capítulo, indicações culturais para o
aprofundamento desse e de outros temas relacionados à Idade Média.
1.2
O declínio da cultura antiga
Para compreendermos melhor o início da Era Medieval, é necessário voltar um
pouco na história. No Capítulo 2, aprofundaremos a análise da relação entre o
cristianismo e o helenismo, mas, por ora, é importante destacar algumas
informações para contextualizar esse assunto.
A compreensão da relação entre a filosofia grega e o cristianismo está associada à
figura de Alexandre, o Grande e à helenização do mundo que ele conquistou. A
expansão do Império Macedônico promoveu a divulgação da visão de mundo
grega, isto é, ajudou a espalhar uma forma de conhecimento que tinha na filosofia
sua expressão máxima. A lógica e a racionalidade tornaram-se marcas de uma
cultura que, segundo o sonho de Alexandre, estava destinada a levar beleza e
esclarecimento aos povos bárbaros e civilizá-los. Assim, a gênese do pensamento
filosófico cristão e tributário de um império e de um movimento cultural é que fez
da razão o principal elemento de mediação entre o homem e o mundo.
A figura de Alexandre se destacou não só por suas lendárias vitórias, mas pela
flexibilidade em seu modus operandi de administrar as cidades e nações
conquistadas. O helenismo, como ficou conhecido o sincretismo das culturas
gregas e orientais, caracterizou-se pela flexibilidade em dialogar, assimilar e
acomodar outras culturas e tradições (Veyne, 2011).
Ressalvas à parte, práticas semelhantes também foram implementadas pelo
Império Romano ao disseminar diferentes culturas e religiões entre os povos
conquistados. Cabe assinalar que, em relação ao cristianismo, no entanto, os
romanos se depararam com um forte obstáculo a sua assimilação e controle. A
prática da idolatria, de cultuar diferentes divindades, era proibida aos cristãos por
ser considerada um grave pecado, uma ofensa ao Deus único e verdadeiro. Isso
fez com que o Império rejeitasse e reprimisse a nova religião. Perseguidos, os
cristãos foram obrigados a se manter na clandestinidade por mais de 300 anos.
O termo idolatria faz referência ao culto religioso e à adoração a ídolos, como
seres da natureza e objetos mágicos, ou ainda ao apego exagerado a ideias,
valores e símbolos. Na tradição bíblica, também o dinheiro é visto como ídolo e
usurpador do lugar de Deus. A idolatria, portanto, acontece quando o homem
passa a absolutizar coisas transitórias.
A crise interna no Império e as constantes pressões dos povos bárbaros, que,
posteriormente, invadiram Roma, fizeram o imperador Constantino perceber que
seria suicídio político governar contra os cristãos (Le Go , 1983). Assim, em 380
d.C. o imperador oficializou o cristianismo como religião nacional em todo o
império.
Posteriormente, Constantino mudou a capital do Império para a cidade de
Bizâncio, que foi rebatizada como Constantinopla (atual Istambul). O imperador
tinha como objetivo melhorar a administração do Império, e a mudança foi uma
escolha estratégica, pois a nova capital era uma importante rota mercante e
portuária entre a Europa e a Ásia. Contudo, o vácuo no poder que se instalou em
Roma foi ocupado por bispos católicos. Sedentos pelo poder, eles acabaram por
eleger um papa, um líder com capacidade de centralizar o poder religioso e
aglutinar diferentes forças dentro e fora da Igreja.
Progressivamente, a Igreja se beneficiou da proximidade entre os poderes do rei e
do papa, fazendo emergir um Estado vinculado ao poder religioso. Mais do que
isso, a religião católica, por sua forte influência entre as classes, exerceu um
poderoso controle social benéfico tanto ao rei quanto ao clero. A coesão social
alcançada no período medieval, graças, em grande parte, à cultura religiosa,
ajudava na estabilidade política e na manutenção de uma ordem social que
mantinha intactos os privilégios da nobreza e do clero.
Figura 1.2 – Coroação do Rei D. Henrique IV de Castela (1454-74)
COROAÇÃO do
Rei D. Henrique IV de Castela (1454-74). In: CRÔNICAS de Froissart. 1470-1472.
Biblioteca Britânica, Londres, Reino Unido.
A Figura 1.2 retrata a aproximação do poder eclesiástico com o poder político do
rei. A coroação e a sagração dos reis eram eventos religiosos, via de regra
presididos pelo papa. Ao longo da Idade Média, o poder da Igreja alcançou
tamanha força que havia uma expressão latina muito popular e conhecida nessa
época: Roma locuta, causa finita est, que significa “Roma falou, a questão está
encerrada”. Isso se dizia em relação à resolução de diferentes conflitos
envolvendo interesses antagônicos entre os notáveis da sociedade medieval, o
que incluía disputas entre reis e nações. No curso da história, com a consolidação
do poder da Igreja na figura do papa e a formulação de uma doutrina religiosa
oficial, a Igreja Católica se tornou o maior poder em toda a Europa.
Vale lembrar que o cristianismo como religião organizada surgiu do centro para a
periferia, uma religião urbana que, ao expandir-se em direção às áreas rurais, se
deparou com diferentes práticas religiosas pagãs já existentes. Esse encontro com
a religião pagã foi permeado de situações de tensão e conflitos. Ou seja, o
processo de aculturação não ocorreu de forma harmoniosa (Eliade, 2008).
Aculturação refere-se ao processo social e político pelo qual grupos e indivíduos
são forçados a se adaptar a outra cultura invasora ou dominante. Entre os
exemplos mais conhecidos está o que resultou das conquistas espanholas e
portuguesas nas Américas.
No ano de 476 d.C., Roma não resitiu e sucumbiu aos invasores. Hordas de
bárbaros varreram a Europa, obrigando moradores das cidades a fugir para o
campo. Entre os povos que invadiram e conquistaram Roma estavam os
germanos, habitantes da Germânia, formados pelos francos, anglos, saxões,
godos e vândalos. Pressionados pela ocupação da Germânia pelos hunos vindos
da Ásia, os povos germanos, que conheciam a fragilidade política e militar do
Império, viram a invasão do território romano como a melhor alternativa de
sobrevivência. Só assim eles teriam acesso a grandes porções de terras
cultiváveis e estradas para sua locomoção (Le Go , 1994).
Foi assim que a antiga glória do centro do mundo acabou reduzida a ruínas.
Surgiu, então, uma nova forma de organização social e política – o feudalismo – e,
com ela, teve fim a antiga unidade política alcançada pelos romanos. Essa
mudança favoreceu o surgimento de vários reinados em toda a Europa, os quais
posteriormente dariam origem aos diversos Estados europeus (Le Go , 1994). A
Idade Média durou cerca de mil anos, de 476 d.C., na queda de Roma, até o ano
de 1453, com a conquista de Constantinopla pelos turcos. Além dessa divisão
cronológica, a historiografia costuma dividir a época medieval em três períodos, a
saber:
1. Alta Idade Média – que vai dos séculos V a X;
2. Idade Média Central – que compreende os séculos X a XIII;
3. Baixa Idade Média – localizada entre os séculos XIV e XV.
A Inquisição surgiu como uma ação da Igreja Católica para conter o avanço de
ensinamentos heréticos. Na prática, funcionou como um tribunal, com poderes
de acusar, interrogar e torturar os que eram denunciados por cometer crimes
contra a fé católica, como bruxaria e heresias. Via de regra, os condenados eram
punidos com a morte. Em muitos casos, a vítima era queimada em praça pública
como forma de alertar o povo sobre o destino reservado aos inimigos da igreja.
É, então, nesse contexto de crise e fortes mudanças que a Igreja Católica
conseguiu se sobressair e se fortalecer como instituição religiosa hegemônica,
com forte influência cultural e política. Sua doutrina da salvação e as pregações
intensas a respeito do pecado, do juízo final e do inferno foram capazes de
converter os mais fortes e corajosos reis bárbaros. O zelo por manter seus
domínios e guiar seu crescente rebanho fez com que a Igreja tutelasse a cultura.
Desse modo, as formas de pesquisa e conhecimento ficaram restritas à produção
teológica em defesa da fé. As ideias e comportamentos divergentes dos
ensinamentos cristãos eram rotulados de heresias, que posteriormente foram
cruelmente reprimidas pela Inquisição. É inegável que o aumento da influência
da Igreja permitiu que ela acumulasse força e riqueza, tornando-se a mais
poderosa instituição dessa época (Law, 2009).
Síntese
Ao longo deste primeiro capítulo, examinamos os acontecimentos que deram
início à Idade Média. Vimos que, dentre eles, a queda do Império Romano
Ocidental em 476 d.C. foi o mais importante e se deveu principalmente à invasão
dos povos bárbaros. O resultado das mudanças advindas desse acontecimento
culminou no feudalismo, uma nova organização social e política baseada em
relações de poder e obediência, com uma economia agrária e uma organização
social estamental dividida em três classes: clero, nobreza e plebe.
Devemos lembrar que, em meio a essas transformações, a Igreja Católica
sobreviveu e se reorganizou, vindo a se tornar a instituição mais poderosa da
época. O poder era tão grande que os conflitos que surgiam envolvendo nobres e
reis eram decididos pela mediação e intervenção do papa.
Vimos também que, no período medieval, foram gestadas as nações que deram
origem à Europa. Apresentamos também os elementos que estiveram na gênese
da cultura europeia, a saber: a cultura greco-romana e a religiosidade judaico-
cristã.
Mostramos ainda que o cristianismo, em sua origem, foi perseguido e só depois de
três séculos de existência veio a se tornar a religião predominante, em decorrência
de uma ação política e estratégica do Imperador Constantino. É preciso lembrar
que, durante o período de domínio da Igreja Católica, existiram conflitos
envolvendo as ideias heréticas que divergiam da doutrina cristã, de suas verdades
e de seus dogmas. Nessa perspectiva, a filosofia medieval, em grande medida,
representou o esforço de teólogos e pensadores cristãos para defender e justificar
racionalmente os ensinamentos da Igreja sobre as verdades bíblicas,
principalmente as contidas nos Evangelhos.
O lado sombrio das ações da Igreja para proteger sua doutrina refletiu-se em uma
defesa que se tornou um ataque direto e violento, com perseguição e punição de
opositores. Trata-se da Inquisição, um tribunal eclesiástico que acusava, julgava e
condenava à morte os hereges, que eram tidos como inimigos de Cristo e de sua
igreja.
Indicações culturais
Nestas indicações, procuramos trazer livros e referências diferentes das fontes
utilizadas na elaboração desta obra. Fizemos essa opção a fim de ampliar ainda
mais as possibilidades do leitor em seus estudos.
Livros
Bark, W. C. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Trata-se de uma obra na qual o autor fornece um estudo detalhado sobre a Era
Medieval, apresenta análises sobre diversos fatos que envolveram a queda do
Império Romano e questiona, ao longo do livro, as avaliações extremas sobre a
Idade Média como uma época de trevas ou de luz. Seu olhar sobre a questão da
economia do Império Romano mostra, além desse, outros fatores que
contribuíram para sua derrocada, inclusive em relação aos povos invasores. O
autor também dedica inúmeras páginas para demonstrar como o cristianismo se
fortaleceu para se tornar uma instituição hegemônica. Com certeza, é uma leitura
recomendada para quem quer compreender aspectos complementares da
filosofia e da religião no Medievo.
Filmes
A Queda do Império Romano. Direção: Anthony Mann. EUA: Silver Screen, 1964.
188 min.
Trata-se de um filme épico sobre o período histórico em questão e que não
apresenta rigor em termos de fidelidade aos fatos e acontecimentos do período.
Sua narrativa visa a uma representação cinematográfica, não sendo, portanto, um
documento histórico em essência. Contudo, a riqueza da produção permite a
reconstrução daquele contexto. O foco é o curso do Império Romano, seu auge,
sua expansão e sua decadência, com destaque para o personagem do General
Lívio, que, sob o comando do imperador Marco Aurélio, busca a pacificação das
fronteiras do Império. No entanto, quando o trono e o comando do exército são
passados para Commudus, filho bastardo do imperador, o Império rapidamente é
mergulhado no caos político e administrativo, com enfraquecimento da segurança
de suas fronteiras – uma conjuntura que teria facilitado as invasões e a queda de
Roma.
Spartacus. Direção: Robert Dornhelm. EUA: Universal Pictures, 2004. 174 min.
O filme conta a história de um escravo que foi obrigado a se tornar gladiador.
Diante da condição de vida degradante a que é submetido e da morte de seu
amigo, que desafiou a plateia de nobres romanos, Spartacus organiza uma revolta
de escravos e gladiadores. Ela se alastra por metade de Roma e, por um tempo,
ameaça a estabilidade política na sede do Império. O filme traz chocantes cenas
de luta e uma bela fotografia, que recria o mundo da época. O ponto forte
da película é mostrar o lado perverso e sombrio da sociedade romana, que se
diverte e se aliena em meio ao espetáculo de carnificina.
Atividades de autoavaliação
1. Em relação ao período medieval, considere as assertivas a seguir e
assinale a opção correta:
a. Na Idade Média, predominavam religiões politeístas com diferentes cultos
e locais de adoração.
b. O período medieval durou aproximadamente mil anos, durante os quais a
religião católica alcançou grande prestígio e poder.
c. O cristianismo veio a se tornar a religião oficial do Império Romano logo no
seu início, graças à atuação dos cristãos que pertenciam à nobreza e que se
converteram à nova religião.
d. Entre os povos bárbaros que invadiram e saquearam Roma estavam os
turcos, os espanhóis e os portugueses.
2. Em relação à queda de Roma, avalie os itens a seguir e assinale V para as
afirmações verdadeiras e F para as falsas:
o O Império Romano representou a continuidade do Império de
Alexandre, o Grande com a união entre gregos e romanos.
o Entre as causas para a queda do Império Romano estão a
fragilização política, a má administração interna e o descuido com
as fronteiras.
o Um elemento motivador para as invasões bárbaras foi a crise
política em Roma e a concentração das terras e dos portos pelos
romanos.
o Uma vez tendo dominado Roma, os povos invasores formaram um
governo de coalizão e instituíram uma nova república.
Agora, assinale a alternativa que corresponde corretamente à sequência obtida:
e. F, V, V, F.
f. V, F, F, V.
g. F, F, V, F.
h. V, V, F, V.
3. Em relação ao feudalismo, assinale a opção correta:
a. Representou uma economia agrária com fortes laços de autoridade e
vassalagem, na qual existiam três classes: o clero, a plebe e a nobreza.
b. Trata-se de uma organização política e social com poder centralizado em
um único rei.
c. O feudalismo era uma grande porção de terras onde moravam os nobres e
os servos e todos participavam da divisão social do trabalho.
d. A religião cristã na Idade Média colocou-se ao lado da plebe e desenvolveu,
ao longo desse período, uma prática pastoral em defesa dos mais pobres e
desvalidos.
4. Em relação à formação do Medievo e ao início da filosofia cristã, marque a
alternativa correta:
a. O pensamento filosófico grego teve pouca influência na formação da
filosofia medieval.
b. Além das ideias de Platão e Aristóteles, também as escolas helenísticas,
como o estoicismo, tiveram grande influência entre os pensadores medievais.
c. Outras escolas que contribuíram para a formação do pensamento cristão
foram os céticos e os pitagóricos.
d. Podemos afirmar que a doutrina católica recebeu importantes
contribuições de Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino e que estes se
mantiveram autônomos e independentes em relação à influência grega,
produzindo um pensamento original.
5. Entre os povos bárbaros que invadiram Roma e provocaram a queda do
Império Romano do Ocidente estavam:
a. francos, anglos, saxões, godos e visigodos.
b. ostrogodos, hunos e chineses.
c. suevos, visigodos, orientais, asiáticos e indianos.
d. gregos e macedônicos, persas, saxões e francos, bem como muitos outros
da região da Germânia.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Considerando a influência política da Igreja medieval, você diria que a
Inquisição pode ser vista como uma manifestação de zelo religioso ou
controle social? Justifique sua resposta com argumentos.
2. Considerando a proximidade entre o poder religioso (Igreja) e o poder
político (rei), como você interpretaria a expressão “entre a cruz e a
espada”?
3. Considerando sua forma pessoal de ver o mundo e o papel das crenças e
instituições religiosas, se você tivesse vivido no período medieval, teria
sido um bom cristão ou um suspeito de heresia? Tente explicar seus
motivos para ser um ou outro.
4. Com base nas leituras realizadas, elabore um quadro comparativo com a
finalidade de evidenciar os aspectos positivos e negativos da Idade Média.
Atividade aplicada: prática
Com base no filme Spartacus (comentado na seção “Indicações culturais”),
procure caracterizar a sociedade romana daquela época.
Em nome de Deus, justifica-se o mundo estamental e excludente do Medievo, no
qual quem reina o faz pela vontade de Deus, assim como está sob o mesmo
desígnio divino aquele que serve e morre. Assim, só resta ao insurgente, ao
rebelado, ao herege viver entre a cruz e a espada.
Capítulo 2 - Helenismo e cristianismo: a transição para o pensamento medieval
Da mesma forma que um círculo de uma polegada de diâmetro e um círculo de
quarenta milhões de milhas de diâmetro têm exatamente as mesmas
propriedades geométricas, as aventuras e a história de uma aldeia e de um
império são essencialmente as mesmas, e podemos, com tanta facilidade na
história da primeira quanto na do segundo, estudar e conhecer a humanidade.
Schopenhauer
Neste capítulo 2, aprofundaremos o estudo sobre o Império Macedônico e o
helenismo. Nosso objetivo é mostrar como eles influenciaram a formação da
cultura ocidental e a reconfiguração geopolítica da Grécia. A filosofia perdeu seu
referencial público-político na pólis, passando por uma reorientação em sua
agenda e voltando-se às questões existenciais de cunho individual. As escolas
que surgiram nesse período foram chamadas de escolas helenísticas. Entre elas,
destacamos o estoicismo, em virtude da influência que esse movimento teve no
cristianismo.
Figura 2.1 – A Batalha de Isso (detalhe)
Akg-
Images/LatinstockA BATALHA de Isso (detalhe). [ca. 100 a.C.]. 5,84 × 3,17 m.
Museu Arqueológico Nacional de Nápoles, Nápoles, Itália.
Na Figura 2.1, vemos o imponente Alexandre, o Grande, um dos mais jovens
generais da história, que, ao expandir seu império, ajudou a forjar a cultura
ocidental. O legado grego, transmitido pelos macedônicos, redesenhou as
fronteiras do mundo antigo, chegando até a Índia. Sonhando com a unificação do
mundo, Alexandre tencionava “civilizar” as diferentes nações que dominava,
levando a filosofia, a arte e as ciências gregas como elementos de avanço e
progresso para todos os povos conquistados (Carvalho, 2006).
Seu método de expansão bem-sucedido baseava-se na acomodação e na
assimilação:
acomodação do poder local ao Império, pois, ao avançar sobre uma
cidade, incumbia a seus soldados a tarefa de se casar com mulheres
locais, tornando-se responsáveis pela administração local e atuando como
altos funcionários do Império;
assimilação dada pela liberação religiosa e cultural dos conquistados,
numa relação entre o novo e o velho, entre as culturas do Ocidente e do
Oriente, integrando-se costumes, valores e crenças. Esse sincretismo
cultural ficou conhecido como helenismo.
2.1
O helenismo e o advento da escola estoica
Ágora era o nome dado a praças e lugares públicos onde geralmente os cidadãos
gregos se reuniam para discutir assuntos relacionados à cidade e aos seus
interesses.
Eclésia, em grego ekklesia, designa a principal assembleia da democracia em
Atenas. Aberta a todos os cidadãos, era uma iniciativa soberana com poderes para
legislar e deliberar sobre assuntos públicos da cidade.
São várias as influências helenísticas na cultura cristã, na arte, na literatura, na
arquitetura, na ciência, na filosofia e até mesmo na racionalização da vida urbana
com o planejamento das cidades. Era possível encontrar a influência da
engenharia macedônica tanto nas novas quanto nas antigas cidades, construídas
ou reformadas em forma de grades. Eram parecidas com as cidades que temos
hoje, com ruas, quadras, bairros, praças, casas e prédios da administração, tudo
formando uma ordem bem disposta e disciplinada do espaço urbano. Na prática,
além de favorecer a organização e a logística internas, a disposição em grades, e
não em formações sinuosas e labirínticas, como as cidades persas, funcionava
como um lembrete da marca e da presença do domínio imperial. Além disso, os
engenheiros de Alexandre deixavam como legado a presença de templos, ágoras,
teatros e praças, verdadeiros centros de irradiação da cultura grega em diferentes
regiões do mundo (Toynbee, 1963).
As consequências filosóficas do helenismo estiveram relacionadas ao fim da
política como atividade soberana na pólis, denominação das cidades-Estado
presentes em toda a Grécia (entre as mais conhecidas estão Atenas e Esparta).
Precisamos lembrar que antes que o Império Macedônico dominasse a Grécia, a
vida pública representava o espaço privilegiado de participação dos cidadãos,
discutindo-se nas assembleias – ou eclésias – os destinos da cidade. O escopo
da formação filosófica presente nos ensinamentos de Sócrates, Platão e
Aristóteles tinha como referência esse contexto sociopolítico (Chaui, 2003).
Cosmopolita, no contexto das filosofias helenísticas, refere-se à formação do
indivíduo para uma cidadania global, para além de referências cívicas, patrióticas
ou ideológicas. Cada indivíduo deve ser senhor de si mesmo num projeto político
planetário que transcenda aos limites territoriais, jurídicos e culturais de cunho
local ou regional.
A formação do bom cidadão, a busca por sabedoria e felicidade, a vida ética, a
prática do bem e da justiça eram ideais que se materializavam no espaço cívico da
cidade. Com o advento do Império Macedônico, a centralização da administração,
a esfera pública, como descrita anteriormente, desaparece. Diante dessa nova
configuração social e política, a temática da filosofia se deslocou da vida pública
para a vida privada. O mundo passou a ser o horizonte existencial dos indivíduos,
num ideal cosmopolita. A questão que se levantou e que foi respondida em parte
pelas filosofias que surgiram nesse período é: como viver bem e ser feliz num
mundo em mudança? Cada um a seu modo – estoicos, epicuristas, céticos e
cínicos – buscou oferecer caminhos e alternativas para essa questão. Dentre
essas escolas, a que encontrou maior ressonância no seio da doutrina cristã foi a
estoica.
Teleologia refere-se ao ensinamento doutrinário de que existem fins últimos que
podem ser captados e realizados pela sociedade, pelo indivíduo ou por toda a
humanidade.
Fundada por Zenão de Cítio, que viveu entre os anos de 336 a.C. e 264 a.C., a
escola estoica recebeu esse nome porque seus adeptos costumavam se reunir
sob os pórticos (stoa, em grego) das construções de Atenas.
A concepção da escola estoica é a de que existe uma razão superior (logos) que
governa o Universo, já que tudo o que acontece no mundo de alguma forma reflete
um sentido, um fim, portanto, uma teleologia sobre os destinos humanos. Outro
importante ensinamento refere-se ao dever e à reta razão. Para o estoico, mesmo
diante da dor e do sofrimento, a conduta deve ser guiada pela reta razão, que, em
última análise, precisa se conformar com o logos que a tudo governa. Embora o
homem não possa, em sua condição finita e limitada, alcançar os desígnios mais
profundos que cercam o sentido do mundo e de sua vida, deve confiar no logos e
aceitar seus desígnios, conformando-se com a misteriosa vontade dele.
Para a escola estoica, o sentido da vida consiste em deixar as coisas de acordo
com a ordem natural.
Entre os mais renomados estoicos está Marco Túlio Cícero, que viveu entre 106
a.C. e 43 a.C. e também foi filósofo, orador, escritor e advogado. Nele podemos
encontrar a seguinte interpretação sobre a razão de que falava Zenão:
A razão reta, conforme à natureza, gravada em todos os corações, imutável,
eterna, cuja voz ensina e prescreve o bem, afasta do mal que proíbe e, ora com
seus mandatos, ora com suas proibições, jamais se dirige inutilmente aos bons,
nem fica impotente ante os maus. Essa lei não pode ser contestada, nem
derrogada em parte, nem anulada; não podemos ser isentos de seu cumprimento
pelo povo nem pelo senado; não há que procurar para ela outro comentador nem
intérprete; não é uma lei em Roma e outra em Atenas, uma antes e outra depois,
mas una, sempiterna e imutável, entre todos os povos e em todos os tempos; uno
será sempre o seu imperador e mestre, que é Deus, seu inventor, sancionador e
publicador, não podendo o homem desconhecê-la sem renegar-se a si mesmo,
sem despojar-se do seu caráter humano e sem atrair sobre si a mais cruel
expiação, embora tenha conseguido evitar todos os outros suplícios. (Cícero,
1995, p. 75)
Tomando as palavras acima, sem referência a seu autor e à época em que foram
escritas, poderíamos dizer com tranquilidade que se trata da fala de um teólogo
católico da Idade Média, defendendo que Deus é fonte última do bem, da lei e da
justiça. Aliás, séculos depois, essa temática foi retomada por Santo Tomás de
Aquino, quando expôs argumentação similar informando que o fundamento da lei
natural é a lei divina, a qual pode o homem captar com sua inteligência.
A seguir, apresentamos uma tira contemporânea que remete aos ensinamentos
estoicos.
Calvin & Hobbes, Bill Watterson © 1987 Watterson/Dist. by Universal Uclick
A tira de Calvin e Haroldo trata da felicidade, um assunto importante na temática
da filosofia estoicista. Para os estoicos, o segredo da felicidade é o bem viver, e é
necessário aceitar como naturais o sofrimento e a morte. Na tira, essa ideia é
reforçada como parte de uma razão maior, que, embora se manifeste nas leis da
natureza e no ciclo da vida, pelo homem, por sua condição finita e limitada, não
pode ser plenamente compreendida, restando ao estoico a conformidade e a
aceitação. Por meio dessa atitude de conformidade; racionalizada, é possível viver
em paz. Trata-se de uma questão com a qual nos deparamos cotidianamente; as
perdas que sofremos de entes queridos, por exemplo, impõem a nós a
necessidade de dar um sentido ao sofrimento e à morte.
Como mencionamos anteriormente, as filosofias helenísticas, como é o caso do
estoicismo, buscavam apresentar uma alternativa ao problema da vida, que antes
estava associado à vida pública na pólis. Contudo, num mundo em transformação
e sob o domínio de um império, o caminho da felicidade talvez esteja na vida
interior, no fortalecimento da própria subjetividade diante dos infortúnios. Ver o
sofrimento e a morte como parte da vida constitui um dos pilares do estoicismo.
De modo geral, o homem estoico representa o protótipo do cristão – um indivíduo
de vida simples e austera, de temperamento equilibrado e vontade
inquebrantável, alguém que entrega sua vida ao logos (Deus), que governa o
Universo. A partir dessa entrega, a vida ganha um novo sentido, e a felicidade
surge como um horizonte de conformação com a vontade divina, com a crença de
que Deus conhece e traçou todos os destinos dos homens e de que a vida
orientada pela palavra divina e pelo magistério da Igreja garante a salvação dos
convertidos.
2.2
As bases e as características do pensamento filosófico cristão
Anteriormente, analisamos a influência do helenismo na doutrina cristã, com
atenção em alguns elementos do estoicismo. Nesta seção, buscaremos
compreender algumas especificidades da filosofia produzida na Idade Média.
Um traço característico do pensamento medieval é a ideia de que a filosofia tinha
uma importância coadjuvante, sendo uma ferramenta auxiliar da teologia. Para
Gilson (2002), isso se deveu à clara fronteira epistêmica entre fé e razão, sendo a
filosofia um conhecimento importante, mas limitado, pois era adquirido
racionalmente pelo esforço humano. Por sua vez, a fé seria complementada pela
pesquisa teológica e partiria de verdades mais profundas, reveladas como uma
forma de conhecimento pleno e superior.
Obviamente, esse entendimento não é unânime entre os historiadores da filosofia.
O fato é que o cristianismo, na expressão de seus teólogos (entre os mais
conhecidos, Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino), buscou fundamentos
para suas teses e argumentos numa leitura direcionada e enviesada da filosofia
grega.
O politeísmo admite a existência de diferentes deuses e divindades. Trata-se de
uma crença que remonta às religiões animistas, passando pelas grandes
civilizações antigas como a romana, a egípcia e a mesopotâmica. É muito comum
que no politeísmo ocorra o antropomorfismo, no qual as divindades assumem
formas humanas ou uma composição híbrida de homem e animal.
O desafio do cristianismo, como religião emergente, foi o de oferecer para o
problema do mal no mundo e para o sentido da vida uma solução diferente
daquela existente no paganismo, que era politeísta. A disputa pelos corações e
mentes dos homens enveredou pelo caminho trazido pelo helenismo, que, até
certo ponto, funcionou como pano de fundo cultural, como uma ponte que
permitiu o diálogo entre o evangelho e a filosofia grega, assumindo a forma de
síntese na tradição filosófica cristã do Medievo.
A alternativa para vencer o mal e alcançar a salvação trazida pelo cristianismo
teve na forma teísta, organizada com base em uma teologia racionalizada, sua
grande novidade. Nesse momento, a herança recebida da religião judaica foi
elevada a um novo nível, pois a doutrina monoteísta ganhou novos contornos
conceituais com o pensamento platônico-aristotélico. Crer num único Deus
criador e salvador tomou a forma de uma doutrina filosófica e moral ordenadora
da vida individual e social. Assim, a reformulação conceitual em torno do mal
passou a ser repensada com base no conceito de pecado como expressão do
livre-arbítrio do homem. Ou seja, o mal é acima de tudo uma condição moral do
homem que se afastou de Deus. Essa formulação, aliás, recebera no pensamento
agostiniano sua forma mais acabada (Eliade, 2008).
Foi assim que, com base na filosofia cristã, desenvolveu-se uma doutrina da
salvação que se converteu numa teleologia totalizante. O relato bíblico da criação
e do pecado original colocou a humanidade como escopo escatológico, que
encontraria redenção pela morte e ressurreição de Jesus. Viver, sob a ótica da
moral cristã, passou a ser visto como assumir a condição de culpabilidade pelo
pecado original e receber uma nova vida pelo batismo. Assim, a filosofia cristã
tomou a forma de uma doutrina moral que se materializou nos sacramentos e na
aceitação dos dogmas de fé. Apesar disso, trata-se de uma doutrina que só ganha
sentido e consistência por versar sobre verdades de fé racional e conceitualmente
elaboradas.
Escatologia é um tipo de estudo presente em diversas religiões, inclusive no
cristianismo, que trata do destino final da humanidade e do mundo. Via de regra,
tem uma dupla expressão: profética, quando antecipa a intervenção divina, e
apocalíptica, quando apresenta o juízo final.
Na tradição católica, os sacramentos referem-se aos sinais deixados por Cristo
para marcar a graça de Deus e a presença do Espírito Santo na vida da
comunidade e do cristão. São sete: batismo, crisma, eucaristia, penitência, unção
dos enfermos, sacerdócio e matrimônio.
Na doutrina católica, a eucaristia é o ponto alto da fé em Cristo, pois o sacerdote,
ao pronunciar as palavras do ritual, opera a transformação do pão em carne e do
vinho em sangue.
Um exemplo da complexidade das elaborações das verdades de fé é o conceito
de transubstanciação elaborado por Santo Tomás de Aquino, a quem
dedicaremos um capítulo específico. Esse conceito foi desenvolvido com base na
metafísica de Aristóteles para fundamentar filosófica e teologicamente a
transformação do pão em carne e do vinho em sangue, um milagre que acontece
durante a celebração da missa, quando o sacerdote consagra a eucaristia. Não se
trata somente de crer e aceitar as verdades reveladas, mas de entendê-las,
compreendendo racionalmente, tanto quanto possível ao alcance humano, os
mistérios que envolvem a fé e a salvação dos homens.
Passemos, então, à avaliação histórica do plano social e institucional que
envolveu o cristianismo no Medievo. Nesse aspecto, no entanto, as opiniões se
dividem. Existem basicamente duas leituras muito presentes entre os estudiosos
desse período. De um lado, alguns autores consideram a Idade Média a “Idade das
Trevas”, como Magee (2000) e Law (2009), que a descrevem como um período de
retrocesso cultural, obscurantismo e intolerância, com a famosa caça às bruxas e
a Inquisição. De outro lado, autores como Reale e Antiseri (2003) e Marcondes
(2007) contextualizam diversos aspectos positivos desse período, como a arte
gótica (ver Figura 2.2), a pintura sacra, o surgimento das universidades e o
florescimento da lógica e da teologia.
Figura 2.2 – A anunciação, de Simone Martini
MARTINI,
S. A anunciação. 1333. 1 têmpera sobre madeira: color.; 184 × 210 cm. Galeria
U izi, Florença, Itália.
Entre os dois modos de pensar, acreditamos que sejam necessários um olhar
crítico e considerações criteriosas sobre este instigante período da história, que
foi a Idade Média. Contudo, não podemos cair no lugar comum de avaliações ora
de autores confessadamente cristãos, ora de autores ateus cujas interpretações
tendem ao ponto de vista ideológico e religioso de cada um.
Seja como for, o fato é que a cultura religiosa medieval tem tamanha proporção na
sociedade e na vida humana que foi estudada, posteriormente, pelos
historiadores como um paradigma predominante, isto é, como uma macrovisão
que abarcava o conjunto das manifestações daquela época. É o que veremos na
subseção a seguir.
2.2.1 O teocentrismo
A influência da Igreja Católica se irradiou por toda a Europa, e seu domínio
intelectual redesenhou o mapa cultural, colocando Deus como valor máximo na
pirâmide axiológica da cristandade. Estamos falando do Deus católico, portanto,
indiretamente, a cosmovisão teocêntrica colocava a Igreja como uma realidade ao
mesmo tempo terrena e sagrada, humana e divina, santa e pecadora, mas, acima
de tudo, uma comunidade espiritual de homens e mulheres estabelecida por uma
filiação divina.
A Igreja foi concebida, então, como mãe e guia, mestra a conduzir a humanidade,
por meio de seu magistério, a Deus, oferecendo aos homens sua palavra, suas
promessas, suas bênçãos e a possibilidade de salvação. Nessa lógica, os
ministros de Deus – padres, bispos e o papa – convertem-se em arautos da
mensagem divina, gozando de todo o poder e prestígio que a majestade de Deus
lhes permitia (Le Go , 1994). A mensagem de Cristo, no evangelho, sobre justiça,
amor e pobreza parecia destoar em relação ao poder e à ostentação alcançados
pelo clero desse período. Isso não tardou a ser alvo de críticas, seja por tentativa
de volta às origens, como no caso das ordens mendicantes – a exemplo de
dominicanos e franciscanos –, seja pelos precursores do protestantismo – como
John Wycli , que ensinava em Oxford, na Inglaterra, e Jan Huss, da Universidade
de Praga. Ambos são anteriores a Lutero (Gilson, 2002).
As ordens mendicantes surgiram no século XIII com uma conotação de volta às
origens evangélicas de uma vida de oração, penitência e a prática de boas obras.
Eram formadas por religiosos que atuavam principalmente nas cidades que
cresciam. Entre as mais conhecidas ordens figuram a dos franciscanos,
carmelitas e agostinianos.
Sabemos que a fé católica exigia uma adesão total ao seu credo. Essa adesão, por
sua vez, tinha dois caminhos: o batismo puro e simples da plebe ou a conversão
racionalizada das elites mediante o aprendizado elaborado da doutrina católica.
De qualquer forma, tratava-se de aceitar as verdades reveladas, das quais a Igreja
se dizia guardiã e promotora.
Ora, se a verdade suprema fora revelada na encarnação de Cristo, salvador e
libertador de todos que nele creem, então a pesquisa e a busca por outras
verdades perde sentido e significado. Mesmo existindo o interesse na busca por
explicações diferentes, por novos conhecimentos que não tenham como fonte a
Bíblia, a tradição ou a autoridade dos padres, essa busca não deve contrariar a
doutrina da Igreja, devendo até mesmo se confirmar e se apoiar nas verdades
reveladas por ela.
Essa, sem dúvida, foi a ótica adotada por diversos teólogos católicos que
esquadrinhavam os autores clássicos da Antiguidade, buscando somente o que
lhes servia. A metafísica de Platão e Aristóteles foi adaptada para servir como
sustentação para a teologia católica, usada como ferramenta auxiliar para
demonstrar a fé racionalmente.
Outro aspecto a ser considerado refere-se à ciência dos antigos, que tinha um
caráter contemplativo, procurando o mundo em sua beleza e complexidade. Ela
influenciou a noção de realidade como criação divina, conferindo à natureza uma
dimensão de transcendência que só foi colocada em questão na modernidade,
principalmente com o empirismo de Francis Bacon (Marcondes, 2007).
Em resumo, podemos dizer que, no mundo cristão medieval, a Bíblia era a fonte
principal da verdade e que os dogmas e o credo representavam a sistematização
dessa verdade. O papa e o magistério da Igreja tinham o monopólio do
conhecimento acerca da vontade de Deus. Os homens, criaturas pecadoras por
excelência, “os degredados filhos de Eva”, viviam num “vale de lágrimas”,
aguardando para breve a segunda vinda de Cristo e o juízo final.
Podemos afirmar que a condição humana era de decadência, sofrimento e
desesperança, restando somente a porta da fé como alternativa para a salvação.
Tudo o que era humano, terreno, imanente e natural precisava ser negado ou
ressignificado. A arte sacra desse período se esforçava para suprimir a silhueta da
forma humana, negando ao homem até mesmo sua corporeidade.
Síntese
Ao longo deste capítulo, vimos que o helenismo promoveu uma grande divulgação
da cultura, da arte e a da filosofia gregas pelo mundo. Examinamos os elementos
que explicam a transição do pensamento antigo para o medieval, tendo em vista
que o fim do Império Romano trouxe uma reconfiguração social, política, cultural
e econômica do que viria a se tornar a Europa Ocidental.
Em relação à formação do pensamento filosófico cristão, destacamos a forte
influência do helenismo sobre o cristianismo. Precisamos lembrar que o Império
de Alexandre solapou a independência da organização política e jurídica das
cidades-Estado. Nesse sentido, a pólis, que outrora tinha representado o espaço
da vida pública e política dos cidadãos, deixou de existir como tal. Assim, o ideal
da filosofia clássica, de formar o bom cidadão, perdeu seu referencial. As
filosofias que surgiram nesse contexto abandonaram a vida pública e voltaram-se
à vida privada, ao interior das pessoas, buscando, assim, dar uma resposta ou
oferecer um caminho para o sentido da vida num mundo que passava por grandes
mudanças.
Uma dessas respostas foi o estoicismo, com sua doutrina simples e de resignação
firme diante dos acontecimentos, que versava sobre necessidade de se ter uma
vida reta, virtuosa, praticando a virtude como dever moral. A escola estoica
defendia existência de um logos, um ordenador do Universo.
De certa forma, assim como o estoicismo, também o cristianismo adotou um
discurso de salvação do homem diante de um mundo de pecado, violência e
decadência. Ou seja, bastava ao homem medieval abraçar a fé católica, acreditar
e viver conforme sua doutrina para ser salvo. A salvação oferecida começava na
vida terrena com o corpo, mas sua plenitude era alcançada na eternidade com a
alma. Nesse panorama, a promessa da ressurreição colocava a vida como
percurso para a transcendência. Para os estoicos, ao contrário, bastava viver em
conformidade com a vontade do logos eterno que governa o mundo.
O Deus cristão era percebido como um ser pessoal que se interessava pela vida e
pela sociedade e interferia nelas. Era um Deus que encarnou e assumiu para si a
humanidade por meio de Cristo, tendo este se tornado o caminho e a porta para o
reino do céu, do qual a Igreja possuía as chaves.
Indicações culturais
Livros
Link, L. O diabo: a máscara sem rosto. São Paulo: Companhia das Letras, 1978.
O livro traz informações sobre a problemática relação da Igreja com a cultura
dissidente. Destaca os problemas e conflitos entre a religião e as práticas
religiosas pagãs. Há especial destaque ao conjunto de crenças, celebrações e
divindades que fizeram parte do paganismo e ao modo como a religião cristã
conseguiu avançar do centro para o interior, forçando um processo de aculturação
que não ocorreu de modo pacífico. Traz, ainda, o imaginário social do camponês
que se via em meio aos apelos da nova religião e às tradições ancestrais do
paganismo.
Kramer, H.; Sprenger, J. O martelo das feiticeiras. Rio de Janeiro: Record; Rosa
dos Tempos, 1995.
Esse livro, cujo título original em latim é Malleus Maleficarum, foi escrito no final
da Idade Média, em meados do século XV. Trata-se de um conjunto de atas e
registros feitos por inquisidores que estiveram presentes em diversos julgamentos
contra homens e mulheres acusados de bruxaria. O livro apresenta em detalhes o
processo e as técnicas de tortura utilizadas pela Igreja para arrancar a confissão
dos acusados. Os detalhes e a descrição pormenorizada evidenciam o lado cruel
e obscuro da Inquisição.
Filmes
O Nome da rosa. Direção: Jean-Jacques Annaud. EUA: Warner Home Video, 1986.
130 min.
Baseado no romance homônimo de Umberto Eco, a história se passa no ano de
1327, num mosteiro beneditino não identificado. O protagonista do filme é o Frei
William, da Ordem Franciscana. Em meio a uma disputa entre a delegação papal e
uma comitiva de franciscanos que debate sobre a pobreza de Cristo e a missão da
Igreja, misteriosos assassinatos ocorrem. O destaque é para a postura e o
procedimento do Frei William, que age como um verdadeiro investigador, cético,
racional e meticuloso, de certa forma prefigurando o espírito de pesquisa e
investigação que se tornaria usual na modernidade. Em meio ao contexto
medieval de repressão às novas ideias, é possível ter uma aproximação da visão
de mundo e do homem daquele período.
El Cid. Direção: Anthony Mann. EUA: Classicline (DVD), 1961. 182 min.
Trata-se de um filme biográfico que conta a história do lendário cavaleiro cristão
Rodrigo Diaz de Bivar (El Cid), que defendeu bravamente a fé católica em território
espanhol contra o avanço dos muçulmanos. O herói se envolve em disputas por
honra, amor e fé. É possível refletir sobre o avanço do Império Turco-Otomano e
sua influência por toda a Europa durante o tempo em que a ocupou – uma
influência que se fez sentir na língua, na cultura, na medicina e na filosofia
ocidentais.
Atividades de autoavaliação
1. Em relação à conceituação do helenismo, assinale a alternativa correta:
a. Helenismo é o nome dado à região onde nasceu Alexandre, o Grande, do
povo dos helenos, habitantes da Hélide.
b. Helenismo significou o sincretismo entre diferentes culturas envolvendo a
visão de mundo grega e a dos povos orientais conquistados por Alexandre.
c. O fenômeno do helenismo recebeu esse nome por se tratar de um conjunto
de ensinamentos religiosos de caráter politeísta e antropomórfico.
d. Helenismo é o nome dado à doutrina política e econômica dos povos
conquistados por Alexandre, o Grande.
2. Em relação ao helenismo, considere as afirmações a seguir e assinale V
para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas:
o A cultura helênica deixou profundas marcas por onde passou, o que
envolveu a ciência, a arte, a filosofia e até a arquitetura.
o Com o advento do Império Alexandrino, ocorreu uma administração
conjunta entre o novo poder e as cidades-Estado, as pólis, que
permaneceram com sua autonomia política e econômica.
o Alguns dos traços da administração do Império Macedônico eram a
flexibilidade e a aculturação, permitindo que os conquistados
continuassem seguindo sua cultura e seus costumes.
o Mesmo com a administração imperial e a nova organização social e
política da Grécia, a filosofia floresceu, mantendo seu ideal de
formar o bom cidadão, ético e político para a vida na pólis.
Agora, indique a alternativa que corresponde à sequência correta:
e. V, F, F, V.
f. F, V, V, F.
g. V, F, V, F.
h. V, V, F, V.
3. Assinale a alternativa que traz o nome das filosofias helenísticas mais
conhecidas:
a. Pirronismo, ecletismo e cetiscismo.
b. Platonismo, escolástica, socratismo e sofistas.
c. Estoicismo, epicurismo, cinismo e ceticismo.
d. Pitagorismo, orfismo, misticismo e obscurantismo.
4. Sobre a influência do helenismo na formação da religião cristã, é correto
afirmar:
a. Entre as escolas filosóficas que mais influenciaram a doutrina cristã está o
pitagorismo, com seu ensinamento de que Deus é o grande construtor do
Universo.
b. Dos cínicos o cristianismo assimilou a crítica social, fazendo com que a
Igreja vivesse na prática a pobreza e a humildade.
c. Conceitos estoicos, como logos, dever moral, austeridade e resignação,
fundiram-se ao cristianismo.
d. Dos epicuristas a Igreja tomou a crença na materialidade da vida,
defendendo que tanto o corpo quanto a alma são importantes na salvação.
5. Como ficou conhecida na história a concepção segundo a qual Deus passa
a ser o centro da vida e da cultura humana, as questões religiosas
predominam sobre as demais e a Igreja é central nas relações de poder?
a. Antropocentrismo medieval.
b. Renascimento cristão.
c. Teocentrismo.
d. Reforma e Contrarreforma.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Com base neste livro e em outras fontes, defina com suas palavras os
seguintes pares de conceitos: transcendência e imanência; sagrado e
profano.
2. Como você avalia o papel da Inquisição durante a Idade Média?
3. Pensando na relação entre fé e razão, que argumentos você utilizaria para
defender os pontos de vista explicitados a seguir?
a. A fé é superior à razão.
b. Fé e razão se complementam.
4. Considerando as leituras realizadas até o momento, caracterize o mundo
cristão medieval com base no texto da oração Salve Rainha:
Salve Rainha, Mãe de Misericórdia,
Vida, doçura e esperança nossa, salve!
A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva.
A Vós suspiramos, gemendo e chorando
neste vale de lágrimas.
Eia, pois, advogada nossa,
Esses Vossos olhos misericordiosos
A nós volvei,
E, depois desse desterro,
Mostrai-nos Jesus, bendito fruto do Vosso Ventre.
Ó Clemente, Ó Piedosa, Ó Doce Virgem Maria.
Rogai por nós Santa Mãe de Deus,
Para que sejamos dignos das promessas de Cristo. Amém.
(Salve Rainha, 2016)
Atividade aplicada: prática
Assista ao filme Cruzada, do ano de 2005, e elabore uma resenha crítica
explorando a relação entre religião, política e economia.
Cruzada. Direção: Ridley Scott. Reino Unido/EUA/Alemanha: 20th Century Fox,
2005. 144 min.
O teocentrismo tem como conceitos a transcendência, o geocentrismo, o divino,
o sagrado, a Bíblia, a fé, os dogmas, os anjos e os santos de Deus. Se o papa é o
vigário de Cristo e a Igreja Católica a guia e a mestra que tem a responsabilidade
de conduzir a humanidade à salvação, então toda a ciência é supérflua e ilusória?
Capítulo 3 - O início do pensamento filosófico cristão: a patrística
Ainda não amava, e amava amar; devorado pelo desejo secreto do amor, acusava-
me por não me sentir ainda mais devorado.
Santo Agostinho
Neste capítulo 3, apresentaremos o movimento patrístico e alguns dos autores
que deram início à organização da filosofia cristã. A patrística recebeu esse nome
em função do protagonismo dos primeiros padres da Igreja em utilizar a filosofia
grega para defender racionalmente as verdades de fé. O objetivo deste capítulo é
situar esse movimento no contexto do pensamento cristão e abordar os assuntos
que foram debatidos na relação entre a fé e a razão. Não podemos esquecer que o
movimento patrístico contribuiu para a sistematização e a fundamentação da
doutrina cristã e para a defesa da fé católica, diante das polêmicas envolvendo o
paganismo e as heresias. Apesar de os patrísticos buscarem na filosofia grega,
principalmente em Platão, muitos de seus conceitos e argumentos, a Bíblia é a
grande fonte da verdade. Para autores como Santo Agostinho, isso tornou possível
que a sabedoria dos gregos fosse reconhecida e aperfeiçoada mediante a
iluminação das verdades reveladas no evangelho.
Figura 3.1 – Cristo entronado e cercado por anjos (detalhe)
Cristo entronado e cercado por anjos (detalhe). Século VI. 1 mosaico: color.;
Basílica de Santo Apolinário Novo, Ravena, Itália.
Destacamos a patrística por sua importância nos primeiros séculos do
cristianismo, servindo como referência dentro da filosofia e da teologia católicas.
Os primeiros padres da Igreja produziram uma teologia de afirmação e defesa das
verdades reveladas. Esses primeiros teólogos lançaram as linhas mestras da
doutrina católica e tiveram como seu maior expoente, por sua abrangência e
profundidade, Santo Agostinho.
3.1
Em defesa da fé: os padres apologistas gregos
Como mencionamos anteriormente, o cristianismo surgiu como uma religião
urbana que, ao se expandir para fora das cidades, em direção ao campo, deparou
com práticas e cultos religiosos já organizados. Convencionou-se chamar
de paganismo o conjunto dessas religiões, que em grande parte tinham em
comum crenças politeístas (Eliade, 2008). O sentido etimológico da
palavra paganismo remete a pagão, palavra de origem latina, paganus, “aquele
que mora no pagus, no campo, no interior”, em clara oposição a urbanus, termo
que se refere aos moradores da cidade (Cunha, 2010). Esse encontro foi marcado
por violentos processos de aculturação e assimilação por parte do cristianismo.
Além disso, é importante lembrar que, antes de ser oficializada, a religião cristã
era vista como uma seita e seus adeptos, por não aceitarem o politeísmo, eram
perseguidos pelas autoridades romanas.
O sentido das apologias dos primeiros padres da Igreja também esteve associado
à defesa da fé e dos cristãos tanto perante as autoridades romanas perseguidoras
quanto perante os defensores do paganismo.
Nesse panorama, a patrística abarcou um variado número de pensadores,
teólogos, padres e escritores. Em seu início, figuravam os chamados padres
apostólicos, que receberam esse nome pela sua importância religiosa na
elaboração da doutrina cristã e pela proximidade cronológica que tiveram com os
discípulos diretos dos primeiros apóstolos. Outro grupo, chamado de apologista,
realizou uma defesa racional do cristianismo contra a religião pagã.
A defesa feita pelos padres apologistas tinha uma dupla tarefa: defender o
cristianismo dos ensinamentos e práticas do paganismo e contra a intolerância
religiosa do Estado romano. Essa intolerância estava relacionada ao pouco
controle que a nova seita – em expansão – permitia por parte dos centros de
poder. A situação, aliás, perdurou por pelo menos três séculos antes de o
cristianismo ser oficializado (Gilson, 2002).
Dados o aspecto didático e o alcance deste livro, escolhemos apresentar somente
alguns autores desse período, de modo a ilustrar os debates e os argumentos
mais representativos.
Entre os apologistas mais conhecidos figuram Marciano Aristides, que viveu na
época do Imperador Antônio Pio, em meados do século II; Taciano, o Assírio;
Atenágoras de Atenas; e Teófilo de Antioquia. No entanto, o nome de destaque foi
seguramente Justino Mártir.
Figura 3.2 – Justino Mártir André Müller
Considerado um dos precursores da patrística, Justino Mártir nasceu por volta do
ano 100 e morreu em 165, em Roma. É reconhecido e celebrado tanto entre
católicos romanos e ortodoxos quanto entre protestantes.
Cristo é logos divino encarnado, evidência de que, no homem, reside a centelha
divina.
3.1.1 Justino Mártir
Nascido na Palestina, na cidade de Flávia Neápollis, seus escritos o colocam
como um dos mais fervorosos defensores da fé cristã na época. Em seus textos,
dizia que sua busca espiritual o levou à filosofia de Platão, mas a verdade só lhe foi
revelada em Cristo. Além da mensagem evangélica, sua conversão está associada
ao belo testemunho de fé e coragem inabalável dos primeiros cristãos, cujos
relatos o inspiraram. A obra de Justino, pela profundidade e abrangência com que
tratou da tradição bíblica, foi fonte de referência tanto para a tradição da Igreja
romana ocidental quanto para o catolicismo oriental.
Para Justino, Platão e Cristo não são irreconciliáveis, o que o levou a afirmar que,
como cristão,
glorio-me disso e, confesso, desejo fazer-me reconhecer como tal. A doutrina de
Platão não é incompatível com a de Cristo, mas não se casa perfeitamente com
ela, não mais do que a dos outros, dos estoicos, dos poetas e dos escritores. Cada
um deles viu, do Verbo divino que estava disseminado pelo mundo, aquilo que
estava em relação com a sua natureza, chegando desse modo a expressar uma
verdade parcial. Mas, à medida que se contradizem nos pontos fundamentais,
mostram que não estão de posse de uma ciência infalível e de um conhecimento
irrefutável. Tudo aquilo que ensinaram com veracidade pertence a nós cristãos.
Com efeito, depois de Deus nós adoramos e amamos o Logos nascido de Deus,
eterno e inefável, porque Ele Se fez homem por nós, para curar-nos dos nossos
males, tomando-os sobre Si. Os escritores puderam ver a verdade de modo
obscuro, graças à semente do Logos que neles foi depositada. Mas uma coisa é
possuir uma semente e uma semelhança proporcional às próprias faculdades e
outra é o próprio Logos, cuja participação e imitação deriva da graça que dele
provém. (Justino, citado por Reale; Antiseri, 2003, p. 40)
O posicionamento de Justino inaugurou a teologia que se produziu em torno do
Evangelho de João e das cartas de Paulo sobre a encarnação de Cristo
como logos divino que se tornou homem, revelando, em linguagem humana, a
vontade do Pai. Outro aspecto da teologia justiniana diz respeito à doutrina da
ressurreição como grande marca de diferenciação do cristianismo.
Seu conhecimento da obra de Platão acerca da alma o fez argumentar que toda
criação de Deus, inclusive a alma humana, participa da vida, mas não contém a
vida em si mesma. Isso Justino coloca como um atributo exclusivo de Deus, algo
que nem Platão nem Pitágoras perceberam ao atribuir imortalidade à alma e às
essências (Reale; Antiseri, 2003). Em 165, Justino morreu como mártir, igualando-
se em coragem e bravura aos seus antecessores que tanto o inspiraram. Na
defesa de sua fé, foi condenado pelo prefeito de Roma a ser decapitado.
3.1.2 Taciano
Seguidor de Justino, sua conversão acolheu a fé como uma dimensão da vida
mística e espiritual. Sua fonte principal de estudo foi a Bíblia, que ele afirmava ser
um livro “bárbaro”, pois não fazia parte da tradição da cultura grega, mas israelita.
Reafirmou os ensinamentos de Justino, atribuindo a Deus o único poder de
ressuscitar o corpo e a alma. Taciano foi um cristão fervoroso e radical, chegando
a pregar a necessidade de suprimir o casamento e observar a abstenção total do
vinho. No curso de sua jornada espiritual, teria se aproximado da gnose como
forma de compreender mais profundamente o sentido da revelação dos
Evangelhos.
A cronologia de nascimento e morte de Taciano é imprecisa. Ele teria morrido em
185, na Síria. Anti-helenista, criticava a filosofia grega e acusava de plágio os
ensinamentos dos filósofos gregos, que teriam tido como fonte a Bíblia e a
tradição hebraica.
Nutriu um anti-helenismo que tinha contornos de aversão e agressividade. O
apologista acusou a filosofia grega de ter plagiado a sabedoria contida na Bíblia e
na tradição judaica, pois, segundo ele, a filosofia dos ensinamentos bíblicos era
anterior ao conhecimento dos gregos.
A religião cristã, para Taciano, que era filósofo de formação, representava um
caminho de libertação para os homens, respondendo, de modo mais eficaz do
que a própria filosofia grega, ao problema do mal e do sentido da vida.
Ele foi bem menos generoso que seu mestre Justino, que admitia que o logos –
antes de sua revelação em Cristo – podia ser percebido mesmo que parcialmente
em diversas culturas e saberes, até mesmo atribuindo um peso importante à
cultura e à filosofia gregas. Taciano, diferentemente de seu mentor, afirmou que,
desde os sofistas, Platão e Aristóteles, a filosofia grega teria se apropriado de
vários ensinamentos contidos na tradição judaica, interpretando-os
equivocadamente e cometendo vários erros no modo de conceber a origem e o
lugar do homem no mundo. Apontou erros, ainda, em relação às diferenças entre
o bem e o mal, além do sentido último da vida e da existência humana. Afirmava
que sinais evidentes dos equívocos filosóficos dos pensadores gregos são
as inúmeras contradições que eles mesmos criaram, gerando toda sorte
de aporias e paradoxos que em nada contribuem para que os homens avancem
em seus conhecimentos sobre o mundo, sobre si mesmos e sobre Deus.
A gnose diz respeito ao conhecimento espiritual e intuitivo sobre Deus e seus
atributos. Entre os cristãos primitivos, existiam os adeptos dessa corrente de
pensamento que julgavam possuir um conhecimento profundo e iniciático sobre
as realidades divinas (Durozoi; Roussel, 1999).
Aporia é um termo de origem grega que se refere a argumentos ou ideias que
apresentam um impasse, raciocínios incertos e autocontraditórios, conclusões
lógicas que se chocam; beco sem saída; linha de argumentação inconclusiva;
sentido paradoxal de uma afirmação (Cunha, 2010).
Digno de nota é o modo como Taciano explicou a criação do mundo por Deus.
Diferentemente do Demiurgo do Timeu, de Platão, que cria o mundo com uma
matéria que já está dada, ou do Deus criador da tradição judaico-cristã, que faz
tudo existir unicamente baseado na sua vontade, Taciano fala da criação da
matéria como uma projeção de dentro do próprio Deus. Cabe notar que, entre os
apologistas, é forte o raciocínio filosófico, operando um nível conceitual de
abstração bastante profundo, a propósito do que registra Taciano:
Emitindo minha palavra, proponho-me organizar a matéria confusa que existe em
vós e, como o Verbo, que foi gerado no principio, gerou por sua vez como sua obra,
organizando a matéria, a criação que vemos, assim também eu, à imitação do
Verbo, havendo regenerado e adquirido a inteligência da verdade, trabalho para
pôr ordem na confusão da matéria cuja origem partilho. Porque a matéria não é
sem principio, como Deus, e não é, não sendo sem principio, o mesmo poder que
Deus; mas ela foi criada, ela é obra de outro e só pôde ser produzida pelo criador
do universo. (Taciano, citado por Gilson, 2002, p. 13)
A partir desse raciocínio, Taciano constrói uma representação hierárquica da
criação, desde a matéria – base da criação em suas variações – até os anjos e o
homem – este podendo ser ressuscitado por Deus e por todas as demais
criaturas.
O maniqueísmo ficou conhecido como uma doutrina filosófica que afirmava
existirem dois princípios ordenadores de toda realidade, o bem e o mal. Para os
maniqueus, a vida humana seria o palco da eterna luta entre esses dois princípios.
Para eles, a matéria e o corpo, por serem corruptíveis, correspondem ao mal,
enquanto a alma, sendo terna, é boa. A origem teria ocorrido na Pérsia por volta do
século III. Usualmente, o termo maniqueísta tornou-se uma adjetivação para
explicações dualistas que colocam em oposição justamente o bem e o mal.
3.2
Santo Agostinho
Considerado um dos maiores teólogos do cristianismo, Aurélio Agostinho nasceu
no ano de 354, num período em que o cristianismo se expandia como religião
hegemônica do Império Romano. Sua cidade natal, Tagasta, ficava localizada ao
norte da África, na região da Namíbia. Era filho de Mônica, que viria a se tornar
santa da Igreja pelo seu testemunho fervoroso da fé cristã e por ter rezado durante
décadas pela conversão do filho. Seu pai, Patrício, de origem pagã, só teria se
convertido por insistência da esposa quando estava no fim de sua vida, em seu
leito de morte.
Em sua juventude, Agostinho experimentou uma vida de prazeres e excessos.
Costumava dirigir a Deus a seguinte prece: “Senhor, fazei-me casto, mas ainda
não”. É possível que estivesse entrando em crise espiritual, cujo desfecho o levaria
a uma conversão fervorosa ao catolicismo. Por trás de sua conversão, há uma
forte influência de sua mãe e de seu amigo de longa data, Santo Ambrósio, com
quem manteve um profundo diálogo fraterno e espiritual (Gilson, 2002).
A conversão de Agostinho foi acompanhada pelo ímpeto de retorno ao espírito
evangélico. Após um retiro de meses, ele vendeu seus bens, deu o dinheiro aos
pobres e fundou um mosteiro, dedicando-se a uma vida de ascese e oração. Em
391, foi ordenado sacerdote, tornando-se bispo de Hipona poucos anos depois.
Agostinho morreu em 430, aos seus 65 anos de idade.
Figura 3.3 – Santo Agostinho André
Müller
Santo Agostinho (354-430), bispo de Hipona, doutor da Igreja, teve sua doutrina da
predestinação, segundo a qual Deus escolhe seus eleitos, sendo rejeitada pela
Igreja. No entanto, sua doutrina sobre o mal e o livre-arbítrio humano se tornou a
base da teologia dogmática católica.
De toda maneira, interessa para nós que, em sua trajetória, Agostinho aprofundou
seus estudos em Cartago e, nesse período, aderiu ao maniqueísmo, seita
religiosa que acreditava que o universo é governado por dois princípios
antagônicos, o bem e o mal.
Durante seu curto tempo como professor, por volta dos 30 anos de idade,
Agostinho, já amadurecido intelectualmente, abandonou a crença dos
maniqueus. Em uma nova fase intelectual e espiritual, ele abraçou a filosofia de
Platão e dela foi tributário até o fim de sua vida, deixando uma marca que esteve
presente nos seus escritos mais conhecidos. Entre suas obras de maior teor
filosófico figuram Contra os acadêmicos, Da vida beata, Sobre o mestre, Sobre a
música e ainda Sobre os costumes e Do livre-arbítrio. Nesta última, argumentou
contra o maniqueísmo, buscando refutar suas teses. Ainda sobre filosofia,
escreveu Sobre as duas almas e Da natureza do bem (Reale; Antiseri, 2003).
Os diálogos que Agostinho conseguiu estabelecer entre a filosofia de Platão e a
doutrina cristã estão reunidos principalmente nas obras Da verdadeira religião,
Confissões, A Cidade de Deus e Sobre a Trindade e a mentira. Analisaremos a
seguir alguns dos pensamentos de Agostinho.
3.2.1 A teoria do conhecimento
Assim como Platão, que buscou na filosofia a solução para o problema da vida, a
filosofia de Agostinho possui um forte acento teleológico, de cunho teísta e
espiritual, algo que falta no platonismo. Para Agostinho, o cristianismo, como
religião e filosofia de vida, consegue dar uma resposta integral ao problema da
vida, pois o conhecimento de Deus, da alma e do mundo espiritual oferece um
caminho seguro para o homem. Para ele, a salvação que vem pela palavra de
Cristo e pela prática de seus ensinamentos supera a iluminação da alma em
Platão. Desse modo, a humanidade ganha status de transcendência definitiva no
modo como Agostinho interpreta o sentido do pecado e da ressurreição da carne
inaugurada por Cristo (Agostinho, 2000).
No entanto, podemos afirmar que, como bispo de Hipona, Agostinho rompeu com
a postura cética de perpétua suspeição diante do mundo, numa clara
concordância com Platão sobre a possibilidade e o progresso do conhecimento
das realidades mais profundas: o uno, o belo, o bem, as ideias e as almas.
Contudo, ele o faz agora num sentido cristianizado, identificando nessas
realidades, de alguma forma, a figura da Santíssima Trindade e das virtudes
cristãs. Deus é o uno eterno que congrega em si e a partir de si todas as coisas,
todas as formas e essências, a unidade, a beleza e a bondade. O homem, como
possui em si a centelha divina, pode, com o auxílio da graça de Deus, conhecer
esses mistérios.
O pensamento agostiniano sobre as faculdades e o conhecimento humano está
profundamente relacionado ao seu conceito de graça, traduzido alegoricamente
pela relação entre a luz natural e a luz divina. Assim como a luz natural é
necessária para aguçar o sentido da visão (quando ilumina o olho humano), a luz
que vem da graça divina ilumina o entendimento dos homens. Dessa maneira,
eles podem compreender a vontade de Deus, inscrita sutilmente na sua
obra, especialmente na mente e no coração daqueles que se abrem aos seus
mistérios. É uma linha de raciocínio que conserva muito do dualismo platônico.
A doutrina da graça beneficia o homem tanto no aspecto intelectual, quando
Deus lhe permite conhecer a sua vontade, quanto no aspecto espiritual, quando
Deus resgata o homem do pecado. A graça suprema foi dada aos homens por
meio de Jesus Cristo, oferecido em sacrifício por toda a humanidade. Somente
pela graça e pela aceitação de Cristo pode o homem superar sua condição
debilitada pelo pecado e chegar à salvação.
Apesar de moderado, Agostinho reforçou o argumento de que a inteligência
humana é concebida como uma faculdade da alma, centelha do criador a
impulsionar o homem ao conhecimento das coisas divinas (Agostinho, 1995). O
inatismo platônico, segundo o qual o conhecimento que a alma adquire em sua
existência material é na verdade um processo de relembrar o conhecimento que
habita nela desde a eternidade, é reelaborado por Agostinho numa concepção
teísta-cristã. Ou seja, todo conhecimento acerca de Deus e das coisas divinas só
pode ser alcançado pela iluminação do intelecto humano, obtida com o auxílio de
Deus.
3.2.2 A metafísica
O conhecimento das realidades inacessíveis à experiência empírica e dos objetos
intangíveis próprios da metafísica está ancorado na concepção gnosiológica de
Agostinho. Entre esses objetos, a natureza de Deus é definida não só por seus
atributos mais fundamentais, de onisciência, onipotência e onipresença, mas por
sua personificação, ou seja, Ele é entendido como uma pessoa divina, dotada de
consciência e vontade, bem diferente do uno platônico eternamente impassível.
O Deus cristão sobre o qual a metafísica agostiniana se debruça representa em si
a unidade, a beleza e a bondade. Sua natureza se expressa como a de um ser
racional, eterno, imutável, de composição simples, de espírito puro e, ainda
assim, um ser pessoal, de amor, que escolhe relacionar-se com sua criação.
Trata-se de um Deus que é Pai, que se importa com seus filhos e os ouve. Tal
convicção é expressa poeticamente por Agostinho:
Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis
dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas
formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me
longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamastes-
me, com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes e
logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o, suspirando por
Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no
desejo da vossa paz. (Agostinho, 2000, p. 285)
Agostinho elabora ainda uma cosmologia cristã partindo da perspectiva dualista
de viés platônico, na qual a realidade material do mundo é pensada como
condição só possível em sua dimensão temporal. O próprio tempo não existia
antes da criação e, como tudo o que existe no céu e na terra, também foi criado
por Deus. Nesse ponto, podemos enxergar uma aproximação de Agostinho com
Santo Tomás de Aquino, em relação a pensar Deus como a causa primeira, fonte
originária de todas as coisas.
3.2.3 Sobre a alma e o bem moral
A alma pode ser entendida como substância simples criada por Deus, do qual
possui um conhecimento intuitivo, uma inclinação para o absoluto. Isso é
traduzido por Agostinho na seguinte máxima: “fizeste-nos para Vós, Senhor, e
nosso coração permanecerá inquieto enquanto em Vós não repousar” (Agostinho,
2000, p. 145).
A psicologia agostiniana sobre a alma assume a forma de um tratado de
introspecção no seu livro Confissões. Ao longo se suas páginas, o bispo de Hipona
mergulha fundo em sua trajetória espiritual, interrogando-se acerca da condição
humana, da relação entre corpo e alma e da busca por Deus.
Retomando o dualismo platônico, Agostinho coloca em oposição corpo e alma.
Nesse sentido, o corpo, como parte da matéria, obra da criação divina, é bom por
natureza. No entanto, a condição de união acidental entre corpo e alma predispõe
esta a buscar as coisas superiores, enquanto aquele tem suas próprias
demandas, desejos, necessidades, apetites, que o lançam em direção ao mundo
físico e material. Trata-se de uma tendência que Agostinho localiza na queda do
casal bíblico original. Se em Platão essa condição de antagonismo e seu
correspondente sofrimento são superados pela meditação filosófica, no equilíbrio
entre intelecto, vontade e instintos, em Agostinho a superação dessa condição só
pode vir pela vida espiritual ascética e pela salvação que Deus concede aos seus
eleitos.
Seguindo essa linha de raciocínio, o sentido da ação moral é a conduta prática que
direciona o cristão a vivenciar sua fé e dar testemunho mediante seu
comportamento e suas atitudes perante as demandas da sociedade. A alma deve
dominar o corpo e submetê-lo a uma vida de rigor, ascese e purificação. A vontade
do cristão e sua fortaleza de ânimo são o que o diferenciam daqueles que estão
distantes de Deus e de sua palavra revelada em Cristo. Ou seja, a ética
agostiniana é de caráter teônomo e repousa em Deus como fonte de todo o bem.
Nesse sentido, o homem que pratica o bem vivencia o amor de Deus tanto no
sentido individual, pois se aproxima de sua salvação, quanto no sentido social e
comunitário, dando testemunho de sua fé. Entretanto, como ser dotado de
vontade e de liberdade, o homem também pode se desviar do amor de Deus, o
que enseja o mal no mundo. O mal, portanto, é fruto do uso equivocado do livre-
arbítrio e tem sua origem na ação humana, e não em Deus. Agostinho admite o
mal, mas não como uma entidade ou princípio metafísico com existência própria,
e sim como uma ausência do bem, oriundo das más ações dos homens
(Agostinho, 1995).
Dessa forma, para Agostinho, Deus, em sua condição divina, não pode ser
atingido pelas ações humanas. É ignorância e pretensão da criatura achar que
pode ofender o criador. Todo pecado é, na verdade, um ataque contra o próprio
indivíduo. O efeito negativo se dirige àquele que peca, pois degrada sua própria
natureza e filiação divina. O pecador coloca-se num caminho obscuro que o
afasta da verdadeira sabedoria e da felicidade que só podem vir de Deus. Desde
Adão, a vontade humana está viciada, por assim dizer, de modo que, sem o
concurso da graça, é impossível ao homem elevar-se e obter a salvação. Nesse
sentido, Agostinho, com sua teoria da graça, rompe definitivamente com a ética
pagã, para a qual o homem, por força de sua vontade e intelecto, pode se salvar
(Gilson, 2002).
Por fim, o mal moral que se abatera sobre os herdeiros de Adão projeta-se em toda
a sociedade. O pecado original se traduz numa natureza humana corrupta e
propensa ao mal, que se evidencia nas leis dos homens que usurpam os dons da
criação. Assim, Agostinho tende a um jusnaturalismo de viés bíblico e religioso.
Sabemos, contudo, que classificar seus ensinamentos dessa forma pode soar
contraditório, pois, seguindo a esteira do apóstolo Paulo, a doutrina social de
Agostinho prega a conformação com a ordem em seu tempo, vendo na obediência
e na caridade alternativas para superar a corrupção e o pecado na vida social.
3.2.4 A questão do mal
Quando nos aprofundamos no estudo sobre a discussão de Agostinho em torno
do mal, levanta-se uma questão de fundo: se Deus é o sumo bem e tudo o que ele
cria é bom, como pode existir o mal? A resposta foi dada por Agostinho,
inicialmente, na obra Confissões. Após ter investigado o que seria o mal, o autor
não encontrou substância nele e o desconsidera como uma consequência da
vontade humana quando desviada. Desse modo, para Agostinho (1995, p. 44),
Quem duvidará que isso a que chamamos de mal não é outra coisa que a
corrupção? Certamente os distintos males podem designar-se com distintos
termos, mas o mal de todas as coisas que se podem privar de algo é a corrupção
[…]. Contudo, é fácil ver que a corrupção não é nada, senão enquanto destrói o
estado natural das coisas, e que, portanto, ela não é natureza, senão algo contra a
natureza. Logo, não se encontra nas coisas outro mal que a corrupção e a
corrupção, não é uma natureza, ou nenhuma natureza é verdadeiramente o mal.
De onde vem a corrupção que leva ao mal? Da condição humana decadente e
herdeira do pecado original. O batismo, segundo a doutrina agostiniana, embora
possa restabelecer a relação com Deus, não é, por si só, garantia de que a pessoa
não venha a pecar ao longo de sua vida. É por meio da Igreja e do seu magistério,
mas, sobretudo, pelos seus sacramentos e pela vida religiosa que ela
proporciona, que o homem pode contar com uma assistência constante para
livrá-lo do pecado, do mal, e ajudá-lo a se manter no caminho do bem e da justiça
(Agostinho, 1995).
Num paralelo com a dialética platônica, Agostinho segue argumentando que o
mal, por não ter uma substância, é o “não ser”; o mal é, por assim dizer, uma
situação de total negatividade, a ausência de afirmação do ser, de sua
participação no bem que vem de Deus. “Nenhuma natureza, absolutamente
falando, é um mal. Esse nome não se dá senão à privação de bem. Mas, dos bens
terrenos aos celestiais e dos visíveis aos invisíveis, existem alguns bens
superiores a outros” (Agostinho, 1995, p. 71).
O mal se precipitou como uma negação do ser aberto ao amor de Deus. Assim, o
mal se apresenta como uma situação em que a vontade do homem se corrompe.
Logo, é a vontade desregrada a causa de todos os males. Se essa vontade
estivesse em harmonia com a natureza, certamente esta a salvaguardaria e não
lhe seria nociva. Por conseguinte, não seria desregrada. De onde se segue que a
raiz de todos os males não está na natureza. E isso basta, por enquanto, para
refutarmos todos aqueles que pretendem responsabilizar a natureza dos seres
pelos pecados. (Agostinho, 1995, p. 32)
A argumentação de Agostinho tem uma clara conotação ética, evidenciando, com
isso, o instituto da responsabilidade humana diante de suas más ações. É o
homem e sua vontade, quando materializada num fluxo de ação, o principal
agente responsável pelas coisas ruins que acontecem na sociedade. Mesmo
diante de uma catástrofe natural, o homem permanece com a liberdade de agir
bem, na abertura solidária ao próximo, ou agir mal, na conduta egoísta de quem
busca somente o próprio interesse e segurança.
Figura 3.4 – O pecado original e a expulsão do jardim do Éden, de Michelangelo
Simoni, M. di L. B. O pecado original e a expulsão do jardim do Éden. [ca. 1509- -
1510]. Afresco: color.; 280 × 570 cm. Capela Sistina, Vaticano.
Ao partirmos do relato bíblico sobre a criação do mundo e do homem, fica clara a
indicação de que no início havia unidade entre Deus e o homem, uma unidade que
foi rompida por um ato de afirmação do arbítrio humano (ver Figura 3.4). Uma vez
perdida essa unidade, ela só pode ser restaurada por Deus. A encarnação de
Cristo, sua morte e ressurreição representam, na doutrina de Agostinho, a oferta
de Deus à humanidade – um caminho oferecido para todos aqueles que
escolherem retornar à unidade com ele.
A presença do mal no mundo se efetiva materialmente. Não só o homem pode
condenar-se a uma condição de perpétua separação de Deus com o uso
desvirtuado de seu livre-arbítrio, como pode afetar toda a criação com sua
vontade pervertida. Dito de outro modo, o homem, sendo dotado de liberdade,
pode agir contrariamente à ordem natural presente na criação. Ao desrespeitar as
leis naturais que regem o mundo, e seus ciclos, o ser humano coloca em risco a
sustentação da vida como um todo. Do exposto podemos depreender uma
dimensão ecológica no pensamento agostiniano, o que nos faz concluir que uma
vontade corrupta tem potencial destrutivo nos âmbitos pessoal, social e
ecológico.
3.2.5 O livre-arbítrio
A investigação sobre a origem do mal colocou diante de Santo Agostinho duas
responsabilidades. A primeira é a de apaziguar seu espírito, pois sua busca por
aclarar essa questão constitui uma fonte de inquietude existencial para ele, a qual
ele quer resolver. A outra responsabilidade diz respeito ao seu papel como
teólogo, bispo e líder da Igreja. Estando cônscio dessa responsabilidade, sua
busca também precisa ter o caráter positivo e afirmativo de edificar a fé para os
cristãos, e não o contrário, gerando dúvida e constrangimento na cristandade.
Assim, ele volta seu olhar ao homem – a criatura preferida de Deus – e mergulha
em sua natureza mais profunda, buscando as faculdades que o constituem como
humano. Santo Agostinho encontra, então, a inteligência e a razão e percebe que
nelas poderia estar uma parte da resposta sobre a presença do mal no mundo.
Na continuidade de seu diálogo, na obra O livre-arbítrio, Santo Agostinho (1995)
retoma a fórmula socrática: não basta apenas viver, é necessário refletir sobre a
vida. A autoconsciência se torna, assim, o fundamento da vida racional do homem
e lhe abre um caminho talvez não acessível aos demais seres não racionais, o
poder de escolher. A escolha, como manifestação de uma vontade consciente, é o
elemento mais fundamental e definidor do que significa ser humano.
Para Santo Agostinho, a liberdade possibilitou a queda do homem, mas a graça de
Deus pode salvá-lo.
A reflexão de Santo Agostinho só pode ser compreendida em um sentido
teleológico do homem em relação a Deus. Sendo o criador o sumo bem, o autor
da vida e a fonte de todo amor e beleza, o homem deveria orientar sua razão para
alcançar a verdade e entrar em comunhão com Deus. No entanto, dotado de seu
livre-arbítrio, o homem pode não escolher a Deus. Conforme argumenta Santo
Agostinho, é preciso reconhecer que a alma fica impressionada
pela vista de objetos, sejam superiores, sejam inferiores, de tal modo que a
vontade racional pode escolher entre os dois lados o que prefere. E será conforme
o mérito dessa escolha que se seguirá para ela o infortúnio ou a felicidade. Assim,
no paraíso terrestre, havia como objeto percebido: vindo do lado superior, o
preceito divino, e vindo do lado inferior, a sugestão da serpente. Pois nem o que o
Senhor ia prescrever, nem o que a serpente ia sugerir foi deixado ao poder do
homem. Contudo, ele estava certamente livre de resistir à vista das seduções
inferiores, pois o homem tendo sido criado na sanidade da sabedoria achava-se
isento de todos os liames que dificultavam a sua escolha. (Agostinho, 1995, p.
237-238)
O modo como Santo Agostinho coloca a questão do livre-arbítrio indica que o
verdadeiro mérito do homem está em escolher a Deus num ato de vontade e
liberdade, mesmo conhecendo as diversas opções e caminhos e sendo tentado
por eles. Fazer essa escolha significa agir segundo a ordem natural das coisas,
utilizar os bens da Terra segundo o bem maior, não de forma egoística, pois isso
ensejaria uma situação de abuso e pecado. É nessa condição de poder escolher,
de renunciar ao uso abusivo das coisas do mundo, de fortalecer seu espírito para
uma vida virtuosa que reside o mérito da salvação.
Por fim, reflete Santo Agostinho que o livre-arbítrio coloca o homem numa
condição de ambivalência. Considerando-se a história da humanidade, e mesmo
a trajetória individual de cada um, a liberdade tanto pode ser usada para as boas
ações quanto para as más. Com efeito, a condição humana, em virtude do pecado
original, está mais propensa ao desvio. Por isso, Santo Agostinho vê no
cristianismo a religião perfeita, aquela que conseguiu fazer a síntese entre a fé e a
razão, indicando, contudo, que aquela é superior a esta, pois permite a todos os
homens, dos mais doutos aos mais simples, chegar a Deus.
Nos ensinamentos de Agostinho, existe a certeza de que, por ter sido fundada pelo
próprio Cristo, a Igreja, em sua missão de conduzir a humanidade à salvação, foi
capaz de formular uma doutrina segura para guiar as almas em sua peregrinação
pelo mundo, no intuito de conduzi-las pelo reto caminho até Deus.
3.3
Anicius Boethius (Boécio)
Da rica tradição filosófica latina apresentamos um importante pensador romano,
um autor que se alinha ao platonismo cristão e demonstra algumas similaridades
com a filosofia e a teologia agostiniana. Anicius Boethius, ou Boécio, viveu entre
480 e 525 e foi criado numa família aristocrata. Cidadão romano, converteu-se ao
cristianismo numa época em que o Império Romano estava em decadência. Sua
biografia aponta que se tratava de um homem de espírito refinado e com
excelente educação. Versado em história e literatura, conhecia profundamente a
filosofia grega. Boa parte de sua vida intelectual foi dedicada à tradução e à
produção de comentários em relação a diversos textos da filosofia de Aristóteles e
de Platão.
Sua conduta equilibrada e sua fama de intelectual profundo o levaram a se tornar
conselheiro do Rei Teodorico, de origem ostrogoda. Na corte do rei, destacou-se
por sua habilidade diplomática.
Apesar do reconhecimento e do prestígio alcançados na corte, Boécio acabou
sendo denunciado como traidor por ter simpatizado com o líder do Império
Bizantino, que fazia oposição a Teodorico, o qual defendia o arianismo. Na prisão,
enquanto aguardava sua execução, Boécio mergulhou seu espírito e seu intelecto
num profundo diálogo com a filosofia, a quem personificou como sua senhora,
médica e enfermeira, que lhe viria em socorro, trazendo consolo e paz.
“As nuvens da minha dor dissolveram-se e bebi na luz. Com os meus
pensamentos recobrados, virei-me para examinar a face da minha médica. Girei
os olhos e os fixei nela, e vi que era a minha enfermeira, na casa de quem eu fora
cuidado desde a minha juventude – a Filosofia” (Boécio, citado por Marino , 2011,
p. 3).
Figura 3.5 – Boécio André Müller
Boécio (480-525) afirmava que Deus é para além do tempo e do espaço. A
percepção divina é um eterno presente, abarcando a realidade material humana
em seu fluxo de possibilidades. Deus antevê os pensamentos humanos, mas não
interfere neles, tornando a escolha uma ação soberana do homem. Boécio não via
contradição na relação entre a suprema liberdade de Deus e o livre-arbítrio do
homem.
Embora com fortes consequências religiosas e teológicas, a filosofia de Boécio
desenvolveu uma proposta existencial e epistemológica, buscando investigar a
capacidade do conhecimento humano e argumentando que a percepção e a
compreensão humana dependem da capacidade de cada um.
O problema enfrentado por Boécio é mostrar como é possível o livre-arbítrio
diante da vontade de Deus, que tudo conhece, penetra e antecipa. Anteriormente,
esse problema foi discutido por Aristóteles sem, contudo, oferecer uma resposta
satisfatória. Na concepção aristotélica de Deus, na sua conceituação como motor
imóvel, como ato puro, a questão da escolha humana é colocada em termos
lógicos. Assim, escolher A ou B está, para Aristóteles, no horizonte das
possibilidades de ação dos indivíduos.
Mas a formulação desse problema por Boécio recebeu um tratamento diferente e
mais complexo. Ele acreditava que Deus conhece a realidade intimamente, para
além do tempo e do espaço. Presente, passado e futuro são apreendidos de modo
imediato pela inteligência divina.
Surgiu, então, a questão: como seria possível ao homem ser livre? A solução
proposta por Boécio foi inovadora e baseou-se nos diferentes níveis de
conhecimento possíveis e nas suas diferenças e gradações, conforme a
capacidade humana. O homem, como ser finito, está inscrito na temporalidade,
sua ação e seu pensamento só são possíveis mediante o tempo como medida e
unidade fundamental. Sem o tempo, a existência humana, em seu curso
temporal, não seria possível. A vida humana é um evento temporal. De certa
forma, Boécio parece ter antecipado, pelo menos em parte, a discussão de Kant
em relação ao tempo como categoria a priori e condição para o pensamento e a
compreensão humanos.
A escolha humana é, portanto, uma ação que se efetiva no fluxo espaço-tempo.
Quando alguém escolhe A e não B, age por meio desse fluxo, que caracteriza a
finitude da existência humana. Tal condição não possibilita compreender uma
escolha não efetivada, não realizada. Uma vez tendo escolhido A, a opção B, por
não ter se efetivado, se materializado, se tornado memória, não poderá ser
compreendida da mesma forma que a escolha A. O futuro alternativo surge
somente como possibilidade incerta. A liberdade humana é sempre um evento
temporal de múltiplas possibilidades, levando-se em conta a posição
circunstancial do sujeito que age e escolhe.
Em condição bem diferente estaria Deus. Por ser atemporal, a compreensão
divina abarca o futuro e todas as possibilidades de escolha de um indivíduo.
Boécio tenta ilustrar a diferença entre o modo como Deus e o homem percebem a
realidade comparando uma pessoa e um animal. Um gato que esteja sentindo o
Sol sobre o seu corpo terá uma percepção limitada à sua condição física e
instintiva em face do calor e da luz do Sol. Sua percepção será limitada, então,
pela sua própria condição e pela natureza. Uma pessoa terá uma experiência bem
diferente, não somente sensorial, mas intelectiva sobre tudo o que pode acumular
de informação e conhecimento sobre o Sol. A experiência de sentir o Sol poderá
evocar sensações aprazíveis, memórias; poderá ainda ter um sentido poético e
mesmo erótico. Todas as dimensões de possibilidades da percepção humana só
são possíveis em função da complexidade do homem. Assim seria,
comparativamente, com Deus em relação às escolhas humanas.
Dito de outro modo, Deus, como espírito absoluto, eterno, vive no eterno presente,
seu conhecimento para além do tempo lhe permite sempre ver tudo como no
presente, pois, no plano divino, não existe tempo, somente a eternidade. Em
relação a conciliar a onisciência de Deus e a liberdade humana, Boécio explica
que Deus antevê nossos pensamentos como possibilidades. Nossa autonomia
está em poder escolher, e a de Deus, em permitir nossas escolhas.
Entre o livre-arbítrio, que proclama a liberdade humana como um fato, uma
realidade, e o determinismo, que nega essa liberdade – uma vez que o destino do
homem estaria determinado pela liberdade de Deus –, Boécio conciliou as duas
doutrinas com o argumento de que Deus, que tem ciência do eterno presente,
conhece todas as possibilidades e consequências da ação humana, sabe que
nem todas devem acontecer e, por isso, não interfere nas escolhas do homem.
Entre as obras mais famosas de Boécio estão Comentários às categorias de
Aristóteles, escrita em 510, Comentários sobre a interpretação de Aristóteles,
escrita em 523, e a mais conhecida, A consolação da filosofia, escrita em 523.
Encerramos este capítulo podendo afirmar que a característica predominante no
pensamento patrístico, principalmente em sua vertente agostiniana, é o
misticismo. Isso significa dizer que existe uma aceitação dos mistérios que
envolvem a criação do mundo e do homem.
A função da filosofia é auxiliar a fé, dar-lhe maior consistência, uma
fundamentação racional. Primeiramente, deve-se aceitar a fé, crer na doutrina,
aderir ao magistério da Igreja. Parece ser um pressuposto fundamental no
pensamento patrístico que a aceitação do mistério que envolve a relação de Deus
com sua criação é o que possibilita que a graça divina venha em socorro do
homem. Tendo ciência de que a inteligência humana jamais poderá abarcar o
sentido mais profundo da criação, o espírito se qualifica a perceber as sutilezas da
comunicação e dos sinais divinos, chegando à conclusão de que orientar a vida
neste mundo é, de alguma forma, viver o cotidiano da fé como um ato de
confiança no amor de Deus.
Síntese
Vimos, ao longo deste capítulo, uma das principais escolas do pensamento
filosófico cristão, a patrística. Observamos que ela foi uma produção filosófico-
teológica dos primeiros padres da Igreja e que tinha como principal objetivo
defender a fé cristã do paganismo e das heresias. Entre os diversos autores que
fizeram parte desse período, apresentamos os seguintes: Justino Mártir e Taciano,
da primeira fase, e Santo Agostinho, que marcou o ponto alto da patrística.
Abordamos o pensamento de Justino, que buscou conciliar a mensagem do
evangelho e as ideias de Platão, identificando o logos como Deus e a alma como a
essência que participa da vida, mas que não tem a vida em si mesma, pois
depende de Deus. Para Taciano, a fé em Deus assumiu proporções radicais. Ele
atacou a filosofia grega, argumentando que as ideias de Platão e Aristóteles já
estavam presentes na Bíblia e que foram mal elaboradas e interpretadas por eles.
Taciano argumentou, ainda, que as contradições, aporias e paradoxos presentes
nas diferentes doutrinas dos filósofos seriam provas das confusões e dos erros
cometidos por eles.
Com Santo Agostinho, ressurgiu com força o platonismo. Sua filosofia e sua
teologia representam um esforço de adaptar as ideias de Platão à doutrina
católica. Um dos principais conceitos dessa empreitada foi o livre-arbítrio, uma
tentativa de conciliar a liberdade e as responsabilidades humanas diante da
crença de que Deus existe e participa do mundo.
A discussão sobre o livre-arbítrio remete à explicação da presença do mal no
mundo. Tanto o mal físico quanto o mal moral são explicados como
consequências das ações humanas, quando desviadas da vontade de Deus.
Embora o mal não possua existência e substância própria, ele se manifesta como
a ausência do bem, algo visível na natureza humana enfraquecida pelo pecado e
pelos seus efeitos trágicos na existência individual e na vida em sociedade.
Em um paralelo com Platão, que aponta a vida contemplativa e a meditação
filosófica como formas de a alma atingir a felicidade, Santo Agostinho explica que
somente pela graça divina e pela vida espiritual é possível ao homem libertar-se
do sofrimento e alcançar a salvação.
Outro autor que representou uma importante contribuição intelectual nesse
período foi Boécio. Embora com fortes inclinações religiosas, o pensamento desse
autor se deteve mais nos aspectos existenciais e epistemológicos que envolvem o
pensamento e o entendimento humanos. O problema do equacionamento entre a
liberdade humana e a existência de Deus teve um tratamento original em sua
filosofia. Para ele, Deus conhece a realidade para além do espaço e do tempo e
possui um conhecimento sempre presente de todas as possibilidades da escolha
humana. O livre-arbítrio humano está, por sua vez, preso na temporalidade.
Indicações culturais
Livros
Gilson, E. A filosofia na Idade Média. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo:
M. Fontes, 2002.
Como estudioso da história da filosofia de longa data, nesta obra, Gilson traz sua
análise sobre a razão filosófica no período medieval. O modo como o autor
apresenta os textos e desenvolve sua argumentação mostra que o período
medieval foi de grande produção e profundidade intelectual. Sua descrição é rica
e detalhada, trazendo informações sobre a vida e a obra dos filósofos, pouco
exploradas em outras obras.
Huizinga, J. O declínio da Idade Média: um estudo sobre as formas de vida,
pensamento e arte em França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Lisboa:
Ulisseia, [S.d.].
O autor dessa obra ficou reconhecido mundialmente como um grande historiador
da Idade Média. O livro traz inovações temáticas e metodológicas e foi o precursor
da abordagem que trata do cotidiano da vida das pessoas, que depois ficou
consagrado por historiadores da vida privada. Em seus estudos, o autor
argumenta que ideias do Renascimento, como a valorização do intelecto e do
pensamento intelectual, já estavam presentes no período medieval, havendo uma
transição gradual deste período para aquele.
Filmes
Häxan – a feitiçaria através dos tempos. Direção: Benjamin Christensen. EUA:
Magnus Opus, 1922. 91 min.
Nesse filme, são documentadas as perseguições promovidas pela Inquisição
contra mulheres que, pelo seu comportamento destoante da norma social, eram
tachadas de bruxas. Vê-se uma Europa mergulhada no obscurantismo e na
intolerância religiosa, com a ilustração de diversas situações de violência e
tortura. No filme, é possível perceber que a crença da época em espíritos e
demônios é resultado da ignorância e da ingenuidade sobre a natureza e a psique
humana.
Santo Agostinho. Direção: Roberto Rossellini. Itália: Versátil Filmes, 1972. 121
min.
A abordagem de Rossellini evidencia o traço humano na vida e na trajetória de
Santo Agostinho até sua conversão. O filme traz uma análise dos contextos social
e político da sociedade romana na época das invasões bárbaras. A discussão
filosófica e as ideias de Agostinho são apresentadas sempre em relação ao seu
contexto histórico, como no caso de sua querela com os maniqueístas. Alguns
aspectos de sua personalidade são evidenciados, como sua grande eloquência e
capacidade de introspecção.
Atividades de autoavaliação
1. Em relação à filosofia patrística, assinale a alternativa correta:
a. Foi uma escola filosófica que teve o protagonismo dos primeiros padres da
Igreja na produção de uma filosofia que servisse como linha auxiliar da teologia
em defesa da fé.
b. Teve como seus grandes expoentes Ambrósio, Antíoco e Santo Tomás de
Aquino, exercendo grande influência em toda a cristandade.
c. A grande temática que envolveu a produção intelectual dessa época foi a
demonstração da existência de uma teologia natural e da ideia de que a razão é
suficiente para conhecer a Deus.
d. Sua conclusão afirma que a fé e a razão são faces da mesma moeda.
2. Em relação ao pensamento de Santo Agostinho, considere as assertivas a
seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:
o Santo Agostinho representa a crise e a derrocada do platonismo
dentro do cristianismo.
o Com seu conceito de livre-arbítrio, Agostinho conseguiu equacionar
liberdade humana e intervenção divina no mundo.
o A questão da presença do mal no mundo é colocada como
consequência do pecado original e da limitação humana de fazer
uso equilibrado da sua liberdade.
o Agostinho entrou em choque com a doutrina católica ao defender as
ideias de Platão sobre o uno, o belo e o bem. Sua teologia foi
rejeitada e duramente criticada.
Agora, assinale a alternativa que corresponde corretamente à sequência obtida:
e. V, V, F, V.
f. F, V, F, F.
g. V, F, F, F.
h. F, V, V, F.
3. Sobre a relação entre o livre-arbítrio humano e a existência de Deus, é
correto afirmar:
a. A ação humana é temporal e sofre os condicionamentos próprios da
mundaneidade, enquanto Deus, que vive no eterno presente, pode conhecer as
escolhas humanas e mesmo assim não interferir nelas.
b. Inevitavelmente, a liberdade humana é condicionada pela presença e
existência de Deus. Assim, a escolha do homem recebe atenuantes em sua
responsabilidade.
c. O homem é livre na medida em que se conforma com a vontade divina e
age sempre em obediência a Deus.
d. Para ser plenamente livre, o homem precisa renunciar a Deus.
4. Para Boécio, a filosofia é mais do que um conhecimento teórico e abstrato
do mundo. Assinale a alternativa que representa essa concepção:
a. A filosofia pode proporcionar aos homens o entendimento sobre si
mesmos e sobre o mundo e, assim, eles podem superar os sofrimentos e alcançar
a paz de espírito.
b. O conhecimento filosófico precisa ser sempre pragmático e útil, ou seja,
um saber capaz de auxiliar as pessoas em seu cotidiano. Sem essa conotação
empírica, o saber filosófico não tem utilidade.
c. A filosofia é como uma enfermeira que ministra remédios e mantém o
espírito e a consciência calmos e sedados.
d. O conhecimento filosófico é um exercício de pura abstração, de busca do
saber pelo saber, não havendo nenhuma finalidade prática no ato de filosofar.
5. Para Boécio, qual é a função da filosofia, indo além do aspecto teórico e
abstrato? Marque a alternativa correta:
a. A filosofia, além de teórica e abstrata, é também uma técnica, visto que
fornece regras lógicas para o pensamento.
b. Boécio vê na filosofia um bálsamo para a alma com efeitos terapêuticos
para a existência humana.
c. A filosofia é teórica e prática, pois permite aplicar conceitos e prever
acontecimentos.
d. Toda filosofia é uma filosofia de vida.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
No pensamento de Santo Agostinho, a discussão sobre o livre-arbítrio remete à
explicação da presença do mal no mundo. Tanto o mal físico quanto o mal moral
são explicados como consequências das ações humanas quando se desviam da
vontade de Deus. Embora o mal não possua existência e substancia próprias, ele
se manifesta como a ausência do bem, algo visível na natureza humana
enfraquecida pelo pecado e por seus efeitos trágicos na existência individual e na
vida em sociedade (Agostinho, 1995).
Tomando como referência os argumentos de Santo Agostinho sobre a questão do
mal, reflita sobre as seguintes questões:
1. Se o mal é a ausência do bem e denota a incompreensão por parte das
pessoas, que agem sem consciência dessas ações, como fica a
responsabilidade pelas consequências de suas ações?
2. Se, para Santo Agostinho, Deus é o sumo bem e sua misericórdia é infinita,
seria possível pensar num juízo final e na condenação eterna dos
pecadores?
3. Como você interpreta a frase “Devemos crer para compreender”?
4. O livro Confissões inaugura um novo gênero literário, uma técnica de
introspecção em primeira pessoa. Considere o trecho a seguir e dê sua
interpretação:
E tu estavas dentro de mim, mais profundo do que o que em mim existe de mais
íntimo, e mais elevado do que o que em mim existe de mais alto. (Agostinho,
2013, p. 22)
Atividades aplicadas: prática
1. Pesquise sobre o assunto filosofia clínica e faça algumas relações com o
que propõe Boécio a respeito do que a filosofia pode oferecer às pessoas.
2. Assista ao filme Santo Agostinho (comentado na seção “Indicações
culturais”) e elabore uma reflexão sobre a crise e a conversão espiritual
desse pensador.
“Na adversidade, desejo a felicidade; na felicidade, temo a adversidade. Entre
essas situações extremas, existe um ponto de equilíbrio em que a existência não
seja uma tentação?” (Agostinho, citado por Grateloup, 2004, p. 59).
Capítulo 4 - A escolástica
Por outra parte, tudo o que convém a alguma coisa, ou é causado pelos princípios
da sua natureza, como a capacidade de rir, no Homem, ou advém-lhe de algum
princípio extrínseco, como a luminosidade no ar, por influência do Sol.
Ora, não é possível que o próprio ser seja causado pela forma ou pela quididade
da coisa (quero dizer, como por uma causa eficiente), pois, desse modo, uma
coisa seria causa de si mesma, e uma coisa passaria a ser por si mesma, o que é
impossível. Por conseguinte, é necessário que tudo aquilo cujo ser se distingue da
sua natureza passe a ser a partir de outro. E como tudo o que é por outro remete
ao que é por si, como sua causa primeira, é necessário que haja uma realidade
que seja a causa do ser de todas as outras coisas, pelo facto de ela ser tão
somente ser. De outro modo ir-se-ia até ao infinito nas causas, visto que tudo o
que não é apenas ser tem uma causa do seu ser, como se disse. Portanto, é
evidente que a inteligência é forma e ser e que ela tem o ser a partir do primeiro
ente, que é apenas ser. E esta é a causa primeira que é Deus.
Santo Tomás de Aquino
Neste capítulo 4, abordaremos o segundo período do pensamento filosófico
cristão, denominado de escolástica. Essa escola representou o esforço de
tematizar a fé e a doutrina cristãs, principalmente com base em Aristóteles. Ao
longo deste capítulo, apresentaremos alguns autores, suas teses e argumentos.
Figura 4.1 – Sala de aula medieval
DeAgostini by Album/Album Art/Latinstock
Com o enfraquecimento do pensamento originário da patrística, que se articulava
em torno da filosofia de Platão, começou a surgir um novo conjunto de autores do
pensamento cristão, cuja principal influência foi Aristóteles. A escolástica, como
escola do pensamento cristão, demarca um período que vai do século IX até o fim
do século XVI. Esse período, de certa forma, representou o resultado de uma ação
estratégica de Carlos Magno, imperador coroado pelo Papa Leão III, de organizar
um sistema de ensino sob a tutela da Igreja. Essa foi uma forma de irradiar a
doutrina católica que, em última análise, promovia uma ideologia que legitimava e
perpetuava a visão de mundo cristã, na qual o imperador era o grande líder e
protetor (Le Go , 1983).
Contudo, podemos perceber que o progresso do conhecimento e o avanço da
cultura não podem ser contidos ou controlados por muito tempo. Os textos
clássicos das eras grega e latina, que durante muito tempo ficaram de
conhecimento restrito aos escribas e copistas dos mosteiros, foram aos poucos
chegando ao conhecimento do público. Foi isso que ajudou a gestar o que seria
uma das épocas mais interessantes e efervescentes da história ocidental:
o Renascimento.
O nome escolástica está associado à forma de ensino dessa doutrina, pois seu
estudo era feito nas escolas da época, e o ensino dos professores ficou conhecido
como escolástico. O currículo abarcava o estudo de gramática, retórica e lógica
dialética, além de matemática, aritmética, geometria, astronomia, música e artes
(ver Figura 4.1). A forma de ensino era baseada numa metodologia dialética com
apresentação de tesinas, isto é, os alunos apresentavam um conjunto de
afirmações e argumentos a propósito de um tema filosófico proposto pelo
professor. Esse era o estilo corrente de estudos e debates da época.
O Renascimento foi mais do que um período histórico entre os séculos XIV e XVII,
pois significou um movimento artístico, filosófico, científico e literário que
revolucionou a cultura europeia, lançando as bases da modernidade. Tendo como
ideia central o humanismo, o homem e as questões humanas tornam-se as
principais referências da cultura e da sociedade.
Podemos afirmar que o período escolástico representa um triunfo do
aristotelismo na teologia cristã. O contexto de seu desenvolvimento informa uma
mudança no paradigma epistêmico de pensar a fé e a razão, uma tendência que
passou a se orientar pela valorização da lógica e da experiência como fontes do
conhecimento, bem diferente da abordagem inatista de Santo Agostinho.
Costuma-se dividir o pensamento escolástico em três períodos. O primeiro deles
é o pré-tomista, tendo nomes como os de São Pedro Damião e São Bernardo de
Claraval, que ainda conservam um forte apelo à tradição agostiniana, de
valorização do componente místico na relação do homem com Deus.
O segundo apresenta o domínio de Santo Tomás de Aquino e o impacto de seu
pensamento na reformulação da doutrina cristã, destacando-se ainda nesse
período a figura marcante de Santo Anselmo da Cantuária.
Em sua fase final, a escolástica teve sua agenda incrementada com a discussão
de Scoto Erígena sobre a questão dos universais. Nesse período, existiu, ainda,
uma grande contribuição de três figuras importantes: Roger Bacon, Duns Scoto e
Guilherme de Ockham.
De certa forma, os autores citados, seja pelo viés crítico, seja pelo tom
investigativo de suas reflexões, indicaram a formação do que viria a ser o
pensamento filosófico moderno. Podemos ver, principalmente em Guilherme de
Ockham, os três componentes que estiveram na gênese da modernidade: a visão
crítica, uma boa dose de ceticismo e a valorização da autonomia e da
independência intelectual.
Para nosso estudo, daremos ênfase às figuras de Scoto Erígena, Santo Anselmo,
Santo Tomás de Aquino e Guilherme de Ockham, aprofundando seus
pensamentos e explicando a importância de cada um para o desenvolvimento da
escolástica.
4.1
João Scoto Erígena
A formulação do pensamento de Erígena teve forte influência de Platão, mas não
diretamente. Houve o que foi chamado de neoplatonismo cristão, principalmente
com a retomada do pensamento contido nas obras de Orígines e dos padres
gregos (Spinelli, 2002). Desse modo, um dos temas centrais da obra de Erígena é a
retomada do problema levantado anteriormente por Platão, o da participação
entre a realidade divina, do mundo imaterial, e a realidade física e humana – o
qual, em toda a tradição do pensamento cristão, ficou sem uma resposta
satisfatória.
Figura 4.2 – João Scoto Erígena André
Müller
Nascido na Irlanda, de onde vem a origem de seu nome, Eurin, no ano de 810,
Scoto Erígena se destacou como intelectual pelo seu brilhantismo e pelo
raciocínio lógico impecável. Esses atributos lhe valeram um convite para se tornar
conselheiro do Rei Carlos, o Calvo, na França.
A base do argumento de Erígena para pensar o problema em questão foi o
pressuposto de que as criaturas de alguma maneira participam da natureza divina,
recebendo desta o ser. Deus é, portanto, a origem e a fonte de manutenção de
toda a criação (Gilson, 2002). Assim, é o pensamento de Deus como suprema
realidade que mantém a existência dos seres como realidade objetiva possível.
Deus é o ser necessário das criaturas, que são aparições contingentes. Desse
modo, considerando-se essa relação uma verdade, a função da razão é buscar a
iluminação mediante o conhecimento adquirido sobre os mistérios de Deus.
De certa forma, Erígena criou para a teologia cristã uma armadilha. O
racionalismo lógico que ele desenvolveu na investigação filosófica e teológica
sobre Deus e sua criação leva a certo desencanto pelo sentido do mistério e da fé,
pois esta não é necessariamente conhecimento, mas aceitação involuntária
daquele. Ou seja, cremos porque não conhecemos; se, de fato, pudéssemos
conhecer, então saberíamos e não precisaríamos crer.
O raciocínio que perpassa a análise de Erígena segue num duplo caminho
dedutivo. Primeiramente, toma-se Deus como unidade originária que cria, a partir
de si, de seu pensamento e de sua palavra, todas as coisas. Parte de Deus a
existência de tudo o que foi criado, incluindo a comunidade celestial, os anjos, o
mundo, o homem e todas as demais criaturas. Em seguida, tenta-se estabelecer o
caminho inverso, das criaturas para o homem e deste para o mundo até Deus.
Assim, vai-se primeiro da unidade para a diversidade e, depois, inversamente, da
diversidade para a unidade.
Esse movimento foi descrito na estrutura quaternária da natureza, por meio da
qual temos:
Quatro diferenças permitem a divisão da natureza em quatro espécies, a primeira
é a que cria e não é criada, a segunda é a que é criada e cria, a terceira a que é
criada e não cria, a quarta aquela que não é criada e nem cria. Mas as quatro
formam dois pares de opostos. Pois a terceira é oposta à primeira, a quarta à
segunda; mas a quarta está entre os impossíveis, cujo ser é não poder ser […] pois
a primeira cria e não é criada, por isso tem seu contrário naquela que é criada e
que não cria; a segunda à quarta, pois a segunda é criada e cria e contraria em
tudo à quarta que não é criada nem cria. (Erígena, citado por Silva, 2006, p. 37)
Tentando simplificar o argumento, podemos dizer que a primeira natureza, embora
não sendo criada, pode criar. Essa natureza é Deus.
A natureza que é criada e que também pode criar, isto é, a segunda natureza,
refere-se ao logos divino, o Cristo, que, antes de encarnar na forma humana,
estava junto de Deus. É por meio dele que todas as coisas foram criadas,
constituindo-se, então, na causa das coisas.
O neoplatonismo foi uma escola filosófica fundada em Alexandria no século III
d.C. Inspirada nas ideias de Platão, defendia que as verdades religiosas estão
presentes nas instituições e podem ser conhecidas pelos homens. Entre suas
teses se encontram: Deus é o sumo bem; as coisas criadas são emanações de
Deus e; o mundo retornará para Deus por meio do homem divinizado (Abbagnano,
2007, p. 710).
O espírito de Deus é a manifestação de sua essência e, portanto, a terceira
natureza criada, mas que não cria. O espírito de Deus, de que Erígena fala, parece
se referir ao Espírito Santo, que, na tradição bíblica, é o auxiliador, aquele que guia
e inspira os homens.
A quarta natureza, que não é criada e não cria, representa o fim do argumento:
Deus, o sentido teleológico supremo de toda a criação, para onde tudo
converge. Todo movimento destina-se a entrar em repouso em Deus, fim último de
toda criação.
Essa complicada organização representa a tentativa de Erígena de dar uma
resposta ao problema da participação, que, em última análise, remete ao
entendimento de como se dá a relação de Deus com a sua criação.
Outra temática que ocupou lugar de destaque na filosofia de Erígena foi a questão
dos universais, que pode ser assim formulada: os conceitos representam
realidades objetivas e particulares ou são meras abstrações sem uma
correspondência empírica? Trata-se de um problema que sempre esteve na
agenda da filosofia, desde Platão, passando pelos céticos e chegando até a
filosofia analítica (principalmente na filosofia da linguagem, de Wittgenstein).
O problema que envolve a relação entre o mundo subjetivo (sujeito) e a realidade
objetiva (objeto), bem como da linguagem para descrever essa relação
(conhecimento conceitual), teve três possíveis entendimentos.
O primeiro deles aconteceu sobretudo na filosofia de Platão, com seu realismo
das ideias. Ou seja, para Platão – e, antes dele, Sócrates –
, justiça, bem, beleza, coragem, mesa, maçã ou cavalo não são só palavras, são
essências que a alma humana, por meio da sua faculdade racional, pode captar.
Dito de outra forma, a ideia de mesa é mais real que a própria mesa. Com o
tempo, toda mesa existente no mundo físico vai desaparecer, pois a matéria é
intrinsecamente corruptível. Porém, a mesa como conceito, como essência, é
eterna, imutável. Grosso modo, nisso consiste a doutrina do realismo das ideias
de Platão.
O segundo entendimento apareceu na perspectiva de Aristóteles, para o qual
existe um realismo moderado. Todos os entes, isto é, as coisas que existem como
seres individuais, possuem uma imanência, participam do ser, possuem um grau
do ser. Aristóteles tenta explicar essa posição com sua doutrina
do hilemorfismo (hilé, em grego, significa “matéria”, e morphé, também do grego,
significa “forma”). Todos os seres corpóreos são constituídos de matéria, daquilo
que são feitos, e forma, isto é, o modo como são feitos ou a aparência que têm,
quando são em ato. São princípios distintos, porém complementares. O conteúdo
substancial de todos os seres que existem está em sua matéria, a qual está
sempre em movimento, passando de um estágio a outro, indo de ato a potência.
Essas propriedades da matéria e da forma dos seres explicam a origem do
movimento e da transformação presente na dinâmica da natureza.
O hilemorfismo foi uma doutrina elaborada por Aristóteles e amplamente
utilizada entre os filósofos escolásticos. Trata de dois princípios distintos, porém
complementares (matéria e forma), que ajudam a entender a constituição de tudo
o que existe e pode ser percebido pelos sentidos.
O terceiro possível entendimento refere-se às perspectivas nominalista e
conceptualista. De acordo com elas, o universal, concebido como uma ideia,
qualidade ou essência comum a todos os objetos que são indicados pelo mesmo
nome, não representa uma realidade objetiva; trata-se apenas de uma palavra.
Toda a linguagem, os conceitos construídos com ela, são, na verdade, metáforas,
representam uma tentativa da mente de se aproximar da realidade, mas sem
garantia de que de fato isso seja possível. Os conceitos satisfazem a uma
exigência lógica dos sujeitos de se referir ao mundo dos objetos, de se comunicar
e interagir uns com os outros e com a própria realidade. Nossa linguagem e
nossos conceitos não derivam de uma base ontológica a qual se possa comprovar
indubitavelmente. Dito de outro modo, não podemos ter segurança e certeza de
que nossas palavras possam apreender a essência das coisas. Nossa linguagem
não alcança a realidade absoluta, pois as palavras não traduzem totalmente as
coisas; são somente sons, aos quais atribuímos arbitrariamente significados.
Nas filosofias helenísticas, como o epicurismo e o ceticismo, já estava presente a
crítica nominalista. Aliás, o problema da relação entre sujeito e objeto e a
mediação entre eles, operada pela linguagem e pelo pensamento, sempre
estiveram presentes na agenda da filosofia. Uma das alternativas mais elaboradas
para a compreensão desses conceitos se deu em Kant, por meio do seu
criticismo.
Figura 4.3 – Santo Anselmo André
Müller
Nascido no ano de 1033, Santo Anselmo teve uma vida devotada aos estudos e
aos ensinamentos da doutrina cristã. Por volta dos 20 anos, ingressou no
monastério de Bec, na França, pela Ordem Beneditina. Lá, tornou-se monge e,
posteriormente, abade, em 1078.
4.2
Santo Anselmo
A filosofia medieval sempre sentiu uma necessidade de justificar racionalmente a
fé católica. Podemos questionar sobre o êxito dessa tarefa. As inúmeras
controvérsias desse período, envolvendo os dogmas de fé, informam que, se
houve algum sucesso nessa empreitada, ele foi parcial.
No legado do pensamento filosófico cristão, seguramente podemos indicar a
contribuição de Santo Anselmo da Cantuária. Seu posicionamento firme e
consistente a respeito dos ensinamentos da Igreja contribuiu para que ele se
tornasse arcebispo da Cantuária (Canterbury, em inglês). Sob o influxo dos
ensinamentos e da influência de Santo Anselmo, essa cidade se tornaria o
principal centro religioso do Reino Unido.
Em pelo menos dois momentos, Santo Anselmo se envolveu em conflitos com
Guilherme II, em virtude de sua posição em relação ao reconhecimento de Urbano
II como papa e também pela exigência de que as terras da arquidiocese fossem
devolvidas pelo rei. Por fim, Anselmo teve seu pedido aceito e, já reconciliado com
o rei, veio a falecer aos 76 anos.
É notória a sua maior e mais famosa contribuição à produção filosófica, a prova
ontológica da existência de Deus. Seu argumento tem a seguinte formulação:
Portanto, Senhor, Tu que dás o teu entendimento da fé, concede-me que, quando
sabes ser-me conveniente, entenda que existes como acreditamos e que és o que
acreditamos que sejas. E na verdade acreditamos que Tu és algo maior do que o
qual nada pode ser pensado. Acaso não existe uma tal natureza, pois o insensato
disse no seu coração “não há Deus”? Mas com certeza esse mesmo insensato,
quando ouvir isto mesmo que digo, algo maior do que o qual nada pode ser
pensado, entende que o que ouve e o que entende está no seu intelecto, ainda que
não entenda que isso exista. Com efeito, uma coisa é algo estar no intelecto, outra
é entender que esse algo existe. Com efeito, quando o pintor concebe
previamente o que vai fazer, tem isso mesmo no intelecto, mas ainda não entende
que exista o que não fez. Mas, quando já pintou, não só o tem no intelecto como
entende que existe aquilo que já fez. E, de fato, aquilo maior do qual nada pode ser
pensado não pode existir apenas no intelecto. Se está apenas no intelecto, pode
pensar-se que existe na realidade, o que é ser maior. Se, portanto, aquilo maior do
que o qual nada pode ser pensado está apenas no intelecto, aquilo mesmo maior
do que o qual nada pode ser pensado é aquilo relativamente ao qual pode pensar-
se algo maior. Existe, portanto, sem dúvida, algo maior do que o qual nada é
possível pensar não apenas no intelecto, mas também na realidade […]. Se Deus é
a maior realidade sobre a qual podemos pensar, é porque existe realmente. (Santo
Anselmo, citado por Rovighi, 1949, p. 27, tradução nossa)
O argumento ontológico da prova de Deus, escrito por Santo Anselmo, está
contido nos Capítulos II e III de sua obra Proslogion, um diálogo entre Deus e um
fiel, que foi escrita entre 1777 e 1778. Mas ele também apareceu em Kant, em
1781, quando o filósofo alemão elaborou sua crítica acerca do assunto.
Se pudéssemos resumir a lógica interna do argumento de Santo Anselmo,
poderíamos esquematizá-lo da seguinte forma:
1. Podemos pensar em um ser maior do que qualquer outro.
2. A realidade é muito maior do que a nossa mente.
3. Se o ser em que pensamos existir somente na nossa mente, então ele não
será o maior ser que existe.
4. Assim, o ser em que pensamos também deve existir na realidade.
5. Para que seja o maior ser, ele precisa existir na nossa mente e na realidade.
6. Logo, o ser em que pensamos e que existe na realidade é Deus.
Ainda poderíamos sintetizar esse argumento da seguinte forma: se eu, como
homem, um ser finito e limitado, posso ser capaz de pensar em um ser maior do
que tudo, além de ser maior, ele é perfeito em si mesmo. Ora, a causa de um
pensamento assim, sobre um ser perfeito e maior do que todos os outros, deve ter
como causa algo fora de mim. Assim, Deus, como ser perfeito, deve ser a causa
desse pensamento em mim, um ser imperfeito e limitado.
O argumento de Santo Anselmo parte de duas premissas básicas que precisam
ser aceitas para que a conclusão lógica seja precisa e se torne legítima. Primeiro,
é necessário aceitar que Deus é um ser do qual não se pode pensar nada maior.
Depois, devemos considerar que a existência é uma condição superior à não
existência. No final, o fiel precisa aceitar a existência de Deus para não cair em
contradição.
Ao longo da história da filosofia, esse argumento não passou sem reexames e
críticas. Um contemporâneo de Santo Anselmo, um monge chamado Gaunilo de
Marmoutiers, mostrou a fragilidade do argumento ao mostrar que não se pode
passar do plano lógico ao plano ontológico. Ou seja, podemos imaginar uma ilha
maior do que todas as outras, mas o fato de sermos capazes de imaginá-la não
significa que ela deva necessariamente existir.
Immanuel Kant afirmou algo semelhante. O plano formal do pensamento e do
raciocínio, ou seja, ser capaz de pensar em uma realidade abstratamente,
metafisicamente, não significa que se possa conhecê-la. Kant insistiu na
separação entre o mundo das essências – ou nôumenos – e o fenômeno – o plano
da aparência, de como as coisas se revelam objetivamente e são captadas pela
experiência humana. Deus, portanto, é uma realidade noumênica, a qual o
entendimento humano não alcança, visto que o intelecto dos homens só pode
elaborar conceitos sobre os dados da experiência sensível.
Figura 4.4 – Santo Tomás de Aquino
André Müller
Santo Tomás de Aquino (1225-1323) nasceu em Roccasecca, na Itália. O início de
sua vida religiosa foi conturbado. Pertencente a uma família aristocrática, seus
pais eram contrários a ele seguir sua vocação. Contudo, diante da determinação
do filho, mesmo que relutantes, tiveram de aceitar seu ingresso na Ordem dos
Dominicanos. Os escritos de Santo Tomás de Aquino versavam sobre a metafísica
aristotélica e a teologia cristã. Morreu com 49 anos.
4.3
Santo Tomás de Aquino
O início dos estudos de Santo Tomás de Aquino aconteceu na Universidade de
Napóles. Após seu incurso na vida acadêmica, ele veio a fazer parte de uma das
ordens religiosas que alcançou enorme prestígio com o papa. Os dominicanos
eram exímios pregadores e profundos conhecedores das tradições eclesiástica e
bíblica. Em Colônia, na Alemanha, Santo Tomás Aquino entrou em contato com o
famoso teólogo Alberto Magno, por quem foi iniciado na obra de Aristóteles.
Santo Tomás de Aquino se destacou como intelectual e veio a receber o convite
para se tornar mestre na Universidade de Paris, atuando como professor por mais
de dez anos. Em um dos episódios mais marcantes de sua vida, ficou abalado
pela visão mística que tivera de Deus. Ainda sob o efeito do êxtase, teria dito:
“Tudo o que escrevi é palha”. Entre suas obras mais conhecidas, encontram-
se Questões disputadas da verdade escrita, de 1256; Suma teológica, datada de
1265-1274; e Sobre a eternidade do mundo, de 1271.
Conta-se que, quando Santo Tomás de Aquino ainda era noviço, seu jeito
silencioso e taciturno lhe valeu o apelido de boi mudo. Em um dos momentos em
que seus colegas o caçoavam por seu apelido, seu professor Alberto Magno teria
advertido que o jovem a quem chamavam de boi mudo ainda faria o mundo todo
ouvi-lo quando decidisse falar.
De todo modo, o fato é que Santo Tomás de Aquino tornou-se um dos mais
célebres teólogos e santos da Igreja, a ponto de receber o título de Doutor
Angelicus. Quando houve o processo para a sua canonização, questionou-se o
fato de não haver milagres que atestassem sua santidade. Foi então que o Papa
Pio V, que o havia proclamado doutor da Igreja, teria dito que cada página de
sua Suma teológica era um milagre e um presente na formação de toda a
cristandade. Em sua vasta obra, ele não só formulou uma teologia natural, como
tratou ainda de ética, direito, metafísica e teoria política.
Como aristotélico, Santo Tomás de Aquino estava propenso à valorização da ética,
do raciocínio indutivo e da experiência como critério auxiliar na busca pelo
conhecimento e pelo entendimento das verdades reveladas. Desse modo, ele
rejeitou o inatismo platônico-agostiniano e postulou que o conhecimento decorria
da conjugação da sensibilidade e do intelecto. Isso quer dizer que pelos sentidos
captamos a realidade que está fora de nós, enquanto pelo intelecto organizamos
as sensações em conceitos e categorias. O conhecimento intelectual, como uma
manifestação da faculdade da alma, é superior à sensibilidade, mas depende
desta para elaborar conceitos.
Os pensamentos de Santo Tomás de Aquino nos levam a entender que os objetos
exteriores, para serem conhecidos em suas propriedades gerais e fundamentais,
passam por um processo de elaboração e síntese. Tudo começa com o olhar que
capta o sinal da materialidade. O prosseguimento e a continuidade dessa
experiência permitem ao intelecto humano abstrair as características comuns aos
objetos e, dessa maneira, formular os conceitos sobre eles.
Assim, o que é essencial, ou inteligível, como atributo presente nos objetos, só
pode ser percebido de modo limitado em sua materialidade pelos sentidos. Sem o
concurso da razão, seria muito difícil captar o que constitui a essência de cada
objeto (Durozoi; Roussel, 1999).
Esse processo de conhecimento é algo natural no homem, pois acontece como
uma dinâmica própria da razão, que organiza os conteúdos da experiência. Trata-
se de uma qualidade interna do sujeito que conhece. Dessa forma, Santo Tomás
de Aquino negou a teoria da iluminação de Santo Agostinho. Para ele, a
compreensão é um movimento a posteriori, um exercício intelectual, racional e
lógico. Referimo-nos a um realismo moderado, ou seja, os conceitos não são as
próprias coisas, mas as descrevem por similitudes, sendo imagens mentais do
mundo exterior. Quanto mais próximo do objeto estiver a descrição, mais
verdadeiro será o conceito.
Nesse panorama, a noção de verdade no tomismo estabelece uma relação de
adequação entre o sujeito e o objeto, a coisa e o intelecto. Seria, portanto,
necessária a demonstração lógica e argumentativa para testar o quanto essa
correspondência pode ser coerente e adequada ou confusa e contraditória.
4.3.1 A metafísica tomista
A novidade trazida por Santo Tomás de Aquino em relação à tradição grega refere-
se a sua reinterpretação do pensamento aristotélico no que concerne ao ser e não
tanto aos entes e a suas essências. Por entes podemos entender todas as coisas
percebidas ou que podem ser nomeadas. Existem os entes lógicos, cuja
existência serve para análise e predicação dos objetos, e os entes físicos ou
materiais.
O ser é estudado em sua unidade e na diferenciação que assume no conjunto dos
entes. Para Santo Tomás de Aquino, interessava captar e entender o grau de
unidade presente nos entes, pois tudo o que existe é um ente, inclusive o próprio
Deus. Todavia, em Deus, o ser é pleno e totalizante, absoluto e imutável. Já o
mundo, o homem e todos os seres criados são entes, mas de um modo diverso. É
como se disséssemos que Deus é puro ser e contém em si o ser. Os demais entes
participam do ser. Em poucas palavras, Deus é o ser. O homem e o mundo contêm
o ser (Gilson, 2002).
Reproduzindo a lógica do hilemorfismo aristotélico, Santo Tomás de Aquino o
aplicou para explicar a relação entre Deus e o mundo, mostrando que os entes
participam do ser de Deus, mas em graus diferenciados. Nesse sentido, cada ente
apresenta um nível de perfeição. Um mineral é menos complexo e desenvolvido
do que uma planta, por exemplo. Assim, a planta apresenta um grau elevado de
perfeição em relação a uma pedra. Contudo, se comparada a um animal – um cão,
por exemplo –, a planta é inferior. Um cão é bem mais complexo que a planta,
apresentando um grau de perfeição maior. Assim, seguindo um movimento de
atualização, cada ente realiza seu potencial atingindo diferentes graus de
perfeição. Nesse contexto, o homem, como ente racional, está acima dos demais
seres naturais, já que apresenta um grau de perfeição maior, sendo mais
elaborado e complexo de todos, ou seja, entre os seres da natureza, o homem, por
ser racional, é o mais perfeito.
Santo Tomás de Aquino argumentou, no entanto, que somente Deus tem a plena
perfeição, pois é ato puro, coincidindo, em seu ser, a potência e a existência. Deus
é, portanto, um ser necessário, pois não se altera. Nele não existe mudança nem
contingência. Ao aplicar essa perspectiva na doutrina da Igreja, Santo Tomás de
Aquino inaugurou uma teologia natural que tem como pressuposto básico o fato
de que a criação é sustentada pelo ser de Deus.
A investigação de Santo Tomás de Aquino o levou a contemplar o mistério da
criação. Afinal, a existência do ser coloca a possibilidade de que o nada poderia
existir. A vida em sua infinita complexidade e mistério, é o supremo argumento de
que Deus existe.
A ideia é que, com essas argumentações, mesmo um não crente, alguém que
nunca tivesse ouvido falar de Deus ou nunca tivesse sido iniciado em alguma
religião, poderia chegar à compreensão de Deus e de sua existência. Isso
aconteceria somente pelo exame racional da realidade, percebendo-se suas leis,
seu funcionamento, sua beleza e sua bondade intrínseca, notando-se a assinatura
da inteligência suprema que a criou.
Santo Tomás de Aquino, ainda no viés aristotélico, defendeu que o princípio
hilemórfico se aplica tanto aos seres quanto ao conjunto dos entes físicos e
materiais. Na natureza, tudo o que existe precisa assumir uma forma, adquirir
substância para poder ser conhecido. A forma representa um modelo universal
que se objetiva e se materializa individualmente em cada ser enquanto ato.
Em resumo, na metafísica aristotélico-tomista, a matéria, considerada em sua
composição, possui substância complementar. Por um lado, apresenta-se como
realidade indeterminada; por outro, em sua configuração atualizada como
matéria, precisa se diferenciar como ente, assumir uma forma, o que denota ação,
atividade, algo próprio do mundo dos entes. Essa explicação se complementa
com a teoria das quatro causas, incorporadas à teologia tomista. Se a matéria
precisa de alguma forma para se atualizar, esse movimento de potenciação e
atualização é um movimento causal.
A causa material, nesse caso, é aquilo que denota a estruturação do ente, do que
ele é feito. A causa eficiente é a atuação intencional de um agente que dá forma à
matéria. Já a causa formal denota a forma própria do ente, sua identidade, sua
diferenciação no mundo, e a causa final é o escopo telúrico da metafísica tomista,
o sentido último, a finalidade do ente.
Podemos exemplificar a teoria das quatro causas analisando um objeto qualquer,
como uma espada. O metal utilizado na sua confecção é causa material,
enquanto a ação do ferreiro é a causa eficiente que forja a espada. A causa formal,
por sua vez, é a forma própria da espada, o que a diferencia de uma lança e lhe
confere identidade e individualidade como ente, como objeto. A causa final é a
utilidade da espada, que pode ser a luta, a defesa ou o ornamento.
4.3.2 Sobre o mundo
Para iniciarmos esta subseção, mostramos uma imagem que retrata uma questão
que ocupou lugar importante na filosofia tomista: a existência e a criação do
mundo. Na Figura 4.5, vemos uma obra de William Blake, poeta e pintor inglês que
viveu no século XVIII. O quadro representa Deus criando o mundo.
Figura 4.5 – O primeiro dia, de William Blake
BLAKE, W. O primeiro dia. 1794. 1
gravura em aquarela: color.; [ca. 1827]. 23,2 × 17 cm. Whitworth Art Gallery,
Manchester, Reino Unido.
Ao longo da história da filosofia, foram vários os pensadores e as correntes
filosóficas que tentaram, por um lado, com suas diferentes metafísicas,
demonstrar racionalmente a validade do argumento que postula a ação criadora
de Deus ou, por outro lado, negá-la, defendendo uma posição ateísta.
Discordando de Aristóteles, para quem o Universo sempre existiu, em seu
perpétuo movimento de transformação, Santo Tomás de Aquino assumiu o relato
bíblico, defendendo que Deus criou o Universo. A discordância quanto ao
argumento aristotélico é parcial, no entanto. Ao tratar dessa questão, Santo
Tomás de Aquino tinha em mente um duplo objetivo:
João Filopono foi um filósofo de Alexandria que viveu no século VI. De orientação
platônica, converteu-se ao cristianismo e passou para a história da filosofia como
crítico feroz da tese aristotélica sobre a eternidade do mundo. Afirmava que tudo o
que existe foi criado do nada por Deus.
1. defender a coerência da lógica de Aristóteles contra os que o acusavam de
erro (como Filopono e seus seguidores);
2. legitimar os ensinamentos da fé cristã.
Para Santo Tomás de Aquino, Deus, como criador, poderia ter criado do nada o
Universo ou, ainda, ter criado um Universo eterno.
A aparente contradição pode ser mais bem esclarecida por Kim (2011, p. 91):
“Aquino deu um exemplo de como isso poderia acontecer. Imagine que um pé
deixa uma marca na areia, e que esta tenha sempre estado lá. Mesmo que nunca
houvesse um momento anterior à marca, ainda reconheceríamos o pé como
causa da marca: se não fosse pelo pé, não haveria marca”.
4.3.3 As cinco vias para Deus
Há algumas considerações iniciais sobre o modo como Santo Tomás de Aquino
descreve Deus. A primeira e importante distinção se coloca entre ser e existência,
que em Deus são diferentes, pois
a existência é um complemento de toda substância, um atributo pertencente a
sua essência, algo que lhe sobrevém como inerente. Contudo, somente Deus não
recebe a existência como complemento de sua própria essência. Numa palavra,
Deus não tem sua própria existência, ele é sua própria existência. (Gilson, 2002, p.
23)
Deus, portanto, não se encontra limitado por sua natureza. Sua realidade é pura,
simples, em perpétua atualidade. Não existe potencialidade em Deus, sua
essência é absoluta, puro ser. A principal diferença entre Deus e as realidades
criadas é que estas são substâncias compostas, cuja essência existe por
participação no ser de Deus. Elas não são, pois, as causas de si próprias e, como
tal, são contingentes, sua existência não afeta a ordem do ser.
A cosmologia de Santo Tomás de Aquino
As questões de Deus e de sua existência, seus atributos, sua relação com o
mundo e com o homem, aparecem com frequência na obra de Santo Tomás de
Aquino. Sua obra apresenta até mesmo referências à doutrina criacionista, que foi
ganhando força progressivamente dentro da Igreja, configurando uma tentativa de
conciliar ciência e religião.
Figura 4.6 – Imagem de uma galáxia
Relief etching/Shutterstock
A Figura 4.6, que mostra uma galáxia, busca ilustrar a cosmologia de Santo Tomás
de Aquino. Essa perspectiva de eternidade do mundo já se encontra presente no
pensamento do autor quando ele afirma que Deus pode ter criado o mundo
(Universo), mas de modo que ele sempre tenha existido.
Passemos agora à apresentação das cinco vias para provar a existência de Deus.
Vale lembrar que todo esse exercício é lógico e argumentativo, demonstrando a
força e a capacidade intelectual de Santo Tomás de Aquino.
4.3.3.1 A primeira via – Do movimento
Todo movente é movido por algo. Em uma sucessão lógica, no plano das coisas
criadas, não existe o automovente. Assim expressa Santo Tomás de Aquino esse
argumento:
A primeira [via], que é a mais evidente, é a que parte do movimento. Com efeito, é
certo e sabido pelos sentidos que algumas coisas se movem neste mundo. Ora,
tudo aquilo que se move é movido por outro, já que uma coisa não se desloca se
não for em potência em relação ao termo do movimento; ao passo que quem
move, move enquanto está em ato. Com efeito, mover quer dizer levar da potência
ao ato. Ora, uma coisa não pode ser levada de potência a ato senão em virtude de
um ente que já está em ato. Por exemplo, aquilo que é quente em ato, como o
fogo, torna quente a madeira, que estava quente em potência, e assim a muda e a
altera. Mas não é possível que a mesma coisa esteja ao mesmo tempo em ato e
potência sob o mesmo aspecto. Só pode sê-lo sob aspectos diversos: aquilo que é
quente em ato não pode sê-lo também em potência, mas é, ao mesmo tempo, frio
em potência. Assim, é impossível que, sob o mesmo aspecto e ao mesmo tempo,
uma coisa seja movente e movida (movens et motum), ou seja, que mova a si
mesma. Portanto, tudo aquilo que se move deve ser movido por outro. (Aquino,
citado por Reale; Antiseri, 2003, p. 221)
Pensar o movimento sequencialmente nos leva a uma cadeia infinita de uma ação
que move e de uma reação movente. A análise lógica desse processo supõe,
então, um movimento originário, que coloca em curso um progresso infinito de ato
e potência. Logo, para fazer sentido, é necessário supor a existência de um
primeiro motor imóvel que, estando parado, em repouso, em ato puro, coloca tudo
em movimento.
O sentido metafísico desse argumento remete a uma consideração de ordem
cosmológica e outra de ordem antropológica. A natureza não pode ser tomada
como a causa de si mesma, e o homem, mesmo no exercício de sua racionalidade
e vontade, não deixa de permanecer como ser movido.
4.3.3.2 A segunda via – Da causa eficiente
As realidades criadas não são em si mesmas as causas de suas existências, logo,
foram causadas pela ação de outro ou de outros seres. Na relação infinita que se
pode estabelecer entre causa e efeito, um retorno final é impossível, pois
contraria o sentido lógico do argumento e da própria lei da causalidade. Vejamos:
A segunda via parte da noção de causa eficiente. No mundo das coisas sensíveis
nos defrontamos com a existência de uma ordem de causas eficientes. Não há
caso conhecido e, na verdade, é impossível que uma coisa seja a causa eficiente
de si mesma, porque para tanto deveria ser anterior a si mesma, coisa
inconcebível. Ora, não é possível ir ao infinito na série das causas eficientes,
porque em todas as causas eficientes ordenadas a primeira é a causa da
intermediária que é causa da última, podendo as causas intermediárias ser várias
ou uma só. Ora, anular a causa significa anular o efeito. Por isso, se não houver
uma causa primeira entre as causas eficientes, não haverá nem causa
intermediária nem causa última. Mas, proceder ao infinito nas causas eficientes
significa eliminar a causa eficiente primeira; assim não teríamos nem efeito último,
nem causas eficientes intermediárias, o que, evidentemente, é falso. Por isso, é
necessário admitir uma primeira causa eficiente, à qual todos dão o nome de
Deus. (Aquino, citado por Reale; Antiseri, 2003, p. 223)
A argumentação lógica impecável de Santo Tomás de Aquino evidencia uma
assinatura inteligente no Universo. A lei da causalidade denota inteligência, ordem
e organização. Ora, se existe uma ordem, é necessário que exista um ordenador. A
lei da causalidade, assim como as demais leis que regem a natureza e o Universo,
seja a lei da gravidade, seja a lei do eletromagnetismo, aponta para um sentido
intrínseco na ordem das coisas. A prova da causa eficiente nos indica essa
conformação telúrica a encadear os entes e suas causas, sendo Deus a causa
última, a causa primeira e, ainda, a causa incausada.
4.3.3.3 A terceira via – Do contingente e do necessário
Esse argumento surge como consequência do argumento anterior. Para a
realidade das coisas criadas, a existência é somente uma possibilidade, não uma
necessidade absoluta, de modo que, não existindo a causa, não haverá o efeito
que lhe é correspondente. Ou seja:
A terceira via deriva do possível [ou contingente] e do necessário, e é esta.
Encontramos coisas que têm possibilidade de ser e não ser, pois constatamos que
se geram e se corrompem e, consequentemente, lhes é possível tanto ser como
não ser. Mas é impossível que todas as coisas dessa natureza tenham existido
sempre, pois o que pode não ser, em algum tempo não existia. Por isso, se todas
as coisas [existentes na natureza são tais que] podem não existir, em algum tempo
não haveria nada de existente. Ora, se isso é verdade, também agora não haveria
nada de existente, pois o que não existe só começa a existir por meio de alguma
coisa que já existe. Por isso, se em algum tempo não havia nenhum ser, teria sido
impossível alguma coisa começar a existir e, assim, também agora nada existiria,
o que, evidentemente, é falso. Por isso, nem todos os entes são contingentes, mas
é preciso que na realidade haja alguma coisa necessária. Ora, toda coisa
necessária tem a sua necessidade causada por outra, ou não. Ora, é impossível ir
ao infinito nas coisas necessárias, que têm a causa de sua necessidade em
alguma outra coisa, como já foi demonstrado a respeito das causas eficientes. Por
isso, não podemos deixar de admitir a existência de um ser que seja em si mesmo
necessário, e não receba de outros a própria necessidade, mas seja causa de
necessidade para os outros. E a este todos chamam Deus. (Aquino, citado por
Reale; Antiseri, 2003, p. 224)
As realidades criadas, isto é, todos os entes que somente participam do ser por
sua essência, mas que, como seres finitos, vão desaparecer, são consideradas
por Santo Tomás de Aquino como contingentes. Elas não se bastam a si mesmas,
e sua existência é temporária e contingente, não afetando a ordem das coisas.
Logo, se todos os entes são contingentes, significa que em um tempo não
existiram, então passaram a existir e estão a caminho de desaparecer. Isso
acontece pois tudo o que é contingente morre, desaparece, se transforma, deixa
de ser. Então, um dia nada existiu, assim como um dia nada mais existirá.
De todo modo, existindo o contingente, deve, portanto, existir um ser necessário,
um ser cuja existência não dependa de nenhum outro além dele próprio. Esse ser
necessário é Deus. A conclusão desse argumento é a necessidade lógica da
admissão de um ser que sempre existiu, um ser absoluto e, por isso, necessário,
que não tenha fora de si a causa de sua existência. Deus, como causa primeira, é,
portanto, um ser necessário. A realidade, tanto natural quanto humana, é
contingência que dele deriva.
4.3.3.4 A quarta via – Dos graus de perfeição
Cada coisa que existe apresenta características próprias e definidoras de si. Seus
atributos, sua constituição e sua identidade a colocam em graus diferenciados de
complexidade, desenvolvimento e perfeição. Assim, a quarta via diz respeito à
gradação que se pode encontrar nas coisas. É um fato que nas coisas se encontra
o bem, o verdadeiro, o nobre e outras perfeições em grau maior ou menor. Mas o
grau maior ou menor se atribui às diversas coisas conforme elas se aproximam
mais ou menos a algo de sumo e absoluto; assim, mais quente é aquilo que mais
se aproxima do sumamente quente. Dessa forma, existe algo que é verdadeiro,
nobre e bom em grau máximo e, consequentemente, algo que, em grau máximo, é
ser, já que o que é máximo, na verdade, é máximo também no ser, conforme diz
Aristóteles. Ora, o que é máximo em cada gênero é a causa de todos os que
pertencem àquele gênero: por exemplo, o fogo, que é máximo no calor, é causa de
todas as coisas quentes, conforme diz também Aristóteles. Por isso, deve haver
algo que para todos os entes é a causa de seu ser, de sua bondade e de toda outra
perfeição. E a isso chamamos Deus. (Aquino, citado por Reale; Antiseri, 2003, p.
225)
Por isso, é possível ao homem examinar todas as coisas e avaliar seus valores,
suas funções, sua utilidade, compará-la, evidenciar sua beleza, sua serventia e
utilidade, suas formas de ser e existir. É o que vimos quando estudamos a
metafísica tomística, utilizando como exemplo a diferença entre uma pedra e uma
planta. A planta é mais complexa e desenvolvida que a pedra, portanto apresenta
um grau mais elevado de perfeição. Entre o homem e um animal qualquer
também existe uma grande diferença, com graus de perfeição diferenciados,
sendo o homem, por sua capacidade e inteligência, um ser que, presume-se, seja
mais desenvolvido, em termos de complexidade e perfeição. Contudo, o homem
não possui o grau máximo de perfeição.
Como já vimos neste capítulo, nessa lógica, Santo Tomás de Aquino entende que
deve existir um ser que possui em si o grau máximo da qualidade da perfeição, um
ser que reúne em si o máximo de bondade, beleza e unidade. Esse ser é Deus.
4.3.3.5 A quinta via – Da finalidade do ser
Em um certo sentido, a ideia de uma teleologia intrínseca à realidade, portanto um
finalismo do mundo, estabelece relação funcional entre todas as coisas. Santo
Tomás de Aquino retoma exatamente o argumento aristotélico. Tudo o que existe
possui um fim. Então, qual seria a finalidade do mundo e do homem? Na sua
quinta prova, Santo Tomás de Aquino responde que existe uma inteligência que
dirige e orienta o Universo. Seria a percepção de que algumas coisas que
carecem de conhecimento, como os corpos naturais, agem em função de um fim.
E isso é evidente pelo fato de que sempre ou quase sempre agem do mesmo
modo, para obter a perfeição. Portanto, está claro que não alcançam seu fim por
acaso, mas por uma predisposição. Ora, tudo o que não tem inteligência não
tende ao fim, a menos que seja dirigido por algum ente dotado de conhecimento e
inteligência, como a flecha lançada pelo arqueiro. Por isso, existe algum ser
inteligente que dirige todas as coisas naturais para seu fim. E esse ser nós
chamamos Deus. (Aquino, citado por Reale; Antiseri, 2003, p. 226)
No argumento da finalidade, retomamos a ideia, aceita contemporaneamente, de
que o Universo apresenta uma ordem, algo que denota inteligência. Fala-se
em design inteligente. Essa teoria é atribuída a Phillip E. Johnson, professor
aposentado da Universidade da Califórnia em Berkeley, que se popularizou como
autor ao tentar conciliar a teoria da evolução e o criacionismo. Trata-se de algo
que não é aceito, sendo pouco aprovado na comunidade científica, sempre muito
cética e reticente em relação a se admitir a existência de Deus e da associação do
Universo como sua criação.
Seja como for, os argumentos de Santo Tomás de Aquino fazem parte do grande
empreendimento da escolástica, da qual ele é um dos maiores representantes,
em justificar a fé cristã e convencer os céticos de que aceitar as verdades
reveladas faz sentido.
A seguir, na Figura 4.7, organizamos um esquema na tentativa de tornar ainda
mais prático o entendimento das cinco provas da existência de Deus, segundo
Santo Tomás de Aquino.
Figura 4.7 – As cinco vias para Deus, de Santo Tomás de Aquino
4.3.4 O jusnaturalismo tomista
O jusnaturalismo é uma doutrina que busca deduzir o direito positivo das leis
naturais em relação ao homem. Em Santo Tomás de Aquino, o direito é derivado
da lei eterna presente na criação divina, o Cristo, a palavra de Deus encarnada, e
na condição humana. Esses princípios devem ser levados em conta para a
racionalidade jurídica ser coerente e eficaz.
Entre as censuras que a obra de Santo Tomás de Aquino recebeu, ainda enquanto
ele estava vivo, encontra-se sua defesa em favor da liberdade e da dignidade
humanas contra a opressão e a tirania. Afinal, trata-se de uma dignidade tributária
da filiação divina do homem. O pensamento tomista difere da posição agostiniana
de conotação um tanto quanto conformista em relação à ordem do mundo.
Santo Tomás de Aquino, seguindo a inspiração aristotélica, advoga a favor dos
direitos do homem. Para ele, é legítima a insurreição contra um soberano que trai
o propósito de garantir a paz social e o bem comum. Trata-se, porém, de um
ensinamento visto com preocupação pelo magistério da Igreja, conservador e
tradicional por sua própria natureza.
Até mesmo por conta disso, Santo Tomás de Aquino viu a necessidade de refletir
sobre a dimensão social e política da vida humana. Desse modo, por mais que
tenha um olhar teológico, sua reflexão representa uma importante contribuição à
filosofia do direito.
A racionalidade humana permite identificar a finalidade das coisas do mundo.
Contudo, a condição humana é limitada por sua compreensão. Assim, o homem
precisa se educar e se instruir, cultivar seu espírito para adquirir um
conhecimento mais profundo sobre as coisas. Essa limitação não lhe permite
perceber Deus como uma realidade evidente. Se isso ocorresse, a razão humana
se voltaria para Deus. Em sua humanidade, o coração humano está sujeito a
grandes equívocos, porém tem um grande potencial para o bem e para a justiça.
Buscando informar e orientar a ação dos homens no mundo de modo a se
conformarem com a retidão, o bem e a justiça, Santo Tomás de Aquino oferece
uma explicação para a hierarquia das leis. Primeiramente, existe a lex aeterna (lei
eterna), a presença do logos divino que ordenou o cosmos. A observação da
natureza, de seus processos e de seu funcionamento permite ao homem
compreender em parte essa ordem e vislumbrar os princípios criados por Deus e
que regem o Universo.
Em seguida, vem a lex naturalis (lei natural), que é uma derivação da lex aeterna. A
lei natural está expressa no equilíbrio natural das coisas, na intuição de que é
preciso buscar o bem e evitar o mal. A lei natural funciona como um guia a mostrar
os limites das coisas, do corpo humano, do espaço, do uso da natureza, dos
frutos da terra e até do espaço físico. Ela exige uma conformidade do homem com
os ritmos da terra. Romper a ligação do homem com a terra e com a natureza pode
acarretar sérios problemas, e quase sempre o faz incorrer em pecado, para
retomar a linguagem tomista.
A lex humana (lei humana) representa a lei escrita, os diferentes tipos e formas de
ordenamento jurídico que deveriam estar coerentemente ancorados nessa
hierarquia. A lei escrita, o direito positivo, portanto, precisa ser a expressão
objetivada dessa razão.
Atentos a esses princípios, os homens podem organizar a sociedade de modo a
proibir o homicídio, o roubo e o estupro. Havendo, no entanto, a conduta
homicida, ou, de modo geral, o descumprimento das leis, a sociedade pode reagir
de modo a restaurar o equilíbrio social. Não pode haver contradição nem
descompasso na relação entre as leis das diferentes esferas. Uma lei humana
precisa estar em consonância com a lei natural, caso contrário não seria legítima,
nem o povo precisaria cumpri-la.
Pairando acima de todas essas esferas de leis que abordamos, figura a lex
divina (lei divina) – uma lei que assume a forma humana revelada pelo Verbo
divino, na pessoa de Cristo e em seu evangelho. A superioridade dessa lei reside
no fato de que Deus revela em linguagem humana sua vontade em relação aos
destinos do homem e do mundo.
Para facilitar ainda mais o entendimento da hierarquia das leis segundo Santo
Tomás de Aquino, a Figura 4.8 apresenta um esquema prático que expõe cada lei
dentro de um sistema lógico.
A contribuição de Santo Tomás de Aquino não se limitou ao campo da filosofia e
da teologia, pois suas ideias políticas foram bem avançadas para sua época.
Embora buscasse fundamentar sua teoria do direito numa concepção teológica, o
jusnaturalismo tomista apontava para um ideal de direito e justiça que
contemplava a dignidade humana e previa até mesmo a insurreição contra
tiranos.
Figura 4.8 – Representação da hierarquia das leis para Santo Tomás de Aquino
O pensamento filosófico e teológico de Santo Tomás de Aquino atualiza sobre
bases aristotélicas a relação entre o conhecimento religioso que brota da fé e da
crença nas verdades reveladas e os conhecimentos da razão, adquiridos a
priori mediante análise e reflexão. A obra de Santo Tomás de Aquino representa o
esforço de um intelectual que abraçou a fé, mas não aceitou abrir mão de sua
autonomia e independência intelectual.
Os que iniciam na vida acadêmica dificilmente vão buscar nos ensinamentos
religiosos ou na Bíblia informações sobre a origem do mundo e a existência de
Deus. Atualmente, teorias que envolvam o Big Bang ou atualizem a teoria
evolucionista de Darwin costumam ter mais aceitação que a metafísica tomista.
Contudo, o que aprendemos com Santo Tomás de Aquino nos faz ver o quanto a
filosofia pode ser uma importante ferramenta na busca de respostas para as
questões mais fundamentais do homem: De onde viemos? Para onde vamos?
Existe algo depois da morte? O mundo foi criado ou sempre existiu? Existe algum
sentido maior na vida?
Enfim, se alguém se aventurar por essas questões, aprenderá com Tomás de
Aquino que é necessário pensar com rigor lógico, considerar os argumentos de
modo criterioso e estar atento à coerência interna dos raciocínios ou de suas
contradições.
4.4
Guilherme de Ockham e a crise da escolástica
Figura 4.9 – Guilherme de Ockham
André Müller
Guilherme de Ockham (1285-1347) foi o precursor do empirismo inglês. Ele
argumentava que é necessário aceitar a lógica como guia da cognição humana e
que a realidade é pura contingência e particularidade. Assim, nosso
conhecimento do mundo precisa sempre ser auxiliado pela observação e pela
experiência.
A crise da escolástica tem como contexto os séculos XIII e XIV e fatos
importantes, como a Guerra dos Cem Anos, entre a França e a Inglaterra, com
graves custos para toda a Europa.
No campo social e econômico, o capitalismo tomava forma e ia se fortalecendo.
Ocorreram, ainda, constantes revoltas camponesas e a peste negra, que matou
mais de um terço da população, o que levou a graves problemas. Vemos, assim,
um conjunto de fatores que iriam precipitar o fim do mundo medieval.
Somando-se a esses acontecimentos, houve a separação do catolicismo entre o
oriental e o ocidental, fato que reduziu a influência política da Igreja nas questões
de Estado. Nesse período, ocorreu também o surgimento de novas universidades,
e, no campo científico, o empirismo, como abordagem epistemológica, ganhou
força, propagando-se em diversas áreas, fazendo florescer a ciência.
Nesse panorama de derrocada do tomismo, surgiu um contexto favorável para que
mais tarde se desenvolvesse o Renascimento, um movimento de progresso em
diferentes áreas – arte, literatura, filosofia, política, ciência e tecnologia. Podemos
perceber que são fatores que, juntos, formaram um novo contexto cultural do qual
emergiu, dois séculos mais tarde, a modernidade, demarcando definitivamente o
fim da Era Medieval.
No bojo dessas mudanças, a crítica ao tomismo caminhava em duas direções. De
um lado, havia uma cultura renascentista emergente, que supervalorizava
o humanismo, a imanência, a dúvida, a crítica e o ceticismo em relação às
crenças religiosas. De outro, surgia o movimento franciscano, de busca e retorno à
vida mística, voltando-se à doutrina agostiniana.
O humanismo se tornaria não só uma perspectiva, mas, mais que isso, um
conceito-chave que, entre os séculos XIV e XVI, forneceu as bases para o
renascimento da cultura europeia. Trata-se de um conjunto de crenças e valores
que coloca o homem no centro do mundo, afirmando seu potencial e suas
capacidades.
São Boaventura, que foi canonizado em 14 de abril de 1482 pelo Papa Sisto IV e
que foi considerado um dos maiores teólogos desse período, via na
independência da filosofia uma ameaça à teologia católica. Ele entendia que o
tomismo tinha contribuído, ainda que involuntariamente, nesse sentido. Seu
temor era que a nascente cultura de racionalidade se radicalizasse, ameaçando a
fé e as crenças fundamentais da doutrina cristã.
Em uma guinada agostiniana, São Boaventura também acreditava que seria
possível a harmonia entre a fé e a razão pela aceitação de que Cristo é o mestre
maior e de que a inteligência humana, quando aceita essa verdade, pode
perscrutar o sentido da criação e da vida humanas. O objetivo desse processo
seria uma união mística com Deus.
Foi nesse contexto um tanto conturbado que foi ganhando notoriedade outro
franciscano, Guilherme de Ockham. Nascido numa pequena cidade chamada
Surrey, em 1280, Ockham entrou bem jovem na Ordem Franciscana. Foi educador
em Paris e estudou em Oxford, onde finalizou seus estudos acadêmicos. Sua
postura crítica e independente fez com que se indispusesse com o papado. Em
seus comentários ao Livro das sentenças, de Pedro Lombardo, Ockham foi
acusado de heresia e teve de se explicar em Avignon, na França, onde ficava a
residência do papa e a sede da Igreja na época.
Nessa obra, seguindo o espírito franciscano, Ockham critica os excessos
mundanos da Igreja e defende a separação entre o poder eclesiástico e espiritual
do papa e o poder político do imperador (Ockham, 2002). As crescentes tensões
entre a Igreja e o Estado iriam potencializar a Reforma Protestante dois séculos
depois.
Para Guilherme de Ockham, os poderes políticos e religiosos desenvolveram
estruturas sociais que atuavam como sensores e doutrinadores, impondo aos
indivíduos e a toda a sociedade doutrinas e ensinamentos sobre como deveriam
guiar sua vida e fazer suas escolhas. A preocupação de Ockham era, então,
restituir a liberdade humana. Para ele, o sentido da graça e do amor divinos para
com os homens só tem significado se as pessoas podem escolher a Deus.
Assim, o sentido da ética cristã seria permitir ao homem aderir livremente ao
projeto de salvação. Ou seja, o cotidiano da vida e a individualidade de cada um
surgem como horizonte existencial do cristão. Nesse contexto, é no concreto da
vida, avaliando cada situação em particular, e não guiado por uma metafísica
universalista, que o cristão é chamado a refletir e escolher.
O valor da moralidade cristã é reconhecido por Ockham justamente por ser fiel ao
projeto evangélico de Jesus entendido como um convite universal aos homens
para escolher – inclusive arcando com todas as consequências – o reino dos céus.
Isso se traduz numa nova sociedade, cuja construção começa na vida de cada
um, no cotidiano do mundo social, no modo como cada discípulo dá testemunho
de sua fé por meio de atitudes, pelo comportamento em defesa da vida e da
justiça, do amor e do perdão.
Ockham teve influência na lógica, na metafísica e na teoria política, ficando muito
conhecido por seu envolvimento na querela dos universais. Essa discussão
passou por Boécio, autor que já apresentamos anteriormente. Trata-se do
seguinte: Boécio interrogou se a natureza dos conceitos gerais, referindo-se, por
exemplo, à humanidade, ao espírito, ao bem, ao mal e à beleza, é algo real, que
existe separado do mundo, ou é algo pertencente aos seres individuais, ou, ainda,
se e somente uma entidade mental, construto abstrato a representar a realidade
que nos cerca.
Essa temática ocupou boa parte da agenda filosófica em todos os períodos. Para
responder ao problema, há possivelmente quatro vias, a saber:
1. Platão e seus seguidores defendem o realismo das ideias, ou realismo
platônico, o que significa dizer que as ideias ou conceitos não são somente
palavras, mas entidades com existência própria, autônomas no mundo
inteligível.
2. Na perspectiva aristotélica, existe o realismo imanente, isto é, as coisas,
os objetos, ou, numa terminologia tomista, os entes, possuem uma
substância individual que pode ser conhecida em sentido geral quando os
entes pertencem a uma espécie, à humanidade, ao indivíduo, nos quais o
particular contém o geral.
3. No conceitualismo, atribuído a Pedro Abelardo, que viveu entre os anos de
1079 a 1142, os universais são apenas conceitos, predicativos que usamos
para caracterizar um objeto, não sendo, portanto, entidades ou essências.
Utilizamos os conceitos para nomear objetos que apresentam
semelhanças entre si. “Os universais são só palavras e nada mais”
(Abelardo, 1973, p. 37).
4. Existe, ainda, o nominalismo, adotado por Guilherme de Ockham e que
veremos a partir de agora.
O nominalismo foi uma posição originada na discussão de Porfírio em seu
livro Isagoge e posteriormente retomada por Roscelino, filósofo e teólogo
medieval que nasceu na França em 1050 e veio a se tornar professor na cidade de
Rennes, na Bretanha, região oeste da França.
No sentido de contextualizar sua origem, convém retomar minimamente os
argumentos de Roscelino, cuja obra abrangia a filosofia e a teologia, sendo
considerado o fundador do nominalismo (Durozoi; Roussel, 1999). Para ele, os
universais são apenas palavras, abstrações, representações mentais de caráter
individual que construímos a propósito dos objetos e seres que nos cercam. Não
seria possível designar o universal das coisas. Ou seja, cada ser ou objeto possui
uma individualidade que lhe é intrínseca e irredutível. O conceito, de certa forma,
trai a irredutibilidade e a particularidade da realidade quando tenta converter o
particular no universal e reduzir os objetos ao seu conceito.
Na visão de Ockham, a radicalização da posição de Roscelino leva à paralisação
cognitiva, visto que nenhum conceito teria, a rigor, veracidade ou legitimidade. A
consequência seria um estado de suspeição permanente diante do mundo, como,
aliás, propuseram os céticos, na filosofia clássica. Assim, Ockham assume uma
posição moderada, buscando sofisticar o ponto de vista nominalista,
argumentando que o universal representa uma dada qualidade ou característica
de um objeto.
De fato, os conceitos só são possíveis por existirem certas semelhanças nos
objetos. Nossa linguagem se forma por similitudes que somos capazes de
reconhecer entre as coisas, as pessoas e os objetos. O universal, isto é, os
conceitos, não são entidades, mas tampouco meras palavras desprovidas de
significado, pois representam qualidades, características semelhantes existentes
nas coisas, as quais podemos apreender, mesmo que parcialmente, por uma
elaboração intelectual (Ockham, 1999).
A posição de Ockham teve grande influência na época, com desdobramentos de
suas ideias por entre seus seguidores. De certa forma, Ockham antecipou o
debate contemporâneo na filosofia da linguagem e acerca das controvérsias sobre
a relação entre linguagem, pensamento e realidade, tratando da relação entre
signo, significante e significado.
Um dos argumentos mais famosos de Ockham ficou conhecido como a navalha
de Ockham, que consiste em ter presente que não se deve multiplicar os entes de
um raciocínio sem necessidade, ou “entia non sunt multiplicanda praeter
necessitatem” (Boehner, 1990, p. 23). Esse princípio indica que nossa análise do
real não deve multiplicar a existência de seres, nomes e conceitos (Ockham,
1999).
O princípio de Ockham parte de uma visão empírica da própria natureza, a qual,
segundo o autor, é econômica e simples. Para chegar a uma explicação plausível
de algum fenômeno, não se deve multiplicar conceitos, mas buscar as ideias mais
básicas e organizá-las de modo lógico e coerente. Procedendo-se dessa forma, o
raciocínio tem menos chance de errar na compreensão dos fenômenos.
A ontologia é um ramo mais específico da metafísica que busca estudar os entes,
seus fundamentos e suas características essenciais. Investiga qual é a natureza
do ser como ser, de sua generalidade, daquilo que o constitui e que torna possível
sua existência e compreensão.
A ontologia moderna, inaugurada por Ockham, busca uma economia racional dos
conceitos, simplificando a realidade, buscando a correspondência entre termos e
fatos, coisas e conceitos, seres e seus predicados mínimos e básicos. Talvez, sem
perceber as implicações de suas reflexões, Ockham acabou por definir as
fronteiras epistemológicas entre a filosofia e a teologia, anunciando um dos
princípios básicos da ciência moderna.
Os princípios lógicos e ontológicos de Ockham também receberam algumas
críticas de outros filósofos, como Leibniz. Eles defendem que existe uma
multiplicidade de seres na natureza e que o exagero na simplificação dos termos
pode deixar de fora aspectos importantes dela.
Com o advento da ciência moderna, o princípio defendido por Ockham veio a fazer
parte do método científico. Na formulação dos problemas e no levantamento das
hipóteses, as que conservam menos afirmações e variáveis tendem a ser mais
facilmente verificadas (Abbagnano, 2007).
Síntese
Em alguns de seus períodos, a filosofia parece ter um movimento pendular. Isso é
algo que podemos perceber na passagem da patrística, com seu forte apelo
platônico, para a escolástica, de Santo Tomás de Aquino e seu aristotelismo.
Depois, novamente, ocorre um movimento de retorno ao agostinianismo com a
filosofia e a teologia de São Boaventura e os franciscanos.
Vimos neste capítulo que o termo escolástico é derivado do ensino que era
ministrado em escolas. Desse período, o primeiro autor que apresentamos foi
João Scoto Erígena, que viveu no século IX, na Irlanda e na França. Esse autor
defendia a ideia de que as criaturas não possuem a vida em si mesmas, mas a
recebem de Deus. Por isso, a existência humana participa, mas não contém o ser.
Ou seja, os homens recebem Deus, o seu ser, como atributo e manifestação de
sua existência individual, mas não o possuem, não são autossuficientes. Assim,
quando morrem, extinguem-se suas essências. Só Deus possui o ser em si
mesmo, sendo, portanto, eterno e bastando a si mesmo.
Outro autor de grande renome foi Santo Anselmo, célebre por sua famosa prova
ontológica da existência de Deus. Em resumo, ele diz o seguinte: se um homem,
sendo um ser finito, falho e limitado, é capaz de pensar em um ser infinito,
perfeito, um ser maior do qualquer outro, é porque a causa desse pensamento
deve estar fora desse homem, sendo o próprio Deus essa causa. Isso provaria a
existência de Deus.
O período escolástico foi marcado por uma forte influência do pensamento de
Aristóteles. Ao longo de toda a escolástica, permaneceu o esforço dos teólogos
católicos para harmonizar fé e razão. Os debates ocorridos em torno do quanto de
racional existia na formulação das verdades de fé produziram obras monumentais,
como a Suma teológica, de Santo Tomás de Aquino.
Os argumentos de Santo Tomás de Aquino seguiram na defesa de uma teologia
natural sustentada pela metafísica de Aristóteles, principalmente com base em
seus conceitos de ato e potência, forma e matéria. Um exemplo é o conceito de
transubstanciação, no qual Santo Tomás de Aquino recorre às ideias de
substância e acidente para demonstrar racionalmente o milagre que ocorre em
cada celebração. Nesses casos, o sacerdote, investido do poder de Cristo,
transforma vinho em sangue e pão em carne.
Vimos ainda o quanto as provas da existência de Deus formuladas por Santo
Tomás de Aquino, nas suas famosas cinco vias para Deus, podem ser tributárias à
metafísica de Aristóteles. Outro aspecto igualmente importante é o modo como
Santo Tomás de Aquino organiza as leis e o direito, colocando na base de sua
fundamentação a lei eterna e divina manifestada em Cristo e no evangelho.
A crise na escolástica teve no pensamento de Guilherme de Ockham seu ponto de
inflexão. A discussão sobre os universais colocou em xeque os conceitos
metafísicos, tendo como consequência o estabelecimento de uma distinção entre
a filosofia e a teologia. Outra ideia muito conhecida desse autor foi seu princípio
de depuração conceitual, que ficou conhecido como navalha de Ockham. Nesse
princípio, recomenda-se a formulação simples, clara e concisa das ideias. Os
conceitos não devem ser multiplicados além do necessário para embasar uma
dada explicação.
Indicações culturais
Livros
Agostinho, Santo. Confissões. Tradução de J. Oliveira dos Santos e A. Ambrósio de
Penha. São Paulo: Nova Cultural, 2000; (Coleção Os Pensadores).
O livro é organizado de modo a tratar das diferentes fases da vida de Santo
Agostinho. No seu conjunto, a obra representa um relato descritivo e detalhado de
sua vida, desde a infância até a juventude e a vida adulta em meio aos excessos e
prazeres. Santo Agostinho mergulha em si mesmo, em suas crises, até sua
conversão. O texto mostra a fé de Santo Agostinho em Deus e sua abertura à vida
pastoral e espiritual. Ao longo do livro, a narrativa vai ganhando contornos de um
tratado de psicologia introspectiva. A tônica principal que perpassa a obra é a
relação de Santo Agostinho com Deus, o modo como sua fé vai absorvendo a
totalidade de sua vida e acaba por se traduzir num profundo compromisso ético
com a liderança de sua Igreja e de sua comunidade.
A conclusão de Santo Agostinho no final da obra é uma confissão de fé inabalável
e uma abertura existencial que coloca o sentido de sua vida no repouso em Deus.
Ele diz: “Criastes-nos para Vós e o nosso coração vive inquieto enquanto não
repousa em Vós” (Agostinho, 2000, p. 37).
Filmes
O poço e o pêndulo. Direção: Roger Corman. EUA: Full Moon Entertainment, 1961.
80 min.
O filme explora o clima cultural e espiritual da Idade Média, a vida monacal de um
monge e o quanto a espiritualidade vivida de modo repressivo pode ser nociva ao
bem-estar do indivíduo. Os votos religiosos vividos como imposição engendram
aspectos dissociativos da personalidade do monge. Ao ter de lidar com seus
instintos e desejos, ele acaba desenvolvendo uma psicopatia agressiva e violenta.
O filme possibilita pensar o quanto o contexto espiritual medieval pode ter
perturbado a mente e o comportamento social de muitos homens e mulheres,
religiosos e leigos, daquela época.
Séries
As Brumas de Avalon. Direção: Uli Edel. República Tcheca, Alemanha, EUA:
Warner Home Vídeo, 2001. 183 min.
A série em três episódios é uma adaptação do best seller de Marion Zimmer
Bradley. A narrativa do filme impressiona pelo roteiro e pela fotografia que
reconstituíram o contexto da época do lendário personagem do Rei Arthur. A
inovação é a história ser contada do ponto de vista feminino, sob a ótica das
feiticeiras Viviane (Angelica Huston), Morgana (Julia Margulies) e Morgause (Joan
Allen). Em meio a uma atmosfera de magia e disputas políticas, a história mostra
os conflitos envolvendo romanos e bretões, além de assinalar as tensões entre
católicos e pagãos.
Atividades de autoavaliação
1. A escolástica representou o esforço de harmonização entre a fé e a razão,
entre a teologia cristã, os escritos bíblicos e a filosofia grega. Assinale a
alternativa que melhor define as características da escolástica:
a. Conhecimento racional da mensagem evangélica, interlocução com a obra
de Aristóteles, desenvolvimento de uma teologia natural em Santo Tomás de
Aquino.
b. Diferenciação e autonomia da teologia em relação à filosofia, diálogo
intenso com Plotino e a tradição mística.
c. Aproximação entre a fé e a razão, com valorização da racionalidade para
conhecer a vontade divina, sintetizada no lema Creio para compreender.
d. Assimilação pela Igreja Católica, que a tornou sua filosofia oficial, fazendo
com que, desde o início de sua vida, Santo Tomás de Aquino fosse reconhecido
como um grande doutrinador cristão.
2. Em relação aos temas e problemas da filosofia medieval, analise as
assertivas a seguir e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:
o O argumento de Santo Anselmo sobre a existência de Deus
pressupõe a passagem do plano lógico para o plano ontológico.
o A questão dos universais, apontada por João Scoto Erígena, mostra
os limites de nossa linguagem em captar a essência das coisas.
Conceitos gerais são só palavras, não possuem correspondentes
empíricos.
o Considerando a questão dos universais, podemos afirmar que os
conceitos são mais reais que as próprias coisas que eles designam.
o De certa forma, a discussão sobre os universais não deixa de ser
uma antecipação da discussão de que se ocupa a filosofia da
linguagem.
Agora, indique qual alternativa corresponde corretamente à sequência obtida:
e. V, F, F, V.
f. V, V, F, V.
g. F, F, F, V.
h. V, F, V, F.
3. Assinale a alternativa que melhor representa a concepção metafísica de
Santo Tomás de Aquino:
a. Todos os entes participam do ser, mas só Deus possui o ser em plenitude.
No homem, o ser se manifesta racionalmente e remete a Deus como causa
eficiente e final da existência humana.
b. O ser que habita o mundo forma uma unidade entre todas as coisas. O
mundo e Deus compartilham do mesmo ser, sendo coeternos.
c. A substância humana se manifesta individualmente em cada pessoa,
embora exista uma essência comum, a humanidade, ou seja, João, Pedro e
Fernanda possuem uma substância individual que os torna únicos. Substância e
essência são conceitos equivalentes.
d. Deus cria o mundo, mas não participa de sua criação, o que está em
concordância com Aristóteles sobre a ideia do motor imóvel.
4. Considere as afirmações que tratam das provas da existência de Deus e
assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:
o Deus é uma realidade incompreensível em qualquer plano, e
qualquer inteligência pode perceber essa verdade.
o Se existe ordem, existe um ordenador; se o mundo é um relógio,
deve haver um relojoeiro. Isso resume as cinco provas da existência
de Deus.
o O movimento, a causalidade, os graus de perfeição e o sentido
telúrico do mundo indicam a existência de Deus.
o Na ótica tomista, a existência de Deus é um pressuposto lógico,
sem o qual todo o resto carece de sentido e significado.
Agora, indique a alternativa correta de acordo com a sequência obtida:
e. V, V, F, V.
f. V, V, V, V.
g. F, F, V, V.
h. F, F, F, V.
5. A navalha de Ockham veio a ser incorporada como um princípio de
investigação muito presente em que tipo de conhecimento?
a. Científico.
b. Místico e teológico.
c. Literário.
d. Filosófico.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
Leia o texto e, depois, responda às questões propostas:
O problema que envolveu as relações entre pensamento e realidade e linguagem e
objeto ocupou boa parte da agenda filosófica em todos os períodos, existindo
possivelmente quatro vias para responder a ele. Platão e os platônicos defendem
o realismo das ideias, ou realismo platônico, que significa dizer que as ideias ou
conceitos não são somente palavras, mas entidades com existência própria,
autônomas no mundo inteligível. Na perspectiva aristotélica, existe o realismo
imanente, isto é, as coisas, os objetos, ou, numa terminologia tomista, os entes,
possuem uma substância individual que pode ser conhecida em sentido geral
quando os entes pertencem a uma espécie, à humanidade, ao indivíduo, nos
quais o particular contém o geral. No conceitualismo, atribuído a Pedro Abelardo,
os universais são apenas conceitos, predicativos que usamos para caracterizar
um objeto, não sendo, portanto, entidades ou essências. Utilizamos os conceitos
para nomear objetos que apresentem semelhanças entre si.
1. De que modo a discussão sobre os universais ajuda a compreender a
relação entre conceito e objeto?
2. Considerando-se a teologia católica e os ensinamentos de Santo Tomás de
Aquino, qual das abordagens apresentadas anteriormente mantém
afinidade com a metafísica cristã?
3. Com base neste livro e fazendo também uma pesquisa em outras fontes,
que concepção de verdade emerge da filosofia medieval?
Atividade aplicada: prática
Assista ao documentário Além do cosmos – mecânica quântica e elabore uma
reflexão pessoal em relação à existência ou não de Deus.
MECÂNICA quântica. Além do cosmos. Portugal: National Geographic Channel,
30 abr. 2012. Programa de televisão. Disponível em:
«https://www.youtube.com/watch?v=c1AKzIncvwk». Acesso em: 15 fev. 2016.
“A vida é apenas uma visão momentânea das maravilhas deste assombroso
universo, e é triste que tantos se desgastem sonhando com fantasias espirituais”
(Sagan, 2016).
“A História está repleta de pessoas que, como resultado do medo, ou por
ignorância, ou por cobiça de poder, destruíram conhecimentos de imensurável
valor que em verdade pertenciam a todos nós. Nós não devemos deixar isso
acontecer de novo” (Sagan, 2016).
Capítulo 5 - A filosofia árabe e sua contribuição para a cultura ocidental
Em todo o seu esplendor, majestade e beleza que conhece de si mesmo, o
primeiro existente experimenta, por essa razão, o maior e o mais profundo prazer.
Conhecemos essas qualidades somente por analogia e por uma apreensão ínfima
quando experimentamos, por exemplo, a apreensão da beleza e do prazer. Mas
nossa experiência é muito pequena perto do esplendor do primeiro existente.
Aliás, como poderia haver uma relação de igualdade entre o que é uma parte
ínfima e o que é sem limite no tempo ou fora do tempo? Entre o que é tão
imperfeito e o que é a extrema perfeição? Ora, aquele que tem prazer por si
mesmo se alegra, se ama e se torna apaixonado de si mesmo. Assim, o primeiro
existente se ama, se quer e se maravilha de si de uma maneira correspondente à
sua grandeza, do modo mais excelente. No existente primeiro, o ato e o objeto de
seu amor são o mesmo, o ato de seu maravilhamento é o próprio objeto de sua
admiração e o ato e o objeto de seu prazer convergem. Nele coincidem o amor, o
amante e o amado.
Attie Filho
Neste capítulo 5, faremos uma introdução sobre a cultura árabe e o islamismo.
Mas, antes de iniciarmos a apresentação de seus dois autores mais conhecidos,
Avicena e Averróis, convém tratarmos brevemente da cultura religiosa islâmica.
Veremos que foi com base nela que esses autores dialogaram com Aristóteles,
num esforço teórico semelhante ao dos pensadores cristãos de harmonizar a fé e
a razão pela ótica do islã.
Figura 5.1 – A Caaba
Zurijeta/Shutterstock
A Caaba, que significa “cubo”, é uma construção em forma desse sólido que fica
no pátio central da principal mesquita de Al Masjid Al-Haram, na cidade de Meca.
É o local mais sagrado da fé islâmica. Segundo a crença muçulmana, a
construção teria sido feita por Abraão e abriga no seu interior a Hajar el Aswad
(Pedra Negra), uma relíquia sagrada com 50 cm de diâmetro que anteriormente
era branca, mas com o passar do tempo, por conta dos pecados dos homens,
ficou escura.
5.1
A civilização árabe na Alta Idade Média
A Alta Idade Média corresponde ao período do ano de 476 ao ano 1000, quando a
Europa foi invadida por seus dois flancos: ao norte, pelos bárbaros e ao sul, pelos
árabes. O fechamento do Mar Mediterrâneo pelos invasores fez cessar as rotas
comerciais, intensificando o processo, que já estava em curso, de ruralização da
economia europeia.
O movimento de expansão e conquista do Império Muçulmano só teve início após
a morte de Maomé, em 632. Até então, os povos árabes eram formados por
diferentes tribos e liderados pelos xeques (sheiks) e durante as guerras, pelo emir,
equivalente a um general. O conjunto dessas tribos era politeísta, com cultos a
diferentes divindades.
Em Meca, a organização burocrática em torno do sagrado assumia proporções de
um grande negócio, recebendo milhares de peregrinos que iam prestar culto aos
seus ídolos. Além de pagar as taxas para a realização das oferendas, aproveitava-
se para intensificar o comércio nas feiras da região. No centro da cidade ficava o
principal local de adoração, a Caaba, vista na Figura 5.1, um santuário no qual
eram cultuados mais de 300 ídolos.
Após a tomada de Meca por Maomé e por seu exército em 630, os deuses pagãos
foram repudiados e o profeta erigiu um altar proclamando Alá como único e
verdadeiro Deus. Maomé morreu em 632, deixando um legado que mudaria a face
da Europa. Foi então que o território árabe, formado de áreas desérticas,
concentrou a ocupação humana próximo ao mar e aos oásis, áreas com água e
vegetação no deserto. Esse fato pode ser observado na Figura 5.2.
Figura 5.2 – Mapa da expansão do domínio islâmico
Rhaíssa Viana Sarot
Com a instituição do islã, ocorreu a unificação política e religiosa dos povos do
deserto. Foi formado o grande Império, sob a liderança dos turco-otomanos,
varrendo a Europa, conquistando e convertendo pelo fio da espada milhares de
novos adeptos para a nova religião.
O livro sagrado da nova fé, o Alcorão, que significa “recitação”, “declamação”,
pode ser descrito como um código religioso, moral e político que visa a orientar a
vida do fiel muçulmano em diferentes aspectos da vida. Para a fé islâmica, o texto
sagrado é a palavra divina ditada pelo anjo Gabriel, revelando a vontade de Deus e
instituindo Maomé como seu profeta. O credo da religião islâmica inclui alguns
costumes: orar voltando-se à direção de Meca cinco vezes por dia; ir a Meca pelo
menos uma vez ao longo da vida; praticar o jejum no mês sagrado do Ramadã, que
é o nono mês do calendário islâmico, tempo em que o profeta recebeu a revelação
de Alá; orar na mesquita nas sextas-feiras.
Com a morte de Maomé, formaram-se dois grandes grupos predominantes dentro
do islã, os sunitas e os xiitas. Os sunitas têm o nome derivado da consideração e
da observância do diário de Maomé (sunna), que juntamente com o Alcorão são
fontes da doutrina muçulmana. Esse grupo defende que a sucessão do poder
passa pela eleição dos fiéis e que o eleito não precisa descender de Maomé. Já
para os xiitas o líder religioso e político do islã precisa descender de Maomé e a
única fonte legítima da doutrina é o Alcorão. No Iraque, é forte a presença sunita,
enquanto no Irã o domínio histórico tem sido dos xiitas.
Dinastia refere-se à transmissão do poder com base na linhagem, dentro de uma
mesma família, sendo o laço de sangue o que dá legitimidade ao novo governante.
Essa forma de conservação do poder esteve presente em distintas épocas
históricas e em diferentes povos, como os do Egito, da China e da Pérsia.
A expansão dos turco-otomanos, chefiados pela dinastia Omíada, só foi
interrompida pelos francos na batalha de Poiters, ou próximo de Tours, no ano de
732. À frente do exército franco estava Carlos Martel, que recebeu esse apelido
em função de sua arma predileta, o martelo de guerra. Não tivesse ocorrido o
bloqueio da ofensiva islâmica, toda a Europa Ocidental poderia ter sido
conquistada, provavelmente com um desfecho incerto para a cristandade (Le
Go , 1983).
Mais tarde, já no início do século XII, em virtude das Cruzadas, houve um
redesenho da geopolítica europeia. Nesse período, muitos territórios que estavam
ocupados pelos muçulmanos foram retomados pelos cristãos.
Atualmente, o islamismo é uma das maiores religiões em número de adeptos no
mundo. Em 2010, foi registrada a existência de cerca de 1,6 bilhão de pessoas
seguidoras da fé muçulmana, o que representa quase 24% da população do
planeta (Rodrigues; Ramos, 2014).
Figura 5.3 – Resumo esquemático do islamismo
A filosofia árabe
Diz-se que esse conhecimento existiu antigamente entre os caldeus, o povo do
Iraque, chegando até o Egito e, de lá, transmitido aos gregos que o mantiveram até
que fosse transmitido aos sírios e, destes, aos árabes. Tudo o que se inclui nessa
ciência foi exposto em língua grega, depois em siríaco e, finalmente em árabe. Os
gregos chamaram-na a ciência das ciências, a mãe das ciências, a sabedoria das
sabedorias e a arte das artes. Quem a adquiriu chamaram-no filósofo, querendo
dizer aquele que ama a mais alta sabedoria.
Al-Farabi (século X)
Fonte: Al-Farabi, 2016.
5.2
Avicena (Ibn Sina)
Figura 5.4 – Avicena André Müller
Abu Ali Al Hussain Ibn Abdallah (980- -1037), também conhecido como Ibn Sina,
teve seu nome latinizado para Avicena. Ele morreu com 57 anos e deixou uma
vasta obra filosófica e literária. Aos 17 anos, já era considerado um médico
notável. Após conseguir curar o rei de Bucara de uma moléstia misteriosa, foi
recompensado com livre acesso a sua biblioteca.
Considerado um dos maiores sábios da cultura medieval, Avicena, ou Ibn Sina,
como ficou conhecido, nasceu em 980 em Bucara (atual Uzbequistão), de origem
persa. Destacou-se como filósofo, sendo versado em diferentes áreas e saberes,
como medicina, química, astronomia, filosofia, política e matemática. Também foi
poeta e místico. Deixou uma grande influência na cultura de sua época, tendo
vasta produção compendiada em mais de 200 obras, das quais mais de 100
tratavam de filosofia e medicina. O autor foi considerado o pai da medicina
moderna e seus tratados mais importantes sobre esse assunto são O livro da
cura e o Cânone da medicina. Esses livros, pela profundidade, precisão e detalhes
nas descrições fisiológicas, foram obras de referência durante muitos anos nas
universidades medievais.
Avicena viveu num período de apogeu da cultura árabe islâmica e ele próprio se
tornou um autor fundamental desse período. Nessa época, os estudos sobre os
textos clássicos dos pensadores greco-romanos tinham se tornado uma atividade
frequente nas academias, o que contribuiu para o florescimento da filosofia.
Em seus escritos, Avicena buscou uma síntese entre o pensamento de Platão e o
de Aristóteles, o que lhe valeu muitas críticas, principalmente de seu adversário
teórico, Averróis, que considerava o antagonismo entre os dois gênios da filosofia
antiga insuperável.
Avicena desenvolveu uma curiosa cosmologia, com alguns paralelos com a de
Aristóteles. Por ela, entendemos que existem três realidades: o mundo físico e
material, o cosmos e Deus.
O mundo físico e material teria no homem a expressão mais acabada e evoluída,
possuindo este inteligência e alma imortal. O cosmos seria formado pelo mundo
celestial, sendo sua origem o motor imóvel. Por fim, Deus representaria em si todo
o bem e toda a unidade.
Nesse contexto, o homem é fruto do progresso material do mundo. É o universo
que pensa, anda, fala e ama. Sua racionalidade expressa uma consciência pura e
intencional. Assim, a inteligência humana apresenta gradações e se desenvolve
de modo construtivo e evolutivo. Ou seja, como afirma Avicena (citado por Gilson,
2002), existem alguns tipos de inteligência:
a inteligência possível, que representa as capacidades mais básicas das
operações mentais: a sensação, a observação e a percepção;
a inteligência em ato ou exercício quando em plena operação, sendo a
reflexão o exemplo desse momento, quando o pensamento se volta para si
mesmo;
a inteligência adquirida, que integra a memória, a experiência, a análise e o
julgamento;
a inteligência intuitiva, que permite ao homem captar e entender as
realidades mais profundas, ou seja, permite a experiência mística,
aproximando o homem de Deus e permitindo que se conheçam, ao menos
em parte, os mistérios divinos.
Foi o último tipo de inteligência que permitiu que Maomé fosse capaz de perceber
e compreender a revelação que Deus lhe mostrou (Gilson, 2002).
Diferentemente de Aristóteles e Averróis, que não acreditavam na imortalidade da
alma, Avicena supôs que a razão é na verdade uma faculdade da alma. Assim,
morrendo o homem, cessa a sua vida racional e física, permanecendo, no
entanto, a alma como imortal, pois foi criada por Deus.
A metafísica proposta por Avicena reforça a ideia de Deus como primeiro motor
imóvel, um ser no qual coincidem essência e existência, pois é ato puro. Sua
insistência em harmonizar Platão e Aristóteles o fez conceber a alma como
separada do corpo, entendendo que a vida racional do homem só é possível pela
dimensão participativa que existe entre corpo e alma.
Na visão de Avicena, o corpo participa da vida espiritual mediante a inteligência.
São reunidos, assim, o corpo e a alma, tanto pela dimensão pura e imaterial, que
se expressa pela consciência, como pela dimensão física do intelecto, que se
manifesta na linguagem e nos sentidos do corpo. Isso permite a interação do
homem com o mundo. Portanto, existem o corpo e a alma do homem, e a
inteligência e a razão é que unem essas duas realidades pela participação.
De certa forma, sua concepção dual da inteligência, como passiva e ativa,
prefigurou como uma teoria construtivista da inteligência humana. Isso quer dizer
que a alma racional existe como potência no homem. Para se efetivar, tornar-se
ato, é preciso o concurso da vida corporal, das vivências, memórias e experiências
que enriquecem, aprimoram e fazem a inteligência evoluir. Nessa visão, o homem
pode adquirir, em sua existência, grande sabedoria. Para isso, é preciso que ele
desenvolva a ciência e a filosofia, sendo capaz até de intuir e perceber a realidade
divina no mundo e em si mesmo (Gilson, 2002).
5.3
Averróis e o aristotelismo de viés islâmico
O contato do Ocidente com a filosofia grega se deu por intermédio da cultura
medieval muçulmana, com as traduções que foram feitas das obras dos filósofos
gregos para a língua árabe. Muitos dos filósofos escolásticos, como Santo Tomás
de Aquino, Roger Bacon e Duns Scoto, tiveram contato com essas traduções para
a língua latina. As ideias de Averróis, Avicena e outros influenciaram o início da
filosofia moderna.
Figura 5.5 – Averróis André Müller
Averróis (1126-1198), com nome árabe Ibn Rushd, tinha origem aristocrática,
vindo de uma família ilustre de advogados. Conhecia direito, ciência, filosofia e
teologia. Seu prestígio, sua fama e sua inteligência o fizeram se tornar o principal
juiz da corte do califa Abu Ya’qud Yusuf. Na filosofia, logo se interessou pelas
ideias de Aristóteles.
Entre as contribuições para a literatura filosófica está um longo estudo no qual
Averróis escreveu comentários sobre diversos textos de Aristóteles. O cunho
coloquial desse livro tinha como objetivo atingir o público leigo. De certa forma,
Averróis se outorgou a função de grande divulgador da obra do mestre estagirita.
Ao final, o livro foi considerado destoante dos ensinamentos da tradição
muçulmana e sua produção foi proibida. Averróis não escapou do exílio. Dois anos
após retornar ao califado, em Córdoba (Espanha, região da Andaluzia), ele veio a
falecer.
Entre os árabes muçulmanos, também se viu uma tentativa de harmonizar a
religião e a filosofia, empreendimento teórico de grande envergadura que teve de
Averróis importante contribuição.
O ponto de partida do filósofo árabe é a aceitação do Alcorão como fonte da
verdade, mas não infalível em tudo. Tratando-se de uma verdade poética e
alegórica, o autor sugeriu uma leitura hermenêutica do Alcorão. Dessa forma,
filosofia e teologia não são incompatíveis, mas complementares. Talvez por
influência também de Platão, o aspecto político do pensamento averroísta era
elitista. Sua concepção de sociedade era a de que o governo deveria ficar a cargo
de um grupo especial de líderes, com instrução e sabedoria para governar e guiar
o povo, cabendo a este obedecer ao Alcorão e seguir as orientações de seus
líderes espirituais (Durozoi; Roussel, 1999).
A hermenêutica é uma forma de estudo interpretativo de textos filosóficos,
científicos ou religiosos. Busca compreender o sentido das palavras, o contexto
em que foram escritas e diversas outras influências que podem estar presentes
num texto. A interpretação é desenvolvida com base no estabelecimento de
critérios rigorosos, no sentido de alcançar uma compreensão coerente do texto
estudado. Para o filósofo e teólogo Friedrich Schleiermacher (1768-1834), a
hermenêutica é a ciência da compreensão, que torna possível o entendimento
profundo de textos diversos, de diferentes épocas, possibilitando captar a unidade
entre o pensamento dos autores e a linguagem utilizada por eles (Durozoi;
Roussel,1999).
A obra de Averróis é classificada em três partes pelos estudiosos do pensamento
árabe. A primeira delas diz respeito a comentários e paráfrases de Aristóteles. A
segunda divisão refere-se às obras originais, como seu Tratado decisivo, que
aborda a harmonia entre a filosofia e a religião, e ainda seu famoso
livro Incoerência da incoerência, no qual faz uma refutação da obra do teólogo
islâmico Al-Ghazali. A terceira parte de sua produção liga-se ao período final de
sua vida, quando voltou a escrever seus grandes comentários acerca das obras de
Aristóteles, especialmente sobre física e metafísica e acerca do livro Sobre a
alma.
A admiração de Averróis pela filosofia grega, especialmente por Aristóteles, fez
com que preferisse o uso da lógica e da razão em casos de impasse entre o
ensinamento religioso emanado do Alcorão e a vida concreta, haja vista a
evolução das culturas e as mudanças que ocorrem na vida social.
Havia, contudo, um tema controverso: a origem do mundo. Assim como na Bíblia
cristã, o Alcorão ensina que o mundo foi criado do nada, mas por Alá. No entanto,
Averróis concordava com Aristóteles, afirmando que o mundo sempre existiu.
Se pensarmos em outros autores, como Santo Tomás de Aquino, que era leitor de
Averróis, vemos que ele procurou outra saída – como já mostramos anteriormente.
Para Santo Tomás de Aquino, Deus criou o mundo, mas de modo que ele sempre
tivesse existido. Isso nos leva a crer que a admiração dos autores – cristãos ou
árabes – pela obra de Aristóteles os levava a fazer manobras na argumentação
lógica para preservar sua compatibilidade com as verdades reveladas pelos livros
sagrados, seja a Bíblia, seja o Alcorão.
Já em relação a um tema recorrente, a imortalidade da alma, parece ter sido difícil
a conciliação dos pensadores com a metafísica aristotélica. Tanto muçulmanos
quanto cristãos acreditavam que a alma humana é individual, pessoal, única e
imortal, que só seria ressuscitada no dia do juízo final. Mas tal crença não
encontrou paralelo na filosofia de Aristóteles. Aliás, em seu tratado Da alma (De
anima), a posição do estagirita é divergente. Para ele, imortal seria a humanidade,
e sua substância, compartilhada pelos diferentes indivíduos. Ou seja, segundo
Aristóteles, quando morremos, tudo acaba, mas a humanidade, como substância
que se manifesta de modo inteligente em cada indivíduo, é imortal.
Foi justamente essa discussão sobre a imortalidade da alma, além das
incompatibilidades entre as verdades da fé e da razão, que fez surgir os
averroístas (defensores das ideias de Averróis) entre judeus latinos. Eles passaram
a afirmar que a filosofia era uma ciência independente da teologia e que existem
diferenças substanciais entre os conhecimentos racionais e os teológicos.
Sintetizando esses ensinamentos de Averróis, poderíamos afirmar que existem
verdades de três naturezas: as de fé, para o povo; as místicas, para os teólogos e
os religiosos; e as científicas, para os pensadores.
Síntese
Ao longo deste capítulo, entramos em contato com a cultura árabe,
principalmente a partir de sua unificação sob a fé islâmica. Vimos que é
necessário iniciar os estudos da filosofia árabe com uma breve apresentação do
islamismo, pois, assim, podemos entender melhor a relação entre a fé e a razão
sob o viés islâmico.
O início do islamismo está intimamente associado à figura de Maomé. Sua
biografia, envolta em uma aura de mistério, apresenta um componente místico e
sobrenatural, sem o qual, parece-nos, a revelação de sua mensagem não teria a
mesma força.
Vimos que o início da civilização árabe marcou uma forte valorização da cultura,
da arte, da medicina e da filosofia. Em grande medida, em seu apogeu, o império
muçulmano deu grandes contribuições para a cultura ocidental.
Da mesma forma que entre os cristãos, para os islâmicos, havia a necessidade de
justificar a fé racionalmente, por exemplo. Cronologicamente, a filosofia árabe, em
seu diálogo com a filosofia grega, antecipou o debate entre a fé e a razão que
esteve presente em todo o período medieval.
Entre os autores árabes que se destacaram no diálogo entre a fé e a razão,
destacamos a contribuição de Avicena, também conhecido como Ibin Sina. Além
de teólogo, ele foi poeta e místico, sobressaindo-se como médico famoso por
seus feitos. No campo da filosofia, organizou importantes comentários aos textos
clássicos da filosofia grega, especialmente aos escritos que tentavam conciliar
Platão e Aristóteles. Considerava o Alcorão um livro de orientação da vida,
cabendo ao homem instruído refletir sobre seus ensinamentos e contextualizá-los
à luz da razão. O autor defendia ainda que, mesmo sendo religioso, é necessário
manter o espírito de independência e autonomia, sem o qual a fé teria pouco
valor, pois seria somente um ato de obediência ingênuo. Ou seja, Avicena
entendia que o mérito da fé está em aprofundar a compreensão das coisas
sagradas, em perscrutar a mensagem de Deus contida em sua criação.
Para Averróis, outro autor de referência na filosofia árabe, Platão e Aristóteles não
podem ser conciliados, pois apresentam pensamentos bem diferentes em vários
quesitos. Optando pelo estudo aristotélico, Averróis formulou uma metafísica que
chega a negar os ensinamentos do Alcorão em alguns sentidos. Por exemplo, ele
não acreditava na imortalidade da alma, pois somente em Deus ser e existência
se confundem. Seria, portanto, a imortalidade um atributo exclusivo de Deus.
Contudo, esse mesmo Deus poderia, se fosse de sua vontade, restaurar a vida dos
que já morreram.
Em relação ao Alcorão, Averróis foi um dos precursores em desenvolver uma
teologia hermenêutica, segundo a qual os textos sagrados devem ser lidos tanto
do ponto de vista exegético quanto do hermenêutico. Ou seja, é preciso levar em
consideração a atualização da mensagem para novos contextos.
Indicações culturais
Livros
Lima, K. de A. Averróis e a questão do intelecto material no Grande Comentário
ao De Anima de Aristóteles, livro III, comentário 5. 102 f. Dissertação (Mestrado
em Filosofia) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009. Disponível em:
«http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8133/tde-23032010-112706/pt-
br.php». Acesso em: 28 jan. 2016.
A dissertação oferece um estudo profundo e pormenorizado da influência de
Aristóteles no pensamento e na teologia de Averróis. Também são explorados os
argumentos em relação à criação do mundo e à existência da alma.
Ibn Sina (Avicena). Livro da alma. Tradução de Miguel Attie Filho. São Paulo:
Globo, 2011.
Na introdução dessa obra, há fartos dados biográficos sobre Avicena e seu
percurso como médico e intelectual. O tema central do livro é a discussão sobre a
alma em diálogo com a obra de Aristóteles. Além dessa discussão, o autor
aprofunda a temática sobre as faculdades da inteligência e da imortalidade da
alma.
Campanini, M. Introdução à filosofia islâmica. Tradução de Plínio Freire Gomes.
São Paulo: Estação Liberdade, 2010.
O autor do livro traz um recorte histórico, sobre a formação do pensamento
filosófico árabe, com base em seu contexto, seja no início da Idade Média, seja na
formação do Império Muçulmano. São apresentados diversos autores e conceitos,
evidenciando como traço central dessa filosofia o fato de tomar o homem como
centro da criação, destinado a se aperfeiçoar por sua filiação divina.
Filmes
O destino. Direção: Youssef Chahine. França, Egito: Estação, 1997. 135 min.
O filme mostra a trajetória de Averróis quando ele inicia sua escola de
pensamento em pleno domínio islâmico, em Córdoba, na Espanha. É uma obra
que segue a biografia do filósofo, mostra os conflitos com o califado e a
incompreensão de seus ensinamentos. Trata-se de uma mistura de aventura e
história que não deixa de satirizar as diferentes faces da intolerância religiosa por
parte dos radicais islâmicos.
LAWRENCE da Arábia. Direção: David Lean. EUA: Sony Pictures, 1962. 216 min.
O filme foi um grande sucesso de bilheteria e muito elogiado pela crítica na época
do seu lançamento. Diretor e filme foram premiados com o Oscar. A temática do
filme centra-se na história de Thomas Edward Lawrence, que, segundo consta, era
arqueólogo, diplomata e agente secreto do Reino Unido. O filme explora também o
aspecto geopolítico envolvido entre o segmento árabe revoltoso e o Império Turco,
que os ingleses tinham interesse em enfraquecer. Aspectos obscuros da biografia
de Lawrence são deixados de lado, como os eventos do seu cativeiro e os
problemas psicológicos que desenvolveu após sua prisão e tortura.
Atividades de autoavaliação
1. Em relação à filosofia árabe medieval, o desenvolvimento de suas ideias
esteve ligado à cultura religiosa. Considere as assertivas a seguir e assinale
a mais coerente:
a. Trata-se de uma cultura religiosa politeísta e antropomórfica.
b. Aborda o monoteísmo islâmico.
c. É uma doutrina monoteísta triádica: judaica, cristã e muçulmana.
d. Centra-se nos ensinamentos do Alcorão.
2. Considerando o pensamento filosófico árabe, analise as alternativas
abaixo e assinale V para as verdadeiras e F para as falsas:
o A filosofia árabe seguiu um caminho bem diferente da cristã, pois
seu foco não era legitimar racionalmente as verdades de fé, mas
desqualificar a racionalidade filosófica.
o O tema central que esteve presente entre os filósofos árabes foi a
tentativa de, sob a matriz do Alcorão, aproximar a razão e a fé, a
filosofia grega e a teologia muçulmana.
o O diálogo entre a fé e a razão entre os árabes foi infrutífero e logo
abandonado. O que pesou foi a expansão religiosa e política do islã.
o A discussão entre a fé e a razão tinha, de um lado, Platão e
Aristóteles e, do outro, a interpretação contextualizada do Alcorão.
Agora, assinale a alternativa que corresponde corretamente à sequência obtida:
e. V, V, V, V.
f. F, F, V, V.
g. F, V, F, V.
h. F, V, V, V.
3. Assinale a alternativa que melhor expressa a concepção metafísica de
Avicena:
a. Com base na teoria da participação de Aristóteles, concebeu a natureza
como criação de Deus e dotada de uma racionalidade que se expressa na ideia de
evolução, da qual o homem é seu ponto alto.
b. Afirmava que o mundo não foi criado por Deus, mas que é eterno e
coexistente com Deus desde sempre. Deus e o mundo formam uma única
substância.
c. O mundo físico é a expressão concreta do logos eterno. Sua metafísica é,
na verdade, uma cosmologia.
d. Deus, o mundo e o homem são conceitos que só podem ser
compreendidos pela fé. A mente humana não alcança o significado do mistério da
criação.
4. Sobre a filosofia de Averróis, é correto afirmar:
a. Ensinava que o Alcorão tem um sentido alegórico, que o mundo não foi
criado por Deus, que a alma deixa de existir na morte e que somente Deus tem o
ser pleno em si.
b. O homem é só um animal racional desprovido de alma racional e imortal.
c. Entendia que Platão fornecia os conceitos elementares para justificar a fé
no islã e que Aristóteles era incompatível com as verdades de fé.
d. Afirmava que da relação entre a fé e a razão surge uma religião esclarecida.
As verdades reveladas pelo profeta Maomé não podem contradizer a
compreensão racional e natural do mundo.
5. Os ensinamentos de Averróis podem ser resumidos da seguinte forma:
a. Seguir os mandamentos e obedecer aos líderes.
b. Observar a doutrina do Alcorão, mas seguir sua própria consciência.
c. Para o corpo, os remédios do corpo; para a alma, os remédios da alma,
como a filosofia.
d. Existem as verdades de fé para o povo, as místicas para o teólogo e as
científicas para os pensadores.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
Leia o seguinte texto:
A esse respeito é pertinente se entender que a recepção da filosofia dos antigos
foi, para os primeiros pensadores muçulmanos, um conjunto de sabedoria antiga
sob diversos nomes. Pode-se pensar que, a certa altura, o valor intrínseco de cada
documento e de cada texto fosse critério suficiente para ser ou não incorporado.
Para Ibn Sīnā, por exemplo, nenhum autor foi tido como uma autoridade absoluta.
Ele próprio discordou e criticou Aristóteles. De todo modo, apesar dos elementos
neoplatônicos, Aristóteles foi o nome sob o qual figurou grande parte das obras e
dos comentários feitos pelos falāsifa. Ressalte-se ainda que o pensamento de
Aristóteles influenciou, também, poetas, filólogos, gramáticos e juristas
árabes. (Attie Filho, 2001, p. 75, grifo do original)
Com base no fragmento acima e em seus estudos, tente responder às seguintes
questões:
1. O que existe de semelhante entre o islamismo e o cristianismo?
2. Que contribuições tiveram os árabes para preservar e divulgar as obras
clássicas da filosofia grega?
3. Que importância teve o pensamento de Aristóteles para a filosofia árabe?
Atividade aplicada: prática
Assista ao filme O destino (comentado na seção “Indicações culturais”) e elabore
uma reflexão pessoal sobre a filosofia de Averróis.
“Os filósofos acreditam que as leis religiosas são artes necessárias” (Averróis,
citado por Kim, 2011, p. 83).
Capítulo 6 - A filosofia judaica na Idade Média
E, se não, fica sabendo ó rei, que não serviremos a teus deuses nem adoraremos a
estátua de ouro que levantaste.
Bíblia. Daniel, 2016, 3:18
Neste capítulo 6, examinaremos brevemente a rica religiosidade judaica, com
seus símbolos e livros. Ela deixou profundas influências na cultura ocidental e
cristã. Veremos, também, a filosofia judaica, temática cujo estudo acabou sendo
ofuscado, em parte, pelo domínio quase hegemônico da produção filosófica
cristã. Será necessário, ainda, tratarmos dos principais autores da filosofia judaica
desse período, pois a compreensão do período medieval fica incompleta sem um
olhar, mesmo que introdutório, sobre esse assunto. Dessa forma, veremos que a
Tanakh (a “bíblia” judaica) conserva um forte teor, se não filosófico em sentido
próprio, pelo menos sapiencial, em muitos de seus escritos,
como Provérbios e Eclesiastes.
Figura 6.1 – A menorá Plotnytskyi
Ievgenii/Shutterstock
A menorá se traduz do hebraico como “candeeiro” ou “candelabro com sete
braços”. Na tradição do judaísmo, tornou-se um dos símbolos mais conhecidos
pela sua importância ritualística, pois ficava sempre aceso representando a
presença divina no Templo de Jerusalém. O número sete representa a perfeição
associada a Deus, mas também faz menção ao arbusto ardente no qual Deus
falou com Moisés.
6.1
Fílon de Alexandria
Figura 6.2 – Fílon de Alexandria André
Müller
Fílon de Alexandria (ca. 10 a.C.-50 d.C.), também conhecido como Fílon, o Judeu,
nasceu na região da Judeia. Ele contribuiu para a pavimentação do caminho que
aproximou a religião monoteísta de tradição judaica da filosofia grega
neoplatônica. Sua produção não tardou a alcançar os cristãos, que viram em seu
pensamento a dimensão racional das verdades reveladas por Jesus.
O pensamento de Fílon de Alexandria é considerado uma das primeiras
referências da filosofia judaica. Ele viveu no período da filosofia helenista, tendo
recebido influência do estoicismo. Seu nascimento data do ano 10 a.C.
aproximadamente, tendo desenvolvido sua filosofia durante o século I da Era
Cristã. A grande contribuição de Fílon foi ter iniciado um diálogo e promovido a
aproximação entre as verdades bíblicas e a filosofia grega, inaugurando uma
tendência que esteve presente desde o início do pensamento filosófico cristão.
Em sua obra mais conhecida, Comentários alegóricos sobre o Pentateuco, o autor
faz um estudo sobre o sentido oculto na narrativa das personagens e nos eventos
bíblicos, seja nas passagens sobre a criação do mundo, seja na origem das leis,
seja no pacto de Abraão com Deus.
Como estudioso das sagradas escrituras, Fílon foi um adepto da análise
interpretativa e, em várias passagens de seus textos, faz menção à necessidade
do estudo contextualizado da mensagem bíblica e de seus ensinamentos. Para
Fílon, o objetivo das sagradas escrituras é passar um ensinamento moral e
religioso. Assim, o sentido literal dos textos bíblicos precisa ter uma exegese
contextualizada e uma análise interpretativa de seus significados.
A síntese realizada por Fílon reúne a concepção estoica de razão ou logos divino e
o dualismo platônico entre o mundo imaterial e o mundo físico, em uma tentativa
de convergir sua filosofia com a ideia de Deus criador. A relação desses conceitos
com os textos bíblicos segue na construção de uma antropologia teológica e
uma moral teônoma. Para Fílon, os filósofos gregos captaram parcialmente, por
meio de suas racionalizações, a existência de Deus como unidade, bondade e
beleza, mas é somente pelo estudo e pela meditação sobre os textos bíblicos e as
verdades reveladas nas escrituras que esse entendimento pode ser aperfeiçoado.
O estudo da palavra deve combinar análise histórica, exegética e hermenêutica e,
assim, possibilitar ao homem compreender, em sentido humano, os desígnios de
Deus (Gilson, 2002).
Uma moral teônoma é aquela que tem seu fundamento em escritos sagrados. Um
bom exemplo é a moralidade judaico-cristã que se fundamenta na lei mosaica. Os
dez mandamentos surgem como um parâmetro externo e basilar para as ações
dos homens.
A moral autônoma é aquela que busca fundamentar-se na própria racionalidade
humana e em sua capacidade de elaborar e identificar os valores mais profundos
e as normas que devem conformar as ações na defesa desses valores.
A obra de Fílon produziu conceitos importantes que estiveram na base da tradição
da filosofia cristã, muitos dos quais foram incorporados pela patrística e,
posteriormente, pelos autores da escolástica. Desse conjunto destacam-se seus
conceitos de logos divino, potência e cosmos inteligível, termos que podem ser
relacionados aos que aparecem nos Evangelhos, como a palavra do Pai
encarnada, Verbo de Deus. Vemos nisso um paralelo entre a perspectiva cristã e a
visão platônica, afinal, Cristo representaria a mente de Deus, que no início dos
tempos tudo criou.
O mistério da encarnação do Verbo na forma humana tornou possível resgatar a
criação e restaurar a aliança entre Deus e a humanidade. Cristo, o Verbo divino
encarnado, funcionaria como elemento mediador entre Deus, que é o sumo bem,
e o mundo, que é desvirtuado e mau. Sem essa intermediação, o projeto de
salvação do homem não aconteceria, deixando a humanidade abandonada à sua
própria sorte. O que em Platão é alcançado pela meditação filosófica em Fílon só
pode ser realizado pela fé e pelo conhecimento dos planos de Deus.
É clássica, ainda, sua tripartição da natureza humana em corpo, alma racional e
espírito. Este último é o que perdura após a morte, pois constitui a essência
participante do ser de Deus. Como seres espirituais possuidores da centelha
divina, o caminho do homem no mundo precisaria ser trilhado de acordo com o
bem e a retidão.
6.2
O platonismo judaico
O pensamento filosófico judaico só veio a ganhar um novo impulso durante o
período medieval, em que floresciam os estudos da filosofia grega sob o
patrocínio da cultura islâmica, durante seu domínio e expansão pela Europa.
Entre os precursores da filosofia judaica medieval, encontra-se Isaac Israeli,
também conhecido como Isaac Iudeus, originário do Egito. Ele nasceu em 850 e
acredita-se que tenha sido um pensador centenário, morrendo em 950. Tinha
conhecimentos nas áreas de medicina, filosofia, astronomia e matemática. Sua
aproximação com a filosofia se deu principalmente na recepção da obra de Platão
traduzida para o árabe e depois para o hebraico. Alcançou fama e projeção, vindo
a se tornar médico para o califa Ubaid Allan al-Mahadi. O período em que esteve
na corte foi o mais produtivo, escrevendo diversas obras de cunho médico-
científico.
A tradição filosófica Medieval o colocou como o primeiro neoplatônico da filosofia
judaica no Medievo. Sua vasta obra esteve envolvida em polêmicas, como no caso
da tradução de seus textos do árabe para o latim por um monge de Cartago
chamado Constantino, que se colocou como autor dos escritos. Somente em
1515 a autoria dos textos foi restituída a Isaac.
Outro autor de relevância dessa época foi Saadia al-Fayyumi. Ele nasceu em 882,
no Egito, onde desenvolveu grande parte de seus estudos. Tornou-se um pensador
itinerante, vindo a morar na Palestina, na Síria e na Babilônia. Morreu em 942, com
60 anos. Não tão longeva como a de Israeli, sua carreira foi marcada pelo
reconhecimento. Em 928, ocupou o cargo de reitor na Academia Talmúdica de
Sura, na cidade da Babilônia. Envolveu-se em algumas polêmicas com o judaísmo
ortodoxo ao defender uma teologia racional dos escritos sagrados. O autor faz
lembrar o posicionamento de Santo Tomás de Aquino sobre conhecer ser um
pressuposto para crer, ou seja, as verdades de fé precisam passar pelos crivos da
razão para serem aceitas como tal.
O etnocentrismo é um conceito muito utilizado pela antropologia e também pela
sociologia para explicar e analisar aquelas visões de mundo nas quais indivíduos
consideram seu grupo étnico, sua nação e sua cultura como sendo mais
importantes e desenvolvidos do que os de outros povos.
Saadia, em sua principal obra, Livro das crenças e opiniões, faz uma forte e
generalizada crítica ao entendimento dos cristãos e muçulmanos que partem do
dualismo platônico para entender as escrituras sagradas. Os argumentos
expostos no livro fazem uma defesa incondicional da teologia judaica. Saadia
resvala numa argumentação autorreferente e etnocêntrica em relação às demais
tradições religiosas.
Desse modo, no curso da produção da filosofia judaica, formaram-se dois
posicionamentos antagônicos. O primeiro é a perspectiva de Saadia, a qual se
fecha numa concepção autorreferente do judaísmo e de sua teologia racional e,
com base nisso, estabelece um diálogo com a filosofia. O segundo
posicionamento refere-se a Fílon e a Israeli, ambos neoplatônicos, para os quais
existe um paralelo entre a metafísica de Platão e as verdades bíblicas. Esta
segunda perspectiva teve seu ponto forte até os séculos XI e XII, quando entrou
em declínio diante do aristotelismo medieval (Gilson, 2002).
Podemos perceber que, realmente, o movimento pendular caracterizou o
progresso do pensamento filosófico no Medievo, algo observável entre judeus,
muçulmanos e cristãos. Mesmo a escolástica não escapou disso, pois, após
séculos de pujança intelectual, teve seu ponto alto no pensamento tomista, mas
entrou em declínio para dar lugar a uma guinada agostiniana-platônica, como
vimos em São Boaventura e no movimento franciscano.
6.3
Moisés Maimônides
Figura 6.3 – Moisés Maimônides André
Müller
Moshe ben Maimon, em hebraico, ou Moisés Maimônides, em português, também
conhecido como Ramban, nasceu em 30 de março de 1135, em Córdoba, na
Espanha, e morreu em 13 de dezembro de 1204, no Egito. Entre suas obras
estão Comentários sobre a mishná, escrita em 1168, Torá mishná, de 1178, e Guia
dos perplexos, de 1190, seu livro mais conhecido.
A formação de Moisés Maimônides foi esmerada e multifacetada. Foi educado em
árabe e hebraico. Seu pai era juiz rabínico e o ensinou sobre a lei judaica e o
estudo do Talmude, que exerceu grande influência em sua formação. Vivendo
numa Espanha governada pelo islã, a família de Maimônides teve de fugir quando
subiu ao poder a dinastia Berbere, intolerante e fundamentalista. Foram tempos
difíceis e eles tiveram de viver como nômades durante mais de dez anos. Após
esse período de exílio, foram morar no Marrocos e, posteriormente, no Cairo,
capital do Egito. Estudante notável, em meio às dificuldades financeiras que
atingiram sua família, ainda jovem, teve de trabalhar para ganhar seu sustento.
Seus esforços o fizeram médico e, depois, juiz de sua comunidade, assim como
fora seu pai.
Sua cultura, seu conhecimento e sua autoridade intelectual o tornaram líder
máximo da comunidade judaica no Cairo. Maimônides escrevia tanto em hebraico
quanto em árabe. Assim, sua produção conserva os traços de um clássico, sendo
ainda hoje uma grande referência entre estudiosos da cultura e da filosofia
judaica.
O conjunto de seus escritos se afina como uma filosofia da religião de viés
aristotélico judaico. Considera-se até mesmo que tenha sido influenciado pela
obra de outro filósofo, chamado Pseudo-Dionísio, pois desenvolveu uma
argumentação semelhante à desse autor. Ambos defenderam que sobre Deus
nada se pode afirmar. Tal perspectiva ficou conhecida como teologia negativa, na
qual concluía Maimônides: “Deus não tem atributos, só podemos conhecê-lo pelo
que Ele não é” (Maimônides, citado por Kim, 2011, p. 85).
A teologia negativa de Maimônides seguiu sendo ora confirmada, como por João
Scoto Erígena, ora questionada, como por Santo Tomás de Aquino. Este último,
aliás, enumerou a onipotência, a onisciência e a onipresença como atributos de
Deus, em sua Suma teológica.
De todo modo, Maimônides foi coerente com sua função de orientador espiritual e
elaborou um conjunto de princípios da fé judaica conhecido como Os treze
princípios de fé (Chabad.org, 2016a). Seu objetivo parece ter sido o de estabelecer
a identidade e as diferenças do judaísmo em relação ao cristianismo e ao
islamismo. Os princípios podem ser lidos a seguir.
Os princípios de fé, segundo Maimônides
1. Creio com plena fé que D-us* é o Criador de todas as criaturas e as dirige.
Só Ele fez, faz e fará tudo.
2. Creio com plena fé que o Criador é Único. Não há unicidade igual à d’Ele.
Só ele é nosso D-us; Ele sempre existiu, existe e existirá.
3. Creio com plena fé que o Criador não é corpo. Conceitos físicos não se
aplicam a Ele. Não há nada que se assemelhe a Ele.
4. Creio com plena fé que o Criador é o primeiro e o último.
5. Creio com plena fé que é adequado orar somente ao Criador. Não se dever
rezar para ninguém ou nada mais.
6. Creio com plena fé que todas as palavras dos profetas são autênticas.
7. Creio com plena fé que a profecia de Moshê Rebênu é verdadeira. Ele foi o
mais importante de todos os profetas, antes e depois dele.
8. Creio com plena fé que toda a Torá que se encontra em nosso poder foi
dada a Moshê Rebênu.
9. Creio com plena fé que esta Torá não será alterada e que nunca haverá
outra dada pelo Criador.
10. Creio com plena fé que o Criador conhece todos os atos e pensamentos do
ser humano.
11. Creio com plena fé que o Criador recompensa aqueles que cumprem Seus
preceitos e pune quem os transgride.
12. Creio com plena fé na vinda de Mashiach. Mesmo que demore, esperarei
por sua vinda a cada dia.
13. Creio com plena fé na Ressurreição dos Mortos que ocorrerá quando for do
agrado do Criador.
Fonte: Chabad.org, 2016a (pt.chabad.org).
A teologia negativa desenvolvida por Maimônides está associada à tradição
judaica que concebe Deus como único, absoluto, eterno e inominável. Trata-se de
produzir uma teologia racional contra a antropomorfização de Deus, algo muito
comum nas tradições místicas de cunho politeísta. Sua análise racional da Torá
tem semelhança com a análise de Fílon, no sentido de compreender que o texto
sagrado não pode ser tomado em sua literalidade. “Quando os intelectos
contemplam a essência de Deus, sua apreensão torna-se incapacidade”
(Maimônides, citado por Kim, 2011, p. 85).
O cuidado de Maimônides em relação a Deus e à sua compreensão é de um zelo
excessivo a ponto de colocar como norma que, se alguém da comunidade judaica
insistisse em ver Deus como semelhante ao homem, conferindo-lhe atributos,
deveria ser expulso. Ou seja, parece que o esforço do filósofo foi o de estabelecer
uma identidade religiosa e teológica do judaísmo em relação aos cristãos e aos
muçulmanos.
Nada se pode dizer sobre Deus em sentido essencial. Assim, ao homem é possível
compreender os atos divinos, como ter criado o homem e revelado a palavra
divina aos profetas, mas o ser de Deus permanece inacessível à inteligência
humana. Colocar atributos em Deus seria visto como um sinal de ignorância
dessa verdade.
A rigor, a questão dos atributos que os homens podem colocar em Deus diz muito
mais sobre os próprios homens, pois são projeções e características acidentais
dos seres, como alto, baixo ou magro, isto é, são coisas que podem ou não
ocorrer, dependendo de diferentes fatores. Ou podemos dizer ainda que são
atributos essenciais, definidores dos seres, como “João é homem e é racional”.
Nesse caso, a humanidade e a racionalidade são atributos essenciais que
definem o ser particular, no caso, João. Ora, Deus, estando além da compreensão
humana, não pode ser definido, a não ser de modo negativo e alegórico. A
afirmação “Deus é justo” deve ser compreendida e interpretada pela sua dupla
negativa, o que equivale a dizer: “Deus não age com injustiça”. Assim, contemplar
a essência de Deus é um movimento de abertura e entrega do intelecto à
realidade divina, incompreensível, profunda e misteriosa.
Síntese
Ao longo deste capítulo, vimos que o debate envolvendo a fé e a razão também
esteve presente na religião judaica. Essa discussão, que envolveu a produção
filosófica e teológica medieval, perpassou as três grandes religiões de tradição
monoteísta. A filosofia judaica foi colocada por último somente para fins de
organização didática do livro, pois o judaísmo foi o precursor no diálogo entre as
verdades reveladas e o conhecimento filosófico de tradição grega. Já no século I
da Era Cristã, Fílon de Alexandria fez uma aproximação entre o conhecimento
bíblico e religioso com a filosofia. Para Fílon, as sagradas escrituras precisam ser
lidas e estudadas na busca pelo sentido moral e místico dos seus ensinamentos.
Não se trata, portanto, de um livro histórico em sentido estrito, mas de uma
coletânea de relatos que tem um claro sentido de orientação da vida social e
individual.
Seu pensamento tende a um platonismo moderado, fazendo coincidir as noções
de uno com Deus. A criação expressa essa unidade por meio do logos presente na
natureza, algo que se manifesta em um sentido teleológico presente no mundo.
Vimos, assim, que a filosofia dos gregos captou as verdades transcendentes mais
profundas da criação, mas o fez por uma percepção parcial. A racionalidade
humana não alcançou plenamente os mistérios divinos. Entre os conceitos
elaborados, ou reelaborados, por Fílon e que, posteriormente, foram incorporados
na tradição cristã, encontram-se o logos divino, potência, e o cosmos inteligível,
numa clara convergência com os ensinamentos contidos na Bíblia.
Na tradição filosófica do judaísmo, o platonismo teve maior penetração, como é o
caso de Isaac Israeli, também conhecido como Isaac Iudeus. Sua recepção da
obra de Platão o colocou como uma das primeiras referências na tradução das
obras do filósofo grego do árabe para o hebraico.
Outro nome importante na filosofia judaica do Medievo foi Saadia al-Fayyumi, que
viveu no século X e teve uma produção importante ao defender uma teologia
racional dos textos sagrados, à luz da filosofia de Aristóteles e de seu empirismo.
O autor ensinava que as verdades de fé precisam passar pelo exame da razão de
modo a tornar a fé mais consistente e esclarecida.
Considerado um dos maiores expoentes do pensamento filosófico judaico,
Moisés Maimônides se destacou pela abrangência e profundidade de suas obras.
Um dos traços marcantes de sua doutrina foi ter proposto e desenvolvido uma
teologia negativa sobre Deus, ao qual, segundo ele, nada se pode atribuir. O
argumento de Maimônides visa a purificar a teologia das antropomorfizações de
Deus.
Indicações culturais
Livros
Maimônides, M. Guia dos perplexos. Tradução de Uri Lam. São Paulo: Landy,
2003.
Trata-se de um manual de orientação para a leitura das sagradas escrituras. As
lições e os conselhos contidos no livro vão além de uma abordagem espiritual e
religiosa da vida, pois oferecem orientações sobre vários aspectos desta. Seus
ensinamentos visam a ajudar os indivíduos a compreender o mundo e a nele se
situar de modo coerente e equilibrado, em conformidade com uma vida boa e
virtuosa. Admirador de Aristóteles, Maimônides almejou auxiliar o fiel na busca da
sabedoria, propondo um exame racional das escrituras e conciliando, a seu modo,
a fé e a razão, a filosofia e a teologia, a vida em sociedade e a experiência mística.
Filmes
Alexandria. Direção: Alejandro Amenábar. Espanha: Imagem Filmes, 2009. 127
min.
O filme mostra a famosa cidade de Alexandria, que, sob o domínio romano,
vivencia um período de grande turbulência e instabilidade, quando judeus e
cristãos disputam a liderança e a soberania da cidade. A narrativa ainda resgata a
marcante personagem da filósofa e astrônoma Hipátia.
Yippee – Alegria de viver. Direção: Paul Mazursky. EUA: Film Connection, 2006. 73
min.
Esse documentário retrata uma comunidade de judeus vivendo na Ucrânia. O foco
é a peregrinação judaica, resgatando a beleza de seu cotidiano e a alegria com
que celebram as datas religiosas e comemorativas de seu calendário. É um misto
de fé, poesia e espiritualidade sobre um povo resistente e alegre.
Atividades de autoavaliação
1. Analise a alternativa que melhor expressa o conjunto de autores de quem a
filosofia judaica medieval mais recebeu influência:
a. Plotino, Sêneca, Cícero e Diógenes.
b. Platão e Aristóteles.
c. Sócrates, Platão, Aristóteles e Plotino.
d. Fílon, Santo Agostinho e Abelardo.
2. Fílon de Alexandria foi o precursor de uma tendência nos estudos das
sagradas escrituras. Que afirmação melhor representa essa tendência?
a. Teologia dogmática e exegese bíblica.
b. Hermenêutica bíblica.
c. Teologia sistemática e escatologia
d. Cosmologia e filosofia natural.
3. Considerando os ensinamentos de Fílon, assinale V para as afirmações
verdadeiras e F para as falsas:
o Operou uma síntese entre o estoicismo e o platonismo,
aproximando-se dos conceitos cristãos de Deus como unidade e
beleza.
o Criticou Platão e defendeu a separação entre a filosofia e a teologia
como áreas distintas e independentes.
o Entre seus principais conceitos figuram o cosmos inteligível, o logos
divino, a unidade e a beleza como atributos da perfeição divina.
o Assumiu os argumentos de Aristóteles sobre a concepção
cosmológica de Deus como motor imóvel e do mundo como infinito
e coeterno a Deus.
Agora, indique qual alternativa corresponde à sequência correta:
e. V, V, V, V.
f. F, F, V, V.
g. F, V, F, V.
h. V, F, V, F.
4. Entre os principais ensinamentos filosóficos de Moisés Maimônides estão:
a. Inspirado num aristotelismo adaptado, desenvolveu uma teologia negativa
sobre Deus, afirmando que a ele nada se pode atribuir.
b. Desenvolveu uma teologia natural sobre Deus e os ensinamentos bíblicos,
afirmando que a compreensão das coisas divinas é racional e autoevidente.
c. Afirmou que a Bíblia é um livro histórico e que seus ensinamentos precisam
ser atualizados e contextualizados, reforçando a tese da hermenêutica bíblica.
d. Seus ensinamentos para os fiéis que vivem no mundo e enfrentam as
adversidades de uma sociedade cética e pecadora são flexíveis. Afirmou que o
julgamento se dá na consciência de cada um em relação à sua compreensão de
Deus e de sua palavra.
5. Qual era o objetivo da teologia negativa desenvolvida por Maimônides?
a. Afirmar os atributos e as qualidades divinas.
b. Negar a possibilidade de que o homem pudesse conhecer Deus e
relacionar-se com Ele.
c. Afirmar Deus como ser inominável e evitar sua antropomorfização.
d. Ensinar que só pela negação de Deus o homem pode afirmar a si mesmo.
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Leia a seguinte frase:
Creio plenamente que o Criador foi o primeiro (nada existiu antes d’Ele) e que será
o último (nada existirá depois d’Ele). (Maimônides, citado por Kim, 2011, p. 85)
Considerando esse ensinamento de Maimônides, como você o relaciona à teoria
do Big Bang?
2. A teologia negativa desenvolvida por Maimônides está associada à tradição
judaica que concebe Deus como único, absoluto, eterno, inominável.
Trata-se de produzir uma teologia racional contra a antropomorfização de
Deus. Com base no que propõe Maimônides, explique o que significaria
antropomorfizar Deus.
3. Para Fílon, o objetivo das sagradas escrituras é passar um ensinamento
moral e religioso. O sentido literal dos textos bíblicos precisa passar por
uma exegese contextualizada e uma análise interpretativa de seus
significados. Tomando como referência essa ideia, como você interpretaria
os ensinamentos bíblicos na sociedade de hoje, especialmente as
passagens que falam de anjos, demônios e possessões diabólicas?
4. A síntese realizada por Fílon reúne a concepção estoica de razão
ou logos divino e o dualismo platônico entre o mundo imaterial e o mundo
físico, em uma tentativa de convergir sua filosofia com a ideia de Deus
criador. A relação desses conceitos com os textos bíblicos segue na
construção de uma antropologia teológica e uma moral teônoma.
Considere o enunciado acima e faça uma pesquisa sobre o que seria uma moral
teônoma e uma moral autônoma.
Atividade aplicada: prática
Assistia ao filme Alexandria (comentado na seção “Indicações culturais”) e
desenvolva uma reflexão sobre os conflitos religiosos que aparecem no filme.
Procure fazer uma comparação com as batalhas que acontecem na atualidade.
“Os grandes gênios atingem o objetivo com um só passo, enquanto os espíritos
comuns devem deixar-se guiar por uma longa série de silogismos” (Maimônides,
2016).
considerações finais
Ao longo deste livro, procuramos trazer a você, leitor, informações relevantes
sobre o instigante mundo da filosofia medieval. Assim, vimos que, para fazer uma
avaliação mais precisa da Idade Média, ora vista como uma época perdida ou de
“trevas”, ora como um período de luz e desenvolvimento, é necessário aprofundar
a análise sobre o assunto. Nosso intuito foi o de mostrar que, em termos de
produção filosófica, o Medievo apresentou um conjunto de pensadores que
marcaram a história do pensamento. Cada um, a seu modo, procurou dar uma
resposta ao inquietante problema que ocupou o centro da agenda filosófica
daquele período: o sentido de Deus na vida humana e a relação entre a fé e a
razão.
Evidenciamos que, sobre as ruínas de Roma, ergueu-se uma instituição que
marcaria para sempre os destinos da cultura ocidental. Referimo-nos à Igreja
Católica, que teve um papel de monopolizadora do conhecimento nesse período.
Boa parte da produção filosófica daquela época representou o esforço de padres
e teólogos para defender e justificar racionalmente a doutrina cristã.
Outro aspecto importante, já mencionado na introdução deste livro, foi que
trouxemos não só a produção filosófica ligada ao cristianismo, mas também a
produção ligada às filosofias judaica e islâmica. É importante registrar que o modo
como organizamos o livro se deveu a um arranjo didático a fim de facilitar os
estudos, pois, cronologicamente, a produção filosófica da Idade Média tem início
com a tradição judaica, assunto de que tratamos no último capítulo do livro.
Considerando os diferentes autores abordados, bem como seus conceitos e
argumentos, destacamos Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino, não de modo
exclusivo, é claro, tampouco por serem os maiores representantes da teologia
católica, mas, sobretudo, pelo peso teórico que tiveram no pensamento medieval.
Vimos também que os dois grandes interlocutores da produção teórica do
Medievo foram Platão e Aristóteles, sendo possível afirmar que, em suas bases, a
doutrina cristã recebeu de ambos fortes influências.
De certa forma, a filosofia medieval, quando se concentrou na discussão sobre a
relação entre a fé e a razão, colocou no centro do debate um conjunto de
questões ainda muito controversas, levantando indagações profundas que eram
(e ainda são) muito presentes no espírito humano. Trata-se de questionamentos
sobre o sentido da vida, de que forma podemos lidar com a morte, sobre a nossa
origem e o nosso destino final.
A angústia do homem medieval traduzida na busca religiosa, mesmo que muitas
vezes ingênua e alienada ou, ainda, fazendo-se presente nos diversos debates
filosóficos, reaparece em nossa época sob novas roupagens. Novos deuses,
verdades e igrejas surgem a cada dia, formando um menu ao gosto do consumo e
do individualismo típicos de nosso tempo.
Parece-nos que as esperanças de salvação de outrora reaparecem sob novos
discursos sobre a felicidade em forma de rótulos, cultos ou oferendas. Deparamo-
nos com produtos “espirituais” que invadem o cotidiano das pessoas, aliados a
infindáveis sonhos de consumo e à exacerbação do progresso material e
tecnológico. Tudo isso parece não bastar para os homens superarem o vazio e a
inquietude em face da problemática existência contemporânea.
Seja como for, o contato com a sabedoria dos grandes mestres da Antiguidade e
do Medievo, sendo cristãos, judeus ou muçulmanos, quando feito com as devidas
contextualizações, representa um manancial de conhecimento e poesia. São
autores que nos ajudam a descortinar o homem com um ser telúrico com sede de
transcendência. Foi justamente esse o ponto ao qual tentamos chegar no decorrer
desta obra.
Independentemente de sua fé, religião ou filosofia de vida, esperamos que este
pequeno livro tenha contribuído para a sua formação, oferecendo uma singela
amostra do universo rico e instigante de autores e obras que fizeram parte da
história da filosofia medieval e cujos pensamentos e indagações repercutem na
vida de todos os homens e de todas as mulheres.
referências
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Veyne, P. Quando nosso mundo se tornou cristão. 2. ed. Tradução de Marcos de
Castro. São Paulo: Civilização Brasileira, 2011.
bibliografia comentada
A seguir, apresentamos uma bibliografia comentada que irá auxiliá-lo, leitor, no
aprofundamento de seus estudos.
Ariés, P.; Duby, G. (Org.). História da vida privada: da Europa feudal à
Renascença. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. v. 2.
_____. História da vida privada: do Império Romano ao ano mil. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989. v. 1.
As obras reúnem uma coleção de textos de diversos autores com olhar
diferenciado sobre a história, atento aos sentimentos e às mentalidades dos
indivíduos de cada época. Os textos buscam captar o imaginário social e
reconstituir o ambiente da vida cotidiana dos períodos. Esse enfoque histórico é
rico em detalhes e permite que o leitor mergulhe na vida medieval, vendo-a pelo
olhar dos homens e das mulheres daquela época.
Bakhtin, M. Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Ed. da UnB, 1987.
Filósofo russo e adepto do marxismo, Bakhtin faz uma leitura histórica com base
em uma concepção dialética e materialista, buscando apreender a história como
um diálogo social, de modo a envolver os diferentes sujeitos que a fazem e dela
participam. Ao estudar o famoso escritor Rabelais, Bakhtin quer chamar a atenção
para as relações sociais das épocas estudadas e o modo como a linguagem e
seus sujeitos revelam o funcionamento das estruturas sociais e das relações entre
as classes.
Bark, W. C. Origens da Idade Média. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
Trata-se de um estudo que busca reconstituir o contexto da queda do Império
Romano e os fatores que levaram ao surgimento da Idade Média. Bark apresenta
sua análise atento às relações entre Roma e suas fronteiras, à fragilização militar e
ao colapso de sua economia.
Huizinga, J. O declínio da Idade Média: um estudo sobre as formas de vida,
pensamento e arte em França e nos Países Baixos nos séculos XIV e XV. Lisboa:
Ulisseia, [S.d.].
Huizinga se notabilizou por sua abordagem original e até polêmica do período
medieval. Entre suas conclusões, ele afirma que as condições para o início do
Renascimento já existiam dentro da própria realidade medieval. Seu estudo ainda
aprofunda questões filosóficas daquele período, mostrando as influências e
implicações da doutrina cristã sobre a realidade social e as estruturas de poder da
época.
Lewis, L. D. O islã e a formação da Europa de 570 a 1215. Barueri: Amarylis,
2010.
Na obra, Lewis traça um percurso histórico do islã, chamando a atenção para os
principais acontecimentos e nomes envolvendo a expansão islâmica pela Europa.
Trata-se de uma obra que ajuda a entender as disputas internas dentro do Império
Turco-Otomano e a relação entre religião e poder.
Polesi, R. Ética antiga e medieval. Curitiba: InterSaberes, 2014.
Embora o foco desse livro seja a discussão sobre a ética, Polesi reúne também
aspectos históricos do período medieval e apresenta alguns elementos
relacionados aos autores clássicos dessa época, iniciando os estudos com as
escolas helenísticas e indo até o fim da escolástica.
Silva, V. K.; Silva H. M. Dicionário de conceitos históricos. 3. ed. São Paulo:
Contexto, 2010
Trata-se de uma obra de referência muito importante para o desenvolvimento dos
estudos históricos. Contém verbetes pertinentes à Era Medieval e assuntos
correlatos, nos quais os autores apresentam uma exposição técnica e minuciosa
sobre cada tema, indicando uma bibliografia complementar para aprofundamento
dos estudos.
respostas
Capítulo 1
Atividades de autoavaliação
1. b
2. a
3. a
4. b
5. a
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. A Inquisição exerceu o papel de controle social e auxiliar na manutenção
da ordem estabelecida. Sua atuação tinha dois focos, o religioso e o
político.
2. A expressão representa a condição dos que se colocavam contra a doutrina
católica ou se revoltavam com a condição da vida social e da pobreza entre
os camponeses. Os insurgentes eram ameaçados e punidos tanto no plano
religioso e espiritual (a cruz) quanto no plano social e político (a espada).
3. Resposta pessoal.
4.
Aspectos positivos Aspectos negativos
Conservadorismo;
Desenvolvimento Tradicionalismo;
da teologia;
Autoritarismo;
Arte;
Fanatismo religioso;
Lógica;
Opressão política,
Arquitetura. social e religiosa.
Atividade aplicada: prática
A sociedade romana estava dividida entre patrícios (notáveis) e plebeus (povo em
geral). Havia muitos escravos, pobres e miseráveis na cidade. A concentração de
terras e de riquezas nas mãos dos oligarcas criou um clima de tensão social que
favoreceu a revolta, da qual Spartacus foi um dos líderes.
Capítulo 2
Atividades de autoavaliação
1. b
2. c
3. c
4. c
5. c
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Transcendência refere-se às realidades supraterrenas relacionadas aos
conceitos de Deus, céu, espírito etc. Imanência diz respeito às realidades
humanas e terrenas ligadas ao homem, seu corpo, seus desejos e sua
humanidade. Sagrado, por sua vez, refere-se à religião, seus símbolos,
valores, crenças e divindades, enquanto profano, utilizado em oposição à
ideia de sagrado, tem relação com o que é mundano.
2. Resposta pessoal.
3. Resposta pessoal.
4. A oração em questão representa em boa medida a mentalidade da
população medieval, especialmente das pessoas mais simples e
religiosas. Evidencia uma profunda esperança na salvação, valoriza a fé e
mostra-se pessimista em relação à condição humana de fraqueza e
pecado perante Deus.
Atividade aplicada: prática
No filme em questão, transparece a relação entre religião, política e economia. Na
visão sobre os cavaleiros templários, às vezes aparecem atitudes de fé autêntica
ou de interesses pessoais. Ao longo da narrativa, são abordados os aspectos do
fanatismo e do fundamentalismo existentes nos dois lados das batalhas, tanto de
cristãos quanto de muçulmanos.
Capítulo 3
Atividades de autoavaliação
1. a
2. d
3. a
4. a
5. b
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Para Santo Agostinho, o homem é livre e, portanto, responsável por suas
ações.
2. Sim, porque, para Santo Agostinho, irá prevalecer a justiça divina e cada
indivíduo será julgado por suas ações e omissões na prática do bem e da
justiça.
3. Para Santo Agostinho, a fé representa a ação do espírito que concede ao
homem a graça de conhecer a Deus. Trata-se de um conhecimento intuitivo
que não passa necessariamente pela razão. Muito mais importante do que
compreender racionalmente a Deus é aceitar pela fé sua existência e sua
vontade.
4. Resposta pessoal.
Atividades aplicadas: prática
1. Assim como Boécio estudou e utilizou a filosofia para resolver suas
questões pessoais, principalmente durante o tempo em que ficou preso
aguardando sua execução, também a filosofia clínica busca, por meio dos
conhecimentos elaborados pela filosofia acadêmica, ajudar as pessoas em
suas demandas existenciais.
2. Resposta pessoal.
Capítulo 4
Atividades de autoavaliação
1. a
2. b
3. a
4. c
5. a
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Existem limites em nossa linguagem para a descrição dos objetos. As
características comuns atribuídas aos seres individuais pertencem a esses
seres, mas não em sentido absoluto. De fato, os conceitos só são possíveis
por existirem certas semelhanças entre os objetos.
2. A posição de Santo Tomás de Aquino segue na direção de um realismo
moderado, o que permite falar e pensar em conceitos metafísicos, que são
a base da teologia cristã.
3. O conceito de verdade no contexto do Medievo está vinculado ao peso que
tem a autoridade da Igreja e do que está consolidado em sua doutrina
oficial, e não tanto ao aspecto racional e à validade de seus argumentos.
Atividade aplicada: prática
Elaboração de um texto livre e pessoal.
Capítulo 5
Atividades de autoavaliação
1. b
2. c
3. a
4. d
5. d
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. Ambas são religiões monoteístas, foram influenciadas pela tradição
judaica e buscaram, por meio de seus teólogos e filósofos, aproximar a fé e
a razão, a filosofia e a teologia.
2. O contato dos árabes com a cultura clássica greco-latina possibilitou a
preservação dessa sabedoria e a preparação do Ocidente para o
Renascimento. Os árabes islâmicos foram os grandes divulgadores da
filosofia grega, produzindo transcrições, traduções, comentários e obras
originais que tiveram como interlocutores Platão e Aristóteles.
3. Aristóteles e Platão representam os dois polos de onde partiu a produção
da filosofia árabe.
Atividade aplicada: prática
Produção pessoal.
Capítulo 6
Atividades de autoavaliação
1. b
2. b
3. d
4. a
5. c
Atividades de aprendizagem
Questões para reflexão
1. A visão de Maimônides é de caráter teísta e criacionista, buscando
entender o mundo e a vida humana pela ação criadora e interventora de
Deus. Seus argumentos se baseiam em grande parte no livro sagrado do
judaísmo, a Torá. O Big Bang representa uma teoria científica sobre a
origem do mundo sem necessariamente recorrer ao pressuposto de um ser
divino como causa do Universo.
2. O objetivo de Maimônides é explicar Deus pelo que ele não é, ou pelo que a
ele não se pode atribuir. Com esse viés, o autor busca evitar que a doutrina
sobre Deus sofra influências das projeções humanas, o que ele chama
de antropomorfização de Deus.
3. Texto de interpretação livre.
4. Moral autônoma é aquela que se baseia na própria racionalidade humana.
Moral teônoma é a moral que se baseia em ensinamentos religiosos e que
fundamenta seus valores e normas em livros sagrados e na autoridade dos
líderes e fundadores de uma religião. Um bom exemplo é a lei mosaica dos
dez mandamentos (o Decálogo).
Atividade aplicada: prática
Resposta pessoal.
sobre o autor
Everson Araujo Nauroski é licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo
Fundo – UPF (1999) e em Sociologia pela Universidade Regional do Noroeste do
Estado do Rio Grande do Sul – Unijuí (2013), especialista em Filosofia Clínica
(2009) e mestre em Tecnologia Educacional pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC (2002) e doutor em Sociologia pela Universidade Federal do
Paraná – UFPR (2014). Atua como docente nas áreas de filosofia, sociologia e
ética. Tem artigos publicados e desenvolve pesquisas sobre trabalho e
subjetividade. Também atua como consultor e palestrante.
SANZIO, R. A Escola de Atenas (Scuola di Atene).1509-1510. 500 cm × 770 cm;
color. Stanza della Segnatura, Palácio Apostólico: Cidade do Vaticano.
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Analista editorial
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Capa
Denis Kaio Tanaami
Projeto gráfico
Bruno Palma e Silva
Iconografia
Vanessa Plugiti
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nauroski, Everson Araujo
Entre a fé e a razão: Deus, o mundo e o homem na filosofia medieval/Everson
Araujo Nauroski. Curitiba: InterSaberes, 2017. (Série Estudos de Filosofia)
Bibliografia.
ISBN 978-8559-720-67-9
1. Deus 2. Fé e razão 3. Filosofia – História 4. Filosofia e religião 5. Filosofia
medieval 6. Livre arbítrio e determinismo I. Título. II. Série.
16-04968 CDD-189
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia medieval 189
1ª edição, 2017.
Foi feito o depósito legal.
Informamos que é de inteira responsabilidade do autor a emissão de conceitos.
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou
forma sem a prévia autorização da Editora InterSaberes.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n. 9.610/1998 e
punido pelo art. 184 do Código Penal.