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Contra-Educação Uma Reflexão Sobre Ética e Educação

O artigo discute a relação entre educação e ética, propondo que a educação deve ser vista como um processo de emancipação e diálogo. A autora critica a mercantilização da educação e sugere a necessidade de uma 'contra-educação' que desafie essa tendência, promovendo uma reflexão crítica sobre o papel da educação na sociedade. A obra busca abrir um espaço para discussões sobre a ética na educação e a importância da auto-compreensão prática das teorias educacionais.

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Contra-Educação Uma Reflexão Sobre Ética e Educação

O artigo discute a relação entre educação e ética, propondo que a educação deve ser vista como um processo de emancipação e diálogo. A autora critica a mercantilização da educação e sugere a necessidade de uma 'contra-educação' que desafie essa tendência, promovendo uma reflexão crítica sobre o papel da educação na sociedade. A obra busca abrir um espaço para discussões sobre a ética na educação e a importância da auto-compreensão prática das teorias educacionais.

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CONTRA-EDUCAÇÃO: UMA REFLEXÃO SOBRE ÉTICA E EDUCAÇÃO

Marcia Tiburi

Docente da Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
[email protected]

RESUMO
O artigo visa estabelecer nexos conceituais entre educação e ética a partir de uma reflexão sobre
teoria e prática, pensamento e ação. Pretende mostrar que esta relação vai além de uma
fundamentação teórica estanque, colocando-se ela mesma como construção movida por um
impulso ético. Neste sentido, este artigo guarda sua própria teoria e quer manifestar a
importância da auto-compreensão prática das teorias éticas, assim como das teorias da educação.
Na intenção de fundamentar a relação entre teoria e prática, o artigo dialoga com as teorias de
alguns autores que se ocuparam da questão relativa ao papel social da educação, tais como István
Mészáros e Humberto Maturana. O tema da educação como ética implica o da educação como
emancipação que se tornou conhecido a partir dos textos de Theodor Adorno. O caminho para o
despertar de uma educação como ética passa pela crítica do discurso capaz de colocar em cena a
importância do diálogo. A intenção última desse artigo é, portanto, favorecer a construção de um
conceito de educação como ética a partir da ideia de diálogo como emancipação, enquanto
repropõe a emancipação como princípio e método próprios da educação. Neste contexto, está em
análise o posicionamento da educação como discurso, como prática de conservação, contra o qual
é preciso propor hoje a hipótese prática de uma contra-educação. O desenvolvimento da
expressão contra-educação se apresenta aqui em seus sinais ainda iniciais. No entanto, deseja-se
com ela, apontar para a abertura de uma discussão necessária no campo da educação.
Palavras-chave: ética, discurso, diálogo, semi-formação, contra-educação

MÉSZÁROS, István
COUNTER-EDUCATION: A REFLECTION ON ETHICS AND EDUCATION

ABSTRACT
The article aims to establish conceptual links between education and ethics from a reflection on
theory and practice, thought and action. Intends to show that this relationship goes beyond a
theoretical tight, placing herself as construction moved by an impulse ethical. Thus, this article
guard his own theory and want to express the importance of self-practical understanding of
ethical theories, and theories of education. In the intention to substantiate the relationship
between theory and practice, the paper discusses the theories of some authors who have
addressed the question of the social role of education, such as István Mészáros and Humberto
Maturana. The subject of ethics education as the means of education as emancipation which
became known from the writings of Theodor Adorno. The path to awakening of an education as
ethics goes through critical discourse capable of staging the importance of dialogue. The ultimate
intention of this article is, therefore, favor the construction of a concept of education as ethics
from the idea of dialogue as emancipation, while reproposes emancipation as a principle and
method of education themselves. In this context, the analysis is positioning education as a
discourse, as conservation practice, against which we must now propose the hypothesis of a
counter-practice education. The development expression of counter-education is presented here

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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in its initial signs yet. However, it want to with it, pointing to the opening of a necessary discussion
in education.
Keywords: ethics, discourse, dialogue, half-formation, counter-education

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A educação desprezada: a guisa de introdução levando em conta o que diz Maturana, a


Na abertura dessa reflexão, gostaria de reflexão sobre a educação está inserida no
começar com uma frase do pensador chileno contexto maior de um projeto de país. Em um
Humberto Maturana: segundo, ligando esta questão ao que diz
Penso que não se pode Mészáros, podemos afirmar que a ordem social
refletir sobre a educação
que constitui um país, depende da soberania
sem antes, ou
simultaneamente, refletir da educação. Na produção deste nexo, a
sobre essa coisa tão
educação aparece, ela mesma, como uma
fundamental no viver
cotidiano que é o projeto potência de construção e emancipação para o
de país no qual estão
conjunto do que somos, enquanto a este
inseridas nossas reflexões
sobre educação. Temos conjunto podemos denominar “país”. Se o
um projeto de país?
projeto de país, por sua vez, é uma questão
(MATURANA, 2005, p. 12)
fundamental ao viver cotidiano, do mesmo
Gostaria antes de levantar o propósito da modo a educação que configurará, dentro de
citação acima neste contexto, de colocar em sua potência soberana, a possibilidade de
cena outra frase, desta vez do húngaro István construir um país.
Mészáros, que a complementa soberbamente: Está em jogo a criação de um projeto
O papel da educação é em que estejamos implicados como agentes
soberano, tanto para a
particulares que são ao mesmo tempo
elaboração de estratégias
apropriadas e adequadas públicos: indivíduos que são cidadãos. Como
para mudar as condições
seres que, em seu cotidiano, inventando a si
objetivas de reprodução,
como para a automudança mesmos e às instituições, criam esta coisa
consciente dos indivíduos
concreta denominada “país”. Como aqueles
chamados a concretizar a
criação de uma ordem que, ligados à seu cotidiano, percebem que
social metabólica
podem criar um país que corresponda a seus
radicalmente diferente.”
(MÉSZÁROS, 2010, p.65) anseios. A educação é, neste sentido, o
caminho por meio do qual um país se torna
Proponho, assim, o cruzamento dessas
possível. Mas este caminho precisa ser
ideias na intenção de um esclarecimento que
nos importa: em um primeiro momento,

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soberano, ou seja, livre de coações e ocupada com a emancipação de todos. Que a


violências. educação seja nosso caminho soberano nesta
Por que, então, o descaso em que se busca por uma vida mais justa e dias melhores
encontra a educação em nossa cultura? Em para viver é um desejo que não se pode ocultar
que sentido a educação se tornou um campo quando se elabora um trabalho reflexivo sobre
“desprezado”? Não será, ao mesmo tempo, o educação. Neste sentido, toda reflexão sobre
descaso em relação ao que podemos entender educação hoje é autorreferencial. A crítica da
como “nosso país”? Devo dizer aqui que não educação começa com a autocrítica.
me ocupo da questão “país” na intenção de um Assim, devemos nos perguntar sobre a
nacionalismo, mas de um problematização do educação como campo desprezado enquanto o
“locus”, do lugar onde habitamos enquanto desprezo é característica habitual de nossa
comunidade política que, desejando ou não, cultura. Mas qual seria o motivo para a
partilha do melhor e do pior no âmbito do que manutenção deste estado de coisas? Seria por
fazemos uns com os outros. Descaso e que a potência transformadora da educação
desconsideração, o desprezo, são aspectos da precisa ser recalcada diante dos poderes que
nossa cultura em seu estado contemporâneo esperam apenas autoconservação na
em relação ao qual costumamos afirmar a contramão de transformações capazes de
existência da barbárie, ou seja, de uma emancipar indivíduos e grupos a eles
violência sem medidas. Contra o nacionalismo submetidos? Se a educação é o caminho para a
proponho que interpretemos o “país” em emancipação, para a construção de um mundo
chave crítica como nossa chance de melhor para todos, por que tem sido
autoquestionamento sobre o que fazemos de abandonada à própria sorte ou transformada
nós mesmos enquanto somos, querendo ou em mera mercadoria? Se o abandono da
não, mesmo que apenas de modo espectral, educação parece ser o caminho reto para a
uma comunidade política e jurídica. Há, destruição da sociedade, teríamos que voltar a
certamente, em minha expressão, o desejo de Freud e analisar a questão do “mal estar” na
que, por meio de um avanço crítico e que educação como uma tendência regressiva?
melhore nosso modo de pensar, fazendo-nos Como lutar contra ela?
refletir, possamos ser uma comunidade real

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Vivemos num estado de educação um passo que nos permita entrar no âmbito do
humilhada pelo seu rebaixamento à que podemos chamar de ética. A intenção não
informação, à aprendizagem de tecnologias é separar ética e política, ao contrário, é
que servem, por fim, à ideologia do capital. É mostrar como no cerne mais íntimo da política
com esta ideologia que a educação tem se está posta a questão ética. Que é preciso,
confundido realizando uma autocontradição portanto, tocar neste cerne que implica a
fundamental, aquela por meio da qual ela se retomada da relação entre indivíduo e
torna o contrário do que prometia em sua sociedade. A intenção será mostrar que a
natureza mais essencial. contra-educação não é somente uma política
A “Contra-educação”, sobre a qual trata de contraposição ao poder ou à violência na
este artigo, seria, neste contexto, a luta contra qual a sociedade e educação podem ter se
o rebaixamento da educação à mercadoria tornado, mas a autorreflexão crítica da
com a qual a própria educação contribui, seja educação no sentido de uma autorreflexão
como sistema, instituição, ou prática diária. ética.
Como continuar “educando” livre da forma-
mercadoria que rebaixa a educação à coisa? Avaliar o ódio como afeto político presente na
Como continuar “educando” longe de uma educação
educação coisificada? Contra-educação não Não é apenas a reflexão sobre a ética, o
seria um retorno a um projeto de algo como que precisamos nos propor neste momento,
uma “humanização” do que se “desumanizou”, mas a reflexão ética. Não como um impossível
mas a crítica concreta – que é teórica e que tentamos contornar, mas como algo que
carregada de tensão prática – que possa nos está em nossas mãos. Isso implica levar em
levar a outro modo de ver e fazer a educação. conta em primeiro lugar que, se o problema da
A reflexão sobre a contra-educação nos educação é um problema ético, é porque ele
põe diante da questão relativa à política, a também é, antes de tudo, político. Vale a pena
saber, a um conjunto de práticas que atingem dizer que não se trata de um problema dos
a todos, pois que se referem ao poder e seus políticos apenas, como se pode facilmente
efeitos inevitáveis. Precisamos, contudo, iniciar pensar à medida que a política foi reduzida à
nossa conversa recuando um passo da política, profissão em uma sociedade que perde o

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sentido dos seus fins. Não é apenas um Capital que tem em vista o aniquilamento do
problema daqueles que praticam aquilo que outro, é que se torna urgente uma reflexão
devemos chamar hoje de violência política sobre o ódio. Trata-se de um afeto político
contra os cidadãos, o ato gravíssimo de usar da sobre o qual temos que nos debruçar hoje.
autoridade como arma do descaso, da Efetividade do antipolítico, núcleo da
negligência, da violência geral. Mas se trata de impossibilidade das relações, o ódio é o fator
um problema político em sentido mais clássico, subjetivo que se objetiva na ordem social.
da relação circular e co-referencial entre a Desprezo é a sua forma branda. Assim como a
esfera pública e a privada, da relação entre política se torna antipolítica diante de sua
indivíduos e sociedade, da relação, por fim, aparição, a educação naquilo que ela tem de
entre a própria escola, os professores e seus político, se torna anti-educação. O ódio é o fio
estudantes como sujeitos submetidos à ordem antirelacional na cena educacional brasileira
e que, no entanto, a sustentam ajudando a que se esconde atrás do sacrossanto
manter aquilo mesmo que pode aniquilá-los. cordialismo que impregna nossas relações.
Um problema político, por fim, mais Traduzido em cinismo e hipocrisia que
grave. No sentido de que somos todos organizam nossos circuitos de poder público e
atravessados pela matabilidade universal privado, devemos estar atentos à sua atuação.
(AGAMBEN, 2002), pelo fato do assassinato Se a pergunta fundamental da ética é “oque
elevado à lei subterrânea que rege a ordem fazemos uns com os outros?”, devemos assim,
social. Estamos todos calculados de algum nos perguntar o que o ódio tem feito de nós?
modo pelo poder, no ato em que os Podemos dizer que o ódio é o que
dispositivos de poder preveem que alguns partilham tanto a educação pública quanto a
sobreviverão e que outros não terão a mesma privada no antipolítico sistema geral do ensino.
sorte, seja na vida, seja no mercado - ao qual, a Como afeto essencial da política que
propósito, tem sido reduzido o sentido e o fato conhecemos hoje, ele é o que impede a
da vida. própria formação do laço que constituiria a
Neste contexto, na busca pela essência do político enquanto modo de relação
compreensão do desprezo em cujo fundo está entre sujeitos. Ele é o sinal da
a violência como projeto geral do Estado e do irrelacionabilidade entre instituições e

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indivíduos. O que temos entre nós são relações agente do conhecimento como um ignorante,
impedidas, interrompidas, relações que não o aviltamento dos professores e funcionários
chegam a se concretizar, porque desde sempre de escolas com seus baixos salários, a
surgem as cisões e separações, fraturas e inexistência ou fraqueza de projetos
fissuras no lugar onde indivíduos deveriam pedagógicos, a cobrança de resultados
interagir produzindo entendimento. puramente numéricos como se estudantes e
Uma democracia real no sentido do professores fossem operários escravizados em
melhor que podemos alcançar em termos um sistema de produção ou meros problemas
políticos, não teria apenas a ver com o oposto estatísticos a resolver. Neste quadro, apavora
do ódio, o amor no sentido piegas que a que os curricula esquecidos em gavetas
palavra assume por parte de pedagogos que o burocráticas, como pedras no meio do
professam como palavra mágica que demanda caminho (que, diga-se de passagem, devem
os impulsos melodramáticos de sujeitos permanecer no meio do caminho para o bem
envolvidos na prática de educar. O termo foi da inutilidade travestida de utilidade que é
importante no texto Educação após Auschwitz forma da burocracia) que sustentam a
de Adorno (1995) ao sinalizar para a empatia e sociedade como ela é, e o sistema no seu lugar
a capacidade de relacionar-se com o outro se confortável, não sejam melhorados. Esse é o
identificando ao seu sofrimento. Em sentido caso das escolas e também das universidades
político, amor refere-se à constituição de laços, brasileiras. Estamos no mesmo lugar de
de ligações construtivas, que permitam sempre no que se refere ao que fazer com a
experiências emancipatórias para indivíduos e educação.
coletividades. A vida antipolítica que vivemos A burocracia é o próprio sistema efetivo
hoje é o fruto do livre exercício do afeto do afeto odioso, arma destrutiva da educação
negativo do ódio que se traduz desde aspectos manipulada por ela mesma. A própria relação
mais subjetivos como a inveja, o mal estar, a com o conhecimento pode ser posta em cena
maledicência mútua, até os aspectos mais como uma relação burocrática em que aquilo
objetivos: a inviabilização de projetos, o que Adorno chamou “amor-ódio” (1985)
controle medíocre da atividade do ensino pelo quando se referia ao corpo, vale também para
manual produzido para o professor que trata o a educação em nossa cultura. No lugar do

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desenvolvimento de uma relação prazerosa assustados com o que é feito dela, justamente
com ele surge a operação pura e simples, a enquanto ela pode ser um contrapoder a tudo
“decoreba”, a repetição. Professores e alunos o que deseja destruí-la.
comportam-se da mesma maneira orientados
pela cenoura do vestibular. A burocracia é, Indústria da educação como Indústria Cultural
neste sentido, como avesso da experiência Além de político, o problema da
enriquecedora, uma das formas do ódio, a do educação é também cultural. Um problema da
ódio elevado a método de esvaziamento da cultura humana compreendida como grande
subjetividade dos participantes do processo projeto no qual todos estamos inscritos, ao
educacional. Todos odeiam uns aos outros e a mesmo tempo que postos diante de uma
si mesmos. Na educação, a burocracia impossibilidade que constitui seu paradoxo, a
representa a estratégia fundante de todos os saber, justamente o de inscrevermo-nos neste
processos de acovardamento dos sujeitos. Do projeto, desde que a questão cultural
mesmo modo que no governo, quando ela sucumbiu às demandas e necessidades de algo
representa a elevação do ódio à estratégia de como aquilo que Theodor Adorno e Max
governo, seja em seu sentido macroestrutural, Horkheimer na década de 40 do século XX
seja em seu sentido miúdo e cotidiano, do ódio chamaram de Indústria Cultural (1985).
alimentado em escala institucional e, Quando digo Indústria Cultural não me refiro
infelizmente, com seu correspondente pessoal, às pseudo-obras de arte que atingem a
contra nossos jovens, nossas crianças, nossos percepção das massas, excitando-as e
estudantes e professores. O ódio se dissemina comprometendo-as esteticamente, mas ao
como uma praga que vem destruir a plantação, poder de destruição do pensamento crítico
o cultivo que seria a metáfora melhor para pela oferta do pensamento pronto que
falar de uma educação que visa a formação constitui nossa experiência cotidiana
inclusive existencial de pessoas concretas. submetida aos meios de comunicação, à
Levá-lo a sério torna-se politicamente urgente, publicidade, à televisão. Refiro-me a eles, mas
como é urgente que se corte algum mal pela à qualquer sorte de mistificação, da
raiz. Mesmo quando se sabe que isso não publicidade à propaganda, da religião ao
ocorrerá. No caso da educação, ficamos mercado. Compreender que a educação

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também está inscrita e trabalhando para esta contemporâneo chama de “consumidores”. As


indústria, eis o que não podemos perder de pessoas que aceitam esta designação, que se
vista se quisermos fazer uma crítica auto-intitulam assim ou que simplesmente
consistente da educação que possa apontar assumem o termo que lhes foi oferecido,
para outros caminhos. Infelizmente, é preciso foram de um modo terrível muito “bem
dizer em tom de resumo: também a educação educadas” pela indústria da educação para que
torna-se indústria, quando poderia ser se sintam ofendidas por esta crítica. E não
exatamente o contrário. importa, muitas vezes, que tenham ido ou não
A pergunta sobre o que seria hoje a à escola. Pois a indústria é aliada ironicamente
indústria da educação, ela mesma parte da de certa “educação informal” às avessas sob a
indústria cultural, nos põe diante de um qual padecemos hoje submetidos à música, à
problema mais profundo relativo ao sentido televisão, às novelas, ao shopping center, à
que uma cultura pode dar ao conhecimento. ideologia do carro do ano e outras formas de
Este problema é nascido daquele uso mistificação.
instrumental do conhecimento que está na Cabe perguntar se, em algum momento
ordem da história do próprio conhecimento da história a educação – uma história recente,
enquanto ele está na mão do poder e não da pois não podemos falar em educação como a
emancipação. De Nietzsche a Foucault entendemos hoje antes do século XX - não foi
falaríamos da mera vontade de saber. Neste produção dirigida para a formação de massas
contexto, o conhecimento vale como fator de de ignorantes? Perguntar se hoje é diferente
distinção ou mercadoria relativa a uma classe pode soar irônico. A força da ignorância
social que pode pagar por isso ou aquilo. A fomentada por todos os que têm interesse no
forma mercadoria atingiu o todo da poder, tem vencido qualquer guerreiro que se
experiência humana. Há muito que está em arme na resistência contra a destruição do
jogo a transformação do conhecimento em pensamento crítico. Cabe perguntar neste
mercadoria. Há muito que estudantes de todas momento, na intenção de uma autocrítica que
as idades são tratados como “clientes”, e, por reforça o sentido da crítica, se nossa própria
fim, com o terrível nome aplicado a pessoas incapacidade de pensar a educação
rebaixadas a coisas que o capitalismo criticamente, ou de pelo menos pensá-la em

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algum nível, ou se, por outro lado, a constante educação pela “severidade” ou pela frieza, a
“romantização” da educação que nos obriga a promover o modo de pensar e agir dos
discursos de redenção pela educação, não nazistas. A “formação” de um nazista, o
seriam efeito desta indústria, ou daquilo que a caminho pelo qual alguém se torna um
sustenta, o velho desejo do lucro com a “carrasco” seria a questão. Como a educação
mercadoria, mesmo quando disfarçado? poderia colaborar para evitar que o horror se
Neste caso, não há como negar que a repetisse colocando-se a pergunta “como
santificação da educação – o fato de que alguém se torna o que é?” era um primeiro
muitos a tratem como algo sagrado - de modo passo a dar na direção de uma resistência
acrítico não é melhor do que seu abandono. contra o espírito fascista.
Isso porque a falta de crítica não conduz a Se quisermos pensar a educação como
educação à sua própria potencialidade ética. parte de nosso ideal de democracia, como a
Se a Indústria Cultural foi, para os filósofos que partilha do comum que vai além de toda
cunharam a expressão no período nazista, a mistificação, como esclarecimento e não
mistificação das massas, eles ao mesmo tempo mistificação das massas, precisamos nos
viram na filosofia e na psicanálise uma chance colocar estas perguntas. Do contrário
de apontar caminhos inversos de deixamos a educação no lugar de abandono
esclarecimento. Adorno, em um texto que se em que ela se encontra ainda entre nós. Mas
tornou conhecido “Educação após Auschwitz” se a Indústria Cultural é a produção da
(1995, p. 119) afirmou que o papel da incapacidade de pensar que nos tornaria
educação seria justamente o de trabalhar para criativos e livres, qual o caminho para
que Auschwitz não se repetisse. O campo de pensar/produzir educação que nos leve a outra
concentração se tornou simbólico do horror direção?
que o ser humano e o Estado podem fazer com
outros seres humanos. Horror movido pelo Uma outra educação implica o
ódio ao outro, pela ausência de laços de amor reconhecimento da educação como ética
que entendemos como laços políticos A compreensão do nexo entre
concretos. Num clima de perplexidade, Adorno educação e ética pode nos dar a definição
se perguntou sobre um tipo de educação, a teórica de ambas e, além, remeter-nos ao

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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centro da questão que ontem como hoje torna Isto posto, comecemos com perguntas
a educação – tanto quanto ainda é a ética - a simples que sejam capazes de nos aproximar
questão central também no que chamamos cada vez mais do tema relativo à avaliação de
política. Tal definição implica o sentido da ética uma contra-educação enquanto ela depende
como exigência de conexão entre teoria e de uma reflexão ética. Ora, de que falamos
prática que desde sempre caracteriza a quando falamos em ética? E de que
educação. Estamos diante de uma dupla exatamente falamos quando nos pomos a
banda, de dois lados que se encontram no pensar na educação? Pode parecer simples
mesmo destino. dizer que ética não se faz sem educação ou
Definir ética em sua conexão com a que educação não se faz sem ética. Mas
educação é, por sua vez, já o gesto teórico- sabemos, ao mesmo tempo, que tanto a
prático que deve nos mover quando pensamos educação quanto a ética não são temas
em uma e outra. Se falamos a partir deste fundamentais nas agendas políticas e públicas
pressuposto é porque nossa fala se orienta por de nosso país. Tampouco estão presentes em
um impulso ético que é, ele mesmo um nossa perspectiva cultural mais ampla. Se há
impulso também próprio da educação. Um um fato que aproxima os dois mundos, o da
impulso, diremos nós, não do ser, mas do ética e o da educação, é que, tanto uma
dever ser. Penso que podemos neste ponto quanto a outra, encontram-se desprezadas em
definir a ética como a reflexão sobre a questão nossa cultura. A pergunta que podemos
“o que estamos fazendo uns com os outros?” e colocar imediatamente na sequência é: qual o
podemos definir a educação como a pergunta destino de uma cultura que prescinde
pela direção de nossa ação, em outras palavras justamente de ética e educação? Saberá para
“onde queremos chegar?” com o que fazemos onde se encaminha?
uns dos outros. A reflexão sobre a educação - Mas até aqui, apenas por reuni-las,
vale dizer novamente que é ela mesma uma ainda não definimos de que modo se
ética – implica pensar a consequência do que relacionam educação e ética. Podemos dizer
se faz pelo outro, com o outro, na condução de que estão intimamente unidas. Que há um
nós mesmos, uns e outros, na direção de um nexo necessário entre elas, um nexo que,
futuro. rompido, define a derrocada da educação,

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tanto quanto da ética. Para mostrar a mútua e à educação, ao que queremos e desejamos
necessidade existente entre educação e ética, tanto da ética quanto da educação. Desejamos
é importante começar por defini-las realmente a educação? Um outra educação?
mutuamente. Mas como fazê-lo sem incorrer Uma ética? Qual ética? Sabemos o que
na mera exigência de uma para a sobrevivência obteremos por meio delas? Quais serão suas
da outra que pode simplesmente fazer girar a consequências? Trata-se muito mais de pensar
roda que não nos levará a lugar nenhum? Sem hoje no estado presente da relação entre ética
afirmar, de modo ingênuo, aquilo que sempre e educação com o mundo onde vivemos, bem
pode ser chamado pela designação de “crise” como de seu futuro e das perspectivas que
tanto de uma, quanto da outra, creio que não derivam dessa relação enquanto cada polo de
se trata de estarmos simplesmente em crise no seu enredo encontra-se em situação precária
que concerne a estes âmbitos. Há um relativamente à subjetividade em cena que
problema maior relativo ao sentido e ao inclui nosso modo de pensar ou, melhor em
conceito em cada um deles. nosso caso, de não pensar.
Deste modo, podemos entender Sob a consideração de que as
melhor o que pode um conceito, se definições têm a função de criar parâmetros de
comparamos o caso da educação e da ética comunicação, compreensão e interpretação, é
com o da arte em relação à qual também essencial afirmar uma definição da educação
temos problemas conceituais em função do como ética e da ética como educação que nos
estranhamento próprio à distância que temos faça avançar para além de uma configuração
de sua objetividade Aquilo que vale para a de disciplinas às quais elas tem sido reduzidas.
arte, vale para a educação. E também para a A obediência às disciplinas, fruto de um
ética. Cada uma delas é forjada, cada uma sistema organizado em nome da ordem, não
delas pode ser reinventada a cada dia ou nos tem ajudado. Precisamos de uma definição
simplesmente repetida como uma regra e uma que nos leve ao reconhecimento da função que
norma. tais campos da teoria e da prática têm na
Assim, é preciso resolver a questão construção interna de suas próprias
conceitual, mas é necessário também que se perspectivas e da vida de todos nós que com
percebam os afetos que nos relacionam à ética

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elas nos envolvemos em algum tempo de Comecemos pelo conceito de ética. Ética é a
nossas vidas. teoria-prática implicada na formação subjetiva
de cada indivíduo, é também aquilo que faço
O que devo fazer como pergunta da em função daquilo que penso. Não a mera
educação? racionalidade, nem a simples emotividade, mas
Com isso, tenho a intenção de aquilo que me faz agir como pessoa particular
promover uma compreensão da educação em relação ao outro. Precisamos saber que,
como algo mais do que a pedagogia que nos embora a dimensão pessoal seja fundamental
conduz à informação e mesmo à formação à ética, ela nunca é um puro problema
profissional. A intenção é inserir a educação no particular, pois a ação sempre implica a
campo maior da vida cultural, da formação da dimensão do outro. Podemos dizer que ética é
subjetividade, na contramão dos dispositivos a postura que leva em conta a existência do
que se empenham em destruí-la. A intenção outro, seja ele a natureza, a cultura, o próximo.
dessa reflexão é inserir a educação no âmbito Tampouco, ética seria a descoberta do mistério
das decisões quanto ao dia de hoje e quanto da ação justa com o qual tantos tentam reduzi-
ao futuro que caracterizam, em última la a um impossível. Muito do discurso contrário
instância, também a ética. Deste modo, ligada à ética apela para a sua suposta
à ética, a educação é envolvida pela pergunta impossibilidade prática. O mesmo pode ser
“o que devo fazer?”. Nela, outra questão dito da educação que não é, de modo algum,
fundamental está implicada: “o que devo fazer um problema pessoal, tampouco seria questão
com a educação”? Do mesmo modo que a de ordem privada. Assim, neste ponto,
pergunta sobre o que a educação pode fazer podemos definir a educação com as mesmas
pela ética, também se torna evidente. Estas palavras que usamos para definir a ética: ela é
perguntas situam os temas e a conexão a postura que leva em conta o outro. Tanto a
preliminar entre as palavras (ética e educação) ética quanto a educação relacionam-se à
e os universos por elas representados. subjetividade no instante em que o outro está
Neste caminho, devemos delimitar em jogo. Tanto a ética quanto a educação são
ainda mais os conceitos justamente para modos da ação. No entanto, enquanto a ética
permitir que mostrem seu entrelaçamento. visa o outro como um fim sem o que ela não é

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ética, a educação pode ter no outro um fim ou que se trata de um encontro conceitual
um meio. No primeiro caso ela é ética, no preciso; que as palavras serão, em nome delas,
segundo não. mais que discurso, ou seja, mais que mera
Isso nos coloca diante de um problema estratégia de convencimento, mais que
imenso. Se a educação não é ética ela é apenas domínio de quem fala sobre quem ouve, é a
um instrumento nas mãos dos poderes questão que precisamos buscar compreender.
estabelecidos, um instrumento que é, ele
mesmo, meio de manipulação cujo objetivo é Ética para além do discurso
apenas sua própria autoconservação. Podemos Assim, é preciso confrontar ética e
afirmar que ética e educação podem convergir discurso. Enquanto teoria ou fala pronta, o
na luta contra os processos de dessubjetivação discurso precisa dar espaço ao diálogo. É no
que caracterizam nossa sociedade atual no âmbito do discurso que a ética surge como
campo do trabalho, do entretenimento, da mera palavra mágica que esperamos colocar
comunicação, do mercado. E isso implica uma como rolha que tapa o vazio conceitual que
necessária crítica da educação no instante em enfrentamos. Desmontar o discurso sobre ética
que ela é mera aliada desses poderes, em que é a tarefa ética premente. Ir além do grito
se faz igualmente mero dispositivo da indignado da moral que não nos leva além dele
manutenção dos poderes. O processo pelo é algo que podemos igualmente almejar.
qual a própria educação se torna um Podemos dizer isso tendo em vista que é
dispositivo de dessubjetivação se dá também o discurso sobre ética que atrapalha a
justamente em função do recalque da ética. realização da ética. O discurso tem a função de
Ele só pode ser interrompido por um projeto tapear o problema concreto. Tendo em vista
em que a ética se torne um fim e um meio da um significado mais preciso da palavra ética,
educação e a educação um fim e um meio da busquemos aquilo que nela se guarda de
ética. comum desde ontem, até amanhã, desde seu
A intimidade implícita entre ética e aparecimento da ordem do pensamento
educação é, pois, o que se deve tornar humano até a condição de nosso desespero
explícito. Que a convivência entre as palavras atual.
deve ser mais que um esforço em reunir áreas;

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É por que não sabemos o que seja ética, ao mesmo tempo, o que complica a nossa
por que usamos a palavra sem significado compreensão neste instante em que dela
preciso que ela facilmente cai nas malhas do falamos. Isso é possível porque a palavra ética,
discurso. Falamos em nome de algo que não sempre vazia em si mesma por ser palavra e,
conhecemos como se fôssemos éticos por como tal, peça histórica que sempre reserva
simplesmente pronunciarmos de boca cheia sua distância com a coisa, define que falar não
em alto e bom tom: “ética”. Seria como dizer é, necessariamente, atingir aquilo sobre o que
“abracadabra” ou “fiat lux”. Como se o mundo se fala. Ao mesmo tempo, ética é aquilo que
da prática, de portas que se abrem às designa o pensamento que é ação, a fala que é
lâmpadas que se ascendem, dependessem ação, ou seja, ética é a palavra que retroage
apenas de uma fala. O pensamento mágico se sobre nós a cada vez que a pronunciamos
aproxima do discurso e não sustenta a ética, como se um teste se lançasse sobre nós, como
antes a inviabiliza. O uso indevido e cansativo se uma magia ou uma maldição nos atingisse
da palavra, sua mise en scène, é a prova de que enquanto nos questiona no ato mesmo de usá-
ela não vale em nosso contexto como mais do la.
que enfeite ou amuleto. Pretendemos que, Nossa dificuldade em relação à ética
pelo excesso do uso, nos tornemos hábeis está, pois, no fato de que ela não cabe no
manipuladores de suas sérias exigências, donos discurso onde ela sofre de abuso ou de uso
de seu conteúdo? Ética, porém, é uma palavra ilícito. O discurso violenta a própria ética. Mas
que, bem pensada, precisa ser pronunciada é justamente aí que ela remete para além dele.
com cuidado. Ela nos remete a outro lugar no Não há palavra para a qual mais falte
qual só poderá ser dita em relação à complemento em termos concretos. O que
concretude, à realidade, com o que se há de está além do discurso é o campo da ação e da
fazer. vida que não cabe na fala, justamente porque
Neste sentido, ou bem-dizemos a a inclui.
palavra ética, ou a maldizemos. De um modo O que a ética nos oferta, portanto, é a
ou de outro, pronunciar “ética” é já enunciar a precariedade do discurso e o avanço no abismo
fala como ação, ação que é boa, ou ação que é da existência. É a ele que a ética levada às
má. Não é o mero falar sobre, mas falar e fazer últimas consequências nos conduz, a uma

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reflexão sobre o sentido da vida. A este nada a bela prosa que, sob armadura retórica, faz-se
que temos em nossas bocas e ouvidos e que, à máscara do que realmente diz. Com isso não
revelia, nos impõe esperança, promessas e quero dizer que devemos descartar a retórica.
possibilidades. A ética não é apenas o domínio Quem conhece o funcionamento da linguagem
da ação, mas da tensão entre ação e inação, não será capaz de desconsiderar sua forma,
entre fazer e poder e não fazer e não poder. sua apresentação, a própria verdade que se
Entre destino e liberdade. Entre fatalidade, condensa em sua aparência. O recalque da
necessidade e contingência. Negligenciar a retórica em nossa cultura apenas favoreceu o
inação e a impotência, e tudo o que de avanço da falsidade da linguagem pelo
negativo a ética nos sinaliza, é perder de vista a abandono da dialética entre o que nela é
crítica em relação às promessas da própria verdade e o que nela é aparência. Retomar a
ética. Ficamos muitas vezes na ilusão da retórica hoje deveria ser possível como retorno
reconciliação entre discurso e ação porque à expressão no que se diz, para além da técnica
fingimos a inexistência desta clivagem. Falar de do dizer. Urgente, contudo, é que possamos
ética é, portanto, já falar da coisa à qual ela se combater, no âmbito da educação
refere enunciando o nó no qual estamos universitária, o belo discurso da erudição vazia
lançados entre “falar” e “fazer”: o nó de nossas que é, antiético em si mesmo, à medida que
existências sujeitas à própria decidibilidade. desvinculado do outro ao qual
Fazer da ética um discurso é já agir sem necessariamente se relaciona. O que vemos na
ética, pois a ética é precisamente a sabedoria academia hoje é, em grande medida, trabalho
prática que jamais pode transformar-se em intelectual morto, ou seja, trabalho alienado.
discurso. Se o discurso é o conjunto de ideias Aquele que não produz efeitos que não sejam
bem expostas que se contenta com sua própria o da conservação do status quo.
exposição, ele está também na prática da A filosofia, por exemplo, só pode valer
ostentação que encontramos muitas vezes em enquanto é a busca pelo desvio do discurso
nós mesmos, professores vendidos ao que se coloca como sustentação de respostas
espetáculo da erudição. ou mesmo de perguntas que apenas disfarçam
Quem ouve discurso pode tanto ouvir a respostas já de antemão colocadas. Contra o
defesa, como a explanação de uma ideia, como discurso apenas o pensamento filosófico pode

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ser gesto que se propõe como um falar-ético, em que se instaura o discurso, como mentira
uma fala que se compromete com a auto-apresentada como verdade.
desmistificação. Eis a função da ironia
filosófica, retirar-se da cena para que o outro Falar-ético: o diálogo
possa pensar por conta própria. A É certo que o campo da ética começa
ultrapassagem do discurso é algo que com nossas palavras: por meio de ações como
ultrapassa a sua própria necessidade de promessas, exposição de sentimentos,
construção e segue na necessidade de sua intenções, transmissão de informações,
desmontagem crítica. Aquele que fala de um conhecimentos, comunicações de toda sorte.
ponto de vista ético deve procurar ir além de Com a linguagem propomos algo a alguém, por
sua fala, situar a precariedade de sua própria meio dela sinalizamos o que somos e podemos
fala. Toda a fala que procura a autocrítica ser, nossos poderes, potências, impotências.
acerca de si mesma, que ofereça seu próprio Mas é certo também que a ordem da vida não
lugar como mera busca de sentido pronta a acaba nas palavras, ainda que esteja
destituir-se e desaparecer, é filosofia. intimamente a elas entrelaçada. Quando
A busca por falar para além do discurso falamos de ética falamos sobre algo mais que
acaba com o império do discurso. É preciso teoria. Falamos de teoria-ação. Ou seja, de
falar não apenas contra o discurso, mas na prática que envolve atos e gestos linguísticos: o
intenção de desfazê-lo. Na utopia de que falar mais básico deles, mas não menos importante,
para além dele seja possível. Sabendo que a é a conversação cotidiana. Trata-se de um
tentativa de criar a ética que o ultrapasse, não campo aberto à ação ética e, todavia, é
é nenhuma contradição. E mesmo que fosse território de guerra, ou campo abandonado
uma pura contradição, ainda seria válida no por nossa consciência. Nem sempre
contexto da falta de liberdade e de percebemos que todas as nossas relações são
responsabilidade que caracterizam contextos baseadas na linguagem, que os laços que
sem ética como o que vivemos. O diálogo é o estabelecemos se dão pelo conteúdo e pela
contrário do discurso. É ele que pode, à base forma do que dizemos. Por isso, a importância
de sinceridade e honestidade, mudar o cenário de, para além da tagarelice diária, para além da
fala pronta, ela mesma sempre morta e

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alienada, podermos buscar o diálogo. Diálogo é esta cultura ao se realizar na ação da reflexão
o processo de reconhecimento mútuo que se sobre o conhecimento, não apenas de sua
dá pela fala. É, em si mesmo e por si só, a transmissão. Ao se fazer, portanto, mais que
própria forma ética realizada pelo meio fala. Ele opera na construção do tempo a
simples da fala humana. perder tanto quanto do saber a perder. É,
Há quem fale de ética como um portanto, o contrário da avareza sobre a qual
avarento que recolhe moedas. Há quem creia se erige certa ciência em conluio com o
que dizendo e repetindo certas palavras, capitalismo. O falar-ético é política contra o
expressões e teorias prontas, terá lucros e capitalismo como ideologia cartesiana que
dividendos relativos à sua própria segurança tudo soma, mede, pesa e matematiza.
no território do discurso. Quem pretende ser Se pretendemos avançar com o diálogo
ético precisa aprender a desmontagem do como superação do discurso, podemos prestar
discurso e a atenção ao que vai além dele. atenção ao que nos diz Flusser sobre a
Precisamos, neste ponto, de uma distinção que questão:
leve em conta os atos de linguagem que Pode-se afirmar que a
comunicação só pode
envolvam a ética: “falar de ética” até hoje
alcançar seu objetivo, a
apenas nos levou ao declínio do “falar-ético”. saber, superar a solidão e
dar significado à vida,
O que está em jogo é justamente o “como” e o
quando há um equilíbrio
“por quê” falar de ética sem simplesmente entre discurso e diálogo.
Como hoje predomina o
continuar com o discurso e o abuso da palavra
discurso, os homens
que acaba por consumi-la. É deste gesto, que sentem-se solitários,
apesar da permanente
procura fazer de sua fala a realização da
ligação som as chamadas
própria ética, por meio de sua incorporação no “fontes de informação”. E
quando os diálogos
gesto mesmo da fala, que hoje devemos cuidar
provincianos predominam
e proteger. “Falar de ética” não faz diferença sobre o discurso, como
acontecia antes da
no contexto da cultura da avareza, antes ajuda
revolução da
com sua perfídia ou sua inocuidade (neste caso comunicação, os homens
sentem-se sozinhos,
também uma perfídia) na sustentação desta
apesar do diálogo, porque
cultura. O falar-ético, por sua vez, rompe com se sentem extirpados da

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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história. (FLUSSER, 2007, está além do fato de que sejam palavras? Será
p. 98)
este o destino das palavras que sinalizam
ideias transformadoras? Quando as associo
O dizer eticamente expressivo é a busca
deste modo, pretendo deixar claro o caráter
pelo diálogo, contra o discurso. É o dizer-
ativo da educação, o fato de que ela seja
autorreferencial que caracteriza a própria
também um pensamento-ação, uma teoria-
ética. É a busca da experiência, mais do que de
prática assim como é a ética. É desta analogia
uma verdade. É o combate à paixão triste que
entre uma e outra que é preciso partir para o
é a acumulação da certeza e do dinheiro. É
desenho de um projeto de educação/ética. Até
também contra a acumulação dos afetos que
hoje a educação tem sido transformada em
pensa toda relação como um lucro. O
mercadoria, tem sido, como a ética, violentada
ressentimento é esse lucro. Na atualidade,
e abusada. Em outras palavras, tem sido
certas iniciativas como as redes sociais são o
reduzida aos interesses do poder, ou seja, aos
retrato declarado desta cultura em que tudo,
interesses do mercado que tem se colocado no
inclusive pessoas, nomeadas em certos casos,
lugar de toda moral como a verdade da
como “amigos” tornados números, num abuso
condição humana à qual todos devem servir.
a propósito anti-ético da palavra amizade, são
Neste contexto, citarei mais uma vez
quantificados. Não há consciência coletiva do
Maturana, para que possamos usar seu olhar
absurdo deste gesto que não se depare com a
para construir o nosso próprio. Seu
banalização de um valor aceito outrora por
testemunho me parece fundamental para
todos. Por isso, a ética é também a crítica, o
pensar nosso lugar. Vejamos o que ele diz:
alerta quanto ao que fazemos sem perceber.
Quando eu era estudante
desejava retribuir à
O destino da educação e a contra-educação comunidade o que dela
recebia, sem conflito,
No âmbito do discurso, a palavra ética,
porque minha emoção e
assim como a palavra educação sofrem, pois, minha sensibilidade frente
ao outro e meu propósito
da mesma maldição generalizada. A educação
ou intenção a respeito do
compartilha de antemão com a palavra ética o país coincidiam. Mas
atualmente essa
mesmo destino. Será este o destino das
coincidência entre
palavras que pretendem dizer o mundo que propósito individual e

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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propósito social não se dá, da educação em coisa pública e privada


porque, no momento em
corresponde, em grande medida, à diferença
que uma pessoa se torna
estudante para entrar na entre a educação para ricos e para pobres.
competição profissional,
Creio que vivemos em certo círculo cínico em
ela faz de sua vida
estudantil um processo de que fingimos que essa separação de classes
preparação para participar
não está em jogo. Aos pobres, é claro, sobra
num âmbito de interações
que se define pela sempre a pior parte no contexto em que todos
negação do outro, sob o
são logrados pelo capital. Devemos ainda
eufemismo: mercado da
livre e sadia competição. A considerar que há toda uma parte da
competição não é nem
população que não tem acesso à educação e
pode ser sadia, porque se
constitui na negação do que configuram aquela subclasse social à qual
outro. (MATURANA, 2005,
um sociólogo como Jessé Souza chamou de
p.12)
“ralé” (2009). Creio que a educação como
Neste contexto, a crítica da educação mercadoria chega, em certo sentido enquanto
como mercadoria torna-se o cerne da questão. é promovida pelo governo, até esta subclasse
Ela impede uma educação ética. Uma não com intuitos de emancipação, mas de
educação voltada para os interesses do exploração radical até mesmo dos desvalidos.
mercado nunca poderá ser ética e nunca Neste contexto, é válido retomar alguns
escapará de uma política do ódio como aspectos do pensamento de Marx na forma
oposição ao outro, nunca poderá realizar o como faz I. Mészarós. Vejo nele a proposta de
sentido interno da própria educação como uma educação como política e ética. Assim,
formação do ser humano para a liberdade e a penso que avançaremos se nos perguntarmos
emancipação. sobre a própria reflexão, sobre o que significa
O ponto onde evoluiremos, a meu ver, refletir sobre educação hoje? Como professora
em termos éticos e políticos, depende no universitária que sou, ajudando a formar
contexto do capitalismo, de uma tomada de professores, coloco-me a pergunta crucial que
posição em relação ao modo de distribuição e pode nos conduzir a esta ética: em que sentido
venda desta questão humana reduzida à agimos na direção da emancipação nos
mercadoria, posto que há décadas a separação

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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processos educacionais dos quais somos O modo como a subjetividade de cada


agentes fundamentais? um é atingida pelas “verdades absolutas” em
Mészaros chamou de “contra- vigor, nos permite pensar que a ideologia não
internalização”(p.56) ao movimento contrário desapareceu, apenas se tornou mais difusa e
ao processo de introjeção da própria alienação. aparentemente menos palpável. Hoje, as
Marx chamou de ideologia à falsa consciência. pessoas internalizam, por exemplo, a regra do
Ela é, na teoria de Marx, a própria alienação consumo. Internalizaram a mercadoria como
que toma a forma de consciência. Será contra a verdade. Pais, professores e até mesmo
alienação que a educação precisa lutar se estudantes repetem a ideia de que se estuda
quiser ser emancipação dos indivíduos. Adorno para o mercado. A ideologia do vestibular
falou em contexto de ofuscamento quando se equivale ao mercado. Desejo muito que
referiu à ideologia. Mészarós elabora sua ideia possamos repensar esta questão, pois temo
na direção do que Renato Constantino, o que o problema da ideologia esteja sendo
filósofo filipino por ele citado, chamou de jogado para baixo do tapete. Não me refiro à
“Contraconsciência”. Para este autor, simples oposição entre esquerda e direita, que
“contraconsciência” significaria a ação na se não foi superada, mostrou seu engodo, mas
contramão da “modelagem de consciências no muito mais à dialética Senhor X Escravo que
interesse do controle colonial” (p.57). Ela seria ainda está em vigência quando nos ocupamos
necessária à medida que as pessoas costumam de entender a desigualdade social e os
adotar a perspectiva dominante como a mecanismos para seu escamoteamento. Me
verdadeira. “Constraconsciência parece inegável que o estado da educação em
descolonizada” é o termo que Constantino que nosso país diz respeito à manutenção da
nos mostra a chance de sair do senso comum, desigualdade social enquanto ela é oportuna
do estado que Mészáros vê como paralisante. aos donos do poder.
Devemos dizer que este estado é também Considerando estes aspectos, a especial
humilhante. O processo da internalização é o expressão “contra-educação” surge com sua
da introjeção das pressões externas força maior no âmbito desta reflexão. Refiro-
experimentadas pelas pessoas como “limites me por meio dela a uma espécie de
individuais a suas aspirações pessoais” (p.45). contracultura da educação, a um pensamento

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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crítico de desmontagem das opiniões, a meu escola pode ser um meio de emancipação, ou
ver urgente em nosso tempo. Refiro-me às simplesmente um campo de concentração de
estratégias de emancipação que escapam ao crianças e jovens que, abandonados à lei sem
controle das instituições. A uma educação fora constituição, e à matabilidade pelo sistema,
da norma, engajada com as lutas e vivem em pleno estado de exceção. Fico
movimentos sociais. Se me é permitida uma pensando na experiência escolar e no que ela
comparação, penso em uma educação que seja tem feito com as pessoas. Refiro-me a crianças,
mais arte contemporânea do que publicidade. jovens e também professores e funcionários de
Que provoque estranhamento, mais do que escolas. Refiro-me à má-formação, mas
confirmação daquilo que já se sabe. Uma também aquela semiformação sobre a qual
educação contra a barbárie escamoteada do falava Theodor Adorno há décadas.
consumismo capitalista. Uma educação em Poderíamos tentar traduzir por “educação
que a teoria não seja serva do bom meia boca” aquela que resulta do círculo cínico
comportamento e do cordialismo, nem da em que nos encontramos: uns fingindo que
inveja e da avareza. ensinam, outros fingindo que aprendem,
Por “contra-educação” entendo, pois, o algozes e vítimas, mentiroso e otários unidos
conjunto dos diálogos, debates e práticas que no mesmo círculo vicioso ao qual reduzimos
visam justamente desmontar discursos e nossa experiência formativa.
práticas pré-estabelecidos como verdadeiros Contra-educação é toda iniciativa
no campo da educação. A contra-educação contra a morte do nosso futuro e pela salvação
seria o contrário da educação humilhada pela da emancipação humana que define o sentido
dominação que a usa enquanto à aniquila. próprio de uma educação que ainda valha a
A educação como contra-educação pena promover entre nós.
pode se dar dentro e fora da escola. No
contexto da contra-educação, a escola é REFERÊNCIAS
apenas um espaço. Quando não havia escola as ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do
esclarecimento. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985.
pessoas se “educavam” em suas casas e nas
ruas. Quem não está na escola continua se ADORNO, T. W. Educação após Auschwitz. In:
_____. Educação e emancipação. Rio de
educando no contexto do mundo da vida. A
Janeiro: Paz e Terra,1995.

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136
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ADORNO, T. Teoria da semicultura. Disponível


em:
<http://adorno.planetaclix.pt/tadorno.htm>.
Acesso em: 10 out. 2012.

AGAMBEN, G. Homo Sacer. O poder soberano


e a vida nua I. Belo Horizonte: UFMG, 2002.

FLUSSER, V. O homem codificado. São Paulo:


Cosacnaify, 2007.

MATURANA, H. Emoções e linguagem na


educação e na política. Trad. J. F. Campos
Fortes. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005.

MÉSZÁROS, I. A Educação para além do


capital. São Paulo: Boitempo, 2010.

SOUZA, J. A ralé brasileira. Quem é e como


vive. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2009.

Recebido para publicação em 05/12/2012


Revisado em 19/03/2013
Aceito em 12/04/2013

Colloquium Humanarum, Presidente Prudente, v. 10, n. 1, p.35-57, jan/jun 2013. DOI: 10.5747/ch.2013.v10.n1.h136

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