Advertência
Neste livro, principalmente na parte consagrada aos povos bantos, o
leitor especializado na matéria poderá se surpreender com a gra a de boa
parte das palavras. Isso porque, nas línguas africanas, os vocábulos, já há
algum tempo, escrevem-se segundo critérios estabelecidos por convenções
nacionais ou internacionais. Em Angola, por exemplo, em várias línguas
(Kikongo, Kimbundu, Umbundu, Cokwe, Mbunda e Oxykwanyama), as
palavras são grafadas através de alfabetos criteriosamente estabelecidos pelo
Instituto Nacional de Línguas. Assim é que o antropólogo angolano
Henrique Abranches, no glossário de seu romance histórico A Konkhava de
Feti (2. ed., União dos Escritores Angolanos, 1985), reclama: “A etnologia
o cial portuguesa escrevia tudo de forma aportuguesada, dando exotismos
como ‘cuanhama’, ‘quioco’, ‘Amboela’, indo mais longe, usando até o adjetivo
Banto (masc.) e Banta (fem.)”. Mas o mesmo Henrique Abranches, no
número de estreia (1º semestre de 1984) da revista Muntu, editada pelo
CICIBA, na República do Gabão, talvez depois da primeira edição do
romance mencionado (escrito em 1968), escreveu: “A melhor forma de
representação fonética dos nomes dos grupos étnicos, uma vez que a
conceptualização [sic] dos mesmos implica um processo de abstração, seria
a de utilizar apenas o radical da palavra eliminando-lhe o pre xo que a
pessoaliza. […] Seja como for, um dia virá em que num discurso de língua
portuguesa todas as palavras serão aportuguesadas sem o complexo de ferir
susceptibilidades veracistas ou genuístas, da mesma maneira que em
português se diz ‘alemão’ e não ‘deutsch’, ‘russo’ e não ‘rusky’, como muitas
pessoas o defendem já”.
Lembramos, então, que este livro não tem critérios rigidamente
estabelecidos em relação à gra a das vozes africanas, principalmente bantas,
aqui apresentadas. Optamos pela compreensão mais fácil e pela consagração
do uso. Porque, mais que rigor linguístico, o que aqui se quer é a reparação
de uma injustiça histórica, para o resgate da identidade dos descendentes
dos africanos que forjaram a nação brasileira. Quanto à gra a “Islão”, usada
nas edições anteriores e também admitida pelo Vocabulário Ortográ co da
Língua Portuguesa (2009), embora menos usada no Brasil que “Islã”, foi
adotada, por preferência do professor João Baptista Vargens, especialista em
língua árabe, desde o nosso primordial Islamismo e negritude, texto de 1982.
Na presente edição, entretanto, preferimos a gra a “Islã”, consagrada pelo
uso popular.
O autor
Ao leitor
Desde sua primeira versão, esta obra procura mostrar dois aspectos do
preconceito antinegro embutido na historiogra a brasileira anterior à
década de 1970. O primeiro consistia na exaltação do segmento
supostamente arabizado, em geral letrado, e assim tido como a elite da
massa escravizada no Brasil. Essa parcela, embora altiva e insubmissa, era
agrantemente minoritária; e em geral praticava um islamismo carregado de
práticas ancestrais negro-africanas, aquelas tidas como “fetichistas”. O
segundo aspecto é a negação da importância cultural do segmento banto na
formação brasileira, apesar de esse segmento, pela anterioridade de sua
presença e pelo número vultoso de sua entrada nos portos brasileiros, por
mais de 300 anos – além de sua dispersão forçada por quase todo o
território nacional, em obediência aos sucessivos ciclos econômicos –, ter
sido o que mais in uiu na formação da civilização brasileira e de outras nas
Américas. Daí veio o epíteto “ancestrais esquecidos”, a eles dedicado pelo
célebre historiador e antropólogo belga Jan Vansina (apud H , 2009,
p. 7).
O escravismo brasileiro foi eminentemente banto, como prova a presença
afro-originada principalmente na música, nas danças dramáticas, na
linguagem, na farmacologia, nas técnicas de trabalho e até mesmo nas
estratégias de resistência aqui desenvolvidas. E, ainda, nos casos exemplares
dos quilombos e das irmandades católicas. Mas a historiogra a anterior à
década de 1970, de um modo geral, procurou negar essa hegemonia. E, em
nosso juízo, ela o fez com um objetivo de nido: o de negar importância à
regra, à maioria, miti cando positivamente, de certa forma, apenas a
exceção. Daí o “negro tu” (de bantu), sempre submisso e imbecilizado,
contraposto ao “malê” ou “mina”, mostrado de forma generalizada como
rebelde, altivo e letrado.
Essa visão distorcida chegou até nós e repercutiu seriamente na tentativa
de reconstrução identitária da militância negra a partir da década de 1970. E
é isso que este livro, dentro das modestas possibilidades de seu autor, em
1987, quando concluída sua primeira versão, procurou mostrar.
Após a publicação da edição revista e aumentada do livro Rebelião
escrava no Brasil, do historiador João José Reis, em 2003, acreditamos que
quase mais nada restou a dizer sobre o episódio da presença dos negros
malês no Brasil. De nossa parte, após a publicação da primeira edição do
nosso livro, travávamos contato, entre outros, com o livro Les Bantu:
langues, peuples, civilisations, do historiador e linguista congolês éophile
Obenga, que veio consolidar e atualizar nossas pesquisas sobre o universo
banto no continente de origem.
Por outro lado, a demanda suscitada pela lei que em boa hora estabelece
a inclusão de conteúdos de história africana e afro-brasileira nos currículos
escolares motivou a segunda edição de nosso livro, lançado em 1988.
Entretanto, em 2017, publicávamos o Dicionário de história da África:
séculos VII a XVI, em parceria com o professor José Rivair Macedo, da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no qual
atualizávamos ainda mais muitos conceitos antes emitidos. Assim, nesta
edição, na parte relativa aos bantos, procuramos atualizar mais algumas
informações. E na que se refere aos malês, zemos alguns ajustes, para
manter este livro em harmonia com o Dicionário. Na sequência, em 2020
tínhamos no prelo o segundo volume da obra, cobrindo o período que se
estendeu do século XVI ao XIX, o que mereceu, de nossa parte, novas
atualizações.
Então, o leitor tem em mãos uma nova edição do Bantos, malês e
identidade negra, revista e atualizada, inclusive incorporando temas e
conceitos novos. Entretanto, ela permanece el à proposta de mostrar duas
pontas do emaranhado novelo racista que ainda envolve o olhar sobre o
negro, africano ou afrodescendente no Brasil. Esperamos que, ao lado das
outras obras que escrevemos e publicamos de 1988 até aqui, este livro seja
útil na construção ou na consolidação de uma autoestima positiva no
espírito dos leitores afrodescendentes, até a nal erradicação do insidioso e
renitente racismo que sistematicamente exclui os brasileiros de origem
africana dos espaços de excelência e, consequentemente, das esferas de
decisão e poder no país em que vivemos.
O autor
Quem conhece o ontem e o hoje
conhecerá o amanhã, porque
o o do tecelão é o futuro,
o pano tecido é o presente,
o pano tecido e dobrado é o passado
Provérbio fulâni.
La illah illa Allah
(“Não há outro Deus senão Alá”)
Texto do Corão.
Ko si oba kan a Olorun
(“Não existe rei maior que Olorun”)
Evocação iorubá.
OS MALÊS
O Islã: nascimento e expansão1
A presença dos povos árabes na história da humanidade vem desde a
Antiguidade mais remota, como se pode inferir de inúmeros topônimos e
antropônimos citados tanto na Bíblia quanto em clássicos gregos e latinos.
Mas as informações sobre a Arábia pré-islâmica são objeto de polêmica
entre os estudiosos.
Os fatos históricos lá ocorridos são de difícil comprovação. Porque,
embora houvesse já uma literatura anterior, segundo opiniões abalizadas,
como a do arabista João Baptista Vargens, é com o Corão que a língua árabe
vai se sistematizar, xando para sempre sua escrita, seu vocabulário, suas
estruturas morfológicas e sua sintaxe.
Segundo, então, as descrições posteriores ao advento do Islã, no século
VII da Era Cristã, a Península Arábica apresentava três aspectos distintos
(K , 1963, p. 59): uma enorme porção desértica ao norte; uma
parte rica em vegetação tropical – o Iêmen, conhecido pelos romanos como
Arábia Felix (Arábia Feliz) – ao sul; e uma região costeira, no Mar Vermelho,
pela qual se estendia uma grande rota de caravanas ligando a terra dos
árabes à Índia e à atual Etiópia. Nesta última região, chamada Hedjaz,
erguiam-se as cidades de Meca e Medina.
No grande deserto árabe, nômades e dedicados exclusivamente à criação
e à venda de rebanhos, viviam os beduínos. O comércio entre eles e os
árabes do Hedjaz, no noroeste da Arábia, próximo ao Mar Vermelho, era
intenso. E Meca era o grande centro onde as transações se realizavam.
Mas, além de centro comercial, Meca era também e principalmente um
grande centro religioso, pois lá é que estava a Caaba, uma espécie de altar
em pedra preta sobre o qual cavam as cerca de 360 representações
simbólicas das divindades cultuadas pelas diversas tribos árabes. Cada uma
delas possuía seus próprios entes divinos, que cultuavam em regulares
peregrinações a Meca, cidade extremamente movimentada por conta desse
uxo, que fazia dela, inclusive, um grande centro comercial e nanceiro.
A essência das divindades cultuadas no templo da Caaba era
diversi cada. Algumas eram de natureza astral, como Allat, representação
do Sol, ou Al-Uzza, representação do planeta Vênus. Outras representavam
ideias abstratas, como a morte (Manat) ou o amor (Wadd). Mas, além dessas
divindades, os árabes pré-islâmicos cultuavam também seus antepassados,
seus ancestrais. E ofereciam sacrifícios propiciatórios, realizados por
sacerdotes que, igualmente, consultavam oráculos para previsão do futuro
(V ;L , 1982, p. 4).
No grande deserto árabe, os nômades beduínos subdividiam-se em
tribos independentes e rivais entre si. E no seio das próprias tribos as
diferenças se faziam notar, já que havia famílias proprietárias de grandes
rebanhos ao lado de outras que nada ou quase nada possuíam. Então, como
era de se esperar, a aristocracia beduína, à medida que suas posses cresciam,
procurava explorar os menos aquinhoados, que se revoltaram. Numa reação
em cadeia, essas revoltas levaram à união dos nômades pobres (K ,
1963, p. 60).
Como essas dissenções afetavam sensivelmente as relações comerciais, a
nobreza do Hedjaz procurava um meio de uni car as tribos beduínas e os
árabes em geral, para daí expandir seu comércio, inclusive em direção a
outros países. E essa uni cação veio, por vias transversas, com o Islã – “a
Submissão” – nova religião pregada pelo profeta Maomé desde 610 EC, ano
zero do calendário muçulmano.
A ideia monoteísta proposta por Maomé chocava-se com os anseios da
classe dominante de Meca, que tinha como sua maior fonte de renda o
comércio proveniente da constante presença de romeiros na cidade.
Julgavam os aristocratas, não sem razão, que, com a extinção, no templo da
Caaba, do culto às divindades tribais, a diminuição do movimento em Meca
abalaria seriamente o seu poder econômico. Então, empreendem uma rme
perseguição a Maomé, que, aos 52 anos de idade, em 622 (ano da Hégira –
“a fuga”), refugia-se em Medina, a cerca de 400 quilômetros; e, de acordo
com algumas fontes, também na Etiópia.
Mas a pregação de Maomé a cada dia fazia novos adeptos. E isso graças
aos fundamentos e princípios do Islã, que, além de proporem uma vida
frugal, em que as relações entre os homens fossem igualitárias, também
traziam respostas a questões de difícil solução referentes aos diversos
campos da especulação humana, como religião, direito, ética, cosmogonia,
escatologia etc. Numa sociedade altamente estrati cada e cheia de
contradições, carente de uma unidade que a direcionasse para uma vida
melhor, como era a sociedade árabe no século VII, a pregação de Maomé
obtinha amplo sucesso. Então, oito anos depois da Hégira, o Profeta e seus
seguidores voltavam e tomavam Meca, transformavam o templo da Caaba
num santuário apenas muçulmano e impunham a nova religião.
Amálgama do judaísmo com o cristianismo dentro de uma realidade
árabe, o Islã tem seus fundamentos, tais como foram “revelados” ao Profeta,
contidos no Livro Sagrado, o Corão – “a Leitura”, “o que deve ser lido”,
“recitação” – que é composto de 114 surat (capítulos) distribuídos em 1.666
aiat (versículos). Tanto os capítulos como os versículos são de tamanhos
desiguais, e os assuntos nele contidos não têm uma ordenação, podendo
muitas vezes um mesmo tema ser tratado em diversas partes do Livro.
Para a religião islâmica, “só há um deus, que é Alá, e Maomé é seu único
profeta”. E, assim como os cristãos, os muçulmanos também acreditam: nos
arcanjos Gabriel, Miguel, Azrael e Izrafel; no m do mundo; no Juízo Final;
na ressurreição dos mortos; no destino, no bem e no mal; na virgindade de
Maria; no Paraíso e no Inferno. Reconhecem a existência e a importância de
Adão, Noé, Abraão, Moisés e Jesus, a quem também consideram como
taumaturgo, mas não como “ lho de Deus”.
A fé muçulmana está sustentada em cinco pilares:
- a unidade divina;
- as cinco orações diárias;
- a peregrinação a Meca;
- a esmola aos necessitados;
- o jejum no mês de Ramadan.
Segundo os preceitos corânicos, o indivíduo não pode viver fora de uma
comunidade e deve sempre buscar melhores condições de vida, amparado
nos ensinamentos divinos. O islamismo está voltado para o dia a dia do ser
humano. Prazeres e amarguras são encarados sob um prisma prático capaz
de explicar como os opostos, combinados, são realmente o suporte do
equilíbrio da existência.
Com base nesses princípios, após a morte do Profeta, em 632, ou seja,
dois anos após sua vitoriosa volta a Meca, os califas – “os sucessores” de
Maomé – levaram adiante sua obra, uni cando toda a Arábia em torno da
bandeira verde do Islã. Esses primeiros sucessores, os chamados “califas
sábios”, são, respectivamente: Abu-Bacar (632-634), que consolidou o Islã na
Península Arábica; Omar (634-644), que conquistou a Síria, a Pérsia e a
Cirenaica, e abriu caminho para as conquistas da África do Norte e da Índia;
Usman2 (644-656), sob cujo reinado as “revelações” feitas ao Profeta foram
compiladas para formar o Corão; e Ali (657-661).
Com a morte de Ali, dois grupos dinásticos rivais, os omíadas, em
Damasco, e os abássidas, em Bagdá, na antiga Pérsia, lutam pelo poder
central do já consolidado Império Árabe. Vitoriosos os omíadas, a capital do
Império é transferida da Península Arábica para Damasco, e as inúmeras
províncias passam a ser administradas por governadores. E em 750 os
abássidas tomam o poder, levando para Bagdá a sede desse vasto império
que viverá faustosamente até a chegada dos mongóis, originários da Ásia
Central, em 1258.
Na África, a expansão árabe resultou na conquista do Egito, por volta de
645, e no estabelecimento do Islã no continente, rumo ao oeste, a partir da
África Setentrional, de onde se irradiou, como veremos, para quase até os
limites da grande oresta tropical.
A África
Até meados do século XX, o continente africano era, no senso comum e
mesmo entre alguns intelectuais, considerado, do ponto de vista cultural,
uma vastidão territorial sem história e sem desenvolvimento, povoada por
gente infantilizada que vivia ao sabor da natureza. Entretanto, a partir de
1960, com os eventos que levaram à independência de quase todos os países
do continente em relação ao colonialismo europeu, a África retomou o
processo de conscientização sobre seu passado e de rea rmação de sua
identidade.
A partir desse momento dá-se o reconhecimento gradativo – não sem
polêmicas e tentativas de desquali cação – de historiadores e antropólogos
africanos e afrodescendentes, como Cheikh Anta Diop, Joseph Ki-Zerbo,
éophile Obenga, Walter Rodney, Elikia M’Bokolo, entre outros.
***
Com uma extensão de terras que somam cerca de 8.000 km de norte a
sul, 7.600 km de leste a oeste, totalizando 30.000.000 m² de superfície, o
continente africano pode ser dividido em cinco grandes regiões.
A primeira é a África Setentrional, que se estende do Atlântico ao Mar
Vermelho, compreendendo os atuais territórios de Saara Ocidental,
Marrocos, Argélia, Tunísia, Líbia e Egito, país cuja população registra forte
presença negra, desde tempos remotos. A segunda, a África Ocidental, é
aquela região situada abaixo do Saara e do deserto da Líbia, acima da grande
oresta tropical, compreendendo Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Cabo Verde,
Mali, Níger, Chade (parte), Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra Leoa,
Libéria, Costa do Mar m, Gana, Burkina-Faso, Togo, Benin, Nigéria e parte
de Camarões.
A essas duas macrorregiões que são as que mais de perto interessam ao
nosso trabalho, podemos acrescentar:
África Central – abaixo de uma linha imaginária que vai de Duala, em
Camarões, até a região dos Grandes Lagos (Vitória, Tanganica etc.),
compreendendo Camarões (parte), República Centro-Africana, partes de
Sudão e Sudão do Sul, parte do Chade, os dois Congo, Gabão, Guiné
Equatorial e as ilhas de São Tomé e Príncipe, no Atlântico.
África Oriental – a leste e abaixo do planalto da Etiópia, incluindo a
região dos Grandes Lagos e compreendendo Sudão (parte), Etiópia,
Djibuti, Quênia, Tanzânia, Ruanda, Burundi, Somália, Uganda e as ilhas
Madagascar, Comores, Maurício, Reunião e Seychelles, no Oceano
Índico.
África Austral – compreendendo Angola, Zâmbia, Malaui, Moçambique,
Zimbábue, Botsuana, Namíbia, Lesoto, Suazilândia e África do Sul.
Essas macrorregiões incluem também regiões bastante características,
como o Saara; o Sael, que é a zona situada entre o Saara e a Savana e que se
estende pelos atuais Mali, Níger e Chade; o Darfur, na República do Sudão; a
grande oresta tropical; o deserto de Calaari etc. E dentro dessas regiões são
muito importantes o Nilo, o Congo, o Zambeze e o Níger, os quatro maiores
rios africanos.
O Níger, “grande rio de mais de 4.800 km desce da vertente setentrional
das montanhas de Kong, a parte mais alta do território da atual Guiné-
Conacri, e chega, de sudoeste para nordeste, até Tombuctu, passando por
Segou e Djenê, atravessando o lago Dibbie ou Debo; passa por Kabara, porto
de Tombuctu, depois muda de direção, correndo de nordeste para sudeste e
passando por Gogo, Say, Yaouri e Boussa; aí atravessa o maciço das
montanhas de Kong e termina no Golfo da Guiné num vasto e pantanoso
delta”. Assim escrevia, em 1878, o célebre geógrafo francês P.-F. Bainier, na
página 483 de sua monumental La Géographie, editada em Paris pela
Librairie Classique d’Eugène Belin.
Às margens desse rio, que banha Guiné, grande parte dos atuais
territórios de Mali, Níger, Benin e enormes vastidões da Nigéria, foi que se
passou grande parte da história que pretendemos contar.
A África antes do Islã
Tanto a África do Norte quanto a África Oriental têm ligações com os
árabes há muitos séculos, desde bem antes do advento do Islã, num tempo
em que todas as relações comerciais entre a Ásia e o continente africano
eram monopolizadas por mercadores árabes. No primeiro século da Era
Cristã, árabes do Iêmen, que abasteciam a Índia com mercadorias africanas,
eram também o principal elo nas ligações entre a África Oriental e a Etiópia,
por um lado, e as civilizações romana, grega e persa, por outro.
Muito antes dos tempos do profeta Maomé, caravanas de mercadores
viajavam da Arábia, país já com signi cativa população afronegra, até o
delta do Nilo. E ainda no período pré-islâmico, comerciantes iemenitas
foram se estabelecer na Somália, na Etiópia e ao longo da costa oriental
africana, sendo profundos conhecedores das trilhas do deserto que levavam
ao norte.
A partir de 622, ano da Hégira de Maomé, a penetração dos árabes na
África se faz obedecendo mais a ditames religiosos que mercantis, às vezes
resultando em miscigenação com populações berberes nativas. E se processa
através de duas rotas: uma pela costa oriental, da Somália até Moçambique;
e outra por terra, do Egito até o Magrebe, e chegando até as bordas da
oresta equatorial.
Entre 730 e 739, feitorias árabes são instaladas respectivamente na Ilha
de Pemba, em Quíloa, na Tanzânia atual (K -Z , 1972, v. II, p. 437). Mas
até o início da era muçulmana, tudo que o mundo conhecia da África, além
do litoral do Mediterrâneo, vinha sobretudo das relações entre os árabes do
Iêmen e a vizinha Etiópia, deles separada apenas pelo Bab-el-Mandeb, um
canal do Mar Vermelho. Esta é, inclusive, a razão de a denominação “etíope”
ter sido utilizada durante toda a Antiguidade, e até bem depois, para
designar qualquer habitante negro do continente africano.
Da mesma forma, a denominação de “sudaneses” dada aos africanos
ocidentais também se deve aos árabes. É que, penetrando no continente, já
em nome do Islã, como veremos adiante, os guerreiros árabes descobriram
que aquele enorme território que se estende das fraldas do Planalto da
Etiópia até o Atlântico, como destacamos páginas atrás, era habitado por
pessoas de aparência diferente. Então chamaram a região de Bilad al-Sudan,
ou seja, “País dos Negros”. Entretanto, desde muito antes da chegada dos
árabes – e desde o alvorecer da humanidade – já ocorriam no “país dos
negros” e em toda a África sérias e profundas transformações; que inclusive
faziam nascer civilizações admiráveis.
Entre 3000 e 2500 antes da Era Cristã, núcleos agrícolas já se
desenvolvem na Etiópia e nos cursos alto e médio do Rio Níger. Entre cerca
de 2500 e 500 da mesma era processam-se migrações a partir do Saara, para
o sul, o sudeste e o leste do continente africano. No século XI AEC, o Reino
de Cuxe desenvolve-se extraordinariamente, entre os atuais territórios de
Sudão e Egito. Por volta de 593 AEC, Cuxe transfere sua capital de Napata
para Méroe, onde, aproximadamente meio século depois, já se encontra uma
metalurgia do ferro altamente desenvolvida. Na mesma época, por volta do
ano 100, desabrocha na Etiópia o Reino de Axum. A partir,
aproximadamente, do ano 4000 AEC já orescera a civilização egípcia, cujo
esplendor vai até 525 AEC, quando o Egito cai sob o domínio persa, sendo
depois conquistado por Alexandre da Macedônia (332 AEC), anexado por
Roma (3 AEC) e nalmente islamizado, a partir de 639 EC.
Cheikh Anta Diop, historiador e cientista africano, assegurou que a
pujante civilização egípcia nasceu na Núbia. E assim demonstrou:
A civilização do vale do Nilo nasceu da adaptação do homem àquele meio peculiar. Pelo
testemunho dos antigos e dos próprios egípcios, esta civilização teve sua origem na Núbia e
desceu, de alguma forma, acompanhando o curso do Nilo em direção ao mar. Este fato é
principalmente con rmado quando se sabe que os elementos fundamentais da civilização
egípcia não se encontram nem no Baixo Egito, nem na Ásia, nem na Europa, mas sim na
Núbia e no coração da África; é particularmente lá que se encontram os animais e as plantas
que serviram para criar a escrita hieroglí ca (D , 1979, v. II, p. 350, tradução nossa).
Quanto à África Ocidental, o tempo que se passou até a chegada dos
conquistadores árabes foi durante muitos séculos considerado um período
obscuro em face da carência de relatos escritos, que só apareceram
efetivamente nos séculos XVI e XVII, com o Tarikh al-Fatash e o Tarikh al-
Sudan, registros escritos respectivamente por Muhammad Kati e
Abderrahman Al-Saadi, ambos nascidos em Tombuctu, no atual Mali. Mas o
trabalho de arqueólogos contemporâneos, aliado aos relatos da tradição
oral, conseguiu resgatar boa parte desse passado. Prova disso é a descoberta,
através de esculturas, utensílios e joias em bronze e terracota, da chamada
civilização de Nok – na região próxima a Jos, na região de Zaria, na atual
Nigéria, ao norte da con uência dos rios Níger e Benué –, que teve seu
apogeu de 900 AEC até o século III de nossa era. Prova também são as obras
de arte encontradas em Ifé, também no atual território nigeriano,
igualmente anteriores à chegada do Islã àquela região.
Em 1910, o etnólogo alemão Leo Frobenius descobria essa arte de Ifé e a
arte do antigo Benin,3 que examinaremos adiante. A partir daí, a Europa
tomava conhecimento: dos inestimáveis acervos artísticos do palácio do obá
(rei) Behanzin, em Abomé; das obras em terracota do povo Sao, na atual
República do Chade; das estatuetas dos povos mandês (ou mandingas); dos
enfeites de ouro dos axantis e dos baulês. E através de outras fontes, tomava
conhecimento, por exemplo, de que o Império do Gana, ou Gana-Uagadu,
constituíra-se talvez no século IV EC, graças ao ouro, à introdução de novas
culturas agrícolas e a novos instrumentos (F , 1967, p. 45).
Observemos que, antes do efetivo início do processo de islamização do
continente africano, como veremos adiante, a África Ocidental conhece um
padrão de desenvolvimento bastante alto. E os antigos Estados do Kasson e
do Djolof, do Gana, do Mali, dos songai de Gao e do Kanem, bem como os
reinos de Ifé, Oyó e Benin, são excelentes exemplos da pujança das
civilizações pré-islâmicas da África Ocidental.
Kasson e Djolof
Em tempos remotos, todo o vale do rio Níger foi palco de grandes e
intensas migrações. Em meio a essa grande movimentação, na região da
Senegâmbia, ao sul do deserto do Saara, surgia o Reino Kasson, mais tarde
limitado a leste pelo Reino de Galam, ao centro pelo Bambuque e a oeste
pelo Kaarta. Seus fundadores eram ancestrais do atual povo Kassonqué.
Segundo algumas tradições, esses primeiros habitantes tinham como líder
um guerreiro chamado Manga, que, depois de erguer a capital, pressionado
por um inimigo mais forte, emigrou para a região de Kaarta, indo dar numa
cidade chamada Koniakari, cujo rei era pai de uma princesa incrivelmente
bela.
O chefe Manga, cujas esposas só lhe tinham dado como lhos pássaros e
lagartos, apesar de seus 86 anos desposou a princesa. E desse casamento, que
uniu dois reinos sob a mesma coroa, nasceu Tambo, cuja mãe, no mesmo
dia de seu nascimento, morreu picada por uma serpente. Aos 44 anos,
Tambo mata o velho pai e assume o poder. A partir daí, o reino se arruína
até a chegada dos peules, cujas origens estudaremos adiante. Che ados por
Ilo, os peules matam Tambo e restabelecem a ordem.
Casando-se com a lha de Tambo, Ilo tem um lho, Segaudá, e seu reino,
com o nome de Kasson, prospera admiravelmente. Pela mesma época –
escreveu Pedrals (1949, p. 131) – chegou à região do Futa-Toro, no Senegal
atual, o chefe Sabur Minguê Diaye, ou Ndiadiane Ndiaye, que, vindo de
Misra (o Egito), fundou o Reino Djolof, que englobava também os povos
Uolofe, Serere e Diaogo. O líder Ndiaye mais os três reis que o sucedem
constituem a dinastia dos Lemfados. Mas essa dinastia é apeada do poder
pela dinastia dos Satiguis, que dá ao Djolof 25 reis. E foi sob o último deles,
Suleiman Bale, que o Islã chega ao atual território do Senegal.
Assim contam as tradições locais. Vejamos, entretanto, que “Ndiadiane
Ndiaye” é apenas um dos nomes ou cognomes pelos quais passou à História
o fundador, no século XIII, do grande Reino Djolof ou Jolof, também
mencionado como Sabur Minguê Ndiaye e Burba Jolof. Alguns autores
a rmam ainda que seu nome muçulmano seria Amadu Bubacar; e
Ndiadiane Ndiaye, um epíteto ou denominação religiosa, ao mesmo tempo
que Ndiaye seria o nome de seu clã, e Burba, seu título monárquico,
correspondente a “rei” (L ;M , 2017, p. 221).
Gana, Mali, Songai e Kanem
Segundo Basil Davidson (1967, p. 81), o antigo reino “do Gana” – este
nome era apenas um dos títulos do rei, pois os locais o referiam como
Uagadu4 – teve seu apogeu entre os anos 70 e 1200 EC. Mas autores como
Philippe Aziz (1978, p. 242) e outros acreditam que o orescimento desse
império remonte ao século IV, tendo sido fundado por povos berberes,
segundo uns, e segundo outros por africanos mandês ou mandingas do
grupo Soninqué (Soninké), também chamados markas ou saracolês. O reino
ocupava uma área talvez tão vasta quanto a da moderna Nigéria, e incluía os
territórios que constituem hoje o Mali ocidental e o sudeste da Mauritânia,
tendo sido a cidade de Kumbi Saleh,5 no atual território mauritano, uma de
suas últimas capitais.
Conforme alguns relatos históricos, o Gana-Uagadu era tão rico em ouro
que seu imperador – adepto da religião tradicional, assim como seus súditos
– era chamado justamente de “o Senhor do Ouro”. Sobre um dos
governantes desse Estado – o tunka (rei) Manin, que subiu ao trono no ano
1063 EC –, diz-se que comandava um exército de 200 mil guerreiros e,
quando dava audiência ao povo, tinha à sua volta pajens com espadas e
escudos de ouro, príncipes luxuosamente vestidos com enfeites de ouro nos
cabelos e cães de raça com coleiras de ouro e adornos de ouro e prata.
Bem antes desse rei, entre 734 e 750, uma expedição árabe tenta dominar
o Antigo Gana e não consegue. Três séculos depois, Al Bakri, historiador do
império, encontra lá descendentes desses árabes completamente integrados
ao povo da terra, inclusive praticando a religião tradicional. Nessa religião,
segundo Joseph Ki-Zerbo (1972, v. I, p. 138), o principal culto era o de
Uagadu-Bidá, a “Serpente do Uagadu”, antepassado totêmico (representação
simbólica sagrada) dos cissês, dinastia que reinou nos últimos 300 anos do
império. Segundo a tradição, Bidá saía da toca no dia da coroação do rei e
uma vez por ano recebia como sacrifício a mais bela virgem do Antigo
Gana. Certo dia, como diz também a tradição, Kaya Magan Cissê, rei que
assumiu o poder em 790, vendo sua noiva entregue à Serpente, matou o
animal. Foi por isso que a região do Antigo Gana, entre o sudeste da
Mauritânia atual e o oeste do Mali, teria se tornado uma região árida, estéril,
desértica, como é na atualidade.
No século IX o Gana controlava toda a região do Uângara (Wangara),
entre o curso superior do rio Níger e o do rio Senegal, produtora de grandes
quantidades do ouro, que era comercializado através do Saara. Além desse
ouro, prisioneiros de guerra e escravizados em geral eram também vendidos
pelo império em troca de sal e de roupas do norte do continente.
Com a concorrência de outras potências no comércio do ouro, o Antigo
Gana começou a declinar. Até que, por volta de 1076, em nome de uma fé
islâmica ortodoxa, berberes da dinastia dos almorávidas, vindos do
Magrebe, atacaram e conquistaram Kumbi Saleh. A partir daí, enquanto
ocorria a rápida decadência do Antigo Gana, crescia a oeste, na região do
Tekrur, o reino dos sossos, também integrante do universo Mandê.
Fundado no século VIII, esse reino se expandiu entre 1076 e 1180 sob a
dinastia dos diarrissôs, um clã do povo Soninqué, seguidor da religião
tradicional. E em 1180 passou a ser governado por líderes sossos do clã dos
ferreiros kantês, também convictos praticantes da religião dos antepassados.
Desse clã, o mais célebre membro foi Sumanguru, ou Sumaoro Kantê, que,
segundo Ki-Zerbo, era um bravo guerreiro e profundo conhecedor de alta
magia e encantamentos.
Com o Gana já bastante enfraquecido, Sumaoro conquista Kumbi Saleh
aos almorávidas, em 1203. Mas seu poder só dura até 1235, ano de seu
confronto com o Sundiata Keita, Sogolon Djata ou Mari Djata, legendário
soberano do Mali, sob cujo domínio o combalido Gana cai em 1240, como
adiante veremos.
Os fundadores do Antigo Mali teriam sido caçadores reunidos em
confrarias ligadas pelos mesmos ritos e celebrações da religião tradicional,
todas afeitas à prática e ao uso da magia e dos encantamentos. Tanto que os
primeiros chefes usavam o título de Simbon, ou seja, “mestre caçador” (K -
Z , 1972, v. I, p. 164). E a rmeza com que praticavam a religião de seus
ancestrais veio até bem depois do advento do Islã, já que, segundo relatos da
época, os griôs da corte praticavam ritos “pagãos” paramentados com
máscaras de aves e mantinham no palácio dois carneiros, para neutralizar as
in uências malé cas (K -Z , 1972, v. I, p. 175). Os griôs ou djelis,
poetas, cantores e historiadores das cortes do Antigo Mali, eram os
depositários da história e da tradição oral de seu povo, bem como da
genealogia da família dos reis. Assim, constituíam uma categoria especí ca,
exercendo uma atividade hereditária.
No início, o Mali compreendia dois reinos distintos. O primeiro, ao
norte, onde reinaram sucessivamente os traorê, na região de Kiri; os konatê,
no Dodugu; e os keita, na região de Narena. O segundo, ao sul, com capitais
primeiramente em Dyeriba e depois em Niani, próximo à moderna
República do Mali, na fronteira com a Guiné-Conacri, e compreendia as
cidades de Djenê, Tombuctu e Gao, no médio Níger. Essa Djenê, entretanto,
não é a mesma de hoje. Trata-se aqui da Djenê-Jeno (“Djenê, a antiga”, na
língua Songai), distante três quilômetros da atual e que teve seu apogeu
entre os anos 750 e 1150, com uma população de cerca de 20 mil habitantes
(C UNESCO, 1984, p. 12).
Conquistando o que restara do Antigo Gana em 1240, Sundiata Keita
expandiu seu império, cuja organização estatal já obedecia às leis islâmicas
desde o século anterior. E o Mali marcou seu prestígio, principalmente sob o
mansa (rei) Kanku Mussá, como veremos adiante, só perdendo a hegemonia
do rico comércio sudanês em 1468, para seus antigos vassalos do reino
Songai de Gao.
O Império Songai, conforme a tradição, teria suas origens num
antepassado lendário, o gigante comilão Faran Makan Botê, do clã dos
pescadores sorkos, que teria reinado em estreita aliança com os caçadores
gows (K -Z , 1972, v. I, p. 181).
Segundo a tradição, Faran Makan comia um hipopótamo inteiro e bebia
a água de todo um rio de uma só vez. Segundo essa mesma tradição, os
sorkos têm uma divindade protetora, Harakê, uma bela mulher que mora no
fundo do rio Níger e para lá carrega seus eleitos.
Por volta do ano 500 – diz ainda a tradição –, guerreiros berberes,
che ados por Diá Aliamen, teriam chegado à curva norte do Níger,
tomando o poder aos sorkos, que se utilizavam de um peixe sobrenatural
para aterrorizar e dominar os povos vizinhos. A partir daí, a dinastia dos diá
reina em Kukya,6 uma ilha perto do Níger, até 1009, quando o reino se
converte o cialmente ao islamismo e transfere a capital para Gao, onde a
dinastia reina até 1335. Nesse ano, o povo Songai se liberta do Antigo Mali,
de quem se tornara vassalo em 1275, e começa a conquistar as regiões
vizinhas, com um bem treinado exército que dispõe inclusive de um corpo
de cavalaria. E com Chi Ali Ber, o Sunni Ali (1464-1493), conquista
Tombuctu em 1468, anexando o Antigo Mali e assumindo a hegemonia do
Bilad al-Sudan, “País dos Negros”, como os antigos árabes denominavam o
que hoje conhecemos como África Ocidental.
Outro grande Estado da África subtropical, orescido por essa época, no
norte da atual Nigéria, a nordeste do lago Chade, foi o Kanem-Bornu.
Fundado pelo chefe Saif do povo Kanuri, falante da língua Kanembu, por
volta do ano 800 esse reino tinha como capital a cidade de Njimi.
Sobre a religião do Kanem-Bornu informa Ki-Zerbo (1972, v. I, p. 200):
“A dinastia do Kanem conservava um ‘feitiço’ venerado, chamado muné ou
moni. Era, segundo alguns, o espírito dos antepassados, simbolizado numa
efígie de carneiro. […] Para outros era uma espécie de vaso sagrado que
continha relíquias como o tibo mossi, e que ninguém devia destapar”.
Durante o reinado do primeiro Umé (1085-1097), entretanto, o Islã se
tornava a religião o cial do Estado.
No século XII o Kanem-Bornu já controlava grande parte da região ao
redor do lago Chade. No seguinte, cava ainda mais forte, sob o governo de
Dunama Dibalemi. E no m do XVI começava a se expandir sob o reinado
de mai Idris Aluma (1571-1603), morto em combate com os hauçás de
Kano.
Ifé, Oyó e Benin
Entre os séculos VI e XI, procedente, segundo algumas tradições, do
nordeste, talvez do Egito e da Etiópia, em levas sucessivas, o conjunto de
povos falantes da língua Iorubá (de Oyó, Ifé, Ilexás, Efan etc.), mais tarde
conhecidos como “iorubás”, xa-se em seu atual sítio, que compreende
partes do sudoeste da Nigéria e partes do Benin e do Togo.7 Nesse território
fundam dois reinos importantes e harmônicos entre si: Ifé e Oyó. Observe-
se que os egípcios atuais são um povo árabe, mas sua composição étnica se
originou da fusão de povos oriundos do leste e do curso superior do rio
Nilo, que nasce no centro do continente africano, próximo ao lago Vitória.
Os habitantes de Ifé viviam mais ou menos espalhados por diversas
localidades, praticando uma re nada modelagem em terracota, por meio da
qual reproduziam, de forma absolutamente naturalista, principalmente
cabeças humanas. E esse estilo artístico, semelhante ao desenvolvido em
Nok, na con uência dos rios Níger e Benuê, séculos antes, foi característico
de outros sítios iorubás das atuais repúblicas da Nigéria e do Benin.
Por volta do século XII, Ifé era uma cidade-Estado cujo soberano, o oni,
era reconhecido como chefe religioso pelas outras cidades iorubás. Isso
porque Ifé é o lugar a partir de onde as terras teriam se espalhado sobre as
águas originais para, segundo a tradição local, fazerem nascer o mundo.
Já em torno do século XVI, Ifé teria sido conquistada por povos
estrangeiros, dos quais os atuais iorubás seriam descendentes. Provas disso
seriam emblemas, insígnias e cerimônias que diferem sensivelmente dos
usados e praticados pela nobreza iorubá contemporânea, em relação às
referências simbólicas propaladas por outros grupos que se dizem
descendentes dos reis da primeira fase de Ifé. De concreto sabe-se,
consoante Ryder (1984, p. 7), que, nesse século XVI, os falantes do Iorubá
eram expulsos da antiga Oyó pelos nupês (tapas), estabelecendo-se no
território onde se localiza a atual cidade de Oyó.
Segundo a tradição local, Ifé foi fundada por Odudua, tido como o
grande ancestral de todos os iorubás e cultuado como um ser divino, lho
do próprio Olodumare, o Deus Supremo. Em outras versões míticas, é
mencionado como lho de Lamurudu, rei de Meca; e, em outras ainda, seria
Nimrod, herói bíblico, lho de Cuxe, tido como o primeiro conquistador do
mundo. Já Oyó teria sido fundada pelo lho de Odudua, Oraniã, que, por
sua vez, teria sido sucedido por Xangô, um de seus lhos.
É importante observar que os povos falantes do Iorubá formaram uma
federação de cidades-Estado tendo como centro Ifé. Mas Oyó foi a cidade de
maior sobrevida histórica, a ponto de alguns de seus soberanos, portadores
do título ala m (“senhor do palácio”), serem mencionados em obras de
autores inquestionáveis. Assim, segundo Palau Martí (1964, p. 27), o
primeiro ala m de Oyó foi Odudua, o segundo foi seu lho Oraniã, o quarto
foi Xangô, e o sexto foi Aganju. Esses nomes referem heróis divinizados,
presentes na tradição religiosa dos orixás cultuados no Brasil e em outros
países das Américas. Daí podemos avaliar a importante contribuição desses
remotos reinos iorubás para a formação da nação brasileira.
O termo “iorubá”, signi cando algo como “astucioso”, era usado pelos
fulânis e hauçás para designar somente o povo de Oyó (B , 1969, p. 5).
Mas, a partir da metade do século XIX, a ação colonial inglesa e dos
missionários religiosos julgou por bem reunir arbitrariamente todos os
falantes da língua Iorubá e seus dialetos sob o etnônimo “iorubás”. E assim
cou.
Os iorubás tinham uma organização complexa e so sticada. No campo
religioso, submetiam-se à autoridade máxima do oni de Ifé, e em matéria
política, à do ala m de Oyó, mas cada cidade tinha a sua autonomia
administrativa.
O poder municipal era exercido por duas instituições: a assembleia
Ogboni, uma sociedade secreta; e o balé, um governador por ela nomeado
para um mandato de duração limitada.
Os princípios religiosos e éticos que regiam a vida dos antigos iorubás e
ainda orientam muitos de seus descendentes foram recriados no Brasil e nas
Américas por meio das religiões ditas “de matriz africana”. E muitos
conteúdos originados de suas práticas culturais aqui sobreviveram, como
veremos adiante.
Enquanto a arte africana tradicional geralmente é abstrata (não procura
imitar a realidade), a arte legada ao mundo pela civilização de Ifé é
extremamente realista, do ponto de vista ocidental. Compreendendo
esculturas em pedra, terracota e principalmente bronze, essa arte se ocupa
de todos os aspectos da vida dos habitantes do reino.
As esculturas de bronze de Ifé, cuja descoberta assombrou o mundo,
espantam primeiramente pelo realismo. Depois elas chamam a atenção pelos
detalhes, como minúsculos orifícios existentes na testa, em volta da boca e
nas maçãs do rosto de certas esculturas. Em alguns desses orifícios,
pesquisadores encontraram pequeninas contas pretas, talvez representando
bigodes e barbas ou talvez signi cando aquela cortininha de contas que
cobre o rosto do oni (rei) entre os iorubás, como ainda hoje vemos, aqui, nos
paramentos com que são representados alguns orixás da tradição afro-
brasileira.
Outro detalhe interessante nas cabeças de bronze de Ifé são as
escari cações existentes em alguns rostos. Para uns, essas estrias
representariam marcas usadas por certos grupos étnicos ou clãs. Para
outros, seriam, bem mais que isso, um recurso para tornar as esculturas
ainda mais belas quando olhadas de longe, com a luz batendo sobre elas.
Segundo a tradição, o primeiro exemplar em bronze da arte de Ifé seria a
cabeça de Obalufã, um dos soberanos do reino. Trata-se, ao contrário das
outras, de uma verdadeira máscara, feita para ser usada no rosto de
determinada pessoa no curso de determinada cerimônia em homenagem ao
oni.
Assim como a arte de Ifé e a de Nok (anterior a esta em mais de mil
anos), outra descoberta arqueológica importante foi a dos bronzes em Igbo-
Ukwu, próximo a Awkar, no sudeste da Nigéria, datados do século IX.
Igualmente celebrado por sua arte, o antigo Benin, situado a sudoeste de
Ifé, foi fundado, segundo relatos tradicionais, também por Oraniã, lho de
Odudua, sendo então intimamente aparentado com Oyó e Ifé. A primeira
dinastia a reinar teve, segundo os mitos, 12 obás (reis) e terminou por uma
revolta que deu origem a um regime republicano, talvez no século XII,
quando se constituiu em reino. Seu apogeu ocorreu no século XIV, com o
obá Eware, que replanejou e reconstruiu a capital, dando-lhe o nome de
Edo, que perdura até hoje, no território da atual Nigéria.
Conta a tradição que Oguolá, o sexto obá do antigo Benin, pediu ao oni
de Ifé, por volta de 1280, que lhe mandasse um mestre fundidor. Esse mestre
é que teria ensinado aos artistas do reino a fundir o bronze. Na estatuária
negro-africana, o predomínio quase que absoluto é das esculturas em
madeira. Nisso, então, é que consiste a singularidade da civilização de Ifé e a
do reino de Benin, sua descendente direta (Alan Ryder diz que Ifé-Benin
eram dois reinos e uma só cultura). Despontando na Idade do Ferro (século
V AEC) com as obras de Nok, passando pelo século IX, com os bronzes de
Igbo-Ukwu, e chegando ao século XVI, essa foi talvez a única civilização
africana em que a escultura foi além dos trabalhos em barro e madeira,
legando ao mundo so sticadas obras em bronze e latão.
Na arte do antigo Benin, testemunho da grandeza de uma civilização
também impressionante, as esculturas representam sempre ou o obá e sua
corte, ou animais como galos e leopardos, ou, ainda, combates com feitos
guerreiros.
Segundo os especialistas, essa arte compreende:
- uma primeira fase, que começa no século XII e se estende até meados do
século XIV;
- um segundo período, que vai mais ou menos de 1350 a 1500;
- uma terceira época, que se estende do século XVI ao XVII e à qual
pertencem as obras mais conhecidas;
- nalmente, uma fase referida como francamente decadente,
consequência do trá co e das guerras, que se situa entre os séculos XVII
e XVIII.
Grande parte desse valioso tesouro artístico foi, sobretudo no nal do
século XIX, objeto de pilhagens cometidas por autoridades coloniais
inglesas e incorporada a acervos de importantes museus europeus e norte-
americanos. O acervo do Museu Britânico, em Londres, inclui peças levadas
do Reino de Benin, como o botim de uma “expedição punitiva” comandada
pelo militar e arqueólogo Augustus Pitt Rivers, em 1897.8
A economia e a estrutura social de todos esses reinos, do Gana a Oyó, do
Songai ao antigo Benin, eram bastante peculiares. Intrincadas rotas de
comércio os ligavam a quase todo o resto da África. Os mercados de aldeia
funcionavam todos os dias, tanto como bazares de compra e troca quanto
como pontos de encontro e intercâmbio de notícias e experiências. Algumas
cidades viviam integralmente do comércio, tornando-se centros irradiadores
de cultura para toda a África. E a religião tradicional, que compreendia o
culto às forças da natureza e à força vital dos antepassados, tinha os mesmos
fundamentos – com variantes locais – do Antigo Gana ao Império do
monomotapa, no Zimbábue de hoje.
Este, em linhas gerais, foi o Bilad al-Sudan que o Islã encontrou em sua
caminhada africana.
O Islã na África
Como vimos, as relações entre árabes e africanos datam de muitos
séculos. Mas é com o advento do Islã que de fato os árabes começam a se
estabelecer no continente africano, iniciando, a partir de 639, o processo de
islamização – embora já em 622, em plena Hégira, seguidores de Maomé,
segundo consta, tenham pedido asilo ao rei de Axum, na Etiópia.
Em 639, então, os árabes chegam ao Egito e iniciam a sua obra de
conquista. Entre avanços e recuos, num confronto muitas vezes violento
com a religião tradicional, o Islã vai se impondo e, com o passar do tempo,
intercambiando alguns elementos com as práticas religiosas da tradição
local. Daí resultou, segundo Albert N’Goma (1950, p. 333-343), a existência
de duas vertentes desse Islã negro-africano: uma que chegou pelo mar e se
expandiu pela costa oriental do continente até quase Moçambique; e outra
que veio por terra, de acima do Saara, e se espraiou pelo Bilad al-Sudan.
Sobre essas duas vertentes, vejamos as palavras textuais de N’Goma
(1950, p. 334): “As duas expansões têm origens muito diversas: são obras de
povos muito diferentes e se acusam mutuamente de desvios tão graves que
di cilmente o hiato entre elas poderá ser reparado. Rivais, quando não
hostis, elas seguem cada uma o seu destino”.
A primeira grande investida do Islã no Bilad al-Sudan ocorreu sob o
comando de Amir ibn al-As, em 640 (B , 1962, p. 21). Com a Arábia já
uni cada, os exércitos muçulmanos partiam, com o to de levar a palavra
do profeta Maomé a todos os lugares do mundo.
Saindo da Palestina, Amir ibn al-As cruzou a região do monte Sinai (ou
monte Horebe; em árabe, Jebel Mussa, “monte de Moisés”) e entrou no
território africano, à frente de sua cavalaria beduína. Já próximo ao vale do
rio Nilo, o comandante é abordado por um mensageiro do califa Omar,
portador de uma mensagem escrita. Temendo que o objetivo fosse dissuadi-
lo de seus planos, o conquistador resolveu guardar a mensagem para ler
depois. Só muito longe dali, já em pleno deserto, soube do seu teor: “Se ao
ler esta mensagem você ainda não tiver chegado ao Egito, então volte. Mas
se você já tiver chegado, então aja, com a ajuda de Alá”. O guerreiro agiu.
Numa sequência, Farama, Belbeis, Mên s e Alexandria foram tomadas
pelas tropas muçulmanas, que, fortalecidas por novos batalhões vindos da
Arábia, avançavam também para o sul, chegando às portas da Núbia.
Avançando para oeste, a palavra e a espada de Alá vão chegando à
Tripolitânia, à Cirenaica e ao atual Magrebe. E em 681, outro comandante,
Uqbah ibn Na , chega ao Atlântico e exclama: “Ó Deus de Maomé! Se eu
tivesse certeza de existirem outras terras para além destas águas, eu iria até
lá e levaria a glória do Teu nome!”. Outras terras havia. E, muitos séculos
depois, com os malês escravizados, o nome de Alá, mal ou bem, chegaria até
elas.
Na região do Magrebe, a conquista árabe encontrou forte oposição por
parte dos berberes, habitantes das áreas montanhosas e desérticas. Mas, ao
nal do século VII, a maioria deles já abraçara o islamismo e propagava a
nova fé, inclusive integrando os exércitos das dinastias que se sucediam no
poder e na conversão dos povos locais ao islamismo. Entre os séculos XI e
XIII, lideranças berberes tiveram todo o norte da África sob sua autoridade.
Entretanto, a penetração, também, de tribos árabes desagregadoras resultou
na completa arabização desses berberes, que acabaram por se concentrar em
três grupos distintos. Os das montanhas mais remotas permaneceram fora
do controle político islâmico, conseguindo conservar sua língua e seus
costumes (L ;M , 2017, p. 59).
Em um pioneiro estudo datado de 1950, o historiador africano Albert
N’Goma divide a caminhada do Islã na África Ocidental em quatro fases:
- Fase berbere (século XI) – correspondente à jihad (guerra santa) dos
almorávidas;
- Fase mandinga (século XIV) – correspondente à hegemonia do Império
do Mali;
- Fase songai (século XVI) – contemporânea da dinastia dos askias, do
Império Songai;
- Fase peule (século XVIII) – a partir da jihad de Usman dan Fodio.
A fase berbere
A conquista árabe a partir do Egito encontrou, no Magrebe, região no
extremo-oeste africano, forte oposição por parte dos berberes, o aguerrido
povo local. Mas, ao nal do século VII, a maioria deles já abraçara o
islamismo e propagava a nova fé, embora adaptada às suas tradições; e
inclusive integrando os exércitos das dinastias que se sucederam no poder.
Entre os séculos XI e XIII, lideranças berberes tiveram todo o norte da
África sob sua autoridade. Mas com a ocorrência, também, de invasões de
povos árabes nômades, desagregadores e com propósitos diversos dos
primeiros conquistadores, os berberes, ao menos nas regiões abertas,
tiveram de buscar apoio nos árabes já estabelecidos, daí resultando sua
assimilação. Nesse processo, a maioria dos berberes renunciaria a seu nome
antigo para se juntar a clãs árabes de mais prestígio, do que redundou sua
divisão em três grupos distintos e a permanência dos berberes das áreas
mais acentuadamente montanhosas fora do controle político islâmico
(G …, 1998, p. 737). Esses muçulmanos desgarrados, embora várias
vezes forçados à reconversão, conseguiram conservar sua língua e seus
costumes.
Nessa sequência de acontecimentos, liderados por Ibn Yasin, os
almorávidas – dinastia muçulmana de origem berbere que reinou no
Magrebe e na Andaluzia – levaram a efeito, a partir de 1042, uma bem-
sucedida guerra santa. Conquistando e convertendo diversos povos da
África Ocidental, capturando a importante cidade de Audagost e assumindo
o controle do Marrocos, sua saga só se interrompeu, brevemente, com o
assassinato do líder, em 1057. Mas, após este, as conquistas continuaram,
com Abu Bacar, que tomou Kumbi Saleh, e com Yusuf ibn Tach n, que, ao
norte, estendeu o império para além do Magrebe e até a Andaluzia, na
Espanha. Com a morte de Yusuf, em 1106, o Império dos Almorávidas
começa a declinar.
A fase berbere, caracterizada por intenções talvez mais políticas que
religiosas, começa pela conversão de alguns nobres e se implanta, pela
violência, primeiramente no Gana-Uagadu, e depois entre os tuculores,
songais e diulas nos atuais territórios do Mali e do Senegal. Os diulas, aliás,
tornam-se, por sua vocação de comerciantes itinerantes, os grandes
propagandistas do credo islâmico por toda aquela imensa região, levando-o
até os limites da oresta equatorial.
Com os berberes almorávidas, então, a família real do Gana se converte,
em 1076. E, a partir daí, no rastro das conquistas dessa dinastia, aderem à fé
islâmica o imperador do Songai – o dia kossoi de Kukya; o tunka do Antigo
Gana; o ume, rei do Kanem; e o mansa No n Traorê, primeiro soberano do
recém-uni cado Mali (K -Z , 1972, v. II, p. 439-440). Dia kossoi, tunka e
mansa são títulos dinásticos de soberanos.
A fase mandinga
A história conhecida do Antigo Mali9 começa, de fato, com o
mencionado mansa, que, depois de instalado em Kiri, converteu-se ao
islamismo e recebeu o nome “Traorê”, designativo de sua conversão. Além
dele, os outros cabeças de linhagem desse legendário império são Guimba
Konatê e Kabala Keita. Como mencionado páginas atrás, os traorê, os
konatê e os keita reinaram sucessivamente na parte norte do Antigo Mali.
Em certo momento, entretanto, os keita se transferem de Narena para
Dodugu, e um deles, Narê Fá Maghan, casa-se com uma moça da linhagem
dos konatê e, aliando-se aos traorê, vence os familiares de sua mulher,
tornando-se imperador dos malinkés por volta de 1218.
Em 1228, entretanto, Dangaran Tuma, lho e sucessor de Narê Fá
Maghan, perde o controle do Mali para o rei sôsso Sumaoro Kantê, antes
mencionado, que havia submetido o já decadente Gana. Sumaoro, que era
casado com Kongo-Ba, irmã de Dankaran Tuman, extermina toda a família
real, da qual só se salva um jovem aleijado, Sundiata, mais tarde celebrizado
como o grande herói do povo mandinga.
Conta a tradição que Sundiata Keita, Sogolon Djata ou Mari Djata, o
“Príncipe Leão”, foi aleijado até os 10 anos de idade, quando, sozinho, teria
cado de pé, apoiado em duas barras de ferro que se vergaram ao seu peso.
Ante esse fato, alguém sugeriu que lhe dessem o cetro, bastão de poder, de
seu pai para que com ele se erguesse, o que aconteceu. Assumindo o reinado
com cerca de 20 anos, em 1240, depois de um longo exílio, anexou ao Estado
Mandinga o Reino do Gana e reorganizou seu império, criando um novo
sistema de governo, com muito sucesso. Após sua morte, em 1255, foi
sucedido pelos seguintes soberanos: mansa Ulé (1255-1270), Uali (1270-
1274), Kalifa (1274-1275), Abu Bacar I (1275-1285), Sakura (1285-1300),
Gau (1300-1305), Mamadu (1305-1310), Abu Bakr II (1310-1312), que teria
perecido numa expedição marítima às Américas, Kanku Mussá (1312-1337),
Magan I (1337-1360), Suleiman (1341-1360), Kassa (1360-?), Mari Djata II e
Mama Magan.
Sobre o Império do Mali, conta a história que em 1324 o mansa Kanku
Mussá, sua maior gura depois de Sundiata, fez uma peregrinação a Meca, o
cidade santa do islamismo, acompanhado de cerca de 60 mil súditos (entre
nobres, escravos, sábios e soldados), transportando perto de 2 mil toneladas
de ouro. No Cairo, quando por lá passou, distribuiu generosamente esse
ouro, exatamente para maravilhar os nobres do Egito. De volta, levou para o
Antigo Mali sábios e arquitetos, como o célebre andaluz Ishaq EI Tuedjin,
dito Al-Sahili. Mandou construir em Tombuctu a grande mesquita de
Djinger-Ber e o palácio real, tudo fazendo para islamizar inteiramente um
império – “do deserto à oresta”– que em sua época foi, comprovadamente,
a maior potência política, comercial e intelectual do oeste africano.
Esse império dos povos mandingas, que uni cou grande parte da África
Ocidental e atingiu o seu mais alto grau de evolução com o mansa Kanku
Mussá, durou cerca de 300 anos (C , 1964, p. 94). Aplicando ora a
centralização, ora a descentralização administrativa, de acordo com as
peculiaridades de cada país que o integrava, o império tinha como elo entre
esses países o mansa, um imperador que, assim como o tunka do Antigo
Gana, era o sacrossanto e todo-poderoso pai do seu povo. À época de Kanku
Mussá, a capital imperial era Niani (ou Mali), cuja localização é imprecisa,
sendo provável inclusive que a sede do governo tenha mudado de lugar em
várias ocasiões.
O império dividia-se em províncias (como Tombuctu, Djenê e Gao) e em
reinos tributários (como o Songai, o Diarrá e o Sôsso), que eram nada mais
que fragmentos do Antigo Gana, separados quando da conquista
almorávida. As províncias eram che adas por um farban ou farbá escolhido
pelo mansa. E os reinos eram governados por reis-vassalos que se sucediam
segundo as tradições de seus povos, mas jurando delidade ao mansa e
observando deveres para com ele: pagavam impostos, forneciam soldados e
mandavam seus lhos para serem treinados na Corte.
Por volta de 1275, sob o reinado de Abu Bacar I, o Antigo Mali conquista
o Songai. Cerca de 50 anos depois, talvez em 1325, regressando de sua
legendária peregrinação a Meca, o mansa Kanku Mussá passa pelo então
reino tributário de Gao, de etnia Songai, acha-o muito carente e pouco
muçulmano, manda erigir lá uma mesquita e leva para seu reino, “para se
aprimorarem na doutrina islâmica”, os lhos do rei songai, o Diá Assiboi
(K -Z , [s.d.], I, p. 172). Um desses príncipes é Ali Kolen, que, em 1335,
rompe com o Mali, liberta seu povo e sucede seu pai com o título de sunni
(chefe, salvador), e por sua vez é sucedido por seu irmão Sehman Nar.
Essa dinastia dos sunni que substitui a dos diá é que vai fazer do Songai o
Estado líder da África Ocidental. E sua importância vai se concretizar já no
século XV, com o sunni Chi Ali Ber.
Subindo ao trono de Gao em 1464, o sunni Ali se destaca como um dos
maiores reis-guerreiros da história universal. Corajoso e inteligente, expande
seu império, conquistando e incorporando Djenê, Nioro e Tombuctu. Chega
até o Daomé, subjuga o Reino Mossi e o Império Mandinga. No plano
interno, consegue contornar os graves con itos de interesses entre os
muçulmanos e os adeptos da religião tradicional, sendo, por isso
mencionado em fontes árabes como “libertino, opressor, celerado e
fetichista” (A , 1978, p. 286) para os historiadores árabes e um grande
herói para seu povo. Seus súditos diziam que ele era “sempre vencedor,
jamais vencido” e que não morreu, mas foi, isso sim, levado vivo pelos
deuses. Depois de sua morte, em 1492, subiu ao poder seu lho, o sunni
Barô, e, depois, com Muhamad Turê, assume o comando do Império Songai
a dinastia dos askias.
A fase Songai
Muhamad Turê, também mencionado como Muhamad Torodô (ou Sylá),
toma o poder em 1493. Muçulmano fervoroso e profundamente rígido no
controle dos costumes, fez também, durante seu reinado, uma peregrinação
faustosa e espetacular a Meca, como zera o mansa Kanku Mussá, quase
dois séculos antes. De volta, empenhou-se numa jihad, numa guerra santa,
“em nome de Alá”, ampliando as fronteiras de seu império e conquistando os
estados hauçás de Gobir, Kano e Katsina e o Reino Mossi, no atual território
de Burkina Faso. Durante seu reinado, em 1510, o geógrafo Leão, o
Africano, um mouro de Granada, visitou a cidade de Tombuctu e,
impressionado com suas universidades e suas 180 escolas corânicas,
escreveu: “Há em Tombuctu muitos juízes, doutores e sacerdotes…
Vendem-se, também, muitos livros vindos da Berbéria. Esta venda dá mais
lucro do que o resto do comércio” (apud M , 1986, p. 66).
Em 1528, esse askia é derrubado do trono por seu lho Mussa, que reina
até 1531, sendo sucedido por Muhamad Bankan Korei, que, por sua vez,
governa até 1537. Nesse ano, um outro lho do velho askia Muhamad Turê,
que já está paralítico e cego, é por ele investido no poder como seu
partidário e legítimo sucessor. É o askia Ismael, o Piedoso, que permanece
no trono até 1530, quando é sucedido por Ixaque I.
Durante o governo desse askia Ixaque I, que dura exatamente dois anos,
começam as investidas do Marrocos, que vão acabar por aniquilar o
grandioso e legendário Império Songai. Mas a história do reino ainda veria
um grande governante, na pessoa do último lho de Muhamad Turê, o askia
Daud, que reinou durante 33 anos, de 1549 a 1582, fazendo do Império
Songai de Gao um Estado forte e muito bem organizado.
Após Daud, o Império é governado sucessivamente pelos askias EI-Hadj
Muhamad, Muhamad Bano e Ixaque EI Zagrhani, todos seus lhos, até
1591. E daí até 1595 por Muhamad Gao e Nuh, os últimos soberanos.
Desde o reinado de Ixaque I (Ishaq: 1539-1549) o Marrocos já voltava
seus olhos para o Bilad al-Sudan. É que em 1492 os espanhóis católicos
punham m ao domínio muçulmano na Península Ibérica, reconquistando
o Andaluz (Al-Andalus), emirado instituído pela dinastia dos omíadas.
Como escreveu o historiador Basil Davidson (1981, p. 66), o Andaluz foi
“um rico Estado africano que se formou na Espanha”. Seu fundador e
primeiro soberano foi Abd-El-Raman, príncipe lho de um árabe com uma
berbere e pertencente à dinastia dos omíadas. Com a derrota desses para os
abássidas, em 750, esse príncipe refugia-se na região de sua origem materna,
no Marrocos atual, e lá reúne um grupo de seguidores. Com esse grupo,
procura um local para se estabelecer. E resolve ir para o sul da Espanha,
onde já havia uma colônia berbere, e lá funda, em 756, o Califado de
Córdoba, origem do Andaluz.
O destino desse Estado esteve sempre ligado ao norte da África, região
com a qual manteve, ao longo de sua história, as mais estreitas relações.
Assim, com a grande arrancada dos almorávidas, o Andaluz – como o Bilad
al-Sudan – é conquistado por estes no século XI e pelos almoadas no século
seguinte. E até 1492 é parceiro constante dos reinos do norte da África e
fonte para eles de prestígio, riqueza e poder.
Com a reconquista da Espanha pelos católicos, então, o norte da África
se enfraquece. Aí, os marroquinos partem para a conquista do Bilad al-
Sudan.
Sobre as razões e a estratégia dessa guerra, avaliemos este trecho do
escritor português Antônio de Cértima (1947, p. 177-178):
Arruinado pelas guerras e rebeliões internas, o sultão El Mansur viu como único meio de
refazer o seu erário entrar na posse das lendárias riquezas auríferas do Níger, de que tanto se
falava na sua corte. Não se preocupando muito com fórmulas, despachou uma carta ao askia
Ixaque cominando-o à entrega imediata das salinas lacustres de Tegaza, situadas no limite
norte do Sahara. Era um pequeno rodeio diplomático. Desejando o ouro, pedia-lhe o sal…
Mas o askia de Tombuctu não se intimidou. No seu sangue selvagem referveu-lhe a lembrança
daquele que tinha sentado no mesmo trono: Sonni Ali! Respondeu sem palavras, entregando
ao mensageiro um punhado de frechas aceradas, juntamente com um par de cadeias de ferro,
das que se amarram aos pés dos escravos. Ao receber-se este terrível desa o, como na corte de
Menelau, um incêndio de furor se levantou em Marraquexe. E logo seis mil [sic] mercenários
se prepararam para a destruição da capital sudanesa!10
Efetivamente, em 1590, por ordem do sultão Mulay Ahmad Ech Cherif –
chamado “Al-Mansur, o Vitorioso”, e “El-Dehbi, o Dourado” –, um exército
de 4 mil homens penetra no Saara em direção do rio Níger (A , 1978, p.
300). São muçulmanos da Espanha, escravos cristãos libertos e mercenários
vindos de outros países, que, comandados pelo paxá Djuder, um renegado
espanhol, escrevem, com armas desconhecidas e altamente letais, um novo
capítulo na história das guerras e da destruição. Mosquetes e arcabuzes
trovejam pela primeira vez na África. Um exército composto de infantaria,
cavalaria e artilharia começa a destruir o esplendor do último dos grandes
impérios negro-africanos.
O primeiro confronto ocorre entre Tombuctu e Gao, próximo às
localidades de Bamba e Burem, e o segundo ocorre em Tondibi, no atual
território do Mali. Após essa batalha, o askia Ixaque ruma para Gao, a
capital do Songai, e de lá propõe a paz, inclusive facilitando a chegada do
paxá Djuder a Tombuctu, onde o ambiente estaria mais calmo. Entretanto, o
sultão Al-Mansur, em Marrocos, não aceita a paz. E envia outro paxá em
substituição ao renegado andaluz Djuder.
Em 1591, em Gao, o novo comandante marroquino – Mahmud Ben
Zergun – impõe outra derrota ao exército songai. Ixaque recua para Korai
Gurmah e é deposto, assumindo seu trono o irmão Muhamad Gao.
Tomadas por Ben Zergun as cidades de Gao, Djenê e Tombuctu, o
Songai, já sob o comando do askia Nuh, parte para a guerrilha. Morto em
combate esse askia, seu sucessor, Seliman, consegue o apoio dos mossis.
O intervalo bambara
Após a Batalha de Tondibi, os marroquinos mostraram-se incapazes de
administrar a vitória, tanto pela vasta extensão do território supostamente
conquistado quanto pelo engano cometido, ao pensarem que o Songai era
um Eldorado de riquezas abundantes e fáceis. A desorganização que
sucedeu à guerra inviabilizou as redes de comércio através do Saara, o que
resultou em um período de constantes rebeliões, com a proliferação do caos
e da anarquia. E tudo isso concorreu para interromper o processo de
expansão do islamismo na região, contribuindo para o crescimento da
importância do povo Bambara.
Os bambaras11 são originários da região do Sael, do país Mandê, Mandê
ou Mandi, núcleo irradiador de centenas de povos – entre as quais os
malinkês, soninkês ou saracolês e diulas – que habitam o território
localizado entre a costa atlântica, o rio Senegal e o rio Níger, até a República
do Benin. Sua origem mais remota, entretanto, seria o Toron, província
oriental do Uassulu, situada na atual Costa do Mar m, entre Odienné e
Sikasso, de onde teriam vindo para seu sítio atual no século XII. Com a
queda do Império Songai, migrações populacionais zeram com que, na
região de Djenê, eles tivessem seu primeiro contato com os peules, que no
século XVII os conquistaram e organizaram o Reino Bambara na região de
Segu.
Durante muito tempo, os bambaras se caracterizaram, no oeste africano,
como rmes praticantes da religião tradicional e, consequentemente, um
dos povos mais resistentes à islamização.
A fase peule
Com a decadência e a queda do Gana, enormes massas populacionais se
deslocaram por distâncias imensas, em busca de melhores condições de
vida, o que provocou o intercruzamento e a mestiçagem de muitos povos da
África Ocidental. Alguns desses povos mesclaram-se aos peules, fulas ou
fulânis,12 que, por sua tradicional condição de pastores, levavam uma
existência nômade, desde pelo menos o início do século XI, por várias
regiões da parte oeste do Bilad al-Sudan.
No século XV, lideranças dos peules se instalam na região do Maciná,
próxima a Tombuctu, e fundam principados entre os vales dos rios Níger e
Senegal. Durante os séculos seguintes, outros grupamentos do mesmo povo
constituem um Estado nas montanhas do Futa Djalon, em território hoje
pertencente à Republica da Guiné-Conacri. E no século XVIII outros, ainda,
saem do Futa Toro, na margem leste do rio Senegal, para se xarem no
Gobir, um dos sete Estados hauçás.
Os hauçás, mestiçados aos peules (fulânis, fulas ou fulbés), são o grupo
étnico majoritário na atual Nigéria. Sua língua, a mais falada pelos
habitantes do norte daquele país, constitui, hoje, uma espécie de “língua
franca” em grande parte da África Setentrional.
Hauçás, peules e tuculeres são grupos étnicos miscigenados entre si, o
que gera alguma confusão. Sobre isso, inclusive, e falando do clã de Usman
Dan Fodio, líder a quem adiante aludiremos, Joseph Ki-Zerbo (1972, v. II, p.
14) assim se manifesta: “O clã dos Torobés […] é de etnia tuculeres. São
constantemente confundidos com os peules. No país Hauçá havia duas
categorias diferentes de peules (Peules Borodji e Peules Jidá)”.
Quanto à distribuição geográ ca desses povos, acrescentamos que: os
peules expandiram-se a partir de uma enorme área que vai do Senegal até o
norte da atual República dos Camarões, incluindo o norte de Nigéria e
países vizinhos; os hauçás se espalham também por uma grande área que
compreende a Nigéria meridional e o sul da República do Níger; e os
tuculeres (oriundos do antigo Império do Takrur – no vale inferior do rio
Senegal que se tornou parte do Império do Gana e, depois, do Mali)
localizam-se basicamente no território senegalês.
Crescendo amplamente no século XIV, o chamado “País Hauçá”
compreendia as cidades-Estado de Kano, Daura, Biram, Rano,Gobir, Katsina
e Zaria (ou Zauzau), e mais os reinos menores de Nupê, Kebbi, Yelwa,
Gwari, Ilorin, Zamfara e Kwarafar (ou Karorofa).
Cada uma das sete cidades cumpria uma função especí ca: Gobir
cuidava da defesa, principalmente com relação aos grandes reinos de Mali e,
depois, Songai; Kano e Rano ocupavam-se basicamente da extração mineral
e da produção agrícola; Daura e Katsina eram essencialmente praças de
comércio; e Zaria vivia mais da atividade escravista.
Desses Estados, a história que se conhece melhor é a de Kano. Situada
entre o rio Níger e o lago Chade, como as demais, seu desabrochar remonta
ao século XI, quando teria sido fundada, segundo a lenda, por descendentes
dos sao, um povo mitológico, de gigantes dotados de uma força
extraordinária.
Entre 1350 e 1385, aproximadamente, Kano se torna um centro
propagador do islamismo. No século seguinte, com Mohamed Rimfa (1463-
1699), conhece um esplendor admirável e combate as outras cidades,
principalmente Katsina e Zaria. No século XVI é invadida pela onda
conquistadora dos songa.
No Bilad al-Sudan, segundo Ki-Zerbo (1972, v. II, p. 13),
o Islã fora desde séculos um fermento de integração política, mas raros eram os países em que
tinha penetrado em profundidade nas massas. Em geral, estava con nado a letrados (faqi) e
príncipes, que o exibiam com frequência num cenário de prestígio para uso externo,
exatamente como muitos reis convertidos na costa faziam com o cristianismo. A verdadeira
inclinação destes chefes era para as práticas animistas. Eram assim os sultões das cidades
haúças.
Os movimentos ocorridos no século XVIII na região do Futa Djalom, e
em territórios dos atuais Nigéria, Mali e Senegal, em geral che ados por
reformistas de origem fulâni (peule) e hauçá, deram origem a Estados
islâmicos de caráter eminentemente teocrático, como o Califado de Sokoto,
fundado por Usman Dan Fodio; o Império Fulâni de Maciná, fundado por
Cheiku Amadu; e o Império Tuculor de Segu, criado por El Hadj Omar Tall.
Em contrapartida, os dois grupos de povos que, nessa mesma época,
reagiram a esse processo foram primeiramente os mossis e depois um ramo
dos chamados bambaras, já mencionados. Vistas em conjunto, essas
transformações políticas levaram a que o Islã, até então restrito às elites
políticas e econômicas, ganhasse mais adesões e se estendesse às camadas
populares.
Usman Dan Fodio viveu entre 1754 e 1817. Líder, erudito, político e,
acima de tudo, ardoroso muçulmano, nasceu em Gobir, no país hauçá,
território da atual Nigéria, num clã fulâni originário da região do Futa Toro,
no Senegal. Com cerca de 20 anos iniciou carreira como mestre e pregador,
dirigindo sua pregação contra as práticas anti-islâmicas, desvirtuadas e até
mesmo “pagãs” dos governantes hauçás. Atraindo uma grande massa de
seguidores, em 1804 iniciou sua jihad (guerra santa), que culminou com a
hegemonia do Califado de Sokoto. Esse Estado, fundado por seu lho
Muhamad Bello, abrangia as cidades-Estado hauçás por ele conquistadas,
além de grande parte do Bornu; e existiu até 1903. Como destacado pelo
historiador Jacob Boakye (1982, v. II, p. 3-4), Dan Fodio foi o grande
responsável pela importância que, a partir de sua liderança, o norte da atual
Nigéria conquistou, como força uni cada, inclusive contra os colonizadores
europeus, como foi o caso da jihad de El Hadj Omar Tall, a partir do
Senegal.
Sobre toda essa saga, vale nalmente transcrever este trecho de Richard
Pattee (1961, p. 569):
A expansão muçulmana não foi tão rápida como geralmente se crê, e, mesmo no norte da
África, passaram-se vários séculos antes que as populações berberes se convertessem
totalmente ao Islamismo. Muitas vezes, na longa história dramática do avanço islâmico, vemos
a di culdade com que povos conquistados aceitaram a nova fé; que, a pouco e pouco, o Islã foi
mostrando o gênio que o distingue sempre, de saber amoldar-se à con guração social e
costumária da população com a qual ia entrando em contacto. A conquista espiritual nal fazia
com que os novos adeptos fossem os propagandistas mais entusiastas a empreenderem a
expansão entre os vizinhos próximos. A história dos movimentos islãmicos através do mundo
não é propriamente a da expansão dos árabes mas de gentes arabizadas ou islamizadas que se
responsabilizam por estas empresas.
O Islã e o trá co de escravos
Em 1442, segundo Ki-Zerbo (1972, v. I, p. 266), o português Antão
Gonçalves, moço da corte de Dom Henrique, “o Navegador”, sequestrou, na
costa da Mauritânia, um casal de africanos e o levou consigo, para
comprovar, em Portugal, que tinha realmente estado no “País dos Negros”.
Inaugurava-se aí, segundo alguns autores, a primeira modalidade do trá co
de escravos africanos para a Europa: aquela em que europeus pura e
simplesmente capturavam negros, como se caça um animal selvagem, uma
fera. Depois, num segundo momento, africanos poderosos começavam a
fornecer escravos em troca de ajuda militar, ou seja, europeus ajudavam
esses potentados em suas guerras e recebiam como pagamento escravos
capturados. Observe-se que, de um modo geral, o modelo de escravidão
vigente na África obedecia a algumas regras costumeiras, como aquela em
que a relação de sujeição era estabelecida pela situação social e jurídica do
indivíduo; e não por seu “valor econômico”.
Basil Davidson (1977, p. 89) usa a expressão “escravidão comercial” para
distinguir o sistema escravista inaugurado pelos portugueses daquela
“escravatura doméstica” ou “escravidão de linhagem” preexistente na África.
Como exemplo dessa modalidade, o mestre Alberto da Costa e Silva (2002,
p. 368) explica que, na maior parte do reino do Congo, antes da chegada dos
portugueses, a escravidão era desse tipo doméstico, não havendo uma classe
de escravos, e sim grupos de pessoas ocasionalmente submetidas à condição
servil. Esses grupos eram compostos por estrangeiros, capturados em
guerras, bem como criminosos ou proscritos. Segundo o mencionado autor,
esses eram escravos, mas seus descendentes, apesar de inferiorizados, eram
em geral absorvidos pela sociedade, incorporados às linhagens dos
proprietários de seus ascendentes.
Já no sistema escravista comercial, o escravo, depois de ser usado como
moeda de troca, foi, a partir de meados do século XV, desumanizado,
porque utilizado como gênero mercantil, como mercadoria, para atender às
necessidades da Europa e impulsionar o desenvolvimento industrial das
Américas.
Na sociedade mandinga – para citar um exemplo africano –, escravos
tinham direito a alimento, roupas, casamento, e meação em terras de seus
senhores. Nessa sociedade, segundo o premiado livro Negras raízes, ccional
mas fruto de intensas pesquisas feitas pelo autor, o escritor afro-americano
Alex Haley, “as pessoas tornavam-se escravas de diferentes maneiras
Algumas nasciam de mães escravas. Outras tinham outrora enfrentado o
desespero, durante a estação da fome em suas aldeias natais”. Premidas pela
fome, iam para outras localidades “implorando para se tornarem escravas de
alguém que concordasse em alimentá-las e sustentá-las”. Outras ainda
“tinham sido outrora inimigas e haviam caído prisioneiras”. Segundo Haley,
no grupo mandinga que pesquisou, as pessoas, mesmo sendo escravas, eram
respeitadas, e seus direitos eram garantidos pelas leis dos antepassados. Só
eram desprezados aqueles que se tornavam escravos por serem criminosos
(H , [s.d.], p. 65-66).
No Reino do Congo, o escravo era considerado lho da família, ao lado
dos “ lhos de ventre”, podendo substituir o “pai” na ausência dele e
podendo, inclusive, ter os seus escravos também.
Escrevendo sobre a escravidão entre os chócues, cujas instituições
pesquisou em Angola, Eduardo dos Santos (1960, p. 54-55) informa que
entre eles essa instituição tinha o caráter de uma verdadeira adoção com o
estabelecimento de direitos e deveres mútuos entre o muanangana (senhor)
e o kapinje (escravo), resultando daí o fato de o escravo, de um modo geral,
ser tratado “quase como lho”, tendo, pelas leis costumeiras, direito a
casamento, alimentação, vestuário e, principalmente, direito à vida.
Entretanto, a partir de certo momento, o trá co escravista passou a se
caracterizar simplesmente como um comércio: os chefes locais vendiam e os
europeus compravam a mercadoria humana, para lucrar na revenda. E, na
ação direta, o processo dos captores era, mesmo, o do sequestro, de modo
geral. Assim foi que, na primeira década do século XVI, portugueses
começaram a embarcar os primeiros africanos para as Américas.
Entre 1650 e 1850, cerca de 12 milhões de africanos chegaram
escravizados ao Novo Continente. Durante todo esse tempo, a África sofreu,
de diversas maneiras, o impacto desse trá co através do Oceano Atlântico,
que primeiro se fez a partir, principalmente, da alta Guiné e, depois, da
Costa da Mina, de Angola e de Moçambique e vizinhanças, na chamada
“Contracosta”, no Oceano Índico. Nesse período, mais de 10 gerações de
africanos viveram em sobressalto, temendo pela liberdade e pela vida, sua e
de seus próximos, numa situação que atingiu populações litorâneas e dos
sertões. Na costa, foram atingidas principalmente as áreas hoje pertencentes
às repúblicas de Senegal, Gâmbia, Serra Leoa, Libéria, Gana, Togo, Benin,
Nigéria, Camarões, Guiné Equatorial, Gabão, Congo-Brazzaville e Angola.
O trá co atlântico trouxe da África para o Novo Mundo milhões de
indivíduos e destruiu outros tantos milhões de vidas, nas guerras que
incentivou e na resistência que teve de enfrentar. Esse extermínio, segundo
estudos feitos no nal do século XX, fez com que a população do continente,
ao longo dos quase quatro séculos, diminuísse drasticamente.
O Islã e a religião tradicional13
Chegando ao norte e ao oeste do continente africano a partir do século
VII, a pregação muçulmana encontrou resistência. E em todo o processo de
islamização, a nova religião intercambiou experiências e in uências com a
religião tradicional, o que resultou num islamismo todo peculiar. E,
principalmente na África Ocidental, essa in uência se fez sentir, já que no
“País dos Negros”, à época da chegada do Islã, o que havia em termos de
religiosidade eram crenças rmemente estruturadas, como a dos falantes da
língua Iorubá e mencionados como “iorubás” ou “nagôs”,14 fundadores do
antigo Reino de Ifé (século X) e que trouxeram para o Brasil e para outros
países das Américas os fundamentos do culto aos orixás.
Os iorubás acreditam – como informado em Bascom (1969, p. 70-76) –
que cada indivíduo tenha pelo menos duas “almas”, ou seja, essências vitais.
A mais importante é o espírito, o anjo da guarda, a alma propriamente dita,
que está ligada à mente, ao destino, aos antepassados e à reencarnação, e que
determina se a pessoa é inteligente, se tem sorte na vida etc. A segunda é o
sopro vital, a respiração, a vida física, que dá vida ao homem e o faz
trabalhar.
Dessa forma, pode-se ouvir e sentir a respiração. Mas ninguém ouve,
sente ou vê a alma, pelo menos enquanto o dono dela está vivo. O sopro vital
tem de ser mantido através dos alimentos; e o espírito precisa também se
nutrir. E isso é conseguido por meio de ritos como o “dar de comer à cabeça”
(“Ibori, ibo ori”), também observado na tradição afro-brasileira. Para os
iorubás, com a morte, as essências vitais, fontes da vida, deixam o corpo e
em geral vão para a outra dimensão, o Orum, cando lá até reencarnarem. E
as pessoas normalmente reencarnam dentro da própria família, tanto que a
alma quase sempre é a mesma de um antepassado pelo lado paterno. A
identidade desse antepassado é determinada pelas semelhanças físicas, de
caráter e de comportamento, e por sonhos de membros da família nos quais
ele conta que voltou, ou através da consulta feita pelo babalaô ao oráculo Ifá,
sobre o recém-nascido ou para sua mãe durante a gravidez.
Antes de uma criança iorubá nascer – ou renascer –, a alma vai até
Olorum, um dos nomes do Deus Supremo, para receber um novo corpo, um
novo sopro vital e um destino para sua nova vida na Terra. Ajoelhada diante
de Olorum, a alma tem a oportunidade de escolher seu próprio destino. E
pode escolher o destino que quiser, embora Olorum (Olo m ou
Olodumare) possa também recusar sua escolha, se esta não for feita com
humildade ou se for absurda.
O destino de todo indivíduo abrange sua personalidade, sua ocupação e
sua sorte; e tem um dia marcado no qual a alma deve voltar para o Orum.
Assim, o dia da morte não pode ser adiado. Mas outros aspectos do destino
da pessoa podem ser modi cados por atos humanos e por seres e forças
sobrenaturais. Se a pessoa estiver bem segura e protegida por seu eledá,
espécie de “anjo da guarda”, por Olorum e por outras divindades, ela viverá o
destino que lhe foi prometido e o tempo de vida que lhe foi destinado. Se
não estiver, ela poderá ser privada das graças e dos benefícios que lhe foram
destinados, ou morrer antes do tempo. Por isso, durante toda a vida, a
pessoa deve fazer oferendas ao seu eledá, o dono da sua cabeça, e às
divindades; deve também, em caso de necessidade, utilizar encantamentos e
remédios especialmente preparados para sua proteção; e, quando estiver
com problemas, deve consultar principalmente um babalaô (intérprete do
oráculo Ifá), que determinará o que deve ser feito para melhorar a sua sorte.
Assim como os iorubás, é certo que na África muitos dos povos atingidos
pelo escravismo professavam, desde suas origens, e com variações locais, o
conjunto de práticas litúrgicas hoje o cialmente reconhecido pelos estudos
teológicos e acadêmicos como “religião tradicional africana”. A
denominação foi adotada a partir do Colóquio de Abidjan,15 evento
realizado em 1961 por iniciativa do escritor e editor senegalês Alioune Diop.
Segundo essa tradição religiosa, existe no universo uma Força Suprema,
geradora de todas as coisas, inclusive o próprio universo. Abaixo dela
existem e são cultuadas as forças da natureza e os espíritos dos antepassados.
Na linha de pensamento em que a religião tradicional africana se baseia,
inclusive entre os povos bantos, como veremos na segunda parte deste livro,
o maior bem da existência é a força vital. Assim, todos os seres, sejam eles
humanos, animais, vegetais ou minerais, têm sua força, que pode ser
aumentada, diminuída ou transferida de um para outro ser. Os
aborrecimentos, os desgostos, o cansaço, a depressão, as doenças, os
sofrimentos, en m, resultam de uma diminuição da força vital do indivíduo.
E com a morte, essa força não acaba, mas se transfere, já que é energia.
Na mesma linha, o universo é visto como integrado por dois
compartimentos principais: um, deste lado, onde moram os seres vivos; e
outro, em outra dimensão, onde moram as forças da natureza e os espíritos
dos antepassados. Então, quando se precisa “reforçar a vida”, o que se tem de
fazer é estabelecer uma comunicação com essa outra dimensão, para que os
“habitantes” desse outro lado enviem a força de que se necessita. E essa
comunicação é feita através de oferendas e sacrifícios rituais.
Ainda segundo essa tradição, quem estabelece a comunicação entre esses
dois planos do universo é um agente dinâmico que os iorubás chamam Exu.
Esse agente, que foi erroneamente interpretado pelos missionários europeus
na África como o diabo idealizado pelos cristãos (A D ..., 1976, 2ª
parte, p. 72) ou o Iblis ou Shaitan dos muçulmanos, é o agente, o procurador,
o mandatário das divindades, que entrega à Entidade Suprema as oferendas
propiciatórias.
Informando sobre a religião entre os povos do Benin atual, escreve
Robert Cornevin (1970, p. 101): “A noção de força vital é encontrada entre
quase todos os grupos étnicos do Daomé. Entre os povos do litoral, o Sé
representa o elemento espiritual do qual o próprio ser humano é a
representação visível”.
Observemos que esse Sé dos povos do antigo litoral daomeano é o
mesmo Ase (Axé) dos iorubás. Em seguida, sobre a religião dos bambaras,
ferrenhos adversários do Islã a que nos referimos páginas atrás, tomemos de
Paques (1954, p. 81) o trecho seguinte: “Os Bambara concebem o mundo
como um conjunto de forças atuantes sobre as quais o homem tem poder.
Graças a certas técnicas cuja chave é o sacrifício, o homem pode armazenar
ou liberar essas forças, dirigi-las e orientá-las, integrando-se, em suma, ao
movimento do mundo, ajudando-o no seu conhecimento e no seu
desempenho”.
Esses, de modo geral, são os fundamentos da tradição losó co-religiosa
que o Islã encontrou enraizada na alma e no corpo dos habitantes do Bilad
al-Sudan e que se re ete em todo o modo de ser e agir dos povos negro-
africanos em geral, determinando um padrão de comportamento bastante
de nido, conforme tão bem observou Victor C. Ferkiss (1967, p. 41-42), no
texto seguinte:
Todos os africanos são religiosos. Até mesmo líderes nacionalistas como Sékou Touré,16
in uenciado pelo marxismo, a rmam que seu socialismo é diferente – e africano por
excelência – por não negar Deus ou valores supranaturais. As religiões tradicionais da África
são frequentemente descritas como animistas, isto é, atribuem personalidade espiritual não só
a homens como a animais, árvores, rochas, etc., tornando-os assim objetos de adoração. Esta
a rmativa é tendenciosa. Os africanos acreditam realmente na universalidade do espírito e
crêem que a ordem de causalidade no universo é tal que os atos de espíritos afetam a vida
quotidiana e podem ser in uenciados através de práticas religiosas […]. Contudo, reconhecem
uma hierarquia de seres espirituais e todos os sistemas religiosos da África concebem os
espíritos como detentores de poder sub-rogado por um Poder Supremo, geralmente concebido
como Ser sem contacto direto com os problemas humanos quotidianos. A vida religiosa da
África tradicional está entrelaçada com a vida aldeã em geral, porque, como na antiga Grécia,
deidades particulares são padroeiros, com frequência os ancestrais supostos, de tribos
particulares. As normas de conduta pessoal e o costume social não só têm a sanção da religião
como constituem sua essência. A aldeia africana, como as antigas comunidades gregas, é uma
comunidade religiosa.
A partir daí, então, passamos a questionar: de que modo a África
subsaariana se islamizou? Como será esse Islã negro-africano, já que a
rigidez dos princípios corânicos pouco tem a ver com a ludicidade de toda a
prática da religião tradicional e mesmo com a loso a de vida do indivíduo
negro-africano, para quem, de modo geral, cantar, dançar, comer, beber,
vivenciar, en m, o mundo material tem tanta importância?
As respostas não são tão difíceis quanto possam parecer à primeira vista.
A islamização representou para o negro-africano comum um fator de
ascensão social, de promoção, de prestígio, de conquista de igualdade. Pois,
segundo o texto corânico, “os homens são iguais entre si como os dentes do
pente do tecelão; não há diferença entre o árabe e o não árabe, entre o
branco e o negro, a não ser o grau de sua crença em Deus” (N’G , 1950,
p. 339-340). Para os governantes, essa aceitação do Islã representava, mais
ainda, o ingresso na grande e prestigiosa comunidade internacional
islâmica; a garantia de melhores negócios, principalmente com os países
acima do Saara; e a aquisição, através da lei corânica, de utilíssimos
conhecimentos jurídicos, notadamente nos campos do comércio e da
propriedade.
Mas o negro africano, em geral, só adotou do Islã as práticas mais
exteriores, simpli cando os rituais, adaptando-os à sua realidade e a seu
modo de ser. Senão, vejamos: “Duas grandes religiões” – escreve Cissoko
(1964, p. 102-103),
dividiam o Império do Mali: o Animismo17 estava vivo na massa popular e se expressava no
culto aos espíritos, à natureza […] e aos ancestrais […]. Os animistas se organizavam em
confrarias […]. Seus chefes […] gozavam de grande consideração junto ao povo. O Islã
recrutava seus adeptos nas camadas superiores da sociedade, entre a aristocracia política, e
comercial e nas cidades […]. No Mali, o Islã era tolerante. Os reis muçulmanos não se
empenhavam em converter seus súditos. Alguns deles até mesmo professavam uma fé
duvidosa […]. Por outro lado, o soberano islamizado não tinha o mesmo poder místico do rei
da religião tradicional. O Islã, como sublinha Cheik Anta Diop, tende a dessacralizar o
soberano enquanto o animismo tende a divinizá-lo.
Vejamos também este per l do sunni Ali, grande herói do povo Songai,
colhido por Cértima (1947, p. 159) no Tarikh Al Fattah: “Na ordem religiosa
era igualmente prático: adiava sempre de um dia para outro a obrigação das
cinco orações diárias ao Profeta; e quando se decidia a fazê-las, citava-as,
correndo, pelo nome e ordenava indiferente, ao seu séquito: ‘Ocupai-vos por
mim do restante!’”.
O êxito do Islã na África, então, resultou, antes de tudo, de seus agentes
terem aprendido a tolerância, a adaptabilidade, a capacidade de respeitar o
modo de viver tipicamente africano das sociedades tradicionais, facilitando
aos habitantes do Bilad al-Sudan o ingresso sem o total abandono da crença
ancestral, nesse ambiente fechado e prestigioso. E isso foi assim apreciado
pelo já citado Albert N’Goma (1950, p. 339):
Mediante essas práticas fáceis, o neó to terá o sentimento de fazer parte não somente do povo
eleito de Alá mas também e sobretudo da pequena elite local. Porque existe um esnobismo
islâmico: o Negro experimenta verdadeiro prazer em vestir as roupas largas dos muçulmanos,
em pôr um “fez” […] na cabeça, em se prosternar cinco vezes por dia em direção a Meca,
imitando o Profeta. Tudo o que é árabe ou muçulmano […] suscita o mais vivo interesse entre
as populações nativas.
Exemplos das trocas ocorridas na África Ocidental entre as práticas da
religião tradicional e o Islã podem ser vistos nestes trechos pinçados no
Sundiata de Djibril T. Niane (1982, p. 13-18):
No começo dos tempos, o Mandinga era uma província dos reis Bambara. Os que chamamos
hoje de Maninka, habitantes do Mandinga, não são autóctones: eles provêm do Leste. Bilali
Bunama, o antepassado dos Keitas, era o servidor el do profeta Mohamadu (que a Paz de
Deus recaia sobre ele. […]. Depois de sete anos de ausência, o rei Lahilatul Kalabi pôde, pela
graça de Alá todo-poderoso, regressar ao Mandinga, onde ninguém mais o aguardava. […]
Retirou de seu “sessa”18 doze cauris, que ele jogou sobre a esteira; o rei e todos os seus
acompanhantes se haviam voltado para o Estrangeiro, que remexia com sua pesada mão as
doze conchas reluzentes. Nhamkuman Dua fez ver discretamente ao rei que o adivinho era
canhoto. A mão esquerda é a mão do mal, mas nas artes divinatórias diz-se que os canhotos
são os melhores. O Caçador murmurava baixinho palavras incompreensíveis, sua mão virava e
revirava os doze cauris, que tomavam posições diferentes, e que o levavam a meditar
longamente.
Ressaltando as peculiaridades do Islã negro-africano, Deschamps (1965,
p. 93-95) diz que, para os africanos, a crença em Alá se inspira na crença no
Deus Criador das cosmogonias “pagãs”, porque, para eles, Deus comunica
sua força vital a todas as coisas, e especialmente ao marabu, sacerdote líder
de um grupo de culto. Maomé é muito mal conhecido pelos africanos: foi
transformado num taumaturgo (santo milagreiro) e desempenha também o
mesmo papel dos deuses secundários do “paganismo”, ou seja, o de
intermediário entre Alá e os mortais. Os espíritos da oresta se tornaram os
djins; os gênios protetores de cada família e os espíritos dos ancestrais, que
velam pelos vivos e a quem se rende culto, mantiveram-se.
No Islã negro-africano, ressalta ainda Deschamps, a magia “pagã” não
desapareceu. O marabu concorre com adivinhos e curandeiros no mesmo
terreno mágico, apenas através de processos diferentes. Ele confecciona e
vende amuletos que são geralmente versículos do Corão num estojo de
couro. E se utiliza, também, do êxtase e da invocação dos djins, espíritos
malé cos.
Na mesma linha de raciocínio, escrevendo sobre o amálgama entre
diversas tradições ou doutrinas losó cas na atual República do Mali,
N’Diayé (1970a, p. 11) diz que lá ninguém se surpreende ao ver, por
exemplo, um tuculer muçulmano, talvez por atavismo, apelar à geomancia19
de um bambara não islamizado. Por outro lado – diz ele –, um “fetichista”,
pelo simples fato de estar ligado a um determinado círculo social, não
hesitaria em fazer valer sua condição de maometano, mesmo que nunca
tivesse praticado essa religião. E isso da mesma forma – escreve N’Diayé
(1970b, p. 85-86) – que não causa surpresa, lá, ver-se um pastor peule,
depois de ter cumprido suas obrigações de muçulmano, fazer sinais
cabalísticos e murmurar invocações que não têm nada de islâmico, quando,
por exemplo, “seguindo com os olhos o movimento do rebanho,
experimenta a sensação de uma presença insólita mas invisível”.
Assim, parece certo que o Islã negro-africano é ou foi, em seus
primórdios, uma prática religiosa que se servia de elementos da religião
tradicional africana, na mesma medida em que na própria Arábia a prática
islâmica estaria permeada de usos considerados supersticiosos, como
procurava mostrar Margoliouth (1929, p. 120), nesta formulação:
O uso mágico dos textos do Corão está divulgadíssimo, e na verdade, já que para boa parte dos
éis os textos do livro sagrado não têm nenhum sentido, não é fácil precisar onde acaba o uso
religioso do mesmo e começa o uso mágico; mas à segunda categoria pertence, certamente, a
prática de usar passagens corânicas como remédio: o paciente bebe água em que se lavou um
papel que continha tais textos ou engole o papel em que estão escritos.
Em contrapartida, a tradição dos orixás jeje-iorubanos também foi
in uenciada pelo Islã. João José Reis (1986, p. 152-155), no mais
aprofundado estudo sobre os malês até então escrito no Brasil, lembra que a
tradição nagô relaciona os negros islamizados aos orixás funfun, à frente dos
quais se coloca Obatalá, e isso: porque todas as representações simbólicas
desses orixás se baseiam na cor branca, largamente usada pelos malês; pela
utilização da água – elemento vital de Oxalá (Obatalá) – em inúmeros
rituais e cerimônias privados e públicos dos malês; pela consagração da
sexta-feira – dia de Oxalá – como o dia do jejum muçulmano etc.
Lembra mais J. J. Reis que, na África, os babalaôs, de acordo com
determinadas interpretações do jogo divinatório Ifá, costumavam
aconselhar a seus consulentes a iniciação na religião dos alufás. E isso
porque o décimo segundo dos 16 capítulos das revelações de Ifá, ou seja, o
décimo segundo odu (otura meji),20 estaria intimamente ligado a tudo o que
é muçulmano.
Segundo, ainda, Reis (1986, p. 153), um itan (lenda) do corpo de saberes
de Ifá explicaria, inclusive, a origem do Ramadan, celebração anual do
calendário muçulmano, e o jejum que deve ser observado durante esse
período. E conclui Reis:
A incorporação de elementos do islã pela religião iorubá representa mais um exemplo da
reconhecida plasticidade e tolerância desta. Mas a reserva de um lugar fraterno para os
muçulmanos no universo dos orixás não signi cou apenas uma generosidade desinteressada.
A questão de poder esteve em jogo. Stasik [Kathleen M. Stasik, autora de um estudo sobre o
Islã na Nigéria no século XIX] muito apropriadamente sugere que o babalaô na verdade
incorporou poder ao incorporar o islã a seu sistema divinatório, pois lançou uma proposta de
aliança com uma religião bem-sucedida, que se tornava cada vez mais popular entre os
iorubás. O divinador21 passou a ter voz de autoridade em dois sistemas religiosos diversos.
Em Cuba, também importante país caudatário da diáspora africana, em
outras formas religiosas afronegras, a saudação muçulmana As salam
aleikum é usada em situações rituais. O que, embora seja às vezes explicado
como sincretismo (“fusão de diferentes cultos ou doutrinas com
reinterpretação de seus elementos”22), talvez possa ser mais bem de nido
como resultado de simples in uência do islamismo.
O Islã negro-africano no Brasil
Uma das “justi cativas” para a escravização na África foi a “salvação” do
nativo. Argumentavam os escravagistas, além de outras alegações, com a
ideia de que desenraizar o africano de seu continente era um bem que se
fazia, pois, desse modo, livre do “paganismo”, das “práticas antropofágicas”,
da “idolatria” etc., ele encontraria a salvação espiritual através do
cristianismo, numa pátria nova, onde deveria esquecer todos os vínculos
com seu passado. Então, antes do embarque no navio negreiro, os cativos
eram, em geral, batizados à força, num arremedo de cerimônia, rápido e
super cial, como veremos na segunda parte deste livro. O segundo passo na
alegada tarefa de “salvação” das almas dos africanos escravizados era dado,
no Brasil, logo após a transação de compra e venda. Entregues ao
proprietário, recebiam um nome cristão e, a partir desse momento, eram
submetidos a todo um processo de despersonalização, de perda de
identidade.
O regime de trabalho escravo era desumano pela própria natureza. Foi
por culpa dele que se perpetuaram na memória brasileira conceitos
estereotipados sobre o indivíduo negro até hoje difíceis de apagar. Sobre a
origem de estereótipos que ainda hoje marcam o negro brasileiro escreveu
Jaime Pinsky (1981, p. 41): “O mito de mulheres quentes” – diz – “atribuído,
até hoje, às negras e mulatas pela tradição oral, decorre do papel que lhes era
designado pela sociedade escravista”. Mais adiante (p. 47) prossegue o autor,
mencionando que o hábito da bebida alcoólica tinha dupla função: a de
alienar o escravo de seu destino infeliz e a de fazê-lo prostrado e derreado,
fora das horas de trabalho, “de forma a não criar maiores problemas”.
Da escravidão é que vêm, também, os incontáveis traumas que ainda
hoje martirizam gerações e gerações de descendentes de africanos. Porque o
escravismo era, sob todos os aspectos, algo extremamente desumano e cruel,
tanto pelas torturas físicas e psicológicas quanto pela dureza do regime de
trabalho; tanto pelo aviltamento moral insidioso, minando a vontade do
escravo, quanto pela intenção deliberada de fazê-lo perder seus laços
culturais, comunitários, religiosos, familiares… Sua identidade, en m.
Mas uma personalidade, obviamente, estrutura-se ao longo de anos. E se,
para essa estruturação, concorreram fatores efetivamente marcantes, como
rígida educação familiar e religiosa e conscientização perfeita sobre o
sentido da vida e do papel do indivíduo no mundo, a perda da identidade
não vai se dar facilmente. Então, por isso é que são incontáveis na história
da escravidão no Brasil os casos de fuga individual, assassinato de senhores,
aquilombamento e tentativa bem-sucedida de organização, levando
inclusive à luta armada. E em parte dessas tentativas o islamismo ocupou
papel importante.
Mas esse islamismo, que, como vimos, já na África não era exatamente o
mesmo do ambiente árabe onde nasceu, no Brasil sofreu ainda outras
in uências, recebendo os nomes de “religião dos alufás” e culto
“muçurumim”, “muçulmi” ou “malê” – nomes pelos quais eram
genericamente conhecidos os negros islamizados.
“Musulmi” é o termo da língua Hauçá que designa o indivíduo
islamizado (R , 1925, p. 308). “Muçurumim” é certamente uma
corruptela. Mas a etimologia do termo “malê” ainda gera algumas
controvérsias.
O Dictionary of the Yoruba Language (1976, 2ª parte, p. 117), por
exemplo, registra o termo “Imale” para designar exatamente “maometano,
muçulmano”. Já em Abraham (1981, p. 307) encontramos também a forma
“Imole”, tendo como origem o árabe “mu’allim” (professor) através do hauçá
“mállàmi” (letrado, escriba, professor).
Mas o termo já tinha larga circulação pelo menos desde o século XVIII.
Tanto que, num texto publicado em 1730, P. Labat (apud C -
V , 1981, p. 134) assim menciona sobre a presença de malês no
antigo Daomé: “Deu-se o nome de Mallais aos escravos que os Mallais
(muçulmanos) vão vender a Judá (Ajudá). Mas eles não são da nação dos
Mallais, pois estes povos não se vendem uns aos outros; vêm de muito longe
e alguns deles demoraram três meses a chegar à beira do mar. Estes negros
são fortes, habituados ao trabalho e às maiores fadigas…”.
Em 1796, o padre baiano Vicente Ferreira Pires viajava ao Daomé.
Quatro anos depois escrevia o relato “Viagem de África em o Reino de
Dahomé”, no qual registrava também a presença de negros ditos “malés”,
como podemos ler nestes trechos (apud L , 1957, p. 134-135):
Entre estes etíopes há, em Dahomé, uma pequena povoação onde existe, com licença do Rei,
certa porção de moiros pretos chamados Malés, que são de uma Nação con nante com a de
Dahomé pela parte do Norte. […] Estes Malés vestem-se à moirisca, e em parte seguem a Lei
de Mafoma, misturada com Destino, Idolatria e Lei Natural; de forma que adoram o Sol como
primeiro e luminoso Astro do dia; não comem coisa que padeça morte, salvo o cordeiro por
eles morto, de cujas vítimas fazem seus sacrifícios e holocaustos. Finalmente, é, como digo, o
adulterismo muçulmano entre eles. O gentio de Dahomé faz uma boa sociedade com estes
negros moiros, e o Rei, quando pretende ter qualquer ação de guerra, ou outra pertenção, pede
a estes Moiros que façam seus feitiços para se veri car o que ele deseja.
Os “malés” a que o Pe. Pires se refere eram provavelmente indivíduos do
povo Dendi, que, juntamente aos peules, teriam sido os primeiros
muçulmanos a se instalarem no Daomé Setentrional (C , 1970, p.
104). Buscando solucionar a polêmica, informamos que o léxico da língua
Fon (Fongbé) falada na atual República do Benin, território do antigo
Daomé, registra o termo “malè” exatamente com os signi cados de Mali e
de “muçulmano” (S ; R , 2000, p. 343), con rmando
Cornevin.
Esse islamismo, então – retomamos –, foi que criou a mítica do negro
altivo, insolente, insubmisso e revoltoso, que tão bem se enquadra na
descrição feita por Louis e Elizabeth Cary Agassiz (1975, p. 69) de um grupo
de negros “minas” por ela observados no Rio de Janeiro, em 1865:
Os homens dessa raça são maometanos e conservam, segundo se diz, a sua crença no profeta,
no meio das práticas da Igreja Católica. Não me parecem tão afáveis e comunicativos como os
negros congos: são, pelo contrário, bastante altivos. Certa manhã, encontrei alguns deles
almoçando depois do trabalho; parei para falar com eles e ensaiei diferentes modos de entrar
em conversação. Lançaram-me um olhar frio e descon ado, responderam secamente as
minhas perguntas e se sentiram visivelmente aliviados quando os deixei.
Os “minas” a que a escritora se refere podem ser negros pertencentes a
diversos povos dos quais vieram negros islamizados para o Brasil. Porque de
“minas” eram chamados genericamente os cativos vindos de toda e qualquer
região do Bilad al-Sudan desde que embarcados no Forte de El Mina ou São
Jorge da Mina. Essa denominação aleatória foi adotada pela administração
colonial francesa para designar o subgrupo étnico Gèn (pronúnciado Gan)
ou Gènnu, integrante do grupo Aja, habitante do território do antigo
Daomé, atual República do Benin (S ; R , 2000, p. 354,
184). Assim temos registros de entrada no Brasil de negros “minas-jêjes”,
“minas-nagôs” etc.
Também sobre esses “minas” no Brasil assim se expressou, em 1869, o
tristemente célebre Joseph Arthur, Conde de Gobineau, autor do Ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas (cf. M , 1983, p. 87):
A maioria desses Minas, senão todos, são cristãos externamente e muçulmanos de fato; porém,
como esta religião não seria tolerada no Brasil, eles a ocultaram e a sua maioria é batizada e
trazem nomes tirados do calendário. Entretanto, malgrado esta aparência pude constatar que
devem guardar bem elmente e transmitir com grande zelo as opiniões trazidas, da África,
pois que estudam o árabe de modo bastante completo para compreender o Alcorão ao menos
grosseiramente. Esse livro se vende no Rio nos livreiros ao preço de 15 a 25 cruzeiros,23 36 a 40
francos. Os escravos, evidentemente muito pobres, mostram-se dispostos aos maiores
sacrifícios para possuir esse volume. Contraem dívidas para esse m e levam algumas vezes
um ano para pagar o comerciante. O número de Alcorões vendidos anualmente eleva-se a mais
ou menos uma centena de exemplares […]. A existência de uma colônia muçulmana na
América, creio, nunca foi observada até aqui, e […] explica a atitude particularmente enérgica
dos negros Minas.
Sobre a “altivez, insolência e insubmissão” dos malês, vejamos também
estas linhas de Pierre Verger (1981, p. 115-116):
Francis de Castelnau, cônsul da França da Bahia, tentou em 1848 interrogar um fulani. A
descrição que ele deu mostra o caráter altaneiro de certos escravos muçulmanos na Bahia:
“Este homem idoso, Mohammad Abdullah, fulani, está na Bahia há trinta anos, e atualmente é
carpinteiro. Ele é instruído, sabe não somente ler e escrever em sua língua, como também em
português. Ele é muito intolerante, muito fanático, está procurando por todas as maneiras
converter-me; e mesmo que eu o tenha recebido da melhor maneira possível, dando-lhe
dinheiro etc., ele recusa-se a voltar à minha casa para ver-me, dizendo a um outro preto que
não quer ir na casa de um cão cristão. Ele deve ter uns 70 anos. Ele era marabout24 e fez
peregrinagem à Meca. Os pretos hauçás que estão em minha casa parecem ter a maior
veneração por este homem e, seguindo o seu exemplo, oram cantando passagens do Alcorão”.
Quase sempre intransigentes em seus princípios religiosos, os malês em
geral não eram vistos com simpatia pelos outros negros, principalmente
pelos bantos. E isso é claramente mostrado – apesar da interpretação
duvidosa – por Plínio de Almeida (1976, p. 271) num trabalho sobre o
folguedo banto do maculelê, do qual nos ocuparemos na segunda parte
deste trabalho. Escreve Almeida:
É conhecida de todos os antropólogos, historiadores, sociólogos, pesquisadores e folcloristas, a
aversão que, por motivos religiosos, os negros bântus25 votavam aos sudaneses, e vice-versa. A
ojeriza tinha razão que não eram de somenos. Enquanto os sudaneses se submeteram à religião
islâmica, quase que em sua totalidade, os bântus caram éis aos seus mitos, à sua tolatria, à
sua litolatria e a outros cultos onde o deus-tótem tinha lugar destacado.
O Brasil não conseguiu uni car de todo aquele emaranhado de raças e de crenças de forma
que o ressentimento continuou vivo, e, na Bahia, na zona canavieira santamarense, espocou
nos folguedos bânticos,26 principalmente no Macu-lê-lê. Na passagem desse brinquedo, […] o
comparsa que era laçado e jogado no chão, “fazia de conta” que era gente do Sudão: nagô ou
malê, dai a cantiga menosprezo:
Mano cou, hé
Borocochó
Malé, ou Malê
Papai borocô.
Mano cou, hê
Todo fraganhado
Malé, ou Malê
Nós estamo aringado.
A segunda estrofe é típica. Encerra algo de aviso, de prevenção. É como quem diz: Malê, não
venha, que nós estamos “aringados”, isto é, resguardados, garantidos por uma “aringa”
(forti cação).
Praticantes de uma forma africanizada do islamismo, em terra brasileira,
os hauçás, fulas, kanuris etc. tiveram suas práticas submetidas – repetimos –
a outras in uências, menos ou mais sincréticas. E criaram o que se propagou
como “religião dos alufás”, “lei de muçurumim” (ou “culto malê”, como era
chamado na Bahia), do qual, sobretudo pela repressão que se seguiu ao
movimento armado de 1835 e que examinaremos adiante, hoje nada mais
resta no Brasil, a não ser resquícios.
Por volta de 1900, entretanto, essa modalidade religiosa ainda sobrevivia
na Bahia, como podemos ver com Nina Rodrigues (1977, p. 61-62):
No entanto, pelo menos um bom terço dos velhos africanos sobreviventes na Bahia é muçulmi
ou malê, e mantém o culto perfeitamente organizado. Há uma autoridade central, o “Imã” ou
“Almámy”, e numerosos sacerdotes que dele dependem. O “Imã” é chamado entre nós
“Limano”, que é, evidentemente, uma corrupção ou simples modi cação de pronúncia de
“Almámy”ou “El Imámy”. Os sacerdotes ou verdadeiros marabus chamam-se na Bahia alufás.
Conheço diversos: na ladeira do Taboão n.º 60, o hauçá Jatô; na mesma rua n.º 42, o nagô
Derisso; no largo do Pelourinho, na ladeira das Portas do Carmo, o velho nagô Antônio, com
casa de armador junto à igreja de N. Sa. do Rosário; um hauçá na ladeira do Alvo; outro na rua
do Fogo; dois velhos hauçás no Matatu. […] O atual limano é o nagô Luis, e a sede da igreja
maometana, a sua residência no Barris, à Rua Alegria n.º 3. […] Não me consta que tenha
harém, mas a sua prole é numerosa. A sua mulher atual é uma negra crioula de mais de 30
anos, que esteve por algum tempo no Rio de Janeiro, onde se converteu ao islamismo.
Nessa última a rmação podemos veri car que o Rio de Janeiro também
foi um centro difusor do culto malê, como vimos atrás e examinaremos mais
detalhadamente adiante, com João do Rio. Mas continuemos com Nina
Rodrigues (1977, p. 63):
A modesta casa da Rua da Alegria, que serve atualmente de mesquita, tem uma sala interna
destinada aos o cias e atos divinos. Ali reúnem-se os malês todas as sextas-feiras para a prece
ou missa comum. Duas vezes por ano há um grande jejum, que dura 60 dias, sendo que só a 30
dias são obrigados os crentes, os outros 30 a mais se exigem apenas dos sacerdotes. […]
Tão fetichistas como os negros católicos ou do culto iorubano, os malês da Bahia acham meio
de fazer dos versetos do Alcorão, das águas de lavagem, das tábuas de escrita, de palavras e
rezas cabalísticas etc., outras tantas mandingas, dotadas de notáveis virtudes miraculosas,
como soem fazer os negros cristianizados com os papéis de rezas católicas, com as tas ou
medidas de santos etc.
Também na Bahia, Manuel Querino, importante historiador
afrodescendente, no livro A raça africana e seus costumes, lançado em 1916,
publicava um longo texto sobre os malês, constante da edição de 1955 da
obra mencionada, nas páginas 101 a 114.
Sobre o culto, o texto informa, inicialmente, que os malês “só
reconheciam duas entidades superiores: Olorum-u-luá (Deus criador);
Mariama (a Mãe de Jesus Cristo). Desprezavam Satanás, que, na opinião
deles, não tem forças no mundo. Evitavam o mais possível as contendas e
lutas; e, insultados que fossem, respondiam simplesmente: Au-subilai (Eu te
esconjuro)”.
Depois de discorrer sobre alguns hábitos e valores da comunidade,
inclusive a poligamia, e ressaltando o cuidado com a educação dos lhos
(circuncidados aos 10 anos de idade), bem como com a higiene pessoal, o
escritor assinalou: “Costumavam escrever sinais cabalísticos sobre quadros
de madeira à imitação das tábuas de Moysés, servindo-se para isso de uma
tinta azul, mineral, importada da África; depois lavavam os quadros e
davam a beber a água, como indispensável para fechar o corpo. As mulheres
com esta tinta pintavam as pálpebras inferiores, como requinte de beleza”.
Sobre a liturgia, Manuel Querino descreveu orações, fórmulas,
expressões e objetos rituais utilizados, bem como as posturas corporais
correspondentes a cada cerimônia, tudo minuciosamente: “Munidos de um
rosário – Tècèbá – de cinquenta centímetros de comprimento, tendo
noventa e nove contas grossas de madeira, terminado por uma bola em vez
da cruz, davam começo à oração, de pé, sobre uma pele de carneiro”,
escreveu, e a seguir detalhou:
Os homens colocavam-se à frente e as mulheres após. Quando rezavam pelas contas menores
de seu rosário, conservavam-se sentados; passando às maiores […], levantavam-se. Nessa
ocasião, com as mãos abertas e tendo o corpo inclinado, em demonstração de reverência,
diziam: Alláh-u-acubáru (Louvores a Deus). Em seguida, levantavam os olhos para o alto e os
baixavam, com um gesto de saudação; com as mãos sobre os joelhos faziam sinal de
continência com a cabeça; proferiam palavras e sentavam-se de lado, continuando a rezar pelas
contas menores.
Segundo Querino, na Bahia, os cinco momentos diários de orações a que
os muçulmanos em geral se dedicam podiam ser abreviados: “Quem podia,
efetuava esse exercício cinco vezes ao dia: primeiro – Açubá; segundo – Ai-
lá; terceiro – Ay-á-sari; quarto – Alimangariba; quinto – Adixá. Finalizavam
a oração dizendo: Aliramudo-li-lai (Louvor ao Senhor do Universo). A
qualquer ato que o Malê tinha que praticar, antecedia a expressão: Bi-si-mi-
lai (Em nome de Deus clemente e misericordioso). Terminada a oração
cortejavam-se uns aos outros, dizendo: barica-da-subá (Deus lhe dê bom
dia)”. Quanto à hieraquia do culto, assim o historiador enumerou as
autoridades: “Xerife – espécie de profeta, cargo esse só desempenhado por
pessoa idosa, cuja opinião se respeita como um oráculo; Lemane – uma
espécie de bispo; Ladane – o secretário; Alujá – o simples sacerdote”.
Observe-se que todos esses títulos, bem como os termos que designam
cerimônias e rituais, são remanescentes de termos da língua árabe, menos
ou mais corrompidos.
Sobre o “Sará”, a “missa” dos malês, o autor informa: “É cerimônia que só
se efetuava por ocasião de grande regozijo na seita ou para sufragar as almas
dos crentes no Alcorão. Pela manhã, era servida uma mesa, em que
sobressaía a toalha muito alva, de algodão, ocupando a cabeceira, como
lugar de honra, o chefe ‘lamane’”.
Sobre o casamento, ou “amurê”, dentro do culto, assim Manuel Querino o
descreveu:
Depois de tudo combinado, os noivos, padrinhos e convidados dirigiam-se, no dia aprazado, à
casa do sacerdote. Ali reunidos, após ligeira pausa, o Lemana falava aos nubentes, inquirindo
se o casamento era de livre vontade do contraentes, aconselhava-os a que re etissem
maduramente para que não houvesse arrependimento futuro. Decorridos alguns instantes cada
cônjuge respondia que o casamento era de seu gosto e de espontânea vontade. […] Seguia-se o
jantar de bodas, constante de galinhas, peixes, frutas etc., com exclusão de bebidas alcoólicas.
A união conjugal entre os Malês era um verdadeiro culto observado com rigor, do mesmo
modo que a amizade fraternal.
Nascido em 1851, Manuel Querino, em seu livro, não referiu a
participação dos malês nos movimentos que convulsionaram a Bahia até
apenas 16 anos antes de seu nascimento. Porém, suas informações sobre a
rígida moral reinante no seio do grupo que descreveu parecem não merecer
reparos: “De índole boa, morigerados, não se imiscuíam, talvez por
prescrições religiosas, nos levantes e insurreições, aqui tão comuns entre os
outros africanos. Severa e in exível era sua moral. A mulher que faltava aos
deveres conjugais cava abandonada de todos, ninguém a cortejava; mas,
nem por isso, o marido podia tocá-la”, escreveu.
Quanto à prática de magia e sortilégios, quase sempre atribuída aos
africanos islamizados – daí o nome étnico “mandinga”, de um grupo de
povos oeste-africanos, ser relacionado a “bruxedo” e “feitiço” –, também não
escapou à dissertação do ilustre baiano, com o seguinte esclarecimento:
O feitiço do Malê é inteiramente diverso dos demais africanos. Escreviam em tábua negra o
que pretendiam contra a pessoa condenada, apagavam depois com água os sinais cabalísticos, e
o líquido era atirado no caminho transitado pela vítima. Para destruir qualquer malefício,
possuía o Malê um pequeno patuá ou bolsa que trazia ao pescoço, contendo uma oração em
poucas palavras, a qual era encimada por um polígono estrelado regular, de cinco ângulos,
vulgarmente conhecido por signo de Salomão.
Manuel Querino também informou sobre rituais funerários praticados
pelos malês baianos: “Por muito tempo acreditou-se que o Malê tinha por
hábito quebrar os ossos ou desconjuntar os seus mortos, no ato de colocá-
los no caixão. Não é isso exato; apenas os deitam de lado e não de frente,
como é costume”.
Sobre o jejum ritual anual da comunidade, na Bahia, o autor escreveu:
“Às sextas-feiras não trabalhavam, por ser dia consagrado às orações. O
jejum é efetuado no intervalo de uma lunação, isto é, se começava na lua
nova, terminava na lua nova seguinte. No último dia do jejum realizavam
grande festa em casa do maioral da seita, havendo missa. Nenhuma bebida
alcoólica era usada nessa festa. No ato de sacri car o carneiro introduziam a
ponta da faca na areia e sangravam o animal proferindo a palavra Bi-si-mi-
lai”.
Sobre as razões do progressivo desaparecimento da cultura e da religião
dos malês, Nina Rodrigues (1935, p. 28-29) assinalava em 1896:
Um velho africano, pequeno negociante e sacerdote de sua con ssão religiosa, me explicava
que a religião dos negros de santo e mesmo a dos católicos são muito mais fáceis, divertidas e
atraentes do que a dos musulmis, que se impõem uma vida severa, adstrita à observância de
princípios religiosos que não toleram festas e bebedeiras. Por isso, dizia-me ele, mesmo os
lhos dos malês têm pouca tendência a seguir as crenças dos seus maiores e uma vez
emancipados abraçam facilmente ou a religião jorubana27 ou o catolicismo.
Por sua vez, Johnston (1910, p. 95) escrevia alguns anos depois: “Nos dias
atuais, os Musulmi28 da Bahia falam um dialeto Iorubá (o Nagô);
antigamente (diz o Abade Ignace Etienne) eles sabiam ler e escrever em
árabe. Hoje seus sacerdotes e homens santos (Alufás) já não entendem mais
o árabe do Corão e usam uma tradução portuguesa”.
Já W. F. Oliveira (1976, p. 112) menciona Manoel Nascimento dos Santos,
o Gibirilu, lho do escravo nagô José Maria dos Santos, o Alufá Salu, como
“um dos últimos – senão o último – muçulmano negro na Bahia”. E a
Grande Enciclopédia Delta Larousse (1970, p. 4211) menciona a “Seita
Potentiosa”, uma casa de culto malê que em 1934 ainda funcionava na
Estrada da Liberdade, em Salvador.
Observe-se que a religião dos malês não oresceu apenas na Bahia. René
Ribeiro (1978, p. 53-54) inclui os malês entre os grupos de culto em
funcionamento na segunda metade do século XIX na capital pernambucana.
E cita, inclusive, este relato, do corpo mitológico do oráculo Ifá,29 recolhido
em Recife, e que re ete a repercussão do Islã na tradição dos iorubás:
Shango30 continuou nas suas andadas e distúrbios pelo mundo. Um dia chegou na terra dos
malé. […] Encontrou eles na terra de Tapa, eles de branco, sentados ao redor de uma mesa
cheia de velas acesas, dizendo: abudalai salai lei lei aabudulai. […] Diziam assim pegados num
rosário de contas grandes. Shango bateu na porta e eles não atenderam, entretidos na sua reza.
Ele então forçou a porta, arrastou o seu obe, espada, e amedrontou-os dizendo que eles tinham
de acreditar nele, senão ele acabaria com a terra deles. Disse então antes de sair que voltaria no
dia seguinte para ver se eles tinham se resolvido a acreditar nele. Nesse meio tempo Shango foi
na terra de Oke, reino de Yansan.31 […] Shango conquistou ela. […] No dia seguinte saíram
juntos para a terra dos malês. Ali chegados, acharam tudo no mesmo. Eles continuaram
rezando seus rosários e nem ligaram Shango. Ele então mandou que Yansan lhe guardasse as
costas e interpelou os malês. Eles caram assim, sem se explicar direito. Shango então
descarregou o corisco que cou dançando assim na mesa, tirando faíscas, apagando e
derrubando as velas, enquanto Yansan arrastava a sua espada e rasgando o ar com ela fazia o
relâmpago. Os malês, que não conheciam o relâmpago, caram com medo e cairam no chão
fazendo reverência a Shango. Então ele disse: “Eto” (basta) e o corisco parou. Ai o chefe dos
malês cantou: “E aba emode emole lace” reconhecendo a che a de Shango e é com esse canto
que se abre o culto dos malês.
Já no Rio de Janeiro, o escritor Gastão Cruls, à p. 588 do v. 2 de
Aparência do Rio de Janeiro (1965), escrevendo sobre as “religiões acatólicas”
na antiga capital, rmou: “Os israelitas têm boas sinagogas e os
maometanos, sem templo próprio, se reúnem nas sociedades árabes de
bene cência. Em tempos idos, os negros dessa fé tiveram uma mesquita à
Rua Barão de São Félix”.
A rua citada localiza-se no centro da cidade, na área da “Pequena África”,
onde Paulo Barreto, o “João do Rio” (1951, p. 16-18), numa série de
reportagens publicadas em 1904, também localizava um reduto do culto
malê, trazendo, entre outros dados, os seguintes:
Os alufás […] são maometanos com um fundo de misticismo. Quase todos dão para estudar a
religião, e os próprios malandros que lhe usurpam o título sabem mais que os orixás.32
Logo depois do suma ou batismo e da circuncisão ou kola, os alufás habilitam-se à leitura do
Alcorão. A sua obrigação é o kissium, a prece. Rezam ao tomar banho, lavando a ponta dos
dedos, os pés e o nariz, rezam de manhã, rezam ao pôr-do-sol. Eu os vi, retintos, com a cara
reluzente entre as barbas brancas, fazendo o aluma gariba, quando o crescente lunar aparecia
no céu. Para essas preces, vestem o abadá, uma túnica branca de mangas perdidas, enterram na
cabeça um jilá vermelho, donde pende uma faixa branca, e, à noite, o kissium continua,
sentados eles em pele de carneiro ou de tigre. […]
Essas criaturas contam à noite o rosário ou tessubá, têm o preceito de não comer carne de
porco, escrevem as orações numas tábuas, as ató, com tinta feita de arroz queimado, e jejuam
como os judeus quarenta dias a o, só tomando refeição de madrugada e ao pôr-do-sol.
Gente de cerimonial, depois do assumi, não há festa mais importante como a do ramadan, em
que trocam o saká ou presentes mútuos. Tanto a sua administração religiosa como a judiciária
estão por inteiro independentes da terra em que vivem.
Sobre os dignitários do culto, João do Rio escreveu:
Há em várias tribos vigários gerais ou ladamos obedecendo ao lemamo, o bispo, e a parte
judiciária está a cargo dos alikali, juizes, sagabamo, imediatos de juizes, e assivajiu, mestre de
cerimônias. Para ser alufá é preciso grande estudo, e esses pretos que se ngem sérios, que se
casam com gravidade, não deixam também de fazer amuré com três e quatro mulheres.
Quando o jovem alufá termina o seu exame, os outros dançam o opa suma e conduzem o
iniciado a cavalo pelas ruas, para signi car o triunfo. […]
As cerimônias realizam-se sempre nas estações dos subúrbios, em lugares afastados, e os alufás
vestem as suas roupas brancas e o seu gorro vermelho.
Conhecendo pessoalmente, através de um cicerone, os “alufás” em seu
próprio ambiente, João do Rio conta: “Alikali, o lemano atual, um preto de
pernas tortas, morador à rua Barão de São Félix, que incute respeito e terror:
o Chico Mina, cuja lha estuda violino, Alufapão, Ojó, Abacajebu, Ginjá,
Mané, brasileiro de nascimento, e outros muitos”.
A série de reportagens de João do Rio, que integra um livro sobre
diversas práticas religiosas na capital da República no início do século XX,
intitulado As religiões no Rio, apesar de alguns equívocos cometidos em boa
parte das transcrições de termos rituais e nomes africanos, é um documento
importante.33 Sem nenhum viés a não ser o jornalístico, o texto mostra,
inclusive, a rivalidade dos malês com praticantes do que mais tarde se
conheceu como “candomblé”, descreve características de líderes, relaciona
títulos de dignitários etc. En m, revela, por dentro, os meandros do
universo dos remanescentes, mas não exatamente continuadores, dos
africanos islamizados, os quais, embora vindos para o Brasil na condição de
escravos, expandiram suas crenças e práticas por diversos pontos do
território nacional.
Um exemplo dessa expansão está no livro Negros muçulmanos nas
Alagoas (1958), em cuja introdução o escritor Abelardo Duarte assim
destaca a presença malê naquele estado:
Foram eles os que realizaram a Festa dos Mortos, descrita magistralmente, embora com
sentido folclórico nítido, por Melo Morais Filho, no Penedo; foram também os insurretos de
1815, na projetada revolta do Natal daquele ano nas Alagoas; foram os penitentes fotografados
em 1887, no Penedo ainda, pelo Dr. Carvalho Sobrinho; foram os malês da Rocheira e do
Barro Vermelho, Penedo, muito aproximados dos seus irmãos dos centros baianos; foram os
conhecidos mandingueiros, de fama local.
Tanto a descrição de Manuel Querino quanto as de João do Rio e
Abelardo Duarte correspondem ao que escreveu o português Manuel
Belchior (1968, p. 38-43) sobre as práticas islâmicas na África Ocidental.
Segundo esse escritor, os mandingas da atual Guiné-Bissau praticavam, pelo
menos até 1968, um islamismo mesclado com rituais da religião tradicional.
Sua hierarquia religiosa compreendia, além dos simples éis, os “ulmamis”
(do árabe al imam), correlatos aos “lemanes” e “lemanos” de que falam
Querino e João do Rio, e, acima deles, os “seku” (variante do árabe sheikh).
Na escola corânica, os alunos escreviam em tábuas de 30 a 40
centímetros de comprimento por 15 de largura – diz Belchior –, com uma
tinta que “facilmente desaparece ao ser lavada a tábua para nela se escrever
de novo”, o que nos remete de imediato ao “feitiço do malê” que vimos no
texto de Querino.
Segundo, ainda, o escritor português, os muçulmanos dividem-se, na
África em geral, em duas grandes confrarias: a “Cadiria” e a “Tidjania”. E
tanto os membros de uma quanto os da outra facção usam rosários
chamados “tassabiô”, o que também nos remete aos “tecebá” mencionados
por Manuel Querino e os “tessubá” a que João do Rio se refere.
Informação igualmente preciosa nos vem, nalmente, neste trecho de
Belchior (p. 42-43) sobre a escolha dos antropônimos na sociedade islâmica
dos mandingas:
O nome masculino mais usado é o de Mahomet que entre os mandingas apresenta três formas
simples, Mamadu, Malam, e Lamine e várias formas compostas (Mamadu-Lamine, Malamine
etc.). A forma Mamadu conhece também as variações de Mamudo, Momade etc. […]. A seguir
ao Profeta são honrados os seus discípulos e, assim, é fácil encontrar muitos Bácar ou Bubacar,
Umaru, Ossumane e Aliu, pretendendo-se homenagear respectivamente os quatro primeiros
califas, Abubecre, Ornar, Otmane e Ali. Depois vem os Ádama (Adão), Buraima (Ibrahim ou
Abrahão), Sumaila (Ismael), Iacupo (Jacob), Mussé (Moisés), Issufo (José), Dauda (David),
Sulemaine (Salomão), Iaiá (João) e Issa (Jesus). Entre os nomes próprios femininos ocupa o
lugar de honra o da lha do Profeta, Fátima, que aparece nas formas de Fatumatu, Fatu, Fanta e
Binta. Depois o da primeira mulher, Cadija, na forma de Cildijatu. Existem também
numerosas Mariamo (Maria) e Auá (Eva).
Não causa estranheza a profusão de nomes bíblicos, já que o islamismo é,
ao lado do cristianismo e do judaísmo, uma das religiões monoteístas
abrâmicas, ou seja, cujos fundamentos remetem a Abraão, o primeiro dos
patriarcas do Velho Testamento.
De tudo isso então, o que primeiramente se infere é que: o culto malê foi,
no Brasil, um dos fatores de aglutinação e fortalecimento de africanos e
descendentes na luta contra a opressão. Através dele, escravizados de
diferentes procedências reuniram-se sob uma só bandeira, inclusive tendo
como meio de expressão um código próprio de linguagem e escrita. Daí
também e principalmente se vê é que essa forma religiosa, em vez de ser
apenas um conjunto de práticas islâmicas transplantadas para o Brasil, teria
sido – assim como as sociedades secretas nagôs Ogboni, Gueledé e Egungun
– um importante fator de mobilização revolucionária, como atestou o
sociólogo e historiador Clóvis Moura (1981, p. 61-62), na forma seguinte:
O maometanismo, que havia penetrado na África Negra em ondas a partir de 620, tinha, como
era evidente, a função de controle social das populações dominadas […]. Como explicar-se,
pois, a modi cação sociológica da função do Islã Negro no Brasil, que se transformou de
elemento de “controle social” em elemento de “mudança social”? Como se situar a mesma
ideologia religiosa, com os mesmos elementos de fé, em um e outro caso? O problema do
“in el” aqui está subordinado a outro sistema de estrati cação e divisão de classes, pois o
branco, ao tempo em que era católico, isto é, representante de uma religião contrária, era, ao
mesmo tempo, o opressor social, o senhor de escravos. Somam-se, assim, elementos que
transformaram o islamismo negro em uma ideologia que uni cava o oprimido nos três planos:
no social, no racial e no religioso.
E isso é o que buscaremos analisar nas revoltas baianas de 1807 e 1835.
Os malês e as revoltas negras na Bahia
No século XVIII, uma das modalidades do comércio escravista era o
chamado “trá co triangular”, no qual o mesmo navio saía do Brasil levando
matérias-primas para a Europa, de lá transportava manufaturados para a
África, e da África trazia escravos para o Brasil. Outra modalidade era o
negócio direto, sem intermediação da Europa. E, nele, comerciantes baianos
encontravam maior facilidade em trocar fumo de terceira categoria – que os
mercados europeus absolutamente não aceitavam – por escravos, na “Costa
da Mina”. Daí veio a predominância do desembarque, na Bahia, de africanos
provenientes dessa área, no Golfo da Guiné (C , 1980, p. 40).
Assim foi que, a partir do século XVIII, com a ligação direta da Bahia com o
então chamado Sudão Ocidental, traços culturais sudaneses, como a religião
dos orixás e o Islã negro-africano, puderam se recriar em terra brasileira,
principalmente a partir da cidade de Salvador, capital do Brasil até 1763.
Na segunda metade do século XVIII, as convulsões ocorridas no oeste
africano, como já tivemos ocasião de observar, resultaram na vinda para a
Bahia, entre outros, de grandes contingentes de indivíduos dos povos
Hauçá, Fulâni, Nupê (Tapa) etc. Chegando a Salvador, alguns desses
africanos, em geral islamizados, portadores de um grau considerável de
escolaridade e consciência política, desempenharam importante papel.
Possivelmente dotados de visão e experiência militar, com maior capacidade
de organização e conhecendo técnicas mais novas de fabricação e uso de
armas, estariam aptos a transmitir a outros cativos o germe da revolta e da
insubmissão. As informações sobre o que ocorria na África, onde naquele
momento histórico aconteciam, numa sequência, entre 1786 e 1805, as jihad
(guerras santas) de Usman Dan Fodio na atual Nigéria, e de Abd El-Kader e
Cheik Amadu, na Senegâmbia, eram incentivo e motivação. E havia também
os interesses ingleses empenhados na abolição da escravatura. A soma
desses fatores foi certamente a razão das insurreições em série ocorridas na
Bahia, entre 1807 e 1835.
Nina Rodrigues (1977, p. 48) divide esses movimentos em “Insurreições
dos Hauçás” (1807, 1809, 1813 e 1816) e “Insurreições dos Nagôs” (1826,
1827, 1828, 1830 e 1835). Já Pierre Verger (1981, p. 116) os classi ca em
revoltas “dos Hauçá” (de 1807 a 1826) e dos “Nagô Malé” (de 1827 a 1835),
frisando que o movimento de 1835 é que cou de fato conhecido como
“Revolta dos Malês”. Afrânio Peixoto (1980, p. 157-158) menciona revoltas
negras na Bahia em 1807, 1808, 1811, 1813, 1814, 1821, 1822 e 1835.
Sobre o movimento de 1807, que teria como principais líderes os negros
Antônio e Baltasar, sabe-se que foi marcado para 27 de maio, mas abortou,
não sem gerar perseguições, prisões e condenações à morte. Entre os
pertences dos indiciados no respectivo processo foram encontradas “certas
composições supersticiosas e de seu uso a que chamavam de mandingas”
(R , 1977, p. 45), o que revela participação malê no movimento.
Tomando conhecimento do levante, D. João VI, ainda príncipe regente
em Portugal, enviava ao 6º Conde da Ponte, governador da Bahia, carta
régia em que apoiava a imposição de penas severas aos revoltosos, mas se
colocando pronto a dar sua “Real Clemência” aos que a merecessem, e
ressaltando a importância das penas como exemplo “para evitar as funestas
consequências que de semelhantes acontecimentos devem recear-se”
(A , 1941, p. 129).
A outra sedição, que teria ocorrido em 1808, assim se refere Afrânio
Peixoto (1980, p. 157): “No ano imediato, 1808, outra rebelião, bem
organizada e com nalidade explícita. Seria ateado incêndio na Alfândega e
na Capela de Nazaré, para distrair povo e autoridades, enquanto os
insurgentes, no porto, captariam navios que serviriam à repatriação dos
rebeldes; foram condenados à morte e padeceram o martírio Antônio e
Baltasar, com onze companheiros, metidos em vários suplícios”.
Parece haver aí um equívoco, já que nenhum outro autor menciona a
ocorrência de insurreição nesse ano. Quanto aos líderes referidos, o mais
provável é que tenham sido condenados por participação na insurreição de
1807 e executados – aí sim – no ano seguinte, a 20 de março de 1808.
Sobre o movimento de 1809, tomamos de empréstimo este trecho de
Nina Rodrigues (1977, p. 46):
Na segunda insurreição dos hauçás já guravam eles associados aos nagôs, o que, dadas as
rivalidades e lutas em que as duas nacionalidades viviam a esse tempo em África, já por si
denuncia o acordo da fé, criado por obra do islamismo. A 26 de dezembro de 1808 desertaram
os escravos hauçás e nagôs de alguns engenhos do Recôncavo. A 4 de janeiro de 1809, oito dias
depois, desertaram os desta cidade que a eles se foram reunir. Por onde passaram, a contar de
três léguas desta cidade, cometeram toda sorte de atentados, assassínios, roubos, incêndios e
depredações. Alcançados pelas forças expedidas em seu encalço, a nove léguas desta cidade e
cercados em uma mata, onde se zeram fortes, junto ao riacho da Prata, não foi possível
induzi-los a renderem-se, dizem as partes o ciais, bem suspeitas neste particular. Investiram
contra as tropas que os bateram, matando grande número e ainda aprisionando 80, entre os
quais muitos feridos. O movimento do Recôncavo tinha sido importante principalmente no
distrito de Nazaré e Jaguaribe, vilas e roças vizinhas, de onde remeteram 23 presos para esta
cidade. Coube ainda ao Conde da Ponte reprimir esta insurreição e dela deu conta ao Governo
em cartas de 12 a 16 de janeiro de 1809.
Afrânio Peixoto não cita esse movimento. Em contrapartida, assim se
refere a outro, que teria ocorrido em 1811: “Em 1811, vários auçás, a três
léguas da cidade, no Rio Joanes, se rebelam e, batidos por força militar da
Torre, são capturados 89 escravos e doze negras” (P , 1980, p. 157).
Em 1813, novo levante. E de novo recorremos a Nina Rodrigues (1977, p.
46-47):
Parece ter sido um dos levantes mais sérios pelas proporções que tomou. Todos os negros
hauçás das armações de Manuel Inácio da Cunha Menezes, de João Vaz de Carvalho e de
outros fazendeiros vizinhos, em número superior a 600, romperam em fortes hostilidades
contra esta cidade. Assaltaram, armados, e incendiaram, pelas 4 horas da madrugada, as casas
e senzalas daquelas armações. Depois de matarem o feitor e a família deste e outros brancos
que aí se achavam, marcharam a atacar a povoação de Itapuã, onde também incendiaram
algumas casas, e, reunidos aos pretos desta localidade, assassinaram os brancos que tentaram
despersuadi-los ou lhes resistir. Treze pessoas brancas foram encontradas assassinadas pelos
negros em Itapuã e na Armação de Manuel Inácio, além de oito gravemente feridas.
Caldas Brito (apud R , 1977, p. 47) também presta informações
importantes sobre este sério movimento:
Os pretos investiram contra reforços enviados a batê-los tão desesperados e embravecidos que
só cediam na luta quando as balas os prostravam em terra; e durou o combate algumas horas,
cando fora da ação 50 negros, inclusive os que fugiram atirando-se ao rio de Joannes, onde
pereceram afogados, e três que preferiram enforcar-se a cair em poder das tropas legais.
Em ns de maio do mesmo ano o advogado Lasso denunciou ao governo que os negros hauçás
preparavam um grande levante, que irromperia na noite de 23 de junho, e nele tomariam
parte, além dos ganhadores dos cantos do cais da Cachoeira, cais Dourado e cais do Corpo
Santo, os principais cabeças, os do Terreiro e do Paço do Saldanha, e que alguns pretos de
outras raças entravam também na sedição, forros e cativos, tanto da cidade como do
Recôncavo. Os centros desses conluios eram uma capoeira que cava pelos fundos das roças
do lado direito da capela de Nossa Senhora de Nazaré, uma roça na entrada do Matatu,
fronteira à Boa Vista, Brotas e o matos do Sangradouro. O plano combinado era romperem
desses lugares na véspera de São João, com o pretexto do barulho de semelhantes dias,
matarem a guarda da Casa da pólvora de Matatu, tirarem pólvora de que precisassem,
molhando resto, e quando acudissem as tropas e estivessem entretidos com aqueles
sublevados, sairiam os cabeças existentes na cidade e degolariam todos os brancos.
Divergências entre esses pretos, querendo uns que a insurreição fosse naquele dia 10 de julho,
levaram um deles, de nome João Hauçá, escravo de Manuel José Teixeira, a trair os
companheiros. Descoberto assim o plano, ocultaram tudo quanto pudesse denunciá-los de
modo que, dando-se uma batida naqueles lugares, não se encontrou vestígio algum.
Conquanto o Conde dos Arcos estivesse convencido de que essas denúncias eram trama do
despeito de desafetos, que procuravam desmoralizar o seu governo, baixou no dia 20 de junho
uma portaria expressamente proibindo o divertimento de fogos de São João, mormente os
buscapés, ronqueiras e foguetes, punindo o infrator desta ordem, qualquer que fosse a sua
categoria social. E para que ninguém alegasse ignorância, publicou-a ao som de tambores pelas
ruas mais públicas da cidade.
Em observância da carta de 18 de março foram estes negros processados e, por acórdão da
Relação, de 15 de novembro, condenados 39 réus. Destes morreram 12 nas prisões, 4 escravos
de Manuel Inácio foram condenados à morte natural e enforcados, no dia 18 do mesmo mês,
na forca que se levantou na praça da Piedade, com assistência de toda a tropa de linha da
guarnição; e os demais foram uns açoitados e degredados para os presídios de Moçambique,
Benguela e Angola, para toda a vida, outros, depois de açoitados no lugar do suplício dos
companheiros, entregues aos senhores. A sufocação desta revolta é tida como um dos feitos de
grande merecimento do Conde de Arcos, então governador da Bahia. É porém, notável, que
aqui só se encontrem a respeito resumida referência. A “Idade de Ouro”, único jornal que a
esse tempo se publicava na Bahia, é inteiramente mudo a respeito do levante como da
execução dos chefes da insurreição. Não me foi possível encontrar o processo destes
criminosos nem no Arquivo Público, nem no cartório do Júri.
Essa revolta repercutiu também entre os malês de Alagoas. A propósito,
Abelardo Duarte (1958, p. 46-47) escreveu:
O Ouvidor da Comarca das Alagoas, Antônio Batalha, disse, em o cio datado de 4 de agosto
de 1815, que “no dia 12 de julho próximo passado, se me participara, que nesta Comarca, os
escravos negros seduzidos por alguns que se escaparam da sedição da Cidade da Bahia, se
pretendiam sublevar na noite do dia de Natal próximo futuro”. E noutro o cio do mesmo ano,
adiantou que no referido levante “principalmente entravam escravos da nação ussá (Hauçá),
sendo o resto da escravatura simplesmente sabedora”. Não resta, pois, dúvida sobre a
participação dos Hauçás nesse esboçado levante. Apenas se equivoca o Ouvidor no juízo de os
emissários dos negros da Bahia serem apenas fugitivos, quando em verdade eles agiam de
comum acordo com os seus companheiros da área baiana e o faziam seguindo um plano
perfeitamente traçado, que alguma delação tornou conhecido das autoridades.
Sobre a insurreição de 1816 sabemos apenas de um artigo do já citado
Caldas Brito, publicado na edição do Jornal do Comércio da Bahia de 15 de
maio de 1903. Sobre as seguintes – Afrânio Peixoto (1980, p. 158) cita
rebeliões malogradas em 1821 e 1822 – a documentação é mais farta.
Em 1826, 1827, 1828 e 1830 tiveram lugar na Bahia mais quatro levantes
negros. Essas insurreições tiveram importância maior por disseminarem a
ideia abolicionista entre os escravos dos engenhos na periferia de Salvador e
no Recôncavo. Continuavam os revoltosos angariando adeptos para uma
grande luta armada que tinha como objetivo o término da exploração do
braço negro.
A revolta de 1826 aconteceu no Cabula, onde mais de 50 rebeldes
repeliram asperamente as investidas o ciais. Após obterem consideráveis
reforços, as tropas repressoras cercaram o local, denominado Baixa do
Urubu, onde havia um quilombo e uma casa de orações, e efetuaram
diversas prisões. Caía por terra mais uma tentativa de luta em busca da
liberdade. A grande batalha frustrada estava prevista para a véspera do
Natal.
Iniciado a 22 de abril no engenho Vitória, próximo a Cachoeira, no
Recôncavo Baiano, o levante de 1827 teve dois dias de lutas, ao nal das
quais os negros foram derrotados.
Sobre o dia seguinte, vejam-se estas linhas de Damasceno Vieira em suas
Memórias históricas brazileiras (1903, p. 242-243):
Um levantamento de escravos apareceu na Bahia em Março de 1928. Na madrugada do dia 8
grande multidão de africanos abandonaram [sic] os engenhos em que serviam e foram reunir-
se em Pirajá, dispostos a reagir contra a opressão semi-bárbara de seu cativeiro.
Logo que o presidente da província José Egydio Gordillo de Barbuda, visconde de Camamu,
teve conhecimento desta rebelião, antes que os pretos, por vingança, praticassem correrias e
atentados, fez aprontar um corpo de policia e um batalhão de milicianos, visto que as tropas de
linha haviam marchado para as guerras no Rio Grande do Sul e na Cisplatina, e expediu
aquelas forças contra os negros sublevados.
Deu-se o encontro nas imediações de Pirajá: mais de 600 pretos foram mortos a tiro e a
espada; 350 presos, acorrentados e conduzidos à capital, calculando-se em 200 os que
conseguiram escapar à perseguição, internando-se nas matas.
Segundo o mesmo Damasceno Vieira (1903, p. 281), a 28 de fevereiro de
1830, o mencionado Visconde de Camamu era assassinado com um tiro de
bacamarte por um cavaleiro desconhecido e misterioso que fugiu, cando o
crime sem solução. E nesse mesmo ano, a 1º de abril, outra comoção sacudia
a capital baiana: cerca de 20 negros invadiam uma loja de ferragens,
roubavam diversas armas e seguiam assaltando outros estabelecimentos do
gênero, armando-se, arrebanhando multidões de adeptos e ferindo quem se
lhes opusesse até que as forças imperiais os dispersassem. Ao respectivo
processo criminal, amuletos e documentos escritos em caracteres árabes
eram anexados.
De 24 para 25 de janeiro de 1835, quando, no dizer de Afrânio Peixoto,
“meia Bahia” se encontrava em Itapagipe, entregue à festa do Bon m,
irrompeu a mais séria de todas as revoltas negras ocorridas na Bahia no
princípio do século XIX. Um resumo dela, das conspirações ao desenlace,
poderia ser feito assim: durante um longo período de arregimentação e
aliciamento, e também de avaliação dos movimentos anteriores, os planos
iam sendo transmitidos oralmente, em segredo, e aí as leiras engrossavam.
Nesse período, segundo Clóvis Moura (1981, p. 71), os conspiradores se
reuniam em vários pontos da “cidade da Bahia”, inclusive num clube do
Corredor da Vitória, nos fundos da casa de um inglês chamado Abraham,
na casa de Pací co Licutan, no porão de Manuel Calafate e na loja de
Elesbão Dandará. Além desses, outros articuladores dessas reuniões – das
quais participavam também negros de Santo Amaro, Itaparica e outras
partes do Recôncavo – eram os nagôs Diogo, Ramil, James, Tomás e
Comélio, que, che ados pelo capitão Sule, entre outras coisas, ensinavam aos
correligionários escrever em caracteres árabes. Outros participantes
destacados do movimento teriam sido Luís Sanin, da nação Tapa (Nupê),34
Ivá, Mamolim e Ojô, e Sanin, assim como Elesbão Dandará, era alufá,
marabu, ou seja, um chefe religioso.
O plano da revolta era basicamente este: um grupo de revoltosos sairia
do clube do Corredor da Vitória, na atual avenida Sete de Setembro, perto
do Campo Grande, em direção à Ribeira; lá, na localidade conhecida como
Cabrito, o grupo se uniria ao pessoal dos engenhos e quilombos da Mata
Escura, do Cabula etc. Mas os sediciosos foram delatados por “um pardo
marceneiro”, como escreveu Afrânio Peixoto (1980, p. 158), ou por uma
certa Guilhermina, como diz a voz geral. Levando os planos da revolta ao
conhecimento de um juiz de paz, Guilhermina teria feito os insurretos se
anteciparem, precipitando o momento da luta armada.
Os primeiros tiros foram dados no porão onde morava Manuel Calafate,
na Ladeira da Praça. A partir daí, travaram-se sangrentos combates, nos
quais se teriam destacado, entre outros, Agostinho, Ambrósio, Comélio,
Engrácia, Gaspar, Higino, José Saraiva, Luís e Luísa Marrim (Mahi),35 tida
como mãe do poeta e abolicionista Luís Gama. “Foram atacados” – diz
Afrânio Peixoto (1980, p. 158) – “simultaneamente os quartéis ou guardas
dos Permanentes Policiais, do Largo do Teatro, do Colégio, da Mouraria, o
Forte de São Pedro, o Quartel de Cavalaria d’Água de Meninos, entretanto
repelidos.”
Sobre esses acontecimentos, vejamos o importante depoimento do já
citado Caldas Brito (apud V ;L , 1982, p. 62-63)36:
Sendo prevenido o presidente da província, Francisco de Souza Martins, de que ia rebentar
uma revolução de negros, preparada para aquela noite ao amanhecer, o ciou logo ao Chefe de
polícia Francisco Gonçalves Martins para que tomasse todas as medidas que coibissem
semelhante levantamento. Este, depois de providenciar para que cassem os postos da cidade
em vigilância, dirigiu-se ao Bon m, onde havia festa e muita gente reunida, que convinha
defender e livrar de qualquer ataque por parte dos insurgidos.
Recomendou também o presidente ao Juiz de Paz do primeiro distrito e ao Comandante de
Polícia que zesse vigiar o largo de Guadalupe, onde supunha haver um casebre dos tais negros
que pretendiam atacar a cidade.
Realmente, à uma hora da noite, pouco mais ou menos, o Juiz de Paz, acompanhado de
paisanos e do Alferes Lázaro Vieira do Amaral, descon aram de certo rumor que saía de uma
casa onde à janela estava uma mulher de cor preta.
Intimada esta a que abrisse a porta, negou-se a isto com evasiva e disfarces, completando assim
as suspeitas que tinham nascido no ânimo dos rondantes.
Obrigada a que abrisse a porta em nome da lei, romperam então muitos tiros em descarga
cerrada, e uma multidão de negros com carapuças brancas e saiotes da mesma cor, por cima
das calças, armados de pistolas, espadas e espingardas atacaram a ronda de permanentes e
cutilaram o Alferes Lázaro Vieira do Amaral, fazendo os outros fugirem sem demora.
Dividiram-se em dois grupos, um dirigiu-se à praça de Palácio, onde atacando a guarda,
cutilou um soldado que fazia sentinela à cadeia, outro tomou a direção do Colégio, atacou
também a guarda, matou um soldado e deixou três crioulos mortos.
Outro grupo mais compacto atacou o quartel de permanentes em S. Bento e a guarda, que,
depois de trocados muitos tiros, cou desnorteada, vendo-se obrigada a fechar o portão para
livrar-se dos invasores.
Um outro vindo da Vitória investiu sobre o quartel do Forte de S. Pedro, onde travou-se novo
combate, cando no campo um guarda nacional mutilado e muitos negros mortos. O quartel
de cavalaria da Água de Meninos também foi atacado.
O Chefe de Polícia, que se achava ali, de volta do Bon m, auxiliado pelo Capitão Francisco
TelIes Carvalhal, que comandava alguns soldados de cavalaria, conseguiu opor séria
resistência. Então travou-se o mais terrível combate: os negros lançavam-se ao mar, outros
fugiam para os matos da encosta da montanha, deixando o campo juncado de cadáveres.
Os que lançaram-se ao mar, procurando por este meio evadir-se, morreram afogados ou foram
mortos a tiros por marinheiros de um escaler da fragata “Bahiana”, que se achava ali postado
por ordem do presidente da província.
Pelas ruas da cidade, negros avulsos cometiam mil desatinos, levando a gravidade do que se
tinha passado na cidade.
Ao amanhecer já tinham desaparecido os grupos, fugindo ou ocultando se nos matos vizinhos
em suas casas. Nas buscas feitas pela policia acharam-se muitos negros escondidos, uns feridos
e alguns ainda ornamentados com insígnias de chefe.
Dominado o movimento, segue-se uma violenta repressão policial que
semeia o terror entre a população negra da Bahia. A 14 de maio de 1835,
uma lei determina a deportação de todos os africanos livres suspeitos de
rebeldia, bem como de todos os escravizados chegados ao Brasil depois da
proibição do trá co (7 de novembro de 1831). Acuados, os malês
sobreviventes fundem-se à massa dos negros seguidores da religião
tradicional, tendo muitos talvez emigrado para outros centros, como o Rio
de Janeiro. Também a 14 de maio, são fuzilados – à falta de um carrasco que
os quisesse enforcar – os forros Jorge da Cunha Barbosa e José Francisco
Gonçalves, além dos escravizados Joaquim, Gonçalves e Pedro.
Entre os objetos apreendidos, gorros brancos, rosários, tábuas de escrita
e principalmente inúmeros documentos grafados em caracteres árabes que,
traduzidos, muito revelavam, como se pode ver no registro de Nina
Rodrigues (1977, p. 59-60). Nele, o “preto de nação Ussá (Hauçá), de nome
Albino, escravo do advogado Luiz da França de Athayde Moscoso, dizia
saber ‘ler e escrever os caracteres arábicos usados pelos negros insurgidos’”.
No depoimento, Albino descreve os planos da revolta e dá o signi cado de
cada um dos papéis e tábuas escritos, constantes dos autos.
O historiador João José Reis, na edição revista e ampliada do seu livro
Rebelião escrava no Brasil (São Paulo, Companhia das Letras, 2003)
aprofunda muitos pontos levantados na edição anterior, mencionada em
nossa bibliogra a. E sempre nos levando a concluir: que os movimentos
anteriores tiveram a participação de malês, mas não foram liderados
exclusivamente por estes; que a revolta de 1835 pretendia uma Bahia só de
africanos, talvez com a escravização dos mulatos (provavelmente nos moldes
da escravidão africana); que essa rebelião foi concebida nos termos de uma
aliança entre malês e demais africanos; que não foram apenas os malês que
saíram às ruas de Salvador na madrugada de 25 de janeiro daquele ano; que,
de nindo resumidamente o movimento, pode-se dizer que a conspiração foi
malê e o levante foi africano; e que se os malês que convulsionaram a Bahia
na primeira metade do século XIX tinham em mente uma jihad, uma guerra
santa, mas diferente do modelo clássico, pois incluía pessoas de fora da
comunidade islâmica.
Note-se que, da análise de uma relação de réus e suspeitos envolvidos no
levante de 1835 contida no mencionado livro de João José Reis, constata-se a
participação de cerca de 58 indivíduos. Entre eles, os referidos como “nagôs”
somam 34; os hauçás, 7; os tapas, 4; os bornus, 2; assim como os nagô-egbá,
2; e os nagô-ijebu, 1. No rol, nota-se também a presença de um cabinda e de
alguns outros envolvidos sem informação de origem étnica.
Parece certo, então, que o principal objetivo das revoltas baianas de 1807
a 1835 não era constituir no Brasil um Estado islâmico, como em algum
momento se imaginou. O que se queria, ao que parece, era a reversão da
correlação de forças na sociedade baiana de então, a favor dos africanos. E
os malês acharam-se capazes de liderar essa mudança.
Os malês e a autoa rmação do negro brasileiro
Páginas atrás, falamos da existência, no passado, de uma certa “vaidade
muçulmana”, um certo prazer do negro africano em se a rmar socialmente
através da conversão ao islamismo. E isso se explica não só pela real
contribuição do mundo islâmico à civilização universal (contribuição essa
reconhecida até mesmo pelos racistas mais empedernidos), como também
pela força fantástica de estereótipos como os da “sabedoria milenar” e do
“mistério oriental”.
Pois bem: para o brasileiro em geral, a saga dos malês foi, por muito
tempo, sabida mas nebulosa. Salvo remotas e inconscientes reminiscências,
pouco restou da cultura negro-islâmica no Brasil. Mas, sobretudo na década
de 1970, quando o ativismo do movimento negro começava a propor a
reatamento dos afrodescendentes aos elos de sua ancestralidade, em busca
da recuperação de toda uma identidade perdida, a luta dos malês foi tomada
como forte referência.
Os nagôs islamizados foram, ao que parece, maioria nessa luta. Mas
hauçás, tapas, kanuris, fulânis e outros grupos também contribuíram para a
impressão, na história brasileira, dessa página de orgulho e altivez. Por outro
lado, episódios como o de Palmares, que estudaremos na segunda parte
deste trabalho, tinham sido esvaziados pela historiogra a “o cial”, pelo que
chegaram à década de 1970 ainda despidos de sua real importância, que só
então passou a ser resgatada. Da resistência dos hoje reconhecidos como
“iorubás” (nagôs), praticantes da religião tradicional, organizando-se em
sociedades secretas, inclusive de auxílio mútuo, como as Ogboni, Gueledé e
Egungum, muito pouco se sabia. Então restava o espelho malê.
Em Salvador, Bahia, no início da década de 1980, constatava-se que
muitas pessoas da comunidade negra miti cavam os malês e asseguravam
ter uma ancestralidade “nobre”, ligada a eles. E essa miti cação se
expressava, no Carnaval, na fundação do bloco afro Malê Debalê, que saiu às
ruas em 1982, homenageando o legendário Império do Mali. Mas havia
antecedentes.
Na coletânea de poemas Cantares ao meu povo, o pernambucano Solano
Trindade (1908-1974), um dos grandes poetas da negritude no Brasil,
a rmava: “Sou Negro/meus avós foram queimados pelo Sol da
África/minh’alma recebeu o batismo dos tambores/atabaques, gonguês e
agogôs/[…]/Mesmo vovó/não foi de brincadeira/na guerra dos Malês/ela se
destacou” (T , 1981, p. 32).
E, assim como Solano, também ainda com um pouco dessa “vaidade
malê”, Aniceto de Menezes e Silva Jr. (1912-1993), carioca, compositor de
música popular conhecido como “Aniceto do Império”, a rmava em sua
composição “Raízes da África” (Lp. Copacabana 12.119 MIS 026):
“Assumano. Alabá, Abaca, Tio Sani/E Abebé me batizaram na lei de
Mussurumi/Como vêem tenho o corpo cruzado e fechado/Carrego exé na
língua, não morro envenenado/Viajei semana e meia daqui pro Rio
Jordão/Lugar em que fui batizado/com uma vela em cada mão”.
E é o mesmo Aniceto (apud V ;L , 1982, p. 75) que faz este
relato, falando o português rebuscado, que era uma de suas características:
Assumano eu não conheci,37 assim como Abaca e Abedé. João Alabá morava na Rua Barão de
São Félix. Em sua casa havia uma cadeira de espaldar. Certa vez sobre ela sentei, levado por
meu pai, Aniceto de Menezes e Silva. Estava com uma dor de cabeça renitente e João Alabá
escreveu uns rabiscos em minha testa sete vezes da direita para a esquerda e após a última vez
acabara a dor de cabeça. Tio Sani morava na Rua dos Andradas e morreu em Turiaçu,38 do
lado da Conselheiro Galvão. Foi lá que o conheci. Ele era muito respeitado e trabalhava, assim
como os mussurumins, com os astros – o sol, a lua. Alguns deles eram fortes sob a luz do sol e
fracos sob a luz da lua e outros, pelo contrário, eram valentes à noite e lerdos durante o dia.
Aniceto não foi exceção entre os antigos sambistas. Segundo o jornalista
e escritor Jota Efegê (1980, p. 122), também o consagrado Sinhô (José
Barbosa da Silva) frequentava o alufá Henrique Assumano Mina do Brasil –
a quem levava seus sambas para serem “rezados” e assim obterem sucesso. E
o nome “Assumano” parece ser uma forma abrasileirada do Ussumane
registrado na antiga Guiné Portuguesa (C ;Q , 1964, p. 211),
que, por sua vez, deriva do árabe Usman ou Utmâm, como o do herói
Usman Dan Fodio, citado páginas atrás.
Segundo o mesmo Jota Efegê (1982, p. 177), José Gomes da Costa, o “Zé
Espinguela”, personagem legendário do samba carioca, era também
conhecido como “Pai Alufá”.
Mas a presença de reminiscências de um “culto malê” no Rio, ao
contrário da Bahia, sempre foi apenas objeto de referências orais. Até que
uma nova perspectiva se abriu, com a descoberta, em novembro de 1983, de
“misteriosos manuscritos árabes” atrás da parede demolida de uma loja
comercial na rua Buenos Aires, no Centro. “Foi na tarde seguinte ao feriado
de Finados” – dizia uma reportagem do jornal O Globo, na página 7 de sua
edição de 30 de novembro – “que os dois operários da Plast Rei, José Pereira
e Osias Gomes, descobriram os pergaminhos incrustados na parede da loja.
Estavam raspando a tinta quando, de repente, viram um pequeno rolo de
barbante. Desenrolaram os os e encontraram um pacote de pano do
tamanho de um retrato 3 x 4. Rasgaram o tecido”. Dentro dos pacotes havia
dois manuscritos, grafados com tinta vermelha, talvez sangue, em pedaços
de pergaminho, e reproduzindo o que pareciam ser caracteres árabes.
Solicitado a traduzir os manuscritos, um funcionário do Consulado do
Líbano se assustou, dizendo, segundo a reportagem de O Globo, tratar-se de
“macumba muçulmana”.
Chamado também a opinar sobre o achado, o diplomata egípcio Abdel
Washab Saleh Chawki foi ainda mais conclusivo. Disse constarem os
manuscritos de “símbolos de rituais malignos” com “preces para que um
homem abandonasse a esposa” e pragas “para que ele passasse fome e casse
pobre” se não procedesse assim. Tal conteúdo foi também con rmado pelo
professor do Setor de Estudos Árabes da Faculdade de Letras da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) João Baptista M. Vargens.
Igualmente convidada a dar sua opinião sobre o achado, Carmem
Teixeira da Conceição, a Tia Carmem do Xibuca, negra baiana nascida em
1877, remanescente da “Pequena África”39 carioca do início do século, íntima
do alufá Assumano, manifestou sua familiaridade com aquele tipo de
manuscrito, dizendo ser algo muito comum nas práticas religiosas dos
malês. Na oportunidade, também entrevistada por O Globo (edição de 4 de
dezembro de 1983, p. 27), Tia Carmem a rmava: “Eles trabalhavam muito
com carneiros em seus sacrifícios e transformavam seus pêlos em tapetes,
sobre os quais dormiam. […] O Culto era dominado pelos astros,
notadamente a Lua, que para eles tinha grande signi cado. Usavam rosários
de ossos e tábuas”.
Indagada sobre se Henrique Assumano, em seu culto, trabalhava para
obter efeitos malignos, Tia Carmem retrucou: “Ele era um homem de bem.
Não bebia, e nunca soube que usasse o seu culto para trabalhos malé cos.
Mas existiam outros capazes disso. Havia o Abu do Santo Cristo que, dizia-
se, tratava dessa parte”.
Registre-se que entre os habitantes da “Pequena África” da antiga Praça
Onze, no Rio, havia pelo menos um Abul: Leopoldino da Costa Jumbeba,
marido de Isabel, lha mais velha de Hilária Batista de Almeida, a
legendária “Tia Ciata” (M , 1983, p. 95).
A propósito de Tia Ciata – cujo cognome, sob a forma “Siata”, é
conhecido entre povos islamizados da antiga Guiné Portuguesa como
corruptela do nome árabe Aycha ou Aichât (C ;Q , 1964, p.
209) e que tinha entre seus familiares vários com nomes ou cognomes de
origem nitidamente islâmica, como Abul e Fatumã –, vale transcrever este
trecho de Roberto Moura (1983, p. 86) sobre a presença do Islã negro-
africano na “Pequena África” carioca:
No meio negro carioca, onde a colônia baiana era uma elite a partir de suas organizações
religiosas e festeiras, é de grande importância a presença de negros malês ou muçulmanos e
hauçás, africanos que migrariam para o Rio de Janeiro fugindo das perseguições que passam a
sofrer depois de liderarem as insurreições baianas na primeira metade do século XIX. Ao lado
dos nagôs, em maior número, o negro islâmico40 se organizaria em grupos de culto, que
sairiam às ruas celebrando as iniciações nos subúrbios distantes com suas roupas brancas e
gorros vermelhos. Suas casas pelas ruas São Diogo, Barão de São Félix, Hospício, Núncio e da
América, no coração da Pequena África, revelam a dedicação às coisas do culto, uma nação
que vai desaparecendo…
Finalizando, examinemos este outro trecho, em que Moura (1983, p. 87),
depois de analisar as informações de João do Rio sobre os “alufás” da terra
carioca, e a sincretização de suas práticas com as dos nagôs, reporta-se a Tia
Carmem – memória viva da “Pequena África” – para falar de Assumano:
Ainda hoje, D. Carmem se benze quando fala em Assumano Mina do Brasil, “da costa da
África”, que morava num sobrado da Praça Onze, 191. Trabalhava com os astros e era comum
passar dias em jejum. Era conhecido dos baianos ligados ao terreiro de João Alabá,41 e se
freqüentavam. Sua mulher Gracinda, dona do bar Gruta Baiana na rua Visconde do Rio
Branco, vivia em casa separada da sua, na antiga rua Júlio do Carmo, já que os preceitos
impediam que Assumano tivesse mulher durante a maior parte dos dias.
Mas os vestígios da cultura malê não se resumem a esses poucos e
“misteriosos manuscritos” e a essas lembranças quase apagadas na memória
dos mais velhos. A esses traços podem se somar, por exemplo, o hábito de
portar orações escritas encerradas em breves e escapulários para evitar o
mal; o uso de anéis de metal branco (alumínio etc.), que, inclusive, eram um
distintivo dos revoltosos de 1835; certas crenças ligadas à água (“água não se
nega a ninguém”) e ao vento (“cuidado que pode dar um vento”…); o
turbante e as chinelas de ponta virada do traje de “baiana de beca”; talvez
outras manifestações da iconogra a popular em que a Lua crescente aparece
com frequência; talvez alguns rituais do chamado “candomblé”; o “arroz de
hauçá” da culinária baiana; as expressões “fula” e “mandinga” etc.
São de suma importância, então, novas contribuições para o estudo do
Islã negro-africano e da história do negro no Brasil. O islamismo até aqui
chegado foi inquestionavelmente um importante fator de aglutinação na luta
pela abolição da escravatura e continua sendo, na memória dos
afrodescendentes, um grande motivo de orgulho e autoa rmação. Mas não é
o único – o que procuraremos mostrar na segunda parte deste trabalho.
A ingratidão e a perfídia, essas torpes faculdades tão comuns nas inteligências rudimentares,
formam o traço característico do Negro.
(C ;I , [s.d.], I, p. 84)
Houve um tempo em que os brancos eram peixes que viviam dentro d’água. Um dia um negro
foi pescar e pescou um peixe que, ao sair da água, se transformou em homem branco. Ele foi
criado e educado pelo negro, com quem aprendeu muita coisa. Mas quando se sentiu senhor de
todos os conhecimentos e ofícios que o negro lhe havia ensinado, tomou o poder e desde então
nunca mais deixou de maltratar seu benfeitor.
Mito dos Macondes de Moçambique (C ;H , 1977, p. 119)
OS BANTOS
Os “ancestrais esquecidos”
A denominação “Banto” designa o grande conjunto de povos agrupados
por a nidades linguísticas e culturais, localizados nos atuais territórios da
África Central, Centro-Ocidental, Austral e parte da África Oriental.
Segundo algumas fontes, até meados do século XVIII a maior parte dos
territórios ocupados por falantes de línguas do grupo Banto teria sido
menos afetada que a África Ocidental pela crescente onda do comércio
intercontinental, que transformava radicalmente o continente africano,
desde a chegada dos portugueses, três séculos antes. E a partir do
incremento do trá co de escravos para o Brasil e demais países das
Américas, quase metade dos africanos que cruzaram o Atlântico eram
bantos da África Central, e, para o Brasil, os que vieram da porção Centro-
Ocidental do continente africano constituíram a maioria. Por isso, segundo
o historiador e antropólogo belga Jan Vansina (2010, p. 7), poderiam ser
referidos como os “ancestrais esquecidos”.
Na África do Sul, o termo “Bantu” é usado para designar todas as
populações negras, sem distinção de etnias, exceto os povos Coissã, outrora
designados “bosquímanos” e “hotentotes”.
Equívocos e preconceitos
A negação da importância cultural do segmento banto na formação do
povo brasileiro, como vimos na nota introdutória desta obra, repercutiu no
inconsciente nacional, principalmente porque as ideias sobre essa suposta
inferioridade foram formuladas, a partir do século XIX, por escritores de
grande prestígio. Foi o caso de Sílvio Romero, que, em sua História da
literatura brasileira (1953, t. I, p. 132), a rmava: “Resta-me falar dos povos
negros que entraram em nossa formação. Eram quase todos do grupo bantu.
São gentes ainda no período do fetichismo, brutais, submissas e robustas, as
mais próprias para os árduos trabalhos de nossa lavoura rudimentar”.
Alguns anos depois, o maranhense Nina Rodrigues, em Os africanos no
Brasil (1977, p. 20), fazia coro ao festejado sergipano:
No entanto, por mais avultada que tivesse sido a importação de negros da África Austral, do
vasto grupo étnico dos negros de língua tu ou banto – e o seu número foi colossal –, a verdade
é que nenhuma vantagem numérica conseguiu levar à dos negros sudaneses, aos quais, além
disso, cabe inconteste a primazia em todos os feitos em que, da parte do negro, houve na nossa
história uma a rmação da sua ação ou dos seus sentimentos de raça.
Da mesma forma, Afrânio Peixoto conceituava, no seu Breviário da
Bahia (1980, p. 281): “A preferência de todo o Brasil, exceto a Bahia, por
Angola, é que embora mais feios, menos cultos, eram mais dóceis e
obedientes ao trabalho. ‘Muito afeiçoáveis ao cativeiro, ótimos criados, mas
muito estúpidos’, diz Taunay”.
E Oliveira Vianna, no livro Raça e assimilação (1959), depois de a rmar
que “os negros puros, vivendo nas orestas do Congo ou da Angola, nunca
criaram civilização alguma” (p. 202), falava, citando um certo Keane, de um
“triunfo dos Bantus” sobre as “populações de puro-sangue negro” –
pigmeus, bosquímanos e hotentotes, talvez; da “assinalada superioridade
intelectual do negróide [sic] Bantu sobre o elemento negro puro” (p. 204),
a rmando que os bantos constituíam “uma raça mestiça”.
A inferiorização dos bantos, em relação aos povos da África Ocidental,
apregoada que foi pelos eruditos do racismo cientí co, ecoou fundo na alma
popular. Assim, até mesmo negros, em geral já nascidos no Brasil, durante e
após o período escravista alardeavam o fato, como podemos ler nestas falas,
colocadas em 1904 pelo jornalista e escritor Paulo Barreto, o João do Rio
(1951, p. 13-14, 27), na boca de um suposto entrevistado, o negro Antônio,
“que estudou em Lagos”:
– O eubá [iorubá] para os africanos é como o inglês para os povos civilizados.42 Quem fala o
eubá pode atravessar a África e viver entre os pretos do Rio, Só os cambindas ignoram o eubá,
mas esses ignoram até a própria língua, que é muito difícil. Quando os cambindas falam,
misturam todas as línguas… […]
– Por negro cambinda é que se compreende que africano foi escravo de branco. Cambinda é
burro e sem-vergonha!
Em 1922 o estereótipo ainda persistia, como se pode ler nestas linhas de
Fatos da vida do Brasil, do escritor Braz do Amaral (1941, p. 126):
Os angolas [ambundos, jingas, luandas] eram insolentes, loquazes, imaginosos e indolentes,
sem persistência para o trabalho, férteis em recursos e manhas, mas sem sinceridade nas
coisas, muito fáceis de conduzir pelo temor dos castigos, e ainda mais pela alegria duma festa,
mas também voltaram as costas ao receio, desde que não estivesse iminente; pouco cuidadosos
da responsabilidade do que se lhes con ava, entusiasmando-se por qualquer assunto e dele
chacoteando pouco depois, mostravam ter grande predileção pelo que é reluzente e
ornamental, como todos os povos de imaginação viva e ligeira.
Na sequência dos estudos sobre o negro no Brasil, talvez o primeiro
escritor a notar a importância dos bantos para a cultura brasileira tenha sido
Artur Ramos, que, no dizer de Edison Carneiro (1981, p. 128), foi “o grande
reabilitador da escola baiana de Nina Rodrigues”. Entretanto, mesmo depois
de Ramos, vemos Manuel Diegues Jr., no livro Etnias e culturas no Brasil
(1975, p. 113), insistir no velho ponto de vista: “Já os bantos, embora de
expressão cultural inferior, deixaram vários traços característicos de sua
in uência…” (o grifo é nosso).
Origens e localização
Assim como dividiam esquematicamente os negros africanos em “bantos
e sudaneses”, os antigos manuais de história do Brasil tinham por norma,
também, ensinar ou insinuar que o nome “Banto” designava uma “raça” da
África Austral, estigmatizando esse segmento como “inferior”.
Na atualidade, o termo “raça”, por sua impropriedade, deu lugar ao
vocábulo “etnia” (ou à expressão “grupo étnico”) para designar a
coletividade de indivíduos humanos com características biológicas
semelhantes e que compartilham a mesma cultura e a mesma língua. Assim,
os bantos constituem muito mais do que uma etnia ou grupo étnico,
devendo, isso sim, ser vistos como um grande conjunto de povos falantes de
línguas que têm uma origem comum, como os povos latinos, anglo-saxões,
célticos etc.
O nome genérico Banto foi dado pelo linguista alemão Wilhelm H. Bleek
na década de 1860 a um grupo de cerca de 2 mil línguas africanas que
estudou (B , 1968, p. 64). Analisando essas línguas, Bleek chegou à
conclusão de que a palavra “muNTU” existia em quase todas elas, com
pequenas variações, signi cando a mesma coisa (gente, indivíduo, pessoa).
A partir daí, o cientista descobriu que, nessas línguas, as palavras são
agrupadas por classes ou categorias; e essas distinções são expressas pelo uso
de pre xos. Como exemplo, partindo do radical “ntu”, pessoa, formaremos
outras palavras: “MUntu”, pessoas (esse pre xo, de acordo com a língua,
pode também apresentar as variantes Um, Am, Mo, M, Ki, Tchi, N, Ka etc.).
A enunciação do grupo étnico a que o indivíduo banto pertence é feita pelo
acréscimo dos pre xos Ba, Wa, Ua, Ova, A, Va, Ama, I, Ki, Tchi, Exi, Baxi,
Bena, Akua etc.); a do território que ele ocupa ou de onde é originário, pelos
pre xos Bu, U, Le etc.; e a língua que ele fala, por pre xos como Ki, Tchi,
Chi, Shi, Si, Se, U, A, Li, Di, Lu etc. Dessa forma, um indivíduo Nkongo
(congo), por exemplo, pertence ao povo Bakongo (Congo) e fala o idioma
Kikongo (Quicongo).
O tempo in nitivo dos verbos também é indicado por pre xos, como Ku
e Oku, por exemplo: KUfa, morrer (quimbundo); OKUenda, morrer
(umbundo); KUvala, nascer (quimbundo) etc. Posteriormente, outros
estudos concluiriam que nas línguas bantas, a conjugação dos verbos
também se fazia pelo uso de pre xos, além de outras particularidades.
Observemos, ainda, que algumas línguas do grupo banto são mencionadas,
por estrangeiros e talvez por comodidade, apenas pelo radical, sem o
pre xo. Assim: Zulu em vez de ISIzulu; Suaíli no lugar de Kiswahili etc.
Outras características das línguas bantas são as seguintes: nelas, todos os
vocábulos terminal com uma vogal; substantivos, adjetivos e verbos em
geral decompõem-se em pre xo, radical e su xo; na ordenação das palavras,
o sujeito vem antes do verbo e o complemento vem após o substantivo; e o
verbo vem antes do objeto direto etc., tal qual na língua portuguesa
(G …, 1970, p. 736).
De posse, então, dessas informações, vemos que Banto é uma designação
apenas linguística. Entretanto, a denominação se estendeu, e hoje, sob a
designação “bantos”, abrange quase todos os povos ou grupos étnicos negro-
africanos do centro, do sul e do leste do continente identi cados por uso de
línguas aparentadas e modos de vida determinados por atividades a ns.
Os especialistas classi caram as línguas bantas de diversas formas. Mais
recentemente, entretanto, Obenga (1985, p. 22), com base em M. A. Bryan e
George P. Murdock, estabeleceu uma classi cação das línguas dos grupos e
subgrupos bantos, através da qual poderemos chegar àqueles comprovada
ou presumivelmente tra cados para o Brasil, como os seguintes:
Bantos do Noroeste
1. Bubi (Bube), Tanga, Banoo (Noko), Poko (Puku), Yasa, Kombe (Kumbe),
Benga
2. Duala, Mboko (Bamboko), Bobea (Wovea), Kpe (Mokpe, Kwili), Su
(Isuwu), Kole, Bodiman, Oli (Wuri), Pongo, Mungo, Limba
3. Basa, Koko, Lombi, Bangkon (Bankon, Abo), Mbene (Yabasi, Mbang,
Dibum, Ndogpenda, Nyamtam, Dibeng, Ndokama, Ndogbele, Bakem),
Banen (Ndogbiakat, Ndogtuna, Ndogbang, Ndogbanol, Logananga, Eling,
ltundu), Bonek, Mandi, Yambeta, Nyokon
4. Mbo, Balong, Bonkeng, Bafo, Balongo, Babong, Baneka, Kaa (Bakaka),
Mwahet (Manehas), Muamenam, Koose (Kossi), Swase (Swose, Sossi),
Long (Elong), Nenu (Ninong)
5. Lundu, Ngoro (Ngolo), Kundu, Batanga, Bima, Ekumbe (Kombe),
Mbonge, Barue (Lue, Balue)
6. Duma, Tsaangi, Nzebi (Bandzabi), Mbete, Mbamba (Kota), Ndumu
(Ndumbo)
7. Lumbu, Sira (Shira), Sangu (Shango), Punu, Bwisi, Yaka
8. Myene, Mpongwe, Rongo (Orungu), Galwa (Galoa), Adyumba (Jumba),
Nkomi, Enenga (Ininga)
9. Tsogo (Shogo), Kande (Okande, Kanda)
10. Teke, Tio (Bali), Lali, Fumu (Ifumu), Tende, Boon (Boma), M nu
(Fununga), Kukwa (Koukouya), Njinju (Ndzindzihu, Ndizkou), Wumu,
Ntere, Nunu, Tegue (Tege), Tsayi
Bantos do Equador
1. Ngala, Boloki, Ngiri, Loi (Baloi), Bangi (Bobangi, Boubangui), Poto,
Mbudza, Buja, Ngombe (Benge, Mbati, Binza, Bwa ou Babwa, Kango,
Yewu), Mbati ou Isongo (República Centro-Africana, região de Lobaye)
2. Pande, Ngondi (Ngundi), Bogongo, Mbomotaba, Bongili, Ndanda,
Lobala, Bomboli
3. Mbosi (Mbochi), Olee, Ngae, Tsambitso, Mbondzi (Boundji), Obaa ou
Ngolo, Eboyi, Koyo, Ngare, Mboko, Akua (Makoua), Kuba (Likuba),
Kwala (Likwala)
4. Maka, Mvumbo (Ngumba), So, Ndzem (Dzimu, Zimu), Esel, Badjue,
Konambem (Konabembe), Bekwil (Bakwele, Kwele), Mbimu, Medjime
(Medzime), Bangantu, Mpomo (Bombo), Bidjuki, Mpiemo, Biakumbo,
Bikum, Kpabili, Bethen, Azom (Besom), Kwakum, Kaka, Pol, Kako, Pomo,
Bomwali (Bumali), Lino
5. Fang, Eton, Ewondo (Yaunde), Mvele ou Yezum (Avek, Lepek, Mengang,
Yasem, Yangagfek), Bakja, Bebele, Gbigbil (Bobili), Eki (Mvang), Bulu,
Bene (Bane), Ntum, Make
6. Lega (Rega), Nyanga, Kanu, Bembe, Tumbwe, Songola, Dinja, Gengele,
Bangubangu, Buyu, Zimba, Holoholo, Kalanga, Genya (Eya), Lengola,
Mituku, Zyoba, Vira, Masanze
7. Bira, Bila, Kumu (Komo), Bili (Oeri, Pere), Bugombe, Amba, Hyanzi,
Suwa
8. Kele (Lokele), Mbesa, Lombo (Olombo), So (Soko, Eso), Poke (Topoke)
Bantos Mongo – Nkundo – Tetela
1. Mogo (Lomongo), Nkundo (Lonkundu, Lolo), Wangata, Mpama, Panga,
Titu, Buli ou Oli, Bukala, Yailima ou Yajima, Ekonda, Bakutu, Bolongo
2. Ngando (Ngandu).
3. Lalia
4. Mbole, Kembo, Yamba, Yaisu, Foma ou Fuma, loja, Nkembe
5. Ntomba, Nkole, Imoma, Mpongo
6. Bolia, Boloki, Sakani
7. Omobo (Rombo)
8. Djia
9. Sakata
10. Tetela (Sungu), Kusu, Nkutu (Nkutshu), Vela (Boyela), Kela (Lemba),
Hamba, Ngongo, Kongola-Meno, Kalo, Elembe, Saka, Mbuli
Bantos do centro
Grupo Kongo
1. Kongo de Mazinga-Mukimbuku (dialeto central, segundo Laman)
2. Mboma
3. Sundi
4. Ndibu
5. Solongo
6. Mpangu
7. Mbamba
8. Mpese
9. Ntandu
10. Lula
11. Mbata
12. Zombo
13. Soso
14. Nkanu
15. Mbeko
16. Vili (Fiote, Loango)
17. Mboka
18. Ndingi
19. Ngoyo (Woyo)
20. Yombe
21. Kunyi (in uenciados pelos teke)
22. Bembe (Beembe)
23. Bwende
24. Yaka
25. Gangala (Hangala)
26. Dondo (Doondo)
27. Kamba (Kaamba)
28. Lari
Grupo Kimbundu
1. Kimbundu (Mbundu)
2. Ngola, Ndongo, Mbaka, Njinga, Mbangala, Ndembu
3. Sarna (Kisama)
4. Bolo (Libolo)
5. Holo (Holu), Tembo, Shinji
Grupo Kwango
1. Kwese
2. Luwa, Nzofo, Sonde
3. Mbala, Huana, Humbu
4. Ngongo, Songo
5. Pende
6. Suku, Samba, Yaka, Lula
Grupo Kasai
1. Kuba, Mbala, Nkutshu, Luku, Mbengi, Ndengese
2. Lele
3. Wongo
4. Yans (Yanzi), Dzing, Mbuum, Yeei (Yey)
Grupo Chokwe-Lunda
1. Chokwe (Cokwe, Tshiok), Nungo (Minungu), Ruund (Lunda)
2. Luimbi (Lwimbi, Luimbe), Mbwela, Ngangwela, Lucazi (Luchazi)
3. Lwena (Lovale, Lubale, Luvale)
4. Mbunda
5. Nyengo
6. Lunda, Ndembo (Ndembu)
7. Songo
Grupo Bemba
1. Tabwa (Rungu), Shila (Bwile, Bile, Bwila)
2. Bemba (Wemba), Ngoma, Lomotua (Lomotwa), Nwesi, Lembue
(Mambwe), Lungu
3. Bisa (Wisa)
4. Lala, Ambo
5. Lamba, Seba (Sewa), Wulima, Luano
6. Aushi (Ushi, Usi)
Grupo Maravi (Marave, Malawi)
1. Nsenga, Kunda, Nyungwe, Sena, Tonga, Rue, Podzo
2. Maravi (Marave, Malawi), Nyanja, Nyasa, Manganja, Cewa (Chewa,
Sheva), Nsenga
3. Tumbuka, Kamanga (Henga), Sisya, Kandawire, Fulilwa, Nthali, Hewe,
Phoka, Yombe, Wenya, Fungwe, Nyika, Tambo, Lambia.
Grupo Yao-Makwa
1. Yao (Ayo, Wajao)
2. Mwera (Mwela)
3. Makonde (Chinimakonde)
4. Ndonde (Kimakwanda)
5. Mabiha (Mavia, Maviha, Mawia)
6. Makua (Makoa, Makwa), Medo, Lomwe (Lolo, Nguru, Cilowe)
7. Ngulu (Nguru, Mihavane, Mihavani)
8. Cuabo (Chuabo, Chwabo, Cuambo, Lolo)
Bantos da costa nordeste
Grupo Shambaa-Zigula
1. Shambaa (Shambala, Sambaa, Sambara), Bondei, Athu (Asu, Chasu, Pare),
Tubeta (Taveta)
2. Zigula (Zigua), Zaramo, Doe (Dohe), Ngulu (Ruguru), Kami, Kutu,
Vidunda, Sagala (Itumba, Kondoa, Ziraha, Kwenyi, Nkwi y, Nkunda)
Grupo Nyika-Taita
1 Nyika (Nika)
2. Giryama
3 Kauma
4. Conyi (Chonyi)
5. Duruma
6. Rabai
7. Jibana
8. Kambe
9. Ribe
10. Taita (Teita), Digo, Pokomo
Grupo Suaíli (Swahili)
1. Unguja (Zanzibar)
2. Mrima (dialeto da costa Mrima, utilizado de Vanga até próximo a Kilwa)
3. Mgao (língua da costa Mgao, de Kilwa e para mais além, em direção ao
sul)
4. Hadimu e Tumbatu (ilha de Zanzibar, fora da cidade)
5. Pemba (dialeto da ilha de Pemba)
6. Mvita (dialeto de Mombaça: de Malandi ao norte de Mombaça a Gasi,
mais ao sul)
7. Vumba (dialeto de Vanga e da ilha de Wasini). É um subdialeto do
Kimwita.
8. Amu (dialeto da cidade de Amu ou Lamu, na ilha do mesmo nome)
9. Pate (dialeto de Pate, na ilha de Patta)
10. Shela (dialeto de Shela, ao sul de Lamu)
11. Siu (dialeto de Siu, entre Pate e Faza)
12. Tikuu (falar de Rasini e do norte de Lamu)
13. Banadir (dialeto da costa de Banadir)
14. Ngazija (língua de Comores, muito semelhante ao Bajuni)
15. Ngovi ou Ngozi (o mais antigo falar suaíli da costa)
Bantos das Terras Altas do Quênia
1. Kikuyu (Gikuyu)
2. Kamba
3. Meru (Mero)
4. araka
5. Dhaiso
6. Sonjo
7. Chagga (Chaga), Moci (Moshi), Shira, Rwo
8. Kahe
9. Gweno
10. Rusha
11. Taita, Giryama, Pokomo, Shambaa, Pare Gá (mencionados)
Bantos interlacustres
1. Toro (Torro)
2. Nkole (Nkore)
3. Ganda
4. Nyoro
5. Soga
6. Luhya
7. Haya (Ruhaya) e Nyambo (Runyambo)
8. Dizndza (Zinza)
9. Rwanda (Kiga, Lera, Nduga, Ndara, Ganza, Ndorwa, Shobyo, Tshogo)
10. Rundi
11. Jita (Kwaya)
12. Kerebe (Kerwe), Kara
13. Ziba
14. Hororo
15. Gwere
16. Gisu
17. Gusii, Lugoli, Kuria, Sweta, Kiroba, Simbiti, Ngurimi (Ngoreme), Zanaki,
Ndali, Sidra, Nata (Ikoma)
18. Nyuli, Samia, Khayo (Hayo), Marachi, Hanga (Wanga), Nyole (Nyore),
Taconi (Tadjoni)
Bantos da Tanzânia
Grupo Ri
1. Gogo
2. Nilyamba (Iramba)
3. Rimi (Nyaturu, Turu)
4. Langi (Rangi, Irangi)
5. Mbugwe
Grupo Nyamwezi (centro-oeste)
1. Bende
2. Nyamwezi, Nyanyembe
3. Takama (Garaganza), Mwei (Sumbwa)
4. Konongo
5. Kimbu
6. Sukuma
Grupo Rukwa
1. Fipa, Rungu (Iungu), Mambwe
2. Iwa, Mwanza (Nyamwanga)
3. Lambia (Lambya)
4. Wandia (Wandya)
5. Ndali, Tambo, Malila
6. Pimbwe, Rungwa
7. Safwa, Nyiha (Nyika)
Grupo Ru
1. Bena
2. Hehe
3. Matumbi, Ndengereko
4. Mbunga
5. Pogolo (Pogoro)
6. Sango (Sangu, Rori)
7. Ruihi (Ru ji)
8. Kichi
Grupo Nyasa
1. Nyakyusa (Mombe), Kukwe, Selya, Mwamba, Ngonde
2. Kinga
3. Wanji
4. Kisi, Mpoto
5. Matengo
Bantos do Médio Zambeze
1. Ila, Lundwe
2. Lente, Soli
3. Subia (Soubya), Leya
4. Tonga, Toka, We
5. Totela
6. Lozi (Barrotes, Rozi), Luyi (Louyi), Kwandi, Mbowe, Kwangwa
7. Mashi, Makoma, Mishulundu, Ndundulu, Nyengo, Abunda, Shanjo,
Simaa, Yei
8. Mpukushu
9. Lukolwe, Mbwela (Mbwera)
10. Mashasha (Bamasasa)
11. Nkoya, Lushange
Bantos do sudoeste
1. Kuanyama (Ovambo)
2. Ndonga (Ambo)
3. Herero (Damara), Mbandieru, Shimba (Himba)
4. Mbundu (Ovimbundu)
5. Ndombe
6. Nyaneka, Humbe, Mwila (Huila)
Bantos Xona (sul do Zimbábue e Moçambique)
1. Korekore, Tavara, Shangwe, Gova, Budya, Tande, Nyongwe, Pfunde
2. Zezuru, Gova, Mbire, Kwavhikwakwa, Tsunga, Harava, Nohwe, Njanja,
Zimba, Nobvu
3. Karanga, Govera, Ngova, Duma, Jena, Mhari (Mari), Nyubi
4. Manyika, Hungwe, Unyama, Karombe, Bunji (Tomboji), Nyamuka,
Domba, Nyatwe, Gota, Here, Bvumba, Jindwi, Boca, Teve
5. Ndau, Tonga, Garwe, Danda, Shanga
6. Kalanga (Kalana), Rozwi, Nyai, Nambzya, Lilima (Humbe), Peri,
Talahundra
Bantos Tonga (Moçambique Meridional)
1. Ronga (Baronga), Konde
2. Tsonga (Tonga), Gwamba, Jonga, HIanganu, Ngwalungu, Bila (Vila)
3. Hiengwe, Makwakwe, Khambana, Tswa, Dzibi, Dzonga
4. Chopi (Tschoopi), Lenge, Tonga
Bantos Nguni (os mais meridionais dos idiomas e falares bantos)
1. Zulu, laIa, Qwabe
2. Ndebele, Laka, Maume, Motetlane, Seleka, Manala
3. Ngoni (Nguni), Gomani, Chiwere, Magwangara, Mombera, Mpezeni
4. Xhosa (Xosa, outrora chamado “Ka r”, ca e), Tembu, Momvana,
Mpondo, Mpondomse (Mpondomisi), Gcaleka, Ndlambe, Gaika, Xesibe
5. Swazi (Swati, Tekela), Bhaca, HIubi, Phuthi
Bantos Soto (Sotho)
1. Sotho (Suthu)
2. Tswana, Ngwato, Tawana, Kgatka, Khatla, Kwena, Nguaketse, Hurutshe,
Rolong (Barolong), laro, laping, Kgalagadi
3. Pedi, Masemula, Kgaga, Koni, Tsweni, Ganawa, Pulana, Phala-Borwa,
Khutswe, Lobedu (Lovedu), Dogwa (Tlokwa)
4. Venda, Phani, Tavhatsindi, Lemba (Baremba)
Segundo Obenga (1985, p. 30), todas essas línguas hoje faladas no centro,
no centro-oeste, no leste e no sul do continente africano guardam, entre si,
profundas a nidades de ordem genética, já que todas elas derivam de um
protobanto, o Ur-Bantu, conforme defendido pelo linguista alemão Carl
Meinhof.
Na classi cação aqui apresentada, o grupo que mais de perto interessa ao
nosso trabalho é o dos “Bantos do centro”. E isso por causa da profunda
in uência que línguas desse grupo, como o Quimbundo e o Quicongo,
exerceram na formação do português que hoje se fala no Brasil.
Os povos congos ou bacongos (ba-Kongo), cuja língua comum é o
Quicongo em suas várias formas dialetais, habitam os dois modernos países
denominados “Congo”, o Enclave de Cabinda e o norte de Angola; e talvez
tenham chegado a esses locais vindos da foz do rio Cuango. De lá, teriam
tomado vários caminhos, com os sundis indo até o lago Stanley e os vilis
(Vili), cabindas ou otes (m oti), atravessando a embocadura do rio Congo
e se estabelecendo ao longo da costa. A maioria dos bacongos, entretanto,
instala-se ao sul do Baixo Congo, onde os portugueses vão encontrá-los no
nal do século XV (D , 1976, p. 86).
Já os ambundos, cuja língua é o Quimbundo, distribuem-se hoje, em
Angola, ao norte do rio Cuanza; e os ovimbundos, cuja língua é o
Umbundo, habitam ao sul do mesmo rio. Os ovimbundos têm como
divindade suprema Suku; e os ambundos, assim como os congos ou
bacongos, têm como deus criador Nzambi (Nzambi).
Segundo a African Encyclopedia (verbete “Mbundu”), tanto ambundos
quanto ovimbundos – caçadores, fazendeiros e mercadores – teriam vindo
da África Central e Centro-Oriental para seus sítios atuais, seguindo uma
rotina na vida dos povos de fala banta, toda ela marcada por uma série
quase interminável de migrações, as quais, em movimentos sempre para sul
e para leste, só se interromperam nos contatos e con itos com os bôeres, nos
séculos XVII e XVIII (F , 1967, p. 34). E várias hipóteses procuram
explicar sua origem e seus repetidos deslocamentos em busca de terras
férteis.
O estabelecimento dos povos bantos em seus territórios na África
Austral, a porção mais meridional do continente, deu-se, em sucessivas
migrações, ao longo dos séculos, a partir da região dos montes Adamaua, na
atual República de Camarões. Chegando ao sul, eles encontraram os povos
coissãs (Khoisan), habitantes originais, com os quais foram compartilhando
bens, costumes, linguagens, cultura en m.
Como eram detentores de técnicas mais avançadas, os bantos acabaram
impondo seu domínio sobre os coissãs, que foram sendo conquistados e
absorvidos ou forçados a se mudar para outras terras menos férteis. Acima
de tudo, os dominantes impuseram seu sistema de organização social,
baseado na família estendida (além do núcleo “pai-mãe- lhos”) e nas
relações de lealdade e dependência entre os clãs, e centrado na pessoa de um
chefe.
A pecuária bovina foi fundamental ao desenvolvimento desses povos,
pois o gado, além de lhes garantir alimento, vestes e abrigo, representava
também uma forma de capital, essencial no dote da moça que se casava.
Com o casamento, a noiva passava a integrar a família do noivo, inclusive
indo morar com os novos parentes. E o gado da família do agora marido
passava à propriedade da família da mulher com quem se casara, razão pela
qual, para um grupo familiar, ter muitas lhas era, pelo menos em
perspectiva, um indício de riqueza.
Uma das primeiras civilizações bantas do sul africano foi a do povo de
Gokomere, na região do Grande Zimbábue, adiante estudado. A partir do
ano 500 EC, esse povo desenvolveu técnicas de mineração de ouro, além de
produzir objetos de cerâmica, joias, tecidos, esculturas de pedra-sabão etc. E
entre os anos 1000 e 1500, no litoral do oceano Índico, outros contingentes
bantos fundaram importantes povoados, da atual Tanzânia até Moçambique
(M , 2014, p. 648-649).
Na costa e nos sertões do leste
As primeiras relações entre os habitantes da África e os árabes se deram,
até mesmo por contingências geográ cas e muito tempo antes do advento
do Islã, na costa oriental do continente africano, como já vimos. Mas essa
parte da África já era habitada por povos bantos ou pré-bantos desde cerca
de 300 AEC. Vindos do Ocidente, esses povos desenvolveram no novo
hábitat suas técnicas de pesca, agricultura e metalurgia. E, embora não
tivessem uma unidade étnica e sim a nidades linguísticas, foram agrupados
pelos árabes, com quem passaram a comerciar, sob uma única designação:
suaílis – palavra que literalmente signi ca “habitantes da costa, do litoral”.
Através do contato com os árabes, esses suaílis tornaram-se excelentes
comerciantes. Tanto que, no século XII, Quíloa, sua principal cidade,
tornava-se o mais importante centro de comércio de riquezas, como ouro,
cobre, estanho e ferro – comércio esse que desde o século VIII tinha sido
privilégio exclusivo dos árabes de Mogadíscio, na Somália atual. Graças a
essa prosperidade, Quíloa criava uma moeda e desenvolvia uma avançada
concepção urbanística que compreendia até edifícios de cinco andares,
conforme relatos de escritores chineses do século XV.43 “Segundo fontes
portuguesas” – escreve Victor M. Matveiev (1979, p. 67-69) – “as ruas de
Kilwa eram estreitas, ladeadas de casas de adobe cobertas com folhas de
palmeiras. Os edifícios da cidade tinham portas de madeira e talvez outros
detalhes do mesmo material, enfeitados com ricos entalhes. Trabalhos desse
tipo foram encontrados em vários pontos do litoral, especialmente
Begamoyo e Zanzibar”.
“O aspecto das cidades” – prossegue Matveiev – “impressionou
vivamente os portugueses, assim como a riqueza dos habitantes e a elegância
de seu vestuário, de seda ou algodão, com muitos bordados a ouro. As
mulheres usavam braceletes e correntes de ouro e prata nos pulsos e
tornozelos, e de suas orelhas pendiam pedras preciosas”.
“O mobiliário das casas” – é ainda Matveiev quem descreve – “era
formado por almofadas e esteiras, às vezes tamboretes e camas suntuosas
com incrustações de mar m, nacar, prata e ouro. Nas habitações dos ricos
havia louça importada, porcelana do Irã, do Iraque e da China, e também do
Egito e da Síria”.
Mas de onde vinham o ouro e as outras riquezas que permitiam tanta
suntuosidade e sem as quais não se faria a glória de Quíloa e outras cidades
da costa oriental africana?
Na margem direita do rio Limpopo, no território da atual África do Sul,
veem-se ainda hoje as misteriosas ruínas de Mapungubuê, que remontam ao
século IX. Um pouco mais ao norte veem-se os restos das cidades de pedra
de Inianga, que, segundo Deschamps (1976, p. 107), seriam restos de uma
civilização banta que até muito tempo depois ainda mantinha contato
permanente com o litoral. Da mesma forma, no território da atual República
do Zimbábue, próximo à fronteira de Moçambique, existe ainda hoje um
conjunto gigantesco de ruínas em pedra que se estende por cerca de 30
hectares. Testemunho de uma civilização grandiosa, essas ruínas são o que
restou de templos, habitações e fortalezas edi cadas a partir do século IX
por bantos do povo Xona.
Os xonas são um conjunto de povos bantos localizados ao sul do rio
Zambeze, nos atuais territórios de Zimbábue e Moçambique, mencionados
em Fagan (1970, p. 124) como “Carangas ou Xonas”. Integram uma grande
comunidade étnico-linguística que compreende, entre diversos outros, os
povos falantes das línguas Karanga e Kalanga ou Kalana.
Os primeiros povoadores xonas, provenientes de terras a norte do curso
do rio Zambeze, aparecem no planalto do Zimbábue em meados do século
X. Entre os anos 940 e 1200, estabelecem quatro principais centros de
produção: no sítio conhecido como Leopard’s Kopje (Montanha do
Leopardo), a sudeste; em Muzengezi, a norte-nordeste; no Gumanye, a
sudeste; e em Harare, no nordeste.
Dedicando-se ao pastoreio de forma cada vez mais exclusiva, essas
comunidades vão, pouco a pouco, tendo de estabelecer relações comerciais
com povos das regiões situadas a leste; primeiramente para adquirir sal e,
depois, tecidos e pérolas trazidos da Ásia até o litoral índico. Os antigos
xonas adquiriam esses itens oferecendo em troca ouro e mar m extraídos de
suas terras, que eram transportados até a costa por caravanas de mercadores.
Sua atividade pastoril envolvia principalmente gado caprino, em escala
cada vez maior, menos para o seu próprio consumo do que como moeda de
suas trocas com os grupos planaltinos cultivadores de cereais. Nisso foi que
se baseou o crescimento das primeiras organizações políticas dos xonas.
De início, tribos e clãs percorriam o planalto de maneira desordenada.
Depois, a exploração das minas, ativada pelo comércio, obrigou-os a se xar
próximo às jazidas e a construir aldeias. Formaram-se, assim, domínios
senhoriais, os mais poderosos fazendo crescer sua ascendência sobre outros
pela compra de rebanhos ou pela descoberta de melhores jazidas de ouro.
Um deles iria ganhar dimensões muito maiores que as dos precedentes e se
organizar de modo mais rigoroso.
No século XV, esse reino, surgido bem antes, daria origem, efetivamente,
a um Estado constituído sob a liderança de Mutota, um comandante xona
do grupo Karanga. Ao longo do século, esse líder, auxiliado pelo lho
Mutope, ampliou seus domínios até parte do atual território de
Moçambique, chegando ao litoral do oceano Índico.
Ao longo dessa saga, Mutota passa a ser conhecido como o mwene
mutapa, expressão traduzida de diversas formas e que, transliterada em
português como “monomotapa”, estendeu-se à denominação do reino,
sobrevivendo a Mutota, morto em 1480.
Após a morte do herói fundador, divergências políticas foram
desagregando os xonas. Antes, já surgira um novo reino, quando Xanga,
chefe do clã Tórua, a quem Mutope encarregara de dirigir a parte meridional
do reino, investindo-se do título “xangamir” (de origem árabe, signi cando
“príncipe Xanga”), cria um novo Estado e uma nova dinastia. A partir de
então, os sucessores desse príncipe adotaram o título dinástico xangamir e
implantaram sua própria unidade política.
Segundo Fagan (1970, p. 128), a fase principal da história dos xonas foi
protagonizada pelo povo Rózui, um clã que subira ao poder em virtude de
sua supremacia religiosa. Seriam eles os criadores do Estado que passou à
história como o Grande Zimbábue. Juntamente ao Congo e ao Loango, esse
Estado gurou, até o século XV, como um dos mais importantes da África
Central e Austral (L ;M , 2017, p. 303-304).
E é essa a correlação de forças encontrada pelos exploradores
portugueses em 1505, quando chegam a Sofala, no atual Moçambique. A
partir desse longínquo ano, a história de Moçambique é a crônica da luta
entre a ambição portuguesa e a determinação das populações nativas em
permanecerem donas de seu próprio destino. Assim, Portugal, já tendo
levantado uma fortaleza-entreposto na cidade marítima de Sofala e uma
feitoria na ilha de Moçambique, começa a penetrar Zambeze adentro a m
de atingir a capital do império do monomotapa Chicuio, cujas legendárias
riquezas excitavam a cobiça de D. Manuel I.
Em 1514, o português Antônio Fernandes incursiona até o interior e é
bem recebido por Chicuio, apesar da oposição dos árabes, parceiros
comerciais dos xonas. A partir de 1530, ano da morte de Chicuio,
recrudescem as lutas entre monomotapas e xangamires. Em 1544, com
Portugal já ocupando as ilhas Quirimbas e já tendo instalado forti cações
até o Cabo Delgado, na Baía de Tungue, o mercador Lourenço Marques
instala na margem direita do rio Catembe uma feitoria forti cada, erguendo
outra, dois anos depois, no estuário do rio Inhambane (G ;S ,
1953, v. IV, p. 22).
Com o início da atuação internacional da Companhia de Jesus, fundada
em 1534 e aprovada pelo Vaticano em 1540, a estratégia de exploração da
costa oriental africana pelos portugueses ganha contornos de catequese.
Então, em 1558, um príncipe do povo Tonga é batizado em Inhambane e
convence o pai a receber os padres Gonçalo da Silveira e André Fernandes,
que, em 1560, chegam à capital do reino trazendo oferendas, principalmente
para serem entregues ao monomotapa Mupunzagutu.
Em 1561, Mupunzagutu deixa-se estrategicamente batizar pelo padre
Silveira, a quem, logo depois, manda executar sob a acusação de
espionagem. Esse acontecimento desencadeia uma forte reação dos
portugueses, que enviam, em 1572, várias expedições militares, todas
derrotadas. Em 1575, entretanto, a paz é selada com um acordo entre os
portugueses e o monomotapa, visando liquidar a in uência comercial árabe
no império. A partir daí e até quase o nal do século XVII veri ca-se uma
forte penetração dos portugueses.
Mas essa entrada é respondida com uma forte reação das populações
nativas. Assim é que, de 1585 a 1589, os guerreiros jagas – sobre quem
falaremos detalhadamente mais adiante – lutam pela posse da ilha de
Moçambique, impondo aos portugueses baixas inumeráveis. Da mesma
forma, em 1695, depois de dois anos de guerra, o xangamir Dombo vence os
portugueses aliados ao monomotapa44 e recupera a supremacia da região
para os xonas rózuis, que, em 1725, reconstroem no Zimbábue “as casas de
pedra”.
Outros povos e indivíduos destacados pela resistência em Moçambique
foram os bororos, em 1753; os rongas, em 1761, os macuas, em 1775,
Chambara e outros chefes do Alto Zambeze, de Manica e de Sofala, em
1787; povos de Quitangonha, em 1795 e 1796; rongas e suazis, em Lourenço
Marques, atual Maputo, em 1822; bongas, em Massangano, em 1866; os reis
vátuas Manicusse, Muzila e Gungunhana, no período de instalação do
colonialismo português, até a efetiva tomada do poder pelas forças lusitanas.
Porém, todas essas perdas impostas aos lusitanos pelos povos de
Moçambique tiveram sua compensação. “Economicamente” – escrevem
Galvão e Selvagem (1953, v. IV, p. 35) –, “o sonho irrealizável das minas de
ouro e prata foi compensado por um novo comércio que então se criara – o
da escravaria para o Brasil”.
Mas o trá co de escravos para o Brasil foi proibido em 1850, o que
mereceu desses mesmos escritores (1953, v. IV, p. 35), vozes do
colonialismo, este lamento: “Desfeitas as ilusões do ouro e de prata das
minas e estancada a exportação do ouro humano, cavam as míseras fontes
de receita de outrora – algum mar m, ouro em pó, cauril, ambar, arroz de
Sofala”.
No rio Congo
Ali o mui grande reino está de Congo,
Por nós já convertido à fé de Cristo,
Por onde o Zaire passa, claro e longo,
Rio pelos antigos nunca visto…
Camões, Os lusíadas, v. 13
Na atualidade, o nome “Congo” designa dois países: o chamado Congo-
Brazzaville, o cialmente República do Congo, e a República Democrática do
Congo (Congo-Quinxassa). A referência pelo nome de suas capitais serve
para distinguir melhor os dois países. Separados pelo traçado do rio Congo
ou Zaire, eles compartilham histórias comuns até a Era Colonial, quando o
Congo-Brazzaville caiu sob domínio francês, e o Congo-Quinxassa, sob
tutela dos belgas (L ;M , no prelo).
O rio Congo tem sua nascente no lago Kizale, na região de Shaba
(Catanga). De lá, com o nome de Lualaba, descreve um semicírculo em
direção a oeste para receber o Ubangui e o Sanga à direita, e o Cassai à
esquerda. Passa por Kinshasa – e em todo o antigo Congo Belga tem o nome
de Zaire; banha Brazzaville; atravessa os montes de Cristal e, depois de
algumas quedas d’água, deságua no Atlântico, próximo ao Enclave de
Cabinda, num largo estuário.
Aí, nesse centro-ocidente da África Austral, ou seja, da bacia do Congo
até o rio Cuanza, o estabelecimento de povos bantos se deu paulatinamente,
talvez a partir do século III AEC. Assim, quando da chegada dos
portugueses à região, esses povos já tinham constituído, provavelmente
entre os séculos IX e X EC, domínios que evoluíram para Estados poderosos
e muito bem organizados, como os dos bacongos (Reinos do Congo, de
Luango, do Ngoio e Cacongo), bundos e ovimbundos (Dongo, Matamba e
Estados Livres da Quissama) e bassonguês (Baluba). E depois constituíram
outros, como o segundo Império Luba, no século XVI, e o Império Lunda,
no século XVII.
Sobre os Estados Livres da Quissama (ou Kissama), escreve Pedro Ramos
de Almeida (1978, v. I, p. 223): “Ao sul do Cuanza cava a região de
Kissama, onde existiam numerosos pequenos sobados45 ou Estados
independentes. Não pagavam tributo a ninguém. Lutavam contra o Congo,
o Dongo (ou Ngola) e os portugueses. Alguns dos principais Estados do
Kissama eram Muxima, Kitangombe, Kizva, Ngola, Kikaito e Kafuxe”. E
sobre as demais unidades políticas mencionadas, vejamos.
Consoante a tradição (K -Z , [s.d.], v. II, p. 442), nas últimas décadas
do século XIV, o chefe Nimi-a-Lukeni, também chamado Mutinu ou Ntinu
(rei) Uenê, dissidente do Império Luba de Catanga, descia do norte da
região do Maiombe para o curso inferior do rio Congo (Nzaidi ou Zaire),
celebrava uma aliança com os bacongos e bundos da região e fundava
Mbanza Kongo, sede do seu reino, recebendo o título de “manicongo”
(Muene Kongo, ou seja, Senhor do Congo).
Segundo Obenga (1991, p. 126), a formação do Reino do Congo ocorreu
com a assimilação das chefaturas meridionais, dos ambundos, existentes já
nos séculos III e IV EC, pelas de Kakongo e Ngoyo, localizadas ao norte;
pela incorporação dos Estados de Mpangu e Mbata, que se desenvolviam
desde o século IV, bem como do Reino de Sundi, limitado ao norte pelo
Reino de Makoko, do povo Teke ou Bateke. Esse movimento expansionista é
que vai dar origem aos vários subgrupos do povo Bacongo.
Nimi-a-Lukeni, o primeiro manicongo, aparece na tradição oral
conguesa principalmente como um herói civilizador. Mais que um
conquistador, guerreiro e justiceiro, ele é o ferreiro que deu ao seu povo as
armas de guerra e os utensílios agrícolas. E é principalmente o “Ngangula
(ferreiro) a Kongo” – o forjador do Estado e da nação do Congo
(B , 1968, p. 237).
Nimi-a-Lukeni fundou Mbanza-a-Kongo, sua capital, constituindo seu
reino tanto por aliança com o chefe local, mencionado como “o Kabunga”, e
com o rei de Mbata, no Vale do Nkisi, mais a leste, quanto pela conquista de
outros territórios. Surgido em data ainda não exatamente determinada,
talvez na sequência de um processo iniciado no século IX, mas efetivamente
fundado no século XIV, nos séculos seguintes o Congo era o único Estado
com hegemonia sobre toda a região entre o planalto de Benguela e os do
Bateke, e desde o mar até o Cuango (L ;M , 2017, p. 85).
Bem no início da década de 1480, o explorador português Diogo Cão
chegava ao estuário do rio Congo. Numa viagem posterior, ele estabelecera
contato com habitantes da região trazendo alguns até seu navio e enviando
representantes seus ao encontro do senhor daquelas terras. Mas como esses
representantes tardaram muito a voltar, Diogo Cão zarpava de regresso a
Portugal, levando consigo, como reféns, os africanos que tinham sido
atraídos até seu navio.
Um ano depois, o português retoma com os africanos e recebe de volta
seus marinheiros. A partir daí inauguram-se as melhores relações
diplomáticas entre o Reino do Congo, na pessoa do manicongo Nzinga
Nkuwu, e Portugal, então governado por Dom João II, o “Príncipe Perfeito”,
no seu nome e no da Santa Sé. A primeira embaixada conguesa, che ada por
um nobre chamado Cassuta, chegou a Portugal ainda sob D. João II, que
reinou de 1481 a 1495, e foi recebida com todas as honras cabíveis, inclusive
festas, banquetes o ciais e troca de presentes. Em 1491, o manicongo Nkuyu
é batizado, recebendo o nome cristão “João”, ao mesmo tempo que a capital
do reino, Mbanza Kongo, passa a ser chamada “São Salvador”. Nesse mesmo
ano os portugueses o ajudam a combater uma revolta dos anzicos ou teques,
povo localizado no território do atual Congo-Brazzaville.
O m do século XV assinala o apogeu do Reino do Congo. Por essa
época, a capital Mbanza Kongo tinha casas de madeira circulares e
retangulares, com telhados de palha e cercas vivas. Ao sul, uma grande
praça, onde aconteciam as audiências reais, as festas públicas e os des les
militares. Ao norte, a oresta sagrada onde se enterravam os reis mortos e se
cultuavam os antepassados. No centro, os palácios do rei e da rainha
protegidos por um labirinto e uma cerca com mais de um quilômetro de
perímetro, às portas da qual montavam guarda, noite e dia, soldados e
tocadores de trompa (K -Z , [s.d.], v. I, p. 235). E um forte, em plena
cidade, abrigava uma guarnição permanente.
A extensão do reino, compreendendo territórios vassalos e tributários,
como os reinos de Dongo, Matamba, Luango, Ngoyo e Cacongo, era de cerca
de 480 quilômetros de norte a sul e outro tanto de leste a oeste. Ia da parte
inferior do rio Congo, ao norte, até o rio Cuanza, ao sul; e do rio Cuango, a
leste, até o Oceano Atlântico, subdividindo-se em províncias como
Mbamba, Mbata, Mpangu, Nsundi e Sonio. Cada província tinha o seu
governador, que de três em três anos era obrigado a comparecer em
presença do manicongo para renovar seus votos de lealdade.
A monarquia era eletiva, e a organização social e política se baseava nos
clãs, cujos chefes é que escolhiam o manicongo.46 Durante muito tempo, a
hegemonia do reino esteve nas mãos do clã Mpanzu, que depois passou a se
alternar no poder com o clã Niaza (S , 1972, p. 42). O rei tinha
ministros para a guerra, para as relações exteriores etc., um exército
numeroso, muito bem organizado, armado e treinado, bem como
funcionários encarregados da coleta dos tributos (D , 1978, p. 175-
183).
Duarte Pacheco, que visitou o Reino do Congo à época das primeiras
incursões portuguesas, deixou dele algumas informações preciosas:
Nesta terra de Manicongo não há ouro nem sabem que é, mas nela há razoavelmente cobre
muito no e aqui há muitos elefantes e ao elefante chamam Zaão os dentes dos quais
resgatamos e assim o cobre por lenço ao qual os negros desta terra chamam “molele”; neste
reino do Congo se fazem uns panos de palma de pelo como veludo e deles com lavores como
“cotim aveludado”, tão formosos que a obra deles se não faz melhor feita em Itália; e em toda a
outra Guiné não há terra em que saibam fazer estes panos senão neste reino do Congo; nesta
terra se resgatam alguns escravos em pouca quantidade e até agora não sabemos que aqui haja
outra mercadoria (apud D , 1946, p. 413).
Sobre as ilhas de Luanda e de Cazanga, então chamadas Ilhas das Cabras,
Duarte Pacheco deixou estas importantes informações:
Estas estão muito perto da terra e são povoadas de negros do senhorio de Manicongo e ainda
vai a terra de Congo e nestas ilhas apanham os ditos negros uns búzios pequenos que não são
maiores do que pinhões com sua casca a que eles chamam zimbos os quais em terra de
Manicongo correm por moeda e cinquenta deles valem uma galinha, e trezentos valem uma
cabra, e assim as outras coisas segundo são quando Manicongo quer fazer mercê a alguns seus
dalgos ou pagar algum serviço que lhe fazem manda-lhe dar certo número destes zimbos
pelo modo que os nossos príncipes fazem mercê da moeda destes reinos a quem lha merece e
muitas às vezes a quem lhe não merece (apud D , 1946).
Mas, apesar das intenções portuguesas, o manicongo Nzinga Nkuyu,
batizado por volta de 1490, não permanece el ao catolicismo por muito
tempo. E a batalha por sua sucessão é exatamente fruto do antagonismo
entre a religião tradicional e o cristianismo vindo de Portugal.
Observemos que o quadro sucessório dos monarcas do Reino do Congo
têm sido bastante difícil de reproduzir com exatidão, sobretudo pela
confusão, em muitos dos informantes, a respeito de nomes, títulos reais e
datas. Aqui, numa tentativa digna de crédito, pela atualidade das fontes
adiante mencionadas, apresentamos a seguinte sequência de governantes,
adotada em Lopes e Macedo (no prelo):
c. 1491-1574: João I (Nzinga-a-Nkuwu) – Mpangu-a-Nzinga – Afonso I
(Mvemba-a-Nzinga) – Pedro I (Nkanga-Mvemba) – Francisco (Mpudi-
a-Nzinga) – Diogo (Nkumbi-a-Mpundi) – Afonso II (Mvemba-a-
Nzinga) – Bernardo I (Mvemba-a-Nzinga) – Henrique (Mvemba-a-
Nzinga) – Álvaro I (Mpangu Nimi-a-Lukeni lwa Mvemba)
c. 1574-1631: Álvaro II (Mpangu Nimi-a-Lukeni lwa Mvemba) –
Bernardo II (Nimi-a-Mpangu Lukeni lwa Mvemba) – Álvaro III (Mvika-
a-Mpangu Lukeni lwa Mvemba) – Pedro II Afonso (Nkanga-a-Mvika lwa
Ntumba-a-Mvemba) – Garcia I (Mvemba-a-Nkanga Ntinu) – Ambrósio
I
c. 1631-1636: Álvaro IV – Álvaro V – Álvaro VI – Garcia II (Nkanga-a-
Lukeni) – Antonio (Vita-a-Nkanga, “Mwana”, do clã Nlaza
c. 1636-1709: Álvaro VII (Mpangu-a-Nzundi) – Pedro III (Nsuku-a-
Ntamba) – Álvaro VIII – Afonso III Afonso – Garcia III (Nkanga-a-
Mvemba) – Rafael I – Daniel I – João II (Nsuku-a-Ntamba) – André (do
clã Nlaza) – Manuel (Nzinga) – Álvaro IX (Nimi-a-Mvemba) – Pedro IV
(Nsaku-a-Mvemba) – Pedro – Constantino
Guiados por essa cronologia, vemos que a Nzinga Nkuwu sucedeu
Afonso I (Mvemba-a-Nzinga47), convertido ao cristianismo, cujo lho logo
se torna o primeiro bispo africano. Sob esse novo manicongo, Portugal
aprofundou insidiosamente sua in uência no reino. A partir daí,
generalizou-se o trá co escravista, multiplicaram-se as guerras contra os
reinos vassalos, acentuou-se a luta de classes e a produtividade decresceu
assustadoramente.
Interessado, entretanto, no que acreditava ser uma troca diplomática e
comercial, o manicongo escrevia constantemente a Dom Manuel, dito “o
Venturoso”. E entre 1512 e 1540 teria enviado a Portugal mais de 20 cartas
neste teor: “Mui poderoso e mui alto príncipe e Rei meu irmão – beijando as
Reais mãos de vossa alteza lhe faço saber (que) a míngua que tenho de
algumas cousas para a igreja me fazem importunar vossa alteza, o que
porventura não fazia se tivesse um navio, quem tendo(-o) as mandaria
trazer à minha custa” (D , 1978, p. 164-165).
Em 1526, segundo a mesma fonte, Mvemba-a-Nzinga assim solicitava
por carta a D. Manuel o envio de pessoal da área médica para servir no
Congo:
V.A. nos tem escrito por nos fazer mercê, que todo o que tivermos necessidade lhe enviemos
pedir por nossas Cartas, e que em tudo seremos providos. E por, que a paz, a saúde de nossos
reinos, depois de Deus está em nossa vida. E pela antiguidade e dias muitos, que em nós há,
nos ocorreu de contínuo muitas e diversas enfermidades, que muitas vezes nos pões em tanta
fraqueza, que nos chegam ao derradeiro extremo. E por conseguinte a nossos lhos, parentes e
naturais, o que causa nesta terra não haver físicos48 nem cirurgiões, que às tais enfermidades
saibam dar verdadeiros remédios, nem boticas, nem mezinhas, com que o melhor possam
fazer. E […] por mercê pedimos a V. A. nos faça mercê de dois físicos, dois boticários e um
cirurgião (p. 164).
Segundo Ramos de Almeida (1978, v. I, p. 91), em 1510 o emissário
Estevão da Rocha jogava fora, depreciativamente, uma carta endereçada
pelo manicongo ao rei de Portugal; e no ano seguinte o Padre Manuel
Gonçalves devolvia, “acompanhada de injúrias”, outra missiva que o rei
tentava enviar a D. Manuel.
Vê-se, então, que, ao contrário do paternalismo e da evangelização que
lhe eram oferecidos, o que o Reino do Congo efetivamente desejava era um
intercâmbio, para promover as mudanças que sua sociedade reclamava.
Entretanto, o que Portugal mais queria e precisava, agora que se apossara
das terras virgens e promissoras do Brasil, bem mais que as riquezas do solo
do Congo, era dos braços de seus lhos para trabalhar essas terras.
Procurando agradar aos portugueses, o manicongo Mvemba-a-Nzinga
(Afonso I) teria concordado em vender a eles alguns indivíduos não
protegidos pelos costumes tradicionais, por serem condenados ou
prisioneiros de guerra. Mas os portugueses exigiram mais, inclusive
semeando a discórdia entre o reino e seus tributários, incitando-os à guerra
para, por meio dela, auferirem as vantagens desejadas.
Em 1555, como veremos adiante, o ngola, rei do Dongo, proclama
independência em relação ao manicongo. Declarada a guerra, governadores
de províncias, incitados pelos portugueses, passam a capturar prisioneiros e
vendê-los como escravos por conta própria, permitindo inclusive que os
portugueses também o façam. Por outro lado, os mercadores de São Tomé
procuram de todas as maneiras impedir o desenvolvimento do reino para
que ele seja apenas um manancial fornecedor de escravos, e não uma
colônia lusitana.
Então, o Reino do Congo, cuja crônica registra até um atentado ao rei
cometido por um frade português em 1540, começa a se desestabilizar
(D , 1981, p. 115).
Passadas duas décadas, no início do reinado de Mpangu Nimi-a-Lukeni-
lwa-Mvemba (Álvaro I), c. 1568, o Reino do Congo foi invadido por
guerreiros referidos como “jagas”, provenientes do vizinho Reino de
Matamba, no atual território de Angola. E o motivo dessa invasão foi a
investida, primeiramente insidiosa e depois sangrenta, feita, tempos antes,
por forças portuguesas ao Reino de Matamba – aliado do vizinho Dongo –
em busca de riquezas, supostamente inesgotáveis. E como nessa época o
centro português de operações era a capital (mbanza) do Reino do Congo, a
invasão dos jagas foi um revide à agressão sofrida pelo povo de Matamba.
A denominação “jaga”, muitas vezes usada como um nome étnico,
referente a um povo especí co, acusado de antropofagia e outras práticas
antissociais, designava – hoje sabemos – uma ou várias das “hordas
itinerantes” que varreram o centro-oeste africano entre os séculos XVI e
XVII, desestabilizando, pela violência, diversas regiões. Essas hordas, em
geral integradas por mercenários, de etnias diversas, realizavam ataques de
surpresa (L ;M , no prelo).
A invasão ocorreu logo após a coroação do rei. As forças invasoras
penetraram através de Mbata, atacaram e devastaram a capital Mbanza
Kongo (para os portugueses, São Salvador), tornando inviável o reinado de
Álvaro I, que teve de pedir ajuda aos portugueses.
O historiador caribenho Oruno D. Lara relaciona essa operação
guerreira a um conjunto de migrações e deslocamentos ocorridos no
interior da África, modi cando a dinâmica das forças no litoral atlântico,
como a migração dos imbangalas, que, partindo de Luanda, fundam o Reino
Kasange, em Angola, no m do século XVI; e a migração dos pendes, que
partem do litoral para o leste de Angola, por causa da ocupação portuguesa
das salinas de Luanda, que eles exploravam. Em nenhum caso ocorre
deslocamento de tribos inteiras, mas apenas de expedições militares com
objetivos de destruição bem de nidos (L , 1979, p. 133). Con gurando
uma resposta da África ao trá co negreiro, ela se insere, também, segundo
Lara, no contexto das ações dos “angolares” de São Tomé – cativos que, em
1539, provenientes de Angola, fugiram de um navio negreiro que naufragava
e se aquilombaram no arquipélago. Impondo seguidas derrotas às forças
portuguesas ao longo dos anos, em 1884, expulso o inimigo, xaram-se em
de nitivo no solo santomense, quando deixaram seu refúgio e passaram a
constituir uma comunidade até hoje existente. Esses resistentes seriam
bacongos do subgrupo dos mussorongos, do noroeste de Angola. E seus
descendentes, conhecidos até hoje como angolares, também eram, em 1895,
uma comunidade de 2 mil pessoas, habitando de Santa Cruz a Vila das
Neves, no litoral oeste de São Tomé (L , 1979, p. 138).
Diz, ainda, o historiador caribenho:
Os Jagas aparecem num quarteto discordante: Portugal, Congo, Dongo e São Tomé. São
guerreiros bastante organizados no plano político, religioso e militar, muito cruéis, que operam
a partir de quilombos […]. A sua invasão desorganiza as estruturas portuguesas do trá co
escravagista […]. A invasão jaga deve ser relacionada com uma invasão pelos Sumba e a dos
Mane da Serra Leoa, nos ns do século XVI e princípios do século XVII. Na Guiné, uma tribo
[sic] muito belicosa, os Bijagós, que habitavam as ilhas do Rio Grande, efetua pela mesma
altura grandes destruições e captura muita gente (L , 1979, p. 132).
Em seu excelente trabalho, aqui exaustiva e prazerosamente citado, Lara
menciona o aquilombamento como uma estratégia dos “jagas”,
aproximando-o da histórica experiência brasileira: “O estudo do kilombo
jaga” – escreveu Lara –, “tal como o descreve Cavazzi,49 com os seus sete
bairros, cuidadosamente orientado e com vários Nganga à cabeça ajuda-nos
a compreender a estrutura do kilombo brasileiro, que apresenta
características análogas” (L , 1979, p. 134).
Em outra obra, fazendo eco a escritores colonialistas portugueses, José
Gonçalves Salvador (1981, p. 80-81) assim se refere aos Jagas:
[…] ninguém perturbou tanto os sombrios sertões quanto os “jagas”, os quais descendo da
África centro-equatorial infestaram as regiões circunvizinhas do Congo e de Angola em ns do
século XVI. Os terríveis negros, acompanhados pelas mulheres e lhos, por onde passavam
reduziam tudo a miserável condição. Como viviam em lutas contínuas, ao invés de comerem
os prisioneiros, como era seu costume, ou destruí-los, decidiram vendê-los. Muitos dentre os
mesmos “jagas” dispuseram-se a auxiliar as forças portuguesas e também a recrutar escravos
para o trá co.
Por volta de 1570, agora saídos do Congo, ainda sob o controle
português, outros grupos, também mencionados como “jagas”, teriam
chegado a Matamba, onde se misturaram à população local, dando origem,
segundo algumas versões, ao povo Imbangola ou Imbangala e constituindo
os reinos de Huíla (capital Huíla) e Humbi (capital Mutano). E de Matamba,
ao sul de Anzico, teriam descido para o país do jaga Caçanje, separado de
Benguela pelo Alto Cunene (A , 1978, v. I, p. 172).
Segundo a história colonial lusa, após a grande invasão dos jagas, o rei D.
Sebastião de Portugal logo socorreu o soberano conguês Álvaro I, Mpanzu,
“mandando-Ihe Francisco de Gouveia com 600 soldados, na qualidade de
governador do território […]. Chegando ao Zaire, Gouveia foi ter com o rei
em seu refúgio; e com os seus homens, com os portugueses residentes e com
os indígenas aliados caiu sobre o invasor, batendo-o em batalhas sucessivas,
até o expulsar do Reino” (D , 1946, p. 261).
Em Portugal, após a morte do rei D. Sebastião, no Marrocos, em 1578, o
trono foi ocupado pelo cardeal D. Henrique, irmão de D. Manuel I. Morto
D. Henrique, em 1580, sem deixar descendentes diretos, assim como seu
antecessor, parentes disputaram o poder; e entre eles estava Filipe II de
Espanha. Assim realizou-se a uni cação da Península Ibérica, com grande
desvantagem para os portugueses.
Dominado pela Espanha, Portugal sairia arruinado dessa quadra
histórica, tendo sua marinha destruída e seu império colonial esfacelado.
Enquanto isso, os Países Baixos e a Inglaterra, com que a Espanha estivera
em luta quase permanente, ocupavam, para não mais devolver, boa parte das
possessões portuguesas (P J ., [s.d.], p. 49).
Quanto ao Congo, após a retirada dos jagas e a volta do Mpanzu Álvaro I
ao poder, o reino passou a render vassalagem a Portugal, pagando-lhe o
tributo de um quinto de sua receita de zimbo (ou jimbo) extraída das ilhas
de Luanda e Cazanga – as Ilhas das Cabras. Por esse tempo, as guerras dos
congueses contra o Dongo recrudescem; e sempre com resultados
desfavoráveis. Isso porque o Dongo recebia a “ajuda” dos escravagistas
portugueses; e também porque grassava no seio do Congo uma série de
revoltas. Esclareça-se que forças militares “portuguesas” eram constituídas
de uma considerável maioria de soldados escravizados, às vezes na
proporção de 100 para cada 1 lusitano, como na Batalha de Massangano, no
território da atual Angola, onde as forças de Portugal derrotaram as do
Dongo, em 1580.
Em suma: Portugal, estrategicamente, ajudou Álvaro I a combater os
jagas. E depois ajudou o Dongo contra o Congo, enfraquecendo o mesmo
Álvaro I.
Então, com o reino cada vez mais desestabilizado e combalido, a Álvaro I
sucederam: Mpanzu-a-Nimi, Álvaro II (1587-1614), que, tentando conter o
trá co de escravos, fez com que os portugueses deslocassem seu centro de
poder para o Dongo, futuro “Reino Português de Angola”; e Lukeni-lwa-
Mbemba, Álvaro III (1614-1622), que se associou ao Dongo e ao Reino de
Matamba contra os portugueses.
No Cuanza e no Cuango
Nojenta prole da rainha Ginga,
Sabujo ladrador, cara de mico…
Soneto de Bocage para o mestiço brasileiro Domingos Caldas Barbosa
O Cuanza é um rio de cerca de 1.000 quilômetros de extensão que nasce
no centro do território da atual República Popular de Angola, quase
dividindo-o ao meio, para depois desaguar no Atlântico, numa embocadura
de cerca de 4 quilômetros de largura. E o Cuango, que nasce na região de
Minungo, é o rio que separa Angola do Congo-Brazzaville, e deságua no rio
Congo.
A história de Angola está intimamente ligada a esses rios (às margens do
primeiro, os ambundos – vindos do centro e do centro-oeste africanos,
primeiramente para as terras altas de Matamba – estabeleceram-se no século
XIV) e está também entrelaçada com a história do Reino do Congo, ao qual
os ambundos pagaram tributos até meados do século XVI.
O reino ambundo do Dongo, governado pelo Ngola, tinha por capital
Mbanza Kabassa ou Mbaka, no atual distrito do Dondo, e se estendia do rio
Dande ao Planalto de Bié; e da região de Cassanje até o sul, aos Estados
livres da Quissama, grandes produtores de sal (C.E.A.A., 1975, p. 17).
Segundo a tradição, o fundador do reino teria sido certo Ngola
Bumbambula, ou Mussuri, que teria vindo das terras altas de Matamba para
o Dongo, ou fugindo dos jagas ou como dissidente deles. Recorrendo,
entretanto, ao dicionário, vemos que os nomes “Mussuri” e “Bumbambula”
parecem ser corruptelas dos termos quimbundos “musudi” e “ngangula”, que
signi cam igualmente “ferreiro” (M , 1964, p. 66). Então, somos levados a
ligar o nome desse fundador ao de Nimi-a-Lukeni, o “Ngangula-a-Kongo”, já
mencionado páginas atrás.
Em 1520, segundo fontes portuguesas da época, os ambundos eram
governados pelo legendário Ngola Liluanji Inene. E é nessa segunda década
do século XVI que navegadores lusos chegam ao Dongo-Ngola, alegando
atender a uma solicitação do rei.
Visualizando as vantagens bélicas e tecnológicas que poderia obter
através de uma aliança com os portugueses, Kiluanji teria concebido uma
estratégia. Nela, através do manicongo, Nzinga Mbemba (Afonso I)
manifestava a Portugal sua intenção de se cristianizar. E essa intenção era
expressa à Coroa lusitana juntamente com o envio, pelo manicongo, de
mostras da prata do Dongo. Assim, os portugueses chegam à terra dos
ambundos. Então, adentrando o Reino do Ngola, o comandante português
Baltazar de Castro foi detido em Mpungo Dongo, em 1521, e lá cou
aprisionado por seis anos.
Em 1534, a Santa Sé, através de Portugal, estabelece na Ilha de São Tomé,
no arquipélago de mesmo nome, um bispado com jurisdição total sobre o
Reino do Congo. Cerca de cinco anos depois, um navio negreiro
proveniente do Dongo naufragava no Atlântico, e seus ocupantes se
aquilombavam também naquela ilha, promovendo a partir daí uma série de
insurreições, pelo que caram conhecidos como os “angolares de São Tomé”.
Por volta de 1540, o capitão-governador português do arquipélago enviava,
por sua conta e risco, negreiros para capturarem escravos na costa do
Dongo, já chamado “Reino de Angola”. O manicongo Nzinga Mbemba
(Afonso I) protestou, primeiramente alegando preferência sobre esse novo
concorrente, e também por temer que, assim, os portugueses tomassem a ilha
de Luanda, de onde lhe vinha o jimbo – a concha que servia de moeda
corrente em seus domínios. Estabelecem-se então os quadros de um futuro
confronto: de um lado, o Ngola Kiluanji Inene aliando-se comercialmente à
burguesia portuguesa de São Tomé; de outro, o manicongo Mpundi-a-
Mkumbi (Diogo I) aliado à Coroa portuguesa.
É assim que, em cerca de 1555, o Ngola Kiluanji proclama a
independência do Dongo em relação ao Congo (de quem entretanto
permanece tributário até 1563), entrando em franca hostilidade a ele e
tentando ocupar seu lugar nas ligações com Portugal, de quem esperava
ainda obter auxílio técnico e ajuda militar. Para tanto, aconselhado por seus
aliados de São Tomé, envia em 1557 uma embaixada a Lisboa. Entretanto,
nesse mesmo ano morriam, em Portugal, D. João III, dito “o Piedoso”, e, no
Dongo, o legendário Ngola Kiluanji Inene, o que mudaria o curso dos
acontecimentos. Em 1560, o embaixador português Paulo Dias de Novais
chega à barra do Cuanza. E é imediatamente preso por ordem de Ndambi-a-
Ngola, ou Ngola Ndambi lnene ia Ndenge, só sendo libertado cinco anos
depois. Diante desse episódio, e abalado pela razzia dos jagas, que vimos
páginas atrás, Portugal resolve deixar as sutilezas diplomáticas de lado e
conquistar seus objetivos com o uso da força. Assim é que, conseguindo de
seu então aliado, o manicongo Álvaro I, o domínio direto de todas as suas
terras e de todos os seus vassalos, a Coroa portuguesa envia à ilha de Luanda
– ainda sob o domínio do manicongo –, em 1575, uma expedição
capitaneada pelo mesmo Paulo Dias de Novais, que, agora, em vez de
embaixador, é chefe militar.
Consuma-se aí a penetração portuguesa, em 1575, com a criação, na ilha de
Luanda, do forte e entreposto comercial que deu origem à cidade de mesmo
nome, capital da futura República. A partir daí, os lusitanos avançaram
militarmente para o interior e ergueram, ao longo dos rios Cuanza e Lucala,
diversos postos avançados, mistos de forti cação e entreposto comercial.
Diante desse avanço, as diversas unidades políticas locais, aliadas ou não,
resistiram rmemente à ocupação. O mencionado entreposto era a pedra
fundamental da colônia que, seguindo o modelo brasileiro, Portugal
projetava para a África.
Da ilha, Novais chega à terra rme no ano seguinte e funda São Paulo de
Luanda. Mas ainda se traveste de diplomata mandando emissários com
presentes a Mbanza Kabassa, na atual província do Dondo, ao encontro de
um amistoso soberano, que já não é o que lhe prendera 11 anos antes, e sim
o Ngola Kiluanji Kia Ndambi, que assumira o poder exatamente em 1575 e
que, ao que consta, foi batizado com o nome de Pedro da Silva (G ;
S , 1952, v. III, p. 39).
Então, aliados aos mercadores de São Tomé – onde, a propósito, em
1574, ocorria uma grande revolta de escravos provenientes do Reino de
Angola –, os capitães portugueses empreendem a guerra de conquista e
fazem intensi car o trá co de escravos. Em 1577 submetem o chefe
Quiluango e fundam a povoação de Calumbo, onde, no ano seguinte, um
grande contingente luso é massacrado.
Nesse ponto, o amistoso e cristianizado D. Pedro da Silva já assumiu de
novo sua identidade negra e antilusitana de Ngola Kiluanji Kia Ndambi e
por isso comanda a guerra de um quilombo no interior. Chegam reforços
portugueses. E, em 1579, a resistência dos bundos é heroica na Quissama,
com toda a população inteiramente engajada na luta. 1581: os portugueses,
já sob o domínio espanhol, arrasam Hamba e Hanza, e no ano seguinte
prendem o chefe Muima Kita Mbonje e ocupam Cambambe, frustrando-se,
entretanto, por não encontrarem lá as minas de prata, motivo maior de seus
esforços; 1583: Batalha de Tala Dongo e fundação de Massangano; 1585:
Batalha de Casicola (Ilamba), com a derrota do bravo comandante Andala
Quitunga; 1586: portugueses derrotam o general Ngola Calunga e cortam a
cabeça do chefe de Cacobassa; 1589: Novais morre, a 6 de maio; 1590:
vitória fragorosa do Ngola Kiluanji Kia Ndambi em Lucala; 1594: os
portugueses são novamente derrotados, dessa vez em Cafuxe.
Na sequência de seu estabelecimento no reino do Congo, os portugueses
vão, aos poucos, penetrando no território da futura Angola. Primeiro,
estabelecem um entreposto na ilha de Luanda, origem da cidade homônima.
Desde então, com o reino do Dongo transformado em “Reino Português de
Angola” os diversos povos locais, aliados ou não, empreendem forte
resistência à ocupação europeia (L ;M , 2017, p. 32).
A história da infância dessa futura Angola ainda é um tanto nebulosa.
Roy Glasgow (1982, p. 20-22) também se reporta ao missionário italiano
Cavazzi, deixando certas dúvidas, mas traz luzes à questão quando situa no
tempo alguns desses governantes. Segundo seu texto, a ordem da sucessão
entre os ambundos até a legendária rainha Nzinga seria a seguinte:
- Ngola Bumbambula, Ngola Mussuri ou Inene Ngola (?)
- rainha Zundu (?)
- rainha Tumbia e seu marido, Ngola Kiluanji Samba ou Kalunga
- Ndombo Ukambo (?)
- Ngola Kiluanji Inene (?-1557)
- Ndambi a Ngola ou Ngola Ndambi Inene Ia Ndenge (1557-1575)
- Ngola Kiluanji Kia Ndambi (1575-?)
- Ngola Kilombo Kia Kasenda (?)
- Jinga Mbandi Kiluanji (?-1617)
- Ngola Mbandi (1617-1623)
- Nzinga Mbandi Ngola Kiluanji, a rainha “Jinga” (1623-1663)
Interessante notar que alguns termos contidos nos nomes desses
soberanos são identi cados no idioma bundo, falado no nordeste de Angola,
como os seguintes: “Inene”, “grande”; “Ndenge”, “pequeno”; “Ndambi”,
“pessoa bela, formosa, elegante, perfeita”; “Mbanji”, “defensor”. Observe-se,
ainda, que os termos “Kiluanji” e “Mbandi” designam clãs dos ambundos; e
que “Ngola” signi ca “poderoso” etc. (A , 1951).
Mal iniciado o século XVII – século no qual o Reino de Angola teria
fornecido ao Brasil cerca de 44 mil escravos por ano (C apud
G , 1982, p. 51) – o rei de Espanha concede a João Rodrigues
Coutinho, governador do Loango, monopólio no trá co de escravos de
Angola, o que é de fato exercido por cerca de 40 anos. Nesse século, os
portugueses, malsucedidos no Congo, voltam-se para a bacia do rio Cuanza.
Lá, conseguem a deposição da sucessora ao trono do Dongo, um dos
principais reinos locais, impondo em seu lugar um “rei” obediente aos seus
propósitos.
Em 1607 e 1617, respectivamente, os portugueses fustigam Libolo, terra
dos Jagas, e, dessa última vez, descendo, fundam São Filipe de Benguela.
Mas no mesmo ano da fundação, ocorre a morte do Ngola Kiluanji.
Então, assume o poder no Dongo-Ngola o Ngola Mbandi, cuja irmã, a
princesa Nzinga, torna-se sua rival e concorrente. “O irmão” – e aqui nos
valemos de texto do escritor brasileiro Câmara Cascudo (1965, p. 26) –
“herda o reino e Jinga vive à parte, amando o lho, único, vigiando seus
pastores, guardada pelos guerreiros familiares. Ngola Bandi quer as terras da
irmã e, para que não haja sucessão, manda matar o jovem sobrinho. Jinga
recebe o cadáver. Abraça-o, muda, sinistra, e jura morte-por-morte. Vive
num recanto escondido, Gabazo, longe do irmão truculento. Está reunindo
um pequeno exército, na forma medieval dos vassalos contribuintes, pagos
na solução divisória do saque, comum e próximo. Assalta fronteiras de
Ngola Bandi, apoderando-se de gados, mulheres, rapazes, semeando
prestígio ameaçador”.
Corria o ano de 1618 e os conquistadores lusitanos se viam às voltas com
as rivalidades, as dissenções e a indisciplina que grassavam no seu meio.
Aproveitando-se disso, o jaga Gaita, general do Ngola Mbandi, fustiga os
portugueses em Ango Akikoito. E a princesa Nzinga começa a se revelar a
grande gura histórica que seria logo depois.
Nzinga Mbandi Ngola Kiluanji – a legendária “rainha Jinga” até hoje
presente na tradição afro-brasileira dos reisados e congadas – nasceu no
Dongo-Matamba, em 1582. E, embora adversária política do irmão rei, em
1622 atende a um pedido seu, tornando-se sua embaixadora em Luanda,
junto ao governador-geral de Angola, Congo e Benguela, o português João
Correia de Souza, para negociar a paz. Para granjear a con ança lusa,
Nzinga deixa-se batizar, recebendo o nome de Ana de Souza, e, com sua
eloquência, uência de raciocínio e propriedade de linguagem, impressiona
de tal forma os portugueses que eles, depois de pensarem que se trata de
algo sobrenatural, entendem que estão diante de “uma pessoa excepcional
com uma mente brilhante, uma revelação verdadeiramente talentosa de
superioridade intelectual africana” (G , 1982, p. 84).
Mas, voltando de sua missão diplomática, a ainda princesa desperta a
inveja do irmão e rival, que, então, manifesta aos portugueses o desejo de ser
também batizado. Só que os portugueses mandam até Mbaka um padre
negro e outro mestiço, o que desencadeia a fúria do Ngola Mbandi e faz
recomeçarem as hostilidades. Mas o Ngola morre envenenado – dizem que a
mando de Nzinga – na Ilha Kindonga, no Cuanza, e então Nzinga se torna a
rainha do Dongo e de Matamba, em 1623.
A partir do reino de Matamba, por ela conquistado, a rainha constrói sua
legenda de resistência. Segundo o contemporâneo historiador e antropólogo
belga Jan Vansina, o jaga Kasanji fundou uma base no Vale do Congo, a
partir do qual edi cou o Estado Imbangala, na década de 1630; e Nzinga
conquistou o Reino de Matamba, que “transformou em um formidável
centro de oposição ao regime português” (V , 2010, p. 662). Veja-se
que o Dongo foi um reino ambundo; e o Matamba foi um reino bacongo,
que se tornou congo-ambundo após ser conquistado pela rainha Jinga, cuja
trajetória pode ser assim resumida: em 1628, Nzinga transfere sua base de
operações para Quina Grande dos Ganguelas, onde sofre sério revés,
juntamente aos chefes Golagumba Quiambolo e Jaga Cassanje, no ano
seguinte, num embate em que suas irmãs Cambe e Fungi são presas e
mandadas para Luanda. Mas conseguiu reconstituir o Reino de Matamba.
Passados cinco anos, formam-se duas coligações para lutar contra os
portugueses: uma compreende os sobados de Kijilo, Sambangombe,
Kalumbo, Molumbo e Akamakoto; outra, os de Angombe, Akabonda e
Kikuangua.
Com o domínio espanhol em Portugal e no Brasil, desde 1580, os
holandeses haviam perdido um de seus negócios mais lucrativos – a
exportação de açúcar do Brasil para o mercado europeu. E, agora, para
reverter o quadro, organizam um grande empreendimento, com nalidades
tanto comerciais quanto militares – a Companhia das Índias Ocidentais –,
com o qual vão tentar, principalmente, destruir o domínio espanhol na
América e conquistar o Brasil e seu açúcar.
Em 1637, com os holandeses já estabelecidos no Nordeste brasileiro,
chega ao Brasil o conde Maurício de Nassau, que percebe, logo, a
necessidade de incrementar cada vez mais a importação de mão de obra
escrava, a m de melhor explorar a atividade açucareira, para que daqui se
possa tirar cada vez mais açúcar. Como o Reino de Angola era o grande
fornecedor de cativos para os engenhos brasileiros, as forças militares da
Companhia partiram para conquistá-lo.
Numa rápida sequência, os holandeses tomam aos portugueses Mpinda,
São Tomé, Luanda e Benguela. E aí, buscando tirar proveito do momento
histórico, a rainha Nzinga (que formara uma coligação guerreira reunindo
ao seu Reino de Ndongo-Matamba o Congo, os Estados Livres da Quissama,
o de Cassanje e o dos Dembos) se alia aos holandeses.
Na segunda metade da década de 1640, o domínio da coligação é total.
No rio Luacala, os portugueses são derrotados fragorosamente. Da mesma
forma em Conta Cabalanga. Então, parte do Rio de Janeiro Salvador Correia
de Sá, que, depois de encarniçados combates, vence a coligação em
Massangano, expulsa os holandeses e inaugura o período de dominação
brasileira em Angola. A partir daí, a burguesia lusitana do Brasil toma o
lugar dos portugueses de Lisboa, e o trá co de escravo experimenta um
grande e terrível incremento. Em seu retiro de Matamba, a rainha Nzinga
ainda assina um tratado de paz com os portugueses, para nalmente falecer
seis anos depois, aos 81 anos de idade.
Em 1671, o Ndongo é o cialmente denominado “Reino Português de
Angola”. Mas a resistência continua por mais 300 anos, vindo até 1975,
quando Angola a nal se torna independente. E a cronologia dessa luta,
apenas até a abolição do trá co de escravos entre Angola e o Brasil, pode ser
assim resumida:
1676/1738 – Revoltas populares nos Estados livres da Quissama
1679 – Resistência dos jagas no Libolo
1681 – Batalha de Matamba. Morre o comandante português Lopes de
Sequeira
1692/1872 – Os dembos resistem a nordeste de Luanda
1692/1902 – Revoltas no Planalto de Bié
1693 – Movimentos quilombolas na Ilha de São Tomé
1694 – D. Pedro II, rei de Portugal, concede privilégios à Companhia de
Cacheu e Cabo Verde. As ilhas de São Tomé e Príncipe
tornam-se grandes centros distribuidores de escravos
1703 – Tratado de Methuen. Portugal e Brasil caem sob o domínio
econômico da Inglaterra
1764/1772 – O governador português Francisco de Souza Coutinho
tenta conter o trá co de escravos e desenvolver Angola, mas
não consegue
1774/1776 – Expedições portuguesas contra a Bailundo e o Ndulu
1839 – Entra em vigor a lei de 1836 que proíbe o trá co
1845 – A Inglaterra decreta o Bill Aberdeen, lei que submete os
brasileiros suspeitos de trá co à jurisdição dos tribunais
ingleses, sendo punidos como piratas
1850 – O trá co de escravos africanos para o Brasil é proibido por lei,
persistindo apenas o movimento entre as províncias
Lubas, lundas e outros bantos
Assim como bacongos e ambundos, que muito contribuíram para a
formação da nação brasileira, outros povos bantos conheceram também
períodos de prosperidade. É o caso, por exemplo, dos lubas ou balubas,
localizados a partir da província de Catanga (Shaba), na atual República
Democrática do Congo (Congo-Kinshasa); e que têm as origens de sua
nação nos primórdios do século VIII, quando já haviam constituído
importantes Estados, dos quais o mais importante foi Luba Lomani.
Do começo do século XVI ao m do século XIX, os Estados balubas
dominavam a grande área que se estende do rio Casai ao lago Tanganica.
Segundo a tradição, o grande ancestral baluba foi Kongalo, de etnia
Bassongué, que, por volta de 1420, teria estabelecido a capital de seu reino
em Muibele, próximo ao lago Boya. Seu sucessor foi o sobrinho Kalala, que
o destronou e, no poder, conquistou várias aldeias vizinhas.
Prósperos comerciantes de mar m e metais, os antigos balubas legaram à
posteridade joias de cobre e cruzetas desse mesmo metal, usados como
moeda. E no século XVIII o Luba Lomani foi importante centro no
comércio português de escravos.
Com uma história intimamente ligada à dos balubas, os lundas às vezes
são até confundidos com eles. Diz a tradição que entre os séculos XIII e XIV
alguns membros da elite dirigente baluba chegaram a uma aldeia a oeste de
Luba Lomani e a dominaram, lá se estabelecendo. Nesse momento histórico,
o chefe local havia deserdado seus dois príncipes, entregando o poder a uma
lha. Então, um príncipe luba, Muaku, toma como esposa essa jovem rainha
e se torna rei através do casamento. Nasce, assim, o Reino da Lunda.
Reunidos num dos mais célebres Estados da África Central, anteriores à
chegada dos portugueses, os lundas tinham um rei intitulado Mwata
Yamwo, detentor de poder tanto religioso quanto político-administrativo,
que governava seu Estado através de um conselho constituído pelos
governadores das províncias. Esse Estado, grande centro exportador de
mar m, metais e escravos, expandiu-se por partes da atual província de
Catanga, noroeste de Zâmbia e leste de Angola. Tanto que suas tradições são
encontradas hoje por uma vasta área, como entre os bembas do nordeste de
Zâmbia, que, segundo a tradição, seriam também descendentes dos mesmos
ancestrais dos balubas e dos lundas.
Em 1585, Ilunga Mbili funda o segundo Reino Luba. No período de 1590
a 1610, o poder do reino é exercido pela rainha Luedji, e de 1660 a 1675, por
seu lho Yamwo Namedji.
Em 1665, sobe ao poder entre os lundas Ilunga Kibinda, um baluba. Por
volta de 1735, Kumvimbu Ngombé organiza os balubas e estende seu reino
para leste e oeste. Em cerca de 1740 a região do Luapula é colonizada pelos
lundas do comandante guerreiro Kanyembo, cujo lho Nganda Vilonda é
nomeado cazembe (rei).
Outro poderoso Estado banto foi o dos cubas ou bacubas (buxongos),
que resplandeceu até quase o século XX com organização bastante
semelhante à do Reino do Congo. Seu rei Chamba Bolongongo (1600-1620)
organizou a máquina estatal, incrementou as artes e os ofícios, incentivando
a tecelagem, os bordados, a escultura e a cestaria, introduziu novas culturas
agrícolas, como fumo, dendê e mandioca, e tentou, utopicamente, abolir a
guerra através da proibição da lança e do arco. Um dos últimos importantes
chefes do Estado bacuba foi Kata Mbula, que governou de 1800 a 1810
(C , 1981, p. 108-112).
Por sua vez, os mongos – famosos por seus trabalhos em ferro e sua
exuberante literatura oral – também conheceram um brilhante apogeu. E
assim como eles, os lozi ou barotse, do oeste de Zâmbia, cujo período de
maior fausto ocorreu no século XVII, os tongas, admirados também por sua
literatura e sua música, e os zulus – no Brasil conhecidos por “cafres” –, que
alcançaram grande notabilidade, sobretudo como guerreiros.
Na passagem do século XVIII para o XIX, entre o povo Ngúni da atual
África do Sul, emergia a liderança de um chefe chamado Chaka. Sob seu
comando, os ngunis foram transformados em uma legendária “máquina de
guerra”, conquistando outros povos, expandindo seu território e se
a rmando como grande potência. Mas o espírito de luta difundiu-se até
mesmo entre os próprios guerreiros, de forma que parte deles, rebelados
contra o chefe, caram conhecidos como angônis (Ngoni), enquanto os éis
tornaram-se conhecidos como “zulus”. Esse nome tem origem em uma
expressão de louvor ao poder do rei (inkosi), elogiado como “altíssimo”, “da
altura do céu”. Tanto que na língua Xhosa, um dos idiomas locais, o termo
“zulu” tem o signi cado de “céu”, “azul” (F et al., 1985, p. 592; D ,
2005, p. 730). Na atualidade o território zulu localiza-se na província de
Natal ou KwaZulu, a antiga “Zululândia”, na República da África do Sul,
sendo seu idioma o Zulu (isi-Zulu), aparentado com a língua Xhosa.
Sob o comando de Chaka, os zulus se tornaram uma grande potência
militar: os guerreiros foram organizados em regimentos, inclusive
femininos, e aprenderam modernas estratégias de luta.
Chaka, nascido em 1787 e morto em 1823, criou um dos mais bem
equipados exércitos de sua época, com serviços de intendência
(abastecimento), correios e espionagem; modi cou o armamento desse
exército, substituindo as lanças de arremessar, de cabo comprido – que
quase sempre se perdiam –, por outras de cabo curto e lâmina larga, para
serem usadas em combates corpo a corpo; acabou também com as sandálias,
que di cultavam os movimentos da tropa, botando os guerreiros descalços;
e modi cou totalmente a estratégia de ataque e defesa.
Graças a seu grande comandante, os zulus conquistaram outros povos,
expandiram seu território e se tornaram uma grande potência.
“Além de inovar o estilo e os métodos de guerrear” – escreveu o zulu
Mazisi Kunene (1985, p. 19) –, “Chaka implantou um tipo de liderança que
buscava restabelecer a lei social, enfraquecida por egoístas lideranças
políticas. Segundo a tradição zulu, essa lei social se materializava nos
códigos sagrados dos ancestrais”.
“A liderança de Chaka” – segundo o escritor zulu – “baseava-se na ideia
de serviço, segundo a qual o chefe assume os mesmos riscos que o resto da
população. Desde então, a abnegação no serviço à comunidade constituiu-se
num dos princípios fundamentais do Estado zulu, instituindo-se o mérito
como critério para a seleção dos dirigentes em todos os níveis.”
Durante todo o período de ascensão e apogeu do Reino Zulu, das
conquistas de Chaka até o m do reinado do inkosi Dingane, entre os anos
1815 e 1835, aproximadamente, toda a África Austral é sacudida por uma
grande convulsão social. Referido como Mfekane, Difaqane ou Lifaqane –
expressões traduzidas como “movimento tumultuoso de populações”
(M’B , 2011, p. 81) ou “esmagamento”, “fragmentação” –, esse
conjunto de eventos modi cou radicalmente a geogra a e a estrutura
política da região, dando nascimento a novas unidades políticas.
Em 1828, morto Chaka, sobressaíam os nomes dos novos líderes,
Dingane, Mpande e Cetshwayo, em luta não só contra os inimigos locais,
mas principalmente contra os interesses colonialistas ingleses. Em 1879,
forças britânicas – depois de fragorosamente derrotadas por Cetshwayo na
batalha de Isandhlwana – retornaram e tomaram Ulundi, a capital,
incendiaram a cidade e capturaram o chefe. Mas só conseguiram o domínio
total em 1907. A partir daí, o estado Zulu foi fragmentado em pequenas
unidades, che adas por títeres dos ingleses, inclusive por um aventureiro
escocês (M’B , 2011, p. 305). A partir daí, os objetivos britânicos
foram alcançados e consolidados.
Aqui, num parêntese necessário, estabelecemos um paralelo entre o
Mfecane, eclodido no ambiente dos zulus, e as invasões dos jagas, no século
XVII. Embora as motivações tenham sido diferentes, os efeitos dos embates
guerreiros, a conquista de terras e o embaralhamento de povos dando
surgimento a novas fronteiras e outras populações aproximam esses dois
conjuntos de eventos. Foram eventos civilizatórios, como outros que
marcaram a história do continente africano. Da mesma forma que outros
povos e nações bantos se destacaram nos mais diversos campos da
experiência humana.
O saber e o espírito entre os bantos
Na comparação entre bantos e sudaneses, alguns estudos antigos tendem
a desvalorizar as manifestações religiosas dos primeiros, o mesmo
ocorrendo com as exteriorizações de seu senso artístico. E assim o zeram
escritores colonialistas, em textos como o seguinte, de Galvão e Selvagem
(1952, v. III, p. 218-219), sobre os bantos de Angola:
A vida espiritual dos negros é uma tragédia contínua, representada entre o nascimento e a
morte. O temor do sobrenatural, com todas as representações que a sua imaginação pode
admitir, é o facto dominante da sua espiritualidade religiosa. A sua religião é um complexo mal
articulado de crenças em que intervêm, ao mesmo tempo, o reconhecimento da existência de
um Criador Supremo, as forças ou espírito malfazejos e os agentes animados ou inanimados
que decidem, favorecem ou impedem as obras do mal e as obras do bem. Como Criador
Supremo acreditam em N’Gana Zambi, um deus superior, distante e vago, que parece
independente ou indiferente entre os conceitos do Bem e do Mal: um Criador que se
reconhece, que se ama e se respeita – mas que não se teme. De Zambi não vem nem o Bem
nem o Mal. Vem a vida dos seres e a criação das coisas. É um autor, um pouco indiferente à sua
obra. O Bem e o Mal são obra de agentes, nem sempre determinados, mas constantemente
activos – os feitiços que seguem a vida e a morte, o prazer e a dor, a fortuna e a desgraça, que
se aliam a uns e outros, que se deixam subornar com sacrifícios e ritos e que espreitam todos
os actos e manifestações dos seres. E a vida dos negros decorre entre a esperança de merecer os
favores de uns e o pavor de sofrer a perseguição de outros.
Na década de 1940, entretanto, o missionário belga Pe. Placide Tempels,
estudando os lubas (baluba) do atual Congo-Kinshasa, a rmava, em La
philosophie bantoue (Présence Africaine, Paris, 1949), uma obra que se
tornaria célebre, a existência de uma loso a fundamentada numa
metafísica dinâmica e numa espécie de vitalismo que fornecem a chave da
concepção do mundo entre os povos bantos (B , 1968, p. 64). Nela,
a noção de força toma o lugar da noção de ser, e, assim, toda a cultura banta
é orientada no sentido do aumento dessa força e da luta contra a sua perda
ou diminuição. Exempli cando a prática dessa loso a, Jacques Maquet
(1966, p. 153-155) assim resume o universo losó co do povo estudado pelo
Padre Tempels:
- Para os Lubas a realidade última das coisas, representando também o
seu valor supremo, é a vida, a força vital.
- O princípio fundamental segundo o qual todo ser é força é a chave que
dá acesso à representação do mundo dos lubas. Todos os seres (espíritos
dos ancestrais, pessoas vivas, animais e plantas) são sempre entendidos
como forças, e não como entidades estáticas.
- Esta concepção da existência rege todo o domínio da ação humana. Em
qualquer circunstância devemos procurar acrescentar, evitando o único
mal que existe: diminuir. Assim as invocações dos grandes ancestrais têm
por objetivo aumentar a energia vital, já que entrando em comunhão
com eles, cuja vitalidade será maior quanto maior for sua descendência, a
pessoa ca mais forte.
- Busca-se a intervenção dos adivinhos e dos sacerdotes (que têm o
poder de captar e dirigir as forças que escapam às pessoas comuns)
porque eles conhecem as palavras que reforçam a vida.
- Quando a pessoa está doente, ela espera dos remédios não um efeito
terapêutico localizado mas o reforço mesmo do ser. Por isto é que, entre
os Lubas e outros povos africanos se dá muito valor ao vigor sexual do
homem e à fecundidade da mulher, como testemunham os rituais e a
estatuária. E isto porque a procriação é evidentemente a manifestação
palpável do desenvolvimento da vida.
- A morte é um estado de diminuição do ser. Mas os descendentes vivos de
um defunto podem, através de oferendas, transmitir a ele ainda um
pouco de vida. Quando os vivos são negligentes, os mortos chamam a
atenção deles, mandando doenças ou provocando outros
aborrecimentos. O morto que não deixa descendentes está condenado à
degradação nal, espécie de segunda morte, desta vez de nitiva.
- Um indivíduo se de ne por seu nome: ele é seu nome. E este nome é algo
interior que não se perde nunca e que é diferente do segundo nome dado
por ocasião de um acréscimo de força como por exemplo o nome de
circuncisão, o nome de chefe recebido quando da investidura ou o nome
sacerdotal recebido quando da possessão por um espírito. O nome
interior é indicativo da individualidade dentro da linhagem. Porque
ninguém é um ser isolado. Toda pessoa constitui um elo na cadeia das
forças vitais, um elo vivo, ativo e passivo, ligado em cima aos elos de sua
linhagem ascendente e sustentando abaixo de si, a linhagem de sua
descendência.
Sobre a religiosidade dos lubas, outro testemunho valioso nos é trazido
pelo Pe. éodore euws. Segundo ele, integrados no jogo das forças
concretas, os lubas estão permanentemente se defendendo contra as forças
destrutivas, colocando a seu serviço a energia dos objetos, dos animais, dos
vivos e dos mortos, a m de se preservarem e crescerem como pessoas
(T , 1958, p. 25). Para os lubas, segundo o Pe. euws, a fonte de toda
força e de toda a vida é Deus, ou seja, Syakapanga, o Pai-Criador, ou ainda
Mwine bumi bwandi, aquele que detém a vida em si mesma, pois não a
recebeu de ninguém; aquele que “forjou as coisas com a palavra saída de sua
boca; aquele que não é parte das forças da natureza e sim o Criador que as
domina”, já que os lubas não são panteístas (T , 1958, p. 25).
Ainda segundo o Pe. euws, para os lubas, Deus é também Syayuka – o
detentor de todo o saber; é Mwine Matamda, o senhor de todas as terras; é
Syandya manwa, o pai de toda a destreza, de toda a habilidade artesanal; é
Mwala, o distribuidor dos dons; e é Mwinya o tota, o Sol que reanima
(T , 1958, p. 28).
Observemos que esses epítetos, ocorrentes em denominações de outras
divindades africanas, muitas vezes levam à falsa impressão de que se referem
a “deuses” diversos, quando, ao contrário, são formas de referência ao
mesmo Ser Supremo, criador e incriado.
Vejamos agora que inclusive o escritor português Silva Cunha (1958, p.
83-84) faz eco aos padres Tempels e euws quando escreve:
Na ontologia negra […] o ser é a força, e, como há seres divinos e terrestres, humanos, animais,
vegetais e minerais, distinguem-se várias categorias de forças, todas diferentes. Entre estas
estão as forças dos espíritos dos mortos. Todos os seres, segundo a sua potência vital própria,
se integram numa hierarquia.
Acima de toda a força está Deus, que tem a força por si mesmo e que está na origem de toda a
energia vital. Depois vêm os primeiros pais dos homens, os fundadores dos diferentes clãs. São
eles os mais próximos intermediários entre os homens e Deus.
Depois vêm os mortos da tribo, por ordem de primogenitura. São eles os elos da cadeia que
transmite o élan vital dos primeiros antepassados para os vivos. Estes, por sua vez, estão
hierarquizados, consoante a sua maior ou menor proximidade em parentesco dos antepassados
e, conseqüentemente, segundo a sua potência vital.
A seguir às forças humanas vêm então as outras forças, animais, vegetais e minerais,
hierarquizadas conforme a sua energia.
Todas as forças estão relacionadas, exercendo interações que obedecem a leis determinadas.
Assim:
1. O homem (vivo ou morto) pode diretamente reforçar ou diminuir um outro homem no seu
ser. A resistência contra esta ação só pode conseguir-se por meio do reforço da força própria,
recorrendo a uma outra in uência vital.
2. A força vital humana pode in uenciar diretamente seres-forças inferiores (animais, vegetais
ou minerais).
3. Um ser racional (espírito ou ente vivo) pode in uenciar um outro ser racional atuando sobre
uma força inferior (animal, vegetal ou mineral). A resistência a esta ação também só se
conseguirá pelo reforço da energia vital, recorrendo a outras forças.
Para se proteger contra a perda ou diminuição de energia vital por ação direta ou indireta de
outros seres, o Preto tem que recorrer, portanto, às forças que possam reforçar a sua própria
força – ou às divindades, ou aos espíritos dos antepassados – fá-lo por intermédio do culto ou
ritual destinado a propiciar Deus ou os deuses e os espíritos, ou por intermédio da magia, que
Tempels diz dever ser considerada como o conhecimento da interação das forças naturais, tais
como foram criadas por Deus e, por ele, postas à disposição dos homens.
A noção de força vital ca ainda mais clara na observação, feita pelo Pe.
Mongameli Mabona (1964, p. 157-161), a partir dos ngunis, povo banto da
África do Sul, sobre a importância, entre os africanos, da palavra como
símbolo criador, como energia geradora e criadora de dimensões e
realidades novas e através da qual se estabelecem pactos e alianças.
Exempli cando, diz ele que na língua dos ngunis os termos “igama” (nome)
e “ilizwi” (som, voz, fala) signi cam antes de tudo “força”.
Arrematando, lembra o Pe. Mabona que em Ngúni – que é a sua língua
materna – não existe nenhuma palavra ou expressão que designe
“parentesco” no sentido de relação entre membros de uma comunidade, a
não ser “ubudlelane” (comer juntos). Assim – diz ele –, embora sua forma e
seu sentido se diferenciem muito do que em geral se entende por sacrifício
ou culto, entre os ngunis as festas e cerimônias destinadas a manter ou
restabelecer as relações comunitárias (reuniões em que os membros da
comunidade “comem juntos”) se revestem de um caráter altamente
simbólico.
Da mesma forma, escrevendo sobre comunidades bantas moçambicanas,
Corrêa e Homem (1977, p. 67) observam:
Muitos dialetos [sic] bantus guardam ao nível da linguagem, até hoje, o sintoma mais evidente
do sentimento coletivo vivenciado pelos homens no interior dessas comunidades, ao fazerem
coincidir num único verbo signi cados tão diferenciados para nós quanto dever e poder, querer
e precisar. As línguas falam o que os homens realizam no seu dia-a-dia. Sendo o elo básico de
comunicação entre os indivíduos, elas re etem o mais profundo sentimento que eles nutrem
uns pelos outros. E, na verdade, em tais comunidades [tidas como] “selvagens”, “primitivas”,
pode-se aquilo que se deve, ninguém quer mais do que precisa, pois não agir assim causaria uma
ruptura fatal na continuidade das relações entre os homens (grifos do original).
Buscando outros exemplos dessa importante constatação, veri camos
que: no idioma Quimbundo o verbo “ku-binga” signi ca tanto “dever”
quanto “precisar”; em Suaíli, “kuhi-taji” quer dizer não só “precisar” como
também “querer”; e em Umbundo o verbo “laka” tem o signi cado tanto de
“querer” como de “precisar”. Assim, para os quimbundos, só se precisa do
que se deve precisar; entre os povos que falam o Suaíli, só se deseja (quer)
aquilo de que se precisa; e, entre os umbundos, só se deseja o que se deve
desejar.
Tudo isso vem demonstrar uma regra geral da tradição africana segundo
a qual “o mal é o que prejudica o outro, o que ameaça a paz e a sobrevivência
do grupo”, regra essa que, entretanto, não é absoluta, já que as ações
proibidas só o são para certas pessoas. Assim, entre alguns povos, é proibido
matar ou roubar os membros da sociedade a que se pertence, mas “tirar a
vida ou os bens a um estrangeiro desconhecido em geral não é proibido”
(B , 1968, p. 330).
A noção de força vital entre os bantos chega até os seres inanimados.
Pode-se transmitir essa força, por exemplo, a um barco ou uma canoa. E é
isso exatamente que fazem os bengas do Gabão quando batizam seus barcos
recém-construídos, antes de lançá-los ao mar. Para eles, uma canoa nova é
um ser vivo ainda desconhecido do oceano. Então, ela é batizada numa
cerimônia na qual são feitas oferendas aos espíritos dos antepassados e às
entidades protetoras do mar, dos pescadores e das embarcações. A partir daí,
e com a força do nome que recebeu, ela se torna também uma entidade
marinha. Assim, o mar deve respeito a ela, tanto quanto os homens devem
respeito ao oceano e a toda a natureza. E, assim respeitada, ela di cilmente
sofrerá algum dano ou, mesmo, será roubada. Porque “a memória do mar é
imensa”. E ele sabe o que pertence a cada pessoa e a cada família da aldeia,
de geração a geração (A -M , 1985, p. 109).
Fora de dúvida, então, hoje, a existência de uma loso a banta, e de uma
personalidade africana perfeitamente de nida, bem como de um conjunto
de saberes ancestrais compartilhados por toda a tradição negro-africana. A
propósito, o sociólogo togolês Amewusika Kwadzo Táy (1984, p. 13-14)
escreve:
Desde a publicação, em 1945, de La Philosophie bantoue, de Placide Tempels, o conceito da
personalidade africana [condição humana], tal como elaborado por lósofos africanos,
compõe-se de quatro elementos: o corpo (invólucro corporal); o princípio biológico (órgãos
internos, sistemas automáticos e psicossomáticos); o princípio de vida e o espírito
propriamente dito, substância imortal. A personalidade [pessoa] assim concebida situa-se num
campo psicológico dinâmico de nido por três eixos principais de relacionamentos; a
personalidade está no ponto em que os três eixos se cruzam. Há o eixo vertical, que liga a
pessoa ao seu ancestral fundador, Deus e outras Existências invisíveis; há o eixo horizontal, o
da ordem social, que mantém a pessoa em ligação com a comunidade cultural; e há o eixo da
existência própria da Pessoa, da existência biolinear (cf. Ibrahim Sow, Psychiatrie dynamique
africaine). O equilíbrio da personalidade, e portanto sua saúde mental, dependem do
equilíbrio desse universo psicológico.
Analisando a concepção africana do Homem a partir do vitalismo
expresso na loso a banta e tal como de nida por Vincent Mulago, o
professor gambiano Sulayman S. Nyang (1982, p. 30) diz: “Esta concepção
do homem, assim de nida por Mulago, está muito próxima das formulações
do padre Tempels em seu livro Filoso a banto. […] Mulago faz a mesma
análise: ‘Para o banto, a vida é a existência da comunidade; é a participação
na vida sagrada (e toda vida é sagrada) dos ancestrais; é uma extensão da
vida dos antepassados e uma preparação de sua própria vida para que ela se
perpetue nos seus descendentes’”.
Segundo Nyang, a re exão de Mulago é geralmente aceita pelos que
estudam a religião tradicional africana como a crença padrão entre os povos
do continente. Mas vale a pena observar o que ele acrescenta a essa
concepção da visão banta do homem: “A concepção banta da vida pode ser
vista de duas formas: primeiro, como uma comunidade de sangue (primeiro
fator decisivo); segundo, como uma comunidade de propriedade (fator
concomitante que torna a vida possível)”.
Explicada a estruturação losó ca do pensamento banto, vemos, então,
que, se alguma notável diferença houvesse entre suas concepções e as dos
povos oeste-africanos, dos quais também vieram trabalhadores escravizados
para o Brasil, ela residiria na importância que os povos bantos atribuem
mais especi camente à ancestralidade. Isso porque, na religiosidade dos
bantos, os espíritos dos ancestrais são os principais intermediários entre a
Divindade Suprema e os humanos. Assim, são eles que levam as oferendas
dos éis e intercedem em seu favor junto a Nzambi, Suku, Kalunga etc.
“Placide Temples” – escreve Redinha (1975, p. 364-365) –, “na sua obra La
philosophie bantoue, expressou largamente que os Bantos possuem uma
ontologia própria. Colocam Deus no vértice das forças como espírito
criador, dotado de poder por si mesmo, sendo por sua vez o homem um
elemento participante de sua força, segundo uma hierarquização em que
tomam o primeiro lugar os antepassados fundadores de clã ou de tribos, em
segundo os defuntos venerados, e nalmente os vivos.”
E embora, na pirâmide das forças que constituem o universo, os
ancestrais estejam mais longe da Divindade Suprema que os espíritos da
natureza, seu culto entre os bantos supera em importância e em e cácia, por
exemplo, o culto aos orixás da tradição iorubana, irradiada a partir dos
atuais Nigéria e Benin. E embora, ainda, aqueles espíritos sejam
hierarquicamente mais importantes que os ancestrais, estes podem ser
também associados a forças da natureza, como é o caso, entre os bacongos,
dos Nkisi, que às vezes estabelecem com os homens pactos bilaterais, com
obrigações de ambas as partes (T ;L , 1981, v. I, p. 78). Assim,
se algo como a ordem moral é coisa de que a divindade suprema não se
ocupa, por estar muito acima ou muito além, os ancestrais são os guardiães
dela e se incumbem de castigar os descendentes que não a respeitem
(B , 1968, p. 330). Os ancestrais atingem às vezes um tal grau de
sacralização que acabam por ser considerados como divindades secundárias
ou mesmo divindades de primeira ordem, como é o caso de Unkulunkulu, o
ancestral primordial dos zulus, cujo culto obscureceu quase que totalmente
o do Deus Supremo Ndyambi-Karunga (T ;L , 1981, v. I, p. 78).
Entre os bantos, então, a onipresença dos ancestrais é agrante:
“Nenhum trabalho nos campos, nenhum casamento, nenhuma cerimônia de
puberdade podem ter lugar sem que estejam em ligação com os mortos”
(T ;L , 1981, v. I, p. 78). Assim, eles não só continuam a fazer
parte da comunidade dos vivos, como também evidenciam sua importância.
Porque “os mortos, ao passarem pela agonia individual da morte,
adquiriram um conhecimento mais profundo do mistério e do processo de
participação vital do universo” (N , 1982, p. 30).
Estudando o conceito de Deus entre os bantos em geral, o etnólogo
português Silva Rego constatou a prática de um monoteísmo todo peculiar.
Os bantos, segundo ele, creem num Deus Supremo e o respeitam, mas não o
cultuam e só se dirigem a Ele em casos de extremo desespero. E isso porque
entendem que o melhor modo de lhe render culto é venerando seus grandes
mortos, ou seja, os espíritos dos ancestrais (R , 1960, p. 144). Como
endosso, vejamos este trecho de Merriam (1963, p. 30-31): “Quase todos os
bantus do Congo têm uma crença num ser superior que é freqüentemente
tido como o criador do universo, mas que preferiu retirar-se do mundo
depois de terminada a criação. Provavelmente de maior importância sob o
ponto de vista funcional direto são os espíritos dos antepassados que
acredita-se terem um interesse ativo”.
Agora, examinemos esta informação de Fagan (1970, p. 125-126), sobre a
religião dos xonas (naxonas), construtores do célebre Império do
Monomotapa, focalizado páginas atrás:
Em todas as áreas onde se falam línguas bantas há semelhanças básicas quer na estrutura
gramatical quer no vocabulário. Do mesmo modo, existem evidentes semelhanças entre as
práticas religiosas das tribos de língua banta mesmo vivendo em lugares tão afastados como o
Transval e o Tanganica [atual Tanzânia]. As crenças religiosas xonas são, como as das outras
religiões africanas, estreitamente ligadas à identi cação com os espíritos dos antepassados,
meio de comunicação com um ser supremo. O ser supremo é o criador do Universo e do
Homem. O ser divino tem, entre os Xonas, nomes diversos, sendo o mais comum o de Muári,
[…] Nenhum ser vivo pode se comunicar com Muári senão através de intermediários. Os
Xonas crêem que o espírito do homem pode falar depois da morte com o criador, razão pela
qual se desenvolveu um sistema de culto dos espíritos. Quando alguém deseja pedir um favor a
Muári ou solicitar a sua proteção, roga-o através dos espíritos dos seus próprios antepassados.
Tais espíritos familiares são denominados vadzimu (sig. mudzimu) e, sempre que um parente
direto morre, o seu espírito vai juntar-se aos fantasmas ancestrais da família.
Acentuando que Muári, a divindade suprema dos xonas, é o mesmo para
toda a nação, sendo venerado, por conseguinte, também no nível tribal,
prossegue Fagan:
Os espíritos da tribo, ou “mondoro”, são os meios através dos quais a comunidade ou seus
representantes podem suplicar Muári em períodos de crise política ou quando falham as
colheitas. A maior parte da vida religiosa dos povos xona está ligada à adoração e à glori cação
de Muári através dos “mondoro”. Acreditam que, tanto os vadzimu como os “mondoro”, se
manifestam através de um médium, a que chamam sviquiro. O hospedeiro do espírito pode ser
um membro da família a que pertencem os vadzimu, ou, no caso da tribo, como um todo,
qualquer membro da comunidade.
Como em toda a tradição africana, os xonas têm o maior respeito pelos
seus velhos, grandes detentores e preservadores dos saberes ancestrais. E
aqui Fagan explica por que:
O culto de Muári é essencialmente uma religião do povo. Uma vez que os vivos só podem se
comunicar com Muári por meio do espírito dos antepassados, os Xonas manifestam grande
respeito e preocupação com os anciãos da tribo e os membros mais idosos da família. Sem
dúvida que este respeito pelos velhos é uma precaução para garantir a amizade dos futuros
vadzimu, quando os anciãos morrerem e se juntarem às leiras dos espíritos. E, como a
comunidade só pode contactar com Muári através dos hospedeiros de tais vadzimu, é natural
que os métodos através dos quais os espíritos tribais podem ser invocados sejam encarados
com um respeito extraordinário.
Sobre a evocação do nome do remoto antepassado Nimi-a-Lukeni, pelos
bacongos, ainda nos tempos atuais, o etnólogo português José Redinha
(1975, p. 364) escreveu:
O respeito religioso pelos antigos chefes do território, mais exatamente pelos seus espíritos,
abrange, inclusive, os seus ocupantes remotos, mesmo que tenham sido inimigos, os quais são
reverenciados no oratório conguês, no intuito de lhes apaziguarem qualquer ressentimento que
poderia redundar em males de variada ordem, mas muito em especial atingiriam o solo e as
suas produções.
O culto dos mortos é que verdadeiramente domina a vida religiosa conguesa. Crêem que os
espíritos dos defuntos dominam os vivos e in uem em todos os sectores da vida, ora bené ca
ora male camente, aspecto este último que recomenda, umas vezes sacrifício de acção de
graças, por outras preces de aplacação, e também rogos de ajuda, contra forças contrárias
desencadeadas.
Na tradição africana em geral, e para o Banto, no caso desta obra, o
ancestral é importante porque deixa uma herança espiritual sobre a Terra,
depois de ter contribuído para a evolução da comunidade ao longo da sua
existência, e por isso é venerado. Ele atesta o poder do indivíduo e é tomado
como exemplo não apenas para que suas ações sejam imitadas, mas também
para que cada um de seus descendentes assuma com igual consciência suas
responsabilidades. Por força de seu legado espiritual, o ancestral assegura
tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo quanto sua coesão
no espaço. Assim, o culto aos ancestrais (tanto biológicos quanto míticos ou
simbólicos) tem uma repercussão inestimável na estatuária e na escultura da
tradição negro-africana, que são as manifestações mais características da
arte negra como um todo (e da arte banta em especial), distinguindo-a da
arte europeia, por exemplo.
Para a cultura ocidental clássica, baseada em regras estabelecidas pelos
gregos e romanos na Antiguidade, a nalidade da arte era reproduzir ou
imitar a natureza. Então, essa arte, na escultura e na pintura, representava as
guras dentro das três dimensões que o olho humano percebe (altura,
largura e profundidade) e só reconhecia efetivamente como manifestação
artística a obra que estivesse dentro desses padrões de proporção e
perspectiva. Daí a generalização da ideia de que a escultura tradicional
negra seria “primitiva”, e isso com base no falso conceito de que toda a
manifestação artística da humanidade teria começado assim “tosca”,
“malfeita”, “desproporcional”, e depois teria ido “melhorando, melhorando”,
até atingir a “perfeição” da arte grega e latina. Mas esse entendimento não
mais se justi ca.
As formas da arte negro-africana tradicional – expôs o senegalês Alioune
Sène (1969, p. 61) – são múltiplas e variadas, mas obedecem a certas
constantes que a rmam sua autenticidade. Um de seus elementos é a
assimetria, pela qual se demonstra que nada do que existe no mundo pode
ser xo ou estático. Cada objeto, mesmo inerte, é animado por um
movimento cósmico que se exerce segundo um ritmo que o artista procura
expressar.
Outro elemento da arte negra tradicional, segundo A. Sène, é a
desproporção, que explica como a arte é uma linguagem que cria signos,
símbolos de algo que o artista quer comunicar ao expectador. A arte é
sempre conhecimento, e não um plágio, da natureza. E, nela, a forma do
objeto varia segundo as exigências do espírito. Isso explica o porquê de
certas máscaras ou estátuas serem realistas, e outras, abstratas.
O que ocorre, então, é que o escultor tradicional negro africano, quando
cria sua obra, não quer copiar a natureza, e sim dizer o que pensa sobre ela;
ele não quer reproduzir as coisas, e sim dar sua opinião, seu conceito sobre o
que elas representam. Ele procura, em seu trabalho, simbolizar, expressar
um ponto de vista; não copiar o que vê, e sim captar o que vai por dentro
daquilo que está vendo. Por isso é que ele se preocupa mais com os detalhes
do que com o conjunto. Por isso é que, ao fazer, por exemplo, a estátua de
uma pessoa, a cabeça é sempre grande, desproporcional em relação ao resto.
Porque a cabeça é a parte mais importante do corpo: é onde mora a
inteligência, o saber, a personalidade, a vida, en m. Assim, quando a
estatuária africana representa características ou manifestações sexuais, por
exemplo (seios, órgãos genitais, mulheres grávidas etc.), ela não está
pretendendo ser “erótica”, “pornográ ca” ou qualquer coisa desse teor,
porque aí a sexualidade está associada à fertilidade, à fecundidade, à
sobrevivência social, econômica, biológica e espiritual do grupo; e nunca
apenas ao prazer.
Entre os bantos – como ressalta éophile Obenga (1984, p. 83) –, a nal,
tudo é “arte”: arte de falar, de cantar, de cozinhar bem; arte de cumprir bem
os rituais, as cerimônias, as festas; arte de tocar bem o tambor, de esculpir
bem as imagens dos ancestrais; arte de saber se pentear, maquilar, vestir,
andar, rir etc. E é o mesmo Obenga que vê em todos os povos bantos, com
algumas pequenas diferenças, concepções estéticas semelhantes, nas quais a
ideia de beleza está indissoluvelmente ligada às de bem, vida e verdade.
Desse modo, em toda a África banta, é belo o que é bom, vivo e verdadeiro,
e que carrega dentro de si uma tradição de ancestralidade, que a cria e a
diviniza (O , 1984, p. 78).
Daí a importância da pessoa idosa. O velho “tem a solidez, a pátina, a
elegância, a força moral, a majestade” das estátuas dos ancestrais; seus
cabelos brancos, “obra do tempo humano e social, fazem do Velho uma obra
da arte, uma estátua histórica viva” (O , 1984, p. 87). Porque, dentro
do universo artístico banto, as máscaras e as estátuas dedicadas aos
ancestrais representam um papel muito importante.
A gura do ancestral é um símbolo que evoca seus atos. Não se trata de
fetichismo nem de idolatria, pois não se adora um pedaço de madeira ou de
metal. A máscara ou estátua é o signo que manifesta a presença espiritual do
ancestral entre os vivos (S , 1969, p. 63).
Mas nem só de máscaras vive a arte dos bantos. Já no século XV
exploradores portugueses tomavam conhecimento dos belos tecidos de
casca de árvore e bra de palmeira, “com uma neza comparável ao veludo”,
que eram fabricados no velho Reino do Congo. Porque foi primeiramente
pela extrema habilidade de sua tecelagem e pela qualidade de sua cestaria
que os bacongos atraíram a atenção dos cronistas sobre sua produção e sua
arte. E apesar das “peripécias da história” (B , 1968, p. 238), essa
arte, fruto de uma civilização que resplandeceu por cerca de três séculos,
não sucumbiu. Assim, até hoje, na vida tradicional dos bacongos, os
trançados são de largo emprego, sendo utilizados na confecção de esteiras
para dormir, na decoração de casas etc. A tecelagem recorre a bras vegetais,
principalmente de palmeira, e faz nascer peças que lembram brocados,
veludos, tafetás etc. E com técnicas bem mais avançadas, hoje os bacongos
forjam o ferro, trabalham o cobre e fundem o chumbo, produzindo anéis,
pulseiras, argolas e manilhas que servem ora como adereço, ora como
emblema clânico, ora como símbolo de importância social.
Entretanto, os prejuízos causados à arte dos bantos de Angola pelo
colonialismo foram incalculáveis e irreparáveis. Sobre isso, encontramos em
L. L. Fituni (1985, p. 54) a seguinte denúncia:
A colonização portuguesa mudou de forma substancial os trilhos ao desenvolvimento da arte
africana tradicional em Angola. Durante quase cinco séculos o imperialismo português foi
executando a sua “missão civilizadora”. E como resultado tem-se o quase completo
desaparecimento de diversas direções na arte nacional, devido, em primeiro lugar, às tentativas
dos colonizadores de “desviar do paganismo os nativos”. Os quinhentos anos de esmagamento
da arte nacional e a imposição do “sistema de valores” europeu não podiam passar sem deixar
as suas marcas. Como resultado, na Angola de hoje, especialmente nas regiões ocidentais,
determinados tipos de arte, tais como, o fabrico de máscaras rituais ou a dança ritual, estão
desenvolvidos em relativamente menor grau do que noutros países da África Tropical. Importa
portanto notar que lá, no nordeste e no leste (regiões que os portugueses apenas no século XX
começaram ativamente a colonizar), ambos os tipos citados de arte popular conservaram-se
em toda a sua dimensão.
Nos dois países chamados “Congo”, essas “peripécias da história” também
ocorreram, com violência. Entretanto, na atual República do Congo (Congo-
Brazaville), de colonização francesa, elas não sufocaram, de forma tão
arrasadora, as manifestações artísticas. Escrevendo sobre a região, em 1960,
o já citado Alan Merriam (1963, p. 31) a rmava:
O Congo, rico na sua vida estética, é uma das grandes áreas artísticas da África e na verdade do
mundo inteiro. As artes plásticas são representadas por toda sorte de objetos: máscaras,
estatuetas, postes esculpidos, bastões e outros símbolos de o cio. Quanto a esse aspecto pode-
se dividir o país em duas regiões: a meridional e a setentrional, segundo certas características
estilísticas. As artes grá cas são praticadas em menor proporção embora encontradas em
certas zonas sob a forma de pinturas domésticas. A pintura de quadros em telas, à imitação da
Europa, tem produzido alguns resultados esplêndidos. A música é caracterizada pela ênfase
dada às técnicas e dispositivos rítmicos bem como na grande diversidade de instrumentos e
estilos. Em algumas tribos, como por exemplo a dos Ekonda que vivem ao redor do lago
Tumba, a música alcança alturas de extraordinária complexidade. A dança e o drama são
usados com grande efeito e o folclore é um sistema altamente complicado.
Os bacongos do subgrupo Vili ou Fiote que habitam o litoral do Congo-
Brazzaville, de Angola e do Enclave de Cabinda, e que pelo nome “cabindas”
são conhecidos, con guram exemplos muito vivos de arte e sagacidade.
Segundo Redinha (1975, p. 30-33), eles são “muito aptos para o negócio”,
têm “vivo espírito losó co e proverbialista” e “propensão para os serviços
domésticos e não para os trabalhos agrícolas”, “comprazem-se com as
discussões das costumagens jurídicas”, “possuem sensibilidade exagerada e
são muito inteligentes”.
O antropólogo e historiador brasileiro Câmara Cascudo (1965, p. 128),
discorrendo sobre os cabindas, fala dos Mabaia Manzungu – tampas de
panela de madeira com cenas entalhadas que contêm ensinamentos, avisos,
conselhos, normas morais e jurídicas etc. “Um desses textos” – escreve
Cascudo – “é obra-prima, de signi cação evidente, imediata, comovedora.
Um rapaz, com um braço cortado, está sendo conduzido no conforto de
uma maxila, suspensa aos ombros de dois servos. Um homem, com a perna
amputada, arrasta-se pesadamente pelo solo. Devia realizar-se o contrário
no plano de transporte, mas ao lado da maxila, em relevo, há o sinal da
realeza. O moço sem braço é um príncipe. O velho sem perna é um plebeu.”
E Cascudo conclui: “Utilizar a tampa desse prosaico utensílio com
nalidades de sugestão psicológica, ensinando, na superfície de um disco de
madeira, uma inteira aula régia de justiça formal, altera a sentença do
julgamento crítico sobre a inteligência re ectiva dêsses Cabindas,
analfabetos e poderosos de intuição comunicante”.
Assim como os bacongos, artistas igualmente respeitados encontram-se
entre os bacubas, que, conforme Maquet (1966, p. 122), são hábeis
fabricantes de taças “cefalomór cas” (em forma de cabeça), caixinhas de
joias, apoios para cabeça, cachimbos, cadeiras e tecidos de rá a bordada
também. Nesses trabalhos, segundo Maquet, a ornamentação
antropomór ca é superabundante e de execução muito cuidadosa, pelo que
eles se constituem em objetos de luxo cuja posse confere prestígio social.
Por volta de 1950 – informa ainda Maquet –, M. R. Verly recolheu em
antigos cemitérios bacongos do norte de Angola uma boa quantidade de
esculturas em pedra-sabão presumivelmente bem antigas, já que os últimos
artesãos congos nessa técnica teriam morrido por volta de 1910. Estudando
essas descobertas, M. Verly constatou que estátuas da mesma natureza,
mencionadas num documento de 1514, tinham sido levadas, no nal do
século XVII, para Roma, por um missionário italiano, e ainda estão lá, o que
atesta a antiguidade da técnica entre aqueles povos bantos.
Também entre os bacongos, assim como entre os balubas e bassonguês –
quem informa é ainda Maquet (1966, p. 127) –, são admiráveis os bastões
rica e re nadamente ornados, os enxós namente trabalhados, os machados
de lâmina larga com cabos forjados artística e delicadamente. Segundo
Maquet, o tratamento ornamental desses objetos é de tal maneira rebuscado
que chega a atrapalhar o seu uso normal, sendo, portanto, objetos
destinados a representar apenas e nada mais que o poder, na sua expressão
mais prestigiosa, funcionando como símbolos de uma sociedade onde o
poder do chefe é glori cado, enaltecido, para mostrar de modo
esplendoroso e incontestável que seu detentor é muito superior aos outros
homens do seu povo.
E o que teria possibilitado o orescimento dessas extraordinárias
manifestações artísticas? Evidente que só em sociedades de base econômica
estável o artesão pode se tornar artista especializado na fabricação de
objetos não só de arte, como também de luxo. Assim, tanto quanto entre os
bacongos, balubas e bassonguês, também entre os bacubas isso ocorreu.
As estátuas dos reis bacubas, entalhadas em madeira, e de altura que
varia entre 30 e 75 centímetros, representam os monarcas sempre sentados,
de pernas cruzadas, todos portando o gorro que simboliza a condição e a
dignidade de sua realeza. Cada rei, entretanto, é identi cado através de um
símbolo evocativo de seu ato ou característica mais notável. Assim, Bope
Pelenge (c. 1800), por ter sido ferreiro, é representado à frente de uma
bigorna; Mikope Mbula (1810-1840), por ter abolido a proibição do
casamento entre nobres e escravos, é representado com um jovem escravo
diante de seu trono; Chamba Bolongongo (1600-1620), por ter – para acabar
com os jogos de azar –introduzido o jogo inofensivo do Zelá, é retratado
tendo diante de si um tabuleiro desse jogo, hoje popularíssimo entre os
bacubas.
“Esta estatuária dinástica” – diz Maquet (1966, p. 130) – “nos faz
penetrar na história: nomes e fatos singulares do passado emergem. Mesmo
entre os povos que não conhecem a escrita, o poder, quando se ampli ca até
a realeza, deixa de ser anônimo. As tradições orais, as representações
plásticas conservam a lembrança das passadas grandezas que glori cam o
poder atual e o legitimam.”
Então, ao contrário do que preconizava a maior parte dos antigos
escritos, os bantos também foram agentes civilizadores, também têm sua
loso a, e – sempre sob a égide dos ancestrais divinizados (O , 1984,
p. 75) – honram e prestigiam a arte e o saber de seus escultores, seus
músicos, seus contadores de histórias, seus dançarinos, seus sacerdotes e
seus chefes.
Trabalho e técnicas50
Como outros povos em todos os tempos e lugares, os antigos povos
bantos, em suas atividades de trabalho, adaptavam-se ao meio ambiente
servindo-se dos sistemas de tecnologia de que dispunham, adaptando-os a
cada caso, de acordo com suas respectivas condições socioeconômicas e suas
visões de mundo.
Assim agiam os povos das orestas, combinando técnicas de produção
espontâneas, de acordo com os recursos naturais existentes, nas atividades
agrícolas: de caça, pesca etc., às vezes dando predominância a uma delas. Da
mesma forma agiam os agricultores das savanas, cujas técnicas podem ter
contribuído para a formação de alguns espaços arborizados. Igualmente, os
ribeirinhos, dependentes dos rios ricos em peixes e dos espaços orestais às
suas margens. E essas eram também as características do trabalho entre os
nômades pastores, cujo ambiente natural era o dos planaltos ou das colinas
sucessivas. Sua rotina original, de transumância (sempre indo com o gado
em busca de melhores passagens), foi aos poucos se transformando em vida
sedentária, o que logo deu causa a problemas de espaço, tanto para o gado
quanto para os humanos.
Não obstante, os diversos povos bantos desenvolveram importantes
técnicas de trabalho, dominando tecnologias em áreas como as seguintes:
artes do corpo; técnicas de conservação; metalurgia; ourivesaria; escultura;
cerâmica; tecelagem; cestaria etc., além de arquitetura.
Nesta última especialidade, é notória a descrição da Mbanza Kongo, a
capital do Reino do Congo, no século XV, cujo aspecto era o de uma cidade
com casas de madeira, circulares e retangulares, com telhado de palha e
cercas vivas. No centro cavam os palácios do rei e da rainha, protegidos
por um labirinto e por um muro de mais de 1 quilômetro de perímetro
(L ;M , 2017, p. 37).
África-Brasil-África
Na falta de Angola, o Brasil se perderá sem outra guerra.
(Conselho Ultramarino, 1642)
Sem negros não há Pernambuco e sem Angola não há negros.
(Pe. Antônio Vieira, 1648)
Não se pode fazer uma estimativa do trá co negreiro pois é difícil contabilizar o desespero dos
homens.
(Joseph Ki-Zerbo)
A primeira operação de transporte massivo de escravos africanos para a
Europa teria ocorrido em 1444, ano em que a Companhia de Lagos, recém-
criada, fazia chegar a Portugal 235 cativos capturados no Golfo de Arguim,
na atual Mauritânia. No século seguinte, entre as décadas de 1570 e 1590,
segundo algumas estatísticas, teriam saído de Angola mais de 50 mil
escravos em direção a Portugal, Brasil e América hispânica (L ;
M , 2017, p. 111).
No litoral do centro-oeste africano, os embarques concentraram-se entre
o Cabo Lopo Gonçalves, no Luango, e o rio Coporolo, ao sul de Benguela; e
na costa oriental, principalmente entre o Zambeze e o Limpopo, no atual
território de Moçambique (G , 1979, p. 247). A técnica mais
comumente utilizada pelos mercadores para se abastecerem de escravos era
fomentar a guerra entre povos ou grupos tribais vizinhos. Foi assim que
bacongos venderam prisioneiros de guerra ambundos como escravos e vice-
versa, bene ciando nessas transações portugueses de todos os extratos
sociais e de todas as pro ssões: “alfaiates, sapateiros, pedreiros, oleiros,
padres e professores”, diz Kazadi wa Mukuna ([s.d.], p. 45), todos
participavam do trá co.
A instalação no Brasil, em 1532, por Martim Afonso de Souza, na atual
Baixada Santista, do primeiro engenho produtor de açúcar foi o fato gerador
do incremento da utilização massiva de mão-de-obra escrava. Pedro Ramos
de Almeida (1978, v. I, p. 129) refere 1538 como o ano do primeiro
embarque de escravos africanos para o Brasil; e atribui ao negreiro o nome
de Leonardo Lopes Bixorda. Esse primeiro contingente de cativos pode ter
sido integrado no todo ou em parte por bantos, pois, no Congo, ao tempo da
investidura do rei Nzinga Mbemba, Afonso I, entronizado em 1508, o trá co
já era intenso. Percebendo, entretanto, que o trá co arruinava o Congo
(ninguém queria exercer outra atividade senão a de comerciante de
escravos) e não tendo forças para aboli-lo, Nzinga Mbemba (1508-1543)
induz os tra cantes a irem caçar suas presas em outras terras (M ,
[s.d.], p. 46). Porém, o efeito lhe foi contrário, pois os povos acossados pelos
caçadores de escravos passaram a hostilizar seu reino e até o invadiram, em
hordas como as dos jagas. E é assim que se inicia a derrocada do legendário
e faustoso Reino do Congo.
Mas a crônica das primeiras investidas escravistas registra, igualmente,
sérios revezes para os portugueses: D. Francisco de Almeida morto na atual
África do Sul, Lopes Ferreira trucidado no Congo por “negros panzelungos”
e Fernão Darvelos assassinado no rio Longa, no Dongo (A , 1978, v.
I, p. 91, 99 e 138), são apenas alguns casos de portugueses que, juntamente a
centenas de comandados, sucumbiram na primeira metade do século XVI
diante da resistência banta à escravidão.
Em cerca de 1550 desembarcam em Salvador, Bahia, os primeiros
escravos destinados ao trabalho nos engenhos de cana do Nordeste. E com o
desenvolvimento da lavoura açucareira, a partir da década de 1570, o
Nordeste passa a receber cada vez mais escravos, oriundos principalmente
do Reino do Congo, do Dongo e de Benguela.
Por essa época, Portugal está em guerra com forças do Marrocos, cada
lado com seus respectivos aliados. Em 1758, trava-se a batalha de Alcácer-
Quibir, na qual morre o mitológico rei lusitano Dom Sebastião, neto de
Dom Manuel, o “Venturoso”. O trono de Portugal é ocupado, então, por D.
Henrique I, que, assim como seu antecessor, também morre sem deixar
descendentes diretos. Vago o trono, outros netos de D. Manuel disputam o
poder, saindo-se vitorioso Filipe II de Espanha, que uni ca a Península
Ibérica, sob seu comando.
Entretanto, apesar de reunidas as duas coroas sob o domínio do mesmo
monarca, Portugal passa a ser governado por um vice-rei, nomeado por uma
Espanha então em guerra permanente com Holanda e Inglaterra, pelo
controle do comércio internacional. Então, os lusitanos, perdida grande
parte de seus domínios na Ásia e na África, apegam-se decididamente ao
Brasil e a Angola, seu grande celeiro de mão de obra escrava.
O chamado Domínio Filipino, com os reis Filipe II III e IV, estende-se de
1580 a 1640, quando D. João IV, da dinastia de Bragança, restabelece o
domínio português, libertando seu país do jugo espanhol. Alguns anos
antes, repetindo uma prática também ocorrida na Bahia, escravos de um
grande engenho pernambucano revoltam-se, dominam patrões e feitores, e
ocupam a sede da fazenda. Conscientes, entretanto, de que se
permanecessem no local ou por perto não teriam como resistir às represálias
e às expedições de captura, esses escravos sobem a Serra da Barriga,
embrenham-se na oresta e lá, na localidade conhecida como Palmares,
lançam as bases do núcleo por muitos considerado o primeiro Estado livre
da história do Brasil.
No m do século XVI, o número de escravos e libertos reunidos em
Palmares – e que por necessidade de sobrevivência vinham constantemente
saquear os engenhos vizinhos – já causava apreensão (F , 1973, p. 36).
Tanto que, por essa época, o jesuíta Pero Lopes alertava as autoridades
coloniais para o perigo que esses refugiados representavam, a exemplo do
que já ocorrera na Ilha de São Tomé, onde os “angolares”, quilombolas de lá,
comandados pelo chefe Amador, tinham levado a efeito em 1596 um
movimento de sérias consequências (A , 1978, v. I, p. 217).
Conforme Oruno D. Lara (1979, p. 140-141), no Brasil, o primeiro
quilombo remontaria ao início do trá co, tendo sido destruído por “Luis
Brito de Almeida” – possivelmente, o governador-geral de então, Luís Brito e
Almeida, mandante da operação – próximo à Bahia, mas dando ensejo ao
surgimento de outros, entre os quais um cujos habitantes, em 1661,
fecharam a estrada entre Bahia e Alagoas, na localidade de “ltapicum”
(Itapicuru?). Lara refere também quilombos destruídos perto do Rio de
Janeiro em 1650 pelo “Capitão Marcel Jordão da Silva”, possivelmente
Manuel Jordão, como citado em outras fontes.
Em 1602, o governador-geral Dom Diogo Botelho, chegando ao país, em
vez de ir para a Bahia, sede do Governo, permanece em Pernambuco cerca
de um ano. E essa permanência gera a primeira e frustrada expedição o cial
de combate a Palmares, cuja população, por volta de 1630, já teria cerca de 3
mil pessoas. Lá, segundo Décio Freitas, essas pessoas desenvolviam uma
agricultura avançada, plantando cana, feijão, milho, mandioca, batata e
legumes; aproveitavam os palmeirais da região, fabricando artefatos de
palha, manteiga e vinho; criavam galinhas e porcos; e trabalhavam o ferro.
Entretanto, volta e meia populações inteiras tinham de abandonar suas
aldeias, pressionadas por expedições de caça e repressão.
Em fevereiro de 1630, com o número de engenhos de açúcar nordestinos
já mais que duplicados em relação ao século anterior, os holandeses
desembarcam em Pernambuco, e três anos depois começam a chegar a
Angola. Desencadeada a guerra dos luso-brasileiros contra a Holanda de um
lado, e, de outro, contra os espanhóis, que já lutavam contra os batavos,
grande parte dos negros dos engenhos pernambucanos se aproveita da
confusão reinante e foge para Palmares, engrossando as leiras quilombolas.
Os portugueses, então, prometem alforria e outras vantagens aos negros que
queiram lutar ao seu lado. O militar negro Henrique Dias aceita essa oferta e
se põe a serviço de Matias de Albuquerque.
Chegando ao Brasil em 1637, o príncipe Maurício de Nassau defronta-se
com um sério problema, pois, embora forças holandesas tenham tomado
Pernambuco aos portugueses, os palmarinos vêm reagindo aos ataques
contra seus redutos usando táticas de guerrilha, com as quais causam muitas
perdas a seus opositores. Quando, então, os quilombolas fecham por várias
semanas o caminho que liga Recife ao sul da capitania de Pernambuco,
Nassau envia a Palmares, em 1644 e 1645, duas expedições, integradas cada
uma por mais de mil homens. Mas elas retornam sem maiores resultados.
As guerras holandesas em Pernambuco desorganizaram o sistema
colonial. “Seis anos de contínua guerra” – escreveu o historiador alemão
Hermann Watjen (apud C , 1971-1972, p. 119) – “haviam espalhado
aos quatro cantos os escravos que trabalhavam na agricultura. Uns haviam
sido aprisionados pelos holandeses e estavam agora a serviço de seus novos
senhores; outros tinham sido levados no arrastão pelas tropas portuguesas
em retirada para o sul; a maior parte, porém, se achava refugiada nas matas
onde, entregue à rapinagem, se congregava em bandos, que iam
constantemente crescendo e, por vezes, in igiam sensíveis perdas às tropas
enviadas em sua perseguição.”
Nassau, então, resolve fazer do Recife não apenas um grande centro
importador de mão de obra escrava, mas também um importante núcleo de
onde se distribuiriam cativos angolanos para outros países sul-americanos,
cando Angola e todo o trá co negreiro sob o controle direto de Recife, e
não de Amsterdã. Para o príncipe de Nassau – disse Gilberto Freyre (1975,
p. 302) –, “Pernambuco tinha direitos adquiridos sobre Angola, São Tomé e
Ano Bom: as forças holando-brasilianas é que haviam tomado aos espanhóis
essas colônias africanas”.
Quando da Restauração portuguesa, em 1640, o Brasil começa a buscar
escravos em Moçambique. E um ano depois, a 24 de agosto, uma expedição
holandesa organizada em Recife ataca Luanda. “O Governador Pedro César
de Menezes” – escreveu Pedro Ramos de Almeida (1978, v. I, p. 285) –
“ordena a evacuação da cidade. Os holandeses autorizam o regresso dos
mercadores de escravos, mas poucos aceitam.” Os jagas e a rainha Jinga,
vendo ali o momento de derrotarem de nitivamente os portugueses, aliam-
se às forças batavas na coligação já referida. E o Reino de Benguela, até então
independente, cai também nas mãos dos holandeses.
Em 1643 o nobre conguês Conde do Sonho (ou Soyo) vem ao Recife e
oferece duzentos escravos a Nassau. Dois anos depois, uma expedição
portuguesa oriunda da Bahia, é destroçada pelos Jagas entre Quicombo e
Massangano. No mesmo ano, outra força armada, comandada por Francisco
de Souto Maior, governador da capitania do Rio de Janeiro entre 1644 e
1645, chega a Angola e luta contra a coligação da rainha Jinga.
Por essa época, entre os cerca de 30 a 40 dos navios que frequentam o
porto de Luanda, só dois ou três são portugueses: o restante são navios
brasileiros (A , 1978, v. I, p. 296). E a esse cenário junta-se, em 1648,
Salvador Correia de Sá, ex-governador da capitania do Rio de Janeiro, que
vem, no comando de 1.500 homens, embarcados em 15 navios, para
reconquistar Angola e assegurar a importação de cativos para os engenhos
do Brasil.
Cerca de 16 anos mais tarde, os holandeses são de nitivamente expulsos
do Brasil, ao m da chamada “Insurreição Pernambucana”, que, segundo
algumas avaliações, nada mais teria sido que uma revolta dos senhores de
engenho portugueses contra a cobrança repentina, e a juros altíssimos, dos
empréstimos concedidos pelos holandeses através da Companhia das Índias
Ocidentais à época de Maurício de Nassau, que a essa altura já havia
regressado à Europa.
Por esse tempo, o militar negro Henrique Dias empreende, também sem
sucesso, uma expedição contra a confederação de Palmares, que já tinha
estendido seu território por uma vasta área, abrangendo as povoações de
Macaco, com cerca de 8 mil habitantes; Amaro, com perto de 5 mil;
Subupira; Dambrabanga; Andalaquituxe; Alto Magano; Curiva; bem como
os aldeamentos dos chefes Acotirene, Osenga e Zumbi.
Em Palmares viviam também mestiços, índios e, segundo algumas
fontes, até mesmo brancos, que para lá iam inclusive pela alegada fartura
reinante, em contraste com as povoações vizinhas, onde, nos tempos de paz,
os palmarinos vinham vender o excedente de sua produção.
Durante todo o século XVII, Palmares rechaçou cerca de 35 expedições
inimigas, como as de Bartolomeu Bezerra, entre 1602 e 1608; as dos
holandeses Rodolfo Baro, em 1644, e Jan Blaer, em 1645; duas comandadas
por portugueses, em 1654 e 1655; e a do negro Gonçalo Rebelo, em 1663
(L , 1979, p. 141; F , 1973, p. 37-80).
Em 1658, o militar e senhor de engenho português João Fernandes
Vieira, (nascido Francisco de Ornellas e mencionado como “homem de
cor”), assume o governo geral de Angola, procurando derrotar a
concorrência holandesa e inglesa no trá co de escravos para o Brasil. Seis
anos mais tarde, e com o mesmo propósito, assume o governo André Vidal
de Negreiros. Enquanto isso ocorria, no Brasil, os quilombolas palmarinos
prosseguiam, rechaçando ataques das forças de repressão e atacando
propriedades vizinhas, numa guerra constante, que já durava quase um
século.
Entre os palmarinos havia um grande chefe e chefes menores em cada
povoação. O primeiro grande chefe que a história registra é Ganga Zumba,
tido como nascido lá mesmo em Palmares, e que em 1678 celebrou um
acordo de paz pelo qual se mudava, com grande parte de sua gente, para
terras barganhadas com as autoridades coloniais na localidade de Cucaú. E
quando as hostilidades pareciam terminadas, emergia a liderança dissidente
do maior chefe da história de Palmares: Zumbi. Os palmarinos tinham,
então, dois chefes inimigos entre si: Ganga Zumba, em Cucaú, e Zumbi, na
Serra da Barriga.
Em Cucaú, muitos partidários de Ganga Zumba, sentindo-se ludibriados
pelo acordo feito com as autoridades coloniais, passavam-se para o lado de
Zumbi, o que acabou resultando na morte de Ganga e no enfraquecimento
que pôs m ao aldeamento de Cucaú. Os portugueses e as forças ao seu
redor, entretanto, não davam tréguas a Palmares. Então, sob a promessa de
importantes recompensas, em dinheiro, cativos e terras, além de perdão
para delitos anteriormente cometidos e poderes amplos e ilimitados,
Domingos Jorge Velho – um paulista que, por viver na selva, só se
comunicava na “língua geral” dos indígenas (F , 1973, p. 139) –
che ava, a partir de 1692, as últimas expedições contra Palmares.
Cerca de 2 mil pessoas teriam participado de última expedição, além de 7
mil soldados enviados pelo Governo. Depois de dois anos de luta, de janeiro
de 1694 a novembro de 1695, Zumbi, segundo a versão mais divulgada, teria
sido traído e morto por um de seus chefes.
O mais importante, porém, a registrar na história de Palmares é que foi,
sem dúvida, uma confederação constituída em moldes organizacionais
bantos e certamente liderada por negros bantos e descendentes. O étimo
“quilombo”, para início de conversa, é originário do quimbundo “kilombo”,
signi cando “união”, ou “reunião de acampamentos”. A expressão “Ganga
Zumba” (Nganga Nzumba), na mesma língua, pode ser traduzida como
“chefe religioso imortal” ou “dono da imortalidade”. Zumbi, por sua vez, é
aportuguesamento do quimbundo “Nzumbi” (espírito), também ligado à
ideia de imortalidade do anterior. Da mesma forma, quase todos os nomes
dos chefes palmarinos encontram correspondentes no léxico dos idiomas
Quimbundo ou Quicongo.
Relevante, também, é lembrar que a história e a organização de Palmares
são bastante semelhantes às dos angolares de São Tomé, como já foi referido
neste trabalho. E que, além disso, oresceram no Brasil, à sombra da
opressão colonial e imperial, outros importantes quilombos, como o do rio
das Mortes, na região das Minas Gerais, destruído em 1751; o da Carlota,
em Mato Grosso, extinto na segunda metade do século XVII; o do
Malunguinho, nas matas do Catucá, próximo a Recife, até 1836; o de Manuel
Congo, em Paty do Alferes, no estado do Rio de Janeiro; e do Cumba,
Maranhão, até 1839 (G ..., 1970, p. 5627-5628).
Clóvis Moura (1981), inclusive, fornece uma lista dos principais
quilombos brasileiros, que vai aqui reproduzida:
Principais quilombos brasileiros
Sergipe
Quilombo de Capela
Quilombo de Itabaiana
Quilombo de Divina Pastora
Quilombo de Itaporanga
Quilombo do Rosário
Quilombo do Engenho Brejo
Quilombo de Laranjeiras
Quilombo de Vila Nova
Bahia
Quilombo do Urubu
Quilombo de Jacuípe
Quilombo de Jaguaribe
Quilombo de Maragogipe
Quilombo de Muritiba
Quilombos dos Campos de Cachoeira
Quilombos de Orobó, Tupim e Andaraí
Quilombos de Xiquexique
Quilombo do Buraco do Tatu
Quilombo de Cachoeira
Quilombo de Nossa Senhora dos Mares
Quilombo do Cabula
São Paulo
Quilombo do Jabaquara
Quilombo de Moji-Guaçu
Quilombo de Atibaia
Quilombo de Santos
Quilombo de Campinas
Quilombo de Piracicaba
Quilombo de Morro de Araraquara
Quilombo de Aldeia Pinheiros
Quilombo de Jundiaí
Quilombo de Itapetininga
Quilombo da Fazenda Monjolinho (São Carlos)
Maranhão
Quilombo da Lagoa Amarela (do Preto Cosme)
Quilombo do Turiaçu
Quilombo de Maracaçumé
Quilombo de São Benedito do Céu
Minas Gerais
Quilombo do Ambrósio (Quilombo Grande)
Quilombo do Campo Grande
Quilombo do Bambuí
Quilombo do Andaial
Quilombo do Sapucaí
Quilombo do Careca
Quilombo do Morro de Angola
Quilombo do Parnaíba
Quilombo do Ibituruna
Amapá
Oiapoque – Calçoene
Mazagão
Alenquer (Rio Curuá)
Pará
Óbidos (Rio Trombetas/Cuminá)
Alcobaça (hoje Tucurui)
Cametá (Rio Tocantins)
Caxiú (Rio Moju/Capim)
Mocajuba (litoral atlântico do Pará)
Gurupi (divisa entre Pará e Maranhão)
Maranhão
Turiaçu (Rio Turiaçu)
Mas lembremo-nos de que esses são apenas os quilombos levantados
pelo historiador Clóvis Moura. Temos indícios de outros, inclusive na cidade
do Rio de Janeiro, em antigas localidades rurais, onde persistem logradouros
e outros pontos geográ cos com nomes como “Caminho do Quilombo”,
“Estrada do Quilombo”, “Ponta do Quilombo”, “Morro do Quilombo”. E o
trabalho de mapeamento dos núcleos remanescentes, pelo Governo Federal,
interrompido em 2019, caso tenha prosseguimento, talvez ainda revele
outros mais.
Observemos que cerca de dois anos antes da morte de Zumbi dos
Palmares ocorrem, no Brasil, as primeiras descobertas de minas de ouro, do
qual 725 quilos chegam a Portugal em 1699; e mais 1.785 quilos dois anos
depois (A , 1978, v. I, p. 361, 364). Essa abundância estimulará, no
século XVIII, o deslocamento do principal eixo escravista para a região do
Golfo da Guiné, onde se supunha que os nativos fossem mais experientes no
trabalho de mineração, determinando, também, no Brasil, a mudança dos
principais pontos de desembarque de escravos para locais como o litoral sul
do atual estado do Rio de Janeiro e a costa norte do atual estado de São
Paulo. Além disso, a atividade nas jazidas de ouro trazia outra realidade:
como o tempo de vida útil do escravo no trabalho de mineração era
reduzido à metade em relação à lavoura de cana, onde se descansava na
entressafra, por essa época o Brasil passava a precisar de cada vez mais
escravos.
O advento do Ciclo do Ouro, então, promoverá o deslocamento do
centro de decisões do Brasil colônia do Nordeste do país para o Centro-Sul.
E a mudança determinará uma sequência de eventos, tais como: a
transferência da Casa da Moeda para o Rio, em 1702; a criação, em 1709, da
capitania de “São Paulo e Minas de Ouro”; a autonomia de parte dela, em
1720, constituindo-se em “capitania de Minas Gerais”; e, por m, a mudança
da capital do Vice-Reino do Brasil para o Rio de Janeiro, em 1763.
Com Kazadi wa Mukuna ([s.d.], p. 34) vemos também o seguinte: “A
participação dos bantos ou, melhor ainda, de seus senhores brancos na
indústria do açúcar, cultura do fumo, mineração do ouro, cultura do
algodão, do arroz e do café, determinou como um todo o itinerário de suas
migrações internas, levando à sua concentração loco-regional após a
emancipação”.
Esses vetores tiveram importantes consequências, tais como: o
povoamento do interior nordestino graças à pecuária, de meados do século
XVII a meados do século XVIII; o início da colonização do Rio Grande do
Sul, em 1737; a extensão da indústria e da cultura da cana para o Vale do
Paraíba e a descoberta de terras próprias para o cultivo do café em São
Paulo, no século XIX. Essas ocorrências determinaram deslocamentos e
xação de grandes contingentes de trabalhadores bantos por toda a extensão
do território brasileiro. E o etnomusicólogo congolês Kazadi wa Mukuna,
em seu livro já aqui citado, fornece uma eloquente exempli cação dessa
presença, quando conta uma experiência pessoal vivida na região do rio
Paraíba do Sul, no Sudeste brasileiro, assim descrita:
Aparecida, uma das menores cidades do Vale do Paraíba aparenta ser, para nós, de grande
importância, especialmente do ponto de vista cultural. Durante uma visita, na data do o
aniversário do aparecimento da imagem de Nossa Senhora Aparecida, em 12/10/74, além da
música e do estilo de dança apresentados pela “Congada de São Benedito” e pelo grupo
“Moçambique” de Guaratinguetá, quei particularmente espantado com a semelhança física
dos negros que vieram das cidades circunvizinhas participar da comemoração desta ocasião,
com a dos membros das tribos bakongo e bazombo do Zaire. Os fatos mais convincentes da
concentração banta no Vale foram encontrados no local do mercado. Ali, uma velha negra
fumava um cigarro com o lado aceso na boca. Esta prática, lugar comum entre as mulheres das
citadas tribos do Zaire, prevaleceu até durante os anos próximos da independência (M ,
[s.d.], p. 58-60).
Ao tempo dos mencionados deslocamentos de bantos escravizados em
solo brasileiro, entre os séculos XVII e XIX, na África, repetiam-se
intermináveis revoltas antiescravistas dos que lá permaneciam, revoltas essas
que o poder colonial tentava conter, quase sempre com o envio de servidores
radicados no Brasil. Tal foi o caso de Rodrigo César de Menezes, ex-
governador da capitania de São Paulo, que, em 1732, tomava posse como
governador de Angola para defender os interesses escravistas brasileiros.
Vejamos ainda que, entre 1700 e 1850, dois terços dos escravos entrados no
Brasil via Recife e Rio de Janeiro eram provenientes de Luanda e Benguela
(G , [s.d.], p. 89).
Outro dado fundamental na odisseia dos “ancestrais esquecidos”
(expressão de Jan Vansina, mencionada páginas atrás) é o apoio de
lideranças católicas à prática escravista, inclusive participando do trá co
negreiro. Relatos da época comprovam esse envolvimento, assim descrito
pelo historiador Robert Edgard Conrad e outros autores: “De acordo com
uma testemunha, normalmente os escravos eram batizados no porto de
embarque, e ao mesmo tempo uma pequena cruz era gravada em cada lado
do peito com um ferro quente” (C , 1985, p. 51). E isso parece
con rmar Pedro Ramos de Almeida, que, citando Boxer, escreve que “os
escravos, batizados em grupo, antes do embarque no navio negreiro ouviam
de um intérprete as seguintes palavras: ‘Considerai-vos agora lhos de Deus.
Ides partir para o país dos portugueses, onde aprendereis as coisas da fé.
Deixai de pensar na vossa terra de origem. Não comais nem cães, nem ratos,
nem cavalos. Sede felizes’” (A , 1978, v. I, p. 258).
Essas recomendações eram dirigidas aos escravizados pelo bispo de
Luanda, que, sentado em sua cadeira de mármore, “lançava a sua bênção” –
assim escreveram os escritores colonialistas portugueses Galvão e Selvagem
(1952, v. III, p. 83) – “aos rebanhos de gente negra que embarcava para o
Brasil”.
Aliás, essa cadeira onde se sentava, paramentado, o bispo de Luanda
mereceu do escritor carioca Luiz Edmundo ([s.d.], p. 510) o seguinte
comentário:
A famosa cadeira onde o bispo de Loanda se sentava para abençoar a mercadoria viva, a m de
que essa chegasse ao seu destino o menos avariada possível, era toda de mármore, certamente
o erta piedosa de algum negreiro avisado, que, com o vulto e a qualidade da matéria o ertada,
contava valorizar o gesto magnânimo do sacerdote de Deus, tão mal ouvido dos céus, na hora
de conservar, com a vida do negro, o lucro do negreiro.
Essas relações entre a Igreja Católica e os tra cantes de escravos foram,
na realidade, quase sempre bastante amistosas. A propósito, Viana Filho
(1976, p. 11) escreveu:
A ninguém repugnava comerciar em escravos. No tempo não era cousa que se zesse
furtivamente, coberto de vergonha, fugindo às criticas da população. […] Por isso, marcando-
os na sociedade, tiveram mesmo os tra cantes a sua Irmandade, espécie de sindicato sob a
invocação de um Santo, e que funcionava na pequena igreja de Santo Antônio da Barra, erigida
numa das eminências da cidade, dominando a Bahia de Todos os Santos e o Atlântico, e donde
S. José, padroeiro da devoção dos tra cantes, deveria velar pela sorte das embarcações que
rumavam em busca de negros a serem escravizados e cristianizados pelo batismo…
Feito esse registro sobre o envolvimento de lideranças católicas com o
trá co negreiro, procuremos saber mais sobre os bantos, que, já no século
XVII, constituíam uma massa numerosa e in uente no seio da população do
Brasil colonial.
René Ribeiro (1978, p. 20-21) a rma, com base em Gonzalo Aguirre
Beltrán, que os escravos embarcados nas feitorias de Luango e Cabinda
pertenciam aos seguintes povos: “Ba-lumbo, Ba-vili, Ka-kongo, Ba-Mbamba,
Bashi-longo, Musorongo, Ba-Mpomba, Mbuila, Ba-Mbata, Ba-Mfumungu e
Mondonga”. Vemos aí nomes já familiares ao nosso trabalho, como Ka-kongo
(Cacongo), Mbuíla (Ambuíla) etc. E prosseguindo com o escritor
pernambucano vamos ver, agora, que de São Paulo de Luanda teriam vindo
para o Brasil escravos dos grupos “Ki-Mbundu” (Quimbundo ou Bundo),
“Cabanga, Cabeza, Cangungo, Cazongo, Coanza, Hanga, Manga, Ocarimba,
Quisama e Quitama”. De Benguela teriam chegado os “U-Mbundu”
(umbundos ou ovimbundos). E, de Moçambique, contingentes dos grupos
“Ba-Ronga, Ba-Tonga, Ba-Shope, Ba-Senga, Ba-Ngoni (Nguni), Macua e
Ajaua”.
No Brasil, o estudo dos diferentes povos africanos sempre foi uma tarefa
difícil, mormente pela gra a dos nomes étnicos, em geral reproduzida de
autores estrangeiros. Entretanto, reunindo informações de diversos autores
mencionados nas Referências deste trabalho, e principalmente de éophile
Obenga (1985), pudemos montar o seguinte quadro tentativo sobre os povos
bantos dos quais, comprovada ou presumivelmente, provieram indivíduos
escravizados para trabalhar no Brasil.
Quadro 1
Povos bantos teoricamente atingidos pelo trá co negreiro
Povo Localização
1. Tráfico Atlântico
DUALA Litoral da atual República dos Camarões
BASSA Idem
Povo Localização
FANG (PAHUIN) Rep. do Gabão
MONGO
Floresta da Rep. Democrática do Congo (ex-Zaire)
(MONGOCUNGO)
Leste, nordeste, oeste e sul da região de Shaba (Catanga), na Rep.
LUBA
Democrática do Congo
CUBA Centro-sul da Rep. Democrática do Congo
TEQUE
(BATEQUE ou Planalto do centro-norte do Congo-Brazzaville
ZINCO)
VAREGA (REGA,
Fronteira leste da Rep. Democrática do Congo, próximo ao Lago Tanganica
LEGA)
Enclave de Cabinda, nordeste de Angola (entre o Atlântico e o Cuango),
BACONGO
litoral congolês
AMBUNDO Entre o Atlântico e o Cuango e, além deste, para leste e sul, além do baixo e
(BUNDO) do médio Cuanza
OVIMBUNDO
Metade oeste de Angola, além do litoral até as terras altas
(UMBUNDO)
Fronteira leste de Angola, do Zambeze ao Cuando; Alto Cubango; oeste da
GANGUELA
Zâmbia
LUNDA-QUIOCO Desde o ângulo superior direito do quadrante Nordeste do território angolano
(CHOKWE) até a fronteira sul, na altura em que o Cubango a atravessa; Casai e arredores
NHANECA-
Angola, no alto e no médio Cunene
HUMBE
HERERO Ângulo sudoeste de Angola; norte da Namíbia; sudoeste da África do Sul
OVAMBO Ao longo e ao meio da fronteira sul de Angola; norte da Namíbia; sudoeste
(AMBO) da África do Sul
Povo Localização
XINDONGA Sudoeste de Angola, entre o Cubango e o Cuando
DAMARA Namíbia, a sudoeste dos ovambos
CAVANGO Namíbia, a sudoeste dos ovambos; Namíbia, a leste dos ovambos; e no
(OCAVANGO) sudoeste da África do Sul
2. Tráfico Índico ou da contracosta
Ao sul do rio Save, entre o Limpopo e Inhambane, no litoral de Moçambique;
TONGA
no Zimbábue, no vale do Zambeze; na Zâmbia
CHOPE Idem
RONGA Entre os rios Save e Komati; na bacia do Limpopo, em Moçambique, e em
(LANDIM) algumas regiões do Zimbábue
SENGA Entre o Save e o Zambeze (Moçambique)
NGUNI África do Sul e Zimbábue; região de Tete (Moçambique), junto às fronteiras
(ANGONI) com Zâmbia e Malaui
NHUNGUE No Zambeze, próximo a Tete (Moçambique)
XONA Ao sul do Zambeze, em Moçambique, e no Zimbábue
Moçambique, entre os rios Rovuma e Zambeze, e principalmente na bacia do
MACUA
Lúrio
AJAUA (IAO) Entre os rios Rovuma e Lúrio e no lago Niassa
SUTO (SOTHO) No Zimbábue e na África do Sul
Nesta tentativa de classi cação, partimos da localização dos povos
litorâneos e vizinhos, para começar a estabelecer a procedência dos escravos
vindos para o Brasil. Consultando os mapas, vemos, por exemplo, que, da
atual República dos Camarões até Benguela, os povos bantos mais
provavelmente escravizados foram: os fangs e seus aparentados mbulus e
betis; os bacongos; com todos os seus subgrupos; os ovimbundos; os
ambundos e os hereros. Também através dos mapas vamos deduzir que, na
costa oriental, o predomínio da ação escravista teria mais provavelmente
recaído sobre os xonas, chopes, tongas e macuas.
Comparando as denominações de todos esses grupos étnicos com as
usadas por autores que buscaram informar a respeito, de Debret a Edison
Carneiro, de Rugendas a Renato Mendonça, podemos também chegar perto
de algumas conclusões. Por exemplo, os “quiloas” e os “monjolos” ou
“mongolos” de que nos fala Rugendas ([s.d.], p. l00, 104) seriam
provavelmente macuas embarcados em Quíloa, os primeiros; e talvez
mongos, os segundos. Os “gabões” de Koster (1942, p. 507) seriam fangs ou
mponguês. Os “rebolos” de Debret ([s.d.], p. 227) seriam certamente libolos,
grupo próximo dos ambundos, os “anjicos” seriam anzicos e daí por diante.
Reis, guerreiros e foliões
O negro aproveitou as instituições aqui encontradas e
por elas canalizou o seu inconsciente ancestral: nos autos
europeus e ameríndios do ciclo das janeiras,
nas festas populares, na música e na dança, no carnaval…
Arthur Ramos
Meu avô lá no Congo
Foi rei bantu
E aqui
Eu sou rei do maracatu
Canção de Luiz Gonzaga e Zé Dantas, 1950
No livro Made in Africa, o autor Câmara Cascudo manifesta opinião
segundo a qual, embora os povos oeste-africanos (“sudaneses”) tivessem
constituído Estados monárquicos da mais alta grandeza – haja vista a
legenda dos tunka do Antigo Gana, dos mansa do Antigo Mali, dos askia do
Império Songai de Gao, dos obás de Benin, dos ala m de Oyó, dos oni de
Ilé-Ifé, para citar apenas os exemplos mais conhecidos –, tanto na África
quanto no Brasil, é entre os bantos e sua descendência que “a imagem
ostensiva de majestade, severa, imperiosa, Rei coroado, supremo título
subjugador”(C , 1965, p. 22) a ora grandiloquente. E quando se quer
falar em “rei negro”, nas manifestações bantas recriadas em terra brasileira,
fala-se principalmente em Rei do Congo, projeção simbólica dos grandes
Muene-e-Kongo, os manicongos, com quem os portugueses trocaram
credenciais diplomáticas e presentes, de igual para igual, em suas primeiras
expedições à África Negra. Assim é que um sem-número de manifestações
da arte afro-brasileira conserva a lembrança das grandezas passadas do
Antigo Congo e de seus reis.
É ainda Câmara Cascudo que, no Dicionário do folclore brasileiro (1980,
p. 242), de ne as congadas (ou congados, ou, ainda, congos) como autos
cujos elementos formadores foram: préstitos e embaixadas; reminiscências
de bailados representativos de lutas guerreiras; a evocação, já mencionada
neste trabalho, da legendária gura da grande rainha do Dongo-Matamba,
Nzinga Mbandi; e principalmente as cerimônias, que já em 1674 se
realizavam no Brasil, de coroação dos “Reis do Congo” eleitos pelos negros
de variadas etnias que integravam as irmandades afrocatólicas de Nossa
Senhora do Rosário.
Embora fosse quase impossível controlar o enorme contingente de
escravizados que viviam nas ruas trabalhando de ganho ou de aluguel, essas
instituições e essas cerimônias, que ocorriam também em Portugal, tinham
a óbvia intenção de manter os negros sob controle. E eram, conforme vemos
em algumas descrições, como a de Henry Koster (1942, p. 355),
ridicularizadas pela elite dominante e pela população branca em geral. Mas
os negros, especialmente os bantos, souberam, como bem observa José
Ramos Tinhorão (1972, p. 60), “usar com sabedoria, em proveito de sua
continuidade histórica, a estrutura que os brancos lhes ofereceram”. Tanto
que, abolida em meados do século XIX a estratégia escravista de eleição do
“Rei do Congo”, as celebrações que a cercavam, por iniciativa dos próprios
negros, permaneceram, transformando-se em autos ou danças dramáticas.
Conforme observa Oneyda Alvarenga (1960, p. 90), essas festas de
coroação, com música e dança, seriam não só uma recriação das celebrações
que marcavam a eleição dos reis na África, como também uma
sobrevivência do costume dos reis bantos de, com séquito aparatoso, fazer
suas excursões e “embaixadas” entoando cânticos e executando danças
festivas. E essa observação efetivamente procede. Relatando, com base em
textos da época, a recepção dos bundos a Paulo Dias de Novais, em Luanda,
no ano 1575, Ralph Delgado (1946, p. 282) escreve:
Trouxeram, então, o embaixador, com a sua companhia. Reverendo e apessoado […], rodeado
de uma barulheira infernal, em que sobressaíam os instrumentos da terra (cabaça com seixas,
buzina de dente de elefante, uma engoma, espécie de alcântara, uma gunga, com dois chocalhos
juntos, uma viola, parecida com uma esparrela, e uma campainha com dobre fúnebre), o
mogunge, vendo de longe o governador, “começou a fazer grande sequirila, vindo sempre
tangendo as palmas e os instrumentos, fazendo também seu efeito, que não havía quem se
entendesse com tanto chocalho e buzina […] (grifos nossos).
Descrevendo, também com base em relatos da época, a “coroação de um
rei negro”, em 1748, no Rio de Janeiro, Mello Moraes Filho (1946, p. 384)
contava:
Em breve a vozeira confusa que se escutava lá fora, calava-se; os sinos repicavam mais
vibrantes e rápidos, produzindo esta mudança do efeito o rolar surdo das caixas de guerra, o
som de rapa das macumbas em grande número, a queda sonoramente uniforme dos chocalhos
enfeitados da bárbara marcha precedendo o préstito. De braços erguidos, pulando e revirando
as mãos, vestidos de penas e estôfos coloridos, quatro muanas (negrinhos), serviam de
batedores ágeis fazendo negaças, cantando, gritando… Atrás da música caminhavam
majestosamente o Neuvangue (rei), a Nembanda (rainha), os Manajundos (príncipes), o
Endoque (feiticeiro), os Uantuafunos (escravos, vassalos e vassalas do rei [do quimbundo
mutafunu, escravo]), luzido e vigoroso grupo daquelas festas tradicionais e genuinamente
africanas celebradas no Rio de Janeiro no século passado.
Vê-se, então, que uma congada (também “congado”, ou “baile de congos”)
é uma dança dramática dos bantos afro-brasileiros conforme uma usança
imemorial dos bantos africanos. Tanto que Câmara Cascudo, em seu já
citado Dicionário (1980, p. 244), no verbete citado, escreve:
Em Minas Gerais e Rio Grande do Sul, em préstitos está a Rainha Ginga, silenciosa e
des lando, soberba, ao lado do Rei de Congo, seu impossível esposo, pois, historicamente, foi
inimigo tenaz e tantas vezes derrotado. No Rio Grande do Norte, onde os Congos são vivos há
quase século e meio, o Embaixador, desatendido pelo Rei de Congo (Henrique, Rei Cariongo),
entra em peleja, mata o Príncipe Sueno e leva o próprio Rei prisioneiro.
Noticiando uma congada vista em Goiânia por Pereira da Costa e
descrita no livro Folclore pernambucano, de 1908, Oneyda Alvarenga (1960,
p. 93) escreve e transcreve:
Depois de muitas cantigas em que o português se mistura com palavras africanas, de louvações
em que São Lourenço aparece ao lado do deus conguês Zâmbi, começa a Embaixada, que
consiste apenas na entrada das embaixadas de diversas nações africanas, como Angola,
Cassange, Moçambique e outras, acaso convidadas pelo Rei do Congo para tomarem parte da
festa; especialmente a […] entrada solene da embaixada da rainha Ginga. O Embaixador da
Rainha Ginga oferece presentes ao Rei e a representação termina com umas danças para
alegrar a embaixada, e a conferência de várias graças burlescas distribuídas pelo Rei do Congo,
entre as quais a do govêrno das matas de Tiriri.
Mais adiante (p. 98), a continuadora da obra de Mário de Andrade
mostra como seu mestre teria esclarecido a origem de dois dos personagens
dos congos:
Com as suas [de Mário de Andrade] pesquisas, completadas por esclarecimentos de Artur
Ramos, cou demonstrado que o nome do Príncipe Suena deriva de uma confusão
estabelecida pelos negros do Brasil em torno do título dignitário Suana Mulopo, que designa
na região da Lunda, o “herdeiro imediato” das famílias dos reis. Quanto à rainha Ginga, cujo
nome aparece numa versão paraibana dos Congos sob a forma de Zinga Nbângi, trata-se de
Ginga Bândi, que reinou no século XVII em Angola ou Matamba.
Sobre a rainha Ginga, observe-se que, páginas atrás, dávamos como uma
das prováveis etimologias de seu nome a expressão quimbunda “Ndjenga
Mbange” (“rapariga formosa e corajosa”), o que a forma paraibana “Nbângi”,
citada por Mário de Andrade, vem de certa forma reforçar, muito embora
exista em quicongo o vocábulo “Jinga”, com o sentido de permanência,
sobrevivência, eternidade (B , 1877). Quanto à referência ao
“Príncipe Suena”, poderia tratar-se aí de uma reminiscência do “Príncipe de
Sonho” (ou Soyo), “tio de El-Rei (o Manicongo) e muito idoso” referido por
Pigafetta e Duarte Lopez na sua “Relação do Reino de Congo e Serras
Circunvizinhas” (C -V , 1981, p. 88-93).
Segundo algumas versões, a representação dramática conhecida como
“congada” teria origem em autos escritos pelos padres católicos para
servirem de instrumento de catequese e controle dos escravos. De fato, a
narrativa de algumas peças desse repertório sugere origem europeia,
inclusive pela evocação de personagens como Carlos Magno, imperador dos
francos. Mas o que parece certo é que a estrutura africana desses folguedos é
anterior à sua transformação em autos, tendo os catequistas apenas inserido
neles esses textos evocativos da Idade Média europeia. Tanto que,
descrevendo o “baile de São Benedito” da cidade paulista de Xiririca, o
folclorista Alceu Maynard de Araújo (1967, v. I, p. 216) nos remete, também,
à história do Reino do Congo e de seus vizinhos Dongo-Ngola, Dongo-
Matamba etc.
“No Baile de São Benedito” – escreve Araújo – “tomam parte vinte e uma
guras. O responsável pela Congada é o Rei Congo, cujo nome é às vezes
proferido em língua africana: Guanaiame, Guizunganaime e Gana-Zumbi-
Ganaime.” Lembremos aqui que no idioma Quimbundo uma das expressões
que designam o Deus Supremo é “Ngana-Nzambi”, ou seja, “Senhor Deus”,
expressão que, como a quiconga “Nzambi-Ampungo”, que adiante
examinaremos, às vezes serve como título e designação dos reis muito
poderosos. Mas prossigamos com a descrição do folclorista: “As outras
guras” – escreve ele – “são: um Embaixador, um Príncipe, um Secretário, às
vezes chamado por Ganaturiza, um Cacique, oito vassalos e oito
conguinhos. Os vassalos e os conguinhos também têm seus nomes na
hierarquia que vai do primeiro ao oitavo. O primeiro é Grande Honra, o
segundo Quendaiame, o terceiro Bonizame, o quarto Narquim, o quinto
Subão, o sexto Canator, o sétimo Cusame e o oitavo Acunda”. A seguir,
Araújo dá o nome dos oito “conguinhos”, listando entre eles um “Ansico da
Guiné”, um “Zambázio” e um “Londado”, o que nos leva a indagar se esse
“Ansico” não seria uma referência aos anzicos ou tekes, habitantes das terras
altas do centro-norte da atual República Popular do Congo; e se o nome
“Zambázio” não poderia conter uma referência ao rio Zambeze e às terras a
ele vizinhas; e se, nalmente, o nome “Londado” não estaria relacionado ao
reino dos lundas…
Na sua descrição do “baile de São Benedito”, Maynard Araújo menciona
outros nomes e expressões, como “Aganiame”, “Cumbanda”, “Quenda
Cusame”, “Zambiapongo” (veja-se o Nzambi-Ampungo citado
anteriormente), “calunga”, “ambelo”, “Angana”, “Gama Zumbiganaiame”, que
nos remetem de pronto ao Quimbundo e ao Quicongo. Quando, por
exemplo, o rei manda o emissário se apressar no envio da mensagem, ele usa
a voz imperativa “Cuenda!”. E “kuenda” em quimbundo signi ca exatamente
“andar”.
Mello Moraes Filho, no clássico Festas e tradições populares do Brasil
(1946, p. 167-168), dedica um capítulo aos cucumbis no Rio de Janeiro. E diz
que “cucumbis” é a denominação dada na Bahia às “hordas de negros de
várias tribos” que se organizavam em “ranchos” de canto e dança,
principalmente por ocasião do entrudo e do Natal, e que nas demais
províncias recebiam o nome de “congos”. Segundo Moraes, o folguedo
representava o préstito dos congos indo levar à sua rainha os mametos
(crianças) recém-circuncisados, e isso após a “refeição lauta do cucumbe,
comida que usavam os congos e munhambanas no dia da circuncisão de seus
lhos” (p. 169). Essa gura do mameto, “ lho do rei”, bem como a do
quimboto, “o feiticeiro”, aparece, também, numa evocação feita por Luiz
Edmundo ([s.d.], p. 158) das Consagradas no Rio de Janeiro ao tempo do
Vice-Reinado.
O cientista francês Marcel Soret (1959, p. 109), dissertando sobre as artes
dos bacongos que estudou, refere-se às danças do tchikumbi, expressão que
corresponde ao quimbundo “kikumbi” = puberdade (M , 1964). Laman
(1964) registra “kúmbi” (entre os Vili, ki-kúmbi), signi cando “moça” em
algumas regiões, e em outras remetendo à circuncisão e a ritos que
precedem o casamento. Assim, essas danças podem estar ligadas a ritos de
passagem da puberdade, e provavelmente reside aí a origem dos cucumbis
da tradição afro-brasileira.
No estado do Espírito Santo, uma variante do folguedo é o ticumbi, auto
que “se resume na luta do rei Congo com o rei Bamba, para decidir quem
terá o privilégio de louvar São Benedito” (N , 1982, p. 34). As origens da
disputa remontariam ao litígio ocorrido no século XVI entre o poder central
do Reino do Congo e o da importante província de Mbanda, na Angola
atual.
Escrevendo sobre o Reisado, o alagoano Abelardo Duarte (1974, p. 302)
lembra que “no reisado há sempre um ‘Rei-de-Congo’ e esse nome é
depreciativo do de Rei Chefe de Estado civilizado”. E continua: “Havia em
Maceió muitos negros originários do Congo, como de Angola. Eu conheci
vários. Parece-me que os negros do Congo tivessem trazido essas festas para
aqui”.
Estudando, então, os “bailes de congos” em suas diversas formas, vemos
que, apesar de sua inserção no contexto segregacionista e controlador das
irmandades católicas, a instituição da “Coroação dos reis do Congo” teve o
mérito não só de manter viva na tradição dos bantos no Brasil, 500 anos
depois, a reminiscência de um passado outrora glorioso, como também o de
se constituir no impulso inicial de diversas manifestações artísticas, como o
maracatu, folguedo que, na sua origem, ao que consta, era conhecido pelo
gentílico africano “cambinda”.
No centro-oeste africano, o nome “cabinda” designa, como já vimos, os
bacongos do litoral. No Brasil, o termo “cambinda”, assim anasalado,
designou principalmente os préstitos musicados e dançantes dos negros do
nordeste, os quais, segundo alguns autores, mais tarde teriam se
transformado nos atuais maracatus. Tanto que as mais antigas dessas
agremiações se denominavam “Cambinda Elefante”, “Cambinda Estrela”,
“Cambinda Velha”, “Cambinda Nova”, “Cambinda Leão Coroado” etc.
(G -P , 1981, p. 29). Os autores Trigueiro e Benjamin (1978, p. 3),
entretanto, nos falam de “cambindas” como um folguedo especí co ainda
hoje existente na Paraíba, “diferenciado do Maracatu Nação Africana ou de
‘Baque Virado’, bem como do ‘Maracatu rural’ ou ‘de Orquestra’, de
Pernambuco”, no qual o traço mais caracteristicamente banto é a presença
da calunga, a boneca preta que – como o babalotim do afoxé nagô-baiano – é
carregada à frente do cortejo.
“Calunga” é termo derivado do quimbundo e quicongo kalunga, que
nomeia o mar, a divindade que lhe corresponde e às vezes até mesmo o
grande Deus Criador. Por extensão, o termo passou a designar a imagem
representativa da divindade, estendendo-se mais ainda para signi car
qualquer boneco, qualquer objeto de dimensões reduzidas ou mesmo
qualquer pessoa de baixa estatura, notadamente as portadoras de
deformidade protuberante nas costas, as corcundas.
E assim como as congadas, os cucumbis e os catopés mineiros, tanto o
maracatu quanto as cambindas da Paraíba e as taiêras (mulheres que
carregam talhas) de Alagoas, com seus reis, rainhas, príncipes,
embaixadores e damas, des lando ao som de tambores, chocalhos e
gonguês, são reminiscências das solenidades de coroação dos “Reis do
Congo” abolidas no Brasil por volta de 1830.
Da mesma forma, no Rio de Janeiro, os ranchos carnavalescos e depois as
escolas de samba – frutos híbridos da junção das tradições africanas com as
procissões católicas do Brasil colonial –, por suas apresentações em cortejo,
por seu primitivo sentido de “embaixadas”, pelas guras do baliza ou mestre-
sala e da porta-estandarte ou porta-bandeira, remetem-nos também, hoje
mais remotamente, aos séquitos dos reis bantos na África. Em reforço, veja-
se esta nota de Oneyda Alvarenga (1960, p. 119) sobre os cucumbis no
ambiente carioca: “No Rio de Janeiro os Cucumbis organizavam-se em
sociedades carnavalescas que foram, segundo Luciano Gallet, a origem dos
cordões e blocos atuais. Melo Morais Filho assinalou, no século XIX, a
existência dos seguintes grupos Iniciadores dos Cucumbis, Cucumbis
Carnavalescos, Cucumbis Lanceiros Carnavalescos, Triunfo dos Cucumbis”.
Veja-se, ainda, esta observação de Redinha (1975, p. 342) sobre
manifestações carnavalescas em Luanda, que nos convencem ainda mais do
parentesco existente entre todos esses folguedos: “As imitações” – escreve o
etnólogo português – “das personagens históricas das antigas cortes dos reis
congueses, os trajes de cetins fulgurantes, mantos, capas escarlates, chapéus
de plumas, coroas, armas medievais, símbolos, estandartes e arremedos de
torneios […] procuram traduzir guras dos velhos capitães do mar, e das
luzidas embaixadas do Reino, da época da ocupação”.
E assim como grande parte das manifestações da arte afro-brasileira
conserva a lembrança das passadas grandezas dos antigos reinos bantos e
seus soberanos, várias outras constituem-se de bailados guerreiros,
reminiscências que certamente são dos muitos combates travados pelos
bantos na África e no Brasil, como é o caso do moçambique e dos
quilombos. E outras, ainda, que, em terra brasileira, expressando a
disposição atlética do banto, recon guraram-se como danças acrobáticas ou
artes marciais, como é o caso do maculelê e da chamada “capoeira de
Angola”.
Sobre o moçambique, com Oneyda Alvarenga, Maynard de Araújo e
Câmara Cascudo, vemos que se trata de um bailado guerreiro, simulando
um combate, à semelhança das lutas representativas nas congadas, diferindo
destas pelo fato de não apresentar a embaixada, ou seja, a dança dramática
propriamente dita, através da qual se desenvolve o enredo dos bailes de
congos. É uma manifestação folclórica de origem negra, desenvolvida
sempre em honra e intenção de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário,
em conjunto ou separadamente.
Maria de Lourdes Borges Ribeiro (1981, p. 3) classi ca a manifestação
em dois tipos: “a) Moçambique autônomo, com manejo de bastões; b)
Moçambique sem manejo de bastões, geralmente integrando determinado
modelo de Congada (ou Congado), quando se alia a um ou mais grupos
afro-brasileiros (quicumbis, catupés, congos etc.)”. E arremata: “A
apresentação facultativa de embaixada (auto) em ambos os tipos determina
o enquadramento da manifestação em dança ou folguedo”. Já Araújo (1967,
v. I, p. 380-382) informa que o moçambique atual conserva da antiga dança
apenas os movimentos fundamentais, já que, para ele, teriam concorrido
elementos dos caiapós caboclos e dos fandangos portugueses. E descreve:
O moçambique antigo era uma dança realizada pela escravaria, patrocinada pelo senhor, pelo
fazendeiro, à noite, nos salões, logo depois do jantar, como primeira parte dos festejos; a seguir,
após a dança dos moçambiques, o baile em que tôdas as pessoas gradas, os membros da
aristocracia rural iriam dançar até amanhecer. Os moçambiqueiros de antanho, todos do sexo
masculino, trajavam camisolão branco, comprido, cuja barra cava sobre os pés. Na cintura
uma faixa preta, amarrada; usavam um gorro vermelho, pés descalços. Sob os camisolões
usavam calças comuns. Os paiás [chocalhos] das pernas não eram vistos porque o camisolão o
cobria, somente os dos braços eram divisados. O rei usava camisolão de sêda vermelha, na
cintura uma faixa branca e em letras doiradas, os seguintes dizeres: “Viva São Benedito!”. A
única participante feminina era a rainha, em geral uma mucama ricamente enfeitada pela sua
“sinhá dona”: vestia-se de branco, lindo diadema na cabeça, faixa azul claro na cintura, sapatos
brancos, ricos colares e joias, adereços que as fazendeiras ricas lhe davam por empréstimo. […]
Da antiga dança de salão denominada Moçambique, caram no atual: o nome, a côr das vestes
e um dos implementos usados – o paiá. Este permaneceu. Quando escravos, usavam-no
também nos pulsos. Agora, como negros livres, usavam-no à guisa de jarreteira, não mais nos
pulsos, pois quem sabe fazem lembrar algemas […].
Quanto à manifestação conhecida como “quilombos”, que apesar de
opiniões discordantes, Cascudo (1980, p. 653) considera uma sobrevivência
histórica, embora inconsciente, das lutas palmarinas no século XVI. O
bailado consta, basicamente, de uma luta entre negros e índios na qual estes
vencem aqueles, apossam-se de sua rainha, fazem-nos ressuscitar e os
vendem simbolicamente ao público assistente. Tratar-se-ia, então, de um
insólito folguedo no qual os negros celebram sua própria derrota.
Estranhando essa incoerência, Oneyda Alvarenga e Renato Almeida
procuraram explicá-la. E a arguta folclorista foi quem talvez melhor
esclareceu a incongruência, levantando a hipótese de que o folguedo,
primitivamente, talvez não terminasse com a derrota dos negros. “A
modi cação nal” – escreveu ela – “se teria processado quem sabe em
consequência de uma reordenação semierudita e branca, feita nos últimos
anos do século passado ou no limiar do atual” (A , 1960, p. 122).
Assim, a “ideologia do embranquecimento” teria “reescrito” o auto primitivo
para que o negro saísse dele e passasse à posteridade, como o “eterno
derrotado”, até mesmo na incontestavelmente heroica resistência de
Palmares, “sabiamente aproveitada pelo catequista, que além de teatralizá-la
não se esqueceu de xar certos preceitos religiosos como o da ressurreição”
(A , 1967, v. I, p. 391).
Mas, enquanto alguns autores discutem a origem banta e mesmo negra
dos moçambiques e dos quilombos, quanto ao maculelê não paira a menor
dúvida. “Verdadeiro auto de origem africana, transplantado para a zona dos
canaviais santamarenses” – escreveu Plínio de Almeida (1966, p. 258) –, o
maculelê “foi, no seu início, folguedo rural, desempenhado pelos escravos
nos grandes engenhos de Santo Amaro” (no Recôncavo Baiano).
Consoante a tradição, a manifestação existiria pelo menos desde 1757,
ano da inauguração, no atual local, da Igreja da Puri cação. E sua
denominação é provavelmente derivada do quicongo “makélelè”, barulho,
algazarra.
Assim como os quilombos, o maculelê é uma dança guerreira com
bastões, batidos uns contra os outros em compasso binário. Os gurantes
executam passos de capoeira e samba, e o bailado tem lugar principalmente
nas festas de largo, depois de percorridas ruas e praças em marcha gingada,
a “marcha de Angola”.
Mas o maculelê pode acontecer também em casa de gente abastada que
solicite a visita do grupo. Aí, o ritual e a coreogra a se modi cam, e tem
lugar uma dramatização bem próxima da dos quilombos, inclusive com a
“ressurreição”: “Um dos comparsas, a mando do ‘chefe’” – escreveu Plínio de
Almeida (1966, p. 262) – “cai na roda, depois de ter bebido, ngidamente,
suco de jurema, e dança como dançaria um sujeito embriagado: ginga, troca
de pernas, ‘faz de conta’ que está lerdo, depois sapateia aos pinchos e
termina por cair, de o a pavio, no meio da sala”. Aí, o “mestre de função”
procede à “ressurreição” do gurante “morto”.
O traço mais evidente da origem banta do maculelê, entretanto, são os
textos das cantigas. Entre as tradicionais, há pelo menos duas que expressam
claramente a procedência, se não do folguedo, pelo menos de seus remotos
criadores. Uma diz: “Nós somos pretos da cabinda de Luanda”; e a outra:
“Nós somos pretos do soba de Quibala”. E Quibala é uma região angolana
situada entre Libolo, ao norte, Amboim, a leste e sul, e Gango, a leste, e
habitada por povos bundos.
Já a capoeira, outra expressão da arte marcial dos bantos no Brasil, tem
sua origem discutida, com muitos autores até mesmo contestando sua
africanidade. Para nós, entretanto, apesar de seu nome, de origem tupi,
designar ou o cesto de transportar aves que os negros de ganho levavam à
cabeça, ou o mato onde se refugiaram os negros fugidos, esse misto de jogo
atlético, luta e dança nada mais é que a recriação, em terra brasileira, de
danças acrobáticas angolanas, como a úmudinhu, dos quilengues, e a n’golo,
da região de Mucope, na Huíla. Sobre a primeira, Augusto Bastos, que a
presenciou no início do século, diz – citado por Redinha (1975, p. 334) –
que consistia em “saltos prodigiosos” nos quais os executantes “atiravam as
pernas para o ar, e a cabeça para baixo”, exatamente como na nossa “capoeira
de Angola”.
Quanto à úmudinhu, a Grande Enciclopédia Delta-Larousse (1970, p.
4791), no verbete “n’golo”, diz tratar-se de dança-luta dos povos pastoris do
sul de Angola (também conhecida em Luanda, sob o nome bassula),
executada nas cerimônias de iniciação das moças pelos rapazes a elas
pretendentes, ao som do hungu ou m’bolumbumba, que é o nosso berimbau
de barriga. Ainda sobre ela, um desenho de Albano de Neves e Souza
estampado na página 344 do livro de Redinha não deixa a menor dúvida de
que se trata da mesma expressão atlético-coreográ ca trazida pelos bantos
para o Brasil e que ganharia grande voga no Rio de Janeiro até o princípio
do século XX e na capital baiana até a atualidade, de lá chegando a diversas
partes do mundo.
Mas se existem dúvidas sobre a africanidade da capoeira, o mesmo não
se pode dizer de muitos de seus elementos característicos, como a “banda”, a
ginga e o berimbau.
“O batuque, também chamado ‘pernada’” – ensina Edison Carneiro
(1957, p. 91) – “é mesmo, essencialmente, uma diversão dos antigos
africanos, especialmente os procedentes de Angola. Onde há capoeira,
brinquedo e luta de Angola” – frisa o mestre – “há o batuque, que parece
uma forma subsidiária da capoeira.”
Esse batuque ou pernada, outrora também mencionado no Rio de
Janeiro como “batucada”, é também um dos muitos movimentos ou golpes
da capoeira, recebendo entre os praticantes – os batuqueiros – o nome
“banda” (“banda cruzada”, “banda amarrada” etc.), conforme popularizado
neste refrão de batuque que se tornaria sucesso do carnaval carioca de 1950,
depois de apropriado pelos compositores Sátiro de Melo e José Alcides e
interpretado no rádio pelo cantor Blecaute: “Chegou general da banda ê
ê/Chegou general da banda ê á”. E em quimbundo – registra o Dicionário do
Padre Silva Maia – o termo correspondente ao português “pernada” é pura e
simplesmente o substantivo feminino “dibanda”.
Quanto ao termo “batuque”, “designação genérica das danças africanas”,
seria uma “fusão deturpada da expressão quimbunda bu atuka (onde se salta
ou se pinoteia)”. Essa a origem etimológica proposta em Ribas (1979, v. I, p.
214). Já o arco musical conhecido no Brasil como gunga, humbo, rucumbo,
urucungo, o popular “berimbau de barriga”, é reconhecidamente africano,
sendo amplamente utilizado entre os bantos e sempre citado pelos autores
que nos trouxeram impressões da África Austral, como Ladislau Batalha,
Capelo e Ivens, Redinha e outros. Exempli cando, vemos que Batalha,
citado por Kay Sha er ([s.d.], p. 10), escreveu:
O humbo é o tipo dos instrumentos de corda. Consta geralmente de metade de uma cabaça,
oca e bem seca. Furam-na no centro, em dois pontos próximos. À parte, fazem um arco como
de echa, com a competente corda. Amarram a extremidade do arco, com uma cordinha do
mato, à cabaça, por via dos dois orifícios; então, encostando o instrumento à pele do peito, que
serve neste caso de caixa sonora, fazem vibrar a corda do arco, por meio de uma palhinha.
Mas o berimbau de barriga não é a única nem a mais importante
contribuição dos bantos à música do Brasil. Responsáveis, conforme bem
lembra Plínio de Almeida (1966, p. 273), pela introdução no Brasil de
múltiplos instrumentos de percussão, como a cuíca ou puíta (evolução do
mpwita, aterrorizante instrumento de guerra dos jagas), o ganzá e o reco-
reco, bem como pela criação da maior parte dos folguedos de rua até hoje
brincados pelos brasileiros de todos os quadrantes, foram os bantos também
que criaram o samba e o amplo leque de manifestações que lhe são a ns.
Sob a rubrica “Danças do Tipo Batuque ou Samba”, Oneyda Alvarenga
(1960, p. 130-170) agrupa: batuque e samba; quimbete (chiba); caxambu;
jongo; coco; dança do tambor; lundu e danças a ns; baiano ou baião; chula,
cachucha; sorongo; sarambeque; tirana; carimbó; comporta (arrepia). Com
exceção da tirana e da cachucha, de origem europeia, todas elas trazem, no
nome e na coreogra a, suas raízes bantas e aparentam ter muito em comum
com a massemba ou rebita, expressão coreográ ca muito apreciada em
Luanda, Malanje e Benguela e que, segundo José Redinha (1975, p. 341),
teve seu esplendor no século XX. Trata-se de uma dança de roda, bailada
por homens e mulheres ao som de ngoma, puíta e dicanza (reco-reco) e
comandada por um mestre-sala que dirige a marcação, como na quadrilha
franco-brasileira. Ao grito de “Fogo-pe!” emitido por ele, os pares executam
a semba, que é a umbigada, traço presente, no Brasil, de modo claro ou
apenas sugerido, em todas as danças “do tipo samba”.
A massemba, ensina Redinha, tem sua origem no caduque, dança de
Ambaca cuja característica fundamental é também a semba. E “do mesmo
modo que o Caduque” – escreve o etnólogo português (1975, p. 341) –, “por
adaptação do ambiente e do instrumental, originou a Massemba, também a
semba angolana, por efeito de transplantação dos antigos escravos, originou
o Samba brasileiro”.
Em 2015, o Dicionário da história social do samba (L ;S , 2015, p.
247) trouxe nova contribuição para o estabelecimento da etimologia do
vocábulo “Samba” na forma seguinte:
No Brasil colonial e imperial, as várias danças de origem africana, nas quais a umbigada era a
principal característica, foram referidas como “batuque” ou “samba”, vocábulo de origem
certamente banto-africana. Em abono a esta a rmação, informamos que o léxico da língua
Cokwe, do povo Quioco, de Angola, registra um verbo samba, com o sentido de “cabriolar,
brincar, divertir-se como cabrito” (cf. B , 1989: 480). No idioma quicongo, palavra de
gra a semelhante, sàmba, designa uma espécie de dança em que um dançarino bate contra o
peito de outro (cf. L , 1964 [1936]: 870). Segundo as primeiras hipóteses, o étimo do
termo “samba” seria o verbo quimbundo – semba, na acepção de “rejeitar”, “separar”
(conforme consignado em Lopes, 2012: 226), em referência ao movimento físico produzido na
umbigada, que é a característica principal das danças dos povos Bantos, na África e nas
Américas. Entretanto, o étimo preferível talvez seja o verbo quimbundo: semba, agradar,
encantar, galantear (cf. M , 1964: 21; 223; 319).
Debates etimológicos à parte, o que parece certo é que o Samba primitivo
descende de antigas danças de roda de Angola e do Congo; e que o Lundu,
aqui registrado por vários viajantes estrangeiros no século XIX, com seus
meneios, sapateados e a indispensável umbigada, é seu ancestral mais
próximo. E assim como “samba” vem de “semba”, o vocábulo “jongo” parece
provir de “ndjongo”, termo bundo que signi ca, segundo o Dicionário do Pe.
Alves, “criação, descendência”, e que teria, aqui, tomado o sentido de
“reunião de familiares”.
Entre as características do jongo estão os enigmas e adivinhas contidos
nos seus “pontos”, que precisam ser “desamarrados”, ou seja, elucidados pela
roda de jongueiros. Essa característica aproxima o jongo do jinongonongo,
que é, segundo Ladislau Batalha, citado por Arthur Ramos (1954, p. 226), a
adivinha tradicional (o Padre Silva Maia dá como signi cando “adivinha” o
termo “nongongo”), envolvidos na qual “passam os lhos de Angola noites
inteiras ao pé do lume, fumando ao ar livre nos seus cachimbos”, uns
propondo e outros decifrando os enigmas.
De nindo o jongo, Maria de Lourdes Borges Ribeiro (1984, p. 69) diz
tratar-se de “uma dança afro-brasileira, de intenção religiosa fetichista” e
com coreogra a do “tipo geral do batuque angolês”, bailada ao som do
tambu, do candongueiro (tambores) e de guaiás (chocalhos). Entende a
grande estudiosa do jongo que a intenção fetichista não é o móvel principal
da dança, que tende com o tempo a perder totalmente seu caráter esotérico e
seus contatos com a magia para se converter em simples divertimento.
Outra característica digna de nota no jongo é que muitas vezes, ao que
consta, seus enigmas foram ou são usados como linguagem cifrada, como
código, diante da presença de estranhos. E essa característica o aproxima
bastante dos vissungos.
O nome “vissungo” é aportuguesamento do termo umbundo “ovisungo”,
que se encontra registrado no Dicionário português-umbundu, dos padres
Gregoire Le Guennec e José Francisco Valente (1972, p. 431) signi cando
tão somente isto: “Música. Arte de combinar os sons de maneira agradável”.
Cantos de trabalho da zona garimpeira de Minas Gerais, eles foram
amplamente estudados por Ayres da Mata Machado Filho, que assim os
classi cou:
Pelo geral dividem-se os vissungos em botado, que é o solo, tirado pelo mestre sem
acompanhamento nenhum, e o dobrado que é a resposta dos outros em coro, às vezes com
acompanhamento de ruídos feitos com os próprios instrumentos usados na tarefa.
Alguns são especialmente adequados ao m e acompanham fases do trabalho nas minas.
Outros parecem cantos religiosos adaptados à ocasião, já no exercício consciente de práticas
feiticistas, já pelo esquecimento do primitivo signi cado (M F , 1985, p. 54).
Sobre o caráter mágico desses cantos de trabalho, Mata Machado (1985,
p. 71) se mostra absolutamente convencido, escrevendo sem nenhum
disfarce:
Era comum, nos grandes serviços de mineração em que trabalhava número considerável de
negros, haver vários cantadores “mestres”, logo rivais. Dividiam-se em grupos, cada um com os
seus adeptos, que formavam o “coro”. Entregavam-se a desa os. Mas negros havia que, para
não se deixarem vencer, estendiam-se no chão, com a boca colada à terra, e tiravam cantos
mágicos, fazendo emudecer momentaneamente os cantadores da turma rival. Outras vezes,
eram grandes nuvens de maribondos que inopinadamente perseguiam o grupo adversário.
Já em 1928, quando iniciou suas pesquisas, Mata Machado considerava
os vissungos uma manifestação infelizmente em extinção:
Os vissungos estão quase desaparecendo. Estão morrendo os poucos que sabiam. Os moços
que aprenderam por necessidade ou por curiosidade vão se esquecendo.
Sim. Por necessidade. Um deles, o Manuel Pedra, mulato escuro muito inteligente, um roxo,
como se diz em Minas, contou-nos por que razão tratou de aprender a língua banguela. Queria
saber o que os outros conversavam, pois só ele não era capaz de compreender o que os negros
diziam em sua fala.
Entretanto, com o livro, que inclui 65 partituras de vissungos – das quais
14 foram registradas fonogra camente no disco O canto dos escravos
(Estúdio Eldorado, n.º 64.82.0347, [s.d.]), o próprio Mata Machado
trabalhou para preservar essa memória. Ademais, inspirados no livro, os
músicos cariocas Antônio Espírito Santo e Samuel de Jesus criaram o Grupo
Vissungo, que, através de espetáculos, registros fonográ cos, simpósios etc.,
juntou forças no sentido de divulgar essa importante expressão da arte
banta.
No ambiente dos batuques bantos no Brasil, também digno de destaque é
o lundu, nome que designa uma dança semelhante à do jongo e, também,
um tipo de canção muito conhecido já no século XVIII. A denominação
origina-se, provavelmente, no quicongo “Lundu”, nome referido como o
local de origem do povo Quioco (Chokwe), de Angola, na região da Lunda
(L , 2012), embora algumas fontes deem como origem o termo
“calundu”, forma religiosa examinada páginas adiante.
Outra manifestação para cuja origem concorreram fortes elementos
bantos é o bumba meu boi. E isso porque, entre quase todos os povos da
África Austral, o boi tem uma importância única.
Joaquim Ribeiro (1977, p. 123), citando Dias de Carvalho, refere-se ao
costume banto de ncar caveiras e chifres bovinos em troncos de árvores,
em reverência às divindades protetoras da agricultura e da caça, como
Muata-Calombo na região da Lunda. Essa usança foi recriada no Brasil,
observando-se no meio rural brasileiro até hoje.
Sobre o cortejo religioso do boi sagrado (morada de espíritos ancestrais),
que certamente tem ligação com o brasileiro bumba meu boi, Redinha
(1975, p. 311) informa tratar-se de uma procissão de altos dignitários que
ocorre no sudoeste de Angola. Entoando cânticos, o cortejo, integrado por
homens e mulheres, vai percorrendo as aldeias. E assim Redinha (1975, p.
385-386) descreve a celebração que lhe é dedicada: “O rito do gado sagrado”
– relata o escritor português – “assume a sua mais signi cativa expressão no
cortejo anual do boi Geroa ou Ngeloa. O cortejo transita através de todo o
sobado, e é traduzido como tendo por m celebrar o estado de paz e
abundância na terra. É entre os Nhanecas que o costume se mantém. O
animal deve ser branco ou preto, e é seu guardião um dignitário designado
‘Senhor do Curral’”.
“O longo passeio processional” – prossegue Redinha – “efectua-se no
nal das colheitas, e em coincidência com a lua nova. O boi Geroa,
acompanhado duma vaca, percorre durante muitos dias o sobado sob um
coro de hinos em louvor dos bovídeos sagrados, com grande
acompanhamento de mulheres, exibindo pinturas rituais apropriadas ao
acto”.
“O boi Geroa” – conclui Redinha – “será aquele que melhor desenhado
apresente um triângulo branco na testa, pormenor em que alguns
pesquisadores encontram mais uma aproximação entre este culto e o do boi
Apis, dos antigos egípcios, do qual o cortejo do sudoeste angolano se
apresenta como reminiscência transportada para Angola pelas remotas
migrações de pastores camitas e das suas manadas de bois cornilongos,
evocadores de guras dos baixos relevos de templos do Nilo”.
Assim, reforçando que esses elementos vieram somar-se à tradição
europeia para fazer nascer o auto brasileiro do bumba meu boi e suas
variantes regionais, nalizamos observando que, no idioma Quicongo,
dialeto Vili, o vocábulo “bumba” designa todo objeto mais ou menos
artisticamente moldado, trabalhado (B , 1887).
Santos, inquices e antepassados
Em 1491, como já visto, o poderoso rei do Congo, Nkuyu, era batizado,
recebendo o nome cristão “João”, ao mesmo tempo que a capital de seu
reino, Mbanza Kongo, passava a se chamar “São Salvador”. A partir daí, as
populações dos atuais Congo-Brazaville, República Democrática do Congo e
Angola passavam a sofrer uma violenta opressão cristianizadora. E esse é o
fato gerador de mais uma preconceituosa opinião contra os bantos: a de que,
em relação aos sudaneses, suas manifestações religiosas seriam frágeis, sem
estrutura, apoiadas apenas em crendices e superstições, sem bases concretas
e, assim, facilmente sufocadas pelo catolicismo romano.
A realidade é que, entre os bantos, como já vimos, famílias, clã e tribo
sempre forneceram as bases da religião, inclusive a partir da crença de que
as reencarnações se processam, segundo a tradição, dentro do próprio
grupo, ou seja, a essência espiritual de todo ser humano é a mesma de um
antepassado familiar. Assim, em nossa avaliação, eles, no Brasil, apenas
intercambiaram valores culturais, e não “imitaram servilmente”, como já se
disse, rituais católicos e tradições rituais de outros grupos africanos. O caso
é que a maioria já chegou às Américas sob o forte impacto da doutrinação
católica a que estavam submetidos desde o século XV. Além disso, havia a
brutalidade da tragédia escravista, que fragmentava e desorganizava tribos e
etnias, separando clãs e núcleos familiares, tornando impossível a
conservação das bases sociais e a sobrevivência de uma religiosidade voltada
principalmente para o culto aos espíritos dos ancestrais. E a prova mais
eloquente dessa situação foi a avalanche de suicídios de bantos na época
colonial, “a m de que seus espíritos fossem reencarnar na África” (B ,
1973, p. 240).
Mas, apesar da intensa opressão cristianizadora que sofreram, os bantos
dos reinos do Congo e de Angola empreenderam uma verdadeira guerrilha
religiosa contra a Igreja Católica. Suas espetaculares conversões ao
catolicismo – a maior parte das vezes como estratégia política – quase
sempre foram seguidas de reconversões à religião tradicional. E o
surgimento de inúmeros movimentos messiânicos de cunho sincrético
muitas vezes serviu apenas para encobrir o anseio de libertação do jugo
colonialista. Foram assim os movimentos de Francisco Cazola, em 1632; o
de Apolônia Mafuta, em 1704; e, dois anos depois, o de Kimpa Vita, morta
em uma das fogueiras do Tribunal da Inquisição, depois de tentar a
restauração do antigo Reino do Congo para libertá-lo do jugo europeu
(S , 1972, p. 41-62), num movimento que é considerado o primeiro
exemplo de cristianismo independente na África abaixo do Saara.
Assim, embora imposto de maneira quase sempre violenta, o
cristianismo sofreu, na mão dos bantos, na África e no Brasil, fortes
transformações. Porque o Banto não adotou passivamente os dogmas do
catolicismo; o que fez foi recon gurar essa forma religiosa, moldando-a ao
seu jeito, ao seu modo, dando a ela coloridos e nuances que a transformaram
num catolicismo todo peculiar, permeado de práticas da religião tradicional
negro-africana e do culto banto aos antepassados. E isso – é claro – da
mesma forma que incorporou elementos luso-brasileiros aos seus cultos.
Exemplo notável, já no inicio do século XX, foi o de João de Camargo,
que, na cidade paulista de Sorocaba, fundou a Igreja Negra e Misteriosa da
Água Vermelha, na qual era praticado um culto e que sobressaíam, em
importância, santos católicos negros, como Santa I gênia, Santo Elesbão e
São Benedito, lá chamado “Rongondongo”, nome de evidente origem ou
inspiração banta. Cada um desses santos era, segundo Roger Bastide,
associado a uma pedra polida, depositada aos pés de sua imagem, no altar
(L , 2011b, p. 163).
No Brasil, os cultos de origem banta tornaram conhecidos pelo nome
genérico e depreciativo de “macumba” (Rio de Janeiro, São Paulo etc.), e os
de origem sudanesa – com suas variantes regionais, como o batuque gaúcho
e o xangô pernambucano –, pela denominação extensa de “candomblé”,
também, originalmente, de cunho pejorativo.
A palavra “candomblé”, entretanto, é certamente de origem banta, tendo
como raiz o quimbundo “kiandomb” ou o quicongo “ndombe”, ambos
signi cando “negro”. O vocábulo é usado, como dissemos, para nomear a
modalidade jêje-nagô do culto a diversas divindades oriundas da região do
Golfo da Guiné, na África Ocidental. E, nela, os praticantes – pelo menos os
mais destacados – não usam a expressão, preferindo denominar seu credo
de “religião ou tradição dos orixás”, haja vista a Segunda Conferência
Mundial da Tradição dos Orixás, que reuniu, em Salvador, Bahia, em julho
de 1983, sacerdotes brasileiros, africanos, antilhanos e de todas as Américas.
Da mesma fonte etimológica, o vocábulo “candombe” designa, no Brasil,
uma devoção sincrética praticada no ambiente das congadas e também, em
Minas Gerais, um dos grupamentos da fraternidade de Nossa Senhora do
Rosário e dos Santos Pretos, segundo Saul Martins.51
Calundus, candomblés, umbanda
A origem das primeiras manifestações religiosas suposta ou
comprovadamente bantas em solo brasileiro remonta à época colonial,
tendo como ponto de difusão os chamados “calundus”. A denominação,
reduzida da expressão “quilombo de calundu”, foi usada, no Brasil colonial e
imperial, para designar a modalidade religiosa e cada um dos locais onde se
realizava. O termo origina-se, a nosso ver, no quimbundo “kilundu”
(ancestral, espírito de pessoa que viveu em época remota), ligado ao radical
quimbundo “lundula” (herdar). Na língua do povo Bunda, do grupo Lunda-
Chocué (Tchokwé), o termo “okalundu” traduz-se por “cemitério” (A ,
1951).
O vocábulo, com o sentido de local de culto ou de consulta, teria entrado
no léxico do português do Brasil entre 1596 e 1659; e, com efeito, segundo
Silveira (2006), a mais antiga descrição pormenorizada de um calundu, no
Brasil, data de 1646.
Sobre os calundus, depois de caracterizá-los como funções ruidosas ao
som de “atabaques, pandeiros, canzás, botijas, e castanhetas”, assim os
de niu o baiano Nuno Marques Pereira no seu célebre Compêndio narrativo
do peregrino da América, de 1731 (apud T , 1988): “São uns
folguedos ou adivinhações […] que dizem estes pretos que costumam fazer
nas suas terras, e quando se acham juntos, também usam deles cá, para
saberem varias cousas; como as doenças de que procedem; e por
adivinharem algumas cousas perdidas; e também para terem ventura em
suas caçadas e lavouras; entre outras cousas”. A designação “calundu”,
aplicada indistintamente aos cultos de origem africana, independentemente
de forma ou procedência, vigorou até o inicio do século XIX, quando ocorre
o primeiro registro escrito do termo “candomblé”.
O antropólogo Luis Nicolau Parés acentua que, no Brasil, as redes de
relacionamento social formadas dentro das irmandades católicas seriam,
provavelmente, as mesmas que garantiam aos escravizados a organização de
seus “batuques” e outras manifestações. E que, entre eles, a participação,
tanto em rituais católicos quanto em calundus, por exemplo, não eram
sentidas como contraditórias; e sim como uma interação bené ca (P ,
2006, p. 101; 124). Mas explica o cientista que as “congregações
extradomésticas”, ou seja, os cultos localizados não em moradias, mas em
terreiros ou construções usados especi camente como templos, só surgiriam
no século XIX. Diz Parés (2006, p. 151) que, em 1864, certa Anna Maria,
africana de nação Angola, che ava uma comunidade religiosa no lugar
conhecido como “Dendezeiro”, na Freguesia da Penha, em Salvador.
Outro registro que aponta para a origem da religiosidade banta em solo
brasileiro refere a presença do chefe religioso Gregório Maquende, nascido
em 1874, cujo pai biológico, chamado Constâncio da Silva e Souza, natural
de Angola,52 teria sido o fundador da comunidade na qual o lho se
destacou. A propósito, o nome “Maquende” é, muito provavelmente, a
transcrição do nome Ma-nkwendè, de uma divindade do povo Bacongo (cf.
L , 1964), transcrito em Cuba como Makwende (B A ;
V , 1998).
Ainda em Cuba, as tradições dos povos congos ensinam que eles,
juntamente aos angolas e cabindas, criaram, por volta de 1806, “em honra
dos nove reinos sagrados do domínio do Manicongo”, os primeiros nkisi, dos
quais nasceram muitos outros” (B A ; V , 1998, p.
20-21). Entretanto, na ilha caribenha, nas linhas de culto banto
genericamente referidas como Mayombe, o conceito de nkisi, no Brasil
“inquice”, conserva o conceito original de “força mágica” ou “fetiche”
(L , 1964), o que não é o mesmo que o de “orixá”. Além disso, dos
inquices relacionados por Bolívar Aróstegui e Villegas Bolivar (1998, p. 20-
22), nenhum encontra correspondência com os das divindades cultuadas
nos candomblés bantos do Brasil.
Entretanto, apesar de o modelo de organização jêje-nagô ter, no Brasil,
prevalecido sobre as formas religiosas dos bantos – o que alguns atribuem
ao intercâmbio entre a Bahia e o Golfo de Benin no nal do século XIX,
inclusive com participação de lideranças religiosas baianas –, podemos
notar as trocas efetuadas entre as duas linhas de culto, notadamente, no Rio
de Janeiro, a partir do terreiro do legendário tata Joãozinho da Gomeia, de
1946, quando emigrou da Bahia, até seu falecimento, em 1971.
No começo do século XX, Nina Rodrigues trazia a público notícia sobre
o que aparecia como o mais expressamente banto entre os cultos então
conhecidos no Brasil – a cabula, cujo nome tem provável no quicongo
“kabula”, animar, encorajar.
“A Cabula” – dizia o bispo D. João Correia Nery, citado por Nina
Rodrigues (1977, p. 255-260) – “acredita na direção imediata de um bom
espírito, chamado Tata, que se encarna nos indivíduos e assim mais de perto
os dirige em suas necessidades temporais e espirituais. Como a maçonaria,
obriga seus adeptos, que se chamam camanás (iniciados), para distinguir
dos caialós (profanos), a segredo absoluto, até sob pena de morte pelo
envenenamento”.
“Em vez de sessão” – continuava o clérigo –, “a reunião dos cabulistas
tem o nome de mesa. […] O chefe de cada mesa tem o nome de embanda e é
secundado nos trabalhos por outro que se chama cambône. A reunião dos
camanás forma a engira. […] À hora aprazada, todos, de camisa e calças
brancas, descalços, se dirigem ao camucite (templo).”
“Chegados ao camucite” – prosseguia o religioso –, “que é sempre
debaixo de uma árvore frondosa, no meio da mata, limpam aí uma extensão
circular de 50 m mais ou menos. Fazem uma fogueira e colocam a mesa do
lado do oriente […] Há uma certa cerimônia para se acenderem as velas:
primeiro, se acende uma a leste, em honra do mar, carunga, depois uma a
oeste e outras duas ao norte e ao sul; nalmente muitas outras em torno do
camucite.”
Observe-se que, segundo José Redinha (1975, p. 373), os lunda-chócues
exercem seu culto num templo aberto, na mata, e que tem o nome de
messecu, podendo vir daí a etimologia da mesa dos cabulistas.
O extenso relato de Dom João Nery era repleto de expressões como
“camolele” (espécie de gorro), “nimbu” (canto), “quantan” ou “liquáqua”
(palmas), “quendá”, “curimá”, “bncula”, “quibandan” (palmatória), “emba”,
“santé”, todas elas de comprovada origem banta.
Então, a cabula é que nos parece ter sido a velocidade inicial da
umbanda, religião hoje inegavelmente brasileira, mas que tem raízes na
África dos povos bantos, raízes essas que, em meados do século XX, eram
alimentadas com a tentativa de reafricanização representada pela
modalidade chamada “omolocô” (nome talvez originário do quimbundo
“muloko”, juramento, ou do suto, povo do sul da África, na forma “moloko”,
signi cando “genealogia”, “geração”, tribo”).
Quanto à umbanda, a origem da denominação aparece tanto no
Umbundo quanto no Quimbundo nas conotações de arte de curandeiro,
ciência médica, medicina, derivando do verbo “kubanda”, “desvendar”. Em
umbundo, o termo que designa o curandeiro, o médico tradicional, é
“mbanda”; e seu plural (uma das formas) é “imbanda”. Em Quimbundo, o
singular é “quimbanda”, e seu plural, “imbanda”, também. E, nessa mesma
língua, o termo “umbanda” corresponde aos vocábulos “magia” e
“medicina”, do português. Já para a quimbanda, vertente da umbanda de
cunho supostamente malé co, uma origem possível seria “kibanda”, termo
que designa os “mortos malé cos e não protetores” entre o povo Basanga, de
Shaba, subgrupo dos bacongos (M , 1986, p. 301).
Ainda na umbanda, um elemento que efetivamente religa, mais
diretamente, essa modalidade ao universo religioso dos povos bantos é a
presença dos “pretos velhos”. Essa presença aproxima os rituais umbandistas
do culto aos ancestrais; fazendo pressupor, inclusive, uma aproximação dos
bantos ao espiritismo de Allan Kardec – chegado ao Brasil em meados do
século XIX –, porque, através dele, podiam manter contato com seus
mortos. Daí terem surgido, após a abolição, as entidades chamadas “pretos
velhos”, os “cacurucaios” (do quimbundo “kikulakaji”, “ancião”), que
representariam espíritos de antepassados, e antepassados bantos, como
expressamente indicam a maioria de seus nomes – Vovó Cambinda, Vovô
Congo, Pai Joaquim de Angola, Vovó Maria Conga etc. – e como indica a
sua morada mítica, Aruanda, “misteriosa e adorável região de paz que se
transformou para o negro em Terra Prometida” (C , 1964, p. 76).
Em algumas hipóteses essa “Aruanda” evocaria pura e simplesmente a terra
africana, simbolizada na cidade de Luanda, capital da hoje República
Popular de Angola. Em outras, evocaria Ruanda, país no centro da África,
fronteiriço ao Congo-Kinshasa, de vegetação luxuriante, cortado por vales e
montanhas, provavelmente sentido, no passado, como um paraíso terrestre.
As línguas bantas e o português no Brasil
No Brasil, o senso comum acostumou-se a mencionar qualquer
comunidade étnica africana como “tribo”, e todas as línguas como “dialetos”.
Entretanto, essa forma de menção é equivocada, pois o conceito de tribo é
relativo, e as sociedades africanas conheceram e conhecem diversas outras
formas de organização, como a família extensa, o clã e as associações
voluntárias, por exemplo. Quanto a dialeto, o que de ne esse tipo de
expressão linguística é apenas ser a variação que uma língua apresenta de
uma região para outra; ou um falar regional dentro de uma comunidade
onde predomina um falar mais amplo, de onde aquele se originou. Dessa
forma, as línguas africanas não são “dialetos”, e sim ocasionais matrizes de
dialetos que delas se nasceram. Por isso foi que, comparado a línguas
africanas como o Quimbundo e o Quicongo – geradoras de variantes
dialetais em algumas regiões de Angola e Congo, respectivamente –, o
português falado no Brasil foi considerado por alguns antigos linguistas,
como a rmou Renato Mendonça (1948, p. 107), um dialeto desdobrado em
várias formas subdialetais. E o fator que possivelmente mais contribuiu para
tornar o português do Brasil uma variante da língua falada em Portugal foi a
presença africana na vida brasileira desde o século XVI.
Sobre o conceito de tribo, Andrianov e Ismaguilova (1984, p. 100)
escrevem: “O continente africano surpreende pela multiplicidade de formas
de comunidade étnica: desde pequenos grupos de caçadores e colheitores,
que ainda vivem em regime tribal, a todo o gênero de etnias intermediárias,
comunidades etno-linguísticas e etno-políticas, nacionalidades grandes e
nações formadas por milhões de pessoas”.
E Granguilhome (1979, p. 28-30) acrescenta: “A tribo […] pode ser
considerada como uma fração do grupo étnico e que é a forma
intermediária entre o grupo caçador-coletor e formas mais evoluídas de
poder individualizado”. A rmando, nalmente, que “a maioria das
comunidades etno-sociais africanas ultrapassaram já aquele estágio que […]
se costuma designar por ‘tribo’, os cientistas Andrianov e Ismaguilova, acima
citados, dão como exemplo de ‘nacionalidade com formação completa’ o
grupo banto Ganda ou Baganda que já no século XV havia fundado um
Estado feudal, o Buganda, que […] é, desde 1962, parte autônoma da
República de Uganda”.53
Dentro do quadro da presença afronegra no Brasil, veri ca-se – e esse é o
ponto central do nosso trabalho – uma predominância de elementos
culturais bantos, que contribuíram decisivamente para a formação da
cultura brasileira, sobretudo por meio de algumas de suas línguas, como o
Quicongo (do Congo), o Quimbundo (de Angola) e o Umbundo (de
Benguela), entre outras.
Contestando uma suposta predominância de línguas sudanesas, como o
Iorubá (ou Nagô), no panorama das línguas africanas faladas no Brasil à
época da escravidão e que teriam modi cado o falar português no Brasil,
Renato Mendonça (1948, p. 88) escreveu: “O quimbundo, pelo seu uso mais
extenso e mais antigo, exerceu no português uma in uência maior do que o
nagô […] Com efeito, no vocabulário os termos quimbundos superam e de
muito os termos nagôs, de circulação bem mais restrita”. Realmente, no
vocabulário do português falado no Brasil, os termos originários do Iorubá
estão mais presentes na designação de práticas e utensílios ligados à tradição
dos orixás, como a música, a descrição dos trajes e a culinária afro-baiana.
Sobre as alterações fonéticas produzidas pelas línguas bantas no
português falado no Brasil, bem como em países africanos, vejam-se estas
notas pinçadas em Renato Mendonça (1948, p. 117-120), bem como no
dicionário do padre Antônio da Silva Maia (1964):
- O e e o o (principalmente) passam a soar respectivamente como i e u
(capote = capóti; casaco = casácu);
- O fonema lh transforma-se em i (palha = paia; molhar = moiá; mulher –
muié; colher = cuié; melhor = mió);
- O fonema j passa a z: Jesus = Zezus; José = Zuzé;
- O g, antes de e e i, às vezes passa a z: registro = rezisto;
- Os grupos consonantais difíceis de pronunciar são dissimilados: negro =
nego; alegre = alégui;
- Muitas palavras sofrem aféreses bruscas: estar = tá; você = ocê; acabar =
cabá; Sebastião = Bastião;
- Os l e r nais são suprimidos: Brasil = Brasí; paiol = paió; cafezal =
cafezá; Artur = Artu; mel = mé; amar = amá; comer = cumê; pedir =
pidi; por = pô. Esse fenômeno, segundo Renato Mendonça, também
ocorre em algumas línguas crioulas e dialetos na África;
- O e da sílaba es se transforma em si: escuta = sicuta; escola = sicola;
- O r forte português, que não existe nas línguas bantas, é substituído por
l ou se abranda em r fraco: rapaz = lapassi; carro = caro;
- O l das sílabas al, el, il, ol e ul é substituído por um r brando: qualquer =
quarqué; folga = forga; salvar = sarvá;
- Em muitas palavras os grupos consonantais são separados pela inclusão
ou de um grupo vocálico ou de uma vogal (suarabácti): Clemente =
Quelemente; or = fulô; Cláudio = Culáudio;
- Os ditongos ei e ou sofrem redução: cheiro = chêru; peixe = pêxi; beijo =
bêju; lavoura = lavora; couve = côvi; louco = lôcu.
Também, talvez por in uência banta – lembra Mendonça (1948, p. 126),
a terminação am da 3ª pessoa do perfeito do indicativo soa o átono (amaram
= amaro; zeram = zero; disseram = dissero), da mesma forma que o
gerúndio perde o d nas desinências: ando = ano; endo = eno; indo = ino;
ondo = ono; andano, veno, caíno, pôno.
Nélson de Senna (1938, p. 176-180) lembrou outros vícios de prosódia de
origem negra, provavelmente bantos, encontrados na linguagem popular
brasileira, tais como a contagem dos números 1, 2, 3, 4 etc. nos brinquedos
infantis (“una”, “duna”, “tena”, “catena” etc.) e a deformação de certos nomes
próprios, como “Antonho” por Antônio, “Jeromo” por Gerônimo etc. E
apresenta uma extensa lista de formas criadas, no Brasil, pelo linguajar dos
negros para diminutivos de nomes próprios e apelidos de tratamento
familiar, da qual tiramos para exemplo os seguintes, de aparência
marcadamente banta: Cazuza, Chico, Cocota, Dindinha(o), Doca, Dondoca,
Donga, Dunga, Inhô, Iaiá, Jango, Joca, Juca, Manduca, Maneca(o),
Nhanhan, Nico, Quincas, Sinhá, Sinhô, Zeca etc.
Um expressivo exemplo da in uência banta no falar brasileiro é o célebre
“Lundu de Pai João”, de autor anônimo, e que tem aqui um fragmento
transcrito na forma citada por Mello Moraes Filho (p. 95-96) em seu
Cantares brasileiros, reeditado pelo Departamento de Cultura da Secretaria
de Estado de Educação e Cultura do Rio de Janeiro em 1982. O exame do
texto mostra grande parte das alterações fonéticas apontadas por Renato
Mendonça:
PAI JOÃO
Lundu
Quando Iô tava na minha tera [terra]
Iô chamava capitão,
Chega na terra dim baranco [branco],
Iô mi chama – Pai João.
[…]
Nôsso preto quando fruta [furta]
Vai pará na coreção [correção: penitenciária],
Sinhô branco quando fruta [furta]
Logo sai sinhô barão.
Entretanto, muito mais que tudo isso que acabamos de informar,
impressiona a descoberta, no nal dos anos 1920 e no nal da década de
1970, das comunidades negras de São João da Chapada, em Minas Gerais,
do Cafundó, em São Paulo, e de Patrocínio, também em Minas Gerais,
usando falares nos quais se identi cam fragmentos vocabulares
remanescentes de línguas como Quimbundo, Umbundo e Quicongo.
O de São João da Chapada foi estudado por Aires da Mata Machado
Filho (1985), que coligiu um vocabulário que transcrevemos na primeira
edição desta obra, acrescentando algumas possíveis fontes etimológicas. A
partir desse vocabulário e de outros, estudados por especialistas como João
Dornas Filho, Carlos Vogt e Peter Fry, elaboramos um pequeno dicionário
de propostas etimológicas sobre bantuísmos correntes em todo o Brasil,
inclusive nos característicos fatores de algumas comunidades remanescentes
de quilombos, publicado sob a chancela da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Em 2001, a obra era incluída na “Bibliogra a das fontes de datação e
etimologia” do Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, de Antonio
Houaiss et al., à página LXVIII. Com o estímulo trazido por esse
reconhecimento, em 2003 o livro ganhava nova versão, inclusive acrescida
de uma parte onomástica, sendo editado, também no Rio de Janeiro, pela
Pallas Editora, com o título Novo dicionário banto do Brasil.
Identidade negra
Em 1822, emergindo como nação independente, o Brasil tornou-se uma
monarquia constitucional liberal. Assim, teoricamente, sua população seria
constituída por cidadãos e cidadãs livres e iguais, gozando dos fundamentais
direitos “à vida, à liberdade e à busca da felicidade”, como estabelecera a
Declaração de Independência dos Estados Unidos, em 1776. Todavia,
naquele momento e nos anos seguintes, o país tinha uma das maiores
concentrações de população escrava das Américas e o maior contingente de
afrodescendentes livres (M , 2004, p. 7, 9).
Essa população e esse contingente foram fundamentais na construção da
nacionalidade brasileira. Entretanto, a estruturação da sociedade fez-se sob a
égide do supremacismo europeu sobre os demais grupos sociais, mormente
africanos, indígenas e seus respectivos descendentes. Por isso, a atual
Constituição brasileira, promulgada em 1988, garante “proteção às
manifestações das culturas […] indígenas e afro-brasileiras” e reconhece
como patrimônio cultural os bens materiais e imateriais “portadores de
referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos
formadores da sociedade brasileira”, como os afrodescendentes.
No Brasil, país onde convivem diversas culturas, os africanos deixaram
fortes traços de sua identidade na religião, na história, nas tradições, no
modo de ver o mundo e de agir perante ele, nas formas de arte, nas técnicas
de trabalho, fabricação e utilização de objetos, no modo de falar, na
medicina popular e em muitos outros aspectos. Esses traços, recriados pelos
afro-brasileiros de uma forma inconsciente ou não, são o que mais
claramente de ne a identidade nacional. No entanto, as camadas
dominantes sempre se mostraram culturalmente estrangeiradas, tendendo
ora para a Europa, ora para a América do Norte. E recorrentemente
preocupam-se em transmitir do Brasil uma imagem de país “branco” ou,
quando muito, “mestiço” – como corolário da alegada “democracia racial”
reinante no país.
Então, analisando a história passada e atual do país, o que se constata é a
constante negação, ao povo negro, do direito a sua própria identidade,
manifesta em suas ações e sua memória, como consagrado no art. 216 da
Constituição, anteriormente mencionada.
No século XIX, como é sabido, predominava entre muitos cientistas a
ideia de que certas “raças” seriam superiores a outras. Dentro dessa ideia, o
europeu branco seria o ponto mais alto da pirâmide biológica, e a “raça
negra” estaria entre as menos favorecidas pela natureza. Assim ponti caram,
entre outros: o crítico literário Sílvio Romero (1851-1914), em sua já
mencionada História da literatura brasileira, publicada exatamente no ano
da chamada “Lei Áurea”; o médico-legista e psiquiatra Nina Rodrigues
(1862-1906), que, em Os africanos no Brasil, a rmava que “a ‘Raça Negra’ no
Brasil, por maiores que tenham sido os seus incontestes serviços à nossa
civilização, […] há de constituir sempre um dos fatores da nossa
inferioridade como povo” (R , 1977, p. 7); e Oliveira Vianna (1883-
1951), jurista e sociólogo.
Amplamente divulgadas, essa ideias incrustaram-se tanto no juízo
popular quanto no pensamento das camadas dirigentes. Assim foi que, em
1921, ante a hipótese de imigração de norte-americanos negros, apresentou-
se ao Congresso Nacional um projeto de lei contrário a essa possibilidade.
Seguiram-se outros projetos de teor igual ou semelhante. E um deles
a rmava, sem qualquer sutileza, em seu artigo 1º: “Fica proibida no Brasil a
imigração de indivíduos humanos das raças de cor preta”. Outro assim
argumentava: “Além das razões de ordem étnica, moral, política, social e
talvez mesmo econômica, que nos levam a repedir in limine a entrada do
preto e do amarelo, no caldeamento que se está processando sob o nosso
céu, neste imenso cenário, outra por ventura existe a ser considerada, que é
o ponto de vista estético e a nossa concepção helênica de beleza jamais se
harmonizaria com os tipos provindos de semelhante fusão racial”
(R , 1964, v I, p. 89).
Em 1933, para a Constituição que então se elaborava, eram apresentadas
emendas arianizantes, entre as quais a seguinte: “Para efeito de residência, é
proibida a entrada no país de elementos das raças negra e amarela, de
qualquer procedência” (p. 92). E a seleção pretensamente eugênica dos
imigrantes ganhava força de norma jurídica no art. 29 do Decreto-Lei n.º
7.967, de 18 de setembro de 1945, que estabelecia: “Atender-se-á, na
admissão dos imigrantes, à necessidade de preservar e desenvolver, na
composição étnica da população, as características mais convenientes da sua
ascendência europeia, assim como a defesa do trabalhador nacional”
(R , 1964, v. I, p. 94).
A discriminação racial, em todas as suas formas e desdobramentos
(segregação, separatismo, apartheid etc.), é apenas o efeito de uma causa
maior, o racismo estrutural – aquele que nasce com a sociedade em
formação, a partir do falso pressuposto da supremacia (por razões étnico-
raciais) daqueles que detêm o poder político e econômico. E, algumas vezes,
a discriminação parte até mesmo de fontes institucionais, como órgãos de
governo e agentes públicos, corporações empresariais, universidades e
outras estruturas constituídas por leis fundamentais ao país.
No âmbito privado, exempli camos com um fato exemplar, ocorrido
quando certo “Castro Paes” fazia uma viagem à Europa e, de volta, publicava
suas impressões num livro, de 1954, intitulado Através da Europa. A certa
altura do texto, ele assim comentava uma escala no aeroporto de Recife:
Garçons quase pretos, desatenciosos, serviam os fregueses com a maior lerdeza, pouco caso e
indiferença! […] Efetivamente, porque, em vez de pretos relaxados, não se colocar moços
brancos, educados, nos portos e aeroportos internacionais, para que procurem demonstrar o
valor da nossa raça e elevar nosso conceito e nossa gente, no trato constante com as numerosas
levas de estrangeiros de todas as partes do mundo, que por aí transitam diariamente?
No mesmo ano do livro, a 6 de janeiro, editorial do jornal O Globo
denunciava os cultos africanos como “infecção” e a necessidade de erradicá-
los:
A princípio foi moda, e talvez ainda o seja, considerar a macumba como uma manifestação
pitoresca da cultura popular, à qual se levavam turistas e visitantes ilustres, e que era objeto de
reportagens e notícias nas revistas e nos jornais, bem como de romantizações literárias. Isso
deu ao culto bárbaro dos orixás e babalaôs um prestígio que de outro modo não poderia ter e
que o fez propagar-se das camadas menos cultas da população para a classe média e empolgar
até pessoas das próprias elites. É essa infecção que queremos apontar com alarme. É essa
traição que queremos denunciar com veemência. É preciso que se diga e que se proclame que a
macumba, de origem africana, por mais que apresente interesse e pitoresco para os artistas, por
mais que seja um assunto digno de estudo para o sociólogo, constitui manifestação de uma
forma primitiva e atrasada da civilização e a sua exteriorização e desenvolvimento são fatos
desalentadores e humilhantes para os nossos foros de povo culto e civilizado. Tudo isso indica
a necessidade de uma campanha educativa para a redução desses focos de ignorância e de
desequilíbrio mental, com que se vêm conspurcando a pureza e a sublimidade do sentimento
religioso (O Globo, 6 jan. 1954).
Observe-se que, no ano que se ndara, a UNESCO patrocinava uma
série de estudos sobre as relações raciais no Brasil, na “suposição de
encontrar aqui um padrão de democracia racial”, como escreveu o sociólogo
Darcy Ribeiro (1985).
Exemplo também sério e chocante foi a publicação, já em 1970, no
Boletim do Centro de Estudos do Hospital dos Servidores do Estado (um órgão
o cial), de uma monogra a assinada por um grupo de médicos e intitulada
Nariz negróide (correção cirúrgica), na qual os autores a rmam textualmente
o seguinte:
o crescimento da população branca é indiscutível e se faz em números alentadores em todo o
Brasil. […] O crescimento da população mestiça fará com que ela chegue um dia ao branco,
tendo partido do branco. […] Por tudo isso quanto mais o mestiço se sentir afastado do
elemento negro, maior será a sua vontade de retirar da face e, conseqüentemente do nariz, os
estigmas que permitam lembrar a sua origem, fato que redundará, como é claro numa tarefa
grande para aqueles que se dedicam à cirurgia plástica enfrentando o problema social já
grande e que crescerá com o correr do tempo. […] Procedemos a osteotomia, aumentamos o
dorso do nariz e mudamos mais para dentro da aza [sic] nasal. Com isso, retiramos os
caracteres típicos do nariz negro e lhe damos aspecto de nariz branco.
Em 2019, no Brasil, o percentual de pessoas que se declararam negras,
segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) feita pelo
Instituto Brasileiro de Geogra a e Estatística (IBGE), chegou a 56%. Apurou
também a PNAD que, dos cerca de 209,2 milhões de habitantes do país, 192
milhões se assumem como pretos, enquanto 89,7 milhões se declaram
pardos. Portanto, os negros – que, para o IBGE, constituem a soma de pretos
e pardos – são a maioria da população. Essa superioridade numérica,
entretanto, ainda não se re ete na sociedade brasileira. Embora, pela
primeira vez, os negros sejam maioria no ensino superior público, eles ainda
são minoria nas posições de liderança no mercado de trabalho e entre os
representantes políticos, e ocupam um espaço insigni cante na magistratura
nacional.54
Outra pesquisa mostrou que os negros ocupam apenas 4,9% das cadeiras
nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do
Brasil. Entre os quadros executivos, eles são 4,7%. Na gerência, apenas 6,3%
dos trabalhadores são negros. Da mesma forma, no Poder Legislativo,
negros são apenas 24,4% dos deputados federais e 28,9% dos deputados
estaduais eleitos em 2018, e, nas eleições municipais de 2016, os vereadores
eleitos somaram 42,1% do total.
No Judiciário, em 2013, último ano com informações disponíveis, apenas
cerca de 15,5% eram negros. Nas estatísticas desse ano, a imensa maioria dos
magistrados era branca, e em 2018 o percentual deles era de quase 84%. Nos
Tribunais Superiores – Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal
Federal (STF), Tribunal Superior do Trabalho (TST), Tribunal Superior
Eleitoral (TSE) e Superior Tribunal Militar (STM) –, os números são ainda
menores: 1,4% se declaram pretos, e 7,6%, pardos.55
Os negros são maioria apenas entre os desempregados e subocupados. E
também entre as vítimas de homicídio, além de comporem mais de 60% da
população carcerária do país. A propósito, em agosto de 2020, a notícia de
que uma juíza de direito prolatara uma sentença condenatória baseada na
cor da pele de um réu chegava aos jornais. O caso acontecera na 1ª Vara
Criminal de Curitiba, a capital paranaense, e a sentença dizia, sobre o réu:
“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo
criminoso, em razão de sua raça, agia de forma extremamente discreta os
delitos [sic] e o seu comportamento, juntamente com os demais causavam
[sic] o desassossego e a desesperança [sic] da população, pelo que deve ser
valorada [sic] negativamente”.56
Resta a dúvida: a “raça” determinava a índole criminosa ou a “forma
discreta” de o criminoso agir? De qualquer forma, trata-se de uma sentença
condenável, inclusive pelos erros gramaticais, a qual motivou reações
importantes, como esse libelo tão magoado quanto contundente: “Para onde
se olha na sociedade brasileira, há uma face do racismo à espreita. Não há
brecha para distração, escape, rota de fuga. É alentador o esforço que
segmentos da sociedade – menos governo, mais imprensa, intelectuais,
artistas e celebridades – estão fazendo para identi car, compreender e, em
certa medida, combater essa anomalia”.57
Segundo algumas avaliações, o recrudescimento do racismo brasileiro,
no momento deste texto, teria como causa o novo patamar da resistência,
que agora dispõe de ferramentas, como as redes sociais no ambiente virtual.
Mas o problema tem raízes profundas e vem de longe.
Ao longo da história, vimos as medidas coercitivas que visavam à
emigração maciça dos negros para a África, principalmente após a grande
Revolta dos Malês, em 1835; o envio de tropas predominantemente
integradas por negros e mestiços à Guerra do Paraguai, na qual morreram
dois terços da população negra do Império (C , 1980, p. 194); a
queima dos registros da escravidão e do trá co determinada por Ruy
Barbosa; a não inclusão, durante muitos anos, de qualquer referência à
importante história da África Negra no programa das escolas (e a
apresentação do Egito como algo totalmente desvinculado do continente
africano); a pouca importância que a história o cial dá à resistência do
negro à escravidão e a sua contribuição na formação da sociedade brasileira;
a obsessão em a rmar que o Brasil é uma “democracia racial”; a retirada do
item “cor” do censo demográ co; a promoção, a partir de 1890, de uma
imigração maciçamente branca e europeia – a partir da falsa premissa de
que o negro era um mau trabalhador, e o imigrante europeu, sim, é que era
o agente mais e caz para acelerar a passagem do Brasil para o capitalismo
(C , 1986, p. 75) – são algumas formas utilizadas, através dos
tempos, para “embranquecer” o povo brasileiro.
Entendemos, a partir de Frantz Fanon e outros autores, que o racismo é
um aspecto do colonialismo. E que através dele o colonizador procuraria
valorizar-se pela desvalorização do colonizado, levando este a uma espécie
de re exão muda, assim imaginada: “Já que eu não sou branco, nem rico,
nem inteligente, eu não sou nada; então, só me resta seguir o modelo ditado
pelo colonizador”. Daí muitos negros terem, ao longo da formação da
sociedade brasileira, introjetado em sua mente conceitos segundo os quais a
beleza, a inteligência etc. são essencialmente brancos.
Esse sentimento de inferioridade tem também, entre outros fatores,
origem numa velha distinção. No escravismo brasileiro, como regra geral,
cerca de 75% dos escravizados trabalhavam no campo, e só o restante estava
nas cidades. No campo, em sua maior parte, estavam os que não falavam
português e que, segundo o ponto de vista europeu, eram menos
“civilizados”, e por isso eram chamados boçais. Nas cidades estava a maioria
dos ladinos, ou seja, os mais adaptados, por alienação ou por astúcia, à
“civilização” dos brancos. Outra distinção se fazia entre os africanos de
origem e os crioulos, que eram os já nascidos na terra brasileira. Então, os
ladinos estavam quase sempre nas cidades, principalmente como
trabalhadores domésticos. E foram em geral esses cativos domésticos
(mucamas, amas de leite, cozinheiras, capangas, cocheiros etc.),
principalmente crioulos (nascidos no país), que, representando uma espécie
de elite, determinaram, em geral, a síndrome do negro em ascensão: muitas
vezes até renegando suas origens, paternalizados pelos brancos e adotando
seus valores. Foi o caso também de muitos negros que eram a favor da
“legalidade”, da conquista pací ca da liberdade e de outros que até ajudaram
a reprimir movimentos libertários negros, como foi o caso do herói militar
Henrique Dias.
Confundida a real identidade dos descendentes de africanos no Brasil,
então a elite dominante tomou a si a tarefa de de ni-la, e a de ne em dois
níveis, um para consumo externo e outro no nível do preconceito. Para
consumo externo, o negro no Brasil é um cidadão como todos os brasileiros
e não está sujeito a discriminações. Mas, internamente, boa parte do Brasil
branco, e até mesmo alguns negros, ainda mantêm sobre os afro-brasileiros
algumas opiniões estereotipadas que se cristalizaram.
Dentro, nalmente, de todo esse contexto, a distinção entre bantos e
sudaneses teve um papel a desempenhar. Contrapondo uns aos outros,
lançando sobre os primeiros o estigma da inferioridade e deixando que se
miti casse o pequeno contingente organizado dos malês, em oposição aos
milhares de bantos, a cultura hegemônica “dividia para governar”, lançando
mão, entretanto, de um axioma facilmente destrutível. Porque o que
realmente distinguiu os bantos dos sudaneses no Brasil foi a estratégia
utilizada por uns e outros diante da opressão: os sudaneses, notadamente os
malês na Bahia, lembra Reis (1986, p. 188), em geral resistiram, tomando
como atitude o confronto cultural, só modi cando essa linha de
comportamento quando a mudança servisse como arma para atacar
frontalmente a escravidão ou quando a pressão fosse realmente insuportável.
Os bantos, ao contrário, quase sempre optaram pela estratégia da
dissimulação, por exemplo, encobrindo suas manifestações culturais com o
manto branco das irmandades católicas e com isso transformando tanto sua
cultura original como a dos brancos (R , 1986, p. 188). Mas essa não foi a
regra geral, como se viu com Palmares.
A nosso ver, a principal tarefa das lideranças é levar o povo negro a
desenvolver sua consciência, para que conheça adequadamente sua
realidade passada e presente, pois só isso o levará à a rmação real de sua
identidade e sua autoestima para ser nalmente produtivo e feliz. “Adquirir
um conhecimento re exivo de si” – escreve Juana Elbein dos Santos (1979,
p. 5) – “conduziria o negro não apenas a distinguir e assumir plenamente
sua originalidade, sua riqueza étnica e cultural, a consciência de seu
signi cado intrínseco, mas ainda lhe permitiria um exame analítico de sua
situação e de seu destino na sociedade nacional e uma participação ativa na
condução dos mesmos a partir de seu próprio enfoque, de sua experiência,
de suas concepções e interesses”.
Vejamos, ainda, que o escravismo no Brasil e o colonialismo na África
usaram, como estratégia de dominação, fragmentar as populações negras,
tanto por etnias e linhagens quanto por categorias sociais. “Dividir para
dominar” era a regra, que, embora verbalizada no sentido contrário, ecoou
na atualidade brasileira em setembro de 2019, quando um ministro da
República a rmou que no Brasil “não existe povo negro”, e sim “brasileiros
de pele escura”.
A moderna classi cação dos afrobrasileiros como “negros” – mesmo
subdivididos em “pretos e pardos” – é uma conquista política e um avanço
estatístico em relação à vasta terminologia antes usada, que di cultava o
mapeamento cientí co do lugar ocupado pelo segmento afro no conjunto da
população, em prejuízo do atendimento às suas necessidades especi cas.
Nos mais de três séculos de escravismo, a presença africana no Brasil foi
ampla e importante. Até que, inviabilizado o sistema, o Império o aboliu;
não sem antes promulgar uma lei, em 1850, negando a ex-escravizados o
direito a posse e propriedade de terras e alargando portas à imigração de
colonos vindos do exterior. Assim, com um ato abolicionista vazio,
desacompanhado de medidas complementares em favor dos emancipados,
reforçou-se a exclusão.
O senso comum negou essa realidade, iludido pelo argumento da
mestiçagem, com o qual ainda se busca provar que no país não existe
racismo e, sim, casos eventuais de preconceito. Mas a mestiçagem –
conforme o saudoso Clóvis Moura, sociólogo afromestiço – é um fato
biológico que não se re ete no campo politico da democratização das
oportunidades. E a desigualdade se comprova na rara presença de pessoas
negras nas principais esferas de decisão, por circunstâncias quase nunca
percebidas em suas razões, as quais se devem ao racismo estrutural, nascido
com a nação, e em cujo contexto a posição subalterna do indivíduo negro é
tida como natural, normal e até mesmo inerente às suas origens.
Em outra linha de pensamento vemos que, já no século XX, as estruturas
dominantes desenvolveram ações táticas, partindo do pressuposto de que,
com a imigração europeia, a miscigenação da população iria fatalmente
levá-la a um “branqueamento”. Alguns cientistas e intelectuais de renome
deram sustentação a essa ideia, que, avalizada por teses eugênicas, de
“aperfeiçoamento” da espécie e higiene, ganhou status de ideologia e forma
de política pública. Tanto que em 1946 o Decreto-Lei n.º 7.967 estabeleceu o
seguinte: “Os imigrantes serão admitidos de conformidade com a
necessidade de preservar e desenvolver o Brasil na composição de sua
ascendência europeia”. Mas os objetivos não foram alcançados, como
comprovam as estatísticas. Observe-se que, em inglês e francês,
respectivamente, os termos “nigger” e “négro” são ofensivos, por conotarem
escravidão. Entretanto, na década de 1930, era introduzido na língua
francesa o vocábulo “négritude”, para signi car a circunstância de se
pertencer à coletividade dos africanos e descendentes; e, mais, a consciência
de pertencer a essa coletividade e a atitude de se reivindicar como tal. Vem
daí a opção do ativismo afro, no Brasil, pelo quali cativo “negro”, como
estratégia de aglutinação na luta pela igualdade; e contra a falácia da
“democracia racial” brasileira.
Assim, neste momento de repetidas ameaças aos direitos de cidadania,
celebrações como as da Consciência Negra, instituídas por organizações do
Movimento Negro há quase meio século, ganham maior signi cado. E se
justi cam quando, parafraseando o poeta e estadista africano Léopold
Senghor, a rmamos a existência e a relevância do Povo Negro – não como
expressão de racismo ou complexo de inferioridade, e sim com a intenção
de, em harmonia com outras correntes de pensamento e ação, construir um
humanismo totalmente humano, porque formado por todas as
contribuições do ideário progressista, no Brasil e no mundo.
A a rmação da identidade negra confere ao ser humano afrodescendente
o “lugar de fala”, ou seja, a prerrogativa de ser o sujeito de sua própria
história, a partir de suas respectivas peculiaridades, culturais e psicológicas;
bem como ser o narrador da história de seus antepassados africanos. E lhe
confere também a oportunidade de recusar e denunciar a base supremacista
“branca” que caracteriza o racismo estrutural na formação de sociedades
como a brasileira. A a rmação da identidade comporta, também, a
“desnaturalização” do racismo, ou seja, a não aceitação como natural de algo
que não é da natureza, e sim resultado da combinação de fatores
econômicos e sociopolíticos.
Os negros brasileiros, acreditamos, não reivindicam a négritude de
Leopold Senghor e Aimé Césaire;58 nem a “personalidade africana” dos
pensadores afro-americanos. O que precisamos, sim, é do reconhecimento
de uma identidade afro-brasilsira, que nos encaminhe e a nossos
descendentes para um futuro de paz, saúde, equilíbrio e desenvolvimento.
Parafraseando Moore (2015, p. 220), a rmamos que a discriminação
racial pode ser coibida por meio de leis e decretos, mas o racismo estrutural,
construído histórica e culturalmente, só pode ser extirpado quando
arrancado pela raiz.
***
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*
Este capítulo foi escrito a partir de conteúdos informados pelo arabista João Baptista M. Vargens,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com quem o autor escreveu o livro
Islamismo e negritude, de 1982.
*
Nas edições anteriores, o nome foi grafado Othman, como em obras de língua inglesa. Outra gra a
usada, em Portugal e Brasil, é Osman.
*
O Reino do Benin localizava-se no leste do território da atual República da Nigéria; e a atual
República do Benin situa-se no antigo território do reino do Daomé.
*
Em 1957, o nome Gana foi dado, em homenagem ao grande império do passado, à antiga colônia
britânica da Costa do Ouro, a primeira da África Ocidental a conquistar independência e estruturar-
se como república.
*
Segundo Diop (1979, p. 348), estudos arqueológicos descobriram em Kumbi Saleh túmulos de
grandes dimensões, sarcófagos, o cinas de metalurgia, ruínas de torres e de diversos edifícios, ou
seja, vestígios de que a cidade já existia à época do Egito faraônico.
*
Sobre Kukya, Diop (1979, v. II, p. 348) diz, citando Pedrals: “a cidade de Koukia, a qual o Tarikh es
Sudan dizia existir já no tempo do Faraó”.
*
Sobre a origem dos iorubás, escreve Diop (1979, v. II, p. 37-382): “não há dúvida de que os Iorubás já
estavam na África numa época muito antiga. Uma série de fatos evidentes leva à conclusão que eles
devem ter se xado durante muito tempo nesta parte do continente conhecida como Antigo Egito
[…]. Abundantes provas de relações profundas entre os antigos Egípcios e os Iorubás podem ser
mostradas neste capítulo. A maior parte dos deuses foram muito bem conhecidos dos Iorubás num
certo momento. Entre esses deuses estão Osiris, Isis, Hórus, Shou, Sout […]. A maior parte dos
deuses sobreviveram com o mesmo nome ou apenas com os atributos ou com os dois […]. Em
iorubá, a-gu-to(n) = carneiro, comparar com ai-gup-tos dos gregos. Este último exemplo parece
provar que a emigração dos Iorubás é posterior ao contato do Egito com os gregos”.
*
Cf. Augustus Pitt Rivers: Antique works of art from Benin. New York. Dover Publications, 1976.
*
O território da atual República do Mali não corresponde exatamente ao do antigo reino de mesmo
nome.
*
Referência a “Sudão Ocidental”, expressão que outrora designava o conjunto dos atuais territórios de
Senegal, Gâmbia, Mali, Guiné-Bissau, Guiné-Conacri, Serra Leoa Libéria, Costa do Mar m, Burkina
Faso, Gana, Togo, Benin e Nigéria, além de partes de Níger e Mauritânia.
*
Sobre o signi cado do termo “Bambara”, recorramos a Paques (1954, p. 1): “Monsenhor Bazin em
1906, no seu dicionário bambara, dava como etimologia de Banmana = os homens do crocodilo,
enquanto que Mani ou Mali signi cariam os do hipopótamo, os dois nomes tendo uma origem
totêmica”. “Para Elisée Réclus em 1887 (Nouvelle géographie universelle, t. XII: L’A/Tique occidentale)
Banmana signi ca: rochedo escarpado. Delafosse (Haut Sénégal Niger) em 11, p. 23 faz uma
distinção entre Bambara e Banmaba. Os Banmana seriam comumente chamados Bambara pelos
Europeus e pelos outros Sudaneses. É a palavra que está no Tarikh es Soudan. Os Muçulmanos
designam sob o nome de Bambara todos os Sudaneses não Muçulmanos. Assim, os Diula de Sikasso
chamam os Senufo de Bambara; os Diula de Odiennê chamam de Bambara os Malinkê não
Muçulmanos. Para Monteil, Bambara viria da raiz Ba = negro”.
*
Sobre a origem dos peules ou fulânis, Diop (1979, v. II, p. 388-389) escreve: “Os Peules, como as
outras populações da África Ocidental, teriam vindo do Egito. Pode-se acolher esta hipótese por um
fato capital, o mais importante talvez que se pôde trazer até o presente. Trata-se da identi cação dos
únicos nomes próprios totêmicos dos Peules com duas noções igualmente típicas das crenças
metafísicas: o ka e o ba […]. O Ka é um ser divino que vive no céu e só se manifesta depois da morte
[…]. Máspero o de niu como um duplo do corpo humano […]. A alma Ba, representada pelo
pássaro Ba, dotado de uma cabeça humana, vive no céu […]”.
*
Para melhor atualização e aprofundamento do tema, recomendamos o volume III da História Geral
da África (do século VII ao XI) (Brasília: UNESCO, 2010).
*
A denominação “Nago” é usada no antigo Daomé, atual Benin, para designar o indivíduo do Reino
de Queto (Ketu), especialmente o pertencente ao grupo Ifonyin (Efã, no Brasil).
*
Ver Altuna (1993, p. 369).
*
Ahmed Sékou Touré, líder político africano, presidente da República da Guiné de 1958 até 1984,
quando faleceu.
*
Animismo é a forma religiosa baseada na crença de que todos os seres da natureza possuiriam uma
alma (anima, em latim) que os impulsiona. A religião tradicional africana se baseia na Força Vital
como propulsora da existência, e não na “alma”.
*
Certamente, espécie de bolsa ou sacola. Observe-se aqui a clara referência ao popular “jogo de
búzios” (cauris), entre muçulmanos da África, em tempo bastante remoto.
*
Processo de consulta à divindade por meio do uso de terra ou areia.
*
Esse posicionamento dos odus, muito importante porque obedece a uma hierarquia, apresenta
variações regionais. Em Abraham (1981, p. 276), Otura aparece como décimo terceiro odu. Da
mesma forma, na tradição lucumí cubana.
*
O babalaô não é um “adivinhador”, e sim um intérprete do oráculo Ifá.
*
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa (2001).
*
Provavelmente, 15 a 25 cruzados antigos (6 mil a 10 mil réis).
*
Gra a francesa para “marabu” ou “marabuto”.
*
O Vocabulário Ortográ co da Língua Portuguesa (VOLP, 2009) consagra a forma “banto”.
*
Adjetivo não contemplado no VOLP da nota anterior.
*
Antiga forma para “iorubana”.
*
Em hauçá: “musulmi”, muçulmano (ROBINSON, 1925).
*
Sistema divinatório de uso exclusivo dos babalaôs.
*
Gra a para o nome “Xangô” usada em textos na língua inglesa.
*
Preferimos a gra a “Iansã”.
*
Praticantes do culto aos orixás.
*
Em 2015, o livro teve sua quarta edição publicada no Rio pela editora José Olympio.
*
Os nupês ou tapas (como são chamados pelos falantes do iorubá, seus tradicionais inimigos) habitam
os vales do Médio Níger e do Kaduna, na Nigéria. A partir do nal do século XVIII começam a ser
islamizados. E na metade do século XIX têm já um rei muçulmano: Malam Dendo (African
Encyclopedia, verbete “Nupe”).
*
Os mahi (Maxi), no Brasil “marrim”, constituem um subgrupo do povo Fon (Jeje), da região de
Savalu, no atual Benin.
*
Ao longo desta citação, a ortogra a foi atualizada.
*
Referência a Henrique Assumano Mina do Brasil (c. 1880-1933), célebre alufá residente na hoje
desaparecida rua Visconde de Itaúna.
*
Antiga estação ferroviária na região de Madureira, na Zona Norte carioca.
*
A expressão “Pequena África”, ao que consta, aparece impressa pela primeira vez neste livro de
Roberto Moura. Ela vem de uma a rmação do artista Heitor dos Prazeres sob o aspecto da Praça
Á
Onze nos carnavais; “Parecia uma África em miniatura”. E passou a denominar a base territorial da
comunidade baiana na cidade do Rio, estendida da antiga Praça Onze até as proximidades da atual
Praça Mauá.
*
O autor parece supor que os nagôs envolvidos não eram islamizados, o que é discutível.
*
Importante líder religioso, provavelmente africano e forro, atuante em Salvador entre 1875 e 1897 e
falecido no Rio de Janeiro em 1926. Praticava, ao que consta, rituais do culto malê ou muçurumim e
gozava de grande prestígio junto à comunidade baiana, inclusive como mentor espiritual da Tia
Ciata.
*
Kabinda, subgrupo dos congos ou bacongos.
*
Segundo Basil Davidson (1981, p. 99), em 1414, embaixadores suaílis viajavam até Pequim, onde
entregavam de presente ao soberano chinês uma girafa, conforme atesta uma gravura chinesa da
época. Sabe-se ainda que já em 628, durante a Dinastia Tang, emissários da África Negra chegavam
à China (ver CORREIO DA UNESCO, 1984, p. 11).
*
Em 1629, com o Zimbábue já bastante reduzido e enfraquecido, o monomotapa Mavura se convertia
ao catolicismo, adotava o nome de Felipe e se declarava vassalo da coroa portuguesa
(GRANGUILHOME, 1979, p. 97).
*
Sobado é a pequena unidade política che ada por um soba, comandante.
*
Corruptela de Mwene-e-Kongo, “Rei do Congo”.
*
Nesse nome composto, e em outros seguintes, o elemento nal designa o clã a que pertencia o
soberano.
*
“Físico” era a denominação do médico clínico, na corte portuguesa. As cartas eram certamente
escritas por padres missionários.
*
Giovanni Antonio Cavazzi da Montecuccolo, missionário italiano, atuante em Angola no século
XVII.
*
Texto traduzido e adaptado de Lema Gwete (1991, p. 67-68).
*
Ver Lopes (2012).
*
Ver: http://inzotumbansi.org.
*
Esta informação é datada de 1984.
*
AFONSO, Nathália. Dia da Consciência Negra: números expõem desigualdade racial no Brasil.
Agência Lupa, Rio de Janeiro, 20 nov. 2019. Disponível em: https://bit.ly/3moZ1Ju. Acesso em: 16
ago. 2020.
*
OLIVEIRA, Mariana. Censo do CNJ aponta que 1,4% dos juízes brasileiros são pretos. G1, 16 jun.
2014. Disponível em: https://glo.bo/3rmTJPq. Acesso em: 16 ago. 2020.
*
JUÍZA será investigada por citar raça do réu em condenação. O Globo, Rio de Janeiro, 13 ago. 2020, p.
22.
*
OLIVEIRA, Flavia. Crime sem trégua, que cansa. O Globo, Rio de Janeiro, 14 ago. 2020, p. 3.
*
Poetas e estadistas fundadores da ideologia da negritude.