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Danicavalcante, Nanci de Freitas O Rei Da Vela Na Mira Da Critica OKAC

O artigo analisa a recepção crítica da encenação de 'O rei da vela', de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina em 1967, destacando seu impacto e reavaliações críticas. A peça, escrita em 1933, foi considerada radical e irrepresentável em seu tempo, mas sua encenação provocou novas discussões sobre teatro e política. O texto também contextualiza a produção teatral brasileira dos anos 1930 e a busca por uma estética moderna e nacional.

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Danicavalcante, Nanci de Freitas O Rei Da Vela Na Mira Da Critica OKAC

O artigo analisa a recepção crítica da encenação de 'O rei da vela', de Oswald de Andrade, pelo Teatro Oficina em 1967, destacando seu impacto e reavaliações críticas. A peça, escrita em 1933, foi considerada radical e irrepresentável em seu tempo, mas sua encenação provocou novas discussões sobre teatro e política. O texto também contextualiza a produção teatral brasileira dos anos 1930 e a busca por uma estética moderna e nacional.

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Concinnitas | Rio de Janeiro | v.23 | n.43 | setembro de 2022

DOI: 10.12957/concinnitas.2022.67433

O rei da vela na mira da crítica – a recepção ao


encontro da peça de Oswald de Andrade (1933)
com a encenação do Teatro Oficina (1967)
Nanci de FreitasI

Resumo: O artigo reflete sobre a fortuna crítica da encenação da peça O rei da vela, de Oswald de
Andrade, pelo Teatro Oficina, em 1967, São Paulo. A peça, escrita em 1933, no contexto do Estado
Novo, foi considerada irrepresentável pela radicalidade de sua forma vanguardista e pelos discursos
marxistas. Porém, quando encenada, provocou grande impacto, instaurando reavaliações críticas.

Palavras-chave: Teatro brasileiro. Oswald de Andrade. O rei da vela.Teatro Oficina. Crítica.

O rei da vela in the eyes of the critics – the reception of Oswald de Andrade’s play
(1933) with the staging of Teatro Oficina (1967)

Abstract: The article reflects on the critical fortune of the staging of the play O rei da vela, by Oswald de
Andrade, by Teatro Oficina, in 1967, São Paulo. The play, written in 1933, in the context of the Estado Novo,
was considered unrepresentable by the radicality of its avant-garde form and by the Marxist discourses.
However, when staged, it had a great impact, instituting critical reassessments.

Keywords: Brazilian theater. Oswald de Andrade. O rei da vela. Teatro Oficina. Criticism.
FREITAS, N.

I Nanci de Freitas é atriz, encenadora e Professora Associada do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro -
UERJ, onde atua no Programa de Pós-Graduação em Artes – PPGArtes. Doutora em Poéticas do Teatro pela Universidade Federal
do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Desenvolve pesquisa nas áreas de Teatro Brasileiro e de Poéticas cênicas contemporâneas,
com ênfase nas relações entre corpo, imagem e performatividade. Diretora do Mirateatro! Espaço de estudos e criação cênica: www.
mirateatro.com/. UERJ - Rua São Francisco Xavier, 524 - Maracanã, Rio de Janeiro - RJ, 20943-000. E-mail: [email protected].
ORCID: Https://orcid.org/0000-0001-7850-9788. Lattes ID: http://lattes.cnpq.br/9463190928135736. Rio de Janeiro, BR.
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O contexto do teatro oswaldiano nos anos 1930: vanguardismo artístico


e ideias políticas

As três peças teatrais mais importantes da dramaturgia de Oswald de An-


drade foram escritas na década de 1930: O rei da vela (1933), O homem e
o cavalo (1933-34) e A morta (1937). Para o escritor modernista, a reali-
dade do período, marcada pela austeridade econômica imposta pela crise
de 1929, exigia embates contra o fascismo e novas experiências estéticas,
introduzindo questões do homem do povo e do operariado. Neste período,
Oswald se ligou ao Partido Comunista, escolhendo o teatro como veículo para
as ideias políticas, sem deixar o exercício da experimentação vanguardista
desenvolvida nos anos 1920. É possível perceber na dramaturgia do autor
elementos que estão presentes em diferentes momentos de sua produção
artística.

Na primeira fase do modernismo, há nas proposições artísticas de Oswald


uma preocupação com a atualização técnica das formas e da linguagem
literária. O Manifesto Pau Brasil (1924) faz a crítica ao academicismo na
arte e às formas de representação: “o trabalho contra o detalhe naturalis-
ta - pela síntese - contra a morbidez romântica - pelo equilíbrio geômetra
e pelo acabamento técnico; contra a cópia, pela invenção e pela surpresa”
(ANDRADE, 1995, p. 43). A busca de uma expressão artística nacional,
no entanto “atualizada”, síntese dos elementos oriundos da miscigenação
étnica e da tensa hibridização que a acompanha, de um lado, e dos meios
tecnológicos, de outro: “bárbaros crédulos, pitorescos e meigos. Leitores
de jornais. Pau Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha,
o minério e a dança. A vegetação. Pau Brasil” (p. 45). Na segunda fase,
marcada pela publicação do Manifesto Antropófago (1928), reiterava-se os
aspectos modernistas, ao mesmo tempo em que valorizava o primitivismo
na cultura brasileira, aproximando-se de propostas formais das vanguardas
europeias. A liberdade de criação: “Roteiros. Roteiros. Roteiros. Roteiros.
Roteiros. Roteiros. Roteiros” (p. 49). Na antropofagia, a utopia de uma nova
sociedade justa e igualitária, identificada com os princípios do matriarcado,
reação ao patriarcado que, na avaliação oswaldiana, fora tendendo, na his-
tória da civilização, às formas de organização centralizadoras e autoritárias,
garantidas pela propriedade e pela monogamia. No bojo dessa utopia se
encerra a crítica ao capitalismo e aos modos de produção que transformaram
o homem em escravo do negócio, roubando-lhe o prazer no trabalho e o
ócio criativo. Ideias que foram aprofundadas pelo escritor, nos anos 1950,
em A Crise da filosofia Messiânica.

No âmbito artístico, o teatro oswaldiano segue a proposta de um dinamismo

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cênico: “Ágil o teatro, filho do saltimbanco. Ágil e ilógico” (p. 41). Sem perder
o contato com as manifestações populares, se expressa na plasticidade e no
ritmo do mundo moderno: “Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas
turbinas elétricas, nas usinas produtoras, nas questões cambiais, sem perder
de vista o Museu Nacional”, como nas palavras do Manifesto Pau Brasil (p.
44). Os textos teatrais de Oswald encenam questões que aparecem em seu
pensamento antropofágico, pontuado ao longo de sua obra. Em termos de
conteúdo busca-se a desmontagem e explicitação de determinados processos
políticos, econômicos, sociais, artísticos e históricos: as fissuras do poder
econômico brasileiro, deflagradas no desvario do capitalismo e da luta de
classes, presente em O rei da vela; a resposta do poeta ao reacionarismo e o
seu desejo de intervenção pública da poesia e transformação da realidade e
da arte, em A morta; a crítica ao patriarcalismo, na demonstração da falência
de instituições como o cristianismo, o casamento monogâmico e a sociedade
capitalista, presente na interpretação da história em O homem e o cavalo.

As peças de Oswald de Andrade, consideradas pela crítica de difícil leitura


e recepção, devido à linguagem construída à margem de uma dramaturgia
convencional, não alcançaram a encenação quando foram escritas. Os textos
não foram assimilados pelo “sistema teatral” vigente na primeira metade
do século XX, quando se estabeleciam os rumos da modernização do palco
brasileiro (BRANDAO, 2001).1 As condições da cena brasileira nos anos 1920
e 1930 ainda eram rudimentares. Ressalta-se, nesse debate, a ausência de
uma produção teatral inovadora no programa estético do modernismo e
na Semana de Arte de 1922. No editorial do primeiro número da revista
Klaxon, de 15 de maio de 1922, órgão difusor do modernismo, o cinema é
mencionado, numa oposição ao teatro tradicional:

Klaxon sabe que o cinematógrafo existe. Pérola White é preferível a Sarah Bernhardt.
Sarah é tragédia, romantismo sentimental e técnico. Pérola é raciocínio, instrução,
esporte, rapidez, alegria, vida. Sarah Bernhardt = século 19. Pérola White = século 20.
A cinematografia é a criação artística mais representativa da nossa época. É preciso
observar-lhe a lição (Apud TELES, 1987, p. 295).

1 Tania Brandão, no ensaio “Teatro Brasileiro do século XX: as oscilações vertiginosas”


(2002), em diálogo com o conceito de “sistema literário” de Antonio Candido. Ela reflete
com historiografias e críticas para demonstrar a mecânica do “sistema teatral brasileiro”,
entendido como um conjunto de fatores que teria determinado a organização das ativida-
des cênicas, no século XIX, e norteado o mercado teatral no Rio de Janeiro e em São Paulo,
principal eixo cultural do país, durante o século XX.

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O quadro da produção teatral na década de 1920 era desanimador, como


apresentado pelo crítico modernista Antônio de Alcântara Machado2, cujos
escritos fizeram um esforço de reelaboração do teatro brasileiro. Duas ten-
dências eram garantia de sucesso: as companhias estrangeiras com seus
atores e cantores líricos, voltadas para um público seleto; e os espetáculos
nacionais que, em geral, exploravam o gosto pela comédia ligeira, pela farsa
e a revista, atraindo uma faixa mais popular do público. Como diz Cecília de
Lara, o interesse era por situações propícias ao riso: “Empresários, come-
diógrafos, atores, procuravam os efeitos fáceis que provocavam a resposta
imediata do público” (LARA, 1987, p. 41). 3

As tentativas de implantação de procedimentos cênicos modernos se rea-


lizaram no teatro amador, com as contribuições de Álvaro Moreyra e seu
Teatro de Brinquedo, no Rio de Janeiro, e Flávio de Carvalho, com o Teatro
da Experiência, em São Paulo, mas sem alcançar eco na rotina da vida teatral.
Como mostra Décio de Almeida Prado (1988), as inquietações político-sociais
dos anos 1930 repercutiram nas tentativas de renovação da dramaturgia: na
presença do pensamento de Karl Marx no texto Deus lhe pague, de Joracy
Camargo; nas ideias de Freud em Sexo, de Renato Vianna; e na defesa do
divórcio em Amor, de Oduvaldo Vianna. As inovações apresentadas pelos
textos restringiam-se à ordem temática, pouco acrescentando para uma
discussão das formas dramatúrgicas, mantendo-se no âmbito da “peça de
tese”, típica do século XIX. Apesar dos espetáculos terem obtido grande
êxito de público, em nada contribuíram para o avanço das questões relativas
ao espetáculo teatral. 4

Oswald de Andrade escreveu suas três peças nesse contexto dos anos 1930. Ao
mesmo tempo em que elabora um teatro crítico com características estéticas
de vanguarda, o escritor dialoga com manifestações populares brasileiras, como
as procissões religiosas, carnaval e teatro de revista. Nesse sentido, retoma

2 Alcântara Machado escreveu críticas de teatro de 1926 até sua morte, em 1935. Publi-
cou no 1º número da revista Terra Roxa e Outras Terras (1926) e em um capítulo de
Cavaquinho e Saxofone, coletânea póstuma de crônicas publicada em 1940.
3 Segundo F. M. Ogawa, “entre as 174 peças nacionais apresentadas no Rio de Janeiro,
no triênio 1930-1932, apenas duas intitulavam-se dramas, contra 69 revistas e 103
comédias”. Citado por Décio de Almeida Prado, em O teatro brasileiro moderno (PRADO,
1988, p. 20).
4 A companhia de Procópio Ferreira encenou Deus lhe pague e a Companhia Dulcina-O-
dilon encenou Amor.

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parte das propostas do crítico Alcântara Machado, que atacava a cultura nacio-
nal tradicionalista propondo a busca do “primitivismo nativo” e da brasilidade
autêntica. O processo de modernização da cena deveria começar por banir o
teatro de costumes e as influências das companhias de Portugal e da França,
que chegavam ao país com óperas e peças mal ensaiadas. Propunha uma dupla
tarefa, a princípio contraditória: a universalização e a nacionalização do teatro
brasileiro. Do teatro moderno deveríamos nos apropriar das técnicas drama-
túrgicas (em especial, a poética de Luigi Pirandello), mas a matéria dramática
deveria ser encontrada em solo brasileiro, captando as formas mais genuínas
da nossa sociedade, que remontam aos autos de Anchieta (origens religiosas
do nosso teatro) e ao circo. Para Machado, o teatro de revista se apresentava
de modo singular por seus aspectos paródicos e híbridos, tornando-se nosso
autêntico gênero teatral: “Brasileirismo só existe na revista e na burleta. Essas
refletem qualquer coisa nossa. Nelas é que a gente vai encontrar, deformado
e acanalhado embora, um pouco do que somos. O espírito do nosso povo
tem nelas o seu espelhinho de turco, ordinário e barato” (MACHADO apud
PRADO, 1993, p. 22).

Embora aparentada com gêneros populares como o vaudeville, a opereta


e a mágica5, a revista, que surgiu nos teatros de feira de Paris, por volta de
l7l5, com o nome de revue de fin d’année, assumiu uma linguagem peculiar:
“espetáculo ligeiro, misto de prosa e verso, música e dança, apresentando,
por meio de inúmeros quadros, uma resenha que passava em revista fatos
sempre inspirados na atualidade, utilizando jocosas caricaturas” (VENEZIA-
NO, 1996, p. 28). O teatro de revista aportou no Rio de Janeiro e encantou
Arthur Azevedo, que fez sua incursão no gênero, em 1878, alcançando
enorme popularidade em 1884, com O mandarim, texto de Arthur Azeve-
do e Moreira Sampaio, dupla que marcou a história da revista no Brasil. O
cosmopolitismo da capital do país possibilitava o intercâmbio com o teatro
francês, português e espanhol, estimulando a produção local. A “revista
brasileira”, assimilada da França com seus aspectos cômicos, satíricos e rit-
mo vibrante, adquiriu uma formalização própria, justamente pelo contato
com os aspectos visuais e musicais do carnaval do Rio de Janeiro, que vinha
dos desfiles de corsos e “blocos de sujos”, como o do Zé Pereira. A revista
carioca se tornaria palco do desfile de tipos sociais, personalidades ilustres

5 A opereta (ou ópera bufa) era uma espécie de sátira à solenidade da ópera, firmada
com Jacques Offenbach; e a mágica, um gênero de ação fantástica e sobrenatural, deri-
vado da féerie francesa (PRADO, 1997, p. 15-30).

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e fatos políticos, formando um painel de referências da cidade e do país,


mas, aos poucos, perderia o humor ingênuo e a crítica de costumes para
aderir ao luxo e à monumentalidade da féerie, tornando-se um espetáculo
de variedades. A partir de 1929, com a influência dos musicais norte-ameri-
canos, se aproximaria da forma de um show (VENEZIANO, 1991, p 25-53).

Muitos aspectos do teatro de variedades e da revista comparecem nas peças


de Oswald, que parece querer alcançar um público amplo, não se restringindo
à intelectualidade e aos artistas de vanguarda. Mesclando tradições popu-
lares com formas modernas, os textos, de modo geral, assumem uma voz
híbrida, dirigindo o leitor/espectador tanto para o âmbito literário quanto
para as preocupações morais e sociais.

Os historiadores de teatro, de modo geral, concordam com a importância


da dramaturgia de Oswald de Andrade, reconhecendo sua veiculação de um
pensamento teatral novo, no entanto, sem se vincular, diretamente, à criação
de uma cena moderna no país. O caráter demolidor e o excessivo impulso
paródico das peças, junto às temáticas ideológicas, talvez tenham dificultado
sua recepção. Contradizendo as perspectivas históricas dominantes, que já
haviam decidido pela “irrepresentabilidade” dos textos de Oswald, aconte-
ceu a encenação de O rei da vela pelo Teatro Oficina, em 1967, provocando
grande impacto junto ao público e instaurando uma desmontagem dessas
avaliações críticas mais correntes.

A peça O rei da vela: teatro de vanguarda e velhas técnicas populares,


incoerências políticas e surrealismo brasileiro

A peça O rei da vela, escrita no contexto sócio-cultural do Estado Novo, pro-


move um ataque à burguesia, ao processo capitalista brasileiro e à hipocrisia
da família conservadora. Utilizando-se de humor grotesco e da paródia de
diversos gêneros teatrais populares, o texto se estrutura como um desfile de
personagens para ironizar os padrões habituais de gosto. No primeiro ato da
peça, as ações acontecem no escritório de usura de Abelardo I, uma espécie
de “burguês nativo”, que mantém seus clientes endividados atrás de uma
jaula de ferro. Ele ordena que todas as dívidas sejam executadas, enquanto
os enjaulados suplicam, atuando como um coletivo. As Vozes são acuadas
sob o chicote e o revólver de Abelardo II, assistente de Abelardo I. Diz a ru-
brica: “Uma coleção de crise, expectante, arruinada” (ANDRADE, 1976, p.
25). Após a cena melodramática, as seguintes personagens “desfilam” pelo
escritório do agiota: Heloisa, a lésbica filha de um aristocrata rural falido, que
negociou seu casamento com Abelardo I; o oportunista escritor Pinote; e

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Mr. Jones, representante do imperialismo americano. Uma configuração do


caos econômico-social pelo qual passava a sociedade brasileira ante a crise
internacional de 1929. A vela pode ser vista como frágil produto de uma
sociedade pouco desenvolvida, sem meios técnicos, alegoria de um regime
de exploração humana. A vela como imagem da vida que se consome como
tênue luz na escuridão dos tempos.

O segundo ato se passa numa ilha tropical na Baía da Guanabara, Rio de


Janeiro. Nesse cenário, se estabelece uma “Frente Sexual Única”, na qual
a oligarquia paulistana decadente estabelece o conchavo com a burguesia
industrial (Abelardo I) e com os bancos hipotecários (o Americano), ambos
com interesses no brasão aristocrático do país. A descrição do cenário lembra
um “quadro de fantasia”, típico do teatro de revista:

Durante o ato, pássaros assoviam exoticamente nas árvores brutais. Sons de motor.
O mar. Na praia ao lado, um avião em repouso. Barraca. Guarda-sóis. Um mastro com
a bandeira americana. Palmeiras. A cena representa um terraço. A abertura de uma
escada ao fundo, em comunicação com a areia. Platibanda cor de aço com cactos
verdes e coloridos em vasos negros. Móveis mecânicos. Bebidas e gelo. Uma rede do
Amazonas. Um rádio. Os personagens se vestem pela mais furiosa fantasia burgue-
sa e equatorial. Morenas seminuas. Homens esportivos, hermafroditas, menopausas
(ANDRADE, 1976, p. 55).

Ao exuberante quadro tropical, conjugam-se sinais indicadores do estilo de


vida burguesa e produtos da modernização, tais como os sons do motor de
uma lancha, um avião, móveis mecânicos e rádio. A entrada das personagens
sugere o modo de apresentação dos elencos das revistas, com suas bizarras
caracterizações:

Pela escada, ao fundo, surgem primeiramente, em franca camaradagem sexual, He-


loísa e o americano. Passam pela direita. Depois, Totó Fruta-do-Conde, tétrico. Sai.
Em seguida, D. Poloca e João dos Divãs. Saem. Depois o velho Coronel Belarmino,
fumando um mata-rato de palha e vestido rigorosamente de golfe. Sai. Segue-se-lhe
um par cheio de vida: D. Cesarina, abanando um leque enorme de plumas, em maiô
de Copacabana, e Abelardo I, com calças cor de ovo e camiseta esportiva (p. 55-56).

Abelardo I, o capitalista rei da vela, esperança de salvação da arruinada fa-


mília do Coronel Belarmino, se mantém no centro da cena e, em torno dele
desfilam as personagens citadas.

No terceiro ato, de volta ao escritório paulistano, Abelardo I se suicida, golpe-


ado pela crise do próprio sistema econômico. Aberlado II toma posse de sua

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fortuna e de sua noiva Heloisa. Uma tragicomédia brasileira, representação


alegórica de uma sociedade burguesa que sempre agoniza e se reconstitui
em conchavos políticos, que em nada mudam as regras do jogo do capital
e das forças políticas conservadoras. A peça procura pontuar aspectos
de um panorama da crise política, no qual grupos de tendências políticas
consideradas de esquerda defendem interesses das classes proletárias. As
alianças entre frentes democráticas e setores conservadores da República
Velha, contudo, indicam continuidade dos interesses da burguesia e das
elites dirigentes do governo Vargas.

Iná Camargo Costa (1996) analisa a relação entre forma e conteúdo na peça
O rei da vela, apontando falhas dramatúrgicas e incoerências políticas. Em
sua opinião, o esquematismo das posições, consideradas marxistas e revo-
lucionárias pelo próprio autor, não passavam de declaração de adesão ao
credo stalinista. Sendo dramaturgia moderna, o discurso “revolucionário”
precisaria valorizar não apenas os enunciados, mas também o modo como
se encontram enredados emissores e receptores. A problemática estaria
na forma de uma farsa em chave de “drama conversação”, nos parâmetros
do “teatro de tese”, com a exposição pelo diálogo de pequenas situações
dramáticas. Concentrando a ação nos protagonistas/antagonistas Abelardo
I/Abelardo II, o dramaturgo usaria a “técnica do desfile” 6 para apresentar as
outras personagens, à maneira circense, velho recurso da comédia brasileira,
desde Martins Pena (COSTA, 1996, p. 151).

A referência ao “drama conversação” vem de Peter Szondi (2001): uma das


tentativas de salvação do drama diante das contradições históricas entre os
novos conteúdos e as formas rígidas canônicas. No gênero “conversação”,
o diálogo deixaria de ser o lugar em que a subjetividade das personagens
ganha objetivação, tornando-se a própria conversação o tema principal da
peça, abordando questões como: a condição feminina e o direito ao voto;
liberdade sexual e o divórcio; sociedade industrial e o socialismo. Remetendo-
-se à pièce bien faite, o gênero marcaria a dramaturgia francesa e inglesa do
final do século XIX, constituindo-se em norma, no início do século XX. Para
Szondi, apesar da aparência moderna dessas peças, sugerida pelos temas
da atualidade, o resultado formal era convencional, na medida em que os
diálogos não permitiam definir historicamente os homens, transformando-os

6 A autora analisa detidamente a “técnica do desfile”, no artigo A comédia desclassifi-


cada de Martins Pena, in Sinta o drama (1998, p. 125/155).

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em uma tipologia da sociedade real (SZONDI, 2001, p. 105-108).

De fato, em O rei da vela a conversação serve de suporte para o debate de


teses, especialmente no 1º ato, mas não se trata de uma estrutura textual
do tipo “peça-bem-feita” já que o texto recorre a gêneros, linguagem colo-
quial, recursos cênicos e aspectos do teatro popular, resultando numa forma
difusa. Concordo com a presença da técnica do desfile, que, aliás, vinda de
manifestações teatrais cômico-populares, quebra com a noção estrita de
teatro de tese e com as normas dramáticas.

Na análise de Iná Camargo Costa, a personagem Abelardo I acumula vá-


rias funções na trama: como protagonista é um nouveau riche e pratica a
agiotagem (foi pobre e atuou no Partido Comunista, mas traiu seus ideais,
tornando-se um grande capitalista); como raisonneur7 representa as ideias
do autor, que coloca em sua boca um discurso marxista, refletindo sobre o
retrocesso do capitalismo brasileiro nas tentativas de modernização da nossa
economia. A tese desenvolvida por Oswald, colocando Abelardo I como um
traidor de sua classe e dos ideais partidários, representaria uma crítica a
determinadas ideias do partido, como a de que seria possível assaltar “por
dentro” a cidadela capitalista. Afirma a pesquisadora:

Enquanto o olhar do aristocrático ridiculariza o agiota sem modos, o stalinista ri-


diculariza a peça na engrenagem e ao mesmo tempo, por um curioso processo de
identificação (seria projeção do desejo?), permite que essa mesma peça faça uma
abundante crítica verbal da situação toda, desde a sua, individual, até a do país, preso
na rede do imperialismo. Resumindo: para além do óbvio – o próprio dramaturgo é
um aristocrata temporariamente stalinista -, pode haver alguma verdade de maior
alcance sobre o stalinismo nessa operação. E do ponto de vista estético, a existên-
cia de um personagem sobrecarregado de funções e determinações se explica em
primeiro lugar como fruto de uma dupla operação ideológica, com resultados no
mínimo inconsequentes. Uma dessas inconsequências, para ficar apenas com a mais
grave – sendo o dramaturgo um militante do Partido Comunista com evidente pro-
pósito de fazer propaganda do programa partidário -, é a de que o discurso comunis-
ta ficou totalmente desprovido de credibilidade em função do caráter (ou falta de)
do seu emissor (COSTA, 1996, p. 160).

7 Raisonneur : “personagem que representa a moral ou o raciocínio adequado, encar-


regado de fazer com que se conheça, através de seu comentário, uma visão ‘objetiva’ ou
‘autoral’ da situação. Ele nunca é um dos protagonistas da peça, mas uma figura marginal
e neutra, que dá a sua opinião abalizada, tentando uma síntese ou uma reconciliação dos
pontos de vista. Muitas vezes é considerado porta-voz do autor” (Pavis, 1999, p. 323).

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Abelardo II também seria uma personagem contraditória. Apesar de agir como


capacho de Abelardo I, adquire o status de antagonista, como representante
dos socialdemocratas, provocando a ruína e o suicídio do patrão, tomando
o seu lugar. A virada de “um social democrata golpeando mortalmente um
capitalista”, além de incoerente dramaticamente, é considerada inverossímil
historicamente, diz Iná Camargo Costa (p. 165).

Para o pesquisador, Sérgio Ricardo de Carvalho Santos (2003), em racio-


cínio semelhante ao de Iná, a incongruência entre enunciado e forma de
enunciação seria exatamente o problema da peça O rei da vela, que, em sua
opinião, foi escrita no rastro de duas experiências dramatúrgicas: Adão, Eva
e outros membros da família, de Álvaro Moreyra, no Teatro de Brinquedo
(1927); e a comédia Deus lhe pague, de Joracy Camargo (1932), sucesso
na interpretação de Procópio Ferreira. O rei da vela seria, dentre as peças de
Oswald, a de estrutura mais convencional, apesar de, paradoxalmente, ser a
de maior alcance crítico, por tentar escancarar “o difícil auto-reconhecimento
da burguesia brasileira” (SANTOS, 2003, p.140). As bases formais do texto
estariam entre “o jogo do vai e vem entre a sátira à burguesia nacional em seu
momento de acordo com as velhas elites, e a ironia para com a representação
burguesa em suas velhas formas teatrais (no entanto praticadas pelo autor)”
(p. 141). A confusão viria da tentativa de negação da estrutura dramática
tradicional, conjugando aspectos de gêneros populares que, “utilizados como
referências exteriores, confundem-se na fatura de sua obra com a técnica
conversacional que tenta distanciá-los como gêneros burgueses”, diz Sérgio
Carvalho (p. 141). As quebras na ação, remetendo-se às formas grotescas
e circenses, também utilizadas no Ubu Rei de Alfred Jarry, são adaptadas
ao teatro de tese. Sem apresentar as causalidades sociais nas experiências
das personagens, Oswald se afastaria do “caminho de um realismo irônico,
que poderia, quem sabe, ter conduzido a peça a uma subversão épica da
evolução dramática”, aproximando-se do estilo Brecht, “mestre em inverter
o moralismo burguês”, diz Sérgio Carvalho (p. 142-145).

Carlos Gardin (1995) fez uma leitura sincrônica entre o teatro épico de Bre-
cht e o teatro antropofágico de Oswald de Andrade, demonstrando como,
apesar de contextos diversos, apresentam similaridade em nível temático e
estrutural, buscando uma função social para a linguagem artística. É certo
que suas peças utilizam o jogo teatral para alcançar o caráter didático, con-
tudo, a “desdramatização” da cena proposta pelos dois realiza-se de modos
diversos. Brecht exercitava as quebras cênicas e formas alegóricas para pro-
vocar o distanciamento crítico sem desejar a fusão das partes, ao contrário,
propondo-se a uma recepção mediada. No entanto, na composição final, os

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elementos contrastantes interagem, dialeticamente, alcançando objetividade


e uma totalidade de sentido para a leitura das ideias que se pretende discutir.
Como mostrou Peter Burger (1993), Brecht, apesar de recusar o teatro da
burguesia intelectual, não compartilhava a trilha vanguardista na destruição
da arte, propondo-se a transformar a função do teatro no âmbito do sistema
artístico. Oswald está comprometido com as vanguardas e deseja questionar
o modo de funcionamento do “sistema teatral brasileiro” de modo irônico
e anárquico. Seu teatro apresenta traços épicos, mas não tem pretensão
científica, transbordando os sentidos e desejando que o leitor/espectador
vivencie uma recepção pela linguagem. As contradições do escritor, tanto
no que diz respeito à consciência ideológica quanto à composição de textos,
parece se resolver no pensamento antropofágico, no modo como ele articula
textos e imagens de outrem, operando um processo de montagem artística,
que caracteriza a particularidade de sua invenção criadora.

As críticas de Iná Camargo Costa e de Sergio Carvalho às soluções formais,


aparentemente incongruentes, da peça O rei da vela revelam, realmente, o
modo como forma e conteúdo são tensionados no texto. Apesar disso, po-
demos pensar na veiculação de discursos com outras funções. Por exemplo,
Patrice Pavis fala do retorno do raisonneur no teatro contemporâneo como
forma paródica, que seria “simples manobra discursiva, não representando
nem o autor, nem o bom senso, nem o resultado dos diferentes pontos de
vista, uma norma da qual o autor caçoa sem deixar de salvar as aparências”
(PAVIS, 1999, p. 323). O caráter formal híbrido de O rei da vela, delibera-
damente montado por Oswald (apresentação de teses através do diálogo
e o desfile de personagens que as ilustram), pode revelar alguns aspectos
de invenção de sua estrutura, numa apropriação diferenciada das “velhas
técnicas teatrais”, com vistas a uma desestabilização não apenas dessas
mesmas técnicas, mas também dos discursos nelas veiculados.

A encenação de O rei da Vela pelo Teatro Oficina – ruptura estética e des-


concerto da crítica

A peça O rei da vela só alcançou os palcos, em 1967, pelo Teatro Oficina, em


São Paulo, tornando-se um marco do moderno teatro e da cultura brasileira.
A virulência com que a peça mostrava o Brasil da década de 1930 (projetada
no Brasil dos anos 1960) só conseguiria ser percebida quando a arte inter-
nacional se voltava para seu sentido como linguagem de invenção, afirmou
o diretor José Celso Martinez Corrêa, em O rei da vela: manifesto do Oficina

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(1998)8. A redescoberta de Oswald permitiu ver “a super teatralidade” de


seu teatro, configurado enquanto “uma arte teatral síntese de todas as artes
e não-artes, circo, show, teatro de revista, etc”, que iria superar o “raciona-
lismo brechtiano” (CORRÊA, 1998, p. 89). A peça O rei da vela sugeria um
tipo especial de “surrealismo brasileiro”, com a quebra de barreiras entre
os gêneros, numa estética da carnavalização que, “fora Nelson Rodrigues,
Chacrinha talvez tenha sido o seu único seguidor sem sabê-lo”, diz José Celso
(p. 90). A encenação de O rei da vela tornou-se célebre, em parte, pela forma
como o diretor “desenhou” cenicamente cada ato, valendo-se da paródia de
três gêneros de espetáculos populares: o circo, a revista carioca e a opereta.
A liberdade proposta pelo autor da peça conduziu o diretor à tentativa de
“reencontrar um clima de criação violenta em estado selvagem” (p. 89).

No primeiro ato, José Celso levaria em conta uma das primeiras rubricas
da peça: “pela ampla janela entra o barulho da manhã na cidade e sai o das
máquinas de escrever da ante-sala” (ANDRADE, 1976, p. 11). As cenas
ganharam “uma forma pluridimensional, futurista, na base do movimento
e na confusão da sociedade grande”, utilizando-se de recursos estilísticos
que iam da “demonstração brechtiana ao estilo circense (jaula), ao teatro
de variedades, teatro no teatro” (CORREA, 1998, p. 90). A configuração
do segundo ato da peça, que se passa numa ilha da Baía da Guanabara, foi
solucionada na montagem do Teatro Oficina pelo cenógrafo Helio Eichbauer,
com um telão de fundo verde e amarelo (recurso típico do teatro de revista),
diante do qual se ostentava um mastro com a bandeira americana. No cenário
carioca, a burguesia progressista vai gozar o ócio e a utopia da farra brasileira.
Diz o encenador: “a única forma de interpretar essa falsa ação, essa maneira
de viver pop e irreal, é o teatro de revista, a Praça Tiradentes” (p. 90). O
terceiro ato, com a morte de Abelardo I, representaria a agonia perene da
burguesia brasileira, “das tragédias de todas as repúblicas latino-americanas,
com seus reis tragicômicos vítimas do pequeno mecanismo da engrenagem”,
diz José Celso. Estrutura que envolve “forças ocultas, suicídios, renúncias,
numa sucessão de Abelardos que não modifica em nada as regras do jogo”.
A forma encontrada para emoldurar esse ato foi a do “nosso pobre teatro
de ópera, com a cortina econômica de franjas douradas pintadas” (p. 92).

A recepção da crítica ao espetáculo O rei da vela foi polêmica. Alberto


D’Aversa, em sete críticas publicadas no Diário de São Paulo, em setem-

8 Texto escrito durante os ensaios da peça, em 1967, publicado no programa da peça.

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bro de 1967,9 analisou a peça e a montagem do Teatro Oficina a partir de


pressupostos sociológicos, tendo em vista seus significados e articulações
com o real. O crítico reconhece a importância da peça O rei da vela para a
dramaturgia brasileira, enxergando em Oswald de Andrade “o artista, civil e
politicamente, mais sintomático da época em que viveu: ajuda a esclarecer
a situação moral e cultural do Brasil-Estado Novo, e contribui para colocar
na devida luz as causas que nos levaram à presente situação” (D’AVERSA,
1996, p. 19). Entretanto, ele discorda da concepção adotada pela encenação
de José Celso, que teria prejudicado a compreensão do texto: os valores
humanos foram substituídos por recursos espetaculares e a personagem
Abelardo I transformada em tipo ou marionete; Renato Borghi, sem ter
tipo físico apto para sua composição, não suportou o peso. Além disso, uma
leitura equivocada das ideias de Oswald teria exacerbado preconceitos de
ordem sexual, típicos da classe dominante brasileira:

Fomos para a revelação de Oswald de Andrade e assistimos à orgia desenfreada de um


diretor parado nas sugestões de uma vanguarda de trinta anos atrás, mal assimilada
e tetricamente reproduzida. Não podemos mais admitir a sátira do pederasta, da lés-
bica, do coronel ou da velha tia (como dos miseráveis, dos mortos de fome etc.) nos
moldes de um teatro de revista (...) com desculpas de ironização de um costume; se-
jamos honestos conosco mesmos: isso se chama “apelação”, golpe baixo, confirmação
(e áulica) de mau gosto (p. 22).

Décio de Almeida Prado (1987) também escreveu uma crítica à encenação


de O rei da vela pelo Teatro Oficina.10 Em relação ao texto, ele destacava,
positivamente, a incorporação de aspectos cômicos, grotescos e paródicos,
mas ressaltava seu colapso sempre que Oswald abandonava a iluminação
lírica ou satírica, para propor tiradas literárias e filosóficas. Assim como perdia
a relação orgânica com o público, no desejo de inserção na peça de lições
recentemente apreendidas e mal assimiladas, relativas ao ideário marxista
e proposições formais pirandelianas. Quanto à encenação, descrita como
barroca, carregada, inventiva, picaresca, apesar da perda de ritmo produzida
pelo excesso, alcançava, com a escolha do expressionismo grotesco e refe-
rências às metáforas circenses, alguns instantes de altíssima dramaticidade,

9 As críticas de Alberto D’Aversa estão na revista O Percevejo nº 4 (1996, p. 15/22).


10 Crítica: Estado de São Paulo, em 20.10.1967. In: Exercício findo (Prado, 1987, p.
220/226).

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mas a explicitação da carga de sexualidade resultava redundante, de gosto


duvidoso. As fulgurações e intuições cênicas descontínuas dialogavam com
a obra do escritor, que também não poderia ser definida como equilibrada
e homogênea. Termina, contudo, afirmando que a encenação apresentava
“oscilações em quantidade suficiente para iluminar o teatro brasileiro durante
vários anos” (PRADO, 1987, p. 220/226).

De modo geral, houve entre os críticos uma rejeição à apropriação, na


montagem, de elementos de gêneros teatrais considerados inferiores e de
mau-gosto, como o teatro de revista. Gustavo Dória, em Moderno Teatro
Brasileiro – crônica de suas raízes, de 1975, faz um registro dos grupos que
participaram do processo de modernização da cena, de 1920 a 1960. Em
relação a O rei da vela, ele afirma:

Os nossos mais esclarecidos homens de teatro por várias vezes pensaram na possibi-
lidade de montar um Oswald de Andrade, recuando sempre diante da fragilidade de
seus textos, curiosos e pitorescos, elaborados à maneira dos textos de revista da épo-
ca em que foram escritos, difíceis, entretanto de chegar a constituir um espetáculo
sem larga dose de contribuição de um diretor (DÓRIA, 1975, p. 172).

Contribuição a que José Celso Martinez Corrêa se predispôs, aproveitando


a onda tropicalista que surgia no movimento artístico brasileiro, porém, na
opinião de Dória, não conseguindo realizar obra teatral de maior importância,
apenas um teatro de choque repleto de achados, cujo único êxito teria sido
alcançar o escândalo pretendido.

Yan Michalski, diferentemente dos críticos citados, considerou o uso dos


procedimentos antropofágicos, na montagem, de rendimento estético
eficaz, representando uma ruptura com a produção teatral brasileira. Em
crítica publicada no Jornal do Brasil, de 16 de janeiro de 1968, Michalski11
afirmou, ao contrário de Alberto D’Aversa, que a chave para a interpretação
da encenação de O rei da vela, pelo Teatro Oficina, residia na eficácia da
relação texto-espetáculo. A interpretação vibrante dos atores, em perfeita
adequação à irreverência da montagem, era um dos aspectos que mais
empolgava o crítico, que vislumbrava o surgimento de um moderno estilo
brasileiro de interpretação: “uma fusão de técnicas modernas de anti-ilusio-
nismo com nossas características nacionais de malícia grossa e avacalhada”.

11 As críticas de Yan Michalski foram publicadas na revista O Percevejo, nº 4, 1996, p. 25/28.

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Afirma o crítico:

Renato Borghi conduz o espetáculo com uma intensidade de concentração de meios


vocais, físicos e nervosos, verdadeiramente, espantosa. Há algo de patético nesse de-
sempenho, no qual um ator relativamente franzino e fisicamente limitado consegue
se transformar, pela força de sua interpretação, num enorme e repelente fantoche,
uma espécie de Ubu rei brasileiro. Vendo Renato Borghi interpretar Abelardo I, é fácil
chegar à conclusão de que acabou a era dos monstros sagrados: por mais que nos
agrade ainda assistir aos fogos de artifício de alguns deles, é evidente que estamos no
tempo dos atores tipo Renato Borghi, que sabem trabalhar, explorar e canalizar, com
dedicação, disciplina e inteligência os recursos – às vezes originalmente não muito
brilhantes – que a natureza lhes deu (MICHALSKI, 1996, p. 28)

Para Victor Hugo Adler Pereira, no artigo O rei e as invenções possíveis


(1995), a montagem de O rei da vela, realizando uma ruptura com padrões
estéticos e morais burgueses, vinculava o trabalho do Teatro Oficina a ten-
dências dominantes da segunda etapa do vanguardismo internacional do
século XX. Isso passava a exigir posicionamentos da crítica diante da nova
realidade cênica brasileira, no entanto, boa parte das avaliações recusava a
fragmentação das personagens e a ênfase na exacerbação sexual, nos as-
pectos do homossexualismo e do lesbianismo. Na opinião do pesquisador,
a caracterização não realística das personagens e sua ambiguidade sexual
estariam na base da formulação teórica marxista do texto, como crítica à
decadência burguesa, apresentada numa visão metafórica de suas forças
sociais. A representação caricatural e farsesca das personagens fora cons-
truída como paródia do discurso psicanalítico e como procedimento estético
de características expressionistas, o que iria aparecer, na década seguinte,
também na obra de Nelson Rodrigues (PEREIRA, 1995, p. 169).

Revisão crítica de Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi

No ensaio O teatro e o modernismo, de 197212 ano das comemorações do


cinquentenário da Semana de 22, Décio de Almeida ganha o distanciamento
necessário para aprofundar suas reflexões sobre o encontro do texto de O
rei da Vela com a montagem de 1967, afirmando:

Foram necessários mais de trinta anos, todo o giro de uma ou duas gerações literárias
para que O rei da vela readquirisse, ao contato com a juventude de 1967, a sua pró-
pria juventude. As anunciadas mudanças políticas afinal não tinham sido realizadas.
A burguesia, dada como morta dezenas de vezes, continuava viva como nunca. O

12 O teatro e o modernismo. In: Peças, pessoas, personagens (Prado, 1993).

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povo, mesmo nos países chamados agora socialistas, ocupava o lugar subalterno que
sempre fora o seu. Já que a Revolução não se fazia, que se fizesse ao menos a Revolu-
ção Cultural. A destruição, pela violência ou pelo riso, voltou a ser considerada como
na arrancada inicial do modernismo, o primeiro passo verdadeiramente construtivo.
Pintura, literatura, música e teatro oscilaram em suas bases – sobretudo o teatro. Era
preciso, outra vez, começar pelo princípio (PRADO, 1993, p. 35).

Nesta nova leitura, Décio vê no engajamento marxista de Oswald de An-


drade os conceitos teóricos necessários para o ataque aos dois pilares da
burguesia, o capitalismo e a família, reunindo sexualidade e marxismo, numa
premonição das ideias de Marcuse e Wilhelm Reich, dos anos 1960. O crítico
perceberia que a recuperação de elementos do circo, da ópera e do teatro
de revista pela concepção de José Celso Martinez Corrêa, completava o ci-
clo iniciado pelo modernismo e prescrito por Alcântara Machado, em seus
fundamentos para um teatro brasileiro. O valor da peça só pôde ser pensado
com a encenação do texto, pelo casamento perfeito entre o novo e o velho
modernismo, numa revelação de insuspeitada virulência política e artística.
Isso demonstraria, ao contrário do que afirmava o estruturalismo, que o
significado da obra de arte depende não apenas de suas relações internas,
mas também externas (p. 27).

Em 1985, Décio de Almeida Prado volta ao tema em A antropofagia revisi-


tada (prefácio ao livro Teatro e antropofagia do brazilianist David George),
republicado em Peças, pessoas, personagens (1993). O crítico quase chega
a fazer uma mea culpa por ter ignorado as atitudes modernistas dos anos
1920, revendo sua postura anterior. Ele diz que a geração de 1930 acre-
ditava nas transformações político-sociais da nação, aderindo aos novos
“ismos”, do fascismo ao comunismo, do liberalismo capitalista ao socialismo.
Muitos modernistas também viveram, como ele, esta ilusão. O próprio trio
Tarsila-Oswald-Pagu abandonara os salões elegantes para se inscrever na
contestação comunista: Tarsila adotou a “pintura social”, Pagu escreveu com
pseudônimo um romance proletário e Oswald, no prefácio do Serafim Ponte
Grande, em 1933, renegou a totalidade de sua obra publicada até aquela data.
A “Revolução Caraíba”, pregada meio de brincadeira por Oswald, perdera o
sentido diante da possibilidade de revolução total prenunciada pela Rússia.
A arte deixava de ser um fenômeno autônomo, ambicionando uma maior
integração na sociedade (PRADO, 1993, p. 101/102).

Refazendo o percurso da cultura brasileira do romantismo até a antropofagia,


Décio reconhece no primeiro modernismo o novo Brasil que surgia com a in-
dustrialização, ao lado da poesia expressa pelas raízes da nacionalidade. A antro-
pofagia realizaria a síntese entre o passado inaugural e o futuro modernizador:

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Usando o canibalismo como pretexto, engraçado sem deixar de ser etnograficamente


exato (e para esses achados Oswald tinha um dedo extraordinário), autorizava-nos a
mastigar e a deglutir – o que em linguagem não-poética chamava-se assimilar – toda
a civilização mecânica que nos chegava da Europa e dos Estados Unidos. Para enlevo
dos nossos modernistas (p. 105).

A atmosfera lúdica e agressiva dos anos 1920, incorporada ao grande “ismo”


da década de 1930, o marxismo, ressurgira na década de 1960. Na forma
de farsa grotesca, a peça O rei da vela traçava uma imagem corrosiva do
capitalismo brasileiro regredido ao estado feudal, tentando realizar poli-
ticamente aquilo que em 1922 estava indicado apenas como radicalismo
estético. Nos anos 1960, os fatos políticos decorrentes da revolução em
Cuba (no rastro da China) desencadearam uma estética da agressividade,
da qual a encenação de O rei da vela teria sido o estopim, no Brasil (p. 104).

O crítico Sábato Magaldi também precisou repensar o seu juízo crítico em


relação ao teatro de Oswald de Andrade. Na primeira edição do seu Pano-
rama do Teatro Brasileiro, de 1962, ele afirmou:

Por isso sentimos que as incursões teatrais de Oswald de Andrade, um dos grandes
nomes da Semana de Arte Moderna, tenham dormido nos livros, sem nunca passa-
rem pela prova do palco. Longe de nós pensar que uma encenação, em nossos dias,
fizesse às suas três peças a justiça que os contemporâneos lhes recusaram. Tanto O
homem e o cavalo como A morta e O rei da vela talvez sejam incapazes de atraves-
sar a ribalta. Mas a sua não-funcionalidade se explica por excesso, por riqueza, por
esquecimento dos limites do palco – nunca por indigência, por visão parca, por voo
medíocre. (...) Poucos autores fazem o crítico lastimar tanto que o teatro tenha as
suas exigências específicas, tornando irrepresentáveis, no quadro habitual, os textos
de Oswald de Andrade. A audácia da concepção, o ineditismo dos processos, o gênio
criador conferem a essa dramaturgia um lugar à parte no teatro brasileiro – um lugar
que, melancolicamente, é fora dele e talvez tenha a marca do desperdício (MAGALDI,
1962, p. 189-190).

Após o impacto da peça O rei da vela, posta em prova de palco em 1967,


Sábato Magaldi escreveu uma tese de doutorado em literatura brasileira,
em 1972, intitulada O teatro de Oswald de Andrade13 (publicada em livro em
2004), trazendo à luz informações sobre o contexto de criação e de recepção
das peças do escritor modernista. O historiador afirma que, somente em

13 Tese defendida na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, em


1972. Publicado pela Editora Global, com o título Teatro da ruptura: Oswald de Andrade,
em 2004.

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1964, teve a certeza da importância dessa dramaturgia, quando releu as


peças para proferir uma palestra, durante uma semana comemorativa dos
dez anos de falecimento de Oswald e ficara fascinado. (O evento contava
também com a leitura de cenas das três peças principais, sob a direção de
Paulo José.) Em seguida, Sábato ministrou um curso de seis meses sobre
os textos de Oswald, na Escola de Arte Dramática de São Paulo. A monta-
gem de O Rei da Vela, pelo Teatro Oficina, viria confirmar para o crítico a
excelência do texto. Contrariando o consenso da historiografia do teatro
brasileiro, até então, que considerava Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues,
o primeiro marco da literatura dramática moderna no Brasil, Sábato afirma
o “desejo tardio de fazer justiça histórica”, reivindicando a precedência da
obra de Oswald de Andrade na modernidade teatral brasileira. Do ponto de
vista da encenação, a montagem de Ziembinski para Vestido de Noiva, com
o grupo Os comediantes de fato, teria sido o primeiro marco, mas, quanto à
dramaturgia, Oswald abriu um caminho inovador: “A dramaturgia de Oswald
existe como um monumento isolado na história do nosso teatro, surgida cedo
demais para que formasse raízes duradouras” (MAGALDI, 2004, p. 160).

O historiador empenha-se em comprovar uma hipótese, a de uma linha tênue


que indicaria a herança artística de Oswald de Andrade no teatro de Nelson
Rodrigues. Ponto de vista rejeitado por Nelson, que afirmara nunca ter lido
uma peça de Oswald, e também de Oswald que recusava a hipótese de ser
precursor de Nelson.14 Sábato pesquisa fontes comuns que teriam influenciado
os dois dramaturgos, mas não consegue comprovar, argumentando que
preocupações semelhantes podem penetrar personalidades diversas: “Sem
que se trate realmente de influência, a evolução espontânea das formas leva
a resultados muitas vezes idênticos, em experiências que não se comunicam”
(p. 161). Além do mais, os textos de Oswald foram publicados, em 1934 e
em 1937. Esta última edição saiu pela prestigiada Livraria José Olympio, o
que decerto teria alcançado alguma repercussão: “O teatro de Oswald tinha
força e originalidade demasiadas para que passasse despercebido entre os
jovens inquietos e exigentes que fundaram o movimento amador de Os

14 Oswald de Andrade afirmou, em entrevista, nos anos 1950: “O que me interessa no


teatro, não é ver simplesmente uma peça minha em cena. Sou muito mais exigente. E
por vantagem alguma realizaria as sórdidas concessões ao susto público e à pornografia
privada que faz o Sr. Nelson Rodrigues, de quem você caluniosamente me chama precur-
sor. Precursor, uma barbatana!”. Trata-se de “provável carta de Oswald a um crítico não
identificado”, diz Carvalho, que inclui o texto em anexo à sua tese de doutorado defendida
na USP (2002, p. 213-214).

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Comediantes” (p. 161). Apesar do enorme abismo entre as posições políticas


dos dois autores, Sábato aponta semelhanças entre as peças de Oswald de
Andrade e as de Nelson Rodrigues, não apenas em relação aos conteúdos
transgressores, mas também à linguagem formal: a busca de uma sintaxe
autenticamente nacional, que não reproduzisse apenas as regras lusitanas;
o gosto pela fala colhida ao vivo, na rua, sem adotar o realismo; os diálogos
rápidos e telegráficos; a inclinação expressionista dos textos com teatralidade
que exige a fisicalidade dos atores; a apresentação de heróis expressionistas e
personagens em tensão limítrofe, que se expõem em grande desnudamento
diante do público (p. 162).

Este ponto de vista inovador, apontando aproximações entre os dois dra-


maturgos, representa um esforço crítico de retirar Oswald de Andrade do
isolamento, incluindo-o em uma determinada tradição da moderna literatura
dramática brasileira, sugerindo um diálogo com a ideia de “sistema literário”
proposta por Antonio Candido (1981). Magaldi diz:

Em primeiro lugar, uma das funções do historiador é a de pesquisar as fontes, distin-


guir as linhas evolutivas da arte e esclarecer as coordenadas de um sistema, visando
à iluminação de um processo. Oswald, no teatro como na poesia, no romance e no
pensamento, foi um inovador radical, interessado na ruptura, para construir uma lin-
guagem nova. Não tem mais sentido afirmar que ele se esgotou na demolição. Seu
teatro inaugura uma arquitetura cênica inédita no Brasil (p. 7).

A dramaturgia de Oswald de Andrade, entretanto, não encontrou condições


de produção e de recepção no teatro de costumes da época. Procópio Ferreira
afirmou à imprensa, por ocasião da estreia de O rei da vela, que teve interesse
em montar a peça, tendo desistido ao perceber que enfrentaria obstáculos
junto à censura, que, àquele tempo, proibia até mesmo o pronunciamento
da palavra amante em cena. Sábato pondera que, apesar do interesse de
Procópio, as condições de gosto e a rotina de palco nas quais sua prática
teatral estava inserida teriam dificuldades de realização da estética teatral
de Oswald, em sintonia com as propostas da encenação moderna e do teatro
como obra de equipe (p. 8). A atitude demolidora e o radicalismo de suas
posições políticas acabariam por isolar Oswald de Andrade e sua obra teatral
do contexto da vida cultural brasileira. A partir dos anos 1940, as experiências
modernizadoras introduzidas pelo grupo Os Comediantes e pelo TBC pos-
sibilitaram aprendizagem para os jovens artistas, mas o escritor se tornaria
alvo de campanhas que consideravam sua obra sem consistência e piadista
(p. 64). Com o Teatro de Arena, no final dos anos 1950, o autor nacional
ganharia, finalmente, uma presença significativa, projetando nomes como

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Augusto Boal, Gianfracesco Guarnieri, Nelson Xavier, Oduvaldo Vianna Filho,


entre outros. O programa estético do grupo, incluindo aspectos realistas
do método para atores de Stanislavski, não sugeria compatibilidade com a
construção expressionista das personagens oswaldianas. Na fase do teatro
épico e das técnicas do “teatro coringa”, que poderia ter aproximações com
as peças do modernista, as experiências do grupo giravam em torno da
dramaturgia de Augusto Boal. Diz Sábato: “Dentro do processo interno do
Arena, não houve lugar para Oswald” (p. 176).

O teatro Oficina, que surgiu de uma aproximação com o Teatro de Arena,


iria se dedicar às novas experimentações cênicas, encontrando em O Rei
da Vela o veículo perfeito para uma expressão nacional. Mesmo com toda
a efervescência provocada pelo espetáculo, a recepção por parte de alguns
setores da crítica teatral foi reticente, em decorrência do grau de carnava-
lização, referências pornográficas, fragmentação da linguagem que o texto
e a encenação propunham. Oswald em cena continuava polêmico. O clima
de liberdade e euforia que parecia se estabelecer no país, dando margem
a um grande florescimento artístico, nas artes plásticas, no cinema e no
teatro, teve curta duração, sendo interrompido com a implantação do A.I.5.
O espetáculo O rei da vela foi censurado e também todos os textos teatrais
de Oswald. Magaldi escreveu, em 1972:

As comemorações do cinquentenário da Semana de Arte Moderna de 1922 que o


tornaram (Oswald) clássico, não conseguiram embalsamá-lo numa redoma de bom
comportamento e de um processo histórico terminado. Oswald continua a incomo-
dar, como se fosse um jovem revolucionário escrevendo em 1972. Muitas de suas
descobertas estilísticas foram assimiladas pela literatura contemporânea, mas o des-
carnamento conserva vivo e atual o seu diálogo. Descontada a ingenuidade de certas
crenças políticas, as ideias sociais que proclamou e defendeu continuam a empolgar
os que anseiam por um mundo melhor (p. 178).

Na 3a edição do seu Panorama do Teatro Brasileiro (Ed. Global, 1997), Sábato


Magaldi acrescentou um artigo de 1987 - “O texto no moderno teatro” - em
que justifica a revisão de suas posições sobre o teatro oswaldiano:

É preciso ter em mente que a História retificará muitos juízos atuais, embora eles
tentem observar a maior objetividade. O importante, para o contemporâneo, é a sua
visão honesta, despida de preconceitos e consultando os valores que lhe parecem
permanentes. O crítico sabe, contudo, que dependendo da óptica estética, mutável
no correr das décadas de exercício profissional, alteram-se forçosamente os juízos. O
amadurecimento empresta peso maior ou menor a uma obra que, na primeira apre-
ciação, era aferida por padrões diferentes (MAGALDI, 1997, p. 300).

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Neste último texto, o historiador reafirma que Oswald de Andrade é o autor


dos primeiros textos brasileiros modernos, não tendo sido encenador por
conta da censura: “Mais do que do ponto de vista estético, digerível num
país ávido de inovações, as três peças tornaram-se irrepresentáveis, quando
foram escritas, por motivos morais e políticos” (p. 296). O teatro atingira a
modernidade no encontro entre texto e encenação, a partir da dramaturgia
de Nelson Rodrigues, determinando a conquista de liberdade e audácia,
abolindo as fronteiras do palco. “Acabou-se a cerimônia com as regras da
antiga carpintaria teatral. Era só aproveitar as conquistas rodrigueanas. De
súbito, julgaram-se acadêmicos os procedimentos anteriores, pois Oswald
de Andrade ainda jazia na estante”, conclui Sábato Magaldi (p. 299).

Algumas questões podem ser apontadas pelas reconsiderações críticas de


Sábato Magaldi. Em 1962, ele afirmou a “irrepresentabilidade” dos textos
teatrais oswaldianos, em função da audácia dos seus processos excessivos
de composição. Em 1972, o crítico corrigiu o ponto de vista anterior, afir-
mando que a não assimilação da dramaturgia de Oswald, no contexto de sua
escrita, ocorreu pela ação da censura, por motivos morais e políticos. Em
1997, o historiador reafirma a dificuldade de recepção dessa dramaturgia.
Modernizada a cena e superadas as ações da censura, haveria uma razão
para a ausência de Oswald dos palcos: seu teatro seria julgado acadêmico.
O que o autor designa como “acadêmico”? Talvez queira dizer que a difi-
culdade de se encenar esse teatro se deva à complexidade das ideias e da
forma dos textos.

Considerações provisórias

A revisão de parte da fortuna crítica apresentada permite apontar, pelo me-


nos, dois problemas em relação ao modo como se constroem as reflexões
sobre o teatro de Oswald de Andrade e a leitura cênica de O rei da vela,
pelo Grupo Oficina. Pode-se dizer que há um tipo de raciocínio que tem
dificuldades de compatibilizar invenção artística com aproveitamento de
recursos do teatro popular. Outra perspectiva de análise sociológica tende
a “ler” a obra teatral oswaldiana unicamente em função dos seus conteúdos
e abordagem política, dentro de um determinado contexto sócio-cultural,
o que a tornaria “datada”. Estas questões são realmente provocadas pelo
corpus dramatúrgico oswaldiano. Mas, pode-se dizer, ao contrário de parte
da crítica, que a possibilidade de invenção desse teatro reside, exatamente,
em sua aproximação com elementos da cultura popular, em acordo com o
projeto de renovação do modernismo e da antropofagia. Esta atitude foi
retomada na década de 1960, com o tropicalismo e sua representação ale-

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górica das nossas contradições culturais. O cantor e compositor Caetano


Veloso, um dos artífices do movimento tropicalista, no livro Verdade Tropical
(1997) apresenta sua visão daquele momento tão significativo para a cultura
brasileira, das relações estabelecidas entre música, artes plásticas, cinema
e teatro. Caetano fala do impacto produzido pelo filme Terra em transe de
Gláuber Rocha e pela montagem de O rei da vela do Teatro Oficina, e da
importância das ideias de Oswald para o movimento tropicalista.

Oswald de Andrade, sendo um grande escritor construtivista, foi também um profeta


da nova esquerda e da arte pop: ele não poderia deixar de interessar aos criadores
que eram jovens nos anos 60. Esse “antropófago indigesto”, que a cultura brasileira
rejeitou por décadas, e que criou a utopia brasileira de superação do messianismo
patriarcal por um matriarcado primal e moderno, tornou-se para nós o grande pai
(VELOSO, 1997, p. 257).

A implosão das formas teatrais canônicas e a reconstrução da linguagem, na


pequena e precursora obra dramatúrgica de Oswald de Andrade, consistem
no diálogo de seu projeto antropofágico com formas das vanguardas artísticas
e manifestações populares. O que pode demonstrar que o escritor desejava
alcançar o público pelo estranhamento, provocando uma nova maneira de
pensar a linguagem teatral e as estruturas sociais, reafirmando seu desejo
de “ver com olhos livres”. A transposição do teatro oswaldiano para a cena
pode solicitar, de fato, uma leitura acadêmica, mas - mais importante - exi-
ge também uma prática artística densa. Nesse sentido, as contradições da
peça O rei da vela podem ser vistas, agora, com certo distanciamento, mais
abertas à compreensão de sua poética cênica.

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Artigo recebido em 28 de março de 2022 e aceito em 23 de abril de 2022.

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