Conto e mito, por Eleazar M.
Meletínski
Traduzido por Rafael Bonavina Ribeiro1
1 É graduando em Letras pela FFLCH-USP, com dupla habilitação em Português e Russo, atualmente em
intercâmbio na Universidade Estatal de Moscou (MGU), especializando-se em teoria literária, principalmente
as ligadas ao folclore como gênero literário e aos mitos, suas particularidades e sua relação com a literatura mo-
derna. Além de desenvolver suas pesquisas nessas áreas, também atua como tradutor, principalmente de textos
em língua russa. A partir de 2020 começou a colaborar com a Revista RUS como Assistente Editorial.
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
Algumas palavras sobre Meletínski e sua teoria
O fenômeno da virada mitológica do século XX é ainda pouco explorado na teoria
literária, principalmente a brasileira, e há relativamente poucos estudos que discutam
a relação entre mito e literatura no século passado. Embora essa vertente seja consi-
derada uma linha menor da crítica literária, se comparada à esmagadora preferência
pelos estudos baseados na relação entre literatura e história ou literatura e sociedade,
não são poucos os casos de escritores de importância indiscutível que retornaram às
raízes mitológicas para escrever suas obras.
Apesar de a influência mitológica na literatura ser bem mais clara em alguns
casos, como acontece em Dante, José Saramago ou Mário de Andrade, há outros menos
evidentes, por exemplo, James Joyce, Franz Kafka e Gabriel Garcia Marques. Por isso
é necessário um estudo detido sobre essa matéria, evitando uma leitura mitanalítica
caricata. Os críticos literários que se filiam a essa vertente são muitos e, entre eles,
está Eleazar Meletínski (1918-2005).
Meletínski é amplamente reconhecido na Rússia, seu país natal, como um dos
principais teóricos sobre a relação entre mito e literatura, sendo ponto de referência
para qualquer estudioso sério do assunto. Meletínski trabalhou muito tempo como
professor universitário na Universidade Estatal Russa de Humanidades (RGGU) e
chegou a ser homenageado pelo Instituto Superior de Pesquisas de Humanas “Eleazar
M. Meletínski”. Mesmo depois de sua morte, seus livros continuam a ser reimpressos
e se esgotam das prateleiras com relativa rapidez, os decênios de seu nascimento são
comemorados com grandes eventos acadêmicos e sua obra é amplamente discutida.
Fora de seu país, Meletínski teve suas obras traduzidas em diversos idiomas e
tem influenciado muitas pesquisas em sua área. No Brasil, os seus trabalhos vêm exer-
cendo uma influência cada vez maior, principalmente reprodução são aqueles ligados
à relação entre mito e literatura, como A Poética do Mito (1987). Além de diversos
trabalhos isolados, essa vertente gerou também uma coletânea de estudos em come-
moração aos seus 80 anos (BERNARDINI; FERREIRA, 2006).
Uma das mais importantes contribuições de Meletínski é a sua empreitada em
† 310 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
unir as vertentes russa e francesa da folclorística, consideradas antagônicas após a a
polêmica entre Claude Lévi-Strauss e Vladimir Propp. Caso o leitor não esteja fami-
liarizado, a edição referida abaixo do famoso livro do teórico russo (PROPP, 1984)
traz uma síntese excelente da questão, pois apresenta o material necessário para que
se compreenda essa polêmica, incluindo a crítica de Lévi-Strauss à obra de Propp, a
réplica do estudioso. Embora pareça algo de menor importância, é importante ressaltar
que, em solo russo, o debate não foi recebido em termos amigáveis. Pelo contrário,
Propp afirma que
quando alguém é atacado, é natural que se defenda. Aos argumentos
do adversário, caso pareçam errôneos, é possível opor contra-argu-
mentos que podem se revelar mais corretos. Uma tal polêmica pode
apresentar um interesse científico geral. Foi por isso que aceitei com
prazer o gentil convite do editor Einaudi de escrever uma resposta a
esse artigo. O professor Lévi-Strauss atirou-me a luva e eu a recolho.
Deste modo, os leitores da Morfologia serão testemunhas de nosso
duelo, e poderão ficar do lado daquele que considerarem vencedor,
caso esse vencedor exista. (PROPP, 1984, p. 127).
O campo semântico utilizado pelo teórico russo demonstra claramente que o
debate estava longe de ser recebido como uma briga de irmãos; pelo contrário, era
tomado como um duelo. Considerando as críticas feitas por Lévi-Strauss, Propp não
deixa de tecer comentários a respeito do teórico francês e sobre a tentativa de opor o
estruturalismo francês ao que se convencionou chamar formalismo russo.
A partir desse debate acalorado, Meletínski escreve um ensaio chamado “O
Estudo Tipológico-estrutural do Conto Maravilhoso”, que o leitor pode encontrar
nessa edição do livro de Propp. Apesar de seu tamanho relativamente reduzido, pouco
mais de vinte páginas, este ensaio demonstra a preocupação de Meletínski em buscar
uma síntese entre as vertentes, aparentemente opostas. Uma das saídas para esse im-
passe é o estudo estrutural dos mitos feito a partir de um ponto de vista literário, que
rendeu o interessante livro Arquétipos Literários (2015), traduzido para o português,
† 311 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
bem como o livro Do Mito à Literatura (Ot Mifa k Literature), que lamentavelmente
ainda não foi traduzido. Para tentar suprir em parte essa lacuna, propusemos a tra-
dução a seguir de um dos textos em que o crítico literário russo repisa a trilha segura
encontrada em suas pesquisas.
Como se pode notar pelo título, o autor aponta para um processo que liga o
mito e a literatura, ou seja, a partir do mito, que é absolutamente sincrético, as dife-
rentes artes vão se diferenciando pouco a pouco e se distanciando de sua raiz mito-
lógica e adquirindo contornos próprios. Esse processo de transformações é chamado
de desmitologização e o leitor pode encontrar algumas reflexões a esse respeito na
tradução a seguir.
Para concluir, é importante ressaltar que o texto em questão pode ser lido como
um gêmeo, por assim dizer, do artigo “Mito e Conto Maravilhoso” (MELETÍNSKI,
2019a), que tivemos a oportunidade de traduzir e publicar. Acreditamos que a leitura
conjunta só pode vir a contribuir para o entendimento geral dessa teoria e, havendo in-
teresse, é possível recorrer às demais obras do autor e aquelas derivadas do seu trabalho.
Rafael Bonavina Ribeiro
† 312 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
Referências
BERNARDINI, Aurora; FERREIRA, Jerusa (org). Mitopoéticas: da Rússia às Amé-
ricas. São Paulo: Humanitas, 2006.
MELETÍNSKI, E. M. Os Arquétipos Literários. Tradução Aurora Fornoni Bernardini,
Homero Freitas de Andrade, Arlete Cavaliere. Cotia: Ateliê Editorial, 2015.
______. A Poética do Mito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
______. Mito e Conto Maravilhoso. RUS (São Paulo), v. 10, n. 13, pp. 149-164, 12
jun. 2019a.
______. Ot Mifa k Literature. Moscou: RGGU, 2019b.
PROPP, Vladimir. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro: Forense-Uni-
versitária, 1984.
† 313 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
Mito e Conto
No folclore arcaico, a distinção entre mito e conto (doravante C.) é difícil de preci-
sar. Os próprios nativos dividem as tradições em duas formas [pynyl e lymnyl entre
os tchukotos2; khvenokho e khekho, entre os fon3 (Benin); liliu e kukvanebu entre os
nativos de Kiriwina da Melanésia e assim por diante4] provisoriamente relacionadas
aos mitos e C.
Entre a maioria dos pesquisadores, não há dúvida de que a origem do C. seja
o mito. Os C. arcaicos demonstram a ligação particular da trama com os mitos primi-
tivos, os rituais e os costumes tribais. Encontra-se com frequência nos C. de animais
os motivos típicos dos mitos totêmicos e, principalmente, das anedotas mitológicas
sobre trapaceiros. É bem evidente a ampla divulgação da ancestralidade mitológica
do C. maravilhoso sobre o casamento com o ser “totêmico” mágico que deixa tem-
porariamente a forma de animal e assume a aparência humana (vide tramas AT 4005,
2 Povo nativo da Sibéria, cujo nome deriva da palavra tchautchu, no idioma tchukoto, que significa “os ricos
em renas”. [N. do T.]
3 Este povo africano também é chamado de Daomé e foi um reino muito importante há alguns séculos. A
influência deste povo em nossa cultura não deve ser descartada, pois o Brasil foi uma das regiões que mais recebeu
escravos desta etnia durante o período colonial. [N. do T.]
4 O autor não se detém muito na discussão deste ponto em particular, pois já desenvolveu o tema no artigo
“Mito e Conto”, de Meletínski, que, por isso, pode servir de complemento. O leitor encontra, ao final, a referência
de uma tradução deste texto, feita com ajuda da Profa. Dra. Ekaterina Vólkova, que tivemos a oportunidade de
publicar. [N. do T.]
5 É preciso fazer uma ressalva quanto à referência do autor. Fala-se do sistema de catalogação dos motivos dos
mitos amplamente divulgado dentre os folcloristas, em especial os da escola finlandesa. Este sistema foi criado por
Antti Aarne nos anos 1920, depois ampliado por Stith Thompson nos anos 50, por isso juntaram-se as iniciais dos
sobrenomes e nasceu à sigla AT. Recentemente o sistema foi revisado por Hans-Jörg Uther, então a classificação
passou a ser chamada de ATU, no entanto a consagração dessa nova sigla é bem recente e ainda debatida, o que
† 314 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
425 etc.): a esposa mágica (nas versões mais tardias, o marido) dá sorte na caça ao seu
escolhido, mel (se for uma abelha), uma colheita farta e assim por diante, mas o aban-
dona por violar uma proibição qualquer (não usar o nome, não discutir e assim por
diante). Os C. sobre visitar outros mundos para libertar um prisioneiro (AT 301 etc.)
são análogos aos mitos e lendas sobre os xamãs e feiticeiros que vão atrás da alma do
doente ou falecido. Os motivos característicos dos ritos iniciáticos aparecem nos fa-
mosos C. sobre um grupo de crianças que cai nas garras de um espírito maligno, um
monstro, um canibal, e é salvo graças a uma delas (AT 327 etc.), ou sobre a morte de
um dragão poderoso, um demônio ctônico (AT 300 etc.).
Tendo suas bases ritualísticas e sendo parte necessária dos rituais ou dos co-
mentários a eles, os mitos se transformaram em C. mediante um importante pré-re-
quisito, a ruptura da relação imediata desses mitos com a vida ritualística da tribo.
O desaparecimento dos limites específicos à transmissão do mito, a antecipação do
número de ouvintes e principiantes (mulheres e crianças) fazia o narrador deter-se
inconscientemente para inventar, enfatizando a diversão do momento e, sem dúvida,
enfraquecendo a crença na verossimilhança do conto. Diminuindo a sacralidade dos
pode causar confusão quanto à nomenclatura apresentada pelo autor, que a chama pela sigla antiga, embora use
a nova numeração. Nesta referência, Meletínski nos apresenta o que chamaríamos hoje de ATU400 e ATU425,
a partir disso, sabemos que ele indica os contos de magia (ATU300-749), mais especificamente os contos em que
um cônjuge ou familiar é uma criatura sobrenatural (ATU400-459), e precisamente os contos em que se tem a
esposa (ATU400-424) ou o marido (ATU425-449) sobrenatural. Como se pode ver, a classificação é uma ferra-
menta muito útil para a folclorística, pois permite encontrar motivos semelhantes, bem como suas variações. Se
ignorássemos essa diferença de nomenclatura, o leitor não teria dificuldade em encontrar a categoria correta. Em
primeiro lugar, a divisão AT é feita a partir de uma seção temática indicada por uma letra e depois um número,
então a indicação de Meletínski seria insuficiente para se encontrar o motivo a que ele se refere. Em segundo
lugar, ainda que se deduza pelo contexto que o autor esteja falando da subdivisão T, que engloba os motivos ligados
ao sexo, a entrada de número 425, por exemplo, se referiria à sedução da meio-irmã por parte do meio-irmão, o
que não condiria com o texto. A partir disso, afirmamos que Meletínski utiliza a classificação ATU. [N. do T.]
† 315 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
mitos, aumenta a atenção dada às relações familiares dos personagens, suas discussões,
lutas e assim por diante. A verossimilhança rígida da primeira fase dá lugar à relativa,
que permite uma criatividade mais consciente e livre.
Na gênese do C., desempenham um papel essencial a desmitologização do es-
paço e do tempo da ação; a transformação da localização precisa (ali onde ela de fato
aconteceu) dos eventos no espaço e tempo indeterminados da narrativa. A partir disso
surge também a desmitologização do resultado da ação; ou seja, no C., não existe a etio-
logia típica do mito. No mito os feitos demiúrgicos (ainda que se pareçam em essência
com os truques do trapaceiro mitológico) e as aquisições mitológicas têm significado
coletivo, cósmico e determinam o processo cosmogônico (a criação do mundo, do
fogo, da água fresca e assim por diante), já no C. os objetos adquiridos e as conquistas
são benefícios pessoais do herói, e essa obtenção possui uma natureza familiar, tribal,
social. Dessa forma, o protagonista do C. maravilhoso consegue a Água da Vida para
salvar o pai doente (por exemplo, nos C. havaianos ou nos C. populares europeus)
ou consegue, com a ajuda dos bichos, a brasa para a sua fogueira (entre os fon), e um
personagem do C. de animais (a lebre ou a aranha) toma para si a água do poço através
de uma artimanha. O sentido etiológico do mito aos poucos vai se transformando em
moral (nos C. de animais), em fórmulas estilísticas e alusões à inveracidade do conto
(nos C. maravilhosos). A desmitologização acontece inclusive com os próprios perso-
nagens. Por serem os herdeiros das narrativas sobre os trapaceiros mitológicos, uma
condição necessária para a formação dos C. de animais é a dessacralização dos perso-
nagens totêmicos, que deve preservar formas animais deles; o protagonista destes C.
é o trapaceiro transformado em animal, e suas peripécias são os elementos estruturais
básicos da trama. Na mesma medida em que abandonavam as crenças totêmicas, os
C. de animais enriqueciam-se com os motivos cotidianos.
A desmitologização do protagonista do C. maravilhoso e mágico-heroico é
acompanhada pela sua completa antropomorfização e, em certo grau, idealização: ele
tem pais divinos, uma origem milagrosa, às vezes há alguns traços totêmicos resqui-
ciais. Apesar disso, o herói do C. não apresenta desde o início aqueles poderes mágicos
que o herói mitológico tem por natureza. Nos C. arcaicos, ele ganha essas qualidades
† 316 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
como resultado de uma iniciação, uma provação xamanística ou a proteção extraordi-
nária de espíritos. Por exemplo, o C. dos índios norte-americanos ainda preserva, em
certo grau, a representação mitológica; neles encontra-se as aventuras extraordinárias
vividas pelo filho (ou afilhado) do Sol. Esse é um tipo específico de C. heroico, mas o
cavalheirismo do herói ainda tem uma natureza mágica, xamanística. O futuro afilhado
do Sol é encontrado dentro da barriga de um lúcio, pode se transformar nele, recebe
ajuda desse peixe (um motivo totêmico); utilizando um saco de vento, o herói apaga o
fogo mandado pelo Sol; sob a forma de cabrito ou de pássaro, persegue as filhas deste
e foge com elas para a Terra.
Evidentemente, neste processo de desmitologização do herói, a interfluên-
cia das tradições desempenhou importante papel, em particular entre as narrativas
mitológicas e os diferentes tipos de bylitchka/C. primitivos sobre os encontros em
um passado próximo com diferentes espíritos, tanto bons quanto maus. Os persona-
gens centrais das bylitchkas são pessoas comuns. A desmitologização do herói no C.
frequentemente é complementada pela predominância intencional do personagem
“que não dá esperanças”, o pária social, o representante da família, tribo ou vila,
perseguido e humilhado. Dentre eles estão os muitos órfãos pobres do folclore dos
melanésios, das tribos montanhesas do Tibete e da Birmânia, dos esquimós, dos pa-
leasiáticos, dos índios norte-americanos etc. Eles são ofendidos pelos conterrâneos
e vizinhos, e os espíritos vêm em sua ajuda. Apesar de os diferentes tipos de herói
“menor” (por exemplo, “o porcalhão”, “o ingênuo”, “o tolo”, ligado ao mal e à fo-
gueira) terem um significado maior, aproximando-se da semântica ritualístico-mito-
lógica (compare o significado ritualista da lama, das cinzas, da preguiça, da loucura,
da fogueira etc.), eles são marcados propositalmente por essa precariedade social.
Se o C. sobre o filho, ou afilhado, do Sol e outros heróis “maiores” são os análogos
arcaicos dos C. maravilhosos russos sobre o Ivan-tsariévitch6, então o órfão pobre,
6 O nome é composto por duas partes: Ivan, o equivalente russo para o nome João, um nome muito comum,
e tsariévitch, o filho do tsar, que poderia ser traduzido como “príncipe”, então teríamos Príncipe João. Por ser
um personagem muito recorrente no folclore russo, com diferentes feitos, esposas, família e nuances de perso-
† 317 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
o “rapaz sujo”, é análogo aos zapetchnik 7, aos irmãos mais novos, à Cinderela dos
C. europeus, ao Ivan, o Tolo8.
A forma clássica do C. maravilhoso apareceu muito depois do C. de animais
clássico, após o fim da cultura primitiva; essa forma só é conhecida no folclore dos
povos civilizados da Europa e da Ásia e difere do C. arcaico em maior medida do que
este do mito. A sua formação foi preparada pela decadência (embora parcial) da visão
de mundo mitológica, a transformação da fantasia concreto-etnográfica em abstrato-
-poética. No folclore arcaico, a representação narrativa é tão concretamente etnográ-
fica quanto nos mitos, isto é, baseada nas crenças tribais concretas; no C. maravilhoso
clássico, elas se separam, e nasce sua mitologia poética bastante fundamental. Dife-
rentemente do que se encontra na bylitchka, os seres mágicos do C. russo refletem a
manutenção da superstição em certos meios. Apesar de não estar geneticamente ligada
à magia e ao sagrado, a compreensão do maravilhoso não é a mesma, pois é específica
ao C. (e não igual ao mito). O conto não poetiza apenas as figuras dos seres míticos
nalidade, podemos considera-lo como uma espécie de herói genérico, isto é, um nome dado para um tipo e não
para um personagem específico.
7 Espírito do folclore eslavo que vive atrás do forno da isbá, geralmente retratado como um humanoide. Não
se trata de um espírito mal, embora adore pregar peças. [N. do T.]
8 Ivan, o Tolo é mais um tipo do que um personagem de fato, de índole sempre boa e prestativa. Ressaltamos
que “tolo”, aqui, não carrega uma conotação negativa, embora seja inevitável para o leitor contemporâneo. Algu-
mas das principais características de Ivan, o Tolo, são sua inocência, sua facilidade em perdoar os demais e uma
inteligência não habitual, que é interpretada por muitos como tolice, mas é a razão de seu sucesso nas histórias.
Ao contrário do Ivan-tsariévitch, sua origem é extremamente humilde, via de regra, ele é filho de camponeses.
† 318 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
(a Baba-Iagá9, o dragão, o Kaschei10 etc.), como também as transformações mágicas
e as ações taumatúrgicas.
De fato, a semântica do C. pode ser interpretada apenas a partir de suas bases
mitológicas. No entanto, a hegemonia do código social é característica à semântica do
C., não do mito. A oposição mitológica fundamental do tipo vida x morte dá lugar, em
grande parte, aos conflitos sociais, que surgem na forma de relações intrafamiliares.
No C. arcaico, o tema familiar só é rascunhado: em certa medida, a família
do C. é a generalização simbólica da grande família, isto é da comunidade patriarcal
de tipo tribal; os enredos de disputas familiares e a humilhação da afilhada ou do
irmão mais novo pressupõem um significado social, como os sinais da corrupção
da tribo. Obviamente o motivo do caçula reflete de maneira oblíqua a exclusão ar-
caica da hereditariedade do caçula e o desenvolvimento da desigualdade familiar. A
figura da madrasta só pode surgir com a presença de perturbações da endogamia,
ou seja, se houver um casamento de noivos excessivamente “distantes” (de tribos
diferentes). Não é por acaso que, em algumas tramas rígidas, o motivo da madrasta-
-afilhada dos C. europeus é uma variação do motivo do pai que incesta com a filha,
9 Baba-Iagá é uma bruxa do folclore russo que, como apontou V. Propp, pode ter a função de antagonista ou
de doador/ajudante, dependendo do conto em questão. Dentre os muitos trabalhos feitos sobre esta controversa
personagem, gostaríamos de destacar, principalmente, a dissertação de mestrado “Aleksandr Nikoláevitch Afa-
nássiev e o conto popular russo”, escrita por Flávia Moino, 2008. Neste trabalho, o leitor brasileiro tem acesso
gratuito e fácil a um excelente material a respeito do folclore russo, pois, partindo de algumas explicações sobre
a vida de um dos mais importantes folcloristas do século XIX. Não bastando o estudo interessante a respeito de
Afanássiev, Moino também apresenta traduções de vários contos centrados na figura de Baba-Iagá, bem como
apresenta algumas interessantes reflexões a respeito da feiticeira. [N. do T.]
10 Por vezes chamado de Koschei, o Imortal, é um feiticeiro do folclore eslavo, geralmente de má índole,
também conhecido por ser um guerreiro excepcional. Seu semblante parece com um esqueleto, pois ele é magro
e longilíneo, vale ressaltar que uma das etimologias do nome é a palavra kost (em português, osso). Apesar de
seu epíteto, há uma forma secreta de mata-lo, e a sua descoberta é parte da aventura dos personagens. [N. do T.]
† 319 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
isto é, são tentativas de violação extrema da exogamia (que proíbe o casamento de
familiares muito próximos).
As infrações das normas das relações familiares e matrimoniais (sob a forma de
incesto ou, pelo contrário, o casamento entre noivos muito distantes) e das obrigações
mútuas dos cônjuges são a fonte de sérios conflitos nos mitos, levando à ruptura de
elementos cósmicos ligados primordialmente; e sua reunificação exige mediação e seus
mediadores. No C. as próprias transgressões (N. B. as leves violações dos C. em que a
mulher totêmica se despe da aparência animal e o dragão rapta a princesa são casamen-
tos entre membros muito distantes; o pai que persegue a filha é o incesto; a madrasta
que persegue a afilhada é a esposa demasiadamente distante do pai e assim por diante)
são consideradas a partir de todas as possíveis consequências sociais, e não cósmicas. A
inter-relação matrimonial “correta” perde cada vez mais a função comunicativa (como
nos mitos paleoasiáticos sobre as aventuras dos filhos do Corvo, que incluem casamentos
“corretos” com seres que personificam e controlam o clima e os mares, ou seja, com
as forças cósmicas socializadas). Já que o principal do C. não é o bem-estar tribal em
um fundo cósmico, mas a felicidade do indivíduo sobre um fundo social, o casamento
do herói “baixo” com a princesa (ou da heroína “baixa” com o príncipe), seguido pela
elevação do status social do herói, que, para o indivíduo, significa uma saída original
e mágica [no C. clássico, encontra-se o nascimento mágico do herói como forma da
sua idealização, mas é mais comum que a origem “elevada” possua formas sociais (um
príncipe)]. O casamento aparece como meio de superação das oposições fundamentais
vistas no âmbito da família da narrativa e encarna a mediação da oposição “baixo” x
“elevado”. Nos C. arcaicos, o tema do casamento é periférico; as relações familiares
surgem por vezes como um meio de obtenção dos sucessos domiciliares, dos objetos
mágicos etc. Durante a passagem do C. arcaico para o C. clássico mágico, é como se
o meio e o fim trocassem de lugar. Até no C. sobre a obtenção de objetos mágicos,
como as penas do Pássaro de Fogo, da Água da Vida etc., a busca é apenas o prelúdio
para o casamento da princesa; em outros C. os objetos mágicos são apenas um meio
que permite um casamento feliz no fim das contas. O casamento preserva a função
mediatária nos raros casos em que os noivos são ambos de origem social elevada. Nes-
† 320 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
tes C., é comum que o herói esconda-se conscientemente sob uma máscara “baixa” e
só depois revele sua real origem (como no C. sobre o jovem dos cabelos de ouro etc.).
Como um todo, é característica à semântica do C. maravilhoso a preservação
da importantíssima oposição mitológica próprio x alheio (que se caracteriza pela re-
lação do herói e seu antagonista), que se projeta em diferentes planos: casa x bosque
(criança x Baba-Iagá), o nosso reino x o reino alheio (o jovem x o dragão), a família
de sangue x a família de casamento (afilhada x madrasta) etc.; a descrição das normas
das relações familiares e matrimoniais é conduzida ao plano da oposição: do costu-
meiro casamento exogâmico com o cônjuge “totêmico”, que unifica o “humano” e o
“animal”, para a transgressão máxima sob a forma de incesto.
No C. maravilhoso clássico, o sucesso ou fracasso do herói já não é conse-
quência direta da sua observância de prescrições mágicas, da aquisição das habilida-
des mágicas como resultado de uma iniciação ou provação xamanística, das relações
consanguíneas ou matrimoniais com os espíritos. É como se os poderes mágicos se
separassem do herói e, de certa forma, agissem em seu lugar. A sua ajuda é condicio-
nada à observância de preceitos definidos e bastante abstratos, que ditam a estrutura
da ação do C. Seu princípio fundamental é a obrigatoriedade da resposta positiva a
qualquer desafio, principalmente os que levam à ação (em especial se ele vier de um
ser evidentemente hostil): toda prescrição deve ser realizada; e qualquer proibição,
transgredida. Esse sistema formular de conduta foi abstraído a partir das normas
consuetudinárias características ao C. Isso não impede que os atos do herói também
sejam de caráter ético-moral (educação, bondade, generosidade etc.), o que é típico
do gênero. Os poderes mágicos colaboram ativamente com o herói para a realização
do feito, frequentemente agindo em seu lugar, mas a boa índole sempre demonstra a
alma pura do herói (e a má, a alma impura do falso-herói).
Assim como no mito, o C. tardio possui uma estrutura morfológica única, pare-
cida com uma corrente de perdas (problemas, deficiências) de alguns valores cósmicos
ou sociais e suas aquisições, que são ligadas entre si pelos atos do herói (consequência
delas). Os feitos cosmogônicos e culturais dos demiurgos míticos, as peripécias dos
trapaceiros nos C. de animais e as provações dos heróis dos C. maravilhosos – esses
† 321 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
atos são distributivamente semelhantes (todos eles são os elos intermediários entre as
perdas e as aquisições). Mas o mito ou o C. arcaico servem como certa metaestrutura
para o C. maravilhoso clássico. No C. arcaico, a corrente de perdas e aquisições pode
ser feita de um número indeterminado de elos e o final positivo, feliz (aquisição), não é
obrigatório, apesar de ser mais comum do que o negativo (perda). Quanto à estrutura,
todas as conexões são mais ou menos equivalentes e independentes. No C. maravilho-
so clássico, os elos narrativos independentes formam necessariamente uma estrutura
hierárquica rígida e delimitada, em que alguns valores narrativos são o meio para o
progresso de outros (análogo ao C. de animais clássico, constituído por uma corrente
de truques, também hierarquicamente relacionados um ao outro, embora em menor
grau do que no C. maravilhoso). A estrutura hierárquica do C. maravilhoso é feita de
dois ou, mais frequentemente, três elos fundamentais de provações do herói: a prelimi-
nar (algum doador checa o conhecimento do herói a respeito das regras de conduta),
a principal (o feito que conduz à liquidação do problema ou da deficiência iniciais) e a
complementar (a comprovação da identidade: o herói deve provar que foi ele mesmo
quem realizou o feito, seguida pela condenação dos rivais e dos impostores). O final
do C. maravilhoso clássico é invariavelmente feliz; via de regra, é o casamento com a
princesa e a aquisição de metade do reino. Dessa forma, não basta liquidar o problema/
deficiência inicial, pois há aquisições complementares, que se tornam a recompensa
do herói. As provações no C. maravilhoso são comparáveis àquelas típicas dos ritos
de consagração (iniciático) ou conjugais (mais tardios) na sociedade arcaica, ligadas
aos mitos. Já que cada indivíduo atravessa a iniciação e outros ritos de passagem (por
exemplo, de uma classe etária para outra), o C. utiliza amplamente os motivos mitoló-
gicos, relacionados aos rituais do tipo iniciático, por causa do seu interesse pelo destino
pessoal. Esses motivos são pontos de referência no caminho do herói (a sequência de
provações, a aquisição dos poderes mágicos) e são símbolos da própria heroicidade (a
vitória sobre o dragão etc.). Assim a sequência dos mais importantes símbolos, mo-
tivos, tramas e, em parte, a estrutura geral do C. maravilhoso estão ligadas aos ritos
iniciáticos (ver as pesquisas de V. Propp, J. Campbell e, mais recentemente, P. Sainty-
ves). No entanto, o equivalente ritualístico do C. maravilhoso clássico é o casamento,
† 322 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
um ritual mais tardio e individualizado se comparado com a iniciação, a que ele se
relaciona geneticamente; por isso, de certo modo, é justa a afirmação de a iniciação
ser o equivalente ritualístico que corresponde aos tipos de mito e formas arcaicas do
C.; assim como o casamento está para o C. maravilhoso tardio. Toda a sequência de
motivos e símbolos narrativos – o sapatinho da Cinderela, o cozimento do anel no
bolo, o disfarce da noiva na pele de porco ou de velha (no C. japonês), a falsa noiva,
a fuga de um dos noivos, a proibição de chamar a jovem noiva pelo nome verdadeiro
etc. – encontra sua explicação nos acontecimentos e ritos conjugais de muitos povos
do mundo e, no fim das contas, remete à semântica mitológico-ritualística antiga. O
C. também pode ser comparado ao rito matrimonial como um todo, pois o casamen-
to com a princesa ou príncipe é o objetivo último da narrativa. No entanto, isso não
implica a dedução universal sobre a gênese ritualística do C. maravilhoso, posto que a
originalidade da representação narrativa e a própria forma do gênero C. são determi-
nadas pelas concepções primitivas de fetichismo, totemismo, animismo e magia, bem
como as próprias peculiaridades do pensamento mitológico, da mediação mitológica.
No plano estilístico, os mais importantes indicadores do gênero, que opõem
o mito ao C. maravilhoso clássico como criação artística, são as fórmulas narrativas
tradicionais, que indicam a indeterminação do tempo e do espaço (nas aberturas),
a inverossimilhança (na nebylitsa11, a indicação da impossibilidade ao final) etc. Os
11 Gênero folclórico em verso ou prosa, geralmente de conteúdo cômico. O nome do gênero é formado a
partir da palavra “быль” (byl’), em português “fato”, que dá origem ao gênero “былина” (bylina), um dos maiores
exemplos de conto maravilhoso do folclore russo; somando-se à raiz etimológica o prefixo negativo “не” (ne) e os
sufixos necessários, chegamos ao nome do gênero textual em questão “Небылица” (nebylitsa). Ou seja, o nome
é do gênero pode ser entendido como “inverdade”, “invenção”, “mentira”, por isso é comum encontrar textos
que beiram o absurdo, para sublinhando o seu caráter de criação, de inverdade. Por outro lado, a nebylitsa pode
ser vista como uma paródia do conto maravilhoso, mas é importante ressaltar que ela não apresenta os motivos
da deficiência, as proibições e transgressões, o que indica um passo em direção à desmitologização do conto
maravilhoso. [N. do T.]
† 323 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
começos e finais do C. maravilhoso clássico são diametralmente opostos às aberturas
formulares (indicadores do tempo mitológico da criação: “foi no tempo em que os
bichos ainda eram gente” etc.) e os fechamentos formulares de caráter etiológico do
C. arcaico. Ao mesmo tempo, o discurso direto no C. preserva alguns elementos má-
gico-ritualísticos de forma esquemática.
† 324 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
Referências12
PROPP, Vladimir. A Morfologia do Conto Russo. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2006.
PROPP, Vladimir. Raízes Históricas do Conto Maravilhoso. São Paulo: Martins Fon-
tes, 2003.
MELETÍNSKI, E. O Herói do Conto Maravilhoso. Moscou: Academia Isledovanii
Kultury, 2005.
MELETÍNSKI, E. (2019). Mito e Conto Maravilhoso. RUS (São Paulo), 10(13),
149-164. https://doi.org/10.11606/issn.2317-4765.rus.2019.155845
MELETÍNSKI, E. Poética do Mito. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
Saintyves P. Les contes de Perrault et les récits parallèles (coutumes primitives et li-
turgies populaires). Paris: Slatkine, 1990.
JOLLES, A. Einfache Formen: Legende, Sage, Mythe, Rätsel, Spruch, Kasus, Me-
morabile, Märchen, Witz. Berlin: De Gruyter, 1993.
BOAS, F. General Anthropology. Nova Iorque: D. C. Heath and Company, 1938.
Disponível em: https://archive.org/details/generalanthropol031779mbp
12 Nesta edição, as referências originais foram trocadas pelas mais acessíveis para o leitor brasileiro. Quando
possível, referenciamos as traduções já feitas em português, em edições mais contemporâneas. Em alguns casos,
as edições já se encontram em domínio público, por isso oferecemos as versões disponibilizadas gratuitamente.
[N. do T.]
† 325 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
THOMPSON, S. The Folktale. Nova Iorque: Dryden Press, 1946. Disponível em:
https://babel.hathitrust.org/cgi/pt?id=inu.30000118310238
THOMPSON, S. Motif-index of Folk-Literature, v.1-6. Bloomington: Indiana Univer-
sity Press, 1955-1958. Disponível em: https://archive.org/details/Thompson2016Mo-
tifIndex
CAMPBELL, J. O Herói de Mil Faces. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1989.
VRIES, J. de. Betrachtungen zum Mдrchen, besonders in seinem Verhбltnis zu Hel-
densage und Mylhos (Folklore Fellow communications, v. 63, No 150). Helsinki:
Suomalainen Tiedeakatemia, 1967.
† 326 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
Texto original para consulta
Сказка и Миф
В архаическом фольклоре различение между мифом и сказкой (С.) трудноустановимо.
Выделяемые самими носителями традиции две формы повествования [пыныл и
лымныл — у чукчей, хвенохо и хехо — у фон (Бенин), лилиу и кукванебу — у
киривна в Меланезии и т. п.] лишь условно соотносятся с мифами и С.
Происхождение С. из мифа у большинства исследователей не вызывает
сомнения. Архаические С. обнаруживают отчётливую сюжетную связь с первобытными
мифами, ритуалами, племенными обычаями. Мотивы, характерные для тотемических
мифов и особенно мифологических анекдотов о трикстерах, широко отразились в С.
о животных. Совершенно очевидно мифологическое происхождение универсально
распространённой волшебной С. о браке с чудесным «тотемным» существом, временно
сбросившим звериную оболочку и принявшим человеческий облик (ср. сюжеты AT
400, 425 и др.): чудесная жена (в более поздних вариантах — муж) дарит своему
избраннику удачу в охоте, мёд (если она пчела), богатый урожай и т. п., но покидает
его из-за нарушения им какого-либо запрета (не называть по имени, не ругать и т. п.).
С. о посещении иных миров для освобождения находящихся там пленниц (AT 301 и
др.) аналогичны мифам и легендам о странствованиях шаманов или колдунов за душой
больного или умершего. Популярные С. о группе детей, попадающих во власть злого
духа, чудовища, людоеда и спасающихся благодаря находчивости одного из них (AT
327 и др.), или об убийстве могучего змея — хтонического демона (AT 300 и др.),
воспроизводят мотивы, специфичные для посвятительных обрядов.
Важной предпосылкой превращения в С. мифов, имеющих обрядовую основу,
являющихся составной частью ритуалов или комментарием к ним (см. Обряды и
мифы), был разрыв непосредственной связи этих мифов с ритуальной жизнью племени.
Отмена специфических ограничений на рассказывание мифа, допущение в число
† 327 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
слушателей и непосвящённых (женщин и детей) влекли за собой невольную установку
рассказчика на вымысел, акцентирование развлекательного момента и неизбежно —
ослабление веры в достоверность повествования. Из мифов изымается особо священная
часть, усиливается внимание к семейным отношениям героев, их ссорам и дракам и т. п.
Первоначально строгая достоверность уступает место нестрогой достоверности, что
способствует более сознательному и свободному вымыслу.
В генезисе С. существенна роль демифологизации времени и места
действия, переход от строгой локализации (там, где она имела место) событий к
неопределённости сказочного времени и места действия. Отсюда проистекает
и демифологизация результата действия, то есть отсутствие в С. характерного
для мифа этиологизма. Если в мифе деяния демиурга (даже если они по своему
характеру подобны трюкам мифологического плута), мифологические приобретения
имеют коллективное и космическое значение, определяя космогонический процесс
(происхождение света, огня, пресной воды и т. д.), то в С. добываемые объекты и
достигаемые цели составляют индивидуальное благополучие героя, приобретения
которого носят семейно-родовой, социальный характер. Так, герой волшебной С.
похищает живую воду для излечения больного отца (напр., в гавайских С. или в
С. европейских народов) или добывает огонь с помощью зверей для своего очага
(у фон), а персонаж животной С. (заяц или паук) хитростью похищает для себя
одного воду из колодца. Этиологический смысл мифа постепенно вытесняется
моралью (в С. о животных), стилистическими формулами, намекающими на
недостоверность повествования (в волшебных С.). Происходит демифологизация и
самих героев. Десакрализация тотемных персонажей при сохранении их зооморфности
явилась предпосылкой формирования С. о животных, восходящих к сказаниям о
мифологических плутах; главный герой животных С. — зооморфный трикстер,
а его проделки — основные структурные элементы сюжета. По мере забвения
тотемических верований С. о животных обогащаются бытовыми мотивами.
Демифологизация героя волшебной и волшебно-героической С. сопровождается
его полной антропоморфизацией и в известной мере идеализацией: у него —
божественные родители, чудесное происхождение, иногда сохраняются реликтовые
† 328 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
тотемические черты. Однако сказочный герой не имеет изначально магических сил,
которыми по самой своей природе обладает герой мифологический. В архаических
С. он приобретает эти качества в результате инициации, шаманского искуса, особого
покровительства духов. С., ещё в значительной степени сохранившие мифологическую
фантастику, например, имеются у северозападных индейцев. В них рассказывается о
необычайных испытаниях, которым подвергается сын (или зять) солнца. Это своего
рода героические С., но богатырство героя в них носит ещё колдовской, шаманский
характер. Будущий зять солнца найден в брюхе щуки, сам может превращаться в
щуку, получает помощь от щуки (тотемический мотив); с помощью данного ему некой
старухой мешка с ветрами герой тушит насылаемый солнцем огонь, он охотится за
дочерьми солнца, принявшими вид коз или птиц, с дочерьми солнца улетает на землю.
В процессе демифологизации героя, по-видимому, сыграло свою роль
взаимодействие традиций собственно мифологического повествования и всякого
рода первобытных быличек-рассказов о встречах в недавнем прошлом с различными
злыми или добрыми духами. Центральные персонажи быличек — обыкновенные
люди. Демифологизация героя в С. дополняется часто нарочитым выдвижением
в качестве героя «не подающего надежд», социально обездоленного, гонимого и
униженного представителя семьи, рода, селения. Таковы многочисленные бедные
сироты в фольклоре меланезийцев, горных тибето-бирманских племён, эскимосов,
палеоазиатов, североамериканских индейцев и др. Их обижают сородичи и соседи,
а духи становятся на их защиту. Хотя различные признаки «низкого» героя (напр.,
«неумойка», «незнайка», «дурачок», связанный с золой и очагом) имеют большое
значение, восходя к ритуально-мифологической семантике (ср. ритуальное значение
грязи, золы, лени, безумия, очага и пр.), сознательно маркируется именно его
социальная обездоленность. Если С. о сыне или зяте солнца и других «высоких» героях
представляют собой архаические аналоги русских волшебных С. об Иване-царевиче,
то бедный сиротка — «грязный парень» аналогичен запечникам — младшим братьям,
Золушке в европейских С., Иванушке-дурачку.
Классическая форма волшебной С. сложилась гораздо позже, чем классическая
С. о животных, уже за пределами первобытной культуры; она известна только в
† 329 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
фольклоре цивилизованных народов Европы и Азии и отличается от архаической С. в
большей мере, чем последняя от мифа. Её формирование было подготовлено упадком
(хотя и неполным) мифологического мировоззрения, превращением конкретно-
этнографической фантазии в обобщённо-поэтическую. В архаическом фольклоре
сказочная фантастика столь же конкретно этнографична, как и в мифах, основана
на конкретных племенных верованиях; в классической волшебной С. она оторвана от
них, создаётся достаточно условная поэтическая мифология С. Чудесные существа,
например, в русской С. — иные, чем в русской быличке, отражающей сохранившиеся
в определённой среде суеверия. Категория волшебного, хотя генетически связана с
магическим и сакральным, не тождественна им и специфична для С. (а не для мифа).
Сказка поэтизирует не только образы мифических существ (баба-яга, змей, кащей
и т. п.), но и сами магические превращения и колдовские действия.
Собственно сказочная семантика может быть интерпретирована только
исходя из её мифологических истоков. Однако для сказочной семантики, в отличие
от мифологической, характерна гегемония социального кода. Фундаментальные
мифологические противоположности типа жизнь — смерть в значительной мере
оттесняются социальными коллизиями, выступающими в форме внутрисемейных
отношений.
В архаической С. семейная тема только намечается: сказочная семья в известной
мере является символическим обобщением большой семьи, то есть патриархального
объединения полуродового типа, и сюжеты семейных распрей, угнетение падчерицы
или нанесение обиды младшему брату имеют имплицитно социальное значение как
знаки разложения рода. Мотив младшего брата, по-видимому, косвенно отражает
вытеснение архаического минората и развитие семейного неравенства. Образ мачехи
мог возникнуть только при условии нарушения эндогамии, то есть при женитьбе
на слишком «далеких» (из чужих племён) невестах. Не случайно мотив мачехи —
падчерицы в европейских С. в некоторых устойчивых сюжетах альтернативен
мотиву инцестуального преследования дочери отцом — попытки крайнего нарушения
экзогамии (запрещающей брак слишком близких родственников).
Нарушения норм семейно-брачных отношений (в виде инцеста или, напротив,
† 330 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
женитьба на слишком далёких невестах) и взаимных обязательств свойственников
оказываются источником серьёзных коллизий и в мифах, приводя к разъединению
исконно связанных между собой космических элементов. Их воссоединение требует
медиации и медиаторов. В С. те же самые нарушения (ср. лёгкое нарушение брачных
запретов в С. о тотемной жене, сбросившей звериную оболочку; похищение царевны
в качестве наложницы змеем — слишком далёким женихом; преследование дочери
отцом — инцест или падчерицы мачехой — слишком далёкой женой отца и т. п.)
рассматриваются со стороны возможных социальных, а не космических последствий.
«Правильный» брачный обмен всё больше теряет коммуникативную функцию (как в
палеоазиатских мифах о приключениях детей ворона, заключающих «правильные»
браки с существами, персонифицирующими и контролирующими погоду и морской
промысел, то есть с социализированными космическими силами). В С., где речь идёт
не о племенном благополучии на космическом фоне, а о личном счастье на фоне
социальном, брак «низкого» героя с царевной (или «низкой» героини с царевичем),
сопровождающийся повышением социального статуса героя, представляет собой
своеобразный чудесный выход для индивида из социальной коллизии [в классической С.
встречается чудесное рождение героя как форма его идеализации, но чаще «высокое»
происхождение имеет социальные формы (царевич)]. Свадьба выступает как средство
преодоления фундаментальных противоречий, выявляемых на уровне сказочной семьи,
и осуществляет медиацию в оппозиции «низкий» — «высокий». В архаических С.
тема женитьбы периферийна; семейные отношения выступают иногда как средство
достижения хозяйственных успехов, магических предметов и т. п. При переходе от
архаической к классической волшебной С. средство и цель как бы меняются местами.
Даже в С. о добывании диковинок поиски пера жар-птицы, живой воды и т. п. — только
прелюдия к свадьбе царевны; в других же С. чудесные предметы выступают всегда
лишь как средство, обеспечивающее в конечном счёте счастливый брак. Женитьба
сохраняет медиативную функцию и в тех редких случаях, когда в С. жених и невеста
оба — высокого социального происхождения. В подобных случаях герой нередко
сознательно скрывается под маской «низкого» и лишь впоследствии обнаруживает
своё действительное происхождение (как в С. о золотоволосом юноше и др.).
† 331 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
В целом для семантики волшебной С. типично сохранение важнейшего
мифологического противопоставления свой — чужой (характеризующее отношения
героя и его антагониста), которое проецируется на различные плоскости: дом — лес
(ребёнок — баба-яга), наше царство — иное царство (молодец — змей), родная семья —
неродная семья (падчерица — мачеха) и т. п.; и описание норм семейно-брачных
отношений ведётся в плане того же противопоставления: от нормально экзогамного
брака с «тотемной» супругой, объединяющего «человеческое» и «звериное», до их
предельного нарушения в виде инцеста.
В классической волшебной С. успех или неуспех героя уже не является
прямым следствием соблюдения им магических предписаний, обретения магических
способностей в результате инициации или шаманского искуса, родственных или
брачных связей с духами. Чудесные силы вообще как бы отрываются от героя и
действуют в значительной мере вместо него. Их благоволение к герою обусловливается
соблюдением им определённых, довольно отвлечённых правил поведения, диктующего
структуру сказочного поступка, его основной принцип — обязательность
положительного ответа на любой вызов, особенно ведущий к действию (даже если он
исходит от явно враждебного существа): всякое предписание должно быть выполнено,
а всякий запрет нарушен. Эта формальная система поведения, абстрагированная от
конкретных обычно-правовых норм, специфична для С. Это не исключает того, что
поступки героя могут одновременно иметь морально-этическую характеристику
(вежливость, доброта, щедрость и т. п.), что также типично для С. Волшебные силы
активно помогают герою совершить подвиг, часто действуют вместо него, но в
правильном поведении всегда проявляется добрая воля героя (и злая воля ложного
героя — в неправильном).
Как миф, так и развитая С. имеют единую морфологическую структуру,
предстающую как цепь потерь (бед, недостач) неких космических или социальных
ценностей и их приобретений, связанных между собой действиями героя (являющихся
их результатом). Эти действия — космогонические и культурные деяния демиургов в
мифах, проделки трикстеров в С. о животных и испытания героев в волшебных С. —
дистрибутивно тождественны (все они — промежуточные звенья между потерей и
† 332 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
приобретением). Но миф или архаическая С. выступают как некая метаструктура по
отношению к классической волшебной С. В архаической С. цепь потерь и приобретений
может состоять из неопределённого числа звеньев и положительный, счастливый
финал (приобретение), хотя и встречается чаще, чем отрицательный (потеря),
не обязателен. Все звенья более или менее структурно равноценны и достаточно
обособлены. В классической волшебной С. отдельные сюжетные звенья обязательно
образуют жёсткую иерархическую ступенчатую структуру, в которой одни сказочные
ценности — средство для достижения других (аналогично и в классической С. о
животных, состоящей из цепи трюков, также, хотя и в меньшей степени, чем в
волшебной С., иерархизированных относительно друг друга). Иерархическая структура
волшебной С. состоит из двух или чаще трёх основных звеньев — испытаний героя:
предварительного (некий даритель контролирует знание героем правил поведения),
основного (подвиг, ведущий к ликвидации первоначальной беды или недостачи)
и дополнительного (испытание на идентификацию: герой должен доказать, что
именно он совершил подвиг, после чего происходит посрамление соперников и
самозванцев). Финал классической волшебной С. — непременно счастливый, как
правило, — женитьба на царевне и получение полцарства. Таким образом, не только
ликвидируется первоначальная беда-недостача, но имеются и дополнительные
приобретения, оборачивающиеся наградой герою. Испытания героя в волшебной С.
сопоставимы с испытаниями, характерными для посвятительных (инициационных)
либо брачных (более поздних) ритуалов в архаическом обществе и соответствующих
мифов. Поскольку через инициации и другие переходные (напр., из одного возрастного
класса в другой) ритуалы проходит каждый индивид, то С., с её интересом к судьбе
личности, широко использует мифологические мотивы, сопряжённые с ритуалами
посвятительного типа. Эти мотивы отмечают вехи на пути героя (ряд испытаний,
приобретение магических сил) и становятся символами самой героичности (победа
над змеем и т. п.). Так, ряд важнейших символов, мотивов, сюжетов и отчасти общая
структура волшебной С. связаны с посвятительными ритуалами (см. исследования
В. Я. Проппа, Дж. Кэмпбелла и более ранние — П. Сентива). Однако ритуальным
эквивалентом классической формы волшебной С. скорее является свадьба — ритуал
† 333 ¢
Literartes, n. 12 | 2020 | Tradução – RIBEIRO
более молодой и индивидуализированный по сравнению с инициацией, с которой он
отчасти связан генетически; отсюда в какой-то мере справедливо и утверждение, что
инициация — ритуальный эквивалент соответствующих типов мифа и архаических
форм С., а свадьба — развитой волшебной С. Целый ряд сказочных мотивов и
символов — башмачок Золушки, запекание кольца в пирог, ряженье невесты в свиную
кожу или кожу старухи (в японской С.), подставная мнимая невеста, бегство невесты
или жениха, запрет называть родовое имя молодой жены и т. п. — находит объяснение
в брачных обычаях и обрядах многих народов мира и в конечном счёте восходит также
к древней ритуально-мифологической семантике. С. сопоставима и со свадебным
обрядом в целом, поскольку женитьба на царевне или брак с царевичем является
конечной сказочной целью. Отсюда, однако, не следует общий вывод о принципиально
ритуальном генезисе волшебной С., поскольку своеобразие сказочной фантастики,
саму жанровую форму С. во многом определяют и первобытные фетишистские,
тотемические, анимистические, магические представления и сами специфические
особенности мифологического мышления, мифологические медиации.
На стилистическом уровне важнейшими жанровыми показателями, которые
противопоставляют волшебную классическую С. мифу как художественный вымысел,
являются сказочные традиционные формулы, указывающие на неопределённость
времени и места (в зачинах), недостоверность (указание на небылицу через категорию
невозможного в концовке) и т. д. Зачины и концовки классической волшебной С.
полярно противоположны инициальным формулам (указывающим на мифическое
время первотворения: «это было тогда, когда животные ещё были людьми» и т. п.)
и финальным формулам этиологического характера архаической С. В то же время
прямая речь в С. сохраняет в схематизированном виде некоторые ритуально-магические
элементы.
† 334 ¢