PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
O ABORTO ENTRE OS POSICIONAMENTOS CATÓLICOS,
O FEMINISMO E A LEGALIDADE JURÍDICA
IÊDA RUBENS COSTA
GOIÂNIA
2012
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
O ABORTO ENTRE OS POSICIONAMENTOS CATÓLICOS,
O FEMINISMO E A LEGALIDADE JURÍDICA
IÊDA RUBENS COSTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação stricto sensu em Ciências da Religião
da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, para
a obtenção do grau de Doutora em Ciências da
Religião.
Orientador: Prof. Dr. Haroldo Reimer
GOIÂNIA
2012
Costa, Iêda Rubens.
O aborto entre os posicionamentos católicos:o
feminismo e a legalidade Jurídica/Iêda Rubens Costa.
Goiânia: PUC Goiás/Departamento de Filosofia e Teologia-
2012.
163 f.: il.; 31cm.
Orientador: Prof. Dr. Haroldo Reimer.
Tese (Doutorado)–Pontifíca Universidade Católica de
Goiás, Departamento de Filosofia e Teologia, Pós-Graduação
Stricto Sensu em Ciências da Religião, 2012.
Referências bibliográficas: 129-141
1. Ciências Humanas. 2. Ciências da Religião-Tese.
I.Costa, Iêda Rubens. II. PUC Goiás, Departamento de
Filosofia e Teologia. III. O aborto entre os posicionamentos
católicos: o feminismo e a legalidade Jurídica.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela força espiritual renovada a cada instante, que
me propiciou concluir este trabalho.
Ao professor Dr. Haroldo Reimer, meu orientador, pela
credibilidade.
Aos professores, da banca de Qualificação pelo dom de
saber criticar sem ofender.
Aos colegas de curso, pela salutar convivência.
Às inteligentes correções e acompanhamento do mestre
Claude Detienne, que com seriedade, leu todos os
manuscritos.
Ao Dr. Donizete Martins de Oliveira, Juiz de Direito, pela
prestimosa colaboração.
Ao meu esposo Denis Monteiro pela compreensão no
decorrer do trabalho.
E a todos, que, direta ou indiretamente, contribuíram para a
realização deste trabalho.
RESUMO
COSTA, Iêda Rubens. O aborto entre os posicionamentos católicos, o feminismo e a
legalidade. Tese (Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião) – Pontifícia
Universidade Católica de Goiás, 2012.
A tese tem como objetivo analisar de que forma o aborto é visto na sociedade
brasileira, a partir da Igreja Católica e das organizações feministas. Para tanto,
sustentarão a presente análise os conceitos de biopoder e de autonomia relativa, a
fim de compreendermos como historicamente ambos os grupos desempenham
papeis sociais cruciais nesse debate. Como busca por comprovar tal suposição,
serão analisados ainda os posicionamentos da Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil e das organizações feministas na busca pela aprovação ou não da Arguição
de descumprimento de preceito fundamental 54, da 3º Plano Nacional dos direitos
Humanos e dos projetos de lei em defesa do direito do nascituro.
Palavras chave: aborto, Igreja Católica, feminismo.
ABSTRACT
COSTA, Iêda Rubens. Abortion between catholic positions, feminism and legality.
Thesis (Postgraduate Program in Religious Studies) – Pontifical Catholic University
of Goiás, 2012.
The thesis aims to analyze how abortion is seen in the Brazilian society from the
Catholic Church and feminist organizations. Therefore, the present analysis will be
supported by the concepts of biopower and relative autonomy, in order to understand
How both groups play historically crucial roles in this debate. Trying to prove this
assumption, we will further analyze the positions of the National Conference of
Bishops of Brazil and the feminist organizations, seeking the approval or disapproval
of Complaint of breach of fundamental precept 54 and National Plan of Human
Rights and bills in defense of the rights of the unborn.
Keywords: abortion, Catholic Church, feminism.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 3
1. A VIDA HUMANA E SUAS NORMATIZAÇÕES NA HISTÓRIA 10
1.1 A AUTONOMIA RELATIVA BOURDIEUSIANA COMO CATEGORIA DE ANÁLISE 11
1.2 O CONCEITO DE BIOPOLÍTICA E DE BIOPODER 16
1.3 O CONCEITO DE VIDA COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE 19
1.3.1 Dignidade humana 26
1.3.2 A bioética e a dignidade humana 27
1.4 AUTONOMIA RELATIVA, VIDA E BIOÉTICA: TECENDO CONCEITOS 34
2. A CONSTRUÇÃO DOS VALORES E DAS NORMAS NA IGREJA CATÓLICA E 38
AS ORGANIZAÇÕES FEMINISTAS
2.1 INÍCIOS DO CRISTIANISMO 39
2.1.2 Cristianismo das origens: críticas e adaptação 43
2.2 NORMATIZAÇÕES DA IDADE MÉDIA: MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO 47
2.3 IRRUPÇÕES DA SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE: INÍCIO DA 52
EMANCIPAÇÃO DA CONSCIÊNCIA. O QUE É CONSCIÊNCIA?
2.3.1 A perda do poder do controle da igreja e a sua resistência frente ao mundo 57
moderno
2.3.2 A Igreja católica hoje frente ao aborto 59
2.3.3 O feminismo e as Católicas pelo Direito de Decidir como contraponto à Igreja 62
Católica
2.3.4 Resistências e dissonâncias dentro da Igreja: Católicas pelo Direito de Decidir 65
2.3.5 A Igreja Católica e as organizações feministas: posicionamentos sociais e 69
autonomia relativa
3 ENTRE NORMAS E VALORES: O ABORTO NAS LEIS BRASILEIRAS 72
3.1 O ABORTO LEGAL 73
3.2 O ABORTO COMO CRIME 76
3.3 A CONSTRUÇÃO DAS NORMAS: FATO, VALOR E NORMA 83
3.4. OS VALORES E OS TABUS 85
3.5 O ABORTO E AS INSTÂNCIAS SOCIAIS 88
3.6 CONSIDERAÇÕES GERAIS 90
4 O ABORTO NO DIREITO ESTATAL BRASILEIRO E COMPARADO 94
4.1 INFLUÊNCIA PERSEVERANTE DA IGREJA SOBRE O ESTADO E SUAS 96
NORMAS
4.2 CÓDIGO PENAL E CÓDIGO CIVIL: REITERADA INFLUÊNCIA DA IGREJA 98
4.3 EMANCIPAÇÃO GRADATIVA DO INDIVÍDUO COM O AVANÇO DA 101
SECULARIZAÇÃO: INFLUÊNCIA LIBERAL
4.4 EXEGESE DOS ARTIGOS DO CÓDIGO PENAL E DO CÓDIGO CIVIL SOBRE O 103
ABORTO
4.5 POLÊMICAS RECENTES: O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS ORIGENS 104
DA VIDA
4.5.1 Projetos de lei em defesa do nascituro: direito à vida ou sacrifício de mulheres 112
4.5.2 A descriminalização do aborto: embates entre feministas e católicos no ano de 116
2010
4.6 ENTRELAÇAMENTO DE PODERES FEMINISTAS E RELIGIOSOS: UMA 120
ANÁLISE GERAL
CONSIDERAÇÕES FINAIS 123
REFERÊNCIAS 129
ANEXOS 142
3
INTRODUÇÃO
O aborto é um tema instigante, que vem sendo debatido nas várias instâncias
sociais, da sociedade brasileira e mundial é alvo de grande polêmica em razão das
mais variadas opiniões que ele suscita. Observa-se, atualmente, a importância de se
fazer um estudo sobre o tema consultando-se o Poder Judiciário o posicionamento
da Igreja Católica e de organizações feministas, para se compreender o que está em
jogo no embate e debate sobre o aborto.
O estudo sobre o aborto envolve um saber sobre quando se dá o início da
vida e que tipo de lei penal se adéqua a esse fato. Assim, cria-se um debate que
reúne opiniões divergentes, envolvendo áreas como a ciência, a religião e a filosofia,
mas percebe-se que não existe consenso sobre esse tema, nem um conceito
unívoco sobre o mesmo. O problema reside em estabelecer qual seria o pressuposto
lógico para saber quando se atentaria contra a vida intrauterina, determinando-se
quando começaria essa vida (TESSARO, 2006, p.117).
Essa falta de consenso reflete na própria legislação, visto que há tentativas de
modificá-la, ampliando ou restringindo aquilo que ela permite. No judiciário, há ainda
uma busca pela autorização ou não de abortos (de fetos sem viabilidade
extrauterina). Além disso, há ‘contestações mudas’1 das mulheres, ou dos casais, e
de profissionais da saúde, ao ponto de desafiar a legislação (ARNAUD, 2008, p.12).
De fato, a prática do aborto é um tema complexo, pois vai muito além das “políticas
de aborto” ou de “asserções entre um pólo extremo ou outro” (TUSSI, 2010, p.130).
Uma dificuldade a ser considerada, quando se pesquisa sobre o aborto, é a
de conseguir dados sobre as mulheres que o praticam. Muitas delas, mesmo
estando protegidas por lei2, depois de fazerem o aborto, chegam aos hospitais, mas
não são assistidas e tornam-se vítimas de discriminação.
O Poder Judiciário brasileiro tem sofrido alterações ao longo das décadas,
especialmente na interpretação, o que evidência uma tendência de autonomia em
relação ao âmbito religioso.
1
As ‘contestações mudas’ trazidas por Arnaud (2008) dizem respeito à maneira que as mulheres, os
casais, e os profissionais de saúde contestam silenciosamente as normas relativas ao aborto
presentes no Código Civil e Penal, ao continuarem praticando o aborto considerado ilegal ou ao se
recusarem em garantir à gestante o direito ao aborto legal. Assim, ambos os atos são formas de
contestar silenciosamente aquilo que é determinado pela legislação.
2
Vejam-se as determinações do Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, do Decreto-Lei n° 2848
de 07 de dezembro de 1940.
4
Comumente, vê-se noticiado, em jornais e revistas, que o aborto é praticado
no silêncio de lugares sem a mínima estrutura, em clínicas clandestinas, infringindo-
se a lei e os princípios religiosos de várias denominações (SAÚDE, 2009).
De modo geral, se observa que as mulheres silenciam, ficam constrangidas e
sentem medo de se pronunciar sobre a prática do aborto, não por causa do crime
que se comete ao abortar, mas porque tal posicionamento atinge ou fere princípios
religiosos. Assim, pode-se considerar que:
[...] ‘pensar no aborto é pensar em vários valores muito fortes, como a vida
humana’ (quando ela começa seus significados), a família, a maternidade e
o individualismo (com a questão dos direitos individuais). Esses valores
estão presentes tanto nos processos de tomada de decisão com relação à
interrupção da gravidez, quanto no debate público sobre a questão, e
tornam a discussão bastante polêmica (ARNAUD, 2008, p.17).
No debate em relação ao aborto, tem-se percebido o posicionamento do
cristianismo, em especial, o da Igreja Católica, e a sua influência na opinião de
vários grupos sociais. Desse modo, pode-se destacar que:
O cristianismo lançou as bases de uma nova civilização, a civilização cristã
ocidental, na qual o aborto teve existência marginal, que se traduzia em dois
elementos: primeiro, uma redução na prática do mesmo; segundo, a
ausência de um discurso pró-aborto, não apenas como manifestação
pública, mas especialmente como inexistência de uma formação discursiva
que desse suporte à prática. As pessoas que praticavam o aborto o faziam
com a consciência de se tratar de algo que era condenado pela sociedade
(NAZARÉ, 2008, p.38).
Ressalta-se aqui que, ainda hoje, o Papa desempenha um papel importante
na sociedade como um todo, pois as pessoas levam em consideração os seus
pronunciamentos3.
Diante disso, neste estudo, fizemos um recorte do universo religioso,
escolhendo o Catolicismo por ele ter a capacidade de influenciar as demais religiões
e os vários setores da sociedade, inclusive o Estado. Assim, temos como hipótese
que a Igreja Católica e as organizações feministas são atores sociais capazes de
influenciar de maneira significativa o debate sobre o aborto Portanto há
provavelmente uma autonomia relativa desempenhada por parte desses dois
grupos, que faz com que o discurso de cada um deles tenha muita validade não
3
Quem constrói uma rica análise sobre a espetacularização da fé e a influência do Papa nos dias
atuais é Nunes (2004), ao analisar como a figura do Papa ainda tem a capacidade de mobilizar
grande número de indivíduos de modo que sua opinião não pode ser tida como descartável.
5
apenas para as mulheres que praticam o aborto, mas para os demais setores, como
o judiciário e o da saúde.
Esses valores fazem com que seja notória, na sociedade brasileira, a forma
com que ela não consegue “encarar essa situação de frente, abordando-a com
discussões superficiais e julgamentos pessoais” (REBOUÇAS, 2010, p.26). A
discussão, portanto, quase sempre se limita a indivíduos que se manifestam
contrariamente ou favoravelmente, sem que haja, profundidade em seus discursos.
No início do século XX, no Brasil, havia uma grande rejeição às mulheres que
cometiam o aborto e eram consideradas como:
[...] responsáveis pela eliminação de futuros rebentos para a nação. Evitar
os perigos e repetir os prazeres, nessa sociedade, consistia na capacidade
de criar táticas e estratégias para driblar o controle dos pais, de professores
e, sobretudo, dos olhos, freqüentemente atentos e vigilantes de vizinhos e
conhecidos (RAMOS, 2009, p.25).
No século XIX e no início do século XX, observa-se que era comum essa
constante vigilância, deixando claro que tais mulheres passavam por muitas
dificuldades e um sentimento de culpa por estarem sendo contrárias ao que a
sociedade da época determinava (FALCI, 1997; PERROT, 2005).
Assim, reconhecendo a relevância desta temática, queremos, no presente
trabalho, analisar de que forma o aborto é visto na sociedade brasileira a partir da
Igreja Católica e das organizações feministas, observando como ambos os grupos
exercem uma autonomia relativa4. O aborto será visto sob várias formas, trazendo-
se à tona discussões sobre vida, ética, religião, valores morais e o direito de escolha
da mulher (SOUZA, 2009, p.22).
Nesta pesquisa, verificar-se-á como se dá, no cenário social e religioso
brasileiro, a relação entre a Igreja Católica, as organizações feministas e o poder
político no que tange a questão do aborto. Assim, defende-se a idéia de que, na
complexidade dessas relações, á Igreja Católica e as organizações feministas
exercem autonomia relativa sobre o aborto, com determinada prevalência da Igreja
Católica por conta de sua influência traditiva de longa duração.
[...] a relação do Direito com os saberes biomédicos faz-se mais clara,
tendo em vista que estes devem eventualmente fornecer uma base técnica
sobre os fatos do corpo e da saúde, sendo tais fatos, em tese, incorporados
ao texto legal e a uma visão oficial do Estado. O campo do Direito move-se,
4
Conceito utilizado por Bourdieu (1998) que compartilharemos neste trabalho, tendo em vista que
consegue observar como cada setor tem certa autonomia, que não é plena, mas dialoga com as
demais.
6
contudo, segundo lógicas próprias, respeitando ou devendo respeitar a
hierarquia dos códigos e a sua adequação às formas que regem o jurídico-
normativo (CUNHA, 2007, p.103).
Destacar-se-á, portanto, o diálogo da Igreja Católica e das organizações
feministas com os setores jurídico e político, observando-se como eles se
entrelaçam nas teias do discurso.
Tal abordagem se justifica porque, apesar de sua grande quantidade (cerca
de 20 trabalhos, entre teses e dissertações), nenhum estudo sobre esse debate
construiu uma abordagem que se voltasse para as instâncias sociais em diálogo
com a Igreja Católica. Os dados colhidos por grande parte dos/das autores/as tratam
de estudos feitos com muitas dificuldades a partir de pesquisa de campo,
preocupando-se mais com as mulheres que praticavam o aborto de forma ilegal e
clandestina (SAÚDE, 2009).
A preocupação dos/das autores/as esteve pautada na colheita de informações
sem comprometer tais mulheres a fim de obter os dados necessários para sua
pesquisa. Assim, essas pesquisas estiveram restritas muitas vezes à área da saúde.
Autores/as como Motta (2000), Moron (1995), Moretti (1992), Carvalho (2009),
Souza (2009), Araújo (2007) tiveram sua relevância para este campo de estudo,
porém trataram de um campo específico, o quadro da saúde.
Outros/as autores/as se voltaram especificamente para o campo jurídico,
apontando casos de aborto legal, mas nos quais o embate da burocracia tornou
impossível sua prática. Mencionaremos aqui, como exemplo, as pesquisas de Moura
(2005), Tagata (2009), Emmerick (2007) e Tessaro (2006), apresentando suas
relevâncias, que não substituem, porém, uma análise hermenêutica e social dessas
instâncias.
Em uma abordagem de cunho sociológico e antropológico, também serão
pesquisados vários trabalhos como, por exemplo, os de Pérez (2006), Arnaud
(2008), Tavares (2008), Tussi (2010) e Cunha (2007), que buscaram realizar uma
pesquisa de campo sobre esse tema, analisado as moralidades existentes em torno
dele. A dissertação de Nazaré (2008), da área de linguística, apresenta também uma
importante compreensão dos discursos presentes no campo midiático. No campo da
história, encontram-se as dissertações de Vázquez (2005) e Ramos (2009). E,
pautados numa análise do serviço social, há os trabalhos de Lolatto (2004) e de
Matos (2009).
7
Numa reflexão de cunho psicológico, o trabalho de Rebouças (2010) e de
Bizzo (2008) volta-se, de forma contundente, para o sentimento de culpa existente
nas mulheres que realizam o aborto, dando uma contribuição significativa em
relação à maneira com que os costumes e a religião conseguem trazer para as
mulheres sofrimento e dores perante essa prática. Na área da saúde, temos ainda o
trabalho de Mortari (2010), desenvolvido na área de enfermagem, de Pilecco (2010),
na área da epidemiologia, e de Carvalho (2009), na área da saúde pública.
A análise das principais instâncias sociais em relação aos seus
posicionamentos frente ao aborto ter á como base um estudo bourdieusiano, para
poder compreender de que forma cada uma delas interfere na sociedade com suas
críticas e questões levantadas de forma incisiva. Consideraremos ainda a questão
do biopoder, ou seja, a idéia de que na sociedade normalizada há atores sociais que
definem o direito a vida (FOUCAULT, 1988). Observaremos também a existência de
um politeísmo de valores na sociedade contemporânea e a notória existência de
duas éticas distintas: a ética da convicção e a ética da responsabilidade (WEBER,
2002).
No campo jurídico, observaremos como as leis que se voltam para o aborto
legal (Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, do Decreto-Lei n° 2848 de
07/12/1940), ou seja, em casos de risco de vida da mãe e estupro, algumas vezes
são burladas pelos médicos, que alegam que seus princípios religiosos não
permitem a prática do aborto e, por isso, recusam-se a realizá-lo.
Além disso, observaremos que na sociedade brasileira, como no caso do
aborto considerado como crime, existem valores intrínsecos nas leis, pois há uma
rigidez da lei para com as pessoas que praticam o aborto, com argumentos muito
próximos do religioso (capítulos 3 e 4 deste trabalho).
No campo político, observar-se-á como o posicionamento favorável ao aborto
contraria os interesses da sociedade, que, movida por um sentimento religioso e
detentora de autonomia relativa, coloca-se contrária aos que apóiam o aborto, ou
seja, que ela considera como favoráveis ao assassinato e contra a vida. Sobre os
diversos posicionamentos da sociedade contrários ao aborto, uma opinião comum
recorre à seguinte argumentação
As desigualdades nas condições de saúde entre homens e mulheres
reporta às desigualdades no exercício dos direitos, principalmente
reprodutivos. O direito ao aborto seguro e aos demais direitos reprodutivos,
pautados na igualdade entre os gêneros, mobiliza as mulheres desde os
anos 60, por meio do movimento feminista. As lutas pela cidadania feminina
8
influenciaram o planejamento político das ações de saúde (MATOS, 2009,
p.93).
Em termos metodológicos, o trabalho consiste em pesquisa bibliográfica com
reflexão crítica sobre as produções relativas ao tema em questão está pautado por
uma análise dos elementos simbólicos que regem a esfera valorativa dos sujeitos.
Além de uma pesquisa bibliográfica que se volta para os diversos campos sociais,
faremos uma análise hermenêutica da Argüição de Descumprimento de Preceito
Fundamental 54, dos projetos de lei que tramitam na Câmara e dos debates sobre a
descriminalização do aborto no Supremo Tribunal Federal. Para tanto, com base em
Bourdieu (1998), Foucault (1988) e Weber (2002), observaremos alguns
posicionamentos atuais sobre o aborto como o discurso oficial da Igreja Católica, o
Código Penal Brasileiro, no seu artigo 128, o Decreto-Lei n° 2848 de 07/12/1940,
referente aos casos em que o aborto é legalizado, o posicionamento das
organizações feministas em diálogo com os discursos políticos referentes a esse
tema. Assim, após uma análise desses discursos, observaremos o que move esse
tema tão polêmico, debatido amplamente pela sociedade.
No estado atual da pesquisa, tem-se observado, a partir desses diversos
setores da sociedade, como o discurso oficial da Igreja Católica, ainda hoje, exerce
uma grande influência no debate sobre o aborto e, ao reivindicar o direito à vida, se
choca com o discurso feminista, que pauta sua análise na questão do direito
reprodutivo das mulheres e na precariedade da saúde pública.
A análise dos diversos posicionamentos da sociedade referentes ao aborto
permitirá a realização de um estudo sobre sua dinâmica. Assim, depois de ver que o
senso comum se volta apenas para observar os aspectos contrários ou favoráveis
ao aborto, analisaremos outro debate: de que forma esse tema move a sociedade e
como permite que haja um cumprimento da lei ou não?
No primeiro capítulo, discutiremos conceitos ligados aos temas-chave deste
trabalho como: o conceito de vida, a autonomia relativa, o politeísmo de valores, o
biopoder, a biopolítica e a bioética. Esses conceitos serão fundamentais para a base
teórica deste estudo, possibilitando uma compreensão mais profunda do objeto
deste trabalho.
A partir dos temas-chave, no segundo capítulo, realizaremos uma análise
resumida da atuação da Igreja Católica na sociedade, a fim de identificar o poder
9
que ela ainda exerce e de que forma fundamenta seu discurso, destacando como se
formam as normas na Igreja Católica. Além disso, faremos uma análise geral do
movimento feminista, já que o seu discurso funciona como contraponto ao
pensamento da Igreja Católica.
No terceiro capítulo serão definidos o aborto legal no Brasil e o aborto como
crime. Em seguida, a partir de Reale (1994), veremos como algumas normas aqui
implantadas estão diretamente relacionadas aos valores religiosos, demonstrando,
assim, a correlação entre fato, valor e norma. E, finalizando com o tema dos valores
e tabus, mostraremos como esse tema está arraigado na sociedade.
Assim, encerraremos esta abordagem, observando como essa temática se
insere no sistema jurídico brasileiro e examinando alguns temas polêmicos do
Supremo Tribunal Federal existentes nos debates sobre o aborto, dando destaque
aos posicionamentos das feministas e da Igreja Católica enquanto instituição.
Diante disso, a análise realizada neste estudo sobre como as várias
instâncias sociais se posicionam frente ao aborto dará destaque à Igreja Católica e
às organizações feministas por serem ambas capazes de influenciar em grande
escala a opinião pública e até mesmo as instâncias sociais, tomando como base sua
capacidade de mobilizar as pessoas em debates sobre a descriminalização do
aborto principalmente a partir da observação de depoimentos da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil no Supremo Tribunal Federal e do grupo das
Católicas pelo Direito de Decidir. Portanto, tal estudo permitirá que se observe
amplamente como o aborto se insere na dinâmica da sociedade, cujos diversos
poderes exercem apenas uma autonomia relativa frente a esse tema.
10
1. A VIDA HUMANA E SUAS NORMATIZAÇÕES NA HISTÓRIA
O estudo sobre o aborto no Brasil envolve um longo debate relacionado aos
religiosos e aos pesquisadores das várias áreas do conhecimento. Entre as áreas
que se voltam para esse tema, merecem destaque as áreas da saúde, a sociologia,
o direito e as ciências da religião.
A compreensão científica de um tema tão polêmico e controverso requer uma
análise prévia do conceito de “vida”, a fim de evidenciar os rumos das várias
pesquisas sobre o aborto. A importância de estudá-lo está no fato de que o “aborto é
parte de um conjunto mais abrangente de demandas recentes pela definição legal
de vida, pela regulação de políticas e técnicas de reprodução e pela implementação
dos direitos sexuais e reprodutivos” (CUNHA, 2007, p.16).
O aborto se insere entre as antigas técnicas e métodos contraceptivos, sendo
um meio drástico de se evitar ter filhos. (HOFMANN, 2008). Assim, atualmente,
pode-se considerar que:
Temas como a reprodução humana assistida, a troca de sexo, a eugenia, o
aborto de fetos anencefálicos, experimentações com gametas ou pré-
embriões, o mapeamento genético, entre tantos outros, são assuntos em
destaque e em patente processo de evolução que merecem atenção por
parte da sociedade e do Estado, a fim de que essas questões tão novas, e
tão polêmicas, possam ser regulamentadas e utilizadas de forma ética em
benefício da humanidade (TAGATA, 2009, p.11).
Todos esses temas estão ligados aos avanços científicos sobre os quais a
bioética tem voltado seu olhar, por isso há necessidade de um estudo da mesma.
A dificuldade de observar os avanços científicos quanto à reprodução humana
se deve ao fato deles colocarem “em destaque a discussão entre os mais variados
conflitos de valores”. Além disso, a qualidade de vida das pessoas está relacionada
a esses avanços, bem como à ética da vida e da saúde (MORTARI, 2010, p.53).
No entanto, é valido destacar que antes de observar como o conceito de vida
vem sendo trabalhado e qual é a relevância da bioética nesse campo de
conhecimento, será necessário observar as várias instâncias da sociedade para
conseguir uma ampla visão sobre como vem sendo tratado o aborto.
11
Sobre as instâncias sociais presentes nesses, e em tantos outros debates, é
prudente destacar que cada instituição tem uma autonomia relativa
(BOURDIEU,1998). Assim, segue-se a discussão do que seria essa autonomia
relativa de cada instituição, mencionando-se, principalmente, a Igreja Católica e as
organizações feministas, já que ambas foram escolhidas como objeto de análise.
Em seguida, dedicaremos um item especial ao conceito de vida, apontando
não somente as fases do desenvolvimento humano, mas também como ele se
diferencia dos outros animais, memorando ainda as várias versões sobre o
surgimento do homem e os tipos de conhecimento que lhe são característicos.
Além disso, discutiremos a questão da bioética, pois ela busca controlar os
avanços científicos, baseando-se na idéia de dignidade humana. Nesta análise,
observaremos também o discurso religioso por parte dos profissionais da saúde,
mencionando a importância de cada um dos seus princípios como beneficência, não
maleficência, justiça e autonomia.
Essa discussão conceitual se faz necessária para embasar o que será
abordado nos capítulos posteriores, pois, tendo a noção de cada um desses
conceitos, não será necessário voltar a eles e apresentar com quais categorias
trabalhamos.
1.1 A AUTONOMIA RELATIVA BOURDIEUSIANA E O POLITEÍSMO DE VALORES
WEBERIANO COMO CATEGORIAS DE ANÁLISE
Entende-se que autonomia relativa é a capacidade que cada instituição tem
de exercer um poder na sociedade, com o esclarecimento de que essa relatividade
ocorre porque nenhum dos poderes é capaz de determinar totalmente as regras da
sociedade. Assim, o entrelaçamento dos vários poderes é o que revela como a
sociedade se estrutura.
É importante ressaltar que o poder judiciário não aplica suas normas sem
contar com as demais estruturas sociais como, por exemplo, a área da saúde, a
economia, a política e os costumes do povo. Isso explica por que a lei, tendo suas
determinações, precisa do amparo dos outros setores, pois, no caso contrário, ela é
invalidada. O direito, portanto, perde o seu caráter dogmático na sociedade, já que
não consegue exercer por si só uma total autonomia (ASSIS e KUMPEL, 2011).
12
Do mesmo modo, o setor político não pode definir as regras da sociedade
sem recorrer ao sistema judiciário, mediante o seu caráter legitimador. Além disso,
ele dialoga com os setores da saúde, da economia, dos costumes do povo, tentando
impor ‘ditatorialmente’ sua autonomia, mas ele sofre reações por parte da
sociedade, quando desrespeita os diversos setores e suas autonomias relativas no
interior da sociedade.
O mesmo ocorre com a área de saúde, uma vez que os médicos, enfermeiros
e demais profissionais se adéquam às regras da sociedade e, muitas vezes,
recorrem à religião para legitimar o não cumprimento de uma determinada lei
imposta pelo setor judiciário. Assim, a religião ainda tem um fator relevante na
sociedade.
Conforme Bourdieu (1998), a religião também possui autonomia relativa na
sociedade, uma vez que, mesmo num estado laicizado, ela consegue ainda hoje
influenciar muitos setores da sociedade, fazendo com que algumas regras, quando
se contrapõem aos seus princípios, sejam severamente criticadas.
Bourdieu (1998), portanto, distingue, no interior do espaço social
multidimensional, diversos campos que possuem relativas autonomias. Entre eles, o
autor destaca o campo jurídico, o campo artístico, o campo da alta costura, o campo
educacional, o campo religioso, o campo político, etc. E, conforme sua análise, a
partir das lutas simbólicas que ocorrem no interior de cada um desses campos, há
difusão dos bens simbólicos, ou seja, das visões de mundo e dos valores.
Tais processos de produção de bens simbólicos e de valores ou visões de
mundo são dependentes do habitus adquirido ao longo das trajetórias sociais dos
criadores, como também da posição que eles ocupam em um determinado campo
do espaço social.
A noção de campo bourdieusiana evita a explicação interna e externa em
relação à cultura, à arte e à literatura dada por alguns estudiosos5, que acreditavam
5
Dentre os autores que fazem essa reflexão estão: Laraia (2006), Morin (1984) e Mauss (2003). Em
Laraia (2006) há uma visão peculiar sobre o determinismo cultural. Ainda no campo conceitual o
estudo proporcionado por Mauss amplia a discussão sobre cultura ao analisá-la sob o prisma
antropológico e sociológico dando ênfase a sua autonomia e, por fim, em Morin (1984) essa
abordagem se volta para uma análise mais contextual saindo do campo conceitual proposto com
maior ênfase por Laraia (2006) sem deixar de enfatizar a relevância da cultura de um grupo como
elemento autônomo. Cada um deles, portanto, trazem análises que se entrecruzam e proporcionam
ao leitor um estudo aprofundado do conceito de cultura em diálogo com a sociedade atual cuja visão
diferenciada da que se propõe no trabalho em questão por não trazer reflexões pontuadas nas
autonomias relativas dos grupos que atuam na sociedade.
13
na autonomia absoluta dos vários fenômenos culturais, como sendo independentes
da evolução social. Tal visão se diferencia da de Bourdieu, por não considerar que
cada um desses campos contém subespaços sociais em que os agentes sociais
concorrem objetivamente entre si pelo poder simbólico. Portanto, esses autores não
veem como cada um dos campos tem interferência limitada sobre o poder simbólico,
mediante as relações objetivas que estabelecem entre si.
Dentre os agentes sociais, Bourdieu (1998) destaca os dominantes e os
dominados. Sobre os primeiros o autor afirma que lutam pela conservação da
estrutura do campo, enquanto os outros lutam pela transformação do mundo social.
Conforme Bourdieu (1998), o sentido da ação social é produto da relação
dialética entre o habitus adquirido pelos indivíduos em suas trajetórias sociais e as
situações que eles encontram em um campo ou espaço social como um todo. Diante
disso, o autor considera a subjetividade dos agentes sociais, a objetividade da
sociedade na determinação da ação, e a tomada de posições dos indivíduos nos
subespaços sociais. Tais posições são definidas individualmente ou em grupo de
acordo com os respectivos habitus e posições que ocupam na estrutura do espaço
social.
Assim, no caso do estudo sobre o aborto, podemos observar as várias
nuances existentes no debate relativo a esse tema com interação entre os sistemas
religioso, político, econômico e judiciário.
Neste estudo sobre o aborto, a compreensão das várias instâncias se faz
relevante, pois é a análise dessa dinâmica existente na sociedade que permite que
tenhamos uma noção de como está de fato o quadro atual do debate referente ao
aborto.
De início, observando o sistema político, percebemos que cabe a ele proteger
aquilo que o sistema judiciário determina. Além disso, é comum que o sistema
religioso, mesmo em uma sociedade laica, faça com que médicos e outros
profissionais olhem com rejeição para essa prática mesmo em caso dela ser
legalmente aceita. Também é interessante compreender o sistema econômico, pois
a partir dele se observa quem geralmente é mais prejudicado quando o sistema
religioso não permite que o judiciário execute as leis.
No conjunto de atores sociais em questão, percebemos a presença de um
politeísmo de valores com vocações antagônicas, no qual se fazem presentes a
religião, a ciência, a política e a ética (WEBER, 2002).
14
Dialogam entre si duas éticas distintas analisadas por Weber (2002): a ética
da convicção e a ética da responsabilidade. Enquanto a primeira é baseada em
crenças e estava marcadamente presente no Ocidente tradicional, a segunda,
presente na modernidade, se refere aos compromissos dos indivíduos na sociedade
e não mais às crenças. A ética da responsabilidade se utiliza notoriamente do
recurso da razão. No caso do aborto, há a coexistência de ambas, uma vez que a
religião representa um fator preponderante nessas relações de poder.
No que diz respeito aos atores sociais em questão, percebemos ainda, com
base em Bourdieu (1998), a existência de um poder simbólico desempenhado por
cada um deles. O poder simbólico é invisível e seu exercício se dá a partir de uma
cumplicidade entre aqueles que o exercem e aqueles que se submetem a ele.
Pode-se identificar que o poder simbólico menor tem maior reconhecimento, tendo
em vista que há uma força desempenhada por ele na sua invisibilidade e capacidade
de mobilizar as pessoas. Tal poder é exercido pela força da violência simbólica que
impõe o habitus. Além disso, ele é validado pelo discurso da mídia e do emissor,
imposições que têm a capacidade de mudar a visão de mundo dos indivíduos e o
sistema de imagens dos receptores, possibilitando a mudança do fazer ver e do
fazer crer.
Os agentes e as instituições têm a capacidade de acumular poder simbólico,
tendendo a legitimar a dominação e assegurar que uma classe se sobressaia à
outra. Um dos meios desses agentes e instituições exercerem tal poder é o uso da
linguagem.
De fato, ela legitima o poder simbólico, pois é a partir da maneira com que as
pessoas que detêm esse poder se expressam que elas conseguem fazer ver ou
fazer crer. Aqueles que escutam os detentores de poder simbólico os reconhecem
como vozes autorizadas e assim cumprem aquilo que lhes é determinado. O poder
da linguagem é abordado também por Chauí (2003), que identifica como ela,
juntamente ao pensamento, dá ao indivíduo a capacidade de se comunicar com os
demais, sendo um processo dinâmico e contínuo.
Diante disso, podemos observar o poder que existe na mensagem midiática e
como, na contemporaneidade, a mídia se transforma em centro de gravitação de
poder. Para Bourdieu (1998), a mídia exerce uma violência simbólica ritualizada a
partir da forma como ela exerce o papel da produção e circulação de um imenso
número de mensagens motivadas por fatores socioeconômicos e políticos. Ela é
15
capaz de se impor como instância produtora de impressão de uma realidade.
Assim, o poder simbólico diz respeito ao
[...] poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de
confirmar ou de transformar a visão do mundo; poder quase mágico que
permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força – física ou
econômica – graças ao efeito específico de mobilização, só se for
reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 1998, p.14).
A partir da análise de Bourdieu (1998), podemos constatar que, no poder
simbólico exercido pelos agentes dominantes, há uma capacidade de envolver todo
um grupo. Essas relações de poder acontecem no campo, o qual, conforme
Bourdieu (1998) é um microcosmo onde ocorrem lutas simbólicas entre os grupos e
as classes.
O poder simbólico é perceptível também na análise dos interesses comuns
das instituições, nas suas disputas e na interação das mesmas em um mesmo
espaço, por isso, é válido destacar ainda que a Igreja e o Estado são considerados
por Bourdieu (2002) como lugar por excelência da eficácia simbólica, ou seja, como
agentes dominadores.
No caso do aborto, é preciso observar como a Igreja e as organizações
feministas buscam exercer um monopólio nesse campo de estudo. Tal busca só
torna-se possível, numa ótica bourdieusiana, mediante a capacidade de ambas para
legitimar as práticas sociais ou mudá-las.
Entretanto, Bourdieu (1998) destaca também que a autonomia da Igreja e de
outros grupos é relativa, pois não existe uma dominação absoluta por parte de
nenhum deles. Dessa forma, mesmo a Igreja e as organizações feministas são
estruturantes, mas não têm efeitos totalizantes. Assim, podemos considerar que
ambas tem autonomia e dinâmica próprias, relativas.
A relatividade de tais grupos é justificada pelo fato de que cada um deles
pode ser considerado como elemento estruturante constituinte da sociedade e,
nessa lógica, cada esfera tem a sua autonomia.
No debate atual referente ao aborto, apesar de considerarmos relevante um
estudo sobre o posicionamento da Igreja e dos movimentos feministas, pensamos
que é preciso compreender a dinâmica na sociedade e a interação de ambos os
grupos com o poder estatal e judiciário. É a partir deste olhar diverso que
conseguiremos analisar o debate referente ao aborto em toda a sua abrangência,
16
sem enfatizar apenas uma instância, pois, conforme Bourdieu (2002), as instâncias
funcionam em conjunto.
Após tal consideração em relação à relevância do estudo sobre as várias
instâncias que se voltam para o aborto como temática social, realizaremos, de início,
uma análise voltada para o biopoder, a biopolítica e a bioética, a fim de compreender
o comportamento ético sobre a dignidade humana neste estudo.
Posteriormente, faremos uma abordagem voltada para o campo jurídico para
analisar quais são as leis sobre o aborto. E, dialogando com tal instância,
observaremos como o Estado respalda essas leis e como a classe médica tem se
portado diante da legalização do aborto em alguns casos.
Assim, esta análise será realizada com base em pesquisas de alguns autores
que se voltam para a área da saúde e observam empiricamente os diversos casos
que não são assistidos apesar do respaldo legal.
Por fim, destacaremos como a Igreja e as organizações feministas,
conseguem se inserir nessa discussão e como o posicionamento de cada um deles
interage com o poder legitimador, cuja autonomia é relativa nas demais instituições.
Entretanto, um dos primeiros conceitos que precisa ser abordado, quanto ao aborto,
é o conceito de biopoder e de biopolítica, próximo tópico desta discussão.
1.2 A BIOPOLÍTICA E O BIOPODER COMO FERRAMENTAS DE ANÁLISE
A análise foucaultiana da biopolítica e do biopoder põe em pauta as
ressignificações da vida e da morte na sociedade moderna e, portanto,
complementam a abordagem de Bourdieu e de Weber, que tratam respectivamente
a autonomia relativa e o politeísmo de valores. A morte, na modernidade, já não diz
respeito a uma decisão do soberano e sim à capacidade, própria das instituições
sociais, de gerir a vida, de aumentar sua força e de melhor distribuir os corpos.
Tais mudanças são possíveis devido à separação entre Igreja e Estado, que
proporciona o desencantamento do mundo e a secularização da sociedade.
Contudo, é inegável a influência da Igreja nesse contexto, mesmo que de forma
secundária quando comparada à medievalidade, mediante a cultura religiosa
fortemente arraigada na vida dos indivíduos (ARENDT,1999).
As mudanças tradicionais ocorreram porque “o confisco tendeu a um poder
destinado a produzir forças, a fazê-las crescer e a ordená-las mais do que a barrá-
17
las, dobrá-las ou destruí-las” (FOUCAULT, 1988, p. 128). Então, no moderno
biopoder (a partir do século XVII), a função do poder era de gerir a vida, aumentar
sua força, melhor distribuir os corpos (FOUCAULT, 1988, p. 129-130). Nesse
contexto, o que define o poder é a disciplina (corpo indivíduo, em função da
potencialização do corpo para a produção) e os controles reguladores (corpo
espécie, em função do controle da reprodução). Define também, a biopolítica da
população, na qual os controles refutadores se centram “na população, nos
nascimentos e na mortalidade, no nível de saúde, na duração da vida, na
longevidade, com todas as condições que podem fazê-los variar” (FOUCAULT,
1988, p. 130).
A sociedade normalizada, portanto, possui mecanismos de comando cada
vez mais democráticos e imanentes ao campo social distribuído por corpos e
cérebros dos cidadãos. Ela tem como característica a intensificação e síntese de
aparelhos em contraste com a disciplinaridade que orientam práticas diárias comuns
aos indivíduos.
Nesse contexto, o poder não deve ser considerado apenas como repressão,
pois é também concretizado pelas técnicas das próprias instituições. Caso contrário,
a repressão não teria a capacidade de determinar o comportamento dos indivíduos,
pois, enquanto a disciplina exerce o adestramento individual dos corpos, a
biopolítica e o biopoder, não substituindo a disciplina, buscam mecanismos globais e
regulam os processos do homem-espécie.
O biopoder, por ter-se incumbido da vida, não poderia mais se manifestar
como a lei a ser regida pelo Estado. A capacidade de gerir e ordenar a vida,
presente na sociedade normalizada, se dá pelas técnicas de poder específicas
desempenhadas por cada instituição. As instituições têm a capacidade de fazer com
que os fenômenos relativos à vida estejam na ordem do saber/poder e no campo
das técnicas políticas e operam como fator de segregação e hierarquização,
garantindo assim as relações de dominação.
Nessa conjuntura, a esfera social de onde emanam os saberes referentes
aos mecanismos de disciplina e de controle regulador surge de áreas de
conhecimento como a ciência política, a antropologia, a sociologia, a economia, a
psiquiatria, a psicologia, enfim toda a gama de saberes aos quais hoje damos o
nome de ciências humanas. É no bojo da biopolitica, no momento em que se toma
18
como foco a gestão da vida e não tanto o morrer, que se insere o debate sobre os
direitos reprodutivos e as políticas demográficas.
A análise da biopolítica e do biopoder, portanto, permite reflexões sobre como
o direito de morte do soberano sobre os indivíduos deslocou-se para um poder
capaz de gerir e ordenar a vida.
O que é reivindicado e serve de objetivo é a vida, entendida como as
necessidades fundamentais, a essência concreta do homem, a realização
de suas virtualidades, a plenitude do possível. Pouco importa que se trate
ou não de utopia: temos aí um processo bem real de luta; a vida como
objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada para o
sistema que tentava controlá-la. (FOUCAULT, 1988, p. 158)
Entre as instituições sociais, o discurso médico e o discurso jurídico disputam
espaços sobre quem decide o viver e o morrer (FOUCAULT,1996,p. 189-190).
Acrescentamos a teoria foucaultiana do poder religioso, que ocupa também um
espaço notório na sociedade brasileira contemporânea, principalmente quando se
trata da temática do aborto.
É notório como tais poderes, apesar de serem determinantes na sociedade,
não agem com intensidade uniforme, já que há uma diferença de potencial de forças
entre eles (FOUCAULT, 2004, p. 250), ou seja, o poder é um feixe de relações mais
ou menos organizado, mais ou menos piramidalizado, mais ou menos coordenado
(FOUCAULT, 2004, p. 248)
Pode-se, com isso, considerar o biopoder como elemento indispensável para
o desenvolvimento do capitalismo, devido à sua inserção controlada dos corpos no
aparelho de produção, pois há, por parte do biopoder, um “investimento sobre o
corpo vivo, sua valorização e a gestão distributiva de suas forças foram
indispensáveis naquele momento” (FOUCAULT, 1988, p. 154).
A análise do biopoder e da biopolítica permite a compreensão do
funcionamento da sociedade na modernidade, pois traz a tona os papéis sociais de
cada instituição e das autonomias relativas por elas exercidas no seu interior,
tornando presentes sua ética da responsabilidade e da convicção. Assim,
conseguimos ter uma idéia de como o debate atual sobre esse assunto envolve uma
série de grupos com interesses distintos e, com isso, compreendemos
principalmente qual é o lugar das feministas e da Igreja Católica nesse debate, por
serem ambos grupos divergentes com autonomias relativas no seio da sociedade.
19
Essa importância do biopoder e da autonomia relativa existente nos vários setores
da sociedade ficará mais consistente ao se conceituar a vida.
1.3 O CONCEITO DE VIDA COMO INSTRUMENTO DE ANÁLISE
Antes de se estudar o aborto, além de analisar as instâncias que
fundamentam o discurso atual, é preciso nos voltar também para o estudo do
conceito de vida, uma vez que a análise da prática do aborto está diretamente
relacionada com a dignidade da pessoa humana, do embrião e da mãe.
O conceito de vida perpassa vários campos. No senso comum, conceitua-se
vida por aspectos do cotidiano, enquanto na filosofia, conceitua-se vida não
mediante fórmulas prontas e acabadas, mas a partir de questionamentos sobre ela,
trazendo a reflexão. Os biólogos, por sua vez, abordam o assunto com muita
dificuldade, pois a consideram como sendo bastante complexa6 (MONDIN,1980).
Contudo, biologicamente, podem ser apontados alguns estudos teóricos que
definem o conceito de vida. O primeiro deles é o evolucionista darwinista que vê na
vida a idéia de “seleção natural de replicadores ou entidades que fazem cópias de si
mesmas” (EMMECHE E EL HAINI, 2000, p.43).
Nessa perspectiva, o ser vivo herda características dos seus predecessores,
mediante um processo de transferência de cunho genético e hereditário, mas que
está sujeito às circunstâncias ambientais.
Outra definição comum é a autopoiética, que diz respeito à idéia de Maturana
e Varela (2001), que partem dos componentes metabólicos existentes na célula, que
têm capacidade de se autocriar, mas que não deixam de trocar energia com o
ambiente externo.
A visão biossemiótica, diferentemente das demais, baseia sua pesquisa na
comunicação de signos da natureza a partir da produção, transmissão e
interpretação dos mesmos. Assim, a biossemiótica se dedica ao estudo dos
aspectos de comunicação e significação entre os seres vivos.
6
A análise do conceito de vida construída por Mondin (1980) será aqui utilizada com frequência por
haver uma identificação com a maneira com que ele constrói seu pensamento, baseado na
antropologia filosófica, que adentra as diferentes esferas do individuo em sociedade, unindo aspectos
antropológicos e filosóficos.
20
Geralmente os estudiosos da filosofia, da biologia e da religião distinguem
quatro explicações sobre o surgimento da vida. A primeira delas diz respeito à
criação direta do homem por Deus, no qual mitos como o de Adão e Eva são
observados em sua literalidade. A segunda diz respeito à criação do homem pela
evolução, mas não exclui Deus, pois ele faz parte de todo o processo. A terceira
explicação diz respeito à abiogênese e foi enfatizada por Newton e Descartes. Nela
havia a idéia de que a matéria inerte poderia se transformar em matéria vivente. Por
fim, a quarta é a explicação da geração ou evolução por puro acaso, idéia que partiu
da experiência de Pasteur, afirmando que a combinação de elementos químicos fez
com que surgisse a primeira célula viva, código genético, formação do DNA e
surgimento de matérias viventes (EMMECHE E EL HAINI, 2000, p.43; MONDIN,
1980, p. 54).
Quando se observa o homem nesse universo, comparando-o com animais e
plantas, pode-se considerar que a destreza técnica7 faz dele um ser superior aos
demais seres vivos. A destreza técnica tem a capacidade de abrir um campo
indefinido à atividade humana. Sua relevância está na maneira com que ela indica
que o élan vital está ativo, sendo considerado como o sentido profundo da ação do
homem (RAMOS, 2009).
Pode-se considerar ainda que o que diferencia o homem dos animais e
plantas é a capacidade de melhorar a vida em larga escala, uma vez que ele é
capaz de controlá-la, dirigi-la e aperfeiçoá-la. Além disso, a vida humana é capaz de
atingir níveis espirituais elevados (MONDIN, 1980, p. 30).
O homem é dotado de conhecimentos que podem ser subdivididos em
ordinário, cientifico e filosófico. O ordinário diz respeito à vivência corriqueira e
particular de cada um, o científico ao conhecimento sistematizado, próprio da
ciência, e o filosófico refere-se à busca por trazer explicações como fim último.
Também é diferencial no homem a maneira com que ele é dotado de
fantasias, que podem ser subdivididas em oníricas, estéticas, práticas e
especulativas. A fantasia onírica diz respeito à capacidade que o homem tem de unir
o maravilhoso e o irreal. Um exemplo disso é a forma como ele sonha. A fantasia
estética é ligada à capacidade de invenção, de criação e de síntese, em geral, e
7
Aqui, a destreza técnica pode ser considerada como sinônimo da racionalidade, uma vez que a
cientificidade, os avanços técnicos e a racionalidade na contemporaneidade aparecem interligados na
presente abordagem.
21
quase sempre é relacionada com o lado artístico dos indivíduos. A fantasia prática é
aquela que completa o pensamento lógico, e, por sua vez, a especulativa relaciona-
se a construções filosóficas e científicas.
O homem reúne ainda consigo características muito peculiares que dizem
respeito à universalidade, intencionalidade, mundanidade, perspectividade,
personalisticidade e historicidade.
A universalidade é a proposição abstrata que transcende o particular. A
intencionalidade está relacionada com a capacidade humana de tender para um
objeto e nela o indivíduo age de uma determinada maneira com o intuito de atingir
algum objetivo. A mundanidade está ligada à capacidade do homem para ter
consciência do mundo e, por isso, agir de uma determinada maneira. A
perspectividade diz respeito ao conhecimento parcial que o indivíduo tem da
realidade, falando, portanto, de acordo com sua vivência e passando pelo prisma da
cultura e da identidade de um grupo. A personalisticidade é a forma como um
indivíduo age diferentemente dos demais, de acordo com seus posicionamentos
próprios. E, por fim, a historicidade diz respeito à forma como o indivíduo se remete
ao seu passado e pode ver a história como movimento (MONDIN,1980, p. 33).
O homem tem também como característica própria a sua autoconsciência,
que pode ser concomitante, reflexiva e refletida. A autoconsciência está relacionada
com a consciência do objeto, mas não de si mesmo. A autoconsciência refletida está
relacionada à atenção do homem sobre si mesmo sem separar-se do objeto, e a
autoconsciência reflexiva é a reflexão que o homem faz sobre si mesmo, sendo o
resultado de uma experiência.
Existem duas grandes correntes8 que se volta para o estudo do conceito de
vida: os mecanicistas e os vitalistas. Sobre os vitalistas, Mondin destaca aqueles
que têm necessidade de sentir, viver e perceber a vida. A vida é, para esse grupo,
um fenômeno complexo e maravilhoso. Já os mecanicistas se voltam principalmente
para a biologia molecular e consideram como real apenas o que é suscetível de
8
A primeira corrente em questão diz respeito aos autores que seguem o pensamento de Descartes e
também a Newton (DURAND, 1997). E entre os autores que assumem uma postura mais subjetiva,
ou seja, vitalista, destacamos aqui Durand (1997), Avens (1993) e Ruiz (2004). Esses três autores
introduzem estudos sobre o imaginário, trazendo uma análise que dá relevo às imagens, aos
símbolos e representações na vida de um grupo de indivíduos. A análise de cada um deles permite
que se conheça como é possível construir uma análise de cunho subjetivo sob um viés rigorosamente
acadêmico, ao adotar métodos de pesquisa diferenciados do cartesianismo, por ir além da análise
contextual e buscar uma leitura essencialista dos grupos sociais.
22
verificação experimental e de determinação objetiva. Tal modelo se aproxima do
positivismo e também é denominado de cartesianismo (MONDIN,1980, p. 44-47).
Na análise mecanicista e das ciências naturais, é válido apenas o que é físico,
material e quantificável. Recusa-se a reconhecer como real aquilo que foge de seu
esquema. É válido ressaltar que a análise vitalista, também denominada de
extracientífica, não impõe esquemas às coisas e está aberta e disposta a aceitar e
reconhecer uma abordagem mais flexível e pautada na sua subjetividade. Seus
dados são quase sempre obscuros, impalpáveis e misteriosos (MONDIN, 1980, p.
44).
Os vitalistas contribuem com o pensamento da antropologia filosófica por
tomarem consciência das múltiplas expressões de vida. Os mecanicistas pelo
contrário, pautados na biologia molecular, observam apenas a diferença entre a
formação dos viventes e dos não viventes e a capacidade do homem de crescer, se
desenvolver e se reproduzir (MONDIN, 1980, p. 45).
O modelo mecanicista do positivismo e a forma com que vê o imaginário
como ‘a louca da casa’, limitando-se a uma abordagem meramente cientificista, criou
um novo mito relativo à verdade cientifica (DURAND, 1997), fato que provocou a
supervalorização do conhecimento intelectivo de maneira equivocada. O
conhecimento imaginário e o intelectual partem do interior dos indivíduos e vão
sendo moldados de acordo com sua vivência em sociedade, ou seja, ambos devem
ser observados lado a lado (MONDIN,1980).
No século XX, muitos autores rompem com a lógica binária e com a postura
iconoclasta própria dos racionalistas, passando a observar a não dissociação entre a
razão e a imaginação. Considerando que a racionalização do pensamento parte das
imagens da fantasia consegue-se fazer a ponte entre a imaginação e a razão e
compreende-se que: “Imaginação e racionalidade são criações do imaginário, e
ambas coexistem necessariamente, coreferidas na dimensão simbólica inerente ao
ser humano” (RUIZ, 2004, p. 32).
Voltando-se para o conceito de vida, é preciso observar a importância do
imaginário e da racionalidade como fatores determinantes para que os humanos se
diferenciem dos animais. O conhecimento imaginário compõe um dos três pilares do
conhecimento humano9, sendo, portanto, de grande relevância.
9
Além do conhecimento imaginário, existe o conhecimento sensitivo, que diz respeito aos cinco
sentidos, e o conhecimento intelectivo, que pode ser considerado como a capacidade de raciocinar o
23
Assim, observando esse conhecimento enquanto receptáculo de imagens
intencionais e não intencionais, através dos sentidos, verificamos que ele transcende
a racionalidade, sendo, com isso, mais profundo que o conhecimento intelectivo. O
imaginário tem essa característica por fluir como força incontrolada e incontrolável
do ser humano e da sociedade (RUIZ, 2004).
Ele tem importância ainda para o conceito de vida, considerando-se sua
capacidade de ligar o interno ao externo, indo muito além da realidade (AVENS,
1993).
Assim, diante de toda a complexidade da definição da vida e do homem como
diferenciado do animal e das plantas, muitos pesquisadores10 criticam a prática do
aborto e buscam, em suas análises, identificar quando surge a vida para ver se o
aborto é tolerável.
Biologicamente, percebem-se três etapas do desenvolvimento humano que
ocorrem durante a gravidez, conforme analisadas na tabela construída por
Fernández (2000, p. 47):
Começo do direito à vida Fase embrionária Dia ou mês
Fecundação Zigoto 1 dia
Implantação Blastocisto 14 dias
Fim da organogenesia Feto 2 meses
Viabilidade Criança prematura 21 semanas
Nascimento Recém nascido no termo 9 meses
Critérios relacionais ? ?
A tabela acima dá uma noção de como se desenvolve a criança durante o
período de gestação e faz compreender a rica análise de estudiosos, que,
preocupados com a questão do aborto, examinam minuciosamente tais elementos
na busca por identificar onde se inicia a vida. Além disso, permite observar como
abstrato. Todos esses conhecimentos fazem do homem um ser capaz de interagir com o mundo
(MONDIN, 1980, p. 64-68).
10
Dentre eles, destaca-se aqui: Westphal (2009), Moore (1998) e Almeida (2000). Tais autores, que
dizem pautar seus argumentos na bioética, trazem em seus discursos que o homem é filho de Deus
e, por isso, precisa ser tratado dignamente. Com isso, percebe-se notoriamente o discurso religioso
de suas abordagens.
24
existem várias opiniões em relação à permissão da execução do aborto e sobre em
que época é válido realizá-lo.
No caso da Igreja Católica, a maior polêmica entre sua postura e a dos
demais órgãos da sociedade está na forma como ela se posiciona radicalmente
contra o aborto até mesmo durante a fecundação, opondo-se, inclusive, aos
métodos contraceptivos.
Tal fato é atual, pois como se verá adiante, nem sempre a Igreja se
posicionou dessa forma, mas é válido ressaltar que a única alteração que teve no
decorrer do tempo, foi com relação a qual período da gravidez poderia ser praticado
o aborto.
A postura contrária da Igreja é coerente, pois “na informação genética
existente no zigoto prefigura-se o indivíduo que irá se desenvolver”. Assim, muitos
pesquisadores da área são radicalmente contra o aborto, não por questões
religiosas, mas por não conseguirem detectar em qual período da gestação se inicia
a vida (FERNÁNDEZ, 2000, p.48).
Pessoas de opiniões divergentes da Igreja Católica afirmam que o fato do
zigoto fazer parte do corpo da mãe permite que ela possa arrancá-lo de seu corpo.
Tal postura é fundamentada por grupos feministas, ao afirmar que a mulher é dona
de seu corpo. (FERNÁNDEZ, 2000).
No entanto, contrapondo-se a tal postura, Fernández (2000) declara que ‘o
novo ser’ não é uma parte do corpo da mãe, mas uma realidade biologicamente
diferente, o que não dá à mãe o direito de agir dessa forma.
O respaldo ainda é maior nas três semanas de gravidez, uma vez que “o
pequeníssimo ser de apenas dois milímetros de comprimento já começara a formar
os olhos, a medula espinhal, o sistema nervoso, os pulmões, o estômago e o
intestino” (CESCA, 1996, p.38).
Com relação ao término da organogenesia, logo no primeiro mês de
desenvolvimento:
[...] são lançados os “alicerces” da criança que vai nascer: ela já tem uma
forma alongada, formou-se o apêndice cefálico, existe um rudimento dos
olhos, do coração, do fígado, da coluna vertebral... Ao final do segundo
mês, o aspecto externo já é claramente humano, embora, evidentemente,
menos acabado que o do recém nascido [...](FERNÁNDEZ, 2000, p.51).
É essa formação rápida do ser no ventre da mãe que faz com que muitos
grupos sejam contrários ao aborto. A fase mais inadmissível é a da viabilidade, uma
25
vez que nela, a criança tem a capacidade de viver fora do útero da mãe com cuidado
médico especial.
A dificuldade em se detectar o começo da vida pode ser manifestada
claramente ao observar os discursos presentes na I Conferência Internacional do
Aborto, ocorrida em Washington, no ano de 1967, que reuniu um grupo formado por
bioquímicos, professores de ginecologia e obstetrícia, geneticistas e outros de várias
nacionalidades e religiões11.
Tais dificuldades foram mencionadas por um grupo, composto de estudiosos
de biologia, de direito, de ética, de ciências sociais e de medicina, que não foi capaz
de detectar quando realmente começa a vida. Ou seja, não se encontrou nenhum
espaço de tempo entre a união do espermatozóide com o óvulo, entre o estágio do
blastocisto e o surgimento de um bebê, em que houvesse a possibilidade de
detectar onde ali não existia vida humana, contrariando assim os grupos favoráveis
ao aborto.
Para melhor compreender a discussão em torno desse tema tão polêmico,
que envolve o questionamento sobre quando se inicia a vida, serão trazidas à tona
as questões éticas que o envolvem. Sobre a ligação do conceito de vida com a
bioética podemos considerar que:
O estudo da moralidade da conduta humana na área das ciências da vida,
procurando averiguar se é lícito aquilo que é científico e tecnicamente
possível. A bioética não pode ser separada da experiência efetiva dos
valores “vida”, “dignidade humana” e “saúde”, que são inestimáveis. Daí
ocupar-se, por exemplo, de questões éticas atinentes ao começo e fim da
vida humana, às novas técnicas de reprodução humana assistida, à seleção
de sexo, à engenharia genética, à maternidade substituída, etc. Em suma, é
o estudo sistemático do comportamento humano, sob a luz dos valores e
princípios morais, na área da vida e dos cuidados da saúde. (DINIZ, 1998,
p. 416-417).
Como esse tema constitui um ponto chave das reflexões bioéticas,
estudamos o que essa área do conhecimento aborda e como ela atua frente aos
avanços científicos, uma vez que a bioética volta seus estudos para a dignidade
humana e o conhecimento sobre a vida. Antes disso, porém, observamos,
especificamente, o sentido da dignidade humana no campo jurídico.
11
Sobre isso, recomendamos a leitura de Cesca (1996) que traz, em seu estudo, maiores detalhes
referentes a essa conferência, apontando os principais pontos nela frisados e dando esclarecimentos
sobre as dificuldades de identificar onde se inicia a vida por parte dos profissionais da área da saúde.
26
1.3.1 Dignidade Humana
Grande parte dos estudiosos que se voltam para o aborto traz em suas
abordagens a questão da dignidade humana da mãe e do feto. Contudo, para uma
melhor compreensão dessa relação entre aborto e dignidade humana, é preciso
captar o sentido da dignidade humana para a sociedade moderna. Assim, serão
analisadas as motivações que levam o Estado laico a garantir a dignidade humana a
todos, bem como serão observadas as mudanças sofridas pelo conceito no decorrer
dos séculos.
Fruto de várias transformações sociais, o debate em torno da dignidade
humana está diretamente ligado à formação do Estado e à maneira com que é
forjada uma identidade humana racional e universal, calcada na idéia de que os
homens têm direitos naturais que antecedem a formação da sociedade, postulando-
se uma igualdade para todos (PINTO FILHO, 2010).
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proclamada no dia 2 de
outubro de 1789, no bojo da Revolução Francesa, é um marco para a luta pela
dignidade humana, pois nela foram consolidados os ideais de liberdade e de
igualdade ligados ao jusnaturalismo12. Contudo, antes dessa Declaração, podemos
mencionar ainda, no ano de 1689, a Declaração de Direitos na Inglaterra (Bill of
Rights) e a Declaração de Direitos da Virgínia que proclamou, no ano de 1776, a
independência dos Estados Unidos, afirmando princípios que exercem uma ação
poderosa até os dias atuais.
No entanto, considerando a análise da dignidade humana neste trabalho, que
está diretamente ligada às mulheres, podemos mencionar a Declaração dos direitos
da mulher e da cidadã, produzida por Olympe de Gouges, pois incluía as mulheres
enquanto sujeitos sociais (FELÍCIO, 2011, p. 14).
Assim podemos considerar que “a proclamação dos direitos do homem surge
quando a fonte da lei passa a ser o homem e não mais o comando de Deus”
(FELÍCIO, 2011, p. 10). Isso ocorre no momento em que se consolida a idéia do
Estado e que este enfatiza o seu caráter racionalizador. Contudo, após a Segunda
Guerra Mundial, o termo dignidade humana volta ao cenário das discussões
internacionais.
12
O jusnaturalismo é uma corrente de pensamento ligada ao direito natural que acredita em um direito
comum a todos os homens. Tal corrente, portanto, é anterior ao direito positivo, ou seja, estatal.
27
Em 26 de junho de 1945, foi assinada a Carta de intenção de criação da
Organização das Nações Unidas, e, em 24 de outubro de 1945, houve a ratificação
da criação da Organização das Nações Unidas (ONU). Nesse momento aderiram 51
países, enquanto, atualmente, contabiliza-se o número de 192 países membros.
Além disso,
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, lançada em 10 de dezembro
de 1948, fundou os alicerces de uma nova consciência humana, tentando
sepultar o ódio e os horrores do nazismo, do holocausto, do gigantesco
morticínio que custou 50 milhões de vidas humanas em seis anos de
guerra. Os diversos pactos, tratados e convenções internacionais que a ela
sucederam construíram, passo a passo, um arcabouço mundial para a
proteção dos Direitos Humanos (VANNUCHI, 2010, p.15).
A dignidade é uma característica que define a pessoa como tal. (RICHTER
REIMER E REIMER, 2011). Sendo assim, ela é fundamental para todo e qualquer
indivíduo. É por isso que a dignidade da pessoa humana pode ser considerada
como fundamento de validade de todos os direitos humanos. A dignidade da pessoa
humana é inerente à vida, à intimidade, à honra e à imagem, ou seja, ela perpassa
todo o sistema jurídico.
À medida que a dignidade da pessoa humana passou a ser contemplada pelo
Direito, houve um despojamento das consciências individuais para as consciências
coletivas (PINTO FILHO, 2010).
Assim, nas normas jurídicas, enfatiza-se constantemente que cada atividade
pessoal precisa ter um comprometimento com a dignidade do outro e ser norteada
por posicionamentos éticos, presentes no biodireito, na bioética e na biossegurança.
1.3.2- A bioética e a dignidade humana
É a partir de 1970 que se documenta a utilização do neologismo ‘bioética’,
criado por Van Rensselaer Potter, em seu livro Bioethics: bridge to the future.
Segundo ele, o prefixo “bio” trata do conhecimento inerente à vida, aos seres
viventes. A ‘ética’, por sua vez, estaria relacionada aos valores humanos
(WESTPHAL, 2009; FONTINELE JÚNIOR, 2007). Sobre a ética, podemos
considerar ainda que “desde o surgimento do ser humano, para o seu convívio
social, ajustes sociais foram e são necessários, sendo a ética adotada como
mecanismo de harmonização e regulação entre os interesses individuais e coletivos
28
nas relações sociais” (MORTARI, 2010, p.48). Etimologicamente, “esta palavra tem
sua origem no grego “ethos”, significando caráter, modo de ser, costumes, conduta
de vida”, ou seja, refere-se à maneira com que os membros de uma dada sociedade
deveriam se portar (MOORE,1998).
Levando em consideração que o termo ‘bioética’ é uma junção entre os
termos ‘bio’ e ‘ética’, podemos considerar que “ao se juntar esses vocábulos em um
mesmo termo, não só se criou uma nova palavra, mas também se provocou uma
transformação na maneira de fazer ciência e ética, aproximando-se esse dois
campos de conhecimento humano” (CAMPOS, 2006, p.112). Endossando esse
pensamento, é preciso considerar ainda como:
A Bioética nada mais é do que a fusão da Ética com as Ciências Biológicas
surgida, especialmente, diante do impacto social causado pelas pesquisas
inovadoras das Ciências Biomédicas bem como das recentes tecnologias
aplicadas no âmbito da saúde (TAGATA, 2009, p.16).
A utilização do conceito de bioética causa uma mudança na utilização do
termo ética, já que a bioética tem consigo um caráter horizontal e democrático,
multicultural e inter-religioso, pluralista. Assim, a bioética tem a capacidade de
romper com as antigas concepções éticas, que de maneira geral são consideradas
como radicais e autoritárias (ZOBOLLI, 2006).
Dessa maneira, o enfoque principal nos estudos da bioética é a vida como
problemática , seus valores e a maneira de lidar com a mesma. O aborto é um tema
bastante discutido entre os estudiosos que se voltam para a bioética, pois diz
respeito aos procedimentos que devem ser tomados com o embrião e a vida da
mãe.
A ética voltada para a vida é objeto de estudo de vários autores e é a partir
dos discursos deles que se conseguiu analisar a relevância do conhecimento da
mesma.
Quando a ética está relacionada à doutrina, pode ser considerada como
sendo fenômeno tido como bom em si mesmo. Assim, a ética objetiva não a
investigação da conduta humana, mas sim a propriedade das coisas em si mesmas
para que poder diferenciá-las entre boas e más.
Dessa forma, percebe-se o caráter moral presente na palavra ética e uma
conotação religiosa. Tal situação é justificável se considerarmos que a religião pode
compor intrinsecamente as demais instâncias da sociedade (BOURDIEU,1998). Vale
29
destacar que, para alguns autores, a ética está pautada na religião, surgindo da
mesma. Sobre a moral, pode-se considerar que esta é “[...] um código de leis, uma
doutrina, um sistema de regras ou normas de comportamento”. Podemos defini-la
também como “[...] um conjunto organizado, sistemático, hierarquizado de regras ou
de valores” (DURAND, 1995, p. 11).
No que diz respeito à prática moral, é nítida a forma como “pela condição
humana existencial, na maioria das vezes, a moral ideal para a pessoa não equivale
à moral praticada, a qual não se desqualifica, pois, a busca da prática da moral ideal
motiva a pessoa a percorrer sua caminhada” (MORTARI, 2010, p.53). Tal realidade
pode ser observada em situações limite como a do aborto, em que as mulheres,
mesmo quando interiorizam princípios morais determinados pela sociedade, veem
nele uma opção.
Observando a relação entre o estudo da ética e da bioética, podemos
considerar a bioética como sendo um ramo da ética que analisa “[...] os prós e
contras de uma determinada conduta, levando em conta os princípios e os valores
morais existentes na sociedade” (ALMEIDA, 2000, p.3).
Assim, a moral, os valores e os princípios aparecem nos discursos de vários
autores13 imbuídos de noções religiosas de comportamento. Contudo, outros
autores14 inserem as religiões no debate atual, mostrando que é o progresso
tecnológico que faz com que haja a ênfase nessa temática.
O crescimento da abordagem sobre a bioética se dá ao constante progresso
humano na área biotecnológica. Tal progresso humano traz consigo novos
questionamentos acerca da vida humana. Questiona-se quando se dá o início e o
término da vida e também quais são os limites de manipulação da mesma.
Prevalece, portanto, nesta análise, a preocupação em observar como lidar com
13
Westphal (2009), Moore (1998) e Almeida (2000) trazem nas entrelinhas do seu discurso uma visão
religiosa fundamentando a dignidade humana, pois frequentemente se voltam para o indivíduo
enquanto filho de Deus. Assim, a abordagem sai do âmbito dos direitos humanos e empreende uma
análise que busca nitidamente princípios de cunho religioso ao acreditar na existência de Deus
enquanto pai criador.
14
Ramirez (2003), Fontinele Júnior (2007) pautam seus estudos no confronto entre bioética e ciência.
Essa situação é evidenciada no momento em que se menciona a bioética como aquela que
estabelece limites aos avanços tecnológicos da ciência, que não estão preocupados com a
valorização do ser humano e fogem de padrões morais, muitas vezes religiosos, fornecidos pelos
princípios bioéticos. Há, portanto, uma relevância em trazer as discussões apontadas por cada um
deles, tendo em vista que conseguem trazer uma reflexão apurada sobre o lugar da bioética e do
discurso cientifico na temática do aborto.
30
esses avanços tecnológicos e estabelecer limites em relação ao direito à vida.
(RAMÍREZ, 2003)
Na maioria das abordagens, o respeito à dignidade humana está diretamente
ligado à visão do homem como sendo imagem de Deus e que, por isso, precisa e
deve ser levado em consideração. Isso mostra um discurso nitidamente religioso
presente neste campo de estudo, já que argumenta que o homem é imagem de
Deus (WESTPHAL, 2006; WESTPHAL, 2009).
Com relação à dignidade humana, pode-se considerar que se trata de uma
discussão que vem ganhando espaço no plano doméstico, no que diz respeito aos
Estados e á sociedade internacional.
O estudo sobre a dignidade humana adquire relevância quando cada vez fica
mais claro entre os/as estudiosos/as que o homem é capaz de se guiar pelas
próprias leis por ele editadas. Assim, o Estado tende a assegurar ao indivíduo o
respeito enquanto ser humano. Para tanto, um complexo de direitos e deveres lhe é
sujeito, voltando-se teoricamente contra atos degradantes e desumanos, e
garantindo-lhe as condições mínimas de sobrevivência (COMPARATO, 1999).
É considerável que a dignidade da pessoa humana é uma locução vaga e
metafísica, pois, mesmo carregando uma carga espiritual, não possui valia jurídica,
uma vez que, apesar do fato de pessoas passarem fome e dormirem ao relento, o
que fere a dignidade humana, pouco é feito em prol desses indivíduos (BARROSO,
2000).
A bioética tem um lugar especial na busca pela dignidade humana. Uma de
suas características marcantes diz respeito ao estranhamento existente entre a
bioética e a ciência, pois a ciência não deve ser vista como verdade absoluta. Há,
portanto uma crítica com relação à visão de que a ciência deve ser apontada como
verdade absoluta e, com isso, há uma desconstrução desse pensamento e uma
busca equilibrada da mesma a partir da bioética.
A bioética pode ser considerada como aquela que enfrenta desafios que
foram impostos pela evolução social. Assim, ela se volta para questões como: “a
complexidade dos fenômenos contemporâneos, a procura de um método e a
construção de vínculos entre conhecimentos especializados”. (FONTINELE JÚNIOR,
2007, p.40)
Diante disso, podemos nos questionar sobre o papel da bioética e como ela
se opõe à ciência. Sobre essa oposição entre a bioética e a ciência, é importante
31
destacar o papel da bioética para compreender o seu posicionamento. Na realidade,
não se deveria pensar em ambas como opostas, e sim como complementares, já
que a bioética fornece à ciência o equilíbrio que ela precisa.
O papel da bioética é estudar temas como o manejo humano, social e
também institucional da saúde, do nascimento e morte do ser humano. Diante,
disso, podemos considerar que ela é responsável por tudo aquilo que envolve o ser
humano, dando a ele a possibilidade de uma visão analisada em maior escala dos
avanços científicos e tecnológicos (WESTPHAL, 2009).
Não é por acaso que existem, atualmente, em escala mundial, grandes
centros que se voltam para o que a bioética pensa em relação a tais avanços.
Dentre eles estão: o Hasting Center, o Baylor College, o Kennedy Institute of Ethics
e a Convenção Europeia de Bioética (HOFMANN, 2008).
Assim, são os avanços tecnológicos que dão relevância ao tema da bioética,
pois ela é uma das principais responsáveis por analisar cuidadosamente esses
avanços tecnológicos, levando em consideração até que ponto trazem benefícios
para o ser humano. Contudo, uma das críticas mais veementes em relação aos
posicionamentos da bioética está na maneira com que suas comissões se voltam
apenas para problemas éticos isolados, deixando de lado a busca de uma
justificativa geral para certas situações (HOFMANN, 2008).
A bioética se baseia em quatro princípios fundamentais: a) autonomia; b)
beneficência; c) não maleficência; d) justiça. A autonomia pode ser observada como
primeiro princípio, pois se refere à liberdade, no sentido liberal subjetivista, como
livre-arbítrio, aquilo que é considerado como ponto de partida para as decisões
“éticas” (RAMIREZ, 2003; RAMOS, 2001). Sobre a autonomia é preciso observar
que: “o princípio da Autonomia justifica-se como princípio democrático, onde devem
prevalecer a vontade e o consentimento do indivíduo como fatores preponderantes,
uma vez que estão intrinsecamente relacionados com a dignidade humana”. (TUSSI,
2010, p.22)
Portanto, o princípio de autonomia diz respeito ao “reconhecimento da pessoa
como sujeito e não simplesmente como objeto” (MASSAROLLO ett al,2006 p.138).
Diante disso, podemos considerar que, nesse princípio, há um cuidado peculiar com
a dignidade humana de tal forma que se contrapõe aos médicos que veem seus
pacientes enquanto objetos.
32
Esse princípio observa o ser humano além do físico, voltando-se para a sua
subjetividade. Com isso, a idéia difundida pelas ciências empíricas de que o ser
humano é manipulável e alterável é relativizada. Tal visão relativizadora faz parte da
maioria dos direitos constitucionais e humanos, protegendo os sujeitos da lógica
avassaladora do discurso científico e observando o indivíduo como aquele que está
sujeito à conduta moral, (HOFMANN, 2008).
O princípio da beneficência faz com que o profissional de saúde vá além da
não maleficência, ou seja, impede que cause danos intencionalmente, exigindo
ainda a contribuição para o bem-estar de seus pacientes. Dessa maneira, esse
princípio assegura o respeito pela vida, indo além do simples atendimento que se
volta para a não maleficência (LOCH, 2002).
No princípio da beneficência tem-se uma busca pela maximização do
benefício ao paciente, que consegue diminuir o risco do eventual prejuízo
(FONTINELE JÚNIOR, 2007). O profissional deve ser detentor de formação
científica e experiência laboral. Assim, há um respeito pela vida do paciente e da
assistência profissional que ele merece, valorizando a sua dignidade enquanto ser
humano. “Enfim, sobre este princípio, pode-se destacar que ele: prevê que os
profissionais de saúde se comportem moralmente, contribuindo para a promoção do
bem-estar, e fazendo o bem aos assistidos” (MORTARI, 2010, p.55).
Os princípios de autonomia, de não-maleficência e de beneficência, já
mencionados, sobressaem ao princípio da justiça. A situação deveria ser contrária,
pois o princípio de justiça legitima os demais princípios mencionados e a sua prática
é fundamental. (LOCH, 2002)
É valido ressaltar que o princípio de justiça corresponde às relações entre
grupos sociais e que se volta para a equidade na distribuição de recursos e bens
tidos como comuns, a fim de buscar igualar as oportunidades de acesso a tais bens.
O princípio da justiça corresponde a uma forma de “lutar para que os recursos
destinados à saúde sejam devidamente distribuídos e utilizados, buscando promover
a universalidade no atendimento à população” (FONTINELE JÚNIOR, 2007, p. 21).
Assim, o princípio de justiça deveria ter maior destaque, uma vez que
reconhece a igualdade de todos, impedindo certos privilégios a grupos sociais
presentes na sociedade como um todo.
Depois de chegar a uma visão geral da bioética e da maneira com que ela se
porta diante do direito à vida, é preciso constatarmos o que assegura a constituição
33
em relação à mesma temática, já que, para ter uma visão ampla das várias
temáticas referentes à sociedade, é relevante compreender a sua dinâmica
(BOURDIEU, 2002).
Diante disso, é necessário que observar a dinâmica da sociedade, suas
relações de poder e aquilo que cabe a cada uma das instâncias sociais para
conhecer um pouco sobre o tema em questão.
O Poder Judiciário tem um papel crucial neste debate, sendo ele o
responsável por assegurar os direitos dos indivíduos. A Declaração Universal de
Direitos Humanos datada de 1948 respalda bem o princípio da justiça, conforme
podemos averiguar nos seguintes artigos:
Artigo III - Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança
pessoal.
Artigo XII - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na
sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua
honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais
interferências ou ataques.
Os avanços proporcionados pela Declaração Universal de Direitos Humanos
são perceptíveis a partir da existência dos artigos acima mencionados, mesmo
considerando que a realidade do país é bem diferente da então explicitada. No que
diz respeito ao princípio de justiça que se volta para a igualdade de todos, é
estabelecido pela Constituição Federal no art. 5º que:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes.
Contudo, mesmo estando disposta na lei, a igualdade dos indivíduos é uma
situação apenas aparente, pois os indivíduos de classe social abastada detêm
nítidos privilégios na sociedade e podem realizar o aborto sem maiores danos.
Na Constituição, há também uma ênfase em mencionar que todos são iguais
perante a lei, destacando a inviolabilidade do direito à vida, à igualdade, à liberdade,
à segurança e à propriedade, e respaldando, com isso, o princípio de justiça
presente na bioética. Assim, percebe-se que ambas comungam do mesmo
pensamento apesar de não ser tão observado na prática.
Com relação a essa ligação entre a bioética e o sistema judiciário, Fontinele
Júnior (2007) afirma que, enquanto os direitos humanos visam assegurar a justiça
34
para todos, a bioética contém consigo um desses princípios. Diante disso, o princípio
da justiça e a saúde são temas relevantes por tratarem do respeito à vida do ser
humano.
Com relação à igualdade de todos perante a vida, pode-se questionar sobre o
que reza a constituição brasileira a respeito do direito à vida. É, portanto, válido
mencionar ainda o posicionamento do código penal brasileiro sobre o aborto:
O Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, do Decreto - Lei n° 2848 de
07/12/1940, diz:
Caput. Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante.
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Grande parte das leis tem como base princípios religiosos arraigados na
sociedade. Assim, é valido destacar que esse debate não é consensual entre os
penalistas uma vez que:
A doutrina penal brasileira diverge com relação ao momento em que se
inicia a proteção jurídico-penal do nascituro. A corrente majoritária entre os
penalistas manifesta-se no sentido de haver vida humana e, portanto,
tutelável pelo direito penal, a partir da concepção. Ao lado disso, a
objetividade jurídica do delito de aborto está representada na tutela da vida
humana em formação, que corresponde à vida fetal ou intra-uterina. Nesse
diapasão, embora represente doutrina com pouca aceitação dentre os
penalistas, entende-se que pertence à coletividade a titularidade do bem
jurídico vida em formação, porquanto para o Direito, o nascituro não é
pessoa, possuindo tão-somente expectativa de direitos (HUNGRIA,1958, p.
277).
Como neste estudo, escolhemos a Igreja Católica e as organizações
feministas para analisar essa formação cultural, resolvemos trazer um pouco de sua
história. Contudo, antes disso, será feita uma análise geral dos conceitos aqui
situados.
1.4 AUTONOMIA RELATIVA, BIOPODER, VIDA E BIOÉTICA: TECENDO
CONCEITOS
O entrelaçamento dos temas trabalhados no decorrer deste capítulo permite
uma reflexão mais apurada do significado de cada um deles para esta pesquisa e
mostra de que forma eles estão totalmente interligados, de modo que não podem ser
vistos individualmente.
35
Compreender a autonomia relativa, o biopoder e a biopolítica das instituições
é nitidamente relevante, mas os conceitos de vida, dados pela ciência e pela religião
são complementares.
Contudo, apesar de permitir um embasamento teórico, a partir da análise do
conceito de vida, de biopoder e de autonomia relativa, tão importantes para a
temática do aborto, a bioética e seu cunho religioso endossa ainda mais essa
discussão, tendo em vista que seu discurso de dignidade humana poda os avanços
científicos e são bastante considerados por diversos setores da sociedade.
Além disso, perceber o caráter religioso dos discursos de pessoas ligadas a
esse campo do saber endossa a impressão de que cada instância que exerce
autonomia relativa está totalmente imbricada, fazendo com que o próprio cunho
religioso influencie o discurso bioético e se afaste do científico, mesmo num
ambiente secularizado, mediante a cultura religiosa arraigada na sociedade, como é
explicado por Arendt (1999).
Assim, iniciamos este trabalho chamando a atenção para um conceito muito
importante abordado por Bourdieu (1998): a autonomia relativa. Estudar a autonomia
relativa faz com que se observe criticamente como o tema em questão envolve
várias nuances que se entrelaçam e que contribuem relativamente para a forma
como ele vem sendo visto pela sociedade.
Esse jogo de diálogos, em que cada instituição exerce uma autonomia
relativa, permite compreender, desde o início, a complexidade do tema e do controle
exercido por cada esfera diante do poder de decidir sobre o direito à vida, ou seja, o
biopoder das instituições.
Compreender a relevância dos posicionamentos de cada esfera da sociedade
e a autonomia relativa desempenhada por cada uma delas faz com que se observe
de que maneira a Igreja Católica e as organizações feministas também
desempenharam papéis importantes nesse jogo de interesses, a partir do poder
simbólico. Este, como se viu a partir de Bourdieu (1998), aparece de maneira
invisível, mas é trazido à tona na análise hermenêutica das entrelinhas do discurso e
na forma em que são construídas as leis.
Neste jogo de interesses e de autonomias, apareceu um grupo que vem se
destacando na sociedade pós-moderna, ou seja, as Católicas pelo Direito de Decidir
que trazem um cunho libertário para as mulheres e se voltam para a questão
socioeconômica das mesmas e as situações caóticas nas quais elas têm realizado o
36
aborto. A maneira como elas têm sido escutadas e duramente criticadas pela Igreja
Católica faz com que se observe a sua autonomia relativa nesse debate.
A vida, tão debatida por estas mulheres, a questão de até onde se pode
considerar um feto ou um bebê e ainda o senso maternal, convida todos para uma
reflexão sobre esse tema, buscando compreender a partir de alguns autores o
significado dessa palavra.
Assim, iniciamos a conceitualização da vida, observando a sua complexidade
e os diferentes tipos de conhecimento que se volta para ela, que vão desde o senso
comum, passando pelas explicações de cunho filosófico, até as mais complexas
explicações biológicas.
Primeiramente, apontou-se o evolucionismo darwinista como forma de
interpretar a vida e adentrar as teorias pautadas no surgimento do ser humano, a fim
de trazer à tona a ausência de unanimidade nesse debate, tomando-se
conhecimento das principais visões sobre o assunto.
Em seguida, foi observado como o homem se distingue dos animais e das
plantas e sua autoconsciência, observando-se também a existência dos tipos de
conhecimento referentes a ele, ou seja, o conhecimento sensitivo, o imaginário e o
intelectivo.
Com isso, identifica-se que esse é o argumento mais usado para justificar o
posicionamento contrário ao aborto, sem deixar de perceber que ele interioriza
valores religiosos tais como os próprios estudiosos que buscam em suas análises o
estudo da bioética.
Considerando o estudo da bioética como tendo um caráter relevante nesta
discussão, resolvemos buscar entendê-lo em suas principais características e na
forma como ele poda os avanços científicos. A intenção de podar tais avanços
científicos diz respeito à preocupação que se tem pela defesa dos direitos humanos
e a visão de que os avanços científicos muitas vezes se esquecem dos princípios
bioeticos que são fundamentais para garanti-los .
Assim, como forma de esclarecimento, apresentamos cada um de seus
princípios, ou seja, o princípio da autonomia, da beneficência, da não maleficência e
da justiça, sem deixar de criticar a forma como o último não tem sido muito levado
em consideração, já que as injustiças sociais são gritantes, inclusive, quando se
trata do acesso a medicações que provocam aborto e acompanhamento adequado.
37
Também conseguimos observar como os autores que pautam suas
discussões no campo da bioética, algumas vezes demonstram claramente a sua
religiosidade ao se referir à questão de todos serem filhos de Deus. Essa situação
fez com que se captasse o entrelaçamento de autonomias relativas, observando que
a religião ainda determina o posicionamento de pessoas que estão neste e em
outros campos do saber da área da saúde.
Enfim, cada conceito trabalhado neste capítulo inicial serve de base para o
restante do trabalho que buscará observar as autonomias relativas de vários setores
da sociedade e a grande influência da Igreja Católica por meio da invisibilidade do
poder simbólico, e também servirá para compreender a noção de vida presente em
cada setor da sociedade que está direta ou indiretamente ligado à visão religiosa.
Diante disso, segue-se a abordagem deste estudo, examinando um pouco da
história da instituição que nos propusemos analisar como aquela que consegue
aparecer nas entrelinhas do discurso e nos posicionamentos de médicos, políticos,
midiáticos, e ressaltando seu principal grupo opositor, ou seja, as organizações
feministas e, em especial, as Católicas pelo Direito de Decidir.
38
2 A CONSTRUÇÃO DOS VALORES E DAS NORMAS NA IGREJA CATÓLICA E
AS ORGANIZAÇÕES FEMINISTAS
A dedicação de um Capítulo exclusivo para a formação do pensamento da
Igreja Católica e das organizações feministas se deu para observar como cada
grupo detém uma autonomia relativa no debate atual sobre o aborto. No caso da
Igreja Católica, o fazemos por considerar a importância de não apenas situar no
espaço da atualidade suas críticas à prática do aborto, mas também de
compreender quais as bases teológicas, filosóficas e dogmáticas que firmam seu
pensamento na atualidade. Da mesma forma se procedeu com as organizações
feministas a fim de compreender os argumentos basilares que são considerados
como contraponto ao pensamento da Igreja Católica enquanto instituição.
Neste capítulo, será observada a forma como foram sendo tecidos os valores
e normas presentes no catolicismo atual. Para tanto, partiu-se de uma análise de
como as primeiras comunidades cristãs passaram a ter um caráter centralizador,
adquirindo uma idéia de universalidade.
Em seguida, olhando para a Igreja Católica, verificamos como foi formada a
base do seu pensamento a partir de concílios e encíclicas que se deram em meio a
muita discussão e polêmicas, diante da heterogeneidade daqueles que compunham
o clero.
Após esta análise, observar-se-á como os Pais da Igreja firmaram vários
pensamentos que a Igreja incorporou em sua dogmática e também a diversidade de
pensamentos existentes nesse período.
A medievalidade e suas escolas também serão analisadas a fim de mostrar
como esse período teve um caráter relevante para a Igreja Católica e formam a base
teológica e filosófica de seus ensinamentos junto aos pais da Igreja.
Após esse período observar-se-á, na Reforma Protestante, uma sensível
mudança de mentalidade, que buscou trazer à tona a idéia de razão e o
antropocentrismo e, no caso desses estudiosos cartesianos, a ciência como sendo
fundamental para pensar a sociedade e o absolutismo.
39
Depois de observar esse período de questionamentos em torno da Igreja
Católica e de mudanças de visão de mundo, ainda serão apresentados os ideais
iluministas e a maneira com que se idealiza o deísmo enquanto religião, e como a
Igreja Católica é duramente criticada por isso.
Em seguida, passamos a analisar como a Igreja Católica reage diante disso,
apresentando as ordens religiosas como forma de conseguir a simpatia das
pessoas, o Santo Ofício como um grande repúdio aos chamados hereges, e também
a busca pela conquista do Novo Mundo.
O século XIX será aqui observado, enfatizando-se a figura do Papa Pio IX,
tendo em vista que é a partir dele que se reforça a idéia do começo da vida ser
durante a concepção. Além disso, o combate às idéias racionalistas, presentes nas
instituições que fazem parte das principais reivindicações desse período,
acompanhado do surgimento do dogma da Imaculada Conceição.
O século XX e as suas visões críticas em relação ao aborto serão debatidos
de maneira a observar como alguns grupos criticam veementemente tais atitudes e,
concomitantemente, apóiam cegamente aquilo que é determinado pelo Papa.
Após esta análise serão destacadas as organizações feministas, e em
particular as Católicas pelo Direito de Decidir, verificando-se o espaço que essas
têm alcançado, em nível mundial, destacando o Brasil e a maneira como elas têm
uma percepção crítica da realidade deste país.
Enfim, este capítulo trará ao leitor um panorama do Catolicismo Romano e as
bases do seu pensamento, permitindo compreender ainda como o seu discurso está
presente nas várias esferas sociais, exercendo com isso uma autonomia relativa.
Também dará, respectivamente, noções de como as organizações feministas se
contrapõem consideravelmente ao discurso católico oficial.
2.1 INÍCIOS DO CRISTIANISMO
A motivação deste estudo do cristianismo em seus inícios ocorreu devido à
busca pela compreensão da autonomia relativa da Igreja Católica no seio da
sociedade, conforme é observado por Bourdieu (1998).
Assim, conhecer como o cristianismo foi se estruturando e se transformando
desde as suas origens permite enxergar como foi surgindo a idéia de uma Igreja una
40
e centralizada que recebeu o nome de Igreja Católica em razão do seu caráter
universal. Compreende-se inclusive de que forma seus valores e normas influenciam
com tanta força a sociedade atual, até mesmo em debates ainda tão polêmicos
como o do aborto.
Ao se debruçar sobre os inícios do cristianismo, o leitor deste estudo precisa
ser esclarecido sobre o porquê da utilização do plural para designar o cristianismo
em sua fase inicial. Assim, a pluralidade de acontecimentos simultâneos no
cristianismo justifica a utilização do termo “inícios”.
Além disso, a própria idéia de ser cristão também indica formas distintas, uma
vez que, observando-se a própria Bíblia, se percebem nitidamente as diferenças
teológicas entre as cartas paulinas, os escritos joaninos e os demais, constatando-
se a inexistência de uniformidade entre eles.
Para melhor compreender essas diferentes formas de ser cristão, é preciso
observar de que maneira e até que ponto as cartas paulinas se distanciavam dos
escritos joaninos.
Diante disso, consideramos que há, nos escritos ditos paulinos, uma crítica
veemente à busca pelo rígido cumprimento da lei:
A lei perdeu sua inicial função salvífica (Rm. 7.10-14.22; 9,4) em favor da fé,
que é uma abertura ao dom de Deus ( Rm 5.1; 10,4; Gl 2,16; 5m18; 3. 10-
13; cf. Dt 21, 22-23; 27,26; Lv 18,5). Da mesma forma que o sacrifício
existencial de Cristo levou a superação da religião sacrificial, o mesmo
ocorre também com a religião da lei, que na carta aos hebreus está unida
ao culto (Hb. 7.5.16;8,4;9,19-22;10,8) (ESTRADA, 2005, p. 201).
Além da questão da salvação pela fé, tão ressaltada nos escritos atribuídos a
Paulo, é interessante a maneira com que ele, ao invés de dirigir suas cartas aos
ministros, dirigia-se geralmente a toda a comunidade. O único documento em que
Paulo se dirige a um membro específico é a Carta a Filemon, cujo conteúdo refere-
se à questão da fuga de um escravo15.
Diante disso, constatamos que as comunidades paulinas estão distantes do
verticalismo, já que seu ponto de partida não é o ministério episcopal ou o papal,
mas a própria comunidade.
15
Como referências sobre os escritos paulinos podemos mencionar: Estrada (2005), Schussler
Fiorenza (1992) e Mesters (1995). Cada um deles traz uma análise minuciosa do conteúdo em
questão, merecendo destaque a abordagem construída por Schussler Fiorenza (1992) que traz uma
perspectiva feminista enriquecida pela hermenêutica da suspeita que observa o conteúdo
androcêntrico da história do cristianismo, dando voz às mulheres do período em questão.
41
Contudo, é preciso analisar que os escritos joaninos trazem uma visão
diferenciada de cristianismo, já que toda sua literatura é pautada na hora derradeira,
na qual carisma e profecia são temáticas convergentes. Há dificuldades nesta
conduta incentivada nos escritos joaninos, já que:
As tensões das cartas joaninas mostram os perigos de uma eclesiologia
baseada somente nos carismáticos, no discernimento comunitário e no
igualitarismo de todos. Surge facilmente a tendência ao gueto, típica dos
grupos espirituais, a hostilidade contra os grupos cristãos mais favoráveis à
abertura e ao diálogo com os não crentes e o perigo do farisaísmo
espiritual... (ESTRADA, 2005, p.269)
Diante dessa análise das cartas joaninas, constata-se que não se pode falar
de um cristianismo uniforme nesse período, uma vez que cada comunidade tinha
sua peculiaridade, ou seja, seu jeito de ser cristão.
No caso daqueles que seguiam os ensinamentos paulinos, as críticas
realizadas dizem respeito à falta de espontaneidade e de criatividade que isso
poderia acarretar. Já no caso dos ensinamentos joaninos, percebe-se a forte
tendência ao gueto desses movimentos cuja espiritualidade é exacerbada.
No entanto, por volta do ano 165 na Frígia, região da Ásia Menor, destacou-
se o grupo dos montanistas, que ainda tinham uma visão de mundo mais voltada
para espiritualidade narrada nas cartas joaninas, uma vez que tal grupo visava uma
proposta mais radical em nome da nova profecia.
As práticas desse grupo, por ser radical e envolvido em mistério, provocavam
incômodo nos demais, já que era formado por indivíduos carismáticos que diziam
ser arrebatados pelo Espírito. Para tanto, os rituais por eles praticados incluíam
êxtases, oráculos, visões e profecias. Seu líder, Montano, se autodenominava
porta-voz do Paráclito.
Diante disso, por volta do ano 230, as comunidades passaram paulatinamente
a considerar tais êxtases e arrebatamentos místicos como sendo antinaturais,
irracionais, e também ininteligíveis. Todavia, os montanistas buscavam legitimar
suas práticas fundamentando-as nas cartas paulinas, mas, mesmo diante dessa
tentativa de defesa, esses grupos foram considerados como heréticos e,
posteriormente, uma série de concílios decidiram a excomunhão de tais indivíduos.
No século IV, surge um novo grupo que demonstra uma nova forma de ser
cristão, ou seja, os monges. Vale destacar que surgem entre os leigos, mas o seu
42
comportamento ascético e a maneira com que eles se autodenominavam como
herdeiros da tradição dos essênios16 deram a eles legitimidade e credibilidade. O
ideal de vida desses indivíduos estava na imitação dos mártires17.
Paulatinamente, esses grupos foram aceitos na Igreja e se transformaram em
ordens religiosas. As maiores críticas dirigidas a eles estão na forma como se
afastavam dos leigos e se transformavam em um terceiro grupo no interior das
Igreja.
Ainda no século IV, São Jerônimo reconheceu que, até essa data, não havia
doutrina oficial da Igreja sobre o tema da animação do feto. Ou seja, para os
teólogos da época, era válido assumir qualquer uma das duas hipóteses propostas,
isto é, a da animação imediata ou tardia (MELLO,1994).
Não foram apenas os grupos que divergiam, a Igreja aos poucos foi
adquirindo novas feições, a partir do surgimento de novos cargos eclesiásticos,
conforme narrado nas cartas paulinas e na carta atribuída a Pedro.
De início, constata-se, nas cartas paulinas, a presença de ministros enquanto
lideranças que recebiam pelas atividades exercidas. Apenas na Carta de Pedro
pode-se constatar, por exemplo, a presença de diáconos nas comunidades. Tal
cargo se aproximava dos bispos, que surgiram posteriormente, sob influência do
paganismo e das hierarquias já presentes em Roma.
Roma, como grande comunidade, sempre teve força superior às demais
comunidades que também tinham seus líderes religiosos, ou seja, Constantinopla,
Jerusalém, Alexandria e Antioquia. Analisando historicamente o surgimento dos
primeiros papas, percebemos que Inácio e Clemente I foram os primeiros a usarem
esses termos, muitas vezes criticados, mas que foram paulatinamente legitimados
pela Igreja Católica, a partir de Concílios e documentos oficiais, após a conversão de
Constantino, já que como autoridade política, ele era quem convocava os concílios
(ESTRADA, 2005).
16
Conforme Corbin (2009, p. 14) “os essênios levam uma vida monacal a margem da sociedade. Se
o que foi encontrado em Qumran em meio aos manuscritos do mar Morto é de fato uma parte da sua
literatura própria, o fundador de sua “seita” o “mestre de justiça” teria sido perseguido por um
“sacerdote ímpio”, que vários estudiosos pretendem identificar como sendo Jônatas, usurpador do
pontificado”.
17
A perseguição sofrida pelo seu fundador apresentada na nota 17 mostra em qual sentido há uma
busca pela imitação dos mártires da tradição essênica, ou seja, busca-se imitar o sofrimento deles ao
ponto de doar a própria vida.
43
É consenso na historiografia que, a partir do Edito de Tolerância do imperador
Constantino e dos primeiros concílios ecumênicos, tornou-se mais fácil a passagem
de uma confederação de Igrejas autônomas para uma Igreja universal, reunida em
concílios e estruturada em cinco grandes patriarcados ou regiões eclesiásticas, cada
uma com sua própria tradição, seu direito, sua liturgia e também sua autonomia
episcopal (ESTRADA, 2005; ALBERIGÓ, 1995).
Diante disso, percebe-se que havia uma diversidade de comportamentos no
cristianismo dito primitivo, apesar de se distinguir fortemente das hierarquias que,
paulatinamente, foram postas na Igreja com o apoio do poder temporal. Isso justifica
a autonomia relativa mencionada por Bourdieu (2002), tanto no que diz respeito à
política, como à religião. Também se pode observar que, em cada período, essa
influência permanece, variando apenas seu grau de intensidade.
2.1.2 Cristianismo das origens: críticas e adaptação
Após uma explanação sobre o chamado cristianismo primitivo, será
observado criticamente um período posterior caracterizado por adaptações que
deram aos poucos a consistência ao que seria o catolicismo no período medieval.
Dessa forma, neste item, será feito um estudo pautado nos pais da Igreja como
formadores do pensamento católico medieval.
Com relação à patrística, pode-se considerar que esta foi um período que
compreende os séculos I a IV e que pode ser considerado como de grande
relevância para história da Igreja, tendo em vista que “os padres receberam a bíblia
da Igreja Apostólica. Mas, foram eles que a transmitiram, tendo sido os primeiros a
estudá-la, comentá-la e meditá-la” (LIÉBAERT, 2000, p.12).
Observando as diferenças entre os Pais gregos do Oriente e os Pais latinos
do Ocidente, pode-se considerar que, enquanto os primeiros tinham uma tendência
ao especulativo, sondando mistérios profundos, os outros tinham mais ligação com a
atividade prática, reforçando a autoridade e ordem legítima da Igreja, ou seja, sua
mentalidade era mais jurídica (BRAATEN, 2005; CAIRNS,1995).
Além disso, foi a igreja dos Pais que deu ao catolicismo romano as profissões
de fé fundamentais de toda a cristandade através dos primeiros concílios
44
ecumênicos, ou seja, Nicéia (325) e Constantinopla (381)18, Éfeso (431) e
Calcedônia (451)19 (LIÉBAERT, 2000). Com relação às bases do Credo católico, é
observável como a base está no Concílio de Nicéia e foi completada pelo Concilio de
Constantinopla.
Sobre a Era Patrística pode-se mencionar ainda que é nesse período que os
ministérios são ordenados em episcopado, presbiterado e diaconato. É válido
ressaltar ainda que os Pais da igreja Clemente de Roma e Inácio de Antioquia estão
em consonância com a cultura greco-romana. Como exemplos da literatura da
época, podemos mencionar a Didaqué, a Carta de Barnabé e o Pastor de Hermas
(BRAATEN, 2005).
Sobre a Didaqué é importante afirmar que ele “foi escrito provavelmente entre
os anos 90/100 e é possivelmente o primeiro Catecismo da Igreja Católica
(NAZARÉ, 2008, p.28). Nela, há uma menção que se opõe ao aborto ao afirmar:
“Não mate a criança no seio de sua mãe, nem depois que ela tenha nascido”
(DIDAQUÉ, 1989, p. 10). Contudo, esse discurso antiaborto não era consensual
entre os pensadores da Igreja como se verá adiante.
Inácio de Antioquia é uma figura bastante destacada devido à forma como
sofreu perseguições durante o reinado de Trajano, no século II, e também porque
grande parte dos seus textos tinha como temática central a figura de Cristo como
espírito e carne e uma crítica ferrenha aos cristãos judaizantes (ESTRADA, 2005,
CAIRNS,1995).
Não se pode negar a existência de uma ligação entre o cristianismo e o
Antigo Testamento, já que negá-lo seria esquecer-se das raízes cristãs. Para tanto,
muitos autores fazem uma leitura pautada na história da salvação e suas fases.
(BRATEN, 2005; LIÉBAERT, 2000; CAIRNS,1995).
Nesse período, os apologistas tiveram grande relevância por causa do
pensamento incisivo dos Padres que pertenciam a esse grupo e pela maneira com
que os apologistas escreviam com o nítido interesse de defender a fé cristã diante
do mundo pagão exterior.
18
“Niceia e Constantinopolitano I traçam o arco da elaboração trinitária fixando assim a moldura para
a evolução dogmática posterior; além disso, estabeleceram as premissas essenciais para a
organização eclesiástica da pentarquia (o regime dos cinco grandes patriarcados, com sua hierarquia
interna), sancionada depois por Calcedônia” (ALBERIGÓ,1995, p. 14).
19
“Éfeso e Calcedônia delimitam a primeira fase das controvérsias cristológicas, que vão do início do
séc. V até o final do século VII” (ALBERIGO,1995, p. 14).Cada detalhe dessas controvérsias
cristológicas desse período pode ser observado em Alberigo (1995, p. 71-119).
45
É relevante destacar ainda que a busca de pôr a fé como superior à razão era
próprio desse grupo, já que: “Seu tema apologético fundamental era a apresentação
do cristianismo como o cumprimento da busca filosófica da verdade e a confirmação
da filosofia grega como preparação para o evangelho” (BRAATEN, 2005, p.50).
Sobre tais Padres podemos comentar que:
A formação cultural dos primeiros apologistas foi de caráter jurídico retórico,
especialmente no sensível e vivo ambiente africano. Em outros Padres
prevaleceram os interesses estritamente teológicos e pastorais ou estilo
filológicos e eruditos. Em geral, o lugar que eles ocupam na historia da
filosofia é bastante modesto (REALE, 2003, p.86).
Entre os apologistas merece destaque a figura de Justino que, de início, se
identificava com o platonismo, mediante a idéia altíssima de Deus e a mística da
contemplação. Entretanto, a fé cristã é analisada por ele como a única filosofia
segura e proveitosa. Nesse período, havia uma predominância das teorias
platônicas e estoicas, de tal forma que elas ocuparam um lugar importante entre os
Pais da Igreja (LIÉBAERT, 2000; THEISSEN,1987).
Para Justino, fé e razão não podiam cair em contradição, já que tem Deus
como sua única fonte, em seu logos, o seu verbo, que ele comunica aos homens
desde sua origem. Apesar de admirar o estoicismo, Justino se mostrou contrário ao
seu panteísmo, determinismo universal e ausência de destino individual depois da
morte. Para ele, a transcendência da revelação de Cristo era clara.
No âmbito dos Padres apologistas, Tertuliano é expressão da tendência
antifilosófica que queria rejeitar completamente as doutrinas dos gregos, já que, em
sua visão, a fé cristã torna inútil toda doutrina filosófica apenas racional, pois em seu
pensamento a fé é superior à razão (REALE, 2003).
Neste período, destaca-se ainda a presença dos gnósticos. A palavra gnose é
uma palavra grega, que significa conhecimento. Assim, uma de suas características
está na forma com que se tem uma ilusão de um conhecimento que é tido como
perfeito, velado e revelado, possuído e transmitido por aqueles que são iniciados e
que têm a pretensão de dar uma explicação global do mundo e do mistério da
existência, baseando-se no dualismo, para assim abrir caminho para a salvação do
espírito (REALE, 2003; LIÉBAERT, 2000).
Esse movimento teve início no século I, nos lugares que compõem a
Palestina até a Ásia Menor, e durante o século II, cresce, principalmente, em
46
Alexandria. O bem e o mal, tão enfatizados entre os cristãos, certamente, tiveram
maior consistência entre os gnósticos.
No que diz respeito aos gnósticos cristãos, constata-se a presença de dois
grupos: os meros crentes que apenas detinham a fé (pistis) e os possuidores do
conhecimento (gnosis). Uma das características dos gnósticos era “a fusão de
símbolos bíblicos e gnósticos da salvação, constituindo a heresia mais séria a
ameaçar o evangelho em território helenista” (BRAATEN, 2005, p. 51).
Nesse contexto, merecem destaque os teólogos alexandrinos Clemente e
Orígenes por serem aqueles que assumiram a idéia de gnosis para explicar a
revelação cristã. Em relação ao gnosticismo, observamos que seus adeptos
ensinavam que “o caminho da salvação consistia no conhecimento místico”
(BRAATEN, 2005, p.51).
Para Orígenes, a ‘sabedoria deste mundo’ era uma concepção errônea da
filosofia, pois Deus deveria ser conhecido segundo a sua sabedoria, portanto, não
na dimensão do corpóreo, mas na dimensão do espírito (REALE, 2003). Além disso:
Deus, para Orígenes (185-253), é uma realidade incorpórea, e sua natureza
transcendente o torna incompreensível a mente humana. Jesus, unigênito
filho de Deus, é "a sabedoria de Deus substancialmente subsistente", na
qual existem desde sempre as idéias de todos os entes existentes. Embora
o Filho seja da mesma natureza do Pai, Orígenes, talvez influenciado pela
estrutura hipostática do pensamento médio platônico/neoplatônico,
considera-o subordinado ao Pai: com efeito, enquanto o Pai e unidade
absoluta, o Filho explica múltiplas atividades (REALE, 2003, p.58).
De Clemente, nascido por volta de 150, podemos destacar a maneira com
que ele se propõe a demonstrar a perfeita harmonia entre fé e razão, que existe no
cristianismo. Na concepção de Clemente, a filosofia não torna a verdade mais forte,
mas defende a fé dos ataques dos inimigos da verdade (REALE, 2003).
Partindo para uma análise do combate da chamada heresia gnóstica,
percebemos, em Irineu de Lião, um discurso que enfatiza a busca pela história da
salvação.
É, todavia, por excelência, na figura de Agostinho20 que temos a maior
contribuição na história dogmática. Sua busca mais incisiva era pela verdade
salvífica. No que tange à sua visão da união conjugal, ele é conhecido por afirmar,
20
Sobre o pensamento agostiniano veja-se a sua obra ‘A graça’ (1) editada em português no ano de
1999 e de sua própria autoria. A relevância dessa obra está no aprofundamento dos seguintes
temas: o espírito e a letra; a natureza e a graça, a graça de Cristo e o pecado original.
47
tal como outros Pais da Igreja, que ela é vista como pecaminosa, mas tolerável para
procriação, já que garantiria a descendência de Deus na terra (CAIRNS, 1995;
ESTRADA, 2005). Sobre seu posicionamento em relação ao feto animado e
inanimado é relevante trazer à tona que:
Agostinho (354-430 d.C.), por exemplo, defendia que a alma não poderia
viver em um corpo ainda não formado (nondum formata) e, nessa
perspectiva, no início da gravidez, um aborto não seria considerado
assassinato stricto sensu: somente quando o feto passasse de feto
inanimado a feto animado é que a prática seria de fato exaltada como
reprovável (CUNHA, 2007, p. 136).
Todos esses pensadores solidificaram a fase da história que mais teve
influência na Igreja, denominada pejorativamente de Idade Média. Assim, cabe aqui
explanar esse período tão importante para a história da Igreja.
2.2 NORMATIZAÇÕES DA IDADE MÉDIA: MAGISTÉRIO ECLESIÁSTICO
Voltando-nos para a Idade Média, percebemos que, durante a Idade
Moderna, os reformistas olhavam para esse período com certo desprezo,
denominando-o de idade das trevas. Outra forma de observar esse período é a
romanceada, trazendo a idéia de que havia uma unidade orgânica e uma
integralidade na vida religiosa e cultural desse período (CAIRNS, 1995).
Contudo, é preciso eliminar ambas as visões preconceituosas. A primeira
visão vem dos estudiosos posteriores que, influenciados pelo Iluminismo, assim a
viam por causa das idéias racionalizadoras de sua época. Concomitantemente, a
visão monolítica, no seio da medievalidade, também é uma representação distorcida
desse período, já que há uma diversidade de grupos que aos poucos criaram certa
consonância entre eles (BRAATEN, 2005).
Assim, ao adentrarmos a medievalidade, precisamos observá-la enquanto um
período em que a dogmática colheu os frutos da vitória da Igreja durante o Império
Romano (BRAATEN, 2005; ESTRADA, 2005; CAIRNS,1995). É preciso analisá-la
ainda, tendo a percepção de que o paganismo cedeu cultural e politicamente seu
lugar ao mundo cristão. No tocante ao aspecto religioso, o período medieval pode
ser dividido em quatro fases:
1) o período que se estende do sec. V ao IX (formação dos reinos românico-
bárbaros e consolidação do Sagrado Império Romano), conhecido pelo
48
nome de "obscurantismo" medieval devido ao estado de depressão em que
se encontra a pesquisa cultural; tem apenas duas figuras eminentes: Boécio
e Escoto Eriúgena.
2) a segunda fase da ldade Media, que ocupa os sécs. X e XI (lutas pelas
investiduras e pelas cruzadas) e se caracteriza pelas reformas monásticas;
entre as figuras de destaque deste período estão: Anselmo de Aosta,
Abelardo e os expoentes das Escolas de Chartres e de São Vítor
3) a terceira fase (sec. XIII), que coincide com a era de ouro da Escolástica,
com Santo Tomás, São Boaventura e Duns Escoto;21
4) a quarta e última fase, que marca a crise da lgreja e do lmpério e também
da relação entre a fé e razão: é o tempo de Ockham. (REALE, 2003, p.119)
Boécio (480-525) pode ser considerado como sendo profundo conhecedor da
cultura clássica, pois uma de suas peculiaridades foi a maneira com que ele trouxe à
tona temas de caráter relevante e que posteriormente seriam bastante utilizados.
Entre esses temas estavam “as suas definições de pessoa, seja como substância
individual de natureza racional”, suas idéias sobre felicidade como o estado de
perfeição que corresponde ao fato de se possuir todos os bens e de eternidade, que
corresponde à posse total, perfeita e simultânea de uma vida que não tem fim
(REALE, 2003).
Escoto Eriúgena, por sua vez, é observado como grande estudioso do século
IX, sendo conhecido por definir a filosofia como a fé cognoscível e inteligível e ainda
pela maneira como ele analisa a divisão da natureza (REALE, 2003).
Anselmo de Aosta (1063-1078), pertencente à segunda fase do período
medieval, era Arcebispo de Cantuária, Doutor da Igreja, e ficou conhecido pelo seu
ensino humanitário, que, primando pela dialética, trazia em suas reflexões temas
como a inteligência da fé, a existência e os atributos de Deus, a criação, a retidão, a
verdade e a justiça, a graça e a liberdade.
Os expoentes da Escola de Chartres podem ser considerados como a
vanguarda do movimento que gerou o Renascimento. Entre os estudiosos, podem
ser destacados Bernard de Chartres, Thierry de Chartres, John de Salisbury
e Gilberto de la Porrée (REALE,2003; ESTRADA,2005; CAIRNS,1995).
21
Este período também pode ser caracterizado pela presença de mendicantes, principalmente pelos
franciscanos. Tais grupos tinham um caráter desagregador. Dentre eles se destacaram: João
Capistrano (1386-1456) e Jerônimo Savonarola (1452-1498).
49
Os pensadores pertencentes à terceira e à quarta fases serão vistos mais
adiante quando estudaremos a Escolástica, a fim de compreender a peculiaridade
dessa fase.
Percebemos que a Idade Média é composta de grandes figuras que
sistematizaram o pensamento dos Pais da igreja e que fortaleceram as bases da fé
católica. Neste contexto, podem-se sistematizar os seguintes grupos:
Até o século XIII, quando começa a Formação das Universidades, as
escolas são: 1) monacais ou abaciais (anexas a uma abadia) e, no mais,
conduzidas por monges; 2) episcopais (anexas a uma catedral); 3) palatinas
(anexas à corte: palatium). No período das invasões bárbaras, as escolas
abaciais ou monacais representaram o refúgio privilegiado da cultura, tanto
por meio da transcrição como da conservação dos clássicos. As escolas
episcopais se tornaram predominantemente local da instrução elementar,
necessária para o acesso ao sacerdócio ou para assumir funções de
utilidade pública e de administração. A escola que mais do que qualquer
outra destinou-se a incidir sobre a cultura medieval e que contribuiu para o
despertar da cultura foi a palatina, desejada por Carlos Magno (REALE,
2003, p.121).
Em relação às escolas monacais, é importante destacar que o cristianismo
era visto como forma de vida e não como ciência. Esse grupo não praticava o
diálogo entre fé e razão.
Sobre esse diálogo entre fé e razão, destaca-se a escolástica, que é um
conjunto de “métodos e doutrinas ensinados pelos professores nas universidades
medievais dos séculos X a XV”(BRAATEN, 2005, p. 53), sendo considerada como
mais do que um conjunto de doutrinas, uma vez que é possível compreendê-la
associada à filosofia e à teologia ensinadas nas escolas medievais.
Essa caracterização, apesar de extrínseca, é útil e significativa. Ela é útil,
pela ausência de definição do corpo doutrinário que se pode chamar de
"escolástico". Concomitantemente, ela é significativa por ter a capacidade de
transportar para o ambiente em que tais doutrinas foram elaboradas, pensadas e
aprofundadas, a partir da primeira reorganização medieval das escolas, promovida e
sustentada por Carlos Magno (REALE, 2003, p.136).
Tal método reforçava a autoridade da tradição, superando suas ditas
aparentes contradições internas, e legitimava as sentenças dos Pais da igreja ao
tecer comentários sobre elas.
A base do trabalho dos escolásticos era constituída pelos textos, por isso, seu
estudo pode ser considerado como sendo fundamentalmente filosófico, literário e
50
teológico. As leituras realizadas eram referentes aos clássicos antigos, à Bíblia e aos
ensinamentos deixados pelos Pais da Igreja. Os métodos aplicados nesse período
eram: o lógico, o silogístico e a aplicação da exegese (ZILLES,1996).
Entre os séculos IX e XII, era observável na escolástica a lectio e o magister,
ou seja, a leitura e o ensinamento. A análise direta dos textos era o método
praticado. Além disso, a tese, a sentença e a suma eram os escritos mais
constantes. Enquanto a tese era uma defesa de uma determinada idéia, na qual
aqueles que conseguiam se sobressair eram chamados de doutores, a sentença era
um conjunto de coleções, tratados e de uma obra dogmática. A suma, por sua vez,
dizia respeito ao resumo de disciplinas.
Vale destacar ainda que as questões também compuseram essa análise e
nada mais eram que perguntas referentes ao texto lido. É importante destacar ainda
que os elementos filosóficos gregos foram bastante assimilados e havia uma nítida
influência platônica.
A teologia era observada como a rainha do saber entre os beneditinos e,
posteriormente, entre os franciscanos e dominicanos. A filosofia, por sua vez,
deveria ser serva da teologia, não no sentido de buscar diminuí-la, mas na maneira
com que via a razão como aquela que não poderia sobressair à fé.
Como já foi mencionado, nesse período, havia uma forte predominância dos
estudos pautados na dialética. Contudo, há ainda neste período a presença dos
antidialéticos, e, entre eles destaca-se Pedro Damião, que via a filosofia como
diabólica (ZILLES,1996). Percebemos, portanto, novamente, a ausência de
uniformidade nos pensamentos dos religiosos.
Entre os séculos XIII e XIV, houve uma nítida influência do aristotelismo.
Guilherme de Ockham e Duns Escoto são pessoas influentes desse período que se
contrapunham à Escolástica. Okham pode ser considerado como a figura saliente
desse período, por abrir o divórcio entre razão e fé. Duns Escoto, por sua vez, é
conhecido pela maneira com que separa a teologia da filosofia (REALE, 2003).
Muitos teólogos medievais defendiam a legitimidade do recurso ao aborto,
desde que a vida da gestante estivesse ameaçada. Isso ocorre, porque se
considera tal caso como uma exceção à norma tradicional cristã, que tinha como
fundamento o respeito ao ser humano em qualquer estágio de seu desenvolvimento
(MELLO,1994).
51
É válido ressaltar que no século XIII, Tomás de Aquino (1225-1275) distingue
o feto animado do feto inanimado. Assim, ele fixou a animação no quadragésimo dia
para os meninos e no octogésimo para as meninas, distinguindo desse modo um
feto animado de um feto inanimado (BEAUVOIR, 1980). Assim, pode-se considerar
que ele:
[...] adotou a teoria do hilemorfismo, recuperada das teses aristotélicas, para
afirmar que o embrião passava por estágios distintos de desenvolvimento
através de etapas sucessivas. O primeiro estágio embrionário seria
caracterizado por uma alma vegetativa (anima vegetativa), vivendo como
uma planta; posteriormente esta decairia, surgindo, então, uma alma mais
perfeita, ao mesmo tempo vegetativa e sensitiva, vivendo uma vida animal
(anima sensitiva); num terceiro estágio, o embrião receberia alma humana,
racional (anima rationalis) (CUNHA, 2007, p.137).
No século XIV, Sanchez, teólogo moralista, defendia que o aborto de um feto
não animado é moralmente correto, não apenas no caso de perigo de morte para a
mulher, mas também em casos de grave prejuízo para a mesma. Pois, em sua
visão, tal atitude é justificável porque não se mataria uma pessoa humana e, além
disso, alcançar-se-ia um grande benefício para a mulher (WIJWICKREMA, 1997).
As divergências dentro da Igreja Católica ficam explícitas ao se considerar
que, no ano de 1588, o Papa Sixto V determinou que o aborto deveria ser
condenado em qualquer período da gravidez, passando a ameaçar de excomunhão
a quem o fizesse. O Papa Gregório XIV, no entanto, revogou essa decisão em 1591,
ao reinstaurar o marco do teste do “chute” que diz respeito ao momento em que a
gestante sentisse os movimentos do feto pela primeira vez, o que deveria acontecer
cento e dezesseis dias após a fecundação.
É a partir do século XVII que o conceito de animação simultânea, que afirma
que o embrião fica investido de alma no momento da concepção, tornar-se-ia
paulatinamente mais admitido entre médicos e religiosos (CUNHA, 2007, p. 136).
É valido destacar que tal posição foi ratificada pelo Papa Pio IX (século XIX)
ao declarar que o momento da concepção marca o início da existência de uma
pessoa humana. Dessa forma, pode-se considerar que:
A Igreja Católica induz a proibição e condena o aborto. Mas não foi sempre
essa a sua postura. Há cerca de 150 anos, interromper a gravidez era
tolerado pela Santa Madre Igreja. Foi em 1869 que o papa Pio IX declarou
que a alma incorporava na concepção, podendo se falar em vida a partir
deste momento. Por incrível que pareça, até hoje, esta é a base para
proibição do aborto, não existem argumentos científicos que sustentem tal
premissa. Inclusive porque a ciência não localizou a alma, nem o momento
exato da sua transmigração (GARCIA, 2008, p. 100).
52
Para melhor compreender essas mudanças, é preciso observar o período
posterior à medievalidade, ou seja, é necessário analisar a modernidade, a chamada
emancipação da consciência, e a forma como o catolicismo permaneceu
intransigente sobre alguns assuntos como o aborto.
2.3 IRRUPÇÕES DA SUBJETIVIDADE NA MODERNIDADE: INÍCIO DA
EMANCIPAÇÃO DA CONSCIÊNCIA
Considerando como marco histórico para o início da modernidade o século
XVII, percebemos que este é fruto de um longo processo que resultou na perda de
poder da Igreja Católica, cujo início se deu no século XVI, a partir da chamada
Reforma Protestante. Sobre a Reforma é preciso considerar suas várias versões
entre os historiadores, uma vez que:
Os historiadores protestantes como Schaff, Grimm e Bainton interpretam a
Reforma como um movimento religioso que procurou redescobrir a pureza
do cristianismo primitivo como descrito no Novo Testamento. (...) Os
historiadores católicos romanos interpretam a Reforma como uma heresia
inspirada por Martinho Lutero por causa de várias razões entre as quais a
vontade de se casar [...] Os historiadores seculares dão mais atenção aos
fatores secundários em sua interpretação da Reforma. [...] Historiadores,
que aceitam o conceito marxista de determinismo econômico, não podem
interpretar a Reforma a não ser em termos econômicos (CAIRNS, 1995,
p.225).
Cada corrente cumpre um papel crucial na análise da chamada Reforma, pois
dão ao presente estudo um enriquecimento sobre este fato histórico, apontado por
teólogos e historiadores como um marco para a história do cristianismo. No entanto,
é preciso considerar a presença de outros dissidentes da Igreja Católica antes de
das duas figuras abordadas de forma constante, Lutero e Calvino, para não gerar
uma falta de conhecimento em relação às mudanças que, apesar de não serem tão
bruscas, deram vazão para as que viriam posteriormente.
Entre os precursores da Reforma, podemos destacar John Wycliffe (1328-
1384), Jan Hus (1373-1415) e Savanarola (1452-1498). O primeiro deles, estudante
e professor em Oxford, ficou conhecido pela forma como criticava o comportamento
imoral dos padres e como tornou a Bíblia acessível ao povo em sua própria língua,
ou seja, na língua inglesa. Suas idéias foram endossadas, posteriormente, por Jan
53
Hus, estudioso da Universidade de Praga, que, por aplicar o pensamento de Wycliffe
foi queimado por ordem do Concílio de Constança. Em seguida, Savonarola (1452-
1498), monge dominicano, buscou reformar a Igreja. Teve a mesma sorte que Jan
Hus, sendo enforcado por causa de seus ideais revolucionários e de suas duras
críticas contra os padres (CAIRNS, 1995).
Sobre Lutero é comum, na maioria dos autores, a alusão a sua busca pela
autoevidência da Bíblia e a valorização da sola scriptura e do sensus litteralis. Por
muito tempo, Lutero interpretou a Bíblia a partir do método quádruplo, em que se
buscava analisar o sentido literal, alegórico ou espiritual, moral, e anagógico ou
escatológico dos textos. “Mas, paulatinamente, abandona esse método e deixa valer
o sensus literalis (sentido literal), como sendo único e legítimo [...]” (VOCKMANN,
1992, p. 10).
O posicionamento de Lutero pode ser considerado como uma reviravolta na
exegese bíblica ao pôr em questionamento a autoridade papal. Assim, Lutero
acrescentou um princípio hermenêutico denominado claritas scripturae, que
corresponde à clareza da escritura (DOBBERAHN, 1992).
A figura de Calvino, quando comparado a Lutero, é considerada pelos
estudiosos como sendo ainda mais radical, pois, além de concordar com o sentido
literal da bíblia para conseguir êxito na exegese bíblica contextual, ele se utiliza de
todos os meios filológicos e históricos (VOCKMANN,1992). Sobre os pensadores
protestantes, de maneira geral, pode-se afirmar que “a ênfase protestante na
consciência individual deslocou inevitavelmente a sanção da última veracidade,
transferindo-a do medo externo à punição divina para o senso interno de
responsabilidade do homem pio” (THOMAS, 1991, p. 68).
Pode-se observar que os escritos de Lutero e Calvino mantiveram uma
atitude anti-sensual em relação a vida, já que advogavam o repúdio do corpo
luxurioso tão pronunciado em Agostinho e Tomás de Aquino. Os escritos de Lutero e
Calvino indicam uma continuidade entre as idéias da Reforma e a antiga
preocupação católica pela purificação do corpo do desejo sexual” (SCHOTT, 1996,
p. 98).
Nesse contexto, o papel da mulher, na visão dos protestantes, era de
reprodutora que precisava cuidar dos filhos e obedecer ao marido, pois nessa
perspectiva, ela não tinha controle sobre si mesma. A mulher que fugia e aviltava
54
sua função sexual era tida por Lutero como pecaminosa e repugnante (SCHOTT,
1996, p. 104).
Esse posicionamento em relação aos gêneros, no qual a mulher é vista como
reprodutora, faz com que se observe a continuidade do posicionamento da Igreja
Católica frente à inadmissão do aborto, uma vez que de forma alguma se admitiria
que a mulher tivesse autonomia sobre o seu corpo e, também, há uma nítida
valorização da mesma enquanto mãe, função determinante para ela na sociedade.
Contudo, a maneira diferenciada com que os reformistas se voltavam para o
individualismo e se centravam na racionalização de idéias faz com que suspeitem de
certas práticas mágicas22 vistas na Igreja Católica. Com isso, “levantaram-se
objeções semelhantes à consagração de sinos das igrejas contra as tempestades e
ao uso de palavras das escrituras como proteção contra os perigos” (THOMAS,
1991, p. 55).
Constata-se, portanto, como uma das principais mudanças decorrentes da
Reforma, a maneira como ela busca eliminar o caráter mágico e sobrenatural da fé,
negando o valor dos rituais da igreja. A partir do século XVI, houve uma aceitação
de que nenhuma cerimônia teria qualquer eficiência material e que a graça divina
não poderia ser coagida por fórmulas humanas (THOMAS, 1991; DELUMEAU,
2009).
Não há um consenso historiográfico em relação ao início da modernidade,
contudo, se tenta esclarecer aqui o posicionamento da autora deste estudo frente a
esse debate sem deixar de se considerar a existência de outras perspectivas:
"modernidade" refere-se a estilo, costume de vida ou organização social que
emergiram na Europa a partir do século XVII e que ulteriormente se
tornaram mais ou menos mundiais em sua influência. Isto associa a
modernidade a um período de tempo e a uma localização geográfica inicial,
mas por enquanto deixa suas características principais guardadas em
segurança numa caixa preta. (GIDDENS, 1991, p.8).
Tendencialmente essa fase é vista pela historiografia tradicional como o
despertar da consciência e como um rompimento radical com a medievalidade. No
entanto, já que observamos, no item anterior, tantos pensadores da igreja que
trouxeram abordagens de cunho filosófico e pautado na subjetividade, podemos
considerar que essa fase é fruto de um longo processo já existente nos pensadores
22
Na modernidade, são mencionadas por Thomas (1991) as acusações de curandeirismo feitas a
várias mulheres por fazerem uso de chás e plantas medicinais no seu cotidiano.
55
medievais. Como exemplos disso, temos a figura de Abelardo, que traz à tona a
importância do homem conhecer a si mesmo e de Tomás de Aquino, que afirma que
a certeza emana do ser e é corroborada na consciência (CAIRNS,1995).
Mas, de fato, é na modernidade que a questão da subjetividade e da
consciência está posta com maior ênfase mediante a secularização acompanhada
da subjetividade cristã (CAIRNS,1995; ESTRADA, 2005; WEBER,1991).
Nessa busca pela subjetividade dos saberes e práticas da modernidade, o
sujeito, entendido como consciência de si, era um referencial fundamental
(WEBER,1991). Essa característica é vista no cartesianismo23, uma vez que, nele, a
consciência de si serve de fundamento para a existência humana, pois, nessa
perspectiva, toda realidade pode ser posta em dúvida, com exceção do fato que se
pensa, uma vez que toda dúvida se assenta sobre a possibilidade pensar. Sobre
isso, podemos considerar que:
René Descartes (1596-1650) desenvolveu uma filosofia cujo poder central
era o de duvidar de tudo, exceto de sua própria consciência e de sua
capacidade de pensar. A partir desta auto-evidência. ele erigiu um sistema
de pensamento em que vários axiomas seriam relacionados à certeza
matemática” (CAIRNS, 1995, p.322).
Na modernidade, observa-se que, para grande parte de seus pensadores, é a
aquisição de conhecimento que leva à ampliação da consciência, permitindo à
humanidade tornar-se sujeito da História. Assim, nessa perspectiva, o conhecimento
dá condições para que o ser humano consiga se libertar das limitações dogmáticas
das formas tradicionais de sociedade e das imposições da natureza, dando-lhe a
possibilidade de se adaptar às intempéries e contingências do solo e clima. Isso é
observável nesse período, uma vez que: “Em vez de confiar na tradição sagrada,
cientistas e filósofos, orientavam-se para o futuro, prontos a jogar fora o passado e
iniciar de novo” (ARMSTRONG, 2007, p.180).
Esse pensamento nutre a visão de que a busca pelo conhecimento e a
emancipação humana tenham um caráter normativo na sociedade. Diante disso,
prima-se pelo abandono dos dogmatismos do passado em favor de um governo
baseado na autoridade de um soberano ou que foi escolhido democraticamente e de
23
Sobre o pensamento de Descartes e seu caráter cientificista, leia-se Durand (1997), uma vez que
esse autor, ao estudar a teoria do imaginário, se contrapõe ao modelo iconoclasta proposto pelo
cartesianismo, trazendo à tona a possibilidade de se fazer um estudo que vai além da ciência, ou seja
que adentra o imaginário presente em diversas culturas. Assim, a análise durandiana além de
proporcionar ao leitor o conhecimento do cartesianismo aponta passos metodológicos diferenciados.
56
uma rejeição de noções confusas de crenças ou preconceitos, para que se
sobreponha o conhecimento cientifico de caráter experimental. Com isso: “A única
informação em que podíamos confiar provinha de nossos cinco sentidos; tudo que
não pudesse ser empiricamente demonstrado- filosofia, metafísica, teologia, arte,
misticismo e mitologia-era irrelevante” (ARMSTRONG, 2007, p.181).
Assim, nesse contexto, como mudanças que atingiram diretamente a Igreja
Católica, tem-se a separação entre ela e o Estado, delimitando-se os espaços entre
o reino de Deus e o reino do homem e havendo uma autonomia recíproca. Nesse
período, o mais irônico é que a autonomia estatal, frente à Igreja, corresponde à sua
sacralização e, concomitantemente, a institucionalização da Igreja terá como
resultado a sua secularização (WEBER,1991;BERGER,1985).
No século XVIII, por exemplo, o deísmo é apontado pelos iluministas como
forma de religião mais condizente com esses pensamentos. Isso pode ser
observado ao se afirmar que
o deísmo de Rousseau foi desenvolvido no Emile e o de Voltaire está em
todos os seus escritos contra a Igreja e a favor da tolerância. D’Alembert e
Denis Diderot (1713-1784) editara, a Enciclopédia, sobre o conhecimento
universal amplamente racionalista e deísta (ARMSTRONG, 2007, p.182).
Essa grande aceitação do deísmo, por parte desses filósofos, pode ser
justificada pela maneira com que “a nova religião do deísmo, defendida por John
Locke (1632-1704), um dos fundadores do Iluminismo, fundamentava-se unicamente
na razão” (ARMSTRONG, 2007, p.182). Outra característica que pode ser apontada
sobre os filósofos desse período é a paixão pela cultura clássica, uma vez que:
Muitos homens da razão, no entanto, eram apaixonados pelos clássicos da
Antiguidade greco-romana que pareceriam preencher muitas das funções
da escritura. Diderot experimentava “transportes de admiração,... frêmitos
de alegria,... entusiasmo divino” Jean Jacques Rousseau (1712-72)
declarou que estudaria os autores gregos e romanos muitas vezes
(ARMSTRONG, 2007, p.182).
Todas essas mudanças, decorrentes da modernidade e de um período
anterior a ela, provocaram forte reação por parte da Igreja Católica que teve início
com os tribunais inquisitoriais e a Contrarreforma, de que se tratará o próximo item.
57
2.3.1 A perda do poder do controle da Igreja e a sua resistência frente ao mundo
moderno
Entre as principais reações da Igreja Católica em relação à reforma, podemos
destacar o estabelecimento dos tribunais da inquisição que perduraram até o século
XVIII. Sobre a sua relação com as mudanças da modernidade, podemos considerar
que:
Instalou-se o Tribunal no século XVI, quando vigia uma conjuntura de crise
das consciências alarmadas pela instilação das dúvidas geradas pela crítica
renascentista, e no seu desenvolvimento acabou por definir-se uma
instituição barroca, afeiçoada, portanto, ao novo complexo cultural que se
compôs e que perduraria até o meado do século XVIII. Combinou a
experiência institucional da Inquisição da Idade Média e os imperativos do
momento histórico. Uma resposta permanente ao desafio que para todos
constituía a tensão dos espíritos desassossegados pelas ameaças das
heresias a que se sentiam expostos (SIQUEIRA, 2008, p.1).
Esse Tribunal foi criado por Paulo III, o Papa de Trento24, motivado por
solicitações de reformas para manter a Cristandade e satisfazer a vontade do Rei de
Portugal D. João III a fim de conciliar sua fidelidade ao Papa, baseando-se na idéia
da importância da homogeneidade das consciências e ordem dos espíritos e a
disciplina dos vários estamentos sociais (SIQUEIRA, 2008; CAVALCANTI, 1999).
Além dessa busca por homogeneização do Rei de Portugal, é preciso levar
em consideração o choque que foi, para algumas pessoas, a mudança de
mentalidade introduzida nesse período pelo racionalismo e individualismo
observáveis na ética protestante e, posteriormente, nos pensadores iluministas.
Assim, o Santo Ofício se fundamentava em idéias teocráticas tradicionais e
configurava o mal na figura do judeu (SIQUEIRA, 2008; CAVALCANTI, 1999). A
intolerância foi, portanto, consagrada. Ela “tem origem numa predisposição comum a
todos os humanos, a de impor a suas próprias crenças, suas próprias convicções,
desde que disponham, ao mesmo tempo, do poder de impor e da crença na
legitimidade desse poder” (RICOEUR, 2000, p.20).
No Concílio de Trento, a Igreja Católica solidificou a sua idéia de que a
interpretação da Bíblia deveria ser restrita e se manteve defensora da tradição25
24
Esse título diz respeito a sua atuação enquanto Papa na formação do Concílio de Trento, uma vez
que teve influência basilar nas discussões desse período.
25
Entende-se aqui a defesa da tradição presente no Concílio de Trento como a maneira que a Igreja
Católica reforçou seus dogmas estabelecidos pelos Concílios de forma contundente trazendo a idéia
de que há o mesmo peso entre a tradição e a Bíblia (BRAATEN,2005).
58
religiosa. Assim, poucas mudanças no âmbito da abertura de consciência foram
observadas. E, ainda neste período, “A igreja Católica elaborou o Index, uma lista de
livros que os fiéis não poderiam ler” (CAIRNS, 1995, p.285).
Uma forma de melhorar a imagem da Igreja Católica, depois da Reforma
Protestante, foi o estilo de vida de algumas ordens religiosas. E entre elas,
destacamos o Oratório do Amor Divino, fundado em 1517. Podemos perceber que
“Esta organização informal de clérigos e leigos importantes estava interessada numa
vida espiritual profunda através de exercícios espirituais. Envolveu-se também na
realização de obras de caridade e na reforma” (CAIRNS, 1995, p. 280).
Outras ordens religiosas também foram inspiradas pelo Oratório do Amor
Divino. Todas elas buscavam brecar o avanço do protestantismo. Assim, “Gaetano
Di Tiene, ajudado por Caraffa, fundou a ordem teatina, em 1524” (CAIRNS, 1995, p.
281). Contudo, “a ordem mais eficiente de propaganda positiva usada pela Igreja de
Roma foi a ordem jesuíta, que se firmava na pregação feita por monges bem
treinados como forma de reconverter os adeptos do protestantismo” (CAIRNS, 1995,
p. 264).
A busca pelo chamado ‘Novo Mundo’ fazia com que os católicos procurassem
difundir sua crença com o auxílio das ordens religiosas. Contudo, no caso específico
do Brasil, se limitou ao batismo e á imposição de seus princípios. Assim, além de
não introduzir os costumes, acusavam índios e negros de não terem inteligência
suficiente para captar os elementos de sua religião (SOUZA, 1986).
Durante o século XVIII, a Igreja Católica teve ainda a contribuição do
movimento romântico em relação ao papado, pois ocorreu “uma revolta contra o
racionalismo e o individualismo do século XVIII” (CAIRNS, 1995 p.324). Sobre a
influência do romantismo podemos observar como
expressões do romantismo que permearam a Europa de 1790 a 1850,
reforçaram a influencia da religião sobre o homem. De modo particular, a
religião colorida, ritualista e sensória da igreja católica romana soltou as
rédeas da imaginação e do sentimento religioso (CAIRNS, 1995, p.325).
No ano de 1713, estudando o problema do batismo de fetos abortados, a
Sagrada Congregação da Inquisição Universal, depois chamada Santo Ofício (hoje,
Congregação para a Doutrina da Fé), determinou que caso existisse fundamentos
para pensar que o feto é animado por uma alma racional, poderia e deveria ser
batizada condicionalmente. No entanto, se não existisse tal certeza, não deveria ser
batizado sob nenhuma circunstância (HURST,1992).
59
Entre os séculos XVIII e XIX, permaneceu a divergência em torno da
distinção entre aborto de feto formado e de feto não formado, ganhando força a
corrente de pensamento que defende a infusão de uma alma racional no momento
da concepção (HURST,1992).
Contudo, o século XIX, na figura do Papa Pio IX, passou por um processo de
centralização de poder da Igreja Católica, que é perceptível mediante Encíclicas
como a Quanta Cura e mediante o Syllabus26. Tais idéias centralizadoras
adentraram o Brasil a partir dos bispos Vital Maria Gonçalves de Oliveira e Dom
Antônio de Macedo Costa que, ao criticarem rigidamente as pessoas que faziam
parte da maçonaria e integravam seus grupos, foram presos e liberados pela
suposta ordem papal, que repreendia as atitudes de ambos (AZZI, 1991). Como já
se viu, é nesse período que a Igreja Católica se define contrariamente ao aborto,
pois:
É somente em 1869 que a Igreja Católica declara que a alma faz parte do
feto, condenando o aborto e os métodos contraceptivos. Pode-se perceber
que o aborto, ao longo da história, era permitido ou proibido dependendo
dos interesses econômicos e políticos de cada época (REBOUÇAS, 2010,
p.24).
Enfim, temos a formação de toda uma mentalidade moderna católica que
reage contra a subjetividade e o individualismo deste período, endossando o
pensamento atual da Igreja frente ao aborto, apesar de se observar que esta nem
sempre teve um claro posicionamento frente à idéia do começo da vida, como
demonstra ter nos dias atuais.
2.3.2 A Igreja Católica hoje frente ao aborto
Ao observarmos o posicionamento da Igreja Católica frente ao aborto nos dias
atuais, podemos considerar que o mesmo não pode ser remetido aos seus inícios,
pois essa idéia nem sempre foi consensual no seio desta instituição, uma vez que:
A questão de quando o embrião adquire ‘alma’ foi sempre controvertida. No
século IV, os Padres da Igreja, Basílio Magno e Gregório de Nissa
declararam – baseados em fontes estóicas – que a animação do embrião
ocorria no momento da concepção, porque a alma era infundida no útero
junto com o sêmen. [...] Em 1658, o franciscano Jerônimo Florentino exigia
26
Ambos os documentos tinham um caráter centralizador e continham determinações pautadas numa
volta à obediência incondicional ao Papa enquanto autoridade máxima da Igreja. Vejam-se mais
explicações sobre esse período em Igreja Católica (1999) e Igreja Católica (2004).
60
que todo embrião, não importando quanto tempo tivesse decorrido da
concepção, tinha de ser batizado quando houvesse perigo de morte, já que
tinha alma. Em 1661, o médico pessoal de Inocêncio X, Paulo Zacharias,
defendia a idéia de que a alma era infundida no momento da concepção.
Sua principal razão: se assim não fosse, o motivo da festa da concepção de
Maria (8 de dezembro) seria uma célula sem alma [...] (RANKE-
HEINEMANN, 1996, p. 323).
A análise geral da Igreja Católica dá uma noção de como seu pensamento foi
sendo moldado no decorrer dos séculos e a maneira com que ela reagiu frente à
modernidade. Influente, nos dias atuais, sua opinião ainda tem muita validade para
grande número de pessoas.
Atualmente, seu discurso em relação ao aborto se volta para uma busca pela
defesa da vida. Exemplo disso é a fala do Papa João Paulo II, no ano de 1995, na
comemoração do quinto aniversário da Encíclica Evangelium Vitae:
Não há razão para aquele tipo de mentalidade derrotista que diz que as leis
que se opõem ao direito à vida - as que legalizam o aborto, a eutanásia, a
esterilização e os métodos de planejamento familiar que se opõem à vida e
à dignidade do casamento - são inevitáveis e até quase uma necessidade
social. Pelo contrário, são uma semente que corrói a sociedade e os seus
fundamentos (CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA).
Além dessa fala, que é visivelmente contrária ao aborto, o Catecismo da
Igreja Católica busca introduzir na mentalidade dos fiéis a idéia de que ela sempre
se posicionou dessa forma, omitindo as discussões levantadas em outros períodos e
a falta de uniformidade de seu pensamento. Isso se observa quando ela diz que,
desde o século I, a Igreja afirma que o aborto provocado é uma maldade moral,
ressaltando que esse pensamento é imutável. Diz ainda que: “O aborto direto, quer
dizer, querido como um fim ou como um meio, é gravemente contrário à lei moral:
Não matarás o embrião por aborto e não farás perecer o recém-nascido”.
No que diz respeito à ênfase biológica nas abordagens que pautam suas
discussões sobre o corpo do homem e da mulher, e a forma como a Igreja enfatiza a
vocação de cada um deles em seu discurso atual, podemos considerar que:
Sutilmente, confirmando essa visão, a Igreja católica representada pelo
Papa João Paulo II, em 1988, se pronunciou utilizando a visão dualista ao
dizer que os homens e mulheres são pessoas humanas iguais ao mesmo
tempo em que biologicamente há uma diferença básica, sendo a condição
de pessoa fêmea a diferença biológica, permanecendo assim, às mulheres,
a vocação da maternidade e a virgindade como vivência digna até se
casarem ou virgens consagradas (maternidade espiritual). Mais uma vez o
pensamento e a posição das mulheres foi desconsiderado, ignorando a sua
atual situação social (MORTARI, 2010, p.41).
61
O posicionamento da Igreja Católica é radicalmente contra ao aborto em
qualquer circunstância, pois, para ela, o feto é um ser vivo e a mulher tem como
vocação ser mãe. A radicalidade desse discurso pode ser vista no momento em que
está previsto, em seu catecismo, que a partir do diagnóstico pré-natal, dependendo
do caso, há eventualmente a possibilidade de se provocar um aborto. Isso significa,
nessa perspectiva, o equivalente a uma sentença de morte. Sobre isso, observa-se
que:
O aborto provocado, relacionado com as questões religiosas, permanece
condenado pela Igreja católica em qualquer circunstância e em qualquer
momento da gestação, não se comprometendo com a natureza filosófica no
que tange ao momento em que o concepto passa a ter alma, defendendo
incondicionalmente o direito à vida, fazendo-se valer do significado literal da
palavra “aborto” (MORTARI, 2010, p.43).
Diante disso, a Igreja mina a possibilidade do aborto, mesmo em caso de
anencefalia, fazendo com que mesmo aquilo que é previsto por lei (no caso do
Brasil) sofra duras críticas pela mesma, pois o vê como inadmissível em qualquer
circunstância.
Além disso, a Igreja Católica considera como vida o momento da concepção e
afirma que: “Desde o primeiro momento de sua existência, o ser humano deve ver
reconhecidos os seus direitos de pessoa, entre os quais o direito inviolável de todo
ser inocente à vida”. Antes mesmo de falar sobre o direito á vida, o Catecismo da
Igreja elenca as punições daqueles que contribuem com o aborto ao afirmar que:
A cooperação formal para um aborto constitui uma falta grave. A Igreja
sanciona com uma pena canônica de excomunhão este delito contra a vida
humana. "Quem provoca aborto, seguindo-se o efeito, incorre em
excomunhão latae sententiae" "pelo próprio fato de cometer o delito" e nas
condições previstas pelo Direito. Com isso, a Igreja não quer restringir o
campo da misericórdia. Manifesta, sim, a gravidade do crime cometido, o
prejuízo irreparável causado ao 'inocente morto, a seus pais e a toda a
sociedade27.
É interessante notar que todo o discurso da Igreja Católica gira em torno do
direito à vida do feto e em nenhum momento ela reflete sobre o estupro da mãe ou
seu risco de vida. Para ela, abortar é negar a um feto a existência.
27
A referida citação se encontra no atual CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. Índice analítico.
Aborto. Disponível em: <http://catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/a/aborto.html>. Acesso em
10/01/2012. 15:00:00. O conteúdo dessa abordagem catequética é basilar para o pensamento
contundente da Igreja Católica enquanto instituição frente o aborto, já que reforça a idéia de que o
início da vida se dá no primeiro momento da existência de um individuo, ou seja, na sua concepção.
62
Essa atitude cria grande resistência, uma vez que, em termos de prática
discursiva, o posicionamento firme da Igreja Católica gera uma polêmica dentro da
polêmica, principalmente com relação àqueles que consideram possível o
simultâneo apoio às teses pró-aborto e a permanência do status de católico. Com
isso, são atingidas as pessoas públicas, de qualquer um dos poderes, que dão
suporte ao aborto (NAZARÉ, 2008, p.45).
Em relação aos principais críticos da Igreja Católica, merece destaque
especial, as Católicas pelo Direito de Decidir, que se voltam especificamente para a
defesa das mulheres, como ver-se-á adiante.
2.3.3 O feminismo e as Católicas pelo Direito de Decidir como contraponto a Igreja
Católica
Entre o conjunto de atores sociais que exerce autonomia relativa no debate
sobre o aborto, merece destaque o movimento feminista, por desempenhar um
importante papel na sociedade brasileira, contrapondo-se consideravelmente à
Igreja Católica enquanto instituição. Assim, analisando a Igreja Católica e o
movimento feminista, percebemos que este é o mais forte contraponto no debate por
apresentar argumentos que funcionam como justificativa para que as mulheres
pratiquem o aborto.
Atuando há duas décadas no país, o discurso feminista apresenta-se
“compatibilizando o ideal individual de liberdade com princípios de ordem social”
(BARSTED, 1999, p. 64). Nos anos 70, a atuação do movimento feminista foi
marcada pela busca da superação do tabu, da ampliação dos espaços democráticos
na oposição ao regime e pela descompressão da política por parte do regime
autoritário. Há, portanto, uma marca feminista nos debates da democratização e na
arena da formulação de políticas públicas desse período, cujo lema mais em voga
era “Nosso corpo nos pertence”. Superando o ‘despossuimento’ de si, nos anos 80,
a luta do movimento feminista se estendeu, uma vez que a busca pela saúde das
mulheres e pela saúde reprodutiva adquirem espaço em seus debates juntamente à
ampla mobilização frente ao fim do regime militar. Nesse contexto, o foco nos
direitos reprodutivos catalisava cada vez mais a consciência crítica e promovia
árduas disputas do movimento feminista na esfera legislativa e executiva durante o
Regime Militar (ÁVILA, 1999, p. 100).
63
Os anos 90 foram marcados por um estabelecimento maior do movimento
feminista e por um debate mais ampliado a partir de eventos como a criação da
Rede Nacional Feminista de Saúde e Direitos Reprodutivos (1991), a criação do
Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), a Conferência Internacional de
População e Desenvolvimento no Cairo (1994), a IV Conferência Mundial sobre a
mulher em Pequim (1995), o I Encontro Feminista do Nordeste e a I Conferência
Nacional de Saúde e Direito da Mulher.
Com relação à amplitude do debate em torno do aborto, grande parte dos
estudiosos observam a presença de duas importantes conferências, ou seja, a V
Conferência Internacional de População e Desenvolvimento do Cairo (1994) e a IV
Conferência da Mulher em Beijing:
A Conferência do Cairo implicou na consolidação do vocabulário dos
direitos reprodutivos, ao passo que na de Beijing assistiu-se à adoção do
vocabulário dos direitos sexuais, definindo inclusive os direitos humanos
das mulheres em matéria de sexualidade. Nessa definição, os direitos
reprodutivos consistiram basicamente no reconhecimento do direito à
escolha voluntária no que tange casamento, relações sexuais e procriação,
incluindo o direito à decisão do número de filhos e do espaçamento entre
eles. Tais direitos deveriam ser, assim, garantidos pelas legislações
nacionais e pela respectiva implementação de serviços de saúde
reprodutiva, tais como serviços de contracepção, saúde materna e de
prevenção/tratamento de doenças sexualmente transmissíveis.
Especificamente com relação ao aborto, a Conferência de Beijing
estabeleceu que o tema deveria ser tratado, além dos direitos reprodutivos
individuais, como um grave problema de saúde pública (parágrafo 8.25);
acrescentou, além disso, a recomendação de que os países revisassem as
leis que penalizavam as mulheres que recorriam à prática. Com essas duas
Conferências, instaurou-se internacionalmente um momento político
oportuno para as discussões que, a partir de então, foram travadas sobre o
tema da descriminalização do aborto (CUNHA, 2007, p.43).
A relevância das abordagens presentes nessa conferência está na forma com
que nela “foram elaborados documentos referentes a programas internacionais de
ação que procuram configurar o debate sobre o aborto voluntário como uma questão
de saúde pública e não mais como um tema do campo criminal” (BIZZO, 2008, p.52).
Percebemos, por parte dessas conferências, uma busca por contribuir com os
direitos das mulheres, que fazem parte da pauta das Católicas pelo Direito de
Decidir. Sobre a influência das feministas, nesse debate, podemos considerar que:
Questões relativas ao âmbito privado como a reprodução e sexualidade
com liberdade e igualdade foram postas à discussão por movimentos
feministas que entenderam a necessidade de políticas públicas, elaboração
de leis e outros elementos de mediação das relações sociais. Entre os
direitos colocados pelos movimentos na arena nacional, como internacional,
incluem os direitos reprodutivos e também especificamente o aborto
(TAVARES, 2008, p.154).
64
Os argumentos fazem com que se instaure mundialmente o tema sobre a
descriminalização do aborto, que teve fortes reações contrárias por parte do
catolicismo.
Diante disso, percebe-se como os indivíduos, por interiorizarem valores
religiosos, constroem leis cujo argumento se volta para o direito à vida. Assim,
fundamentam o pensamento da religião a partir dessa noção.
Os argumentos das feministas nos anos 90 se referem ao “direito das
mulheres de ter controle sobre as questões relativas à sexualidade incluída em sua
saúde sexual e respeitos dessas questões, respeito à integridade das pessoas”
(CORRÊA, 1996, p. 42).
Para as feministas a não aceitação de tais argumentos se dá porque a
soberania do corpo feminino é considerada capaz de escandalizar tanto quanto o
suicídio, pois faz com que as mulheres escapem inclusive do mito da maternidade,
fazendo com que haja uma fissura do poder patriarcal (TIBURI, S/D).
Esses argumentos giram em torno das políticas públicas, ou seja, levam em
consideração as precariedades das mulheres que são desfavorecidas socialmente28.
Na visão feminista, os direitos sociais não têm sido atendidos, principalmente
para os mais pobres, por isso em suas abordagens há um discurso reivindicando
que os direitos humanos sejam colocados em universo mais inclusivo (CORRÊA,
1996).
As feministas, portanto, reconhecem as mulheres como portadoras de
necessidades específicas, criticando concomitantemente a dominação do sexo que
tende a hierarquizar as relações de gênero, de poder e que se constitui em uma das
bases fundamentais da ordem liberal.
Há, por parte desse grupo, um rompimento com a pretensa idéia de
neutralidade da opressão feminina e também com o ideal de sexualidade monolítico
estabelecido pelo pós-iluminismo, ao ver o corpo masculino como paradigma. Para
tanto, há uma desconstrução do modelo dos dois sexos e uma luta pelo respeito da
integridade sexual do outro, refletindo sobre os seus direitos sexuais.
Nesse debate, a Igreja Católica joga em um papel de opositor importante às
propostas feministas. Para a Igreja, o que está em jogo nesse debate não é
a defesa dos direitos individuais ou sociais, mas a defesa do dogma que
reforça a idéia de um padrão único de família e de uma sexualidade limitada
ao exercício da reprodução. A reprodução, por sua vez, deve se dar,
preferencialmente no âmbito das relações conjugais. Em nome desses
28
O item 3.2 tratará com mais detalhe sobre as consequências do aborto visto como crime no Brasil.
65
dogmas, a igreja rejeita o aborto, por considerá-lo crime contra a vida
(posição reforçada no código penal) (BARSTED, 1999, p. 64).
Observamos que a rigidez da lei e da Igreja Católica visam o feto/ bebê, fato
que incentiva as mulheres a cometerem cada vez mais o aborto de forma
clandestina e insalubre, acarretando em mortes de grande número de mulheres e
deixando de evitar que o bebê tenha direito à vida, pois:
A proibição legal do aborto está longe de conseguir a diminuição da morte
de mulheres e muito menos de inibir sua prática, além do que, sua
criminalização tira a autonomia das mulheres, sua liberdade individual, e,
ainda demonstra, o quanto a democracia brasileira está permeada por
valores religiosos que tentam impor seus dogmas aos indivíduos com maior
prejuízo às mulheres (TAVARES, 2008, p. 19).
Há, portanto, um contraponto entre o pensamento das feministas e da Igreja
Católica enquanto instituição. Neste contexto, o grupo Católicas pelo Direito de
Decidir merece destaque por ser um grupo que se denomina católico e que se
contrapõe consideravelmente ao pensamento clerical, trazendo argumentos
feministas como sustentáculo de seu posicionamento.
2.3.4 Resistências e dissonâncias dentro da Igreja: Católicas pelo Direito de Decidir
E entre os movimentos dissidentes29 que se declaram como católicos, merece
destaque o grupo Católicas pelo Direito de Decidir (Catholics For a Free Choice -
CFFC). Esse movimento, que surge nos anos setenta nos Estados Unidos, critica,
entre outras coisas, a maneira com que a Igreja Católica se posiciona frente o
aborto30.
No Brasil, o grupo das Católicas pelo Direito de Decidir (CDD/BR) foi fundado
em 1993 e se autodeclara como Organização Não Governamental que tem o intuito
de buscar a justiça social, o diálogo inter-religioso e a mudança dos padrões
culturais e religiosos que cerceiam a autonomia e a liberdade da mulher
principalmente no que diz respeito ao exercício da sexualidade e da reprodução. A
importância desse grupo está na forma que:
29
São movimentos que se contrapõem aos pensamentos propagados pelo Catolicismo da Igreja
Católica, mas que se declaram livres pelo direito de se considerarem como católicos, justificando tal
postura pela falta de consenso entre os religiosos católicos no decorrer dos séculos.
30
Todas as informações aqui mencionadas estão disponíveis no site oficial das Católicas pelo Direito
de Decidir:<< www.catolicasonline.org.br>>
66
[...] as Católicas pelo Direito de Decidir, uma organização composta por
membros/autoridades da própria Igreja, pesquisadores(as) da academia e
fiéis em geral, tem conquistado respeito e, a solidificação desta organização
adquiriu muito espaço, principalmente, nos momentos mais polêmicos,
quando surge um projeto de lei no Congresso ou Senado e, registre-se que
a argumentação, a fundamentação de suas defesas compõem uma de suas
mais importantes marcas (LOLATTO, 2004, p.50).
No ano de 1996, a CDD-BR, unindo-se a outros países da América Latina,
construiu a Rede CDDLA (Red Latino Americana de Católicas por el Derecho a
Decidir), com quem ela possui uma estreita articulação. Essa articulação também
pode ser observada entre a CDD-BR e a CFFC-USA, bem como com o grupo CDD-
Espanha31.
Um dos objetivos da CDD-BR diz respeito à busca por desconstruir, a partir
da própria tradição cristã, as bases culturais e teológicas que não permitem às
pessoas, em especial às mulheres, viver a sexualidade e a reprodução com
autonomia e liberdade.
Isso faz com que todo o argumento que o catolicismo romano trouxe para os
fiéis, por tantos anos, seja desconstruído por esse grupo, gerando uma imensa
divergência que ataca com veemência tal entidade não governamental (LOLATTO,
2004).
Além dessa bandeira de luta, a CDD/BR defende a autonomia das mulheres,
a diversidade sexual e a justiça social, preocupando-se ainda com a questão da não
violência e apoiando a laicidade do estado e sua autonomia frente aos grupos
religiosos. Além disso, apóiam também a aprovação de leis e de políticas públicas
que visem o apoio à cidadania das mulheres. Para tanto, elas buscam manter
presença no Congresso Nacional, realizar audiências com setores do executivo e do
judiciário e, junto a organismos internacionais (ONU e OEA), manter articulação com
movimentos sociais, entidades de classe, sindicatos, redes de caráter regional,
nacional e também internacional.
Não é a toa que no site da CDD/BR há críticas veementes em relação à
maneira com que as últimas eleições tiveram como motor a intolerância religiosa ao
31
Eentre os sites pertencentes a esses grupos temos: Catholics for Choice/
EUA <<http://www.catholicsforchoice.org/>>; Católicas por el Derecho a Decidir/Córdoba,
Argentina.<<http://www.catolicas.com.ar• Católicas>> por el Derecho a Decidir /Colombia
<<http://www.cddcolombia.org>> e o da Red Latinoamericana de Católicas por el Derecho a
Decidir <<http://www.catolicasporelderechoadecidir.net/>>.
67
acusar a candidata e atual presidenta Dilma Rousself de ser favorável ao aborto e
ateia (SCHWARTSMAN, 2010).
Além desse debate, questões polêmicas existentes no governo, como a da
Medida Provisória 55732, são amplamente discutidas e sofrem duras críticas. Em um
dos artigos existentes no site oficial da CDD/BR, há uma comparação do Brasil com
a Argentina e o Peru, pois enquanto nesses países há uma busca por aprovar a
descriminalização do aborto por parte do Senado, no Brasil há um processo inverso
a partir de uma política denominada de maternidade constrangida, afirmando-se na
referida Medida Provisória que: “Todas as gestantes brasileiras estarão sob a
vigilância do Estado e das forças mais reacionárias da sociedade para impedir que a
maternidade se realize em nosso país de forma digna do ser humano: como
resultado de escolha e decisão pessoal”.
Como forma de difundir alguns argumentos ético-teológicos favoráveis aos
direitos e à autonomia das mulheres, essa ONG atua nas redes sociais, como
Twitter e Facebook e também a partir de:
[...] (livros, cartilhas, revistas), peças publicitárias (cartazes, spots, outdoors,
folders, apresentações), material audiovisual (vídeos e programas de rádio),
mídia (site, artigos, entrevistas), pesquisas de opinião pública, arte e cultura
(espetáculos musicais, teatro, intervenção urbana, grafitti e outros)33.
Além disso, conforme é divulgado no site, esse grupo se ocupa ainda em
realizar pesquisas acadêmicas, oficinas, assessorias, debates e seminários, a fim de
que cheguem ao maior número de pessoas possível os argumentos ético-teológicos
pelo direito de decidir.
Há ainda por parte desse grupo uma busca por promover ações pautadas na
educação popular a partir da divulgação de CD’s e de inclusão delas em rádios
comunitárias. Dentre os temas por elas enfocados estão:
“Sexualidade: conversando a gente se entende", "Use camisinha sem
Culpa", "Sexualidade, anticoncepção e religião", "Planejamento Familiar" e
"Religião e Violência contra as mulheres" para veiculação em rádios
comerciais e comunitárias.
32
Mais detalhes em: Neves (2012) que analisa criticamente a Medida Provisória 557 e suas
consequências para as gestantes brasileiras.
33
Conferir em <http://catolicasonline.org.br/atividades/>. São os vastos materiais de divulgação que
permitem a esse grupo adquirir cada vez mais espaço e autonomia frente aos debates relativos ao
aborto, uma vez que a divulgação de seus ideais é feita com base em argumentos contundentes que
atraem o interesse de grande número de movimentos sociais que, como será visto no último capítulo,
unem forças para conseguir objetivos em comum como o da descriminalização do aborto.
68
Vale destacar ainda, que esse grupo busca formar multiplicadoras ao
disponibilizarem para as organizações e lideranças o uso de argumentos éticos e
teológicos como instrumentos em favor dos direitos das mulheres, principalmente no
que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos “enfrentando os
condicionamentos estabelecidos pela moral sexual religiosa”34.
A ética desse grupo condiz com a das feministas por serem elas
questionadoras da naturalização do cuidado materno, da heterossexualidade, e da
maneira que, no momento em que a ciência prima pelo direito do feto, ela esquece
os direitos da mãe que são, neste caso, irreconciliáveis. Além disso, elas são
observadoras de como os avanços científicos provocam um vácuo ético e uma falta
de normas (HOFMANN, 2008).
A forma como elas se declaram católicas faz com que o clero se revolte com
as atitudes dessa organização, divulgando que suas atividades não condizem com o
catolicismo romano, gerando um desconforto na Igreja enquanto instituição.
Contudo, o trabalho das Católicas pelo Direito de Decidir consegue gerar
identidade em mulheres que vivem em situações diferentes daquela que é proposta
pelo catolicismo romano. Seus argumentos fazem perceber que são frutos da
‘tímida’ humanização proposta pelos iluministas, que foram radicalmente criticados
pela Igreja Católica enquanto instituição, pois se contrapunham à sua moral.
De um modo geral, o papel das feministas na sociedade está na maneira com
que “os avanços conquistados pelos movimentos feministas são reflexos, também,
desses debates e da compreensão de gênero, que não restringe ou culpa homens,
mas que compreende o significado histórico da opressão patriarcal sobre as
mulheres” (LOLATTO, 2004, p.22). Com isso:
As desigualdades nas condições de saúde entre homens e mulheres
reportam às desigualdades no exercício dos direitos, principalmente
reprodutivos. O direito ao aborto seguro e aos demais direitos reprodutivos,
pautados na igualdade entre os gêneros, mobiliza as mulheres desde os
anos 60, por meio do movimento feminista. As lutas pela cidadania feminina
influenciaram o planejamento político das ações de saúde (SOUZA, 2009,
p.32).
Olhar para esse grupo permite que sejam percebidas as novas mentalidades
existentes na contemporaneidade, possuindo uma autonomia relativa na sociedade,
34
Conferir em:. <http://catolicasonline.org.br/atividades/>. Tais argumentos se baseiam
principalmente na idéia de que não há uniformidade no pensamento da Igreja Católica enquanto
instituição abrindo espaço para uma critica contundente em relação à moral sexual religiosa imposta
ás mulheres.
69
que não consegue se equiparar à da Igreja Católica. Assim, não é a toa que ele
busca funcionar como multiplicador, pois tem o objetivo de crescer e fazer com que
seus ideais atinjam maior número de pessoas, em especial, de mulheres.
2.3.5 A Igreja Católica e as organizações feministas: posicionamentos sociais e
autonomia relativas
Observando os inícios do cristianismo quando havia a presença de Igrejas
autônomas e a formação de uma Igreja centralizada, podemos considerar que, em
ambos os momentos, grupos divergiam entre si e que não havia homogeneidade
entre eles.
Nos Concílios, por exemplo, sempre havia grupos que disputavam entre si por
uma determinada idéia e venciam aqueles que tinham mais influência na sociedade
e maior poder de convencimento.
A heterogeneidade desses pensamentos pode ser observada nas bases
firmadas pelos chamados Pais da Igreja. Cada um deles priorizava uma determinada
questão e transmitia aquilo que para ele era verdadeiro. A base platônica,
aristotélica, estóica ou gnóstica revela como esses ainda se embasavam nos
pensamentos gregos, não dispensando aquilo que foi observado pelos antigos.
A mesma coisa acontece durante a Idade Média, quando a Igreja Católica
desempenha maior autonomia, pois durante suas várias fases, muitos pensadores e
centros de estudos surgiram, como os da Escola de Chartres faziam com que o
conhecimento destes padres, que se dedicavam com intensidade à teologia e à
filosofia, firmasse o pensamento da Igreja.
Contudo, é no pensamento de Tomás de Aquino que conseguimos observar
como, ao contrário do que se tenta passar, nem sempre o momento da concepção
se viu como aquele que é considerado como vida. Portanto, o aborto era visto com
maior maleabilidade, dependendo de quantas semanas de gravidez a mulher tinha e
se era menino ou menina.
É válido ressaltar que esse pensamento existe até o século XII. Já no século
XIX, tem-se o pensamento firmado de que é na concepção que surge a idéia de
vida.
70
Outra idéia existente nesse período, as práticas sexuais entre os casados,
são vistas por Agostinho, como sendo para procriação, mediante a tradição
platônica, que separa alma e corpo (SCHOTT,1996). Assim, a idéia de sexo como
pecaminoso advém deste período.
É após a Reforma Protestante (século XVI) que a Igreja Católica reage com
veemência contra aqueles que se voltam contra seus pensamentos e que rompem
com seus ideais. O caráter mágico das missas e dos rituais da Igreja Católica foi
algo duramente criticado nesse período.
No entanto, no século XVII, também incomodava à Igreja Católica a
propagação das idéias de humanização, subjetividade, individualismo e a busca pelo
conhecimento cientifico próprio do cartesianismo.
No século XVIII, a maneira com que os iluministas atacavam o catolicismo, a
partir de um ideal de racionalismo e de uma idéia de que o deísmo deveria ser a
religião a ser seguida, também desagradava à Igreja Católica por causa da sua
constante perda de espaço. Contudo, nesse mesmo período, os românticos deram
uma importante contribuição, ao demostrarem ser favoráveis ao ideal de religião
pregado pelo catolicismo.
Como forma de reagir contra todas essas situações, podemos destacar a
instituição do Santo Ofício, o empenho das ordens religiosas, principalmente na
busca pelo novo mundo, e também algumas modificações proporcionadas pela
Contrarreforma.
Não foi fácil para Igreja Católica perder todo o poder que tinha durante a
Idade Média e passar a disputar sua autonomia relativa com as demais esferas da
sociedade, em especial, com o Estado, que agora estava mais do que nunca
buscando exercer sua liderança com base nas idéias racionalistas.
No século XIX, a Igreja Católica buscava centralizar suas ações a partir do
ultramontanismo e passou a influenciar os bispos a não aceitarem idéias
racionalistas no seio da Igreja e certas práticas religiosas que eram contrárias ao
que a Igreja oficial pregava.
Neste contexto, Pio IX traz um posicionamento claro da Igreja em relação ao
aborto, declarando que se consideraria como vida a partir do momento da
concepção. Essa idéia fundamenta o Catecismo nos dias de hoje, e mesmo tendo o
conhecimento dessas mudanças, busca-se trazer para os fiéis que esses
posicionamentos sempre estiveram nessa instituição.
71
Para firmar seu pensamento, a Igreja mostra que quem comete aborto é
penalizado, pois está atentando contra a vida. Esse discurso é entronizado na vida
dos católicos de maneira que as comunidades carismáticas constroem músicas
relativas a esse tema e possuem um posicionamento radical neste debate.
Contrapondo-se a esse pensamento, as organizações feministas e,
especialmente, a ONG Católicas pelo Direito de Decidir, que está presente em
grande parte do mundo, desconstroem esses argumentos em defesa da mulher e
atuam a partir de publicações e de divulgações de matérias, utilizando-se de CD’s e
também de sites, cujo foco é o direito da mulher e a forma como as mais pobres são
sempre as mais prejudicadas.
A maneira com que essas mulheres se inserem na política e no direito e
rebatem as idéias da Igreja Católica enquanto ‘oficial’ faz com que elas atualmente
sejam consideradas como tendo autonomia relativa na sociedade, pois seus
argumentos têm gerado identidade nas mulheres e consciência crítica nas pessoas
que, ao lerem artigo como, por exemplo, a respeito das últimas eleições
presidenciais, repensem seus valores.
Assim, pensar a Igreja Católica como uma instituição que atravessou séculos,
sofrendo embates, críticas e dificuldades, e firmando seu pensamento a partir de um
discurso dogmático de que esta é a Igreja de Cristo, faz com que se note como ela,
apesar de todas as críticas, exerce uma forte autonomia, intrínseca ou extrínseca, e
se contrapõe consideravelmente aos argumentos feministas que também são
dotados de biopoder no debate sobre o aborto e é dele que tratará o próximo
capítulo. Portanto o capítulo quarto permitirá que se tenha uma noção das leis
existentes na sociedade brasileira, suas modificações no decorrer dos anos e o seu
caráter religiosos, a fim de que se possa compreender com maior propriedade as
tensões sociais existentes na sociedade em relação ao aborto.
72
3. ENTRE NORMAS E VALORES: O ABORTO NAS LEIS BRASILEIRAS
O presente capítulo firma aquilo que já foi discutido nos anteriores, partindo
para uma discussão específica sobre o aborto. Assim, após tomar conhecimento do
conceito de autonomia relativa, vida e do papel da bioética nesse debate e após
conhecer a instituição que vem desempenhando uma autonomia relativa em vários
setores da sociedade, será observada uma visão dos tipos de aborto existentes no
Brasil, no sentido jurídico, para depois analisar os fatos, valores e normas que
envolvem os mesmos.
Contudo, cabe aqui uma ressalva em relação ao aborto, pois ele está
diretamente ligado ao que se entende por infância na sociedade brasileira. Num
contexto mais amplo, percebemos que até a Idade Média a infância não era
valorizada. É a partir da imagem de Jesus menino presente na medievalidade que
se vai construindo, paulatinamente, a idéia de inocência infantil até o século XIX
(ARIÈS, 1981). No contexto brasileiro, a abordagem freyreana ajuda a compreender
como tal situação é perfeitamente ilustrada no Brasil colonial, tendo em vista que
havia uma distância social considerável entre os chamados párvulos e os adultos.
Todas essas questões servem para que seja observado que a valorização da
infância é construída histórica e socialmente e precisa ser situada a fim de não se
cometer anacronismos e de considerar como tais mudanças permitiram uma
valorização do bebê enquanto dotado de inocência e enquanto figura angelical.
Assim, de início, analisaremos o aborto legal, conhecendo as dificuldades por
parte da sociedade em aceitá-lo, mesmo sendo direito da gestante. Diante dos
posicionamentos radicais contra esse tipo de aborto, percebemos o discurso
religioso intrínseco nas falas dos vários setores da sociedade que se posicionam
contrariamente à prática do aborto. Como forma de ilustrar os casos de aborto legal
e suas rejeições, foram apresentadas algumas pesquisas, dentre elas, teses e
dissertações que dão uma noção de como esse tema vem sido encarado pela
sociedade.
Em seguida observar-se-á o aborto ilegal, tão debatido em estudos de casos
de algumas teses e dissertações, mas que apenas mencionam os valores religiosos
73
como influentes sem adentrar nessa discussão. Assim, limitam-se as correntes
teóricas de feministas que criticam com veemência a situação de mulheres pobres,
descriminadas pela sociedade em momentos de desespero total ao escolherem o
aborto como alternativa.
Não se pode deixar de observar, neste trabalho, a idéia de fato, valor e
norma, a fim de compreender como os valores religiosos movem a construção de
leis que se voltam com veemência contrariamente ao aborto, bem como a maneira
com que, mesmo em casos nos quais esses abortos são legais, são rejeitados pela
sociedade.
Como não basta apenas conhecer essa teoria, serão observados os valores e
tabus da sociedade brasileira, trazendo à tona autores que mostram o ideal que se
tinha de mulher, enquanto aquela que deseja ardentemente ser mãe e que se
contrapõe à pecadora Eva.
Pensando nesses valores e tabus, observaremos aqui a análise de algumas
autoras que se voltam para o estudo de gênero, enquanto categoria de análise, pois
compreendem com propriedade os valores que perpassam uma sociedade cujos
costumes são nitidamente patriarcais, e que culpa a própria mulher por cometer tais
atrocidades.
Nessa análise, observar-se-á o sentimento de culpa presente nas mulheres
que cometem o aborto, pondo em questionamento se esse não deriva da própria
idéia de pecado, existente nos costumes católicos.
Enfim, essa análise endossará a discussão e permitirá que se conheça a
autonomia relativa da Igreja no tema do aborto como sendo, muitas vezes, um rio
subterrâneo que não transparece nos discursos, mas que está presente no
sofrimento das mulheres que cometem aborto, dos médicos que julgam com
veemência aquelas que o praticam, recusando-se a atendê-las e até mesmo nas leis
criadas neste país que pensam mais no feto do que na mãe.
3.1 O ABORTO LEGAL
Analisando o aborto como interrupção da lógica reprodutiva, pode-se apontar
que este subdivide em casos que estão previstos pela lei e casos que não estão.
Contudo, é interessante mencionar que, mesmo nos casos em que o aborto é
74
respaldado legalmente, a sociedade muitas vezes não o aceita por questões
religiosas, éticas e morais. Isso ocorre porque “ele ainda constitui-se num ponto
nevrálgico nos temas sociais, mesmo quando nos referimos ao aborto justificado
juridicamente” (NÓBREGA, 2011, p.16). Sobre a dificuldade em admitir o aborto,
pode-se considerar que:
Como tem sido reiterado, os temas que envolvem a vida e a morte, o
começo e o fim da existência, afetam profundamente a consciência
humana, nos níveis mais profundos das convicções pessoais não é fácil
abordar esse problema em clima sereno e racional, sem a interferência de
fortes emoções e de posturas agressivas (FERNANDÉZ, 2000, p.39).
É difícil discutir não apenas sobre o aborto, mas sobre qualquer tema que
envolve o começo e o fim da existência, pois afeta a consciência humana. É preciso
um estudo profundo sobre as instâncias da sociedade a fim de entender sua
dinâmica e os fatores que fazem do aborto um tema constrangedor para grande
número de indivíduos.
As dificuldades em se tratar desse assunto são perceptíveis ao se observar
que, mesmo diante de todos os avanços da sociedade em direção ao maior respeito
aos direitos reprodutivos das mulheres, foi apenas em 1989, após anos de
reivindicação de grupos organizados por movimentos feministas, que a lei penal,
finalmente, tornou-se vigente e foram criadas condições para sua operacionalização
(WESTPHAL, 2009; WESTPHAL, 2006).
Tal conquista das mulheres se deu através da portaria nº. 682, de 26 de abril
de 1989. Essa portaria criou o primeiro serviço de aborto legal em um hospital
público, o Hospital Dr. Arthur Ribeiro de Sabóya, mais conhecido como Hospital do
Jabaquara.
A partir do que está vigente no código penal, pode-se considerar ainda que o
atendimento, em casos de violência sexual, deve se voltar por marcos expressos em
instrumentos jurídico-normativos, entre as quais destacam-se as normas
constitucionais, o código de ética profissional, as leis federais, as portarias
ministeriais, os tratados e, finalmente, os documentos internacionais de direitos
humanos (IPAS BRASIL, 2005, p. 25-92).
No que diz respeito ao direito das mulheres em realizar o aborto decorrente
de uma violência sexual, o Estado tem por obrigação protegê-las. No Comitê do
CEDAW (Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra
as Mulheres), pode-se constatar que “é discriminatório para um Estado-parte
75
recusar-se a fornecer legalmente os meios para a realização de determinados
serviços de saúde reprodutiva para as mulheres” (CEDAW, 1999).
Assim, a legislação nacional, nos casos em que é permitido o aborto,
entendeu que não se poderia punir criminalmente uma mulher que já sofreu a dor de
uma violência sexual, considerando que isso seria submetê-la a um tratamento
desumano e degradante. Portanto, o procedimento de interrupção da gravidez pode
ser realizado através dos serviços de aborto legal, que deveriam estar disponíveis
no Sistema Único de Saúde (SUS) (PIMENTEL, 2007, p. 159-180).
Há uma necessidade de informar a mulher sobre seus direitos e, em caso de
objeção de consciência, é preciso garantir a atenção ao aborto por outro(a)
profissional da instituição ou de outro serviço (WESTPHAL, 2009).
Não se pode negar o pronto-atendimento à mulher, independente do caso de
aborto. Com isso, busca-se garantir que sejam afastadas situações de negligência,
omissão ou postergação de conduta que violem a lei, o código de ética profissional,
bem como os direitos humanos das mulheres (BRASIL, 2005, p. 43).
Ainda que o artigo 43 do Código de Ética Médica obrigue o médico a cumprir
o estatuído no Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, este algumas vezes não é
cumprido, apesar desse artigo somente contemplar a possibilidade de interrupção da
gestação em duas circunstâncias, quais sejam risco de morte para a gestante e
quando a gravidez resulte de estupro. Diante disso, “Embora as mulheres tenham
direito a recorrer ao aborto nas condições legais citadas acima no Artigo 128 do
Código Penal, elas encontram inúmeras dificuldades e obstáculos na garantia deste
direito” (PÉREZ, 2006, p.17).
Grande número de médicos, seguindo a orientação de métodos de semiologia
que conseguem diagnosticar de maneira precoce a anencefalia fetal e, obedecendo
à decisão da gestante, podem realizar a interrupção da gestação nessa
circunstância. Dessa forma, cresce o número de decisões judiciais, autorizando a
prática de aborto nesses casos (SIQUEIRA, 2007).
Sobre essa interrupção da gestação, podemos considerar que é a partir do
desenvolvimento de exames pré-natais que foi possível detectar várias anomalias
que inviabilizariam a vida extra-uterina dos fetos como a anencefalia. Todavia, o fato
dessa identificação não ter sido observada na década da positivação do Código
Penal brasileiro é um dos prováveis motivos por não ser tido como um terceiro tipo
de aborto legal (FERNANDES, 2007).
76
Apesar de se observar que, em alguns casos, as leis referentes ao aborto têm
sido cumpridas, é relevante observar que, segundo Westphal (2006), mesmo em
casos nos quais a justiça assegura à mulher tal direito, o desconhecimento dos
médicos da rede pública acarreta no seu não cumprimento.
Assim, existe o temor dos médicos da rede pública que desconhecem
adequadamente o direito brasileiro, e isso faz com que muitos deles tenham receio
de serem legalmente incriminados ao realizarem o aborto (SAÚDE, 2009) A
vinculação a uma denominação religiosa de mais da metade dos médicos faz com
que esses se manifestem contrariamente à idéia do aborto, associando o mesmo a
um pecado imperdoável. Dessa forma, muitos profissionais da área da saúde da
rede pública, por motivos religiosos, desconhecimento da lei ou motivos pessoais,
alegam objeção de consciência. Sobre essa ausência de cumprimento da lei,
podemos considerar que “a proibição e a omissão do Estado são fatores que
agridem os direitos reprodutivos e agravam as condições de pobreza, condenando
milhões de brasileiros a conviver com o preconceito e a fatalidade” (ALVES, 2006, p.
1).
Tal situação faz perceber a relatividade da autonomia de cada uma das
instâncias sociais, de tal forma que a religião dos médicos interfere nitidamente na
própria aplicação da lei, já que, diante da fé que professam, muitos deles rejeitam a
prática do aborto mesmo quando este é legal, deixando muitas mulheres sem a
assistência que lhes é devida por direito.
Dessa maneira, podemos observar que a legalização do aborto, mesmo em
casos restritos, gera grande impacto social. Isso se dá devido aos valores morais
religiosos de grande parte dos brasileiros, que criticam toda e qualquer forma de
aborto. Dessa forma, para compreender essa dinâmica social é preciso observar a
teia de relações que envolvem essa temática, não se restringindo a nenhum agente
dominador.
3.2 O ABORTO COMO CRIME
Até aqui, discutimos o procedimento do aborto previsto pela lei em conjunto
com o estudo da bioética. Agora, analisaremos o aborto ilegal, a partir de pesquisas
realizadas ao longo de 20 anos de estudo sobre essa temática, que possibilitarão
77
observar quais são os principais casos em que ele ocorre e quais são as
dificuldades vivenciadas nas diferentes esferas sociais. Sobre a amplitude de tais
dificuldades, podemos considerar que: “Situações socioeconômicas e culturais,
estigmas, preconceitos, sentimentos e valores são fatores que acompanham o
aborto” (PÉREZ, 2006, p. 12)
Com isso, a “ilegalidade do aborto perpetua as iniquidades socioeconômicas
em que é praticado e faz com que sua real magnitude seja desconhecida e as
consequências para a saúde das mulheres obscurecida” (PILECCO, 2010, p.10).
Inicialmente faremos uma leitura do campo de pesquisa, voltando-nos para o
aborto no Brasil, para ter uma idéia de quais são as dificuldades enfrentadas por
esses estudiosos, além de procurar dados que possam ser usados como respaldo
na presente pesquisa. Sobre a vastidão desse campo de pesquisa, é destacado que:
O tema do aborto se manteve na comunicação cientifica durante os 20 anos
em que se produziram as fontes recuperadas, mas houve um crescimento
de 50% no número de publicações em 2004 e 2005, retornando-se ao
cenário do início da década em 2006. Uma análise do que foi publicado
nesses dois anos mostra um aumento na quantidade de estudos no campo
jurídico, em particular sobre o aborto(SAÚDE, 2009, p.43).
A temática do aborto ganhou maior repercussão, principalmente, após a
implementação do Sistema de Comitês de Éticas, Comissão Nacional de Ética em
Pesquisa (CEP/CONEP), pois, a partir daí, teve-se uma maior descrição sobre os
desafios éticos da coleta de dados (SAÚDE, 2009).
Vale destacar que as pesquisas sobre aborto, ao longo de 20 anos no Brasil,
sedimentam a análise sobre o aborto, mas tais pesquisas enfrentaram grandes
dificuldades pelo fato do pesquisador ter que possuir uma série de cuidados éticos
em relação aos entrevistados. Entretanto, na presente tese doutoral, tendo em vista
esse problema, não será utilizada a pesquisa de campo.
Pouco se sabe sobre o aborto ilegal, pois as mulheres que o praticam evitam
comentar sobre o assunto, certamente em razão da maneira com que a sociedade
encara as mulheres que o praticam. Há, porém, um esforço contínuo dos
pesquisadores em conseguir dados sobre esse tema polêmico e controverso.
Muitas mulheres têm dificuldades para falar sobre o aborto por medo da
denúncia. Esse fato é muito comum, mesmo quando o/a pesquisador/a afirma que
isso acarretaria na violação de princípios éticos fundamentais à saúde pública e à
profissão médica. Prova disso está na forma com que a pesquisadora Maria do
78
Carmo Araújo (2007, p. 25), ao trabalhar com esse tema em São Luiz do Maranhão,
afirma que “A ilegalidade que reveste o tema pode ter ocasionado a subestimação
do número de casos, tornando difícil à obtenção de informações verídicas”.
Considerando o aborto como sendo, segundo o Ministério da Saúde, um tema
na fronteira entre a lei e o tabu, observa-se que são os instrumentos de pesquisa
que determinam a qualidade dos dados. Assim, segundo o Ministério da Saúde
(2009, p. 17), as pesquisas para a apresentação de dados confiáveis utilizam:
[...] técnicas de urna; técnicas de resposta aleatórias; inquéritos domiciliares
com mulheres que sabidamente abortaram segundo relatos de prontuários;
entrevistas seqüenciais como forma de estabelecer vínculos de confiança; e
outras estratégias que buscavam expandir os limites impostos pela
criminalização do aborto.
Segundo dados do Ministério da Saúde (2009), a partir de um estudo
qualitativo com 11 mulheres processadas judicialmente por aborto induzido no ano
2000, 80% delas iniciaram o aborto com misoprostol, e cerca da metade foi
denunciada à polícia pelos médicos que as atenderam nos hospitais. É nítido,
portanto, que as mulheres não têm a garantia do sigilo durante a fase de
hospitalização (SAÚDE, 2009).
É importante destacar que o misoprostol é o medicamento mais utilizado, a
partir dos anos 90, para induzir o aborto. Assim, sua utilização é alvo de
especulações e se afirma que:
[...] há quem considere que ele foi difundido por farmácias populares, há
quem sugira que seu uso cresceu com a indicação obstétrica para indução
de parto. O fato é que a genealogia do misoprostol no universo das práticas
abortivas é uma história ainda a ser reconstruída (SAÚDE, 2009, p.35).
Não se sabe como as mulheres utilizam o misoprostol e se conseguem
realizar o aborto em suas residências. Sabe-se, porém, que a utilização do mesmo,
caso não acarrete o aborto, faz com que o bebê tenha a Síndrome de Moebius ou
Seqüência de Moebius (SM).
No entanto, no que diz respeito a sua função medicamentosa, no país, tal
medicamento está legalmente ligado ao tratamento de “úlcera péptica e tem sido
também, uma nova opção em Obstetrícia para amadurecimento cervical e indução
do parto, principalmente em gestações a termo, de alto risco, cérvix imatura e
necessidade da resolução do parto em curto prazo” (ARAÚJO, 2007, p.13).
79
As dificuldades em compreender como o misoprostol chegou ao Brasil
ocorrem também em relação à prática ilegal do aborto, sendo um tema bastante
delicado de se compreender. O que se sabe, em relação à prática do aborto, é que
durante os anos 1980, os métodos utilizados eram bastante antiquados, já que,
segundo dados do Ministério da Saúde, utilizava-se chás, ervas, sondas, objetos
perfurantes e líquidos cáusticos, além do recurso às leigas e às clínicas privadas.
Sobre as mudanças de métodos nas práticas de aborto pode-se considerar que:
Foi ao longo do século XX que se verificou, paulatinamente, uma
modificação dos métodos e das técnicas abortivas, onde as velhas poções
tradicionais de ervas e chás, cederam progressivamente diante de abortos
por meios mecânicos e com uso das sondas intra-uterinas (NACUR apud
VÁZQUEZ, 2005, p. 3).
De maneira geral, percebemos, a partir dos estudos mencionados, que não se
tem uma noção exata de quais são as consequências do aborto induzido em
condições ilegais para a saúde mental das mulheres. Não existem estudos voltados
para o universo rural ou ainda sobre os riscos envolvidos nos métodos abortivos.
Sabe-se pouco sobre os riscos de decorrências para os fetos envolvidos no
uso do misoprostol para realizar o aborto induzido. Assim, os estudos voltados para
a morbidade near miss indicam que o aborto induzido se mantém como uma das
maiores causas de morbidade materna.
Quase todas as mulheres são processadas através de denúncias dos
próprios médicos. Tal fator revela que o aborto é muito discriminado na sociedade e
que, apesar de sua denúncia ser uma violação dos princípios éticos do médico, isso
ocorre com frequência, apontando para uma reflexão sobre o que leva os médicos a
denunciarem tais práticas.
A situação de rejeição por parte de muitos médicos que se recusam a realizar
o aborto em qualquer circunstância faz com que a maioria das mulheres de baixa
renda se volte para a clandestinidade, correndo risco de vida, tendo em vista que:
“Dentre os principais problemas decorrentes do aborto clandestino e inseguro,
destacam-se a perfuração de útero, hemorragia e infecção (septicemia), que podem
acarretar diferentes graus de lesão à saúde, seqüelas e morte” (TESSARO, 2006,
p.11).
Segundo dados fornecidos pela revista Época, com pesquisas realizadas em
2008, quase 3 mil brasileiras estão na mira da Justiça por ter praticado aborto.
Dessas, 25 (vinte e cinco) já estão cumprindo pena.
80
A revista Época publicou no dia 12 de maio de 2008, que 2.800 fichas
médicas foram apreendidas no dia 13 de abril de 2007 em uma clínica de
planejamento familiar, no centro de Campo Grande/MS, onde aconteceriam abortos
clandestinos. Tais fichas estão nas mãos do juiz da 2a Vara do Tribunal do Júri de
Mato Grosso do Sul, Aloísio Pereira dos Santos. Entre essas fichas, foram
encontradas as de cinco mulheres que se submeteram a pena processual, a fim de
não irem a júri popular. Essas mulheres, segundo informações da revista, fazem
parte do maior processo conjunto que o país já teve contra mulheres que cometeram
aborto. Vale destacar que não houve pacientes encontradas no local, contudo,
serviram como prova do crime os exames positivos de gravidez e as fichas
apreendidas.
As mulheres apreendidas e que cumprem pena atualmente são quase todas
de baixa renda. A legalização do aborto é um tema controverso e polêmico e a
descriminação às mulheres pobres que cometem esse tipo de crime é bastante
recorrente.
A Igreja mantém seu monopólio frente às instituições sociais no que diz
respeito a temas como o aborto. Novamente pode-se considerar que os princípios
morais e religiosos estão provavelmente por trás de tais denúncias.
De acordo com pesquisas do Ministério da Saúde (2009), há um aparato da
situação caótica de grande número de mulheres que, por não terem seu direito
reconhecido, se utilizam de métodos antiquados para cometer o aborto. Sobre a
situação dessas mulheres observa-se que:
as mortes maternas, em sua grande maioria, são de mulheres, cuja
qualidade de vida já está marcadamente prejudicada pela dificuldade e de
acesso aos direitos básicos, tais como alimentação, educação, saúde,
assistência social, etc., que abortam clandestinamente em situação de risco,
seja recorrendo à auto-medicação de drogas abortivas, seja recorrendo a
“aborteiros” sem capacidades técnicas para interromper a gravidez em
condições de segurança. (EMMERICK, 2007, p.144)
Vale destacar que em casos legais e ilegais, sempre há médicos que se
opõem à prática do aborto, independente da situação em que ele esteja inserido.
Isso leva a reflexão sobre como o rumo dessa situação é decidido não apenas por
aquilo que está determinado pela lei, mas pelo que a sociedade considera como
lícito, passando assim pelos seus valores religiosos e morais. Contudo, apesar de
quase sempre se atribuir a culpa à mulher, é importante destacar que:
81
a decisão de realizar o aborto não é individual e sim um processo que
envolve fatores sociais e outros participantes, como a família e o parceiro.
Apesar da complexidade desse fenômeno social, observamos que a
sociedade tende à responsabilização individual da mulher por suas
‘escolhas reprodutivas’. Contrapondo esta redução da questão, no âmbito
dessa discussão, nossas indagações se centralizam nas questões sobre
violência, gravidez não desejada, gênero e arranjos familiares, incluindo a
participação do parceiro que influenciam na decisão de abortar
(CARVALHO, 2009, p.11).
Assim, é preciso ter uma dimensão maior de quem são as pessoas
responsáveis pela decisão de realizar o aborto, a fim de não incorrer no erro de
atribuir a culpa apenas às mulheres, de forma que toda a carga de culpa e de
ressentimento seja interiorizada apenas pelas mesmas. É notório como “A
experiência dessas mulheres mostra que o aborto não é algo simples de ser
realizado, traz enormes implicações para as suas vidas, como o preconceito, a culpa
e o desamparo, mas que ainda assim, foi assumido por elas enquanto uma
possibilidade” (REBOUÇAS, 2010, p.125).
A busca por se manter no emprego é apontada como um dos fatores que
levam a mulher optar pelo aborto, pois:
A gravidez pode representar um obstáculo para a mulher se manter no
emprego, como foi o caso de alguma das mulheres do universo estudado
que tiveram como interlocutor nessa decisão, suas “patroas”, já que
trabalhavam como domésticas, e uma das condições impostas para se
manter no emprego era não engravidar (CARVALHO, 2009, p.69).
Outro grupo de mulheres que busca o aborto como alternativa é o das
adolescentes. Isso ocorre geralmente porque “Nessa faixa etária uma gravidez
possui um impacto brutal, uma vez que obriga essas adolescentes a assumirem uma
postura precocemente adulta” (PILECCO, 2010, p.120).
Assim, pode-se ressaltar que: “o poder de decidir sobre a interrupção ou não
da gestação está associado a um projeto mais amplo de família, e que não é
individual, posto que depende das relações, da situação e do tempo, isto é, do
contexto, que a envolvem” (TUSSI,2010, p.125).
As dificuldades vivenciadas por tais mulheres podem ser constatadas ainda a
partir dos dados de uma pesquisa realizada pela Mestre em Enfermagem Zanety
Souza (2009,p.134), que observando em suas considerações finais conclui:
O aborto provocado acontece em um contínuo contexto de violência e sob
diversas formas; as mulheres do estudo relataram que sofriam privação de
liberdade, manipulação afetiva (violência psicológica), destruição de objetos
pessoais (violência patrimonial), lesões corporais (violência física): a
82
decisão de abortar é processual, resultado de um caminho de aflição
silenciosa.
Assim, é preciso observar como o aborto ilegal faz parte de um processo pelo
qual as mulheres, que estão sendo vitimas dos mais diversos tipos de violência,
veem nele a melhor saída. Contudo, não se procura atualmente compreender a
versão da mãe, mas só se pensa na vida que estava em seu ventre e que foi
impedida de nascer.
Conhecer essas pesquisas traz uma dimensão profunda do sofrimento gerado
pelo aborto, ouvindo a voz de mulheres que são silenciadas pela sociedade que as
oprime. É isso que alguns grupos têm tentado fazer, adquirindo grande dimensão e
fazendo conhecer não apenas aquilo que a religião, a mídia e a política determinam,
mas aquilo que está acontecendo no interior dessas mulheres. Pensando nisso, a
fim de contribuir com a forma de melhorar suas vidas é importante observar que:
[...] as ações voltadas à prevenção da violência sexual devem ser incluídas
nas estratégias de saúde sexual e reprodutiva dirigidas tanto às mulheres
quanto aos homens e, particularmente, à população jovem. O envolvimento
da escola, dos serviços de saúde e das instituições judiciais é fundamental
para a diminuição da vulnerabilidade programática e a consequente
diminuição do risco individual (PILECCO, 2010, p.104).
Diante disso, sensibilizar a sociedade para que se realizem ações que
pensem nessas mulheres de forma a ir além das aparências é uma medida
fundamental para diminuir os casos de violência contra elas.
Ao conscientizar a sociedade da amplitude desse debate e das inúmeras
causas que levam as mulheres a cometerem o aborto, passa-se a pensar em
maneiras de diminuir tais dificuldades e contribuir com suas vidas.
Romper os muros dos valores e tabus existentes na sociedade e expor dados
de dissertações e teses que revelam o sofrimento vivenciado por essas mulheres,
mostrando que suas decisões não são feitas individualmente, permite que se
humanize essa situação e que as pessoas consigam ir além do debate que envolve
o fato de serem favoráveis ou contrárias ao aborto, buscando políticas públicas que
contribuam com a diminuição da violência sofrida diariamente por mulheres e
adolescentes.
Muitas vezes, a falta de sensibilidade por parte da sociedade frente a essa
situação aumenta ainda mais a descriminação e sofrimento vivenciados por essas
mulheres, antes e depois de cometerem o aborto. Esse sofrimento pode ser
83
confirmado a partir da análise feita pela pesquisadora Bárbara Pérez (2006, p.69),
ao observar que suas entrevistadas apresentaram os seguintes problemas após o
aborto:
O adoecimento físico e psicológico também se fez presente, mostrando que
a experiência do aborto traz conseqüências traumáticas, com o
desenvolvimento da síndrome do estresse pós-traumático, que pode
acarretar sérios problemas para as mulheres quando não é diagnosticada e
tratada. Necessita-se, portanto, de um olhar por parte dos profissionais de
saúde de modo a dar a devida valorização a esta síndrome.
Diante disso, por mais que existam setores da sociedade que se voltem
contra essa situação, em defesa da mulher, seus argumentos certamente encontram
barreiras por causa da mentalidade católica impregnada na vida dos sujeitos e que
estabelece leis na sociedade.
Vale destacar ainda que valores e tabus são aquilo que faz com que muitas
pessoas tenham dificuldade em falar sobre esse assunto e se mostrem contrárias à
possibilidade de qualquer tentativa de legalização total do aborto. Diante disso,
reconhecemos a importância do valor para a construção da norma, dedicando um
item específico sobre o que motiva a construção de uma norma e o seu valor é
quem está no limiar da mesma.
3.3 A CONSTRUÇÃO DAS NORMAS: FATO, VALOR E NORMA
Analisando a teoria tridimensional de Reale (1994), percebemos que ela vem
complementar essa abordagem, uma vez que, a partir dela, temos a noção da
importância do fato, do valor e da norma, o que implica justamente em como a
sociedade se faz relevante na aplicação de uma determinada norma.
Não é por acaso que essa teoria foi reconhecida pela sua originalidade e seu
caráter internacional, já que, de maneira inovadora, aponta o fenômeno jurídico
como sendo fato social. Tal é a sua relevância que a teoria tridimensional de Miguel
Reale pode ser considerada como a inauguração de uma nova ontologia jurídica.
Assim, ele observa, em sua teoria, o caráter valorativo e interpretativo do direito.
Para melhor compreender esse caráter valorativo, nada melhor do que a própria
definição de Reale (1994), que afirma que o Direito é sempre fato, valor e norma,
para quem quer que o estude, havendo apenas variação no ângulo ou prisma de
pesquisa. A diferença é, pois, de ordem metodológica, segundo o alvo que se tem
84
em vista atingir. É o que Aristóteles chamava de "diferença específica", de tal modo
que o discurso do jurista vai do fato ao valor e culmina na norma; o discurso do
sociólogo vai da norma para o valor e culmina no fato; e, finalmente, podemos, neste
estudo, ir do fato à norma, culminando no valor, que é sempre uma modalidade do
valor do justo, objeto próprio da filosofia do direito.
Diante dessa teoria, temos a idéia que, no direito, não se deve observar
apenas a norma, ou seja, a punição para um determinado fato e sim o valor presente
na sociedade. É por esse motivo que é nítido, numa sociedade na qual valores
cristãos são arraigados, o preconceito diante do aborto, como já observamos
anteriormente. Isso acontece, principalmente por que:
A legislação não implica em silêncio: há tentativas de modificá-la, ampliando
seus permissivos ou restringindo-os; há tentativas de autorização e
desautorização de abortos (de fetos sem viabilidade extra-uterina) no
judiciário; além de haver ‘contestações mudas’ das mulheres, ou dos casais,
e de profissionais de saúde ao desafiar a legislação (ARNAUD, 2008, p.11).
A norma é bem clara e permite à mulher que foi estuprada ou que tem risco
de vida durante a sua gravidez cometer o aborto, mas concomitantemente, o valor
vem fazer com que nem sempre essa norma seja aplicada com tanta naturalidade.
Tal situação é explicável pelo discurso religioso presente nos valores da
sociedade. Diante deles, é perceptível como é possível uma lei tão nítida ser violada
com tanta frequência.
Se, no caso do aborto legal, há toda uma celeuma em relação à prática do
aborto, no caso do aborto ilegal, a situação é ainda pior, já que, como foi visto
anteriormente, as mulheres se negam a falar sobre o assunto e apenas com
pesquisas sigilosas se consegue alguns poucos resultados.
Contudo, as discussões de gênero, do direito da mulher, dos espaços que ela
vem ocupando na sociedade, certamente vêm paulatinamente modificando essa
situação, já que, cada vez mais conhecedoras de seus direitos, as mulheres estão
reivindicando seu espaço na sociedade.
Para compreender como os valores cristãos conseguem influenciar a
sociedade, mesmo diante da sua constante modificação, devemos analisar os seus
valores e tabus, a fim de compreender como decorrem de vários séculos de
repressão contra a mulher, numa sociedade machista e patriarcal.
85
3.4 OS VALORES E OS TABUS
Para compreender os discursos mais recentes da sociedade em relação ao
aborto, é preciso observar sob quais valores religiosos ela está envolvida. Como já
vimos, é na dinâmica da sociedade que se fundamentam seus modelos de
representação, seus valores e seus tabus.
Atualmente, na imprensa, católicos e protestantes se posicionam contra a
normatização da legalização do aborto. Com isso, surgem questionamentos sobre
os motivos que levam uma sociedade laica a interagir nesse debate, levando
tacitamente em consideração o discurso da religião.
Assim, é necessário trazer à tona os valores e os tabus que fundamentam o
discurso dos cristãos, não só em relação ao aborto, mas à própria utilização de
métodos contraceptivos e ao sexo antes do casamento.
Nessa sociedade, a mulher era vista como agente de satã. Nesse contexto, a
mulher era associada às forças da natureza, mediante o seu poder de fertilidade, ou
seja, de reprodução da espécie. Seu mistério provoca medo no homem por ela ser,
em sua percepção, instintiva e dionisíaca. Segundo Delumeau (2009), há uma
recorrência no final do período medieval, a associação entre a mulher e Eva, sendo
esta, sinônimo de perdição e de culpa.
Contudo, nesse contexto, outro arquétipo presente na sociedade, que se
contrapunha sensivelmente a Eva, era Maria, por revelar obediência, silêncio e
castidade. Maria representa consigo o temor ao pecado e a luta contra o demônio.
Isso pode ser observado ao se considerar que:
A maternidade era vista como o grande momento da vida da mulher, era a
função feminina e o dever de toda mulher normal gerar e conceber bons
filhos para a família, a sociedade e o Estado. Esta era a representação
feminina para os médicos que valorizaram o corpo da mulher em
decorrência de sua função reprodutora. Deste modo, as mulheres que de
alguma maneira se desviavam da imagem de mulher-mãe demandavam um
estudo clínico e penal à parte (VÁZQUEZ, 2005, p.59)
Diante disso, a mulher, de uma maneira geral, é definida por suas
características ditas biológicas, ou seja, sensibilidade, fragilidade e, em especial,
pela sua capacidade de gerar filhos. Com os avanços científicos, essas
características passaram a ser mais estereotipadas. Os progressos da ciência e da
86
medicina exigiram da mulher, especialmente, no quesito maternidade (REBOUÇAS,
2010). Assim, é preciso se observar:
O papel “natural” da mulher como sujeito-mãe, inscrito também no amor
conjugal e na família heterossexual, seria colocado em perspectiva,
passando a ser compreendido como imerso em práticas discursivas
propriamente localizadas e passíveis de transformação, sendo questionada
também a sua pretensa universalidade. A maternidade como processo
natural e destino social da mulher seria posta em xeque (CUNHA, 2007,
p.31).
Através da Bíblia e dos dogmas da Igreja, o arquétipo de Maria molda os
costumes da modernidade e de uma sociedade patriarcal e misógina. Assim, esse
modelo de mulher se torna exemplo para a sociedade européia, na qual cresce a
devoção mariana que é levada para o contexto das colônias, ou seja, para o Brasil
(ROSBLE, 2006; SCOTT,1990). Diante disso, passa-se a afirmar que o destino
natural e social de ‘dar a vida e cuidar da vida’ é enfatizado ao passo que se negava
o desejo sexual, afirmando-se um ideal de corpo sem mácula em que a sexualidade
conformaria um palco de profundas contradições (CUNHA, 2007, p.138).
O silêncio feminino esteve na sociedade por muitos séculos e foi reiterado
pelas religiões, manuais de comportamento e sistemas políticos. Ao descrever essa
conduta, que precisava ser obtida das mulheres, a autora traz valores encontrados
na figura de Maria como essenciais para a postura feminina no século XIX e início
do século XX:
Todavia, sua postura moral é a escuta, a espera, o guardar das palavras no
fundo de si mesmas. Aceitar e conformar-se, obedecer, submeter-se e
calar-se. Pois este silêncio, imposto pela ordem simbólica, não é somente o
silencio da fala, mas também o da expressão, gestual ou escrituraria. O
corpo das mulheres, sua cabeça, seu rosto devem às vezes ser coberto e
até mesmo velados.” (PERROT,2005, p.10)
Escuta, espera, conformação e silêncio são posturas fundamentais do
comportamento da mulher numa sociedade patriarcal e androcêntrica. Os gestos e a
vestimenta também precisam ser observados cautelosamente (PERROT, 2005).
Sobre essa visão androcêntrica, Schüssler Fiorenza (1992) destaca em sua
abordagem que, nos textos androcêntricos, a masculinidade é vista como a norma e
a feminilidade como um desvio da mesma, uma vez que, grande parte dos
indivíduos perpetua o preconceito e a exclusividade machista.
Ao realizar um estudo voltado para a conduta feminina narrada nas cartas
pastorais e para a vestimenta das mulheres, Ströher (2006, p.124) destaca que:
87
A roupa está ligada ao conhecer, ao aprender e ao ensinar - aos saberes. O
saber conformado precisa de corpos controlados e formatados. A roupa é
parte inerente não apenas do controle, mas também sobre o corpo. A
vestimenta não é somente uma forma de cobrir o corpo, é também uma
forma de mostrá-lo.
A moral presente na maneira de vestir, na conduta e na ética das mulheres
também fez parte do contexto brasileiro. Essa situação pode ser explicada, ao se
levar em consideração que, no Brasil, houve a influência da devoção a Maria
advinda da Europa.
Dessa maneira, estavam presentes nos valores desta sociedade, os conceitos
de silêncio, castidade e obediência, próprios da mariologia tradicional. Daí a nítida
repressão que as mulheres sofrem até hoje e a dificuldade de encarar temáticas
como a violência doméstica e o aborto. A conduta da mulher, no contexto brasileiro
colonial e também imperial, é descrita por Falci (1997, p.151) ao afirmar que:
Raramente aprenderam a ler e quando o fizeram foi com professores
particulares, contratados pelos pais para ministrar aulas em casa. Muitas
apenas conheceram as primeiras letras e aprenderam a assinar o nome.
Enquanto seus irmãos e primos do sexo masculino liam Cícero ou Virgilio,
recebiam noções de grego e do pensamento de Platão e Aristóteles,
aprendia, ciências naturais, filosofia, geografia, enquanto, elas aprendiam, a
arte de bordar em branco, o crochê, o matiz, a costura e a musica.
A partir da descrição de Falci (1997), percebemos uma disparidade entre a
educação dos homens e das mulheres. Além disso, as atividades para as quais elas
se voltavam eram todas do lar. Assim, tais ensinamentos contribuíam para que as
mulheres fossem, segundo os padrões da época, boas esposas. Tal visão reflete a
maneira com que: “O androcentrismo gerou uma teologia patriarcal, diferenciando
severamente homens e mulheres, relegando a estas o segundo plano na ordem
social dos direitos e deveres. Somente aos homens era permitido a interpretação e
revisão da Bíblia” (MORTARI, 2010, p.39).
Constatamos ainda que a educação, nesse período, estava voltada para o
casamento e isso era uma preocupação geral dos pais para com suas filhas,
independente de serem ricas ou pobres. As moças ricas deveriam casar logo na
adolescência e apenas corriam o risco de não se casarem se não encontrassem
alguém com o mesmo nível social (FALCI,1997).
Vale destacar também que a relação sexual só era permitida com o objetivo
da procriação. Segundo Del Priore (1994), em um registro atribuído ao padre Manuel
88
de Arceniaga, no sec. XVII, lê-se que a mulher era a causa central da expulsão do
paraíso terrestre e que podia resgatar o gênero humano do vale de lágrimas em que
braceja, pois chamava para si a permanente tarefa da maternidade. Para tanto
bastaria casar, procriar, batizar e educar na fé cristã os seus rebentos. Assim ao se
privar das incomodidades da gravidez, a mulher é vista como aquela a quem cabe a
responsabilidade de salvar, no seu papel de boa mãe, o mundo todo.
Esse tipo de pensamento está fundamentado na visão tomista e agostiniana,
uma vez que reforçam a idéia de que a conservação do gênero humano depende da
sexualidade. Para Agostinho, o uso da sexualidade pode ser considerado adequado
e sem pecado, caso esteja destinado à procriação humana (GRACIA,1998).
Os valores e tabus seguem para a posteridade, uma vez que, em 1968, foi
publicada a Encíclica Humanae Vittae, de autoria do papa Paulo VI, que proíbe os
católicos de usarem métodos contraceptivos ou de fertilização artificial,
estabelecendo uma forte crise entre aquilo que a Igreja estabelece e o que os fiéis e
teólogos executam.
Vale destacar ainda que na Instrução “Donum Vitae”, assinada em 1987,
confirma-se a vinculação entre procriação, sexualidade e ato conjugal e se condena
a utilização de qualquer método contraceptivo ou de fecundação assistida, já que
considera a procriação como finalidade do matrimônio (SGRECCIA, 1996).
Enfim, há valores e tabus presentes na sociedade brasileira que permanecem
até os dias atuais. Dessa forma, podemos ter uma idéia daquilo que fundamenta os
discursos de alguns médicos e dos políticos, que está basicamente apoiado em
fundamentos religiosos. Confirma-se com isso a idéia de interação entre os agentes
dominantes desenvolvida por Bourdieu (2002).
3.5 O ABORTO E AS INSTÂNCIAS SOCIAIS
O aborto, neste capitulo, é analisado com base no contexto brasileiro, pois se
observa inicialmente seu caráter legal, para depois trazer à tona as dificuldades do
aborto ilegal.
Contudo, quanto a essas questões, observamos ainda que, mesmo em casos
em que o aborto é legal, a religião influencia com sua autonomia relativa, tanto o
89
setor jurídico, como o da saúde, fazendo com que as mulheres não consigam fazer
valer seus direitos.
Diante desse fato, observamos como a construção das leis não pode ser vista
sem se considerar o valor da sociedade sobre um determinado fato. Com isso, o fato
é posto e, mesmo a norma sendo clara, os valores religiosos ainda determinam o
seu cumprimento ou não. Daí a importância de estudar o pensamento de Miguel
Reale (1994) sobre esse assunto, pois constrói toda uma discussão em volta dessa
trilogia.
Pensando na importância de tais valores para a sociedade na construção das
leis, abrimos uma discussão sobre valores e tabus, mostrando como a idéia de que
toda mulher quer ser mãe demoniza aquelas que não se comportam dessa forma, e
percebendo que todo o discurso voltado para a defesa da vida tem como
fundamento esse preconceito.
No século XIX, por exemplo, se identificou como vida o momento da
concepção, condizendo com o período da definição do dogma da Imaculada
Conceição que declara toda a pureza de Maria, mãe de Jesus, exemplo de mulher
para a teologia patriarcal.
Ao olhar os valores e tabus, identificamos, a partir de autoras da teologia
feminista, como elas veem a existência de dois tipos de mulheres, ou seja, Eva e
Maria. A santa e a pecadora penetram o imaginário da sociedade de forma que haja
uma visão totalmente negativa daquelas que cometem o aborto, fazendo com que
muitos médicos se recusem a fazê-lo, mesmo nos casos em que é legalmente
aceito.
No caso específico do aborto ilegal, vimos que, além dessa dificuldade de
aceitação pela sociedade, o grande número de morte de mulheres faz com que se
observe como as mais pobres se voltem para clínicas clandestinas em condições
inóspitas. Isso acontece porque, embora a lei garanta a assistência médica quando
elas estiverem em processo de aborto, mesmo quando são aceitas pelos médicos
para finalizar o procedimento, grande parte dos médicos se recusa a atendê-las.
A partir de trabalhos realizados com mulheres que cometeram aborto,
percebemos ainda o constrangimento das mesmas e como elas também
interiorizaram valores religiosos e sofrem após seguir uma conduta contrária a seus
próprios princípios e costumes.
90
Sofrimentos, dores e decepções marcam a vida dessas mulheres, já que o
conceito de dignidade humana é restrito ao feto ou bebê. Essas mulheres, que são
vistas como Eva, são rejeitadas pela sociedade e quase sempre assumem sozinhas
a responsabilidade do ato.
3.6 ENTRE A LEGALIDADE E A CRIMINALIDADE: COMPLEXIDADE DO DEBATE
SOBRE O ABORTO
Analisando o aborto nas várias instâncias sociais, observando como a
influência da Igreja Católica perpassa esses setores, ora intrinsecamente, ora
extrinsecamente, constatamos como a autonomia relativa de cada grupo tem muito
do pensamento católico romano.
É por isso, que logo no início deste trabalho, enfatizamos a importância do
conceito de autonomia relativa, pois ele revela como os vários setores da sociedade
exercem relativamente uma autonomia sobre o aborto, fazendo com que ele seja
encarado pela sociedade a partir daquilo que trazem a mídia, a religião, os médicos,
o Estado e o Poder Judiciário.
No entanto, a surpresa maior foi quando se constatou, a partir de uma análise
hermenêutica, como a religião está entrelaçada com esses vários discursos e como,
ainda hoje, o Papa tem grande influência na sociedade, mediante, entre outras
coisas, a sua grande exposição midiática.
A vida foi aqui analisada a partir de autores que se voltam para o seu
surgimento e também a partir dos que se voltam para o processo de formação do
ser humano. As idéias mecanicistas e vitalistas foram trazidas como maneira de
observar o homem de uma forma mais cientificizada ou levando em consideração
aspectos humanizantes como o próprio nome já diz.
Além disso, observamos a produção de conhecimento dos indivíduos
classificados em sensitivos, que se baseiam nas sensações provocadas pelos
sentidos do bebê, imaginativos, que se baseiam nas fantasias existentes na
memória de uma pessoa e, por fim, científicos que se baseiam na organização de
cada uma dessas idéias.
Fez-se relevante analisar o processo de formação do indivíduo no ventre da
mãe, pois é ele que fundamenta o discurso pautado na dignidade humana. Assim,
91
como se chegou a um consenso científico no que diz respeito à evolução contínua
do indivíduo, este vem fundamentando o discurso contrário ao aborto.
Tal discurso, no entanto, possui um forte caráter religioso, tendo em vista que,
na bioética, os discursos em torno da dignidade humana quase sempre falam que o
ser humano é imagem de Deus. Para ilustrar como a bioética lida com os avanços
científicos, aparecem aqui os seus quatro princípios, ou seja, beneficência, não
maleficência, autonomia e justiça.
A importância de cada um desses princípios está na maneira com que a
bioética valoriza o paciente, buscando ir além da não maleficência, ao exigir a
beneficência por parte da área da saúde em relação aos indivíduos e o respeito de
sua autonomia. No entanto, o conceito mais importante, porém mais problemático, é
o de justiça, tendo em vista que há uma nítida distinção de pessoas, de modo que
aqueles que são mais pobres não têm os mesmos privilégios que os mais ricos.
Conhecendo todos esses conceitos, buscamos compreender a história da
Igreja Católica sem cair em contradições, pois ela mesma, na figura do Papa, tem o
costume de afirmar que sempre manteve o mesmo discurso em defesa da vida.
Assim, observando os inícios do cristianismo, percebemos as diversidades
existentes nas próprias comunidades. Tais diferenciações não terminam no
momento em que as Igrejas deixam de ser autônomas para serem una e
centralizadora, principalmente a partir de Constantino.
Essa heterogeneidade pode ser observada nas divergências existentes nas
opiniões presentes nos Concílios, bem como na forma com que diversos pensadores
denominados Pais da Igreja embasaram o pensamento do catolicismo de forma
discordante.
Até mesmo na Idade Média, quando a Igreja Católica demonstrou um poder
bem mais consolidado, percebemos as divergências entre os grupos, e, com o
próprio surgimento do fim da Idade Média, a existência de indivíduos que se
opuseram veementemente a certos abusos existentes no seu seio.
É nesse período que existe uma falta de clareza em relação ao início da vida
e, consequentemente, uma maior tolerância em relação à prática do aborto.
Entre os séculos XVI e XVIII, a Igreja Católica sofreu ataques de todos os
lados, buscando manter o seu poder, reagindo com bastante rigidez através da
instituição dos processos inquisitoriais, como também de uma lista de livros
proibidos.
92
A Igreja Católica, nesse longo período, combateu contra três frentes: os
reformadores, os cartesianos e os racionalistas. Tais grupos tinham como
características similares o racionalismo, o individualismo e a desmistificação dos
rituais. Em compensação, no século XVIII, a Igreja Católica contou com o apoio dos
românticos que passaram a valorizar justamente o caráter mágico dos rituais.
No século XIX, no entanto, a Igreja Católica tem um posicionamento claro
com relação ao aborto, a partir do Papa Pio IX que reconheceu que a vida existe
desde o momento da concepção. Nesse período, a Igreja Católica, com o
ultramontanismo, ataca as idéias mais liberais e rejeita o racionalismo instalado no
seio da Igreja.
O posicionamento radical contra o aborto vai ser endossado nos dias atuais e
o Catecismo tentará passar a idéia de que a Igreja sempre pensou assim, a fim de
que suas idéias tenham legitimidade para os seus fiéis.
No entanto, a Igreja Católica sofre o ataque de várias frentes, chamadas por
alguns estudiosos de pós-modernas, entre as quais está o grupo das Católicas pelo
Direito de Decidir, que pauta sua discussão nos direitos reprodutivos e sexuais das
mulheres e que se sensibiliza para a precariedade das clínicas às quais as mais
pobres recorrem.
Essas mulheres são bem articuladas e costumam divulgar o seu trabalho na
internet, em publicações acadêmicas e para o público em geral, argumentando
também com políticos e com o Setor Judiciário, trazendo em seus sites temas atuais
e debates interessantes, com posicionamentos firmes e fortemente contrários às
determinações do catolicismo romano, apesar de reivindicarem o direito de serem
consideradas como católicas. Na sua vertente brasileira, o grupo não está isolado,
mantendo constante diálogo com os demais, fortalecendo assim a propagação de
seus pensamentos.
Após conhecer um pouco da história do catolicismo, fazendo menção das
Católicas pelo Direito de Decidir e ter preparado previamente o leitor pela
elaboração dos conceitos de vida, bioética e autonomia relativa que endossam este
trabalho, buscamos trazer, no contexto brasileiro, o aborto legal e o aborto como
crime, sem deixar de observar como em ambos os casos há uma dificuldade
considerável de aceitação por parte da sociedade.
O aborto legal, permitido em caso de risco para a vida da mãe ou de estupro,
nem sempre é aceito com tranquilidade. Isso se justifica pela forma como a norma
93
não pode ser vista de maneira isolada, pois ela é aplicada dentro de um contexto
dotado de valores.
Vários trabalhos que se voltam para esse tema veem demonstrando como a
sociedade tem repugnância pelo ato de abortar, o que pode se justificar pela
maneira com que os católicos, na figura do Papa, veem o mesmo como forma de
assassinato e de um desrespeito à dignidade humana, tão enfatizada no discurso da
bioética.
A situação piora consideravelmente quando se trata de casos de aborto sem
apoio legal, pois alguns médicos se recusam a dar continuidade aos procedimentos
iniciados em casa a partir de remédios, dando como justificativa a sua religião.
Assim, o próprio sofrimento das mulheres que cometem o aborto revela que
os valores religiosos estão por trás de seus discursos e que os valores e costumes
inquietam as mesmas.
Pensando nisso, buscamos, neste estudo, compreender, além da trilogia de
Miguel Reale pautada no fato, valor e norma, os valores e tabus ainda existentes na
sociedade brasileira, como forma de pensar os posicionamentos das pessoas frente
ao aborto e ao próprio sentimento de culpa e dor por parte dessas mulheres.
A partir de toda essa análise hermenêutica, constatamos como a Igreja
Católica move os discursos das pessoas e ainda exerce, no mundo atual e
secularizado, uma grande autonomia, que pode ser verificada nas entrelinhas do
discurso e nos pequenos gestos que determinam a construção de leis.
94
4. O ABORTO NO DIREITO ESTATAL BRASILEIRO E COMPARADO
Após analisar como a Igreja Católica pensa o aborto, percebemos qual é a
sua visão sobre o mesmo e que autonomia relativa ela exerce no seio da sociedade,
buscando compreender a sua autonomia relativa no sistema jurídico. Para tanto, faz-
se necessário a compreensão dos princípios basilares do sistema jurídico brasileiro
e da forma com que a Igreja Católica intervém, desde o período colonial, direta ou
indiretamente em sua estrutura.
O Direito estatal brasileiro está originalmente fundamentado em alguns
princípios de Ordenações como as Afonsinas, Filipinas e Manuelinas. Assim, nesta
pesquisa, faz-se necessário observar a existência de princípios religiosos em cada
um deles, já que as Ordenações ainda são consideradas fundamentais para as leis
do sistema jurídico brasileiro, pois compuseram suas leis, tanto no período colonial,
como também no imperial.
Em seu processo de formação histórica, o direito estatal brasileiro incorporou
também idéias liberais do direito europeu dos séculos XVIII e XIX. Assim, na sua
aplicação, ele se baseou em um direito oligárquico e burguês, já que manteve
relações de nepotismo, preconceito de classe e patriarcalismo. É notória, portanto,
em cada regra determinada pelas Ordenações Régias a busca por privilegiar
interesses de alguns grupos dominantes da sociedade, como a própria Igreja
Católica e os donatários, entre outros.
Essas relações de nepotismo, preconceito de classe e patriarcalismo
presentes no direito mostram que o sistema jurídico brasileiro possui também uma
autonomia relativa na sociedade e que, interagindo com ela, atende-se ao interesse
de grupos dominantes em contraposição aos dominados (BOURDIEU, 2002).
O Direito estatal brasileiro é constituído, desde o período do Estado Novo de
Getúlio Vargas, pelo Código Civil e pelos Códigos Penal e Processual Penal. Assim,
à medida que são repensados e adequados aos padrões sociais, eles vão sendo
gradativamente estabelecidos e paulatinamente vão sofrendo consideráveis
modificações.
95
Assim, paulatinamente, os valores incutidos nos Código com grande
veemência vão se diluindo, mas não deixam de ser contemplados nas entrelinhas do
discurso e, quando não são contemplados, são reivindicados com grande força pela
Igreja Católica e pelas outras denominações religiosas.
Tanto o Código Civil, como o Código Penal, tratam, indiretamente e
diretamente da temática do aborto, pois enquanto o primeiro reforça a idéia do
direito à vida, desde a concepção do indivíduo, o segundo determina as punições
aos indivíduos que praticam o aborto ou que induzem as mulheres a praticá-lo,
estabelecendo quais tipos de aborto são admissíveis na sociedade, ou seja, em
casos de estupro ou risco de morte da mãe.
A constituição dessas leis tem um fundo religioso notório, sendo possível
compreendê-las ao observar, de maneira geral, em que artigos tais valores estão
incutidos, para depois observar como a temática do aborto, em ambos os casos, é
imbuída de valores morais presentes nas religiões. Contudo, não se pode deixar de
observar as mudanças trazidas pela sociedade secularizada, pois assim percebe-se
como ela absorve implicitamente os valores religiosos.
Além disso, após tais valores serem contemplados, é preciso observar, no
cotidiano dessas sociedades secularizadas, como a religião ainda exerce forte
influência nos debates mais polêmicos do país. Para tanto, um olhar sobre o
Supremo Tribunal Federal se faz necessário, pois nele, a Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, mesmo diante da laicidade do Estado, faz questão de se posicionar
com veemência, pressionando os políticos a terem um pensamento religioso frente a
questões polêmicas como o aborto. Também será observado o caráter religioso
presente nos próprios políticos, principalmente naqueles que pertencem à bancada
evangélica.
Assim, considerando que há uma série de fatores que fazem com que o
sistema jurídico brasileiro pense de uma maneira específica a temática do aborto e,
com isso, exerça uma autonomia relativa, analisaremos, neste capítulo, cada um
deles por serem fundamentadores na construção das leis relativas ao aborto.
96
4.1 INFLUÊNCIA PERSEVERANTE DA IGREJA SOBRE O ESTADO E SUAS
NORMAS
A influência da Igreja é perceptível na estruturação legal do Estado e grande
parte do aparato jurídico brasileiro, fundamentando-se nas normas existentes a partir
das ordenações reais que atuaram entre os séculos XV e XVII.
Assim, para compreender a influência da Igreja na estruturação legal do
Estado, precisamos observar como as ordenações reais trazem consigo valores
religiosos que são formadoras de todo o aparato jurídico brasileiro, mesmo que de
maneira implícita.
As Ordenações reais que fundamentaram o aparato jurídico foram as
Afonsinas (1446), Manuelinas (1521) e Filipinas (1595). Todas elas contribuíram
muito para a estruturação do direito estatal brasileiro. Podemos considerar a priori
que as ordenações:
[...] foram compilações jurídicas organizadas pelos monarcas da época
(séculos XV, XVI e XVII), com o intuito de reunir em um só corpo legislativo
as diversas leis extravagantes e outras fontes de direito, que por estarem
avulsas, tornava-se muito difícil a correta aplicação do direito (ANDRÉ,
2007, p.2).
Conforme André (2007), as Ordenações são compilações de leis que estavam
avulsas e que, por isso, tinham dificuldades de serem aplicadas. Ao se fazer a
compilação de cada uma delas, houve uma facilitação de sua aplicabilidade
cotidiana.
As Ordenações Afonsinas fazem parte da grande compilação de leis esparsas
em vigor, que foram criadas no reinado de Dom Afonso V. Os cinco livros que
compunham tais Ordenações continham direcionamentos relativos aos bens e
privilégios da Igreja, aos direitos régios e a sua cobrança pela jurisdição dos
donatários, às prerrogativas da nobreza e também à legislação especial para judeus
e mouros (PAIVA,2007).
É interessante notar que as Ordenações Afonsinas estavam preocupadas em
resolver problemas de ordem econômica e tensões sociais quanto aos grupos que
exerciam suas autonomias relativas na sociedade, ou seja, a Igreja Católica, a
nobreza, os donatários e os próprios judeus e mouros. Assim, é perceptível que
97
esses grupos exerciam grande autonomia nas relações de poder entre os indivíduos,
principalmente, entre dominantes e dominados.
Outro fato interessante nas Ordenações Afonsinas diz respeito à existência de
livros dedicados ao direito civil e às questões penais, pois provavelmente serviram
de base para o aparato jurídico atual, ou seja, é importante considerar que todos os
itens mencionados no Código Civil e no Código Penal, apesar de suas
remodelações se apropriarem de leis já existentes nesse período, vão se adequando
ao contexto em questão e às novas relações sociais (ANDRÉ, 2007).
No ano de 1514, as Ordenações Manuelinas foram publicadas. Elas
receberam sua versão definitiva após a morte de D. Manuel I e podem ser
consideradas como uma correção e atualização das Ordenações Afonsinas. Assim,
elas conservaram a estrutura de cinco livros, mas suprimiram algumas leis, dando-
lhes um estilo mais conciso. Diante disso, considerando que as tensões sociais
existentes, durante a construção das Ordenações Manuelinas, eram similares,
houve a preocupação apenas de torná-las mais concisas para que se facilitasse a
compreensão de tais normas e a sua aplicabilidade (PAIVA, 2007).
As Ordenações Filipinas são consideradas a base do direito no período
colonial durante a época do império no Brasil. Elas surgiram durante o domínio
espanhol e consolidaram as leis que já estavam em vigor, ou seja, traziam consigo
elementos das Ordenações Afonsinas e Manuelinas (ANDRÉ,2007).
A estrutura das Ordenações Filipinas é similar às demais, pois também eram
subdivididas em cinco livros. O primeiro deles trata do Direito Administrativo e
Organização Judiciária; o segundo se volta para os Direitos dos Eclesiásticos, do
Rei, dos Fidalgos e dos Estrangeiros; o terceiro para o Processo Civil; o quarto se
volta para o Direito Civil e Direito Comercial e o quinto trata do Direito Penal e
Processo Penal.
As penas das Ordenações Filipinas variavam entre a confiscação de bens,
desterro, banimento, açoites, morte atroz e morte natural. Contudo, tratando-se de
uma sociedade estamental, havia aqueles que não poderiam ser submetidos a
penas infamantes como os fidalgos, os cavaleiros, os doutores em cânones ou leis,
os médicos, os juízes e os vereadores.
Observando a estrutura do livro que continha as Ordenações Filipinas
podemos considerar que elas, como as demais, estiveram preocupadas em
relacionar as tensões sociais e atender os privilégios dos dominantes. É valido
98
observar ainda o lugar de destaque ocupado pela Igreja nesse período, uma vez que
havia cláusulas específicas para os eclesiásticos. Essa situação de notório privilégio,
exercido pela Igreja Católica na figura dos seus sacerdotes, mostra os motivos pelos
quais, apesar da atual secularização, a Igreja requer para si autonomia para se
pronunciar sobre pensamentos que poderiam estar restritos ao Estado como é o
caso do aborto.
No geral, percebemos ainda uma busca pela manutenção da ordem por parte
dos governantes em relação aos seus súditos e que essas normas, estando em uma
sociedade estamental alguns indivíduos detinham notório privilégios. Todas elas
tinham como intento jurídico:
[...] buscar, de uma forma geral, regulamentar assuntos referentes aos
cargos públicos, à prática jurídica, aos assuntos da guerra, das contas da
fazenda, da posse de terras, cobrança de impostos, títulos da igreja, a
questão dos mouros e judeus, os processos civis e o direito tanto civil
quanto penal, também da jurisdição dos donatários a arrendatários,
mercadores e comerciantes, dentre outros. O que mostrava a preocupação
deste rei em preservar a justiça e a boa ordem do Reino (GAMA, 2004,
p.29).
De um modo geral, nas Ordenações Régias, a fé é evidenciada como
“exigência cultural e, por isso, se fazia exigência pública, cabendo, pois aos
governantes promovê-la e vigiá-la” (PAIVA, 2007, p. 14). A ligação entre Igreja e
Estado, legitimada pelo Padroado, permitia a imposição da fé católica. Assim, no
período em questão, a Igreja tinha uma autonomia bem maior que na atualidade. No
entanto, ela consegue sedimentar aquilo que está disposto no Código Civil e no
Código Penal. Compreender tal contexto é perceber como o caráter religioso é
basilar para a formação das normatizações brasileiras que dá suporte ao corpo de
leis que se seguem na posteridade.
4.2 CÓDIGO PENAL E CÓDIGO CIVIL: REITERADA INFLUÊNCIA DA IGREJA
Considerando o Código Penal e o Código Civil como regimentos da sociedade
brasileira que se volta para as mais variadas discussões e, inclusive para o aborto,
dedicamos aqui um item para apresentar os entrelaçamentos das autonomias
relativas de tais códigos e da Igreja Católica, pois percebemos que tal diálogo basilar
99
ajudará a compreender como são formulados os pensamentos da sociedade sobre o
aborto.
Em 1916, surge o primeiro código civil, após muitos debates que tiveram
início ainda em meados do século XIX. A sua construção contou com a participação
de liberais e conservadores e, principalmente, com a ativa participação do jurista
Clóvis Beviláqua, que, a convite de Manuel Ferraz de Campos Sales, elaborou o
projeto.
O primeiro artigo do Código Civil traz uma definição do mesmo, ao afirmar
que ele funciona como regulamento de direitos e obrigações de ordem privada de
pessoas, bens e relações. Vale destacar que, tanto o Código Civil de 1916, quanto o
posterior datado de 2002, interiorizam valores cristãos e se assemelham ao
decálogo, ou seja, aos dez mandamentos presentes na Bíblia. A importância da
elaboração de um código civil está na homogeneidade, unitariedade e racionalidade
que o mesmo indica.
Ao se construir um Código Civil, há uma visão de que todos precisam seguir
as normas que estão ali dispostas de maneira racional, ou seja, sem imposições
religiosas. Contudo, ao adentrar cada um de seus artigos, percebemos que, apesar
do aparente racionalismo que os inspira, há muitos valores imbuídos em suas
determinações marcadas “pelo modelo de família brasileira pertencente à elite”
(BARSTED, 1999).
Sobre os valores cristãos, presentes no Código Civil de 1916, Maia e Guedes
(2003) trazem a idéia de filhos legítimos, legitimados e ilegítimos, presente nos
artigos 318 e 352 (do capítulo II), do Código Civil de 1916, pois tal idéia está
notoriamente ligada à idéia de família enquanto instituição sagrada. Em tais artigos
há diferenciações até mesmo entre filhos que nasceram cento e oitenta (180) dias
depois de convivência conjugal ou trezentos (300) dias subsequentes à dissolução
conjugal.
Além da idéia de família enquanto instituição sagrada, os papéis sociais de
homens e mulheres naquele ano são refletidos em alguns dos artigos, ou seja, há
ideais que, apesar de não serem necessariamente religiosos, condizem com os
valores de uma sociedade patriarcal e androcêntrica, que também é observável nas
narrativas bíblicas (SCHÜSSLER FIORENZA, 1992). Podemos considerar, portanto,
que “O sistema patriarcal – e, portanto as ciências que trabalham com paradigmas
patriarcais - é dualista, sexista e hierárquica, no qual o homem poderoso/branco é o
100
princípio organizativo e normativo de todas as coisas” (RICHTER REIMER, 2000,
p.20).
Assim, os artigos 233, 240, 242,246 e 247 tratam respectivamente do homem
enquanto chefe de família e da mulher enquanto sua colaboradora. Todo esse
pensamento presente no Código Civil interioriza valores religiosos que detêm uma
força simbólica, por ser ela “uma forma de poder que exerce sobre os corpos,
diretamente, e como que por magia, sem qualquer coação física; mas essa magia só
atua com o apoio das predisposições colocadas como molas propulsoras, na zona
mais profunda dos corpos” (BOURDIEU, 2009, p. 50).
Os deveres de fidelidade, assistência, sustento e guarda dos filhos são
observados no artigo 231 do Código Civil de 1916 e são reiterados pelo Código de
2002 no artigo de número 1566. Vale destacar que “Esses deveres aludem de modo
especial alguns dos mais caros princípios religiosos, uma vez que tratam de
fidelidade, assistência social e da família em si” (GUEDES e MAIA, 2003, p. 97).
Tais valores religiosos não são exclusivos do Código Civil, mas compõem o
aparato de regras do Código Penal. Criado no Estado Novo, ou seja, no ano de
1940, o Código Penal pode ser considerado como uma mistura do projeto de José
de Alcântara Machado de Oliveira (jurista incumbido de escrevê-lo por Francisco
Luís da Silva Campos, autor da constituição de 1937) e da comissão da época.
Assim, ele foi elaborado a parir de 1932, mas só vigorou em 1942. O Código Penal
tal como o Código Civil revela valores religiosos a tal ponto que são comparados aos
dez mandamentos:
O artigo 121 estipula pena sobre o crime de matar alguém, da mesma
maneira reprime tal crime o 5 o mandamento. O artigo 149 relata o fato de
reduzir alguém a condição análoga de escravo, punindo tal ato. Um
comentário retirado da bíblia sobre o 3 o mandamento diz: "Proibição de
explorar o trabalho do irmão, tornando-o escravo...". O artigo 155 indica
pena adotada sobre o ato do furto; o 7º mandamento adverte: não roube. O
artigo 240 reprime coercitivamente o adultério, proíbe-o também o 6 o
mandamento. Por sua vez, o artigo 342 diz respeito a não relatar falso
testemunho, bem como o faz o 8 o mandamento.
Considerando a similitude entre os artigos do Código Penal e o Decálogo,
devemos estar atentos para que, em alguns casos, o Código Penal não esteja
necessariamente imbuído de valores religiosos como os autores enfatizam, pois faz
parte da dignidade humana o ato de punir aquele que mata, escraviza, rouba ou
realiza falso testemunho. No entanto, a idéia de adultério certamente é o que mais
101
aproxima esse Código dos valores cristãos católicos e o que mais mostra a contínua
influência de tais valores na sua construção.
Tal moral religiosa pode ser observada ainda nos artigos 229 e 234 porque,
enquanto o primeiro deles pune proprietários de casa de prostituição, o segundo
posiciona-se da mesma maneira em relação àqueles que portarem ou
comercializarem objetos ou escritos obscenos. Assim, há uma implícita
determinação do comportamento sexual padrão determinado pelos valores cristãos.
Há diferenciações de gênero explícitas no Código Penal de 1940, uma vez
que, enquanto para a mulher basta cometer uma vez infidelidade conjugal para ser
considerada como adúltera, o homem só é considerado adúltero caso viva em
concubinato. Além disso, “a mulher é sempre explicitamente sujeito ativo nos crimes
de infanticídio e aborto e sujeito passivo dos crimes de estupro, rapto e sedução”
(BARSTED, 1999, p. 59).
Observando as diferenças existentes entre o Código Civil (1916) e Penal
(1940), a partir das reelaborações, percebe-se que estas se deram a partir das
mudanças na sociedade e das novas demandas. Para compreender como essas
mudanças tiveram a capacidade de mudar os regimentos, mas não impediram a
permanência de alguns argumentos de cunho mais tradicional, serão discutidos a
seguir a respeito da emancipação gradativa do indivíduo a partir da secularização.
4.3 EMANCIPAÇÃO GRADATIVA DO INDIVÍDUO COM O AVANÇO DA
SECULARIZAÇÃO: INFLUÊNCIA LIBERAL
O elemento portador da secularização é o sistema econômico moderno, ou
seja, a secularização é fruto da dinâmica do capitalismo industrial. As raízes da
secularização estão no processo de racionalização iluminista. Na secularização, as
religiões como um todo, além de não exercerem monopólio, precisam cumprir o
papel de se situar no mercado. Nesse contexto, a religião não deve ser imposta,
mas posta na sociedade. Essa fase também é denominada de Era do Laicato. Não
significa que a religião se afastou totalmente da política. Mas significa que a religião
tornou-se algo de foro íntimo (ARENDT, 1972).
Ao destacar os resultados desse processo de secularização, Pierucci (2004)
observa que o protestantismo tende a sacrificar a ampla riqueza do conteúdo
religioso, rompendo o cordão umbilical entre o céu e a terra. O judaísmo, para esse
102
autor, possui uma formação altamente racionalizada. O catolicismo obtém uma
nova versão de ordem cósmica e uma maneira particular de barrar o processo de
racionalização.
No Brasil, o fim do Padroado, ou seja, do compromisso entre a Santa Sé e o
governo português, foi um grande marco para o processo de racionalização, pois
está intimamente ligado ao processo de secularização do Brasil. Isso ocorre
mediante o processo de autonomização da esfera política frente à religião.
Essa separação permitiu que o pensamento liberal conseguisse avanços
significativos nos processos decisórios do país e, com isso, o desenvolvimento
industrial e a democracia foram idéias presentes na modernidade. Alguns embates
entre a ala liberal e ala conservadora foram frequentes nesse período. Houve
também um considerável decréscimo de número de pessoas do clero na política
partidária. Com isso, houve uma considerável autonomia estatal frente à Igreja.
Todavia, Berger (1985) observa a existência de uma busca pela obtenção de
uma reconquista tradicionalista, que é vista como uma ameaça de desmantelamento
dos fundamentos racionais da sociedade moderna. Tal situação, segundo Berger
(1985), é compreensível ao considerar que o fim do monopólio religioso pode ser
considerado como uma mudança socioestrutural e sociopsicolólogica.
Sobre o modo com que o catolicismo barra a racionalização, Brito (2004, p.
34) afirma que “o recurso a explicações de caráter religioso e disciplinar, diante da
incompreensão de regras disciplinares impostas ao clero, ou da exclusão das
mulheres do sacerdócio não mais convence de sua legitimidade”.
Segundo Nunes (2004), a pedofilia e os estupros de freiras, são casos
amplamente divulgados pela mídia na sociedade, sendo motivos que colaboram
para que a crise da Igreja Católica se fortaleça.
No entanto, mesmo reconhecendo todas as mudanças sociais pelas quais a
sociedade vem passando e a considerável perda de sua autonomia frente os outros
setores da sociedade, é importante destacar que a Igreja Católica ainda consegue
impor seus valores religiosos ao Código Penal e ao Código Civil e também travar
debates no Supremo Tribunal Federal sobre questões polêmicas como o aborto, de
maneira tão incisiva que consegue mobilizar grande número de religiosos/as.
103
4.4 EXEGESE DOS ARTIGOS DO CÓDIGO PENAL E DO CÓDIGO CIVIL SOBRE
ABORTO
Analisando os artigos do Código Civil e do Código Penal brasileiro que se
voltam para o aborto, podemos observar quais são as normas que norteiam essa
temática tão polêmica. Assim, o exame de ambos os códigos dá uma percepção de
como ambos conseguem exercer uma autonomia relativa na sociedade, ao ser
aplicados no cotidiano dos indivíduos. Considerando a autonomia relativa do sistema
jurídico, nada melhor que investigar tais trechos na sua profundidade para facilitar o
diálogo com a sua aplicabilidade.
O Código Civil, no seu artigo 2º se volta com maior especificidade para o
direito à vida, ao afirmar que: “A personalidade civil da pessoa começa do
nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”.
Aqui, observamos como a vida é vista a partir do momento da concepção,
fazendo com que o mesmo fundamente a não aceitação do aborto. Há, portanto,
uma recorrência contínua desse artigo, tendo em vista que o direito à vida do feto é
o mais enfatizado nos discursos religiosos. Unidas a esse artigo estão ainda as
idéias de que todos são criados por Deus e que a mãe não pode ser vista como uma
vida mais importante que o feto. Reivindica-se, portanto, na maioria dos argumentos
o direito de nascer.
As penalizações da violação desse artigo podem ser observadas no Código
Penal. Este determina que, em caso de ‘Aborto Provocado pela Gestante ou com
Seu Consentimento’: “Art. 124 - Provocar Aborto em si mesma ou consentir que
outrem lho provoque: Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos”.
Há dois artigos ainda referentes ao Aborto provocado por terceiro que
distingue aquele que é consentido pela gestante e aquele que não tem seu
consentimento:
Art. 125 - Provocar Aborto, sem o consentimento da gestante: Pena -
reclusão, de 3 (três) a 10 (dez) anos.
Art. 126 - Provocar Aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Parágrafo único - Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é
maior de 14 (quatorze) anos, ou é alienada ou débil mental, ou se o
consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.
104
Conforme Guedes e Maia (2003) a radicalidade das punições de crimes
referentes ao aborto revela uma reiterada influência da religião na sua construção.
Essa reiterada participação da Igreja pode ser confirmada a partir das
polêmicas envolvendo o Supremo Tribunal Federal, que, mesmo diante da pressão
de alguns setores pela descriminalização do aborto, não conseguiu até então
realizá-la devido aos princípios religiosos que ainda estão arraigados na sociedade.
No entanto, considerando o jogo de tensões entre a Igreja Católica e o campo
jurídico, há, no Código Penal, uma possibilidade de realizar o aborto, já vista
anteriormente, ou seja, o artigo 128 tendo em vista que se estabelece que:
O Código Penal Brasileiro no seu artigo 128, do Decreto - Lei n° 2848 de
07/12/1940, diz:
Caput. Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - Se não há outro meio de salvar a vida da gestante.
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
No caso de aborto em caso de estupro, há uma forte polêmica por parte da
Igreja Católica que alega o direito à vida e que gera um jogo de tensões, já vistos no
capitulo anterior, principalmente entre os médicos que, mesmo sendo um aborto
estabelecido pela lei, se recusam a praticá-lo. Tal atitude do médico que se recusa
a realizar o aborto demonstra uma colisão entre a ética da responsabilidade (ação
do Estado) e a ética da convicção (que parte de cada indivíduo).
Vários casos podem ser observados no site do Supremo Tribunal Federal,
que ilustram a aplicabilidade dessas leis a partir dos processos. Nem todos são
cumpridos da forma prevista na lei, portanto, há uma variação de acordo com as
pessoas que julgam e os argumentos postos em pauta, como se verá no próximo
item em que traremos especificamente os argumentos da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil e do grupo feminista Católicas pelo Direito de Decidir em relação à
aprovação do aborto em caso de anencefalia no ano vigente.
4.5 POLÊMICAS RECENTES: O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E AS ORIGENS
DA VIDA: EMBATES ENTRE CATÓLICOS E FEMINISTAS
As origens da vida têm sido um tema em voga no Supremo Tribunal Federal,
como pode ser verificado a partir dos relatos de sessões e deliberações votadas.
105
Podemos mencionar como alvos de grande debate a anencefalia e a
descriminalização do aborto.
Essas duas questões são alvos de intenso debate por parte da sociedade e,
principalmente, por parte das religiões que interferem claramente no posicionamento
de alguns políticos que se pronunciam sobre o assunto. Entre os grupos religiosos
que se posicionam nas sessões estão a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e
os políticos evangélicos.
E entre os temas mais polêmicos e discutidos recentemente está o aborto
permitido em caso de diagnóstico de fetos com anencefalia, presentes na ADPF54
tramitada no Suprimo Tribunal Federal desde o ano de 2004.
O Ministro Marco Aurélio de Melo, no ano de 2004, admitiu a realização de
interrupção de gestação de anencéfalo, levando em consideração que a
permanência do mesmo seria perigosa e traria danos à vida da gestante (BUSATO,
2004).
Com isso, a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde protocolou
junto ao Supremo Tribunal Federal a ADPF (Argüição de Descumprimento de
Preceito Fundamental) nº 54, e com isso pôs em tela de juízo a interrupção da
gestação de feto anencéfalo. Entretanto, tal situação gerou intensa polêmica em
todo o país, movimentando vários setores da sociedade, como veremos com mais
detalhes ainda no capítulo 4.
No ano de 2006, houve um caso parecido com o mencionado anteriormente,
no qual a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça discutiu um habeas-corpus
preventivo com liminar, visando autorizar a gestante T. C. F. a abortar. Tal caso foi
atendido de imediato, pois segundo exames realizados na Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, o feto apresentava rins multicísticos e encefalocele
(má formação na qual os ossos do crânio não se fecham adequadamente e o
cérebro migra para fora da cabeça) e não sobreviveria após o parto35.
Diante dessa situação, a defesa da gestante afirmou que a gravidez já estava
na 31ª semana e que a mesma estaria suportando um grave abalo emocional,
sendo, portanto, de grande urgência a interrupção da gravidez. O ministro Arnaldo
Esteves Lima, relator da matéria, considerou o habeas-corpus como sendo o meio
adequado para julgar a questão, mediante à urgência da matéria.
35
Conforme consta no site oficial do Superior Tribunal de Justiça, (STJ).
106
Assim, mesmo afirmando que a lei autorizaria o aborto apenas nos casos de
estupro e de risco de vida para a mãe, o ministro considerou que o legislador se
preocupou com o bem-estar psicológico da mulher na elaboração do Código Penal e
que o artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal assegura a dignidade humana
como princípio fundamental.
Além disso, considerou ainda que esse fato não havia sido incluso no Código
por causa da não existência de uma tecnologia avançada que identificasse esses
casos no ano de 1940. Finalizando, o ministro destacou que o aborto é considerado
interrupção da gravidez desde a concepção até o nascimento e que o bem tutelado
seria a vida do nascituro.
Entre os anos de 2005 a 2012, esses e muitos outros debates foram
promovidos em relação à ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental) 54, sempre contando com a presença da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil e da União dos Juristas Católicos, se posicionando contrariamente
ao mesmo e argumentando sobre a questão do direito à vida e sobre a possibilidade
de falhas médicas.
No ano de 2008, foram promovidas várias palestras e dados científicos sobre
a anencefalia, contando com a participação de diversos setores da sociedade,
inclusive com entidades religiosas que argumentaram sobre a questão do direito à
vida. E em 2009, já se tinha um parecer da Procuradoria-Geral da República (PGR)
a favor da constitucionalidade da interrupção voluntária da gravidez no caso de
anencefalia fetal, sob o argumento de que proibi-la feriria a dignidade humana.
Entre os anos de 2010 e 2011 a tentativa de aprovar a ADPF54 foi sendo
protelada diante das pressões sociais presentes no Supremo Tribunal Federal, no
qual estão incluídos os agentes religiosos e, em especial a Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil.
No ano de 2012, a movimentação frente a essa situação foi por parte de
leigos católicos que fizeram vigília de oração a fim de que os onze membros do
Supremo Tribunal Federal fossem contrários à aprovação da ADPF54, revelando
como a Igreja Católica enquanto instituição tem um forte poder sobre o pensamento
da população.
Assim, mesmo diante da aprovação da ADPF54, a mobilização de grande
número de católicos em redes sociais e com vigílias de oração na Praça dos Três
Poderes em Brasília fizeram com que não se pudesse ignorar todo o poder simbólico
107
exercido por essa instituição. Vale destacar que como ela, espíritas e evangélicos de
uma maneira geral se movimentaram contrariamente à aprovação da ADPF54.
No que diz respeito aos pronunciamentos da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil, percebemos que a justificativa que se dá para fugir do argumento
religioso é o fato de se tratar do direito à vida e a crítica da idéia de que os
anencéfalos são tidos como mortos cerebrais.
A idéia de que se trata de um ser humano inocente e indefeso e de que tal lei
representaria a violação do direito à vida do nascituro se faz presente de modo que
percebe-se que a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil tem o cuidado de se
pronunciar sem argumentos explicitamente religiosos a fim de não ser acusada de
introduzir idéias religiosas no Estado Laico, conforme podemos constatar no
depoimento do Cardeal Raymundo Damasceno Assis, Arcebispo de Aparecida e
Presidente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, após a aprovação da
ADPF54
Ao defender o direito à vida dos anencefálicos, a Igreja se fundamenta
numa visão antropológica do ser humano, baseando-se em argumentos
teológicos éticos, científicos e jurídicos. Exclui-se, portanto, qualquer
argumentação que afirme tratar-se de ingerência da religião no Estado laico.
A participação efetiva na defesa e na promoção da dignidade e liberdade
humanas deve ser legitimamente assegurada também à Igreja36.
Há uma postura de enfrentamento das autonomias relativas de outros atores
sociais e um discurso velado da religião. De fato, notamos que a Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil se põe nesse debate ciente de que precisa
argumentar com os demais setores da sociedade que estão lutando pelo direito à
vida. Para tanto, afirma que está baseando-se em argumentos éticos, científicos e
jurídicos, colocando apenas o argumento teológico como um dos pontos a serem
tratados na busca por legitimar os seus discursos. Em relação às feministas, a
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil as questiona por não pensarem no feto,
mas apenas nos direitos da mãe.
Para Tibury37, no debate sobre o aborto, observa-se que o grito de indignação
moral faz pose de suficiência ética e, concomitantemente, uma busca pela mais-
valia moral, que serve para reforçar o poder das instituições. Esse discurso vem se
36
STEINER, Leonardo Ulrich (Secretário da CNBB).Nota da CNBB sobre o aborto de fetos com
anencefalia: http://www.oarcanjo.net/site/index.php/noticias/nota-da-cnbb-sobre-aborto-de-fetos-com
anencefalia/#.UFeTarLtZ8I
37
TIBURI, Márcia. Aborto e Biopolítica - Questão de Mais-Valia Moral. Disponível em
:<www.marciatiburi.com.br>
108
contrapor ao posicionamento da Igreja, ao argumentar que mesmo sobre uma
reivindicação de suficiência ética há uma questão moral velada reforçando o poder
das instituições.
Contudo, essa postura religiosa velada, presente no discurso do Presidente
da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, fomenta mobilizações realizadas
pelos grupos religiosos, Legislação e Vida, de São Paulo, e Pró-Vida e Família, de
Brasília que, como forma de ‘sensibilizar’ os ministros presentes no julgamento da
ADPF54, fizeram vigílias em Brasília, trazendo elementos notoriamente religiosos
para o Estado Laico como é o caso da utilização do terço dos nascituros38:
Além de orações, a ocasião contará com apresentações artísticas gratuitas
do cantor Nael di Freitas e da cantora Elba Ramalho que, além de cantarem
seus sucessos, conduzirão momentos de oração com o terço dos
nascituros, que apresenta em cada conta representações de bebês no
ventre de suas mães39.
A oração do terço dos nascituros, conforme Padre Stepien (Diocese de
Luziânia-GO), é inspirada no Papa Bento XVI, que solicitou, no ano de 2010, que se
fizessem vigílias no período do advento por toda vida nascente. O Padre Stepien
também traz dois argumentos que são cruciais para compreendermos os
mecanismos da igreja para se legitimar enquanto ator social em uma sociedade
secularizada. Ele afirma que a Igreja teme que a descriminalização do aborto ocorra,
como passo que poderia ser tomado após a aprovação da ADPF54. Além disso, ele
considera que o Estado deve admitir a liberdade de expressão e religiosa e,
portanto, a não omissão da Igreja frente á descriminalização do aborto
Percebemos, portanto, que o Padre Stepien tem a intenção de legitimar a
oração do terço e as vigílias em praça pública, a partir da solicitação papal aos seus
fiéis. Assim, há uma busca por se pronunciar enquanto Igreja mediante o seu papel
social na sociedade frente aos demais atores sociais.
O Padre Stepien também traz dois argumentos que são cruciais para
compreendermos os mecanismos pelos quais a Igreja se legitima enquanto ator
social em uma sociedade secularizada, ou seja, ele se preocupa com a
descriminalização do aborto, como passo que poderia ser tomado adiante, e que
como defensora da vida a igreja se opõe radicalmente e se legitima na idéia de que
38
O terço pode ser encontrado no Anexo G.
R
Redação com ACI Digital. Brasileiros promovem vigília pela vida em frente ao STF. Disponível em :
<http://noticias.cancaonova.com/noticia.php?id=285795>. Acesso em 10/05/2012.
109
a Igreja Católica o Estado deve admitir a liberdade de expressão e religiosa e a não
omissão da Igreja.
Observamos, com isso, como a Igreja enquanto instituição e os seus fiéis
constroem um discurso pautado na necessidade de se posicionar em uma
sociedade laica. Para ter força, esse discurso aciona o ideal do direito à vida a fim
de driblar a idéia de estado laico.
Há, notoriamente, dois mecanismos utilizados pela Igreja Católica enquanto
instituição para exercer um biopoder na sociedade laica. O primeiro deles diz
respeito a um argumento ético e jurídico pautado na dignidade humana e o segundo
mecanismo é a mobilização dos leigos das Igrejas em defesa da vida, reforçando um
discurso religioso de modo que se reivindica a realização de preces para conseguir
fazer uma intervenção concreta.
As ressalvas da Igreja em se posicionar concretamente frente ao aborto
podem ser justificadas não apenas pela laicidade estatal, mas pela forte
contraposição de alguns atores sociais que discordam da maneira contundente com
que o poder religioso intervém.
Essas discordâncias são visíveis na posição engajada do movimento
feminista no que tange a aprovação da ADPF54. Entre esses posicionamentos
merece destaque a atuação das Católicas pelo Direito de Decidir por se utilizarem
da mídia e do teatro em praça pública para chamar a atenção da sociedade
brasileira sobre a necessidade das mulheres terem o poder de decisão de levar
adiante uma gravidez de feto anencéfalo. Na peça teatral encenada, “a atriz
Alessandra Cavagna, toda vestida de preto, e cantando a cappella, interpretou a
música Sentinela, de Milton Nascimento, mostrando a dor de uma mulher ao ser
obrigada a parir um bebê que não pode, ao nascer, vir a ser”.
Percebemos que, enquanto a Igreja Católica enfatiza a valorização da vida do
anencéfalo, as feministas enfatizam que este não tem cérebro e reforçam seu
discurso em defesa da valorização da mulher e do seu direito de decisão. O debate
gira notoriamente na esfera da mãe e do feto anencéfalo, de modo que, enquanto as
feministas trazem as mulheres como tendo que passar por um sofrimento
desnecessário ao ser ‘obrigadas’ a parir um feto que morrerá, a Igreja defende o feto
anencéfalo, justificando inclusive que, independente da deficiência, é uma vida que
precisa ser respeitada. Assim, contra-argumentando o posicionamento da Igreja
Católica enquanto instituição, Samantha Buglione considera que:
110
Fetos anencéfalos são humanos, mas jamais se tornarão pessoa. Pessoa,
ao contrário de humano, é um conceito político. Enquanto humano é um
dado biológico, que caracteriza os membros de uma espécie, pessoa é um
conceito vinculado à capacidade de viver a vida, o que não acontecerá com
os fetos anencéfalos40.
Os argumentos feministas funcionam como resposta aos argumentos da
Igreja Católica, de maneira que há notoriamente uma dinâmica social por parte de
tais esferas que buscam exercer a sua autonomia relativa a partir de
posicionamentos que consideram coerentes e que são capazes de fragilizar aquilo
que é proposto pelo grupo oponente.
As feministas, de maneira geral, reclamam que a norma religiosa considera
somente a vida do nascituro e não a da mulher, que, ao se sujeitar a um aborto
clandestino, por conta da ilegalidade do aborto, põe a própria vida em risco.
Marcadamente, as feministas, além de buscarem argumentos que se
contraponham á idéia do direito à vida tão frisado pela Igreja Católica (enquanto
instituição), partem para um discurso em defesa das mulheres, que, no caso do
aborto de anencéfalo, se dá de maneira mais contundente, uma vez que observam
como “crueldade obrigar mulheres e casais a levar a cabo uma gestação de um filho
que jamais virá a ser. A gestação não é um fim em si mesmo. Ela é o meio para a
constituição de um novo ser."
Diante da aprovação da ADPF54, percebemos, por parte desse grupo, a
reafirmação de seus argumentos. No caso da Igreja Católica, o lamento e a
necessidade de justificar sua intervenção no debate em defesa da vida é reforçado
e, entre as feministas, há uma comemoração e, concomitantemente, uma busca por
demonstrar que esse é apenas um passo, tendo em vista que são favoráveis à
legalização do aborto. Essa visão é notória na afirmativa da médica Jurema
Werneck, coordenadora da ONG Criola e secretária executiva da Organização de
Mulheres Negras Brasileiras:
Todas nós, mulheres, conseguimos, com esta decisão do STF, dar início ao
resgate do direito ao nosso próprio corpo, ao que acontece nele e com ele.
Direito que, faz muito tempo, havia sido seqüestrado por dogmas
fundamentalistas. Não falo apenas de aspectos religiosos monoteístas, mas
também de dogmas racistas e patriarcais que invadem nossas vidas e que,
finalmente!, neste século XXI, começam a ser expulsos. Uma vitória
40
BUGLIONE, Samantha. Anencefalia e STF. 2011. Disponível em:<
http://www.abortoemdebate.com.br/wordpress/?p=2239>. Acesso em 15/07/2012.15:00:45.
111
importante. Agora, como disse Eduardo Galeano: ‘falta menos’ (LEMES,
2012).
A visão da médica nos traz não apenas uma busca por fazer com que essas
medidas sejam apenas um passo para a descriminalização do aborto, mas revela
ainda uma postura que se contrapõe visivelmente aos dogmas fundamentalistas da
religião e uma busca por trazer a tona as questões de gênero, tendo em vista que se
contrapõe à visão patriarcal e racista da sociedade. Assim, as discussões dos
autores que tomam o gênero como categoria de análise, observando que os papéis
sociais dos homens e das mulheres são determinados pela cultura, se faz presente
no seu argumento.
Com isso, há três pontos nesse discurso que merecem ser destacados, ou
seja, a busca por fazer com que seja concretizada a descriminalização do aborto, o
embate com os argumentos religiosos e a perspectiva de gênero. Cada uma dessas
perspectivas é reveladora, pois mostra a partir de que lugar social as feministas, de
uma maneira geral, falam e a quem elas estão se contrapondo, mostrando ainda de
que maneira elas buscam manter sua autonomia relativa na sociedade chocando-se
com outras autonomias e trazendo claramente qual é o seu posicionamento nesse
debate.
Todavia, há uma preocupação considerável em fazer com que tais leis não
fiquem apenas no Supremo Tribunal Federal, ou seja, que seja possibilitado o
atendimento de mães que têm filhos com anencefalia. Tal preocupação se dá
porque as feministas tem consciência do biopoder exercido pela Igreja Católica e por
outros movimentos contrários a tal aprovação, uma vez que foram oito anos de
espera, como se pode observar no argumento de Telia Negrão, cientista política,
conselheira da Rede Feminista de Saúde e coordenadora do Coletivo Feminino
Plural:
A decisão do STF vem com um atraso de oito anos, após duas Sessões do
Comitê Cedaw que analisaram o descumprimento do Brasil de
compromissos com o fim de toda a legislação que discrimina e legitima
violações de direitos humanos. É uma vitória da pressão da consciência
nacional, pois esta criminalização é algo tão bárbaro, que as pessoas em
geral já imaginavam ser um permissivo legal. Esperamos, sinceramente,
que todas as medidas sejam tomadas para assegurar, nos serviços de
saúde, que nenhum agente público ou privado se interponha a este direito
das mulheres à vida digna (LEMES, 2012).
112
No geral, os argumentos das ativistas feministas, como Gilda Cabral
(CFemea) e Jandira Queiroz, circulam na esfera da reafirmação da laicidade do
Estado e do respeito pela vida das mulheres. Contudo, o discurso de Maria José
Rosado (Coordenadora da CDD-BR) vai além, ao considerar tal aprovação como
“Uma votação histórica, a favor da vida, dos direitos e da dignidade das mulheres
brasileiras!” (NUNES apud LEMES, 2012)
Casos como esse sedimentam a discussão que se traçou no decorrer deste
trabalho, por revelar um encontro de tensões sociais, no qual as autonomias
relativas exercidas por diversos setores se chocam. No campo de tensões dos
atores sociais, poderíamos considerar que o feminismo teve mais força que a Igreja
Católica, porém os oito anos de demora em conseguir tal êxito de suas
reivindicações e a dificuldade de se atender a reivindicações mais profundas, como
a descriminalização do aborto, revela que a autonomia desse grupo é relativa e que
a Igreja Católica, enquanto instituição, ainda intervém fortemente no Estado de tal
modo que seus pensamentos são capazes de protelar as medidas do Supremo
Tribunal Federal, por sensibilizar a sociedade como um todo e por contar com o
apoio de pessoas da bancada evangélica que exercem cargos no Supremo Tribunal
Federal. Assim, podemos considerar que não se trata de uma questão
simplificadora, pois estamos em um país onde os valores cristãos estão arraigados e
encontram na mídia suporte para sua propagação. Essa rede de apoio pode ser
observada nos projetos de lei que se contrapõem à descriminalização do aborto e
que tramitam no Supremo Tribunal federal, como veremos adiante.
4.5.1 Projetos de Lei em defesa do nascituro: direito à vida ou sacrifício de mulheres
Ao se traçar um diálogo entre a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e
os projetos de lei de alguns membros da bancada evangélica, percebemos que os
valores religiosos estão incutidos em cada um dos seus discursos de maneira radical
e exercem uma autonomia relativa na sociedade. Portanto, os três discursos aqui
evocados (PL1763-9, PL489/07 e PL 479/07) têm aceitação por parte de grande
número de indivíduos católicos e evangélicos que vêem o diálogo com a religião
como sendo de cunho fundamental para aprovação de leis. Quando a pauta do
Congresso Nacional é o aborto, os grupos se aliam. As motivações para que tais
113
grupos se aliem está na maneira que existem interesses comuns em relação a não
aceitação da descriminalização do aborto por parte dos grupos religiosos.
Contudo, a autonomia exercida por esses grupos religiosos se choca com
outras autonomias exercidas por grupos favoráveis ao aborto que já está previsto
pela lei, ou seja, em caso de estupro e de risco de morte da mãe. Nos demais casos,
há também muitos embates por parte das feministas que se utiliza dos mais variados
argumentos para justificar o direito do aborto por parte da mulher em qualquer
circunstância.
Os projetos de lei, criados respectivamente pelos deputados Henrique Afonso
e Odair Cunha, PL 1763/07 e PL 489/07 têm cunho religioso notório e
fundamentam a postura contrária da religião em relação à descriminalização do
aborto.
No PL 1763/07, sugere-se que se pague um salário mínimo por dezoito anos
e acompanhamento psicológico para as mães que foram vítimas de estupro e que
porventura tenham engravidado, e um tratamento psicológico com profissionais
cristãos, já que o deputado considera o aborto como um atentado à vida, mesmo em
caso de estupro.
No PL489/07, é previsto o Estatuto do Nascituro, que estabelece um maior
rigor frente às mulheres que cometerem aborto e contra aqueles que contribuírem
para seu ato, gerando grande polêmica entre as organizações feministas, por não
pensar na situação da mulher e seus direitos reprodutivos. Na perspectiva dos
autores da proposta, o estatuto, quando aprovado, poderá garantir ao nascituro
direito à vida, à saúde, à honra, à integridade física, à alimentação, e à
convivência familiar.
Quando questionados sobre o caráter religioso de seus projetos, os
deputados Henrique Afonso e Odair Cunha não o negam e ainda alegam não
conseguir dividir o lugar que ocupam enquanto indivíduos políticos e indivíduos
religiosos. Além disso, os deputados alegam que é esse entrecruzamento da crença
que professam e do lugar que ocupam enquanto políticos que permite a criação de
um projeto de caráter religioso, conforme pode se observar na sua afirmativa: “Essa
questão do Estado laico é muito debatida, tem gente que me diz que eu não devo
114
legislar como cristão, mas é nisso que eu acredito e faço o que Deus manda, não
consigo imaginar separar as duas coisas”, afirmou ao jornal41.
Durante o período de criação dos projetos de lei, as feministas consideravam
que havia um nítido contraste entre a sociedade laicizada, cujos políticos, sendo
religiosos, elaboram projetos de cunho religioso a serem aplicados nessa sociedade
secularizada. Como argumentos, o noticiário das Católicas pelo Direito de Decidir
analisa que:
Para o movimento feminista não reconhecer os graves efeitos físicos e
psicológicos do estupro e a crueldade dessa violência sofrida por milhares
de mulheres e meninas dentro de suas próprias casas; impedir que o direito
ao aborto legal seja implementado nos serviços públicos de saúde por meio
da estratégia moral da excomunhão; defender um projeto de lei que prevê
uma gratificação monetária em troca do aborto e da proteção da vítima;
defender um projeto de lei que pretende monitorar as gestações
interrompidas e a conseqüente criminalização dessas mulheres; defender
um projeto de lei que pretende submeter as mulheres a um vídeo
escatológico e impressionante sobre o aborto ao invés de orientá-las sobre
o direito à saúde - são TODAS iniciativas que legitimam e institucionalizam
a tortura sobre as mulheres e a negligência do Estado brasileiro42.
A partir do noticiário das Católicas pelo Direito de Decidir, percebemos que há
uma autonomia relativa que se choca com os valores religiosos, cujo argumento é o
da ética da responsabilidade, que se preocupa com a violação dos direitos das
mulheres. Desconstruindo os argumentos religiosos dos criadores do projeto de lei,
as feministas consideram as determinações como verdadeira tortura para as
mulheres e reivindicam indiretamente a laicidade do Estado.
Percebemos, portanto, a presença de dois fortes argumentos que se repetem
no discurso dos movimentos feministas, a defesa da mulher e a laicidade do Estado.
Certamente esses argumentos são os que mais têm força no seio da sociedade
brasileira. Aqui, observamos que se evita falar de precariedade do serviço publico, já
que, obviamente, o projeto lei quer dar melhores condições financeiras a mulheres
que sofreram estupro.
Outro forte argumento é o de que a lei favorecendo mulheres estupradas já
está vigente, portanto, as feministas vêem como retrocesso os projetos de lei em
questão e convidam outros movimentos sociais a se posicionarem.
41
Maiores detalhes em: <http://www.cfemea.org.br/index.php?option=com_content&view
=article&id=2094:projeto-de-lei-preve-bolsa-estupro-para-evitar-aborto&catid=219:noticias-e-
eventos&Itemid=154>
42
Maiores detalhes em: < http://www.catolicas.org.br/noticias/conteudo.asp?cod=1419>
115
A idéia de retrocesso do projeto lei 1763/2007 se faz presente no protesto
realizado pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher que foi entregue ao
deputado José Linhares, relator da Comissão de Seguridade e Família pela
representante da Rede Feminista de Saúde Lia Zanotta. Tal carta foi protocolada na
Secretaria da Câmara e distribuída entre os demais deputados da Comissão. Seus
argumentos se voltam para a contradição com relação ao código penal de 1940, que
garante o aborto ás vítimas do estupro e ao cumprimento dos compromissos
internacionais assumidos pelo Brasil na Conferência do Cairo (1994) e de Beijing
(1995)
A constituição Brasileira estabelece que ter filhos é uma decisão da cidadã
e que o Estado deve fornecer os meios necessários para que se possa
exercer esse direito com dignidade. Isso não se garante com um salário
mínimo, conforme previsto no PL em questão, destaca a carta43.
O convite a outros movimentos sociais para refletirem sobre os
posicionamentos dos Projetos de Lei, diz respeito a uma forma de adquirir força
frente às pressões da religião que reivindica o direito à vida do nascituro e que tenta
amenizar a política de apoio às mulheres reivindicada pelas feministas.
Diante da repercussão dos Projetos de lei, o PL 478/07 foi aprovado no ano
de 2010 pela Comissão de Seguridade Social e da Família, trazendo como apensos
PL 1763/07 e o PL 489/07 sob a autoria dos deputados Luiz Bassuma e Miguel
Martini. Ao observarmos o teor do documento, percebemos a existência de um
discurso mais ameno que tem certamente como intuito diminuir as pressões dos
movimentos feministas contrários aos projetos anteriores.
Os dois lados (feministas e Igreja Católica) buscam redes de apoio em outros
atores sociais. Esse apoio é perceptível se considerarmos que os projetos de lei em
questão foram criados por evangélicos, trazendo, portanto, à baila outros atores
sociais que se posicionam contrariamente ao aborto, dando maior consistência aos
argumentos da Conferência Nacional dos Bispos dos Brasil. Em contraposição, as
feministas se unem a pessoas do próprio parlamento e de outros movimentos
sociais, em busca de dar legitimidade ao seu discurso44. A criação de outro Projeto
43
SECRETARIA DE POLÍTICA PARA AS MULHERES Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.
Protesta contra PL1763/07 Disponível em:<http://www.spm.gov.br/noticias/ultimas_noticias/2007/
/12/not_protesto_bolsa_estrupo> Acesso em 09/07/2012.
44
ARTICULAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS. Nota pública, Carta aos Movimentos Sociais em
defesa do PNDH3, 2010. Disponível em:<http://pndh3.com.br/geral/articulacao-de-mulheres-
brasileiras/> Acesso em 20/07/2012.
116
de Lei, com apensos referentes ao pensamento da Bancada Evangélica, demonstra
uma tentativa de conciliar ambos os grupos, já que nem se atende totalmente a
reivindicação da bancada evangélica e nem se ignora o pensamento das
organizações feministas. Contudo, o discurso se faz mais efervescente de ambas as
partes quando se trata da descriminalização do aborto.
4.5.2 A DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO: EMBATES ENTRE FEMINISTAS E
CATÓLICOS NO ANO DE 2010
A importância das feministas e da Igreja Católica, enquanto atores sociais, é
notória numa carta endereçada pelas Católicas pelo Direito de Decidir a outros
movimentos sociais:
Em nota divulgada pela Agência Brasil, o governo informa para tratar da
alteração do programa, Paulo Vannuchi se reuniu com os ministros da
Saúde e do Desenvolvimento Agrário, com o ouvidor agrário nacional,
com a secretária especial de Políticas para as Mulheres, com a
Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e com 11 organizações
do movimento feminista". 45
A importância das feministas e da Igreja Católica, enquanto atores sociais, é
notória na reportagem acima, uma vez que, para discutir mudanças no PNDH3,
busca-se ouvir vários segmentos sociais. Pensar os argumentos das feministas e da
Igreja Católica permite que se conheça qual o biopoder por elas exercido e de que
forma cada grupo consegue exercer sua autonomia relativa.
O que está em jogo na PNDH3 é, entre outras questões, a descriminalização
do aborto46, tema que possui uma riqueza de argumentos intensos das duas frentes
aqui em questão, ou seja, da Igreja Católica e dos movimentos feministas.
A total descriminalização do aborto é certamente a reivindicação feminista
que tem maior dificuldade para ser acolhida, principalmente entre os mais diversos
grupos de religiosos brasileiros e, para isso, o forte apelo midiático em defesa da
vida de um ser inocente é invocado.
45
http://www.catolicas.org.br/noticias/conteudo.asp?cod=1759
46
Sobre a descriminalização do aborto, já no ano de 2005, mulheres que pertenciam à Secretaria
Especial de Política para as mulheres entregaram, em julho desse mesmo ano, ao ministro, então
presidente do STF Nelson Jobim (que já havia se declarado favorável ao aborto no ano anterior), um
anteprojeto que propunha que o aborto não fosse criminalizado até o terceiro mês.
117
Essas dificuldades são perceptíveis, se considerarmos que, desde o ano de
2005, foi formada uma comissão de representantes do governo federal, do
Congresso Nacional e da sociedade civil para revisar os instrumentos legais
existentes sobre o aborto. Desde aquele ano, a Secretária Especial de Política para
as Mulheres, ministra Nilcéia Freire, entregou ao presidente do Supremo Tribunal
Federal, ministro Nelson Jobim, o relatório da comissão tripartite que discutia a
proposta de descriminalização do aborto, no qual se propunha a interrupção da
gravidez até o terceiro mês e que esse pudesse ser realizado sem responsabilizar a
mulher criminalmente.
Diferentemente do aborto praticado em bebês anencéfalos e em casos de
estupro, a total descriminalização do aborto não tem acessórios que fazem com que
seja amenizado o discurso em relação ao aborto provocado numa gravidez
indesejada. Isso ocorre porque, no caso da anencefalia havia o argumento de
obrigar a mulher a gerar um ser que estava fadado a morte e, no segundo caso, a
questão da violência psicológica e o trauma diante do estupro, capaz de sensibilizar
grande número de grupos sociais à violência contra a mulher.
É por isso que a resistência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
ainda se faz mais acirrada em discussões relativas à descriminalização do aborto.
Essa situação é perceptível diante da total rejeição pela mesma frente da proposta
de autonomia da mulher em relação ao próprio corpo e da recomendação de
alteração do Código Penal presente na PNDH3. Nesse confronto, observa-se que
O 3º Plano Nacional dos Direitos Humanos (PNDH 3) , em uma das ações
estratégicas, dizia: “apoiar a aprovação de projeto de lei que descriminaliza
o aborto, considerando a autonomia das mulheres para decidir sobre os
seus corpos”. No entanto, o decreto 7.177 , de 12 de maio de 2010,
modifica pontos do programa, inclusive este. A redação agora ficou assim:
“considerar o aborto como tema de saúde pública, com a garantia do
acesso aos serviços de saúde”. O tema da descriminalização foi suprimido
do PNDH 3 ( JÚNIA,2010).
Tal situação mostra como a Igreja Católica, enquanto instituição, ainda exerce
grande autonomia na sociedade, pois, embora tantos grupos apóiem a
descriminalização do aborto e lancem propostas longamente debatidas no
Congresso, estas ainda não conseguiram aprovação.
A postura favorável à descriminalização faz com que movimentos feministas
‘respondam’ ás críticas da Igreja Católica sobre o PNDH3, convocando movimentos
sociais a lutarem pela sua execução, como pode-se observar
118
Embora o PNDH3 esteja muito aquém de nossos anseios por igualdade,
compreendemos como legítimas as deliberações das Conferências de
Políticas Públicas nas quais o PNDH3 se pautou e conferimos
legitimidade a este governo, cujos ministros acordaram o plano;- e
entendemos que qualquer mudança no decreto 7037/2010 relativo ao
PNDH3 representará um retrocesso para a democracia brasileira e para o
sistema de construção participativa das políticas públicas, significando a
negação das vozes e lutas travadas ao longo de décadas pelos
movimentos de Direitos Humanos, os Movimentos sociais e os Movimentos
de Mulheres em particular. Pela unidade dos movimentos sociais na defesa
do PNDH3 (ARTICULAÇÃO DAS MULHERES BRASILEIRAS, 2010).
A AMB47 argumenta que o PNDH3 contribui com o cumprimento do Código
Penal de 1940 nas determinações que possibilitam o aborto em caso de estupro ou
risco de vida. Além disso, considera que a maioria das mulheres que se decidem por
realizar aborto o faz em razão de falhas dos métodos de contracepção e que
geralmente trata-se de mulheres jovens mães de 1 ou 2 filhos e que têm parceiro
fixo. As organizações feministas reivindicam, portanto, a manutenção integral do
texto referente ao aborto no PNDH3 e consideram os contrários à política de avanço
pela descriminalização do aborto como opositores dos direitos humanos.
Os movimentos feministas reforçam ainda seus argumentos no
posicionamento da ONU, que lamenta que o Brasil ainda não tenha descriminalizado
o aborto, já que constata um número considerável de abortos em condições
precárias por parte das mulheres mais pobres. Há, neste debate, um choque de
idéias entre as pressões da ONU e os argumentos relativos à questão de saúde
pública com a idéia de direito à vida e o pensamento de que todos têm o direito de
nascer.
Na visão das feministas, a radicalidade do debate está na descriminalização
do aborto, tendo em vista que por mais que a ONU e a CDD se utilizem dos mais
variados argumentos para convencer a população, a Igreja Católica, juntamente com
outras religiões, veta essa possibilidade e se utiliza do argumento do direito à vida
desde a concepção do indivíduo, ameaçando a autonomia relativa política a partir do
voto dos fiéis.
No ano de 2010, as propostas que traziam em pauta a descriminalização do
aborto tramitavam no Supremo Tribunal Federal e sofreram fortes reações de alguns
bispos, que ameaçaram distribuir folhetos, convidando os eleitores a votarem nos
47
AMB. A Articulação de Mulheres Brasileiras reúne centenas de grupos, ONG’s e Movimentos de
Mulheres. 2010. Leia-se a reportagem disponível em: <http://pndh3.com.br/geral/articulacao-de-
mulheres-brasileiras/> Acesso em: 25/07/12.
119
candidatos/as que não eram favoráveis à descriminalização do aborto48. “O
elemento central dessa argumentação é a defesa da vida, reiterada como um
princípio absoluto, imutável e intangível”49.
Vale destacar que tais folhetos foram apreendidos em 2010 e devolvidos aos
religiosos no ano seguinte. Essa reação mostra o recurso do poder de votar,
utilizado para fazer valer os seus interesses, gerando uma constante tensão social.
O poder do voto foi perceptível nesse período, quando o Conselho Episcopal
Regional Sul 1- CNBB publicou uma carta, acusando a então candidata Dilma
Rousseff de ser favorável ao aborto e solicitando que os católicos não votassem
nela. Tal situação fez com que a candidata passasse a se declarar contrária ao
aborto.
Contudo, nesse debate de 2010, outra maneira de reagir frente às
reivindicações dos grupos religiosos por parte das organizações feministas foi a de
apontar as fissuras nas colocações dos bispos. Exemplo disso está na maneira com
que a CDD-BR afirmou que uma carta que circulava na época das eleições de 2010
assinada pelo Conselho Episcopal Regional Sul 1- CNBB, não condizia com a
posição nacional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, dando como
exemplo o texto publicado pelo site de Dom Demétrio Valentini50.
Quando se trata da descriminalização do aborto percebemos que há uma
rede de apoio das feministas, a partir de uma busca por estabelecer um discurso
coeso comumente a outros movimentos sociais, e outra rede de apoio dos religiosos
de várias denominações que reforçam o discurso contrário. As fissuras e alianças
são intensamente prestigiadas, nesse campo de tensão presente na sociedade
brasileira.
As fissuras são apontadas para fragilizar o argumento do grupo contrário e as
alianças são buscadas por ambos, a fim de garantir que seu pensamento seja
valorizado. De um lado uma valorização do direito reprodutivo da mulher e do outro
um apelo constante ao direito de viver.
Assim, comparando a ADPF54 e os Projetos de lei com a possibilidade de
descriminalização do aborto no Brasil, percebemos que a religião detém uma
48
A carta na integra encontra-se no Anexo F.
49
NUNES, Maria José do Rosado [artigo]. O tema do aborto na Igreja Católica: divergências
silenciadas. In: http://catolicasonline.org.br/artigos/conteudo.asp?cod=3486>.Acesso em 10/07/2012.
50
http://www.catolicas.org.br/artigos/conteudo.asp?cod=2894
120
autonomia considerável em relação aos movimentos feministas. O recuo de Dilma
Rousseff frente aos questionamentos de alguns bispos da Igreja Católica demonstra
que este debate é o mais complexo de todos, porque a rede de apoio por parte dos
grupos religiosos aumenta, fazendo com que as pressões sociais tornem mais difícil
a descriminalização do aborto.
4.6 ENTRELAÇAMENTO DE PODERES FEMINISTAS E RELIGIOSOS: UMA
ANÁLISE GERAL
A partir de um estudo pautado no sistema jurídico brasileiro e, principalmente,
no Código Civil, no Código Penal e no Supremo Tribunal Federal, conseguimos
perceber como muitos elementos são dotados de valores religiosos, que
sedimentam suas leis mesmo que de maneira imperceptível.
Como um rio subterrâneo, o discurso católico tradicional aparece nas
entrelinhas dos discursos legais. A partir da análise das Ordenações Régias, que
foram inspiradoras para a construção de artigos dos Códigos Civil e Penal, podemos
perceber essas interligações, que posteriormente adentram o Código Civil e Penal e
que vão se diluindo mediante suas reformulações, não deixando de estarem
presentes nas entrelinhas de seus novos discursos e de ser reivindicadas pela
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil nos debates polêmicos sobre o aborto e
a eutanásia.
Diante disso, buscamos, a partir de uma análise de todo esse aparato jurídico
brasileiro, compreender como a Igreja Católica contribui na formação do corpo legal,
sem deixar de reconhecer que essa influência vai se diluindo mediante o processo
de secularização.
Assim, após observar a influência da Igreja Católica nas Ordenações Régias,
e também nos Códigos Civis e Penais, partimos para uma análise da secularização,
a fim de se compreender como esses valores foram ficando cada vez mais
imperceptíveis.
Diante de todo esse aparato, partimos para uma análise do Código Civil e do
Código Penal, focando especificamente o aborto e a maneira com que a Igreja
Católica se utiliza de argumentos relativos ao direito à vida para embasar o seu
discurso.
121
Contudo, é o atual posicionamento da Igreja Católica no Supremo Tribunal
Federal que dá uma noção da autonomia que ela exerce nesse debate. Assim,
focamos os principais itens observados no site do Supremo Tribunal Federal, que
são relativos à descriminalização do aborto, ao aborto em caso de estupro, e à
anencefalia.
Toda a radicalidade de seu posicionamento e a maneira com que ela
consegue intervir nesse debate de maneira efusiva comprovam que o seu poder na
sociedade ainda aparece com relativa força, de modo que embora um grupo de
pessoas que exerce cargos influentes na política se mostre favorável à
descriminalização do aborto, não consegue se impor frente ao poder católico, que
consegue influenciar com veemência a sociedade e unir forças com demais
religiosos da bancada evangélica, atraindo o apoio de grupos espíritas.
Assim, é inegável a autonomia relativa da religião nesta sociedade
secularizada, pois está constantemente abrindo espaço para ouvir os setores
religiosos nos mais polêmicos debates e, com isso, protela a aprovação de leis por
muitos anos, tendo em vista que a Igreja Católica pauta seus argumentos na
questão do direito à vida.
É notável que, quando os argumentos da Igreja Católica, enquanto instituição,
saem desse debate, relacionado ao direito à vida, perdem consideravelmente sua
força, como foi o caso no recente debate em torno da anencefalia, pois os
argumentos políticos e médicos, em relação ao fato da mãe ter o direito de
diagnosticar que seu feto tem anencefalia, tiveram maior autonomia.
É, portanto, nesse jogo de tensões sociais, que a Igreja Católica, enquanto
instituição, disputa, com outros poderes da sociedade, como o setor jurídico, o
político, o midiático sobre as mais avançadas discussões proporcionadas pelas
feministas em relação ao direito da mulher. O debate travado com esses grupos é o
que permite compreender como a sociedade se posiciona frente ao aborto e de que
maneira a Igreja Católica detém legitimidade para se inserir nessas discussões a
partir de sua autonomia relativa.
Há de fato um politeísmo de valores na sociedade, onde os vários grupos
detêm uma autonomia relativa e buscam pelo biopoder a fim de decidir sobre o
direito à vida. Assim, esse debate ainda está aberto e atores sociais como o
catolicismo e o feminismo vivem em constante tensão. Observar esses dois grupos e
trabalhar com o discurso de duas extremidades permite que se tenha uma noção
122
dos motivos para a ausência de consenso nesse debate e assim compreender o
funcionamento da sociedade, o papel da religião e como os embates fazem com que
ela ressignifique seu discurso em defesa da vida, adquirindo apoio dos profissionais
da bioética.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para observar ‘o aborto entre os posicionamentos católicos, o feminismo e a
legalidade’ fez-se necessário iniciar esta abordagem entrelaçando conceitos como o
de biopoder, autonomia relativa, biopolítica, bioética, vida e dignidade humana para
que tivéssemos condições de compreender a maneira com que as feministas e a
Igreja Católica, enquanto instituição, se posicionam frente o aborto enquanto atores
sociais que reivindicam para si o biopoder e que detêm uma autonomia relativa.
Nesse universo conceitual, chama atenção a maneira com que, no discurso
dos estudiosos da bioética e da dignidade humana, há implicitamente valores
religiosos reivindicados e a idéia da existência de Deus, que levou a reflexão sobre
como, em uma sociedade secularizada, a cultura religiosa, mesmo que não de forma
enfática como na medievalidade, ainda ocupa uma autonomia relativa.
O estudo da autonomia relativa a partir de Bourdieu (1998) proporcionou que
este trabalho observasse como os vários atores sociais conseguem exercer uma
autonomia que é relativa, já que convivem com uma diversidade de argumentos que
requer para si o biopoder, ou seja, o poder sobre quem deve viver, como é
assinalado por Foucault (1998).
Tal análise foi capaz de levar à compreensão de como os grupos aqui
escolhidos (Igreja Católica e feministas) têm papel preponderante no seio da
sociedade mesmo se contrapondo consideravelmente. Cada um deles, a partir de
argumentos consistentes, levam a sociedade a refletir sobre o aborto e a se
posicionar de maneira distinta.
A conceitualização da vida realizada no primeiro capítulo veio complementar o
estudo relativo ao biopoder e à autonomia relativa, pois levou a refletir sobre o
significado da mesma para ambos os grupos. Enquanto o primeiro grupo se volta
para o momento da concepção como da existência de uma vida, o segundo se
preocupa com a vida da mulher e a sua dignidade humana.
Assim, nesse debate relativo à vida, diferentes posicionamentos permitem
pensar como ambos os grupos trazem argumentos consistentes em defesa da vida
124
que está para nascer e da mãe que necessita ser considerada enquanto ser
humano.
A complexidade da conceitualização da vida é observável não apenas a partir
dos diferentes posicionamentos aqui destacados, mas pela maneira com que
existem abordagens que partem do senso comum, passando pelas explicações de
cunho filosófico, até as explicações biológicas.
Nesse conjunto de análises realizadas no capítulo inicial, percebemos a
ausência de unanimidade em relação ao surgimento do ser humano e que a
diferenciação dos animais é o principal argumento que justifica a oposição ao aborto.
Ao se analisar o conceito de dignidade humana, percebemos que ela dá
consistência aos argumentos feministas, que consideram o sofrimento enfrentado
pelas mulheres que optam para fazer o aborto e que até mesmo em casos de aborto
legal há dificuldades em concretizá-lo.
Cada conceito analisado neste capítulo inicial serviu de base para o restante
do trabalho, por ter buscado observar as autonomias relativas, a biopolítica, o
biopoder, a dignidade humana e o conceito de vida, no debate sobre o aborto,
trazendo consistência para compreender em que estão pautados os argumentos das
feministas e da Igreja Católica.
Contudo, para compreender tais argumentos existentes em ambas as
instituições, dedicamos o segundo capítulo à análise da história da Igreja Católica e
do movimento feminista, trazendo à tona as mudanças existentes no pensamento
católico e como tais mudanças são utilizadas pelas feministas com o intuito de
mostrar as fissuras da mesma.
As divergências e fissuras no seio do cristianismo podem ser apontadas nos
seus inícios, devido aos grupos que seguiam modelos de conduta peculiares. Nos
concílios, a ausência de homogeneidade é nítida e demonstra que as decisões que
foram consideradas como fazendo parte do credo católico não se deram de maneira
harmônica.
Entre os Pais da Igreja, a heterogeneidade de pensamento também
predominava, tendo em vista que cada um deles priorizava questões que julgava
mais importantes.
A heterogeneidade é observável também nas várias fases da medievalidade.
A presença de centros de estudos e de pesquisas teológicas fez com que houvesse
125
grande produção que foi capaz de firmar o pensamento católico, mesmo diante da
diversidade de pensamentos.
Percebemos ainda, entre os teólogos medievais, a defesa da legitimidade do
recurso do aborto, desde que a vida da gestante estivesse em risco, caso sendo
tratado como uma exceção à norma.
No pensamento tomista, observamos também que a concepção de vida é
maleabilizada, já que a possibilidade de praticar o aborto dependende da quantidade
de semanas e de saber se trata de menino ou menina.
Com isso, observamos que o pensamento atual sobre o aborto no catolicismo
enquanto instituição veio tomar proporções radicais a partir de Pio IX no século XIX.
Antes disso, porém, o catolicismo passou por vários enfrentamentos, que
chegaram ao seu cume no período da Reforma (século XVI). Tal período é marcado
pelo racionalismo, porém as posturas conservadoras sobre os papeis sociais de
homens e mulheres permanecem.
Entre os séculos XVII e XVIII os ideais humanizadores, individualistas e de
valorização da ciência fizeram com que a Igreja Católica adotasse posturas mais
radicais, observáveis a partir do estabelecimento do Santo Ofício e do empenho das
ordens religiosas na evangelização do chamado Novo Mundo.
Como reação à perda de espaço no século XIX, a Igreja Católica buscou,
como estratégia, centralizar suas ações e influenciou vários bispos a não aceitarem
ideais racionalistas nas suas igrejas. É, portanto, nesse contexto que percebemos
uma postura mais clara da Igreja enquanto instituição sobre o aborto como atentado
contra a vida.
Em franca contraposição a esse pensamento estão as feministas, que trazem
à tona o caráter patriarcal da Igreja Católica e a heterogeneidade do seu discurso no
decorrer dos anos, e partem para um discurso de valorização da mulher,
apresentando as dificuldades por elas enfrentadas para conseguirem espaços na
sociedade.
A questão dos direitos reprodutivos é apenas uma das muitas que são
consideradas pelas organizações feministas. Contudo, o foco principal está numa
busca pela valorização das mulheres.
No caso das Católicas pelo Direito de Decidir, há uma postura diferenciada,
pois elas querem ser consideradas como católicas e, para tanto, apontam as
126
fissuras do pensamento da Igreja que permitem que elas sejam consideradas como
tais, mesmo se contrapondo ao pensamento institucional.
Foi a partir do estudo do poder de argumentação de tais grupos feministas
que se pôde considerar esses grupos como possuindo uma considerável autonomia
no debate sobre o aborto, uma vez que suas opiniões contundentes são capazes de
influenciar a política e o direito, ao rebaterem com veemência o discurso oficial da
Igreja Católica.
Conhecendo a Igreja Católica, as organizações feministas e o arcabouço
teórico que foi analisado para fundamentar esta pesquisa, partimos para um estudo
sobre o aborto em si, observando como ele funciona no contexto brasileiro com seus
valores e tabus.
Identificamos, com isso, que o aborto legal nem sempre é aceito com
tranquilidade pela sociedade brasileira. Isso ocorre por causa do conjunto de valores
existentes no país, cuja cultura religiosa faz com que, mesmo em casos nos quais a
gestante está protegida pela lei, haja uma inflexibilidade ao tentar pô-la em prática.
A situação se torna ainda mais complexa em casos nos quais o aborto é
considerado como crime, pois muitos médicos se recusam a dar continuidade aos
procedimentos iniciados na residência das mulheres por meio de remédios,
justificando-se pela ética da convicção própria da sua religião pessoal.
O próprio transtorno das gestantes que praticam o aborto permitiu observar
entre elas valores religiosos por trás dos seus angustiados discursos.
Para entender as dificuldades de aplicabilidade de tais normas buscamos na
trilogia de Miguel Reale compreender o diálogo entre fato, valor e norma, que
envolve a sociedade e os valores e tabus presentes na sociedade brasileira atual.
Esse capítulo deu suporte para compreender que os posicionamentos das
feministas e da Igreja Católica não ficam apenas entre elas, pois fundamentam o
pensamento da população brasileira frente ao aborto, no qual os contrários
interiorizaram valores religiosos e os favoráveis pensam geralmente na questão da
saúde pública e na dignidade humana da mulher com um discurso em sintonia com
o das organizações feministas.
O quarto e último capítulo foi iniciado com uma observação das Ordenações
que fundamentam o conjunto de leis que compõem as normas brasileiras e os
valores religiosos que fundamentam as mesmas.
127
Assim, apesar do considerável avanço dos discursos secularizados, o
discurso católico ainda aparece como um rio subterrâneo nas entrelinhas dos
discursos legais.
Depois da análise dos valores presentes nas normas jurídicas passamos a
analisar as polêmicas recentes do Supremo Tribunal Federal e quais os discursos de
feministas e católicos que são capazes de mobilizar as várias ações em prol ou
contra a descriminalização do aborto.
Foram escolhidos três pontos que puderam ilustrar esses posicionamentos na
sociedade brasileira, ou seja, o debate gerado em torno da ADPF 54, do Plano
Nacional de Direitos Humanos PNDH 3, dos Projetos de Lei criados pela bancada
evangélica e da luta pela descriminalização do aborto.
No caso da ADPF54, apesar dele ter sido aprovada neste ano, percebemos
que os argumentos religiosos foram bastante contundentes e se chocaram
frontalmente com o das organizações feministas. A realização de vigílias, o
argumento do direito à vida do feto e de que anencéfalos não eram mortos cerebrais
foram cruciais para protelar a conclusão desse debate. Da mesma forma, a luta
constante das feministas, trazendo a situação de mulheres obrigadas a gerar uma
criança que iria morrer, bem como todo um posicionamento marcado pelo discurso
da opressão feminina foi fundamental para conseguir suporte de outros movimentos
sociais. Assim, esse caso específico ilustrou as autonomias relativas exercidas por
ambos os grupos e a existência das éticas da convicção e da responsabilidade
presentes em cada um deles.
A construção de projetos de lei da bancada evangélica contrários ao aborto,
em defesa do direito do nascituro e do feto gerado a partir de um estupro, ilustrou
mais ainda o jogo de poderes de ambos os grupos, já que foi nítido como a rede de
apoio entre religiosos adquiriu forças e como o poder de argumentação feminista se
intensificou e buscou uma rede de apoio junto a outros movimentos sociais. A
criação de outro Projeto de lei que contemplasse de forma mais amena como
apensos àqueles definidos por deputados da bancada evangélica evidenciou a força
do discurso de ambos os lados, pois buscou contemplar cada um deles.
No caso da luta pela descriminalização do aborto pelas organizações
feministas, percebemos com maior força ainda o poder simbólico exercido pela
religião. Além disso, percebemos que o direito à vida reivindicado pelos religiosos se
torna mais contundente do que nos demais casos, pois não há peculiaridades
128
capazes de reforçar os argumentos feministas como a idéia de que se trata de
crianças que morreriam e do constrangimento de mulheres que já estavam
protegidas por lei e que estariam sendo incentivadas a terem a criança por causa do
chamado bolsa estupro.
Assim, a idéia de estado laico e o apoio da ONU às feministas tornam-se
insuficientes para fazer com que a descriminalização do aborto ocorra no país. As
ameaças à então candidata à presidência por parte de alguns bispos católicos no
ano de 2010 ilustram o poder simbólico que a Igreja Católica ainda detém na
sociedade brasileira.
Enfim, o último ponto da presente tese vem demonstrar na prática como os
dois grupos aqui escolhidos exercem grande influência no cumprimento ou não das
leis na sociedade brasileira e traz à tona quais os argumentos utilizados na tentativa
de convencer a sociedade a ser favorável ou contrária no debate sobre o aborto.
Fica nítida, portanto, a tensão nos posicionamentos dos grupos em questão que
reivindicam o seu espaço nas decisões da sociedade brasileira atual.
129
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142
Anexos
143
ANEXO A
51
ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) 54-8
Origem: DISTRITO FEDERAL Entrada no STF: 17/06/2004
Relator: MINISTRO MARCO AURÉLIO Distribuído:
Partes: Requerente: CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS TRABALHADORES NA SAÚDE -
CNTS (CF 103, IX)
Requerido :
Interessado:
Dispositivo Legal Questionado
Art. 124, 126 e 128, 00I e 0II, do Decreto-Lei nº 2848, de 07 de
dezembro de 1940 (Código Penal).
Decreto-Lei nº 2848, de 07 de dezembro de 1940.
Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem
lho provoque:
Pena - detenção, de 1 (um) a 3 (três) anos.
Aborto provocado por terceiro
Art. 126 Provocar aborto com o consentimento da gestante:
Pena - reclusão, de 1 (um) a 4 (quatro) anos.
Art. 128 Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I - se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II - se a gravidez resulta de estupro e o aborto é
precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu
representante legal.
Fundamentação Constitucional
- Art. 1º, IV
- Art. 5º, II
- Art. 6º, caput
- Art. 196
Resultado da Liminar
Decisão Monocrática - Deferida
Decisão Plenária da Liminar
51
http://www.stf.jus.br/portal/peticaoInicial/verPeticaoInicial.asp?base=ADPF&s1=54&processo=54
144
Resultado Final
Procedente
Decisão Final
Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio, Relator, resolvendo
a questão de ordem no sentido de assentar a adequação da ação
proposta, pediu vista dos autos o Senhor Ministro Carlos Britto. Em
seguida, o Tribunal, acolhendo proposta do Senhor Ministro Eros Grau,
passou a deliberar sobre a revogação da liminar concedida e facultou
ao patrono da argüente nova oportunidade de sustentação oral.
Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, referendou a
primeira parte da liminar concedida, no que diz respeito ao
sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado,
vencido o Senhor Ministro Cezar Peluso. E o Tribunal, também por
maioria, revogou a liminar deferida, na segunda parte, em que
reconhecia o direito constitucional da gestante de submeter-se à
operação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, vencidos os
Senhores Ministros Relator, Carlos Britto, Celso de Mello e Sepúlveda
Pertence. Votou o Presidente, Ministro Nelson Jobim. Falaram, pela
argüente, o Dr. Luís Roberto Barroso e, pelo Ministério Público
Federal, o Dr. Cláudio Lemos Fonteles, Procurador-Geral da República.
- Plenário, 20.10.2004.
Renovado o pedido de vista do Senhor Ministro Carlos Britto,
justificadamente, nos termos do § 1º do artigo 1º da Resolução nº
278, de 15 de dezembro de 2003. Presidência do Senhor Ministro Nelson
Jobim.
- Plenário, 09.12.2004.
Prosseguindo no julgamento, o Tribunal, por maioria, entendeu
admissível a argüição de descumprimento de preceito fundamental e, ao
mesmo tempo, determinou o retorno dos autos ao relator para examinar
se é caso ou não da aplicação do artigo 6º, § 1º da Lei nº
9.882/1999, vencidos os Senhores Ministros Eros Grau, Cezar Peluso,
Ellen Gracie e Carlos Velloso, que não a admitiam. Votou o Presidente,
Ministro Nelson Jobim.
- Plenário, 27.04.2005.
/#
Após o voto do Senhor Ministro Marco Aurélio (Relator), que
julgava procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade da
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e
II, todos do Código Penal, no que foi acompanhado pelos Senhores
Ministros Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, e o
voto do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, que julgava improcedente
o pedido, o julgamento foi suspenso. Impedido o Senhor Ministro Dias
Toffoli. Falaram, pela requerente, o Dr. Luís Roberto Barroso e, pelo
Ministério Público Federal, o Procurador-Geral da República, Dr.
Roberto Monteiro Gurgel Santos.
- Plenário, 11.04.2012.
/#
O Tribunal, por maioria e nos termos do voto do Relator, julgou
procedente a ação para declarar a inconstitucionalidade da
interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto
anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e
II, todos do Código Penal, contra os votos dos Senhores Ministros
Gilmar Mendes e Celso de Mello que, julgando-a procedente,
acrescentavam condições de diagnóstico de anencefalia especificadas
145
pelo Ministro Celso de Mello; e contra os votos dos Senhores Ministros
Ricardo Lewandowski e Cezar Peluso (Presidente), que a julgavam
improcedente. Ausentes, justificadamente, os Senhores Ministros
Joaquim Barbosa e Dias Toffoli.
- Plenário, 12.04.2012.
/#
Data de Julgamento Final
Plenário, 12.04.2012
Data de Publicação da Decisão Final
Pendente
Decisão Monocrática da Liminar
ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - LIMINAR – ATUAÇÃO
INDIVIDUAL - ARTIGOS 21, INCISOS IV E V, DO REGIMENTO INTERNO E 5º, § 1º, DA LEI Nº
9.882/99. LIBERDADE - AUTONOMIA DA VONTADE - DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - SAÚDE
-
GRAVIDEZ - INTERRUPÇÃO - FETO ANENCEFÁLICO.
1. Com a inicial de folha 2 a 25, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Saúde - CNTS formalizou esta argüição de descumprimento de preceito
fundamental considerada a anencefalia, a inviabilidade do feto e a antecipação terapêutica do parto.
Em nota prévia, afirma serem distintas as figuras da antecipação referida e o aborto, no que este
pressupõe a potencialidade de vida extra-uterina do feto. Consigna, mais, a própria legitimidade ativa
a partir da norma do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.882/99, segundo a qual são partes legítimas para a
argüição aqueles que estão no rol do artigo 103 da
Carta Política da República, alusivo à ação direta de inconstitucionalidade. No tocante à pertinência
temática, mais uma vez à luz da Constituição Federal e da jurisprudência desta Corte, assevera que a
si compete a defesa judicial e administrativa dos interesses individuais e coletivos dos que integram a
categoria profissional dos trabalhadores na saúde, juntando à inicial o estatuto revelador dessa
representatividade. Argumenta que, interpretado o arcabouço normativo com base em visão
positivista pura, tem-se a possibilidade de os profissionais da saúde virem a sofrer as agruras
decorrentes do enquadramento no Código Penal. Articula com o envolvimento, no caso, de preceitos
fundamentais, concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, em seu
conceito maior, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde.
Citando a literatura médica aponta que a má-formação por defeito do fechamento do tubo neural
durante a gestação, não apresentando o feto os hemisférios cerebrais e o córtex, leva-o ou à morte
intra-uterina, alcançando 65% dos casos, ou à sobrevida de, no máximo, algumas horas após o parto.
A permanência de feto anômalo no útero da mãe mostrar-se-ia potencialmente perigosa, podendo
gerar danos à saúde e à vida da gestante. Consoante o sustentado, impor à mulher o dever de
carregar por nove meses um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à
gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana - a
física, a moral e a psicológica - e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em
risco a saúde, tal como proclamada pela Organização Mundial da Saúde - o completo bem-estar
físico, mental e social e não apenas a ausência de doença. Já os profissionais da medicina ficam
sujeitos às normas do Código Penal - artigos 124, 126, cabeça, e 128, incisos I e II -, notando-se que,
principalmente quanto às famílias de baixa renda,
atua a rede pública.
Sobre a inexistência de outro meio eficaz para viabilizar a antecipação terapêutica do parto, sem
incompreensões, evoca a Confederação recente acontecimento retratado no Habeas Corpus nº
84.025-6/RJ, declarado prejudicado pelo Plenário, ante o parto e a morte do feto anencefálico sete
minutos após. Diz da admissibilidade da
ANIS - Instituto de Biotécnica, Direitos Humanos e Gênero como amicus curiae, por aplicação
analógica do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99.
146
Então, requer, sob o ângulo acautelador, a suspensão do andamento de processos ou dos
efeitos de decisões judiciais que tenham como alvo a aplicação dos dispositivos do Código Penal, nas
hipóteses de antecipação terapêutica do parto de fetos anencefálicos, assentando-seo direito
constitucional da gestante de se submeter a procedimento que leve à interrupção da gravidez e do
profissional de saúde de realizá-lo, desde que atestada, por médico habilitado, a ocorrência da
anomalia. O pedido final visa à declaração da inconstitucionalidade, com eficácia abrangente e efeito
vinculante, da interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal - Decreto-Lei
nº 2.848/40 - como impeditiva da antecipação terapêutica do parto em casos de gravidez de feto
anencefálico, diagnosticados por médico habilitado, reconhecendo-se o direito subjetivo da gestante
de assim agir sem a necessidade de apresentação prévia de autorização judicial ou qualquer outra
forma de permissão específica do Estado.
Sucessivamente, pleiteia a argüente, uma vez rechaçada a pertinência desta medida, seja a petição
inicial recebida como reveladora de ação direta de inconstitucionalidade. Esclarece que, sob esse
prisma, busca a interpretação conforme a Constituição Federal dos citados artigos do Código Penal,
sem redução de texto, aduzindo não serem adequados à espécie precedentes segundo os quais não
cabe o controle concentrado de constitucionalidade de norma anterior à Carta vigente.
A argüente protesta pela juntada, ao processo, de pareceres Técnicos e, se conveniente, pela
tomada de declarações de pessoas com experiência e autoridade na matéria. À peça, subscrita pelo
advogado Luís Roberto Barroso, credenciado conforme instrumento de mandato - procuração - de
folha 26, anexaram-se os documentos de folha 27 a 148.
O processo veio-me concluso para exame em 17 de junho de 2004 (folha 150). Nele lancei visto,
declarando-me habilitado a votar, ante o pedido de concessão de medida acauteladora, em 21 de
junho de 2004, expedida a papeleta ao Plenário em 24 imediato.
No mesmo dia, prolatei a seguinte decisão:
AÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL - INTERVENÇÃO DE
TERCEIRO - REQUERIMENTO - IMPROPRIEDADE.
1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer a intervenção no processo em
referência, como amicus curiae, conforme preconiza o § 1º do artigo 6º da Lei 9.882/1999, e a juntada
de procuração. Pede vista pelo prazo de cinco dias.
2. O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela
requerente.
Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também
processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade.
Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a
critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob
pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de
ofício, não é suscetível de impugnação
na via recursal.
3. Indefiro o pedido.
4. Publique-se.
A impossibilidade de exame pelo Plenário deságua na incidência
dos artigos 21, incisos IV e V, do Regimento Interno e artigo 5º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, diante do
perigo de grave lesão.
147
2. Tenho a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS
Como parte legítima para a formalização do pedido, já que se enquadra na previsão do inciso I do
artigo 2º da Lei nº 9.882, de 3 de novembro de 1999. Incumbe-lhe defender os membros da categoria
profissional que se dedicam à área da saúde e que estariam sujeitos a constrangimentos de toda a
ordem, inclusive de natureza penal.
Quanto à observação do disposto no artigo 4º, § 1º, da Lei nº 9.882/99, ou seja, a regra de que
não será admitida argüição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer
outro meio eficaz de sanar a lesividade, é emblemático o que ocorreu no Habeas Corpus nº 84.025-
6/RJ, sob a relatoria do ministro Joaquim Barbosa. A situação pode ser assim resumida: em Juízo,
gestante não logrou a autorização para abreviar o parto. A via-crúcis prosseguiu e, então, no Tribunal
de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, a relatora, desembargadora Giselda Leitão Teixeira,
concedeu liminar, viabilizando a interrupção da gestação. Na oportunidade, salientou:
A vida é um bem a ser preservado a qualquer custo, mas, quando a vida se torna inviável, não é justo
condenar a mãe a meses de sofrimento, de angústia, de desespero.
O Presidente da Câmara Criminal a que afeto o processo, desembargador José Murta Ribeiro,
afastou do cenário jurídico tal pronunciamento. No julgamento de fundo, o Colegiado sufragou o
entendimento da relatora, restabelecendo a autorização. Ajuizado habeas corpus, o Superior Tribunal
de Justiça, mediante decisão da ministra Laurita Vaz, concedeu a liminar, suspendendo a
autorização. O Colegiado a que integrado a relatora confirmou a óptica, assentando:
HABEAS CORPUS. PENAL. PEDIDO DE AUTORIZAÇÃO PARA A PRÁTICA DE ABORTO.
NASCITURO ACOMETIDO DE ANENCEFALIA. INDEFERIMENTO. APELAÇÃO.
DECISÃO LIMINAR DA RELATORA RATIFICADA PELO COLEGIADO DEFERINDO O
PEDIDO. INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. IDONEIDADE DO WRIT PARA A
DEFESA DO NASCITURO.
1. A eventual ocorrência de abortamento fora das hipóteses previstas no Código Penal acarreta a
aplicação de pena corpórea máxima, irreparável, razão pela qual não há se falar em impropriedade
da via eleita, já que, como é cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que,
evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro.
2. Mesmo tendo a instância de origem se manifestado, formalmente, apenas acerca da decisão
liminar, na realidade, tendo em conta o caráter inteiramente satisfativo da decisão, sem qualquer
possibilidade de retrocessão de seus efeitos, o que se tem é um exaurimento definitivo do mérito.
Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser
analisado por aquele ou este Tribunal.
3. A legislação penal e a própria Constituição Federal, como é sabido e consabido, tutelam a vida
como bem maior a ser preservado. As hipóteses em que se admite atentar contra ela estão
elencadas de modo restrito, inadmitindo-se interpretação extensiva, tampouco analogia in malam
partem. Há de prevalecer, nesse casos, o princípio da reserva legal.
4. O Legislador eximiu-se de incluir no rol das hipóteses autorizativas do aborto, previstas no art. 128
do Código Penal, o caso descrito nos presentes autos. O máximo que podem fazer os defensores da
conduta proposta é lamentar a omissão, mas nunca exigir do Magistrado, intérprete da Lei, que se lhe
acrescente mais uma hipótese que fora excluída de forma propositada pelo Legislador.
5. Ordem concedida para reformar a decisão proferida pelo Tribunal a quo, desautorizando o aborto;
outrossim, pelas peculiaridades do caso, para considerar prejudicada a apelação interposta,
porquanto houve, efetivamente, manifestação exaustiva e definitiva da Corte Estadual acerca do
mérito por ocasião do julgamento do agravo regimental.
Daí o habeas impetrado no Supremo Tribunal Federal. Entretanto, na assentada de julgamento,
em 4 de março último, confirmou-se a notícia do parto e, mais do que isso, de que a sobrevivência
não ultrapassara o período de sete minutos.
Constata-se, no cenário nacional, o desencontro de entendimentos, a desinteligência de
julgados, sendo que a tramitação do processo, pouco importando a data do surgimento, implica, até
148
que se tenha decisão final - proclamação desta Corte -, espaço de tempo bem superior a nove
meses, período de gestação. Assim, enquadra-se o caso na cláusula final do § 1º em análise.
Qualquer outro meio para sanar a lesividade não se mostra eficaz. Tudo recomenda que, em jogo
tema da maior relevância, em face da Carta da República e dos princípios evocados na inicial, haja
imediato crivo do Supremo Tribunal Federal, evitando-se decisões discrepantes que somente causam
perplexidade, no que, a partir de idênticos fatos e normas, veiculam enfoques diversificados. A
unidade do Direito, sem mecanismo próprio à uniformização interpretativa, afigura-se simplesmente
formal, gerando insegurança, o descrédito do Judiciário e, o que é pior, com angústia e sofrimento
ímpares vivenciados por aqueles que esperam a prestação jurisdicional.
Atendendo a petição inicial os requisitos que lhe são inerentes - artigo 3º da Lei nº 9.882/99 -, é de se
dar seqüência ao processo.
Em questão está a dimensão humana que obstaculiza a possibilidade de se coisificar uma
pessoa, usando-a como objeto. Conforme ressaltado na inicial, os valores em discussão revestem-se
de importância única. A um só tempo, cuida-se do direito à saúde, do direito à liberdade em seu
sentido maior, do direito à preservação da autonomia da vontade, da legalidade e, acima de tudo, da
dignidade da pessoa humana. Om determinismo biológico faz com que a mulher seja a portadora de
uma nova vida, sobressaindo o sentimento maternal. São nove meses de acompanhamento, minuto a
minuto, de avanços, predominando o amor. A alteração física, estética, é suplantada pela alegria de
ter em seu interior a sublime gestação. As percepções se aguçam, elevando a sensibilidade. Este o
quadro de uma gestação normal, que direciona a desfecho feliz, ao nascimento da criança. Pois bem,
a natureza, entrementes, reserva surpresas, às vezes desagradáveis. Diante de uma deformação
irreversível do feto, há de se lançar mão dos avanços médicos tecnológicos, postos à disposição da
humanidade não para simples inserção, no dia-a-dia, de sentimentos mórbidos, mas, justamente,
para fazê-los cessar. No caso da anencefalia, a ciência médica atua com margem de certeza igual a
100%. Dados merecedores da maior confiança evidenciam que fetos anencefálicos morrem no
período intra-uterino em mais de 50% dos casos. Quando se chega ao final da gestação, a sobrevida
é diminuta, não ultrapassando período que possa ser tido como razoável, sendo nenhuma a chance
de afastarem-se, na sobrevida, os efeitos da deficiência. Então, manter-se a gestação resulta em
impor à mulher, à respectiva família, danos à integridade moral e psicológica, além dos riscos físicos
reconhecidos no âmbito da medicina. Como registrado na inicial, a gestante convive diuturnamente
com a triste realidade e a lembrança ininterrupta do feto, dentro de si, que nunca poderá se tornar um
ser vivo. Se assim é - e ninguém ousa contestar -, trata-se de situação concreta que foge à glosa
própria ao aborto - que conflita com a dignidade humana, a legalidade, a liberdade e a autonomia de
vontade. A saúde, no sentido admitido pela Organização Mundial da Saúde, fica solapada, envolvidos
os aspectos físico, mental e social. Daí cumprir o afastamento do quadro, aguardando-se o desfecho,
o julgamento de fundo da própria argüição de descumprimento de preceito fundamental, no que idas
e vindas do processo acabam por projetar no tempo esdrúxula situação.
Preceitua a lei de regência que a liminar pode conduzir à suspensão de processos em curso, à
suspensão da eficácia de decisões judiciais que não hajam sido cobertas pela preclusão maior,
considerada a recorribilidade. O poder de cautela é ínsito à jurisdição, no que esta é colocada ao
alcance de todos, para afastar lesão a direito ou ameaça de lesão, o que, ante a organicidade do
Direito, a demora no desfecho final dos processos, pressupõe atuação imediata. Há, sim, de
formalizar-se medida acauteladora e esta não pode ficar limitada a mera suspensão de todo e
qualquer procedimento judicial hoje existente. Há de viabilizar, embora de modo precário e efêmero, a
concretude maior da Carta da República, presentes os valores em foco. Daí o acolhimento do pleito
formulado para, diante da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o
ambiente de desencontros em pronunciamentos judiciais até aqui notados, ter-se não só o
sobrestamento dos processos e decisões não transitadas em julgado, como também o
reconhecimento do direito constitucional da gestante de submeter-se à operação terapêutica de parto
de fetos anencefálicos, a partir de laudo médico atestando a deformidade, a anomalia que atingiu o
feto. É como decido na espécie.
3. Ao Plenário para o crivo pertinente.
4. Publique-se.
Brasília, 1º de julho de 2004, às 13 horas.
- Acórdão, DJ 31.08.2007.
149
/#
Decisão Monocrática Final
Incidentes
O Tribunal, por decisão unânime, deliberou que a apreciação da matéria fosse julgada em
definitivo no seu mérito, abrindo-se vista dos autos ao Procurador-Geral da República.
Presidência do senhor Ministro Nelson Jobim.
- Plenário, 02.08.2004.
Petição/STF nº 75.796/2004
TERCEIRO - ADMISSIBILIDADE NO PROCESSO - INDEFERIMENTO - RECONSIDERAÇÃO
- IMPROPRIEDADE.
TERCEIRO - JUNTADA DE DOCUMENTOS.
1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil - CNBB - requer seja reconsiderada a decisão - cópia
em anexo - proferida por Vossa Excelência, na qual negou a respectiva intervenção, como amicus
curiae, no processo em referência.
2. Nada há a reconsiderar no caso. A atuação de terceiro pressupõe convencimento do relator sobre
a conveniência e a necessidade da intervenção. Reporto-me ao que consignei quando formalizado
pela vez primeira o pleito:
O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente. Seria dado versar sobre a
aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de
inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade.
Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a
critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob
pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de
ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal.
3. Indefiro o pedido formulado e, ante essa óptica, determino a devolução à requerente da peça
reveladora do respectivo estatuto.
4. Publique-se.
Brasília, 3 de agosto de 2004.
Petição/STF nº 81.135/2004
TERCEIRO - ADMISSIBILIDADE.
1. Eis as informações prestadas pela Assessoria:
A Católicas pelo Direito de Decidir requer a intervenção no processo em referência, como amicus
curiae, conforme preconiza o artigo
7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, e a juntada de procuração e de documentos.
2. Valho-me do que tive oportunidade de consignar relativamente a pleito da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil:
O pedido não se enquadra no texto legal evocado pela requerente.
Seria dado versar sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº 9.868/99, que disciplina também
processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação declaratória de constitucionalidade.
Todavia, a admissão de terceiros não implica o reconhecimento de direito subjetivo a tanto. Fica a
critério do relator, caso entenda oportuno. Eis a inteligência do artigo 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, sob
pena de tumulto processual. Tanto é assim que o ato do relator, situado no campo da prática de
ofício, não é suscetível de impugnação na via recursal.
3. Indefiro o pedido.
4. Publique-se.
Brasília, 3 de agosto de 2004.
Petição/STF nº 95.645/2004
DECISÃO
TERCEIRO - ADMISSIBILIDADE - RECUSA - IRRECORRIBILIDADE.
1. Eis as informações prestadas pelo Gabinete:
ADEF - Associação de Desenvolvimento da Família - interpõe agravo regimental contra a decisão -
cópia em anexo - proferida por Vossa
150
Excelência, na qual indeferiu a respectiva intervenção, como amicus
curiae, no processo em referência.
Consigno a publicação da mencionada decisão no dia 30 de agosto deste ano e protocolização do
recurso em 8 do mês em curso.
2. A decisão atacada versa sobre a aplicação, por analogia, da Lei nº
9.868/99, que disciplina também processo objetivo - ação direta de inconstitucionalidade e ação
declaratória de constitucionalidade.
Conforme consignado, a admissão de terceiro não implica o reconhecimento de direito subjetivo a
tanto. Fica a critério do relator, caso entenda oportuno. Na própria decisão agravada, restou
esclarecido que o ato do relator mediante o qual admite, ou não, a intervenção não é passível de
impugnação na via recursal - artigo 7º, §
2º, da Lei nº 9.868/99.
3. Ante o quadro, nego seguimento ao agravo, cuja peça deverá ser devolvida à agravante.
4. Publique-se.
Brasília, 10 de setembro de 2004.
Ministro MARCO AURÉLIO
/#
O Tribunal, por unanimidade e nos termos do voto do Relator, desproveu o recurso de agravo.
Votou o Presidente, Ministro Gilmar Mendes. Ausentes, licenciado, o Senhor Ministro Joaquim
Barbosa e, neste julgamento, a Senhora Ministra Ellen Gracie.
- Plenário, 26.11.2008.
- Acórdão, DJ 06.02.2009.
/#
Ementa
ADPF - ADEQUAÇÃO - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO -
POLÍTICA JUDICIÁRIA - MACROPROCESSO. Tanto quanto possível, há de ser dada seqüência a
processo objetivo, chegando-se, de imediato, a pronunciamento do Supremo Tribunal Federal. Em
jogo valores consagrados na Lei Fundamental - como o são os da dignidade da pessoa humana, da
saúde, da liberdade e autonomia da manifestação da vontade e da legalidade -, considerados a
interrupção da gravidez de feto anencéfalo e os enfoques diversificados sobre a configuração do
crime de aborto, adequada surge a argüição de descumprimento de preceito fundamental.
ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA
PENAL -
PROCESSOS EM CURSO - SUSPENSÃO. Pendente de julgamento a argüição de descumprimento
de preceito fundamental, processos criminais em curso, em face da interrupção da gravidez no caso
de anencefalia, devem ficar suspensos até o crivo final do Supremo Tribunal Federal.
ADPF - LIMINAR - ANENCEFALIA - INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ - GLOSA
PENAL -
AFASTAMENTO - MITIGAÇÃO. Na dicção da ilustrada maioria, entendimento em relação ao qual
guardo reserva, não prevalece, em argüição de descumprimento de preceito fundamental, liminar no
sentido de afastar a glosa penal relativamente àqueles que venham a participar da interrupção da
gravidez no caso de anencefalia.
/#
PROCESSO OBJETIVO - CURATELA. No processo objetivo, não há espaço para
decidir sobre a curatela.
GRAVIDEZ - FETO ANENCÉFALO - INTERRUPÇÃO - GLOSA PENAL. Em Processo revelador de
argüição de descumprimento de preceito fundamental, não cabe, considerada gravidez, admitir a
curatela do nascituro.
151
ANEXO B
Carta da presidência da CNBB52
Brasília, 06 de abril de 2012
P - Nº 0328/12
Exmos. e Revmos. Srs.
Cardeais, Arcebispos e Bispos
Em própria sede
ASSUNTO: Vigília de Oração pela Vida, às vésperas do dia 11/04/12, quarta feira.
DGAE/2011-2015: Igreja a serviço da vida plena para todos (nn. 65-72)
“Para que TODOS tenham vida” (Jo 10,10).
CF 2008: “Escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19).
CF 2012: “Que a saúde se difunda sobre a terra” (Eclo 38,8).
Irmãos no Episcopado,
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil jamais deixou de se manifestar como voz
autorizada do episcopado brasileiro sobre temas em discussão na sociedade, especialmente
para iluminá-la com a luz da fé em Jesus Cristo Ressuscitado, “Caminho, Verdade e Vida”.
Reafirmando a NOTA DA CNBB (P – 0706/08, de 21 de agosto de 2008) SOBRE ABORTO DE
FETO “ANENCEFÁLICO” REFERENTE À ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO
FUNDAMENTAL Nº 54 DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, a presidência solicita aos irmãos
no episcopado:
Promoverem, em suas arqui/dioceses, uma VIGÍLIA DE ORAÇÃO PELA VIDA, às vésperas do
julgamento pelos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a possibilidade legal do
“aborto de fetos com meroanencefalia (meros = parte), comumente denominados anencefálicos”
(CNBB, nota P-0706/08).
Informa-se que a data do julgamento da ADPF Nº 54/2004 será DIA 11 DE ABRIL DE 2012,
quarta feira da 1ª Semana da Páscoa, em sessão extraordinária, a partir das 09 horas.
Com renovada estima em Jesus Cristo, nosso Mestre Vencedor da morte, agradecemos aos
irmãos de ministério em favor dos mais frágeis e indefesos,
Cardeal Raymundo Damasceno Assis, Arcebispo de Aparecida, Presidente da CNBB
Dom José Belisário da Silva, Arcebispo de São Luiz, Vice Presidente da CNBB
Dom Leonardo Steiner, Bispo Auxiliar de Brasília, Secretário Geral da CNBB.
52
http://www.domtotal.com/noticias/detalhes.php?notId=429144
152
ANEXO C sociais públicas que permitam seu
desenvolvimento sadio e harmonioso e o seu
PROJETO DE LEI N° 489, DE 200753 nascimento, em condições
(Do Sr. Odair Cunha) dignas de existência.
Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro
e dá outras providências.
Art.ao Ao nascituro é assegurado, através
Despacho: Apense-se à(ao) PL478/ do Sistema Único de Saúde - SUS, o
2007. atendimento em igualdade de condições com
a criança.
Apreciação Proposição sujeita à apreciação do Art. 9° É vedado ao Estado e aos particulares
Plenário. discriminar o nascituro, privando-o da
O Congresso Nacional decreta: expectativa de algum direito, em razão do
Das disposições preliminares sexo. idade, etnia, da origem,
da deficiência física ou mental ou da
Art. 1° Esta lei dispõe sobre a proteção
probabilidade
integral
da sobrevida.
ao nascituro.
Art. 100 nascituro deficiente terá à sua
Art. 2° Nascituro é o ser humano concebido,
disposição todos os meios terapêuticos e
mas ainda não nascido.
profiláticos existentes para prevenir. reparar ou
Parágrafo único - O conceito de nascituro
minimizar sua deficiência, haja ou não
inclui os seres humanos concebidos "in vitro" ,
expectativa de sobrevida extra-uterina.
os produzidos através de clonagem ou por
Art. 11 O diagnóstico pré-natal respeitará o
outro meio científico e eticamente aceito.Art.
desenvolvimento
3°O Nascituro adquire personalidade jurídica
e a integridade do nascituro e estará
ao nascer com vida, mas sua natureza
orientando
humana é reconhecida desde a concepção, para sua salvaguarda ou sua cura individuai.
conferindo-lhe proteção jurídica através deste
estatuto e da lei civil e penal. § 1°O diagnóstico pré-natal deve ser
Parágrafo único - O nascituro goza do direito precedido
à vida, à integridade física, à honra, à imagem do consentimento dos pais, e os mesmo
e de todos os demais direitos de deverão ser satisfatoriamente Informados.
personalidade. § 2° Évedado o emprego de métodos de
Art. 4° É dever da família, da sociedade e do diagnóstico pré-natal que façam a mãe ou o
Estado assegurar ao nascituro, com absoluta nascituro correrem riscos desproporcionais ou
prioridade, a expectativa do direito à VIda. à desnecessários.
saúde. à alimentação, à dignidade, ao Art. 12 É vedado ao Estado e aos particulares
respeito, à liberdade e à convivência familiar, causar qualquer dano ao nascituro em razão
além de colocá-lo a salvo de toda forma de de ato
negligência, discriminação. exploração, delituoso cometido por algum de seus
violência, crueldade e opressão. genitores.
Art. 5° Nenhum nascituro será objeto de Art. 13 O nascituro concebido em ato de
qualquer forma de negligência, discriminação, violência
exploração, violência, crueldade e opressão, sexual não sofrerá qualquer discriminação ou
sendo punido, na forma da lei, qualquer restrição
atentado, por ação ou omissão. à expectativa de direitos, assegurando-lhe, ainda, os
seguintes:
dos seus direitos.
Art. 6° Na interpretação desta lei, levar-se-ão I - direito prioritário à assistência pré-natal,
em conta os fins sociais a que ela se dirige, as com acompanhamento psicológico da
exigências gestante;
do bem comum, os direitos e deveres 11 - direito a pensão alimentícia equivalente a
individuais e coletivos, e a condição peculiar 1
do nascituro como futura pessoa em (um) salário mínimo, até que complete dezoito
desenvolvimento. anos,
Dos direitos fundamentais não sendo identificado o genitor, ou se for
Art. 7° O nascíturo deve ser objeto de políticas insolvente,
a obrigação recairá sobre o Estado;
111 - no caso de genitor identificado, será ele
responsável pela pensão alimentícia. cabendo
53
Projeto de lei n° 489, 2007 Diário da câmara ao Poder
Judiciário fixar seu valor, não podendo ser
dos deputados. ano LXII. n° 062. Brasília,
inferior a 1 (um) salário mínimo;
quinta-feira, 5 de abril, 2007,p 14735-14738
153
IV - direito prioritário à adoção, caso a mãe agente deixa de prestar imediato socorro à
não queira assumir a criança após o vítima, não procura diminuir as conseqüências
nascimento; do seu ato ou foge para evitar prisão em
Art. 14 A doação feita ao nascituro, somente flagrante.
será possível com a concordância de seu § 2° o Juiz poderá deixar de aplicar a pena. se
representante legal. as conseqüências da infração atingirem o
Art. 15 Sempre que, no exercício do poder próprio agente de forma tão grave que a
familiar, colidir o interesse dos pais com o do sanção penal se torne desnecessária.
nascituro, o Art. 24 Anunciar processo, substância ou
Ministério Público requererá ao juiz que objeto destinado a provocar aborto:
nomeie curador especial. Pena: detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e
Art. 16 Dar-se·á curador ao nascituro, se o pai multa.
falecer estando grávida a mulher. e não tendo Parágrafo único - A pena é aumentada em um
o poder familiar. terço se o processo. substância ou objeto são
Parágrafo único - Se a mulher estiver interdita, apresentado
seu curador será o do nascituro. como se fossem exclusivamente
Art. 17 O nascituro tem legitimidade para anticoncepcionais.
suceder. Art. 25 Congelar, manipular ou utilizar
14736 Quinta·feira 5 DIÁRIO DA CÂMARA DOS nascituro como material de experimentação:
DEPUTADOS Abril de 2007 Pena: Detenção de 1 (um) a 3 (três) anos e
Art. 18 A mulher que, para a garantía dos mu~a.
direitos do filho nascituro, quiser provar seu Art. 26 Referir-se ao nascituro com palavras
estado de gravidez. requererá ao juiz que. ou expressões manifestamente depreciativas:
ouvido o órgão do MinistérIo Público, mande Pena: Detenção de 1 (um) a 6 (seis) meses
examiná-Ia por médico de e multa.
sua nomeação. Art. 27 Exibir ou veicular, por qualquer meio de
§ 10 O requerimento será instruído com a comunicação, informações ou imagens
certidão de óbito da pessoa de quem o depreciativas ou injuriosas à pessoa do
nascituro nascituro:
é sucessor; Pena: Detenção de 6 (seis) meses a 1 (um)
§ 2° Será dispensado o competente exame, se ano
os herdeiros do falecido aceitarem a e multa.
declaração da requerente; Art. 28 Fazer publicamente apologia do aborto
§ 3° Em hipótese alguma, a falta do exame ou de
prejudicará os direitos do nascituro. quem o praticou, ou incitar publicamente a sua
Art. 19 Apresentado o laudo que reconheça a prática:
gravidez, o juiz, por sentença. declarará a Pena: Detenção de 6 (seis) meses a 1 (um)
requerente investida na posse dos direitos que ano e multa.
assistam ao nascituro. Art. 29 Induzir mulher grávida a praticar aborto
Parágrafo único - Se à requerente não couber ou oferecer-lhe ocasião para que o pratique:
o exercício do poder familiar, o juiz nomeará Pena: Detenção de 1 (um) a 2 (dois) anos e
curador multa.
ao nascituro. Disposições finais
Art. 20 O nascituro será representado em Art. 30 Os arts. 124, 125 e 126 do Código
juízo, ativa e passivamente, por quem exerça Penal
o poder familiar, (Decreto-lei n° 2.848. de 7 de dezembro de
ou por curador especial. 1940) passam
Art. 21 Os danos materiais ou morais sofridos a vigorar com a seguinte redação:
pelo nascituro ensejam reparação civil. "Art. 124 .
Dos crimes em espécie Pena: reclusão de 1 (um) a 3 (três) anos
Art. 22 Os crimes previstos nesta lei são de (NR).
ação pública incondicionada. Art. 125 .
Art. 23 Causar culposamente a morte do Pena: reclusão de 6 (seis) a 15 (quinze)
nascituro: anos (NR).
Pena: detenção de 1 (um) a 3 (três) anos. Art. 126 ..
§ 1° a pena é aumentada de um terço e o Pena: reclusão de 4 (quatro) a 10 (dez) anos
crime resulta de inobservância de regra (NR)".
técnica de profissão. arte ou ofício, ou se o Art. 31 O art 1° da Lei n° 8.072, de 25
de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos),
passa a vigorar com o acréscimo do seguinte
154
incisoVIII: sentença declaratória de seus direitos após
Art. 1° . comprovada a gravidez de sua mãe (arts. 877
VIII - aborto (arts. 124 a 127 (NR)". e 878, Código de Processo Civil).
Art. 32 Esta lei entrará em vigor após cento e O presente Estatuto pretende tornar integral a
vinte dias de sua publicação oficial. proteção ao nascituro, sobretudo no que se
Sala das Sessões, 20 de março de 2007. - refere aos direitos de personalidade. Realça-
Deputado se, assim. o direito à vida, à saúde, à honra, à
Odair Cunha. integridade ffsica, à alimentação, à convivência
Justificação familiar, e proíbe-se qualquer forma de
Em 25 de março de 2004, o Senado dos discriminação que venha a privá-lo de algum
Estados Unidos da América aprovou um direito em razão do sexo, idade, etnia. da
projeto de lei que concede à criança por aparência, da origem, da deficiência física ou
nascer (nascituro) o status de pessoa, no caso mental, da expectativa de sobrevida ou de
de um crime. No dia 1° de abril, o presidente delitos cometidos por seus genitores.
americano sancionou a lei, chamada "Unborm A proliferação de abusos com seres humanos
Víctims of Víolence Acf'(Lei dos Nascituros não nascidos, incluindo a manipulação. o
Vítimas de Violência). congelamento, o descarte e o comércio de
De agora em diante. pelo direito norte- embriões humanos. a condenação de bebês à
americano, se alguém causar morte ou lesão a morte por causa de deficiências físicas ou por
uma criança, no ventre causa de crime cometido por seus pais, os
Abril de 2007 DIÁRIO DA CÂMARA DOS planos de que o bebês sejam clonados e
DEPUTADOS Quinta-feira 5 14737 de sua mãe, mortos com o único fim de serem suas células
responderá criminalmente pela morte ou lesão transplantadas para adultos doentes. tudo isso
ao bebê, além da morte ou lesão à gestante. requer que, a exemplo de outros paises como
Na Itália, em março de 2004, entrou em vigor a Itália, seja promulgada uma lei que
uma lei que dá ao embrião humano os interrompa tamanhas atrocidades.
mesmos direitos de um cidadão. Outra inovação do presente Estatuto refere-se
Em 2005, os deputados Osmânio Pereira, à parte penal. Cria-se a modalidade culposa
Elimar Damasceno e outros, apresentaram o do aborto (que até hoje só é punível a título de
dolo), o crime (que hoje é simplesmente
Projeto de Lei contravenção penal) de anunciar processo,
n° 6.150. que foi arquivado nos termos do Art. substância ou objeto destinado a provocar
105 do aborto, elencam-se vários outros crimes contra
Regimento Interno da Câmara dos Deputados. a pessoa do nascituro e, por fim, enquadram-
Por se tratar de tema de extrema importância se o aborto entre os crimes hediondos.
e sendo o Brasil, signatário do Pacto de São Transcrevo o trecho de artigo publicado na
José da Costa Rica. que determina a revista jurídica Consulex, de autoria da ilustre
existência de leis que disponham, promotora de justiça do Tribunal do Júri do
exclusivamente, sobre a proteção integral ao Distrito Federal. Ora.
nascituro, trago novamente à discussão o Maria José Miranda Pereira:
referido tema. "Como Promotora de Justiça do Tribunal
O presente projeto de lei, chamado "Estatuto do Júri. na missão constitucional de defesa da
do Nascituro", elenca todos os direitos a ele vida humana e também na qualidade de
inerentes, na qualidade de criança por nascer. mulher e mãe. repudio o aborto como um
Na verdade, refere-se o projeto a expectativa crime nefando Por incoerência de nosso
de direitos, os quais, como se sabe, gozam de ordenamento jurídico. o aborto não está
proteção jurídica, podendo ser assegurados incluído entre os crimes hediondos (Lei n°
por todos os meios moral e legalmente 8.072/90), quando deveria ser o primeiro
aceitos. deles. Embora o aborto seja o mais covarde
Vários desses direitos, já previsto em leis de todos os assassinatos, é apenado tão
esparsas, foram compilados no presente brandamente que acaba enquadrando-se
Estatuto. Por exemplo, o direito de o nascituro entre os crimes de menor potencial ofensivo
receber doações (Leis dos Juizados Especiais 9.099/95), noto,
(art. 542, Código Civil), de receber um curador com tristeza, o desvalor pela vida da criança
especial quando seus interesses colidirem por nascer.
com os de seus pais (art. 1.692, Código Civil), Os métodos empregados usualmente em um
de ser adotado (art. 1.621, Código Civil). de se aborto não podem ser comentados durante
adquirir herança (arts. 1.798 e 1799, Código uma refeição. O bebê é esquartejado (aborto
Civil), de nascer (art. 7°, Estatuto da Criança e por curetagem), aspirado em pedacinhos
do Adolescente), de receber do juiz uma (aborto por sucção), envenenado por uma
155
solução que lhe corri a pele (aborto por injustiça se esta proposição tramitasse em
envenenamento salino) ou simplesmente conjunto com tantas outras, que tratam apenas
retirado vivo e deixado morrer à míngua de pequenas parcelas do tema que aqui se
(aborto por cesariana). Alguns demoram muito propõe.
para morrer, fazendo-se necessário ação Queira Deus que esta Casa de Leis se
direta para acabar de matá-los, se não se quer empenhe o quanto antes em aprovar este
colocá-los na lata de lixo ainda vivos. Se tais Estatuto, para a alegria das crianças por
procedimentos fossem empregados para nascer e para orgulho desta pátria.
matar uma criança já nascida. sem dúvida o
crime seria homicídio qualificado. Por um Sala das Sessões, 20 de março de 2007. -
inexplicável preconceito de lugar, se tais Deputado
atrocidades são cometidas dentro do útero (e Odair Cunha.
não fora dele)
o delito é de Segunda ou terceira categoria,
um "crime de bagatela~".
O nobre deputado Givaldo Carimbão teve a
idéia de incluir o aborto entre os crimes
hediondos.
Tal sugestão é acolhida no presente Estatuto.
É verdade que as penas continuarão sendo
suaves para um crime tão bárbaro, mas
haverá um avanço significativo em nossa
legislação penal. O melhor de tudo é que,
reconhecido o aborto como crime hediondo,
não será mais possível suspender o processo,
como hoje habitualmente se faz, submetendo
o criminoso
14738 Quinta-feira 5 DIÁRIO DA CÂMARA DOS
DEPUTADOS Abril de 2007
a restrições simbólicas, tais como: proibição
de frequentar determinados lugares, proibição
de ausentar-
se da comarca onde reside sem autorização
do juiz, comparecimento pessoal e obrigatório
a juízo, mensalmente, para informar e justificar
suas atividades, etc. (cf. Lei 9.099/95, art. 89).
A pena para o aborto será cadeia de verdade!
Parece até um sonho diante da impunidade
reinante neste pafs para quem mata
criancinha.
Por ser um projeto inovador, peço atenção
especial aos nobres pares. Seria tremenda
156
ANEXO D
PL1763/0754
"Art. 1º Os crimes de estupro terão investigação e persecução penais prioritárias.
Art. 2º Na hipótese de estupro devidamente comprovado e reconhecido em processo judicial, com
sentença transitada em julgado, de que tenha resultado gravidez, deverá o Poder Público:
I – colocar gratuitamente à disposição da mulher toda assistência social, psicológica, pré-natal e por
ocasião do parto e puerpério;
II – orientar e encaminhar, através da Defensoria Pública, os procedimentos de adoção, se assim for
a vontade da mãe;
III – conceder à mãe que registre o recém nascido como seu e assuma o pátrio poder o benefício
mensal de um salário mínimo para reverter em assistência à criança até que complete dezoito anos.
Art. 3º O pagamento será efetuado pelos Conselhos dos Direitos da Criança e do Adolescente, com
recursos oriundos do Fundo Nacional de Amparo à Criança e ao Adolescente.
Art. 4º A fraude engendrada para caracterizar o estupro, para qualquer finalidade, será punida com
reclusão de um a quatro anos e multa, sem prejuízo da devolução da importância recebida de má-
fé, corrigida monetariamente.
Art. 5º As delegacias de polícia ficam obrigadas a informar às vítimas de estupro os direitos
assegurados por esta lei, bem como as penalidades previstas em caso de fraude.
Art. 6º Esta lei entra em vigor no prazo de noventa dias a partir da data de sua publicação."
54
<http://jus.com.br/revista/texto/11049/projeto-de-lei-no-1-763-2007
bolsaestupro#ixzz269pXn1lS>
157
ANEXO E Art. 2º Nascituro é o ser humano
concebido, mas ainda não nascido.
COMISSÃO DE SEGURIDADE Parágrafo único. O conceito de
55
SOCIAL E FAMÍLIA nascituro inclui os seres humanos
PROJETO DE LEI No 478, DE 2007 concebidos ainda que “in vitro”,
(Apensos os PLs 489/07, mesmo antes da transferência para o
1.763/07e 3.748/08 ) útero da mulher.
Dispõe sobre o Estatuto do Nascituro Art. 3º Reconhecem-se desde a
e dá outras providências. concepção a dignidade e
Autor: Deputado LUIZ BASSUMA e natureza humanas do nascituro
MIGUEL MARTINI conferindo-se ao mesmo plena
Relatora: Deputada SOLANGE proteção jurídica.
ALMEIDA § 1º Desde a concepção são
I – COMPLEMENTAÇÃO DE VOTO reconhecidos todos os direitos do
Na reunião deliberativa desta nascituro, em especial o direito à vida,
Comissão, realizada no dia 19 de maio à saúde, ao desenvolvimento e à
de 2010, após a leitura do parecer, foi integridade física e os demais direitos
proposto modificação o texto do da personalidade previstos nos arts.
substitutivo, no caput do art. 13, ao 11 a 21 da Lei nº10.406, de 10 de
final da frase, acrescenta-se a janeiro de 2002.
expressão: ( Ressalvados o disposto § 2º Os direitos patrimoniais do
no Art. 128 do Código Penal nascituro ficam sujeitos à condição
Brasileiro). resolutiva, extinguindo-se, para todos
Ante o exposto, voto pela aprovação os efeitos, no caso de não ocorrer o
do PL 478/07 e dos nascimento com vida.
apensados PL 489/07, PL 1.763/07 e Art. 4º É dever da família, da
PL 3.748/08, nos termos do novo sociedade e do Estado assegurar ao
substitutivo que apresento. nascituro, com absoluta prioridade, o
Sala da Comissão, em de 2010 direito à vida, à saúde, ao
Deputada SOLANGE ALMEIDA desenvolvimento, à alimentação, à
Relatora dignidade, ao respeito, à liberdade e à
2 família, além de colocá-lo a salvo de
COMISSÃO DE SEGURIDADE toda forma de negligência,
SOCIAL E FAMÍLIA discriminação, exploração, violência,
SUBSTITUTIVO AO PROJETO DE crueldade e opressão.
LEI No 478, DE 2007 Art. 5º Nenhum nascituro será objeto
Dispõe sobre a proteção ao de qualquer forma de negligência,
nascituro. discriminação, exploração, violência,
O Congresso Nacional decreta: crueldade e opressão, sendo punido
Art. 1º Esta lei dispõe sobre normas de na forma da lei, qualquer atentado, por
proteção ao nascituro. ação ou omissão, aos
seus direitos.
Art. 6º Na interpretação desta lei,
55 levar-se-ão em conta os fins sociais a
<http://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&
esrc=s&source=web&cd=2&ved=0CCoQFjAB&url=h
que ela se destina, as exigências do
ttp%3A%2F%2Fwww.camara.gov.br%2Fproposicoe bem comum, os direitos e deveres
sWeb%2Fprop_mostrarintegra%3Bjsessionid%3D0
591ACCA0D56100EE41016E299BEF3E6.node1%3Fc
odteor%3D770928%26filename%3DTramitacao‐
PL%2B478%2F2007&ei=5CdPUO9TgYD1BKedgcgF&
usg=AFQjCNFAm62nPoKiVM_xvxeoJCk‐dyFACg>
158
individuais e coletivos, e a condição Art. 12. É vedado ao Estado ou a
peculiar do nascituro como pessoa em particulares causar dano ao nascituro
desenvolvimento. em razão de ato cometido por
Art. 7º O nascituro deve ser qualquer de seus genitores.
destinatário de políticas sociais que Art. 13. O nascituro concebido em
permitam seu desenvolvimento sadio e decorrência de estupro terá
harmonioso e o seu nascimento, em assegurado os seguintes direitos,
condições dignas de existência. ressalvados o disposto no Art. 128 do
Art. 8º Ao nascituro é assegurado Código Penal Brasileiro:
atendimento através do I – direito à assistência pré-natal, com
Sistema Único de Saúde – SUS. acompanhamento psicológico da mãe;
Art. 9º É vedado ao Estado e aos II – direito de ser encaminhado à
particulares discriminar adoção, caso a mãe assim o deseje.
o nascituro, privando-o de qualquer § 1º Identificado o genitor do nascituro
direito, em razão do sexo, da idade, da ou da criança já nascida, será este
etnia, da origem, de deficiência física responsável por pensão alimentícia
ou mental. nos termos da lei.
Art. 10. O nascituro terá à sua § 2º Na hipótese de a mãe vítima de
disposição os meios terapêuticos e estupro não dispor de meios
profiláticos disponíveis e proporcionais econômicos suficientes para cuidar da
para prevenir, curar ou minimizar vida, da saúde do desenvolvimento e
deficiências ou patologia. da educação da criança, o Estado
4 arcará com os custos respectivos até
Art. 11. O diagnóstico pré-natal é que venha a ser identificado e
orientado para respeitar e responsabilizado por pensão o genitor
salvaguardar o desenvolvimento, a ou venha a ser adotada a criança, se
saúde e a integridade do nascituro. assim for da vontade da mãe.
§ 1º O diagnostico pré–natal deve ser Art. 14. Esta lei entra em vigor na data
precedido de consentimento informado da sua publicação.
da gestante.
§ 2º É vedado o emprego de métodos Sala da Comissão, em dezembro de
para diagnóstico pré-natal que causem 2010.
à mãe ou ao nascituro, riscos Deputada SOLANGE ALMEIDA
desproporcionais ou desnecessários. Relatora
159
ANEXO F Nós, participantes do
2º Encontro das Comissões
Apelo a Todos os Brasileiros Diocesanas em Defesa da Vida
e Brasileiras56 (CDDVs), organizado pela Comissão
NOTA DA COMISSÃO EPISCOPAL REPRESENTATIVA DO
em Defesa da Vida do Regional Sul 1
CONSELHO EPISCOPAL REGIONAL SUL 1 ‐ CNBB da CNBB e realizado em S. André no
dia 03 de julho de 2010,
A Presidência e a Comissão Representativa dos ‐ considerando que, em abril de 2005,
Bispos do Regional Sul 1 da CNBB, em sua no IIº Relatório do Brasil sobre o
Reunião ordinária, tendo já dado orientações e
Tratado de Direitos Civis e Políticos,
critérios claros para “VOTAR BEM”, acolhem e
recomendam a ampla difusão do “APELO apresentado ao Comitê de Direitos
ATODOS OS BRASILEIROS E BRASILEIRAS” Humanos da ONU (nº 45) o atual
elaborado pela Comissão em Defesa da Vida do governo comprometeu‐se a legalizar
Regional Sul 1 que pode ser encontrado no
seguinte endereço eletrônico
o aborto,
“www.cnbbsul1.org.br”.
‐ considerando que, em agosto de
S 2005, o atual governo entregou ao
ão Paulo, 26 de Agosto de 2010. Comitê da ONU para a Eliminação de
todas as Formas de Descriminalização
contra a Mulher (CEDAW) documento
no qual
reconhece o aborto como Direito
Humano da Mulher,
‐ considerando que, em setembro de
2005, através da Secretaria Especial
de Polítíca das Mulheres, o atual
governo apresentou ao Congresso um
Dom Nelson Westrupp, scj substitutivo do PL 1135/91,
Dom Benedito Beni dos Santos
Dom Airton José dos Santos como resultado do trabalho da
Comissão Tripartite, no qual é
Presidente do CONSER-SUL 1 proposta a descriminalização do
Secretário Geral do CONSER SUL 1 aborto até o nono mês de gravidez e
Vice-presidente do CONSER-SUL 1 por qualquer motivo, pois com a
eliminação de todos os artigos do
56 Código Penal, que o criminalizam, o
<http://www.domluizbergonzini.com.br/2011/01
/apelo‐todos‐os‐brasileiros‐e.html>
160
aborto, em todos os casos, deixaria como moderna estratégia do
de ser crime, capitalismo internacional,
‐ considerando que, em setembro de ‐ considerando que, em fevereiro de
2006, no plano de governo do 2º 2010, o IVº Congresso Nacional do PT
mandato do atual Presidente, ele manifestou apoio incondicional ao
reafirma, embora com linguagem 3º Plano Nacional de Direitos
velada, o compromisso de legalizar o Humanos (PNDH3), decreto nª
aborto, 7.037/09 de 21 de dezembro de
2009, assinado pelo atual Presidente
‐ considerando que, em setembro de
e pela ministra da Casa Civil, no qual
2007, no seu IIIº Congreso, o PT
se reafirmou a descriminalização do
assumiu a descriminalização do
aborto, dando assim continuidade e
aborto e o atendimento de todos os
levando às últimas consequências
casos no serviço público como
esta política antinatalista de controle
programa de partido, sendo o
populacional, desumana, antisocial e
primeiro partido no Brasil a assumir
contrária ao verdadeiro progresso do
este programa,
nosso País,
‐ considerando que, em setembro de
‐ considerando que este mesmo
2009, o PT puniu os dois deputados
Congresso aclamou a própria ministra
Luiz Bassuma e Henrique Afonso por
da Casa Civil como candidata oficial
serem contrários à legalização do
do Partido dos Trabalhadores para a
aborto,
Presidência da República,
‐ considerando como, com todas
‐ considerando enfim que, em junho
estas decisões a favor do aborto, o PT
de 2010, para impedir a investigação
e o atual governo tornaram‐se ativos
das origens do financiamento por
colaboradores do Imperialismo
parte de organizações internacionais
Demográfico que está sendo imposto
para a legalização e a promoção do
em nível mundial por Fundações
aborto no
Internacionais, as quais, sob o
Brasil, o PT e as lideranças
falacioso pretexto da defesa dos
partidárias da base aliada
direitos reprodutivos e sexuais da
boicotaram a criação da CPI do
mulher, e usando o falso rótulo de
abortoque investigaria o assunto,
“aborto ‐ problema de saúde
pública”, estão implantando o RECOMENDAMOS encarecidamente
controle demográfico mundial a todos os cidadãos e cidadãs
161
brasileiros e brasileiras, em no texto “A Contextualização da
consonância com o art. 5º da Defesa da Vida no Brasil”
Constituição Federal, que defende a (http://www.cnbbsul1.org.br/arquivo
inviolabilidade da vida humana e, s/defesavidabrasil.pdf), elaborado
conforme o Pacto de S. José da Costa pelas Comissões em Defesa da
Rica, desde a concepção, Vida das Dioceses de Guarulhos e
independentemente de sua Taubaté, ligadas à Comissão em
convicções ideológicas ou Defesa da Vida do Regional Sul 1 da
religiosas, que, nas próximas CNBB, ambos disponíveis no site
eleições, deem seu voto somente a desse mesmo Regional.
candidatos ou candidatas e partidos
COMISSÃO EM DEFESA DA VIDA DO
contrários à descriminalizacão do
REGIONAL SUL 1 DA ‐ CNBB
aborto.
Fonte: Diocese de Assis ‐São Paulo
Convidamos, outrossim, a todos para
lerem o documento “Votar Bem” Postado por Dom Luiz Gonzaga
Bergonzini às 14:22
aprovado pela 73ª Assembléia dos
Bispos do Regional Sul 1 da CNBB,
reunidos em Aparecida no dia 29 de
junho de 2010 e verificarem
as provas do que acima foi exposto
162
ANEXO G
Terço dos Santos Inocentes57
• Sinal da Cruz: entregando a vida pela defesa da vida dos pequeninos do Senhor em risco
de serem abortados.
• Um Pai Nosso
• Uma Ave-Maria
• Um Glória ao Pai
• Apresente suas intenções para o terço
• Nas contas grandes: Eterno Pai nós vos oferecemos o Corpo, Sangue, Alma e Divindade de
vosso filho nosso senhor Jesus Cristo em expiação de nossos pecados e dos pecados do
mundo inteiro, especialmente o pecado do aborto. Jesus vós sois a vida: ajuda a nossa luta
em defesa da vida e livrai os bebezinhos da maldição do aborto.
• Nas contas pequenas: Santos inocentes mártires, rogai por nós!
• Após a 10ª conta: Deus Santo, Deus forte, Deus imortal, tende piedade de nós e do mundo
inteiro (3x)
• Após o 5º mistério: Salve Rainha e Glória ao Pai.
57
Conferir em: < http://devocaoefe.blogspot.com.br/2012/04/hoje‐no‐stf‐julgamento‐sobre‐aborto‐de.html>
163
ANEXO H
Comemoração das Feministas diante da aprovação do Supremo
Tribunal Federal58
Anexo I59
58
Foto retirada de:
<http://www.viomundo.com.br/voce‐
escreve/movimento‐feminista‐aplaude‐decisao‐do‐
stf.html>
59
Foto retirada
de:<http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/religi
osos-fazem-vigilia-em-frente-ao-stf-contra-
aborto-de-anenc/n1597738469760.html>