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Leitura Obrigatria Dominick LaCapra Trauma Histria Memria Identidade.

O capítulo discute a complexa relação entre trauma, história, memória e identidade, enfatizando a necessidade de uma abordagem crítica que não opõe história e memória de forma binária. A pesquisa histórica pode contestar memórias coletivas, mas também é influenciada por elas, o que requer uma investigação mais profunda sobre como o trauma afeta a formação da identidade. O texto sugere que a compreensão do trauma e suas repercussões deve ser integrada ao estudo da história e da memória, considerando suas interações e impactos mútuos.

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Leitura Obrigatria Dominick LaCapra Trauma Histria Memria Identidade.

O capítulo discute a complexa relação entre trauma, história, memória e identidade, enfatizando a necessidade de uma abordagem crítica que não opõe história e memória de forma binária. A pesquisa histórica pode contestar memórias coletivas, mas também é influenciada por elas, o que requer uma investigação mais profunda sobre como o trauma afeta a formação da identidade. O texto sugere que a compreensão do trauma e suas repercussões deve ser integrada ao estudo da história e da memória, considerando suas interações e impactos mútuos.

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CAPÍTULO 3

Trauma, história,
memória, identidade:
oque resta?

Apesardo. considerável volume de trabalho já dedicado ao tema, o


nexoentre trauma. história, memória eidentidade ainda despertaamplo
86e. e ainda há muitoa ser investigado tanto no nível empírico
te no teórico.0 O desatio em curso éabordar o tema sem opor
história e memória de modo binário, mas sim questionando as relações
nis complexas e desafiadoras entre ambos, assim como aquilo que não
Aabrangido pelo binário. Este relato tenta estabelecer uma agenda de
pesgquisa que émultitacetada, mas com componentes conceitualmente
inter-relacionados que pedem pesquisa e pensamento adicionais.
Apesquisa histórica baseada em fontes escritas e fontes documen
tais relacionadas a elas pode contestar oucorrigir a memória individual
ou coletiva, mas o oposto também pode ocorrer. Oprimeiro caso tem
em geral sido a ênfase muitas vezes cogente de historiadores. Neste

Paris: Gallimard,
*Ver, por exemplo, NORA, Pierre (ed.). Les Lieux de mémoire.
Oxford:
1984. 3v.; OLICK,Jeffrey K. et al. (ed.). The Collective Memory Reader.
SCHWARZ, Bìl (ed.).
Oxtord University Press, 2011; RADSTONE, Susannah;
Press, 2010;RICCEUR,
Memory, History, Debates. New York: Fordham University
Blamey and David Pellauer.
Paul. Memory, Histor, Forgetting. Transl. Kathleen
STONE, Dan (ed.). The Holocaust
ncago: University of Chicago Press, 2004; KANSTEINER, Wult.
Historical Methodology. New York: Berghahn, 2012;
Critique of Collective Memory
Pndng Meaning in Memory:AMethodological 2002; KANSTEINER, Wulf.
Studies. History and Tlheory, n. 41,p. 179-197, May
Intellectual History of the Cultural
Genealogy of a Category Mistake: A Critical 193-221, 2004. Ver tambéno
Trauma Metaphor. Rethinking History, n. 8, p.
meu History and Memory after Auschuitz, esp. cap. 1.

131
ToAUMA HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE RESTA?
da
des1merecer o valor e a inportância pesquisa de arquiv,
relato, sem útima possibilidade, isto é. a esforços de memória podem estar sujeitos a crítica, mas isso não leva
concentrar na de a
vou me história (ou à historiografia). De nem a desconsiderar todas as abordagens da memória nem a mini-
colocar
questões à
vouindicar em que aspectos as maneiraMemneesóra mizar a pressão
às vezes traumática do passado e seu
envolvimento
sariamente seletiva, padro, assim comO as
em arquivos
escritos
podem, como a proprna
histórreiiasvinbadisecaamdas
obras que
memória.
Com o
presente, ou sua intrusão nele. Defendo a
história de uma abordagem crítica, mas que não desmereça o estudo
relevância para a
histórico,
estatuto suplementadas e meSImo contestadas ser problem da memória, do traumae da formação de identidade, e discuta novos
ticas e utilmente memória. Na realidade, o que ou
por umapelo à
liga
comgu trabalhos importantes, assim como indique apertinencia continuada
os váios casos
neles, da
com os quais
memória
trabalho
lido é a questão do
traumática (ou dos
da memória) que se
papel da
efeitos concetua l
pós-traumáticos)
m ente
memoa
de alguns trabalhos já mais antigos na área,
Emtrabalhos recentes, o trauma ocupa, e muitas vezes com boas
razões, um lugar importante nos estudos da memória.93 Oraunma
memória (ou do
pós-traumáticos esuplementa fontes escritas, às
vezes
a efeito contrapöe destaca de manera marcante a importância do afeto e de seu im
Écaroque os próprios arquivOs esCritOs COstumam ser renost
relatos baseados na
corrigindo- pacto na memória, apontando tanto para a memóia traumática na
forma de efeitos pós-traumáticos (compulsões à repetição, reações
de testemunhos e de vários memória, Oque é
indicação adicional da dubiedade de uma dicotomia
e o renmemorado ou oral. O que gera ansiedade e se
entreO esctito história genuína, incluindo historiadores que haviam se destacado no estudo da
tionamento na história escrita pode ser projetado
aques- abre memória, como Pierre Nora e Henry Rousso. Rousso, em sua obra de 1994

espécie de bode expiatório,"exclusiDevament e Vichy un passé qui ne passe pas (Vichy um passado que não passa; estudo dedicado
na memóna como uma àmemória do regime colaboracionista estabelecido na França sob
qualquer nazista] (em coautoria com Eric Conant), apontou a memóia judaica como
ocupacão
modo, é enganoSO ver a memória apenas ou mesmo distintamente
como o locus de uma tentativa de absorver a história ou como ums excessiva, e Nora, emn entrevista de 2006, chegou a se referir à sua anterior
menção a uma "tirania" acrescentando-lhe uma acusação de "terorismo" de
busca equivocada de patrimônio, um passado mais real ou "presente" uma memória agressiva" e "patológica" no discurso público francès. (Ver
ou identidade não problemática (ou "políticas identitárias"), Certos ROTHBERG, Michael. Multidirectional Memory: Rememnbering the Holocaust in the
Age of Decolonization. Stanford: Stanford University Press, 2009. p. 269.) Sobre
essas e questões correlatas, ver também o lúcido relato de Carolyn ]. Dean, em
Talvez se possa detectar aqui uma inversão do processo de que trata Aversion and Erasure: The Fate of the Victim after the Holocaust (Ithaca, NY: Comell
Jacques
Derrida em uma dimensão de seu Of Grammatology (transl., with a preface, University Press, 2010). A suspeita ou mesmno rejeição dos estudos da memória.
Gayatri Chakravorty Spivak, 1967; Baltimore: Johns HopkinsUniversity Pres, assim como a postulação de uma oposicão decisiva entre história e
memóna,
1974; edição de 40° aniversário em 2016) edição brasileira: Da manteve-se em certas abordagens da história. Ver, por exemplo, HARTOG
Paulo: Perspectiva, 1973|. Como observei no capítulo 1, gramatologua. a0 François. Time and Heritage. Museum, n. 57, p. 7-17, 2005; KLEIN, Kerwin Lee.
pode-se priig
documentos escritos em relacão à oralidadee à memória e ao mesm0 tcuy Onthe Emergence of Memory in Historical Discourse.
Representations, n. 69, p.
colocar como bode expiatório o 'outro" 127-150, 2000; e SPIEGEL, Gabrielle. Memory and History: Liturgical Time
subordinado ao projear
euM, seam quais forem, de ansiedade no self ou na entidade dominant and Historical Time. History and Theory, n. 41, p. 149-162, May 2002 (em que
argumento
a
geral que eu extrairia de Derrida é que a escrita eaoralidade (ou spiegel chega àquestionável conclusão de que a historiografia moderna postula
memória) são sistemas de inscrição de traços instituídos que podemopert uma aguda divisão entre passado e presente e mant¿m opassado no pASsado).
diferentemente em contextos históricos e SOciais variados, mas não devemser Ver um lúcido panorama eeral em LUCKHURST. The Trauma Question. E
interpretadosdeem termos de uma oposição binária decisiva quefuncione como0 Dem a acauteladora inquirição etnográfica dos usos e abusos politicos de se
mecanismo
2 Na
bode
expiatório. ear ao trauma e àvitimização em FASSIN, Didier; RECHTMAN, Richard.
década de
1990, Cxpressaramfortes 1he Empire of Trauna: An Inguiry into the Condition of Victimhood [2007). Transl.
Teservas eaté uma historiadores
franca hostilidade importantes
a estudos da na
memória
Françacomo nocivosaums Kachel Gomme, Princeton: Pinceton University Press, 2009.

133
132
rOAUMA, HISTÓRIA, MEMÓRIA, IDENTIDADE: OQUE RESTA?

exageradas, transtoInOs graves do


de
sobressaltoou
entre outros)
como para o
desafio
de sono, pesadey o presente-
emcerto sentido atémesmo ainda preso a problemas

Supceerdlaidboo.Á-hNen
recorrentes, nunca totalmente bem-S não repetidamente revivido ou confundido com ele.
mas talvez do VivOS ,
mas
passado relativamente recente o trauma se tornou
modo viável, investigar o traumae os efeitos Apenas em um
diso,
importante

de modo
quenào
investigaçãode
Imais
tiquem
outros
isolados, ao
contrári0,
problemas significativos,possam
aS
pós-raunaticoy
ser
cOmo Teliglaacdooess
à geraisentre história e memória, envolvendo o papel do teste.
umapreOcupação

e
historiogratia, mesmo com respeitO a eventos
na

processos nos quais seu papel

oestilo de
deveria ser evidente. Ainda assim,
uma abordagem predominante na historiografia, em sua

históriaoral. Leea de fatos objet1ficados, pronta legibilidade, anedotas diverti


munhoe da experièncias ou proCessos narrativa Auidas eequilibrio clássico, ameaça tirar o trauma do
eventos e das,

abuso,traumatpodeicOSm,
Traumas e trauma. Tal narrativa pode ser como um biombo de memória que
formas
de violência e
genocídios e outras perturbadores, talvez traumáticos ou, em termos
como vínculos e imitar o que poSsa oculte fenômenos
envolver duplos adequação. Mas há dimensõesser
que
grau de
algum ser
compodem representadas, e devem, da maneira m
do reprtraeusmaenttiacd,g
mais lúcida e
mais gerais,
turalmente
problemas que pediriam abordagem diferente, mas cul-
variável, não codificável. Notadamente em certas áreas
literária e em formas correlatas de teoria crítica, a reação
vínculo usual, que precisa ser da crítica
possível. Um duplo uma orientação amenizadora pode levar ao extremo oposto de
precisa
por quem quer que lide com o traumático, está bem expresso no negocado interpretar o trauma como uma incompreensível afronta à compre-
psicanalistas
subtítulo de um livro de dois
sentença final do
franceses, que brincam ensao.5 Nessa vertente, otrauma assume as vezes a forma de uma
com uma variação da Tractatus, de experiência totalmente indizível, um vácuo de ilegibilidade, o "real'"
Wit genstein:
Sobre aquilo de que nãose pode falar, não se pode calar. 94 Pois silencios
lacaniano insimbolizável, ou mesmo o sublime objeto de infindável
nodem também talar åsua maneira e ter uma dimensão perfo melancolia e impossível luto.
iva que nãoédesprovida de significado objetivo e força morl A.
próprias rupturas ou lacunas de um relato, como um testemunh
coma rei.
podem atestar expernências disruptivas e se relacionar 5 Ver, de Cathy Caruth, Undlaimed Experience: Trauma, Narative, and History
(Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1996). Uma linha de pensamento
vência de um trauma que faz o passado colapsar dentro do presente, infuente (mas não a única) no trabalho da autora enfatiza a maneira como o
fazendo-0 parecer ou ser sentido como mais "real" e "presente" "trauma, portanto, parece evocar a dificil verdade de uma história que é constituída
do que as circunstâncias contemporäneas. Quanto ao trauma, uma pela própria incompreensibilidade de sua ocorrência". Em contraste com a
simples postulação não ésuficiente para se distinguir passado de memória traunmática enquanto "Aashback ou reencenação traumática", que, para o
sobrevivente, presumivelmnente expressa "tanto a verdade de umn evento como a
presente, e pode funcionar para ocluiro papel do trauma edos verdade de sua incompreensibilidade", a narrativa e a integração àmemóna rAzem uma
efeitos pós-traumáticos. A capacidade de fazer uma distinção ete perda de precisão e, além disso, "outro desaparecimento, mais profundo: a perda,
tiva, não enganosa, depende de perlaborar aexperiência traumatia Justamente, da incompreensibilidade essencial do evento (traumático], a força de
epós-traumática de uma maneira que requer, inter alia, trabalho Sua afronta àcompreenso" (CARUTH, Cathy. Recapturing the Past: Introduction.
de memória que situeotrauma em um passado relacionado cou In: CARUTH, Cathy led.]. Trauma: Explorations in Memory. Baltimore: Johns
Hopkins University Press, 1995. p. 153-154). O evento traumáico, que traz
uma "experiência de choque'" incompreensível, parece supor, pelo menos via
4 Ver DAVOINE, Françoise; GAUDILLIERE, Jean-Max. Historyad ThaunA. Seus eteitos posteriores, unm estatuto valorizado ou mesmo sublnne que bloqueia
MANDEL dcompreensão histórica e talvez até processos de perlaboração.
Transl. Susan Fairfield. New York: Other Press, 2004. Ver também Irauma,
Slaveryin Amenia oODre esse e tennas afins, ver especialmente nmeu Wniting History, Wnting
Naomi. Against the Unspeakable: (lthaca, NY:
Charlottesville: University Complicity, the Holocaust, and
of Virginia
dssimconmo History in Transit: Experience, ldentity, Cntical Theory
Press, 2006.
135
134
TOAJMA, HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE RESTA
de fato um aspecto
causas sâo
trauma e suas
O
história, que
como
deveser
não
algo que
disfarçado ou negado.
evOca uma p roe
experiências ar
i
incompreensibilidadenm
Mas
tein
rpen
ret
te &a Em Haunting Legacies: Violent Histories and Transgenerational Trau-
leva em conta trabalhos bem
umlivroimportante que
de situar otrauma em anteriores,
trauma dimensoes dos eventos e das
esenca ma,
Gabriele
Schwab destaca o valor
é
obscurecer
quese
prestam a uma
compreensão mesmo que
incidÃncia do trauma ou mitigar e traumatco%
limitada eque pode e
históriasde violência mais amplos. Ela enfatiza especialmnente oestudo
transmissão inter ou transgeracional do trauma e seus efeitos ou
contextos

efeitos. Essas
a
ajudar aevitardimensões incluem esforços para elaborar e
pós-traumáticosscompulsivos ao possibilitar
contrapOT-pseerlaboraseus
a da
Sintomas nos descendentes, tanto de vítimas quanto de perpetradores.
último respeito, muito importante para Schwabe também em
eteitos
co, abrirfuturos possíveis e diminuir ou eliminar causas
preconceito, eleição de bodes de julgamentotraunacrti. Aesse
nsmais gerais é o trabalho, baseado em entrevistas e testemunhos
de Dan Bar-On, com judeus e alemães, israelenses e palestinos."
históricos,como o
extremas diferenças de riqueza,
status e poder. 97 expiatórios e
Imas;insuficientemente validada, parece ser que traumas que ocasionem mudanças
2004), esp. cap. 3, "Trauma psicossomáticas profundamente disruptivas podem ter
Cornell University Press,
Vicisitudes". Ver também BALL, Karyn. Disciplining theStudies: Its Criticsad consequências genéicas.
Esse argumento controverso concernente àtransmissão genética de efeitos do

State University of New York Press, 2009, que trata da Holocaust.


incômoda Albamy: truma proveria um correlato biológico ao argumento relativo à transmisso
dos afetos na academia,
entre eles sadomasoquismo e raiva. O que questao nsiquica e social intergeracional, mas cabe ressaltar que aquela não seria uma
desestabilização empática (que resiste a uma
identificação não chamo de condicão necessária para esta. Ver THOMPSON, Helen. Study of Holocaust
nclur, ao menoS no)ambiente acadêmico, não raiva, mas ultraje, que é
mediada)
pode Surivors Finds Trauma Passed On to Children's Genes. The Guardian, Aug.
¢s
crítico. vezes pode também trazer moderado 21, 2015. Disponível em: http://www.theguardian.com/science/2015/aug/21/
etestado por julgamento uma sensação
de vuinerabilidade edesempoderamento. Em seu importante livro sobre d study-of-holocaust-survivors-finds-trauma-passed-on-to-childrensgenes. Acesso
escritos durante oHolocausto, Amos Goldberg apregoa uma retificaçãoou mesmo em: 22 ago. 2015. Oartigo original, "Holocaust Exposure Induced Efects on
EKPBS Methylation", de Rachel Yehuda et al., encontrava-se no prelo, em
uma mudança em boa parte da historiografia anterior, "direcionando aatencdia
para dimensões e aspectos do tema que têm sido em grande nmedida ignorador 2015, em Biological Psychiatry: AJournal of PsychiatricNeurosience and Therapeutics.
radical desintegração, lacunas e rupturas na narrativa, a penetração do 'outro' edisponível on-line em htp://dx.doi.org/10.1016/j.biopsych.2015.08.005.
nazista no relato judaico atémesmo nas próprias vOzes das vítimas - DLC] . "m Ver SCHWAB, Gabriele. Haunting Legacies: Violent Histories and Transgeneratioal
acima de tudo, o extremo desamparo dos judeus durante o Holocausto". Ver Trauma. New York: Columbia University Press, 2010. Ver também BAR-ON,
GOLDBERG, Amos. Trauma in First Person: Diary Writing during the Holocawt. Dan. Legacy of Silence: Encounters with Children of the Third Reich. Cambridge,
Bloomington: Indiana University Press, 2017. p. 258. Uma seção especialment MA: Harvard University Press, 1989, e Tell Your Life- Story: Creating Dialogue
interessante do livro compara os diários do judeu de Dresden Victor Klemperer, among Jews and Germans, Israelis and Palestinians. Budapest: Central European
University Press, 2006. Um dos entrevistados e discutidos por Bar-On é
de orientaço secular, convertido ao protestantismo, casado com uma nåo juda Martin Bormann, que carregou o nome infame de seu pai, sentiu o fardo
esobrevivente do Holocausto, e de Chaim Kaplan, ijudeu ortodoxo, morto el
Varsoviaecujo di£rio indica maneiras como odiscurso nazista às vezes oinvaud de seu legado, teve uma vida dificil, mas com o tempo emergiu como uma
para criar uma espécie de zona cinzenta em sua identidade. pessoa que continuamente deu testemunho do passado. Ver também MUCCI,
Clara. Beyond Individual and Collective Trauma: Intergenerational Transmission,
Sem ter expertise para oferecer um comentário crítico, vou simples1mentefazer
uma menção prudente a um estudo recente de uma equipe de pesquisa do
Psychoanalytic Treatment, and the Dynamics of Forgiveness. London: Karnac
Books, 2013. Ver ainda FRIE, Roger. Not in My Family: German Memory
Hospital Monte Sinai de New York, liderado por Rachel Yehuda. Eleatirma and Responsibility after the Holocaust. New York: Oxford University Press,
que mudarnças genéticas decorrentes de trauma sofrido porsobreviventesdo
refere-sei
2017, que oferece um cuidadoso entrelaçamento transdisciplinar de narativa
Holocausto podem sertransmitidas a seus filhos, Essa afirmação histórica, comentário psicanalítico e memória pessoal sobre oenvolvimento
chamada herança epigenética, antes associada a Lamarck e designada como parentes no regme nazista no nível dos alemâes
"comuns", E ver FRIE.
plausivel
herança de caracterDsticas adquiridas. Aqui, oque penso ser
asuposição p Oger (ed.). History Flows through Us: Gennany, the Holocaust, andthe Importance

137
136
COMPREENDER OUTKOS
TOAUMA. HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE RESTA2

significativostanmbémsão os textos clássicos. às


Muito psicanalistas Nicolas Abraham e Maria veZes
Esse trabalho bastante
ou uma depressão crônica. Asegunda geração e, ela também ar-
dos
dificeis,
tas vezes se
apoiam em sua
prática clínica 99
crítica
da
Torok, forque mutmu-o gumenta,
possivelmente as geraçöes
futuras - DLC] recebe desse
modo histórias violentas nåo apenas por meio de efetivas
Dernda, em sua
importante para ontologia e
famosa, chamo,, sua : memórias
ourelatos de pais (pós-memória), mas por meio tambem de traços
expressao
em direção ao queele, em eseus gunada de afeto, particularmente
afetos que
logia",em que o
passado fantasmas" assombram o especto e nãoassimiláveis"
(p. 14). permanecem não integrados
comfrequência de maneiras
aideia do "fantas1ma"
elusivas einfamiliares.
transgeracional que retorna
para
Abraham elpraeborsentgeu, o Schwab escreve também:

presenteemrelação
a crimes ou transgressoes que não perturbar
foram Não seria plausível que filhos de perpetradores fossem as
pera-
borados (ou, em seu conceito preferndo, "introjetados'» , em contraste sombrados por crimes cometidos pela geração de seus pais?
com incorporados, conmo uma espécie de inconsciente Reconhecer os efeitos transgeracionais desse assombramento
para se libertar., mas cujas
não reprimido não desculpa ou absolve de modo algum esses
que não exerce pressão "criptas" descenden
ser expostas e desencriptadas). Um exemplo famoso que Abraham devem tes de perpetradores de assumir responsabilidade por seu
explora éo fantasma do pai de Hamlet. que, legado. Ao contrário, tal perspectiva sistêmica sugere que
Cometeu um crime secreto, nào assumido. que
segundo especula
ele, gs ness0as não têm escolha, exceto ser reativas e
sem trégua para assombrar seu melancólico filho, Uma
Condiciona
seu retomo
responsabilidade pela história que herdaram, não importa
assumir

elementar dessa linha de pensamento éé que um espectro ou fantasma implicaçio de que lado da divisão tenham nascido. E nesse
ocontrovertido termo
sentido que
seja como metáfora, seja como alucinação, éuma forma de Kollektivschuld, isto é, a transmissão
traumática ou de efeito pós-traumático.
memóna transgeracional de culpa e vergonha, pode ser usado de
Schwab éuma acadêmica criada na Alemanha do pós-guea maneiras produtivas (p. 26).
que entrelaça em seu relato a memória de algumas das suas expe Eu preferiria me referir aos sentimentos de culpae vergonha dos
nências como criança que cresceu numa nação que échamada de descendentes relacionados àtransmissão transgeracional de sintomas
perpetradora. Ela ressalta a importância de fenômenos que talvez ou eteitos do trauma - processo que, segundo Schwab, não deveria
nunca cheguem a constar de um arquivo escrito:"Crianças de uma Ser
negado, melancolicamente afirmado ou tornado sublime, e sim
geração parental traumatizada [...] tornam-se ávidos leitores de arduamente perlaborado. Nisso os descendentes de vítimas e de per
silencios e vestígios da memória escondidos em um rosto que esu petradores podem talvez compartilhar algo importante, pois herdam
congelad0 em pesar, com um sorriso forçado que não e Sentuo um fardo pelo qual não são culpados, mas podem se sentir ass1m, e
Como muito adequado, um surto de raiva sem motivaçao apatc pelo qual eles, dentro de certos limites, respondem e podem
assum1r
responsabilidade. Também observaria que, apesar do culto nazIsta da
dureza, que pode servir para impedir atraumatizaço dos perpetrado-
of Empathy. New York: Oxford University Press, 2017, que reúne umacoleçio res, casos de
de
ensaios com material
trauma de perpetradores junto àtransmissåo de efeitos
maneiras interatuantes deinformativo sobre trauma
tentar compreender
transgeracional e explora
o passado Com a major precsi0 traumáicos adescendentes de perpetradores irianm contradizer abem
e empatia possiveis. conhecida asserção de Himmler em seu discurso (ou discursos) de
99 Esses textos
estão em parte reunidos em The Shell and the Kenel,. editado&
Posen de outubro de 1943 de que a matança nazista de judeus não
traduzido, com comentário, por Nicholas Rand(Chicago::UniversityofChicago ena causado nenbuma deformacão lou dano em nóS, em
nossa
Press,1994. v. 1). alma, em nosso caráter" (keinen Schaden in unserem Innern, in unserer
139
138
oAUMA HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE RESTA?

Charakter).l0 Nãofoi esse o casO para


Secle, in nnserem
muitos,perpetradores, pelo menos em relação a seus alguns, talve e enforcado em Nuremberg como importante criminoso de
e pessoaspróxinas.
Fica evidente
no filme Shoah (1985), de Claude descendernte, enquanto
Otto Von

julgado. Quase no
final do filme, em uma
viagem a Lviv
guerra,
Wächter foi indiciado, mas fugiu e nunca foi
(Lemberg,
dificuldade de conseguir testenmunhos de
trevistadorrecorra a
truques e mesmo a
perpetradores Lanumnzman ,
mentiras, comosem que oen-
a
sob os nazzistas), onde eles visitam uma sinagoga incendiada e cam-
posde extermínio próximos, Niklas, cada vez mais perturbado pela
indisposição de Horst em aceitar os crimes do pai, conclui que não
guarda de Treblinka, Franz
Suchomel. No
diálogo
com o
2015 de Adam
Benzine,
mann (em termos
que
Claude Lanzmann: espectros
do
lembram perturbadoramente o testemunho
document
Shoah,áioLanz-
de pode mais compartimentalizar sua amizade com Horst ou divorciar
ahomem de suas Visoes e apegos inaceitáveis 101
em Shoah) narra a terrível surra Hásinais de que Niklas Frank fosse assombrado de forma
de Abrahan1 Bomba que darecebeu perturbadora por sua relação com o pai, que praticamente não
ao ser flagrado com uma câmera por outro ex-integrante SS. A
Jchncia de perpetradores em cometat suas açoes, especialme. demonstrava afeto por ele na intância e tinha fortes suspeitas (com
quanto a práticas genocidas, é
uma das razões
pelas quais se fica in- toda probabilidade infundadas) de não seropai biológico de Ni
clinado a levar muito asério e dar
especial klas. Sands reporta as palavras de Niklas: "Eu sou contra a pena
destaque
a certos trechos de morte', disse ele sem emoção, exceto para o meu pai'", Niklas
dos discuSOs de Himmler em Posen, em outubro de 1943,
pois neles
temos um grande protagonista do Holocausto que em certo sentido
carrega na sua "carteira uma pequena foto em branco e preto. Uma
imagem do corpo de seu pai, estendido numa cama de campanha,
testemunha não para gente de fora, quando poderíamos esperar m
houvesse evaso e tergiversação, e sim para o alto escalão, que pode. inerte, tirada poucos minutos após seu enforcamento, com uma
mos supor que esteja sintonizado com o que Himmler está dizendo etiqueta grudada no peito". Desse bizarro memento mor, Niklas diz:
«Todo dia olho para issopara relembrar a mim mnesmo, para
Às vezes, filhos de perpetradores ainda mais importantes podem ter certeza de que ele estámorto". 102
se mostrar mais dispostos a entrevistas. Nesse sentido é pertinente o Como talvez mnuitos outros filhos de perpetradores (mesmo
documentário de Philippe Sands, A Nazi Legacy: What Our Fathers o filho mais exemplar de Martin Bormann), Horst von Wichter
Did (2015), que mostra extensas entrevistas com os filhos de dois tenta dissociar ou dividir o pai em uma persona boa e outra rUim,
mportantes perpetradores, Niklas, filho de Hans Frank (Gauleter para se aferrar àe afirmar a boa, e, sem muita
|chete provincial] do Generalgouvernement [a porção da Polona a má. O bom paiétipicamente o homem de família,
assertividade, rejeitar
ocupada pelos nazistas)), e Horst, filho de Otto von Wächter (Gal privado, que
ofilho ainda pode amar, enquanto o mau pai éo homem
leiter da Galícia). Apesar de amigos desde a infanciae com o fardo ae poliico
envolvido e talvez comprometido com a ideologia nazista e mesmo
passados aparentemente similares, Niklas e Horst têm reações bem com os crimes correlatos. Horst, no entanto, faz uma dissociaçao
divergentes (e, sem dúvida, sobredeterminadas). Niklas Frank craca
duramente erepudia com veemência seu pai ee os CrimeS quecomne-
teu, enquanto Horst von Wächter se mantém como filho devotado e Ver tambémo livro mais abrangente de Sands, baseado em memória, testemunho
defende as ações do pai do jeito como as vÁ. Hans Frank foi julgado Oral e documentos de arguivo, East West Street: On the Origins of Genoiade and
es againstHumanity. Uma das epigrafes desse livro, que muitas vezes lembra
0 estilo um texto de W. G. Sebald. é do artigo de Nicolas Abraham "Notes
Para unma tradução desse trecho do discurso de Himmler, ver AHolocaust Reader, On the Phantom" (1975): Ogue assombra não são os mortos, mas as lacunas
editado etraduzido por Lucy Dawidowicz(West Orange, NJ: Behrman House, deixadas dentro de nós pelos segredos de outros
1976), p. 133. .
ESANDS, East West Street, p. 350.

140 ]41
TRAUMA, HISTORIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE RESTA2

homem político que, como


separar o ele
adicionalao
mente
continuou bom e liberal" em relação
acredita, presumivelmente
qual
estaria implicado
nazista, como engrenagem não responsável pelo
iapenas
mplaoausrievcomogmeel. Cenecialmente na geraça0 mais recente, os testemunbos gonbo
ram destaque especial, como gênero que perpassa o oraleo escrito, i96
Agravação
em vídeo levanta a questão do digital e de
seu estatuto
um dente de
regime.103 Mais assumida e talvez
mais ímpeto quase
as- Como fonteem que o oral e o escrito têm
interação sustentada, por
tônomo do
prejudicada do que
memória de seu pai
Gudrun Burwitz.
Horst von Wächter em sua cega
é a filha de Heinrich Himmler. a
Gudrun, nascida em 1929, a vida
ideotodalogdeicneonazidaimcaeçãnostte
à
exemplo, no artigo, vídeo ou blog on-line, que
comentários feitos mais Ou menos de
têm o sabor
de
improviso,
respostas orais. Ao lado de seu
nunmerosos
que muitas vezes
possível valor como
evidência, dar testemunho pode, por si, ser crucial para
ativam

opai (talvez identificada com ele), procurou, mesmo que de for-


convincente, redimir sua imagem e ajudou o
defendeu perlaborar
en1mnae seus Sintomas, e as vezes uma das razões para sobreviTer
ma nào
oua terem a
melhor outroS nazistas
defesa juridica possivel deseio (numa expressao bastante repetida) de contar a própria
kia O testemunho também evidencia de forma
a fugirem
acusações. Ela culpa a propaganda
aliada por manchar diante das aguda o papel da
de Himmler e tem sido intrans1gente em seu apoio bom nome
à ideologia
memóia, pois é tipicamente ela que permite ås testemunhas o acesso
período pós-guerra. Muitas vezes é citada
nazista no (e
por neonazistas) como "a princesa do nazismo"104
Num admi rada
enfoque 106Ver por exemplo, minha discussão em Writing History, Witing
3 0papel de Geoffrey Hartman no
Trauma. can.
mais positivo, pode-se em certos aspectos ver os escritos de WG arquivo Fortunoff, de Yale, tem sido
esnecialmente destacado, mas existem agora vàrios outTOS arquivos de vídeo.
Sebald (cujo pai serviu na Polônia. mas Se
recusou a comentar Ver. de Hartman, The Longest Shadow
Suas
experiências de guerra) como uma tentativa de aceitar um nascd (Bloomington: Indiana
1996). Ver também WIEVIORKA, Annette. The Era of theUniversity Press.
manifestamente assombroso. 105 Transl. Jared Stark. Ithaca, NY: Cornell University Press, Witness [1998].
2006. Os lesados
traumáticos da escravido e do tratamento dispensado a
EstadosUnidos compõem um vasto assunto sobre o qual afro-americanos
muito se tem
nos
103Não se deve atribuir consistência lógica ao esforço de Horst von Wächter par Menciono apenas dois textos bem conhecidos. Beloved, de Toni escrito.
achar maneiras de justificar o pai. Sands observa que Horst "de algum mod (New York: Alfred A. Knopf, 1987), tem sido lucidamente lido Morrison
construiu uma distinção entre o pai e o sistenna, entre o indivíduo e o grupo exploração das consequências pós-traumáicas da escravidão e a como uma
do qual era líder". Mas também comenta que Horst, incapaz de condenar" perlaborar seu desconcertante legado e seus "fantasmas" que tentativa de
nos assombram
não obstante pensou que "era culpa do Governo Geral de Frank, da SS, de (ver, por exemplo, MOHANTY, Satya. Literary
Ithaca, NY: Cornell University Press, 1997, Theory and the Claims of History.
Himmler. Todos os demais no grupo eran responsáveis, mas não Otto. Pot e BERGER,
fim, disse ele, 'Concordo com você que ele estava completamente dentro do Representations of Postapocalypse. Minneapolis: University James. After the End:
sistema" (SANDS. East West Street, p. 245). 1999). No contexto do romance, Beloved não pode of Minnesota Press,
ser vista simplesmente
104Sobre Gudrun Burwitz (que recusou ser entrevistada) e alguns outros filhos de Como eteito ou sintoma pós-traumáico. Como a
Para mim, a autora, Beloved. a garota, a que própria Morisson coloca,
mportantes perpetradores (incluindo Niklas Erank e Martin Bormann), ver assombra, é o principal Outto.
LEBERT, Stephan; LEBERT, Norbert. My Father's Keeper: Children 9f Ie Clamando, para sempre clamando por um beijo". Ver
Leaders; An Intimate History of Damage and Denial (2000]. Transl. lulian Evans. Ihe Origin of Others. Preface by Ta-Nehisi Coates. MORRISON, Toni.
Cambridge, MA: Harvard
London: Little, Brown, 2002. University Press, 2017. p. 91. Na forma de uma carta-testemunho ao fillho, Ta-
INehisi Coates, em Between the World and Me (New York:
15Ver Penguin Random
O'CONNELL,
Dec. 14, 2011. Mark. Why You Should Read W. G. Sebald. New Yorker, House, 2015), explora os às vezes traumáticos problenas de acismo com que
Disponível enn: http:///www.newyorker.com/maio/books/page- Se detrontam
os afro-ameicanos
contemporâneos,
OS, enn grande parte n£o expicada, de seu jovenn epitomizados
pela morte
turner/why-you-should-read-w-
também minha discussão sobre -g-sebald. Acesso Literature,
Cap. 3, Sebald em History,
em: 28
2016. Ver
Critical Theor Coates
no casouma
amigo, Prince Jones, para
lanifestação de racismo e violência policial contra negros, mesmo
de um policial não
punido que era, ele tabén, negro.

142 143
CO TRAUMA, HISTORIA, MEMORIA, IDENTIDADE:O QUE RESTA

eventos, e é significativo que o inconscientes envolvidas nos movimentose caprichos


tenhaexperiencia
àsua
umadimensao
importante,nasproblemática, relacão com os eventos teUmastemunthesote
doscaracteristicaenn relação àexperiència, cOm sua

munhaprestatesteunho ou relata de que modo expeiMentou og


Conscientes e
danemória,107
ainda controversa zona cinzenta éuma área na qual testemu-
nhospodem permitir desenvolvimento e qualificação pela análise
experiencia, com sua"autenticidade"
eventos,nãoessa
às vezeseé podeser acessad2 de outro prima jaie, que
modo. Testemunhos orak detalhadade Primo Levi. 108 Isto é, há nuances de cinza, que vão do
envolvimentoaté vários graus de cumplicidade e
discriminadora, e os testemunhosculpabilidade,
relatos escritoS, COmo que
suplementadospor
são,é claro,
memorialisticos, e as
possíveis discrepâncias entre diarios textos
eles
e
constituem exigemuma
análise
com frequência
podempermitir esse tipo de análise. Aqui, as avaliações dos próprios
umobjeto especial deanálise crítica. Otestemunho oral no tem
papelsignificativonotrabalho de vários historiadores. em especial do
107SaulFriedländer. em sua monumentall obraem dois volumnes Nazi Germany and
um medo plausivel de que os
em parte por the Jews, 1939-1945 (1997; New York: HarperCollins, 2007), intencionalmente
Holocausto,
que a memóna prega comprometam a credibilidade de outrOS Te-
sujeitos a dúvida ou negação,
truques tenta pontuar ou mesmo causar rupturas na própria narrativa com as "vozes" de

vítimas e sobreviventes (Victor Klemperer, por exemplo), pelo menos arespeito


(
que podem estar
latos
especialmente
por negacionistas. De toda forma, junto à maneira COmo a memóna
podecomplementar de forma precisa ou mesmo corrig1r a história
de seus relatos escritos em diàrios etextos memorialísticos, mas não de seus
tomunhos orais ouvídeos. Um uso de testemunho baseado na memória que
bases arquivisticas padrão, até mesmo os édigno de nota é ode Christopher Browning em seu estudo micro-histórico
escrita e suas
ocorrência são em si "truques" da Remembering Survival: Inside aNazi Slave Labor Camp (New York: W.W. Norton.
memóriae as razöes de sua objetos välidos e 2010), dedicado à reconstrução da história de um pequeno complexo de campos
crítico.
valiosos do escrutínio históricoe nazistas de trabalho escravo na Polônia ocupada Wierzbnik-Starachowice.
Tem ficado evidente que e preciso estar atento e as vezes ser Browning apoia-se primariamente em 292 testemunhos de sobreviventes
crítico em relação às vozes das vitimas, e daqueles em outras nosiek iudeus, coletados entre 1945 e 2008. Embora consciente da falibilidade da
memória, ele sustenta que nesse caso os testemunhos orais, quando examinados
de sujeito, como perpetrador, colaborador, espectador e comenta criticamente, são em grande medida a evidência mais confiável disponível para
dor. Embora tenham surgido estudos importantes com testemunhos reconstruir formas de vida e especialmente as maneiras como se sofreu e lutou
(como os de Christopher Browning e Jan Gross, que cito adiante). para sobreviver nas dificeis condições de vida nesse campo de trabalho. Ver
podemos nos perguntar se os historiadores têm feito uso suficiente também GROSS, Jan T. Neighbors: The Destruction of the Jewish Community in
Jedwabne, Poland. Princeton: Princeton University Press, 2001. Gross destaca
dos muitos testemunhos agora disponíveis ou se ainda mostram opapel dos poloneses que atacavam judeus sem sofrerem restrição por parte
acentuada preferência por documentos escritos em arquivos conven dos poucos soldados ou oficiais alemães presentes. Num único dia (10 de julho
cionais. Testemunhos orais e em vídeo e seus respectivos arquivOS de 1941), em uma aldeia de cerca de 2.500 pesoas, das quais
dois terços dos
merecem, porèm, atenção sustentada por unma variedade de razòes: residentes eram judeus, estes foram humilhados, espancados e massacrados,
com cerca de 1.600 homens, mulheres e criancas judeus enfiados à força num
Sua peculiar relação com a experiência ou a maneira como os eventos
celeiro e mortos no incêndio que vizinhos poloneses lhe atearam. Gross se
sa0 vividos; seu papel na reconstrução de eventos e expernênca apoia em relatos convergentes de outros comentadores, textos memorialisticos
tanto quando isso é corroborado por outras fontes como na Sua a de parentes das vítimas e testemunhos dados no decorrer dos julgamentos de
sencia ou relativa escassez; a maneira como permitem que Ouçamos alguns dos perpetradores em 1949 e 1953, assim como em (inter alia) memornas
atextura de uma voz incorporada em relacâo às expressões tacias e memorabilia (como fotos) de outros. incluindo um rabino e um sobrevivente
a0s gestos corporais, fazendo da "voz" mais que uma metáfora;ea escondido por uma família polonesa.
maneira como trazem a Zona cinzenta sem dúvida coloca problemas de interesse comparativo com
preg,
às vezes questão dos "truques" que a memória forçz pelto a vietnamitas que cooperaram ou lutaram com norte-americanos, ou
relacionados a efeitos
pós-traumáticos eao jogo entre harkis que
ajudaram franceses na Argélia.

]44 145
TPAUMA, HISTORIA, MEHORIA, 1DENTIDADE. O QUE RESTA

particularimportância, ainda mais


sujettoporque
sobreviventestêm oc0- "testemunhas" || Quanto a
cmassumir uma posição de prisioneiros "que
tais pode hcsitar
julgamentos.
mentador C que autorize
Cabe notar que, nO capítulo 2 de The Drowned and ocuparam
posiçõesse
de comando", ComO Os Kapos, Levi afirma que "ojulgamento
problema da zona cinzenta, provisório e variado". Alguns
indicando Levi tece uma
que trata do torna mais poderian ser "membros
the Sred.1e em tensaMeNte nuançada. secretas de defesa" ,
mas "a maior parte . ] ia de
argumentaçào que a zona de organizaçoes
de umacumplicidade muitas vezes perturbada ou mesmo forçada das
significativa em grupos como os
CiNzenta medíocre a execrável'", e'não era incomum que um
prisioneiro fosse
espancado até a morte por um Kapo sem que este último
ítimasera mais
comalguns
membros dos conselhos judeus

obstante, suspende ojulgamento


[p. 60]).110
(sobre OS Sonderkosustmmaentndaos
Ele tambénquais ele, nào
e quaisquer sançõcs", mesmo quando foram introduzidas
temesse
restrições.
depois de 1943, quando a necessidade de trabalho ficou aguda.
vitimas nào devem ser
confundidas com
perpetradores (o que Estudos detalhados adicionais sobre testemunhos e
comentários de
doença moral ou uma afetação estética ou umque para
sinistro sobreviventes podem muito bem revelar uma gama de
cle seria 'uma julgamentos
cumplicidade" p. 48-49|) e que ele e a maioria críticos ou ações diferenciais com respeito a diferentes nuances de
sinal de dos demas
sobreviventes poderiamnão se orgulhar de tudo o que fizeram cinZa, desde graus de resistencia ate a colaboração e a cumpicidade
sobreviver nem se prestar à sacralização como santos ou para e, da parte dos comentadores, desde assertividade a qualificachesa
Levi, em uma hipérbole às vezes de apropriação dúbia, mártires. mesmo incertezas irresolviveis Ou lacunas na compreenso. !13
alguém em sua posição, mas penso que não em outras (como a dos aceitável
em
comentadores), propõe que, não os sobreViventes como al, 11! Poder-se-ia lembrar também que Levi assumiu
os afogados" - os que foram mortos, os que foram distância respeitosa, mas perplexa,
totalmente abjetos como Muselmänner - é que foram as silenciados, os de Paul Celan, que, para ele, deveria ser alguém
mais para se "meditar arespeito e
compadecer do que imitar" Cpiuttosto meditato eompianto de imitato"),e se deverha
verdadeiras tentar não ficar dentro de uma linguagem sutocada à beira do
sileêncio que "nos atral
como os abismos'', mas dizer com humildade e da forma mais lúcida
possivel o que
1o9LEVI, Primo. The Drowned and the Saved (1986]. New York: Vintage Books pode de fato ser dito, e tem de ser dito, a fimn de resgatar o
passado de talsiicadores.
1988. Ver LEVI, Primo. Other People's Trades. New York:
Summit, 1989. p. 173-174.
(A tradução de "compianto" foi mudada de
11 Christopher Browning, emn Collected Memories: Holocaust
History and Postvar "lamentado" para "compadecido". Em
Testimony (Madison: University of Wisconsin Press, 2003), narrao assassinato, italiano, verLEVI, Primo. L'altnui mestiere [1985). Torino: Einaudi, 1998. p. 53.)
Outras vezes, Levi reconheceu as diferenças
em um trem de deportação para Auschwitz, de membros legítimas entre poesia e proa expositva
privilegiados do e nunca resolveu de vez a tensão entre seu
desejo de lucidez mesImo em terarura
conselho judaico Starachowice por Sonderkommandos de Majdanek (p. 79-82). e seu senso de que só em maneiras limitadas
Em Eidmann in Jenasalem: A Report on the Banality of Evil (New York: podemos eNpresar lucidamente o
1963) (edição brasileira: Eichmann em enusalén: un relato sobre a Viking, papel da obscuridade e das regiðes escuras da
expernncia is vezes proemneNtes
mal. São Paulo: Companhia das Letras, 19991. Hannah banalidade do no Shoah. A respeito, ver MAGAVERN, Sam. Prino Li's
Liniese:1 Writer's
Arendt cita as reaçöes de
ralva, em húngaro e em iídiche, no julgamento de Eichmann, Jouney. New York: Palgrave Macmillan, 2009, esp. p. 148-152.
dirigidas a Pinchas LEVI. The Drouned and the Saved. D. 45-46. Ver também, de Levi, &
Freudiger, testemunha membro do conselho ijudaico de questO Èn
sobreviventes de traí-los por autointeresse (p. 124). VerBudapeste, acusado por
ainda a critica de da
liomo, trad. Stuart Woolf, Suvival in Auscuit (1958:; New York:
Macmillan, [6l)
Fnedlander da condenação "carta brancg" de Arendt dos |edição brasileira: Ésto un hone2. Tad. Luigi del Re. Rio de Janeio: Rocco.
o útil resumo que
faz de seus
conselhos judalcos Z013|; e WOLE,René. Judgment in the Gray Zone: The Third Auschwiz (Kapo)
v. 2, diferentes papeis em Nazi Gernany and the Jews, Trial in Frankfurt (1968). Jounal of Genocide Reseurh, v. 9, n. p. o17-635, 2007.
1939-1945: Years of Extenination(New York: HarperCCollins,2007),
P. Xxl1-xxiv. Ver
The Wolt toca nas diticuldades de processar por crimes parocinados pelo
ainda o clássico de Isaiah Jewish Counals Estado, ms
in Easten
Europe under Nazi Trunk,, Judenrat: The
ofNebraska Press,
sla avaliaço geral dos Kapos é próxima da de Levi (ver sp. p. ol9).
1972). Oaupation (Lincoln: University Ver MOYN, Samuel. AHoloumst 7he Treblinu.rhir in Psneur raae.
Walthaun: Brandeis Univesity Press.Controvesy:
2005, pam uma discussio das tortes reaçöes de
146
147
TO AUMA, HISTORIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUF DECTA2

feita à história oral,


espectal deveser ela desorientador, até traumático, o
Menção
bascadaem
testenmunhos.
grande parte indígeas, a história oral é crucial para a
Especialmente empropIa em tipicamente
inóspitas,deslocamento forçado
ao lado da extração de grupos
de
relaç§o a para
reservas
minérios,e
certascult1uras arqucologia seu suplemento vital.
do passado, c
a
petróglitos, podem muito ser partesS VIvas, ou
como os cultura, nàoapenas no passado, mas tamb¿m mesmOno
ssiatgioras, reCercontosstruçao comfrequência de maneiras exploratórias, por agentes extratribais
às vezes envolvendo a dessacralização ou mesmo osaque de locais
sagrados. Um livro importante que discute o Museu Nacional do
localizado no
das. deuma Indigena Americarno, National Mall, em
igiao nãomundoestá
Sociedades indígenas, nas quais a
contemporáneo.
crença enm Deus ou em algum serreltranScendente DC, ostenta
o título Aterra temn memória,!115 O
modo como a terra
Washington,
centrada em uma
"totaln1ente outro",
tendem a ver o sagrado e
seus tem
memória pode estar mais imbuído do sagrado do que
aquilo que
relacão ao território
ou àterra. 114 Esse é um
que fator espi ntos em
torna aso-
Pierre Nora famosamente chamou de lieux de mémoire, embora este
último possa
também ser às vezes sacralhzado,
berania baseada no
territóriotão importante e torna especialmente quando

intelectuais destacados) ao
extremamente oe trata igualmente de locais de trauma.
Tenho sugerido que se voltar para a experiencia eo testemu
sobreviventes ede outros (como controverso nho enseja necessariamente uma preocupação com amemória, Uma
sobre olevante de internos de livro de 19%6
de Jean-François
Steiner
1943). Ver também olongo e
Treblinka
cáustico comentário, em foma de (2 de agosto de consideração importante é que em certos casos a história oral que
se apoia em memórias, apesar de suas dimensões problemáticas, é
envidada em 1968 a Steiner, por Richard Glazer.,sobrevivente carlevante.
ta-testemunho
do
(Glazer especialmente importante, ja que pode não haver
critos,ou pelo menos haver poucos, se é que algum,documentos
foi testemunha-chave entrevistada no Shoah, de Lanzmann.) Seu es-
comentário sobre
/holocaustcontroversies.blogspot.com//2006/10/richard-
Steiner está em http://
giazar-on-jean-francois.htnl (aceso em: 15 dez. 2015). Opai de Steiner
num subcampo de Auschwitz. Opróprio Steiner serviu por um arno (1959)
francês na Argélia e, ainda
Moreu
como
menos poderosos e pelos
deixados pelos
oprimidos. Esse é bem o caso dos indigenas
norte-americanos e seu tratamento por meio de desastroso assédio
paraquedista no exército em seus 20
anos, eScreveu nas mãos do governo dos Estados Unidos e de seus cidados da
seu relatoficionalizado, de aparencia histórica (o que ele chamou de
encenada"), ao que parece para compensar o que achou vergonhoso em judeus no "naraçào "corrida para o Oeste". Note que a oposição binária entre história e
Holocausto supostamente "indo como cordeiros para o abate". Para ele, tal imagem memória obscurece as maneiras como a história escrita, e não apenas
pode ser contestada por uma versão do levante de Treblinka - que, não obstante a memória, pode ser afetada por ideologia, emoção,
autointeresse
parece apresentar certos herolCOS resistentes comoexcepcionais, em contraste com emanipulação, assim como por fontes arquivisticas problemáticas,
acumplicidade de muitos internos, entre eles os Sonderkommandos. Movido por um logo, sujeitas a questionamentos quanto àsua condição de relato
senso de solidariedade em relação acompanheiros internos e pelo dever de memóra
de chegar àverdade o mais fielmente possível, Glazer ficou ultrajado com olivro preciso do passado. E lugar-comum que a moderna historiografia,
de Steiner erelatou suas muitas distorções,como aglorificação notadamente (mas não sÑ) na Alemanha, com uma figura-chave
autointeressada, não como Leopold von Ranke, surgiu em simbiótica relaçåo com um
informada e estreita do levante. Sentiu incômodo particular com a representaçao
distorcida do Kapo Kurland, que entre os prisioneiros era altamente respeitado etoi
membro senior do comitê revolucionário, Glazer conclui: "Você não
devena ter
escrito essas elaboraçöes crueis e sensacionalistas sobre e DELORIA, Barbara et al, (ed.). spirit & Reason: The Vine Deloria, Jr., Reader.
pessoas reais, cOm seus lo
reas, que ex1stiram de fato hánãomuitotempo e são Pretace by Wilma P. Mankiller. Golden, CO: Fulcrum Publishing, 1999.
mais próximos e queridos teriam o lembradas, de modo ques
direito de faze-lo vir a público testemunhar-se SPRUCE, Duane Blue: THRASHER, Tanya (ed.). The Land Has Memory.
algum deles tivesse vivido ou tido Sobre Glazer, ver
também MOYN. AHolocaust dinheiro suficiente para isso". Washington, DC: Smithsonian Institution, 2008. Sobre indígenas, e
114
Controversy, 137-14O.
p.
Ver, por exemplo, DEER,John (Fire) Lame; ERDOES Richard. Lame. DerSecker Speeialmente sobre sociedades indigenas norte-anericanas, ver CAJETE,
of Visions: The Life of a Sioux GTegory. Native Sience: Natural Laus of Interdependence. Preface by Leroy Little
Medicine Man. New Yok: Simon &Schuster, 1972, Bear, JD. Santa Fe. NM: Clear Light Publishers, 2000.

148 149
ToAlMA. HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE.O QUE PESTA?
carregado de emoção, E
nacionalisno acentuado, maneirainfluente, uma
sonTurncr
postulou, de
Estados Unidos. chegando aapresentá-la
Frm
e derck lack
fronteira aberta
doadministrador do século XIX Frans Carl Valck. Nas palavras de
Stoler, o
arquivo abriga "tipos de
documentação sensibilidades
e
oeste dos norte-americana - uma COmo uma
fronteira que poderia ser base hesitantes [...] Grades de
da demoCracia
aberta ou geradora de
democracia apenas ao e o paisperl16-
IncertoS e
inteligibilidade
apartirde conhecimento incerto; inquietações foram criadas
e ansiedades deram
ccbida comonorte--americanos que habitavam. terrntono
incomum sentido a eventOS e
osindigenas

arquivos, em vez de serem vistos como


vapoTNZar Um coisas; incertezas epistemicas re-
petidamente perturbaram a presunçãoimperial de que tudo
Os próprios
ou mesmo
cOmo a
fonte base solhda de em ordem ...]
Contra as fórmulas sóbrias do estava
certeza em historia
invariavelmente registram movimentos febris de
oficiales, arquivos
tais
confiável de
evidência documental, podem talvez ser mais pessoas instaveis
-
pensamentos e
contenteeúdos
ndidose
mais criticamente
como um sistema de inscrição cujos sentimentosde estar no lugar certo ou
deslocado. No torn e no aní
os meandros
processos podem, em
extensão maior ou menor, ser transmítem turbulentos da
diretivas (p. 1-2).governança
Imo, e

comparárevteraisbàaqlhueadlao,s
forças afetivasse clareza enganosa de suas rupturas
porforças, entre elas ideológicas,
na memória, com suas supressoes, repressões e inchusöes, que esSa evocação do arquivo escrito como
Quanto à medida em
afetivamente carregado
em jog0
exclusões e distorções seletivas. às vezes problematico constitui uma dimensão significativa de sua
Um livro recente dá uma viso do arquivo como natureza, 1SSO no mínimo mostra tal dimensão de modo a
tornála tão
máica: trata-se do muito elogiado Along the Archival "fonte" proble- confiávele não confiável quanto a memória, e dá pouco estímulo a
Grain:
Anxieties and Colonial Common Sense, de Ann Laura Stoler.17 Epistemic uma oposição decisiva entre ambas.
busque um relato do passado o mais preciso possível, StolerEmbora Em seu aclamado Allure of the Archive no Brasil,O sabor do ar
arquivo da Companhia Holandesa das Índias Orientais da trata
o quivol, Arlette Farge, que trabalha com arquivos judiciais (inclusive
de 1830 à de 1930 não como mero repositori0 de fatos, mas coma década relatórios policiais), defende argumento paralelo ao de Stoler.I1S O
um processo moldado em bo0a parte por invest1mentos afetivos d, sugestivotítulo frances éLe Goút de l'archive, com "goúr" (usualmente
administração de nível médio, encarregada de lidar coma populacão traduzido por"gosto") tendo uma gama de conotações mais sen
miscigenada das Indias Orientas Holandesas, notadamente no caso sualmente estética do que "all1ure" apelo], dada em especial por sua
proximidade com "dégoût" ("nojo"), não tanto seu oposto, comno
seu perigoso suplemento que às vezes ameaça emergir quando Farge
h6 Com oressurgimento político de asserções evoca as esquisitices eexasperações de sua experiência com arquivos.
desvinculadas dos fatos e mesmo da Embora declare sua paixão por eles e sua busca de traduzi-los em
técnica da grande mentira (conte uma grande mentira prejudicial e defenda sua
opinião), tais visões esta£o longe de ser coisa do passado. Um narrativas convincentes, não distorcedoras, autoquestionadoras, Farge
membro cristo do Tea Party, William Strong, da autoproclamado
Pensilvånia, apoiador de ve o arquivocomo um "quebra-cabeça de eventos obscuros, cheio de
Donald Irump, declarou a um repórter, após uma visita ao Novo lacunas", marcado por rupturas e dispersåo... titubeios e silêncios.
Eles se autodenominam nativoS MeXICO:
norte-americanos, mas qualquer um com juzo
perteito sabe que a América era desabitada e que alguns Um caleidoscópio a girar diante dos olhos" (p. 94). Como Stoler,
Cae agora querem a terra, chamam a si de indigenas vierani pae Farge faz frequentes referências a Michel Foucault, mas pode-se
nativos, no sentido de pr1metos i
tempo jel primeiros em direito e que, portanto, estão tambem apontar para a obra de Derrida Mal de arquivo: una inmpressa0
Reportado por CHACÓN, Daniel I. Santa Fe New autorizados a 0cupa
P.A-4. Mexican, June l0, 2
117
s FARGE,
STOLER, Ann Laura. . Along the Archival Grain: Epistemic Anxieties and Colonidl Arlette. Allure offthe Archive [1989]. Preface by Natalie Zemon Davis.
Transl. Thomas SScott-Railton. New Haven: Yale University Press, 2013.
Common Sense. Princeton: Princeton
University Press, 2000. |Eaçao brasileira: O sabor do arquivo. São Paulo: Edusp, 2009.|

150 151
COMPREEHDIA OUTROS rAAUMA, HISrORIA, MIMORIA, IDENTIDADE oQUP RISIA!

relaciona oarquivístico a una Co umsentido expandido, o arquivo pode ser visto como
feudiana, emquecle
problemas, quc inclui memória, Mtrimcada, at ondo textos publicacdos e artetatos disponíveis, Esse o caso
vertiginosasérie de
virtualidade, assombramento
e o político, 19 Depois da
Hamlet. temos ainda uma referência
mesaliaunsäoidalea0, especialmente quando
dimensões menos
são lidos ou interpretados atentando-se às
manifestas ou secretas, até ocultas ou crípticas,
fantas1nado pai de
aparentenmente
nietzschiana, à "chegada academicoenidognaica,
de um
quepoden
estar coleCtadas às dimensões correlatas de
sociedade e
que, no fuuturo e, portanto, apto a conccb-lo futuo,
umacademico
com o
fantasna" (p. 39).Sem ousar
ria conversar
meu relato a uma interpretação
COnverSar
com 0
fantasna c restringindo
persistentes como cfeitos pós-traumáticOs, cu delinitada ensaiossignificativos do livro, ode Ann Curthoys, "The History of Killing and
de apariçöes
Tla que outra
tradução do título francês Mal d' obserovgaa-
archive, anal
por the Killing of History", levanta aquestio da confiabilidade dos arquivos ede
seIS USO% Cabusos políticos, ao exAminar o debate sobre as alegações de Keith
COm "mal de mer" ("enjoo de
mar"), seria "enjoo de
qual afebre scria apenas umsntoma
possível, co outro,
talvez mais
arquivo",
do Windschuttle (notadamente emseu Fabriation of Aboriyinal History, de 2002)
Aue certos historiadores fabricavan evidências para cxagerar a existencia e
premente, seria a vertigen, mCsiO OW quem sabe especialmenteno aprevalência de violncia contra aborigenes na Tas1nania. Odebate também
historiador com paixo por arquivos. Avertigem pode ser induzida levantou as questòes do conflito cntre as compreensòes do ireito pelo Ocidente
epelos indigenas, a rejeição da tradiçào oralindigena junto àvalidaço exclusiva
em arquivos quando se está assoberbado pelo excesso de infornaç£o de documentaçio Cserita, o apelo ao positivismo cxtremo como pretexto para
ou perturbado por sua escassez, jå que ambos podem, de nanei onegacionisnno (como o caso de Robert Faurison, na França) e o papel da
atordoante, tornar problemáticas Ou contestáveis as asserções e nar. perniciosa ficção legal no sistenajurídico australiarno (com frequência referida
rativas fundamentadas no que está presente (Ou ás vezes ausente. como adoutrina da tena ullius), que ncgou legitimidade juridica a aborigenes
sob oargumento de que a Austrália pré-conquisa era desprovida de poder
interpolado ou presumido) cm relação a um arquivo. O estatuto do soberano c, portanto, cra ua terra de ninguén na qual os aborigenes, que ali
arquivo , claro, adicionalmente complicado pelo jogo de forças que cstavam há 50 mil anos, £o erani pessoas conlegitiidade processual para
acompanha acriaço e composição ao longo do tempo daquilo que requerer dircitos sobre aterra, umadoutrina rescindida apenas no caso Mabo, em
é(ou não é) colocado e preservado nele, " 1992. Em sua contribuição, "The Colonial Archive on Tral", Adele Perry faz
unrelato sinilar concernente à deslegitinnaçio pró-colonialista da história oral
indigena,do dircito terra cda comprecnNio do direito no caso DelQamuk1V V.
"DERRIDA, Jacques, Arhive Pewr: A I'eudian presion |1995), Trasl. Ernic BritishColunbia, de 1991, anulado pela Suprema Corte do Canadá, em 1997,
l'anowitz, Chicago: Uiversity ofChicago Pres, 199%. |Edição brasileira: Ma com aconcluso le que adecisio aiterior "£o havia dado suticiente atençao
dr anquive: uma impressdo fendiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.| a0 arquiv0 oral" (p. 344). Oaspecto geral tratado as várias contribuiçòcs é que
Ver. por cxcplo, o rclato cnn LINENIHAL, Edward I, Peseving Memory' 0 arquivo colonial Omtiequència tem sicdo ldo IO passado, notadannente enm
Tie Strugyle to Create Amerna's Holocaust Musewn, New York: Casos jurídicos, como um bastiio do colonialisuno, c a leitura tem se apodo
Colimba
Univerity Pres, 2001, Ver tanbén1 BURTON, Antoinette (cd.). A«dim picamente avalidação do cverito e em depreciar ou rejeitar o orl, assincono
Stories: Fas, Iions, und the henór, uma orentacåo hostil oue nfelizuente comum na historiogtata
Pres, 2005, Expand1ndo a noçioWVriting of Iistory. IDurb: Duke University
de arqurvo para incluir várias fontes não (Ouvencional. Em Dust: Ue Awhiv and Cultural History (New Brunswick:
cOnveno)as, otadanente elatos oaiN. Burtou, )a sa introduçao, n kgers University Press, 200),Carolyn Steeuan coloca oque cla aprevena
que, "ao destacar u)a
VIA "omeçar a varicdade de históras sobre arquivos",sua coletinca
co ono na criica de Derrida cu wlla aterializaçlo do arquivo comO toOute
de pociu
dspesar a aura que agoTa a Doçãodos intecosa
que literalmente causa tebre no lhistoriador dedicado que
arquivos'rcas, especalmente
(p. 6). aqueles co) 0% qus os histotadores lhdaco"
tém unt gonit de lndure. Elu tanbénn trata das condiçoes bastante tepukivas
a peoes
Tanbem tenta dos historiadores
contapo01e-se ao "clativo yleuco colocas sobre de suas viayes de pesquusa ha luglaterra, com cstadascm hoten tos quais a
pesos, cstruturs politics que o rqIvo hinórias quc de cama podeareivillicar esttuto de arquivo e tazer a pee
Dàoewevem" (p. 90), Etre os
vários TeparMesuo La auNèci de tntasmas.
153
TOAUMA, HISTÖRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O OUE PESTA

merecem menção especial textos que são sobrevivente aludindo a um


cultura.12 Aqui
zados, menos
lidos, outalvez
não
até lidos com
frequência, mas
tomados como estimuladores
do
marnãognaiben de uim
não é ou
transtorno ou catástrofe que
não pode ser nomeada? Onde, se é
genocídio nazista e seus perpetradores
que emn algum lugar,
ou
entendidos
importante de recentes moVimentos
Uma iniciativadesconstrução, notadamente em sua em penteora
samento, ci-
estão o vítimas no livro de
Foucault de 1961 sobre aloucura, publicado no ano do
julgamento
tica, como a
oque poderiamos chamar
psicanálise, temsido inquirir
interadeção com a de
Eichmann?124 E por que Foucault étão
de Freude inclinado
(como Gilles Deleuze) a lê-lo de insistentemente
crítico
arquivisticas, mesimo de
textos aparentemente
bem dimensões maneira to
insight instconheci
igantedosna
mais compreensão. Um ita mesimo quando Foucault lida com problemas, como o ar
uma pronta
que resistem a
éque ele assinala um trauma queológico, o genealógico eo papel relacionado dos deslocamentos
aporia do duplo vínculo textual, talyey (em vez de simples cortes epistemológicos) ao longo do
relacionado a umtrauma
existencial que não foi
perlaborado epode tempo, de
maneiras ane talvez sejam paralelas ao pensamento de Freud
sobre
resistir afechamento, benm como a equivocada confusão deste último essas questões? Um ponto mais geral em relação atais questões é que
com o processo de perlaboração. Para dar apenas um
Holocausto e a Guerra da Argéliatêm sido às vezes
exemplo, 0 uminteresse peelo arquivistico não precisa excluir e pode ao contrário
acoplados Como alher um interesse renovado pelo que e publicado, mesmo que sua
fenômenos interatuantes ou ligados a dimensões traumáticas, pressão poSsa dar a esse último aspecto um viés distinto.
damente na escrita e na vida soCiopolitica francesas, como n. nota-
Merecendo bem maas que uma breve menção, temos o papel
de Charlotte Delbo.122 Aqui, uma série de eventos ou
traumáicos pode funcionar de modo variado, tanto para
expenências do testemunho, da memOria e do trauma, assim como do
estatuto
maneiras ocultar dos arquivos, com respeito ao problema altamente sensivel do abuso
como para apontar um ao outro de intricadas e contestá- infntil, inclusive em instituições em que as crianças estão sob super
veis, por exemplo, nos escritos de Camus, Foucault e Derrid 0. v0são e controle de figuras de autoridade com frequência respeitadas
éaposição eopapel do Holocausto em A queda, de Camus (1956) ou mesmo reverenciadas. A atenção tem sido focada em "padres
em comparação com o obscuro (quando muito) papel da Guera da pedófilos" na Igreja Católica de una maneira que
deveria ser mais
Argélia nesse texto, assim como o papel mais explhcito da guera em comparativa, mas não diversionista ou propensa a uma apropriação
outros textos de Camus, incluindo seus escritos políticos e sociais homoföbica. 25 O problema na Igreja Católica, não obstante, tem
da mesma época? Será que a afirmação de Derrida de que, em sua
compreensão, "brasas" ou "cinzas" podem ser a melhor maneira
de expressar "traços" provê um reconhecimento tardio dos efeitos 14Ver FOUCAULT, Michel. Folie et déraison: histoire de la folie à
l'âge
mais encobertos do Holocausto em seus escritos anteriores, que com Paris: Librairie Plon, 1961, traduzido por Jonathan Murphy e Jeancdassique.
como History of Madness (Newv York: Routledge, 2006), com prefäcio de lan
Kalpha
requência parecem, pelo menos em um nível, lembrar o discurs0
Hacking e introdução de Jean Khalfa [edição brasileira: Históna du loucUIa na
ldade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 2005). Ver também minha discusâo do
a Em "A carta roubada", de E. A. Poe, o obieto de interesse e desejo está ocutado livro em History and Reading: Tocqueville, Foucault, French Studies, cap. 3.
em razão de, ou a despeito de, sua localizac£o manifesta, de uma maneirn Por exemplo, o documentário de Amy Berg, Prophet's Prey (2015), destaca
reminiscente do segredo aberto. a extensão do abuso sexual e espiritual, com ênfase no de menores, na
Sobre esse e teas relacionados. ver ROTHBERG. Multidirectional Memioy tundamentalista lgreia dos Santos dos Últimos Dias, cujo lider, Warren Steed
Jets, recebeu pena perpétua. Talvez fosse também pertinente uma comparação
Sobre minha visão, ver History and Meuory after Auschwitz, cap. J. con estupros nas forças arnadas ou, com efeito, en instituições acadèmicas,
raa e
nerpretaçäo oposta, ver SANYAL,Debarati. Memory and Compliity: Miga Cdreação detensiva, de autoproteção, da instituiço, da sua hierarquia ede
of Holocaust Remembrance. New York: Eordbam Seus "fiéis"
UIniversity Press, 201.

154 155
COMPREENDER OUTROS
TRAUMA, HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE:O QUE DESTA 2

un)a
nundial, e não simples questão de documentopapal posterior, de 2001, impôs restrições adicionais, entre
sido
sistémico e
os aleatórios ou de algumas poucas "maçâs podres"
pesquisadorrestritoaos
documentos escritos individu-
no clero. Um
disponíveiOsquenãopareceteria
obrigação do bispo ou de outro superior de enviar resultados de
elasainvestigação preliminar ao
Vaticano, onde as autoridades iriam
ido muito longe na investigação desse problema. uma
decidirse ocaso seria processado no Vaticano ou devolvido àdiocese
do clero ofensor não apemas pela local paraacusação. Doyle, Sipe e Wall notam ainda:"Como os arqui-
a proteçåo
cvidente éImas
porjuízes, tan1bém pela hierarquia da igreja até seus niveis masou
altos,incluindo o episcopado e o Vaticano. Julgando a part1r de sua
pocia vOs doSanto Oficio, agora conhecidos como CDF(Congregação para
a Doutrina da Fé], estão vedados ao escrutínio externo, é
ou suprimir a questa0, assim como de muitas de número de casos enviados aele impossível
postura de evitarcautelosas. a preocupação da hierarqula
suas declarações parece ter determinar o entre 1962 e o presente
(p. 51). Com base em entrevistas entre 1960 e 1985 com 1.500 padres
reputação da igreja do que com o
o status e a Ou comseus parceiros sexuais, Sipe estimou que 6 por cento dos pa-
sido mais com
das vítimas ou em chegar à verdade. Um fator-chave que dificuta destino dres estavam sexualmente envolvidos com menores, 20-25 por cento,
secreto . a
Joterminar aextensão exata o problma e o status com mulheres adultas, e 15 por cento, com homens adultos (p. 58)
centralizados no Vaticano, nos quais as
dos arquivos
sobre abuso
presumivelmentetêm sido guardadas há
correspondente no Vaticano do Fattomuito tempo.
informaçoes dadosamplamente confirmados por estudos posteriores (p. 68, 212).
Oanto ao dano feito as vitimas, Slpe e seus Coautores registram a
Marco Polito, o
em uma declaração no
filme de Alex Gibney, Mea Quotidiano,
maxima
incidência de trauma e sintomas pOS-traumáticos e se referem a uma

siléncio na casa de Deus (2012), afirma que essas informações têmculsido


pa: "ferida aberta",observando: "Háum desamparo incrível da parte das
criancs abusadas - a maioria dos menores abusados sentem-se ou
arquivadas desde o século IV. Peshonsáveis pela ocorrência do abuso ou tão impotentes que sentem
Em Sex, Priests, and Secret Codes, Thomas P. Doyle, A. WBi não poder revelar o abuso a seus pais ou, com trequência, a ninguém
chard Sipe ePatrick J. Wall afirmam que o segredo a respeito dos mais" (p. 79). Oque parece claro éa importância, na revelação do
mais graves crimes sexuais tem sido especialmente pronunciado na abuso, do testemunho eda memória, tanto das vítimas quando de
igreja desdea expedição àhierarquia de um documento papal pouco outros,como jornalistas investigativos e advogados. 17
conhecido, de 1962: "Otribunal e outro pessoal da igreja que estiver
Em um registro diferente, ojornalista do New York Times e ven
envolvido em casos de processos ficam obrigados ao mais alto grau de cedor do prêmio Pulitzer Timothy Egan, em seu livro de 2012, Short
confidencialidade da igreja o Segredo do Santo Oficio-, a manter
total eperpétuo segredo", sob penade excomunho automática. Em
bora aexcomunhão automática nãotenha sido imposta aacusadores e 12
Relatos em grande medida não sensacionalistas, mas de forte impacto, são
testemunhas, eles mesmo assim estavam obrigados a um voto de siglo apresentados no filme de Alex Gibney, Mea maxima ulpa: silêncio na casa de
epodiam ser ameaçados de excomunhão por romper o slenCIo.Um Deus (2012), e no filme de Tom McCarthy, premiado pela Academia, Spotlight:
Segredos revelados (2015), centrado em Boston. Em Mea maxima culpa, uma razão
particularmente desconcertante é oferecida pelo talvez maior ofensor da Escola
St. john para Surdos em St. Francis, Wisconsin, o padre Lawrence Murphy -
DOYLE, Thomas P.. SIPE. A. WRichard: WALL, Patrick J. Sex, net
and Secret Codes: The Catholic Church's 2, 000 Year Paper Trail of Sexual Abuse. predatório, protegido, elogiado eimpune ao longo da aposentadoria, apesar de
ter abusado de cerca de 200
Los Angeles: Volt Press, 2006. p. 49. Entre muitas outras obras, ver também crianças. Uma das alegações de Murphy era que,
Orelato Jenkins, viimizar crianças indefesas, estava assumindo os pecados delas para si, ao
relativamente
em Pedophilia and Priests:pioneiro e extremamente criterioso de Philip
Anatomy of a Contemporary Crisis (1996; New York: G Parece vendo seu comportamento como alguma perversa imitatio Christi.
Oxford University Press, 2001). do abalho anterior de A. W. Richard Sipe foi importante para os repóteres
Spotlight, e Thomas P. Doyle aparece em Mea maxima culpa.
156 157
COMPREENL TRAUMA, HISTOKIA, MCMOKIA, DENTIDADE: O QUE RESTA?

Shadou Catcher: The Epic Life and lmmortal membros). Curtis tornou-se um firme, até indignado defensor doe
Nights ofthe oferece um bom exemplo daimportância
Ed1ard Curtis,
e da história
oral enm checar, contestare talvez mudar
da Pumahotogrmeapmhsora of direitos dos povos indigenas, incluindo seu
praticarsuas religiões e outros costumes, em
direito de continuar a
uma epoca em que essas
dominante. 2 (Aqui, apesar
das dimensões traumatizantes,do narrat1va práticas eram n-o apenas
desaprovadas por muitos, mas também na
colonizadores eindígenas norte-americanos. contito realidade tornadas ilegais, com processos por infrações
cntre
nào parecem ter sido
confrontadas com a dificuldade
experiência traumáticaimediata ou pós-traumática
:
teparastemserem
deunhapersl-acborhayare
a ser

ou
aplicadosaté a estudantes de
representassem Suas
que podiam
culturas nativas que
participassem
cerimônias e seu modo de vida.29
de lembrar e dar
testemunho.) Afamosa última resistência capazes
de sempre ameaçado de ser processado e às vezes encarcerado, entre-
Curtis.
em Little Bighorn, em junho de 1876, logo se tornou ocasião Custer vistou (com a
assistência de seu
amigo próximo e associado, O
uma história
nacional de trágico heroísmo
e proeza para Alexander Upshaw) três nativos crows (ou apsarokas)
nativo
militar, alcan. crow
batedores
çando um status quase mítico, que recentemente passou por uma (Goes. Ahead[Vai à Frente], Hairy Moccasins [Mocassins Peludos] e
significativa desmistificação. Edward S. Curtis, o hite Man Runs Him |O Homem Branco o Comanda]
Sombras"[Shadow Catcher do título do livro de Egan, é,
de "Apanhador
ou
- um nome
que parece irônico). Os três haviam servido com Custer contra os
devenia
ser, bem conhecido por seus 20 volumes com mais de 2.200 sioux, os cheyennes e os arapahos, e observaram o comportamento
de numerOSOs povos indigenas, assim Como por seu
fotos de Custer em Little Bighorn. Suas
etnográfico eseu papcl na preservação de líínnguas nativas. Sua
visão
conhecimento memorias convergiram em uma
contranarrativa de Custer como um covarde, se não um traidor, gue
foi nâo apenas justificadamente aguçada pela crescente sensibilidade permitiu que seu oficial, major Marcus Ren0, objeto de extrema
àinjustiça a que estavam sujeitos os indigenas norte-americanes antipatia mútua, entrasse em luta contra os indigenas reunidos em
mas também moldada às vezes pela então disseminada ideia de aue Little Bighorn, sem o auxílio ou apoio de Custer. Custer
os indigenas eram uma raça em extirnção (tema de uma de suas mais
esperou
nas margens da batalha, atéas forças militares
famosas fotos de navajos, que, éclaro, não desapareceram e são norte-americanas sob
Reno sofrerem perdas significativase se retirarem. Então
Custer, na
o maior povo indígenas norte-americanos, com cerca de 300 mil expectativa de uma vitória gloriosa, entrou na batalha e liderou seus
soldados para a sua destruição. Esse comportamento pareceu estra
nho aos indígenas crows que o observaram, um dos
12* EGAN, Timothy. Short Niglhts of the Shadow Catcher. New York: Houghton quais (White
Mifflin Harcourt, 2012; ver esp. p. 164-175. Quase todo aspecto da carreira Man Runs Him) "disse que implorou a Custer para que
interce
de Custer, e nada mais que a batalha de Little Bighorn (ocorrida em
1876, desse, repreendendo-o por deixar os soldados morrerem", mas _em
quando o Exército dos Estados Unidos foi derrotado por forças indigenas
lideradas pelos míticos Sitting Bull (Touro Sentado) e Crazy Horse (Cavalo
Louco); as montanhas de Black Hills. regiâo onde se desenrolou a batalha, Curtis não é
tida com0 sagrada pelas populacões nativas, incontroverso. Apesar de tentar aumentar oreconhecimento
as condições adversas e dos maus tratos aos
tornaram-se ainda mais cenuan a indigenas, e de se contraPor d
nacionalismo estadunidense quando se decidiu esculpir em uma delas, o Mou cstereotipos negativos a respeito deles, suas fotografias tèm sido vistas como
Rushmore, orosto de quatro presidentes dos país], Continua aser vivamente onantizando os indígenas e. apesar de seus próprios sacrificios tinanceiros ao
Contestado, e ao tratar de Custer fica-se em terreno instável. Para uma boa Capreender seu vasto projeto, Dassaram a ter un preço cada vez mais dto,
ideia dos problemas na historiografia sobre Custer, ver a resenha de Thomas como premios icônicos buscados por colecionadores. Uma recente exposiça0
Powers, "Custer's Trials: ALife on the Frontier of a New America, byT.J de alguns de
seus trabalhos e o de artistas indigenas no Museu de Arte de
Stiles"
(New York Review of Books, IDec. 17, 2015, p. 78-80). Powers rresssalta
oinvestimento afetivo fortenmente positivo de muitos historiadores (inchuindo
Porland
oLegado tem
por título "Fotógrafos Nativos Americanos Contemporâneos e
de Edward Curtis" (ver http:/ /portlandartmuseum.org/exhibitions/
Stiles) em Custer e em sua
representaçao. contemporary- -native--photographers/. Acesso em: 12 maio 2016).
158 159
TOAUMA, HISTORIA, MEMORIA, IDENTIDADE. O QUE PESTA2

Curtis acreditava que, se "Custer


haviam tivjuntado
esse atacado, estilhaçar a identidade e não ser
sucesso (p. 165).
numa hora em que
os indigenas
ainda nåo se em arquivos escritos ou contidas na
pela "capturadas"
história, registradas
mente, a batalha
poderia ter terminado com vitória
para oS total- rememoração consciente.
eleadoxalmente se tonar o centro ou um buraco, comoMasm
americanos, ou empate" (p.
165). norte- vórtice, de formação de
Atentativa de
Curtis de tornar pública essa versão identidade, especialmente trauma funda-
no
história oral da Batalha Litle Bighorn
de sofreu oposiçao baseada
incluindo a da dedicada e ou
em
supresso
dor ou fundacional, questão à qual devo
gerais,há uma
retornar.
termos mais
relação complexa entre identidade e processos como
Em
de uma variedade de direções,
esposa de Custer, Libby, e
dos aliados dela em postos mais
elevados. Até mesmo oamigo e apoiador de Curtis Teddy
deteminada
Ou menos
repressão, dissociação e negação, que resiste a uma
consciente, em especial com respeito àbusca da rememoração
unidade de um self
ou comunidade por meio da memória de formação da
expressou o que sem dúvida era a visão nacionalista de Roosevelt
muitos,
vol-
identidade.
Depressão, dissociação e negação são tipicamente relacionadas a
tada asalvar as aparências, ao insistir ou mesmo ped1r que Curtis eventos ouexpenencias desconcertantes, que se resiste a reconhecer
chacoalhasse o navio do Estado ao revelar
um relato não
danoso aos seus interesses um relato, nas presumivelmente
palavras de Roosevelt
como aspectosperturbadores da identidade problemática de si on do
seu grupo. E a linha que separa processos as vezes interatuantes de
que "representa Custer ao mesimo tempo como traidor e tal supressão consciente e de repressao inconsciente ou negação pode
(p. 173).Curtis limitou-se a observar, no volume 3 de sua in não ser muito nítida. Alem disso, num aparente paradoxo, o extre
obra The North American Indian: "Custer não realizou nenhum at
mamente desconcertante ou traumático pode também ser afirmado
aue. omovimento todo foi uma retirada" (p. 175). Egan claramente
acha crível o relato a que Curtis teve acesso por meio de história ouaceito como a fundação da identidade.
Sem desconsiderar interesses manipulativos que podem muito
oral baseada no testemunho de indígenas sobreviventes da batalha
bem ter um papel em moldar Conceitos ou mobilizar
que eram aliados de Custer. Seja como for, esse episódio ressalta a memórias,
deve-se sustentar que as repetições históricas podem ir além de um
importância da história oral e como ela pode desafiar narrativas pre quadro de referência instrumental e ter uma dimensão compulsiva,
dominantes ou mes1mo ser integrada à narrativa prevalente, se não
mesmo pós-traumática, quando padrões ou modelos do passado s£o
dominante, especialmente quando háausência ou escassez de relatos regenerados, às vezes de maneiras autodestrutivas, para prefigurar
escritos criveis e relatos de testemunhas com outras
perspectivas. situações contemporâneas que podem na realidade diferir significati
E amplamente reconhecido, mas mesmo assin vale a pena en
vamente deles. A luta, na década de 1970, entre o governo alemão e
fatizar, que a memória, incluindo a traumáica, tem papel crucial na Ogrupo Baader-Meinhof (ou Fração do Exército Vermelho) tendia
formação de identidades individuais e coletivas (uma das principas a tomar como mnodelo, às vezes
razöes pelas quais o Alzheimer é uma doenca tão temida). E a re compulsivamente, a oposição entre
lazistas e seus opositores, especialmente os envolvidos na resistëncia,
laçao tensa entre memória e história é particularmente delicada no Ou éntao em sua relativa ausência ou suas
que diz respeito à formação da limitaçòes, que
precisavam
tanto da memória quanto da identidade. A natureza problemática Ser
compensadas
por ativistas contemporâneos, e tanto o governo
representação histórica está ligada i quanto o Baader-Meinhof viam seu oponente como aameaça nazista
natureza problemática da própria identidade. História, memória ressurgente. 30
e identidade
podem ser marcadas tanto pelo desejo de unificação
ou
e integração como por processos de descentramento, pluralizaçio |30 EssaOral dinâmica éinvestigada cuidadosamentee com uso extensivo de história
diviso. O
trauma paradigmático desses últimos processos. A
lem
experiencia traumática tem dimensões que podem ameaçar
Ouate
Red ArmyVARON, Jeremy.
Faction, and Bringing the War Home: The Weather Undergound, the
Revolutionary Violence in the Sixties and Seventies. Berkeley:
160 161
DALUMA. HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE. o QUE RESTA

Million (1993), Tom Segev tratou


Em The Seventh da já está
israelenanstuerezana
do ressurgente
cenário nazista na política julhode 1982: "Hitler morto, Sr.
c dos efeitos
1 Por exemplo, ele cita David outra vez,Sr. Begin, o senhor revela ao olhar
público umaPrimeiro-Ministro.estranha
. Uma
geraçãopÓS-guerra. 1951. falando a membros
13 de dezennbro
de
aos seus sobreviventes do
de seu Ben-partido,
Gurion,comem c
necessidade de ressuscitar Hitler afim de matá-lo
na forma de
terroristas. Esse
todo dia de
impulso reviver e obliterar repetidas
de
novo
particular referência
queremos chegar de
novo àsituaço em que vocês
nazistas árabes venhanm e nos Massacrem"
Holocausto: "Nàn
estavam. Nào vezes é o
resultado de uma
melancolia que os poetas devem
mas entre homens de Estado é um risco que pode levá-losexpressar,
querem0S que
assim como para o promotor 369). (p. caminho de perigo mortal" (p. 400).
por um
Para Ben-Gurion,
arelevância do
julgamento de Eichmann, em Gideon
1961, Hausner, Benjamin Netanyanu as vezes parece operar com uma com
indivíduo Adolf Eichmann. Notadamente por meio de transcendeuo binação de raccionalidade instrumental e Realpolitik. Mas, no seu
cujo depomento podiater apenas uma relação indireta e
com Eichmann, ojulgamento rompeu osilêncio na própria
testteamunhas
ngencial
discurso no Museu Yad Vashem de História do
Holocausto em
Jerusalém, em 27 de abril de 2014, no Dia de Memória do Holo-
respeito do Holocausto e suas vítimas, eserviu
Israel a causto, sua abordagem foi um pouco diferente. Para extrair
nação. Além disso, Segev écitado como tendo dito que
também
para unificar a possí-
veis lições do passado, Netanyahu apoiou-se em um tropo do tipo
quena que todos reconhecessem que "seja o que for que o mundo
Ben-Gurion «hoie-assim-como-entao , traçando um paralelo direto entre a
deve às vítimas, elas agora devem a Israel" 132 ameaca que os nazistas constitulam aos judeus no período que levou
No The Seventh Million, Segev ao Holocausto e a ameaça contemporanea que o Irå representava
própri0 apresenta Menachem
Begin comopré-possuído pela memória do Holocausto. tentnd para Israel. Ele afirmou:
tormá-lo parte da cultura de todos os 1Sraelenses, quaisquer que fo
Disse várias vezes aqui que devemos identificar a tempo uma
sem suas origens, e propenso a repetir seus cenarios nas situacÑes
ameaça ànossa existência e agir a tempo... O Irã pede nossa
políticas atuais. Segev retere-se a uma carta ao presidente Ronald
destruiço... Hoje, assim como então, há aqueles que mini
Reagan na qual Begin `escreveu que a destruição do quartel-general mizam a retórica extremista do Ir£ como algo que atende a
de Arafat, em Beirute, dera-Ihe a sensação de ter enviado o exército
propósitos domésticos. Hoje, assimn como então, há os que
israelense a Berlim para destruir Hitler em seu bunker" (p. 399-400), veem as ambições nucleares do Ira como fruto de uma vontade
Com aparente concordancia, Segev cita o destacado escritor Amos natural de uma nação orgulhosa - uma vontade que deve
Oz, escrevendo em um jornal israclense (Yediot Aharono), em 2de ria ser aceita. E, assim como então, aqueles que tazem essas
afirmações estao se iludindo. Cometem um erro histórico.!3)

University of California Press, 2004. CO livro de Varon é um óimo exemplo de Com a existência do Estado de Israel e seu poder militar (seus
historia comparada crítica, ao tratar conjuntamente, mesmo atento às diterenças aliados, notadamente os Estados Unidos, n-o foram mencionados),
entre ambos, do Baader-Meinhof alemão e do Weather Underground dos havia, para Netanyahu, uma diferença decisiva entre antes e agora:
Estados Unidos. "Diferentemente de nossa situacao durante o Holocausto, quando
13
SEGEV, Ton. The Seventh Million: The Israelis and the Holocaust. New York: eramosindefesos como folhas ao vento, agora temos grande poder
Hill&wang, 1993.
132 Ver ESLER, Gavin. How Nazi Adolf Eichmann's Holocaust Trial Uniied
Israel. BBC World News, Apr. 6, 2011. 1Disponível em: htp:///www.bbc.com/ Ver FULL Transcript of Netanyahu Speech tor Holocaust Remembrance Day.
news/world-12912527. Acesso em: 1° jun. 2016. Sponivel em: htp://www.timesofisrael.con/full-transcript-of-netanyahu
Peech-tor-holocaust-remembrance-day/. Acesso em: +dez. 2015.
162
163
hALMA HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: O QUE DESTA
COMPREENDER OUTROS

qualquer missão'"
-oternmo hebraico seria " Shoah"). No decorrer dela, quase 750 mil
detender. e cle cstá pronto para Na ex árabespalestinosfugiram ou foram expulsos de suas casas, o
tensão
para cm que CSsas declaraçòcs possam ser tomadas ao pé da letra
nos
que crioue
reconhecendo aforça da imenso problema de refugiados para eles, seus descendentes
como memória
ao
oufazer vistas
talvezuso ideológico e político dela, Netanyahu pareceria estar
quadro de referência de seus
traumatica paraIsracleo Oriente Médio em geral. Olançamento previsto de
um

umlivroem hebraico (com otítulo, em tradução, de OHolocausto


Begin. do
dentro nesmo
Além predecessores,
do mais, em comentários imprecisos, incendiarios,cOmo
fej- Nakba: memória, identidade nacional e a parceria judaico-árabe), no
eaian Leer, em Jerusalem, com foco em uma abordagem do
Congresso Sionista, em 2015, Netanyahu de fatto culpou
no 37° por iniciarem o genocídio durante o Holocausto, ao
tos
os palestinos Holocausto e da Nakba multidimensional erelacional, em vez de
Hitder não queria exterminar os judeus hostilmente comparativa ou Competitiva, atraiu críticas daqueles que
atirmar que
para o grande mufti naquela
de Jerusalépoca, não obstante encaran o evento como envolvendo nao uma mera
queria expuká-los", eapontou ém, somótia competitiva, mas O que veem como uma inadmissíve (o
como quem ter1a convencido
Haj Amin al--Hussein, 134 Hitler a
passar mesmosacríilega) comparaão com o Holocausto. Odiretor do Van
daexpulsao ao genocídio.
Para muitos israelenses, a guerra de 1948 é vista e celebrada em Leere professor emérito da Universidade Hebraica Gabriel Motzkin,
Estado independente. "um sionista de corpo e alma", defendeu o evento e
termos da conquista de um Para muitos pales- que afirmou ser
tinos eseus simpatizantes, ela é a Nakba ("catástrofe" ou "desastre" oitado como tendo dito queo livro "tem várias visões diferentes"
incluindo váios artigos de "direita", e que "a real questão arespeito
Nakba é que a sociedade israclense `não se dispõe a compreender
1 Ver, por exemplo, a reportagem de Greg Botelho para a CNN de 22 de oubibes a. o raumaque constitui a identidade desse outro povo". 135
2015. disponível em: http://www.cnn.com/2015/10/21/middleeast/netanvab Seriaequivocado ignorar as reais ameaças impostas a Israel por
hitler-grand-mufti-holocaust/ (acesso em: 23 out. 2015). Diante das criticas seus inimigos declarados, entre eles o lr, ou deixar de mencionar o
disseminadas, incluindo a de historiadores israelenses, Netanyahu retratou-se dess
declaração 10 dias depois. Ver RUDOREN, Jodi. Netanyahu Retracts Assertion tratamento severo de refugiados palestinos em outros países. 36 Ainda
That Palestinians Inspired Holocaust. New York Times, Oct. 30, 2015. Disponível
em: htp://www.nytimes.com/2015/10/31/world/middleeast/netanyahu
retracts-assertion-that-palestinian-inspired-holocaust.html?_r=0. Acesso em: 8 5 Ver SOLOMON, Ariel Ben. Israel Unwilling to Understand Nakba, the
dez. 2015. Não obstante, o fato de Netanyahu estar de início inclinado afazet Trauma That Constitutes Palestinian Identiry. Jernusalem Post, Aug, 28, 2015.
uma declaraçãotão extremada, até bizarra, é indicação significativa de seu estado Disponível em: http://www.jpost.com/Arab-Israeli-Con tict/ Israel-unwilling
mental. O assassinato político de Yitzhak Rabin, em 4 de novembro de 1995, to-understand-Nakba-the-trauma-that-consitutes-Palesinian-identity-+13486.
foiempreendido por Yigal Amir, um judeu ortodoxo que se opunha àiniciativa Acesso em: 3 dez. 2015. Claro que o próprioMotzkin e outros israelenses, como
de Rabin de uma paz sustentada, com base em que a retirada da Margem Dan Bar-On e Amos Goldberg, estão tentando fomentar uma ativa apreciação
Oadental iria negar aos judeus sua herança bíblica presumivelnmente reclamada dos apuros e sofrimentos dos palestinos e, apesar dos problemas aparentemente
20 estabelecer assentamentos.O assassinato de Rabin teve efeito desastrosamente nsoluveis, fomentar o processo de paz. Para um estorço colaborauvo
hre umn palestino e um israelense, ver BASHIR, Bashir; GOLDBERG.
assustador para oprocesso de paz, incentivou a nomeação de primeiros-ministros
de direitae instigoua construção de assentamentos nos territórios ocupad0s, Amos. Deliberating the Holocaust and the Nakba: Disrupive Empathy and
frequéncia ilegalmente financiados com fundos do Estado e abrigando cerca u Binationalism in Israel and Palestine. Jounal of Genoaide Reseurh, v. l6. n. l. p.
400 mil "colonos", cujo número continua a crescer. Ver o documentário de T7-99, 2004. Ver também o relato empático e informativo em ROBERIS,
Shmon LDotan, The Settlers, lancado em janeirode 2016 no Festival de Cnc Jo. Contested Land, Contested Menory: lsrael's Jeus and Arubs and the Ghosts of
Sundance, bem como a entrevista de Dotan no local, com Amy Goodman,em 28 Catastrophe. Toronto: Dundurn, 2013.
de janeiro de 2016, disponível em: http://www.democracynow..org/2016/I/28/ |6 Entre os mutos comentáios sobre a questão, ver, por exemplo, KHAZAN,
Olga. Refugee: Palestinians in Arab Countries Have It Bad, Too. lWashington
the_settlers_new_film_ reveals history (acesso em: 29 jan. 2
164 l65
TDAUMA, HISTORIA, MtMOIA, IDENTIDADE:O QUF RESTA2

assim, o govenoIsraclense tem tratado os teritórios ocupados de


invocadaé uma noção que assegura maior reflexão e
violentos, que enfrentam oposição de Já fundador ou fundacional.
otrauma otrauma que carrega uma pesquisa:
carga
modosrudes e um
da população
incluindo Refuseniks!" no
israelense,
a Israel e às suas forças arnmadas, exercSegnent
ito, o
que, afetiva
poderosa e pode ser transformado transvalorado
ou de manei-
embora devotados recusado a têm achado rasideológicas.139 Aqui, uma crise catástrofe que desorienta e às
inaceitáveis e se
certas politicas invertido, com os judeus ou os implementá-las,
israelenses Mas o vezes devasta
uma coletividade ou um
individuo pode estranhamente
cenário pode ser se tornar a base de uma origem ou umn mito de origem renovado
árabes ou, mais
neonazistas, e os Sendo
Vistos conno os especi
às ticamente, os
vitimas. Sem ser capaz de fazer jus
que autorize atos ou políticas que apelam aele para
justificação.
palestinos, como
complexidadesaela,
da situação no Oriente Médio ou às reações norte-americanas
extremismo e do terrorISMo
Um trauma
fundacional e um mito de
origem correlato
operacionaistanto em histórias escritas quando na
memória
podem ser
coletiva
incluindo o papel do em
recentemente alcançaram ponto alto com o segment
Esta do os do (ouindividual). (Por exemplo, o papel, até recentemente, da Re-
Islå que
eu simplesmente destacaria oque deveria ser evidente: Islâmico, sem
atribuir
volução Francesa na história, na memória e nas politicas da França,
fenômeno ao qual foi dado sentido
excessivo peso causal ao
trauma ea seus efeitos.
deve-se não obstante explicitamente eimbuídode
fatosacrificial, por Joseph de Maistre na extrema-direitareligioso,
insistir em que um aspecto lamentavel, de repetição mais o,
de religiosidade mais secular por Jules Michelet eoutros na tradicão
compulsiva, é obscurecer aimportância de outros fatores
e limitar
republicana. Um ponto de certo modo análogo pode ser levantado em
severamenteopçöes politicas e sociais no presente que iriam e . relação à Guerra Civil nos Estados Unidos e seu legado de lealdades
entre outras coisas, uma cuidadosa analise do papel às vezes mav
dvididas e fervorosos compromissos, quando não de um percebido
lador das forças presentes, bem como uma tentativa de o perlaborar
passado, em vez de deslocá-lo erepeti-lo sob ainfiuência (ou fazendo
*choque de civilizações". Tenho aludido ao papel do Holocausto
como trauma fundacional controverSo, experimentado por alguns
uso) de memórias traumáticas, compulsivas.138 como um tremendum religioso ou como base de uma religião civil
formadora de identidade. Os exemplos poderiam ser multiplicados.)
Post. Nov. 30, 2012. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/ Otrauma não perlaborado, especialmente quando é fundacional ou
news/worldviews/wp/2012/11/30/palestinians-israel-settlements-arab estrutural, pode se tornar detestável e autocentrado, prestando-se
countriesrefugees/. Acesso em: 2 dez. 2015.
a alguns usos e abusos muito dúbios. Pode até assumir um status
197 Termo forjado durante a Guerra Fria, originalmente empregado para designar
pessoas aquem se negava o direito de emigrar da União Soviética e outros paises
do bloco socialista, sobretudo judeus que desejavam se instalar em Israel. Com Friedman. Friedman escreve que, para Burg (antigo membro e presidente da
otempo, a expressão passou a ser utilizada em inglès para designar qualquer
pessoa que se recuse a fazer algo, e vem sendo particularmente mobilizada em Kneset [assembleia legislativa unicameral de Israel), "a memória do Holocausto,
referencia asoldados israelenses que rejeitam o desempenho de deterninadas politicas identitárias e o conflito Israel-Palestina estão indelevelmente ligados
funções, sobretudo nos territórios ocupados da Palestina. Ver: REFUSENIK. por trauma, e a incapacidade de resolver os efeitos prolongados desse trauma
In: Justvision. Disponível em: https://justvision.org/glossary/retusenik, e tem prejudicado todos os esforços para a paz. Nos anos transcorridos desde a
publicação do livro de Burg, em 2008,Israel tem se afastado ainda mais do lugar
REFUSENIK. In: Wikipedia. Disponível em: https://en.wikipedia.org wIki
Refusenik. Acesso em: 25 jan. 2023. (N.R.) de cura e reconciliação para o qual ele apela, e em vez disso se move para um
lugar de maior medo e raiva" (p. 37). Infelizmente, um segmento sigithcativo
Relevantes a esse respeito são discussões na revista Tikkun, ass1m como o a população dos Estados Unidos tem se mostrado recentemente muito próxima
de Avraham Burg, The Holocaust Is Over. We Must Rise from Its Ashes (NeN desse lugar assustador.
York: Palgrave Macmillan, 2008). Ver também a resenha des. em os duros
efeitos da guerra, se livro em Tikkun, v. 26, n. 2, p. 37-39, 2011, de Jonathan Compare com minha discussão in Writing History, Writing Trauma, cap. 2, esp.
p. xii-xiv e 80-85.

166 167
COMPREENDER OUTROS
TRAUMA, HISTÓRIA, MEMÓRIA,
IDENTIDADE: OQUE RESTA?

ambivalentemente sagrado ou sublime, de una natureza considerando aanimosidade em


assomnbrosa. ao
meSImo relação aos
politicas. Na esteira da Guerra Estados Unidos e aal-
aterrorizadora e gumas de suas
tempo tradições esociedades ocidentais
que poderia unir o pais em
Fria, o9/11 criou um
origem. fazem apelo a n0vo inimigo, que
As chamadas fundaci01nais como mitos de
A noção mais solidariedade contra os
traumas terroristas ou mesimO Contra a
cle tiveran
dassociedades
"culturas
modernas
de
como tendo excess1va memória o
trauma" pode ser míope e às
ou
vezeS
concexCep-
epção repetida
invocação da guerra ao terrOr tem
abstrata do terror em si. A
funcionado para
desviar a atenção de outros problemas, entre eles abloquear
cionais
Adão e Eva, como
tratada em boa parte do
exagerada, Oupara
traumatizante dos natureza
Aqueda de
desempenha opapel de um
trauma fundacional, deixando
presença divina e"pecado
criumstianilsengadomo, destrutiva e bombardeios norte-americanos no
Oriente Médio. Também tem servido para justificar a
da vigilância e da coleta de dados e para legitimar aintensificação
ambivorialegntineal, "li.gada à
de exilio, distância da suspensão de
como uma felix culpa Pode
também ser interpretada direitos constitucionais para aqueles acusados de terrorismo, às vezes
espiritualidade renascida, mais
redenção e àesperança de uma ensejando ou mesmo autorizando o uso de terror e
Opecado original tem tido um bom futuro sob o cristianismo, bem elevada. lidar com esses suspeitos. 141 Algo que se tornou um dilema para os
ao traumatização
seculares (como o crime primordial
como em análogos de Freud e Estados Unidos é como seguir outras políticas que não as militaris-
a"herança arcaica" de culpa, o"real" lacaniano ou osublime me-
após o 9/11, com seu efeito
tas e repressivas sobre a
lancólico e/ou traumático). Quanto ao Novo Testamento,
junto à nacional e o senso de identidade perturbado 142 (auto]imagem
Queda eao pecado original, o novo trauma fundador é,
a agönica crucificação de Cristo, que redime os fiéis da herança de claramente, Devoencerrar voltando brevemente a uma questão densa em
termos éticos, políticos e afet1ivos, que étundamental para o pro
culpa que deriva do pecado original. Junto aseu irredutivel sentido Alema da identidade e da "formação de identidade" e em relacão
religioso como signos de santidade, os stigmata têm, como uma de qual ainda há muito a ser feito: a questão dos estudos críticos
Suas interpretações talvez óbvia, mas ainda ass1m pertinente, seu statys
como efeitos pós-traumáticos em alguém que se identifique Com e
incorpore avida de Cristo a ponto de reviver psicossomáica e psi 14 Sobre o uso ilegal da tortura na administração de George W. Bush, ver o relatório
quicamenteo que, de fato, não viveu: o sotrimento e a crucificacão sumário do Senado divulgado em outubro de 2015 em http://www.nytimes.
com/interactive/2014/12/09/world/cia-torture-report-document.html?_1
140
de Cristo, levando àsua morte e ressurreição.
(Acesso em: 4 dez. 2015).
Nos Estados Unidos, os devastadores ataques terroristas de 11
RNotável é o argumento de Judith Butler em favor de transtormar o luto de si
de setembro de 2001 foram imediatamente percebidos como um próprio nos Estados Unidos após o 9/11, que se prestou a violencia e guerra,
novo trauma fundador, suplementando e talvez deslocando mitos numa torma de pesar que reconheça e respeiteo mútuo dano evulnerabilidade
de origem anteriores. O11 de Setembro, ou 9/11 [nine-eleven), com base na própria despossessão do self e na marca inconsciente da minha
também alcançou logo uma qualidade quase sacral, dando lugar a sociabilidade primária" - viso que reverbera noções de transferência ealteridade
eventos comemorativos e tornando quase um tabu certos tipos de (incluindo alteridade no interior do self, notadamente processos inconscientes).
analise critica, por exemplo, das causas de um evento comoesse, Ver BUTLER, Judith. Precarious Life: The Pouers of Mouning and Violence. London:
Verso, 2004. p. 28 Jedicão brasileira: Vida precária: os poderes do luto e da violênia.
a0 mesmo tempo chocantemente inesperado e muito previsivel,
Belo Horizonte: Autêntica, 2019). Tenho sugerido que a transferência esti
relacionada com aprópria "'sociabilidade primária", a0 envolver implicação com
Ja aludido no capítulo 1é o livro de Alan lacobs, Original Sin: A Cultural Hisiory tOS, ncluindo, penso eu, outros animaise"objetos" de estudo afetivamente
Cgados. Um problema-chave é como entender as possibilidades e os liutes de
um relato episódico, mas de longo alcance, do pecado original, incluindo a , dssn como a responsabilidade com respeito a vulnerabilidade, recepavidade
importáncia de Paulo e Agostinho em sua elaboração. eimplicação múua do self e do outro.

168 l69
TRAUMA, HISTÓRIA, MEMÓRIA.
COMPREENDER OUTROS IDENTIDADE: OQUE RESTA?

questioé muito pertinente a uma numarelação cooperativa, mas outras vezes sob o
Essa autointeressado controle dos humanos l44 hegemônico e
sobre animais.
da história,
da memória
e do trauma, e demanda
permitamlevantar apenas certas atquestenção, disembora
cus åo apontei para a óbvia
Já especificidades e questão de se a multiplicidade de dife-
restriçòes óbvias
mais ou
menos
contrOVersas öes, tomular similaridades tanto entre
em uma humanos quanto
e tentar renças,
algumas afirmações
discussões adicionais.
Eric Baratay ao apresentar seu
instigar entreestes
e os animais pode ser
totalizada
quejustifiquea postulação de um hiato ou rupturaoposição
decisivabinária
entre
Como escreve
Le Point de vue
animal: une autre version
de l'histoire: A ambihicisotósoria,estcons-udo "humano e o animal - uma ruptura ela mesma às
trauma fundacional vezes vista
truída por sociedades humanas, é sempre contada Como Uma aven-os como uim afastandoo humano animalidade
e doinstinto para levá-lo ao reino "mais elevado"dada cultura. 145
tura que diz respeitoapenas aos humanos (l'homme). No entanto,
ou ainda participam Talvez, em
termoS mais básicos, seja possível questionar aprópria
animais têm participadofenômenos
grandes eventos ou
dos
Baratay destacando que mesmo
abundantementPode-e se
lentos da civilização" 43 dos motivação que induz repetidas vezes na história o desejo de
Critérios decisivos (mas recorrentemente situar
mutáveis, contestáveis
reforçar a asserção de os
ao universal e ao global são geralmente restritasrefer(Como
a
humanos. ências erecalibrados) que presumivelmente separam ou criam um hiato
entre humanos e outros animais. Num sentido
Abservado anteriormente, o genocidio, mesmo quando estend importante, um
grupos nacionais ou étnicos, continua oeimento transtormador serna que o próprio sintoma a ser
a outros que náo confinado
a humanos, excluindo espécies animais, e a noção nerlaborado - em termos psiquicos, éticos e políticos - fosse esse
Crimes Contra ahumanidade não
e de crimes
contra humanida.
a
relacionada de desejo repetitivo, aparentemente compulsivo, decorrente da fxacão
de ou outros animais.) Envolver-se no problema levantado nr antropocèntrica, e o impulso de ter conhecimento seguro, essencial.
Baratay exigiria estender a pesquisa além dos humanos e realcar arespeito do que significa exatamente ser humano. (Pode estar
aimportância de descentrar e situar os humanos em uma rede da em jogo também uma busca mais ou menos deslocada de reden.
relacões mais ampla. Envolveria um cuidadoso estudo comparati c£o" da animalidade e incorporação.) Esse reconhecimento pode
vo de memória, trauma, afeto e 1dentidade com respeito a outros servir para fomentar uma orientaço outra que não a antropocên
animais, e uma comparação não injusta entre humanos e outros trica, que é voltada para demonstrar uma suposta autoidentidade
animais com ênfase em suas interações e coevolução. E destacaria a esuperioridade humanas, quando não o excepcionalismo, e com
múua dependência num contexto ecológico mais amplo, às vezes excessiva facilidade serve para justificar usose abusos humanos de
outros animais.

BARATAY, Eric. Le Point de vue animal: une autre version de l'histoire. Paris: *Nesse relato, pela atencão dada ao trauma e a seus efeitos, concento-me na
Editions du Seuil, 2012. p. 11. Tradução minha. No entanto, a obra de ultima eventualidade, mas sem negar em nenhum sentido relações mais pos1tvas
Baratay, junto àde outros, indica que estão ocorrendo mudanças. Ver também e benéficas entre humanos e outros animais que ambos possam relembrar muito
BARATAY, Eric; HARDOUIN-FUGIER, Elizabeth. Zo: AHistory of bem. Tais relações são cruciais para impedir ou se contrapor aos eteitos do
Zoological Gardens in the West. Transl. Oliver Welsh. London: Reaktion Books,
2004. Um exemplo importante do maior interesse dos historiadores nessas
rauma, como evidenciado no papel de certos animais em terapias para humanos,
sim cono no posível sucesso de cuidar de animnais traumatizados.
questoes éaedição especial de History and Theory, v. 52 (Dec. 2013), editada e
com introdução de Gary David Shaw. Em seu lúcido ensaio introdutório, Shaw EsSa chamada passagem da natureza à cultura foi abordada por muitos, como
elucida o aumento do interesse histórico por animaise suas relações com Dgmund Freud e Claude Lévi-Strauss, Pode-se defender que esteja em jogo
humanos, assim como os problemas teóricos,outros
conceituais e metodológicosque a Queda e no pecado original, em que a serpente é colocada como tator de
Peso", e os humanos se senarann do restante da natureza.
acompanham esse giro.
171
170
COMPREENDER OUTROS TRAUMA, HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE o QUE
RESTA?

observado no
capítulo 2, Frans de
Waal, seu liAni.yro Aimal,148Singer argumenta
que o capitalismo
de espirituosotítulo Ar We Smart Enouçh to Know HowemSmart
Conno Livesof
"especismo", quetem
existidoem
muitas não o causou
inteligência e e culturas regimes políticos,
e, euacrescentaria. cuja própria história ao longo do tempo e do es-
enfatiza os diversos tipos de
mals Are?,
diterentesanimais,
como notáveis feitos cognitivos eda m em
ele defende diferenças de grau, nåo de
habimemór
lidadeia
l46 paço
oferece vaasto campo
otimista que a de
para
pesquisa
Pacelle quanto comparativa.
às
Mas, de maneira
Como Darwin, animais, e
observa que "as alegações detipo, entre
singulari
menos
básicasob
possibilidades de mudanca
o capitalismo, Singer indica como a
humanOS e outros
percorrem um ciclode quatro estágios: bás1ca motivação de lucro
nentadopode impor barreiras a uma economia humana
tipicamente são
claudirdesonr
epetidas
dade achados,
são desafiadas por novos vão oumorale agravar a exploraço de outrOS animais (e,
muitas vezes,
para a
aposentadoria eentão
sâo descartadas num túmulo
que se interprete a complexa
canteos- ser óbvio,
também de outros humanos). Sem
ve-as
cstruturaiscom respeito à relação entre humanos e
como deve
como mudanças
similaridades e diferenças com oapoio qualquer configuraçãocritériode
so"(p. 126). Mesmo de outros animais,
ctaca com aprovaça0 Ceras reTomas, como a proibicão. na
suposto
questão de se, e de que CalifQrnia e na União Europeia, de
de diferenciação, permanece a maneira, 1S50 engradados
para vitelas e porcas
validaria oS usos e abusos humanos de outros animais - uma grávidase de gaiolas em bateria para galinhas poedeiras, recintos ex-
que teria de ser tratada
nâo em bases questão
estritamente cientificas. Bente confinadores que impedem movimentos básicos como
eticas epolíticas. Uma consideração inicial é que, dado que os ani- mas
deitar ou girar." Mas Singer observa também oquanto
ficar em pé,
humanos, uma notadamente nos Estados
mais estão sob supervisão e controle condição ética éainda permitido, Unidos, com seus go-
é de que modo
mo se
mínima em seu tratamento permite que vivanm, os federais e estatais amigaveis aS negócios, mesmo diante do
assim como morram, notadamente quando såo mortos para co. significativo ativismo público de defesa dos "direitos animais" que
mo humano. (Essa tem sido, e claro, uma importante preocupacão com freguência fracassa em fazer parte da ação govermamental e da

na obra de Temple Grandin, que tratou de maneiras de impedir ou pauta dos grandes partidos politicos. Ele observa que "a esmagadora
pelo menos mitigar a traumatização de an1mais em abatedouros ) maioria de vitelas, porcos e galinhas poedeiras vai [..] ainda ser man
Essa condição está longe de ser aceitavelmente atendida em muitas tida enclausurada, em grandes galpões superlotados, eas refomas não
empresas do agronegócio e emn fazendas industriais, 147 fazem nada para mudar o modo como são transportados e abatidos.
Uma avaliação matizada das possitbilidades e dos limites de re Enenhuma dessas reformas tampouco toca na produção industrial
forma sob ocapitalismo éoferecida por Peter Singer em "Open the de frangospara alimento, o que John Webster, profesor de criação
Cages!", uma resenha do livro de Wayne Pacelle The Humane Eco animal na Escola de Ciência Veterinária da Universidade de Bristol,
nomy: How Inovators and Enlightened Consumers Are Transfoming the ]descreve como em magnitude e severidade, o exemplo mais
grave e sistemático da desumanidade do homem em relação a outro
1* DE WAAL. Are We Smart Enough to Know How Snart Animals Are?. De Waal
oferece uma visão geral da pesquisa recente e uma vasta bibliogratia. Seu
trabalho mostra também a possível extenso de vínculos, respeito e ateto entre PACELLE, Wayne. The Humane Economy: How Innovators and Enlightened
os humanos e os animais com os quais Consumers Are Transforning the Lives of Animals. New York: HarperCollins,
interagem.
Não épreciso apelar a distinções descabidas entre câes e outros animais 0u 2016. Aresenha de Singer está na New York Review of Books, de 12 de maio de
posiçöes enganosas entre oOcidente eacultura chinesa para achar inacentave U10, P. 22-26. Pacelle tornou-se, em 1° de junho de 2004, presidente e CEO
o"festival da carne de cachorro', em Yulin, que envolve práticas como mutilar, da Humane Society dos Estados Unidos.
torturar e ferver cães vivos, ao que parece pela equivocada crença de que o 149 Ess
Essa restrição de aspecto-chave da câmara de tortura "little
trauma eo estresse realcem o sabor da carne.
movimentos era um
ce lpouca folga), por exemplo, na Torre de Londres.

172 173
TRAUMA, HISTORIA, MEMORIA, IDENTIDADE: OQUE
COMPREENDER OUTROS RESTA?

vigentes, não
sencicnteUSinger
acrescenta: "Os
problennas da se práticas
estruturas
especial1mente Os pobres. Oponto
podem ser opção viável para todos,
animal
de trango nào se
devemapenas ao
rastosgalpôcs superlotados, com
fato de as aves
u1
serem
ar fedendo à produço
amôniaCriaddeas em outros
animais
e
não
mais geral e que o
ésimples questão de livre tratarmento de
escolha ou de gosto.
acumulados. Oproblema
mais fundamental é Seus questão ética política, cuja natureza problemática
dejetos que oS É conta de uma complexa rede de requer que se
rapidamentetrangos
vezes
de hojesâo
ciados para crescer tres
1950. Agora eles estão
mais
prontos para o que os
tentedar
e de ser.
queligamhumanos e outros animais com diferentes modos similaridades diferenças
Criados na década de certas áreas,
as
decisões parecem ser mais
quando tem apenas
seis semanas, e suas penas imaturas no Mercado Em
outras. Tenho prontamente visíveis
sugerido uma consideração
que
frangos aguen-
26). Como há 8 bilhões de
(p. queem básica e que
tam o peso ganho" nos Estados Unidos, 2,6 animais são
tratados ou
anualmente para abate bilhões de
aves criados o modo Como outros
quando1isso estásob controle obrigados a viver antes
crônica pelo último terço de sua curta vida.
Em Vivem de morrer, humano, écondição propi-
em dor
deploráveis condições desses animais, o discurs0 do às relaçào
trauma pode
ciatóriacrucial paradecisões
a
adicionais que tenham isso
como pres-
parecer eufemístico. 151 Suposto. Muitos, talvez maioria, dos aspectos da criação industrial e
emerja do questionamento de importantes componentes da experimentação
animal para osuposto
Oque penso que uma divisão beneficiode humanos são injustificáveis e
radical entre humanos e outros
animais não éuma
onentação ser
mercantilização, à concepço de outros seres como "bensditados
tendema
pela
dogmática, etalvez
autoenaltecedora. por exemplo, de simples,o de huma-
vegetarianismo ou se opor a qualquer forma de defender s"easua redução a objetos de controle manipulativo subscrito pela
nos*

mesm0 não invas1va. O vegetarianismo, ou experim entação,


mesmo veganismo,
0 falta de respeito as suas
formas de vida. Pode-se argumentar que há
édefensável em muitos aspectos. Mas, sem grandes mudancas n obrigação de ser o mais informado posivel quanto às condições sob
anais outros animais sao crnados, tratados e sujeitos a um regime
visto de modo questionável como sob dominio soberano do huma
i5 WEBSTER, John. Aninal Welfare: A Cool Eye towards Eden. Malden. MA: no, que brinca de Deusou busca a autorização de uma divindade.
BlackwellScience, 1994. p. 156, citado na resenha de Singer sobre The Hunae Uma questão crucial aqui ése uma orientação diferente en
Economy,de Pacelle, na New York Review of Books, p. 26. volveria ir além do quadro de referência em que "o animal é o
15 Apesar da disponibilidade de mais informação, certos modos de tratar animajs naradoxal "outro", mera vida ou comida e ao mesmo tempo objeto
ainda podem estar sujeitos àoperação do segredo aberto, isto é, apessoa conhece sacrificial a ser morto ou de outro modo tornado vítima para o
o suficiente para saber que, pelo menos em certo ponto e por razões variadas beneficio material ou espiritual de algum ser "superior" (incluindo
(incluindo apreensão quanto a efeitos perturbadores sobre si mesma), ela não
quer saber mais. Deve-se, não obstante, notar que humanos que lidam com seres humanos).Seja como for, o modo como humanos eanimais se
animais de maneiras talvez abusivas, às vezes por pressão de aceitar um trabalho relacionam é parte integral de suas identidades" complexas, longe
mal pago ou que ninguém quer, podem sofrer efeitos pós-traumáticos. Sobre de asseguradas, e um estudo comparativo das variações nessa relaço
trabalhadores em abate, ver, por exemplo, STILL, Donald D.; BROADWAY, a0 longo do tempo e do espaço é preocupaço crucial da história
Michael J. Slaughterhouse Blues: The Meat and Poultry Industry in North Ameria. em sua interação com a memória, 152 Também indiquei que há um
Preface by Eric SchloSser. Belmont, CA: Wordsworth; Thompson Learning
2004. Além disso, "caçar" com um rife maldenominado "esportivo", como
aama de assalto AR-15 (facil de converter em arma totalmente automática e 152 Para um estudo instigante, ver SAX, Boria. Animals in the Third Reich:
tambem fiagTante ameaça ahumanos), não esporte, mas uma forma de chac1na, Pets, Scapegoats, and the Holocaust. Preface by Klaus P. Fischer. New York:
embora a caça convencional para obter comida, por pessoas versadas, POssa
COm outros aumaus nas
menos danosa tanto para animais quanto para oambiente do que certas formas Continuum, 2000, Para uma discussão das relações
de "criação" industrial. Sociedades de nativos norte-americanos,ver CAJETE. Native Siene, Cp. ).

175
174
COMPREENDER OUTROS
TRAUMA, HISTÓRIA, MEMORIA, IDENTIDADE: OQUE RESTA?

metafórico - mas inão "apena_" problematizeaa


envolvaa)imaginação, identidade
sentidon§o trivial,
qualse pode
dizer queohábitat ou oterritório t¿m
dessacralizados por procedimentos
1metafóiaricotalvez
1memór e
- no
possíveislimites à comunicação, ao
a
e
alteridadecoom respeito tanto ao self quanto aoSpermita
outros, incluindo reconhecer
atéquc
sçjamferidos e
como a perturação co
invasotvoshi, pessoalde contatar outro ser. autoconhecimento
ea
Além disso, deve ser "sentir o
bombardeio, fraturament
destrutivos, exploratórios,
nâo falar do
jeito compaixão não é. suficiente para a evidente que a
dráulico[fracking], para
vezes não notados, em animais
com seus efeitos
empatiaou
contextualização, ateorização e ojulgamentocompreensão ou ação, e
desastrosos, muitas em críticosão contrapesos
nas casas,
nas Iuas e
na
natureza. 153

referência para incluir


zoológicos, a
importantesà tendência a uma
traumatizaçãosecundária),155 identificação não mediada (e possível
Mudar o quadro de outros animais n·o
panaceia ou inscrnto em uma
precisaser visto como mitologia a era Eu enfatizaria que oargumento geral da discussão
dourada. Nem tem de obliterar distinções, depreciar humanoS OU tem sidoreverter
binários fixados hierarquias relacionadas,anterior
e
seja
não
entre
sido feitosob a rubrica do humanismo, rejei- humanoS e outros animais, seja entre história baseada
tartudo quetem
entretecido na rede Como
de tenho padrão e opapel
do trabalho da
memória,
em arquivos
sugerido, deve ser visto como
história,
inteira
memórla, trauma e problemas reconhecimento de e tentativa de perlaborar
especialmente em seu
já levantados em relação a identidade. legados traumáticos
Pode-se também criticar o antropocentrsmo junto ao pervasivos. O argumento tem sido mais impulsionar um quadro de
humanoe
excepcionalismo
ainda assim reconhecer o papel às vezes benéfico ou
ate
referência diferente, com complexidade e flexibilidade
aumentadas.
ineitável de um antropomortismo criticamente testado, que envole Nesse processo, tenho questionado arejeiço excessivamente geral
processos similares aos operantes na empatia. * Empatia ou comnaiwd
e n·o uma identificação não mediada (projetiva ou incorporativa)
155 Tentei explorar esses temas em outras obras, notadamente em Wntino History
permite aescuta ativa (ou leitura, incluindo a a linguagem coporal de
Writing Trauma. Para uma visão estreita e uma abordagem truncada da empatia.
animais) eacompreensão reativa, embora possivelmente crítica eauto que, como previsível, rejeita sua pertinncia para compreender e reagir a
crítica. Pode-se entender a empatia como envolvendo um laço afetivo problemas importantes, ver BLOOM, Paul. Against Empathy: The Cse for
que em certo sentido inlua, embora também limite, a identificação, Rational Compassion. New York: HarperCollins, 2016. Bloom simplesmente
funde empatia e identificação, separa emoção de razão e defende o que, num
oximoro,chama de compaixo racional". Na crescente literatura sobre relação
humanos/animais, ver, por exemplo, WEIL, Kari. Thinking Animals: Why
153 Mas ver KEAN, Hilda. The Great Cat and Dog Massacre: The Real Story of World Animal Studies Now?. New York:Columbia University Press, 2012, eWOLFE,
War Tuo's Unknoun Tragedy. Chicago: University of Chicago Press, 2017, sobre Cary. Animal Rites: American Culture, the Discourse of Species, and Posthumanist
a históriamuito reprimida ou suprimida da matança de animais de companhia Theory. Chicago: University of Chicago Press, 2003, benm como WOLFE,
por londrinos em pånico nos primeiros quatro dias da Segunda Guerra Mundia. Cary. What Is Posthumanism?. Minneapolis: University of Minnesota Pres,
Mais de 400 mil aninmais foram mortos, número seis vezes maior que o de civis 2010. Neste último, Wolfe afirma, sobre as relações com outros animais, que
mortos por bombardeios ao longo de toda a guerra. Duas razões contrastantes abase da justiça não s£odireitos ou mesmo capacidades, mas (citando Dernda)
dadas por Kean são apreocupação dos "donos" em "'sacrificar" animais queridos d mtude que partilhamos com animais, a mortalidade que pertence å propna
para que não sofressem os duros efeitos da guerra e a ausência de proviSots, initude da vida, a experiência da compaixão" (p. 81). Ver também DERRIDA,
pelo governo, para animais de companhia, vistos como bens de "luxo nucn Jacques. LAnimal que donc ie suis. Ed. Marie-Louis Mallet. Paris: Editions Gaile,
que tiravam recursos já escassos dos humanos. 000, traduzido por Davidwills como The Animal That Therefore I Am (New
154 Ver DASTON, Lorraine; MITMAN, Greg (ed.). Thinking with Animals: New
York: Fordham University Press, 2008), e DERRIDA, Jacques. The Beast °
Press, 2005.
Perspectives on Anthropomorphism.. New York: Columbia University the Sovereign. Transl. Geoff Bennington. Chicago: University of Chicago Press,
Ver tambemDE WAAL. Are VWe Smart Euouolh2. esD. p. 24-26, e, sobre c (1he Seminars of Jacaues Derrida, v. 2). Ver ainda meus History and ls
p. 132-133. Linits: Human, Animal, Violence e History, Literature, Citical Theory.

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COMPREENDER OUTROS

da memóna c dos estudos da memória


orientação binária. Tambémtenho rej
tentado eição baseada r
a historiografia e a memória criticamente promover numa
tendo uma relação suplementar, podem testada, maneir5 Cmrigta
Convergrentendida
passado autoquestionadora, no
uma representação do
no int ereSe
com uma relevånciamais desejável no mas ma\s e
presente e
historiografia que diferença presente no futuro. prAúecnsate,a
faz no e
bem ser uma que junte memória
comparavelmente testado baseado em
futuero pode muits,
criticamente testada
promover projetos coletivos buscando
Eclaro que os exemplos ou estudos de caso
documentos e
verdade,Comcompat x
os quaiso tex toconheciments
S, ara
ejuspiocdae-
riam muito bem ser reorientadossou
multipicados para ldo
outros. E, ao perseguir as iniciativas globais da inchuir mutos,
0sDroblemas se tornam malS, e nao menos
extravio (por exemplo, por meio de
histo
dificeis, rioegrasafiach Tecente,
intervenções
aumentam de modo alarmante. Aqui a melhor
diretiva
pode ainodas
uma variante da injunção verdadeiramente memorávelde
"Pessimismo do intelecto, otimismo da vontade"
"humanitánia'"
determinada, eu acrescentaria, não movida por uma vontade
de algo desconhecido, de um estado de coisas desejo apocaiptico
mas uma vontade contrabalançada e moldada por julgamento outo"
c
"totalmente
e conhecimento do passado.

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